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Devido às restrições impostas à Grande Liga de Beisebol pelo Ministério da Defesa durante a Primeira Guerra Mundial, as finais do campeonato de 1918 foram realizadas em setembro e divididas entre dois estádios. O Chicago Cubs sediou os três primeiros jogos; os quatro últimos foram disputados em Boston. No dia 7 de setembro, depois que o Cubs perdeu o terceiro jogo, os dois times embarcaram juntos na Estação Central de Michigan para uma viagem de vinte e sete horas. Babe Ruth se embebedou e começou a roubar chapéus.
Para início de conversa, tiveram de metê-lo à força no trem. Depois do jogo, ele foi a uma casa alguns quarteirões a leste do Wabash, onde sempre se podia contar com um carteado, uma boa provisão de bebidas alcoólicas, uma ou duas mulheres - e se Stuffy McInnis não soubesse onde procurá-lo, Babe teria perdido a viagem de volta para casa.
Ele vomitou na parte de trás do vagão de alojamento, enquanto o trem partia resfolegando da Estação Central, pouco depois das oito da noite, serpenteando por entre os currais. O ar estava carregado de fumaça e cheiro de bois abatidos, e Ruth não conseguia divisar uma mísera estrela no céu escuro. Ele tomou uma golada do cantil, enxaguou o vômito da boca com uísque, cuspiu-o por cima do parapeito de ferro e contemplou o cintilar da linha do horizonte de Chicago, que surgia diante dele enquanto o trem se afastava. Como sempre acontecia ao partir de algum lugar com o corpo moído pela ressaca, sentiu-se gordo e dominado por um sentimento de orfandade.
......
Babe tomou mais um pouco de uísque. Aos vinte e três anos, ele finalmente estava se tornando um dos mais temidos batedores da Liga. Numa temporada em que o número de home runs[1] na Liga Americana chegara a noventa e seis, Ruth fora responsável por onze. Diabo, aquilo era quase doze por cento. Mesmo levando em conta as três semanas de maré baixa que ele tivera em junho, os lançadores já tinham começado a tratá-lo com respeito. Os batedores das equipes adversárias também, porque naquela temporada Ruth levara o Sox a trinta vitórias. Ele jogara cinquenta e nove no campo esquerdo e treze na primeira base.
Mas tinha dificuldade com as bolas dos canhotos. Aí é que estava seu problema. Numa hora em que as listas dos jogadores se reduziam cada vez mais porque muitos deles tinham ido para a guerra, Ruth tinha um ponto fraco que os técnicos das equipes adversárias começaram a explorar.
Que se fodam.
Ele disse isso ao vento e tomou outra golada do cantil, presente de Harry Frazee, o dono do Sox. Ruth saíra do time em julho. Ele fora jogar no Chester Shipyards da Pensilvânia porque o treinador Barrow valorizava mais seu talento de lançador que sua habilidade com o taco, e Ruth estava cansado de ser lançador. Você eliminava um rebatedor e recebia aplausos. Conseguia um home run e o estádio ia ao delírio. O problema é que o Chester Shipyards também o preferia na posição de lançador. Quando Frazee ameaçou processá-los, Chester Shipyards mandou Ruth de volta.
Frazee foi ao encontro de Ruth no trem e conduziu-o ao banco traseiro de seu cupê Rauch & Lang Electric Opera. O carro era marrom, com estofado preto, e Ruth sempre se admirava de poder ver sua imagem refletida no aço a qualquer hora do dia e independentemente do tempo que fizesse. Ele perguntou a Frazee quanto custaria um carro daquele. Acariciando preguiçosamente o estofado escuro, enquanto seu motorista entrava na Atlantic Avenue, Frazee passou o cantil a Babe e respondeu: "Mais que você, Ruth".
Na inscrição gravada no estanho do cantil, lia-se:
Ruth, G. H.
CHESTER, Penna.[2]
1/7/18 - 7/7/18
Agora, no trem, ele passa o dedo na inscrição e toma mais um gole, sentindo o odor carregado de sangue de boi misturado ao cheiro metálico de cidades industriais e de trilhos quentes. Eu sou Babe Ruth - ele teve vontade de gritar para fora do trem. E quando não estou bêbado e sozinho curtindo um fim de ressaca, tenho meu valor. Um dente na engrenagem, sim, claro que sei disso, mas um dente com uma incrustação de diamante. O dente dos dentes. Mais dia, menos dia...
Ruth levantou o cantil, fez um brinde a Harry Frazee e a todos os Harrys Frazees do mundo, com uma enfiada de epítetos obscenos e um sorriso radioso. Então tomou um trago que lhe subiu às pálpebras e as puxou para baixo.
"Eu vou dormir, sua puta velha", sussurrou Ruth para a noite, para o horizonte, para o cheiro de gado abatido, para os campos sombrios do Meio-Oeste que se estendiam à sua frente. Para cada uma das cidadezinhas sem cor que havia entre aquele ponto e a Governor’s Square. Para o céu enfumaçado e sem estrelas.
Entrou cambaleando na cabine que dividia com Jones, Scott e McInnis, e quando acordou às seis da manhã, ainda completamente vestido, estava em Ohio. No desjejum no vagão restaurante, tomou dois bules de café e ficou observando a fumaça que saía das chaminés das fundições e das usinas de aço espalhadas pelas colinas negras. Como lhe doía a cabeça, acrescentou algumas gotas de uísque ao café, e a dor passou. Jogou canastra por algum tempo com Everett Scott, e então o trem fez uma longa parada em Summerford, outra cidadezinha industrial. Eles esticaram as pernas num campo adiante da estação, e foi então que, pela primeira vez, ele ouviu falar de uma greve.
Eram Harry Hooper, capitão do Sox e jardineiro direito, e o segunda base Dave Shean falando com o jardineiro esquerdo Leslie Mann e com o apanhador Bill Killefer, do Cubs.[3] McInnis disse que os quatro tinham ficado confabulando durante toda a viagem.
"Falando de quê?", perguntou Ruth sem muita certeza de que aquilo lhe importava.
"Não sei", disse Stuffy. "Amolecer o jogo para ganhar uma grana? Perder de propósito?"
Hooper foi ao encontro deles.
"Vamos entrar em greve, rapazes."
Stuffy McInnis disse: "Você está bêbado".
Hooper negou com a cabeça. "Eles estão fodendo com a gente, rapazes."
"Quem?"
"A Comissão. Quem mais poderia ser? Heydler, Hermann, Johnson. Eles."
Stuffy McInnis espalhou fumo num papelzinho, lambeu-o delicadamente e torceu as pontas. "Como assim?"
Ele acendeu o cigarro. Ruth tomou um gole do cantil e lançou um olhar para além do campo, onde havia um pequeno grupo de árvores sob o céu azul.
"Eles mudaram a tabela do Campeonato e a porcentagem dos nossos ganhos. Fizeram isso no inverno passado e até agora não nos disseram nada."
"Espere", disse McInnis. "Nós recebemos sessenta por cento das quatro primeiras bilheterias."
Harry Hooper negou com a cabeça e Ruth sentiu que sua atenção começava a diminuir. Ele notou as linhas do telégrafo que se estendiam de um extremo ao outro do campo, perguntando a si mesmo se conseguiria ouvir o zumbido delas caso se aproximasse o bastante. Arrecadação, distribuição. Ruth queria mais um prato de ovos, um pouco mais de bacon.
Harry disse: "Nós ganhávamos sessenta por cento. Agora ganhamos cinquenta e cinco. O comparecimento aos estádios diminuiu. Por causa da guerra, sabe como é. E é nosso dever patriótico receber cinco por cento a menos."
McInnis sacudiu os ombros. "Então cabe a nós..."
"Então perdemos quarenta por cento disso para Cleveland, Washington e Chicago."
"Por quê?", indagou Stuffy. "Por ter lhes dado uma surra nas eliminatórias?"
"Então... então mais dez por cento a título de contribuição para a guerra. Está entendendo agora?"
Stuffy fechou a cara. Ele estava a fim de chutar alguém, alguém pequeno e em quem ele pudesse afundar o pé.
Babe jogou o chapéu para cima e apanhou-o atrás das costas, catou uma pedra e atirou-a para o céu. E tornou a lançar o chapéu para o alto.
"Tudo vai se resolver", disse ele.
Hooper olhou para ele. "O quê?"
"Seja lá o que for", assegurou Babe. "Vamos recuperar tudo."
Stuffy perguntou: "Como, Gidge? Você pode me dizer? Como?".
"De um jeito ou de outro", respondeu Babe, sentindo a cabeça voltar a doer. Falar de dinheiro lhe dava dor de cabeça. O mundo fazia sua cabeça latejar - os bolcheviques derrubando o czar, o Kaiser devastando a Europa, anarquistas jogando bombas nas ruas deste país, explodindo desfiles militares e caixas de correio. Havia gente com raiva, havia gente gritando, gente morrendo nas trincheiras e fazendo manifestações em frente às fábricas. E tudo isso tinha a ver com dinheiro. Babe sabia muito bem, mas detestava pensar sobre essas coisas. Gostava de dinheiro, gostava bastante, e sabia que estava ganhando um bocado e pretendia ganhar muito mais. Gostava de sua nova lambreta, gostava de comprar bons charutos e de ficar em espaçosos quartos de hotel com pesadas cortinas e de pagar rodadas de bebidas no bar. Mas odiava pensar sobre dinheiro e falar de dinheiro. Babe só queria mesmo chegar a Boston. Ele queria dar duro e depois cair na gandaia. A Governor’s Square era cheia de bordéis e de bons bares. O inverno se aproximava; ele queria aproveitar enquanto podia, antes que a neve e o frio chegassem. Antes que ele se visse enfiado novamente em Sudbury com Helen e o cheiro de cavalos.
Ele bateu no ombro de Harry e repetiu sua opinião. "De um jeito ou de outro, as coisas vão se ajeitar. Você vai ver."
Harry Hooper olhou para o ombro, para o campo à sua frente, e depois novamente para Ruth, que sorriu.
"Seja um Babe[4] bonzinho", disse Harry Hooper, "e deixe a conversa para os adultos."
Harry Hooper voltou-lhe as costas. Ele estava com um chapéu de palha duro, ligeiramente puxado para trás, deixando a testa à mostra. Ruth detestava chapéus de palha; seu rosto era redondo e rechonchudo demais para eles. Eles o faziam parecer uma criança tentando ser elegante. Ele se imaginou tirando o chapéu de Harry e atirando-o no teto do trem.
Harry foi em direção ao campo, queixo abaixado, puxando Stuffy McInnis pelo braço.
Babe apanhou uma pedra e fitou as costas do casaco listrado de Harry Hooper, imaginou uma luva de apanhador ali, pensou no som que a pedra afiada faria contra uma espinha. Ele ouviu um som agudo tomando o lugar do outro em sua cabeça, um estalido surdo e distante, semelhante ao de uma acha de lenha estalando na lareira. Lançou um olhar ao leste, onde o campo acabava no pequeno grupo de árvores. Babe ouvia o trem silvando suavemente atrás dele, as vozes esparsas dos jogadores e o farfalhar do campo. Dois engenheiros passaram por trás dele falando sobre um trilho quebrado, dizendo que levariam duas horas, talvez três, para consertar. Ruth pensou Duas horas neste buraco?, tornou a ouvir um estalido ao longe e teve certeza de que por trás das árvores estavam jogando beisebol.
Ele cruzou o campo sozinho, sem ser notado, sentindo que os sons iam ficando mais próximos - as vaias ritmadas, o roçar de pés no gramado, o ruído de uma bola despachada para ir morrer na luva de alguém. Ele foi avançando por entre as árvores, tirou o casaco por causa do calor, e quando emergiu do bosque as equipes estavam mudando de lado, os homens correndo em direção a uma faixa de terra ao longo da linha da primeira base, enquanto o outro grupo afastava-se rapidamente de uma faixa junto à terceira.
Homens de cor.
Ele ficou onde estava e fez um aceno de cabeça para o jardineiro central, que corria para tomar posição a alguns metros dele. O homem respondeu ao aceno de Babe, dando a impressão de examinar as árvores para ver se elas pretendiam produzir mais gente branca naquele dia. Então voltou as costas para Babe, dobrou o corpo para a frente e apoiou a mão enluvada nos joelhos. Ele era parrudo, ombros tão largos quanto os de Babe, mas com menos volume na área da cintura e também (Babe tinha de reconhecer) na bunda.
O lançador não perdeu tempo. Ele mal fez um movimento circular para lançar a bola, com aqueles tremendos braços compridos; girou o braço direito como se estivesse atirando uma pedra com um estilingue para atravessar o oceano. Mesmo de onde estava, Babe teve certeza de que a bola cruzou a base do batedor pegando fogo. Por mais que este se esforçasse, deixou-a passar a uma distância de uns quinze centímetros.
Mas ele acertou a seguinte em cheio, com um ruído tão alto que só poderia ter vindo de um taco quebrado. A bola passou por Babe, depois se ergueu devagar em direção ao céu azul, como um pato que tivesse resolvido nadar de costas, e o jardineiro central deslocou um pé, abriu a luva e a bola caiu, como se aliviada, bem no meio do couro.
Ruth nunca fizera um teste de visão. Ele não permitia. Sabia que sua vista era muito mais apurada que a da maioria das pessoas. Ainda criança, era capaz de ler os letreiros das ruas, mesmo os pintados nos cantos dos edifícios, a distâncias muito maiores que qualquer outra pessoa. Ele conseguia ver a textura das penas de um falcão cem metros acima dele, caçando, deslocando-se rápido como um raio. As bolas lhe pareciam gordas e vagarosas. Quando fazia um lançamento, a luva do pegador parecia um travesseiro de hotel.
Assim, mesmo àquela distância ele percebeu que o rosto do batedor estava em péssimas condições. Um cara baixinho, magro feito um cabo de vassoura, mas com alguma coisa no rosto, vergões vermelhos ou cicatrizes na pele parda. Ele era pura energia, ali em seu posto, aos saltos, movimentando pés e quadris, um cão fila de pé na base do batedor, tentando se conter para não irromper de dentro da própria pele. E quando ele acertou a bola depois de ter perdido dois pontos, Ruth teve certeza de que aquele negro ia voar, mas não esperava que fosse tão rápido.
A bola nem acabara de descrever um arco em direção aos pés do jardineiro direito (àquela altura Ruth sabia que ele não conseguiria pegar a bola antes de ela cair no chão) e o lebréu já estava dando a volta na primeira base. Quando a bola bateu no gramado, o jardineiro direito pegou-a com a mão sem luva e não fez mais que avançar alguns passos, agachado, depois parou e largou-a - a bola escapou de sua mão como se ele a tivesse surpreendido na cama com sua filha, e num piscar de olhos ela atingiu a luva do segunda base. Mas o lebréu já estava na segunda, ativo. Sem escorregões, sem se abaixar. Ficava dançando ali como se estivesse apanhando o jornal da manhã, olhando para trás em direção ao jardineiro central, e aí Ruth percebeu que o rapaz estava olhando para ele. Babe levou a mão ao chapéu, e o rapaz lhe deu um breve sorriso soturno e arrogante.
Ruth resolveu manter os olhos no rapaz, sabendo que, fizesse o que fizesse, daria a impressão de ser algo especial.
O homem da segunda base jogara para o Wrightville Mudhawks. Seu nome era Luther Laurence e ele fora dispensado do Mudhawks em junho, depois de ter brigado com Jefferson Reese, técnico do time e primeira base, um sujeito dentuço e sorridente que se comportava como um poodle de madame com os brancos e falava mal do próprio povo na casa em que trabalhava, perto de Columbus. Luther ficou sabendo dos detalhes, certa noite, por uma garota com quem ele andava saindo, Lila, uma bela jovem que trabalhava na mesma casa que Jefferson Reese. Ela contou a Luther que certa noite Reese estava servindo sopa de uma terrina na sala de jantar. Os brancos falavam o tempo todo dos crioulos arrogantes de Chicago, da forma desabusada como caminhavam pelas ruas, sem nem ao menos abaixar a vista à passagem de uma mulher branca. O velho Reese se saiu com esta: "Lawse, é uma terrível vergonha. Sim, sor, os negros de Chicago não passam de chimpanzés pulando de galho em galho. Não têm tempo de ir à igreja. Querem encher a cara na sexta-feira, jogar pôquer no sábado e transar com a mulher de outro homem até o domingo".
"Ele disse isso?", perguntou Luther a Lila na banheira do Dixon Hotel, só para negros. Ficou com espuma no corpo ao entrar na água, jogou-a nos seios pequenos e duros de Lila, apreciando as bolhas em sua carne cor de ouro não brunido.
"Disse coisa muito pior", continuou Lila. "Mas não vá querer peitar esse cara agora, meu bem. É um sujeito cruel."
De todo modo, quando Luther topou com ele no abrigo do Estádio Inkwell, Reese logo parou de sorrir e exibiu aquele seu olhar - um olhar antigo e duro, que mostrava não estar muito distante da inclemente canícula dos campos - que fez Luther pensar "Oh-oh", mas àquela altura Reese já viera para cima dele, punhos feito pontas de taco de beisebol no rosto de Luther. Ele tentou se virar como pôde, mas Jefferson Reese tinha mais que o dobro de sua idade, dez anos como agregado em casa de brancos e uma fúria que, quando aflorava, se fazia ainda mais forte e brutal por ter sido guardada bem fundo e por muito tempo. Ele jogou Luther no chão, golpeando-o depressa e sem piedade até que o sangue, misturado ao barro, à cal e à poeira do campo, esguichou de seu corpo.
Aeneus James disse a Luther, quando o amigo estava na ala beneficente do St. Johns: "Porra, rapaz, você rápido desse jeito, por que não deu no pé quando o velho maluco te olhou torto?".
Luther teve um longo verão para ponderar sobre aquela pergunta, e ainda não conseguira atinar com uma resposta. Rápido como era - e ele nunca conhecera ninguém mais veloz -, ele se perguntava se simplesmente já estava cansado de correr.
Agora, porém, vendo o homem gordo que o fazia lembrar de Babe Ruth olhando para ele de entre as árvores, Luther se pegou pensando: "Você acha que já viu alguém correr, ô branquelo. Pois não viu não. Mas logo vai ver. Conte aos seus netos".
E ele partiu voando da segunda base no mesmo instante em que Sticky Joe Beam, feito um polvo, terminava o arremesso, e por pouco Luther não viu os olhos do homem branco se arregalarem, ficando do tamanho de sua pança. Os pés de Luther moviam-se com tal rapidez que o chão sob ele corria mais rápido que ele sobre o chão. E de fato ele sentia o chão mover-se como um rio no começo da primavera, e imaginava Tyrell Hawke na terceira base, encolhendo-se por ter passado a noite inteira bebendo. E Luther contava com isso, porque hoje ele não se contentaria com a terceira base, não senhor, pode acreditar que beisebol é um jogo de velocidade e eu sou o sujeito mais veloz que vocês jamais haverão de ver - e quando ele levantou a cabeça, a primeira coisa que avistou foi a luva de Tyrell bem perto de seu ouvido. Em seguida ele viu, à sua esquerda, a bola, uma estrela deslocando-se obliquamente a toda a velocidade e soltando fumaça. Luther gritou "Buu!" e lá veio ela alta e com força, e, sim senhor, a luva de Tyrell se ergueu uns oito centímetros. Luther mergulhou, e a bola chiou sob a luva, roçou os cabelos da nuca de Luther, quente feito a navalha da barbearia de Moby na Meridian Avenue, e ele tocou na terceira base com as pontas dos dedos do pé direito e chegou a toda a velocidade à linha, o chão deslizando tão rápido sob seus pés que parecia prestes a acabar num abismo, talvez no fim do mundo. Ele ouvia o apanhador Ransom Boynton gritando pela bola: "Ei, aqui, aqui! Aqui, agora!". Ele levantou a vista, viu Ransom poucos metros mais adiante, e adivinhou a trajetória da bola pelo olhar e pela crispação que sentiu nos joelhos. Luther tomou um hausto de ar do tamanho de um bloco de gelo, transformou as panturrilhas em molas e os pés em barris de pistola. Ele atingiu Ransom com tanta força que mal sentiu, simplesmente foi por cima dele e viu a bola bater no tapume atrás da base do batedor no momento exato em que seu pé tocava nela, e ouviu os dois sons - um forte e nítido, o outro arrastado e poento. E ele pensou: mais rápido que qualquer um de vocês nem sequer sonhou ser.
Ele parou ao se chocar contra o peito de seus companheiros de equipe. Em meio aos gritos e puxões, ele se voltou para ver a cara gorda do homem branco, mas ele não estava mais junto ao arvoredo. Não, ele já estava quase na segunda base, cruzando o campo, correndo em direção a Luther, o rostinho de bebê sacudindo-se e sorrindo, os olhos se mexendo nas órbitas como se acabasse de completar cinco anos e alguém lhe tivesse dito que ia ganhar um pônei, e ele não pudesse controlar o próprio corpo, sendo obrigado a pular e correr de alegria.
Luther olhou muito bem para aquele rosto e pensou: Não.
Mas então Ransom Boynton parou ao lado dele e disse em voz alta: "Vocês não vão acreditar, mas aquele ali é o Babe Ruth. Correndo pra lá feito uma porra de um trem de carga".
"Posso jogar?"
Ninguém podia acreditar que ele tinha dito aquilo. Isso foi depois que ele correu em direção a Luther, levantou-o do chão, segurou-o diante do rosto e disse: "Menino, já vi muita gente correndo, mas nunca vi - nunca, está ouvindo? - ninguém correr como você". Então se pôs a abraçar Luther e bater-lhe nas costas dizendo "Puxa vida, que espetáculo!".
E então tiveram certeza de que ele de fato era Babe Ruth. Babe ficou surpreso ao ver quantos daqueles homens tinham ouvido falar nele. Mas Sticky Joe o vira certa vez em Chicago, e Ransom o tinha visto atuar como lançador pela esquerda duas vezes em Cleveland. Os demais tinham lido sobre ele nas páginas de esporte dos jornais e da Revista de Beisebol. As sobrancelhas de Ruth arquearam-se como se ele não pudesse acreditar que existissem negros que soubessem ler no planeta.
Ruth disse: "Quer dizer que vocês querem autógrafos?".
Ninguém se mostrou interessado, Ruth ficou chateado, e todo mundo se pôs a fitar os próprios sapatos e a olhar para o céu.
Luther pensou em dizer a Ruth que ele estava diante de jogadores muito bons. Alguns eram verdadeiras lendas. Sabe o homem com braços de polvo? No ano anterior, ele havia contabilizado trinta e duas vitórias contra duas derrotas para o Miller-sport King Horns, da Liga dos Operários de Ohio. Trinta e dois a dois com um e setenta e oito de média de corridas limpas. Veja só. E Andy Hughes, jogando perto da segunda base no time adversário, pois aquele era um jogo improvisado, estava fazendo uma média de trezentos e noventa por mil na equipe dos Downtown Sugar Shacks, de Grandview Heights. Além disso, só gente branca gostava de autógrafos. E, afinal de contas, que diabo era um autógrafo, senão um ciscado de galinha num pedaço de papel?
Luther abriu a boca para explicar isso, mas deu uma olhada no rosto do homem e viu que não faria diferença: o cara era uma criança. Um garoto com corpo de hipopótamo, carnes sacudindo-se, coxas tão volumosas que davam a impressão de que logo iriam se ramificar, mas de todo modo uma criança. Ele tinha os maiores olhos que Luther vira na vida. Luther haveria de lembrá-los muitos anos depois, enquanto os via mudarem ao longo do tempo nos jornais. Viu aqueles olhos minguarem e escurecerem progressivamente a cada nova fotografia. Mas então, nos campos de Ohio, Ruth tinha os olhos de um menininho gordo no pátio da escola, olhos cheios de esperança, de medo e desespero.
"Posso jogar?", disse ele estendendo suas patas de são-bernardo. "Com vocês todos?"
Aquilo caiu feito uma bomba, os homens inclinando-se para a frente para não cair na risada, mas a fisionomia de Luther ficou impassível. "Bem..." Ele olhou em volta, contemplou os outros homens, olhou novamente para Ruth, sem se apressar. "Depende", disse ele. "Você conhece bem o jogo, sor?"
Com aquilo, Reggie Polk se estatelou no chão. Muitos outros jogadores caíram na gargalhada, esfregando os próprios braços. Ruth, porém, surpreendeu Luther. Aqueles olhos grandes ficaram pequenos e claros como o céu, e Luther logo entendeu tudo: com um taco na mão, ele podia ter a idade de qualquer um deles.
Ruth enfiou um cigarro apagado na boca e afrouxou a gravata. "Aprendi uma coisa ou outra em minhas viagens, senhor...?"
"Laurence, sor. Luther Laurence", respondeu Luther ainda de rosto impassível.
Ruth passou o braço em torno dele. Um braço do tamanho da cama de Luther. "Em que posição você joga, Luther?"
"Sou jardineiro central, sor."
"Bem, menino, então não precisa se preocupar com nada, a não ser levantar a cabeça."
"Levantar a cabeça, sor?"
"E ficar olhando minha bola passar acima dela."
Luther não pôde se conter; um sorriso largo tomou-lhe o rosto.
"E quer parar de me chamar de ‘sor’, Luther? Aqui somos jogadores de beisebol."
Oh, era bem parecido com a primeira vez em que Sticky Joe o eliminou! Três strikes, os três seguidinhos como a linha atrás da agulha, o homem gordo não tocou o couro nem uma vez.
Ele riu depois do último, apontou o taco para Sticky Joe, fazendo-lhe um largo aceno com a cabeça. "Mas eu estou te entendendo, garoto. Eu sou um aluno atento."
Ninguém queria deixá-lo lançar, então ele substituiu um jogador a cada inning no resto do campo. Ninguém se incomodava em deixar de jogar um inning. Babe Ruth... pelo amor de Deus. Podiam não querer autógrafos, mas por um bom tempo aquelas histórias valeriam uns bons drinques.
Em um dos innings ele jogou pela esquerda, Luther no centro e Reggie Polk, que atuava como lançador para a equipe deles, estava enrolando entre os lançamentos, como era seu costume, e Ruth disse: "Então, o que é que você faz quando não está jogando bola, Luther?".
Luther falou um pouco sobre seu trabalho na fábrica de munições perto de Columbus, disse-lhe que a guerra foi uma coisa terrível, mas com certeza rendeu um bom dinheirinho. "Isso é verdade", disse Ruth, embora parecesse a Luther que ele falara só por falar, não porque entendesse o espírito da coisa. Ruth então perguntou a Luther o que tinha acontecido com seu rosto.
"Cacto, senhor Ruth."
Eles ouviram o estalido do taco e Ruth interceptou uma bolinha fraca - que se movia como uma bailarina nas pontas dos dedinhos grossos dos pés - e atirou-a de volta à segunda base.
"Tem muitos cáctus em Ohio? Nunca ouvi dizer."
Luther sorriu. "Na verdade, senhor Ruth, eles são chamados de ‘cacti’ quando a gente fala de mais de um. E tem vastos campos deles em todo o estado. Montes e montes de cacti."
"E você? Caiu num desses campos?"
"Sim, sor. Uma queda feia."
"Parece que você caiu de um avião."
Luther balançou a cabeça bem devagar. "Zepelim, senhor Ruth."
Os dois riram mansa e demoradamente, e Luther ainda estava rindo quando levantou a luva e apanhou no ar o tiro de Rube Gray.
No inning seguinte alguns brancos apareceram de entre as árvores, e a maioria deles foi reconhecida logo de cara - Stuffy McInnis, não havia dúvida; Everett Scott, meu Deus; e depois alguns do Cubs, meu Jesus - Flack, Mann, um terceiro cara cujos traços ninguém reconheceu e que poderia ser jogador de qualquer das duas equipes. Eles vieram avançando pelo lado direito do campo, e logo estavam de pé atrás do velho banco, não muito firme, junto à linha da primeira base. Estavam todos de terno, gravata e chapéu, naquele calor, fumando charutos, gritando vez por outra por alguém chamado "Gidge", deixando Luther totalmente confuso, até ele perceber que era assim que chamavam Ruth. Quando Luther tornou a olhar, viu que mais três homens tinham se juntado ao grupo - Whiteman, do Sox, Hollocher, que jogava junto à segunda base pelo Cubs, e um rapaz magro de cara vermelha e queixo projetado para a frente feito uma aba extra de pele, que ninguém reconheceu. Luther gostou daquele número - eram oito, mais Ruth, o que dava um time completo.
Por mais ou menos um inning, foi tudo bem, e os brancos em geral ficaram na deles, alguns fazendo som de macacos e outros gritando "Não perca essa bola, urubu. Ela vem que vem" ou "Você devia ficar mais embaixo dela, negão" - mas Luther já tinha ouvido merda pior, muito pior. O que ele não estava gostando nem um pouco é que, toda vez que levantava a vista, os oito caras pareciam ter avançado uns cinco centímetros em direção à linha da primeira base, e logo ficou difícil correr por aquele lado, rebater um lançamento com brancos à sua direita, tão próximos que dava para sentir o cheiro de colônia deles.
E então, entre um e outro inning, um deles disse: "Por que vocês não deixam um de nós experimentar?".
Luther notou que Ruth parecia estar procurando um buraco onde se enfiar.
"Que é que você diz, Gidge? Você acha que seus novos amigos se importariam se um de nós jogasse um pouco? A gente sempre ouve dizer que esses negros são muito bons. Correm feito uns condenados, pelo que dizem."
O homem estendeu a mão para Babe. Ele era um dos poucos que ninguém reconheceu, devia ser freguês do banco dos reservas. Com suas mãos grandes, nariz achatado e ombros feito cabeça de machado, o homem parecia um armário com duras arestas. Tinha olhos que Luther já vira em brancos pobres - uma vida inteira comendo raiva em vez de comida. Desenvolvera por aquilo um gosto que nunca iria perder, por mais que comesse direito pelo resto da vida.
Ele sorriu para Luther como se soubesse o que ele estava pensando. "Que me diz, rapaz? Que tal deixar um de nós participar de um lance ou outro?"
Rube Gray ofereceu-se para ceder seu lugar por um tempo, e os brancos elegeram Stuffy McInnis a mais recente contratação da Liga Negra de Ohio Meridional, entregando-se àquele riso estúpido que parecia próprio dos brancos grandalhões - mas Luther era obrigado a reconhecer que ele tinha uma coisa de bom: Stuffy McInnis sabia jogar, rapaz. Luther vinha lendo sobre McInnis desde que ele começara sua carreira na equipe de Filadélfia, em 1909.
Depois da última bola fora de jogo do inning, porém, Luther veio correndo do centro e deu com os outros homens brancos enfileirados ao longo da linha da base do batedor, tendo à frente Flack, do Chicago, com um taco apoiado ao ombro.
Babe ensaiou resistir, pelo menos por um momento - Luther tinha de reconhecer. Babe disse: "Ora, vamos, camaradas, nós estamos jogando".
Flack lhe deu um sorriso largo e radioso: "Agora nós vamos ter um jogo melhor, Ruth. Vamos ver como esses rapazes se saem diante do melhor das Ligas Americana e Nacional".
"Oh, você quer dizer as ligas brancas?", disse Sticky Joe Beam. "É disso que você está falando?"
Todos olharam para ele.
"O que você está dizendo, garoto?"
Sticky Joe Beam tinha quarenta e dois anos e parecia uma fatia de bacon queimada. Ele crispou os lábios, abaixou os olhos para o barro do chão, depois lançou um tal olhar à fileira de homens brancos que Luther imaginou que ia haver briga.
"Eu disse vamos ver como vocês se saem", falou ele encarando-os. "Uh, sors."
Luther olhou para Ruth, cruzou o olhar com o dele, e o menino gordo de carona de bebê lhe deu um sorriso incerto. Luther lembrou-se de um trecho da Bíblia, que sua avó repetia o tempo todo quando ele era criança, sobre o quanto a fraqueza da carne leva a melhor sobre os desejos do coração.
"É o seu caso, Babe?", teve vontade de perguntar. É o seu caso?
Babe começou a beber logo que os negros escolheram seus nove jogadores. Ele não sabia o que estava acontecendo - era apenas uma partida de beisebol, brancos contra pretos, exatamente como camisa contra sem-camisa -, mas mesmo assim ele se sentia triste e envergonhado. Aquilo não fazia nenhum sentido. Era só um jogo. Uma brincadeira de verão, enquanto esperavam o conserto do trem. Nada mais. Ainda assim, como a tristeza e a vergonha não o largassem, ele tirou a tampa do cantil e tomou uma boa golada.
Babe pediu dispensa de sua função de lançador, disse que o cotovelo ainda se ressentia do primeiro jogo. Disse que tinha de se preocupar com o recorde da Série Mundial e que não iria arriscar isso por causa de um joguinho improvisado no mato.
Então Ebby Wilson atuou como lançador. Ebby era um rapaz comum de Ozarks, de queixo protuberante, que jogava no Boston desde julho. Ele sorriu quando lhe puseram a bola nas mãos. "Está certo, rapazes. Vamos acabar com esses negros antes que a gente perceba. Antes que eles percebam, também." E se pôs a rir, ainda que ninguém o acompanhasse na piada.
Ebby começou a lançar petardos que, num abrir e fechar de olhos, lhe permitiram eliminar os três primeiros batedores. Então Sticky Joe foi para o monte do lançador, e tudo mudou. Quando ele despachava aquele longo arremesso com um movimento de tentáculo, só Deus sabia o que podia acontecer. Ele arremessava bolas rápidas que ficavam invisíveis; bolas de efeito que tinham olhos e se desviavam logo que viam um taco, piscando para você; bolas curvas capazes de dar a volta a um pneu; bolas fortíssimas que explodiam dez centímetros antes da base do batedor. Ele eliminou Mann. Ele eliminou Scott. E conseguiu tirar McInnis no final do inning num vacilo na segunda base.
Travou-se então um duelo de lançadores por alguns innings, não muitos atingiram um ponto depois do monte do lançador, e Ruth começou a bocejar no lado esquerdo do campo, tomando grandes goladas do cantil. Não obstante, os negros marcaram um ponto no segundo e outro no terceiro, quando Luther Laurence transformou uma corrida da primeira para a segunda numa corrida da primeira para a base do lançador, avançando tão rápido pelo centro do campo que aquilo tomou Hollocher de surpresa. Quando ele parou de se atarantar com a bola, Luther Laurence estava cruzando a base do lançador.
O que tinha começado como uma mera brincadeira passou de uma surpresa respeitosa ("Nunca vi ninguém dominar a bola como esse velho negro. Nem você, Gidge. Diabo, nem mesmo Walter Johnson. O cara é um fenômeno.") para a piada nervosa ("Acha que vamos marcar um ponto antes de voltarmos para a porra da Série Mundial?") e para a raiva ("Este campo é dos crioulos. Aí é que está. Queria vê-los jogar no Wrigley. Queria vê-los jogar no Fenway. Merda.")
Os negros eram capazes de rebater a bola sem girar o corpo - meu Deus do céu, eram capazes disso; a bola ia parar a quinze centímetros da base do batedor, ficando absolutamente imóvel como se tivesse levado um tiro. E o que eles corriam... E eram capazes de roubar bases como se fosse simples como decidir se era preferível ficar na segunda a ficar na primeira. E eram capazes de tomar a primeira base quase sem esforço. No fim do quinto, tinha-se a impressão de que eles podiam passar o dia inteiro nisso, simplesmente ir lá e fazer mais um ponto. E então Whiteman, vindo da primeira base, foi até o monte do lançador, levou um papo com Ebby Wilson, e a partir daí Ebby passou a jogar para valer, como se não se importasse de ficar o inverno todo com o braço na tipoia.
Na primeira metade do sexto, os negros vencendo de 6 x 3, Stuffy McInnis pegou uma bola forte de Sticky Joe Beam e a atirou tão longe, por cima das árvores, que Luther Laurence nem se preocupou em ir atrás dela. Eles pegaram outra bola da bolsa de lona ao lado do banco, e Whiteman, depois de bater uma bola longa, atingiu a segunda base de pé. Então Flack pegou dois strikes, perdeu seis bolas e terminou por acertar uma simples à esquerda logo atrás do campo interno, e o placar passou a 6 x 4, com um corredor na primeira base, um na terceira e ninguém fora do jogo.
Babe sentia aquilo no ar enquanto limpava o taco com um trapo. Sentia o fluxo sanguíneo deles enquanto avançava em direção à base do batedor, escarvando a terra com o sapato. Aquele instante, aquele sol, aquele céu, aquela madeira e couro e membros e dedos e a agonia de esperar para ver o que iria acontecer eram belos. Mais belos que mulheres, palavras e mesmo o riso.
Sticky Joe lhe enviou uma primeira bola perto do corpo. Logo depois mandou uma bola curva que teria atirado os dentes de Babe para o sul de Ohio, se ele não tivesse recuado a cabeça para se esquivar. Ele apontou o taco para Sticky Joe, acompanhando-o com o olhar como se se tratasse de um rifle. Ele viu a alegria nos olhos escuros do velho, sorriu, e o velho também sorriu. Os dois balançaram a cabeça e Ruth teve vontade de beijar a testa encalombada do velho.
"Vocês concordam que a bola foi fora?", gritou Babe, e ele percebeu que até Luther estava rindo lá no centro do campo.
Meu Deus, como era bom. Mas, ei, lá vem ela, um puta tiro, e Ruth viu de relance a costura da bola, viu aquela linha vermelha mergulhar como um peixe listrado, começando a girar a baixa altura, muito mais baixo que o lugar onde se encontrava. Mas ele sabia para onde a sacana estava indo e que, se não a interceptasse, se não tirasse aquela bola desgraçada do espaço, do tempo, ele a veria escalar o céu como se tivesse mãos e joelhos. Ruth se pôs a correr pela linha e viu Flack disparar da primeira, e foi então que ele sentiu que avaliara mal. Não era uma coisa simples. Ele gritou "Espere!", mas Flack se pusera a correr. Whiteman estava a poucos passos da terceira base, mas parado, braços apontados em ambas as direções, enquanto Luther recuava para o grupo de árvores. Ruth viu a bola aparecer do mesmo céu onde desaparecera e cair logo depois das árvores, na luva de Luther.
Flack já saía da segunda base, e em grande velocidade. Quando Luther atirou a bola para a primeira, Whiteman voltou a tocar a terceira. Não havia dúvida de que Flack era muito rápido, mas Luther tinha um verdadeiro canhão naquele seu corpo magricela; a bola passou silvando acima do campo enquanto Flack calcava o chão pesadamente como uma diligência. Ele se ergueu no ar quando a bola bateu na luva de Aeneus James, e Aeneus - o grandalhão que estava jogando como jardineiro central quando Ruth apareceu de entre as árvores - abaixou o braço comprido. Flack, correndo em direção à primeira base, deslizou sobre o peito, lhe atingiu o ombro e tocou-o no peito antes que o outro alcançasse a base.
Aeneus abaixou a mão livre em direção a Flack, mas Flack ignorou-a e se pôs de pé.
Aeneus lançou a bola novamente para Sticky Joe.
Flack sacudiu a poeira da calça e se postou na primeira base. Ele apoiou as mãos nos joelhos e posicionou o pé direito em direção à segunda base.
Sticky Joe olhou para ele de sua posição no monte do lançador.
Aeneus James perguntou: "Que está fazendo, sor?".
Flack disse: "Como assim?", num tom exaltado.
Aeneus James explicou-se: "Só queria saber por que você ainda está aqui, sor".
Flack respondeu: "É o lugar onde um homem tem de ficar quando está na primeira base, garoto".
Aeneus James pareceu exausto de repente, como se acabasse de chegar em casa depois de um turno de catorze horas de trabalho e descobrisse que sua cama fora roubada.
Ruth pensou: Oh, meu Deus, não.
"Você está fora do jogo, sor."
"O que você está dizendo, garoto? Eu estava salvo."
"O cara estava salvo, seu crioulo", disse Ebby Wilson, surgindo de repente ao lado de Ruth. "Dava para ver a um quilômetro de distância."
Então alguns homens de cor se aproximaram, perguntando qual era o problema.
Aeneus disse: "O cara diz que estava salvo".
"O quê?", disse Cameron Morgan vindo depressa da segunda base. "Você só pode estar brincando."
"Cuidado com o que diz, garoto."
"Eu é que decido com quê ter cuidado."
"Ah, é assim?"
"É o que eu acho."
"O cara estava salvo. E ainda com uma margem."
"O cara estava fora", disse Sticky Joe suavemente. "Sem querer lhe faltar ao respeito, senhor Flack, mas o senhor estava fora."
Flack pôs as mãos atrás das costas e aproximou-se de Sticky Joe. Ele empinou a cabeça para o homem, que era mais baixo que ele. Sabe-se lá por quê, tomou fôlego.
"Você acha que estou na primeira base porque me confundi, é?"
"Não, senhor, não acho."
"Então o que você acha, garoto?"
"Acho que o senhor estava fora."
Agora todos estavam na primeira base - os nove caras de cada time e os nove negros que tinham se sentado depois que se organizou um novo jogo.
Ruth ouviu "fora" e "salvo" várias e várias vezes. Ele ouviu "garoto", "crioulo", "neguinho" e "peão". E então ouviu alguém chamando-o pelo nome.
Ele levantou a vista, viu Stuffy McInnis olhando para ele e apontando para a base. "Gidge, você é quem estava mais perto. Flack diz que estava salvo. Ebby viu muito bem isso, e ele também diz que estava salvo. Que é que você nos diz, Babe? Salvo ou fora?"
Babe nunca tinha visto tantos rostos negros furiosos juntos. Dezoito. Narigões chatos, músculos rijos nos braços e nas pernas, gotas de suor nos cabelos duros. Ruth apreciara tudo o que vira neles, mas ainda assim não gostava da forma como olhavam para você, como se soubessem alguma coisa a seu respeito e não fossem dizer. Da rapidez com que aqueles olhos o procuravam, para depois se abaixarem e se desviarem para bem longe.
Seis anos atrás, fizera-se a primeira greve na Grande Liga de Beisebol. O Detroit Tigers recusou-se a jogar até que Ban Johnson revogasse a suspensão de Ty Cobb, por ter batido num torcedor que estava na arquibancada. O torcedor era um inválido, tinha cotos em lugar de braços, não tinha mãos para se defender, mas Cobb o agrediu, mesmo depois de ele estar caído no chão, metendo-lhe as chuteiras no rosto e nas costelas. Ainda assim os companheiros de Cobb tomaram partido dele e fizeram greve em apoio a um sujeito de quem ninguém gostava. Diabo, todo mundo odiava Cobb, mas a questão não era essa. A questão era que o torcedor chamara Cobb de "meio crioulo", e não havia nada pior para chamar um branco, salvo talvez "chegado num crioulo" ou simplesmente "crioulo".
Babe ainda estava no reformatório quando ouviu aquela história, mas entendeu a posição do pessoal do Tigers. Tudo bem. Você pode bater papo com um negro, e até rir e brincar com ele, quem sabe até dar um troquinho a mais, na época do Natal, àqueles com quem você ficou de troça. Mas aquela ainda era uma sociedade de brancos, um lugar baseado em conceitos de família e trabalho honesto (e o que estavam fazendo aqueles negros no campo, em pleno dia de trabalho, jogando uma partida, enquanto seus familiares estavam em casa, certamente passando fome?). Tudo somado e medido, é sempre melhor ficar do lado da gente de sua casta, as pessoas com quem se tem de conviver, comer e trabalhar pelo resto da vida.
Ruth mantinha os olhos na base. Ele não queria saber onde Luther estava, arriscar-se a encarar a multidão de rostos negros e cruzar com o olhar dele.
"Ele estava salvo", disse Ruth.
Os negros ficaram loucos. Eles se puseram a gritar, apontando para a base e berrando "Mentira!", e isso continuou por algum tempo. Então, como se tivessem escutado um apito de cachorro que ninguém mais ouvira, eles pararam. Seus corpos se distenderam, eles encurvaram os ombros e olharam diretamente para Ruth como se pudessem ver no fundo de sua mente, e Sticky Joe Beam disse: "Tudo bem, tudo bem. Se é assim que vamos jogar, é assim que vamos jogar".
"É assim que vamos jogar", disse McInnis.
"Sim, sor", disse Sticky Joe. "Agora está tudo esclarecido."
E todos voltaram às suas posições.
Babe sentou-se no banco, bebeu, sentiu-se conspurcado e se pegou querendo arrancar a cabeça de Ebby Wilson e jogá-la numa pilha, junto com a cabeça de Flack. Aquilo não fazia sentido - ele, Babe, fizera o que tinha de fazer por sua equipe -, mas isso não o impedia de sentir o que estava sentindo.
Quanto mais bebia, pior se sentia, e lá pelo oitavo inning ele tinha calculado o que iria acontecer se usasse sua próxima jogada para perder de propósito. Àquela altura ele tinha trocado de posição com Whiteman, estava jogando na primeira base. Luther Laurence esperava no círculo on-deck, Tyrell Hawke postava-se na caixa do rebatedor, e Luther olhava para Ruth como se ele fosse apenas mais um branco, lançando-lhe aqueles olhares neutros que a gente vê em carregadores, engraxates e meninos de recado. Babe sentiu um aperto no coração.
Mesmo depois de dois lances na base passíveis de contestação (e até uma criança poderia imaginar quem ganhou a causa) seguidos de uma longa bola torta que o pessoal da Grande Liga considerou um home run, eles ainda estavam perdendo dos negros por nove a seis na segunda metade do nono inning, quando o orgulho das Ligas Nacional e Americana começou a fazer seu papel de orgulho das Ligas Nacional e Americana.
Hollocher bateu uma bola ao longo da linha da primeira base. Então Scott atirou uma bola por cima da cabeça do terceira base. Flack perdeu três. Mas McInnis lançou uma para a direita; todas as bases estavam ocupadas, um jogador eliminado, George Whiteman vindo para a base do lançador, e Ruth no círculo de espera. O jogador de centro de campo aprofundava-se mais e Sticky Joe Beam não mandava nada que George não pudesse rebater para longe. De repente Babe se pegou rezando por uma coisa pela qual nunca torcera na vida: um double play[5] para que ele não tivesse de rebater.
Whiteman se aproveitou de um mergulho muito lento; quando ele bateu, a bola subiu bem alto depois guinou à direita em algum ponto depois do diamante, de forma brutal, rápida e para fora. Obviamente para fora. Então Sticky Joe Beam o eliminou com duas bolas rápidas, das mais maliciosas que Babe tinha visto em sua vida.
Enquanto avançava para a base do batedor, Babe calculou quantos daqueles seis pontos tinham sido marcados em jogo limpo, e chegou a um total de três. Três. Aqueles negros totalmente desconhecidos, num campo fuleiro em Cu do Mundo, Ohio, tinham enfrentado alguns dos melhores jogadores do mundo, deixando que fizessem apenas três míseros pontos. Diabo, o próprio Ruth estava acertando uma média de uma em cada três bolas. E olhe que ele estava se esforçando. E não se tratava apenas dos lançamentos de Beam. Não. A atitude era: atire a bola num lugar onde eles não estejam. Mas aqueles negros estavam por toda a parte. Você pensava que havia uma brecha, a brecha sumia. Você fazia um arremesso que nenhum mortal seria capaz de interceptar, e um dos caras apanhava em sua luva, sem nem ao menos girar o corpo.
Se eles não tivessem trapaceado, aquele seria um dos grandes momentos da vida de Ruth - enfrentando alguns dos melhores jogadores que tivera pela frente, com o jogo nas mãos, na segunda parte do nono inning, três bases ocupadas, dois jogadores eliminados. Uma tacada, e ele podia liquidar o jogo.
E ele podia liquidar o jogo. Fazia algum tempo que ele observava Sticky Joe, o cara estava cansado, e Ruth vira todos os seus arremessos. Se eles não tivessem trapaceado, o ar que Ruth sorvia pelas narinas agora teria sobre ele o efeito de cocaína pura.
O primeiro arremesso de Sticky Joe veio muito devagar e frouxo, e Ruth teve de regular o giro para a direita, para errar a rebatida. Ele perdeu de forma clamorosa, tentando forçar aquilo, e até Sticky Joe pareceu surpreso. O arremesso seguinte foi mais vigoroso, com algum efeito, Ruth rebateu, e a bola saiu do campo de jogo na área atrás do receptor. A bola seguinte foi cair no barro, e a próxima passou na altura de seu queixo.
Sticky Joe apanhou a bola, saiu do monte do lançador por um instante, e Ruth sentiu que ele o estava olhando. Ele via as árvores atrás de Luther Laurence, via Hollocher, Scott e McInnis em suas bases, e pensou em como teria sido legal se o jogo tivesse sido limpo, se no arremesso seguinte ele pudesse, com a consciência tranquila, mandar a bola para Deus lá no céu. E quem sabe...
Ele levantou a mão e saiu da caixa do rebatedor.
Era só um jogo, não era? Foi isso o que ele pensou consigo mesmo quando resolveu amolecer. Quem iria se importar se ele perdesse um joguinho bobo?
Mas o contrário também era verdade. Quem se importaria se ele ganhasse? Amanhã aquilo teria alguma importância? Claro que não. Aquilo não iria afetar a vida de ninguém. Agora, naquele instante, já havia dois jogadores fora, três bases ocupadas, na segunda metade do nono inning.
Se ele me der uma bola de bandeja, resolveu Ruth enquanto voltava para a caixa do rebatedor, vou aproveitar. Como posso resistir? Aqueles homens em suas bases, este taco em minha mão, o cheiro de barro, de grama e de sol.
É uma bola, um taco, nove homens. Apenas um instante. Nada que seja para sempre. Apenas um instante.
E lá vinha a bola, mais lenta do que era de se esperar, e Ruth percebia isso na expressão do rosto do velho negro. Ele já percebeu quando a bola saiu da mão do outro: era uma bola frouxa.
Babe pensou em errar a tacada, fazer o que tinha de fazer.
Então se ouviu o apito do trem, alto, agudo, ganhando os céus, e Ruth pensou "É um sinal", apoiou o pé e girou o taco, ouviu o apanhador dizer "Merda" e então... aquele som, aquele belo som de madeira contra o couro e a bola desapareceu no céu.
Ruth correu alguns metros pela linha e parou porque sabia que não havia conseguido.
Babe notou Luther Laurence olhando para ele, apenas por uma fração de segundo, e sacou que Luther tinha percebido: que ele havia tentado um home run, uma grande tacada. Que ele tentou tomar aquele jogo trapaceado daqueles que tinham jogado limpo.
Os olhos de Luther desviaram-se do rosto de Ruth, de tal forma que Ruth percebeu que eles nunca o fitariam novamente. E Luther levantou os olhos, afastando-se para se colocar sob a bola. Ele posicionou os pés, levantou a luva acima da cabeça. Não havia mais nada a fazer, pois Luther estava bem embaixo dela.
Mas Luther se afastou.
Luther abaixou a luva e começou a andar em direção ao jardim interno, e o mesmo fez o jardineiro direito, o jardineiro esquerdo, a bola caiu com um ruído surdo atrás deles, e eles nem ao menos se voltaram para olhá-la, simplesmente continuaram andando, e Hollocher atravessou a base do batedor mas não havia nenhum apanhador esperando. O apanhador estava andando em direção ao banco junto à terceira base, da mesma forma que o terceira base.
Scott chegou à base do batedor, mas McInnis parou de correr na terceira base e ficou lá olhando os negros andando em direção ao banco como se estivessem na segunda metade do segundo inning, e não do nono. Lá eles se reuniram, enfiaram seus tacos e luvas em duas sacolas de lona, agindo como se os brancos não estivessem presentes. Ruth teve vontade de atravessar o campo e aproximar-se de Luther para lhe dizer alguma coisa, mas Luther não se voltou nem uma vez. E logo todos eles se puseram a andar em direção à estrada de terra atrás do campo. Ruth perdeu Luther de vista no mar de negros, e já não saberia dizer se ele era o cara que ia na frente ou o que ia à esquerda, e Luther não se voltou.
O apito tornou a tocar. Nenhum dos brancos se mexera e, ainda que os negros parecessem andar devagar, quase todos já tinham deixado o campo.
À exceção de Sticky Joe Beam. Ele veio, pegou o taco que Babe usara, botou-o no ombro e encarou Babe.
Babe estendeu-lhe a mão. "Grande jogo, senhor Beam."
Sticky Joe Beam ignorou a mão de Babe.
Ele disse: "Pode acreditar, é seu trem, sor", e afastou-se do campo.
Babe voltou para o trem e tomou um drinque no bar.
O trem partiu de Ohio e avançou celeremente pela Pensilvânia. Ruth ficou sentado sozinho, bebendo e contemplando a Pensilvânia, com toda aquela poeira e colinas esgaravatadas. Pensava em seu pai, que morrera duas semanas atrás em Baltimore, numa briga com o irmão de sua segunda mulher, Benjie Sipes. O pai de Babe acertou dois socos e Sipes apenas um, mas foi este que contou, porque a cabeça do pai bateu no meio-fio e ele morreu no Hospital Universitário algumas horas depois.
Os jornais exploraram o caso por alguns dias. Quiseram saber sua opinião, o que estava sentindo. Babe disse que sentia a morte do homem. Era uma coisa triste.
Seu pai o enfiou no reformatório quando Babe tinha oito anos. Disse que ele precisava aprender a se comportar. Disse que estava cansado de tentar fazer que se preocupasse com ele próprio e com sua mãe. Disse que o reformatório lhe faria bem. Disse que tinha um bar para tocar. E que viria buscá-lo quando ele tomasse um pouco de juízo.
Quando sua mãe morreu, ele estava internado lá.
Aquilo era muito triste, ele dissera aos jornais. Uma coisa triste.
Babe ficou esperando sentir alguma coisa. Fazia duas semanas que esperava.
De modo geral, a única ocasião em que ele sentia alguma coisa - além da autocomiseração que sentia quando estava muito embriagado - era quando rebatia uma bola. Não quando a arremessava. Não quando pegava a bola. Só quando a rebatia. Quando a madeira chocava-se contra o couro. Ele girava os quadris e os ombros, os músculos das coxas e das panturrilhas se retesavam, e ele sentia o pulsar do próprio corpo quando terminava o movimento do taco preto, e a bola branca disparava mais rápido e mais alto que qualquer coisa no planeta. Por isso que ele mudara de ideia e se aplicara no lance naquela tarde, porque não tinha como não fazê-lo. A bola estava muito fácil, de bandeja, dando sopa. Foi por isso que ele o fez. Essa é que era a verdade. Essa é que era toda a verdade.
Ele começou a jogar pôquer com McInnis, Jones, Mann e Hollocher, mas todo mundo só falava sobre a greve e sobre a guerra (ninguém mencionava o jogo; era como se todos tivessem chegado a um acordo tácito de que ele não acontecera), por isso ele deu uma boa cochilada e quando acordou já tinham quase passado por Nova York. Então ele tomou mais alguns drinques para desanuviar a mente, tirou o chapéu de Harry Hooper enquanto este dormia, enfiou o punho dentro dele, rompendo a parte de cima, e ajeitou-o de volta na cabeça de Harry Hooper. Alguém sorriu e disse: "Gidge, você não respeita nada?". Então ele pegou outro chapéu, desta vez o de Stu Springer, chefe do Departamento de Vendas do Cubs, fez um buraco nele, e logo metade do vagão estava atirando chapéus em sua direção, estimulando-o a continuar. Babe subiu nos bancos e foi de gatinhas de um a outro fazendo "Uh uh uh", como se fosse um macaco, sentindo de repente um orgulho inexplicável que avançava feito uma onda por suas pernas e seus braços, como hastes de trigo crescendo loucamente, e ele gritou: "Sou o homem macaco! Sou o Babe Ruth, porra. Vou comer vocês!".
Uns tentaram derrubá-lo, outros tentaram acalmá-lo, mas ele pulou do encosto dos bancos e agitou-se no corredor, pegou mais alguns chapéus, amassou uns e abriu buracos em outros. O pessoal começou a aplaudir, bater palmas e assobiar. Ele batia palmas feito um macaco, coçava a bunda fazendo "Uh uh uh" e todo mundo estava gostando, todos estavam gostando.
Então se acabaram os chapéus. Eles cobriam o piso do vagão, pendiam dos compartimentos de bagagem. Pedaços de palha ficaram presos a algumas janelas. Ruth os sentia em sua espinha, bem na base de seu cérebro. Sentia-se aturdido, eufórico e pronto para tirar as gravatas. Os ternos. A bagagem.
Ebby Wilson encostou a mão no peito dele. Ruth nem ao menos sabia ao certo de onde o outro viera. Ele viu Stuffy de pé em seu banco, oferecendo-lhe um copo de alguma coisa, gritando e sorrindo, e Ruth lhe fez um aceno.
Ebby Wilson disse: "Faça um novo".
Ruth olhou para ele: "O quê?".
Ebby abriu as mãos, num gesto razoável. "Faça outro chapéu. Você o estragou, agora me faça um novo."
Alguém assobiou.
Ruth alisou os ombros do casaco de Wilson. "Eu lhe pago uma bebida."
"Não quero bebida nenhuma. Quero meu chapéu."
Ruth já ia dizer "Foda-se seu chapéu" quando Ebby Wilson o empurrou. O empurrão não foi muito forte, mas o trem fez uma curva na mesma hora. Ruth sentiu o balanço da curva, sorriu para Wilson e resolveu esmurrá-lo em vez de insultar. Ele deu o soco, percebeu que ia atingir os olhos de Ebby Wilson, que já não se mostrava tão arrogante nem preocupado com seu chapéu, mas o trem jogou novamente, trepidou, e Ruth sentiu que o soco saía muito aberto, sentiu o próprio corpo guinar para a direita, ouviu uma voz sussurrar em seu coração: "Você não é assim, Gidge. Você não é assim".
Seu punho atingiu a janela. A dor refletiu-se no cotovelo, no ombro, no lado do pescoço e no vazio logo abaixo do ouvido. Sentiu o sacolejar da própria barriga como um espetáculo público, sentiu-se novamente gordo e com uma sensação de orfandade. Deixou-se cair num banco vazio, sugou o ar por entre os dentes e afagou a mão dolorida.
Luther Laurence, Sticky Joe e Aeneus James com certeza estavam sentados numa varanda em algum lugar, sentindo o calor da noite, fazendo passar uma garrafa de mão em mão. Talvez estivessem falando sobre ele, comentando a expressão de seu rosto quando viu Luther afastar-se da bola que vinha caindo. Talvez estivessem rindo, repetindo uma batida, um arremesso, um tento.
E lá estava ele, no meio do mundo.
Eu dormi enquanto passávamos por Nova York, pensou Babe quando lhe trouxeram um balde com gelo e enfiaram sua mão nele. Lembrou-se então de que aquele trem não passava por Manhattan, só por Albany, mas mesmo assim continuou com uma sensação de perda. Já a vira uma centena de vezes, mas gostava de contemplá-la, contemplar suas luzes, os rios escuros que a circundavam feito um tapete, as torres de argila muito brancas contra a escuridão da noite.
Ele tirou a mão de dentro do balde de gelo e a examinou. A mão dos arremessos. Estava vermelha, inchada, e ele não conseguia fechá-la.
"Gidge", gritou alguém do fundo do vagão, "o que é que você tem contra chapéus?"
Babe não respondeu. Olhou pela janela e se pôs a contemplar a paisagem plana, de vegetação pobre, de Springfield, Massachusetts. Apoiou a testa na janela para refrescá-la e viu o próprio reflexo confundindo-se com o reflexo da paisagem.
Ruth levantou a mão inchada para o vidro e viu a paisagem deslocando-se através dela. Imaginou a paisagem curando suas articulações doloridas e torceu para que não estivessem quebradas. Tudo por causa de coisas estúpidas como chapéus.
Ele se imaginou encontrando-se com Luther em alguma rua empoeirada de uma cidadezinha empoeirada, pagando-lhe um drinque e pedindo desculpas. Luther diria, não se preocupe, senhor Ruth, sor, e lhe contaria outra história sobre os cacti de Ohio.
Mas então Ruth imaginou os olhos de Luther, não revelando nada para além da sensação de que eram capazes de enxergar dentro de você e de que não aprovavam nem um pouco o que viam. Ruth então pensou: "Foda-se você, cara, e sua aprovação. Não preciso dela, está ouvindo?".
Não preciso dela.
Ele estava apenas no começo. Estava pronto para estourar. Ele podia sentir. Grandes coisas. Grandes coisas estavam a caminho. Dele. Vindas de toda parte. Era essa a impressão que vinha tendo ultimamente, como se o mundo inteiro estivesse preso num estábulo, inclusive ele. Mas logo logo ele iria rebentar as amarras e desembestar.
Babe manteve a cabeça apoiada na janela, fechou os olhos, sentiu a paisagem rural deslizando por seu rosto e começou a roncar.
MISSÃO SIMPLES E ROTINEIRA
1.
Numa noite úmida de verão, Danny Coughlin, um agente da polícia de Boston, travou uma luta de quatro rounds contra outro policial, Johnny Green, no Mechanics Hall, bem em frente ao Copley Square. Coughlin-Green era a luta final de um campeonato de quinze rodadas, envolvendo gente de toda a polícia, inclusive pesos-mosca, pesos-médios, pesos meio pesados e pesos-pesados. Danny Coughlin, com um metro e noventa de altura e noventa e nove quilos, era peso-pesado. Um gancho esquerdo duvidoso e um jogo de pé um tanto lento impediam-no de lutar profissionalmente, mas seu jab esquerdo, tipo facão de açougueiro, combinado com a explosão de seu cruzado direito, superava todas as habilidades de qualquer outro semiprofissional da Costa Leste.
Aquele espetáculo de pugilismo durava um dia inteiro e intitulava-se Boxe & Distintivos: Socos da Esperança. A renda era dividida meio a meio entre o Asilo São Tomás para Órfãos Inválidos e a própria associação policial, o Boston Social Club, que usava os donativos para um fundo de saúde destinado a policiais feridos e ao custeio de despesas com uniformes e equipamento, as quais o departamento se recusava a pagar. Os folhetos que anunciavam os eventos eram colados nos postes e afixados na frente das lojas dos bairros nobres, o que resultava em donativos de pessoas que na verdade não pretendiam comparecer ao espetáculo. Ao mesmo tempo, esse material de propaganda saturava os bairros mais miseráveis de Boston, onde com certeza se encontrava a fina flor da criminalidade - os arruaceiros, os rufiões, o pessoal que usava soco-inglês e, naturalmente, os Gusties, a maior e mais poderosa e aterrorizante gangue de rua da cidade, sediada no South End de Boston, mas que estendia seus tentáculos por toda a Boston.
A lógica era simples:
A única coisa de que os criminosos gostavam quase tanto quanto espancar os policiais era assistir aos policiais espancando-se uns aos outros.
Os policiais espancavam-se uns aos outros no Mechanics Hall, nos eventos Boxe & Distintivos: Socos da Esperança.
Portanto: os criminosos acorriam em massa ao Mechanics Hall para vê-los fazer isso.
O padrinho de Danny Coughlin, o tenente Eddie McKenna, resolvera tirar partido dessa teoria em benefício do Departamento de Polícia de Boston, em geral, e da Divisão de Esquadrões Especiais, em particular. Os homens do esquadrão de Eddie McKenna tinham passado o dia misturados à multidão, efetuando prisões e mais prisões com surpreendente frieza e eficiência. Eles esperavam que um dos alvos saísse do salão principal, em geral para ir ao banheiro, metiam-lhe um cassetete na cabeça e arrastavam-no para uma das viaturas que esperavam na ruazinha ao lado. No momento em que Danny entrou no ringue, boa parte dos meliantes com mandado de prisão já tinha sido presa ou se raspado, mas alguns - os irremediavelmente tontos - ainda vagavam pelo salão enfumaçado, pisando o chão grudento de cerveja derramada.
O corner man de Danny era Steve Coyle, que também era seu parceiro de patrulha no Primeiro Distrito Policial, no bairro North End. Eles faziam a ronda de uma ponta a outra da Hanover Street, do cais Constitution até o Crawford House Hotel. E desde que faziam isso Danny vinha lutando boxe, com Steve servindo-lhe de corner man e cuidando de seus ferimentos.
Danny, sobrevivente do bombardeio de 1916 do Distrito da Salutation Street, gozava do maior prestígio desde que fizera sua estreia no ringue. Tinha ombros largos, cabelos e olhos negros; não era raro ver mulheres lançando-lhe olhares, e não apenas as jovens imigrantes ou as que fumavam em público. Steve, por sua vez, era atarracado e redondo feito um sino de igreja, com uma carona bulbosa e rosada e pernas arqueadas. No começo do ano ele passara a integrar um quarteto vocal na esperança de atrair a atenção das moças, decisão que lhe valera bons frutos na primavera passada, embora as perspectivas não se mostrassem muito boas com a chegada do outono.
Diziam que Steve falava tanto que dava dor de cabeça em aspirina. Ele perdeu os pais em tenra idade e ingressou no departamento sem recomendação de terceiros. Depois de nove anos de trabalho, ainda era um simples ronda. De sua parte, Danny pertencia a uma boa linhagem do Departamento de Polícia de Boston: era filho do capitão Thomas Coughlin do Décimo Segundo Distrito do South End de Boston e afilhado de Eddie McKenna, dos Esquadrões Especiais. Danny estava no serviço havia menos de cinco anos, mas todos os policiais da cidade sabiam que ele não tinha lá muito amor ao uniforme.
"Por que diabo esse cara está demorando tanto?" Steve vasculhou o fundo do salão, e era difícil ignorá-lo, considerando-se as roupas que costumava usar. Ele afirmava ter lido em algum lugar que os escoceses eram os mais temidos corner men do pugilismo. Por isso, nas noites de luta, Steve trajava um saiote escocês. Um autêntico kilt xadrez vermelho, meias vermelhas com losangos pretos, casaco de tweed cinza escuro e colete de cinco botões combinando, gravata cor de prata, autênticos borzeguins escoceses nos pés e gorro escocês na cabeça. O mais surpreendente não era a naturalidade com que usava aqueles trajes, mas o fato de que ele nem ao menos era escocês.
O público, constituído de bêbados de caras rubicundas, ia ficando cada vez mais agitado, e cresciam as brigas de verdade na plateia, que irrompiam no intervalo entre as lutas travadas no ringue. Danny encostou-se nas cordas e bocejou. O Mechanics Hall fedia a suor e a bebida alcoólica. Uma fumaça densa e úmida enovelava-se em volta de seus braços. A rigor Danny deveria estar em seu vestiário, mas na verdade ele não tinha vestiário, apenas um banco no corredor de manutenção, onde Woods, da Nona, foi procurá-lo cinco minutos antes para lhe dizer que era hora de ir para o ringue.
E lá estava ele num ringue vazio, esperando Johnny Green, enquanto o burburinho da multidão ia ficando cada vez maior e mais forte. Na oitava fileira, um cara bateu em outro com uma cadeira dobrável. O agressor estava tão bêbado que caiu em cima da vítima. Um policial avançou em sua direção, abrindo caminho com um capacete numa das mãos e o cassetete na outra.
"Por que você não vai ver o que está atrasando Green?", perguntou Danny a Steve.
"Por que você não se mete debaixo do meu saiote e se encolhe?" Steve apontou o queixo para a multidão. "Veja só esse monte de bêbados agitados. Não quero que rasguem meu kilt e estraguem meus borzeguins."
"Meu Deus", disse Danny. "E você sem sua caixa de engraxate." Ele ficou batendo as costas nas cordas por algum tempo. Esticou o pescoço, girou as mãos e os pulsos. "Lá vem fruta."
Steve exclamou "O quê?" e deu um passo atrás quando uma cabeça de alface voou por cima das cordas e caiu no meio do ringue.
"Engano meu", corrigiu Danny. "Verdura."
"Não tem importância", disse Steve apontando. "Lá vem o aspirante. Já não era sem tempo."
Danny lançou um olhar para o corredor entre as cadeiras e viu Johnny Green enquadrado pelo retângulo branco do vão da porta. A multidão sentiu sua presença e se voltou. Ele veio andando pelo corredor com seu corner man, um cara que Danny reconheceu como um sargento da Quinze, mas cujo nome não recordava. Lá pela décima quinta fileira, um dos caras dos Esquadrões Especiais de Eddie McKenna, um capanga chamado Hamilton, levantou um sujeito pelas narinas e arrastou-o para o corredor. Pelo visto os caubóis das Especiais achavam que podiam mandar às favas todo o faz de conta, agora que a luta final ia começar.
Carl Mills, o porta-voz do Departamento de Polícia de Boston, estava chamando Steve do outro lado das cordas. Steve pôs um joelho no chão para falar com ele. Danny ficou olhando Johnny Green aproximar-se, não gostando nem um pouco do que via nos olhos do cara, uma coisa meio solta. Johnny Green olhava a multidão, olhava o ringue, olhava Danny - mas não via. Olhava para tudo, mas via através de todas as coisas. Era um olhar que Danny já vira antes, principalmente no rosto de bêbados irremediáveis e vítimas de estupro.
Steve veio por trás dele e pôs-lhe a mão no braço. "Mills acaba de me dizer que é a terceira luta dele em vinte e quatro horas."
"O quê? De quem?"
"De quem? Do puto do Green. Ele teve uma luta na noite passada no Crown de Somerville, outra hoje de manhã no pátio da estação ferroviária de Brighton, e agora está aqui."
"Quantos rounds?"
"Mills ouviu dizer que na noite passada foram treze. E perdeu por nocaute."
"Então o que ele está fazendo aqui?"
"Aluguel", disse Steve. "Dois filhos e uma mulher grávida."
"Uma porra de um aluguel?"
A multidão estava de pé - as paredes trepidavam, os caibros tremiam. Danny achava que não se surpreenderia se de repente o teto voasse em direção ao céu. Johnny Green entrou no ringue sem roupão, postou-se em seu canto, bateu uma luva contra a outra, os olhos fixos em alguma coisa dentro do próprio cérebro.
"Ele nem sabe onde está", disse Danny.
"Sabe sim", afirmou Steve. "E está vindo para o centro."
"Pelo amor de Deus, Steve."
"Não me venha com essa. Vai lutar."
No centro do ringue, o juiz, o detetive Bilky Neal, que também fora lutador de boxe, pôs uma mão no ombro de cada lutador. "Quero uma luta limpa. Além disso, quero que pareça limpa. Alguma pergunta?"
Danny disse: "Esse cara não está vendo nada".
Os olhos de Green fitavam os próprios sapatos. "Vejo o bastante para arrancar sua cabeça fora."
"Se eu tirar minhas luvas, você conta meus dedos?"
Green levantou a cabeça e cuspiu no peito de Danny.
Danny recuou. "Que porra é essa?", disse ele removendo o cuspe com a luva e limpando-a no calção.
A multidão se pôs a gritar. Garrafas de cerveja chocavam-se contra a base do ringue.
Green fitou Danny com olhos que deslizavam como alguma coisa solta num navio. "Se você quiser desistir, desista. Em público, para que eu receba a grana. Pegue o megafone e anuncie sua desistência."
"Não vou desistir."
"Então lute."
Bilky Neal lhes deu um sorriso ao mesmo tempo nervoso e colérico. "Pessoal, o público está ficando impaciente."
Danny apontou com uma luva. "Olhe para ele, Neal. Olhe para ele."
"Ele me parece estar bem."
"Mentira. Eu..."
O soco de Green acertou o queixo de Danny. Bilky Neal recuou a toda a velocidade e acenou com o braço. O sino tocou. A multidão urrou. Green acertou outro soco na garganta de Danny.
A multidão enlouqueceu.
Danny adiantou-se ao golpe seguinte e agarrou Green. Enquanto Johnny desferia uma dezena de socos rápidos e curtos no pescoço de Danny, este falou: "Desista, está bem?".
"Foda-se. Eu preciso... eu..."
Danny sentiu um líquido morno escorrer-lhe pelas costas. Ele se desvencilhou do clinch.
Johnny levantou a cabeça. Uma espuma rosa derramava-se sobre seu lábio inferior e escorria pelo queixo. Ele ficou assim por cinco segundos, uma eternidade no ringue, braços caídos ao longo do corpo. Danny notou quão infantil se tornara a expressão de seu rosto, como se ele simplesmente tivesse acabado de sair do ovo.
Então os olhos de Green se apertaram, seus ombros se encolheram, as mãos se levantaram. Mais tarde o médico diria a Danny (quando ele fez a besteira de perguntar) que um corpo submetido a uma pressão extrema muitas vezes age por reflexo. Se na ocasião Danny soubesse disso, talvez fizesse alguma diferença, embora ele desejasse muito entender qual seria ela. Uma mão que se ergue num ringue de boxe raras vezes significa algo além do que normalmente se imagina. O punho esquerdo de Green entrou no espaço entre seus corpos, o ombro de Danny se crispou e ele acertou um cruzado direito na cabeça de Johnny Green.
Instinto. Nada mais que isso.
Não sobrou grande coisa de Johnny. Ele ficou caído na lona, agitando os calcanhares, cuspindo espuma branca e gotas cor-de-rosa. A cabeça balançava da esquerda para a direita. A boca beijava o ar à maneira dos peixes.
Três lutas no mesmo dia?, pensou Danny. Porra, você está brincando?
Johnny sobreviveu. Johnny se recuperou. Sem condições de voltar a lutar, claro, mas depois de um mês já conseguia falar claramente. Passados dois meses deixou de mancar, e a contração do lado esquerdo da boca sumiu.
Com Danny as coisas foram diferentes. Não que ele se sentisse responsável. Às vezes sim, mas na maior parte do tempo tinha consciência de que a paralisia já atingira Johnny Green antes de seu contra-ataque. Não, a questão era de equilíbrio - em apenas dois anos, Danny escapara do bombardeio da Salutation Street e perdera a única mulher que amara na vida, Nora O’Shea, uma irlandesa que trabalhava como criada para seus pais. O caso parecia fadado ao fracasso desde o princípio, e fora Danny quem tomara a iniciativa de romper. Mas, desde que ela saiu de sua vida, ele não conseguia achar uma boa razão para continuar a viver. Agora, por pouco não matara Johnny Green no ringue do Mechanics Hall. Tudo isso no curto espaço de vinte e um meses. Tempo suficiente para levar um homem a se perguntar se Deus lhe guardava algum rancor.
"A mulher dele deu no pé", disse Steve a Danny dois meses depois. Era princípio de setembro, e Danny e Steve faziam a ronda no North End. O North End era um bairro essencialmente italiano e pobre, um lugar onde os ratos pareciam o antebraço de um açougueiro e as crianças em geral morriam antes de ensaiar os primeiros passos. Falar inglês era uma coisa rara; era muito difícil avistar um carro. Não obstante, Danny e Steve gostavam tanto do bairro que moravam no coração dele, em andares diferentes de um edifício da Salem Street, a apenas alguns quarteirões da Primeira Delegacia, na Hanover.
"Mulher de quem?"
"Agora não vá se culpar", disse Steve. "Do Johnny Green."
"Por que ela o deixou?"
"O outono vem chegando. Eles foram despejados."
"Mas ele voltou a trabalhar", falou Danny. "Trabalho burocrático, mas não deixa de ser trabalho."
Steve balançou a cabeça. "Mas isso não contrabalança os dois meses em que ele ficou sem trabalhar."
Danny parou e olhou para o parceiro. "Não pagaram o Johnny? Ele estava lutando num evento patrocinado pelo departamento."
"Você quer mesmo saber?"
"Sim."
"Porque, nos últimos dois meses, quando alguém toca no nome de Johnny Green, você se fecha mais que um cinto de castidade."
"Eu quero saber", disse Danny.
Steve deu de ombros. "Era um evento patrocinado pelo Boston Social Club. Então, a rigor, ele estava fora do trabalho quando se machucou. Portanto...", acrescentou ele tornando a sacudir os ombros. "Nada de pagamento."
Danny não respondeu e procurou encontrar algum conforto ali nas cercanias. O North End fora seu lar até os sete anos de idade, antes de os irlandeses que construíram suas ruas e os judeus que vieram em seguida terem sido expulsos pelos italianos. Estes o povoaram tão densamente que, se tirassem uma fotografia de Nápoles e outra da Hanover Street, a maioria teria dificuldade de distinguir qual tinha sido feita nos Estados Unidos. Danny tornara a mudar para o bairro aos vinte anos, e de lá não pretendia sair.
Danny e Steve faziam sua ronda no ar cortante que cheirava a fumaça de chaminé e a toucinho cozido. Mulheres idosas andavam pelas ruas com seus passinhos miúdos. Carroças e cavalos avançavam pelo calçamento de pedra. Das janelas abertas vinha o ruído de gente tossindo. Bebês guinchavam numa tal altura que Danny podia imaginar seus rostos vermelhos. Em muitas habitações, galinhas vagavam pelos corredores, bodes defecavam nos poços das escadas, porcas faziam seus ninhos em folhas de jornal rasgadas, em meio a uma densa nuvem de moscas. Acrescente-se a isso uma profunda desconfiança contra tudo o que não fosse italiano, inclusive a língua inglesa, e aí temos uma sociedade que nenhum americano jamais conseguiria compreender.
Assim, não era de surpreender que o North End tenha se tornado a zona por excelência de recrutamento das mais importantes organizações anarquistas, bolcheviques, radicais e subversivas da Costa Leste. Circunstância que, por algum motivo perverso, fez Danny gostar ainda mais do bairro. Dissessem o que quisessem do povo de lá - e a maioria dizia, em voz alta e insolentemente -, não se podia pôr em dúvida a sinceridade de sua revolta. De acordo com a Lei de Espionagem de 1917, a maioria deles podia ser presa e deportada por falar mal do governo. Em muitas cidades isso haveria de acontecer, mas prender alguém no North End por pregar a derrubada dos Estados Unidos era como prender as pessoas por deixarem seus cavalos defecar na rua - não seria difícil encontrá-las, mas era melhor que viessem com um caminhão bem grande.
Danny e Steve entraram num bar na Richmond Street. As paredes eram forradas de cruzes negras de lã, umas três dúzias pelo menos, a maioria do tamanho da cabeça de um homem. A esposa do proprietário começara a tricotá-las quando a América entrou na guerra. Danny e Steve pediram espressos. O dono pôs as xícaras em cima do balcão de vidro, mais uma tigela com cubinhos de açúcar mascavo, e se afastou. Sua mulher veio da sala dos fundos com bandejas de pão e depositou-as nas prateleiras sob o balcão até o vidro cobrir-se de vapor sob seus cotovelos.
A mulher disse a Danny: "Logo a guerra vai acabar, hein?".
"Parece que sim."
"Isso é bom", assentiu ela. "Vou fazer mais uma cruz. Quem sabe ajuda." Ela lhes deu um sorriso hesitante, fez uma mesura e voltou para a sala dos fundos.
Eles tomaram seus espressos. Quando saíram do bar, o sol estava mais brilhante e ofuscou os olhos de Danny. A fuligem das chaminés ao longo do porto deslocava-se no ar e sujava o calçamento de pedra. O bairro estava silencioso, exceto pelo rangido da porta de uma loja se abrindo, o chiado de uma carroça entregando lenha e o martelar das patas dos cavalos que a puxavam. Danny queria que tudo continuasse assim tranquilo, mas logo as ruas se encheriam de ambulantes, de gado, de meninos vadios, de bolcheviques e anarquistas fazendo discursos improvisados. Então alguns dos homens iriam entrar nos bares para um café da manhã atrasado, músicos se postariam nas esquinas não ocupadas pelos oradores e alguém iria bater numa mulher, num marido ou num bolchevique.
Uma vez controlados os agressores de mulheres, de maridos e de bolcheviques, apareceriam batedores de carteiras, haveria pequenas extorsões, jogos de dados, carteado nas salas dos fundos dos bares e barbearias e gente da gangue Mão Negra vendendo proteção contra todo tipo de coisa, de incêndios a peste, e principalmente contra a própria Mão Negra.
"Hoje à noite vai haver outra reunião", disse Steve. "Grandes realizações."
"Reunião do Boston Social Club?", exclamou Danny sacudindo a cabeça. "‘Grandes realizações.’ Você está falando sério?"
Steve girou o pequeno cassetete em sua cinta de couro. "Você já parou para pensar que se tivesse comparecido às reuniões do sindicato, a esta altura você estaria na Divisão de Detetives, todos teríamos tido aumentos de salário e Johnny Green ainda teria mulher e filhos?"
Danny espiou o céu iluminado, mas sem sol. "É um clube social."
"É um sindicato", disse Steve.
"Então por que se chama Boston Social Club?", perguntou Danny, bocejando contra o céu claro de couro curtido.
"Boa pergunta. Na verdade, aí é que está a questão. Estamos tentando mudar isso."
"Pode mudar o que quiser. Nós somos policiais, Steve: não temos direitos. O BSC não passa de um clubinho de meninos, uma merda duma casa na árvore."
"Estamos acertando uma reunião com Gompers, Dan. Da Federação Americana do Trabalho."
Danny parou. Se contasse isso ao pai ou a Eddie McKenna, dali a dois dias receberia um distintivo de ouro e seria promovido.
"A FAT é um sindicato nacional. Você está maluco? Eles nunca deixarão que policiais entrem no sindicato."
"Quem? O prefeito? O governador? O’Meara?"
"O’Meara", disse Danny. "É ele quem dá as cartas."
O comissário de polícia Stephen O’Meara tinha a convicção inabalável de que o posto de policial era a mais alta das funções públicas e por isso exigia uma imagem externa e interna de honradez. Quando ele assumiu o DPB, cada distrito policial era um feudo, o domínio particular de qualquer vereador ou chefe de distrito que tivesse se enfiado na lama mais rápido do que a concorrência. Os homens tinham um aspecto lamentável, vestiam-se de forma lamentável e estavam cagando e andando para isso.
O’Meara corrigiu boa parte disso. Não tudo - Deus o sabe -, mas ele deu um jeito de se livrar de alguns pesos mortos e esforçou-se por indiciar os chefes de distrito e os vereadores mais nocivos. Ele pressionou o sistema podre na esperança de derrubá-lo. Não que o sistema tenha caído, mas ocasionalmente ele chega a balançar. O suficiente para que O’Meara tenha condições de mandar um bom número de policiais de volta a suas comunidades, a fim de que conheçam as pessoas a quem servem. E era isso o que você fazia no DPB de O’Meara, caso fosse um patrulheiro esperto (sem muitas relações influentes): servia as pessoas. Não os chefes de distrito nem os pequenos czares com seus barretes de ouro. Você parecia mesmo um policial, comportava-se como tal, não cedia diante de ninguém e nunca transigia quanto ao princípio básico: você era a lei.
Mas era evidente que nem mesmo O’Meara era capaz de conseguir um aumento de salário. Fazia seis anos que não havia reajuste, e o ultimo só viera graças à pressão de O’Meara, depois de oito anos de impasse. Assim, Danny e todos os outros homens da força policial continuavam recebendo salários de 1905. E, na última reunião com o BSC, o prefeito dissera que, ainda por algum tempo, aquilo era o máximo que eles podiam esperar.
Vinte e nove centavos por hora, com uma carga horária semanal de setenta e três horas. Sem hora extra. E isso para os patrulheiros do período diurno, como Danny e Steve Coyle, a nata da corporação. Os coitados que trabalhavam à noite ganhavam míseros vinte e cinco centavos por hora e trabalhavam oitenta e três horas por semana. Danny teria considerado aquilo uma afronta, se não se enquadrasse numa verdade que ele reconheceu desde que começou a andar: o sistema fodia com os trabalhadores. A única decisão realista que um homem podia tomar era se ia enfrentar o sistema e morrer de fome ou jogar com ele de forma ousada o bastante para não ser vítima de suas injustiças.
"O’Meara, claro", concordou Steve. "Também gosto do velho, pode acreditar. Gosto dele, Dan. Mas ele não está nos dando o prometido."
Danny falou: "Talvez eles realmente não tenham o dinheiro".
"Foi isso o que eles disseram no ano passado. Que esperássemos a guerra acabar para ver nossa lealdade recompensada." Steve estendeu as mãos. "Estou olhando, mas não estou vendo nenhuma recompensa."
"A guerra não acabou."
Steve Coyle fez uma careta. "Para todos os efeitos, sim."
"Ótimo, então reabram as negociações."
"Já fizemos isso. E semana passada recebemos um outro ‘não’. E o custo de vida vem subindo desde junho. Diabo, estamos morrendo de fome, Dan. Se você tivesse filhos ia saber."
"Você não tem filhos."
"A viúva do meu irmão, que Deus o tenha, tem dois. É como estar casado. A danada pensa que sou uma loja de departamento em dia de liquidação."
Danny sabia que Steve estava dando em cima da viúva desde um ou dois meses depois de o corpo do irmão dele baixar à cova. A artéria femoral de Rory Coyle fora atingida por uma tesoura de tosar num curral de Brighton, e ele se esvaiu em sangue em meio a trabalhadores estupidificados e vacas indiferentes. Quando o patrão se recusou a pagar até mesmo uma mínima indenização à família, os trabalhadores usaram a morte de Rory Coyle como um apelo para um movimento reivindicatório, mas a greve durou apenas três dias, e logo o Departamento de Polícia de Brighton, o pessoal da agência Pinkerton e alguns sujeitos violentos de fora, bons manejadores de tacos, entraram em ação e reconduziram Rory Joseph Coyle à sua legítima condição de joão-ninguém.
Do outro lado da rua, um homem com um gorro de malha azul e bigode de pontas viradas - indefectíveis sinais de identificação de um anarquista - ajeitou seu caixote de madeira ao pé de um poste e consultou o caderno que levava debaixo do braço. Por um instante Danny sentiu uma estranha simpatia pelo homem e se perguntou se ele tinha filhos, esposa.
"A FAT é nacional", repetiu ele. "O departamento jamais vai permitir isso."
Steve pôs a mão no braço do parceiro, os olhos perdendo o costumeiro brilho de alegria. "Venha a uma de nossas reuniões, Dan. No Fay Hall. Terças e quintas."
"Mas para quê?", perguntou Danny no instante em que o cara do outro lado da rua começou a gritar em italiano.
"Venha e pronto", disse Steve.
Depois de seu turno, Danny jantou sozinho e tomou alguns drinques no Costello’s, bar da zona portuária frequentada por policiais. A cada rodada, Johnny Green ia encolhendo, Johnny Green e suas três lutas num mesmo dia, sua boca cheia de espuma, seu trabalho burocrático e sua ordem de despejo. Ao sair, Danny pegou seu cantil e foi andando pelo North End. Tinha folga no dia seguinte, depois de vinte de serviço. Por algum motivo perverso, sua exaustão o manteve desperto e inquieto. As ruas estavam novamente silenciosas, a noite adensando-se à sua volta. Na esquina da Hanover com a Salutation, ele se encostou a um poste de iluminação e lançou um olhar à delegacia, cujas persianas estavam fechadas. As janelas mais baixas, próximas à calçada, estavam chamuscadas, mas afora isso não se poderia imaginar que lá dentro tivesse ocorrido algum ato de violência.
A Polícia Portuária resolvera se mudar para outro edifício, alguns quarteirões mais adiante, na Atlantic. Eles declararam aos jornais que a mudança já vinha sendo planejada havia um ano, mas ninguém engoliu essa história. O edifício da Salutation Street há muito deixara de ser um lugar onde as pessoas se sentiam seguras. E a ilusão de segurança era o mínimo que a população esperava de uma delegacia de polícia.
Uma semana antes do Natal de 1916, Steve sofreu uma infecção por estreptococos. Danny, trabalhando sozinho, prendera um ladrão que saía de um navio atracado em meio a blocos de gelo, no mar cinzento e encapelado do cais Battery. Aquilo era um caso da alçada da Polícia Portuária. Danny só teve de entregar o ladrão.
Fora fácil pegá-lo. Quando ele vinha descendo devagar a prancha de embarque com um saco de aniagem às costas, o saco retiniu. Danny, bocejando, no fim de seu turno, observou que o cara não tinha nada de estivador ou de carroceiro: nem mãos, nem calçados, nem andar. Danny o mandou parar. O ladrão sacudiu os ombros e pôs o saco no chão. O navio que ele roubara ia levar comida e medicamentos para crianças famintas da Bélgica. Quando alguns transeuntes viram as latas de comida caindo no chão, espalharam a notícia, e no momento em que Danny algemava o ladrão, uma multidão começava a se formar na ponta do cais. As crianças famintas da Bélgica eram a grande sensação do mês. Os jornais estavam cheios das cruéis atrocidades dos alemães contra os inocentes e piedosos flamengos. Danny teve de sacar o cassetete e erguê-lo acima do ombro para conseguir empurrar o ladrão por entre a multidão e avançar pela Hanover, rumo à Salutation Street.
Longe do cais, na quietude do domingo, as ruas estavam ensolaradas e polvilhadas da neve que caíra por toda a manhã, os flocos minúsculos e secos como cinza. O ladrão estava de pé ao lado de Danny, na recepção, mostrando-lhe as mãos gretadas, dizendo que algumas noites no xadrez vinham bem a calhar para fazer o sangue voltar a circular, com todo aquele frio - quando dezessete bananas de dinamite explodiram no porão.
A forma exata como se deu a explosão foi motivo de uma discussão que se estendeu por semanas entre a gente da vizinhança. Debatiam se fora precedida por dois ou três ruídos surdos. Se o edifício tremera antes ou depois de as portas voarem das dobradiças. Todas as janelas do outro lado da rua estouraram, do térreo ao quinto andar, de uma ponta a outra do quarteirão, o que provocou um barulho impossível de distinguir da explosão original. Para as pessoas que estavam na delegacia, porém, as dezessete bananas de dinamite fizeram um barulho bem distinto, totalmente diferente de todos os que se seguiram quando os pavimentos ruíram e as paredes racharam.
O que Danny ouviu foi um trovão. Não necessariamente o mais alto que jamais ouvira, mas o mais profundo. Como um gigantesco e sombrio bocejo de um deus descomunal. Ele nunca duvidaria se tratar de um trovão se não tivesse percebido imediatamente que o som vinha de baixo. O uivo com som de barítono fez as paredes tremerem e sacudiu os pavimentos. Tudo isso em menos de um segundo. Tempo bastante para que o ladrão olhasse para Danny, e Danny olhasse para o sargento de serviço, e este para dois patrulheiros que estavam a um canto, discutindo a guerra na Bélgica. Então o ribombo e a trepidação aumentaram. A parede atrás do sargento de serviço começou a soltar pó de gesso. Parecia leite ou sabão em pó. Danny quis apontar para que o sargento visse aquilo, mas ele desaparecera: simplesmente se deixou cair atrás da escrivaninha como um condenado à morte tombando do cadafalso. As janelas estouraram. Danny olhou através delas e viu uma nesga cinzenta de céu. O chão em que pisava desabou.
Da explosão ao desabamento, talvez dez segundos. Danny abriu os olhos um ou dois minutos depois e ouviu os alarmes de incêndio. Um outro som vibrava no ouvido direito, um pouco mais agudo, embora não tão alto. Um contínuo chiado de chaleira. O sargento de serviço jazia de costas à sua frente, um pedaço de escrivaninha sobre os joelhos, olhos fechados, o nariz e alguns dentes quebrados. Danny tinha alguma coisa cortante enfiada em suas costas, as mãos e os braços estavam cobertos de escoriações. O sangue lhe escorria de um buraco no pescoço. Ele tirou o lenço do bolso e aplicou-o sobre o ferimento. Partes de seu casaco e de seu uniforme estavam estraçalhadas. Seu capacete sumira. Homens de cuecas, policiais que dormiam em beliches entre um e outro turno, jaziam entre os destroços. Um deles, de olhos abertos, olhava para Danny como se este pudesse explicar por que ele acordara e se vira naquela situação.
Lá fora, sirenes. A trepidação dos pneus dos carros de bombeiros. Apitos.
O rosto do sujeito de cueca estava ensanguentado. Ele levantou a mão branca feito cal e limpou um pouco do sangue.
"Anarquistas desgraçados", disse ele.
Fora o primeiro pensamento de Danny, também. Wilson se reelegera prometendo manter distância dos problemas belgas, franceses e alemães. Mas pelo visto houvera uma mudança de intenções em algum lugar dos corredores do poder. De repente, julgava-se absolutamente necessário que os Estados Unidos participassem do esforço de guerra. Rockefeller afirmava isso. JP Morgan também. Posteriormente, a imprensa comprou a ideia. As crianças belgas estavam sendo maltratadas. Morrendo de fome. Os hunos tinham fama de adorar atrocidades - bombardeavam hospitais franceses, matavam de fome mais crianças belgas. Sempre as crianças, observou Danny. Boa parte da nação começou a ficar com uma pulga atrás da orelha, mas foram os radicais que iniciaram os tumultos. Duas semanas antes, alguns quarteirões mais adiante, houvera uma manifestação de anarquistas, socialistas e da organização Operários Industriais do Mundo. A polícia municipal e a portuária dispersaram os manifestantes, prenderam alguns deles, quebraram algumas cabeças. Os anarquistas fizeram ameaças nos jornais, anunciaram represálias.
"Anarquistas desgraçados", repetiu o policial de cueca. "Malditos terroristas italianos."
Danny testou a perna esquerda, depois a direita. Quando teve certeza de que poderiam sustentar seu peso, pôs-se de pé. Ele olhou os buracos no teto. Buracos do tamanho de tonéis de cerveja. Dali do fundo do porão dava para ver o céu.
Alguém gemeu à sua esquerda, e ele viu a parte de cima da cabeleira ruiva do ladrão apontando de sob argamassa, madeira e um pedaço de porta de uma das celas do fundo do corredor. Ele tirou uma prancha enegrecida das costas do cara e um tijolo de cima de seu pescoço. Ajoelhou-se ao lado do ladrão, e este lhe deu um débil sorriso de agradecimento.
"Como você se chama?", perguntou Danny, porque de repente aquilo lhe pareceu importante. Mas a vida deslizou das pupilas do ladrão como se caísse de um ressalto. Danny contava que a vida se erguesse, levantasse voo. Em vez disso, ela afundou em si, um animal recolhendo-se à sua toca, até não restar mais nada dele. No lugar onde há pouco havia um homem, agora apenas um arremedo, uma coisa distante, esfriando pouco a pouco. Ele apertou com mais força o lenço no pescoço, fechou as pálpebras do ladrão com o polegar, sentindo uma agitação inexplicável por não saber o nome daquele homem.
No Hospital Geral de Massachusetts, um médico tirou os fragmentos de metal do pescoço de Danny com uma pinça. O metal era parte de um estrado de cama que o atingira antes de ir se encravar numa parede. O médico disse a Danny que o pedaço de metal passara tão perto de sua carótida que poderia tê-la partido em duas. Ele examinou o ferimento mais um pouco e explicou que o metal passara a cerca de um milésimo de milímetro. Acrescentou então que aquilo era um acontecimento tão improvável quanto ser atingido na cabeça por uma vaca voadora. Em seguida, recomendou-lhe que, dali para a frente, evitasse os edifícios que os anarquistas gostavam de explodir.
Poucos meses depois que deixou o hospital, Danny começou seu infausto caso com Nora O’Shea. Num dia em que lhe fazia a corte às escondidas, ela lhe beijou a cicatriz do pescoço e disse que ele era uma pessoa abençoada.
"Se sou uma pessoa abençoada", disse ele, "o que era o ladrão?"
"Não era você."
Os dois estavam no quarto do Tidewater Hotel que dava para o passeio de tábuas de Nantasket Beach, em Hull. Eles pegaram o barco a vapor na área central da cidade e passaram o dia no Paragon Park, andando no carrossel e nas xícaras gigantes. Comeram puxa-puxa e mexilhões fritos tão quentes que tiveram de esfriá-los na brisa marinha para conseguir pô-los na boca.
Nora saiu-se melhor que ele no estande de tiro. É verdade que acertou por sorte, mas bem no alvo, e foi Danny que teve de receber o ursinho de pelúcia das mãos do funcionário, que o entregou com um sorrisinho maroto. O ursinho já estava roto, as costuras estourando e deixando sair estofo marrom e serragem. Mais tarde, no quarto, ela o usou para se defender numa luta de travesseiros, e isso foi o fim do ursinho. Eles sacudiram com as mãos o estofo e a serragem. Danny, de joelhos, achou sob a cama de metal um dos botões que serviam de olhos ao urso e enfiou-o no bolso. Não pretendia guardá-lo senão por aquele dia, mas agora, passado mais de um ano, nunca saía de casa sem ele.
O caso de Danny e Nora começou em abril de 1917, o mês em que os Estados Unidos entraram em guerra contra a Alemanha. Era um mês atipicamente quente. As plantas se cobriram de flores antes do esperado. Já perto do fim do mês, seu perfume chegava às janelas bem acima do nível da rua. Deitado com Nora em meio ao aroma das flores e à constante ameaça de chuva que nunca vinha - enquanto os navios partiam para a Europa, os patriotas faziam manifestações nas ruas, e um novo mundo parecia brotar sob eles ainda mais rápido que o desabrochar das flores -, Danny tinha consciência de que aquele relacionamento estava fadado a acabar. E isso mesmo antes de ele saber os segredos mais tristes de Nora, quando o relacionamento ainda era um radioso botão. Desde que acordou no porão da Salutation Street, Danny sentia uma sensação de desamparo que não o largava mais. Não era só o episódio da Salutation (se bem que aquilo haveria de ter um peso importante em seus pensamentos pelo resto da vida) - era o mundo. O modo como ele ganhava velocidade a cada dia que passava. O fato de que, quanto mais célere se tornava, menos parecia guiado por um leme ou por uma constelação. A forma como continuava seguindo adiante, independentemente dele.
Danny deixou as ruínas cercadas de tapumes da Salutation e atravessou a cidade com seu cantil. Pouco antes do amanhecer, ele entrou na ponte da Dover Street e se pôs a contemplar a silhueta dos edifícios contra o céu, a cidade surpreendida entre a sombra e o dia, sob o rápido deslizar de nuvens baixas. A cidade compunha-se de calcário, tijolos e vidro, com suas luzes apagadas por causa do esforço de guerra, uma profusão de bancos e tavernas, restaurantes e livrarias, joalherias e armazéns, magazines e pensões. Ele via tudo aquilo amontoado no espaço entre a noite passada e o amanhã, como se não tivesse conseguido seduzir nenhum dos dois. Ao amanhecer, uma cidade não exibia nenhum adorno, maquiagem ou perfume. O que se via era serragem nos assoalhos, o copo de vidro caído, o calçado solitário com uma correia rebentada.
"Estou bêbado", disse ele à água, vendo a imagem enevoada do próprio rosto no rio cinzento, em meio a uma mancha de luz que vinha do poste de iluminação sob a ponte. "Muito bêbado", acrescentou ele cuspindo na própria imagem, mas sem acertar.
Ouviu vozes que vinham de sua direita. Ele se voltou e os viu - a primeira leva da arribação matinal, saindo de South Boston, em direção à ponte: mulheres e crianças entrando na cidade para trabalhar.
Ele saiu da ponte e deu com a porta do edifício de uma empresa atacadista falida, especializada no comércio de frutas. Ele os viu chegarem, primeiro em grupos, depois em verdadeiras torrentes. As mulheres e as crianças sempre na frente, pois seus turnos começavam uma ou duas horas antes do que o dos homens, para que pudessem chegar em casa mais cedo e preparar o jantar. Algumas tagarelavam em voz alta, alegremente, outras seguiam silenciosas ou ainda sonolentas. As mulheres mais velhas andavam com as mãos nas costas, nos quadris ou em outros lugares onde sentiam dor. Muitas trajavam roupas grosseiras de operários de usinas e fábricas. Outras, uniformes preto e branco engomados de domésticas e faxineiras de hotel.
Ele tomou um gole do cantil no vão escuro da porta, torcendo para que ela estivesse entre aquelas pessoas, e ao mesmo tempo para que não estivesse.
Algumas crianças estavam sendo conduzidas pela Dover por duas mulheres mais velhas que as repreendiam por causa dos gritos, por arrastarem os pés e por atrasarem as outras. Danny se perguntou se aquelas eram as mais velhas das respectivas famílias, mandadas ao trabalho na mais tenra idade para continuarem a tradição da família, ou se eram as mais novas, e o dinheiro para a escola já havia sido gasto antes.
Então ele viu Nora. Seus cabelos estavam cobertos com um lenço amarrado na altura da nuca, mas ele sabia que eram crespos e rebeldes, motivo pelo qual ela os mantinha curtos. Vendo suas pálpebras inchadas, percebeu que ela não dormira bem. Ele sabia que Nora tinha uma mancha na base da coluna, que esse sinal era de um vermelho vivo contra a pele clara e tinha a forma de uma sineta. Ele sabia que ela se preocupava com seu sotaque irlandês de Donegal e que se esforçava por se livrar dele desde o dia em que o pai de Danny a arrastou para a casa dos Coughlin cinco anos atrás, na véspera de Natal, depois de encontrá-la morrendo de fome e de frio nas docas da Northern Avenue.
Ela e outra jovem desceram da calçada para desviar das crianças retardatárias, e Danny sorriu quando a moça passou discretamente um cigarro a Nora, que o escondeu no côncavo da mão e deu um trago rápido.
Ele pensou em sair do vão da porta e chamá-la. Imaginou-se refletido nos olhos dela, os olhos dele vagos por causa da bebida e da incerteza. Onde os outros veriam audácia, ela veria covardia.
E ela estaria certa.
Onde os outros veriam um homem alto e forte, ela veria uma criança fraca.
E ela estaria certa.
Então ele permaneceu no vão da porta. Deixou-se ficar ali, com a mão no bolso da calça, mexendo com o dedo no botão que servira de olho ao urso de pelúcia, até vê-la desaparecer em meio à multidão que se dirigia à Dover Street. E ele odiou a si mesmo e a ela pela desgraça que causaram um ao outro.
2.
Luther perdeu o emprego na fábrica de munições em setembro. Ele chegou para iniciar sua jornada e encontrou uma tira amarela de papel na bancada. Era uma quarta-feira e, como já se tornara um hábito durante a semana, na noite anterior Luther deixara a bolsa de ferramentas sob a bancada, cada ferramenta envolta num oleado, umas ao lado das outras. As ferramentas eram suas, não da empresa, e tinham sido presente de seu tio Cornelius, um velho que ficara cego antes do nascimento do sobrinho. Quando Luther era menino, Cornelius sentava-se na varanda, tirava um frasquinho de óleo do bolso do macacão que costumava usar - quer fizesse trinta e oito graus à sombra, quer a pilha de lenha estivesse coberta de geada - e se punha a limpar seu jogo de ferramentas, que reconhecia pelo tato. Enquanto limpava, ia explicando a Luther que aquela não era uma chave crescente, menino, era uma chave-inglesa, entenda bem, e um homem que não consiga notar a diferença só pelo tato pode ser um macaco.[6] Ele ensinava Luther a reconhecer suas ferramenta tal como ele as reconhecia. Ele vendava o menino, que se punha a rir na varanda quente, e então lhe passava um parafuso, pedia que ele o encaixasse numa chave tubular, repetia a operação diversas vezes até a brincadeira da venda perder a graça e os olhos de Luther começarem a arder por causa do suor. Com o passar do tempo, porém, as mãos de Luther começaram a ver, sentir o cheiro e o sabor das coisas, a ponto de algumas vezes ele achar que seus dedos viam as cores antes que os olhos vissem. Talvez por isso ele nunca tivesse vacilado num lance de beisebol.
Luther nunca se feriu durante o trabalho. Nunca machucou o polegar trabalhando na prensa de metal, nunca se cortou na hélice de um propulsor pegando-a pelo lado errado quando precisava levantá-la. E durante todo esse tempo seus olhos estavam em algum outro lugar, encarando as paredes de zinco, enquanto ele imaginava o mundo que ficava do outro lado, sabendo que algum dia terminaria indo para lá, e que ele seria vasto.
A tira de papel amarelo dizia "Procure Bill", só isso, mas Luther sentiu algo naquelas palavras que o fez pegar a bolsa de couro de ferramentas sob a bancada e levá-la consigo, enquanto andava pela fábrica em direção à sala do encarregado das turmas de trabalho. Ele a trazia na mão quando se postou diante da escrivaninha de Bill Hackman, e este, com um olhar triste e suspirando o tempo todo - o que não era tão ruim, tratando-se de gente branca -, disse: "Luther, vamos dispensá-lo".
Luther pensou que ia desmaiar, sentiu-se tão desgraçadamente pequeno em seu íntimo que via a si mesmo como a pontinha de uma agulha sem o resto da agulha atrás, um pontinho minúsculo suspenso no fundo de seu crânio, observando seu próprio corpo diante da escrivaninha, esperando que aquela pontinha de agulha o mandasse tornar a se mexer.
É isso o que você tem de fazer com os brancos quando eles o olham diretamente nos olhos. Porque eles nunca tinham feito isso antes, exceto nas ocasiões em que fingiam lhe pedir alguma coisa que queriam simplesmente tomar ou, como agora, quando davam uma má notícia.
"Tudo bem", assentiu Luther.
"Não foi uma decisão minha", explicou Bill. "Logo vai ter um monte de rapazes voltando da guerra, e eles vão precisar de trabalho."
"A guerra ainda não acabou", disse Luther.
Bill lhe deu um sorriso triste, do tipo que a gente dá a um cão quando não conseguimos ensiná-lo a sentar e a rolar no chão. "A guerra praticamente acabou. Acredite, nós sabemos."
Com esse "nós", Luther sabia que o outro se referia à empresa, e imaginou que, se alguém sabia, só podia ser a empresa, porque eles vinham lhe pagando regularmente por ajudá-los a fabricar armas desde 1915, muito antes de se imaginar que a América poderia ter alguma coisa a ver com aquela guerra.
"Tudo bem", repetiu Luther.
"Mas claro que você fez um belo trabalho aqui, e pode acreditar que tentamos lhe arranjar um lugar, uma forma de mantê-lo aqui. Mas os rapazes vão voltar aos montões, eles travaram uma luta dura lá, e o Tio Sam quer recompensá-los por isso."
"Tudo bem."
"Escute aqui", disse Bill dando a impressão de estar um pouco frustrado, como se Luther estivesse se mostrando recalcitrante. "Você entende, não é? Você não ia querer que jogássemos esses jovens patriotas na rua. Quer dizer... o que é que isso ia parecer, Luther? Vou lhe dizer uma coisa: não ia parecer nada certo. Ora, você não seria capaz de manter a cabeça erguida se estivesse andando na rua e um desses rapazes passasse por você procurando emprego, e você com o gordo cheque do salário no bolso."
Luther não disse nada. Não disse que muitos dos rapazes patriotas que arriscaram a vida por seu país eram negros, mas que com certeza não seria um deles que iria ocupar seu lugar. Diabo, ele seria capaz de apostar que, se voltasse à fábrica dali a um ano, os únicos rostos negros seriam os do pessoal da limpeza, que esvaziava as latas de lixo do escritório e varria as aparas de metal do chão da fábrica. E ele não perguntou em voz alta quantos dos rapazes brancos que iriam substituir todos aqueles negros teriam de fato servido na guerra além-mar ou recebido condecorações por fazerem trabalho de datilografia ou qualquer coisa do tipo em lugares como a Geórgia ou nos cafundós do Kansas.
Luther não abriu a boca, simplesmente a manteve fechada até Bill se cansar de falar sozinho e dizer a Luther que fosse receber suas contas.
E então lá estava Luther, de orelhas em pé, ouvindo dizer que talvez pudesse - talvez - arrumar algum trabalho em Youngstown, e outra pessoa soubera que estavam contratando gente numa mina nos arredores de Ravenswood, do outro lado do rio, na Virgínia Ocidental. Mas todo mundo dizia que a economia andava mal novamente. Muito mal.
Então Lila começou a falar de uma tia sua que morava em Greenwood.
Luther disse: "Nunca ouvi falar desse lugar".
"Não é em Ohio, menino. Nem na Virgínia Ocidental nem em Kentucky."
"Onde é que fica então?"
"Em Tulsa."
"Oklahoma?"
"Um-hum", assentiu ela, a voz mansa como se já tivesse planejando aquilo há algum tempo e quisesse, sutilmente, fazer que Luther pensasse que a ideia fora dele.
"Bobagem, mulher", disse ele passando-lhe a mão nos braços. "Eu não vou para Oklahoma."
"Para onde você vai então? Para a casa do vizinho?"
"E o que há na casa do vizinho?", exclamou ele dirigindo o olhar para o lado.
"Não há empregos. É isso o que quero dizer com a casa vizinha."
Luther pensou um pouco, percebendo que ela o envolvia, como se estivesse muitos passos adiante dele.
"Baby", disse ela, "a única coisa que Ohio nos fez foi manter nossa pobreza."
"Não nos tornou pobres."
"Não nos fará ricos."
Os dois estavam sentados no balanço que ele construíra no que restara da varanda onde Cornelius lhe ensinou o que sabia de seu ofício. Dois terços da varanda foram carregados pelas enchentes de 1913. Luther ficava planejando reconstruí-la, mas, com tanto beisebol e tanto trabalho nos últimos anos, não tinha tempo para isso. E lembrou-se de que conseguira guardar algum dinheiro. Não duraria para sempre - Deus o sabia -, mas pela primeira vez na vida conseguira juntar algum. Em todo caso, pelo menos o bastante para tentar alguma coisa.
Meu Deus, como gostava de Lila. Não que ele já estivesse disposto a ir atrás do pastor e abrir mão de toda a sua juventude; tinha apenas vinte e três anos. Mas com certeza gostava de sentir seu cheiro, de conversar com ela, gostava da forma como seus corpos se encaixavam quando ela se sentava ao lado dele no balanço da varanda.
"O que é que tem nessa Greenwood onde sua tia mora?"
"Empregos. Consegue-se emprego em todo lugar. Uma cidade grande e promissora, povoada só de negros, e todos ganhando muito bem, baby. Eles têm médicos e advogados; os rapazes têm belos carros, as moças vestem roupas muito bonitas, e todos têm casa própria."
Ele beijou-lhe o alto da cabeça porque, mesmo sem acreditar nela, gostava de ver que Lila, de tanto querer que determinada coisa fosse verdade, muitas vezes terminava se convencendo de que podia ser verdade.
"É mesmo?", disse ele com um risinho. "Eles também têm brancos que trabalham a terra para eles?"
Ela recuou a mão, bateu na testa dele e mordeu-lhe o punho.
"Diabo, mulher, essa é a mão com que arremesso. Cuidado aí."
Ela levantou-lhe o punho, beijou-o, depositou-o entre os seios e disse: "Ponha a mão na minha barriga, baby".
"Não consigo alcançar."
Ela deslocou um pouquinho o corpo, então a mão dele alcançou-lhe a barriga. Ele tentou descer mais, mas ela agarrou seu pulso.
"Mexe aqui."
"Estou mexendo."
"É isso que te espera em Greenwood."
"Sua barriga?"
Ela beijou-lhe o queixo.
"Não, bobinho. Seu filho."
Eles pegaram o trem em Columbus no dia 1º de outubro, percorreram mil e trezentos quilômetros, onde os campos estivais haviam trocado seu ouro por camadas de geada noturna que se derretia pela manhã, gotejando na terra feito glacê. O céu era de um azul de metal recém-saído da prensa. Medas de feno pontilhavam campos marrom acinzentados. No Missouri, Luther viu uma tropa de cavalos correr por mais de um quilômetro, os corpos cinzentos como o vapor de seu hálito. O trem ia soltando fumaça em meio a tudo isso, fazendo o chão trepidar, bradando aos céus, e Luther expirou junto ao vidro, pôs-se a rabiscar com o dedo, desenhando bolas de beisebol, tacos, uma criança com a cabeça grande demais para o corpo.
Lila olhou para os desenhos e riu. "É assim que nosso filho vai ser? Com essa cabeçona, como o pai? Comprido e magro?"
"Não", disse Luther. "Vai ser como você."
Ele deu à criança seios do tamanho de balões. Lila riu, bateu na mão dele e apagou o desenho do vidro da janela.
A viagem durou dois dias, e na primeira noite Luther perdeu um pouco de dinheiro num jogo de cartas com alguns cabineiros. Lila ficou louca com aquilo até a manhã seguinte, mas afora isso Luther não conseguia se lembrar de uma ocasião na vida de que tivesse gostado mais. Lembrava-se de um ou outro jogo de beisebol, e de uma ida a Memphis, com seu primo Sweet George, quando tinha dezessete anos, e os dois passaram momentos inesquecíveis na Beale Street. Mas viajar de trem com Lila - ciente de que seu filho vivia no corpo dela (o corpo que já não era apenas uma vida, mas uma vida e meia) e de que lá estavam os dois, como ele sempre sonhara, no mundão de Deus, embriagados pela velocidade da travessia - fez que ele se sentisse aliviado da ansiedade que lhe apertava o peito desde que era menino. Ele nunca soubera de onde vinha aquela inquietação, apenas que nunca deixara de senti-la e que durante a vida inteira tentara se livrar dela se entregando ao trabalho, ao jogo, à bebida, à trepação e ao sono. Agora, porém, sentado num banco com os pés apoiados no piso fixado no dorso de aço ligado a rodas que se encaixavam em trilhos e avançavam no tempo e no espaço como se estes não fossem nada, ele amava a vida, amava Lila, amava seu filho e tinha plena consciência, como sempre tivera, de que amava a velocidade, porque as coisas dotadas de velocidade não podiam ser contidas e, portanto, não podiam ser vendidas.
Eles chegaram à estação ferroviária de Santa Fe, em Tulsa, às nove da manhã e foram recebidos por Marta, a tia de Lila, e por James, seu marido. James era muito alto, Marta, muito baixa, ambos negros retintos, a pele tão esticada sobre os ossos que Luther se perguntava como conseguiam respirar. Apesar da altura de James, altura que alguns homens só alcançam montados num cavalo, com certeza era Marta quem estava no comando.
Uns quatro ou cinco segundos depois que se encontraram, Marta disse: "James, querido, quer pegar as malas deles? Vai deixar a pobre garota desmaiar com esse peso?".
Lila respondeu: "Está tudo bem, titia, eu...".
"James", falou Marta batendo os dedos no quadril do marido, e o homem se apressou em obedecer. Então ela sorriu, pequena e graciosa, e continuou: "Menina, você está bonita como sempre, louvado seja Deus".
Lila deixou que o tio James pegasse as malas e disse: "Titia, este é Luther Laurence, o rapaz de quem lhe falei nas minhas cartas".
Embora pudesse imaginar, Luther surpreendeu-se ao saber que seu nome fora escrito num papel que atravessara quatro fronteiras estaduais, para finalmente chegar às mãos de Marta, e que seu polegar minúsculo tinha tocado, ainda que casualmente, as letras que o compunham.
Tia Marta lhe deu um sorriso muito menos caloroso que o que dera à sobrinha. Ela pôs a mão dele entre as suas e olhou-o nos olhos.
"Prazer em conhecê-lo, Luther Laurence. Aqui em Greenwood somos muito religiosos. Você também é?"
"Sim, senhora. Claro."
"Está bem, então", disse ela apertando-lhe a mão e sacudindo-a levemente. "Vamos nos dar muito bem, espero."
"Sim, senhora."
Luther contava com uma longa caminhada da estação ferroviária até a casa de Marta e James, mas este os levou a um Olds Reo vermelho e brilhante feito uma maçã recém-tirada de um balde d’água. O carro tinha rodas com raios de madeira e capota preta conversível. James dobrou-a e prendeu-a na parte de trás do carro. Eles puseram as malas no banco de trás, onde ficaram também Marta e Lila, que já estavam falando pelos cotovelos. Luther ficou no banco da frente com James, e lá partiram eles, Luther pensando que um negro dirigindo um carro daqueles em Columbus era o mesmo que pedir para ser morto e roubado. Na estação ferroviária de Tulsa, porém, os brancos nem ao menos pareciam tomar conhecimento deles.
James explicou que o Olds tinha um motor flathead V8 de sessenta cavalos, passou a terceira e abriu um largo sorriso.
"Em que você trabalha?", perguntou Luther.
"Tenho duas oficinas de automóveis", disse James, "com quatro homens trabalhando para mim. Gostaria de pôr você para trabalhar lá, filho, mas no momento a equipe está completa. Mas não se preocupe... o que não falta em Tulsa é emprego, muitos empregos. Você está na terra do petróleo, garoto. Isto aqui deu um salto da noite para o dia por causa do petróleo bruto. Simplesmente estourou. Há vinte e cinco anos, não tinha nada disso aqui. Havia apenas um pequeno posto comercial no meio do nada. Dá para acreditar?"
Luther viu pela janela o centro da cidade, edifícios mais altos do que os que conhecera em Memphis, da altura dos que vira em fotos de Chicago e Nova York, ruas cheias de carros e de gente. Seria razoável, pensou, imaginar que um lugar como aquele levaria um século para ser construído, mas o país simplesmente não tinha tempo para esperar mais, não queria saber de paciência nem tinha motivos para isso.
Luther ficou olhando para a frente enquanto avançavam por Greenwood. James acenou para alguns homens que trabalhavam na construção de uma casa, eles responderam ao cumprimento. Ele tocou a buzina, e Marta explicou que estavam chegando na parte da Greenwood Avenue conhecida como a Wall Street Negra, olhe ali...
E Luther viu um banco para negros e uma sorveteria cheia de adolescentes negros, uma barbearia, um salão de bilhar, uma mercearia grande e antiga, um grande magazine, um escritório de advocacia, um consultório médico e a redação de um jornal - e todos esses lugares ocupados por gente de cor. Então eles passaram por um cineteatro, grandes lâmpadas em toda a volta de uma gigantesca marquise branca. Luther olhou por cima da marquise para ver o nome do lugar - Dreamland, Terra do Sonho - e pensou: olhe só onde viemos parar. Muito apropriado.
Quando eles entraram na Detroit Avenue, onde ficava a casa de James e Marta Hollaway, o estômago de Luther estava começando a embrulhar. As casas eram de tijolos vermelhos ou de pedras marrom escuras, e tão grandes quanto as casas dos brancos. E não de gente branca que estivesse dando duro para sobreviver, mas sim de gente branca bem de vida. Os gramados bem aparados eram de um verde brilhante, e várias casas tinham varandas em toda a sua volta e toldos reluzentes.
Eles entraram na estradinha de acesso à casa e logo James parou o carro, e já não era sem tempo, porque Luther estava tão tonto que temia vomitar.
"Oh, Luther, não é de morrer?", exclamou Lila entusiasmada.
Sim, pensou ele, era uma possibilidade.
Na manhã seguinte Luther se pegou casando antes mesmo de tomar o café da manhã. Anos mais tarde, quando alguém lhe perguntava como é que ele viera a se casar, Luther sempre respondia:
"Não faço a mais parca ideia."
Ele acordou no porão. Marta deixou bem claro na noite anterior que em sua casa um homem e uma mulher que não fossem marido e esposa não podiam dormir num mesmo pavimento, quanto mais no mesmo quarto. Então Lila ficou com uma bela cama, num belo quarto, no primeiro andar, e coube a Luther um lençol jogado em cima de um sofá quebrado no porão. O móvel tinha cheiro de cachorro (eles tiveram um, que morrera havia muito tempo) e de charuto. E, quanto ao último detalhe, o culpado era o tio James. Toda noite, depois do jantar, ele fumava seu mata-ratos no porão, porque a tia Marta não lhe permitia fumar em sua casa.
Havia um monte de coisas que a tia Marta não admitia em sua casa - praguejar, ingerir bebidas alcoólicas, invocar o nome do Senhor em vão, jogar cartas, gente de má índole, gatos -, e Luther tinha a impressão de que acabava de se enquadrar na lista.
Então ele foi dormir no porão, acordou com torcicolo e impregnado do cheiro do cachorro morto há muito tempo e de charutos recentíssimos. Imediatamente, ouviu o som de vozes exaltadas vindo lá de cima. Vozes femininas. Luther fora criado com sua mãe e uma irmã mais velha, que morreram da febre de 1914. Quando se permitia pensar nelas, aquilo lhe doía a ponto de tirar-lhe a respiração, pois eram mulheres orgulhosas, fortes, de riso alto, que lhe dedicavam um amor tempestuoso.
Ora, aquelas duas mulheres estavam discutindo com o mesmo ânimo tempestuoso. Nada no mundo, na opinião de Luther, valia o risco de entrar numa sala onde duas mulheres estivessem mostrando as garras.
Não obstante, ele se aproximou da escada sorrateiramente para escutar melhor o que diziam, e o que ouviu fez que desejasse trocar de lugar com o cão dos Hollaway.
"Estou só me sentindo meio mal, titia."
"Não minta para mim, menina. Não minta! Sei muito bem o que significam essas náuseas logo de manhã. Você está de quantos meses?"
"Não estou grávida."
"Lila, você é filha da minha irmã e é minha afilhada. Mas, garota, eu vou virar você pelo avesso se mentir para mim novamente, está ouvindo?"
Luther ouviu Lila prorromper em soluços e sentiu vergonha em imaginá-la naquela situação.
Marta gritou: "James!". Luther ouviu os passos largos do homem avançando em direção à cozinha e se perguntou se ele estava levando consigo sua espingarda.
"Traga o rapaz aqui para cima."
Luther abriu a porta antes que James tivesse tempo de fazê-lo. Antes mesmo de cruzar o vestíbulo, sentiu sobre si o olhar furioso de Marta.
"Olhem só quem está aqui. Muito bonito. Eu lhe disse que aqui em casa somos muito devotos, não disse, moleque?"
Luther achou melhor não falar nada.
"Nós somos cristãos. E não toleramos pecadores debaixo do nosso teto. Não é verdade, James?"
"Amém", disse James, e Luther notou que ele trazia a Bíblia na mão, o que era ainda mais assustador que a espingarda imaginada.
"Você engravidou esta pobre moça inocente e esperava o quê? Estou falando com você, rapaz! E então?"
Luther lançou um olhar prudente à mulherzinha, furiosa, e notou que ela parecia prestes a arrancar-lhe um pedaço.
"Bem, na verdade, nós não..."
"‘Na verdade, nós não’ uma ova!", exclamou Marta batendo o pé no chão da cozinha. "Se lhe passa pela cabeça, por um segundo sequer, que uma pessoa respeitável vai alugar uma casa para você em Greenwood, está enganado. E você não vai ficar debaixo do meu teto nem mais um segundo. Não, senhor. Você acha que pode engravidar minha única sobrinha e sair por aí namorando à vontade? Estou aqui para lhe dizer que a coisa hoje não vai ser assim."
Luther viu Lila olhando para ele por entre uma torrente de lágrimas.
Ela disse: "O que você vai fazer, Luther?".
E James, que, além de homem de negócios e mecânico, também era - como então ficou claro - pastor e juiz de paz, levantou a Bíblia e disse: "Acho que temos uma solução para o seu problema".
3.
No dia em que o Red Sox jogou em casa sua primeira partida da Série Mundial contra o Cubs, George Strivakis, sargento que estava de plantão na Primeira Delegacia, chamou Danny e Steve em sua sala e perguntou-lhes se conseguiam se equilibrar num barco em movimento.
"Como assim?"
"Vocês podem se juntar a dois agentes da Portuária e ir visitar um navio para nós?"
Danny e Steve se entreolharam e sacudiram os ombros.
"Vou ser franco", disse Strivakis. "Há alguns soldados doentes no navio. O capitão Meadows está sob as ordens do delegado geral, que está sob as ordens do próprio O’Meara, para tentar resolver a situação da forma mais discreta possível."
"Doentes? Como assim?", perguntou Steve.
Strivakis deu de ombros.
Steve riu alto. "Doentes como, sargento?"
Outro sacudir de ombros. Mais que qualquer outra coisa, aquilo dava nos nervos de Danny: o velho George Strivakis não queria se comprometer.
Danny disse: "Por que nós?".
"Porque dez homens já recusaram. Vocês são o décimo primeiro e o décimo segundo."
"Oh", fez Steve.
Strivakis inclinou o corpo para a frente. "O que desejamos é que dois agentes brilhantes representem orgulhosamente o Departamento de Polícia da grande cidade de Boston. Vocês vão até o barco, avaliam a situação e tomam a decisão que melhor atenda aos interesses dos seus colegas. Se vocês cumprirem a missão, serão recompensados com meio dia de folga e a eterna gratidão do nosso querido departamento."
"Nós gostaríamos de receber um pouco mais que isso", falou Danny. Ele olhou o sargento por cima da escrivaninha. "Com o devido respeito ao nosso querido departamento, é claro."
Eles terminaram por entrar num acordo: os dois receberiam pelos dias parados, caso contraíssem a doença dos soldados, fosse lá qual fosse, teriam folga nos dois sábados seguintes, e o departamento pagaria as despesas da lavanderia das próximas três vezes que lavassem os uniformes.
Strivakis disse: "Vocês são uns mercenários", e apertou-lhes as mãos para selar o acordo.
O navio da Marinha americana McKinley acabara de chegar da França. Ele trazia soldados que estavam voltando de batalhas em lugares com nomes como St. Mihiel, Pont-à-Mousson e Verdun. Em algum ponto entre Marselha e Boston, muitos soldados ficaram doentes. A condição de três deles era considerada tão desesperadora que os médicos do navio entraram em contato com Camp Devens para dizer ao coronel que estava no comando que aqueles homens morreriam antes do pôr do sol, a menos que fossem transferidos para um hospital militar. E então, numa bela tarde de setembro, quando bem poderiam estar discutindo alguma coisa amena sobre a Série Mundial, Danny e Steve foram ao encontro de dois oficiais da Polícia Portuária no cais Comercial, enquanto as gaivotas empurravam o nevoeiro para o mar e a negra massa da zona portuária fumegava.
Um dos policiais da Portuária, um inglês chamado Ethan Gray, entregou a Danny e a Steve máscaras cirúrgicas e luvas de algodão brancas.
"Eles dizem que isso ajuda", disse ele sorrindo sob o sol inclemente.
"Eles quem?" Danny passou a máscara cirúrgica pela cabeça e puxou-a rosto abaixo até ela ficar em volta do pescoço.
Ethan Gray deu de ombros. "O eterno e onipresente ‘eles’, que tudo veem."
"Ah, esses", exclamou Steve. "Nunca gostei deles."
Danny enfiou as luvas no bolso de trás e viu Steve fazer o mesmo.
O outro agente da Polícia Portuária não havia dito uma palavra desde que se encontraram no cais. Era um cara baixo, magro e pálido, cabelos úmidos caindo-lhe na testa cheia de espinhas. Marcas de queimadura apareciam logo abaixo das mangas de sua camisa. Olhando-o mais de perto, Danny percebeu que lhe faltava a parte inferior da orelha esquerda.
Ah, bom, a Salutation Street.
Um sobrevivente do clarão branco e das chamas amarelas, dos pavimentos que ruíram e da chuva de gesso. Danny não se lembrava de tê-lo visto durante a explosão, mas o fato é que não se lembrava de muita coisa do que acontecera depois que a poeira baixou.
O cara estava sentado numa barra de aço negra, pernas compridas estendidas à sua frente, evitando cruzar o olhar com o de Danny. Aquele era um traço característico dos sobreviventes da Salutation Street - eles se sentiam constrangidos em reconhecer uns aos outros.
A lancha aproximou-se do cais. Ethan Gray ofereceu um cigarro a Danny, que o pegou e agradeceu com um gesto de cabeça. Gray estendeu o maço a Steve, mas ele recusou.
"E que instruções o sargento de serviço deu a vocês?"
"Instruções absolutamente simples", disse Danny inclinando-se para a frente enquanto Gray lhe acendia o cigarro. "Cuidem para que todos os soldados continuem no navio, a menos que recebam uma contraordem."
Balançando a cabeça, Gray exalou um penacho de fumaça. "Foi a mesma ordem que nos deram."
"Disseram-nos também que, se eles tentarem passar por cima de nós, invocando alguma bobagem do tipo regulamentação de exceção aplicável em tempos de guerra, devemos deixar claro que este pode ser o país deles, mas isto aqui é nosso porto e nossa cidade."
Gray tirou um fragmento de tabaco da língua e jogou-o na brisa do mar. "Você é filho do capitão Tommy Coughlin, não é?"
Danny fez que sim com a cabeça. "Como você soube?"
"Bem... para começar, não é todo dia que se vê um patrulheiro da sua idade tão confiante quanto você." Gray apontou para o peito de Danny. "E o nome no distintivo ajudou."
Danny bateu a cinza do cigarro quando a lancha desligou o motor. Ela girou até a popa ficar no lugar onde antes estava a proa e o lado direito tocar na parede do cais. Um cabo apareceu do outro lado da amurada e jogou uma corda ao parceiro de Gray. Enquanto ele a amarrava, Danny e Gray terminaram de fumar seus cigarros e se aproximaram do cabo.
"Você precisa usar uma máscara", disse Steve Coyle.
O cabo balançou a cabeça várias vezes, tirou uma máscara cirúrgica do bolso de trás e bateu continência duas vezes. Ethan Gray, Steve Coyle e Danny responderam à primeira.
"Quantos estão a bordo?", perguntou Gray.
O cabo fez uma meia continência e abaixou a mão. "Só eu, um médico e o piloto."
Danny puxou a máscara para cima e cobriu a boca. Desejou não ter fumado. Por causa da máscara, o cheiro do cigarro encheu-lhe as narinas e impregnou-lhe os lábios e o queixo.
Eles encontraram o médico na cabine principal quando a lancha partiu do cais. Era um velho cuja calvície lhe tomava metade da cabeça. Na outra metade erguia-se um denso tufo de cabelos brancos que parecia uma sebe. Ele estava sem máscara e apontou para as que os outros estavam usando.
"Podem tirar essas máscaras. Nenhum de nós está usando isso."
"Como você sabe que são dispensáveis?", perguntou Danny.
O velho sacudiu os ombros. "Fé?"
Parecia uma tolice ficar ali de uniforme e máscara tentando se equilibrar na lancha que avançava pelo mar agitado. Ridículo, na verdade. Danny e Steve tiraram as máscaras. Gray seguiu-lhes o exemplo. O parceiro dele, porém, continuou com a sua, olhando para os outros policiais como se eles estivessem loucos.
"Peter", disse Gray, "francamente."
Peter inclinou a cabeça para a frente e continuou com a máscara.
Danny, Steve e Gray sentaram-se a uma mesinha de copa, na frente do médico.
"Que ordens vocês receberam?", perguntou o médico.
Danny respondeu.
O médico apertou o nariz no ponto em que os óculos se encaixavam. "Foi isso que imaginei. Seus superiores permitiriam que transportássemos os doentes, em veículos do Exército, por via terrestre?"
"Para onde?", perguntou Danny.
"Camp Devens."
Danny lançou um olhar a Gray, que sorriu. "Uma vez saídos do porto, eles estão fora da minha área de atuação."
Steve Coyle disse ao médico: "Nossos superiores gostariam de saber o que temos por aqui".
"Não temos bem certeza. Pode ser a mutação do vírus de uma gripe que vimos na Europa. E pode ser alguma outra coisa."
"Se for essa gripe", falou Danny, "foi muito grave na Europa?"
"Muito", respondeu o médico calmamente, o olhar límpido. "Achamos que o vírus pode ter relação com o que surgiu em Fort Riley, no Kansas, há uns oito meses."
"Posso lhe perguntar, doutor, quão sério foi o surto?", disse Gray.
"Em duas semanas ele matou oitenta por cento dos soldados que o contraíram."
Steve assobiou. "Muito sério, então."
"E depois?", perguntou Danny.
"Acho que não entendi muito bem."
"A doença matou os soldados. E depois?"
O médico deu-lhes um sorriso tenso e estalou os dedos. "Ela sumiu."
"Mas voltou", disse Steve Coyle.
"Provavelmente", assentiu o médico, e apertou o nariz novamente. "Os homens estão adoecendo no navio. Amontoados daquele jeito, é o pior ambiente possível para evitar o contágio. Esta noite cinco morrerão, se não pudermos removê-los de lá."
"Cinco?", surpreendeu-se Ethan Gray. "Para nós disseram que eram três."
O médico sacudiu a cabeça e mostrou-lhes cinco dedos.
Na popa do McKinley, eles encontraram um grupo de médicos e majores. O céu estava nublado. As nuvens, cinzentas, volumosas, parecendo esculturas de braços e pernas, deslocavam-se devagar acima da água em direção à cidade e aos seus vidros e tijolos vermelhos.
"Por que eles mandaram patrulheiros?", disse o major Gideon apontando para Danny e Steve. "Vocês não têm autoridade para tomar decisões na área de saúde pública."
Danny e Steve ficaram calados.
Gideon tornou a dizer: "Por que patrulheiros?".
"Nenhum capitão se dispôs a cumprir essa missão", disse Danny.
"Vocês acham isso engraçado?", exclamou Gideon. "Meus homens estão doentes. Eles lutaram numa guerra que vocês não se deram ao trabalho de lutar, e agora estão morrendo."
"Eu não estava brincando", afirmou Danny apontando para Steve Coyle, para Ethan Gray e para Peter, que tinham marcas de queimadura na pele. "Nós nos apresentamos como voluntários, major. Ninguém, à exceção de nós, se dispôs a vir aqui. E, por falar nisso, temos autoridade sim. Recebemos ordens muito claras sobre o que é ou não é aceitável na presente situação."
"E o que é aceitável?", perguntou um dos médicos.
"No que diz respeito ao porto", disse Ethan Gray, "vocês têm permissão para transportar seus homens por lancha e usar apenas o píer Commonwealth. Além daí, é jurisdição do Departamento de Polícia de Boston."
Eles olharam para Danny e Steve.
Danny explicou: "O governador, o prefeito e todo o Departamento de Polícia estão empenhados em evitar que ocorra um pânico generalizado. Então, na calada da noite, mandaremos caminhões do Exército para receber vocês no píer Commonwealth. Lá vocês podem desembarcar os doentes e levá-los diretamente para Devens. E não será permitido que parem durante o trajeto. Vocês serão escoltados por um carro da polícia com as sirenes desligadas". Os olhares de Danny e do major Gideon se encontraram. "Está bem assim?"
Gideon terminou por balançar a cabeça, aquiescendo.
"A Guarda Nacional foi notificada", disse Steve Coyle. "Eles vão montar um posto avançado em Camp Devens e trabalhar com seus oficiais para garantir que ninguém saia da base até a coisa ficar sob controle. São ordens do governador."
Ethan Gray perguntou: "Quanto tempo levará para controlar a doença?".
Um dos médicos, um sujeito alto de cabelos cor de palha, respondeu: "Não temos ideia. Ela mata quem quer e depois desaparece. Pode sumir dentro de uma semana ou de nove meses".
Danny disse: "Desde que não se dissemine entre a população civil, nossos chefes podem viver com isso".
O médico deu um risinho. "A guerra está acabando. Já faz semanas que os homens estão voltando em grande número. Trata-se de um vírus, senhores, e bastante resistente. Vocês consideraram a possibilidade de já haver alguém infectado na sua cidade?" O médico olhou bem para eles. "De que seja tarde demais? Muito, muito tarde?"
Danny fitou as nuvens volumosas que avançavam em direção ao continente. O resto do céu se abrira. O sol voltara, alto e inclemente. Um belo dia, daqueles com os quais a gente sonha durante um longo inverno.
Os cinco soldados gravemente doentes vieram na lancha com eles, embora ainda tardasse muito a anoitecer. Danny, Steve, Ethan Gray, Peter e dois médicos acomodaram-se na cabine principal, e os soldados doentes ficaram deitados no convés de bombordo, sob os cuidados de outros dois médicos. Danny vira aqueles homens sendo baixados para a lancha com cordas e roldanas. Com aquelas cabeças descarnadas, rostos escaveirados, cabelos empapados de suor e lábios em que se viam restos de vômito, já pareciam mortos. Três deles tinham a pele levemente azulada, bocas descamadas, olhos arregalados e brilhantes. Sua respiração era ofegante.
Os quatro oficiais da polícia se mantiveram na cabine. A profissão deles lhes ensinara que muitos riscos podem ser evitados: se você não quer levar um tiro ou uma facada, evite a companhia de pessoas que brincam com revólveres e facas; se não quer ser espancado e assaltado, não saia de botecos de cara cheia; se não quer perder, não jogue.
Mas aquilo era uma coisa totalmente diferente. Podia acontecer com qualquer um deles. Podia acontecer com todos eles.
De volta à delegacia, Danny e Steve fizeram seu relatório ao sargento Strivakis e se separaram. Steve foi à casa da viúva de seu irmão, e Danny foi tomar um drinque. Dali a um ano, Steve ainda estaria frequentando a viúva Coyle, mas Danny teria muito mais dificuldade para achar uma bebida. Enquanto as costas Leste e Oeste preocupavam-se com a recessão e a guerra, com telefones e beisebol, com os anarquistas e suas bombas, os Progressistas e seus eternos aliados religiosos insurgiram-se no Sul e no Meio-Oeste. Danny não conhecia ninguém que tivesse levado a sério a possibilidade de aprovação da Lei Seca, mesmo quando ela já estava no Congresso. Parecia impossível, com todas as outras mudanças que se faziam no tecido social do país, que essa proibição hipócrita tivesse alguma chance de aprovação. Mas um belo dia o país inteiro acordou e descobriu que os idiotas repressores não só tinham uma chance, como estavam ganhando terreno. Levaram a melhor quando todos os demais estavam preocupados com coisas que pareciam mais importantes. Agora o direito de beber estava na dependência de um estado: Nebraska. Dependendo do que votassem no referendo Volstead, dentro de dois meses, ficaria decidido se uma nação inteira de beberrões ia se tornar abstêmia.
Nebraska. Quando Danny ouviu esse nome, praticamente só lhe vieram à mente milho, silos para cereais e céus de um azul profundo. Trigo também: suas hastes. Será que lá se bebia? Será que lá havia bares, ou apenas silos?
Igrejas eles tinham. Quanto a isso, nenhuma dúvida. Pregadores que brandiam os punhos no ar e vituperavam o Nordeste ateu que nadava num mar de cerveja clara, de imigrantes de pele escura e de luxúria pagã.
Nebraska. Caramba.
Danny pediu duas doses de uísque irlandês e uma caneca de cerveja gelada. Tirou a camisa que usava, desabotoada, por cima da camiseta. Debruçou-se sobre o balcão quando o barman lhe trouxe os drinques. Seu nome era Alfonse, e corria o boato de que ele fazia parte de um bando de desordeiros que atuava na zona leste da cidade, embora Danny ainda não tivesse encontrado um policial que pudesse lhe imputar alguma coisa mais concreta. Naturalmente, quando o suspeito era um barman conhecido por suas doses generosas, quem iria querer investigar a fundo?
"É verdade que você parou de lutar boxe?"
"Não tenho muita certeza", disse Danny.
"Na sua última luta, perdi dinheiro. Achei que vocês fossem chegar ao terceiro round."
Danny levantou as mãos abertas. "O cara teve um derrame, porra."
"Foi culpa sua? Eu vi ele levantando o braço."
"É mesmo?" Danny engoliu uma de suas doses de uísque. "Então está tudo bem."
"Você sente falta de lutar?"
"Ainda não."
"Mau sinal." Alfonse tirou o copo vazio de Danny do balcão. "Um homem não sente falta daquilo que já sabe amar."
"Nossa", disse Danny, "quanto você cobra por essas gotas de sabedoria?"
Alfonse cuspiu num copo e enfiou-o debaixo do balcão. Era possível que o cara tivesse lá sua razão. No presente momento, Danny não estava gostando de desferir golpes contra nada. Ele apreciava o sossego e o cheiro do porto. Gostava de beber. Se bebesse um pouco mais, acabaria gostando de outras coisas, como jovens operárias e os pés de porco que Alfonse mantinha na outra ponta do balcão. Gostava do vento do fim do verão, naturalmente, e da música chorosa que os italianos faziam nas vielas todas as noites; era um verdadeiro passeio, quarteirão a quarteirão, em que a flauta dava lugar ao violino, que era substituído pelo clarinete ou pelo bandolim. Se bebesse bastante, Danny seria capaz de amar tudo, o mundo inteiro.
Uma mão pesada bateu em suas costas. Ele virou a cabeça e viu Steve olhando para ele, sobrancelha levantada.
"Espero que ainda aceite companhia."
"Ainda."
"Ainda vai pagar a primeira rodada?"
"A primeira." Danny viu o olhar sombrio de Alfonse e apontou para cima do balcão. "Onde está a viúva Coyle?"
Steve tirou o casaco com um movimento de ombros e se sentou. "Rezando. Acendendo velas."
"Por que?
"Sem motivo. Amor, talvez?"
"Você contou a ela", falou Danny.
"Contei."
Alfonse trouxe para Steve uma dose de uísque e um balde com cervejas. Quando ele se afastou, Danny perguntou: "O que você disse a ela exatamente? Falou sobre a gripe no navio?".
"Um pouquinho."
"Um pouquinho", repetiu Danny engolindo a segunda dose. "As autoridades federais, estaduais e da Marinha nos fizeram jurar silêncio, e você vai e conta à viúva?"
"Não foi bem assim."
"Como é que foi, então?"
"Tudo bem, foi assim mesmo." Steve tomou sua dose. "Mas ela pegou as crianças e correu para a igreja. Ela só vai contar ao próprio Cristo."
"E ao vigário. E a dois padres. E a algumas freiras. E aos filhos."
Steve disse: "Mas esse troço não vai ficar em segredo por muito tempo mesmo".
Danny levantou sua caneca. "Bem, de qualquer forma não é que você estava tentando ser promovido."
"Saúde." Os dois fizeram um brinde e beberam. Alfonse lhes serviu novas doses e os deixou a sós.
Danny olhou para as próprias mãos. O médico lhe disse na lancha que às vezes a gripe se manifestava nas mãos, mesmo quando não se notava nenhum sinal na garganta nem na cabeça. Segundo o médico, por efeito da doença, os nós dos dedos amarelavam, as pontas inchavam e as articulações latejavam.
Steve disse: "Como vai a garganta?".
Danny tirou as mãos do balcão. "Bem. E a sua?"
"Ótima. Quanto tempo mais você vai querer ficar fazendo isso?"
"Isso o quê?", exclamou Danny. "Beber?"
"Pondo nossas vidas a prêmio por menos do que ganha um condutor de bonde."
"Os condutores de bonde são importantes", disse Danny levantando um copo. "São vitais para o município."
"E os estivadores?"
"Eles também."
"Coughlin", disse Steve em tom amistoso, mas Danny sabia que o parceiro só o chamava pelo sobrenome quando estava com raiva. "Coughlin, precisamos de você. De sua voz. De seu glamour."
"Meu glamour?"
"Sim, porra. Você sabe o que quero dizer. A falsa modéstia não vai nos ajudar merda nenhuma agora, essa é a pura verdade."
"Ajudar a quem?"
Steve deu um suspiro. "Nós contra eles. Eles vão nos matar, se puderem."
"Esqueça essa história de cantar", disse Danny revirando os olhos. "Você precisa encontrar um grupo de teatro."
"Eles nos mandaram para aquele barco sem nada, Dan."
Danny fechou a cara. "Vamos ter folga nos dois próximos sábados. Vamos..."
"Aquela porra mata. E por que fomos lá?"
"Não seria pelo dever?"
"Dever." Steve virou a cabeça para o outro lado.
Danny deu um risinho. Faria qualquer coisa para aliviar o clima que de repente ficara tão pesado. "Pelo amor de Deus, Steve, quem iria nos pôr em situação de risco? Quem? Com a folha de serviços que você tem? Com o pai e o tio que eu tenho? Quem iria nos pôr em situação de risco?"
"Eles."
"Por quê?"
"Porque não lhes passa pela cabeça que não poderiam."
Danny deu mais um risinho seco, embora se sentisse perdido de repente, como alguém tentando apanhar moedas numa corredeira.
Steve disse: "Você já notou que quando eles precisam de nós falam de dever, mas quando precisamos deles falam de orçamento?". Ele tocou seu copo de leve no de Danny. "Se nós morrermos em consequência do que fizemos hoje, Dan, sabe o que vai acontecer? Eles vão cagar e andar para nossas famílias."
Danny soltou um riso frouxo no bar vazio. "O que você acha que podemos fazer quanto a isso?"
"Lutar", disse Steve.
Danny balançou a cabeça. "Neste exato momento, o mundo inteiro está lutando. A França, a porra da Bélgica... quantos mortos? Ninguém nem ao menos faz ideia de quantos. Você acha que está adiantando alguma coisa?"
Steve balançou a cabeça.
"E então?" Danny sentiu vontade de arrebentar alguma coisa. Alguma coisa grande, alguma coisa que fosse se despedaçar. "O mundo é assim mesmo, Steve. É assim que funciona esta merda de mundo."
Steve Coyle balançou a cabeça. "É assim que funciona um mundo."
"Ao diabo com ele." Danny tentou se livrar de algo que vinha sentindo ultimamente, algo que era parte de um contexto mais amplo, de um crime maior. "Vou lhe pagar mais uma."
"O mundo deles", disse Steve.
4.
Numa tarde de domingo, Danny foi à casa do pai em South Boston para se encontrar com Os Velhos. O lanche da tarde de domingo na casa dos Coughlin era um acontecimento político, e o fato de ter sido convidado a conversar com eles logo depois da refeição significava que, de certa maneira, Os Velhos o estavam ungindo. Danny tinha a esperança de que um distintivo de detetive - que tanto seu pai quanto o tio Eddie vinham ventilando nos últimos meses - fizesse parte de sua sagração. Aos vinte e sete anos, ele se tornaria o mais jovem detetive da história do DPB.
Seu pai ligara para ele na noite anterior. "Andam dizendo que o velho George Strivakis está perdendo a razão."
"Não que eu tenha notado", disse Danny.
"Ele o encarregou de uma missão, não foi?", perguntou o pai.
"Ele me propôs e eu aceitei."
"Num barco cheio de soldados empesteados."
"Eu não diria que se trata de uma peste."
"Como você a chamaria, rapaz?"
"Casos graves de pneumonia, talvez. ‘Peste’ me parece um pouco dramático."
O pai soltou um suspiro. "Eu não sei o que lhe vai na cabeça."
"Steve devia ter ido sozinho?"
"Se fosse preciso."
"Quer dizer então que a vida dele vale menos que a minha."
"Ele é um Coyle, e não um Coughlin. Não preciso me desculpar por proteger os meus."
"Alguém tinha de fazer aquilo, pai."
"Não um Coughlin. Não você, Danny. Você não foi educado para se apresentar como voluntário em missões suicidas."
"‘Para proteger e servir’", disse Danny.
Um leve arfar, que mal se podia ouvir. "Lanche da tarde amanhã. Às quatro em ponto. Dá para vir ou é uma coisa saudável demais para você?"
Danny sorriu. "Dá para ir", respondeu ele, mas seu pai já tinha desligado.
Assim, na tarde seguinte ele se viu subindo a K Street. O sol banhava os tijolos marrons e vermelhos de uma luz suave e as janelas abertas exalavam cheiro de repolho, batata e pernil cozidos. Seu irmão Joe, que estava brincando na rua com outros meninos, o avistou. Seu rosto se iluminou e ele veio correndo na calçada ao encontro de Danny.
Joe estava vestido em seus trajes dominicais - calção cor de chocolate apertado nos joelhos, camisa branca e gravata azul, boné de golfe tombado de lado, combinando com o conjunto. Danny estava presente quando sua mãe comprou aquelas roupas. Joe não parava de se mexer, e sua mãe e Nora lhe diziam que ele parecia um homenzinho, muito elegante naquele traje de legítima casimira do Oregon e que o pai dele devia ter sonhado em ter um igual àquele na sua idade. E durante todo esse tempo Joe ficou olhando para Danny como se o irmão pudesse ajudá-lo a se livrar daquilo.
Danny apanhou Joe no ar e o abraçou, apertando a face macia contra a dele, braços agarrados ao seu pescoço. E Danny surpreendia-se em descobrir a frequência com que se esquecia do quanto seu irmão mais novo o amava.
Joe tinha onze anos e era baixo para a sua idade. Danny sabia, porém, que o irmão compensava isso sendo um dos meninos mais durões de um bairro cheio de meninos durões. Ele apertou as pernas em volta dos quadris de Danny, inclinou-se para trás e sorriu. "Soube que você parou de lutar boxe."
"É o que dizem."
Joe estendeu a mão e tocou na gola do uniforme de Danny. "Como é que foi isso?"
"Acho que eu devia treinar você", disse Danny. "O primeiro macete é ensinar a dançar."
"Nenhum deles dança."
"Claro que eles dançam. Todos os grandes lutadores de boxe tiveram aulas de dança."
Ele avançou alguns passos na calçada com o irmão e começou a girar. Joe se pôs a bater em seu ombro dizendo: "Pare, pare".
Danny girou novamente. "Estou te envergonhando?"
"Pare", disse ele rindo e batendo em seu ombro novamente.
"Na frente dos seus amigos?"
Joe agarrou-lhe as orelhas e deu um puxão. "Para com isso."
Os meninos que estavam na rua olhavam para Danny como se não soubessem ao certo se tinham motivo para ter medo. Danny disse: "Algum de vocês também quer?".
Ele levantou Joe no ar e, sempre lhe fazendo cócegas, terminou por deixá-lo no chão. Foi então que Nora abriu a porta que dava para o alpendre, e ele teve vontade de sair correndo.
"Joey", ela falou. "Sua mãe quer que você volte para casa agora. Disse que você precisa se limpar."
"Eu estou limpo."
Nora ergueu uma sobrancelha. "Eu não estou pedindo, garoto."
Joe despediu-se dos amigos com um aceno constrangido e subiu as escadas de má vontade. Nora desarrumou-lhe os cabelos quando ele passou. O menino bateu nas mãos dela e continuou andando. Nora encostou-se no umbral e ficou olhando para Danny. Ela e Avery Wallace, um negro velho, eram os criados dos Coughlin, se bem que a verdadeira posição de Nora na casa fosse muito mais nebulosa que a de Avery. Ela fora parar lá por acaso, cinco anos atrás, na véspera de Natal. Era uma fugitiva da costa nordeste da Irlanda, de pele acinzentada, tiritando de frio. Ninguém conseguia imaginar do que ela estava fugindo, mas, desde que o pai de Danny levou-a para dentro de casa envolta em seu casacão, enregelada e suja, ela passou a funcionar como uma das peças essenciais do lar dos Coughlin. Não como membro da família, não era bem isso, pelo menos não para Danny, mas totalmente integrada e gozando de toda simpatia.
"O que o traz aqui?", perguntou ela.
"Os Velhos", disse Danny.
"Eles estão maquinando e conspirando, não é, Aiden? E onde é que você se encaixa nessa trama?"
Ele se inclinou um pouco para a frente. "Só minha mãe me chama de Aiden."
Ela desviou o corpo para trás. "Está me chamando de mãe, é?"
"De jeito nenhum, embora você pudesse ser uma mãe excelente."
"Manteiga não derreteria em sua boca."[7]
"Você sim."
Por um instante fugaz, os olhos dela vibraram. Olhos claros, da cor de manjericão. "Você vai precisar se confessar por causa disso."
"Não preciso confessar nada a ninguém. Vá se confessar você."
"E por que eu deveria fazer isso?"
Ele deu de ombros.
Ela recuou o corpo para o vão da porta, aspirou a brisa da tarde, olhos doridos e impenetráveis como sempre. Ele teve vontade de lhe afagar o corpo até as mãos caírem.
"O que você disse para o Joe?"
Ela avançou um pouco e cruzou os braços. "Sobre o quê?"
"Sobre minha situação no boxe."
Ela lhe deu um sorrisinho triste. "Eu disse que você nunca mais vai lutar boxe. Simplesmente isso."
"Simplesmente, hein?"
"Dá para ver isso na sua cara, Danny. Você não gosta mais de boxe."
Ele ia confirmar com um gesto de cabeça, mas se conteve, porque Nora tinha razão, e ele não suportava a ideia de ser tão transparente para ela. Sempre fora e sempre seria, não havia dúvida, o que era horrível. Às vezes ele pensava nos retalhos de si mesmo que fora espalhando pela vida afora, os outros Dannys - a criança Danny, o Danny que um dia sonhara em ser presidente, o Danny que queria frequentar a universidade e o Danny que descobrira, tarde demais, estar apaixonado por Nora. Peças importantes dele próprio, espalhadas por aí, e não obstante ela era dona da peça principal, e o fazia sem prestar muita atenção, como se a mantivesse no fundo de sua bolsa, junto com partículas brancas de talco e uns poucos trocados.
"Quer dizer que você vai entrar", disse ela.
"Sim."
Ela se afastou para deixá-lo passar. "Então é melhor ir em frente."
Os Velhos saíram do escritório para o lanche - homens rubicundos, dados a piscar os olhos, homens que tratavam sua mãe e Nora com a cortesia do Velho Mundo, coisa que no íntimo Danny achava irritante.
Os primeiros a se sentar foram Claude Mesplede e Patrick Donnegan, vereador e chefe do Sexto Distrito, respectivamente, mancomunados e finórios feito um velho casal jogando bridge.
Sentados diante deles estavam Silas Pendergast, procurador do condado de Suffolk e chefe de Connor, irmão de Danny. Silas tinha grande talento para se fazer passar por respeitável e moralmente correto, mas na verdade era um eterno bajulador das instâncias do poder do distrito, que lhe financiaram os estudos de direito e o mantinham dócil e levemente embriagado desde então.
Na extremidade da mesa, ao lado de seu pai, estava Bill Madigan, subchefe de polícia e, segundo alguns, o homem mais próximo do comissário O’Meara.
Ao lado de Madigan, um homem que Danny nunca vira antes chamado Charles Steedman, um sujeito alto e silencioso, e o único a exibir um corte de cabelo de três dólares numa sala cheia de cortes de cinquenta centavos. Steedman trajava um terno branco, gravata branca e polainas de duas cores. Ele disse à mãe de Danny, quando ela lhe perguntou, que era, entre outras coisas, vice-presidente da Associação de Hotéis e Restaurantes da Nova Inglaterra e presidente do Sindicato de Valores Fiduciários do condado de Suffolk.
Danny seria capaz de jurar, pelos olhos arregalados e pelo sorriso hesitante de sua mãe, que ela não tinha ideia de que diabos Steedman acabara de dizer, mas de todo modo ela balançou a cabeça como se tivesse entendido.
"É uma organização como a dos Operários Industriais do Mundo?", perguntou Danny.
"Esses aí são criminosos", disse seu pai. "Subversivos."
Charles Steedman levantou a mão e sorriu para Danny, os olhos claros como vidro. "É um pouquinho diferente da OIM, Danny. Eu sou banqueiro."
"Oh, banqueiro!", exclamou a mãe de Danny. "Que maravilha."
O último homem a sentar à mesa, tomando lugar entre os irmãos de Danny, Connor e Joe, foi o tio Eddie McKenna, não um tio de sangue, mas era como se fosse da família. Era o melhor amigo do pai de Danny desde que os dois eram adolescentes e corriam pelas ruas de seu novo país. Ele e o pai de Danny certamente faziam uma dupla formidável no DPB. Enquanto Thomas Coughlin era a verdadeira imagem da correção - cabelo, corpo e fala corretos -, Eddie McKenna personificava o apetite, a carne e o gosto por grandes histórias. Ele supervisionava o Esquadrão Especial, unidade que organizava todos os desfiles, visitas de dignitários, controlava greves de trabalhadores, distúrbios e agitação social de todo tipo. Sob a supervisão do tio Eddie, a unidade se tornou cada vez mais nebulosa e mais poderosa, um departamento à sombra do departamento, que mantinha as taxas de criminalidade baixas, "indo até a fonte, antes que ela começasse a se manifestar". A turbulenta unidade de policiais caubóis de Eddie - o tipo de policial que o comissário O’Meara jurara expurgar da corporação - atacava as quadrilhas que estavam a caminho de assaltos, grampeava ex-presidiários a cinco passos da Penitenciária de Charlestown e tinha uma rede de informantes, velhacos e espiões de rua tão imensa que teria sido uma bênção para cada policial da cidade, se McKenna não mantivesse todos os nomes e todo o histórico desses nomes somente na cabeça.
Ele olhou para Danny por cima da mesa e apontou-lhe o garfo para o peito. "Soube o que aconteceu ontem enquanto vocês estavam no porto trabalhando?"
Danny balançou a cabeça devagar. Depois da bebedeira da noite anterior com Steve Coyle, ele passara a manhã dormindo. Nora trouxe o último prato, vagem com alho, que chegou à mesa fumegante.
"Eles entraram em greve", disse Eddie McKenna.
Danny não entendeu. "Quem?"
"O Sox e o Cubs", respondeu Connor. "Nós estávamos lá, Joe e eu."
"Mandem todos eles lutar contra o Kaiser, é o que eu digo", vociferou Eddie McKenna. "Um bando de vagabundos e bolcheviques."
Connor deu uma risadinha. "Você acredita numa coisa dessas, Dan? Esse povo pirou."
Danny sorriu tentando imaginar a cena. "Vocês não estão me enganando?"
"Não, aconteceu mesmo", disse Joe, agora todo alvoroçado. "Eles estavam furiosos com a diretoria dos times, recusaram-se a vir jogar, e as pessoas começaram a atirar coisas e a gritar."
"E então", continuou Connor, "tiveram de mandar Honey Fitz para acalmar a multidão. E acontece que o prefeito estava presente, sabe? E o governador também."
"Calvin Coolidge." O pai dele sacudiu a cabeça, como fazia sempre que o nome do governador vinha à baila. "Um republicano de Vermont chefiando o estado democrático de Massachusetts." Ele soltou um suspiro. "Que Deus nos proteja."
"Então, eles estavam lá", disse Connor. "Mas ninguém estava nem aí para Peters, apesar de ele ser o prefeito. Curley e Honey Fitz estavam na tribuna de honra, dois ex-prefeitos que são muito mais populares. Então eles mandam Honey ir falar com eles de um megafone. Honey acaba com o distúrbio antes que ele comece para valer. Mas as pessoas continuam a atirar coisas, a quebrar arquibancadas, o diabo. Aí os jogadores apareceram para jogar, mas ninguém aplaudiu, juro."
Eddie McKenna afagou o barrigão e expirou ruidosamente pelo nariz. "Bem, agora espero que tomem as medalhas desses bolcheviques. Só o fato de eles receberem ‘medalhas’ simplesmente por jogar já é coisa de embrulhar o estômago. Aí eu digo: tudo bem. De todo modo, o beisebol já está morto. Um bando de vagabundos que não tem coragem de lutar pela pátria. E Ruth é o pior deles. Você ficou sabendo que ele quer jogar como batedor, Dan? Li no jornal hoje de manhã - não quer mais atuar como lançador, disse que vai cair fora se não lhe derem aumento e ao mesmo tempo o deixarem longe do monte do lançador. Você acredita numa coisa dessas?"
"Ah... este mundo", suspirou o pai tomando um gole de Bordeaux.
"Bem", disse Danny olhando em volta da mesa. "Qual era a queixa deles?"
"Ahn?"
"O que estavam reivindicando? Eles não iriam fazer greve por nada."
Joe falou: "Eles disseram que a diretoria alterou o contrato de trabalho". Danny viu o irmão revirar os olhos, tentando se lembrar dos detalhes. Joe, fanático por esportes, era a fonte mais confiável, naquela mesa, em tudo o que dizia respeito a beisebol. "Disseram também que não receberam o dinheiro prometido e que todos os outros times receberam em outras Séries. Então eles fizeram greve." Joe deu de ombros, como a dizer que tudo fazia sentido, e em seguida tratou de comer o peru.
"Eu concordo com Eddie", disse o pai. "O beisebol acabou. Nunca mais vai voltar."
"Vai sim", exclamou Joe desesperado. "Vai sim."
"Este país...", lamentou o pai, com um dos muitos sorrisos de sua coleção, naquele caso um sorriso tenso. "Todo mundo acha certo ser contratado para trabalhar e então cruzar os braços se o trabalho for duro."
Danny e Connor levaram café e cigarros para a varanda dos fundos e Joe os seguiu. O garoto subiu na árvore do quintal pois sabia que, embora aquilo fosse proibido, seus irmãos não iriam lhe chamar a atenção.
Connor e Danny eram tão diferentes que as pessoas achavam que eles estavam brincando quando diziam ser irmãos. Danny era alto, cabelos negros e ombros largos, ao passo que Connor tinha cabelos loiros, alinhados e compactos, como os do pai. Mas Danny herdara os olhos azuis de Thomas e seu senso de humor matreiro. Já Connor tinha os olhos castanhos e o temperamento - uma afabilidade sinuosa que disfarçava um coração voluntarioso - da mãe.
"Papai falou que ontem você foi a um navio de guerra."
Danny fez que sim com a cabeça. "Fui."
"Ouvi dizer que tinha soldados doentes."
"Nesta casa as notícias correm", disse Danny.
"Bem, eu trabalho para a Promotoria."
Danny deu uma risadinha. "Você está com tudo, hein, Con?"
Connor franziu o cenho. "Eles estavam mal? Os soldados?"
Danny olhou para o cigarro e girou-o entre o polegar e o indicador. "Muito mal."
"O que eles têm?"
"Francamente, não sei. Pode ser gripe, pneumonia ou alguma coisa de que ninguém ouviu falar." Danny deu de ombros. "Tomara que fique só nos soldados."
Connor encostou-se no parapeito. "Dizem que logo vai acabar."
"A guerra?", disse Danny com um gesto de cabeça. "Sim."
Por um instante, Connor pareceu constrangido. Estrela em ascensão na promotoria, ele também defendera a entrada da América na guerra. Mas, de algum modo, escapara do recrutamento, e os dois irmãos sabiam quem normalmente era responsável pelos "de algum modo" em sua família.
Joe disse: "Olhem aqui". Os dois olharam para cima e viram que ele conseguira subir no segundo galho mais alto da árvore.
"Se você rachar a cabeça", advertiu Connor, "mamãe te dá um tiro."
"Não vou rachar a cabeça", disse Joe, "e mamãe não tem revólver."
"Ela vai usar o do papai."
Joe continuou onde estava, como se estivesse ponderando sobre o que ouvira.
"Como vai Nora?", perguntou Danny, tentando aparentar indiferença.
Connor agitou o cigarro na escuridão. "Pergunte você mesmo a ela. Ela é meio esquisita. Age de forma correta perto da mamãe e do papai, sabe? Mas ela já deu uma de bolchevique para cima de você?"
"Bolchevique?", disse Danny com um sorriso. "Ah, não."
"Dan, você precisava ouvi-la falar dos direitos dos trabalhadores, do voto feminino, dos pobres filhos de imigrantes nas fábricas e bla-bla-blá. O velho ia ter um troço se a ouvisse. Mas lhe garanto que ela vai mudar."
"É mesmo?" Danny riu diante da ideia de que Nora ia mudar, ela que seria capaz de morrer de sede se alguém lhe desse ordens para beber água. "E como vai ser isso?"
Connor voltou a cabeça, com um sorriso no olhar. "Você não ficou sabendo?"
"Eu trabalho oito dias por semana. É claro que perco um pouco das fofocas."
"Vou me casar com ela."
Danny ficou de boca seca e temperou a garganta. "Você pediu a mão dela?"
"Ainda não, mas já falei com papai sobre isso."
"Falou com papai, mas não com ela."
Connor deu de ombros e novamente abriu um largo sorriso. "Qual é o problema, mano? Ela é bonita, nós vamos juntos ao teatro e ao cinema, mamãe lhe ensinou a cozinhar. Ela vai dar uma excelente esposa."
"Con", disse Danny, mas o irmão mais novo levantou a mão.
"Dan, Dan, eu sei que aconteceu... alguma coisa entre vocês. Eu não sou cego. A família inteira sabe."
Aquilo era novidade para Danny. Lá em cima, Joe girava em torno da árvore feito um esquilo. O ar esfriara e a sombra espalhava-se devagarinho sobre a casa.
"Ei, Dan. É por isso que estou lhe contando. Eu queria saber se para você tudo bem."
Danny encostou-se no parapeito. "O que você acha que ‘aconteceu’ entre mim e Nora?"
"Bem, não sei."
Danny balançou a cabeça, pensando: ela não vai se casar com ele.
"E se ela recusar?"
"E por que faria isso?", disse Connor levantando as mãos abruptamente diante daquele absurdo.
"Com esses bolcheviques, nunca se sabe..."
Connor riu. "Como eu disse, isso logo vai mudar. Por que ela não aceitaria? Vamos passar todo nosso tempo livre juntos. Vamos..."
"Ao cinema, como você disse. Alguém com quem ir ao teatro. Não é a mesma coisa."
"Mesma coisa que o quê?"
"Amor."
Connor apertou os olhos. "Isto é amor." Ele balançou a cabeça, olhando para Danny. "Por que você sempre quer complicar as coisas, Dan? Um homem encontra uma mulher, eles têm afinidades, um legado comum. Eles se casam, constroem uma família, incutem essas ideias nos filhos. Isto é civilização. Isto é amor."
Danny sacudiu os ombros. A raiva de Connor se mesclava ao embaraço, combinação sempre perigosa, principalmente quando ele estava num bar. Danny era o filho que lutava boxe, mas o verdadeiro valentão da família era Connor.
Connor era dez meses mais novo que Danny. Isso fazia deles o que se costuma chamar de "gêmeos irlandeses". Afora a consanguinidade, porém, eles nunca tiveram muito em comum. Os dois receberam o diploma do segundo grau no mesmo dia. Danny passou raspando. Connor, que era um ano mais novo, com distinção. Danny entrou para a polícia imediatamente, ao passo que Connor aceitou uma bolsa de estudos integral na Faculdade Católica de Boston, no South End. Depois de dois anos estudando em horário integral, ele se graduou summa cum laude e entrou na Escola de Direito de Boston. Uma vez formado em advocacia, não havia a menor dúvida sobre o lugar em que ia trabalhar. Havia uma vaga esperando por ele na promotoria desde que trabalhara lá como contínuo, na adolescência. Agora, passados quatro anos, estava começando a pegar casos importantes, ações penais maiores.
"Como vai o trabalho?", perguntou Danny.
Connor acendeu outro cigarro. "Tem gente muito ruim por aí afora."
"Quem são?"
"Não estou falando de baderneiros e arruaceiros. Estou falando de radicais, de gente que atira bombas."
Danny inclinou a cabeça e apontou para a cicatriz no próprio pescoço.
Connor deu uma risadinha. "Certo, certo. Olha com quem estou falando. Acho que eu simplesmente não sabia o quanto essa gente de merda é ruim. Agora agarramos um cara e vamos deportá-lo quando ganharmos a ação. O sujeito ameaçou explodir o Senado."
"Só ameaçou?", perguntou Danny.
Connor sacudiu a cabeça irritado. "Não é isso. Sabe que fui a um enforcamento há uma semana?"
Danny disse: "Você foi a um...?".
Connor fez que sim com a cabeça. "Às vezes temos de fazer isso. Faz parte do trabalho. Silas quer que o pessoal da Commonwealth[8] saiba que os representamos até o fim."
"Isso parece não combinar com seu belo terno. De que cor ele é? Amarelo?"
Connor bateu na própria cabeça. "Dizem que é creme."
"Oh, creme."
"Na verdade não foi nada divertido." Connor ficou observando o quintal. "O enforcamento", completou ele olhando para Danny com um sorriso fino. "Na promotoria, porém, dizem que a gente se acostuma."
Os dois ficaram calados por um instante. Danny sentia a nuvem sombria do mundo lá de fora - com seus enforcamentos e doenças, suas bombas e sua pobreza - descer sobre o mundinho deles.
"Quer dizer que você vai se casar com Nora", disse ele finalmente.
"É o que pretendo", falou Connor erguendo e abaixando as sobrancelhas.
Ele pôs a mão no ombro do irmão. "Boa sorte, Con."
"Obrigado", agradeceu Connor com um sorriso. "A propósito, soube que você se mudou para outro lugar."
"Para outro lugar, não", disse Danny. "Mudei só de andar. Com uma vista mais bonita."
"Há pouco tempo?"
"Há mais ou menos um mês", disse Danny. "Pelo visto, algumas notícias custam a se espalhar."
"Isso acontece quando a gente não visita a mãe."
Danny pôs a mão no coração e começou a falar com sotaque irlandês: "Ah, esse filho desnaturado que não visita a mãe todos os dias da semana".
Connor riu. "Mas você continua no North End?"
"É meu lar."
"É um fim de mundo."
"Você cresceu lá", disse Joe, que apareceu de repente, pendurado no galho mais baixo da árvore.
"É verdade", disse Connor. "Mas papai mudou com a família para cá tão logo foi possível."
"Trocou uma favela por outra", disse Danny.
"Mas é uma favela irlandesa", insistiu Connor. "Nunca a trocaria por uma favela italiana."
Joe pulou no chão. "Isto aqui não é uma favela."
"Daqui até a K Street, não."
"Nem o resto do bairro", disse Joe dirigindo-se à varanda. "Eu conheço favelas", afirmou ele com toda a segurança, depois abriu a porta e entrou.
No escritório do pai, eles acenderam charutos e perguntaram a Danny se queria um. Ele recusou, mas enrolou um cigarro e sentou-se próximo à escrivaninha ao lado do subchefe de polícia Madigan. Mesplede e Donnegan estavam perto das garrafas, servindo-se de boas doses da bebida de seu pai, e Charles Steedman, de pé junto à janela alta atrás da escrivaninha, acendia seu charuto. A um canto, do lado das portas, seu pai e Eddie McKenna conversavam com Silas Pendergast. O procurador balançava a cabeça o tempo todo, sem dizer grande coisa, enquanto o capitão Thomas Coughlin e o tenente Eddie McKenna falavam com ele, mãos no queixo, testas inclinadas para a frente. Silas Pendergast assentiu com um gesto de cabeça uma última vez, tirou o chapéu do gancho e se despediu de todos.
"Ele é um bom homem", disse o pai, aproximando-se da escrivaninha. "Ele entende o bem comum." Seu pai tirou um charuto do estojo, cortou a ponta e, sobrancelhas abaixadas, sorriu para os demais. Todos retribuíram o sorriso, porque o humor de seu pai era contagioso, ainda que não se soubesse o que o motivava.
"Thomas", disse o subchefe de polícia, falando em tom reverente a um homem que, na hierarquia, lhe era muito inferior, "imagino que você tenha explicado a ele a cadeia de comando."
O pai de Danny acendeu o charuto e prendeu-o com os dentes de trás, mantendo-o aceso. "Eu disse que o homem atrás da carroça não precisa ver a cara do cavalo. Acho que ele entendeu o que eu quis dizer."
Claude Mesplede veio por trás da cadeira onde Danny estava sentado e bateu-lhe no ombro. "Seu pai continua sendo um grande comunicador."
O pai lançou um olhar a Claude, enquanto Charles Steedman sentava-se junto à janela atrás dele e Eddie McKenna, à esquerda de Danny. Dois políticos, um banqueiro, três policiais. Interessante.
O pai dele disse: "Sabem por que eles vão ter tantos problemas em Chicago? Sabem por que a taxa de criminalidade vai disparar depois da Lei Seca?".
Os homens esperaram, seu pai tirou uma baforada do charuto e contemplou o copo de conhaque em cima da mesa, ao seu alcance, mas não o pegou.
"Porque Chicago é uma cidade nova, senhores. O fogo purgou-a de história, de valores. E Nova York é densa demais, grande demais e abarrotada demais de gente que não é de lá. Eles não conseguem manter a ordem, não com o que vem por aí. Mas Boston", e então ele pegou o copo de conhaque e tomou um gole, a luz refletindo-se no vidro. "Boston é pequena e não foi corrompida por essas modernidades. Boston entende o bem comum, o modo como as coisas funcionam." Ele levantou o copo. "À nossa bela cidade, senhores. Ah, ela é uma grande e velha mulher."
Eles brindaram e Danny viu seu pai rindo para ele, se não com a boca, com os olhos. Thomas Coughlin exibia uma série vertiginosa de atitudes diferentes, sucedendo-se numa tal velocidade que era fácil esquecer que todas elas eram diferentes aspectos de um homem convicto de estar fazendo o bem. Thomas Coughlin era servo do bem. Era o vendedor do bem, seu mestre de cerimônias. Caçava os cães que lhe mordiam os tornozelos, carregava o caixão de seus amigos tombados, lisonjeava seus aliados hesitantes.
Restava a questão de saber, questão que acompanhou Danny por toda a vida, o que era exatamente aquele bem. Tinha alguma coisa a ver com a lealdade e com a primazia da honra de um homem. Estava ligado à ideia do dever, e havia um tácito entendimento sobre todas as coisas, a ele relacionadas, que se deviam calar. Apenas por uma questão de necessidade, o bem apresentava uma disposição conciliatória para com a classe alta lá de fora, ao passo que no íntimo se mantinha firmemente antiprotestante. Era contra os negros, pois se considerava uma dádiva o fato de os irlandeses, apesar de todas as suas lutas e das que ainda estavam por vir, serem norte-europeus e inegavelmente brancos, brancos como a lua da noite passada. Além disso, nunca se pensou em fazer sentar todas as raças à mesa, mas apenas garantir que a última cadeira estivesse reservada para um irlandês, antes que as portas da sala fossem fechadas. E, acima de tudo, pelo que Danny tinha entendido, estava ligado à ideia de que aqueles que representavam o bem em público gozavam do direito a certas liberdades em sua vida privada.
Seu pai disse: "Você já ouviu falar na Associação dos Trabalhadores Letões de Roxbury?".
"Os lets?", perguntou Danny, sentindo de repente o olhar de Charles Steedman, de seu posto na janela, voltado para ele. "Um grupo de operários socialistas, constituído principalmente por gente que emigrou da Rússia e da Letônia."
"E o que me diz do Partido dos Trabalhadores do Povo?", indagou McKenna.
Danny balançou a cabeça. "Eles estão no bairro Mattapan. São comunistas."
"União pela Justiça Social?"
Danny disse: "O que é isso? Um teste?".
Nenhum dos homens respondeu. Simplesmente ficaram olhando para ele, graves e atentos.
Ele suspirou. "Acho que essa União pela Justiça Social é composta principalmente de intelectuais de boteco do Leste europeu. São contra a guerra."
"Eles são contra tudo", disse Eddie McKenna. "Totalmente antiamericanos. São fachadas bolcheviques - todas elas - fundadas pelo próprio Lênin, para semear a agitação na nossa cidade."
"Nós não gostamos de agitação", disse o pai de Danny.
"E os galleanistas?", perguntou Madigan. "Já ouviu falar deles?"
Mais uma vez, Danny sentiu os olhares dos demais voltados para ele.
"Os galleanistas", respondeu ele tentando evitar que o tom de voz lhe traísse a irritação, "são os seguidores de Luigi Galleani. São anarquistas que querem eliminar todos os governos e todas as formas de propriedade."
"O que você acha deles?", perguntou Claude Mesplede.
"Dos galleanistas? Dessa gente que atira bombas?", exclamou Danny. "Eles são terroristas."
"Não são só os galleanistas", disse Eddie McKenna. "Todos os radicais."
Danny deu de ombros. "Não me incomodo muito com os vermelhos. Em sua maioria, me parecem inofensivos. Eles imprimem lá os seus panfletos, bebem demais à noite e terminam incomodando a vizinhança quando se põem a cantar em altos brados coisas sobre Trotski e a Mãe Rússia."
"As coisas talvez tenham mudado ultimamente", disse Eddie. "Temos ouvido boatos."
"De quê?"
"Uma insurreição em grande escala."
"Quando? Que tipo de insurreição?"
O pai balançou a cabeça. "Essa informação só está sendo passada às pessoas que precisam tomar conhecimento dela, o que ainda não é seu caso."
"No devido tempo, Dan", disse Eddie McKenna abrindo-lhe um largo sorriso. "No devido tempo."
"‘O objetivo do terrorismo’", disse seu pai, "‘é provocar terror.’ Sabe quem disse isso?"
Danny fez que sim com a cabeça. "Lênin."
"Ele lê jornais", disse o pai dele com uma piscadela.
McKenna inclinou o corpo para Danny. "Estamos montando uma operação contra os planos dos radicais, Dan. E precisamos saber exatamente para que lado você torce."
"Ahn ahn", fez Danny, que ainda não tinha entendido qual era o jogo.
Thomas Coughlin inclinara o corpo para trás, afastando-se da luz, o charuto apagado entre os dedos. "Quero que nos diga o que anda rolando no clube social."
"Que clube social?"
Thomas Coughlin franziu o cenho.
"O Boston Social Club?", perguntou Danny olhando para Eddie McKenna. "Nosso sindicato?"
"Não é um sindicato", disse Eddie McKenna. "Só pretende ser."
"E não podemos ter isso", disse o pai. "Nós somos policiais, Aiden, não trabalhadores comuns. Esse é um princípio a ser defendido."
"Que princípio é esse?", indagou Danny. "Foder com o trabalhador?" Danny olhou em volta da sala, contemplou os homens reunidos ali, numa tranquila tarde de domingo. Seu olhar se deteve em Steedman. "Qual seu interesse no que está acontecendo aqui?"
Steedman lhe deu um sorriso suave. "Interesse?"
Danny balançou a cabeça afirmativamente. "Estou tentando imaginar o que você está fazendo aqui."
Steedman ruborizou-se, olhou para seu charuto, as mandíbulas crispando-se.
Thomas Coughlin disse: "Aiden, não se deve falar com os mais velhos nesse tom. Você não deve..."
"Estou aqui", disse Steedman, levantando os olhos do charuto, "porque os trabalhadores deste país esqueceram seu lugar. Eles esqueceram, jovem senhor Coughlin, que estão à disposição daqueles que lhes pagam os salários e alimentam suas famílias. Você sabe o que pode resultar de uma greve de dez dias? Só dez dias?"
Danny deu de ombros.
"Pode levar um negócio de médio porte à inadimplência. E quando se está inadimplente, as ações despencam. Os investidores perdem dinheiro. Um monte de dinheiro, e eles têm de reduzir seus negócios. Então o banco tem de intervir. Às vezes, a única solução é a execução hipotecária. O banco perde dinheiro, os investidores perdem dinheiro, suas empresas perdem dinheiro, seu empreendimento inicial vai por água abaixo e os trabalhadores perdem o emprego. Assim, ainda que o sindicato, à primeira vista, pareça uma boa ideia, trate-se de uma coisa absolutamente despropositada até como tema de debate entre pessoas educadas." Ele tomou um gole de conhaque. "Isso responde à sua pergunta, filho?"
"Não estou bem certo de que sua lógica se aplica ao setor público."
"Ela se aplica triplamente", disse Steedman.
Danny lhe deu um riso contido e voltou-se para McKenna. "Os Esquadrões Especiais vão para cima dos sindicatos, Eddie?"
"Vamos para cima dos subversivos. Uma ameaça a esta nação", respondeu ele a Danny, girando bruscamente os grandes ombros. "Preciso que você aprimore seus talentos em algum lugar. E pode começar por aí mesmo."
"No nosso sindicato."
"Se é assim que você quer chamá-lo."
"O que isso pode ter a ver com um ato de ‘insurreição’?"
"É uma missão simples e rotineira", esclareceu McKenna. "Você nos ajuda a descobrir quem realmente dá as cartas lá, quem são os verdadeiros estrategistas, e coisa e tal, e então teremos mais confiança em mandá-lo atrás de peixes maiores."
Danny assentiu com um gesto de cabeça. "O que eu ganho com isso?"
Ouvindo isso, o pai dele inclinou a cabeça apertando os olhos até que ficassem reduzidos a pequenas fendas.
Madigan disse: "Bem, não sei se isso...".
"O que você ganha com isso?", interrompeu o pai. "Sabe o que vai acontecer se você for bem-sucedido no BSC e depois com os bolcheviques?"
"O quê?"
"Você ganha um distintivo de ouro", afirmou o pai com um sorriso. "Era isso que você queria ouvir de nós, não é? Você estava contando com isso, não é?"
Danny sentiu um impulso irresistível de ranger os dentes. "Se isso não estiver em pauta, nada feito."
"Se você nos disser o que precisamos saber sobre a infraestrutura desse suposto sindicato de policiais e se você se infiltrar num grupo radical de nossa escolha e voltar com a informação necessária para frustrar qualquer ato de violência orquestrada..." Thomas Coughlin olhou para o subchefe de polícia Madigan e depois novamente para Danny. "Bem, vamos pôr você no primeiro lugar da fila."
"Eu não quero o primeiro lugar. Eu quero o distintivo de ouro. Vocês já enrolaram demais com isso."
Os homens trocaram olhares, como se não tivessem esperado essa reação desde o princípio.
Depois de certo tempo, seu pai disse: "Ah, o rapaz sabe o que quer, não é?
"Sabe sim", afirmou Claude Mesplede.
"Não há a menor dúvida", disse Patrick Donnegan.
Danny ouviu a voz da mãe na cozinha, bem além das portas da sala onde eles se encontravam. Não conseguiu entender nada, mas, o que quer que a mãe tenha dito, fez Nora rir. O som daquele riso fez que ele imaginasse o pescoço de Nora, a carne acima de sua traqueia.
O pai dele acendeu um charuto. "Um distintivo de ouro para o homem que trouxer alguns radicais e nos contar o que se passa no Boston Social Club."
Danny sustentou o olhar do pai. Ele tirou um cigarro do seu maço de Murads, bateu-o na quina de sua chanca e o acendeu. "Por escrito."
Eddie McKenna deu uma risadinha. Claude Mesplede, Patrick Donnegan e o subchefe de polícia Madigan pousaram o olhar nos próprios sapatos, no tapete. Charles Steedman bocejou.
O pai de Danny ergueu uma sobrancelha. Foi um gesto vagaroso, com o qual pretendia demonstrar que admirava o filho. Mas Danny sabia que, embora Thomas Coughlin tivesse uma série estonteante de traços de caráter, a capacidade de admirar não era um deles.
"Esse é o teste que você escolheu para definir sua vida?" Seu pai finalmente inclinou-se para a frente, o rosto pleno do que muita gente poderia interpretar erroneamente como prazer. "Ou prefere deixar isso para um outro dia?"
Danny não disse nada.
Seu pai olhou em volta da sala novamente. Finalmente ele deu de ombros e cruzou o olhar com o de Danny.
"Combinado."
Quando Danny saiu do escritório, sua mãe e Joe tinham ido dormir, e tudo estava às escuras. Ele foi para a frente da casa, porque sentia que ela lhe pesava nos ombros e arranhava-lhe a cabeça. Sentou-se no alpendre e tentou decidir o que faria em seguida. As janelas da K Street estavam escuras. O bairro estava tão silencioso que ele conseguia ouvir o leve agitar das ondas, alguns quarteirões mais adiante.
"E qual o trabalho sujo que te pediram para fazer agora?", perguntou Nora, com as costas apoiadas na porta.
Ele se voltou para olhá-la. Aquilo lhe doía, mas ele continuou olhando. "Não é tão sujo assim."
"Ah, mas também não é limpo."
"Aonde você quer chegar?"
"Aonde quero chegar?", disse ela com um suspiro. "Faz um tempão que não vejo você feliz."
"O que é ser feliz?", disse ele.
Ela abraçou o próprio corpo, tentando proteger-se do frio da noite. "É ser o contrário do que você é."
Já tinham se passado mais de cinco anos desde a véspera de Natal em que o pai de Danny entrara pela porta da frente da casa carregando Nora O’Shea nos braços como se fosse lenha. Embora seu rosto estivesse rosado por causa do frio, sua carne estava cinzenta, e os dentes, batendo de frio, estavam moles devido à desnutrição. Thomas Coughlin contou à família que a encontrara nas docas da Northern Avenue, cercada por rufiões, e então ele e o tio Eddie os atacaram com seus cassetetes, como se ainda fossem patrulheiros novatos. Pobre criança abandonada, apenas um punhado de carne sobre os ossos! E quando o tio Eddie o lembrou de que era véspera de Natal e a pobre menina conseguiu balbuciar um fraco "Obrigada, senhor, obrigada", a voz igualzinha à dela - oh, querida e falecida mãe, que Deus a tenha -, não era um sinal do próprio Cristo na véspera de Seu aniversário?
Nem mesmo Joe, à época com apenas seis anos e ainda suscetível aos charmes do pai, engoliu aquela história, mas ela fez baixar na família um generoso espírito de Natal. Connor tratou de encher a banheira, e a mãe deu à menina de tez cinzenta e grandes olhos fundos uma xícara de chá. Ela ficou olhando para os Coughlin de detrás da xícara, os ombros nus e sujos apontando de sob o grande casaco como pedras úmidas.
Então seu olhar se encontrou com o de Danny, e antes que passasse adiante se acendeu nos olhos dela uma luzinha que parecia incomodamente familiar. Naquele instante, que ele haveria de repassar em sua mente dezenas de vezes nos anos seguintes, teve a certeza de ver seu próprio coração, disfarçado, olhando para ele pelos olhos famintos da menina.
Bobagem, disse consigo mesmo. Bobagem.
Logo ele haveria de perceber quão rápido aqueles olhos eram capazes de mudar - como aquela luz que lhe parecera um reflexo de seus próprios pensamentos tinha a faculdade de, num piscar de olhos, se tornar dura, distante, ou dar a impressão de uma alegria fingida. Apesar disso, sabendo que a luz estava lá, esperando a ocasião de reaparecer, ele se apegou à remotíssima possibilidade de desvelá-la quando quisesse.
Naquele instante ela o olhava atentamente na varanda, sem dizer nada.
"Onde está o Connor?", perguntou ele.
"Foi para o bar", disse ela. "Disse que estaria no Henry’s, caso você quisesse procurá-lo."
Seus cabelos cor de areia derramavam-se em cachos que lhe cingiam a cabeça e desciam até logo abaixo das orelhas. Ela não era alta nem baixa, alguma coisa parecia agitar-se sob a sua carne o tempo todo, como se lhe faltasse uma camada e, caso a gente o olhasse bem de perto, pudesse ver o fluxo sanguíneo.
"Soube que vocês dois estão namorando."
"Para."
"Foi o que ouvi dizer."
"O Connor é um menino."
"Ele tem vinte e seis anos. É mais velho que você."
Ela deu de ombros. "Ainda é um menino."
"Vocês estão namorando?", disse Danny jogando o cigarro na rua e olhando para ela.
"Eu não sei o que estamos fazendo, Danny." Ela parecia cansada. Não tanto do dia, mas dele. Aquilo o fez sentir-se como uma criança, petulante e muito fácil de magoar. "Você gostaria que eu dissesse que não tenho lealdade pela sua família, uma dívida de gratidão com seu pai, que nunca poderei pagar? Que tenho certeza que não quero casar com seu irmão?"
"Sim", disse Danny. "É o que eu gostaria de ouvir."
"Bem, não posso dizer isso."
"Você se casaria com ele por gratidão?"
Ela suspirou e fechou os olhos. "Eu não sei o que faria."
Danny sentiu um aperto na garganta, como se ela fosse implodir. "E quando Connor descobrir que você deixou um marido em..."
"Ele morreu", disse ela numa voz sibilante.
"Morreu para você. Não é o mesmo que ter morrido de verdade, certo?"
Os olhos dela agora estavam em fogo. "Aonde você quer chegar, rapaz?"
"Como você acha que ele vai reagir a essa notícia?"
"Só posso esperar", disse ela com voz cansada novamente, "que ele encare as coisas de uma forma melhor que você."
Por um instante, Danny ficou calado, e ambos fitaram o espaço que havia entre eles. Danny esperava que seu olhar parecesse tão implacável quanto o dela.
"Isso não vai acontecer", disse ele descendo as escadas e mergulhando no silêncio e na escuridão.
5.
Uma semana depois que Luther se viu na condição de marido, ele e Lila encontraram uma casa na Archer Street, em Elwood, pequena, de um quarto, com água encanada. Luther conversou com uns rapazes do salão de bilhar Ganso de Ouro, na Greenwood Avenue, e eles disseram que se quisesse emprego devia procurar no Hotel Tulsa, do outro lado dos trilhos de Santa Fe, na Tulsa branca. Está caindo dinheiro das árvores por lá, Caipira. Luther não se importava de ser chamado de Caipira por enquanto, desde que eles não se acostumassem com isso. Foi ao hotel e falou com o homem que tinham lhe indicado, um cara conhecido como Velho Byron Jackson. O Velho Byron (todos o chamavam assim, até gente mais velha que ele) era o presidente do sindicato dos carregadores. Ele disse que Luther começaria trabalhando como ascensorista e que depois ele veria o que fazer.
Então Luther começou a trabalhar nos elevadores, e mesmo isso era uma mina de ouro: as pessoas lhe davam vinte e cinco centavos praticamente toda vez que ele girava a manivela e abria a cabina. Oh, Tulsa estava nadando no dinheiro do petróleo! As pessoas dirigiam os maiores carros, usavam os mais belos chapéus e as roupas mais finas. Os homens fumavam charutos grossos como tacos de bilhar, as mulheres cheiravam a perfume e a pó de arroz. As pessoas andavam rápido em Tulsa, comiam depressa em pratos grandes e bebiam depressa em copos altos. Os homens batiam nas costas uns dos outros, cochichavam entre si e caíam na gargalhada.
Depois do trabalho, os carregadores, os ascensoristas e os porteiros voltavam todos para Greenwood, ainda com muita adrenalina correndo nas veias, iam para os salões de bilhar e para os bares perto da First e da Admiral e então eles dançavam, bebiam e também brigavam um pouco. Uns se embebedavam com cerveja Choctaw e uísque de centeio, outros ficavam mais altos que pipas por conta do ópio ou, nos últimos tempos, da heroína.
Luther convivia há apenas duas semanas com os rapazes quando alguém lhe perguntou se queria fazer um trabalhinho extra. Mal ele ouviu a proposta, já estava recolhendo apostas da loteria clandestina para o Diácono Skinner Broscious, que assim era chamado por ter fama de cuidar muitíssimo bem de seu rebanho e invocar a ira do Todo-poderoso quando alguma de suas ovelhas se extraviava. Segundo diziam, o Diácono Broscious fora jogador em Louisiana. Ele ganhou uma bolada na mesma noite em que matou um homem - dois acontecimentos não necessariamente dissociados - e veio para Greenwood com uma boa grana e algumas garotas que logo tratou de pôr na prostituição. Quando essas primeiras garotas enfiaram na cabeça a ideia de trabalhar em regime de sociedade, ele a princípio deu a parte que cabia a cada uma e então as trocou por outro bando de jovens sem essas ideias deletérias de regime de sociedade. Foi aí que o Diácono Broscious diversificou seus negócios, partindo para o ramo dos saloons, das apostas, e para o comércio de Choctaw e de heroína e ópio, e qualquer pessoa que trepasse, usasse droga, se embebedasse ou jogasse em Greenwood fatalmente teria contato com o Diácono ou com alguém a seu serviço.
O Diácono Broscious pesava para lá dos cento e oitenta quilos. Na maioria das vezes, quando curtia o ar da noite pelas bandas da Admiral com a First, ele o fazia acomodado numa imensa cadeira de balanço de madeira, que alguém equipara com rodas. O Diácono tinha a seu serviço dois sujeitos ossudos, amarelos, magérrimos e de juntas nodosas, chamados Dandy e Smoke, que empurravam a cadeira de balanço pela cidade, a hora que fosse, e em muitas noites ele se punha a cantar. Tinha uma bela voz, alta, doce e forte. Cantava spirituals e cantigas de presos e chegou a criar uma versão de "I’m a Twelve O’Clock Fella in a Nine O’Clock Town" muitíssimo melhor que a versão branca gravada em disco por Byron Harlan. E então lá estaria ele, rodando para cima e para baixo na First Street, cantando com aquela voz tão bonita que, segundo alguns, Deus se recusara a dar aos seus anjos prediletos para não despertar a inveja em toda a legião. O Diácono Broscious batia palmas, seu rosto cobria-se de gotas de suor, o sorriso largo e brilhante feito uma truta - e por um instante as pessoas esqueciam quem ele era, até alguém se lembrar de que lhe devia alguma coisa. Então esse alguém via para além do suor, do sorriso e da cantoria, e essa visão deixava uma marca que se imprimia até em filhos que ele ainda não gerara.
Jessie Tell disse a Luther que a última vez que alguém sacaneara para valer com o Diácono - "Quer dizer sacanagem para valer mesmo, com total falta de respeito", explicou Jessie -, Broscious se sentou em cima dele e ficou se mexendo até não ouvir mais os gritos. Então ele abaixou a vista e viu que o imbecil do crioulo tinha batido as botas e jazia no barro, fitando o vazio, boca escancarada, um braço estendido como se estivesse tentando alcançar alguma coisa.
"Você podia ter me contado isso antes de eu começar a trabalhar para o cara", disse Luther.
"Você recolhe apostas, Caipira. Você acha que o dono desse tipo de negócio pode ser um cara legal?"
"Eu já lhe disse para não me chamar de Caipira."
Eles estavam no Ganso de Ouro, relaxando depois de um longo dia sorrindo para brancos do outro lado dos trilhos. Luther sentia a bebida chegando ao nível em seu sangue em que tudo ficava mais vagaroso e mais bonito, sua vista ficava mais aguçada e nada lhe parecia impossível.
Logo Luther haveria de ter muito tempo para se perguntar como fora terminar recolhendo apostas para o Diácono. Levou algum tempo para concluir que aquilo nada tinha a ver com dinheiro - diabo, o que ele ganhava de gorjeta no Hotel Tulsa era quase duas vezes mais que seu salário na fábrica de munições. E ele não almejava um futuro trabalhando em negócios ilegais. Lá em Columbus ele vira muitos caras que tentaram subir essa escada; normalmente eles caíam, e caíam gritando. Então, por quê? Era aquela casa em Elwood, pensou ele: a casa o comprimia de tal forma que ele chegava a sentir o peso do beiral em seus ombros. E era também Lila, ainda que gostasse muito dela - e ele às vezes se surpreendia em ver o quanto a amava, o quanto a visão de seu rosto quando ela acordava e piscava os olhos, com uma das faces colada ao travesseiro, era capaz de incendiar seu coração. Mas, antes que tivesse tempo de curtir aquele amor, quem sabe desfrutar um pouco dele, cá estava ela com um filho, ela que tinha apenas vinte anos, e ele vinte e três. Um filho. Uma responsabilidade para o resto da vida. Uma coisa que cresce enquanto você envelhece. Que não se importa se você está cansado, se você está tentando se concentrar em outra coisa, se você está com vontade de fazer amor. Um filho simplesmente existia, lançado bem no centro de sua vida e berrando feito um condenado. E Luther, que nunca chegou a conhecer de fato seu pai, estava absolutamente convicto de que, gostasse ou não gostasse, não se mostraria à altura dessa responsabilidade. Até então, porém, ele desejara levar essa vida a mil, com uma pequena dose de perigo para dar um molho, alguma coisa para recordar quando se sentasse na cadeira de balanço e brincasse com os netos. Eles veriam um velho sorrindo feito um louco, se lembrando do jovem que vagara pela noite de Tulsa com Jessie e dançara à margem da lei apenas o bastante para dizer que aquele não era seu mundo.
Jessie era o primeiro e o melhor amigo que Luther fizera em Greenwood, e isso logo iria lhe trazer problemas. O nome dele era Clarence, seguido do sobrenome Jessup, por isso todos o chamavam de Jessie ou de Jessie Tell, e ele tinha um jeito que atraía tanto homens quanto mulheres. Ele era carregador e ascensorista substituto no Hotel Tulsa e tinha o dom de deixar todo mundo tão animado quanto ele, o que fazia as horas passarem mais depressa. Como o próprio Jessie recebera alguns apelidos, nada mais justo que fizesse o mesmo com todos os seus conhecidos (fora ele quem, no Ganso de Ouro, apelidara Luther de Caipira). Esses apelidos saíam de sua língua com tal rapidez e precisão que normalmente pegavam, tomando o lugar do nome pelo qual a pessoa era conhecida, por mais antigo que fosse. Jessie atravessava o saguão do Hotel Tulsa empurrando um carrinho de metal ou algumas malas, gritando "Que é que há, Magro?" e "Você sabe que é verdade, Tufão", seguido de um suave "He he, certo", e antes do anoitecer as pessoas já estavam chamando Bobby de Magro e Gerald de Tufão, e a maioria ficava contente com a troca.
Se as coisas estivessem calmas, Luther e Jessie disputavam corridas nos elevadores. Quando carregavam malas - correndo feito loucos enquanto se desmanchavam em sorrisos para os brancos que chamavam a ambos de George, ainda que os dois usassem crachás em que seus nomes apareciam perfeitamente legíveis -, apostavam para ver quem adivinhava o peso delas. Depois de atravessarem os trilhos do terminal San Francisco, voltavam para Greenwood e iam para os bares ou galerias nas cercanias da Admiral, e continuavam a conversar animadamente, ambos andando depressa e falando depressa. Luther sentia que entre eles havia a camaradagem de que vinha sentindo falta, a mesma camaradagem dos velhos tempos de Columbus, que tinha com Sticky Joe Beam, Aeneus e alguns outros homens com quem ele jogava bola, bebia e, antes de Lila, ia atrás das mulheres. A vida - vida de verdade - ele a vivia aqui, no Greenwood, que irrompia à noite com seu ruído de bolas de bilhar, suas guitarras de três cordas, saxofones, bebidas e homens relaxando depois de tantas horas sendo chamados de George, de filho, de garoto, do que quer que os brancos quisessem chamá-los. Não era apenas razoável, mas também esperado, que um homem fosse relaxar com outros homens depois de dias como aqueles que tiveram, dizendo o tempo todo "Sim, sor", "Como vai?" e "Pois não".
Jessie Tell não era apenas veloz - ele e Luther recolhiam apostas na mesma área e faziam isso muito rápido -, mas também alto e corpulento. Não tanto quanto o Diácono Broscious, mas ainda assim um homem grande, e era chegado em heroína. Adorava os rapazinhos e o uísque de centeio, as mulheres com a bunda grande, a cerveja Choctaw e a música, mas, cara... sua paixão mesmo era a heroína.
"Merda", costumava dizer. "Negros como eu precisam de alguma coisa para relaxar, senão os brancos nos matam antes que possamos conquistar o mundo. Diga que estou certo, Caipira. Diga. Porque é verdade, e você sabe disso."
O problema era que o vício de Jessie - que era, como tudo nele, grande - se tornou muito dispendioso. Ainda que ele descolasse muito mais gorjetas que qualquer outro no Tulsa Hotel, isso não adiantava muito, pois o dinheiro era depositado numa caixinha comum e dividido igualmente entre os empregados ao final de cada turno. E ainda que recolhesse apostas para o Diácono e recebesse dois centavos de cada dólar que os clientes perdiam - e os clientes de Greenwood perdiam tanto quanto jogavam, e o faziam numa escala assustadora -, Jessie não conseguia bancar o próprio vício se jogasse limpo.
Então ele trapaceava.
A forma como se faziam as apostas na área do Diácono Broscious era simples: não existia crédito. Se você quisesse apostar dez centavos num número, pagava onze centavos antes que o recolhedor das apostas saísse da sua casa, sendo o centavo a mais por conta da comissão. Se você quisesse jogar cinquenta, pagava cinquenta e cinco. E assim por diante.
Broscious não acreditava nessa de ir tomar dinheiro dos negros caipiras depois de eles terem perdido. Não via o menor sentido nisso. Ele tinha coletores de verdade, para dívidas de verdade, e não podia acabar com a raça de um negro malandro por causa de uma merreca. De merreca em merreca, porém, dava para encher malas de dinheiro, rapaz. Naqueles dias especiais em que as pessoas achavam que a sorte estava dando sopa, dava para encher um celeiro.
As pessoas que recolhiam as apostas levavam o dinheiro consigo, e era evidente que Broscious tinha de pegar rapazes em quem confiasse. Mas, como o Diácono não chegou a ser o que era confiando nas pessoas, Luther sempre teve a impressão de que estava sendo vigiado. Não sempre, veja bem, apenas em uma de três correrias. Na verdade ele nunca vira alguém vigiando, mas não custava nada agir com base nessa suposição.
Jessie dizia: "Você superestima o Broscious, rapaz. O cara não pode ter olheiros por toda parte. E, mesmo que tivesse, eles também seriam gente como nós. Quando você sai de uma casa, eles não podem saber se só o pai jogou ou se a mamãe, o vovô e o tio Jim também jogaram. E claro que você não vai embolsar os quatro dólares deles. Mas, se você ficar com um, quem é que vai saber? Deus? Talvez, se Ele estiver olhando. Mas Broscious não é Deus".
Com certeza ele não era. Ele era alguma outra coisa.
Jessie tentou encaçapar a bola seis, mas errou. Ele olhou para Luther e sacudiu os ombros preguiçosamente. Pelos olhos turvos do amigo, Luther percebeu que ele tomara outro pico ainda há pouco, no momento em que fora ao banheiro.
Luther derrubou a doze.
Jessie apoiou-se no taco para se manter de pé e estendeu a mão para trás procurando a cadeira. Quando se certificou de que ela estava no rumo de sua bunda, deixou-se cair nela, estalou os lábios e tentou umedecer aquela sua linguona.
Luther não se conteve. "Essa merda vai acabar com você, rapaz."
Jessie sorriu e sacudiu o dedo em sua direção. "Não vai fazer nada comigo agora, a não ser com que eu me sinta bem. Então, cale a boca e jogue."
Esse era o problema de Jessie - por mais que ele falasse com você, ninguém conseguia falar com ele. Uma parte dele - o cerne, muito provavelmente - ficava irritadíssima com qualquer apelo à razão. Para ele, o senso comum era uma afronta.
"O fato de todo mundo estar fazendo uma coisa", disse ele a Luther certa vez, "não significa que seja uma puta boa ideia, não é?"
"Mas não significa que seja ruim."
Jessie sorriu aquele seu sorriso que conquistava as mulheres e lhe valia drinques de graça. "Claro que sim, Caipira. Claro que sim."
Caramba, como as mulheres o amavam. Ao vê-lo, os cachorros se alvoroçavam e se mijavam de tanta alegria, e as crianças o seguiam pela Greenwood Avenue como se um boneco saltador fosse pular da bainha de sua calça.
Porque havia algo intacto naquele homem. E as pessoas o seguiam, talvez, somente para ver aquilo se quebrar.
Luther encaçapou a seis e a cinco, e quando levantou os olhos Jessie estava cochilando, um pouco de baba pendendo do canto da boca, braços e pernas enroscados no taco como se tivesse resolvido tomá-lo por uma bela mulher.
Eles cuidariam dele ali no bilhar. Talvez o levassem para a sala dos fundos, caso o salão se enchesse. Ou então o deixassem sentado ali mesmo. Luther recolocou o taco no suporte, tirou o chapéu da parede e mergulhou na escuridão de Greenwood. Pensou em procurar um lugar onde pudesse jogar mais um pouco. Naquela mesma hora, havia um jogo em andamento na sala dos fundos do primeiro piso do Posto de Gasolina Po. Só de pensar no jogo, Luther sentiu uma coceira na cabeça. Mas ele já jogara demais durante aquele pouco tempo que tinha passado em Greenwood. E a única coisa que podia fazer para esconder de Lila o quanto perdera era batalhar por gorjetas no hotel e recolher apostas para Broscious.
Lila. Ele lhe prometera chegar antes do pôr do sol, e já estava bem atrasado. O céu estava azul-escuro, o rio Arkansas, negro e prateado. Embora fosse a última coisa que desejasse fazer, com a noite à sua volta enchendo-se de música e de sonoros e alegres assobios, Luther respirou fundo e tomou o caminho de casa, para ir cumprir seu papel de marido.
Lila não gostava muito de Jessie - o que não era de surpreender -, nem de nenhum dos amigos de Luther, das noites que passava fora ou dos serões para Broscious. Assim, a casinha da Elwood Avenue ia parecendo cada vez menor.
Uma semana antes, quando Luther perguntara: "E de onde vamos tirar dinheiro?", Lila disse que ia arranjar um emprego. Luther riu, sabendo que nenhum branco ia admitir uma negra grávida para lavar suas panelas e limpar o chão, porque as mulheres brancas não queriam que seus maridos se pusessem a imaginar como o bebê fora parar ali, e os homens brancos também não iam gostar daquilo. Eles teriam de explicar aos filhos por que é que nunca tinham visto uma cegonha preta.
Depois do jantar daquela noite, ela disse: "Agora você é um homem, Luther. Um marido. Você tem responsabilidades".
"E eu estou assumindo tudo, não estou?", disse Luther. "Não estou?"
"Bem, está sim, isso lá é verdade."
"Tudo bem, então."
"Mas mesmo assim, meu bem, você podia passar algumas noites em casa. Você podia dar um jeito de consertar aquelas coisas que prometeu consertar."
"Que coisas?"
Ela tirou a mesa. Luther levantou-se, foi até onde estava o casaco que pendurara no gancho ao chegar em casa e pegou os cigarros.
"Coisas", disse Lila. "Você disse que ia fazer um berço para o bebê, consertar os degraus afundados e..."
"E, e, e", disse Luther. "Porra, mulher, eu dou duro o dia inteiro."
"Eu sei."
"Sabe mesmo?", disse ele num tom muito mais áspero do que pretendera.
Lila disse: "Por que você anda o tempo todo mal-humorado?".
Luther odiava aquele tipo de conversa. Parecia-lhe que agora não conseguiam falar em outro tom. Ele acendeu um cigarro. "Não vivo mal-humorado", disse, ainda que pensasse o contrário.
"Você vive mal-humorado", disse ela passando a mão na parte da barriga em que a gravidez começava a se tornar visível.
"Porra, e por que não viveria?", queixou-se Luther. Ele não queria praguejar diante dela, mas sentia o álcool em seu corpo, álcool que, na companhia de Jessie, ele mal notava estar bebendo, porque Jessie e sua heroína faziam um uisquinho parecer tão perigoso quanto uma limonada. "Dois meses atrás, eu não era um futuro pai."
"E daí?"
"E daí?"
"O que você quer dizer com isso?" Lila pôs os pratos na pia e voltou para a salinha de jantar.
"Eu quero dizer o que eu disse, porra", respondeu Luther. "Um mês atrás..."
"O quê?" Ela o fitava, esperando.
"Um mês atrás eu não estava em Tulsa, não estava casado à força e não estava morando numa casinha de merda, numa avenidinha de merda numa cidadezinha de merda, Lila. Estava?"
"Esta não é uma cidadezinha de merda." A voz de Lila aumentava de volume à medida que ela erguia o corpo. "E você não casou à força."
"Praticamente."
Olhar negro e punhos cerrados, ela aproximou-se dele. "Você não me quer? Você não quer seu filho?"
"Eu queria ter a possibilidade de escolha, porra", disse Luther.
"Você tem essa possibilidade e passa todas as noite aí pelas ruas. Você nunca volta para casa como um homem deve fazer, e quando volta está bêbado, drogado, ou os dois."
"É o único jeito", disse Luther.
Os lábios dela tremiam quando ela perguntou: "E por quê?".
"Porque só assim para aguentar..." Ele se conteve, porém tarde demais.
"Aguentar o quê, Luther? Eu?"
"Vou sair."
Ela agarrou-lhe o braço. "Me aguentar, Luther? É isso?"
"Vá para a casa da sua tia, agora", disse Luther. "Lá você pode se queixar de como estou longe de ser um cristão. Discutam uma forma de me ganhar para Deus."
"Me aguentar?", disse ela pela terceira vez, com uma voz sumida e magoada.
Luther foi embora antes que lhe desse na cabeça arrebentar alguma coisa.
Eles passavam os domingos na ampla casa da tia Marta e do tio James na Detroit Avenue, que Luther veio a considerar como a Segunda Greenwood.
Ninguém mais ia querer pensar dessa forma, mas Luther sabia que existiam duas Greenwoods, assim como duas Tulsas. A gente se encontrava em uma ou em outra, dependendo se estivesse ao norte ou ao sul do terminal de San Francisco. Ele tinha certeza de que a Tulsa branca, numa visão menos superficial, continha muitas Tulsas diferentes, mas não conhecia bem nenhuma delas, visto que suas interações nunca iam muito além de "Em que andar, madame?".
Mas em Greenwood a divisão se tornara muito mais clara. Você tinha uma Greenwood "ruim", que eram as ruelas distantes da Greenwood Avenue, bem a norte do cruzamento com a Archer, e os vários quarteirões próximos à First e à Admiral, onde se ouviam disparos nas noites de sexta-feira e onde os transeuntes ainda sentiam um leve cheiro de fumaça de ópio nas manhãs de domingo.
Mas a "boa" Greenwood, as pessoas gostavam de acreditar, constituía os restantes noventa e nove por cento da comunidade. Era Standpipe Hill, a Detroit Avenue e o centro comercial da Greenwood Avenue. Era a Primeira Igreja Batista, o restaurante Bell & Little e o Cine Dreamland, onde Carlitos ou a namoradinha da América flanavam na tela, a quinze centavos o ingresso. Era o Tulsa Star e um subdelegado negro andando pelas ruas com um distintivo reluzente. Era o doutor Lewis T. Weldon e o sr. Lionel A. Garrity, John e Loula Williams, proprietários da Confeitaria William’s, da Oficina William’s e do próprio Dreamland. Era O. W. Gurley, dono da mercearia, do armazém e, de quebra, do Gurley Hotel. Era, aos domingos, os cultos matinais e os almoços da tarde, com a fina porcelana, as mais alvas toalhas de linho e alguma coisa clássica e delicada rodando na vitrola como os sons de um passado que nenhum deles seria capaz de definir bem.
E era esse aspecto da outra Greenwood que irritava mais Luther: aquela música. Bastava ouvir alguns poucos compassos para saber que se tratava de música branca. Chopin, Beethoven, Brahms. Luther podia imaginá-los sentados ao piano, tocando em algum salão com assoalho polido e janelas altas, enquanto nas salas contíguas os criados andavam nas pontas dos pés. Aquela era música feita por homens e para homens que chicoteavam seus cavalariços, fodiam com suas criadas e saíam no fim de semana para caçar pequenos animais que eles nunca comiam. Homens que gostavam de ouvir o latido dos cães e o súbito alçar voo dos pássaros. Eles voltavam para casa cansados de não fazer nada e compunham ou ouviam música como aquela, contemplavam pinturas de antepassados tão inúteis e vazios quanto eles próprios e davam lições de moral aos filhos sobre o certo e o errado.
Tio Cornelius passara a vida trabalhando para homens como aqueles antes de ficar cego. Luther também conhecera alguns e sentia-se contente de poder tomar distância deles. Mas ele não suportava a ideia de que aqui, na sala de jantar de James e Marta Hollaway, na Detroit Avenue, os rostos negros reunidos pareciam decididos a beber, comer e ganhar dinheiro até ficarem brancos.
Como ele preferia estar lá pelas bandas da First e da Admiral, na companhia de porteiros, de cavalariços e dos homens que carregavam de lá para cá suas caixas de engraxate e de ferramentas. Homens que trabalhavam e jogavam com o mesmo empenho. Homens que nada queriam, como se dizia, além de um uisquinho, um joguinho de dados, uma trepadinha para alegrar a vida.
Não que ele tivesse ouvido alguém dizer algo assim ali na Detroit Avenue. De jeito nenhum. A conversa deles era mais na base de "O Senhor odeia...", "O Senhor não...", "O Senhor não quer..." e "O Senhor não admite...", fazendo que Deus parecesse um patrão irascível, hábil no chicote.
Ele e Lila estavam à mesa e Luther ouvia-os falar sobre o homem branco como se ele e a família logo viessem se sentar ali com eles aos domingos.
"Outro dia, o próprio Paul Stewart", dizia James, "veio à minha oficina com seu Daimler e disse: ‘Senhor James, não confio em ninguém do outro lado dos trilhos como confio no senhor para cuidar deste carro’."
Um pouco depois, o sr. Lionel Garrity declarou o seguinte: "Mais dia, menos dia as pessoas vão entender o que nossos rapazes fizeram na guerra e dizer ‘Está na hora. Hora de deixar toda essa sujeira para trás. Todos nós. Sangramos da mesma forma, pensamos da mesma forma’".
Luther viu Lila sorrir e balançar a cabeça ao ouvir isso e teve vontade de tirar o disco da vitrola e quebrá-lo no joelho.
Pois o que Luther mais odiava era o fato de que por trás daquilo tudo - de todo aquele requinte, de toda aquela nobreza recém-adquirida, de todos aqueles colarinhos de pontas viradas, sermões moralistas, mobília elegante, gramados aparados e carros fantásticos - havia o medo. O terror.
Se nos comportarmos, eles perguntavam, vocês deixam a gente jogar?
Luther pensou em Babe Ruth e nos caras de Boston e Chicago naquele verão e teve vontade de dizer: não. Eles não vão deixar. Chega uma hora em que eles querem alguma coisa, e aí fazem o que bem entendem, só para lhes ensinar.
E ele imaginou Marta, James, o dr. Weldon e o sr. Lionel A. Garrity olhando para ele de boca aberta e mãos estendidas:
Ensinar-nos o quê?
Qual é o seu lugar.
6.
Danny conheceu Tessa Abruzze na mesma semana em que as pessoas começaram a adoecer. A princípio a imprensa noticiou que o mal atingira apenas os soldados de Camp Devens, mas aí dois civis caíram mortos no mesmo dia nas ruas de Quincy, e em toda a cidade as pessoas passaram a ficar dentro de casa.
Danny chegou ao seu andar com o monte de pacotes que carregara pela escada apertada. Eles continham suas roupas, recém-lavadas e embrulhadas em papel pardo, e amarradas com fita por uma lavadeira da Prince Street, uma viúva que lavava quilos de roupas numa tina no meio da cozinha. Ele tentou pôr a chave na fechadura ainda segurando os pacotes, mas, depois de algumas tentativas sem sucesso, recuou e depositou-os no chão. Na outra ponta do corredor, uma jovem saiu de seu apartamento e soltou um grito.
Ela disse "Signore, signore", num tom hesitante, como se não estivesse certa de que merecia atenção. Apoiou a mão na parede, e uma água cor-de-rosa escorreu-lhe pelas pernas e gotejou de seus tornozelos.
Danny se perguntou se já a vira antes. Depois ficou imaginando se ela estava com a gripe. Só então notou que ela estava grávida. A chave girou, a porta se abriu e ele chutou os pacotes para dentro de casa, porque nada que ficasse dando sopa num corredor no North End permaneceria ali por muito tempo. Ele fechou a porta, avançou no corredor em direção à mulher e viu que a parte de baixo de seu vestido estava encharcada.
Com a mão ainda apoiada na parede, ela abaixou a cabeça, e os cabelos negros caíram-lhe sobre a boca. Seus dentes estavam cerrados numa careta mais crispada que as que ele vira em cadáveres. Ela disse: "Dio, aiutami. Dio, aiutami".
Danny perguntou: "Cadê seu marido? Cadê a parteira?".
Ele segurou-lhe a mão e ela a apertou com tanta força que Danny sentiu uma pontada que lhe chegou ao cotovelo. Os olhos da mulher voltaram-se para ele e ela balbuciou alguma coisa em italiano tão rápido que ele não entendeu nada, e aí percebeu que ela não falava uma palavra de inglês.
"Senhora DiMassi." O grito de Danny ecoou pela escada. "Senhora DiMassi!"
A mulher apertou-lhe a mão ainda com mais força e soltou um grito por entre os dentes cerrados.
"Dove è il vostro marito?", perguntou Danny.
A mulher sacudiu a cabeça várias vezes, e Danny ficou sem saber se ela queria dizer que não tinha marido ou que ele não estava em casa.
"A... la..." Danny tentou lembrar-se da palavra italiana para "parteira". Ele acariciou as costas da mão dela e disse: "Psst. Está tudo bem". Danny fitou aqueles olhos grandes e cheios de ansiedade. "Escute... escute, você... a... la ostetrica!" Danny ficou tão alvoroçado por lembrar a palavra em italiano que voltou a falar inglês. "Sim? Onde está...? Dove è? Dove è la ostetrica?"
A mulher esmurrou a parede, enfiou as unhas na palma da mão de Danny e gritou tão alto que ele berrou "Senhora DiMassi!" com uma espécie de pânico que nunca sentira desde seu primeiro dia como policial, quando de repente lhe ocorreu que ele era a única resposta que o mundo julgava adequada aos problemas dos outros.
A mulher enfiou o rosto na mão dele e disse "Faccia qualcosa, uomo insensato! Mi aiuti!". Danny não entendeu tudo, mas pescou o "homem estúpido" e "ajuda", então a puxou em direção à escadaria.
A mão dela continuou na dele, o braço enlaçando-lhe o abdome, o corpo grudado às suas costas, enquanto desciam os degraus para chegarem à rua. O Hospital Geral de Massachusetts era longe demais para ir a pé, e ele não via nem táxi ou mesmo um caminhão nas ruas, somente gente, gente por toda parte porque era dia de feira, e Danny pensava consigo mesmo que, sendo dia de feira, deveria haver alguns caminhões, porra, mas não, somente hordas de gente, frutas, hortaliças e porcos inquietos fuçando a palha nas pedras do calçamento.
"Pronto-socorro de Haymarket", disse ele. "É o mais próximo. Você está entendendo?"
A mulher fez um rápido gesto de cabeça e ele percebeu que ela respondia ao seu tom de voz. Foram abrindo caminho por entre a multidão, e as pessoas começaram a lhes dar passagem. Danny gritou algumas vezes "Cerco un’ostetrica! Un’ostetrica! C’è qualcuno che conosce un’ostetrica?", mas só lhe respondiam com um solidário meneio de cabeça.
Quando eles saíram do outro lado da multidão, a mulher encurvou as costas com um gemido agudo, e Danny pensou que ela ia deixar cair o bebê na rua, a dois quarteirões do pronto-socorro, mas o corpo dela desabou sobre o dele. Ele a ergueu nos braços e começou a andar e cambalear, andar e cambalear. A mulher nem era tão pesada, mas contorcia o corpo, agarrava o ar e esmurrava o peito dele.
Eles andaram vários quarteirões, tempo bastante para Danny achá-la bonita em sua agonia. Se era por causa dela ou apesar dela, ele não sabia muito bem, mas, de todo modo, bonita. No último quarteirão, ela passou os braços em volta do pescoço dele, os punhos pressionando-lhe os músculos, e se pôs a sussurrar ao seu ouvido repetidamente: "Dio, aiutami. Dio, aiutami".
No pronto-socorro, Danny entrou com ela na primeira porta que viu, e eles foram parar num corredor marrom com assoalho de carvalho escuro, pálidas luzes amarelas e um único banco. Sentado ali, um médico de pernas cruzadas, fumando um cigarro. Ele lançou um olhar quando os dois entraram no corredor. "O que vocês estão fazendo aqui?"
Ainda segurando a mulher nos braços, Danny disse: "Está falando sério?".
"Vocês entraram pela porta errada." O médico esmagou o cigarro no cinzeiro, levantou-se e examinou a mulher atentamente. "Há quanto tempo ela está em trabalho de parto?"
"Eu só sei que a bolsa dela rompeu há dez minutos."
O médico pôs uma mão sob a barriga da mulher e outra em sua cabeça. Ele lançou a Danny um olhar calmo e distante. "Esta mulher vai dar à luz."
"Eu sei."
"Em seus braços", continuou o médico, e Danny quase a deixou cair.
O médico disse "Espere aqui" e passou por uma porta dupla a meio caminho do fim do corredor. Ouviu-se o barulho de alguma coisa batendo lá dentro, e então ele apareceu na porta dupla trazendo uma maca de ferro com uma das rodas enferrujada e rangendo.
Danny pôs a mulher na maca. Ela fechara os olhos, mas sua respiração continuava ofegante. Danny descobriu que a umidade que vinha sentindo nos braços e na cintura - umidade que ele havia pensado ser água -, era na verdade sangue, e mostrou então os braços ao médico.
O médico balançou a cabeça e disse: "Como é o nome dela?".
"Não sei", respondeu Danny.
O médico franziu o cenho e foi empurrando a maca em direção à porta dupla, por onde entrou, e Danny o ouviu chamando por uma enfermeira.
Danny encontrou um banheiro no fim do corredor. Lavou as mãos e os braços com sabonete e ficou olhando o remoinho róseo na pia. O rosto da mulher continuava em sua cabeça. O nariz dela era levemente arqueado, com uma saliência a meia altura, e seu lábio superior era mais grosso que o inferior. A mulher tinha um pequeno sinal sob o queixo, que mal se podia notar porque sua pele era muito escura, quase tão escura quanto os cabelos. Ele ainda sentia a vibração da voz dela em seu peito, sentia-lhe as coxas e a parte inferior das costas nas mãos, viu o arco em que se transformou o pescoço no instante em que ela deitou a cabeça no colchão da maca.
Danny foi até a sala de espera na outra ponta do corredor. Passando por trás do balcão da recepção, ele entrou na sala, deu a volta e foi se sentar junto aos enfaixados e aos constipados. Um sujeito tirou um chapéu-coco preto da cabeça, vomitou dentro dele e limpou a boca com um lenço. O homem olhou para dentro do chapéu, depois para as pessoas que estavam na sala de espera, parecendo constrangido. Com todo o cuidado, depositou o chapéu embaixo do banco de madeira, limpou a boca novamente com o lenço, recostou o corpo e fechou os olhos. Alguns estavam com máscaras cirúrgicas, e quando tossiam era uma tosse úmida. A enfermeira da recepção também estava de máscara. Ninguém falava inglês, exceto um carroceiro cujo pé fora atropelado por uma carroça. Ele contou a Danny que o acidente acontecera bem ali na frente, senão ele teria ido a um hospital de verdade, um hospital digno de americanos. Por várias vezes ele olhou o sangue seco sobre o cinto e a virilha de Danny, mas não perguntou o que tinha acontecido.
Chegou uma mulher com a filha adolescente. A mulher tinha pele escura e cintura larga, mas a filha era magra, quase amarela, e tossia sem parar, emitindo um som que parecia o de engrenagens de metal rangendo sob a água. O carroceiro foi o primeiro a pedir uma máscara à enfermeira, mas, quando a sra. DiMassi encontrou Danny na sala de espera, ele também estava com uma, sentindo-se constrangido e envergonhado. Ainda se ouvia a mocinha, que já estava em outro corredor, para além de outras portas duplas, com aquelas engrenagens rangendo.
"Por que está usando isso, agente Danny?", perguntou a sra. DiMassi sentando-se ao seu lado.
Danny tirou a máscara. "Ainda há pouco passou aqui uma mulher muito doente."
Ela disse: "Muitos doentes hoje em dia. Digo ar livre. Digo para ir para os terraços. Todo mundo diz eu louca. Ficam dentro de casa".
"Ouviu falar de..."
"Tessa, sim."
"Tessa?"
A sra. DiMassi balançou a cabeça. "Tessa Abruzze. Você trouxe ela para cá?"
Danny fez que sim.
A sra. DiMassi riu. "A vizinhança toda comentando. Que você não é tão forte como parece."
Danny sorriu. "É mesmo?"
Ela falou: "Sim, mesmo. Eles dizem seus joelhos dobram e Tessa não é pesada".
"Você avisou o marido dela?"
"Bah", fez a sra. DiMassi desferindo um golpe no ar. "Ela não tem marido. Só pai. Pai um homem bom. Filha?" E desferiu outro golpe no ar.
"Quer dizer que você não a tem em alta conta", concluiu Danny.
"Eu cuspiria", disse ela, "mas esse chão limpo."
"Então por que está aqui?"
"Ela minha inquilina", respondeu com simplicidade.
Danny pôs uma mão nas costas da velhinha. O corpo dela ia para frente e para trás, e seus pés balançavam acima do chão.
Quando o médico entrou na sala de espera, Danny tinha recolocado a máscara. A sra. DiMassi também estava com uma. Daquela vez o doente fora um homem de cerca de vinte e cinco anos, que certamente trabalhava com carga e descarga, a julgar pelas roupas. Ele apoiou um joelho no chão, na frente do balcão da entrada, e levantou a mão, como a dizer que estava bem, estava bem. Não tossia, mas os lábios e a parte de baixo do queixo estavam arroxeados. Ele continuou naquela posição, respirando ruidosamente, até a enfermeira vir buscá-lo. Ela o ajudou a se levantar. Apoiado na mão da enfermeira, vacilou. Seus olhos estavam vermelhos, úmidos e não viam nada à sua frente.
Então Danny recolocou a máscara, foi para trás do balcão, pegou uma máscara para a sra. DiMassi e para alguns outros que estavam na sala de espera. Ele distribuiu as máscaras e sentou-se. Cada vez que expirava, sentia a pressão do ar contra os lábios e o nariz.
A sra. DiMassi disse: "O jornal diz só soldados pegam".
"Os soldados respiram o mesmo ar", respondeu Danny.
"E você?"
Danny afagou-lhe a mão. "Por enquanto não."
Ele fez que ia tirar a mão, mas ela a cobriu com as suas para retê-la. "Nada pega em você, acho."
"Isso mesmo."
"Então eu fico perto", disse a sra. DiMassi achegando-se a ele até suas pernas se tocarem.
O médico entrou na sala de espera e pareceu surpreso ao ver todas aquelas máscaras, embora ele próprio estivesse usando uma.
"É um menino", disse agachando-se diante deles. "Saudável."
"Como está Tessa?", perguntou a sra. DiMassi.
"É assim que ela se chama?"
A sra. DiMassi fez que sim.
"Ela teve uma complicação", disse o médico. "Está com um sangramento que me preocupa. A senhora é a mãe dela?"
A sra. DiMassi negou com a cabeça.
"Senhoria", esclareceu Danny.
"Ah", fez o médico. "Ela tem família?"
"Tem pai", disse Danny. "Ainda estão tentando localizá-lo."
"Não posso deixar ninguém vê-la, a não ser os parentes próximos. Espero que compreendam."
Danny falava baixo. "O caso é sério, doutor?"
Os olhos do médico traíam cansaço. "Estamos fazendo o possível."
Danny balançou a cabeça.
"Se você não a tivesse trazido para cá", disse o médico, "com toda a certeza o mundo estaria uns cinquenta quilos mais leve. Procure ver as coisas desse ângulo."
"Claro."
Depois de se despedir da sra. DiMassi, o médico se pôs de pé.
"Doutor...", disse Danny.
"Rosen", completou o médico.
"Doutor Rosen", prosseguiu Danny. "Por quanto tempo mais o senhor acha que precisaremos usar máscaras?"
O doutor Rosen olhou em volta da sala de espera demoradamente. "Até a coisa acabar."
"E não está acabando?"
"Mal começou", disse o médico retirando-se e os deixando ali.
O pai de Tessa, Federico Abruzze, se encontrou com Danny àquela noite, no terraço do edifício em que moravam. De volta do hospital, a sra. DiMassi exortou todos os seus inquilinos, nos termos mais ásperos, a levarem seus colchões para o terraço logo depois do pôr do sol. E assim eles se reuniram quatro andares acima do North End, sob as estrelas, sob a espessa fumaça da fábrica Portland Meat e o cheiro do tanque de melaço da Indústria de Álcool dos Estados Unidos.
A sra. DiMassi trouxe sua melhor amiga, Denise Ruddy-Cugini, da Prince Street. Vieram com ela também sua sobrinha Arabella e o marido, Adam, pedreiro recém-chegado de Palermo, na condição de imigrante ilegal. A eles se juntaram Claudio e Sophia Mosca e seus três filhos, o mais velho com apenas cinco anos, e Sophia já grávida do quarto. Pouco depois, Lou e Patricia Imbriano subiram pela escada de incêndio carregando seus colchões, seguidos pelos recém-casados Joseph e Concetta Limone, e finalmente por Steve Coyle.
Danny, Claudio, Adam e Steve Coyle ficaram jogando dados, costas contra o parapeito, e a cada rodada o vinho caseiro de Claudio descia melhor. Danny ouvia a tosse e os gritos que vinham das ruas e dos edifícios, mas ouvia também mães chamando os filhos para casa, o rangido de roupa sendo estendida entre os edifícios, o riso súbito de um homem, um tocador de realejo numa das ruelas, o instrumento ligeiramente desafinado no ar quente da noite.
Ninguém no terraço estava doente ainda. Ninguém tinha tosse, febre ou enjoo. Ninguém apresentava o que diziam ser os primeiros sinais de contágio - dor de cabeça e dores nas pernas -, ainda que os homens, exaustos de suas jornadas de doze horas de trabalho, talvez não fossem notar a diferença. Joe Limone, ajudante de padeiro, trabalhava quinze horas por dia e zombava dos que trabalhavam doze. Concetta Limone, num visível esforço para acompanhar o ritmo do marido, entrava na Patriot Wool às cinco da manhã e saía às seis e meia da tarde. A primeira noite deles no terraço foi como as noites de festas religiosas, quando a Hanover Street enfeitava-se de luzes e flores, os padres conduziam procissões e o ar cheirava a incenso e molho de tomate. Claudio fez uma pipa para o filho, Bernardo Thomas. Ele e as outras crianças estavam no centro do terraço, e a pipa amarela parecia uma barbatana contra o céu azul escuro.
Danny reconheceu Federico logo que ele chegou ao terraço. Certa vez passara por ele na escada, carregando um monte de caixas. Era um velho cortês, vestido de linho marrom-amarelado. Seus cabelos e seu bigode fino eram brancos, cortados rente, e ele trazia uma bengala no estilo da nobreza fundiária, não para apoiar o corpo, mas como um totem. Ele tirou o chapéu de feltro enquanto falava com a sra. DiMassi e então olhou para Danny, que estava sentado no parapeito com os outros homens. Danny se levantou quando Federico Abruzze veio em sua direção.
"Senhor Coughlin?", disse ele com uma pequena mesura e num inglês perfeito.
"Senhor Abruzze", cumprimentou Danny estendendo a mão. "Como vai sua filha?"
Federico apertou a mão de Danny com as duas mãos, fazendo-lhe um ligeiro aceno de cabeça. "Ela está bem. Obrigado por perguntar."
"E seu neto?"
"Ele é forte", afirmou Federico. "Posso conversar com você a sós?"
Danny deu um passo largo por cima dos dados e do dinheiro trocado e foi andando com Federico em direção a um canto vazio do terraço. O velho tirou um lenço branco do bolso e estendeu-o no parapeito. "Por favor, sente-se", convidou.
Danny sentou-se no lenço, sentindo a maresia às suas costas e o vinho em seu sangue.
"Uma bela noite", disse Federico. "Mesmo com tanta gente tossindo."
Sim.
"Tantas estrelas."
Danny levantou os olhos, contemplou o vasto céu estrelado e voltou o olhar novamente para Federico Abruzze, percebendo no velho a marca do líder tribal. Um prefeito de cidadezinha do interior, talvez, alguém que ministrava sabedoria na piazza da cidade em noites de verão.
"Você é muito conhecido aqui no bairro", afirmou Federico.
"É mesmo?", disse Danny.
O velho fez que sim. "Dizem que você é um policial irlandês sem preconceito contra italianos. Dizem que você cresceu aqui e que, mesmo depois de explodirem uma bomba na sua delegacia, mesmo depois de ter trabalhado nessas ruas e conhecido o pior do nosso povo, trata todo mundo como irmão. E agora você salvou a vida da minha filha e do meu neto. Muito obrigado, senhor."
"Não há de quê", disse Danny.
Federico pôs um cigarro entre os lábios, riscou um fósforo na unha do polegar e ficou olhando para Danny através da chama. Ele de repente pareceu mais jovem, o rosto liso, e Danny calculou que estivesse se aproximando dos sessenta, dez anos mais novo do que achara antes de vê-lo mais de perto.
Ele fez um gesto largo com o cigarro, na escuridão. "Nunca deixei uma dívida por pagar."
"O senhor não me deve nada", disse Danny.
"Devo sim, senhor", respondeu o velho. "Devo." Sua voz era um tanto melodiosa. "Mas o custo de imigrar para este país me deixou com recursos escassos. O senhor nos permitiria, a mim e à minha filha, que ao menos lhe oferecêssemos um jantar uma noite dessas?" Ele pôs a mão no ombro de Danny. "Logo que ela esteja recuperada, naturalmente."
Danny fitou o sorriso do homem e se perguntou pelo marido de Tessa. Estaria morto? Será que algum dia ela fora casada? Pelo que Danny sabia dos costumes italianos, ele não poderia imaginar que um homem da estatura e educação de Federico fosse aceitar uma filha solteira e grávida, e ainda mais sob seu teto. E agora parecia que o homem estava tentando articular um namoro entre ele e Tessa.
Que estranho.
"É uma honra, senhor."
"Então está combinado", disse Federico inclinando o corpo para trás. "E a honra é toda minha. Eu aviso quando Tessa estiver bem."
"Estarei esperando."
Federico e Danny atravessaram o terraço em direção à escada de incêndio.
"Essa doença", disse Federico traçando um amplo círculo com os braços e indicando os edifícios à volta deles. "Será que vai passar?"
"Espero que sim."
"Eu também. Este país é tão promissor, tão cheio de possibilidades. Seria uma tragédia se aprendesse a sofrer como a Europa aprendeu." Ele se voltou para a escada de incêndio e segurou os ombros de Danny. "Agradeço-lhe novamente, senhor. Boa noite."
"Boa noite", respondeu Danny.
Federico desceu pela negra escada de ferro, a bengala enfiada debaixo do braço, movimentos desenvoltos e seguros como se tivesse crescido em meio a montanhas e colinas rochosas. Depois que o velho se foi, Danny se pegou olhando para baixo, tentando identificar a estranha sensação de que alguma coisa a mais se passara entre eles, algo que se perdeu no vinho em seu sangue. Talvez a forma como pronunciara as palavras "dívida" ou "sofrer", como se em italiano tivessem outro sentido. Danny tentou seguir uma ou outra pista, mas o vinho era forte demais; o pensamento perdeu-se na brisa, ele desistiu de apanhá-lo e voltou ao jogo de dados.
Um pouco mais tarde, por insistência de Bernardo Thomas, eles soltaram a pipa novamente, mas a linha escapou dos dedos do menino. Antes que ele tivesse tempo de gritar, Claudio deixou escapar um brado de triunfo, como se o grande barato de ter uma pipa fosse o gesto de finalmente libertá-la. O menino não se convenceu de imediato. Ficou olhando para ela, o queixo trêmulo, de forma que os demais adultos se aglomeraram no canto do terraço. Eles levantaram os punhos e gritaram. Bernardo Thomas começou a rir e a bater palmas, as outras crianças se puseram a imitá-lo, e logo estavam todos em clima de festa, torcendo para que a pipa amarela se perdesse na escuridão do céu.
Lá pelo fim da semana, os agentes funerários contrataram seguranças para proteger seus caixões. A aparência deles variava muito - alguns eram de empresas de segurança privada e sabiam tomar banho e barbear-se, outros pareciam jogadores de futebol ou lutadores de boxe decadentes, alguns do North End eram membros pouco graduados da Mão Negra -, mas todos portavam espingardas ou rifles. Entre os doentes havia carpinteiros e, ainda que estivessem com boa saúde, dificilmente poderiam atender à demanda. Em Camp Devens, a gripe matou sessenta e três soldados num só dia. Ela começou a se espalhar no North End, em South Boston e nos edifícios residenciais da Scollay Square, alcançando os estaleiros de Quincy e Weymouth. Então ela ganhou o estado, pegou as linhas férreas, e os jornais começaram a noticiar surtos em Hartford e em Nova York.
A doença chegou à Filadélfia no fim de semana, quando o tempo estava muito bom. As pessoas enchiam as ruas, participando de desfiles em apoio aos soldados e à compra de bônus de guerra, ao Despertar da América, à recém-criada Legião Americana e ao fortalecimento da pureza moral e da determinação, cujo exemplo máximo eram os escoteiros. Ao longo da semana seguinte, carroças percorriam as ruas para recolher cadáveres postos nas varandas na noite anterior, e necrotérios improvisados espalhavam-se por toda a Pensilvânia e pelo lado ocidental de Nova Jersey. Em Chicago a gripe atingiu primeiro a zona sul, depois a zona leste, e as estradas de ferro fizeram que se disseminasse pelas planícies do oeste.
Começaram a circular boatos de que logo haveria uma vacina. De que em agosto se avistara um submarino alemão a cinco quilômetros do porto de Boston; alguns disseram tê-lo visto emergir e soltar um penacho de fumaça cor de laranja, que o vento soprou em direção à costa. Pregadores citavam passagens do Apocalipse e de Ezequiel que profetizavam um veneno carregado pelo vento como castigo para a promiscuidade de um novo século e para os costumes dos imigrantes. O Fim dos Tempos, diziam, chegara.
Corria entre o povo que o único remédio era o alho. Ou terebentina em cubinhos de açúcar. Ou então querosene em cubinhos de açúcar, caso não se dispusesse de terebentina. Assim sendo, os edifícios fediam. Cheiravam a suor, a excrementos, a cadáveres e a moribundos, mas o fedor de alho e de terebentina era pior. Esses cheiros fechavam a garganta de Danny, queimavam suas narinas. Em certos dias, tonto por conta dos vapores de querosene e sufocado pelo cheiro de alho, as amídalas ardendo, ele pensava ter finalmente contraído a doença. Mas não tinha. Ele vira a doença derrubar médicos, enfermeiras, legistas, motoristas de ambulância e dois policiais da Primeira Delegacia e mais seis de outras. E ainda que a doença devastasse o bairro que ele amava, com uma paixão que nem ao menos podia explicar para si mesmo, Danny sabia que não iria contraí-la.
A morte não o pegara na Salutation Street, e agora o rodeava, piscava para ele, mas aí baixava em outra pessoa. Então ele ia a edifícios aonde vários policiais tinham se recusado a ir, ia a pensões e ajudava como podia aquela gente de pele amarelada e acinzentada pela doença, gente cujo suor enegrecia o colchão.
Na delegacia já não havia dias de folga. Pulmões matraqueavam feito gaiolas sacudidas pelo vento, e o vômito era verde-escuro. Nas favelas do North End, começaram a pintar um X nas portas dos infectados, e cada vez mais pessoas passaram a dormir nos terraços dos edifícios. Certas manhãs, Danny e os outros policiais da Primeira Delegacia empilhavam os cadáveres na calçada e esperavam ao sol da tarde a chegada das carroças que levariam os corpos. Ele continuava a usar a máscara, mas apenas porque era proibido deixar de usá-la. Máscaras eram bobagem. Muitos que nunca tiravam a máscara pegaram a gripe e morreram com a cabeça ardendo em febre.
Ele, Steve Coyle e mais meia dúzia de policiais responderam a um chamado em Portland Street, onde havia uma suspeita de assassinato. Quando Steve bateu na porta, Danny percebeu o brilho da adrenalina nos olhos dos outros homens que estavam no corredor. O sujeito que finalmente abriu a porta estava de máscara, mas tinha os olhos vermelhos por causa dela, e seu hálito se liquefazia. Steve e Danny fitaram por vinte segundos o cabo da faca apontando do peito do homem, antes de se darem conta do que estavam vendo.
O homem disse: "O que vocês querem, porra?".
Steve estava com a mão no revólver, mas ele continuou no coldre. Ele levantou a mão para fazer que o homem recuasse. "Quem o esfaqueou, senhor?"
Ouvindo isso, os outros policiais se postaram atrás de Danny e Steve.
"Eu mesmo", disse o cara.
"Você se esfaqueou?"
O sujeito fez que sim, e Danny viu uma mulher sentada no sofá atrás do cara. Ela também estava de máscara, sua pele tinha o tom azulado dos infectados e sua garganta estava cortada.
O cara encostou-se na porta, e esse movimento escureceu ainda mais sua camisa.
"Mostre-me suas mãos", ordenou Steve.
O homem levantou as mãos, e seus pulmões ressoaram com o esforço. "Será que algum de vocês poderia tirar isso do meu peito?"
Steve disse: "Afaste-se da porta".
Ele se afastou, caiu de bunda no chão e ficou contemplando as próprias coxas. Eles entraram na sala. Ninguém queria encostar no cara, então Steve apontou-lhe o revólver.
O sujeito pôs ambas as mãos no cabo da faca e puxou-o, mas o cabo não se mexeu. Steve disse: "Abaixe as mãos, senhor".
O cara sorriu fracamente para Steve, abaixou as mãos e soltou um suspiro.
Danny olhou para a mulher morta. "Você matou sua esposa?"
Um leve sacudir de cabeça. "Eu a curei. Não havia mais nada a fazer, cara. Um troço desses..."
Leo West chamou do fundo do apartamento. "Há crianças aqui."
"Vivas?", perguntou Steve em voz alta.
O cara sentado no chão balançou a cabeça novamente. "Eu as curei também."
"São três", falou Leo West. "Meu Deus", disse ele voltando para a sala. Seu rosto estava pálido, e ele tinha desabotoado o colarinho. "Meu Deus", repetiu ele. "Merda."
Danny disse: "Precisamos de uma ambulância".
Rusty Aborn deu sua risadinha amarga. "Claro, Dan. Quanto tempo elas demoram para chegar atualmente? Cinco, seis horas?"
Steve limpou a garganta. "Esse cara acaba de deixar o País das Ambulâncias", disse ele pondo o pé no ombro do cara e empurrando-o devagar para o chão.
Dois dias depois, Danny saiu do apartamento de Tessa com o filho dela envolto numa toalha. Federico sumira, e a sra. DiMassi estava sentada ao lado da cama de Tessa, que fitava o teto, com uma toalha molhada na testa. Sua pele tinha um tom amarelado, mas ela estava consciente e desperta. Quando Danny pegou a criança, Tessa olhou primeiro para ele, depois para a trouxinha em seus braços - a pele da criança com a cor e a aparência de pedra -, e por fim voltou os olhos novamente para o teto. Danny então desceu as escadas com a criança e saiu do edifício, da mesma forma como, ajudado por Steve Coyle, carregara o corpo de Claudio no dia anterior.
Danny procurou ligar para seus pais quase todas as noites e deu um jeito de ir visitá-los durante a pandemia. Ele ficou com sua família e com Nora na sala de visitas da casa da K Street, tomando chá por sob as máscaras que, a pedido de Ellen Coughlin, toda a família comprometeu-se a usar em toda parte, menos em seus próprios quartos. O chá foi servido por Nora. Normalmente, essa tarefa cabia a Avery Wallace, mas há três dias ele faltava ao trabalho. Estava mal, praticamente acabado, dissera ele ao telefone ao pai de Danny. Danny conhecia Avery desde que ele e Connor eram crianças, e só agora lhe ocorria que nunca fora à casa dele nem conhecera sua mulher. Porque ele era negro?
Aí está.
Porque ele era negro.
Ao levantar os olhos da xícara de chá e contemplar os demais membros da família - estranhamente silenciosos, levantando as máscaras com gestos mecânicos para sorver o chá -, teve uma sensação de absurdo, partilhada por Connor no mesmo instante. Era como se eles ainda fossem coroinhas, ajudando na missa da Gate of Heaven, e bastava um deles olhar para o outro para provocar uma risada no momento mais impróprio. Não importava quantas bengaladas o velho lhes aplicasse na bunda, eles simplesmente não conseguiam se conter. A coisa ficou tão séria que se decidiu separá-los e, depois da sexta série, eles nunca mais ajudaram na missa juntos.
Agora eles estavam experimentando a mesma sensação. O riso rebentou na boca de Danny, seguido imediatamente pelo de Connor. Sem poderem conter o riso, os dois puseram as xícaras no chão e se deixaram vencer por ele.
"O que é?", perguntou o pai. "Qual é a graça?"
"Nada", Connor conseguiu responder, e a palavra saiu abafada pela máscara, o que fez Danny gargalhar ainda mais.
Impaciente e perturbada, a mãe deles disse: "O que é? O que é?".
"Puxa, Dan", disse Connor. "Olhe só você."
Danny sabia que ele se referia a Joe. Ele quis evitar olhar, conseguiu, mas então levantou a vista e viu o menino sentado numa cadeira tão grande que seus sapatos mal chegavam à borda da almofada. Joe, sentado ali com os olhões arregalados, a máscara ridícula e a xícara apoiada no colo do calção xadrez, olhava para os irmãos como se eles fossem lhe dar uma resposta. Mas não havia nada a dizer. A coisa toda era muito boba, muito ridícula. Danny viu as meias com losangos do irmãozinho e seus olhos se encheram de lágrimas enquanto se torcia de tanto rir.
Joe resolveu rir também, e Nora com ele, ambos hesitantes a princípio, mas logo ganhando confiança, porque o riso de Danny sempre fora muito contagiante, e nenhum dos dois conseguia se lembrar da última vez que tinham visto Connor rir tão livre e espontaneamente, e então Connor espirrou, e todos pararam de rir.
A parte de dentro de sua máscara cobriu-se de manchinhas vermelhas que escorreram para fora.
A mãe deles murmurou "Santa Maria Mãe de Jesus" e se benzeu.
"Por que isso?", surpreendeu-se Connor. "Foi um espirro."
"Connor", disse Nora. "Meu Deus, Connor, querido."
"O que é?"
"Con", falou Danny levantando-se da cadeira. "Tire a máscara."
"Oh não, oh não, oh não", sussurrou a mãe.
Connor tirou a máscara e, depois de examiná-la com atenção, balançou a cabeça e respirou fundo.
Danny disse: "Vamos dar uma olhada no banheiro".
A princípio, ninguém se mexeu. Danny e Connor entraram no banheiro, trancaram a porta e só então ouviram a família recobrar os movimentos e reunir-se no corredor.
"Incline a cabeça", ordenou Danny.
Connor inclinou a cabeça. "Dan."
"Cale a boca. Deixe-me olhar."
Alguém girou a maçaneta do lado de fora e o pai disse: "Abram".
"Só um segundinho, está bem?"
"Dan", repetiu Connor, a voz ainda trêmula por causa do riso.
"Quer manter a cabeça inclinada para trás? Não tem a menor graça."
"Bem, você está olhando meu nariz."
"Sei que estou. Cale a boca."
"Está vendo alguma catota?"
"Algumas." Danny sentiu um sorriso forçando os músculos do rosto do irmão. Só Connor mesmo. Sério feito um túmulo em dias normais, e agora, possivelmente à beira do túmulo, não conseguia ficar sério.
Alguém sacudiu a porta novamente e bateu.
"Eu cutuquei", disse Connor.
"O quê?"
"Pouco antes da mamãe trazer o chá. Eu estava aqui, com metade da mão dentro do nariz, Dan. Tinha uma daquelas cacas duras lá dentro, sabe?"
Danny parou de examinar o nariz do irmão. "Você o quê?"
"Eu enfiei o dedo no nariz", explicou Connor. "Acho que preciso cortar as unhas."
Danny olhou para ele, e Connor riu. Danny deu-lhe um tapa no lado da cabeça, e Connor aplicou-lhe um golpe curto na nuca. Quando eles abriram a porta para os outros membros da família, postados pálidos e furiosos no corredor, os dois irmãos estavam rindo como coroinhas.
"Ele está bem."
"Estou bem. Foi só o nariz que sangrou. Olhe, mamãe, já parou."
"Pegue outra máscara na cozinha", disse o pai voltando para a sala de visitas e fazendo um gesto de desagrado.
Danny pegou Joe olhando para eles com uma expressão próxima do espanto.
"Um sangramento no nariz", disse ele a Joe, escandindo as palavras.
"Não tem a menor graça", censurou a mãe deles asperamente.
"Eu sei, mãe", concordou Connor. "Eu sei."
"Eu também sei", reforçou Danny, surpreendendo um olhar de Nora bem semelhante ao da mãe, e então se lembrou de ouvi-la chamar seu irmão de "querido" Connor.
Quando teria começado?
"Não, não sabem", disse a mãe deles. "Não sabem mesmo. Vocês dois nunca souberam." Ela entrou no quarto e fechou a porta.
Quando Danny recebeu a notícia, fazia cinco horas que Steve Coyle estava doente. Acordara de manhã com as coxas parecendo gesso, tornozelos inchados, panturrilhas contraindo-se, cabeça latejando. Ele não perdeu tempo tentando se convencer de que era alguma outra coisa. Esgueirou-se para fora do quarto onde passara a noite com a viúva Coyle, pegou suas roupas e saiu para a rua. Não parou nem uma vez, mesmo com as pernas do jeito que estavam, arrastando-se atrás do resto do corpo como se tivessem resolvido ficar paradas, ainda que o tronco seguisse em frente. Depois de ter andado alguns quarteirões - contou ele a Danny -, as malditas pernas reclamavam tanto que era como se pertencessem a outra pessoa. Elas gemiam a cada passo. Ele tentou andar até o ponto do bonde, mas aí pensou que podia infectar todos os que estivessem no veículo. E então se lembrou de que, de todo modo, os bondes tinham parado de circular. Portanto, o jeito era andar. Do apartamento sem água quente da viúva Coyle, no alto do Mission Hill, até o Peter Bent Hospital eram onze quarteirões. Ele estava quase rastejando quando chegou ao hospital, dobrado para a frente feito um fósforo quebrado, sentindo dores que lhe subiam pelo abdome, pelo peito, pela garganta... meu Deus do céu. E a cabeça então... Quando ele chegou ao balcão de atendimento, era como se alguém tivesse lhe enfiando canos dentro dos olhos.
Ele contou tudo isso a Danny por trás de cortinas de musselina, na ala de doenças infecciosas da UTI do Peter Bent. Não havia mais ninguém ali na tarde em que Danny foi visitá-lo, apenas a massa informe de um corpo do outro lado do corredor. As demais camas estavam vazias, as cortinas fechadas. O que de certa forma era pior.
Danny recebera uma máscara e luvas; as luvas estavam no bolso de seu casaco; a máscara, pendurada ao pescoço. Ainda assim, mantinha a cortina entre ele e Steve. Contrair a doença não o assustava. Nas últimas semanas, quem não tivesse feito as pazes com o Criador era porque não acreditava ser uma criatura. Mas ver a doença reduzir Steve a pó era outra coisa. Algo que ele dispensaria, se Steve permitisse. Não morrer, mas testemunhar a morte.
Steve falava como se ao mesmo tempo tentasse gargarejar. As palavras forçavam caminho pelo catarro, e o fim das frases sempre se afogava. "Nada da viúva. Dá para acreditar?"
Danny ficou quieto. Ele só encontrou a viúva Coyle uma vez, e a única impressão que ela lhe passara fora a de ser uma pessoa inquieta e egoísta.
"Não consigo ver você", disse Steve limpando a garganta.
Danny falou: "Eu estou te vendo, meu chapa".
"Quer abrir a cortina?"
Danny não se moveu de imediato.
"Está com medo? Eu entendo. Esquece."
Danny inclinou-se para a frente algumas vezes, deu um pequeno puxão na calça na altura dos joelhos, inclinou-se mais uma vez e abriu a cortina.
Steve estava sentado em posição ereta, o travesseiro enegrecido por sua cabeça. O rosto estava inchado e ao mesmo tempo esquelético, como o de dezenas de outros infectados, vivos e mortos, que Danny vira naquele mês. Seus olhos estavam esbugalhados como se quisessem fugir das órbitas, e neles se formava uma película leitosa que escorria pelos cantos. Mas sua pele não estava arroxeada nem escura. Ele não estava pondo os pulmões pela boca nem defecando na cama. Portanto, tudo somado, não estava tão doente como era de se temer. Ou pelo menos não ainda.
Ele olhou para Danny, arqueou as sobrancelhas e lhe deu um sorriso cansado.
"Lembra-se daquelas garotas que paquerei neste verão?"
Danny fez que sim. "Com algumas delas você foi mais além."
Ele tossiu. Uma tosse pequena, abafada com o punho. "Escrevi uma canção. Na minha cabeça. ‘Garotas do Verão’."
De repente Danny começou a sentir o calor que vinha do corpo do amigo. Se chegava a trinta centímetros dele, as ondas lhe atingiam o rosto.
"‘Garotas do Verão’, hein?"
"‘Garotas do Verão’." Os olhos de Steve se fecharam. "Qualquer dia desses eu canto para você."
Danny viu um balde de água na mesinha de cabeceira. Meteu a mão dentro dele, tirou um pano, torceu-o e pressionou-o na testa de Steve. Os olhos do amigo voltaram-se rapidamente para ele, ardentes e cheios de gratidão. Danny abaixou-lhe a testa, limpou seu rosto, jogou o pano dentro da água fria e torceu-o novamente. Então limpou as orelhas, o pescoço e o queixo do parceiro.
"Dan."
"Sim?"
Steve fez uma careta. "Parece que tem um cavalo em cima do meu peito."
Danny manteve o olhar calmo. Não o desviou do rosto de Steve quando jogou o pano no balde. "Dói muito?"
"Sim, dói."
"Você consegue respirar?"
"Não muito bem."
"Então é melhor chamar um médico."
Steve moveu os olhos rapidamente a essa sugestão.
Danny afagou-lhe a mão e chamou o médico.
"Fique aqui", disse Steve. Seus lábios estavam brancos.
Danny sorriu, fez que sim com a cabeça e girou no banquinho que tinham empurrado para perto da cama quando ele chegou. E chamou o médico novamente.
Avery Wallace, que trabalhara por dezessete anos para a família Coughlin, sucumbiu à gripe e foi enterrado no Cemitério Cedar Grove, num jazigo que Thomas Coughlin comprara para ele dez anos antes. Somente Thomas, Danny e Nora compareceram ao funeral. Ninguém mais.
Thomas disse: "A mulher dele morreu há vinte anos. Os filhos se espalharam por aí, a maioria está em Chicago, um deles foi para o Canadá. Nunca escreviam. Ele perdeu contato. Era um homem bom. Difícil de conhecer, mas, de todo modo, bom".
Danny surpreendeu-se ao perceber um leve tom de pesar na voz do pai.
Quando o caixão de Avery baixou ao túmulo, o pai pegou um punhado de terra e o jogou sobre a madeira. "Que o Senhor tenha piedade da sua alma."
Nora ficou de cabeça baixa, lágrimas escorrendo-lhe pelo queixo. Danny estava chocado. Como fora possível conviver com aquele homem durante quase toda a sua vida e, de alguma forma, nunca tê-lo visto?
Ele jogou um punhado de terra no caixão.
Porque ele era negro. Era por isso.
Steve saiu do Peter Bent Hospital dez dias depois de dar entrada. Como milhares de outros na cidade, sobrevivera à doença, ainda que a gripe estivesse devastando o resto do país, avançando rumo à Califórnia e ao Novo México no mesmo fim de semana em que ele andou até um táxi com Danny.
Ele usava uma bengala, e assim o faria pelo resto da vida, segundo os médicos. A gripe debilitara seu coração e afetara o cérebro. Nunca mais deixaria de ter dores de cabeça. Por vezes, o simples ato de falar já poderia ser um problema. Atividades mais extenuantes certamente o matariam. Há uma semana ele tiraria sarro dessas coisas, mas agora estava calado.
O ponto de táxi não ficava longe, mas eles levaram muito tempo para ir até lá.
"Nem ao menos um trabalho burocrático", ele reclamou quando chegaram ao táxi que estava no começo da fila.
"Eu sei", concordou Danny. "Sinto muito."
"‘Muito extenuante’, eles disseram."
Steve entrou no táxi com dificuldade. Danny lhe passou a bengala, deu a volta e entrou.
"Para onde?", perguntou o taxista.
Steve olhou para Danny. Danny olhou para ele, esperando.
"Caras, vocês são surdos? Para onde?"
"Fica calmo, porra." Steve lhe deu o endereço do edifício da Salem Street. Quando o motorista deu a partida, Steve olhou para Danny. "Você me ajuda a arrumar minhas coisas para mudar?"
"Você não precisa mudar."
"Não tenho dinheiro para o aluguel. Sem emprego."
"E a viúva Coyle?", perguntou Danny.
Steve sacudiu os ombros. "Desde que peguei a gripe, nunca mais a vi."
"Para onde você vai?"
Outro sacudir de ombros. "Tem de haver alguém que queira contratar um aleijado deprimido."
Danny ficou calado por um instante. Eles avançavam sacolejando pela Huntington.
"Tem de haver uma maneira de..."
Steve pôs a mão no braço do amigo. "Coughlin, eu te amo, cara, mas nem sempre se pode ‘dar um jeito’. A maioria das pessoas cai e não há rede de proteção. Nenhuma. Nós simplesmente vamos."
"Para onde?"
Steve ficou calado por um instante. Olhou pela janela, crispou os lábios. "Para o lugar aonde vão as pessoas sem rede de proteção. Para lá."
7.
Luther estava jogando bilhar sozinho no Ganso de Ouro quando Jessie veio lhe dizer que o Diácono queria falar com ele. O Ganso estava vazio, porque Greenwood inteira estava vazia, toda Tulsa estava vazia: a gripe viera como uma tempestade de areia, que duraria até que pelo menos um membro da maioria das famílias a contraísse, e a metade deles morresse. Era proibido sair de casa sem máscara, e a maioria dos estabelecimentos do lado ruim de Greenwood havia fechado, embora o velho Calvin, dono do Ganso, tivesse declarado que, se o Senhor quisesse sua carcaça velha e cansada, era só levá-la embora, e que fizesse bom proveito. Então Luther ia lá e praticava sinuca, apreciando a limpidez com que se ouvia o som das bolas se chocando em meio a todo aquele silêncio.
O Hotel Tulsa permaneceria fechado até que as pessoas parassem de ficar roxas, e ninguém estava apostando em nada, portanto não havia como ganhar dinheiro àquela altura. Luther proibiu Lila de sair de casa, disse que não queria que ela nem o bebê corressem riscos. Isso significava, porém, que ele tinha de ficar em casa com ela. Ele ficou, e a coisa foi muito melhor do que poderia imaginar. Ajeitaram um pouco a casa, deram uma nova demão de tinta em cada aposento e penduraram as cortinas que a tia Marta lhes dera de presente no casamento. Eles arrumaram tempo para fazer amor quase todas as tardes, com mais vagar do que antes, com mais suavidade, sorrisos brandos em lugar dos sôfregos grunhidos e gemidos do verão. Naquelas semanas ele se lembrou do quanto amava aquela mulher, e de como ser amado por ela fazia dele um homem mais digno. Eles fizeram planos para o futuro e o futuro do bebê, e pela primeira vez na vida Luther conseguia imaginar uma vida em Greenwood. Ele pensava em trabalhar duro durante uns dez anos e guardar dinheiro para abrir o próprio negócio, talvez uma carpintaria, talvez uma oficina, onde pudesse consertar as engenhocas que todo santo dia pareciam brotar do coração daquele país. Luther sabia que, quando se fabrica algum aparelho mecânico, hora ou outra ele se quebra, e que a maioria das pessoas não sabe consertá-los. Mas um homem com os dons de Luther era capaz de devolvê-los novinhos em folha, e ainda no mesmo dia.
Sim, naquelas poucas semanas ali, ele conseguiu ver tudo aquilo, mas então a casa começou a sufocá-lo novamente. Os sonhos se obscureciam quando ele se imaginava envelhecendo em alguma casa da Detroit Avenue, rodeado de gente como a tia Marta, indo à igreja, abandonando a bebida, o bilhar e a diversão. E um dia ele haveria de acordar de cabelos brancos, já sem sua agilidade, com a sensação de ter deixado de viver a própria vida e seguido a de outra pessoa.
Então ele foi ao Ganso para evitar que aquela inquietação lhe saísse da cabeça e transparecesse nos olhos. Quando Jessie apareceu, a inquietação se manifestou num sorriso aberto e caloroso, porque, cara... ele sentira falta dos dias em que - e haviam se passado apenas duas semanas, embora parecessem dois anos - eles cruzavam os trilhos, vindos da Cidade dos Brancos, para jogar e farrear.
"Eu passei na sua casa", disse Jessie tirando a máscara.
"Porra, por que você está tirando esse troço?"
Jessie lançou um olhar a Calvin e depois a Luther. "Vocês dois estão usando as suas, então por que eu tenho de me preocupar?"
Luther simplesmente ficou olhando para ele, porque uma vez na vida Jessie havia dito coisa com coisa, e ele estava chateado por não ter pensado naquilo antes.
Jessie continuou: "Lila me disse que você estaria aqui. Acho que aquela mulher não gosta de mim, Caipira".
"Você estava de máscara?"
"O quê?"
"Quando falou com minha mulher?"
"Porra, cara. Claro."
"Então tudo bem."
Jessie tomou um gole do cantil. "O Diácono disse que quer falar com a gente."
"Com a gente?"
Jessie fez que sim.
"Para quê?"
Jessie deu de ombros.
"Quando ele disse isso?"
"Há uma meia hora."
"Merda", disse Luther. "Por que você não veio aqui antes?"
"Porque primeiro passei na sua casa."
Luther pôs o taco no suporte. "Estamos encrencados?"
"Não, não. Não é isso. Ele só quer falar com a gente."
"Para quê?"
"Eu já lhe disse, não sei."
"Então como você sabe que não é encrenca?", disse Luther, ao saírem do salão de bilhar.
Jessie olhou para ele enquanto amarrava os cordões da máscara na nuca. "Segure as pontas, garota. Mostre um pouco de coragem."
"Vou pôr um pouco de coragem no seu rabo."
"Uma coisa é dizer, outra é fazer, negão", disse Jessie, rebolando para Luther enquanto os dois corriam pela rua deserta.
"Sentem-se aqui perto de mim", disse Broscious quando eles entraram no Club Almighty. "Bem aqui perto, meninos. Venham."
Ele exibia um largo sorriso, um terno branco sobre uma camisa branca e uma gravata vermelha na mesma tonalidade do chapéu de veludo. Estava sentado em uma mesa redonda no fundo do salão do clube, perto do palco. Ele os saudou sob a luz fraca do ambiente, enquanto Smoke trancava a porta atrás deles. Luther sentiu o gogó vibrar com o barulho. Ele nunca estivera naquele clube fora do horário de funcionamento, e seus boxes de couro bege, paredes vermelhas e banquinhos de cerejeira pareciam menos pecaminosos, porém mais ameaçadores, ao meio-dia.
O Diácono ficou balançando o braço até Luther sentar-se na cadeira da esquerda e Jessie na da direita. Broscious encheu um copo de uísque canadense do pré-guerra para cada um, empurrou-os pela mesa e disse: "Meus rapazes. Sim, claro. Como vão vocês?".
Jessie disse: "Tudo ótimo, senhor".
A custo, Luther falou: "Muito bem, senhor. Obrigado por perguntar".
O Diácono estava sem máscara, embora Smoke e Dandy as usassem, e seu sorriso era grande e branco. "Ah, isso é música para os meus ouvidos, podem acreditar." Ele estendeu a mão por cima da mesa e deu um tapinha no ombro de cada um. "Vocês estão ganhando dinheiro, certo? Eh eh eh. Sim. Vocês gostam de grana, certo? Estão fazendo uns bons dólares?"
Jessie disse: "Estamos tentando, senhor".
"Tentando o cacete. Estão é ganhando. Vocês são os melhores coletores de aposta que eu tenho."
"Obrigado, senhor. As coisas andam um pouco apertadas por causa dessa gripe. Tem tanta gente doente, senhor, que eles estão sem ânimo para jogar."
O Diácono fez um gesto largo. "As pessoas ficam doentes. Que é que se pode fazer? Não estou certo? Eles estão morrendo com seus entes queridos? Deus nos abençoe, dói no coração ver tanto sofrimento. Todo mundo andando na rua de máscara e as funerárias sem caixões para vender? Meu Deus. Numa situação dessas, a gente põe as apostas de lado. Você simplesmente tranca elas numa gaveta e reza para que a desgraça acabe. E quando acabar? Aí, você volta direto para a aposta. Claro que volta, porra. Mas não - acrescentou apontando o dedo para eles - antes disso. Amém, meus irmãos?"
"Amém", disse Jessie levantando a máscara, enfiando o copo sob ela e engolindo o uísque.
"Amém", disse Luther tomando um pequeno gole.
"Porra, garoto", disse o Diácono. "Você tem de beber e não fingir que bebe."
Jessie riu e cruzou as pernas, pondo-se à vontade.
Luther falou "Sim, senhor", engoliu todo o uísque, e o Diácono encheu novamente seus copos. Luther percebeu que Dandy e Smoke estavam bem atrás deles, a um passo de distância, embora não soubesse dizer quando os dois tinham ido parar ali.
O Diácono tomou um longo e demorado drinque, fez "Ahhh" e lambeu os beiços. Ele cruzou as mãos e debruçou-se sobre a mesa. "Jessie."
"Sim, senhor?"
"Clarence Jessup Tell", disse o Diácono Broscious com voz cantante.
"Em carne e osso, senhor."
O sorriso do Diácono voltou, mais radiante que nunca. "Jessie, deixe-me perguntar uma coisa. Qual foi o momento mais inesquecível da sua vida?"
"Como?"
O Diácono arqueou as sobrancelhas. "Você não teve nenhum?"
"Acho que não estou entendendo, senhor."
"O momento mais inesquecível da sua vida", repetiu o Diácono.
Luther sentiu o suor escorrerendo pelas coxas.
"Todo mundo tem um momento inesquecível", disse o Diácono. "Pode ser uma experiência agradável, pode ser triste. Pode ser uma noite com uma garota. Não estou certo?" Ele riu, o rosto dobrando-se sobre o nariz por causa do esforço. "Pode ser uma noite com um rapaz. Você gosta de rapazes, Jessie? Na minha profissão, a gente não recrimina aquilo que costumo chamar de gostos especiais."
"Não, senhor."
"Não senhor o quê?"
"Não, senhor, não gosto de rapazes", disse Jessie. "Não, senhor."
O Diácono levantou as mãos como que para pedir desculpas. "Uma garota então, hein? Mas jovem, certo? A gente nunca as esquece de quando somos jovens e elas também. Um belo pedaço de chocolate com uma bunda que a gente pode macetar a noite inteira sem que ela se deforme?"
"Não, senhor."
"Não, senhor. Você não gosta de bunda de mulher?"
"Não, senhor, esse não é meu momento mais inesquecível." Jessie tossiu e tomou outro gole de uísque.
"Merda, então qual é, rapaz?"
Jessie desviou os olhos da mesa, e Luther percebeu que ele tentava se acalmar. "Meu momento mais inesquecível, senhor?"
O Diácono bateu na mesa. "O mais inesquecível", trovejou piscando para Luther, como se ele e Luther fossem cúmplices naquele joguinho.
Jessie levantou a máscara e tomou outro gole. "A noite em que meu pai morreu, senhor."
O rosto de Broscious se contorceu de compaixão. Ele passou um guardanapo no rosto, sorveu o ar por entre os lábios crispados e arregalou os olhos. "Sinto muito, Jessie. Como foi que o bom homem faleceu?"
Jessie fitou a mesa e depois levantou o olhar até o rosto do Diácono. "Alguns rapazes brancos do Missouri, onde eu fui criado..."
"Sim, filho."
"Chegaram dizendo que ele tinha invadido a fazenda deles e matado uma mula. Disseram que ele matou a mula para comer, mas que pegaram ele no flagra e o puseram para correr. Pois esses rapazes apareceram em casa no dia seguinte, arrastaram meu pai para fora e o espancaram diante da minha mãe, de mim e das minhas duas irmãs." Jessie bebeu o resto do uísque e respirou fundo. "Ah, merda."
"Eles lincharam seu pai?"
"Não, senhor. Deixaram ele lá e, com a cabeça aberta, ele morreu em casa dois dias depois. Eu tinha dez anos."
Jessie abaixou a cabeça.
O Diácono Broscious estendeu o braço por cima da mesa e segurou na sua mão. "Deus do céu", sussurrou o Diácono. "Deus do céu, Deus do céu." Ele pegou a garrafa, encheu novamente o copo de Jessie e olhou para Luther com um sorriso triste.
"Pelo que aprendi", disse o Diácono Broscious, "a coisa mais inesquecível na vida de um homem raramente é prazerosa. O prazer não nos ensina nada, a não ser que o prazer é prazeroso. E que porra de lição é essa? O macaco que bate uma já sacou isso. Não, não", disse ele. "Sabem qual é o verdadeiro tipo de aprendizagem, meus irmãos? É a dor. Pensem no seguinte: nós só nos damos conta de quanto éramos felizes na infância, por exemplo, quando nos tiram a infância. Normalmente a gente só reconhece o verdadeiro amor depois que ele passou. E então, então a gente diz: Meu Deus, era aquilo. Aquilo era verdadeiro. Mas no momento em que você está vivendo..." Ele sacudiu os ombros enormes e encostou o lenço na testa. "O que nos molda", disse ele, "é o que nos mutila. É um preço alto, reconheço. Mas...", ele abriu os braços e lhes deu seu mais radioso sorriso, "o que você aprende com isso não tem preço."
Luther não viu Dandy e Smoke se mexerem, mas quando ouviu o berro do amigo, eles já tinham prendido os punhos de Jessie na mesa, e Smoke segurava firme a cabeça dele entre as mãos.
Luther disse: "Ei, esperem um...".
A bofetada do Diácono acertou a maçã do rosto de Luther, e arrebentou seus dentes, seu nariz e seu olho. Broscious então agarrou os cabelos de Luther e imobilizou-lhe a cabeça. Dandy sacou uma faca e passou na altura da mandíbula de Jessie, cortando desde o queixo até embaixo da orelha.
Jessie continuou gritando até muito depois de tirarem a faca da sua carne. O sangue saltou do ferimento como se tivesse esperando a vida inteira por aquilo. Enquanto Jessie berrava por trás da máscara, Dandy e Smoke mantinham sua cabeça imóvel, e o sangue derramava-se na mesa. Enquanto isso, o Diácono Broscious puxava os cabelos de Luther e dizia: "Se você fechar os olhos, Caipira, eu pego eles para mim".
Luther piscou por causa do suor, mas não fechou os olhos e viu o sangue transbordar do ferimento e derramar-se por toda a mesa. Trocou um olhar rápido com Jessie, e notou que o amigo já deixara de se preocupar com o ferimento na mandíbula, pois entendera que aqueles poderiam ser os primeiros momentos de um longo e último dia na terra.
"Dê uma toalha a essa mocinha", disse o Diácono, afastando a cabeça de Luther com um empurrão.
Dandy jogou uma toalha na mesa, na frente de Jessie, e então ele e Smoke recuaram. Jessie pegou a toalha, apertou-a contra o queixo, tomou ar por entre os dentes e se pôs a chorar baixinho e a balançar na cadeira, a cara toda vermelha do lado esquerdo. Isso durou mais algum tempo, todo mundo quieto e o Diácono com cara de tédio. Quando a toalha ficou mais vermelha que o chapéu do Diácono, Smoke deu outra a Jessie e jogou a que estava ensanguentada no chão, atrás dele.
"Seu pai ladrão sendo morto?", disse o Diácono. "Passa a ser o segundo momento mais inesquecível da sua vida."
Jessie fechou os olhos e apertou a toalha no queixo com tanta força que Luther pode ver os dedos dele ficarem brancos.
"Amém, irmãos?"
Jessie abriu os olhos e fitou o Diácono, que repetiu a pergunta.
"Amém", sussurrou Jessie.
"Amém", disse o Diácono batendo palmas. "Pelas minhas contas, você vem me surrupiando dez dólares por semana de dois anos para cá. Quanto é que dá isso, Smoke?"
"Mil e quarenta dólares, senhor Diácono."
"Mil e quarenta." O Diácono voltou os olhos para Luther. "E você, Caipira, ou fazia a mesma coisa ou sabia e não me contou. Portanto, também me deve."
Como não sabia o que fazer, Luther concordou com um gesto de cabeça.
"Você não precisa balançar a cabeça como se estivesse confirmando alguma coisa. Você não precisa confirmar merda nenhuma para mim. Se eu digo que é uma coisa, então é, porra." Ele tomou um gole de uísque. "Agora, Jessie Tell, você pode devolver meu dinheiro ou já injetou ele todo no braço?"
Jessie respondeu com voz sibilante: "Eu posso arrumar, senhor, eu posso arrumar".
"Arrumar o quê?"
"Seus mil e quarenta dólares, senhor."
O Diácono arregalou os olhos e voltou-se para Smoke e Dandy. Os três se puseram a rir e pararam quase ao mesmo tempo.
"Você não entendeu mesmo, não é, seu imbecil? Você só está vivo porque eu, em minha infinita bondade, resolvi generosamente considerar o que você pegou como um empréstimo. Eu lhe emprestei mil e quarenta. Você não roubou. Se eu tivesse decidido que você me roubou, esta faca estaria enfiada agora mesmo na sua garganta e seu pau estaria enfiado na sua boca. Então diga isso."
"Dizer o quê, senhor?"
"Diga que foi um empréstimo."
"Foi um empréstimo, senhor."
"De fato", assentiu o Diácono. "Então, em se tratando de um empréstimo, deixe-me esclarecer uma coisa. Quanto cobramos de juros por semana?"
Luther sentiu a cabeça girar e fez um esforço para não vomitar.
"Cinco por cento", respondeu Smoke.
"Cinco por cento", disse o Diácono a Jessie. "Por semana."
Os olhos de Jessie, que tinham se fechado por causa da dor, abriram-se de repente.
"Quanto se paga de juros sobre mil e quarenta?", perguntou o Diácono.
Smoke respondeu: "Acho que dá cinquenta e dois dólares, senhor Diácono".
"Cinquenta e dois dólares", repetiu o Diácono devagar. "Não parece grande coisa."
"Não, senhor Diácono, não parece."
O Diácono coçou o queixo. "Merda, espere... quanto dá isso por mês?"
"Duzentos e oito, senhor", interveio Dandy.
O Diácono abriu seu sorriso verdadeiro, minúsculo, e estava começando a se divertir. "E por ano?"
"Dois mil quatrocentos e noventa e seis", disse Smoke.
"E multiplicado por dois?"
"Ah", disse Dandy, como se ansioso para ganhar o jogo. "Vai dar... hum... vai dar..."
"Quatro mil novecentos e noventa e dois", disse Luther, sem ao menos ter certeza de que estava falando, nem por quê, até as palavras terem saído de sua boca.
Dandy deu-lhe um tapa atrás da cabeça. "Eu sabia, crioulo."
O Diácono encarou Luther, que viu sua cova nos olhos do outro e até ouviu o barulho das pás cavando a terra.
"Até que você não é tão idiota assim, Caipira. Notei desde a primeira vez em que o vi. Saquei que a única besteira que você faz é andar com otários como esse aí sangrando em cima da minha mesa. Foi erro meu permitir que você fizesse amizade com esse crioulo, para minha eterna tristeza." Ele soltou um suspiro e esparramou toda a sua corpulência na cadeira. "Mas agora é tudo leite derramado. Então esses quatro mil novecentos e noventa e dois somados ao empréstimo inicial dão...?" Ele levantou a mão para impedir que qualquer outro respondesse e apontou para Luther.
"Seis mil e trinta e dois."
O Diácono bateu na mesa. "Isso aí. Diabo. E antes que pensem que sou um homem desalmado, vocês precisam entender que mesmo nesse caso eu fui mais que generoso. Imaginem se eu somasse os juros no início de cada semana, como o Dandy e o Smoke haviam sugerido quando calculei a dívida. Estão entendendo?"
Ninguém falou nada.
"Eu disse", continuou o Diácono, "vocês estão entendendo?"
"Sim, senhor", respondeu Luther.
"Sim, senhor", disse Jessie.
O Diácono balançou a cabeça. "Agora como vocês vão me pagar esses seis mil e trinta e dois dólares?"
Jessie afirmou: "Eu vou dar um jeito...".
"Você vai o quê?", disse o Diácono rindo. "Você vai assaltar um banco?"
Jessie não disse nada.
"Quem sabe vocês vão à Cidade dos Brancos e roubam um em cada três homens que encontrarem, todos os dias e todas as noites."
Jessie não disse nada. Luther não disse nada.
"Vocês não conseguem", sussurrou o Diácono, mãos abertas sobre a mesa. "Vocês simplesmente não conseguem. Podem sonhar o quanto quiserem, mas certas coisas estão fora do âmbito das possibilidades. Não, rapazes, não há jeito de me trazerem meus - oh, merda, já é outra semana, quase ia me esquecendo - seis mil e oitenta e quatro dólares."
Os olhos de Jessie desviaram-se para o lado, depois voltaram para o centro. "Senhor, acho que preciso de um médico."
"Você vai precisar mesmo é de um agente funerário, se a gente não bolar uma forma de você sair dessa porra dessa enrascada. Portanto, cale essa porra dessa boca."
Luther disse: "Senhor, basta dizer o que quer que a gente faça que a gente faz".
Dessa vez foi Smoke quem lhe deu um tapa na parte de trás da cabeça, mas o Diácono levantou a mão.
"Tudo bem, Caipira. Tudo bem. Você foi direto ao ponto, e eu respeito isso. Então, de certa forma vou respeitar você."
Ele ajeitou as lapelas do casaco branco e inclinou-se sobre a mesa. "Tem umas pessoas que me devem uma boa grana. Algumas na zona rural, outras aqui mesmo na cidade. Smoke, me passe a lista."
Smoke aproximou-se da mesa e entregou ao Diácono uma folha de papel. Broscious examinou a lista e a pôs sobre a mesa de modo que Luther e Jessie pudessem ver.
"Há cinco nomes nesta lista. Cada filho da puta desses me deve pelo menos quinhentos. Vocês vão pegar o dinheiro hoje. E eu sei o que vocês estão falando dentro da cabeças com suas vozinhas lamurientas. Vocês estão pensando: ‘Mas Diácono, nós não somos a força bruta dessa organização. Quem deve cuidar desses casos barras-pesadas são o Smoke e o Dandy’. Você está pensando isso, Caipira?"
Luther fez que sim.
"Bem, normalmente o Smoke e o Dandy ou algum outro desses sujeitos assustadores cuidariam do caso. Mas não estamos numa época normal. Cada um dos nomes dessa lista tem alguém em casa com a gripe. E não estou a fim de perder nenhum crioulo importante como o Smoke ou o Dandy para essa praga."
Luther disse: "Mas dois crioulos sem importância como nós...".
O Diácono inclinou a cabeça para trás. "Esse rapaz está encontrando sua própria voz. Eu estava certo na avaliação que fiz de você, Caipira: você tem talento." Ele riu e tomou mais um pouco de uísque. "Bem, sim, é disso mesmo que se trata. Vocês vão lá e cobram o dinheiro desses cinco. Se não receberem todo o dinheiro, acho bom vocês darem um jeito de pagar a diferença. Vocês trazem o dinheiro para mim e continuam a fazer mais cobranças até a gripe acabar. E sua dívida ficará reduzida ao principal. "Agora", prosseguiu ele com aquele seu sorriso largo, "o que vocês acham disso?"
"Senhor", disse Jessie. "Essa gripe vem matando as pessoas em apenas um dia!’
"É verdade", concordou o Diácono. "Então, se vocês a pegarem, amanhã já podem estar mortos nesta mesma hora do dia. Mas, se vocês não trouxerem meu dinheiro, crioulo, pode contar que estarão mortos esta noite."
O Diácono lhes deu o nome de um médico a quem deviam procurar na sala dos fundos de um estande de tiro da Second Street. Eles foram para lá depois de vomitarem na ruela atrás do clube de Broscious. O médico, um velho amarelo, alto e bêbado, de cabelo tingido cor de ferrugem, costurou o queixo de Jessie enquanto este respirava ofegante, as lágrimas escorrendo-lhe silenciosamente pelo rosto.
Na rua, Jessie falou: "Preciso tomar alguma coisa para a dor".
"Se você pensar em um pico, eu mesmo me encarrego de te matar", disse Luther.
"Ótimo", disse Jessie. "Mas com esta dor não consigo pensar. Então, o que você sugere?"
Eles entraram pelos fundos de um drugstore na Second Street, e Luther comprou um papelote de cocaína. Ele fez duas carreirinhas para si, para controlar os nervos, e quatro para Jessie. Jessie cheirou-as uma após a outra e tomou uma dose de uísque.
Luther disse: "Vamos precisar de armas".
"Eu tenho armas", disse Jessie. "Merda."
Eles foram ao apartamento de Jessie, que passou a Luther um trinta e oito, escondeu uma Colt quarenta e cinco nas costas e disse: "Você sabe usar isso?".
Luther balançou a cabeça. "Sei que, se algum filho da puta quiser me expulsar de casa, aponto esse troço para a cara dele."
"E se isso não intimidar o cara?"
"Eu é que não vou morrer hoje", disse Luther.
"Então me diz."
"Diz o quê?"
"Se apontar a arma não adiantar, o que você vai fazer?"
Luther pôs o trinta e oito no bolso do casaco. "Eu encho o filho da puta de bala."
"Vamos lá então, crioulo", disse Jessie com os dentes cerrados, embora dessa vez provavelmente fosse por causa da cocaína. "Vamos ao trabalho."
A aparência dos dois era de dar medo. Luther foi o primeiro a reconhecer isso, ao ver o próprio reflexo na janela da sala de estar de Arthur Smalley, quando os dois subiam os degraus da casa dele: dois negros agitados, com máscaras que lhes cobriam rosto e nariz, um deles com uma fileira de suturas pretas eriçadas como uma grade com lanças. Num dia comum, a simples visão de uma dupla como aquela aterrorizaria os bons cristãos de Greenwood e faria que entregassem o dinheiro, mas naquela época aquilo não significava nada; a maioria das pessoas tinha uma aparência de dar medo. As janelas da casinha estavam pintadas com um X, mas Luther e Jessie não tinham escolha senão subir até a entrada e tocar a campainha.
A julgar pelo que viam no entorno da casa, Arthur Smalley tentara a sorte na agricultura. À esquerda da casa, Luther viu um celeiro desbotado e, a vagar em meio a um campo, um cavalo magro e umas vacas que pareciam cheias de bernes. Mas já fazia tempo que nada fora plantado ou colhido e, em pleno outono, as ervas daninhas vicejavam.
Jessie foi tocar a campainha novamente e a porta se abriu. Através da tela eles viram um homem mais ou menos da altura de Luther, mas com quase o dobro de sua idade. Usava suspensórios sobre uma camiseta amarelada por suor velho, máscara no rosto também amarelada, olhos vermelhos de exaustão, de aflição ou de gripe.
"Quem são vocês?", disse ele, as palavras abafadas como se a resposta, fosse qual fosse, não fizesse a menor diferença para ele.
"O senhor é Arthur Smalley?", perguntou Luther.
O homem enfiou os polegares sob os suspensórios. "O que você acha?"
"Tenho de adivinhar?", retrucou Luther. "Eu diria que sim."
"Então você acertou, menino", disse o homem encostando-se na tela. "O que vocês querem?"
"O Diácono nos mandou aqui", explicou Jessie.
"Ele mandou agora?"
Alguém gemeu de dentro da casa, e Luther também pôde sentir o cheiro que vinha do outro lado da porta. Pungente e azedo ao mesmo tempo, como se tivessem deixado ovos, leite e carne fora da geladeira desde julho.
Arthur Smalley viu que o cheiro fez Luther lacrimejar e escancarou a porta de tela. "Vocês não querem entrar e sentar um pouco?"
"Não, senhor", respondeu Jessie. "O que nos diz de trazer o dinheiro do Diácono?"
"O dinheiro, ahn?", disse ele batendo nos bolsos. "Sim, tenho algum dinheiro. Tirei hoje de manhã do poço de dinheiro. Ainda está um pouco úmido, mas..."
"Nós não estamos brincando, senhor", advertiu Jessie puxando o chapéu e descobrindo a testa.
Na soleira da porta, Arthur Smalley apoiou o corpo para a frente. Luther e Jessie se inclinaram para trás. "Olhem para mim; parece que tenho trabalhado ultimamente?"
"Não, senhor."
"Não, não tenho", disse Arthur Smalley. "Sabem o que andei fazendo?"
Ele sussurrou as palavras e Luther recuou um pouco mais, escapando do sussurro, como se alguma coisa nele soasse repulsiva.
"Enterrei minha filha mais nova no quintal anteontem à noite", murmurou Arthur Smalley com o pescoço esticado. "Embaixo de um olmo. Ela gostava tanto daquela árvore...", acrescentou ele sacudindo os ombros. "Ela tinha treze anos. Minha outra filha está de cama, com a gripe. E minha mulher? Está dormindo há três dias, a cabeça quente feito uma chaleira com água fervendo. Ela vai morrer." Ele balançou a cabeça. "Provavelmente esta noite. Ou então amanhã. Têm certeza de que não querem entrar?"
Luther e Jessie fizeram que não.
"Tenho uns lençóis cheios de suor e de merda que precisam ser lavados. Vocês podiam me dar uma mão."
"O dinheiro, senhor Smalley." Luther queria distância daquela varanda e daquela doença, e odiava Arthur Smalley por não lavar a camiseta.
"Eu não..."
"O dinheiro", disse Jessie já com o quarenta e cinco na mão, balançando junto à perna. "Chega de lorota, vovô. Traz a porra da grana."
Mais um gemido lá dentro, desta vez baixinho, demorado e ressentido. Arthur Smalley ficou olhando para eles por tanto tempo que Luther pensou que o velho entrara numa espécie de transe.
"Vocês não têm um pingo de decência?", perguntou ele, encarando primeiro Jessie e depois Luther.
Luther disse a verdade. "Nem um pingo."
Os olhos de Arthur Smalley se arregalaram. "Minha mulher e minha filha estão..."
"O Diácono não se importa com suas responsabilidades domésticas", disse Jessie.
"E vocês se importam com quê?"
Luther não olhava para Jessie e sabia que Jessie não olhava para ele. Luther puxou o trinta e oito da cintura e apontou para a testa de Arthur Smalley.
"Com o dinheiro", disse ele.
Arthur Smalley olhou para o tambor do revólver, depois para os olhos de Luther. "Menino, como é que sua mãe tem coragem de andar na rua sabendo que pariu uma criatura como você?"
"O dinheiro", repetiu Jessie.
"Senão o quê?", disse Arthur, que era exatamente o que Luther temia que ele dissesse. "Você vai atirar em mim? Porra, por mim tudo bem. Você quer matar minha família a tiros? Faça-me esse favor. Vocês não vão..."
"Eu vou fazer você desenterrá-la", disse Jessie.
"Você o quê?"
"Você ouviu."
Arthur Smalley fraquejou e se encostou na ombreira da porta. "Não é possível que tenha dito isso."
"Mas eu disse, porra", falou Jessie. "Vou fazer você desenterrar sua filha. Ou então eu te amarro e você vai ter de me ver desenterrando ela. Aí eu deixo o corpo fora da cova, encho a cova de terra e te faço enterrar ela de novo."
Nós vamos para o inferno, pensou Luther. Seremos os primeiros da fila.
"O que você acha disso, vovô?", perguntou Jessie recolocando o quarenta e cinco na cintura.
Os olhos de Arthur Smalley encheram-se de lágrimas, e Luther rezou para que elas não caíssem. Por favor, não caiam. Por favor.
Arthur disse: "Não tenho dinheiro nenhum", e Luther entendeu que para ele a luta terminara.
"Então o que você tem?", perguntou Jessie.
Seguido por Jessie, que dirigia seu Ford Bigode, Luther saiu de detrás do celeiro ao volante do Hudson de Arthur Smalley e passou em frente à casa. O homem ficou de pé na varanda enquanto eles passavam. Luther engatou a segunda e acelerou ao cruzar a cerquinha do jardim sujo, querendo se convencer de que não tinha visto a terra recém-revolvida sob o olmo, de que não vira a pá enfiada no monte de terra marrom-escuro. Nem a cruz feita de finas pranchas de pinho pintadas de um branco mortiço.
Quando eles terminaram o serviço com os homens da lista, estavam de posse de muitas joias, mil e quatrocentos dólares em dinheiro vivo e um baú de mogno preso à parte de trás do carro que pertencera a Arthur Smalley.
Eles viram uma criança ficando azul feito um crepúsculo e uma mulher não muito mais velha que Lila jazendo numa cama improvisada na varanda de uma casa, ossos, dentes e olhos voltados para o céu. Viram o cadáver de um homem apoiado contra um celeiro, escuro até não poder mais, como se um raio lhe tivesse rachado o crânio, a carne coberta de vergões.
Era o Juízo Final, Luther não tinha dúvida. Estava chegando para todo mundo. Ele e Jessie iriam se apresentar diante do Senhor e Lhe prestar contas do que fizeram naquele dia. E não havia maneira de prestar contas daquilo. Nem no curso de dez vidas.
"Vamos devolver isso", disse ele depois da terceira casa.
"O quê?"
"Vamos devolver isso e fugir."
"E passar o resto dessas porras dessas nossas curtas vidas olhando por cima do ombro, com medo de ver o Dandy, o Smoke ou algum outro crioulo fodido com uma arma na mão e sem nada a perder? Onde você acha que nós, dois fugitivos negros, iríamos nos esconder?"
Luther sabia que o outro tinha razão, mas sabia também que aquilo estava torturando Jessie da mesma forma que o torturava.
"A gente pensa nisso depois. Nós..."
Jessie riu, e aquele foi o riso mais feio que Luther ouvira de sua boca. "A gente faz isso ou morre, Caipira." E, num movimento largo, ele sacudiu os ombros. "E você sabe disso. A menos que você queira seguir em frente e assinar sua sentença de morte e a da sua mulher."
Luther entrou no carro.
O último cara, Owen Tice, pagou-lhes em dinheiro vivo e disse que de todo modo não lhe sobraria tempo para gastá-lo. Logo que sua Bess falecesse, ele ia pegar a espingarda e fazer a grande viagem com ela. Ele estava com a garganta seca desde o meio-dia, ela estava começando a arder. Além do mais, sem Bess não tinha sentido continuar. Desejou boa sorte aos dois. Disse que entendia a posição deles. Entendia mesmo. A gente precisa sobreviver, não é? Não havia de que se envergonhar.
"Toda a minha família - vocês acreditam numa merda dessas? Há uma semana estávamos todos reunidos em volta da mesa do jantar - meu filho e minha nora, minha filha e meu genro, três netos e Bess. Comendo e jogando conversa fora. E então, e então... foi como se Deus enfiasse a mão no telhado da casa, pegasse toda a nossa família e a esmagasse."
"Como se fôssemos moscas pousadas na mesa", disse ele. "Simples assim."
À meia-noite, eles seguiam por uma Greenwood Avenue vazia. Luther contou vinte e quatro janelas marcadas com um X, e eles estacionaram atrás do Club Almighty. Os edifícios da ruela estavam às escuras, as escadas de incêndio erguiam-se acima deles, e Luther imaginou se ainda restava alguma coisa ou se o mundo todo ficara roxo e infectado pela gripe.
Jessie pôs o pé no estribo de seu Ford Bigode, acendeu um cigarro e soprou a fumaça em direção à porta traseira do Club Almighty, balançando a cabeça de vez em quando, como se estivesse escutando uma música que Luther não conseguia ouvir. Então ele olhou para Luther e disse: "Eu saio andando".
"Você sai andando?"
"Sim", disse Jessie. "Eu saio andando, a estrada é longa e o Senhor não está comigo. Nem com você, Luther."
Desde que eles se conheceram, Jessie nunca tinha chamado Luther pelo primeiro nome, nem ao menos uma vez.
"Vamos descarregar esta merda", disse Luther. "Está bem, Jessie?" Ele estendeu a mão para as correias que prendiam o baú com o enxoval de Tug e Ervina Irvine na parte de trás do carro de Arthur Smalley. "Agora vamos. Vamos acabar com essa merda."
"Não está comigo", continuou Jessie. "Não está com você. Não está na ruela. Acho que Ele abandonou este mundo. Ele encontrou outro com que se preocupar." Ele riu e deu uma longa tragada no cigarro. "Quantos anos você acha que a criança azul tinha?"
"Dois", respondeu Luther.
"Foi mais ou menos isso que calculei", disse Jessie. "Mas nós tomamos as joias da mãe dela, não tomamos? Estou com a aliança aqui no meu bolso." Ele bateu no peito, sorriu e completou: "Eh eh, pois é".
"Por que a gente não..."
"Vou lhe dizer uma coisa", disse Jessie puxando o casaco e brandindo os punhos. "Vou lhe dizer uma coisa", repetiu ele apontando para a porta dos fundos da boate, "se esta porta estiver fechada, pode esquecer o que eu disse. Mas se estiver aberta... Deus toma conta desta ruela. É isso aí."
E ele avançou até a porta, girou a maçaneta e ela se abriu.
Luther disse: "Isso não significa merda nenhuma, Jessie. Só que alguém se esqueceu de fechar a porta".
"Diga-me uma coisa", pediu Jessie. "Deixa eu te perguntar... você acha que eu seria capaz de obrigar aquele homem a desenterrar sua filha?"
Luther respondeu: "Claro que não. Nós não seríamos. Nós estávamos de cabeça quente. Só isso. De cabeça quente e no maior cagaço. A gente pirou".
Jessie ordenou: "Largue essas correias, mano. Nós não vamos tirar nada daí agora."
Luther afastou-se do carro e disse: "Jessie".
Jessie esticou a mão tão rápido que poderia ter arrancado a cabeça de Luther do pescoço, mas ela mal roçou sua orelha. "Você é um bom sujeito, Caipira."
Jessie entrou no Club Almighty, e Luther o seguiu. Eles avançaram por um corredor sujo e fedendo a mijo, passaram por uma cortina preta de veludo e chegaram junto ao palco. O Diácono Broscious estava sentado no mesmo lugar em que eles o tinham deixado, na mesa perto do palco. Estava bebericando chá branco com leite num copo transparente e, pelo sorriso que lhes deu, Luther percebeu que havia alguma coisa no chá além de leite.
"Na última badalada", disse o Diácono indicando com um gesto a escuridão à sua volta. "Vocês chegaram na última badalada. Devo pôr minha máscara?"
"Não, senhor", respondeu Jessie. "O senhor não precisa se preocupar."
O Diácono esticou a mão como se estivesse procurando a máscara. Seus movimentos eram pesados e atrapalhados, e a certa altura ele sacudiu as mãos esquecendo aquela ideia, e sorriu para eles com o rosto coberto de gotas de suor.
"Hum", fez ele. "Você parecem cansados."
"Estamos cansados", disse Jessie.
"Bem, então venham aqui e sentem-se. Chorem suas dores ao Diácono."
Dandy emergiu das sombras à esquerda do Diácono, trazendo um bule de chá numa bandeja, máscara balançando acima da cabeça, ao sopro do ventilador. Ele indagou: "Por que vocês vieram pela porta de trás?".
Jessie respondeu: "Foi onde nossos pés nos trouxeram. Só isso, senhor Dandy", depois sacou o quarenta e cinco do cinturão e atirou na máscara de Dandy, cujo rosto desapareceu num borrifo vermelho.
Luther abaixou-se e disse: "Espere!", enquanto o Diácono levantava as mãos e dizia: "Veja bem...", mas Jessie atirou, e os dedos da mão esquerda do Diácono se soltaram e foram bater na parede atrás dele. O Diácono gritou alguma coisa que Luther não entendeu, depois falou: "Espere aí, oquei?", e Jessie atirou novamente. Por um instante, o Diácono não mostrou nenhuma reação, e Luther achou que o tiro tinha atingido a parede, mas aí notou que a gravata vermelha de Broscious estava se alargando. O sangue aflorava em sua camisa branca. O Diácono deu uma olhada, e de sua boca saiu um único suspiro úmido.
Jessie voltou-se para Luther, brindou-o com o grande sorriso que era sua marca registrada e disse: "Caralho. Um tanto divertido, não é?".
Luther viu alguma coisa que mal percebeu ter visto, algo vindo do palco. Ele quis dizer "Jessie", mas a palavra não saiu de sua boca antes que Smoke, braço estendido, aparecesse entre a bateria e o estrado. Jessie mal começara a se voltar para ele quando o ar pipocou primeiro com uma luz branca, depois amarela e vermelha. Smoke disparou duas balas na cabeça de Jessie e uma no pescoço, e o corpo de Jessie agitou-se feito um boneco elástico.
Ele tombou no ombro de Luther, que tentou segurá-lo, mas em vez disso agarrou sua pistola, enquanto Smoke continuava atirando. Luther levantou o braço na frente do rosto, como se pudesse proteger-se das balas, disparou o quarenta e cinco de Jessie, sentiu o coice da arma na mão, viu todos os mortos e todos os corpos enegrecidos e arroxeados daquele dia e ouviu a própria voz gritando: "Não, por favor, não, por favor". Ele imaginou uma bala atingindo-lhe cada um dos olhos, ouviu um grito - agudo e horrorizado -, parou de atirar e abaixou o braço que protegia o rosto.
De soslaio viu Smoke encolhido no palco, os braços em volta da barriga e a boca escancarada. O pé esquerdo contraía-se espasmodicamente.
De pé no meio de quatro cadáveres, Luther examinou o próprio corpo para ver se tinha ferimentos. Seu ombro estava todo ensanguentado; porém, ao desabotoar a camisa e se apalpar, percebeu que o sangue era de Jessie. Ele tinha um corte sob o olho, mas era um ferimento leve. Fosse lá o que fosse que lhe atingira o rosto, não tinha sido uma bala. Seu corpo, entretanto, parecia pertencer a outra pessoa, a um dono que, quem quer que fosse, não devia ter entrado pela porta dos fundos do Club Almighty.
Ele olhou Jessie estendido no chão, uma parte sua querendo chorar, mas a outra sem sentir absolutamente nada, nem mesmo alívio por estar vivo. A parte de trás da cabeça de Jessie parecia ter servido de pasto a algum animal, e ainda escorria sangue do buraco em seu pescoço. Luther se ajoelhou numa parte do assoalho aonde o sangue ainda não chegara e inclinou a cabeça para olhar nos olhos do amigo. Eles pareciam um pouco surpresos, como se o velho Byron tivesse acabado de lhe dizer que as gorjetas da noite tinham sido maiores que o esperado.
Luther sussurrou "Oh, Jessie", fechou-lhe as pálpebras com o polegar e pôs a mão em seu rosto. A carne começara a esfriar, e Luther pediu a Deus que por favor perdoasse seu amigo pelo que fizera naquele dia, porque ele estava desesperado, sob ameaça, mas, Senhor, ele era um bom homem e nunca antes fizera mal a não ser a si mesmo.
"Você pode... dar... um jeito... nisso."
Luther voltou-se ao ouvir aquela voz.
"Um rapaz es-es-perto como você." O Diácono respirava ofegante. "Rapaz esperto..."
Luther se pôs de pé ao lado do corpo de Jessie com o revólver na mão, andou até a mesa de modo a ficar à direita do Diácono. Isso obrigou o gordo estúpido a girar a cabeçorra para poder vê-lo.
"Vai chamar o médico que vocês foram de tarde." O Diácono tomou outro fôlego e seu peito chiou. "Vai chamar ele."
"E aí você vai simplesmente perdoar e esquecer, não é?", disse Luther.
"Juro... por Deus."
Luther tirou a máscara e tossiu no rosto do Diácono três vezes. "Que tal se eu ficar tossindo em você até descobrirmos se me infectei hoje?"
O Diácono agarrou o braço de Luther, mas Luther se soltou.
"Não toque em mim, demônio."
"Por favor..."
"Por favor o quê?"
O Diácono respirou, seu peito chiou novamente e ele lambeu os lábios.
"Por favor", disse ele.
"Por favor o quê, seu filho da puta?"
"Dê um jeito... nisso."
"Tudo bem", disse Luther pondo o revólver nas dobras sob o queixo do Diácono e puxando o gatilho, com o homem olhando em seus olhos.
"Assim está bem?", gritou Luther vendo o homem tombar para a esquerda e deslizar no encosto do boxe. "Matar meu amigo?", Luther disse e atirou novamente, embora soubesse que ele estava morto.
"Foda-se", berrou Luther para o teto, depois agarrou a própria cabeça e, apertando a arma contra ela, tornou a gritar. Então notou Smoke tentando arrastar-se no palco em meio ao próprio sangue. Luther tirou uma cadeira do caminho com um pontapé e atravessou o palco com o braço estendido. Smoke virou a cabeça e ficou olhando para Luther com olhos que não tinham mais vida que os de Jessie.
Por um espaço de tempo que pareceu uma hora - e Luther nunca haveria de saber exatamente quanto tempo ficou ali -, eles se encararam.
Então Luther sentiu uma nova versão de si mesmo - da qual ele não sabia ao certo se gostava - dizer: "Se você sobreviver, com certeza vai querer me matar".
Smoke piscou os olhos uma vez, bem devagar, confirmando.
Luther abaixou o revólver para ele. Ele viu todas as balas que fabricara em Columbus, viu a sacola preta de seu tio Cornelius, viu a chuva que caíra, quente e suave como o sono, na tarde em que ficou sentado na varanda desejando que seu pai voltasse para casa, quando na verdade já fazia quatro anos que seu pai estava a oitocentos quilômetros de distância, sem a menor pretensão de voltar. Luther abaixou a arma.
Ele viu um lampejo de surpresa atravessar as pupilas de Smoke. Os olhos de Smoke reviraram-se, e ele expeliu um dedal de sangue que lhe escorreu pelo queixo e pela camisa. Smoke caiu no palco e o sangue escorreu de sua barriga.
Luther levantou o revólver novamente. Com certeza agora seria mais fácil, agora que os olhos do homem não o encaravam mais, e ele já atravessava o rio e subia a negra margem, entrando num outro mundo. Bastaria puxar o gatilho mais uma vez. Com o Diácono, ele não hesitou. Por que o fazia agora?
O revólver tremeu em sua mão, e ele o abaixou novamente.
O pessoal do Diácono não levaria muito tempo para juntar as peças daquele quebra-cabeça, para saber que ele estava naquela sala. Quer Smoke sobrevivesse, quer não, o tempo de Luther e de Lila em Tulsa tinha acabado.
Ainda assim...
Ele levantou o revólver novamente, segurou no antebraço para controlar os tremores e apontou para Smoke. Permaneceu assim por um longo minuto, e finalmente teve de encarar o fato de que, mesmo se ficasse ali por uma hora, não iria puxar o gatilho.
"Eu não sou você", disse ele.
Luther olhou para o sangue que ainda escorria do corpo do homem. Lançou um último olhar a Jessie, mais adiante, suspirou e passou por cima do cadáver de Dandy.
"Seus imbecis filhos da puta", disse Luther dirigindo-se à porta. "Vocês é que cavaram isso."
8.
Depois que a epidemia de gripe acabou, Danny voltou a fazer a ronda do dia, enquanto à noite se preparava para assumir o disfarce de radical. Para auxiliá-lo nessa tarefa, Eddie McKenna deixava alguns pacotes à sua porta pelo menos uma vez por semana. Ele os desembrulhava e encontrava pilhas dos últimos jornalecos de propaganda socialista e comunista, além de exemplares de O capital e do Manifesto comunista, discursos de Jack Reed, Emma Goldman, Big Bill Haywood, Jim Larkin, Joe Hill e Pancho Villa. Ele lia panfletos de agitação e propaganda carregados de retórica e imaginava que, para as pessoas comuns, teriam a mesma clareza que um manual de engenharia. De tanto deparar com determinadas palavras - "tirania", "imperialismo", "opressão capitalista", "fraternidade", "insurreição" -, Danny começou a achar que se fazia necessário um vocabulário simplificado para garantir a comunicação entre os operários do mundo. Porém, à medida que as palavras perdiam a individualidade, igualmente perdiam a força e aos poucos também o sentido. Uma vez perdido o sentido, Danny se perguntava como aqueles idiotas - e na literatura bolchevique e anarquista ele ainda estava por encontrar alguém que não fosse idiota - conseguiriam atravessar uma rua como um corpo unificado, quanto mais subverter um país.
Quando não estava lendo discursos, lia cartas daquilo que costumavam chamar de "vanguarda da revolução operária". Ele lia sobre mineiros em greve queimados em casa com suas famílias, membros do sindicato dos operários severamente punidos, líderes sindicais sendo assassinados nas ruas sombrias das cidadezinhas, sindicatos depredados, sindicatos fora da lei, trabalhadores presos, espancados e deportados. E eram sempre pintados como os inimigos do estilo de vida americano.
Para sua surpresa, ocasionalmente Danny sentia-se tomado pela empatia. Não para com todo mundo, claro - ele sempre achou que os anarquistas eram mentecaptos, que só ofereciam ao mundo desejos sanguinários e olhos vidrados, e pouco do que lia deles mudava sua opinião. Os comunistas também lhe pareciam ingênuos irremediáveis, perseguindo uma utopia que não levava em consideração a mais elementar característica do animal humano: a ganância. Os bolcheviques achavam que ela podia ser curada, como uma doença, mas Danny sabia que a ganância era um órgão, da mesma forma que um coração, e que não se poderia removê-lo sem matar o organismo. Os socialistas eram os mais inteligentes - eles reconheciam a existência da ganância -, mas sua mensagem mesclava-se muitas vezes com a dos comunistas, e não era possível ouvi-la, pelo menos neste país, acima do alarido vermelho.
Por mais que se esforçasse, porém, Danny não conseguia entender por que a maioria dos sindicatos proscritos ou perseguidos merecia essa perseguição. Muitas e muitas vezes o que era repudiado como retórica traiçoeira não passava de um homem diante de uma multidão pedindo para ser tratado como um ser humano.
Certa noite, Danny tocou nesse assunto com McKenna quando tomavam café na zona sul, e McKenna sacudiu o dedo diante dele. "Não é com esses homens que você tem de se preocupar, jovem discípulo. Em vez disso, você deve se perguntar: ‘Quem está financiando esses homens? E com que objetivo?’."
Danny bocejou, pois agora vivia sempre cansado e não conseguia se lembrar da última vez que tivera uma boa noite de sono. "Os bolcheviques, talvez?"
"Tem toda razão. Diretamente da Mãe Rússia." Olhos arregalados, ele fitou Danny. "Você acha que isso tudo é uma piada, não? O próprio Lênin disse que o povo da Rússia não vai descansar enquanto todas as nações do mundo não aderirem à revolução. Não é conversa fiada, rapaz. Trata-se de uma ameaça clara contra nosso país." Ele bateu o indicador na mesa. "Meu país."
Danny abafou outro bocejo com o punho. "E como é que vai a história do meu disfarce?"
"Está quase certo", disse McKenna. "Você já entrou para aquele troço que chamam de sindicato dos policiais?"
"Vou a uma reunião na terça-feira."
"Por que demorou tanto?"
"Se Danny Coughlin, filho do capitão Coughlin - e ele mesmo um bom conhecedor de atos egoístas e de motivações políticas -, fosse de repente pedir para ingressar no Boston Social Club, as pessoas iam ficar um pouco desconfiadas."
"Tem toda razão."
"Lembra do meu velho parceiro, Steve Coyle?"
"O que pegou a gripe? Sim, uma pena."
"Ele defendia o sindicato. Estou deixando passar um certo tempo para fazer parecer que sofri longas e tenebrosas noites por causa da doença dele. Finalmente minha consciência despertou, e por isso preciso ver como são as reuniões. Para que pensem que tenho um bom coração."
McKenna acendeu a ponta enegrecida de um charuto. "Você sempre teve um bom coração, filho. Só que esconde isso melhor que a maioria."
Danny deu de ombros. "Acho que comecei a escondê-lo de mim mesmo, então."
"Isso é sempre um perigo", disse McKenna com um aceno de cabeça, como se esse dilema lhe fosse familiar. "Um belo dia não conseguimos lembrar onde deixamos todas as peças que lutamos para guardar conosco. Ou por que nos esforçamos tanto para isso."
Danny foi jantar com Tessa e o pai dela numa noite em que o ar frio cheirava a folhas queimadas. O apartamento deles era maior que o seu. O dele tinha uma chapa elétrica em cima de uma geladeira, mas o dos Abruzze dispunha de uma pequena cozinha com um fogão Raven. Tessa estava cozinhando, os longos cabelos negros presos atrás, cansada e com a pele brilhando por causa do calor. Federico abriu o vinho que Danny trouxera e deixou-o no parapeito da janela para "respirar", enquanto ele e seu convidado, sentados à pequena mesa de jantar na sala de estar, bebericavam licor de anis.
Federico disse: "Ultimamente não tenho visto você aqui no edifício".
"Estou trabalhando um bocado", respondeu Danny.
"Mesmo agora que a epidemia de gripe acabou?"
Danny fez que sim com a cabeça. Aquilo era apenas mais umas das broncas que os policiais tinham do departamento. O agente da polícia de Boston tirava uma folga a cada vinte dias. E nesse dia de folga não tinha permissão para sair da cidade, no caso de alguma situação de emergência. Então a maioria dos caras solteiros morava de aluguel perto de suas delegacias: de que adiantava montar uma casa, se de todo modo você tinha de estar no trabalho dentro de poucas horas? Além do mais, você era convocado para dormir na delegacia três vezes por semana, numa das camas malcheirosas no pavimento superior, cheia de piolhos ou de percevejos, e recém-desocupada pelo pobre coitado que iria tomar seu lugar na próxima ronda.
"Acho que você trabalha demais."
"Não quer dizer isso ao meu chefe?"
Federico sorriu, e era um grande sorriso, do tipo capaz de aquecer uma sala fria. Ocorreu a Danny que um dos motivos que tornavam aquele sorriso impressionante era o fato de que deixava transparecer toda a dor que havia por trás dele. Talvez fosse isso que ele quisera descobrir naquela noite no telhado - a forma como o sorriso de Federico não mascarava a grande dor que certamente lhe toldava o passado; o sorriso, na verdade, a acolhia. E, no ato de acolhê-la, triunfava sobre ela. Uma versão mais suave do sorriso permaneceu quando ele se inclinou e agradeceu a Danny, num sussurro, por "aquele negócio chato" de remover o recém-nascido de Tessa do apartamento. Federico garantiu que, não fosse pelo fato de Danny andar trabalhando tanto, eles o teriam convidado para jantar tão logo Tessa se recuperara da gripe.
Danny lançou um olhar a Tessa e viu que ela estava olhando para ele. Ela abaixou a cabeça, e uma mecha de cabelos caiu de detrás da orelha e lhe cobriu o olho. Ela não era uma jovem americana, lembrou Danny, alguém para quem o sexo com uma pessoa praticamente estranha podia ser complicado mas não estava excluído. Ela era italiana. O Velho Mundo. Tenha modos.
Ele olhou novamente para o pai dela. "Em quê o senhor trabalha?"
"Pode me chamar de Federico", disse o velho afagando-lhe a mão. "Nós tomamos licor de anis juntos, comemos juntos, você pode me chamar de Federico."
Danny agradeceu fazendo um brinde com o copo. "Federico, em quê você trabalha?"
"Eu dou o sopro dos anjos a meros mortais." O velho pôs as mãos nas costas como um empresário. Encostado à parede, entre duas janelas, havia um fonógrafo. Logo que Danny entrou na sala, o aparelho lhe pareceu deslocado naquele lugar. Era de mogno de fibra compacta, com entalhes que lembravam a realeza europeia. O tampo aberto mostrava um prato forrado de veludo roxo e, embaixo, um gabinete de duas portas dava a impressão de ter sido entalhado a mão e tinha nove prateleiras, com espaço para várias dúzias de discos.
A manivela de metal era banhada em ouro, e mal se podia ouvir o ruído do motor quando o disco tocava. O som era de uma riqueza que Danny nunca ouvira em toda a sua vida. Eles estavam escutando o intermezzo da Cavalleria Rusticana de Mascagni, e Danny calculou que, se tivesse entrado no apartamento de olhos vendados, pensaria que a soprano estava na sala de estar com eles. Ele examinou novamente o gabinete e teve certeza de que custara três ou quatro vezes mais que o fogão.
"O Silverstone B-Doze", disse Federico. A voz dele de repente se tornara ainda mais melodiosa do que era. "Eu vendo esses aparelhos. Vendo o B-Onze também, mas acho este mais bonito. O estilo Luís XVI é muito superior ao Luís XV, concorda?"
"Claro", assentiu Danny, da mesma forma que concordaria prontamente se tivessem lhe falado em Luís XIII ou Ivan VIII.
"Não há nenhum outro fonógrafo no mercado que se compare a este", explicou Federico com um brilho no olhar que lembrava o dos evangélicos. "Algum outro fonógrafo toca todo tipo de disco - Edison, Pathé, Victor, Columbia e Silverstone? Não, meu amigo, este é o único capaz disso. Você paga seus oito dólares por um modelo de mesa, porque é mais barato", acrescentou ele franzindo o nariz, "e leve - bah! - e cômodo - bah! - e ocupa pouco espaço. Mas terá um som como o deste? Você vai ouvir anjos? Dificilmente. E então a agulha barata vai se danificar, os discos começarão a pular e logo você estará ouvindo estalos e ruídos. E a quantas estará você a essa altura? Oito dólares mais pobre." Ele estendeu o braço em direção ao fonógrafo novamente, orgulhoso como um pai diante do primogênito. "Às vezes qualidade custa caro. Nada mais justo."
Danny conteve um riso diante do velho e de seu fervoroso capitalismo.
"Papai", disse Tessa lá do fogão, "não fique tão..." Ela sacudiu as mãos, procurando a palavra. "... eccitato."
"Excitado", disse Danny em inglês.
Ela olhou para ele franzindo o cenho. "Eg-sai-ted?"
"Ek", corrigiu ele. "Ek-sai-ted."
"Ek-sai-ted."
"É quase isso."
Tessa levantou a colher de pau. "Inglês!", gritou ela para o teto.
Danny se perguntou que gosto teria aquele seu pescoço cor de mel. As mulheres... a fraqueza dele desde que chegou à idade de notá-las e ver que elas também o notavam. A visão do colo de Tessa era avassaladora. O doce e tremendo desejo de possuir. De possuir - por uma noite - os olhos, o suor, a palpitação do outro. E ali, bem na frente do pai dela. Meu Deus!
Ele se voltou novamente para o velho, que estava de olhos semicerrados, absorvido pela música. Embevecido. Maravilhado e alheio às novidades do Novo Mundo.
"Eu amo a música", disse Federico abrindo os olhos. "Quando eu era menino, os menestréis e os trovadores visitavam nossa aldeia desde a primavera até o verão. Eu ficava ouvindo aquilo até que minha mãe me enxotasse da praça - às vezes com um chicote, sabe? Os sons. Ah, aqueles sons! A fala é um substituto tão pobre, entende?"
Danny balançou a cabeça. "Não sei não..."
Federico aproximou a cadeira da mesa e inclinou-se para a frente. "A língua dos homens já se torna venenosa desde a infância. Sempre foi assim. Um pássaro não mente. O leão é um caçador, é verdade que temível, mas fiel à sua natureza. A árvore e a pedra são verdadeiras - elas são uma árvore e uma pedra. Nada mais, nada menos. Mas o homem, a única criatura a articular palavras, usa esse grande dom para trair a si mesmo, para trair a natureza e a Deus. Ele é capaz de apontar para uma árvore e dizer que não é uma árvore, postar-se sobre seu cadáver e dizer que não o matou. As palavras, entende, falam para o cérebro, e a mente é uma máquina. A música", disse com seu sorriso radioso, levantando o indicador, "fala à alma, porque as palavras são por demais insignificantes."
"Nunca encarei as coisas desse ponto de vista."
Federico apontou para seu precioso bem. "Aquilo é feito de madeira. É uma árvore, mas não é uma árvore. E a madeira é madeira, claro, mas o que ela faz com a música que sai dela? O que é isso? Você tem uma palavra para designar esse tipo de madeira? Esse tipo de árvore?"
Danny sacudiu os ombros de leve, calculando que o velho estava ficando um pouco embriagado.
Federico fechou os olhos novamente, as mãos flutuando à altura dos ouvidos, como se ele próprio estivesse regendo a música.
Danny percebeu que Tessa o estava olhando novamente, mas dessa vez não abaixou a vista. Ele deu seu melhor sorriso, ligeiramente perturbado e um pouco embaraçado, um sorriso de menino. O queixo de Tessa ruborizou-se, mas ela não desviou o olhar.
Danny voltou-se novamente para o pai dela. Os olhos do velho continuavam fechados, as mãos ainda regendo, embora a música tivesse acabado e a agulha estivesse empacada nos últimos sulcos, num vaivém ininterrupto.
Steve Coyle abriu um largo sorriso quando viu Danny entrar no Fay Hall, onde se reuniam os membros do Boston Social Club. Ele avançou por entre cadeiras dobráveis, uma perna arrastando-se visivelmente atrás da outra, e apertou a mão de Danny. "Obrigado por ter vindo."
Danny não esperava aquilo. Sentiu-se duas vezes culpado, por infiltrar-se no BSC sob falsos pretextos, enquanto seu antigo parceiro, doente e desempregado, comparecia para apoiar uma luta da qual já não era um beneficiário.
Danny esforçou-se por sorrir. "Não esperava encontrá-lo aqui."
Por cima do ombro, Steve olhou os homens que estavam no palco. "Eles me deixam participar. Sou um exemplo vivo do que acontece quando você não tem um sindicato com poder de negociação, entende?" Ele deu um tapinha no ombro de Danny. "Como vai?"
"Muito bem", disse Danny. Durante cinco anos ele conhecera, minuto a minuto, cada detalhe da vida de seu parceiro. De repente lhe pareceu estranho dar-se conta de não ter procurado Steve por duas semanas. Estranho e vergonhoso. "Como está se sentindo?"
Steve deu de ombros. "Eu poderia me queixar, mas quem vai ouvir?" Ele riu alto e bateu no ombro de Danny novamente. Sua barba branca estava por fazer. Ele parecia perdido em seu novo corpo avariado. Era como se o tivessem virado de cabeça para baixo e sacudido.
"Você parece bem", afirmou Danny.
"Mentiroso." Mais uma vez, o riso sem jeito, seguido de um ar de seriedade embaraçada, grave e desconfortável. "Estou mesmo muito contente por você estar aqui."
Danny falou: "Ora, não seja por isso".
"Ainda vou transformá-lo num sindicalista", disse Steve.
"Não conte com isso."
Steve lhe deu um terceiro tapinha e começou a apresentá-lo às pessoas. Danny conhecia de vista cerca de metade dos homens, pelo fato de seus caminhos terem se cruzado em várias ocasiões ao longo dos anos. Todos pareciam muito nervosos perto de Steve, como se estivessem torcendo para que ele levasse seus problemas a outro sindicato de policiais, em outra cidade. Como se a má sorte fosse tão contagiosa quanto a gripe. Danny percebia isso em seus rostos quando eles apertavam a mão de Steve - prefeririam que ele estivesse morto. A morte permitia a ilusão do heroísmo. Os aleijados transformavam essa ilusão num odor desagradável.
O diretor do BSC, um patrulheiro chamado Mark Denton, andou a passos largos em direção ao palco. Ele era alto, quase tão alto quanto Danny, e magro feito um cabo de vassoura. Sua pele era pálida, dura e reluzente feito teclas de piano, e os cabelos pretos, penteados para trás, grudados na cabeça.
Danny e os outros homens sentaram-se nas cadeiras quando Mark Denton atravessou o palco e pôs as mãos nas bordas da mesa. Ele dirigiu à sala um sorriso cansado.
"O prefeito Peters cancelou a reunião que tínhamos marcada para o final da semana."
Ouviram-se alguns gemidos na sala, uns poucos assobios.
Denton levantou a mão para acalmá-los. "Andam dizendo que os trabalhadores dos bondes vão fazer greve, e o prefeito acha que, no momento, isso é mais importante. Temos de ir para o fim da fila."
"Talvez a gente devesse entrar em greve", disse alguém.
Os olhos negros de Denton brilharam. "Nós não falamos de greve, rapazes. É exatamente o que eles querem. Vocês sabem como isso iria aparecer nos jornais? Tem certeza de que deseja dar esse tipo de munição a eles, Timmy?"
"Não, não quero, Mark, mas que alternativa nós temos? Estamos morrendo de fome, porra."
Denton reconheceu isso com um firme aceno de cabeça. "Sei que estamos. Mas pronunciar a palavra ‘greve’, ainda que num sussurro, é uma heresia. Vocês sabem disso, e eu também. Nossa melhor chance agora é nos mostrarmos pacientes e iniciarmos as negociações com Samuel Gompers e a Federação Americana do Trabalho."
"Será que isso vai mesmo acontecer?", perguntou alguém atrás de Danny.
Denton fez que sim. "Aliás, eu estava pensando em apresentar uma moção ao plenário. Eu ia deixar para de noite, mas por que esperar?", disse ele dando de ombros. "Os que forem a favor de que o BSC comece a negociar a filiação à FAT, digam ‘Sim’."
Naquele instante Danny sentiu uma agitação atravessar toda a sala, um sentimento de objetivo comum. E ele não podia negar que seu sangue se agitou como o de todos os demais. Uma carona no sindicato mais poderoso do país. Meu Deus.
"Sim", gritou a multidão.
"Quem é contra?"
Ninguém se manifestou.
"Moção aprovada", disse Denton.
Seria realmente possível? Nenhum departamento de polícia do país tinha conseguido isso. Poucos ousaram tentar. Não obstante, eles podiam ser os primeiros. Eles podiam - literalmente - mudar a história.
Danny lembrou-se de que não fazia parte daquilo.
Porque aquilo era uma piada. Aquilo era um bando de homens ingênuos, tremendamente sentimentais, que pensavam poder mudar o mundo pela mera força de suas palavras, para atender às suas necessidades. As coisas não funcionavam assim, Danny poderia ter dito a eles. Funcionavam, aliás, de forma bem diferente.
Depois de Denton, os policiais que foram vítimas da gripe desfilaram no palco, falando de si como os sortudos da história; ao contrário de nove outros policiais das dezoito delegacias do município, eles haviam sobrevivido. Dos vinte que estavam no palco, doze tinham voltado aos seus postos. Oito nunca voltariam. Danny abaixou os olhos quando Steve começou a falar. Aquele Steve que, há apenas dois meses, cantava num quarteto vocal, agora mal conseguia articular as palavras, gaguejava o tempo todo. Ele pediu que não o esquecessem, que não esquecessem a gripe. Pediu que se lembrassem da amizade e do companheirismo que uniam a todos os que fizeram o juramento de proteger e servir.
Ele e os outros dezenove sobreviventes saíram do palco sob forte aplauso.
Os homens misturavam-se em volta das cafeteiras ou então formavam rodinhas e faziam circular garrafas de bebida. Danny logo aprendeu a classificar os principais grupos dentro da associação. Havia os falantes - homens altos, como Roper, da Sétima, que desfiavam estatísticas e logo entravam em discussões exaltadas sobre questões semânticas e detalhes sem importância; havia os bolcheviques e os socialistas como Coogan, da Décima Terceira, e Shaw, que trabalhava com ordens de prisão, que não eram muito diferentes de todos os outros radicais e pretensos radicais sobre os quais vinha lendo ultimamente, sempre prontos a embarcar na retórica mais em voga e sacar um slogan vazio; havia também os emotivos - homens como Hannity, da Décima Primeira, que tinha baixa resistência à bebida e cujos olhos logo marejavam quando ouvia falar em "fraternidade" ou "justiça". Em sua maioria, pois, eram o que o velho professor de inglês de Danny no secundário, o padre Twohy, costumava chamar de homens de "muita falação e pouca ação".
Mas havia também homens como Don Slatterly, do Departamento de Investigação de Roubos e Assaltos, Kevin McRae, um policial da Sexta, e Emmett Strack, veterano com vinte e cinco anos de serviço, da Terceira, que falavam muito pouco, mas que observavam - e viam - tudo. Eles circulavam por entre a multidão e recomendavam cuidado ou moderação aqui, dirigiam palavras de esperança ali. Na maioria das vezes, porém, limitavam-se a ouvir e avaliar. Os homens observavam a movimentação deles da mesma forma que os cães observam o lugar de que seus donos acabaram de sair. Era com aqueles homens e com mais uns poucos como eles, concluiu Danny, que o alto escalão da polícia deveria se preocupar, se quisesse evitar uma greve.
De repente Mark Denton apareceu ao lado de Danny, junto às cafeteiras, e lhe estendeu a mão.
"Você é o filho do Tommy Coughlin, certo?"
"Danny." Ele apertou a mão de Denton.
"Você estava na Salutation no dia da explosão, certo?"
Danny fez que sim.
"Mas lá é a Divisão Portuária", disse Denton mexendo o café.
"O acontecimento mais fortuito da minha vida", explicou Danny. "Eu prendi um ladrão no cais e estava deixando ele na Salutation quando, você sabe..."
"Não vou mentir, Coughlin - você é muito conhecido neste departamento. Dizem que a única coisa que o capitão Tommy não consegue controlar é o próprio filho. Isso faz de você um cara popular. Precisamos de gente como você."
"Obrigado. Vou pensar no caso."
Os olhos de Denton varreram a sala. Ele se aproximou mais de Danny. "Pense rápido, está bem?"
Tessa gostava de descer à varanda nas noites de tempo ameno, quando o pai estava fora, vendendo seus Silverstone B-Doze. Ela fumava cigarrinhos pretos com um cheiro e uma aparência igualmente desagradáveis, e algumas noites Danny ia se sentar ao lado dela. Alguma coisa em Tessa o deixava nervoso. Perto dela, seus membros pareciam incomodá-lo, como se não houvesse uma maneira de fazê-los ficar em repouso. Eles conversavam sobre o tempo, sobre comida, sobre fumo, mas nunca falavam sobre a gripe, nem sobre o filho dela, nem sobre o dia em que Danny a levara para o pronto-socorro.
Logo eles trocaram a varanda pelo terraço. Ninguém subia lá.
Ele ficou sabendo que Tessa tinha vinte anos. Que crescera na aldeia siciliana de Altofonte. Quando ela tinha dezesseis anos, um homem poderoso chamado Primo Alieveri a viu passando de bicicleta pelo bar em que estava com os amigos. Ele procurou se informar sobre ela e marcou um encontro com seu pai. Federico era o professor de música na aldeia, famoso por falar três línguas, mas corria à boca pequena que estava ficando pazzo, tendo casado em idade tão avançada. A mãe de Tessa falecera quando ela tinha dez anos, e o pai a criara sozinho. Ela crescera sem irmãos e sem dinheiro que a pudessem proteger. Então, fechou-se um acordo.
Tessa e o pai fizeram uma viagem a Collesano, no sopé das montanhas Madonie, na costa do Tirreno, e chegaram um dia depois do aniversário de dezessete anos de Tessa. Federico contratara guardas para proteger o dote de Tessa, principalmente joias e moedas herdadas da família materna. Em sua primeira noite na casa de hóspedes da propriedade de Primo Alieveri, cortaram as gargantas dos guardas quando eles dormiam no celeiro e roubaram o dote. Primo Alieveri ficou mortificado e mandou vasculhar a cidade em busca dos bandidos. Ao anoitecer, durante um jantar elegante no salão principal, garantiu aos seus convidados que ele e seus homens estavam fechando o cerco contra os suspeitos. O dote seria recuperado e eles se casariam, como planejado, naquele fim de semana.
Quando Federico desmaiou à mesa, com um sorriso sonhador estampado no rosto, os homens de Primo levaram-no para a casa de hóspedes, e Primo violou Tessa sobre a mesa e depois no chão de pedra, perto da lareira. Ele a mandou de volta à casa de hóspedes, onde ela tentou acordar Federico, mas ele continuou a dormir o sono dos mortos. Ela se deitou no chão ao lado da cama, com o sangue grudado entre as coxas, e finalmente adormeceu.
Na manhã seguinte, eles acordaram com uma balbúrdia no pátio e Primo gritando seus nomes. Saíram da casa de hóspedes e encontraram Primo com dois de seus homens, espingardas penduradas às costas. Os cavalos e a carroça de Tessa e Federico estavam no pátio. Primo lançou-lhes um olhar furioso.
"Um grande amigo da aldeia escreveu para me informar que sua filha não é virgem. Ela é uma putana, indigna de ser noiva de um homem de minha posição. Suma da minha vista, homenzinho."
Federico ainda lutava contra o sono, parecendo completamente atordoado.
Então ele notou o sangue que encharcara o belo vestido branco de sua filha enquanto eles dormiam. Tessa não viu como ele arranjou o chicote, se era o do seu cavalo ou tirado de um gancho do pátio, mas num movimento a chicotada pegou nos olhos de um dos homens de Primo Alieveri e espantou os cavalos. Quando o outro capanga inclinou-se para ajudar o companheiro, a égua de Tessa soltou-se de sua mão e deu um coice no peito do homem. As rédeas do cavalo escorregaram e o animal saiu correndo do pátio. Tessa teria corrido atrás, mas estava hipnotizada pelo pai, seu doce, gentil e um tanto pazzo pai, que derrubara Primo Alieveri no chão a chicotadas, e que continuaria a espancá-lo até que seu corpo soltasse pedaços no pátio. Com o auxílio de um dos guardas (e com sua espingarda), Federico tomou o dote da filha de volta. O baú estava bem visível no quarto do patrão. Ele e Tessa conseguiram pegar a égua e partiram da aldeia antes do anoitecer.
Dois dias mais tarde, tendo gastado metade do dote em propinas, eles embarcaram num navio em Cefalu, com destino à América.
Danny ouviu essa história num inglês imperfeito e hesitante, não porque Tessa não tivesse domínio da língua, mas porque tentava ser precisa.
Danny riu. "Quer dizer então que no dia em que a socorri, quase alucinando, tentando me comunicar com meu italiano estropiado, você estava me entendendo?"
Tessa arqueou as sobrancelhas e deu um leve sorriso. "Naquele dia, a única coisa que eu conseguia entender era a dor. Você acha que eu ia lá me lembrar do inglês? Essa... essa língua maluca de vocês. Vocês usam quatro palavras, quando uma só já daria conta do recado. Vocês fazem isso o tempo todo. Lembrar o inglês naquele dia?", disse ela fazendo um gesto em sua direção. "Menino estúpido."
"Menino?", disse Danny. "Sou alguns anos mais velho que você, meu bem."
"Sim, sim", respondeu ela acendendo mais um daqueles seus cigarros desagradáveis. "Mas você é um menino. Vocês são um país de meninos. E de meninas. Nenhum de vocês se tornou adulto. Acho que vocês se divertem demais."
"Com quê?"
"Com isto", disse ela erguendo a mão em direção ao céu. "Esta nação grande e boba. Vocês americanos... não têm história. Existe apenas o agora. Agora, agora, agora. Eu quero isto agora. Eu quero aquilo agora."
Danny sentiu uma repentina onda de irritação. "Ainda assim todo mundo parece ansioso para deixar seus países e vir para cá."
"Ah, sim. Ruas calçadas com ouro. A grande América onde qualquer um pode fazer fortuna. Mas o que dizer dos que não conseguem? Que dizer dos operários, agente Danny? Hein? Eles trabalham, trabalham e trabalham, e se adoecerem de tanto trabalhar, a empresa diz: ‘Bah. Vá embora e não volte mais’. E se eles sofrem um acidente de trabalho? É a mesma coisa. Vocês americanos falam da sua liberdade, mas para mim não passam de escravos que acham que são livres. Vejo empresas que usam crianças e famílias como se fossem porcos e..."
Danny repeliu aquela fala com um gesto. "Mesmo assim você está aqui."
Ela o fitou com seus grandes olhos negros. Era um olhar cauteloso, a que ele se acostumara. Tessa nunca dizia nada sem pensar. Ela se acercava de cada dia como se precisasse estudá-lo antes de formar uma opinião sobre ele.
"Você tem razão." Ela bateu o cigarro no parapeito. "Vocês são um país muito mais... abbondante que a Itália. Vocês têm essas cidades grandes e barulhentas. Vocês têm mais automóveis num quarteirão que em toda Palermo. Mas vocês são um país muito jovem, agente Danny. Vocês são como uma criança que pensa ser mais inteligente que o pai ou os tios que vieram antes."
Danny deu de ombros, viu Tessa contemplando-o com os mesmos olhos calmos e cautelosos de sempre. Ele tocou o joelho no dela e contemplou a noite.
Certa noite no Fay Hall, quando ele estava sentado no fundo do salão, antes de mais uma reunião do sindicato, se deu conta de que agora dispunha de todas as informações que seu pai, Eddie McKenna e os Velhos esperavam dele. Ele sabia que Mark Denton, como líder do BSC, era exatamente como temiam - inteligente, calmo, intrépido e prudente. Sabia que seus homens de confiança - Emmett Strack, Kevin McRae, Don Slatterly e Stephen Kearns - eram da mesma estirpe. Sabia também quem eram os imprestáveis e os inconsequentes, mais propensos a vacilar, a ceder, a se deixar subornar.
Naquele instante, quando Mark Denton entrou novamente no palco e dirigiu-se à mesa para dar início à reunião, Danny se deu conta de que já sabia tudo o que precisava saber desde a primeira reunião, e aquela já era a sétima.
A única coisa que lhe restava fazer era se sentar com McKenna ou com seu pai e lhes passar suas impressões, as poucas anotações que fizera e uma breve lista da hierarquia do Boston Social Club. Depois disso, ele estaria a meio caminho de seu distintivo de ouro. Diabo, talvez até mais além. A um passo dele.
Então, por que ainda estava ali?
Aquela era a questão do mês.
Mark Denton disse: "Pessoal", e sua voz estava mais suave que o normal, quase inaudível. "Senhores, poderiam me dar um pouco de atenção?"
Havia alguma coisa na calma de sua voz que tocou cada homem que se encontrava no salão. A sala foi ficando silenciosa em grupos de quatro ou cinco fileiras até chegar ao fundo. Mark Denton balançou a cabeça em sinal de agradecimento, deu-lhes um leve sorriso e piscou várias vezes.
"Como muitos de vocês sabem", prosseguiu Denton, "quem me treinou para este trabalho foi John Temple, da Nona Delegacia. Ele costumava dizer que, se não pudesse fazer de mim um agente da polícia, não restariam motivos para não contratar mulheres."
Enquanto pipocavam risadas por todo o salão, Denton abaixou a cabeça por um instante.
"O agente John Temple faleceu esta manhã devido a sequelas da gripe. Ele tinha cinquenta e um anos."
Todos tiraram seus chapéus. Mil homens abaixaram a cabeça no salão enfumaçado. Denton continuou: "Peço que prestemos a mesma homenagem ao agente Marvin Tarleton, da Quinta, que morreu a noite passada devido aos mesmos problemas."
"Marvin morreu?", alguém gritou. "Ele estava melhorando."
Denton balançou a cabeça. "O coração dele parou às onze horas da noite passada." Ele se inclinou sobre a mesa. "A resolução preliminar do departamento é de que a família deles não receba pensão por morte, pois o município já arbitrou de forma semelhante..."
Por um instante, o som das vaias, dos assovios e das cadeiras derrubadas sobrepôs-se à sua fala.
"... porque", gritou ele, "porque, porque..."
Vários homens foram puxados de volta para suas cadeiras. Outros se calaram.
"... porque", continuou Mark Denton, "a autoridade municipal afirma que os homens não morreram no trabalho."
"Como então eles pegaram a gripe, porra?", gritou Bob Reming. "Dos seus cachorros?"
Denton disse: "A autoridade municipal diria que sim. Dos cachorros deles. Eles são cachorros. A autoridade municipal acredita que eles podem ter contraído a gripe em inúmeras ocasiões fora do trabalho. Assim sendo... eles não morreram no cumprimento do dever. É só isso que precisamos saber. É isso que temos de aceitar".
Ele se afastou da mesa quando atiraram uma cadeira para cima. Segundos depois, estourou a primeira troca de socos. E outra. E uma terceira começou na frente de Danny, que procurou manter distância, enquanto os gritos enchiam o saguão e o edifício estremecia de raiva e desespero.
"Vocês estão com raiva?", gritou Mark Denton.
Danny viu Kevin McRae abrir caminho por entre a multidão e acabar com uma das brigas puxando os cabelos dos homens e erguendo-os do chão.
"Vocês estão com raiva?", gritou Denton novamente. "Vão em frente... fiquem aí trocando porradas."
A calma começou a voltar ao salão. Metade dos homens aproximou-se novamente do palco.
"É isso o que eles querem que vocês façam", bradou Denton. "Que se arrebentem uns aos outros. Vão em frente. Sabem o que o prefeito, o governador e a Câmara Municipal vão fazer? Vão rir de vocês."
Os últimos homens que ainda brigavam pararam e se sentaram.
"Vocês estão com raiva o bastante para fazer alguma coisa?", perguntou Mark Denton.
Ninguém respondeu.
"Estão?", gritou Denton.
"Sim!", gritaram mil homens em uníssono.
"Somos um sindicato, homens. Isso significa que nos levantamos como um só homem, com o mesmo objetivo, e levamos nossas reivindicações para o lugar onde eles vivem. E exigimos nossos direitos enquanto homens. Quem de vocês quiser ficar em casa, que fique, porra! Os outros... que me mostrem do que somos feitos."
O salão levantou-se como um só - mil homens, alguns de rosto afogueado, alguns com lágrimas de raiva nos olhos. E Danny, não mais um judas, também se levantou.
Ele se encontrou com o pai quando estava saindo da Sexta, em South Boston.
"Estou fora."
O pai dele parou nos degraus de entrada da delegacia. "Fora de quê?"
"Do trabalho de informante no sindicato, dos radicais, a coisa toda."
O pai desceu as escadas, aproximando-se dele. "Esses radicais podem fazer de você um capitão aos quarenta, filho."
"Não me importo."
"Você não se importa?", disse o pai dirigindo-lhe um sorriso murcho. "Se você jogar essa chance fora, vai passar mais cinco anos sem a menor possibilidade de conseguir o distintivo de ouro. Se é que algum dia terá."
Essa perspectiva encheu-o de medo, mas ele enfiou as mãos mais fundo nos bolsos e balançou a cabeça. "Não vou dedurar meus colegas."
"Eles são subversivos, Aiden. Subversivos dentro do nosso próprio departamento."
"Eles são policiais, pai. A propósito, que tipo de pai é você que me manda fazer um serviço como esse? Você não podia achar outra pessoa?"
O rosto do pai adquiriu um tom cinza. "É o preço do ingresso."
"Que ingresso?"
"Para o trem que nunca descarrila." Ele passou as costas da mão na testa. "Seus netos andariam nele."
Danny fez um gesto de recusa. "Vou para casa, pai."
"Sua casa é aqui, Aiden."
Danny contemplou o edifício de calcário branco com colunas gregas e balançou a cabeça. "É a sua."
Naquela noite ele foi até a porta de Tessa, bateu de leve, olhando para os dois lados do corredor, mas ela não respondeu. Então deu meia volta e seguiu para o próprio apartamento, sentindo-se como um menino levando comida roubada debaixo do casaco. No momento em que chegava à sua porta, ele ouviu a de Tessa se abrir.
Ele se voltou e a viu avançando em sua direção pelo corredor, com um casaco sobre a anágua, descalça, com uma expressão de susto e curiosidade. Quando Tessa se aproximou, Danny tentou pensar em algo que pudesse dizer.
"Eu ainda estou com vontade de conversar", disse ele.
Ela voltou-se para ele, olhos grandes e negros. "Quer ouvir mais histórias dos velhos tempos?"
Ele a imaginou no assoalho do salão de Primo Alieveri, o contraste de sua pele com o mármore e a forma como a luz do fogo se refletia em seus cabelos negros. Era vergonhoso excitar-se com uma imagem como aquela.
"Não", disse ele. "Essas histórias não."
"Outras histórias, então?"
Danny abriu a porta de seu apartamento. Tratava-se de um gesto automático, mas então ele encarou Tessa e viu que o gesto lhe pareceu tudo, menos casual.
"Quer entrar para conversarmos?", perguntou.
Ela ficou ali com seu casaco e a anágua branca puída, encarando-o por um bom tempo. Ele podia ver seu corpo por baixo da anágua. Um leve brilho de suor salpicava-lhe a pele morena sob o côncavo da garganta.
"Eu quero entrar", disse ela.
9.
A primeira vez que Lila pôs os olhos em Luther foi num piquenique ao lado do Minerva Park, numa área verde às margens do rio Big Walnut. Era uma reunião de que deveriam participar apenas as pessoas que trabalhavam na mansão da família Buchanan, em Columbus, enquanto esta se encontrava de férias em Saginaw Bay. Mas então uma pessoa falou para outra, que falou para outra, e esta para mais outra, e quando Lila chegou, no fim da manhã daquele dia quente de agosto, havia pelo menos sessenta pessoas animadíssimas se divertindo à beira do rio. Havia se passado um mês do massacre dos negros em East St. Louis, e aquele mês transcorrera devagar e sombrio para os trabalhadores da casa dos Buchanan, boatos pipocando aqui e ali que contradiziam os informes dos jornais e, naturalmente, a conversa dos brancos em volta da mesa de jantar dos patrões. Ouvir as histórias - de mulheres brancas atacando mulheres negras com facas de cozinha enquanto os brancos incendiavam o bairro e preparavam suas forcas e matavam negros a tiros - era motivo bastante para que uma nuvem negra de preocupação pairasse sobre as cabeças dos conhecidos de Lila. Quatro semanas depois, porém, parecia que as pessoas queriam se livrar daquela nuvem por um dia, divertir-se enquanto ainda era possível.
Alguns homens cortaram ao meio um barril de petróleo, cobriram as metades com telas de arame e começaram a fazer um churrasco. As pessoas trouxeram cadeiras e mesas, e as mesas estavam repletas de peixe frito, salada de batata e coxas de peru assadas, gordas uvas roxas e montes e montes de hortaliças. Crianças a correr, gente dançando, alguns homens jogando beisebol na relva murcha. Dois rapazes tinham trazido seus violões e travavam um "duelo", como se estivessem numa esquina em Helena, e o som de seus violões era claro como o céu.
Lila estava sentada com as amigas, todas elas criadas - Ginia, CC e Darla Blue -, tomando chá doce, vendo as crianças e os homens brincarem, e não era difícil adivinhar quais dos homens eram solteiros, porque eles agiam de forma mais pueril que as crianças, fazendo cabriolas, agitando-se e falando alto. Eles lembravam pôneis antes de uma corrida, escarvando a terra com as patas, empinando-se.
Darla Blue, que tinha um cérebro de galinha, disse: "Eu gosto daquele ali".
Todas olharam. Todas gritaram.
"Aquele de dente quebrado e com a moita na cabeça?"
"Ele é uma graça."
"Para um cachorro."
"Não, ele..."
"Olha o barrigão todo derramado", disse Ginia. "Vai até o joelho. E aquela bunda parece ter cinquenta quilos de caramelo derretido por dentro."
"Eu gosto de homens meio cheinhos."
"Bem, então é o seu verdadeiro amor, porque ele é bem redondo. Redondo feito uma lua cheia. Não existe nada duro naquele homem. E nem vai endurecer."
Elas gritaram mais um pouco, batendo nas próprias coxas, e CC perguntou: "E você, Lila Waters? Você está vendo seu príncipe?".
Lila fez que não com um gesto de cabeça, mas as moças não acreditaram nem um pouco.
Contudo, por mais que gritassem e insistissem, ela mantinha os lábios cerrados e os olhos sob controle, porque o vira, via-o agora pelo canto do olho, atravessando a grama como a própria brisa e apanhando a bola no ar num rápido movimento com a luva, num gesto tão desembaraçado que quase chegava a ser cruel. Um homem esbelto. Pela forma como andava, parecia ter sangue de gato. Onde os outros homens tinham articulações, ele tinha molas, azeitadíssimas. Mesmo quando lançava a bola, a gente não via seu braço, a parte dele que fizera o movimento, mas sim cada centímetro quadrado dele, movendo-se como um todo.
Música, concluiu Lila. O corpo do homem era nada menos que música.
Ela ouvira os outros homens chamá-lo pelo nome - Luther. Quando ele veio correndo, na sua vez de empunhar o taco, um menino correu ao lado dele e tropeçou no chão de terra. O menino caiu de queixo no chão, abriu a boca num gemido, mas Luther levantou-o sem perder o ritmo e disse: "Escute aqui, menino, nada de choro no sábado".
A criança ficou de boca aberta, e Luther lhe abriu um largo sorriso. O menino soltou um grito e começou a rir como se não fosse parar mais.
Luther jogou o menino para cima e olhou direto para Lila, fazendo-a perder o fôlego e abaixar a vista ante a rapidez com que os olhos dele buscaram os seus. "Ele é seu, senhora?"
Lila voltou os olhos para os dele e disse: "Eu não tenho filhos".
"Ainda", disse CC, e riu alto.
Aquilo inibiu o que quer que Luther ia dizer. Ele pousou os pés da criança no chão e abaixou os olhos, evitando o olhar dela, e deu um sorriso para o ar, o queixo puxado para a direita. Então tornou a fitá-la com a maior calma.
"Bem, essa é uma bela notícia", disse ele. "Sim, bela como este dia de hoje, senhora."
E então a cumprimentou com o chapéu e avançou para pegar o taco.
No fim do dia, ela estava rezando. Deitada no peito de Luther sob um carvalho cem metros rio acima, distante da festa, com o Big Walnut escuro e brilhante à sua frente, ela confessou ao Senhor temer um dia gostar demais daquele homem. Mesmo que ficasse cega enquanto dormia, seria capaz de reconhecê-lo numa multidão só pela voz, pelo cheiro, pela forma como o ar lhe abria caminho. Ela sabia que o coração dele era impetuoso, mas que sua alma era bondosa. Quando ele deslizou o polegar pela parte interna de seu braço, ela pediu a Deus que a perdoasse pelo que estava prestes a fazer. Isso porque, por aquele homem ousado e gentil, ela estava disposta a fazer o que quer que pudesse mantê-lo aceso dentro dela.
Então o Senhor, do alto do céu, a perdoou ou a condenou - ela nunca saberia ao certo -, porque lhe deu Luther Laurence. No ano em que se conheceram, Ele deu Luther a ela umas duas vezes por semana. No resto do tempo ela trabalhava na casa Buchanan, e Luther, na fábrica de munições, vivendo a vida como se ela fosse regulada pelo ritmo do relógio.
Ah, ele era bravo e arredio. Contudo, ao contrário de tantos homens, isso não era uma escolha sua e não traía nenhuma má intenção. Ele teria mudado de atitude se alguém conseguisse dizer como. Mas era o mesmo que explicar pedra à água, areia ao ar. Luther trabalhava na fábrica; quando não estava trabalhando, estava jogando bola; quando não estava jogando bola, estava consertando alguma coisa; quando não estava consertando alguma coisa, vagava à noite pela cidade de Columbus. E quando não estava fazendo nada disso, estava com Lila, e ela gozava de toda a sua atenção, pois se Luther focava em algo, esquecia todo o resto, de modo que, quando era Lila o objeto de sua atenção, ele a fazia rir e era um sedutor empenhado, e ela sentia que nada, nem mesmo o calor do Senhor, seria capaz de projetar uma luz de tal intensidade.
Então Jefferson Reese lhe deu a surra que o mandou para o hospital - onde ficou por uma semana - e tirou alguma coisa dele. Não se sabia ao certo o que era essa coisa, mas dava para notar sua falta. Lila odiava imaginar seu homem encolhido no chão, tentando se proteger, enquanto Reese o espancava, dava-lhe pontapés, descarregando uma selvageria há muito represada. Ela tentara advertir Luther contra Reese, mas o namorado não lhe dera ouvidos, porque alguma parte dele precisava trombar contra as coisas. O que ele descobriu, caído no chão enquanto aqueles punhos e pés encarniçavam-se contra ele, foi que, se você bate de frente com determinadas coisas - com coisas ruins -, elas não se limitam a revidar. Não, isso não é o bastante. Elas procuram esmagar você, persistem nisso, e a única maneira de escapar com vida é a pura sorte, nada mais. As coisas ruins deste mundo só têm uma lição a dar: somos piores do que você consegue imaginar.
Ela amava Luther porque nele não havia essa espécie de maldade. Ela amava Luther pois o que o fazia impetuoso e selvagem era o mesmo que o fazia gentil - ele amava o mundo. Amava-o da mesma forma que a gente ama uma maçã tão doce que é impossível deixar de dar umas boas dentadas. Ele amava o mundo, fosse ou não correspondido.
Mas em Greenwood aquele amor e aquela luz de Luther tinham começado a esvanecer. A princípio, ela não conseguia entender aquilo. Sim, havia maneiras melhores de se casar do que a deles. A casa em Archer era pequena, a epidemia devastou a cidade, e tudo isso no curto espaço de oito semanas - mesmo assim eles estavam no paraíso. Eles estavam num dos poucos lugares do mundo em que um negro e uma negra andavam de cabeça erguida. Os brancos não apenas os deixavam em paz, mas também os respeitavam, e Lila concordava com a afirmação do irmão Garrity de que Greenwood haveria de ser um modelo para o resto do país e que dali a dez ou vinte anos haveria Greenwoods em Mobile, Columbus, Chicago, Nova Orleans e Detroit. Porque os negros e os brancos encontraram uma forma de conviver pacificamente em Tulsa, e a paz e a prosperidade que daí resultaram eram boas demais para que o resto do país as ignorasse.
Luther, porém, via mais alguma coisa. Algo que consumia sua gentileza e sua luz, e Lila começou a temer que o filho deles não chegasse ao mundo a tempo de salvar o pai. Porque em seus dias de maior otimismo ela sabia que bastaria aquilo: Luther segurar o próprio filho e se convencer de uma vez por todas de que já era tempo de se tornar um homem.
Ela passou a mão na barriga, disse ao filho que crescesse mais depressa, mais depressa, e ouviu a porta de um carro bater. Pelo som, ela percebeu que era o carro do louco do Jessie Tell, e que Luther viera com aquele infeliz, os dois com certeza mais que chapados. Ela se levantou da cadeira, pôs a máscara no rosto e amarrou as fitas atrás da cabeça no momento em que Luther entrou pela porta.
A primeira coisa que ela notou não foi o sangue, embora ele lhe cobrisse toda a camisa e o pescoço. O que ela notou antes de tudo foi que sua cara não estava boa. Por trás do rosto já não havia mais o Luther que ela vira pela primeira vez no campo de beisebol, não o Luther que sorrira para ela, puxando seu cabelo para trás, enquanto a possuía numa fria noite de Ohio. Não o Luther que lhe fez cócegas até que ela soltasse um grito rouco, não o Luther que fez desenhos do filho na janela de um trem em movimento. Aquele homem não vivia mais naquele corpo.
Então ela notou o sangue e aproximou-se dele dizendo: "Luther, meu bem, você precisa de um médico. O que aconteceu? O que aconteceu?".
Luther a deteve, agarrou-lhe os ombros como se ela fosse uma cadeira para a qual era preciso achar um lugar, olhou em volta e disse: "Você precisa fazer as malas".
"O quê?"
"Este sangue não é meu. Não estou ferido. Você precisa arrumar as malas."
"Luther, Luther, olhe para mim, Luther."
Ele olhou para ela.
"O que aconteceu?"
"Jessie morreu", disse ele. "Jessie morreu e Dandy também."
"Quem é Dandy?"
"Trabalhava para o Diácono. O Diácono morreu. Os miolos do Diácono ficaram grudados numa parede."
Ela recuou, afastando-se dele, e levou a mão à garganta, porque não sabia onde mais as colocar. "O que você fez?", perguntou ela.
Luther ordenou: "Você tem de fazer as malas, Lila. Temos de fugir".
"Eu não vou fugir", disse ela.
"O quê?", exclamou ele inclinando a cabeça para ela. Seus rostos estavam a apenas alguns centímetros, mas Lila sentia como se ele estivesse a milhares de quilômetros, do outro lado do mundo.
"Não vou sair daqui", disse ela.
"Vai sim, mulher."
"Não, não vou."
"Lila, estou falando sério. Arrume as malas, porra."
Ela balançou a cabeça.
Olhos inebriados, Luther cerrou os punhos, atravessou o quarto e esmurrou o relógio pendurado acima do sofá. "Nós vamos embora."
Ela observou o vidro caindo em cima do sofá, viu que o segundo ponteiro ainda estava em movimento. Era só consertá-lo. Ela sabia como.
"Jessie morreu", disse ela. "Você voltou aqui para me dizer isso? O cara pede para ser morto, por pouco também não leva você, e você espera que eu diga que você é meu homem, que eu faça as malas depressa e abandone minha casa porque eu amo você?"
"Sim", disse ele segurando-a novamente pelos ombros. "Sim."
"Bem, não vou fazer isso", disse ela. "Você é um estúpido. Eu lhe avisei o que aconteceria se você andasse com aquele sujeito e com o Diácono, e agora você vem aqui com as marcas do castigo por seu pecado, coberto com o sangue de outro homem, e me pede isso?"
"Quero que você parta comigo."
"Você matou alguém esta noite, Luther?"
Olhos desvairados, a voz que era um sussurro, ele respondeu. "Matei o Diácono. Atirei na cabeça dele."
"Por quê?", disse ela, agora também sussurrando.
"Porque foi por causa dele que Jessie morreu."
"E o Jessie matou quem?"
"O Jessie matou o Dandy. Smoke matou Jessie e eu atirei no Smoke. Provavelmente ele também vai morrer."
Ela sentia dentro de si a onda de raiva varrendo-lhe o medo, a pena e o amor. "Quer dizer então que Jessie mata um homem, um homem atira nele, aí você atira nesse homem e mata o Diácono? É isso o que você está me dizendo?"
"Sim. Agora..."
"É isso o que você está me dizendo?", gritou ela batendo-lhe nos ombros e no peito com os punhos, depois na cabeça, e continuaria assim indefinidamente se ele não lhe agarrasse os punhos.
"Lila, escute..."
"Fora da minha casa. Fora da minha casa! Você matou. Você é um impuro aos olhos de Deus, Luther. E Ele vai puni-lo."
Luther recuou, afastando-se dela.
Ela permaneceu onde estava e sentiu seu filho chutar dentro do útero. Não foi um chute muito forte, mas antes leve, hesitante.
"Tenho de arrumar algumas coisas."
"Então arrume", disse ela dando-lhe as costas.
Enquanto ele amarrava seus pertences na traseira do carro de Jessie, ela ficou dentro de casa ouvindo os movimentos dele lá fora e refletindo que aquele amor não podia terminar de outra maneira, visto que sempre ardera num fogo muito intenso. E ela pedia perdão a Deus por aquilo que agora percebia ter sido seu maior pecado: eles tinham procurado o céu nesta terra. Uma busca dessa natureza baseava-se no orgulho, o pior dos sete pecados capitais. Pior que a cobiça, pior que a ira.
Quando Luther voltou, ela continuou sentada no mesmo lado da sala.
"Então é assim?", disse ele baixinho.
"Acho que sim."
"É assim que terminamos?"
"Acredito que sim."
"Eu...", disse ele estendendo a mão.
"O quê?"
"Eu amo você, mulher."
Ela balançou a cabeça.
"Eu disse que amo você."
Ela balançou a cabeça novamente. "Eu sei. Mas você ama mais outras coisas."
Ele negou com a cabeça, a mão ainda entendida, esperando que ela a segurasse.
"Ah, você ama sim. Você é uma criança, Luther. E agora essas suas brincadeiras trouxeram a carnificina para nosso lar. O responsável foi você, Luther. Não foi Jessie nem o Diácono. Foi você. Só você. Você. Você, com seu filho na minha barriga."
Ele abaixou a mão e se deixou ficar na soleira da porta um longo tempo. Por várias vezes abriu a boca para dizer alguma coisa, mas as palavras teimavam em não sair.
"Eu amo você", repetiu ele, e a voz lhe saiu rouca.
"Eu também amo você", disse ela, embora naquele momento ela não o sentisse em seu coração. "Mas você precisa ir embora antes que alguém venha aqui atrás de você."
Ele sumiu da porta tão rápido que ela não saberia dizer se o vira mexer-se. Num instante ele estava ali, no instante seguinte ela ouviu os sapatos ressoando nas pranchas de madeira, o motor sendo ligado e, por um breve instante, funcionando em marcha lenta.
Quando ele pisou na embreagem e engatou a primeira, o carro fez um grande barulho. Ela se pôs de pé, mas não foi até a porta.
Quando ela finalmente foi à varanda, ele já tinha ido embora. Ela olhou a estrada, tentando ver as lanternas traseiras do carro, e mal conseguiu avistá-las ao longe, em meio à poeira que os pneus levantavam na escuridão da noite.
Luther deixou as chaves do carro de Arthur Smalley na varanda da casa dele e um bilhete em que se lia: "viela do Club Almighty". Escreveu outro bilhete informando aos Irvine como encontrar seu enxoval e depositou nas varandas dos doentes as joias, o dinheiro e tudo o mais que lhes haviam tomado. Quando chegou à casa de Owen Tice, ele viu, através da porta de tela, o homem à mesa, morto. Depois de puxar o gatilho, a espingarda dera o coice, mas continuou em suas mãos crispadas, na vertical, entre as coxas.
Luther fez o caminho de volta, na noite cinzenta, e entrou em casa. Deixou-se ficar na sala de estar olhando sua mulher dormir na cadeira onde ele a deixara. Foi ao quarto, pôs boa parte do dinheiro de Owen Tice sob o colchão, voltou à sala e contemplou a mulher por mais alguns instantes. Ela ressonava levemente, deu um gemido e ergueu as coxas, aproximando-as da barriga.
Tudo o que ela dissera era a pura verdade.
Mas como tinha sido fria. Só agora ele percebeu como ela procurara magoá-lo da mesma forma que ele a magoara nos últimos meses. Aquela casa, que por vezes Luther temera e procurara evitar, agora ele queria tomar nos braços, levá-la para o carro de Jessie e carregá-la consigo para onde quer que estivesse indo.
"Eu amo você, Lila Waters Laurence", disse ele. Depois beijou a ponta do próprio indicador e tocou-lhe a fronte.
Ela não se mexeu, e Luther inclinou-se, beijou-lhe a barriga, saiu de casa, voltou para o carro de Jessie e rumou para o norte, com o sol erguendo-se sobre Tulsa e os pássaros despertando de seu sono.
10.
Durante duas semanas, quando o pai de Tessa não estava em casa, ela vinha bater à porta de Danny. Eles raramente dormiam, mas Danny não diria que aquilo que faziam era amor. Um tanto bruto demais para isso. Em várias ocasiões, ela dava ordens - mais devagar, mais rápido, com mais vigor, ponha aqui, não aí, role, levante-se, deite-se. Para Danny, o modo como eles agarravam, apertavam e mordiscavam um ao outro parecia uma coisa desesperada. Mesmo assim, ele sempre queria mais. Às vezes ele se pegava, no meio da ronda, desejando que o uniforme não fosse tão apertado, pois roçava partes de seu corpo já arranhadas até a última camada da carne. Naquelas noites, o quarto dele dava a impressão de um covil. Os dois entravam e laceravam um ao outro. Os sons do bairro chegavam até eles - uma ocasional buzina de carro, gritos de crianças jogando bola nas vielas, relinchos dos estábulos atrás de seu edifício e até mesmo o barulho de passos, na escada de incêndio, de outros moradores que tinham descoberto o terraço já abandonado por ele e por Tessa -, mas lhes pareciam sons de uma vida que lhes era alheia.
Não obstante toda a sua entrega no quarto, Tessa continha-se depois do sexo. Voltava sorrateiramente para seu apartamento, sem uma palavra, e nunca adormeceu na cama dele. Aquilo não o incomodava. Na verdade, ele preferia assim - uma coisa ardente, mas fria. Ele se perguntava se sua parte no desencadear daquela fúria terrível tinha a ver com seus sentimentos para com Nora, com sua ânsia de castigá-la por amá-lo, abandoná-lo e continuar vivendo.
Não havia o menor risco de ele se apaixonar por Tessa. Ou ela por ele. Em meio a todo aquele enlace febril, ele tinha a percepção de um desprezo, não exatamente dela por ele nem vice-versa, mas da parte de ambos, por se deixarem dominar por um vício tão estéril. Certa vez, quando estava em cima dele, mãos agarradas ao seu peito, Tessa sussurrou "Tão jovem", como se aquilo fosse uma censura.
Quando Federico estava na cidade, convidava Danny para tomar licor de anis. Eles ficavam ouvindo ópera no Silverstone, enquanto Tessa permanecia no sofá estudando inglês nos manuais que Federico trouxera de suas viagens pela Nova Inglaterra e pela região do Kansas, Missouri e Nebraska. A princípio, Danny temeu que Federico descobrisse a relação de intimidade que havia entre seu companheiro de bebida e sua filha, mas Tessa se deixava ficar no sofá, uma perfeita estranha, as pernas enfiadas sob a anágua, a blusa de crepe cingindo-lhe o pescoço. Toda vez que seus olhares se encontravam, Danny via que o dela era vazio de tudo, exceto de curiosidade linguística.
"Defina a-vi-dez", disse ela certa ocasião.
Em noites como aquela, Danny voltava para seu apartamento sentindo-se ao mesmo tempo traidor e traído, sentava-se junto à janela e ficava até tarde da noite lendo o material fornecido por Eddie McKenna.
Ele foi a uma reunião do BSC, depois a outra, e a situação daqueles homens pouco havia mudado. O prefeito continuava se negando a se reunir com eles, ao passo que Samuel Gompers e a Federação Americana do Trabalho pareciam ter segundas intenções quanto a lhes reconhecer o status de sindicato.
"Mantenham a confiança", ele ouviu Mark Denton dizer no salão certa vez. "Roma não foi construída em um dia."
"Mas foi construída", disse um sujeito.
Certa noite, quando voltou de dois dias seguidos de trabalho, deu com a sra. DiMassi arrastando o tapete de Tessa e Federico pela escada. Danny quis ajudá-la, mas a velha o repeliu, deixou cair o tapete no vestíbulo, soltou um longo suspiro e só então olhou para ele.
"Ela foi embora", disse a velha senhora, e Danny percebeu que ela sabia de sua relação com Tessa e que aquilo mudaria a forma como ela o olharia enquanto ele morasse ali. "Foram embora sem uma palavra. E ainda por cima me devendo o aluguel. Acho que, se você a procurar, não vai encontrar. As mulheres da aldeia dela são conhecidas por seus corações negros. Umas bruxas, ouvi dizer. Tessa tem um coração negro. A morte do bebê enegreceu-o ainda mais. Você", disse ela ao passar por ele, a caminho de seu apartamento, "com certeza piorou as coisas."
Ela abriu a porta e olhou para ele. "Eles estão esperando por você."
"Quem?"
"Os homens no seu apartamento", disse a sra. DiMassi entrando no dela.
Enquanto subia as escadas, Danny abriu o fecho de couro do coldre. Uma parte dele pensava em Tessa, em como não seria difícil encontrá-la, se a pista ainda estivesse fresca. Ele achava que ela lhe devia uma explicação. Ele estava certo de que havia alguma.
No alto da escada, ouviu a voz do pai vindo de seu apartamento e recolocou o fecho do coldre. Em vez de seguir em direção à voz, porém, foi ao apartamento de Tessa e Federico. A porta estava entreaberta. Ele a abriu. O tapete havia sido retirado, mas afora isso a sala parecia igual. Ao andar pela sala, porém, percebeu que não havia mais fotografias. No quarto, os armários estavam vazios e a cama nua. O tampo da penteadeira onde ficavam os pós e os perfumes de Tessa estava vazio. A um canto, o porta-chapéus exibia ganchos vazios. Ele voltou à sala de estar, sentiu uma fria gota de suor escorrer-lhe por trás da orelha, depois pelo pescoço: eles não tinham levado o Silverstone.
O tampo estava aberto. Danny aproximou-se do fonógrafo, e logo sentiu o cheiro. Alguém derramara ácido no prato e o veludo fora corroído até não sobrar nada. Ele abriu o gabinete e viu os queridos discos de Federico reduzidos a cacos. Sua primeira impressão foi a de que eles tinham sido assassinados; o velho nunca deixaria aquilo para trás nem permitiria que alguém o destruísse daquela forma.
Então ele viu o bilhete colado na porta direita da cabine. A letra era de Federico, igual à do bilhete em que ele o convidara para jantar naquela primeira noite; de repente, Danny sentiu-se mal.
Policial,
Esta madeira ainda é uma árvore?
Federico
"Aiden", disse o pai dele na porta. "Que bom ver você, meu rapaz."
Danny olhou para o pai. "Que diabo é isso?"
O pai entrou no apartamento. "Os outros inquilinos dizem que ele parecia um velho muito gentil. Você também é da mesma opinião, não é?"
Danny deu de ombros. Sentia-se entorpecido.
"Bom, ele não é nem gentil nem velho. Que significa aquele bilhete que ele te deixou?"
"Uma piada nossa, particular", disse Danny.
O pai dele franziu o cenho. "Nada disso aqui é particular, menino."
"Por que você não me diz o que está acontecendo?"
O pai dele sorriu. "A explicação o espera no seu apartamento."
Danny seguiu-o pelo corredor e encontrou dois homens em seu apartamento. Estavam de gravata borboleta e pesados ternos cor de ferrugem com listras escuras, cabelos grudados na cabeça com vaselina e partidos ao meio. Os sapatos eram marrons, polidos. Secretaria de Justiça. Eles não poderiam dar mais na vista se usassem os distintivos colados na testa.
O mais alto dos dois olhou para ele. O mais baixo estava sentado à borda da mesinha de centro de Danny.
"Agente Coughlin?", disse o homem alto.
"Quem é você?"
"Perguntei primeiro", retrucou o homem alto.
"Pouco me importa", respondeu Danny. "Eu moro aqui."
O pai de Danny cruzou os braços e encostou-se na janela, satisfeito em assistir ao espetáculo.
O homem alto olhou o outro por cima do ombro, depois de novo para Danny. "Meu nome é Finch. Rayme Finch. Rayme. Não Raymond. Só Rayme. Pode me chamar de agente Finch." Ele tinha o físico de um atleta, membros flexíveis e ossos rijos.
Danny acendeu um cigarro e encostou-se à ombreira da porta. "Você está com um distintivo?"
"Já o mostrei para o seu pai."
Danny deu de ombros. "Mas não mostrou para mim."
Enquanto Finch levava a mão ao bolso de trás, Danny viu que o homenzinho da mesa de centro o observava com um leve desprezo, que ele normalmente associava a bispos ou coristas. Ele era alguns anos mais jovem que Danny, teria no máximo vinte e três, bem uns dez anos mais novo que o agente Finch. Mas tinha fundas olheiras escuras sob os olhos esbugalhados, como se tivesse o dobro da idade. Ele cruzou as pernas e tocou em alguma coisa no próprio joelho.
Finch mostrou o distintivo e uma carteira de identidade com o timbre do governo dos Estados Unidos: Departamento de Investigação.
Danny deu uma rápida olhada. "Você é do DI?"
"Tente dizer isso sem esse sorrisinho."
Danny apontou o polegar para o outro cara. "E quem é ele exatamente?"
Finch abriu a boca, mas o outro homem limpou a mão com um lenço antes de estendê-la a Danny. "John Hoover, senhor Coughlin", disse o homem, e Danny ficou com a mão cheia de suor. "Eu trabalho com o departamento antirradical da Secretaria de Justiça. Você não é amigo dos radicais, é, senhor Coughlin?"
"Não há alemães no edifício. Não é disso que a Secretaria de Justiça cuida?" Ele olhou para Finch. "E o DI se ocupa principalmente de fraudes de falências, não é?"
O sujeito da mesa de centro olhou para Danny como se lhe quisesse morder fora a ponta do nariz. "Nosso campo de atuação se expandiu um pouco desde o início da guerra, agente Coughlin."
Danny balançou a cabeça. "Bem, boa sorte", disse ele do vão da porta. "Vocês se incomodam de dar o fora da porra do meu apartamento?"
"Nós também lidamos com desertores", explicou o agente Finch, "agitadores, ativistas, pessoas que pretendem fazer guerra contra os Estados Unidos."
"Deve ser um bom meio de vida."
"Muito bom. Vamos atrás principalmente dos anarquistas", disse Finch. "Esses filhos da puta estão entre os primeiros da nossa lista. Você sabe... gente que joga bombas, agente Coughlin. Como aquela menina que você estava comendo."
Danny emparelhou os ombros com os de Finch. "Eu estou comendo quem?"
O agente Finch virou-se e encostou à ombreira da porta. "Você estava trepando com Tessa Abruzze. Pelo menos é assim que ela se apresentava. Estou certo?"
"Eu conheço a senhorita Abruzze. E daí?"
Finch lhe deu um leve sorriso. "Você não sabe merda nenhuma."
"O pai dela é vendedor de fonógrafos", disse Danny. "Eles tiveram uns problemas na Itália, mas..."
"O pai dela", interrompeu Finch, "é marido dela." Ele arqueou as sobrancelhas. "Você me ouviu bem. E ele não tinha porra nenhuma a ver com fonógrafos. Federico Abruzze nem é seu nome verdadeiro. Ele é um anarquista, mais especificamente um galleanista. Você sabe o que esse termo significa ou vou precisar explicar?"
"Eu sei", respondeu Danny.
"O nome dele é Federico Ficara. E sabe o que ele fazia enquanto você fodia a mulher dele? Fabricava bombas."
"Onde?", perguntou Danny.
"Aqui mesmo." Rayme Finch apontou o polegar para o corredor.
John Hoover cruzou uma mão sobre a outra e descansou-as na fivela do cinturão. "Vou perguntar novamente. Você é simpatizante dos radicais?"
"Acho que meu filho já respondeu essa pergunta", disse Thomas Coughlin.
John Hoover balançou a cabeça. "Não que eu tenha ouvido, senhor."
Danny olhou para ele. A pele do homem era como pão tirado do forno antes da hora, e suas pupilas eram tão minúsculas e escuras que pareciam mais próprias de um animal.
"O motivo da pergunta é que estamos fechando a porta do estábulo. Depois que os cavalos foram embora, eu concordo, mas pelo menos antes que ele tenha queimado até as cinzas. O que é que a guerra nos mostrou? Que o inimigo não está só na Alemanha. O inimigo veio em navios, aproveitando-se da nossa política de imigração permissiva, e começou a atuar. Ele faz palestras para mineiros e operários de fábricas, disfarça-se de amigo do operário e dos oprimidos. Mas o que ele de fato é? Um prevaricador, um enganador, uma doença estrangeira, um homem resolvido a destruir nossa democracia. Ele deve ser reduzido a pó." Hoover enxugou a nuca com o lenço; a parte de cima de seu colarinho estava escura de suor. "Então vou lhe perguntar pela terceira vez: você colabora com o elemento radical? Afinal de contas, você é um inimigo de meu Tio Sam?"
Danny disse: "Ele está falando sério?".
"Ah, sim", disse Finch.
Danny disse: "Seu nome é John, certo?".
O homem rechonchudo olhou para ele e confirmou com um pequeno gesto de cabeça.
"Você lutou na guerra?"
Hoover negou com a cabeçorra. "Não tive essa honra."
"A honra...", disse Danny. "Bem, eu também não tive a honra, mas isso porque fui considerado quadro indispensável para o trabalho no front interno. Qual a sua desculpa?"
Hoover corou e pôs o lenço no bolso. "Há muitas maneiras de servir à pátria, senhor Coughlin."
"Sim, há", concordou Danny. "Tenho um buraco no pescoço por servir à minha. Portanto, sabe o que vai acontecer se você questionar meu patriotismo novamente? Vou pedir para o meu pai se afastar da porra da janela e vou atirar você por ela."
O pai de Danny levou uma mão à altura do coração e afastou-se da janela.
Hoover, porém, lançou a Danny um límpido olhar azul de quem tem a consciência tranquila. A força moral de um menino baixinho que travava batalhas de faz de conta com bastões. Que envelheceu, mas não cresceu.
Finch limpou a garganta. "O problema que temos aqui, meus amigos, são bombas. Podemos voltar a esse assunto?"
"Como você ficou sabendo da minha relação com Tessa?", disse Danny. "Vocês estavam me seguindo?"
Finch negou com um gesto de cabeça. "Ela contou. Ela e o marido Federico foram vistos pela última vez há dez meses no Oregon. Eles caíram de porrada em cima de um funcionário da ferrovia que tentou examinar a bolsa de Tessa. Tiveram de pular do trem que ia a todo vapor. O problema é que tiveram de deixar a bolsa para trás. A polícia de Portland entrou no trem, encontrou detonadores, dinamite, algumas pistolas. A caixa de ferramentas de um verdadeiro anarquista. O funcionário, pobre diabo desconfiado, morreu em consequência dos traumatismos."
"Você ainda não respondeu à minha pergunta", disse Danny.
"Nós os localizamos aqui, há mais ou menos um mês. Afinal de contas, aqui é a base de Galleani. Ouvimos dizer que ela estava grávida. Mas então a gripe dominava tudo, e isso diminuiu nosso ritmo. Na noite passada um cara do submundo anarquista que, digamos assim, colabora conosco, nos deu o endereço de Tessa. Ela deve ter ficado sabendo, porém, porque sumiu no mundo antes que tivéssemos tempo de encontrá-la. Como chegamos a você? Ora, foi fácil. Perguntamos a todos os moradores do edifício se Tessa ultimamente vinha apresentando algum comportamento suspeito. Fosse homem ou mulher, todos responderam: ‘Além de trepar com o policial do quinto andar? Não’."
"Tessa mexendo com bombas?" Danny balançou a cabeça. "Não engulo essa."
"Não?", disse Finch. "Há uma hora John encontrou no quarto dela aparas de metal nas fendas do assoalho e marcas de queimadura que só podem ser de ácido. Quer dar uma olhada? Eles estão fabricando bombas, agente Coughlin. Ou melhor, eles fabricaram bombas. Provavelmente usando o manual escrito pelo próprio Galleani."
Danny foi à janela e abriu-a. Sorveu o ar frio e olhou as luzes do porto. Luigi Galleani, pai do anarquismo na América, propunha-se abertamente a derrubar o governo federal. Pense em qualquer ato terrorista de grandes proporções dos últimos cinco anos, e pode ter certeza de que foi ele quem arquitetou.
"Quanto à sua namorada", prosseguiu Finch, "seu nome verdadeiro é Tessa, mas com certeza essa é a única coisa verdadeira que você sabe sobre ela." Finch aproximou-se da janela, postando-se ao lado de Danny e de seu pai. Ele lhe mostrou um lenço dobrado e o abriu. "Está vendo isto?"
Danny olhou o conteúdo do lenço e viu um pó branco.
"Isto é explosivo à base de mercúrio. Parece sal de cozinha, não é? Mas, se você o puser numa pedra e der uma martelada, tanto a pedra quanto o martelo irão pelos ares. E com certeza seu braço também. Sua namorada nasceu em Nápoles, e seu nome de solteira é Tessa Valparo. Cresceu num bairro miserável, perdeu os pais para a cólera e começou a trabalhar num bordel aos doze anos de idade. Aos treze, ela matou um cliente. Com uma navalha e uma imaginação digna de nota. Ligou-se a Federico pouco depois que eles chegaram aqui."
"E logo conheceram Luigi Galleani", disse Hoover, "em Lynn, a norte daqui. Eles o ajudaram a planejar atentados em Nova York e Chicago, e escreviam matérias melosas para os pobres operários de Cape Cod a Seattle. Eles trabalharam nessa desgraça propagandista que é o Cronaca Sovversiva. Você conhece?"
Danny disse: "Não é possível morar aqui no North End e não conhecer. Pelo amor de Deus, as pessoas embrulham o peixe com ele".
"Mas ele é ilegal", disse Hoover.
"Bem, é ilegal distribuí-lo pelo correio", disse Rayme Finch. "Na verdade, fui o responsável por essa proibição. Invadi a redação. Prendi Galleani duas vezes. Garanto a você que vou deportá-lo antes do final do ano."
"Por que ainda não deportou?"
"Até agora, a lei protege os subversivos", explicou Hoover. "Por enquanto."
Danny riu. "Eugene Debs está em cana por ter feito uma porra dum discurso."
"Em que defendia a violência", disse Hoover em voz alta e tensa, "contra este país."
Danny olhou para o pavãozinho e revirou os olhos. "Minha pergunta é: se vocês podem prender um ex-candidato à presidência por ter feito um discurso, por que não podem deportar o mais perigoso anarquista do país?"
Finch suspirou. "Filhos americanos e mulher americana. Foi isso o que lhe valeu votos de simpatia da última vez. Mas ele vai ser deportado. Pode acreditar. Da próxima vez, porra, ele vai mesmo."
"Todos serão", concluiu Hoover. "Até o último desgraçado."
Danny voltou-se para o pai. "Diga alguma coisa."
"Dizer o quê?", perguntou o pai calmamente.
"Diga o que está fazendo aqui."
"Eu já lhe disse que estes cavalheiros me informaram que meu filho estava dormindo com uma subversiva. Uma fabricante de bombas, Aiden."
"Danny."
O pai dele tirou do bolso do casaco um macinho de Black Jack e ofereceu aos demais. John Hoover pegou um tablete, mas Danny e Finch recusaram. O pai e Hoover tiraram o invólucro da goma de mascar e a puseram na boca.
O pai de Danny suspirou. "Se chegasse aos jornais, Danny, a notícia de que meu filho estava gozando dos favores, digamos assim, de uma radical violenta, enquanto o marido dela fabricava bombas bem debaixo do seu nariz - que imagem isso iria passar do meu querido departamento?"
Danny voltou-se para Finch. "Então o negócio é encontrá-los e deportá-los. O plano é esse, não é?"
"Não tenha dúvida. Mas, enquanto eu não os encontro e enquanto não vão embora", disse Finch, "eles estão planejando fazer algum barulho. Sabemos que planejaram alguma coisa para maio. Pelo que sei, seu pai já lhe falou sobre isso. Nós não sabemos onde ou quem eles estão pretendendo atacar. Temos algumas hipóteses, mas os radicais são imprevisíveis. Eles vão atrás da lista de juízes e políticos de sempre, mas o que nos dá trabalho são os alvos industriais que temos de proteger. Que indústria eles irão escolher? Carvão, ferro, chumbo, açúcar, aço, borracha, têxteis? Vão atacar uma fábrica? Uma destilaria? Uma torre de petróleo? Não sabemos. Mas temos certeza de que eles vão fazer um atentado contra alguma coisa grande aqui na sua cidade."
"Quando?"
"Talvez amanhã, talvez daqui a três meses", disse Finch dando de ombros. "Ou talvez esperem até maio, não sei dizer."
"Mas nós lhe garantimos", disse Hoover, "que o atentado vai ser de grande impacto."
Finch enfiou a mão no bolso do casaco, desdobrou um pedaço de papel e passou-o a Danny. "Encontramos isto no armário dela. Acho que é um rascunho."
Danny olhou o papel. O texto era composto com letras recortadas de jornal e coladas na folha:
Vão em frente!
Deportem-nos. Vamos dinamitar vocês.
Danny devolveu o papel.
"É uma nota para a imprensa", disse Finch. "Não tenho dúvida. Só que eles ainda não a enviaram. Mas, quando ela chegar às ruas, pode ter certeza de que logo virá uma explosão."
Danny perguntou: "E por que vocês estão me dizendo tudo isso?".
"Para ver se você tem interesse em impedi-los."
"Meu filho é um homem orgulhoso", disse Thomas Coughlin. "Ele não deixaria que uma coisa dessas se espalhasse e manchasse sua reputação."
Danny ignorou-o. "Qualquer pessoa com um mínimo de juízo tentaria impedi-los."
"Mas você não é qualquer pessoa", argumentou Hoover. "Galleani já tentou explodir você."
"O quê?", exclamou Danny.
"Quem você acha que mandou explodir Salutation Street?", perguntou Finch. "Você acha que foi ao acaso? Foi uma vingança pela prisão de três deles, num protesto contra a guerra, um mês antes. Quem você acha que estava por trás daquele atentado em que morreram dez policiais em Chicago no ano passado? Galleani e seus asseclas. Eles tentaram matar Rockefeller. Tentaram matar juízes. Jogaram bombas em desfiles militares. Diabo, eles explodiram uma bomba na catedral de St. Patrick. Galleani e seus asseclas. Na virada do século, gente com esse mesmo tipo de filosofia matou o presidente McKinley, o presidente da França, o primeiro-ministro da Espanha, a imperatriz da Áustria e o rei da Itália. Tudo isso num espaço de seis anos. Eles podem até explodir a si mesmos de vez em quando, mas não são nada engraçados. São assassinos. E eles estavam aqui fabricando bombas debaixo de seu nariz, enquanto você fodia com uma delas. Ah, deixe-me fazer um correção: enquanto ela estava fodendo com você. Portanto, o quanto essa história vai ter de se tornar um assunto pessoal para você, agente Coughlin, antes que você acorde?"
Danny pensou em Tessa na cama dele, nos sons guturais que eles emitiam, nos olhos dela arregalando-se quando ele a penetrava, nas unhas rasgando-lhe a pele, na boca abrindo-se num sorriso. Lá de fora vinha o barulho das pessoas subindo e descendo a escada de incêndio.
"Você os viu de muito perto", prosseguiu Finch. "Se os vir novamente, vai ter um ou dois segundos de vantagem sobre qualquer um que saísse às ruas com uma fotografia desbotada."
"Não vou conseguir encontrá-los aqui", disse Danny. "Aqui não. Sou americano."
"Aqui é a América", disse Hoover.
Danny apontou para as pranchas do assoalho e balançou a cabeça. "Aqui é a Itália."
"Mas e se pudermos aproximá-lo deles?"
"Como?"
Finch passou uma fotografia a Danny. Não era muito boa, dava a impressão de ter sido copiada várias vezes. O homem retratado teria uns trinta anos, fino nariz aristocrático e olhos estreitos, reduzidos a fendas. Bem barbeado, cabelos claros, uma pele que dava a impressão de palidez, embora aquilo fosse mais uma suposição da parte de Danny.
"Não parece um bolchevique de carteirinha."
"Mas é", disse Finch.
Danny devolveu a fotografia. "Quem é ele?"
"Seu nome é Nathan Bishop. Um verdadeiro galã. Médico inglês e radical. Quando esses terroristas explodem acidentalmente a própria mão ou saem feridos de um motim, não podem simplesmente procurar um pronto-socorro. Eles recorrem ao nosso amigo aqui. Nathan Bishop é o curandeiro do movimento radical de Massachusetts. Os radicais não costumam se confraternizar fora de suas células, mas Nathan é um elo entre eles. Ele conhece todos os que estão no jogo."
"E ele bebe", disse Hoover. "E muito."
"Então mande algum de seus homens aproximar-se dele."
Finch balançou a cabeça. "Não vai dar."
"Por quê?"
"Posso ser franco? Não temos verba." Finch pareceu embaraçado. "Então procuramos seu pai, e ele nos disse que você já está preparando o terreno para pegar uma célula de radicais. Queremos que você feche o cerco sobre todo o movimento. Que nos dê números de placas de carro, número de efetivos. Enquanto isso, fica de olho em Bishop. Mais cedo ou mais tarde seus caminhos vão se cruzar. Se você se aproximar dele, se aproxima do resto desses filhos da puta. Já ouviu falar na Associação dos Trabalhadores Letões de Roxbury?"
Danny fez que sim. "Por aqui eles são chamados de lets."
Finch inclinou a cabeça como se aquilo fosse novidade para ele. "Sabe-se lá por que diabo de razão sentimental, eles parecem ser o grupo predileto de Bishop. Ele é amigo do líder deles, um judeu chamado Louis Fraina, com ligações comprovadas com a Mãe Rússia. Temos ouvido boatos de que Fraina é quem está liderando tudo isso."
"Tudo o quê?", perguntou Danny. "Vocês me deixaram no escuro, sem saber de nada."
Finch olhou para Thomas Coughlin. O pai de Danny levantou as mãos, palmas para cima, e deu de ombros.
"Eles devem estar planejando alguma coisa grande para a primavera."
"O quê, exatamente?"
"Uma revolta nacional no Primeiro de Maio."
Danny riu. Ninguém o acompanhou.
"Está falando sério?"
O pai fez que sim. "Uma série de atentados a bomba, seguidos de uma revolta armada, com a colaboração de todas as células radicais nas grandes cidades do país."
"Com que finalidade? Eles não podem tomar Washington de assalto."
"Foi isso o que Nicolau disse de São Petersburgo", respondeu Finch.
Danny tirou o sobretudo, o casaco azul, e ficou de camiseta. Ele desafivelou o cinturão com a arma, pendurou-o na porta do armário, pôs uma dose de uísque num copo e não ofereceu a bebida a ninguém. "Quer dizer que esse tal Bishop mantém contato com os lets?"
Finch confirmou com um gesto de cabeça. "Às vezes. Os lets não têm relações ostensivas com o pessoal de Galleani, mas todos são radicais, portanto Bishop mantém contato com os dois grupos."
"Bolcheviques de um lado", concluiu Danny, "anarquistas de outro."
"E Nathan Bishop fazendo a ligação entre os dois."
"Quer dizer então que me infiltro nos lets e vejo se eles estão fazendo bombas para o Primeiro de Maio ou se mantêm algum tipo de ligação com Galleani?"
"Se não com ele, com seus seguidores", disse Hoover.
"E se eles não tiverem ligação?", perguntou Danny.
"Consiga a lista de contatos deles", disse Finch.
Danny serviu-se de outra dose. "O quê?"
"A lista de contatos deles. É a chave para derrubar qualquer grupo de subversivos. Quando invadimos a redação da Cronaca no ano passado, eles tinham acabado de imprimir seu último número. Peguei os nomes de cada um dos destinatários do jornal. Com base nessa lista, a Secretaria de Justiça conseguiu deportar sessenta deles."
"Arram. Ouvi dizer que certa vez um sujeito foi deportado por ter chamado Wilson de veado."
"Nós tentamos", disse Hoover. "Infelizmente, o juiz decidiu que era mais conveniente prendê-lo."
Até o pai de Danny se mostrou cético. "Por chamar um homem de veado?"
"Por chamar o presidente dos Estados Unidos de veado", disse Finch.
"E se eu encontrar Tessa ou Federico?", perguntou Danny sentindo de repente o cheiro do perfume dela.
"Atire na cara deles", disse Finch. "Depois diga ‘Alto’."
"Tem uma coisa aqui que não estou entendendo", disse Danny.
"Está sim", disse o pai.
"Os bolcheviques só falam. Os seguidores de Galleani são terroristas. Uma coisa não é necessariamente igual à outra."
"Nem se anulam necessariamente", disse Hoover.
"Seja como for, eles..."
"Ei." Finch falava num tom áspero, os olhos límpidos. "Você diz ‘bolcheviques’ ou ‘comunistas’ como se houvesse nuanças que nós aqui, em nossa estupidez, fôssemos incapazes de discernir. Eles não são diferentes - eles são terroristas, porra. Todos eles. Este país está caminhando para um confronto. Achamos que ele se dará no Primeiro de Maio. Que não poderemos dar um passo sem tropeçar em algum revolucionário com uma bomba ou um rifle. E se isso acontecer, este país vai se dilacerar. Imagine a cena: corpos de americanos inocentes despedaçados em nossas ruas. Milhares de crianças, mães, trabalhadores. E tudo isso por quê? Porque esses veados odeiam a vida que nós temos. Porque é melhor que a deles. Porque somos melhores que eles. Somos mais ricos, mais livres, temos boa parte das melhores terras num mundo constituído principalmente de desertos e oceanos. Mas não queremos exclusividade sobre ele, nós o partilhamos. Eles nos agradecem por isso? Por recebê-los aqui? Não. Eles tentam nos matar. Tentam derrubar nosso governo como se fôssemos os putos dos Romanov. Bem, não somos os putos dos Romanov. Somos a única democracia bem-sucedida do mundo. E não vamos ficar pedindo desculpas por isso."
Danny esperou um instante e então bateu palmas.
Hoover pareceu novamente ter ganas de mordê-lo, mas Finch fez uma mesura.
Danny tornou a ver a Salutation Street, a parede transformada num granizo branco, o piso ruindo sob seus pés. Ele nunca falara sobre aquilo com ninguém, nem mesmo com Nora. Como descrever o absoluto desamparo? Impossível. Não se consegue. Cair do pavimento térreo no porão deu-lhe a certeza absoluta de que nunca mais poderia comer, andar numa rua, sentir o travesseiro contra o rosto.
Vocês me ganharam, pensou ele. Para Deus. Para o acaso. Para o desamparo.
"Eu topo", disse Danny.
"Por patriotismo ou por orgulho?", perguntou Finch arqueando uma sobrancelha.
"Um dos dois", disse Danny.
Depois que Finch e Hoover se foram, Danny e o pai sentaram-se à mesinha e se serviram da garrafa de uísque de centeio.
"Desde quando você deixa os federais se meterem nos assuntos do DPB?"
"Desde que a guerra mudou este país." O pai lhe deu um sorriso distante e tomou um gole diretamente da garrafa. "Se tivéssemos ficado entre os perdedores, talvez ainda fôssemos os mesmos, mas não foi o caso. A Lei Seca...", disse ele pegando a garrafa e dando um suspiro, "vai mudá-lo ainda mais. Vai encolhê-lo, acho. O futuro é federal, não local."
"Seu futuro?"
"O meu?", disse o pai com um riso. "Sou um velho de uma época ainda mais antiga. Não, não o meu futuro."
"O de Con?"
O pai fez que sim. "E o seu. Se você conseguir manter o próprio pênis em casa, que é o lugar dele." Ele arrolhou a garrafa e empurrou-a em direção a Danny. "Quanto tempo falta para você deixar crescer uma barba de comunista?"
Danny mostrou a barba que já lhe apontava no rosto. "Adivinhe."
O pai levantou-se da mesa. "Dê uma boa escovada no seu uniforme antes de guardá-lo. Você vai ficar um bom tempo sem precisar dele."
"Você está dizendo que sou um detetive?"
"O que você acha?"
"Diga com todas as palavras, pai."
O pai olhou para ele, o rosto sem nenhuma expressão. Por fim ele balançou a cabeça. "Se conseguir fazer isso, vai ganhar seu distintivo de ouro."
"Está bem."
"Ouvi dizer que você compareceu à reunião do BSC ontem à noite. Depois de ter me dito que não iria dedurar seus colegas."
Danny fez que sim.
"Quer dizer então que agora você é um sindicalista?"
Danny balançou a cabeça. "Tanto quanto o café deles."
O pai olhou-o demoradamente, a mão na maçaneta. "Você devia tirar os lençóis da sua cama e dar uma boa lavada." Thomas fez um vigoroso movimento de cabeça em direção ao filho e foi embora.
Danny ficou de pé ao lado da mesa, abriu a garrafa e tomou um gole, ouvindo os passos do pai perdendo-se no poço da escada. Ele olhou para a cama desarrumada e tomou mais um drinque.
11.
O carro de Jessie levou Luther só até o centro do estado do Missouri. Logo depois de Waynesville, o pneu estourou. Ele ia dirigindo por estradas vicinais, viajando à noite quando possível, mas o pneu estourou quase ao amanhecer. Jessie, naturalmente, não tinha estepe, e Luther não teve escolha senão seguir em frente assim mesmo. Ele avançava devagar pelo acostamento, em primeira marcha, sem nunca atingir uma velocidade superior à de um boi puxando um arado. No exato momento em que o sol se estendeu pelo vale, ele viu um posto de gasolina e se dirigiu para lá.
Dois homens brancos saíram da oficina mecânica, um deles enxugando a mão num trapo, o outro bebendo numa garrafa de sassafrás. Este último disse que sem dúvida era um belo carro e perguntou a Luther como ele tinha ido parar em suas mãos.
Sob o olhar de Luther, cada um se postou de um lado do capô. O que estava com o trapo usou-o para limpar a testa e cuspiu um pouco de tabaco no chão.
"Economizei para comprar", disse Luther.
"Economizou?", disse o homem da garrafa. Ele era magro, ossudo e estava com um casaco de pele de carneiro para se proteger do frio. Tinha uma densa cabeleira ruiva, mas no alto da cabeça havia uma clareira do tamanho de um punho. "Com quê você trabalha?" Ele tinha uma voz agradável.
"Trabalho numa fábrica de munições, que colabora no esforço de guerra", respondeu Luther.
"Arram", fez o homem andando em volta do carro, dando uma boa olhada, agachando-se de vez em quando para verificar se havia áreas amassadas que alguém disfarçara com um martelo e pintura. "Você esteve na guerra, não foi, Bernard?"
Bernard cuspiu novamente, limpou a boca, correu os dedos grossos pela borda do capô, procurando a tranca.
"Estive", disse Bernard. "No Haiti." Ele olhou para Luther pela primeira vez. "Eles nos deixaram naquela cidadezinha e disseram para a gente matar qualquer nativo que nos olhasse torto."
"Muita gente olhou torto para você?", perguntou o ruivo.
Bernard abriu o capô. "Não depois que começamos a atirar."
"Como é seu nome?", perguntou o outro homem a Luther.
"Estou só querendo consertar isso."
"É um nome comprido", disse o homem. "Não acha, Bernard?"
Bernard levantou a cabeça de detrás do capô. "É de encher a boca."
"Meu nome é Cully", disse o homem estendendo a mão.
Luther apertou-lhe a mão. "Jessie."
"Prazer em conhecê-lo, Jessie." Cully deu uma volta por trás do carro e levantou a perna da calça para se agachar junto do pneu. "Ah, claro, aqui está, Jessie. Quer dar uma olhada?"
Luther acompanhou com o olhar o dedo de Cully e viu um rasgão no pneu, bem perto da roda, da largura de uma moeda de cinco centavos.
"Com certeza foi só uma pedra afiada", disse Cully.
"Vocês podem consertar?"
"Sim, podemos. Que distância você andou com o pneu furado?"
"Uns poucos quilômetros", disse Luther. "Mas bem devagar."
Cully deu uma boa olhada na roda e balançou a cabeça. "Parece que a roda não ficou danificada. De onde você está vindo, Jessie?"
Durante a viagem, Luther ficou o tempo todo dizendo a si mesmo que devia inventar uma história. Tão logo começava, porém, seus pensamentos se voltavam para a imagem de Jessie jazendo numa poça do próprio sangue, o Diácono tentando pegar a arma, Arthur Smalley convidando-os a entrar em casa ou Lila aconchegada a ele na sala de estar.
Ele disse "Columbus, Ohio", porque não podia dizer Tulsa.
"Mas você veio do leste", disse Cully.
Sentindo o vento frio nas orelhas, Luther inclinou o corpo para o carro e tirou o casaco do banco da frente. "Fui visitar um amigo em Waynesville", disse Luther. "Agora vou voltar."
"Pegou um caminho gelado de Columbus para Waynesville", disse Cully enquanto Bernard fechava o capô com estrondo.
"Isso acontece", disse Bernard, vindo para o lado do carro. "Belo casaco."
Luther olhou para o casaco. Era um belo sobretudo de lã de carneiro escocês com gola alta, que pertencera a Jessie. Ele gostava de se vestir bem, e tinha orgulho daquele sobretudo mais do que de qualquer outra roupa sua.
"Obrigado", disse Luther.
"Espaçoso", disse Bernard.
"Que quer dizer isso?"
"Um pouco grande para você", disse Cully sorrindo simpaticamente e endireitando o corpo. "O que você acha, Bern? Será que conseguimos consertar o pneu dele?"
"Não vejo por que não."
"Como está o motor?"
Bernard disse: "O cara cuida do carro. Tudo debaixo do capô está zero bala. Sim, senhor".
Cully balançou a cabeça. "Bem, Jessie, será um prazer servi-lo. Em pouco tempo você vai poder seguir em frente." Ele deu mais um volta em torno do carro. "Mas temos algumas leis estranhas neste condado. A gente só pode consertar o carro de um homem de cor depois de verificar os documentos do carro. Você está com sua carteira de motorista aí?"
O homem abriu um sorriso espontâneo e amistoso.
"Não sei onde enfiei."
Cully olhou para Bernard, para a estrada deserta, depois novamente para Luther. "Um puta azar."
"É só um pneu."
"Eu sei, Jessie, eu sei. Diabo, se fosse por mim, teríamos consertado o pneu e você estaria na estrada num abrir e fechar de olhos. Pode ter certeza. Se fosse por mim, teríamos muito menos leis neste condado. Mas eles têm lá seu jeito de tocar as coisas, e não sou eu quem vai dizer a eles para fazer diferente. Vou lhe falar uma coisa... hoje o movimento aqui está fraco. Por que não deixamos Bernard consertando o carro, enquanto eu levo você à sede do condado? Lá você preenche um formulário, e quem sabe Ethel não lhe emite outra carteira na mesma hora?"
Bernard passou seu trapo no capô. "Este carro já sofreu algum acidente?"
"Não, sor", disse Luther.
"É a primeira vez que ele diz ‘sor’", observou Bernard. "Você notou?"
Cully disse: "Percebi, sim". Ele estendeu a mão a Luther. "Tudo bem, Jessie. É que estamos acostumados com nossos negros do Missouri que mostram um pouco mais de respeito. Repito, para mim não faz diferença, sabe? É como as coisas são, só isso."
"Sim, sor."
"Duas vezes!", exclamou Bernard.
"Por que não pega suas coisas e vamos todos juntos?", disse Cully.
Luther pegou sua valise do banco traseiro e um minuto depois estava no pequeno caminhão de Cully, rumando para o oeste.
Depois de dez minutos de silêncio, Cully disse: "Você sabe que eu lutei na guerra. E você?".
Luther balançou a cabeça.
"É a pior coisa do mundo, Jessie, mas agora não saberia lhe dizer por que estávamos lutando. Parece que lá em 1914 aquele cara sérvio matou o cara austríaco, não é? E logo depois, em um minuto, a Alemanha estava ameaçando a Bélgica, e a França dizia, bem, vocês não podem ameaçar a Bélgica, e aí na Rússia - lembra quando eles estavam na guerra? - eles diziam vocês não podem ameaçar a França, e quando menos se espera todo mundo está atirando. E você falou que trabalhava numa fábrica de munições, então eu me pergunto: eles lhe disseram o motivo de tudo isso?"
Luther respondeu: "Não. Acho que para eles o negócio era só munição".
"Diabo", disse Cully com um riso aberto. "Talvez fosse o mesmo em relação a todos nós. Talvez seja só isso mesmo. Já não seria alguma coisa?" Ele riu novamente, roçou a coxa de Luther com o punho, e Luther deu um riso de concordância, porque se o mundo inteiro se mostrava tão estúpido, então aquilo já significaria alguma coisa.
"Sim, sor", disse ele.
"Eu li um bocado sobre isso", disse Cully. "Ouvi dizer que em Versalhes eles vão fazer a Alemanha entregar quinze por cento da sua produção de carvão e quase cinquenta por cento do aço. Cinquenta por cento. Como é então que esse país desgraçado vai se reerguer? Já pensou numa coisa dessas, Jessie?"
"Estou pensando agora", respondeu ele, e Cully riu.
"Eles vão ter de entregar mais uns quinze por cento do seu território. E tudo isso por apoiar um amigo. Tudo isso. E a questão é a seguinte: quem em nosso meio deixaria de apoiar os amigos?"
Luther pensou em Jessie e se perguntou em quem Cully estava pensando quando olhou pela janela, olhos melancólicos ou pesarosos, Luther não saberia dizer.
"Ninguém", disse Luther.
"Exatamente. Nós não deixamos de apoiar os amigos. Nós vamos em seu socorro. E todo homem que não apoia um amigo abre mão do direito de se chamar de homem, na minha opinião. E eu entendo que se deva pagar quando se apoia um erro de um amigo. Mas é preciso esfregar a pessoa na lama? Acho que não. Mas pelo visto o mundo pensa diferente."
Ele se recostou no banco, o braço pousado frouxamente no volante, e Luther se perguntava se devia dizer alguma coisa.
"Quando eu estava na guerra", disse Cully, "certo dia um avião sobrevoou o campo e começou a jogar granadas. Caramba. É uma visão que tento esquecer. As granadas começaram a cair nas trincheiras, todo mundo pulando fora. Os alemães começaram a atirar de suas trincheiras, e vou lhe dizer uma coisa, Jessie, naquele dia não dava para dizer o que era pior. O que você faria?"
"Sor?"
Os dedos de Cully descansavam no volante. Ele olhou rapidamente para Luther. "Ficar na trincheira com as granadas caindo em cima de você ou pular para um terreno onde atiram em sua direção?"
"Nem consigo imaginar, sor."
"Acho mesmo que não. Uma coisa horrível, os gritos que os rapazes dão quando estão morrendo. Simplesmente horrível." Cully estremeceu e bocejou ao mesmo tempo. "Sim, senhor. Às vezes a vida só lhe dá a chance de escolher entre uma coisa dura e outra ainda mais dura. Em ocasiões como essas, a gente não pode se dar ao luxo de ficar pensando muito. Tem de começar a agir."
Cully bocejou novamente, calou-se, e eles avançaram assim por mais uns dezesseis quilômetros, as planícies desdobrando-se à sua volta, congeladas sob um duro céu branco. O frio dava a tudo uma aparência de metal brunido com palha de aço. Pedacinhos de gelo cinzento serpeavam às margens da estrada e batiam contra a grade do radiador. Quando chegaram a uma estrada de ferro, Cully parou o caminhão no meio dos trilhos e o motor soltou uma descarga abafada. Cully voltou-se para Luther. Ele cheirava a fumo, embora Luther ainda não o tivesse visto fumar, e tinha pequenas veias cor-de-rosa nos cantos de seus olhos.
"Aqui eles enforcam os negros, Jessie, por muito menos do que roubar um carro."
"Eu não roubei", disse Luther, e imediatamente pensou no revólver que trazia na valise.
"Eles enforcam vocês por dirigirem carros. Você está no Missouri, filho." Sua voz era calma e branda. Ele se mexeu e pôs um braço no banco traseiro. "Agora, há um bocado de coisas aqui que têm a ver com a lei, Jessie. Posso não gostar disso, mas quem sabe goste. Mas, mesmo que não goste, não cabe a mim dizer. Eu simplesmente vou em frente, está entendendo?"
Luther não disse nada.
"Está vendo aquela caixa d’água?"
Luther seguiu com o olhar a ponta do queixo de Cully, viu a caixa-d’água a uns duzentos metros dos trilhos.
"Sim."
"Parou de dizer ‘sor’ novamente", disse Cully arqueando levemente as sobrancelhas. "Gosto disso. Bem, rapaz, dentro de uns três minutos o trem de carga vai passar por estes trilhos. Ele vai parar, ficar pegando água por alguns minutos e seguir para St. Louis. Sugiro que você siga nele."
Luther sentiu a mesma frieza que experimentou quando meteu o revólver sob o queixo do Diácono Broscious. Sentiu-se pronto para morrer no caminhão de Cully, se pudesse levar o sujeito com ele.
"O carro é meu", disse Luther. "Ele é meu."
Cully deu uma risadinha. "Não, no Missouri ele não é seu. Talvez em Columbus ou em qualquer outra porra de lugar de onde você diz que vem. Mas não no Missouri, rapaz. Você sabe o que Bernard começou a fazer logo que saí do posto?"
Luther estava com a valise no colo, e seus dedos acharam o fecho.
"Ele pegou o telefone e começou a ligar para todo mundo, falando desse cara preto aqui que conhecemos. Um cara dirigindo um carro que ele não teria grana para comprar. Um cara com um belo sobretudo grande demais para ele. O velho Bernard matou alguns crioulos em seus bons tempos e ia gostar muito de matar mais, e nesse exato instante está organizando uma festa. Não uma festa de que você vá gostar muito, Jessie. Acontece que não sou Bernard. Não tenho nada contra você, e linchar um homem é uma coisa que nunca vi nem quero ver. Acho que mancha o coração da gente."
"O carro é meu", disse Luther. "Meu."
Cully continuou como se Luther nada tivesse dito. "Aí, você pode aproveitar minha generosidade ou então dar uma de babaca e ficar por aqui. Mas o que você..."
"O carro..."
"... não pode fazer, Jessie...", disse Cully, a voz de repente soando alto dentro do caminhão. "O que você não pode fazer é ficar por mais um segundo no meu caminhão."
Luther o encarou. Os olhos do outro estavam brandos e não piscavam.
"Então, dá o fora, rapaz."
Luther sorriu. "Você é só um homem bom que rouba carros, não é mesmo, senhor Cully, sor?"
Cully também sorriu. "Hoje não vai ter outro trem, Jessie. Tente pegar o terceiro vagão de carga, na parte de trás, está ouvindo?"
Ele se debruçou sobre Luther e abriu a porta.
"Você tem família?", perguntou Luther. "Filhos?"
Cully inclinou a cabeça para trás e riu. "Oh, não. Não force a barra, rapaz." Ele indicou a porta. "Fora do meu caminhão."
Luther continuou ali sentado por um instante, Cully voltou a cabeça e olhou pelo para-brisa. Um corvo crocitou em algum ponto acima deles. Luther estendeu a mão para a maçaneta.
Ele desceu, pisou no cascalho, e seus olhos deram com a mancha escura de um arvoredo do outro lado dos trilhos, não muito densa, por causa do inverno, a pálida luz da manhã passando por entre os troncos. Cully debruçou-se novamente e fechou a porta. Luther ficou observando-o manobrar o caminhão para fazê-lo dar a volta, o cascalho rangendo sob os pneus. Cully fez-lhe um aceno da janela e voltou pelo caminho de onde viera.
O trem passou por St. Louis, cruzou o Mississippi e entrou em Illinois. Aquilo se revelou o primeiro golpe de sorte de Luther em muito tempo, já que seu destino inicial era East St. Louis. Era lá que morava o irmão de seu pai, Hollis, e Luther vinha planejando vender o carro e ficar quieto por lá.
O pai de Luther, um homem a quem não conhecera pessoalmente, deixara a família e fora para East St. Louis quando Luther tinha dois anos. Ele fugiu com uma mulher chamada Velma Standish, e os dois se estabeleceram na cidade. Timon Laurence terminou por abrir uma loja de venda e conserto de relógios de pulso. Os irmãos Laurence eram três: Cornelius, o mais velho, Hollis, o do meio, e Timon. O tio Cornelius vivia dizendo que Luther não tinha perdido grande coisa em crescer longe do pai. Ele dizia que seu irmão caçula sempre fora um homem irresponsável e com um fraco por mulheres e bebidas desde a época em que tomou conhecimento dessas duas coisas. Que ele deixara uma mulher excelente como a mãe de Luther por uma piranha. (Durante toda a vida de Luther, o tio Cornelius dedicou à sua mãe um amor casto e paciente, sobre cuja sinceridade não pairava dúvida, mas que passou despercebido ao longo dos anos. Era seu destino, disse ele a Luther pouco depois de perder completamente a visão, ter um coração que ninguém desejava a não ser despedaçado, e nunca inteiro, ao passo que seu irmão caçula, um homem de princípios dúbios, recolhia amores para si como se caíssem com a chuva.)
Luther cresceu com uma única velha fotografia de seu pai. De tanto tocá-la com o polegar, a imagem do pai ficou meio apagada e borrada. Quando Luther ficou adulto, já não era possível dizer se se parecia com o pai. Luther nunca confessou a ninguém, nem à mãe, nem à irmã e nem mesmo a Lila, o quanto lhe doía crescer sabendo que seu pai nunca se lembrara dele. Que o homem olhou aquela vida que gerou e pôs no mundo e disse a si mesmo: sou mais feliz sem ela. Luther sonhou um dia procurar o pai, apresentar-se diante dele, jovem orgulhoso e promissor, e ver-lhe o semblante encher-se de pesar e arrependimento. Mas não foi assim que a coisa aconteceu.
Seu pai morrera dezesseis meses antes, com mais uma centena de outros negros, enquanto East St. Louis incendiava-se à sua volta. Luther ficou sabendo por um bilhete, escrito por Hollis, em que as letras de forma pareciam se contorcer de dor na folha de papel amarelo:
Seu pai foi morto a tiros por homens brancos. Lamento dizer.
Luther saiu do galpão de cargas e seguiu em direção à cidade quando o céu começava a escurecer. Levava consigo o envelope da carta do tio Hollis com o endereço rabiscado no verso. No caminho, tirou o envelope do bolso do casaco e segurou-o na mão. Quanto mais se internava na zona negra da cidade, menos podia acreditar no que via. As ruas estavam vazias, em parte devido à epidemia de gripe, mas também porque não fazia sentido andar por ruas onde todas as edificações estavam escurecidas ou reduzidas a escombros cobertos de cinzas. Elas lhe lembravam a boca de um velho já sem a maioria dos dentes, alguns quebrados, outros tortos e imprestáveis. Quarteirões inteiros eram pura cinza em grandes montes, que a brisa da noitinha jogava de um lado a outro da rua. A cinza era tanta que nem mesmo um tornado seria capaz de levá-la embora. Mais de um ano já tinha se passado desde o incêndio, e os montes de cinza continuavam altos. Numa daquelas ruas destruídas pelo fogo, Luther sentiu-se como se fosse o último homem vivo e imaginou que, se o Kaiser tivesse feito seu exército cruzar o oceano com todos os seus aviões, bombas e rifles, a destruição não teria sido tão completa.
Luther sabia que aquilo tudo se dera por causa de empregos: os trabalhadores brancos cada vez mais se convenciam de que estavam pobres porque os trabalhadores negros lhes roubavam os empregos e a comida de suas mesas. Então eles vieram para o bairro negro - homens, mulheres e crianças brancas - e começaram a atacar os negros. Puseram-se a atirar neles, a linchá-los, tocar-lhes fogo, e chegaram a jogá-los no rio Cahokia e apedrejá-los quando tentavam nadar de volta, tarefa que os brancos deixaram principalmente para seus filhos. As mulheres brancas empurravam as negras dos bondes, apedrejavam-nas e golpeavam-nas com facas de cozinha, e, quando a Guarda Nacional chegou, simplesmente ficou ali deixando a coisa rolar.
Dois de julho de 1917.
Quando Luther apareceu na porta do barzinho do tio Hollis, este o levou para a sala dos fundos, serviu-lhe um drinque e disse: "Seu pai estava tentando proteger a lojinha, que nunca rendeu um centavo. Tocaram fogo nela e chamaram por ele. Quando as quatro paredes ardiam em chamas à sua volta, ele e Velma saíram. Alguém lhe acertou um tiro no joelho, e ele ficou caído na rua por algum tempo. Eles entregaram Velma a umas mulheres, que bateram nela com rolos de cozinha. Golpearam-lhe a cabeça, o rosto e os quadris, e ela morreu feito um cachorro, sob uma varanda, depois de ter se arrastado para um beco. Alguém se aproximou do seu pai e, pelo que me disseram, ele tentou se pôr de joelhos, mas nem isso conseguiu fazer. Então ele ficou caindo, pedindo ajuda, e por fim dois homens brancos aproximaram-se e se puseram a atirar nele até acabarem as balas."
"Onde ele foi enterrado?", perguntou Luther.
O tio Hollis balançou a cabeça. "Não restou nada para enterrar, filho. Depois que acabaram de atirar, pegaram o corpo, um de cada lado, e jogaram na loja dele."
Luther levantou-se da mesa, foi até uma pequena pia e começou a vomitar. Aquilo continuou por algum tempo, e era como se ele estivesse vomitando fuligem, fogo amarelo e cinza. Sua cabeça era um torvelinho só de imagens fugazes de mulheres brancas batendo rolos de cozinha em cabeças negras, rostos brancos guinchando de alegria e de fúria, o Diácono cantando em sua cadeira de balanço com rodas, seu pai tentando se ajoelhar na rua, a tia Marta e o honrado senhor Lionel T. Garrity batendo palmas e escancarando sorrisos radiantes, enquanto alguém cantava "Glória a Jesus! Glória a Jesus!" - e o mundo inteiro ardendo em chamas até onde a vista alcançava, até metade do céu azul se tingir de negro e o sol branco sumir atrás da fumaça.
Quando ele acabou de vomitar, enxaguou a boca. Hollis então lhe deu uma toalhinha, ele secou os lábios e enxugou o suor da testa.
"Você está em perigo, rapaz."
"Não, agora eu estou bem."
O tio olhou para ele, balançou a cabeça devagar e serviu-lhe outro drinque. "Não, eu disse que você está em perigo. Tem gente procurando você, mandando mensagens para todo lado, até aqui no Meio-Oeste. Você matou um monte de negros numa boate de Tulsa? Você matou o Diácono Broscious? Você pirou, porra?"
"Como você ficou sabendo?"
"Merda. A notícia está correndo por toda parte, rapaz."
"A polícia?"
O tio negou com a cabeça. "A polícia pensa que foi outro louco que fez isso. Clarence Não-sei-das-quantas."
"Tell", disse Luther. "Clarence Tell."
"Isso mesmo." Tio Hollis lançou-lhe um olhar por cima da mesa, respirando forte pelo nariz achatado. "Pelo visto você deixou um deles vivo. Um tal de Smoke?"
Luther fez que sim.
"Ele está no hospital. Ninguém sabe se ele vai se recuperar ou não, mas ele contou a história. Apontou você. Tem pistoleiros desde aqui até Nova York querendo sua cabeça."
"Quanto estão pagando por ela?"
"Esse tal de Smoke diz que paga quinhentos dólares por uma fotografia do seu cadáver."
"E se Smoke morrer?"
O tio Hollis deu de ombros. "Quem quer que assuma o controle dos negócios do Diácono vai cuidar para que você morra."
Luther disse: "E não tenho para onde ir".
"Você tem de ir para o Leste, rapaz. Porque não pode ficar aqui. E trate de ficar longe do Harlem. Escute, conheço um sujeito em Boston que pode receber você."
"Boston?"
Luther refletiu um pouco e logo concluiu que ficar pensando sobre aquilo era perda de tempo, já que não tinha a menor escolha. Se Boston era o único lugar "seguro" que lhe restava no país, tinha de ser Boston mesmo.
"E você?", perguntou ele. "Vai continuar aqui?"
"Eu?", disse o tio Hollis. "Eu não matei ninguém."
"Sim, mas o que é que você tem aqui agora? Tudo foi destruído pelo fogo. Ouvi dizer que os negros estão indo embora ou tentando ir."
"Ir para onde? O problema do nosso povo, Luther, é que ele se agarra a uma esperança e fica preso a ela o resto da vida. Você acha que existe um lugar melhor do que aqui? São só jaulas diferentes, rapaz. Umas mais bonitas que outras, mas de todo modo jaulas." Ele suspirou. "Foda-se. Estou velho demais para me mudar, e isto aqui, isto aqui é o lar que eu conheço."
Eles ficaram em silêncio e terminaram seus drinques.
O tio Hollis inclinou a cadeira para trás e estendeu os braços acima da cabeça. "Bem, tenho uma sala no piso de cima. Você vai ficar lá durante a noite, enquanto faço algumas ligações. De manhã..." Ele sacudiu os ombros.
"Boston", disse Luther.
Tio Hollis balançou a cabeça. "Boston. É o melhor que posso fazer."
Dentro do vagão, com o belo casaco de Jessie coberto de feno para vencer o frio, Luther prometeu ao Senhor que iria se regenerar. Agora nada de jogo de cartas, uísque, cocaína. Nada de parcerias com jogadores, gângsteres, nem com ninguém que ao menos pensasse em mexer com heroína. Nada de se entregar aos embalos da noite. Ele iria manter a cabeça baixa para não chamar a atenção e esperar a poeira baixar. E se algum dia ficasse sabendo que poderia voltar a Tulsa, retornaria um outro homem. Um homem arrependido e humilde.
Luther nunca se considerou um homem religioso, mas isso tinha menos a ver com seus sentimentos em relação a Deus que em relação à religião. Sua avó e sua mãe tentaram lhe inculcar a fé batista, e ele fez o que pôde para contentá-las, para que pensassem que ele acreditava, mas essa fé o mobilizava tanto quanto as outras tarefas domésticas que ele fingia fazer. Em Tulsa ele ficou ainda menos propenso a aceitar Jesus, quanto mais não fosse porque a tia Marta, o tio James e todos os seus amigos passavam tanto tempo louvando-O, e ele imaginava que, se Jesus ouvisse mesmo todas aquelas vozes, logo haveria de querer um pouco de silêncio de vez em quando, quem sabe para conseguir dormir.
E Luther chegara a passar por mais de uma igreja de brancos, ouviu-os cantar seus hinos, entoar seus "améns"; viu-os reunir-se em seguida em uma ou outra varanda, com sua limonada e sua beatice. Ele sabia, porém, que se algum dia aparecesse à porta deles morrendo de fome ou ferido, a única resposta a uma súplica de bondade humana seria o amém de uma espingarda apontada para a sua cara.
Assim, os termos da relação de Luther com Deus há muito tempo eram na base de o Senhor segue o Seu caminho que eu sigo o meu. Mas no vagão do trem alguma coisa apossou-se dele, uma necessidade de dar um sentido à própria vida para não passar pela face da terra deixando uma pegada mais rasa que a de um besouro.
Ele cruzou o Meio-Oeste pela ferrovia, passou de novo por Ohio e chegou ao Nordeste. Embora os companheiros encontrados nos vagões de carga fossem menos hostis e perigosos do que sempre lhe disseram, e os policiais nunca os expulsassem do trem, ele não podia deixar de lembrar a viagem que fizera com Lila para Tulsa, e aquilo o encheu de uma tristeza tão grande que parecia não haver lugar para mais nada em seu corpo. Ele se mantinha nos cantos dos vagões e raramente falava, a não ser quando instado pelos outros homens.
Ele não era o único ali a fugir de alguma coisa. Eles fugiam de intimações, da polícia, de dívidas e de esposas. Alguns fugiam em busca das mesmas coisas. Outros apenas de uma mudança. Todos precisavam de emprego. Mas ultimamente os jornais vinham anunciando uma nova recessão. O surto de desenvolvimento, diziam eles, se acabara. As indústrias de armamentos estavam fechando as portas, e sete milhões de homens iriam para a rua. Mais quatro milhões estavam voltando de além-mar. Onze milhões de homens estavam prestes a entrar num mercado de trabalho saturado.
Um desses onze milhões, um branco grandalhão chamado BB, cuja mão esquerda fora esmagada por uma perfuratriz que a transformara numa pasta de carne imprestável, acordou Luther em sua última manhã no trem. Ele abriu a porta, e o vento frio soprou no rosto de Luther, que abriu os olhos e viu BB ao lado da porta aberta, a paisagem deslizando célere à sua frente e ficando para trás. Ainda estava amanhecendo, e a lua continuava no céu como um fantasma de si mesma.
"Que bela paisagem, não é?", disse BB, a cabeçorra apontando para a lua.
Luther fez que sim e cobriu o bocejo com o punho. Ele desentorpeceu as pernas, aproximou-se da porta e ficou ao lado de BB. O céu estava claro, azul e duro. O ar estava frio, mas tinha um odor tão puro que Luther teve vontade de botá-lo num prato e comê-lo. Os campos por onde passavam estavam congelados, a maioria das árvores, nuas. Parecia que ele e BB tinham surpreendido o mundo dormindo, como se ninguém mais, em nenhum lugar, presenciasse aquele amanhecer. Contra aquele duro céu azul, o mais azul que Luther vira em sua vida, tudo parecia tão belo que ele desejou poder mostrá-lo a Lila. Cingir-lhe o ventre com os braços, apoiar o queixo em seu ombro e perguntar-lhe se já tinha visto uma coisa tão azul. Em toda a sua vida, Lila? Você já viu?
Ele recuou, afastando-se da porta.
Eu perdi tudo isso, pensou ele. Eu perdi tudo isso.
Ele viu a lua desmaiando no céu e não tirou os olhos dela. Ficou olhando até que ela se apagasse completamente, o vento insinuando-se em seu casaco.
BABE RUTH E A REVOLUÇÃO OPERÁRIA
12.
Babe passou a manhã distribuindo doces e bolas de beisebol na Escola Industrial para Crianças Acidentadas e Deformadas do South End. Um menino engessado dos tornozelos ao pescoço pediu-lhe que assinasse o gesso, então Babe autografou os dois braços e as duas pernas e respirou fundo e ruidosamente. Em seguida rabiscou o nome no tórax do menino, as letras estendendo-se do quadril direito ao ombro esquerdo, enquanto os outros meninos riam, no que foram acompanhados pelas enfermeiras e até por algumas das irmãs de caridade. O menino engessado disse a Ruth que seu nome era Wilbur Connelly. Ele trabalhava na Fiação de Lã Shefferton, em Dedham, quando algumas substâncias químicas se derramaram no chão, as centelhas de uma cortadeira alcançaram os vapores e incendiaram seu corpo. Babe garantiu a Wilbur que ele iria ficar bom. Um dia ele iria crescer e fazer um home run na Série Mundial. E seus ex-patrões da Shefferton iriam ficar roxos de inveja quando aquele dia chegasse. Wilbur Connelly, já meio sonolento, mal conseguia ensaiar um sorriso, mas os outros meninos riram e trouxeram mais coisas para Babe assinar - uma foto tirada das páginas de esporte do The Standard, um pequeno par de muletas, um camisetão de dormir amarelado.
Quando ele foi embora com seu agente, Johnny Igoe, este sugeriu que eles dessem um pulo no Orfanato St. Vincent, a alguns quarteirões dali. Não faria mal nenhum, disse Johnny, melhorar a imagem na imprensa e quem sabe dar a Babe uma vantagem em sua última rodada de negociações com Harry Frazee. Babe, porém, sentia-se cansado - cansado de negociar, cansado das câmeras pipocando em seu rosto, cansado de órfãos. Ele gostava de crianças, principalmente de órfãos, mas puxa vida... Os guris daquela manhã, estropiados, arrebentados e queimados lhe tiraram alguma coisa. Os de dedos decepados que não voltariam a crescer, os de rostos feridos que nunca veriam no espelho as cicatrizes desaparecerem e os das cadeiras de rodas que nunca haveriam de, um belo dia, acordar e sair andando. Não obstante, em certo sentido, eles tinham vindo ao mundo para seguir seu destino, e aquilo acabrunhou Babe naquela manhã, simplesmente esgotou suas forças.
Então ele se esquivou de Johnny dizendo-lhe que precisava comprar um presente para Helen, porque a mocinha estava com raiva dele novamente. O que em parte era verdade - Helen andava irritada, mas ele não ia lhe comprar nenhum presente, pelo menos em nenhuma loja. Em vez disso, dirigiu-se ao Castle Square Hotel. O vento frio de novembro soprava contra ele gotas de uma chuva fina, mas Babe estava bem aquecido em seu comprido casaco de arminho. Abaixou a cabeça para proteger os olhos e desfrutou o tranquilo anonimato que o saudava naquelas ruas desertas. No hotel, passou pelo saguão e encontrou o bar quase tão vazio quanto as ruas. Sentou-se no primeiro banco depois da porta, tirou o casaco e o pôs no banco ao lado do seu. O barman estava no outro extremo do balcão, conversando com dois outros homens, então Ruth acendeu um charuto, lançou um olhar em volta, examinou as escuras colunas de nogueira e aspirou o cheiro de couro, perguntando-se como diabos o país ia poder seguir em frente com alguma dignidade, agora que a Lei Seca era algo inevitável. As proibições e a repressão estavam ganhando a guerra, e ainda que seus agentes se chamassem de progressistas, Ruth não conseguia ver grande progresso em negar a um homem o direito de beber ou em fechar um lugar onde se ia buscar o aconchego de um ambiente em que predominavam a madeira e o couro. Diabo, se você trabalha oitenta horas por semana por uma miséria, o mínimo que se pode esperar do mundo é uma caneca de cerveja e uma dose de uísque de centeio. Não que Ruth algum dia na vida tivesse trabalhado oitenta horas por semana, mas ainda assim o princípio era válido.
O barman, um homenzarrão com um denso bigode com pontas viradas para cima de tal forma que nelas se podiam pendurar chapéus, veio andando em sua direção. "O que vai querer?"
Ainda se sentindo solidário com o trabalhador, Ruth pediu duas cervejas e um uísque duplo. O barman pôs as cervejas na sua frente e serviu-lhe uma generosa dose de uísque.
Ruth tomou um pouco de cerveja. "Estou procurando um homem chamado Dominick."
"Sou eu, senhor."
"Me disseram que você tem um reboque possante", disse Ruth.
"É verdade."
No outro extremo, um dos homens raspou a borda de uma moeda no balcão.
"Só um segundo", desculpou-se o barman. "Tem uns cavalheiros com sede ali, senhor."
Ele foi à outra ponta do balcão, ouviu os dois homens por um instante, balançando a cabeçorra, foi até as torneiras de cerveja, depois às garrafas. Ruth notou que os dois homens o observavam, por isso olhou para eles também.
O da esquerda era alto e robusto, cabelos e olhos negros, e tão glamoroso (foi a primeira palavra que veio à mente de Babe) que Ruth se perguntou se o tinha visto no cinema ou nas páginas dos jornais dedicadas aos heróis recém-chegados da guerra. Mesmo do outro extremo do balcão, seus gestos mais simples - levar o copo aos lábios, bater um cigarro apagado na madeira - tinham um charme que Ruth associava a homens capazes de gestos épicos.
O homem ao lado dele era muito mais baixo e menos distinto. Era descorado, melancólico, cabelos castanhos desbotados, parecendo pelos de rato, caindo-lhe o tempo todo sobre a testa; ele os puxava para trás com uma impaciência que aos olhos de Ruth parecia feminina. Tinha mãos e olhos pequenos e um ar de eterno ressentimento.
O glamoroso levantou o copo. "Sou um grande fã de seus feitos atléticos, senhor Ruth."
Babe levantou seu copo e balançou a cabeça em agradecimento. O de cabelo de rato não acompanhou o gesto.
O homem robusto bateu nas costas do amigo e disse: "Beba, Gene, beba", e sua voz soou como o barítono de um grande ator de teatro, capaz de chegar à última fileira da plateia.
Dominick lhes serviu mais bebidas, e eles voltaram à sua conversa. O barman voltou para onde estava Ruth, encheu novamente seu copo de uísque e encostou-se à caixa registradora. "Quer dizer que o senhor precisa do meu serviço de reboque?"
Babe tomou um gole de uísque. "Sim."
"E o que é, senhor Ruth?"
Babe tomou outro gole. "Um piano."
Dominick cruzou os braços. "Um piano. Bem, isso não é muito..."
"Tem de ser içado do fundo de um lago."
Dominick ficou um minuto sem dizer nada, crispou os lábios e olhou para além de Ruth, como se ouvisse o eco de um som que não lhe era familiar.
"Você tem um piano num lago", disse ele.
Ruth fez que sim. "Na verdade, está mais para uma lagoa."
"Uma lagoa."
"Sim."
"Bem, qual dos dois então, senhor Ruth?"
"Uma lagoa", Babe finalmente decidiu-se.
Dominick balançou a cabeça como se já tivesse experiência nesse tipo de problema, e Babe sentiu no peito uma ponta de esperança. "Como é que um piano vai parar no fundo de uma lagoa?"
Ruth mexeu em seu uísque. "Sabe, era uma festa para crianças órfãs. Minha mulher e eu fizemos a festa no inverno passado. Sabe, estávamos reformando a casa, por isso alugamos uma cabana à beira de um lago não muito longe."
"Você quis dizer uma lagoa."
"Sim, uma lagoa."
Dominick pôs uma pequena dose num copo e tomou.
"Então, de qualquer modo", continuou Babe, "todo mundo estava se divertindo muito, nós tínhamos comprado patins para a gurizada, e as crianças estavam aos tropeços em volta da lagoa... ela estava congelada."
"Entendi, senhor."
"E... bem, gosto muito de tocar nesse piano. E Helen com certeza também."
"Helen é sua esposa, senhor?"
"É sim."
"Entendi", disse Dominick. "Continue, senhor."
"Então eu e alguns companheiros resolvemos tirar o piano da sala da frente e empurrá-lo pelo declive até o gelo."
"Uma boa ideia, sem dúvida, senhor."
"E foi o que fizemos."
Babe recostou-se no banco, tornou a acender o charuto, sugou-o até ele ficar bem aceso e tomou mais um gole de uísque. Dominick pôs outra cerveja para ele, e Babe agradeceu com um gesto de cabeça. No minuto em que ficaram calados, puderam ouvir os outros dois homens conversando sobre trabalho alienado e oligarquias capitalistas. Babe não entendia nada. Se estivessem falando grego, o efeito seria o mesmo.
"Esta parte é que eu não entendo", disse Dominick.
Babe resistiu ao impulso de encolher-se em seu banco. "Explique."
"Você o empurrou até o gelo. Ele rebentou o gelo, caiu pelo buraco e levou junto todos os meninos com patins?"
"Não."
"Não", disse Dominick devagar. "Acho que eu teria lido sobre uma coisa dessas. Então, minha pergunta é: como ele afundou no gelo?"
"O gelo derreteu", apressou-se Ruth em responder.
"Quando?"
Babe respirou fundo. "Acho que foi em março."
"Mas a festa...?"
"Foi em janeiro."
"Quer dizer que o piano ficou no gelo durante dois meses antes de afundar."
"Fiquei adiando o resgate", disse Babe.
"Com certeza, senhor." Dominick alisou o bigode. "O dono..."
"Ah, o dono ficou louco", disse Babe. "Louco furioso. Mas eu o paguei."
Dominick tamborilou os grossos dedos no balcão. "Então se o senhor pagou o piano..."
Babe teve vontade de dar o fora do bar. Aquela era a parte que ele ainda não resolvera em sua cabeça. Ele arrumara um outro piano para a cabana de aluguel e para a casa restaurada em Dutton Road, mas toda vez que Helen punha os olhos no novo piano, lançava a Ruth um olhar que o fazia se sentir atraente feito um porco chafurdando na própria merda. Desde que o novo piano entrara na casa, nenhum dos dois o tocara nem uma vez.
"Eu pensei", disse Ruth, "que se pudesse puxar o piano de dentro do lago..."
"Da lagoa, senhor."
"Da lagoa. Se eu pudesse tirar o piano e, sabe, restaurá-lo, seria um belo presente de aniversário de casamento para minha mulher."
Dominick concordou com um gesto de cabeça. "E quantos anos de casados vocês vão completar?"
"Cinco."
"O presente apropriado não seria madeira?"
Babe ficou calado por um instante, pensando sobre aquilo.
"Bem, ele é feito de madeira."
"Tem razão, senhor."
Babe disse: "E nós ainda temos algum tempo. O aniversário vai ser daqui a seis meses".
Dominick serviu outro drinque para cada um e levantou um copo para brindar. "Ao seu otimismo sem limites, senhor Ruth. É isso que faz o nosso país ser o que é atualmente."
Eles beberam.
"Você já viu o que a água faz com a madeira? Com as teclas de marfim, as cordas e todas as partes delicadas de um piano?"
Babe fez que sim. "Eu sei que não vai ser fácil."
"Fácil, senhor? Não sei se vai ser possível." Ele se debruçou sobre o balcão. "Eu tenho um primo que mexe com dragagem. Ele trabalhou no mar na maior parte da vida. Que tal se tentássemos pelo menos localizar o piano, saber a que profundidade do lago ele está?"
"Da lagoa."
"Da lagoa, senhor. Se soubéssemos isso, bem, já seria alguma coisa, senhor Ruth."
Ruth refletiu um pouco e balançou a cabeça. "Quanto isso vai me custar?"
"Não posso dizer nada sem antes falar com meu primo, mas pode ser que seja um pouco mais que o preço de um piano novo. Pode ser menos." Ele sacudiu os ombros e mostrou as mãos a Ruth. "Mas não posso garantir nada sobre o custo final."
"Claro."
Dominick pegou uma folha de papel, escreveu um número de telefone e passou a Ruth. "Este é o número do bar. Eu trabalho sete dias por semana, de meio-dia às dez. Ligue para mim na quinta-feira, que já vou ter alguma informação para o senhor."
"Obrigado", disse Ruth pondo o papel no bolso enquanto Dominick se afastava, ladeando o balcão.
Ele bebeu um pouco mais e fumou seu charuto, enquanto mais alguns homens entravam no bar e iam se reunir aos outros dois que estavam no fundo. Houve novas rodadas de bebidas e ergueram-se brindes ao homem alto e glamoroso que dava a impressão de que logo iria fazer uma espécie de sermão na Igreja Batista do Templo de Tremont. O sujeito alto parecia ser um figurão, porém Ruth não conseguia saber ao certo o que ele era. Mas não tinha importância - ali ele se sentia num casulo quente, protegido contra o frio. Ele gostava de bares de luzes fracas, madeira escura e bancos revestidos de couro macio. As crianças daquela manhã foram se distanciando até ficarem várias semanas para trás. E, se estava frio lá fora, a gente só podia imaginar, porque ali dentro não se podia senti-lo.
De meados do outono até o fim do inverno, era duro para Babe. Ele não sabia o que fazer, não conseguia imaginar o que se esperava dele quando não havia bolas para acertar nem companheiros jogadores com quem conversar. Toda manhã ele se via diante de decisões - como agradar Helen, o que comer, aonde ir, como encher o tempo, o que vestir. Chegada a primavera, ele arrumava sua mala com as roupas de viagem, e na maioria das vezes bastava-lhe abrir o armário para saber o que ia usar; lá estaria seu uniforme, recém-saído da lavanderia da equipe. Seu dia já estaria programado: uma partida, um treino, ou então Bumpy Jordan, o secretário de viagens do Sox, lhe indicava a empresa de táxis que o levaria à cidade a que iriam em seguida. Ele não precisava se preocupar com as refeições, porque tudo já estaria determinado. Nunca se perguntava onde iria dormir - seu nome já estava escrito no livro de registros de um hotel, e um porteiro o aguardava para carregar suas malas. À noite os rapazes estavam à espera no bar, a primavera deslizava mansamente para o verão, o verão desdobrava-se em amarelos brilhantes e verdes fortes, e o ar tinha um cheiro tão bom que podia fazer a gente chorar.
Ruth não sabia em que consistia a felicidade dos outros homens, mas sabia muito bem onde se encontrava a sua: ter seus dias programados por outros, como o irmão Matthias fazia para ele e todos os outros meninos no St. Mary’s. Quando, porém, tinha de encarar a monotonia de uma vida doméstica normal, Ruth sentia-se inquieto e apreensivo.
Mas aqui não, pensou ele quando os homens do bar começaram a se acomodar à sua volta e um par de mãos grandes bateu em seus ombros. Ele voltou a cabeça e viu o sujeito alto que estava no fundo do bar sorrindo para ele.
"Posso lhe pagar uma bebida, senhor Ruth?"
O homem sentou-se ao seu lado, e novamente Ruth teve a impressão de sentir alguma coisa de heroico no sujeito, uma dimensão que não podia se encerrar no espaço exíguo de uma sala.
"Claro", disse Ruth. "Quer dizer que você é fã do Red Sox?"
O homem balançou a cabeça, levantando três dedos para Dominick, e seu amigo mais baixo reuniu-se a ele no balcão, pegando uma cadeira e largando-a no chão com a força de um homem com o dobro de seu tamanho.
"Não especialmente. Gosto de esporte, mas não me agrada a ideia de fidelidade a um time."
"Então por quem você torce quando vai assistir a um jogo?"
"Torcer?", perguntou o homem quando os drinques chegaram.
"Quem você aplaude?", disse Ruth.
O homem abriu um sorriso radioso. "Ora, o desempenho individual, senhor Ruth. A pureza de uma jogada, o espetáculo da demonstração atlética e de coordenação. O time é uma coisa maravilhosa como conceito, posso lhe garantir. Ele aponta para a fraternidade do homem e a união visando a um mesmo objetivo. Mas, se você olhar o que está por trás, vai ver que isso foi roubado por interesses corporativos, a fim de vender um ideal que é a antítese de tudo o que este país alega representar."
Ruth ficou perdido no meio daquele discurso, mas levantou o copo de uísque e fez um aceno de cabeça, que ele esperava expressasse concordância, e tomou um gole.
O sujeito pálido debruçou-se sobre o balcão, olhou para Ruth, macaqueou o gesto de cabeça do jogador e tomou seu uísque. "Ele não entendeu porra nenhuma do que você disse, Jack."
Jack pôs o copo sobre o balcão. "Peço desculpas por Gene, senhor Ruth. Ele perdeu os modos no Village."
"Que village?",[9] perguntou Ruth.
Gene reprimiu um riso.
Jack olhou para Ruth com um riso suave. "Greenwich Village, senhor Ruth."
"É em Nova York", disse Gene.
"Eu sei onde fica, compadre", disse Ruth, ciente de que, por mais grandalhão que Jack fosse, não seria páreo para a sua força, caso resolvesse tirá-lo da frente e arrancar os cabelos de rato da cabeça do amigo dele.
"Oh", fez Gene. "O imperador Jones está com raiva."
"O que você disse?"
"Cavalheiros", disse Jack. "Lembrem-se de que somos todos irmãos. Nossa luta é comum. Senhor Ruth, Babe", disse Jack. "Sou uma espécie de viajante. Diga nomes de países do mundo, que com certeza tenho um adesivo de cada um deles na minha mala."
"Você é uma espécie de caixeiro-viajante?", disse Babe pegando um ovo em conserva do frasco e jogando-o na boca.
Os olhos de Jack brilharam. "Pode-se dizer que sim."
Gene disse: "Você não tem a menor ideia de com quem está falando, tem?".
"Claro que tenho, vovô", disse Babe esfregando as mãos para secá-las. "Ele aqui é Jack. Você é Jill."
"Gene", disse o sujeito de cabelos de rato. "Na verdade, Gene O’Neill. E esse com quem você está falando é Jack Reed."
Babe manteve os olhos no rato. "Vou ficar com ‘Jill’."
Jack riu e bateu nas costas dos dois. "Como eu ia dizendo, Babe, estive por toda parte. Vi competições atléticas na Grécia, na Finlândia, na Itália e na França. Certa vez assisti a uma partida de polo na Rússia, onde um pequeno número de participantes foi atropelado pelos próprios cavalos. Não existe nada mais puro nem mais inspirador que ver homens metidos numa disputa. Mas, como acontece com a maioria das coisas puras, isso termina por ser contaminado pelo dinheiro grosso, pelas negociatas, e posto a serviço de propósitos espúrios."
Babe sorriu. Ele gostava do jeito como Reed falava, ainda que não entendesse o que ele queria dizer.
Um sujeito magro, de silhueta angulosa, reuniu-se a eles e disse: "Esse aí é o grande batedor?".
"É sim", disse Jack. "É Babe Ruth, em pessoa."
"Jim Larkin", disse o homem, apertando a mão de Babe. "Desculpe-me, mas não acompanho seus jogos."
"Não precisa se desculpar, Jim", disse Babe apertando-lhe a mão vigorosamente.
"O que meu conterrâneo aqui está dizendo", prosseguiu Jim, "é que o próximo ópio do povo não é a religião, mas o entretenimento."
"É mesmo?", disse Ruth perguntando-se se Stuffy McInnis estava em casa naquela hora. Se ele atendesse ao telefone, talvez pudessem se encontrar no centro da cidade para traçar um bife e conversar sobre beisebol e mulheres.
"Você sabe por que as ligas de beisebol estão pipocando por todo o país? Em cada fábrica e em cada estaleiro? Por que quase todas as empresas têm um time de trabalhadores?"
"Claro, é divertido", disse Ruth.
"Bom, é verdade", concordou Jack. "Não há dúvida. Mas, analisando bem as coisas, as empresas gostam de beisebol porque ele promove a união na empresa."
"Não há nada de errado nisso", disse Babe, e Gene tornou a bufar.
Larkin inclinou o corpo novamente para Babe, que teve vontade de esquivar-se de seu bafo de gim. "E ele promove a ‘americanização’, por falta de um termo melhor, entre os operários imigrantes."
"O mais importante, porém, é o seguinte", disse Jack. "Se você trabalha setenta e cinco horas por semana e joga beisebol por mais umas quinze ou vinte, adivinhe o que você não consegue fazer, por estar cansado demais?"
Babe deu de ombros.
"Greve, senhor Ruth", disse Larkin. "Você está cansado demais para fazer greve e até para pensar em seus direitos trabalhistas."
Babe esfregou o nariz para que os outros pensassem que ele estava refletindo sobre aquilo. A verdade, porém, é que ele queria mesmo era ir embora.
"Ao operário!", exclamou Jack levantando o copo.
Os outros homens - e Ruth notou que agora havia uns nove ou dez - levantaram os copos e gritaram "Ao operário!".
Todos tomaram um bom trago, inclusive Ruth.
"À revolução!", gritou Larkin.
Dominick disse: "Ora, ora, cavalheiros", mas sua voz se perdeu entre os gritos dos homens, que se levantavam de seus assentos.
"Revolução!"
"Ao novo proletariado!"
Mais gritos e brindes, e Dominick desistiu de restabelecer a ordem, pondo-se a encher os copos novamente.
Ergueram-se brindes ruidosos aos camaradas da Rússia, da Alemanha e da Grécia, a Debs, Haywood, Joe Hill, ao povo, à união de todos os trabalhadores de todo o mundo!
Enquanto eles se entregavam a uma tremenda exaltação, Babe estendeu a mão para pegar seu casaco, mas Larkin interceptou-lhe o movimento, fazendo outro brinde em altos brados. Ruth olhou para seus rostos rebrilhando de suor e determinação, e talvez alguma coisa além da determinação, algo que ele não sabia ao certo nomear. Larkin girou o quadril para a esquerda, e pelo vão aberto Babe entreviu seu casaco, tentou pegá-lo novamente, enquanto Jack gritava: "Abaixo o capitalismo! Abaixo as oligarquias!". Babe pôs a mão no casaco, mas, sem se dar conta, Larkin esbarrou no braço dele. Babe soltou um suspiro e ensaiou uma nova tentativa.
Então entraram seis caras, vindos da rua. Estavam de terno, e quem sabe em algum outro dia eles exibissem uma aparência respeitável. Mas hoje cheiravam a álcool e raiva. Bastou a Babe observar aqueles olhos para notar que a merda seria jogada no ventilador com tal rapidez que a única saída era tirar o corpo fora.
Connor Coughlin não queria ouvir falar de subversivos naquele dia. Na verdade, ele não queria ouvir falar de porra nenhuma, mas muito menos de subversivos. Eles tinham entregado suas cabeças numa bandeja no tribunal. Nove meses de investigação, mais de duzentos depoimentos, seis semanas de interrogatórios, tudo isso para deportar um galleanista confesso chamado Vittorio Scalone, que falara em alto e bom som em explodir o edifício do Congresso Legislativo Estadual, em plena sessão.
O juiz, porém, achou que aquilo não bastava para deportar um homem. Do alto de seu assento de magistrado, olhou para o promotor Silas Pendergast, para o promotor assistente Connor Coughlin, para o promotor assistente Peter Wald e para os seis PAS e quatro detetives nas fileiras de trás e disse: "Embora a questão de saber se o estado tem o direito de tomar medidas de deportação a nível de condado seja, para alguns, discutível, este não é o problema em pauta neste tribunal". Ele tirou os óculos e lançou um olhar frio ao chefe de Connor. "Por mais que o promotor Pendergast tenha se empenhado para que assim fosse. A questão não é se o réu cometeu algum ato de traição. E não vejo nenhuma prova de que ele fez algo mais que ameaças vãs, sob a influência do álcool." Ele se voltou para Scalone e o encarou. "O que, nos termos da Lei de Espionagem, ainda constitui um grave crime, meu jovem, pelo qual eu o sentencio a dois anos na Penitenciária de Charlestown, descontados os seis meses já cumpridos."
Um ano e meio. Por traição. Nas escadarias do tribunal, Silas Pendergast lançou a seus jovens assistentes um olhar de tal desapontamento que Connor logo percebeu que seriam todos mandados de volta aos casos banais e que não trabalhariam num crime como aquele por séculos. Eles se puseram a vagar pela cidade acabrunhados, andando de bar em bar, até irem parar no Castle Square Hotel e darem com aquela merda.
Toda a conversa parou quando notaram sua presença. Eles foram recebidos com sorrisos nervosos e condescendentes. Connor e Pete Wald dirigiram-se ao balcão e pediram uma garrafa e cinco copos. O barman dispôs a garrafa e os copos no balcão, enquanto todos continuavam calados. Connor adorava aquilo: o gordo silêncio que pairava no ar antes de uma briga. Era um silêncio único, um silêncio pontuado pelo pulsar de corações. O companheiro promotor assistente juntou-se a eles no balcão e encheu-lhes os copos. Uma cadeira rangeu. Pete levantou o copo, lançou um olhar em volta e disse: "Ao procurador geral destes Estados Unidos".
"Bravo! Bravo!", gritou Connor, e eles tomaram suas doses e encheram os copos novamente.
"À deportação dos indesejáveis!", disse Connor, e os outros homens fizeram-lhe coro.
"À morte de Vlad Lênin!", gritou Harry Block.
Todos gritaram com ele, e o outro grupo de homens começou a vaiar e a berrar.
De repente um sujeito alto, de cabelos negros e aparência de artista de cinema surgiu ao lado de Connor.
"Olá", disse ele.
"Dê o fora", disse Connor esvaziando o copo enquanto os outros PAS riam.
"Vamos agir de forma razoável", disse o homem. "Vamos conversar sobre este assunto. Sabe de uma coisa? Talvez você se surpreenda em ver o quanto nossas ideias têm em comum."
Connor não tirou os olhos do balcão. "Arram."
"Todos queremos a mesma coisa", disse o bonitão pondo a mão no ombro de Connor.
Connor esperou que o homem tirasse a mão.
Ele pôs mais uma dose no copo e voltou-se para encarar o homem. Connor pensou no juiz, no traidor Vittorio Scalone saindo do tribunal com um olhar de desprezo. Pensou em tentar explicar a Nora sua frustração e seus sentimentos para com a injustiça, e imaginou que ela poderia reagir bem ou mal. Ela poderia se mostrar receptiva. Poderia também se mostrar distante, vaga. Nunca dava para prever. Às vezes ela parecia amá-lo, às vezes o olhava como se ele fosse um joão-ninguém, digno apenas de um afago na cabeça e um seco beijo de boa-noite no rosto. Ele já antevia os olhos dela... indecifráveis. Inalcançáveis. Nem sempre exprimindo franqueza. Nunca o vendo de verdade. Nem a ninguém, aliás. Alguma coisa sempre resguardada. Exceto, naturalmente, quando ela voltava aqueles olhos para...
Danny.
Aquela revelação lhe surgiu de repente, mas ao mesmo tempo já o acompanhava havia tanto tempo que ele simplesmente não acreditava só agora tê-la encarado. Seu estômago embrulhou e ele sentiu como se uma navalha lhe rasgasse a parte anterior dos olhos.
Ele se voltou com um sorriso para o bonitão, derramou o conteúdo do copo em seus cabelos negros e deu-lhe uma cabeçada no rosto.
Quando o irlandês de cabelos e sardas castanhos derramou a bebida na cabeça de Jack e meteu-lhe uma testada no rosto, Babe quis pegar o casaco na cadeira e dar o fora. Ele sabia, porém, como todo mundo sabe, que a primeira regra numa briga de bar é atacar primeiro o cara mais alto, que por acaso era ele. Assim, não foi nenhuma surpresa quando um banco atingiu-lhe a cabeça por trás, dois brações enlaçaram-lhe os ombros e duas pernas prenderam seus quadris. Babe largou o casaco, girou com o sujeito preso às suas costas e tomou outra pancada de banco de um cara que o olhou com ar de deboche e disse: "Merda, você se parece com Babe Ruth".
Aquilo fez com que o cara às suas costas relaxasse um pouco o aperto. Ruth então correu ao balcão, mas parou bruscamente antes de se chocar contra ele. O sujeito atrás dele soltou-se de suas costas, voou por cima do balcão e foi bater nas garrafas atrás da caixa registradora, com um estrondo.
Babe esmurrou o cara mais próximo dele, e só depois notou, e com grande satisfação, que era Gene, o rato filho da puta, e Gene cambaleou para trás girando nos calcanhares, agitando as mãos enquanto desabava sobre uma cadeira e caía de bunda no chão. Havia uns dez bolcheviques no salão, e muitos deles eram altos, mas os outros caras contavam com uma fúria que faltava aos vermelhos. Babe viu o cara sardento derrubar Larkin só com um soco no meio da cara, depois passar por cima dele e acertar um murro no pescoço de outro. De repente ele se lembrou do único conselho que seu pai lhe dera: nunca se meta num confronto direto com um irlandês numa briga de bar.
Outro bolchevique veio correndo sobre o balcão e pulou na direção de Babe. O jogador esquivou-se dele como de uma bola de beisebol, e o bolchevique foi cair em cima de uma mesa que estremeceu por um segundo e logo desabou sob seu peso.
"É você!", alguém gritou. Ele se voltou e viu o sujeito que o tinha atingido com o banco, com a boca ensanguentada. "Você é o puto do Babe Ruth."
"Sempre me dizem isso", disse Babe. Ele socou a cabeça do cara, apanhou seu casaco do chão e saiu correndo do bar.
A CLASSE OPERÁRIA
13.
No final do outono de 1918, Danny Coughlin parou de fazer ronda, deixou crescer uma barba espessa e renasceu como Daniel Sante, um veterano da greve de 1916 na companhia Thomson Ferro & Chumbo, na Pensilvânia Ocidental. O verdadeiro Daniel Sante tinha mais ou menos a mesma altura de Danny e o mesmo cabelo preto. Além disso, não deixou parentes quando foi convocado para lutar na Grande Guerra. Pouco depois de sua chegada à Bélgica, porém, contraiu a gripe e morreu num hospital de campanha sem disparar um tiro.
Dos mineiros que participaram da greve de 1916, cinco foram condenados a prisão perpétua quando se descobriu uma ligação, embora circunstancial, entre eles e uma bomba que explodiu na casa do presidente da Thomson Ferro & Chumbo, E. James McLeish. O presidente estava tomando seu banho matinal quando o criado trouxe a correspondência. O criado tropeçou ao cruzar o vestíbulo e tentou equilibrar uma caixa de papelão embrulhada em papel pardo. Seu braço esquerdo foi encontrado na sala de jantar; o que sobrou do corpo ficou no vestíbulo. Outros cinquenta grevistas receberam sentenças mais leves ou foram tão espancados pela polícia e por agentes de segurança que ficaram sem condições de viajar por vários anos. Os demais tiveram a mesma sorte da média dos grevistas do Cinturão do Aço - perderam seus empregos e atravessaram a fronteira rumo a Ohio, na esperança de serem contratados por empresas que desconheciam a lista negra da Thomson Ferro & Chumbo.
Era uma boa história para garantir a Danny credenciais na revolução operária, porque nenhuma organização conhecida - nem mesmo os expeditos membros da Operários Industriais do Mundo - teve participação na greve. Ela foi organizada pelos próprios mineiros, e com uma rapidez que provavelmente surpreendeu os organizadores. Quando o pessoal da OIM chegou, a bomba já explodira e os espancamentos já estavam em curso. Só lhes restava visitar os homens no hospital, enquanto a empresa contratava novos operários entre o contingente de desempregados.
Assim, esperava-se que o disfarce de Danny como Daniel Sante resistisse muito bem ao escrutínio dos vários movimentos radicais com que tivesse contato. E resistiu. Ninguém, pelo que ele sabia, questionara sua identidade. O problema é que, embora acreditassem nela, sua história não o fazia se destacar.
Danny comparecia às reuniões, mas ninguém prestava atenção nele. Em seguida ia aos bares e ficava sozinho. Quando tentava entabular uma conversa, concordavam gentilmente com tudo o que dizia, e com a mesma gentileza se afastavam. No quarto que alugara em Roxbury, gastava o dia repassando seus periódicos radicais - A Era da Revolução, Cronaca Sovversiva, Proletariado e O Operário. Ele relia Marx e Engels, Reed e Larkin, discursos de Big Bill Haywood, Emma Goldman, Trotski, Lênin e do próprio Galleani até poder recitar a maioria deles de cor. Às segundas e quartas havia reuniões dos lets de Roxbury, seguidas de encontros regados a bebida no Bar Sowbelly. Danny passava as noites com eles e as manhãs curtindo uma ressaca do tipo que a gente fica encolhido e querendo a mamãe; os lets não faziam nada com moderação, muito menos as bebedeiras. Um monte de Sergueis, de Boris e de Josefs, mais o eventual Peter ou Piotr, os lets varavam a noite com vodca, retórica, baldes de cerveja quente. Batendo suas canecas de barro em mesas riscadas e citando Marx, citando Engels, citando Lênin e Emma Goldman, falando em altos brados sobre os direitos dos trabalhadores, enquanto maltratavam a garçonete.
Eles zurravam sobre o líder operário Debs, ganiam sobre Big Bill Haywood, batiam seus copos de bebida nas mesas e prometiam vingança contra a punição dos membros da OIM de Tulsa, ainda que ela tivesse acontecido dois anos antes e não houvesse o menor sinal de que eles fossem retaliar de alguma forma. Eles enfiavam seus gorros de malha, fumavam seus cigarros e desancavam Wilson, Palmer, Rockefeller, Morgan e Oliver Wendell Holmes. Teciam loas a Jack Reed e Jim Larkin e exultavam com a queda da casa de Nicolau II.
Falavam, falavam, falavam, falavam, falavam.
Danny se perguntava se as ressacas dele eram por causa da bebida ou daquelas bobagens. Meu Deus, os bolcheviques conversavam fiado até ficarem vesgos. Até a gente começar a sonhar na cadência das ásperas consoantes russas, temperada com a monotonia das vogais nasais letãs. Duas noites por semana em sua companhia e ele só vira Louis Fraina uma vez, quando o homem fez um discurso e depois sumiu, protegido por um forte esquema de segurança.
Ele vasculhara o estado em busca de Nathan Bishop. Em feiras de trabalho, bares frequentados por conspiradores, campanhas de arrecadação para a causa marxista. Ele participara de reuniões de sindicatos, concentrações de radicais e encontros de utopistas cujas ideias confusas eram de uma infantilidade revoltante. Ele anotava os nomes dos palestrantes e se deixava ficar nos fundos das salas, mas sempre se apresentava como "Daniel Sante", para que, quando ele apertasse a mão de alguém, a pessoa respondesse "Andy Thurston", em vez de apenas "Andy", "camarada Gahn" em vez de "Phil". Quando surgiu uma oportunidade, ele roubou umas duas folhas do livro de presença. Se havia carros estacionados em frente aos locais onde as reuniões aconteciam, ele anotava as placas.
Na cidade, as reuniões eram feitas em casas de jogo de boliche, salões de bilhar, clubes de boxe vespertinos, bares e cafés. No South Shore, os grupos reuniam-se em pavilhões, salões de baile ou em terrenos de parques de diversões, que ficavam vazios enquanto não chegava o verão. No North Shore e no Merrimack Valley, a preferência era por terminais ferroviários e curtumes, à beira da água cheia de efluentes líquidos que deixavam uma espuma cor de cobre ao longo da linha da costa. Nos Berkshires, pomares.
Quando alguém participava de uma reunião, ficava sabendo de outras. Os pescadores de Gloucester falavam de solidariedade para com seus irmãos de New Bedford; os comunistas de Roxbury, por seus companheiros de Lynn. Ele nunca ouviu ninguém falar de bombas ou fazer planos específicos para derrubar o governo. Eles falavam em termos muito vagos. Em voz alta e tom fanfarronesco, como o de uma criança voluntariosa. O mesmo em relação à sabotagem corporativa. Eles falavam do Primeiro de Maio, mas só a respeito de outras cidades e de outras células. Os camaradas de Nova York iriam abalar a cidade até os alicerces. Os camaradas de Pittsburgh riscariam o primeiro fósforo para deflagrar a revolução.
As reuniões dos anarquistas normalmente se faziam no North Shore e eram pouco frequentadas. Os que usavam o megafone falavam secamente, sempre lendo em voz alta, num inglês estropiado, o último panfleto de Galleani, de Tommasino DiPeppe ou de Leone Scribano, cujas reflexões eram contrabandeadas de uma prisão ao sul de Milão. Ninguém gritava nem discutia em tom exaltado, o que era preocupante. Danny logo percebeu que não o reconheciam como um deles - alto demais, bem nutrido demais, com dentes demais.
Depois de uma reunião nos fundos de um cemitério em Gloucester, três homens afastaram-se da multidão para segui-lo. Andavam devagar o bastante para não se aproximarem muito, e rápido o suficiente para não o perderem de vista. E pareciam não se importar se ele notava ou não. A certa altura, um deles gritou em italiano. Queria saber se Danny fora circuncidado.
Danny dobrou na esquina do cemitério e atravessou uma área de dunas branquíssimas nos fundos de uma usina de calcário. Os homens, que agora estavam a uns trinta metros de distância, começaram a assobiar asperamente, por entre os dentes, como se dissessem "Oi, meu bem". "Oi, meu bem."
As dunas de calcário fizeram Danny rememorar sonhos passados, esquecidos até aquele momento. Sonhos em que ele atravessava vastos desertos banhados pelo luar, sem a menor ideia de como fora parar ali e de como iria achar o caminho de casa. E a cada passo aumentava ainda mais o medo de não mais haver um lar a que voltar. De que sua família e todos os seus conhecidos tivessem morrido há muito tempo, sendo ele o único sobrevivente, fadado a vagar por regiões desertas. Ele escalou com dificuldade a duna mais baixa, usando as mãos como apoio, num silêncio hibernal.
"Oi, meu bem."
Ele chegou ao alto da duna. Do outro lado se via um céu escuro. Mais abaixo, algumas sebes com portões abertos.
Ele entrou numa rua com o calçamento arruinado e chegou a um sanatório. Na placa acima da porta lia-se Sanatório Cape Ann. Ele abriu a porta, entrou, passou depressa por uma enfermeira que estava no balcão de recepção, e esta o chamou. Ela chamou pela segunda vez.
Ele chegou a um poço de escada, olhou para o saguão e viu os três homens enregelando lá fora, um deles apontando para a placa do sanatório. Com certeza haviam perdido parentes para algum mal que esperava nos andares de cima - tuberculose, varíola, pólio, cólera. Pelos gestos hesitantes que faziam, Danny concluiu que não ousariam entrar. Ele descobriu uma porta que dava para os fundos e saiu por ela.
Era uma noite sem lua, e o ar estava frio de gelar os ossos. Ele fez o caminho de volta correndo, passando pelas dunas brancas e pelo cemitério. Encontrou o carro no lugar onde o tinha deixado, perto do quebra-mar. Ficou sentado dentro do carro por um instante, depois ligou a ignição e tocou com os dedos o botão dentro do bolso. O polegar deslizou pela superfície lisa, e ele tornou a ver Nora batendo nele com o ursinho no quarto do hotel de frente para a praia, os travesseiros espalhados pelo chão, o doce brilho dos olhos dela. Ele fechou os olhos e chegou a sentir seu cheiro. Voltou então para a cidade, com um para-brisa sujo de sal e o próprio medo cristalizando-se no couro cabeludo.
De manhã, Danny esperou por Eddie McKenna e ficou tomando xícaras de café amargo num bar da Harrison Avenue. O piso do bar era de ladrilho xadrez, e o ventilador de teto empoeirado estalava a cada volta das pás. Lá fora, um amolador de facas sacolejava seu carrinho sobre as pedras do calçamento, as lâminas do mostruário balançando-se em seus fios e refletindo a luz do sol. Os reflexos atingiram as pupilas de Danny e as paredes do bar. Ele se voltou para sua mesa, abriu o relógio de bolso. Teve de lutar para fazê-lo deixar de tremer, e isso levou tempo o bastante para ele perceber que McKenna estava atrasado, embora aquilo não o surpreendesse. Danny olhou em volta novamente, examinando o bar para ver se alguns rostos demonstravam atenção demais ou de menos em relação a ele. Quando se certificou de que se tratava apenas do grupo normal de pequenos comerciantes, carregadores negros e secretárias do edifício Statler, voltou ao seu café, com a certeza quase absoluta de que, mesmo curtindo uma ressaca, era capaz de saber se estava ou não sendo seguido.
McKenna ocupou o vão da porta de entrada com seu corpanzil e seu eterno otimismo, aquela beatífica determinação que Danny vira nele desde a época em que Eddie pesava uns quarenta quilos menos e aparecia para visitar seu pai quando eles moravam no North End, sempre com balas de alcaçuz para Danny e Connor. Já naquela época, quando ele era apenas um policial da zona portuária de Charlestown, onde se encontravam os bares mais sanguinários da cidade e uma população de ratos tão prodigiosa que a incidência de tifo e poliomielite era três vezes maior que nos outros distritos, ele ostentava aquela mesma aura. Comentava-se no departamento que já tinham dito a Eddie McKenna que ele nunca poderia se disfarçar, dada sua extraordinária presença. À época, o chefe lhe dissera: "Você é o único cara que conheço que entra numa sala cinco minutos antes de chegar nela".
Ele pendurou o casaco, sentou-se na frente de Danny, olhou para a garçonete e lhe pediu café.
"Minha Nossa Senhora", disse ele a Danny. "Você está fedendo feito um armênio que comeu o bode bêbado..."
Danny deu de ombros e tomou mais um pouco de café.
"... e depois o vomitou nas próprias roupas", continuou McKenna.
"Obrigado pelo elogio, senhor."
McKenna acendeu uma ponta de charuto, e a fumaça embrulhou o estômago de Danny. A garçonete trouxe uma xícara de café à mesa e tornou a encher a de Danny. McKenna ficou apreciando a bunda dela, enquanto ela se afastava.
McKenna tirou um cantil do bolso e passou-o a Danny. "Sirva-se."
Danny derramou algumas gotas em seu café e devolveu-o.
McKenna jogou um caderninho na mesa e pôs ao lado dele um lápis curto e grosso feito o charuto. "Estou vindo de uma reunião com alguns dos outros rapazes. Diga que está fazendo mais progresso que eles."
Os "outros rapazes" do esquadrão tinham sido escolhidos em parte por sua inteligência, mas principalmente por sua facilidade em se fazerem passar por imigrantes. Não havia judeus nem italianos no DPB, mas Harold Christian e Larry Benzie eram morenos o bastante para se passar por gregos ou italianos. Paul Wascon, baixo e de olhos pretos, crescera na parte baixa do West Side de Nova York. Ele falava um iídiche mais ou menos convincente, e se infiltrara numa célula da Ala Esquerda Socialista de Jim Larkin e Jack Reed, que se reunia num porão do West End.
Nenhum deles quisera tomar parte naquela missão. Ela significava mais tempo de trabalho sem aumento de salário, sem pagamento de hora extra e tampouco recompensa, porque a posição oficial do departamento era que aquelas células terroristas eram um problema de Nova York, um problema de Chicago, um problema de São Francisco. Assim, mesmo que o esquadrão tivesse sucesso, nunca lhe dariam o devido crédito, e com certeza não receberiam hora extra.
Mas McKenna os tirara de suas unidades com a costumeira combinação de suborno, ameaça e chantagem. Danny entrara no jogo pela porta dos fundos por causa de Tessa, e só Deus sabe o que foi prometido a Christian e a Benzie. Quanto a Wascon, ele fora pego com a boca na botija em agosto passado, e por isso McKenna o tinha nas mãos pelo resto da vida.
Danny passou suas anotações a McKenna. "Números das placas dos carros da reunião da Irmandade dos Pescadores de Woods Hole. Uma folha do livro de presença do Sindicato dos Telhadores de West Roxbury, outra do Clube Socialista de North Shore. Relatórios sobre todas as reuniões de que participei esta semana, inclusive duas dos lets de Roxbury."
McKenna pegou as anotações e guardou-as em sua mochila. "Muito bem, muito bem. O que mais?"
"Nada."
"Como assim?"
"Estou dizendo que não consegui mais nada", disse Danny.
McKenna largou o lápis e soltou um suspiro. "Pelo amor de Deus."
"O quê?", disse Danny, sentindo-se um pouco melhor com o uísque que pusera no café. "Radicais estrangeiros - surpresa - desconfiam de americanos. E eles são paranoicos o bastante para pelo menos desconfiarem que sou um agente infiltrado, por mais convincente que seja o meu disfarce. E mesmo que eles engulam essa história de Daniel Sante, nem por isso eu lhes pareceria confiável. Muito menos aos lets. Eles ainda estão querendo descobrir qual é a minha."
"Você viu Louis Fraina?"
Danny fez que sim. "Ouvi um discurso seu, mas não tive contato com ele. Fraina se mantém distante da massa, rodeado de figurões e de capangas."
"Achou sua ex-namorada?"
Danny fez uma careta. "Se eu tivesse achado, tenente, a esta altura ela estaria no xadrez."
McKenna tomou um gole do cantil. "Você procurou?"
"Vasculhei toda esta merda de estado. Fui até Connecticut."
"E aqui?"
"Os agentes estão esquadrinhando todo o North End em busca de Tessa e Federico, por isso o bairro inteiro está sob tensão. Fechado. Ninguém vai me dizer nada, tenente. Ninguém vai dizer nada a nenhum americano."
McKenna soltou um suspiro, passou as costas das mãos no rosto. "Bem, eu sabia que não ia ser fácil."
"Não mesmo."
"Continue trabalhando."
Meu Deus, pensou Danny. Aquilo era o trabalho de detetive? Ficar pescando sem rede?
"Vou conseguir alguma coisa para você."
"Além de uma ressaca?"
Danny lhe deu um sorriso murcho.
McKenna esfregou o rosto novamente e bocejou. "São uns terroristas desgraçados, juro por Deus." Ele tornou a bocejar. "Ah, você nunca topou com Nathan Bishop, não é? O médico."
"Não."
McKenna pestanejou. "Porque ele acaba de passar trinta dias numa cadeia de Chelsea. Eles o puseram na rua há dois dias. Perguntei a um dos policiais de lá se já o conheciam, eles responderam que Bishop gosta da Taverna Capitol. Ao que parece, a correspondência dele vai para lá."
"A Taverna Capitol", disse Danny. "O inferninho do West End?"
"Esse mesmo", disse McKenna balançando a cabeça. "Talvez você possa arranjar uma ressaca lá e ao mesmo tempo servir à pátria."
Só depois de passar três noites no Capitol é que Danny conseguiu falar com Nathan Bishop. Já na primeira noite, ele o viu logo de cara, quando Bishop entrou no inferninho e sentou-se no bar. O médico sentou-se sozinho em uma mesa iluminada apenas por uma velinha um pouco acima dela, na parede. Na primeira noite, ele leu um livro, e uma pilha de jornais nas duas seguintes. Ele bebia uísque, a garrafa na mesa, ao lado do copo. Nas duas primeiras noites, porém, mal tocou na bebida, o nível da garrafa ficou quase o mesmo, e foi embora com o mesmo passo firme com que entrou. Danny começou a se perguntar se a descrição que Finch e Hoover tinham lhe dado estava correta.
Na terceira noite, porém, ele logo empurrou os jornais para um lado, pôs-se a tomar grandes goladas e a fumar sem parar. A princípio, ficou observando apenas a fumaça do próprio cigarro, o olhar vago e distante. Aos poucos seus olhos começaram a perceber o resto do bar, e um sorriso aflorou em seu rosto, como se alguém o tivesse colado ali com muita pressa.
Logo que Danny o ouviu cantar, não conseguiu ligar a voz ao homem. Bishop era baixo, frágil, um sujeito delicado, de feições e ossos delicados. A voz, porém, sonora e retumbante, lembrava o barulho de um trem.
"Lá vai ele...", disse o barman com um suspiro, embora não parecesse descontente com aquilo.
O primeiro número que Nathan Bishop escolheu para aquela noite foi uma canção de Joe Hill, "The Preacher and The Slave". Sua voz de barítono profundo dava à canção de protesto um inconfundível sabor céltico que combinava com a lareira alta, com a fraca iluminação da Taverna Capitol e com o uivo distante das buzinas dos rebocadores no porto.
"Pregadores de cabelos longos saem todas as noites", cantou ele. "Para lhes dizerem o que é certo e o que é errado. Mas quando lhes perguntam sobre ‘o que há para comer’, eles respondem com uma voz doce: ‘Logo logo vocês vão comer na radiosa terra no alto do céu. Trabalhem, orem e comam forragem, que depois da morte vocês comem torta’. Isso é mentira, isso é mentira..."
Ele abriu um doce sorriso, olhos semicerrados, enquanto alguns clientes do bar batiam palmas sem muito entusiasmo. Foi Danny quem continuou. Ele se levantou da cadeira, ergueu o copo e cantou: "Saem também os carolas e se põem a bradar: ‘Deem seu dinheiro a Jesus. Todas as doenças ele logo haverá de curar’."
Danny passou o braço em volta do corpo do cara ao seu lado, um limpador de chaminés meio descadeirado, e o sujeito também levantou o copo. Nathan Bishop saiu de detrás da mesa, tendo o cuidado de levar consigo a garrafa e o copo, e reuniu-se a eles no balcão. Dois marinheiros da Marinha Mercante seguiram-lhe o exemplo, pondo-se a berrar desafinados - mas quem se importava? -, agitando os braços e seus drinques para lá e para cá:
Se você dá duro por filhos e esposa
Buscando conseguir alguma coisa boa nesta vida
Você é um pecador e um homem ruim, dizem eles,
E quando morrer vai para o inferno, não tem saída.
O último verso foi cantado aos gritos e gargalhadas, e então o barman tocou a sineta atrás do balcão e ofereceu uma rodada de graça.
"Estamos cantando por um jantar, rapazes!", gritou um dos marinheiros.
"Vocês vão beber de graça para parar de cantar!", berrou o barman para se fazer ouvir em meio às gargalhadas. "Essa é a condição, e ponto final."
Estavam todos bêbados o bastante para brindar a isso. Em seguida aproximaram-se do balcão para pegar a bebida de graça, e todo mundo começou a trocar apertos de mão - Daniel Sante confraternizou com Abe Rowley, Abe Rowley com Terrance Bonn e Gus Sweet, Terrance Bonn e Gus Sweet com Nathan Bishop, Nathan Bishop com Daniel Sante.
"Que puta voz você tem, Nathan."
"Obrigado. Você também, Daniel."
"Você costuma cantar assim de repente?"
"Do outro lado da lagoa, que é minha terra, é muito comum. Isto aqui estava ficando muito desanimado até eu começar a cantar, você não acha?"
"Não vou discutir."
"Então, saúde."
"Saúde."
Eles ergueram um brinde e viraram os copos.
Sete drinques e quatro canções depois, comeram o ensopado que o barman passara o dia inteiro cozinhando. Estava horrível. A carne marrom, irreconhecível, as batatas cinzentas e duras. Se Danny tivesse de adivinhar a origem do saibro que lhe ficava na boca, diria que era de serragem. Mas a comida os saciou. Depois de comerem, puseram-se a beber, e Danny contou suas mentiras de Daniel Sante sobre a Pensilvânia Ocidental e a companhia de mineração Thomson.
"É isso mesmo, não?", disse Nathan tirando fumo de uma bolsinha em seu colo e enrolando um cigarro. "Se a gente pede qualquer coisa neste mundo, a resposta é sempre ‘Não’. Aí você é obrigado a tomar daqueles que antes tomaram de você - em bocados muito maiores, eu diria - e eles têm o atrevimento de chamar você de ladrão. É um absurdo completo." Ele ofereceu a Danny o cigarro que acabara de enrolar.
Danny levantou a mão. "Obrigado, não. Eu prefiro de maço." Ele tirou seus Murads do bolso da camisa e depositou-os sobre a mesa.
Nathan acendeu o dele. "De onde vem essa cicatriz?"
"Esta?", disse Danny apontando para o pescoço. "Explosão de metano."
"Nas minas?"
Danny fez que sim.
"Meu pai era mineiro", disse Nathan. "Não aqui."
"Do outro lado da lagoa?"
"Isso mesmo", disse ele com um sorriso. "A norte de Manchester. Foi lá que cresci."
"Sempre ouvi dizer que a vida lá é uma dureza."
"É sim. E uma terra terrivelmente sombria também. Tudo cinza, com um ou outro marrom. Meu pai morreu lá. Numa mina. Você consegue imaginar?"
"Morrer numa mina?", disse Danny. "Sim."
"Meu pai era forte. Esse é o lado mais triste de toda essa história sórdida, entende?"
Danny fez que sim.
"Bem, veja meu caso, por exemplo. Não sou nenhum modelo de vigor físico. Sem coordenação, péssimo em esportes, míope, pernas tortas e asmático."
Danny deu uma risada. "Você deixou algum problema de fora?"
Nathan riu e levantou a mão. "Muitos. Mas é isso, entende? Sou fisicamente fraco. Se um túnel desabasse e eu tivesse sobre mim centenas de quilos de terra, mais meia tonelada de vigas de madeira, e me sobrasse pouquíssimo oxigênio... bem, eu simplesmente não resistiria. Morreria como um bom inglês, tranquilo e sem me queixar."
"Mas seu pai...", disse Danny.
"Ele se pôs a rastejar", disse Nathan. "Acharam seus sapatos no lugar onde as paredes desabaram sobre ele. Seu corpo foi encontrado trezentos metros mais adiante. Ele conseguiu rastejar. Com as costas quebradas, debaixo de centenas, senão de milhares de quilos de terra e de pedras, e a empresa esperou dois dias para iniciar a escavação. Eles temiam que as tentativas de resgate pusessem em risco as paredes do túnel principal. Se meu pai soubesse disso, me pergunto se teria parado de rastejar antes ou se isso o faria avançar mais quinze metros."
Eles ficaram em silêncio por algum tempo, o fogo crepitando e chiando na madeira ainda um pouco úmida. Nathan Bishop pôs mais uma dose em seu copo. Depois, inclinando a garrafa, derramou uma dose igualmente generosa no copo de Danny.
"Isso é errado", disse ele.
"O quê?"
"O que os homens com recursos exigem de homens despossuídos. E ainda esperam que os pobres se mostrem gratos pelas migalhas. Têm a cara de pau de se sentirem ofendidos - moralmente ofendidos - se os pobres não fingem que estão gostando. Todos eles deviam ser lançados à fogueira."
Danny sentia a bebida agindo dentro dele. "Quem?"
"Os ricos", disse Bishop com um sorriso descansado. "Todos deviam ser queimados."
Danny se viu novamente no Fay Hall, para outra reunião do BSC. Na pauta daquela noite, a recusa do departamento em tratar os episódios de gripe entre os policiais como uma questão trabalhista. Steve Coyle, um pouco mais bêbado do que seria de se esperar, falou de sua luta para conseguir algum tipo de indenização do departamento a que servira durante doze anos.
Esgotada a discussão sobre a gripe, passaram a debater uma proposta para que o departamento arcasse com parte do custo de reposição de uniformes rasgados ou gastos.
"É o mínimo que podemos exigir", disse Mark Denton. "Se eles rejeitarem a proposta, podemos depois acusá-los de não quererem nos fazer nenhuma concessão."
"Acusá-los onde?", perguntou Adrian Melkins.
"Na imprensa", respondeu Mark Denton. "Mais cedo ou mais tarde essa luta vai ser travada na imprensa. Quero ela do nosso lado."
Depois da reunião, enquanto os homens rodeavam as cafeteiras ou partilhavam seus cantis de uísque, Danny se pegou pensando primeiro em seu pai, depois em Nathan Bishop.
"Bela barba", disse Mark Denton. "Você cria gatos dentro dela?"
"É um disfarce", disse Danny. Ele imaginou o pai de Bishop rastejando sob os escombros de uma mina. Imaginou o filho tentando afogar a lembrança em álcool. "Em que posso ser útil?"
"Ahn?"
"O que posso fazer para ajudar?", disse Danny.
Mark recuou um passo e mirou-o de alto a baixo. "Desde que você apareceu aqui pela primeira vez, tenho me perguntado se é um espião ou não."
"A serviço de quem eu iria espionar?"
Denton riu. "Essa é boa. O afilhado de Eddie McKenna, o filho de Tommy Coughlin. Para quem você iria espionar? Ridículo."
"Se eu fosse um espião, por que você me pediria ajuda?"
"Para ver com que rapidez você aceitaria a oferta. Confesso que o fato de você não aceitar de pronto me deixou em dúvida. Agora, cá está você perguntando a mim como pode ajudar."
"É verdade."
"Acho que é minha vez de dizer que vou pensar", respondeu Denton.
Eddie McKenna às vezes dirigia reuniões de negócios em seu terraço. Ele morava numa casa estilo Queen Anne, no alto do Telegraph Hill, em South Boston. Dela se tinha uma vista - do Thomas Park, do alto de Dorchester, da silhueta dos edifícios do centro contra o céu, do canal Fort Point e do porto de Boston - que, como sua personalidade, era bastante expansiva. O terraço era liso como uma folha de metal; Eddie tinha lá uma mesinha, duas cadeiras e um telheiro de metal onde guardava suas ferramentas, junto às que sua esposa, Mary Pat, usava no jardim minúsculo que ficava nos fundos da casa. Ele gostava de dizer que tinha uma bela vista, um terraço e o amor de uma mulher, de modo que não podia se queixar de que o bom Deus lhe negara um quintal.
Como tudo o que Eddie McKenna dizia, aquilo tinha igual dose de verdade e de mentira. Sim, dissera certa vez Thomas Coughlin a Danny, o porão de Eddie mal podia conter sua reserva de carvão; seu jardim poderia comportar um tomateiro, um pé de manjericão e talvez uma pequena roseira, mas com certeza nenhum dos instrumentos necessários para cultivá-los. Mas isso não tinha importância, porque não eram apenas instrumentos que Eddie McKenna guardava em seu telheiro.
"O que mais ele guarda?", perguntou Danny.
Thomas levantou o dedo. "Não estou tão bêbado assim, menino."
Naquela noite, Danny estava com seu padrinho junto ao telheiro, com um copo de uísque irlandês na mão e um dos excelentes charutos que Eddie recebia mensalmente de um amigo do DP de Tampa. O ar estava úmido e fumacento como nos dias de forte nevoeiro, mas o céu estava claro. Danny fizera o relatório sobre o encontro com Nathan Bishop, sobre o comentário deste do que se devia fazer com os ricos, mas Eddie mal deu mostras de ter ouvido.
Quando, porém, Danny lhe passou mais uma lista - com nomes e placas de carros de uma reunião da Coalizão dos Amigos dos Povos do Sul da Itália -, Eddie logo se mostrou animado. Ele tomou a lista de Danny, examinou-a rapidamente, abriu a porta do telheiro, tirou uma mochila de couro que ele levava aonde quer que fosse, pôs o papel dentro dela e fechou a porta.
"Não tem cadeado?", perguntou Danny.
Eddie inclinou a cabeça. "Para guardar ferramentas?"
"E mochilas."
Eddie sorriu. "Quem, em seu juízo perfeito, iria se aproximar disto aqui, a não ser com boas intenções?"
Danny sorriu, mas um riso superficial. Ele fumou o charuto observando a cidade e sentindo o cheiro do porto. "Que estamos fazendo aqui, Eddie?"
"Está uma noite bonita."
"Não. Estou falando da investigação."
"Estamos caçando radicais. Estamos protegendo e servindo a esta grande nação."
"Fazendo listas?"
"Você parece um pouco abatido, Dan."
"Como assim?"
"Esquisito. Você tem dormido bem?"
"Ninguém está falando no Primeiro de Maio. Ou pelo menos da maneira como você estava esperando."
"Bem, ninguém espera que eles saiam por aí trombeteando seus nefastos objetivos de cima de telhados, não é? Você mal completou um mês nessa investigação."
"Eles todos falam demais. Mas é só o que fazem."
"Os anarquistas?"
"Não", disse Danny. "Esses são os putos dos terroristas. Mas o resto... Você me mandou espionar sindicatos de encanadores, de carpinteiros, todos os grupelhos socialistas de meia-tigela de que se tem notícia. Para quê? Para conseguir nomes? Eu não entendo."
"Temos de esperar que eles nos ataquem para nos decidirmos a levá-los a sério?"
"Quem? Os encanadores?"
"Fale sério."
"Os bolcheviques?", perguntou Danny. "Os socialistas? Não tenho muita certeza de que essa gente seja capaz de golpear alguma coisa, a não ser o próprio peito."
"Eles são terroristas."
"Eles são dissidentes."
"Talvez você esteja precisando de umas férias."
"Talvez eu precise apenas saber exatamente o que estamos fazendo aqui."
Eddie passou-lhe o braço no ombro e levou-o para a borda do terraço. Eles contemplaram a cidade - seus parques e suas ruas cinzentas, edifícios de tijolos, telhados negros, as luzes do centro da cidade refletindo-se nas águas escuras que a atravessavam.
"Estamos protegendo isto, Dan. Exatamente isto aqui. É isso que estamos fazendo." Ele tirou uma baforada do charuto. "A pátria e o lar. Nada menos que isso, pode acreditar."
Danny estava com Nathan Bishop, em outra noite na Taverna Capital, um Nathan que se mostrava taciturno até que, no terceiro drinque, falou:
"Alguém já te deu um murro?"
"O quê?"
Ele levantou os punhos. "Você sabe."
"Claro. Eu lutava boxe", respondeu Danny. E acrescentou: "Na Pensilvânia".
"Mas algum dia você foi literalmente empurrado?"
"Empurrado?", disse Danny balançando a cabeça. "Não que eu me lembre. Por quê?"
"Eu me pergunto se você se dá conta de como isso é excepcional. Andar neste mundo sem medo de outros homens."
Danny nunca pensara naquilo daquela maneira. De repente sentiu-se perturbado pela ideia de que passara a vida inteira achando que o mundo trabalharia para ele. E era o que acontecia normalmente.
"Deve ser bom", disse Nathan. "Só isso."
"Em quê você trabalha?", perguntou Danny.
"Em quê você trabalha?"
"Estou procurando emprego. E você? Você não tem as mãos de um operário. E nem as roupas."
Nathan levou a mão à lapela do casaco. "Estas roupas não são caras."
"Mas também não são trapos. E combinam com os sapatos."
Ouvindo isso, Nathan Bishop deu um sorriso torto. "Observação interessante. Você é da polícia?"
"Sim", disse Danny acendendo um cigarro.
"Eu sou médico."
"Um policial e um médico. Você cura as pessoas em quem eu atiro."
"Estou falando sério."
"Eu também."
"Não acredito."
"Tudo bem, não sou policial. Mas você é médico?"
"Eu fui", disse Bishop esmagando o cigarro. Ele tomou mais um gole.
"É possível deixar de ser médico?"
"É possível deixar de ser qualquer coisa." Bishop tomou outro gole e soltou um longo suspiro. "Já fui cirurgião. A maioria das pessoas que salvei não merecia ser salva."
"Eles eram ricos?"
Danny percebeu uma exasperação no rosto de Bishop que já estava se tornando familiar. Ela significava que Bishop estava entrando numa zona em que se deixava dominar por uma raiva que só podia amainar depois de exaurir completamente suas forças.
"Eles eram totalmente alienados", disse ele, pronunciando a palavra com desprezo. "Se você lhes dissesse: ‘Morre gente todo dia. No North End, no West End, em South Boston, em Chelsea. E o que mata elas é uma coisa. A pobreza. Só isso. Simplesmente isso’." Ele se pôs a enrolar outro cigarro, debruçando-se sobre a mesa e, ainda com as mãos no colo, sorveu a bebida do copo. "Você sabe o que as pessoas falam quando você lhes diz isso? Elas dizem: ‘Que é que eu posso fazer?’. Como se isso fosse uma resposta. Que é que você pode fazer? Você pode muito bem ajudar, porra. É isso o que você pode fazer, seu burguês de merda. O que você pode fazer? O que você não pode fazer? Arregace essas mangas, porra, levante essa bunda gorda, tire a bunda gorda da sua mulher da mesma almofada e vá para onde seus companheiros - irmãos e irmãs, seres humanos como você, porra - estão literalmente morrendo de fome. E faça seja lá o que for preciso para ajudá-los. É isso o que você pode fazer, porra."
Nathan Bishop liquidou o resto da bebida, pôs o copo no tampo da mesa riscado e olhou em volta, olhos vermelhos e penetrantes.
Na atmosfera pesada que se seguiu àquelas tiradas de Nathan, Danny não disse nada. Ele sentia que os homens da mesa mais próxima estavam inquietos e apreensivos. Um deles de repente começou a falar sobre Ruth, sobre os boatos de que ele seria vendido. Com a respiração pesada, Nathan estendeu o braço para a garrafa e pôs o cigarro entre os lábios. Ele pegou a garrafa com as mãos trêmulas, derramou mais bebida no copo, recostou-se na cadeira, riscou um fósforo na unha do polegar e acendeu o cigarro.
"É isso o que se pode fazer", sussurrou ele.
No Bar Sowbelly, Danny tentava ver, por entre a multidão de lets de Roxbury, a mesa dos fundos, onde Louis Fraina estava naquela noite, trajando um terno marrom-escuro e uma gravata-borboleta preta, bebericando num copinho um drinque cor de âmbar. Apenas o brilho de seus olhos por trás de pequenos óculos redondos o distinguia de um professor de faculdade que tivesse entrado no bar errado. Isso e a deferência que os outros tinham para com ele, pondo sua bebida com todo o cuidado na mesa à sua frente, fazendo-lhe perguntas, queixos projetados para a frente como crianças ansiosas, procurando ver se eram ouvidos quando emitiam uma opinião. Dizia-se que Fraina, italiano de nascimento, falava russo quase com a fluência de um nativo e que essa afirmação fora ouvida pela primeira vez da boca do próprio Trotski. Fraina estava com um caderno preto, de capa de tecido, aberto à sua mesa. De vez em quando ele rabiscava algumas anotações com um lápis ou virava as páginas. Raramente levantava os olhos, e quando o fazia era apenas para expressar, com um leve mover de pálpebras, sua concordância com a opinião de um interlocutor. Ele e Danny não chegaram a trocar nem sequer um olhar.
Os outros lets, porém, finalmente deixaram de tratar Danny com a condescendência com que se tratam as crianças e os imbecis. Ele não diria que já confiavam nele, mas estavam se habituando a tê-lo por perto.
Mesmo assim, os lets falavam um inglês tão estropiado que logo se cansavam de conversar com ele e davam o fora assim que um conterrâneo os interrompia em sua língua materna. Naquela noite, eles estavam com uma longa pauta de problemas e soluções que tinham trazido da reunião para o bar.
Problema: os Estados Unidos deflagraram uma guerra velada contra o governo provisório bolchevique da nova Rússia. Wilson autorizou o envio da 339ª Divisão, que, unindo-se às forças britânicas, tomou o porto russo de Archangel, no Mar Branco. Pretendendo cortar suprimentos de Lênin e de Trotski e fazê-los morrer de fome durante um longo inverno, as forças americanas e britânicas, em vez disso, estavam enfrentando o frio de um inverno antecipado. Segundo se dizia, estavam à mercê dos russos brancos, um grupo de militares corruptos e de gângsteres tribais. Essa manobra importuna não passa de mais uma tentativa, da parte do capitalismo ocidental, de dobrar a vontade do grande movimento popular.
Solução: os trabalhadores de todo o mundo deviam se unir e criar uma agitação social até que os americanos e britânicos retirassem suas tropas.
Problema: os bombeiros e policiais oprimidos de Montreal estavam sendo brutalmente aviltados e privados de seus direitos pelo Estado.
Solução: os trabalhadores de todo o mundo deveriam se unir e promover manifestações até que o governo canadense cedesse à polícia e aos bombeiros e lhes pagasse um salário justo.
Problema: a revolução estava no ar na Hungria, na Bavária, na Grécia e até na França. Na Alemanha, os espartaquistas estavam mobilizando Berlim. Em Nova York, os membros do Sindicato dos Portuários recusavam-se a comparecer ao trabalho, e em todo o país os sindicatos ameaçavam greves com a palavra de ordem "Sem cerveja não se trabalha", caso a Lei Seca fosse aprovada.
Solução: em apoio a todos esses camaradas, os trabalhadores do mundo deviam fazer manifestações de protesto.
Podiam.
Poderiam.
Deviam.
Nenhum plano efetivo de revolução chegara aos ouvidos de Danny. Nada de concreto para desencadear a insurreição.
Só mais bebedeira, mais conversa fiada, que logo desandava em gritos exaltados de bêbados e bancos quebrados. E não eram apenas homens que varavam a noite quebrando bancos e berrando; havia também mulheres, embora nem sempre fosse fácil distinguir uns de outras. Na revolução operária não havia lugar para o sistema de castas sexista dos Estados Unidos Capitalistas da América... mas a maioria das mulheres do bar tinha feições duras e tez cinzenta. Eram tão assexuadas em suas roupas e falas grosseiras quanto os homens a que chamavam de camaradas. Todos eles eram destituídos de humor (mal bastante comum entre os letões) e, pior ainda, opunham-se politicamente a ele: o humor era considerado uma doença sentimental, um subproduto do romantismo, e as ideias românticas não passavam de mais um ópio que as classes dominantes usavam para impedir as massas de ver a verdade.
"Riam o quanto quiserem", disse Hetta Losivich naquela noite. "Riam e fiquem parecidos com imbecis, com hienas. E os industriais vão rir de vocês porque eles os terão exatamente do jeito que querem. Impotentes. Rindo, mas impotentes."
Um estoniano musculoso chamado Pyotr Glaviach bateu no ombro de Danny. "Pampulats, não é? Amanhã, não é?"
Danny olhou para ele. "Não sei de que diabos você está falando."
Glaviach tinha uma barba tão desgrenhada que dava a impressão de ter sido interrompido no ato de comer um guaxinim. A barba agora se sacudia, pois ele inclinara a cabeça para trás, caindo na gargalhada. Ele era um dos raros letões capaz disso, como se para compensar a falta de riso de seus companheiros. Não era, porém, um riso em que Danny confiasse, pois, segundo diziam, ele fora um dos fundadores da organização dos lets, homens que se juntaram em 1912 para se lançar nas primeiras escaramuças contra Nicolau II. Esses primeiros lets iniciaram ataques guerrilheiros contra os soldados czaristas, cujo número era oitenta vezes maior que o deles. Viviam ao relento durante o inverno russo, alimentando-se de batatas meio congeladas, e massacravam aldeias inteiras se desconfiassem de que lá vivia ao menos um simpatizante dos Romanov.
Pyotr Glaviach disse: "Amanhã vamos sair para distribuir pampulats. Para os trabalhadores, certo? Entendeu?".
Danny não estava entendendo. Ele balançou a cabeça. "Pampu o quê?"
Pyotr Glaviach bateu as mãos impaciente. "Pampulat, seu burro, pampulat."
"Eu não..."
"Panfletos", disse um homem atrás de Danny. "Acho que ele quer dizer panfletos."
Danny voltou-se para trás. Lá estava Nathan Bishop, um cotovelo apoiado no encosto do banco de Danny.
"Sim, sim", disse Pyotr Glaviach. "Vamos distribuir panfletos. Vamos espalhar a notícia."
"Diga a ele ‘oquei’", falou Nathan Bishop. "Ele adora essa expressão."
"Oquei", disse Danny a Glaviach, levantando o polegar.
"Oquei! O-quei, miiister! Você encontra comigo aqui", disse Glaviach, levantando o polegar de forma enfática. "Oito horas."
Danny soltou um suspiro. "Estarei aqui."
"A gente se divertir", disse Glaviach batendo nas costas de Danny. "Talvez encontre mulheres bonitas." Ele soltou outra gargalhada e se afastou cambaleando.
Bishop sentou-se no boxe de Danny e lhe passou uma caneca de cerveja. "A única maneira de conseguir mulheres bonitas nesse movimento é sequestrando as filhas dos nossos inimigos."
Danny disse: "O que você está fazendo aqui?".
"Como assim?"
"Você faz parte dos lets?"
"Você faz?"
"Estou tentando."
Nathan deu de ombros. "Não posso dizer que pertenço a alguma organização. Eu ajudo. Conheço Lou há muito tempo."
"Lou?"
"O camarada Fraina", disse Nathan apontando com o queixo. "Você gostaria de conversar com ele um dia desses?"
"Você está brincando? Seria uma honra."
Bishop deu um pequeno sorriso reservado. "Você tem algum talento?"
"Eu escrevo."
"Bem?"
"Espero que sim."
"Depois me passe algumas amostras, que eu vou ver o que posso fazer." Ele olhou em volta, observando o bar. "Meu Deus, que ideia deprimente."
"O quê? Eu me encontrar com o camarada Fraina?"
"Ahn? Não. Glaviach me fez pensar. Não existe mesmo mulher bonita em nenhum dos movimentos. Nem... Bem, existe uma."
"Existe uma?"
Ele fez que sim. "Como posso ter me esquecido? Há uma." Ele assobiou. "Deslumbrante, é o que ela é."
"Ela está aqui?"
O outro riu. "Se ela estivesse aqui, você teria notado."
"Qual o nome dela?"
Bishop mexeu a cabeça tão depressa que Danny temeu ter deixado perceber sua condição de espião. Bishop olhou-o nos olhos, parecendo examinar seu rosto.
Danny tomou um gole de cerveja.
Bishop voltou os olhos para a multidão. "Ela tem um monte de nomes."
14.
Luther desceu do trem de carga em Boston, onde, orientando-se pelo mapa do tio Hollis, achou a Dover Street sem dificuldade. De lá ele seguiu para a Columbus Avenue e chegou ao coração do South End. Quando localizou a St. Botolph Street, foi andando numa calçada forrada de folhas úmidas, ao longo de mansões de tijolos vermelhos. Ao chegar ao número 121, subiu a escadinha da entrada e tocou a campainha.
O homem que morava no 121 era Isaiah Giddreaux, pai da segunda esposa do tio Hollis, Brenda. Hollis se casara quatro vezes. A primeira e a terceira esposas o deixaram, Brenda morreu de tifo, e há uns cinco anos ele e a quarta se afastaram. Hollis disse a Luther que, apesar de toda a saudade que sentia de Brenda - e muitas vezes essa era uma saudade dolorosa -, ele sentia a mesma falta do pai dela. Isaiah Giddreaux voltara a viver no Leste em 1905, para integrar o Movimento Niágara, liderado pelo doutor Du Bois, mas ele e Hollis continuaram mantendo contato.
A porta foi aberta por um homem baixo e magro, trajando um terno preto de lã e gravata azul-marinho com bolinhas brancas. Os cabelos, também marchetados de branco, eram cortados rente. Usava óculos redondos por trás dos quais se viam seus olhos calmos e límpidos.
Ele estendeu a mão. "Você deve ser Luther Laurence."
Luther apertou-lhe a mão. "Isaiah?"
Isaiah disse: "Senhor Giddreaux, por favor, filho".
"Senhor Giddreaux, sim, senhor."
Apesar de sua baixa estatura, Isaiah dava a impressão de ser alto. Absolutamente ereto, mãos cruzadas na frente da fivela do cinturão, olhos tão claros que era impossível decifrá-los. Eles bem podiam ser os olhos de um cordeiro deitado à última réstia de sol numa tarde de verão, ou os de um leão, esperando que o cordeiro adormecesse.
"Seu tio Hollis está bem, não é?", disse ele enquanto conduzia Luther pelo vestíbulo.
"Está sim, senhor."
"Como vai o reumatismo?"
"Os joelhos dele doem muito à tarde, mas afora isso está em excelente forma."
Quando subia uma ampla escada, precedendo Luther, Isaiah olhou-o por cima do ombro. "Ele parou de se casar, espero."
"Acho que sim, senhor."
Luther nunca entrara numa daquelas casas típicas com fachada de arenito pardo. Sua largura o surpreendeu. Observando da rua, ele não saberia dizer o comprimento dos quartos nem a altura do teto. Era tão bem mobiliada quanto qualquer casa da Detroit Avenue, com pesados lustres, escuras vigas de eucalipto e canapés franceses. O quarto principal dos Giddreaux ficava no andar superior, e havia mais três quartos no primeiro, rumo a um dos quais Isaiah conduziu Luther e abriu a porta apenas o bastante para que ele pusesse a mala no chão. Antes que Isaiah o conduzisse de volta, Luther entreviu uma bela cama de bronze e uma cômoda de nogueira com uma bacia de porcelana em cima. Aquela casa de três pavimentos, mais um terraço com vista para todo o bairro, pertencia a Isaiah e à sua mulher Yvette. O South End, pelo que Luther concluiu da descrição de Isaiah, era uma Greenwood em botão, o lugar onde negros conseguiram construir algumas coisinhas para eles próprios, com restaurantes que serviam comidas ao seu gosto e clubes que tocavam música ao seu gosto. Isaiah disse a Luther que originalmente aquele fora um bairro para domésticos que trabalhavam nas casas das famílias tradicionais e abastadas de Beacon Hill e de Back Bay. E o motivo pelo qual as casas eram tão bonitas - todas de tijolos vermelhos e fachadas de arenito pardo - é que os domésticos fizeram todo o esforço para viver no estilo de seus patrões.
Eles desceram as escadas e voltaram para a sala de visitas, onde um bule de chá já os esperava.
"Senhor Laurence, seu tio fala muito bem do senhor."
"É mesmo?"
Isaiah confirmou com um gesto de cabeça. "Ele diz que você é um tanto agitado, mas que isso vai se atenuar quando encontrar paz para se tornar um homem íntegro."
Luther não soube o que responder.
Isaiah pegou o bule, serviu o chá para os dois e passou a xícara a Luther. Isaiah pingou uma única gota de leite em sua xícara e mexeu o chá devagar. "Seu tio contou muita coisa sobre mim?"
"Só que o senhor é pai da mulher dele e que participou do Niágara com Du Bois."
"Doutor Du Bois. Participei sim."
"O senhor o conhece?", perguntou Luther. "O doutor Du Bois?"
Isaiah confirmou. "Conheço-o muito bem. Quando a Associação Nacional pela Promoção dos Negros resolveu abrir um escritório aqui em Boston, ele me pediu para chefiá-lo."
"Isso é uma grande honra, senhor."
Isaiah concordou com um leve gesto de cabeça, pôs um cubinho de açúcar em sua xícara e mexeu. "Fale-me de Tulsa."
Luther pôs um pouco de leite no chá e tomou um pequeno gole. "Senhor?"
"Você cometeu um crime, não é?" Ele levou a xícara aos lábios. "Hollis fez por bem em não me dar detalhes sobre o assunto."
"Então, com o devido respeito, senhor Giddreaux, eu... me permito fazer a mesma coisa."
Isaiah se mexeu e puxou a perna da calça para baixo, de modo que lhe cobrisse a meia. "Ouvi dizer que as pessoas andam falando de um tiroteio numa boate mal afamada de Greenwood. Você não está sabendo de nada disso, está?"
O olhar de Luther cruzou com o do homem. Ele não disse nada.
Isaiah tomou outro gole de chá. "Você acha que tinha alguma alternativa?"
Luther fitou o tapete.
"Vou precisar repetir?"
Luther manteve os olhos no tapete. Ele era azul, vermelho e amarelo, e todos os tons se mesclavam em torvelinhos multicoloridos. Luther calculou que era caro. Por causa dos torvelinhos.
"Você acha que tinha alternativa?" A voz de Isaiah estava calma como sua xícara de chá.
Luther levantou a vista, olhou para ele, mas continuou calado.
"Além disso, você matou gente de sua raça."
"O mal não se preocupa com raça, senhor", disse Luther, e sua mão tremia ao pôr a xícara na mesa de centro. "O mal simplesmente vai misturando e emporcalhando tudo até as coisas começarem a degringolar."
"É assim que você define o mal?"
Luther lançou um olhar em volta da sala, tão refinada quanto as requintadas casas da Detroit Avenue. "Quando nós o vemos, o reconhecemos."
Isaiah bebericou o chá. "Alguns diriam que um assassino é mau. Você concorda?"
"Concordo que alguns diriam isso."
"Você cometeu um assassinato."
Luther ficou calado.
"Logo...", continuou Isaiah levantando a mão.
"O senhor me permite? Com todo o respeito, eu não disse que cometi nada, senhor."
Eles ficaram em silêncio por um instante, um relógio tiquetaqueando atrás de Luther. De alguns quarteirões mais adiante, veio o som longínquo de uma buzina de automóvel. Isaiah terminou de tomar o chá e recolocou a xícara na bandeja.
"Depois vou apresentá-lo à minha mulher. Yvette. Acabamos de comprar um edifício onde funcionará o escritório da ANPPN aqui. Você vai fazer um trabalho voluntário no escritório."
"Eu o quê?"
"Você vai fazer trabalho voluntário lá. Hollis me disse que você é muito jeitoso, e há muita coisa a consertar no edifício antes de abrirmos o escritório. Você vai pegar no pesado aqui, Luther."
Dar um duro. Merda. Quando foi a última vez que aquele homem pegou no pesado, além de levantar a xícara de chá? Aquilo estava parecendo a mesma merda que ele deixara em Tulsa - gente negra endinheirada agindo como se seu dinheiro lhes desse o direito de sair por aí dando ordens. E o velho idiota agia como se pudesse ler a mente de Luther, falando sobre o mal como se fosse capaz de reconhecê-lo caso ele sentasse ao seu lado e lhe pagasse uma bebida. Com certeza aquele homem estava prestes a sacar uma Bíblia. Mas ele se lembrou da promessa, que fizera no trem, de se tornar um novo Luther, um Luther melhor, e decidiu dar mais um tempo antes de ver como se comportar em relação a Isaiah Giddreaux. O homem trabalhava com W. E. B. Du Bois, que era um dos dois únicos homens do país que Luther achava dignos de sua admiração. O outro, naturalmente, era Jack Johnson, que não aceitava desaforo de ninguém, fosse negro ou branco.
"Sei de uma família de brancos que precisa de um criado. Você pode fazer esse tipo de trabalho?"
"Não vejo por que não."
"Eles são gente boa, tanto quanto os brancos podem ser." Ele abriu as mãos. "Mas preste atenção no seguinte: o chefe da família é um capitão da polícia. Se você tentar usar um nome falso, acho que ele vai descobrir."
"Não é preciso", disse Luther. "O negócio é não falar em Tulsa. Sou apenas Luther Laurence, de Columbus." Luther desejou sentir alguma coisa além daquele cansaço. Começaram pipocar pontinhos no ar, entre ele e Isaiah. "Obrigado, senhor."
Isaiah balançou a cabeça. "Pode subir. Nós o acordaremos para o jantar."
Luther sonhou que estava jogando beisebol em meio a uma inundação. Que os jogadores que jogavam fora do quadrado eram carregados pelas águas. Que tentava acertar a bola acima da linha da água e que homens riam toda vez que seu taco acertava a água lamacenta que lhe subia acima da cintura, acima das costelas, enquanto Babe Ruth e Cully passavam por ele voando num avião pulverizador de inseticidas, jogando granadas que não explodiam.
Ele acordou e viu uma mulher idosa derramando água quente na bacia em cima da cômoda. Ela o olhou por cima do ombro, e por um instante Luther pensou que era sua mãe. Elas tinham a mesma altura e a mesma pele clara salpicada de sardas escuras nas maçãs do rosto. Mas os cabelos daquela mulher eram grisalhos e ela era mais magra que sua mãe. Seu corpo, porém, irradiava o mesmo calor, a mesma benevolência, como se a alma fosse boa demais para ficar contida nele.
"Você deve ser o Luther."
Luther sentou-se na cama. "Sou sim, senhora."
"Que bom. Seria horrível se um outro homem tivesse entrado aqui às escondidas e tomado seu lugar." Ela pôs ao lado da bacia uma navalha, um tubo de creme de barbear, um pincel e um pote. "O senhor Giddreaux acha que um homem deve se sentar à mesa barbeado, e o jantar está quase servido. Depois você faz uma toalete mais caprichada. Que tal?"
Luther pôs os pés no chão e conteve um bocejo. "Está bem, senhora."
Ela estendeu uma mão delicada e pequena como a de uma boneca. "Eu sou Yvette Giddreaux, Luther. Seja bem-vindo à minha casa."
Enquanto esperavam que Isaiah tivesse notícias do capitão da polícia, Luther acompanhou Yvette Giddreaux ao futuro escritório da ANPPN na Shawmut Avenue. O edifício era em estilo Segundo Império, um monstro barroco revestido de pedras cor de chocolate, com águas-furtadas. Luther nunca tinha visto aquele estilo, a não ser em livros. Ele foi andando na calçada e aproximou-se do prédio, olhando para cima. As linhas do edifício eram retas, sem reentrâncias nem ressaltos. A estrutura sofrera alterações por causa do próprio peso, mas não mais do que se podia esperar de um edifício que, pelo que Luther calculava, teria sido construído na década de 1830. Ele deu uma boa olhada na inclinação dos cantos e concluiu que os alicerces estavam firmes, portanto o arcabouço estava em bom estado. Ele desceu da calçada e foi andando pela rua, olhando para o telhado do edifício.
"Senhora Giddreaux?"
"Sim, Luther."
"Parece que está faltando uma parte do telhado."
Ele olhou para ela. Segurando a bolsa com firmeza na frente do corpo, ela lhe lançou um olhar tão inocente que só podia ser fingido.
Ela disse: "Acho que ouvi falar de alguma coisa assim".
Luther continuou a vasculhar o telhado com o olhar, a partir do ponto em que notara a falha, e localizou uma depressão onde menos esperava que estivesse - bem no meio da cumeeira. A sra. Giddreaux continuava a olhar para ele com o ar mais inocente do mundo. Ele pôs a mão delicadamente sob o braço dela e a conduziu para dentro do edifício.
A maior parte do teto do primeiro andar desabara. O que tinha sobrado gotejava. A escada logo à sua direita estava preta. As paredes estavam sem o gesso em meia dúzia de lugares, traves e colunas à mostra, e enegrecidas pelo fogo em vários outros pontos. O assoalho fora tão danificado pelo fogo e pela água que até a laje do piso estava em petição de miséria. Todas as janelas estavam vedadas com tábuas.
Luther deu um assobio. "Vocês compraram isto aqui num leilão?"
"Mais ou menos", disse ela. "O que você acha?"
"Será que é possível ter o dinheiro de volta?"
Ela bateu em seu braço. Pela primeira vez, mas Luther tinha certeza de que não seria a última. Ele resistiu ao impulso de puxá-la para si, da forma como faria com sua mãe ou irmã, achando ótimo que elas sempre lhe resistissem e que aquilo invariavelmente lhe custasse um murro nas costelas ou no quadril.
"Deixe-me adivinhar", disse Luther. "George Washington nunca dormiu aqui, mas seu criado sim, não é?"
Ela lhe mostrou os dentes, os punhos pequenos apoiados nos pequenos quadris. "Você consegue consertar isto?"
Luther riu e ouviu o som ecoando no edifício gotejante. "Não."
Ela olhou para ele, o rosto duro, os olhos cheios de alegria. "Mas então como é que você poderá ser útil, Luther?"
"Ninguém consegue consertar isto aqui. Estou surpreso que a prefeitura não o tenha condenado."
"Eles tentaram."
Luther olhou para ela e soltou um longo suspiro. "A senhora sabe quanto se gastaria para tornar isto aqui habitável?"
"Não se preocupe com o dinheiro. Você consegue dar um jeito nisto?"
"Francamente, não sei." Ele deu outro assobio, calculando os meses, senão os anos, de trabalho. "Acho que eu não teria muita gente para me ajudar, não é?"
"De vez em quando vamos reunir alguns voluntários, e quando precisar de alguma coisa, é só fazer uma lista. Não posso garantir que você vai receber tudo o que precisar na hora, mas vamos tentar."
Luther balançou a cabeça e fitou seu rosto bondoso. "A senhora percebe que o esforço que isso vai exigir é uma coisa bíblica?"
Outro tapinha no braço. "Então é melhor pôr mãos à obra."
Luther soltou um suspiro. "Sim, senhora."
O capitão Thomas Coughlin abriu a porta de seu escritório e deu a Luther um largo e caloroso sorriso. "O senhor deve ser Laurence."
"Sim, senhor capitão Coughlin."
"Nora, por enquanto, é só isso."
"Sim, senhor", disse a jovem irlandesa que Luther acabara de conhecer. "Prazer em conhecê-lo, senhor Laurence."
"O prazer é meu, senhorita O’Shea."
Ela fez uma mesura e saiu.
"Entre", disse o capitão Coughlin abrindo bem a porta. Luther entrou num escritório que cheirava a fumo de boa qualidade, a fogo recém-aceso na lareira e ao outono, que já estava no fim. O capitão Coughlin conduziu-o a uma cadeira forrada de couro, deu a volta a uma grande escrivaninha de mogno e sentou-se junto à janela.
"Isaiah Giddreaux disse que você é de Ohio."
"Sim, sor."
"Eu o ouvi dizer ‘senhor’."
"Sor?"
"Ainda há pouco. Quando nos encontramos." Seus olhos azuis-claros brilharam. "Você disse ‘senhor’, não ‘sor’. Como você vai querer falar, filho?"
"Como o senhor prefere, capitão?"
O capitão Coughlin fez um gesto com um charuto apagado para indicar sua indiferença. "Como achar melhor, senhor Laurence."
"Sim, senhor."
Outro sorriso, sendo que este menos caloroso, antes exprimindo uma certa presunção. "De Columbus, certo?"
"Sim, senhor."
"E o que fazia lá?"
"Trabalhava na Fábrica de Armamentos Anderson, senhor."
"E antes disso?"
"Eu trabalhei de carpinteiro, de pedreiro, encanador, qualquer coisa, senhor."
O capitão Coughlin recostou-se na cadeira e apoiou os pés na escrivaninha. Ele acendeu um charuto, ficou observando Luther através da chama e da fumaça até a ponta ficar toda vermelha. "Mas você nunca trabalhou numa casa de família."
"Não, não trabalhei, senhor."
O capitão Coughlin inclinou a cabeça para trás e se pôs a soltar anéis de fumaça em direção ao teto.
Luther disse: "Mas eu aprendo rápido, senhor. E consigo consertar qualquer coisa. E fico muito bem de casaca e luvas brancas".
O capitão Coughlin riu. "Você é rápido. Muito bem, filho. Muito bem." Ele passou a mão atrás da cabeça. "Não estamos oferecendo um trabalho em período integral e tampouco moradia."
"Entendo, senhor."
"Você iria trabalhar umas quarenta horas por semana, na maior parte do tempo levando a senhora Coughlin à missa, fazendo faxina, manutenção e servindo as refeições. Você cozinha?"
"Cozinho, senhor."
"Não precisa se preocupar com isso. Nora cuidará da maior parte do trabalho." O capitão Coughlin abanou novamente o charuto. "É essa moça que você acaba de conhecer. Ela mora conosco. Ela também faz trabalhos domésticos, mas agora passa a maior parte do dia trabalhando numa fábrica. Logo você vai conhecer a senhora Coughlin", disse ele, os olhos voltando a brilhar. "Posso ser o chefe da família, mas Deus se esqueceu de avisá-la. Entende o que quero dizer? O que quer que ela peça, você tem de fazer imediatamente."
"Sim, senhor."
"Procure se manter na parte leste do bairro."
"Senhor?"
O capitão Coughlin tirou os pés da escrivaninha. "O lado oeste, senhor Laurence, é conhecido por sua intolerância contra os negros."
"Sim, senhor."
"Vai correr a notícia, claro, de que você trabalha para mim. Para muitos vagabundos isso pode servir de advertência, mas todo o cuidado é pouco."
"Obrigado pelo aviso, senhor."
Os olhos do capitão fitaram-no novamente através da fumaça. Dessa vez, eles eram parte da fumaça, serpenteavam nela, boiavam em volta de Luther, fitando seus olhos, seu coração, sua alma. Luther já tivera algumas amostras dessa capacidade em outros policiais - não era sem razão que se falava em olhos de policial -, mas o olhar do capitão Coughlin chegava a um nível de invasão que Luther nunca vira em homem nenhum. E esperava que não tivesse de enfrentar aquilo outra vez.
"Quem o ensinou a ler, Luther?" A voz do capitão era suave.
"Uma certa senhora Murtrey, senhor. Da Escola Hamilton, pertinho de Columbus."
"O que mais ela lhe ensinou?"
"Senhor?"
"O que mais, Luther?", repetiu o capitão Coughlin tirando outra baforada do charuto.
"Não entendi a pergunta, senhor."
"O que mais?", disse o capitão pela terceira vez.
"Senhor, eu não estou entendendo o que quer dizer."
"Você cresceu pobre, não é?" O capitão inclinava-se ligeiramente para a frente, e Luther teve de se conter para não recuar a cadeira.
Luther fez que sim. "Sim, senhor."
"Trabalhou como meeiro?"
"Não muito, senhor. Mas minha mãe e meu pai, sim."
O capitão Coughlin balançou a cabeça, lábios repuxados numa expressão de amargura. "Eu também nasci na miséria. Uma choça de dois aposentos, coberta de colmo, que dividíamos com moscas e ratos. Não era um lugar adequado para uma criança. Certamente não era lugar para uma criança inteligente. Sabe o que uma criança inteligente termina por aprender num ambiente desses, senhor Laurence?"
"Não, senhor."
"Sim, você sabe, filho." O capitão Coughlin sorriu pela terceira vez desde que Luther o conheceu, e aquele sorriso serpenteava no ar como o olhar do capitão e envolvia. "Não fique de bobeira comigo, filho."
"O problema é que não sei direito onde estou pisando, senhor."
O capitão Coughlin empinou a cabeça e a balançou. "Uma criança inteligente nascida num meio desfavorecido, Luther, aprende a seduzir." Ele estendeu a mão por cima da escrivaninha, os dedos contorcendo-se na nuvem de fumaça. "Aprende a se esconder por trás do charme, de forma que ninguém nunca sabe o que ela realmente está pensando. Ou sentindo."
Ele foi até uma garrafa atrás da escrivaninha e derramou duas doses de um líquido cor de âmbar em copos de cristal. O capitão deu a volta à escrivaninha e passou um copo a Luther. Era a primeira vez que ele recebia um copo das mãos de um branco.
"Eu vou contratá-lo, Luther, porque você me intriga." O capitão sentou-se numa ponta da escrivaninha e tocou seu copo no copo de Luther, estendeu a mão para trás, pegou um envelope e passou-o a Luther. "Avery Wallace deixou isto para quem assumisse o posto dele, fosse lá quem fosse. Observe que o selo dele não foi violado."
Luther viu uma cera marrom que servia de selo no verso do envelope, virou-o de frente e viu que estava endereçado ao MEU SUBSTITUTO, DE AVERY WALLACE.
Luther tomou um gole de uísque. Ele nunca provara bebida tão boa. "Obrigado, senhor."
O capitão Coughlin balançou a cabeça. "Eu respeitava a privacidade de Avery. Vou respeitar a sua. Mas nunca vá pensar que eu não o conheço, filho. Eu o conheço como conheço o espelho."
"Sim, senhor."
"‘Sim senhor’ o quê?"
"Sim, senhor. O senhor me conhece."
"E o que é que eu sei de você?"
"Que sou mais esperto do que dou a perceber."
"E o que mais?", perguntou o capitão.
Luther enfrentou seu olhar. "Não sou tão esperto quanto o senhor."
Um quarto sorriso, repuxado para cima do lado direito e confiante. "Bem-vindo à minha casa, Luther Laurence."
Luther leu o bilhete de Avery Wallace no bonde, na volta para a casa dos Giddreaux.
Ao meu substituto,
Se você está lendo este bilhete, é porque já morri. Se você o está lendo, é porque também é negro, como eu fui, porque os brancos na K, na L e na M Street só contratam empregados negros. A família Coughlin, para uma família branca, até que não é má. O capitão não tolera desrespeito, mas afora isso ele o tratará bem, se você não o contrariar. Seus filhos em geral são bons. De vez em sempre o senhor Connor vai dar duro em você. Joe é só um menino, e vai lhe encher a paciência se você deixar. Danny é um estranho. Esse com certeza pensa com a própria cabeça. Mas é como o capitão: ele o tratará bem e como um homem. Nora também tem uns pensamentos esquisitos, mas não se deixa iludir por ninguém. Você pode confiar nela. Tenha cuidado com a senhora Coughlin. Faça o que ela pedir e nunca a questione. Trate de ficar longe do tenente McKenna, amigo do capitão. Ele é uma coisa que o Senhor podia muito bem ter dispensado. Boa sorte.
Cordialmente,
Avery Wallace
Luther levantou os olhos do bilhete quando o bonde cruzava a Broadway Bridge e o canal Fort Point deslizava morosamente lá embaixo, exibindo seus reflexos prateados.
Então aquela era sua nova vida. E aquela era sua nova cidade.
Toda manhã, às seis e meia em ponto, a sra. Ellen Coughlin saía do número 221 da K Street e descia as escadas, onde Luther a esperava ao lado do carro da família, um Auburn de seis cilindros. A sra. Coughlin saudava-o com um gesto de cabeça, aceitava sua mão e sentava-se no banco do passageiro. Quando ela se acomodava, Luther fechava a porta com todo o cuidado, tal como lhe ensinara o capitão Coughlin, e conduzia a sra. Coughlin por uns poucos quarteirões até a igreja Portão do Céu, onde ela assistia à missa das sete horas. Ele ficava fora do carro enquanto durasse a missa, e sempre batia um papo com outro criado, Clayton Tomes, que trabalhava para a sra. Amy Wagenfeld, uma viúva que morava na M Street, o endereço mais elegante de South Boston, numa mansão que dava para o Independence Square Park.
A sra. Ellen Coughlin e a sra. Amy Wagenfeld não eram amigas - tanto quanto Luther e Clayton sabiam, mulheres brancas idosas não tinham amigos -, mas seus criados terminaram por fazer amizade. Os dois vinham do Meio-Oeste - Clayton crescera em Indiana, não muito longe de French Lick - e ambos eram criados de patrões que pouco teriam o que fazer com eles se tivessem posto ao menos um pé no século XX. A primeira tarefa de Luther depois de trazer a sra. Coughlin de volta para casa toda manhã era cortar lenha para o fogão, ao passo que a de Clayton era carrear carvão para o porão.
"Hoje em dia", dizia Clayton, "o país inteiro - pelo menos quem tem condições - usa a eletricidade, mas a senhora Wagenfeld não quer nem saber disso."
"A senhora Coughlin também não", disse Luther. "Naquela casa tem querosene para incendiar o quarteirão inteiro. Eu passo metade do dia limpando a fuligem das paredes, mas o capitão diz que ela nem quer tocar no assunto. Ele conta que levou nove anos para convencê-la a pôr água encanada na casa e a parar de usar a privada do quintal."
"Mulheres brancas...", dizia Clayton, e em seguida repetia com um suspiro: "Mulheres brancas...".
Quando Luther levava a sra. Coughlin para a K Street e lhe abria a porta de entrada, ela lhe dizia um suave "Obrigada, Luther". Depois de servir-lhe o café da manhã ele raramente a via pelo resto do dia. Durante um mês, a comunicação entre eles limitou-se ao "obrigada" dela, e à resposta de Luther: "Foi um prazer, senhora". Ela não lhe perguntou onde ele morava, se tinha família ou de onde era, e Luther sabia o bastante sobre a relação entre patrões e criados para ter consciência de que não lhe cabia tomar a iniciativa de conversar com ela.
"Não é fácil conhecê-la", disse-lhe Nora certo dia em que foram à Haymarket Square comprar mantimentos para a semana. "Faz cinco anos que estou naquela casa, e nem sei se posso dizer que a conheço melhor do que na noite em que cheguei."
"Contanto que não descubra defeitos no meu trabalho, ela pode ficar calada feito uma pedra."
Nora pôs uma dúzia de batatas na sacola que levara para as compras. "Você está se dando bem com todos os outros?"
Luther fez que sim. "Eles parecem uma boa família."
Nora balançou a cabeça, mas Luther ficou sem saber se aquilo era um sinal de concordância ou se tinha a ver com a maçã que ela estava examinando. "O pequeno Joe com certeza gostou de você."
"O menino gosta de beisebol."
Ela sorriu. "‘Gostar’ talvez não seja uma palavra forte o bastante."
Desde que Joe descobriu que Luther jogava beisebol, as horas fora da escola passaram a ser ocupadas por jogos de apanhar, arremessar e instruções de campo no pequeno quintal dos Coughlin. Como Luther terminava seu trabalho ao anoitecer, passava as três últimas horas do dia jogando, situação que o capitão aprovou imediatamente. "Se isso mantiver o garoto longe da saia da mãe, deixo você montar um time se quiser, senhor Laurence."
Joe não tinha grandes pendores para os esportes, mas tinha garra e, para um garoto de sua idade, era bastante atento às instruções que Luther lhe dava. Luther ensinou-lhe a apoiar o joelho no chão ao rebater uma bola e a coordenar os arremessos e os movimentos do taco. Ensinou-lhe a separar os pés e firmá-los no chão para rebater uma bola alta e lenta, e nunca pegá-la numa altura abaixo da cabeça. Ele tentou ensiná-lo a arremessar, mas o menino não tinha braço nem paciência para isso. A única coisa que ele queria era fazer as vezes de batedor, e em grande estilo. Então Luther descobriu mais um motivo para censurar Babe Ruth: ter transformado o jogo em uma questão de maltratar a bola, um espetáculo de circo, fazendo que todo garoto branco de Boston pensasse que o beisebol era uma espécie de oba-oba e que estourar a bola num home run era um barato.
À exceção da hora em que trabalhava para a sra. Coughlin de manhã e os momentos em que jogava com Joe, Luther passava a maior parte do expediente com Nora O’Shea.
"E o que você está achando do trabalho até agora?"
"Parece que não tenho muito o que fazer."
"Você não quer fazer um pouco do meu trabalho?"
"Está falando sério? Quero sim. Eu a levo à igreja, depois a trago de volta. Sirvo o café da manhã, encero o carro, engraxo os sapatos do capitão e do senhor Connor e escovo seus ternos. Às vezes dou um lustro nas medalhas do capitão em ocasiões especiais. Aos domingos, sirvo bebidas ao capitão e aos seus amigos no escritório. No resto do tempo, espano coisas que não precisam ser espanadas, limpo o que já está limpo e varro assoalhos que não precisam ser varridos. Corto um pouco de lenha, carrego um pouco de carvão, alimento uma pequena fornalha. Quer dizer, quanto tempo levo para fazer isso? Duas horas? Passo o resto do dia fingindo estar ocupado até você ou o senhor Joe chegarem em casa. Nem sei por que eles me contrataram."
Ela apoiou a mão de leve em seu braço. "Todas as boas famílias têm um."
"Um negro?"
Nora balançou a cabeça, os olhos brilhando. "Nesta parte do bairro. Se os Coughlin não contratassem você, teriam de explicar por quê."
"Como assim? Explicar por que eles não passaram a usar eletricidade?"
"Explicar por que não conseguem manter as aparências." Eles iam subindo a East Broadway em direção a City Point. "Os irlandeses daqui me lembram os ingleses lá da minha terra. Cortinas de renda nas janelas, calças enfiadas nas botas, claro, como é bem do seu feitio."
"Aqui, talvez você possa fazer isso", disse Luther. "Mas no resto deste bairro..."
"Fazer o quê?"
Ele sacudiu os ombros.
"Fazer o quê?", insistiu ela dando-lhe um puxão no braço.
Ele abaixou os olhos para a mão dela. "Isso que você está fazendo agora, nunca faça em qualquer outra parte do bairro, por favor."
"Ah."
"Isso pode fazer que nós dois sejamos mortos. Independentemente de cortinas de renda, é o que lhe digo."
Toda noite ele escrevia para Lila, e poucos dias depois o envelope voltava fechado.
Aquilo quase o estava aniquilando - o silêncio dela, o fato de estar numa cidade desconhecida, inquieto e anônimo como sempre fora. Certa manhã, porém, Yvette levou a correspondência para a mesa e, delicadamente, pôs mais duas cartas rejeitadas perto dele.
"São da sua mulher?", disse ela sentando-se.
Luther fez que sim.
"Você deve ter feito uma coisa terrível com ela."
Ele disse: "Eu fiz, senhora. Eu fiz".
"Não foi arranjar outra mulher, foi?"
"Não."
"Então eu o perdoo." Ela afagou-lhe a mão, e Luther sentiu o calor penetrando-lhe o sangue.
"Obrigado", disse ele.
"Não se preocupe. Ela ainda gosta de você."
Ele balançou a cabeça, sentindo todo o peso de sua perda. "Ela não gosta, senhora."
Yvette olhou para ele balançando a cabeça devagar. Um sorriso aflorou-lhe nos lábios. "Os homens são bons em muitas coisas, Luther, mas nenhum de vocês sabe coisa alguma sobre o coração das mulheres."
"É exatamente isso", disse Luther. "Ela não quer mais que eu saiba o que lhe vai no coração."
"Não quer."
"Hein?"
"Ela não quer que você saiba o que lhe vai no coração."
"Certo", disse Luther desejando ter um buraco onde se enfiar.
"Permita-me discordar de você, filho." A sra. Giddreaux segurou uma de suas cartas de forma que ele pudesse ver o verso do envelope. "O que é isso ao longo da aba?"
Luther olhou, mas não viu nada.
A sra. Giddreaux passou o dedo sob a aba. "Está vendo essa mancha ao longo das bordas da aba? Está vendo como o papel está mais macio embaixo delas?"
Então Luther notou. "Sim."
"Isso aí é vapor, filho. Vapor."
Luther pegou o envelope e o examinou.
"Ela abre suas cartas, Luther, depois as manda de volta como se não tivesse lido. Não sei se dá para chamar isso de amor", disse ela apertando-lhe o braço, "mas não dá para chamar de indiferença."
15.
O outono cedeu lugar ao inverno, num cortejo de ventos úmidos que avançavam pela Costa Leste, e a lista de Danny ia ficando cada vez maior. Que indícios a lista poderia dar a ele - e, aliás, a qualquer outra pessoa - sobre a possibilidade de uma rebelião no Primeiro de Maio? Era um mistério. A maioria dos nomes era de trabalhadores fodidos querendo se sindicalizar ou de românticos iludidos, que supunham que o mundo queria de fato uma mudança.
Danny começou a desconfiar, porém, que seu contato com os lets de Roxbury e com o BSC lhe acarretara um vício dos mais improváveis: o gosto por reuniões. As conversas e as bebedeiras dos lets, pelo que ele podia ver, não levariam a nada senão a mais conversas e mais bebedeiras. Ainda assim, nas noites em que não havia reuniões e nenhum lugar para onde ir depois, ele se sentia perdido. Ficava enfurnado em seu apartamento, bebendo e mexendo o botão entre o polegar e o indicador com tal violência que, em retrospecto, lhe parecia um milagre ele não ter se partido. Então se via novamente em outra reunião do Boston Social Club no Fay Hall, em Roxbury. E depois em outra.
Essas reuniões não eram muito diferentes das dos lets. Retórica, fúria, sensação de impotência. Danny não podia deixar de se admirar da ironia da situação: aqueles homens encarregados de reprimir greves vendo-se encurralados da mesma maneira que os homens que eles maltratavam ou espancavam nas portas das fábricas e usinas.
Outra noite, em outro bar, mais discussões sobre direitos dos trabalhadores, mas dessa vez com o pessoal do BSC - companheiros policiais, patrulheiros, rondas e mestres do cassetete cheios da raiva impotente dos eternos excluídos. Nenhuma negociação ainda, nenhuma conversa séria sobre jornada de trabalho e pagamento justos. E nada de aumento de salário. E dizia-se que do outro lado da fronteira, em Montreal, apenas quinhentos quilômetros ao norte, a prefeitura suspendera as negociações com a polícia e com os bombeiros, e a greve era inevitável.
E por que não?, diziam os homens no bar. Estamos morrendo de fome, porra. Fodidos, sem um puto e presos a um trabalho que não nos permite alimentar nossas famílias nem nos dá tempo de vê-las direito.
"Meu caçula", disse Francie Deegan. "Meu caçula, rapazes, está usando as roupas dos irmãos, e eu fiquei surpreso ao descobrir que os mais velhos não as usam porque já não lhes servem. De tanto que trabalho, eu achei que eles estavam na segunda série, quando na verdade estão na quinta. Pensei que eles batiam na minha cintura, mas eles já chegaram no meu peito, rapazes."
Quando ele se sentou em meio aos gritos de "Apoiado! Apoiado!", Sean Gale se pronunciou:
"Os putos dos portuários, rapazes, estão ganhando três vezes mais que nós, policiais, que os prendemos por embriaguez e baderna nas noites de sexta-feira. Assim, é melhor alguém começar a pensar em como pagar o que nos é de direito."
Mais gritos de "Apoiado! Apoiado!". Um deles cutucou o vizinho, que cutucou outro, e todos olharam e viram o comissário de polícia de Boston, Stephen O’Meara, de pé ao balcão, esperando seu chope. Quando lhe trouxeram o chope e o bar ficou em silêncio, o grande homem esperou que o barman raspasse o excesso de espuma. Ele pagou o chope e aguardou o troco de costas para o salão. O barman computou o pagamento na caixa registradora e deu o troco em moedas a Stephen O’Meara. O comissário deixou uma das moedas no balcão, embolsou o resto e se voltou para o salão.
Deegan e Gale abaixaram a cabeça, esperando a execução.
O’Meara foi andando entre os homens, levantando o chope bem alto para que não derramasse, e sentou-se numa cadeira junto à lareira, entre Marty Leary e Denny Toole. Devagar, ele percorreu com olhos indulgentes aqueles homens reunidos e depois tomou um gole do chope. A espuma ficou presa em seu bigode como um bicho-da-seda.
"Está frio lá fora", disse O’Meara, depois tomou outro gole enquanto a lenha crepitava atrás dele. "Mas aqui temos um belo fogo." Ele balançou a cabeça apenas uma vez, mas pareceu dirigir-se a cada um deles com aquele gesto. "Não tenho uma resposta para vocês. Vocês não estão recebendo o pagamento justo, não há como negar."
Ninguém ousou falar. Os homens, que pouco antes se mostravam barulhentos, raivosos e indignados ao extremo, desviavam os olhos.
O’Meara dirigiu a todos um sorriso feroz e chegou a bater o joelho no de Denny Toole. "Aqui é um ótimo lugar, não?" Ele olhou em volta novamente, procurando alguma coisa ou alguém. "Coughlin, meu rapaz, é você mesmo aí com essa barba?"
Danny sentiu o olhar dele e um aperto no peito. "Sim, senhor."
"Suponho que você esteja disfarçado."
"Sim, senhor."
"De urso?"
Todo o salão caiu na gargalhada.
"Não exatamente, mas é quase isso."
O olhar de O’Meara se abrandou e se mostrou tão destituído de orgulho que Danny sentiu como se eles dois fossem os únicos homens naquele salão. "Conheço seu pai há muito tempo, filho. Como vai sua mãe?"
"Vai bem, senhor", respondeu Danny, agora sentindo os olhares dos outros homens.
"Uma mulher delicada como nenhuma outra. Dê-lhe lembranças minhas, está bem?"
"Darei, senhor."
"Se me permite... qual é sua posição nesse impasse econômico?"
Os homens voltaram os olhos para ele, enquanto O’Meara tomava outro gole de cerveja sem tirar os olhos dos de Danny.
"Eu entendo...", começou Danny, e então sentiu a garganta seca. Desejou que o salão ficasse escuro feito breu para deixar de sentir aqueles olhares. Meu Deus.
Ele tomou um gole de seu chope e recomeçou. "Eu entendo, senhor, que o custo de vida está afligindo a cidade e que as verbas estão curtas."
O’Meara balançou a cabeça.
"E entendo, senhor, que não somos cidadãos comuns, mas senadores públicos, obrigados por juramento a cumprir nosso dever. E que não existe profissão mais nobre que a do servidor público."
"Nenhuma", concordou O’Meara.
Danny balançou a cabeça.
O’Meara fitou-o. Os homens o observavam.
"Mas...", disse Danny sem alterar o tom de voz. "Fizeram-nos uma promessa, senhor. Garantiram-nos que os salários ficariam congelados enquanto durasse a guerra, mas que seríamos recompensados por nossa paciência com um aumento de duzentos por ano logo que terminasse a guerra." Então Danny ousou olhar em volta e enfrentar todos aqueles olhares, esperando que eles não notassem os tremores que lhe percorriam as panturrilhas.
"Eu concordo", disse O’Meara. "Pode acreditar, agente Coughlin. Mas o aumento do custo de vida é um fato, e o município está quebrado. A coisa não é simples. Eu gostaria que fosse."
Danny balançou a cabeça e já ia se sentar, e então descobriu que não conseguia. Suas pernas não deixavam. Ele olhou para O’Meara, percebendo que a decência vivia naquele homem como um órgão vital. Ele cruzou o olhar com o de Mark Denton, que fez um gesto de cabeça.
"Senhor", disse Danny. "Não temos dúvidas de que o senhor concorda. Ninguém tem. E nós sabemos que o município está sem dinheiro. Sim, sim." Danny tomou fôlego. "Mas promessa é dívida, senhor. Talvez, no final das contas, seja isso que importe. E o senhor disse que a coisa não é simples, mas é, senhor. Com todo o respeito, permita-me dizer que é sim. Não é fácil, é muito difícil. Mas é simples. Um monte de homens excelentes e corajosos não consegue fechar suas contas. E promessa é dívida."
Ninguém disse nada, ninguém se mexeu. Foi como se tivessem jogado uma granada no meio do salão e ela não tivesse explodido.
O’Meara se pôs de pé. Os homens abriram alas quando ele passou pela frente da lareira, aproximando-se de Danny. Ele estendeu a mão. Danny teve de colocar seu chope sobre o consolo da lareira para estender a mão trêmula e apertar a do outro homem.
O velho apertou-a com firmeza, sem sacudir o braço.
"Promessa é dívida", disse O’Meara.
"Sim, senhor", Danny conseguiu dizer.
O’Meara balançou a cabeça, soltou-lhe a mão e se voltou para o salão. Danny sentiu como se aquele momento se congelasse no tempo, como se tecido por deuses no mural da história - Danny Coughlin e o Grande Homem lado a lado, o fogo da lareira crepitando atrás deles.
O’Meara ergueu seu chope. "Homens, vocês são o orgulho desta grande cidade. Eu tenho orgulho de ser um de vocês. E promessa é dívida."
Danny sentia o calor do fogo às suas costas. Sentiu a mão de O’Meara em sua espinha.
"Vocês confiam em mim?", gritou O’Meara. "Conto com a confiança de vocês?"
A resposta veio em coro: "Sim, senhor!".
"Não vou decepcioná-los. Podem acreditar."
Danny viu o que se desenhava no rosto daqueles homens: afeição. Simplesmente isso.
"Um pouco mais de paciência, homens, é só o que peço. Sei que é pedir muito. Não tenham dúvida. Mas vocês estão dispostos a dar mais um tempo a este velho?"
"Sim, senhor!"
O’Meara respirou fundo e ergueu o copo bem alto. "Aos homens do Departamento de Polícia de Boston... não há outros como vocês em todo este país."
O’Meara tomou todo o chope numa golada. Os homens se animaram e fizeram o mesmo. Marty Leary pediu uma nova rodada, e Danny observou que de certa forma eles tinham voltado a ser crianças, meninos, unidos numa fraternidade absoluta.
O’Meara inclinou-se para a frente. "Você não é seu pai, filho."
Danny olhou para ele, sem saber como interpretar aquilo.
"Seu coração é mais puro que o dele."
Danny não conseguia falar.
O’Meara apertou-lhe o braço um pouco acima do cotovelo. "Não venda isso, filho. Não é possível comprá-lo de volta nas mesmas condições."
"Sim, senhor."
O’Meara fitou-o mais uma vez, demoradamente. Mark Denton deu um chope para cada um, e O’Meara largou o braço de Danny.
Depois de terminar seu segundo chope, O’Meara despediu-se dos homens. Danny e Mark Denton acompanharam-no até a saída do bar, onde uma pesada chuva, que caía do céu negro, os esperava.
O motorista dele, o sargento Reid Harper, saiu do carro e protegeu o chefe com um guarda-chuva. Saudou Danny e Denton com um gesto de cabeça enquanto abria a porta para O’Meara. O comissário apoiou um braço na porta e voltou-se para eles.
"Vou falar com o prefeito Peters amanhã, logo na primeira hora. Vou chamar a atenção sobre o caráter urgente dessa questão e marcar uma reunião na prefeitura para entrar em negociação com o Boston Social Club. Vocês veem algum problema em representar os homens na reunião?"
Danny olhou para Denton, perguntando-se se O’Meara estava ouvindo as batidas de seus corações.
"Não, senhor."
"Não, senhor."
"Está bem, então", disse O’Meara estendendo a mão. "Permitam-me agradecer a vocês dois. Sinceramente."
Eles trocaram apertos de mão.
"Vocês são o futuro do sindicato dos policiais de Boston, cavalheiros", disse ele abrindo-lhes um sorriso amistoso. "Espero que estejam à altura de sua missão. Agora, saiam da chuva."
Ele entrou no carro. "Para casa, Reid, antes que a patroa pense que virei um mulherengo."
Reid Harper deu a partida no carro enquanto O’Meara lhes fazia um pequeno aceno pela janela.
A chuva lhes encharcava os cabelos e escorria pela nuca.
"Meu Deus", disse Mark Denton. "Meu Deus, Coughlin."
"Eu sei."
"Você sabe? Você entende o que acaba de fazer aqui? Você nos salvou."
"Eu não..."
Denton lhe deu um forte abraço, levantando-o da calçada. "Você nos salvou, porra!"
Ele girou com Danny na calçada e se pôs a gritar na rua. Danny lutava para se desvencilhar, mas também se pusera a rir, os dois gargalhando feito doidos na rua, debaixo da chuva que caía nos olhos de Danny, que se perguntava se alguma vez na vida se sentira tão bem.
Ele se encontrou com Eddie McKenna na Governor’s Square, no bar do Hotel Buckminster.
"O que é que você conseguiu?"
"Estou me aproximando de Bishop. Mas ele é astuto."
McKenna abriu os braços. "Eles desconfiam que você é um espião, não acha?"
"Como eu disse antes, com certeza isso lhes passou pela cabeça."
"Você tem alguma ideia?"
Danny fez que sim. "Tenho uma. Mas implica um risco."
"Que risco?"
Ele apresentou um caderno com capa de tecido, igual ao que vira nas mãos de Fraina. Procurou em cinco papelarias antes de encontrá-lo. Ele o passou a McKenna.
"Faz duas semanas que trabalho nisso."
McKenna se pôs a folheá-lo, arqueando as sobrancelhas vez por outra.
"Eu manchei algumas páginas com café, e até furei uma delas com um cigarro."
McKenna deu um pequeno assobio. "Eu notei."
"São as reflexões políticas de Daniel Sante. O que você acha?"
McKenna ficou passando as páginas com o polegar. "Você falou de Montreal e dos espartaquistas. Ótimo. Olha só - Seattle e Ole Hanson. Ótimo, ótimo. Falou do porto de Archangel também?"
"Claro."
"E a Conferência de Versalhes?"
"Você se refere à principal conspiração do mundo?", disse Danny revirando os olhos. "Acha que eu iria deixar isso passar?"
"Vamos com calma", disse Eddie sem levantar os olhos do caderno. "Essa arrogância prejudica os espiões."
"Passei semanas sem conseguir nada, Eddie. Como poderia me mostrar arrogante? Mostrei o caderno a Bishop e ele disse que ia passá-lo a Fraina, só isso."
Eddie o devolveu. "Está muito bom. A gente quase chega a pensar que você acredita nisso."
Danny ignorou o comentário e recolocou o caderno no bolso do casaco.
Eddie abriu a tampa do relógio de bolso. "Procure evitar as reuniões do sindicato por algum tempo."
"Não posso."
Eddie fechou a tampa e recolocou o relógio no colete. "Ah, tudo bem. Atualmente você é o próprio BSC."
"Bobagem."
"Depois do seu encontro com O’Meara, é isso o que andam dizendo, pode acreditar." Ele deu um sorriso manso. "Estou na força há quase trinta anos, e aposto como nosso caro comissário nem ao menos sabe meu nome."
Danny disse: "Uma questão de lugar certo, na hora certa, acho".
"No lugar errado", disse ele franzindo o cenho. "Acho bom você tomar cuidado, rapaz. Porque os outros agora estão de olho em você. Aceite este conselho do tio Eddie - recue. Há tempestades se formando em toda parte. Em toda parte. Nas ruas, nos pátios das fábricas e agora no nosso departamento. O poder? É uma coisa efêmera, Dan. E hoje mais do que nunca. Procure ser discreto, não erguer demais a cabeça."
"Ela já está erguida."
Eddie deu um tapa na mesa.
Danny recuou o corpo. Ele nunca vira Eddie perder aquela sua calma traiçoeira.
"Se sua cara aparecer no jornal com o comissário, com o prefeito, sabe o que vai acontecer? Já imaginou o que isso significará para minha investigação? Não posso usar você se Daniel Sante, aprendiz de bolchevique, se transformar em Aiden Coughlin, representante do BSC. Preciso da lista de contatos de Fraina."
Danny fitou aquele homem que ele conhecera desde sempre, vendo um outro lado dele, um lado que ele desconfiava estar ali o tempo todo, mas que nunca chegara a testemunhar de fato.
"Por que a lista de contatos, Eddie? Pensei que estivéssemos em busca de provas da existência de planos de revolta para o Primeiro de Maio."
"Estamos procurando ambas as coisas", disse Eddie. "Mas, se eles são tão lacônicos como você diz, Dan, e sua capacidade de investigar for um pouco menor do eu esperava, então basta conseguir essa lista de contatos antes que sua cara apareça na primeira página dos jornais. Você podia fazer isso para o seu tio, companheiro?" Ele saiu do boxe, vestiu o casaco e jogou algumas moedas na mesa. "Acho que isso deve bastar."
"Nós acabamos de chegar", disse Danny.
O rosto de Eddie voltou a ser a máscara que sempre fora na presença de Danny... maliciosa e benigna ao mesmo tempo. "A cidade nunca dorme, rapaz. Tenho coisas a resolver em Brighton."
"Brighton?"
Eddie fez que sim. "Stockyards. Odeio aquele lugar."
Danny acompanhou Eddie até a porta. "Anda amarrando gado agora, Eddie?"[10]
"Melhor que isso." Eddie abriu a porta para o frio que havia lá fora. "Negros. Uns crioulos doidos estão reunidos agora mesmo, fora do horário de trabalho, para discutir seus direitos. Você acredita numa coisa dessas? Aonde isso vai parar? Só falta agora os chinas tomarem as roupas que enviamos para a lavanderia como reféns."
O motorista de Eddie parou o Hudson preto junto ao meio-fio. "Quer uma carona?"
"Eu vou andando."
"É bom para curar bebedeira. Boa ideia", disse ele. "A propósito, conhece alguém chamado Finn?", perguntou Eddie, fisionomia alegre e franca.
Danny foi na mesma toada. "Em Brighton?"
Eddie fechou a cara. "Eu disse que ia a Brighton caçar negros. Finn lhe parece um nome de negro?"
"Parece irlandês."
"E é. Conhece alguém com esse nome?"
"Negativo. Por quê?"
"Só para saber", disse Eddie. "Tem certeza?"
"É como eu disse, Eddie." Danny levantou a gola para se proteger do frio. "Não."
Eddie balançou a cabeça e foi até a porta do carro.
"O que é que ele faz?", perguntou Danny.
"Ahn?"
"Esse Finn que você está procurando", disse Danny. "O que ele faz?"
Eddie fitou-o por um longo tempo. "Boa noite, Dan."
"Boa noite, Eddie."
O carro de Eddie seguiu pela Beacon Street, e Danny pensou em entrar novamente, ligar para Nora da cabine telefônica do saguão do hotel e dizer-lhe que McKenna talvez a estivesse investigando. Mas então ele a imaginou com Connor - segurando-lhe a mão, beijando-o, talvez se sentando em seu colo quando não havia ninguém em casa - e chegou à conclusão de que existiam muitos Finns no mundo. E metade deles estava na Irlanda ou em Boston. McKenna podia estar se referindo a qualquer um deles. Qualquer um.
16.
A primeira coisa que Luther teria de fazer no edifício da Shawmut Avenue era impedir a entrada da água. O que significava começar pelo telhado. Era um belo telhado de ardósia, arruinado pela má sorte e pela negligência. Numa bela manhã fria em que o ar cheirava a fumaça de fábrica e o céu estava claro e azulíssimo, ele foi avançando pela cumeeira. Recolheu pedaços de ardósia que os machados dos bombeiros tinham atirado nas calhas e juntou aos que apanhara lá embaixo, no piso. Retirou a madeira chamuscada ou estragada pela água, fixando em seu lugar novas pranchas de carvalho e cobrindo-as em seguida com a ardósia que recuperara. Quando esta acabou, ele usou a ardósia que a senhora Giddreaux dera um jeito de conseguir de uma empresa de Cleveland. Luther começou num sábado, logo que o dia clareou, e acabou no final da tarde do domingo. Sentado na cumeeira, brilhando de suor no frio, ele limpou a testa, olhou para o céu claro, voltou a cabeça e contemplou a cidade que se estendia à sua volta. Sentiu no ar o aroma do anoitecer que se aproximava, embora seus olhos ainda não vissem o menor sinal dele. E poucos aromas seriam mais agradáveis que aquele.
Nos dias de semana, o horário de trabalho de Luther era tal que, quando os Coughlin sentavam-se à mesa do jantar, ele, que ajudara Nora a preparar a comida e pusera a mesa, já tinha ido embora. Aos domingos, porém, o lanche da tarde ocupava o dia inteiro. Vez por outra aquilo fazia Luther lembrar-se das refeições na casa da tia Marta e do tio James em Standpipe Hill. Alguma coisa que tinha a ver com a ida à igreja e com as roupas domingueiras suscitava um gosto por declarações pomposas, ele notara, tanto entre os brancos como entre os negros.
Quando servia a bebida no escritório do capitão, às vezes tinha a impressão de que aquelas declarações se dirigiam a ele. Às vezes surpreendia olhares oblíquos de um dos amigos do capitão, quando pontificava sobre eugenia ou sobre as diferenças intelectuais entre as raças, já comprovadas, ou alguma imbecilidade do mesmo calibre, que só os ociosos têm tempo de discutir.
O que falava menos, mas tinha os olhos mais ardentes, era aquele contra o qual Avery Wallace o advertira, o tenente Eddie McKenna. Um homem gordo, que respirava com dificuldade pelas narinas atravancadas de pelos. Ele tinha um sorriso radioso como uma lua cheia num rio e uma dessas personalidades ruidosas e brincalhonas que Luther acreditava não merecerem a menor confiança. Homens como aquele sempre escondiam a parte de si mesmos que não estava rindo; eles a guardavam tão fundo que ela ficava ainda mais faminta, como um urso recém-saído da hibernação, emergindo pesadamente da caverna com um faro tão aguçado que não havia como lhe escapar.
De todos os homens que se reuniam no escritório do capitão aos domingos - e o rol mudava de uma semana para outra -, era McKenna quem mais prestava atenção em Luther. À primeira vista, aquilo parecia uma coisa boa. Ele sempre agradecia a Luther quando este lhe trazia um drinque ou tornava a encher-lhe o copo, ao passo que os outros homens agiam simplesmente como se ele não fizesse mais que a obrigação, e raramente lhe agradeciam. Logo ao entrar no escritório, normalmente McKenna perguntava sobre a saúde de Luther, sobre como passara a semana, como estava reagindo ao tempo frio. "Se você precisar de mais um casaco, filho, é só nos dizer. Normalmente a gente tem alguns a mais na delegacia. Mas não posso garantir que cheirem muito bem", e dava um tapinha nas costas de Luther.
Ele parecia imaginar que Luther era do sul, e Luther não viu nenhum motivo para desfazer aquele equívoco até um certo fim de tarde, num daqueles domingos.
"Você é de Kentucky?", disse McKenna.
A princípio, Luther não percebeu que a pergunta era para ele. Estava de pé, ao lado do aparador, enchendo uma tigelinha com cubinhos de açúcar.
"Imagino que você é de Louisville. Acertei?" McKenna olhou diretamente para ele enquanto punha um naco de carne de porco na boca.
"De onde eu sou, senhor?"
Os olhos de McKenna brilharam. "Foi isso que eu perguntei, filho."
O capitão tomou um gole de vinho. "O tenente se orgulha da capacidade de reconhecer sotaques."
Danny disse: "Mas não consegue se livrar do seu, hein?".
Connor e Joe riram. McKenna apontou o garfo para Danny. "Este aqui já era um sabichão desde que usava fraldas." Ele voltou a cabeça. "Então, de onde você é, Luther?"
Mas, antes que Luther pudesse responder, o capitão Coughlin levantou a mão. "Deixe que ele adivinhe, senhor Laurence."
"Eu tentei adivinhar, Tom."
"Você errou."
"Ah." McKenna limpou os lábios com o guardanapo. "Quer dizer que não é de Louisville?"
Luther balançou a cabeça. "Não, senhor."
"Lexington?"
Luther balançou a cabeça novamente, sentindo os olhares de toda a família sobre si.
McKenna inclinou-se para trás, uma mão afagando a barriga. "Bem, vamos ver. Você não fala arrastado como no Mississippi, quanto a isso não há dúvida. E Geórgia também está fora de cogitação. Mas sua fala é grave demais para ser da Virgínia e rápida demais para ser do Alabama."
"Estou achando que ele pode ser das Bermudas", disse Danny.
Luther cruzou o olhar com o dele e sorriu. De todos os membros da família Coughlin, era com Danny que ele menos convivera, mas Avery tinha razão: não se via nenhuma falsidade nele.
"Cuba", disse Luther a Danny.
"Fica muito ao sul", disse Danny.
Os dois riram.
O olhar de McKenna tinha perdido o ar de esperteza. Seu corpo inteiro se ruborizara. "Ah, agora os rapazes aí estão de brincadeira." Ele sorriu para Ellen Coughlin, que estava do outro lado da mesa. "Estão de brincadeira", repetiu ele cortando sua carne de porco assada.
"Então, qual seu palpite, Eddie?", disse o capitão Coughlin espetando uma fatia de batata.
McKenna levantou os olhos do prato. "Vou pensar um pouco mais sobre o senhor Laurence, antes de arriscar outro palpite furado sobre o assunto."
Luther voltou à bandeja do café, mas não sem antes perceber mais um olhar de Danny. Um olhar não muito agradável, com uma ponta de piedade.
Luther vestiu o sobretudo enquanto saía para a varanda e viu Danny encostado no capô de um Oakland 49 marrom-escuro. Danny levantou uma garrafa de alguma coisa na direção de Luther. Quando este chegou à rua, viu que se tratava de uísque, uísque dos bons, de antes da guerra.
"Aceita uma bebida, senhor Laurence?"
Luther pegou a garrafa de Danny, aproximou-a da boca e fez uma pausa, olhando para ele, para certificar-se de que a intenção do outro era mesmo partilhar uma garrafa com um negro. Danny arqueou zombeteiramente uma sobrancelha. Luther levou a garrafa aos lábios, inclinou-a e bebeu.
Quando Luther a devolveu, o policial alto não limpou a garrafa com a manga do casaco, simplesmente a levou aos lábios e tomou uma boa golada. "Este é de primeira, hein?"
Luther lembrou-se da afirmação de Avery Wallace de que aquele Coughlin era um estranho que tinha as próprias ideias. Ele fez que sim com a cabeça.
"Bela noite."
"Sim." De um frio cortante, mas sem vento, o ar um pouco carregado com a poeira das folhas secas.
"Vai mais um?", disse Danny passando-lhe novamente a garrafa.
Luther tomou um gole olhando o homenzarrão branco e seu rosto franco e bonito. Com toda a certeza um mulherengo, pensou Luther, mas não do tipo que vive só para isso. Alguma coisa por trás daqueles olhos dizia a Luther que aquele homem ouvia música que outros não ouviam, que se orientava sabe-se lá por quais princípios.
"Você gosta de trabalhar aqui?"
Luther fez que sim. "Gosto. Você tem uma bela família, sor."
Danny revirou os olhos e tomou mais um gole. "Será que você pode deixar de me chamar de ‘sor’, senhor Laurence? Acha que é possível?"
Luther recuou um passo. "Como é que você quer que o chame então?"
"Aqui fora pode me chamar de Danny. Mas lá dentro...", acrescentou Danny apontando a casa com o queixo, "me chame de senhor Coughlin.’
"O que é que o senhor tem contra o ‘sor’?"
Danny sacudiu os ombros. "Eu acho besteira."
"Certo. Então pode me chamar de Luther."
Danny balançou a cabeça. "Um brinde a isso."
Luther riu enquanto o outro erguia a garrafa. "Avery me avisou que você era diferente."
"Avery saiu da tumba para lhe dizer que sou diferente?"
Luther fez que não com a cabeça. "Ele escreveu um bilhete para seu ‘substituto’."
"Ah", fez Danny pegando a garrafa de volta. "O que você acha do meu tio Eddie?"
"Parece ser um bom sujeito."
"Não, não é", disse Danny em tom suave.
Luther encostou-se no carro ao lado de Danny. "Não, não é."
"Você percebe que ele fica rodeando você?"
"Sim."
"Seu passado é limpo, Luther?"
"Como o da maioria, acho."
"Então não é tão limpo assim."
Luther sorriu. "Isso aí."
Danny tornou a lhe passar a garrafa. "Tio Eddie é capaz de ler o pensamento das pessoas mais que qualquer um. Entra em suas mentes e vê o que quer que estejam escondendo. Quando aparece um suspeito na delegacia que ninguém consegue dobrar, chamam meu tio. Ele sempre obtém uma confissão. Vale-se de quaisquer meios para conseguir isso."
Luther se pôs a rolar a garrafa entre as mãos. "Por que você está me dizendo isso?"
"Ele desconfia de alguma coisa em relação a você - dá para ver isso pelo seu olhar -, e nós levamos a brincadeira longe demais, o que o incomodou. Ele ficou pensando que estávamos rindo dele, e isso não é nada bom."
"Eu gosto dessa bebida", disse Luther desencostando do carro. "Nunca partilhei uma garrafa com um homem branco." Ele sacudiu os ombros e acrescentou: "Mas é melhor ir andando".
"Não estou te interrogando."
"Não, é?", disse Luther olhando para ele. "E como vou saber?"
Danny estendeu as mãos. "Neste mundo só existem dois tipos de homens dignos de menção: os que são o que parecem, e os outros. Em qual dos tipos você acha que eu me enquadro?"
Luther sentiu o uísque fluindo sob sua carne. "Você é o tipo mais estranho com quem cruzei nesta cidade."
Danny tomou um gole e levantou os olhos para as estrelas. "Eddie é capaz de ficar espreitando você durante um ano ou até dois. Ele vai se armar de toda a paciência do mundo, pode acreditar. Mas, quando ele finalmente o pegar, você não vai ter nenhuma chance de escapar." Ele olhou nos olhos de Luther. "Parei de me incomodar com o que Eddie e meu pai fazem para atingir desordeiros, trapaceiros e criminosos armados, mas não gosto quando eles vão atrás de gente comum, está entendendo?"
Luther pôs as mãos nos bolsos, pois o tempo estava ficando cada vez mais fechado e frio. "Então você está dizendo que pode controlar esse cão?"
Danny sacudiu os ombros. "Talvez. Só vou saber quando chegar a hora."
Luther balançou a cabeça. "E o que você ganha com isso?"
Danny sorriu. "O que eu ganho?"
Luther se pegou sorrindo também, sentindo que ambos agora estavam se sondando, mas se divertindo com aquilo. "Neste mundo, a única coisa de graça é o azar."
"Nora", disse Danny.
Luther voltou para perto do carro e pegou a garrafa de Danny. "O que tem ela?"
"Eu gostaria de saber como vão as coisas entre ela e meu irmão."
Luther bebeu mantendo os olhos em Danny e riu.
"O que é?", perguntou Danny.
"O cara está apaixonado pela namorada do irmão e me pergunta ‘o que é’", disse Luther rindo novamente.
Danny também riu. "Digamos que Nora e eu temos uma história."
"Isso não é novidade", disse Luther. "Só estive com vocês dois na mesma sala esta vez, mas até meu tio, que era cego, notaria isso."
"É tão óbvio assim?"
"Não podia ser mais óbvio. Não entendo por que o senhor Connor não nota. Mas quando se trata de Nora, ele deixa de ver um monte de coisas."
"É verdade."
"Por que você não pede ela em casamento? Ela iria aceitar na hora."
"Não, não iria. Pode acreditar."
"Aceita sim. Aquela sua esquiva? Ora, aquilo é amor."
Danny balançou a cabeça. "Você já viu alguma mulher agir logicamente quando se trata de amor?"
"Não."
"Pois então", disse Danny lançando um olhar à casa. "Não sei absolutamente nada sobre elas. Não saberia dizer o que elas estão pensando de um minuto a outro."
Luther sorriu e balançou a cabeça. "Acho que isso não o impede de levar sua vida numa boa."
Danny ergueu a garrafa. "Ainda sobraram dois dedos. Um último gole?"
"Não leve a mal se eu aceitar." Luther tomou um gole, devolveu a garrafa e ficou olhando Danny esvaziá-la de vez. "Vou ficar de olhos e ouvidos atentos. Que tal?"
"Ótimo. Se Eddie fizer alguma investida contra você, fale comigo."
Luther estendeu a mão. "Fechado."
Danny apertou-a. "Gostei de conhecer você, Luther."
"Eu também, Danny."
De volta ao edifício da Shawmut Avenue, Luther verificou, com todo o cuidado, se ainda havia goteiras, mas nada vazava do telhado, e ele não notou nenhuma umidade nas paredes. Para começar, retirou o gesso e viu que quase todas as madeiras que estavam por baixo podiam ser aproveitadas; algumas exigiriam um pouco mais que esperança e carinho, mas esperança e carinho teriam de bastar. O mesmo se podia dizer do piso e da escada. Normalmente, quando uma edificação está arruinada pela negligência, pelo fogo e pela água, a primeira coisa a fazer é se livrar de todo o material comprometido. Em vista, porém, dos parcos recursos, que os obrigavam à estratégia de pedir, tomar emprestado e surrupiar, a única solução, no caso, era aproveitar o que pudesse ser aproveitado, até mesmo os pregos. Ele e Clayton Tomes, o criado dos Wagenfeld, tinham o mesmo horário de trabalho nas mansões de South Boston, e os mesmos dias de folga também. Depois de um jantar com Yvette Giddreaux, Clayton, antes mesmo de se dar conta, foi incluído no projeto, e naquele fim de semana Luther finalmente contou com um pouco de ajuda. Eles passaram o dia carregando a madeira aproveitável e os acessórios de metal para o segundo andar, para que pudessem começar a trabalhar nas instalações elétricas e hidráulicas na semana seguinte.
Era um trabalho duro, que os cobria de poeira, suor e greda. Que os exauria com suas infinitas alavancas de improviso e suas madeiras a serem arrancadas na garra do martelo. O tipo do trabalho que faz os ombros se apertarem contra o pescoço, a cartilagem sob as rótulas dar a impressão de ser feita de sal, pedras quentes se enfiarem na parte mais baixa das costas, mordendo as bordas da espinha. O tipo do trabalho que faz um homem sentar-se no meio do assoalho poeirento, encostar a cabeça nos joelhos, murmurar "ufa!" e demorar-se com a cabeça abaixada e os olhos fechados.
Depois de semanas de quase ócio na casa dos Coughlin, porém, Luther não trocaria aquilo por nada. Aquele era trabalho para a mão, a mente e o músculo. Trabalho que deixava uma marca própria de quem o executou, mesmo depois de este ter partido.
A habilidade - dissera certa vez o tio Cornelius - era apenas uma palavra bonita para descrever o que acontece quando o trabalho se une ao amor.
"Merda", disse Clayton deitado de costas no corredor de entrada, olhando para o teto dois andares acima. "Você imagina que, se ela pretende pôr encanamento dentro da casa..."
"Ela pretende sim."
"... então só de canos de escoamento, Luther, só de tubos de escoamento... que vão ter que ir do porão ao terceiro andar, são quatro pavimentos, rapaz."
"E são tubos de cinco polegadas", disse Luther com uma risadinha. "De ferro fundido."
"E se tivermos de pôr mais desses tubos em cada andar, talvez dois saindo dos banheiros..." Os olhos de Clayton se arregalaram tanto que pareciam dois pires. "Luther, isso é uma loucura."
"É sim."
"Então por que você está rindo?"
"E por que você também está?", disse Luther.
"E que me diz de Danny?", perguntou Luther a Nora quando os dois andavam no Haymarket.
"Como assim?"
"Ele não parece se encaixar nessa família."
"Não sei se Aiden se encaixa em alguma coisa."
"Por que você às vezes o chama de Danny e outras de Aiden?"
Ela deu de ombros. "A coisa simplesmente aconteceu. Eu notei que você não o chama de senhor Danny."
"E daí?"
"Você chama Connor de ‘senhor’. Até o Joe você trata assim."
"Danny me pediu que não o chamasse de ‘senhor’, a menos que a gente esteja com outras pessoas."
"Vocês são amigos íntimos, não?"
Merda. Luther esperava não ter se traído. "Não me lembro de ter dito que somos amigos."
"Mas está na cara que você gosta dele."
"Ele é diferente. Acho que nunca encontrei um branco como ele. Mas também não sei se conheci uma mulher branca como você."
"Eu não sou branca, Luther. Eu sou irlandesa."
"É mesmo? Qual a cor de vocês?"
Ela sorriu. "Cinza batata."
Luther riu e apontou para si mesmo. "Pardo, da cor de lixa de madeira. Prazer em conhecê-la."
Nora lhe fez uma pequena mesura. "O prazer foi meu, senhor."
Depois de um daqueles lanches dominicais, McKenna insistiu em levar Luther para casa de carro, e o criado, enquanto vestia o casaco no vestíbulo, não teve tempo de inventar um pretexto para recusar.
"Está um frio horrível", disse McKenna, "e eu prometi a Mary Pat chegar em casa cedo." Ele se levantou da mesa e beijou a sra. Coughlin no rosto. "Você pode tirar meu casaco do cabide, Luther? Eis aí um bom rapaz."
Danny não estava presente àquela refeição. Luther olhou em volta e viu que ninguém estava prestando atenção.
"Pessoal, logo nos veremos."
"Boa noite, Eddie", disse Thomas Coughlin. "Boa noite, Luther."
"Boa noite, senhor", respondeu Luther.
Eddie seguiu pela East Broadway, dobrou à direita na West Broadway onde, mesmo numa fria noite de domingo, havia uma agitação e uma imprevisibilidade dignas de uma noite de sexta-feira em Greenwood. Jogos de dados a céu aberto, prostitutas debruçadas às janelas, música alta em todos os bares, tantos bares que nem se podia contar. Era difícil avançar, mesmo num carro grande e pesado.
"Você é de Ohio?", disse McKenna.
Luther sorriu. "Sim. O senhor chegou perto quando falou Kentucky. Eu pensei que o senhor ia acertar naquela noite, mas..."
"Ah, eu sabia", disse McKenna estalando os dedos. "Só que do outro lado do rio. De que cidade?"
O barulho da West Broadway fazia o carro vibrar, e suas luzes fundiam-se no para-brisa como sorvete. "Pertinho de Columbus, senhor."
"Já andou num carro de polícia antes?"
"Nunca, sor."
McKenna riu alto como se estivesse cuspindo pedras. "Ah, Luther, você pode achar difícil acreditar, mas antes de Tom Coughlin e eu nos tornarmos irmãos de distintivo, ficamos um bom tempo do lado errado da lei. Passeamos bastante de camburão, e muitas vezes dormimos na cadeia da sexta para o sábado, por causa das bebedeiras." Ele sacudiu a mão. "Assim são as coisas para os imigrantes, esse eterno semear, essa tentativa de imaginar os costumes das pessoas. Eu simplesmente achei que você tinha tomado parte nos mesmos rituais."
"Eu não sou imigrante, sor."
McKenna olhou para ele. "Como assim?"
"Eu nasci aqui, sor."
"O que quer dizer com isso?"
"Não quero dizer nada, sor. Só... que o senhor acabou de dizer que assim são as coisas com os imigrantes, e talvez sejam mesmo, mas eu estava dizendo que eu não sou..."
"O que é que talvez seja mesmo?"
"Senhor?"
"O que é que talvez seja mesmo?" McKenna sorriu para ele enquanto avançavam sob a luz de um poste.
"Sor, eu não sei o que o senhor..."
"Você disse."
"Sor?"
"Você disse. Você disse que cadeia é coisa para imigrantes."
"Não, sor, eu não disse."
McKenna puxou o lobo da orelha. "Então meu ouvido deve estar cheio de cera."
Luther não disse nada, simplesmente ficou olhando pelo para-brisa quando eles pararam num semáforo na esquina da D com a West Broadway.
"Você tem alguma coisa contra os imigrantes?", disse Eddie McKenna.
"Não, sor, não."
"Acha que ainda não conquistamos nosso direito de sentar à mesa?"
"Não."
"Imagina que temos de esperar que nossos netos o façam em nosso lugar, não é?"
"Sor, eu não quis dizer que..."
McKenna apontou um dedo para Luther e caiu na gargalhada. "Peguei você, Luther. Preguei uma bela peça, hein?" Ele bateu no joelho de Luther e soltou outra sonora gargalhada quando o sinal abriu. Ele seguiu pela Broadway.
"Essa foi boa, sor. O senhor me pegou."
"Claro que sim!", disse McKenna batendo no painel do carro. Eles começaram a cruzar a Broadway Bridge. "Você gosta de trabalhar para os Coughlin?"
"Gosto, sor, gosto."
"E para os Giddreaux?"
"Sor?"
"Os Giddreaux, filho. Você acha que não sei deles? Isaiah é uma grande celebridade negroide por estas bandas. Dizem que Du Bois confia muito nele. E que ele tem umas ideias de igualdade racial para nossa bela cidade. Que coisa, hein?"
"Sim, sor."
"Claro, é uma grande coisa mesmo." Ele sorriu o mais caloroso dos sorrisos. "Claro que tem gente por aí que diz que os Giddreaux não são amigos de seu povo. Que na verdade são inimigos. Que eles vão levar esse seu sonho de igualdade a um desfecho horrível e que o sangue da sua raça correrá nestas ruas. É isso que alguns diriam." Ele levou a mão ao peito. "Alguns. Não todos, não todos. É uma vergonha que haja tanta discórdia neste mundo, você não acha?"
"Sim, sor."
"Uma trágica vergonha." McKenna balançou a cabeça fazendo muxoxos enquanto entrava na Botolph Street. "E sua família?"
"Sor?"
McKenna ficou observando as portas das casas enquanto avançavam devagar pela rua. "Você deixou uma família em Canton?"
"Columbus, sor."
"Columbus, certo."
"Não, sor. Só tinha eu mesmo."
"E o que o trouxe a Boston, então?"
"É aquela ali."
"Ahn?"
"A casa dos Giddreaux, sor, o senhor acaba de passar por ela."
McKenna pisou no freio. "Está bem, então", disse ele. "Outra hora a gente conversa."
"Fico esperando, sor."
"Aqueça-se, Luther! Agasalhe-se bem!"
"Farei isso. Obrigado, sor." Luther saiu do carro, deu a volta, subiu na calçada ouvindo a janela do carro se abaixando.
"Você leu alguma coisa a respeito?", perguntou McKenna.
Luther se voltou. "A respeito de quê, sor?"
"Boston!", exclamou McKenna animado, com as sobrancelhas arqueadas.
"Não, senhor."
McKenna balançou a cabeça como se aquilo fizesse todo sentido para ele. "Mil e trezentos quilômetros."
"Sor?"
"A distância", disse McKenna, "entre Boston e Columbus." Ele deu um tapinha na porta do carro. "Boa noite para você, Luther."
"Boa noite, sor."
Luther ficou parado na calçada olhando McKenna se afastar. Ele levantou os braços e olhou as próprias mãos. Elas tremiam, mas nem tanto. Nada mal, considerando-se a situação.
17.
Danny encontrou-se com Steve Coyle para tomar um drinque na Taverna Warren no meio de uma tarde de domingo, um dia mais com cara de inverno que de outono. Steve fez um monte de piadas com a barba de Danny e lhe perguntou sobre seu caso, embora este tivesse de lhe repetir, pedindo desculpas, que não podia discutir uma investigação em andamento com um civil.
"Mas sou eu", disse Steve levantando a mão. "É só brincadeira, é só brincadeira. Eu entendo." Ele deu um sorriso ao mesmo tempo largo e fraco. "Eu entendo."
Então eles conversaram sobre casos antigos, sobre os velhos tempos. A cada copo que Danny tomava, Steve tomava três. Àquela altura Steve estava morando no West End, num porão sem janelas de uma casa que fora dividida em seis seções, todas com um forte cheiro de carvão.
"Ainda não tem encanamento interno", disse Steve. "Dá para acreditar? Só no barracão do quintal, como se estivéssemos em 1910. Como se estivéssemos no oeste de Massachusetts, ou se fôssemos pretos." Ele balançou a cabeça. "E se você não chegar em casa até as onze horas, a velhota tranca a porta e você fica do lado de fora. Que vida." Ele tornou a abrir seu grande sorriso para Danny e bebeu um pouco mais. "Mas, quando eu tiver meu carrinho, as coisas vão mudar. Pode acreditar."
O mais recente plano de Steve era montar um carrinho de frutas na frente do Faneuil Hall Marketplace. O fato de já haver uma dezena de carrinhos desse tipo, de propriedade de homens violentos, quando não absolutamente desonestos, parecia não desanimá-lo. O fato de os atacadistas do comércio de frutas se mostrarem tão desconfiados dos varejistas iniciantes que os faziam pagar mais caro nos primeiros seis meses, o que impedia o negócio de deslanchar, também era descartado por Steve como "boato". O fato de, há dois anos, a prefeitura ter parado de dar alvará de funcionamento para esse tipo de comércio naquela área tampouco o abalava. "Com todo aquele pessoal que eu conheço na Prefeitura", disse ele a Danny. "Diabo, eles vão é me pagar para eu começar meu comércio."
Danny não o lembrou de que, duas semanas antes, Steve lhe dissera ser ele, Danny, a única pessoa dos velhos tempos que respondia aos seus telefonemas. Danny simplesmente balançou a cabeça e deu um riso de encorajamento. O que mais podia fazer?
"Mais um?", disse Steve.
Danny olhou o relógio. Ele ia jantar com Nathan Bishop às sete. "Não posso."
Steve, que já fizera sinal ao barman, disfarçou o desânimo que lhe perpassou o olhar com seu sorriso exagerado e com um riso que mais parecia um latido. "Encerrado, Kevin."
O barman fechou a cara e tirou a mão da torneira do barril. "Você me deve um dólar e vinte centavos", disse ele a Coyle. "E acho bom você ter esse dinheiro agora, seu bêbado."
Steve bateu nos bolsos, mas Danny falou: "Eu tenho".
"Tem certeza?"
"Sim." Danny saiu do boxe e aproximou-se do balcão. "Ei, Kevin, tem um minutinho?"
O barman se aproximou como se estivesse fazendo um favor. "O que é?"
Danny pôs um dólar e quatro moedas de cinco centavos no balcão. "Para você."
"Deve ser meu aniversário."
Quando ele estendeu a mão para pegar o dinheiro, Danny agarrou-lhe o pulso e puxou-o.
"Sorria, senão eu o quebro."
"O quê?"
"Sorria como se estivéssemos conversando sobre o Sox, ou então eu quebro seu pulso, porra."
Kevin sorriu, o queixo travado, olhos arregalados.
"Se você chamar meu amigo de ‘bêbado’ mais uma vez, seu garçom de merda, quebro todos os seus dentes e os enfio no seu cu."
"Eu..."
Danny girou o punho do outro. "Não faça porra nenhuma. Só balance a cabeça."
Kevin mordeu o lábio inferior e balançou a cabeça quatro vezes.
"E a próxima rodada é por conta da casa", disse Danny largando-lhe o punho.
Eles foram andando pela Hanover à luz mortiça do anoitecer. Danny pensou em ir à sua pensão, pegar algumas peças de roupa mais quentes e levá-las para o apartamento onde morava com a identidade falsa. Steve disse que queria dar umas voltas por seu velho bairro. Eles chegaram à Prince Street no momento em que multidões se dirigiam à Salem Street. Quando chegaram à esquina do quarteirão onde ficava o edifício de Danny, viram um mar de gente rodeando um Hudson Super 6 preto, alguns homens e muitos meninos pulando e tornando a pular em cima do estribo e do capô.
"Que diabo é isso?", disse Steve.
"Agente Danny, agente Danny", gritava a sra. DiMassi acenando para ele freneticamente da escadaria à entrada do edifício. Danny abaixou a cabeça por um instante... semanas de trabalho naquele disfarce, e agora certamente tudo estava arruinado, porque a velha o reconhecera a vinte metros de distância, apesar da barba. Através do ajuntamento de pessoas, ele viu que o motorista do carro e o passageiro usavam chapéu de palha.
"Eles pegaram minha sobrinha", disse a sra. DiMassi quando ele e Steve se aproximaram. "Eles pegaram Arabella."
Danny, que olhava o carro de outro ângulo, viu Rayme Finch ao volante tocando a buzina e tentando fazer o carro avançar.
A multidão não queria deixar. Eles ainda não estavam atirando nada contra o carro, mas berravam, cerravam os punhos e praguejavam em altos brados em italiano. Danny viu dois membros do Mão Negra movendo-se junto à multidão.
"Ela está no carro?", perguntou Danny.
"Na parte de trás", exclamou a sra. DiMassi. "Eles a pegaram."
Danny apertou-lhe a mão para encorajá-la e começou a abrir caminho por entre a multidão. O olhar de Finch cruzou com o de Danny, e seus olhos se apertaram. Passados uns dez segundos, era evidente, pela sua fisionomia, que reconhecera Danny. Mas a expressão do rosto logo deu lugar a outra. Não a de medo da multidão, mas uma forte determinação, enquanto mantinha o carro engrenado e tentava avançar lentamente.
Alguém empurrou Danny, ele quase perdeu o equilíbrio e foi esbofeteado por umas mulheres de meia-idade de braços pesados. Um menino subia num poste com uma laranja na mão. Se ele tivesse boa pontaria, a situação logo iria engrossar.
Danny conseguiu chegar ao carro, e Finch abriu a janela. Arabella estava encolhida no banco de trás, olhos arregalados, dedos apertando o crucifixo, lábios mexendo-se numa oração.
"Tire-a daí", disse Danny.
"Disperse a multidão."
"Você quer provocar um tumulto?", perguntou Danny.
"Você quer ver alguns italianos mortos na rua?" Finch tocou a buzina com o punho. "Faça-os sair do caminho, Coughlin."
"Essa moça não tem nada a ver com os anarquistas", disse Danny.
"Ela foi vista com Federico Ficara."
Danny olhou para Arabella. Ela olhou para ele com olhos que nada viam, a não ser a crescente fúria da multidão. Danny recebeu uma cotovelada nas costas e foi empurrado brutalmente contra o carro.
"Steve!", chamou ele. "Você está aí atrás?"
"A uns três metros."
"Você consegue abrir espaço para mim?"
"Vou ter de usar minha bengala."
"Por mim, tudo bem." Danny se voltou, enfiou o rosto no vão da janela que Rayme Finch abrira para ele e disse: "Você a viu com Federico?".
"Sim."
"Quando?"
"Cerca de meia hora atrás. Perto da padaria."
"Foi você mesmo quem viu?"
"Não, foi outro agente. Federico conseguiu escapar, mas identificamos perfeitamente esta garota."
Danny recebeu uma cabeçada nas costas. Ele revidou e acertou um queixo.
Ele pôs os lábios no vão da janela. "Se você a levar e a trouxer de volta para o bairro, Finch, ela vai ser assassinada, está me ouvindo? Você vai matá-la. Deixe que eu resolvo isso." Outro corpo abalroou suas costas, e um homem subiu no capô do carro. "Mal consigo respirar aqui fora."
Finch disse: "Agora não podemos recuar".
Outro sujeito subiu no capô, e o carro começou a balançar.
"Finch! Você já fodeu com ela ao enfiá-la no carro. As pessoas vão pensar que ela é informante de qualquer jeito. Mas podemos resolver a situação, se você a deixar sair agora. Senão..." Outro corpo se chocou contra o de Danny. "Meu Deus, Finch! Abra esta porra desta porta."
"Temos de ter uma conversa."
"Ótimo. Vamos conversar. Abra a porta."
.
Finch lhe lançou um último olhar demorado para informá-lo de que o caso não estava encerrado, de modo nenhum, então estendeu a mão e abriu a porta traseira. Danny segurou a maçaneta e se voltou para a multidão. "Está havendo um engano. Ci è stato un errore. Para trás. Sostegno! Sostegno! Ela vai sair. Sta uscendo. Para trás. Sostegno!"
Para sua surpresa, a multidão recuou alguns passos. Ele abriu a porta do carro e puxou a jovem trêmula do banco. Várias pessoas gritaram hurras e bateram palmas, enquanto Danny puxava Arabella contra si e a conduzia até a calçada. As mãos da jovem estavam crispadas contra o peito, e Danny sentiu que havia uma coisa quadrada e dura sob seus braços. Ele a olhou nos olhos, mas viu apenas medo.
Danny apertou Arabella contra seu corpo e, enquanto andava, ia agradecendo às pessoas com gestos de cabeça. Ele lançou um último olhar a Finch e fez um gesto de cabeça, indicando a rua. Ouviram-se mais alguns aplausos, e a multidão começou a se afastar do carro. Finch fez o carro avançar alguns centímetros. A multidão ia recuando, e os pneus iam rodando. Então a primeira laranja o atingiu. A fruta estava congelada e parecia mais uma pedra. Depois foi uma maçã, em seguida uma batata, e choveram frutas e hortaliças sobre o carro. Ainda assim, ele conseguia avançar pela Salem Street. Alguns moleques corriam ao lado do carro gritando, mas eles sorriam, e as zombarias da multidão lhes pareciam festivas.
......
Quando Danny chegou à calçada, a senhora DiMassi tomou sua sobrinha dos braços dele e levou-a em direção à escadinha de acesso ao edifício. Danny viu as lanternas traseiras do carro de Finch chegarem à esquina. Steve Coyle ficou ao seu lado, limpando a cabeça com um lenço e contemplando a rua coberta de frutas semicongeladas.
"Isso pede uma bebida, hein?", disse ele passando seu cantil a Danny.
Danny tomou um gole, mas não disse nada. Ele olhou para Arabella Mosca, amparada pelos braços da tia. Ele se perguntou de que lado estava àquela altura.
"Precisamos ter uma conversa com ela, senhora DiMassi."
A sra. DiMassi olhou para ele.
"Agora", disse ele.
Arabella Mosca era uma mulher miúda, com grandes olhos amendoados e cabelos curtos muito escuros. Ela não falava uma palavra de inglês além de "hello", "good-bye" e "thank you". Ela se sentou no sofá da sala de estar, as mãos agarradas às da sra. DiMassi, e ...
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