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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NÃO TEMEREI O MAL / Robert A. Heinlein
NÃO TEMEREI O MAL / Robert A. Heinlein

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

O quarto era antiquado, no estilo barroco de 1980, mas largo, comprido, alto e luxuoso. Janelas com vistas cuidadosamente simuladas situavam-se ao lado de uma cama automática de hospital. Esta parecia deslocada, mas era totalmente escondida por um magnífico biombo chinês. A quinze metros de distância, uma mesa de reuniões também não combinava com a decoração. Na cabeceira dessa mesa havia uma cadeira de rodas sustenta-vida. Dela saíam tubos e fios que iam até acama.

Junto da cadeira de rodas, sentada numa estenomesa apinhada de microfones direcionais, máquina de escrever de comando oral, relógio-calendário, botões de campainha e outros acessórios habituais, estava uma moça. Era bela.

Seu comportamento era o de uma perfeita secretária modesta, mas estava vestida de acordo com a exótica moda corrente: «Meio a Meio». Ombro, seio e braço direitos envoltos em malha azeviche; a perna esquerda coberta por um tecido escarlate; calcinha pregueada de ambas as cores; sandália preta do lado escarlate e vermelha no pé direito nu. Sua pele pintada seguia o mesmo modelo vermelho e preto.

No outro lado da cadeira de rodas, via-se uma mulher idosa, usando a calça comprida e o avental convencionais das enfermeiras. Estava inteiramente absorvida por seus dials e o doente na cadeira. Sentados em torno da mesa, havia uns doze homens, a maioria usando roupa estilo espectador-esporte, preferida pelos antigos executivos.

 

 

 

 

Aninhado na cadeira sustenta-vida estava um homem muito velho. A não ser pelos olhos inquietos, parecia um mau trabalho de embalsamamento. Não fora lançada mão de nenhuma espécie de cosmético para suavizar a realidade brutal da sua decrepitude.

— Ghoul * — estava dizendo calmamente para um homem sentado mais ou menos no centro da mesa. — Você é um ghoul nojento, Parky. Seu pai não lhe ensinou que é de boa educação esperar que um homem pare de espernear para, então, enterrá-lo? Ou nunca teve pai? Apague esta frase, Eunice. Senhores, Mr. Parkinson acaba de propor que eu seja convidado a renunciar ao cargo de presidente.Alguém o apóia?

 

* O ghoul é um demônio lendário que profana túmulos e se alimenta dos cadáveres(N. do T.).

 

Esperou, encarando um a um, e depois continuou:

— Ora, vamos! Quem o deixou na mão, Parky? Foi você, George?

— Não tenho nada com isso.

— Mas gostaria de votar «Sim». A proposta fica sem efeito por falta de apoio.

— Quero retirá-la.

— É muito tarde, Parkinson. Só podem ser feitas emendas com aprovação unânime, aberta ou implícita. Uma única objeção é suficiente e eu, Johann Sebastian Bach Smith, me oponho...Esta regra está em vigor porque eu a escrevi antes de você ter aprendido a ler.

— Mas — Smith deu uma olhada circular para os outros — tenho novidades. Como Mr. Teal informou, todas as nossas divisões estão em condições satisfatórias. As Fazendas Marinhas e a Empresa de Livros de Ensino estão mais que satisfatórias. Assim, é uma boa ocasião para me aposentar.

Smith fez uma pausa e então continuou:

—Fiquem de boca fechada. Não faça esse ar convencido,Parky: tenho mais novidades para você. Continuarei como presidente do conselho, mas não mais como diretor-executivo. Nosso conselheiro principal, Mr. Jake Salomon, será o vice-presidente e...

— Um instante, Johann. Não vou dirigir este circo de cinco picadeiros.

— Ninguém disse que você vai, Jake. Mas pode presidir as reuniões do conselho quando eu não puder. Estou pedindo muito?

— Hummm, acho que não.

— Obrigado. Estou renunciando à presidência das Empresas Smith e Mr. Byram Teal será nosso presidente e diretor-executivo...coisa que ele já vem sendo. Agora será de direito, com poderes para comprar e vender ações, com todas as vantagens e privilégios e deduções de impostos. Nada mais justo.

Parkinson disse:

— Olhe aqui, Smith!

— Pare com isso, rapazinho. Não se dirija a mim com «Olhe aqui»... Dirija-se a mim como Mr. Smith ou Senhor Presidente. Que ia dizer?

Parkinson se controlou e então respondeu:

—Muito bem, Mister Smith. Não estou de acordo. Deixando de lado a promoção do seu assistente ao cargo de presidente, de um pulo — completamente sem precedentes! —, se houver uma mudança de direção, devo ser considerado. Represento o segundo maior volume de ações com direito a voto.

— Pensei em você para presidente, Parky.

— Pensou?

— Sim. Examinei o assunto...e achei graça.

— Ora, seu...

— Não diga, pois posso processá-lo. Está esquecendo que é o meu volume de ações quem controla a votação. E por falar em suas ações... De acordo com a política da companhia, quem represente cinco ou mais por cento das ações com direito a voto faz automaticamente parte do conselho, mesmo que ninguém goste do possuidor e ele sofra de mau hálito espiritual. O que descreve nós dois. Ou você. Byram, o que há de mais recente em procurações e vendas de ações?

— Um relatório completo, Mr.Smith?

— Não, diga apenas a Mr. Parkinson qual a situação dele.

— Perfeitamente. Mr. Parkinson, o senhor atualmente controla menos de cinco por cento das ações com direito a voto.

Smith acrescentou, suavemente:

— Portanto,você está demitido, seu ghoul. Jake, convoque uma assembléia especial de acionistas, com edital e todas as formalidades, para dar a Mr. Parkinson um relógio de ouro e um pontapé...e eleger seu sucessor. Mais alguma coisa a tratar? Nada. A reunião está encerrada. Não vá embora, Jake, nem você, Eunice. E, Byram, se não tiver nada que fazer, fique.

Parkinson levantou-se de um pulo.

— Smith, isto não fica assim!

— Oh,claro — disse o velho calmamente.—Nesse ínterim,dê lembranças a sua sogra e diga-lhe que Byram vai continuar a enriquecê-la, muito embora eu tenha demitido você.

Parkinson saiu abruptamente. Os outros se levantaram.Smith perguntou humildemente:

— Jake, como pode um homem chegar aos cinqüenta anos sem o menor bom-senso? A única coisa esperta que esse rapaz fez foi arranjar uma sogra rica. O que é, Hans?

— Johann — disse Hans von Ritter, inclinando-se sobre a mesa e falando diretamente com o presidente.— Não gostei da maneira como tratou Parkinson.

— Obrigado. Você é franco comigo, coisa rara atualmente.

— Demiti-lo do conselho está certo. É um obstrucionista. Mas não havia necessidade de o humilhar.

—Talvez não. É um dos meus pequenos prazeres, Hans.Não tenho muitos atualmente.

Um criado Simplex entrou rodando, pendurou as cadeiras vazias nos cabides e rodou para fora. Von Ritter continuou:

— Não tenho intenção de ser tratado dessa maneira. Se você quer só pessoas que concordem no seu conselho, lembro que controlo menos de cinco por cento das ações com direito a voto. Deseja minha demissão?

— Meu Deus, não! Preciso de você, Hans...e Byram vai precisar ainda mais. Não posso usar focas amestradas.Um homem deve ter a coragem de não concordar comigo. Do contrário, está apenas ocupando espaço. Mas quando um homem me enfrenta, quero que o faça com inteligência. Como você. Já fui obrigado várias vezes a mudar de opinião por sua causa. Teimoso como sou, não foi fácil. Quanto ao outro assunto...sente-se. Eunice, assobie chamando aquela cadeira para o Dr. Von Ritter.

A cadeira se aproximou. Von Ritter fez um gesto e ela retrocedeu.

— Não, não tenho tempo para ser persuadido. Que é que você quer? Ergueu-se. A mesa de reuniões encolheu as pernas, virou de lado e deslizou para uma fresta na parede.

—Hans, cerquei-me de homens que não gostam de mim, sem haver um bajulador ou foca amestrada entre eles. Mesmo Byram — especialmente Byram — obteve seu emprego me contradizendo e tendo razão. Exceto quando esteve errado e é por isso que ele precisa de homens como você no conselho. Mas Parkinson...Fui obrigado a atacá-lo — publicamente — porque pediu minha demissão — publicamente. Não obstante, você tem razão, Hans. «Olho por olho» é criancice. Há vinte anos, mesmo a dez, eu nunca teria humilhado alguém. Se um homem age por reflexo, o que a maioria faz em vez de usar a cuca, humilhá-lo força-o a procurar vingar-se. Sei muito bem.Estou ficando senil, como todos sabemos.

Von Ritter ficou calado. Smith continuou:

— Quer topar? E ajudar a manter Byram firme?

— Hum...toparei. Enquanto você se comportar. Virou-se para sair.

— É justo. Hans? Você dançará no meu velório? Von Ritter olhou para trás e sorriu.

— Com o maior prazer!

— Foi o que imaginei. Obrigado, Hans. Té logo. Smith virou-se para Byram Teal:

— Então, meu filho?

— O Procurador-Geral-Assistente chega amanhã de Washington para falar com você a respeito da compra do controle da Homecrafts pela nossa Machine Tools Division. Penso...

— Falar com você. Se você não conseguir lidar com ele é porque escolhi o homem errado. O que mais?

— Na Fazenda Marinha número cinco perdemos um homem na linha de sonda de cinqüenta braças. Tubarão.

— Casado?

— Não. Nenhum parente dependente.

— Bem, faça o que puder. Qualquer coisa. Você tem meus vídeo-tanques, os que aquele ator dublou com a voz pesarosa. Quando perdemos um dos nossos, não devemos dar a impressão pública de pouco caso.

Jake Salomon acrescentou:

— Especialmente quando não ligamos.

Smith cacarejou para ele:

— Jake, você sabe como ler dentro do meu coração? Nossa política é ser liberal com as indenizações por morte e com as pequenas coisas que significam muito.

—...e parecem tão boas. Johann, você não tem coração...só dials e mecanismos. Aliás,nunca teve.

Smith sorriu.

— Jake, para você faremos uma exceção.Quando morrer, procuraremos não tomar conhecimento. Nada de flores e nem mesmo a página tarjada nos jornais da empresa.

— Você não estará em condições de decidir a esse respeito, Johann. Viverei mais vinte anos que você.

— Vai dançar no meu velório?

— Não danço — respondeu o advogado —, mas você está me tentando a aprender.

—Não se dê ao trabalho. Viverei mais que você. Quer apostar? Digamos, um milhão contra sua dedução de imposto predileta? Não, não posso apostar. Preciso de sua ajuda para me manter vivo. Byram, me procure amanhã. Enfermeira, saia. Preciso conversar com meu advogado.

—Não, senhor. O Dr. Garcia quer que o senhor seja vigiado o tempo todo.

Smith ficou pensativo.

— Miss Comadre, adquiri minha maneira de falar antes da Suprema Corte ter levantado a proibição de escrever palavrões nas calçadas. Mas procurarei usar palavras suficientemente simples para a senhora entender. Sou seu empregador. Pago seus salários. Esta é minha casa. Mandei-a sair. É uma ordem.

A enfermeira, teimosa, nada disse. Smith suspirou.

—Jake, estou ficando velho...Esqueci que elas têm um regulamento a cumprir. Quer achar o Dr.Garcia — num dos cantos desta casa —e saber dele como você e eu podemos ter uma conferência particular, apesar deste fiel cão de fila?

O Dr. Garcia chegou logo, olhou os dials e o paciente e concordou em ligar o medidor à distância durante o tempo necessário.

— Miss Macintosh, mude para o painel de controle-remoto.

— Pois não, Doutor.Pode mandar outra enfermeira me substituir? Quero deixar esta tarefa.

— Mas, enfermeira...

— Um momento, Doutor — atalhou Smith. — Miss Macintosh, desculpe por tê-la chamado Miss «Comadre». Bobagem minha. Outro sinal de senilidade crescente. Mas, Doutor, se, ela precisa ir — espero que não — mande-me uma conta de mil dólares de gratificação para ela. Seu cumprimento do dever tem sido perfeito...apesar das inúmeras demonstrações de comportamento absurdo da minha parte.

— Hum...espere-me lá fora, enfermeira.

Quando o médico e a enfermeira saíram, Salomon disse secamente:

— Johann, você só é senil quando lhe convém.

Smith riu.

— Tiro vantagem da doença e da idade. De que outras armas disponho?

— Dinheiro.

— Ah, sim. Sem dinheiro eu não estaria vivo. Mas estou infantilmente mal-humorado ultimamente. Todavia é preciso se levar em conta o fato de um homem que sempre foi ativo sentir-se frustrado por estar imobilizado. Porém é mais simples chamarmos isso de senilidade... visto que Deus e meu médico sabem que meu corpo está senil.

— Chamo a isso de mau humor intolerável, Johann, e não senilidade...Pois pode controlá-lo quando quer. Não o aplique em mim. Não estou aqui para isso.

Smith deu uma gargalhada.

—Nunca, Jake, preciso de você. Mais ainda do que preciso de Eunice, embora ela seja muito mais bonita que você. Que acha, Eunice? Meu comportamento tem sido mau ultimamente?

A secretária sacudiu os ombros, produzindo movimentos secundários complexos, agradáveis de se ver.

—O senhor às vezes é tremendamente intolerável, Patrão. Mas aprendi a não tomar conhecimento.

—Está vendo, Jake? Se Eunice se recusasse a agüentar o rojão — como você — eu seria o melhor patrão do mundo. Nestas circunstâncias, eu a uso como válvula de escape.

Salomon disse:

— Eunice, quando você se encher desta velha ruína mal-humorada, venha trabalhar comigo, com o mesmo salário ou maior.

— Eunice, acabo de dobrar seu salário!

— Obrigado, Patrão — respondeu ela vivamente.— Gravei suas palavras e a data. Vou avisar ao Contador.

Smith deu uma gargalhada.

—Está vendo por que a conservo? Não tente cobrir minha oferta, bode velho, você não tem gaita bastante.

— Senil — rosnou Salomon. — Por falar em dinheiro, quem você vai pôr no lugar de Parkinson?

—Não há pressa, ele nada significava. Você tem algum candidato, Jake?

— Não. Embora depois deste último pequeno quebra-cabeças, ocorreu-me que Eunice poderia ser uma boa idéia.

Eunice ficou espantada e então limpou o rosto de qualquer expressão. Smith estava pensativo.

— Não me ocorreu. Mas poderia ser uma solução perfeita. Eunice, você teria vontade de ser diretor da sociedade anônima?

Eunice apertou o botão de «NÃO GRAVANDO».

— Os senhores estão se divertindo à minha custa! Parem.

— Minha cara — respondeu Smith gentilmente —, você sabe que não brinco com dinheiro. Quanto a Jake, é o único objeto sagrado para ele...vendeu a filha e a avó para o Rio.

— Minha filha não — contradisse Salomon. — Só minha avó...e a velhota não rendeu muito. Porém arranjei com isso um quarto livre.

— Mas, Patrão, não tenho a menor idéia de como se dirige um negócio!

— Não vai ser preciso. Os diretores não dirigem, traçam a política. Mas você sabe mais sobre como dirigir que a maioria dos nossos diretores.Há anos que você trabalha aqui, inclusive como secretária da minha secretária, antes de Mrs. Bierman se aposentar. Mas estou encontrando vantagens no que pode ter sido uma sugestão dada de brincadeira por Jake. Você já é funcionária da empresa, como Secretária Especial Assistente, designada para gravar as reuniões do conselho, e eu lhe dei esse cargo, como ambos se lembram, para calar a boca de Parkinson quando ele reclamou da minha secretária estar presente a uma sessão executiva. E você vai continuar sendo isso...e também minha secretária particular. Não posso dispensá-la, embora se torne diretora. Não há incompatibilidade: você simplesmente votará e, ao mesmo tempo, gravará. Agora chegamos à pergunta fundamental: está disposta a votar de acordo com o voto de Jake?

Eunice ficou solene.

— O senhor quer assim?

— Ou de acordo com o meu, quando eu estiver presente, o que vem a dar no mesmo? Procure se lembrar e verá que Jake e eu sempre votamos da mesma maneira nos problemas básicos — colocando-os acima dos nossos interesses — enquanto discutimos e brigamos um com o outro em coisas de somenos importância. Leia as minutas antigas e verá.

— Notei há muito tempo — respondeu ela com simplicidade—, mas achei que não tinha nada com isso.

— Jake, ela é o nosso novo diretor. Mais uma coisa, minha cara: se for necessário uma sujeira, você se demitirá? Se o fizer não será prejudicada.

—Naturalmente, senhor. Não devo ser paga para concordar com sujeiras.

—Também não será prejudicada por causa disso. Estou me sentindo melhor. Eunice, vou entregar a administração a Teal e a política a Jake...você me conhece por dentro. Quero que Jake tenha o maior número possível de votos o apoiando.Oh,sempre podemos demitir um diretor...mas é melhor não ter de o fazer, um fato que Von Ritter esfregou no meu nariz. Está bem, você é diretora. Isso será formalizado na reunião de acionistas. Bem-vinda às fileiras da Casa. Em vez de um salário de fome, você foi aprovada e é agora um cão fascista, contra-revolucionário, provocador e alcagüete. Como se sente?

— Não «cão» — refutou Eunice. — O resto é lindo mas «cão» é uma designação errada. Sou mulher. Uma cadela.

— Eunice, apesar de não usar tais palavras em frente de senhoras, você sabe que não me incomodo que elas usem.

— Um alcagüete fascista pode ser uma senhora? Patrão, aprendi aquela palavra no jardim da infância. Ninguém liga para isso hoje.

— E eu a aprendi por trás do galpão e quero que ela fique por lá. Salomon resmungou:

— Não tenho tempo para ouvir lexicólogos amadores. A reunião terminou?

— O quê? Ainda não! Agora vem a parte ultra-secreta, o motivo pelo qual mandei a enfermeira embora. Por isso se aproximem.

— Johann, antes de começar com segredos, deixe-me fazer uma pergunta. Não há algum microfone naquela cama? Sua cadeira talvez tenha sido também controlada.

— Hem? — O velho ficou pensativo. — Costumo apertar um botão... e eles mandam um rodante saber o que eu quero.

— Sete a dois como você está sendo vigiado. Eunice, minha cara, pode examinar os circuitos para ter certeza?

— Hum... duvido. Os circuitos não são como minha estenomesa.

Mas vou dar uma olhada. — Eunice levantou-se, examinou o móvel por trás da cadeira de rodas. — Estes dois dials quase certamente têm microfones escondidos. Revelam respiração e pulsação. Mas não registram vozes, como minha voz não faz os ponteiros oscilarem. Tiraram o filtro, suponho. Mas... — ficou pensativa — a voz pode ser emitida fora também do circuito, acima de um filtro. Faço algo semelhante, no sentido inverso, toda vez que gravo com um alto fundo de decibéis. Não sei qual a função desses outros dials. Que diabo, posso localizar um circuito vocal... mas nunca tenho a certeza de que não há um. Ou dois. Ou três. Sinto muito.

— Não se desculpe, minha cara — replicou o advogado, acalmando-a. — Não tem existido vida privada neste país desde a metade do século XX... olhe, posso telefonar a um conhecido meu e mandar fotografar você no banho sem que nunca suspeite.

— É mesmo? Que idéia horrível. Quanto cobra essa pessoa para fazer isso?

— Bastante. Depende da dificuldade e do perigo que corre de ser processado. Nunca menos de uns dois mil e depois some no ar. Mas pode fazer.

— Bem! — Eunice ficou pensativa e depois sorriu. — Mr. Salomon, se algum dia achar que deve ter uma foto minha assim, telefone-me para obter melhor preço. Meu marido tem uma excelente câmara chinesa e eu prefiro que seja ele a me fotografar no banho, em vez de um estranho.

— Ordem, por favor — disse Smith, suavemente. — Eunice, quando quiser vender fotos peladas a este velho devasso, faça-o na sua hora de folga. Não entendo nada desses dispositivos, mas sei como solucionar este caso. Eunice, vá até onde estão me telemetrando... acho que é no quarto ao lado do que foi minha sala de descanso no andar de cima. Encontrará Miss Macintosh ali. Espere uns três minutos. Eu aguardarei dois e depois gritarei: «Miss Maclntosh!» Mrs. Branca está aí? Se você me ouvir, saberemos que ela está me espionando. Se não, volte ao fim de três minutos,

— Sim, senhor. Devo dar alguma desculpa a Miss Macintosh?

— Dê àquela encrenqueira a desculpa que quiser. Só quero saber se ela anda bisbilhotando.

— Sim, senhor.

Eunice preparou-se para sair. Estava apertando o interruptor da porta quando a campainha tocou. A porta deslizou para o lado, descobrindo Miss Macintosh, que pulou de surpresa.

A enfermeira se recompôs e disse friamente a Mr. Smith:

— Posso entrar um instante?

— Certamente.

— Obrigada, senhor.

A enfermeira foi até a cama, empurrou o biombo para o lado, mexeu em quatro interruptores no encosto do leito e recolocou o biombo. Depois plantou-se em frente ao seu paciente e disse:

— Agora o senhor tem seus segredos preservados, pelo menos no que toca aos meus aparelhos.

— Obrigado.

— Não estou autorizada a cortar os transmissores de palavras, a não ser com ordem do doutor. Mas agora o senhor está isolado. Sou tão obrigada a respeitar a vida privada de um paciente quanto um médico. Nunca ouvi uma conversa de quarto de doente. Nunca iria escutar esta, senhor!

— Abaixe a crista. Se não estivesse escutando, como saberia que estávamos discutindo o assunto?

— Oh! Porque meu nome foi falado. Ouvir meu nome provoca minha atenção. É um reflexo condicionado. Mas é claro que o senhor não vai acreditar!

— Pelo contrário, vou. Enfermeira... ligue por favor o que a senhora desligou. Então meta na cabeça que eu preciso conversar em particular... e eu lembrarei de não pronunciar seu nome. Mas estou contente por saber que a tenho ao meu alcance tão depressa. Para um homem no meu estado é um conforto.

— Hum... perfeitamente, senhor.

— E quero lhe agradecer por aturar meus truques. E o mau humor. Ela quase sorriu.

— Ora, o senhor não é tão difícil. Uma vez agüentei durante dois anos num hospital neuropsiquiátrico.

Smith ficou espantado e então riu.

— Touché! Foi lá que adquiriu seu ódio às comadres?

— Foi, sim! Agora, com licença, senhor... Quando ela desapareceu, Salomon disse:

— Você acha mesmo que ela não vai querer ouvir?

— Naturalmente vai, não pode evitar, já está engatilhada e será muito difícil tentar não ouvir. Mas a mulher é orgulhosa, Jake, e prefiro ficar na dependência do orgulho que na de engenhocas. Muito bem, estou ficando cansado e trata-se do seguinte: quero comprar um corpo. Mas que seja jovem.

Eunice Branca mal mostrou uma reação. A fisionomia de Jake Salomon se transformou na máscara que ele usava para jogar pôquer e falar com promotores públicos. Eunice perguntou imediatamente:

— Devo gravar, senhor?

— Não. Oh, que diabo, deve. Diga a essa máquina de costura que tire uma cópia para cada um de nós e limpe a fita. Ponha a minha no arquivo a ser destruído e a sua no seu arquivo destrutível. E, Jake, esconda seu exemplar no arquivo que usa para lograr o Internal Revenue Service. *

 

* Trata-se do Internal Revenue Service, que controla o imposto sobre a renda (N. do T.).

 

— Vou arquivá-la em lugar ainda mais seguro, o que eu uso para os clientes culpados. Johann, tudo o que você me diz é secreto, mas sou obrigado a frisar que os Regulamentos me proíbem de dar assistência a um cliente que pretende fraudar a lei, ou permitir-lhe discutir essa intenção. Quanto a Eunice, tudo o que você disser a ela ou na presença dela não é secreto.

— Oh, pare com isso, seu velho rábula. Há anos você me aconselha a como fraudar a lei duas vezes por semana. Quanto a Eunice, ninguém pode arrancar nada dela, a não ser por uma completa lavagem cerebral.

— Eu não disse que sigo sempre o Regulamento. Apenas lembrei-lhe o que ele diz. Não nego que minha ética profissional sofreu uns arranhões... mas não quero participar de nada que cheire a remoção ilegal de cadáveres, roubo ou conivência com seqüestro. Qualquer prostituta que se respeite — refiro-me a mim — tem limites.

— Poupe-me o sermão, Jake. O que eu quero é, ao mesmo tempo, moral e ético. Preciso de sua ajuda para que tudo se processe legalmente — tão legalmente que não tenha brechas — e praticamente.

— Espero.

— Garanto. Disse-lhe que queria comprar um corpo legalmente. Isso exclui remoção ilegal de cadáveres, roubo ou seqüestro. Quero fazer uma aquisição legal.

— Não vai poder.

— Por quê? Veja este corpo — disse Smith, apontando para o próprio peito — não vale muito, nem como estéreo. Todavia, posso querer doá-lo a uma escola de medicina. Você sabe que posso, pois me deu seu acordo.

— Oh. Vamos falar claro. Nos Estados Unidos não pode haver propriedade de seres humanos. Décima terceira emenda. No entanto, seu corpo não lhe pertence porque você não pode vendê-lo. Mas um cadáver é propriedade — habitualmente do espólio do falecido... apesar do cadáver não ser freqüentemente tratado da mesma maneira dos outros bens móveis. Mas é sem dúvida propriedade. Se você quer comprar um cadáver, pode-se dar um jeito... mas a quem você estava há pouco chamando de ghoul?

— O que é um cadáver, Jake?

— Hem? Um corpo morto, normalmente de um humano. É o que diz o Webster. A definição legal é mais complicada, porém dá no mesmo.

— É nesse aspecto «mais complicado» que vou chegar. Muito bem, uma vez que está morto passa a ser propriedade e talvez possamos comprá-lo. Mas o que é «morte», Jake, e quando ela ocorre? Deixe o Webster. O que é a lei?

— Oh. Lei é o que a Suprema Corte diz que é. Este ponto ficou felizmente estabelecido na década de setenta: «Espólio de Henry M. Parsons v. Rhode Island». Por anos e séculos, um homem estava morto quando seu coração parava de bater. Então, durante quase um século, estava morto quando um médico examinava seu coração e respiração e certificava que estava morto... e às vezes era horrível quando o médico errava. E então chegou o primeiro transplante de coração. Puxa vida, que bate-bocas legais provocou!

— Porém o caso Parsons resolveu o assunto: um homem está morto quando toda a atividade cerebral parou permanentemente.

— E isso quer dizer o quê? — insistiu Smith.

— A Corte declina definir. Mas na prática... olhe, Johann, sou advogado de empresa e não especialista em jurisprudência médica ou medicina-legal... e tenho de pesquisar antes de...

— Está bem. Então você não é Deus. Poderá reformar suas opiniões mais tarde. O que sabe agora?

— Quando o exato momento da morte é importante, como em alguns casos de espólio, como freqüentemente em acidentes, homicídios não premeditados e assassinatos, como é sempre num caso de transplante de órgão, o médico determina se o cérebro parou e não recomeçará a funcionar. Usa vários testes e fala de «coma irreversível» e «total ausência de atiyidade das ondas cerebrais» ou «danos no córtex, fora de qualquer possibilidade de reparação», mas tudo se resume num médico arriscando sua reputação e diploma, afirmando que aquele cérebro está morto e não voltará a viver. O coração e os pulmões agora não têm importância. Estão classificados com mãos, pés, gônadas e outros órgãos, sem os quais o homem pode ficar ou tê-los substituídos. O importante é o cérebro, acrescido da opinião de um médico a respeito dele. Em casos de transplante, há quase sempre pelo menos dois médicos não ligados à operação e provavelmente um legista também. Não porque a Suprema Corte exija — na verdade, só alguns dos cinqüenta e quatro Estados têm legislação referente à tanatótica — mas...

— Um momento, Mr. Salomon... essa palavra esquisita. Minha máquina colocou um ponto de interrogação depois dela. — Eunice manteve a mão cobrindo a lâmpada de «Parada».

— Como sua máquina soletrou a palavra? _ T-A-N-A-T-O-T-I-C-A.

— Máquina sabida. É um termo técnico para se referir à morte. Do deus grego Thanatos, Morte.

— Um instante enquanto digo a ela. — Eunice bateu na tecla da «Memória» com a outra mão, sussurrou rapidamente e então prosseguiu: — Ela se sente melhor quando a tranqüilizo logo. Continue.

Retirou a mão da luz de «Parada».

— Eunice, você tem a impressão de que essa máquina vive?

Ela ficou ruborizada e então tocou a tecla «Apagar» e cobriu «Parada».

— Não, Mr. Salomon. Ela, porém, funciona melhor comigo que com qualquer outro operador. Fica positivamente de mau humor quando não gosta da maneira como é usada.

— Garanto que é verdade — reforçou Smith. — Se Eunice tira uma folga, é melhor sua substituta usar a própria máquina ou tomar notas taquigráficas. Olhe, minha cara, chega de conversa. Espere outra ocasião para informar Jake sobre os cuidados e a alimentação das máquinas. O vovô aqui quer ir para a cama.

— Sim, senhor. Eunice ergueu a mão.

— Johann, eu estava dizendo que nos casos de transplante a classe médica estabeleceu severas normas ou regulamentos, visando a protegê-la de processos civis e criminais e também, tenho certeza, da restritiva legislação monopolista. Têm de manter o coração à parte e, apesar disso, se protegerem da acusação de assassinato, com processos de vários milhões de dólares por danos. Por isso dividem a responsabilidade uns com os outros.

— Sim — concordou Smith. — Jake, você me disse uma coisa que eu não sabia... mas tranqüilizou-me confirmando fatos e leis. Agora sei que pode ser feito. Bem, quero um corpo saudável, entre vinte e trinta anos, ainda quente, com o coração batendo e sem nenhum outro dano que necessite de reparo... mas com o cérebro legalmente morto, morto e bem morto. Quero comprar esse cadáver e ter este cérebro — o meu — transplantado para ele.

Eunice permaneceu perfeitamente imóvel. Jake piscou.

— Quando quer esse corpo? Logo mais?

— Oh, na próxima quarta-feira está bem. Garcia disse que pode me manter funcionando.

— Sugiro logo mais. E dar-lhe ao mesmo tempo um novo cérebro, o que deixou de funcionar.

— Pare com isso, Jake, estou falando sério. Meu corpo está caindo aos pedaços. Mas a minha mente está lúcida e minha memória não é má... pergunte-me o preço de cada ação no fechamento de ontem, se duvida. Posso fazer cálculos logarítmicos sem a tábua. Me examino diariamente. Porque sei até onde posso ir. Olhe para mim: valho tantos milhões de dólares que não vale a pena contar. Mas com um corpo mantido unido à custa de durex e arame... eu ficaria melhor num museu. Toda minha vida ouvi que não se pode levar nada para o túmulo. Bem, há oito meses quando eles me imobilizaram com toda essa humilhante canalização e fiação, comecei a pensar, por falta do que fazer, a respeito daquilo. Decidi, então, que, se não podia levar nada comigo, ficaria por aqui!

— Puxa! Você irá quando o coche chegar.

— Talvez. Mas estou disposto a gastar o que for necessário daquele montão de dólares para tentar ganhar a partida. Quer me ajudar?

— Johann, se você estivesse falando de um vulgar transplante de coração, eu diria: «Felicidades e Deus o ajude!», Mas um transplante de cérebro... você tem uma idéia das implicações?

— Não, nem você. Mas sei mais a esse respeito que você. Tive um tempo infinito para ler a respeito. É inútil me dizer que nunca teve sucesso nenhum transplante de cérebro humano. Eu sei. É inútil me dizer que os chineses tentaram inúmeras vezes e falharam, conquanto tenham três pacientes ainda vivos se meus informantes estão certos.

— E você quer ser um paciente?

— Não. Mas há dois chimpanzés trepando em árvores e comendo bananas agora mesmo... e cada um tem o cérebro do outro.

— Oho! Aquele australiano.

— O Dr. Lindsay Boyle. É o cirurgião que eu preciso.

— Boyle. Houve um escândalo, não houve? Ele foi expulso da Austrália.

— Foi sim, Jake. Já ouviu falar de ciúme profissional? A maioria dos neurocirurgiões estava apegada à noção de que o transplante de cérebro é muito complicado. Mas se você investigar, verificará que essa mesma opinião era expressa há cinqüenta anos a respeito dos transplantes de coração. Se perguntar a um neurocirurgião a respeito desses chimpanzés, a coisa mais generosa que ele dirá é que se trata de uma falcatrua, apesar de haver filmes de ambas as operações. Ou então falará sobre os inúmeros fracassos de Boyle, antes de aprender a técnica. Jake, ele é odiado de tal forma que o expulsaram de seu país quando ia fazer a tentativa com um ser humano. Ora, aqueles calhordas... desculpe, Eunice.

— Minha máquina foi instruída para transcrever essa palavra como «patife», Mr. Smith.

— Obrigado, Eunice.

— Por onde ele anda agora, Johann?

— Em Buenos Aires.

— Você pode viajar tanto assim?

— Oh, não! Bem, talvez possa, num avião bastante grande para conter todas essas monstruosidades mecânicas usadas para me manter vivo. Mas primeiro necessitamos do corpo. E o melhor centro médico possível, para a cirurgia, assistida por computador. E um par de cirurgiões assistentes. E todo o resto. Digamos John Hopkins. Ou o Stanford Medicai Center.

— Arrisco-me a dizer que nem um nem outro permitirão que esse cirurgião cassado opere.

— Jake, Jake, claro que permitirão. Não sabe como subornar uma universidade?

— Nunca tentei.

— Pode ser feito com montões de dinheiro, abertamente, com um desfile acadêmico para dar dignidade. Mas primeiro deve-se saber o que eles querem: vestiários de futebol, acelerador de partículas, bolsas-de-estudo. Mas a chave é muito dinheiro. Do meu ponto de vista, é melhor estar vivo e jovem outra vez — e falido — a ser o mais rico cadáver no cemitério — Smith sorriu. — Deve ser sensacional ser jovem... e falido. Por isso não economize a grana.

— Sei que você pode dar um jeito com relação a Boyle. É apenas uma questão de saber a quem subornar e como ou, como dizia Bill Gresham, um cara que eu conheci há muito tempo: «Descubra o que ele quer... e deixe o resto comigo!»

— O mais difícil porém não é subornar, mas apenas ter vontade de gastar dinheiro. Achar esse corpo quente. Jake, neste país, mais de noventa mil pessoas por ano são mortas só em acidentes de trânsito — ou seja duzentos e cinqüenta por dia — e um monte delas morre de ferimentos na cabeça. Uma boa porcentagem está entre os vinte e os quarenta anos, e é saudável, com exceção da fratura de crânio e do cérebro arruinado. O problema é encontrar um, cujo corpo ainda esteja vivo, manter essa vida e correr para a sala de cirurgia.

— Com mulheres, parentes, tiras e advogados correndo atrás.

— Sem dúvida. Se dinheiro e organização não forem usados de antemão. Apanhadores de gorjetas — chame-os como quiser. Equipes mantenedoras de vida e helicópteros equipados para esse fim, sempre de atalaia nos piores lugares de concentração perigosa de trânsito. Doações para os fundos de ajuda dos patrulheiros, milhares de fórmulas de cessão prontas para serem assinadas, pagamento liberal ao espólio do falecido — oh, pelo menos um milhão de dólares. Ah, sim, já ia esquecendo, eu tenho um tipo de sangue raro e um transplante é feito mais facilmente quando não há necessidade de perder tempo com transfusão de sangue. Há apenas cerca de um milhão de pessoas neste país cujo sangue combina com o meu. Não é um número absurdo se o reduzirmos para a área de idade desejada — dos vinte aos quarenta — e com boa saúde. Digamos trezentos mil, no máximo. Jake, se publicarmos anúncios nos grandes jornais e oferecermos prêmios pela TV, quantos deles poderemos fazer sair das moitas? Se acenarmos com uma isca de um milhão de dólares? Um milhão em ações depositadas no Chase Manhattan Bank a favor do espólio da vítima do acidente cujo corpo vai ser usado? Com um adiantamento a todo doador em perspectiva e sua esposa, que queiram assinar antecipadamente.

— Johann, quero me danar se sei. Mas eu detestaria ser casado com uma mulher que pudesse receber um milhão de dólares batendo «acidentalmente» na minha cabeça com um martelo.

— São minúcias, Jake. Estabeleça que ninguém pode matar e se beneficiar disso. O suicídio também deve ser excluído. Não quero ter sangue nas mãos. O verdadeiro problema é encontrar jovens saudáveis com meu tipo de sangue e colocar seus nomes e endereços num computador.

— Desculpe, Mr. Smith, mas o senhor já pensou em consultar o National Rare Blood Club?

— Raios me partam! Estou ficando senil. Não, não lembrei, Eunice... e como é que você sabe da existência dele?

— Sou sócia, senhor.

— Então você é doadora, minha cara? Smith estava contente e impressionado.

— Sou, senhor. Tipo AB-Negativo.

— Raios me re-partam. Também fui doador, até que me disseram que estava velho demais, muito antes de você ter nascido. E do mesmo tipo que o seu: AB-Negativo.

— Imaginei que sim, Mr. Smith, quando o senhor disse quantos haviam. São pouquíssmos. Cerca da terça parte de um por cento da população. Meu marido é AB-Negativo também, e doador. Sabe... bem, conheci Joe uma manhã cedinho quando ambos fomos convocados para dar sangue a um recém-nascido e sua mãe.

— Bem, um hurra para Joe Branca! Eu sabia que ele era esperto... agarrou você, hem? Só não sabia que ele era um Anjo da Misericórdia também. Olhe, minha querida, quando chegar em casa hoje à noite, diga a Joe para dar um mergulho de cabeça numa piscina vazia... e você será não só a mais linda viúva da cidade, mas a mais rica.

— Patrão, o senhor tem um péssimo senso de humor. Jamais trocaria Joe por nenhum milhão de dólares... o dinheiro não aquece a gente numa noite fria.

— Eu sei, para minha tristeza, querida, Jake, meu testamento pode ser alterado?

— Todo testamento pode ser. Mas acho que o seu não. Tratei de inserir nele itens de segurança.

— Suponha que eu faça um novo testamento idêntico em linhas gerais, mas com umas modificações: será válido?

— Não.

— Por quê?

— Você mesmo disse: senilidade. Sempre que uni milionário morre em idade avançada com um novo testamento, quem estiver interessado em invalidá-lo — suas netas, por exemplo — tentará fazê-lo alegando senilidade e influência estranha. Acho que conseguirá.

— Raios. Queria incluir Eunice com um milhão para ela não ficar tentada a matar seu marido AB-Negativo.

— Patrão, o senhor está zombando de mim. É uma brincadeira sem graça.

— Eunice, já lhe disse que não brinco com dinheiro. Que jeito podemos dar, Jake, uma vez que estou senil demais para fazer um testamento?

— Bem, o jeito mais fácil é uma apólice de seguro de vida, paga de uma vez só... que irá custar, em face da sua idade e saúde, um pouco mais de um milhão, suponho. Ela o receberá, mesmo que seu testamento seja anulado.

— Mr. Salomon, não ligue para ele!

— Johann, você quer que esse milhão reverta em seu benefício se por uma remota chance você viver mais que Eunice?

— Hummm... não, pois se isso acontecer um juiz pode decidir estudar a questão e nem mesmo Deus sabe o que um juiz quererá fazer. Ponha a Cruz Vermelha como beneficiária. Não, ponha o National Rare Blood Club.

— Perfeitamente.

— Pague logo de manhã cedo. Não, esta noite. Posso não viver até amanhã de manhã. Procure um agente de seguros — Jack Towers, por exemplo — faça Jefferson Billings abrir a casa de prego dele e consiga um cheque visado. Use minha procuração geral e não seu próprio dinheiro, para você não ser envolvido. Consiga a assinatura de um funcionário responsável da companhia de seguros. Depois pode ir dormir.

— Sim, Grande Espírito. Vou modificar isso. Sou melhor advogado que você. Mas a apólice estará em vigor esta noite com seu dinheiro e não com o meu. Eunice, cuidado para não chutar esses tubos e fios quando sair. Porém amanhã não precisa ter cuidado... desde que não seja apanhada.

Ela fungou.

— Os senhores têm um péssimo senso de humor! Patrão, vou apagar isto. Não quero um milhão de dólares. Não com a morte de Joe ou com a sua.

— Se não quiser, Eunice — disse o patrão gentilmente —, pode deixar o Rare Blood Club receber.

— Hum... Mr. Salomon, isso é legal?

— É, Eunice. É bom ter dinheiro, especialmente quando se é pobre. Seu marido pode ficar aborrecido por você ter recusado um milhão de dólares.

— Hum...

Mrs. Branca emudeceu.

— Cuide disso, Jake, enquanto pensa na maneira de comprar um corpo quente. E em como trazer Boyle aqui e arranjar-lhe as licenças necessárias para operar neste país. E no que for necessário. E diga... não, eu direi. Miss Macintosh!

— Pronto, Mr. Smith? — disse a voz, vinda do móvel por trás da cama.

— Venha cá com seu par. Quero ir para a cama.

— Sim, senhor. Direi ao Dr. Garcia. Jake levantou-se.

— Até logo, Johann. Você é doido de hospício.

— Provavelmente. Mas quero ter prazer com meu dinheiro.

— E vai ter. Eunice, posso levá-la para casa?

— Oh, não, senhor, obrigado. Meu calhambeque está na garagem.

— Eunice — disse o patrão —, não está percebendo que o bode velho quer levar você para casa? Seja gentil. Um dos meus guardas levará seu calhambeque para casa.

— Hum... obrigado, Mr. Salomon. Aceito. Durma bem, Patrão. Dirigiram-se para a porta.

— Espere, Eunice — ordenou Smith. — Não se mexa. Jake, manje as gambás! Eunice, na gíria do passado quer dizer que você tem lindas pernas.

— Como o senhor já me disse antes... e como meu marido freqüentemente me diz. Patrão, o senhor é um velho sujo.

Smith cacarejou.

— Pois sou mesmo, minha querida... e isso desde os seis anos. Tenho orgulho em dizer.

 

Mr. Salomon ajudou-a a vestir o casaco, desceu com ela para a garagem, fez um sinal aos seus guardas para que se afastassem e levou-a para o próprio carro. Foram rapidamente encerrados nele e conduzidos pelo guarda-motorista, cujo compartimento também foi fechado. Assim que sentou, Mrs. Branca disse:

— Oh, como é enorme! Mr. Salomon, eu sabia que um Rolls era espaçoso, mas nunca havia entrado num.

— Um Rolls apenas de nome, minha cara: a carroceria é Skoda, o motor é da Imperial Atomics e a Rolls-Royce entra com a beleza, o prestígio e a manutenção. Você devia ver um Rolls há cinqüenta anos, antes dos motores a explosão terem sido postos fora da lei. Era um carro de sonho!

— Este já o é bastante. Puxa, meu calhambeque caberia neste compartimento.

Uma voz vinda do teto disse:

— Ordens, senhor?

Mr. Salomon apertou um botão:

— Um momento, Rockford — ergueu a mão. — Você mora onde, Eunice? Ou então me dê as coordenadas de onde quer ir.

— Oh, vou para casa. Norte, um, um, oito, oeste trinta e sete e então para cima até o nível dezenove... embora eu duvide que este carro enorme consiga entrar no elevador de veículos.

— Se não conseguir, Rocky e o colega dele acompanharão você pelo elevador de pessoas, até à porta da sua casa.

— Que bom. Joe não gosta que eu ande sozinha no elevador de pessoas.

— Joe tem razão. Por isso vamos depositá-la como a uma carta. Eunice, você está com pressa?

— Eu? Joe sabe que só chego quando posso, pois o trabalho com Mr. Smith é muito irregular atualmente. Hoje estou voltando cedo.

— Ótimo. — Mr. Salomon apertou novamente o botão de inter-comunicação. — Rockford, vamos fazer um pouco de hora. Hum, Mrs. Branca, qual a zona daquelas coordenadas? Dezoito e?...

— Dezenove-B, senhor.

— Estabeleça um círculo de cruzeiro próximo a dezenove-B. Darei as coordenadas mais tarde.

— Muito bem, senhor. Salomon voltou-se para Eunice.

— Este compartimento é à prova de som, a menos que eu aperte esse botão. Eles podem falar comigo, mas não podem nos ouvir. O que é muito bom, pois preciso discutir umas coisas com você e dar uns telefonemas a respeito da tal apólice de seguro.

— Oh! Aquilo era brincadeira, não era?

— Brincadeira, hem? Mrs. Branca, há vinte e seis anos que trabalho para Johann Smith e me dedico exclusivamente a ele há quinze anos. Hoje tornou-me presidente de fato do seu império industrial. Porém, se eu deixar de cumprir suas ordens a respeito daquela apólice de seguro, amanhã estarei despedido.

— Oh, claro que não! Ele depende do senhor.

— Depende de mim enquanto quiser e nem um minuto mais. Essa apólice tem de estar pronta esta noite. Pensei que iria ficar aborrecida ao ver que poderia ser posta de lado em benefício do Rare Blood Club.

— Bem, é verdade. Só que tenho medo de poder me tornar gananciosa e aceitar. Na hora oportuna.

— E por que não? O Rare Blood Club nada fez por ele e você fez muito.

— Sou bem paga.

— Ouça, sua boba, deixe de ser infantil. Ele queria deixar um milhão para você no testamento. E quis que você soubesse, de maneira a se divertir olhando seu rosto. Frisei que era muito tarde para mudar o testamento. Mesmo este seguro perderá sua chance se os herdeiros naturais examinarem os livros e o descobrirem — o que estou tentando evitar —, fazendo um juiz decidir que ele não passa de um expediente .— o que é verdade — e requerendo à companhia de seguros que o pague ao espólio. Aí é que entra o Rare Blood Club. Proporá uma ação e ganhará, se você lhe oferecer a metade.

«Mas há outros meios. Imagine que não sabe de nada e seja convidada a assistir à leitura do testamento, descobrindo que seu falecido patrão legou-lhe um seguro de vida, «em agradecimento aos longos e fiéis serviços prestados». Você recusaria?

— Hum... — começou ela e parou.

— Hum... — imitou ele. — Exatamente «hum». Naturalmente que você não recusaria. Ele estaria morto e você desempregada, não havendo razão para a recusa. Por isso, em vez de uma importância global tão grande, capaz de perturbá-la, vou preparar uma apólice que estabeleça uma anuidade. — Parou para pensar. — Isso daria, com os impostos, cerca de quatro por cento. Que tal uns setecentos e cinqüenta dólares por semana? Ficaria preocupada?

— Ora... não. Me sinto melhor pensando em setecentos e cinqüenta dólares que num milhão.

— E o melhor é que podemos segurar o capital contra a inflação e você poderá deixar esse milhão ou mais para o Rare Blood Club quando bater as botas.

— É mesmo? Que beleza! Nunca compreendi a alta finança.

— É porque a maioria das pessoas só pensa em dinheiro para pagar o aluguel. Mas um financista pensa em dinheiro em termos do que pode fazer com ele. Não se incomode, deixe que eu cuido disso e você cuidará de gastá-lo. Vou usar uma companhia de seguros e um banco canadenses, que não permitirão que um tribunal americano examine seus arquivos. No caso das netas dele descobrirem o que fizemos, quero dizer.

— Oh, Mr. Salomon, esse dinheiro não pode ir para elas?

— Não seja boba. São umas megeras, vorazes. E não fizeram nada para merecer esse dinheiro. Sabe alguma coisa da família de Johann? Ficou viúvo três vezes, a quarta muiher casou com ele pelo dinheiro e custou-lhe milhões ver-se livre dela. A primeira mulher deu-lhe um filho e morreu do parto. O filho de Johann foi morto mais tarde tentando tomar uma colina sem valor. Mais duas mulheres, dois novos divórcios, uma filha de cada casamento, que produziram um total de quatro netas. As ex-mulheres e as filhas morreram e suas carnívoras descendentes estão esperando que Johann morra e o detestam porque ainda não morreu.

Salomon deu uma risada.

— Vão ter um choque. Redigi seu testamento de maneira a deixar-lhes uma pequena renda... reduzindo-a para um dólar a cada uma se contestarem. Agora com licença: preciso dar uns telefonemas, levar você para casa e ir ao Canadá resolver este assunto.

— À vontade, senhor. Posso tirar o casaco? Está quente.

— Quer que aumente o ar refrigerado?

— Só se o senhor estiver com muito calor. Acontece que este casaco é muito grosso.

— Eu reparei. Armadura protetora?

— Isso mesmo. Ando muito sozinha.

— Por isso sente tanto calor. Tire-o. Tire tudo o que quiser. Ela deu uma risada.

— Estou achando que o senhor é também um velho sujo. Por um outro milhão?

— Nem um raio de um centavo! Cale a boca, menina, e me deixe telefonar.

— Sim, senhor.

Mrs. Branca tirou o casaco, depois ergueu o tecido que cobria a perna até em cima, espreguiçou-se e ficou imóvel.

Que dia estranho!... Será que irei ficar rica?... Parece incrível... bem, não estou gastando um tostão — nem deixando Joe gastar — a não ser o depositado no banco... uma dura lição no primeiro ano do nosso casamento... alguns homens entendem de dinheiro — como Mr. Salomon e o Patrão — e outros não, como Joe... mas é o melhor marido que uma garota pode querer... desde que nunca tenha uma conta conjunta com ele...

Querido Joe!... São lindas «gambás», mesmo que você diga que não são, sua cadela... «Cadela»... que esquisito é o Patrão com seus velhos tabus... é preciso sempre não chocá-lo... não muito, quero dizer. O Patrão gosta de um pequeno tom de choque, como um perfume de alho... é especialmente necessário não aborrecê-lo com a linguagem usada hoje por todos... Joe é bom para uma garota, nunca é preciso ter cuidado... a não ser com o dinheiro...

Que pensaria Joe se me visse instalada neste luxuoso carro, com este bode velho?... Talvez achasse graça, mas é melhor não contar-lhe, queridinha. Os homens pensam de maneira diferente da gente, não são lógicos... entretanto, é errado chamar Mr. Salomon de «bode velho». Ele evidentemente não está agindo assim... Você gostaria de fazer esse comentário provocador, não, querida?... Só para ver o que ele diria... e descobrir!... Ser esmagada...

Ele é velho demais?... Que inferno, não é não, querida. Da maneira como eles erguem um homem com hormônios, ninguém é «velho demais» até ficar excessivamente fraco para se mexer.. assim como o Patrão... não que ele tenha dado o menor passo, mesmo anos atrás, quando ainda estava em boa forma...

O Patrão pensaria realmente em recuperar a mocidade, transplantando seu cérebro?... braços, pernas, rins e mesmo corações, claro, claro... mas um cérebro?...

Salomon desligou o telefone.

— Resolvido — anunciou. — Só falta a assinatura dos documentos, o que farei esta noite em Toronto.

— Desculpe dar-lhe tanto trabalho, senhor.

— É um prazer.

— Muito obrigado. E preciso pensar em como agradecer ao Patrão... Não o fiz hoje, pois achei que ele não queria.

— Não lhe agradeça.

— Oh, eu devo. Mas não sei como. Como se deve agradecer a alguém um presente de um milhão de dólares? Sem parecer insincero?

— Hummm! Há várias maneiras. Mas neste caso não. Minha cara, você dará prazer a Johann não mostrando qualquer sinal de gratidão. Eu o conheço. Muita gente lhe foi grata no passado... então acharam que ele era um cara fácil e trataram de o sangrar novamente. Depois tentaram apunhalá-lo quando viram que ele não era. Por isso não lhe agradeça. Johann não acredita em palavras doces. Acha que visam sempre ao seu dinheiro. Notei que você o enfrenta com coragem.

— É preciso, senhor, do contrário ele me domina. Ele já me fez chorar algumas vezes antigamente, antes de eu descobrir que ele quer que eu o enfrente.

— Está vendo? O velho tirano fica apostando com ele mesmo se você voltará se arrastando no dia seguinte para lamber-lhe a mão como um cão. Portanto, não toque no assunto. Fale-me a seu respeito, Eunice: idade, quantas vezes e há quanto tempo está casada, número de filhos, doenças na infância, por que não está na TV, que faz seu marido, que acha de ser secretária de Johann, número de prisões e por quê... Ou me mande para o inferno. Você tem direito a ficar calada. Mas eu gostaria de conhecê-la melhor. Vamos trabalhar juntos a partir de agora.

— Não me importo de responder — (Direi só o que quiser!) — mas a recíproca é verdadeira? — Parou para baixar o tecido que cobria a perna e ficou ereta. — Posso também fazer perguntas ao senhor?

Salomon riu.

— Certamente. Posso invocar a Quinta Emenda ou mentir. *

 

* A Quinta Emenda, de 1791, à Constituição dos Estados Unidos (1789), diz: "Fica estabelecido que ninguém acusado de um crime pode ser levado a julgamento a não ser indiciado por um grande júri. Não pode ser julgado duas vezes pelo mesmo crime ou forçado a testemunhar contra si mesmo, nem ser privado da vida, da liberdade ou das propriedades sem o DEVIDO PROCESSO LEGAL. Ninguém pode ser despojado de seus bens pelo governo sem receber uma indenização justa" (N. do T.).

 

— Eu também posso mentir, senhor, mas não preciso. Tenho vinte e oito anos e um só casamento. Não tenho filhos — ainda. Possuo uma licença para ter três. Quanto ao meu trabalho... bem, ganhei um concurso de beleza aos dezoito, do tipo que oferece um ano de contrato fazendo exibições dentro do Estado natal, mais um teste na TV com uma opção para um contrato de sete anos...

— E eles não usaram a opção. Estou espantado.

— Nada disso, senhor. Ao contrário, examinei minhas possibilidades e caí fora. Ganhando o concurso estadual e depois perdendo o nacional, pude verificar a quantidade de lindas garotas que existe por aí. Demais. E algumas coisas que elas me contaram a respeito do que se tem de passar para entrar na TV e ficar... bem, não me animei muito. Voltei para o colégio, tirei o curso de secretária eletrônica, especializada em linguagem de computador e cibernética, e saí à procura de emprego. (E não vou lhe contar o que consegui através da escola!) Finalmente fui trabalhar com Mrs. Bierman, quando a secretária dela foi ter criança... então ela não voltou e eu fiquei... e quando Mrs. Bierman se aposentou, o Patrão me pôs no lugar dela, onde fui ficando. Portanto, está olhando para uma moça de sorte.

— Uma moça muito esperta. Mas tenho a certeza de que seu aspecto tem muito a ver com a decisão de Johann de conservá-la no cargo.

— Sei que é verdade — respondeu ela calmamente. — Mas ele não me teria mantido no emprego se eu não fosse capaz de cumprir minhas obrigações. Tenho consciência da minha aparência, mas isso não me envaidece. A aparência é hereditária.

— Claro que é — concordou ele —, mas um é dado importante para mostrar que as mulheres bonitas são, em média, mais inteligentes que as feias.

— Oh, não acho! Veja Mrs. Bierman: francamente feia, mas terrivelmente esperta.

— Eu disse «em média» — repetiu ele. O que é «beleza»? Uma hipopótama tem de parecer bonita ao seu namorado ou os hipopótamos desaparecerão dentro de uma geração. O que consideramos como «beleza física» é quase certamente um rótulo para um conjunto de características úteis de sobrevivência. Esperteza — inteligência — entre elas. Pensa que um hipopótamo acharia você uma beleza?

Ela deu uma risadinha.

— Provavelmente não!

— Viu? Na realidade, você não é tão bonita quanto uma hipopótama. É apenas um conjunto de características úteis de sobrevivência para sua espécie.

— Imagino que sim (Hum! Me dê uma oportunidade e lhe mostrarei o que sou).

— Mas visto que Johann e eu somos da sua espécie, esse conjunto significa «beleza» para nós. Coisa, aliás, que Johann sempre apreciou.

— Sei disso — respondeu ela calmamente. Esticou totalmente a perna coberta de vermelho e olhou para ela. — Me visto desta maneira para agradar ao Patrão. Quando comecei a trabalhar para as Empresas Smith, usava tão pouca roupa quanto as moças dos outros lugares: pele pintada e quase nada mais, sabe? Então, quando fui trabalhar com Mrs. Bierman, comecei me vestindo com muito recato, para imitá-la. Quero dizer, com o corpo quase todo coberto, como a Enfermeira Macintosh, inclusive sem nada transparente. Muito inconfortável. Continuei a me vestir assim depois que Mrs. Bierman foi embora. Até que numa manhã em que eu estava vestindo aquilo — um material barato que não valia a pena lavar — derramei café na frente da roupa e fiquei sem nada para vestir.

«E sem tempo para comprar qualquer coisa, pois eu tinha mais medo de chegar tarde — sabe como Mr. Smith é impaciente — que da bronca por causa de minha roupa. Ou falta dela. Por isso rangi os dentes, meti-me num biquíni de mensageira e pedi a Joe que me pintasse o mais depressa possível! Já lhe disse que Joe é artista?

— Não acredito.

— Pois é. Pintou minha pele e maquilou meu rosto. Mas apesar disso cheguei tarde naquele dia, pois Joe é realmente um artista e recusou permitir que eu saísse só com a tinta da base. O biquíni era branco, com pintas azul-marinho de diversos tamanhos... e Joe insistiu em continuar o estampado por todo meu corpo. Eu o xingava e pedia que andasse depressa. Mas ele fez questão de pintar mais uma bola enorme. Eu estava tão atrasada que atravessei uma Área Abandonada que costumava rodear.

— Eunice, você nunca deve entrar numa Área Abandonada. Meu Deus, menina, mesmo a polícia só se arrisca a entrar lá num carro blindado igual a este. Você poderia ter sido espancada, violentada e assassinada e ninguém tomaria conhecimento.

— Eu sabia, senhor, mas estava com tanto medo de perder o emprego! Tentei explicar ao Patrão porque havia chegado tarde, mas ele me mandou calar e trabalhar. Naquele dia, estava especialmente afável. No dia seguinte, vesti a espécie de roupa que costumava usar e ele foi incrivelmente ignóbil o tempo todo. Mr. Salomon, afinal de contas não sou otária. A partir daí deixei de me parecer com uma freira e passei a me vestir e pintar com exagero, tanto quanto possível.

— Foi eficaz. Mas, querida, você deve ser mais cuidadosa. Está certo usar roupas sexy para agradar Johann. Além de caridoso, porque o velho destroço não tira muitas alegrias da vida, não é ameaçador para você no estado em que ele está.

— Ele nunca me ameaçou, senhor. Em todos estes anos que venho trabalhando para Mr. Smith, o máximo que ele fez foi pegar na minha mão. Só faz elogiar cada enfeite novo... algumas vezes de maneira salgada. Então reajo e ameaço contar ao meu marido. Aí ele cai na gargalhada. Tudo tão inocente como colégio de freira.

— Sem dúvida. Mas você precisa ter mais cuidado ao ir e voltar do trabalho. Não me refiro só a ficar afastada das Áreas Abandonadas. Vestida como anda e bonita como é, você esta sempre em perigo. Não percebe? Seu marido não vê?

— Oh, eu me cuido, senhor! Sei o que pode acontecer, pois vejo o noticiário. Mas não tenho medo. Carrego três armas ilegais não registradas... e sei como usá-las. O Patrão comprou-as para mim e seus guardas me seguem.

— Hummm. Como membro do Tribunal, devo denunciá-la. Como ser humano que sabe como esta cidade é perigosamente selvagem, aplaudo seu bom-senso. Se realmente sabe como usá-las. Se tem coragem para isso, rápida e efetivamente. Se, depois de se defender, for bastante esperta para cair fora depressa e nada dizer aos tiras. Há um monte de «ses», minha cara.

— Realmente não tenho medo. Hum, se o senhor fosse meu advogado, tudo o que eu lhe dissesse ficaria em segredo, não é?

— É. Está me pedindo para ser seu advogado?

— Hum... estou, sim, senhor.

— Muito bem, serei. Fica tudo entre nós. Continue.

— Bem. Uma noite tive de sair para fazer uma doação de sangue. Eu sozinha, pois Joe não estava em casa. Não se preocupe, já fiz muitas doações noturnas e freqüentemente saio só. Meu calhambeque fica dentro do apartamento e só saio dele dentro do hospital ou do local para onde vou. Mas... Conhece aquele velho hospital, o Nossa Senhora das Mercês?

— Acho que não.

— Não tem importância. É velho, construído antes do governo ter desistido de garantir a segurança nas ruas. Não tem elevador de veículos, nem estacionamento interno. Só um terreno com uma cerca e um guarda no portão. Aconteceu quando eu ia saindo. O patife tentou me agarrar entre os carros estacionados. Não sei se queria minha bolsa ou eu. Não tentei saber... nem sei mesmo se era um homem. Podia ter sido uma mulher...

— Pouco provável.

— Talvez. Dei-lhe um soco na cara com a esquerda e atirei com a direita. Não esperei para saber se ele tinha morrido. Me mandei direta para casa. Nunca disse à polícia, a Joe nem a ninguém até agora (Mas precisou de uma dose tripla de Narcotol para deixar de tremer, fiem, queridinha... oh, moita, não interessa).

— Então você é uma moça corajosa e pode matar se for preciso. Mas também é uma boba com muita sorte. Hummm. Johann tem um carro blindado igual a este e dois grupos de guardas para acompanhá-lo.

— Claro que ele tem guardas, senhor, mas nada sei dos seus carros.

— Ele tem um Rolls-Skoda. Eunice, não vamos mais depender da sua habilidade com armas. Você pode vender seu calhambeque ou plantar flores nele. De agora em diante, terá guardas móveis e carro blindado. Sempre.

Mrs. Branca ficou espantada.

— Mas, Mr. Salomon! Mesmo com meu novo salário não posso começar a...

— Pare, minha cara. Sabe muito bem que Johann jamais andará novamente de carro. Há possibilidade de nunca mais sair daquela sala. Mas continua a ter seu carro de proteção pessoal. Continua mantendp duas equipes, dois choferes, dois rifles... e talvez cumpram alguma missão uma vez por semana. Não valem o que comem e passam o tempo jogando. Amanhã de manhã meu carro irá apanhá-la. Amanhã de tarde seu próprio carro — o de Johann — levará você para casa. E também mandaremos sempre buscar você.

— Não sei se o Patrão irá gostar.

— Não se preocupe. Vou espinafrá-lo por permitir que você corra perigo. Se me vier com malcriação, verá que tenho erva bastante para tomar você dele. Seja sensata, Eunice. Isso não vai custar um dólar a ele. Entra nas despesas gerais. Vamos mudar de assunto: que pensa dos planos dele para esse soi-disant «corpo quente»?

— É possível um transplante cerebral? Ou ele está se agarrando numa palha? Sei que se sente muito infeliz pregado naquela horrenda maquinaria. Meu Deus, vivo vasculhando as lojas à procura de roupas alegres, mas está cada vez mais difícil arrancar-lhe um sorriso. Esse plano é praticável?

— Isso não importa, querida. Ele pediu um corpo e vamos entregá-lo. Esse Rare Blood Club tem todos os AB-Negativos inscritos?

— Meu Deus, não. O último relatório do clube acusa menos de quatro mil AB-Negs registrados, num provável total nacional de um milhão.

— Isso é mau. Que acha da idéia dele dos anúncios de página inteira e da publicidade na TV?

— Vai custar um montão de dinheiro. Mas acho que ele pode se dar ao luxo.

— Certamente. Mas fede.

— Senhor?

— Eunice, se esse transplante tiver de ser feito, é preciso que não haja publicidade. Lembra do bode quando começaram a hibernar gente? Não, você era muito pequena. Tocou um nervo exposto, provocando berros imensos e aquilo foi logo proibido, com o argumento de que, até que a maioria pudesse se beneficiar, a ninguém seria permitido. O abençoado Povo... nosso país foi, sucessivamente, uma democracia, uma oligarquia, uma ditadura, uma república, um socialismo, uma mistura de tudo isso, sem modificar sua constituição básica, e agora somos uma anarquia de fato sob um ditador eleito, muito embora ainda tenhamos leis, legislatura e parlamento. Mas, atravessando isso tudo, o nervo continua exposto: a idéia de que se todos não puderem ter tudo, ninguém deve ter. Assim, o que acontecerá quando um dos homens mais ricos do país puser um anúncio querendo comprar um corpo humano vivo... apenas para salvar sua fedorenta e egoísta vida?

— Não acho que o Patrão seja tão mau assim. Se sua doença for levada em consideração, até que ele é bacana.

— Não se trata disso. Esse nervo exposto pulará como um dente cariado. Pregadores o denunciarão. Serão apresentadas leis nos parlamentos. A Associação Médica Americana ordenará a seus membros que não se envolvam no assunto e o Congresso poderá promulgar uma lei contra. Oh, a Suprema Corte poderá considerar essa lei inconstitucional, acho eu... mas até lá Johann terá morrido há muito tempo. Por isso, nada de publicidade. O Rare Blood Club conhece esses outros AB-Ne-gativos que não são membros?

— Não sei. Acho que? não.

— Vamos verificar. Suponho que pelo menos oitenta por cento da população deste país tiveram seu sangue catalogado. O tipo sangüíneo nunca muda?

— Oh, não, nunca. É por isso que nós, raros — é assim que nos chamamos — somos tão procurados.

— Ótimo. Quase toda a população catalogada consta da lista de computadores em cada lugar e com os computadores tão interligados atualmente, é uma questão de saber que perguntas fazer, como e onde... Não sei como, mas conheço a firma a contratar para isso. Estamos progredindo, minha cara. Deixo este ponto de partida e os detalhes aos seus cuidados e assim que iniciar outras fases e entregá-las a você para verificação, irei à América do Sul procurar o tal açougueiro Boyle. E...

— Mr. Salomon! Duas vagabundas estão se aproximando. Salomon apertou o botão do seu intercom.

— Roger. * — Acrescentou: — Raios as partam. Essas duas beldades gostam de atravessar as Áreas Abandonadas. Esperam que alguém atire para que tenham um pretexto legal para responder. Desculpe, minha cara. Com você aqui, eu deveria mandar que ficássemos fora das A.A. fosse como fosse.

 

* Palavra usada especialmente em radiocomunicação e sinalização, para informar que a mensagem foi corretamente recebida e entendida (N. do T.).

 

— A culpa é minha — disse Mrs. Branca humildemente. — Eu deveria lhe ter dito que é quase impossível andar em volta de Dezenove-B sem cruzar uma zona má. Tenho de fazer um rodeio para chegar à casa do Patrão. Mas estamos seguros aqui dentro, não?

— Estamos, sim. Se formos atacados, este velho tanque vai ser atingido e é só. Mas não preciso dizer a eles. Rockford não é tão mau: um provocador sindical, um duro decaído. Mas Charlie — o que está com o rifle — é mau. Matou pela primeira vez aos onze anos. Ele... — Placas de aço deslizaram para cima em torno deles e cobriram os vidros à prova de bala. — Devemos estar entrando nas A.A.

As luzes internas se acenderam assim que as placas escureceram as vidraças. Mrs. Branca disse:

— Da maneira pela qual o senhor fala, parece que seus guardas são mais perigosos que a gente da zona má.

Salomon sacudiu a cabeça.

— Nunca, minha cara. Oh, concordo em que qualquer sociedade racional os liquidaria... mas uma vez que não temos pena capital, me aproveito dessa falha. Ambos estão em liberdade condicional sob minha responsabilidade e gostam deste trabalho. Além de...

O rap-rap-rap! de uma arma automática costurou a extensão do carro. Naquele espaço apertado, o estrondo arrebentava os ouvidos. Mrs. Branca ofegou e se agarrou em Salomon. Uma explosão isolada, ainda mais alta, fez POUNGK! Ela mergulhou o rosto no ombro dele, apertando-o mais.

— Peguei ele! — gritou alguém. As luzes se apagaram.

— Eles nos pegaram? — perguntou ela, com a voz abafada pelas dobras da camisa dele.

— Não, não — deu-lhe um tapinha e passou o braço direito em torno do corpo dela. — Charlie pegou-os. Ou pensa que pegou. A última explosão foi da arma da nossa torrinha. Você está a salvo, querida.

— Mas as luzes se apagaram.

— Isso acontece. É o choque. Vou apertar o botão das luzes de emergência.

Começou a tirar o braço.

— Oh, não! Fique me segurando, por favor... Não tenho medo do escuro. Sinto-me em segurança... se o senhor me agarrar.

— Como queira, minha querida.

Sentou-se mais confortavelmente e mais junto dela, dizendo logo depois, suavemente:

— Meu Deus, você é uma criancinha muito fofa.

— E o senhor também... Mr. Salomon.

— Não pode me chamar de Jake? Tente.

— Jake. Sim, Jake. Seus braços são tão fortes! Que idade tem, Jake?

— Setenta e um.

— Não posso acreditar. Você parece muito mais moço.

— Velho bastante para ser seu avô, garotinha fofa. Só pareço mais moço... no escuro. Mas é um ano de tempo emprestado, de acordo com a Bíblia.

— Não quero que fale assim. Você é jovem! Vamos parar de falar, Jake. Querido Jake.

— Doce Eunice.

Alguns minutos mais tarde a voz do motorista anunciou:

— Tudo terminado, senhor.

As placas começaram a descer... e Mrs. Branca apressadamente desvencilhou-se do seu companheiro, rindo nervosamente:

— Meu Deus!

— Não se assuste. Este vidro só deixa ver de dentro.

— É um alívio. Mas apesar disso, esta luz é um banho de água gelada.

— Hum, tem razão. Quebra a disposição. Logo quando eu estava me sentindo jovem.

— Mas o senhor é jovem, Mr. Salomon.

— Jake.

— Jake. A idade não conta, Jake. Nossa Senhora, enchi os babados da sua camisa de tinta.

— Em compensação, desmanchei seu cabelo.

— Nisso eu dou um jeito. Mas o que vai dizer sua mulher quando olhar a camisa?

— Perguntará por que não a tirei. Querida Eunice, não tenho mulher. Há anos ela me trocou por um modelo mais novo.

— Uma mulher de mau gosto. Você é um clássico, Jake... e os clássicos melhoram com a idade. Meu cabelo agora está melhor?

— Lindo. Perfeito.

— Estou quase tentada a pedir para voltar até a zona perigosa para que você torne a desmanchá-lo.

— Estou mais que «quase tentado». Mas é melhor que a leve para casa... a menos que queira ir comigo ao Canadá. Voltarei pela meia-noite.

— Quero e não posso, realmente não posso. Por isso me leve para casa. Mas sente junto de mim e me abrace, sem desmanchar desta vez o meu cabelo.

— Vou ter cuidado. — Deu ao motorista as coordenadas do apartamento de Mrs. Branca, acrescentando: — E tratem de não atravessar mais nenhuma Área Abandonada, seus pistoleiros de sorte!

— Perfeitamente, Mr. Salomon.

Viajaram em silêncio. Então Mrs. Branca disse:

— Jake... você estava se sentindo verdadeiramente jovem no instante em que fomos interrompidos.

— Tenho a certeza de que você percebeu.

— Percebi. Estava preparada para permitir e você sabe disso também. Jake? Gostaria de ter uma foto pelada minha? Uma boa, não a tirada por aquele tipo bisbilhoteiro que cobra tanto.

— Seu marido tirará? Pode me arranjar uma?

— Nada disso, querido Jake, tenho dúzias de fotos peladas... participei de concursos de beleza, lembra? Darei uma com prazer... se você não contar a ninguém.

— Informação reservada. Seus segredos estão sempre a salvo com seu advogado.

— Gosta como? Artística? Ou sexy?

— Hum... escolha difícil!

— Bem... uma foto pode ser ambas as coisas. Estou me lembrando de uma feita no chuveiro, com os cabelos e o corpo molhados, sem um pingo de pintura no corpo, nem maquilagem no rosto, nem mesmo... bem, você verá. Que tal uma assim?

— Vou uivar feito lobo!

— Você a terá. Mudando de assunto, estamos quase chegando. Jake? O Patrão tem alguma chance nesse história de transplante de cérebro?

— Não sou médico. Em minha opinião de leigo... nenhuma.

— Foi o que pensei. Então ele não vai viver muito, faça ou não a operação. Jake, farei o máximo que puder para me vestir ainda mais maliciosamente para ele, até o fim.

— Eunice, você é uma moça ótima. É a melhor coisa que pode fazer por ele. Muito melhor que agradecer-lhe pelo seguro.

— Eu não estava pensando nesse ridículo milhão de dólares, Jake. Estava pensando no Patrão. Sentindo pena dele. Hoje de noite vou comprar alguma coisa verdadeiramente exótica... e se não encontrar uma novidade exótica, comprarei um simples colante transparente... fora de moda, mas sempre eficiente quando se usa uma pintura adequada sob ele. Joe é bom para isso. E... bem, se vou ter agora guardas, posso usar de vez em quando só pintura e salto alto para minhas pernas ficarem melhor — sim, sei que são bonitas! — saltos finos de nylon e pintura.

— E perfume.

— O Patrão não sente cheiro, Jake. Perdeu o olfato.

— Ainda conservo o meu.

— Oh. Está bem. Perfume para você e pintura para o Patrão. Nunca usei nada tão extremado no trabalho... mas agora que não trabalhamos mais nos escritórios — não vemos mais muita gente — e osso ter à mão uma camisola semitransparente para uma emergência — verei se o Patrão vai gostar. Joe se diverte imaginando desenhos provocantes para pintar em mim e não tem ciúme do Patrão. Tem tanta pena do velho quanto eu. E é tão difícil achar novidades em roupas exóticas. Mesmo quando faço compras pelo menos uma vez por semana.

— Eunice.

— Sim, senhor. Sim, Jake.

— Não faça compras hoje à noite. É uma ordem... do seu patrão em virtude da minha condição de representante dele.

— Está bem, Jake. Posso perguntar por quê?

— Você poderá usar só pintura no trabalho amanhã, se quiser: este carro e meus guardas cuidarão de você como jóias da coroa. Mas preciso do carro hoje. Começando amanhã, você terá o carro e os guardas de Johann e poderá usá-los sempre para fazer compras e tudo o mais.

— Sim, senhor — respondeu ela, humildemente.

— Mas está enganada ao pensar que Johann vai viver pouco. O problema dele é que ainda tem de viver muito.

— Não estou entendendo.

— Ele foi apanhado, minha querida. Caiu nas garras dos médicos e estes não vão deixá-lo morrer. Ao permitir que eles o atrelassem àquele mecanismo sustenta-vida, perdeu sua última chance. Percebeu que suas refeições são servidas sem faca? Ou mesmo garfo? Só usa uma colher de plástico.

— Mas a mão dele treme demais. Às vezes dou-lhe comida, pois ele detesta ver enfermeiras «zanzando em volta», como diz.

— Pense nisso, minha querida. Eles tornaram impossível a Johann fazer qualquer coisa a não ser ficar vivo. Uma máquina. Uma cansada máquina que sofre o tempo todo. Eunice, esse transplante de cérebro não passa de uma forma de Johann enganar seus médicos. Uma forma extravagante de suicídio.

— Não!

— Sim. Retiraram-lhe a possibilidade dos meios comuns e por isso ele tem de pensar num fora do comum. Você e eu vamos ajudá-lo a conseguir, exatamente como ele quer. Acho que chegamos. Não chore, que diabo. Seu marido vai querer saber a causa e você não pode contar-lhe. Não quer me dar um beijo de despedida?

— Oh, quero, sim!

— Enxugue as lágrimas e erga esse rostinho lindo. Vão nos abrir a porta dentro de um instante.

Ela imediatamente sussurrou:

— Este beijo foi tão bom como o primeiro, Jake... e não tenho mais vontade de chorar. Mas estou ouvindo destrancar a porta.

— Terão de esperar até que eu abra por dentro. Posso subir no elevador com você e ir até sua porta?

— Nãaao... Posso justificar a presença dos seus guardas, mas será difícil explicar porque o procurador-geral da firma se deu a esse trabalho. Joe não tem ciúmes do Patrão, mas pode ter de você. E não quero que tenha... especialmente quando estou tão perto de lhe dar motivos para isso.

— Poderemos dar um jeito.

— Talvez, Jake. Minha moral de provinciana não está hoje muito vigilante... acho que fui corrompida por um milhão de dólares, um Rolls-Royce... e um espertalhão da cidade. Me deixe ir, querido.

 

Os guardas A acompanharam ao nível superior, levando-a até à porta em respeitoso silêncio. Mrs. Branca olhou com novo interesse para «Charlie», o Pistoleiro, imaginando como um silencioso e paternal homenzinho podia ser tão tarado quanto Jake achava que ele era.

Ficaram de lado quando ela falou com a fechadura e esperaram até o marido dela abrir.

— Estaremos aqui esperando às nove e quarenta, Miss...

— Obrigada, Rockford. Boa noite. Boa noite, Charlie.

Joe Branca esperou até ter acabado de fechar e ligar o alarme para então falar.

— Que diabo aconteceu? E onde arranjou esses macacos de uniforme?

— Não vou ganhar primeiro um beijo? Será que cheguei tão tarde assim? Ainda não são dezoito.

— Fale, mulher. Um outro macaco apareceu há duas horas com seu calhambeque... Tá certo, o mordomo do seu patrão telefonou. — Ajudou-a a tirar a capa e beijou-a. — Onde andou, cabeça de vento? Tive saudades.

— Foi a coisa mais bacana que ouvi hoje: você ter saudades de mim.

— Subi pelas paredes! Que aconteceu?

— Ficou preocupado? Oh, querido!

— Preocupado, não. O lacaio de Smith disse que você estava cumprindo uma missão e devia voltar para casa num carro blindado. Por isso eu sabia que você estava em segurança. Mas foi duro esperar tanto quando o telefonema dizia que você viria logo. Sacou?

— Saquei. Porém é simples: o patrão me mandou com seu homem de confiança, Jake Salomon. Você conhece.

— Um rábula, saquei.

— Mr. Salomon me levou no carro dele até seu escritório para fazer coisas que o patrão queria com urgência... Você sabe como ele quer as coisas na hora e como fica quando não consegue.

— Pobre-diabo. Devia fazer logo a Grande Viagem. Lamentável.

— Não diga isso, querido. Choro só de pensar.

— Você é uma boboca, bicho. Mas eu também sou.

— É por isso que o amo, querido. Em todo caso, foi um trabalho demorado e Mr. Salomon mandou seus guardas me trazerem em casa. Atravessamos o terreno do Ninho de Passarinho e fomos atacados. Tivemos um lado cortado.

— Hem? Machucou-se?

— Nem um arranhão. Foi gozado.

— E por dentro?

— Terrivelmente confuso, mas emocionante. Fiquei excitada.

— Tudo deixa você excitada, peituda. — Sorriu e acariciou o cabelo dela. — Você chegou e não foi ferida, o restp não importa. Por isso, tire a roupa. A inspiração me comeu o dia inteiro. Subi pelas paredes!

— Que espécie de inspiração, amado? — perguntou ela, enquanto desabotoava o meio-suéter no ombro direito e o fazia escorregar pelo braço. — Você comeu? Quando começa a pintar não se lembra de comer.

— Comi qualquer coisa. Estava muito inspirado. Grande, grande! Vou preparar um prato para você. Galinha? Espaguete? Pizza?

— Qualquer coisa. É melhor eu comer se a inspiração é essa.

Tirou as sandálias, desceu as calças rendadas e sentou no chão para desamarrar o laço delas.

— Vou posar para um quadro ou você vai pintar meu corpo e fotografar?

— Ambos. É essa a surpresa. Uma Nova.

Ela colocou a roupa cuidadosamente num canto e sentou-se numa cadeira de balanço.

— Não saco. Ambos?

— Ambos. Você verá. — Olhou-a de alto a baixo, sorrindo. — Duas espécies de inspiração.

— Oba! Mande brasa!

— Não está com muita fome? Posso esperar.

— Homem dos meus amores, quando tive tanta fome? Nada de cama. Apanhe um travesseiro e venha!

Mrs. Branca pensou imediatamente como tinha sido bom não ter permitido que o querido Jake fosse até o fim: aquela coisa gostosa teria sido um desapontamento comparada com o que tinha em casa... embora ele a tivesse maravilhosamente preparado para isto. Realmente, era melhor ser uma esposa fiel. Normalmente. Que dia maravilhoso e extraordinário! Deveria contar a Joe o fabuloso aumento que tivera? Mais tarde. Não poderia contar mais nada. Que pena. Então deixou de pensar coerentemente.

Algum tempo depois abriu os olhos e sorriu para ele.

— Obrigada, amado.

— Boas vibrações?

— Exatamente o que o médico me receitou. Em momentos como este, estou convencida de que você é um Michelangelo.

— Não o velho Mike — respondeu Joe, sacudindo a cabeça. Ele gostava de garotos. Picasso talvez.

Ela o abraçou.

— Seja quem você quiser, meu querido, contanto que continue sendo meu. Está bem, vou posar agora e comer nos intervalos.

— Esqueci. Carta da Mamãe. Quer ler?

— Claro, querido. Vou levantar e apanhar.

Ele a estendeu, ainda fechada. Eunice sentou e percorreu com o olhar para ver o que devia ler ou não. Ha, ha, ha, como você esperava, queri-dinha, a periódica ameaça de nos fazer uma «longa visita». Bom, ela sabia como agir. Fora! Porque Joe não sabia recusar nada à mãe. A única visita tinha sido demais, embora tivesse acontecido na época em que possuíam dois quartos, antes dela ter achado aquele maravilhoso estúdio de uma só peça para Joe. Deixar aquela carcaça pegajosa se instalar ali? Parar com as festancas no chão? Não, Mamãe Branca, não vou deixar você arruinar nosso ninho de amor com sua asfixiante presença. Você continuará onde está e vive, em Welfare... e lhe mandarei um cheque de vez em quando, fazendo com que pense que é presente de Joe. E nada mais!

— Alguma coisa?

— O de costume, queridinho. Continua sofrendo do estômago, mas o pároco mandou-a a outro médico e ela diz que está se sentindo melhor. Mas vou começar do começo. «Meu querido Bebezinho, são poucas as notícias desde a última vez que Mamãe escreveu, mas se não escrevo nunca recebo respostas. Diz a Eunice para me escrever uma longa carta contando tudo a teu respeito. Uma mãe fica preocupada. Eunice é muito boa moça, muito embora eu pense que teria sido melhor você casar com uma moça da sua religião...»

— Chega.

— Seja tolerante, Joe. Afinal é sua mãe. Eu não me incomodo e vou arranjar tempo — amanhã — para lhe escrever uma enorme carta. Vou mandá-la pela Mercury, no malote da companhia, para que ela a receba com certeza. O patrão não se importa. Está bem, vou pular o resto. Sabemos o que ela pensa dos protestantes. Ou ex-protestantes. Fico imaginando o que ela iria pensar se nos ouvisse cantar «Om Mani Padme...»

— Arrancaria as calças.

— Oh, Joe! — Pulou novo trecho, inclusive o autoconvite. — «Ângela vai ter um outro filho. O Visitante está furioso com ela, mas eu o critiquei com dureza e acho que isso o ensinou a não maltratar gente direita. Não sei por que não podem nos deixar em paz. Por que não se pode ter um filho?» Qual é a Ângela entre suas irmãs?

— A terceira. O Visitante tem razão. Mamãe está errada. Não leia tudo, peituda. Leia pra você e me conte.

— Está bem, querido. O resto são fuxicos sobre os vizinhos, e comentário sobre o tempo. As notícias reais são que o estômago de sua mãe está melhor e que Ângela está grávida. Me dê um tempo para lavar este vermelho e preto — por falar nisto, o patrão gostou da combinação — e estarei pronta para ser pintada, para posar ou para qualquer coisa. Você pode aquecer uma pizza para mim enquanto me lavo e eu a comerei nos intervalos. E, querido, não vou poder posar além da meia-noite e ficarei muito contente se você levantar amanhã de manhã na mesma hora que eu, talvez um pouco mais cedo. Mas pode voltar para a cama.

— E daí?

— Por causa do patrão, querido. Para agradá-lo.

Explicou-lhe sua idéia do vestido inteiramente pintado, alternando com estilos eróticos. Joe encolheu os ombros.

— Com prazer. Por que cobrir? Bobagem. O velho tá morrendo, deixa ele ver. Não faz mal.

— Tá na cara, querido. O patrão bota banca de «moderno», de «ser de hoje». Mas a verdade é que formou suas idéias num tempo em que a nudez não era apenas incomum, mas pecado. Ele pensa que eu sou uma boa moça vinda de um lugar tão atrasado que nunca sofreu mudanças. Desde que eu use uma coisa mínima — e pintura e sapatos — estou vestida e não nua. Pelos padrões «modernos» dele, quero dizer. Uma boa moça, fingindo malícia para agradá-lo. Como ele gosta.

Joe sacudiu a cabeça.

— Não saco.

— Oh, claro que você saca, meu querido. Simbolismo, como você me explicou a respeito de arte. Mas tem de ser com os símbolos do patrão. Nudez nada significa para nossa geração. Mas para o patrão, sim. Se eu tirar este pedaço de nylon, deixo de ser, pelos símbolos dele, uma moça direita, divertida-mas-direita. Passo a ser uma prostituta.

— As prostitutas são legais, Ângela é uma. (Uma muito desajeitada, disse ela para si mesma)

— Claro que são. Mas não para o patrão. O pior é adivinhar os símbolos dele. Tenho vinte e oito anos e ele mais de noventa e possivelmente não manjo a mente dele. Se insisto muito, ele pode ficar zangado, muito zangado, mesmo: pode me despedir. Então o que vamos fazer? Teremos de deixar este lindo estúdio.

Sempre na posição de Lótus, ela olhou em volta. Sim, lindo. Excluindo-se o calhambeque estacionado junto da porta e a cama no canto, o resto tinha o colorido desordenado de um estúdio de artista, sempre mudando e sempre o mesmo. A grade de aço cobrindo a ampla janela que dava para o norte tinha um belo padrão... e era tão sólida que ela nunca se preocupava. Sentia-se aquecida, abrigada e feliz, ali.

— Eunice, minha querida...

Ela ficou espantada. Joe usava uma linguagem lacônica tão habitualmente que ela ficava sempre espantada quando ele escolhia uma linguagem diferente, muito embora ele fosse capaz de falar um inglês formal igual ao dela. Bem, quase igual, corrigiu-se ela... mas Joe era muito correto gramaticalmente para um homem que não passara do secundário.

— O que é, querido?

— Saco perfeitamente, mas não tinha certeza se você sacava. Só testando, beleza. Não tenho noventa anos mas qualquer artista entende o símbolo da folha de parreira. Pode acontecer você levar a sério demais os símbolos de Mr. Smith, não sei. Mas vamos fazer. Folha de parreira, visto que a mente dele pode mentir para si mesma: «Não, não, proibido mexer, Mamãe bate». Então pinto você como crime sexual esperando pela marca «X».

— Ótimo!

— Mas nunca se preocupe com emprego. Claro, este cantinho é legal, tem boa luz do norte, gosto dele. Mas se perdermos, e daí? Prontidão não me assusta.

(Me assusta, querido!)

— Eu o amo, querido.

— Mas vamos fazer isso pelo simpático velhote moribundo e não para conservar o estúdio. Sacou?

— Saquei mesmo! Joe, você é o melhor marido do mundo.

Ele não respondeu e fez uma careta de dor, que Eunice reconheceu como as pontadas precursoras da criatividade. Por isso ficou imóvel. Joe imediatamente suspirou.

— Descer da parede. Problema que fazer para patrão, resolvido por inspiração, me pôs lá em cima. Amanhã você será sereia.

— De acordo.

— E esta noite. Parte superior corpo verde-mar com rosa brilhante nos lábios, faces e seios. Corpo inferior escamas, peixe dourado fundindo cintura. Fundo submarino com luz do sol filtrando. Símbolos do fundo do mar tradicionais, romântico. Mas de cabeça para baixo.

Eunice hesitou:

— E?

(É difícil saber quando perguntar, quando ficar calada na hora em que Joe está criando) Ele sorriu.

— Ilusão de óptica. Você está nadando. Mergulhando diretamente para o fundo, costas arqueadas, cabelos esticados, dedos retesados: luz difusa salpicando a água. Lindo. Impossível pôr arame, mesmo que tivesse: não posso esconder armação e cabelos devem ficar caídos e nádegas e seios devem sacudir...

— Meus seios não sacodem!

— Trema com eles. Você tem lindos seios e sabe que eu sei. Mas volumes de carne sacodem e artista vê. Todos vêem, apenas não percebem. Algo errado, não sei quê. Olho não se engana. Tem de ser mergulho real ou fica falso. Arte má.

— Bem — disse ela, duvidosa —, se você arranjar uma escadinha e colocar uma rede sob o colchão, acho que posso mergulhar, rolar para o lado e não me machucar. Acho.

— Não acho! Quebra lindo pescoço, burrinha. Para cima. Não para baixo.

— Hem?

— Já disse. Fundo de cabeça para baixo. Então pula direto no ar. Como dando cortada no vôlei. Projeto para-ação estéreo, velocidade mil. Seis, sete, oito, nove vezes até ajustar. Viro ponta-cabeça para baixo: linda sereia mergulhando para fundo do mar.

— Oh, que burra eu sou.

— Não burra, apenas não artista. — Recomeçou a fazer caretas e ela se manteve calada. — Muito para uma noite. Amanhã pinto fundo. Esta noite pinto você para treinar. Então talvez estéreo-careta pule contra fundo. Mais treino. Cama cedo, levantar cedo, pintar você novamente para patrão.

— Genial — aplaudiu ela. — Mas por que me pintar duas vezes, querido, se irei amanhã ser uma sereia para o patrão? Se você arrumar a cama de lona para mim e eu dormir sozinha, não estragarei muito a pintura. De manhã você me fará retoques. Sem precisar levantar muito cedo.

Ele sacudiu a cabeça.

— Não quero pintar mesma maneira para patrão e não quero deixar você dormir pintada.

— Minha pele não estragará.

— Não, minha querida. Sua pele não estragará porque não a pinto muito nem freqüentemente ou a deixo muito tempo pintada e sempre que tenho a certeza de que você tirou a pintura toda, passo óleo na sua pele. Mas você vê, eu vejo, todos vêem o que acontece com moças que se pintam demais. Espinhas, cravos, irritação, coceira... um horror. Claro, vou pintar você para o patrão da cabeça aos pés, mas não com muita freqüência, e lavarei você assim que chegar em casa. Falei.

— Sim, meu senhor.

— Portanto, lave preto e vermelho enquanto esquento pizza. Minutos depois, ela saiu do chuveiro e gritou pela porta do banheiro:

— Que foi que você disse?

— Nada. Big Sam passou por aqui. Pizza pronta.

— Corte um pedaço para mim, tá querido? Ele queria o quê? Dinheiro?

— Não. Bem, dei-lhe cinco mangos. Passou para nos convidar. Domingo. Dia inteiro de meditação. Apartamento de Gigi.

Eunice entrou na sala ainda se enxugando.

— O dia inteiro, hem? Só nós quatro? Ou o bando inteiro?

— Neca. Um Sétimo Círculo.

— Mexe-mexe?

— Acho que sim. Ele não disse.

— Mexe-mexe — Eunice suspirou. — Querido, não me importo que você lhe empreste um cincão que nunca mais verá. Mas Big Sam não é guru, apenas um intermediário e um marginal.

— Big Sam e Gigi dividem o que conseguem. E ninguém precisa mexer. Nunca.

— Teoricamente, sim. Mas o único meio perfeito de escapar de um Círculo é nunca entrar nele. Especialmente um Sétimo. Promete? Serei capaz de apertar os dentes e sorrir, se for preciso.

— Não. Disse-lhe que falasse com você. Diga-lhe amanhã.

— Bem? Digo-lhe o quê, meu querido?

— Eu lhe disse não.

— Amor, acho que você não me respondeu. Há algum motivo especial para você nos querer nesse Sétimo? Um crítico de arte, talvez? Ou um marchand? Se é por causa de Gigi, por que não lhe pede para posar num dia em que eu estiver trabalhando? Ela virá imediatamente, de ra-binho abanando. Já vi a maneira dela olhar você.

Joe sacudiu a cabeça e riu.

— Nyet, Yvette. Acredite, moça... eu contemporizei com Big Sam porque achei possível você querer estar com ele. Mas Big Sam também me assusta... má aura.

— Oh, que alívio! Eu mexerei, querido. Prometi quando lhe propuz casamento. E tenho mexido nas poucas vezes em que você quis. E a maior parte das vezes foi divertido e apenas uma me chateou. Mas gosto de avaliar os participantes.

— Pegue pizza, suba estrado. Pintar pernas enquanto come.

— Sim, querido.

Subiu para o estrado dos modelos com um pedaço de pizza em cada mão. Seguiu-se um longo período, apenas interrompido pelos sons de mastigação e de imprecação em voz baixa, que pontilharam alternadamente seu prazer e sua exasperação. Nenhum prestou atenção ao outro. Joe Branca estava imerso na euforia da criação e sua mulher profundamente envolvida pela emoção de ser acariciada. Finalmente, Joe disse:

— Desça — e estendeu-lhe a mão.

— Posso olhar?

— Não. Costelas e peitos agora. Não levante braços ainda. Quero estudá-los.

— Como se você não conhecesse cada canto.

— Cale-se. Preciso pensar como pintá-los amanhã de manhã. — Acrescentou imediatamente: — Estive pensando talvez você sobrecarregue patrão demais só com calcinha. Resolvido agora.

— E?

— Dá. Pinto soutien em você.

— Mas assim não vai estragar, querido? Sereias não usam soutiens.

— Problema. Má empatia. Então uso conchas. Do tipo de curva rasa, com fundos pontudos. Você sabe.

— Desculpe, mas não sei, querido. Conchas marinhas são raras em Iowa.

— Não importa. Conchas marinhas produzem má empatia, todos os símbolos combinam. — Riu. — Linda, pintarei as taças do soutien em forma de conchas para enganar o patrão, que não terá certeza. Passará o dia tentando ver se é soutien verdadeiro ou apenas pintado. Se ele não conseguir e perguntar... venci.

Ela murmurou, feliz:

— Joe, você é um gênio!

 

Assim que o Dr. Boyle saiu da sala de operações, Mr. Salomon se levantou.

— Doutor!

Boyle diminuiu os passos apressados.

— Oh. O senhor, outra vez. Vá para o inferno.

— Irei, sem dúvida. Mas ouça um momento, Doutor. O cirurgião respondeu, com fúria controlada:

— Olhe, camarada... estou operando há onze horas com um único pequeno intervalo. Neste instante, odeio todo mundo, principalmente o senhor. Portanto, me abandone.

— Pensei que talvez quisesse tomar um drinque? O cirurgião sorriu repentinamente.

— Onde é o boteco mais próximo?

— A uns vinte metros daqui. No meu carro. Estacionado neste andar. Suprido com cerveja australiana, gelada ou à temperatura ambiente. E outras coisas: uísque, gim, o que quiser.

— Palavra, vocês, ianques de uma figa, sabem fazer as coisas. Aceito, mas primeiro preciso mudar de roupa.

Tornou a se virar e Salomon tornou a pará-lo.

— Doutor, tomei a liberdade de colocar suas roupas na mala e levá-las para meu carro. Portanto, vamos logo tomar esse drinque.

Boyle balançou a cabeça e riu.

— O senhor tomou a liberdade... também topo. Muito bem, se conseguir agüentar o fedor, tomarei banho e trocarei de roupa no hotel. «Ataque, MacDuff!»

Salomon se manteve impassível até que tivessem sido fechados no carro e que ele tivesse servido cerveja para ambos: um autêntico coice de canguru para o médico e uma americana muito mais fraca para ele. Quando jovem já entrara em fria com a cerveja australiana e agora era muito cuidadoso. O enorme carro partiu suavemente e continuou assim. Rockford fora avisado de que talvez bebessem no compartimento de passageiros.

Salomon esperou até que seu convidado tivesse bebido meio copo e então suspirou aliviado.

— Doutor, como foi?

— Hem? Suavemente. Planejamos, ensaiamos e fizemos. Que mais? O senhor me arranjou uma boa equipe.

— Devo entender que o senhor considera a operação como um sucesso?

— ...«mas o paciente morreu». Este é o resto do velho ditado. Jacob Salomon sentiu uma onda de pena e alívio. Suspirou e respondeu:

— Bem, eu já esperava por isto. Obrigado, Doutor, sei que fez o possível.

— Calma! Eu não disse que este paciente morreu. Simplesmente completei o lugar-comum. A operação transcorreu exatamente como foi planejada. O paciente encontrava-se em estado satisfatório quando entreguei o controle à equipe.

— Então espera que ele viva?

— «Aquilo», não «ele». Aquela coisa não é um ser humano e talvez nunca venha a ser. Não quer morrer, não pode... a menos que um dos seus tribunais dê permissão para desligar a maquinaria. Aquele corpo é jovem e sadio. Com o apoio que está recebendo, pode ser mantido vivo — como protoplasma e não como ser humano — por um indefinido espaço de tempo. Anos. E o cérebro estava vivo quando saí. Continuava a mostrar forte resposta de onda-alfa. Deve continuar vivo. Está recebendo suprimento sangüíneo daquele corpo saudável. Mas se aquele cérebro e aquele corpo irão se unir num ser humano vivo... que igreja freqüenta?

— Nenhuma.

— Que pena. Ia lhe sugerir que telefonasse a Deus e Lhe perguntasse, porque eu não sei. Visto que eu poupei as retinas e os ouvidos internos — a propósito, sou o primeiro cirurgião a fazer isso — aquilo tem condições de ver e ouvir. Possivelmente. Se a medula espinhal deteriorar, pode recuperar o controle motor e até mesmo dispensá-lo com apoio artificial. Mas vou lhe revelar a dura verdade, mestre: a mais provável conseqüência é que aquele cérebro nunca voltará a entrar em contato com o mundo exterior, seja de que maneira for.

— Espero que seus pressentimentos sejam infundados — disse Salomon com humildade. — Seus honorários dependem do senhor conseguir um mínimo de visão, audição e fala.

— Uma ova.

— Não estou autorizado a pagar de outra maneira. Desculpe.

— Erro seu. Falou-se numa gratificação, uma quantia ridiculamente grande, cujo montante não sei. Olhe, paisano, vocês rábulas têm permissão para trabalhar à base de honorários. Nós, açougueiros, temos outras normas. Meu honorário é para operar. Operei. Finis. Sou um cirurgião ético, apesar do que dizem esses calhordas por aí.

— Isso me faz lembrar... — Salomon apanhou um envelope no bolso. — Tome seus honorários,

O cirurgião meteu o dinheiro no bolso. Salomon disse:

— Não vai conferir?

— Para quê? Caso não seja o combinado, iniciarei um processo. De qualquer modo, não faço por menos. Principalmente agora.

— Mais cerveja? — Salomon abriu outra garrafa de dinamite australiana. — O senhor está pago. Totalmente, em ouro, na Suíça. Esse envelope contém o número de sua conta, mais a concordância de nossa parte em pagar suas despesas, os honorários da equipe, o tempo do computador, as despesas hospitalares e o que houver. Espero, mais tarde, pagar essa «ridícula» gratificação, como o senhor diz.

— Oh, não recuso um presente. As pesquisas custam caro e quero continuar. Pretendo ser um verbete respeitável na história da medicina, em vez de ser acusado de charlatão.

— Claro e com meu testemunho.

Boyle tomou uma golada de cerveja e piscou pensativamente.

— Acho que fui sujo novamente. Desculpe... Sempre saio da sala de operações de mau humor. Esqueci que ele é seu amigo.

Salomon sentiu novamente aquela onda agridoce de alívio e pena. Respondeu calculadamente:

— Não, Johann Smith não é meu amigo.

— Não? Pois tinha a impressão que era.

— Mr. Smith não tem amigos. Sou um advogado a seu serviço. Como tal, sou-lhe fiel.

— Percebo. É bom que o senhor não esteja emocionalmente envolvido, pois os prognósticos de um transplante de cérebro nunca são bons, como sei melhor que ninguém. — Boyle acrescentou, pensativo: — Desta vez vai dar certo. Foi uma boa combinação de tecidos, surpreendentemente boa tendo em vista a enorme diferença entre o doador e o recipiente. Tipo sangüíneo igual, o que ajudou. Foi uma sorte. Mesmo a disparidade de crânios não constituiu um problema depois que pude ver aquele cérebro.

— Então por que está desanimado?

— Sabe quantos milhões de ligações nervosas estão em jogo? Pensa que posso fazê-las todas em onze horas? Ou em onze mil horas? Não tentamos. Apenas trabalhamos nos nervos da cabeça, unimos as extremidades das duas medulas espinhais... e voltamos a sentar, fazendo girar nossa roda de orações. Talvez se fundam, talvez não... e ninguém sabe Por quê.

— Estou entendendo. O que não compreendo é como esses milhões de conexões podem se acomodar. Mas aparentemente o senhor teve sucesso com dois chimpanzés.

— Raios! Tive sucesso. Desculpe. O sistema nervoso humano é infinitamente inventivo quando se trata de se defender. Em vez de religar velhas conexões, acham novos caminhos — se puderem — e aprendem a usá-los. Conhece a experiência de psicolab com óculos invertidos?

— Acho que não.

— Um estudante colocou lentes invertidas nos olhos. Durante um dia ou dois viu tudo de cabeça para baixo, tendo de ser levado pela mão, alimentado e acompanhado à privada. Então, subitamente, começa novamente a ver tudo de cabeça para cima: o cérebro havia ligado umas centenas de milhares de conexões e agora estava interpretando os novos dados com sucesso. Nesse momento, tiraram os óculos do voluntário e seus olhos nus começaram a ver o mundo de cabeça para baixo. Enfrentando essa nova situação, o cérebro encontrou, novamente, outros caminhos e finalmente as imagens mudaram de posição ainda uma vez e ele pôde ver o mundo normalmente.

«Uma coisa mais ou menos semelhante a isso aconteceu aos meus dois dignos chimpanzés, Abelardo e Heloísa. A princípio nada aconteceu, o que me fez pensar num outro fracasso. Então começaram a se contorcer e tivemos de contê-los, para evitar que se ferissem. Tinham ação motora mas faltava controle. Como criancinhas de colo. Mas, com o tempo, os cérebros aprenderam a manobrar seus novos corpos. Não me pergunte como. Sou cirurgião e não quero fazer suposições. Pergunte a um psicólogo. Eles adoram adivinhar. Ou pergunte a um padre. Terá uma resposta tão boa quanto a outra ou, talvez, melhor. Diga, esse seu motorista não está dando voltas como um peru? Meu hotel fica só a onze minutos do centro médico.»

— Sou obrigado a admitir, doutor, que tomei outra liberdade. Suas coisas foram emaladas, a conta do hotel foi paga e sua bagagem transportada para meu quarto de hóspedes.

— Palavra de honra. Por quê?

— Para maior segurança.

— O hotel me pareceu bastante seguro. Guardas armados em cada porta, mais homens armados trabalhando nos elevadores... não podia sair ou entrar sem mostrar minha carteira de identidade pelo menos três vezes. Fazia até me lembrar do exército. Nunca imaginei que os Estados Unidos fossem um tal acampamento armado. Não é um tanto aborrecido?

— Ê. Mas a gente se acostuma. Seu hotel é bastante seguro, fisicamente. Mas a imprensa está em cima de nós agora e pode entrar lá. E a polícia também.

Boyle ficou perturbado mas não em pânico.

— Complicações legais? O senhor me garantiu que toda essa espécie de coisas havia sido cuidadosamente resolvida.

— E foi. O doador era casado, como lhe disse, e por uma sorte incrível tanto o marido quanto a mulher deram o preconsentimento. Tivemos uns bons milhares daquele tipo de sangue registrados em ordem — com adiantamentos pagos — mas não podíamos prever que esse fosse acidentalmente morto a tempo. As projeções estatísticas não previam isso. Mas um deles foi realmente morto e não houve complicações... nenhuma insuperável — emendou Salomon, pensando no saco de dinheiro — e um tribunal permitiu seu uso como «pesquisa necessária e proveitosa». Não obstante, a imprensa poderia desencadear uma tempestade e outro tribunal decidir examinar o assunto. Doutor, posso transportá-lo para o Canadá em uma hora e para qualquer lugar do planeta em um dia... até mesmo para a Lua sem muita demora se o senhor assim escolher.

— Hummm. Não me importo de ir para a Lua. Nunca estive lá. O senhor disse que minhas roupas estão no seu quarto de hóspedes?

— Disse e o senhor é muito bem-vindo.

— Há um banheiro de água quente por aí?

— Com toda a certeza.

— Então vou querer outra cerveja, esse banheiro e cerca de dez horas de sono. Já fui preso antes. Não me assusta.

 

Johann Sebastian Bach Smith estava em algum outro lugar. Onde, não sabia, não se importava, nem imaginava... não sabia quem era, não tinha consciência de si mesmo nem de nada, não tinha consciência de que não estava consciente.

Então lentamente, atravessando eras, veio do nada da anestesia total para o nível do sonho. Os sonhos chegaram por tempo imensurável, infindavelmente... Mrs. Schmidt, Yonny pode sair e brincar... Extra! Horríveis atrocidades na Bélgica! Leiam!... Johann, nunca entre dessa maneira, sem bater, seu menino mau... dentro de uma folha de repolho... maior margem de lucro antes que o mercado abra amanhã... folha de repolho uma ova: sai do umbigo dela. Yoho você não sabe de nada... Johnny você sabe que é feio fazer isso e que se meu pai descer... uma moça bonita é como uma melodia... ei, tire o raio das mãos dos peitos dela... sargento, fui voluntário uma vez para nunca mais... Nosso Pai que está no Céu, permitiu ser teu Nome o do jogo cuide-se Smith velho amigo você assinou junto o bilhete e tenho ontro peixe para sexta-feira no máximo prometo querido Johann não sei como você pode mesmo chegar a pensar tal coisa de sua própria esposa é um homem de responsabilidade Mr. Smith e tenho a certeza de que o tribunal concordará que quatro mil mensalmente é uma moça muito modesta nunca faria uma coisa dessas Schmidt e se pegar você cercando minha filha outra vez atiro a obra inteira não vale o papel em que foi impressa Johann não sei o que seu pai dirá quando voltar para casa na floresta onde o veado e o antílope porte-se direito comigo e será retribuído, garota, aperte a mão duas vezes é regulamento apertar três pudim com creme no caixão dela minha cabeça de fora e o pai dela nos ouviu e estragou tudo menos Johann apenas curioso você me entende, corpo velho, não tenho corpo e nenhum corpo trabalha muito tempo para outro corpo se pretende continuar no mundo dos negócios, garota, teve exatamente o suficiente para ser tratada como uma senhora como qualquer corpo viu a melhor amiga de minha garota é sua querida enquanto ambos possam viver direito e trabalhar muito e pagar suas contas de carregamentos filho vai embora e as estrelas saem do meu quarto imediatamente meu marido quer me matar e os vizinhos estão sempre bisbilhotando onde deixar sua bicicleta tem de pagar por si nunca Papai se eu pego esse jornal aniquilo e me afasto para não ser apanhado por perto Johnny você é tão enorme a dívida nacional nunca deve ser liquidada e todas as ações das nossas companhias devem forçar a inflação e então emprestar agora e pagar mais tarde então você pensa que sou essa espécie de garota apenas porque deixei você ir para o colégio ser professor filho mas agora vejo pela alvorada o primitivo sistema de alarma é inútil senhores sem capacidade secundária de manter o crescimento como decidido anteriormente por isso é sua vez de tratar você me trata com meiguice eu trato você com meiguice Eunice Eunice! onde foi essa menina perdi Roma e perdi Gália mas pior ainda perdi Eunice alguém ache Eunice... estou aqui patrão... onde o senhor tem estado sempre patrão...

Seus sonhos continuaram infindavelmente, totalmente em estéreo — som, imagem, odor, tato — e sempre surrealista, o que ele nunca percebeu. Fluíam através dele ou vice-versa, com lógica perfeita para ele.

Enquanto isso, o mundo deslizava em torno dele... e o esquecia. A tentativa de transplantar um cérebro vivo deu oportunidade para muita conversa fiada dos comentaristas de TV, de convidados «especializados» que eram incitados a acrescentar sua própria mistura de preconceito, especulação e predisposição, em nome da «ciência». Um juiz à procura de publicidade expediu uma ordem de prisão do «Dr. Lyndon Doyle (sic), mas o Dr. Lindsay Boyle já estava fora de alcance antes da ordem ter sido assinada e muito antes do nome ser corrigido. Um famoso e muito elegante evangelista preparou um sermão denunciando o transplante, usando como tema «Vaidade das Vaidades».

Mas no terceiro dia, um espetacular e insolitamente sangrento assassinato político tirou Johann Smith dos jornais e o evangelista viu que podia usar o sermão mudando apenas algumas frases, o que ele fez, interpretando instintivamente a sede americana pelo sangue dos poderosos.

Como sempre, a taxa de nascimentos não permitidos excedeu a dos permitidos, enquanto a dos abortos superou ambas. A Upjohn International pagou um dividendo extra. O apoio e os meios para a próxima campanha presidencial começaram com uma declaração conjunta dos diretórios nacionais dos dois partidos conservadores, o SDS e o PLA, anunciando a realização das suas convenções juntas (embora preservando a mútua autonomia) com o objetivo (não declarado mas subentendido) de reeleger o em função. O dirigente do organismo de extrema esquerda Agrupamento Constitucional de Libertação denunciou o fato como uma manobra tipicamente cripto-fascista capitalista e previu uma vitória em novembro pela liberdade constitucional. Os partidos divididos, Democrático, Socialista e Republicano, reuniram-se sem estardalhaço (poucos membros e quase sem delegados de menos de sessenta e cinco anos) e deram a partida às escondidas, merecendo apenas uma ligeira referência no noticiário.

No Oriente Médio, um tremor de terra matou nove mil pessoas em três minutos e tornou perigosamente perto a sempre presente possibilidade de uma guerra pela alteração do equilíbrio do terror. A Comissão Lunar Sino-Americana anunciou que as colônias lunares eram agora 87% auto-suficientes em proteínas e carboidratos e aumentaram a quota subsidiária de imigração mas recusaram novamente relaxar a exigência de alfabe-tização.

Johann Sebastian Bach Smith sonhava com isso.

Depois de um tempo imensurável (quanto mede um sonho?), Smith acordou o suficiente para ter consciência de si mesmo: a autoconsciência reflexiva de acordar, contrastando com a inequívoca e inexplicável auto-experiência de sonhar. Viu quem era, Johann Sebastian Bach Smith, um homem muito velho — não um bebê, um garoto nem qualquer dos seus eus jovens — e teve consciência do seu ambiente sensorial, que. era zero: trevas, silêncio, ausência de qualquer sensação física, nem mesmo pressão, tato ou movimento muscular.

Ficou imaginando se a operação havia começado e que iria se sentir assim quando morresse. Não se preocupava com o sofrimento. Haviam lhe garantido que o cérebro não tinha receptores de dor e que estava sendo anestesiado apenas para mantê-lo imóvel e despreocupado quando o trabalho fosse feito... além disso, a dor havia muito deixara de preocupar Smith: era sua companheira constante, quase uma velha amiga.

Voltou imediatamente a dormir e a novos sonhos, sem desconfiar que a disposição de suas ondas cerebrais estava sendo orientada e havia causado uma grande excitação quando uma mudança de ritmo e de curva-tura mostrou que o paciente estava acordado.

Voltou a despertar e desta vez pensou na possibilidade de que aquele nada fosse a morte. Examinou a idéia sem pânico, pois chegara a um acordo com a morte havia mais de meio século. Se aquilo era a rnorte, não era nem o Céu, que lhe fora prometido quando criança, nem o Inferno no qual deixara de acreditar havia muito tempo, ou mesmo a total ausência do eu que era lícito esperar: não passava de uma bruta chatice.

Adormeceu novamente, sem desconfiar que o médico responsável pela sua equipe de sobrevivência havia decidido que o paciente estivera acordado bastante tempo e diminuíra sua respiração, ao mesmo tempo em que fizera uma ligeira mudança na sua química sangüínea.

Acordou outra vez e procurou fazer um exame da situação. Se estivesse morto — e parecia não haver razão maior para duvidar — que havia deixado e como podia evitar os prejuízos? Haveres: nenhum. Emenda: um haver, a memória. Tinha uma recente memória-de-uma-memória, vaga e indefinida, de sonhos confusos e loucos — provavelmente da anestesia e sem valor — acrescida de outras recordações mais antigas, porém muito mais vivas de ser (ou ter sido) Johann Smith. Bem, Johann, seu velho safado, se você e eu vamos passar toda a eternidade fechados neste limbo, é melhor agirmos no sentido de lembrar tudo o que fizemos.

Tudo? Ou nos concentrar nas partes boas? Não, um cozido tem de levar tempero senão fica insosso. Procurar lembrar tudo. Se você tem a eternidade inteira sem nada para se divertir a não ser esta única reprise, vamos querer ter tudo isso em fita... muito embora as melhores partes possam se tornar cansativas depois de uns milhares de vezes.

Todavia, a concentração — só para treinar — em uma recordação agradável não faz mal. Qual será ela então, parceiro? Só há quatro assuntos importantes: dinheiro, sexo, guerra e morte. O resto é secundário. Portanto, qual escolher? Isso! Você tem razão, Eunice: sou um velho sujo e minha única pena (muito profunda!) é não ter encontrado você há quarenta ou cinqüenta anos. Quando você ainda não era um relâmpago no olhar do seu pai. Tanto pior. Diga-me, menina, esses enfeites de conchas são um soutien ou foram pintados na sua linda pele? Esse me enganou. Devia ter perguntado e deixado você me responder com um desaforo. Por isso conte ao vovozinho. Me telefone e conte. Desculpe, querida, não lhe posso dar o tamanho da onda. Não está no catálogo.

Puxa, você está bacana!

Vamos experimentar outra coisa. Impossível esquecê-la, Eunice querida, mas nunca toquei em você com um dedo, raios. Vamos em frente, voltemos para alguém em quem pusemos um dedo. Nossa primeira mulher? Não, você foi sujo, seu palhaço desajeitado. A segunda? Ah, sim, a do pijama rajado! Mrs. Wicklund. Nome? Eu sabia o nome dela? Certamente nunca a chamei pelo nome de batismo, na primeira nem nas outras vezes. Muito embora ele me tivesse deixado voltar. Deixado? Incentivado, insistido.

Vejamos, eu tinha catorze, catorze e meio e ela devia estar com... trinta e cinco? Lembro que ela disse estar casada havia quinze anos, por isso imagino uns trinta e cinco. Não importa. Foi a primeira vez que encontrei uma mulher que queria, que me mostrou que queria. Depois, sem tapeação, tomou conta de um tímido e ansioso rapaz quase virgem, acalmou-o, orientou-o, fê-lo gozar, mostrou-lhe que também gozou, dando-lhe um posterior sentimento de bem-estar.

Deus abençoe sua alma generosa, Mrs. Wicklund! Se estiver perdida em algum lugar desta escuridão — pois deve ter morrido muitos anos antes de mim — espero que se lembre de mim e que essa recordação a deixe contente como acontece comigo.

Agora os detalhes... Seu apartamento era exatamente debaixo do nosso. Era uma tarde fria e ventosa e você me deu vinte e cinco centavos (bastante na época, quando um centavo era dinheiro) para lhe comprar coisas no armazém. Comprar o quê? Que tal sua memória, bode velho chifrudo? Não, velho fantasma chifrudo? Não importa, sou... é aqui em cima, doutor. Meio quilo de presunto cozido em fatias, um quilo de bata-ta-inglesa, uma dúzia de ovos de granja (sete centavos a dúzia naquela época, meu Deus!), um pão de centeio de dez centavos e... mais uma coisa, Oh, sim, um carretei de linha branca no armarinho ao lado da loja de Mr. Gilmore, pertencente a Mrs. Baum: dois filhos, um morto na Primeira Guerra e o outro famoso no mundo da eletrônica. Mas voltemos a você, Mrs. Wicklund.

Você me ouviu trazer minha bicicleta para o corredor e abriu a porta. Entrei e levei suas compras para a cozinha. Você me pagou e me ofereceu chocolate quente e... por que não fiquei preocupado com mamãe? Papai estava trabalhando e Mr. Wicklund também. Até aí tudo bem, mas... onde estava mamãe? On, sim, era seu dia de Círculo de Costura.

Portanto tomei o chocolate e estava agradecendo quando você ligou a vitrola e pôs um disco... hum. Era «Margie» e você me perguntou se eu sabia dançar. Você me ensinou logo... no sofá.

 

Um técnico na equipe de sobrevivência examinava um osciloscópio. Notou um aumento de atividade cerebral, concluiu que o paciente podia estar assustado e resolveu tranquilizá-lo. Johann Smith mergulhou suavemente no sono sem perceber... nos chiados de uma vitrola de corda. Estava «fox-trotando», assim lhe disse ela. Johann pouco se importava com o nome. Seu braço estava em torno da cintura dela e os dela no seu pescoço. Seu cheiro quente e saudável era doce em suas narinas. Imediatamente ela o seduziu.

Depois de um longo, extasiado e amplamente satisfatório espaço de tempo, Johann disse:

— Eunice querida, não sei se você pode fox-trotar. Ela sorriu dentro dos seus olhos.

— Você nunca me perguntou, patrão. Você pode parar a vitrola?

— Claro, Mrs. Wicklund.

 

Johann Smith tornou-se consciente de que aquele limbo não era mais informe: a cabeça repousando em algo, a boca desagradavelmente seca e cheia, como se houvesse nela aquela espécie de sucata que os dentistas metem na boca das suas vítimas. Continuava a haver uma escuridão total, porém não mais um silêncio mortal. Um barulho de sucção... Toda sensação era bem recebida. Johann gritou:

— Ei! Estou vivo!

Duas salas adiante, o técnico controlador de plantão pulou tão violentamente que derrubou a cadeira.

— O paciente está tentando falar! Chamem o Dr. Brenner! Brenner respondeu tranqüilamente, cobrindo a voz do controlador:

— Estou com o paciente, Cliff. Mande uma equipe e avise os Drs. Hedrick e Garcia.

— Imediatamente! Johann falou:

— Ei, que diabo! Há alguém aqui?

As palavras soaram como grunhidos incoerentes. O médico encostou uma haste transmissora nos dentes do paciente, colocando um microfone contra sua própria garganta.

— Mr. Smith, está me ouvindo?

O paciente resmungou novamente, mais alto e mais forte. O médico respondeu:

— Mr. Smith, desculpe, mas não consigo entendê-lo. Se está me ouvindo, emita um som. De qualquer espécie, mas só um.

O paciente grunhiu uma vez.

— Ótimo, maravilhoso... o senhor pode me ouvir. Muito bem um som isolado quer dizer Sim; dois significam Não. Se está me entendendo, responda com dois sons. Dois grunhidos.

O enfermo grunhiu duas vezes.

— Ótimo, agora podemos conversar. Um som para Sim e dois para Não. Está doendo?

Dois grunhidos:

— Uh... ko!

— Perfeito! Agora vamos experimentar outra coisa. Seus ouvidos estão tapados, completamente à prova de som. Minha voz está chegando aos seus ouvidos internos através dos seus dentes e do maxilar superior. Vou retirar parte da cobertura do seu ouvido esquerdo e falar com o senhor através dele. Os sons talvez lhe doam no começo e por isso vou começar murmurando. Compreendeu?

Um grunhido.

Smith sentiu uma suave resistência quando algo foi retirado.

— Continua me ouvindo?

— Uh... ko...

— E agora está me ouvindo?

— Uh... ko.ah.ee..oh..ee...00..ow!

— Acho que foi uma frase. Não tente ainda falar. Apenas um grunhido ou dois.

Johann disse:

— Claro que não posso falar, seu idiota! Tire essa sucata da minha boca!

As vogais surgiram bastante claramente. As consoantes apareciam deformadas ou ausentes.

— Doutor, como pode o doente falar com toda essa geringonça no caminho?

Brenner disse, calmamente:

— Cale-se, enfermeira. Mr. Smith, colocamos um aspirador na sua garganta para evitar que sufoque com o catarro, afogando-se na própria saliva. Ainda não posso retirá-lo. Por isso, tenha paciência. Além disso, seus olhos estão tapados. Seu oftalmologista é quem decidirá quando serão descobertos. Eu não posso... sou o plantão da equipe de sobrevivência e não o médico encarregado do seu caso. Esse é o Dr. Hedrick, assistido pelo Dr. Garcia. Nada mais posso fazer até que um deles chegue. Está se sentindo bem? Um grunhido ou dois.

Um grunhido...

— Ótimo. Ficarei aqui com o senhor e poderemos conversar, se o senhor quiser. Quer?

Um grunhido...

— Está bem, vamos. O senhor pode dizer mais de Sim ou Não sempre que quiser. Soletrando. Recitarei o alfabeto devagar e o senhor me interromperá com um grunhido quando eu disser a letra que o senhor desejar. E assim por diante, até formar a palavra. É lento... mas nenhum de nós dois tem o que fazer. Vamos experimentar?

Um grunhido...

— Ótimo. Eu tenho muita prática disso. Participei de muito plantão de manutenção de vida em que o paciente não podia falar mas estava acordado e perfeitamente consciente. Assim como o senhor — acrescentou, mentindo esperançoso, de olho no osciloscópio central. — Embora chateado, é claro. Muito chateado... esta é a pior parte para um doente em manutenção de vida. Sofre muito, mas não podemos deixá-lo dormir o tempo todo. Não é bom para ele e às vezes precisamos da sua cooperação. Muito bem, sempre que o senhor quiser dizer alguma coisa, dê três gru-nhidos espaçados e provarei que aprendi meu abe.

Três grunhidos...

— A... b... c... d... e... f... Johann grunhiu no «o».

— «O»? repetiu o Dr. Brenner. — Não se preocupe em responder se eu tiver acertado. Está bem, a primeira letra é «o». A... b... c...

A mensagem era: «Ouvido direito».

— Quer que tire o tampão do ouvido direito? Um grunhido...

O médico removeu-o cuidadosamente.

— Vamos testar — disse ele. — Cincinnati, sessenta e Seis, Susannah. Está escutando com ambos os ouvidos? Minha voz parece passar de um lado para outro?

Um grunhido, seguido de outros três...

— Muito bem, mensagem soletrada. A... b... c... Imediatamente o médico disse:

— Nobody? Esta é a primeira palavra da sua mensagem? Grunhido duplo...

Muito bem, tentarei outra vez. A... b... — Foi interrompido por uma série de grunhidos e parou. — O senhor não quer que eu continue a soletrar... porém «Nobody» não é a primeira palavra da sua mensagem. Mas eu teria jurado que tinha acertado. «Nobody»... Hum... ei! «No... body»... duas palavras?

Um grunhido enfático...

— Está querendo me dizer que tem a sensação de estar sem corpo? Não pode senti-lo?

Grunhido...

— Oh, claro que não pode senti-lo. Ainda não acabou de ser curado. Mas honestamente — prosseguiu o médico, mentindo com a habilidade dada por uma longa prática — seu progresso tem sido fantasticamente rápido. Falar e ouvir tão depressa é maravilhosamente encorajador. Na verdade, o senhor me fez ganhar uma aposta. Quinhentas pratas — continuou a mentir — e eu havia calculado o dobro do tempo de recuperação que o senhor mostrou. E agora vou duplicar meus lucros, juntan-do-os e apostando que o senhor poderá usar seu corpo todo em curto prazo. Porque o senhor tem um corpo maravilhosamente saudável, muito embora ainda não possa senti-lo. Um elemento primordial de recuperação.

Tríplice grunhido... Então a mensagem soletrada foi: «Quanto tempo?»

— Quanto tempo, desde a operação? Ou quanto tempo até que possa usar seu corpo todo?

O Dr. Brenner foi salvo pela campainha. Parou de soletrar o alfabeto e disse:

— Um instante, Mr. Smith, o Dr. Hedrick chegou e tenho de avisar. A enfermeira ficará com o senhor... deixe o paciente descansar, enfermeira. Tem sido cansativo.

Do lado de fora, o Dr. Brenner parou o médico assistente dizendo:

— Dr. Hedrick, um momento antes do senhor entrar. Verificou os remotos?

— Certamente. Aparentemente, acordou em estado normal.

— E raciocinando, na minha opinião. Retirei os tampões centrais das almofadas de ambos os ouvidos e estivemos conversando, soletrar-e-gru-nhir, matando o tempo até o senhor...

— Ouvi-o no monitor e presumi que havia destampado as orelhas dele. O senhor assumiu uma grande responsabilidade, doutor.

O Dr. Brenner empertigou-se e depois respondeu friamente:

— Doutor... seu paciente consentiu. Eu estava aqui sozinho e tive de julgar por mim mesmo. Se quiser que eu abandone o caso, é só dizer.

— Não seja tão danadamente suscetível, rapaz. Agora vamos entrar e ver o paciente. Nosso paciente.

— Sim, senhor.

Entraram. O Dr. Hedrick disse:

— Sou o Dr. Hedrick, Mr. Smith, médico a cargo do seu caso. Parabéns! Seja bem-vindo na sua volta ao nosso enfadonho mundo. Foi uma vitória para todos... e uma justificação para um grande homem, o Dr. Boyle.

Três grunhidos...

— Quer soletrar uma mensagem? Um grunhido...

— Se quiser esperar um momento, tiraremos alguns instrumentos da sua boca e o senhor falará em vez disso (Com muita sorte, retificou Hedrick para si mesmo... mas nunca esperei que o caso progredisse tanto. Aquele açougueiro arrogante é mesmo um grande homem. Para minha surpresa). Convém-lhe?

Um grunhido enfático...

— Bem. Dr. Brenner, aspiração manual. Regule aquelas luzes, enfermeira. Atenção, monitor! Verificar o que está retendo o Dr. Feinstein.

Johann Smith sentiu mãos trabalhando rápida mas suavemente e a seguir o Dr. Hedrick disse:

— Deixe-me examinar, doutor. Muito bem, retire as cunhas da man-díbula. Mr. Smith, temos de aspirar de instante a instante... prefiro não forçá-lo a cuspir muco. Ou retirá-lo de maneira mais penosa. Mas o senhor pode falar, se quiser.

— Po... de... eu... gon... di!

— Devagar, devagar. O senhor está recomeçando a aprender a falar tudo, como uma criança. Agora repita o que disse... mas devagar e cuidadosamente.

— Por... Deus... eu... consegui!

— Claro que conseguiu. É o primeiro homem na história a ter o cérebro transplantado para um novo corpo... e viver nele. E irá continuar vivendo. É um corpo muito bom. Saudável.

— Mas... não posso pentir — sentir — coisa nenhuma do queixo para baixo.

— Sorte sua — respondeu o médico. — Acontece que o mantivemos imobilizado prevendo a chegada do dia — breve, espero — mas nunca, mais provavelmente, acrescentou para si mesmo — em que começará a sentir seu novo corpo inteiro. Quando esse dia chegasse, o senhor poderia se contrair descontroladamente... se não o tivéssemos imobilizado. Então terá de começar a trabalhar no sentido de dominar seu corpo. Como um recém-nascido. Praticando. Uma prática possivelmente longa e tediosa.

— Quanto... tempo?

— Não sei. Os chimpanzés do Dr. Boyle foram bastante rápidos, segundo soube. Mas o senhor poderá precisar de tanto tempo quanto uma criancinha aprendendo a andar. Mas por que se preocupar com isso agora? Arranjou um corpo novo, utilizável durante anos e anos... ora, o senhor poderá ser o primeiro ente humano a viver duzentos anos. Por isso não se apresse. Agora sossegue, por favor... preciso examiná-lo. O anteparo para o queixo, enfermeira.

— Os olhos do paciente estão cobertos, doutor.

— Ah, sim, estão. Mr. Smith, quando o Dr. Feinstein chegar, veremos se ele quer expor seus olhos hoje à luz do dia. Enquanto isso, descubra o paciente, enfermeira.

Mesmo sem os lençóis, o corpo continuava bastante coberto. Um colete plástico «pulmão de aço» envolvia o tronco do queixo ao púbis. Os braços e as pernas estavam enfaixados e as faixas acolchoadas. Cateteres anais e uretrais estavam colocados e presos. Estavam sendo utilizados dois vasos sangüíneos: um para alimentação e outro para orientação. Quatro outros estavam prontos para entrar em uso, mas no momento não eram solicitados. Havia fios aqui e ali. O corpo dentro daquela triste confusão poderia ter sido um que Michelangelo teria gostado, mas a reunião de artefatos e protoplasma só pareceria belo a um médico especialista.

O Dr. Hedrick estava satisfeito. Apanhou um buril no bolso e subitamente arranhou a sola do pé direito... obteve o reflexo que esperava, nenhuma reação de Johann Smith, também como esperava.

«Dr. Hedrick?», disse uma voz saída da cabeceira da cama.

— Pronto.

«O Dr. Feinstein está operando».

— Muito bem. — Fez um sinal à enfermeira para que cobrisse o corpo. — Ouviu, Mr. Smith? Seu oftalmologista está operando e não pode vê-lo hoje. Não importa, o senhor já teve muito para um dia só. Está na hora de dormir.

— Não... Faça o... senhor... Meus... olhos. — Não. Esperaremos o Dr. Feinstein.

— Não! O... senhor... é... o... responsável.

— É verdade e seus olhos não serão tocados até que seu especialista esteja aqui.

— Raios o... o... partam... Chame... Jake... Sal...o...mon!

— Mr. Salomon está na Europa. Foi avisado de que o senhor acordou e muito possivelmente estará aqui amanhã. Não sei ao certo. Enquanto isso, quero que repouse. Durma.

— Não quero!

— Ah, mas vai querer. — O Dr. Hedrick fez um gesto para o Dr. Brenner e balançou a cabeça. — Como o senhor disse, sou o responsável. Quer saber por que tenho a certeza de que vai dormir? Porque estamos diminuindo o ritmo de sua respiração e introduzindo-lhe na corrente sangüínea uma droga inofensiva, que fará com que o senhor durma. Portanto, boa noite, Mr. Smith, e mais uma vez... meus parabéns.

—«Maldição... seu... ins... insuportá... Johann Smith adormeceu. Soergueu o corpo uma vez.

— Eunice?

(Estou aqui, patrão. Torne a dormir) Ele obedeceu.

 

— Oi, Jake!

— Alô, Johann. Como está se sentindo?

— Meio como uma raposa com o rabo numa armadilha, quando esses tiranos me dopam com algo que me torna brando e leve contra minha vontade. Onde diabo tem andado? Por que não veio quando chamei?

— Férias. As primeiras férias decentes em quinze anos. Alguma objeção?

— Pare de eriçar as penas. Você está com uma cor linda. E acho que também está mais magro. Vamos, vamos... embora não me importe de confessar que fiquei desapontado um dia ou dois por você não ter corrido de volta quando acordei. Fiquei com os sentimentos feridos.

— Bolas! Você não tem sentimentos. Nunca teve.

— Ora, Jake... claro que tenho sentimentos, apenas nunca tive como demonstrá-los. Mas, raios, precisei de você.

O advogado balançou a cabeça.

— Você não precisou de mim. Sei por que pensou que precisou. Queria que eu interferisse na maneira do Dr. Hedrick orientar seu caso. O que eu não teria feito. Portanto, ampliei minhas férias para evitar discussões inúteis.

Johann arreganhou os lábios para ele.

— Sempre malicioso, hem, Jake. Muito bem, nunca chorei sobre o leite derramado. Mas agora, que você voltou... bem, Hedrick é um bom médico... mas está sendo arbitrário comigo sem necessidade. Portanto, temos de modificar a situação. Vou lhe dizer o que quero e você falará com Hedrick. Se ele recusar-se dê-lhe a perceber que não é indispensável.

— Não.

— Que quer dizer esse «não»?

— Quero dizer Não. Johann, você ainda precisa de assistência médica constante. Não me intrometi até agora no trabalho do Dr. Hedrick e o resultado tem sido bom. Recuso-me a fazê-lo.

— Oh, pelo amor de Pedro, Jake. Claro, claro, você me é inteiramente dedicado. Mas não está entendendo a situação. Não estou mais em condições críticas. Entrei em convalescença. Olhe, aqui está a última notícia, importante. Sabe o que fiz esta manhã, durante a fisioterapia? Mexi o índex da mão direita. Deliberadamente, Jake. Sabe o que significa?

— Significa que pode participar de um leilão ou chamar um garçom.

— Pipocas. Também agitei um pouco os dedos dos pés. Jake, numa semana estarei andando sem ajuda. Ora, passo trinta minutos cada dia sem este troço de pulmão, este colete... e quando eles tornam a colocá-lo em mim é apenas como precaução, para uma emergência. Mas a despeito de todo este progresso maravilhoso, continuo sendo tratado como um macaco de laboratório, cheio de fios. Me permitem ficar acordado só um pouquinho cada dia... que inferno, chegam mesmo a me barbear quando estou dormindo e só Deus sabe mais o quê. Eu não. Amarram-me o tempo todo para evitar o uso de seis pessoas me agarrando para a fisioterapia. Se não me acredita, levante o lençol e espie. Sou prisioneiro. Na minha própria casa.

Salomon não se mexeu. — Acredito em você.

— Mude essa cadeira de lugar, para que eu o possa ver melhor. Até minha cabeça eles mantêm imóvel... então lhe pergunto: isso é necessário?

— Não faço idéia. Pergunte ao seu médico. Salomon continuou onde estava.

— Perguntei-lhe... porque estou farto do comportamento de sargento-mor dele.

— E recuso a expressar minha opinião num campo onde não tenho competência. Johann, você vai indo bem, é evidente. Mas só um louco substitui um jogador em plena forma. Eu nunca pensei que você sobrevivesse a essa operação. E acho que você também pensava.

— Bem... na verdade eu também. Estava apostando minha vida — literalmente — num jogo demorado. Mas ganhei.

— Então por que não tenta ser agradecido?... em vez de se comportar como criança mimada!

— Calma, Jake, calma... puxa parece até que sou eu falando.

— Deus sabe que não quero parecer com você. Mas repito. Mostre gratidão. Agradeça a Deus... e ao Dr. Hedrick.

— E ao Dr. Boyle, Jake. Estou grato, palavra que estou. Fui resgatado da beira da morte — e agora tenho muitas razões para esperar nova vida maravilhosa — e tudo o que arrisquei foram algumas poucas semanas de uma vida que estava se tornando intolerável — John sorriu. — Não posso exprimir como estou grato, não há palavras. Meus olhos tornaram a ficar normais e vejo tonalidades de cor cuja existência esquecera. Posso ouvir notas agudas que não escutava havia anos. Mandei-os tocar sinfonias para mim e posso acompanhar o flautim nitidamente. E os violinos. Posso ouvir agora toda espécie de sons agudos, mais alto que nunca... até minha nova voz soa agudamente. Ele deve ter sido tenor. E posso cheirar, Jake... eu, que havia perdido o último traço de olfato anos atrás. Enfermeira, passe na minha frente e deixe-me cheirá-la.

A enfermeira, uma linda ruiva, nada disse e não se afastou do es-paldar da cama.

Johann continuou:

— Até me permitem agora comer uma vez por dia. Comer e engolir, quero dizer, não o desgraçado de um tubo. Jake, você sabe que mingau de aveia é mais gostoso que filé mignon? Pois pode ser. Raios, tudo agora é saboroso. Eu tinha esquecido como era divertido comer. Jake, é tão formidável estar vivo — neste corpo — que mal posso esperar a hora de sair para o campo e andar nos prados, subir um morro, olhar as árvores e observar os pássaros. E as nuvens. Banho de sol. Patinar no gelo, talvez. Quadrilha. Já dançou quadrilha, Jake?

— Costumava dançar bem. Ultimamente não tinha tempo.

— Eu nunca tive tempo, mesmo quando jovem. Agora vou arranjar tempo. Acabo de lembrar: quem está dirigindo a empresa?

— Teal, claro, Ele quer vê-lo.

— Vá você, estou muito ocupado aprendendo a usar meu novo corpo. E gostando. Me sobrou algum dinheiro? Não que eu me importe.

— Quer a verdade nua e crua?

— Você não pode me assustar, Jake. Se eu tiver de vender esta casa para me livrar desse bando de carcereiros, nem me abalarei. Pode ser divertido. Vou lhe dizer uma coisa: nunca usarei a Previdência. Me livrarei... sempre consegui, sempre conseguirei.

— Modere-se. Você está mais rico que nunca.

— Hem? Oh, que vergonha! Logo quando eu começava a gostar de estar falido.

— Hipócrita.

— De maneira nenhuma, Jake. Eu...

— Hipócrita, repito. Oh, cale-se. Sua fortuna já atingiu o ponto de partida, onde não pode ser gasta, não importa o que você faça. Apenas continua aumentando. Não consegui mesmo gastar toda sua renda nesta operação e tudo o mais. Todavia, você não dirige mais as Empresas Smith.

— É verdade?

— É. Encorajei Teal a fazer um empréstimo e comprar suas ações com direito a voto, o que o incentivou a «dirigir a empresa». E ela parece melhor. Também pensei, como presidente de fato da diretoria, que seria melhor eu possuir um lote maior e por isso negociei com você algumas ações altamente valorizadas e isentas de impostos em troca de suas antigas ações com direito a voto na empresa. No momento, dois de nós — você e eu ou você e Teal — controlam a votação. Mas não um de nós. Todavia, desfarei o negócio a qualquer hora em que você quiser reassumir o comando.

— Deus me livre!

— Deixaremos o problema em aberto, Johann. Não estou querendo tirar vantagem da sua doença.

— Não, Jake. Se eu não tiver interesse em controlar, não terei nem mesmo responsabilidade moral para olhar pela companhia. Renuncio ao cargo de presidente da diretoria e você ou Teal poderão ser designados para ele. Ou então submeterão o assunto à assembléia.

— Espere até ficar bom.

— Está bem, mas não mudarei de opinião. Agora falemos daquele outro assunto... Hum, enfermeira, você não tem de esvaziar alguma coisa ou lavar as mãos ou examinar o teto para ver se está firme? Preciso falar em particular com meu advogado.

Ela sorriu e sacudiu a cabeça.

— Não, senhor. O senhor sabe que eu não posso sair do quarto nem um instante sem ser substituída. Mas o Dr. Hedrick me autorizou ao seguinte: posso cortar a voz guia dos remotos, depois ir para aquele canto afastado e olhar o vídeo com o som ligado tão alto que o senhor ficará convencido de que não posso ouvi-lo. O Dr. Hedrick disse que o senhor poderia querer falar em particular com Mr. Salomon.

— Bem! Afinal de contas, o velho besouro... entomologista é humano. De acordo, enfermeira.

Logo depois Johann podia dizer calmamente:

— Viu isso, Jake? Deus sabe que não pode haver perigo em você ficar sozinho comigo uns poucos minutos... você pode pedir socorro se eu me sufocar ou coisa parecida. De qualquer maneira, nenhuma perturbação apareceria nos dials deles. Mas não, eles me acompanham o tempo todo e não concordam com o pedido mais inofensivo. Olhe, responda bem baixinho agora... você tem um espelho de bolso?

— Hem? Jamais usei um.

— É uma pena. Bem, traga um da próxima vez em que vier me ver. Espero que amanhã. Jake, Hedrick é um bom médico, concordo... mas não quer me dizer nada. Ainda esta semana perguntei-lhe de quem foi este corpo... e ele nem teve a delicadeza de mentir. Apenas respondeu que não era da minha conta.

— E não é.

— Hem?

— Lembra do contrato que eu redigi? Dizia...

— Nunca o li. Aquele seu jargão.

— Eu lhe informei, mas você não me ouviu. O anonimato do doador deve ser respeitado a menos que ele dê permissão expressa em contrário... e mesmo assim seu espólio precisa confirmar depois da morte. No nosso caso não foi incluído nenhum dispositivo a respeito. Portanto, você nunca ficará sabendo.

— Ora bolas. Posso descobrir, assim que me levantar e andar. Eu nunca divulgaria isso, só quero saber.

— Não duvido de que você descobrirá. Mas eu não quero participar da quebra do contrato com o falecido.

— Hummm. Jake, você é um velho bastardo esnobe. Não quero causar nenhum prejuízo. Está bem, está bem. Mas me arranje esse espelho. Olhe, você pode me arranjar um agora. Entre no banheiro, com o pretexto habitual, e dê uma olhada. Procure. Há nas gavetas, ou coisa que o valha, quatro ou cinco espelhinhos... ou havia na última vez em que andei. Quase certamente ainda estão lá. Basta que não deixe a enfermeira vê-lo. Meta-o no bolso. Ou debaixo do casaco.

— Por que você simplesmente não pede um?

— Porque eles não querem me dar, Jake. Você pode pensar que sou paranóico, mas estou sendo perseguido por aquele médico todo-poderoso. Não quer me deixar ver meu novo rosto no espelho. Certo, talvez esteja com cicatrizes, mas não me importo. Não querem de maneira nenhuma que eu olhe para mim. Quando me operaram, puseram um an-teparo no meu queixo. Não consegui nem ver minhas mãos. Você acredita que nem sei qual é a minha cor? Sou uma pessoa ou um bicho? Ou outra coisa qualquer? É de enlouquecer.

— Johann, poderá ser literalmente enlouquecedor para você ver seu corpo antes de ter recuperado as forças.

— O quê? Oh, Jake, seja sensato. Você me conhece muito bem. Se eu fosse a coisa mais feia do mundo, desde o javali africano, coberto de listas púrpura, me conformaria — Johann riu. — Eu era feio como o pecado antes da operação. Não é possível uma mudança para muito pior. Mas não quero lhe mentir, amigo velho: se eles continuam me tratando como uma criança retardada, vão realmente me fazer descarrilhar. Salomon suspirou.

— Desculpe por ter sido obrigado a lhe dizer aquilo, Johann, mas não era novidade para mim eles não quererem que você se olhasse num espelho...

— O quê?

— Calma. Discuti o assunto com o Dr. Hedrick e com o psicanalista que trabalha com ele. São de opinião que você pode sofrer um severo choque emocional — um que pode lhe causar um sério revés e mesmo (como você diz) lhe «fazer descarrilhar» — se você vir seu novo rosto antes de estar completamente bom e forte.

Johann Smith não respondeu logo. Depois disse calmamente:

— Safadeza. Sei que agora sou outra coisa fisicamente. Que transtorno eles acham que isso pode me causar?

— O psicanalista falou na possibilidade de uma personalidade dividida.

— Aproxime-se e olhe-me nos olhos. Jake Salomon, você acredita nisso?

— Minha opinião não é importante nem competente. Não vou derrotar seus médicos. Nem ajudar você a enganá-los.

— Então é essa a linha do vento. Jake... Lamento ser obrigado a dizer isto: você não é o único advogado na cidade.

— Sei disso. Lamento — lamento mesmo! — ser forçado a dizer isto, Johann: sou o único advogado a quem você pode se dirigir.

— Que quer dizer com isso?

— Johann, você agora é tutelado do Tribunal. Sou seu tutor. Johann Smith demorou a responder e então mal pôde murmurar:

— Conspiração. Nunca pensei que você fosse capaz disso, Jake.

— Johann, Johann!

— Isso significa conservar-me prisioneiro para sempre? Se não, qual é o preço para me soltarem? O juiz está metido nisso? E Hedrick?

Salomon conteve-se.

— Por favor, Johann, deixe-me falar. Estou fingindo que você nunca disse o que acaba de dizer... e trago uma cópia do processo para você ver. Raios, o próprio juiz tomou a decisão. Mas você precisa me ouvir.

— Estou ouvindo. Que me adianta ouvir?... Sou prisioneiro.

— Johann, você deixará de ser tutelado assim que for capaz de comparecer ao tribunal... e convencer o juiz, o juiz McCampbell, um homem honesto como você sabe, convencer McCampbell que não está mais non compos mentis.* Ele tomou a decisão muito relutante... e tive de me empenhar para ser designado seu tutor, pois não era o requerente.

 

* Sem domínio da mente (N. do T.).

 

— E daí? E quem pediu para ser?

— Johanna Darlington Seward et aliae, ou seja, também suas outras três netas.

— Entendi — falou Johann baixo. — Jake, estou em débito com você. Salomon resmungou:

— A troco de quê? Como pode fazer ou dizer qualquer coisa para liquidar esse débito se é legalmente non compos mentis?

— Uau! Estenda-me a tradicional pitada de rape. Essa foi afiada como navalha. A queridinha Johanna... devia tê-la afogado ao nascer. A mãe dela, minha filha Evelyn, costumava sentá-la em meu colo e lembrava-me que ela era minha homônima. Jake, a única coisa que aquela pirralha fez por mim foi mijar nas minhas calças... de propósito. Então June, Maria e Elinor também estão nisso. Não me espanta.

— Johann, elas estiveram danadamente perto de conseguir. Tive de recorrer a toda espécie de manobras para chegar ao tribunal do juiz McCampbell. Mesmo então, só o fato de eu possuir sua procuração geral como advogado durante quinze anos seguidos evitou que o Tribunal designasse Mrs. Seward como tutora e curadora. Isso e outra coisa.

— Que coisa?

— A burrice delas. Se tivessem requerido diretamente a tutela poderiam tê-la obtido. Em vez disso, seu primeiro gesto foi tentar que declarassem você legalmente morto.

— Ótimo! Jake, você acha — mais tarde — que posso eliminá-las totalmente do meu testamento?

— Você pode fazer coisa melhor: pode viver mais que elas agora.

— Hummm, é mesmo, acho que posso. Quero! Será um prazer.

— Aquela ação não foi séria, foi burra. O advogado foi burro. Os especialistas testemunhas levaram quatro dias para desenrolar o argumento e o Tribunal quatro minutos para julgar de acordo com a decisão «Espólio de Parsons contra Rhode Island». Eu esperava poder ver então o fim deles. Aquele rábula vagabundo parecia bastante avacalhado. Então Parkinson entrou na história... e o advogado dele não é burro.

— Parkinson? O rapazola Parky, o nosso ex-diretor idiota?

— O próprio.

— Hummm. Von Ritter tinha razão: não é negócio humilhar um homem. Mas como pôde Parky entrar com uma ação?

— Não entrou. A conclusão lógica é que foi aquele Parkinson quem as alertou... O advogado da sogra dele e ele mesmo iam diariamente ao tribunal como espectadores felizes. Johann, não ousei pedir que a ação prosseguisse durante sua convalescença. Nossas próprias testemunhas especialistas relutavam em certificar que você seria sempre o mesmo, capaz de gerir seus próprios negócios. Por isso estipulamos sua temporária falta de competência — surpreendendo-os, apanhando-os despre-venidos — e fiz nosso advogado pedir que eu fosse designado seu tutor pro tempore. Conseguimos. Mas, Johann, assim que a coisa se espalhou, comecei a distribuir ações. Durante meses Teal reteve um grande maço de suas ações com direito a voto. Teal é de confiança, você escolheu bem. Ele possuiu todas as suas ações que agora estão em meu poder, usando dinheiro que lhe emprestei. Uma transação às claras, que pode ser verificada, nada dessas tapeações de «dez dólares e outras considerações válidas». Durante esse período, suas ações, que vendi a Teal usando meu dinheiro, mais as que ele já possuía, mais as que eram minhas havia muito tempo, controlamos as votações... porque eu sabia que se perdesse, no dia seguinte Parkinson apareceria com procurações para controlar suas ações — assinadas por suas netas — e exigiria uma assembléia de acionistas que me expulsaria com um pontapé e demitiria Teal de presidente. Porém não ousei comprar diretamente suas ações... ou teria de comparecer ao tribunal como parte interessada e o outro lado poderia farejar. Era muito arriscado naquela situação, Johann.

— Bem, estou contente por ficarmos livres da enrascada. Parky.

— Não ficamos. Vão surgir novas ações, mas hoje você não precisa se preocupar com elas.

— Jake, nada está me preocupando. Estou pensando em pássaros, abelhas, nuvens macias e gozando o maravilhoso sabor do mingau de aveia. E ameixas, preparadas como para crianças. Estou muito contente por saber que o meu amigo mais antigo não me traiu quando eu estava inconsciente e lamento como o diabo ter pensado durante um instante que isso havia acontecido. Oh, ainda acho que você é um tímido, um fraco, um efeminado fedorento por não me ajudar nessa maluquice do espelho, mas brigaremos num outro dia. Posso esperar, já que não tenho outro remédio. Vejo por que você não quer tapear o psicanalista, se tenho de comparecer ao tribunal quando me levantar e convencer o juiz McCampbell que ainda posso tocar o chão com meu chapéu.

— Alegra-me você dizer isso. E fico muito contente ao ver que você está melhorando, Johann. Tenho a certeza disso, pois você voltou a ser, ou continua o mesmo safado mal-humorado, o mesmo velho salafrário injusto que sempre foi.

Johann deu uma gargalhada.

— Obrigado, Jake... e vejo que você está passando muito bem também. Tomara que nunca chegue o dia de falarmos macio um com o outro. Que há mais? Oh, sim! Onde, diabo, está minha secretária? Eunice, claro. Não há ninguém nesta quadrilha de seqüestradores que me rodeia que a conheça... e não mostram nenhum interesse em achá-la. Oh, Garcia a conhecia de vista... mas diz que não sabe onde ela anda e que está muito ocupado para andar por aí procurando-a. Disse-me que perguntasse a você.

— Oh — Salomon hesitou. — Sabe o endereço dela?

— Bem? Lá para o fim da parte norte da cidade. Acho que meu contador sabe. Espere aí! Lembro muito bem que você levou-a em casa uma vez.

— Levei. De fato, era na parte norte da cidade. Mas aquelas tocas de coelho são todas iguais. Talvez meus guardas saibam. Espere aí... seus guarda-costas a escoltaram durante muitos meses, exatamente na época em que você veio a ser operado. Perguntou a eles?

— Que diabo, Jake, não me permitem ver ninguém. Nem sei mesmo se continuam trabalhando para mim.

— Tenho certeza de que ainda estavam quando parti para a Europa. Mas, Johann, embora possamos perguntar-lhes, duvido que isso tenha alguma utilidade.

— Por quê?

— Porque vi Eunice pouco antes da sua operação. Ela estava preocupada... gosta muito de você, Johann, muito mais do que você merece...

— De acordo! Continue.

— Bem, Eunice não falou em planos específicos, mas acho que ela não pretende continuar trabalhando como secretária. Que diabo, homem, nenhum de nós esperava que você tornasse a precisar de secretária. Eu a teria prazerosamente contratado. É uma boa secretária. Mas...

— Claro que você teria, bode velho. Mas naturalmente você disse a ela que poderia continuar eternamente na minha folha de pagamento. Bem, pelo menos até minha morte.

— Ela sabe disso. Mas é uma moça orgulhosa, Johann, e não uma parasita. Farei força para achá-la. Todavia, se eu não conseguir, há muitas secretárias eficientes. Acharei uma para você. Prometo-lhe.

— Olhe, não quero outra secretária. Quero Eunice Branca.

— Eu tencionava...

— Sei o que você tencionava. Arranjar-me uma velha bruxa da maior eficiência, mas não agradável de olhar nem de ter por perto... enquanto você provavelmente esconde Eunice no seu escritório.

Salomon respondeu calmamente:

— Johann, juro por tudo o que é mais sagrado que não a mantenho escondida no meu escritório nem em lugar nenhum.

— Então ela o recusou mesmo. Jake, confio minha vida e meus bens universais a você. Mas não tenho a menor confiança em você ou outro homem qualquer, quando se trata de roubar uma perfeita secretária.

— Nolo contendere.* Ofereci-lhe trabalho quando e sempre que ela quisesse. Eunice não aceitou.

 

* Não quero discutir (N. do T.)

 

— Portanto, vamos encontrá-la. Você vai encontrá-la. Salomon suspirou.

— Que indícios você me dá? Seu marido, talvez? Ele não é artista?

— Acho que pode chamá-lo assim. Olhe, Jake, não use isto contra Eunice: prefiro chamá-lo de gigolô. Mas sou um antiquado. Mandei fazer uma investigação quando Eunice casou com ele. Sim, ele era artista, dos que não vendem muito. Eunice o sustentava. Era atribuição dela. Branca era legal: não tomava drogas, nem mesmo bebia. Mas não era do nível de Eunice. Ignorante. Claro que eu sei como isso é comum hoje. Não tenho preconceitos. Já tive ignorantes trabalhando nesta casa... e só Deus e a Contabilidade sabem quantos trabalham para Smith Enterprises. Branca talvez nunca tenha freqüentado uma escola onde ensinassem a ler. Mas vou lhe dar uma pala: caso Eunice não esteja trabalhando como secretária, procure no Seguro Social e se não estiverem na lista de beneficiados — se Eunice não estiver ele pode estar — então procure nas agências de manequins, vídeo, artistas, fotógrafos, etc. Ambos. Pois ele é tão elegante quanto Eunice é bonita. A bisbilhotice no seguro vai facilitar.

— Muito bem, Johann, porei um rastreador em cima deles.

— Que diabo, ponha um regimento de detetives!

— Mas suponha que eles tenham sumido. Às vezes acontece. Johann fungou.

— Ele talvez, mas aposto qualquer coisa como Eunice não. Todavia, se for necessário, quero que cada Área Abandonada desta cidade seja passada no pente fino.

— É caro. Mande um detetive particular a uma A. A. e o prêmio do seu seguro de vida sobe vertiginosamente.

— Você não me disse que eu tenho mais dinheiro do que posso gastar?

— Disse. Mas não tenho prazer em contratar um homem para um trabalho perigoso, mesmo que ele aceite o encargo. Porém estamos arranjando encrenca antes da hora. Talvez não precisemos mais que mandar a Contabilidade desencavar o endereço. Ou mandar um cheque ao Seguro Social com o pequeno suborno de costume. Depois lhe digo.

Salomon levantou-se para sair. Smith disse:

— Um instante. Verei você amanhã? E você telefonará um relatório — fale com Hedrick ou com o médico de plantão, pois não me deixam falar no telefone — diariamente? Até achá-la?

— Diariamente, Johann.

— Obrigado, Jake. Você ainda é escoteiro. Diga à enfermeirinha que pode sair agora do seu canto. Provavelmente estão esperando para me injetar o dope... esta foi a vez em que fiquei mais tempo acordado até agora.

Duas salas adiante, Salomon parou para falar com o Dr. Hedrick. O médico olhou-o.

— Foi duro — constatou.

— Muito. Doutor, quanto tempo espera poder manter seu paciente longe de um espelho?

— É difícil de dizer. Ultimamente o progresso tem sido acelerado... mas Smith continua tendo um comando muito imperfeito do seu novo corpo. Além de formigamentos, coceiras e torpores — todos esperados — e dores imaginárias. Provavelmente psicossomáticas. São reais para o paciente. Doutor, se espera que eu tenha meu paciente pronto para uma audiência de capacidade a qualquer momento, os choques emocionais devem ser postergados o mais possível. É o que eu acho, embora, é claro, esteja fortemente influenciado pela opinião do Dr. Ro-senthal. Além do comando imperfeito do corpo, nosso paciente é fraco e extremamente instável emocionalmente.

— Sei muito bem disso.

— Mr. Salomon, o senhor tem o ar de quem precisa de outro calmante. Permite-me?

Salomon sorriu relutante.

— Só se for de álcool de cereais. Hedrick deu uma gargalhada.

— Concorda com um engarrafado na Escócia?

— Sim! Sem água. Bem, só um pingo.

— Fornecerei a droga e o senhor porá água à vontade. Vou me receitar também... começo a achar este caso um tanto cansativo. Apesar de estarmos fazendo história médica.

 

O Dr. Garcia esfregou o braço de Jake Salomon exatamente no lugar onde aplicou a injeção.

— Agora espere três minutos. Com dez cc. de «Tranquille» no corpo, o senhor pode esperar seu enforcamento calmamente.

— Obrigado, doutor. Dr. Hedrick, o que está aborrecendo Johann agora? Seu bilhete não foi claro.

Hedrick balançou a cabeça.

— O paciente não que falar conosco. Só faz chamar pelo senhor.

— Hum... ele descobriu? Ou, melhor, se descobriu, e agora? Hedrick virou-se para o colega.

— Doutor Garcia?

— O senhor conhece minha opinião, doutor. Seu paciente está curado. Apenas está enfraquecido pelo longo tempo na cama. Não há mais nenhuma desculpa — nenhuma desculpa médica — para o isolamento.

— Dr. Rosenthal?

O psicanalista encolheu os ombros.

— A mente humana é uma coisa estranha e maravilhosa e quanto mais a estudo menos certeza tenho a respeito de tudo o que se refere a ela. Mas concordo com o Dr. Garcia num ponto: não é possível manter o paciente preso eternamente.

Hedrick disse:

— Temo que seja isso, Mr. Salomon. Salomon suspirou.

— E eu fui escolhido como voluntário.

— Qualquer um de nós entrará com o senhor, se desejar. Mas o paciente recusa inteiramente falar conosco. Ficaremos de prontidão, preparados para correr depressa, se surgir uma crise.

— Novamente o truque dos falsos interruptores?

— Oh, com certeza. E desta vez a enfermeira foi devidamente instruída para sair do quarto se o senhor mandar. O senhor, não o paciente. Mas não se preocupe. Ficarei olhando e ouvindo pelo circuito fechado de televisão. Os drs. Garcia e Rosenthal ficarão olhando pelas extensões dos monitores.

— Não estou preocupado. Essa droga deve ter agido em mim. Muito bem, entrarei... e se tiver de cavalgar o tigre, me pendurarei nas orelhas dele.

 

Johann Smith disse:

— Jake! Onde diabo tem andado? Você veio me ver apenas uma vez nas últimas três semanas. Uma vez! Raios o partam.

— Estive trabalhando. Coisa que você não pode dizer.

— É o que você pensa, hem? Fisioterapia é um troço duro como o diabo, mais duro que todo o seu trabalho, rábula... e passo por ela sete vezes por semana.

— Meu coração está sangrando, Johann... quer um passe para ver o capelão? Estive de cama doente durante dez dias — o que certamente Hedrick lhe disse — e ainda não estou me sentindo bem. Portanto, levante-se, seu bastardo preguiçoso, e me deixe deitar. Raios, Johann, não sou tão moço quanto era. Não posso pular por dentro de arcos cada vez que você estalar os dedos.

— Vamos, vamos, Jake, não me venha com essa. Lamento que você tenha estado doente. Pedi a eles que lhe mandassem flores. Recebeu-as?

— Recebi, obrigado.

— É estranho, pois não mandei nenhuma. Peguei você, hem? Jake nunca pretendi sobrecarregar um homem... mas, que diabo, quando ele está na minha folha de pagamento, espero um sinal da sua presença de vez em quando. E vê-lo.

— Não estou na sua folha de pagamento.

— Hem? Que bobagem é essa?

— Quando o Tribunal designou-me seu tutor pro tempore e curador, McCampbell premiou-me com a quantia simbólica de dez dólares por mês. É tudo o que me permitem aceitar de você... e não recebi.

Johann ficou incrédulo.

— Bem, vamos mudar logo isso! Você comunicará ao juiz McCampbell que eu disse...

— Basta, Johann. Isso faz parte da maneira de calar suas netas. Agora, o que é que está consumindo você? Mrs. Branca? Você recebeu um relatório diário... negativo. Eu trouxe uma pasta atulhada de relatórios detalhados... todos negativos, mas mostrando o que foi feito. Quer lê-los? Vejo que tem agora uma máquina de leitura.

— Ler relatórios negativos? Jake, não seja bobo. Sim, estou preocupado com Eunice... que diabo, mesmo que ela não queira trabalhar mais para mim, você tem de convir que ela me deve o mínimo de cortesia de uma visita de doente. Mas não era isso que eu tinha em mente, não quando chamei você, quero dizer. Enfermeira!

— Pronto, senhor?

— Desligue o som dos monitores. Depois vá esconder sua cabeça na caixa de emburrecer. Pegue um programa o mais barulhento possível. Quero privacidade.

— Sim, senhor.

Levantou-se e torceu os falsos interruptores.

— Enfermeira.

— Pronto, Mr. Salomon?

— Pergunte ao Dr. Hedrick se podemos ter privacidade completa. Não creio que Mr. Smith vá se pendurar no candelabro só porque não tenho um diploma de enfermeiro.

— Mr. Salomon, o Dr. Hedrick diz que estamos indo muito bem. — sorriu alegremente — não é, Mr. Smith?... e que se o senhor quer conversar em particular, posso me retirar. Basta apertar este botão vermelho se precisar de mim.

Sorriu novamente e saiu. Johann comentou:

— Puxa, que surpresa!

— Por quê? Você vai indo bem, como Hedrick disse.

— Hummm. «Temo os gregos, mesmo trazendo presentes». Jake, aproxime-se, preciso murmurar... porque é muito possível que eles tenham um microfone sobrando, escondido por aí.

— Deixe de paranóia, velho doido. Por que Hedrick iria se dar ao trabalho de ouvir nossa conversa?

— «Jovem doido», por favor... sou jovem novamente. Paranóico, possivelmente. Seja como for não quero que ninguém ouça, a não ser você. Porque se eu estiver enganado, não soará bem a repetição desta conversa no tribunal, numa audiência de competência. Por isso, incline-se bem e ouça cuidadosamente. Jake... tenho quase que a certeza de que este meu novo corpo é feminino!

Os ouvidos de Jake Salomon começaram a zumbir e ficou contente por ter tomado a injeção de Garcia.

— É mesmo? É uma idéia interessante. Se for verdade, que vai fazer? Levá-lo de volta ao balcão de reclamações e pedir um outro?

— Oh, não fale como um idiota, Jake. Seja qual for o corpo que eu tenha agora, somos um só, eu e ele... e se for feminino, bem, pode ser estranho, mas metade da raça humana luta para se sustentar como tal. Acho que também posso. Mas não está vendo? Se minha suposição é correta, está explicado por que tiveram tanto cuidado em não deixarem que eu me visse. Sem dúvida com medo que eu saísse dos eixos — Johann deu uma gargalhada. — Sou mais forte que isso. Bolas, eles nem mesmo deixaram você ver nada que pudesse parecer feminino: um lençol cobrindo meu corpo todo, nem mesmo os braços à vista, e uma porção de engenhocas enganchadas em mim, para esconder meus traços fisionômicos. Tenho uma toalha enrolada na cabeça... acho que o cabelo está crescendo novamente ou coisa semelhante. Se eu tiver as feições bastante grosseiras, você poderá determinar meu sexo pelo rosto. Meu novo rosto.

— Talvez. É uma teoria interessante. Como chegou a isso?

— Oh, por várias coisas. Especialmente pelo fato de que, muito embora possa agora usar minhas mãos e braços, eles não deixam. Exceto no decorrer da fisioterapia controlada. Não posso me apalpar, quero dizer. Tornam a me amarrar imediatamente, sob o pretexto de «ação muscular espasmódica» e assim por diante. Coisa que eu poderia ter antes, mas não tenho agora. Porém não tem importância. Esta é a primeira vez em que não há uma enfermeira no quarto. Assim, trate de descobrir. Levante o lençol e dê uma olhada! Diga-me, Jake, sou homem ou mulher? Depressa... ela pode voltar.

Salomon continuou sentado.

— Johann.

— O que é, Jake? Depressa, homem!

— Você é mulher.

Johann Smith ficou em silêncio durante uns momentos e depois disse:

— Bem, é um alívio ter certeza. Pelo menos não estou maluco. Se «mulher» e «maluco» não forem sinônimos. Bem, Jake? Como aconteceu?

— Estou a par há muito tempo, Johann. Foi um sacrifício para mim vê-lo e ficar calado. Pois você tinha razão: seus médicos temiam que você não recebesse bem a notícia enquanto ainda estivesse muito fraco.

— Eles não me conhecem muito bem... não é metade da surpresa que foi para mim quando — aos seis anos — descobri que as meninas são diferentes dos meninos. Foi a menina do outro edifício. Mostrou-me. Mas como a coisa aconteceu, Jake? Não foi isso que eu assinei.

— Oh, mas foi.

— Hem?

— Em nenhuma das instruções que você deu há qualquer palavra sobre raça ou sexo. Você exigia «saúde» e entre vinte e quarenta anos de idade, além de sangue AB-negativo. Nada mais.

Johann piscou.

— É verdade, mas nunca me passou pela cabeça que iriam me meter no corpo de uma mulher.

— Por que não? Colocam todos os dias corações de mulheres em corpos de homens e vice-versa.

— Sem dúvida. Eu disse apenas que nunca imaginei isso. Mas mesmo se tivesse, não acho que teria me arriscado a cortar minhas chances pela metade fazendo essa restrição. Nunca fui de chorar sobre o leite derramado. Bem, agora que sei, não há razão para continuar com essa bobagem de «nada de espelhos». Pode ir lá e dizer a esse médico teimoso que quero me ver imediatamente e que chega de bobagem? Se for necessário, meta-lhe as orelhas para dentro.

— Verei, Johann.

Salomon tocou a campainha chamando a enfermeira e depois saiu. Esteve fora cinco minutos, voltando com os doutores Hedrick, Garcia e Rosenthal e uma segunda enfermeira, que trazia um grande espelho de mão.

Hedrick disse:

— Como está se sentindo, Miss Smith? Ela careteou um sorriso.

— Então agora é «Miss» Smith, hem? Estou muito melhor, obrigada. Minha mente está calma. O senhor podia me ter dito há semanas. Não sou tão instável quanto pensa.

— É possível, Miss Smith, mas sou obrigado a fazer o que achar melhor para o meu paciente.

— Não estou criticando, de jeito nenhum. Mas agora, que o gato está fora do saco, por favor peça à enfermeira que me mostre com que me pareço. Estou curioso.

— Certamente, Miss Smith.

O Dr. Garcia fez um gesto para a enfermeira, que estava junto da cabeceira e sentou-se. Hedrick colocou-se num dos lados da cama e Rosenthal no outro. Só então Hedrick pegou o espelho que estava com a enfermeira e o pôs de maneira a que o paciente pudesse ver-se.

Johann Smith olhou para seu novo rosto, a princípio com intenso interesse, a seguir com descrença... e então suas feições alteraram-se de horror.

— Oh, meu Deus! Querido Deus, que foi que eles fizeram conosco? Jake! Você sabia!

O rosto do advogado mostrava as contrações de um homem forte tentando não chorar.

— Sim, eu sabia, Johann. Foi por isso que não pude achá-la para você... porque ela estava aqui o tempo todo. Exatamente aqui... e eu tive... de falar a ela!

Levantou-se e soluçou.

— Jake, como pôde deixá-los fazer isso? Eunice, oh Eunice, minha querida, perdoe-me... Eu não sabia!

Seus soluços faziam eco aos do outro, uma oitava acima. Hedrick gritou:

— Dr. Garcia!

— Comecei, doutor!

— Dr. Rosenthal, cuide de Mr. Salomon. Enfermeira, ajude-o. Ele está quase desmaiando! Raios, onde está o aspirador?

 

Cinco minutos depois o quarto estava em silêncio. O paciente fora mergulhado num sono tranqüilo. O Dr. Hedrick convenceu-se de que Miss Smith estava ilesa e virou o vigilante de cabeceira para o Dr. Garcia. Só então saiu do quarto.

Encontrou Mr. Salomon estirado num sofá na sala de observação à distância. O Dr. Rosenthal estava sentado numa cadeira próxima ao sofá, com um estetoscópio pendurado no pescoço. Hedrick ergueu uma sobrancelha para o psicanalista, que articulou, sem som, «Está bem» e acrescentou alto:

— Talvez queira confirmar.

— Muito bem, doutor — Hedrick sentou onde Rosenthal estivera, arrastou a cadeira para perto, pegou o pulso de Salomon e examinou as batidas. — Como está se sentindo?

— Estou bem — disse Salomon, asperamente. — Desculpe, banquei o idiota. Como vai ela?

— Dormindo. Você gostava dela.

— Ambos gostávamos dela. Doutor, ela era um anjo.

— Vamos, chore. As lágrimas são um lubrificante para a alma. Os homens se sentiriam muito melhores se chorassem tão facilmente quanto as mulheres. Hem, Rosenthal?

— Exatamente, doutor. As culturas onde os homens choram facilmente têm pouca necessidade da minha especialidade. — Sorriu. — Mr. Salomon, o senhor está em boas mãos e por isso vou em frente... encolher algumas cabeças para a minha coleção. A não ser que precise de mim, doutor?

— Pode ir, Rosy. Você deve estar aqui de manhã, quando acordarmos o paciente. Digamos às dez.

— Até amanhã, Dr. Rosenthal. Obrigado. Obrigado por tudo.

— Nada de huhu, mestre. Não deixe esse veterinário vender-lhe nenhum mata-pulgas.

Saiu.

— Dr. Salomon — disse Hedrick —, este casarão está cheio de camas, Que diz de meter-se numa e então lá pelas vinte e uma ou vinte e duas horas posso lhe dar uma pílula que o mergulhará durante oito horas num sono sem sonhos?

— Estou bem, realmente.

— Se acha isso... não posso obrigá-lo a um tratamento. Mas como um outro ser humano que começa a conhecê-lo bastante bem — e a admirá-lo — sou obrigado a admitir que estou mais preocupado a seu respeito que a respeito do meu paciente. O senhor referiu-se a ela como um «anjo»... ou seja, ao doador e não a Miss Smith.

— Hem? Sim, é claro. Eunice Branca.

As feições de Salomon contorceram-se momentaneamente.

— Não a conheci e tenho pouca experiência com anjos. Os médicos não encaram as pessoas pelo seu lado melhor. Mas seu corpo faz acreditar num anjo. Nunca vi nenhum mais saudável. Segundo os registros, tem vinte e oito anos, mas fisiologicamente talvez seja cinco anos mais moça. Ela — estou me referindo a Miss Smith, Miss Johann Smith — pode agüentar um choque violento e não ser afetada. Tem um soberbo corpo jovem para ampará-la. Mas o senhor sofreu bastante o mesmo choque e — desculpe — não é mais jovem. Se não quer dormir aqui... é melhor...

— Não quero dormir aqui!

— Muito bem. Em segundo lugar, seria bom para o senhor que me permitisse examinar seu coração, pulmões e pressão arterial. Se eu não gostar do que encontrar, então quererei que repouse enquanto mando chamar seu médico.

— Ele não atende chamados em casa. Hedrick resmungou.

— Então não é médico. Os médicos vão aonde são necessários. É uma observação tão fora da ética profissional como pretendermos que todo médico é um santo dedicado, com a sabedoria de Júpiter, mesmo quando sabemos que é um incompetente, cuja dedicação é dirigida ao Serviço de Imposto de Renda. Não me cite. São capazes de me tomar a carteira do sindicato. E esse check-up? Vai fazê-lo?

— Hum, vou. Por favor. E aceitarei a tal pílula se me permitir tomá-la em casa. Não costumo usar isso normalmente... mas esta noite é um caso especial.

— Ótimo. Se quiser tirar a camisa... Enquanto tirava, o médico disse calmamente:

— Mr. Salomon, não tenho a experiência do Dr. Rosenthal. Mas se lhe fizer bem falar, posso ouvi-lo. Está lhe pesando na mente, eu sei. Acho que a parte pior já passou... dizer a Johann Smith que agora ele é «Miss» Smith, acrescido do choque ainda pior de ver ele/ela descobrir que agora habita o corpo da antiga secretária. Ao que parece, o senhor superou essa crise. Se há mais alguma coisa que precisa de ajuda para ser expulsa da sua mente, fale à vontade. Na minha profissão, como na sua, essa espécie de conversa é confidencial.

— Não me importo de falar sobre Eunice. Mas não sei o que dizer.

— Bem, pode me dizer como uma moça tão encantadora foi morta.

Nunca soube o nome do doador até que o senhor me disse. Era uma das condições de privacidade. Por isso não perguntamos... uma vez que a doação foi devidamente atestada.

— Sim, havia tal restrição. Nunca soubemos por que, mas desconfio que a criança — mulher, quero dizer, e muito competente — penso nela como criança, sendo tão mais velho que ela, penso que Eunice tinha a idéia romântica de que poderia dar seu corpo ao patrão se não mais precisasse dele e sem deixar que ele o soubesse. É ridículo, mas combina com sua natureza doce. Tinha de contar-lhe, uma vez que parece que o velho Johann pode viver nele. Porque eu sabia que ele ia dar a bronca. E deu.

— Foi muito bom ter-me dito, doutor. Acho — e o Dr. Rosenthal também — que nunca teríamos conseguido que esta paciente fosse bem sucedida se não tivéssemos tomado precauções extraordinárias para evitar que ela soubesse seu sexo. Visando às relações do paciente com o doador, intimas, quero dizer.

— Íntimas. Íntimas para nós ambos. Doutor, não estou exagerando: se eu tivesse um pouco menos do dobro da idade de Eunice — e se ela não fosse casada — teria aceito minha condenação ao inferno para casar com ela. E tenho a certeza de que o velho Johann faria o mesmo. Por isso sei que choque foi para ele: pior do que simplesmente saber que ela havia sido morta.

— Desastre de automóvel?

— Nada disso. Assassinada por um ladrão. Provavelmente um psicopata, mas isso não tem importância, pois os guarda-costas de Johann o pegaram quase no ato e o mataram. Foi assim que a salvaram — seu corpo, quero dizer — porque a levaram apressadamente para um hospital esperando salvá-la — Jake Salomon suspirou. — Falar ajuda.

— Bem. Como aconteceu estarem os guardas de Johann Smith tão por perto, embora não o bastante?

— Oh. A pobre menina estava tentando ganhar dez minutos. Era doadora de sangue — AB-negativo — e...

— Oh! Agora sei por que «Miss» Smith me pareceu vagamente familiar. Vi-a uma vez, tenho certeza, dando sangue a um paciente que fui chamado a atender. Uma moça encantadora, de temperamento caloroso, amigável, que se vestia de uma forma, hum, exótica.

— O senhor quer dizer erótica. Deixemos de eufemismos. Sim, Eunice vestia-se assim. Sabia que era bonita e não se importava que gozassem da sua beleza. Tirava partido dela.

— Gostaria de tê-la conhecido.

— Gostaria que tivesse, doutor. O senhor teria enriquecido sua vida. Se ela fosse convocada a doar sangue, os guardas de Johann tinham ordens de acompanhá-la. Protegê-la. Apanhá-la na porta de casa, levá-la até o carro, ir até o local e esperar por ela. Mas foi um caso de urgência e ela vive — vivia — no décimo nono andar de uma dessas colméias da Zona Norte. Os carros sobem até lá, claro, mas não o blindado que Johann possuía. Possui. Por isso a pobrezinha decidiu ganhar dez minutos e usar o elevador de passageiros, sem esperar pela escolta. Foi onde a assaltaram. Assassinada.

— É uma pena. Suponho que ela não sabia que sempre podemos esperar uns dez minutos quando temos conhecimento de que o doador está a caminho.

— Talvez soubesse, talvez não... mas apressar-se era uma característica de Eunice Branca.

— Uma pena. Pode vestir a camisa. Que idade o senhor disse que tem?

— Eu não disse. Estou enfrentando os setenta e dois.

— É incrível. O senhor parece muito menos... quero dizer, internamente, não necessariamente no rosto...

— Pois sou feio. Sei disso.

— Acho que «distinto» é a melhor definição. O senhor parece muito mais jovem fisiologicamente. Digamos uns vinte anos,

— Bem, tomo meus hormônios.

— Não garanto que precise deles. Vá para casa, se desejar. Ou fique. Se ficar, gostaria de colocar um monitor no seu coração. Interesse profissional.

(E para ter o raio de uma certeza de que você não entrará em pane, velhinho... às vezes o coração pára sem nenhum motivo, depois de um choque emocional como o que acaba de ter)

— Hum... Estou cansado. Posso filar um jantar e ir direto para a cama? Talvez com uma dose de doze horas em vez de oito?

— Facilmente.

Jake Salomon foi para a cama logo depois e adormeceu. Hedrick jantou, deu uma olhada no seu paciente, deixou instruções com o plantão noturno para chamá-lo se os mostradores excedessem certas tolerâncias, meteu-se na cama e adormeceu. Nunca precisava das drogas que receitava.

Apesar dos sedativos, os sonhos de Johann Smith foram agitados. Uma vez o velho no crânio emprestado murmurou:

— Eunice?

(Estou aqui, patrão. Volte a dormir) — Está bem, minha querida. Só queria saber aonde você tinha ido. (Deixe de se preocupar, patrão. Estou aqui)

Johann sorriu no seu sono e então parou de falar, sem ter mais pesadelos.

 

De Manhã, a enfermeira entrou apressada, com uma bandeja.

— Bom dia, Miss Smith! Como vamos hoje?

— Você eu não sei, mas eu estou com fome.

— Ótimo! Temos para esta manhã mingau de aveia quente, querida, suco de laranja e ovo quente... e molharemos uma torradinha no. ovo para ela descer melhor. Vou levantar a cabeceira um pouquinho.

— Mrs. Sloan...

— Sim? Deixe-me colocar o babador no seu queixo.

— Pare com isso, ou terei de dizer-lhe onde metê-lo! Descubra-me e me desamarre. Vou me alimentar sozinho. (Patrão, não seja grosseiro com ela. Está procurando ajudá-lo) (Eunice?) (Claro, querido... não lhe prometi que não ia mais embora?) (Mas...) (Chiii, ela está falando)

— Ora, Miss Smith, sabe que não posso fazer isso. Por favor, querida. O cheiro não é gostoso?

— Hummm... Suponho que não pode me desamarrar sem ordem do Dr. Hedrick. Desculpe se fui rude (Isso, patrão!), mas não tente me dar de comer. Por favor, não. Em vez disso, peço-lhe que procure o Dr. Hedrick e diga-lhe que estou novamente com problemas. Pode também dizer-lhe que, se não quiser atender meus pedidos exorbitantes, é melhor que trate de falar com Mr. Salomon. Porque se alguém tentar meter comida na minha boca enquanto minhas mãos estiverem amarradas, farei o possível para cuspi-la no teto. (Assim é melhor, Eunice?) (Mais ou menos. Digamos dez por cento) (Hum, que diabo, não tenho nenhuma prática em ser uma senhora) (Eu lhe ensinarei, patrão) (Eunice, você está mesmo aqui, querida? Ou fiquei tão zonzo quanto eles pensam?) (Falaremos nisso depois, querido patrão... o senhor vai ter de enfrentar o médico já, já... e não fale em mim... ou sabe o que irá acontecer. Nunca desamarrarão nossos pulsos. Sabe disso, não?) (Claro que sei! Pensa que estou maluco?) (Irrelevante e imaterial, como diria Jake. O negócio é nunca deixar o Dr. Hedrick — ou alguém — perceber que estou aqui... ou ficarão certos de que o senhor está maluco. Agora vou calar a boca) (Não vá embora!) (Patrão, nunca irei embora. Só vou ficar calada. Poderemos falar melhor principalmente quando não houver ninguém por perto. A menos que eu o veja a ponto de cometer um engano) (Querendo me irritar, hem?) Johann ouviu sua alegre risada. (Não foi sempre assim, patrão? Cuidado, aí vêm os tiras) O Dr. Hedrick entrou, seguido pelo Dr. Garcia.

— Bom dia, Miss Smith.

— Bom dia, cavalheiros.

— A enfermeira disse que a senhora quer se alimentar sozinha.

— É verdade, mas não é tudo. Quero que me livrem dessas correias e cintas. Todas.

— Deixá-la alimentar-se sozinha não é problema. É uma boa idéia um bom exercício. Quanto ao resto... é preciso pensar.

— Doutor, a farsa acabou. Se acha que não tem condições de tirar todas as ligaduras que sujeitam meu corpo, então esqueça o café. Mas não quero morrer de fome. Por isso chame meu advogado.

— Por acaso Mr. Salomon está aqui...

— Então traga-o!

— Um momento, por favor. — O Dr. Hedrick deu uma olhada para o Dr. Garcia, que havia sentado junto ao consolo. O Dr. Garcia balançou a cabeça. — Miss Smith, quer assumir um compromisso razoável? Ou pelo menos ouvir?

— Estou ouvindo. Mas... (Cale a boca, patrão!) Estou ouvindo, doutor.

— Mr. Salomon é, como sabe, um homem idoso e teve um dia duro ontem. Convenci-o a ficar aqui a noite passada e repousar. Está acabando de levantar e ainda não tomou café. Eu e o Dr. Garcia já — mas há tanto tempo que poderíamos fazer uma boquinha. Ora, posso desamarrar seus braços e deixá-la alimentar-se sozinha. Mas tirar as ataduras do seu pélvis... bem, como deve ter percebido, há lá embaixo uns tubos estranhos e outras coisas. Leva tempo retirar tudo aquilo.

«Eis a minha idéia: a senhora pode convidar Mr. Salomon para tomar café com a senhora... e pode também convidar-nos para essa boquinha, durante a qual nós quatro conversaremos sobre o que se precisa fazer a seguir. Seguirei os desejos do seu tu... do seu advogado. Ou deixarei que ele escolha outro médico e me retirarei, se achar que devo fazê-lo.

— Meu tutor — disse Johann tranqüilamente. — Faremos tudo o que meu tutor pedir. Mas espero que ele não o substitua, Dr. Hedrick. Tenho sido um paciente difícil e lamento. Sei o trabalho milagroso que fez comigo... e sou-lhe grato.

— Obrigado, Miss Smith.

— Ficarei encantada de tê-los todos três, cavalheiros, fazendo uma boquinha comigo... se tiverem a gentileza de desamarrar meus braços.

(Patrão!) (O que foi que lhe mordeu, garotinha? Pensei estar sendo uma perfeita senhora!) (Lá isso está... mas não ouse deixar esses cavalheiros comerem conosco antes de estarmos arrumadas. Estamos sem nenhuma maquilagem e nossos cabelos devem parecer um ninho de ratos. Horrível!) (Mas olhe, querida, são só Jake e os nossos médicos) (É uma questão de princípios. Sei melhor que o senhor o que é ser uma moça... ou não sei? Quando, alguma vez, fui trabalhar com o rosto inteiramente nu e o cabelo como um ninho de ratos? Ora, muitas vezes acordei mais cedo do que devia para me fazer bonita só para o senhor. Ou não é verdade? Hem?)

— Sentindo dor, Miss Smith?

— Hem? Quero dizer, «Oh?». Desculpe, doutor, estava apenas pensando. Se devo receber cavalheiros para o café, não devo começar me exercitando em como ser uma senhora? Isto é novo para mim, como sabe. Devo usar maquilagem?

Hedrick estava espantado.

— Quer dizer batom?

— Qualquer coisa usada pelas mulheres no rosto. Tenho a certeza de que é sempre mais que batom. E meus cabelos precisam ser escovados. Será que tenho cabelos?

— Ora, claro que tem. Ainda curtos, mas crescendo linda e saudavelmente.

— É um alívio saber. Pensei que possivelmente tivesse um crânio de plástico e fosse obrigada a usar peruca.

— Houve alguma restauração protética. Mas o Dr. Boyle conseguiu salvar o couro cabeludo e a senhora nunca notará a prótese — Hedrick esboçou um sorriso. — Mais dura que o osso natural. Com um bom suprimento de sangue ao seu couro cabeludo e ao cabelo normal... não vai demorar muito.

— Que bom. Caspa?

— Não notamos nenhuma.

— Não nos preocupemos com isso agora. Doutor, eu queria estar arrumada para parecer uma senhora pronta para receber convidados. Se mandar uma criada trazer uma xícara de café e suco de laranja para Mr. Salomon e enviar-lhe um convite para tomar café conosco, tenho a certeza de que ele não se importará de esperar. (Que tal, Eunice?) (Maravilhoso, querido!)

O Dr. Hedrick ficou aturdido.

— Miss Smith, quando organizei a equipe de apoio, tentei prever as coisas possivelmente inesperadas: mantimentos, drogas, etc. Esta é a primeira vez que me pedem para fornecer batom. E cosméticos.

— Oh. Mas não estou lhe pedindo isso, doutor. O toalete das senhoras no primeiro andar tem todos os tipos de batom e inúmeros cosméticos. Deve ter. Tinha. Ainda deve ter ou senão se saberia. E uma das enfermeiras pode me ajudar. Aquela linda ruiva: Minnie? Ginny? Acho que é Miss Gersten. Ela deve estar muito por dentro de cosméticos (Ela está... aquele cabelo ruivo saiu de uma garrafa, patrão) (Miau! Cale-se, gatinha) (Não estou sendo maldosa, patrão. Ela está por dentro, apesar daquele incrível uniforme).

— Winifred Gersten — disse o Dr. Garcia. — Enfermeira, traga Winnie. E leve esta bandeja. A comida esfriou.

Quarenta minutos depois, Miss Johann Smith estava pronta para receber. Seu cabelo fora afofado, o rosto maquilado com limitado atrevimento pela enfermeira ruiva e o resultado, quando mostrado num espelho, foi aprovado pela segunda voz dentro de Smith — pareceu a johann que de má vontade. (Posso fazer melhor. Por esta vez passa)

A cama havia sido colocada de maneira a que ela ficasse sentada e trouxeram de algum lugar uma elegante camisola que combinava com os olhos dela. Mas o melhor é que suas mãos e braços estavam livres.

Johann percebeu que suas mãos estavam tremendo. Ela atribuiu o fato à excitação e achou que, se tivesse problemas ao manejar um garfo, poderia espetar coisas que não espirrassem na sua blusa... além do que, agora não tinha fome. Estava excitada demais.

(Calminha, patrão querido. Deixe que eu me encarrego de comer)

(Mas)

(Nada de «mas». Tenho alimentado este corpo há anos. Ele se lembra, patrão. O senhor conversa com os cavalheiros e eu me encarrego das calorias. Agora, bico calado. Eles estão chegando)

— Podemos entrar?

— Entrem, por favor, cavalheiros. Bom dia, Jake. Espero que tenha repousado bastante esta noite. (Estenda a mão para ele, patrão)

— Dormi como uma criança.

— Ótimo. Eu também.

Johann esticou o braço esquerdo, que era o lado em que o advogado estava.

— Olhe, Jake! Mãos!

Salomon pegou-lhe a mão, inclinou-se sobre ela, hesitou e então aflorou-a com os lábios. Johann estava tão estupefato que quase retirou a. mão. (Meus Deus! Jake pensa que eu sou o quê? Uma bicha?) (Ele pensa que você é uma garota bonita. E você é. Eu devo saber. Olhe, patrão, precisamos conversar sobre Jake... mais tarde. Diga alô ao seu encolhedor de cabeças)

O Dr. Rosenthal estava falando:

— Sou um estraga-festas. Posso entrar, Miss Smith?

— O senhor é muito bem-vindo. Alguém está chegando para garantir a esses cavalheiros que não tenho cupim no alpendre. Dependo do senhor, doutor.

O psicanalista sorriu para ela.

— Esse é um apelo difícil de resistir. Devo dizer que sua melhora de ontem para hoje é fantástica. A senhora está encantadora... Miss Smith.

Johann sorriu e estendeu-lhe a mão. O Dr. Rosenthal inclinou-se e beijou-a... não um rápido e apavorado roçar como o de Salomon, mas um beijo que era suave e caloroso e de uma sensualidade sem precipitação. Johann sentiu um formigar subir-lhe pelo braço. (Ei, que é isto?) (Fuja do diva dele, patrão. O homem é um lobo... posso garantir)

Quando ergueu-se, ainda segurou-lhe a mão mais tempo que o necessário, tornou a sorrir para a moça e, então, afastou-se. Johann pensou em perguntar-lhe se aquela era sua maneira habitual de tratar os pacientes, mas resolveu o contrário. Porém sentiu-se ligeiramente aborrecida pelo fato dos dois outros médicos não lhe terem prestado a mesma homenagem. Yonny Schmidt nascera numa época e num lugar em que 0 beija-mão era desconhecido. Johann Smith nunca o aceitara. Miss Johann Smith estava descobrindo que aquele costume bobo era formalidade. Ficou desconcertada.

Foi salva por outra voz vinda da porta, a do mordomo.

— Podemos servir agora, Miss Smith?

— Cunningham! Que bom ver você. Sim, pode servir.

Johann ficou imaginando quem teria dado ordem para uma refeição formal.

O mordomo olhou por cima da cabeça dela e disse sem inflexão:

— Obrigado, Miss.

Johann estava espantado. O mordomo, como todo o pessoal masculino da casa (e algumas mulheres) ficou subitamente arrasado, indefeso. Seus modos só podiam assustar os recém-chegados. (O pobre homem está apavorado!) (Claro. Por isso trate de acalmá-lo, patrão)

— Mas antes venha cá, Cunningham.

— Sim, Miss.

O chefe da sua criadagem caminhou cautelosamente para ela e parou a uma distância muito respeitosa.

— Oh, chegue mais perto. Olhe para mim. Encare-me, não desvie o olhar. Cunningham, é um choque para você o jeito com que eu estou, não é?

Cunningham engoliu sem responder. Seu pomo-de-adão subiu e desceu.

— Oh, vamos — insistiu Johann com firmeza. — Claro que é. Mas se isso o perturba, pense no choque que é para mim. Até ontem eu nem mesmo sabia que tinha sido transformado em mulher. Tenho de me habituar a isso e você também. Lembre apenas de uma coisa: internamente sou o mesmo velho salafrário intratável, injusto e mal-agradecido que o contratou como criado há dezenove anos. Continuo exigindo um serviço perfeito, no mínimo, e lembre-se de dizer «Obrigado» de vez em quando. Estamos de acordo?

O mordomo esboçou um sorriso.

— Sim, senhor... quero dizer, sim, Miss.

— Você quis dizer «Sim, senhor», mas vai ter de aprender a responder «Sim, Miss» e eu terei de me acostumar com isso. Nós, cachorros velhos, temos de aprender novos truques. Como vai o lumbago de Mrs. Cunningham?

— Diz ela que um pouco melhor. Obrigado, Miss.

— Ótimo. Diga a Mary que perguntei por ela. Agora pode servir.

A refeição foi quase divertida. Johann provou o vinho quando Cunningham o ofereceu, aprovou-o mas recusou um copo para ela mesma. Mal tocou com a língua nele mas o sabor espalhou-se como conhaque forte e ela tomou um susto a ponto de quase ficar sufocada com o maravilhoso vigor do seu bouquet. Pela garrafa viu tratar-se de um Chablis adequado mas sem nada de especial. Agiu com cautela, preferindo suco de laranja.

A conversa na mesa foi animada e mais dirigida à anfitriã, sem nenhuma alusão à sua condição de enferma. Os homens disputavam sua atenção... E Johann descobriu que estava gostando. Ria freqüentemente, replicava seus gracejos e sentia-se espirituosa.     ,

Mas pôde reparar que Jake não estava comendo muito e olhava o tempo todo para ela, menos quando Johann o encarava... aí então seu olhar ficava vago e errante. Pobre Jake. (Eunice, o que vamos fazer com Jake?) (Depois, patrão... cada coisa a seu tempo)

Ficou novamente surpresa quando Cunningham voltou para retirar o prato da sua mesinha portátil: surpresa por ver que os ovos mexidos, dois pãezinhos e o suco de laranja haviam desaparecido, bem como um copo de leite e uma da penca de três salsichas.

— Café, Miss?

— Não sei. Posso, Dr. Hedrick?

— Miss Smith, agora que a senhora já pode comer sentada, não há razão para que não coma ou beba o que bem quiser.

— Então vou comemorar. O primeiro café que me permitem em dez anos... Xicrinha para mim, Cunningham, e xícaras grandes para os cavalheiros. E, Cunningham, há alguma Mumm noventa e sete no gelo?

— Certamente, Miss.

— Sirva-a. — Ergueu levemente a voz. — Se há algum maricas que não queira beber champanha a esta hora do dia, que vá saindo de mansinho.

Ninguém se retirou. Quando as taças foram enchidas e as bolhas começaram a subir, o Dr. Hedrick ficou de pé.

— Cavalheiros, um brinde...

Esperou que todos se levantassem. Johann ergueu seu copo com o deles. Mas não bebeu. O brinde foi: «À nossa linda e graciosa anfitriã... que tenha uma vida longa!»

«Amém!», «Viva!»... e o tilintar das taças quebradas.

Johann, sem se importar com eles, chorou.

— Obrigado, cavalheiros. Cunningham, outras taças. Depois de enchidas novamente, ela disse:

— Cavalheiros, peço-lhes que fiquem de pé para um outro brinde. — Fez uma pausa e continuou: — este em homenagem ao Dr. Boyle... e a você Jake amigo velho, sem cuja ajuda leal eu não estaria aqui... e sem dúvida ao senhor, Dr. Hedrick, e a todos os médicos que o ajudaram e ao Dr. Boyle... e a todas as pacientes enfermeiras com as quais briguei. Mas estas podem esperar. Peço-lhes que bebam — suas lágrimas corriam e sua voz era quase um suspiro — à memória da mais doce, encantadora e corajosa moça que conheci... Eunice Branca.

Beberam em silêncio. Então Jake Salomon caiu lentamente na cadeira e cobriu o rosto com as mãos.

O Dr. Hedrick pulou para ajudá-lo e o Dr. Garcia correu pelo outro lado. Johann ficou olhando, numa aflição sem remédio. (Oh, eu devia ter previsto! Mas é verdade, querida, cada palavra é verdade) (Sei que é, patrão, e agradeço. Mas está bem. Jake tem de se convencer de que estou morta. E que o senhor também) (Você está morta, Eunice? Está?) (Não sofra por causa de uma palavra, patrão. Estou aqui e nunca o abandonarei. Prometo. Alguma vez me viu faltar com a palavra?) (Não, nunca) (Então acredite mais uma vez. Mas temos de tomar conta de Jake) (Como, queridinha?) (O senhor saberá quando chegar a hora. Falaremos depois, quando estivermos sós)

O Dr. Rosenthal estava se curvando para ela.

— Você está bem, minha querida?

— Perfeita... apenas sentindo muito o que aconteceu com Mr. Salomon. Ele está bem?

— Ficará, em breve. Miss Smith, não se aflija por causa de Mr. Salomon. A senhora provocou outra catarse, o que ele estava precisando, Pois, do contrário, não ocorreria. Quanto ao seu bem-estar físico, fica nas mãos do Dr. Hedrick... e Curt Hedrick nunca perdeu um paciente ao qual atendeu em tempo, desde que está exercendo sua especialidade, sua casa está cheia de tudo o que o Dr. Hedrick possivelmente necessitará... e Mr. Salomon nem mesmo está doente: precisa de repouso e de uma droga relaxante.

O Dr. Rosenthal ficou sentado ao lado dela enquanto eram retiradas a mesa, as cadeiras, os pratos, etc. O Dr. Hedrick voltou com o Dr. Garcia. Johann tornou a perguntar:

— Como vai ele?

— Meio adormecido. Meio furioso por ter dado um «espetáculo» e ter sido um «estorvo»: são palavras dele. Mas só ligeiramente, porque o que lhe dei a tomar não permite que esse auto-ódio dure muito tempo. Como vai a senhora?

— Em condições para uma luta em seis assaltos — garantiu-lhe

Rosenthal.

— A radioscopia confirma. Podemos portanto continuar a nossa conferência, Miss Smith. Discuti com Mr. Salomon tudo o que vou lhe dizer, enquanto a senhora estava se aprontando antes de comermos e foi tudo aprovado por ele. Vou me retirar do seu caso.

— Oh, Dr. Hedrick. Não!

— Sim. Cara senhora, ninguém vai ficar maluco. Isso quer dizer que a senhora está curada. Curada. Oh, ainda fraca, ainda precisando de cuidados. Mas não a estou abandonando. Ficará aos cuidados do Dr. Garcia.

Ela olhou para Garcia, que confirmou de cabeça.

— Não precisa se preocupar, Miss Smith.

— Mas... Dr. Hedrick, o senhor virá aqui me ver? Virá?

— Com prazer. Mas não muito breve, acho. Olhe... Bem, há um transplante interessante que estava em dúvida. Um muito sério, o coração e ambos os pulmões. Agora estão preparados para a operação. Recebi um chamado antes da senhora acordar, perguntando se eu estava disponível. Respondi que telefonaria mais tarde... e depois que a vi telefonei, dizendo que podia ir. Depois de consultar o Dr. Garcia, é claro, e avisar Mr. Salomon. — Esboçou um sorriso. — Portanto, se me permite, irei.

Johann suspirou e estendeu a mão.

— Já que o senhor deve.

Hedrick pegou-lhe a mão e curvou-se. O Dr. Rosenthal perguntou, malandramente:

— Não vai esterilizar antes, doutor?

— Vá para o diabo, Rosy! — e beijou a mão da moça. Pareceu a Johann que o Dr. Hedrick prolongou o gesto por um tempo duas vezes maior que o levado pelo Dr. Rosenthal anteriormente. Ela sentiu a pele do braço arrepiar e uma sensação curiosa por dentro... sim, achou, se alguém tem de ser mulher, era costume ser encorajada.

(Vamos para a cama com ele, patrão?) (Eunice!) (Ora bolas, patrão. Agora somos irmãos siameses e temos de ser honestos um com o outro. Durante anos o senhor quis ir para a cama comigo. Mas não pôde. O senhor sabia que queria e eu também sabia. Apenas nunca falamos nisso. Agora o senhor continua não podendo. Mas pode ir com ele se quiser... e essa é a melhor maneira de dizer «Obrigado». Mas cuidado, queridinho. Faça aqui e não onde possa ser apanhado. A mulher dele é ciumenta. Tem todo o ar) (Eunice, nem vou discutir idéia tão ridícula! Estou espantado com você. Você, uma moça tão bacana... e além do mais, casada) (Pílulas, queridinho! Não sou casada. «Até que a morte nos separe» é o limite... e sou um fantasma. Isso me faz lembrar meu marido — apague e corrija — meu viúvo, Joe Branca. Também temos de falar sobre ele. O doutor está se virando para ir embora. Portanto, molhe os lábios e sorria, se ainda está pensando na coisa. E está)

Miss Smith molhou os lábios e sorriu.

— Adiós, doutor, e não até logo. Volte depressa. Quando puder. (Você está aprendendo, queridinho, está aprendendo)

O Dr. Garcia disse:

— Miss Smith...

— Oh. Pois não, doutor?

— Se está pronta, trarei as enfermeiras e a desamarraremos e executaremos outras medidas. Se quiser, poderá tomar uma 'anestesia geral. Sugiro a local, com um anteparo para o queixo, a fim de evitar que a senhora me veja fazer barbeiragem. Posso projetar alguma coisa para a senhora ler e tocar música.

— Música será ótimo. Mas não quero ler porque estou muito interessada. Então local. Ou nenhuma, pois a dor não me afeta.

— Mas afeta a mim. Por isso vamos usar anestesia local.

Durante mais de uma hora ela ouviu uma fita com músicas de sucesso, desde rocks clássicos, que ela nunca havia usado com esse fim, até música folclórica, muito popular antes do nascimento de Johann Smith. Gostou malandramente mais que tudo do prazer sensual de sentir seu corpo ser tocado, manuseado, manipulado. Não só era maravilhoso ter um corpo após dias de paralisação completa do pescoço para baixo (acrescida do medo de se tornar para sempre uma trouxa inútil, medo que Johann nunca admitira totalmente), mas também, o que era mais importante, aquele corpo sentia tudo com tanta acuidade... que o simples toque se constituía num prazer.

Sem nenhuma semelhança com aquele velho destroço do qual você se livrou! Durante os últimos dez, quinze anos, a única virtude daquele corpo foi continuar funcionando. Isso fê-la lembrar-se de um Ford modelo T, de quinta mão, que ele e quatro outros jovens conquistadores haviam comprado por setenta dólares em Baltimore, com o qual atravessaram metade do continente. Não tinha faróis, freios (tinham de reverter a marcha), licença (não sabiam da existência dela), painel nem nada. Mas o forte e horroroso carrinho resfolegava só com três cilindros (nem sempre os mesmos três) numa velocidade máxima (calculada) de quarenta quilômetros por hora. Tinham de molhar a cada instante os raios das rodas para que eles não derretessem.

Num trecho de uma estrada secundária do Missouri, o carro entrou em convulsão e parou. Pelo cheiro, descobriu que o problema estava na fiação. Yonny fizera o concerto: enrolara papel higiênico no capeamen-to queimado e amarrara com barbante... Girou a manivela e o motor recomeçou imediatamente a resfolegar como antes.

Ela ficou imaginando onde aquele montão de sucata teria acabado. E o que se tornara seu corpo masculino. Johann queria deixá-lo para uma escola de medicina... mas uma vez que Johann não havia morrido totalmente, a escola não poderia reclamá-lo. Tê-lo-iam conservado? Ou atirado fora com o lixo? Precisava perguntar.

Várias vezes teve a sensação de coisas arrancadas que deveriam machucar mas não, e uma vez sentiu uma dor aguda que ignorou. Sentiu cheiros agridoces que lhe embrulharam o estômago. Ela pensou em sugerir que_ o condicionamento de ar fosse aumentado, mas depois achou melhor não se meter. Em breve os cheiros desapareceram e ela percebeu que estava tomando banho na cama. Então os lençóis e o travesseiro foram mudados.

Retiraram o anteparo do queixo. A parte superior do lençol de baixo foi colocada por duas enfermeiras, enquanto uma terceira erguia os ombros de Miss Smith. Duas delas saíram do quarto, carregando uma grande cesta.

— Pronto — disse o Dr. Garcia. — Não foi tão ruim assim, não é?

— Que nada. Estou ótima. — Agitou os dedos dos pés, abriu e fechou as coxas. — ótima! Agora sou toda eu... livre! Doutor? Agora que não uso mais fios para ver e ouvir, sem falar nos canos, ainda precisamos desta gozada cama de hospital? Deixarei logo de me sentir como um inválido se for para minha própria cama.

— Hummm... É mesmo necessário? Esta cama tem a altura exata para o trabalho das enfermeiras — esfregar as costas, etc. e tem grades laterais que podem ser levantadas quando estiver dormindo. Miss Smith, o pesadelo de cada enfermeira é o pensamento de que um doente pode cair da cama.

— Ora! O senhor pensa que eu sou o quê? Uma criança?

— Sim, Miss. É o que eu penso. Uma criança relacionando-se com o próprio corpo. Crianças podem cair. Mas não pretendo deixá-la cair, mesmo fora da cama ou ensinando-a a andar. Ou tomando um banho de banheira, coisa que vai pedir quase imediatamente.

(Calma, patrão!)

— Doutor, cumprirei suas ordens. Mas minha própria cama tem aqueles requisitos. Tem grades que se erguem ao toque de um botão. E suspensão hidráulica. Sobe tanto ou mais que esta... mas também baixa até parecer um colchão no chão, com vinte e cinco centímetros de altura. Esta tem a mesma capacidade?

— Humm, não.

— Caí da cama há dez anos. Fiquei tão abalado que mandei fazer aquela cama especial. Antigamente, quando eu ainda andava, costumava dar-lhe uma altura confortável — mais ou menos a dos meus quadris — para me deitar. Então abaixava-a durante o período de sono.

— Hummm... talvez possamos entrar num acordo. Promete que sempre abaixará a cama assim que se deitar? Mesmo que não pretenda dormir?

Ela sorriu.

— Assinado, testemunhado e com firma reconhecida.

— Acho que não precisamos tanto. Miss Smith, não vai ser mais necessário vigiá-la pelo monitor, como as inúmeras vezes anteriores. Mas quero um exame contínuo do coração e da respiração até que esteja levando uma vida normal. Essa é a razão principal de eu necessitar desta cama. Mas se me permitir prender na sua pele, em qualquer lugar das costelas, um minúsculo transmissor pesando quinze gramas e não maior que um dólar, poderemos prescindir desta cama. O aparelho não a incomodará e a senhora o esquecerá logo. Pode banhar-se com ele: é à prova d'água e se agarra como um parente pobre.

Ela sorriu.

— Comece a pregá-lo!

— Vou trazê-lo. E deixe as enfermeiras trocar as camas.

— Oh, as enfermeiras não podem mover a minha. São precisos uns sujeitos fortões e um carrinho motorizado. Trate com Cunningham. Mas não há pressa. Falando de enfermeiras: Winnie, você não precisa lavar as mãos ou coisa assim? Quero falar com o meu médico.

A ruiva sorriu para ela.

— Querida, já ouvi de tudo. Não se importe comigo.

Olhe, Winnie, você fez um lindo trabalho no meu rosto quando eu não sabia como fazê-lo. Mas, querida, aí é que está. Por fora sou mulher. Mas cá por dentro, por trás dos meus olhos, continua a existir um velho intratável, que é de longe muito tímido — covarde, quero dizer — muito covarde para discutir coisas íntimas na presença de uma linda moça. E preciso.

— Miss Gersten, vá à sala de vigília e tire uma folga. Mandarei chamá-la.

— Sim, doutor.

Assim que ela saiu, Johann perguntou:

— Tem absoluta certeza de que todos os microfones estão desligados?

— Estamos isolados, Miss Smith.

— Me chame de Johann, doutor. Esta é uma conversa de homem para homem e mesmo assim encabulo de falar a respeito com um homem. Muito bem. Primeira pergunta: fiquei doente — menstruada — nos últimos dias?

Garcia olhou surpreendido.

— A senhora percebeu? Sim, está exatamente no fim do período. Removemos o tampão enquanto a estávamos examinando e não foi necessário substituí-lo. Mas onde errei? Pensei que tinha previsto isso e lhe dei um enorme lenitivo a tempo. Está sentindo eólicas?

— Não percebi. Mas as coisas não pareciam certas... e aí comecei a suspeitar a respeito do meu sexo. — Ela ficou pensativa. — Talvez fossem os tampões... senti algo estranho lá embaixo... e agora a sensação desapareceu.

— Deve ter sido isso. Eu deveria ter usado guardanapos acolchoados, como se faz nos hospitais. Mas havia muitas campainhas e apitos — encanamentos, quero dizer — pelo caminho. Não imaginei que a senhora pudesse notar um tampão colocado quando estava dopada. Ao contrário da crença popular, quase não há sensações no interior de uma vagina.

— É? Aquele raio de coisa estava na minha! Eu não sabia que sensação era.

— Bem, isso nunca aconteceu antes. Seu caso é único. Foi tudo isso que a perturbou, Miss... desculpe! «Johann».

— Não. Este meu novo corpo... teve um como-se-chama, um exame feminino?

— Oh, certamente. Feito pelo Dr. Kystra, o melhor G-I-N da cidade. Foi quando você estava imobilizada e reexaminada depois de sua medula espinhal ter sido recomposta, mas quando você estava profundamente anestesiada. Tudo em ordem.

— Quero um relatório completo. Raios, doutor, agora sou responsável por este corpo... e sei tanto a respeito de ser mulher quanto minha Grossmutter sabia de aviões. Ou seja, nada.

— Posso tirar o relatório do arquivo, se você quiser...

— Quero!

— ...mas posso relatá-lo em termos mais acessíveis para você. Quer?

— Aceito.

— Você tem um corpo feminino normal, com a idade fisiológica de cerca de vinte e cinco anos... um pouco mais velho pelo calendário, segundo sei. Seios de aspeto virgem... o que não quer dizer que seu corpo esteja virginalmente intato. Não está. Isso significa que não amamentou. Nenhum vestígio de cirurgia abdominal, de onde concluo que seu apêndice está no lugar e seu útero está intato...

— Quer dizer que posso ficar grávida.

— ... a última opinião foi confirmada pela insuflação enquanto você estava imobilizada. Você não só pode ficar grávida, como ficará. A menos que tenha uma vida absolutamente casta. E mesmo que planeje isso, quero recomendar métodos contraceptivos como precaução. Digamos, um implante na nádega com a duração de seis meses. A melhor maneira de brincar de rato e homem, sabe. E mulheres. Especialmente mulheres. Uma vez que você é Rh-negativo, cerca de seis sétimos da população masculina pode dar-lhe um filho defeituoso ou natimorto. Isso é possível evitar se descoberto a tempo, mas uma gravidez inesperada pode ter conseqüências trágicas. Portanto, não se deixe apanhar de surpresa. Planeje. Enquanto isso, use anticoncepcionais.

— Doutor, que o faz ficar tão certo de que engravidarei? Mesmo que eu me casasse — o que não planejo — que diabo, só há poucas horas adquiri a noção de ser mulher. Certamente ainda não tive tempo de examinar a idéia de ser mulher ativa. Mas mesmo que tivesse, como a velhota disse: «Bobagem, querida, já fiz centenas de vezes e não aconteceu nada».

— Se você se ajustar normalmente a se tornar uma mulher jovem, quererá ser ativa a esse respeito, sem dúvida. Ou irá finalmente acabar no diva de confissões do Dr. Rosenthal ou em coisa equivalente, como um convento. Johann, seu novo corpo tem um equilíbrio hormonal feminino normal. É melhor que aja de acordo com ele. Mesmo operando as trompas não será uma solução. Você pode se arrebentar com uma doença emocional grave, que a fará se arrepender. Quanto ao que disse a velhota, não vem ao caso. Porque essa criança você já a teve.

— O quê? (Patrão, por que não se mete com sua vida? Eu poderia lhe ter contado tudo o que o senhor precisa saber) (Cale a boca, Eunice)

Garcia estava espantado.

— Você não sabia? Imaginei que, já que este corpo era da sua secretária, que sabia que ela tivera filho ou filhos.

— Não só não sabia como não acredito.

Certamente a investigação de antecedentes teria revelado o fato tão evidente... e Deus sabe que Eunice nunca estivera fora do seu controle o tempo suficiente para gerar uma criança.

— Acho que vai ter de acreditar, nem, Johann. Há estrias denominadas sinais de distensão na barriga e nádegas. São dificilmente notadas, a menos que a pele seja morena. Então são facilmente escondidas com cosméticos. Mas continuam presentes. Não é concludente, visto que uma mulher, ou mesmo um homem, pode ter estrias provocadas pela obesidade. Mas são características. Porém a coisa que decide a questão é que o fundo de um útero de virgem não se parece com o de uma mulher que já teve filho. A diferença é tão nítida que um leigo percebe. Vi o seu. Q.E.D. Pode ser fotografado, se duvidar de mim.

(Pare com isso, patrão!)

— Oh, acredito em você, agora que me explicou.

— Uma foto comparativa pode ser uma boa idéia. Irá torná-la mais cuidadosa. Não estou fazendo nenhuma crítica a Mrs. Branca. Estou apenas lhe avisando de que o aparelho fabricante de filhos que herdou dela está em perfeita condição e pronto a funcionar a cada período lunar. Digamos, cerca de dez dias a partir de agora.

— Terei cuidado.

— Quer uma aula sobre anticoncepcionais?

— Não — Johann sorriu maldosamente. — Aparentemente, tenho pelo menos uma semana antes de precisar do cinto de castidade.

— Aproximadamente, segundo as estatísticas. Mas, hum, Johann. Não, «Miss» Smith... conhece o termo técnico que nós, médicos, usamos para descrever as mulheres que dependem da periodicidade?

— Não. Qual é?

— Costumamos chamá-las de «mães».

— Oh. Oh!

— Por isso não espere muito tempo. Mais alguma pergunta?

— Hum... por hoje chega, doutor. Preciso digerir o que me disse. Obrigada.

— De nada, Miss Smith. Agora posso mandar trocar as eamas?

— Chamarei Cunningham mais tarde. Vou descansar. Doutor? Quer colocar aquele troço nas minhas costelas? Depois pode manter as enfermeiras afastadas durante umas duas horas?

— Sem dúvida, se me permitir erguer as grades, visto que esta cama não está apenas a vinte e cinco centímetros do chão.

— Oh, claro.

 

(Bem, Eunice?) (Então o senhor quer saber a respeito do meu pequeno bastardo? Patrão, o senhor é um velho sujo) (Querida, não quero saber de nada que não queira me contar. Pode ter tido quíntuplos de um macaco de Barbary* e isso não afetará o que sinto por você) (Velho dissimulado e hipócrita. Está morrendo de curiosidade) (Estou morrendo de curiosidade uma ova. É um problema seu e só seu) (Oh, não seja tão mesquinho, patrão. Meus problemas são seus. De quem mais? Considerando as relações íntimas que mantemos... das quais eu gosto, não há qualquer dúvida em sua mente suja e velha. O senhor me tornou a trazer à vida... quando eu estava morta como uma canção folclórica. O que me faz ficar contente. E agora me adule um pouco e eu direi) (Está bem, minha querida: como fez para conseguir ter um filho? Quando teve tempo? Nossos espiões eletrônicos tracejaram todo seu passado desde a universidade)

 

* Denominação dada antigamente à costa norte-africana, da fronteira do Egito Atlântico, abrangendo Marrocos, Algéria, Tunísia e Tripolitânia (N. do T.).

 

(Patrão, aquele relatório de segurança citou o semestre que perdi, na universidade, com febre reumática?) (Deixe ver. Sim, citou) (Foi um erro de ortografia. Tratava-se de febre «romântica». Eu tinha quinze anos e era chefe da torcida. Nosso time de basquete ganhou o torneio regional... e eu me senti tão bem que eu dei) (Eunice, «eu dei» não é uma expressão que uma senhora use) (Oh, patrão, às vezes o senhor me enche. Pelos seus conceitos, não sou uma senhora e nunca serei... e tenho tanto direito de estar dentro deste crânio quanto o senhor e talvez mais... portanto nada ganhará tentando me forçar a falar como sua mãe falava. Principalmente quando não tenho mais Joe para variar, quando ficava cansada dos seus modos afetados)

(Desculpe, Eunice)

(Tá legal, patrão. Eu gosto do senhor. Mas estamos muito agarrados um ao outro. Precisamos relaxar e aproveitar. Posso ensinar-lhe um bocado sobre como ser mulher, se me deixar. Mas agora ouça. Não interrompa)

A voz fantasma pronunciou uma série de vocábulos, todos tabus nos tempos remotos da juventude de Johann.

(Eunice! Por favor, querida, isso não lhe fica bem)

(Bico calado, patrão. Vou até o fim, mesmo que o senhor queime todos os fusíveis)

A declamação continuou...

(Acho que é tudo... essas palavras estavam arquivadas em minha cabeça para nunca serem usadas na sua presença. Agora me diga: há uma sequer que o senhor não saiba?)

(Não se trata disso. Uma pessoa não tem o direito de usar uma linguagem que ofenda os outros)

(Nunca usei, patrão. Em público. Mas agora estou em casa... ou pensava que estava. Quer que eu vá embora outra vez?)

(Não, não, não! Hem, você esteve ausente?) (Claro que estive, patrão. Morta, suponho. Mas agora estou aqui e quero ficar. Se o senhor me deixar. Se eu puder ficar calma, feliz e não tiver de permanecer em guarda o tempo todo com medo de ofendê-lo. Não posso entender por que um polissílabo latino me faz ser mais senhora que um monossílabo com o mesmo sentido. O senhor e eu pensamos com o mesmo cérebro — o seu — comemos com a mesma boca — a minha ou a que era minha — e mijamos pelo mesmo buraco. Então, por que não podemos partilhar do mesmo vocabulário? Por falar em mijar... oh, desculpe-me, senhor, eu queria dizer «mictunção»...)

(Não me venha com sarcasmos, menina!)

(Quem está me chamando de «menina», menininha? Apalpe-se, ande, apalpe-se. De arrasar, hem, patrão?... E como o senhor costumava olhar para eles, seu bode velho chifrudo. Me arrepiava. Mas eu estava dizendo: por falar em micturição, vamos ter muito breve de tocar a campainha pedindo uma comadre, agora que não estamos mais cheios de encanamentos... e eu não tenho como sair do quarto enquanto o senhor mija. Não ouso sair. Fora daqui está escuro e posso não achar o caminho de volta. Então pode fazer uma de duas coisas: mandar-me embora para sempre... ou explodir sua linda bexiga nova)

(Está bem, Eunice. Já expôs seu ponto de vista)

(Ofendi-o novamente, patrão?)

(Eunice, você nunca me ofendeu. Às vezes me deixava espantado, às vezes surpreso... e freqüentemente deliciado. Mas nunca me ofendeu. Nem mesmo com aquela lista de palavras grosseiras)

(Bem... como vi logo, se o senhor já as conhecia, não podia realmente ficar ofendido. Se não as compreendesse, possivelmente não poderia ficar ofendido)

(Está bem, querida. Vou desistir de corrigi-la. Mas para seu governo: usei todas aquelas palavras muito antes de sua mãe ter nascido. Possivelmente antes mesmo do nascimento de sua avó) (Vovó tem sessenta e oito anos) (Aprendi-as todas e usei-as com prazer muito antes de sua avó ter nascido... com prazer porque na época eram pecaminosas. Sei que agora elas não são para jovens como você)

(Não, são apenas palavras. Monossilábicas)

(Não eram monossilábicas antes da TV corromper a linguagem. Com exceção... Qual era aquela palavra? «Transar»?)

(Oh. Eu não devia ter incluído essa, patrão. Não é uma palavra clássica. É gíria, expressão erótica. É um verbo geral, que abrange todas as maneiras possíveis de copular...) (Bolas! Esses jovens. Quando eu era garoto, tínhamos pelo menos duas dúzias de palavras significando «transar», umas novas, outras antigas, além das palavras comuns proibidas) (O senhor não me deixou terminar, patrão... todas as maneiras possíveis de enganchar dois ou mais corpos — qualquer número

— de qualquer sexo ou combinações de todos os sexos, incluindo as variações mais intelectuais, que o atirariam cama abaixo. Mas esse é um tipo de erotismo moderno e por isso não é de espantar que não tenha ouvido a palavra «transar» antes)

(Oh, eu a ouvi. Você não sabe de nada, garota)

(Sim, senhor? Isto é, «Sim, Miss Smith», queridinha. «Miss» Smith... como ri quando a ouvi pela primeira vez. Mas é bacana porque se refere a nós dois. Diga, Rosy é bacana, não é? Põe mais calor num beija-mão que muitos garanhões brincando na cama) (Querida, você além de ter uma mente suja... é delirante) (Como posso evitar ter uma mente suja, se ela é realmente a sua, patrão... estou mergulhada na porcaria) (Cale-se, Eunice. Agora é a minha vez. As cenas promíscuas não são novidade. Os gregos tinham uma palavra para elas. E os romanos também. E assim por diante, através da história. As orgias foram muito apreciadas na Inglaterra vitoriana. Estavam longe de ser desconhecidas na minha juventude, no interior dos círculos bíblicos, muito embora fosse perigoso naqueles tempos. Eunice, para que a gente possa ficar à vontade um com o outro, deixe-me dizer isto: tudo o que você já viu, tentou ou ouviu a respeito, eu fiz ou me fizeram antes de sua avó ter nascido... e quando eu gostava, continuava fazendo, mais e mais. Qualquer que fosse o perigo)

A segunda voz silenciou durante um momento.

(Talvez seja porque atualmente começamos cedo. Menos perigo e menos regras)

(Permita que duvide)

(Oh, tenho certeza que sim. Já lhe contei como era jovem quando fui apanhada. Quinze anos. E havia começado um ano antes)

(Eunice, meu amor, a principal diferença entre moços e velhos, a causa da chamada geração falhada — uma falha na compreensão sempre existiu através dos tempos — é que os jovens simplesmente não acreditam que os velhos também já foram jovens... enquanto que para um velho, sua juventude é algo que aconteceu na semana passada e fica profundamente chateado quando alguém nega de fato que aquele velho pateta já teve juventude)

(Patrão?)

O pensamento foi suave e amável.

(Sim, adorada?)

(Patrão, eu sempre soube que o senhor era jovem no íntimo, por trás de todos aqueles horríveis ataques de fígado... soube quando era viva, quero dizer... e desejei ardentemente que o senhor não fosse velho e doente fisicamente. Me fazia mal vê-lo sofrer. Às vezes eu chegava em casa e chorava. Especialmente quando o sofrimento o fazia mentir e o senhor dizia o que não queria e depois se arrependia. Eu queria vê-lo bom e sabia que era impossível. Fui das primeiras a assinar — Joe e eu — assim que soubemos pelo Clube do Sangue Raro. Não pude fazê-lo mais cedo para o senhor não desconfiar... e me proibir)

(Eunice, Eunice!)

(Não me acredita?)

(Acredito, querida, acredito... mas você está nos fazendo chorar)

(Pois assoe o nariz, patrão, e pare. Porque tudo acabou bem. Olhe, o senhor estava querendo saber a respeito do meu pequeno bastardo: isso liquidará todos os problemas na sua cabeça para sempre?)

(Hum... só se você também quiser, Eunice. Meu amor. Meu único amor)

(Deixei bem claro que queria que o senhor soubesse, não foi? Contarei tudo — e vai demorar bastante! — se o senhor quiser ouvir. Se não ficar chocado. Diga «por favor», patrão... porque os detalhes da minha vida sexual podem ajudá-lo a orientar sua própria vida sexual. Nossa vida sexual, na realidade. Ou estava falando sério quando impingiu no Dr. Garcia aquele troço de não ser «ativamente feminina»?)

(Hum... não sei, Eunice, ainda não sou mulher há bastante tempo para saber o que quero. Bolas, querida, em vez de pensar como uma moça, continuo olhando as moças amorosamente. Aquela enfermeira ruivinha, por exemplo)

(Eu reparei)

(Isso é ironia? Ou ciúme?)

(O quê? Não pretendo ser irônica, querido patrão. Não quero que sejamos nunca odiosos um com o outro. E para mim o ciúme não passa de uma palavra do dicionário. Quis dizer exatamente aquilo: quando Winnie estava nos maquilando, o senhor ficou olhando sorrateiramente pelo decote do avental, cada vez que ela se inclinava, e eu estava tão interessada quanto o senhor. Não usava soutien. Lindos seios, hem? Winnie é mulher e tem consciência disso. Se o senhor fosse homem de corpo como é de mente, eu não confiaria nela de maneira nenhuma)

(Pensei que você dissera não sentir ciúmes)

(Não sinto. Estou apenas explicando que Winnie pode dar-lhe uma rasteira e atirá-lo no chão. Mas não a estou criticando. Não sou contra as mulheres. Uma moça pode ser um estouro)

Johann demorou a responder.

(Eunice, hum, você está dando a entender que teve — costumava ter — relações com outra, hum...)

(Oh, patrão, não seja tão princípio do século vinte. Já dobramos o vinte e um. Fale claro. Está perguntando se sou lésbica? Homossexual?)

(Não, claro que não! Bem, talvez de certa maneira eu quisesse dizer isso. Pelo menos eu queria que você esclarecesse o que havia dito. Embora aquilo não fosse possível. Você era casada e... ou seu casamento era apenas um disfarce? Suponho...)

(Pare de supor, querido. Claramente: eu não era homossexual e Joe também não. Joe é um machão sempre disposto a ir para a cama e ótimo nela. Exceto quando está pintando. Aí esquece tudo. Mas «homossexual» não é uma palavra que chateie ninguém da minha geração. Nem a palavra nem o ato. E por que não há de ser assim, com o governo praticamente o propagando com essa história de haver crianças demais, coisa que começa nos jardins de infância? Se eu tivesse feito uma promessa de castidade, nunca teria apanhado aquela falsa «febre reumática». Mas enquanto as moças são bolináveis — e nunca tive inibições com relação a elas — sempre fui interessada demais em rapazes para viver no reino da pederastia. Porém em que time o senhor joga, patrão? Numa hora, me fala de como está interessado em Winnie e logo depois fica preocupado porque eu também estou. Que pretende fazer de nós, querido? Fingidos? Francos? Ambas as coisas? Ou nenhuma delas? Acho que posso assumir qualquer uma, menos a última. Tenho direito a voto?)

(Ora, claro que tem)

(Fico cismando, patrão. O senhor pulou quando sugeri que poderia agradecer ao Dr. Hedrick na cama... e ficou mais entusiasmado com a idéia de ir para a cama com uma moça. Garante que não está planejando ter certeza do sucesso?)

(Oh, Eunice, não diga bobagens! Amada, por mais feliz que eu esteja por estarmos juntos, a geração aberta continua presente. Desta vez foi minha culpa, pois tenho o velho hábito de ser cauteloso no que digo a uma mulher, mesmo a uma com quem estou na cama...)

(É claro que o senhor está na cama comigo!)

(E estou, com certeza. E também achando ainda mais difícil ser plenamente sincero com você — «falar claramente», como você diz — do que me ajustar a ser mulher. Mas antes do Dr. Hedrick ter provocado o assunto, vi as implicações — e complicações — e conseqüências — de ser mulher... jovem... e rica)

(«Rica». Não havia pensado nisso)

(Amada Eunice, vamos ter de pensar nisso. Claro, vamos começar a ser «ativamente mulher»...)

(Hurra!)

(Silêncio, querida. Se fôssemos pobres, a coisa mais simples seria pedir ao seu Joe que nos recebesse de volta. Se ele nos quisesse. Mas não somos pobres. Somos embaraçosamente ricos... e é mais "difícil nos livrarmos de uma fortuna do que fazê-la. Pode acreditar. Quando eu estava com uns setenta e cinco anos, tentei me livrar dos meus bens enquanto ainda vivo, de maneira a que não fossem para minhas netas. Mas distribuir dinheiro sem gastar a maior parte dele no processo é tão difícil quanto meter o gênio de volta na garrafa. Por isso desisti e simplesmente dei um jeito no meu testamento para manter a maior parte dos meus bens fora das mãos dos meus supostos descendentes)

(Supostos?)

(Supostos. Eunice, minha primeira mulher era uma ótima moça, muito parecida com você, acho eu. Mas a pobrezinha morreu de parto do meu único filho, também falecido já há muitos anos. Agnes me fez prometer que casaria outra vez, o que fiz quase imediatamente. Tive uma filha desse casamento e a mãe dela se divorciou, de mim antes da criança ter feito um ano. Casei uma terceira vez... ainda uma menina e ainda um divórcio. Nunca conheci minhas filhas direito e sobrevivi a elas e às mães delas. Mas... Eunice, você também tem sangue raro. Sabe como são herdados os tipos sangüíneos?)

(Na verdade, não)

(Pensei que pudesse saber. Tendo uma inclinação pela matemática. Da primeira vez em que pus os olhos num mapa de herança de tipos sangüíneos compreendi logo, como compreendia a tábua de multiplicações. Tendo perdido minha primeira mulher de parto, tratei de ter doadores à disposição, antes que minhas segunda e terceira mulheres entrassem na sala de parto. Minha segunda mulher era do tipo A e a terceira do B... Anos mais tarde vim a saber que minhas filhas putativas eram do tipo O)

(Acho que me escapou alguma coisa, patrão)

(Eunice, é impossível a um pai do tipo AB procriar filhos do tipo O. Agora espere: não estou usando isso contra minhas filhas. Elas não têm nada com isso. Eu poderia ter amado Evelyn e Roberta — tentado, querida — mas as mães delas me mantiveram afastado delas e as predispuseram contra mim. Nenhuma delas me procurou... até que veio à tona que eu estava a fim de me desfazer um dia de uma grande quantia... Então, a transformação de honesta antipatia em falsa «afeição» foi nojenta. Eu não sentia obrigação para com minhas netas uma vez que, de fato, não eram minhas netas. Bem? Que pensa disso?)

(Hum... Patrão, acho que não devo comentar)

(É? Quem foi que há menos de cinco minutos estava dizendo que precisávamos ser absolutamente francos um com o outro?)

(Bem... Não estou em desacordo com sua conclusão, patrão, mas com a maneira de chegar a ela. Não vejo porque a hereditariedade deva entrar nisso. Parece-me que o senhor está ofendido por uma coisa que aconteceu há muito tempo... e isso não é bom. Não é bom para o senhor, patrão)

(Criança, você não sabe de que está falando)

(Talvez não)

(Nada de «talvez» neste caso. Uma criança é uma criança. Crianças foram feitas para serem amadas e cuidadas e essa é a causa dessa confusão dos diabos: nada faz sentido. Eunice, disse-lhe que minha primeira mulher era mais ou menos como você. Agnes foi minha Annabel Lee e nos amamos com um amor que era mais que amor e só a tive por um ano... então ela morreu, me deixando um filho. Amei-o tanto quanto a ela. Quando o mataram, algo morreu dentro de mim... e eu fiz a loucura de casar pela quarta vez, na esperança de revivê-lo através de outro filho. Mas tive sorte dessa vez... não houve filhos e isso apenas me custou um punhado de dinheiro para encerrar o assunto)

(Lamento, patrão)

(Agora não há o que lamentar. Mas eu estava lhe falando de outra coisa... Eunice, quando estivermos de pé e andando, me lembre para procurar na minha caixa de jóias e mostrar-lhe a «coleira de cachorro» do meu filho... tudo o que me sobrou dele)

(Se o senhor quiser. Mas não é mórbido, querido? Devemos olhar para a frente e não para trás)

(Depende de como se olha para trás. Não me aflijo por causa dele. Tenho orgulho do meu filho. Morreu honrosamente, lutando por sua pátria. Mas essa placa de identificação militar indica seu tipo sangüíneo: O)

(Oh)

(Sim. Eu disse «O». Portanto, meu filho era tão meu descendente fisicamente quanto minhas filhas. Nem por isso deixei da amá-lo)

(Sim, mas... soube pela sua placa de identificação? Depois da morte dele?)

(Uma ova. Soube no dia em que nasceu. Suspeitei de que não fosse meu desde o tempo em que Agnes ficou grávida... e aceitei. Eunice, uso chifres com dignidade e sempre guardo as suspeitas para mim. Dá no mesmo: todas as minhas esposas contribuíram para a minha situação de chifrudo. Cornos? Galhos frondosos! O marido que espera algo diferente está galopando para a queda. Mas nunca tive ilusões a esse respeito e por isso nunca fui apanhado de surpresa. Nem tinha razão para ser, pois a maior parte do meu treino foi com mulheres casadas, cujo começo foi na minha juventude. Acho que isso acontece em cada geração. Mas os cornos só fazem a cabeça de um homem doer quando ele é bastante burro para acreditar que sua mulher é diferente... quando toda a evidência que ele acumulou pode levá-lo a assumir uma posição exatamente oposta)

(Patrão, o senhor pensa que todas as mulheres são assim?)

(Oh, não! Conheci na minha juventude inúmeros casais que — até onde posso saber e acreditar — chegaram, tanto a noiva como o noivo, virgens ao altar e se mantiveram fiéis a vida inteira. Deve haver casais iguais a esses entre os jovens de hoje)

(Acho que alguns. Mas eu não sirvo de exemplo)

(Nem eu. Nem todos os kinseys que fizeram estatísticas. Eunice, sexo é o único assunto em que todos mentem. Mas o que eu estava dizendo era: um homem que usa o prazer onde o encontra, depois se casa e espera que sua mulher seja diferente, é um louco. Nunca fui essa espécie de louco. Vou lhe falar sobre Agnes.

Agnes era um anjo fraco das pernas. Esta gíria obsoleta é o exato reflexo da realidade. Não acredito que Agnes tenha odiado alguém em sua curta vida e ela amava tão facilmente quanto respirava. Ela... Eunice, você disse que começou cedo?)

(Aos catorze, patrão. Uma vagabunda precoce, hem?)

(Precoce talvez, vagabunda nunca. Assim como meu anjo Agnes jamais foi uma vagabunda e no entanto deu alegremente sua virgindade — segundo me disse — aos doze. Eu...)

(Doze!)

(Espantada, minha querida? Trata-se outra vez da geração aberta. Sua geração pensa que inventou o sexo. Agnes foi precoce. Dezesseis já era bastante cedo naquele tempo, a ponto de um homem vacilar — embora não muito! — e dezessete ou dezoito era mais comum. Penso eu. Encontrar realmente mulheres virgens e ter certeza... Bem, não sou especialista. Mas Agnes não constituía uma exceção, mesmo naquele tempo. Lembro de uma garota na escola primária que «emprestava», como os garotos diziam, aos onze anos, e que continuou friamente, sem que os professores percebessem, ganhando broches por freqüentar a aula dominical de religião.

Minha querida, Agnes foi assim, com a diferença de que a bondade dela não era fingimento. Era boa sempre. Apenas não via nada de pecaminoso no sexo)

(Patrão, o sexo não é pecaminoso)

(E alguma vez eu disse que era? Todavia, naquele tempo me sentia culpado, até que Agnes me curou dessa bobagem. Agnes estava com dezesseis anos e eu com vinte. O pai dela era professor no colégio agrícola para onde me mandaram e uma vez fui convidado a jantar na casa deles. Nossa primeira batalha aconteceu no sofá da sala de estar e foi tão súbito que me espantou e até mesmo apavorou)

(Apavorou por que, meu querido? Por causa dos pais?)

(Bem, foi por isso. Estavam no andar de cima e provavelmente ainda acordados. A própria Agnes era muito jovem. A maioridade, naquela época, acontecia aos dezoito anos. Embora eu não me lembre de jamais ter deixado que o fato fosse um obstáculo para mim, os rapazes ficam apreensivos por causa disso. E nessa noite eu não estava preparado, pois não esperava aquilo)

(Preparado como, patrão?)

(Anticoncepcional. Faltava um ano para eu me formar, não tinha dinheiro nem emprego em vista e ser obrigado a casar não tinha muita graça)

(Mas o anticoncepcional é responsabilidade das moças, patrão.

Foi por isso que me senti tão boba quando me aconteceu. Jamais teria sonhado em pedir a um rapaz para casar comigo por causa disso, mesmo que tivesse certeza que fora ele. Assim que percebi que havia sido apanhada, rangi os dentes, contei aos meus pais e agüentei a bronca. Papai ia ter de pagar minha multa, pois eu ainda não tinha permissão. Horrível... mas não se falou em casamento. Não me perguntaram quem foi e eu nunca dei espontaneamente minha opinião) (Você não tinha uma opinião, Eunice?)

(Bem... só uma opinião. Vou falar claro. Nosso time de basquete e nós três, as líderes da torcida, estávamos no mesmo hotel, com o treinador e com o professor de ginástica feminina nos pastoreando de perto. Só que não conseguiram. Foram à cidade e então nos reunimos no apartamento dos rapazes para comemorar. Alguém tinha erva. Maconha. Dei dois tapas e não gostei... voltei ao gim com ginger-ale, cujo sabor era melhor e quase a mesma novidade para mim. Não tinha a menor intenção de transar. Não era uma coisa elegante em nossa escola e eu tinha por princípio ser fiel a quem — bem, habitualmente — não participava da excursão. Mas quando a líder principal da torcida tirou as roupas... aí não deu jeito. Contei mentalmente os dias e achei que não havia perigo durante dois ainda e me despi. Fui a última das três. Ninguém me influenciou. Patrão, não houve a mais leve intenção de me violar. Então, como posso culpar os rapazes?

Só que na realidade eu não tinha os dois dias de reserva e na metade de janeiro tive quase certeza disso. Depois, a dúvida acabou. A dos meus pais também e fui mandada para o interior, para a casa de uma tia, até que ficasse boa de uma febre reumática que nunca tive. Fiquei boa duzentos e sessenta e nove dias depois do jogo do campeonato, exatamente a tempo de entrar na escola no outono. E me formar com minha classe)

(E seu filho, Eunice? Menino? Menina? Que idade tem agora? Doze? E onde está ele?)

(Patrão, não sei. Assinei uma autorização de adoção, o que permitiria a papai recuperar o dinheiro se aparecesse alguém com uma licença para ter filho. Patrão, não é justo? Cinco mil dólares eram muito dinheiro para meu, pai, embora qualquer um consiga isso de graça no Seguro Social ou pode mesmo requerer um aborto gratuito. Eu não podia compreender isso)

(Você está mudando de assunto, querida. A criança?)

(Oh. Disseram-me que nascera morta. Mas soube que eles habitualmente dizem isso se uma moça assina os documentos e há alguém esperando por eles)

(Podemos descobrir. Se seu filho não está vivo, a multa nunca foi arrecadada. Seu pai não lhe informou?)

(Nunca perguntei. Patrão, era um assunto delicado. Eu havia tido «febre reumática» e não um filho sem licença. Como também não perguntei quando fiz dezoito anos. Obtive licença para três e ninguém fez perguntas)

(Eunice, não importa que disfarce usaram. Se seu filho está vivo, podemos achá-lo)

A segunda voz não respondeu. Johann insistiu.

(Então, Eunice?)

(Patrão... é melhor deixar os mortos onde estão)

(Você não quer filhos, Eunice?)

(Não foi o que eu disse. O senhor falou que não tinha importância que seu filho não fosse realmente seu. Acho que tem razão. Mas isso não abre ambos os caminhos? Se existe uma criança por aí, agora com quase treze anos... somos estranhos um para o outro. Não sou a mãe que o amou e criou. Não sou ninguém. Ninguém mesmo... esqueceu que fui assassinada)

(Eunice! Oh, querida!)

(Está vendo? Se acharmos esse menino ou menina, não podemos admitir que ainda estou viva — viva outra vez, quero dizer — dentro da sua cabeça. É uma coisa que não ousamos confessar... ou voltarão com aquelas horríveis ataduras e nunca seremos livres) Suspirou. (Mas eu gostaria de ter tido o seu filho. Você me falou sobre Agnes. Conte mais. Sou realmente parecida com ela?)

(Muitíssimo parecida, Eunice. Oh, não quero dizer que ela tenha se assemelhado a você. Mas se eu acreditasse em reencarnação — e não acredito — ficaria tentado a pensar que você é Agnes, que voltou para mim)

(Talvez eu seja. Por que não acredita na reencarnação?)

(Hum... você acredita?)

(Não. Quero dizer, eu não acreditava, embora a maioria dos nossos amigos acreditasse. Não via razão pra acreditar ou não, por isso ficava calada. Mas, patrão ser morta dá à gente um ponto de vista diferente... e então descobrir que não continua morta. Querido patrão... o senhor acha que eu sou uma invenção da sua mente, não?) Johann não respondeu. A voz continuou: (Não tenha medo de confessar, patrão. O senhor não me ofenderá. Sei que eu sou eu. Não preciso de prova. Mas o senhor precisa. Precisa saber. Confesse, querido. Abra-se comigo)

Suspirou novamente.

(Eunice, preciso saber. Mas — se estou doido — se você não passa do meu próprio cérebro falando comigo mesmo... é preferível que eu não saiba. Querida, perdoe-me... mas fiquei aliviado quando me disse que não queria que tentássemos descobrir seu filho)

(Eu sabia que você ficara aliviado... e também por quê. Patrão, não seja tão imediatista. Temos todo o tempo do mundo à nossa disposição. Portanto, descanse e divirta-se. Provar poderá revolver... algo que eu sei e que o senhor possivelmente não poderá saber a não ser por meu intermédio. E então ficará liquidado e o senhor terá tanta certeza quanto eu)

Sacudiu a cabeça para si mesma.

(Isso é compreensível, Eunice... e soa como os pitos que me passava quando eu ficava mal-humorado. Você tomava ares maternais)

(Vou continuar passando-lhe pitos e dando uma de mãe sempre que o senhor merecer... e o amando o tempo todo, patrão. Mas há uma coisa que está se tornando urgente)

(O quê?)

(A tal comadre. A menos que o senhor queira que tenhamos um acidente pueril)

(Oh, raios!)

(Calma, patrão. Tem de se habituar)

(Que diabo, não quero ser posto numa comadre por uma enfermeira, como uma criança sendo sentada num penico. Sabe o que vai acontecer? Nada! Fico inibido e não sai nada. Eunice, meu banheiro fica depois daquela porta... podemos pedir que nos levem até lá e que nos deixem sós?)

(Patrão, o senhor sabe o que poderá acontecer. Chamará a enfermeira e pedirá a ela. Ela tentará dissuadi-lo. Depois irá buscar o Dr. Garcia. Ele chegará e também discutirá com o senhor. Se teimar, ele chamará Jake. Quando Jake chegar, nós já teremos mijado na cama)

(Eunice, você é irritante. Está bem, vamos pedir a tal comadre) (Espere, patrão. Podemos baixar esta grade?) (Hem?)

(Se podemos, o que nos impede de ir ao banheiro sem pedir?) (Mas, Eunice... Há mais de um ano que não ando até lá!) (Isso foi antes do senhor conseguir este corpo de mulher de segunda mão, recondicionado e dado como novo) (Você acha que podemos andar?)

(Vamos ver. Se ficar de pé o deixa tonto, podemos nos agarrar na cama e escorregar para o chão. Tenho certeza de que podemos rastejar, patrão)

(Vamos logo!)

(Precisamos ver como a grade funciona)

Johann achou a grade protetora complicada. Parecia não haver meio de uma pessoa na cama baixá-la. Não é de espantar, pensou ela. Se aquelas grades foram feitas para proteger uma pessoa atordoada com remédios, então a forma escolhida era de molde a não permitir que o doente as retirasse.

(Eunice, vamos ter de chamar a enfermeira. Que inferno!) (Não desista, patrão. Talvez haja um botão no consolo. Se nos arrastarmos até que nossa cabeça fique nos pés, acho que poderemos atingir o consolo)

Assim, Johann encolheu os joelhos, retorceu-se e manobrou as pernas, ficando agradavelmente surpreendido com a flexibilidade do seu novo corpo. Então estendeu o braço direito para as barras nos pés da cama, sem no entanto alcançar o consolo. Praguejou e descobriu como as grandes laterais eram presas: dois simples ferrolhos, um de cada lado, nos pés da cama, abaixo das molas, fora do alcance (como sem dúvida pensava o fabricante) de qualquer paciente suficientemente doente para precisar de grades laterais.

Abriu o ferrolho da esquerda com um golpe de polegar. A grade deslizou facilmente para baixo. Ela riu.

(Que tal, parceiro?) (Perfeito até agora, patrão Pendure-se nos pés da cama enquanto colocamos os pés no chão. Se cairmos, eles virão e nos porão fraldas... Portanto, agarre-se!)

Johann assentou os pés no chão e ficou tremendo enquanto se agarrava na cama.

(Tonto) (Claro. Vai passar. Firme agora, querido. Patrão, acho que poderemos andar... mas vamos nos garantir rastejando. Se tiver outra tontura e cair no tapete, Winnie chegará aqui correndo... e depois disso vão nos dar de comer através das grades. Que acha?) (Acho que faremos muito melhor chegando logo à latrina antes de nos arrependermos. Rastejemos)

Chegar ao chão não foi problema. Rastejar era outra coisa. Ela embaraçou os joelhos na camisola de hospital. Então sentou-se. Johann descobriu que seu novo corpo dobrava-se tão facilmente e tão naturalmente numa contorção que a jovem Johann achava difícil aos doze anos.

Não parou para pensar. O casaquinho não era problema. Ele se amarrava na frente com um laço grande. Tirou-o e o pôs de lado. Mas a camisola era amarrada nas costas.

(Difícil?) (Uma laçada dupla. Parece um laço corrediço. Cuidado, patrão, não vá dar um nó cego)

A camisola foi se juntar ao casaquinho. Sem empecilho, Johann recomeçou a rastejar. A porta do banheiro-vestiário voou e ele atingiu seu objetivo.

Imediatamente suspirou aliviado.

(Estou me sentindo melhor) (Somos dois. Quer tentar voltar andando? Enquanto tivermos algo onde nos agarrar, ou diretamente para a cama, chamando uma cadeira e fazendo-a deslizar à nossa frente?) (Estou disposto)

Johann descobriu que não vacilava sobre os pés: andar era mais fácil do que quando tinha vinte anos. Todavia, manteve-se colada à parede, pois o banheiro havia sido equipado anos atrás com corrimões, para um frágil ancião temeroso de cair. Chegou até perto de um enorme espelho de três faces, na extremidade do quarto de vestir. Parou.

Então colocou-se no centro e olhou-se.

(Meu Deus, Eunice, você é linda!)

(Meu Deus, estamos parecendo uma cachorra molhada! Patrão, olhe para estas unhas dos pés. Garras. Patas. E, oh querido, meus seios balançam! E minha barriga está positivamente flácida)

(Bela. Absolutamente deslumbrante. Amada Eunice, sempre quis vê-la inteiramente nua. E agora estou vendo)

(Pois está. Eu gostaria de ter tido tempo de me fazer bonita antes de você me ver. Meu cabelo está uma bagunça. E... sim era o que eu pensava. Nós estamos fedendo) (Ei!) (Desculpe, apertei por engano o botão do pânico. Patrão, vamos logo tomar um banho quente com muito sabonete antes de voltar para a cama. Ordem direta de Washington. Não podemos fazer muita coisa mais no primeiro dia... mas podemos ficar limpos) Virou-se e examinou as nádegas. (Que horror! Uma mulher deve ser bem fornida... mas não tanto assim) (Eunice, suas ancas são as mais lindas de todo o Estado. De todo o país) (Eram, talvez. E tornarão a ser, prometo-lhe, patrão. Amanhã de manhã começaremos a fazer exercícios especiais. Tornar tudo sólido) (Está bem, se você quer assim... embora eu continue a dizer que você é a coisa mais deslumbrantemente linda que já vi na vida. Hem; Eunice? Aquela roupa de sereia que você vestiu uma vez... Você estava usando um soutien escondido, não?)

Ela deu uma risada.

(Juro que não. Era só eu, patrão. E tinta. Mas naquela época meus seios eram duros como pedra. Joe tinha onde agir. Acho que foi a maior nudez que o senhor viu de mim)

(Você acha que estou agora olhando para que, beleza?)

(Oh, refiro-me a antes de me matarem. Quando eu era sua «ótima» menina, que não ousava deixá-lo me ver nua tanto quanto o senhor queria, seu velho sujo. Embora o senhor pudesse me ter visto muito mais nua — e muito mais bela — sempre que tivesse a coragem de me pedir)

(Vou ficar aqui de pé durante horas todos os dias, só para olhar)

(Não há motivo para que não fique, querido. O corpo agora é seu. Mas vamos pôr uma esteira de exercícios no chão e começar a nos tonificar ao mesmo tempo. A maioria dos exercícios fazem-se melhor com a ajuda de um espelho de corpo inteiro. Acho que nós...)

A porta abriu-se com um safanão.

— Miss Smith!

Johann olhou surpresa e depois respondeu furiosamente:

— Miss Gersten, que diabo é isso de invadir meu banheiro sem bater na porta?

A enfermeira não tomou conhecimento da reação, correu para a sua Paciente e passou-lhe o braço em volta da cintura.

— Apóie-se no meu ombro e voltemos para a cama. Oh, meu Deus, nem imagino o que dirá o Dr. Garcia! Vai me matar... a senhora está bem?

Johann viu que a pequena enfermeira estava a ponto de chorar.

— Claro que estou bem — Johann tentou esquivar-se do braço, mas verificou que a moça era mais forte que parecia. — Você não me respondeu.

Então ela começou a chorar.

— Oh querida, por favor, não brigue comigo! Deixe-me pô-la na cama antes que se machuque. Talvez o Dr. Garcia não fique muito zangado.

Vendo que a mocinha estava perturbada de forma muito pouco profissional, Johann deixou-se levar para o quarto e para a cama. A ruivinha prendeu a respiração.

— Pronto! Agora, se a senhora firmar os braços no meu pescoço, poderei erguer suas pernas... mazinha! Me dando esse susto!

Johann não colaborou.

— Winnie.

— Pronto, querida? Oh, primeiro deixe-me pô-la na cama. O doutor ficará danado da vida!

— Devagar. Se está planejando fazer queixa, vá. Posso me agarrar na cama e não cairei.

A enfermeira estava desesperada.

— Está querendo que me despeçam, Miss? Que me ponham na lista-negra, talvez? Que é que eu lhe fiz?

— Winnie querida.

— Sim?

— Você não irá dizer nada ao Dr. Garcia — Johann passou um braço em torno da cintura da ruiva. — Vai?

A ruiva estava alvoroçada mas não a repeliu.

— Bem, eu podia. Esperam que eu relate tudo.

— Mas não fará. E eu também não direi nada. Segredo de Estado entre nós duas. E nada de espalhar para ninguém.

— Bem... não contarei se a senhora não contar.

— Promete?

— Prometo.

Johann beijou-a. Winnie não se esquivou, mas ficou admirada e um tanto tímida. Então respirou fundo, abriu os lábios e o beijo ganhou em intensidade.

A enfermeira libertou a boca e disse, asperamente:

— Posso ser despedida quase tão depressa por isto.

Não disse o que era «isto». Ignorou o fato de Johann ter abarcado um dos seios dela com a mão livre.

— Então vamos parar e me meterei na cama... não, não me ajude, não preciso.

Johann provou deitando-se. A enfermeira cobriu-a com o lençol e imediatamente recuperou o ar profissional.

— Agora vamos vestir nossas roupas outro vez, sim? — Parou para apanhá-las. — Que garota levada, jogando as roupas no chão. E me dando um susto desses.

— Meta-as na cesta. Não vou usá-las.

— Vamos, vamos, querida. Não precisa botar o casaquinho, só a camisola. Ou quer outra limpa?

— Winnie, nunca mais vou usar essas camisolas angelicais, por isso desista. Pode pendurar o casaquinho. Mas não usarei uma camisola de hospital. Ficarei pelada.

— O Dr. Garcia...

— Pare de me ameaçar com o Dr. Garcia. Agora não pega mais Não é?

A enfermeira mordeu o lábio.

— Bem... é.

— Não é da conta dele se eu durmo pelada. E dormirei até que me seja dado algo mais apropriado. Ou... Você dorme aqui? Talvez possa me emprestar alguma coisa. Uma camisola própria para moças.

— Bem , sim, durmo aqui. Mas não posso lhe emprestar nada porque... bem, também durmo pelada.

— Muito sensato.

— Mas há camisolas, negligés e outras coisas aqui mesmo. No seu quarto de vestir.

— Raios os partam. Quem encomendou-os?

— Não sei, Miss Smith. Foram trazidos e guardados quando, bem, quando ficou claro que a senhora ia precisar deles.

— Bem planejado. Hum, sabe se são do meu tamanho? Seja qual for o meu tamanho, pois não me conheço.

— Oh, sim, ajudei a medi-la.

— Mais bem planejado ainda. Traga-me a camisola mais feminina que houver... posso perfeitamente usá-la.

— Com prazer.

A enfermeira saiu do quarto.

(Machona) (Oh, que bobagem, Eunice. Claro, ela é uma coisinha linda... mas acontece que percebi de repente a maneira de lidar com ela. Tive de procurar na memória. Estou sem prática) («Machona», repito. Você teve prazer) (E você não?) (Claro que sim. Ela beija pra valer. Mas não sou hipócrita com relação a isso. Quem ficou escandalizado quando eu disse que as mulheres podem ser um estouro? Você, seu velho hipócrita e sujo. E machona)

(Eunice, sua cuca não está funcionando. Tive a maior parte de um século à disposição para apreciar mulheres. Você espera que eu mude da noite para o dia? Só me sentiria uma bicha se algum homem nos beijasse. Provavelmente desmaiaria) (Pobre patrão. Nem sabe se é ativo ou passivo. Deixe pra lá, querido. Eunice treinará você... pois eu sei como beijar um homem)

(Imagino que sim) (Havia sal naquele? Não importa, sei como. Ele desmaia. Patrão, o senhor afirma que já fez tudo. Tudo?) (Olhe aqui, sua metida, não estou disposto a lhe dar nenhum pretexto para me chamar de «machona» e «fresco» na mesma frase. Mais tarde você terá minhas memórias. Mas, Eunice, por falar em «machona», Winnie é? Tem toda a pinta) (É mais a «queridinha» que «machona», acho eu, embora ela possa palmilhar ambos os lados da Rua das Bichas. Mas se tivesse perguntado se ela era lésbica, aí eu apostaria tudo como não é. Bissexual, certamente, mas muito mais interessada em homens. Não reparou nela? Fogosa)

Winnie voltou com uma camisola em cada mão.

— Acho que estas duas são as mais lindas, Miss Smith. Pensei...

— Winnie.

— Pois não, Miss Smith?

— Nada de «Miss Smith». Não quero que me chame de «Miss Smith». Não depois de me ter beijado. Ou entendi o recado errado? (Machona) (Cale-se, Eunice. Ela vai nos ajudar)

A enfermeira ficou ruborizada e não respondeu. Johann disse amavelmente:

— Você acaba de responder, querida. Portanto, me chame... não, que diabo, não quero que me chame de Johann. Preciso de um novo nome, Winnie querida, qual o nome mais próximo de Johann?

— Ora, Johanna.

— Hummm, é. Mas já existe uma Johanna na minha família. Tem um outro?

— Bem... se você se chamar «Joan» e pronunciar as duas sílabas, ficará muito parecido com «Johann», a não ser pelo «J» que substitui o som «I», do «J» de «Johann».

— Perfeito! Você me batizou. Acho que isso a transforma em minha madrinha. Importa-se de ser madrinha de um velhinho que acaba de renascer como mulher?

Winnie sorriu.

— Estou encantada.

— Então me chame de «Joan» e não de «Miss Smith». Hum, preciso de um segundo nome. «Eunice». (Ora, patrão, agora quem está encantada sou eu) (Sim, amada. Agora cale-se) «Joan Eunice Smith». Winnie, sabe a razão deste meu segundo nome?

A enfermeira respondeu lentamente:

— Não tenho como.

— Então vai saber. É em homenagem à doce e encantadora dama que me deu este maravilhoso corpo... e espero que possa me ouvir, onde quer que esteja. (Posso patrão!) Largue essas camisolas, chegue até aqui e me chame pelo meu novo nome. Me chame formalmente, pois será o único batismo da minha vida. Depois ponha o selo.

Meio timidamente, a ruivinha aproximou-se da cama, inclinou-se para a paciente e disse suavemente:

— Te batizo «Joan Eunice»... — e beijou-a.

Talvez a intenção de Winnie fosse dar um beijo formal, mas Joan Eunice não deixou. Ambas começaram a chorar antes de terminar.

Joan deu um tapinha no rosto da enfermeira e deixou que ela se erguesse.

— Obrigado, querida. Agora sou Joan. Joan Eunice. Me dê um lenço e pegue outro. (Que tal este beijo, Eunice?) (Machona, sua técnica está melhorando. Senti este até na ponta dos pés) (A quem, diabo, você^ está chamando de «machona», machona? Meu nome é Joan Eunice) (Não, o senhor é Joan e eu sou Eunice. Coletivamente, somos Joan Eunice... E nunca me deram um presente melhor, patrão. Joan. E sei que não é machona, mas é melhor esfriar com sua madrinha. A menos que se trate de negócios)

— Que vestido escolheu... Joan?

— Winnie, não tenho a menor experiência com roupas femininas. Qual a sua opinião?

— Bem... este modelo cretense é um tanto ousado, mas você tem físico para usá-lo. (Não, patrão! Escolha o de gola alta) (Eunice, pensei que tinha orgulho dos seus pára-choques. Eles realmente não balançam) (Não é nada disso. Confie em mim, Joan. Sei o que estou fazendo)

— Talvez você tenha razão, Winnie. Mas talvez não seja a camisola apropriada para receber médicos e advogados. É mais conveniente começar com a de gola alta. Ajude-me, por favor.

Enquanto vestia a camisola de dormir, Joan perguntou:

— Winnie? Como foi que você apareceu naquela hora?

— Como? Ora, os aparelhos, é claro. Tanto seu coração como sua respiração aceleraram. Foi o esforço. Por isso corri para verificar... e tive a certeza de que a mocinha má havia abandonado o leito. Oh, como fiquei apavorada, querida!

— Winnie, há um buraco nessa história por onde passaria até um cachorro.

A enfermeira empertigou-se.

— O que quer dizer... Joan?

— As batidas do meu coração e minha respiração devem ter acelerado uns dez minutos antes de você chegar.

— Oh, querida! Você não vai contar. Você prometeu.

— Eu prometi e você também. Winnie, seriamente, a partir de hoje nenhuma de nós dirá qualquer coisa ao Dr. Garcia a menos que pensemos que ele precisa saber. Você e eu, querida. Formidável. Agora, diga o que aconteceu.

— Hum... oh, é uma bobagem. Não é permitido a quem estiver vigiando afastar os olhos dos mostradores nem por um instante. Mas você estava indo tão bem... Mrs. Sloan tirava uma soneca — o que ela precisava, a coitadinha —, o Dr. Garcia fora examinar Mr. Salomon... e deixou ordens severas para só ser chamado se a paciente precisasse dele... o banheiro estava exatamente no fim da sala de observação...

— Já sei. Tivemos a mesma necessidade na mesma hora. Não foi? Winnie tornou a ruborizar.

— Mereço ser despedida. É um perigo dar qualquer oportunidade a um doente. Os pacientes fazem coisas incríveis.

— Você jamais será despedida. Vai continuar aqui muito depois do Dr. Garcia ter ido embora. Se você quiser ficar. Que tal estou eu?

— Encantadora. Eu não tinha percebido, mas agora acho que esta camisola lhe fica melhor que o modelo cretense. (Que foi que lhe disse, patrão?) Mas vou lhe passar mais batom. O outro saiu todo.

— Agora, pelo amor de Deus, como aquilo aconteceu? Winnie deu uma gargalhada.

— Não me pergunte. Mas acho que talvez deva pôr um pouco em mim antes do Dr. Garcia nos ver. Joan? Está bem que eu a chame de «Miss Joan» quando o Dr. Garcia estiver aqui? Ele é terrivelmente formal.

— Diga a ele que se dane. Tá, querida, se você se sente melhor. Mas sou «Joan» quando ele não estiver aqui. Você é meu instrutor. Vai fazer de mim uma dama. (Esse trabalho é meu, patrão. E já sei que vai ser duro) (Por isso você precisa de ajuda. Não se faça de boba. Winnie é nossa arma secreta) (Está bem. Mas esta arma pode atirar pela culatra) (Olhe, criança, aprendi a enfrentar mulheres muito tempo antes de sua avó ter nascido)

— Terei muito prazer em ajudá-la no que me for possível... querida Joan.

— Então comece por convencer o querido doutor de que estou em condições de tomar um banho de banheira. Estou fedendo. Damas não devem feder.

— Ora, você tomou iim banho na cama não fazem duas horas!

— Preciso de mais que isso e você sabe muito bem. Convença-o de que pode me ajudar a entrar e a sair da banheira, evitando que eu leve um tombo. Se tiver qualquer problema com ele, traga-o aqui e descarregarei minha raiva. Se mostrar tristeza, farei com que esfregue minhas costas — Joan riu. — Portanto, ponhamos batom. Depois vá procurá-lo.

 

(Joan, patrãozinha, viu o que eu queria dizer com relação à gola alta? Viu o que ela fez por nós?) (Sei que me sinto um tanto mais coberto.

Mas não muito mais. Eunice, este soutien é pecaminoso) (Oh, bolas, nem mesmo é transparente, apenas translúcido. Mas é por isso que esta ca-misola é mais sexy que a cretense. Os homens sempre confundem pele nua com sexualidade. Uma confusão tipicamente masculina) (Talvez seja, mas nunca, em minha longa vida, queixei-me de pele nua) (Não quero discutir, Joan, mas vou escolher nossas roupas até que você comece a pensar como mulher. Porém eu tinha uma razão especial para escolher a camisola que é — aparentemente — mais recatada. Será a que estaremos vestindo quando Jake chegar)

(Eunice, Jake provavelmente foi para casa. Andou enfrentando o diabo)

(Claro que esteve e você acha que eu estou falando de quê? Jake ainda está aqui. Não irá embora sem dar até logo)

(Oh, que bobagem, Jake não é tão formal)

(Patrão, Jake é um cavalheiro dos pés à cabeça. Pode sentir-se à vontade para não ser formal com seu velho amigo Johann Smith... mas não com uma dama. «Johann» é uma coisa, mas «Joan Eunice» é outra)

(Mas ele sabe que sou Johann)

(É? Então por que beijou nossa mão? Joan, vou ter de vigiá-la o tempo todo. Você não entende nada de homens)

(Passei quase um século sendo um)

(Despropositado. Silêncio, ele pode chegar de um momento para o outro. Tenho de falar claro. Joan, durante os últimos meses, antes de me matarem, fui amante dele)

(Que tal o bode velho?)

(É só o que tem a dizer?)

(Eunice, você pensa que eu não sei nada sobre os homens. Talvez seja verdade, em certo sentido. Mas posso dar-lhe lições sobre os homens — de dentro — da mesma maneira que você pode me ensinar sobre eles, de fora. Jake é duro. Porém o vi desmoronar duas vezes por sua causa. Era compreensível que sua morte o houvesse perturbado um tanto. Era também compreensível o esforço feito por ele, para ajudar na farsa de não me deixar saber que eu havia herdado seu corpo encantador. No entanto, você não passava da moça que ele conhecia do escritório, que o ajudou nos meus negócios. Ninguém que ele conhecesse intimamente. Porém, aquele velho advogado durão desmaiou duas vezes. Por sua causa. Portanto, deve tê-la conhecido muito melhor que alguém pudesse imaginar. Como? É onde? Só há uma resposta: na cama)

(Não foi sempre na cama, seu velho sujo com nome de mulher. Na cama, certamente, mas também em muitos outros lugares. No carro dele. No seu carro. Inúmeras vezes nesta casa...)

(Raios a partam! Então todos os meus criados sabem)

(Duvido que sequer suspeitem. Usávamos seu escritório para trabalhar — e trabalhávamos — e Cunningham não permitia que nos interrompessem, como fazia com relação a mim e ao senhor. Fez-me uma pergunta grosseira e vai ter uma resposta à altura. O bode velho era ótimo. E com vigor para se aproveitar de todas as oportunidades. Raramente perdemos um dia até a hora em que fui morta)

(Um par de salafrários. Bem, «Tiro o chapéu para o duque»)

(Está com ciúme, patrão?)

(Não, com inveja. Eu não teria podido desde o primeiro dia em que pus os olhos em você. Era impossível. E agora é ainda mais impossível. Só inveja. O bode velho)

(Não é impossível, Joan)

(Hem?)

(Fiquei chocada quando vi Jake. Minha morte deve tê-lo ferido terrivelmente. Sei disso porque ele me amava. Mas podemos tirá-lo dessa situação, Joan, você e eu... só que desta vez não usaremos seu escritório)

(O quê? Ora, isso é incesto!)

(Não seja ridículo, querido. Não sou parente de Jake e acho que você também não é)

(Quero dizer que isso parece incesto. Jake? Jake? Eunice, quando admiti que considerava a possibilidade de ser — finalmente — ativamente mulher, não estava pensando em jake)

(Eu estava)

(Então tire isso da cabeça! Esqueça. Com o Dr. Hedrick, se quiser — pelo menos tentarei colaborar — depois de ter me habituado a ser mulher. Joe, seu antigo marido. Devo isso a você...)

(Joe não)

(Por que não? Você era muito entusiasta dele a esse respeito e sempre achei que você pensava bem dele em outras coisas. Não estou lhe pressionando. Raios, não posso pensar em sexo com qualquer homem a não ser abstratamente. Ainda não estou recondicionado. Mas já decidi acompanhar você em sua necessidade por Joe)

(Patrão, não posso. Não com Joe. Por que foi meu marido. Para ele eu seria uma zumbi. Uma morta-viva. Duvido que quisesse nos tocar... e se o fizesse, eu ficaria terrivelmente tentada a contar-lhe. Contar-lhe que ainda estou aqui. Não posso. Sei que não posso)

(E eu não posso fazer com Jake. Você sabe que com ele também é a mesma coisa. Sou um morto-vivo)

(Não exatamente igual. Claro que ele sabe que somos uma miscelânea: seu cérebro e meu corpo. Mas Jake gosta de nós. De você há muito mais tempo que de mim. Enquanto que Joe nem o conhece)

(Jake gosta de mim? Eunice, sua cabeça não regula)

(Impossível, querido, nunca tive cabeça. Por que você acha que Jake agüentava seu mau humor? Não era por dinheiro. Ele é rico, muito embora não tanto quanto você. Por que continua aqui? Por mim? Ele teria evitado me ver — ver este corpo — se fosse possível. Jake sofre com isso. Continua aqui porque você precisa dele. Olhe, querida — falo com Joan — Joan, quem está lhe falando é Eunice, sua irmã mais velha. Ouça-a. Seja boazinha com Jake. Seja amável com ele. E deixe as coisas correrem. Não estou lhe pedindo que faça algo que não queira... pelo amor de Deus, não! Jake descobriria logo se você se forçasse. Ele não é bobo. Seja apenas amável. Não seja Johann, mas sim Joan. Seja tímida e feminina e deixe que ele cuide de você)

(Bem... vou tentar. Jake vai pensar que fiquei maluco)

(Vai pensar que você é uma moça encantadora. É possível que queira ser seu pai, assim como foi para mim. Se acontecer, seremos boazinhas e deixaremos que ele nos embale)

Suspirou.

(Tentarei, Eunice, mas não sei. Jake!)

(Assim é que eu gosto, Joan. Seja indefesa e feminina. Jake fará o resto)

 

O Dr. Garcia entrou apressado e foi direto até a cama.

— Que história é essa de banho de banheira? Pensei ter deixado claro que não apressaríamos as coisas.

(Não deixe ele discutir, Joan!) (Veja como dou-lhe uma rasteira!)

— Oh! Doutor, o senhor me assustou tanto!

— Hem? Como?

— Entrando assim, sem mais nem menos. É bonito isso? Garcia ficou sem jeito.

— Miss Smith, estou aqui há mais de um ano e sempre entrei neste quarto sem cerimônia. Devo pensar que a senhora considera isso uma ofensa? Depois de todo esse tempo?

— Não se trata disso, doutor. Quando veio aqui pela primeira vez, foi para atender a um velho desamparado. Então passou a ajudar o Dr. Hedrick no caso de uma paciente que esteve imobilizada e inconsciente a maior parte do tempo. Fico grata pela assistência que deu a essa paciente, pois eu sou ela. Mas as coisas mudam. Agora estou tendo de aprender a ser mulher e, se possível, uma dama. Não é fácil. Não quer me ajudar, dando-me o mesmo tratamento cortês que dá a outras damas?

Garcia ficou ligeiramente corado.

— Um médico não tem tempo para formalidades.

(Dê-lhe mais, queridinha! Ele ainda está se mexendo) (Vou dar!)

— Doutor, se eu estivesse em perigo, aceitaria que o senhor irrompesse aqui sem avisar. Dependo do senhor. Mas entrou para me dizer que não posso tomar banho... não se trata de uma emergência. Não estou pedindo muito: apenas que pense neste quarto não como no de um velho doente, mas como o boudoir de uma dama. Para me ajudar. Pode?

O Dr. Garcia respondeu, formalizado:

— Muito bem, Miss Smith. Não esquecerei.

— Obrigado, senhor. A propósito, meu nome agora é Joan Smith. Não posso continuar sendo Johann. O senhor pode me chamar de Miss Joan, para ajudar a me habituar. Ou apenas Joan, pois não quero ser desnecessariamente formal com meu médico. Garanto que não quero. Apenas esse pequeno toque de formalidade que preciso como treino de comportamento do meu novo eu. Quer me chamar de Joan?

Ele sorriu de má vontade.

— Está bem... Joan.

Ela atirou-lhe o sorriso você-é-um-homem-maravilhoso de Eunice.

— Assim é melhor. E o senhor é sempre bem-vindo, doutor, não só profissionalmente como socialmente. O que espero que aconteça. Basta que a enfermeira diga que estou em condições de receber um cavalheiro. Coisas. O senhor sabe. — Apoiou-se num cotovelo e olhou para ele, plenamente consciente da sua «modesta» camisola. — Como batom. — Molhou os lábios. — É estranho ter de usá-lo. Ele está bem? É o melhor tom?

— A senhora está encantadora!

(Risque e apague... substitua «machona» por «prostituta». Você é uma puta nata, queridinho. Onde está seu soco?) (Pare, irmã puta, ainda não acabei de apertá-lo)

— Ora, muito obrigado, senhor! Agora me diga por que não posso tomar um banho de banheira espumante e quente, para me sentir também encantadora. Acatarei suas ordens, doutor, mas gostaria de entendê-las. Pode me explicar sem usar um monte de palavras médicas enormes?

— Bem... Joan, minha objeção é a banheira. As pessoas sempre quebram pernas ou fraturam crânios escorregando em banheiras. E a senhora ainda não aprendeu a ficar de pé, quanto mais andar.

— É verdade. — Joan afastou o lençol, passou as pernas para fora da cama, sentou-se... controlou uma ligeira tonteira e sorriu. — Vamos ver se eu posso. Quer me ajudar, doutor? Quem sabe me abraçando?

— Deite-se!

— Por quê? Estou me sentindo bem. Há um banquinho por aí? Meus pés não alcançam o chão.

— Miss Sm... Joan, que diabo, juro que vou largar esta profissão e comprar um ferro-velho! Deite-se enquanto chamo uma enfermeira. Então ficaremos um de cada lado da senhora e a deixaremos ficar em pé. Quando a senhora vir como está fraca e tonta, espero que queira voltar para a cama e ficar lá.

— Sim, doutor — disse ela humildemente e deitou-se. Winnie atendeu ao chamado.

— Tocou, doutor?

— Vamos tentar um passeio. Ajude-me a levantar a paciente. Fique do lado esquerdo.

— Sim, senhor.

Bem apoiada, Joan saiu da cama e ficou em pé. O quarto oscilou um pouco, mas Joan apoiou-se em Winnie, enquanto deixava o braço roçar levemente o ombro do médico.

— Como está se sentindo?

— Otimamente. Deveria haver música. Tenho a sensação de estar dançando.

— Sinta como se sentir, não tente dançar. Agora ande devagar e a passos curtos.

Andaram para a porta, enquanto Joan roçava satisfeita os pés descalços no tapete espesso. Andar era um prazer. Tudo era um prazer!

(Eunice, meu amor, você percebe quanto este corpo é perfeito?) (Está fora de forma. Mas com duas semanas de tratamento intenso, ficará em condições) (Oh, pílulas, nunca senti este bem-estar nem quando criança) (O senhor verá, patrão. Sentaremos no chão com as pernas totalmente abertas, com o cabelo varrendo o tapete, ficaremos assim durante dez inspirações... voltaremos facilmente à posição inicial e a fundiremos numa de Lótus completa sem nenhum movimento apressado. Espere para ver) (Acha que temos condições de fazer isso? Sou desajeitado desde criança) (Nada de dúvidas. O corpo lembra, querido)

Pararam.

— Agora dê meia volta devagar e caminhe para a cama.

— Doutor? Já que estou de pé, por que não me leva diretamente para aquela água e sabão?

— Não está fatigada?

— Nem um pingo. Nem me encostei no senhor, não foi? Pensei que havia me prometido um banho verdadeiro assim que eu pudesse andar, Preciso também ficar sobre as mãos? Afaste-se e tentarei.

Afastou o braço dele. O médico imediatamente passou o braço em torno da cintura dela.

— Nada de bobagens! Enfermeira, aquela banheira tem corrimões. Faça-a usá-los.

— Pois, não, doutor.

— Se a paciente cair, é melhor que a senhora fuja para o Canadá. Procure o caminho mais curto para me seguir. Se for bastante rápida.

— Winnie não deixará que eu caia — disse Joan calorosamente, enquanto, também calorosamente, apoiava-se no braço dele. — Mas se está preocupado, pode vir ajudar. Esfregue minhas costas.

Garcia bufou.

— Há dez minutos a senhora me expulsou apenas porque entrei em seu quarto sem avisar.

— E se fizer novamente, eu tornarei a expulsá-lo. Aquela era uma entrada social, esta é profissional. Doutor, tenho toda a certeza de que o senhor viu meu corpo novo — profissionalmente — inúmeras vezes. Mais uma não me fará mal.

Requebrou-se levemente no braço dele.

— Esfregar as costas de uma paciente não faz parte das minhas obrigações profissionais. Água morna, enfermeira, e não a deixe ficar muito tempo.

Uma vez dentro do banheiro, com a porta fechada, Joan passou os braços em torno da enfermeira e deu uma gargalhada.

— Doçura, viu a cara dele? Winnie balançou a cabeça.

— Joan, você não precisa que eu lhe ensine a ser mulher. Já sabe muito bem.

— Oh, mas preciso de fato de você, querida. Por que não sei. Apenas usei com o médico coisas que usaram para me confundir, quando eu tinha a idade dele... e era homem. — Deu outra risada. — Durante um momento, pensei que ele ia aceitar o desafio e esfregar minhas costas. (E eu pensei que você ia deitá-lo ali mesmo no tapete) (Oh, cale a boca, Eunice. Nem sequer belisquei-o) — Joan abriu os braços, afastou-se de Winnie e começou a tirar a camisola pela cabeça. — Agora um banho. Que maravilha!

— Joan, por favor, agarre-se em alguma coisa. O doutor pode aparecer a qualquer instante.

— Oh, pô, ele não ousaria. Nunca mais — Joan virou-se e correu o ferrolho. — Agora ele não pode, portanto não se afobe.

— Não precisa trancar a porta. Os banheiros dos hospitais nunca são trancados.

— Isto aqui não é hospital e trancarei meu banheiro quando quiser. Se o Dr. Garcia descobrir que o tranquei e só tem um jeito para isso — tentar entrar — e ousar denunciar, botarei a boca no mundo chamando Jake Salomon e então haverá uma mudança de médicos. Querida Winnie, não fui um velho mal-humorado todos esses anos sem aprender como fazer o que quero. Apenas tenho de usar agora armas diferentes. Não quer tirar esse uniforme e pendurá-lo na sala de vestir? Não só posso molhar você mas este lado vai ficar cheio de vapor.

— Não, Joan... banho morno. Você o ouviu.

— Ouvi e vai ser com a temperatura que eu gosto. Isso é outra coisa que ele nunca saberá. Você sabe que estou saltitante como uma rã e que não sou a gatinha fraca que ele pensa. Um banho quente não me fará mal. Se você quer ter seu uniforme encharcado, é seu problema. Melhor ainda: entre na banheira comigo. Ela é ampla e, pequena como sou agora, posso escorregar e me afogar, se ficar sozinha.

— Não devo — respondeu Winnie calmamente.

— Não é um pensamento apavorante? Paciente desmaia na banheira e afoga-se antes que a enfermeira possa salvá-la. Não dá uma boa manchete, mas pode aparecer entre as notícias das últimas páginas.

— Joan! Você está me encabulando. (Você está mesmo, patrão. Apague e corrija novamente: puta e machona) (Disparate, Eunice. É uma banheira com espaço bastante para nós três)

Winnie mordeu o lábio e lentamente retirou o avental. Joan virou-se e começou a encher a banheira e a regular a temperatura, evitando olhar para ela.

 

Uma hora mais tarde, Joan estava sentada numa espreguiçadeira, com os pés num banquinho. Vestira um roupão transparente sobre a camisola de dormir e estava usando chinelos de salto alto. O cabelo estava penteado, o rosto fora cuidadosamente maquilado e se perfumara prodigamente com uma água-de-colônia rotulada como «Névoa de Abril», mas que merecia o título de «Ataque Criminoso». As unhas dos pés foram cortadas, não como Eunice gostaria, porém o suficiente para o momento. Mas, acima de tudo, Eunice estava gozando a euforia de uma mulher completamente lavada, perfumada, empoada e vestida atraentemente.

As camas haviam sido trocadas, o aposento não tinha mais o cheiro de quarto de doente e Joan descobriu que sua sensação de bem-estar aumentara muito. A escrivaninha de Eunice fora recolocada no lugar habitual, no outro lado do grande piano, pois Joan soubera que ele ficava habitualmente no estúdio de Johann e dissera a Cunningham para levá-lo para lá. Não combinava com o ambiente... mas combinava com a noção que Joan tinha de como a sala devia ser. Era doméstico e pertencia a ele.

Joan estava só. Winnie saíra para convidar Mr. Salomon a jantar com sua anfitriã-tutelada. Deu um suspiro de satisfação.

(Sentindo-se melhor, querida? Eu estou) (Céus, e como! Mas por que perdeu a coragem?) (Oh, bolas, Eunice! Nunca pretendi seduzir Winnie) (Mentiroso. Hipócrita. Velho sujo. Ela estava no papo. Depois você se avacalhou. Conheci homens como você, queridinho: preparam um bom plano e perdem a coragem na hora de agir. Casanovas medrosos. Qual!)

(Besteira! Não se mata patos na água. Se eu desse um passo mesmo para ela... não estou dizendo que eu quisesse, mas confesso que ela é uma coisinha apetitosa...) (Se é!) (Oh, cale a boca! Se eu desse aquele passo, teria oferecido a ela uma oportunidade de divertimento: não agarrá-la quando não queria gritar) («Oportunidade de divertimento» meu rabo cansado. Ouça sua irmã mais velha, Joan: sexo não é divertimento, é uma forma de ser feliz. Não há nada mais exasperante para uma mulher que estar pronta a dar... e então a coisa ser adiada. Você um dia verá. Irá chorar na cama e odiará todos os homens vivos. Até o fato se repetir, quero dizer)

(Eunice? Você nunca sofreu essa espécie de contratempo, não é? Não acredito) (Acontece com todas as mulheres, Joan. Os homens são covardes. Se nós, mulheres, não fôssemos tão dispostas, se não tivéssemos simplesmente os puxado pela mão, a raça já teria desaparecido)

(Hum... Você sabe mais sobre as mulheres que eu...) (Muito mais!) (...portanto falemos sobre peculiaridades. Agora está claro e eu sei que somos bonitas. Verifiquei isso no espelho grande e você concordou. Mas não é o tipo de coisa que você costuma fazer. Não me refiro à pintura do corpo, pois agora, seja como for, não seria apropriada. Mas o que vai ser preciso fazer para ele? Apenas a tal «afinação»? Exercício?)

(Mais que isso, patrão... embora o exercício seja essencial. Está se referindo a um trabalho profissional?) (Sim. Completo) (Bem, costumo fazer eu mesma... mas adquiri muita prática, além da ajuda especializada de Joe. Porém digamos que o senhor quer o melhor e não se importa com os gastos...) (Isso mesmo! Que é o dinheiro? Não posso me livrar dele) (Muito bem. Digamos que contrate Helena Rubinstein, Limitada, ou algum outro importante instituto de beleza. Digamos que lhe telefone e peça que mandem uma equipe completa. Virão um diretor de arte — homem, mas poderá não ser tão homem assim, que já viu mais corpos de mulheres nus que um agente funerário — que não a tocará: está muito no alto. É um criador. E será o chefe. Só olhará para o senhor depois que muitos outros o tenham preparado. Hum, a moça que lhe banhará, a massagista, a manicura, a pedicura, a cabeleireira, a depiladora, a perfumista, um grupo para o rosto e a pele de pelo menos quatro, um costureiro, especialistas em realçar e acentuar e assistentes para todos eles se quiser que o trabalho seja feito em menos de um dia. Se estabelecer um prazo, o preço será alto...   se não, o preço será alto)

(Repita isso)

(É como os impostos. Qualquer que seja o procedimento, eles serão altos. Patrão, não precisamos disso. Com o que eu sei, com a carroçaria que temos para trabalhar e mais uma boa camareira, o senhor pode ser tão glamurosa quanto quiser. Não sei onde será possível encontrar um pintor tão criativo quanto Joe. Todavia há alguns bons à disposição. Podemos bater o mercado e achar um)

(Eunice, eu não sabia que ser mulher era tão complicado)

(Acalme-se, patrão. Ser mulher é tão fácil quanto ser homem... e muito mais divertido. Vou começar a ensiná-la a ser uma mulher do século vinte e um... e gostaria muito que me ensinasse como era ser homem do século vinte e fecharemos essa idiota «geração aberta». Vamos nos compreender tão bem quanto nos amamos)

(Minha amada)

(Também acho que você é muito bacana, velho bastardo e resmungão. Com seu cérebro e meu corpo, somos um conjunto muito bom. Aprenderemos) (Estou certo que sim, querida) (Aprenderemos. A primeira coisa de que precisamos é de uma boa camareira, tão raras quanto baleias no Kansas. Provavelmente, teremos que treinar uma. E perdê-la assim que ela valha algo) (Eunice, precisamos de uma camareira? Você costumava fazer sozinha) (De fato. È cuidava da casa para Joe, além de ser sua secretária e trabalhava quantas horas o senhor quisesse. Mas o senhor não está habituado a isso, patrão. O senhor tinha um camareiro) (É mesmo. Mas eu era muito velho e não tinha tempo a perder com essas futilidades. Eunice, uma das piores coisas de ficar velho é que o dia fica curto enquanto que as necessidades de uma dilatação de tempo aumentam Eu não queria um camareiro. Fui forçado a tê-lo. Também não era agradável ficar dependente de uma secretária... até que você chegou)

(Querido patrão. Joan, vamos precisar de uma camareira. Mas não de uma secretária até que você volte aos negócios...) (Não volto!) (Veremos. Talvez precise voltar. Mas talvez não precise de uma secretária, a menos que o tempo fique curto. Posso dar um jeito. E obrigado por ter trazido Betsy. Só de vê-la já me sinto em casa. Minha escrivaninha. Foi o apelido que botei nela)

(Betsy, hem? Sempre pensei nela como «o polvo»)

(Ora, que maldade chamar assim uma máquina respeitável e bem comportada! Patrão, não tenho certeza de estar falando com o senhor. Que bom que Betsy não esteja ligada. Se ela ouvisse isso, poderia ficar ofendida)

(Eunice, deixe de bobagens. Por que Jake estará demorando?)

(Provavelmente cortando as unhas do pés. Lição número dois de como ser mulher: os homens quase sempre estão atrasados, mas você nunca, nunca,   nunca   mencione   isso...   porque   eles   são   muitos   orgulhosos   da sua pontualidade. Patrão, o senhor não prometeu realmente a Winnie ficar nesta cadeira... quando ela lhe deu ordens estritas) (Claro que não. Porque podia não me convir. E não me convém. Quero experimentar o oitenta e oito.* Eunice, aposto sete a dois como não foi mantido afinado, apesar de ter dado ordem a Cunningham, há menos de cinco anos, a respeito dos dois pianos. Deste menor e do grande de concerto, lá de baixo. Vamos ver)

 

*Piano   (N.   do T.).

 

Levantou-se, não reparou que os saltos altos não a incomodavam, caminhou graciosamente para o pequeno piano, sentou-se, abriu-o... lembrou dos primeiros compassos da Dança Eslava n9 10, de Dvorak, começou a tocar...

...e concluiu com um acorde dissonante.

— Que inferno!

Olhou para o teclado, bateu com o indicador direito no dó natural que soou corretamente... então tocou o dó uma oitava abaixo. Experimentou várias vezes com os dois dedos e convenceu-se de que a culpa não era do piano. Porém tocar um simples acorde requer conhecimento do teclado e então, com a ajuda do olhar, colocou os dedos cuidadosamente.

Imediatamente começou a tocar uma lenta, irregular e imperfeita versão do «Bife», olhando o teclado e controlando as mãos tão fortemente, que elas tremiam. Parou antes de chegar à irreconhecível coda e bateu nas teclas com ambas as mãos.

(Lá se vão dez anos de aulas de piano!) (O senhor esperava o quê, patrão? Nunca fui muito boa nem com um violão) (Bem, fico contente por mamãe não ouvir isto... ela sempre quis que eu fosse concertista. Eunice, por que, diabo, não estudou piano em criança?) (Porque estava muito ocupada estudando garotos! Um tema muito mais compensador. Joan, se quiser tocar novamente piano, posso aprender. Mas teremos de começar quase do princípio. Está na sua cabeça, eu sei, posso até ouvir. Mas trazer de lá para nossas mãos — minhas mãos, querido — vai ser um trabalho mais complicado que afinar nossos quadris)

(Não tem importância, não tem mesmo) Levantou-se do banco do piano. (Patrão, um momento. Já que estamos aqui vamos aquecer Betsy e fazer-lhe um exame) (Hem? Não entendo nada de estenomesas. Será pior que com o piano)   (Veremos)

Aproximou-se e sentou-se na estenomesa.

(Bem, Eunice? Como o Egresso vai fazer?) (Calma, patrão. O corpo lembra. Diga apenas: «Ditado, Eunice» e depois fale alguma coisa conhecida. Pense no que vai ditar)

(Está bem)

— Ditado, Eunice. «Há oitenta e sete anos, nossos antepassados ergueram neste continente uma nova nação, concebida na liberdade e dedicada ao projeto.. .

Suas mãos tocaram destramente os interruptores, giraram o microfone para que pegasse o início, determinaram à máquina que ouvisse e esperasse enquanto fazia a pontuação, usou apagar e corrigir quando o aparelho escreveu «ergeram» em vez de «ergueram»...   tudo sem pressa.

Parou e examinou o resultado.

(Macacos me mordam! Como, Eunice?) (Não pergunte, querido... ou poderemos cair no dilema da centopéia. Mas Betsy está ronronando como uma gatinha. Ficou feliz com a minha volta) (Ora, eu também. Ei, Eunice, essa máquina — quero dizer, Betsy — tem acesso ao anexo da Biblioteca Congressional de St. Louis, não tem?... Não tem?) (Certamente. Está conectada mais especificamente com a Rede Interbibliotecas, embora seja possível restringir uma pergunta a determinada biblioteca)

(É melhor inquirir só uma. Quero saber tudo o que há sobre a memória e como esta funciona) (Perfeito. Também me interessa. Acho que minha memória está confusa. Não posso ter certeza. Mas numa pesquisa de literatura é melhor deixar Betsy agir através de pré-programas: pedido de referências, seguido de resumos, seguido de trechos selecionados dos resumos... de outro modo, numa pergunta de caráter geral como essa, milhares de livros serão transmitidos e a pobre Betsy terá de engoli-los todos até ficar com prisão de ventre. Parará e não fará nada até sua memória temporária ser apagada)

(Você sabe como, eu não. Hum, inclua uma proibição de não amolar com teorias behavioristas. Sei tudo sobre Pavlov e seus robôs e gosto de saber, especialmente, que cada vez que um cão baba, um psicólogo behaviorista tem de tocar uma campainha)

(Está bem. Patrão? Podemos gastar um dinheirinho?) (Gaste, compre as pirâmides. Você quer o quê, amada?) (Ponhamos um investigador de primeira classe atrás de mim. Atrás de Eunice Branca, quero dizer... o «mim» que eu era) (Por que, amada? Se você andou vendendo segredos de Estado, está agora fora do alcance governamental) (Porque sim. Talvez preencha alguns dos buracos que existem na minha memória... e poderá trazer à tona algo que ouviu de mim desde que voltei, mas que não consta do relatório de segurança que mandou inicialmente fazer a meu respeito. Então poderá saber, querido... e deixar de pensar que não passo de uma invenção da sua imaginação)

(Eunice, se estou maluco, a única coisa que me preocupa é que aquele danado curandeiro me ponha bom. Porque se eu me curar, você pode ir embora)

(É muito gentil da sua parte, patrão. Mas não irei embora, prometo)

(E mesmo que eu esteja doido, isso só faz me ajustar melhor ao mundo atual. Eunice, você não lembra nada do período entre ter sido morta e acordado aqui?)

A voz interior ficou um momento calada.

(Realmente não. Tive sonhos e acho que o senhor estava neles. Mas houve um que não parecia sonho. Era tão real como este quarto. Porém se lhe contar, o senhor pensará que estou louca) (Se estiver, não diminui seu charme, querida) (Está bem, mas não ria. Joan, enquanto estive fora, fiquei neste... lugar. Havia um homem muito velho, com uma longa barba branca. Tinha um enorme livro. Examinou o livro, depois olhou-me e disse: «Filha, você foi muito levada, mas não demais. Por isso vou lhe dar outra oportunidade»)

(Foi um sonho, Eunice. Antropomorfismo saído diretamente da sua infância na escola dominical de religião) (Talvez, patrão. Mas estou aqui e tive uma segunda chance)

(Sim, mas não foi Deus quem lhe deu. Minha Eunice, não acredito em Deus nem no Diabo)

(Bem... o senhor não esteve morto e eu sim. Realmente, não sei em que acredito. Acho que não fiquei morta muito tempo para descobrir. Mas ficará aborrecido se rezarmos de vez em quando?)

(Jesus H. Cristo!)

(Pare com isso, Joan! Ou usarei cada uma daquelas palavras que você acha não serem próprias de uma dama. Não estou pedindo muito)

(Sou seu escravo. Está bem. Se for numa igreja bonita, com boa música e o sermão não durar mais de dez minutos) (Oh, não pensei em Igreja. Não posso ficar dentro de uma. Estão cheias de vibrações negativas. Refiro-me a rezarmos sozinhas, Joan. Lhe ensinarei)

(Oh. Muito bem. Já?)

(Não. Quero organizar a investigação. Pense em outra coisa. Não quero interferências difusas... Pense sobre Winnie e toda a espécie de esfregação com espuma de sabão) (Um pensamento piedoso. Muito melhor que rezar) (Velho sujo. Como pode saber... aposto que nunca rezou na vida) (Oh, rezei, sim, queridíssima... mas Deus tinha ido pescar) (Então pense em Winnie)

Eunice trabalhou durante vários minutos. Depois deu um tapinha afetuoso na máquina e desligou-a.

(Bem, conseguiu?) (Conseguiu o quê?) (Pensar em Winnie. Devasso) (Aproveitei a paz e a calma pouco comuns para contemplar as maravilhas do universo) (E depois?) (Pensei em Winnie) (Sabia que ia pensar. Eu estava certa a seu respeito. Joan, para uma moça que é, pelo menos de uma certa maneira, virgem, você tem uma imaginação invulgarmente profunda e viva) (Ora bolas, garanto que você diz isso a todas) (É uma verdade nua e crua, doçura. Joan... com sua imaginação, eu mal posso esperar por você para começarmos nossa carreira de «ativamente femininas». Em todas as minhas lutas romanas, nunca tive um homem — ou uma mulher — que me agarrasse da maneira que você está imaginando) (Oh. Aprendi com uma respeitável mulher casada, quando eu era jovem. Uma dama muito encantadora) (Hummm! talvez eu tivesse nascido muito tarde para uma verdadeira ação) (Foi isso que tentei lhe dizer. Organizou a investigação?) (Certamente, patrão, alguma vez falhei? Voltemos para a nossa cadeira. Nossas costas estão doendo)

Joan Eunice refez os dez metros de volta até a cadeira sem se lembrar que havia tirado as sandálias para manejar mais facilmente os comandos inferiores da estenomesa. Seus pés descalços deliciaram-se com o tapete. Só reparou nisso quando sentou na enorme espreguiçadeira e dobrou as pernas na complicada, elegante e surpreendentemente confortável posição de Lotus. Mas achou que não valia a pena ir buscá-las.

A campainha da porta zumbiu.

— Sou eu, Winnie.

— Entre, querida.

A enfermeira entrou.

— Mr. Salomon pediu-me que lhe dissesse que estaria aqui para vê-la dentro de alguns minutos. Mas que não pode ficar para jantar.

— Ele ficará. Aproxime-se e me dê um beijo. Você disse o que a Cunningham?

— Jantar para dois aqui, como mandou... para ser servido quando você tocasse. Mas Mr. Salomon parece bastante decidido a ir embora.

— Continuo dizendo que ele ficará. Todavia se não ficar, você virá jantar comigo. Quer apanhar minhas sandálias? Estão lá no chão, por trás do piano.

A enfermeira foi, apanhou as sandálias, ficou em pé junto de Joan Eunice e suspirou.

— Joan, não sei o que fazer com você. — Tornou a ser mazinha. "or que não me chamou?

— Não zangue comigo, querida. Venha, sente no banquinho, incline-se sobre os meus joelhos e fale. Isso. Agora me diga: por acaso você foi camareira de alguma dama antes de cursar enfermagem?

— Não. Por quê?

— Você trabalhou muito bem, cuidando de mim no banho e me fazendo bonita. Ora, foi só um pensamento. Não suponho que uma enfermeira — uma profissional — estudasse a possibilidade de trabalhar como camareira. Apesar do salário alto. Mas o Dr. Garcia continua a insistir para que eu tenha uma enfermeira depois que ele for embora. Não preciso de enfermeira e você sabe disso. Mas o querido doutor não cede. O que eu preciso é de camareira. Atualmente não tenho condições de me vestir... as roupas femininas são muito diferentes. Para não falar sobre minha ignorância da maquilagem. Ou de comprar roupas femininas. Quanto você ganha agora, Winnie?

A enfermeira disse.

— Minha mãe do céu! Não espanta que eles vivam se lamentando da falta de enfermeiras. Por esse salário não consigo nem um vigia. Que acha de permanecer como minha enfermeira — mas realmente tendo as atribuições de uma camareira, para fazer coisas que não sei — por um salário três vezes maior? Se quiser recebendo em dinheiro para não precisar declarar?

A ruiva ficou pensativa.

— Como quer que me vista, Joan?

— Como você quiser. Seu uniforme branco de enfermeira, se preferir... desde que continue a ser minha enfermeira aos olhos do Dr. Garcia. Ou como desejar. Há um quarto passando aquela porta, que era onde meu camareiro dormia. Com um lindo banheiro... e outro quarto mais além, que podemos redecorar como sua sala de estar. Reformaremos as três peças de acordo com seu gosto. Será seu apartamento particular.

(Patrão, como era aquilo de não matar patos dentro d'água?) (Agüente a mão, Eunice. Se ela morder a isca, é melhor que contratar uma ignorante e ter de ensiná-la. E ainda por cima ter as jóias roubadas por ela no prazo regulamentar) (Oh, vejo as vantagens. Mas coloque Winnie no quarto ao lado sem fechadura e ela estará na cama com o senhor antes de poder pronunciar a palavra «Safo». O senhor pode não querer homens na sua vida... mas eu quero) (Oh, que bobagem! Ela já está pensando no dinheiro. Se pegar o emprego, vai ficar mais retraída... e voltará a nos chamar de «Miss»)

— Miss Joan? Será realmente meu próprio apartamento? Poderei receber visitas?

— Claro, querida. Particular. Oh, o pessoal de Cunningham fará a limpeza e tudo mais: servi-la, se quiser. Café da manhã, etc. Ou nunca entrarão lá se assim desejar.

— Soa divinamente. Divido um quarto com duas outras moças... a um preço horrível porque fica num bloco. É um lugar seguro... mas nunca consegui a menor privacidade.

— Winnie. Olhe para mim, querida, esqueça isso. Acho que a cama que existe lá é de solteiro. Quer que ela seja substituída por uma enorme cama de casal?

A moça ficou ruborizada.

— Hum, será maravilhoso.

— Então pare de corar. Não quero saber se receberá visitas, a menos que me conte. Aquela porta é à prova de som. Claro, as visitas têm de se identificar e serem examinadas para ver se carregam armas, exatamente como acontece com as visitas de um bloco... mas isso quer apenas dizer que, na primeira vez, você precisa se responsabilizar pela visita junto ao chefe dos meus guardas. Contudo não tomarei conhecimento a

não ser que você prefira me contar. Todo o pessoal interno recebe visitas. Mas a segurança é problema do meu chefe dos guardas e não meu.

— E ele terá de mostrar sua CL?

— Ainda assim você terá de se responsabilizar por ele diante do chefe O'Neil mas... pare a contagem regressiva. Você quer dizer que ele preferia não mostrar sua carteira de identidade? É casado ou coisa que o valha?

Winnie tornou a corar e não respondeu. Joan Eunice continuou:

— Não é da conta de ninguém, querida. Esta é uma casa particular e não uma repartição do governo. Você se responsabiliza por ele e é o bastante. O Chefe O'Neil não confia em C.Is. Freqüentemente são falsificadas. Mas tem uma memória fotográfica. Vai ficar comigo? Como enfermeira residente, dama de companhia, secretária social ou como queira chamar.

— Camareira. Se devo ser sua criada, Miss Joan, é melhor que seus empregados saibam e não especulem. Me vestirei como sua criada. Que espécie de uniforme? O tradicional? O Acapulco? Ou um meio-termo?

— Oh, certamente não o tradicional. Você tem pernas muito bonitas. Completamente Acapulco.

Winnie ficou satisfeita.

— Posso usar um completo. A gente fica cansada destes aventais brancos.

(Joan! Diz-lhe para não usar um Acapulco completo pintado. É ruim para a pele dela)

— Como queira, querida. Mas não use muita tinta. É ruim para a sua pele.

— Oh, eu sei! Sou uma ruiva autêntica, como provavelmente já notaram. Não posso nem tomar banho de sol. Estava pensando numa saia preta curta, de babados, com um aventalzinho de renda branca do tamanho de um pires, com uma touquinha petulante, de fita branca ou preta. Soutiens de pressão pretos. Transparentes ou opacos?

— Como você gostar mais, Winnie. Saltos altos?

— Hum, acho que translúcidos, como as barras dessa camisola de dormir. Certamente saltos altos ou perde-se o efeito... posso usar andas verdadeiras se ficar descalça a maior parte do tempo. Então, pintura apenas suficiente para acentuar. Há decalques encantadores, fáceis de aplicar em pouco tempo, e que saem com creme de limpeza. Borboletas, flores e outras coisas. Também muito baratos. Posso comprar tudo isso em lojinhas. Ficarei parecendo uma conveniente camareira, porém não levarei mais tempo me vestindo que levo para pôr avental e touca.

— Você ficará linda, querida. Vai vestir esse enxoval de camareira e desfilar para seu amigo?

Winnie tornou a ficar corada e então riu.

— Claro que vou! E também deixar que ele me dispa! (Viva!) (Eunice, você só pensa nisso) (Você devia saber, querido... a mente é sua)

 

Momentos depois, Winnie anunciou a presença de Mr. Salomon e saiu. O advogado caminhou para Joan com ar solene, pegou na mão que ela lhe estendeu e curvou-se.

— Como está se sentindo? — perguntou.

— Desapontada — respondeu Joan laconicamente. — Porque o meu mais velho e querido amigo não tem tempo para jantar comigo no meu primeiro dia em pé. Mas fisicamente sinto-me muito bem. Fraca mas isso ja era esperado.

— Tem certeza de que não está se cansando?

— Absoluta. Minha respiração e pulsação têm sido tomadas... se eu não estivesse bem, alguém me mandaria para a cama. Estou bem de fato, Jake... e só me fortalecerei se sair da cama. E você, amigo velho? Fiquei terrivelmente preocupado.

— Oh, estou bem. Só fiz papel ridículo, Johann.

— Você não fez papel ridículo... e tenho a certeza de que Eunice sabe disso, Jake. (Cuidado, patrão!) (Bico calado) Ela não poderia ter homenagem maior que essas lágrimas honestas — Joan sentiu que ia começar a chorar. Em vez de reprimi-las, deixou-as surgirem. — Ela era uma senhora amável e corajosa, Jake, e me comove muito mais do que posso dizer saber que você apreciava suas maravilhosas qualidades tanto quanto eu. Jake... sente-se por favor, mesmo que só por um momento. Preciso perguntar-lhe algo.

— Hum... está bem. Não posso demorar muito.

— Assovie chamando aquela cadeira e sente de frente para mim. Hum, um cálice de sherry? O doutor permitiu e descobri que estou precisando. Aquele sherry espanhol, seco como você gosta. Quer me dar a honra de servi-lo para nós dois?

Joan esperou até o advogado encher os cálices e sentar. Então ergueu o seu e, ao mesmo tempo, o peito, deixando que aqueles «fracos» pára-choques agissem por si mesmos.

— Um brinde, Jake... não, não se levante. É o mesmo brinde, Jake... sempre o mesmo de agora em diante, toda a vez em que bebermos juntos... mas silenciosamente. — Tomou um gole, pousou o cálice. — Jake...

— Sim... Johann?

— «Joan», por favor... não posso mais ser Johann. Jake, você sabe que eu nunca esperei sobreviver a essa operação? Era um... artifício. Um artifício legal.

— Sabia, Joha... Sim, Joan, eu sabia. Foi por isso que colaborei.

— Eu sabia. Foi o mais generoso gesto de amizade que me fizeram. Como os japoneses o denominam?... O amigo que ajuda, quando é necessário morrer. Não importa. Jake, olhe-me nos olhos. Você sabia, no fundo do seu coração, que eu teria preferido morrer... a viver em conseqüência desta incrível circunstância? Ficar vivo... à custa dela? Você sabe disso, Jake? Ou preciso ainda viver outra vida me odiando?

Salomon ergueu os olhos e encarou-a com firmeza.

— Sim... Joan. Sei disso. Você não teve culpa... não precisa se odiar por isso. Hum... Eunice também não quereria!

— Eu sei! Chore, querido Jake, não reprima suas lágrimas... veja, não estou contendo as minhas. Mas não se arrebente porque me acontecerá o mesmo. Jake, ambos teríamos morrido com satisfação para evitar que aquilo acontecesse. Tenho tanta certeza a seu respeito como espero que você tenha a meu. Acho que não teria agüentado se você não tivesse me tranqüilizado. Olhe para mim... um corpo encantador e jovem... porém tenho quase noventa e cinco anos e só um amigo vivo... você.

— Fará outros.

— Não sei se poderei. É uma grande tarefa, talvez grande demais. Sinto o que deve ter sentido o Judeu Errante: continuar vivo além do tempo preestabelecido. Seu nome é... Aha... qualquer coisa. Minha memória não é tão boa quanto é este corpo. Mas não posso esquecer uma pergunta que preciso fazer. Jake, há alguma possibilidade do marido da Eunice ter tido qualquer ligação com a morte dela? O prêmio que instituí, aquele dinheiro sangrento... não o terá tentado?

(Patrão, patrão, o senhor está delirando. Eu sei!) (Lamento, amada, lamento mais do que posso dizer. Mas preciso ter uma prova)

— Jake, terei instigado um crime? O advogado sacudiu a cabeça.

— Estou perplexo, mas é claro que você não conhece as circunstâncias. Você não instigou nada. Escrevi muito cuidadosamente aquela oferta. Se houvesse alguma culpa, também seria minha. Mas não houve nenhuma.

— Como sabe? (Patrão, desista, por favor!)

— Mr. Branca estava em Filadélfia visitando a mãe. (Viu, patrão?) Tive de procurá-lo para que me desse a confirmação após a morte. Demorou três dias, enquanto vocês esperavam, prontos para a operação. Joe Branca não sabia que ela estava morta. Foi o diabo achá-lo. Três dias longuíssimos.

— Três dias. Por que não me disseram?

— E desperdiçar a morte de Eunice? Está maluco? Você estava inconsciente. Garcia o pôs assim tão logo informei-o de que estava sendo preparado um corpo. Depois foi aquela pavorosa espera. Preciso que me perdoe, pois... Joan — não, Johann! — odiei você... por estar vivo enquanto ela estava morta. Mas prossegui... para o bem dela. Oh, superei a crise, era um ódio doentio. Sabia muito bem.

— Você me odeia agora?

— Hem? — Salomon olhou-a com tristeza. — Não. Você não é só um velho amigo, que foi sempre decente e honesto sob esse aspecto rude... cujas virtudes superam os defeitos. — Salomon esboçou um sorriso. — Embora às vezes quase empatem. Mas também é a única ligação que tenho com ela.

— Sim. Você agora me achará de melhor temperamento, Jake. É mais fácil sorrir, mais fácil ser paciente do que era antes, naquela ruína que era meu antigo corpo. Mas, Jake, falemos de Joe Branca. Está bem, estava em Filadélfia. Mas não poderia ter dado um jeito?

— Não.

— Tem certeza.

— Absoluta, Joha... Joan, você está preocupado com aquele milhão de dólares, com medo de que ele tenha provocado uma reação em cadeia de acontecimentos. Quando encontraram Joe Branca, voei para lá e levei aquele documento. Ele ficou atordoado. Não podia acreditar, mas aceitava o fato. Porém não o dinheiro. Só consegui que assinasse a autorização post mortem depois de redigir outro documento transferindo a quantia. O depositário designado — o Chase Manhattan — recebeu instruções de Joe para entregar o dinheiro ao Clube do Sangue Raro — a idéia foi dele — como uma lembrança de Eunice Evans Branca (Oh patrão! Estou chorando) (Estamos todos) (Mas, patrão... Joe deve estar na miséria) (Cuidaremos disso)

Joan suspirou.

— Raios me partam.

— Talvez e talvez a mim também. Mas não a Joe Branca. É um altruísta... Joan. De uma família de favela. Uma flor do lodo. Nem mesmo consegui que aceitasse uma quantia menor. Insistiu em pagar seu próprio testemunho, o reconhecimento da sua firma e a estampilha do documento... e isso custou-lhe quase todos os níqueis que conseguiu arrebanhar. Só sacudiu a cabeça e disse: «Prontidão não me assusta».

— Jake, precisamos cuidar dele.

— Não acredito que você possa, Joan. Na sua maneira estranha ele é tão orgulhoso quanto ela era. Mas fiz uma coisa. Quando estava à procura dele, obtive do tribunal uma ordem para abrir seu estúdio... era indispensável examiná-lo e uma velha carta da mãe dele deu-nos a pista que o localizou. Mas eu descobri que o aluguel estava quase vencido... o agente imobiliário queria saber quando o contrato terminava. Ele tinha a certeza de que, com a morte dela, o aluguel deixaria de ser pago. Portanto, resolvi momentaneamente a situação. Quando voltei, me responsabilizei pelo contrato. Enquanto Joe quiser morar ali, ninguém ira lhe cobrar o aluguel. A queridinha foi previdente com o dinheiro: deixou uma bela quantia, o suficiente para que ele se mantenha durante uns dois anos, acho eu. (Gasta em dois meses, acho eu, patrão. Joe não tem noção de dinheiro. Uma conta em banco não é real para ele) (Não se preocupe, querida. Jake e eu daremos um jeito) Ela suspirou.

— Isso me tranqüiliza, Jake, mas fico aflito por causa do marido dela. Precisamos examinar a situação. Se ele é de fato altruísta, então deve haver um meio de financiá-lo sem que ele saiba.

— Está bem. Joan, vamos tentar. Mas Joe Branca ensinou-me — na minha idade! — que há coisas que o dinheiro não compra. O que é verdade, se o vendedor em perspectiva é indiferente ao dinheiro.

— Quer outra dose de sherry? E posso tomar outra gota? Se você não pode ficar, acho que vou pedir para ser posta na cama e irei dormir. Não jantarei.

— Oh, mas você precisa comer, Joan. Para se fortalecer. Olhe, se eu ficar você comerá?

Ela deu-lhe o melhor sorriso sol-nascente de Eunice.

— Sim! sim, querido Jake! Obrigada.

 

O jantar foi informal, servido apenas por Cunningham e dois auxiliares. Joan fez o que pôde para parecer uma anfitriã encantadora e graciosa... enquanto tentava não parecer voraz. Tudo tinha um sabor tão maravilhoso! Mas esperou até o café ser servido e Jake ter recusado um charuto e aceito um cálice de porto, para então poder dizer:

— Obrigada, Cunningham, pode se retirar.

Agora podia tratar do que lhe interessava. Uma vez a sós, Joan disse:

— Jake, quando estarei em condições de comparecer a uma audiência de capacidade?

— Hem? Quando você sentir-se completamente em forma. Está com pressa?

— Não. Ficaria totalmente satisfeita de tê-lo como tutor o resto da minha vida.

O advogado esboçou um sorriso.

— Joan, pelos cálculos atuariais, você agora tem uma possibilidade de vida de cerca de sessenta anos. A minha está em torno de dez ou doze.

— Bem... não sei o que responder. Mas você continuará a ser meu gerente de fato, como antigamente? Ou estou pedindo demais?

Salomon olhou o cálice.

— Joan... assim que o tribunal der por finda esta relação entre nós, não haverá nenhum motivo pelo qual você não possa gerir seus negócios.

(Joan! Mude de assunto. Ele está querendo nos deixar!) (Então não sei? Cale a boca!) (Diga-lhe seu segundo nome!)

— Jake, querido Jake... olhe para mim. Me encare com firmeza. Isso, Jake... será que você prefere não me ver... como sou agora?

O advogado ficou calado. Ela prosseguiu:

— Não é melhor se habituar com o que é... do que fugir dele? Não quererá ela — Eunice — que você fique? (Continue esmurrando-o, maninha... ele quer ficar)

— Não é tão fácil assim... Joan.

— Nada jamais foi. Mas não acho que você possa fugir disto, assim como eu também não posso... pois não posso deixar de ser o que sou — o corpo dela, a minha mente — e você sempre soube disso. Tudo o que você conseguirá indo embora é privar-me da presença de meu único amigo, o único homem no mundo em quem confio totalmente. O que é preciso para que eu troque de nome?

— Hem?

— Isso mesmo. Mudei meu sobrenome de Schmidt para Smith quando me alistei em dezembro de 1941, apenas soletrando-o dessa maneira para o sargento do recrutamento. Nunca fui incomodado por causa disso. Desta vez, quem sabe, talvez precise ser mais formal, considerando os milhares de lugares onde minha assinatura aparece. É tecnicamente um caso de mudança de sexo, não é? Um tribunal toma nota judicialmente, ou coisa que o valha, e isso passa a ser legal?

Salomon adotou sua persona profissional e acalmou-se.

— Sim, é claro. Eu não havia pensado nesse aspecto... há um excesso de outros detalhes na minha cabeça. Joan, sua primitiva mudança de nome foi legal — embora informal — porque toda a pessoa tem o direito de adotar um nome qualquer sem licença de um tribunal, desde que não haja uma intenção criminosa: fraudar, ludibriar, fugir à responsabilidade, sonegar impostos, etc. Você pode se chamar de «Joan», «Johann» ou «Miniver Cheevy» e esse será seu nome, desde que seu objetivo seja inocente. E pode pronunciá-lo como quiser. Sei do caso de um homem cujo nome escrito era «Zaustinski» e que o pronunciava «Jones» e que se deu ao trabalho de publicar a pronúncia estranha como um fato legal, embora não fosse obrigado. Um nome pode ser pronunciado da maneira que o seu proprietário escolher.

— Por que ele fez isso, Jake?

— A avó dele pediu-lhe que trocasse de nome a fim de herdar... mas não determinou de que forma pronunciá-lo. Joan, no seu caso, uma troca formal de nome é aconselhável, mas será melhor esperar até não ser mais minha tutelada. Contudo, de fato, seu novo nome já é o que você decidiu que seja.

— Então meu nome é agora... Joan Eunice Smith. Salomon derrubou seu cálice de porto. Ficou muito ocupado limpando o líquido derramado.

— Jake, pare com isso, não tem importância. Minha intenção não era chocá-lo. Mas não compreende a necessidade? É uma homenagem a ela, um reconhecimento público da minha dívida para com ela. Já que nunca poderei pagá-la, quero publicá-la, colocá-la na parede para que todos vejam, como a dívida de um chinês com sua tong.* Além disso, noventa e cinco por cento de mim são Eunice... e apenas cinco por cento são o velho Johann, agora batizado de Joan, e mesmo essa fração não pode ser vista por ninguém. Só os cirurgiões a viram. Por fim, mas nem por isso menos importante — querido Jake, olhe para mim — se você por acaso esquecer essa fração e me chamar de Eunice, não tem importância.

 

* Sociedade secreta ou organização fraternal dos chineses dos Estados Unidos, notáveis antigamente pelas guerras de grupos (N. do T.).

 

É o meu nome. E se você me chamar intencionalmente de Eunice, tem importância porque ficarei contente e envaidecida. E se alguma vez resolver me chamar de Joan Eunice, ficarei feliz, pois terei a certeza de que o fez intencionalmente... e me aceitou como sou.

— Muito bem... Joan Eunice. Ela sorriu.

— Obrigada, Jake. Sinto-me mais feliz do que me senti quando soube pela primeira vez. Espero que você também.

— Hum. Também. Acho que sim. É uma boa troca... Joan Eunice.

— Caiu vinho na sua roupa? Se caiu, deixe Cunningham limpar. Jake, há algum motivo para você retornar a Safe Harbor esta noite? Tenho a certeza de que Cunningham lhe arranjará meias limpas ou coisa que o valha.

— Meu Deus, Joan... Joan Eunice... já estou aqui há duas noites.

— Você acha que três seriam um abuso? Nem pense nisso.

— Além disso, a distância não é grande, pois coloquei minha propriedade à venda há alguns meses e agora tenho aposentos no Gibraltar Club. O serviço é bom, fica no centro e não tem os aborrecimentos de manutenção de uma casa.

— Entendo seu ponto de vista. Hum, preciso me lembrar de pedir demissão do Gib. — Sorriu. — Nunca me deixarão passar da sala feminina. O advogado disse, secamente:

— Tomei a liberdade de afastá-la do quadro social logo depois de me ter tornado seu tutor... Joan Eunice.

Ela sorriu, deliciada.

— E eu era membro fundador! É fantástico... negros, tiras e bichas são bem-vindos... mas as mulheres são cidadãos inferiores. Jake, querido, vou ter de me habituar a uma porção de coisas.

— Acho que sim... Joan Eunice.

— Por isso preciso mais que nunca de você. Está dormindo onde?

— No Quarto Marrom.

— Cunningham anda falhando. Devia tê-lo posto na Suíte Verde.

— Bem... a Suíte Verde foi utilizada como depósito de material hospitalar e cirúrgico. Eu autorizei.

— Então basta que você desautorize, pois é a sua suíte. Eles podem armazenar a tralha toda em outro lugar. Ou levá-la de volta, pois será pouco necessária de agora em diante.

— Hedrick deve ter levado a maior parte hoje, durante o dia.

— Está bem, você ficará esta noite no Quarto Marrom. Amanhã, então, Cunningham terá a Suíte Verde preparada a seu gosto.

— Joan Eunice, que leva você a pensar que vou mudar para cá? Não vou.

— Eu não disse que você ia. Disse que a Suíte Verde é sua. Quer você fique uma noite ou um ano. Sua sem convite, sua para vir e ir sem se dar ao trabalho de dizer alô ou até logo. Embora eu espere que você prefira dizer alô freqüentemente. Hubert, o meu antigo camareiro, ainda está aqui?

— Está. Atendeu-me nas duas últimas noites.

— A partir de agora, atenderá a Suíte Verde e cuidará de você, sempre que nos der a honra de vir aqui. Jake, é melhor que você tire logo as roupas aqui.

— Raios... Desculpe, Joan Eunice.

— Por dizer «Raios»? É triste o dia em que o meu amigo mais antigo modera sua linguagem na minha presença. Jake, já ouvi você usar uma

linguagem que fazia bolhas na pintura da parede a quarenta metros de distância... e dirigida a mim. Não apenas na minha presença.

— É verdade. Mas preciso lembrar agora que você é uma senhora, Joan Eunice.

— O prazer é seu. Vou ter muito mais problemas aprendendo a ser uma senhora que você tentando lembrar que eu sou presumivelmente uma. Se escorregar, não ligue... pois sabe que eu antigamente nunca fiquei atrás de nenhum arrieiro. Que é que você estava dizendo?

— Bem, eu estava dizendo «Raios, precisamos preservar sua reputação»... Joan Eunice.

— Minha o quê? Minha reputação como mulher? Duvido que tivesse uma... a não ser a de uma anormal sem importância. Nem ligo.

— Você não é notícia, Joan Eunice, desde que acabou a operação. Oh, você tornará a ser quando for ao tribunal... e talvez antes, quando algum dos seus domésticos ou da equipe do Dr. Hedrick badalar a sua recuperação.

— Então tornarei a ser uma anormal sem importância, e daí? Ficarei nas manchetes só durante uns dois dias. Vão se cansar tão depressa quanto se cansaram quando eu era criança. Jake, nunca me preocupei com o que disseram de mim durante mais de meio século. A imagem que oè nossos R.P. construíram foi em benefício da companhia e não em meu benefício. Quanto a Mrs. Grundy...* acho que já morreu. A atual geração não se importa com a opinião dela... uma mudança para melhor, num mundo em deterioração. Duvido que Eunice jamais tivesse ouvido falar em Mrs. Grundy. (Claro que ouvi, patrão. Minha professora do quarto ano. Costumava transar com o vice-diretor até que a mulher dele descobriu. Nós, garotas, nos divertimos... mas você teria gostado dela... meu queridinho devasso. Continue cercando o Jake, querido... está na hora de um aperto) (Quem está dirigindo este carro?) (Eu)

 

* Personagem citado em Speed the Plough (1798), de Thomas Morton. Alguém de comportamento pessoal convencionalmente afetado (N. do T.).

 

Mr. Salomon disse, pensativo:

— Acho que você tem razão a respeito da nova geração, Joan Eunice. Só gente da minha idade e mais velha perde tempo com essas coisas. Mas você sabe que não posso agora morar na sua casa. E eu também sei.

— Jake, não estou querendo forçá-lo. Nem comprometê-lo...

— Hem? A mim? É na sua reputação que estou pensando. Diante dos seus empregados, pelo menos.

(Ora, o velho hipócrita. Pergunte a ele a respeito do tempo em que se amontoava comigo no armário dos casacos, com Cunningham praticamente respirando na nossa nuca. Vamos, desafio-lhe. Oh, ele tem aquela coragem na hora do perigo)

— Jake, é lindo da sua parte, mas não dou a menor importância aos fuxicos dos meus empregados na cozinha. Porém tenho como protegê-lo das fofocas, senhor. Contratei a mais convencional das defesas vitorianas: uma respeitável camareira. Ela irá dormir no quarto ao lado, aquele onde Hubert costumava dormir. Se isso o inquieta, ela poderá estar sempre aqui quando ficarmos juntos. (Ei, que é isso? Tentando envolver Winnie no ato? Ela talvez tope... mas Jake não. Cuidado, querida) (Pare de se intrometer, Eunice)

O advogado ergueu as sobrancelhas.

— Já contratou uma camareira? É surpreendente. Embora você nunca tivesse uma antes. Ou você substituiu parte do pessoal de serviço interno?

— As duas coisas, Jake. Levei em consideração que o Dr. Garcia insistia em que eu tivesse uma enfermeira habilitada... por isso persuadi uma delas a ficar, desempenhando as duas funções. Winnie. Você a viu, a ruivinha.

— Possivelmente a vi.

(«Possivelmente», diz ele. Todos os homens são hipócritas. Se não atingiu seu alvo, está pensando nisso)

— Estou contente por tê-la conseguido. É inteligente, educada, capaz de me ensinar coisas de que preciso saber e, sendo enfermeira, habituada a cuidar das pessoas mais ainda que as camareiras. Usei o argumento habitual — dinheiro — mas fui prudente, em respeito ao seu orgulho profissional. Ela continuará a ser minha enfermeira e será minha camareira como um favor especial. Acho que ela já está deitada. Mas se levantará e virá nos acompanhar, se for chamada. Devo mandá-la vir?

— O quê? Oh, não seja boba, Joan Eunice. Você está exagerando.

— Achei que você é que estava, Jake. Senti-me indefesa como mulher... muito embora me sentisse muito mais vulnerável como um velho doente do que sou agora neste forte corpo jovem. Mas sinto-me a salvo com você presente... e o contrário quando você se vai. Jake, não posso insistir para você morar aqui... mas não será capaz de ver que favor enorme iria me fazer? Além disso... Quantos aposentos você tem no Gib?

— Dois. Os suficientes para as minhas necessidades.

— Os quartos não são grandes lá... ao passo que a sala de estar da Suíte Verde é tão grande quanto este quarto. Podemos abrir nela uma porta dando para a biblioteca de cima, transformando-a em seu estúdio. Mude para ela tudo o que precisar para os meus e os seus negócios... há espaço bastante para arquivos ou livros. Jake, eu não preciso deste enorme mausoléu assim como você não precisa da sua casa. Mas se eu tentar vendê-la, não obterei dez por cento do que ela custou. Construí-a durante os piores tempos dos Anos de Desordem e o gasto não aparece. É uma bela fortaleza, mais sólida que os quartéis da polícia. Bem, talvez aqueles anos tornem a voltar, o que me faz ficar contente por não ter economizado despesas. Entretanto, é ampla, segura, confortável e você pode muito bem usá-la. Quando quiser, principalmente quando estiver tratando dos meus negócios.

— Bem, tratei de alguns dos seus negócios nesta casa. Olhe, Joan Eunice, como seu tutor, tenho de dirigir seus empregados.

— Cunningham não lhe evitou perder tempo com essas ninharias? Preciso falar com ele.

— Bem... sim, evitou e deixei-o continuar como antes. Não fiz mudanças. Mas tive de dar uma olhada nos cadernos de contas domésticas e autorizar despesas. Caramba, estavam roubando você incrivelmente. Especialmente Cunningham.

— Ótimo!

— O que é que é ótimo?

— Jake, você me disse que era impossível gastar minha renda. Se meu mordomo está negociando no mercado-negro dois terços do que ele compra para mim e embolsando o lucro — o que ele sempre fez — então estará ansioso por conservar o emprego. O que significa que quererá me agradar. Jake, você conhece maneira mais barata de comprar a coisa mais próxima da lealdade que possa ser comprada? Deixe-o roubar. Não se amordaça as vacas que pisam os cereais. O bom cavalo deve sempre ganhar um torrão de açúcar.

— É um mau precedente. Corrompe o país.

— O país é corrupto. Mas é o único divertimento que resta. Não temos escolha. O problema é sempre o mesmo: como viver numa sociedade decadente. Jake, quero que more aqui. Espero que queira morar aqui. Isso me faria ficar feliz e segura, por você estar sob o mesmo teto. Mas não se preocupe com a minha reputação... além disso, Winnie está aqui para proteger a sua. Mais ainda, não fique pensando nessas bobagens de despesas da casa. Feche os olhos e assine. Mas não hesite em despedir Cunningham se o serviço não for perfeitíssimo. É o preço que ele tem de pagar pelo privilégio de me tapear. Por falar nisso, o chefe da guarda também me rouba. Acho que ele racha meio a meio com Cunningham. Nunca tentei desmascarar o acordo. Eles ficariam encabulados.

Salomon sorriu.

— Joan Eunice, para uma jovem — e bela — você fala muito parecido com um velho cínico que conheci.

— Você acha, querido Jake? Preciso aprender a não falar assim. Preciso agora deixar as coisas do «velho cínico» com você e tentar me comportar como uma dama. Se eu puder. Mas por favor, não quebre uma rotina familiar tentando modificá-la. Do contrário, vai parecer uma reforma administrativa: menos eficiente e ainda mais onerosa. Seus empregados não o roubavam?

O advogado ficou embaraçado.

— Bem... roubavam. Mas eu tinha a melhor cozinheira do condomínio de Safe Harbor. Se eu a despedisse, acabaria tendo outra tão dispendiosa... mas que poria açúcar no molho de carne. Acho que fiquei irritado por o estarem roubando... quando você estava inconsciente. Mas não quis me intrometer nos seus assuntos domésticos enquanto havia uma chance de você poder ficar bom. Queria deixar tudo como antes. Tinha de deixar. Ou devia.

— Obrigada, Jake. No momento, enquanto talvez não seja ainda uma dama, não me sinto de maneira alguma como um velho cínico. Descobri que me sinto como uma mulher que esteve doente e ainda não está totalmente curada. Acho melhor ir para a cama. Quer me ajudar?

— Hum... chamarei a enfermeira.

— Jake, Jake, este é o corpo que eu tenho. Precisamos parar de fugir dele. Vamos, dê-me seu braço. Posso ficar de pé se me ajudar... e caminhar até a cama se deixar que eu me apóie em você.

Salomon levantou-se, estendeu as duas mãos para ajudá-la a sair da cadeira e rodeou-a com o braço até a cama. Joan Eunice deitou-se rapidamente e despiu o roupão enquanto deslizava sob o lençol.

— Obrigada, Jake.

— Foi um prazer... Joan Eunice.

— Você tomará café comigo? Ou almoçará, se acordar tarde?

— Hum... café.

— Esperarei ansiosa.

Estendeu a mão. Ele a agarrou, curvou-se... hesitou levemente e beijou-a com firmeza. Joan Eunice prendeu-lhe a mão e puxou-a.

— Chegue mais perto, querido Jake. — Estendeu os braços e tomou-lhe o rosto entre as mãos. — Você a amava.

— Sim.

— Eu a amava.

— Eu sei.

— Diga meu nome. Meu novo nome.

— Joan... Joan Eunice.

— Obrigada, Jake. — Sem pressa, puxou o rosto dele para baixo e beijou-o docemente nos lábios. — Boa noite, querido amigo.

— Boa noite... Joan Eunice — e saiu depressa.

(Joan, sua vagabunda, você o está apressando demais) (Não estou!) (Uma ova que não está. Durante um momento pensei que ia arrastá-lo diretamente para a cama) (Ridículo!) (E você também estava se apressando) (Eunice, chega de críticas. Eu recuei na hora H. Descobri que não tinha intenção. Afinal de contas, há multas culturas onde os homens se beijam na boca, num gesto de amizade)

(No caso de ainda não ter reparado, você não é mais um homem... é uma criança confusa) (Reparei. Olhe, bisbilhoteira, era um símbolo necessário. Precisava mostrar a Jake que ele podia me tocar e mesmo me dar um beijo de despedida... sem que isso constituísse uma tragédia. E não constituiu. Lembrei-me de meu pai me beijando na hora de dormir... coisa que ele fez até eu já ser crescido)

(Bem... Talvez Jake acabe concordando em ser paternal. Mas não conte com isso, Joan. Maninha, tome nota: Jake pode beijar muito melhor do que fez. Pode beijar tão bem que suas vísceras derreterão, começando no seu umbigo e se espalhando em todas as direções) (É uma possibilidade. Muito remota. Agora quer ficar calada e nos deixar dormir? Estou cansada mesmo) (O senhor me ama, patrão?) (Nunca deixei de amá-la, querida... e nunca deixarei) (Eu também... e gostaria de poder dar-lhe um beijo antes de dormir. Durma, patrão... tudo vai dar certo)

Antes que ela adormecesse, Winnie entrou de roupão e chinelos.

— Miss Joan? — falou suavemente.

— Que é, querida? Acenda as luzes do chão.

— Mr. Salomon disse que a senhora se deitou...

— E você tem o ar de quem já estava deitada. Ele a acordou?

— Oh, não. Eu estava conversando com Mrs. Sloan. Ela está de plantão. Mas o Dr. Garcia deu ordem para que sua cama ficasse sempre baixa... e vejo que não está. Como se faz para abaixá-la?

— Eu mesma faço, aqui da cama — para baixo, assim — ou para cima, assim. Eu não tinha ainda adormecido. Está bem, vou abaixá-la toda antes de você ir embora... e poderá dizer ao doutor que sou uma menina obediente.

— Ótimo! Pode tomar esta cápsula, se quiser, mas Mrs. Sloan disse que o doutor disse que não precisa.

— Vou tomá-la. Quero dormir logo. Basta que me alcance o copo d'água... e me dê um beijo de despedida. Se não me der, ficarei zangada, chamarei Mrs. Sloan e lhe pedirei que me dê um beijo de boa noite.

A enfermeirinha riu.

— Vou fazer um esforço.

Winifred foi embora sessenta segundos depois. (Bem, Eunice? Como foi o negócio?) (Muito bem, machona. Digamos que oitenta por cento tão bem quanto Jake) (Você está brincando) (Você verá. Winnie é agradável, mas Jake tem muito mais anos de prática. Não estou tentando conquistar Winnie. Pensei que você ia arrastá-la para a cama conosco) (Com Mrs. Sloan do lado de fora, vigiando as batidas do nosso coração. Você pensa que eu sou o quê? Maluca?) (Penso) (Oh, vá dormir!)

 

As negociações de paz, tanto em Paris como em Montevidéu, continuavam na mesma. A luta prosseguia parcialmente e os mortos não se queixavam. O novo presidente da Harvard foi demitido pelo governo estudantil, que adiou a indicação de um sucessor. O ministro das Águas anunciou um plano para aumentar em 37% o volume de água da Baía de San Francisco. A Comissão de Rios e Portos negou que fosse subordinada ao Ministério das Águas. Em Alma-Ata, um sargento dos Corpos Morais deu à luz um saudável bebê de duas cabeças, através de uma cesariana. A operação foi vista mundialmente e em Luna, via satélite, com um arranjo especial para coro dos Pensamentos do Presidente Lu. Em Washington, o Departamento de Imposto de Renda, agindo de acordo com o Decreto do Orçamento do Executivo (Emergência) de '87, anunciou uma sobretaxa adicional temporária, de 7%. Em Miami, Miss Universo (Miss Ghana — 1,05-55-96), falando por intermédio do seu secretário de imprensa e intérprete, revelou que pretendia ser o primeiro comandante de nave estelar e que estava estudando, havia dois anos, balística neo-eisensteiniana através do hipnotismo. O secretário-geral da Sociedade Fraternal Popular de Cosmonautas, Astronautas e Técnicos Espaciais (A.F.L.-C.I.O.) * perguntou publicamente se Miss Universo era capaz de fazer uma simples operação de aritmética, com os pés calçados. A Sra. Presidenta da Federação Mundial dos Clubes Femininos declarou que o Honrado Secretário era um alcagüete contra-revolucionário e um exemplo típico da arrogância masculina. Em Los Angeles, as mortes causadas pelo smog** caíram em 3% graças às medidas urgentes de combate à poluição e a um forte vento oeste.

* As duas mais poderosas centrais sindicais dos Estados Unidos, hoje fundidas numa só (N. do T.).

 

** Palavra composta de smoke (fumaça) e fog (neblina) para designar a poluição atmosférica por fumaça e vapores químicos (N. do T.)

 

Numa casa velha, grande, feia e enfeitada, Miss Joan Eunice Smith estava sentada na posição de Lótus, numa esteira da sala de vestir, defronte de um enorme espelho e de frente para sua enfermeira-acompanhante-camareira, também em Lótus.

— É confortável, querida Winnie?

— Muito.

— Acho que você é ainda mais flexível que eu. Muito bem, vamos nos concentrar no exercício. Você começa.

— Está bem. Mas, Miss Joan? Qual o significado? Oh, eu gosto. É muito repousante. Mas que jóia em que Lótus e por quê?

— Significa nada e tudo. Se tem de usar palavras, significa paz, amor, compreensão e tudo o que você pensa de bom. Mas não é para pensar, querida. É para ser. Deixe-se abrir para ele e não pense. Nem mesmo tente não pensar. Seja.

— Está bem.

— Comecemos. Não esqueça a respiração. Vou segui-la.

— Om Mani Padme Hum.

(Om Mani Padme Hum. Está vendo aquele halo em torno dela, patrão? Deve ter tido uma noite daquelas) (Cale a boca, Eunice. Você foi quem inventou estas preces)

— Om Mani Padme Hum. (Om Mani Padme Hum) Om Mani Padme Hum. Om Mani...

(Chega, Joan) (Tão pouco, querida? O relógio diz que só passaram vinte minutos) (Eu uso um relógio diferente. Estamos bastante aquecidas, prontas. Winnie está mais que pronta. Você terá de trazê-la de volta) r — Om Mani Padme Hum. Winifred. Querida Winnie, ouça-me. O sol está se erguendo e nós também precisamos.

A ruivinha continuava numa Lótus perfeita, com as solas dos pés viradas por cima das coxas, as mãos no colo e as palmas para cima. Continuava entoando, com a respiração acompanhando ritmicamente as preces. Mas seus olhos estavam revirados para cima e só o branco aparecia.

— Volte, Winnie, está na hora.

Os olhos da moça voltaram ao normal. Estava atordoada, mas depois sorriu.

— Já? Parece que foi agora. Devo ter dormido.

— Isso acontece. Está preparada? Aquecida, livre e com os músculos macios como algodão?

— Hum... sim, estou.

— Então vamos tentar umas individuais. — Joan Eunice ergueu-se da esteira como uma flor desabrochando e ficou em pé. — Você me julga e eu a julgarei. Então faremos exercícios a duas como sobremesa. — Joan olhou-se no grande espelho. — Acho que minha barriga está cada vez mais firme. Continuo me dizendo isso.

— Está perfeita e você sabe disso.

A ruiva levantou-se mais devagar e não conseguiu evitar um bocejo.

— Ainda está com sono, querida? Não teve sonhos agradáveis na noite passada?

A moça corou ligeiramente, encolheu os ombros e sorriu.

— Agradáveis, sim, mas com poucas horas. Espero que não a tenhamos perturbado.

— Não ouvi nada. Nem teria percebido se você não tivesse me dito na hora em que veio me dar o beijo de boa noite. Querida, se está com sono atrasado, talvez fosse melhor você julgar.

— Oh, não, me beneficio mais com os nossos exercícios que você... não quero perder um dia. Mas... sim, estou com o sono atrasado. Paul... oh, meu Deus! Ainda bem que não disse o sobrenome.

— Eu não escutei, estava esfregando os ouvidos.

— Mentirosa. Ele só saiu às duas e meia. Por isso quase não dormi. Não que eu pretendesse!

— Tenho a certeza de que não. Querida Winnie, eu não tinha a intenção de bisbilhotar. Oh, apenas uma curiosidade normal... uma vez que sou virgem.

A enfermeira, espantada, disse:

— Mas... — e calou-se. Joan Eunice sorriu.

— Vamos, vamos, doçura, sei o que esse «mas» quer dizer. Mrs. Branca foi casada... e Johann Smith também, quatro vezes, sem falar nas janelas puladas. Mas Joan Eunice é virgem... sacou, bonequinha?

— Bem, encarado assim...

— É minha única maneira de encarar. Por isso sou curiosa como uma bandeirante. Mas me diga que continuará me deixando sem saber nada, mesmo que queira dizer, o que estou certa de que não quer. Um dia — não há pressa — acho que descobrirei sozinha. Portanto, não se atreva a corar outra vez e continuemos com nossos exercícios. Vou entrar pelas variações da Tartaruga e você me empurrará, se for necessário.

Depois de uma hora de torções, distensões e posturas, Joan Eunice disse:

— Chega. Mais um pouco e ficaremos suando em vez de brilhando. Pronta para uma agarração?

A campainha aguda da porta da rua tocou dentro do banheiro-vestiário.

— Raios — disse Joan. — Queria dizer um elegante «que coisa». Raios. De pé, querida, enquanto lhe meto o avental pela cabeça. Vá dizer que hoje não queremos gelo.

— Imediatamente.

Vestida num segundo, a moça saiu.

(Como estamos hoje, Eunice? Os peitos começam a lhe agradar?) (Já progredimos mais da metade, Joan. Mais uma semana e o tempo pode ser encurtado) (Não tenho pressa. É a coisa mais divertida do dia... exceto quando nosso senhor e tutor se digna a jantar conosco. Diga-me, doçura... você está preocupada com esses relatórios negativos?) (Não, quem tem estado é você. Eles são o que eu esperava. Ninguém sabe como a memória funciona. Apenas todos têm certeza de que sabem e que os outros são burros) (Estive pensando a respeito desses vermes. Se você pode picar um verme e alimentar outro verme com ele e se o segundo parece lembrar o que o primeiro aprendeu, então...) (Patrão! Continuo a lhe dizer que não sou um verme! Já lhe disse há muito tempo que o corpo recorda e... Vamos parar, aí vem o tira).

— Miss Joan, são o Dr. Garcia e Mr. Salomon.

— Oh. Bem, não vou me vestir. Ainda temos de acabar. Me dê um roupão... não aquele espelhado. O Nevoeiro de Londres é mais apropriado, não acha?

— Acho. Faz com que pareça apenas meio nua em vez de totalmente.

— Quem me ensinou a vestir assim, simpática Winnie? (Fui eu) (Claro, Eunice... porém ela pensa que me dá ordens. Eu sou a filhinha obediente dela, que faz tudo o que a mamãe manda... até nos livrarmos do querido doutor) Por favor, diga aos cavalheiros que irei já.

Miss Smith parou para pôr batom, achou que seu rosto não precisava de retoques, pegou uma escova de cabelos e penteou as mechas curtas afofando-as, calçou sandálias de salto alto, vestiu o roupão e olhou-se no grande espelho.

Achou que a opacidade relativa do roupão estava perfeita... exceto a parte de cima, que era muito recatada. Por isso demorou bastante tempo passando batom nos mamilos.

Agora, satisfeita com sua aparência — (Patrão, estamos parecidos com uma prostituta cara) (Espero que muito cara. Você está achando ruim?) (Que nada, estou aplaudindo) — passou para o boudoir.

— Bom dia, doutor. Oi, querido Jake. Não querem sentar? Café? Ou preferem um Velho Veneno de Rato do Kentucky, engarrafado no galpão?

— Café — aceitou Salomon. — Você está encantadora, minha querida.

— Encanto oculto. Estive fazendo ginástica e estou fedendo como um cavalo.

— Não mais que uma potranquinha. Aumentarei a ventilação. Joan Eunice, o Dr. Garcia quer examiná-la.

— É mesmo? Alguma coisa errada? Estou me sentindo ótima. Salvo por essas frias grades de prisão em torno de mim e a minha cabeça naquele travesseiro duro.

— O Dr. Garcia acha que podemos dar um jeito nessas frias grades de prisão. Joan Eunice, concordamos em que não era inteligente comparecer ao tribunal até que você seja dada como bem em todos os sentidos. Ele acha que agora é possível.

— Oh. Oh! E aquele pelotão de psiquiatras?

— Estarão conosco. Talvez não precisemos deles. Mas estaremos preparados para enfrentar os especialistas que são testemunhas deles. Você tem de estar preparada para longas e incômodas entrevistas. Nossos próprios especialistas devem comparecer ao tribunal preparados. (Preparados para justificar suas lindas comissões. Não se preocupe, patrão. Me esconderei num buraco toda vez que um encolhedor de cabeças * chegar perto)

 

* Psiquiatra, especialmente psicanalista (N. do T.).

 

— Nada tenho contra. Estou encantada porque o Dr. Garcia me acha bem. Vamos passar para o meu quarto de vestir, doutor? Venha, Winnie. Jake, o Wall Street Journal está ali.

Assim que ficou sozinha com o médico e a enfermeira, Miss Smith disse:

— Bem, doutor? Devo me deitar na mesa de massagens?

— Não, este exame é pro forma, para me permitir registrar que lhe fiz um exame físico no dia em que lhe dei alta. Vou auscultá-la com um estetoscópio e fazê-la dizer «Ah!»... e coisas assim. Se quiser sentar na penteadeira e baixar a gola do roupão, é um favor.

— Sim, senhor.

Ela ficou em silêncio enquanto o médico colocava o estetoscópio aqui e ali, tossiu quando ele mandou, inspirou fortemente e expirou ruidosamente quando recebeu ordem. Uma vez Joan disse:

— Ui, sinto cócegas — e perguntou: — Que é que está fazendo?

— Apalpando à procura de ínguas. E isso também pro forma... embora já tenha decorrido um certo tempo desde a última vez. (Está gostando, garoto?) (Talvez você esteja, Eunice, eu não. Preferia uma aproximação mais romântica) (Não engane sua avó, você está gostando)

O médico recuou e olhou-a pensativamente. Joan Eunice disse:

— Mais alguma coisa senhor? G-I-N?

— Não, a menos que deseje. Algum problema?

— Nenhum. Tenho bastante saúde para enfrentar um urso-cinzento.

— E você testou essa saúde. Não obstante, seu caso me preocupa.

— Por que, doutor?

— Porque é único. Sei quase tão pouco a respeito dele quanto você. Joan, quando deixou esta casa — como Mr. Smith — nunca esperei vê-la viva novamente. Quando foi trazida de volta, não esperei que recuperasse a consciência. Quando recuperou, senti pena de você... pois nunca esperei que deixasse de ficar paralítica do pescoço aos pés. Porém, cá está você, bem e saudável, aparentemente.

— Por que só «aparentemente», doutor?

— Não sei. Sabemos pouca coisa sobre transplantes... e nada sobre os do cérebro, além do que aprendemos com você. Joan, nas últimas duas semanas não houve motivo — além de precaução — para que você precisasse de mais fiscalização que qualquer outra jovem gozando boa saúde. Por exemplo, como Winifred aqui.

Encolheu os ombros.

— Das duas, você parece estar um tanto mais vigorosa que ela. Não obstante, apostaria que Winifred, a não ser por acidentes, terá uma sobrevida maior... enquanto que você não apresenta nenhuma curva. Você é única. Por favor, não estou querendo apavorá-la, mas só um louco faz profecias baseadas na ignorância. Não sou esse tipo de louco.

— Doutor — respondeu ela, calmamente —, o senhor está querendo dizer que este corpo pode rejeitar o cérebro... ou vice-versa, o que dá no mesmo. Ou que eu posso cair morta, com um colapso cardíaco, sem causa definida. Sei disso. Li muito sobre transplantes, quando ainda era Johann Smith. Não tenho medo. Se acontecer... bem, tirei umas belas férias da idade senil, com seus sofrimentos e enfados. — Sorriu alegremente. — É como morrer e ir para o céu... e mesmo algumas semanas de céu podem ser uma eternidade.

— Fico contente porque aceita a coisa filosoficamente.

— Não «filosoficamente», doutor. Maravilhada, alegre e procurando avidamente agarrar cada momento de felicidade!

— Bem... estou contente porque Winifred vai ficar com você e espero que a conserve por muito tempo...

— Pelo tempo que ela quiser! Para sempre, espero.

— ... porque de outra maneira eu ficaria preocupado. Mas Winnie pode agir numa emergência tão bem quanto eu e terá aqui tudo de que necessitará para agir... e ela sabe e eu quero que você saiba que estarei aqui imediatamente se ela me chamar. Muito bem, minha querida, vamos retirar esse transmissor do seu corpo. Você não será mais vigiada. Enfermeira. Álcool medicinal e algodão.

— Pois não, doutor.

Winifred passou pela mesa de massagens e foi até um armário. O Dr. Garcia retirou o minúsculo transmissor.

— Um eritema leve e um ligeiro círculo de dermatite. Com sua fabulosa capacidade de recuperação, aposto como não será capaz de descobrir amanhã os vestígios. Mas vou perder meu cinema matutino.

— Como?

— Acho que ninguém lhe disse, mas vigiei os monitores todas as manhãs enquanto você fazia ginástica... esperando que seu coração fraquejasse. Ou que sua respiração me avisasse. Nada. Nenhuma anormalidade, quero dizer. Eu podia dizer que você estava fazendo ginástica. Muito suave, concluí.

— Ora, claro que sim. Ioga.

— Bem! Eu não classificaria a ioga de «suave». Se estamos falando da mesma coisa.

— Digo que a ioga não é uma corrida de cem metros rasos ou levantamento de peso. Mas eu, bem, ambas fizemos as posturas clássicas. Exceto a cabeça para baixo. Não sou maluca, sei que tenho um crânio comprado na Sears.

— Eu não teria deixado, doutor! Porém ela nunca tentou, juro que não.

— Doutor, não estive criando músculos para exibição. Estive apenas tentando ter um controle perfeito do meu novo — e maravilhoso! — corpo. Olhe, deixe-me mostrar-lhe.

Joan levantou-se, deixou o roupão cair, estendeu no chão uma parte da esteira de ginástica... deslocou seu peso para o pé esquerdo, ergueu a perna direita acima dela, esticando-a com perfeição enquanto se inclinava lentamente para a frente... mais... mais... até pegar o tornozelo esquerdo com ambas as mãos e encostar o rosto na canela, arqueando a perna direita numa abertura perfeita.

Manteve a posição durante três respirações controladas, então deixou cair as mãos flacidamente no chão, ergueu devagar a perna esquerda, equilibrando-a sobre a direita, até atingir um apoio de mãos, com as pernas juntas, as costas arqueadas e os dedos dos pés esticados.

Deixou outra vez que as pernas caíssem lentamente como pétalas desfolhadas até tocarem a esteira... deixou o Arco mergulhar na Roda, misturando ainda mais profundamente na pose de Diamante, joelhos e cotovelos tocando a esteira e o solo — mantendo a posição — deixando-a prosseguir devagar para Lótus.

— Om Mani Padme Hum. (Om Mani Padme Hum. Pegue seu cheque na saída, garota. Não precisamos filmar esta cena novamente) (Obrigado, Eunice. Mas eu tive um bom guru, Guru) (De nada,* chela**)

 

* Conforme o original (N. do T.).

* Nome dado pelos monges budistas aos discípulos que os acompanham em suas peregrinações, provendo suas necessidades (N. do T.).

 

O Dr. Garcia aplaudiu.

— Sensacional! Inacreditável. Como tudo o mais neste caso. Winnie! Você pode fazer isso?

Joan, que se erguera, estava observando.

— Claro que ela pode! Tire a roupa, querida, e mostre ao doutor. A enfermeira ficou intensamente ruborizada.

— Não, não posso! Não acredite nela, doutor. Ainda estou aprendendo.

— Oh, bolas. Só tive de apoiá-la um pouquinho. Volte daqui a duas semanas, doutor, e verá. Não é difícil... basta ter tido antepassados minhocas.

— O que parece que você teve. Mas, se Winnie não lhe ensinou, onde aprendeu, Joan?

(Oh, oh! Cuidado, patrão... ele está farejando algo) — Que idade o senhor tem, doutor?

— Hem? Trinta e sete.

— Aprendi cerca de quarenta anos antes de o senhor ter nascido. Mas não tive tempo de cultivar — continuou ela. — Depois, durante muitos anos, não tive condições físicas para tentar. Porém, as coisas voltam com tanta facilidade que sou forçado a admitir que Mrs. Branca era tão boa nisso quanto eu quando era um garoto ágil. (Vamos ver se ele confere isto, doçura) (Nunca diga uma mentira muito complicada, patrão) (Olhe, criança, eu já mentia com a maior cara de pau quando sua avó ainda estava de cueiros. Apague e corrija: sua bisavó)

— Bem... vou incluir isto no seu exame físico definitivo... se eu conseguir achar palavras. Tome seu roupão, Joan.

— Obrigada. — Pegou-o e ficou com ele na mão em vez de virar-se para que ele o colocasse sobre seus ombros. — Doutor, Mr. Salomon irá saldar seus honorários e gratificações. Mas, para mostrar meu grande apreço, quero acrescentar algo.

Garcia sacudiu a cabeça.

— Um médico não pode aceitar nada além dos honorários... e, asseguro-lhe, os meus são elevados.

— Apesar disso, eu quero. — Deixou o roupão cair. — Winnie, fique de costas, querida.

Joan atirou-se nos braços dele e ergueu o rosto para ser beijada. Garcia hesitou uma fração de segundo e depois abraçou-a, beijando-a. Joan suspirou docemente, continuou com os lábios abertos e apertou-se ainda mais contra ele.

(Não desmaie! Não podemos perder um pingo) (Não me aborreça, Eunice. Estou ocupado!)

O médico desfez o abraço, recuperou o fôlego e olhou-a severamente. Então abaixou-se, apanhou o roupão e estendeu-o a ela. Joan deixou que ele o colocasse sobre seus ombros e depois disse:

— Obrigada, doutor. Virou-se para ele e sorriu.

— Hum. Acho que posso atestar honestamente que você está em excelentes condições físicas. Mr. Salomon está esperando.

— Diga-lhe, por favor, que irei já.

Joan esperou a porta fechar. Então atirou-se nos braços de Winnie e desandou a rir no ombro dela.

— Winnie, você virou as costas? Não deu nem uma espiadinha? Espero que sim.

— Virei as costas. Mas pude ver tudo no espelho. Uau!

— Duas vezes uau. É assim que estou me sentindo. Doçura, agora não tenho mais a sensação de ser tão virginal.

— Ele é bom? Tem aspecto.

— Não sei. Não tenho como julgar. O querido Jake beija-me. Você já viu... mas são bicotas de «tio». Você me beija... e seus beijos não são bicotas. Mas você é mulher e menos que eu. O doutor é o primeiro homem que realmente me beija... e isso fez sentir-me tão pequenina e desamparada que quase arrastei-o para a esteira. Você nunca o beijou?

— Ele? Joan, minha linda, se eu contasse isto a qualquer das enfermeiras, elas não acreditariam. O Dr. Garcia nem ao menos passa a mão nas bundas. Só faz rosnar.

— Ele passou na minha. Acho que passou. Desde então as coisas ficaram confusas.

— Sei que ele passou. Vi e não acreditei. Joan? Você não queria que eu ficasse pelada. Queria?

— Por que não? Eu estava.

— Sim, mas você é a paciente. Eu sou a enfermeira, da qual se espera que seja um robô e um acompanhante.

— Só nós duas sabemos que você não é. Hem?

— Bem... seja como for, não posso fazer aquilo. É difícil demais.

— Disse a Garcia que voltasse daqui a duas semanas e você seria capaz. Devo lembrar a ele?

— Oh, Joan! Você está me enfernizando outra vez. — A ruiva acrescentou, pensativa: — Você acha que eu posso, sem ajuda, só em duas semanas?

— Sei que pode. Mas não vestida, nem tensa. Se vai corar e se amedrontar, é melhor que eu não lembre ao querido doutor.

— Hum... aquele foi um senhor beijo. Porém Paul não vai gostar.

— Não vai gostar? Da sua demonstração a um médico da precisão do controle corporal? Ou de beijar um doutor? Ou aonde o beijo levará? E como Paul vai saber se você não lhe contar? (Patrão, você está corrompendo a juventude da terra) (Caretice, Eunice. Ou Paul não quer casar com ela... ou já é casado e não pode. Seja como for, não tem o direito de monopolizá-la. Como você já disse, o sexo não é um esporte, é instrumento de felicidade)

— Hum... O doutor não iria querer me beijar. Nem mesmo percebe que sou mulher.

— Não acredite nisso. Você é mulher e ele não é burro. Irá beijá-la se eu sugerir a ele que é o cumprimento por uma exibição perfeita. Você tem duas semanas para se decidir e agora eu tenho de ir ver o querido Jake.

 

— ... TENDO UMA AÇÃO NESTE NOBRE TRIBUNAL, aproximar-se!

— Se convier ao Tribunal, enquanto os suplicantes estão preparados para prosseguir, pedimos que respeitosamente chame a atenção do

Tribunal para o fato de que nenhum fundamento válido foi apresentado. Este julgamento está relacionado com a capacidade de Johann Sebastian Bach Smith, avô das quatro suplicantes... e o defensor não tem certeza de que ele esteja nesta sala de julgamento.

— Ordem! Exijo ordem imediatamente neste Tribunal. Ou a sala será evacuada. A defesa está sugerindo que Miss Smith — aquela jovem dama para quem estou apontando — não é Johann Sebastian Bach Smith?

— A defesa não está sugerindo nada, Meritíssimo. Apenas assinalo que não há nada no processo mostrando que a pessoa apontada pelo Tribunal seja Johann Sebastian Bach Smith e que o problema da capacidade não pode ser examinado até que sua identidade seja provada sem deixar margem a dúvidas.

— A defesa está tentando dizer ao Tribunal como aplicar a lei?

— Oh, de maneira nenhuma!

— Pois parece. Permito-me lembrar à defesa que este Tribunal está hoje se baseando na eqüidade e não na lei e o processo será instruído de acordo com a determinação do Tribunal.

— Sem nenhuma dúvida, Meritíssimo. Lamento se, inadvertidamente, não pareceu assim.

— O senhor esteve a um dezesseis avôs do desacato e evite que isso aconteça outra vez.

— Sim, Meritíssimo.

 

— ... como estou enojado e cansado do comportamento de cerca de cinqüenta por cento dos espectadores e pelo menos noventa por cento da imprensa, ordeno ao meirinho que evacue a sala. Use um destacamento, Evelyn, e evacue esse gado imediatamente... e se o precioso equipamento de televisão for danificado na operação, não vai ser motivo de preocupação.

«Advogados, suplicantes, administrador e tutor — tutor putativo, para o registro — vamos nos recolher à minha sala enquanto se acaba com esta bagunça.

— Jake, isto é gozado! Se eu não sou eu, então estou quebrado e livre. Você devia ter casado comigo para me livrar da Previdência.

— Johann, pare com os disparates. O assunto é sério.

— Jake, recuso ver o julgamento. Se eu não sou eu, então estou morto e mais vale estar quebrado, ouvir meu testamento ser lido e ver os rostos dos meus amados descendentes, quando descobrirem que herdaram rendas mínimas, nem mesmo livres de impostos. Jake, cada milionário deseja ouvir a leitura do seu testamento... e talvez eu tenha a chance.

— Hummm. De acordo com a teoria seguida por eles, Eunice está habilitada a ouvir a leitura do seu testamento... Lembre daquele parágrafo sobre «todas as pessoas não especificamente citadas, que estão a meu serviço particular na data do meu falecimento»...

— Não diz que eu posso, mas se você o redigiu, devo poder.

— Pode. Se você não é Johann, então tem de ser Eunice. É um ou/ou. (Neca! É ambos) (Eunice, isto está ficando divertido) (Eu acho também, patrão)

O juiz McCampbell escolheu um gabinete bastante confortável. Uma vez instalados, olhou ao redor.

— Mmmm. Jake, Ned, Miss Smith, Alec, Mrs. Seward, Mrs. Frabish, a senhora é Mrs. Crampton, não?... Mrs. Lopez. Parkinson, você está fazendo o que aqui?

— Amicus cariae, Meritíssimo.

— Você não é amigo deste Tribunal e não pode ficar aqui.

— Mas...

— Vai sair sozinho ou prefere ser expulso?

Parkinson preferiu sair. Quando a porta se fechou nas costas dele, o juiz disse:

— Sperling, prepare essa coisa, de maneira a que eu possa gravar quando quiser, e depois pode se retirar. Alec, você está com o ar de protestar.

— Eu? De jeito nenhum, juiz.

— Ótimo. Porque vamos ter de abrir caminho no nevoeiro deste julgamento maluco. Quem precisa de um «abridor» de nevoeiro? — Caminhou para um bar no canto. — Alec? Gim tônica, como de costume?

— Sim, obrigado, juiz.

— Ia esquecendo as senhoras. Mrs. Seward? Algo alcoolizado? Ou café? Esta máquina também fornece chá, se eu conseguir me lembrar que botão apertar. E sua irmã? E suas primas? Miss Smith? Lembro do que costumava pedir no Gib há alguns anos. Continua com o mesmo gosto?

(Cuidado, patrão! É dinamite) (Calma, Eunice)

— Juiz, com um novo corpo, meus gostos mudaram em várias coisas. Mas lembro com carinho de Glen Grant com gelo... muito antes dos meus médicos porem um ponto final. Mas nunca mais provei nada de tal qualidade desde aqueles dias e, uma vez que esta é uma audiência de capacidade, escolho o café. Ou uma Coca, se o senhor conseguir achar o botão.

O juiz esfregou o nariz e ficou pensativo.

— Não estou certo de que seja uma audiência de capacidade, pelo menos até que fique esclarecido esse assunto da identidade. Jake pode lhe ter contado sobre o Glen Grant. A idéia de Johann Smith pedir uma Coca me abala.

Joan sorriu para ele.

— Eu sei... mal combina com o caráter. Meus médicos me fizeram renunciar às bebidas gasosas muito antes de me terem proibido o uísque. Lá pela época em que o senhor entrou para a Escola de Direito. Se eu sou Johann Smith, isso é verdade Se não sou, vou ter de pedir-lhe desculpas... pois neste caso não sou um tutelado do Tribunal e não devo estar aqui. Não é verdade?

McCampbell pareceu ficar ainda mais pensativo.

— Jake, você quer prevenir seu cliente? Não, não seu «cliente», seu... não, isso também não. Diabo se eu sei o que o senhor é. É isso o que temos de descobrir. Senhorita, sente-se e lhe arranjarei uma Coca. Alec, ofereça bebidas para essas senhoras. Jake, você e Ned sirvam-se... Alec e eu temos um encontro amanhã de manhã com um peixe em Nova Escócia e macacos me mordam se vou deixar a pescaria esperando por causa de uma reviravolta de surpresa nesta audiência. Alec, amaldiçoada seja sua alma irlandesa, você está seriamente pondo em dúvida a identidade desta jovem?

— Bem... vai falar em desacato se eu sugerir que sua pergunta não foi corretamente feita?

McCampbell suspirou.

— Senhorita, não lhe dê atenção. Foi meu colega de quarto no colégio e me faz passar maus momentos quando comparece ao meu tribunal. Um dia destes lhe darei trinta dias de prisão para que ele possa refletir... e amanhã de manhã, pelas quatro e meia, irei empurrá-lo para dentro de uma água geladíssima. Acidentalmente.

— Experimente Mac, e irei processá-lo. No Canadá.

— Sei que ele foi seu companheiro de quarto, juiz. Ambos eram «Big Greens» — Dartmouth, em setenta e oito, não foi? — Por que não lhe permite que me faça perguntas e descubra quem eu sou?

Mrs. Seward disse, com voz estridente:

— O caminho não é esse! Primeiro você tem de tirar as impressões digitais desse — dessa impostora — e....

— Mrs. Seward!

— Pois não, Juiz? Eu queria apenas dizer...

— Cale-se!

Mrs. Seward calou-se. O Juiz McCampbell continuou:

— Madame, apenas porque me apraz ser informal no meu gabinete, não pense que não estamos em sessão do tribunal ou que não a considerarei em desobediência. Teria grande prazer. Alec, é melhor convencê-la disso.

— Sim, Meritíssimo. Mrs. Seward, qualquer sugestão que queira dar, faça-o por meu intermédio e não dirigindo-se ao tribunal.

— Mas eu estava apenas dizendo que...

— Mrs. Seward, fique calada! A senhora está aqui apenas por deferência do tribunal e até que o assunto da identidade fique esclarecido. Desculpe, Juiz. Informei às minhas constituintes de que, no máximo, esta era uma ação de embargo. Sei que Jake Salomon não se arriscaria a trazer um impostor — desculpe Miss Smith — um impostor a este tribunal.

— Também sei disso.

— Mas fui obrigado. Se Mrs. Seward não se controlar, vou ter de pedir-lhe permissão para abandonar o caso.

O juiz balançou a cabeça e riu.

— Não senhor, Alec. Já que os trouxe, vai ter de agüentá-los... pelo menos até que o Tribunal adie o julgamento. Jake? Ned será seu porta-voz? Ou você mesmo falará?

— Oh, acho que ambos falaremos, um de cada vez, sem atritos.

— Ned?

— Claro, juiz. Jake pode e deve falar por si mesmo. Mas estou achando interessante. É uma situação nova.

— De fato, bem, fale se tem algo com que contribuir. Alec, acho que não vamos a parte alguma hoje. Hem?

Alec Train não respondeu. Joan disse:

— Por que não, juiz? Estou aqui às ordens. Pergunte-me o que quiser. Traga a roda e o esmagador de polegares... falarei.

O juiz tornou a cocar o nariz.

— Miss Smith, às vezes penso que meus antecessores foram muito apressados em abolir esses instrumentos. Posso afirmar, para minha satisfação, se a senhora é ou não a pessoa conhecida como Johann Sebastian Bach Smith, desta cidade e da Smith Enterprises, Limited. Mas não é tão simples assim. Num caso comum de identidade, a sugestão das impressões digitais, dada por Mrs. Seward, seria prática. Mas não neste caso. Alec? As suplicantes podem estipular que o cérebro do seu avô tenha sido transplantado para outro corpo?

O advogado das postulantes ficou preocupado.

— Espero que o Tribunal aceite que tenho instruções para não estipular nada desse tipo.

— É? Qual é sua teoria?

— Hum, «desaparecido e presumivelmente morto», acho eu. Nossa posição é que o ônus da prova cabe a quem afirma que é Johann Sebastian Bach Smith.

— Jake?

— Não posso concordar com o ônus da prova, juiz. Mas minha cliente — meu tutelado, que é também meu cliente, Johann Sebastian Bach Smith — encontra-se neste tribunal e estou apontando para ela. Sei que é esse seu nome. Ambos estamos às ordens para sermos inquiridos pelo tribunal na forma que este quiser, de maneira a estabelecer a identidade dela. Chego mesmo a declarar que nós ambos estamos desejosos de ser inquiridos por quem quer que seja... mas pensando melhor, não posso concordar em que haja aqui alguém interessado, a não ser minha cliente.

— Juiz?

— Sim, Miss Smith? Jake, quer que ela fale?

— Oh, certamente. O que ela quiser.

— Continue, Miss Smith.

— Obrigada. Juiz, minhas netas podem perguntar o que quiserem. Conheço-as desde pequeninas. Se tentarem me enganar, serão enforcadas em dois minutos. Johanna, por exemplo — a que o senhor chamou de Mrs. Seward — foi uma peste. No seu oitavo aniversário — quinze de maio de mil novecentos e sessenta, no dia em que a Conferência de Paris entre Eisenhower e Khruschev foi interrompida — a mãe dela, minha filha Evelyn, convidou-me para o bolo de aniversário da pirralha. Evelyn sentou-a no meu colo, onde ela fez pipi...

— Nunca fiz uma coisa dessas!

— Oh, você fez, sim, Johanna. Evelyn tirou-a do meu colo, pediu desculpas e disse que você tinha urina solta. Não sei se era verdade... minha filha mentia com facilidade.

— Juiz, vai deixar que essa — essa pessoa — insulte a memória da minha falecida mãe?

— Mrs. Seward, seu advogado a avisou. Se não liga para o aviso dele, este Tribunal tem condições de encerrá-la num barril e só deixá-la falar quando eu mandar retirar a tampa. Ou coisa semelhante. Faça-a calar, Alec. Dê-lhe sumiço como no julgamento de «Alice no País das Maravilhas»... ao qual este está começando a se parecer. Ela não é parte interessada. Está aqui apenas para fornecer provas, caso o Tribunal precise. Miss Smith...

— Sim, senhor?

— Suas opiniões a respeito dos seus supostos descendentes não são provas. Pode pensar em algo que Johann Smith devia saber e que eu também pudesse saber ou confirmar... mas do qual Jake Salomon não teria possivelmente lhe dado conhecimento?

— É muito difícil, meritíssimo.

— Sei que é. Mas a alternativa — hoje — para mim é decidir que a senhora é uma impostora preparada muito habilmente e, então, interrogá-la indefinidamente é uma tentativa de pegá-la em erro. Não quero fazer isso... porque a identificação definitiva — agora que o assunto foi levantado — deve ser feita por prova tão conclusiva quanto as impressões digitais. Percebe, não?

— Sim, percebo, mas não vejo como. — Sorriu e sacudiu suas encantadoras mãos. — Minhas impressões digitais — e tudo de mim que pode ser visto — são as do meu doador.

— Sim, sim, claro... mas há outras maneiras de matar um gato, além do veneno. Mais tarde.

— Arrumpf!

— Sim, Jake?

— Juiz, no interesse do meu cliente, não posso aceitar como decisivos esses meios físicos, de identificação deste corpo. O problema é: este indivíduo, inscrito da Previdência Social sob o número 551-20-0052, é o mesmo conhecido publicamente como Johann Sebastian Bach Smith? Lembro-lhe que o «Espólio de Henry M. Parsons contra Rhode Island», embora não totalmente, é importante.

McCampbell disse, com humildade:

— Jake, você é muito mais velho que eu e tenho bastante certeza de que conhece a lei mais detalhadamente que eu. Não obstante, neste momento, o juiz sou eu.

— Sem dúvida, Meritíssimo! Se convier ao Tribunal, eu...

— Por isso, pare de ser tão irritantemente respeitoso no meu gabinete.

Você foi meu examinador e me aprovou. Daí achar que eu conheço a lei. Claro que o caso Parsons é importante. Trataremos disso mais tarde. No ínterim, estou tentando encontrar uma base para uma decisão temporária. Bem, Miss Smith?

— Juiz, pouco me importa ser identificada ou não. Citando um galante cavalheiro: «Prontidão não me assusta». — Deu uma risada súbita e olhou para as netas. — Posso lhe contar uma coisa engraçada... particularmente?

— Hummm... posso mandar todos saírem, menos a senhora e seu advogado. Todavia, seria melhor reservar as piadas para o fim da audiência.

— Está bem, senhor. Posso dizer uma coisa sem importância às minhas netas?

— Humpf. Posso eliminar da gravação. Vá.

— Obrigada, juiz. Meninas — Johanna, Maria, June, Elinor — olhem para mim. Há trinta e tantos anos que vocês esperam pela minha morte. Agora têm a esperança de provar que estou morto pois, do contrário, não teriam se metido nesta aventura boba. Meninas, espero que vocês prossigam... pois mal posso esperar para ver-lhes a cara quando meu testamento for lido. (Essa foi mortal, patrão! Olhe as expressões delas!) (Claro que foi, querida. Agora fique calada. Não estamos em casa)

— Meritíssimo...

— Diga, Alec.

— Permite que diga que isto não é importante? Joan atalhou:

— Mas eu disse que não era, Mr. Train. Seja como for, é melhor que elas comecem a pensar em como invalidar meu testamento, em vez desta bobagem. — Acrescentou, pensativa: — Talvez eu tivesse feito melhor instituindo um usufruto que as fizesse sentir-se ligeiramente melhor comigo vivo que morto... a fim de me defender de um parricídio. Juiz, é «parricídio» mesmo, agora que sou mulher?

— O diabo me carregue se eu sei. Talvez fosse melhor «avicídio»... não, «avicídio» refere-se à matança de pássaros e nada tem a ver com «avus». * Não importa, Miss Smith, discuta isso com seu advogado e voltemos à vaca-fria. Pensou em algo que Jake Salomon não poderia ter informado à senhora?

 

* Antepassado, comumente designando avô (N. do T.).

 

— É difícil. Jake tem cuidado dos meus negócios há mais de uma geração. Hum, Juiz, quer me apertar a mão?

— Hem?

— É melhor fazermos debaixo da mesa ou fora da visão de todos menos de Mr. Train.

Mostrando-se confuso, o juiz aceitou a proposta dela. Depois disse *

— Raios me partam! Desculpe. Miss Smith... aperte a mão de Alec. Joan apertou, escondendo o gesto dos presentes, com o corpo. Mr.

Train ficou surpreso, murmurou qualquer coisa para ela, que respondeu com um sussurro. (Patrão, que foi isso?) (Grego. Depois lhe conto, querida... não é permitido que as moças saibam) McCampbell disse:

— Mr. Salomon não lhe teria ensinado?

— Pergunte a ele. Jake era Bárbaro e não Grego. *

 

* Apelidos dos membros de fraternidades das universidades americanas (N. do T.).

 

— Claro que eu era Bárbaro — resmungou Salomon. — Não me interessava participar de um grupo que não queria abrir mão dos seus privilégios. Mas o que é que há?

Train respondeu:

— Bem, parece que Miss Smith é irmão de uma fraternidade a que o juiz e eu pertencemos. Hum... «irmã», suponho. Juiz, é fácil verificar o fato em relação a ambos, Johann Smith e Mr. Salomon. Até lá, acho isto convincente.

— Talvez eu possa acrescentar algo — disse Joan. — Mr. Train — Irmão Alec — claro que pode verificar a respeito de Jake e de mim. Mas verifique nos arquivos fraternais o nome «Schmidt» em vez de «Smith», pois mudei de nome em quarenta e um. O que minhas netas sabem. Mas ambos conhecem nosso Fundo de Desamparo fraternal?

— Sim.

— Certamente, Miss Smith.

— O fundo ainda não existia quando me propuseram. Foi no meu ano de formatura, depois de eu ser Phi Beta Kappa ** e porque nossa loja local precisava de um estudante aplicado e havia um formando disposto a pagar minha iniciação. O fundo foi estabelecido durante a Segunda Guerra Mundial. Alguns anos mais tarde, contribuí para aumentá-lo e fui um dos administradores, de cinqüenta e seis até fins da década de oitenta, quando abandonei a maioria das minhas atividades. Juiz, o senhor sangrou o fundo em mil e quinhentos dólares na primavera de setenta e oito.

 

** Fraternidade cujos membros eram escolhidos pelo seu alto nível universitário (N. do T.).

 

— Hem? É verdade. Mas finalmente devolvi... e fiz uma doação do mesmo valor tempos depois, de acordo com nossos costumes.

— Gosto de saber disso. Da última parte, quero dizer. O senhor ficou livre de dificuldades antes de eu ter renunciado como administrador. Eu era um cara duro, juiz, e nunca aprovei um empréstimo até ter certeza de ser um caso de necessidade e não apenas uma conveniência para o estudante. Posso contar as circunstâncias que me fizeram conceder-lhe o empréstimo?

O juiz vacilou.

— Eu preferia que não, pelo menos não agora. Alec está a par.

— Estou — confirmou Train. — Eu mesmo lhe teria emprestado se tivesse dinheiro. (Que é que houve, patrão?) (Um caso de «febre reumática», querida) (Dinheiro para aborto?) (Não, não — ele casou com a moça — e cá estou eu desenterrando o esqueleto) (Vagabunda) (Não, Eunice... nem minhas netas nem Jake sabem de que estou falando)

— Não vejo razão para discutir isso — continuou Miss Smith — a menos que o juiz queira me interrogar em particular... e se o fizer, juiz, lembre-me para lhe contar uma verdadeira piada a respeito dos antepassados das minhas tão amadas netas. Acontecem coisas estranhas nas melhores famílias... e a família Schmidt nunca foi das melhores. Éramos um bando vulgar, eu e meus descendentes... só nos destacávamos por possuir dinheiro demais.

— Mais tarde talvez, Miss Smith. Agora estou em condições de proferir uma decisão, temporária e preservadora. Advogados?

— Estou pronto, juiz.

— Nada a acrescentar, Meritíssimo. McCampbell juntou os dedos.

— Identidade. Sua confirmação não depende de impressões digitais, configuração da retina ou evidências semelhantes. O joão-ninguém pode perder ambas as mãos e pés, ter os dois olhos arrancados, ser tão retalhado e maltratado que mesmo seu dentista não conseguirá identificá-lo... e continuará sendo joão-ninguém, com o mesmo número da Previdência Social. Algo semelhante aconteceu-lhe, Miss Smith, partindo do princípio de que a senhora é realmente Johann Sebastian Bach Smith... embora eu tenha prazer em ver — sorriu — que não há cicatrizes.

«Este Tribunal considera persuasivas as provas da sua identidade apresentadas nesta audiência. Aceitamos, temporariamente, que a senhora seja Johann Sebastian Bach Smith.

«Todavia — o juiz olhou para Salomon — vamos tratar agora do caso Parsons. Uma vez que o Supremo Tribunal estabeleceu que a questão da vida ou da morte reside no cérebro e em mais nenhum outro lugar, este Tribunal decide agora que a identidade deve, daqui por diante, residir no cérebro e em nenhum outro lugar. No passado, nunca houve necessidade de decidir a esse respeito. Agora há. Achamos que decidir de maneira diferente estaria em desacordo com a intenção do Supremo Tribunal no caso «Espólio de Henry M. Parsons contra Rhode Island». Decidir de qualquer outra forma seria criar o caos em casos futuros semelhantes a este. A identidade deve residir no cérebro. «Agora, Jake, vou com efeito atirar o ônus da prova nos seus ombros e nos do seu cliente. Mais tarde, você deve ficar preparado para provar, fora de qualquer dúvida possível, que o cérebro de Johann Sebastian Bach Smith foi retirado do corpo dele e transplantado para este «corpo» — McCampbell apontou.

Jake acenou com a cabeça.

— Sei disso, juiz. Uma pessoa que quer descontar um cheque tem de provar sua identidade... sempre. Mas hoje fomos apanhados de surpresa.

— E o Tribunal também... e, Alec, um dia vou apanhá-lo de surpresa... com algo melhor que um balde d'água ou um charuto explosivo. Que diabo, você devia ter avisado o Tribunal e o Conselho.

— Peço desculpas, Meritíssimo. Recebi instruções muito tarde.

— Você devia ter pedido logo um adiamento e não deixar esta audiência ser iniciada. Sabe muito bem. Não importa, a audiência foi instrutiva. Miss Smith — Miss Johann Sebastian Bach Smith, assunto dos comentários acima — a senhora foi colocada sob tutela deste Tribunal e entregue à guarda de Mr. Jacob Salomon por um único motivo: naquele momento a senhora não estava em condições de gerir seus bens em face de uma incapacidade pós-operatória. Registre-se que nem uma insanidade do ponto de vista legal, nem uma doença mental do ponto de vista médico têm a ver com isso. A senhora estava numa completa situação de inconsciên-cia, decorrente de uma operação, e foi tudo. Não está mais inconsciente, aparenta boa saúde e o Tribunal registra judicialmente que, durante esta audiência, a senhora sempre esteve alerta e lúcida. Uma vez que a única condição — a inconsciência — que a transformou em tutelada, não mais existe, a senhora perde e Mr. Salomon fica desobrigado da sua guarda... qual é o problema, Alec?

— Com a permissão do tribunal!... Como advogado das suplicantes, devo solicitar que uma objeção seja incluída no registro.

— Baseada em quê?

— Ora, na falta de peritos que afirmem a competência de, num, «Miss Smith».

— Tem peritos prontos a examiná-la?

— Claro.

— Jake?

— Certamente. Aguardando a chamada.

— Quantos?

— Harrumpf! Um a mais que Alec, quantos ele apresente.

— Era o que eu esperava e se começarmos a habilitar peritos-testemunhas agora e deixar que cada um exiba seu pequeno ego, essa pescaria em Nova Escócia vai morrer de velha. Não seja apressado, Alec. Não foi apresentado nenhum perito-testemunha para mostrar a incompetência desta pessoa. A condição principal de inconsciência foi estabelecida... e agora não existe mais, Alec, sua objeção constará dos registros, mas quero lhe informar de que seu apelo a respeito da necessidade de perito-testemunha não tem fundamento... e desta vez o ônus da prova cabe-lhe. As suplicantes deveriam ter apresentado algo mais que uma enorme pressa em pôr as mãos numa grande quantia, arriscada demais no caso. Cada cidadão, cada pessoa, é considerada condicionalmente competente — e isso se aplica a todos — você, eu, Jake, Miss Smith, as suplicantes e o analfabeto que abastece este bar e limpa os copos vazios. Este Tribunal recusa-se a estabelecer o extremamente mau precedente de permitir-lhe, ou a quem quer que seja, de meter uma excursão de pescaria no assunto da competência de uma pessoa, sem um fundamento legal. Todavia... Jake.

— Sim, juiz.

— Sabemos todos a causa real desta audiência. Dinheiro. Montes de dinheiro. Você deve explicar a Miss Smith que sua competência pode ser posta em dúvida mais tarde.

— Estamos preparados para isso.

— Mesmo liberado da guarda da moça, você continuará como conservador dos bens de Johann Sebastian Bach Smith até a prova definitiva de identidade... e quero dizer positiva mesmo. Você deve observar o cérebro de Smith dentro deste corpo o tempo todo. Como é q nome daquele operador? Boyle? Acho que vai precisar dele. E de muitos outros. Não vou aceitar nada como definitivo nem permitir condições. Há muita coisa em jogo e não quero ser enrolado. Alec, se você puser a competência em dúvida, vai ter de esperar o tempo necessário e, se o fizer no meu tribunal, terá de fundamentar a dúvida. Está satisfeito?

— Acho que terei.

— Eu também acho. Declaro adiada a audiência.

Mrs. Seward levantou-se, vermelha, e disse a Alec Train:

— Está despedido! McCampbell falou, friamente:

— Madame, dê-se por feliz de ter contido essa explosão de raiva até a audiência ter sido encerrada. Agora, saia do meu gabinete. As outras três senhoras também podem ir.

June, a irmã de Johanna, disse, levantando-se:

— Juiz, posso fazer uma pergunta?

— Certamente, Mrs. Frabish.

— O senhor liberou aquela pessoa... está bem, não é uma crítica. Mas vai deixá-la na casa do nosso avô? Acho que o senhor deve saber que ela está atulhada, simplesmente atulhada de valiosas obras de arte. Que a impede de se apossar delas, enquanto procuramos provar que ela não pode ser nosso avô?

— Oh. Madame, Mr. Salomon está ciente das obrigações e responsabilidades de um curador. Todavia... Jake, será prudente você não permitir que qualquer objeto de valor artístico ou sentimental saia daquela casa, durante o período de espera.

— Não tem problema. Desde que me ocupei do controle doméstico, tenho passado lá a maior parte do tempo. Mas farei uma recomendação ao chefe da guarda de Johann.

— Juiz, posso dizer uma coisa?

— Claro, minha... Miss Smith.

— Gostaria de ser protegida contra elas. June não sabe que objets d'art possuo. Nenhuma delas entrou naquela casa desde que foi construída. Durante minha longa enfermidade e isolamento, nenhuma delas me telefonou, mandou flores nem nada. O mesmo aconteceu durante minha convalescença pós-operatória... exceto Johanna — Mrs. Seward — que eu soube ter tentado invadi-la logo depois da operação. Não confio nelas. Desejo a proteção do Tribunal.

— Jake?

— Eu não estava lá, mas soube pelo chefe da guarda de Johann.

— Mrs. Seward? Esta bufou.

— Eu tinha todo o direito! Parente mais próximo.

— Acho que estou entendendo. Muito bem, minhas senhoras: ouçam atentamente e depois podem se retirar. Proíbo-as de visitar a casa ou escritórios ou qualquer propriedade de Johann Sebastian Bach Smith. Ficam proibidas de fazer qualquer tentativa para ver esta senhorita ou falar com ela, a qual me dirijo como «Miss Smith». Se necessitarem dirigir-se a ela ou ao curador designado pela justiça, Mr. Salomon, só poderão fazê-lo por intermédio deste tribunal ou do seu advogado, quem quer que seja, dirigindo-se a Mr. Salomon e nunca diretamente a Miss Smith. Esta é uma ordem dada às quatro e cada uma terá de obedecê-la, sob pena de severa punição por desacato. Compreenderam? Têm perguntas a fazer?

McCampbell fez uma pausa e depois continuou:

— Muito bem. Agora as quatro podem ir embora.

O juiz ficou de pé vendo-as sair. Quando a porta fechou-se, suspirou.

— Uau! Miss Smith — ou devo dizer «Irmão Schmidt»? — quer agora aquele Glen Grant com gelo? Na verdade, Glenlivet, pois não tenho Glen Grani.

Ela sorriu.

— Para falar a verdade, nunca experimentei nada tão forte neste novo corpo. Jake e eu precisamos ir... o senhor e o Irmão Alec têm um encontro com um peixe.

— Oh, sente-se, por favor. Alec tem os apetrechos no carro, que está na garagem do porão, e meu cóptero virá nos apanhar no terraço daqui a uma hora. Outra Coca?

— Aquilo é sherry? Fico agradavelmente tonta com um cálice de sherry... o que me faz concluir que minha doadora nunca bebia. (Quase nunca, patrão... e o senhor está me fazendo gostar do troço) (Silêncio, querida... mais tarde) (Está bem... porém pergunte-lhe a respeito do nosso nome. Mas esse juizinho não é uma graça? Fico imaginando como será na cama) (Você e sua mente mão-única! Vou perguntar a ele a respeito do nosso nome. Agora cale-se!)

— Sherry, então. Jake? Alec? Ned?

— Juiz, uma vez que Jake não mais precisa de mim, peço-lhe que me dispense.

— Está bem, Ned, Alec, sirva-se e a Jake também. Quero conversar com o Irmão Schmidt. Provavelmente não a verei mais, Miss Smith. Suas netas estão quase certas de levar o caso a uma instância superior. Aquela história de provar quem a senhora é pelo nosso aperto de mão fraternal... apressou a coisa. O máximo que posso fazer, atualmente, é dar-lhe um pouco de proteção nesse meio-tempo.

— Fico-lhe muito grata, senhor. Está acontecendo uma coisa estranha com esta mudança de sexo. Quando eu era velho, fraco e desamparado, não tinha medo de nada. Agora, sou jovem, saudável e forte. Porém mulher. Para minha surpresa, descobri que quero ser protegida.

Alec Train, no bar, virou a cabeça e disse:

— Eu a protegerei, Irmão Schmidt! Não confie no Irmão McCampbel... era o maior paquera do nosso grupo. Saia da frente, Irmão Paquera, é a minha vez de olhar nosso novo irmão.

— Rapazes, não sou um «novo irmão». Fui admitido antes de vocês nasceram. Mas não estou surpreendido por quererem me olhar... por causa deste corpo. Jake, eles sabem?

— Não é um segredo de Estado, Johann. O juiz McCampbell sabe e acho que Alec também. (Joan, se ele não souber, diga-lhe. E não esqueça do nosso nome!) (Que é que você acha que estou fazendo?)

— Muito bem. Minha doadora, Eunice Branca, minha antiga secretária e a moça mais doce e adorável que conheci, não foi só uma perfeita secretária. Foi vencedora de um concurso de beleza não há muitos anos. Sei o tesouro que herdei. Não uso o seu corpo com a graça encantadora dela... mas estou procurando aprender. (Está aprendendo, patrão)

— Este Tribunal é de opinião que a senhora aprendeu.

— Cale-se, Mac. Irmão Schmidt, só concordo com ele porque é a verdade.

— Obrigada a ambos... em nome de Eunice Branca. Jake? Agora que o Tribunal não está em sessão, tenho de usar esta Mother Hubbard?* Está muito quente.

 

* Camisola muito larga e informe, que os missionários impuseram às nativas das ilhas polinésias, que andavam totalmente nuas (N. do T.)

 

— Você é quem sabe. Suponho que irá depender do que você está usando por baixo.

— Hummm... talvez seja melhor eu não tirar. É o mínimo de recato permitido pelos costumes atuais... mas pareceria uma rainha do burlesco, há trinta dias, quando eu era jovem. (Exibicionista. Está querendo ser persuadida) (Claro. E quem me ensinou? Pelo menos o soutien não é apenas pintado, como aquela fantasia de sereia com que você me embrulhou)

Alec Train disse:

— Irmão Schmidt, nos casos de verificação de identidade às vezes torna-se necessário pedir à pessoa em causa que se dispa completamente. Por causa de sinais de nascença, cicatrizes e coisas assim... explique-lhe, juiz.

— Não ligue para ele, Irmão Schmidt. Eu não chamaria esta encantadora túnica grega de Mother Hubbard. Mas posso ver que foi feita para ser usada na rua e terei o maior prazer de pendurá-la para a senhora.

— Hum... oh, meu Deus, estou tendo dificuldade de me livrar do meu puritanismo do princípio do século vinte. Jake já me viu vestida com a pouca-roupa das moças de hoje e viu Eunice com menos ainda do que estou usando por baixo. Eunice não tinha vergonha de exibir sua beleza. (Você preparou isso, hem, queridinho. Você está dando em cima de quem?) (Cale-se!)

Joan correu o dedo pelo fecho magnético e abriu a túnica inteiramente, que caiu no chão. Alec Train apressou-se a apanhá-la, antecipando-se ao juiz.

Então ela fez pose.

— Estão vendo? Eunice Branca era quase assim, com a exceção de que andava sempre como uma rainha... ao passo que eu sou um velho que está tentando aprender a usar o corpo dela.

Além do corpo de Eunice, Joan estava usando roupas de Winnie: anágua de babados, taças pretas translúcidas de pressão cobrindo os seios, sandálias com solas de quinze centímetros de espessura... sem pintura. Só um pequeno realce com rouge e sombra.

Continuou posando e eles olhando. Jake pigarreou mais alto que de costume.

— Joan, se eu soubesse o que você estava vestindo — ou, melhor, não vestindo — sob essa túnica, teria aconselhado a que não a tirasse.

— Ora bolas, Jake, você não ralhava com Eunice quando ela se vestia assim. Mas isso me faz lembrar de uma coisa que eu preciso saber. Juiz, não posso continuar sendo «Johann Smith». Permite que eu troque de nome?

— A pergunta não é adequada, Irmão Schmidt. A senhora pode ter o nome que quiser. Um tribunal, no máximo, o confirmará. A senhora quer dizer que precisa de um nome feminino agora. Helena, talvez? ou Cleópatra?

— Obrigada... em nome de Eunice. (Patrão, descubra se o juiz ainda está casado) (Vá plantar batatas!) Nenhum desses nomes. Quero ser chamada de Joan — em vez de Johann — Joan... Eunice... Smith.

O juiz McCampbell revelou surpresa e depois sorriu, aprovativamente.

— Uma bela escolha. O sabor do seu nome masculino, mais uma homenagem, suponho, à sua doadora. Mas permite lhe dar um conselho? A senhora pode começar a se chamar assim desde hoje...

— Já me chamo.

— Reparei que Jake a chamou de «Joan». Porém use-o apenas na intimidade, lançando mão do seu nome masculino em outras ocasiões... como para assinar cartas, cheques, etc., até que sua identidade fique finalmente estabelecida... no Supremo Tribunal, se possível. Não arranje encrencas.

— Foi o conselho que lhe dei — informou Salomon.

— Não me surpreende. Miss... Irmão Schmidt, como quer que a chame em particular?

— Ora, tanto «Joan» como «Eunice». De preferência os dois nomes, pois não quero que alguém jamais esqueça Eunice Branca. Eu menos que todos... quero ter sempre meu benfeitor na memória. Benfeitora. Mas não me trate de «Miss» em particular. Olhem, irmãos, como «Irmão Schmidt» sou meio século mais velho que ambos... mas como «Joan Eunice» só tenho algumas semanas de idade. Todavia, o corpo de Eunice é o de uma jovem e é isso que estou aprendendo — preciso aprender! — a ser. Vocês podem ter filhas da minha idade. Assim, por_ favor, me chamem «Joan Eunice» e reservem «Miss Smith» para as sessões do tribunal. — Sorriu. — Ou «Irmão Schmidt», se desejarem... embora fosse chamada de «Yonny» na minha loja. Alec disse:

— Joan Eunice Irmão Yonny Schmidt, terei o maior prazer em chamá-la como mais a senhora gostar — não tenho filhas da sua idade e a senhora faz com que me sinta mais moço só de a olhar. Mas não estou falando em nome do meu companheiro de quarto e odeio ter de dizer-lhe como a prole dele é idosa. Ele foi o flagelo da Escola Pública 238. Fique longe dele e deixe-me protegê-la. Já lhe disse como fiquei feliz quando Mrs. Seward me demitiu? Irmão Joan Eunice, eu nunca teria trabalhado neste caso se a sogra de Parkinson não tivesse pedido. Mas, a princípio, parecia tratar-se claramente de um caso de defesa dos interesses de um inválido, doente demais para se defender. Acredite.

— Não lhe dê atenção — aconselhou o juiz. — É um advogado de porta de xadrez. Pus alguns obstáculos no caminho dele só para proteger o bom nome dos nossos Irmãos. Mas voltando à sua identidade, Joan Eunice, não sei quanto conhece da lei...

— Só o que me foi dado por uma vida longa e miserável. Dependo de especialistas como Jake.

— Compreendo. Bem, suas netas provavelmente acharão que está errado eu ajudá-lo a estabelecer sua identidade. Não está. É verdade que, numa ação civil ou criminal, o juiz deve ser imparcial. Porém as matérias como o estabelecimento de identidade não são uma nem outra e não há preceitos de lei ou de justiça que proíbam um tribunal de ser útil. A situação é semelhante à de um cidadão que perdeu o passaporte e apela para o cônsul do seu país. O cônsul não pode se comportar como um juiz. Trata de resolver o caso rapidamente. Portanto... Jake, você lida com a lei há muito mais tempo que eu. Quer minha opinião?

— Sempre fiquei muito contente de contar com a opinião do Juiz McCampbell, em todos os casos.

— Acho que vou reabrir o tribunal e condenar você por desacato. Depois de ter terminado este drinque. Muito bem, seja como for, vou dar minha opinião. Você prevê alguma dificuldade para provar que o cérebro do Irmão Schmidt foi transplantado para o corpo de Eunice Branca?

— Nenhum. Chateação, mas não dificuldade.

— Ou em demonstrar que este corpo — este corpo encantador — pertenceu antes a Eunice Branca?

— A resposta é a mesma.

— Qual a prova?

— Relatórios policiais, fotografias, o pessoal do hospital, etc.

— Suponha que estamos em sessão. Vou procurar fazer com que se desdiga e apertar a testemunha a cada oportunidade. Referi-me intencionalmente, para constar, àquela norma baseada no «Espólio de Parsons contra Rhode Island». Acho que é importante...

— Também acho.

— Obrigado. Seguindo a regra de que a identidade reside no cérebro e em mais lugar nenhum... (Ele não sabe de nada, hem, patrão?) (É mesmo, amada... mas não vamos falar!) vou ser tão rigoroso quanto possível. Nada de declarações, se a testemunha pode comparecer. As fotografias e gravações não só serão permitidas, mas solicitadas... porém os originais e não as cópias. Os fotógrafos e gravadores devem comparecer e comprová-las. Os cirurgiões e outros, cujo trabalho aparece nesses filmes, fotos e gravações, devem comparecer e atestar a veracidade do material. Sabe se tiram as impressões digitais de cada corpo, antes das operações?

— Não que eu saiba. Raios, hoje fui apanhado de surpresa... e quando Eunice Branca morreu, outras coisas me preocupavam.

Joan Eunice levantou-se e apertou-lhe a mão. Alec Train disse:

— Eu posso informar. Quando Parkinson trouxe Mrs. Seward ao meu escritório, tratei de cuidar logo disso. Foram tiradas as impressões de ambos os corpos. Por isso a identidade não me preocupava. Daí ter ficado mais surpreso que vocês dois. Não sei que advogado mambembe meteu essa idéia na cabeça de Mrs. Seward... Parkinson provavelmente — ficou agarrado nela o tempo todo — mas recebi instruções até o tribunal se reunir. Não estou espalhando nenhuma informação confidencial quando digo isso... nem conheço qualquer lei que me proíba de dizer que estou enojado de Mrs. Seward e de Parkinson.

— Hummm. Todos os traços possíveis de prova — continuou McCampbell. — A senhora deve rastrear esse cérebro fora desse corpo — Joan Eunice — não, Jake. Jake, sabe o que foi feito do corpo de Johann Smith?

— A isso eu posso responder. Temos nele o caso único de um corpo tornando-se bem móvel enquanto a pessoa que viveu nele está viva ainda. Eu sabia o que Johann Smith — ou seja, Joan Eunice — queria fazer com ele, pois seu testamento estipula o habitual «doado para pesquisas médicas». Mas o testamento não funciona porque Johann Smith estava e está vivo. O Centro Médico perguntou o que fazer com ele. Respondi que o conservassem no necrotério. Presumo que ainda esteja lá.

Mr. Train disse:

— Doutor, espero que tenha razão. Mas a menos que aquele cadáver tenha sido aparafusado no mármore, aposto dois contra dez como algum estudante afoito já o retalhou.

O juiz disse:

— Temo que Alex tenha razão. Jake, é uma questão de urgência absoluta conservar a prova... a prova inteira. A bom entendedor... Todos sabemos como uma prova fundamental pode desaparecer facilmente quando está em jogo muito dinheiro. E além dos estudantes afoitos... bem, sabemos que qualquer ato ilegal tem seu preço. Filmes e gravações podem ser roubados ou substituídos e testemunhas ostensivamente respeitáveis podem ser subornadas. Vamos supor, por um momento, que o Irmão Schmidt está enfrentando pessoas desonestas, capazes de subornar, peitar, etc. Não é um crime barato. Alguém tem uma idéia de quanto dinheiro é necessário para destruir ou mudar uma prova?

Jake respondeu:

— Nem quero imaginar. Mas se forem quatro mulheres sem nomes, sou capaz de descobrir.

Joan disse:

— E nisso posso ajudar um pouco. Maria e Elinor perderam o pai antes da maioridade e seu espólio revelou dívidas, para só falar nisso. Dessa forma, sustentei minha filha Roberta até sua morte e mantive as crianças no colégio até serem reprovadas, continuando a sustentá-las até que casaram. Uma das acusações que me fazem é ter interrompido as mesadas quando casaram. Mas continuei a ajudá-las de vez em quando, pois não queria que um descendente meu fosse um peso para os contribuintes. O mesmo aconteceu com as outras duas, com a diferença de que Jim Darlington sobreviveu à minha filha Evelyn e as meninas — Johanna e June — casaram quando os pais eram vivos. Em resumo, a menos que alguma tenha tirado a sorte grande, as quatro juntas não conseguem dinheiro suficiente para financiar um crime realmente dispendioso.

— É bom saber disso — falou McCampbell. — Não obstante, jake, o tempo é essencial na conservação da prova... e quero que saiba que este tribunal lhe dará todo o apoio legal possível para proteger e conservar qualquer prova que você descobrir. Ahn, Alec e eu planejamos ficar fora uns quatro dias... mas vou deixar com Sperling meu comprimento de onda de emergência e darei um pulo até aqui se você precisar de mim.

— Obrigado, senhor.

— Um momento — disse Alec Train. — Há dinheiro neste caso. Mac, você sabe como sou a respeito de honorários.

— Sei: gatuno.

— Não ligue, Irmão Schmidt. Eu determino meus honorários do nada ao absurdo. Nesta ação eu não queria a causa. Por isso pedi um adiantamento absurdo por conta de, sim, uma diária fantástica... e Parkinson pagou sem piar. Por intermédio de Mrs. Seward, mas não importa quem está regendo a orquestra. A pergunta é: Parkinson irá continuar pagando... e estará disposto a contratar seu amigo e vizinho, o arrombador de cofres, para obter algum elo necessário? Não sei... principalmente por não ser dinheiro dele e sim da sogra.

— Também não sei — respondeu Jake —, mas sempre presumi que meu adversário poderia trapacear se eu deixasse de partir o baralho. Vou atrás dessa prova o mais depressa possível. Desculpe, Joan, eu deveria ter previsto isso... estou ficando velho. (Ele não está. Diga-lhe, patrão)

Joan Eunice afagou a mão dele.

— Jake, você não está ficando velho e não havia motivo para prever. Cavalheiros, permitam-me que repita que pouco me importa se minhas netas ganharem. Se ganharem, sairão perdendo... porque se provarem que estou legalmente morto, descobrirão que foram deserdadas. E, graças a Eunice Branca, ao Dr. Boyle e a Jake Salomon, estou jovem, saudável, gozando a vida e não angustiada por ter perdido uma fortuna que se transformou num peso para mim.

Alec Train disse:

— Irmão Schmidt Joan Eunice querida, você percebe que é não-americano falar dessa maneira a respeito de milhões de dólares?

Joan riu para ele.

— Irmão Alec, se eu sair quebrada disto, aposto um milhão de dólares com o senhor como posso ganhar outro tanto líquido nos próximos cinco anos, partindo do nada. Jake, você garante minha aposta? Caso eu fique arruinado?

— Certamente.

— Um momento! — protestou Train. — Sou um advogado honesto e pobre. Vamos apostar cinqüenta centavos? Mac, você me empresta cinqüenta centavos?

— Não sem fiador. Joan Eunice, ouça por favor. Não duvido da sua disposição de levar o mundo à falência. Mas sei, no fundo do meu coração, que a senhora é na verdade o Irmão Johann Schmidt... que me concedeu um empréstimo quando eu estava realmente precisado. A velha irmandade não me abandonou... e não vou abandonar o Irmão Schmidt.

— Obrigada, Irmão Mac. Jake resmungou:

— Vocês, aristocratas fraternais discriminadores, já me deixavam enojado no colégio e hoje continuo achando a mesma coisa. Juiz, o único motivo válido para dar uma ajuda a Joan Eunice é porque se trata da coisa mais justa a fazer. Não porque ela — hum — concedeu um empréstimo há alguns anos a um ranhento irmão de fraternidade.

— Doutor, seu ponto de vista foi levado em conta. Acho que posso verdadeiramente dizer que nunca permiti que laços fraternais — incluindo os do Relicário, a que você e eu pertencíamos — afetassem meu comportamento no tribunal...

— Uma ova que não deixou, amigo velho. Você decidiu contra mim só pelo prazer disso. Pergunte a qualquer um.

— ... mesmo quando fui forçado a esclarecer este irlandês sobre as sutilezas da lei. De qualquer maneira, eu teria ajudado neste caso. Como cidadã e tutelada do Tribunal, Eunice tem direito a toda a ajuda que a justiça pode oferecer para estabelecer sua identidade. Mas confesso que minhas emoções foram despertadas por uma circunstância que eu nunca sonhei existisse. Não o fato de Joan Eunice ser meu irmão de fraternidade — o que é apenas uma agradável coincidência — mas em virtude de ela — ele naquele tempo — ter me estendido a mão quando eu precisava. Hum... — fixou o olhar no copo — não é necessário entrar em detalhes. Você os conhece, Joan Eunice?

— Conheço.

— Pode contar a Jake depois. Deixe-me apontar as coisas que julgo necessárias neste caso. Ambos os advogados me controlarão. Vou colocar uma fita nova nesta coisa, de forma a que todos possamos ter cópias. — Virou-se para o aparelho de gravação sobre a mesa. — Isto é, pensei que ia. Raios! Desculpe, Joan Eunice. Não sei se Sperling já foi embora.

(Vamos dar uma olhada naquela coisa, querido)

— Sou o «Irmão Schmidt» sempre que o senhor quiser praguejar, Juiz. Posso dar uma olhada no gravador? É meio parecido com um que tenho em casa.

— Pois não. Às vezes desejo que ainda se use taquigrafia.

— Obrigada. (Que tal, Eunice?) (É a irmã mais nova boboca da Betsy, sem problemas. Fique assoviando a Yankee Doodle* ou pensando no juizinho e não me amole) (Om Mani Padme Hum. Om Mani Padme Hum. Om Mani Padme...) (Pronto querido) Carregado com uma fita nova, juiz, preparado para tirar três cópias e com limpador de memória.

 

* Canção popular da Revolução Americana (1775-1783) (N. do T.).

 

McCampbell disse:

— Fico maravilhado cada vez que encontro alguém que entende de mecanismos.

— Eu na verdade não entendo. Mas Eunice Branca ensinou-me a manejar um meio parecido com o seu. (Patrão, o senhor está aprendendo a mentir... dizer apenas a verdade, sem dizê-la toda) (Garotinha, eu inventei essa forma de mentir há muito tempo, quando sua bisavó era virgem)

— Em primeiro lugar é preciso deixar estabelecida a morte de Eunice Branca. Tratando-se de assassinato, temos de realizar extensas pesquisas para uma identificação positiva, inclusive impressões digitais e uma vez que há registros policiais, temos de admitir também que são accessíveis a qualquer tentativa bem financiada de destruí-los ou substituí-los. Então o corpo de Mrs. Branca tem de ser seguido até à sala de operações e novamente identificado lá. O corpo de Johann Schmidt também tem de ser rastreado até aquele local e positivamente identificado antes da operação. Aí temos de estar absolutamente certos de que o cérebro foi retirado do corpo de Johann Schmidt... Joan Eunice, isto pode ser muito deprimente para a senhora. Quer ir até o banheiro? Há um sofá lá.

— Continue por favor, senhor. Tenho de me acostumar.

(Me dá vontade de vomitar, patrão) (A mim, também, querida... mas não vamos. Temos de parecer solenemente calmos. Om Mani Padme Hum) (Om Mani Padme Hum. Vamos fazer uma Lótus. Esta cadeira é bastante grande) (Sim, querida. Om Mani Padme Hum)

— ... e finalmente no tribunal tiraremos as impressões digitais de Joan Eunice, faremos com que sejam comparadas por especialistas com as tiradas anteriormente e desse modo soldaremos o último elo. Joan Eunice, basta que eu torça o comutador?

(Depois das três cópias serem expelidas, se desligará sozinho)

— Quando as três cópias tiverem sido expelidas, ele se apagará e desligará. Jake, estamos atrasando a pescaria destes cavalheiros.

— Aqueles peixes não são impacientes — assegurou-lhe o juiz. — Só um minuto — deu um passo para o videofone de circuito fechado. — Evelyn.

— Pronto, juiz.

— Como estão as coisas aí fora? Calmas?

— Juiz, como adivinhou? Temos três homens na enfermaria e o edifício está fechado. Pode dar uma olhada nos canais três e quatro e depois tornar a passar o noticiário das dezesseis horas.

— É grave o estado dos seus homens?

— Nada importante. Um engoliu uma golfada de gás espirrante quando tivemos de limpar a entrada principal e evitar o tumulto, outro com um corte no rosto e o terceiro com as costelas quebradas. Meu palpite é que os «jornaleiros» prepararam a arruaça, pois as câmaras estavam prontas quando o tumulto começou.

— Percebo. Vamos precisar da guarda?

— Acho que não. A polícia está controlando totalmente as ruas próximas e nossa própria gente passará a noite aqui ou irá embora pelo terraço, pegando o helicóptero. Tenho um recado do juiz Anders: diz que não há motivo para o senhor não ir pescar e que ele supõe ser o juiz presidente do tribunal nos impedimentos. Diz que ficará esta noite no gabinete dele.

— Ligarei para ele e agradecerei. Fim.

O juiz torceu o comutador do canal três e ficou olhando.

— Não parece muito sério. Dá no mesmo se puserem este prédio abaixo e construírem outro mais seguro além de todas as Áreas Abandonadas. — Ligou o canal quatro. — Oh, oh!

O gabinete encheu-se do rugir da multidão. A tela mostrou a massa humana comprimida. Movendo-se lentamente no meio dela, viam-se dois tanques Merrimac da polícia, com os alto-falantes monotonamente repetindo o aviso de dispersar.

— Irmão Schmidt, sua casa tem heliporto? Joan abanou a cabeça.

— Não, foi projetada de tal forma que um cóptero não pode pousar nela. Parecia a coisa mais segura quando foi construída.

— Bem... posso levá-la de cóptero a qualquer recanto. Ou também a senhora pode ficar aqui esta noite.

Jake disse:

— Juiz, meu carro é um Rolls-Skoda. Estaremos seguros.

— Não posso obrigá-los a ficar. Mas vamos passar o noticiário e ver o que agitou os piolhos.

McCampbell colocou o ponteiro na hora do noticiário e então apertou o botão de reprodução.

«Manchete do Momento! Transplante Cerebral Fraudulento! Nosso último noticiário foi confirmado: o sensacional transplante cerebral do magnata Johann Smith foi um logro. Agora pergunta-se: terá morrido de morte natural? Ou foi assassinado? A teoria mais recente e plausível hoje é a de uma evidente tentativa de roubar sua enorme fortuna afirmando no tribunal que sua suposta antiga ^ secretária, uma mulher de reputação duvidosa, que diz chamar-se 'Blanca'...»

Salomon resmungou:

— Juiz, importa-se de desligar essa nojenta podridão?

McCampbell desligou.

— Ao que parece, dei começo a alguma coisa. Não posso pedir desculpas. Não quero deixar que a sala do meu tribunal se transforme num circo.

Joan Eunice falou, humilde:

— Lamento, juiz.

— Hem? Joan Eunice, não é sua culpa. A senhora foi trazida a este tribunal desnecessariamente e contra sua vontade. A senhora não fez nada. Quanto a mim, ainda conservo o antiquado ponto de vista de que um tribunal é onde o Soberano está presente pessoalmente, distribuindo igualdade e justiça para todos... não pão-e-circo para a turba. Enquanto estiver nas funções, seguirei este caminho, pouco me incomodando com a zanga de bisbilhoteiros e com o desejo de espetáculo dos analfa.

— Lamento que seus meirinhos tenham ficado feridos.

— Eu também lamento. Mas não são conscritos e sim funcionários de carreira que sabem o perigo que correm. E são necessários... se algum dia passar a lei que desarma os meirinhos, nesse dia abandono as funções... e a Justiça. Jake?

— Sim, Mac?

— Pode arriscar seu pescoço se quiser, mas mesmo um Rolls-Skoda não. é um Merrimac. Um bando de gente pode virá-lo, depois acender uma fogueira em torno e assar vocês como castanhas... e há gente lá fora capaz de fazer isso só para se divertir. Não, nem uma palavra. Não vou permitir que abandonem este edifício num veículo de superfície, nem que eu tenha de reconvocar o tribunal durante três segundos e colocar Joan Eunice novamente sob tutela. Ela irá de cóptero. O problema é o seguinte: ir para onde? Você pode dormir aqui no meu gabinete, Joan Eunice. Há um guarda-comida no bar e o banheiro é completo. Além disso, esse sofá converte-se em cama. Temo que tenha alguns calombos. (Pergunte ao juizinho se ele também se oferece com a cama!) (Estou surdo... e silêncio)

— Também quero dizer — falou Jake, suavemente — que tenho uma casa em Safe Harbor. Sem empregados e vazia, mas um lugar bastante seguro. Peço-lhe que mande o chefe dos meirinhos dizer ao meu condutor e ao atirador para esperarem até que tudo se acalme e depois virem nos apanhar aqui... embora eu aposte que aqueles dois são capazes de atravessar qualquer multidão sem deixar que virem o carro. Eles são espertos.

— Não duvido. E capazes de baixar o pau também. Faremos da maneira mais simples. Alguém quer usar o banheiro enquanto ligo para Evelyn e para o terraço?

Pouco depois, Jake e Joan estavam prontos para partir. O cóptero do juiz estava à espera deles. McCampbell fez um gesto, repelindo os comentários a respeito da pescaria. Joan disse:

— Juiz? Acho que sabe quanto estou grata, mas quero mostrar minha gratidão fazendo alguma coisa — dinheiro, quero dizer — por aqueles homens que ficaram feridos.

— Não.

— Por quê? Oh, sei que não tive culpa, mas no entanto eles foram feridos por minha causa. O senhor sabe que eu tenho meios.

— Porque eles são oficiais de justiça e eu teria de considerar isso como suborno virtual. Explique-lhe, Jake.

— Ele tem razão, Joan... embora esteja sendo rígido demais a esse respeito.

— Não tão rígido. Joan Eunice, existe uma instituição de auxílio para os dependentes de policiais, meirinhos, bombeiros, etc., mortos no cumprimento do dever. Jake pode lhe informar a respeito. Mas eu preferia não saber o que pretende fazer com relação a essa instituição.

— Compreendo — Joan não ligou para o fato de Jake estar esperando com sua túnica e aproximou-se mais do juiz, ergueu o rosto para ele e rodeou-lhe o pescoço com os braços. — Isto constitui suborno?

— Acho que sim — respondeu McCampbell, abraçando-a. — Mas não entro no mérito.

— Claro que é suborno! Afaste-se dele, Irmão Schmidt! Eu cuido dos subornos dele.

— Cale a boca, seu irlandês barulhento.

Joan virou o rosto quando estava a ponto de tocar os lábios de McCampbell com os seus.

— O senhor é o meu próximo suborno, Irmão Alex.

— Por isso volte para a fila!

McCampbell evitou que ela dissesse mais alguma coisa. Joan deixou que seus lábios se abrissem suavemente, sem apressá-lo. (Ua...mm! Eu sabia) (Não me deixe desmaiar, Eunice)

Alguns segundos depois, ela abriu os olhos e encarou o juiz.

— Meu Deus! — disse ela, docemente.

Alec Train bateu no ombro dele.

— O julgamento foi adiado, juiz. Caia fora.

Joan deu no juiz um rápido apertão de desejo, voltou a si e foi para os braços do seu antigo companheiro de quarto, erguendo o rosto. Teve o cuidado de tornar este beijo tão longo e ardente quanto o outro. (Hmmm! Que é que você acha, Eunice?) (Ambos são bucais como o diabo e beijam quase tão bem quanto Jake. Se Jake não estivesse aqui, eles nos teriam deitado imediatamente no tapete... pare, querida. Você já o beijou tanto quanto ao juizinho e Jake está ficando impaciente) (Está bem, estraga-prazeres) (Sou não... mas você não sabe como tratar os homens sem perturbá-los. Pare!)

Um momento depois, Jake ajudou-a silenciosamente a vestir a túnica de rua. Ela agradeceu-lhe, correu o fecho magnético, ajeitou o laço do ombro e deixou o juiz levá-la até seu elevador. Despediram-se e a porta fechou-se. Alec Train voltou-se para o amigo:

— Mac, beijar o Irmão Schmidt é mais expressivo que possuir a maioria das garotas.

— Amém!

— Que tal ser casado com ela? E por que, quando as coisas acontecem, estou sempre fora tomando uma cerveja?

— O parteiro feriu sua cabeça com o fórceps. Foi por isso que você se tornou advogado.

— E você?

— Oh, a mim também... em termos. Eu não era bastante inteligente para ser advogado. Tive de me contentar com o cargo de juiz. Cristo, que garota!

— Eleita por aclamação. Mac, depois de tê-la beijado, você pensa mesmo que ela pode ser o velho «Johann Sortudo», o magnata temperamental?

— Bem... tudo combina e ela sabe o Aperto de Mão.

— E a contra-senha. Eu verifiquei. Mas, Mac, qualquer dos nossos irmãos, mesmo os que tivessem tendência para não gostar de garotas, teria vendido nossos segredos — que digo? — teria dado nossos segredos a ela. Se fosse beijado.

— Partindo do princípio de que você tem razão no seu cálculo a respeito dos nossos irmãos — e eu concordo — Joan Eunice não teria tido muita oportunidade de conquistar um deles. Jake a manteve praticamente presa em casa, por sugestão minha. E o próprio Jake... bem, ele parece um Barb, mas você pode apanhar na estante o dicionário biográfico.

— Acho que não preciso andar tanto. Mas vamos supor que o velho Johann era um irmão — o que é fácil de verificar — e ela sabe tudo sobre o Fundo de Auxílio e sobre o fato de que você precisava de um empréstimo no nosso ano de formatura.

— Sim, isso é convincente.

— Não, não é. Quero dizer que Johann poderia ter se tornado acessível. Ela era sua secretária. Talvez ele se divertisse contando a ela segredos da fraternidade: aperto de mão, contra-senha e até detalhes sobre o fundo.

— Oh, bolas, seu bastardo pessimista. Joan Eunice é exatamente aquilo que ela aparenta ser: uma moça absolutamente sensacional que carrega no crânio o cérebro de Johann. Alec, concordo em que Joan Eunice não parece muito com Johann Smith. Mas mesmo você ficaria socialmente aceitável se essa esponja localizada entre suas orelhas fosse colocada na cabeça de uma garota deliciosa como aquela. — O juiz sacudiu a cabeça. — Ela tem o bastante para fazer uma rainha mudar de sexo.

— Rapaz, ela agarrou você, hem?

— E a você, meu amigo. Quem disse que precisávamos tirar férias das mulheres? Você, se não me engano. Mas você babou-se com ela. Você poria filhos no mundo se ela lhe telefonasse propondo. Não queira enganar seu companheiro de quarto. Conheço você melhor que Ruth.

— Não quero discutir. Mas você está pelo menos tão excitado quanto eu, Mac... e ela o afetou da mesma maneira. Hum, Norma sabe a pouca intenção que temos de pescar?

— Claro que ela suspeita. Mas sempre foi tolerante. Alec, você ficaria muito desapontado se eu cancelasse nossa excursão? Jake pode precisar de um juiz amigo, numa emergência. Especialmente se aqueles abutres encontrarem um rábula suficientemente inescrupuloso para agir diretamente. Eu odiaria não estar lá quando o Irmão Schmidt precisasse de mim.

— Meu Deus, alguém com alma. Coisa curiosa, eu estava pensando a mesma coisa. Não posso abandonar o Irmão Schmidt. Mac, poderá haver algum prejuízo se eu oferecer voluntariamente meus préstimos — grátis — ao Jake? Se a coisa engrossar, ele vai precisar estar em vários lugares ao mesmo tempo. Posso dividir a carga.

— E dividir os bens. Isso lhe dará um pretexto para rever o Irmão Schmidt.

— Há alguma lei contra ter lucro? Mas Jake pode precisar de auxílio.

— E você conhece o caso. Alec, amigo velho, é um nobre pensamento. Quando você representava as suplicantes, não só elas o demitiram como nunca foi uma situação adversa. Teoricamente, aqueles répteis estão tão ansiosos quanto Jake de chegar à verdade em benefício do seu amado avô. Não ousam confessar que estão tentando se apossar da gaita dele.

— Será que Jake tem um telefone naquela casa vazia? Se não, posso deixar um recado no Gibraltar Club — ele tem um quarto lá — e na casa da cidade de Johann Smith. E também no servifone de Jake.

— Sim. Mas diga que é da minha parte. Pode andar mais rápido. Ficaremos aqui e aguardaremos a resposta. Ruth não o está esperando, nem Norma a mim. Posso mandar buscar o jantar lá embaixo.

— É um raciocínio lúcido. Assim, prepare novos drinques enquanto eu faço as chamadas. Ei! Você pode alcançá-los no seu cóptero.

— Só através do circuito de pilotagem. Não em particular. É melhor conservarmos isto em segredo. Alec, é improvável que Jake tenha alguma coisa para você fazer antes de amanhã de manhã. Mas poderá ter: uma viagem à costa ou coisa assim. Você poderá passar a noite aqui esperando a chamada.

— Muito bem! — A mão de Alec Train parou a pouca distância do aparelho. — Companheiro, penso que o Irmão Schmidt varreu da sua mente todos os outros pensamentos. Ou estou errado?

— Vamos dizer de outra maneira: será agradável discutir o irmão Schmidt em detalhes íntimos com uma pessoa simpática que a aprecie tanto quanto eu.

— Neste caso, sirva os drinques e prepare um banho morno. Vou me juntar a você o mais rapidamente possível.

 

Jake Salomon levou Joan Eunice para o cóptero do juiz, sentou ao lado dela e trancou a porta. Em breve estavam a caminho. O compartimento dos passageiros estava separado da cabina do piloto e era à prova de som, tornando possível a conversa. Ele, porém, não dizia nada e mantinha os olhos afastados dela.

Joan tolerou essa situação só durante um curto espaço de tempo.

— Querido Jake, você está zangado?

— Hem? Céus, não. Por que pensou isso?

— Você está muito distante. Pensei que poderia ter ficado aborrecido porque beijei o juiz McCampbell e o querido Mr. Train.

— É seu problema.

— Oh, Jake. Por favor, não ralhe comigo nem tome ares. Tive um dia difícil, principalmente por causa do tempo que perdi com o raio das minhas netas. É duro ser odiado, Jake. Saber que alguém deseja sua morte. Porém tive de tentar uma aparência de serenidade e educação. Deve ser creditado a Eunice. Jake, não é fácil ser uma dama... depois de quase um século de ser homem. Sabe como faço para isso? Digo a mim mesmo: «Preciso agradecer-lhes... mas, como Eunice faria?» Achei que ela deveria beijá-los da melhor maneira possível. Então tentei, embora não soubesse como. Bem? Era isso o que Eunice teria feito?

— Hum... era. Eunice os teria beijado. (Ele sabe muito bem que eu teria, querido) (Eu sei. Ele está bancando o difícil) (Então continue o ataque. Diga-lhe como ele é maravilhoso. Joan, os homens sempre acreditam quando a gente lhes diz que eles são maravilhosos)

— Então não sei por que está tão frio comigo, Jake. Acho que você foi realmente maravilhoso o tempo todo, pela maneira como manobrou as coisas e como me protegeu. Quis beijá-lo por ter sido tão formidável — queria e quero! — se você me deixar. Terá sido porque não vesti a túnica antes de beijá-los?

— Bem... teria sido mais elegante.

(Insista firme nesse ponto, queridinha... pois Jake sabe muito bem que me entreguei toda na primeira vez em que o beijei... e mais tarde beijei-o completamente nua na primeira vez em que estivemos a sós. Ele não resistiu... estava ansioso) (Tentarei)

Miss Smith mostrou-se preocupada, o que não combinava com suas feições.

— Acho que sim. Mas não sei como ser uma dama, Jake. As regras estão muito mudadas. Eunice freqüentemente me espantava por causa do que fazia e vestia... porém estou certo de que sempre foi uma dama perfeita. Diga-me uma coisa, Jake, honesta e francamente, e sua resposta será lei para mim. Daqui para o futuro, passarei a usá-la como norma... porque realmente quero ser digno de Eunice. Quero que «Joan Eunice» seja uma dama tão perfeita quanto o foi Eunice. Nestas mesmas circunstâncias e estando exatamente tão ansiosa de mostrar sua gratidão a dois cavalheiros simpáticos e maravilhosamente úteis... Eunice teria vestido a túnica antes? Ou teria roçado sua pele macia neles e deixado que eles a bolinassem um pouco, se quisessem... e eles queriam, como estou certa de que você percebeu. Pense a esse respeito, Jake. Você conheceu Eunice melhor que eu. Sabemos disso... Portanto, me dê uma resposta franca, porque vou usá-la como guia na tentativa de ser Eunice. Teria ela sido prudente? Ou teria se entregado?

Jake Salomon deu um suspiro que era quase um resmungo.

— Raios, você fez exatamente o que Eunice teria feito. Foi isso o que me aborreceu.

Joan suspirou.

— Obrigada, Jake, estou me sentindo melhor. — Desamarrou o cinto de segurança, acercou-se dele, correu o polegar pelo fecho magnético da túnica. — Não posso continuar com esta roupa incômoda aqui. Beije-me, Jake, beije-me melhor que eles. Beije-me, apalpe-me e diga-me que Eunice teria orgulho de mim.

— Joan!

— Não me faça sentir vergonha, Jake. Agora sou uma moça e necessito ser beijada tão intensamente que esqueceremos que beijei aqueles dois. Me chame de «Eunice», querido. Por favor, é meu nome e quero ouvi-lo chamar-me assim e dizer-me que sou uma moça bacana.

Ele resmungou:

— Eunice!

Ela ergueu o rosto para ele.

— Beije-me, querido.

Trêmulo, Jake acedeu.

O beijo prolongou-se. Bastaram alguns segundos a Joan para fazê-lo passar de suave a vigoroso, sem que ele recuasse. (Eunice? Vou desmaiar) (Não vou deixar, querido. Estou esperando há muito por isto!)

Jake finalmente parou o beijo, mas Joan continuou colada a ele, que manteve o abraço. Ela suspirou e passou a mão no rosto do advogado.

— Obrigada, Jake, meu querido... por isto e por tudo.

— Obrigado a você, Eunice. Joan Eunice.

— Deixe-me ser Eunice um pouco mais. Sou bacana? Ela se orgulharia de mim?

— Hum... sim!

— Me esforcei. Querido Jake, você acredita em espíritos? Acho que Eunice deve estar aqui conosco. Eu nunca poderia ter beijado tão bem sem a ajuda dela. Sinto isso com freqüência.

— Hum, é uma idéia interessante. (Hmmf! Devemos fazer-lhe cócegas por causa disso. Joan, se você tocar nas costelas dele, Jake levantará vôo. Indefeso) (Lembrarei disso. Mas hoje não) Seja como for, ela ficaria orgulhosa de você. Você é uma doçura.

— Quis ser. Para você. Amo-o, Jake. Jake hesitou um instante.

— Amo-a, Eunice. E amo Joan Eunice.

— Estou satisfeito por ter incluído ambas. Querido Jake, vai ter de casar comigo. Sabe disso, não?

— O quê? Oh, meu Deus, não seja boba, querida. Amo-a... mas há uma grande diferença de idade entre nós.

— O quê? Ora bolas! Sei que sou quase um quarto de século mais velha que você. Mas agora não se percebe. Além disso, você me compreende, o que possivelmente não acontecerá com outro homem.

— Hem? Quis dizer que estou velho demais para você.

(Joan, não o deixe falar assim! Diga-lhe que os homens e as bebidas melhoram com a idade. Ou coisa semelhante. De qualquer maneira, ele estava parecendo bastante jovem há poucos minutos... eu notei. E você?) (Eu também. Agora fique calada, por favor)

— Jake, você não é velho. Meu Deus, eu sei o que é ser «velho»! Você é um clássico, Jake... e os clássicos melhoram com a idade. E... há poucos minutos você estava se sentindo muito jovem. Eu notei.

— Hum... é muito possível. Mas nada de insolência... garota. Ela deu uma gargalhada.

— Jake, é maravilhoso ser uma garota para você. Não vou discutir. Esperarei. No devido tempo, você perceberá que precisa de mim e eu de você e que ninguém mais interessa a ambos. Então, você poderá fazer de mim uma mulher casada.

— Arrumpf! Isso poderá estar acima das minhas forças, mesmo com uma licença de casamento.

— Querido grosseirão. Eu posso esperar. Você não me escapa, Jake. Eunice não o abandonará,

— Bem... não vou discutir isso, só serviria para você ficar mais teimosa. Em ambas as personae. Meu velho amigo Johann era o sujeito mais teimoso que conheci... e Eunice era tanto quanto ele, à sua maneira suave. E, querida, eu nunca sei qual dos dois você é. Às vezes penso que você tem aquela personalidade dividida que seus médicos temiam.

(Faça-o mudar de assunto!) (Farei, querida... mas não de supetão. Nunca iremos dizer a ele?) (Vamos, é claro. Mais tarde, Joan. Não até termos certeza. Lembre daquelas correias)

— Querido Jake, não me surpreende você pensar assim a meu respeito... porque eu também penso. Oh, não há nada de^ psicopático, mas apenas a estranha situação em que me encontro. Você me conhece há quanto tempo? Um quarto de século.

— Vinte e seis anos, quase vinte e sete.

— Isso. E nos quais nunca dei margem a sentimentos das empregadas... você diria que «Velho bastardo cornudo» era uma honesta descrição da minha pessoa?

— Nunca vi você se comportar em relação às mulheres a não ser com cavalheirismo.

— Oh, deixe disso, Jake! Neste instante você está falando com Johann. Seja franco comigo.

Salomon riu.

— Johann, acho que você foi um velho bastardo cornudo até o dia em que foi operado.

— Gosto mais assim. Passei anos pensando nesse assunto... inicialmente por motivos sociais: o fato de que um velho parece louco se se comporta como um garanhão jovem. E mais tarde no período da enfermidade e da incapacidade física... durante anos interessei-me incansavelmente por rostinhos lindos e belas pernas. Então obtive o corpo jovem e saudável de Eunice. Mulher. Olhe para mim, Jake. Mulher.

— Já notei!

— Não da mesma maneira que eu! Muito embora você tenha me beijado — um beijo de verdade que eu adorei, querido — não pode ter notado a maneira pela qual me forcei. Agora estou no período, Jake, governado pela Lua. Fiquei menstruada duas vezes. Sabe o que isso significa?

— Hem? É um fenômeno natural. Significa saúde.

— Significa que o corpo comanda o cérebro da mesma maneira que este o corpo. Fico de mau humor e com vontade de chorar imediatamente antes do meu período. Minhas sensações, minhas emoções, mesmo meus pensamentos, são femininos — apesar de eu ter tido quase um século de emoções e atitudes masculinas. Pegue minha linda enfermeirinha-acom-panhante, Winnie... e você gostaria de pegá-la?

— Hum... vá para o inferno, Johann! Ela é uma moça ótima. Quinta Emenda. *

 

* A Quinta Emenda (1791) à Constituição (1789) proíbe que alguém testemunhe contra si mesmo (N. do T.).

 

— É mesmo uma moça ótima. Mas porque sou ao mesmo tempo Eunice e Johann, sei como Winnie pensa. Ela é tão feminina como uma gata no cio... e você é um touro velho, Jake, dominador, que se quiser pegar Winnie ela não oferecerá mais que uma pequena resistência.

— Joan Eunice, não diga bobagens. Tenho três vezes a idade dela (Patrão, aonde quer chegar?) (Não tenho certeza, mas a alguma coisa) (Bem, não atinja Winnie de passagem. Pensei que estava reservando Jake para nós) (Não seja voraz, sua gulosa. Winnie é enfermeira. Olha suas possibilidades tão cuidadosamente quanto escova os dentes)

— Querido Jake, neste corpo não sou muito mais velho que Winnie... e você conheceu e amou este corpo, embora eu não me lembre. Sabemos que Eunice foi sempre uma dama... assim, como fez para ter relações com ela? Violentou-a? (Não, que inferno, eu o violentei... mas ele facilitou)

— É uma pergunta indiscreta!

— É uma pergunta muito feminina. Conhecendo você em todos estes anos de trabalho — e conhecendo Eunice não só de todos estes anos de colaboração mas, o que é muito mais importante, por usar agora seu corpo, suas glândulas, hormônios e emoções as mais profundas — desconfio que você ficará bastante orgulhoso de dar um passo na direção dela, se Winnie encontrar uma forma de deixar claro que você será bem recebido. Assim que você teve certeza de que Eunice não zombaria de você... ficou tudo resolvido. Bem? Tenho razão? (Se ele disser não, está mentindo. Levou cinco minutos, irmã. E teria acontecido tudo em dez se não tivéssemos sido interrompidos. Tivemos de esperar até o dia seguinte. Lembra da pintura de sereia? Tive de removê-la antes de chegar em casa. Jake a estragou... e fui obrigada a contar a Joe uma mentira convincente) (E ele acreditou?) (Acho que sim. Estava pintando... o que quer dizer que dificilmente prestaria atenção a outra coisa)

— Jake, vai responder? Ou vai deixar que eu tire minhas próprias conclusões... possivelmente erradas?

— Posso responder que não é da sua conta!

— Você teria razão e Johann pediria desculpas. Mas não Eunice. Jake, aquilo que o corpo de Eunice me disse deve ter acontecido. Mas não posso ter certeza e quero ser igual a ela e se não foi o que ela teria feito porque não foi o que fez... então me diga. Não estou perguntando detalhes íntimos. (Uau, consiga as partes mais picantes, queridinha... quero saber o que pareceu a ele cada detalhe do ato. — Sei o que me pareceu... e já direi a você) (Não seja tão apressada, querida... estou procurando abrandá-lo)

— Joan Eunice... não, Eunice! Você sempre teve um raio de maneira de conseguir o que quer.

— É uma resposta, Jake? Não tenho a memória de Eunice. (Quem disse? Patrão, imaginei uma coisa... e não foram lombrigas. Todos têm memória apagável e não-apagável, exatamente como a Betsy... e a não-apagável é a parte minha que ainda está aqui, agora que estou morta. A «alma», talvez. Os nomes não importam. É a parte que não é apenas glândulas e veias) (Guarde a filosofia para quando estivermos sozinhos na cama logo de noite, Eunice. Estou tentando enfrentar um homem... e é uma coisa difícil) (Você pensa que vamos ficar sozinhos na cama logo mais? Quer apostar?) (Não sei... e estou com medo) (Não tenha medo. Quando chegar a hora, entoe o Money Hum * e deixe comigo. Uma volta na pista e estará em condições de agir sozinho. Com a diferença de que estarei sempre com você. É ainda melhor ser você do que foi ser sua secretária. Ou será, logo que voltemos a ter relações sexuais) (Hem?) (Essa conversa de alma, querido... quer dizer sexo. Tive-o durante quatorze anos... estou esfomeada) (Eu tive durante cinco vezes mais:.. e estou pelo menos cinco vezes mais esfomeado) (Pode ser... patrão, o senhor é uma cadela chifruda)

 

* A pronúncia de Mani e Money é a mesma (N. do T.).

 

Jake finalmente respondeu:

— Joan, não acho justo com Eunice andar contando por aí o que lembro dela... mas compreendo seu ponto de vista, considerando que você quer aprender, para seu próprio governo, tanto quanto possível sobre o comportamento dela. Eunice era honesta e franca — (Sou falsa como uma cobra... mas queria que Jake pensasse isso) — e aparentemente achou que gostava tanto assim de mim... e facilitou-me as coisas. Não foi estupro nem sedução. (Foi ambas as coisas, mas eu não queria que ele pensasse que fosse. Ele é uma graça, Joan. Quando estiver suficientemente amansado... meta-lhe o freio na boca. Mas faça-o pensar que foi por vontade própria) (Vou tentar. Entretanto, vou continuar fazendo esta exibição emocionai... e você fique ouvindo em vez de interromper. Pode aprender algo a meu respeito) (Serei boazinha, patrão. Bastante boazinha)

— Tenho a certeza de que deve ter sido assim, Jake... conhecendo a ambos como conheço. Mas é apenas o lado meu como sou agora... o lado «Eunice». O outro é Johann, com quase um século de orientação masculina. Disse-lhe que agora compreendo Winnie, a garota... porque agora sou também garota. Mas ainda há Johann, diariamente sozinho com Winnie... e apenas consigo manter minhas mãos longe dela. (Hmmpf! Você não consegue) (Eu a mandei calar a boca! Nunca permiti-me ir além de abraços apertados. Se você e eu percorremos a Rua das Bichas, sua sereia sem-vergonha, foi como sobremesa e não como prato de resistência) (Àquele prato não resisto!) (Bico calado!) Compreende, Jake? O velho Johann — eu! — pensando que Winnie é realmente um prato.

— Bem... compreendo... em Johann.

— Será que compreenderia em Eunice? Jake, qual sua opinião sobre o homossexualismo?

— Não tenho opinião. Nunca me interessei.

— Não teve nem mesmo curiosidade? Jake, sou uma geração mais velho que você. Quando eu era garoto, o homossexualismo ou «perversão», como era chamado, era tão misterioso quanto um mito. Só ouvi falar a respeito muito depois de me fixar nas garotas. Oh, não quero dizer que não houvesse nenhum homossexual. Hoje sei que havia aos montes. Mas pouco se falava neles e o assunto era conservado em segredo. Quando fiz quinze anos, um homem me cantou... mas eu não sabia o que ele queria. Só fiquei com medo.

— Um garoto de quinze anos de hoje continuará tão inocente assim? Você sabe que não. Há livros, revistas, fotografias — e outros garotos — para garantir que ele compreende, mesmo que não participe. O governo só falta patrocinar o homossexualismo, como um meio de refrear nossa remota superpopulação. Patrocinaria abertamente, tenho a certeza, se não houvesse uma grande porcentagem que o desaprova publicamente enquanto o pratica em particular. Isso me faz lembrar aquele estranho período da minha juventude, quando o povo votou seco e bebeu molhado e os contrabandistas de bebidas passaram a ser mais procurados que o merca-do-negro de carne hoje. Quanto tempo faz que o último «ataque sexual» foi condenado?

— Estupro com violência continua a ser. Não me lembro de outros nos últimos vinte anos. Leis severas sobre sexo são coisas do passado. As decisões do Supremo Tribunal tornaram-nas impossíveis de ser executadas. Corrijo: gravidez sem licença é crime federal de acordo com uma cláusula do Bem-Estar Geral... mas freqüentemente imaginei o que aconteceria se alguma vez permitissem que um caso chegasse ao Supremo Tribunal.

— Esse é o único «crime sexual» que não era crime na minha infância, Jake. Mas estou falando de «crime contra a natureza» que hoje não é mais crime. Nem é mesmo um pecadinho e provoca menos reprovações que fumar. Todavia, quando o homossexualismo tornou-se socialmente aceitável, minhas atitudes havia muito tempo eram frias. Mas fico pensando no que Eunice achava a respeito? Conversou com ela sobre isso?

Jake bufou.

— Acredite, Johann — desculpe, Joan Eunice — que não tivemos tempo para assuntos desse tipo!

— Suponho que não. Ela tarnbém nunca o discutiu comigo. (Mentiroso!) Mas uma vez passou-me um suave pito por causa disso.

— Foi? Por quê?

— Oh, um dia, antes de me pregarem na cama, um mensageiro entregou algo no meu escritório. Ele era uma bicha escrachada: pintura em excesso, cabelos encaracolados e rebolava. Falava como uma mulher-zinha e fazia gestos muitos graciosos. Depois que ele saiu, fiz um comentário grosseiro e Eunice me disse suavemente que, embora não achasse aquele tipo de rapaz atraente, não via nada de errado num homem amar outro homem, nem uma mulher outra mulher. (Ei! Não lembro nada dessa conversa) (Então sou mentiroso. Mas você podia ter dito isso... e estou fazendo uma sugestão)

— Sim, isso é bem da Eunice. Ela era tolerante com as fraquezas das pessoas.

— Meu ponto de vista é que Eunice, naquela idade, estava certa ao ser indiferente às... talvez eu deva dizer «compreensiva a respeito» do que Johann considerava «perversidades». Mas eis onde quero chegar, Jake: acho Winnie sexualmente atraente. E também acho Alec Train e o juiz McCampbell. O que me espanta. E você... o que não me espanta. Mas hoje, pela primeira vez, fui verdadeiramente beijado por homens realmente masculinos. E gostei. Fiquei abalado. (E o querido doutor?) (Bico calado, boquinha doce... desse não contaremos ao Jake)

Joan Eunice continuou:

— É esse o meu dilema. Quando me tornei homossexual? Com Winnie? Ou com vocês três, touros machíssimos?

— Joan, você faz as perguntas mais infernais.

— Porque estou na mais infernal situação em que um homem possa se encontrar. Não sou o resultado comum de mudança de sexo de um homossexual, que se vale da cirurgia e de injeções de hormônio para transformar seu corpo masculino numa mulher falsificada. Nem mesmo sou uma mistura XXY ou XYY. Este corpo é uma mulher normal XX. Mas o cérebro contido nele tem circunvoluções masculinas e muitos anos de entusiástica experiência de sexo masculino. Por isso me diga, Jake: quando sou normal e quando sou perveerso?

— Hum... sou obrigado a dizer que o comando pertence ao seu corpo feminino.

— Mas comandará? Os psicólogos afirmam que o desejo sexual e o orgasmo estão situados no cérebro... não nos órgãos genitais. Meu cérebro é XY.

— Acho que você está querendo confundir a testemunha.

— Não, Jake. Eu é que estou confuso. Mas possivelmente não tão confuso quanto os jovens de hoje. Você sabe que eles afirmam ter seis sexos.

— Ouvi dizer. Maluquice.

— Não totalmente. Andei lendo montes de coisas durante minha prisão domiciliar de fato, tentando descobrir quem sou, o que sou e como devo me comportar. Eles rotulam esses sexos, tanto pelo comportamento como pela fisiologia, de acordo com uma nova escola de psicologia — quando não houve uma nova? — que os classificou para eles. Os seis são: orto-masculino, ortofeminino, ambimasculino, ambifeminino, homomasculino, ho-mofeminino... e alguns acrescentaram um sétimo, os solitários ou narcisistas. E até um oitavo, o não-sexo, os neutros tanto física como psicologicamente.

— E continuo dizendo que é uma maluquice.

— E eu também, mas por motivos diferentes. Da minha única experiência, abarcando ambos os sexos físicos diretamente e não por ouvir dizer, digo que há apenas um sexo. O sexo. O SEXO! Algumas pessoas têm um impulso sexual tão pequeno que podem muito bem ser neutras, não importando se são côncavas ou convexas. Algumas pessoas têm uma natureza sexual muito forte... e ainda aqui a forma do corpo não importa. Como o meu antigo eu, cornudo muito tempo depois do sexo ter me abandonado. Como você, querido... fazendo de uma encantadora jovem casada, com a metade da sua idade, sua amante. Como Eunice... feliz no casamento, imagino...

— Sim, foi feliz. Sinto remorsos por isso.

— Mas não o bastante para partilhar de suas riquezas. Jake, eu não falaria com você, se você tivesse zombado dela. Eu ia citar Eunice como o terceiro exemplo de uma pessoa fortemente sexuada. Há bastante impulso sexual no corpo dela — eu sei! — para tudo. Há bastante amor no seu coração — tenho a certeza — para quantos ela quiser. Sei que ela me amou, muito embora tenha sido calorosamente empática para me enganar, oferecendo-me o que eu não podia aceitar e dando-me, generosamente, a única coisa que eu podia aceitar: sua beleza para os meus olhos. Jake, acho que só o tempo limitou o amor de Eunice. Ela o fez feliz...

— Sem a menor dúvida!

— E também tenho a certeza de que o fez sem prejudicar o marido. Jake, você tem algum motivo para pensar que ela só se entregava a você... e ao marido?

— Hum. Que inferno, Johann! Não sei. Mas acho que não tinha tempo. Hum, preenchi todo o tempo livre que ela pôde arranjar.

(Olhe, patrão, lhe contarei tudo sobre todas as vezes em que lutei por igualdade de direitos. Não chateie Jake) (Você não está percebendo, Eunice. Estou forçando Jake a remover Santa Eunice do seu pedestal... a única maneira de agarrá-lo)

— Como sabe? Tem certeza de que ela não lhe contou o mesmo tipo de mentirinhas que contava ao marido? Nesse assunto, Jake, Joe podia ser tão orgulhoso de seus chifres quanto um veado velho... a porcentagem de maridos satisfeitos com o adultério das esposas tem crescido firmemente neste país pelo menos desde 1950... veja as pesquisas a respeito de sexo. Que ele a amava, ambos temos a certeza. Mas isso não prova que ele tenha procurado mantê-la prisioneira. Ou que quisesse mantê-la.

— Joan, gostaria muito de saber que você não está afastando Eunice de mim.

— Querido Jake! Não a estou afastando. Estou procurando descobrir o que você sabe a respeito dela, de maneira a poder me comportar igual a ela. Eu a amava... e amo-a hoje ainda mais. Mas se você me disser que sabia ter sido ela amante de outros seis homens, uma prostituta completa, e transado com mulheres nos intervalos... bem, nunca soube que você me tivesse mentido, Jake, e por isso procurarei dar um jeito de me portar igual. Você não me disse muito, mas o que me contou confirma o que eu acreditava: que Eunice era uma dama perfeita, com um grande coração capaz de amar três homens ao mesmo tempo e dar a cada um deles exatamente o que necessitava para ser feliz. (Obrigada, patrão. Devo me curvar?) (Silêncio, belezinha) Mas nunca uma devassa, uma vagabunda e — embora não fosse orgulhosa — duvido que Winnie a tivesse interessado. (Essa não!) (Querida, estou apenas dizendo o que ele quer ouvir... se você deseja Winnie, precisamos afastá-la de Jake) (Quem deseja Winnie? Você, velho sujo!) (Ambos desejamos... mas talvez seja avisado não dar demonstração. Amada, Winnie nunca nos olhará havendo um homem por perto) (Quer apostar?)

Joan suspirou.

— Jake, com minha singular herança dupla, seria muito fácil tornar-me ambimulher. Não me torno porque acho que Eunice não faria isso. Com o profundo impulso feminino que este corpo tem com a corrente sangüínea repleta de hormônios e gônadas do tamanho de cabaças, como ele está — posso facilmente ser «Smith Sem Calças, a Moça Mais Fácil». Muito facilmente... pois Johann Smith foi um velho vulgar que só lamentava as tentações que foi obrigado a recusar. Mas não vou fazer isso, visto que Eunice não se comportou assim. Porém se eu não me casar muito breve, vai ser muito difícil para mim resistir.

— Joan, eu a amo... mas não vou casar com você. Nem por um decreto.

— Então é melhor que você ajude minhas netas a me depenar.

— Hem? Por quê?

— Você sabe. Um multimilionário que é jovem e mulher está em melhor situação para arranjar um bom marido que um cachorro de papel de seda para caçar um gato de amianto nos fogos do Inferno. Há montes delas em nossa terra... e todas sempre conseguiram príncipes georgianos, mestres de equitação e outros gigolôs. Não quero um e não vou tê-lo. Prefiro ser pronta, como Winnie, e pegar o amor onde o encontrar. Jake, além do fato de que você me entende melhor que ninguém, você continua entre os meus dez mais porque meu dinheiro não o impressiona. E há a coisa maravilhosa que é o fato de eu o amar e você a mim. Qualquer casamenteira nos consideraria um casal ideal.

— Dificilmente. Ainda há o problema da idade: idade física. Joan, um homem que casa na minha idade não está tomando uma esposa e sim contratando uma enfermeira.

— Ora pílulas, Jake! Você não precisa de uma e aposto dinheiro como você continuará forte e viril durante o período da minha educação. Mas quando você precisar de enfermeira, serei a sua. Enquanto isso, cantaremos «September Song»... você canta e eu faço a segunda voz.

— Sou baixo. E não quero cantar «September Soüg».

— Jake? Podemos comprar-lhe um corpo novo. Quando você precisar.

— Não, Joan. Tenho tido uma vida boa e longa, quase sempre feliz, sempre interessante. Quando chegar meu dia, partirei silenciosamente. Não quero cometer o erro que você cometeu, não quero deixar que meu corpo caia nas mãos dos médicos, com seus rins artificiais, comutadores e tubos. Morrerei como morreram meus antepassados.

Joan suspirou.

— E você me chama de teimosa. Levei-o ao pico de uma alta montanha e mostrei-lhe os reinos da Terra... você me disse que era Los Angeles. Está bem, não o importunarei mais... e aceitarei com humildade todo o amor que puder me dispensar. Jake, pode me levar à cidade e apresentar a rapazes casadouros? Você é capaz de descobrir um caça-dotes... desconfio de que Eunice seria muito ingênua, muito inclinada a pensar bem das pessoas. (Corta essa, patrão. Arranjei um gigolô de olhos abertos... e uma vez que não estava brincando, comprei o que havia de melhor) (Sei disso, querida... mas os Joe Branca neste mundo são tão raros quanto os Jake Salomon)

— Joan Eunice, se precisar de mim para acompanhá-la, terei muita honra... e farei o possível para manter os pilantras afastados.

— Colaborarei com você nisso, meu querido não-tão-velho-assim. Jake, perguntei-lhe se você acreditava em espíritos. Tem alguma religião?

— Hem? Nenhuma. Acho que você sabe que meus pais eram Ortodoxos.* Minha oração de Bar Mitzvah ** foi tão elogiada que tive de lutar para estudar advocacia em vez de ser educado para rabino. Mas me libertei de tudo antes de entrar para o colégio.

 

* Judeus que cumprem rigorosamente os preceitos bíblicos, como são interpretados pelos rabinos (N. do T.).

** Cerimônia iniciatória do jovem judeu, que aos 13 anos atinge a idade do dever e responsabilidade religiosos (N. do T.).

 

— Mais ou menos como eu. Meus avós eram católicos originários do sul da Alemanha. Por isso os padres quiseram logo me pegar. Então mudamos para o Meio Oeste antes de eu entrar para a escola e papai, que nunca fora devoto, achou que seria melhor — melhor para os negócios, talvez — tornar-se batista. Portanto, mergulhei na rotina do círculo bíblico, com os fogos do inferno, danações e meus pecados lavados pela imersão total. Foi a doutrinação do círculo bíblico que fixou especialmente as atitudes inconscientes.

«Mas, consciente e intelectualmente, livrei-me de tudo isso aos quatorze anos... provavelmente a única façanha intelectual real da minha vida. Tornei-me um ateu agressivo — exceto em casa — recusando-me a acreditar em tudo o que não pudesse tocar. Então saí dessa. O ateísmo é tão fanático como qualquer religião e não é do meu temperamento ser fanático. Tornei-me um moderado agnóstico, inseguro quanto às respostas definitivas, porém bastante mais paciente. Segui esse caminho durante três quartos de século: deixei a religião aos shamans * e esqueci-me dela.

 

* Padres russos que usavam mágica para curar os doentes, para revelar mistérios e provocar acontecimentos (N. do T.).

 

— Essa é a minha política.

— Sim. Mas deixe-me contar-lhe algo que aconteceu quando eu estava morto.

— Como? Você nunca esteve morta, Joan — Johann, que diabo! ficou apenas inconsciente.

— Não estava, hem? Sem corpo, com meu cérebro cortado do mundo e eu sem mesmo ter consciência de mim mesmo? Se isso não é morte, Jake, é um fac-símile exagerado. Disse-lhe que pensei ter o espírito de Eunice me estendido muitas vezes a mão.

— Você me disse e eu não tomei conhecimento.

— Seu velho bastardo teimoso! Não fiz sessões e coisas assim. Mas eis o que aconteceu. Quando ficava na dúvida — muito freqüentemente naqueles dias — eu me perguntava: «Que faria Eunice?» Era o suficiente, Jake: tinha logo a resposta. Nada de ectoplasma ou vozes de um médium... apenas um conhecimento instantâneo não baseado na minha própria experiência. Como nesta tarde, quando resolvi, no espaço de um segundo, beijar Alec e Mac. Sem nenhuma hesitação: você viu! Não era assim que o velho Johann se comportaria... e você me disse logo que eu me comportara como Eunice o faria. Daí parecer que seu espírito amável está me guiando. Tem algo a dizer?

— Hummm... não. Você age igual a ela... mesmo quando me diz francamente que está falando como Johann. Mas não acredito em espíritos. Johann, se eu pensasse que teria de continuar a ser Jake Salomon por toda a eternidade eu... bem, faria uma reclamação no Escritório Central.

— Deixe-me contar-lhe o que me aconteceu no Escritório Central.

— Hem?

— Quando estive morto, Jake. Fui parar naquele... lugar. Lá estava um Homem muito velho, com uma longa barba branca. Tinha um livro enorme. Olhou-me, consultou Seu livro e tornou a olhar-me. Disse: «Filho, você foi um menino mau. Mas não tão mau assim. Por isso vou lhe dar outra chance. Esforce-se ao máximo e não se preocupe. Será ajudado». Que acha, Jake? (Que é isso, patrão? Também lhe aconteceu?) (Eunice, se aconteceu a você, também me aconteceu. É a mesma coisa. É você é a minha ajuda, amada. Meu anjo da guarda) (Oh, raios! Não sou anjo, sou eu) (Um anjo muito terrestre, minha amada... exatamente o que preciso) (Também o amo, seu velho sujo) Salomon respondeu calmamente:

— Antropomorfismo. Saído diretamente da escola de ensino religioso dominical.

— Oh, sem dúvida. Tinha de ser com símbolos que eu entendesse. Se eu fosse uma criatura dos arredores de Próxima de Centauro, o Velho e a barba poderiam ter sido uma Coisa com oito tentáculos e olhos facetados. Símbolos, chavões nada têm a ver com isso, Jake. Nunca pensei que aquilo tivesse sido uma experiência física. Os homens vivem pelos símbolos, Jake. Aquela — simbólica — experiência foi tão real para mim quanto qualquer experiência física. E permita-me que assinale que tive uma segunda chance, tenho e continuo tendo muita ajuda... especialmente de você, de Mac e Alec, de médicos e enfermeiras... e também de algo interno que me diz instantaneamente, em qualquer situação difícil, como Eunice resolveria o problema. Não estou dizendo que é Eunice... mas não é Johann. Ele não saberia como fazer. Bem?

Salomon suspirou.

— Não há limites para a invenção de deuses. E quase sempre antropomórfica. Joan, se você vai se deixar dominar por essa espécie de auto-ilusão, por que não resolver logo o negócio entrando para um convento?

— Porque Eunice não o faria. Embora ela pudesse gostar de reformar um mosteiro.

Jake deu uma risadinha.

— Isso ela podia.

— Talvez eu tente... já que você está querendo fazer de mim uma mulher honesta. Ou melhor, mudarei outra vez de nome, desaparecerei e terminarei num bordel em Bombaim. Jake, você irá me visitar?

— Não, é quente demais.

— Conversa. Velho encabulado. Você não recusaria ver Eunice por causa do calor.

— Eunice nunca terminaria num bordel.

— É verdade. Por isso tenho de ser uma dama, muito embora seja um esforço para o velho Johann.

— Pobrezinho dele. Você só tem juventude, beleza e quase a metade do dinheiro do Imposto Sobre a Renda.

— E tenho você, Jake. Posso perder o resto e ainda ser rico. (Fico pensando se você pode ver essa abertura. Irmã, você não precisa dos meus conselhos. Acho que vou tirar férias) (Você prometeu ficar!) (Prometi, querido patrão. Não posso ir. Somos irmãos siameses. Mas mesmo que pudesse, eu ficaria porque quero) (Amada Eunice, nunca fui mais feliz na vida) — Joan Eunice aproximou-se de Jake. — Querido Jake, nunca fui mais feliz na vida.

Surgiu do teto uma voz metálica, dizendo: «Vou fazer uma volta para pousar. Por favor, apertem os cintos».

Salomon respondeu: «Os cintos estão colocados e agora apertados. Prossiga o pouso». E, para Joan:

— Fique vertical, Eunice, e puxe o fecho magnético para cima. Joan Eunice fez beicinho e obedeceu.

 

O exame de segurança levou pouco tempo. Salomon era conhecido dos guardas do conjunto e o cóptero estava sendo esperado. A distância entre o pouso e a casa de Salomon era pequena mas, como em todos os conjuntos de alto nível, os habitantes que se encontravam no exterior das casas fingiram não vê-los. A porta abriu-se à voz de Jake e tornaram a ficar sós.

Joan Eunice tirou sua túnica de rua e estendeu-a a Jake, dizendo:

— Posso olhar a casa? Jake, estive aqui há anos. Você fez modificações.

— Algumas. Transferi minhas coisas pessoais para o Gib ou para sua mansão, deixando apenas os móveis, que comprei com a casa. Oh, conservei aqui algumas roupas e objetos de toalete e posso conseguir um drinque e uma lata de biscoitos para nós. Talvez ostras defumadas e caviar. Vamos ter de matar uma hora ou duas. Ou posso mandar buscar o jantar fora.

— Deixe eu ver o que há na cozinha. Teria prazer em fingir de dona-de-casa. E tenho vontade de dar uma olhada por aí.

— Olhe o que quiser, mas me diga o que quer beber. Joan, você alguma vez entrou numa cozinha?

— Feche o bico, rapaz. Sou uma boa cozinheira. Mamãe me ensinou a fazer apfetstrudel — uma massa folhada tão fina que se pode ler através dela e tão leve que desmancha na boca — antes de você nascer. Quero sherry ou Dubonnet com soda — nada de aguardente, pois ainda não posso me arriscar.

— Menina, um dia apostarei minha cozinha kosher* contra seus mingaus bávaros. Os goy** não conseguem cozinhar tão bem quanto o Povo Eleito.

 

* Alimentos preparados ritualmente, de acordo com a lei judaica (N. do T.).

** Gentios. As nações não judaicas. Também goyin (N. do T.).

 

— Bobagem, seu falso judeu. Você nunca provou minha carne grelhada com talharim. Me formei com esposas — e cozinheiras — e amantes e sempre cozinhei. Jake, não seria divertido cozinharmos um para o outro e trocarmos receitas? Podemos fazer isso aqui. Não ouso entrar em minha própria cozinha. Dela desmaiaria.

— Vai ser divertido. Podemos comer minha comida quando seus mingaus não ficarem bons. Com licença, vou ver o que há para beber.

Joan Eunice caminhou diretamente para o quarto principal. (Eunice, este é um dos lugares?) (Claro. Patrão, está vendo aquela depressão na cama? Este foi o único lugar onde passamos uma noite inteira. Celestial!) (Uma noite inteira? Então os motivos deles são mais que suspeitos: eles sabem) (Oh, podem suspeitar, mas não importa. Charlie não se interessa por mulheres e Rockford... bem, joga no meu time. Concorda com tudo o que é imoral, ilegal ou desonesto... e meu comportamento, pelos padrões dele, é tudo isso. Ele é um passadista. Mas quanto à noite toda... duvido que desconfiem. Usamos mais cobertura para manter a coisa escondida do que Joe seria capaz de ver: coisas envolvendo dois carros alugados da Brink e uma missão inexistente para você) (Como conseguiu ocultar de Joe?) (Não ocultei. Imaginei uma história e disse a Joe que gostaria de usá-la... depois disse-lhe que havia encontrado um homem com quem eu queria passar a noite... ele se importaria se eu passasse fora a noite de quarta-feira?)

(Tão fácil assim?) (Sim, patrão. Ambos éramos livres mas procurávamos não ferir um ao outro. O nosso era um contrato de segunda classe, uma vez que eu tinha licença para procriar e Joe não. Ambos poderíamos fazer o cancelamento com um aviso prévio de três dias)

(Mas Joe disse o quê?) (Balançou a cabeça e continuou pintando. Deu-me um beijo de despedida e desejou-me felicidades. Joe sempre foi amável. Mas não deve ter sentido falta de mim. Estava usando um novo modelo, um lindo rapaz, que tinha um ar ordinário. Joe pode ter mudado o destino dele. Às vezes mudava)

(E você não se importou?)

(Com aquele lindo rapaz? Patrão, o senhor tem de se mudar para o século vinte e um, agora que é eu. Que mal poderia haver? Disse-lhe mais de uma vez que Joe e eu sempre tínhamos o máximo interesse pela felicidade um do outro. Que é que eu queria mais? Além disso, eu não sabia se Joe estava de olho nele além de modelo mas... se aquele rapaz tivesse me convidado para ir para Tróia com ele, por uma noite ou duas, eu não teria me incomodado. Sempre preferi homens mais velhos... mas o rapaz era belo como um Palomino* e limpo como uma taça esterilizada. Eu não teria me chateado. Além do fato de que uma mulher fica envaidecida se dois homens gostam dela o suficiente para deixá-la ver o que estão fazendo)

 

*Cavalo de pernas esguias, de origem árabe, de pelo marrom-claro ou creme, e o rabo amarelo-claro ou branco (N. do T.).

 

(Eunice, meu amor, você continua a me espantar. Eu nunca teria lembrado desse ângulo. Sim, acho que seria, de certa maneira, um cumprimento. Acho que os homens — mesmo os de hoje — são recatados a respeito dessas coisas. Mais que as mulheres)

(Os homens são terrivelmente envergonhados, patrão, enquanto que as mulheres habitualmente não são. Apenas fingimos, quando esperam isso de nós. Olhe, a mulher é um ventre com uma bomba-relógio dentro, sabem disso e não podem se livrar dela. Têm de deixar de ser envergonhadas — não importa como fazem para agradar aos homens — ou ficam loucas. É a opção que temos de fazer, querido. Aceitar nossa feminilidade e conviver com ela. Ser feliz) (Acho que sim) (Está chegando lá. Mas às vezes soa como a bravata de um garotinho que diz: «Nem tenho medo!» quando na verdade está a ponto de molhar as calças de tão apavorado) (Bem, talvez. Mas eu tenho você segurando minha mão) (Sim, meu amor. Mamãe tomará conta de você)

Joan entrou no banheiro de Jake, inicialmente para bisbilhotar. Tinha acabado de encontrar algo que mais ou menos esperava, quando ouviu a voz de Jake.

— Ei! Onde está você? Oh! Entrando ou saindo? Servi seu Chablis sobre gelo, que foi o melhor que pude fazer.

— Vai ficar ótimo. Jake isto era dela?

Mostrou um luxuoso roupão, sessenta gramas de um tecido diáfano. Jake engasgou-se.

— Era. Lamento.

— Eu não lamento. — Subitamente Joan tirou as taças de pressão dos seios, baixou as calcinhas de rendas e saiu de dentro delas, ficando nua das sandálias às sobrancelhas. Depois vestiu o roupão. — Vesti da maneira como ela fazia? Bolas, amarrei da maneira masculina. — Desamarrou o cinto do roupão e passou a aba para a esquerda. — Estou à altura dela?

— Eunice! Eunice!

Ela deixou o roupão abrir-se e escorregar para o chão, atirou-se nos braços dele, que começou a soluçar com o rosto encostado ao seu.

— Pare, querido, Eunice não quer que você chore. Eunice quer que você seja feliz. Ambas: Eunice e Joan Eunice. Me abrace com força, Jake. Estamos perdidos e solitários... e só temos um ao outro.

Enquanto o acariciava e acalmava, Joan Eunice correu o fecho da camisa dele. (Eunice, estou com medo!) (Vai ser fácil, querido. Cante o Money Hum para si mesmo, que eu me encarregarei do resto. Om Mani Padme Hum) (Om Mani Padme Hum. Om Mani...)

Joan foi arrancada disso pelo toque do telefone. Afastou os lábios dos de Jake e começou a chorar.

— Oh, raios!

Jake disse bruscamente:

— Não ligue. Deve ser engano. Ninguém sabe que estou aqui.

— Hum... se não respondermos, tentarão novamente e nos interromperão outra vez. Vou atender, querido. Onde está essa geringonça? Na sala?

— Sim, mas há uma extensão ali.

— Continue a pensar em coisas agradáveis.

Joan correu para o aparelho, com os saltos altos batendo, ficou bem próxima do visor, de maneira a que só seu rosto fosse visto, torceu o comutador... e disse com a mais formal voz de secretária de Eunice:

— Residência de Mr. Salomon. Quem fala? A tela continuou vazia.

«Gravação. Chamada urgente para o advogado Salomon. Terceira tentativa».

— Registrada a urgência. Prossiga. Quem está chamando? Surgiu outra voz, com a tela ainda vazia.

«Esse é o servifone de Mr. Salomon. O juiz McCampbell fez uma chamada urgente. Eu disse ao juiz que o advogado estaria mais provavelmente no clube ou na residência de Johann Smith, porém ele insistiu para que eu ficasse tentando também este código. Ele está aí?»

— Um momento.

Joan olhou para trás e viu, aborrecida, que Jake havia fechado a camisa e apanhado as roupas dela.

— Mr. Salomon está aqui. Pode contatar o juiz McCampbell? Esperarei.

«Obrigado. Um momento».

Joan aproximou-se ainda mais e ergueu o visor de maneira a que ele pudesse apenas pegar seu rosto. Jake foi para o lado dela, estendendo-lhe as roupas. Joan recebeu-as, mas não as vestiu.

A tela iluminou-se.

— Jake, nós... Ei! Irmão Schmidt!

— Alec! Que prazer!

— Afaste-se para que eu possa vê-la, querida. Mac, não empurre —acrescentou Train quando o rosto do juiz apareceu na tela ao seu lado. — Jake está aí?

— Bem ao meu lado, rapazes.

— Só posso ver a camisa dele. Suba numa caixa, querida, para que os dois apareçam na tela. Precisamos conferenciar os quatro. Ou afaste-se.

Aqui está ele.

Joan enviesou mais o visor, comprimiu relutantemente as taças sobre os seios, meteu-se nas calcinhas e prendeu-as no lugar. Então afastou-se.

— Agora podem me ver?

— Não muito bem — respondeu a voz de barítono do juiz. — Jake, recue um pouco. Joan, você precisa de um banquinho. Melhor ainda, Jake, erga-a nos seus braços, seu felizardo,

— Qual é a urgência, cavalheiros? Juiz, obrigado pelo seu aparelho. Fomos transportados rapidamente e em segurança

— De nada compadre.* Jake, o meu velho companheiro de quarto teve uma idéia brilhante: sem dúvida graças à sua longa convivência comigo. — O juiz explicou o que cada um estava querendo fazer no sentido de apressar a confirmação da identidade de Joan. — Aqui pode ser a nossa base comum. Passarei a morar durante uns dias no meu gabinete... preparado para emitir uma ordem, telefonar a um juiz de outro tribunal ou o que for. Depois apressaremos a coisa através do meu tribunal e os juntaremos numa convocação... agarrando-os com firmeza. Nesse meio tempo, Alex será seu sexta-feira. Precisa que ele vá depressa em algum lugar? Ele é burro mas saudável e perder uma noite de sono com a mudança horária de zona é bom para ele.

 

* Em castelhano no original (N. do T.).

 

— Provavelmente não antes de amanhecer. Mas estou aliviado, cavalheiros. Andei matutando em como poderia estar ao mesmo tempo em todos os lugares. Desde que me afastei dos negócios, menos dos de Joan, fiquei sem equipe... e estive esgravatando o cérebro tentando pensar quem eu poderia arranjar, que fosse de confiança e competente. Como sabemos, é um assunto delicado.

— De fato! — concordou Alec. — E vamos dar um jeito naquelas harpias, hem, Mac?

— Vamos... mas legalmente e de maneira a que não possa ser contestado. Jake, você pode nos encontrar aqui... e não hesite em nos acordar se achar que Alec precisa pegar o avião da meia-noite. Você estará onde? Em sua casa?

— Até meu carro chegar. Depois, na de Joan. Ou a caminho. Meu servifone pode ligá-los com a onda do meu carro. É uma viagem longa.

— Ficaremos em contato. Não se preocupe, Jake, nem deixe Joan se preocupar. Ela estará batizada antes que você tenha tempo de dizer «herdeira desaparecida».

— Não estou preocupada — disse Joan —, mas tenho vontade de chorar. Rapazes, irmãos, como posso agradecer?

— Permite que eu diga a ela como, Mac? Ficará ruborizada? Agradeça-me, isso sim, irmão Schmidt, e não ao irmão Mac. Ele apenas cumpre a sua obrigação, pelo que é pago relutantemente pelos cidadãos. Mas pode me agradecer... sou voluntário.

— Agradecerei aos dois, da maneira que quiserem — respondeu Joan, com simplicidade.

— Está ouvindo, Mac? O irmão Schmidt comprometeu-se... e ninguém pode quebrar uma promessa entre irmãos, como diz a velha lei Phi Beta. Irmão Schmidth Joan Eunice doçura, recue e deixe-nos vê-la inteirinha. Jake, afaste-se do visor. Você estraga a estética. Vá tomar uma cerveja. Tire uma soneca.

— Não ligue, ele está bêbado — avisou o antigo colega de quarto.

— E Mac também. Tem sido a nossa atividade. Mas não tão bêbado que me impeça de viajar num foguete dirigido, Jake, se você mandar.

— Jake — disse o juiz —, a coisa está ficando incontrolável. Não que eu esteja em desacordo com esse entusiasmo de baixo nível. Boa noite, cavalheiro. Boa noite, Joan. Fim.

Joan Eunice torceu o comutador, certificou-se de que a tela estava desligada e começou a se despir.

— Joan, pare com isso.

Ela continuou retirando as roupas provocantes e escassas, descalçou as sandálias e então encarou-o.

— Jake, recuso-me a ser tratada como uma boneca de porcelana. Você sabe que espero ser tratada como mulher.

Jake suspirou.

— Eu sei. Mas o grande momento passou.

— Bem... não vou me vestir. Ambos sabemos que você já viu este corpo muitas vezes... e quero que fiquemos à vontade a esse respeito. Sou realmente envergonhado, Jake. Só tenho algumas semanas de idade como mulher e não estou habituado. Mas quero me habituar. Com você.

— Bem... Como queira, minha querida. Você sabe como eu a acho bela. Que iremos fazer? Ler alto um para o outro até meu carro chegar? Olhar o vídeo?

— Animal. Se você fosse um cavalheiro, pelo menos tiraria as roupas. Em vez disso, você é um animal difícil e teimoso e não sei por que o amo. A não ser porque Eunice o amava — ama-o, onde quer que esteja — e por isso tenho de amá-lo. Jake, se não quer me levar para a cama, pelo menos sente-se naquela poltrona larga e me deixe ficar no seu colo. Para conversar. Sobre Eunice.

Jake deu um suspiro.

— Menina, você ainda vai me fazer ter um ataque de coração. Está bem, aninhe-se no meu colo. Com uma condição.

— Jake, não tenho certeza de aceitar alguma condição. Estou num estado muito instável.

— Claro que está, querida. Mas é o meu colo. Nem duro, nem mole.

— Posso voltar para o tribunal. Não acredito que Mac e Alec queiram impor condições. É melhor ficar calmo, Jake. Vou para o seu colo sem mais conversa. Pronto! Assim é melhor. Abrace-me, por favor.

— Primeiro a condição: você não tentará me violar nesta poltrona...

— Duvido que eu possa.

— Você ficaria surpresa com o que é possível fazer numa poltrona, Joan.

— Não ficaria. Fiz de tudo. Quando era Johann. Mas eles pediram cooperação.

— Hum, pediram... e assim, tão logo meu carro chegue, você se vestirá imediatamente sem relutância e vamos para casa.

— Está bem... já que fala em «vamos». Temi que você estivesse irritado demais comigo e me mandasse para casa sozinha. Neste caso, eu iria pedir a Rockford e Charlie que me levassem diretamente a Alec e Mac. Jake, você não os acha uns lobos deliciosos? Abrace-me com força. A única maneira que você tem de me proteger deles é você-sabe-o-quê.

— Hummm. Joan, você consegue guardar um segredo?

— Bem... prometo nunca revelá-lo a ninguém, a não ser a Eunice.

— Hem? Está bem, acho que você não quebrará uma promessa feita dessa forma. Mas quero acrescentar que, se você o fizer, prejudicará Alec e Mac... e Eunice não gostaria.

— Não, Eunice certamente não gostaria. Jake, você vai acabar me reprimindo para o resto da vida com essa frase. (Não se preocupe, patrãozinho. Sempre que Jake se enganar, fornecerei ao senhor a munição

para mudar a cantiga dele) Muito bem, só contarei a Eunice... e ao Velho de longa barba branca, da próxima vez em que o vir.

— Isso é suficiente. Está bem, eis o segredo: seus dois lobos encantadores — e são encantadores — são tão bichas quanto o foi Júlio César.

— O quê? Jake, custa-me acreditar.

— Não quero provar-lhe, mas garanto que sei isso de fonte segura.

— Porém... Olhe, querido, eu os beijei. Posso ser uma mulher ersatz... mas não nisso e sei que aqueles beijos não eram falsos. Deixaram-me em fogo. Bolas, querido, posso afirmar até em Braille. Além do mais, eles são casados.

— Eu disse «Tão bichas quanto Júlio César», querida... e não fulano de tal.

— Oh! Você quer dizer ambibicha. Continuou sem poder acreditar. Eles não o demonstram? Nem num beijo? {Eu percebi, Joan, pelo menos em potencial. Mas continuam lobos... e um dia voltaremos a eles, para agradecer-lhes) (Eunice, essa é a única maneira de uma mulher agradecer a um homem?) (Gêmeo, essa é a única maneira convincente. É novidade?) ( Não, amada... mas acho possível que sua geração tenha aprendido algo que a minha não. Não percebi. Não em tudo o que você me disse. Apenas um pouco mais abertos a respeito)

— Joan, não há maneira de perceber se um ambi não quiser. Ou os dois são ambi ou caia fora e adeus. Olhe, quando você era Johann, conseguia perceber uma virgem?

— Jake, não estou certo de ter conhecido uma virgem. Mas você conheceu.

— Você quer se referir a alguém que ambos conhecemos.

— Claro.

— Quem? Winnie? Não acho que ela seja. Mas Winnie cora com facilidade.

— Ela não. Se Winnie é uma, não pensei nela. (Tire essa da cabeça!) (Winnie pode contar seus próprios segredos. Doçura? Jake sabe da existência do seu filho?) (Não e não vamos contar-lhe!) (Não tenho a menor intenção, querida... apenas não quero ser apanhado de surpresa)

— Bem, não posso adivinhar. Quem é a perfeição?

— Eu.

— Hum... Mas... Jake Salomon calou-se.

— Claro, claro, querido... Johann não era e Eunice foi casada. Sem falar num velho lobo que a enganou. (Eu o enganei) Mas nada disso se aplica à nova mulher que está no seu colo. Sou virgem. Mas agora teria deixado de ser — acho — se o raio do telefone não tivesse tocado. Don Ameche nunca o deveria ter inventado.

— Quem é ele? Algum russo?* Foi Alexander Graham Bell quem inventou o telefone.

 

* Outra piada antiga. No apogeu do estalinismo, os russos anunciaram ter feito maioria das descobertas e inventado quase tudo (N. do T.).

 

— Uma piada antiga, Jake... desculpe. Don Ameche fez o papel de Graham Bell num filme oh, quando você tinha mais ou menos quatro anos. Mas deixemos de lado os atores já falecidos e a minha virgindade, da qual parece que não posso me livrar. Falemos de Eunice. (Meu assunto predileto!) Aquela luz de cima está me incomodando. Onde posso desligá-la? E você conservará o colo aquecido enquanto dou um pulo e a apago?

— Posso apagar daqui. Assim é melhor?

— Oh, muito! Quero vê-lo, querido, mas as luzes do chão são suficientes. Agora fale-me de Eunice. Não quero apenas ser igual a ela nas outras coisas... quero aprender a fazer amor à maneira dela. Exatamente como você me disser.

— Joan, você sabe que não posso contar essas coisas sobre uma dama.

— Mas eu sou Eunice, Jake. Apenas me falta a memória dela. Por isso preciso de ajuda. Eunice o amou e ainda o ama, tenho certeza — e Joan Eunice o ama — com um amor em nada semelhante à feroz afeição que Johann sempre sentiu por seu único amigo... Joan Eunice o ama com um amor que também vem do delicioso corpo de Eunice, que eu ocupo tão orgulhosamente. Por isso, fale-me a respeito dela. Eunice era tão ávida quanto eu?

— Hum... (Meta a mão dentro da camisa dele, gêmeo. Cuidado para não fazer cócegas) Joan, Eunice era ávida. A princípio fiquei perturbado... eu, uma velha ruína e ela, tão jovem e bela. Mas Eunice deu um jeito para eu acreditar.

— Mas você não é uma velha ruína, querido. Você está em melhores condições que eu na sua idade. Oh, seu rosto tem linhas firmes, uma majestade granítica que impressiona a todos. Porém seu corpo está tão firme e vigoroso quanto o de um homem com a metade da sua idade. Musculoso. E sua pele é macia e elástica, sem aquela triste textura de papel enrugado que lembro tão bem. Querido... mesmo que se divorcie de mim depois, quer se casar depressa comigo para que eu possa ter um filho seu? (Amor, você o está atirando fora do ringue! Eu nunca teria coragem de usar esse argumento)

— Eunice! Joan Eunice.

— Oh, não estou com pressa por sua causa... mas por minha. Devo ter ainda mais quinze anos férteis... porém quanto mais cedo, melhor. Uma mulher não deve ter o primeiro filho depois dos quarenta. Você, ao contrário, pode fazer filhos a vida inteira. Quantos tem, amado Jake?

— Três. Você conheceu dois antes. E quatro netos.

— Não me refiro a esses e sim a outros. Aposto que tem pelo menos uns doze mais, aqui e ali. Você é rico há muito tempo e pode dar-se a esse luxo. Quantos você não citou?

— Joan Eunice, isso é bisbilhotice.

— Eu sei e ninguém precisa responder a essa espécie de perguntas. Mas Eunice nunca as fez? (Fiz e acho que ele mentiu. Quero ver o que ele vai dizer desta vez)

— Hum...

— Não contarei a ninguém, a não ser a Eunice. Nem mesmo ao Velho com o livro.

— Sua cachorrinha fuçadeira insistente. Acho que tive mais quatro. E mais um com uma senhora casada, que talvez estivesse me mentindo. Sustentei três até que puderam cuidar de si mesmos. Ao quarto — e ao possível quinto — não pude oferecer nada. Mas nunca passaram necessidade.

— Como agiu, querido? Três mulheres solteiras, levadas para outro lugar e tornadas viúvas da noite para o dia?

— Hum... só num caso. Propus casar com ela... eu era um marido abandonado naquela época. Porém a moça preferiu não casar, o que fez mais tarde, tendo o marido adotado a criança e eu contribui com uma quantia substancial. Em outro caso semelhante, eu estava casado, mas o depósito foi feito de comum acordo. As outras duas eram casadas. Tenho certa mágoa a respeito de uma — era uma mulher que se confessava compulsivamente, e Deus me livrou dela! — e o marido teve de ser amaciado com mucho dinero. * A última — bem, seu marido era estéril, havia tido caxumba — e juntos arranjaram um pai. Eu. Foi um inferno. Mas o marido propôs confessar por escrito e o fez. Rasguei o papel e resolvi a coisa com um aperto de mão. (Tudo isto é novo para mim, Joan. Mas não posso acreditar que um homem tão viril e encantador não tenha deixado bastardos. Insista.)

Jake riu e acariciou o corpo macio dela.

— Este é o único do qual tenho certeza, pois eu nunca teria insistido com testes sangüíneos se uma senhora me acusasse e eu pudesse ter sido o homem. Mas nesse caso eu tinha certeza, pois passamos um feriado juntos, de barco, com o marido como dama de companhia. Portanto, daquela vez havia sido eu, no lugar e hora exatos. Então... — fez uma pausa. — Joan Eunice, não sei se Johann aprovaria ou não a continuação... mas não quero chocar uma moça delicada como você é agora. (Amor, não o deixe parar aqui!)

 

*Em castelhano no original (N. do T.).

 

— Johann não poderia ficar chocado, Jake. Se for muito brutal, não contarei a Eunice. Mas não quero insistir.

— Bem... não foi brutal, foi agradável. Não me usaram e me abandonaram. Fui sempre bem recebido na casa deles depois... e na cama deles.

— Três na cama?

— Hum... não seja abelhuda! Às vezes.

— E não houve mais filhos?

— Haviam sido licenciados para quatro e já os tinham. Mas acho que arranjaram pais diferentes para eles. Sei apenas que, nas inúmeras vezes em que pousei na casa deles no decorrer de dez anos, nunca dormi sozinho. Ainda recebo cartões de Natal, cada um com a fotografia da família... e minha filha parece com a mãe e não comigo, graças a Deus. Joan, eles eram e são um casal respeitável, crentes e devotados um ao outro e às crianças, moralista... exceto quando tiveram a necessidade de um doador. Aí preferiram escolher pessoalmente o homem, usando a maneira antiquada e não seringas e um ambiente hospitalar.

— Hum... ela era boa na cama?

— Muito. Mas sem refinamento. Nem um pedacinho de Eunice, se era a respeito dela que você estava pensando.

— Era (Eu estava!)

— Eunice... Eunice foi a coisa mais gloriosa que poderia acontecer a um homem. Suave como um anjo e tão hábil — tão desinibida! — quanto a mais famosa cortesã da história. (Estou ronronando!)

— Jake, eu também prefiro a maneira antiga. — Prefere?

— Você foi bom para todas aquelas damas e engravidou duas solteiras. Sou bastante rica para enfrentar a situação e exatamente agora você está se sentindo jovem... sei que está! Quer me agarrar e me levar para ali? Ou devo ir andando?

— Eunice.

— Vamos andar juntos. Mas depressa.

— Vamos, sim, querida.

Ela deu um pulo, pegou na mão dele... quando o intercom fez-se ouvir: «Mr. Salomon! Fala Rockford. Seu carro chegou». Joan disse:

— Oh, meu Deus! — e começou a chorar.

Jake abraçou-a e mimou-a.

— Desculpe, querida.

— Jake, diga a eles para irem jantar e que voltem em — hum — duas horas.

— Não, querida.

Ela bateu com o pé descalço.

— Jake, não quero, não quero! Isto é intolerável. Ele respondeu suavemente:

— Você prometeu. Olhe, querida, não tenho dezenove anos e capacidade para agir nos bancos traseiros dos carros nem nos alpendres dos fundos, quando há uma festa na casa. Preciso de silêncio e tranqüilidade. (Não acredite nele, querida! Embora ele possa ficar amedrontado na primeira vez)

Joan gritou e sacudiu a cabeça. Jake falou alto:

— Rockford!

— Sim, senhor?

— Estaremos aí dentro de um segundo ou dois. Mantenha o reator

aquecido.

Foi até a parede e colocou o intercom em zero. Então disse, suavemente :

— Vista-se, querida.

— Não quero! Se formos agora, vai ter de me meter no carro nua. Jake deu um suspiro e ergueu-a. Ela parou de chorar e ficou subitamente feliz.

A expressão não permaneceu. Virou-a nos braços quando sentou numa cadeira, prendeu-a com firmeza e deu-lhe uma palmada na nádega direita. Joan berrou e se debateu.

Agarrou-a com mais força, passando a perna direita por cima das duas dela e bateu habilmente no lado esquerdo. Então surrou-a alternadamente, parando nas dez palmadas. Colocou-a em pé e disse:

— Vista-se, querida. Depressa.

Ela parou de esfregar a área atingida.

— Sim, Jake.

Nenhum dos dois disse mais nada até ele a conduzir ao carro, entrar depois dela e serem trancados nele. Então Joan disse timidamente:

— Jake? Quer me abraçar?

— Certamente, querida.

— Por favor, posso tirar a túnica? Quer tirá-la para mim?

Livre da túnica, deu um suspiro e aninhou-se nos braços dele. Pouco depois, murmurou:

— Querido Jake, por que me bateu? Foi a vez dele suspirar.

— Você estava impossível... e essa é a única coisa que conheço para acalmar uma mulher quando um homem não pode dar o que ela precisa. E naquele hora... eu não podia.

— Compreendo. Acho que compreendo.

Ficou em silêncio um momento, gozando o abraço de Jake e respirando sobre o peito dele. Depois falou:

— Querido? Você alguma vez bateu em Eunice?

— Uma.

— Pelo mesmo motivo?

— Não exatamente. Bem, mais ou menos. Ela me importunou até eu ceder. (Fiz-lhe cócegas, querida, e tive a maior surpresa da minha vida)

— Então também fico contente por me ter espancado. Mas tentarei não importuná-lo... embora eu nunca venha a ser o anjo que ela era. (Anjo caído, patrão. E gozei intensamente, no fundo do Inferno)

— Jake?

— Que é, Eunice?

— Eu realmente não esperava ser espancada por você. Mesmo quando estava chorando. Mas... Bem, agora estou acolchoada... Preparada para levar uma surra. E quando você me bate está me dando atenção... Qualquer atenção é melhor que nenhuma. Além disso... — Hesitou.

— Além disso o quê, Eunice?

— Bem, não sei... mas acho que aconteceu.

— Aconteceu o quê?

— Um orgasmo feminino. Bem, talvez. Não sei como é que alguém se sente. Mas aconteceu quando eu estava chorando... e doendo. Cavalheiro, o senhor tem a mão pesada... subitamente senti um intenso calor interior e algo pareceu crescer e explodir... não tenho como explicar melhor. Fiquei num êxtase fantástico e não me incomodei com as últimas palmadas. Mal senti. Isso é um orgasmo feminino?

— Como posso eu saber, amada? Talvez você possa me dizer. Mais tarde.

— Logo mais de noite?

— Hum, acho que não, Eunice. Já é tarde, não comemos nada e estou cansado, embora você não esteja...

— Estou bastante. Mas feliz.

— Por isso descansaremos esta noite. Quando acontecer — e não estou mais me opondo — faremos com que a primeira vez seja absolutamente em particular e calma. Sem telefonemas, sem empregados, sem nada para distrair. Depois disso... bem, pode ser uma questão de oportunidade. Mas não sou criança. Você sabe o que quero dizer, querida. Você também já foi velha.

— Sim, meu amor, mais velha que você. Eunice pode esperar. Jake? Que foi que Eunice lhe fez de tão mau que você teve de bater nela? Ele deu uma risada súbita.

— A molequinha me fez tanta cócega que quase fiquei maluco. Por isso bati nela. Mas estávamos sós e acabou de maneira satisfatória. Muito.

— Como?

— Que é que você acha? Superei minha performance habitualmente medíocre e Eunice... não há palavras para aquilo, mas Eunice superou seu melhor desempenho, impossível como pareça. (Ele esteve danadamente perto de me arrebentar como um melão, gêmea... e eu tive prazer!)

— Ah, é? Um dia farei cócegas em você... e apanharei por causa disso. Portanto, trate de tomar vitaminas, querido. Jake, você gostou de me bater, hem?

Jake ficou calado algum tempo.

— Gostei tanto que bati-lhe mais violentamente e por mais tempo do que queria. E comecei a me sentir «jovem», como você disse... mas sabia que, se não a tirasse de lá imediatamente, você provavelmente nunca sairia. É não quero ter de ficar vigiando os empregados.

— É melhor você casar comigo. Assim, não precisaremos ligar para os empregados.

— É melhor ficar calada. Você ainda está aprendendo a ser mulher e eu a lidar com você. Você é Eunice... mas não é Eunice. E temos de esclarecer matérias legais antes de tratar dessas coisas.

— Velho mesquinho. Espancador de mocinhas. Sádico. Abrace-me com força.

 

Jake acompanhou Joan Eunice até o boudoir dela. Winnie estava lá, esperando... para aborrecimento de Joan, pois esta pensou que o caráter rígido de Jake talvez cedesse se o andar de cima estivesse vazio. Mas não demonstrou.

— Oi, Winnie!

— Miss Joan! Está passando bem? Fiquei tão preocupada!

— Claro que estou passando bem. Mr. Salomon cuidou de mim. Por que ficou preocupada, querida?

— Ora, por causa das coisas horríveis que saíram no noticiário a seu respeito e por causa do conflito no Palácio da Justiça. Eu vi. E...

— Winnie, Winnie! A caixa das idiotices é para os idiotas. Por que fica olhando? Nunca estive em perigo.

— Mas teve um dia cansativo. Por isso cuide dela muito bem, Winnie.

— Oh, cuidarei, senhor!

— Também estou cansado. Assim, vou dar boa-noite e me meter na cama. Talvez depois de comer um sanduíche.

— Hubert levou uma bandeja para seus aposentos, senhor.

— Hubert merece uma medalha de honra ao mérito. Mas, para falar a verdade, Winnie, também tive um dia duro, o que me deixou com pouco apetite e nervos excitados. Talvez eu jante um sonífero.

— Querido Jake...

— Hem, Eunice?

— Não tome um comprimido. E jante.

— Mas...

— Eu sei. Também estou um feixe de nervos. Porém sei como agir... e Winnie junto comigo pode acalmar seus nervos, restaurar seu apetite e fazê-lo dormir como um bebê.

Jake franziu uma sobrancelha, olhou primeiro para Eunice e em seguida para Winnie.

— Sei que cada uma de vocês pode. Mas as duas?

— Jake, você é um velho sujo. Fez Winnie corar. Mas podemos... hem, Winnie? O Money Hum.

— Oh. Claro que podemos, Mr. Salomon.

— Arrumpf! Isso tira sangue? Ou quebra ossos?

— Oh, não, senhor! É calmante. Relaxador.

— Já tentei tudo antes. Joan disse:

— Mas é preciso que você fique nu...

— Pensei que se usasse um tapa-sexo.

— Oh, Jake. Deixaremos que seja maricás. Pode usar um calção. Nós ficamos nuas para isso: o efeito espiritual é melhor. É dessa maneira que nos aquecemos para os nossos exercícios. Dispa-se, depois ponha um calção e um roupão. Iremos ao seu encontro na Suíte Verde. Logo após comerá um pouco, tomará um banho morno de banheira, irá diretamente para a cama e imediatamente adormecerá.

— Talvez seja melhor que eu me banhe primeiro. Um dia no tribunal me deixa fedendo como um gambá.

— Seu cheiro é ótimo. Seja como for, atualmente eu e Winnie temos tanto controle que podemos decidir não sentir cheiro... não ouvir um barulho que distraia ou coisa semelhante, se quisermos.

— É verdade, Mr. Salomon.

— Está bem. Winnie, se ela me bater, você rne protege. Adiós, queridas.

— Cinco minutos, Jake.

Assim que ficaram sós, Winnie disse:

— Você vai me fazer ficar nua outra vez?

— Eu não a «fiz» despir-se da primeira vez. E o querido doutor certamente nem reparou que você é mulher. Pareceu-me que o beijo que lhe deu foi melhor que o que me deu. Pare de corar. Winnie, pode ser maricás se quiser... mas preciso de você agora. Ou Jake pensará que estou tentando enganá-lo.

— Oh, Mr. Salomon nunca pensará isso de você.

— Ele é homem. Homem como o querido doutor. Preciso de companhia, pois a única coisa que procuro é fazê-lo dormir sem comprimidos. O coitadinho teve um dia horrível. Winnie, ele foi maravilhoso no tribunal. Mais tarde lhe contarei. Vamos tirar estas drogas e vestir roupões. Recatados — Joan Eunice interrompeu-se abruptamente. — Talvez eu tenha me apaixonado. Atraente? Você tem algum encontro?

Miss Gersten corou novamente.

— Hum... não até mais tarde.

— Paul está trabalhando até tarde? Desculpe... apague e emende. Não é da minha conta.

A ruivinha continuou a corar, mas respondeu com firmeza:

— Meus negócios são sempre da sua conta, Miss Joan. Hum, fui designada para cuidar da senhora... e estou tentando! Mas a senhora parece para mim uma irmã mais velha.

— Obrigada, minha doce Atraente. Mas as irmãs mais velhas não devem se intrometer.

— Eu vinha querendo contar-lhe. Paul e eu acabamos.

— Oh, lamento!

— Pois eu não. Acho que Paul nunca pensou que eu acabaria. Ele estava me enganando. Mas... bem, Bob não é casado. Ainda não.

— «Ainda não». Está planejando casar, querida?

— Bem... não creio que casar seja coisa que se planeje. Apenas acontece. Como temporais.

— Você tem razão. Doçura, seja para casar, para se divertir ou para ser feliz, espero que seja perfeito para você. E «Bob» é um nome tão comum que nem fico tentada a adivinhar. Se eu não o vir.

— Provavelmente não verá. Ele usa o elevador de serviço para ir ao meu quarto, passando pelo corredor de trás... ninguém o vê, a não ser o guarda de plantão. E este não faz fofoca.

— Se algum guarda jamais fofocar sobre qualquer coisa nesta casa — e eu descobrir — será despedido tão depressa que ficará tonto. Winnie, o resto do pessoal pode ser humano a esse respeito, mas um guarda está numa posição de excepcional confiança e precisa ficar calado. Winnie, se alguma vez precisar ver Bob — ou qualquer outro — em lugar diferente, mandarei meus guardas externos levá-la e apanhá-la e não quero saber aonde.

— Hum... obrigada. Mas este é o lugar mais seguro para nós. Poucos são os lugares seguros hoje. O máximo que poderá acontecer aqui é Bob ficar encabulado. Eu não ficarei, pois tenho orgulho dele!

— Assim é que é, querida. Como ex-homem, sei que é a atitude que um homem mais valoriza numa mulher. «Orgulho dele». Mas apressemo-nos. Jake está a nossa espera. Se vai vestir calças, é melhor pôr uma de elástico. E obrigada por ter me emprestado esta roupa de baixo... ficou evidente que, sem o avental e o gorro, tornou-se mais eficiente. Tirei a túnica durante algum tempo. Contarei mais tarde.

Logo depois, as moças estavam andando apressadas pelo corredor que levava à Suíte Verde, ambas apenas de roupão e descalças. No último instante, Winifred achou que, se sua patroa ia fazer meditação usando a roupagem correta, ela também faria o mesmo.

Encontraram o advogado num roupão de banho, com ar tímido. Joan disse:

— Espero que não o tenhamos feito esperar. Sua banheira esta pronta?

Se não, vou enchê-la antes de começarmos. Então, entre abrir e fechar a água, não há o risco de adormecer. Depois...

— Fiz trapaça. Tomei um rápido banho de banheira — tépido, como você determinou — e comi um pouquinho também.

— Ótimo. Então iremos metê-lo diretamente na cama depois do tratamento, lhe daremos um beijo de boa noite e estará dormindo antes que cheguemos na porta. Isto é a parte mais simples da ioga. Não é exercício, mas apenas meditação. Respiração controlada, mas a maneira mais fácil, inspira-se durante a repetição de uma prece, prende-se a respiração durante uma outra, expele-se o ar na seguinte, prende-se na próxima e assim por diante. Nós três juntos, formando um triângulo. Pode sentar-se em Lotus? Provavelmente não, a menos que tenha prática.

— Eunice...

— Que é, Jake?

— Meu pai era alfaiate. Sentei-me na cadeira de alfaiate antes de fazer oito anos. Serve?

— Claro, se você ficar confortável, Se não, qualquer posição que deixe você relaxado. Pois tem de esquecer seu corpo.

— Posso cair no sono, acocorado numa posição de alfaiate. Mas qual é a prece?

Joan Eunice despiu o roupão, colocou-se no tapete, numa posição de meditação, com os pés sobre as coxas e as palmas das mãos viradas para cima no colo.

— É assim. Om Mani Padme Hum. (Om Mani Padme Hum. Ha muito tempo que eu devia ter ensinado isto a Jake)

— Conheço a frase: «A Jóia no Lotus». Mas o que significa para você Joan Eunice?

Winifred havia seguido o exemplo de Joan assim que esta começou: ficou nua e em Lotus... e não corou. Foi Winnie quem respondeu:

— Significa tudo e nada, Mr. Salomon. São todas as boas coisas que o senhor conhece: coragem, beleza, gentileza, não querer o que não se pode ter, ser feliz com o que se tem, árvores se agitando ao vento, bebês gorduchos gorgolejando quando se fazem cócegas nos pezinhos e tudo o que forma a vida boa. Amor. Sempre significa amor. Mas não se pensa a respeito, simplesmente não se pensa, nem mesmo tenta-se não pensar. Entoa-se a prece e é-se... até ficar flutuando, aquecido, confortável e descansado.

— Está bem, vou tentar. — Tirou o roupão de banho, sob o qual estava usando calções de boxe. — Joan Eunice, quando aprendeu ioga? Foi Winnie quem lhe ensinou?

— Oh, não — respondeu Winifred. — Miss Joan me ensinou... está muito mais adiantada na Trilha do que eu.

(Veja só, patrão!) (Nada de huhu, Lulu)

— A gente aprende muitas coisas, Jake... e esquece-as durante muito tempo. Eu costumava jogar xadrez, porém não joguei durante cinqüenta anos. Mas por muito mais tempo que isso não consegui nem mesmo sentar na posição de Lótus... até que Eunice me deu seu jovem e maravilhoso corpo, que pode fazer tudo. (Sob que tampinha está a bola, Eunice?) (Pode estar sob você, se relaxar demais. Você deveria ter esvaziado nossa bexiga) (Não tenha medo, querida. Não vou me afundar, pois preciso vigiar Jake)

— Junte-se a nós, Jake. Inicie, Winnie, assim que Jake ficar em posição. Salomon começou a sentar no chão, parou subitamente e tirou o calção!

Joan ficou encantada, tomando o fato como um sinal de que ele decidira entregar-se inteiramente. Mas não deixou que sua expressão serena mudasse, nem moveu os olhos. Winifred estava olhando para o próprio umbigo. Se reparou, não deu a perceber.

— Inspirar — disse Winifred suavemente. — Om Mani Padme Hum. Prender. Om Mani Padme Hum. Soltar. Om Mani Padme Hum. Inspirar...

(Om Mani Padme Hum. Venceu a resistência dele, querida?) (Cale a boca! Você estraga a disposição de Jake. Om Mani Padme Hum)

— Om Mani Padme Hum! — disse Salomon, com uma voz que teria encantado uma catedral. — Om Mani Padme Hum!

 

— Querida Winnie — disse Joan suavemente. — Vá parando e volte completamente. Vamos ter de acordar Jake.

Os olhos da ruiva piscaram. Ela murmurou mais uma prece e esperou.

— Querido Jake — disse Joan suavemente. — Eunice está chamando. Acorde o suficiente para que possamos levá-lo até a cama. Eunice está chamando de volta. Querido Jake.

— Estou ouvindo, Eunice.

— Como se sente?

— Hem? Descansado. Maravilhoso. Muito descansado, mas pronto para dormir. Puxa, essa coisa funciona. Mas não passa de auto-hipnose.

— Sugeri alguma vez que era outra coisa? Jake, não espero encontrar Deus olhando meu próprio umbigo. Mas funciona... e é melhor que castigar o corpo com drogas. Agora deixe que Winnie e eu o levemos para a cama.

— Posso ir sozinho.

— Claro que pode, mas não quero que a relaxação desapareça. Por favor, Jake, deixe que o tratemos como um bebê. Por favor.

Jake sorriu e permitiu... deslizou para dentro da cama preparada, deixou que o cobrissem, sorriu novamente quando Joan Eunice deu-lhe um maternal beijo de boa noite, ficou surpreso quando Winifred acompanhou o exemplo da patroa... virou-se de lado e adormeceu assim que elas saíram do quarto.

— Não se dê ao trabalho — disse Joan quando Winifred começou a vestir o roupão. — Aqui em casa ninguém sobe depois do jantar sem que eu chame. Com exceção de Hubert e suponho que Jake mandou-o dormir, sabendo que seria procurado por duas prostitutas dentro de três quartos de hora. — Passou o braço pela cintura esguia da ruiva. — Winnie, por mais que eu adore usar roupas... não é gostoso vestir só a própria pele?

— Eu gosto. Dentro de casa. Fora, não, o sol me prejudica muito.

— E de noite? Quando eu era garoto, há centenas de anos, julho e agosto eram intoleravelmente quentes onde vivíamos. As calçadas queimavam meus pés descalços. As casas eram fornos de padeiro, mesmo de noite. Não havia ar condicionado. Um ventilador elétrico era um luxo que a maioria das pessoas não tinha. Nas noites em que eu não podia dormir por causa do calor, costumava me esgueirar pela porta dos fundos, silencioso como um rato e descalço como uma rã, tomando o máximo de cuidado para meus pais não ouvirem, e caminhava nu no escuro, pisando a grama fresca e sentindo a fraca brisa noturna na pele. Era agradabilíssimo!

— Parece maravilhoso. Mas ficaria apavorada com a idéia de ser assaltada.

— A palavra «assalto» ainda não havia sido inventada e muito menos o pavor dela. Só vim a ter noção da escuridão depois da meia-idade. — Entraram no quarto principal. — Dê-me um beijo de boa-noite, Atraente, e vá encontrar seu namorado. Durma até tarde. Eu vou fazer o mesmo.

— Hum, meu namorado só chega depois da meia-noite. Não vai me contar o que aconteceu hoje?

— Ora, é claro, querida. Pensei que você pudesse estar com pressa. Quer tomar um banho comigo?

— Se quiser. Tomei banho depois do jantar.

— E está preparada para o encontro. Tomei banho hoje de manhã, mas parecem semanas. Cheire-me e veja como estou fedendo.

— Está cheirando bem. Deliciosamente.

— Então escovarei os dentes, usarei o bidê e borrifarei as axilas. É melhor ir para a cama.

— Mas ainda não jantou.

— Não estou com tanta fome. Apenas feliz. Há leite na geladeira do quarto? Só quero leite e biscoitos. Não quer me acompanhar, tomando um copo, encher a cama de farelos e conversar coisas de mulher? Coisas que não posso dizer a Jake, agora que sou uma moça e não o Johann, velho, mesquinho e enfezado.

— Joanie, não creio que tenha sido enfezada.

— Ora se fui, querida. Fui agressivo a maior parte do tempo, andei deprimido quase o tempo todo e não consegui conviver com os outros. Mas Joan Eunice nunca está deprimida. Seus intestinos são regularíssimos. Descole para nós dois copos de leite e uma lata de biscoitos enquanto eu finjo que tomo banho. Não desça. Deve haver alguma coisa no armário de reservas. Passas de figo, talvez, ou wafers de baunilha.

Pouco depois estavam sentadas na enorme cama, mastigando, enquanto Joan Eunice fazia um relatório resumido do dia:

— ... assim, fomos para o gabinete do juiz McCampbell e mandamos o carro embora, pois o juiz, aquele amor de pessoa, não queria ouvir falar em eu andar pelas ruas. Muito embora o falso conflito tivesse terminado. Então trocamos o cóptero pelo carro em Safe Harbor e viemos para casa. (Protegendo a «inocência» dela gêmea?) (Nada disso. Protegendo a reputação de Jake)

— Mas a melhor parte do dia foi quando tirei a túnica de rua e deixei que eles vissem as roupas interiores Acapulco que você me emprestou. Eles viraram macacos, querida.

— Macacos?

— Gíria antiga. Arrastaram a asa e andaram à roda, como um galo perseguindo uma galinha desconhecida.

— Não foram as roupas, foi você.

— Ambas. Eunice Branca tinha um corpo divino e estou me esforçando por fazer jus a ele. Com sua ajuda. Como era de esperar, aqueles dois homens muito queridos me beijaram da maneira mais próxima do estupro que já encontrei.

— Melhor que o Dr. Garcia?

— Acho que o Dr. Garcia não deu tudo o que podia. Penso que ficou inibido pela surpresa e pela presença de uma enfermeira ruiva, cujo nome posso citar. Mas aqueles dois não estavam inibidos e haviam bebido umas doses. Cada um estava dando o máximo que podia para ser melhor que o outro. Uau! Winnie, não estou exagerando... se Jake não estivesse lá, acho que teriam me atirado no tapete em dois segundos para me possuírem!

— Hum... você teria reagido? (Vai falar a verdade, puta?) (Quem me ensinou a ser puta? Algum motivo para não contar a ela. Eunice?) (Nenhum. Exceto que ela está a ponto de violentar você) (Que nada, ela está apenas fazendo hora para ir ao encontro) (Não diga que não o avisei)

— Winnie, se eu fosse mesmo uma dama, teria ficado horrorizada. Mas não vou enganar uma amiga íntima. Não tenho muita prática de ser mulher, mas parece que tenho fortes instintos. Juro que, se um daqueles homens simpáticos me tivesse dado um ligeiro empurrão, eu teria aterrissado naquele tapeie de pernas abertas e olhos fechados. Suruba? Naquela hora eu tinha disposição para um regimento.

Winifred disse, pensativa:

— Isso me aconteceu uma vez.

— Um regimento?

— Não, uma suruba.

— Bem, vamos limpar os farelos da cama, baixar as luzes, nos aconchegarmos e você contará para a irmã mais velha. Foram sórdidos com você?

— Na verdade, não. Oh, querida, estou corando. Apague todas as luzes, menos uma do chão, e me deixe contar. A4as com você de costas.

— Melhor assim? — Muito.

— Então conte para a mamãe.

— Hum, foi na noite da minha formatura de enfermeira. Eu não era virgem... não garanto que houvesse alguma virgem na minha turma. Mas aquilo foi outra coisa. Alguns internos fizeram uma festa para nós. Foi muito simpático e esperei que um deles ficasse a sós comigo. Internos são a gente mais faladora que existe e uma moça não marca encontro com um a não ser por motivo de serviço. Mas a festa tinha muito champanha e nenhuma comida. Joan, eu nunca havia bebido champanha.

— Oho! Já sei como acabou.

— Bem... champanha não parece forte. Bebi à beca. Então fui para a cama e a coisa começou. Não fiquei surpresa e procurei colaborar. Mas tudo estava muito confuso. Reparei que, afinal de contas, ele não era moreno: tinha o cabelo tão ruivo quanto o meu. E eu tinha a certeza de que ele era moreno e usava bigode. Quando notei, mais tarde, que ele era quase careca, percebi que algo estranho estava acontecendo. Joan, havia sete internos na festa. Acho que todos me possuíram até o amanhecer. Não sei quantas vezes. Vi o que estava acontecendo quando o ruivo encaracolado foi substituído pelo quase careca. Mas não tentei parar. Hum... eu não queria parar. Uma ninfa, hem?

— Não sei, querida, mas foi como me senti esta tarde. Querendo que a coisa afinal acontecesse, querendo que fosse um acontecimento... e nem mesmo sei como a coisa é. Continue.

— Bem, a coisa prosseguiu. Levantei-me uma vez, fui ao banheiro, vi no espelho que não tinha um trapo em cima., mas não podia me lembrar de ter me despido. E parecia não ter importância. Voltei para a cama e tive uma sensação de solidão. A festa parecia ter acabado. Só que não tinha. Um homem entrou. Procurei focar meus olhos e disse: «Oh, Ted! Venha cá». Ele veio, nós fizemos e foi pior que nunca.

«Acordei pelo meio-dia com uma ressaca dos diabos. Sentei com esforço e lá estavam minhas roupas, cuidadosamente dobradas numa cadeira, e, numa mesinha de cabeceira, uma bandeja com uma garrafa térmica de café, uns salgadinhos dinamarqueses e um copo com um bilhete ao lado, que dizia: «Beba isto antes de comer. Vai precisar. Chubby. Chubby era o quase careca.

— Um cavalheiro. Exceto por seu gosto pelo estupro coletivo.

— Chubby sempre fora simpático. Mas se alguém me dissesse que alguma vez eu iria para a cama com ele, teria achado muita graça.

— Você teria feito outra vez?

— Oh, sim. Realmente apreciei o atencioso café e especialmente a cura da ressaca. E me reanimou. Não o suficiente para ir espiar, mas o bastante para me vestir e voltar para o meu quarto.

— Você não sentiu nada? Quero dizer, hum, não engravidou ou coisa assim?

— Nem mesmo irritação. Nada. Não estava na época, mesmo que não usasse um implante, o que eu usava. E há uma coisa boa em ir para a cama com internos: praticamente não há ocasião de pegar uma infecção. Não, sempre tive sorte, Joan. Oh, sem dúvida que a história foi divulgada... mas eu não era a única formanda participando daquela noite e aquela não havia sido a única festa. Ninguém me azucrinou por causa dela. Mas foi uma suruba e eu não fiz o menor esforço para interrompê-la. — Acrescentou, com ar pensativo: — O que me preocupa é que posso tornar a fazer. Sei que poderia. Por isso nunca mais bebi. Sei que não posso me controlar.

— Ora, Winnie, você bebeu comigo mais de uma vez.

— Não é a mesma coisa. Hum, se você quiser que eu fique bêbada com você... ficarei. Estarei segura. (Segura! Ela não sabe de nada) (Eunice, não fizemos mais que nos abraçar e você sabe disso) (Ela está lhe pedindo para chegar perto) (Bem, não chegarei! Pelo menos, não muito)

 

— Winnie! Querida Winnie! Olhe as horas.

— Hem? Oh, meu Deus. Meia-noite e dez. Eu... A ruivinha estava a ponto de chorar.

— Está atrasada? Ele esperará. Oh, tenho certeza de que esperará.. por causa de Winnie.

— Ainda não estou atrasada. Ele larga o trabalho à meia-noite e leva algum tempo para chegar aqui. Mas... Oh, querida, não quero abandoná-la. Logo agora que estávamos... pelo menos eu estava... tão feliz.

— Eu também estava, querida — confirmou Joan, afastando-se suavemente dos braços de Winifred. — Mas a irmã mais velha está sempre aqui. Não deixe seu homem esperando. Retoque seu batom, penteie seu cabelo e mais o que for necessário no meu banheiro, se houver a possibilidade dele já estar no seu quarto.

— Bem. De acordo. Miss Joan, a senhora é muito boa para mim.

— Não se atreva a me chamar de Miss numa hora dessas ou juro que farei você perder o encontro. Depressa, depressa, beleza, vá se enfeitar. Me dê um beijo de boa noite. Já estarei dormindo quando você sair do banheiro. E, simpática... amanhã não haverá exercícios.

— Mas...

— Sorria, não estou zangada. Quero dormir até tarde e quero que você também durma. Por isso não quero acordar com você zanzando em volta. Você irá fazer esta noite na cama todas as posturas clássicas. Pare de corar. Dê a ele algo especial da minha parte, mas não lhe diga nada. Ou diga, pouco me incomodo. Me dê logo um beijo e me deixe dormir.

Sua aia-companheira-enfermeira beijou-a sem pressa e saiu correndo. Joan Eunice fingiu estar dormindo quando Winifred saiu do banheiro e atravessou silenciosamente o quarto, entrando no seu próprio, cuja porta fechou.

(Então, gêmeo, está feliz outra vez, hem?) (Eunice, já lhe disse inúmeras vezes que não vou palmilhar a Rua das Bichas enquanto for virgem. Pode se tornar um vício) (Pode ser, com nossa cachorrinha promíscua, que adora uma suruba. Mas não me referi a ela. Estava pensando em Safe Harbor)

(Você chama aquilo de feliz? Considero a coisa mais frustrante que já me aconteceu. Eunice, preciso do Money Hum muito mais que Jake) (Chamo de felicidade. Querido patrão, posso estar morta, mas ainda sei ver um calendário. Mantive-me firme vinte e oito dias e meio durante mais de dez anos... e continuamos assim, desde que nos fundimos. Neste instante, estamos férteis como uma poldra Isolda... e continuaremos assim durante dois ou três dias. Jake prometeu a você que, da próxima vez, não haveria frustração... e você ficará tão despreocupada quanto a líder da torcida de que lhe falei. Expliquei, Tetei? Então meta os peitos e use aquele implante, amanhã, pelas dez da manhã. A menos que esteja planejando nos deitar na mesa agora mesmo. Está?)

(Eunice, você está dizendo boba... Não, não está. Farei algo a esse respeito. Amanhã. Mas «deitar na mesa agora mesmo» é um exagero. Sou novo nisso enquanto que você já passou por uma gravidez. Mas sua tia provavelmente vigiou-a como um falcão...) (Vigiou. Elsie Dinsmore teve uma vida agitada) (...mas eu já passei por três, como marido. «Deitar na mesa» é um curto espaço de tempo, no final. E a gravidez não mata o interesse de uma mulher. Minha angélica primeira mulher, Agnes, teria tido relações comigo a caminho do hospital, se eu não tivesse a cabeça mais no lugar que ela. Apesar disso, serei cordato. Melhor, tomarei cuidado)

(Joan, não estou querendo dissuadi-la. Apenas não desejo que sejamos vítimas de um acidente. Digamos, em conseqüência de uma brincadeira com o juizinho. Ou com Alec. Mas se quer, ótimo. Case com Jake e fique logo grávida. Ou fique grávida dele e depois case com ele. Jake pode ficar mais tratável)

(Eunice, não estou pretendendo me casar com toda essa pressa) (Não? Ouvi você propor a Jake pelo menos quatro vezes)

(Sim, sim! Se Jake concordar, caso. Não quero largá-lo. Porém ele não quer se não definitivamente, pelo menos enquanto não ficarem resolvidas as tricas legais. O que pode levar anos. Lembra como demorou para os tribunais autorizarem a conversão das ações da Caminhos do Espaço? Aquilo não foi nada comparado com isto e não envolvia tanto dinheiro. Eunice, propus casamento a Jake para satisfazer a moral dele. Pouco me importa que ele faça de mim uma «mulher honesta» ou não. Só quero que ele nos leve para a cama. O casamento não entra nisso)

(Gêmeo, sua ingenuidade me surpreende. Não ouviu Winnie? Casamento não se planeja, apenas acontece. Nenhuma moça está mais em condições de ser convencida num quarto de hotel e amarrada a um homem que ela nem mesmo conhecia na tarde da véspera, que uma garota que não pretende casar «tão cedo». Patrão case com Jake. Case assim que ele concordar... pois o senhor está sendo sensato quando afirma que nenhum outro homem pode, ao mesmo tempo, compreendê-lo e não ficar atordoado com o seu dinheiro. Enquanto isso, é de bom aviso usar preservativo)

(Está bem. O que é que as moças usam hoje?) (Oh, a maioria usa implantes. Algumas preferem pílulas, tanto as diárias como as mensais. Mas se errar com uma ou outra, vai enfrentar uma bomba de estopim curto. Jamais gostei de bulir com a economia do meu corpo. Não estou convencida de que faça bem qualquer coisa que altere a feminilidade de uma mulher. Não é superstição, patrão, li atentamente alguma coisa depois que engravidei. Todos os métodos químicos têm imprevistos. Meu corpo tem funcionado bem assim. Não quero interferir num organismo bem sucedido... Estou citando o senhor, quando se referiu a negócios) (Entendo seu ponto de vista, Eunice, muito embora estejamos falando de coisas não éticas. Um corpo é algo muito mais complexo que uma empresa e o que você me cedeu é uma jóia. Também não quero interferir nele. Mas você usa o quê? Autodomínio?)

(Coisa que nunca tive em estoque, meu amor. Oh, há montes de outras coisas agradáveis que podem ser feitas sem que se engravide, se você puder livrar-se do seu antigo conhecimento e ser do século vinte e um...) (Olhe, criança, conheci — e usei cada uma dessas outras coisas no colégio. Continuo a lhe dizer: vocês, garotos, não inventaram o sexo) (O senhor não me deixou terminar, patrão. Trata-se de medidas de emergência. Uma moça que depender somente delas está indo se juntar à explosão demográfica. Joan, examinei cuidadosamente o assunto quando fiz dezoito anos e fui licenciada... decidi-me por um dos métodos mais antigos. Um diafragma. Ainda são encontrados. Qualquer médico pode colocá-los. Uso um seis dias por mês, mesmo no trabalho... porque, como o médico que instalou o meu frisou, a maioria dos fracassos dos diafragmas deve-se ao fato de serem deixados em casa quando se sai apressada para comprar um quilo de açúcar, fique certa)

(Acho que ele tem razão, Eunice) (Claro, Joan. Jamais gostei de diafragmas... jamais gostei de qualquer preservativo. Pareceu-me ter um profundo instinto que me disse para ficar grávida. Patrão... a coisa — a única coisa — que realmente me entristece por estar morta... é que sempre quis ter um filho seu. E era uma infantilidade pois o senhor já era muito velho — ou talvez quase muito velho — quando o conheci. Mas eu teria tentado se o senhor tivesse dado oportunidade)

(Querida, queridinha!)

(Oh, estou contente com o que tenho. Om Mani Padme Hum. Não estou me queixando do meu karma. Não só estou contente, mas feliz... por ser meio Joan Eunice)

(Eunice, você continua com vontade de ter um filho meu?)

(O quê? Patrão, não brinque com isso. Não zombe de mim)

(Não estou brincando, amada)

(Mas, patrão, a parte necessária do senhor desapareceu. Conservada em álcool ou coisa semelhante)

(Usaram formol, acho eu. Ou congelamento. Não estou me referindo àquele velho destroço do qual nos livramos. Podemos ir à cidade e fazer um implante)

(Hem? Não compreendo)

(Lembra da parcela dedutível do imposto de renda denominada Fundação Eugênica em Memória de Johanna Mueller Schmidt?)

(Claro. Eu expedia um cheque trimestralmente)

(Eunice, apesar das finalidades expostas em seus estatutos, a única finalidade real não aparecia em letra de forma. Quando meu filho foi morto, eu já estava bastante velho, mas ainda viril — potente — e os testes mostraram que eu era fértil. Por isso me casei — acho que lhe contei — para ter outro filho. Não adiantou. Mas apostei em dois lados, coisa que nunca disse a ninguém. Fiz um depósito no banco de esperma. Há no depósito criogênico da Fundação uma pequena parte de Johann. Isto é, centenas de milhões de partículas extremamente pequenas. Possivelmente não estão mortas, mas apenas adormecidas. Estava pensando nelas, quando falei em implante. Usando uma seringa ou como quer que eles façam)

(Eunice? Você ainda está aí?) (Patrão, estou chorando. Unia moça não pode chorar de felicidade? Pode!)

(Então amanhã de manhã. Você pode mudar de idéia até a hora)

(Nunca mudarei. Espero que você também não)

(Amada)

 

Na manhã seguinte, Joan Eunice descobriu que Jake fora embora antes dela acordar. Havia um bilhete na bandeja:

Querida Joan Eunice:

Dormi como uma criança e sinto-me em condições de enfrentar feras... graças a você e Winnie. Agradeça-lhe por mim e diga-lhe (o que inclui você) que ficarei muito grato de participar das reuniões de orações, sempre que me convidarem... principalmente se tiver um dia muito trabalhoso.

Demorarei a voltar: caça ao tesouro, localização de elementos de prova. Alec foi a Washington à procura de um. Se ^ precisar de mim, ligue para o meu servifone ou para o gabinete do juiz McCampbell.

Deixei instruções com Jefferson Billings para você movimentar sua conta de pequenas despesas — cujo saldo acredito seja uns quatrocentos mil — usando sua antiga assinatura e a nova impressão digital. Ele pagará e confirmará despesas, que eu rubricarei até que você tenha preenchido um novo cartão de assinatura & impressão digital: ele disse que conhece Eunice Branca de vista e que portanto não há problema. Se você desejar, ele a procurará com um novo cartão de assinatura: imaginamos que a sua deve ter mudado bastante.

(Patrão, acho que Jake não sabe que faço sua assinatura melhor que o senhor) (Acho que ninguém sabe, querida. Não sei como isso será encarado no tribunal: pró ou contra nós?)

Se necessitar mais dinheiro para despesas, permita-me que lhe faça um empréstimo pessoal, para evitar que isso conste do meu relatório de curador. Seu «Irmão Mac» é da maior ajuda, mas a finalidade financeira dessa loucura pode parecer ultra conservadora até quando ele possa, com plena justificação, eximir-me da sua curadoria. A mulher de César, você sabe.

Por falar na mulher de César, contei-lhe uma piada sobre dois de nossos amigos. Telefonei esta manhã para um deles e o outro atendeu. Depois da habitual investigação sobre a segurança da comunicação audiovisual, ambos pareceram pouco preocupados sobre o que eu vi, ouvi, ou pude inferir. Fiquei envaidecido. Diabinha, se você tem de portar-se mal, confie neles: seu bem-estar lhes é muito caro. Sinto ter estado chato ontem.

(Fico contente por saber disso, patrão) (Eunice, acho que não é da sua conta o que Alec e Mac fazem nas horas de folga. Jake não devia ter fofocado a esse respeito, mesmo conosco) (Não, não, patrão! Jake está dizendo que ontem foi muito careta — o que ele sente — e agora está lhe dando a absolvição antecipadamente. O melhor que faremos é casar com Jake... não obstante eu tema que ele se torne ciumento. Possessivo. Por causa da idade e dos antecedentes. Pode ser um desastre, gêmeo... considerando que, no fundo, você é uma puta e ambos sabemos disso)

(Ho, que bobagem, Eunice! Eu nunca acusaria Jake disso... e depois você está errada. Um homem inteligente — e Jake o é •— não se afoba com falatórios. O que o preocupa é o medo de perder uma esposa que ele presa. Se Jake casar conosco, nunca o deixarei preocupar-se com a idéia de nos perder) (Espero que o senhor mantenha-se firme, patrãozinho) (Com sua ajuda, garanto que posso. Vamos acabar de ler a carta...)

Não me esperem para jantar, pois o que tenho a fazer hoje é urgente ... mais urgente que algo que parecia terrivelmente urgente ontem. E era. E será, espero.

Isto tinha a intenção de ser uma carta de amor, mas tive de me referir a outros assuntos... e a outras pessoas. Por isso, preciso insistir em que rasgue-a e atire os pedaços na latrina. Não é por acaso que estou colocando minha impressão digital no fecho e entregando-a a Cunningham com a promessa de arrancar-lhe a cabeça se a carta sair das mãos dele antes de chegar a você. Aprendi a gostar de Cunningham: é um «ladrão honesto».

Todo o meu amor, querida, e o maior beijo possível... tão grande que você pode tirar um pedaço dele e dá-lo a Winnie quando agradecer-lhe por mim. Ela é uma moça encantadora e fico contente pelo fato dela cuidar tão bem de você.

J.

(Ora, o cornudo de uma figa. Joan, Jake está de olho no lindo traseiro de Winnie, enquanto apalpa o nosso) (Ela devia entrar na fila!) (Ciumento, gêmeo?) (Não. Mas repito: vou escalpá-lo antes. Raios, Eunice, tive-o ontem nas mãos... e foi uma batalha cansativa. Não os salamaleques que você usa com ele. E tudo o que arranjei foi uma surra. Espero que ele volte para casa esta noite) (Mesmo que venha, há três barreiras, gêmeo) (Três?) (Hubert... Winnie... e aquele «implante». Patrãozinho? Não vai me impedir de ter seu filho deixando Jake ter relações com o senhor primeiro... vai?) (Claro que não, burrinha. Enfrentei intrigas sem ser atingido muito antes de sua avó ter nascido. Hummm... vou precisar de dinheiro)

(Jake lhe ensinou como apanhar o dinheiro que precisar) (Oh, claro... com minha assinatura e a rubrica dele. Como um gato se protegendo com um linóleo. Eunice, meu amor, aposto que você nunca subornou ninguém na vida) (Bem... com dinheiro, não) (Não conte, deixe que eu adivinhe. Querida, isto aqui pode valer um milhão... mas hoje preciso usar notas de fonte desconhecida entre a classe média. Venha comigo, bisbilhoteira, e lhe mostrarei algo que mesmo minha secretária — uma linda velhaca chamada Eunice, lembra? — não sabia existir)

(Está falando do cofre escondido no banheiro, patrão?) (Hem? Como diabo você sabia disso?) (Sou bisbilhoteira) (Sabe o segredo?) (Invoco a Quinta Emenda) (Para quê? Vai saber dentro de dois minutos. Ou pode descobrir na minha mente?) (Querido patrão, o senhor está farto de saber que eu não posso ler nada em sua mente até que o senhor pense nisso... o mesmo se dando com o senhor em relação à minha. Mas... Bem, se tenho de abrir esse cofre, acho que devo começar com os números que compõem a data do aniversário da sua mãe)

Joan suspirou. (Atualmente uma moça não tem vida particular. Está bem, vamos ver se fomos roubados)

Entrou no banheiro, trancou a porta, correu um ferrolho, afastou uma pilha de toalhas de um armário baixo e passou a mão na parte superior interna dele. A folha do fundo correu para o lado, revelando um cofre. (Acha que a data do aniversário de minha mãe o abrirá?) (Primeiro vou ligar as lâmpadas solares da mesa de massagem e depois abrir a torneira de água fria da pia) (Nenhuma vida privada mesmo! Amor, você realmente subornou alguém com seu lindo traseiro?) (Não exatamente. Apenas me aproveitei da situação. Vamos ver se fomos roubadas)

Joan abriu o cofre. Havia nele dinheiro bastante para interessar o perito contador de um banco. Mas os maços não tinham sido feitos num banco. Faltava-lhes a arrumação cuidadosa e o total de cada um fora escrito a mão. (Gaita paca, minha querida... e ou ninguém descobriu este cofre ou nunca perceberam os parafusos adicionais. Em todo caso, isso resolve uma coisa: não atiraremos no lixo o lindo bilhete de Jake) (Vamos deixar que ele pense, tá?) (Se ele perguntar) (Então faremos uma choradeira, dizendo que não pudemos nos separar dele) (Eunice, sua cuca é um novelo) (É por isso que ela se encaixa tão bem na sua, gêmeo) (Talvez)

Joan colocou a carta dentro do cofre, tirou dois maços de notas, meteu-os numa bolsa no quarto de vestir, cerrou o cofre, desligou as lâmpadas solares, fechou a torneira, girou o mostrador, correu o painel de volta ao lugar, recolocou as toalhas e trancou o armário. Então foi até o intercom do banheiro e apertou um interruptor.

— Chefe O'Neil.

— Pronto, Miss Smith?

— Apronte meu carro, um motorista e dois guarda-costas para daqui a meia hora.

Houve um curto silêncio.

— Hum, Miss Smith. Mr. Salomon evidentemente esqueceu de me dizer que a senhora poderia querer sair.

— Havia uma excelente razão para isso: ele não sabia. Mr. Salomon comunicou-lhe que não sou mais tutelada do tribunal? Se não, o senhor terá sabido disso por outra fonte?

— Miss, não soube por uma fonte oficial.

— Compreendo. Então está ouvindo de mim. Oficialmente.

— Sim, miss.

— Você não parece satisfeito, O'Neil. Pode obter confirmação telefonando para o juiz McCampbell.

— Ora, é mesmo, posso.

— Vai pedir confirmação, O'Neil?

— Talvez eu não tenha compreendido, miss. A senhora não vai me dizer?

— Você está gravando?

— Certamente, miss. Tenho ordens para gravar sempre.

— Sugiro que volte a gravação e responda sua própria pergunta. Esperarei. Mas primeiro... há quanto tempo trabalha para mim, O'Neil?

— Dezessete anos, miss. Os últimos nove como chefe.

— Dezessete anos, dois meses e alguns dias. Não o suficiente para uma aposentadoria integral, mas um período longo, fiel e incondicional. Se você quiser, O'Neil, pode se aposentar esta manhã com todos os vencimentos. A fidelidade deve ser recompensada. Agora toque, por favor, enquanto espero.

Joan esperou.

— Macacos me mordam, miss... estou precisando de um tratamento de ouvido. A senhora não me disse que telefonasse ao juiz. Falou que eu podia telefonar.

— Exatamente. Frisei que você podia confirmar o que eu lhe havia dito — oficialmente — dando o telefonema. E ainda pode.

— Hum, miss, não sei o que a senhora está querendo.

— Tenho a certeza de que você pode imaginar. Quer se aposentar hoje? Se quiser, chame Mentone. Desejo falar com ele.

— Miss, não tenho vontade de me aposentar.

— De verdade? Tive a impressão de que você estava querendo outro emprego. Talvez com Mr. Salomon. Se for assim, não pretendo criar nenhuma dificuldade. A aposentadoria com todos os vencimentos está a sua disposição, O'Neil.

— Miss, gosto daqui.

— É um prazer ouvir isso. Espero que queira ficar durante muitos anos. O'Neil, você alguma vez discutiu minhas idas e vindas com alguém?

— Só quando me autorizou, miss. Casos em que sempre gravei sua ordem.

— Ótimo. Limpe essa fita, que eu esperarei. Logo depois ele disse:

— Está limpa, miss Smith.

— Bem. Vamos começar. Chefe O'Neil, esta é miss Johann Sebastian Bach Smith falando. Quero meu carro, um motorista e ambos os guarda-costas dentro de trinta minutos.

— Estarão prontos, miss Smith.

— Obrigada. Vou fazer compras. Mrs. O'Neil deseja alguma coisa?

— É muito gentil da sua parte, miss. Acho que não. Quer que pergunte a ela?

— Se perguntar, diga-lhe apenas que meu carro está saindo. Se ela tiver uma lista, farei com que Fred ou Shorty se ocupem dela. Fim.

(Patrão, ele está se mijando de medo. Acha isso bonito?) (Dirigir um conjunto feudal, no seio de uma democracia nominal, não é fácil, Eunice. Quando Johann dizia «sapo», todo mundo pulava... principalmente o chefe da minha segurança. O'Neil tem de se convencer — todos eles têm — de que Johann ainda está aqui... e ninguém, nem mesmo o querido Jake, modifica ou veta o que eu digo. A menos que ele case conosco, situação em que me tornarei mulher e deixarei que ele decida tudo) (Quero ver chegar o dia!) (Preciso, querida. Diga-me, você obedecia ao Joe?) (Bem... nunca o contrariei. Acho que pode dizer que o obedeci. Só que eu mentia ou às vezes ficava de boca fechada) (Farei a mesma coisa. Acho que se pode dar um jeito perfeito de fazer exatamente q que um homem disser... mas ajeitar as coisas de maneira que ele diga para fazer o que eu já decidi fazer)

Joan sentiu, mais que ouviu, sua gargalhada. (Patrão, isso tem a pinta de uma perfeita receita de casamento)

(Descobri que estou gostando de ser mulher. Mas é diferente. Agora, que vamos vestir?)

Joan colocou uma fita no cabelo, uma saia curta, uma capa opaca com capuz e yashmak, sandálias de salto baixo, tudo de cores suaves. Ficou pronta em menos de trinta minutos.

(Que tal o nosso rosto, Eunice?) (Bem, para fazer «compras». Não precisamos chamar Winnie. A safadinha provavelmente não dormiu muito) (Nem eu queria chamá-la. Talvez ela desejasse ir conosco. Vamos, doçura... vamos sair para quebrar um recorde de dois mil anos sem ajuda do Espírito Santo) (Patrão, essa não é uma maneira decente de falar!) (Bem, que eu me dane! Eunice, pensei que você não fosse cristã! E sim zen ou hinduísta. Ou coisa assim)

(Não sou nenhuma dessas coisas, patrão. Apenas conheço algumas disciplinas espirituais. Mas é grosseiro zombar de tudo o que os outros consideram sagrado) (Mesmo na minha mente'? Você quer estabelecer o que eu devo pensar? Se eu pudesse pegá-la, lhe daria uma surra) (Oh, o senhor pode dizer a mim o que quiser, patrão... apenas não diga essas coisas alto) (Não disse, não digo, nem direi. Pare de ralhar comigo) (Desculpe, patrão. Amo-o) (Amo-a, ranhetinha. Vamos logo ser nocauteadas) (Vamos!)

Joan pegou o elevador da frente para o porão. Foi recebida e cumprimentada por O'Neil.

— O carro está pronto, miss... com os dois motoristas e os dois guarda-costas.

— Para que dois motoristas?

— Bem, Finchley deve estar pronto. Mas Dabrowski está contestando minha autoridade. Diz que é mais antigo que Finchley. Quer chamá-lo à ordem?

— Claro que não. Isso cabe a você. Mas talvez eu possa facilitar as coisas.

— Sim, miss.

Levou-a até o carro. As duas equipes estavam perfiladas ao lado dele e fizeram continência como um só homem. Joan sorriu para eles.

— Bom dia, amigos. É um prazer vê-los com tão bom aspecto. Já faz muito tempo.

Dabrowski respondeu pelos outros:

— Muito tempo mesmo, miss Smith... e é um prazer para nós vê-la tão saudável.

— Obrigada. — Olhou um a um. — Há uma coisa sobre a qual ninguém me falou... a tragédia que iniciou esta estranha seqüência de acontecimentos. Qual a equipe que estava no carro na noite em que Mrs. Branca foi assassinada?

Passou-se bastante tempo sem que alguém respondesse. O'Neil tomou a iniciativa:

— Finchley e Shorty estavam de serviço naquela noite, miss Smith.

— Então tenho de agradecer-lhes... por Mrs, Branca e por mim. Embora eu saiba que Dabrowski e Fred teriam agido com a mesma bravura e rapidez. — Olhou para Finchley e depois para Shorty, com o rosto sério, mas sereno. — Qual dos dois vingou Eunice? Ou foram ambos?

Finchley respondeu:

— Shorty pegou-o, Mrs... Miss Smith. De mãos nuas, uma cutilada. Quebrou o pescoço dele.

Joan virou-se para Shorty — dois metros de alma mortífera, cento e quarenta quilos de morte súbita — e pregador nas horas de folga. Joan ergueu os olhos para ele e disse gentilmente:

— Shorty, do fundo do meu coração — em nome de Eunice Branca — muito obrigada. (Eu também agradeço, patrão! Isso é novidade para mim. Morri antes do elevador abrir) Se ela estivesse aqui, iria agradecer-lhe... não apenas por ela, mas pelas outras moças que aquele assassino nunca mais matará. Estou contente porque o liquidou na hora. Se fosse julgado, poderia estar solto agora. Matando outra vez.

Shorty havia ficado calado até então.

— Miss... Finch também o pegou. Matou-o. Não se sabe ao certo quem o pegou primeiro.

— Isso não importa. Qualquer de vocês quatro teria protegido Mrs. Branca com a própria vida. Ela sabia disso... e sabe, onde quer que esteja. Eu também sei, bem como o chefe 0'Neil — Joan sentiu as lágrimas caírem e deixou-as jorrar. — Eu — todos nós! — só pedimos aos^ Céus que ela estivesse dentro de casa esperando a chegada de vocês. Sei que cada um de vocês preferia ver-me morto no lugar dela. Peço-lhes que me dêem a honra de acreditar que eu também preferia. Shorty, quer fazer uma prece por ela esta noite? Por mim? Não entendo muito de preces. (Raios, patrão, o senhor me fez chorar) (Então recite o Money Hum. Por Shorty. Ele ainda está se culpando pelo inevitável)

— Rezarei, miss. Rezo todas as noites. Embora... Mrs. Branca... não precise. Ela foi direto para o céu. (Fui mesmo, patrão. Mas não pelo caminho que Shorty imagina) (E não vamos contar a ele. Já falei o suficiente?) (Acho que sim)

Joan disse:

— Obrigada, Shorty. Por mim, não por Eunice. Como você disse, Eunice realmente não precisa de preces. — Virou-se para o chefe O'Neil. — Chefe, quero ir ao Conjunto Gimbel.

— Perfeitamente, miss. Hum, Finchley dirige o carro. Ambos os guarda-costas.

O'Neil ajudou-a a entrar no veículo e fechou-o por fora. Ela também trancou-se por dentro. A porta blindada ergueu-se e o grande carro deslizou para fora. (Joan, que raio de troço você vai comprar no Gimbel?) (Era uma piada com você. Já vou modificar a ordem. Eunice, onde você comprava roupas? Você era a mais elegante das moças da cidade... mesmo quando estava a mais despida)

(Puxa, nunca andei nua. Os desenhos de Joe estabeleciam a diferença. Joan, onde eu comprava você nunca poderá comprar) (Vamos ver senão) (Johann poderia, mas você não. Não seria possível. Hummm... Embora não possa me dar o luxo de um cabeleireiro, sei onde ficam. Falando nisso, dois deles têm salões dentro do Gimbel) (Então é lá que vamos... em segundo lugar. Comunicarei a mudança a Finchley... e pedirei a ele que mande Fred me acompanhar. Acho que Fred gostaria de sair) (Neca! Fred sabe ler) (E daí? Oh! Bem, Fred pode me acompanhar mais tarde) Apertou o botão do comunicador.

— Finchley.

— Pronto, miss.

— Fiquei tão preocupada que esqueci uma outra parada. Por favor, deixe Shorty e a mim na zona limpa onde State cruza com Main.

— State e Main, miss.

— Por favor, mande Shorty pendurar o circuito de rádio na cintura. Não há estacionamento por aqui. Ou não havia, a última vez em que estive no centro. Foi há quanto tempo? Mais ou menos dois anos.

— Dois anos e sete meses, miss. Tem certeza de que não quer os dois guarda-costas?

— Não, eles podem trabalhar por turnos, ficando no carro. Se você precisar sair, quero que seja protegido.

— Oh, estarei bem, miss.

— Não discuta comigo. Você nunca se atreveu quando eu era o velho Johann Smith. Garanto-lhe que Miss Johann Smith continua a ter a língua afiada. Transmita a ordem.

Ela o ouviu rir.

— Pois não, Miss Smith.

Quando o carro parou, Joan colocou seu yashmak, escondendo a identidade tanto deles como dos curiosos, Shorty destrancou a porta e ajudou-a a sair do carro. Joan sentiu-se subitamente vulnerável na api-nhada calçada de pedestres de Main Street... mas a seu lado estava aquela torre de força.

— Shorty, o edifício que estou procurando fica no bloco mil e trezentos... treze-zero-sete. Pode achá-lo?

A pergunta tinha por finalidade fazê-lo sentir-se útil. Ela sabia onde ficava o Edifício Roberts, pois era sua proprietária.

— Oh, claro, miss... sei ler números muito bem. E letras também... só as palavras me confundem.

— Então vamos. Shorty, como faz você para exercer sua ^ verdadeira profissão? Quero dizer, já que não tem meios de ler a Bíblia?

— Nenhuma dificuldade. Uso livros falados... e quanto à Bíblia, decorei cada palavra preciosa dela.

— Uma memória notável. Gostaria de poder dizer o mesmo.

— É uma questão de paciência. Conservo a Bíblia ao alcance da

mão desde que estive na prisão. — Acrescentou, pensativo: — Às vezes penso que devo aprender a ler... mas nunca encontro tempo (O pobrezinho provavelmente nunca encontrou alguém que lhe ensinasse, patrão) (Nunca se meta com uma organização bem sucedida, Eunice. Ele encontrou seu nicho)

— Deve ser este, miss. Um, três, zero, sete.

— Obrigada, Shorty.

Na entrada não lhe pediram sua carteira de identidade, nem ela a exibiu, pois não a tinha, seja como Johann Smith ou como Eunice Branca. O guarda reparou no «Licenciado & Designado» pregado no uniforme de Shorty (que combinava com o seu), soltou a borboleta da entrada e fez-lhes sinal para entrar. Joan Eunice sorriu-lhe com os olhos... e anotou que a segurança do Edifício Roberts devia ser apertada. O guarda devia ter fotografado o cartão de identidade de Shorty e anotado o número da sua couraça (Patrão, ele não pode tratar tanta gente dessa maneira. Tem de confiar no próprio julgamento) (Olha quem fala! Se aquele edifício de apartamento onde você morava tivesse uma segurança eficiente, você nunca teria sido assassinada. Se não podemos conter a violência externa, devemos tentar evitá-la internamente) (Não quero discutir, querido patrão... estou excitada!) (Eu também. Este véu é uma salvação)

No décimo segundo andar, dirigiram-se para o conjunto ocupado pela Fundação Eugênica em Memória de Johanna Mueller Schmidt, H. S. Olsen, Doutor em Medicina, Doutor em Ciências, Diretor, Bata por Favor e Espere. O guarda deixou-os ali e voltou para sua revista ilustrada. Joan reparou, aprovativamente, que havia um bom número de mulheres e casais na sala de espera. Ela (Johann) havia chamado a atenção de Olsen para a finalidade (pública) da Fundação — oferecer doações altas e anônimas a mulheres licenciadas e habilitadas — na sua última carta acompanhando o cheque trimestral. Evidentemente, tivera bom resultado.

— Espere aqui, Shorty. Há um vídeo ali.

Caminhou para a mesa que separava a sala de espera do escritório burocrático externo, desviou-se da tabuleta «Requerimentos» e chamou a atenção do único homem por trás da mesa divisória, fazendo com que se aproximasse.

— Que deseja, madame? Se é um requerimento, vá até a ponta, mostre sua Carteira de Identidade e preencha um questionário. Depois espere. A senhora será chamada.

— Quero ver o diretor, o Dr. Olsen.

— O Dr. Olsen nunca recebe ninguém sem hora marcada. Dê-me seu nome, sua profissão e possivelmente a secretária dele a atenderá.

Joan inclinou-se e disse baixinho:

— Preciso vê-lo. Diga-lhe que meu marido descobriu. O chefe do escritório ficou espantado.

— Seu nome?

— Não seja bobo. Diga-lhe apenas isso.

— Hum... Espere aqui. Desapareceu pela porta dos fundos.

Ela esperou. Num espaço de tempo notavelmente curto, o homem reapareceu numa porta lateral da sala de espera, empurrou-a para um corredor na direção de outra porta onde se lia «Diretor — Não Entro e na da porta ao lado, com a placa «Secretária do Diretor — Bata & Espere». Deixou-a ali com uma mulher que lembrou a Joan a professora de Johann do terceiro ano, tanto na aparência quanto na maneira autoritária. A mulher falou, gelada:

— Que maluquice é esta? É melhor que me mostre logo sua carteira de identidade. (Meta-lhe três dedos esticados no plexo solar, patrão, e me diga se ela não desmaiará!) (Talvez. Primeiro usaremos minha técnica)

Joan respondeu, de forma ainda mais gelada:

— Provavelmente não, Miss Perkins. Por que acha que estou velada? Vai me anunciar? Ou devo chamar a polícia e os jornais de escândalo?

Miss Perkins, com ar espantado, saiu da estenomesa e entrou no escritório particular que havia atrás. Voltou imediatamente e disse com raiva:

— A senhora pode entrar.

Olsen não se levantou quando Joan entrou, mas disse:

— Madame, a senhora escolheu uma forma invulgar de chamar minha atenção. De que se trata? Não percamos tempo.

— Doutor, o senhor não oferece cadeiras às senhoras?

— Certamente. Quando são senhoras. Um ponto que a senhora se encarregou de tornar duvidoso. Fale, mulher, ou terei de mandá-la embora. (Patrão, viu-o dar uma olhada no microfone? Aquele morcego velho na sala ao lado está tomando nota de tudo) (Já percebi, Eunice. Por isso não falaremos ainda)

Joan aproximou-se da mesa do médico, desprendeu o yashmak e deixou-o cair pelo ombro esquerdo.

A fisionomia do médico mudou de aborrecimento para um espantado reconhecimento. Joan Eunice debruçou-se sobre a mesa e desligou o microfone de ditar. Então falou baixinho:

— Não há nada mais gravando? Esta sala é à prova de som? E aquela porta?

— Miss...

— «Miss» é bastante. Pode agora me convidar a sentar? Ou devo me retirar... e voltar com meu advogado?

— Sente-se, por favor... miss.

— Obrigada — Joan esperou até que ele levantou-se e arrastou uma cadeira para perto da dele, numa correta posição de «convidado de honra». Só então sentou-se. — Agora responda o resto. Estamos mesmo em particular? Se não estamos — embora me diga que sim — certamente chegarei a saber... e tomarei as medidas que julgar adequadas.

— Hum... estamos. Mas espere um momento. — O médico levantou-se, foi até a porta da sala da secretária e passou-lhe o trinco manual. — Agora, miss, diga-me por favor o que está havendo.

— Direi. Primeiro, tenho estado complementando minha contribuição original, com cheques trimestrais. O senhor os tem recebido durante minha doença?

— Bem... faltou um cheque. Esperei seis semanas e então escrevi a Mr. Salomon e expliquei-lhe como o senhor costumava fazer. Parece que ele confirmou isso, pois logo depois recebemos dois pagamentos trimestrais ao mesmo tempo, acompanhados de uma carta dizendo que iria continuar a autorizar as remessas, de acordo com o que o senhor fazia antes. Há algum problema?

— Não, doutor. A Fundação continuará a receber minha ajuda. Permita-me que acrescente que os curadores estão — na totalidade — satisfeitos com sua direção.

— Folgo muito em saber. Foi para isso que veio? Para me dizer tal coisa?

— Não, doutor. Vamos aos fatos. Tem certeza absoluta de que esta conversa em particular não pode ser ouvida? É preciso que saiba que a resposta é muitíssimo mais importante para o senhor que para mim.

— Miss, hum... Miss, tenho a certeza.

— Perfeito. Quero que vá ao frigorífico e apanhe a doação 551-20-0052 — irei com o senhor para conferir o número — e depois quero que a injete em mim. Imediatamente.

O rosto do médico revelou espanto. Então recuperou a pose profissional e disse:

— Miss... isso é impossível.

— Por quê? A finalidade da nossa instituição, estabelecida no seu regulamento — redigido por mim — é fornecer a mulheres habilitadas esperma de doadores... a pedido, sem pagamento nem publicidade. É isso exatamente o que eu quero. Se o senhor desejar fazer-me um exame físico, estou pronta. Se quiser saber se este corpo está licenciado para procriar, garanto-lhe que está... embora o senhor saiba que, neste caso, uma penalidade por gravidez não licenciada significa menos que nada. Qual é o problema? A preparação do esperma é tão demorada que não permite a operação completa num só dia?

— Oh, não, podemos tê-lo aquecido e em condições dentro de trinta minutos.

— Então, injete-o em mim daqui a trinta minutos.

— Mas, miss... sabe a encrenca em que posso me meter?

— Que encrenca?

— Bem... estou a par das notícias. Do contrário não a teria reconhecido. Soube que há um problema de identidade...

— Oh, isso — Joan fez um gesto de rejeição. — Doutor, o senhor aposta em corridas?

— Hem? Já apostei. Por quê?

— Se estamos mesmo em particular, o senhor não poderá ficar encrencado. Mas chega um momento na vida de um homem em que ele precisa apostar. O senhor está numa dessas crises. Pode apostar num cavalo seguro... na ponta, sem f racionar a aposta. E ganhar. Ou perder. Como sabe, os outros curadores desta fundação são meus tes-tas-de-ferro. Eu sou a Fundação. Vou predizer o que vai acontecer. Em breve essa bobagem da identidade estará liquidada e o verdadeiro Johann Sebastian Bach Smith sobreviverá. A partir daí, a subvenção desta instituição será dobrada. Ao mesmo tempo, o salário do diretor será duplicado. Se o senhor apostar no cavalo certo, será o diretor. Se não... será despedido.

— A senhora está me ameaçando!

— Não. Profetizando. O velho Johann Sebastian Bach Smith foi o sétimo filho de um sétimo filho e nasceu empelicado. Tem o dom da profecia. Qualquer que seja a sua aposta, a subvenção será duplicada. Mas apenas o senhor e eu saberemos o que aconteceu hoje.

— Hummm... há maneiras de conciliar. Tenho nodces para permitir que qualquer mulher adulta receba uma doação de esperma, se ficar satisfeito com as credenciais dela... e digamos que eu esteja satisfeito. Não obstante, temos de seguir certos trâmites e fazer algumas gravações.

(Ele está em ponto de bala, patrão. Agora cante-lhe um Money Hum com música diferente) (Eunice, o suborno em dinheiro é para forçá-lo a agir, se não quiser cair fora. Vejamos se o doutor consegue impingir a coisa a si mesmo)

Joan balançou a cabeça.

— Nada de gravações. Tente e cobrirei meu rosto com o véu e irei embora.

— Porém, miss... eu não faço essas coisas pessoalmente. Um médico da equipe ocupa-se da aplicação da doação, tendo uma enfermeira como ajudante. Poderá achar estranho que não haja gravações. Muito estranho.

— Nada de enfermeiras. Nada de assistentes. O senhor sozinho, doutor. O senhor é médico, especialista em genéticca e eugenia. Ou o senhor pode realizar a operação... ou não tem competência para dirigir a instituição... o que os curadores lamentarão ao saber. Além disso, vou com o senhor, confiro o número da doação... e me colo ao seu cotovelo até o senhor a injetar em mim. Estamos de acordo?

O médico suspirou.

— E eu pensei uma vez que a clínica geral era um trabalho duro! Não podemos ter certeza de que o esperma inoculado resulte em prenhez.

— Se não resultar, voltarei aqui dentro de vinte e oito dias e meio. Doutor, chega de evasivas. Ou aposte em outro cavalo e eu me retirarei. Nada de palavras ásperas, agora ou depois. Só aquela profecia.

Levantou-se. (Então, Eunice? O sapo vai saltar?) (Não posso adivinhar, queiida. Lie ja viu tantos rauos-de-saia que esta cneiO deles. Não posso imaginar)

Olsen levantou-se subitamente.

— A senhora precisa de uma roupa para frio.

— Está bem.

— Com a vantagem de que a roupa para frio cobre tão inteiramente que um homem não reconhece a própria mulher dentro de uma. Tenho aqui uma de reserva, para visitantes importantes.

— Acho que o senhor pode me considerar como visita importante — disse Joan secamente.

Quarenta minutos depois, o Dr. Olsen disse:

— Fique imóvel mais um momento. Estou colocando um tampão, um pessário de látex, sobre a doação.

— Por quê? Pensei que essas coisas servissem de preservativo.

— Em geral. E também servem para esta finalidade... quero dizer, algumas clientes desejam ficar a coberto imediatamente de toda possibilidade de serem engravidadas por qualquer outra fonte. Mas no seu caso, minha intenção ao instalar esta barreira temporária é ter a certeza de que a doação irá engravidá-la. Dar a essas larvas uma oportunidade de atingir o alvo, evitando que nadem corrente abaixo... entendeu? Conserve-o no lugar até amanhã... ou mais tarde, não importa. Sabe como retirá-lo?

— Se eu não conseguir, mandarei chamá-lo.

— Como quiser. Se a senhora ficar menstruada na próxima vez, tornaremos a repetir a operação daqui a quatro semanas.

O Dr. Olsen baixou os suportes dos joelhos e estendeu-lhe a mão. Ela desceu da cama e a saia voltou ao lugar. Estava excitada e feliz. (Eunice, está feito!) (Sei, patrão! Amado patrão)

O Dr. Olsen apanhou a capa de Joan e preparou-se para colocá-la sobre os ombros da moça. Esta disse:

— Doutor... não se preocupe com aquela corrida de cavalos. Ele mal sorriu.

— Nunca me preocupei com isso. Posso dizer por quê?

— Por favor.

— Hum. Se a senhora se lembra, encontrei Johann Smith — Mister Johann Smith — em outras ocasiões.

— Onze, se não me engano, senhor, inclusive uma entrevista particular quando o Dr. Andrews indicou o senhor para substituí-lo.

— Exatamente, Miss Smith. Jamais esquecerei aquela entrevista. Miss, talvez haja algum detalhe legal a esclarecer, concernente à sua identidade. Mas não para mim! Acho que nenhuma moça com sua idade fisiológica atual pode simular as maneiras de sargento-mor de Mr. Johann Smith... e ainda piorá-las.

— Oh, meu Deus!

— Desculpe?

— Dr. Olsen, esta mudança de sexo pela qual estou passando não é fácil de enfrentar. É uma sorte — para nós ambos — que o senhor seja capaz de distinguir Johann Smith por trás do rosto que uso agora. Mas — que diabo, senhor! — tenho de adquirir maneiras que combinem com o que sou agora. Quer me telefonar — oh, digamos daqui a três semanas, quando espero ter notícias alvissareiras — e permitir que eu lhe mostre ser capaz de imitar uma senhora quando me esforço? Venha tomar chá. Poderemos discutir a maneira de expandir o trabalho da Fundação com a subvenção dobrada.

— Miss Smith, será uma honra telefonar-lhe, sempre que a senhora o desejar. Com motivo ou sem ele. (Epa! Ei, Eunice, pensei que você tivesse dito que ele está cheio de rabos-de-saia!) (Pensei. Mas estamos diante de um, invulgarmente bonito, Joan, mesmo visto daqui. Vai dar um beijo nele?) (Eunice, você não pode tratar um homem impessoalmente?) (Não sei. Nunca tentei. Ora, não seja chata. Ele tem sido um carneirinho perfeito) (Agora seja um também... vamos embora)

Joan permitiu que o médico pousasse a capa nos seus ombros. Isso fez com que suas cabeças se aproximassem. Ela virou o rosto para ele, molhou os lábios e sorriu.

Pôde vê-lo decidir correr o risco. Não se esquivou quando os lábios dele encontraram os seus... mas não o abraçou, deixando-se parecer ligeiramente sem jeito. Empertigou-se um pouco antes de retribuir. (Gêmeo! Não o deixe deitar-nos nessa mesa... faça-o usar o sofá do escritório) (Nem um nem outro, Eunice. Bico calado!)

Joan interrompeu o beijo, trêmula.

— Obrigada, doutor. E o senhor vê que posso ser mulher quando me esforço. Como posso voltar para a sala de espera sem passar por sua Miss Perkins?

E prendeu o yashmak.

 

Alguns minutos mais tarde, Shorty conduziu-a ao carro, encerrou-a nele e entrou no compartimento dianteiro.

— Conjunto Gimbel, Miss Smith?

— Por favor, Finchley.

Chegados ao conjunto, Shorty e Fred acompanharam-na ao Madame Pompadour. O fato dela ter guarda-costas particulares chamou logo a atenção do gerente, que não era Madame Pompadour, embora usasse o cabelo no estilo tornado famoso pela notória marquesa, e gestos e modos que combinavam. (Eunice, tem certeza de que estamos no lugar certo?) (Tenho, patrão... espere até ver os preços)

— Em que posso servi-la, madame?

— O senhor tem uma sala particular com olho mágico?

— Mas claro, madame. Hum, há uma sala de espera onde...

— Meus guardas ficam comigo. O gerente pareceu ofendido.

— Como madame desejar. Se quiser me acompanhar... (Eunice, devemos acompanhá-lo?) (Não tente, gêmeo... apenas o siga. Ou a siga, o que talvez seja o caso)

Logo depois, Joan, sentada, via passar um modelo barato. Fred ficara em posição de descanso por trás dela. A sala estava quente. Ela abriu a capa, retirou o capuz, mas deixou o yashmak cobrindo o rosto. Então meteu a mão na bolsa e tirou uma folha de papel.

— O senhor tem um modelo com mais ou menos estas medidas?

O gerente examinou a folha: altura, peso, ombros, busto, cintura, pernas.

— São de madame?

— São. Mas tenho aqui outras medidas, embora não sirvam para mim. São as de uma amiga, para quem desejo comprar algo belo e exótico. É ruiva, clara e de olhos verdes.

Joan havia tirado as medidas de Winifred das gravações dos exercícios que ambas faziam.

— Não há problema, madame, mas no seu caso permita-me que sugira que nosso grande artista, Charlot, fique feliz confirmando essas medidas ou mesmo desenhando diretamente...

— De jeito nenhum. Quero comprar roupas feitas. Se eu comprar.

— Como madame queira. Posso fazer uma pergunta? Madame está usando seu próprio cabelo?

— Se eu usasse uma peruca, seria da mesma cor do meu cabelo. Portanto, aceite o fato. (Eunice, devo comprar uma peruca?) (Tenha paciência e deixe a coisa andar, querida. As perucas são difíceis de se manterem limpas. E nunca cheiram a limpo) (Então nunca usaremos uma) (Patrãozinho esperto. Água e sabão são os maiores afrodisíacos do mundo) (Sempre achei isso. Aliás, uma moça deve cheirar como uma moça) (Você cheira, queridinha, você cheira... queira ou não)

— O cabelo de madame tem um belo tom. E agora, já que madame disse que tem pouco tempo, talvez lhe seja conveniente permitir que nosso departamento de contabilidade examine seu cartão de crédito enquanto eu chamo os dois modelos?

(Atenção, patrão!) (Não sou trouxa, queridinha)

— Uso cartões de crédito com nomes diversos, como McKinley, Franklin e Grant. Ou Cleveland — Joan procurou na bolsa e tirou um maço de notas. — O cartão de crédito dos pobres.

O gerente reprimiu um estremecimento.

— Oh, meu Deus, não esperamos que nossos clientes paguem a vista.

— Sou antiquada.

O gerente parecia penalizado.

— Oh, mas não é necessário. Se madame prefere não usar sua conta de crédito geral — o que é seu privilégio! — pode abrir em segundos uma conta particular com Pompadour. Se me permitir ver sua carteira de identidade...

— Um momento. Sabe ler letra de imprensa? — Joan mostrou um texto ao lado do retrato do Presidente McKinley. — «Esta nota é moeda corrente para saldar obrigações públicas ou particulares». Não quero ser metida num computador. Pago a vista.

— Mas, madame... não temos condições de receber a vista! Não tenho certeza se podemos dar troco.

— Bem, não quero lhe causar nenhum transtorno. Fred.

— Pronto, miss?

— Leve-me ao La Boutique. O gerente ficou horrorizado.

— Por favor, madame! Tenho a certeza de que tudo se arranjará. Um momento, enquanto falo com nosso contador.

Saiu correndo, sem esperar pela resposta.

(Por que a onda, patrãozinho? Comprei inúmeras coisas para o senhor, debitando-as na sua conta de despesas pessoais. Jake disse que podíamos usá-la) (Eunice, detesto essas máquinas cretinas desde que fui embrulhado a primeira vez por um clube do livro. Mas não se trata apenas de teimosia. O dia hoje não é próprio para confessarmos quem somos. Mais tarde, quando estivermos livres do tribunal, abriremos uma conta em nome de «Susan Jones», para compras pessoais. Se tornarmos a faze-las. Acabo de verificar que são uma chatice) (Oh, não, são divertidas! Você verá, gêmeo. Mas lembre: manterei o direito de veto até que você aprenda algo sobre roupas) (Passa fora, resmungona) (A quem está chamando de resmungona, sua megera fracativa?) (Está feliz, minha querida?) (Maravilhosamente feliz, patrão. E o senhor?) (Estupendamente. Mesmo que não fosse romântico) (Oh, mas foi! Vamos ter o seu filho!) (Pare de fungar) (Não estou fungando. O senhor é que está) (Talvez estejamos os dois. Agora cale a boca: ele está chegando) O gerente fulgurava.

— Madame! Nosso contador diz que é perfeitamente legal aceitar dinheiro!

— O Supremo Tribunal ficará feliz ao saber disto.

— Como? Oh, Madame está brincando. Claro que há uma sobretaxa de serviço de dez por cento para...

— Fred. La Boutique.

— Por favor, madame! Mostrei a ele como isso era injusto... e encontrei a solução mais maravilhosa!

— Foi?

— Juro, madame. Tudo o que a senhora quiser comprar eu simplesmente debitarei na minha conta pessoal... e a senhora pode me pagar em dinheiro. Não há problema e eu ficarei feliz. Meu banco não cria nenhuma dificuldade com os depósitos em dinheiro. Juro. (Cuidado, patrão, ele vai querer levar vantagem) (Se conseguir nos oferecer algo que nos interesse, talvez leve. O preço não importa, Eunice. Não podemos nos livrar disso) (É uma questão de princípios, patrão) (Esqueça os princípios e me ajude a gastar dinheiro) (Está bem. Mas só compraremos o que gostarmos)

Durante as duas horas seguintes Joan gastou dinheiro... e ficou assombrada ao descobrir como podem ser caras as roupas femininas. Mas esqueceu sua formação para dar ouvidos unicamente a uma voz interior: (Esta não, gêmeo... é elegante, mas um homem não gostaria) (E esta, Eunice?) (Talvez. Vamos fazê-la passar outra vez e depois sentar. Para que mostre as pernas)

(Lá vem «Winnie» outra vez. Essa garota é ruiva mesmo, Eunice?) (Provavelmente uma peruca, mas não importa. Ela tem quase as medidas de Winnie. Vai ficar bem na nossa Atraente. Gêmeo, veja o que eles têm em matéria de calcinhas: talvez verdes para ruivas. Winnie precisa ter pelo menos um enxoval para ser visto só pelo seu novo namorado) (Tá legal, vamos alegrar «Bob». Amada, você acha que ele é quem?) (Não tenho a menor idéia... e não vamos querer adivinhar, vamos? Espero apenas que ele seja tão bom para ela quanto Paul foi)

— Mr. du Valle? Que é que tem de exótico em matéria de calcinhas para uma ruiva? Verde, imagino. E taças magnéticas combinando, também podem ser interessantes. Algo bonito... um presente íntimo para uma noiva. (Noiva?) (Bem, pode ajudar Winnie a ficar noiva, Eunice... e tira da cabeça dele idéia de que estou comprando isso para minha namorada) (Que importa o que ele pensa?)

— Uma jóia, talvez? Esmeraldas?

— Não estou querendo dar a ela um presente de casamento. Nem desejo oferecer-lhe algo mais caro do que o noivo possa dar. É de mau gosto, acho eu.

— Ah, mas estas são esmeraldas sintéticas. Encantadoras, mas bastante acessíveis. Yola, querida... venha cá.

Alguns milhares de dólares mais tarde, Joan retirou-se. Começava a sentir fome e sabia, por uma longa experiência, que a fome tornava-a incapaz de gastar dinheiro. Seu subconsciente equiparava «fome» a «pobre», em conseqüência da vida que levara em 1930.

Enquanto pagava a fabulosa conta, mandou Fred chamar Shorty para ajudar a carregar as compras que estavam sendo empacotadas. (Eunice, onde vamos comer?) (Há restaurantes dentro deste conjunto, patrão) (Hum, bolas — não, raios! — não posso comer sem retirar o yashmak. Você sabe o que acontecerá. Alguém que viu o vídeo ontem pode nos reconhecer. Então os caçadores de notícias estarão em cima de nós antes que você possa dizer «silogismo») (Bem... que tal um piquenique?) (Maravilhoso! Eunice, você ganhou mais um prêmio. Mas — onde podemos ir? — um piquenique com grama, árvores, formigas na salada de batatas... e bastante escondido para que eu possa retirar este véu... além de suficientemente perto para que não morramos de fome no caminho?)

(Não sei, patrão, mas aposto que Finchley sabe)

Finchley sabia. Shorty foi designado para comprar o lanche no «Homem Esfomeado», dentro do conjunto...

— Traga o suficiente para seis, Shorty, e não olhe os preços. Seja pródigo. Mas tem de haver salada de batatas. E duas garrafas de vinho.

— Uma é bastante, miss. Eu não bebo, pois o vinho é traiçoeiro, e Finchley nunca bebe quando tem de dirigir.

— Oh, não seja mesquinho, Shorty. Posso beber sozinha uma garrafa inteira... amanhã você salva a minha alma. Hoje é um dia especial... meu primeiro dia de liberdade! (Muito especial, bem-amada) (Muito, muito especial, patrão!)

Desceram até a rampa de cruzamento da cidade, subindo na direção da Estrada Expressa Sul, fora da zona ilimitada, fazendo o percurso de oitenta quilômetros na velocidade de quase cem metros por segundo, velocidade que Finchley só utilizou depois de Joan estar protegida por uma couraça completa e rede contra colisão. Os oitenta quilômetros fundiram-se em quinze minutos e Finchley diminuiu e moveu-se para a frente, pronto para sair. Não tinham sido alvejados, nem mesmo onde a Estrada Sul margeava a Cratera.

— Finchley? Agora posso sair deste casulo incômodo?

— Pode, miss. Mas eu me sentiria melhor se a senhora pusesse o cinto de segurança. Alguns destes motoristas são criminosos.

— Está bem. Mas me avise quando puder tirá-lo. (Eunice, o especialista, se-assim-se-pode-chamar, que desenhou estes raios de tirantes, se-assim-se-pode-chamar, não pensou nas mulheres!) (Ele foi concebido para ser usado por um homem, patrão... claro que está beliscando um seio. Aproxime um pouco a parte inferior e desloque a parte superior do tirante depois que pararmos. Foi assim que prepararam o equipamento para mim. Um homem deve tê-lo usado, desde a última vez que o utilizei) (Provavelmente Jake, ao mandar o carro dele para o conserto. Querida, quantas coisas tenho de aprender para ser mulher, antes de poder evitar tropeçar em meus próprios pés?) (Milhares. Mas o senhor está indo bem, patrão... e estarei sempre aqui para ajudá-lo) (Minha amada. Olhe, isto aqui não está parecendo um lugar para piquenique. Acho que Finchley se perdeu)

Estavam passando por sólidas massas de áreas «dormitório»: conjuntos murados, edifícios de apartamentos e poucas casas particulares. As árvores pareciam exaustas e a grama escassa. O sistema de ar condicionado do carro continuava lutando contra o smog.

Mas não durante muito tempo... Finchley enveredou por uma estrada secundária de transporte comercial e breve viram-se cercados de fazendas. Joan notou que uma pertencia-lhe... pertencia a uma subsidiária das Empresas Smith, retificou, e lembrou-se de que não mais detinha o controle delas.

Não obstante, reparou que o guarda na torre de vigia a um canto estava vigilante e a cerca de aço era resistente e alta, encimada por arame farpado e por fios de alarma, tudo em boas condições. Mas passaram sem que ela pudesse ver o que estava sendo cultivado... Não tinha importância. Johann nunca havia tentado dirigir aquele setor do conglom. Conhecia suas limitações. (Eunice, que estamos produzindo por trás daquilo?) (Joan, não posso ver se você não olhar... e você não olhou) (Desculpe, amada. Reclame se não gostar do serviço) (Reclamarei. Acho que era uma rotação de cultura. Este solo tem sido plantado tanto e há tanto tempo, que deve ser tratado cuidadosamente)

(Que acontece quando o solo não reage mais ao tratamento?) (Morremos de fome, é claro. Você esperava o quê? Mas antes disso, constroem nele)

(Eunice, é preciso pôr um fim a isso. Quando eu era garoto, vivia na cidade mas podia andar pelo menos durante uma hora por campos verdes e matas virgens... tão cerrados que eu podia brincar de Tarzan nu em pêlo. Eu não era alguém «de sorte»: mesmo em Nova Iorque, um garoto com cinco centavos podia ir até fazendas e bosques em menos tempo que estou levando)

(Parece incrível, patrão) (Eu sei. Usa-se um carro rápido e um motorista profissional para fazer o que eu costumava fazer descalço... porém, isto aqui não é uma verdadeira região agrária. São usinas de alimentos a céu aberto, com capatazes, relógios de ponto, encarregados de vendas, descontos em folha, publicações internas e tudo o mais. Um poço cavado e uma caneca de lata causariam uma greve... que seria justificada: esses poços ao ar livre, com seus baldes, provocam doenças. Apesar disso, a época das canecas de lata foi boa neste país... e a atual não é. Para onde estamos indo?)

A voz interior não deu resposta. Joan esperou. (Eunice?) (Patrão, eu não sei!)

(Desculpe, estava só pensando em voz alta. Eunice, passei minha vida inteira usando da melhor maneira possível o que eu sabia. Nunca esbanjei... bolas, mesmo o elefante branco que é aquela casa mantém um bando de gente longe do Seguro Social. Mas a cada ano as coisas pioram. O que me consola um pouco é saber que não estarei mais aqui quando tudo cair aos pedaços. Agora isto está chegando no que eu pensava. Daí minha pergunta: Para onde estamos indo? Também não conheço a resposta)

(Patrão?)

(Sim, querida?)

(Também posso ver. Sair de uma fazenda de Iowa para uma grande cidade me fez ver. E também fiz uma espécie de plano. Soube que o senhor ia morrer, nada pude fazer, apesar de saber, e imaginei que Joe um dia ficasse cansado de mim. Não tínhamos filhos, nem perspectiva de tê-los, e eu acabaria perdendo o emprego excelente que proporcionava a Joe tudo o que ele necessitava. Subestimei Joe. Apesar disso, nunca esqueci de que ele poderia de repente me dar o fora. Por isso fiz planos e economizei dinheiro. A Lua)

(A Lua! Ei, é uma idéia genial! Pegamos uma das excursões da Pan Am, de primeira classe, com direito a correio e todas as frescuras. Vamos lá antes de ficarmos tão barrigudas que não possamos entrar numa escotilha. Que tal, hem, garota?)

(Se o senhor também quiser)

(Você não parece muito entusiasmada) (Não sou contra, patrão. Mas não economizei para fazer uma excursão turística. Quero dizer, pôr meu nome na lista, fazer os exames de seleção... e ter condições de pagar a diferença, visto que não tive uma das profissões subvencionadas. Que me permitisse emigrar. Permanentemente)

(Puxa vida! Você vive pensando nisso... e nunca disse nada?) (Para que falar de hipóteses? Nunca fiz planos enquanto o senhor e Joe precisaram de mim. Mas eu tinha um motivo para ser séria. Já lhe disse que fui licenciada para ter três filhos)

(Sem dúvida. Eu soube disso desde seu primeiro recolhimento para a previdência social) (Bem, três é uma quota alta, patrão... um filho acima da média de reposição. Uma mulher pode ficar orgulhosa com uma licença de três filhos. Mas eu queria mais)

(E daí? Agora você pode ter. As multas não são problema, apesar deles as terem aumentado outra vez e as tornado progressivas. Eunice, se você quer filhos, este é apenas o começo)

(Patrão querido. Vamos ver como este primeiro sai. Sei que não posso arcar com multas... mas Luna não faz restrições a filhos. Querem crianças. Acho que vamos tê-los lá)

Finchley enveredou por um portão. Agroproducts Inc., notou Joan: um competidor. Estacionou de maneira a não obstruir a entrada, saiu e foi até o posto de guarda. A posição do carro era tal, que Joan não podia ver o que estava acontecendo, pois a couraça entre ela e o posto de controle tirava-lhe a visão.

Finchley voltou e o veículo atravessou o portão.

— Miss Smith, disseram-me para conservar o carro a trinta quilômetros por hora, pois agora nenhum cinto de segurança é legal.

— Obrigada, Finchley. O suborno foi de quanto?

— Oh, nada importante, miss.

— É? Vou esperar para ver no relatório semanal de O'Neil. Se não constar dele, vou tornar a perguntar-lhe.

— Constará, miss — respondeu imediatamente o motorista. — Mas não sei ainda a quanto montará. Temos de parar no Edifício da Administração e sair por um portão dos fundos. Para onde a senhora possa fazer um piquenique.

— Para onde nós possamos.

Joan ficou pensativa. Preocupava-a ter de pagar um suborno quando sua posição de maior competidor (aposentado, é verdade) dava-lhe o direito, por acordo, a um tratamento especial. Mas não havia enviado uma palavra prévia — que era o mínimo de cortesia quando se visitava o estabelecimento de um competidor — a fim de dar-lhe tempo de varrer o lixo para baixo do tapete ou evitar que o visitante veja certas coisas. A espionagem industrial pode não ser apropriadamente conduzida nas instâncias superiores.

— Finchley, você disse ao guarda do portão quem estava no carro?

— Oh, não, miss. — O motorista parecia escandalizado. — Ele, porém, verificou a licença, apesar de eu lhe ter dito que era seu carro... era melhor dizer. Ele tem a lista de todos os carros blindados particulares do Estado, exatamente como eu tenho. O que eu disse a ele foi que estava conduzindo convidados de Mr. Salomon... e deixei que ele imaginasse tratar-se de um casal de pessoas importantes vindas da Costa, loucos para fazer um piquenique em lugar seguro. Nada lhe disse realmente, a não ser o nome de Mr. Salomon. Está bem assim?

— Magnífico, Finchley. (Eunice, sinto-me como um intruso, entrando sem dar meu nome. Mal-educado) (Encare a coisa assim, patrão: o senhor sabe quem o senhor é. Mas o público não deve saber... não depois daquele carnaval idiota de ontem. Acho melhor passar por convidado de Jake... o que, de certa maneira, é verdade) (Continuo achando que devia ter dito a Finchley para revelar meu nome ao Agrônomo-Chefe. Mas chegaria ele a tomar conhecimento? Ou, melhor, com que rapidez?) (Trinta minutos. O tempo suficiente para que um funcionário telefonasse e um cóptero de jornalistas levantasse vôo. Então um bisbilhoteiro tentaria entrevistá-lo por intermédio de um alto-falante, porque os guardas não deixariam que ele pousasse)

(Que piquenique!)

(Se ele pousar, Shorty e Fred estarão lado a lado para recebê-lo. Ansiosos. Ansiosos demais, patrão, talvez o senhor n^o tenha reparado mas, ao mesmo tempo em que o chamam de Miss Smith, o tratam da mesma maneira que a mim. Dentro da cabeça deles, sabem que o senhor é o senhor... mas nas vísceras sabem que o senhor sou eu) (Não estão muito errados, Eunice. Na minha cabeça, eu sou eu... mas nas minhas vísceras — na sua linda barriguinha — eu sou você)

(Gostei, patrão. Somos os únicos irmãos siameses com uma só cabeça na história. Mas nem tudo na nossa barriga sou eu. Há uma larva, nadando mais depressa que o resto — que é «Johann» e não Joan nem Eunice — que se atingir a linha de chegada será mais importante que nós dois juntos)

(Meu amor, você é uma sentimental) (Sou uma idiota, patrão. E o senhor também) (Nolo contendere. Quando penso sobre Johann e Eunice — ambos mortos, na verdade — unindo-se em Joan para ter um filho, fico angustiado e tenho vontade de chorar) (Acho melhor não chorar, Joan, o carro está parando. Patrão? Quanto tempo leva uma larva para chegar lá? Sei que um espermatozóide tem de andar vários centímetros para alcançar o óvulo... mas com que velocidade ele nada?) (Um raio se eu sei, querida. Vamos deixar aquela rolha no lugar pelo menos um par de dias. Vamos dar ao bastardinho todas as chances possíveis) (Ótimo!) (Você sabe como retirá-la? Ou teremos de procurar o Dr. Ò'Neil? Não queremos que Winnie entre nesta história) (Patrão, coloquei-a e tirei-a tantas vezes que posso fazer dormindo. Não se inquiete, Annette. Já usei mais preservativos que a maioria das moças sapatos)

(Faroleira) (Só um pouquinho, amado patrão. Já lhe disse que sempre fui uma dadeira. Durante anos, cada dia que perdi não foi por minha culpa. Conhecia meu objetivo na vida nitidamente quando ainda era bandeirante, sem seios e virgem)

Finchley voltou para o carro e falou, depois de se ter fechado.

— Miss?

— Sim, Finchley?

— O chefe da fazenda envia cumprimentos e diz que os hóspedes do Doutor Salomon são convidados de honra da Agroproducts. Nenhum suborno. Mas perguntou se o guarda do portão central havia posto qualquer dificuldade. Disse-lhe que não. Fiz bem?

— Claro, Finchley. Nós não dedamos os empregados dos outros.

— Acho que ele não me acreditou, mas não deu a perceber. Convidou a ambos — supôs que eram duas pessoas e eu não o corrigi — para tomar um drinque ou café na volta. Deixei-o na dúvida.

— Obrigada, Finchley.

Prosseguiram pela fazenda adentro até chegar a outro portão alto. Fred desceu e apertou um botão, falando com o escritório de segurança. O portão correu para o lado e tornou a fechar após a passagem deles. Logo depois o carro parou. Finchley abriu o compartimento dos passageiros e estendeu a mão a Joan Eunice.

Ela olhou em volta.

— Oh, isto é encantador! Eu não sabia que ainda havia lugares como este.

O local tinha uma beleza singela. Um pequeno regato, cristalino e aparentemente não poluído, deslizava entre margens baixas. Nestas e ao redor havia inúmeras espécies de árvores e arbustos, mas não eram densos e havia um tapete de capim cobrindo os espaços abertos. Pelo aspecto de gramado, aparentemente havia sido roçado. O céu era azul, com nuvens de bom tempo, e a luz do sol era dourada e quente, sem exagero. (Eunice, não é sensacional?) (Hum, hum. Me faz lembrar Iowa antes do verão ficar quente demais)

Joan Eunice descalçou as sandálias e jogou-as para dentro do carro, sobre a capa. Mexeu os dedos dos pés.

— Oh, que delícia! Há mais de vinte anos que não piso descalça na grama. Finchley, Shorty, Fred... todos vocês! Se têm idéia do que Deus queria dizer quando fez a promessa, tirem os sapatos e as meias e dêem uma festa aos seus pés.

Os guarda-costas continuaram impassíveis e Finchley ficou pensa-tivo. Então riu.

— Miss Smith, não precisa repetir!

Abaixou-se e desabotoou as botas. Joan Eunice sorriu, virou-se e caminhou devagar para o regato, imaginando que Shorty ficaria menos encabulado se ela não olhasse.

(Eunice, Iowa é tão bonito assim? Ainda?) (Em certos lugares, querido. Mas está se deteriorando depressa. Veja por exemplo onde moramos, entre Des Moines e Grinnell. Quando eu era pequenina, só havia fazendas. Mas quando saí de casa, havia mais vizinhos de fim de semana que fazendeiros. Começaram também a construir condomínios) (Horrível. Eunice, este país está gerando a própria morte) (Para uma vagabunda recém-fecundada, você tem uma estranha atitude com relação à reprodução, gêmeo. Está vendo aquele local relvoso na curva do regato?) (Estou. Por quê?) (Ele me faz lembrar... parece com a margem de um riacho em Iowa, onde entreguei minha pretensa inocência) (Bem! É um lugar lindo para isso. Você resistiu?) (Gêmeo, qual é? Eu colaborei) (Doeu?) (Não o bastante para me fazer desmaiar. Também não havia motivo. Patrãozinho, sei como as coisas eram no seu tempo. Mas hoje não há mais sangue no lençol. As moças com mães espertas tiraram a virgindade cirurgicamente quando se tornaram púberes. E algumas a perderam gradualmente e nunca souberam quando aconteceu. Mas a moça que berra: «estão me matando» e sangra como um porco é hoje uma avis rara) (Garota, tenho outra vez de pôr as coisas no lugar. Não houve uma grande mudança. Apenas as pessoas são mais compreensivas a esse respeito. Acha que a água está bastante quente para a gente nadar?)

(Está, patrão. Mas como saberemos se é limpa? Não sabemos o que há rio acima)

(Eunice, deixe de ser covarde. Quem não aposta não ganha)

(Isso era verdade ontem... mas hoje somos mãe em perspectiva. Uma corrente murmurante pode estar cheia de um monte de coisas horríveis)

(Hum... oh, que inferno! Se estivesse poluída, haveria um aviso) (Aqui, onde não se pode chegar sem passar por dois portões eletrificados? Pergunte a Finchley. Ele talvez saiba)

(E se ele disser que está poluída?) (Então iremos nadar da mesma maneira. Patrão, como o senhor disse, quem não aposta não ganha) (Hummm... se ele souber que está poluída, desisto. Como você disse, amada, agora temos responsabilidades. Vamos comer, estou com fome) (O senhor está com fome? Eu começava a pensar que havia perdido o hábito) (Pois vamos comer enquanto podemos. Quando principia o enjôo matinal?) (O o quê, patrão? Da outra vez, o único efeito foi me dar fome de manhã, de tarde e de noite. Vamos comer!)

Joan Eunice correu de volta ao carro e parou espantada quando viu que Shorty estava estendendo a mesa portátil, com um único lugar para sentar.

— Que é isso?

— Seu almoço, miss.

— Um piquenique? Numa mesa? Quer matar as formigas de fome? Tem de ser no chão.

Shorty ficou com ar infeliz.

— Como quiser, miss. (Joan! Você não está usando calças. Se você se refestelar no chão, vai deixar Shorty encabulado... e interessar os outros) (Desmancha-prazeres. Está bem)

— Já que está pronta, pode deixar, Shorty. Mas coloque mais três cadeiras.

— Oh, comeremos no carro, miss... fazemos com freqüência. Joan bateu o pé.

— Shorty, se me fizer comer sozinha, mandarei você de volta para casa. De quem foi a idéia? De Finchley? Finchley! Venha cá!

Pouco depois, estavam os quatro sentados na mesa, que ficara atulhada, pois Joan insistira para que tudo fosse servido de uma vez.

— É só pegar — explicou. — Ou morrer de fome. Há algum sujeito forçudo para abrir esta garrafa de vinho?

A habilidade com que Shorty a abriu fê-la suspeitar de que ele não fora sempre abstêmio. Joan encheu seu copo e o de Fred. Depois pegou o de Finchley, que disse:

— Obrigado, Miss Smith... mas estou dirigindo — e colocou a mão sobre ele.

— Me dê seu copo — respondeu a moça. — Quatro gotas para um brinde. E quatro gotas para você, Shorty, pela mesma razão. — Derramou um pouco de vinho em cada copo. — Mas primeiro... Shorty, quer dar graças?

O grandalhão pareceu ficar espantado, mas imediatamente se recompôs.

— Com o maior prazer, Miss Smith.

Inclinou a cabeça. (Patrão! Qual é o problema?) (Cale a boca! Om Mani Padme Hum) (Oh! Om Mani Padme Hum) (Om Mani Padme Hum) (Om Mani Padme Hum...)

— Amém.

— Amém!

(Om Mani Padme Hum. Amém)

— Amém. Obrigada, Shorty. Agora o brinde... que também é uma espécie de prece. Vamos todos beber e isso precisa ser por alguém que não está aqui... mas que devia estar. (Patrão! O senhor precisa parar com isso... é mórbido) (Meta-se com sua vida!) Um de vocês quer fazer?

Finchley e Shorty se entreolharam... e desviaram os olhos. Joan encarou Fred.

— Fred?

— Hem?... Miss, não sei fazer. Parecia preocupado.

— Levante-se — Joan ficou em pé e os outros a imitaram — e diga o que achar melhor sobre alguém que não está aqui mas seria bem recebido. Alguém de quem todos gostávamos. Cite a pessoa a ser homenageada.

Ergueu o copo, percebendo que suas lágrimas começavam a aflorar. (Eunice! Você está chorando? Ou sou eu? Nunca fui de chorar!) (Então não me faça começar, patrão... já lhe disse que sou uma boboca sentimental)

Fred falou, indeciso:

— Um brinde para... alguém de quem todos gostamos... e que devia estar aqui. E ainda está!

Subitamente ficou apavorado.

— Amém — disse Shorty, num sonoro barítono. — E ainda está. Porque o Céu está tão perto quanto a gente permite. É o que eu digo aos meus fiéis, Fred... e no seu coração, você sabe que eu tenho razão.

Derramou, solene e cuidadosamente, uma pequena quantidade de vinho no próprio copo. Todos beberam. Joan disse calmamente:

— Obrigada, Fred. Ela o ouviu. Ouviu a todos, Shorty. Está me ouvindo agora. (Patrão! O senhor os deixou perturbados... e também está perturbado. Diga-lhes que sentem. E comam. Diga-lhes que eu também disse! O senhor estragou um piquenique perfeito) (Não, não estraguei) Finchley. Você a conheceu bem. Provavelmente melhor que eu... pois eu era um velho ranheta e ela cuidou da minha doença. Ela quereria que nós fizéssemos o que, agora?

— Quem gostaria... Mrs. Branca?... Quereria que fizéssemos?

— Sim. Você a chama de Mrs. Branca? Ou de Eunice? (Ele me chamava de Eunice, patrão... e depois da primeira semana eu o beijava quando o encontrava, quando me despedia e quando lhe agradecia por cuidar de mim. Mesmo se Jake visse. Mas ele fingia não ver) (Assanhada. Você é uma gostosura, querida. Só fez beijá-lo?) (Céus, patrão! Mesmo fazendo-os aceitar um beijo no lugar de uma gorjeta, eles não passavam disso) (Pois sim!... com você, quero dizer... irmã puta) (Vagabunda cansada)

— Hum, a princípio chamei-a de Mrs. Branca. Então ela me chamou de Tom e eu a ela de Eunice.

— Está bem, Tom. Eunice gostaria que nós fizéssemos o quê? Ficar aqui chorando? Seus olhos estão lacrimosos. Não sou a única a chorar. Eunice gostaria que estragássemos um piquenique?

— Hum... Ela diria: sente-se e coma.

— Isso mesmo — concordou Shorty. — Eunice diria: Não deixe a comida quente esfriar nem a fria esquentar... coma!

— Sim — confirmou Joan Eunice sentando-se — pois Eunice nunca foi desmancha-prazeres na sua curta e bela vida, nem deixou ninguém ser. Principalmente eu, quando era ranheta. Alcance-me uma perna de galinha, Fred... não, deixe para lá.

Joan aceitou um pedaço de frango. (Gêmeo, o que Shorty disse parecia uma citação) (E era, patrão) (Então você comeu com ele antes) (Com todos eles. Quando uma equipe me levava tarde da noite para casa, eu sempre os convidava para comer. Joe nunca se incomodou. Gostava de todos eles. Tinha especialmente prazer em ver Shorty. Queria que Shorty posasse para ele. A princípio, Shorty pensou que Joe estava se divertindo à custa dele. Não sabia que Joe raramente brincava e jamais quando se tratava de pintura. Nunca chegaram a nada uma vez que Shorty, sendo tímido, não estaria de acordo com posar nu e teria medo que eu chegasse quando estivesse posando. Não que eu me importasse) (Nem uma vez, garotinha? Shorty é uma bela torre de ébano) (Patrão, continuo a lhe dizer...) (... que a nudez nada significa para a sua geração. Depende da pele, não? Eu teria prazer vendo nosso gigante negro... e isso é válido tanto para Joan como para Johann) (Bem...) (Arranje uma mentira com calma. Tenho de estabelecer conversa)

— Tom, essa mostarda está sob suspeita ou posso pegar um pouco? Shorty, você fala como se tivesse provado a comida da Eunice. Ela sabia cozinhar?

Finchley respondeu:

— E como!

— Comida, mesmo? Qualquer um pode preparar coisas enlatadas... e é isso o que os jovens de hoje parecem considerar cozinhar. (Patrão, eu cuspo na sua sopa!) Mas que poderia ela fazer com farinha, toucinho, fermento e o resto?

— Eunice teria feito maravilhas — disse Shorty suavemente. — É verdade, ela quase nunca tinha tempo para cozinhar de fato. Mas quando cozinhava... ou o que fizesse displicentemente, era impecável

(Meu fã! Patrão... dê-lhe um aumento) (Não) (Pão-duro) (Não, Eunice. Shorty matou o verme que matou você. Quero fazer alguma coisa por ele. Mas não com dinheiro. Ele não aceitaria)

— Ela era uma artista — concordou Fred.

— Você diz «artista» num sentido geral. O marido dela era, eu lembro, um artista no sentido estrito da palavra. Pintor. Era bom? Nunca vi nada dele. Algum de vocês viu?

Finchley respondeu:

— Acho que é uma questão de opinião, Miss Smith. Gosto dos quadros de Joe Branca... mas não entendo nada de arte. Apenas sei do que gosto. Mas... — Riu. — Posso falar a seu respeito, Shorty?

— Puxa, Tom!

— Você ficou envaidecido, não pode negar. Miss Smith, Joe Branca queria pintar este gorila nu.

(Bingo!) (Perturbada, Eunice?)

— E ele pintou, Shorty?

— Bem, não. Mas me pediu. De fato. (Não está vendo, patrão? É aquele argumento decisivo. Um fato que o senhor primeiro soube por mim e mais ninguém... e confirmado de cabo a rabo. Agora o senhor sabe que eu sou eu) (Oh, bobagem, querida) (Mas, patrão...) (Sempre soube que você era você, amada. Mas isto não é uma prova. Assim que eu soube que Joe e Shorty haviam se encontrado, era uma necessidade lógica que Joe quisesse pintá-lo... qualquer artista quereria a mesma coisa)

(Patrão, o senhor dá náuseas! Está comprovado. Eu sou eu) (Amor da minha vida, sem o qual não vale a pena existir, mesmo neste corpo lindo, sei que você é você. Mas vermes não importam, coincidências também não, nem provas mundanas. Não há prova que um convencido psicanalista não possa explicar como coincidência, déjà vu ou auto-ilusão. Se os deixamos estabelecer as regras, estamos perdidos. Mas não deixaremos. O que importa é que você me tem e eu a você. Agora, cale a boca. Quero deixá-los tão à vontade comigo, que me chamem de Eunice. Você disse que eles costumavam beijá-la?)

(Oh, claro. Beijos amistosos. Bem, Dabrowski costumava ser fogoso, mas sabe como são os poloneses) (Temo não saber) (A coisa é assim, patrão. Com um polonês, não anuncie a menos que pretenda fazer a entrega... porque suas intenções são tão honestas quanto um revólver carregado. Com Dabrowski eu tinha o cuidado de não deixá-lo chegar ao ponto crítico)

(Tomarei nota. Apesar dele não estar aqui. Porque a situação é a mesma com Jake, apenas menos intensa. Assanhada, você fez todos meus guardas ficarem apaixonados por você. Por isso, agora tenho de levá-los a aceitar que você está morta apesar de sentirem que você ainda está viva. Se eles me chamarem de Eunice, tenho meio caminho andado. Se me beijarem...) (O quê? Patrão! Não tente!)

(Agora olhe aqui, Eunice! Se você não tivesse representado a «Minha Última Duquesa» para metade do condado, eu não teria de reparar os danos) («Danos», hem? Está se lamentando?)

(Não, não, minha querida! Nunca. Fui o primeiro beneficiado por sua benevolência. Mas perder algo de valor é um dano e é esse dano que quero reparar) (Bem... não vou discutir, querida. Mas, nesse caso, pode deixar o barco correr. Nunca deixo a coisa esquentar muito) (E eu digo que você não sabe de que está falando. Agir friamente pode ser a maneira correta. Assexuadamente, ou tão assexuadamente quanto puder manobrar, o que não é verdade. Mas todos quatro guarda-costas meus estão dispostos a morrer por você... correto?) (Hum...) (Não vamos conversar bobagens. Você pensa que o fato de eu pagar-lhes tem algo a ver com a disposição deles? Veja como responde)

(Hum... não preciso responder! Patrão, qual a vantagem de atiçá-los com a minha morte?) (Porque, minha querida, de agora em diante eles irão me proteger — como sou agora, dentro do seu corpo encantador — exatamente como protegiam você. Eles têm de querer me proteger, ou nunca ficarão felizes nesta estranha situação. E, nesse caso, ou os despeço ou aposento...) (Oh, não!) (Claro que não. Parafraseando Sherlock Holmes: quando você eliminou o que não podia fazer, o que sobrou é o que você precisa fazer. Além disso, única no mundo, isto é um severo exercício para enfrentar o caso duríssimo que temos pela frente) (Jake? Mas Jake é...) (Burrinha! Jake já aceitou o impossível. Refiro-me a joe)

(Mas, patrão! O senhor nunca deve ver Joe)

(Deus sabe que eu gostaria de poder evitar isso. Não importa, amada. Não o veremos até você sentir — como eu sinto — que precisamos vê-lo. Agora, ou cale a boca ou me ensine a lidar com estes bravos rapazes)

(Bem... farei o possível. Mas o senhor nunca os verá tão à vontade como ficavam comigo. Quero dizer, à vontade para «beijos amigáveis». Eu era empregada. O senhor é patrão)

(Se esse argumento fosse válido, as rainhas nunca ficariam grávidas. Claro que esse fato piora as coisas. Mas você me deu muito material para trabalhar. Quer apostar?)

(Oh, claro, aposto um bilhão de dólares como o senhor não conseguirá beijar um deles. Não seja bobo, patrão. Nunca poderemos apostar de verdade, pois não temos como pagar) (Você não tem muita prática em ser anjo, hem, garotinha? Ainda pensa em termos terrestres. Certamente que podemos fazer uma aposta e pagar ao vencedor. Esta criança dentro de nós...) (Hem! Espere um momento...) (Você espere um momento, Eunice. Se eu ganhar a aposta, escolherei o nome da criança. Se eu perder, o privilégio é seu. É uma condição justa?)

(Oh. Está bem, apostemos. Mas o senhor vai perder)

(Veremos)

(Oh, sim, o senhor verá, patrão. Perderá mesmo que vença. Quer saber por quê?) (Planejando roubar?) (Não vai ser necessário, querido patrão. O senhor vai descobrir que chamará a criança pelo nome que eu quiser, qualquer que seja ele. Porque o senhor sempre foi um trouxa nas mãos de uma moça bonita, patrão, foi e sempre será) (Agora espere aí. Eu costumava ser, mas atualmente sou a tal «moça bonita» e...) (O senhor verá. Quer auxílio? Eu o ajudaria a vencer se fosse possível. Mas não é) (Sim, mas enfie seu conselho sabe onde. Estou curtindo este osso há muito tempo)

— Fred, troco um destes sanduíches dinamarqueses por mais vinho. Então conserve nossos copos cheios. Shorty não bebe e Tom não quer beber. Eu quero companhia para ficar tocada, pois estou comemorando minha liberdade.

(Fred pode ficar mais à vontade se o senhor conseguir que ele não veja fantasmas quando o olha)

— Posso beber outro copo, miss, mas não posso ficar tocado pois estou trabalhando.

— Ora essa! Tom e Shorty nos levarão para casa, mesmo que tenham de nos arrastar. Não é, Shorty? (Shorty é seu caso impossível. Só consigo manobrá-lo bancando a «garotinha»... o que o senhor não pode ser, patrão)

— Certamente tentaremos, Miss Smith.

— Tenho de ser «Miss Smith» num piquenique? Você chamava Mrs. Branca de «Eunice», não? Ela o chamava de «Shorty»?

— Miss, ela me chamava por meu nome. Hugo.

— Prefere ele ao apelido?

— Foi o nome que minha mãe me deu, miss.

— Para mim basta, Hugo. Não esquecerei. Mas isso me faz lembrar de um problema. Alguém quer disputar comigo a última azeitona preta? Vamos, fechem os punhos. Mas o problema não é esse. Eu disse que não quero ser chamada de «Miss Smith» nas atuais circunstâncias. Mas também não quero ser chamada de «Johann», que é um nome masculino. Hugo, já batizou crianças?

— Muitas vezes, miss... hum, miss... Joan atalhou rapidamente.

— É isso mesmo, você não sabe como me chamar. Hugo, já que batizou tantas crianças, deve ter opinião formada a respeito de nomes. Acha que «Joan», pronunciado como duas sílabas, pode ser um bom nome para uma moça que era um homem chamado «Johann»?

— Sim, acho.

— Tom, que pensa você? (Tom o beijaria à mais leve sugestão se o senhor não fosse o empregador dele. Acho que ele nunca desistiu da esperança de me pegar sozinha... mas eu tive o cuidado de não lhe dar essa chance como aconteceu com Dabrowski. O máximo que aconteceu com Tom foi: «Tom, se vai ficar ofendido por eu querer pagar serviço extraordinário — foi durante uma viagem depois da meia-noite, patrão, um chamado para doação de sangue raro — pelo menos pode me dar um beijo de despedida». Ele o fez e muito bem. Depois do que, Hugo foi bastante delicado para se inclinar e me dar um beijo paternal. Mas o que funcionou com Eunice não funcionará com «Miss Smith») (Pois veja como vou assanhá-los, coisinha)

— Para mim parece um bom nome — concordou o motorista-guarda-costas.

— Fred? Eu pareço «Joan» para você?

Empertigou-se na cadeira e ergueu o busto. (O senhor está a ponto de estourar essa fita, se não tomar cuidado) (Moita, sapeca, ela não pode estourar. Quero que ele perceba que sou mulher) (Ele percebe. Winnie devia estar aqui para tomar o pulso dele)

— Não vejo por que todos podem opinar menos a senhora. Mas, claro, gosto.

— Ótimo! Ainda tenho de assinar documentos com meu antigo nome... mas, no fundo, sou «Joan». Amigos, deve haver neste país milhares de «Joan Smith». Por isso, preciso de um segundo nome. Mas preciso, por um motivo muito maior. — Olhou para o gigante negro com ar seriíssimo. — Hugo, você é um homem de Deus. Seria muita presunção da minha parte eu me chamar... «Joan Eunice»? (Patrão, se fizer meu amigo Hugo chorar, eu... eu... eu não falarei com o senhor pelo resto do dia!) (Oh, deixe de resmungar! Hugo não chorará. Ele é o único dos três que acredita que você está aqui. Tem fé)

— Acho que seria lindo — respondeu o Reverendo Hugo White solenemente e reprimiu as lágrimas.

— Hugo, Eunice não quereria que você ficasse triste por causa disso. — Afastou os olhos dele, com os próprios brilhando com as lágrimas retidas. — Isso acerta tudo. Meu novo nome será — é — Joan Eunice. Não quero que alguém esqueça Eunice. Especialmente vocês, seus amigos, quero que saibam. Agora que sou mulher, Eunice é meu modelo, o ideal para o qual viverei, a cada hora, a cada minuto da minha nova vida. Querem me ajudar? Querem me tratar como se eu fosse Eunice? Sim, sim, sou o patrão de vocês. Seja como for, preciso ser ambos e isso não é fácil. Mas a parte mais difícil para mim é aprender a me portar, a pensar e a sentir como Eunice... quando passei tantos anos sendo um velho ranheta e egocêntrico. Vocês são amigos dela... querem me ajudar? (Patrão, o senhor alguma vez vendeu propriedades na Flórida?) (Raios, se você não pode ajudar, pelo menos fique calada!) (Desculpe, patrão. Era um elogio. Como Hugo diz: «o senhor é demais»)

Tom Finchley disse, calmamente:

— Nós ajudaremos. Falo também por Dabrowski. A propósito, ela o chamava de «Anton». A princípio, chamava de «Ski» como todos nós. Então aprendeu o nome dele e só o chamava assim.

— Pois também o chamarei de «Anton». Querem me chamar de «Eunice»? Ou, pelo menos, de «Joan Eunice»? Para me ajudar? Oh, me chamem de «Miss Smith» quando houver alguém por perto. Sei que não se sentirão bem de outra maneira. Vocês provavelmente a chamavam de «Mrs. Branca» quando havia outros...

— É verdade.

— Pois me chamem de «Miss Smith» nas situações em que costumavam chamá-la de «Mrs. Branca». Mas quando a chamavam de «Eunice», me chamem de «Joan Eunice» e — queridos e fiéis amigos!

— sempre que sentirem que eu mereço, me chamem por favor de «Eunice». Será o maior elogio que podem me fazer e por isso não o gastem à toa. Abandonem «Joan» e digam «Eunice», sim?

Finchley olhou-a sem sorrir.

— Sim... Eunice.

— Tom, eu ainda não tinha merecido isso. Finchley não respondeu. Fred disse:

— Vamos deixar a coisa clara. «Joan Eunice» é para o diário... mas «Eunice» significa que nós pensamos que você quer exatamente o que Mrs. Branca queria.

— Está bem, foi o que eu disse.

— Então sei o que Tom quis expressar. Hum, hoje foi um dia complicado: pior para você, eu diria, mas não fácil para nenhum de nós. Shorty — isto é, Hugo — disse que ela era um anjo. Ou quis significar isso, seja como for. Não quero discutir. Shorty é pregador e sabe mais sobre anjos e coisas assim do que eu. Porém se ela foi

— é, quero dizer — ainda tem uma porção de malícia também. Lembra uma hora atrás, quando zangou com Shorty e chamou Tom?

Joan suspirou.

— Sim, lembro. Perdi a paciência. Tenho ainda muito que andar, sei disso.

— Mas era exatamente o que estava dizendo... Eunice. Ela possuía muita vivacidade. Se tivéssemos tentado fazê-la comer sozinha, ela teria tocado o gongo. Não é, Shorty... Quero dizer, «Hugo».

— Amém! Eunice. Finchley disse:

— Fred lê minha mente bastante bem... Eunice. Mas eu também estava pensando em outras coisas. Nunca pensei nela como um anjo, especialmente. Ela nos considerava apenas gente.

— Tom...

— Hem, Shorty? Hugo.

— Para você sou Shorty... e para você também, Fred. Nada de brincadeiras. Hugo foi o nome que mamãe me deu. E ela. É seu, Eunice. Mas quase esqueci o que ia dizer. Tom, é isso o que todos querem. Ser tratados «como gente». Ela procedia assim... Eunice. E agora você também. «Como gente». Mr. Smith não procedia muito assim. Mas estava velho e doente e não levamos a mal.

— Oh, Deus! Sinto que vou chorar outra vez. Hugo... quando eu era Mr. Smith só quis ser gente. Na verdade, não consegui.

— Gente doente não pode evitar ser ranheta. Papai era tão mesquinho antes de morrer que fugi de casa. Foi meu pior erro. Mas não o culpo por isso. Fazemos uma coisa e depois temos de assumi-la. Eunice — a primeira Eunice — é agora um anjo: é o que meu coração diz e minha mente sabe. Mas tinha suas fraquezas humanas, como todos. Deus nosso Senhor não nos pune por isso.

— Hugo? Se tivesse sido eu e não ela, eu teria ido para lá? Para o Céu? (Om Mani Padme Hum! Cuidado, patrão! Ele o arrastará para aquele regato e afogará seus pecados nele) (Se ele quiser, eu deixarei. Cale-se!)

— Não tenho certeza — respondeu o pregador suavemente. — Nunca conheci Mr. Smith tão bem assim. Mas o Senhor usa caminhos misteriosos. Veja como Ele lhe deu uma segunda oportunidade. Ele sempre sabe o que faz. (Oh, está bem, gêmeo. Procure evitar que a água suba acima do nosso nariz)

—Obrigada, Hugo. Também acho que Ele usa... e estou procurando dar-Lhe razão. — Ela suspirou. — Mas não é fácil. Procuro agir como Eunice faria. Pelo menos justificar a segunda oportunidade que ela me deu. Acho que sei o que ela faria agora. Mas não tenho certeza. (Eu acabaria com toda essa conversa, era o que eu faria) (Bico calado e me dê uma chance) — Olhou em volta. — Não sei até que ponto você a conheceu e continuo aprendendo coisas a respeito dela. Acho que vocês três — os quatro, pois incluo Anton — devem ter sido os amigos mais íntimos dela, pelo menos entre meu pessoal. Certamente a conheceram melhor que eu pensava. Tom?

— Sim, Eunice?

— Alguma vez a beijou?

O motorista parecia espantado.

— Beijei... Joan Eunice.

— Esse Joan Eunice significa que Eunice nunca faria tal pergunta. Apenas faria o que seu coração mandasse. Eu também queria, Tom... mas estava assustada. Ainda não me habituei a ser mulher.

Pôs-se em pé num pulo, chegou junto da cadeira dele, pegou-lhe as mãos e puxou-o. Ele ergueu-se lentamente. Joan colocou os braços sobre os ombros dele, ergueu o rosto... esperou.

Tom suspirou, quase fez uma careta e então tomou-a nos braços e beijou-a. (Gêmeo, ele pode beijar muito melhor) (Beijará. O coitadinho está apavorado) Joan deixou-o beijá-la, sem forçá-lo além da sua disposição, e sussurrou:

— Obrigada, Tom — e rapidamente saiu dos braços dele.

... foi até Fred e pegou-lhe as mãos. Fred novamente ficou apavorado, mas reagiu prontamente. (E Fred, Eunice? Sexy ou irmão?) (Muito tarde, gêmeo!) Fred agarrou-a com força inesperada, encontrou sua boca tão depressa que Joan foi apanhada com os lábios abertos e ele imediatamente correspondeu brutalmente.

Mas por pouquíssimo tempo. Parou e ambos ficaram trêmulos. (Eunice! O que é isto? Você não me preveniu) (Bobeei. Agora é tarde, querida. Vá de marcha lenta e reze três Money Hum. E trate de ser uma criança inocente com o Padre Hugo)

Joan rodeou lentamente a mesa pelo caminho mais longo e parou junto de Hugo. Esperou. Hugo levantou-se da cadeira e baixou o olhar para ela. Joan aproximou-se, pôs as mãos no peito dele, ergueu o rosto com ar solene, de lábios cerrados e olhos abertos.

Ele passou suavemente os braços em torno dela. (Meu Deus, Eunice, se ele nos der um apertão de verdade, nos quebra em duas!) (Ele não quererá, gêmeo. É o homem mais delicado do mundo)

Os lábios de Hugo encontraram os dela numa suave bênção, sem pressa, mas rapidamente. Ela permaneceu um instante nos braços dele.

— Hugo? Quando rezar por ela hoje à noite, quer fazer uma prece por mim? Talvez eu não mereça, mas preciso.

— Farei, Eunice.

Num gesto de graciosa galanteria, Hugo levou-a até sua cadeira e depois tornou a sentar. (Ganhou de ponta a ponta, gêmeo... como vai chamar a criança?) («Eunice», é claro!) (Mesmo se for garoto?)

(Se for garoto, se chamará Jacob E. — de «Eunice» — Smith) («Johann E. Smith» é melhor) (Ganhei a aposta, por isso cale a boca. Não gosto de «Johann» para um rapaz. Agora, que é que há com Fred?) (Você não acreditará) (Atualmente acredito em tudo. Muito bem, mais tarde)

— Fred, ainda há vinho naquela garrafa? Hugo, quer abrir a segunda? Preciso, estou arrasada.

— Certamente, Eunice. Passe-me a garrafa, Fred.

— Também vou comer mais um pouco e espero que todos queiram. Tom; ainda sou «Eunice»? Ou sou uma sapeca que não compreende como uma senhora deve se comportar?

— É, Eunice. Quero dizer, «Não, Eunice». Eu... Oh, que inferno! Ela afagou-lhe a mão.

— Foi o mais lindo cumprimento que recebi, Tom. Você nunca teria dito «Oh, que inferno» para Miss Smith... mas sabe que Eunice — e Joan Eunice — é humana. — Olhou um por um. — Sabem como é gostoso ser tocada? Já viram gatinhos se esfregarem? Durante quase um quarto de século ninguém me beijou. Com exceção de um aperto de mão ocasional, acho que ninguém jamais me tocou. Até que enfermeiras e médicos começaram a me manipular. Amigos — queridos amigos — vocês me reintegraram na raça humana com seus lábios. Estou tão verdadeiramente grato a Eunice — a Eunice Branca — que beijou-os antes de mim e conquistou a amizade de vocês... seu amor? Acho que sim. Pois significa que me receberam... tratando-se de «gente»! Hum, diga-me aquilo, preciso saber... mesmo que isso faça você me chamar outra vez de «Joan Eunice». Eunice também beijou Anton? (Patrão, não vou lhe dizer tudo até que estejamos sós!) (Não lhe perguntei nada, querida)

— Ninguém vai me dizer? Bem, suponho que seja uma pergunta indiscreta.

Finchley disse, subitamente:

— As equipes trabalham por turnos. Dirigi com Fred, Shorty com Ski, e assim por diante. Houve vezes em que fiz de guarda-costa para Ski. Eunice, ela nos tratava igualmente. Mas nunca pense mal a esse respeito...

— Não pensarei!

— ... porque não houve maldade. Ela era tão afetiva e amistosa — e boa — que podia beijar um amigo apenas por, hum...

— Por afeição — completou Shorty.

— «Por afeição». Beijava-nos para agradecer e para se despedir, tanto na presença do marido como não. Sempre fez, quando comíamos tarde da noite na casa deles. (Está bem, gêmeo. Fred e Anton. Não Tom e Hugo. Aconteceu só uma vez. Oh, poderia ter sido com Tom, mas não houve oportunidade e por isso mantive em suspenso. Hugo... ninguém conseguiu vencer as defesas de Hugo e eu nunca tentei. Tem força moral... algo de que eu e o senhor não temos o menor conhecimento)

— Obrigada por me contar, Tom. Nunca deixarei Anton perceber, Mas Anton achará fácil me beijar se quiser... agora que sei que ela partilhou sua afeição com ele. Mudando de assunto: Tom, este lindo regato está poluído? Parece tão limpo.

— Está limpo. Tanto quanto uma corrente pode estar, quero dizer. Sei porque tive conhecimento deste lugar quando a companhia emprestou-o à nossa liga para um piquenique. Alguns de nós nadaram nele depois que o superintendente da fazenda disse que não havia perigo.

— Maravilhoso! Porque eu quero nadar. A última vez em que nadei em água natural — quero dizer, num velho poço de natação — deixem-me ver... puxa vida! Mais de três quartos de século.

— Eunice, acho que você não deve.

— Por quê?

— Porque pode estar poluída de outra forma. Marginais. Nem todos os marginais estão nas A.A. Qualquer região selvagem os atrai. Como esta. Não quero assustá-la, mas quando você caminhou até a margem, Fred ficou de um lado e eu do outro.

— Bem, se você pode me conservar a salvo na margem, também pode na água.

— Não é a mesma coisa, garanto-lhe. Uma vez cheguei atrasado poucos segundos e não quero que isso se repita. Alguns marginais são verdadeiramente perigosos e não apenas malucos inofensivos.

— Tom, para que discutir? Quero entrar na água, senti-la inteiramente no corpo. E vou entrar.

— Gostaria que não... Joan Eunice.

A estas duas palavras, ela atirou a cabeça para trás. Então riu e espichou o lábio inferior.

— Tá legal, Tom. Raios, forneci aos três uma rédea que pode me controlar cada vez que vocês quiserem. E ainda dizem que sou o patrão. É cômico.

— É como o Serviço Secreto — respondeu Finchley seriamente.

— O Presidente é o patrão de todos... mas cede quando seus guarda-costas dizem-lhe para não fazer algo.

— Oh, não estou me queixando. Estou me divertindo muito. Mas não puxe demais a rédea, Tom. Acho que Eunice não agüentaria e o mesmo me acontece.

— Espero que você não estique tanto a rédea como Eunice fazia. Porque do contrário... bem, as coisas podem ser diferentes.

Fred falou:

— Tom, não chore sobre o leite derramado. Joan disse depressa:

— Desculpem. Rapazes, acho que o piquenique acabou. Talvez algum dia possamos todos dar um mergulho num lugar seguro e tão bonito. (Eunice, você sabe nadar?) (Sou salva-vidas da Cruz Vermelha... o senhor sabe, pois consta da minha folha. Porém nunca saí a serviço. Chefe da torcida era mais divertido) (Posso imaginar) (Olha quem fala! Smith Sem Calças) (Quem me ensinou?) (O senhor não precisa de lições. Não lhe falta vocação para isso)

 

Pouco depois, voltaram para o carro. Finchley disse:

— Para casa, Miss Smith?

— Tom, não o estou ouvindo.

— Perguntei se quer ir para casa, miss.

— Compreendi essa parte, mas o intercom deve estar desarranjado. Ouvi algo que soou como «Miss Smith».

Houve um silêncio.

— Eunice, quer ir para casa?

— Não até a hora do jantar, Tom. Quero gozar ao máximo este dia maravilhoso que tive.

— Está bem, Eunice. Faço um cruzeiro? Ou vou a algum lugar?

— Hum... Tenho mais um ponto na minha lista e há tempo de

sobra para tudo o que vocês três possam querer fazer também. Portanto, olhemos em volta.

— Olharemos. Onde quer que a levemos para o que precisa fazer, Eunice?

— Não sei. Perdi o contato com essas coisas há muito ^ tempo.

Tom, quero comprar um presente para Mr. Salomon, algo bonito mas inútil: presentes devem ser inúteis, um luxo que uma pessoa não compra para si mesma. Portanto, provavelmente deve ser numa loja masculina que tenha futilidades caras. Abercrombie & Fitch tinham essa característica... mas não sei ao certo se ainda estão em atividade.

— Estão. Mas deixe-me perguntar a Fred e Shorty. Logo depois, Finchley informou:

— Há uma dúzia de lugares nessas condições. Mas achamos que a The Twenty-First Century Stud tem o maior estoque.

— Tá. Vamos nos arrancar para lá.

— Isto é, se você não se importar com os preços. Uma roubalheira.

— Não me importo. Já encontrei ladrões antes. Tom... vocês todos: ressurgi daquela operação com mais dinheiro que o que possuía no ano passado... e ele é um transtorno. Já participei do jogo do dinheiro e estou cheio dele. Sempre que um de vocês puder pensar numa boa maneira de me ajudar a me livrar de um monte — uma boa maneira, insisto. Não me interessa ser tomada por trouxa — estarão me fazendo um favor. Hugo, há gente pobre na sua igreja?

A resposta dele foi demorada.

—Montes deles, Eunice. Mas não aflitivamente pobres. Apenas saudavelmente pobres. Eu gostaria de refletir a respeito... porque não faço nenhum bem a um homem dando-lhe algo pelo qual deva lutar. Como diz a Bíblia em outras palavras.

— Esse é o problema, Hugo. Muitas vezes distribuí dinheiro e sempre causei mal quando queria fazer o bem. Mas a Bíblia também diz alguma coisa a respeito do orifício da agulha. Está bem, pense a respeito. Agora vamos ver aqueles ladrões. Preciso de um homem para me ajudar. Quem de vocês veste-se mais na moda quando não está de uniforme?

Joan ouviu Fred rir.

— Eunice, não há paralelo. Você precisa ver os panos que Tom usa. Uma árvore de Natal. Um show de brilho.

Finchley resmungou e depois disse: — Não acredite nele, Eunice.

— Fred está provavelmente com inveja, Tom. Muito bem, se houver estacionamento dentro ou perto da loja, você irá me ajudar.

Ao passarem pelo segundo portão, Finchley perguntou:

— Cintos de segurança, Eunice?

— Estou usando o sueco... que está confortável, agora que Hugo o ajeitou. Podemos continuar com apenas ele e a rede de colisão, se não andarmos muito depressa? Ou isso me fará ser novamente «Joan Eunice»?

— Hum... Você porá a correia frontal?

— Está bem. É apenas porque não gosto de ser amarrada de alto a baixo. Isso me faz lembrar... bem, me faz lembrar como os médicos me imobilizaram depois da operação. Era necessário, mas eu detestei. Não disse que a correia frontal era a que mais detestava.

— Ouvimos falar nisso... deve ter sido horrível. Mas você precisa da correia frontal. Digamos que eu vá apenas a cento e sessenta: uma parada brusca pode quebrar seu pescoço, se não colocar a correia.

— Então usarei.

— Não estou vendo a luz no painel.

— Porque ainda não a coloquei. Pronto. A luz apareceu?

— Apareceu. Obrigado... Eunice.

— Obrigada a você, Tom. Por cuidar de mim. Vamos em frente. Eu não estava retesando a rédea, juro que não estava. (É o que o senhor diz. Patrão, o senhor é falso, insincero e mentiroso) (Queridinha, onde aprendi a ser? Eles são uns ótimos rapazes, Eunice... mas temos de dar um jeito de viver de maneira a não precisarmos partilhar tudo com mais quarenta pessoas. Bons empregados são inestimáveis... mas você trabalha tanto para eles quanto eles para você. A vida deve ser mais simples. Querida, você gostaria de ir para a índia e ser um guru, sentado no alto de uma montanha e nunca fazer planos? Apenas ficar sentado e esperar que seu cheia dedicado esmole pelos arredores?)

(Pode ser uma longa espera. Por que não sentar na base da montanha e esperar que os rapazes se amontoem em volta?) (Mente mão única!) (Sim, a sua, seu velho sujo) (Concordo. Mas tento me portar como uma dama) (Não com muito empenho, é verdade) (Com tanto quanto você sempre teve, vagabundinha. Uma vez me chamaram de «Joan Eunice»... e a continuação nada teve a ver com sexo) (Você nem imagina quanto o sexo teve a ver com isso, Joan) (Bem... desse ponto de vista, sim. Porém, quando resolveram me chamar de «Eunice», passei a acreditar que eu tinha sido o máximo. Falando honestamente, os bons empregados têm de ser contidos. Olhe Winnie. É um amor... mas está sempre no caminho. Eunice, como diabo podemos levar essa vida «ativamente feminina» que você quer — desculpe, que queremos — com tanta gente nos cercando?)

(Sonde Winnie)

(Como, querida?)

(Deixe-a saber dos seus planos. Então guardará seus segredos e nunca fará perguntas, como o senhor fez com ela. Experimente)

(Talvez faça. Tenho a certeza de que ela não falará... e ouvirá com prazer tudo o que eu necessitar dizer. Mas, Eunice, se eu saio de casa, vai ser difícil evitar que Tom, Hugo, Anton ou Fred fiquem imaginando. Você viu a manobra complicada que tive de fazer hoje)

(Não vai precisar, patrão. Eles não falarão)

(Talvez não, porém não quero nem que eles pensem. Estão começando a pensar que sou um anjo — chamado Eunice — e prefiro deixar que continue assim)

(Patrão, eles sabem demais que Eunice não é um anjo. Até Hugo sabe... porque ele é o mais inteligente dos quatro, mesmo sendo analfabeto. Conhece as pessoas. Compreende-as por ser igual a elas. Perdoa-lhes as fraquezas e ama-as assim mesmo. Querido patrão, eles me amam como eu sou, pés de barro e tudo... e amam o senhor da mesma maneira)

(Talvez, espero. Sei que a amo mais, sabendo mais a seu respeito e coisas que eu nunca desconfiara, do que a amei antes de nos termos tornado um só. Sua meretriz imoral. Que história é essa a respeito de você com Fred e Anton? Aconteceu mesmo?)

(Fiquei calculando quando o senhor tocaria nesse assunto. Aqueles beijos de despedida começaram apenas amigavelmente. Fraternalmente. Paternalmente no caso de Hugo. Nunca passou disso com Tom, pois estávamos sempre na presença de Hugo, na de Jake ou na de ambos... apenas senti danadamente bem que estava sendo beijada por um homem. Mas Fred e Anton não eram muito companhia um para o outro e ambos estavam encarregados de me cuidar. Por isso, quando houve uma oportunidade, pensei: «Por que não?») (Pura caridade, hem?)

(Para que a ironia, patrão? Seja como for, um dia me levaram para casa tarde da noite. Não foi um chamado de doação de sangue, mas apenas trabalho extraordinário com Jake, quando estávamos muito atarefados arranjando as coisas para o senhor. O projeto «corpo quente». Convidei-os a entrar, para uma Coca e um lanche, como de costume. Apenas aconteceu que Joe não estava em casa) (E aí a natureza humana venceu... novamente) (Querido patrão, o senhor parece ter uma pobre opinião sobre a natureza humana)

(Tenho uma alta opinião. Acho que ela subsistirá, a despeito de todos os esforços dos caretas para suprimi-la. Mas foi tudo o que aconteceu? Dois homens? A sangue-frio? E com a possibilidade do seu marido chegar? Adorável anjo caído, sua história não tem apenas lacunas: é inconsistente. Conheço algo a respeito dos homens, já que fui um deles. Sei pelo que se arriscam e o que não querem. E sei muito quando se trata de mulher. Mas dois homens tendem a ser cautelosos um com o outro e muito mais quando um marido pode aparecer. Querida, você omitiu alguma coisa... tudo leva a crer que não foi a primeira vez)

(Patrão, juro por nós que foi a primeira vez... e a única, pois logo depois me mataram. Está bem, preencherei as lacunas. Não havia probabilidade de Joe entrar e eles sabiam. Não poderia, pois nossa porta era trancada manualmente por dentro quando um ou outro de nós estava em casa. Joe era ainda mais cuidadoso que eu a esse respeito, pois fora sempre morador da cidade. Além disso, eles também sabiam que Joe não era esperado em casa antes da meia-noite... e me levaram mais ou menos às vinte e uma e trinta. Sem pressa, sem preocupação e sem afobação. Embora Joe não soubesse ler, podia ver as horas: eu usava um daqueles despertadores mudos que se compra nos vendedores ambulantes, sabe? Escolhe-se uma determinada hora e coloca-se os ponteiros na posição?

(Tínhamos um desses, para informar um ao outro a que horas voltávamos. Naquela noite, a porta abriu-se ao som da minha voz e por isso olhei para o despertador e vi que estava marcado para meia-noite... e disse a Anton e Fred que lamentava mas Joe não chegaria em casa a tempo de vê-los)

(Veja lá, mulher à-toa. Parece coisa combinada)

(Bem, eu sabia o que esperar, visto que tínhamos o lugar à nossa disposição. Oh, bolas, patrão, continuo tentando ser sua «garota bacana». Eu estava torcendo por uma chegada tarde com aqueles dois havia mais de um mês. Quando Jake me pediu para trabalhar depois do jantar, telefonei para Joe, como de costume. E organizei tudo no nariz de Jake. Falamos numa língua cifrada... que pode ser uma língua completamente diferente quando usada entre marido e mulher. O que Jake ouviu foi eu dizer a Joe que não estaria em casa antes das vinte e uma e trinta. O que Jake não ouviu, ou não entendeu, foi eu perguntar a Joe se ele não se incomodava de ficar fora, no código familiar que usávamos para pedir um favor igual àquele. Tudo se arranjou, querido patrão. Mantive-me afastada a pedido de Joe tantas vezes quantas ele quis. O único problema era: Joe estaria pintando? Aconteceu que não estava, o que deixava a casa livre.

(Joe perguntou se eu queria que ele ficasse fora a noite toda. Mas o que ele disse foi: «Tá. Cotovelo ou telefone?» Não que Joe alguma vez tenha me cutucado para me acordar, mas respondi: «Judy», o que queria dizer que ficava a critério dele, mas que eu esperava que ele me cutucasse e acrescentei: «Melros». Dei-lhe um beijo telefônico e desliguei. Tudo em ordem sem dramas... eu sabia o que encontraria em casa)

(«Melros»?)

(«Vinte e quatro melros preparados num pastelão»... ponha meia-noite no relógio mesmo que vá ficar fora a noite toda, querido Joe. Oh, poderia ter sido «abóbora» ou «Noite de Natal» ou «ouro em barra». Mas usei «Melros»)

(Vocês, jovens, alguma vez falam inglês?)

(Claro que falamos, patrão. Joe fala um ótimo inglês quando precisa. Mas a linguagem sintética reduz tudo a doze palavras. Sem dar a Jake nenhuma impressão de que eu o estava enganando. Se eu tivesse Betsy à mão, teria usado silêncio e falado inglês comum. Mas não estávamos na sua casa, patrão. Estávamos no apartamento de Jake, em Safe Harbor. Sabe, não estávamos realmente trabalhando até tarde, não tão tarde assim. Usei o telefone que o senhor pegou ontem, com Jake a pequena distância de mim. Tinha de ser em código)

(Recapitulemos. Joe pôs o despertador mudo dizendo que só chegaria em casa depois da meia-noite. Ele chegou nessa hora?)

(Cerca de dez minutos depois da meia-noite. Joe não gostava de incomodar uma visita chegando muito cedo. Joe é naturalmente um cavalheiro, sem nunca ter aprendido. Apenas é. Foi a primeira coisa que me atraiu nele e a qualidade que me fez pedir-lhe para casar comigo. Um analfabeto, sem dúvida... mas prefiro um cavalheiro analfabeto a um Ivy-League * de fala fina)

 

* Aluno das universidades de Cornell, Harvard. Iale, Princeton, Columbia, Brown, Colgate, Dartmouth e Pennsylvania, afetados na fala e no vestir (N. do T.).

 

(Concordo, adorada. Quanto mais ouço a respeito de Mr. José Branca, mais gosto dele. E o respeito. E lamento sua trágica perda. Refiro-me a você, amada prostituta. Eu estava apenas estabelecendo a ordem dos acontecimentos do que deve ter sido uma noite trabalhosa. Tá legal, Joe chegou em casa logo depois da meia-noite. Mas logo no começo da noite você telefonou-lhe e preparou as coisas para aquele encontro com Anton e Fred. Então voltou para a cama com Jake...)

(Oh, meu Deus! Choquei-o outra vez, patrão)

(Não, minha querida. Estou espantado e não chocado. Acho suas memórias fascinantes)

(Chocado. Essa ordem dos acontecimentos parece até o dia de pagamento de uma puta. Mas não foi inteiramente assim, patrão. Era amor... amor e respeito por Jake, amor e carinho por Anton e Fred. Amor, devoção, compreensão, confiança mútua e respeito por Joe. Se meu marido não foi contra, que direito tem o senhor ou quem quer que seja de torcer o nariz para mim?)

(Querida, querida! Não estou chocado. Você nunca me chocou. Bolas, a culpa é da minha Geração Perdida. Você talvez não acredite que eu tive um comportamento muito mais estranho nos meus longos anos de luxúria, que você possa ter acumulado nos quatorze anos que você apregoa. Não há dúvida de que você é muito ativa... mas tive cinco vezes mais anos que você e com o mesmo entusiasmo. Provavelmente, sem oportunidades tão seguidas, mas as moças bonitas são mais freqüentemente solicitadas que os rapazes feios. Porém nunca foi por falta de tentativas da minha parte, nem eu me lamentei, pois recebi mais colaboração do que podia esperar)

(Pensei que o senhor tivesse ficado chocado)

(Não, inocentinha. Admiração entusiástica... acrescida de surpresa pela sua capacidade. Você deve ter-se sentido meio morta no dia seguinte)

(Pelo contrário, me senti ótima. Em brasa. Feliz. Você notou. Talvez se lembre... foi no dia em que Joe me pintou de tigre rajado e me maquilou como um felino)

(Ora se me lembro! Você estava saltitante como uma gata... e eu disse que você parecia com o gato que comeu o canário. Querida menina, eu estava sofrendo naquele dia. Você me reanimou)

(Que bom!)

(Você dormiu muito?)

(Oh, o bastante. Seis horas. Pelo menos cinco. E mais uma soneca tirada enquanto Joe fazia a maioria das listras. Joan, uma mulher bem amada não precisa dormir tanto quanto uma solitária... você vai ver. E isso de ser em excesso para mim... patrão, quem me disse, não faz uma semana, que nada encoraja tanto o sexo como a maneira como ele surge? o senhor, fique sabendo)

(Sim, mas eu estava falando do ponto de vista masculino...)

(Dá-se o mesmo com a mulher, gêmeo. O senhor verá)

(Espero que sim. Sei que a maioria das pessoas — no meu tempo — garantia o contrário. Mas não é verdade. Sexo, por mais diferente que seja — muito diferente! — é uma prática atlética. Quanto mais se pratica, mais se é capaz, quanto mais se quer, mais prazer se tem, por mais que nos canse. Tenho a maior satisfação em saber — muita satisfação pessoal — que com a mulher também se dá o mesmo. Mas você não é a primeira mulher a me dizer isso. Hum... a primeira vez em que ouvi uma moça falar isso, ou quase isso, foi quando Harding tornou-se presidente.* Não exatamente uma moça, mas uma simpaticíssima jovem casada que tinha mais coisas em comum com você, do que provavelmente imagina. É muito possível que esteja morta atualmente, Deus a tenha em seu seio. Estaria com mais de cem anos)

 

* Warren G. Harding foi o 29º Presidente dos Estados Unidos, de 1921 a 1923, quando morreu (N. do T.).

 

(Como se chamava?)

(Que importa? Bisbilhoteira, você estava me contando sobre Fred e Anton. Ainda não compreendo como você manobrou. O arranjo, sim... mas como você os fez concordar? Dividiu o tempo e recebeu-os um de cada vez?)

(Oh, meu Deus, não! Seria grosseiro. E embaraçoso para todos. Isso teria estragado tudo. Foi uma tróia)

(E então?)

(Patrão, pode imaginar como dois homens podem ficar excitados quando estão beijando — apaixonadamente — a mesma mulher? Se ela concorda? Se eles confiam um no outro? O que acontecia, pois eram motorista e guarda-costas juntos)

(Sim, é verdade, mas não posso imaginar... uau! Acabo de lembrar uma coisa que aconteceu há tantos anos que quase esqueci)

(Conte)

(Não, não, continue. Apenas a história se repete... como sempre acontece. Continue)

(Bem, eles ficaram, patrão. Excitaram um ao outro embora não se tocassem em absoluto. Só a ela. «Heterodinismo» foi o termo que aprendi em secretrônica e que se aplica a isso. Não sei como os realizadores de censos sexuais o denominam. Mas andei beijando-os todas as noites quase diariamente, durante semanas, e beijando-os quando me apanhavam de manhã. E os beijos se tornaram mais ardentes e nunca foi do meu feitio desanimar um homem se gosto dele... e eu gostava. Tinha afeição por ambos, eram pessoas excelentes,

(Num instante estávamos parando para uma rodada de carícias — não era mais possível chamar aquilo de beijo de despedida — no estacionamento do porão, antes que eles pegassem o elevador comigo. Eu tinha de refrear, dizendo: «Cuidado, rapazes. Vocês não estão apenas pegando marcas de tinta do meu corpo no uniforme. Estão me desarrumando tanto que terei dificuldade para me endireitar, de maneira a que Joe não repare». Isso fazia com que se acalmassem, mais por minha causa que por seus uniformes. Gostavam de Joe — todos gostam de Joe — e não queriam me dar aborrecimentos em casa. Nunca lhes disse que Joe não era enganado. Seu olho de artista vê muito mais que o da maioria das pessoas.

(Mas resolvemos o caso naquela noite, patrão. Disse-lhes que eu não era chata e que estava tão ansiosa quanto eles... porém que não ia me entregar num porão. Mas que eu havia encontrado um meio. Ambos eram bons rapazes... oh, homens, claro. Anton tem quarenta e Fred tem a minha idade. Tinha. Então eles esperaram e não passaram de beijos e de agarramentos amigáveis. Depois, nós quase chegamos ao ato por duas vezes, mas Joe estava pintando atarefadamente. E eu não o interromperia nem para levar o Presidente para a cama.

(Aí tiramos a sorte grande, quase perdida no último minuto. Jake ia me mandar para casa no carro dele. Disse-me que cancelasse a chamada que eu fizera do meu próprio carro. O seu, quero dizer. Surpreendi Jake com minha teimosia... disse-lhe que não me sentia segura com Charlie, a menos que ele, Jake, viesse junto. Era verdade. Charlie é um mau-caráter, diferente dos nossos quatro.

(Então o velho Jake começou a se vestir para ir comigo... aí eu disse a ele que era bobagem, que Finchley e Shorty... nunca me referi aos dois como Tom e Hugo e o aconselho que não faça...)

(Não sou burro, queridinha. Sempre que me chamarem de «Miss Smith», são «Finchley» e «Shorty»)

(Desculpe, patrãozinho, sei que não é burro. Mas tenho mais experiência feminina que o senhor)

(Sei que tem e me mantém sempre na linha. Mas que história e esta sobre Tom e Hugo?)

(Confusão proposital. Eu sabia quem estava de serviço naquela noite. Então Fred e Anton me apanharam e fiquei tentada a dizer-lhes... Pois estava cada vez mais excitada. Mas não podia. Teria estragado a festa deles, pois os homens gostam de possuir uma mulher casada sem que o marido saiba... embora o velho Jake tivesse mais prazer por essa razão maliciosa. Eu sempre usava esse truque porque me dava mais controle de uma situação difícil de controlar, desde que o homem já a tenha possuído. É um ponto de apoio. Precisa lembrar disso, Joan)

(Lembrarei. Mas vou precisar de um marido para poder usá-lo)

(Não tema, querida, você arranjará um... continuo pensando que devemos casar com Jake. Ele a convencerá. Mas não lhe dê duro, Joan. Jake não é homem a quem se possa pressionar dessa maneira)

(Eunice, não pressionarei Jake um décimo de segundo. Nunca tive respeito por essa espécie de tática feminina e não vou usá-la agora, que sou mulher)

(Nunca a usei, patrão. Usei quase todas as outras tapeações... menos esta. Esta é um recurso de puta, mas não de puta honesta. Por falar nisso: qual sua opinião a respeito de putas?)

(Eu? Ora, a mesma que tenho sobre alguém que exerce uma profissão liberal. Como um dentista, um advogado ou uma enfermeira. Se é honesto, respeito-o. Sé é também competente, meu respeito é limitado pelo seu grau de competência. Por quê?)

(Já utilizou putas? Quero dizer, alugou seus serviços e não «utilizou» no sentido esnobe?)

(Se eu responder com uma simples afirmativa, você continuará contando sua história? Já estamos no centro da cidade, que diabo)

(Sim, senhor. Quero dizer: «Sim, irmã gêmea, virgem cansada». Cheguei em casa, entrei no elevador com eles, fiquei «surpresa» porque Joe não estava em casa, encontrei o relógio apoiado na pia, com os ponteiros na meia-noite, e disse-lhes o que isso significava. Foi tudo. Finis)

(Ei!)

(Que há mais para dizer? O senhor já sabe o que fizemos)

Joan suspirou. (Este foi o mais parcimonioso relato sobre uma suruba, que ouvi na minha longa e pecaminosa vida)

(O quê? Porém não foi uma suruba, patrão! Pare de ser careta e venha para este século. Uma tróia não é uma suruba. Nem ruma sessão de sacanagem, coisa que não precisa ser e não é. Uma tróia é um encontro amigável e amoroso. Ambos são casados e me trataram tão carinhosamente quanto tratam suas mulheres... Gostei da maneira como me trataram e amei a ambos, intensa e repetidamente, muito antes do tempo acabar... quando até ali só tinha havido afeição entre amigos, carregada de sexo. Patrão, uma das coisas que lamento por ter sido assassinada é nunca mais ter podido oferecer-lhes a segunda chance que eles mereciam... e que eu prometi. Hummm... acha que pode cumprir a promessa?)

(Hem? Como você frisou, sou o patrão deles e não vai ser fácil. Além disso... bem, que diabo, estou com medo. Dois homens?)

(Você não pareceu ter medo de Mac e Alec)

(Não é exatamente a mesma coisa)

(Nunca é, patrão... especialmente em se tratando de sexo. Mas quero lhe dizer uma coisa. Uma tróia — se funciona como deve e pode deixar de funcionar, a menos que haja confiança e respeito o tempo todo — se funciona, é a coisa melhor que pode acontecer a uma mulher. Não apenas duas vezes melhor porque ela recebe em dobro o que deseja tão ardentemente. Não é isso. Ela pode obter menos do que lhe pode dar sexualmente um jovem garanhão sozinho. É o aspecto de amizade, carinho e confiança que torna a coisa tão boa. Pelo menos quatro vezes melhor. Talvez oito. Oh, a aritmética não consegue dar a medida. Mas, querida Joan — ouça-me — até que você tenha estado na cama entre dois homens amáveis e amorosos, homens que se amam quase tanto ou talvez mais que a você... com sua cabeça pousada nos braços de ambos e cercada pelo amor deles — até que isto aconteça, você continua tendo uma virgindade a entregar, uma muito importante. Querida, chorei o tempo todo em que estive com eles... continuei chorando quando me despedi deles... fiquei chorando de felicidade depois que eles partiram... então levantei-me e corri a destrancar a porta quando Joe chegou alguns minutos mais tarde... debulhei-me em lágrimas no peito dele e arrastei-o diretamente para a cama, contando-lhe tudo enquanto ele era especialmente doce comigo)

(Ele queria saber de tudo?)

(O senhor não quereria?)

(Sim, mas não há dois homens iguais e alguns maridos têm dor de cabeça por causa dos cornos)

(Alguns. Talvez a maioria, Joan. Sempre tive muito cuidado com os sentimentos de Joe. Às vezes saí dos trilhos e escondi cuidadosamente dele... nunca lhe contei a respeito de Jake)

(Por que não? Era de esperar que Joe aprovasse Jake, visto que aceitava qualquer um. Jake considera Joe muito... Você sabe disso, pois o ouviu dizer)

(Ouvi. Mas Jake é rico e Joe miserável. Talvez Joe tivesse aceitado Jake. Agora acho que aceitaria. Mas eu não tinha certeza e por isso não quis magoá-lo. Porém Anton e Fred... bem, não passavam de guarda-costas. Joe os tratava como amigos e iguais e, secretamente — acho eu — sentia-se um pouco superior a eles, considerando que era um artista e os dois uns meros ignorantes. Eu sabia que eles não perturbariam a cabeça de Joe... e tinha razão. Joe se deliciou. Feliz porque eu me sentia feliz. Não sei explicar, Joan. É uma questão de instinto. Mas o orgulho de um homem é uma coisa frágil e sua única couraça. Os homens são muitíssimo mais vulneráveis que nós. Você tem de manejá-los com muito cuidado, pois do contrário eles caem)

(Eu sei, Eunice. Em alguns casos, caem literalmente. Já lhe contei que minha segunda mulher me pôs psiquicamente impotente por quase um ano?)

(Oh, meu queridinho!)

(Consegui me recuperar. Não com a ajuda de um encolhedor de cabeças. Com o auxílio de uma carinhosa e generosa dama, que não quis acreditar que tivesse sido culpa minha. É nunca mais tive qualquer problema, a não ser quando fiquei fraco demais para qualquer espécie de função física)

(Que bom que o senhor a encontrou. Eu gostaria de agradecer a ela. Joan... não nasci conhecendo isso a respeito dos homens: aprendi à minha custa. Gêmeo, cometi alguns erros graves no colégio. Olhe.., os homens são muito maiores e muito mais fortes que nós. Nunca pensei que pudessem ser tão frágeis. Até o dia em que atingi tão seriamente o orgulho de um rapaz, que ele saiu da escola... e desde então tento não magoar nenhum rapaz ou homem. Fui burra patrão Mas aprendi)

(Eunice, quanto tempo passou desde que lhe disse nela última vez Que a amo?)

(Oh, pelo menos vinte minutos)

(Muito tempo. Eu a amo)

A voz de Finchley interrompeu a meditação.

— Estamos estacionando, Miss Eunice.

— Que bobagem é essa de «Miss Eunice»? Não estamos em público.

— Me pareceu uma fórmula conciliatória.

— Ah, é? Por que molhar só os pés? Por que não entrar todo e me chamar de «Miss Smith»?... E não lhe darei um beijo de despedida.

— Muito bem, Miss.

— Oh, Tom, não me enfeze. Foi um dia perfeito. Não me faça lembrar de que tenho de ser «Miss Smith» outra vez. Você sabe que lhe darei um beijo de despedida se você deixar... pois do contrário a verdadeira Eunice não falaria comigo. Hugo, mande-o ter modos.

— Eu dou um jeito nele, Eunice. Tom, você vai ser bonzinho e chamá-la de «Eunice».

— Desculpe, Eunice.

— Agora me sinto melhor, Tom. Você vai conseguir estacionar esta geringonça perto bastante, de maneira a poderem vir comigo?

— Sem dúvida, Eunice... mas fique calada agora, por favor. Tenho de manobrar de acordo com o computador do trânsito para poder entrar.

 

— Boa noite, chefe.

Joan pousou a mão no antebraço de O'Neil e saltou rapidamente.

— Boa noite, miss. Há um recado de Mr. Salomon. Envia-lhe cumprimentos e lamenta não voltar a tempo para jantar. Espera chegar pelas nove horas.

— É uma pena. Então não jantarei embaixo. Diga por favor a Cunningham ou Delia que traga bandejas para mim e Winnie na sala de estar. Não preciso de garçom.

— Duas bandejas, sem garçom, miss... perfeito.

— E diga a Dabrowski que preciso dele amanhã como motorista.

— Ele já foi para casa, miss. Mas sabe que está de serviço. Estará preparado.

— Talvez você não tenha entendido o que eu falei, chefe. Quero que lhe diga agora, que preciso que ele dirija amanhã. Mais ou menos às dez... não antes. Assim, logo depois de telefonar para a copa, ligue para Dabrowski e dê-lhe o recado, da minha parte. Insista até encontrá-lo. E me chame, qualquer que seja a hora, quando o carro de Mr. Salomon voltar. Não o consulte, me chame. Antes de Rockford destrancá-lo.

— Pois não, miss. Telefonar para a copa. E logo depois para Dabrowski. Chamá-la imediatamente, assim que o carro de Mr. Salomon chegar, antes mesmo dele sair do carro. Se me permite, miss, é bom tê-la firme e forte de volta ao comando da casa.

— Permito que me diga isso, mas não a Mr. Salomon. Pois a férrea mão dele tem sido inestimável. Como eu e você sabemos.

— Como ambos sabemos. Miss, ele é um cavalheiro educado e eu o respeito. Devo mandar Cunningham descer e apanhar seus embrulhos?

— Não, Finchley e os guarda-costas cuidarão disso... embora eu tenha feito uma farra de compras — Joan enviou ao seu chefe de segurança o melhor sorriso de garotinha-feliz de Eunice. — Eu estava bêbada de excitação, malcriada como uma criança no Natal e querendo comprar a cidade inteira. Finchley, divida esses embrulhos por três e leve-os para cima com seus colegas. Sim, eu sei que não é sua obrigação. Por isso, não me denuncie ao seu sindicato.

Os embrulhos, os três homens e ela quase lotaram o elevador social. Joan esperou que Finchley apertasse o botão do seu andar e o elevador se movimentasse, para então apertar rapidamente a tecla de «Parada», imobilizando-o entre dois andares.

— Ponham os embrulhos no chão.

Virou-se primeiro para Shorty e pegou o rosto dele entre as mãos.

— Obrigada, Hugo. Obrigada a você mais que a todos, pois sua nobre discrição nos manteve encobertos. — Puxou o rosto dele para baixo e beijou-o suavemente e sem pressa, de lábios fechados. — Boa noite.

Virou-se para Fred.

— Obrigada, Fred. Agradeço-lhe... e Eunice também. — Quando os braços dele a envolveram, Joan abriu os lábios. (Está vendo o que eu queria dizer, gêmeo? É uma amostra) (Estou vendo... serei muito cuidadoso para não ficar a sós com ele, a menos que queira mais que uma amostra) — Boa noite, Fred.

— Tom, foi o maior dia da minha vida. Espero que você o tenha gozado pelo menos a metade do que eu gozei. Obrigada.

Joan foi direta ao beijo, sem esperar a resposta de Finchley, de rosto erguido e olhos fechados... e de costas para Shorty, caso este quisesse tirar vantagem disso.

... o que ele fez. (Meu Deus! Eunice, tem certeza de nunca se ter deitado com ele?) (Absoluta, que diabo! Você está querendo?) (Não sei, não sei!)

Sem fôlego, Joan se afastou e virou as costas para todos eles e apertou novamente o botão do seu andar, procurando recompor-se.

O elevador parou e ela disse:

— Ponham tudo no meu quarto, rapazes. Winnie! Espere até ver! A ruivinha estava aguardando na porta do elevador.

— Miss Joan, passou o dia inteiro fora!

— E por que não? Ponham onde quiserem, no chão, na cama. Winnie, você já jantou? É só isso, obrigada. Boa noite e obrigada a todos.

— Boa noite, Miss Smith.

Assim que a porta se fechou, Joan abraçou a empregada, erguendo-a do chão.

— Você não respondeu. Comeu com o resto do pessoal? Ou esperou?

— Não pude comer. Oh, Joan, fiquei tão preocupada! Você saiu e não disse a ninguém aonde ia. Ruinzinha... me assustar assim.

— Bolas. Eu estava cercada de guardas. Você sabia que eu estava garantida.

— Mas guardas não são enfermeiros. Fui designada pelo Dr. Garcia para vigiá-la.

— E bolas para o querido doutorzinho também. Simpática, não sou mais paciente nem tutelada. Sou uma mulher livre e saudável como uma égua e você não pode correr atrás de mim a cada instante como uma galinha choca. Está bem, a ceia está vindo e será posta na sala de estar, onde poderemos comer quando tivermos vontade.

— Eu sei. Estava nos fundos quando chegou a ordem... então subi depressa pelo elevador de serviço e pensei ter chegado tarde quando o ponteiro do outro parou. Depois voltou a se mover.

— Aquele elevador está meio escangalhado. Enguiçou. Mas continuamos apertando os botões até que o bicho andou. Há muitas geringonças nesta casa. (Eunice, pensei que um elevador enguiçado fosse tão seguro quanto um túmulo. Não há privacidade em lugar nenhum?) (Temo que não, patrãozinho. Mas nunca me preocupei muito com essas coisas. Só me preocupei com não magoar as pessoas) (De outra maneira: nunca foi apanhada de pernas para cima, sapeca?) (Só uma vez, quando foi desagradável... e não passou disso. Não é motivo de preocupação)

— Devo avisar o mecânico a respeito do elevador?

— Não. Finchley cuidará disso. Simpática, a manutenção não faz parte das suas obrigações. Você está aqui para se divertir comigo e me dar um ombro para chorar e para chorar no meu... mantendo o querido doutor afastado de aborrecimentos. — Joan começou a se despir. — Tire as roupas. Vamos começar a experimentar coisas. Andei fazendo compras. Puxa vida, como comprei! Dei um tiro na asa da economia, se dei. Tire esses farrapos... já tomou banho, sua porquinha? Ou vai tomar banho comigo? Venha cá e me deixe cheirá-la.

— Tomei banho quando me levantei.

— Você está cheirando bem, mas temo que eu esteja fedendo a azedo. Foi um dia cheio. Está bem, vamos beber alguma coisa e deixar para mais tarde cheirar bem. Antes de dar ao querido Jake outra lição de relaxamento. Mas agora vamos experimentar as roupas. Primeiro nos dê um beijo. (Eunice, quando a gente entrar na banheira, aquele troço vai ficar no lugar?) (Fica no lugar seja onde for... do contrário eu teria deixado uma dúzia de órfãos. Você pode usar o chuveirinho... e gostará mais)

— Joan, já que você ia fazer compras, por que não me levou? Egoísta.

— Queixas, queixas, queixas. Achei que você precisava dormir, querida. Ou Bob não apareceu?

Winifred corou até os seios, mas respondeu alegre:

— Oh, apareceu, sim! Mas eu teria me levantado assim que você chamasse. Adoro fazer compras.

— A que horas acordou? O rubor voltou.

— Quase às treze. Muito depois do meio-dia.

— A defesa se dá por satisfeita. Garotinha simpática, não levei você porque também lhe comprei coisas... e se a tivesse levado, você teria reclamado cada vez que eu gastasse um dólar com você. E também abriria um precedente. Não sou mais prisioneira. Sou tão livre de me locomover quanto você. Se não a levar comigo, você não pode perguntar por que e eu não preciso dizer-lhe onde ou quando.

A moça parecia esmagada.

— Sim, Miss Joan, lembrarei disso. Então Joan Eunice abraçou-a novamente.

— Ora, ora, queridinha, não faça beicinho. Levarei você a maioria das vezes. E se não a levar, quase sempre lhe direi por quê. Mas posso lhe pregar uma mentira em vez disso. Posso ter um encontro com um tarado sexual e não querer chocar minha Simpática.

— Você está me gozando.

— Não é gozo. É uma coisa meio séria. Winnie, se você quer ver seu Bob, só eu nesta casa se importa e assim mesmo meu interesse é amigável. Mas e eu? Há quarenta e tantas pessoas de olhos pregados em mim. Se levo um homem para a cama, a criadagem inteira saberá e há pelo menos cinqüenta por cento de probabilidade de que um membro do meu fidelíssimo pessoal venda a notícia a um repórter e a coisa estará na manhã seguinte no programa de fofocas... de tal maneira que não poderei iniciar um processo, sem tornar a coisa pior. Ou não?

— Hum... é uma idéia terrível. Mas acho que pode acontecer.

— Você sabe que pode. Cada coluna ou programa de fofocas é uma prova disso. Amor, se uma pessoa é tão rica ou tão importante, o público só lhe permite usar as Roupas Novas do Imperador... e o que ele mais gosta são as más notícias, pois as boas não interessam. Antigamente, quando eu estava na direção, as Empresas Smith gastavam milhares de dólares por trimestre para me dar uma «imagem pública» totalmente falsa — que frase venenosa! — por motivos comerciais. Mas está acabado e agora sou um animal de caça. E um animal de caça muito mais interessante, porque agora sou milagrosamente jovem, mulher e bonita. Não, «bela», sejamos justos com Eunice Branca. Você viu o que fizeram ontem. Olhou a caixa de dizer besteiras. Que fariam se pudessem provar algo contra mim?

— Hum, alguma coisa maldosa, acho.

— Sei, não acho. Passei anos e anos tentando evitar a notoriedade. Os antigos romanos sabiam o que estavam fazendo quando atiravam vítimas vivas para os leões. A maioria das pessoas é gente decente, mas coletivamente ama o sangue. Estou fazendo algo para ficar afastado da notoriedade mas, no ínterim, estou vulnerável. Winnie, que faria você se eu a acordasse uma noite e lhe pedisse para me deixar meter um homem na sua cama... de maneira a que você pudesse ser apanhada e não eu? Ter certeza de ser apanhada, quero dizer, com uma porção de gente olhando. Tão em flagrante que Bob iria saber também.

A mocinha respirou fundo.

— Eu concordaria! Bob iria compreender.

— Ah, mas se eu lhe pedisse para não explicar ao Bob? Apenas assumir a culpa por mim?

— Ainda assim eu concordaria. Joan beijou-a.

— Sei que você faria. Mas não vai ser preciso, querida Simpática. Se — não, quando — eu escorregar, não atirarei o peso sobre minha cumpincha. Mas posso pedir-lhe um dia para mentir em meu benefício — falsear a verdade — para me cobrir. Você faria?

— Claro que faria.

— Eu sabia e nem precisava perguntar. Talvez aconteça breve, sinto-me cada vez mais feminina. Agora vamos brincar de Natal: acho que essa caixa redonda enfeitada é para Winnie.

Logo depois. Winifred estava desfilando diante de um espelho, com um ar espantado no rosto.

— Oh, Joan, você não devia!

— Está aí por que deixei você em casa. É um uniforme de empregada, querida... uma dedução permitida na rubrica Cozinheiros, Domésticos e Trabalhadores em Hotelaria contratados.

— Uniforme de empregada, hem! É um Stagnaro original, vindo diretamente de Roma. Li a etiqueta.

— Embora possa ser, direi ao meu contador que o inclua nas deduções só para chatear o Imposto de Renda. Tire-o, querida, e vamos ver o que achei mais. Ei, este é para mim. — Joan vestiu-se rapidamente. — Que é que você acha? Claro, com isto tenho de pintar o corpo.

— Se eu fosse você, não pintaria. Você está uma graça e esse tom esbranquiçado vai bem com sua pele. É um padrão encantador, muito embora um tanto malicioso. Joan, como sabe comprar tão bem roupas femininas? Quero dizer, hum...

— Você quer dizer: «Como um velho que não escolheu roupas para mulheres durante pelo menos meio século, pode se sair tão bem?» Gênio, querida, puro gênio. Você precisa ouvir minhas imitações de pássaros. (Ei! Eu não levo nada?) (Não, a não ser que você queira ficar a descoberto, Mata Hari. Os homens de avental branco estão logo atrás da porta) (Bolas, gêmeo. Talvez um dia possamos contar a Winnie) (Espero que sim, querida... não só amo você como tenho orgulho) (Beijo!)

Abriram as duas caixas que Joan deixara para o fim. Quando Winifred viu o conjunto de esmeralda sintética — tapa-sexo e duas taças em forma de meia-lua para seios — engasgou-se.

— Oh, meu Deeus! Vista-o, Joan, enquanto vou buscar seus sapatos de saltos bem altos!

— Traga seus sapatos de saltos bem altos, querida... aquelas sandálias de pedras verdes de imitação que tem usado ultimamente. Eles não tinham sandálias do seu número, que combinassem com este conjunto. Encomendei-as.

— Isto é para mim? Oh, não!

— Então jogue no incinerador. Tapa-sexos não podem ser trocados. Simpática, esse material foi desenhado para um ruiva e as taças são muito pequenas para mim. Vista-as. Este envelope contém uma saia longa transparente, de seda, com um pingo de verde combinando. Com a saia, fica tudo apropriado para ir a jantares formais. Você pode usar uma esmeralda na fronte. Nenhuma outra jóia, nem pintura.

— Mas, Joan, nunca vou a essa espécie de jantares... nunca fui convidada.

— Talvez seja a ocasião de eu organizar um. O salão de banquetes não é usado há dez anos. Você ficará linda, me ajudando a receber, na outra ponta da grande mesa. Mas, querida, além de uma recepção ultraformal, ele se destina — sem a saia — a ocasiões mais informais. Gostaria de vesti-lo para Bob... e ele gostaria de despi-lo?

Winifred ficou sem fôlego.

— Mal posso esperar.

— Vão se encontrar hoje, amor?

— Não, foi por isso que eu disse «mal posso esperar». Porque não posso resistir: quero que Bob me veja vestida com ele... quero que ele me dispa. Joan, não devo aceitar, é muito caro. Mas quero e vou aceitar. Meu Deus, você me faz sentir-me como uma mulher mantida.

— Você é, querida. Eu a mantenho. E estou gostando muito.

A enfermeirinha parou de sorrir. Então encarou a patroa, olhan-do-a firmemente nos olhos.

— Joan, talvez eu não deva dizer isto, talvez estrague tudo. Mas acho que devo. Hum... — Fez uma pausa e inspirou profundamente.

— por duas ou três vezes tive a impressão de que você esteve a ponto

de me dar uma cantada.

(Olhe a brecha, gêmeo! É muito tarde para ajudá-lo)

— Foram mais de três vezes, Winifred.

— Bem... é verdade. Mas por que parou? Joan deu um suspiro.

— Porque eu estava com medo.

— De mim?

— Não, de mim. Querida Simpática: fiz coisas tremendas na vida. Tais como esperar numa balsa de desembarque, sacudindo para cá e para lá, enjoado e fedendo de medo... depois ser despejado em um metro d'água, com metralhadoras comendo-nos e matando os colegas em torno de mim. Mas esta é a coisa mais difícil que estou tentando. Ser mulher. Tenho de pensar nisso a cada instante... fazer conscientemente coisas que vocês fazem automaticamente. Meu Deus, hoje por pouco não entrei num lavatório masculino, em vez de num toalete feminino. E agora você. Querida, você pode imaginar que tentação é para mim? Pode compreender que o velho Johann está olhando sua elegante figura através dos olhos de Joan? Winnie, não houve um instante em que eu não quisesse tocar em você. Sentá-la no meu colo. Beijá-la. Fazer amor com você. Se eu fosse homem... teria feito o impossível para chutar Bob. Ou, pelo menos, tomar parte.

— Joan.

— Sim, querida?

— Você pode tomar parte.

— Joan viu que estava tremendo.

— Querida! Por favor! Podemos esperar? Você tem Bob... e eu ainda tenho de aprender a ser mulher.

Começou a chorar.

E sentiu os braços de Winifred em torno dela.

— Pare, querida, por favor, pare. Eu não queria agoniá-la. Vou lhe ajudar, claro que vou. Podemos esperar. Anos, se você precisar de tanto. Até se acalmar e estar segura de si mesma... e me quiser. Mas Winnie não está tentando seduzir sua Joanie. Oh, pode ser gostoso, claro que pode. Mas você tem razão, eu tenho Bob e meus nervos não estão tensos como devem estar os seus. Um dia você se apaixonará por um homem e esquecerá de mim completamente. Quero dizer, esquecerá de precisar me tocar... o que é perfeito, enquanto eu puder amá-la e ser sua amiga.

Joan limpou uma lágrima e fungou.

— Obrigada, Winnie. Banquei a boba outra vez.

— Nada disso. Fui eu quem criou um caso, lembrando. Quer um tranqüilizante?

— Não. Agora estou bem.

— Acha melhor eu não tocá-la?

— Não. Quero que me beije, Winnie. Com força. O melhor que você puder. Depois vista o tapa-sexo verde e vamos ver como fica. Então iremos comer. Depois apanharemos um xampu para me fazer ficar cheirando melhor para nossas orações com Jake... preciso delas hoje. São o tranqüilizante adequado. Vista a coisa, querida. Mas antes me dê um beijo.

Winnie a beijou... começou a se afastar, depois cresceu como um incêndio na pradaria e deu-lhe «o melhor que pôde».

(Pare, gêmeo, antes que a casa pegue fogo. Este é o mais caprichoso sapateado desde que Bojangles morreu) (O que é que você sabe de Bojangles? Não pode saber nada dele) (Já ouviu falar em retrospectiva de filmes clássicos, patrão? Agora faça com que Bob case com ela. Você lhe deve isso, pelos obstáculos que ela teve de pular) (Como posso, se não sei quem é ele?) (Você descobrirá. Merda. O'Neil sabe. Depois de o senhor conhecer a identidade dele, procure saber o que ele quer. Pode ser um degenerado. Homens! Patrão, gosto do senhor mas, às vezes, não sei explicar por quê)

Depois de Winnie ter posto o conjunto de esmeralda, ela apanhou as bandejas na sala de estar superior de Joan, enquanto esta abria o último embrulho. Continha seu presente para Jake.

— Winnie, diga-me o que acha disto.

Era um colar caro e simples: uma corrente de ouro maciço, com elos triplos, prendendo uma grande cruz egípcia de ouro, uma crux ansata. Winifred segurou-a.

— É lindo — disse ela tranqüilamente. — Mas não é um colar feminino, sabe? Ou não sabe?

— É um colar masculino. Um presente para Jake. Winifred franziu levemente as sobrancelhas.

— Joan, você quer que eu lhe ajude a aprender a se portar como mulher?

— Você sabe que sim.

— Sei. Quando vejo que você vai cometer um engano, preciso avisá-la.

— Você acha que Jake não vai gostar?

— Não sei. Ele talvez não saiba o que isto quer dizer. E você também não. Esta cruz com uma laçada é chamada de «ankh»... e trata-se do que meu avô teria chamado de «símbolo pagão». Significa... bem, significa a maioria das coisas que nossas preces de meditação querem dizer: vida, bondade, amor, etc. Mas significa especialmente sexo. É um velho símbolo egípcio das forças geradoras, macho c fêmea. Não é por acaso que a laçada se pareça um tanto com uma vulva e o resto dela pode ser interpretado como um símbolo masculino. A maneira pela qual ela é agora usada — entre gente da minha idade, gente da idade que você começa a ter — é... bem, uma mulher pode dá-la ao marido, ou este uma menor à esposa. Também podem não ser casados — mas sempre significa amor sexual — francamente e sem bobagens. Se não é isso o que você pretende, Joan, se apenas quer lhe dar um lindo colar, leve-o de volta e troque-o por outro que não seja tão específico no seu simbolismo. Todo colar significa amor... mas talvez você queira um que uma filha possa dar ao pai.

Joan sacudiu a cabeça.

— Não, Winnie. Eu sabia o que a ankh significava desde um curso de religião comparada, oh, há três quartos de século. Acho que Jake também sabe. Tem uma sólida educação clássica. Eu não tinha certeza de que vocês, jovens, soubessem do antigo significado... vejo que cometi um engano. Winnie, este presente não é por acaso. Pedi várias vezes a Jake para casar comigo. Ele não quis. Pela diferença de idade.

— Bem... é fácil ver porque ele se sente assim.

— É ridículo. Na verdade, sou um quarto de século mais velho que ele... o que atualmente não se nota e estou em boas condições de saúde para casar. Muito embora o querido doutor pense que eu possa cair morta.

— Mas o doutor Garcia na verdade não pensa isso. E eu não acho que você seja velha demais, quero dizer, ele... oh, meu Deus!

— Sim, sim, eu sei. Ele está sendo «nobre», que inferno! Mas Jake não precisa casar comigo, Winnie. Aceito qualquer migalha. Este presente é para deixar isso claro.

Winifred ficou séria e subitamente beijou a ankh, devolvendo-a.

— Nós ambas, Joan... aceitamos qualquer migalha. Bem, desejo-lhe sorte. De todo o coração.

— Minha boa Winnie. Vamos engolir algumas calorias. Está ficando tarde e Jake deve chegar — espero — pelas vinte e uma horas. Quero estar limpa como uma gatinha e o mais bonita e cheirosa possível quando aquele querido teimoso chegar. Você me ajuda?

— Com prazer. E olhe, Joan, vamos submergir você em «Brisa do Harém», tanto a colônia como o perfume... e o talco. E eu não vou usar nenhum perfume. Vou tirar o que botei.

— Não, vamos renovar sua sedução também. Talvez façamos um heteródino.

— «Heteródino»?

— É um termo que costumava ser muito usado em rádio. No nosso caso, significa que, se uma moça não é bastante, duas podem resolver a coisa. Na noite passada, Jake foi educado não olhando... exceto, que ele estava reparando minha Simpática com ambos os olhos o tempo todo em que fingia não estar. Não estou procurando metê-la numa tróia... mas não tenho nenhum escrúpulo em usá-la como isca.

Saíram da banheira e estavam dando os retoques finais quando o telefone interno tocou.

— Miss Smith. O carro de Mr. Salomon acaba de entrar.

— Obrigada, O'Neil.

Minutos mais tarde, Joan telefonou para a Suíte Verde.

— Jake, meu querido? Está falando seu guru de serviço. Se desejar participar de uma reunião de orações, o guru e seu cheia estão à sua disposição.

— Boas novas. Estou cansado... e a noite passada foi a em que melhor dormi na minha vida, guru.

— Que bom! já jantou?

— No Gib, há algumas horas. Estou pronto para a cama. Se me derem, oh, vinte minutos para um banho.

— Devemos estar aí em exatamente vinte minutos? Não quero dar de cara com Hubert.

— Mandei-o dormir. Não haverá ninguém, a não ser vocês, franguinhas.

— Vinte minutos, querido. Fim.

Novamente, duas moças deslizaram de pés descalços pelo corredor. Joan estava usando, sob o roupão, o colar com a ankh. A porta se abriu e Jake caminhou ao encontro delas. Estava usando um roupão de banho e tinha um livro na mão, com um dedo marcando a página.

— Alô, minhas queridas. Vocês estão encantadoras. Joan, tomei a liberdade de entrar na sua biblioteca do térreo e apanhar este livro.

— Não é uma liberdade e você sabe disso. Que livro é, Jake? Ele o mostrou a Joan.

— A Yoga Vishnudevananda. Pensei encontrar nele as posições mais simples que eu pudesse experimentar. Mas temo que eu precise fazer meditação.

Joan parecia confusa.

— Isto estava lá embaixo? — Deu uma olhada na primeira página e viu que estava escrito: «Ex Libris — J S B Smith». — Não me lembrava de que o possuía.

— Você é um rato de biblioteca, querida. Esta casa deve ter dez mil livros.

— Mais, acho eu. Tinha mais ou menos isso ia última vez em que os cataloguei. Bem, já que você o trouxe, Winnie e eu vamos dar-lhe uma olhada. Talvez achemos exercícios que ainda não fizemos. — Devolveu-lhe o livro, que ele pôs de lado. — Pronto para a auto-

hipnose?

— Pronto para as orações e desculpe se pareci desinteressado na

noite passada.

— Não posso ver que diferença faz um nome, Jake. Mas primeiro... — Joan abriu o roupão e tirou o colar do pescoço. — Um presente para você, Jake. Incline a cabeça.

Ele inclinou. Ela colocou a corrente no pescoço dele com o beijo ritual. Jake pegou a ankh e olhou.

— Obrigado, Eunice. É um lindo presente. Devo usá-la já?

— Como você quiser. Ou use-a na imaginação... sei que você não é muito de usar jóias. Pronta, Winnie?

Joan Eunice deixou cair o roupão e ficou em Lótus. Winnie acompanhou-a. Jake livrou-se do roupão de banho, conservou o colar e juntou-se a elas.

— Jake, quer nos dirigir hoje? Não é preciso dizer «prender» ou «respirar». Nós o acompanharemos. Como ontem à noite, apenas uma oração para cada das quatro partes. Conserve o tempo lento.

— Vou tentar. Om Mani Padme Hum! (Om Mani Padme Hum)

 

Jake Salomon pareceu cair imediatamente no sono assim que elas o puseram na cama. As moças saíram silenciosamente do quarto na penumbra. Joan parou pouco depois, no vestíbulo.

— Winnie, quer fazer uma coisa para mim?

— O que quiser, querida.

— A que horas o pessoal começa a acordar de manhã?

— Não sei a que horas o cozinheiro se levanta. Talvez às seis. A maioria às sete ou em volta disso. O café do pessoal é às sete e meia.

— Delia não tem importância. Ela nunca sobe. Quero saber do

pessoal deste andar.

— Bem, a limpeza começa às nove. Mas ninguém limpa perto do seu quarto antes de você pedir o café. Tem sido incomodada?

— Não. E não me incomodo de ser. Acho que Hubert é o único que me preocupa. Vou voltar e dormir com Jake.

— Oh!

— Não imediatamente, pois quero ter a certeza de que ele já adormeceu. Se dormir a noite toda, não vou acordá-lo. O pobrezinho precisa descansar. Mas quero dormir com ele! Porém não quero Hubert me caindo em cima. Pode dar um jeito de afastá-lo?

— Oh, percebo. Tenho bastante certeza de que Hubert nunca vai ao quarto de Mr. Salomon antes deste pedir o café e Hubert levar. Certas manhãs fui tomar café embaixo e vi Hubert ficar sentado tomando o dele e vendo as notícias durante bastante tempo, esperando o telefonema de Mr. Salomon.

— Que alívio! Portanto não é crível que só você saiba disso. Não que eu me incomode, mas detestaria ver Jake arrastado para uma onda de fofocas. Está bem, quer fazer três coisas para mim? Ler ou dormir um pouco na minha cama, para amarfanhá-la. Fique a noite toda, se quiser, mas amarrote também a sua. Quer pôr seu despertador para as oito e se a essa hora eu não estiver na minha cama, pode ligar para a Suíte Verde? Tenho a certeza de que Jake preferirá saber que você está a par, que nos deixar pegar por alguém. E mais uma coisa. Quer me preparar pijamas e chinelos? Então, se alguma coisa falhar, farei cara de pau... Estarei vestida e os bisbilhoteiros que se danem. Enquanto você vai buscá-los, vou tirar o roupão aqui e dizer mais alguns Money Hums. Estou decidida mas um tanto nervosa. Acho que com medo de Jake me espinafrar. (Acho que com medo de Jake não espinafrar) (Você não nos quer, Eunice?) (Quero! Pare de lero-lero e vá em frente)

— Imediatamente, Joan. Oh, também estou tão excitada! Hum, acho que vou dormir na sua cama. Se você não se importar.

— Sabe que não me importo. Mas posso voltar e acordá-la, o que é muito provável.

— À vontade. Se precisar de um ombro para se consolar, quero estar lá. Ou apenas para se aconchegar.

— Ou posso ter algo para lhe contar. Você não me tapeia nem um pouquinho, Simpática. Não importa, eu gostarei de a encontrar lá quando voltar, qualquer que seja o motivo.

Instantes depois, Joan deslizou silenciosamente para dentro do quarto da Suíte Verde, despiu as roupas sem acender a luz e achou seu caminho para a cama graças ao ressonar de Jake. Entrou cautelosamente na cama, sentiu o calor irradiante do corpo dele junto ao seu, suspirou feliz e caiu no sono.

Algum tempo depois, Joan sentiu na escuridão que pegavam sua mão e imediatamente acordou. (Que foi?) (Toque de alvorada, gêmeo! É agora) (Estou com medo!) (Tomarei conta, querido... o corpo recorda. Diga um Money Hum)

Sem uma palavra, Jake a possuiu com firmeza.

(Meu Deus, Eunice! Por que não me disse?) (Dizer o quê) (Que para uma mulher é muito melhor!) (É?) (Dez, cem vezes... não posso calcular, estou desmaiando) (Como eu podia supor que era tão bom assim? Beije-o antes de desmaiar)

 

A ocupação do Palácio do Governo de Oklahoma pelo Governo Agrário de Emergência continuava. O Laboratório Tripulado Marciano de Campo comunicou o encontro de objetos (idade l,4xlO6 ± 14% anos) indicando uma inteligência extinta equivalente à humana. Um segundo comunicado, firmado pelos membros chineses da expedição, negou que as provas fossem objetos, tratando-se apenas de subprodutos automáticos e instintivos (análogos ao coral ou favos de mel) de uma vida subinteligente, intimamente relacionada com a vida anaeróbica atualmente presente em Marte. A Sociedade Internacional da Terra Plana, na sua convenção anual em Surrey, Inglaterra, aprovou sua habitual resolução,

solicitando às Nações Unidas que apliquem sanções a todo governo nacional que esbanje o dinheiro dos contribuintes em supostas «viagens espaciais».

A média de suicídios aumentou pelo décimo nono ano consecutivo, o mesmo se dando com a média de mortes por acidentes e por violência. A estimativa da população mundial ultrapassou 300.000 pessoas por dia e continuou a subir, com seis crianças nascendo a cada segundo contra 2,5 pessoas mortas no mesmo espaço de tempo, com um lucro líquido de sete pessoas a cada dois segundos.

Em Izard County, Arkansas, uma galinha pôs um ovo com o sinal-da-cruz impresso. Um porta-voz do Departamento do Tesouro, falando oficiosamente, anunciou que o Governo não iria apressar a lei governamental de abolição total da moeda corrente em favor dos cartões de crédito universais e contabilidade computadorizada. «Devemos enfrentar o fato», disse ele, no clube dos jornalistas de Washington, «de que as transações do mercado-negro, os subornos e outras negociações quase legais são tão partes da nossa economia quanto os juros na Dívida Pública e que criar condições de forma a tornar essas transações voluntárias impraticáveis levaria a uma depressão que o país não poderia agüentar. Para falar poeticamente, cavalheiros, a pequena quantidade de moeda corrente ainda em circulação — apenas uns poucos bilhões — é o nosso lubrificante para a máquina do progresso. Posso lhes garantir que o Presidente reconhece essa verdade.»

A Primeira Igreja Satanista, S.A. (quarenta e quatro ramificações na Califórnia e cinco em outros Estados) apresentou um recurso ao Tribunal Federal para se livrar de «impostos discriminatórios». O Primeiro Discípulo declarou: «Se as outras igrejas não são marcadas, taxadas e investigadas no que concerne aos seus sagrados objetivos, um Grande Discípulo deve gozar da mesma proteção: é essa a ordem perfeita!» Reno tornou a revogar sua lei de permissão da prostituição. O Gerente da cidade declarou que os emolumentos não eram suficientes para pagar aos inspetores... e além disso, não havia afinal de contas tanta prostituição comercial assim, desde que fecharam o Centro Federal de Ensino da Juventude.

O Agrupamento de Defesa dos Seres Humanos aumentou seu esforço de dobrar, amarrotar e rasgar os cartões dos computadores e jogá-los na caixa de correio mais próxima... Apesar das prisões efetuadas por inspetores postais, não houve quase colaboração da polícia local e nenhum júri pronunciou um veredicto de culpa, por mais evidente que fosse o caso. O inspetor-chefe dos Correios declarou que os cartões estragados eram quase sempre notas e que, até agora, não havia denúncia de cheques ou ordens de pagamento rasgados... e que o governo não se interessava muito pelo caso, mas que estava ficando bastante enjoado e cansado pelo fato das caixas de correio do país estarem sendo usadas como latas de lixo.

O presidente do Agrupamento de Defesa dos Seres Humanos respondeu que as caixas de correio do país vinham sendo há anos latas de lixo e tanto o diretor-geral dos Correios como o Congresso sabiam por quê. O computador de trânsito para o centro de Houston entrou em colapso espasmódico durante o rush do entardecer, deixando milhares de pessoas encalhadas noite adentro nas ruas. Calculou-se em mais de sete mil as mortes, incluindo paradas cardíacas, envenenamento pelo smog e assassinatos para roubar, mas os suicídios não foram levados em conta. A Associação das Companhias Comerciais de Seguros de Automóveis dos Estados do Sul impugnou todas as cobranças baseadas nesse incidente, considerando que as mortes ou ferimentos ocorridos em veículos parados não estavam incluídos (em grifo).

As Colônias Lunares ofereceram mais duas enormes Grutas Alimentares tipo «aquário-equilibrado», as George Washington Carver e Gregor Mendel, e a Comissão tornou a anunciar um aumento da quota de emigração financiada, mas novamente com a não relaxação dos padrões (a proibição contra a Comissão, expedida por Mr. Justice Handy, do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, foi silenciosamente ignorada nos terrenos não jurisdicionados). As ações ao portador da Las-Vegas-no-Céu continuaram a subir, contrariando a tendência baixista do mercado. A maioria dos especialistas em investimentos continuou altista, baseando suas expectativas nas passadas correlações entre o tempo, o mercado e o penteado das mulheres. A Subcomissão Interestelar Consultiva da Comissão Lunar foi sediada, como primeira tentativa, em Tau Ceti em vez de Alfa do Centauro. Jodrell Bank perdeu o contato com a Sonda Tripulada enviada a Plutão. As mortes (oficiais) na Ucrânia caíram abaixo das mortes (oficiais) em Mato Grosso... e em ambos os lugares os mortos não reclamaram.

 

— ... ao passo que «id» não é um conceito científico. É apenas a primeira sílaba de «idiota»!... como meu estimado colega deve saber melhor.

— ... ordem no tribunal.

— ... permitam que cite as incontestáveis conclusões daquele grande cientista...

— entra lixo, sai lixo! Qualquer assistente recém-formado pode fazer lindos gráficos e tirar conclusões quase brilhantes de dados irrelevantes.

— Posso pedir ao meu estimado colega que repita o insulto fora da sala de audiência?

— ... o meirinho é obrigado a manter a ordem durante...

(— Jake, com alguma sorte, você poderá fazer isto ficar tão enrolado que ninguém quererá brincar de ir embora)

— ... com estas luzes brilhantes. Não me ofusque com elas. Do contrário o pau vai comer.

— ... pergunto ao Tribunal se o Conselho tem uma finalidade séria ao infligir ao Tribunal e aos presentes a visão ofensiva desta carcaça horrível?

(— Não posso me conter, Jake. Pareço realmente tão mal assim? Continuo pensando que devemos forçar a situação.

— Silêncio, querida, Mac sabe o que está fazendo e eu também.)

— ... sugiro respeitosamente que a própria testemunha deve ser decisivamente identificada antes que seu depoimento sirva para identificar outra pessoa.

— ... Estado e Condado. Este conjunto de impressões que estou projetando na tela, os senhores acabaram de me ver tirá-las do cadáver marcado como prova MM. Agora quero compará-las com as fornecidas pelos Arquivos do Departamento de Veteranos, previamente rotuladas como prova JJ. Para isso vou usar superposição estérea...

— ... tirou pessoalmente essas fotos que o senhor está agora segurando e que foram experimentalmente rotuladas como prova SS, numeradas de um a cento e vinte e sete?

— ... não ficou esclarecida. Esta deveria ser uma audiência pública. Mas o Tribunal vai precisar lavrar uma sentença por desrespeito, como é necessário e, Evelyn, você pode começar por colocar essa espectadora, essa, a mulher de óculos e de peruca ridícula, no gelo por dez dias. Peça-lhe o nome, entregue-o ao escrivão e leve-a embora. Mais algum mentecapto que não pode ficar calado? O senhor aí atrás, comendo uma barra de açúcar-cândi. Meta-a no bolso. Isto aqui não é lanchonete.

— O advogado da parte contestante está sugerindo que este não é José Branca?

— Meu Deus, não. Ajudarei a identificá-lo, se o senhor quiser., Insisto apenas no sentido do senhor apresentar fundamentos adequados.

(— jake, Joe está parecendo um espectro. Preciso vê-lo assim que esta loucura acabar.

— Acha que é sensato?

— Não sei, Jake. Só sei que preciso.)

— Olhe em volta, Mr. Branca. Diga ao Tribunal... diga ao juiz, aliás, se sua mulher está ou não nesta sala.

— Aqui não.

— Mr. Branca, olhe para onde estou apontando.

— Aqui não, já lhe disse!

— Meritíssimo, estamos lidando com uma testemunha hesitante. Torna-se necessário orientá-la.

— Muito bem. Mas lembro ao advogado de que ele não pode pôr em dúvida sua testemunha.

— Obrigado, Meritíssimo. Mr. Branca, estou apontando para esta moça. Olhe-a atentamente. Estou com a mão no ombro dela...

— Tire as mãos de cima de mim! Juiz, se ele tornar a pôr a mão em mim, eu a mordo!

— Ordem. Doutor, não é necessário tocar na parte contestada e o senhor não fará isso novamente. Sua testemunha sabe a que moça o senhor se refere.

— Muito bem, Meritíssimo... e se eu ofendi esta jovem, peço desculpas. Mr. Branca, digo-lhe que esta é sua esposa, Eunice Branca, Evans de solteira.

— Eunice, não. Morreu. Juiz, tenho de agüentar essa conversa? Este rábula mentiroso conhece a peça de cor, pois conversou comigo durante duas ou três horas. Claro, é o corpo de Eunice. Mas Eunice está morta. Todos sabem o que aconteceu.

— Desculpe, Meritíssimo. Mr. Branca, por favor, limite-se a responder minhas perguntas. O senhor disse que sua esposa está morta... mas alguma vez viu sua esposa Eunice Branca morta?

— Hem? Não. Aquela operação...

— Apenas responda à pergunta. O senhor em tempo algum a viu morta. Digo-lhe que o senhor recebeu um milhão de dólares para testemunhar que esta mulher não é sua esposa Eunice Branca.

(— Jake, eles podem fazer isso com Joe? Olhe para ele.

— Lamento, querida. Não o invoquei como testemunha.)

— Juiz, este bastardo nojento está mentindo! Foram lá no clube, sabe? Sangue Raro. Tenho esse sangue gozado, sabe? Eunice também. Salva-vidas. Claro, ofereceram dinheiro, mil, milhão, não sei, não me interessa. Acha que eu sou interesseiro talvez? Por Eunice? Disse a eles que não queria. Eu...

— Meritíssimo, peço sua ajuda para trazer a testemunha à ordem.

— Acho que ele está dando uma resposta adequada à sua pergunta. Continue, Mr. Branca. Ofereceram-lhe dinheiro. Para quê?

— Oh. Eunice tinha um patrão, sabe? Mr. Smith. Johann Smith. Tão rico que nadava em ouro. Mas o velho ranhento estava morrendo, sabe? Só os charlatas não deixavam ele morrer. Lamentável. Mas ele' tinha aquele mesmo sangue gozado, sabe? Como eu, como Eunice. Eu disse a eles, claro, que podiam ficar com o corpo de Eunice. Ela não precisava mais dele... mas não por dinheiro. Então fizemos uma barganha... eu e aquele rábula ali, Mr. Jake Salomon. Ele sabia como eu me sentia e ajudou. «Fundação Eunice Evans Branca para Sangue Raro Grátis»... tudo pago ao Clube do Sangue Raro. Pergunte a Mr. Salomon, ele sabe. Eu... não... fiquei... com... um... raio... de tostão de merda!

(— Jake... ele nem quis me olhar.

— Coloque o véu, querida, e comece a chorar.)

— O advogado das contestantes tem mais alguma pergunta a fazer a esta testemunha?

— Não, Meritíssimo. O colega pode inquirir.

— Nenhuma pergunta a fazer, Meritíssimo.

— Os senhores desejam inquirir a testemunha mais tarde? Este não é um julgamento e o Tribunal pretende permitir a mais ampla inquirição, mesmo que a gravação fique eivada de coisas irrelevantes. Doutor?

— As contestantes não precisarão futuramente da testemunha.

— Nenhuma pergunta, agora ou depois, Meritíssimo.

— Muito bem. O Tribunal fica adiado para as dez de amanhã de manhã. O meirinho fica encarregado de fornecer à testemunha transporte para casa ou para onde ele desejar e evitar-lhe aborrecimentos. Cá para nós, Evelyn, ele já foi bastante incomodado.

— Juiz, posso dizer um troço?

— Se quiser, Mr. Branca.

— Aquele rábula de merda... não é Mr. Salomon, é o outro. Todas as noites são escuras. Qualquer dia ele abotoa o paletó no pátio do Bird's Nest.

— Ordem. Mr. Branca, o senhor não pode fazer ameaças no tribunal.

— Não é ameaça, juiz. É profecia. Eu nunca machucaria ninguém. Mas Eunice tinha montes, montes e montes de amigos.

— Está bem. Está dispensado, Mr. Branca. Não precisa voltar aqui. O escrivão cuidará das provas. O meirinho providenciará os guardas. Adiado.

 

— Todos de pé!

— ... o maior respeito possível pela sapiência do meu distinto colega, apesar de ter expressado opiniões da mais absoluta falta de senso, como provou aquele grande cientista num documento de 1976, Que passo a citar: «O verdadeiro conceito de «personalidade» não é mais que a sombra de uma invenção de uma fantasia de uma especulação pré-científica. Todos os fenômenos da vida estão plenamente explicados pelas leis da bioquímica, como se segue...»

— ... mesmo uma fenomenologia existencial exige um fundamento teológico, concedo, mas um estudo mais acurado do materialismo dialético prova um preconceito sem esperanças que...

— Quem é o responsável aqui?

— Um nascituro não é uma pessoa. É apenas uma incipiente estrutura ectoplásmica com uma potencialidade que decorre do seu meio-ambiente...

— ... leis matemáticas de herança genética para cada possível acontecimento erroneamente denominado...

— ... em palavras familiares ao tribunal e a todos: «Pai, perdoai-os, pois eles não sabem o que fazem».

— ... chocado, ao descobrir que o douto juiz que preside este julgamento é, de fato, companheiro de fraternidade de Johann S. B. Smith. Essa relação clandestina pode ser confirmada nos registros abertos ao público e peço que o Tribunal de hoje e qualquer outro no futuro que vejam esses registros tomem conhecimento oficial e peço que o advogado oponente especifique o fato.

— Especificado.

(— Jake, como conseguiram descobrir?

— Deixamos transpirar. Na noite passada, por intermédio de Alec. A tempo de ser registrado em vez de constar de um apelo.)

— Aha! Estipulado este fato incrível, os demandantes são agora forçados a pedir que o juiz-presidente se dê por impedido e considere o julgamento incorreto.

(— Jake, me parece que eles nos pegaram. Por mais que eu goste de Mac e Alec, tenho de admitir que este fato tem o sabor do encontro de uma marca de morango numa herdeira desaparecida.

— Não, minha querida. No decorrer de uma longa vida, uma pessoa importante relaciona-se diretamente com outra pessoa importante. Se não tivesse sido revelado que você e Mac pertenceram à mesma fraternidade, teria aparecido alguma outra ligação tão íntima ou mais. Quantos membros do Supremo Tribunal você" conhece?

— Hum... acho que cinco.

— Está aí a resposta. No topo da pirâmide, todos se conhecem.) (E dormem entre si) (Bico calado, Eunice!)

— Doutor, acho isto interessante. Primeiro, permita-me levá-lo diretamente a um artigo da lei. Em segundo lugar, o senhor usou a palavra «julgamento» e agora fala de «julgamento incorreto». Como sabe, este não é um julgamento, nem mesmo uma audiência de contestação: não passa de um inquérito com a finalidade de estabelecer a identidade de uma jovem que chama a si mesma de «Miss Smith». Não é acusada de crime algum e não há processo contra ela neste tribunal. Simplesmente, a identidade que requereu foi posta em dúvida por suplicantes que reivindicam direitos. Assim, este tribunal está ajudando uma investigação amigável... auxiliando, como um bom vizinho, a evitar uma confusão. Não um julgamento.

— Retifico, Meritíssimo.

— Por favor, seja cuidadoso no uso de linguagem técnica. Se não há julgamento, não pode haver julgamento incorreto. Concorda?

— Talvez eu deva usar outra linguagem, Meritíssimo. Os demandantes acham que, sob estas manifestas circunstâncias, o senhor não é o juiz que deva presidir esta, hum, investigação amigável.

— Isso é possível. Mas o caso chegou a mim em conseqüência de uma distribuição normal e continuará assim, a menos que motivos relevantes sejam apresentados que justifiquem a minha saída. Voltando ao assunto de linguagem, o senhor usou a palavra «clandestina». O Tribunal não quer, neste momento, saber se a escolha desta palavra pelo advogado significa ou não desacato...

— Meritíssimo, asseguro-lhe...

— Ordem. Estou falando. Nem vai querer discutir isso agora. Neste momento, consideraremos apenas o significado da palavra. «Clandestina» significa «escondida, secreta, oculta» com um sabor ou conotação de sub-reptícia, desleal ou ilícita. Diga-me: esse relacionamento alegado pode ser verificado no «Who's Who»?

— Oh, com certeza, Meritíssimo! Foi onde o encontrei.

— Sei que minha própria fraternidade consta dele. Suponho que, se estiver correto, o nome de Johann Sebastian Bach Smith constará. Uma vez que o senhor me diz que verificou, o Tribunal aceita oficialmente a asserção e não existe prova posterior... apenas comento que dificilmente poderíamos ser membros da mesma loja ao mesmo tempo, visto haver entre nós uma diferença de idade de quase meio século. Sua investigação mostrou que Johann Smith e eu fomos, juntos, membros de outras organizações? Por exemplo: Johann Smith foi membro fundador do Gibraltar Club... e eu e o advogado de Miss Smith, Mr. Salomon, também somos... bem como o senhor. Em que outra organização fiz parte com Johann Smith? Agora ou no passado?

— Hum... as postulantes não investigaram.

— Ora, vamos, tenho a certeza de que o senhor pode descobrir outras. A Cruz Vermelha, por exemplo. Provavelmente a Associação Comercial numa certa época. Lembro que, quando fui chefe escoteiro, Johann Smith também foi. Possivelmente ambos pertencemos a outros organismos de fraternidade. Muito provavelmente, fomos curadores ou procuradores dos mesmos grupos de caridade ou assistência social, tanto simultaneamente como um depois do outro. Noto que o senhor é membro do Santuário, como eu. É preciso comentar o fato?

— Não é necessário, Meritíssimo.

— Mas o senhor e eu quase certamente participamos de inúmeros grupos fraternais. O Tribunal está ciente do fato discutível de que, uma vez que os advogados não podem anunciar, tendem, como classe, a pertencer a mais organizações: fraternais, sociais, assistenciais e religiosas... onde se transformam numa classe de leigos. Visto que o senhor preferiu não comentar as que nos são comuns, o Tribunal deseja espontaneamente investigar e incorporar o resultado ao registro. Agora, no que toca à minha alegada obrigação de me considerar impedido, deseja expor suas razões? Pense a respeito enquanto fazemos uma interrupção, pois sua resposta irá constar da gravação. Dez minutos.

— Ordem. Advogado das postulantes? Teve tempo para pensar.

— As postulantes retiram todos os comentários referentes a associações fraternais e gostariam que os mesmos fossem eliminados das gravações.

— Pedido negado. Nada pode ser eliminado desta gravação. Ora vamos, advogado, o senhor deve ter alguma teoria. Exponha.

— Meritíssimo, na hora em que levantei a questão, ela parecia importante. Agora já não penso assim.

— Mas o senhor deve ter tido uma teoria ou não teria levantado a questão. Por favor, fale com franqueza, pois quero saber.

— Bem... se o Meritíssimo me permitir, o fato revelado levava a admitir a possibilidade de uma prevenção por parte do Tribunal. Sem desrespeito da minha parte.

— E o Tribunal quer assegurar que nada existe. Mas sua resposta é incompleta. Prevenção a favor de quem? Das postulantes? Em virtude das minhas relações fraternais com o avô delas?

— Como? Oh, não, Meritíssimo... prevenção a favor de, hum, de miss... da parte contestada.

— O senhor está afirmando que ela é, mesmo, Johann Sebastian Bach Smith?

(— Meu Deus, Jake, Mac obrigou-o a morder o próprio rabo.

— Sim. Quem agarrou quem?)

— Não, não, Meritíssimo, não estamos afirmando isso. Essa é a matéria que estamos realmente contestando.

— Mas, doutor, não pode haver duas soluções. Se essa jovem não é Johann Sebastian Bach Smith — como as postulantes alegam — então não pode ser meu colega de fraternidade. Caso contrário, pela sua teoria, ela é Johann Sebastian Bach Smith. Que solução prefere?

— Temo ter pecado por erro de raciocínio. Peço a indulgência do Tribunal.

— Todos nós às vezes raciocinamos errado. Já terminou? Podemos continuar com a inquirição das testemunhas?

— Terminei, Meritíssimo.

— Mas, Dr. Boyle, o senhor sabe que retirou o cérebro deste corpo — deste cadáver — e o transplantou para o corpo desta mulher?

— Não seja burro, amigão. Você ouviu minha resposta.

— Meritíssimo, as postulantes acham que isto é uma inquirição séria e pedem o apoio do Tribunal.

— O Tribunal ordena à testemunha que responda a pergunta corretamente.

— Juiz, o senhor sabe que não me assusta. Estou aqui como testemunha voluntária... e não sou nem nunca fui cidadão do seu estranho país. Agora sou cidadão da China. O seu Departamento de Estado prometeu ao nosso Ministério do Exterior que eu teria imunidade completa durante toda minha permanência aqui, apenas para comparecer. Por isso, não perca tempo em botar banca. Não pega. Quer ver meu passaporte? Imunidade diplomática.

— Dr. Boyle, este Tribunal tem ciência da sua imunidade. Todavia, o senhor foi induzido a vir aqui — a um gasto considerável, quero declarar e sem dúvida com inconveniência para o senhor — para fornecer uma prova que só o senhor pode fornecer. O Tribunal pede-lhe que responda a todas as perguntas que lhe forem feitas, tão completa, explícita e claramente quanto possível, em termos que um leigo possa entender, mesmo que isso o leve a repetir-se. Quero estabelecer exatamente o que o senhor fez e o que sabe por conhecimento próprio, que possa direta ou indiretamente ajudar este tribunal a estabelecer a identidade desta mulher.

— Oh, certamente, caro amigo... assim é diferente. Bem, vamos voltar atrás e começar tudo outra vez, de A a Z. Mais ou menos há um ano fui procurado por aquele coroa ali — desculpe, quero dizer «advogado» — Mr. Jacob Salomon, para fazer o que os suplementos dominicais chamam de «transplante cerebral». Aceitei a incumbência. Depois disto e daquilo — pode obter os detalhes com ele — efetuei a coisa. Transferi um cérebro e algumas partes adjacentes de um crânio para outro. Aquele cérebro continuava vivo no seu novo nicho quando fui embora.

«Agora, para quem. O doador do cérebro era um homem muito idoso e o doador do corpo foi uma mulher adulta, mas jovem. Era mais ou menos assim: estavam cobertos, sabe, com lençóis esterilizados, etc, antes do cirurgião responsável chegar. Um calouro. Só posso acrescentar estas informações: o homem estava em mau estado, mantido vivo por meios heróicos. A mulher estava pior ainda, morta. Ferimento extenso no crânio e córtex aqui: a cabeça quebrada, quero dizer, e a gema esparramada. Morta como a Rainha Anne, com exceção de que o corpo fora conservado vivo graças a medidas seriíssimas de manutenção.

«Agora, aquele disforme pedaço de carne conservada que está ali teve seu cérebro retirado de maneira eficiente por intermédio de minha própria — única — técnica cirúrgica e duvido que haja outro cirurgião vivo que possa fazê-lo como eu. Examinei aquele cadáver cuidadosamente. Concluí que aquele trabalho eu o fiz e, por eliminação, fiquei convencido de que devia ser o corpo para o qual Salomon contratou meus serviços. Não há nenhuma evidência conflitante e o cadáver não é de nenhum outro caso meu.

«Identificar a jovem é outro assunto. Se sua cabeça estivesse raspada, eu poderia procurar tecido cicatrizado. Se sua cabeça tivesse sido radiografada, eu poderia procurar próteses: teflon vitae não produz a mesma sombra numa chapa que o osso natural. Mas tais testes seriam apenas indicativos: o tecido cicatrizado é facilmente confundido e outras trepanações podem produzir sombras radiográficas sem perturbar o sistema nervoso central.»

— Dr. Boyle, vamos supor provisoriamente que o senhor retirou um cérebro vivo da prova JJ, o cadáver...

— Supor? Eu retirei, o senhor me ouviu dizer.

— Não o estou contradizendo, estou apenas usando uma linguagem apropriada. Muito bem, o senhor portanto testemunhou e também afirmou que transplantou aquele cérebro para um corpo feminino jovem. Olhe em volta e veja se pode identificar aquele corpo feminino.

— Oh, você está sendo burro outra vez. Não sou curandeiro nem juiz de concurso de beleza. Sou cirurgião. Não, obrigado. Se essa moça — aquele humano composto, corpo de mulher, cérebro de homem — sobreviveu e hoje está viva... não tenho opinião formada e garanto-lhe que tive urna forte razão para me familiarizar com literatura importante de medicina forense e jurisprudência médica. O senhor não vai me fazer mergulhar na burrice em que está... não tenho a menor possibilidade hoje de apontá-la com segurança entre dez mil outras moças de aproximadamente a mesma estatura, peso, físico, tom de pele, etc. Doutor, alguma vez viu um corpo humano totalmente eriçado de material de conservação extrema da vida e preparado para uma operação daquela espécie? Tenho a certeza de que não viu, pois do contrário não faria perguntas tão bobas. Mas posso lhe garantir que o senhor não reconheceria sua própria mulher naquela situação. Se quer que eu cometa perjúrio, entrou no lugar errado.

— Meritíssimo, as postulantes parecem não ter condições de obter uma resposta conclusiva para esta pergunta crítica.

— O Tribunal acha que foi conclusiva. A testemunha declara que pode e identifica o corpo masculino, mas que é incapaz de identificar o feminino. Doutor, confesso que estou confuso sobre um ponto, talvez pelo fato de eu não ser médico. Não obstante, estou confuso. Devemos entender que o senhor realizou aquela operação sem ter certeza da identidade dos corpos?

— Juiz, nunca fui de me incomodar com trivialidades. Mr. Salomon me garantiu, em linguagem jurídica, que «os galhos estavam quebrados», se compreendo corretamente a sua língua. Essas garantias significavam para mim que a papelada estava em ordem, o requerimento legal feito, etc, e que eu estava livre para operar. Acreditei nele e operei. Me enganei? Devo esperar uma tentativa de extradição depois que voltar para casa? Acho que vai ser difícil. Finalmente encontrei um país onde meu trabalho é respeitado.

— Não me consta que alguém tenha a intenção de tentar extraditá-lo. Foi pura curiosidade minha. O advogado queria chegar a isto: está presente nesta sala uma mulher que alega ser aquele composto resultante da sua operação. Pode apontá-la?

— Oh, certamente posso. Mas não como testemunha juramentada. É aquela jovem sentada ao lado de Jake Salomon. Como vai, minha querida? Sentindo-se jóia?

— Muitíssimo, doutor.

— Desculpe se a desapontei. Oh, eu podia identificá-la positivamente... serrando a parte superior do seu crânio, tirando seu cérebro e procurando certos indícios. Mas — heh heh! — depois seu cérebro não lhe ia ser muito útil. Prefiro vê-la viva, um monumento à minha habilidade.

— Também prefiro, doutor... e na verdade não estou desapontada. Sou-lhe eternamente grata.

— Meritíssimo, esse comportamento é inacreditável!

— Doutor, cabe a mim julgar. Sob circunstâncias tão fora do comum, permitirei um pouco de calor humano no tribunal.

— Miss Smith, eu gostaria de examiná-la antes de partir. Para meus apontamentos, sabe.

— Pois não, doutor! Tudo... menos serrar meu crânio.

— Oh, só bater no peito e coisas assim. Os rituais costumeiros. Está bem amanhã de manhã às dez?

— Meu carro estará a sua espera às nove e meia, doutor. Ou mais cedo, se me der a honra de tomar café comigo.

— O Tribunal julga necessário interromper. Lamento dizer que ambos deverão estar aqui amanhã às dez. Estamos quase na hora de encerrar e...

— Não, juiz.

— Como, Dr. Boyle?

— Eu disse «não». Não estarei aqui amanhã de manhã. Falarei esta noite, às vinte horas, num jantar de uma das suas associações de açougueiros: o Colégio Americano de Cirurgiões. Até pouco antes dessa hora estarei à sua disposição. Suponho que possa exigir a presença de Miss Smith amanhã de manhã, mas não a minha. Estarei viajando para a velha e alegre China o mais depressa possível. Lá não há falta de ocasião para pesquisas: o senhor ficaria espantado em ver como os prisioneiros condenados concordam. Por isso não vou perder outro dia com perguntas idiotas. Mas estou disposto a tolerá-las agora.

— Hummm... temo que o tribunal precise concordar em que este é um caso de Maomé e a Montanha. Muito bem, não encerraremos a sessão na hora habitual.

 

— A testemunha pode ficar sentada. As postulantes têm outras testemunhas?

— Não, Meritíssimo.

— Doutor?

— Miss Johann Smith não apresenta provas subseqüentes.

— Mr. Salomon, o senhor tem a intenção de apresentar arrazoado ou resumo?

— Não, Meritíssimo. Os fatos falam por si mesmos.

— Postulantes?

— Meritíssimo, o senhor pretende encerrar o inquérito hoje?

— E o que pretendo descobrir. Já nos arrastamos há vários e cansativos dias e simpatizo muito com a atitude do Dr. Boyle: vamos limpar a sujeira e cair fora. Ambas as partes confirmam não ter mais testemunhas, perguntas, nem provas. O advogado de Miss Smith declara que não irá fazer arrazoado, Se o advogado das postulantes quiser discutir, pode fazê-lo... caso em que Miss Smith, pessoalmente ou através do seu defensor ou ainda ambos, tem o privilégio de replicar. Minha intenção, doutor, era um descanso... depois, se o senhor estiver com as idéias em ordem, poderá dizer o que deseja. Se não puder, prosseguiremos amanhã de manhã. Então o senhor poderá lutar por um adiamento... mas aviso-lhe que um adiamento longo não será tolerado. O Tribunal está ficando impaciente com táticas de protelação e diversionismo, para não mencionar palavras e atitudes próximas do desacato. O que deseja?

— Com a permissão do Tribunal, se continuarmos esta noite, que período de descanso pretende o Tribunal estabelecer?

 

— ... concluída a réplica, estamos preparados para sentenciar. Mas, primeiro, uma declaração do Tribunal. Visto que um item novo do Código Constitucional foi envolvido no assunto, se for feita apelação o Tribunal pode, de acordo com a Lei Declaratória de Assistência, de 1984, de moto próprio, enviar a. matéria ao Tribunal Federal de Apelação, com a recomendação de subir imediatamente ao Supremo Tribunal. Não podemos dizer se isso acontecerá, mas há aspectos que nos levam a crer que poderá acontecer. O assunto não é trivial.

— Ouvimos a petição, ouvimos as testemunhas e vimos as provas. É possível sentenciar em uma das quatro formas:

«Que tanto Johann Sebastian Bach Smith como Eunice Evans Branca estão vivos;

«Que Eunice está viva e Johann morto;

«Que Eunice está morta e Johann vivo;

«Que Eunice e Johann estão mortos.

«O Tribunal decide — por favor, levante-se, Miss Smith — que esta pessoa aqui presente é fisiologicamente composta do corpo de Eunice Evans Branca e do cérebro de Johann Sebastian Bach Smith e que, de acordo com o princípio imparcial estabelecido em «Espólio de Henry M. Parsons contra Rhode Island», esta pessoa feminina é Johann Sebastian Bach Smith».

 

— ... acho que está me oferecendo seu corpo encantador. Desculpe, minha querida. As mulheres não me interessam. Nem os homens. Tanto em roupas de borracha, saltos altos ou outros acessórios. Sou um sadista, Miss Smith. Um gênio sadista que compreendeu muito jovem precisar tornar-se cirurgião para ficar longe das garras da miséria. Sublimação, sabe. Em todo caso, obrigado. É uma pena, pois a senhora tem um corpo magnífico. (Bem, patrão, o senhor foi recusado. É uma lição que toda mulher precisa aprender. Portanto, ajeite o cabelo e comece tudo de novo)

(Eunice, estou aliviado. Mas, se ele quiser, tem direito a um brinde)

— Dr. Boyle, sou a sua Galatéia. Devo-lhe tudo o que o senhor achar... menos serrar meu crânio. A dívida fica contabilizada. O que eu estava lhe oferecendo era apenas um adiantamento simbólico. Mas o senhor não reage como um australiano típico... e também não fala como um.

— Oh, isso. Sou uma falsificação, querida. Das favelas de Sidney até terminar a escola de sadistas: um elegante colégio interno britânico, uma escola «pública» selecionada. Depois, a Universidade de Londres e os melhores cirurgiões do mundo. Vista seu lindo roupão, que eu vou indo. Diga, não se importa de filmar em estereocinema, essa extraordinária cambalhota em câmara lenta para os meus arquivos?

— Para onde devo enviá-lo, doutor?

— Jake Salomon sabe. Conserve a coragem, minha querida, e trate de viver muito tempo. A senhora é a minha obra-prima.

— Claro que tratarei.

— Isso. Ta ta!

 

Foi noticiado que um objeto voador não identificado, mais ou menos em forma de disco, pousou em Pernambuco e que sua tripulação humanóide entrou em contato com os matutos locais. A notícia foi desmentida oficialmente, quase no mesmo tempo de chegar às agências. O número de detetives particulares licenciados nos Estados Unidos passou a ser três vezes maior que o de guardas governamentais, Miss Joan, nascida Johann Smith, recebeu mais de duas mil propostas de casamento, quantidade superior de propostas menos formais, cento e oitenta e sete ameaças de morte e um número não revelado de bilhetes de extorsão, além de quatro bombas. Nada disso foi recebido pessoalmente, pois foram encaminhadas ao Serviço de Correio Particular Mercury, conforme contrato feito anos antes. A cobertura de uma das casamatas de abrir embrulhos teve de ser substituída. As outras bombas foram desarmadas.

O Diretor-Geral dos Correios morreu de uma dose excessiva de barbitúricos. O Diretor-Geral-Assistente recusou uma nomeação interina e pediu aposentadoria. Uma mulher, em Albany, deu à luz um «fauno» que foi batizado, morto e cremado em oitenta e sete minutos. Sem flores. Sem fotografias. Sem entrevistas... mas o padre escreveu uma carta ao seu colega de quarto do seminário. O F.B.I. informou que as reincidências atingiram a mais de 71%, enquanto que essa mesma porcentagem, anteriormente atribuída a delitos mais graves — roubo a mão armada, estupro, assalto com arma mortífera, assassinato e tentativa de assassinato — subiu para 84%. A paralisação da Universidade de Harvard prosseguiu.

 

— Jake, a última vez em que recusou casar comigo, você me prometeu uma noite na cidade se vencêssemos. Mr. Salomon pousou a xícara.

— Um lanche delicioso, minha querida. Se bem me lembro, você me disse naquela época que a ida a uma boate não era substituto para uma licença de casamento.

— E não é. Mas não o aborreci mais com pedidos de casar comigo desde que me deu a honra de me deixar ser sua primeira concubina. Hum... apague o «primeira». Não tenho a menor idéia do que faz com seu tempo quando não está aqui. Bem, não preciso ser a «primeira». (Gêmeo, nunca aperte um homem por causa de sexo. Ele lhe mentirá) (Gatinha, não estou apertando Jake por causa de sexo. Estou fazendo uma provocação. Ele vai nos levar para a farra e nós vamos vestir aquele sensual instrumento azul e dourado... que foi feito para ser visto e não apenas experimentado por Winnie e posto de lado)

— Eunice, certamente você não pensa que eu tenho outra.

— Seria presunçoso eu dar uma opinião, senhor. Jake, permaneci fechada em casa durante toda a audiência... apenas umas comprinhas, acompanhada de Winnie. Mas agora vencemos e não vejo motivo para continuar prisioneira. Olhe, querido, podemos dar uma saída a quatro: uma moça para você e um rapaz para mim. Assim, você poderá voltar cedo para casa e não perderá uma noite de sono.

— Você evidentemente não está pensando que eu voltarei para casa deixando-a numa boate.

— Eu evidentemente estou pensando que posso ficar acordada a noite inteira e comemorar, se eu quiser. Sou livre, maior — meu Deus, tenho mais de vinte e um! — e posso me dar ao luxo de um acompanhante licenciado. Mas não há razão para manter você acordado a noite toda. Podemos chamar a Acompanhantes Licenciados Selo de Ouro e completar nosso grupo. Winnie andou me ensinando o que os jovens de hoje chamam de dança e eu a estive ensinando a dançar de verdade. Olhe, talvez você prefira acompanhar Winnie no lugar de um boneco qualquer, escolhido num catálogo. Winnie acha você formidável.

— Eunice, você está seriamente propondo alugar um gigolô?

— Jake, não vou casar com ele, nem mesmo dormir com ele. Espero que dance comigo, sorria e converse educadamente, até o limite do razoável. Isso é o fim do mundo?

— Eu não quero ir.

— Se não quer — e Deus sabe que eu teria preferido estar nos seus braços em vez de nos de um acompanhante alugado — por que não tira uma soneca? Eu também farei o mesmo. Precisa de ajuda para dormir? Money Hums, quero dizer, e não ginásticas deitadas. Embora também as tenhamos em estoque.

— Não me lembro de ter dito que íamos sair. Nem há nada para celebrar, Eunice. Não teremos ganho até que o Supremo Tribunal decida.

— Temos muito o que comemorar. Sou legalmente eu — graças a você, querido — e agora não precisa mais fazer relatórios como rneu curador. Minhas netas perderam em toda a linha. Se vamos esperar para comemorar até que o Supremo Tribunal decida, poderemos estar ambos mortos.

— Oh, bobagem! Você sabe que estou de partida para Washington. Espero poder dar um jeito de arranjar uma data próxima na agenda. beJa paciente.

— «Paciente» é o que não sou, querido. Certamente você dará um jeito. Você sempre dá... e o governo me deve isso e esperará mais ue mim. Mas, Jake, seu jato pode cair...

— Isso não muda minha decisão: é a morte da minha predileção. Uma vez que q meu passado genético não me permite esperar um ataque cardíacoí fiquei contando com o câncer. Mas um desastre aéreo é ainda melhor. Tudo, menos uma longa, lenta e irremediável morte.

— Você está esfregando meu nariz no erro que cometi, meu senhor. Permite que conclua? Uma vez você comentou que tinha apenas dez ou doze anos de vida, baseado nos cálculos atuariais... enquanto eu tinha pelo menos meio século. Não é verdade, Jake. Minha expectativa de vida é nenhuma.

— Eunice, que diabo está dizendo?

— A verdade. Uma verdade que você convenientemente esqueceu... mas da qual eu tenho consciência a cada precioso segundo. Jake, sou um transplante. Um transplante único. Nenhuma estatística se aplica a mim. Ninguém sabe, ninguém pode imaginar. Portanto, vivo cada dia como se fosse toda a eternidade. Jake, meu amado senhor, não estou sendo mórbida... estou me sentindo feliz. Quando era garotinho, mamãe me ensinou uma oração. Ei-la:

«Agora vou deitar para dormir.

«Peço a Deus que receba minha alma.

«Se eu morrer antes de acordar,

«Peço a Deus que leve minha alma.»

«É assim, Jake. Passei quase noventa anos sem fazer essa oração. Mas agora acabei de fazê-la e vou dormir feliz, despreocupado do amanhã. (Gêmeo! Sua putinha mentirosa! Tudo o que você disse foi um Money Hum) (É a mesma coisa, gatinha. Uma oração é o que a gente deseja que ela seja)

— Joan Eunice, você uma vez me disse que não tinha religião. Então por que fez essa prece infantil?

— Até onde posso me lembrar, foi lhe ter dito ser uma «agnóstica moderada», até que morri durante um certo tempo. Continuo agnóstica — significando isso que não tenho respostas — mas agora sou uma agnóstica feliz, alguém que se sente profundamente segura de que o mundo tem um significado, é de certa maneira bom e que minha estada aqui tem uma finalidade, mesmo que eu não saiba qual. Quanto à oração, uma oração significa tudo o que você desejar: é um ritual interior. O que esta significa para mim é uma boa intenção: viver cada momento como Eunice teria vivido, vive, serenamente, feliz e sem se preocupar com coisas futuras, inclusive a morte. Jake, você disse que continuava preocupado com Parkinson.

— Mais ou menos. Como advogado, não vejo de que maneira ele pode se meter outra vez. Mas como um rábula de coração — não me repita! — que tomou parte em muitos acordos por trás do pano, sei que até o Supremo Tribunal tem como juizes homens e não anjos. Eunice, há cinco homens honestos naquele tribunal... e quatro dos quais eu não compraria nem um carro usado. Mas dos honestos, um está senil. Veremos o que podemos fazer.

— Pois veremos, Jake. Mas não perca tempo com Parkinson. O pior que ele pode me fazer é me despojar de dinheiro. Coisa que não me importa. Descobri que mais dinheiro do que se necessita para as despesas correntes é um ônus. Jake, consegui guardar tanto dinheiro, do qual você nunca ouviu falar, que nunca passarei fome. Parky não porá as mãos nele. Quanto ao próprio Parky, varri-o do meu universo e sugiro que você faça o mesmo. Está condenado pelo seu próprio Q.I. Que a natureza se ocupe dele.

Salomon riu.

— Está bem, tentarei.

— E agora você vai fazer o que acha que precisa e esquecer que eu o quis seduzir para que me levasse a uma boate apinhada. (Gêmeo, está desistindo muito depressa) (Quem está desistindo?)

— Eunice, se você realmente quer ir...

— Não, não, Jake! Você não tem vontade. Enquanto você estiver em WashingtOh, provarei as delícias desta aldeia decadente, mas prometo-lhe que estarei bem protegida. Provavelmente Shorty. Ele apavora as pessoas só com o tamanho. Nem irei sozinha. Alec me disse que ele e Mac não têm muita dificuldade em fugir das rédeas e Winnie pode ser a quarta.

— Eunice.

— Diga, querido?

— Me sinto no inferno sendo posto de lado por esses dois lobos.

— Ora, Jake, você está com ciúmes!

— Não. Deus me proteja de cair vítima desse vício masoquista. Mas

se quiser ver o lado interno deste formigueiro, descobrirei onde as coisas acontecem e levarei você lá. Vista-se para isso, garota... vou espanar as traças da minha roupa de beber. Traje a rigor, quero dizer.

— Seios nus? (Você teria feito melhor, gatinha?) (Pegue o ca-chorro-quente, gêmeo. Ganhou)

— Bom demais para o zé-povinho, a menos que você pretenda usar uma pintura espessa, além <v um monte daqueles troços brilhantes.

— Farei com que se orgulb de mim, querido. Mas quer tirar uma soneca? Por favor.

— Uma grande soneca imediatamente e jantar no meu quarto. A hora H será às vinte e duas. Esteja pronta ou iremos sem você.

— Morro de medo. Quer ajuda para dormir? Eu? Winnie? Ou ambas?

— Não, aprendi como fazer sozinho. Perfeitamente. Embora admita que é muito mais divertido com duas lindas garotas salmodiando comigo. Vá você dormir. Posso conservá-la acordada a noite toda.

— Sim, senhor.

— E agora, se me dá licença... — Mr. Salomon levantou-se, inclinou sobre a mão dela, beijando-a. — Adios.

— Volte aqui e me beije direito!

Ele deu-lhe uma olhada por cima do ombro.

— Logo mais, minha querida. Não é do meu feitio deixar as mulheres ficarem voluntariosas.

Saiu.

(Quem venceu este assalto, patrão?) (Jake pensa que foi ele, Eunice... e você me diga de que maneira) (Está aprendendo, gêmeo, está aprendendo)

Lancharam na sala de estar de Joan. Ela se encaminhou para seu boudoir, sentou-se na estenomesa para telefonar... preferindo este ao visiofone, porque seu aparelho não tinha visor. Usou-o com silenciador e auriculares.

Obteve logo a ligação:

— Consultório do Dr. Garcia.

— Aqui é a secretária de Mrs. Mclnryre. O doutor está e, em caso afirmativo, pode dispor de um momento para falar com Mrs. Mclntyre?

— Um instante, por favor. Vou perguntar.

Joan, que passara o tempo recitando sua oração de meditação, estava calma quando ele atendeu:

— Doutor Garcia no aparelho.

— Sou a secretária de Mrs. Mclntyre, doutor... posso falar sem perigo?

— Claro, Eunice.

— Querido Roberto, tem novidades para mim?

— «Os gregos capturaram Atenas».

— Oh! Tem certeza?

— Nenhuma dúvida, Eunice. Mas não fique em pânico. Pode ver imediatamente um fazedor de anjos, sem que seu anonimato seja violado. Vou lhe arranjar o Dr. Kystra, o melhor homem possível e inteiramente de confiança. Serei assistente dele. Não haverá sequer uma enfermeira presente.

— Oh, Roberto, não, não e não! Você não compreende, querido: vou ter essa criança, nem que seja meu último ato. Você me fez ficar felicíssima. (Agora temos realmente algo para comemorar, patrão-zinho. Mas não conte a Jake, hem?) (A ninguém, imagina! Quando nossa barriga vai inchar?) (Não antes de semanas, se você não comer como um porco) (Quero conservas e sorvete de creme agora mesmo) (Essa não)

O médico respondeu pausadamente:

— Entendi às avessas. Mas você parecia tão nervosa quando colhi o material.

— Claro que eu estava, querido. Estava com um medo louco de não ter sido fecundada.

— Hum... Eunice, não posso evitar de me sentir pessoalmente responsável. Sei que você é rica... mas um contrato de casamento pode excluir toda a possibilidade de um «caça-dotes» e... bem, estou disponível.

— Roberto, acho que foi o mais gostoso — e rude — pedido que uma puta grávida já recebeu. Obrigada, querido, fiquei comovida. Mas, como você falou, tenho dinheiro e não me importo com o que os vizinhos pensam.

— Eunice, não estou apenas assumindo minha responsabilidade.... quero que saiba que não olho casar com você como uma obrigação.

— Querido Roberto, a responsabilidade não é sua. Como você sabe, tenho sido a namorada do regimento. (Bem que tentamos, hem, gêmeo!) (Não me cutuque, querida. Ele quer ser nobre) A criança é minha. Quem colaborou é problema meu.

— Desculpe.

— Quero dizer que você não precisa sentir nenhuma responsabilidade. Se quiser me ajudar, ficarei grata. Serei grata, mesmo que não me ajude. Roberto? Em vez de querer fazer de mim uma mulher casada — o que é difícil — porque não retira aquele implante da linda coxa de Winnie e lhe coloca uma outra espécie de implante que lhe fará mais bem... e depois transforme-a numa mulher casada. É muito mais fácil, pois ela está inclinada.

— É uma idéia. Na verdade, é uma idéia que venho considerando bastante, ultimamente. Porém, ela não quer deixar sua casa.

— E nem precisa. Oh, ela pode parar de fingir ser minha aia. Este velho celeiro é enorme e tem inúmeras suítes vazias. Se você a engravidar, ela e eu poderemos curtir juntas e ter nossos filhos quase ao mesmo tempo. Eu devia me calar e deixar de querer organizar sua vida. Duas perguntas: planejei sair hoje à noite para comemorar as boas-novas que eu esperava ouvir da sua boca. Agora só devo tomar bebidas fracas?

— Nada disso. Breve lhe faremos uma dieta e limitaremos as bebidas. Mas esta noite você pode ficar de porre e o único efeito será uma ressaca. Você não perderá a criança com essa facilidade... como milhões de mulheres aprenderam.

— Talvez eu não fique de porre, mas vou emborcar vários copos de champanha. Última pergunta: se pode encerrar o atendimento e não lhe atrapalhar perder uma noite de sono, quer me ajudar a comemorar? Oficialmente, é para comemorar a vitória no tribunal. Esse «Os gregos capturaram Atenas» deve continuar em segredo ainda algum tempo.

— Hum...

— Você parece preocupado, querido.

— Bem, para ser sincero, tenho um encontro com Winnie.

— Oh, me exprimi mal. Tenho um encontro com Jake. Espero que você e Winnie completem o quarteto. Não estou lhe pedindo para passar a noite comigo naquele sentido... embora eu certamente não recusasse se a coisa pudesse ser feita sem magoar a nossa Simpática. Os momentos que você e eu pudemos roubar, foram muito breves, querido. Acho que você é um homem que pode ser agradável de se ter com calma.

— Tenho a certeza de que você é uma mulher assim, Eunice.

— Dê o fora! Você diz isso a todas as suas clientes. Doutor, o senhor é um conquistador delicioso. Quer esperar dez minutos antes de telefonar para Winnie? Tenho de pedir um favor a ela.

— Dez minutos.

— Obrigada, Roberto. Fim. Joan ligou o intercom.

— Winnie? Você está ocupada, querida?

— Apenas lendo. Já estou indo.

Joan foi encontrá-la na porta que ligava seus quartos.

— É uma coisinha à toa, amor. Quero que chame O'Neil e lhe diga que preciso falar com Finchley. Na minha sala de estar. Lógico, posso ligar para O'Neil, querida, mas quero que a coisa pareça mais formal.

— Claro, Joanie. Devo ficar e servir de companhia?

— Simpática, você sabe danadamente bem que o que eu sempre quis foi falsa companhia... e às vezes um apoio. Desta vez não preciso de apoio... mas quero perguntar a Finchley uma coisa em particular e ele falará mais livremente se não houver ninguém por perto. Portanto, leve-o à minha sala de espera, venha me dizer que ele chegou e não volte. Vá para seu próprio quarto e feche a porta. Fique por lá... você vai receber um telefonema daqui a oito minutos.

— Vou?

— Vai e um muito agradável. Você, eu, Jake e o Dr. Garcia vamos farrear esta noite nas boates.

— Oh!

— E quando viermos para casa, conserve-o aqui o resto da noite e darei um jeito de Jake não perceber. Ou ele sabe quem é «Bob»?

— Hum... ele sabe. Eu lhe disse.

— Jake ainda pode servir de cobertura para o querido doutor. Os homens são tímidos. Agora corra, querida, e telefone para O'Neil.

Quatro minutos depois, Winnie anunciou Finchley e saiu da sala de estar. O homem disse:

— Mandou me chamar, miss?

— Tom, o Gato, estas portas são à prova de som. Pode deixar de ser formal.

Ele ficou um pouquinho mais à vontade.

— Tá legal, gatinha.

— Então nos de um beijo e sente. Aquela porta do corredor fecha automaticamente. Winnie é a única que pode entrar e não o fará.

— Gatinha, às vezes você me deixa nervoso.

— Oh, bobagem. — Atirou-se nos braços dele. — Quero lhe perguntar uma coisa... ou melhor, preciso de um conselho. Pode conversar com O'Neil e pedir a opinião dele e também dos guardas. Mas o conselho que eu quero é o seu. O resto é para disfarçar.

— Mulher, pare de falar e me dê sua boca.

Joan obedeceu, através de um longo beijo. Imediatamente ele disse, ofegante:

— Você não tem quase nada debaixo disto.

— Não tenho nada. Mas não me distraia, Thomas Cattus. Me deixe fazer a pergunta. Vou a uma boate esta noite. Jake e eu, Winnie e o Dr. Garcia. Vão querer nos levar a lugares caretas. Quero ver os da pesada. Imagino que você sabe onde ficam.

— Hummm... Eunice, os jóia ficam todos na zona perigosa.

— Bem, não são seguros depois que a gente entra? E pode-se entrar sem perigo?

— Hum... há um com estacionamento interno e portas blindadas tão boas quanto as suas. Olhe, trarei uma lista com endereços, etc., e as sugestões de todos. Mas porei uma estrela na minha.

— Ótimo. Obrigada, Tom, o Gato.

— Meu Deus, você está ótima. Temos tempo? Posso trancar aquela outra porta?

— Se não estou preocupada com Winnie, por que você há de estar? Apanhe um travesseiro e me deite no chão.

 

O grupo marcou encontro na sala de estar de Joan. Jake Salomon resolveu se vestir da maneira mais ultraconvencional: smoking marrom e gravata borboleta branca. A malha de seda fazia realçar esplendidamente o colar com a ankh de ouro. O Dr. Garcia estava igualmente formal, à maneira moderna: calças vermelhas, audaciosamente acolchoadas, paletó cintado branco prateado, com peitinho de pérolas e gravata preta. A pequena Winifred vestia sua nova roupa de esmeralda com saia comprida... sem pintura no corpo, como Joan aconselhara, mas com o rubor provocando constantes mudanças na cor da sua pele, que iam de extremamente clara ao rosado-vivo. Na testa, no lugar do sinal de indicação de casta, havia uma esmeralda solitária.

Jake olhou-a.

— Coisinha, o que é que mantém a pedra no lugar? Seguro? Ruborizou-se novamente, mas respondeu com malícia:

— Tem um parafuso, senhor. Devo desatarraxá-lo e mostrar-lhe?

— Não. Temo que esteja falando a verdade.

— Nunca em sociedade, senhor. Na verdade, é o adesivo que usamos em curativos. Não sai nem com água e sabão. Só o álcool o tira.

— Então tenha cuidado para não cuspir sua bebida para o alto.

— Oh, eu não bebo, doutor. Aprendi minha lição há muito tempo. Andei bebendo cuba-libre sem «libre» e crushoff * sem crush.

 

* Vodka, Crush e gelo (N. do T.).

 

— Doutor, vamos deixá-la em casa. Ela é apenas uma dama-de-companhia.

— Quer que eu fique em casa, conselheiro? Apenas por não beber?

— Apenas por me chamar de «conselheiro», se o fizer novamente. E por me dizer «senhor». Winifred, homens da minha idade não gostam de ser lembrados disso por mocinhas bonitas. Depois do crepúsculo, meu nome é Jake.

— Está bem, conselheiro — respondeu Winifred, com meiguice. Jake suspirou.

— Doutor, um dia espero ganhar uma discussão com uma mulher.

— Se conseguir, conte ao Dr. Rosenthal. Rosy está escrevendo um livro sobre a diferença dos processos mentais entre o homem e a mulher.

— Um sonhador. Eunice, essa coisa cobrirá você melhor quando se levantar? E que é isso?

— Uma saia hula, Jake. E cobre.

Eunice estava usando uma saia comprida, com o busto coberto por uma miríade de estrelas cintilantes, cujo brilho diminuía gradualmente até chegar aos ombros e pescoço. A saia era composta de milhares de fios dourados de nylon colocados sobre outros tantos azul-marinho.

Quando se sentava, a massa de fios afastava-se das suas pernas graciosas. Agora estava de pé. Os fios voltaram ao lugar, formando uma cortina compacta.

— Viu, Jake? Uma saia dourada lisa. Mas quando me mexo — deu um passo — o azul interior aparece intermitentemente.

— Sim, e você também aparece. Calcinhas?

— Que pergunta grosseira! As polinésias nunca tinham ouvido falar em calcinhas até os missionários corrompê-las.

— Essa não é uma resposta satisfatória...

— Não tinha a intenção de ser.

— ... mas enquanto você ficar de pé, está bem.

— Sim, querido.

Joan Eunice colocou um yashmak opaco que combinava e deixou que Jake pusesse nos seus ombros um casaco para noite. Jake vestiu uma capa marrom com mangas e capuz, encobrindo seu nariz aquilino facilmente identificável. Ultimamente havia aparecido com muita freqüência no vídeo e achou que não tinha sentido esconder o rosto de Miss J.S.B. Smith deixando o seu a descoberto, o que revelaria a identidade dela. O médico usou uma capa idêntica, porém branca — pois lhe pediram que comparecesse fantasiado — e Winifred vestia um véu de harém verde transparente, que não passava de um símbolo, pois era do mesmo material da saia.

Assim que entraram no elevador, Joan disse:

— Aonde vamos, Jake?

— Mulher, você não devia perguntar. Ao Gaslight Club, para começar.

— O nome promete — concordou Joan. — Um pianista com ligas nas mangas e tudo o mais?

— E chapéu-melão e um charuto de imitação... pode cantar e tocar todas as composições de cem anos atrás. Ou fingir.

— Quero ouvi-lo. Mas, Jake, já que estamos comemorando minha identidade, quer ser bonzinho comigo?

— Quem sabe? Abra o jogo.

— Ouvi falar num clube... e enquanto você tirava uma soneca, telefonei para lá e reservei uma mesa para quatro a partir das vinte e duas e trinta. Gostaria de experimentá-lo.

— Winnie, você não a está educando direito. Eunice, não era de esperar que você tomasse essa decisão... cortando a grama sob meus pés desse jeito. Está bem, onde fica o troço? Como se chama? Iremos ao Gaslight mais tarde... há uma garçonete lá que dizem ter o traseiro mais bolinável da paróquia.

— Provavelmente de espuma de borracha. Winnie sabe diferençar. É o Pompeii-Hoje, Jake... Tenho o endereço na bolsa.

A sobrancelha de Mr. Salomon apareceu entre as dobras do capuz.

— Não precisamos dele, Eunice. A biboca fica na Área Abandonada.

— Que importância tem? Há estacionamento interno e me garantiram que estão blindados contra qualquer espécie de bomba nuclear.

— Assim mesmo, temos de entrar e sair.

— Oh, confio em Finchley e Shorty. Você não? (Gêmeo, que golpe baixo. É muito feio) (Irmãzona, quer ir ao Gaslight ouvir um mau piano e ver Jake beliscar traseiros? Se quer, diga) (Eu apenas disse que era feio) (Pois responda a ele da próxima vez. Jake é uma dureza)

— Joan Eunice, quando saio à noite com uma dama, levo-a no meu carro e não no dela.

— Está bem, Jake. Eu só queria colaborar. Perguntei a Finchley e ele me disse que há uma estrada aqui que — como se chama? — a Organização... mantém livre. Não tenho dúvidas de que Finchley pode explicar a Rockford.

— Eu a chamo de Máfia. Se houver um caminho sem perigo, Rockford deve conhecê-lo. É o melhor motorista da cidade. Tem mais experiência que os seus porque dirige mais.

— Jake, você não quer ir lá. Portanto, vamos ao Gaslight. Quem sabe consigo espetar um alfinete naquele traseiro de borracha?

Foram ao Pompeii-Hoje.

Não houve dificuldade para entrar e o clube tinha uma sala de jogo para os guarda-costas dos patrões. O maître d'hôtel levou-os a uma mesa de pista em frente da orquestra e retirou o aviso de «Reservada» que havia nela.

— Esta lhe agrada, Mr. «Jones»?

— Sim, obrigado — respondeu Salomon.

Logo que eles sentaram, trouxeram dois baldes de prata com garrafas de champanha. O maître d'hôtel tirou das mãos do sommelier um magnum e mostrou-o a Salomon, que disse:

— Esse aí foi um ano fraco para o Pol Roger. Tem Dom Pérignon 95?

— Imediatamente, senhor.

O sommelier saiu apressado. O maître d'hôtel perguntou:

— Há algo mais que não esteja a seu gosto, senhor? Joan Eunice inclinou-se para Jake.

— Por favor, diga-lhe que não gosto desta cadeira. Foi desenhada por Torquemada. *

 

* Tomás de Torquemada (14207-1498), grande inquisidor espanhol, um dos mais sofisticados torturadores que a história conhece (N. do T.).

 

O encarregado do salão ficou aborrecido.

— Lamento que madame pense assim de nossas cadeiras. Elas nos foram vendidas pela fornecedora de móveis número um para hotéis e restaurantes.

— Pode ser que sim — respondeu Joan —, mas se o senhor pensa que vou passar a noite inteira empoleirada numa lança e fingir que é divertido, está muito enganado. Jake, devíamos ter ido ao Gaslight.

— Talvez. Mas agora estamos aqui. Um momento, querida. Maître d'hotel...

— Sim, senhor?

— Sem dúvida há aqui um escritório.

— Há, sim senhor.

— Com uma escrivaninha e uma cadeira. Provavelmente uma acolchoada, giratória, de braços, e espaldar ajustável. Um homem que fica de pé o tempo que o senhor fica, necessita de uma cadeira confortável quando descansa.

— Tenho essa cadeira, senhor e — embora não seja adequada para uma sala de jantar — madame poderá usá-la se quiser. Vou mandá-la.

— Um momento. Num clube com tantas atividades — o senhor tem salão de jogos e outras coisas, não? — tenho a certeza de que é possível reunir um certo número dessas cadeiras.

— Hum, vou tentar, senhor. Embora os outros freqüentadores possam achar estranho que forneçamos cadeiras especiais a esta mesa.

Mr. Salomon olhou em volta. O local tinha menos de meia casa cheia.

— Oh, penso que se o senhor explicar a quem reclamar como é caro esse serviço especial, ele certamente não vai querê-lo. Ou poderá dar um jeito de acomodá-lo, também, se estiver disposto a pagar. Acho que aqueles guardas disfarçados de garçons que estão de pé junto às paredes da sala poderão cuidar dos recalcitrantes.

— Todo o nosso pessoal é de guardas, senhor... disposto a tudo. Muito bem, senhor, se puder esperar alguns instantes, seu grupo terá cadeiras de escritório.

Distribuiu rapidamente a carta dos vinhos e a das drogas e saiu. Roberto e Winifred já estavam dançando. Joan tornou a se inclinar para Jake e disse:

— Jake, quer comprar este local para mim?

— Gosta tanto dele assim?

— Não. Quero fazer uma fogueira com essas cadeiras. Eu havia esquecido as indignidades que as boates esperam que os fregueses aceitem.

— Você é louca.

— Pretendo ser. Jake, a maior parte das coisas erradas deste mundo poderiam ser endireitadas se os clientes gritassem cada vez que se sentissem roubados. Mas não saí para reformar o mundo hoje. Quero apenas uma cadeira confortável. O couvert — verifiquei quando fiz as reservas para «Mr. Jones» — é bastante alto para comprar uma cadeira decente. Quais são essas «tantas atividades»? Um prostíbulo lá em cima, talvez?

— Eunice, está vendo aquelas três mesas de elegantes naquele canto? Homens e mulheres atraentes, todos jovens, todos sorridentes, sem testas franzidas, cada um com uma taça de champanha que poderá conter Ginger-Ale? Há grandes probabilidades de que, ia que os gregos têm um nome para aquilo, eles tenham um preço também para aquilo.

— Ora, uma das moças não parece ter mais de doze anos.

— Talvez nem isso. Quem vai verificar idades numa Área Abandonada? Pensei que você não ia reformar o mundo esta noite, minha querida...

— E não vou. Se o governo não pode policiar estas áreas, muito menos eu. Mas detesto ver crianças exploradas. (Gêmeo, aquela criança linda pode ter um Q.I. de oitenta e nenhuma outra profissão possível... pode até pensar que tem sorte. Orgulho do seu trabalho. E considerando onde está, pode ser que tenha um implante ou uma ligação de trompas... não como aquela chefe de torcida de que lhe falei) (Eunice, isso não a aborrece?) (Um tanto cumpincha, mas só um tanto. As pessoas em geral são o que são porque lhes interessa... aprendi isso com Joe. A mãe da menina pode ser uma das outras belezas na mesa... as duas juntas farão de você um cadáver. Quer salvar ambas?) (Oh, cale-se, querida. Vamos nos divertir) (É o que desejo)

Uma garçonete veio e tornou a encher os copos. Era bonita e estava vestida de sandálias, cosméticos e uma cuidadosa depilação. Sorriu e retirou-se.

— Jake, esta é uma delas?

— Não posso dizer, não conheço as normas da casa. Chocada, Eunice? Disse-lhe para não vir aqui.

— Chocada com pele? Querido Jake, esqueceu que minha geração nada tem contra a nudez.

— Hrrrmf! Mais um comentário igual a este e chamarei você de «Johann» o resto da noite.

— Serei boazinha. Em geral. Querido, nossa garçonete me fez lembrar de repente do Chesterfield Club. Kansas City, nos dias de domínio da máquina Pendergast. Novecentos e trinta e quatro.

— Em novecentos e trinta e quatro, eu mal tinha saído dos cueiros, Eunice. Era parecido com hoje?

— Sem tanta pompa falsa e com preços mais baixos, mesmo considerando a inflação. Mas por outro lado, quase igual. Era especializado em nudez completa, mesmo ao meio-dia, no «Almoço dos Comerciantes». Na mesma rua do Banco Federal de Reserva. Jake, ela está voltando. Descubra para mim.

— Como? Nem tenho um pretexto para gratificá-la.

— Simplesmente perguntando, querido, perguntando a ela se está disponível. E ao mesmo tempo dê-lhe dez dólares. Ela não ficará zangada. A garçonete chegou sorrindo e disse:

— Já escolheram na lista das drogas? Temos todas as drogas ilegais, ao preço internacional de tabelado, mais vinte e cinco por cento. Garantidamente puras, nós as conseguimos de fontes governamentais.

— Eu não quero, obrigado, querida. E você, Eunice? Uma viagem?

— Eu? Não tomo nem aspirina. Mas quero novo suprimento de champanha. E gostaria de comer um sanduíche ou coisa assim, Chiquita. Vocês têm cozinha?

— Há sempre um chef gourmet de serviço, madame. Está escrito no rodapé da carta de vinhos. Tudo, desde tira-gosto até lagostas do Maine. Quer ver um cardápio?

— Não, obrigada. Prefiro uma enorme bandeja de pequenos sanduíches para todos nós, Jake. E não esqueça o outro assunto.

Joan Eunice viu Jake sacar uma nota de dez dólares, que desapareceu, fazendo Joan supor que a moça devia tê-la dobrado com uma das mãos e empalmado. Jake falou com ela num tom mais baixo que o da música.

Ela sorriu e respondeu alto:

— Não, senhor, não me permitem nem mesmo dançar com os fregueses... e não estou nesse ramo do negócio. Sou casada. Mas posso dar um jeito. — A garçonete deu uma olhada nos «elegantes» e tornou a encará-lo. — Para o senhor? Ou para ambos?

— Para nenhum — respondeu Jake. — Foi só curiosidade.

— Curiosidade minha — acrescentou Joan. — Desculpe, querida. Eu não devia ter pedido a ele que lhe perguntasse.

— Madame, um caixa-alta pode fazer quantas perguntas quiser. As crianças precisam de sapatos. — Sorriu. — Gêmeos. Meninos. Dois anos de idade. Fui licenciada para ter dois e agora estou discutindo com a Junta se gêmeos preenchem minha licença. Antigamente gêmeos eram considerados como licença para um filho. Também quero ter uma menina.

— Jake, seja um caixa-alta outra vez. Quero fazer... — Joan inclinou-se para a frente e leu o nome da moça, tatuado acima do seio esquerdo — outra pergunta a Marie.

— Ele, na verdade, pagou por mais de uma pergunta, madame. Mas uma segunda nota desapareceu tão rapidamente quanto a primeira.

— Marie, você mora dentro da zona controlada pelos delinqüentes juvenis? Com filhos?

— Oh, meu Deus, não! Meu marido nunca permitiria. Um ônibus blindado e armado me apanha depois da ceia e me leva para casa a tempo de tomar café. A maioria de nós o utiliza. Exceto... — Indicou a exceção fazendo um meneio de cabeça em direção ao canto. — Meu marido trabalha de noite em Timken... nós combinamos muito bem.

— Quem cuida dos seus gêmeos de noite? Um berçário?

— Oh, não. Mamãe mora conosco. Não há problemas. Realmente,

madame, este é um bom emprego. Fui garçonete em lugares onde tinha de usar uniforme... o trabalho era pesado e as gorjetas pequenas. Aqui o trabalho é mole e as gorjetas são habitualmente altas. Oh, às vezes um freguês fica bêbado e bolinador, mas não me ofendo facilmente... além disso, os bêbados são freqüentemente os que dão melhores gorjetas. Nunca tive problemas. Os guardas estão sempre de olho.

— Sorriu para Joan. — A senhora poderia ter um emprego aqui num

piscar de olhos, madame. Basta ter maneiras simpáticas e bom aspecto... e a senhora tem os dois.

— Obrigada, Marie.

— Preciso ir. O maître está levando um grupo para outra das minhas mesas. Licença, por favor... os sanduíches já virão.

A moça foi embora. Joan disse:

— Jake, você diria que ela achou seu lugar?

— Está parecendo. Enquanto mantiver a aparência e economizar dinheiro. Ela não contará tempo aqui para a Previdência Social. Este trabalho não é cadastrado, está fora dos esquemas.

— Ela não paga imposto de renda?

— Oh, claro! O fato da sua renda não existir legalmente nada significa para os fiscais. Embora ela possa escamotear uma boa parte... espero. Minha querida, vamos experimentar esta música?

— Jake, pensei que você não dançasse.

— Não danço este troço moderno, mas posso tentar se você quiser. Será que esse conjunto toca rock? Este troço moderno tem tão pouco ritmo que não sei como podem chamá-lo de música para dançar.

Joan deu uma gargalhada.

— Sou tão mais velha que desprezo o rock em vez de gostar dele. No meu tempo era o swing, Jake, e mais remotamente era o bunny hug... embora eu não tenha aprendido a dançar até que o fox-trot suplantasse todos.

— Posso dançar o fox-trot, pois não sou tão moço assim. Mas duvido que esse bando de harpistas desafinados possam tocar um. Eunice, você dança tango?

— Me tire, me tire! Aprendi quando Irene Castle ainda estava viva... e com este corpo sou oito vezes melhor do que era. Andei ensinando a Winnie. Você guia com firmeza?

— Com a suficiente para você, meretriz. Vou chamar o maître... talvez eles possam tocar um. É o único tempo musical que permaneceu imune à moda.

— Claro, Jake. Porque o tango, quando dançado corretamente, é tão sexy que você tem de se casar depois. Veja se eles podem tocar um.

Mas foram interrompidos por quatro ajudantes de garçom, que traziam quatro cadeiras giratórias e Joan achou que seria cortês sentar um pouco nelas, já que havia feito toda a onda. Os sanduíches chegaram com mais champanha e ela descobriu que queria ambos: a bebida para ficar tocada e os sanduíches para forrar o estômago, de maneira a não ficar tocada depressa demais. Roberto e Winifred voltaram para a mesa. Winnie disse:

— Oh, comida! Adeus esbelteza! Bob, você me amará quando eu estiver gorda?

— Quem sabe? Vamos esperar para ver — respondeu, estendendo a mão direita para pegar um sanduíche e a outra para o champanha.

— Simpática, jogue a Coca no balde do vinho e tome champanha.

— Joanie, sabe que eu não devo. É a minha diferença.

— Mas desta vez há comida para garantir... e não são as mesmas circunstâncias.

Winifred corou.

— Vou ficar bêbada. E boba.

— Roberto, quer prometer a esta pobre criança que, se ela desmaiar, você a levará para casa sã e salva? (Que é que tem a casa de segura, gêmeo? Você tem de agüentar a mão) (Bobagem, Eunice! Nosso homem não quer casar conosco... por isso, que quer que eu faça? Não me entrego a homens a quem não respeito e levei anos para me decidir. Tenho quase noventa e cinco anos... tarimbados... saudáveis... não posso magoar ninguém fisicamente e não quero ofender ninguém socialmente... tanto o orgulho como outra coisa de um homem. Por que não posso ser «Smith Sem Calças»?) («Penso que a dama está protestando demais». Patrão, sua formação religiosa está fazendo com que se irrite outra vez. Certamente que o sexo não é pecado... mas o senhor no fundo não acredita nisso) (Acredito! Sempre acreditei. Tenho me portado com bastante assanhamento para fazer você feliz. Por que fica me atazanando?) (Amado patrão. O senhor tem demonstrado um incrível talento para fazer malabarismos com ovos, tenho me divertido à grande e espero que o senhor também) (Você sabe que tenho. Tanto que temo estar perdendo meu senso crítico. Minha cautela, aliás. Eunice, nunca sonhei o quanto mais pode significar ser mulher. É o nosso corpo inteiro)

A sala agora estava apinhada. As luzes mudaram e o show no palco começou: dois cômicos. Joan ouvia, fingia estar gostando e procurava se divertir tentando lembrar havia quanto tempo ouvira cada

«nova» piada daquelas. Só pôde perceber uma melhora no ato: a história «suja» da juventude dela (dele) havia sumido. Sendo baseada no choque produzido pela quebra de tabus, a história suja sangrara até morrer quando os tabus deixaram de existir. Era sexo humorístico: os cômicos o usavam à vontade. O sexo permanecia eternamente a coisa mais cômica num globo cansado. Mas era difícil extrair uma boa piada do que antigamente fora apenas para chocar.

Joan porém aplaudiu os cômicos quando eles saíram. As luzes se apagaram e o chão da pista de danças transformou-se imediatamente num pátio de fazenda. Ela ficou mais interessada tentando adivinhar a técnica daquela «mágica» do que ficara com os cômicos.

O pátio de fazenda estava sendo usado para uma das mais antigas (possivelmente a mais antiga, pensou) de todas as histórias a respeito de sexo e estava sendo representada de maneira estilizada, com símbolos muito antigos, tanto nas roupas como nos acessórios: o fazendeiro, a filha do fazendeiro e o malandro da cidade, com suas notas de cem dólares. Era uma pantomima, com acompanhamento orquestral.

Joan murmurou para Jake:

— Se ela é filha de fazendeiro, sou Adolf Hitler.

— Que sabe você de fazendas, minha querida?

— Muito, para um garoto da cidade. Quando era criança, passei em uma quase todos os verões. Quando fui para a escola e para a universidade, participei de colheitas: ganhei um bom dinheiro e, de vez em quando, uma garota da fazenda. No fundo do coração, sempre fui camponês... queria ter o maior monte de bosta do vale... e consegui, só que virou dinheiro. Jake? Não podemos comprar uma fazenda abandonada? Um lugarzinho pacato, com ponte levadiça e fosso, com usina de força e água próprias? Sair desta cidade moribunda?

— Se quiser, querida. Está se aborrecendo aqui? Quer ir embora?

— Não no meio do ato, querido. (Estou curioso de ver como se desenrola a tapeação) (Eu também!)

Para surpresa dela, os artistas não tapearam. O dinheiro levou a «menina da fazenda» de ofendida a pudica, de pudica a concordante, de concordante a uma colaboração ativa, tendo um monte de feno como local do sacrifício. E o ator e a atriz trataram de fazer com que os espectadores pudessem ver que não havia tapeação. Winifred ficou ruborizada até os seios mas não tirou os olhos de lá.

O final teve uma variação que Joan-Johann concordou que era nova para ela-ele. À medida em que os movimentos aumentavam vigorosamente e a orquestra fazia pausas para que se ouvissem guinchos e grunhidos, o «Fazendeiro» apareceu (como era esperado) com um forcado. Mas o feno pegou fogo, aparentemente por causa da ação, fazendo com que o «Fazendeiro» largasse seu forcado e pegasse uma garrafa de soda, convenientemente à mão sobre uma mesa vazia, e inundasse sua «Filha» e o «Malandro da Cidade» com o jorro, apagando o fogo... Mirou primeiro na aparente fonte do incêndio.

Joan achou que valia a pena aplaudir. Winifred, hesitante, imitou-a, mas passou a bater palmas entusiasmada quando Roberto o fez. Jake acompanhou-os, mas foi interrompido.

— O que é, Rockford?

Joan virou a cabeça, surpresa. O motorista-guarda-costas de Jake parecia muito perturbado.

— Mr. Salomon, preciso falar com o senhor.

— Já está, continue.

— Hum... — Rockford procurou falar só para o patrão, mas Joan leu seus lábios. — Aquele maluco do Charlie deu um jeito de ser morto.

— Oh, pelo amor de Deus! Onde? Como?

— Agora mesmo. Na sala de estar dos guardas. Não estava bêbado. Este boteco é duro, não deixam os guardas beber. Estávamos jogando pôquer e Charlie ficou atazanando um tal Polack. Sem razão e eu lhe disse que parasse. Mas Charlie não ligou. Polack ficou furioso, porém tentou evitar a luta. Charlie continuou enchendo o cara e... oh, que inferno: Polack quebrou o pescoço dele. Antes que eu pudesse passar para o outro lado da mesa. — Rockford acrescentou: — Patrão? Considerando onde estávamos, eu poderia ter dado sumiço nele. Teria sido melhor?

— Claro que não. Tenho de comunicar o fato e o corpo deve ser mandado para o necrotério. Que inferno, Rocky, eu era o responsável pelo livramento condicional dele.

— Sim, mas talvez o senhor não tivesse sabido? Ele fugiu. Caiu fora.

— Cale-se. — Salomon virou-se para Joan. — Minha querida, lamento muito.

— Jake, eu nunca deveria ter pedido para você me trazer numa A.A.

-—Não tem nada uma coisa com a outra. Charlie era um assassino congênito. Rockford, chame o maître. Não, me leve ao gerente. Amigos — Bob, Winnie — esperem aqui, por favor. Tenho de cuidar de algo.

Garcia disse:

— Percebi a maior parte da conversa. Leve-me com você, Jake. Posso atestar o óbito... é inteligente fazer isso logo.

— Hum... quem ficará com as moças? Joan segurou o braço de Jake.

— Jake, Winnie e eu estamos a salvo... há montes de guardas. Acho que vamos ao toalete. Eu preciso e Winnie provavelmente também. Vamos, Winnie?

A festa acabou mas passaram-se duas horas antes de poderem voltar para casa. Havia detalhes demais, aborrecidos mais que legalmente complicados, pois o Dr. Garcia atestara o óbito e o gerente, Mr. Salomon e Rockford testemunharam que a morte ocorrera numa Área Abandonada nas mãos de pessoa ou pessoas desconhecidas. Desconhecidas mesmo, pois a sala de jogo estava vazia, a não ser pelo corpo. Não havia dúvidas na sindicância: acontecera numa Área Abandonada e não fora um crime de fato nem em qualquer sentido prático de júri. Ninguém lamentou. Mesmo Rockford não gostava do seu companheiro de trabalho. Simplesmente respeitava-o, como um gatilho ligeiro num aperto. Para Garcia, Jake resmungou que deveria saber muito bem que era impossível tentar reabilitar um congênito... e não ter pena, pois, como Garcia acreditava, tais criaturas deveriam ser exterminadas tão logo fossem identificadas.

Ambos procuraram ocultar os aspectos desagradáveis às moças.

Winifred e Joan ficaram uma hora sozinhas na mesa, bebericando champanha e fingindo estarem se divertindo, enquanto os homens resolviam o problema. Mas Joan foi ajudada num ponto: o corpo devia ser enviado ao necrotério e Jake não estava disposto a entregar o trabalho ao gerente, pois tinha a certeza de que o atirariam fora. Nem estava disposto a mandar Rockford sem alguém para servir de guarda-costas. Assim, levaram um telefone para Joan, que chamou O'Neil. Este atendeu imediatamente e ela ficou imaginando se seu chefe de guardas costumava dormir.

Finchley e Shorty estavam de serviço. O'Neil informou que eles partiriam imediatamente. Mas Joan ordenou-lhes que primeiro apanhassem Fred, para servir de guarda-costas a Rockford. Pensou um pouco e disse a O'Neil para mandar o dispenseiro noturno colocar uma ceia fria e uma caixa de champanha gelada na sua sala de estar: a «noite de farra» transformara-se num fracasso. Queria se danar se deixasse as coisas ficarem assim. Charlie morto era muito melhor e seu assassinato não provocou nem uma lágrima de crocodilo. Dez mil seres humanos morreram em todo o globo na mesma hora que ele. Por que chorar por causa de um inútil? (Eunice, o que acontece com uma titica como Charlie depois da morte?) (Não sou autoridade no assunto, patrão. Talvez os maus morram definitivamente... como um oleiro destruindo um trabalho defeituoso. Pergunte na Administração)

(Não conheço o comprimento de onda de lá, querida. Talvez você possa me responder: como posso fazer esta festa ficar animada outra vez? Olhe Winnie: bebendo champanha, mas sem sorrir) (Patrãozinho, recomendo mais champanha e Money Hums, meio a meio) (Eunice, pensei que você fosse contra bebidas) (Eu nunca disse isso, patrão. Não bebo porque não preciso. Mas nada é bom ou mau em si mesmo, só os efeitos o são. Experimente. Mal não faz e pode ajudar)

Assim, quando os quatro finalmente chegaram à enorme e horrenda fortaleza, Eunice insistiu para que fossem até sua sala de estar para o drinque de despedida e uma boquinha.

— Quem sabe? Poderemos ter ainda vontade de dançar. Roberto, Winnie já lhe mostrou nossa prática de relax? O Money Hum?

— Tentei ensinar-lhe, Joanie. Mas Bob é um cínico incorrigível.

— Jake, vamos descinicar Roberto. Pensei numa forma nova de salmodiar. Sentamo-nos em círculo e passamos em volta uma taça. Três salmodiam enquanto um bebe e passa a taça ao seguinte.

— Voto Sim — respondeu Jake. — Doutor, se quiser ser cínico, seja sozinho: na minha suíte há uma cama para hóspedes. Nós faremos um triângulo.

— Acho melhor eu ficar para manter a festa em ordem.

— Muito bem, senhor. Mas, uma palavra imprópria enquanto estivermos fazendo nossas devoções e o senhor será punido severamente.

— De que maneira? Joan Eunice respondeu:

— Sendo obrigado a beber a taça toda sem ajuda, é claro, e então começar outra vez.

 

Joan Eunice acordou sentindo-se repousada mas sedenta. Olhou para o teto, viu que passara das dez e pensou em ligar as luzes do chão, como uma suave medida preliminar para acender as lâmpadas mais fortes.

Então percebeu que não estava só. Deveria acordar Jake suavemente... para lhe dar um alegre bom dia? Ou sair devagarinho da cama e voltar para seu quarto, esperando não ser vista? Ou isso teria importância? Já seria ela motivo de fofoca dentro da própria casa?

Fosse como fosse, o melhor seria não acordar Jake. O coitadinho estava pensando em viajar para Washington naquela noite. Começou a escorregar para fora da cama.

O homem ao lado dela estendeu um braço e puxou-a para ele. Ela cedeu imediatamente, tornando-se macia e desossada.

— Não sabia que você estava acordado, querido. Eu pensava em.., Roberto!

— Pensou que fosse o Papai Noel?

— Como veio parar aqui?

— Você me convidou.

— Eu? Bem, é verdade, convidei. Isto é, disse-lhe que era bem-vindo na minha cama, faz tempo. Mas onde está Jake? Foi dormir onde? E Winnie?

Acendeu as luzes do chão e viu que estava, como desconfiava, na sua própria cama.

— Winnie está no quarto ao lado, com Jake.

— Meu Deus, Roberto... finalmente passei uma noite com você. E não me lembro. (Eu lembro! Uau!) (Pois eu não, Eunice. Não em detalhes. Fiquei confuso) (O senhor é uma vagabundinha bêbada, patrão. Mas nos divertimos) (Tenho a certeza. Gostaria de poder lembrar)

O Dr. Garcia deu um suspiro.

— Ah. Bem, não devo me lamentar.

— Começo a me lembrar — mentiu ela. — Quando acordo fico

meio zonza. Você foi especialmente bondoso comigo.

— Você não pensou assim, quando não quis deixá-la vir para a cama pintada.

Joan aumentou a iluminação o suficiente para poder se ver. Notou que as estrelinhas tinham desaparecido, bem como a pintura corporal onde haviam sido coladas. Não as tirara pessoalmente. Logo, alguém o havia feito. Não fora Winnie... esta ficara bêbada como uma cabra.

— Foi a isso que quis me referir quando falei em «especialmente bondoso», Roberto. Não são muitos os homens que tomam tanto cuidado com uma prostituta bêbada. Dei muito trabalho?

— Na verdade não. Mas você estava bastante tocada.

— Muito?

— Muito não. Apenas agradavelmente.

— Não tenho certeza de estar entendendo e acho que não quero entender. Querido Roberto, mesmo que eu tenha ouriçado, obrigada por ter me limpado. Só uma vagabunda vai pintada para a cama. Sou uma puta, mas não quero ser vagabunda. (Oi, vagabunda!) E obrigada acima de tudo por uma noite maravilhosamente agradável. Espero não ter estado bêbada demais e também dado o mesmo a você.

— Eunice, você pode ser mais mulher fora de si que a maioria consciente.

— Que bom você ter dito «pode ser» em vez de «é». Mas, Roberto, estou inquieta. Não por nossa causa, querido, mas por Winnie. O que houve irá afetar aquela coisa que você estava imaginando? A respeito de Winnie, quero dizer.

— Pelo contrário, Eunice, a idéia foi de Winnie. A noção dela de como comemorar nosso noivado...

— Espere aí! Estou noiva de você?

— Hem? Não, não... estou noivo de Winnie.

— Oh. Roberto, eu casaria alegremente com você, você seria um bom esposo numero uno. Mas não preciso de um e Winnie precisa. Eu sabia disso na noite passada? A respeito de vocês dois?

— Acho que sim. Você disse que não podia esperar para tirar as estrelinhas... estava apressadíssima.

— Falou. Lembro ter ficado ansiosíssima, mas acho que estava muito bêbada para saber por quê. Roberto? Dei o serviço a respeito dos «gregos capturarem Atenas»?

— Acho que não, Eunice. Pelo menos, não quando eu estava presente. Tenho bastante certeza de que Winnie não sabe nada.

— Contarei a Winnie. Não quero é que Jake saiba.

— Eunice? Foi Jake? Capturou Atenas e o Partenon ao mesmo tempo.

— Lembre do Juramento Hipocrático, querido. A resposta pode ser partenogênese. Permita-me que deixe a coisa no ar um pouco mais. Você disse que foi idéia de Winnie? Depois de você lhe ter dito que queria casar com ela?

— Foi.

— Onde ela arranjou coragem para propor isso? Tenho insistido com ela... mas é tão incrivelmente tímida. Coragem alcoólica?

— Sim. Porém minha. Claro, ela é tímida... mas sob seus rubores, Winnie é tão calejada quanto uma enfermeira tem de ser. Ela disse: está bem... se eu a deixasse mostrar claramente que ela não é um anjo. Respondi que não tenho lugar para anjos, na cama ou fora dela. Winnie falou que esperava que eu estivesse sendo sincero, porque estava querendo propor a Jake dormir com ela.

— Roberto, perdi um monte de coisas. Quanto champanha bebi?

— Ninguém contou. Jake ficou abrindo garrafas e eu passando a taça em volta. Enquanto era recitada aquela melopéia. Você bebeu bastante. Todos nós, aliás.

— Hum... fiquei noiva de Jake?

— Não que eu saiba.

— Ótimo. Porque quando Jake souber que estou grávida, vai querer ser nobre. Exatamente como você, querido, mas Jake vai ser muito mais difícil. E descobri que não preciso de marido. E sim de amantes. Você. Jake. Winnie. Alguns outros. Gente que me ame como sou, com pés de barro e tudo... e não por causa de um contrato. Jake criou algum caso com relação às transas de dormir?

— Oh, para falar a verdade, acho que ninguém ficou aborrecido com a sugestão de Winnie. Jake botou Winnie debaixo do braço e disse que estava representando o Rapto das Sabinas.

— O queridinho infiel.

— Então eu peguei você, carreguei-a, lavei-a... Você berrou, protestou e me disse que aquela era a pior forma de cometer um estupro.

— Hummm, acho que eu tinha razão. «In vino veritas».

— Por isso vou pôr agora um travesseiro cobrindo seu rosto para que você não grite nem proteste.

— Você não precisa de travesseiro. Basta botar a mão na minha boca se eu fizer barulho. Mas todas essas portas são à prova de som.

— Você pensa que eu não sei? Depois de ter morado aqui por mais de um ano? Miss Johann Smith, conheço melhor sua casa que a senhora.

— Oh, seu bastardo! Me chame de Eunice. Ou ponha um travesseiro no meu rosto para que eu não possa ouvi-lo. Eu o amo, Roberto... fico tão feliz porque você vai casar com a nossa Simpática!

— Eu também, Eunice. Agora, cale a boca.

— Sim, meu senhor (Unh! Eunice, ninguém nunca me diz nada) (Cale a boca, gêmeo, e preste atenção ao que está fazendo!)

Joan Eunice alcançou o intercom ao lado da cama, bateu na tecla referente a Cunningham e depois pegou a mão de Roberto.

— Pronto, miss?

— Cunningham, quero café para quatro na minha sala de estar.

— Pois não, miss.

— Ou melhor, posto em minha sala de estar, com aquecedores e refrigeradores, sem garçom. Não tenho idéia da hora em que Mr. Salomon e o Dr. Garcia vão acordar, mas quero ser boa hospedeira e servi-los pessoalmente quando estiverem prontos. Porém Winnie e eu queremos comer.

Piscou para o médico e apertou a mão dele.

— Certamente, miss.

— Eles precisam dormir. Diga-me, Cunningham: você me conhece há muito tempo. Já se viu em alguma?

— Desculpe, miss?

— Uma farra, ficar tão alto que não consegue sentir o chão com os pés. Porre e bagunça.

— Algumas vezes — antigamente — me senti assim.

— Então faz uma idéia das delicadas condições em que estamos... pelo menos Winnie e eu. E tenho motivos para acreditar que os cavalheiros não estão em muito melhor situação. Mas foi uma excelente desculpa.

— Ouvi falar no incidente, miss. Lamento.

— Cunningham, não me referi a Charlie. Pode ser uma insensibilidade minha... mas foi um valentão que entrou numa briga e perdeu.

— Oh. Se me permite, miss, ele não era querido aqui embaixo. Hum, na verdade não gostávamos de tê-lo na casa.

— Eu sei. Eu teria dado um jeito nisso há muito tempo se ele não trabalhasse para Mr. Salomon... e devo muito a Mr. Salomon. Não, a «excelente desculpa» foi outra coisa. Estamos comemorando um noivado.

Cunningham perguntou, com precaução:

— Posso dar os parabéns, miss?

Pode, mas não a mim. O Dr. Garcia vai casar com Winifred.

— Oh! Magnífico, miss. Mas vamos perdê-la.

— Espero que isso não aconteça. Esta casa é enorme, Cunningham,

grande demais para uma só pessoa. Ou para duas, se Mr. Salomon puder ser persuadido a nos honrar com sua presença. Embora não imediatamente, devo dizer, ele tem medo de que eu seja atingida por fofocas.

— Hum, posso falar francamente, miss?

— Sempre que não o fizer, Cunningham, ficarei ofendida.

— Mr. Salomon é um cavalheiro educado. Mas se tem medo disso... bem, é uma bobagem. É tudo o que posso dizer. O pessoal da casa não fofoca pela presença dele. Os empregados o respeitam.

— Talvez você possa lhe dizer, pois não quer me ouvir. Mas hoje minha única preocupação é que ele durma o mais possível. Tem de ir a Washington esta noite, como você sabe. Quando trouxer o café, não passe pela porta dele. Venha pelo outro corredor. Não vai incomodar nem a mim nem a Winnie: já estamos acordadas. E faça com que Hubert não comece a amolar por lá até que Mr. Salomon o chame.

— Não irá, miss. Nunca vai.

— Costumava ir às vezes, na época em que cuidava de mim: fazia um barulhinho, quando pensava que eu estava de pé. Portanto, mantenha-o afastado deste andar. Conserve todos afastados até que eu o chame.. isso abrange as arrumadeiras e o resto. Com exceção, é claro, que eu quero que você traga o desjejum — com alguém para ajudar, se você precisar — imediatamente.

— Pois não, miss. Talvez café e suco já?

— Não, não queremos ser incomodadas duas vezes. Meus ouvidos estão doendo. Você encontrará as provas do desastre na minha sala de estar: uma caixa de magnus vazia. Leve-as... silenciosamente. Pelo amor de Deus, não bata umas nas outras. Nesta manhã posso ouvir uma formiga andar. Apanhou o lápis? Queremos um pequeno almoço simples e nutritivo. Pelo menos quatro xícaras de café para cada um, suco de laranja duplo, meias toranjas, as rosas ou as grandes Arizonas, ovos mexidos e escaldados, algumas salsichas e uns bifinhos. É melhor incluir queijos em pedaços e em fatias. Oh, torradas, sonhos, geléia, etc. Pão de forma. E um grande jarro de leite gelado para os cereais, pois acho que esta manhã pede cereais. Um cereal decente, silencioso, um cereal maduro que não estale, quebre ou exploda. Só isso. A menos que você conheça um remédio para ressaca.

— Bem, miss, quando eu trabalhava para Mr. Armbrust, antes de vir para cá, fazia uma mistura que ele apreciava muito.

— Qual?

— Silver fizz, miss, usando vodca em vez de gim.

— Cunningham, você é um gênio. Um para cada, com abundância, em copos térmicos. Em quanto tempo o desjejum estará pronto?

— Não antes de vinte minutos, miss, apesar de Delia já ter começado com as salsichas. Mas posso arranjar logo café e suco.

— Uma única viagem. Depois, cair fora de mansinho com pés de lã. Esta é uma zona hospitalar, Cunningham. Winnie e eu precisamos de pelo menos vinte minutos para meter para dentro nossos globos oculares, que estão fora das órbitas. Não o quero aqui antes de vinte minutos e depois de vinte e cinco. Fim.

Joan desligou o intercom de cabeceira e disse:

— Doutor, fui bem?

— Eunice, às vezes penso que você não é honesta.

— E um dia me transformarei em eremita e não terei de enganar empregados. Roberto, onde estão suas roupas? Na sala de estar?

— É, acho melhor ir buscá-las.

— Pense melhor. Temos ainda vinte minutos de sossego e vamos usá-los.

— Oh, Eunice!

— Coragem, camarada. Não sou uma aranha caranguejeira. Vamos usá-los para juntar todas as roupas na sala de estar, botar as roupas femininas lá, depressa... então levar suas roupas e as de Jake para baixo, para a suíte dele... onde apanharei um roupão, pijama e chinelos para Jake e também para você. Se for um maricas, ficará lá e vestirá suas roupas. Se não for, ficará nu e virá para cá comigo e só se vestirá quando tiver vontade. Então ligarei a lâmpada que avisa a Winnie que estou acordada... o que é melhor que telefonar para os amantes, que podem ainda estar se amando e os amantes não gostam de ser incomodados nessas horas. Venha, homem saudável, peludo, maravilhoso. Dezesseis minutos: podemos fazer tudo em doze, aposto.

— Gatinha, às vezes você me deixa nervoso.

— Oh, bolas, sou dona desta casa. Contudo, posso vendê-la e comprar um campo de nudismo na Califórnia e então prepará-lo só para mim e meus amigos. Roberto, gosto da pele... quando é a maravilhosa que tenho agora. É feita para ser vista e tocada... e não escondida por roupas. Gostou da nossa garçonete ontem à noite?

— Uma moça aparentemente muito saudável.

— Oh, bolas outra vez. Aposto que estava pensando nela quando me levou para a cama ontem à noite. Conheço os homens, querido... fui um durante muito mais tempo que sua vida inteira. Quinze minutos. Vamos embora.

 

Dabrowski tirou-a do carro e Fred trancou a porta. Ambos a acompanharam e entraram com ela no elevador. Joan Eunice olhou em volta.

— Deve ter sido aqui que aconteceu. O motorista disse:

— Eunice, que bom se você tivesse mudado de idéia.

— Anton, Tom e Hugo deveriam me acompanhar hoje, mas tive medo que os coitadinhos ficassem perturbados quando vissem o interior deste elevador. Pensei que você e Fred pudessem agüentar. Fred, você está nervoso?

— Você sabe muito bem que estou, Eunice.

— A troco de quê? Ela entrou neste elevador sozinha. Eu tenho vocês dois comigo.

— Bem... você é um inferno de teimosa. Não sei o que Ski pretende fazer, mas eu vou ficar esperando do lado de fora da porta até você sair. (Eunice, o que se faz com homens teimosos?) (É difícil, gêmeo, principalmente quando eles nos amam. É preciso usar jiu-jitsu feminino: deixá-los fazer o que quiserem até que isso passe a ser o que você quer) (Tentarei)

— Fred, Eunice morou aqui muitos anos. Sem nenhum perigo, a não ser quando foi cometido um erro. Estou com o rádio ligado e prometo a ambos, solenemente, que só atravessarei a porta de Joe quando souber que vocês estão à minha espera.

— Estaremos esperando, sem dúvida... o tempo todo. Hem, Ski?

— Claro! Eunice, você nem mesmo sabe se Joe Branca ainda mora aqui.

— Acontece que eu sei. Apenas seu telefone foi cortado porque ele não pagou a conta. Joe continua aqui ou, pelo menos, continuava até ontem às dezesseis horas. Olhem, que lhes parece? Primeiro, ambos sabem que Joe não me faria nenhum mal, não é? Anton?

— Oh, claro. Joe pode não querer lhe ver... mas Joe Branca preferiria espantar uma mosca a ter de matá-la.

— Então estou segura enquanto estiver lá dentro com Joe. Mas você tem razão: ele pode não querer me ver. Pode não me deixar entrar. Ou eu ficar lá dentro só uns minutos. Por isso, esperem durante uma hora e depois vão para casa. Telefonarei quando quiser que vocês me levem de volta.

— Duas horas? — sugeriu Fred.

— Está bem, duas horas. Mas se eu não voltar para casa esta noite, vocês não irão voltar e tocar a campainha de Joe. Podem vir aqui amanhã ao meio-dia e esperar uma hora, ou mesmo duas, se isso os fizer sentir-se melhores. E a mesma coisa no dia seguinte. Mas ficarei no estúdio de Joe Branca uma semana inteira, se isso contribuir para aliviar sua cabeça. Ou um mês, que diabo! Ou qualquer coisa. Rapazes, tenho de fazer isto. Não tornem as coisas mais difíceis. Anton disse, sombrio:

— Está bem. Vamos fazer como quer.

— Neste instante sou «Eunice»? Ou «Joan Eunice»? Ele esboçou um sorriso.

— Eunice. Ela faria isso.

— É por isso que eu preciso. Olhem, queridos — passou um braço em torno de cada um — a noite de ontem foi maravilhosa... e darei um jeito de repeti-la. Talvez Mr. Salomon esteja fora da próxima vez. Vocês sabem que ele anda em volta de mim como uma galinha de pintos. Mas vocês também... e não devem. A não ser quando estão funcionando como guardas. Neste instante, preciso achar uma forma de acalmar o espírito de Joe. Mas serei companheira de folguedos de vocês num outro dia. Sejam bonzinhos e me dêem um beijo. O elevador está chegando.

Eles a beijaram. Joan recolocou o véu. Saíram do elevador e se dirigiram ao estúdio de Branca: Joan viu que sabia o caminho de tanto pensar nele.

Ela parou na porta.

— Eunice sempre os beijava se despedindo? Aqui, com Joe olhando?

— Sempre.

— Se ele me deixar entrar, me beijem da mesma maneira. Apenas não se demorem. Ele pode fechar a porta. Oh, estou tremendo! (Calma, patrão. Om Mani Padme Hum. Não aperte a campainha. Experimente a voz na fechadura. «Abra!» Assim mesmo)

— Abra! — disse Joan.

Retirou o véu e ficou de frente para a porta.

A fechadura começou a tinir mas a porta permaneceu fechada. Uma transparência iluminou-se na parede: ESPERE POR FAVOR. Joan ficou em frente ao olho mágico da porta, imaginando se Joe a estava examinando. (Eunice, ele irá nos deixar entrar?) (Não sei, patrão. O senhor não deveria ter vindo. Mas não quis ouvir Jake... nem a mim) (Porém estou aqui. Não me ralhe... me ajude) (Farei o possível, patrão. Mas não sei)

Através da porta, que não era à prova de som como as suas, joan ouviu uma voz aguda:

— Joe! Joe! (Quem será?) (Pode ser qualquer um. Joe tem muitos amigos)

A porta abriu e ela viu Joe parado à sua frente. O rapaz estava com um short muito velho, usado freqüentemente para limpar os pincéis. Seu rosto nada revelava. Uma moça, com uma manta atirada sumariamente sobre o corpo, estava olhando por trás dele.

— Viu? É ela!

— Gigi... volte para dentro. Alô, Ski. Oi, Fred.

— Oi, Joe.

Joan fez um esforço para manter a voz firme.

— Joe, posso entrar? Finalmente ele a olhou.

— Claro, se você quer. Entre, Ski. Fred.

Joe pôs-se de lado. Dabrowski respondeu por ambos.

— Hum, hoje não, Joe. Obrigado.

— Tá. Outro dia qualquer. Bem-vindo. Fred também.

— Obrigado, Joe. Até.

Os guardas viraram-se para ir embora enquanto Joan começava a entrar... recapitulou, lembrando que precisava fazer alguma coisa.

— Rapazes!

Fred beijou-a rapidamente, nervosamente. Dabrowski não a beijou.

Em vez disso, aproximou bem a boca da dela e disse, quase inaudível:

— Eunice, seja legal com ele, se não, vai levar uma surra.

— Serei, Anton. Largue-me.

Virou-se rapidamente, passou por Joe, entrou e esperou. Sem pressa, o rapaz fechou os trincos manuais, levando mais tempo que o necessário.

Virou-se, olhou para ela e afastou o olhar.

— Senta?

— Obrigada, Joe.

Examinou o estúdio em desordem e viu duas cadeiras de espaldar reto junto de uma pequena mesa. Não havia outras à vista. Dirigiu-se a uma delas, esperou que ele tirasse a capa dela... percebeu que ele não ia tirar, então desamarrou-a e deixou-a cair, sentando-se.

Joe olhou-a, carrancudo, parecendo indeciso, e então perguntou:

— Café? Gigi! Preto pra Miss Smith.

A moça estava olhando do fundo da sala. Compôs a manta, se dirigiu para um fogão existente atrás da mesa, derramou café numa xícara e começou a aquecer a água. Joe Branca foi até um cavalete no meio da sala e começou a dar ligeiras pinceladas na tela. _ Joan viu que era um retrato quase pronto da moça chamada de «Gigi» (Ê um quadro barato, patrão) (Como?) (Projeta-se uma foto numa tela sensibilizada e pinta-se por cima. Joe os faz se alguém quer um retrato barato ou a reprodução de um cachorro... mas sempre diz que não são arte)

(Não vejo por que, Eunice. Continua sendo um óleo original) (Eu também não... mas são coisas de artista. Patrão, este lugar é sujo e estou envergonhada. Essa cachorra da Gigi) (Você acha que ela mora aqui?) (Não sei, patrão. Pode ser o desleixo de Joe. Ele gosta da casa limpa... mas não é capaz de limpar. Joe só se interessa por duas coisas: pintura... e rabo-de-saia) (Bem, parece que^ tem ambos. Vi que ele conservou seu calhambeque) (Aposto como não está andando. Joe não dirige)

Gigi preparou o café e o colocou na mesa.

— Açúcar? Não temos leite. — Inclinou-se e acrescentou, num feroz sussurro: — Seu lugar não é aqui!

Joan respondeu calmamente:

— Assim está bom. Obrigada, Gigi.

— Gigi!

— Sim, Joe?

— Trono.

A moça virou-se e o encarou.

— Na frente dela?

— Agora. Preciso de você.

Gigi obedeceu com relutância, desamarrando a manta enquanto andava e deixou-a cair ao começar a subir os degraus do trono. Postou-se na posição. Joan não a olhou, compreendendo sua relutância. Não era vergonha mas falta de vontade de ficar nua diante de uma inimiga (Mas eu não sou inimigo dela, Eunice) (Disse-lhe que poderia ser deprimente, patrão)

Joan provou o café, achou-o quente demais... e muito amargo, comparado com a altamente perfumada — e cara — mistura que Delia preparava. Mas decidiu tomá-lo, assim que esfriasse.

Ficou imaginando se Joe reconheceu o que ela estava vestindo. A La Boutique havia reconstituído, a um grande custo, um costume' que Eunice usara antigamente, um vermelho e preto, no estilo «Meio a meio» do ano anterior, com uma saia de rendas transparente ligando a perna esquerda firmemente ao meio-suéter do lado direito. Joan contratara o artista pintor de corpos mais caro da cidade e o controlara rigidamente para que ele reproduzisse o desenho que Eunice Branca usara com ele, tão aproximadamente quanto sua memória e a voz interior foram capazes de dizer.

(Eunice, Joe estava tão perturbado que não notou como estamos vestidas?) (Patrão, Joe vê tudo) (Então foi pintar para não ter de reparar em nós) (Talvez. Mas nem uma bomba-H faria Joe parar de pintar. Que ele nos deixe entrar, sem dúvida é de espantar... no meio de uma sessão de pose)

(Vai ficar pintando quanto tempo? A noite toda?) (Possivelmente não. Só pinta quando está realmente inspirado. Este trabalho é fácil) Não pareceria fácil para Joan. Pôde ver que o artista estava trabalhando a partir de um esboço preciso, parecendo uma fotografia embaçada de Gigi, como se ela tivesse posado... mas também estava trabalhando usando o modelo, sem seguir, porém, o modelo ou a fotografia. Estava realçando, exagerando, simplificando, dando à carne tons mais quentes, transformando a tela lisa quase em estéreo, em vida real, ardente como a vida, sensual e convidativa.

Talvez aquilo não fosse «arte»... porém era mais que uma fotografia. Joan lembrou de um artista morto havia muito, de quem Johann gostara. Como era o nome dele? Costumava pintar mulheres taitianas em veludo preto. Leeteg? (Eunice, que vamos fazer agora? Ir embora? Joe pouco está se incomodando) (Patrão, Joe está se incomodando terrivelmente. Está vendo aquele tique no pescoço dele?) (Então que devo fazer?)

(Patrão, o máximo que posso lhe dizer é o que eu faria) (Não foi o que eu disse?) (Não exatamente. Toda vez que eu chegava em casa e encontrava Joe pintando com outro modelo, ficava calada e deixava-o trabalhar. Primeiro me livrava das roupas de rua, tomava um banho de chuveiro e removia qualquer resquício de pintura ou maquilagem. Depois arrumava a casa... arrumava apenas, pois a limpeza geral tinha de esperar pelo fim de semana. Então preparava as coisas para os alimentar, visto que Joe e o modelo deveriam estar famintos no fim da sessão. Eles sempre paravam, pois Joe não gostava de sobrecarregar um modelo. Oh, às vezes ele me pintava a noite inteira, porém sabia que eu pediria para descansar se me sentisse esgotada)

(Você está me dizendo para tirar a roupa? Isso não vai deixá-lo ainda mais perturbado?) (Patrão, não estou lhe dizendo para fazer Gigo. A idéia desta visita não foi minha. Mas Joe viu nosso corpo milhares de vezes... e o senhor agora sabe que a nudez não é perturbadora e sim relaxante. Eu achava que era grosseiro ficar vestida quando um modelo estava nu... a menos que eu tivesse a certeza de que ela se sentia à vontade comigo. Mas não estou lhe dizendo para agir assim. O senhor pode ir dar uma espiada no olho mágico para ver se Anton e Fred ainda estão aqui — devem estar — destrancar a porta e ir embora. Confesse que não conseguirá reunir novamente as duas metades)

(Pensei que devesse) Joan deu um suspiro, levantou-se... descalçou as sandálias, arrancou o meio-suéter, empurrou a saia de babados para o chão e livrou-se do resto. Joe não podia vê-la, mas Gigi sim: Joan viu a surpresa nos olhos dela que, no entanto, não abandonou a pose.

Joan olhou-a e pôs um dedo nos lábios. Então pegou as roupas, a capa e as sandálias, encaminhou-se para o banheiro evitando (pensava ela) o ângulo de visão de Joe... pendurou as roupas num cabide externo e entrou.

Demorou apenas uns minutos para ensaboar-se e lavar-se, tirando do corpo o preto e o vermelho. (Tiro também a maquilagem do rosto?) (Deixe, você não usa tanto quanto eu costumava usar. Há toalhas no armarinho sob a pia. Ou deve haver)

Joan encontrou uma toalha de banho limpa, três de rosto, achou que não era justo usar a última toalha de banho e tratou de se enxugar com uma de rosto. Olhou-se num espelho, achou que estava passável... e sentiu-se refrescada e relaxada com o banho. (Por onde devo começar?) (Por aqui, é claro. Depois faça a cama, mas veja se precisa de lençóis limpos. Estes estão no móvel com a lâmpada de cabeceira em cima)

O pequeno banheiro foi fácil de limpar porque o detergente e a esponja plástica estavam onde costumavam estar. Desistiu do vaso sanitário: estava limpo mas as manchas deixadas pela água da descarga não reagiam à esfrega. Joan ficou pensando por que uma civilização que podia construir poderosas espaçonaves não conseguia dar um jeito nos encanamentos?

Mas seria uma civilização?

Lavou as mãos e saiu do banheiro. A cama não parecia ter sido usada mais de duas noites e achou que seria um luxo da parte dela mudar os lençóis. Quando começou a esticar os lençóis, reparou que havia batom num travesseiro... e virou a mancha para baixo. (Gigi?) (Pode ser, patrão, é o tom que ela usa. Mas não prova nada)

(E agora?) (Limpe os cantos... nunca mexa nas coisas de Joe. Pode erguer um tubo de tinta e espanar debaixo dele... mas só se tornar a colocá-lo no lugar exato em que o encontrou)

Os cantos a mantiveram ocupada um certo tempo. Muito provavelmente Joe notou-a... mas não deu sinal. O quadro parecia estar pronto, mas Branca continuava a trabalhar nele.

A pia estava atulhada. Joan achou sabão em pó e começou a lavar.

Assim que a louça foi lavada, secada, guardada e a pia ter ficado brilhando como a louça, Joan voltou-se para a despensa. (Eunice, você mantém uma casa com tão poucas reservas?) (Patrão, eu não guardava muitos alimentos estragáveis... mas isso aí era o mínimo que eu sempre tinha. Joe não pensa nessas coisas. Nunca o deixei fazer compras: ele podia voltar com algum novo amigo esfomeado, tendo esquecido o pão, o toucinho e o leite que eu lhe pedira. Olhe no congelador)

Joan achou no congelador alguns pacotes: jantares prontos, uma caixa de sorvete de baunilha quase cheia, espaguete e pizzas de vários tipos. Estas predominavam e Joan achou que não erraria se oferecesse pizza a eles. O que mais? Não havia legumes frescos... Frutas? Sim, uma latinha de salada de frutas, que mal chegava, mas Joan poderia fazê-la render, misturando-a com o sorvete e adicionando biscoitos, se conseguisse achar alguns. Sim, havia de limão. Não era uma refeição substancial, mas Joan não tinha muitos recursos. Começou a preparar as coisas.

Poria a mesa para três? Bem, tanto podia ser aceita como mandada embora. Pôs para três. (Eunice, só há duas cadeiras) (O banquinho da cozinha tem altura ajustável, patrão) (Sou um burro) (Eu nunca teria apostado que o senhor seria capaz de se virar na cozinha) (Talvez eu não fosse, se mamãe tivesse tido uma filha. Apostaria que já preparei mais refeições que você, querida... não que isto seja cozinhar)

Assim que Joan aprontou tudo, ouviu Joe dizer:

— Descanso, Gigi. Joan virou-se.

— Joe, vocês querem comer agora? Está pronto para aquecer. Ao ouvir a voz dela, Joe Branca virou-se e a olhou. Começou a falar e com dolorosa rapidez entregou-se.

Seu rosto ficou descomposto, começou a soluçar e seu corpo desabou lentamente. Joan correu para ele... e parou abruptamente. (Patrão! Não toque nele!) (Oh, meu Deus, Eunice!) (Não piore as coisas. Gigi está com ele. Para o chão, rápido! Om Mani Padme Hum)

Joan caiu na posição de Lótus.

— Om Mani Padme Hum.

Gigi dera um apoio a Joe, suavizando sua queda. Ele sentou-se no chão, com a cabeça apoiada nos joelhos, soluçando, enquanto Gigi, ajoelhada ao seu lado, mostrava no rosto a ancestral preocupação de uma mãe com o filho sofredor.

— Om Mani Padme Hum. (Não, patrão, peça a Gigi para ajudar ao senhor) (Como?) Om Mani Padme Hum. (Peça um círculo. Om Mani Padme Hum)

— Gigi! Me ajude a formar um círculo. Por favor!

A moça ergueu os olhos, pareceu muito espantada, como se estivesse vendo Joan pela primeira vez.

— Om Mani Padme Hum. Me ajude, Gigi... ajude a ambas.

Gigi deixou-se deslizar para a posição de Lótus ao lado dela, joelho com joelho, pegou a mão esquerda de Joan e a direita de Joe.

— Joe! Joe, você precisa ouvir! Complete o círculo conosco. Já!

Começou a entoar junto com Joan.

Joe Branca parou de soluçar, ergueu os olhos e pareceu não acreditar no que estava vendo. Então esticou lentamente as pernas, moveu-se até ocupar o terceiro lado do triângulo e procurou assumir o Padmasana. Seus shorts sujos de tinta eram muito apertados e estavam atrapalhando. Joe olhou para baixo, pareceu confuso e começou a desabotoá-los. Gigi, largando a mão dele e a de Joan, ajudou-o a tirá-lo. Então ele sentou-se facilmente na posição de Lótus e pegou as mãos delas.

— Om Mani Padme Hum!

Assim que o círculo fechou, Joan sentiu um choque percorrer seu corpo, algo como eletricidade. Já sentira aquilo antes, com três, quatro, mas não com tanta força. Depois abrandou para uma suave sensação de calor.

— Om Mani Padme Hum.

A prece passou em torno do círculo, retornou e foi entoada em uníssono. Ainda estavam sussurrando suavemente quando Joan deixou de sentir ou ouvir qualquer coisa... além de uma paz total.

— Acorde. Acorde. Volte.

Joan bateu as pálpebras e sentiu os olhos girar.

— Sim, Winnie? Estou acordada.

— Você disse que o jantar estava pronto para ser aquecido. Vai aquecer? Ou quer que eu faça?

— Oh! — Percebeu que o círculo continuava fechado. — Eu vou.. Se puder.

Joe encarou-a, curioso, mas com o rosto sereno.

— Está bem? Boas vibrações?

— Ela está bem — respondeu Gigi. — Vá fazer pipi e depois comeremos. Lave as mãos. Há terebintina no armário de remédios.

— Tá legal.

Joe levantou-se, estendeu a mão a cada uma, ergueu-as e foi fazer o que lhe mandaram.

Joan foi com Gigi para a cozinha e reparou no relógio do forno de aquecer.

— Gigi, aquele relógio está certo?

— Quase. Você tem de ir embora? Espero que não.

— Oh, não. Posso ficar. Mas estivemos quanto tempo no círculo?

— Uma hora, uma hora e meia, talvez mais. Bastante tempo. Tem importância?

— Não — Joan rodeou a outra com os braços. — Obrigada, Gigi. Gigi colocou seus braços por cima dos de Joan, abraçando-a.

— Obrigada a você. Esta é a primeira vez que eu vejo Joe realmente se comunicando, aceitando seu karma, em paz com ele, desde, hum, desde...

— Desde que Eunice foi assassinada?

— Sim. Ele não conseguia se livrar da idéia maluca de que, se não tivesse ido a Philly* ver a mãe, aquilo não teria acontecido. Sabe que não é verdade... mas também sabe que está nas suas entranhas. Eu que o diga. (Patrão? Diga alô a Gigi por mim) (Revelar o segredo?) (Oh, que inferno, é melhor não. Não creio que ela contasse a Joe... mas não podemos nos arriscar. E as coisas vão indo muito bem assim)

 

* A cidade de Filadélfia (N. do T.).

 

— Gigi, acho que Eunice gostaria de agradecer a você. Se ela pudesse. As coisas vão indo muito bem assim, agora.

— Parece. Diga, como devo chamá-la? Não posso falar «Ei, você aí!» Mas Johann Sebastian Bach Smith me parece uma droga de nome para uma moça.

— Agora meu nome é Joan. Hum, meu nome todo é «Joan Eunice Smith». Mas meu segundo nome é uma espécie de homenagem. Sacou?

— Saquei. É lindo, acho que é perfeito... Joan Eunice. (Acho que o senhor é perfeito, patrão. O senhor conseguiu! Sabe por que eu não queria vir aqui? Estava com medo por Joe... mas duplamente por mim) (Eu sabia, querida. Ambos estávamos. E Joe também)

— Gigi, melhor não usar meu segundo nome. Joe pode ficar perturbado. Más vibrações.

Gigi balançou a cabeça.

— Acho que não. Se eu estiver errada, se ele precisar mergulhar no círculo mais tempo, esta noite organizaremos um direito. Ou não, se ele decidir mais tarde.

— Está bem, Gigi, contarei a ele.

— Sim, mas espere até depois de comermos. Um círculo é ótimo e poderei participar de um o dia inteiro, se for necessário. Mas estou

esfomeada. Sanduíche durante cinco horas e quase não tomei café —

Gigi puxou-a e beijou-a. — Portanto, vamos comer.

— Alguém disse «comer»?

— Num minuto, Joe. Estávamos conversando. E também precisamos ligar o gás. Você põe o primeiro níquel, amor, e eu aqueço os alimentos.

— Comece, Gigi.

— Oh, venha comigo. Joe, você aquece os alimentos.

 

— ... como a sua «Fundação Eunice Evans Branca», Joe. Porque não quero que alguém jamais esqueça Eunice. Especialmente eu.

Joe Branca balançou solenemente a cabeça.

— É bom. Eunice gostaria. — Subitamente sorriu. — Você é legal, Joan Eunice. — Largou a xícara, começou a fazer montinhos de comida e acrescentou: — Sua maquilagem é igual à de Eunice.

— Vi Eunice a usando, Joe, e por isso fiz igual.

— Bom trabalho. Roupa, não pele pintada. Talvez assinatura do pintor?

— Joe, não encontrei ninguém com sua habilidade para isso. Tive de usar o que encontrei. Hum, será possível você me pintar — meu corpo, quero dizer — um dia? Trabalho profissional, com remuneração profissional e sem obrigações.

Joe sorriu e balançou a cabeça.

— Não sou homem de cosméticos, Joan Eunice. Claro, pintei corpo para Eunice, ela gostava. Gigi também, quando quer. Pinto você, claro. Mas nada de remuneração.

— Joe, não quero tomar o tempo profissional de um artista sem pagar. Mas sei o que quer dizer. Pintura com cosméticos para sua mulher é uma coisa, porém não é seu trabalho real.

— Mas divertido — respondeu. — Talvez eu faça trabalho preto-vermelho antes de você ir embora, hem?

— Seria muito bacana da sua parte, Joe, mas não se incomode. Não vou me exibir por aí, vou direta para casa. Porém quero lhe perguntar uma coisa sobre pintura corporal. Lembra que uma vez pintou Eunice como uma sereia e ela foi trabalhar assim?

— Claro.

— Bem... Gigi, isso foi no tempo em que eu era Johann Smith, muito velho e muito doente. Sofria o tempo todo, mas não podia tomar doses grandes de analgésicos. Tinha de agüentar. Porém chegou Eunice, encantadora como uma flor e bonita como uma gatinha, pintada para parecer uma sereia e... Joe, esta é a parte mais engraçada. Não lembro de ter sentido nenhuma dor o dia inteiro, pois estava muito ocupado tentando pensar em outra coisa. E nunca pude. Eunice estava usando um verdadeiro soutien? Ou era pintado?

Joe ficou vaidoso.

— Pintado. Ilusão de óptica. (Patrão, eu lhe disse isso) (Disse, garotinha... e você às vezes também mente)

— Você certamente iludiu meus olhos. Pude ver aquelas enormes conchas, quase pude sentir a aspereza delas. Então Eunice ficou de perfil... e deixei de ter certeza. Passei aquele dia inteiro olhando e fingindo o contrário. Joe, você é um grande artista. É uma pena que prefira telas à pele.

— Não é isso exatamente. Gosto de pintar pele nas telas. Ilusão de óptica eterna. Não apenas um dia.

— Me conformo. Gosto desta — Joan indicou o cavalete com a cabeça. — Gigi, permita que eu lave a louça, por favor. Eu quero.

— Empilhe na pia — mandou Joe. — Inspiração. Composição com duas figuras.

— Tá bem, Joe — respondeu Gigi. — Joan Eunice, está disposta a posar até tarde? Joe disse «duas figuras» e isso quer dizer que você está incluída. Mas lhe aviso que, quando Joe diz «inspiração», a gente não dorme muito.

— Não — negou Joe. — Posso abreviar. Tapear um pouco. Obter posse correta e fazer oito, nove, dez fotos. Então... — Subitamente pareceu infeliz e virou-se para Joan. — Talvez não aqui amanhã? Ou pode ser não quer posar? Raios, esqueci! Pensei que você dormia aqui. Loucura. Raios!

Joan respondeu:

— Não tenho de estar em lugar nenhum em tempo algum, Joe, e ficaria muito honrada em posar para você. Mas... — Virou-se para Gigi: — Posso ficar esta noite? Está de acordo?

— Oh, claro!

— Me admira. Desde que você me mostrou sua aliança, fiquei pensando até onde estava sendo intrometida.

Gigi riu.

— Querida, se você pensa que este anel prende Joe pelo nariz... bem, para mim é melhor não pensar nisso. Joan, larguei Sam mais de um mês antes de deixar Joe me dar este anel e casar comigo. Fiquei tão abobalhada que não pude acreditar. Não sei de outro casal nosso conhecido que seja casado. É bacana... mas ainda tenho acessos de riso. Claro, fique se quiser. Temos uma cama de armar... não é grande coisa, mas poremos Joe nela.

(Atenção, patrão! Isso é dinamite. Aposto dez a um como Joe não vai querer ficar naquela cama) (Claro que não. Eu ficarei. Pensa que sou louco?) (Sinto, patrão, mas penso. Você é amável... porém, tem apenas o juízo suficiente para se livrar de elevadores. Mas não de camas) (Joe quer que eu pose, posarei! Se ele quiser mais alguma coisa, terá também! Tudo)

(Era o que eu temia) (Eunice, Joe não me quer. Gigi é a mulher dele agora) (Tá bem, gêmeo. Mas quando ouvi o senhor dizer pela última vez que o casamento não é uma forma de morte?)

Joe Branca apareceu para ver como iam as coisas. As minúcias dos cuidados da casa pareciam não lhe interessar. Perguntou:

— Você esfregou óleo depois do banho? — e estendeu o braço, passando os dedos pelas costelas esquerdas de Joan. — Não. Gigi.

— Agora mesmo, Joe.

Gigi entrou no banheiro e voltou depressa com um vidro de azeite de oliveira. Disse para Joan:

— Lanolina também é bom, mas prefiro cheirar a salada do que a ovelha. Joe, passe nas costelas que eu passarei nas pernas. Depois passaremos pelo corpo todo, querida, e limparemos. Vamos tirar tudo o que sua pele não absorve. Hummm, há um pouco de pintura aqui atrás, onde você não pode ver, mas o azeite tirará. Joan, minha cor melhorou cem por cento desde que Joe me obrigou a cuidar da pele.

— Você tem uma pele perfeita, Gigi.

— Joe é um tirano a esse respeito. Agora uma esfregadela.

— Não esfregue demais — avisou Joe. — Preciso de pontos brilhantes em fotos sexy.

— Esfrego de leve. Azeite em mim, Joe?

— Da.

— Tá bem, maestro. Joan, vamos polir uma à outra até ficarmos completamente secas, antes de irmos para a cama. Se não estivermos muito cansadas para querer... no importa, lençóis limpos. Joe, você vai dizer às suas escravas que tipo de foto será?

— Claro, preciso de ação. Sincera. Foto lésbica.

— Hunh? Joe, você não pode meter Joan numa foto dessas. Não pode.

— Espere, chapa. Não desenho histórias em quadrinhos. Você sabe. Uma foto tão quadrada que pode ser pendurada numa igreja. Mas com simbolismo tão pesado que uma velha machona pague gaita alta. Mas... Joan Eunice, que tal mudar o rosto?

Parecia ansioso.

— Joe, pinte da maneira que quiser. Se alguém me reconhecer num dos seus quadros, ficarei orgulhosa.

— Legal.

Joe Branca arrumou rapidamente uma plataforma baixa com pranchas de caixas, amontoou sobre ela as almofadas do chão e cobriu tudo com uma colcha espessa.

— Trono. Gigi primeiro. Gigi machona, Joan Eunice namorada.

Colocou-as deitadas, empurrando-as para a posição como um açougueiro manejando a carne, de maneira a que Gigi fosse amparada pelas almofadas enquanto mantinha Joan nos braços, olhando-a dentro dos olhos. A posição de Joan funcionava como folha de parreira para Gigi. Joe ergueu o joelho esquerdo de Joan, de forma a que ele lhe servisse de cobertura. Então colocou a mão direita de Gigi sob o seio esquerdo de Joan, sem cobri-lo, apenas tocando-o, recuou e fez uma careta.

... deu um passo à frente, alterou ligeiramente a composição, movendo-as tão pouco que Joan não pôde perceber que diferença fazia. Aparentemente satisfeito, empurrou almofadas para firmar, de maneira a que cada uma pudesse manter a pose sem esforço.

Pôs uma travessa logo abaixo delas, inclinada com estudada negligência.

— É lira grega — disse. — Título: «Bilitis Canta». Canção começando, ação ainda não. Intervalo precioso. — Olhou-as atentamente, ainda fazendo caretas. — Joan Eunice, você está de barriga?

Joan ficou estarrecida.

— Nota-se? Não engordei uma grama. (Apague e emende: 590 gramas e 90) (Sim, mas não o bastante para se ver. Fora aquela pizza ainda agora, tenho mantido a dieta de Roberto. Você sabe disso)

Joe sacudiu a cabeça.

— O corpo não mostra. Feliz, Joan Eunice?

— Joe, estou terrivelmente feliz. Mas ainda não contei a ninguém.

— Calma, Talma: Gigi não é de falar. — Sorriu aprovando e Joan viu, pela primeira vez, como ele podia ser bonito. — O importante é você feliz. Mãe feliz, filho feliz. Putas grávidas são diferentes. Melhores. A pele brilha, os músculos são firmes e as bolsas sob os olhos desaparecem. O corpo inteiro fica mais afinado. Os olhos podem ver, mas a maioria não pode ver o que eles vêem. Contente por ter você como modelo hoje. Que resolve problema que vem me comendo.

— O que, Joe? Como?

(Eunice, isto está certo?) (Claro, gêmeo. Joe é pró-crianças, desde que elas não o incomodem. Está satisfeito porque você está feliz... e não pensa sobre como isso aconteceu ou o que você vai fazer a respeito. Mas não é insensível. Se estiver sem dinheiro, trará você para cá, procurará sustentar seu filho e continuará não perguntando onde o arranjou. Ele não acha o mundo complicado, querido... portanto para ele... não é)

— Quebra-cabeças. Você parece Eunice mais que ninguém. Mas parece melhor. Impossível. Agora sei por quê. Toda puta parece melhor fazendo a coisa dela.

— joe, você pensa que mulheres grávidas ficam bonitas mais tarde? Digamos, depois de oito ou quase nove meses?

— Claro! — Joe mostrou-se surpreso com a pergunta. — Aí ais bonita. Saudáveis, felizes, prontas para descarregar... como não? Símbolo máximo do Todo. Agora calada. Trabalhar.

— Por favor, Joe, mais uma pergunta: quer me pintar quando eu estiver enorme como uma casa? Entre o oitavo e o nono mês? Pode ser um trabalho rápido. Tem de ser. Talvez eu não tenha condições de posar longamente quando estiver pesada.

Ele sorriu deliciado.

— Com certeza, Tereza. Não é sempre que artistas têm essa chance. A maioria das putas são bobas a esse respeito. Mas agora, calada. Precisa parecer sexy, portanto pense. Não represente... seja. Suada, ávida. Joan Eunice, Gigi despertou você, tornou-a ávida. Mas com medo. Virgem. Gigi, você só ávida. Talvez maligna, mas pense, não faça. Nem mesmo fale. Pense.

Parou para retificar as luzes, fez uma careta para os modelos, passou um pano com azeite no ombro direito e no seio de Gigi.

— Assim! Mamilos empinados? Joan Eunice, não pode mantê-los duros? Procure pensar em homens e não em Gigi.

— Eu dou um jeito — garantiu Gigi. — Ouça, querida. Começou a sussurrar, contando a Joan com detalhes grosseiros o que as gregas lésbicas de antigamente faziam com as virgens desamparadas em seu poder.

Joan sentiu seus seios endurecerem tanto que chegaram a doer. Molhou os lábios e fixou o olhar em Gigi, mal notando que estavam sendo fotografadas.

— Pausa — anunciou joe. — Fora do trono. Hoje chega. Tirei boas fotos.

Joan espreguiçou-se e deu uma olhada no relógio, do outro lado da sala.

— Meu Deus! Melros, já?

— Portanto, cama — disse ele. — Amanhã, pose. Gigi disse:

— Ainda tenho de lavar aquela louça.

— Eu lavo, Gigi.

— Eu lavo, você enxuga.

Quando terminaram, Joe estava na cama de armar, aparentemente adormecido. Gigi disse:

— De que lado você gosta, querida?

— Qualquer um.

— Mergulhe.

 

JOAN acordou com a cabeça no ombro de Gigi, que a olhava, o que facilitou a Joan lembrar onde estava. Bocejou e disse:

— Bom dia, querida. É dia, não? Onde está Joe?

— Está preparando o café. Dormiu bastante, querida?

— Acho que sim. Que horas são?

— Não sei. O problema é: você repousou? Se não, volte a dormir.

— Estou descansada. Me sinto ótima. Vamos levantar.

— Está bem. Mas cobro um beijo para passar por mim.

— Ultrajante — respondeu Joan alegremente e pagou a taxa. Mas Joe não estava na pequena cozinha. Estava projetando as

fotos que tirara na noite anterior. Gigi disse:

— Olhe só, Joan. Esqueceu completamente que se ofereceu para preparar o café.

— Não tem importância — respondeu Joan, baixinho.

— Não se preocupe em falar baixo. Joe não consegue ouvir quando está trabalhando. A menos que você grite. Bem, vamos dar uma batida e depois tentaremos traze-lo para comer. Hummm... não há muita coisa a oferecer a uma visita.

— Não preciso de um café reforçado. Suco e torradas. Café.

— Não há suco — Gigi fuçou em torno inutilmente. — Posso lhe oferecer um enlatado. Espaguete ou coisa assim. Tenho de ir à mercearia. Se Joe sair para fazer compras, volta com um novo álbum fotográfico ou um quadro, contente como uma criança. Não adianta zangar com ele.

Sentindo uma coisa diferente na voz de Gigi, Joan Eunice perguntou baixinho:

— Gigi, você está a nenhum?

Gigi não respondeu. Continuou com o rosto virado, pegou a metade de um pão e começou a prepará-lo para fazer torradas. Joan insistiu, continuando a falar baixo:

— Gigi, acho que sabe que sou rica. Porém Joe não quer um níquel de mim. Mas você não precisa ser tão teimosa.

Gigi mediu pó para seis xícaras de café. Então respondeu, quase tão baixo:

— Joan, fui prostituta enquanto vivi com Big Sam. Alguém tinha de pagar o aluguel e a metade dos alunos dele não comparecia com a gaita. O resto pagava tão pouco que mal dava para o café e os bolinhos que eles comiam. Que inferno, alguns iam à aula exatamente para comer. Portanto, alguém tinha de trabalhar. Nunca forcei muito os homens — Sam não gostaria se eu fizesse isso com outro homem — a menos que fosse uma coisa incomum desejada por ele. Mas uma velha machona é freqüentemente generosa. Quando precisávamos de dinheiro, eu ia me sentar num dos cafés de lésbicas e levava algum dinheiro para casa... Sam não se importava.

«Tive finalmente consciência de que estava sendo usada por ele e não o sustentando apenas. Aquelas cenas fora do comum... um guru precisa de um cheia jovem para começar ou não dá para a saída. Joan, uma mulher é capaz de tudo por um homem... mas detesta pensar que é uma rua de mão única. Agora veja o Joe. Não vende muitos quadros e habitualmente temos de dividir meio a meio para poder expô-los. Mas Joe não usa uma mulher, por pior que as coisas estejam. — Virou-se para Joan. — Quando posei pela primeira vez para Joe, ele me pagou as tarifas estabelecidas pela liga, nada dessa porcaria de uma prestação agora e outra quando vender o quadro. Recebera algum dinheiro de Eunice. Seguro, suponho. Mas Joe é um molenga e todo mundo lhe pede dinheiro emprestado, gasta e não devolve. Aquele dinheiro sumiu antes de eu ir para a cama com ele e passar a controlar o dinheiro. Alguém está pagando o aluguel e as taxas deste apartamento. Você, talvez?»

— Não.

— Sabe algo a respeito?

— Sei. Um homem que admirava muito Eunice encarregou-se disso. Joe pode morar aqui o resto da vida, se quiser. E eu posso dar uma palavra e o telefone tornar a ser ligado. O corte foi um descuido, quando o aluguel, a luz, a água e tudo o mais estavam pagos.

— Não precisamos de telefone. Acho que metade dos moradores deste andar usam o de Joe como se ele fosse público e grátis... alguns continuam tentando e ficam zangados quando lhes digo que não temos telefone, por favor vão embora, Joe está trabalhando. Hum, o tal homem que admirava Eunice... chama-se «Johann» por acaso?

— Não, não, nem «Johann» nem «Joan». Gigi, não posso lhe revelar sem licença dele e não a tenho, Joe algum dia disse algo sobre o aluguel?

— Para falar a verdade, acho que ele nem pensa sobre isso. Joan, em certos momentos ele é uma criança. Arte e sexo... não repara em outras coisas a não ser quando dá com a cara nelas.

— Então talvez ele não repare nisto. Tenho na bolsa meu contato com o rádio do carro e posso chamá-lo. Se você disser a ele que vai à mercearia, Joe a deixará ir, não?

— Oh, claro. Não fará caso... embora sua mente esteja fixada em pintar-nos o dia inteiro hoje.

— Pois lhe diga que precisa ir e eu ofereci levá-la em meu carro. Podemos fazer um montão de compras, com um carro e dois guardas para carregá-las para nós. Talvez Joe não desconfie que quem pagou fui eu. Ou talvez você possa lhe dizer que vendeu um quadro.

Gigi ficou pensativa. Depois suspirou.

— Você está me tentando, sua putinha gostosa. Mas eu prefiro não fazer isso e comer pizza até que vendamos outro quadro. Ê venderemos. É melhor não se intrometer com um troço que funciona, eu acho.

(Ela tem razão, patrão. Pare com isso) (Mas, Eunice, não há nada para o café, a não ser café e torrada seca. Não importa, mas só há quatro latas aqui e três pizzas: comemos três ontem de noite. E umas coisinhas mais, não muitas. Não posso parar com isto) (O senhor tem de parar. Está querendo cortar os bagos dele? Ou fazê-lo romper com Gigi? Gigi é boa para ele e achará um jeito. Estou ou não estou mais por dentro sobre Joe que o senhor?) (Está, Eunice... mas as pessoas precisam comer) (Precisam, patrão, mas ninguém morre por deixar de comer uma ou duas vezes) (Que diabo, menina, o que é que você sabe sobre ter fome? Eu passei fome nos anos trinta) (Tá bem, patrão, estrague-os. Ficarei calada) (Eunice... por favor! Você disse que eu fui ótimo ontem à noite) (Claro que eu disse e o senhor com certeza foi. Agora mantenha a boa ação deixando-os sozinhos ou achando algum meio de Gigi comprar mantimentos honestamente... mas não lhes dê nada) (Está bem, amada, vou tentar)

— Gigi, isso aqui na geladeira, nesta lata... é gordura do toucinho?

— É. Guardei porque pode ser útil.

— Pode mesmo! E estou vendo dois ovos.

— Bem, é verdade. Mas dois ovos divididos por três é um tanto micha. Porém fritarei um para você e outro para Joe.

— Vá tomar banho, delinqüente infantil. Vou lhe ensinar a cozinha da Depressão, que eu aprendi em 1930.

Gigi ficou subitamente preocupada.

— Joan, você me deixou sem jeito. Não posso imaginar que idade você tem... mas você não é velha, é?

— Depende da maneira de encarar, querida. Lembro da grande Depressão da década de trinta. Eu tinha mais ou menos sua idade. Por essa escala, tenho noventa e cinco. Olhando de outro ângulo, tenho apenas algumas semanas de idade, incapaz de nadar sem ajuda. Sempre cometendo erros. Mas ainda segundo uma terceira maneira de ver, tenho a idade deste corpo — o de Eunice — e quero ser tratada assim. Não me transforme em fantasma, querida... abrace-me e diga que não sou. (Que é que o senhor tem contra fantasmas, patrão?) (Absolutamente nada. Alguns dos meus melhores amigos são fantasmas... mas não gostaria que minha irmã casasse com um) (Muito engraçado, patrão... quem escreve suas piadas? Nós casamos com um fantasma... na sala de exames do Dr. Olsen) (Ufa! Está lamentando, Eunice?) (Não, querido patrão, o senhor é exatamente o velho bode que quero para o nosso bastardinho) (Também a amo, intrometida)

Gigi abraçou-a.

— Primeiro derretemos a banha do toucinho e vemos se não está rançosa... ou muito rançosa. Depois atiramos o pão nela e o fritamos. Mexemos os ovos e já que não temos creme de leite para torná-los homogêneos, usaremos o que acharmos. Decido-me pôr leite em pó, farinha ou fubá. Até gelatina em pó. Não salgaremos ps ovos: a banha pode estar suficientemente salgada. Salgaremos depois, ao provar. Mas se tem molho inglês ou coisa semelhante, poremos um pouco antes de mexer. Então com uma colher botamos esta maluquice sobre seis fatias de pão frito, duas para cada cliente, e salpicamos de páprica ou salsa em pó ou picamos q mais que houver para tornar a coisa enfeitada. Chama-se a isto cozinha criativa à maneira da WPA.* Poremos a mesa da melhor maneira possível: toalha alegre e guardanapos de verdade, se vocês os têm. Uma flor, mesmo que artificial. Ou uma vela. Tudo para ficar atraente. Agora... frito o pão enquanto você bate os ovos? Ou vice-versa?

 

* Works Progress Administration (N. do T.).

 

Joe foi relutantemente para a mesa, comeu um pouco sem prestar atenção... e ficou surpreso.

— Quem cozinhou?

— As duas — respondeu Joan.

— Foi? Gostoso.

— Joan me ensinou, Joe, e farei novamente para nós — acrescentou Gigi.

— Breve.

— Está bem. Joan, você sabe ler, não?

— Ora, sei.

— Foi o que pensei. Há uma carta da mãe de Joe, chegada há três dias. Ando querendo encontrar alguém que a leia, mas Joe tem me mantido ocupada posando e é muito complicado a respeito de quem lê as cartas da mãe dele.

— Gigi, Joan é visita. Falta de educação.

— Joe, sou visita? Se sou, não terminarei o café e não posarei... chamarei Anton e Fred e vou para casa! («Foi o que eu disse a ele, gorducha!») (É uma piada vulgar, Eunice) (Eu sou vulgar, patrão. Pensando nisso, o senhor é tão vulgar quanto as piadas que lhe ocorrem, embora eu só tivesse certeza disso depois de ter acordado dentro da sua cabeça) (Desisto. Mas Joe não pode nos chamar de «visita») (Claro que não. Faça beicinho e o obrigue a beijá-lo... ele nunca o fez de luzes acesas)

Joe disse gravemente:

— Desculpe, Joan Eunice. Joan fez beicinho.

— Você precisa merecer. Precisa me beijar e dizer que sou da família. Não «visita».

— Ela tem razão — afirmou Gigi. — Você tem de beijá-la para consertar.

— Oh, inferno. — Joe levantou, deu a volta até a cadeira de Joan Eunice, pegou o rosto dela, ergueu-o e beijou-a. — Família. Não visita. Agora coma!

— Sim, Joe. Obrigada. (Ele pode beijar melhor) (Ambos sabemos) Mas, Joe, não lerei sua carta a menos que me peça. Gigi, você me espantou quando disse que não sabia ler. Pensei que podia adivinhar pela maneira de alguém falar. É por causa dos olhos?

— Os olhos estão bem. Oh, sou uma verdadeira Mulher Falante, Tive educação, fiz um pouco de teatro. Provavelmente deveria ter aprendido a ler... embora não possa dizer que sinto não ter. O computador estragou a gravação dos meus exames pré-escolares e eu estava no sexto ano antes de alguém ter percebido. Então era um pouco tarde para mudar de pista e fique no «prático». Falaram de me mandar para um curso terapêutico, mas o diretor abafou. Disse que não havia verba suficiente para tratar os que podiam se beneficiar com aquilo. — Encolheu os ombros. — Talvez o fato de ele ser um terceira classe tenha algo a ver com aquilo. Seja como for, não sinto falta. Joe, posso apanhar a carta?

— Claro. Joan Eunice é da família.

Joan achou a letra da mãe de Branca difícil e por isso leu primeiro a carta em silêncio para ver se podia ler alto... e ficou perturbada. (Eunice! Como devo tratar isto?) (Gêmeo, nunca diga a um homem o que ele não precisa saber. Eu censurava, quando era necessário. Até sua correspondência, quando o senhor estava grave) (Eu soube disso, assanhada, quando reli umas que você lera alto) (Patrão, algumas foram diretas para a máquina de triturar. E esta devia seguir o mesmo caminho... tanto tem de ser censurada) (Você foi casada com ele, garota, mas eu não. Não tenho o direito de censurar a correspondência de Joe) (Gêmeo, entre ser «direito» e generoso, sei como voto) (Oh, cale-se, não vou censurar a correspondência de Joe!)

— Leva tempo a gente se habituar com letra estranha — disse Joan Eunice, à guisa de desculpa. — Está bem, lá vai:

 

Querido garotinho:

Mamãe não se sente tão...

— Não leia tudo — interrompeu Joe. — Conte apenas.

— Isso mesmo — reforçou Gigi. — A mãe de Joe escreve uma porção de besteiras sobre vizinhos barulhentos, seus bichinhos de estimação e sobre gente de quem Joe nunca ouviu falar. Ele só quer as novidades. Se houver.

(Está vendo, gêmeo?) (Eunice, ainda assim não vou censurar. Oh, posso deixar de lado as fofocas triviais. Hum, talvez eu copidesque a linguagem) (O senhor fará o melhor possível, patrão, e sabe disso)

— Está bem. Sua mãe diz que o estômago a está incomodando...

(Mamãe não se sente tão bem e parece não haver nenhum alívio. O médico diz que não é câncer do estômago, mas que sabe ele? A tabuleta diz que ele é interno e todos sabem que internos são estudantes e não médicos de verdade. Por que devemos pagar impostos, quando um simples estudante pode quase me matar como se eu fosse um cão ou um gato ou alguma coisa que eles estão sempre cortando por trás de portas fechadas, como dizem na tevê?)

— Joe, ela diz que o estômago anda lhe incomodando, mas que está fazendo exames com um acadêmico de medicina... quer dizer, um médico especializado nessas doenças, muito capaz — e ele garantiu que não é câncer ou coisa semelhante.

(O novo padre não ajuda muito. É um jovem ranhento que pensa que sabe tudo. Não quer ouvir. Garante que tenho um tratamento tão bom quanto o de qualquer outra pessoa, quando sabe que não é verdade. É preciso a gente ser negro para conseguir alguma coisa aqui. Nós, brancos, que construímos este país e sofremos, não passamos de lixo. Quando vou à clínica, eles fazem sua mamãe esperar enquanto as mexicanas entram primeiro. Que acha disso?)

— Ela diz que há um novo padre na paróquia, mais novo que o anterior, que procurou se informar e garantiu a ela que está sendo convenientemente tratada. Mas diz que às vezes tem de esperar muito tempo na clínica.

— Por que não? — disse Joe. — Não faz nada a não ser matar o tempo. Não trabalha.

(Annamaria vai ter filho. Aquele padre ranhento diz que ela deve ir para uma Casa. Você sabe que lugares terríveis são essas Casas, com seus Não-Americanos humilhando as famílias. Eles não fazem isso tio Velho País e foi o que eu disse ao Visitante. Pense na maneira com Que eles jogam dinheiro fora com gente que não merece quando podiam gastar um pouquinho com uma família decente que só deseja ficar no seu canto e não ser chateada. O outro gêmeo Johnson — não o que morreu, o que eu lhe contei que foi libertado condicionalmente — estrepou-se novamente e já era tempo! Há uma família que o Visitante bem podia dar uma olhada... mas oh Não, ele apenas me disse para cuidar da minha vida)

Alguém chamada Annamaria está grávida. Gigi perguntou:

— Essa qual é, Joe?

— Minha irmã caçula. Talvez treze anos. Joe encolheu os ombros.

— Bem, o pároco acha que ela deve ir para uma casa de futuras mães, mas sua mãe acha que ela ficará melhor em casa. Fala algo também de uma família da vizinhança chamada Johnson.

— Não interessa.

(Garotinho, mamãe nunca mais teve carta sua desde que _ Eunice morreu. Não há mais papel de carta no seu bloco? Você não imagina como uma mãe se preocupa quando não recebe notícias do seu filhinho. Espio diariamente na caixa do correio para ter certeza de que ninguém a limpa antes. Mas nenhuma carta do meu pequeno Josie... só propaganda c o Cheque uma vez por mês)

— Ela diz que não tem notícias suas há muito tempo, Joe. Terei prazer em escrever uma para você, antes de ir embora, tudo o que você ditar... e mandar pela Mercury para ter certeza de que ela receberá.

— Talvez. Obrigado — Joe não se mostrou entusiasmado. — Veremos. Primeiro pintar. Mais? Basta dizer.

(Eunice, agora vem a parte pior) (Pois passe por cima!) (Não posso!)

(Vi você na tevê e quase cai dura quando você disse que desistia de um milhão de dólares a que você tinha direito. Sua mãe não significa coisa nenhuma para você? Não eduquei, amei e cuidei de você quando quebrou a clavícula para ser tratada assim. Vá falar com essa Miss Yohan Bassing Bock Smith e diga a ela que pode parar com aquele olhar de zombaria porque eu quero a parte que me toca e vou buscar. Acabei de falar com um advogado e ele disse que fica do meu lado por meio-a-meio assim que eu lhe der mil dólares para as despesas. Respondi que ele era um gatuno. Mas vá dizer a essa presunçosa Miss Smith que pague ou meu advogado bota ela na cadeia!!!!

Às vezes penso que a melhor coisa é pegar todo mundo e ir visitar você até que ela pague. Talvez apenas ficar. Seria difícil deixar aqui em Philly todos os velhos amigos, mas você precisa de alguém para cuidar da casa, agora que não tem mulher para fazer. Não será a primeira vez que faço sacrifícios pelo meu adorado filhinho.

Sua Mãe Amantíssima)

 

— Joe, ao que parece sua mãe viu na tevê a audiência da minha identidade e ouviu seu testemunho. Parece desapontada por você ter dado o dinheiro para a criação de uma fundação em homenagem a Eunice, quando poderia ter ficado com ele.

Joe não fez comentários. Joan prosseguiu:

— Ela diz que talvez reúna a família e venha lhe fazer uma visita, mas da maneira como escreveu não me parece que queira. É tudo, exceto que lhe manda lembranças. Joe, posso compreender que sua mãe tenha ficado desapontada com o que você fez a respeito...

— Problema meu. Não dela.

— Posso terminar, Joe? Por esta carta, acho que ela deve ser pobre e como também já fui, sei como sua mãe se sente. Joe, acho que sua fundação de homenagem a Eunice foi uma coisa maravilhosa, o mais galante tributo que já vi de um marido à memória de sua mulher.

Aprovo calorosamente e acho que Eunice deve sentir-se honrada (Estou patrão. Mas talvez ele tenha se excedido, hem? Jake podia ter estabelecido uma pequena anuidade para Joe — pensão alimentícia — com

parte daquilo. Mas Joe nunca soube fazer as coisas pela metade: ou tudo ou nada. Joe é assim) (Talvez possamos dar um jeito, querida)

— Joe, se eu der uma pensão a sua mãe — você sabe que posso arcar com isso! — não significa que você aceite dinheiro pela morte de Eunice.

— Não.

— Mas eu gostaria! Ela é sua mãe e seria uma espécie de homenagem adicional a Eunice. Digamos o bastante para...

— Não — repetiu positivamente. Joan Eunice deu um suspiro.

— Eu devia ter ficado calada e arranjado as coisas com Jake Salomon. — Decorou o endereço da remetente, com a intenção de fazer aquilo, fosse como fosse. — Joe, você é um homem simpático e posso ver por que Eunice era dedicada a você. Também me apaixonei por você e acho que ambos sabem... sem nenhuma intenção de tomar o seu lugar, Gigi: amo você igualmente. Mas, Joe, doce e galante como você é... também é um tanto obstinado. (Claro que é, patrão, mas não adianta querer mudar as pessoas. Por isso desista. O senhor não precisava espiar aquele endereço. Eu podia lhe dar)

— Joan.

— O que é, Gigi?

— Detesto dizer isto, amor... mas Joe tem razão e você está errada.

— Mas...

— Depois lhe conto. Falaremos quando estivermos posando. Vá ao banheiro, se precisar, enquanto ponho a louça de molho. Joe quer começar.

 

Joan ficou surpreendida ao verificar que podia conversar com Gigi enquanto posavam. Mas Joe lhe garantiu que ela estava com a expressão requerida nas fotografias. Simplesmente desejava que ela ficasse imóvel. Joe esforçou-se mais ainda para dar-lhes uma posição, do que o_ fizera quando fotografara. A conversa não o incomodava, desde que não fosse com ele. Não obstante, Joan tendia a falar sussurrando, enquanto Gigi usava os tons normais de uma conversa entre duas pessoas.

— Agora vou lhe dizer por que você não deve mandar dinheiro para a mãe de Joe. Mas espere um mo... Lá vai ele recomeçar. Joe! Joe! Vista o short e pare de passar pigmento em sua pele. — Joe não respondeu, mas fez o que ela mandou. — Joan, se você tem dinheiro para jogar fora, meta-o na latrina mas não o mande para a mãe de Joe. É uma bêbada.

— Oh.

— Pois é. Joe sabe e o Visitante da Previdência também. Não a deixam receber a pensão familiar em dinheiro: recebe um dos cheques rosados, não um verde. Dá no mesmo porque ela compra mantimentos na esquina e os troca por moscatel. Os distúrbios de estômago... esqueça disso. A menos que queira ajudá-la a beber até morrer. Se fizer, nada se perde. Os filhos poderão ficar melhor.

Joan suspirou.

— Eu nunca aprenderei. Gigi, passei a vida inteira distribuindo dinheiro. Não posso dizer que tenha feito algum bem com isso e sei que fiz muitos males. Eu e minha grande boca.

— Seu grande coração, querida. Esta é a ocasião de não o dar. Eu sei, já me leram um monte de cartas dela. Você censurou esta, não?

— Notou-se?

— Eu notei... porque sei como são aquelas cartas. Aprendi desde a primeira a nunca mais deixar alguém lê-las alto para Joe: ele fica perturbado. Por isso ouço — devoro rapidamente, costumava aprender minhas partes e deixas com apenas duas leituras em voz alta, quando descobri que não dava para atriz — e então adapto para só dar a Joe o que ele precisa saber. Imaginei que você era bastante esperta para fazer o mesmo sem ser avisada e vi que tinha razão. Apenas você podia ter reduzido ainda mais e Joe teria ficado contente.

— Gigi, como pode uma pessoa bacana como Joe — e tão talentosa — sair de uma família como essa?

— Como nos acontece ser o que somos? Apenas acontece. Mas... não é direito difamar os próprios parentes, é?

— Eu não devia ter perguntado.

— Quero dizer que não é direito para mim também. Mas estou. Freqüentemente imaginei se Joe tinha algum parentesco com a mãe. Não se parece com ela. Joe tem uma foto dela quando tinha a idade que ele tem agora. Nenhuma semelhança.

— Talvez tenha saído ao pai.

— Bem, talvez. Mas não garanto pelo velho Branca. Abandonou-a há muito tempo. Se o velho Branca for pai dele. Se é que ela tem alguma idéia de quem é o pai dele.

— Acho que freqüentemente é esse o caso. Veja eu: grávida e solteira. Não posso criticar.

— Não sabe quem foi, querida?

— Bem... sim, sei. Mas nunca, nunca, nunca contarei. Me interessa guardar o segredo e posso me dar ao luxo disso.

— Bem... não é da minha conta e você parece feliz. Mas quanto a Joe: acho que ele é órfão. Filho bastardo de alguém que se meteu com aquela vagabunda, embora não possa imaginar como. Joe não fala a respeito. E geralmente é calado... a não ser que tenha de explicar coisas ao modelo. Mas a mãe exerceu pelo menos uma boa influência sobre ele. Acho.

— Não vejo.

— Joe não gosta de beber. Oh, temos cerveja para os amigos, quando podemos, mas Joe nunca a bebe. Não toca em fumo. Não^ se junta a um Círculo se isso exige entrar no barato. Sabe como é isso das drogas: todas ilegais, mas fáceis de comprar como chicletes. Posso lhe mostrar três conexões, só neste conjunto, onde você pode comprar o que quiser. Mas Joe não toca em nada — Gigi estava meio sem jeito. — Penso que ele foi uma espécie de anormal. Oh, nunca fui viciada, mas não vejo mal algum em fazer uma viagem ocasional com amigos.

«Então fui para a cama com ele e ambos estávamos quebrados. Doces eram o nosso único luxo e... bem, nunca mais toquei emanada desde que ele casou comigo. E não tenho vontade. Me sinto ótima. Uma nova mulher.

— Não há dúvida que você está com saúde e feliz. Hum, esse «Big Sam» era viciado?

— Viciado não. Mas Sam comia, bebia ou fumava tudo o que alguém pagasse para ele. Oh, não ia de pico — a imagem de um guru não combina com marcas de agulha — e tinha orgulho do próprio corpo.

— Que fazia você antes de ser o cheia dele?

— O seu vale de comida, você quer dizer. A mesma coisa: modelo e prostituta. Que mais há para fazer? Cuidar de crianças. Servi bebidas em pêlo durante um certo tempo, mas me mandaram embora quando encontraram uma moça que sabia escrever. Uma discriminação e eu poderia ter lutado, pois nunca confundi os pedidos. Minha memória é melhor que a de gente que precisa escrever as coisas. Mas, que inferno, não adianta tentar se agarrar quando não querem a gente. Joan, você disse que passou a vida distribuindo dinheiro.

— Exagerei, Gigi. Nunca tive muito até que a Segunda Guerra Mundial acabou. Quero dizer que nunca fui mesquinho quando criança, mesmo se cada níquel fosse difícil de obter.

— Níquel?

— Uma moeda de cinco centavos. Costumavam ser cunhadas numa liga de níquel e eram chamadas assim. As de dez centavos e mesmo as de dólar eram cunhadas em prata. Nós tínhamos realmente moedas de ouro quando eu era criança. Então, durante a Grande Depressão, fiquei totalmente liso cerca de seis meses e outras pessoas me ajudaram. Depois, mais tarde, ajudei algumas, às vezes as mesmas que me ajudaram. Mas distribuir dinheiro a granel só comecei quando tinha mais dinheiro do que podia gastar ou queria investir. E as leis de impostos daquele tempo estabeleciam a coisa de tal maneira que se podia ganhar mais dando do que guardando.

— É uma maneira gozada de fazer as coisas. Mas, é claro, eu nunca paguei impostos.

— Você pensa que não pagou. Começou no dia em que nasceu. Poderemos, talvez, suprimir a morte, mas duvido que jamais eliminemos os impostos.

— Bem... não quero discutir, Joan. Você deve saber melhor que eu. Quanto dinheiro você deu?

— Oh, não ultrapassei uns milhares até a Segunda Guerra e a maior parte foram empréstimos que eu sabia que nunca receberia de volta. Conservei registros durante anos... então um dia queimei o livro de lançamentos e me senti melhor. A partir daí... precisaria perguntar ao meu contador. Vários milhões.

— Vários milhões? Dólares?

— Olhe, coisinha, não fique impressionada. Depois de uma certa quantia, o dinheiro deixa de ser dinheiro para ser apenas algarismos num livro de contabilidade ou pontos magnetizados num computador.

— Eu não estava exatamente impressionada e sim confusa. Joan, não tenho sensação de qualquer espécie com tanto dinheiro. Cem dólares eu entendo. Mesmo mil. Mas tudo aquilo é como a Dívida Pública. Nada significa para mim.

— Nem para mim, Gigi. É como uma partida de xadrez: um jogo individual do qual estou cansado. Olhe, você não vai me deixar comprar mantimentos, mesmo se eu ajudar a comer. Quer aceitar de mim um milhão de dólares?

— Hum... não! Isso me assusta.

— Esta é uma decisão ainda mais sábia que a que tomou antes do café. Mas veja o episódio de Diógenes!

— Quem é ele?

— Um filósofo grego que andava à procura de um homem honesto. Nunca achou.

Gigi ficou pensativa.

— Não sou muito honesta, Joan, mas acho que encontrei um homem honesto: Joe.

— Também penso isso. Mas, Gigi, posso dizer por que penso que você foi sábia ao responder Não? Oh, é uma espécie de piada, mas se você tivesse dito Sim, eu não lhe daria. Mas detestaria ter de fazer aquilo com você. Sabe por quê?... Que há de mal em ser rico?

— Pensei que ser rico fosse uma coisa divertida.

— É, de muitas maneiras. Quando se é verdadeiramente rico — e eu sou — dinheiro é poder. Não estou dizendo que não vale a pena ter poder. Veja, se eu não tivesse esse poder brutal, não estaria aqui conversando com você. Estaria morta. E gosto de estar aqui, com você me abraçando e joe nos pintando porque nos acha bonitas... e somos. Mas o poder é uma arma de dois gumes. O homem — ou mulher — que o detenha, não pode se livrar dele. Gigi, quando se é rico não se tem amigos, mas apenas milhares de conhecidos.

— Dez minutos — disse Joe.

— Descanso — explicou Gigi.

— Hem? Mas estávamos descansando.

— Pois levante e se espreguice. Vai ser um dia longo. Se Joe diz que posamos cinqüenta minutos, é porque posamos. Ele tem um cronômetro. E tome uma xícara de café. Eu vou tomar. Café, Joe?

— Quero.

— Podemos olhar?

— Não. Hora do almoço talvez.

— Deve estar indo bem, Joan. Do contrário, Joe não arriscaria um palpite. Joe, Joan me disse que uma pessoa rica não pode ter amigos.

— Ei, espere, não terminei. Gigi, gente rica pode ter amigos. Mas tem de ser alguém que não esteja interessado no dinheiro dela. Corno você. Como Joe. E assim mesmo não significa que seja amigo. Primeiro, precisa encontrá-lo. Depois tem de saber que ele é amigo, o que pode ser — é! — difícil de descobrir. Não há muitas pessoas assim. Mesmo os outros ricos provavelmente não têm as condições. Então é preciso conquistar a amizade... coisa tão difícil para um rico como para qualquer pessoa. Um rico torna-se desconfiado e finge com um estranho, o que não é a maneira de ter amigos. Portanto, em geral é verdade: quem é rico não tem amigos. Apenas conhecidos, mantidos à distância por causa de desilusões anteriores.

Gigi, na cozinha, virou-se subitamente.

— Joan. Nós somos seus amigos.

— Espero que sim. — Joan olhou solenemente de Gigi para o marido. — Senti seu amor no nosso Círculo. Mas não vai ser fácil, Gigi. Joe me olha e não pode deixar de lembrar de Eunice... e você me olha e não pode evitar de imaginar que efeito isso tem em joe.

— Nós não! Diga a ela, Joe.

— Gigi tem razão — falou Joe suavemente. — Eunice morreu. Ela queria que você tivesse o que teve. Eu... o bolo no estômago acabou no Círculo. (Patrão, o senhor se importa se eu sair por um instante e der uma voltinha no meu esqueleto? Uma moça gosta que sintam falta dela um pouquinho) (Eunice, devemos evitar magoá-lo. É tudo o que podemos fazer para curá-lo) (Eu sei. Mas da próxima vez em que ele nos beijar, vou ficar tentada a abrir o verbo e dizer-lhe que estou aqui) (Om Mani Padme Hum) (Om Mani Padme Hum... e merda para o senhor e Diógenes juntos. Vamos para casa e ligar para Roberto) (Ficaremos aqui, querida, até termos quebrado o osso e comido o tutano) (Tá bem, tá bem. Gigi é tão bolinável quanto a Simpática, não é?)

— Joe, quero que nós três sejamos amigos e nunca quebremos nosso círculo dentro do coração. Mas não vou fazer muita força. Não é justo com você, com Gigi/ nem mesmo comigo. Gigi, eu não estava dizendo, que não tenho nenhum amigo. Tenho: vocês dois, um médico que cuidou de mim e que honestamente não liga a dinheiro, a enfermeira com quem ele vai se casar, que é a coisa mais parecida com uma irmã que já tive. Meus quatro motoristas-guardas. Me esforcei em ser amiga desses quatro, Joe, porque sabia que eles haviam sido seus amigos e de Eunice. Mas é uma situação estranha. Sou mais filha deles do que patroa ou amiga. E só me resta um, apenas um amigo dos tempos em que eu era Johann Smith: rico, poderoso e odiado por todos.

Joe disse suavemente:

— Eunice o amava.

— Eu sei, Joe. Só Deus sabe por quê. Exceto que Eunice era tão cheia de amor, que este se espalhava e atingia a todos ao seu redor. Se eu fosse um gato vagabundo, Eunice teria me apanhado e me amado. (Mais que isso, patrão) (Querida) E, Joe, você conhece ou, pelo menos, foi apresentado, ao único amigo a quem me referi acima:' Jake Salomon.

Joe balançou a cabeça.

— Jake é legal.

— Chegou a conhecer Jake?

— De perto. Boa aura. Gigi falou:

— Joe, é aquele sobre quem você me falou? O intermediário?

— Ele — Joe olhou para Joan Eunice. — Pergunte a Jake. Agora, trono.

— Venha, Joan. Ele morde se a gente não posar assim que o período de descanso acaba.

Joe começou a pô-las meticulosamente em posição, moveu ambas as pernas de Joan e uma de Gigi num ângulo ligeiramente diferente da pose original. Recuou e fez uma careta ao ver a mudança... virou-se para o cavalete e começou a raspar a tela com a espátula. Gigi disse, baixinho:

— Agora não iremos ver na parada para o almoço.

— Por quê?

— Só Deus sabe. Não garanto que Joe saiba porque faz uma modificação. Mas algo saiu errado e agora ele abandonou o esboço e está trabalhando diretamente sobre nós. Por isso vai se passar muito tempo antes que tenha vontade de nos deixar ver. Por isso acalme-se, querida. Não espirre, não se coce e nem mesmo respire com força.

— Não falar?

— Podemos falar tudo o que quisermos, desde que não nos mexamos.

— Não quero me mexer. Gigi, fiquei tão satisfeito por saber que Joe e Jake se conhecem bem. Você também conhece Jake?

— Fui apresentada. De passagem. Eu saindo e Mr. Salomon chegando, quando eu era modelo alugado, antes de abandonar Big Sam (Gêmeo, ela está sendo vaga a respeito disso... e Jake nunca mencionou ter posto os olhos em Joe depois de ter acertado tudo com ele, há muito tempo) (Eunice, onde quer chegar? Foi provavelmente quando Jake estava acertando sua conta bancária, o aluguel e coisas assim) («... e coisas», o senhor tem razão. Olhe, patrão, não seja ingênuo. Choraram juntos por causa da mesma mulher — eu — e Joe é ambi como uma ostra quando lhe apetece) (Eunice, você tem uma mente suja!) (E quem me diz isso é «Smith Sem Calças». Sei do que estou falando, gêmeo. Vivi anos com Joe. Não seja tão caretamente século vinte) (Eunice, claro que você conhece Joe melhor que eu, o que me impede de fazer qualquer crítica a ele. Refiro-me a Jake) (O que lhe faz pensar que conhece Jake melhor que eu? E olhe Joe: bacana, hem? Jake tem olhos. Patrão, o senhor está nervoso por quê? Descubra o que Gigi sabe)

— Acho — disse Joan, cautelosamente — que Jake veio cá a negócios. Eunice morreu sem deixar testamento e sei que Jake arranjou as coisas de maneira a que Joe pudesse movimentar a conta bancária dela. E também deve ter havido o seguro para resolver. Não tenho certeza.

— Joan, não sei. Por que não pergunta a Jake, como Joe sugeriu? (Porque Jake vai querer mentir a esse respeito, patrão. Esqueça. Os homens mentem a respeito dessas coisas mais que as mulheres. Alguém se importa onde um homem almoça, desde que chegue em casa ^ na hora do jantar? Eu não. O senhor deu à minha «mente suja» matéria bastante para pensar. Mas, patrão, o senhor é uma tortuosa vagabundinha: não pode ser honesto nem com o senhor mesmo) (Prostituta, se eu pudesse pegar você, lhe daria uma surra!) (E se o senhor pudesse, eu deixaria. É divertido levar uma surra, hem, querido? Faz o ato movimentado como um foguete) (Oh, veja se mete!...) (Onde, gêmeo? O quê? De que tamanho?)

— Não preciso perguntar a Jake, Gigi. Sei que se conheceram por causa de negócios e também sei que Jake admira a integridade de Joe. Simplesmente não percebi que Jake o considerava amigo íntimo. Se é que considera.

Gigi Branca ficou pensativa.

— Não sei dizer. Naquele tempo eu trabalhava no horário estabelecido pela Liga e Joe me pagava. Mr. Salomon — Jake, como você o chama — apareceu uma tarde, quando estávamos acabando e Joe o apresentou a mim como o rábula da ex-mulher dele — advogado, disse ele — Joe não fala gíria quando não quer. Eu o vi mais umas duas vezes, acho, da mesma maneira. Mas não tem vindo aqui desde que nos casamos. (Tapeação, patrão. Traduzindo, significa que ela não quer revelar segredos alheios. Bem, é agradável saber... pensando nisso)

— No importa. Gigi, onde Joe fez sua educação artística? Ou se trata de gênio espontâneo, sem instrução?

— Ambas as coisas, Joan. Vou lhe contar exatamente, pois você levaria a vida inteira para arrancar isso de Joe. Joe diz que todo artista pode aprender sua técnica, mas que a criatividade não pode ser aprendida e que cada artista tem a sua. Se tiver... Joe acha que a maioria das pessoas que se consideram «artistas» não a possuem. Chama-os de «pintores de tabuletas» e acrescenta que é melhor ser um bom pintor de tabuletas a uma fraude que se chama de artista.

«Você viu o que Joe pinta. Aquele meu, ele o fez ontem e outros estão por aí. Pode ver montes mais se perambular pelos bares, livrarias e galerias de arte neste lado da cidade. Nus que parecem mais reais que a vida... não é preciso adivinhar o sexo. A maioria bem caretas, exceto os que são comprados. Oh, Joe pode fazer quadros sexy, já o vi provar isso. Depois ele raspou a pintura... porque perguntei a ele por que não fazia pintura sexy se ele vendia tão bem. Encolheu os ombros e disse que não era o seu gênero.

«Joe sabe que não é Goya, Picasso ou Rembrandt, nem qualquer dos mestres... e não quer ser. Quer apenas pintar seus símbolos, sua maneira e vender o suficiente para comermos. Oh, às vezes fico tão furiosa sabendo que, se ele quisesse pintar apenas uma cena de sacanagem tão intensa quanto ele sabe fazer com facilidade, poderia comer durante meses! Mas desisti de sugerir isso porque Joe apenas encolhe os ombros e diz: «Não pinto histórias em quadrinhos, Gigi, você sabe». Joe é Joe e não liga a menor importância ao que os outros artistas fazem e se sua própria obra vai torná-lo famoso, rico ou ambos. Incomoda-se tão pouco... bem, muitos dos seus amigos são artistas ou se dizem artistas, mas Joe não está interessado no que eles pintam nem no que vendem. Se são boa gente, afetuosa, com boas vibrações, Joe gosta de ir vê-los ou chamá-los para cá... mas Joe não ofereceria uma almofada para Rembrandt sentar se não gostasse do comportamento dele. Joe quer apenas pintar... à sua maneira. E não ter de dormir sozinho.

Joan comentou, pensativa:

— Não acredito que Joe tenha dormido muitas vezes sozinho.

— Provavelmente não. Mas Joe não dormiria com Helena de Tróia se não gostasse da atitude dela. Você falou nos seus guardas... os dois que a trouxeram cá e ainda há mais dois, não é? Um deles grandalhão? Hugo?

— Conhece Hugo? — perguntou Joan, satisfeita.

— Nunca o encontrei. É uma espécie de mito africano. Só sei duas coisas a respeito dele: Joe quer pintá-lo... e Joe o ama.

«Amor espiritual, quero dizer... embora tenha a certeza de que Joe transaria com Hugo se este quisesse. (Ele tem de entrar na fila! Vi Hugo primeiro) (Cale a boca, rabo quente) Pode nunca acontecer, imagino... e Joe nunca tomar a iniciativa. Nunca tomou comigo, nem eu com ele. Apenas transamos no nosso primeiro encontro, sem uma palavra, e combinamos tão bem quando presunto com ovos. (Hummm! Certas moças têm uma sorte danada. Tenho de agarrá-lo) (Você é do tipo impulsivo, querida, e Gigi não) (Essa piada vai lhe custar caro, patrão)

— Tenho a certeza de que Joe nunca insistiu com Hugo para posar. Teria preferido a amizade de Hugo a tê-lo como modelo... embora Joe tivesse me dito que estava com duas obras na cabeça. Uma mostraria Hugo num leilão de quarteirão. Fundo histórico, com senhoras grasnando na multidão: em primeiro plano, de corpo inteiro, Hugo olhando paciente e enfadado e apenas as cabeças e ombros dos grasnantes... com as mulheres quase se babando.

«Mas Joe diz que não pode fazer esse quadro porque iria causar aborrecimentos. O segundo ele está realmente ansioso para fazer: Hugo sozinho, enorme como uma montanha e sem nenhum símbolo sexual — exceto que, para mim, um garanhão enorme não pode deixar de ser sexy — apenas Hugo, forte e sábio, com uma dignidade solene... e carinhoso. São palavras de Joe que estou repetindo. Quer pintar esse quadro e intitulá-lo «Jeová».

— Gigi, talvez eu possa ajudar.

— Hem? Você não pode dizer simplesmente a Hugo que pose para Joe. Joe não gostaria. Não deve influenciar, mesmo para isso.

— Querida, não sou maluca. Mas talvez possa fazer Hugo compreender que não há mal em posar para Joe. Tentar não custa. (Patrão, faça Hugo saber que esteve posando nua para Joe. Então deixe-o pensar) (Claro, Eunice, mas é esse o gambito) (Gêmeo! Você não está pensando em tentar seduzir Hugo, está? Raios, não me responsabilizo por isso! Deixe o Padre Hugo em paz) (Eunice, não sou tão louco assim. Hugo pode ter tudo o que eu tenho. Ele matou o calhorda que assassinou você. Mas nunca lhe imporia nada. Se eu o fizesse, acho que ele iria embora... e depois rezava por mim. Estou com Joe: aceito Hugo como ele é e nunca tentaria torcer-lhe o braço) (Você não conseguiria. O braço dele é mais grosso que suas coxas) (Quero dizer psicologicamente, gêmeo, é você sabe disso)

— Apenas uma coisa, Gigi: Joe teria de mudar o título do quadro.

— Joan, você não conhece Joe. Ele não mudará o título.

— Então deve guardar o título só para ele. Hugo tem princípios tão firmes quanto os de Joe. Não permitirá um quadro onde ele seja denominado «Jeová». Ao seus olhos, isso seria sacrilégio. Mas se Joe concordar em manter o título secreto, acho que posso dar um jeito. Fale com Joe. Mas você ainda não me disse onde Joe aprendeu pintura.

— Oh. Joe sempre pintou. Tenho a certeza de que ele poderia ter aprendido a ler, pois lembra tudo o que vê. Quando tinha mais ou menos quatorze anos, foi levado com outros garotos para passar a noite no xadrez da delegacia e o sargento de plantão deu uma olhada nuns esboços que Joe havia feito enquanto esperava a hora de comparecer perante o juiz para ser advertido. Um dos esboços era um retrato do sargento... e Joe só o vira durante uns minutos escassos.

«Foi a chance dele. O sargento o encaminhou ao padre, livrando-o do registro da queixa e ambos o encaminharam a um artista do bairro, a quem mostraram os esboços do garoto.

«Esse artista era uma mistura de pintor artístico e comercial: quero dizer, ganhava dinheiro. Era também uma outra espécie de mistura. Uma ostra. Pode não ter ficado impressionado com os esboços de Joe, mas fez um acordo com ele. Joe iria posar para ele. Joe poderia se utilizar do estúdio dele, do seu material e desenhar seus modelos... se concordasse em posar quando o pintor necessitasse. Ambos ganharam no acordo. Você sabe como Joe parece agora. Quando tinha quatorze, aposto que era mais bonito que qualquer garota... e não duvido que aquela ostra tenha pensado o mesmo.

«Assim, Joe topou e breve estava comendo e dormindo lá, deixando completamente de morar com a mãe, o que foi a melhor coisa que lhe aconteceu. Joan, aquele estúdio tinha uma cama só, como este.

— Quer dizer que Joe foi a namoradinha dele? Gigi, recuso-me a ficar escandalizada. Apesar dos meus noventa e cinco anos, tento ser moderna.

— Joan, não posso acreditar que você tenha essa idade. É tão irreal quanto aquele milhão de dólares. Eu disse «ostra», não «homo». O artista era casado, ou transava, com seu modelo principal. É possível que esta tenha tirado a virgindade de Joe. Seja como for, ela o ensinou enormemente, foi maternal e boa para ele. Enfim, uma tróia feliz.

«Mas o artista — Mr. Tony, como Joe o chama — apesar de lhe permitir o uso do estúdio, da mesa, da cama e da mulher... era um professor rigoroso. Não permitia a Joe pintar com a espátula ou com o pincel largo, nem deformar, fazer abstrações ou pintura psicodélica: fez Joe aprender a desenhar. Anatomia. Composição. Técnicas do pincel. O > valor das cores. Todos os inacabáveis exercícios da pintura acadêmica, a limpeza dos pincéis e a arrumação do estúdio. Joe diz que se não fosse por Mr. Tony, ainda estaria pintando a pele de imbecis. Joe descobriu sua capacidade, o que queria fazer e aprendeu como fazer. Mas, como me disse, não o que o professor fazia. Porém, em ambos os casos, adquiriu uma velha educação acadêmica. Da maneira mais difícil. Oh, Joe aprendeu a cortar caminhos. Mas pode pintar diretamente na tela — está trabalhando assim desde nossa última parada — e o faz tão parecido com uma foto quanto pode. Ou tão diferente.

 

— ... nunca diga que um pobre é melhor que um rico, Gigi: não é. Tanto o «rico» quanto o «pobre» têm defeitos. A distância que há entre um e outro é provavelmente melhor se a gente consegue aplainar as dificuldades no ponto exato. Mas... Olhe, Joe não a protege, quando você vai às compras?

— Hem? Claro que não. Oh, às vezes vai junto e ajuda a carregar os embrulhos... porém não como guarda. Bem, ele costuma descer no elevador comigo se é uma hora do dia em que pode estar vazio... quero dizer, nem ele nem eu somos loucos e não ando à procura de ser assaltada e morta. Também vai me apanhar embaixo e, se estou atrasada, fica sempre à minha espera. Mas ando de um lado para outro sozinha, como sempre. Apenas não sou maluca de andar à toa.

— Gigi, tenho a certeza disso. Duvido que você alguma vez tenha entrado num parque...

— Nem mesmo ao meio-dia! Fui violentada uma vez e não gostei. Não estou interessada numa suruba onde eles usam a gente, um a um, enquanto ficamos imobilizadas. Deviam policiar cada parque da cidade.

— A cidade inteira seria melhor. Mas, Gigi, você anda por aí bastante livremente. Eu não posso. Não ouso aparecer, mesmo rodeada de guardas, sem estar velada. Não posso me arriscar a ser reconhecida. Tenho de ser cautelosa o tempo todo. Claro, você tranca sua porta. Minha casa, porém, tem de ser bastante forte para resistir ao impacto de uma bomba atirada contra ela. Isso aconteceu várias vezes, desde que a construí. Tenho de esperar tudo: de seqüestradores e assassinos a meros aborrecimentos provocados por gente que quer me tocar.

«Estou me referindo tanto a respeito do que sou hoje como do indivíduo «Johann» que eu fui: dinheiro demais atrai caçadores e criminosos. A única coisa que posso fazer é me rodear de guardas dia e noite, viver numa casa que é um forte, procurar evitar ser reconhecida seja como for e nunca, nunca querer viver o que se chama «uma vida normal». Além disso... Gigi, já imaginou a festa que é para mim quando me deixam lavar a louça?

Gigi ficou espantada.

— Hem? Joan, você me desnorteou. Oh, sei como é complicado ser rico. Vi na televisão. Mas lavar louça não é uma festa. É uma chateação horrível. Muitas vezes deixo-a na pia e depois tenho de enfrentá-la antes do café da manhã. Quando o café fica pronto, perco a vontade.

— Vou lhe dar um conselho, Gigi. Eu soube de algo a respeito da mãe de Joe. Eunice foi minha secretária durante anos. (Nunca falei a respeito dela, patrão!) (Quer me deixar pregar esta mentira a meu modo?) Ela foi — e é — uma porca e vive como tal. Esta casa não é grande. Se você a mantiver impecável, Joe não se incomodará quando você tiver rugas... e todas teremos um dia. Mas uma latrina suja ou louça na pia faz com que ele se lembre da mãe.

Gigi respondeu:

— Joan, vou tentar. Mas não posso cuidar da casa e posar ao mesmo tempo.

— Se esforce ao máximo, amor. Se necessário, deixe de dormir. Joe é alguém que vale a pena se fazer um esforço extra para conservar. Mas estávamos falando de lavar louça: é um aborrecimento para você e um prazer para mim. Lavar a louça significa, para mim, «liberdade». Olhe, cá estamos, nós três, sem empregados. Eu irei embora, você ficará sozinha com seu marido e o mundo não participa. Não quero deixar de participar. Hum... vejamos: quatro guarda-costas, um chefe de segurança, doze vigias internos sob as ordens dele, três sempre de serviço e os outros preparados, ou seja, os casados — a maioria deles — com as famílias morando em minha casa... uma camareira particular, um camareiro que me atendia antigamente e agora cuida dos hóspedes... por isso não posso despedi-lo. Nunca despeço ninguém sem motivo... um mordomo, um cozinheiro-chefe, três... Oh, não lembro. Havia cerca de sessenta adultos lá em casa na última vez em que perguntei.

— Meu Deus, Joan!

— Sim, «Meu Deus!» Para atender a uma só pessoa. Porém, não posso deixar um ir embora sem substituí-lo. Planejei aquela casa e fiscalizei a construção, com a intenção de ter o mínimo possível de pessoal. Por isso está cheia de dispositivos. Coisas como lacaios-robôs e uma cama mecanizada que foi desenhada para me permitir ficar sem enfermeira alguns anos mais, quando estivesse muito velho. Sabe o que aconteceu? Perdi. Tive de contratar um superintendente para a casa, mecânicos de manutenção... ou os dispositivos não funcionariam. Toda aquela complicação — sem nenhuma privacidade real — apenas para cuidar de uma pessoa que não queria que fosse assim.

— Joan, por que não se livra daquilo? Mude-se... e comece outra vez.

— Mudar para onde, querida? Oh, tenho pensado muito nisso, acredite. Mas não era realmente para tornar conta de uma pessoa... e sim para cuidar de dinheiro demais, dinheiro que está me tolhendo... tanto que não posso ficar à mercê de seqüestradores ou qualquer outra coisa. Não posso sequer transformá-lo em moeda corrente e atira-lo na latrina. Não é assim que se faz com gaita alta. E mesmo que eu pudesse e fizesse, ninguém acreditaria. Basta que eu me livre da proteção e provavelmente não ficarei viva dois dias. Além disso... Você gosta de gatos?

— Adoro! Me prometeram uma gatinha para breve.

— Ótimo. Agora me diga: como a gente se livra de um gato que criou?

— Hem? Ora, não se livra. Não, se a gente é decente.

— Concordo, Gigi. Tive muitos gatos. A gente os conserva. Se somos forçados, mandamos destruí-los humanamente... ou se temos coragem os matamos pessoalmente, para evitar um trabalho malfeito. Mas não se dá um gato crescido. É quase impossível. Porém, Gigi, não se pode matar gente.

— Não compreendo, Joan.

— Que farei com Hugo? Está comigo há vários anos e vem fazendo a única coisa que sabe fazer... exceto pregar, o que realmente não é remunerativo. Empregados leais, Gigi, são obrigações, como os gatos. Claro, eles podem arranjar outros empregos. Mas que faria você se Joe lhe dissesse «Caia fora. Parei com você»?

— Eu choraria.

— Não creio que meus empregados chorassem, mas eu sim.

— Mas eu iria embora! Joan suspirou.

— E o regimento que tenho à minha volta também iria, acho eu. São capazes ou não estariam trabalhando comigo... e tenho dinheiro bastante para garantir que uns como Hugo ficassem^ amparados. Essa é uma das boas coisas de ser rico: se o dinheiro é só o que se precisa para remediar alguma coisa, é fácil. Gigi, há uma solução para este embaraço em que me encontro e vou achá-la... estava apenas tentando mostrar-lhe que não é tão simples como parece no vídeo. A solução pode ser algo tão fácil quanto mudar novamente meu nome, meu rosto com cirurgia plástica e ir para outro lugar.

— Oh, não, você não pode mudar seu rosto.

— Não, você tem razão. Não devo mudar este rosto. É o de Eunice. Sou apenas a depositária dele. Se o mudar, Joe não gostará. _ bem como inúmeras outras pessoas. (A começar por mim, patrão) (Não modificarei seu rosto encantador, querida. Gosto dele) Vai ficar como está... mas tenho de mantê-lo coberto. Apareceu demais no vídeo e foi fotografado e impresso muitos milhões de vezes. Mas há um meio de resolver o caso.

 

Joan Eunice olhou para o quadro recém-terminado quase com terror. Sabia o belo corpo que havia herdado. Sabia que Gigi era uma beleza de outro tipo. Podia ver que aquelas «donzelas gregas» eram ela e Gigi e não podia ver nenhum detalhe no qual o quadro não fosse uma perfeita reprodução de cada.

Porém o «realismo» de Joe Branca era fantasia. Aquelas duas ninfas numa clareira eram voluptuosas, sensuais, tentadoras, de uma maneira que ela sabia que ambas não haviam sido: estendidas numa plataforma de caixotes e fofocando sobre tudo, desde uma alcoólatra até louça suja.

— Que é que você acha? — perguntou Gigi. — Diga o que quiser. Joe não liga a mínima a qualquer opinião que não seja a dele.

Joan respirou fundo e suspirou.

— Como ele consegue? Estou com os mamilos duros só de olhar. Contudo somos nós duas, que ficamos deitadas ali durante horas e não fizemos nada para obter esse resultado. Falamos de tudo, menos do assunto «principal»... nem mesmo nos afagamos porque tínhamos de ficar imóveis. Todavia, esta obra agarra a gente pelas gônadas e espreme. Tenho a certeza de que fará o mesmo efeito num homem.

Joe disse, por trás delas:

— Ilusão de óptica. Joan respondeu:

— Ilusão de óptica uma ova, Joe. Meus olhos não foram iludidos, estou encantada. Quero comprá-lo!

— Não.

— Hem? Oh, merda. Você está planejando vendê-lo a uma velha machona qualquer. Deus sabe que noventa e cinco anos é velhice... e me sinto bastante qualificada para machona quando olho para o quadro.

— Seu.

— Hem? Joe, não é justo. Você pretendia vendê-lo, como disse. Gigi, me ajude.

Gigi preferiu ficar calada. Joe disse, teimoso:

— Seu, Joan. Você quer, você leva.

— Joe, você é o maior teimoso que já encontrei e não sei como Gigi o agüenta. Se me der esse quadro, vou destruí-lo imediatamente...

Gigi gemeu.

— Oh, não!

Joe encolheu os ombros.

— Seu problema. Não meu.

— ... mas se me vender ao preço que estabelecer, vou levá-lo comigo e dá-lo a Jake Salomon, para que este o pendure aos pés da cama e fique feliz todas as manhãs ao acordar. (Você o bombardeou, gêmeo! Agora volte e metralhe os sobreviventes) É só escolher, Joe. Se me der, estraçalho. Mas se me vender, farei presente a Jake Salomon. Oh, você pode recusar ambas e expô-lo para vender. Então serei obrigada a contratar detetives para saber onde está exposto e o comprarei por intermédio de um agente. O que farei com ele, não direi. Ou também pode guardá-lo para seu próprio prazer. Será uma punhalada.

Gigi disse:

— Deixe de ser cabeçudo, Joe. Bem que você gostaria que Jake o possuísse.

— Gigi, quanto Joe cobra por um trabalho como este?

— Oh, eu estabeleço o preço. Na maioria das vezes, vendo-o a metro. Pelo tamanho.

— É? Quanto custa este tamanho?

— Bem, costumo pedir duzentos e cinqüenta por este tamanho.

— Ridículo!

— Realmente, Joan, considerando que ocupou meu tempo e o de Joe toda a noite de ontem e o dia de hoje — para não falar no seu, mas como você vai comprar não incluí a segunda figura nele — considerando tudo isso e a comissão que pagamos, não é demais...

— Querida, eu quis dizer «ridiculamente» baixo. Não turno comprado muitos quadros nos últimos vinte anos, mas estou certa de que não é uma obra de menos de mil dólares... que vai subir como um papagaio até onde o mercado permitir. Posso lhe dizer isto: quando Jake morrer e este quadro for leiloado, ninguém o conseguirá por menos de mil e irá i mais porque certamente estarei no leilão e sem disposição para deixá-lo sair da família. Mas não estou aumentando o preço agora. Nunca faço tal coisa. Você fixou em duzentos e cinqüenta. Aceito. Está comprado.

— Joan, você nunca me deixar terminar.

— Oh, desculpe, querida.

— Tento conseguir duzentos e cinqüenta quando exponho numa galeria. Mas a metade vai para o proprietário. É a única maneira que tenho de conseguir expor. Portanto, o preço para você é cento e vinte e cinco.

— Não.

— Por quê?

— Só «não», como me disse Joe. Como boa comerciante, você nunca deveria dividir com o dono da loja. Acho que ele está lhe roubando. A comissão devia ser vinte e cinco por cento, no máximo. Mas não rebaixe o preço que quer que ele peça... não é assim que se faz negócio. Não entendo muito de arte... mas entendo paca de negócios. Em dinheiro ou cheque?

— Dinheiro é perfeito. Se tiver tudo isso com você. Ou pague quando quiser.

— Quero pagar agora e ter um recibo, de maneira a que o quadro se torne legalmente meu... antes que o cabeçudo do seu marido resolva me contrariar outra vez. Menina Gigi, quer que faça o recibo em seu lugar?

— Oh, tenho fórmulas impressas para isso. Sei escrever algarismos e fazer minha marca. Não tem problema.

— Ótimo. Porém quero mais uma coisa.

— O quê, Joan?

— Quero ser beijada. Fui muito boazinha, posei o dia inteiro e nem ganhei um beijo. Por isso quero que Joe me dê um beijo por ter sido tão encrenqueiro... e quero beijar você por ter me ajudado tanto. Joe, me dá um beijo?

— Dou.

— Assim é melhor. Joe, quer acompanhar duas moças bacanas — eu e Gigi, quero dizer, e não duas maluquinhas sabidas — ao supermercado? Já que Gigi vai comprar um filé para comemorar, quero mostrar que sou capaz de o grelhar. Vai comprar filé, Gigi?

— Claro! Vaca ou cavalo?

— Hum... querida, sou forçada a confessar que há anos não vou às compras. Você que acha?

— Bem... acho melhor cavalo.

— Como quiser. Contanto que não nos vendam a sela.

 

Nas Nações Unidas, a delegação birmanesa acusa as chamadas Colônias Lunares de servirem de cobertura para uma conspiração entre a China e as Nações Unidas com o objetivo de construírem bases militares na Lua. A Secretaria de Conservação e Antipoluição desmente o relatório informando que os veados, no Parque Nacional de Yosemite, estão «morrendo em manadas, em conseqüência de águas poluídas e enfisema». Afirma que um saudável reequilíbrio ecológico está tendo lugar — não havendo necessidade de alarma — e que os novos rebanhos são mais fortes que os antigos.

O Reverendo Dr. Montgomery Chang, Doutor em Teologia, Humilíssimo Chefe Supremo do Caminho, S.A., depôs perante a Subcomissão da Lei Fundada nos Costumes, da Comissão Jurídica do Senado, em defesa da lei pendente que exige licença federal para os professores de Zen Budismo e terapias correlatas como «terapistas de facto et de jure»: «Esses gurus de contrabando estão dando ao misticismo racional uma péssima fama. Não se pode mais permitir o ensino da meditação, asanas, ou filosofia transcendental, sem um controle severo por uma junta de licenciamento, enquanto se permite esquiar, fazer surf ou emoldurar um quadro sem prestação de um exame. A idéia de que esta lei irá restringir as sagradas garantias da Primeira Emenda é uma esfuziante asneira. Ela protege e liberta-os». Ao ser interrogado, declarou que estaria humildemente disposto a servir de presidente da junta, se lhe fosse pedido esse sacrifício. Sobreviventes do Furacão Hilda ainda estão sendo resgatados e as perdas por morte, conhecidas até agora, chegam a 1.908.

O Departamento de Defesa Interna determinou uma proibição temporária de transmissão interestadual de informações concernentes a desordens públicas envolvendo mais de três pessoas, e depois estabeleceu uma segunda, com penas rigorosas, para a publicação da primeira ordem de censura. O Secretário informou ao Presidente que as agências de notícias e as redes de vídeo estavam colaborando voluntariamente, visando ao bem-estar geral. No que se refere ao caso de identidade do tubarão dos Conglom Johann S. B. Smith, o Supremo Tribunal tomou uma decisão categórica, só tornada notável por ter Mr. Justice Handy, acordando no meio da leitura, esmurrado a mesa e dito: «Divórcio concedido!», voltando a dormir. Decidiu por sete a dois confirmar a instância inferior, ampliando e esclarecendo o princípio originalmente estabelecido em Espólio de Henry M. Parsons contra Rhode Island. Quatro da maioria e um discordante entre os juizes decidiram também que havia uma mudança legal de sexo envolvida no assunto. Dois juizes pensavam de maneira diferente. Um (Mr. Handy) gastou vinte páginas provando que essa composição de sexos era contrária ao interesse público e às leis de Deus, que ambos, Johann Smith e Eunice Branca, estavam legalmente mortos e que o monstro deles resultante não tinha existência legal de espécie nenhuma. O nono juiz, num voto em separado, opinou que o sexo era irrelevante no assunto. Um da maioria, em outro voto em separado, declarou que o corpo cio doador deveria ter sido esterilizado cirurgicamente no interesse público e que o Congresso faria bem em tornar essa esterilização obrigatória, tendo em vista situação similar no futuro. Nenhum juiz se referiu aos depoimentos de treze amici cariae e uma lista em poder do Tribunal. Numa decisão proferida no mesmo dia (Illinois contra Sam J. Roberts) a condenação foi estabelecida, levando em conta que o dono da casa (falecido) não informara Roberts dos seus direitos antes de tentá-lo colocar sob as penas da lei.

 

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Tendo como base a prova apresentada pela delegação chinesa na Comissão de Energia Atômica das Nações Unidas, foram ampliados os níveis de tolerância do estrôncio-90 no leite integral. O Reverendo Thomas Barker, de Long Beach, Califórnia, declarou, num vídeo-sermão no programa Tempo-Igual-para-Deus, que o Mundo havia acabado à meia-noite do dia 31 de dezembro de 1999 e que tudo desde aquele dia era «ilusão do Diabo, sem forma, substância ou realidade».

 

Miss Smith cumprimentou O'Neil e pediu-lhe que mandasse Dabrowski e Fred buscar com ela no andar de cima dois enormes embrulhos achatados, um tão grande que teria de ser inclinado para passar na porta do elevador. Quando os embrulhos, os guardas e ela própria acomodaram-se dentro, Joan trancou a porta e apertou o botão «Parar» sem dizer em que andar e deixou cair a capa.

— Quero dar-lhes um beijo de obrigado-adeus, rapazes, mas pelo amor de Deus não se sujem de tinta ou vai dar galho. É melhor que apenas segurem meu rosto... mas não há pressa.

Logo depois ela se olhou no espelho do elevador e achou que a pintura e o penteado haviam sofrido quase nada. Deixou Dabrowski pôr-lhe a capa nos ombros, apertou o botão do seu andar e abotoou-se de alto a baixo, ficando de novo inteiramente coberta. Quando o elevador parou, recolocou o véu.

— Levamos para seu boudoir, miss, ou para a sala de estar?

— Primeiro vamos ver se Mr. Salomon está recebendo. Acompanharam-na pelo enorme corredor, até a Suíte Verde. Joan

reparou que a placa luminosa em vermelho-vivo «Por favor, não incomode» não estava acesa por cima da porta da sala de estar de Jake Salomon. Assim, tocou a campainha.

O alto-falante sobre a porta berrou: «Entre!». A porta se abriu. Ela entrou.

— Ponham aqui dentro e podem ir.

— Muito bem, miss.

Assim que eles saíram e a porta se fechou, Jake surgiu do quarto, desgrenhado. Parou abruptamente.

— Bem! Onde diabo você andou?

— Fora.

— Arrumpf! Cinco dias. Cinco dias inteiros!

— E daí? As galinhas não foram alimentadas? Os porcos não receberam lavagem? As vacas não foram ordenhadas?

— Não se trata disso. Eu...

— Se trata disso, Jake. Nada foi descuidado na minha ausência. Você não quis casar comigo e por isso não tenho de lhe dar satisfações dos meus atos. Embora, por cortesia, tenha deixado um bilhete com Cunningham dizendo a você onde eu fora. Recebeu?

— Sim, mas...

— Então sabia que eu estava a salvo... e, numa emergência, tinha para onde me mandar um recado. Ou ir me encontrar. Seria bem recebido. Você sabe que Joe lhe faria boa recepção... e Gigi é afetuosa como um cachorrinho.

— Gigi?

— Você a conhece. Quero dizer: já a viu. Mrs. Joe Branca.

— Quem?

— Por que a surpresa, Jake? As pessoas tornam a casar... principalmente se um casamento anterior foi feliz. Joe foi feliz, agora está e eu também porque ele está... e certamente Eunice também (Claro que estou, patrão. Alas não sejamos muito «nobres». A «nobreza» é uma prerrogativa masculina. Assim pensam os homens)

— Não posso acreditar.

— Que tem de estranho um viúvo tornar a casar?

— Não posso imaginar que alguém que tenha sido casado com Eunice possa jamais casar com outra mulher. (Meu fã! Gêmeo, temos de ser especialmente carinhosos com Jake esta noite) (Se ele não começar a ser bacana comigo, vai dormir sozinho esta noite! Mas não devo. Imagino se Anton e Fred já foram embora) (Calma, patrão. E deixe Jake se acalmar) (Ainda não, não quero! Ele está errado e eu tenho razão) (Geminho, quanto tempo você vai levar para aprender que ter «razão» nada tem a ver com concordar com um homem? Os homens não são lógicos, suas mentes não funcionam dessa maneira. Mas é assim e por isso, quando um homem está errado e você certo, chegou a hora de pedir desculpas. Diga-lhe que sente... e finja com convicção. Om Mani Padme Hum)

(Om Mani Padme Hum... às vezes acho que ser mulher é encrencado demais. Se não fosse tão danadamente divertido! Tá bem, garota, veja como eu o domino)

— Querido Jake, sinto que o novo casamento de Joe tenha preocupado você... mas por que não esperar antes de achar que ele cometeu um erro? Joe precisa de uma esposa... mesmo que ela não seja uma Eunice. Sinto muito ter preocupado você não estando em casa quando voltou... e sinto também por mim. Esperava recebê-lo de braços abertos e um sorriso alegre. Mas não pensava que ficasse fora menos de uma semana e tive a impressão de que você supunha que iria levar mais tempo... talvez muito mais.

— Bem, sim, pensei que poderia ter de ficar fora mais tempo. Mas consegui ver o Presidente do Tribunal no segundo dia e ele me garantiu que nos poria no início da pauta... e que havia visto — oficiosamente — uma transcrição preliminar da gravação. E foi isso.

— Hummm! Fundos para a campanha às vezes são rentáveis.

— Joan Eunice, nunca diga isso. Especialmente com relação ao Presidente do Tribunal dos Estados Unidos. Sim, esta casa é sua, mas pode-se colocar nela aparelhos de escuta.

— Desculpe, Jake. Foi um comentário impensado. Meu reconhecimento é dirigido a quem merece. A você.

— Mais a Mac que a mim, minha querida. Ele esteve no fogo. Como conseguiu uma cópia adiantada para o, hum, homem exato tão rapidamente é algo que nem quero saber.

— Aprecio os esforços de Mac e também os de Alec... mas sobretudo os do meu querido, sempre de confiança, completamente maravilhoso Jake. (Você acha excessivo, Eunice?) (Patrão, continuo lhe dizendo: é impossível para uma mulher ser excessiva com um homem. Se o senhor disser a um homem que ele tem dois metros e cinqüenta de altura e insistir nisso freqüentemente com ar de admiração e um tremor na voz, esse homem começará a inclinar a cabeça ao passar por portas de dois metros e dez)

jake ficou satisfeito e por isso Joan continuou:

— Suponho que tudo será resolvido breve, não?

— Coisinha, você nunca ouve o noticiário?

— Só quando não posso evitar.

— Bem, pois devia. Está resolvido. Você ganhou de fora a fora.

— É mesmo? Nunca duvidei de que íamos ganhar, Jake, pela maneira maravilhosa com que você cuidou de tudo. Minha única surpresa é ter acontecido tão depressa. Sim, acho que devia ter ouvido o noticiário. Mas nos últimos dias não estava dando pé. Tinha aquele trabalho difícil para fazer — Joe, sabe — e me pareceu a melhor ocasião quando você estivesse fora... assim, rangi os dentes e enfrentei o problema.

— Joan Eunice, disse-lhe para nunca se aproximar de Joe. Eu disse. Se esse novo casamento dele é sempre uma oportunidade — sim, intelectualmente sei que um homem deve tornar a casar — se for realmente uma oportunidade, você deve ter causado uma tremenda tensão. Provavelmente uma tensão excessiva. Hum... como Joe encarou a coisa? Muito mal?

— Jake, fiquei lá cinco dias. Se corresse mal, eu teria ficado um dia sequer? Cumpri minha missão. Está tudo certo.

Jake ficou surpreso e depois pensativo.

— Hummm! É um estúdio de um só quarto... e se compreendi o que disse, você permaneceu lá dentro todos os cinco dias. Minha querida, exatamente de que maneira «cumpriu sua missão»? Ou não tenho o direito de perguntar?

Ela o encarou e respondeu gravemente:

— Jake, devo-lhe tanto que você terá sempre o direito de perguntar tudo. Inclusive minhas idas e vindas, sem que eu lhe dê uma resposta ríspida. (Na realidade não lhe disse que ele tinha direito a uma resposta sincera, hem, patrãozinho? Vagabundinha tortuosa) (Eunice, não minto ao Jake...) (Oh, que mentira!) (... mais que o necessário para a felicidade dele)

— Jake, cumpri minha missão — tranqüilizei a mente de Joe a respeito de Eunice — através de uma «sessão de preces». Com a ajuda imprescindível de Gigi, o que é apenas parte do porque tenho certeza de que ela é boa para ele. Mas se pensa que lhe ofereci um zumbi ^— a esposa morta num corpo reanimado — eu sabia que não era esse o caminho. Joe não me tocou. Oh, ele agora pode me tocar, facilmente e sem tensão, da mesma forma com que tocará a própria irmã. (Algum incesto na família de Joe, gêmeo? Nunca tive certeza) (Oh, cale a boca!) Me beijou da mesma maneira. Mas, Jake...

— Hem? O quê, querida?

— Se Joe quisesse este corpo que estou usando, claro que o teria. Devo-lhe tudo o que puder dar-lhe. Compreende, não? Concorda? Ou estou errada?

— Hum... sim, concordo. Mas acho que foi bom Joe não querer. Poderia ser um desastre para ele... e uma terrível tensão para você.

— Sei disso. Mas faria o impossível para sorrir e nunca deixá-lo perceber. Como está, fico honrada — e aliviada — e profundamente agradecida a Joe por me ter dado, em vez daquilo, sua terna amizade. (Tá bem, Eunice?) (Tá. Agora mude de assunto)

— Estou contente, Eunice.

— Jake, temos de ficar aqui, eu ainda com a roupa de rua? Trouxe presentes para você: presentes de boas-vindas. — Exibiu seu melhor sorriso tipo garotinha-feliz. — Quer vê-los?

— Claro que sim! E onde está minha educação, deixando-a aí de pé? Olhe, sente aqui e me dê sua capa. Sherry?

— Mais tarde. Melhor champanha para comemorar sua volta ao lar. Nossa volta ao lar.

Virou-se e deixou-o tirar-lhe a capa dos ombros. Jake também virou-se para depositar a capa e voltou-se ao mesmo tempo que ela.

— Vaca Sagrada!

— Eu não sabia que você era hindu, Jake.

Fez uma pose, numa graciosa e calculada exibição.

— Você usou isso na cidade o tempo todo? Apenas pintura?

— Por que não, querido? É o seu primeiro presente: de Joe para você, com amor. Vesti a capa antes de sair do estúdio de Joe e Gigi, conservando-a até chegar em casa... até você desembrulhar seu «presente». Eu não queria, é claro, que meus guardas vissem (Oh, claro, gêmeo... exceto que Joe os deixou ver cada pincelada, quando Gigi teve a certeza de que você não se importava. Sabe, Joan, Gigi gostaria de ter feito uma Estrela do Texas com Anton e Fred, tenho certeza. E Joe aceitaria, pois gosta deles. Que acha você? Uma maneira fácil de cumprir a promessa que lhes fez, hem?)

(Eunice, agora temos este homem nas mãos) (Oh, coitadinho de você. A melhor maneira do mundo de fazer um homem ficar zangado é começar a pensar em outros homens. Garota, há muito de puritano em você) (Que puritano? Onde? E por que não percebi? Você não se

refere a Jake. Ele é judeu. Falando de Jake, ele terá percebido essa ligeira omissão nesta maquilagem? E por que não fomos violadas?) (Duvido, seus olhos estão inquietos. Quanto à segunda pergunta, tenho esperanças)

— Joan Eunice, você percebeu que esta é a reprodução exata — me parece — de uma pintura corporal usada por Eunice?

— Claro que percebi. Usou-a aqui... e eu não estava tão moribundo para não olhar. Nunca pude decidir se estas eram conchas ou pintura. Agora sei. Joe queria ter certeza de que você o vira daquela vez, quando Eunice o usou. Disse-lhe que eu estava quase certo de que você estivera aqui naquele dia.

— Bem, estive sim. Rapidamente. Foi por isso que reconheci.

— E daí? Parece-me que lembro ter sido um dos dias em que você levou Eunice para casa. Hummm?

— Joan, está querendo bisbilhotar?

— Estou.

— Mulher, não satisfarei sua curiosidade lasciva.

— Que acha sobre satisfazer a própria lascívia? A minha, quero dizer.

— Isso é outro assunto.

— Eu estava pensando. Até agora você não me beijou. Devo tomar um banho primeiro? Ou será melhor perguntar: Eunice deixava tirar a pintura primeiro?

— Prefiro encarar assim; cale a boca, não fale, bico calado e não diga mais nada até que eu permita.

— Sim, senhor.

Obedeceu com afinco durante um certo tempo.

— Agora posso falar?

— Sim, desde que limite sua fala a palavras educadas de apreço. Alguns dos seus comentários espontâneos são indignos de uma dama.

— É por isso que sou uma dama bastante indigna. Jake, meu único querido. Sou um fracasso como dama. Mas continuarei a fazer força para me parecer com uma em público... em honra de Eunice.

— Joan Eunice...

— Senhor?

— A própria Eunice procederia assim. Uma dama perfeita em público... totalmente desinibida em particular. Grande parte do seu charme era isso. Algumas de suas expressões espontâneas eram, às vezes, muito mais «indignas de uma dama» que qualquer dita por você.

— É mesmo, Jake? Ela sabia alguma que eu não sei? E você gosta delas?

— Hummm, não acho que ela soubesse alguma desconhecida de você. Apenas começou a se expandir quando confiou em mim. Sim, gosto delas, quando ditas espontaneamente.

— Jake, confio ilimitadamente em você... e ^ procurarei não reprimir nenhuma espontaneidade futura. Não quis dizer aquilo. Continuo aprendendo.

— Querida menina, você é perfeita quando encontra apoio. Quero dizer, «meu apoio». Agora que a tenho a minha mercê — e vendo que você «confia ilimitadamente» em mim — que aconteceu em casa de Joe?

— Senhor, o fato de confiar no senhor — e confio! — não significa que vá satisfazer sua curiosidade lasciva.

— Hummm... Eunice também nunca.

— Em vez disso, você vai me dizer o que aconteceu com você. -em casa de Joe.

— Acho que chegamos a um impasse. Vamos tirar essa pintura Gostaria de ter feito uma foto da nossa sereia, antes de estragá-la

— Nada de choro, amado Jake. Joe tirou várias e estão na minha bolsa. Para você. E tenho duas de Eunice com a mesma maquilagem, uma para você e outra para mim. Além disso, Joe me deu um kodachrome nove por doze do mais incrível quadro trompe-l’oeil que ele fez de Eunice, como uma sereia mergulhando... e mais uma pequena transparência mostrando como ele fez a coisa. A mesma pintura corporal sem conchas.

— Você ficará surpresa ao saber que vi ambas? Apenas não tive coragem de promover Joe à custa delas.

— Não, acho que não me surpreende. Mas não o pressionei, Jake. Joe disse que tinha um presente para mim... e acontece que o presente eram essas fotos. Devia recusar? Deus me livre. Mas vou pôr detetives trabalhando para saber quem comprou aquele quadro. Quero adquiri-lo. Não importa o preço.

— Seu dinheiro não chegará, Miss Smith. Ficaria surpresa se soubesse que possuo aquele Branca original? Está no Gib.

— Raios me partam! Jake, você é um salafrário. Quero de volta dez por cento dos elogios que lhe fiz.

— Tá bem. Eu não acreditei em mais de noventa por cento. Mas se você for boazinha, lhe darei aquele quadro.

— Aceito! Mas... bem, agora quase não vale a pena abrir estes embrulhos. Podem desapontar.

— Quer levar uma surra?

— Quero.

— Estou muito cansado. Vamos abrir os embrulhos.

— Bem... podemos abrir o menor. Para você ver como Gigi é, se não se lembra. Vale a pena olhar para ela.

— Abriremos ambos.

— Uma esfregadela primeiro?

— Acho que devemos.

— Bem... vou lhe dar uma chance, mas prometa não transformar isso num acontecimento social.

Joan Eunice insistiu em abrir «Bilitis Canta» primeiro.

— Então, Jake?

Jake emitiu um respeitável uivo de lobo.

— O cara é um gênio.

— É. Nunca suspeitei. Mas você viu logo.

— Bem, vi. A idéia de usar um refletor forte sobre as duas, acentuando o contraste da cor das peles, foi excelente.

— Principalmente porque não havia refletor... mas apenas luz do norte, filtrada pelo smog, transparente como um lençol velho. Essa luminosidade é proveniente dos focos usados para as fotografias na noite anterior. Então, no dia seguinte, pintou nos tendo como modelos. Porém numa pose diferente... e não sei como corrigiu a luminosidade. Mas não sou gênio.

— Que é que há no embrulho maior?

— Abra.

Eram «As Três Graças»... e todas Joan Eunice.

— Joe chama a isto quadro barato, Jake. Fotografou-me três vezes — apague e corrija — mais corretamente trinta e tantas vezes, contra um fundo neutro, e depois combinou três fotos para o quadro. Fez Gigi posar comigo, para obter braços-em-torno-da-cintura todas as vezes e depois ela deslizava como uma serpente, deixando-me só. Se ele não usasse «tapeação», o quadro levaria muito mais tempo. As co-vinhas no meu traseiro não são lindas?

— Mulher, você é bastante vaidosa.

— Não sou vaidosa, Jake. Eu não era elegante quando jovem. Sei de quem é este lindo traseiro. Então, querido? Eu pretendia ficar com «Bilitis» e lhe dar as «Graças»... mas você tem direito à escolha.

— É uma escolha difícil!

— A que deixar comigo estará à distância máxima do vestíbulo. Se você tivesse casado comigo, como tão evidentemente deveria ter feito, seu estuprador lúbrico, não precisaria escolher. Ambas seriam suas! Jake, quanto custará comprar um monte de opiniões de críticos de arte?

— Bem, a colheita atual não deve estar custando mais de dez centavos a dúzia, mas tudo custa caro atualmente. Vejo que está pensando em joe Branca.

— Claro. Anda vendendo seus quadros por preços ridiculamente baixos e pagando comissões monstruosas... e vende tão pouco que aquelas crianças mal têm o que comer. Enquanto os picaretas, tapeadores e pintores de tabuleta estão na moda. Pensei...

— Pode parar de pensar. Já vi tudo. Arranjamos-lhe um bom agente, compramos o que ele tem no mercado, usando testas-de-ferro... e ficamos com eles. São um ótimo investimento... Compramos críticos de arte aqui e mais tarde em outros lugares, quando ele se tornar mais conhecido. A pergunta é: até que ponto deve chegar o sucesso dele? Preciso fazê-lo entrar para o Museu Metropolitano?

— Jake, não creio que Joe queira ser famoso. E não quero que a coisa fique notória a ponto dele desconfiar. Ou Gigi. Ela é um pouco mais esperta. Isto é, não muito. Quero apenas que seus quadros vendam regularmente o suficiente para que Gigi possa comprar mantimentos sem dificuldades e possa ter lençóis suficientes para mudar diariamente, se quiser. Aquelas crianças estão tentando se manter com as raspas da geladeira e sopa de pano de pratos. Tentei isso na Depressão e não foi divertido. Não vejo razão para Gigi ter de viver assim, quando é casada com um artista de Deus que pode pintar... e exerce a profissão. Alguém que não perde tempo enchendo a cara ou puxando fumo e falando sobre os quadros que vai pintar. Joe pinta. É tão bom artesão quanto artista. Bem, talvez eu não saiba o que é um artista, mas sei o que é um artesão e respeito os artesãos. Há pouquíssimos neste mundo decadente.

— Está resolvido. Faremos isso. Mesmo que tenhamos de subir o preço a quinze centavos a dúzia.

— Até vinte e cinco centavos. Vamos acabar de tirar a pintura — tenho de mandar buscar azeite de oliveira — e você pode ser bonzinho pedindo a Winnie que me traga um roupão grosso ou vai você mesmo buscar se ela não estiver em casa... deixe, posso voltar para meu quarto de capa, sem dificuldade, e...

— Arrumpf.

— Eu disse outra bobagem?

— Minha querida, tenho uma comunicação a fazer. O Dr. e Mrs. Roberto Carlos Garcia y Ibanez partiram em lua-de-mel.

— Como? Ora, a ratazana suja! Nem esperou pela irmã mais velha para segurar-lhe a mão. Divirtam-se! Jake, é maravilhoso... acho que vou chorar.

— À vontade, chore enquanto tomo banho.

— Não, que inferno. Chorarei quando Winnie voltar. Vou tomar banho com você, que poderá me esfregar. As costas, onde não posso alcançar a pintura, e não a frente, pois também estou cansada. Quando aconteceu e quando voltarão? E, meu Deus, tenho de preparar uma suíte para eles. Roberto não vai querer ficar ao lado da minha, com uma porta de comunicação. E tenho de pensar num presente de casamento... talvez lhes dê o quadro que você não escolher. Roberto não vai permitir que eu dê algo caro, é um homem cabeçudo. (Patrão, há outro tipo?)

— Não sei por que Bob não quererá uma porta de comunicação com seu quarto.

— Acho que isso pretendeu ser uma ofensa. Talvez ele goste, querido... eu gostaria. Mas os empregados poderão estranhar. (Fodam-se os empregados!) (Todos, Eunice? Assim vou ficar muito ocupado)

— Eunice, tomei a liberdade de dizer a Cunningham que preparasse a Surte Dourada para os Garcia...

— Perfeito! Mandarei abrir uma porta entre minha sala de estar e a deles... e há uma fechadura que podemos destrancar entre o vestíbulo e a biblioteca de cima, que comunicará com sua suíte... então teremos deixado aquele inconveniente ir e vir pelo corredor.

— Os recém-casados podem preferir ficar sós.

— Não tinha pensado nisso. Òh, muito bem, «também tenho alguns amigos», como disse a solteirona.

— Seja como for, já vão voltar, o que não dá tempo para obras. Soube por fontes usualmente fidedignas que um dos desonestos membros de confiança do seu pessoal ficou de telefonar para Mrs. Garcia assim que você voltasse. Presumo que o telefonema tenha sido dado. Presumo que estarão de volta pelo... crepúsculo.

— Estou imaginando quem irei despedir. É uma maneira esquisita de passar uma lua-de-mel.

— Pelo que sei, foi idéia do caro doutor: manter você a salvo de complicações, pois ambos constituem sua equipe médica.

— Que bobagem. Sou do tipo Mãe-Pioneira. Robusta. Se eu tivesse viajado com os carroções, teria sido posta na canga com os bois. Mas fico contente porque vão voltar. Quero beijá-los e chorar no ombro deles.

— Johann, às vezes não posso decidir se você é uma garota boba... ou senil.

— Da última vez em que me chamou de «Johann», você arranjou uma cicatriz. Querido, já lhe ocorreu que posso ser as duas coisas? Uma garota senil?

— Interessante. Uma hipótese a considerar.

— Se tal, uma muito harmoniosa... Jake, estou feliz como um gato a sós com o peru de Natal. Com Joe acalmado e o Supremo Tribunal do nosso lado, meu último temor desapareceu. A vida é um enorme prazer estonteante. Não estou nem com o enjôo matutino.

— Não sei por que há de estar... hem? (Patrão, pensei que não ia contar a ele) (Eunice, ele irá descobrir breve... e não posso deixá-lo, não posso fazer isso com jake. É a hora exata: «o primeiro a saber», oficialmente)

— Disse que não tinha sido incomodada pelo enjôo matutino, Jake. Estou saudável como um cavalo e a única mudança que notei foi estar com uma fome de cavalo, também.

— Você quer me fazer crer que está grávida?

— Não me atire esse olhar de pai austero. Estou de barriga, feliz como um gato de telhado. Eu deveria reter a notícia um pouco mais, porém queria contar a você antes que alguém notasse. Mas seja bonzinho e guarde segredo. Porque quando Winnie descobrir, vai começar a dar uma de mãe e a se preocupar. Coisa que uma recém-casada não deve fazer. Com sorte, esconderei de Winnie até ela também ficar grávida. (Patrão, por que você acha que Winnie pretende engravidar?) (Use a cabeça, Eunice. Aposto cinco a um como Winnie está com um band-aid no local em que aquele implante costumava ser feito) (Não tenho cabeça, patrão... apenas a sua, que não funciona muito bem) (Está se queixando, hem? Fique falando assim e não casarei com você)

(Estamos casados, patrão) (Sei disso, amada. Agora, calada. Vou fazer uns malabarismos com ovos)

— Eunice... tem certeza?

— Toda. O teste foi positivo.

— Foi Bob quem fez o teste? Ou algum charlatão?

— As relações de uma paciente com seu médico são confidenciais. Mas não foi um charlatão. Não continue nesse tipo de interrogatório, advogado.

— Vamos nos casar imediatamente.

— Uma ova que vamos!

— Eunice, pare de dizer bobagens!

— Senhor, pedi-lhe que casasse comigo há bastante tempo. O senhor recusou enfaticamente. Pedi-lhe tempos depois. Fui mandada embora. Decidi não renovar meu pedido e não vou concordar agora. Não casarei com o senhor. Mas ficarei honrada e feliz em continuar como sua amante, até ser mandada para a mesa pela biologia... e mais que feliz, se me permitir novamente ser sua concubina quando tiver voltado à atividade. Amo-o, senhor. Mas não casarei consigo.

— Devia lhe dar uma surra.

— Não creio que isso me faça mal, querido. Mas não acredito que possa forçar-se a atacar uma mulher grávida. (Agora dê-lhe um pontapé no outro queixo, patrão. Bruxinha) (Eunice, fique fora disto. Não sou apenas uma mulher desprezada. Também sou o velho Johann Smith, que nunca foi tão desafiado. Jake pode nos possuir sempre, claro. Mas quero me danar se o deixar bancar o «nobre» com a minha gravidez) (Patrão, nunca iremos casar com ele? Isto é um engano, querido. Ele precisa de nós) (E nós dele, Eunice. Claro, casaremos com ele... depois de termos parido. Depois) (Patrão, está fazendo uma grande besteira) (Talvez. Nunca faço pequenas besteiras... só grandes)

— Não disse que ia lhe dar uma surra, Eunice... disse que «devia». Que aconteceu? Lembro perfeitamente que você me disse que ia usar anticoncepcionais.

— Sua memória é boa, senhor. A frase exata, pois falei deliberadamente. «Usei» em todas as ocasiões que quis. Sempre. Com o senhor. Com outros. De cada vez tomei cuidado...

— Hummm! É a resposta mais vaga que já ouvi. Vou perguntar mais francamente: Eunice, engravidei você?

— Recuso-me a responder. Você sabe que pelo menos outro homem dormiu comigo... e eu posso ter sido a noiva do regimento. Jake, você não quis casar comigo quando eu era virgem. Continuou não querendo quando me fez sua amante. Portanto, onde arranjei esta criança não é da sua conta, você não tem o direito de perguntar e — por mais que eu o ame! — não tolerarei nenhuma outra pergunta desse gênero. Agora ou mais tarde! Quem escolhi para pai do meu filho é da minha conta. Mas pode ter certeza de que o escolhi com cuidado, de olhos abertos e de comum acordo. Você está se portando como se fosse um pai lidando com uma filha desobediente ou como o Visitante da Previdência Social tentando descobrir o responsável por uma gravidez não licenciada. Você sabe que não é assim. Tenho noventa e cinco anos — muito mais que você — em condições de me permitir o luxo de uma dúzia de bastardos, se quiser — e quero — e bastante saudável para dizer ao mundo para ir mijar equilibrado numa corda. Jake, eu estava partilhando com você notícias alegres. Você preferiu considerá-las ruins e me repreender por isso. Não aceito, senhor. Cometi um erro contando-lhe. Quer ter a bondade de tratar o assunto como segredo.. e nunca mais se referir a ele?

— Eunice.

— Sim, Jake?

— Amo-a.

— Amo-o, Jake.

— Se eu fosse vinte anos mais moço — ou mesmo dez! — teria casado com você há muito tempo. Uma vez que você não quer me dizer — e visto que eu não tenho o direito de perguntar — você tem razão... Pode perdoar o orgulho de um velho que preferiu acreditar ter sido o homem que você escolheu? Prometo que não discutirei essa crença com ninguém.

— Jacob, se preferiu acreditar nisso, estou honrada. Mas nada de promessas. Se preferir proclamar essa crença, nunca envergonharei meu amigo mais antigo, mais íntimo e mais querido, negando. Sorrirei orgulhosamente e deixarei que minhas maneiras confirmem. Mas, Jacob, meu amado, a você não afirmarei nem negarei... nunca. Fiz sozinha. Sou o único pai desta criança. (Cuidado com as palavras, patrão! O senhor quase revelou) (Ele encarará como figura de retórica. Ou, se desconfiar, uma investigação provará que está errado. Hank Olsen sabe que manteiga passaram no pão dele: a minha) (E as datas irão ser examinadas, de maneira a Jake ter certeza de que é dele. Hmmm...) (Você continua pensando que sou bobo, Eunice?) (Não, patrão... só despreocupado. Às vezes o senhor me deixa em pânico)

— Bem, Eunice, pelas reservas que você mostrou, parece que isso é tudo o que posso saber a respeito.

— Foi a minha intenção, Jake.

— Percebi. Você gostaria de fazer o que, no resto do dia... pelo menos até a chegada dos recém-casados? Jogar?

— Sim, se você quiser, Jake.

— Tenho uma idéia melhor. Se quiser topar. Pode ser divertido, acho eu.

— Será divertido. Jake. Tudo é sempre divertido com você. Mesmo um jogo de cartas.

— É o melhor jogo a dois, se jogado direito. Vamos telefonar a Mac, pedir-lhe que mande seu escrivão se mexer... e casar. Com sorte estaremos legalizados às vinte e uma ou vinte e duas... e ainda jogar cartas antes de dormir.

— Oh, Jake! Cartas!

— Responda, mulher. Um simples «Sim» ou «Não». Não discutirei e não pedirei outra vez. Assoe seu nariz e enxugue os olhos... você está um horror.

— Que inferno, Jake! Sim! Me largue e assoarei o nariz. Acho que fraturou minhas costelas, seu bruto. É uma maneira infernal de tratar uma gestante.

— Faria pior que fraturar suas costelas se você dissesse mais bobagens. Agora, ligar para Mac... tenho de pensar numa mentira plausível, para que ele possa justificar uma autorização para o Juiz de Paz emitir uma licença especial.

— Por que tem de ser inventado, Jacob? Pensei que ia dizer a Mac que me engravidou.

— Eunice, é isso o que quer que eu diga?

— Jacob, vou casar o mais depressa possível e não me importo como. Espero que Winnie e Roberto cheguem a tempo, mas não vou esperar. Você pode recuperar o juízo. Pensei que preferisse declarar ser o pai e sei que concordo em confirmar. Por isso diga a Mac. Diga a todos.

— Não se incomoda?

— Querido Jake, talvez seja a melhor maneira de agir... porque, em breve, Deus e todos ficarão sabendo a respeito da Testemunha Silenciosa. Jake? Lembra do meu primeiro dia de liberdade? O dia seguinte a Mac ter confirmado condicionalmente minha identidade e me liberado da tutela do tribunal?

— Minha querida, provavelmente não esquecerei aquele dia.

— Nem eu. Conte duzentos e sessenta e sete dias. É quando a Testemunha Silenciosa aparecerá.

— Está me dizendo que sou o pai do seu filho?

— Absolutamente, senhor. Eu estava em ânsias e me livrara da rédea. O senhor pode imaginar, se quiser, que passei o dia pulando de uma cama para outra, indo de um homem a outro. — Sorriu com beatitude. (Patrão, andou terrivelmente perto da verdade... mas parece uma bruta mentira) (É a verdade, Eunice. Fui muito cuidadoso. Esta é a segunda melhor maneira de dizer uma mentira: falar a verdade de maneira a parecer uma grande mentira) (E eu pensava que sabia mentir) (Tive muito mais anos de prática, amada... e quando criança tive muito mais motivos para mentir que você. Mentir é uma arte. Só se aprende com longos estudos)

— Acabe com as bobagens, Eunice, ou começarei a vida de casado lhe dando um lábio inchado. Tá bem, diremos isso a Mac. A verdade é freqüentemente a melhor solução. Mas temos de conseguir atestados de saúde. Mac pode obtê-los fora do prazo de espera, mas não sem que sejam requeridos. Meu médico telefonará o meu, sem se deter para tirar amostra de sangue e fazer testes mas, e esse charlatão que você citou? Irá colaborar?

— Jake, não me lembro de ter falado num charlatão. Se Roberto chegar a tempo, penso que aceitará correr o risco. Ou Rosy, acho. Acho que não estou abrigando nem mesmo um percevejo, a não ser que tenha apanhado com Joe e Gigi. Muito improvável. E quanto a você, querido? Washington, D.C., tem a mais alta porcentagem de moléstias venéreas do país. Trouxe alguma coisa para casa?

— Oh, nada, a não ser carambolas.

— Uma moça fina como eu não entende essas expressões.

— Sua vagabundinha impudente, dormi sozinho em Washington. Você pode dizer o mesmo? Com relação aos últimos cinco dias?

— Claro que não, querido. Nunca estive interessada em dormir sozinha e Gigi é muito confortável. Recomendo que experimente... olhe este quadro.

— Estou certo de que ela é. Só Gigi, hem? Joe não?

— Jake, Joe é confortável? Me conte mais!

— Mulher, está se arriscando a ter o lábio inchado antes de casar. —. Como presente de casamento do noivo? Senhor, se quiser me inchar o lábio, ficarei quieta, sorrirei alegre e o receberei. Oh, querido Jake, vai ser tão divertido estar casada com você!

— Também acho, sua vagabunda louca. Hummm... meu médico poderá fonar um atestado para você também, se eu explicar as circunstâncias. Mas preciso de seu tipo de sangue.

— Jake, o país inteiro sabe que meu sangue é AB-negativo. Você esqueceu?

— Momentaneamente, sim. Isso basta. Exceto... O casamento aqui? Ou no gabinete de Mac?

— Aqui, se possível. Quero ter os empregados como «família» se Winnie e Roberto não chegarem. Jake, devo me atrever a mandar um carro com um recado, pedindo a Joe e Gigi que me dêem a honra de vir para o ato? Quero a presença deles. Gigi não é problema. Virá se Joe quiser... mas acho que você conhece Joe melhor que eu. Nem mesmo sei se ele tem roupas para isso... não o vi vestir outra coisa a não ser um short em farrapos, tão sujo de tinta que podia ficar em pé sozinho.

— Hummm, concordo em que o ex-marido de Eunice tenha o direito de ser convidado para o casamento de Joan Eunice, embora, é certo, não haja um protocolo a esse respeito. Querida, as roupas que Joe usou no tribunal são convenientes para um casamento em casa. E quanto a você, Eunice? Vai casar de branco?

— Acho que fui novamente insultada. Usar branco, agora que alguém pode roubar um quadro e vendê-lo? «Noiva que Mudou de Sexo, de Noventa e Cinco Anos, Casa de Branco». Querido, se eu usar branco, vamos pedir à Life para mandar um fotógrafo e economizar o intermediário. Usarei branco se você quiser. Se não, arranjarei algo, mas não será branco. Algo.

— «Algo antigo, algo novo, algo emprestado, algo azul».

— Apague e corrija, Jake. A versão século vinte e um é:

«A noiva é velha,

A licença é nova

O corpo emprestado,

O noivo é azul».

 

— Estou infernalmente azul, preciso apenas fazer a barba. Saia agora e me deixe trabalhar. Caia fora. Vá tomar banho. Procure cheirar como uma noiva.

— Em vez de um fuquefuque? Vou fazer uma sugestão. Mas você também vai tomar um banho.

— Quem instruirá o noivo?

 

Cunningham teve um trabalhão. Mas disso ninguém escapou na horrenda mansão. Ao som dos acordes tradicionais da «Marcha» de Mendelssohn, a noiva caminhou lentamente pela rotunda, com passos cadenciados. (Gêmeo, «Aí Vem a Noiva» sempre me pareceu como um gato atacando um canário. Pum... pum... pum-pum! Muito apropriado, hem?) (Eunice, comporte-se!) (Oh, vou me comportar. Mas prefiro «John Jacob Jingleheimer Smith: o nome dele também é o meu»!)

(Você não pode conhecer esse. Tem oitenta anos e foi esquecido há muito tempo) (Por que não posso se você o estava cantando dentro da cabeça o tempo todo em que nos vestiam?)

Joan caminhou calmamente para o centro de um longo tapete de veludo branco, atravessou a arcada, entrou no salão de banquetes, agora transformado em capela, com flores, candelabros e órgão. (Patrão, lá está Curt! Estou contente porque ele fez os arranjos! Aquela com ele deve ser Mrs. Hedrick. Não os olhe, gêmeo. Começarei a rir) (Não estou olhando e você pare de olhar... tenho de olhar para a frente) (Faça isso, querido patrão, enquanto vejo quem veio. Lá está Mrs. Mac — Norma — e a Ruth do Alec, com Roberto. Onde está Rosy?...

Oh, ali, por trás de Mrs. Mac. Nossa, não é Delia, vestida a caráter?... Faz a 'gente se sentir mendiga)

A noiva usava um vestido extremamente simples, azul-pólvora, opaco, de gola alta, véu da mesma cor, mangas compridas, luvas combinando, a barra da saia arrastando no tapete de veludo e uma extensa cauda. Levava um ramo de orquídeas brancas, tingidas de azul para combinar. (Gêmeo? Por que a decisão de usar calcinhas no último minuto? Deixam uma marca que se nota) (Não através deste vestido. Não é transparente. O «nó da noiva», amada... como defloramento simbólico) (Bah! Não me faça rir, patrão) (Eunice,, se você estragar este casamento, eu... eu... não falarei com você durante três dias!) (Gêmea Joan, não estragarei... Jake quer símbolos, pois terá) (E eu também quero!) (E eu, gêmeo, e eu. Acontece que nunca fui capaz de ver a vida de outra maneira, a não ser como uma vasta e complicada piada e é melhor rir que chorar)

(Sim, querida... mas agora não vamos fazer nem um nem outro. Estou tendo dificuldade com as lágrimas) (Pensei que eram as minhas. Thomas Cattus não está elegante? Ouvi você mandar tocar «Lohengrin». Isso é ainda mais engraçado que Mendelssohn... para uma moça de uma fazenda de Iowa soa exatamente como o triunfante cacarejar de uma galinha depois de pôr um ovo. Aí eu vou rir... sei que vou)

(Está bem, então choraremos e riremos ao mesmo tempo, Eunice... e nos agarraremos com firmeza no braço de Jacob. Olhe, queridinha, este é um casamento à antiga com todos os clichês, porque Jake e eu somos velhos fósseis e tem de ser assim)

(Oh, estou de acordo. Cunningham parece preocupado... não sei por quê. Fez um trabalho magnífico. Patrão, essas calcinhas me causam uma graça enorme porque você mandou colocar «Bilitis» e as «Graças» em cavaletes na sala de recepção, onde todos os convidados podem vê-las. Para mim é um enigma) (Eunice, uma coisa não tem nada com a outra. Espera-se que uma noiva esteja vestida. Aqueles quadros foram feitos para serem vistos. Com Joe e Gigi aqui, quero muito que eles sejam olhados!) (Serão. Veja. Algumas esposas podem olhá-los com intenso interesse. Talvez) (Talvez. Eunice, você sabe que nunca pedi a um marido para esconder algo da esposa. Não é direito pedir a um membro de um casal ter segredos com o outro. Além disso, terá ou não, o que quer que você peça... e ele pode ter. Conhece-a melhor que nós. Mas esses quadros são tão inofensivos como o ponche de frutas que fizemos para os que não querem champanha. Não tem importância que eu tivesse posado para eles, quero apenas que o gênio de Joe seja reconhecido. Apreciado)

Joe Branca usara uma parte não pequena do seu talento para maquilar a noiva. Começando como numa tela virgem — recém-saída do banho — trabalhara intensamente maquilando Joan Eunice da cabeça aos pés, com tanta sobriedade que mesmo um exame acurado não mostraria nenhum traço dos seus esforços. Como em «As Três Graças» havia apenas a própria beleza de Eunice, invisivelmente acentuada fortemente acentuada, mais bela que a vida, mais natural que a natureza Recusou-se a colocar-lhe cabelos compridos e apenas afofou o próprio cabelo dela (ainda muito mais curto que o de Eunice) e borrifou-o ligeiramente para o conservar penteado sob o véu.

A madrinha da noiva foi maquilada com muito menos sobriedade. Tendo visto o milagre realizado em Joan Eunice, Winnie perguntou timidamente àquela se achava que não havia inconveniente em pedir a Mr. Branca para melhorá-la um pouco. Já que participava da festa de casamento?... E Joan e Gigi aprovaram entusiasticamente a idéia. Joe examinou Mrs. Garcia e então disse:

— Quarenta minutos, Joan Eunice... dá tempo? Tá bem, Winnie, lave o rosto.

Joe tirou partido do cabelo ruivo de Winifred, tornou visíveis suas sobrancelhas finas e cílios, deu vida à pele muito branca... porém ficou muito mais natural que o rosto estilizado que Winnie habitualmente usava.

A madrinha usava capa e malha verde-claro e levava um pequeno buquê de orquídeas, verde e marrom. Manteve o passo cadenciado de marcha bastante à frente da noiva, precedendo-a no salão de banquete, em direção ao altar improvisado.

O Chefe da Segurança O'Neil foi o último a entrar, postando-se sob a arcada, em posição de descanso, procurando observar os acontecimentos no fundo da sala enquanto prestava atenção às suas costas. Suas feições mantinham-se serenas, porém estava preocupado, alerta. O casarão estava vazio, com exceção das setenta e cinco ou oitenta pessoas naquela sala. Todas as blindagens foram colocadas, toda janela verdadeira foi fechada, aferrolhada e passado cadeado. A rede noturna de alarma foi ligada e O'Neil verificou tudo isso pessoalmente antes de permitir que os guardas assistissem ao casamento. Mas o chefe não confiava em dispositivos e confiava em pouca gente. Não relaxou a vigilância.

 

A noiva se aproximou do fundo do salão. Jake Salomon a esperava lá, com Alec Train ao seu lado. De frente para eles na parte lateral estavam o Reverendo Hugo White e o Juiz McCampbell, equivalendo-se em dignidade. Shorty estava usando um manto preto, camisa branca, gravata comprida, e levava sua Bíblia. O juiz estava de toga.

(Patrão, Jake não está lindo? Mas que farda é aquela?) (É um fraque, amada) (É uma peça de museu) (Acho que sim. Jake provavelmente não o veste há uns trinta, quarenta anos... ou talvez o tenha alugado a um costureiro de teatro. Tenho a certeza de que Alec alugou o dele. Veja como o Padre Hugo está sensacional!) (Deve ser sua indumentária de pregar, patrão. Joe tem de pintá-lo com ela, mesmo que nunca consiga o quadro que quer) (Boa idéia, Eunice. Vamos insinuar a Gigi... e uma coisa leva à outra. Tenho esperança de que, vendo «As Três Graças», ele fique mais cordato. Pois Hugo quer posar... se conseguir se convencer de que não é pecado. Eunice, meus joelhos estão tremendo. Não sei se vou agüentar!) (Om Mani Padme Hum, caçulinha. Levamos um tempo enorme para fazê-lo se decidir. Não vá fraquejar agora) (Om Mani Padme Hum, Eunice... segure minha mão, querida. Não me deixe desmaiar)

Joan Eunice parou defronte do juiz e do pregador. Winifred tirou o buquê das mãos dela e recuou para um lado. Alec Train fez Jake se colocar ao lado de Joan Eunice e se postou de maneira a ficar em oposição a Winifred. A música parou. Hugo ergueu os olhos e disse:

— Oremos.

(Om Mani Padme Hum. Você tá bem, gêmeo?) (Agora estou. Om

Mani Padme Hum)

 

Quando Hugo disse «Amém», Joe Branca saiu de um lado e fez sua primeira foto. Depois, começou a andar em torno, como um contra-regra chinês, sem perturbar ninguém e nunca se mexendo num momento crítico... mas tirando fotos.

Hugo abriu sua Bíblia, mas não a olhou.

— Vamos ler hoje o Livro dos Salmos. Ele diz:

«O Senhor é meu pastor; nada me faltará.

«Ele me fez repousar nos prados verdes; Ele me guiou até as

águas tranqüilas.

«Ele restaurou as forças da minha alma; Ele me guiou pelo caminho da retidão, por amor do Seu nome,

«Sim, embora eu caminhe pelo vale de sombras da morte, não temerei o mal...»

 

Fechou a Bíblia.

— Irmãos e irmãs, o Senhor viu que Adão estava só no Jardim do Éden e disse que não era bom para um homem viver só. Por isso Ele criou Eva para viver com Adão. E Ele disse a Adão: Meu filho, cuide desta mulher, está Me ouvindo? Trate-a com justiça o tempo todo, exatamente como se Eu estivesse vigiando você o tempo todo. Porque estou vigiando você, cada minuto e cada segundo. Trate-a com carinho e a proteja como lhe disse e ficará tão ocupado que não terá tempo de fazer nada errado e ela lhe será um conforto em todos os dias da sua vida.

Virou-se para Salomon.

— Jacob Moshe, vai fazer isso?

— Farei!

O Reverendo virou-se para a noiva.

— E o Senhor disse a Eva: Minha filha, você vai cozinhar para esse homem, lavar suas roupas, ter seus filhos e não ficar andando por aí quando deve estar em casa, amá-lo mesmo quando estiver cansado e de mau humor e não ficar falando disso, porque os homens são assim e você deve aceitar o mau com o bom... está Me ouvindo, Eva? Joan Eunice, vai fazer isso?

— Sim, Padre Hugo.

— Juiz...

— Jacob Moshe, existe algo em nossas leis e costumes que o impeçam de casar com esta mulher?

— Nada.

— Joan Eunice, há algum motivo na lei ou no seu íntimo para que não case com este homem?

— Não há nada, Meritíssimo. McCampbell ergueu a voz.

— Se alguma testemunha sabe de um motivo que possa me impedir de unir estes dois em casamento, intimo-a a falar. (Eunice, se alguém pigarrear, eu... eu...) (O senhor ficará calado, patrãozinho É isso o que vai fazer. Aqui só há amigos íntimos. Om Mani Padme Hum) (Om Mani Padme Hum)

— Jacob Moshe, amará, honrará e protegerá esta mulher?

— Sim.

— Joan Eunice, amará, honrará e protegerá este homem?

— Amarei, honrarei e obedecerei. (Hem? Patrão infernal, o senhor não tem a menor intenção de obedecer!)

Salomon disse:

— Um momento! Juiz, ela modificou as palavras! Não espero isso e não quero que ela prometa...

— Ordem. Você fique calado, Jake. Não estou falando com você Joan Eunice, é isso o que você deseja prometer?

— É, Meritíssimo. (Eunice, fique de fora. Sei o que estou fazendo)

— Devo avisá-la de que tal promessa não é legalmente obrigatória nos contratos de casamento civil deste Estado, mas preciso adverti-la, também, que não é uma promessa que deva ser feita levianamente nestas circunstâncias.

— Estou ciente, Meritíssimo. (Patrão, o senhor está maluco!) (Muito possivelmente. Mas está bem, querida. Jake irá nos dar exatamente as ordens que teremos humildemente o prazer de obedecer. Até agora não tenho tido razão?) (Tem, mas continua me assustando. Suponha que nos mande conservar as pernas fechadas? Nunca tive nenhum prazer nisso) (Ele nunca mandará. Em vez disso, terá um prazer magnânimo em se adaptar aos nossos pequenos caprichos... desde que prometamos obedecer-lhe. Calma, querida... era exatamente dessa maneira que minha querida Agnes me levava... e eu não tinha nem um pingo do juízo e da tolerância de Jake)

— Queira repetir sua declaração.

— Eu, Joan Eunice, prometo solenemente amar, honrar e obedecer Jacob Moshe... e o farei, Meritíssimo, mesmo que ele desista e não case comigo. Ele não precisa casar comigo. Serei perfeitamente feliz

apenas...

— Silêncio, Joan Eunice. Chega. Reverendo, isto está passando dos limites. Vou encerrar com algumas formas legais e o senhor pode acrescentar o que achar que eles precisam, na sua prece de encerramento.

Está bem?

— Está, juiz. Eles não precisam de muitas preces. Estão preparados.

— Espero que tenha razão. Jake, você ouviu esta jovem, hum, senhora cabeçuda. Está disposto a casar com ela assim mesmo?

— Estou.

— Jacob Moshe, recebe Joan Eunice como sua legítima esposa diante da lei?

— Sim.

— Joan Eunice, recebe Jacob Moshe como seu legítimo esposo diante da lei?

— Sim.

— Hum, onde está o anel? Alec. Jake, pegue a mão esquerda de Joan Eunice com sua esquerda. Agora.

— Com este anel te recebo.

— Com a autoridade de que estou investido, declaro-os marido e mulher. Beije-a, Jake. Assuma, Reverendo. (E você me disse para não avacalhar!) (Estamos aqui, hem? Ele é nosso. Isto é, somos dele. Dá no mesmo) — Oremos!

 

Em Luna, o Túnel Kennedy B, paralelo ao Túnel Kennedy A, entre Luna City e o Complexo Industrial Apoio, foi terminado e ambos passaram então a ter mão única, quadruplicando desse modo o trânsito potencial. As projeções para os próximos cinco e dez anos forçaram a Comissão a decidir prosseguir imediatamente com os túneis C e D. Nas Bolsas de Valores de Hong-Kong e Nova Iorque, as Vacuum Industries Ltd., Selenterprises, Pan Am e Diana Transport acusaram uma súbita alta, contrariando uma baixa geral do mercado. Mercury Newsletter (subsidiária do ServMerc) enviou mensagens autodestrutíveis por enviados especiais aos seus clientes de 7-estrelas. Nove por cento dos enviados não voltaram, o que forçou o diretor-gerente da ServMerc a achar que umas férias em Las-Vegas-no-Céu iriam fazer muito bem à sua saúde, apesar de não haver prova de que os agentes da Defesa Interna tivessem detido os enviados ou decifrado a mensagem «destrutível». Uma fonte chegada ao Presidente negou que estivesse havendo algo mais que a inquietação da temporada em qualquer cidade do país e denunciou os «boateiros irresponsáveis». O programa da CBS «Today's Day with Dave Daly» foi substituído por um filme, sob a alegação de dificuldades técnicas. «Today's Day» reapareceu no dia seguinte sem Daly, que pediu — como anunciaram — uma licença para tratamento de um grande esgotamento. Miss Molly Maguire, a quentíssima sensação da indústria privada do filme, reivindicou o título de primeira mulher na história a ter tido um filho durante um mergulho no espaço. A criança pousou em segurança, exatamente como fora planejado pela equipe de parteiras que mergulhou com ela, o fato foi filmado em estéreo-som e estereocor, de diversos ângulos, e o único acidente foi um tornozelo luxado de Miss Maguire... que ficou em condições de dar uma conferência de imprensa trinta minutos depois de pousar.

Uma vez que o vôo teve início no México e o mergulho foi dado sobre o solo daquele país, e considerando que todo o grupo, com exceção do avião, pousou no Arizona, não ficou claro que leis foram violadas, ou qual a nacionalidade da criança... visto Miss Maguire ser cidadã do Paquistão, com residência permanente legal nos States. O grupo apresentou-se voluntariamente ao oficial americano de imigração mais próximo e Miss Maguire desculpou-se simpaticamente no vídeo por ter voltado ao seu país de adoção tão informalmente, em conseqüência de um engano involuntário do seu piloto, acrescido de uma súbita rajada de vento. Foram soltos com uma advertência, mas os filmes foram confiscados... inutilmente, pois pareciam mostrar que a criança nascera, meio a meio, em ambos os países. Mas fatores de angulação e paralaxe, bem como a identificação de marcas do solo — nas seqüências em que o solo era mostrado inteiramente — tornavam impossível ter certeza. A Grove Press comprou o direito de opção dos filmes e então instaurou um processo pedindo sua liberação, no interesse da justiça.

Um famoso caso de mudança de sexo casou com seu advogado, mas o digno casal deu um jeito de fugir para a lua-de-mel antes que a notícia se espalhasse. Um famoso repórter de escândalos perseguiu-os até o Canadá, para verificar que o casal que seguira era um certo Dr. & Mrs. Garcia, recém-casados, porém sem nenhum interesse. Mrs. Garcia sorriu e deixou-se fotografar (ela é muito fotogênica), sendo ainda entrevistada a respeito do casamento. Então os Garcias voltaram para casa.

O Senador James «Jumping Joe» Jones, de Arkansas, acusou o projeto de anulação da XXXI Emenda, visando a permitir orações nas escolas públicas, de um complô do agente do Diabo, o Papa de Roma, e seus vis seguidores. A reconstrução do Palácio do Governo de Oklahoma foi paralisada por disputas trabalhistas provocadas (segundo se alegou) pelo movimento subterrâneo «Comissão de Ação por Direitos Iguais para os Brancos». O capataz da construtora contratada disse: «Qualquer pilantra que se julgue discriminado pode levar o assunto ao conhecimento da comissão de empregos e obter um julgamento justo. O problema é que esses caras não querem trabalhar».

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Por que passar noites solitárias insones quando um alívio totalmente sensitivo pode ser seu no aconchego do seu lar? Programado para sua felicidade pela mesma grande equipe de supercientistas que criou o propulsor orbital recuperável.

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SELOS TR1VERDES

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Infeliz? Você não precisa ser... nem usar esses brinquedos mecânicos idiotas, indignos e degradantes. Sem drogas. Basta telefonar para Old Doc Joy, hipnoterapista licenciado pelo Estado de Nova Iorque, (anúncio)

 

«Mr. e Mrs. MacKenzie» (passaportes liberianos) tinham a cobertura para eles: três banheiros, quatro quartos, cozinha, sala de jantar, sala-bar, sala de visitas, lanai*, jardim, piscina, cascata, fonte, jardim-bar-copa, vestíbulo, elevador particular, vista magnífica do ancora-douro de iates, praias, estuário, cidade e montanhas além.

Porém eram excêntricos. O aluguel incluía o serviço completo do hotel, mas ninguém do pessoal havia estado naquele andar desde que eles chegaram. Não eram vistos nos cassinos, nas praias, nem nos outros lugares onde sabiam encontrar os divertimentos locais. Às vezes pediam refeições, mas o cardápio não passava do elevador. Seus empregados o apanhavam.

Corria o boato entre os empregados do hotel que Mrs. MacKenzie gostava de fazer sua própria comida, mas ninguém tinha certeza... ninguém a vira (salvo talvez de um cóptero) e poucos a conheciam de vista. Seus empregados tinham três suítes no andar térreo... e estavam dispostos a discutir qualquer assunto, menos seus patrões. Ela veio do jardim e entrou na sala de estar. Ele ergueu os olhos do livro.

 

*Varanda em havaiano (N. do T.).

 

— Que foi, querida? Sol demais? Ou aquele cóptero voltou?

— Nada disso. Os cópteros não me incomodam. Viro de barriga para baixo e eles não podem fotografar meu rosto. Querido Jake, quero que veja uma coisa linda.

— Traga aqui. Estou com preguiça.

— Não posso, está lá embaixo, na água. Um barco de aspecto estranho, com as velas mais alegres e coloridas que se possa imaginar. Você esteve na Marinha e conhece essas coisas.

— Estive na Marinha durante um período de alistamento, há cinqüenta anos, e por isso virei conhecedor.

— Jacob, você sempre sabe tudo. E este é lindo e muito estranho. Peço-lhe, senhor!

— Seu menor desejo, madame. Levantou-se e ofereceu-lhe o braço. Chegaram ao parapeito que dava para o mar.

— Onde está? Todas essas embarcações têm velas coloridas. Ainda não vi um par de velas brancas desde que chegamos... parece até haver uma lei contra elas.

— Aquela ali. Oh, querido, eles desceram as velas. E estavam tão lindas não faz um minuto!

— «Arriaram as velas», Eunice. Já que vou ser seu especialista residente, deixe-me mostrar conhecimento. Quando a gente baixa as velas subitamente, as «arria». É o que aquele homem está fazendo, porque pretende ancorar... sim! Está lançando ferros. E um navio é sempre «ela», nunca «ele». Barcos e navios são femininos porque são belos, dignos de serem amados, caros... e imprevisíveis.

— Jake, você sempre foi capaz de prever o que vou fazer, mesmo antes de eu própria saber. (Gêmeo, por que dizer uma mentira dessas? Ele sabe muito bem) (Ele não vai querer discutir, amor) Mas o que é aquilo?

— Uma trimarã, um iate com três cascos. Não posso dizer que a acho bonita. Uma chalupa com uma vela central é a minha noção de beleza.

— Agora parece um tanto convencional. Mas com todas as velas erguidas ele — desculpe! — «ela» era linda. (Gêmeo, pergunte a Jake se ele acha que há algum jeito de irmos a bordo dele) («Dela», Eunice... não dele. Você é maruja, querida?) (Nunca entrei num barco em minha vida, patrão. Mas talvez esteja tendo uma idéia) (Talvez seja a mesma que eu tenho. Está pensando naquela conversa com Jake, quando ele frisou que uma fazenda pode significar mais pessoal e menos segurança que nossa casa?) (Não me interessa quem pensou primeiro, patrão... trate de fazer com que Jake pense nisso primeiro) (Farei, querida... você acha que eu precisei que ele me dissesse que uma nave é «ela»? Ou que não posso reconhecer uma trimarã? O problema importante é o seguinte: você sofre de enjôo? Eu sofria... e é humilhante. Mas o fato de não termos tido o menor sintoma de enjôo matutino me faz pensar que talvez você seja imune ao enjôo de balanço) (Portanto, «vamos operar para descobrir», como diz Roberto)

— Oh, trimarãs têm suas vantagens, Eunice. Valem o dinheiro empregado. Espaçosas. E quase impossível de virar... a não ser as menorezinhas. Apenas não lhes daria nenhum prêmio de beleza.

— Jake, você acha que pode dar um jeito de sermos convidados a bordo daquela? Ela parece interessante.

— Oh, há um jeito de arranjar isso. Posso começar falando com o gerente. Mas, Eunice, você não pode ir a bordo de uma embarcação particular com o véu colocado no rosto. Seria grosseiro. Suas netas não lhe fizeram nenhum favor quando a tornaram tão reconhecível quanto uma estrela do vídeo.

— Jacob, um véu nada tem a ver com isso porque nunca quis conhecer ninguém no papel de «Mrs. MacKenzie». Sou Mrs. Jacob Moshe Salomon e tenho orgulho disso... e é assim que quero ser sempre apresentada. Jake, duvido que nosso casamento continue sendo assunto jornalístico. Não teria muita importância se eu fosse vista.

— Suponho que não. Os cópteros podem enxamear um pouquinho mais perto durante um certo tempo e alguns terem fotógrafos a bordo com lentes telescópicas. Mas duvido que mesmo suas netas estejam ansiosas para fotografar você. Se os caçadores de escândalos a assustam, ponha calcinhas para o banho de sol e na piscina.

— Uma ova que eu ponho, é nossa piscina, Jacob. Seja como for, calcinhas não esconderão minha gravidez e quanto mais cedo for publicado, menos interessará mais tarde. Que eles tirem a foto. Então teremos o Doutor Bob a confirmando... e deixa de ser novidade. Sem chateações, querido. Aprendi há anos que «não se pode fugir de tudo»... é preciso enfrentar. É possível ter uma piscina numa embarcação daquele tipo?

— Não daquele tamanho. Mas já vi trimarãs muito maiores. Acho que é possível, uma vez que a trimarã tenha maior espaço de tombadilho para sua tonelagem... tenho de perguntar a um engenheiro naval. Por que o interesse, pernas sensuais? Quer que eu lhe compre um iate?

— Não sei. Mas barcos parecem ser divertidos. Jake, nunca tive muito divertimento na vida... na outra vida. Não tenho certeza de como a gente se comporta diante do divertimento... exceto que para mim, hoje, cada dia é uma alegria. Só tenho a certeza de que tudo o que quero é fazer algo totalmente diferente desta vez. Não ser uma quadrada nem uma alegre e doidivanas locomotiva da «sociedade»... merda! Prefiro virar puta. Você gosta de iate, Jake? Me leva a dar uma volta ao mundo, mostrando todos os lugares onde você esteve e onde eu nunca tive tempo de ir?

— Você quer dizer que nunca arranjou tempo.

— Talvez seja a mesma coisa. Sei que, se um homem consegue dinheiro demais, imediatamente o dinheiro o possui, em vez dele dominar o dinheiro. Jake, estive na Europa pelo menos cinqüenta vezes... porém nunca entrei no Louvre e nunca vi a mudança de guarda do Palácio de Buckingham. Só vi hotéis e quartos de pensão... que são iguais em qualquer parte do globo. Importa-se de completar minha educação, querido? Mostra-me o Rio?... você diz que é a cidade mais bonita do mundo. O Partenon ao luar? O Taj ao alvorecer?

Jake disse, pensativo:

— A trimarã é a embarcação favorita do aposentado.

— Perdão? Acho que não ouvi bem. «Aposentado»?

— Não estou me referindo aos vagabundos de pés descalços das Áreas Abandonadas, Eunice, nem aos que se escondem nas colinas. É_ preciso dinheiro para cair fora por mar. Mas há quem faça. Milhões fizeram. Ninguém sabe quantos porque o assunto foi objeto de «restrição» durante anos... o governo não quer que ele desperte atenção. Mas veja esses iates lá embaixo: aposto que pelo menos um em dez está registrado sob uma «bandeira de conveniência» e o passaporte do dono é tão falso quanto os de «Mr. e Mrs. MacKenzie». Ele deve ser registrado em algum lugar e usar um certo tipo de passaporte, pois do contrário a Guarda Costeira, onde quer que ele vá, lhe dará aborrecimentos, inclusive apreendendo sua embarcação. Mas se cuidar desse mínimo, pode evitar quase tudo: não pagará imposto, taxas locais, a não ser quando comprar algo, ninguém tentará botar seus filhos em escolas públicas, não pagará imposto territorial, estará livre da política... e da violência nas ruas. Esta última parte é a melhor, com o ciclo de conflitos crescendo outra vez.

— Então é possível «largar tudo isto».

— Não exatamente. Qualquer que seja a quantidade de peixe que ele coma, tem de tocar a terra vez por outra. Não pode bancar o Vanderdecken. Só um navio fantasma pode navegar eternamente. Os verdadeiros têm de arribar de tempos em tempos — Jake Salomon ficou pensativo. — Mas está mais próximo dessa combinação antitética de «paz» e «liberdade» do que é possível em terra. Se desejar essa combinação. Mas, Eunice, eu sei o que faria... se fosse jovem.

— O quê, Jake?

— Olhe para cima.

— Onde, querido? Não estou vendo nada».

— Lá.

— A Lua?

— Isso! Eunice, é o único lugar ainda com muito espaço e pouca gente. Nossa última fronteira... mas infinita. Qualquer um na idade de viajar pode, pelo menos, tentar emigrar.

— Está falando sério, Jacob? A viagem espacial é certamente interessante cientificamente, mas nunca vi muita utilidade nela. Oh, certas «surpresas». Vídeo-satélites, etc. Novos materiais. Mas a própria Lua?... Ora, não vale o preço da viagem.

— Eunice, quanto vale essa criança na sua barriga?

— Acredito que esteja brincando, senhor. Espero que esteja.

— Calma, Barriguda. Querida, uma criança recém-nascida é a coisa mais inútil que alguém possa imaginar. Nem mesmo é bonita, a não ser para os pais corujas. Não vale o preço da viagem e é absurdamente cara. Leva de vinte a trinta anos para o investimento começar a dar lucro e em muitos casos — não, na maioria — nunca dá. Porque é muito mais fácil sustentar um filho do que levar um a ser alguma coisa.

— Nosso filho será alguma coisa!

— Tenho certeza que sim. Mas olhe para os lados. Minha generalização confirma-se. Porém, Eunice, apesar desses defeitos, uma criança tem uma virtude única. É sempre a esperança da nossa raça. Sua única esperança.

Ela sorriu.

— Jacob, você é um homem irritante.

— Procuro ser, querida. É bom para o seu metabolismo. Mas agora torne a olhar para o céu. Aquilo também é uma criança recém-nascida. A melhor esperança da nossa raça. Se aquela criança viver, a raça humana viverá. Se a deixarmos morrer — e é vulnerável por alguns anos mais — a raça também morre. Oh, não me refiro a bombas-H. Estamos enfrentando um perigo muito maior que bombas-H. Chegamos a um impasse. Não podemos prosseguir no rumo que traçamos — e não podemos voltar — e estamos morrendo do nosso próprio veneno. É por isso que aquela pequena colônia lunar tem de sobreviver. Porque nós não podemos. Não é a ameaça de guerra ou o crime nas ruas, a corrupção nos altos escalões ou os pesticidas, o smog ou a «educação» que não é dada. Essas coisas são apenas sintomas do câncer subjacente. Há gente demais. Não muitas almas, ou importunos, ou bichas: apenas... gente demais. Sete bilhões de pessoas, sentadas umas no colo das outras, tentando roubar a água umas das outras, ou os bolsos umas das outras. Demais. Na maioria dos casos não há nada de errado com essas pessoas... mas coletivamente somos os Gatos de Kilkenny: incapazes de fazer qualquer coisa a não ser morrer de fome, lutar e comer uns aos outros. Demais. Por isso, todos devem poder ir para a Lua o mais depressa possível.

— Jacob, conheço você há muitos anos e nunca o ouvi falar assim.

— Por que falar de um sonho não realizado? Eunice... Eunice-Johann, quero dizer, nasci vinte e cinco anos depois de você. Cresci acreditando na viagem espacial. Você talvez não?

— Não, Jake, eu não. Quando a coisa surgiu, pareceu-me interessante... mas um tanto absurda.

— Enquanto que eu nasci tarde bastante para que me fosse tão natural quanto automóveis. Os grandes foguetes não foram surpresa para a minha geração. Nossos dentes nasceram com Buck Rogers. Não obstante, nasci cedo demais. Quando Armstrong e Aldrin pousaram na Lua, eu estava passando dos quarenta. Quando a emigração começou, com a idade-limite de quarenta anos, eu era muito velho. Quando a aumentaram para quarenta e cinco, continuei sendo muito velho... e quando subiram para cinqüenta, já era velho demais. Não estou reclamando, querida. Numa fronteira, cada cara deve poder levantar seu próprio peso e não há muito trabalho para um velho advogado.

Sorriu para ela e continuou:

— Mas, querida, se você quiser emigrar, não procurarei dissuadi-la. A encorajarei.

— Jake! (Ele não pode se livrar de nós com essa facilidade!) (Claro que não pode! Vou dar um jeito nele) Jake, meu querido e único, você não pode se livrar de mim com tanta facilidade.

— Eunice, estou falando sério. Morreria feliz se soubesse que nosso filho iria nascer na Lua.

Ela suspirou.

— Jacob, prometi obedecer e obedeço alegremente. Mas não posso ir para a Lua... como emigrante. Porque ultrapassei a idade-limite há muito mais tempo que você... como disse o Supremo Tribunal.

— Isso pode ser solucionado.

— E abrir um processo novamente, a propósito da minha identidade? Querido Jacob, não quero abandoná-lo. Mas... — acariciou a barriga e sorriu — se ele quiser ir à Lua, ajudá-lo-emos, tão logo esteja em idade de ser aceito. Está bem?

Jake sorriu e, suavemente, acariciou a leve protuberância de Joan.

— Mais do que bem. Porque não desejo que a bela mãe dele vá embora sob nenhum pretexto. Porém um pai nunca deve ser um empecilho para o filho.

— Nunca jamais em tempo algum. Você não quererá. Nunca. Jacob Júnior irá à Lua quando chegar a hora, mas não nesta semana. Falemos sobre trimarãs e esta semana. Jake, você sabe que eu quero deixar de falar na casa... eu a cederia, mas as pessoas só se interessam pelo terreno. Tornou-se um elefante branco. Porém duas coisas me aborreceram. Primeiro, ter sido obrigada a deixá-la defendida, para que o Povo Livre não a arrombe e ocupe, apesar de toda a blindagem... e então, um dia qualquer, um juiz garantir-lhes o título, por abandono de propriedade. Jake disse:

— Sem dúvida. Historicamente, todos os títulos de posse de terras nasceram assim. Alguém se apossa, defende e grita: «É minha!» E ultimamente os tribunais vêm encurtando o período de posse por ocupação. Especialmente nos núcleos próximos às Áreas Abandonadas. E sua casa tem as duas condições.

— Eu sei, querido... mas não quero me render aos ocupantes. Raios, aquela casa me custou mais de nove milhões, sem contar impostos e manutenção. A outra preocupação é o que fazer com a criadagem. Estou cansada de ser senhor feudal. Apague e emende: agora uma senhora. (Apague o emende: agora uma «prostituta») (Sem dúvida, Eunice, mas deixei de me prostituir desde que casamos) (Não teve muitas oportunidades, gêmeo... mas você está ficando indócil. Hem?) (Quem está ficando indócil? Não importa, gêmea, o dia chegará. Mas não vamos esfregar o nariz de Jake nisso) Não posso simplesmente despedi-los. Alguns estão comigo há vinte e tantos anos. Mas se comprar um iate... acho que encontrei a solução para os dois problemas.

— Você acha?

— Acho. Foi uma idéia que me veio durante nossa lua-de-mel, quando pensava sobre aquela fazenda.

— Essa não! Vagabunda, era de esperar que você estivesse pensando em mim.

— E estava, querido. Mas parece que eu sou capaz de pensar em várias coisas ao mesmo tempo, desde que rejuvenesci. Talvez por causa do sangue melhor. (Com a minha ajuda, é o que o senhor quer dizer, hem, patrão?) (É, querida. Dá no mesmo) Nosso salão de banquetes, ornamentado como capela, me pareceu muito mais uma igreja que um lugar onde se come. Então tive a idéia. Dar nossa casa a Shorty. Dá-la à igreja dele em usufruto, talvez com Alec como curador e também o Juiz Mac, se este aceitar. Arranjar a coisa como de duração perpétua, com fundos suficientes e um bom salário para Hugo, como pastor. É possível?

— Sem nenhuma dificuldade, Eunice, se quer mesmo esvaziar a casa...

— Quero. Se você consentir.

— A casa é sua, querida, e acho há muito tempo que ser dono-de-casa numa cidade grande dá mais dor de cabeça que prazer. Podemos continuar mantendo minha casinha em Safe Harbor — sem medo de ocupantes — se você quiser um cantinho. Não vamos agir exatamente como você disse, mas pode dar sua casa a Shorty, se quiser. Pedirei a Alec que estude uma forma. Porém fico pensando se Shorty concordará com isso. Os invasores podem tentar ocupá-la apesar da doação... ou os arruaceiros entrar e arrasar o local.

— Oh, isso combina com a outra parte da minha idéia: que fazer com nossos fieis guarda-costas? Oferecer, aos que têm vinte anos ou quase de serviço, aposentadoria com vencimentos integrais. Propor aos guardas-internos e aos técnicos de manutenção ficarem a serviço da fundação, com os mesmos vencimentos... porque você tem razão: se entregarmos um lugar desses a um analfabeto, sem ninguém para mantê-lo em ordem, breve teremos só paredes e não uma igreja. O Padre Hugo é o melhor guarda-costas que conheço... mas é um filho do Senhor e um ignorante das técnicas de dirigir. Precisa de um homem cínico, prático, como mordomo. Cunningham. Ou O'Neil. Ou Mentone. Alec pode escolher. Jake, quero dar a Shorty um estabelecimento completo, financiado e mantido, de maneira a que ele possa se entregar inteiramente à pregação e salvação de almas. Penso que você sabe por quê. (Acho que sei, patrão... mas qualquer dos quatro podia ter matado aquele assaltante) (Daremos um jeito de recompensar os outros três, amada... e o faremos. O Padre Hugo é um caso à parte)

— Eunice, você acha mesmo que Hugo salva almas?

— Não tenho a menor idéia, Jacob. Não sei quem é o responsável por este mundo. Mesmo que Hugo o faça, não tem mais sentido real que nossas «sessões de oração», mas ainda assim vale a pena. Querido, este é um mundo esculachado. Antigamente, no tempo do Ford de bigode, os Estados Unidos eram um país maravilhoso, cheio de esperança. Mas hoje, a melhor coisa que os jovens podem fazer é ficar em casa, sentados quietos, sem se envolver, entoando Om Mani Padme Hum..~ e isso é a melhor coisa que a maioria é capaz de fazer, num mundo como este. É muito melhor que ser preso ou vítima de drogas. Quando a meditação e orações inexpressivas são melhores que as atividades oferecidas a eles, então o que Hugo tem a oferecer é bom da mesma maneira. Mesmo que sua teologia seja cem por cento errada. Mas não acredito que o Padre Hugo esteja mais enganado que os mais cultos teólogos e pode muito bem estar mais perto da verdade. Jacob, acho que ninguém sabe quem é o responsável.

— Estava só pensando, minha querida. Às vezes as mulheres grávidas ficam fantasiando coisas.

— Estou grávida aqui embaixo. Aqui em cima, continuo sendo o velho Johann. O que me protege um tanto, acho. (Oh, acha mesmo, hem? Patrão, se o senhor não me tivesse para mantê-lo na linha, ficaria tão cheio de dificuldades quanto uma gata tentando ter filhos numa lata de lixo! Lembre, já passei por isso antes) (Sei que passou, querida, e é por isso que não estou com medo... do contrário, ficaria com um medo louco) (Não é pior que uma broca no dente, patrão. Fomos feitas para isso. Largas) Jake, já lhe contei sobre a vez em que me meti na política?

— Nunca soube disso e não posso imaginar, Eunice.

— Imagine para «Johann» e não «Eunice». Há quarenta anos, deixei que me convencessem de que era meu «dever». Eu era fácil de ser persuadido... mas hoje percebo que minha atração ao partido fora porque eu podia financiar minha campanha num distrito onde eles perdiam sempre. Mas me foi útil, Jake. Aprendi que um homem de negócios nada tem em comum com um político e muito menos com a função de homem público. Eles me arrasaram, Jake!... E desde então nunca mais fiquei tentado a salvar o mundo. Talvez alguém consiga salvar este planeta podre, mas não sei como e agora sei que não sei. Já é alguma coisa, embora não muita. Jake, eu podia me preocupar com as Empresas Smith quando as dirigia. Posso atualmente me preocupar com sessenta e tantas pessoas e ter a certeza de que ficarão bem, na medida em que o dinheiro possa garantir. Porém ninguém pode resolver coisas para sete bilhões de pessoas. Elas não deixarão. A frustração da impotência nos deixará malucos. Nem se pode fazer muito por trezentos milhões, nem mesmo quando o problema verdadeiro — como você frisou — é o fato verdadeiro de haver trezentos milhões delas. Não vejo nenhuma solução fora da esterilização compulsória... e essa solução me repugna por ser pior que a doença. Licenciamento sem esterilização não resolveu o problema.

O marido balançou a cabeça.

— E não resolverá, Eunice. O licenciamento é uma piada. Há mais escapatórias que nas leis de impostos. Métodos compulsórios inevitavelmente levam a testes políticos... não, obrigado, prefiro os Quatro Cavaleiros. E o único efeito que as medidas anticoncepcionais voluntárias trouxeram foi mudar a proporção, desfavoravelmente, entre os produtores e os parasitas. A população continua a crescer, seja como for. Se fôssemos tão rígidos com o casamento da gentalha como a China é, a coisa poderia ser diferente. Mas não somos, nunca vamos ser... e desconfio de que não gostaria se fôssemos.

— Então não há solução.

— Oh, há e eu a citei. Os Quatro Cavaleiros. Nunca dormem, nunca estão de folga. E aquilo — mostrou a Lua. — Eunice, desconfio que a tragédia da nossa raça tenha sido representada vezes sem conta. Pode ser que uma raça inteligente tenha de se expandir até o ponto crítico para compreender o que é necessário para romper com este planeta e atingir as estrelas. Pode sempre — ou quase sempre — ser uma foto terminada, de resultado incerto até o último instante. Exatamente como se dá conosco. Pode necessitar guerras infindas e pressões populacionais insuportáveis para levar uma tecnologia ao ponto em que possa enfrentar o espaço. No universo, a viagem espacial pode ser a dor normal do parto de uma raça moribunda diferente. Um teste. Algumas raças continuam. Outras fracassam.

Ela estremeceu.

— Horrível.

— Sem dúvida. E não adianta falar para uma garota em, como se dizia antigamente, «condições delicadas». Desculpe, querida.

— É uma coisa horrível em qualquer época, Jake. Não estou em «condições delicadas». Estou executando a missão para a qual este corpo foi feito. Construindo uma criança. Sinto-me ótima. Estou curtindo.

— É o que parece e fico contente. Porém, Eunice, antes que se desfaça da casa e se meta num iate, quero apenas dizer uma coisa. Acho que deve adiar tudo até ter esta criança.

— Por que, Jake? Não tenho enjôo. Duvido que ficar mareada vá ser um problema.

— Porque você está numa condição delicada, apesar de estar se sentindo ótima. Eu me sentiria muito feliz se você não ficasse a mais de cinco minutos de distância de socorros médicos. Em casa você estaria bem: Bob e Winnie estão lá. Aqui, você está bem — há um bom médico residente no hotel: acredite, investiguei-o — e um hospital moderno logo ali, à vista. Mas no mar? Suponha que tenha um parto prematuro? Perderemos a criança e provavelmente você. Não, Eunice.

— Oh. (Eunice, adianta dizer a ele que o seu primeiro nasceu no prazo, sem problemas?) (Não, gêmeo. Como você provaria? Se você me menciona agora, não passará de uma mulher com ilusões de gravidez. Patrão, essa discussão o senhor perderá. Portanto, concorde logo. Volte atrás e escolha outro caminho) Jacob, não quero discutir. Perdi minha primeira mulher com o primeiro filho. Sei que pode acontecer. Mas que acha disto? Pode convencer Roberto e Winnie a vir conosco? E então não irmos muito para longe? Se ficarmos ancorados onde está aquela trimarã, o hospital continuaria perto... e Roberto estaria a bordo. O médico do hotel pode ser bom, como você verificou, mas prefiro ter Roberto. Me conhece por dentro e por fora. E nunca faz piadas. Quero dizer, como meu médico. Ou acontece que o fato de Roberto ter dormido comigo o torna inaceitável para você como meu obstetra? (Uau! Gêmeo, essa foi de lascar) (Ora bolas Eunice, estou apenas perturbando)

Jake Salomon ergueu uma sobrancelha e riu para ela.

— Coisinha, você não me perturba tão facilmente. Se Bob é o arranca-filho que você quer, farei o possível para convencê-lo... desde que você não se importe da mulher dele vir junto.

— Bolas para o senhor, sir. Se o senhor e Winnie querem percorrer as campinas da recordação, eu o ponho no armário, com um beijo de despedida. Ela certamente o consolará enquanto eu estiver parida... e o senhor precisará disso.

— Dando-lhe, desse modo, carta-branca mais tarde. As mulheres quase sempre se apaixonam pelo médico que parteja seu primeiro filho.

— Bolas outra vez. Amei Roberto durante muito tempo e você sabe. Está com ciúmes, Jacob?

— Não. Apenas curioso. Suponho que a recomendação que você me fez no dia do nosso casamento continua de pé? Ocorre-me que, com referência ao dia que você citou, Bob teve oportunidade antes' durante e depois.

— Foi tudo o que houve, querido? Apenas oportunidade? (Mais ou menos, gêmeo!) — Ela riu e enrugou o nariz. — Amor, a única coisa que admito é que há uma possibilidade do nome de Roberto estar dentro do chapéu. Mas pode ter sido Finchley. Ou Hubert. Ou o querido Juiz Mac. Você e Alec estavam atarefadíssimos naquele dia... mas acho que você poderá descobrir que Mac ficou no tribunal até a hora de costume... e só chegou em casa muito tarde.

— Você está confessando?

— Bem, pode haver uma confissão em alguma parte.

— Pare de me chatear, querida. Só há duas espécies de esposas: as que enganam e as que têm a amigável colaboração do marido, caso em que...

— Não há uma terceira?

— Hem? Oh, está falando nas esposas fiéis. Oh, certamente. Segundo ouvi dizer. Mas nos meus vinte anos de atividade jurídica, com muitos casos de divórcio, encontrei tão poucas dessa espécie — sem ter certeza de nenhuma — que não posso aventurar uma opinião. Esposas tecnicamente fiéis são uma parte tão pequena da amostra, que não posso levar em conta. As pessoas sendo o que são, um homem racional pode se dar por satisfeito se suas refeições têm hora certa e se sua dignidade não foi ofendida. O que estou tentando dizer é que, se alguma vez quiser minha colaboração, não force minha credibilidade com um fogo de artifício como Hubert. Posso acreditar no Juiz Mac. Tom Finchley também é muito masculino e toma banho regularmente... embora muitas vezes abuse da língua inglesa de maneira que me causa arrepios. Bob Garcia mostra o seu bom-gosto. Mas, por favor, querida, não espere que eu acredite que o nome desse Hubert esteja no bolo. (Gêmeo, Jake nos conhece muito bem. É melhor não brincar muito com ele) (Nunca ouviu falar em «desconversar», amor?)

— Muito bem, senhor. Tiro o nome de Hubert do chapéu. Isso ainda deixa possibilidades infinitas, não? E procurarei sempre respeitar sua dignidade. Mas, falando de refeições nas horas certas, tenho de me mexer, senão seu jantar vai sair tarde.

— Por que não sobras frias, etc., quando estivermos dispostos e depois aquecemos uma lata de sopa? Eu estava pensando numa sesta.

— Posso ir também, senhor?

— Eu disse «sesta», querida. Dormir. Uma sesta com você não é repousante. O velho Senor Jacob necessita de uma siesta.

— Sim, senhor. Posso terminar rapidamente o que estava dizendo? Podemos cuidar de quem quiser se aposentar, ter outro emprego ou ficar com Hugo. Mas espero que alguns deles possam vir conosco como tripulação da trimarã ou qualquer outra coisa. Especialmente se já estiveram antes no mar e sabem como trabalhar a bordo.

— Finchley sabe. Foi condenado por contrabando ou coisa semelhante.

— Eu tinha a esperança de que todos os meus guardas, com exceção de Hugo — e Rockford, se você quiser — preferissem navegar conosco. São todos fortes e capazes, sem muitos problemas de família. A mulher de Fred caiu fora há alguns meses. Dabrowski não tem filhos em casa e Olga pode concordar em ser camareira — quero dizer, camaroteira — se gostar de navegar. Ela insistiu em se ocupar de quase toda a limpeza aqui, embora não precisasse. No que concerne aos Finchleys, Tom é exatamente o que precisamos: não estava contrabandeando drogas e sim levando armas para a América Central, se não me engano, na função de primeiro imediato... e Hester Finchley é uma boa cozinheira. Eve não é problema: já sabe ler, escrever e contar. Se falarmos com ela a esse respeito, vai azucriná-los r até que aceitem. Toda criança gosta de viajar. Querido? Se você for lá dentro, veja quem está de serviço e peça-lhe que desencave Finchley, sim? Talvez ele saiba alguma coisa a respeito de trimarãs.

— Acho que ele está agora de vigia. Apanho um roupão para você?

— Estou apanhando sol demais? Não sinto. Tenho passado loção. Oh! Por causa de Thomas, Tom, o Gato? Mas, querido, temos nadado com ele e a família diariamente. E também com Fred e os Dabrowskis.

— Não dou a menor importância, querida, mas pensei que estava ansiosa para manter as aparências.

— Parece uma bobagem, quando eu nado e tomo banho de sol com todos eles. Falando em aparências, pensa que não vi você apalpando a bundinha de Hester ontem na piscina? Ou foi quarta-feira?

— Foi terça, não foi Hester e sim Eve, a filha dela. Estava treinando para tarado sexual, beleza... nada sério. Por isso não fique ciumenta.

— Amado, no dia em que eu tiver ciúmes de uma garotinha, lhe

pedirei que me bata. Não que me espanque. Que me bata de uma forma familiar. Mas foi Hester e não a filha dela. O meu galante e maravilhoso Jacob jamais atacaria uma garotinha.

— Talvez não, mas aquela garotinha me inferniza. Além disso, ela

faz de propósito.

— Pobre Jake. Até as de treze anos não o deixam em paz. Não me surpreende. Eu também não o deixo em paz.

— No caso presente, tem treze-a-caminho-dos-vinte-e-um. Quero fazer um acordo com você, querida. Procurarei cuidadosamente evitar vigiar você com o pai dela, se você tiver muito cuidado sempre me vigiando com a filha dele.

— Sim, senhor. Ouvir é obedecer, meu amo... embora eu fique triste do senhor pensar que eu precise ser vigiada — ou não, dependendo — com um dos nossos empregados. E Hester? Tenho sempre de aparecer quando ela estiver por perto?

— Meta-se com a sua vida, prostituta. Hum, não precisa ser fanática. Quero que eles todos se sintam à vontade quando subirem para nadar, pois não quero nenhum dos empregados metidos nessa cloaca aí embaixo. Você sabe como existem colibacilos naquelas lindas ondas. Foi o acordo que propuz: ficarmos completamente afastados das praias e eles poderem nadar em nossa piscina sempre. Sacrificaríamos um pouco da nossa privacidade, mas evitaríamos que um deles pegasse amebas ou outra coisa, passando-as para a família inteira. Isso foi feito... e são todos boa gente... apesar da nossa precoce" Eve, que está se esforçando ao máximo para ver se consegue me chatear.

— Eu não tinha imaginado, Jacob. Não é bom ficar muito isolado. Mas estávamos falando do traseiro da Hester. Bem torneado, hem?

— Querida, você é tão maliciosa quanto Eve. Vou embora, rezarei dez Money Hums e dormirei aquela siesta. Vou lhe mandar Tom. Me acorde daqui a uma hora. Um beijo.

Joan ergueu o rosto. Assim que ele saiu, Joan mergulhou, deu umas braçadas e voltou para a borda da piscina, onde ficou, olhando para o ancoradouro dos iates até a chegada de Finchley.

— Mandou me chamar, madame? Joan sorriu.

— Thomas Cattus, quando estamos sozinhos meu nome não é esse. Tom olhou para trás, dizendo quase inaudivelmente:

— Gatinha, o patrão está acordado.

— Sei que está, mas foi para o quarto e fechou a porta. Siesta. Já deve estar dormindo. Mas não tenho a intenção de assustá-lo, Thomas Cattus, meu querido. Venha até o parapeito, pois quero mostrar-lhe uma coisa. Já navegou alguma vez? Ou não?

— Navegar? Oh, claro, cresci em Chesapeake Bay. Barcos de pesca e todos os outros.

— Até uma trimarã?

— Nunca esqueço uma. Andei nela quando tinha dezesseis anos.

— Que pensa delas?

— Depende da finalidade. Ótima se deseja um barco para moradia, em vez de um de corridas. Mas eu não teria um sem motor auxiliar. Com mar picado podem ser tão incômodos como duas pessoas numa banheira.

— Sempre tenta fazer numa banheira, Thomas Cattus?

— Claro, quem nunca tentou? É ótimo para uma brincadeira, com dois drinques no bucho. Mas uma cama é melhor. Ou o chão.

— Que tal uma esteira de praia?

— Gatinha, você gosta de me assustar. Ainda vai fazer com que nos peguem.

— Era uma pergunta retórica, querido. Não estava querendo forçá-lo. Diga, você acha que Hester e Jake alguma vez fizeram?

— Estou praticamente certo de que nunca. — Atirou-lhe um sorriso. — Mas posso lhe dizer uma coisa.

— Então diga. Querido, por favor. Querido e musculoso Tom, o Gato.

— Mas não foi por culpa de Hester. Eu sei. Ela me disse francamente uma noite, quando estávamos fazendo. Disse que o patrão podia conseguir quando quisesse. Hester acha que o patrão é a mão direita de Deus.

— E eu penso o mesmo. Mas isso não me impede de apreciar o meu Thomas, o Gato. Como você se sentiu a respeito? De Jake e Hester?

— Eu? — Fez um ar de espanto. — Olhe, Gatinha, você sabe que, ao contrário dos outros, não vejo sentido em colocar uma cerca em torno de uma mulher da vida. Só serve para fazê-la pular por cima. Preferia manter o portão aberto, se ela quisesse.

— Eu disse: «Como você se sentiu a respeito», querido?

— Oh. — O guarda-motorista ficou pensativo. — Está aí uma coisa que não me abalaria. O patrão é numero uno, da kine. Sacou?

— Saquei.

— Se engravidar uma vagabunda, pagará. Sem choro. Em todo caso, não haveria problema. Fomos licenciados apenas para um filho e Hester foi esterilizada logo depois de ter Eve. Casei com uma ótima mulher: não rompeu quando liquidei um e me recebeu de volta quando fui libertado condicionalmente. Oh, ela dava, é claro... mas só para o patrão com quem trabalhava. Nunca negou ou escondeu de mim. Hester e o patrão? Perfeitamente, se eles quiserem. Disse a ela francamente. Divirta-se, foi o que lhe disse.

— Hummm... Thomas Cattus, vamos dar uma oportunidade a eles. Ou seis oportunidades. Pode ser uma garantia para nós mais tarde.

Ele balançou a cabeça, pensativo.

— É uma idéia inteligente, gatinha. Mas como? E o patrão quererá?

— Estou certa que sim, se ele souber que não há perigo. Se for escondido, quero dizer. Jake tem coragem na hora do perigo, exatamente como você, querido. O problema principal é tirar Eve do caminho. Hummm... você pode sair comigo para fazer compras ou outra coisa qualquer e então peço a Hester para levar o almoço a Mr. Salomon... aí, como que por acaso, convido Eve a ir comigo. Hem?

— Com Fred e Ski em volta? Não dá, Gatinha.

— Basta que seja quando você estiver de plantão. Jake não mandará substituir você. No máximo, trancará a porta do elevador. Jake pouco se importa com a própria segurança. Preocupa-se com a minha.

— Hummm... saquei. Pode dar certo se ele quiser. Você está ficando arredondada, Gatinha. Os peitos estão mais lindos que nunca.

— Joe diz que uma mulher grávida fica mais bonita. Mas acho que nem todos os homens pensam assim.

— Hester ficou maravilhosamente atraente, sensual até o último minuto. E você parece estar indo pelo mesmo caminho. Hum... tem certeza de que o patrão está dormindo?

— Certeza bastante para desejar correr o risco. Mas não tenho a intenção de assustar você, querido. Quer esperar e ver como nossos planos para Jake e Hester se desenrolam?

— Hem... oh, que diabo, até lá podemos estar todos mortos.

— Aqui mesmo?

— Hem? Um cóptero pode passar.

— Então vamos para o lanai.

 

A Universidade de Harvard, S.A. decidiu congelar todos os fundos até o Governo Estudantil escolher um novo presidente para a universidade. Ambos os governos estudantis rivais e o senado da faculdade vão tentar uma ação judicial contra este «ato precipitado e irresponsável». CONGR MELHORES TIRAS DISSE CHEFAO TIRAS — o Secretário-Geral dos Policiais Particulares, Guardas e Motoristas de Segurança (AFL), no banquete anual da organização, congratulou-se com Milwaukee por ter-se juntado à crescente lista de municipalidades que aboliram a norma de «ficha limpa», ao contratar guardas. «O notável sucesso de condicionais e sob palavra como guardas de segurança particulares licenciados, está finalmente ensinando os políticos a «caçar patos onde existem patos». A Bíblia diz «Para pegar um ladrão usa-se outro, não é? Quem sabe mais a respeito de marginais que um marginal? Dê a um homem motivos para se manter na linha, ponha-o num trabalho que compreenda e poderá contar com ele num aperto. Era o que mamãe vivia me dizendo quando eu não passava de um fedelho assaltando confeitarias. Além disso, como nos disse há pouco o Secretário do Tesouro, «Olhem o que significou para a economia!» Nesta grande república...»

O programa «Today's Day» entrevistou uma parteira que afirmou ter partejado o filho de Miss Molly Maguire dez dias antes do seu sensacional mergulho no espaço de duas nações. A estrela imediatamente processou o apresentador, a estação e a vídeo-rede.

 

IGUALDADE DE DIREITOS PARA AS MULHERES!!!

Não seja importunada ou humilhada. Veja o olhar de surpresa dele quando você entrar num mictório e usá-lo com um sorriso. Compre um Adaptador Igualdade-Imediata da Dr.a Mary Evers (ped. reg. em andamento), tamanho de bolso, absolutamente seguro, higiênico — apresentado em nove modelos femininos, encantadores, psicodélicos — isento de receita e sem problemas para encaixar.

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A Comissão Lunar tornou permanente sua política experimental de triagem da emigração apenas no exame físico e mental, sem levar em conta, pró ou contra, o passado de cada um. O Diretor disse: «num mundo novo, um homem precisa começar com um passado limpo. É a única política prática». Apertado por perguntas objetivas, confessou que os financiamentos de vocações não definidas continuavam no mesmo pé, mas insistiu que era um assunto fiscal, controlado pelos governos condôminos e de maneira nenhuma afetava o princípio básico. Palavras Candentes num Debate de Trocadilhos: «'... não intimida'. É o que ele nos diz. O senador pelo grande Estado de Porto Rico está ciente de que o nosso maior problema é a reincidência? O senador pode citar um caso no qual o assassino tenha cometido ainda um outro crime depois de ter sido executado?»

 

— Uau! Joe, veja como o vento a carrega!

— Formidável.

— Faz minha moela ficar limpa — disse Joan Eunice alegremente. — Vamos para a popa. Winnie está na roda do leme e certa de impressionar. Ficou muito orgulhosa porque Tom a colocou na lista de vigia. É uma maruja por vocação, com água salgada nas veias. Que é que há, querida Gigi? Não está alegre. Sentindo-se mal?

— Hem? Talvez um pouquinho.

— Devo confessar que a Gatinha tem um movimento de cavalo de balanço, quando navega livre. Eu gosto, mas muitos não. Não faz mal, querida. O Doutor Roberto tem uma pílula infalível para enjôo.

Arranjo-lhe uma e dentro de cinco minutos o movimento não a incomodará e ficará faminta como um cavalo.

— Não tomo pílulas, Joan. Estou bem.

— Não está não e quando descer não vai querer almoçar. E Hester me disse que preparou algo especial em sua honra. Olhe, querida, Roberto dá essas pílulas a Winnie, diariamente, uma antes do café, e as trouxe com ele para bordo para prevenir o enjôo matinal. É um médico cuidadoso, querida. Não as daria à própria esposa se fizessem mal. Aqui na Gatinha ninguém toma remédios a não ser os receitados pelo médico de bordo. Querida, sim? Hem?

— Gigi.

— Que é, Joe?

— Tome pílula.

— Sim, Joe. Obrigada, Joan. Estou meio tonta. Acho que você pensa que sou boba, mas já vi tantas crianças deformadas por pílulas, que fico assustada.

— Não gosto de pílulas mas tomo-as quando o Doutor Roberto manda. Ele tem uma reserva aqui para o monstrinho dentro de mim. Fique apanhando ar, querida, enquanto vou procurar Roberto.

 

— «Navegando, navegando, para o meio do oceano!» — berrava Mr. Jake Salomon, içando-se para o painel de comando. — Bom dia, Ski.

— Bom dia, comandante. Em direção ao porto, rumo básico um cinco...

— Estou vendo. Largue esse troço e desça para tomar café. — Salomon sentou-se e olhou para a bússola assim que pegou a roda. — Não lhe deixamos nada, mas pode desencavar bolachas no salva-vidas.

— Hester não me deixará morrer de fome, senhor.

— Nem Olga. Agora, caia fora.

Jake deu uma olhada nas velas, achou que podia erguê-las um pouco mais, estendeu a mão direita para o comando do cordame, ficou mexendo num interruptor para diminuir a escota grande, de olho na vela mestra, enquanto manejava a roda pelo tato, até ter estabelecido uma rota estável. Então ajustou a bujarrona e sossegou.

— Bom dia, capitão.

— Tom, guarde o título para quando houver estranhos. É muito agradável para Mrs. Salomon querer me impingir um título honorário, mas todos sabemos quem é o mestre navegador que consta da documentação do barco. Você é o comandante e tem a responsabilidade. Sou apenas o proprietário e o primeiro imediato, não licenciado. Eunice não devia fazer isso... mas devemos ser gentis com as coisinhas queridas. Falando de coisinhas queridas, como vão suas duas nesta linda manhã? Não vi Eve no café.

— Ela comeu depois que o senhor subiu, senhor. Vi-a e disse-lhe que de agora em diante tem de usar calcinhas, menos na piscina ou na beira.

— Não sei porque ela deve, as outras não usam, a menos que estejam de acordo. Apenas não quero que ela fique nadando nos meus joelhos, nua como uma enguia e duas vezes mais veloz. Me dá ilusões de juventude.

— Darei um aperto nela, senhor.

— Tom, não quero que a menina «seja apertada». Quero que todos gozem este cruzeiro... como uma grande família feliz. Peça a Hester que diga a ela suavemente que o velho Tio Jake a ama, mas não gosta de ser afagado. Esta última parte é mentira, mas uma mentira oficial. Por falar na piscina, como está o filtro?

— Está legal. Era apenas uma obstrução na junta do cano de alimentação. Uma alga. Sem importância.

— O médico examinou a água?

— Pura.

— Isso é ótimo. Tom, quando eu era criança, lutando para ser terceiro quartelmestre, costumávamos pular do botaló e não tínhamos a menor idéia do que fazíamos. Mas hoje, mesmo o Oceano Pacífico não consegue absorver toda a imundície que jogam nele. Pode dar o toque de nadar e tirar da piscina o aviso de perigo.

— Sim, senhor.

— Um instantinho, enquanto dou as oito badaladas.

Jake estendeu a mão esquerda, e apertou o último botão de uma fileira de oito. O quádruplo Bong-Bong! marcando o início do quarto da manhã ressoou pela nave inteira. Então apertou outro botão e a chamada para nadar foi ouvida.

— Tom, se um homem não tivesse que comer ou dormir, poderia levar sozinho esta banheira pelo mundo todo. Três homens podem fazê-lo tranqüilamente. Mesmo dois.

— Talvez.

— Você parece duvidar, Tom.

— Até um pode, senhor... se não acontecer nada. Mas sempre acontece.

— Admito o erro. E com duas mulheres grávidas a bordo... três, se não ficar de olho em Eve...

— Oh, o Dr. Garcia está dando pílula juvenil para ela. Não corro riscos, senhor.

— É? Tom, meu respeito por você — que era grande — aumentou. Ela está livre do Tio Jacob, mas não me responsabilizo pelos outros homens deste balaio. Existe algo no ar salgado que ativa o metabolismo. E há muita verdade no velho ditado que diz: «Quando estão bem crescidos, são velhos bastante e não se pode fazer nada». É melhor deixar o barco correr.

— Ela está crescida, tem idade e sabemos disso... conversei a esse respeito com o doutor. Hester e eu não esperamos de Eve um comportamento diferente do que tivemos. Todos sabem que quando uma mulher começa a ser vagabunda bate de bunda no chão.

— É verdade... mas muitos pais não acreditam quando a coisa acontece com sua própria filha. Eu sei, fui advogado de vara de família durante muitos anos. Tom, você é uma pessoa tão sensível que não sei como nunca se meteu em encrenca.

O capitão encolheu os ombros.

— Pode acreditar no que lhe disse, senhor. Eu era o primeiro oficial daquele balaio enferrujado e o capitão disse para eu manter a boca fechada e nada ver e levamos dez vezes mais tempo numa viagem. Tudo arranjado. Só que ele foi sabido e guardou o dinheiro do suborno. Pensando que podia navegar no escuro. A gente até pensa que ele nunca tinha ouvido falar em radar. Pois sim! Guarda-Costeira — Finchley encolheu os ombros outra vez. — Não me queixo, senhor. Eu era um bobo. Peguei dois anos e quatro meses e arranjei aquele emprego muito melhor como motorista de Mr. Smith. Cheirando como uma rosa. Agora não tão confiante. Não confie demais e não terá o traseiro queimado.

— Porém você não parece cínico. Tom, acho que o maior problema do crescimento é tornar-se sofisticado sem ficar cínico.

— Nunca me aconteceu, doutor. Acho apenas que gente é legal, na maioria — mesmo aquele comandante pateta — se não for mais solicitada do que deve. Como aquele cordame esticado ali. Agüenta três toneladas. Provavelmente vai até cinco sem problemas. Mas não apóie seis toneladas nele.

— Acho que estávamos dizendo a mesma coisa, mas seus exemplos são vividos. Caia fora. Tom. Se não houver nada para fazer, vá dormir. Ou vá para a piscina.

— Sim, senhor. Quero examinar o casco a estibordo. Está fazendo muita água. A bomba pode resolver, mas quero saber por quê.

Tocou no quepe e desceu da plataforma. Jake colocou seu próprio quepe para se proteger do sol, acomodou-se e começou a cantar:

«A mulher do marujo deve ser a sua estrela!

Ho ho, lá vamos nós, através do mar!

A mulher do marujo deve ser a sua estrela,

A mulher do marujo sua estrela... deve ser!»

 

Sua mulher subiu por trás dele e beijou-o na nuca.

— A canção é para mim, querido? Ou para «Nancy Lee»?

— É sempre para você, minha amada. Além disso, não lembro da parte em que entra «Nancy Lee».

— Fico imaginando se você lembra de algum nome de mulher.

Chama a nós todas de «queridas».

— Simplesmente porque é verdade. Mas você é a única que eu chamo de «minha querida». E lembro do seu nome: é «Salomon».

— Jacob, você deve ter sido uma séria ameaça quando era marinheiro. Com essa capacidade hebraica de bajular, você consegue o que quiser. E depois cai fora sem problemas.

— Não, madame, eu era um rapaz amável e inocente. Simplesmente cumpria o velho código do mar: «Quando a âncora é içada, todas as contas são pagas».

— Deixando um bastardinho judeu em cada porto... aumentando assim a população. E Gigi? Vai aumentar a população aqui? — Meteu o polegar num sinal acima do quadril dele quando sua pequena barriga saltou ao sentar-se. — Um petisco, hem, garoto?

— Madame — respondeu ele, arrogante —, não sei de que está falando.

— «Diga isso aos Fuzileiros, os velhos marinheiros não acreditam'». Jacob, meu amor, tenho a certeza de que você conhece a segunda Mrs. Branca tão bem quanto conheceu a primeira. Mas não quero provar isso. Dou-lhe apenas meus parabéns. Gigi é um amor, gosto muito dela. Não estou com ciúmes. (Gêmeo, diga-lhe que ela o denunciou, gêmeo) (Não digo!)

— Mulher, você se exercita tirando conclusões precipitadas. (Então diga-lhe que isso aconteceu onde a avenida Tróia cruza com a rua das Bichas, perto do largo dos Caretas... uma vizinhança que você conhece muito bem, gêmeo) (Eunice, quero que Jacob sinta-se à vontade com relação a isso... não estou tentando arpoá-lo) (Você não está equipada para isso, Joan. Jake é o autêntico Capitão Ahab) (Eunice, você tem uma mente suja) (Mente de quem? Não tenho nenhuma. Não preciso)

Mrs. Salomon deixou o assunto morrer, abriu o armarinho do sextante e tirou-o.

— Querido, quer me dar a hora certa?

— Vai matar o Sol indefeso?

— Vou fazer melhor que dar uma olhada no Sol, amado. O Sol a borda superior da Lua e — se eu tiver sorte e conseguir localizá-lo novamente — Vênus constituirão um ponto de referência. Quer apostar em como posso conseguir um triângulo mínimo?

— Tudo em como o lado menor terá cem quilômetros.

— Animal. Bruto. Malcriado. Não respeita uma futura mãe. Ontem de tarde consegui dez vezes menos que isso. Sei como se faz. Se eu quisesse, trapaceava... podia perguntar a Point Loma e depois falsificar na carta.

— Eunice, por que essa mania de imitar Bowditch?* Até parece que o rádio, os satélites e tudo o mais nunca foram inventados.

 

* Nathaniel Bowditch (1773-1838), matemático e astrônomo americano (N. do T.).

 

— É divertido, meu amor. Vou passar no exame de navegação com plenamente e obter minha licença limitada. Depois de eu ter desovado esta cria e não precisar mais navegar em águas costeiras, navegarei sem parar todos os dias em direção ao Havaí. Aposto como avistarei terra a menos de três quilômetros de Hilo. Oh, não é necessário, querido... mas e se for? Imagine que a guerra arrebente e tudo fique em silêncio? Pode ser útil ter a bordo um navegador que se guie pelos astros. Tom confessa que mal deu uma olhada desde que recebeu seu diploma de marítimo.

— Se algum dia recebeu. Sim, pode ser útil, minha querida... porque se a guerra estourar de fato e estivermos no mar, não iremos para Hilo. Daremos uma guinada para a esquerda, aproaremos para o sul e sumiremos. Para as Marquesas. Ou mais para o sul ainda. Quanto mais longe, melhor. Dessa maneira nosso filho poderá sobreviver. Ilha da Páscoa, se você acha que pode atingi-la.

— Jacob, até lá serei capaz de acertar bem no alvo. Ou qualquer outra ilha que você escolher. Querido, eu não estava brincando quando pedi todas aquelas obras antigas: os mapas, os guias, as três bússolas, este lindo sextante e um outro igual para o caso de eu deixar este cair... e repare, por favor, que passo sempre a correia pelo pescoço. E o Almanaque. Atualmente não sou útil para os serviços de bordo... por isso resolvi me tornar um verdadeiro navegador. Como precaução.

— Hummm. Minha querida, espero que nunca precisemos passar por isso... mas reparou que mantive esta embarcação permanentemente abastecida, apesar de ancorarmos quase todas as noites e podermos comprar todos os mantimentos que quisermos?

— Reparei, senhor.

— Não foi por acaso que dei ao Dr. Bob verbas ilimitadas e ele preparou a embarcação para enfrentar qualquer problema obstétrico.

— Isso no entanto não reparei.

— Foi de propósito, para você e Winnie... Não era conveniente que vocês se preocupassem com aquilo. Mas já que você levou adiante planos semelhantes, resolvi contar-lhe. Bob aproveitou o tempo em que a Gatinha estava sendo revisada para uma atualização em obstetrícia. E gastou vinte vezes mais dinheiro com a enfermaria de bordo do que era de esperar para um cruzeiro.

— Que bom saber disso, senhor. Encarado assim, o dinheiro pode fazer quase tudo. Menos fazer o relógio andar para trás.

— Até isso foi feito no seu caso, amada.

— Não, Jacob. Ganhei mais alguns anos... este corpo maravilhoso ... e você. Mas não fez o relógio andar para trás. Continuo tendo quase cem anos. Nunca poderei me sentir jovem como fui uma vez... porque não sou. Como Winnie é jovem, por exemplo. Ou Gigi. Jacob, descobri que não quero ser jovem.

— Hem? Você está infeliz, querida?

— De jeito nenhum! Tenho a nata de dois mundos. Um corpo vivo e jovem, que faz de cada respiração um prazer sensual... e um século de rica experiência, com a sabedoria — se é a palavra adequada — que a idade traz. A tranqüilidade. A longa perspectiva. Winnie e Gigi ainda sofrem as tempestades da juventude... que eu não tenho nem quero. Esqueci a última vez em que tomei um tranqüilizante, mas acho que foi quando me desenfaixaram. Jacob, sou para você melhor esposa que aquelas duas encantadoras moças podem ser. Sou mais velha que você, estive onde você está agora e compreendo. Não estou me gabando, querido. É a verdade pura e simples. Nem ficaria feliz se me casasse com um rapaz... teria de passar a vida tentando desesperadamente não perturbar seu delicado, jovem e instável equilíbrio. Somos bons um para o outro, Jacob.

— Sei que você é boa para mim, minha querida.

— Eu sei que sou. Mas às vezes você fica perturbado lembrando que eu não sou realmente Eunice e sim Johann. (Ei! Que é isso, patrão? Somos ambos) (Somos, amada, sempre... mas Jake precisa lembrar de Johann... porque ele só vê Eunice) Por exemplo, Jacob, ainda há pouco você pensou que eu o estava criticando por causa de Gigi.

— «Pensou» uma ova... você estava.

— Não, querido. Feche os olhos e esqueça que uso a voz de Eunice. Volte ao passado, pelo menos uns dez anos atrás, quando eu ainda tinha uma saúde razoável. Se seu velho amigo Johann tivesse notado que você estava dando em cima de uma moça bonita, teria lhe criticado?

— Hem? Raios, teria. Johann teria me criticado e acabado com a coisa.

— Eu teria, Jacob? Fiz alguma vez?

— Você nunca me pegou.

— Ah, é? Devia dar parabéns a você, como fiz hoje, Jacob... se achasse que podia fazê-lo sem o ofender. Mas nunca teria criticado você. Lembra de uma jovem cujo primeiro nome era — ou é — Marian? O sobrenome começava por «H»... e você a apelidou de «Donzela Marian».

— Como diabo?

— Calma, querido... você deixou cair o leme. Isso foi há sessenta e cinco anos, pouco antes de eu lhe pedir para dedicar seu tempo todo aos meus negócios. Assim, mandei fazer um levantamento completo da sua vida, antes de entregar-lhe minhas coisas. Permite que lhe diga que o fato de você preservar tão cuidadosamente a reputação dela foi o fator decisivo que me levou a achar que podia confiar em você em tudo o mais?... Inclusive dando-lhe poderes de procurador, que você mantém desde então e nunca abusou? Permite também que acrescente que quis dar-lhe os parabéns tanto pelo seu bom-gosto como pelo sucesso como Lothario?... Pois é claro que naquela época eu deveria investigá-la também e ao marido, antes de poder confiar meus terríveis segredos a você. Mas — também é claro — não pude dizer nada

— Nunca pensei que algo daquilo viesse um dia à tona

— Por favor, Jacob. Lembra que uma vez você disse a Eunice que poderia contratar um homem para fotografá-la dentro da própria banheira... e ela nunca iria ficar sabendo? Como vimos, o dinheiro pode fazer quase tudo que seja materialmente possível. Parte daquele levantamento foi uma fotografia sua com Marian no que vocês, advogados, chamam de «posição comprometedora».

— Meu Deus! Que é que você fez com ela?

— Queimei-a. Odiei-a também. Era uma ótima foto e Marian estava danadamente linda... você também estava bacana, seu adorável bode velho. Então mandei chamar o dono da agência de investigações e disse-lhe que queria imediatamente o negativo e todas as cópias. Disse-lhe também que tomasse cuidado, pois se eu soubesse que uma só cópia não me tivesse sido entregue, acabaria com ele. Tirava-lhe a licença, o arruinava, punha-o na cadeia. Você ou Marian foram alguma vez incomodados por causa dessa foto? Chantageados ou coisa assim?

— Não. Eu não... e estou absolutamente certo de que ela também não.

— Acho que o homem acreditou em mim. Jacob, você continua pensando que o critiquei por causa de Gigi? Ou dei-lhe os parabéns?

— Hum... talvez nem uma nem outra coisa. Talvez estivesse tentando me arrancar uma confissão. Não pega, vagabunda.

— Por favor, Jacob. Partindo do princípio de que eu estava errado, mas sincero... qual das duas? Agora que você sabe como me portei a respeito de Marian.

— Eunice-Johann! Você devia ter sido advogado. Dentro desse princípio, confesso que podia ter sido parabéns sinceros. Coisa que não posso aceitar, por não ter merecido. Agora, que diabo, me diga como se enganou dessa maneira.

— Direi, querido, mas não neste instante. Gigi está vindo para cá. — Joan tornou a colocar o sextante no lugar. — Seja como for, temos de esperar para ver. A aproximação foi tanta que perdi meu horizonte para o Sol. Oi, Gigi, coisa linda! Nos dê um beijo. Só a mim, Jake está de quarto.

— Não estou tão ocupado assim. Eunice, segure a roda do leme. Recebeu o beijo ainda sentado e então pegou de volta a roda.

Joan perguntou:

— Esteve nadando, querida?

— Estive sim. Joan Eunice, posso falar com você uma coisa? O senhor nos desculpa, Mr. Salomon?

— Não, me chamando por esse nome. Você deve dizer «Jake».

— Pare com isso, querido — disse Joan, divertida. — Ela está querendo um papo entre mulheres. Venha, querida. Comandante, trate de nos manter flutuando.

Acharam um cantinho a sotavento do salva-vidas.

— Problemas, querida? (Eunice, iremos passar por cima de^ Jake? Certamente não!) (Não pode ser, gêmeo. Esse caso começou há duas semanas... e tanto Gigi como Joe não estão se incomodando. O que significa exatamente o que pensamos: na realidade é um reatamento... e Jake mentiu para proteger a reputação de uma dama. Previsível)

— Mais ou menos — confessou Mrs. Branca. — Hum, é melhor falar francamente. Da próxima vez em que ancorar e mandar um bote à terra... Joe e eu queremos ir embora.

— Oh, querida! Que foi que aconteceu, Gigi? Eu tinha tanta esperança de que você ficasse pelo menos durante o mês de que falamos... e depois mais tempo se quisesse.

— Bem... Nós também esperamos. Mas estou com enjôo e Joe... bem, tem pintado alguma coisa mas... as luzes não são boas. São claras demais e... — Parou no ar. (Gêmeo, tudo desculpas) (Por causa de Jake?) (Não pode ser, já lhe disse. Você tem de forçá-la a falar claro)

— Gigi.

— Hem, Joan?

— Olhe para mim. Você não deixou de comer uma vez sequer desde que Roberto lhe receitou a pílula para enjôo. Se Joe prefere lâmpadas em vez de sol, esvaziaremos o salão de jantar, que poderá ser o estúdio dele. Me abrace e diga o que é que há de verdade.

— Hum... Joan, o oceano é tão danadamente grande! — Gigi piscou, as lágrimas correram e ela acrescentou: — Acho que você pensa que sou uma boba.

— Não, ele é grande. O maior oceano do mundo. Algumas pessoas não gostam dos oceanos. Eu gosto. Isso não significa que você também tenha de gostar.

— Bem, pensei que pudesse. Sabe, ouve-se falar. Que coisa maravilhosa é uma viagem por mar. Mas me assusta. E a Joe também. Só que ele não confessa. Joan Eunice, você tem sido maravilhosa conosco ... mas nosso ambiente não é este. Joe e eu não somos peixes... somos gatos de telhado. Sempre moramos em cidades. Aqui é calmo demais. Principalmente de noite. De noite o silêncio é tão agudo que nos acorda.

Joan beijou-a.

— Está bem, querida. Sei que não estão se sentindo felizes como eu gostaria. É uma pena. Terei de visitá-la em sua casa... onde todos nos sentimos à vontade. Não gosto da cidade, ela me assusta. Mas gosto dela dentro do seu estúdio... desde que eu não precise sair. Mas não há mais nada? Ninguém a aborreceu? Ou a Joe?

— Oh, não! Todos têm sido ótimos.

— Você chamou Jake de «Mr. Salomon».

— É porque eu estava perturbada... sabendo que tinha de falar com você.

— Então ambos se dão bem com Jake? Sei que ele é comovente. Comove inclusive a mim. Não se trata disso?

— Oh, nem um pouco! Hum... saber que estamos abandonando Jake nos aborrece tanto quanto saber que estamos abandonando você.

— Então ambos podemos visitar você? Ficar uns dias? (Ela engolirá isso, Eunice?) (Por que me pergunta, patrão? Basta perguntar a ela)

Mrs. Branca baixou os olhos, então ergueu-os e respondeu abruptamente:

— Fazer um quarteto? Sempre?

— Sempre.

— Bem, nós gostaríamos, acho que você sabe. Mas e Jake?

— Pois é. E Jake, Gigi? Me diga.

— Hum, Jake sente-se bem conosco. Porém, parece ficar meio tenso quando você está perto. Joan Eunice, você pegou, não foi? Ou não teria me proposto um quarteto.

— Peguei, querida. Está tudo bem. Não tem galho.

— Bem que eu disse a Jake. Ele respondeu: Que nada, não é possível, você dormia como uma pedra.

— É verdade, exceto que atingi aquele ponto da gravidez em que às vezes acordo para mijar. Mas não foi isso... Jake pode estar numa porção de lugares quando não está na cama e eu nunca investigo. O que eu percebi não servia de prova. Apenas, os homens têm uma* forma diferente de olhar uma mulher que é deles. E vice-versa. Nada que alguém possa acusar. Apenas «não tenso» descreve bem o sentimento. Não estou nem mesmo vagamente com ciúmes de Jake, apenas contente. Sei como você pode ser boa para um homem... lembre que já fui um...

— Sei, mas nunca acreditei realmente.

— Eu tenho de acreditar e jamais posso esquecer. Conhecendo você, fiquei vaidosamente satisfeita por meu marido. Conte, vocês fizeram um círculo a três com Jake? Money Hum?

— Oh, sim, sempre!

— Da próxima vez — no estúdio de vocês — irá haver um a quatro. Então nosso quarteto ficará perfeitamente harmônico e ninguém se sentirá mais tenso.

— Sim. Sim!

— Até lá, você não precisará mais continuar neste grande e assustador oceano. Não vamos ancorar. Mandarei Tom chamar um cóptero... digamos logo depois do almoço. Ele os deixará no Internacional de La Jolla e de lá vocês vão de jato para casa. O piloto do cóptero cuidará das suas coisas e Tom fará as reservas de passagens. Vocês estarão em casa aquecendo um pacote no próprio estúdio antes de ter tempo de dizer «Hora Local». Está se sentindo melhor?

— Hum, estou me sentindo uma peste mas... sim, estou melhor. Oh, meu Deus, Joan, estou com tanta saudade de casa!

— Estará em casa hoje. Vou procurar Tom e botá-lo a trabalhar. Então contarei a Jake — direi a ele por que, ele vai compreender — e o substituirei na roda do leme, dizendo-lhe que a encontrará no seu salão. Se você tiver a coragem de um rato, gatinha de telhado da cidade grande, aferrolhe a porta e dê-lhe adeus corretamente. Hum... tróia? Ou dupla?

— Oh. Tróia. É claro.

— Então vá procurar Joe e contar-lhe. Você tem dez minutos, talvez quinze. Mas, Gigi... aquele retrato da Eve, preciso comprá-lo.

— Não. Nós o daremos a você.

— Já acertamos isso há muito tempo. Joe pode me dar qualquer coisa menos quadros. Preciso pagá-lo porque quero dá-lo de presente ao meu marido. Agora me beije e pire, querida.

 

A Gatinha, com as velas arriadas, balançava suavemente num mar calmo. Quinze metros acima do seu mastro mais alto, um cóptero pairava enquanto descia uma cesta para transportar passageiros. Tom Finchley manteve-se afastado, orientando o piloto do cóptero com gestos de mão. Mr. e Mrs. Branca já haviam desaparecido no interior do cóptero, tendo subido na primeira viagem, mas sua bagagem estava no tombadilho a barlavento, esperando ser embarcada.

Era um monte respeitável. Joan insistira com eles para levar «tudo o que pudessem precisar para um mês ou mais — principalmente para pintar, pois deveria haver montes de gente em volta e um deles poderia querer posar... ou eu os mandarei chicotear até sangrar e então fazê-los andar pela prancha. Joe querido, você pode fazer, querendo, quadros muito românticos: cenas de piratas com vítimas sexy e patifes lúbricos. Divertido?»

Ela havia mandado o convite pelo ServMerc, com passagens frete aéreo e instruções para o ServMerc fornecer um leitor para o bilhete. Jpe a tomara ao pé da letra. Parecia ter esvaziado o estúdio: refletores, lâmpadas, cavaletes, um enorme rolo de telas, rebatedores, câmaras, equipamento fotográfico e material, coisas diversas... e um saco para cada um com roupas e artigos de toalete. Vendo o que Joe reunira, Joan ficou contente por ter ordenado que a Brink os levasse ao jato-porto e se encarregasse deles até o fim.

A cesta levou um monte de coisas e voltou para apanhar o resto. Fred e Hank, o menino de Delia, de dezesseis anos, um taifeiro prestimoso mas inexperiente, estavam carregando, ficando um segurando a cesta para evitar que rodopiasse, enquanto o outro punha as coisas dentro.

Em breve estava tudo carregado, menos uma enorme caixa, quando uma rajada de vento destruiu o equilíbrio instável existente entre o cóptero e a nave. A cesta balançou brutalmente. Fred largou-a e pulou para o lado, enquanto Hank se atirava de barriga no tombadilho, para evitar ser atingido.

Fred voltou e novamente segurou a cesta, agora três metros mais longe. Joan Eunice agarrou a alça da última caixa e depois usou ambas as mãos.

— Uau! Acho que Joe meteu a âncora dentro desta. Jake berrou:

— Eunice! Não suspenda! Quer abortar?

Tirou-a das mãos dela e se encaminhou para a cesta. Hank estava novamente em pé.

— Deixe, comandante, que eu pego!

— Saia da frente, meu filho.

Jake arrastou-se para a cesta, viu que estava alta demais, tomou a caixa nos braços, colocou-a depois no ombro e depositou-a cuidadosamente dentro da cesta... e desmaiou. Joan correu para ele.

Tom Finchley, na popa, viu quando o último fardo foi colocado dentro, ergueu os olhos para o piloto do cóptero, gritando «Levantar vôo!», ao mesmo tempo em que fazia um sinal com a mão, que significava «Tudo carregado... pode ir!»

Então baixou os olhos e começou a correr.

Joan, sentada no tombadilho, havia colocado a cabeça e os ombros de Jake sobre suas pernas.

— Jake, querido Jake! (Eunice! Socorro!) Fred disse:

— Vou chamar o doutor!

Saiu correndo pelo passadiço. O rapaz ficou parado, sem saber o que fazer. Salomon deu um longo e borbulhante suspiro e seus músculos distenderam-se. (Eunice! Onde está ele?) (Patrão, não consigo achá-lo!) (Você tem de achá-lo! Ele não pode estar longe) (Onde, que diabo?) (Aqui está ele, aqui está ele! Jake!) (Eunice, que aconteceu? Alguém me deu uma tijolada na cabeça) (Doeu, querido?) (Claro que não, patrão, agora não. Não pode doer. Bem-vindo a bordo, Jacques o Melancólico, velho bastardo encantador! Puxa, como estou contente de ver você!) (Sim, seja bem-vindo, querido. Meu querido. Nosso querido) (Eunice?) (Não, Eunice sou eu, Jock. Velho e arrogante Jock. Essa é Joan. Ou Johann. Ou patrão. Não, Joan é «patrão» só para mim. É melhor que você o chame de Joan. Olhem, companheiros de

bordo, vamos deixar esta tróia clara antes de sermos postos sobre os pés. Joan, você chamará nosso marido de «Jake» como sempre... ao passo que o chamarei de «Jock», como costumava. Jock, você chamará o patrão tanto de «Joan» como de «Johann», como quiser e ela a mim de «Joan» ou «patrão». E serei sempre «Eunice» para ambos. De acordo?) (Estou confuso) (Nada de onda, querido Jock, não haverá mais galhos agora. Joan tem de dirigir enquanto ficamos sentados atrás, acariciando-a e dando conselhos. Diga-lhe, Joan) (É verdade, Jake. Agora você nos tem a ambos. Para sempre) (Om Mani Padme Hum) (Om Mani Padme Hum. Venha, Jake, é uma louvação) (Om Mani Padme Hum!)

— Om Mani Padme Hum.

— Joan, deixe eu tomar conta dele, querida.

O Dr. Garcia estava inclinado sobre ela. Joan sacudiu a cabeça.

— Eu o seguro, Roberto.

(Patrão! Pare com a frescura feminina e deixe o querido doutor trabalhar) (Sim, Eunice. Agarre-se firme em Jake) (Não tenha medo, querido. Jock, você agora pode ver? Com os olhos de Joan? Vamos nos mover) (Claro que posso ver. Quem é aquela ruína horrorosa? Eu?) (Claro que não. É apenas algo de que não precisamos mais. Olhe para o outro lado, Joan, você está perturbando Jock)

— Fred, leve-a para baixo. Hank, ajude-o. Tom, preciso de Winnie. Vá buscá-la.

 

O Dr. Garcia encontrou Joan no salão. Estava deitada, com um pano molhado na testa e Olga Dabrowski sentada ao seu lado. Tom Finchley, com ar solene, entrou junto com o médico. Sem dizer nada, o médico tomou o pulso de Joan, olhando o relógio.

Então disse:

— Más notícias, Joan.

— Eu sei, Roberto. Ele se foi antes de eu descer {Não se foi, patrão. Não fale assim. Jock está morto, exatamente como eu. Mas^ não se foi. Não é, Jock?) (Acho que você está se perdendo em minúcias, Pernas Sensuais...) («Pernas Sensuais»! Há muito que você não me chama assim) (E na noite passada?) (Chamou Joan e não a mim. Não na noite passada) (Vocês dois querem ficar calados? Ou pelo menos sussurrar? Tenho de lutar)

(Desculpe, patrão. Querido Jock, murmure para mim bem baixinho. Joan é melhor do que eu naquilo?) (Eunice, continuo ouvindo... Você está com os sentidos confusos) (Querido patrão, não há sentidos no Eterno Presente. Fiz uma pergunta a Jock... e ele é covarde demais para responder) (Claro que sou!) (Oh, está bem. Com meu revestimento e meus ensinamentos, Joan provavelmente está agora em condições. Além de um bom começo... você pode não acreditar, Jock; mas o patrão tem a mente mais imunda. Aquele ato mulher-com-mulher é apenas um ato) (Gêmeo, pare de querer pegar meu bode. Estou ocupada e Roberto preocupado conosco) (Desculpe, gêmeo. Farei o possível)

— Eunice, quero deixar uma coisa clara. Não teria feito a menor diferença se isto tivesse acontecido em terra, com todo o aparelhamento possível à mão. Mesmo com o Dr. Hedrick presente. Oh, teríamos podido mantê-lo vivo... vegetando. E nada mais.

— Jake não teria querido isso, Roberto. Sempre o ouvi dizer com grande ênfase. Nunca aprovou a maneira pela qual fui mantida viva.

— Os dois casos têm cento e oitenta graus de separação, Joan. Seu corpo estava ruim, mas seu cérebro em boas condições. No caso de Jake... bem, fiz-lhe um exame físico antes de embarcarmos. Seu corpo estava em perfeitas condições, para a idade. Mas sei o que a autópsia mostrará: uma enorme ruptura de um vaso sangüíneo no cérebro. Morreu instantaneamente. É o que chamamos de «acidente» cerebral, porque é imprevisível. Se isso serve de consolo, morreu sem sofrer.

(«Sem sofrer», hem, Bob? Experimente... é como um coice de mula na cabeça. Mas você tem razão. É só um. Sem dor de cabeça depois) (Senti o mesmo, querido Jock, quando me mataram. O patrão sofreu muito mais durante anos) (E daí? Agora está acabado. Queridos, por favor, fiquem calados... conversaremos quando ficarmos sós)

— Doutor, não haverá autópsia.

— Joan, deve haver uma autópsia para sua tranqüilidade de espírito.

— Isso não trará Jake de volta e ele não gostaria. Para minha «tranqüilidade de espírito», quero fazer uma pergunta: foi por causa... de uma lua-de-mel muito intensa?

— Oh. Não, apenas idade demais. Joan, não foi nem mesmo por ter erguido aquele peso. Deixe-me explicar-lhe essa espécie de «acidente». É como um pontinho num pneumático antigo, usado em excesso e a pique de estourar: qualquer coisa pode provocar o acidente. Jake podia simplesmente ter ficado de pé e tombado para a frente: hoje, amanhã, na semana passada. Oh, pode acontecer durante uma relação sexual. Ouve-se freqüentemente homens dizerem que querem morrer «enquanto estão dando a última». Mas é uma terrível experiência para a mulher que está participando do ato... e provavelmente não é o último orgasmo. Mais provavelmente ele é interrompido logo antes.

«Por melhor que fosse o comportamento de Jake, ainda viril — admito — (Você sabe muito bem que Jock era «ainda viril». Pergunte à mulher dele. A Gigi. Raios, a todo mundo) (Eunice, meu comportamento foi tão espalhafatoso assim?) (Não foi nada espalhafatoso, bodinho encantador, mas as notícias correm) ou melhor, «sei», porque fui seu médico. Jake era feliz, forte e viril... e agora está acabado, como um filme partido. Não fique preocupada com «lua-de-mel muito intensa». O casamento pode ter salvo Jake de anos de inutilidade senil. Ou pode ter abreviado sua vida em duas semanas, o que é um preço ínfimo para tanta felicidade. Porém mais provavelmente prolongou a vida dele. Um homem feliz funciona melhor. Esqueça isso, querida. Quando minha hora chegar, espero que seja igual à de Jake: rápida e feliz até o fim.»

— Então não tem sentido fazer a autópsia, Roberto. Quer assinar um atestado de óbito?

— Bem... quando a morte ocorre fora de um hospital e sem assistência médica, é costume comunicar às autoridades e...

— Roberto!

— Que é, Joan?

— Você não vai fazer isso com Jake. Comunicar a quem? A alguém em Washington? Estamos em águas federais e o médico-legista do Condado de San Diego não tem interesse especial por esta morte. Mas, provavelmente, tentará tirar partido da publicidade do caso assim que souber quem foi Jake, quem sou eu e não admito que se faça isso com a morte de Jake. Jake estava sob cuidados médicos: os seus! Você é o médico de bordo. Nada demais que você o tenha visto morrer.

Pense nisso. (Joan, não peça a Bob para mentir. Não tem a menor importância que um juiz qualquer mande o legista me retalhar) (Não permitirei! Além disso, Jake, estou grávida. Você quer que eu passe por isso? Multidões, inquirições, ser arrastada, empurrada, passar noites acordada?) (Hmmm... Querida, diga-lhe que invente uma mentira inatacável) (O patrão é uma vagabunda teimosa, Jock... mas sempre tem razão)

— Hummm... — O Dr. Garcia tirou o estetoscópio do pescoço e colocou-o de lado. — Agora que você mencionou isso: houve ^ ainda alguma atividade cardíaca depois que eu cheguei. Me faltam meios de determinar o instante em que o cérebro falhou e sou obrigado a tomar a paralisação cardíaca como o momento da morte. (Meninas, esse rapaz daria uma excelente testemunha... pensando nisso, foi uma boa testemunha nas audiências de identidade)

— Nesse caso, doutor, parece-me que as circunstâncias não são de molde a abrir processo... e pode ficar certo de que usarei meu último tostão para evitar que, quem quer que seja, transforme a morte de Jake num circo, seja quando for. Gostaria que você passasse o atestado de óbito e declarasse em que circunstâncias a morte ocorreu, enviando uma cópia para qualquer autoridade federal a ser notificada... assim que tocarmos em terra. E para mais ninguém, pois não temos residência permanente, a não ser esta embarcação. Oh, mande uma cópia para Alec Train. O testamento de Jake está com ele e vai precisar para os trâmites legais. E trate de fornecer uma fotocópia ao Comandante Finchley, para o livro de bordo.

— Está bem, Joan, já que quer assim. E concordo: houve uma morte natural e não tem sentido deixar que burocratas metam o bedelho. Mas... agora quero lhe dar algo para fazê-la dormir. Nada demais, apenas uma dose forte de tranqüilizante.

— Roberto, como está meu pulso?

— Não é da conta de um paciente, Joan.

— Foi setenta e dois, absolutamente normal... contei as batidas do meu coração nos trinta segundos entre seu primeiro olhar ao relógio e largar meu pulso. Não preciso de tranqüilizantes.

— Joan, seu coração pode estar abaixo do normal... dadas as circunstâncias.

— Então precisarei talvez de um estimulante e não de um tranqüilizante. Roberto, você às vezes esquece — embora tenha acompanhado todo o meu caso — que não sou um paciente normal. Não sou uma jovem casada sujeita a histeria. Por dentro sou um homem muito velho, com quase três vezes a sua idade, querido... e já vi de tudo. Nenhum choque pode realmente me abalar. A morte é uma velha amiga. Conheço-a bem. Convivi com ela, comi com ela, dormi com ela. Encontrá-la agora não me assustará... a morte é tão necessária quanto o nascimento, e de certa maneira uma felicidade.

Joan sorriu.

— Meu pulso está normal porque estou feliz... feliz porque meu amado Jake encontrou a morte tão facilmente e tão alegremente. Oh, vou me deitar no camarote. Costumo tirar uma soneca durante o calor da tarde. Mas e Eve?

— Hem?

— Fez alguma coisa com relação a ela? É jovem e provavelmente nunca viu a morte antes. Tenho quase a certeza de que ela precisa de um tranqüilizante... e não eu.

— Hum... Joan... tenho o que fazer. Mas... Olga. Quer procurar Winnie e dizer-lhe que eu mandei Eve tomar uma dose mínima de «Tranquille»?

— Pois não, doutor. Mrs. Dabrowski retirou-se.

— Agora, mocinha, vou levá-la até seu camarote.

— Um momentinho, doutor. Comandante, quer se pôr a caminho içando ambas as velas e as auxiliares e rumar para o ponto mais próximo do limite de cento e vinte quilômetros? Quero que estejamos em águas internacionais antes do pôr do sol.

— Muito bem, madame. Deve ser mais ou menos entre oeste e sul, talvez no rumo básico dois-seis-zero. Vou traçar na carta.

— Ótimo. Depois avise, sem afobação, que o enterro será ao pôr do sol.

— Joan!

— Roberto, você pensa que vou entregar Jake a um papa-defunto? A taxidermistas! Ele queria morrer como seus antepassados. Vou enterrá-lo como seus antepassados: com seu querido corpo intacto e de volta ao lar antes do sol se pôr.

 

— «Para cada coisa há uma estação e um tempo para cada objetivo sob o céu: Um tempo para nascer e um tempo para morrer»...

Joan fez uma pausa na leitura. O Sol era um círculo vermelho-laranja quase atingindo o horizonte. Numa prancha junto ao parapeito, sustentado por Fred e o médico, o corpo de Jake aguardava, cosido em telas, com lastro nos pés. (Um ritual primitivo, Johann) (Jake, se você não gosta eu paro) (Jock, você deve respeitar: isto é um funeral) (É o meu funeral, não é? Tenho de fazer cara triste pelo meu próprio enterro? Johann, eu gosto. Respeito os símbolos, principalmente os primitivos. Obrigado por isto... e acima de tudo por não deixar minha carcaça cair nas mãos de chupadores de sangue licenciados) (Só queria ter certeza, Jake. É melhor que eu continue. Escolhi muitos outros trechos)

(Continue, Johann. Apenas não interceda por mim no Céu) (Não intercederei, amado Jake. Nós três enfrentaremos juntos o que vier) (Isso, patrão. Jock sabe)

— «Todos vão para um só lugar. Todos são pó e ao pó retornarão. Quem conhece o espírito do homem?...»

«Dois são melhores que um... Pois se caírem, um ajudará o outro: mas ai daquele que estiver só quando cair, pois não terá ninguém para levantá-lo. Ainda, se dois jazem juntos, então se aquecerão. Mas como pode um só se aquecer sozinho?» (Patrão, isso me faz lembrar: devemos dormir sozinhas esta noite?) (Que diabo, Eunice, você nunca pensa em outra coisa?) (Corta essa, patrão. Há alguma coisa melhor para pensar? Ações, obrigações e coisas assim? Contei a Jock a sua descoberta: o sexo é mais intenso para uma mulher que para um homem. Ele não acredita. Mas está ansioso por verificar)

(Jake, você está tão ansioso assim? Eu pretendia mostrar respeito por sua memória) (A intenção me comove, Johann. Mas não precisa ser tão rigoroso. Não sei por que você deve me prantear quando ainda estou aqui. Hum, me diga: é mesmo melhor?) (Deixe que ele julgue por experiência própria, patrão... se é melhor pegar Eunice... ou ser Eunice. É uma comparação mais científica do que você é capaz de fazer) (Pare de falar feito um recenseador sexual, Eunice. Está

bem, companheiros. Pensarei nas modificações. Mas quero me danar se eu der um espetáculo deplorável esta noite. Não nesta noite. É preciso ser discreto... ou não se brinca)

— «E se um levar a melhor sobre ele, dois devem opor-se e uma corda tripla não é facilmente quebrável».

(Patrão, gostei. Isso completa o funeral que nunca tive. Nem mesmo um serviço fúnebre) (Mas você teve um, Pernas Sensuais) (Tive? Quem fez?) (Eu, querida. Aluguei uma capelinha e um organista. Li um par de poemas dos quais você gostava. Levei algumas flores. Não muitas) (Jock, estou comovidissima. Patrão! Ele me ama, mesmo. Não é?) (Ama, querida... ambos amamos) (Gostaria de ter estado lá, Jock) (Eu não sabia onde você estava, querida. Talvez tenha sido melhor, pois você não se porta muito bem em enterros) (Oh, bolas para você, seu velho fantasma sujo... ninguém pode me ouvir) (Veja a quem chama de «fantasma», Pernas Sensuais. Pode ricochetear em você. Deixemos Joan acabar a cerimônia e tacar o corpo no mar)

— «O que quer que seja que tua mão decidir fazer, faz com toda tua força...» «... pois teus dias são poucos e contados...» «... o homem partir para seu lar distante». «A corda de prata se desatou, o vaso de ouro quebrou». Da profundidade de onde viemos, deixemos o corpo do nosso irmão Jacob agora ser devolvido a ela.

Joan fechou a Bíblia. Fred e o Dr. Garcia ergueram a ponta da prancha. O corpo caiu na água e desapareceu.

Joan virou-se para Olga, a quem deu a Bíblia.

— Tome, Olga, obrigada.

— Joan, foi lindo. Não sei como conseguiu.

— Enxugue os olhos, Olga. Adeuses nunca devem ser tristes... e Jake estava preparado para morrer. Eu conhecia bem meu marido, Olga. Sabia o que ele queria e não foi difícil.

Apertou a mão de Olga e fez meia-volta.

— Winnie! Pare com isso. Pare imediatamente. Jake não quereria que você chorasse. (Que é que faz você pensar assim, Johann? Fico envaidecido ao ver uma criaturinha tão encantadora como Winifred chorando por mim) (Oh, corta essa, Jake. Você foi a estrela do show, agora chega de curvaturas. Fale com Eunice)

Joan tomou a mulherzinha nos braços.

— Não chore, Winnie. Não chore mesmo. Pense no seu filho. Winnie começou a soluçar no ombro dela.

— Joan, não tem nenhuma saudade dele?

— Mas, querida, como posso ter saudades, se ele nunca me deixou? A Jóia ainda está no Lótus e sempre estará. O Eterno Presente.

— Acho que sim... mas não posso me conformar!

(O querido doutor, talvez? Ele deve ter dado, com toda a certeza, um sonífero a Winnie) (Roberto nunca, Eunice. Apesar do seu agressivo ateísmo, continua tendo resquícios da educação familiar. Ficaria chocado. Numa outra noite)

— Roberto, é melhor cuidar de Winnie.

— Cuidarei... mas você está bem?

— Você sabe que sim. Todavia, tenho uma receita para você.

— Está bem. Não vou obrigá-la a tomar esta noite um verdadeiro pau-no-quengo. Digamos fenobarbital.

— Não digamos «fenobarbital». Minha receita é para Winnie. Faça-a comer alguma coisa. Então sente com ela e entoe o Money Hum pelo menos durante meia hora. Depois leve-a para a cama e a abrace até que durma. E vá dormir, senhor. Também teve um dia duro.

— Está bem. Quer juntar-se a nós na prece? Podemos ir para o seu camarote... e depois você pode ir direta para a cama. Aprendi que isso é melhor que barbitúricos.

— Doutor, se o senhor quiser, pode vir ao meu camarote amanhã de manhã às nove... e me tirar da cama se eu ainda não estiver levantada. Mas estarei. Não vá mais cedo. Hoje à noite irei entoar aquela prece hipnótica com Jake. Ele tem como me ouvir... acredite você ou não.

— Joan, não desejo atacar a crença de ninguém.

— Você não atacou, querido. Apreciei sua solicitude. Quando eu

precisar... tomarei remédios espontaneamente. Mas agora cuide de Winnie. (Patrão, e Fred? Não tem motivo para se esquivar. Jock, você ficará bem no meio. Feliz Adolf. Mas Fred não precisa saber) (Eunice, você está totalmente doidinha. Uma vez quase matamos Fred de medo, apenas sendo nós. Antes de o domesticar. Olhe para ele: está muito pior que Winnie. Sem ninguém para o consolar. Mas nós não podemos. Esta noite não)

— Comandante.

— Sim, senhora?

— Vamos acabar com o velório. Não quero ninguém por aí choramingando. O horário das refeições ficou desorganizado. Hester poderá arranjar depressa uma ceia fria? Talvez com a ajuda de voluntários? Eu me ofereceria, mas tenho algo a fazer. (Oho! Tom, o Gato. Jock, isto vai ser divertido) (Pernas Sensuais, há algum homem neste barco para quem vocês não se arreganharam?) (Oh, sem dúvida, amorzinho. Hank. Está de olho em Eve e nos considera uma velha bruxa. E agora que seu Tio Jock a abandonou, Eve pode dar para ele) (Agora que estou morto, lamento ter resistido àquela deliciosa chave de cadeia. Não teria me custado mais de um milhão me livrar da encrenca... e eu tinha uma mulher rica) (Se os dois libidinosos podem ficar calados um momento, vou mostrar-lhes uma coisa. Não será Thomas Cattus. Não antes do primeiro quarto e pode ser mais tarde, com este vento contrário. O Comandante Tom Finchley vai estar muito ocupado pilotando)

— Comandante, quero que se ponha a caminho e estabeleça uma rota para o ancoradouro de Ilha San Clemente.

— Sim, senhora. — Aproximou-se dela e acrescentou suavemente: — Agora é melhor que eu comece a lhe chamar de «Comandante». Para dar o exemplo.

Joan parou. Estavam bastante sós para que ela pudesse falar em particular, baixando a voz.

— Tom, o Gato.

— Sim?

— Não me chame de «Comandante»... o comandante é você até que eu passe nos exames. Aí veremos. E não me chame de «Madame». Sou «Mrs. Salomon» ou «Joan», dependendo dos presentes, como antigamente. Mas, em particular, continuo sendo sua «Gatinha». Pelo menos espero.

— Bem... tá bem.

— Quero ouvir você dizer.

— Gatinha. Gatinhazinha corajosa. Bichana, quanto mais a conheço, mais você me surpreende.

— Que bom. Tom, o Gato, Jake soube o tempo todo que você gateava comigo. (Oh, que mentira! Eunice, ela nunca me disse... desconfiei só uma vez e achei que tinha me enganado) (Eu sei, Jock. O

Patrão é um velhaco que não merece confiança e além disso mentia até para mim)

— Sabia?

— Sabia, Thomas Cattus. Mas Jake Salomon era um verdadeiro cavalheiro e via só o que se esperava que ele visse. Nunca me azucrinou por^ causa das minhas loucurinhas. Simplesmente me desculpava. Mas também não falava a respeito dele. Sabe se Jake alguma vez foi com Hester? (Olhe aqui, Johann...) (Cale a boca, Jock. Também andei pensando nisso)

— Hum... que diabo, bichana, todos os homens são iguais, todos querendo a mesma coisa.

— E todas as mulheres são iguais, todas temos a coisa. Então?

— Hester abriu as pernas para ele na primeira oportunidade que lhe demos. Mas não me contou. Envergonhada. Tive de pegá-los em flagrante e torcer o braço dela.

— Você na certa não a machucou.

— Não, não, bichana, nunca maltrato uma mulher. Não os peguei nem a machuquei. Dei meia-volta depressa... e mais tarde perguntei Disse-lhe que eu tinha certeza, por isso era melhor abrir o jogo e foi tudo. Ela abriu. Não havia me contado... por causa de você.

— Oh. Confio em que tenha contado a ela a meu respeito. O mestre-navegador ficou horrorizado.

— Gatinha, você pensa que sou doido? Olhe, gosto como você faz, perfeito. Mas não sou maluco. Não dedo vagabundas. Quando fizer, você será a última da lista. Acredite.

— Pode contar a Hester, se quiser, querido. Agora não tem importância. Então, daqui a algum tempo, ela não ficará surpresa por me ver fazer o que as viúvas tão freqüentemente fazem. («Elas não contam, elas não gritam, e raramente engravidam... e são gratas como o diabo») (Jock, você é um fantasma velho e sujo) Bem, vamos estabelecer nossa rota. Qual o tempo estimado de chegada, Tom, o Gato? Se passar da meia-noite, virei substituir você na vigia.

— Virá uma ova, madame... Gatinha. Vai dormir a noite inteira, pois está precisando. Mando Fred para a roda agora e deixo Hank de' vigia... arrasto uma boa esteira aqui para trás, perto do leme, e tiro uma soneca até estarmos próximos. Gatinha, você vai me prometer que ficará no camarote. Não vai ficar zanzando por aí, pois pensarei que quer saltar pela borda.

— É uma ordem, comandante?

— Hum... sim, raios, é uma ordem!

— Sim, senhor. Não precisará me vigiar. Estarei no camarote, de porta trancada e dormindo. Prometo não pular pela borda antes de amanhã de noite.

— Gatinha, você não vai pular, vai?

— Com o filho de Jake dentro de mim? Comandante, também tenho senso do dever. Até ter esta criança, minha vida não me pertence. Não só não devo me suicidar — não quererei, seja como for — mas ainda devo me manter calma, feliz, de boa saúde e não passando além de um copinho de bebida. Por isso, não se preocupe comigo. Boa noite, Tom.

Andou em direção ao seu camarote.

(Companheiros, nada a fazer nesta casa hoje de noite.., estamos face a face com a nobreza. Acho que Anton é nossa melhor solução) (O Polonês Apaixonado! Querido Jock, não tenho certeza se seu coração agüentará) (Felizmente, meus queridos, minha velha bomba não precisa mais agüentar tudo... e a que cedeu a Joan, Eunice, é um relógio suíço entre cebolas. Não dispara nem quando ela está acesa. Mas você sabe disso) (Vocês aí, vamos parar o papo. Alguém tem uma idéia de como botar Olga fora da jogada?)

(Atirá-la pela borda?) (Eunice!) (Não se pode brincar, patrão? Gosto de Olga, é uma boa moça) (Boa demais, aí é que está a coisa. Não é uma prostituta como você ou como eu... ou como Hester) (Arrumpf!) (Jake, querido, você não está no tribunal. O assunto é rabo. O meu. O nosso, quero dizer) (Johann, só quero dizer que, se você levar nosso problema diretamente a Mrs. Dabrowski, poderá ser recebido com simpatia. Sempre me aconteceu isso)

(Jake! Está sugerindo que pegou Olga? Não acredito) (Nem eu, Jock. Se você tivesse dito «Eve», eu teria vacilado... mas acreditado. Porém Olga? Que diabo, ela usa calcinha até na piscina) (Que é tirada com facilidade... em particular)

(Eunice, acho que é verdade. Bem, raios me partam! Você e eu somos babacas. «Tiro o chapéu para o duque». Está bem, Jake... diga como devemos agir a esse respeito) (A respeito de quê? Tirá-la da jogada? Basta pedir, ela é muito compreensiva... e sentiu minha morte muito mais que vocês, putas) (Jock, não é justo. Nós sentimos... mas ficamos superalegres por você ter decidido permanecer)

(Obrigado, minhas queridas. Se, pelo contrário, quiserem convidá-la a entrar...) (Uma tróia?) (Acho que é a gíria atual, Eunice. Na minha juventude tinha outro nome. Mas não seria mais apropriado um pentágono? Cinco?)

(Hoje se diz «estrela», Jock. Mas deixe que eu lhe ensine a primeira regra da felicidade fantasmal. Você nunca, nunca, nunca deve admitir que está aqui, nem infernizar Joan para admitir. Porque ela pode ficar zangada e aceitar. Conseqüentemente, Joan pode ser metida numa fábrica de mumificar — nos levando junto — e lá se vai nosso tempo feliz. Olhe, você esteve casado com Joan algum tempo e transou com ela ainda mais tempo: algum dia suspeitou que eu também estivesse presente?) (Nunca) (Viu? Não admita o fato e nos deixarão em paz)

(Eunice, Jake nunca espalhará isso. Mas com relação a Olga: Jake, você alguma vez ensinou-lhe o Om Mani?) (Não) (Patrão, estou começando a perceber. Nós ensinamos a Anton, Jock. Olga é flexível bastante para sentar em Lótus?) (Pernas Sensuais, Mrs, Dabrowski é flexível bastante para qualquer coisa) (Está resolvido, Joan. Olga se juntará a nós, mesmo que pense ser pagão... esta noite ela quererá. Por sua causa. E não há melhor maneira de ter uma reunião pelada e movimentada que formando um Círculo. Já fizemos isso várias vezes) (Segundo me lembro, queridos, Joan chegou mesmo a usar comigo. Quando era desesperadamente necessário. Tá bem, vamos procurar os Dabrowski)

 

Entrevistas Abertas — Estado Maior Federal 19 Assistente de Previdência para Trabalho de Campo (Aprendiz-Visitante) Aptidão cultural padrão C. Dá-se preferência a pardos ou mais escuros. Dá-se preferência a veteranos, a soltos condicionalmente, a altamente experientes em semi igualdade. Procure a Repartição Civil local ou o escritório da Previdência para exame prévio e fórmulas de salário. Estes são baseados na tabela em vigor, mais custo de vida no interior e taxa de área perigosa, cumulativamente.

A Sociedade para a Astrologia Racional compareceu hoje à Câmara de Nebrasca, se comprometendo a aceitar uma «cláusula de avô» na lei de licenciamento. A Comissão de Agricultura & Artes Mecânicas votou depois a reforma da lei «De Transmissão» por 7 a 2, equivalente à da legislatura unicameral do Estado. A Associação Protetora dos Astrólogos Intuitivos chamou-a de «o maior revés para a ciência desde Galileu». A Comissão Lunar anunciou que as Colônias estão agora 102% auto-suficientes em alimentos, mas acrescentou que o plano decenal vai continuar a incrementar a emigração potencial. O ROMANCE MAIO-DEZEMBRO TERMINOU... no mar, no iate de lua-de-mel. A jovem viúva permanece internada...

 

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— ... porta para exame. Bom divertimento, Mrs. Garcia. Felicidades, doutor. O próximo! Ande depressa e sente aqui... seu marido não veio? Ou é «miss»?

— Sou viúva, Mr. Barnes.

— É? Não recebemos muitas viúvas, nem a Comissão as encoraja. A emigração não é uma fuga para os problemas emocionais. Tais como perda de alguém. Nem aceitamos requerentes em tão adiantado estado de gravidez, a menos que haja vantagens para a Comissão e não para o ^ candidato. Olhe o casal que se apresentou antes da senhora. Ela está grávida... mas o marido é médico, uma das principais categorias de emigração subvencionada. Por isso, a admiti. Podia ter admitido só a ela: é enfermeira. Porém, a menos que a senhora tenha alguma qualificação especial...

— Sei, senhor. O Dr. Garcia é meu médico particular.

— Hem? Mesmo que eu a aceite, não significa que ele continuará a ser seu médico na Lua. É pouco provável, na realidade. A menos, por coincidência...

— Mr. Barnes, meu requerimento de emigração está diante dos seus olhos. Foi cuidadosamente redigido pelo meu advogado. O senhor ganhará tempo dando-lhe uma olhada.

— Tudo a seu tempo. A senhora ficaria surpreendida se soubesse a quantidade de gente que chega aqui sem a menor idéia do que terá de enfrentar. Parecem achar que a Comissão está ansiosa para recrutá-los. Não há nada mais longe da verdade. Dezenove em vinte dos que sentam nessa cadeira são impedidos por mim de entrar pela porta do exame. Adquiri muita prática em me ver livre rapidamente dos mais evidentes desperdiçadores de tempo. Hum, Salomon, Eunice. Mrs. Salomon, primeiro quero saber... Mrs. Salomon?

— Mrs. Jacob Moshe Salomon, Joan Eunice Smith de solteira.

— Seu rosto tem realmente algo familiar, mas suas feições, hum...

— ... agora estão inchadas. É verdade. Engordei treze quilos... o que o Dr. Garcia considera satisfatório para minha estatura, constituição e estado da gravidez.

— Isso traz à tona outros problemas. As mulheres freqüentemente se enganam com relação à data... e o primeiro filho notoriamente tem pressa de chegar. Nossos transportes lunares foram concebidos para crianças pequenas e não para partos. Peço-lhe que compreenda os perigos.

— Conheço-os. Precisamos discuti-los?

— Cabe a mim julgar.

— Mr. Barnes, meu médico está satisfeito porque eu sei a data exata em que engravidei e... Tudo isto é confidencial?

— Hummm. Trata-se do seguinte. Nada disto é secreto. Sou advogado, mas não o seu. Ouço mais detalhes íntimos dos requerentes que a senhora possa imaginar, mas não tenho tempo a perder com fofocas.

— É bom saber disso, Mr. Barnes... pois eu ficarei muito aborrecida se o que vou lhe contar se tornar assunto de fofoca.

— Hummmpf. Acho que senti um calafrio. A senhora está tentando me impressionar com a sua importância? Não perca tempo. Os requerentes, quando chegam aqui, são todos iguais. Seu dinheiro nada significa.

— Fui agressiva? Desculpe.

— Bem... Voltemos ao assunto. Um advogado do Serviço Civil da Comissão Lunar — um trabalho que resiste a pressões, acredite-me — nem sempre lida com gente rica. Mas não faz a menor diferença. Se não quiser ser franca com a Comissão, o problema é seu. Mas não me disponho a aprovar um requerimento antes deste me satisfazer. Satisfazer totalmente. A senhora acaba de sugerir que tem algo a dizer a esse respeito, que considera «confidencial». Não aceito a restrição. Assim... quer falar? Ou vamos encerrar a entrevista?

— O senhor não me dá alternativa, senhor. Este não é o meu primeiro filho. Portanto, não existe o perigo do «primogênito». Se a «Goddard» partir na data marcada, tenho todos os motivos para esperar ter meu filho na Lua. Nem o Dr. Garcia nem eu estamos preocupados com o problema do tempo.

— É? Mas isso provoca outras considerações. Esse antigo filho... ele ou ela afetam sua herança?

— Não. É por isso que o assunto precisa ser tratado confidencialmente. Eu não tenho essa criança.

— Hem? A senhora me confunde. É melhor esclarecer.

— Por favor, Mr. Barnes. Mudei de sexo e fiz um transplante de cérebro. Certamente o senhor sabe disso... céus, todo mundo sabe. O primeiro filho que este corpo teve foi antes disso. É a reputação da minha doadora que eu quero proteger e não a minha. A criança era ilegítima. Coisa muito comum nos dias atuais — não é mais um conceito legal na maioria dos Estados e o próprio vocábulo está quase obsoleto — minha gratidão é tanta para com a doce e graciosa dama que viveu antigamente neste corpo, que me consideraria totalmente infeliz se contribuísse para manchar sua memória.

(Patrão, o senhor sabe que não ligo a mínima) (Deixe-a cuidar disso, Eunice. Esse burocrata pode estragar tudo se Joan não o distrair dessa maneira. Estamos aqui para dar conselhos a Joan?... Ou estamos indo para a Lua?) (Raios, estamos indo para a Lua! Com o meu «sim», o seu e a metade do de Joan — ela está sempre em cima do muro, com as pernas sempre abertas — o que constitui uma maioria de cinco a um pró-emigração. Uma maioria esmagadora!) (Pois deixe-a só, enquanto resolve o caso) (Se Joan não estivesse tão barriguda, poderia manejar esse cara muito melhor e mais depressa)

(Arrumpf. Eunice, você diz que esteve lá... assim, por que não conta francamente a respeito ao velho e melancólico Jacques? Era meu, não era? Fui eu?) (Jock, velho fantasma, eu o amo muito... mas se pensa que vou abandonar meu gêmeo, você não me conhece) (Oh, está bem. Uma criança, é uma criança, é uma criança. Espero apenas que não tenha duas cabeças) (Duas cabeças seria levar muito longe uma coisa boa. Jock, dei um jeito para ela ter duas bolas) (Pensando em incesto, Pernas Sensuais?) (E por que não? Já experimentamos tudo o mais)

(Jake, Eunice... querem fazer o favor de ir dormir? O Cavalheiro Hipócrita aqui está procurando cocô de mosca na obra-prima de Alec. Tentando arranjar mais objeções... às quais terei de responder)

— Mrs. Salomon, estou muito preocupado com um aspecto concernente a esse suposto primeiro filho: a grande probabilidade de que uma ação futura possa ser proposta contra seu direito de dispor de sua herança, quando essa criança, ou alguém dizendo-se seu filho, aparecer. A metade dos bens exigidos — como um mínimo — de cada emigrante não pertencente a uma categoria financiada, é a fonte do capital das colônias. A Comissão não concorda em devolver um níquel, assim que tiver recebido sua parte do acordo. Porém esse tal «herdeiro perdido» pode reclamar sua herança inteira.

— É muito improvável, Mr. Barnes, mas se der uma olhada no «Apêndice G», verá como meu advogado cuidou do assunto. Um pequeno depósito para solucionar qualquer reclamação, entregando-se o que sobrar a uma associação de caridade.

— Hum, deixe-me terminar, Mrs. Salomon. Hummm... a senhora chama dez milhões de «pequeno»?

— Chamo.

— Hummm. Talvez eu deva dar mais atenção às outras disposições financeiras. A senhora foi advertida de que, mesmo tendo a Comissão ficado com apenas metade da sua fortuna, a outra metade não pode ser usada pela senhora para comprar seja o que for na Lua? Em outras palavras: pobres ou ricos, todos os emigrantes são iguais na Lua.

— Sei disso, Mr. Barnes. Acredite, meu advogado, Mr. Train, é muito cuidadoso. Examinou a lei e certificou-se de que eu conhecia a conseqüência dos meus atos... porque ele não os aprova. Em resumo, Alec Train diz que quem quiser ir viver na Lua deve estar maluco. Portanto, tentou me livrar do que ele chama de minha loucura. O senhor encontrará quatro outros herdeiros possíveis no «Apêndice F»: minhas netas. É negócio para elas aceitarem o que lhes é oferecido... pois foram avisadas francamente de que seria muito pior se esperassem pela minha morte. Uma espera má, seja como for. Sou hoje fisicamente mais moça que elas e provavelmente durarei mais tempo.

— Talvez seja verdade. Principalmente na Lua, onde há um prolongamento de idade. Eu próprio gostaria de poder emigrar. Mas não posso me dar ao luxo de pagar para isso como a senhora. E os advogados não são necessários lá. Bem, seu Mr. Train parece ter pensado em tudo. Vejamos seu balancete.

— Um momento, senhor. Pedi um pequeno favor de tratamento especial.

— Como? Todos os emigrantes são tratados iguais. É preciso.

— Uma coisinha à toa, Mr. Barnes. Meu filho nascerá logo depois da minha chegada na Lua. Pedi para que o Dr. Garcia me assistisse até lá.

— Não lhe posso prometer, madame. Desculpe. Política. Joan começou a se levantar lentamente.

— Então não quero prosseguir.

— Hem?... Meu Deus! Seus bens líquidos são realmente estes? Ela encolheu os ombros.

— Qual a fortuna de uma mulher grávida, senhor? Acho que depende do seu senso de valor.

— Não foi isso o que eu quis dizer. Este balancete... Se estiver correto, a senhora não é apenas rica — coisa que eu já sabia — mas bilionária!

— Provavelmente. Nunca somei. Esse resumo foi preparado pelo Chase Manhattan com a assistência das auditorias aqui relacionadas. Acho que está correto... a menos que algum computador estivesse com soluços. Mas devolva-me isso... pois a Comissão não pode prometer que o Dr. Garcia fará o meu parto.

— Por favor, madame. Tenho uma certa largueza nesses casos. Apenas não a uso... ordinariamente. Política.

— Política de quem, Mr. Barnes? Da Comissão? Ou sua?

— Hem? Ora, minha. Já disse.

— Então pare de me fazer perder tempo, seu cretino!

(«Foi o que eu disse a ele, Gorducha!») (Eunice, esta é uma gorducha que não vai mais fazer bobagens. Estou com as costas doendo)

A explosão quase fez Mr. Barnes cair da cadeira giratória. Recuperou o equilíbrio e disse:

— Por favor, Madame Salomon!

— Rapaz, vamos deixar de bobagens! Estou em adiantado estado de gravidez, como pode ver. O senhor me deu aulas sobre os perigos do parto... e não é médico. Meteu-se em assuntos particulares com a imprudência de um recenseador sexual. Tentou me dizer que eu não poderia ter meu médico quando ele estará viajando na mesma nave... e agora descubro que não se trata de um regulamento da Comissão, mas simplesmente uma mesquinha arbitrariedade da sua parte. Machice. Durante toda esta maluquice — embora eu tenha vindo com uma proposta cuidadosa e completamente preparada — o senhor me deixou sentada numa cadeira dura e inconfortável. Minhas costas estão doendo. Em quantos requerentes pobres e desamparados o senhor alimentou seu ego? Mas não sou «pobre» nem «desamparada». O senhor falou de «sentir calafrios». Posso muito bem mandar despedi-lo! Seu calafrio vai ser maior.

— Por favor, madame. Eu disse que a senhora poderia ter seu médico. E tenho poderes para examinar a proposta de cada requerente.

— Então tire a bunda preguiçosa dessa cadeira confortável para que eu me sente em seu lugar e venha sentar neste banquinho duro.

— Pois não, madame. — Trocaram de cadeiras. Imediatamente ele disse: — Vejo que está aplicando quase a totalidade dos outros cinqüenta por cento de sua fortuna em pesquisa e desenvolvimento de naves estelares.            

— O que eu faço com meu dinheiro não é da sua conta

—Eu não disse que era. Fiquei espantado por ser... invulgar

— Invulgar por quê? Meu filho pode querer viajar numa nave estelar. Quero que essa pesquisa seja apressada. Mr. Barnes, o senhor já olhou demais para essa proposta. Se não tivesse falado tanto agora já a saberia de cor. Faça o que tem de fazer. Ponha o seu X ou carimbe sua marca. Ou devolva o papel, para eu ir embora. Já! Não daqui a cinco minutos... mas já. Minhas costas continuam doendo. O senhor é um pé no saco, Mr. Barnes. O senhor, sua mesquinha «política» e sua conversa fiada.

O homem assinou.

— Por aquela porta, Madame Salomon.

— Obrigada.

Começou a andar para a porta.

— Você não é bem-vinda... puta velha!

Joan Eunice parou, voltou-se e atirou-lhe seu mais radiante sorriso.

— Ora, obrigada, querido! Foi a coisa mais agradável que me disse. Porque foi totalmente honesta. Evidentemente que não sou bem-vinda, da maneira como gritei com você... e respondendo suas grossuras com outras piores. E de fato sou ambas as coisas: velha e puta.

— Eu não devia ter dito isso.

— Oh, claro que devia. Mereci demais. Mas nunca teria procurado tirar seu emprego... juro, não sou tão mesquinha assim. Foi o mau humor da dor nas costas quem falou. Admiro sua coragem de dizer aquilo. Como é seu nome?

— Hum, Matthew.

— Um belo nome, Matthew. Forte — Joan Eunice voltou e parou junto dele. — Matthew, vou para a Lua. Nunca farei o caminho de volta. Quer perdoar esta puta velha e ficarmos amigos? Quer me dar um beijo de despedida? Não tenho ninguém que vá ao meu embarque, Matthew... quer me dar o beijo de despedida pela minha partida para a Lua?

— Hum...

— Por favor, Matthew. Hum, não ligue para a barriga. Ficarei meio de lado... assim é melhor.

Molhou os lábios, ergueu o rosto e fechou os olhos. Logo depois suspirou e se aninhou mais.

— Matthew? Permite que o ame? Oh, não quero dizer seduzi-lo, pois é muito tarde para isso. Estou quase na mesa de parto. Diga-me apenas que posso pensar em você com amor, quando estiver na Lua. Fica muito longe e estou com um pouco de medo... passei muito tempo sem amor e quero amar a todos que permitirem... a quem me der um pouco de amor de volta. Quer, meu querido? Ou esta puta é muito velha?

— Hum, Madame Salomon...

— Eunice, Matthew.

— Eunice. Eunice, você é uma putinha fogosa, se é. Mas eu a fiz ficar sentada ali — mesmo antes de compreender quem você era — porque gostei de a olhar. Que diabo, querida, minha mulher diz que posso amar qualquer mulher que eu quiser... na proporção de dez por cento do amor que tenho por ela.

— Dez por cento é um bom lucro para* qualquer investimento, Matthew. Está bem, me ame esses dez por cento... e amarei você dez por cento do que amei — e ainda amo! — meu querido marido. Há bastante amor nesses dez por cento para mais um beijo? A viagem para a Lua é longa... preciso que ele me aqueça o tempo todo.

Joan fechou os olhos e esperou.

(Ei, gêmeo, o rapazinho desta vez foi melhor) (Não me aborreça agora, estou ocupada!)

Mr. Barnes murmurou imediatamente:

— Encantador!

— Agora estão gordos e inchados. Por isso estou usando roupas

para cobri-los. Mas você precisava ter visto Eunice — a primeira Eunice, minha benfeitora — na sua melhor forma, com roupas deixando ver os seios.

— Continuo dizendo que são encantadores. Acho melhor pararmos aqui, pois há um montão de gente na outra sala esperando. E você tem quase quatro horas de exames antes de ir para a quarentena. Se quer ir junto com seu médico para o Porto Andes, está na hora.

— Sim, Matthew. Amo-o — dez por cento — e continuarei amando-o

na Lua. Com juros compostos. Por aquela porta?

— Por ela e siga as setas. Adeus, Eunice. Cuide-se.

(Patrão, teve altos e baixos. Ele estava nos beijando? Ou beijando um bilhão de dólares?) (Me pareceu — embora eu seja um aprendiz perto de vocês, prostitutas — que o rapaz começou beijando um bilhão de dólares e terminou beijando Joan. Nós. E muito bem. Queridas, descobri que minha natureza animal ficou bastante abalada... já estou gozando a nossa volta à circulação) (Raios, querido Jock, estamos todas. Acaba de me ocorrer, Joan, que deve haver montes de emigrantes saudosos de casa, que apreciarão uma moça do interior, que aprendeu na escola secundária a beijar com os olhos fechados e os lábios abertos) (Eunice, é com isso que estou contando. Sete bilhões de pessoas fazem da Terra um lugar terrivelmente solitário... mas há apenas poucos milhares em Luna e, se nos esforçarmos, poderemos conhecer todos e amar a maioria. Que é que você acha, Jake?) (Johann, podemos tentar. Devemos. Uau, chegamos na primeira parada. «Exame físico». Vacinas e outras indignidades. Mas que diabo?... Alguém deu-nos um beijo de despedida)

 

Segundo transcrição no Christian Science Monitor, o Izvestia condenou o anúncio (Selenita Diário, ano 35, dia 69) da Comissão Lunar, pedindo propostas de estudo para dar condições terrestres a Ganimede, como «mais um exemplo provocador das insaciáveis agressões da aliança maluca entre as duas maiores potências imperialistas, contra-revolucionárias e genocidas, os Estados Unidos da América e a pretensa República Popular Democrática da China» e pediu que o Conselho de Segurança das Nações Unidas agisse antes que fosse tarde. No Parque Nacional de Sequóia foram descobertas três famílias (ou possivelmente uma família ampliada) vivendo a sessenta metros de altura numa árvore. O grupo (sete adultos e cinco filhos, dois com menos de um ano) declarou estar vivendo ali há mais de três anos. Os amplos arranjos para um sistema de vida único deu peso à declaração. Foram indiciados numa quantidade de acusações, mas o promotor federal recusou-se a processá-los: «Não vou gastar meu tempo e o dinheiro dos contribuintes com um bando de macacos. Que eles voltem para as árvores!»

O Piquenique Anual do Estado de Iowa em Long Beach, Califórnia teve 243 casos de envenenamento grave por alimentação (botulismo) 117 assaltos com morte, 3 estupros e choveu. «... do grande Estado de Nova Iorque sabe que a destruição dos cortiços não é resposta. Precisamos ouvir a morte bater o tambor antes de admitirmos que todo organismo, seja homem, cidade ou civilização, envelhece com o tempo e morre?» Numa carta publicada em Nature (Ing.) anunciou-se que cientistas em Novosibirsk resolveram tanto o problema da reprodução de gêmeos como do desenvolvimento extra-uterino do feto in vitro e é preciso agora contar, na corrida das grandes potências, com um fornecimento potencialmente ilimitado de operários, soldados e camponeses. Um editorial no mesmo número insiste com o missivista, prêmio Nobel, para que escreva ficção científica ou, pelo menos, que mude a marca do haxixe. Os debates da legislação proposta para controlar os neopsicodélicos continuou: «O cavaleiro no outro lado da bancada já se deteve no efeito potencialmente desastroso para nossa economia restringir as leis sobre narcóticos já existentes? Ou está falando para o auditório da TV?» Observadores experientes acham que nesta sessão não haverá votação.

 

Em Luna City, Mrs. Salomon, juntamente com todas as outras mulheres, chegou ao fim dos seus nove meses lunares. Seu encantador umbigo estava há muito saliente e sua barriga era uma cúpula de vida empurrando o lençol para cima. Estava esperando, no Hospital Comunal, no oitavo subsolo. A enfermeira sentada ao seu lado também estava grávida, mas não muito perto do momento.

— Winnie?

— Que é, querida?

— Se for homem, tem de se chamar Jacob Eunice... e se for mulher, Eunice Jacob. Prometa.

— Já prometi, querida. Fiz por escrito, como você me pediu. E prometo cuidar do seu filho — já está tudo resolvido, gravado — cuido do seu e você do meu. Só que não vai ser preciso, querida. Ambas vamos estar bem... e os criaremos juntas.

— Me prometa, é importante. (Johann, não chame essa criança de Jake. Chame de Johann: Johann Eunice) (Jake, eu não quero esmagar uma criança chamando-a de Johann: por causa desse nome fui obrigado a aprender a brigar muito cedo) (Jock, não discuta com o patrão. Ela tem sempre razão, você sabe) (Então chame-o de John!) (O nome é Jacob, Jake... não quero saber de outro) (Joan, você é o velho bastardo mais teimoso de todo o Sistema Solar... e virar mulher não lhe melhorou em nada. Pronto, está bem!) (Amo-o, meu marido) (Ambos o amamos, patrão... e Jake está tão orgulhoso do nome quanto eu)

— Prometo-lhe, Joan. Juro.

— Minha doce Simpática. Percorremos um longo caminho juntos: você, eu e Roberto.

— Foi, sim, querida.

— Estou doente, não estou?

— Não, Joan, não está. Nenhuma mulher se sente bem pouco antes de ter um filho... eu sei, vi centenas delas. Já lhe disse que este tubo é de glicose.

— Que tubo? Winnie, chegue aqui e ouça. É importante. Meu filho precisa se chamar...

— ... síndrome de rejeição, doutor. Atípico, mas inconfundível.

— Doutor Garcia, por que disse atípico?

— Hmmm. Às vezes, quando está inconsciente, ela fala com três vozes diferentes e... bem, duas delas estão mortas. Personalidade dividida.

— Então? Não sou psicanalista, Doutor Garcia. «Personalidade dividida» me diz muito pouco. Mas não vejo como isso afeta necessariamente a gravidez. Já pus no mundo crianças lindas e saudáveis, cujas mães estavam fora de si.

— Também não sou psicanalista, senhor. Considere que ela está inconsciente a maior parte do tempo... e que eu acho ser isso parte do quadro clínico total, o que — na minha opinião — oferece um diagnóstico de rejeição do transplante.

— Doutor Garcia, o senhor sabe mais sobre transplantes que eu. Nunca na vida tratei de um caso de transplante. Mas esta paciente me parece em muito bom estado. Aqui mesmo neste hospital, tenho visto mulheres que parecem estar em condições muito piores... têm filhos, levantam-se e vão trabalhar três dias depois. Com nossa baixa gravidade, recuperam-se rapidamente. O senhor acha que esta paciente teve algum trauma na viagem da Terra para cá?

— Oh, não! As celas flutuantes de aceleração eram maravilhosas. Mrs. Salomon viajou numa e minha mulher também. Controlei-as. Joan se portou melhor que Winnie. Fiquei com inveja delas, pois gozei a viagem numa cadeira comum bastante incômoda. Não, não vejo relação. Os sintomas de rejeição não apareceram até esta semana — Garcia franziu o cenho. — Ela não deve saber que sua mente não está normal: fica lúcida de vez em quando. Porém o controle dos movimentos está piorando. Aquele corpo jovem e forte sustenta o metabolismo dela... mas sinceramente, doutor, não sei por quanto tempo. — Tornou a franzir as sobrancelhas. — Pode acontecer a qualquer momento... raios, gostaria de ter equipamento apropriado!

O médico mais velho balançou a cabeça.

— Filho, estamos na fronteira. Não estou fazendo pouco de sua especialidade... mas aqui não é o lugar para ela. Aqui encanamos ossos e tiramos apêndices. Procuramos evitar que moléstias contagiosas espalhem-se pela colônia. Mas quando chega a hora de morrer, morremos — eu, o senhor, todos — e saímos do caminho dos vivos. Agora suponha que tivesse aqui todos os Johns Hopkins com o Centro Médico Jefferson de quebra: conseguiria evitar? Fazer regredir? Haveria possibilidade de remissão espontânea se o senhor tivesse seu fabuloso equipamento?

— Não. O máximo que eu poderia fazer é prolongar sua vida.

— É o que está nos livros, mas eu queria ouvi-lo dizer. Bem, doutor? O paciente é seu.

— Vamos tirar a criança.

— Mãos à obra.

 

Joan Eunice acordou quando estava sendo levada pelo corredor.

— Roberto?

— Estou aqui, minha querida.

— Para onde estão me levando? Vou ser operada outra vez?

— Vai, querida.

— Por quê?

— Porque não entrou em trabalho de parto quando devia. Por isso vamos fazer a coisa pelo meio mais fácil: cesariana. — Acrescentou: — Não precisa se preocupar. É tão sem importância quanto tirar um apêndice.

— Roberto, sabe que nunca me preocupo. Você vai operar?

— Não, o cirurgião-chefe. Tem muito mais prática do que eu. É o Dr. Frankel. Você sabe quem é: examinou-a hoje de manhã.

— Foi? Não estou me lembrando. Roberto, preciso dizer uma coisa muito importante a Winnie. É sobre o nome do meu filho.

— Ela sabe, querida, tomou nota por escrito. «Jacob Eunice» ou «Eunice Jacob».

— Oh, que bom! Então está tudo bem. Mas diga-lhes que andem depressa, Roberto. Nunca tive prazer em ficar plantado numa cabeça de ponte.

— Vai ser rápido, você nem perceberá. Anestesia espinal e um montão de barbitúricos, Joan.

— É gozado o senhor me chamar de Joan. Meu nome é Johann, doutor. Agnes vai ficar boa... vai, não é?

— Sim, Johann. Agnes... vai ficar boa.

— Eu mandei ela ficar boa. Doutor, estou sonolento. Se eu cair no sono, quer me acordar quando Agnes for ter o nosso filho?

— Sim, Johann.

— Muito... obrigado... Mrs... Wicklund. Eu não... sabia... que pudesse ser... tão... maravilhoso...

 

— Roberto? Onde está você? Não posso vê-lo.

— Estou aqui, minha querida.

— Pegue em mim. Toque meu rosto. Não posso sentir nada abaixo dele. Roberto, o que eu obtive foi um ano maravilhoso... e não me lamento. Já começaram?

— Ainda não. Quer voltar a dormir, querida?

— Preciso? Preferia não. Estou com sono, meio sonhadora e bem... mas prefiro não dormir logo. Agora está nas mãos dos deuses, hem? Está na hora de enfrentar o fogo de cabeça erguida. Mas não preciso de pílulas, estou feliz. Aproxime-se, querido, preciso lhe contar por quê. Mais perto... não posso falar... muito alto.

— Suma! Raios, enfermeira, saia do meu caminho!

— Tudo sempre fere, Roberto... tudo. Sempre. Mas algumas coisas valem o sofrimento. «Prenda o meu canguru, gente, prenda o meu canguru!» Não... era... o que eu... queria dizer. É Jake, está cantando outra vez. Sempre canta quando está feliz. Chegue bem perto... para eu poder lhe dizer... antes... que eu durma. Obrigada, Roberto, por deixar-me recebê-lo dentro do meu corpo. É bom tocar... fuder... ser fudida. Não é bom... ficar... só demais. Você me abençoou... com seu corpo, querido. Agora vou dormir um pouco, se puder... mas primeiro tinha de lhe dizer isso. Om Mani Padme Hum. Agora vou deitar e dormir...

— Doutor, ela está desmaiando.

Uma criança chorou, um mundo começou.

— O coração está falhando!

(Jake? Eunice?) (Aqui, patrão! Agarre-se! Isso! Conseguimos lhe pegar) (Foi menino ou menina?) (Que interessa, Johann... foi uma criança! «Um por todos e todos por um»

Um velho mundo desapareceu e então não ficou ninguém.

 

 

                                                                  Robert A. Heinlein

 

 

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