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NARCISO E GOLDMUNDO / Hermann Hesse
NARCISO E GOLDMUNDO / Hermann Hesse

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NARCISO E GOLDMUNDO

 

Em frente das colunas geminadas do arco românico do mosteiro de Mariabronn, erguia-se um castanheiro, nobre árvore de tronco poderoso, solitário filho do Sul, trazido outrora de Roma por um peregrino; exposto ao vento o largo peito, debruçava fagueiro a copa sobre a estrada e, quando na Primavera tudo em redor vicejava e já as nogueiras da cerca se revestiam de folhagem avermelhada, ainda ele demorava a folheação; só mais tarde, no tempo das noites curtas, desabrochavam por entre tufos de folhagem os jactos bizarros das suas desmaiadas flores de cor branco-esverdeada, de tão acre, pungente e nostálgico aroma; em Outubro, após as colheitas da fruta e do vinho, deixava cair da copa amarelecida pelo vento outonal os frutos eriçados de espinhos, que nem todos os anos amadureciam e por cuja posse brigavam os rapazes do convento; o vice-prior Gregório, oriundo da Itália, assava-os à lareira da sua cela. Estranha e meiga, a bela árvore baloiçava ao vento a frondosa ramagem à entrada do mosteiro; hóspede delicado e um tanto friorento, proveniente de outras paragens, secretamente aparentado com as esbeltas colunas geminadas do portal e com os ornatos dos arcos das janelas, das cornijas e dos pilares, era amado pelos italianos e outros latinos e admirado, por exótico, pelos nativos.

Por debaixo da árvore estrangeira já muitas gerações de pupilos do convento haviam passado; sobraçando ardósias, tagarelando, rindo brincando, brigando, descalços ou calçados consoante a estação, de flor na boca, noz entre os dentes, ou de bola de neve na mão. Vinham sempre novas caras, de tantos em tantos anos eram outros, embora na maioria semelhantes: louros e de cabelos anelados. Uns ficavam, passavam a noviços, ascendiam a monges, recebiam a tonsura, usavam o burel e o esparto, liam os livros, instruíam os rapazes, envelheciam, morriam. Outros, findos os anos da escola, voltavam ao lar paterno, castelo nobre ou casa de mercador ou artífice, corriam mundo, seguiam seus ócios e negócios; voltavam acaso de visita ao convento, já homens, para trazer os filhos pequenos à escola dos padres, contemplavam por instantes o castanheiro com sorriso absorto e tornavam a desaparecer. Nas celas e nas salas do convento, entre os arcos redondos e maciços das janelas e as robustas colunas de pedra vermelha, vivia-se, ensinava-se, administrava-se, governava-se, cultivavam-se as artes e as ciências transmitidas de geração em geração, sagradas umas, profanas outras, umas claras, outras obscuras. Escreviam-se e comentavam-se livros, pensavam-se sistemas, coleccionavam-se obras dos amigos, pintavam-se iluminuras, acalentava-se a crença popular e zombava-se da crença popular. Devoção e erudição, candura e subtileza, sabedoria dos evangelhos e sabedoria dos gregos, magia branca e magia negra, tudo ali prosperava, para tudo ali havia lugar: para o retiro e para a penitência, para o convívio e para a vida lauta; da pessoa do abade e das correntes dominantes da época, dependia predominarem umas ou preponderarem outras. Umas vezes o mosteiro era célebre e visitado pelos seus exorcistas e esconjuradores, outras vezes pela sua excelente música, outras ainda por motivo de algum santo monge que operava curas e milagres, ou pela sopa de arenque e empadas de fígado de veado, cada coisa em sua época. E sempre, entre o bando de monges e escolares, de devotos e de ímpios, de abstinentes e de incontinentes, sempre entre os muitos que ali afluíam, ali viviam e morriam, havia um eleito, solitário e único, por todos amado ou temido, por quem por muito tempo ainda se ralava, quando já os seus contemporâneos tinham caído em esquecimento.

Também agora havia no mosteiro de Mariabronn dois seres singulares e solitários: um ancião e um jovem. Entre os muitos irmãos que enxameavam e enchiam os dormitórios, as igrejas e as salas de aula, havia dois que todos conheciam e todos observavam: o abade Daniel, o ancião; e o pupilo Narciso, o jovem, há pouco entrado no noviciado, mas por seus excepcionais dotes, contra o costume do convento, já incumbido do ensino, especialmente do grego. Ambos o abade e o noviço, tinham valimento na casa, eram admirados, invejados e até caluniados em segredo.

O abade era geralmente querido, não tinha inimigos, era todo bondade, candura e humildade. Só os eruditos do convento mostravam certa condescendência na devotada afeição, porque o abade Daniel seria um santo, mas um erudito não era. Possuía aquela simplicidade que é sabedoria; mas o seu latim era modesto e grego nem sequer sabia. Os poucos que ocasionalmente se sorriam da simpleza do abade, tanto mais se encantavam com Narciso, o menino prodígio, o belo adolescente de grego elegante, de impecável cavalheirismo, de olhar pensativo, sereno e penetrante, de lábios finos, belos e de severo recorte. Amavam-no os eruditos pelo seu maravilhoso domínio do grego. Estimavam-no quase todos por ser tão nobre e delicado; muitos enamoravam-se dele; alguns levavam-lhe a mal o calmo e sereno domínio e as maneiras tão palacianas.

Abade e noviço, cada um a seu modo, assumia o destino dos eleitos, dominando a seu modo, sofrendo a seu modo. Sentiam-se ambos mais aparentados e um para o outro atraídos do que para os restantes residentes do convento; não sabiam contudo encontrar-se, expandir-se ou reconfortar-se em presença um do outro. O abade tratava o jovem com o máximo cuidado, com a maior consideração, preocupava-se com a sua qualidade de irmão raro e frágil, talvez precocemente amadurecido, porventura exposto a perigos. O jovem recebia as ordens, os conselhos e os louvores do abade, em atitude de impecável correcção, sem nunca objectar, nunca se indispor; se era certo o juízo do abade, se o seu único pecado era a soberba, certo era também que sabia maravilhosamente ocultá-la. Não havia nada a dizer-lhe, era perfeito, era superior a todos. Todavia, poucos eram realmente seus amigos, com excepção dos eruditos; a sua distinção rodeava-o de uma atmosfera glacial.

- Narciso - disse o abade uma vez, depois de o ter ouvido em confissão - reconheço-me culpado de um juízo severo a teu respeito. Pareceste-me muitas vezes orgulhoso e talvez tenha sido injusto para contigo. Estás muito só, meu jovem irmão, vives muito isolado, tens admiradores, mas não tens amigos. Gostaria bem que tivesses às vezes qualquer deslize, como é fácil suceder na tua idade. Mas nunca tens deslizes. Preocupas-me um pouco, Narciso.

O jovem abriu os olhos escuros e ergueu-os para o ancião.

- Desejaria muito, reverendo padre, não vos dar motivo para cuidados. Pode muito bem ser que eu seja orgulhoso, reverendo padre.

Castigai-me por isso, peço-vos. Eu próprio tenho por vezes desejo de me castigar. Enviai-me para um ermitério, reverendo, ou deixai-me fazer serviços pesados.

- És demasiado jovem para isso, caro irmão - disse o abade -. Demais, tens em alto grau aptidão para as línguas e para o pensamento, meu filho. Seria desperdício dos dons de Deus, incumbir-te de serviços rudes. Virás provavelmente a ser um mestre e um erudito. Não é esse o teu desejo?

- Perdoai, reverendo, que não conheça bem os meus desejos; sempre as ciências me darão satisfação, não pode deixar de ser. Não creio, porém, que venham a ser o meu único domínio. Nem sempre os nossos desejos determinam a missão e o destino de cada um de nós, mas algo diferente, já predestinado.

O abade escutava-o com grave semblante. Havia, porém, um sorriso no velho rosto encanecido, quando lhe disse: - Se é certo o que me ensinou o convívio dos homens, todos propendemos um pouco, especialmente na juventude, a confundir a providência com os nossos desejos. Se conheces de antemão o que te está reservado, diz-me o que pensas vir a ser. Para que julgas estar predestinado?

Narciso semicerrou os olhos, que se sumiram sob os longos cílios negros.

Ficou calado.

- Fala, meu filho - incitou o abade depois de prolongado silêncio. Narciso, de olhos no chão e em voz baixa, disse então:

- Creio saber, reverendo padre, que o meu destino é, acima de tudo, a vida monacal. Serei, segundo creio, monge e sacerdote, talvez vice-prior ou abade. Não o creio porque o deseje. Não aspiro a cargos. Mas ser-me-ão impostos.

Ambos se calaram por longos momentos.

- Porque tens essa crença? - perguntou, hesitante, o abade -. Que faculdade há em ti, além da erudição, que fundamente essa crença?

- É a faculdade - disse Narciso lentamente - de pressentir o modo de ser e a vocação das pessoas, em mim como nos outros. Esta capacidade força-me a servir os outros dominando-os e governando-os. Se não tivesse nascido para a vida monacal viria a ser juiz ou estadista.

- Talvez - acenou o abade afirmativamente. -Já comprovaste a tua capacidade de conhecer os homens e os seus destinos?

- Já comprovei.

- Prontificas-te a citar-me um exemplo?

- Prontifico-me.

- Bem. Como não quero penetrar a ocultas nos segredos dos nossos irmãos, talvez me possas então dizer o que julgas saber de mim, do teu abade Daniel.

Narciso ergueu as pálpebras e, de olhos nos olhos, fitou o abade.

- É uma ordem vossa, reverendo abade?

- É uma ordem minha.

- Custa-me a falar, padre.

- Também a mim, jovem irmão, me custa obrigar-te a falar. Faço-o, no entanto. Fala!

Narciso inclinou a cabeça e, murmurando, disse baixinho:

- É pouco o que sei de vós, reverendo padre. Sei que sois um servo de Deus e que vos seria mais grato guardar cabras, ou tocar o sinozinho de um ermitério e ouvir os camponeses em confissão, do que governar um convento. Sei que tendes especial devoção pela sagrada Mãe de Deus e que a Ela dirigis a maior parte das vossas preces. Rogais nas vossas orações que a ciência do grego e as outras, cultivadas neste mosteiro, não promovam perigos e perturbações nas almas dos que vos estão confiados. Rogais por vezes que não vos falte a paciência para com o vice-prior Gregório. Rogais por uma morte serena. E sereis, creio, atendido e tereis uma morte suave.

Fez-se silêncio no pequeno locutório do abade. Por fim, falou o ancião:

- Devaneias e tens visões - disse afavelmente. - Mas as visões prazenteiras também podem enganar; não confies demasiado nelas, que também eu não confio. Saberás ver, irmão visionário, o que penso no meu íntimo a este respeito?

- Veja, reverendo padre, que são afáveis os vossos pensamentos. Pensais o seguinte: - este jovem discípulo está um pouco em perigo, tem visões, talvez tivesse meditado de mais. Podia impor-lhe uma penitência, não lhe faria mal algum. Mas a penitência a impor-lhe tomá-la-ei sobre mim. - É isto o que neste momento estais pensando.

O abade ergueu-se e indicou-lhe, sorrindo, que se podia retirar.

- Está bem - disse ele. - Não tomes demasiado a sério as visões. Admitamos que lisonjeaste um velho prometendo-lhe uma morte suave. Suponhamos que o velho ouviu por instantes com agrado essa promessa. E por agora nada mais. Rezarás um rosário, amanhã, após a missa matinal; deverás rezá-lo com humildade e fervor, sem distracção, e eu farei o mesmo. Vai agora, Narciso, já conversámos bastante.

De outra vez, o abade Daniel teve que intervir em questão surgida entre o mais novo dos padres docentes e Narciso, por não chegarem a acordo sobre um ponto do programa de estudos. Narciso insistia com grande empenho na introdução de certas alterações no ensino e justificava-as com convincentes argumentos. O padre Lourenço, porém, por espécie de ciúme, não queria concordar e, a cada nova controvérsia, seguiam-se dias de indisposto emudecimento e amuo, até que Narciso, forte nos seus argumentos, recomeçava a questão. Por fim, o padre Lourenço disse-lhe um tanto ofendido: - Bem, Narciso, vamos pôr termo à disputa. Tu sabes que a decisão me competiria a mim e não a ti; não és meu colega és meu assistente, e terias que te submeter. Mas, como dás tal importância ao caso e como eu, de facto, sou teu superior na ordem hierárquica, mas não em saber e talento, não quero tomar sobre mim a responsabilidade da decisão; vamos submetê-la ao nosso abade e ele resolverá.

Assim fizeram e o abade Daniel ouviu, com paciência e afabilidade, o debate dos dois eruditos acerca do ensino da gramática. Depois de ambos terem apresentado e justificado minuciosamente as suas opiniões, olhou jovial para eles, meneou a cabeça encanecida e disse: - Meus bons irmãos, não julgais decerto que percebo desses assuntos tanto como vós. É louvável que Narciso tome a escola tanto a peito e se esforce por melhorar o programa de estudos. Se, porém, o seu superior é de outra opinião, Narciso deverá calar-se e obedecer; todos os melhoramentos no ensino de nada valeriam se, por causa deles, a ordem e a disciplina fossem perturbadas nesta casa. Censuro Narciso por não ter sabido transigir. E faço votos por que a ambos, jovens estudiosos, nunca vos faltem superiores menos competentes do que vós. Não há nada melhor contra o orgulho. - E despediu-os com este gracejo; mas não se esqueceu, durante os dias seguintes, de observar se entre os dois se restabelecera o bom entendimento.

Sucedeu nessa altura que uma nova cara apareceu no convento, que tantas novas caras via aparecer e desaparecer, e esta não iria pertencer ao sol das que passam despercebidas e prontamente eram esquecidas. Tratava-se de um rapazinho que, já há tempo anunciado pelo pai, entrara em dia de primavera para a escola do convento. Quando chegaram, pai e filho prenderam os cavalos ao tronco do castanheiro e o porteiro adiantou-se-lhes ao encontro.

O rapaz ergueu os olhos para a árvore ainda invernalmente despida. - Nunca vi assim uma árvore - disse ele. - Que bela e estranha árvore! bem gostaria de saber como se chama!

O pai, um senhor de meia idade, de semblante preocupado e um tanto tristonho, não se importou com as palavras do rapaz. O porteiro, porém, a quem o rapazinho logo agradou, deu-lhe a informação desejada. Agradeceu-lhe cordialmente o rapaz e, apertando-lhe a mão, disse: - Chamo-me Goldmundo e venho aqui para a escola. - O homem sorriu-lhe cordialmente e, precedendo os recém-chegados, atravessou o portal e subiu a larga escada de pedra. Goldmundo penetrou no mosteiro sem receio, sentindo que encontrara naquele lugar dois seres de quem podia ser amigo: a árvore e o porteiro. Os recém-chegados foram primeiramente recebidos pelo padre superintendente da escola e, ao fim da tarde, também pelo abade. A ambos, o pai, funcionário imperial, apresentou Goldmundo, e foi convidado a aceitar a hospitalidade da casa por algum tempo. Só usou dela, contudo, durante uma noite, pois teria de fazer no dia seguinte a viagem de regresso. Deixou de presente no mosteiro um dos seus cavalos e a dádiva foi aceite. A conversa com os religiosos decorreu cerimoniosa e fria. Mas tanto o abade como o padre superintendente olhavam com agrado para Goldmundo, que se conservava em respeitoso silêncio; gostaram do lindo e meigo rapazinho. Sem pena deixaram partir o pai no dia seguinte, mas guardaram o filho com satisfação. Goldmundo foi apresentado aos mestres e deram-lhe uma cama no dormitório dos alunos. Despediu-se do pai respeitosamente e de semblante comovido. Ficou a segui-lo com o olhar até ele desaparecer através do estreito portal da cerca exterior do convento, para lá do celeiro e do moinho. Quando se voltou, caiu-lhe uma lágrima das pestanas loiras e compridas; mas já o porteiro o recebia com uma afectuosa pancadinha nas costas.

- Meu menino - disse-lhe para o consolar - não fiques triste. Quase todos têm de começo algumas saudades do pai, da mãe e dos irmãos. Mas daqui a pouco verás que também aqui se vive e não se vive mal.

- Obrigado, irmão porteiro - disse o rapaz. - Não tenho mãe nem irmãos, só tenho pai.

- Em compensação, encontrarás aqui companheiros, música, ciências e jogos que ainda não conheces, e mais coisas que logo verás. Se precisares de alguém com quem desabafes e que te seja afeiçoado, vem ter comigo.

Goldmundo sorriu-lhe. -Ai, agradeço-vos muito. E se quiserdes dar-me uma alegria, mostrai-me, por favor, logo que vos seja possível, onde está o cavalinho que meu pai aqui deixou. Gostava de o ir saudar e ver se também ele se sente bem aqui.

O porteiro levou-o logo e dirigiu-se para a cavalariça, que ficava perto do celeiro. Ali, na quente penumbra, cheirando a cavalos, a cevada e a estrume, encontrou Goldmundo em um dos compartimentos o cavalo baio que o tinha trazido. Abraçou o pescoço do bicho que já o reconhecera, encostou a face à testa larga e mosqueada de branco do animal, afagou-o carinhosamente e segredou-lhe ao ouvido: - Deus te salve Bless, meu bichinho, meu valente, então como estás, estás bem? Ainda gostas de mim? Tens bastante que comer? Pensas ainda também na nossa casa? Bless, cavalinho, meu amigo, que bom que tivesses ficado cá, hei-de vir ter contigo muitas vezes e tomarei conta de ti. - Tirou do forro da manga um pedaço de pão do pequeno-almoço, que tinha guardado, e deu-lho a comer aos bocadinhos. Depois despediu-se e atravessou, atrás do porteiro, a cerca vasta como a praça duma grande cidade e em parte plantada de tílias. Ao chegar à entrada interior, agradeceu ao irmão porteiro, estendeu-lhe a mão, mas reparou que já não sabia o caminho para a sala de aula que lhe fora indicado na véspera; esboçou um sorriso, depois riu-se, corou e pediu ao porteiro que o guiasse, o que ele fez de bom grado. Entrou na sala de aula, onde uma dúzia de rapazes estava sentada nos bancos; Narciso, o mestre auxiliar, voltou-se.

- Sou Goldmundo - disse ele - o novo aluno.

Narciso saudou-o laconicamente, sem sorrir, indicou-lhe um lugar no banco traseiro e continuou a prelecção.

Goldmundo sentou-se. Estava admirado de encontrar um professor tão jovem, poucos anos mais velho do que ele; estava surpreendido e profundamente regozijado por achar o jovem mestre tão belo, tão distinto, tão grave, e ao mesmo tempo tão cativante e digno de afeição. O porteiro tinha sido bom para ele, o abade tinha-o acolhido com muita afabilidade, ali perto na cavalariça tinha Bless, um pedaço da terra natal, e agora na sua frente aquele mestre surpreendentemente jovem, grave como um erudito, fidalgo como um príncipe, de voz dominada, nítida, clara e insinuante! Escutava, rendido, sem todavia entender bem o que se estava tratando. Tinha encontrado gente boa e amável, sentía-se pronto a afeiçoar-se e a esforçar-se por obter a amizade deles. De manhã, na cama, sentira-se opresso e, agora, cansado da longa viagem; à despedida do pai não pudera deixar de chorar. Mas estava tudo bem, estava contente. Olhava com insistência e repetidas vezes para o jovem mestre, encantado com aquela figura esbelta e tensa, de frios lampejos no olhar, de lábios severos modelando clara e firmemente as sílabas, de voz alada e infatigável.

Quando terminou a hora da lição e os alunos se levantaram com alarido, Goldmundo acordou sobressaltado e só então reparou, envergonhado, que tinha estado a dormir um bom pedaço. E não foi só ele que deu por isso, já os seus companheiros de carteira o tinham notado e transmitido aos outros a informação em voz baixa. Assim que o jovem mestre saiu da aula rodearam Goldmundo, empurrando-o e beliscando-o.

- Boa soneca, hein? - perguntou um com riso de troça.

- Lindo aluno! - zombava outro. - Há-de fazer-se dele uma boa luminária da igreja. Faz ó-ó na primeira lição!

- Levem a criança para a cama - propôs outro; e agarraram-no pelos braços e pelas pernas para o levarem no meio de grande chacota.

Sobressaltado, Goldmundo enfureceu-se; pôs-se aos murros à sua volta, tentou libertar-se, apanhou pancada, por fim deixaram-no cair e só um continuou a agarrar-lhe o pé. Desenvencilhou-se deste com um repelão, atirou-se ao primeiro que encontrou e, em breve, estava envolvido em impetuosa luta. O adversário era forte e todos assistiam à briga com curiosidade. Goldmundo, sem se deixar vencer, ia aplicando bons socos ao mais forte e já tinha amigos entre os companheiros, antes mesmo de saber o nome de nenhum. De súbito, porém, todos debandaram à pressa; mal tinham desaparecido, entrou o padre Martinho, o superintendente da escola, que deparou na sua frente com o rapazinho que os outros tinham deixado ficar para trás isolado. Olhou surpreendido para ele, notou-lhe o ar de embaraço nos olhos azuis e na cara afogueada e um pouco contusa.

- Que te aconteceu, meu rapaz? - perguntou ele. - Tu és o Goldmundo, não és? Fizeram-te algum mal aqueles patifes?

- Não, não - disse o rapaz. - Eu cheguei para eles.

- Para quem?

- Não sei. Não conheço ninguém ainda. Houve um que lutou comigo.

- Ah, sim? E foi ele que começou?

- Não sei. Não, julgo que fui eu que comecei. Arreliaram-me e eu zanguei-me.

- Estou vendo que começas bem, meu rapaz. Ouve e presta atenção: se mais alguma vez andares a brigar aqui na sala de aula, és castigado. E agora avia-te, anda, para chegares a tempo à ceia!

Sorriu, ao ver Goldmundo, ir-se embora a correr envergonhado, tentando reparar com os dedos o desalinho dos revoltos cabelos loiros.

Goldmundo também era de opinião que a sua primeira proeza no convento tinha sido desajuizada e tola; contrito procurou os companheiros e encontrou-os à mesa da ceia. Recebido com consideração e cordialidade, reconciliou-se cavalheirescamente com o adversário e sentiu-se desde então bem aceite naquela roda.

 

E todavia, embora se desse bem com todos, não foi tão depressa que encontrou o verdadeiro amigo. Entre os seus companheiros não havia nenhum por quem sentisse especial simpatia. Eles, por seu lado, admiraram-se de encontrar no desenvolto lutador, que tinham na conta de simpático brigão, um colega muito pacífico, que parecia esforçar-se por alcançar fama de aluno exemplar.

Duas pessoas havia no convento, para quem o coração de Goldmundo se sentia atraído, de quem gostava, que o ocupavam em pensamento, por quem tinha admiração, amor e veneração: o abade Daniel e o mestre auxiliar Narciso. O abade parecia-lhe um santo; a sua candura e bondade, a clareza e solicitude do seu olhar, o modo de comandar e governar como se estivesse cumprindo humildemente um serviço, a placidez e a bondade dos seus gestos, atraíam-no fortemente. Gostaria de ser o fâmulo daquele justo para estar sempre à sua volta obedecendo e servindo, para lhe oferecer em permanente holocausto todo o seu juvenil anseio de devoção e dedicação, e para aprender com ele a viver uma vida elevada e santa. Porque Goldmundo tencionava, não só fazer ali os seus estudos, mas também, se possível, ficar para sempre no convento votando a Deus a sua vida; era esta a sua vontade, era este o desejo e mandamento do pai e assim parecia ter sido determinado e exigido por Deus. Ninguém poderia notar no formoso e radioso adolescente, que, desde o nascimento, sobre ele pesava um fardo, uma secreta predestinação para a penitência e para o sacrifício. Nem o abade o notara, apesar do pai de Goldmundo ter feito certas alusões a este respeito, e explicitamente manifestado o desejo de que o filho para sempre ficasse no convento. Uma secreta mácula parecia estar ligada ao nascimento de Goldmundo, algo de que se fazia segredo, algo que parecia exigir expiação. Mas o pai pouco tinha agradado ao abade, que opusera cortês frieza às suas palavras e aos seus ares presumidos, não ligando grande importância a tais alusões.

O outro que despertara o afecto de Goldmundo via mais fundo e mais longe, pressentia algo, mas mantinha-se na defensiva. Narciso já tinha notado a bela ave rara que ali viera arribar. Ele, o solitário e altivo, logo pressentiu em Goldmundo o congénere, apesar de em tudo parecer o seu contrário. Narciso era magro e moreno, Goldmundo radioso e florescente. Narciso era um pensador e um analítico, Goldmundo parecia um sonhador e uma alma ingénua. Mas acima da oposição ligava-os um traço comum: eram ambos seres de escol, distintos dos outros por visíveis sinais e dons, tinham recebido do destino especial premunição.

Narciso interessava-se ardentemente por esta alma juvenil, cujo modo de ser e íntimo destino em breve reconheceu. Goldmundo admirava o seu belo mestre, arguto e superior. Mas Goldmundo era tímido; não conhecia outro modo de conquistar Narciso, senão esforçando-se até à exaustão, por ser aluno atento e dócil. E não só a timidez o fazia retrair-se. Também o inibia o pressentimento de que Narciso representava para ele um perigo. Não podia ter por ideal e modelo o bom e humilde abade e, ao mesmo tempo, o inteligente, erudito e arguto Narciso. Contudo aspirava, com toda a força de alma da sua juventude, a alcançar os dois inconciliáveis ideais, E isto, muitas vezes, o fazia sofrer. Frequentemente, nos primeiros meses, sentia-se no seu íntimo tão desorientado e perplexo, que incorria na forte tentação de fugir ou de expandir a sua angústia e furor no convívio com os companheiros. Quantas vezes irrompia nele, em geral tão cordato, tal raiva e furor por qualquer pequena partida ou garotíce dos companheiros, que só com o maior esforço conseguia refrear-se, voltar costas sem dizer palavra, de olhos fechados, e pálido como um morto. Ia nessas ocasiões visitar o cavalo Bless à cavalaria, encostava-lhe a cabeça ao pescoço, beijava-o e chorava junto dele. E foi aumentando pouco a pouco o seu sofrimento, a ponto de se tornar evidente. Emagreceram-lhe as faces, amorteceu-se o brilho do olhar e rareou o riso que todos amavam.

Ele próprio não sabia o que lhe estava acontecendo. Tinha sincero desejo de ser bom aluno, de entrar em breve no noviciado, de tornar-se monge piedoso e calmo. Acreditava que todas as suas forças e dons temdiam para este piedoso alvo, ignorava quaisquer outros impulsos. Como era triste e estranho verificar que este alvo belo e simples era tão difícil de alcançar! Com que desânimo e estranheza notava em si, por vezes, pendores e estados de espírito repreensíveis: distracção e aversão ao estudo, devaneios e fantasias, sonolência nas lições, rebelião e aversão ao professor de latim, irritabilidade e colérica impaciência para os colegas. Mais perplexo o tornava que o seu amor por Narciso se conciliasse tão mal com o amor pelo abade Daniel. Ao mesmo tempo, julgava pressentir com a mais íntima convicção que também Narciso o amava, que por ele se interessava e por ele esperava.

Muito mais do que supunha se ocupavam dele os pensamentos de Narciso. Desejaria ter por amigo aquele lindo e simpático rapazinho loiro, adivinhava nele o seu pólo oposto e complementar, queria aproximá-lo de si, orientá-lo, esclarecê-lo, fazê-lo eclodir. Contudo, mantinha-se reservado. Por muitos motivos, quase todos conscientes: peava-o e inibia-o sobremaneira o horror que lhe inspiravam aqueles não raros mestres e monges enamorados de alunos ou noviços. Quantas vezes ele próprio sentira com aversão, pousados sobre ele, os olhares cobiçosos de homens mais velhos, quantas vezes tinha oposto tácita resistência às suas amabilidades e mimos. Agora compreendia-os melhor; também para ele era uma tentação amar o lindo Goldmundo, provocar-lhe o riso gracioso, afagar com ternura o seu cabelo loiro. Mas nunca, jamais, o faria. Além disso, na sua qualidade de mestre auxiliar, não possuindo a autoridade e a categoria do cargo, habituara-se a especial prudência e autovigilância; habituara-se a estar diante dos que pouco menos idade tinham do que ele como se fosse vinte anos mais velho; habituara-se a interdizer-se severamente qualquer preferência por um aluno e a obrigar-se a praticar justiça e solicitude com os alunos que mais antipáticos lhe fossem. O seu serviço era o do espírito, a ele votara a sua vida austera, e só em segredo, nos momentos mais desprevenidos, se permitia fruir do orgulho de saber mais e ver mais fundo do que os outros. Não, por muito tentadora que fosse a amizade de Goldmundo, era para ele um perigo, e não devia deixar que ela atingisse o âmago da sua vida. O fulcro e o sentido da sua vida, ao serviço do espírito, ao serviço da palavra, era apenas a serena orientação dos discípulos - e não só dos discípulos - para altos fins espirituais, sem qualquer proveito pessoal.

Havia já mais de um ano que Goldmundo era escolar do convento; já centenas de vezes, sob as tílias da cerca e sob a copa do castanheiro jogara com os colegas os ludos tradicionais, às corridas, à bola, aos polícias e ladrões, às batalhas com bolas de neve; tinha chegado a Primavera, mas Goldmundo, cansado e adoentado, sentia frequentes dores de cabeça e dificilmente se mantinha acordado e atento nas aulas.

Foi então que certa vez, à noite, veio ter com ele o Adolfo, o rapaz com quem brigara e com quem começara naquele inverno a estudar Euclides. Depois da ceia, na hora do recreio, podiam reunir-se nos dormitórios, tagarelar nos aposentos dos alunos, e até mesmo passear na cerca exterior.

- Goldmundo - disse ele - vou falar-te de uma coisa divertida. Mas tu és um rapaz exemplar, tencionas decerto chegar a bispo, - dá-me primeiro a tua palavra de honra que serás camarada e não irás denunciar-me aos mestres.

Goldmundo deu a sua palavra, sem hesitação. Havia a honra do convento dos escolares que, por vezes, entravam em colisão, como bem sabia; mas as leis não escritas em toda a parte são mais fortes do que as leis escritas e nunca, enquanto aluno, se eximira às leis e códigos de honra dos escolares.

Adolfo, ralando, baixo, levou-o, atravessando o portal, para fora, para o meio das árvores. Estavam lá, segundo lhe explicou, meia dúzia de companheiros leais e ousados, em cujo número se contava, que, tendo herdado de gerações anteriores o costume de se lembrarem, de vez em quando, que não eram monges, saíam uma noite por outra do convento para irem à aldeia. Era uma aventura e uma diversão a que um rapaz às direitas se não eximia; regressavam de noite.

Mas nessa altura está fechado o portão - objectou Goldmundo.

Certamente, o portão estava fechado e isso era o engraçado da história. Mas eles sabiam regressar a ocultas, sem que ninguém desse por isso e não era já a primeira vez.

Goldmundo lembrou-se. Já ouvira falar em “ir à aldeia”, expressão sob a qual se entendia uma expedição nocturna dos pupilos em busca de clandestinos prazeres e aventuras; era proibida pelo regulamento do convento, sob pena de duros castigos. Ficou aterrado; “ir à aldeia” era pecado, era interdito. Mas compreendia perfeitamente que, justamente por isso, podia ser honroso, entre rapazes às direitas, atrever-se ao perigo e que, até certo ponto, era prova de confiança ser convidado para essa aventura.

Bem preferia dizer que não, e voltar a correr para a cama. Estava tão cansado e sentia-se tão mal, toda a tarde tivera dores de cabeça. Mas teve vergonha de Adolfo. E, quem sabe, talvez lá fora, na aventura, surgisse algo de belo e de novo, algo que fizesse esquecer a dor de cabeça, o torpor, e todas aquelas várias desgraças. Era uma incursão no mundo, clandestina e proibida, sem dúvida, não muito gloriosa; mas talvez fosse uma libertação. Ainda hesitou, enquanto Adolfo tentava convencê-lo; mas, de repente, riu-se e disse que sim.

Esgueirou-se com Adolfo sem que ninguém desse por isso, por entre as tílias da vasta cerca já escurecida, cujo portão exterior estava fechado àquela hora. O companheiro levou-o até ao moinho do convento onde, ao lusco-fusco e com o constante rumor das rodas, fácil era esgueirarem-se sem serem vistos nem ouvidos. Passando por uma janela alcançaram, já no escuro, um montão de pranchas de madeira, húmidas e escorregadias, de onde tiraram uma para atravessar o ribeiro e passar para o outro lado. Assim chegaram à estrada real, que alvejava pálida e desaparecida na floresta. Tudo aquilo era emocionante e misterioso, e agradou imenso a Goldmundo.

Na borda da floresta já estava um dos companheiros, o Conrado e, depois de esperarem um pouco, apareceu com o seu passo pesado Eberhardo, o grandalhão. Puseram-se os quatro em marcha através da floresta; por cima rumorejavam as aves nocturnas e um punhado de estrelas claras e húmidas mostrava-se por entre as nuvens serenas. Conrado tagarelava e contava anedotas, os outros às vezes riam; pairava, contudo, um frémito de nocturna solenidade e os corações batiam mais apressados.

Para lá da floresta, passada uma pequena hora, chegaram à aldeia. Tudo parecia adormecido, os telhados baixos alvejavam pálidos, estriados pelas nervuras sombrias dos vigamentos; em parte alguma se via luz. Adolfo ia adiante. Silenciosos e furtivos contornaram algumas casas, escalaram um tapume para entrar em um jardim, pisaram terra mole de canteiros, tropeçaram por uns degraus acima e pararam diante das paredes de uma casa. Adolfo bateu a um postigo, esperou, bateu depois outra vez; dentro ouviu-se barulho e brilhou uma luz em seguida; o postigo abriu-se e entraram uns atrás dos outros na cozinha de chaminé negra e de chão térreo. Poisada na lareira, uma pequena lamparina de azeite, com chama débil e bruxuleante a arder na torcida fina. Estava lá uma rapariga, moça de quinta, magra, que apertou a mão aos recém-chegados. Atrás dela, da treva, surgiu outra, uma criança de longas e escuras tranças. Adolfo trazia presentes; meia carcaça de pão branco do convento e qualquer coisa dentro de um saco de papel que Goldmundo supôs ser um pedaço de incenso roubado, cera de velas ou coisa semelhante. A rapariguínha das tranças saiu pela porta, tacteando na escuridão, demorou-se um pouco e voltou, trazendo uma caneca de barro cinzento com flor azul pintada, que ofereceu a Conrado. Este bebeu e passou em roda; todos beberam, era cidra forte.

Sentaram-se à claridade da minúscula chama da lamparina, as raparigas em pequenos escabelos hirtos, os estudantes em redor no chão. Falavam em voz baixa, entremeando com a cidra a conversa de que Adolfo e Conrado faziam as despesas. De vez em quando, um deles levantava-se, acariciava o cabelo ou a nuca da rapariga magra e segredava-lhe qualquer coisa ao ouvido; mas na mais pequena ninguém tocava. Goldmundo pensou que a mais velha era a criada e a garota bonita a filha da casa. Mas isso era-lhe indiferente, não era nada com ele, pois nunca mais voltaria. A evasão clandestina, o passeio nocturno pela floresta, tinham sido bons, inesperados, emocionantes, misteriosos e sem perigo. Eram, de facto, proibidos, mas a transgressão da ordem não pesava na consciência. Isto aqui> porém, esta visita nocturna as raparigas, era mais do que proibida, sentia ele, era um pecado. Para os outros talvez também fosse somente um pequeno desvio, para ele não. Ele, votado à vida monástica e à ascese, não podia permitir-se brincadeiras com raparigas. Não, nunca mais voltaria. O coração batia-lhe violenta e ansiosamente, à luz escassa da candeia, naquela cozinha modesta e desguarnecida.

Os companheiros davam-se ares de heróis diante das raparigas e faziam-se importantes citando frases latinas que misturavam na conversa. Pareciam estar nas boas graças da rapariga mais velha, de quem se aproximavam para fazer tímidas e desajeitadas carícias, de que a mais terna não ia além de um beijo a medo. Pareciam saber ao certo o que lhes era permitido. E como a conversa era a meia voz, a cena tornava-se, afinal, um tanto cómica; mas Goldmundo não dava por isso. Sentado no chão, imóvel, olhava hirto a chamazinha da candeia sem dar palavra. Por vezes, o seu olhar captava, em relance furtivo e um tanto cobiçoso, uma das carícias que os outros faziam. Por sua vontade, só teria olhado para a garota das tranças, mas, justamente por isso, proibia-se de o fazer. Sempre, porém, que a vontade cedia e o olhar se transviava para o rosto meigo e sereno da rapariguinha, encontrava infalivelmente os seus olhos escuros fixos nele, fitando-o enfeitiçados.

Decorreu talvez uma hora - nunca Goldmundo vivera uma tão longa hora - e, esgotadas as frases e galanterias dos estudantes, fez-se silêncio e certo acanhamento os invadiu; Eberhardo começou a bocejar. Então a rapariga aconselhou-os a partir. Todos se levantaram, todos lhe apertaram a mão, por último Goldmundo. Apertaram depois todos a mão à garota, Goldmundo por último. Conrado saiu adiante pela janela, seguido de Eberhardo e Adolfo. Quando Goldmundo também se preparava para descer, sentiu-se preso por mão pousada no ombro. Não podia parar; só quando chegou fora ao chão se voltou hesitante. A garota das tranças debruçou-se da janela.

- Goldmundo! - segredou ela. Ele parou.

- Voltas outra vez? - perguntou ela, a vozinha tímida quase um sopro.

Goldmundo abanou a cabeça. Ela estendeu as mãos, agarrou-lhe a cabeça, e ele sentiu as mãozinhas quentes na testa. Inclinou-se muito até os seus olhos escuros ficarem junto aos dele.

- Volta outra vez! - murmurou ela, e a boca roçou-o em beijo de criança.

Goldmundo correu ligeiro atrás dos outros, atravessou o jardin-zito, tropeçou nos canteiros, aspirou o cheiro da terra húmida e do estrume, arranhou a mão em uma roseira, trepou pelo tapume e trotou atrás dos outros para fora da aldeia, a caminho da floresta. - Nunca mais! - dizia-lhe imperiosa a vontade. - Amanhã de novo! - implorava soluçante o coração.

Não encontraram ninguém e, como pássaros nocturnos, regressaram sem incidente a Mariabronn, por cima do ribeiro, através do moinho e da cerca das tílias; entraram no convento e no dormitório por caminhos furtivos, por cima de alpendres e janelas divididas por colunelas.

Na manhã seguinte, Eberhardo, o grandalhão, teve de ser acordado a murro, tão pesado era o seu sono. Chegaram a tempo à missa matinal, ao pequeno-almoço e à sala de aulas. Mas Goldmundo tinha mau parecer, tão mau, que o padre Martinho lhe perguntou se estava doente. Adolfo lançou-lhe uma olhadela de prevenção e ele respondeu que não se sentia mal. Na aula de grego, contudo, por volta do meio-dia, Narciso não o perdeu de vista. Viu também que Goldmundo estava doente, mas calou-se e observou-o atentamente. Finda a lição, chamou-o. Para não atrair a atenção dos alunos, mandou-o com uma incumbência à biblioteca e seguiu-o.

- Goldmundo - disse - posso ajudar-te em alguma coisa? Vejo que estás aflito. Talvez estejas doente. Se assim for, mandamos-te para a cama com um caldo de dieta e um copo de vinho. Hoje não estás com cabeça para o grego.

Esperou muito pela resposta. Goldmundo olhava-o, pálido, de olhos desvairados, levantava e baixava a cabeça, tremiam-lhe os lábios, queria falar e não podia. De repente, deixou-se cair para o lado, encostou a cabeça a uma estante enquadrada entre duas pequenas cabeças de anjo e rompeu em tal pranto, que Narciso, constrangido, desviou por momentos o olhar, antes de agarrar e erguer do chão o rapaz debulhado em lágrimas.

- Bem, bem - disse no tom mais afectuoso que Goldmundo jamais lhe ouvira; - bem amice, chora à tua vontade, em breve te sentirás melhor. Assim mesmo, senta-te, não precisas de falar. Vejo que por hoje basta; provavelmente já durante a manhã tiveste dificuldade em aguentar-te a pé e não deixar transparecer o teu mal-estar, foste um valente. Chora, amigo, é o melhor que tens a fazer. Não é? Já acabou?

Já te pões de pé? Bem, vamos para a enfermaria, deitas-te e hoje à noite já vais sentir-te muito melhor. Vem daí comigo.

Levou-o à enfermaria, evitando passar pelos aposentos dos alunos; indicou-lhe uma das duas camas vazias e, quando Goldmundo começou docilmente a despir-se, foi dar parte da doença ao superintendente. Encomendou no refeitório, como prometera, um caldo e um copo de vinho para doentes; estes dois benefícios, tradicionais no convento, eram muito apreciados pela maioria dos doentes sem gravidade.

Deitado na cama, Goldmundo procurava orientar-se naquela confusão- Uma hora antes, talvez pudesse discernir o motivo que tão indizivelmente o extenuara, a mortal sobretensão da alma que lhe esvaziara a cabeça e lhe queimara os olhos. O esforço violento, a todo o momento renovado, a todo o momento frustrado, para esquecer a noite passada - ou melhor, não a noite, não a leviana mas aprazível expedição nocturna, não a evasão do convento, nem o passeio na floresta, nem a improvisada e escorregadia ponte sobre o ribeiro, nem o escalar de tapumes ou subir e descer por janelas e corredores; mas apenas aquele único instante, o instante junto da janela escura da cozinha, o bafo e as palavras da rapariguinha, o tocar das suas mãos e o beijo da sua boca.

- Mas agora, algo se acrescentara, novo sobressalto, nova emoção. Narciso interessara-se por ele, Narciso amava-o, cuidava dele - Narciso o altivo, o excelso, o subtil, de lábios finos e ligeiramente trocistas. E ele, Goldmundo, deixara-se sucumbir na sua presença, ficara envergonhado, balbuciante, e, por fim, debulhado em lágrimas. E em vez de o conquistar com nobres armas, o grego, a filosofia, o heroísmo espiritual e o honroso estoicismo, tinha sucumbido fraca e deploravel-mente. Nunca o perdoaria a si próprio, nunca poderia olhar de frente sem vergonha para Narciso.

O choro tinha-o aliviado da grande tensão, a solidão calma do quarto, a boa cama, faziam-lhe bem, e o desespero perdera a intensidade. Decorrida uma hora, entrou um irmão oblato, trazendo um caldo de farinha, um pedaço de pão branco e um pequeno copo de vinho tinto, que os alunos só costumavam beber em dia de festa; Goldmundo comeu e bebeu, comeu metade do prato de caldo, afastou-o para tornar a pensar, mas não foi por diante; pegou outra vez no prato e comeu mais umas colheres cheias. Quando, um pouco mais tarde, a porta se abriu e Narciso entrou silenciosamente, para saber do doente, estava ele a dormir, já com as faces novamente rosadas. Narciso contemplou-o longamente, com amor, com investigativa curiosidade, e até com um pouco de inveja. Viu que Goldmundo não estava doente, que no dia seguinte já não precisaria de lhe enviar mais vinho. Mas sabia que estava precisado dele e pudera prestar-lhe serviço. Hoje, Goldmundo tinha quebrado o encanto. Seriam amigos. Outra ocasião seria talvez ele que, fraco, precisaria de auxílio, de afecto. E daquele rapaz poderia aceitá-lo, se as coisas algum dia chegassem a esse ponto.

 

A ssim começou a surpreendente amizade entre Narciso e Goldmundo. Poucos a viam com bons olhos, e o mesmo parecia acontecer aos próprios interessados.

De início, foi Narciso, o pensador, quem mais sofreu. Tudo era espírito, para ele, mesmo o amor; não lhe era fácil abandonar-se irreflectidamente a uma inclinação. Nesta amizade, pertencia-lhe o espírito orientador e, por longo tempo, só ele reconheceu lucidamente qual o seu destino, alcance e valor. Por muito tempo solitário no seu amor, sabia que o amigo só lhe pertenceria verdadeiramente quando o levasse a conhecer-se. Goldmundo entregava-se fervorosa e ardentemente, irresponsável e gratuitamente, à nova vida; Narciso aceitava consciente e responsavelmente o alto destino que lhe incumbia.

Para Goldmundo, antes de mais, tratava-se de redenção e de cura. A sua juvenil exigência de afecto, poderosamente acordada pela visão e pelo beijo da garota das tranças, fora simultaneamente recalcada sem esperança. Sentia, no mais íntimo, que todos os sonhos acalentados até então, tudo em que acreditava, tudo para quanto se sentia chamado e destinado, periclitara perante aquele beijo e o olhar daqueles meigos olhos. Destinado por determinação paterna à vida monástica, aceite voluntariamente este destino, voltado com a ardência do fervor juvenil para o ideal piedoso e heróico-ascético, pressentira iniludivelmente, ao primeiro contacto fugaz com a vida, ao primeiro apelo do mundo dos sentidos, ao primeiro aceno da mulher, qual o seu inimigo e o seu espírito malévolo: a Mulher era o seu perigo. E agora o destino oferecia-lhe a salvação por esta amizade, vinda ao seu encontro na mais cruciante aflição, oferecendo ao seu anseio de amor um jardim florido, à sua veneração um novo altar. Aí era-lhe lícito amar, lícito dar-se sem pecado, dedicando o coração a um amigo admirado, mais velho e mais perspicaz, transmutando e espiritualizando as perigosas chamas dos sentidos em nobres flamas purificadoras.

Logo, porém, nos primeiros alvores da amizade, se defrontou com estranhas inibições, inesperadas e enigmáticas friezas, exigências assustadoras. Goldmundo estava longe de se considerar a réplica e o pólo oposto do amigo. Bastaria somente - pensava - o amor e a dádiva sincera para de dois fazer um, apagando diferenças e transpondo oposições. Mas, como Narciso era firme e acerbo, lúcido e inexorável! Parecia que a inocente dádiva e abertura de alma, o grato devaneio em comum, lhe era desconhecido e indesejado. Parecia ignorar ou não permitir caminhos sem saída, quiméricas fantasias. Quando Goldmundo lhe parecera doente, mostrara cuidado, é certo, e ajudava-o solícito em assuntos escolares e problemas de estudo, esclarecia-lhe passos difíceis de livros, abria-lhe perspectivas nos domínios da gramática, da lógica e da teologia; mas nunca se mostrava completamente satisfeito e em pleno acordo com o amigo, e, frequentemente, parecia sorrir-se dele e não o tomar a sério. Goldmundo, contudo, não considerava isto mero pedantismo ou simples maneira de dar-se ares importantes, de mais velho e de mais sabedor; sentia outra coisa por detrás, algo mais profundo e mais sério. O que era, não sabia, e assim esta amizade tornava-o por vezes triste e perplexo.

Narciso, com efeito, sabia bem o que se passava, não era cego à beleza florescente, à vitalidade natural e viçosa pujança do amigo. Não era um pedante mestre-escola que pretendesse alimentar a grego uma alma jovem e ardente ou responder com lógica a um amor ingénuo. Pelo contrário, amava demasiado aquele loiro adolescente e sentia o perigo, porque o amor para ele era estado natural, era milagre. Não lhe era lícito afeiçoar-se, não lhe era lícito satisfazer-se com a reconfortante contemplação daqueles belos olhos ou com a proximidade daquela loira e louçã frescura, não lhe era lícito deixar que aquele amor se demorasse no sensível, nem por instantes sequer. Se Goldmundo se julgava destinado à vida monacal e ascética, esforço de toda uma vida pela santidade - Narciso, realmente, a ela se votara. O amor só lhe era permitido sob uma única e suprema forma. Não acreditava, porém, na vocação de Goldmundo para o ascetismo. Ele que, melhor do que todos, sabia ler nos corações dos homens, lia, agora que amava, com redobrada clareza. Conhecia a índole de Goldmundo que, apesar de oposta à sua, compreendia intimamente pois era a outra, perdida metade do seu ser. Via-a sob o revestimento de uma dura carapaça de ilusões, de erros de educação, de mandamentos paternos, e pressentira há muito o segredo complicado daquela jovem vida. A sua missão era óbvia: desvendar esse segredo ao seu portador, líbertá-lo da couraça, restituí-lo à verdade original. Seria difícil e o mais difícil para ele era que talvez assim perdesse o amigo.

Aproximou-se com infinda lentidão do seu alvo. Passaram meses sem possível ataque sério, sem conversa profunda entre ambos. Distantes ainda apesar da amizade, comprida era a ponte lançada de permeio. Caminhavam lado a lado, um cego, outro vendo; mas o cego ignorava a cegueira que lhe facilitava o caminho.

Narciso abriu a primeira brecha tentando conhecer a emoção que abalara Goldmundo e o impelira para ele em hora de fraqueza. A investigação foi menos difícil do que pensara. Goldmundo sentia, há muito, necessidade de confessar a emoção daquela noite; mas, com excepção do abade, ninguém lhe merecia suficiente confiança e o abade não era o seu confessor. Quando Narciso, em hora propícia, lembrou ao amigo o início das relações de amizade entre ambos e tocou com brandura naquele segredo, Goldmundo disse sem rodeios: - é pena que não tenhas ainda recebido ordens e não possas ouvir-me em confissão; de bom grado me teria liberto desse caso pela confissão e por uma penitência expiatória. Mas ao meu confessor não podia contá-lo.

Narciso, cautelosa e ardilosamente, continuou a investigação; a pista fora encontrada. - Lembras-te - experimentou dizer - daquela manhã em que apareceste doente? Não a esqueceste decerto; data de então a nossa amizade. Muitas vezes tenho pensado nela. Talvez não tivesses reparado; mas estava, nessa ocasião, muito aflito.

- Tu, aflito! - exclamou descrente o amigo. - Quem estava aflito era eu! Era eu quem engolia em seco e não conseguia pronunciar palavra, até desatar a chorar como uma criança! Ui! ainda agora me envergonho; julguei que nunca mais seria capaz de aparecer à tua frente; que vergonha teres-me visto tão lamentavelmente fraco!

Narciso avançou tenteando.

- Compreendo que fosse desagradável. Um rapaz tão forte e corajoso como tu, a chorar diante de um desconhecido, de um estranho, para mais teu professor, não era na verdade próprio de ti. Seja; nessa altura, porém, julgava-te doente. Com arrepios de febre até Aristóteles se comportaria insolitamente. Mas, tu não estavas doente, afinal! Não tinhas febre! Por isso te envergonhavas. Ninguém se envergonha de ser prostrado pela febre, não é verdade? Envergonhavas-te, porque estavas dominado por outra coisa, porque outra coisa te subjugara. Tinha acontecido algo de especial?

Goldmundo hesitou e vagarosamente disse: - Sim, tinha acontecido algo de especial. Suponhamos que és o meu confessor; algum dia tinha de o confessar.

De cabeça baixa, contou ao amigo a história daquela noite.

Narciso, sorrindo, disse-lhe: - Na verdade, “ir à aldeia” é, de facto, proibido. Mas quantas vezes fazemos coisas proibidas e ficamo-nos a rir, confessamo-las e ficam arrumadas, deixam de ter que ver connosco. Porque não havias de cometer uma pequena leviandade como quase todos os estudantes? Era assim tão grave?

Goldmundo não se conteve e explodiu indignado: - Falas realmente como um mestre! Sabes muito bem do que se trata! É claro que não vejo grande pecado em zombar do regulamento ou tomar parte em pândegas de estudantes, embora não pertençam propriamente aos exercícios preparatórios da vida monacal.

- Alto lá - disse Narciso severamente. - Não sabes, amigo, que a muitos santos padres foi necessário justamente essa preparação? Não sabes que uma das mais curtas vias para a santidade é a que passa pela libertinagem?

- Ai, não me interrompas - atalhou Goldmundo. - Queria eu dizer, que não era a ligeira desobediência que me causava remorsos. Era outra coisa. Era a rapariga. Foi um sentimento indescritível. Se cedesse à tentação, se por um instante apenas tivesse estendido a mão para lhe tocar nunca mais poderia voltar atrás, o pecado tragar-me-ia com goela infernal e não mais me libertaria. Seria o fim de todos os belos sonhos, de toda a virtude, de todo o amor a Deus, ao Bem.

Narciso, pensativo, acenou afirmativamente com a cabeça.

- O amor a Deus - disse pausadamente e procurando as palavras - nem sempre coincide com o amor à virtude. Quem dera que fosse assim tão simples! O que é bem sabemos nós, está nos mandamentos. Mas Deus não está só nos mandamentos que são dele uma mínima parte. Podes estar de acordo com os mandamentos e muito longe de Deus.

- Então não me compreendes! - queixou-se Goldmundo.

- Certamente que te compreendo. Sentes na mulher, no sexo, a súmula de tudo a que chamas mundo e pecado. Os outros pecados, parece-te, não serias capaz de os cometer ou se os cometesses não te esmagavam, seriam fáceis de confessar e remediar. Só esse, não.

- É isso mesmo.

- Vês como te compreendo? E não estás tão fora da razão como isso, a história de Eva e da serpente não é ociosa fábula. Contudo não tens razão, meu caro. Terias razão, se fosses o abade Daniel, ou o teu santo patrono, S. Crisóstomo, se fosses bispo ou sacerdote, ou um mero e simples monge. Mas não és. És um estudante e, mesmo que desejes ficar para sempre no convento ou que teu pai o deseje, certo é que ainda não pronunciaste votos, não recebeste ainda ordens. Se hoje ou amanhã fosses seduzido por uma linda rapariga e cedesses à tentação, não quebrarias juramento algum, não quebrarias nenhum voto.

- Nenhum voto escrito! - exclamou Goldmundo grandemente exaltado. - Mas quebraria um não escrito, o mais sagrado para mim. Então não vês que o lícito para os outros, não o é para mim? Tu próprio não recebeste ainda ordens, não fizeste voto algum e, contudo, nunca te permitirias tocar em uma mulher. Ou estarei enganado? Não serás tu assim? Não serás quem eu julgo? Não cumprirás já há muito, no teu íntimo, o juramento que, perante os superiores e com palavras ainda não fizeste? Não te sentirás sujeito a ele para sempre? Não és igual a mim?

- Não, Goldmundo, não sou igual a ti, pelo menos como julgas; cumpro, é certo, um voto tácito, tens razão nesse ponto. Mas, semelhante a ti não sou de modo algum. Digo-te hoje estas palavras, em que hás-de vir a pensar um dia. Digo-te mais: a nossa amizade não tem mesmo outro fito nem outro sentido, que não seja mostrar-te quão completamente diferentes somos um do outro.

Goldmundo estacou atónito. Narciso falara e com olhar que não admitia réplica. Calou-se. Mas, porque teria ele dito aquilo? Seria o voto informulado de Narciso mais sagrado do que o dele? Não o tomaria a sério ou considerá-lo-ia uma criança? Recomeçavam as perplexidades e as tristezas daquela estranha amizade.

Narciso não tinha já dúvidas quanto ao segredo de Goldmundo. Eva, o arquétipo materno, estava por detrás. Mas em adolescente tão belo, tão saudável, tão florescente, como era possível que o despertar do sexo encontrasse tão exasperada hostilidade? Algum demónio estivera em acção, algum secreto inimigo conseguira dividir aquela criatura e incompatibilizá-la com os seus instintos ancestrais. Havia que encontrar esse demónio, exorcizá-lo, revelá-lo, só assim poderia ser vencido.

Entretanto, Goldmundo via-se cada vez mais evitado e abandonado pelos colegas ou, melhor, eram eles que se sentiam abandonados e, de certo modo, atraiçoados. Ninguém via com bons olhos a sua amizade com Narciso. Os malévolos difamavam-na, especialmente os que já tinham sentido atracção por um ou por outro. Mas também os outros, que evidentemente reconheciam não haver azo a suspeita, abanavam a cabeça. Ninguém via com satisfação a aliança daqueles dois entes. Pela sua reunião tinham-se separado arrogantemente dos outros, segundo parecia, como aristocratas, para quem os outros não estavam à altura, o que não era solidário, nem conventual, nem cristão.

Algo do caso chegou aos ouvidos do abade Daniel, atoardas, queixas e calúnias. Presenciara, em mais de quarenta anos de convento, muitas amizades de adolescentes; pertenciam ao quadro monacal, eram um gracioso complemento, por vezes um prazer, outras vezes um perigo. Mantinha reserva, sem se intrometer, mas de olhos atentos. Amizade de tal modo arrebatada e exclusiva era rara, sem dúvida, e não isenta de perigo; mas como nem por instantes duvidou da sua pureza, deixou o caso seguir o seu curso. Se Narciso não estivesse em posição excepcional entre mestres e alunos, o abade não teria hesitado em interpor entre ambos certas prescrições separativas. Não era bom que Goldmundo se abstivesse do convívio dos colegas e só privasse intimamente com um mais velho e já professor. Mas dever-se-ia interromper Narciso na sua carreira predilecta, destituí-lo da actividade pedagógica, o excepcional e talentoso Narciso, por todos os mestres considerado como igual, superior até, em saber e inteligência? Se Narciso não tivesse dado boas provas pedagógicas, se a amizade o tivesse induzido em negligência e parcialidade, tê-lo-ia sem mais destituído do cargo. Mas nada havia contra ele, senão boatos, invejosa desconfiança dos outros. Além disso, o abade conhecia os singulares dotes de Narciso, o seu notável, penetrante, talvez até presunçoso conhecimento dos homens. Não que os apreciasse em demasia, outros dons de Narciso lhe seriam mais gratos; mas tinha a certeza que ele descobrira no aluno Goldmundo algo de especial e que o conhecia melhor do que ele ou qualquer outro no convento. Ele, o abade, só notara em Goldmundo, além da graciosidade cativante da maneira de ser” o quase prematuro zelo que, simples aluno ainda e hóspede da casa, o esforçara a sentir-se parte integrante do convento, membro da ordem e confrade. Julgava não ter de recear que Narciso favorecesse e fomentasse tão comovente e imaturo afã. Temia, sim, que contagiasse ao amigo certo pedantismo intelectual e erudita arrogância. Mas, naquele caso, parecia o perigo não ser grande, podia tentar-se a sorte. Quando pensava que seria mais simples, pacífico e cómodo, dirigir homens medíocres do que superdotados, suspirava e sorria-se. Não, não queria deixar-se contagiar pela desconfiança, não queria ser ingrato por lhe terem confiado dois seres excepcionais.

Narciso reflectia muito sobre o amigo. A especial aptidão para ver e reconhecer intuitivamente o destino dos homens, há muito tempo o elucidara sobre Goldmundo. A vivacidade e radiância daquele adolescente falavam claro: eram sinal de natureza forte e pródiga, de dons anímicos e sensíveis, de índole artística talvez, mas com certeza provida de intensa afectividade cuja ventura e destino consistia no arroubo e dádiva fervorosa. Porque estaria então esta índole de amoroso, possuidora de rica e requintada sensibilidade, que tão profundamente amava o perfume de uma flor, o alvorecer, um cavalo, um voo de ave, uma melodia, porque estaria dominada pelo ideal de vida ascética e monacal? Narciso pensou muito sobre o caso. Sabia que o pai de Goldmundo favorecera aquela obstinação. Mas, tê-la-ia provocado? Com que filtro enfeitiçara o filho para ele acreditar em tal vocação e dever? Que espécie de homem seria aquele pai? Embora muitas vezes dirigisse intencionalmente a comversa para esse rumo e Goldmundo não se furtasse a falar do pai, Narciso não conseguia imaginá-lo nem vê-lo. Não era estranho e suspeito? Quando Goldmundo falava de uma truta que pescara em criança, quando descrevia uma borboleta, imitava um grito de ave ou contava qualquer coisa acerca de um camarada, de um cão ou de um mendigo, surgiam imagens, via-se o que estava evocando. Quando falava do pai, não se via ninguém. Não, se aquele pai fosse realmente personagem importante na vida de Goldmundo, dominadora e poderosa, ele saberia descrevê-lo de outro modo, poderia caracterizá-lo por imagens. Narciso não tinha boa impressão daquele pai, não lhe agradava nada. Era um ídolo vazio. Mas donde lhe viria aquele poder? Como pudera povoar a alma de Goldmundo de sonhos incompatíveis e estranhos ao seu âmago mais profundo?

Também Goldmundo cismava. Por muito segura que julgasse a cordial afeição do amigo, tinha, volta e meia, a penosa sensação de não ser tomado a sério, de ser tratado como criança. E que significaria a repetida alusão à dissemelhança de ambos?

Estas lucubrações não preenchiam, no entanto, os dias de Goldmundo. Não conseguia entregar-se a especulações por muito tempo, Outras coisas havia para fazer. Durante o longo dia visitava algumas vezes o irmão porteiro com quem estava nas melhores relações. Pedinchava e manhosamente obtinha, de vez em quando, uma ou duas horas de licença para montar o cavalo Bless; era igualmente benquisto da meia dúzia de habitantes das imediações do convento, especialmente do moleiro; muitas vezes se emboscava com o criado deste à espreita de uma lontra, ou faziam filhos da farinha fina dos prelados de que Goldmundo distinguia a olhos fechados as várias espécies, só pelo cheiro. Por muito que privasse com Narciso, ainda lhe sobejavam horas para se dedicar a antigos hábitos e distracções. Os serviços religiosos também eram para ele, a maior parte das vezes, um prazer; cantava gostosamente no coro dos alunos, rezava gostosamente um rosário diante do altar da sua devoção, ouvia o latim belo e solene da missa, via cintilar nos fumos do incenso o ouro dos objectos do culto e adornos, via as figuras serenas e venerandas dos santos sobre os pedestais, os evangelistas com os animais, Tiago com o chapéu e o saco de peregrino.

Sentia-se atraído por aquelas imagens, era-lhe grato pensar que essas figuras de pedra e de madeira estavam em misteriosa relação com a sua pessoa, como se fossem imortais e omniscientes patronos, protectores e guias da sua vida. Sentia igualmente amor e secreta e ditosa relação com as colunas e capitéis das janelas e portas, os ornatos dos altares, os bem perfilados astrágalos e grinaldas, as flores e folhas prolíferas e luxuriantes, que surgiam da pedra das colunas e se enleavam tão expressiva e persuasivamente. Parecia-lhe mistério precioso e profundo, haver, além da natureza, da sua flora e fauna, aquela segunda natureza silenciosa, obra humana, aqueles homens, animais e plantas de pedra e de madeira. Não raro passava uma hora livre a copiar aquelas figuras, cabeças de animais e tufos de folhas; e tentava também desenhar, a partir do natural, flores, cavalos e rostos.

Os cânticos sagrados elevavam-no, especialmente os hinos à Virgem. Gostava do andamento firme e severo, das sempre recorrentes súplicas e louvores; ora acompanhava com unção o significado venerando dos versos, ora, esquecendo o sentido, se deleitava com os ritmos solenes, deixando-se repassar dos sons baixos e sustentados, da plenitude sonora dos vogais e das piedosas repetições. Em seu foro íntimo, não gostava nem da erudição, nem da gramática, nem da lógica, não obstante a beleza que lhes era própria; preferia o mundo de imagens e sons da liturgia.

De quando em quando, interrompia passageiramente o afastamento sobrevindo entre ele e os colegas. Com o andar do tempo, tornava-se maçador e aborrecido sentir-se rodeado de rebarbativa frieza. Uma vez por outra, fazia rir um sorumbático colega de carteira ou entabulava conversa com um taciturno vizinho de cama; amável e aliciante, reconquistava, por momentos, um olhar, um rosto, um coração. Estas aproximações por duas vezes surtiram um efeito contrário ao seu intuito: renovaram-lhe o convite para “ir à aldeia”. Recuou, estremecendo assustado. Não, não voltaria à aldeia e já quase conseguira esquecer a garota das tranças, não mais se lembrar ou, pelo menos, quase nunca.

 

Muito tempo passara e as tentativas de Narciso não alcançaram desvendar o segredo de Goldmundo. Durante longo tempo se esforçara, com aparente insucesso, por acordá-lo e ensinar-lhe a linguagem própria à revelação do segredo.

O que o amigo lhe contara da família e das suas origens, não suscitara qualquer imagem. Um pai venerado, sombra sem contornos; e a lenda da mãe há muito desaparecida ou morta, quase só pálido nome. A pouco e pouco, Narciso, versado na leitura de almas, reconheceu que o amigo pertencia ao número das pessoas olvidadas de uma parte da sua vida passada, sob a pressão de qualquer imposição ou feitiço. Reconhecia que o simples interrogatório ou ensinamento seria vão neste caso. Reconhecia também que acreditara demasiado no poder da razão e que falara muito e inutilmente.

Não fora, porém, inútil o afecto dedicado ao amigo e o hábito de constante convivência. Apesar da profunda divergência dos respectivos caracteres, muito tinham aprendido um do outro; ao lado da linguagem da razão surgira entre eles a linguagem da alma e dos símbolos, assim como entre duas moradas pode haver, além da via por onde passam veículos e cavaleiros, diversos atalhos, furtivas veredas e carreirinhos: pequenos caminhos de crianças, sendas de namorados e quase imperceptíveis trilhos de gatos e cães. Assim se insinuou gradualmente, por vias mágicas, a imaginação animada de Goldmundo no pensamento e linguagem do amigo que, por seu lado, aprendeu a compreender e intuir sem palavras a maneira de ser e de sentir de Goldmundo. Amadureciam lentamente, à luz do amor, novos vínculos de alma para alma, só depois vinham as palavras. Assim, em dia feriado, inesperadamente se proporcionou uma conversa entre os dois amigos quando estavam na biblioteca - conversa que os situou no fulcro daquela amizade e sobre ela lançou nova luz.

Tinham falado de astrologia, ciência não praticada nem permitida no convento, e Narciso dissera que a astrologia era a tentativa de ordenação e sistematização das muitas e diversas espécies de pessoas, destinos e vocações. Nessa altura, Goldmundo interveio: “Estás sempre a falar das diferenças - acabei por reconhecer que é essa a tua mais singular faculdade. Quando falas, por exemplo, da grande diferença que há entre mim e ti, parece-me sempre que ela consiste somente na tua estranha mania de encontrar diferenças!”

Narciso - É certo, acertaste no ponto crucial! A ti não importam as diferenças, para mim, são o mais importante. Sou, por índole, um estudioso, o meu destino é a ciência. E a ciência, para citar as tuas palavras, é justamente a mania de encontrar diferenças. Não se lhe poderia indicar melhor a essência. Para nós, devotos do saber, só importa verificar diferenças, o saber é a arte de distinguir. Encontrar, por exemplo, em cada pessoa, as características que a distinguem das outras, é o que se chama conhecê-la.

Goldmundo - Está bem. Alguém tem sapatos de camponês e é camponês, outrem tem coroa e é rei. São diferenças, sem dúvida. Mas, também uma criança, sem ciência alguma, as vê.

Narciso - Quando, porém, o camponês e o rei vestem trajos idênticos, já a criança os não distinguirá um do outro.

Goldmundo - O sábio também não.

Narciso - Talvez. Admitamos que não é mais perspicaz do que a criança, mas é mais paciente e não repara só nos sinais aparentes que saltam à vista.

Goldmundo - O mesmo fará qualquer criança inteligente. Reconhecerá o rei pelo olhar ou pelo porte. Em suma; vós, os sábios, sois orgulhosos e tende-nos a todos nós por parvos. Pode-se ser muito inteligente sem ciência alguma.

Narciso - Folgo muito em que o reconheças. Assim, também em breve reconhecerás que não me refiro à inteligência, quando falo da diferença entre mim e ti. Não digo que és mais esperto ou mais tolo, melhor ou pior.

Goldmundo - Compreendo. Tu, porém, não falas só de diferenças de carácter, falas, muitas vezes, de diferenças de destinos. Porque haverias tu, por exemplo, de ter um destino diferente do meu? És cristão como eu, decidiste como eu seguir a vida monacal, és como eu filho do nosso Pai que está no Céu. O alvo de ambos é o mesmo: a eterna bem-aventurança. O nosso destino o mesmo: o regresso a Deus.

Narciso - Muito bem. Pelo dogma e pelo catecismo, uma pessoa é, com efeito, igual a outra, mas na vida não. A mim parece-me que o discípulo dilecto do Redentor, que repousava encostado ao seu peito e o outro apóstolo que o traiu, não tiveram o mesmo destino, pois não?

Goldmundo - És um sofista, Narciso! Mas por este caminho não nos aproximamos.

Narciso - Por caminho algum nos aproximamos.

Goldmundo - Não digas isso!

Narciso - Digo-o a sério. A nossa missão não é aproximarmo-nos; o sol não se acerca da lua nem a terra do mar. Nós, querido amigo, somos sol e lua, somos mar e terra. O nosso alvo não é transfundirmo-nos um ao outro, mas conhecermo-nos e aprender a ver e respeitar um no outro aquilo que ele é: a sua réplica e complemento.

Goldmundo, impressionado, ficou cabisbaixo e de semblante entristecido.

Por fim, disse - É por isso que tanta vez não tomas a sério os meus pensamentos?

Narciso demorou um pouco a resposta. Depois, com voz clara e dura - É por isso. Tens que te habituar, querido Goldmundo, a que só a ti próprio eu tome a sério. Acredita que tomo a sério cada inflexão da tua voz, cada gesto teu, cada sorriso teu. Mas tomo menos a sério os teus pensamentos. Tomo a sério em ti tudo o que é essencial e necessário. Porque queres justamente que conceda especial consideração aos teus pensamentos, quando tens tantos outros dons?

Goldmundo sorriu com amargura - Eu bem dizia, que me consideras sempre criança!

Narciso manteve-se firme - Considero infantis parte dos teus pensamentos. Recordas-te de há pouco dizermos que uma criança esperta não é mais tola do que um sábio? Mas se a criança quiser dar a sua opinião em assuntos de ciência, não pode ser tomada a sério pelo sábio.

Goldmundo exclamou veemente - Mesmo quando se não trata de ciência te ris de mim. Como se, por exemplo, a minha devoção, os meus esforços para progredir nos estudos e o meu desejo de vir a ser monge fossem mera puerilidade!

Narciso olhou-o com ar grave - Tomo-te a sério quando és Goldmundo, mas nem sempre és Goldmundo. Só desejo que te tornes Goldmundo dos pés à cabeça. Não és um erudito nem um monge - um erudito ou um monge fazem-se de bem pior massa. Julgas que és, a meus olhos, demasiado pouco erudito, pouco bom lógico, ou pouco devoto. Mas não é nada disso; para mim és ainda demasiado pouco tu próprio.

Se Goldmundo, depois desta conversa, se retirou sucumbido e até magoado, o certo é que, poucos dias volvidos, foi ele quem mostrou empenho em continuá-la. Dessa vez, Narciso conseguiu dar-lhe imagens mais admissíveis das diferenças dos respectivos caracteres.

Narciso acalorara-se a falar, sentira que Goldmundo recebia naquele dia mais aquiescentemente e de melhor vontade as suas palavras, que alcançara ascendente sobre ele. Deixou-se tentar pelo êxito a dizer mais do que pretendera, deixou-se arrebatar pelas palavras.

- Repara - disse ele - há somente um único ponto em que te sou superior: estou acordado, enquanto tu estás só semi-acordado e, por vezes, completamente adormecido. Chamo eu estar acordado ao conhecer pelo entendimento e pela consciência as nossas mais íntimas e irracionais forças, instintos e fraquezas e ao saber contar com elas. Que o aprendas é o sentido que o nosso encontro pode ter para ti. Em ti, Goldmundo, o espírito e a natureza, a consciência e o mundo onírico, estão muito afastados. Esqueceste a tua infância e ela solicita-te do mais recôndito da tua alma. Há-de fazer-te sofrer até que lhe dês ouvi- dos. Mas, por agora, basta. Estou, como te disse, mais acordado do que tu, sou mais forte e superior a ti nesse ponto e posso, por conseguinte, ser-te útil. Em tudo o mais, meu caro, és superiora mim ou melhor, sê--lo-ás logo que te encontres.

Goldmundo escutara-o surpreendido, mas, ao ouvir aquelas palavras: “esqueceste a tua infância”, estremeceu atingido por certeira seta sem que Narciso o notasse, pois, como era seu hábito quando falava, mantinha os olhos fechados ou fixos em longínquo alvo, como se assim melhor encontrasse as palavras. Não viu o rosto de Goldmundo subitamente convulso e emaciado.

- Superior eu! a ti! - balbuciou Goldmundo só para dizer alguma coisa; fora acometido de pasmo.

- Certamente - continuou Narciso - as naturezas da tua espécie, dotadas de sentidos fortes e apurados, naturezas de anímicos, de sonhadores, de poetas e amorosos, são-nos quase sempre superiores, a nós intelectuais e servidores do espírito. A vossa origem é materna. Viveis na plenitude, foi-vos concedida a força do amor e a intensidade do sentimento. Nós, os servidores do espírito, embora pareça às vezes que vos guiamos e dirigimos, não vivemos na abundância, vivemos na carência. A vós pertence-vos a opulência da vida, a suculência dos pomos, o jardim do amor, o reino belo da arte. A vossa pátria é a terra, a nossa é a ideia. O vosso perigo é afogar-vos no mundo dos sentidos, o nosso sufocar-nos no espaço rarificado. Tu és artista, eu sou pensador. Tu dormes no regaço da mãe, eu velo no deserto. O sol brilha para mim, para ti a lua e as estrelas; tu sonhas com raparigas, eu com rapazes...

Goldmundo ouviu, de olhos esgazeados, o que Narciso, embriagado pelas próprias palavras, dizia. Muitas delas tinham-no atingido como gume de espada; as últimas fizeram-no empalidecer e fechar os olhos; quando Narciso reparou e, assustado, o interrogou, disse-lhe pálido e em voz sumida: - Aconteceu-me, uma vez, sucumbir e chorar diante de ti - como te lembras. Não tornará a acontecer, não o perdoaria nem a mim, nem a ti! Vai-te embora e deixa-me só, disseste-me palavras terríveis.

Narciso ficou consternado. Deixara-se arrastar pelo discurso, sentira-se mais eloquente do que de costume. Via agora, desolado, que alguma das suas palavras abalara profundamente o amigo, atingira-o algures no ponto vulnerável. Custou-lhe deixá-lo só naquele momento, hesitou uns segundos, mas a testa franzida de Goldmundo advertiu-o e afastou-se perplexo, concedendo ao amigo a solidão de que carecia.

Desta vez, a sobreexcitação de Goldmundo não se resolvera em pranto. Sentindo-se profunda e irremediavelmente ferido, como se o amigo lhe tivesse de súbito cravado uma faca no peito, assim ficou, respirando a custo, o coração mortalmente angustiado, o rosto branco como a cal e as mãos insensibilizadas. Era, outra vez, o mesmo mal de outrora, mas em grau mais intenso, outra vez a sufocação íntima, o sentimento de ter que olhar de frente para algo de horrível, algo de absolutamente insuportável. Mas nenhuma solução de alívio o ajudou a vencer a aflição. O que era aquilo? Santa Mãe de Deus, teria acontecido alguma coisa? Tê-lo-iam assassinado? Teria ele morto alguém? Que coisa medonha tinha sido concitada?

Respirava ofegante e, como quem ingeriu veneno, sentia que, para não estalar, tinha que libertar-se de algo mortalmente alojado no mais fundo do seu ser. Precipitou-se para fora do quarto com gestos de nadador fendendo a água, fugiu inconscientemente para os mais silenciosos e ermos recantos do mosteiro, através de escadas e corredores, em direcção ao ar livre e fresco. Foi parar ao mais recôndito refúgio do convento, ao claustro; por cima dos canteiros brilhava límpido o céu cheio de sol e pelo ar fresco exalado das pedras do recinto perpassava, em doces e indecisos eflúvios, o perfume das rosas.

Narciso alcançara, sem saber, o seu almejado desígnio; tinha invocado o demónio alojado no amigo, tinha-o intimado. Qualquer das suas palavras atingira o segredo do coração de Goldmundo que se contorcera em louco sofrimento. Narciso vagueou pelo mosteiro em procura do amigo, mas não o encontrou em parte alguma.

Goldmundo estava sob um dos arcos maciços, na comunicação dos corredores com o pequeno jardim do claustro; de cada lado das colunas, suportes do arco, fitavam-no de olhos esbugalhados três cabeças de animais, carrancas pétreas de cães ou lobos. Dentro dele, a dor pungente que o revolvia, medonha, não conseguia assomar à luz, não alcançava acesso à razão. Mortal angústia atava-lhe o nó na garganta e no estô-ttiago. Ergueu maquinalmente os olhos e víu, nos capitéis, as três carrancas; logo lhe pareceu que aquelas ferozes cabeças estavam dentro das suas entranhas, uivantes e de olhos esbugalhados.

- Vou morrer - sentiu aterrorizado. E, logo a seguir, tremendo de medo: -Vou perder a razão, vou ser devorado pelas bocarras daqueles bichos.

Caiu convulso aos pés da coluna; a dor demasiado forte atingira o extremo limite. Perdeu os sentidos; sumiu-se, como um náufrago, em um bem-vindo não-ser.

O abade Daniel passara um dia pouco agradável; dois dos monges mais velhos tinham-no procurado, acesos em cólera e a espumar de raiva, acusando-se um ao outro por antiquíssimas questões e ciumentas ninharias. Tinha-os ouvido, tinha-os admoestado, mas em vão; despedira-os por fim, com severidade, infligindo-lhes castigo bastante duro e ficara no íntimo com o sentimento da inutilidade do seu acto. Extenuado, recolhera-se na capela da cripta subterrânea, rezara e levantara-se sem ter obtido alívio na oração. Entrara por momentos no claustro para tomar ar, atraído pelo aroma esparso das rosas. Aí foi encontrar o aluno Goldmundo caído sem sentidos sobre as lajes. Contemplou-o com tristeza, assustado com a palidez e o ar emurchecido daquele rosto sempre tão jovem e loução. Não tinha sido bom aquele dia, faltava agora mais isto! Tentou levantar o rapaz, mas não teve forças para tanto. Afastou-se suspirando e chamou dois irmãos mais novos que transportaram para cima o rapaz; ao mesmo tempo ordenou que chamassem o padre Anselmo, mestre na arte de curar. Mandou vir Narciso à sua presença e este logo compareceu.

- Já sabes? - perguntou-lhe o ancião.

- De Goldmundo? Acabo de saber, reverendo padre, que está doente ou sofreu um desastre e o levaram em braços.

- Encontrei-o prostrado no claustro onde, a bem dizer, não tinha que pôr os pés. Não sofreu desastre algum, estava só desmaiado. Não me agrada nada isto. Parece-me que deves ter tido interferência no caso, deves, pelo menos, saber do que se trata; não é ele teu amigo íntimo? Chamei-te por isso. Fala.

Narciso, dominando, como sempre, os gestos e as palavras, referiu com brevidade a conversa desse dia com Goldmundo, e a reacção surpreendente e violenta que provocara. O abade abanou a cabeça, não sem descontentamento.

- Estranhas conversas são essas - disse, e forçou-se à calma. - Descreveste-me uma conversa que se poderia qualificar de incursão em alma alheia, uma conversa, digamos assim, de confessor. Mas tu não és o guia espiritual de Goldmundo. Tu não tens, de modo algum, cura de almas, nem sequer ainda recebeste ordens. Como é possível que fales em tom de mentor com um aluno, sobre assuntos que só dizem respeito ao seu director espiritual? As consequências foram funestas, como estás vendo.

-As consequências - disse Narciso em tom brando mas resoluto - não as conhecemos ainda, reverendo padre. Assustei-me um pouco com a reacção violenta de Goldmundo, mas não duvido que as consequências da nossa conversa lhe sejam benéficas.

- Veremos depois as consequências. Não me refiro agora a elas, mas ao teu procedimento. Que te levou a tais conversas com Goldmundo?

- Ele é, como sabeis, meu amigo; tenho por ele especial afeição. Creio que o compreendo particularmente bem. Disseste que procedi como cura de almas, mas não me atribuí indevidamente autoridade eclesiástica; julgo somente conhecê-lo um pouco melhor do que ele se conhece.

O abade encolheu os ombros.

-Já sei, é a tua especialidade. Esperemos que não tivesses causado algum mal. Goldmundo andará doente? Quer dizer, sentir-se-á mal, estará enfraquecido? Dorme mal? Não come ou queixa-se de dores?

- Não, até hoje estava de boa saúde; são de corpo.

- E de resto?

- A alma estava doente, sem dúvida. Está, como sabeis, na idade em que começam as inquietações do sexo.

- Bem sei. Os dezassete anos?

- Dezoito.

- Dezoito. Tarde bastante, com efeito. Mas essas inquietações são naturais, todos passam por elas. Não se pode por esse motivo dizer que esteja doente de alma.

- Não, reverendo padre, não é só por isso. Goldmundo já antes estava doente, muito antes, por isso este período é mais perigoso para ele do que para qualquer outro. Sofre, creio eu, por ter perdido parte do seu passado.

- -Ah! Sim! E qual?

- A mãe e tudo quanto com ela se relaciona. Não sei nada a esse respeito, sei somente que é essa a origem da sua doença. Goldmundo, com efeito, não sabe pretensamente nada da mãe, a não ser que a perdeu. Mas dá a impressão de que se envergonha dela. E, contudo, deve ter sido dela que herdou a maioria dos seus dons; o que diz do pai não dá a impressão que seja homem para ter um filho tão grácil, tão singular e tão bem dotado. Digo isto, não porque mo contasse, mas por conclusão tirada de certos indícios.

O abade, que a princípio se sorria de si para si, ouvindo este discurso pretensioso e petulante sobre um assunto que lhe era penoso e desagradável, começou a reflectir. Recordou-se do pai de Goldmundo, daquele homem circunspecto e pouco comunicativo, e subitamente, pensando no caso, lembrou-se de certas palavras que lhe ouvira acerca da mãe de Goldmundo. Acusara-a de o ter desonrado e fugido de casa e dissera que tinha diligenciado reprimir no filhito a recordação da mãe e as tendências porventura dela herdadas. Bem sucedido neste intento, o rapaz estava disposto a oferecer a vida a Deus em expiação do que a mãe prevaricara.

Nunca Narciso agradou menos ao abade do que naquela tarde. E, contudo, aquele cogitador tinha adivinhado e parecia, de facto, conhecer bem Goldmundo!

Para terminar, tendo de novo interrogado Narciso sobre os acontecimentos daquele dia, este disse: - Não foi meu propósito provocar a comoção violenta que Goldmundo hoje sofreu. Lembrei-lhe que não se conhecia, que esquecera a infância e a mãe; qualquer das minhas palavras deve tê-lo atingido e penetrado na penumbra contra a qual luto há tanto tempo. Ficou exangue e olhou-me como se não me conhecesse nem a mim nem a si próprio. Muitas vezes lhe disse que estava adormecido, que não estava verdadeiramente acordado. Agora não duvido que acordasse.

O abade despediu-o sem o repreender, mas com a proibição provisória de visitar o doente.

Entretanto, o padre Anselmo mandara deitar na cama o rapaz inanimado e ficara junto dele. Não lhe parecia aconselhável o uso de meios violentos para o fazer voltar a si sobressaltado. O pequeno estava com muito mau parecer. Os olhos do ancião, no rosto bondoso e enrugado, contemplaram o adolescente com benevolência. Tomou-lhe o pulso e auscultou-lhe o coração. Por certo, pensou ele, o moço comeu qualquer coisa inconcebível, um punhado de azedinhas ou qualquer outra tolice, era sabido. Não podia ver-lhe a língua. O padre Anselmo gostava de Goldmundo mas detestava o amigo, aquele mestre precoce e demasiado jovem. E alí estava o resultado. Narciso era, decerto, cúmplice daquela estúpida história. Mas que necessidade teria um rapaz tão saudável, de olhos tão claros e transparentes, tão simpático e espontâneo, de travar amizade com aquele sábio arrogante, aquele presunçoso gramático, para quem o grego era mais importante do que tudo o que era vivo no mundo!

Quando a porta se abriu e o abade entrou, o padre, ainda sentado, fitava o rosto inanimado do rapaz. Que rosto tão jovem e ingénuo! Ele estava alí a seu lado para ajudá-lo e talvez, quem sabe, nada pudesse fazer. A causa do mal podia ser uma cólica, sem dúvida, para a qual receitaria vinho quente e talvez ruibarbo; mas, quanto mais olhava para a cara lívida e contraída do rapaz, mais se inclinava para graves e sérias suspeitas. O padre Anselmo tinha longa experiência. Vira muitos possessos no decurso da sua longa vida. Mas hesitava em formular a sus-peita, mesmo mentalmente. Esperaria e observaria. Pensou enraivecido que o pobre do rapaz talvez estivesse realmente embruxado; não haveria que procurar longe o culpado e o castigo não se faria esperar.

O abade aproximou-se, observou o doente, levantou-lhe suavemente uma das pálpebras.

- Podemos acordá-lo? - perguntou.

- Gostaria de esperar mais um pouco. O coração está bom. Não devemos deixar entrar aqui ninguém.

- Está em perigo?

- Creio que não. Não há nenhumas contusões, nenhum sinal de pancada ou queda. Está simplesmente desmaiado. Talvez fosse uma cólica. As dores muito fortes podem fazer perder os sentidos. Se fosse envenenamento teria febre. Não, há-de acordar e restabelecer-se.

- Poderá ter sido um abalo moral?

- Não posso afirmá-lo. Passou-se alguma coisa? Teria apanhado um susto forte? A notícia de algum falecimento? Uma disputa violenta, uma ofensa? Tudo se explicaria.

- Não o sabemos. Velai por que ninguém se aproxime. Ficai junto dele, peço-vos, até que acorde. Se piorar, chamai-me, mesmo durante a noite.

Antes de sair, o ancião curvou-se outra vez sobre o doente. Pensou no pai do rapaz, no dia em que lhe fora trazido aquele mocinho loiro, alegre e bonito, de quem todos tinham gostado. Também ele o recebera com agrado. Narciso tinha, de facto, razão: aquele rapaz não fazia lembrar o pai! Ai, quantos cuidados à sua volta e como era deficiente a sua acção! Não teria talvez descurado aquele pobre pequeno? Ter-lhe-ia dado o confessor conveniente? Estaria certo que ninguém na casa conhecesse aquele pupilo tão bem como Narciso? Poderia este ajudá-lo, noviço como era, não sendo monge nem tendo ainda ordens, imbuído de ideias e noções desagradavelmente superiores e quase antipáticas? Sabe Deus se também Narciso, desde há muito não vinha sendo orientado como devia? Sabe Deus se, sob a máscara da obediência, não se esconderia o pior, um herege? E ele, abade, era responsável por o que aqueles dois rapazes viessem a ser.

Quando Goldmundo voltou a si era já tarde. Sentia tonturas e a cabeça vazia. Sabia que estava deitado em uma cama, ignorava onde, mas era-lhe indiferente. Onde tinha estado? De onde vinha, de que estranho país de vivências? Algures, muito longe, tinha contemplado algo de extraordinário e magnífico, terrível e inolvidável - e já esquecera o quê. Onde era? O que se erguera diante dele ao mesmo tempo tão grande, doloroso e venturoso, e desaparecera logo após?

Perscrutou no íntimo o lugar onde surgira algo, algo acontecera - mas o quê? Feixes desordenados de imagens emergiam revoltos, viu cabeças de cães, três cabeças de cães, e aspirou um aroma de rosas. Ai, que dor sentira! Fechou os olhos. Ai, que dor horrível sentira! Tornou a adormecer.

Voltou a acordar e, na debandada do mundo dos sonhos em breve dissipado, viu-a, viu de novo a imagem e estremeceu de dolorosa volúpia. Via, recuperara a visão. Via-A. Viu a magna e radiosa imagem de boca florente e cabelos luminosos, viu a mãe. Ao mesmo tempo pareceu-lhe ouvir uma voz: “Esqueceste a tua infância”. De quem era aquela voz? Atentou, reflectiu e achou. Era de Narciso. Narciso? E, subitamente, de chofre, tudo se lhe representou de novo, lembrava-se, sabia. Oh! mãe, mãe! Montes de entulho, mares de olvido sumiram-se, desapareceram; aquela que perdera, a inefavelmente amada, olhava-o com os seus olhos azuis-claros de rainha.

O padre Anselmo, adormecido na poltrona à cabeceira da cama, acordou. Ouviu o doente mexer-se e respirar. Levantou-se cautelosamente.

- Está aí alguém? - indagou Goldmundo.

- Sou eu, não te aflijas; já acendo a luz.

Acendeu a lamparina cuja claridade lhe iluminou o rosto enrugado e benevolente.

- Estou doente? - perguntou o rapaz.

- Perdeste os sentidos, meu filhinho. Dá-me cá a mão para vermos esse pulso. Como te sentes?

- Sinto-me bem. Muito agradecido, padre Anselmo, sois muito bondoso. Não me dói nada, estou só cansado.

- É natural que estejas cansado. Não tardarás a voltar a adormecer. Bebe antes um golo de vinho quente que aqui tenho preparado. Vamos beber ambos um copo e fazer uma saúde; brindo à boa camaradagem.

Tinha cuidadosamente preparada uma canequinha de vinho abafado que metera em uma vasilha com água quente.

- Ora aí está, dormimos ambos um sono - riu o médico. - Que belo enfermeiro, hás-de pensar, que nem sabe manter-se de vela. Que queres, afinal é humano. Vamos agora beber um golo deste filtro mágico, meu rapaz. Não há nada mais agradável do que um pequeno beberete clandestino, assim no meio da noite. À tua saúde!

Goldmundo riu, brindou e saboreou. O vinho quente era açucarado e temperado com canela e cravinho, daquilo nunca ele bebera.

Lembrou-se que já uma vez estivera doente e Narciso, nessa altura, o tomara a seu cuidado. Desta vez era o padre Anselmo que estava sendo tão solícito com ele. Aquele caso raro agradava-lhe e dava-lhe imenso gosto: estar ali deitado, de noite, à luz da lamparina, bebendo com o velho padre uma caneca de vinho quente e doce.

- Tens dores de barriga? - perguntou o ancião, - Não.

- É que eu pensava que tivesse tido uma cólica, Goldmundo. Afinal não foi nada disso. Mostra a língua. Bem, estou vendo que o vosso velho Anselmo não acertou mais uma vez com o mal. Amanhã ficas quietinho na cama e depois venho examinar-te. Já acabaste de beber o vinho? Sim senhor, que te faça bom proveito. Deixa ver se ainda haverá algum resto. Dá para meio copo a cada um, se repartirmos honradamente - pregaste-nos um bom susto, Goldmundo! Para ali caído no claustro, como uma criança morta. Não tens realmente dores de barriga?

Riram-se e repartiram fraternalmente o resto do vinho para doentes; o padre dizia os seus gracejos e Goldmundo olhava-o grato e divertido, de olhos novamente brilhantes. Depois, o ancião foi deitar-se. Goldmundo ainda ficou acordado; voltaram a surgir-lhe no íntimo as imagens, a fosforescerem as palavras do amigo e de novo lhe apareceu a mãe, a loira e radiosa mulher. A sua imagem atravessava-o como vento suão, como onda de vida, de calor, de ternura, de íntima exortação. Oh! mãe! Como fora possível esquecê-la!

 

Até então Goldmundo alguma coisa soubera da mãe, mas só o que lhe tinham contado; já não se lembrava dela e o pouco que julgava saber a seu respeito não o dissera a Narciso. A mãe era assunto em que não se tocava, que era motivo de vergonha. Mulher bela e indómita, de ascendência distinta mas pagã e impura, tinha sido bailarina; o pai de Goldmundo, segundo ele próprio contava, tinha-a recolhido da miséria e da vergonha; mandara-a baptizar e aprender o catecismo, pois não sabia se seria pagã. Desposara-a e dera-lhe uma posição respeitável. Ela, contudo, depois de uns anos de docilidade e de vida ordenada, voltara a lembrar-se das suas antigas artes e práticas, causara-lhe dissabores, seduzira homens, ausentara-se de casa dias e semanas; adquirira fama de feiticeira e, por fim, depois de várias vezes o marido a ter ido buscar para junto dele, desaparecera para sempre. A sua má fama perdurara ainda por algum tempo, como cauda de cometa, e depois extinguira-se. O marido restabelecera-se lentamente daqueles anos de inquietação e de susto, de vergonha e de contínuo sobressalto. Em lugar da mulher transviada, educou então o filhinho, de figura e de fisionomia muito semelhante à mãe; tornou-se rebarbativo e beato e cultivou em Goldmundo a crença de que devia oferecer a vida a Deus para expiar os pecados cometidos pela mãe.

Isto era, mais ou menos, o que o pai de Goldmundo costumava contar da mulher que perdera, embora evitasse tocar no assunto; a isto aludira quando, ao entregar Goldmundo no convento, ralara ao abade; era esta lenda terrível que o filho conhecia e assim aprendera a esquecê-la e a afastá-la de si. Mas a verdadeira imagem da mãe, essa outra imagem muito diferente, não provinha das narrativas do pai e dos criados nem de obscuros e brutais boatos, não estava esquecida nem perdida por completo. Esquecera a recordação pessoal, real e vivida da mãe; mas agora a sua imagem, a estrela dos seus primeiros anos, alvorecia de novo.

- É inconcebível como eu pude esquecê-la - disse ao amigo. - Nunca na minha vida amei a ninguém como a minha mãe, tão incondicional e ardentemente; nunca adorei nem admirei ninguém como a ela, era o meu sol e a minha lua. Deus sabe como foi possível ofuscar na minha alma a sua imagem radiosa e transformá-la brutalmente na bruxa pálida, maligna e esfumada que, durante muitos anos, ela foi para o pai e para mim.

Narciso terminara havia pouco o noviciado e já tinha tomado hábito. A sua atitude com Goldmundo modificara-se singularmente. Goldmundo, que tantas vezes repelira os acenos e advertências do amigo, julgando-as importunas, ficara, desde o grande acontecimento, cheio de admiração e espanto pela sua clarividência. Quantas afirmações de Narciso se tinham profeticamente realizado, quão profundamente aquela fantástica criatura o tinha perscrutado, com que acerto tinha adivinhado o segredo da sua vida, o seu espinho oculto, com que inteligência o tinha curado!

O rapaz parecia, com efeito, estar curado. O desmaio não tivera consequências e do comportamento de Goldmundo desaparecera também o aspecto de pueril suficiência, agarotado e inautêntico, a precoce aparência fradesca, a suposta exigência de especial devoção; mostrava-se, ao mesmo tempo, mais novo e mais velho, desde que se encontrara, e tudo devia a Narciso!

Narciso, porém, procedia em relação a Goldmundo com singular prudência; modesto, sem nada de superior nem de mentor, apesar de o amigo tanto o admirar. Via Goldmundo alimentado por secreto manancial, por forças a ele estranhas; propiciara-lhes o desenvolvimento, mas não participava nelas. Regozijava-se por ver o amigo libertar-se da sua tutela, mas por vezes isso entristecia-o. Admitia que era um degrau já transposto, um invólucro já enjeitado; via próximo o termo daquela amizade, de tanto significado para ele. Por enquanto, ainda sabia mais de Goldmundo do que ele próprio; porque se Goldmundo reencontrara já a sua alma e estava pronto a seguir-lhe o chamamento, não pressentia ainda aonde este o levaria. Narciso, desarmado, pressentia-o; os caminhos do amigo predilecto levavam a regiões onde ele, Narciso, nunca penetraria.

O afã de saber diminuíra muito em Goldmundo. Passara-lhe também o gosto da disputa nas conversas com o amigo e recordava envergonhado alguns dos antigos colóquios. Acordara entretanto em Narciso, nos últimos tempos, quer devido à conclusão do noviciado, quer consequência do sucedido com Goldmundo, a exigência de recolhimento, de ascese, de prática de exercícios espirituais, o pendor para o jejum, para as longas preces, frequentes confissões e voluntárias penitências, que Goldmundo compreendia e quase compartilhava. Desde a cura, afinara-se-lhe muito o instinto; embora nada soubesse dos seus futuros desígnios, sentia, com nitidez aguda e por vezes cruciante, que se estava preparando o seu destino, que tinha passado a trégua de inocência e de calma e tudo nele era agora tensão e alerta. Às vezes, este pensamento era ditoso, mantinha-o acordado parte da noite, em suave enlevo; outras vezes, profundamente opressivo. A mãe, tanto tempo perdida, voltara para ele, suprema ventura. Mas, onde o levaria o inseguro apelo? A incerteza, ao desespero, à miséria, talvez à morte; não à calma, à quietude, à segurança da cela monacal na vitalícia comunidade monástica, pois nada tinha de comum com os preceitos paternos tanto tempo confundidos com os seus próprios desejos. Esta convicção, que por vezes o acometia violenta, ansiosa e ardente como intensa dor corporal, alimentava o fervor religioso de Goldmundo. Em repetidas e longas preces à santa Mãe de Deus expandia o excesso de emoção que o impelia para a mãe. Frequentemente, porém, as orações originavam estranhos e magníficos sonhos que, agora, tantas vezes o visitavam. Sonhos diurnos, de quase vigília, sonhos em que todos os sentidos participavam. O mundo materno envolvia-o balsâmico olhava-o com misteriosos e ternos olhos de amor, marulhava profundo como o mar e o paraíso, murmurava meigas palavras sem sentido, ou antes, transbordantes de sentido, sabia a doce e a amargo, roçava sedosos cabelos por lábios e olhos sequiosos. Na mãe, não havia só todo o encanto, toda a doçura e amor de uns olhos azuis, de um ditoso sorriso promissor de ventura e de consolador afago; nela havia também, algures, sob deleitosos véus, todo o terror e toda a treva, toda a sofreguidão e toda a angústia, todo o pecado e toda a aflição, todo o nascimento e toda a inelutável morte. Goldmundo mergulhava profundamente nestes sonhos, entretecidos de múltiplos fios, obra de inspirados sentidos. Não só um passado querido neles revivia fascinante: a infância e o amor materno, o radioso e dourado alvorecer da vida; neles vibrava também um futuro ao mesmo tempo cheio de ameaças e pleno de promessas, sedutor e perigoso. Nestes sonhos, mãe, madona e amada eram uma só imagem; pareciam-lhe, às vezes, tremendo crime e blasfémia, pecado mortal de impossível remissão; outras vezes, eram plena redenção e harmonia. A vida olhava-o, misteriosa como mundo tenebroso e insondável, como floresta petrificada cheia de abrolhos e de perigos fantásticos - mas tudo era segredo da mãe; dela provinha e a ela voltava, era o pequeno círculo escuro, o pequeno abismo ameaçador dos seus olhos transparentes.

Grande parte da infância esquecida ressurgia naqueles sonhos maternos; em profundezas perdidas e inatingíveis desabrochavam como flores mil pequenas e douradas recordações de nostálgica fragrância; reminiscências de sentimentos infantis, de coisas vividas talvez, ou talvez sonhadas. Sonhava com peixes deslizando ao seu encontro, negros e prateados, frescos e luzidios, que nadando para dentro dele e atravessando-o com a mensagem de outra, mais bela realidade, desapareciam depois como sombras e deixavam novos segredos. Frequentemente sonhava com peixes e aves, e cada peixe e cada ave era criatura sua, dele dependente e proveniente como a própria respiração, que ele irradiava como um olhar ou um pensamento, e ao seu seio regressava. Sonhava também com um jardim encantado de árvores fantásticas, flores de sobrenatural pujança e fundas grutas azuis-escuras; por entre as ervas viam-se olhos coruscantes de animais desconhecidos, pelos ramos deslizavam cobras musculosas e lisas; das videiras e arbustos pendiam, brilhantes e húmidas, gigantescas bagas que inchavam na mão ao serem colhidas e esparziam sumo que era sangue, ou, providas de olhos, os moviam lânguida e maliciosamente; ao encostar-se, tacteando, a uma árvore, agarrava um ramo e via e sentia entre o tronco e a haste um ninho de crespa penugem, de densos e emaranhados pêlos como os que crescem sob a axila. Sonhou uma vez consigo próprio ou com o seu patrono, Goldmundo ou Crisóstomo, de cuja boca de ouro saíam palavras como passarinhos, em bandos esvoaçantes e chilreantes.

Outra vez sonhou que, já homem, já adulto, estava sentado no chão como criança, em frente de um pedaço de barro com o qual modelava figuras: um cavalinho, um touro, um homenzinho, uma mulherzinha. Divertia-o aquele trabalho e conferia aos animais e aos seres humanos órgãos sexuais ridiculamente grandes; em sonho, aquilo parecia-lhe muito divertido. Depois, cansado da brincadeira, ia-se embora, quando sentiu atrás de si algo de vivo e enorme aproximar-se em silêncio; olhando viu, com profundo espanto e grande susto, não isento de certo regozijo, que as suas pequenas figuras de barro tinham crescido e adquirido vida. Passavam por ele marchando, imensamente grandes como mudos gigantes, cada vez crescendo mais e, enormes e caladas, seguindo, altas como torres, o seu caminho por esse mundo.

Mais do que no mundo real vivia no mundo do sonho. O mundo real, a sala de aula, a cerca, a biblioteca e o dormitório, eram só superfície, ténue véu vibrando sobre o mundo das imagens sobrenaturais do sonho. Um nada bastava para perfurar esse véu fino: algo de sugestivo no som de uma palavra grega, a meio de uma lição prosaica, uma onda de aroma da boceta de ervanário do padre Anselmo, mestre de botânica, a visão de uma grinalda de folhas de pedra, serpenteando do alto de uma coluna, apoio do arco de uma janela - pequenos estímulos que bastavam para rasgar o véu e desencadear, na plácida e árida realidade, fragorosos precipícios, torrentes e vias lácteas do mundo imaginífico da alma. Uma inicial latina transformava-se no rosto perfumado da mãe; um som sustentado no Avé era porta do paraíso, uma letra grega era cavalo a galope ou serpente empinada rastejando ondulosa por debaixo de flores, subitamente desaparecida para dar lugar à página hirta da gramática.

Raramente se referia a esse mundo de sonho, poucas vezes lhe aludia em conversa com Narciso.

- Creio - disse uma vez - que uma pétala de flor ou um minúsculo verme no caminho, significam e contêm muito mais do que toda a biblioteca cheia de livros. Com letras e palavras nada se pode dizer. As vezes escrevo uma letra grega, um ómega ou um teta e, torcendo um bocadinho a pena, a letra começa a menear uma cauda, transforma-se em peixe e faz lembrar, de repente, todos os rios e regatos do mundo, tudo quanto é fresco e húmido, o oceano de Homero e as ondas sobre as quais S. Pedro caminhou; ou, então, transforma-se em ave, levanta a cauda, eriça as penas, enfuna-se, ri e levanta voo. - Narciso, tu não dás grande apreço a estas letras, pois não? Mas, deixa-me que te diga: com elas escreveu Deus o mundo.

- Tenho-as em grande apreço - disse Narciso tristemente. - São letras mágicas que esconjuram todos os demónios. Somente, são impróprias para cultivar a ciência. O espírito ama a forma e a firmeza, precisa de confiar nos seus símbolos; ama o ser, não o devir; o real, não o possível. Não permite que um ómega se metamorfoseie em cobra ou em ave. O espírito não vive na natureza, é contra ela que vive, como seu reverso e contrapartida. Acreditas agora, Goldmundo, que nunca serás um erudito?

Goldmundo há muito o sabia e estava de acordo.

-Já não estou empenhado na conquista do vosso espírito - disse meio a rir. - Acontece-me com o espírito e a erudição o mesmo que com meu pai: Julgava amá-lo muito e ser parecido com ele. Tinha por certo tudo que dissesse. Mas só quando minha mãe voltou a aparecer-me, conheci o que era amor e, ao lado da sua imagem, a do pai ficou subitamente reduzida e bisonha, quase desagradável. Agora inclino-me a atribuir ao espírito origem paterna, não materna e até hostil ao materno, pelo que sou levado a desdenhá-lo um pouco.

Disse isto em tom de gracejo, mas não conseguiu desanuviar o rosto triste do amigo. Narciso olhou para ele calado e o seu olhar era uma carícia. Depois disse-lhe: - Bem te compreendo. Agora já não é preciso discutirmos; acordaste e já também reconheceste a diferença entre mim e ti, a diferença entre uma ascendência materna e outra paterna, entre alma e espírito. Em breve reconhecerás que a tua vida no convento, a tua aspiração à vida monacal, é erro, invenção de teu pai para assim purificar a recordação de tua mãe, ou somente dela se vingar. Julgaras ainda que o teu destino é passar a vida inteira no convento?

Goldmundo, pensativo, contemplou as mãos do amigo, aquelas mãos finas, tão austeras quanto frágeis, magras e brancas. Ninguém podia duvidar que eram mãos de asceta e de estudioso.

- Não sei - disse com a voz cantante, um pouco arrastada e demorada em cada som, que de há um tempo era a dele. - Não sei, verdadeiramente. Talvez julgues meu pai com demasiada severidade. Passou maus bocados. Mas talvez tenhas também razão neste ponto. Estou aqui há mais de três anos e ele ainda não me visitou. Espera que fique para sempre. Talvez fosse melhor, também foi o que eu desejei; mas hoje já não sei, de facto, o que quero e o que desejo. Outrora, tudo era simples, tão simples como as letras na cartilha. Agora, nada é simples, nem sequer as letras. Tudo adquiriu diversos significados e fisionomias. Não sei o que será de mim nem posso por enquanto pensar nisso.

- Nem deves - opinou Narciso - logo se verá onde te leva o teu caminho. Começou por fazer-te regressar a tua mãe e ainda te aproximará mais dela. No que diz respeito a teu pai, não o julgo com demasiada severidade. Gostarias de voltar para junto dele?

- Não, Narciso, certamente que não. De outro modo iria logo que terminasse a escola ou mesmo já. Visto que nunca serei um erudito, decerto é suficiente o latim, o grego e a matemática que aprendi. Não, para casa do pai não volto...

Pensativo, olhava no vago e, de repente, exclamou: - Mas o que é que tu fazes para encontrar sempre as palavras e as perguntas que me iluminam e esclarecem? A tua pergunta fez-me ver repentinamente que não quero voltar para junto do pai. Como é possível? Pareces saber tudo. Disseste-me tanta coisa acerca de mim e de ti, que, ao tempo, não compreendi e, mais tarde se tornou tão importante! Foste tu que chamaste materna à minha ascendência e descobriste que, sob a acção de um sortilégio, esquecera a minha infância! Como conheces tão bem os homens? Não poderia eu aprender a conhecê-los?

Narciso abanou a cabeça, sorrindo.

- Não, meu caro, não podes. Há pessoas que podem aprender muita coisa, mas tu não estás nesse caso. Nunca serás um sábio. E para que, afinal? Não precisas, tens outros dons. Tens mais dons do que eu, és mais rico, mas também mais fraco; terás vida mais bela, mas mais difícil. Quantas vezes me não quiseste compreender, quantas vezes te insurgiste contra mim, como poldro rebelde; nem sempre me facilitaste a tarefa, tive mesmo de te magoar. Era preciso acordar-te porque estavas adormecido. Quando te recordei tua mãe magoei-te muito; encontraram-te como morto no claustro. Mas rinha que ser. - Não, não me toques no cabelo! Deixa-me. Não suporto afagos.

- Então não apreenderei nunca coisa alguma? Ficarei sempre ignorante e tolo como uma criança?

- Outros haverá com quem aprenderás. Aprendeste comigo o que eu te podia ensinar, meu caro.

- Não - exclamou Goldmundo - não foi por isso que nos tornámos amigos. Que seria uma amizade que, andados os primeiros passos, atingisse a meta e acabasse sem mais nem menos! Estás farto de mim? Já não gostas de mim?

Narciso que passeava, agitado, de um lado para outro, de olhos no chão, parou diante do amigo.

- Não falemos nisso - disse com brandura - sabes bem que não é verdade o que dizes.

Indeciso, contemplou o amigo e retomou o seu vaivém. Parou depois e olhou para Goldmundo com ar decidido no rosto severo e ema-ciado, em voz baixa, mas firme e áspera, disse: - Escuta, Goldmundo! A nossa amizade foi boa; teve uma finalidade e atingiu-a: acordou-te. Espero que não seja este o fim, espero que, outra vez e sempre sucessivamente, se renove e nos leve a novas metas. Por agora, não há mais nenhuma. O teu alvo é incerto e nesse domínio não posso orientar-te nem acompanhar-te. Pergunta a tua mãe, pergunta à imagem dela, atende-a, ouve-a, perscruta-a; o meu alvo, porém, não paira em incerteza, está aqui no convento, chama-me a cada instante. Posso ser teu amigo, mas não posso enamorar-me. Sou monge, já fiz os votos. Antes de tomar ordens, pedirei dispensa do magistério e recolher-me-ei por uma semana para jejuns e exercícios. Durante esse período não falarei de nenhuns assuntos profanos nem mesmo contigo.

Goldmundo compreendeu. Entristecido, disse: - Farás então o que eu também faria se entrasse na Ordem. E quando terminarem os exercícios, quando tiveres jejuado e orado em vigília, qual será o teu desígnio?

- Já o conheces - disse Narciso.

- Sim, dentro de alguns anos serás o primeiro mestre, talvez mesmo o superintendente da escola. Reformarás o ensino, aumentarás a biblioteca, escreverás livros, talvez. Não? Qual é então o teu alvo?

Narciso sorriu levemente. - O meu alvo? Talvez morra superintendente, abade ou bispo. É-me indiferente. O plano é este: colocar-me sempre onde melhor possa servir, onde a minha maneira de ser, as minhas capacidades e aptidões, encontrem terreno mais propício e mais vasto campo de acção. Não tenho outro fito.

Goldmundo: - Não há outro fito para um monge?

Narciso: - Há muitos outros possíveis. Um monge pode aspirar a conhecer bem o hebreu, a comentar Aristóteles, a adornar a igreja do convento, a recolher-se para meditar, ou centenas de outras actividades. Para mim não têm interesse. Não pretendo aumentar as riquezas do convento nem reformar a Ordem ou a Igreja. Quero servir o espírito dentro do que me é possível, tal como o compreendo, nada mais.

Goldmundo meditou longamente a resposta.

- Tens razão, - disse; - estorvei-te muito no caminho para alcançares os teus fins?

- Estorvar-me, tu? Oh, Goldmundo, ninguém mais do que tu me ajudou. Trouxeste-me dificuldades, mas eu não sou inimigo de dificuldades. Aprendi com elas e venci-as, em parte.

Goldmundo interrompeu-o e disse, em tom de gracejo: - Venceste-as maravilhosamente! Mas diz-me: achas que ajudando-me, orientando-me, libertando-me e restituindo a saúde à minha alma - achas que, desse modo, serviste realmente o espírito? Roubaste provavelmente ao convento um noviço zeloso e de boa vontade; criaste porventura um inimigo ao espírito, alguém que talvez creia, aspire e faça o contrário do que tu consideras bem!

- E porque não? - disse Narciso com profunda gravidade. - Tão mal me conheces ainda, meu amigo? Abortei em ti, provavelmente, um futuro monge; mas, em compensação, preparei-te o caminho para um destino invulgar. Mesmo que amanhã incendiasses o nosso belo convento ou pregasses no mundo qualquer louca heresia, eu não teria remorsos de ter-te ajudado nessa via.

Poisou afectuosamente as duas mãos nos ombros do amigo.

- Repara, Goldmundo, faz parte também dos meus desígnios o seguinte: mestre, abade, confessor ou o que tiver de vir a ser, não quereria nunca encontrar à minha frente uma personalidade forte, valiosa e singular, que não compreendesse, revelasse e estimulasse. E digo-te mais: pode vir a ser de nós, de mim e de ti, seja o que for, que nunca, no momento em que me chamares e julgares precisar de mim, me encontrarás fechado ao teu apelo. Nunca.

Parecia uma despedida e era, na verdade, o antegosto de um adeus. Ali, diante do amigo, Goldmundo, ao contemplar aquele rosto decidido e aquele olhar dirigido para um alvo, sentiu iniludivelmente que os dois já não eram irmãos, companheiros e iguais, que os seus caminhos se tinham bifurcado. Aquele que ali estava à sua frente não era um sonhador nem esperava por apelos do destino: era um monge, comprometera-se, pertencia a uma regra firme e a um dever, era um servidor e um soldado da Ordem, da Igreja, do Espírito. Goldmundo, porém, como hoje claramente reconhecera, já ali não pertencia, não tinha pátria e um mundo desconhecido esperava-o. O mesmo acontecera outrora a sua mãe. Deixara casa e lar, marido e filho, comunidade e ordem, dever e honra e lançara-se à aventura onde há muito, decerto, tinha soçobrado. Não tivera fito algum, como ele também o não tinha. Ter alvos era bom para outros, não para ele. Oh, como Narciso previra isto de longa data, como tivera razão!

Pouco tempo volvido após este dia, Narciso parecia ter desaparecido, parecia, de repente, ter-se tornado invisível. Outro mestre dava agora as suas aulas, a sua estante de leitura na biblioteca permanecia vazia. Ainda lá estava, não se tornara completamente invisível, ainda por vezes podiam vê-lo ou ouvi-lo atravessando o claustro ou murmurando em uma das capelas, ajoelhado sobre as lajes; sabia-se que iniciara o grande período de exercícios, que jejuava e se levantava três vezes por noite para cumprir as penitências. Ainda lá estava e, todavia, já passara a outro mundo; era possível vê-lo, raras vezes, mas não alcançá-lo, nem comunicar com ele nem falar-lhe. Goldmundo sabia que Narciso voltaria a aparecer, retomaria a sua estante de leitura, a cadeira no refeitório e tornaria a falar - mas do passado nada volveria. Narciso não tornaria a pertencer-lhe. Ao pensar isto compreendeu claramente que, só por intermédio e através de Narciso, o convento e a vida monástica, o estudo da gramática e da lógica, a vida do espírito, em suma, lhe tinham sido interessantes e queridas. O exemplo de Narciso tinha-o seduzido, o seu ideal fora tornar-se igual a ele. É certo que também havia o abade, também o venerara e o amara e nele vira um alto exemplo. Mas os outros, os mestres, os condiscípulos, o dormitório e o refeitório, a escola e os trabalhos escolares, o culto e todo o convento, sem Narciso não o interessavam, não o prendiam. Que fazia ali ainda? Esperava, sob o tecto do convento, como viandante irresoluto que se detém, quando chove, debaixo de qualquer telhado ou árvore; hóspede apenas, somente esperava, temeroso da inóspita terra estranha.

A vida de Goldmundo naquela época foi só hesitação e despedida. Procurava os lugares mais queridos ou significativos. Verificou, com pasmo e surpresa, que poucas eram as pessoas e as caras de quem lhe custaria separar-se. Além de Narciso e do velho abade, só do bom padre Anselmo, do cordial irmão porteiro e do moleiro folgazão - mas também estes se tinham já tornado irreais. Mais do que deles lhe custaria despedir-se da grande madona de pedra na capela e dos apóstolos do portal. Demorava-se diante deles, diante da bela talha das cadeiras do coro, diante da fonte do claustro, diante da coluna com as três cabeças de cão; na cerca, encostava-se às tílias e ao castanheiro. Tudo lhe seria mais tarde recordação, pequeno álbum ilustrado no seu íntimo. Já agora, ainda lá permanecendo, começava tudo a esvair-se-lhe, a perder realidade, a transmutar-se fantasmagoricamente em passado. Ainda ia colher ervas com o padre Anselmo, que muito gostava de o ter junto dele, ainda visitava o moleiro e assistia no moinho aos trabalhos dos criados e aceitava, de vez em quando, o vinho e o peixe frito que lhe ofereciam; mas tudo lhe era já estranho e quase só vivo em recordação. Assim como lá em cima, na penumbra da igreja e da cela de penitente, o seu amigo Narciso, embora vivesse e existisse, não era mais do que uma sombra, assim à sua volta tudo perdia realidade, ressumava Outono e transitoriedade.

Real e viva, só a vida dentro dele, o ansioso palpitar do coração, o cruel aguilhão da nostalgia, as alegrias e pavores dos seus sonhos. A eles se entregava e pertencia. Durante a leitura ou o estudo, entre os companheiros da escola, acontecia ensimesmar-se e esquecer tudo, entregue às correntes e íntimas vozes que o arrebatavam para profundas cisternas plenas de obscuras melodias, para abismos multicores de feéricas aventuras cujas ressonâncias eram a voz da mãe, cujos mil olhos eram os olhos maternos.

 

O padre Anselmo chamou um dia Goldmundo à sua botica, ao seu ervanário deliciosamente perfumado. Goldmundo conhecia todos os cantos à casa. O padre mostrou-lhe uma planta seca, cuidadosamente guardada entre duas folhas de papel, e perguntou-lhe se a conhecia bem e se era capaz de descrever rigorosamente o seu aspecto no campo. Goldmundo conhecia-a; chamava-se hipericão. Descreveu minuciosamente todas as suas características. O velho monge deu-se por satisfeito e encarregou o jovem amigo de ir nessa tarde colher um bom molho daquela erva indicando-lhe os lugares onde costumava crescer.

- Tens em paga uma tarde livre, amigo, não tens nada a dizer nem a perder. O conhecimento da natureza também é, afinal, uma ciência, tão importante como a vossa estúpida gramática.

Goldmundo agradeceu o bem-vindo encargo de passar umas horas colhendo flores, em vez de permanecer sentado na escola. Para a alegria ser completa, pediu ao palafreneiro o cavalo Bless; pouco depois da refeição, dirigiu-se à cavalariça, preparou o animal, foi recebido com impetuosas expansões, montou-o e saiu satisfeito a trote pelos campos fora, naquela tarde quente e luminosa. Cavalgou uma hora ou mais, gozou o ar e o perfume campestre e, em especial, o passeio; lembrou-se, depois, da incumbência e procurou um dos lugares indicados pelo padre. Prendeu o cavalo ao tronco de um grosso plátano, tagarelou com ele, deu-lhe pão a comer e foi em busca da planta. Havia ali campos baldios invadidos por variegada profusão de ervas daninhas: pequenas papoilas enfezadas, com as últimas corolas esmaecidas e as cápsulas cheias de muitas sementes já maduras, entremeavam com gravinhas de ervilhaca seca, com chicória florida de cor azul-celeste e com esparguta descorada; meia dúzia de montículos de pedra entre dois campos eram habitados por lagartixas; ali próximo assomavam, com as suas flores amarelas, os primeiros tufos de hipericão que Goldmundo logo começou a colher. Quando já reunira uma boa braçada, sentou-se nas pedras para descansar. Fazia calor e olhou avidamente para a sombra escura da orla da floresta distante; mas não quis afastar-se tanto das plantas e do cavalo que dali avistava. Continuou sentado nas pedras quentes, muito quieto, para ver as lagartixas, afugentadas pela sua presença; aspirou o aroma do hipericão e colocou as pequenas folhas contra a luz para contemplar as centenas de minúsculas nervuras.

Que assombro - pensou - cada uma destas mil folhinhas tem gravada uma minúscula constelação, fina como um bordado. Tudo era surpreendente e incompreensível, as lagartixas, as plantas, até as pedras, tudo, em suma. O padre Anselmo, tão seu amigo, já não podia ir buscar o hipericão, as pernas tolhidas imobilizavam-no durante dias e as suas artes medicinais não o curavam. Talvez morresse em dia próximo e as ervas, no seu quarto, continuariam a exalar perfume, mas o velho padre já lá não estaria. Talvez ainda vivesse por muito tempo, dez ou vinte anos, sempre com os mesmos raros cabelos e os mesmos engraçados feixes de rugas em volta dos olhos. E ele, Goldmundo, que seria dele daí a vinte anos? Aí, como tudo era incompreensível e triste, no fundo, embora também belo. Nada se sabia. Vivia-se e andava-se por este mundo, cavalgava-se pelas florestas, certas coisas olhavam-nos provocantes e prometedoras, despertando intensa nostalgia: uma estrela na noite, uma campainha azul, ura lago esverdeado pelos juncos, o olhar de uma vaca ou de uma pessoa; às vezes parecia que no mesmo instante aconteceria algo jamais visto e há muito almejado, que um véu cairia de todas as coisas; depois, passava o momento e nada acontecia, o enigma não se decifrava, a secreta magia não se resolvia e, por fim, envelhecia-se, adquiria-se a expressão ladina do padre Anselmo ou o aspecto piedoso do abade Daniel e continuava-se, sem nada saber talvez, de ouvido à escuta, esperando sempre.

Apanhou uma casca de caracol, que tilintou levemente de encontro às pedras e estava quente do sol. Contemplou as volutas, os canais espiralados, o caprichoso rejuvenescimento da coroazinha e o orifício vazio que rebrilhava como madrepérola. Segundo um velho hábito e costume, fechou os olhos para lhe sentir as formas, revirando-a entre os dedos, apalpando-a sem pressão, acariciando-lhe o relevo, enlevado no milagre da forma, na magia do corpóreo. Era esse - pensou meditativo - um dos inconvenientes da escola e da erudição: o espírito propendia a ver, a representar tudo em plano único, como se tudo tivesse só duas dimensões. Parecia-lhe isto denotar, de certo modo, uma lacuna e um defeito da razão; não conseguiu, porém, fixar aquele pensamento; o caracol escapou-se-lhe dos dedos e começou a sentir-se cansado e sonolento. Adormeceu ao sol, com a cabeça pendida sobre as ervas que, ao murcharem, exalavam intenso aroma. As lagartixas passeavam-lhe por cima dos sapatos, as plantas murchavam-lhe sobre os joelhos e, debaixo do plátano, Bless esperava e começava a impacientar-se.

Da floresta distante vinha aproximando-se uma mulher jovem, de vestido azul desbotado, lenço vermelho atado ao cabelo negro e rosto trigueiro queimado pelo sol do verão. Aproximava-se com uma trouxinha na mão e uma craveta escarlate na boca. Ao vê-lo sentado contemplou-o a distância, curiosa e desconfiada; vendo-o adormecido acercou-se cautelosa, de pés descalços e morenos, e parou a observá-lo. Desvanecera-se a desconfiança, o belo adolescente nada tinha de perigoso e agradou-lhe imenso - como teria ído ali parar, àqueles campos baldios? Tinha apanhado flores que já estavam murchas - notou ela sorridente.

Goldmundo abriu os olhos, regressando da floresta dos seus sonhos. Poisava-lhe a cabeça no regaço de uma mulher, cujos olhos próximos e desconhecidos, quentes e castanhos, olhavam os seus estremunhados e surpreendidos. Não se assustou, não havia perigo, as pupilas castanhas e cálidas olhavam-no afectuosas. A mulher, ternamente, sorria da sua surpresa e também ele, gradualmente, se abriu em sorriso. A boca dela desceu sobre os seus lábios entreabertos e, sorrindo, saudaram-se em terno beijo que lhe recordou a noite na aldeia e a garota das tranças. Mas o beijo não terminava, a boca feminina demorava-se sobre a sua, desafiando e brincando, aliciantemente; por fim prendeu-o, sôfrega e violenta, e apossou-se do sangue despertado do mais profundo do seu íntimo; assim, em longo jogo silente, iniciando-o suavemente, sugerindo procura e encontro, inflamando e calmando o ardor se entregou ao rapaz aquela mulher morena. Ergueu-se sobre ele a abóbada do ditoso e curto êxtase de amor que se incendeou áureo e abrasador até esmorecer e extinguir-se. Goldmundo, deitado de olhos fechados, permaneceu com a face encostada ao peito da mulher. Não tinham pronunciado uma só palavra. A mulher aquietou-se, afagou-lhe meigamente o cabelo, deixou-o voltar a si, lentamente. Por fim, ele abriu os olhos.

- Diz-me - perguntou ele - quem és tu?

- Lise - respondeu ela.

- Lise - repetiu, saboreando o nome. - Lise, gosto de ti.

Ela, aproximando-lhe a boca do ouvido, segredou-lhe: - Foi a primeira vez? Não conheceste mulher alguma antes de mim?

Goldmundo abanou a cabeça. Ergueu-se de um salto e olhou à sua volta para os campos e para o céu.

- Oh - exclamou -, o sol já está baixo, tenho de regressar.

- Aonde?

- Ao convento, ter com o padre Anselmo.

- O convento de Mariabronn? É lá que pertences? Não queres ficar ainda comigo?

- Bem gostaria.

- Então fica!

- Não, não pode ser. Ainda tenho que apanhar mais plantas.

- Vives no convento?

- Sou aluno da escola. Mas não fico lá mais. Posso vir ter contigo, Lise? Onde moras, onde é a tua casa?

- Não moro em parte alguma, meu tesouro. Não me queres dizer o teu nome? Chamas-te Goldmundo? Dá-me mais um beijo, meu pequeno Goldmundo, depois podes ir.

- Não moras em parte alguma? Onde dormes, então?

- Durmo contigo, se quiseres, na floresta ou sobre o feno. Vens hoje à noite?

- Venho. Mas aonde? Onde te encontro?

- Sabes imitar o pio da coruja?

- Nunca experimentei.

- Experimenta.

Goldmundo tentou. Ela riu-se e achou que estava bem.

- Sai esta noite do convento e imita o pio da coruja; ficarei aqui nas imediações. Gostas de mim, Goldmundo, meu menino?

- Gosto muito, Lise. Eu volto. Vai com Deus. Agora tenho de ir-me embora.

Goldmundo voltou ao convento, ao entardecer, com o cavalo a fumegar, e ficou satisfeito por encontrar o padre Anselmo muito ocupado. Um irmão tinha andado a chapinhar descalço no regato e enterrara no pé uma lasca de pedra.

Precisava, agora, de encontrar Narciso. Perguntou por ele a um dos Irmãos serventes do refeitório. Logo lhe responderam que Narciso não iria à refeição da noite, que era o seu dia de jejum e, decerto, estaria a dormir àquela hora, porque tinha noite de vigílias. Goldmundo correu. O lugar onde o amigo dormia, durante o longo retiro, era uma das celas de penitente no interior do convento. Para lá correu irreflectidamente. Escutou à porta, mas não se ouvia nada. Entrou devagarinho. O que estava fazendo era rigorosamente proibido mas, de momento, não se apercebeu disso.

Narciso estava deitado na estreita tarimba e, na penumbra, quase parecia morto, assim de costas, hirto, com a face afilada e pálida, e as mãos cruzadas sobre o peito; tinha os olhos abertos, não dormia. Olhou calado para Goldmundo, sem reprovação, mas tão imóvel e ensimesmado, tão presente em outro tempo e em outro mundo, que teve dificuldade em reconhecer o amigo e compreender-lhe as palavras.

- Narciso! Perdoa, perdoa que te perturbe, querido, não o faço por capricho. Sei que não deves falar comigo nesta ocasião, mas fala, peço-te que me atendas.

Narciso reflectiu, abriu os olhos como quem se esforça por acordar.

- É imprescindível? - perguntou com voz apagada.

- É, venho para me despedir de ti.

- Então é imprescindível. Não terás vindo em vão. Vem, senta-te ao pé de mim; um quarto de hora é tempo bastante; depois começa a primeira vigília.

Soergueu-se e sentou-se, emagrecido, sobre a tábua nua onde dormia; Goldmundo sentou-se a seu lado.

- Perdoa-me! - disse, consciente da falta. A cela, a tarimba escalvada, o rosto de Narciso marcado pelas vigílias e pela fadiga, o seu olhar semí-ausente, tudo lhe mostrava à evidência que o viera perturbar.

- Nada há que perdoar; não te importes comigo, estou bem. Queres despedir-te, dizes? Vais-te embora, então?

- Vou hoje ainda. Ai, nem sei como te conte! Tudo se resolveu de repente.

- Veio teu pai ou alguma mensagem dele?

- Não, nada disso. Foi a própria vida que veio ao meu encontro. Vou-me embora sem o pai e sem autorização. Olha, Narciso, vou ser a tua vergonha, vou fugir.

Narciso baixou os olhos sobre os dedos brancos e longos, afilados e espectrais, que saíam das amplas mangas do hábito. Na voz, que não no rosto severo e exausto, esboçou um sorriso ao dizer: - Temos muito pouco tempo, meu caro. Diz só o necessário, sê breve e conciso. - Ou queres que seja eu a dizer-te o que te aconteceu?

- Diz tu - pediu Goldmundo.

- Estás apaixonado, meu rapaz, encontraste uma mulher.

- Como adivinhaste novamente?

- Facilitas-me muito a tarefa. O teu estado, amice, revela todos os indícios da embriaguez a que se chama paixão. Agora fala, por favor.

Goldmundo poisou timidamente a mão sobre o ombro do amigo.

- Já disseste do que se trata. Mas desta vez, Narciso, não disseste bem como foi. É muito diferente. Estive lá fora, no campo, adormeci com o calor e, quando acordei, tinha a cabeça no regaço de uma linda mulher e logo senti que minha mãe, chegara para me levar. Não que tomasse aquela mulher por minha mãe, os olhos dela eram castanhos-escuros e o cabelo negro, ao passo que minha mãe era loira como eu e muito diferente. Contudo era ela: era ela que me chamava, era mensagem sua. Do fundo dos meus sonhos surgira subitamente aquela formosa mulher desconhecida; segurava a minha cabeça no seu regaço, olhava-me, sorrindo como uma flor, e foi boa para mim; logo ao primeiro beijo senti que se fundia em mim algo de pungente e maravilhoso. Toda a nostalgia sentida, todo o sonho, toda a suave angústia, todo o mistério dormente, tudo acordou, tudo magicamente se transmutou e recobrou sentido. Deu-me a conhecer a mulher e o seu segredo.

Em meia hora fez-me muitos anos mais velho. Sei agora o que não sabia. E fiquei também sabendo que terminara a minha permanência aqui, que não poderia cá estar mais um dia sequer. Vou-me embora logo que seja noite.

Narciso ouviu e acenou afirmativamente.

- Veio subitamente - disse - mas era pouco mais ou menos o que eu esperava. Pensarei muito em ti. Sentirei a tua falta, amice. Posso fazer alguma coisa por ti?

- Se puderes, intercede por mim junto do abade para que não me reprove inteiramente. Aqui na casa, é ele o único, além de ti, cujo juízo me não é indiferente. O dele e o teu.

- Bem sei... Tens qualquer outra pretensão?

- Tenho um pedido a fazer-te. Quando pensares em mim, reza por mim uma vez e... obrigado.

- Porquê, Goldmundo?

- Pela tua amizade, pela tua paciência e por tudo. E também por hoje me teres ouvido, apesar de agora te ser tão difícil. E também por não teres tentado deter-me.

- Como havia eu de querer deter-te? Sabes o que penso a esse respeito. Mas para onde vais, Goldmundo? Tens algum plano? Vais ter com essa mulher?

- Vou com ela; mas não tenho plano algum. Ela é de fora, não tem pátria, parece, é talvez cigana.

- Está bem; mas diz-me, caro, sabes que o teu caminho com ela talvez seja breve? Julgo que não deverás confiar muito nela. Talvez tenha parentes, ou marido e quem sabe como serás recebido.

Goldmundo encostou-se ao amigo.

- Bem sei - disse ele - apesar de não ter ainda pensado nisso. Como te disse, não tenho plano algum. Essa mulher foi boapara mim, todavia não é ela o meu fito. Vou com ela, mas não por causa dela. Vou porque tenho que ir, porque ouço o apelo.

Calou-se e suspirou; permaneceram encostados um ao outro, tristes e contudo felizes pelo sentimento daquela indestrutível amizade. Goldmundo continuou:

- Não me julgues completamente cego e inconsciente. Não. Vou de bom grado, porque sinto que tem que ser e porque foi maravilhoso o que hoje vivi; mas não julgo ir para um céu aberto. Suponho que o caminho será difícil. Todavia, será belo também; assim o espero. É tão bom pertencermos e dar-mo-nos a uma mulher! Não te rias de mim, mesmo que te pareça louco o que digo. Repara: amar uma mulher, dar-mo-nos por completo, envolvê-la em nós e sentirmo-nos por ela envolvidos, não é bem o que chamas estar apaixonado e de que zombas um pouco. Para mim é o caminho para a vida e para o sentido da vida. - Narciso, tenho de deixar-te; amo-te, Narciso, e agradeço-te que me tivesses sacrificado hoje parte do teu sono. Custa-me separar-me de ti. Não me esquecerás?

- Não aumentes a minha e a tua mágoa! Nunca te esquecerei. E tu voltarás, peço-te e espero-te. Se alguma vez te encontrares em apuros, vem ter comigo ou chama-me. - Adeus Goldmundo, vai com Deus!

Tinha-se levantado. Goldmundo abraçou-o. Conhecendo a relutância de Narciso por carícias, não o beijou, só lhe afagou as mãos.

Caíra a noite. Narciso fechou a cela atrás de si e encaminhou-se para cima, para a igreja, e as sandálias matraqueavam o lajedo. Goldmundo seguiu com olhar enternecido o vulto esguio até desaparecer como sombra na extremidade do corredor, tragado pela escuridão da porta da igreja, absorto e possuído pela exigência do cumprimento dos deveres, exercícios e obrigações. Oh, como tudo era estranho, como tudo era infinitamente insólito e confuso! Como fora estranho, também, e assustador, acorrer junto do amigo, com o coração transbordante no desabrochar da embriaguez amorosa, precisamente na altura em que ele, votado à meditação, consumido por jejuns e vigílias, sacrificava a sua juventude, submetia o seu coração e a sua carne à escola da obediência, para servir somente o espírito e tornar-se por completo um minister verbi divinil Jazendo embora mortalmente exausto e desfalecido, de rosto pálido e mãos emaciadas como um morto, logo se prestara, esclarecido e benévolo, a ouvir o amigo e atender o apaixonado ainda rescendente a mulher, sacrificando-lhe o escasso repouso entre duas penitências! Era estranho e maravilhosamente belo, também, este modo de amar, totalmente despojado de egoísmo, totalmente espiritualizado. Tão diferente daquele amor de hoje, no campo soalhento, daquele inebriado e irresponsável jogo sensual! Ambos eram, afinal, formas de amor. Narciso desaparecia-lhe agora depois de lhe ter mostrado novamente, naquela hora de despedida, como eram radicalmente diferentes e dissemelhantes. Narciso ficara diante do altar, sobre os joelhos fatigados, preparado e purificado para uma noite preenchida de oração e meditação, interrompida apenas por duas horas de repouso. Ao passo que ele, Goldmundo, fugia para Lise, para repetir aqueles doces jogos animais, algures entre as árvores. Narciso saberia tecer sobre o caso notáveis considerações. Mas Goldmundo não era Narciso, não lhe incumbia aprofundar esses belos e arrepiantes enigmas e enredos nem formular sobre eles importantes comentários. Incumbia-lhe apenas avançar pelos loucos caminhos gold-múndicos. Apenas lhe incumbia dar-se e amar com igual fervor o amigo que naquela hora estava rezando na igreja e a jovem mulher que o esperava, bela e fogosa.

Quando se esgueirou por entre as tílias da cerca em direcção à saída do moinho, o coração alvoroçado por mil discordantes sentimentos, sorriu, ao pensar repentinamente na noite em que abandonara o convento pelo mesmo caminho, com Conrado, para “ir à aldeia”. Que emoção e secreto temor sentira, ao empreender aquela pequena excursão proibida; hoje ia embora para sempre, trilhava caminhos mais perigosos e proibidos, sem medo algum, não pensava no porteiro, no abade, no mestre.

Desta vez não havia pranchas à beira do regato, teve de transpô-lo sem ponte. Despiu o fato, arremessou-o para a outra margem e atravessou nu, com a água pelo peito, a corrente impetuosa do ribeiro frio e profundo. Chegado ao lado de lá, enquanto se vestia, teve de novo Narciso no pensamento. Reconhecia agora, com evidente e vexatória clareza, que estava fazendo naquela hora o que Narciso antevira e seguindo para onde ele o encaminhara. Viu nitidamente aquele Narciso inteligente e um tanto irónico que lhe ouvira tanta tolice e que, uma vez, em hora importante das sua vida, lhe abrira os olhos tão dolorosamente. Voltou a ouvir nitidamente certas palavras pronunciadas pelo amigo nessa ocasião: - Tu dormes no regaço da mãe, eu velo no eserto. Tu sonhas com raparigas, eu com rapazes.

Terrivelmente só no meio da noite, por instantes sentiu o coração opresso. O convento que lhe fora um lar, ilusório sem dúvida, mas por tanto tempo amado, ficava para trás.

Simultaneamente compreendeu que Narciso deixara de ser o mentor e o guia competente para o iniciar. Entrara hoje em domínios onde teria por si só de encontrar o caminho onde nenhum Narciso o poderia orientar. Regozijava-o a consciência da emancipação; a visão retrospectiva da tutela sob que vivera envergonhava-o e oprimia-o. Agora, abrira os olhos e já não era criança nem pupilo. Era agradável reconhecê-lo. Todavia - era custoso o adeus! Saber o amigo lá em cima, ajoelhado na igreja, e não lhe oferecer nada, não o ajudar, não lhe poder ser útil! Separar-se dele por tanto tempo, quem sabe se para sempre e nada saber dele, não mais ouvir a sua voz, não tornar a ver os seus olhos bons e nobres!

Arrancou-se a esta meditação e seguiu pelo caminho pedregoso. Quando chegou a uns cem passos dos muros do convento parou, respirou fundo e imitou, o melhor que pôde, o piar do mocho. Respondeu-lhe um pio semelhante, lá em baixo, ao longe, para as bandas do ribeiro.

- Chamamos um pelo outro como os bichos - pensou ele e recordou as horas de amor daquela tarde; reparou então que entre ele e Lise, somente findas as carícias, se tinham trocado palavras, essas mesmo escassas e insignificantes. Com Narciso, que longas conversas tivera! Agora, porém, ao que parecia, entrara em um mundo onde não se falou, onde o piar do mocho servia de chamamento, onde as palavras não tinham significado. Estava de acordo, hoje à tarde não sentira necessidade de palavras nem de pensamentos, só de Lise sentira necessidade, e da tácita, muda e cega convulsão, do suspiroso delíquio.

Lise lá estava, vinda da floresta ao seu encontro. Goldmundo estendeu os braços para lhe tocar, agarrou-lhe, com mãos carinhosas e tacteantes, a cabeça, o cabelo, o colo e a nuca, o corpo esbelto e as ancas firmes. Abraçados, seguiram por ali fora, sem falar nem perguntar para onde, Lise caminhava segura pela floresta imersa na noite; custava-lhe a acompanhá-la; os olhos dela, como os da raposa ou da marta, pareciam ver na escuridão, caminhava sem tropeçar nem ir de encontro a obstáculos. Deixou-se guiar através da floresta e da noite, por esse obscuro e misterioso mundo, sem palavras nem pensamentos. Já não pensava no convento de onde fugira, nem em Narciso.

Atravessaram, calados, parte da escura floresta, ora por sobre musgo macio e fofo, ora por cima de rijas raízes vertebradas; ora sob o céu transparente, por entre altas mas pouco densas copas, ora em completa escuridão; havia hastes roçando pela cara e picos de silvas que se agarravam ao fato; mas ela orientava-se e encontrava o caminho, raro parava ou hesitava. Após longa caminhada chegaram a uns abetos isolados e bastante separados uns dos outros; descobria-se a perder de vista o pálido firmamento nocturno; a floresta acabara, encontravam-se em um vale, a meio de um prado de adocicado cheiro a feno. Passaram a vau um regato silencioso; ali, em campo aberto, maior silêncio ainda havia; nem o rumorejar das ramagens, nem o restolhar de algum animal espantadiço, nem o estalido dos galhos secos se ouvia.

Lise parou junto de uma meda de palha.

- Ficamos aqui - disse ela.

Sentaram-se no feno, ambos um pouco cansados, respirando fundo e gozando o repouso. Estenderam-se ao comprido a ouvir o silêncio; sentiram secar o suor na testa e, pouco a pouco, refrescaram-se as faces. Goldmundo, enroscado em agradável cansaço, brincava, estendendo e encolhendo os joelhos, sorvendo a noite e aspirando o cheiro a feno, alheio ao passado e ao futuro. Só gradualmente se foi deixando atrair e enfeitiçar pelo perfume e calor da sua amada; respondia, de quando em quando, às carícias das suas mãos, até que, enlevado, a sentiu incender-se e aproximar-se cada vez mais. Não, não eram necessários pensamentos nem palavras. Sentiu claramente tudo o que era belo e importante: o vigor juvenil e a beleza simples e sã daquele corpo de mulher abrasado em desejo; pressentiu também que, desta vez, ela queria ser amada de maneira diferente, não o seduziria e iniciaria, esperaria pelo desejo e iniciativa dele. Suspenso, deixou-se percorrer pelas correntes do sangue, sentiu maravilhado o misterioso atear do fogo latente em ambos, que tornava aquele pequeno leito em foco ardente e latejante da noite silenciosa.

Ao curvar-se sobre o rosto de Líse para a beijar, viu subitamente resplandecerem-lhe os olhos e a testa, banhados por suave luz; surpreendido, assistiu ao alvorecer da pálida claridade que rapidamente aumentou. Compreendeu então e voltou-se: nascia a lua por cima da linha das florestas que se espraiavam, negras, ao longe. Vendo a luz suave e clara banhar-lhe, maravilhosa, a testa, as faces e o colo redondo e luminoso, disse baixinho, extasiado: - Como és linda!

Ela sorriu como quem recebe uma dádiva; soergueu-a, abriu-lhe o vestido, ajudou-a a despi-lo, desembaraçou-a da roupa: os ombros e o peito resplandeceram à luz fria do luar. Rendido, seguiu com olhos e lábios as sombras delicadas, contemplando-a e beijando-a; enfeitiçada, ela imobilizou-se, de olhos baixos e expressão festiva, como se, pela primeira vez naquele instante, lhe tivesse sido revelada e outorgada a sua beleza.

 

Enquanto os campos refrescavam e de hora a hora a lua mais alto subia, os dois amantes, sobre o leito de feno suavemente iluminado, entregavam-se aos jogos do amor; ora adormeciam, ora acordavam e voltavam um para o outro, em mútuo ardor enlaçados, para logo tornarem a adormecer. Ficaram exaustos, depois do último abraço. Lise aninhara-se no feno e respirava arquejante; Goldmundo, de costas e imóvel, contemplava o pálido céu luarento; invadia-os grande tristeza de que se refugiavam no sono. Dormiram profunda e desesperada-mente, com a avidez de quem dorme pela última vez, como se, condenados a eterna vigília, tivessem que absorver antecipadamente, naquelas horas, todo o sono do mundo.

Ao acordar, Goldmundo viu Lise a arranjar os cabelos negros. Demorou-se a olhá-la, distraído e ainda estremunhado.

- Já acordada? - disse por fim. Ela voltou-se bruscamente, como que assustada.

- Tenho de ir-me embora - disse ela embaraçada e comprometida. - Não queria acordar-te. Goldmundo.

- Já estou acordado, como vês. Mas, porque havemos de ir já de abalada? Não somos vagabundos?

- Eu sou - disse Lise. - Mas tu és do convento.

- Não volto para lá; sou como tu, estou completamente só e não tenho projecto algum. Vou contigo, é claro.

Ela desviou o olhar.

- Goldmundo, não podes vir comigo. Tenho que voltar para junto de meu marido, que vai bater-me, com certeza, por ter passado a noite fora; direi que me perdi, mas ele não acredita, já se sabe.

Goldmundo lembrou-se, naquele instante, do aviso de Narciso; era então o que estava a acontecer.

Levantou-se e estendeu-lhe a mão.

- Enganei-me - disse ele - julguei que ficaríamos juntos. Tencionavas realmente deixar-me adormecido e fugir sem me dizeres adeus?

- Cuidei que te zangasses ou me batesses, até. Que o meu marido me dê pancada, está certo, tem de ser, é da praxe. Mas não queria que também tu me maltratasses.

Goldmundo agarrou-lhe a mão.

- Lise - disse - não te maltrato hoje nem nunca. Não preferias ficar comigo a voltar para junto de teu marido, se ele te bate?

Ela esforçou-se por libertar a mão.

- Não, não - gritou com voz chorosa. Goldmundo, sentindo que o coração dela se apartava do seu e que preferia sovas do outro a boas palavras suas, soltou-lhe a mão; Lise desatou a chorar e ao mesmo tempo deitou a correr. Fugia, com as mãos diante dos olhos humedecidos. Goldmundo nada disse e seguiu-a com o olhar. Deu-lhe para vê-la assim afastar-se a correr pelos campos ceifados, impelida por uma força estranha, que dava que pensar a Goldmundo. Teve dó dela e também um pouco de si próprio; não tinha tido sorte, ao que parecia; para ali ficava estupidamente só e abandonado. Continuava, entretanto, cansado e ávido de sono, nunca se sentira tão exausto. Mais tarde tinha tempo para sentir-se infeliz. Tornou a adormecer e só voltou a si quando o sol, já alto, o aqueceu.

Estava completamente refeito; ergueu-se, ágil, e foi ao ribeiro lavar-se e beber água. Assaltaram-no, agora, muitas recordações; das horas de amor daquela noite exalavam-se, como flores de exótico aroma, imagens e emoções ternas e deliciosas. Nelas cismava quando se pôs de novo a caminho e voltou a saboreá-las, a aspirá-las, a senti-las pelo tacto. Quantos sonhos lhe realizara aquela mulher trigueira e desconhecida, quantas flores em botão fizera desabrochar, quanta curiosidade e nostalgia saciara, quanta despertara!

Na sua frente estendiam-se campos e charnecas, campos baldios ressequidos e florestas sombrias por detrás das quais devia haver herdades e moinhos, aldeias e cidades. Pela primeira vez se abria o mundo à sua frente, o mundo expectante, pronto a acolhê-lo, a beneficiá-lo e a prejudicá-lo. Não era já o escolar que via o mundo pela janela; a sua viagem não era um passeio cujo termo inevitável seria o regresso. Aquele vasto mundo tornara-se real, sentia-se integrado nele, pressentia nele, latente, o seu destino; aquele céu era seu, aquele bom ou mau tempo era também seu. Como se sentia pequeno no meio desse mundo enorme, pequeno como uma lebre ou um besouro, percorrendo a imensidade azul e verde. Nenhuma sineta tocava a matinas, nem chamava para o culto, para a lição ou para a refeição do meio-dia.

Mas que fome sentia! Meia broa de centeio, uma tigela de leite e um caldo de farinha - oh, mágicas recordações! O estômago acordara com fome de lobo. Ao passar por um campo de trigo onde as espigas estavam quase maduras, debulhou-as com as unhas e com os dentes e mastigou vorazmente os grãos pequenos e escorregadios. Colheu espigas e mais espigas até as algibeiras abarrotarem. Encontrou depois avelãs ainda verdes e cravou os dentes, voluptuosamente, nas cascas estaladiças; delas fez também boa provisão.

Recomeçava agora a floresta, uma floresta de abetos com carvalhos e freixos entremeados; aí havia murtinhos em grande abundância e parou para descansar, comer e refrescar-se. Por entre a erva fina e dura que juncava o chão, despontavam campainhas azuis; falenas castanhas, luminosas, levantavam voos caprichosos e desapareciam aos ziguezagues. Em floresta semelhante vivera Santa Genoveva e Goldmundo sempre tivera predilecção pela história daquela santa. Oh, como gostaria de encontrá-la! Ou de encontrar um ermitério, um velho monge de barbas, recolhido em uma gruta ou cabana. Também, de bom grado, saudaria lenhadores, se lá os houvesse; ou mesmo salteadores, que nenhum mal lhe fariam; seria agradável encontrar gente, fosse quem fosse. Sabia, no entanto, que teria de andar muito na floresta, talvez um dia e mais outro ainda, sem encontrar vivalma. Se isso lhe estava reservado, teria que se conformar. Não devia pensar muito, devia deixar acontecer o que tivesse de suceder. Ouviu um picanço a martelar e tentou espiá-lo. Perdeu muito tempo antes de conseguir encontrá-lo, porém lá o descobriu; demorou-se a observar como ele, sozinho, aferrado ao tronco de uma árvore, debicava e abanava a cabeça diligente. Que pena não se poder falar com os animais! Que bom seria se pudesse interpelar o picanço e dirigir-lhe palavras amigas; talvez viesse a saber alguma coisa da sua vida nas árvores, dos seus trabalhos e alegrias. Oh, se pudéssemos metamorfosear-nos!

Lembrava-se de ter desenhado figuras na ardósia, nas suas horas vagas: flores, folhas de árvores, animais e cabeças humanas. Quantas vezes se entretivera neste jogo, criando, como pequeno demiurgo, criaturas moldadas à sua vontade; desenhava um cálice de flor com olhos e boca, formava figuras da folhagem de um ramo, encimava uma árvore por uma cabeça. Neste jogo passara horas e horas” encantado e feliz; sentia-se mago, traçava linhas e deixava surpreender-se por elas, por o que poderia surgir da figura esboçada: a folha de uma árvore, a cabeça de um peixe, a cauda de uma raposa, ou a sobrancelha de um rosto. Devíamos também ser susceptíveis de metamorfose, pensava ele, como aquelas linhas brincalhonas da sua ardósia! Goldmundo gostaria tanto de se transformar em picanço, por um dia ou por um mês; apetecia-lhe morar no cimo das árvores, correr lá no alto pelos troncos lisos, debicar com rijo bico o tronco da árvore e, fincado nas penas da cauda, falar a linguagem dos picanços e tirar bons petiscos de dentro da casca; as bicadas do picanço na madeira ressoavam suaves mas enérgicas.

Goldmundo encontrou muitos animais durante a travessia da floresta. Encontrou lebres que surgiam subitamente das moitas quando ele se aproximava: olhavam fitas para ele, depois davam meia volta e lançavam-se a correr à desfilada, de orelhas acaçapadas, mostrando a mancha clara debaixo da cauda. Em uma pequena clareira encontrou uma cobra de grande comprimento, que não se pôs em fuga porque não estava viva, era uma pele vazia que ele levantou do chão; examinou o desenho cinzento e castanho que corria ao longo das escamas do dorso; o sol passava-lhe através, era fina como teia de aranha. Viu melros negros de bico amarelo, que o fitavam com olhinhos muito juntos, pretos e timoratos, e fugiam em voos rentes à terra. Tentilhões e pintarroxos havia imensos. Em outro lugar da floresta deparou com uma peça cheia de água verde e espessa sobre a qual corriam e se entrecruzavam, velozes e afadigadas, aranhas pernaltas, entregues a um jogo incompreensível; por cima esvoaçavam meia dúzia de libélulas de asas azuis-escuras. Mais adiante, ao cair da noite, viu - ou melhor, não viu senão ramos remexidos e revolvidos - mas ouviu o rumor de galhos quebrados e terra húmida esparrinhada por um bicho enorme, que rompeu com formidável ímpeto pelo mato, talvez um veado, talvez um javali, não chegou a sabê-lo. Parou por momentos para tomar fôlego e refazer-se do susto; muito excitado, pôs-se atento à pista do animal; já tudo havia regressado ao silêncio e ele ainda à escuta, com o coração descompassado.

Não conseguiu sair da floresta e lá pernoitou. Enquanto procurava lugar para dormir e preparava uma camilha de musgo, tentou imaginar o que seria dele se nunca mais conseguisse sair da floresta e lá tivesse que ficar para sempre. Chegou à conclusão de que seria uma terrível desgraça! Não era impossível viver alimentado de murtinhos ou passar a noite sobre o musgo, tanto mais que, decerto, conseguiria construir uma cabana e talvez mesmo acender lume; mas ficar para sempre só, habitar para sempre no meio de troncos de árvores plácidas e dormentes, viver no meio de animais temerosos do homem e com quem não podia falar, seria insuportavelmente triste. Não ver ninguém, não dar a ninguém os bons dias e as boas noites, não ver caras nem olhos humanos, não ver mulheres e raparigas, nunca mais dar um beijo, nem sentir o jogo delicioso dos lábios e do corpo, era impensável! Se tal lhe estivesse reservado, tentaria transformar-se em bicho, em urso ou veado, nem que tivesse de renunciar à eterna bem-aventurança. Ser urso e amar uma ursa, já não era mau, era pelo menos muito melhor do que conservar a razão e a fala e vegetar para ali sozinho, triste e sem amor.

Antes de adormecer na camilha de musgo, ouviu, curioso e aterrorizado, os vários rumores nocturnos da floresta, enigmáticos e incompreensíveis. Seus companheiros, com eles teria de viver e habituar-se a ouvi-los, com eles teria de medir-se e pactuar; pertencia agora ao mundo da raposa e da corça, do pinheiro e do abeto; com eles teria de viver e compartilhar do sol e do ar, com eles esperar o dia, passar fome com eles, ser hóspede deles.

Adormeceu e sonhou com homens e bichos; viu-se transformado em urso e devorando Lise sob as suas carícias. A meio da noite, acordou sobressaltado, com o coração infinitamente ansioso, sem saber porquê; perturbado, cismou longamente no motivo da aflição. Ocorreu-lhe, então, que se deitara ontem e hoje sem rezar a oração da noite. Levantou-se, ajoelhou e rezou por duas vezes a pequena prece, pela véspera e pelo dia de hoje. Em breve voltou a adormecer. De manhã, ao acordar, olhou surpreso à sua volta, esquecido de onde estava. O pavor da floresta começara a decrescer e confiou-se com renovada alacridade àquela vida, continuando a caminhada orientado pelo sol. A certa altura, encontrou em nova zona da floresta, completamente plana, uma mata de pinheiros grossos, velhos e erectos; enquanto seguia por entre aquelas colunas, lembrou-se dos pilares da igreja grande do convento, precisamente aquela sob cujo portal ainda há pouco vira desaparecer o seu amigo Narciso - quando? Teria sido, realmente, há dois dias apenas?

Somente após dois dias e duas noites saiu da floresta e descortinou, com alegria, os vestígios da proximidade do homem: terras cultivadas, faixas de terreno semeadas de centeio e aveia, prados serpenteados de estreitos carreiros, que se desenrolavam ao longe. Goldmundo colheu centeio e mastigou-o; a terra cultivada sorria-lhe amena e, depois do longo embrenhamento na floresta, tudo se lhe antolhava humano e sociável: o carreirinho, a aveia, as centáureas já esmaecidas. Iria ver gente. Após uma escassa hora de marcha passou por um campo na extrema do qual se erguia uma cruz, a cujos pés ajoelhou e rezou. Ao contornar o cabeço de uma colina encontrou-se, de repente, diante de umbrosa tília e ouviu, encantado, a melodia de uma fonte onde a água caía da caleira de pau para uma grande celha; bebeu uns golos da água fresca e saborosa e viu com satisfação que, por detrás de uns sabugueiros de bagas já escuras, se erguiam os telhados de colmo de meia dúzia de casas. Mais profundamente ainda do que todos estes sinais acolhedores, o comoveram os mugidos de uma vaca, agradavelmente quentes e reconfortantes como uma saudação de boas-vindas.

Olhando em volta, aproximou-se da casa de onde provinham os mugidos. A porta, sentado na terra, um garoto pequeno de cabelos arrui-vados e olhos azuis-claros, fazia, com a terra do chão e a água de um vaso de barro, uma massa que já lhe cobria as pernitas nuas. Com ar grave e feliz, apertava na mão aquela lama, via-a escorrer entre os dedos, fazia bolas e até do queixo se servia para a tarefa de amassar e modelar.

- Deus te salve, pequeno - disse Goldmundo muito cordialmente. Mas, quando a criança ergueu os olhos e viu o estranho, abriu a boquita, franziu a cara rechonchuda e gatinhou para dentro de casa a chorar. Goldmundo seguiu-a e entrou na cozinha; estava tão imersa em penumbra que, vindo da claridade do meio-dia, não conseguiu de início discernir coisa alguma. Para o que desse e viesse deu piedosamente os bons dias, mas não obteve resposta; depois, por entre o berreiro do garoto assustado, distinguiu uma voz fraca e senil que consolava a criança. Por fim, no escuro, levantou-se e aproximou-se dele uma velhinha franzina, que olhou para o visitante, protegendo os olhos com a mão.

- Deus te salve, tiazinha - exclamou Goldmundo - que os santos abençoem o teu bondoso semblante; há três dias que não vejo um rosto humano.

A velhota olhava-o, com o olhar inexpressivo da vista cansada.

- Que desejas? - perguntou hesitante. Goldmundo estendeu-lhe a mão e afagou-a.

- Queria dar-te os bons dias, descansar um pouco e ajudar-te a acender o lume. Também não rejeito um pedaço de pão, se mo quiseres dar, mas não é pressa.

Viu, encostado à parede, um banco onde se sentou, enquanto a velhota cortava um naco de pão para o rapazito que, alvoroçado e curioso, mas a todo o momento pronto a romper em choro e a fugir, não tirava os olhos do desconhecido. A velhota cortou outro naco de broa e levou-o a Goldmundo.

- Obrigado - disse ele - Deus te pague.

- Tens a barriga vazia? - perguntou a mulher.

- Vazia não, está cheia de murtinhos.

- Então come! De onde vens?

- Do convento de Mariabronn.

- És padre?

- Não. Andei lá a estudar. Agora vou de viagem.

A velhota olhou para ele, meio trocista, meio alvar, abanando ligeiramente a cabeça sobre o pescoço magro e enrugado. Deixou-o comer uns pedaços de pão e levou o rapazito de novo lá para fora, para o sol. Depois voltou e perguntou curiosa: - Sabes algumas novidades?

- Não sei. Conheces o padre Anselmo?

- Não; que tem ele?

- Está doente.

- Doente? Está a morrer?

- Não sei. Sofre das pernas. Não pode andar.

- Está a morrer?

- Não sei; talvez.

- Deixá-lo lá morrer. Tenho que pôr a sopa ao lume; ajuda-me a cortar aparas.

Deu-lhe um cavaco de pinheiro, bem seco à lareira, e uma faca. Goldmundo cortou aparas, tantas quantas ela lhe pediu e viu-a colocá-las sobre a cinza, curvar-se e soprar até pegarem fogo. Empilhou então, segundo uma ordem rigorosa e secreta, camada sobre camada de lenha de pinheiro e de faia; na lareira, a chama ergueu-se em clara labareda e a velhota chegou para o lume a grande marmita negra que pendia da chaminé, presa a uma corrente fuliginosa.

Goldmundo, a seu mando, foi buscar água à fonte, desnatou a tigela do leite e sentou-se depois, na penumbra fumarenta, a ver as chamas brincar e, por cima delas, aparecer e desaparecer no clarão vermelho a cara ossuda e engelhada da anciã, ao lado, por detrás do tabique de vigas, ouvia a vaca na manjedoura a esgravatar, a dar marradas. Tudo aquilo era imensamente agradável. A tília, a fonte, as chamas do lume debaixo da panela, o resfolgar e triturar da vaca, os seus golpes surdos de encontro ao tabique, o quarto meio escurecido, com a sua mesa e banco, e a lida da velhinha; tudo aquilo era bom e belo, cheirava a comida e a paz, a calor humano e a lar. Soube pela velhota que criavam ali também duas cabras, que para trás da casa havia também uma pocilga e que ela era a avó do lavrador, a bisavó do garoto. Este chamava-se Kuno, entrava e saía de vez em quando e, embora não desse palavra e olhasse um pouco desconfiado, já não chorava.

Quando chegou o lavrador com a mulher admiraram-se de encontrar em casa um estranho. O homem ia começar a ralhar, agarrou Goldmundo pelo braço, desconfiado, para lhe ver a cara à luz do dia; depois riu-se, deu-lhe uma cordial palmada nas costas e convidou-o para a ceia. Sentaram-se, e todos foram molhando o pão na terrina do leite, até ficar só um resto que o lavrador bebeu.

Goldmundo perguntou se podia ficar até ao dia seguinte e dormir lá em casa. Não - respondeu o homem - que não havia lugar; mas lá fora, por todo o lado, ainda havia feno bastante, fácil era encontrar poiso para dormir.

A mulher, com o garoto ao pé, não participou na conversa; mas o seu olhar curioso tomou posse do jovem desconhecido, durante a refeição. Primeiro, impressionaram-na os olhos e o cabelo encaracolado; depois, apreciou também o belo e alvo pescoço, as mãos finas e lisas, a beleza e graciosidade dos gestos. Que belo e garboso era o visitante, e tão jovem ainda! Mas o que mais a atraía e seduzia era a voz, aquela voz jovem e máscula, secretamente cantante, quente, suave e cativante, em jeito de carícia. Gostaria de ficar a ouvi-la tempo sem fim.

Finda a refeição o lavrador teve trabalho no curral; Goldmundo saíra de casa e lavara as mãos na fonte, sobre cujo rebordo baixo se sentara a refrescar-se e a ouvir correr a água. Estava indeciso. Não tinha ali nada mais que fazer, mas dava-lhe pena ir-se já embora. Foi então que a mulher saiu de casa, com um balde na mão para encher debaixo da bica. Disse-lhe a meia voz: - Olha, se estiveres aqui próximo esta noite, levo-te de comer; além para cima, por detrás do campo de centeio, há feno que só amanhã é recolhido. Estarás lá ainda esta noite?

Goldmundo encarou o rosto ardente, viu os braços robustos pegarem no balde, o olhar quente de uns grandes olhos claros. Sorriu-lhe e acenou que sim com a cabeça, enquanto ela, com o balde cheio, se afastava e desaparecia pela porta escura. Grato e contente, Goldmundo ficou a ouvir correr a água. Pouco depois entrou na casa, procurou o lavrador a quem apertou a mão bem como à avó e agradeceu-lhes a hospitalidade. Dentro da casa cheirava a lume, a fuligem e a leite. Ainda há pouco lhe tinha sido refúgio e lar, agora era já só uma casa estranha. Saiu, despedindo-se com uma saudação.

Para lá do aglomerado de casas encontrou uma capela e, próximo, um belo bosque de possantes carvalhos velhos em terreno juncado de erva miúda. Passeou à sombra, de um lado para o outro, por entre os grossos troncos. Como eram estranhas as mulheres e o amor; não precisavam de palavras, na verdade. Àquela bastara indicar-lhe o lugar do encontro, tudo o mais fora tácito. Como comunicara então? Pelos olhos, por certa entoação da voz velada e, mais ainda, por um aroma, um leve e ténue eflúvio pelo qual, mulheres e homens, reconheciam o recíproco desejo. Que estranha, aquela delicada linguagem secreta que tão rapidamente aprendera! Esperava impaciente pela noite, cheio de curiosidade de conhecer aquela mulher alta e loira, os olhares e entoações, o corpo, gestos e beijos que ela teria - decerto, muito diferentes dos de Lise. Onde estaria agora a Lise do cabelo preto repuxado, da pele morena, dos breves suspiros? Teria sido maltratada pelo marido? Pensaria nele ainda? Ou teria já encontrado outro homem, como ele encontrara hoje outra mulher? Tudo passava tão rapidamente, por toda a parte a sorte lhe sorria e era tão bela, amável e singularmente fugaz. Era pecado, e havia ainda bem pouco tempo que teria preferido matar-se a cometê-lo. Agora, era já a segunda mulher por quem esperava e tinha a consciência tranquila e em paz. Quer dizer, tranquila, talvez não; mas não era o adultério e a luxúria que o inquietavam e lhe pesavam na consciência. Era outra coisa que não sabia dizer por palavras. Era um sentimento de culpa, que não teria sido por nós cometida, que trazíamos connosco ao nascer. Talvez aquilo a que na teologia se chamava o pecado original. Podia muito bem ser; pois a própria vida comportava algo que era uma culpa - se assim não fosse porque se sujeitaria a penitências de condenado uma criatura tão pura e sages como Narciso? Porque sentiria ele próprio, Goldmundo, algures no íntimo, aquela culpa? Não era feliz? Não era jovem e são, não era livre como pássaro no ar? Não o amavam as mulheres? Não era belo sentir que, amando-as, lhes dava o mesmo profundo prazer que ele próprio sentia? Porque não era então completamente feliz? Porque penetraria na sua recente ventura, tal como na virtude e sageza de Narciso, por vezes, aquela estranha dor, aquela ligeira angústia, aquele queixume perante o efémero e transitório? Porque teria que meditar e cogitar naquilo, às vezes, sabendo embora que não era um pensador?

Contudo, era belo viver. Colheu na erva uma flor roxa, aproximou-a dos olhos e mergulhou a vista na pequenina e estreita corola onde corriam veios e viviam minúsculos órgãos, finos como cabelos; vibrava ali vida, fremia ali prazer, tal como no seio de uma mulher ou no cérebro de um pensador. Oh, que pena saber-se tão pouco! Porque não se poderia falar com aquela flor? Mas, se nem dois seres humanos podiam realmente falar um com o outro, se era preciso para isso um acaso feliz, uma amizade e disponibilidade especiais! Que sorte o amor não precisar de palavras, de contrário seria cheio de equívocos e de desvarios. Nem dez mil palavras eruditas ou poéticas poderiam expressar os olhos de Lise, semicerrados, entornados, deixando apenas ver o branco na fenda das pálpebras frementes - ai, nada, nada se conseguia exprimir, nada se podia pensar a fundo - contudo, constantemente, sentíamos a imperiosa necessidade de falar, a eterna tentação de pensar!

Contemplou as folhas da plantazinha colocadas em torno da haste segundo uma ordem tão curiosa como inteligente e bela. Também os versos de Vergílio, que ele amava, eram belos; mas havia em Vergílio muito verso sem metade da clareza e inteligência, metade da beleza e do significado que possuíam aquelas folhinhas dispostas em espiral ao longo da haste. Que ditosa ventura, que nobre e significativo acto, o de um homem que conseguisse criar uma daquelas flores. Mas ninguém, jamais, o conseguira, nem herói nem imperador, nem papa nem santo.

Quando o sol já declinava, pôs-se a caminho em busca do lugar que a mulher lhe indicara. E ficou à espera. Como era bom esperar e saber que uma mulher viria, só por amor, ao seu encontro.

Ela chegou, trazendo embrulhado em guardanapo de linho, um naco de pão e uma fatia de toucinho. Desatou o embrulho e entregou-lho, dizendo:

- É para tu comeres. -- Mais tarde - disse ele -, não tenho fome de pão, tenho fome de ti. Mostra-me as prendas lindas que me trouxeste!

Trouxera-lhe muito belas prendas: lábios sequiosos, dentes fortes e coruscantes, braços robustos bronzeados pelo sol, mas branca e fina a tez do colo e do corpo. Poucas palavras sabia, mas teve delicioso e fascinante gorjeio ao contacto das mãos dele, tão delicadas, meigas e sensíveis como nunca outras iguais sentira; percorreu-a um frémito e Goldmundo ouviu-lhe na garganta um ronron felino. Poucas artes de amor sabia, menos do que Lise, mas era maravilhosamente vigorosa, apertava o amante como se quisera despedaçá-lo. O seu amor era simples, infantil, sôfrego e ainda púdico, apesar do arrebatamento e violência. Fê-lo muito feliz.

Despediu-se suspirosa; custou-lhe a arrancar-se de junto dele, mas não podia demorar-se.

Goldmundo ficou sozinho, feliz mas triste. Só mais tarde se lembrou do pão e do toucinho, que solitariamente comeu, quando já era noite cerrada.

 

Havia já muito tempo que Goldmundo seguia a sua vida errante, raramente pernoitando duas vezes seguidas no mesmo lugar, por toda a parte desejado e cumulado pelas mulheres, tisnado pelo sol, emagrecido pelas longas caminhadas e o frugal sustento. Muitas mulheres se tinham despedido dele ao amanhecer, chorosas, e quantas vezes ele pensara:

- Porque não ficará nenhuma comigo? Porquê - se me amam e se, por uma noite de amor, são capazes de cometer um adultério - porque voltam logo para os maridos de quem, quase sempre, receiam maus-tratos? Nenhuma lhe pedira a sério para ficar, nenhuma jamais lhe pedira para ir com ele, disposta, por amor, a compartilhar das alegrias e agruras da vida errante. Certo é que a nenhuma também fizera tal proposta, a nenhuma sugerira tal pensamento; se interrogasse o seu coração, veria que a liberdade lhe era cara e que de nenhuma mulher tivera saudades que não se desvanecessem nos braços da seguinte. Contudo, era estranho e triste que, por toda a parte, o amor fosse tão fugaz, que” tanto o das mulheres como o seu próprio, tão depressa se saciasse como se incendeasse. Estaria certo? Seria sempre assim e por toda a parte o mesmo? Ou seria dele, seria ele tão singular que as mulheres o desejavam e achavam belo, mas não pretendiam outra espécie de comunidade, senão aquela, breve, curta e sem palavras, sobre o feno ou sobre o musgo? Seria a sua vida errante que inspirava pavor àquelas sedentárias? Ou estaria nele o motivo porque as mulheres o desejavam como a uma boneca bonita para apertarem ao peito, mas depois voltavam a correr para os maridos, de quem esperavam maus-tratos? Não sabia.

Entretanto, não se cansava de aprender com as mulheres. É certo que se sentia mais atraído para as raparigas muito novas e ingénuas, que não tinham marido; podia acontecer-lhe enamorar-se de uma dessas profunda e apaixonadamente; na maioria das vezes, porém, eram inacessíveis as tão amadas, as tímidas e bem-guardadas. Mas também de boa vontade aprendia com as mulheres já feitas. Todas lhe deixavam algo, um gesto, um modo de beijar, certo jogo especial, certa maneira peculiar de dar-se e defender-se. Goldmundo acedia a tudo; dócil e insaciável como criança, abria-se a todas as seduções e por isso era tão sedutor. A sua beleza somente, não era o que lhe tornava as mulheres tão fácil presa; era aquela infantilidade, aquela disponibilidade, aquela inocente curiosidade no desejo, aquela perfeita correspondência a tudo o que uma mulher dele pudesse esperar. Sem que o soubesse, era, para cada mulher que amava, tal como ela o queria e sonhava: para umas terno e paciente, para outras impetuoso e brutal, umas vezes infantil como colegial na primeira iniciação, outras vezes artificioso e experiente. Prestava-se tanto ao jogo como à luta, aos suspiros como ao riso, ao pudor como ao impudor; nenhuma mulher recebia dele senão o que dele pretendia, senão o que ela própria provocava. Era o que os sentidos das mais acordadas logo pressentiam, o que o tornava tão dilecto.

Ia aprendendo. Não só conheceu em pouco tempo diferentes modos e artes de amar, entesourando a experiência de muitas amantes, como também aprendeu a conhecer as mulheres na sua diversidade, pela vista, pelo tacto, pelo sabor. Adquiriu apurado ouvido para cada timbre de voz e, em algumas, bastava-lhe o som da voz para se aperceber infalivelmente do seu modo de amar e do alcance da sua aptidão para o amor; contemplava, com sempre renovado arroubo, os modos infinitamente diversos pelos quais uma cabeça assenta sobre uma nuca, uma testa se separa da nascença do cabelo ou um joelho se move. Aprendia no escuro, de olhos fechados, com dedos delicados e tacteantes, a distinguir uns dos outros certos tipos de cabelo, certos géneros de pele. Cedo começou a notar que talvez aí residisse o sentido da sua vida errante, que talvez por isso fosse impelido de mulher para mulher, para aprender e exercitar aquela capacidade de as conhecer e distinguir, de modo cada vez mais subtil, multiforme e profundo. Talvez fosse aquele o seu destino: conhecer perfeitamente as mulheres e o amor, os seus mil modos e diferenças, tal como certos músicos que não se limitam a um só instrumento e dominam três, quatro e muitos mais. Para que serviria e onde o levaria aquilo, não o sabia; somente pressentia que estava a caminho. Poderia, tendo embora alguma aptidão, não ser dotado de talento especial, raro e espantoso para o latim e para a lógica - mas para o amor, para o jogo com as mulheres, era, na verdade, dotado. Aprendia sem esforço, as experiências ordenavam-se e acumulavam-se sem custo.

Uma vez, depois de mais de um ou dois anos de vida errante, chegou Goldmundo à quinta de um abastado cavaleiro, pai de duas jovens e lindas rilhas. Começara o Outono, em breve as noites arrefeceriam; no Inverno anterior sabia o que passara e não era sem cuidado que pensava nos meses próximos, pois a vida errante era dura no Inverno. Pediu alimento e agasalho para a noite. Acolheram-no hospitaleiramente e, quando o cavaleiro soube que o visitante tinha estudado e sabia grego, mandou-o vir da mesa dos criados para a dele e tratou-o quase como de igual para igual. As suas duas filhas permaneceram todo o tempo de olhos baixos; a mais velha, Lídia, tinha dezoito anos, a mais nova, Júlia, apenas dezasseis.

No dia seguinte, Goldmundo tencionava seguir viagem. Não havia esperança de poder conquistar uma das lindas donzelas loiras e não havia nas proximidades outras mulheres que o empenhassem a demorar-se. Foi então que o cavaleiro, depois da refeição matinal, o chamou de parte e o conduziu a um quarto instalado para fins especiais. Falou modestamente ao rapaz do seu gosto pela erudição e pelos livros, mostrou-lhe uma pequena arca cheia de manuscritos que coleccionara, uma escrivaninha que tinha mandado fazer e uma farta provisão do melhor papel e pergaminho. Aquele piedoso cavaleiro, segundo Goldmundo mais tarde veio a saber, tinha frequentado a escola em criança e depois dedicara-se por completo à vida mundana e guerreira até que, no decurso de grave doença, uma advertência divina o compelira a partir em peregrinação e a arrepender-se da sua pecaminosa juventude. Fora a Roma e a Constantinopla e, ao regressar, encontrara o pai ja morto e a casa vazia; nela se tinha instalado, casado, perdido a mulher e criado as filhas; e agora, no começo da velhice, tinha posto mãos à obra e empreendido a redacção de um relato minucioso da sua peregrinação de outrora. Escrevera já vários capítulos, mas - confessou ao jovem - o seu latim escasso a todo o momento o impedia de avançar.

Oferecia a Goldmundo um fato novo e alojamento, se ele estivesse disposto a corrigir e passar a limpo o que estava escrito e a ajudá-lo, dali em diante, no prosseguimento da obra.

Era Outono e Goldmundo sabia o que isso significava para um viandante. A vestimenta nova também era desejável. Acima de tudo, porém, agradou-lhe a perspectiva de permanecer ainda por algum tempo na casa onde viviam as duas irmãs. Disse que sim, sem hesitação. Passados poucos dias, a governanta recebera ordem de abrir o armário das fazendas e, de um belo pano castanho lá guardado, mandaram talhar um fato e uma boina para Goldmundo. O cavaleiro teria preferido um fato preto, uma espécie de trajo de magister, mas o seu hóspede não quis ouvir falar em tal e conseguiu dissuadi-lo; fizeram-lhe então um bonito trajo, meio de pajem meio de caçador, que lhe assentava lindamente.

O latim não ia mal. Reviram juntos a obra escrita até ali e Goldmundo, não só corrigia os vocábulos incorrectos e completava o texto, como, aqui e além, refundia as frases curtas e embaraçadas do cavaleiro em belos períodos latinos de sólida construção e impecável consecutio temporum. Aquele trabalho dava imensa satisfação ao cavaleiro, que não regateava os elogios. Todos os dias passavam duas horas, pelo menos, em tal ocupação.

No castelo - um amplo solar fortificado - descobriu Goldmundo vários passatempos. Tomava parte nas suas caçadas e aprendia com o caçador Henrique a servir-se da besta; travou amizade com os cães e podia andar a cavalo sempre que quisesse. Raramente o viam sozinho; falava com um cão ou com um cavalo, com Henrique ou com a governanta Lia, uma velha gorda de voz máscula muito dada à galhofa e ao riso, com o picador ou com um pastor. Com a mulher do moleiro, ali próxima e vizinha, teria sido fácil arranjar namoro, mas manteve-se a distância e fingiu-se ingénuo.

As duas filhas do cavaleiro entusiasmavam-no. A mais nova era a mais bonita, mas tão esquiva que quase não dava palavra a Goldmundo. Tratava-as ambas com a máxima cortesia e reverência, mas ambas sentiam na sua proximidade o constante requesto. A mais nova retraía-se completamente, arrogante por timidez. A mais velha, Lídia, adoptara com ele um tom especial, tratando-o, meio irónica, como bicho raro de erudição; fazia-lhe muitas perguntas curiosas, informava-se da vida no convento, mas acabava sempre por desfechar contra ele qualquer observação senhoril e superior. Ele a tudo acedia, tratava Lídia como senhora, Júlia como pequena freira e, quando conseguia em conversa retê-las à mesa mais tempo ou, quando no pátio ou no jardim, Lídia lhe dirigia a palavra e condescendia em dizer-lhe algum gracejo, ficava contente com esse progresso. Por muito tempo ainda, naquele Outono, se conservou a folhagem dos altos freixos da cerca, por muito tempo ainda houve no jardim sécías e rosas. Um dia, apareceram visitas a cavalo, um proprietário vizinho com a mulher e um criado; o dia ameno incitara-os a alongar invulgarmente o passeio e agora ali estavam a pedir alojamento para a noite. Foram hospitaleiramente recebidos e, pouco depois, a cama de Goldmundo foi mudada para o quarto de trabalho e o seu quarto arranjado para os hóspedes; mataram-se galinhas e mandou-se buscar peixe à azenha. Goldmundo participou com prazer do bulício festivo e logo sentiu que a visitante reparara nele. Mal tinha notado, pela voz e por algo no olhar, que lhe agradara, quando simultaneamente se apercebeu, com acrescido interesse, da mudança de Lídia, que permanecia calada e retraída, observando-o a ele e à dama. Quando, à ceia, o pé da visitante começou a brincar com o de Goldmundo, o que principalmente o encantou foi a sombria e secreta ansiedade com que Lídia o observava, de olhos curiosos e flamejantes. Goldmundo deixou propositadamente cair uma faca no chão e, quando se curvou para a apanhar debaixo da mesa, roçou com a mão pelo pé e perna da dama visitante e viu Lídia empalidecer e morder os lábios; continuou a contar histórias do convento, sentindo que, mais do que as histórias, era a sua voz enleante que a dama escutava, enamorada. Também os outros o escutavam, o seu benfeitor com benevolência, o hóspede com semblante impassível, mas igualmente contagiado pelo fogo que ardia no rapaz. Nunca Lídia o ouvira falar assim, com tal fulgor; a atmosfera carregava-se de vibrações voluptuosas, os olhos dele cintilavam, a voz cantava ventura, implorava amor. Era o que as três mulheres sentiam, cada uma a seu modo; a pequena Júlia com violenta resistência e repulsa, a mulher do cavaleiro visitante com radiosa satisfação, Lídia com doloroso palpitar do coração, misto de íntimo anseio, ligeira resistência e violento ciúme, que lhe afilava a face e lhe queimava os olhos. Goldmundo sentia estas secretas respostas à sua corte; como aves esvoaçando em redor, nele refluíam todos os pensamentos de amor, os dóceis, os resistentes, os contraditórios.

Após a refeição, Júlia recolheu aos seus aposentos; há muito que anoitecera; saiu da sala, fria como uma monja, com a vela no candelabro de barro. Os outros continuaram a pé ainda uma hora e, enquanto os dois homens falavam da colheita, do imperador e do bispo, Lídia ouvia afogueada desenrolar-se entre Goldmundo e a dama uma fútil e descui-dadosa conversa sem assunto, por entre cujos frouxos fios surgia, porém, uma rede densa de vaivéns, de olhares e entoações, de pequenos gestos abrasados e carregados de significado. Lídia absorvia com volúpia e repulsa aquela atmosfera e, quando via ou pressentia que o joelho de Goldmundo se encontrava sob a mesa com o da estranha, sentia o contacto no próprio corpo e estremecia. Mais tarde não conseguiu adormecer; toda a noite esteve à escuta, de coração sobressaltado, convencida de que ambos se encontrariam. Realizou em imaginação o que lhes foi, de facto negado; viu-os enlaçados, viu-os beijarem-se, e tremia de excitação, ao desejar e temer ao mesmo tempo, que o hóspede enganado surpreendesse os amantes e cravasse uma faca no coração do odioso Goldmundo.

O céu estava encoberto na manhã seguinte, soprava um vento húmido, e o visitante, recusado o convite para prolongar a estadia, insistiu em partir sem tardança. Lídia estava presente quando os hóspedes montaram a cavalo, apertou-lhes a mão e despediu-se, mas alheia ao que estava fazendo, pois todos os seus sentidos se concentravam no olhar com que via a dama, ao montar a cavalo, pôr na mão que Goldmundo lhe oferecera o pé que ele firmemente agarrou e apertou por instantes.

Os hóspedes partiram; Goldmundo foi trabalhar para a biblioteca. Meia hora depois, ouviu a voz de Lídia dando ordens, ouviu-a montar a cavalo; o pai abeirou-se da janela, olhou para baixo, sorrindo e abanando a cabeça, e ambos a seguiram com os olhos quando ela saiu do pátio. Pouco adiantaram naquele dia a redacção latina. Goldmundo estava distraído; o amo dispensou-o mais cedo do que era costume.

Goldmundo transportou-se a si e ao cavalo para fora da cerca, sem que o vissem, e seguiu pelos campos amarelecidos, contra o vento fresco e húmido do Outono, a trote cada vez mais rápido, sentindo o cavalo a aquecer e o seu próprio sangue a esquentar-se. Passou por campos baldios e campos ceifados, por charnecas e pauis cobertos de cavalinha e de esparto; sob o céu pardacento, atravessou, respirando a plenos pulmões, vales de amieiros, húmidos bosques de abetos e charneca e mais charneca, erma e acastanhada.

No cimo de uma alta colina descobriu, recortando-se no horizonte cinzento, a silhueta de Lídia, direita sobre o cavalo que seguia a trote vagaroso. Precipitou-se ao seu encontro, mas ela, mal se viu perseguida, esporeou o cavalo e largou à desfilada. Ora lhe desaparecia da vista, ora a enxergava, de cabelos ao vento. Perseguiu-a como uma presa, de coração exultante; animava o cavalo com gritos carinhosos e, de olhos risonhos, colhia na sua veloz corrida um relance das características da paisagem, dos campos acaçapados, do bosque de freixos, dos grupos de choupos, das margens barrentas dos charcos, sem perder de vista o seu alvo: a bela fugitiva. Estava quase a alcançá-la.

Quando Lídia o viu próximo desistiu da fuga e deixou o cavalo ir a passo. Não se voltou para o perseguidor. Altiva e aparentemente indiferente, continuou para diante como se nada fosse com ela, como se estivesse só. Goldmundo colocou a par os dois cavalos, que seguiram pacíficos ao lado um do outro; cavaleiro e montada, estavam afogueados da corrida.

- Lídia! - chamou baixinho. Ela não respondeu.

- Lídia! Continuou calada.

- Como foi belo, Lídia, ver-te ao longe, a cavalo, com o teu cabelo doirado relampejando. Que beleza! Que maravilha teres fugido de mim! Só então soube, pela primeira vez, que gostavas de mim um poucochinho. Não tinha a certeza, ainda ontem duvidava. Só agora o compreendi subitamente, quando tentaste fugir-me. Querida, linda, deves estar cansada, apeemo-nos!

Saltou ágil para o chão e agarrou no mesmo instante as rédeas da montada de Lídia para que ela não tornasse a fugir-lhe. O rosto dela estava branco como a neve e, ao descer do cavalo apoiada a ele, debulhou-se em pranto. Goldmundo amparou-a suavemente, ajudou-a a dar uns passos e a sentar-se na erva ressequida onde ajoelhou a seu lado. Ela lutou corajosamente contra os soluços e conseguiu dominar-se.

- Ai que mau tu és! - disse ela quando conseguiu falar. Mal podia pronunciar as palavras.

- Sou assim tão mau?

- És um sedutor de mulheres, Goldmundo. Deixa-me esquecer as palavras atrevidas que me disseste agora, não deves falar assim comigo. Como podes imaginar que eu gosto de ti? Esqueçamos isso! Mas como hei-de esquecer o que ontem à noite fui forçada a ver?

- Ontem à noite? Que viste ontem?

- Não finjas, ai, não mintas, ainda por cima! Foi horrível e indecente a maneira como cortejaste aquela mulher! Não tens vergonha, Goldmundo? Até lhe fizeste uma festa na perna, debaixo da mesa, da nossa mesa! Diante de mim, na minha presença! E agora, que ela se foi embora, vens perseguir-me. Não sabes mesmo o que é vergonha.

Goldmundo já se tinha arrependido das palavras que lhe dissera antes. Que estúpido tinha sido, o amor dispensa palavras, devia ter-se calado.

Não disse mais nada. Ajoelhou a seu lado, e o olhar de Lídia, tão infeliz e tão belo, contagiou-lhe a mágoa; sentiu também que havia algo a lamentar. Mas, apesar das palavras de Lídia, via-lhe amor nos olhos e era amor também o sofrimento dos seus lábios trémulos. Acreditou mais no que lhe diziam os olhos do que nas palavras.

Lídia esperava uma resposta; como esta não viesse, com boca mais severa e olhando-o chorosa ainda, repetiu: - Não tens realmente vergonha, Goldmundo?

- Perdoa - disse Goldmundo humildemente - estamos a falar de coisas acerca das quais nada há a dizer. Foi culpa minha, perdoa! Perguntas-me se não tenho vergonha. Sou capaz de ter vergonha, sem dúvida. Mas amo-te, e o amor não sabe o que é vergonha. Não te zangues.

Lídia parecia não o ouvir. Fazia beicinho, amargurada, e o seu olhar distante perdia-se ao longe como se estivesse sozinha. Nunca Goldmundo conhecera uma situação semelhante. Resultava de ter falado.

Poisou suavemente a cara nos joelhos de Lídia e imediatamente o contacto Lhe fez bem. Sentia-se perplexo e triste e também ela parecia triste, assim imóvel e calada, com o olhar longínquo. Quanta perplexidade, quanta tristeza! O joelho, porém, acolhia carinhosamente a face que se lhe aconchegava, não a repelia. De olhos fechados, Goldmundo apercebia-se aos poucos do seu nobre e longo contorno. Reconheceu com alegria e enternecimento que a forma juvenil e nobre daquele joelho correspondia à forma das unhas compridas, bonitas e de firme curvatura.

Aconchegou-se, grato, e continuou a conversa muda das faces e da boca com o joelho.

A mão dela, leve e tímida como passarinho, poisou no seu cabelo.

Querida mão, disse para consigo ao senti-la afagar-lhe os cabelos, leve e infantil. Muitas vezes já contemplara e admirara aquelas mãos, que conhecia quase tão bem como as suas: os dedos finos e compridos, as róseas, longas e bem arqueadas colinas das unhas. Aqueles dedos longos e delicados estavam agora em tímida conversa com os seus caracóis loiros.

A linguagem que falavam era infantil e ansiosa, mas era um falar de amor. Aninhou grato a cabeça na mão dela, sentindo-lhe a palma com a nuca e com as faces.

- Já é tempo, temos que regressar - disse ela.

Ergueu a cabeça, olhou-a com ternura, e beijou-lhe suavemente os dedos finos.

- Levanta-te, por favor - disse - temos que voltar para casa.

Goldmundo imediatamente obedeceu; levantaram-se, montaram a cavalo e partiram.

O coração de Goidmundo vogava em ventura. Como Lídia era bela, pura e frágil como uma criança! Nem sequer ainda a tinha beijado e já se sentia tão cumulado e cativo! Voltaram à desfilada e só ao chegarem a dois passos da cerca Lídia se assustou e disse: - Não devíamos ter chegado ambos ao mesmo tempo. Que loucura a nossa! - No último momento ainda, ao descerem dos cavalos e quando já um picador acorria, segredou-lhe ao ouvido, rápida e afogueada: - diz-me se estiveste esta noite com aquela mulher! - Ele negou muitas vezes com a cabeça e começou a tirar a sela ao cavalo.

À tarde, depois do pai ter saído, Lídia apareceu-lhe no quarto de trabalho.

- Sempre é verdade? - perguntou apaixonadamente; ele logo percebeu do que se tratava. - Então porque brincaste assim com ela, tão abominavelmente, e a deixaste enamorada?

- Era para ti - disse ele - acredita que preferi mil vezes ter feito uma festa no teu pé. Mas nunca veio até mim, debaixo da mesa, perguntar-me se te amava.

- Amas-me realmente, Goldmundo?

- Amo-te.

- Mas onde irá dar tudo isto?

- Não sei, Lídia. Nem me importa. Sinto-me feliz por te amar - mas no que virá a dar não penso. Sou feliz quando te vejo a cavalo, quando ouço a tua voz, quando os teus dedos me afagam o cabelo. Serei feliz quando me deixares beijar-te.

- Só se deve beijar a noiva, Goldmundo, nunca pensaste nisso?

- Não, nunca pensei. E porque havia de pensar? Sabes tão bem como eu que nunca poderás ser minha noiva.

- Assim é. E tu não poderás ser meu marido e ficar comigo para sempre; por isso não foi bonito falares-me de amor. Julgavas seduzir-me.

- Não julguei nem pensei nada, Lídia; a verdade é que penso muito menos do que imaginas. Não desejo senão que me beijes uma vez. Falamos tanto. Os amantes não falam. Parece-me que não me amas.

- Hoje de manhã disseste o contrário.

- E tu fizeste o contrário!

- Eu? Que queres tu dizer?

- Primeiro, puseste-te em fuga quando me viste aproximar. Acreditei que me amavas. Depois choraste e julguei que era porque me amavas. Depois ainda, poisei a cabeça sobre o teu joelho e tu acarinhaste-a; julguei que era por amor. Mas agora não estás sendo amorável comigo.

- Não sou como a mulher a quem ontem fizeste festas no pé. Pareces estar habituado a esse género de mulheres.

- Não, graças a Deus és muito mais bonita e fina do que ela.

- Não é isso que eu queria dizer.

Mas é assim mesmo. Sabes como és bela?

- Tenho um espelho.

- Já viste nele a tua testa, Lídia? E os ombros, as unhas e o joelho? Reparaste como se assemelham, como têm a mesma forma longa, afilada, firme e esbelta? Já reparaste?

- O que para aí estás a dizer! Nunca reparei, de facto, mas agora, ouvindo-te, sei a que te referes. Escuta, Goldmundo sempre me saíste um sedutor! estás a tentar fàzer-me vaidosa.

- Que pena não poder nunca contentar-te. Porque havia eu de ter interesse em fazer-te vaidosa? És bela e gostaria de mostrar-te a gratidão que a tua beleza me inspira. Forças-me a dizê-lo por palavras; poderia dizê-lo mil vezes melhor do que por palavras. Por palavras nada te posso dar! Por palavras nada posso aprender de ti nem tu de mim.

- E que posso eu aprender contigo?

- Eu contigo e tu comigo, Lídia. Mas tu não queres; só queres amar aquele de quem venhas a ser noiva. Há-de rir-se, quando vir que não aprendeste nem sequer a beijar.

- Com que então queria dar-me lições de beijos, senhor magster ? Ele sorriu-lhe. Embora as palavras dela não lhe agradassem, não podia deixar de pressentir a sua feminilidade por detrás daqueles discursos arrebatados e um tanto inautênticos; sentiu que o desejo se apoderara dela e que ela, receosa, lhe resistia.

Nada mais disse. Sorriu-lhe, fixou-lhe e captou-lhe o olhar inquieto e, enquanto ela, não sem resistência, se rendia ao encanto, aproximou devagarinho o rosto até os lábios se tocarem. Roçou suavemente a boca de Lídia, que correspondeu com um leve beijo de criança e se abriu em dolorosa surpresa, ao sentir que o beijo continuava. Perseguiu com suave súplica a boca esquiva que, hesitante, foi de novo ao seu encontro; ensinou-lhe sem violência, enfeitiçando-a, o dar e receber do beijo, até que ela, exausta, apoiou o rosto no seu ombro. Deixou-a descansar e aspirou enlevado o aroma daquele cabelo loiro e forte; murmurou-lhe ao ouvido palavras ternas e apaziguantes, recordando naquele instante o momento em que, outrora, aprendiz inexperiente, tinha sido iniciado no mistério por Lise, a cigana. Como era negro o cabelo dela e morena a sua pele, como abrasava o sol e que perfume exalava o hipericão murcho! E tudo era já tão longínquo, tão remoto, a que distância relampejava! Tudo, mal eclodia logo murchava!

Lídia ergueu-se devagar, com o rosto transfigurado, cheios de amor os olhos grandes e graves.

- Deixa-me ir embora, Goldmundo - disse - já estive tanto tempo contigo. Oh! meu amor querido!

Todos os dias conseguiram uma hora para se encontrarem em segredo e Goldmundo estava totalmente rendido e submisso à vontade da amada, enlevado e comovido com aquele amor virginal. Às vezes Lídia passava uma hora inteira de mãos dadas e olhos fitos nos dele, despedindo-se depois com um beijo de criança. Outras vezes, beijava-o fervorosa e insaciável, mas não permitia que lhe tocasse. De uma vez, ruborizada e vencendo o pudor, no intuito de dar-lhe uma grande alegria, deixou-o ver um dos seios; descobriu timidamente o pequenino e branco pomo, que ele beijou de joelhos e ela depois resguardou de novo, cobrindo-o cuidadosamente com o vestido, ainda ruborizada. Conversavam, também, mas não como da primeira vez, de maneira diferente; inventavam nomes um para o outro e ela gostava de lhe falar da sua infância, das suas brincadeiras e sonhos. Dizia ela que aquele amor era culpado, pois Goldmundo não a poderia desposar. Falava nisso com tristeza e resignação, adornando o seu amor com essa secreta mágoa, como um véu negro.

Era a primeira vez que Goldmundo se sentia não só desejado, mas também amado por uma mulher.

Lídia disse-lhe um dia: - És tão belo e pareces tão alegre, mas no fundo dos teus olhos não há alegria; são tristes como se soubessem que não há felicidade no mundo, que tudo o que se ama e é belo pouco se demora junto de nós. Tens os olhos mais lindos e mais tristes que pode haver. É por não teres lar, creio eu. Apareceste-me vindo das florestas e um dia voltarás à vida errante, as noites dormidas sobre o musgo. - Onde será nessa altura o meu lar? Quando partires, terei ainda, é certo, um pai e uma irmã e um quarto com uma janela onde possa sentar-me a pensar em ti; mas já não terei lar.

Goldmundo deixava-a falar; sorria umas vezes, outras ficava entristecido. Nunca a consolava com palavras; afagava-a suavemente ou encostava-lhe a cabeça no regaço e trauteava baixinho uma toada embaladora e sem sentido, como as que as amas cantam para consolar as crianças quando choram. Lídia também lhe dissera: - Gostaria de saber, Goldmundo, o que virá a ser de ti; penso nisso tantas vezes. Não terás uma vida vulgar nem fácil. Deus queira que não te aconteça algum mal. Às vezes imagino que talvez venhas a ser um poeta, um daqueles que têm sonhos e visões e tão bem os sabem comunicar. Hás-de correr mundo e todas as mulheres hão-de amar-te; tu, porém, estarás sempre só. Volta antes para o convento, Goldmundo, para junto do teu amigo de quem tanto me tens falado. Rezarei por ti para que não morras um dia, sozinho, no meio da floresta.

Assim lhe falava ela, gravemente, de olhos perdidos no vago. Mas depois era capaz de sorrir e ir passear com ele a cavalo pelos campos outonais, ou jogar às adivinhas e arremessar-lhe folhas secas e bolotas luzidias.

De uma vez, estava Goldmundo no seu quarto, deitado na cama à espera do sono. Sentia-se opresso, o coração batia-lhe no peito com um delicioso pungir de ventura e tristeza, transbordante de amor e cheio de mágoa e perplexidade. Ouvia a rumorosa investida do vento de Novembro nos telhados; era já costume, antes de adormecer, ficar acordado esperando a vinda do sono. Rezava baixinho um hino à Virgem:

Tota pulchra es, Maria,

Et macula originalis non est in te.

Tu laetitia Israel,

Tu advocata peccatorum!

Insinuava-se-lhe na alma a suave melodia do cântico, mas ao mesmo tempo cantava lá fora o vento e falava de irrequietude e vagabundagem, da floresta, do Outono e da vida errante. Pensava em Lídia, em Narciso, na Mãe e sentia o coração inquieto e oprimido.

Foi então que, sobressaltado, se ergueu de olhos fitos, sem acreditar no que via: a porta do quarto abrira-se e, no escuro, avançava um vulto vestido de comprida camisa branca; era Lídia que, de pés descalços, caminhava por cima do lajedo e, fechada a porta de mansinho, se sentava na sua cama.

- Lídia - murmurou ele - minha gazela, minha branca flor! Lídia, que vens fazer?

- Venho ter contigo - disse ela - é só um instante. Queria ver, uma vez pelo menos, como fica deitado na sua caminha o meu Goldmundo, o meu coração de ouro.

Deitou-se a seu lado e ambos ficaram imóveis, de coração opresso e palpitante. Permitiu que ele a beijasse, deixou que as mãos dele percorressem maravilhadas o seu corpo; nada mais lhe foi concedido. Passado um momento, Lídia afastou suavemente as mãos de Goldmundo, beijou-o nos olhos, levantou-se silenciosa e desapareceu. A porta rangia, o vento chiava e embatia contra o vigamento do telhado. Tudo parecia enfeitiçado, tudo ressumava mistério e ansiedade, promessa e ameaça. Goldmundo não sabia que pensar, nem que fazer. Quando acordou no dia seguinte, depois de um sono agitado, tinha a almofada húmida de lágrimas.

O suave e alvo fantasma voltou passados dias e demorou-se um quarto de hora, deitado a seu lado, como da primeira vez. Aninhada nos seus braços segredava-lhe baixinho, ao ouvido, tudo o que tinha a dizer e a lamentar. Goldmundo escutava-a enternecido, envolvendo-a com o braço esquerdo e afagando-lhe o joelho com a mão direita.

- Goldmundo - dizia ela com voz abafada, junto à sua face - que tristeza não poder um dia pertencer-te. Não será de longa dura a nossa curta felicidade, o nosso pequeno segredo. Júlia anda desconfiada e não tarda que me force a confessá-lo. Ou então o pai descobre-nos. Se ele me encontrasse na tua cama, meu passarinho de oiro, que seria da tua Lídia? De olhos cansados de chorar, olharia para cima, para as árvores, e veria o seu amor enforcado a balouçar ao vento. Ai, querido, foge antes, foge quanto antes, não vá o pai mandar-te prender e enforcar. Já vi uma vez um enforcado, um ladrão. Mas não posso pensar que te acontecerá o mesmo; prefiro que te vás embora e que me esqueças; contando que não morras, Goldinho, que os pássaros não debiquem os teus olhos azuis! Mas não, meu bem, não te vás embora - que será de mim, se me deixares só!

- Não queres vir comigo, Lídia? Fugíamos os dois, o mundo é vasto!

- Seria bem bom - queixava-se ela - que bom seria correr contigo! Mas não posso. Não posso dormir na floresta, sem tecto por cima da cabeça e com palhas nos cabelos, não posso. Não posso também desonrar o pai - não, não fales nisso, são quimeras. Não posso! Tão pouco como poderia comer num prato sujo ou dormir ao lado de um leproso. Ai, tudo nos está vedado do que é belo, nascemos ambos para sofrer. Goldinho, meu pobre pequenino, ao fim e ao cabo ainda terei que ver-te enforcado. E a mim fecham-me num quarto e depois enclausuram-me num convento. Vai, meu amor, tens que deixar-me e voltar a dormir com as ciganas e as camponesas. Vai, vai-te embora, antes que te prendam e amarrem. Nunca poderemos ser felizes, nunca.

Goldmundo afagava-lhe suavemente o joelho e, tocando-lhe ao de leve, pedia: - Florinha, podíamos ser tão felizes! Não deixas?

Ela desviava-lhe a mão, sem enfado mas com decisão, e afastava-se um pouco.

- Não - dizia - não pode ser. Não devo. Tu talvez não compreendas isto, meu ciganinho. O que eu faço já é mal, sou uma leviana sem juízo, desonro a minha casa. Mas algures, no fundo da minha alma, conservo ainda o meu orgulho, não deixarei que ninguém o roube. Tens que deixar-me essa força, senão nunca mais poderei vir ter contigo ao quarto.

Nunca Goldmundo teria desrespeitado uma proibição, um desejo ou uma alusão de Lídia. Ele próprio se admirava do ascendente que ela exercia sobre ele. Mas sofria. Não aplacava os sentidos e o coração rebelava-se, insurgia-se contra aquela sujeição. Esforçava, então, por libertar-se. Com requintada galanteria fazia a corte à pequena Júlia; era, de resto, necessário estar em boas relações com aquela importante personagem e, se possível, iludi-la. Júlia surpreendia-o: umas vezes tão infantil e outras tão omnisciente. De uma formosura invulgar, era, sem dúvida, mais bela do que Lídia, o que, aliado à sua infantil e presumida sensatez, constituía para Goldmundo poderoso atractivo; andava por vezes fortemente enamorado de Júlia. A atracção que ela exercia sobre os seus sentidos levava-o a reconhecer com surpresa a diferença entre desejo e amor. A princípio vira as duas irmãs com os mesmos olhos, achara-as ambas desejáveis, embora Júlia fosse mais formosa e sedutora, cortejara-as indistintamente sem as perder de vista a ambas. E, agora, Lídia alcançara aquele ascendente sobre ele! Amava-a tanto que renunciara por amor a possuí-la totalmente. Conhecera e amara aquela alma, semelhante à sua puerilidade, ternura e melancolia; às vezes surpreendia-o e enlevava-o a coincidência entre aquela alma e aquele corpo; qualquer coisa que fizesse ou dissesse, desejo que manifestasse ou opinião que emitisse, as palavras e a atitude íntima eram perfeitamente vazadas no mesmo molde do rasgado dos olhos e do modelado dos dedos!

Aqueles instantes em que julgava reconhecer as formas e leis básicas conformadoras do corpo e da alma de Lídia, acordaram em Goldmundo o desejo de fixar e reproduzir algumas dessas linhas; conservava, muito em segredo, umas folhas onde tentara desenhar à pena o contorno da cabeça, a curva das sobrancelhas, a forma da mão ou do joelho de Lídia.

Júlia tornava difícil a situação. Visivelmente pressentia a onda de amor em que vogava a irmã mais velha e os seus sentidos, sem que o obstinado entendimento o admitisse, voltavam-se para aquele paraíso, com curiosidade e avidez. Testemunhava a Goldmundo exagerada frieza e antipatia; contudo, em momentos incautos, era capaz de se quedar a contemplá-lo, com voluptuosa curiosidade. Com Lídia, ora se mostrava muito terna, indo ter com ela à cama, onde aspirava, com secreta avidez, o aroma a amor e a sexo e rondava, traquina, o mistério proibido e desejado; ora deixava transparecer, de modo quase ofensivo, o conhecimento do secreto deslize da irmã e o desprezo que lhe inspirava. A bela e caprichosa criança flamejava como fogo-fátuo entre os dois amantes, excitando, perturbando e alimentando ao calor da intimidade de ambos, o ardor dos seus sonhos; ora se fingia ignorante, ora deixava perceber uma perigosa conivência; em breve, de criança que era, se tornou em força temível. Lídia sofria mais com esta situação do que Goldmundo que, fora das refeições, raramente a via. Também a Lídia não passava despercebido que Goldmundo não era insensível aos encantos de Júlia; via, às vezes, pousado nela o seu olhar admirativo e apreciador. Mas nada podia dizer, tudo era tão difícil, tão cheio de perigo, e convinha evitar o melindre ou a ofensa de Júlia; ai, qualquer dia, descoberto o segredo do seu amor, a sua felicidade tão sobressaltada e periclitante podia findar, talvez com horrível desfecho.

Goldmundo admirava-se por não ter partido há muito tempo. Era difícil viver como estava vivendo agora: amado, mas sem esperança de felicidade legítima e duradoira ou da fácil satisfação a que os seus desejos amorosos estavam acostumados; era difícil viver de sentidos sempre acordados e insaciados e, ao mesmo tempo, em perigo constante. Porque permanecia ali suportando tudo aquilo, todas aquelas complicações e enredados sentimentos que eram vivências e estados de consciência próprios para sedentários somente, para os que vivem ao abrigo da lei em quartos aquecidos? Não gozava ele do direito do nómada a eximir-se a essas delicadezas e complexidades, a rir-se delas? Era evidente que sim, que era loucura pretender encontrar ali o simulacro de um lar, pago com tantas perplexidades e sofrimentos. Contudo, assim fazia e sofria de bom grado e com secreta ventura. Amar daquela maneira era tolo e árduo, complicado e extenuante, mas maravilhoso. Era maravilhosa a beleza sombria daquele amor, a sua loucura e desesperança; eram belas as noites de insónia e cuidado; era tudo belo e precioso: o não de dor nos lábios de Lídia, o som quebrado e resignado da sua voz, quando lhe falava do amor e das suas penas. Em poucas semanas surgira e aclimatara-se no juvenil rosto de Lídia aquele ricto doloroso cujos traços tanto lhe importava fixar pelo desenho. Goldmundo sabia que, também ele, naquelas semanas, se modificara e envelhecera; não se sentia nem mais esperto nem mais feliz, mas mais experiente, mais amadurecido e intimamente enriquecido. Acabara a sua adolescência.

Lídia dizia-lhe em voz suave e sumida: - Não estejas triste por minha causa, eu só queria dar-te alegria e ver-te feliz. Perdoa ter-te entristecido e contagiado a minha aflição e os meus receios. De noite, tenho sonhos singulares: vejo-me a caminhar em um deserto tão grande e escuro que nem sei descrevê-lo; vou andando sempre à tua procura; mas não te encontro e sei que não te encontrarei mais, que te perdi e terei para sempre de caminhar assim sozinha. Depois, quando acordo, penso: Que bom, que maravilhoso é ele ainda cá estar, ainda o poder ver, por semanas ou por dias não importa, ainda aqui o tenho!

Certa manhã, quando Goldmundo acordou ao romper do dia, deixou-se ficar deitado a cismar, rodeado ainda pelas imagens sem nexo do sonho. Sonhara com a Mãe e com Narciso e via-os ainda distintamente.

Quando se libertou dos meandros do sonho, reparou na luz estranha, na claridade singular que entrava pela abertura da janela. Saltou da cama, correu à janela e viu a cornija e o telhado da cavalariça, o portão da entrada e toda a paisagem que se avistava para além, brilhar com reflexos branco-azulados, coberta pelo primeiro nevão daquele Inverno. O contraste entre a inquietação do seu íntimo e a serenidade e resignação da paisagem invernal, impressionou-o. Era enternecedora a calma submissão com que campo e floresta, charneca e colina, se entregavam tanto ao sol como ao vento, à chuva como à estiagem e à neve; com que bela e suave mansidão o plátano e o freixo suportavam o seu fardo inver-noso. Não seria possível aprender com eles, ser como eles? Saiu para a cerca, absorto nestas reflexões, patinhou na neve, apalpou-a nas mãos, subiu até ao jardim e contemplou, por cima do muro coberto de neve, os roseirais vergados sob o nevão.

Ao pequeno-almoço, enquanto comiam o caldo de farinha, falaram da primeira nevada, já todos tinham estado lá fora - mesmo as duas raparigas. A neve chegava tarde, naquele ano, já o Natal estava próximo. O cavaleiro falou dos países do Sul onde não havia neve. O que, porém, tornou inesquecível para Goldmundo aquele primeiro dia de Inverno, só mais tarde aconteceu, quando era já noite alta.

As duas irmãs tinham tido uma zanga, naquele dia, sem que Goldmundo soubesse. A noite, quando a casa estava escura e sossegada, Lídia, como de costume, veio ter com ele à cama e deitou-se calada a seu lado, encostando-lhe a cabeça ao peito para lhe ouvir bater o coração e consolar-se com a sua proximidade. Estava aflita e receosa, temia que Júlia os denunciasse, mas não se decidia a falar nisso a Goldmundo e a dar-lhe mais cuidados. Deixou-se ficar aconchegada e calada, ouvindo-o de vez em quando murmurar palavras ternas e sentindo a mão dele afagar-lhe os cabelos.

De repente, porém - pouco tempo se passara ainda - ergueu-se terrivelmente sobressaltada, de olhos esbugalhados. Também foi grande o susto de Goldmundo, ao ver abrir-se a porta do quarto e entrar um vulto que o assombro lhe impediu de reconhecer imediatamente. Só quando a aparição se aproximou da cama e se debruçou sobre eles, verificou, com o coração angustiado, que era Júlia. Viu-a despir-se e deixar cair no chão o casaco que pusera aos ombros, sobre a camisa. Lídia caiu para trás com o grito lancinante de quem recebe o golpe de um punhal e agarrou-se a Goldmundo.

Júlia, com voz insegura mas em tom escarninho e de maligno regozijo, disse: - Não gosto de estar sozinha no quarto. Ou me deixam ficar e deitamo-nos os três juntos, ou vou de caminho acordar o pai.

- Deita-te então - disse Goldmundo e arremessou a coberta para trás. - Estás a enregelar os pés. -Júlia saltou para a cama e dificilmente Goldmundo lhe arranjou lugar no leito estreito, porque Lídia aturara o rosto na almofada e não se mexia. Ficaram os três deitados, Goldmundo entre as duas, e, por instantes, não pôde impedir-se de pensar que aquela situação, até há pouco tempo ainda, teria sido conforme com os seus desejos. Sentia de encontro a si a anca de Júlia; à estranha ansiedade aliara-se secreta delícia. Júlia quebrou o silêncio:

- Sempre tinha que saber uma vez, que tal se está na tua cama, que minha irmã tanto gosta de visitar.

Para a aplacar, Goldmundo roçava-lhe suavemente a face pelo cabelo e afagava-lhe ao de leve as ancas e os joelhos como se acaricia um gato; calada e curiosa, ela abandonava-se à sua mão, sucumbia ao sortilégio, fervorosa e suspensa, sem nenhuma resistência. Mas Goldmundo, ao mesmo tempo que procedia àquele exorcismo, ocupava-se também de Lídia, segredava-lhe baixinho palavras de amor já familiares e conseguiu, pouco a pouco, que ao menos levantasse a cara e a virasse para ele. Beijou-lhe silenciosamente a boca e os olhos enquanto, do outro lado, mantinha enfeitiçada a irmã; compenetrou-se, entretanto, até ao limite do suportável, da falsidade e do absurdo daquela situação. Foi a sua mão esquerda que o esclareceu; enquanto travava conhecimento com o corpo belo e expectante de Júlia, sentiu pela primeira vez não só a beleza e profunda desesperança do seu amor por Lídia, como também o irrisório da situação. Agora, enquanto os lábios estavam com Lídia e as mãos com Júlia, parecia-lhe que deveria ter convencido Lídia a entregar-se-lhe ou então ter-se afastado. Amá-la e renunciar a ela tinha sido um disparate e uma injustiça.

- Minha alma - segredou ao ouvido de Lídia - temos sofrido tão inúteis dores! Poderíamos ser felizes, agora, os três! Deixa-nos obedecer ao imperativo do sangue!

Lídia estremeceu e recuou; o seu desejo refugiou-se então na outra e tão terna se tornou a sua mão que Júlia respondeu com um longo e fremente suspiro de volúpia. Ao ouvi-lo, o ciúme contraiu o coração de Lídia, como se lhe estivessem a instilar veneno gota a gota. Ergueu-se inopinadamente, arremessou a coberta, saltou para o chão e gritou: - Vamo-nos embora. Júlia.

Júlia estremeceu; a incauta violência daquela exclamação, que a todos podia denunciar, mostrou-lhe o perigo que corriam; levantou-se sem dizer palavra.

Goldmundo, porém, ofendido e ludibriado nos seus instintos, abraçou rapidamente Júlia, enquanto ela se levantava, e beijou-lhe os seios segredando-lhe ardente: - Amanhã, Júlia, amanhã!

Lídia, em camisa e descalça, poisara no lajedo os dedos dos pés enregelados. Levantou do chão o casaco de Júlia e vestiu-lho com gesto sofredor e humilde, que, apesar da escuridão, não passou despercebido à irmã e a comoveu e conciliou. Ambas saíram do quarto e desapareceram, esgueirando-se silenciosamente. Goldmundo, atento ao rumor dos passos e agitado por contraditórios sentimentos, só respirou fundo quando sentiu a casa imersa em mortal silêncio.

Assim, depois de reunidos em uma situação estranha e contrária à natureza, se acharam aquelas três jovens criaturas remetidas ao isolamento, propício à meditação; quando chegaram ao quarto, também as duas irmãs, acordadas cada uma em sua cama, se isolaram em obstinado silêncio. Parecia que um vento de desgraça e contradição, um demónio de desatino e solidão, perturbador das almas, tinha invadido aquela casa. Goldmundo só à meia-noite adormeceu, Júlia só perto da madrugada. Lídia esteve acordada e torturada até que o dia pálido amanheceu sobre a neve. Levantou-se logo, vestíu-se, ajoelhou e rezou demoradamente diante da sua pequena imagem do Redentor; assim que ouviu na escada os passos do pai, foi ter com ele e pediu-lhe audiência. Sem tentar distinguir entre o cuidado que lhe inspirava a virtude de Júlia e o seu ciúme, resolvera pôr termo àquela situação. Ainda Goldmundo e Júlia dormiam e já o cavaleiro sabia tudo o que Lídia houvera por bem contar-lhe. Não se referiu à parte de Júlia na aventura.

Quando Goldmundo, à hora costumada, apareceu na sala de trabalho e encontrou o cavaleiro de botas, gibão e espada à cinta, em lugar do roupão de feltro e sapatos de quarto, que era hábito envergar para as suas escritas, compreendeu imediatamente o que aquilo significava.

- Põe a tua boina - disse o cavaleiro. - Tenho que ir dar uma volta contigo.

Goldmundo tirou o gorro do cabide e seguiu o amo, escada abaixo, através da cerca e para fora do portão. As solas rangiam alegremente na neve, coberta com leve camada de gelo; no céu permanecia ainda o clarão da aurora. O cavaleiro ia adiante, calado, seguido pelo jovem, que se voltava muitas vezes para contemplar o solar, a janela do seu quarto e o telhado íngreme coberto de neve, até lhe desaparecerem da vista e não mais os enxergar. Nunca mais veria aquele telhado e aquela janela, nem o quarto de escrever nem o de dormir, nem as duas irmãs. Havia muito tempo que se familiarizara com o pensamento de uma despedida súbita e, contudo, sentia uma dor pungente no coração. Amarga mágoa lhe dava aquele adeus.

Caminharam assim durante uma hora, o cavaleiro à frente e ambos calados. Goldmundo começou a imaginar o que iria acontecer. O cavaleiro estava armado e podia matá-lo, se quisesse. Mas não era crível. Era diminuto o perigo; bastava fugir para o ancião ficar desarmado apesar da espada. Não, a vida não corria perigo. Mas, cada passo em silêncio, atrás daquele homem solene e ofendido, tornava-se cada vez mais penoso. Até que, por fim, o cavaleiro parou.

- Seguirás agora - disse com voz quebrada - sozinho o teu caminho, sempre nesta direcção; voltarás à vida errante a que estavas acostumado. Se alguma vez tornares a aparecer nas imediações da minha casa, serás alvejado e abatido. Não me vingarei de ti; devia ter sido mais sensato e não ter trazido para junto de minhas filhas um rapaz tão jovem. Mas se te atreveres a voltar, arriscas a vida. Vai, agora, e que Deus te perdoe!

Parou. Na luz lívida daquela madrugada de neve, a sua face de barba grisalha parecia sem vida. Pálido como um espectro, só arredou pé quando Goldmundo desapareceu além do cabeço de um monte. Desvaneciam-se no céu toldado os fulgores rubros da madrugada, o sol não despontou e, lentamente, começou a cair neve em flocos finos e hesitantes.

 

Os passeios a cavalo permitiram a Goldmundo conhecer bem a região; para lá do paúl, agora gelado, encontrava-se a granja do cavaleiro e, mais adiante, uma quinta onde não era estranho. Poderia descansar e pernoitar em qualquer destes lugares. O resto, amanhã se veria. Pouco a pouco, deixou-se novamente invadir pelo sentimento de liberdade e aventura de que se desabituara. A aventura não era agradável naquele dia soturno e gelado de Inverno; a terra estranha que ia pisando cheirava a agrura, a fome e a tribulação e, contudo, a sua vastidão e magnificência, a sua dura implacabilidade tinha efeito apaziguante e conso-lador sobre o seu coração amimado e conturbado.

Andou até se cansar. As cavalgadas pelo campo tinham acabado, pensou. Oh! mundo imenso! Caía pouca neve; ao longe, os píncaros arborizados e as nuvens confundiam-se no céu grisalho; o silêncio espraiava-se infindo, até aos confins do mundo. Como estaria Lídia, aquele pobre coração angustiado? Sentia amarga pena. Pensou nela com ternura quando se sentou para descansar debaixo de um freixo solitário e despido, a meio do ermo paúl. Por fim, o frio afugentou-o; levantou-se de pernas entorpecidas e acelerou pouco a pouco o passo, pois a luz escassa do dia enevoado parecia já ir diminuindo. Os pensamentos dissiparam-se durante a longa marcha pelo campo ermo. Não era ocasião para pensar ou acalentar sentimentos, por muito belos que fossem. O que urgia era manter-se quente, atingir a tempo qualquer lugar onde pernoitasse, aguentar-se como a marta ou a raposa no meio daquele mundo frio e inóspito para, se possível, não se deixar morrer já no meio dos campos; nada mais era importante.

Olhou em redor, surpreendido, quando lhe pareceu ouvir, ao longe, um rumor de patas de cavalo. Seria possível que o perseguissem? Agarrou na pequena faca de mato que trazia na algibeira e desprendeu-a da bainha. Já distinguia o cavaleiro e reconheceu, a distância, que o cavalo era da cavalariça do pai de Lídia e dirigia-se obstinadamente para ele. Seria inútil fugir; parou e esperou sem medo, mas imensamente curioso e alvoroçado, com o coração a bater-lhe precipitadamente. Vislumbrou em súbito lampejo: - Se conseguisse matar o homem que ali vem a cavalo, tudo correria bem. Teria um cavalo, o mundo seria meu. - Mas quando reconheceu o cavaleiro, o jovem picador João, de olhos azuis-claros cor de água na boa face infantil e acanhada, riu-se; para matar o bom do moço, tão simpático, seria preciso ter um coração de pedra. Saudou-o cordialmente e acariciou o pescoço quente e húmido do cavalo Aníbal, que logo o reconheceu.

- Onde vais, João? - perguntou ele.

- Venho no teu encalço - disse o moço, a rir, mostrando os dentes rebrilhantes -. Já andaste um bom bocado! Bem, não posso demorar-me, trago a incumbência de te transmitir cumprimentos e entregar isto.

- Da parte de quem são os cumprimentos?

- Da menina Lídia. Bonito dia nos arranjaste, magister Goldmundo. Fiquei bem contente por me poder safar por algum tempo. Oxalá, o amo não se aperceba que me ausentei para este recado, senão ouviria das boas! Toma!

Estendeu-lhe um pequeno embrulho que Goldmundo agarrou.

- Dize lá, João, tens por acaso um bocado de pão no bolso? Dá-mo, se tiveres.

- Pão? Talvez se encontre uma côdea. - Remexeu nos bolsos e tirou um naco de pão escuro. Depois, preparou-se para voltar.

- Como está a menina? - perguntou Goldmundo. - Não te deu nenhum recado? Não trazes nenhuma cartinha?

- Nada. Vi-a só um instante; grande borrasca vai lá por casa, sabes. O amo anda desvairado de um lado para o outro, como o rei Saul. Tenho isto para te entregar e nada mais. E agora é tempo de estar de volta. - Vais já, é só um instante. Olha, João, não me poderias ceder a tua faca de mato? A minha é pequena. Se os lobos vêm, era melhor que tivesse uma coisa de jeito na mão.

Tinha muita pena - disse -, se acontecesse algum mal ao magister Goldmundo; mas a sua faca, não, essa nunca a daria, nem por dinheiro, nem em troca, nem que a própria santa Genoveva lha pedisse. E agora tinha que aviar-se, desejava-lhe boa sorte e tinha muita pena.

Apertaram as mãos e o moço montou a cavalo e partiu. Goldmundo seguiu-o com os olhos, sentindo estranha e funda mágoa. Desfez o embrulho, satisfeito com as boas correias de cabedal que o atavam. Dentro, encontrou uma camisola de malha, de lã cinzenta grossa, feita por Lídia para lhe oferecer; dentro da peça de lã, estava ainda, bem acondicionada, uma coisa dura, que era um naco de presunto, e no presunto estava espetado um ducado de oiro brilhante. Papel escrito não havia nenhum. Ali ficou na neve, com os presentes de Lídia na mão, sem saber o que fazer, até que despiu o casaco e envergou a camisola de lã que confortavelmente o aquecia. Tornou a vestir-se rapidamente, escondeu a moeda de oiro no bolso mais seguro do fato, atou a correia à cintura e seguiu o seu caminho a corta-mato; era tempo de encontrar poiso para descansar, estava muito fatigado. Mas não lhe agradava pedir hospedagem na tal herdade próxima embora lá encontrasse, decerto, calor e leite para beber. Não queria falar nem ser interrogado. Pernoitou no celeiro e, de madrugada, continuou a caminhada pela neve, sob o vento agreste, forçado a longas marchas pelo frio. Muitas noites sonhou com a espada do cavaleiro e com as duas irmãs; havia dias em que a solidão e a tristeza pesavam-lhe sobre o peito e oprimiam-lhe o coração.

Em certa aldeia, em casa de camponeses pobres, que não tinham pão mas lhe deram uma sopa de lentilhas, encontrou abrigo para pernoitar. Novas emoções ali o esperavam. A camponesa de quem era hóspede, de noite, deu à luz uma criança. Goldmundo assistiu ao parto. Tinham-no ido buscar ao palheiro para dar uma ajuda, embora, afinal, nada houvesse que fazer senão segurar na luz, enquanto a parteira exercia o seu mister. Era a primeira vez que assistia a um parto, e enriquecido com mais uma nova experiência, ficou preso, estupefacto, ao rosto da parturiente. Pareceu-lhe digno de registo o que observou no rosto da mulher. A luz da cavaca de pinho, fitando aquele rosto com funda curiosidade, algo de inesperado se lhe deparou: as suas linhas, pouco diferentes eram das que surgem no momento da embriaguez amorosa, já as vira no rosto de outras mulheres, a expressão de intensa dor era mais violenta e desfigurada do que a de intenso prazer, mas não era, no fundo, diferente: a mesma contracção em esgar, a mesma labareda em extinção. Sem bem perceber porquê, maravilhou-o e surpreendeu-o a intuição da semelhança entre a dor e o prazer.

Ainda outra aventura ocorreu naquela aldeia, A mulher do vizinho que vira no dia seguinte à noite do parto e prontamente correspondera à solicitação dos seus olhos enamorados, fê-lo passar lá mais uma noite e soube torná-la feliz.

Era a primeira vez, desde há muito tempo, depois das provocações e desilusões amorosas daquelas últimas semanas, que o seu desejo encontrava apaziguamento. Esse atraso de uma noite trouxe-lhe nova aventura. Deu azo a que no dia seguinte encontrasse na mesma povoação, um companheiro, um latagão alto e descarado, chamado Vítor, com aspecto meio de padre meio de salteador, que o saudou com migalhas de latim e se apresentou como estudioso goliardo, embora tivesse, há muito, ultrapassado a idade dos estudos.

Aquele homem de barbicha pontiaguda saudou Goldmundo com certo humor boémio e cordial, que rapidamente cativou o jovem. Em resposta à pergunta sobre o lugar onde fizera os seus estudos e ao objectivo da sua viagem, a bizarra personagem declamou a seguinte tirada:

- Frequentei, por meus pecados, bastantes universidades; estive em Colónia e em Paris e, acerca da metafísica do salpicão, jamais se escreveu algo de mais substancial do que a minha dissertação de Leida. Desde então, amice, calcorreio, pobre de mim, o santo império germânico, com a alma martirizada por desmedida fome e sede; chamo-me o terror dos camponeses e a minha profissão consiste em ensinar latim às mulheres jovens e, por artes mágicas, passar chouriços da chaminé para a minha barriga. O meu objectivo é a cama do burgomestre e, se não for antes devorado pelos corvos, mal me poderei eximir a exercer o enfadonho cargo de arcebispo. O melhor, meu jovem colega, é viver da mão para a boca; e, afinal, nunca um assado de coelho se sentiu melhor do que no meu pobre estômago. O rei da Boémia é meu irmão; o nosso pai do céu sustenta-o a ele como a mim, mas deixa-me o melhor do esforço e ainda anteontem, duro de coração como todos os pais, quis sacrificar-me para salvar a vida a um lobo esfomeado. Se eu não tivesse dado cabo da fera, senhor colega, não teríeis tido a honra de travar comigo agradável conhecimento. In saecula saeculorum amen.

Goldmundo, pouco familiarizado com aquele humor cáustico e com o latim de vagabundos daquela espécie, teve certo receio do enorme e hirsuto latagão e das risadas pouco agradáveis com que acompanhava as suas chalaças; algo lhe agradou, todavia, naquele calejado vagabundo e facilmente se deixou persuadir a seguir jornada com ele; fosse ou não palavreado a tal história do lobo abatido, em todo o caso dois valiam mais do que um e tinham menos que recear. Antes, porém, de seguirem caminho, ainda o irmão Vítor queria, como ele dizia, falar latim com os camponeses da localidade para o que assentou arraiais em casa de um pequeno lavrador. Vítor não procedia como Goldmundo, quando era hóspede de qualquer herdade ou aldeia; andava de casa em casa, entabulava conversa com todas as mulheres, metia o nariz em todos os currais e cozinhas, e não parecia disposto a abandonar nenhum povoado antes de todas as casas lhe terem pago imposto e tributo. Falava aos camponeses da guerra na Itália, cantava à lareira a canção da batalha de Pavia, recomendava às avós remédios contra o reumático e a queda dos dentes, parecia saber de tudo um pouco e ter estado em toda a parte, e recheava a camisa, até mais não poder, de pedaços de pão, nozes e pêras secas que lhe ofereciam. Goldmundo assistia, pasmado, à maneira como ele incansavelmente levava por diante a sua campanha; ora assustava aquela gente, ora os cativava com lisonjas, ora se fazia valer e admirar arranhando o seu latim ou fazendo figura com a sua gíria pitoresca e atrevida; no meio das narrativas e discursos eruditos, examinava, de olho alerta e vigilante, todas as caras, todas as gavetas que se abriam, todas as terrinas e todos os pães. Goldmundo notou que estava em presença de um vadio sem eira nem beira, que correra meio mundo, passara fome e frio, e na áspera luta por uma vida dura, escassa e ameaçada, se tornara muito astuto e atrevido. Eram estes os efeitos da longa vagabundagem. Viria ele algum dia a parecer-se com aquele homem?

No dia seguinte puseram-se a caminho e Goldmundo experimentou pela primeira vez o que era viajar acompanhado. Apenas três dias juntos e já Goldmundo aprendera diversas coisas com Vítor.

O hábito instintivo de tudo referir às três grandes necessidades da vída nómada: precaução contra o perigo, descoberta de poiso para a noite, angariação do sustento, tinham ensinado muita coisa a quem há tantos anos deambulava por toda a parte. Reconhecer, pelos mais insignificantes indícios, a proximidade de habitações humanas, em pleno Inverno e de noite, ou avaliar infalivelmente se este ou aquele recanto da floresta ou do campo servia para acampamento nocturno, ou farejar imediatamente, ao entrar em uma casa, o grau de abastança ou pobreza do proprietário, o alcance da sua benignidade, das suas curiosidades e eram artes em que Vítor era mestre. Contava ao jovem companheiro muita coisa instrutiva. Quando Goldmundo lhe redarguia que não gostava de se aproximar das pessoas com tão premeditado cálculo, que raras vezes lhe tinha sido recusada hospitalidade pedida com bons modos, embora não conhecesse todas aquelas artes, Vítor, o latagão, ria-se e respondia-lhe com bonomia: - Bem bem, Goldmundo, é natural que tenhas essa sorte; és jovem, bem parecido, tens um ar tão cândido que é já uma boa recomendação para te darem hospedagem. Agradas às mulheres e os homens pensam: Deus santo, este é inofensivo, não fará mal a ninguém. Mas repara, irmãozínho, que a gente envelhece, a carinha de menino cria barba e rugas, as calças criam buracos e, mal se dá por isso, de um momento para o outro, tornamo-nos mal encarados e indesejáveis. Em vez da juventude e da inocência, a fome espreita dos olhos; nessa altura é preciso rija têmpera e ter aprendido a andar cá pelo mundo, senão não tarda que um homem caia ao charco para ser regado pelos cães. Parece-me que tu nem por isso andarás muito tempo nesta vida, tens as mãos tão finas e os cabelos tão encaracolados que não tardará que te aconchegues em qualquer desses nichos onde a vida é fácil: um leito conjugal bem quentinho, um belo e pingue convento ou uma bem aquecida secretária. Tens, de resto, indumentária tão jeitosa, que pareces um fidalgo.

Rindo sempre, ia passando a mão pelo fato de Goldmundo e este sentia-o apalpar e esquadrinhar os bolsos e costuras; pensou no seu ducado de oiro e esquivou-se. Referiu-se à estadia no castelo do cavaleiro e contou que o belo trajo fora recompensa das suas versões latinas. Vítor quis saber porque tinha ele abandonado, em pleno e agreste Inverno, um ninho tão confortável; Goldmundo, que não costumava mentir, contou-lhe parte do que se passara com a filha do cavaleiro. Assim deu azo à primeira disputa com o companheiro. Vítor achava que Goldmundo fora um asno sem precedente por ter saído do castelo e ter deixado as donzelas ao deus-dará. Aquilo tinha que se pôr em ordem, havia ele de ver. Voltariam ao castelo, Goldmundo não devia aparecer, é claro, mas o resto deixasse-o por sua conta. Goldmundo escrevia uma carta a Lídia, nestes termos assim, assim; Vítor iria ao castelo munido da carta e, pelas chagas do Redentor, não sairia de lá sem trazer qualquer prebenda em dinheiro ou haveres. E por ali fora. Goldmundo opôs-se e acabou por exaltar-se; recusou-se a ouvir nem mais uma palavra a esse respeito ou a denunciar o nome do cavaleiro e o caminho para o castelo.

Vítor, ao vê-lo encolerizado, voltou a rir-se e tomou ares de bonacheirão: - deixa - disse-lhe - não é preciso abespinhares-te assim! Só te digo isto: deixas escapar-nos uma bela presa, meu menino, o que não é lá muito boa camaradagem da tua parte. Mas tu não queres, és todo fidalgo; queres voltar ao castelo, montado num corcel, e casar com a donzela! Ah, rapaz, que pretensiosas baboseiras tens na cabeça! Mas seja, continuemos a andar e deixemos enregelar os dedos dos pés.

Goldmundo ficou indisposto e calado até à noite. Como, nesse dia, não encontraram casa nem vestígios de gente, acedeu agradecido a que Vítor procurasse lugar para acampar, armasse um abrigo para as costas entre dois troncos de árvore na orla da floresta e amontoasse uma porção de caruma para uma camilha. Comeram pão e queijo que Vítor trazia nas algibeiras cheias, e Goldmundo, envergonhado da sua cólera, mostrou-se atencioso e solícito; ofereceu ao companheiro a camisola de lã para dormir de noite e, tendo combinado ficar de guarda cada um por seu turno, por causa da bicharada, Goldmundo encarregou-se da primeira vigia, enquanto o outro se deitava na caruma. Goldmundo, por muito tempo encostado a um tronco de abeto, permaneceu quieto para não impedir o companheiro de adormecer. Depois, começou a andar de um lado para o outro porque se sentia transido. Afastou-se cada vez mais, naquele passeio; viu as copas dos pinheiros recortarem-se pontiagudas no céu pálido; sentiu-se impressionado e um pouco atemorizado pelo profundo silêncio e solenidade daquela noite de Inverno; sentiu o coração vivo e quente pulsar solitário no álgido silêncio indiferente e escutou a respiração do companheiro adormecido, quando voltou devagarinho. Repassou-o mais intensamente que nunca o sentimento peculiar ao vagabundo: não tendo entre si e a imensa angústia as paredes de uma casa, palácio ou mosteiro, percorre, solitário e desnudo, o vasto e incompreensível mundo hostil, sob as estrelas frias e zombeteiras, caminhando por entre animais emboscados, por entre árvores pacientes e imperturbáveis.

Não - pensou ele - nunca chegarei a ser igual a Vítor, nem que toda a vida seja vagabundo. Nunca serei capaz de aprender aquela defesa contra o pavor, aquele jeito velhaco e ladrão de fazer pela vida, aqueles modos foliões, espalhafatosos e descarados, aquele humor cáustico de verboso ferrabrás. Talvez aquele homem astuto e descarado tivesse razão, talvez Goldmundo nunca chegasse a ser igual, a tornar-se por completo um vagante, talvez um dia voltasse a acolher-se adentro de quaisquer muros. Sempre, porém, continuaria nómada sem fito, nunca se sentiria realmente resguardado e seguro, sempre o mundo o rodearia enigmaticamente belo, enigmaticamente inquietante; sempre seria forçado a ouvir aquele silêncio, em meio do qual as pulsações do nosso coração eram tão ansiosas e perecíveis. Poucas estrelas se viam, não corria uma aragem; lá no alto, porém, as nuvens pareciam agitadas.

Passado muito tempo, Vítor acordou - Goldmundo não o quisera despertar - e chamou-o.

- Vem - gritou ele - tens que dormir agora, senão, não prestas para nada.

Goldmundo obedeceu; deitou-se e fechou os olhos. Cansado estava ele bastante, mas não conseguia adormecer; mantinham-no desperto os seus pensamentos e um sentimento, que a si próprio não confessava, de receio e desconfiança do companheiro. Não compreendia agora como pudera falar de Lídia àquele grosseiro homem das estrepitosas gargalhadas, àquele bufão e atrevido mendigo! Estava aborrecido com ele e consigo próprio e cismava na melhor maneira e oportunidade de se separar dele.

Devia, contudo, ter caído em sonolência, porque se sobressaltou, assustado, quando sentiu as mãos de Vítor apalpando-lhe cautelosamente o fato. Em um dos bolsos tinha a faca, em outro o ducado; ambas as coisas seriam infalivelmente roubadas por Vítor se desse com elas. Fingiu-se adormecido, agitou-se de um lado para o outro como quem está bêbedo de sono, mexeu os braços e o outro afastou-se. Goldmundo, muito zangado, resolveu separar-se dele na manhã seguinte.

Decorrida uma hora aproximadamente, Vítor curvou-se de novo sobre ele e recomeçou a esquadrinhá-lo. Goldmundo ficou rubro de cólera. Abriu os olhos sem se mexer e disse com desdém: - Vai-te embora, não há nada aqui para roubar.

Assustado com a interpelação, o ladrão atacou-o e apertou as mãos em volta do pescoço de Goldmundo. Como este se defendia e tentava erguer-se, apertou com mais força ainda, ao mesmo tempo que lhe fincava um joelho no peito. Goldmundo, já quase sem fôlego debatia-se com todo o corpo para o repelir; como não conseguia desenvencilhar-se, sentiu-se subitamente repassado pelo medo da morte que lhe incutiu lucidez e astúcia. Meteu a mão na algibeira e, enquanto o outro continuava a estrangulá-lo, tirou a pequena faca de mato que enterrou várias vezes, às cegas, no corpo do homem ajoelhado por cima dele. Passados momentos, as mãos de Vítor afrouxaram a pressão; Goldmundo já podia respirar e, tomando fôlego, saboreou sofregamente a sua vida salva. Tentou erguer-se, mas desabou-lhe em cima, com horrível estertor, o corpo já mole e frouxo do camarada, cujo sangue lhe escorreu pela cara. Só então Goldmundo conseguiu levantar-se e viu, à escassa claridade cinzenta da noite, o latagão caído; quando lhe tocou só encontrou sangue. Levantou-lhe a cabeça caída para o lado, pesada e mole como um saco. Do peito e do pescoço escorria sangue ininterruptamente e, pela boca, escoava-se-lhe a vida em suspiros confusos que gradualmente enfraqueciam.

- Matei um homem - pensou Goldmundo. - Obcecado por este pensamento ajoelhou, curvou-se sobre o moribundo e viu a lividez alastrar-lhe pelo rosto. - Santa Mãe de Deus, matei - ouviu-se dizer a si próprio.

Não suportava ficar ali nem mais um instante. Apanhou a faca, limpou-a na camisola de lã feita por Lídia para o seu bem-amado, que o outro tinha vestida; enfiou a faca na bainha de pau, meteu-a no bolso, ergueu-se de um salto e deitou a correr com todas as forças.

A morte do vagante folgazão pesava-lhe na alma. Quando rompeu o dia lavou horrorizado, com neve, todo o sangue escorrido sobre ele, e errou à toa e aterrado mais um dia e uma noite. As necessidades imperativas do corpo sacudiram-no finalmente e puseram termo ao seu angustiado remorso.

Perdido naquela região erma e nevada, sem abrigo, sem rumo, sem alimento e quase sem ter dormido, prostrou-o grande aflição; a fome rugia-lhe no ventre como animal feroz; várias vezes se deitou exausto no meio do campo, de olhos fechados, perdido, só aspirando a adormecer e a morrer sobre a neve, mas sempre, de novo, uma força o impelia a levantar-se; desesperado e sôfrego corria, para preservar a vida, e no meio da mais amarga aflição reconfortava-o e inebriava-o a veemência e a força do não-querer-morrer, a prodigiosa força do puro instinto vital. Com mãos roxas e enregeladas, colheu, nas moitas de zimbro cobertas de neve, as pequenas bagas ressequidas, amargas e rijas, que mastigou à mistura com agulhas de pinheiro; tinham sabor acre e irritante, e Goldmundo devorava neve às mãos cheias para matar a sede. Sem fôlego nem alento, soprando nas mãos entorpecidas, sentou-se num morro para descansar um pouco e olhou ansioso para todos os lados; por toda a parte só via floresta e charneca, nenhuns vestígios de gente. Sobrevoaram-no meia dúzia de corvos, que seguiu furioso com a vista. Não, não se refastelariam com ele enquanto sentisse um resto de força nas pernas, uma centelha de calor no sangue. Levantou-se e retomou o inexorável desafio com a morte. Correu, correu, e no delírio do derradeiro exaustivo esforço, acometiam-no estranhos pensamentos e entabulava consigo próprio loucas conversas em voz baixa ou em voz alta. Falava com Vítor, o homem que tinha assassinado, falava-lhe com escárnio e severidade. - Ah, meu velhaco, então como tens passado? Brilha-te a lua através das tripas, as raposas depenam-te as orelhas? Dizes que mataste um lobo? Mordeste-o na garganta ou arrancaste-lhe o rabo, hem? Querias roubar-me o meio ducado, velho salteador! Mas o Goldmundinho surpreendeu-te, hem, fez-te cócegas nas costelas! E tu com as algibeiras abarrotadas de pão, queijo e chouriço! Seu porco, seu glutão! - Semelhantes discursos chistosos saíam-lhe aos uivos entre meados de tosse; injuriava o morto, alardeava o seu triunfo,

escarnecia dele por se ter deixado matar, o palerma, o estúpido fanfarrão!

Tais pensamentos e arengas deixaram de se dirigir a Vítor, ao pobre latagão do Vítor. Via agora Júlia à sua frente, a formosa Julinha, tal como a deixara naquela noite; chamava-a com sem número de palavras meigas, tentava persuadi-la, com loucas e impúdicas carícias, a vir ter com ele, a deixar cair a camisinha, a subir com ele ao céu, uma hora ao menos antes da morte, um momentinho antes do misérrimo estoiro. Suplicante e provocante, dirigia-se aos seiozinhos altos, às pernas, à loira e crespa penugem sob a axila.

Enquanto caminhava sobre a erva da charneca ressequida e coberta de neve, com as pernas hirtas e aos tropeções, ébrio de dor e do triunfo da trémula ânsia de vida, voltou a murmurar algumas palavras; falava agora com Narciso, a quem comunicava as suas novas ideias, sábios preceitos e gracejos.

- Tens medo, Narciso - assim o interpelou - apavoras-te, notaste algo de insólito? Olha, meu velho amigo, o mundo está cheio de morte, ela empoleira-se em cada sebe, embusca-se atrás de cada árvore, e de nada vos serve construir muros e dormitórios, capelas e igrejas; ela espreita pela janela e ri-se, conhece-vos a todos tão bem! No meio da noite ouvi-la-eis rir-se debaixo da janela ao pronunciar o vosso nome. Cantai, cantai os vossos salmos, acendei profusas velas no altar, rezai as vossas vésperas e matinas, coleccionai ervas no laboratório e livros na biblioteca! Jejuas, amigo? Privaste-te do sono? Ela logo te cantará o fadário, a amiga morte despojar-te-á de tudo, até dos ossos. Foge, caríssimo, e mantém os ossos bem juntinhos que eles só querem dispersar-se e não ficarão connosco. Pobres ossos, pobres goelas e pobre papo, pobre pedaço de cérebro sob o crânio! Tudo se quer separar de nós, tudo quer que o diabo o leve, e os corvos, as sotainas negras, lá estão empoleiradas nas árvores.

Tresloucado, não sabia por onde andava, onde estava, nem o que dizia, nem se estava de pé ou deitado. Tropeçou em moitas, embateu com árvores e, ao cair, agarrava-se à neve e às silvas. O forte instinto de conservação voltava a fustigá-lo, impelindo-o para diante em cega fuga.

Quando, por fim, lhe faltaram as forças e caiu desfalecido, encontrava-se na mesma aldeia onde, havia poucos dias, encontrara o vagante e segurara de noite o facho resinoso para alumiar o parto. Ali ficou caído; acorreu gente, que se aglomerou em volta a falar, mas Goldmundo nada ouvia. A mulher que da outra vez possuíra, reconheceu-o e assustou-se ao vê-lo; movida de compaixão, arrastou-o meio morto para o estábulo, sem dar ouvidos aos ralhos do marido.

Não tardou muito que Goldmundo voltasse a sentir-se firme nas pernas e capaz de seguir caminho. O calor do estábulo, o sono e o leite de cabra oferecido pela camponesa, fizeram-no voltar a si e recobrar forças; os recentes acontecimentos pareciam recuados como se muito tempo tivesse decorrido desde então. A caminhada com Vítor, a noite gélida e angustiada debaixo dos abetos, a terrível luta, a horrível agonia do companheiro, os dias e noites de enregelamento, fome e descaminho, tudo pertencia ao passado, parecia esquecido e, contudo, estava somente superado e transcurso. Algo de inexprimível, algo de horrível e ao mesmo tempo precioso, ficara submerso e para sempre inesquecível, uma vivência, um travo na boca, um anel em torno do coração. Conhecera a fundo, em menos de dois anos, prazeres e agruras da vida errante: a solidão, a liberdade, a atenção aos rumores da floresta e dos bichos, o amor volúvel e inconstante, e a amarga e moral provação. Vivera dias e dias no campo estival, dias e semanas na floresta, dias sob a neve, dias de moral angústia e morte iminente; mas a mais forte e a mais estranha de todas as sensações tinha sido a resistência à morte; saber-se pequeno, mísero e ameaçado e, todavia, em derradeira e desesperada luta contra a morte, sentir no corpo a tenaz afirmação da tremenda e bela força vital. Ressoava ainda, ficara-lhe gravada no coração, tal como os gestos e expressões de volúpia, tão semelhantes aos das mulheres em dor de parto e aos dos agonizantes. Tão pouco tempo passara desde que a mulher gritara com o rosto contraído, desde que o camarada Vítor perecera, esvaindo-se em sangue, silenciosa e rapidamente! Ah! e ele próprio o que sentira naqueles dias de fome, quando a morte emboscada o espreitava! Como a fome lhe doera, como se sentira gelado, enregelado! E como tinha lutado, como tinha vencido a inimiga, com que mortal pavor e enraivecida volúpia se tinha defendido! Mais do que aquilo não seria possível sentir, queria parecer-lhe. A ninguém, excepto a Narciso, poderia falar no que se passara, a mais ninguém.

Quando Goldmundo voltou verdadeiramente a si sobre a cama de feno do estábulo, deu por falta do ducado no bolso. Tê-lo-ia perdido, meio inconsciente e cambaleante como estava, na terrível arrancada do último dia de exaustão? Cogitou muito no caso. Tinha amor ao ducado, não lhe agradava nada tê-lo perdido; não que o dinheiro tivesse para ele qualquer significado, mal lhe conhecia o valor. Mas aquela moeda tornara-se significativa por dois motivos: porque era o único presente de Lídia que lhe restava, visto a camisola de lã ter ficado na floresta, encharcada no sangue de Vítor; e, principalmente, porque fora por causa da moeda, por não permitir que lha tirassem, que se defendera de Vítor e, na aflição, o matara. Se o ducado se perdesse, ficaria até certo ponto desvalorizado e destituído de sentido o que acontecera naquela noite de pavor. Depois de muito ponderar, resolveu meter no segredo a camponesa.

- Cristina - segredou-lhe - tinha uma moeda de oiro no bolso e já lá não está.

- Afinal sempre deste por isso? - perguntou ela com um sorriso estranho, ao mesmo tempo afectuoso e matreiro, tão encantador que Goldmundo, apesar de ainda enfraquecido, lhe deu um abraço.

- Mas que homem estranho tu és - disse ela com ternura - tão esperto e fino, e tão tolo! Então anda-se assim pelo mundo com um ducado solto no bolso? Oh, minha criança, meu doce tontinho! Encontrei a tua moeda quando te deitei na palha.

- Ah, sim? E onde a guardaste?

- Procura-a - riu-se e deixou-o, de facto, procurar, antes de lhe mostrar o sítio onde a cosera com segurança ao fato. Aproveitou a ocasião para lhe dar uma porção de conselhos maternais, que ele prontamente esqueceu, embora nunca mais esquecesse o serviço que ela lhe prestara e o sorriso bondoso e matreiro do seu rosto. Esforçou-se por lhe mostrar gratidão; quando, dentro em breve, se sentiu outra vez capaz de andar e se dispunha a partir, ela ainda o reteve porque a lua ia mudar por aqueles dias e decerto o tempo melhoraria. Assim foi. Quando partiu, já a neve estava parda e doente, o ar carregado de humidade e, nas altitudes, ouvia-se gemer um vento tépido.

 

Voltara o gelo a derivar rios abaixo, voltaram a rescender as violetas sob a folhagem apodrecida, voltara Goldmundo à vida errante, acompanhando as estações do ano, sorvendo com olhos insaciáveis a paisagem das florestas, dos montes e das nuvens, seguindo de herdade em herdade, de terra em terra, de mulher para mulher; passara tardes frias, opresso e de coração magoado, debaixo de janelas por detrás das quais a claridade rósea de uma luz irradiava bela e inatingível, significava para ele toda a felicidade, paz e aconchego que pode haver no mundo. E tudo voltava, tudo o que tão bem julgava conhecer se repetia, mas sempre diversamente: as longas caminhadas por campos, charnecas e estradas pedregosas, o sono estival na floresta, a vadiagem nas aldeias atrás dos ranchos de raparigas que regressavam da ceifa ou da apanha do lúpulo, o primeiro aguaceiro outonal, os primeiros gelos ruins - tudo se repetia, no constante desenrolar da infinda bobina colorida.

Muita chuva e muita neve caíra já sobre Goldmundo, quando, um dia, chegado ao cimo de uma encosta, através de um bosque de faias pouco denso, viu espraiada a seus pés nova paisagem, que lhe alegrou os olhos e lhe inundou o coração de onda nostálgica de pressentimentos, desejos e esperanças. Havia dias que se sabia próximo daquela região e a esperava; aparecia-lhe agora de surpresa, àquela hora do meio-dia, e o que os seus olhos abarcavam naquele primeiro encontro, mais lhe avivavam a esperança. Por entre troncos grisalhos e ramagens baloiçando brandamente, viu, a seus pés, um vale castanho e verde, a meio do qual refulgia, em tons azuis e vítreos, um grande rio. Compreendeu que tinham findado as longas caminhadas sem estrada, por terras de charneca, floresta e solidão, onde só de quando em quando se encontrava uma herdade ou uma mísera aldeola. O rio corria lá em baixo e, ao longo do rio, seguia uma das mais belas e famosas estradas do império; ao longe desenrolava-se uma terra rica e fértil, pelo rio vogavam barcos e jangadas, e a estrada atravessava opulentas cidades e lindas aldeias, passava por castelos e conventos; quem quisesse podia viajar dias e semanas por aquela estrada” sem receio de repentinamente se perder em alguma floresta ou húmido paúl, como acontecia nos míseros caminhos campestres. Era uma nova perspectiva que muito o regozijava. Ao entardecer desse dia chegou a uma linda povoação, situada junto à grande via de tráfego, entre o rio e rubros vinhedos; as casas, de telhados pontiagudos, tinham os vigamentos vistosamente pintados de vermelho; havia portões arqueados e calçadas em escadinhas empedradas; uma forja lançava para a rua um clarão vermelho e o claro repique da bigorna. O recém-chegado deambulou, curioso, por todas as vielas e recantos, aspirando à entrada das adegas o cheiro a mosto e, à beira rio, o aroma fresco e piscoso; visitou a igreja e o cemitério, sem se esquecer de olhar à sua volta em busca de um celeiro aonde pudesse trepar para passar a noite. Antes, porém, preferiu pedir de comer em casa do pároco. Este, um homem anafado e ruivo, interrogou-o, primeiro, e Goldmundo contou-lhe a sua vida omitindo uns factos e inventando outros; depois, recebeu-o cordialmente e passou o serão em longa cavaqueira com ele, diante de uma mesa bem servida de comidas e vinhos. Ao outro dia, prosseguiu a jornada pela estrada ao longo do rio. Viu jangadas e barcaças de carga, passou por carros que lhe deram boleias; os dias primaveris passavam velozes e sobrecarregados de imagens; acolhiam-no povoações e pequenas cidades, as mulheres sorriam por detrás das sebes dos jardins ou ajoelhadas na terra escura, plantando flores, e ouviam-se os cantares das raparigas, ao entardecer, nas ruelas das aldeias.

Uma moça de um moinho agradou-lhe tanto, que ficou dois dias na região a rondá-la; ela ria, tagarelava de bom grado, e Goldmundo imaginou que, mais do que tudo, gostaria de ser moço de moleiro e ficar ali para sempre. Sentava-se ao pé dos pescadores, ajudava os arreeiros a dar de comer e a almoçafar os cavalos, recebia em troca pão, carne e transporte nos carros. Após a prolongada solidão e ensimesmamento fazia-lhe bem a sociabilidade, o convívio animado, comunicativo e jovial com aquela gente, a alimentação abundante que diariamente lhe matava a fome; tudo aquilo lhe fazia bem e ele vogava, gostosamente, na alegre onda que o arrebatava; quanto mais se aproximava da cidade episcopal, mais frequentada e festiva se tornava a estrada.

Em certa aldeia, foi passear ao anoitecer para debaixo de frondosas árvores, à beira da água. O rio corria calmo e caudaloso, a torrente marulhava e suspirava sob as raízes das árvores, a lua erguia-se por detrás da colina, derramando cintilações no rio e sombras sob as árvores. Encontrou uma rapariga sentada a chorar; zangara-se com o namorado, que se fora embora e a deixara sozinha. Goldmundo sentou-se junto dela, ouviu-lhe as queixas, afagou-lhe as mãos e falou-lhe da floresta e das corças; consolou-a, fê-la rir e ela acedeu a dar-lhe um beijo. Nessa altura apareceu o namorado que a vinha procurar, já apaziguado e arrependido da zanga. Quando encontrou Goldmundo junto dela atirou-se a ele aos murros. Goldmundo teve dificuldade em defender-se mas, por fim, dominou-o e o rapaz fugiu para a aldeia a praguejar; a rapariga já antes se sumira. Goldmundo, porém, não confiando que o deixassem em paz, abandonou o poiso nocturno e caminhou à luz do luar, durante metade da noite, em meio de uma paisagem prateada e silenciosa; feliz e satisfeito com o vigor das suas pernas, andou até que o orvalho lhe levou o pó dos sapatos e, subitamente cansado, se deitou debaixo da árvore mais próxima e adormeceu. Era já dia claro quando o acordaram umas cócegas, que ele, ébrio de sono, enxotou às apalpadelas; adormeceu novamente e, pouco depois, foi acordado pela mesma impressão; uma rapariga do campo olhava para ele e titilava-o com a ponta de uma varinha de salgueiro. Levantou-se ainda cambaleante, sorriram um para o outro, com um aceno, e ela levou-o a um barracão, onde melhor se poderiam deitar. Aí estiveram um com o outro; depois a rapariga saiu e voltou com um baldezinho cheio de leite, ainda quente da vaca. Goldmundo ofereceu-lhe uma fita azul para o cabelo, que encontrara na rua, e tornaram a beijar-se antes de se separarem. Chamava-se Francisca, a rapariga, e teve pena de deixá-la.

Ao anoitecer, encontrou hospitalidade em um convento onde na manhã seguinte, assistiu à missa; palpitava-lhe no peito uma estranha revoada de recordações; comovia-o o cheiro familiar do ar fresco sob as abóbadas e o matraquear das sandálias nos corredores de lajedo. Terminada a missa, quando de novo reinou silêncio na igreja conventual, Goldmundo ficou ajoelhado, preso de estranha comoção; de noite tivera imensos sonhos. Sentia, sem saber bem porquê, o desejo de libertar-se do seu passado, de mudar de vida; talvez sob a influência da recordação de Mariabronn e da sua piedosa adolescência. Sentia-se impelido a confessar-se e purificar-se de muitos pequenos pecados e pequenos vícios; pesava-lhe sobretudo a morte de Vítor.

Encontrou um padre a quem confessou as várias culpas, mas especialmente as facadas no pescoço e nas costas do pobre Vítor. Há quanto tempo não se confessava! A gravidade e a quantidade dos seus pecados parecia-lhe impressionante, estava pronto a expiá-los com dura penitência. Mas o padre confessor conhecia a vida dos vagantes; não se horrorizou; ouviu-o calmamente, repreendeu-o e admoestou-o com grave afabilidade, sem pensar em condená-lo.

Goldmundo ergueu-se aliviado, rezou em frente do altar, conforme a prescrição do padre, e já ia a sair da igreja, quando um raio de sol que entrava por uma janela lhe chamou a atenção; seguindo-o com o olhar, viu, na capela lateral, uma imagem, que de tal modo lhe falou ao coração e o atraiu, que se voltou para ela com olhos enternecidos, contemplando-a cheio de devoção e profundamente comovido. Era uma Nossa Senhora de madeira, inclinada em gesto de suave doçura; o manto azul caía-lhe dos ombros estreitos, estendia a frágil mão virginal, e os olhos, entre a testa grácil e a boca dolorosa, tinham uma expressão tão bela e profundamente inspirada que Goldmundo pensou nunca ter visto beleza igual. Não se cansava de contemplar aquela boca, aquele lindo e amorável movimento do colo. Parecia-lhe ter à sua frente o que, com nostálgico anseio, em sonhos e pressentimentos, já vira e desejara. Várias vezes voltou costas para se retirar, mas sempre novamente retrocedia.

Quando, por fim, se resolveu a sair, apareceu-lhe o padre a quem se confessara.

- Acha-la bela? - perguntou cordialmente.

- Inefavelmente bela - disse Goldmundo.

- Há quem seja da mesma opinião - disse o clérigo. - E também há quem diga que não é uma verdadeira Nossa Senhora, que é demasiado moderna e mundana, exagerada e destituída de verdade. Tem sido muito discutida esta imagem. A ti agrada-te, pelo que vejo, e folgo com isso. Está na nossa igreja há um ano apenas, foi um benemérito amigo da nossa ordem, que a doou ao convento. É uma obra de Mestre Nicolau.

- Mestre Nicolau? Quem é ele, onde está? É vosso conhecido? Falai-me dele, peço-vos. Deve ser extraordinário e abençoado o homem capaz de criar tal obra. -

- Pouco sei a seu respeito. É entalhador e artista de grande fama, na nossa cidade episcopal, a um dia de jornada daqui. Os artistas não costumam ser nenhuns santos e é natural que este não seja uma excepção; mas é, sem dúvida, um homem talentoso e de espírito elevado. Já algumas vezes o vi...

- Jáo vistes? Que aspecto tem ele?

- Meu filho, pareces estar completamente fascinado por ele. Pois bem, procura-o então e saúda-o da parte do padre Bonifácio.

Goldmundo agradeceu exuberantemente. O padre afastou-se,

rindo; ele, porém, ainda se demorou diante da imagem misteriosa, que parecia respirar, e em cujo peito moravam, lado a lado, tão pungente dor e tão meiga doçura que lhe cortavam o coração.

Saiu da igreja transfigurado, os seus passos conduziam-no através de um mundo completamente diferente. Desde o instante passado em frente da suave e santa imagem, Goldmundo possuía aquilo que até então nunca possuíra e nos outros tanta vez invejara ou o fizera sorrir:

um fito! Uma finalidade que talvez atingisse e talvez, então, toda a sua vida inconsistente adquirisse um alto sentido e valor. Aquele sentimento novo repassava-o de alegria e temor, dava-lhe asas nos pés. A estrada alegre por onde seguia, já não era, como ontem, um lugar para folguedos ou aprazível estância, era simplesmente uma estrada, um caminho para a cidade, o caminho para o mestre. Goldmundo avançava impaciente. Chegou à cidade ainda antes da noite; viu torres garbosas ostentando-se por detrás das muralhas, viu brasões esculpidos e armoriais pintados por cima da porta da cidade, que atravessou com o coração descompassado, mal reparando no ruidoso e animado bulício das ruas, nos cavaleiros e suas montadas, nos carros e carruagens. Não eram os cavaleiros, nem os carros, nem a cidade, nem o bispo, que lhe interessavam. Logo à primeira pessoa que encontrou ao transpor a porta, perguntou onde morava o mestre Nicolau e ficou grandemente desiludido por não saberem dar-lhe resposta.

Chegou a uma praça de casas imponentes, muitas delas pintadas ou adornadas com esculturas e ornatos. Por cima de um portão viu, em tamanho natural, a figura de um luzido lansquenete pintado a cores fortes e ridentes. Não era tão belo como a imagem da igreja do convento, mas tinha tal aprumo, de perna retesada desafiando o mundo com o seu queixo barbudo, que Goldmundo pensou que podia muito bem ter sido obra do mesmo mestre. Entrou na casa, bateu a várias portas, subiu escadas e, por fim, deparou com um cavalheiro trajando fato de veludo orlado a pele a quem perguntou onde poderia encontrar mestre Nicolau.

Que lhe queria ele, perguntaram-lhe à guisa de resposta; Goldmundo esforçou-se por conter-se e disse somente que tinha um recado para o mestre. Indicaram-lhe, então, o nome da rua onde ele morava; quando lá chegou, depois de muito perguntar a uns e a outros, já era noite. Opresso mas feliz, parou em frente da casa, olhou para as janelas e, por um pouco, não se precipitava para a porta. Lembrou-se, porém, que já era tarde e estava suado e poeirento da caminhada; dominou-se e esperou. Uma das janelas iluminou-se e, quando se dispunha a retirar-se, assomou à janela o vulto de uma rapariga loira e formosa cujos cabelos resplandeciam, iluminados pela branda luz do candeeiro.

No dia seguinte, acordada a cidade com todo o seu rumor, no convento onde lhe deram hospedagem, Goldmundo lavou o rosto e as mãos, sacudiu o pó do fato e dos sapatos e dirigiu-se outra vez para a casa do mestre. Bateu ao portão de entrada; a criada que lhe abriu a porta não o queria levar à presença do mestre, mas, por fim, lá o deixou entrar. No pequeno aposento que era a oficina, estava o mestre com o seu avental de trabalho; era um homem corpulento, de barbas, entre os quarenta e os cinquenta anos, ao que pareceu a Goldmundo. Os seus olhos azuis-claros, penetrantes, fixaram o visitante e perguntou-lhe, lacónico, o que pretendia. Goldmundo saudou-o da parte do padre Bonifácio.

- Nada mais?

- Mestre - disse Goldmundo com a respiração entrecortada - vi a vossa imagem da Virgem no convento. Mestre, dignai-vos olhar-me menos severamente; puro fervor e veneração me trouxe até vós. Não sou tímido, vivo há muito tempo errante, sei o que é a floresta e os rigores da neve e da fome, ninguém me infunde receio, senão vós. Tenho um único e grande desejo, que me enche o coração e me faz sofrer.

- Qual é o teu desejo?

- Gostaria de ser vosso aprendiz, de aprender convosco.

- Não és tu o único, meu rapaz, a ter esse desejo. Mas eu não gosto de aprendizes e já tenho dois oficiais. Donde vens, quem são os teus pais?

- Não tenho pais e não venho de parte alguma; estudei em um convento onde aprendi latim e grego, mas depois fugi e ando, há muito tempo, a correr mundo.

- Porque pensaste em aprender a arte de entalhador? Já alguma vez tentaste? Tens alguns desenhos?

- Fiz vários desenhos, que não tenho já em meu poder. Mas posso dizer-vos o motivo que me leva a querer aprender a vossa arte. Tenho pensado muito, tenho visto muitas caras e figuras, meditei sobre elas e algumas das minhas ideias atormentam-me constantemente e não me deixam repouso. Reparei que em cada figura humana há a recorrência de uma linha única, a certa testa corresponde certo joelho, a certo ombro certa coxa, e tudo, no fundo, é igual à índole, à alma da pessoa que possui tal joelho, tal ombro, tal testa. Reparei também, na noite em que assisti a um parto, que a dor suprema e a suprema volúpia têm expressão análoga.

O olhar agudo do mestre trespassou-o.

- Sabes o que estás dizendo?

- Sei que é assim, mestre. E foi justamente o que, para meu máximo deleite e assombro, encontrei expresso na vossa madona; eis porque vim ter convosco. Havia naquele rosto belo e suave uma tão funda mágoa, transmudada embora em pura ventura sorridente! Ao vê-la, ateou-se em mim um rastilho de fogo; os meus pensamentos e sonhos de tantos anos pareciam confirmados; deixaram de ser inúteis e imediatamente soube o que tinha a fazer e onde tinha que vir. Meu bom mestre Nicolau, deixai-me aprender convosco, suplico-vos do fundo do coração.

Nicolau, sem todavia lhe mostrar melhor cara, ouvira-o atentamente.

- Meu rapaz - disse ele - falas da arte com surpreendente acerto e espanta-me que, com a tua pouca idade, conheças tão bem a dor e a volúpia. Teria muito prazer em falar contigo sobre estes assuntos, à noite, abancados diante de um copo de vinho; mas repara: conversar, aprazível e subtilmente, não é o mesmo que estar meia dúzia de anos a trabalhar em conjunto. Isto é uma oficina, aqui trabalha-se, não se conversa; as lucubrações de nada servem, aqui só vale o que se é capaz de fazer. Parece-me que tomas o caso a sério e, por isso, não te mando embora sem mais. Vamos ver o que sabes fazer. Alguma vez modelaste barro ou cera?

Goldmundo lembrou-se do sonho em que amassava figurinhas de barro, que se erguiam e transformavam em gigantes. Mas não aludiu a isso; respondeu que nunca tentara tais trabalhos.

- Bem, então vais desenhar qualquer coisa. Está ali, como vês, uma mesa, papel e carvão. Senta-te e desenha; não te apresses, tens muito tempo, podes ficar até ao meio-dia ou mesmo até à tarde. Talvez, depois, possa ver para que prestas. Agora, basta de conversas; vou ao meu trabalho, vai tu ao teu.

Goldmundo sentou-se à mesa de desenho, no assento que Nicolau lhe indicara. Não tinha pressa; primeiro, expectante e imóvel como aluno tímido, fitou com solícita curiosidade o mestre que, em pé ao meio da casa, de costas voltadas para ele, modelava uma pequena figura de barro. Contemplou atentamente aquele homem, em cuja cabeça severa e já grisalha, em cujas mãos de artista calejadas, mas juvenis e inspiradas, moravam tão mágicas forças. O seu aspecto era diferente do que Goldmundo imaginara: era mais velho, mais modesto, mais sóbrio, muito menos radioso e cativante do que pensara, e nada feliz. A agudeza implacável do seu olhar inquiridor dirigia-se, agora, para o trabalho; Goldmundo, liberto, atentava cuidadosamente na figura do artista. Aquele homem - pensou - poderia também ser um erudito, um investigador calmo e rigoroso, dedicado a uma obra iniciada pelos seus predecessores e que legaria aos continuadores, uma dessas obras de vasto âmbito, intermináveis, longevas e persistentes, que exigem o labor e a dedicação de muitas gerações. Pelo menos, era o que o observador podia ler na cabeça do mestre: muita paciência, exercício e reflexão, muita modéstia e consciência do precário valor de toda a obra humana, a par da crença e confiança na sua missão. Mas a linguagem das mãos era diferente, havia contradição entre elas e a cabeça. As mãos agarravam, corta dedos firmes mas extremamente sensíveis, o barro que modelavam-manipulavam-no como mãos de amante tratam a amada que se lhe abandona: enamoradas e vibrantes, sensuais e desejosas, não faziam distinção entre o dar e o tomar; ao mesmo tempo voluptuosas e reverentes pareciam dotadas de uma mestria e segurança provinda de ancestral e vetusta experiência. Goldmundo contemplava, com enlevo e admiração, aquelas mãos abençoadas. Gostaria de desenhar o retrato do mestre se não o inibisse a contradição entre o rosto e as mãos.

Decorrida uma hora nesta contemplação, a tentar atinar com o segredo daquele homem que, absorto, se entregava à sua tarefa, começou a configurar-se no seu íntimo, a surgir na sua alma, a imagem de outro que ele melhor conhecia e tanto amara e admirara; imagem essa sem quebra nem contradição, apesar dos traços multiformes e evocativos de muitas lutas. Era a imagem do seu amigo Narciso. Adensava-se cada vez mais, adquiria unidade e totalidade; Goldmundo discernia claramente a lei íntima que regia aquele ente querido: a nobre cabeça modelada pelo espírito, os magros ombros enobrecidos pela tarefa assumida, a bela boca contensa e os olhos tristes, animados pela porfiada espiritualização, o pescoço alto e as mãos delicadas e finas. Nunca, desde outrora, desde a despedida do convento, tinha visto o amigo com tanta nitidez, tinha possuído tão integralmente a sua imagem.

Involuntariamente, como em sonho, mas obediente à necessidade interior, começou Goldmundo a desenhar, cautelosamente, com dedos amoráveis e reverentes, a figura que morava no seu íntimo; esqueceu o mestre, esqueceu-se de si próprio e do lugar onde estava. Não deu por a lenta deslocação da luz do sol, não viu que o mestre várias vezes olhara para ele. Cumpriu em ritual votivo a tarefa que lhe surgira, imposta pelo coração: fixar a imagem do amigo e conservá-la tal como vivia hoje na sua alma. Quase sem pensar nisso, sentia que o seu acto era a retribuição de uma dívida, era preito de gratidão.

Mestre Nicolau abeirou-se da mesa de desenho e disse: - é a hora do almoço; vou para a mesa e tu podes vir comigo. Deixa ver - desenhaste alguma coisa?

Colocou-se por detrás de Goldmundo e olhou para o desenho; depois, afastou Goldmundo e, com as suas hábeis mãos, pegou cuidadosamente na folha de papel. Goldmundo acordara do sonho e olhava para o mestre em receosa expectativa. Este, de pé, segurando o desenho com ambas as mãos, perscrutava-o meticulosamente com o olhar penetrante dos seus olhos azuis-claros.

- Quem é a pessoa que aqui retrataste? - perguntou Nicolau.

- É um amigo meu, um jovem monge e erudito.

- Bem. Lava as mãos, a fonte corre ali no pátio. Depois, vamos almoçar. Os meus oficiais não estão cá, trabalham fora.

Goldmundo obedeceu; encontrou o pátio e a fonte, lavou as mãos, mas daria muito por saber o que o mestre pensava. Quando voltou à oficina já lá não estava, ouviu-o remexer no quarto contíguo. Quando apareceu, notou que também ele se tinha lavado e envergava, em vez do avental, um belo fato que lhe dava um ar imponente e solene. Subiu, adiante de Goldmundo, uma escada cujo corrimão de nogueira tinha umas colunas encimadas por pequenas cabeças de anjo, esculpidas em madeira; atravessou um vestíbulo cheio de figuras antigas e modernas, até chegar a uma linda sala, de chão, paredes e tecto de madeira, onde, ao canto, estava a mesa posta. Acorreu uma rapariga e Goldmundo logo reconheceu a bela que vira na véspera à noite.

- Lisbeth - disse o mestre - tens que pôr mais um talher na mesa, trouxe um conviva - é... - afinal, não sei ainda como se chama.

Goldmundo nomeou-se.

- Goldmundo, então. Podemos comer?

- É já, pai.

Foi buscar um prato, saiu a correr e voltou com a criada que trazia comida: carne de porco, lentilhas e pão branco. Durante a refeição, o pai falou de várias coisas com a filha; Goldmundo, calado, comeu alguma coisa, mas sentia-se muito desconfortável e constrangido. Agradava-lhe a rapariga, que, quase tão alta como o pai, tinha um porte airoso e senhoril; mas estava à mesa como por detrás de redoma, recatada e distante, e nem uma palavra nem um olhar dirigiu ao hóspede.

Quando acabaram de comer, disse o mestre: - Vou descansar meia hora. Vai para a oficina ou passeia lá por fora; depois falaremos do teu caso.

Goldmundo cumprimentou e saiu. Passara uma hora desde que o mestre vira o desenho e nem uma palavra ainda dissera. E ainda tinha que esperar mais meia hora! Bem, não havia nada a fazer, tinha que esperar. A oficina não foi, não queria voltar a ver o desenho. Foi para o pátio e sentou-se no poial da fonte a olhar para o fio de água que continuamente caía na profunda concha de pedra, provocando minúsculas ondas e arrastando para o fundo partículas de ar que voltavam à superfície sob a forma de pequenas pérolas brancas. Viu-se reflectido no espelho escuro da fonte e pensou que aquele Goldmundo que o olhava já não era o Goldmundo do convento, nem o Goldmundo de Lídia, nem mesmo o Goldmundo das florestas. Pensou que, como toda a gente, continuamente fluía como a água e se transformava, até à derradeira diluição e consumpção; enquanto que a imagem criada pelo artista permanecia idêntica e imutável.

Talvez - pensou - seja o medo da morte a raiz da arte e até mesmo do espírito. Receamo-la, arrepia-nos a transiência, vemos com tristeza as folhas murcharem e caírem, sentimos no coração a certeza de que também somos efémeros e perecíveis. Quando, como artistas, críamos imagens ou, como pensadores, buscamos leis e formulamos pensamentos, fazemo-lo para preservar alguma coisa da grande dança macabra, para erigir algo de mais duradoiro que nós. A mulher que serviu de modelo à imagem da bela madona do mestre, talvez agora estivesse envelhecida ou morta e não tardaria que também o mestre morresse e outros viessem morar na sua casa e comer na sua mesa mas a sua obra perduraria na quietude da igreja monacal, brilharia ainda passados cem anos e mais, sempre bela e sempre sorrindo com a mesma boca tão fresca quanto triste.

Ouviu o mestre descer a escada da oficina e apressou-se a ir ao seu encontro. Mestre Nicolau andava de um lado para o outro e olhava repetidas vezes para o desenho de Goldmundo; por fim, parou perto da janela e disse com o seu modo seco e hesitante: - Na nossa terra um aprendiz costuma fazer, pelo menos, quatro anos de aprendizagem, que é paga ao mestre pelo pai.

Como fez uma pausa, Goldmundo pensou que o mestre receava não receber dele as custas da aprendizagem. Tirou a faca do bolso, num ápice, cortou a costura em volta do ducado e sacou-o do esconderijo. Nicolau olhou para ele, surpreendido, e começou a rir-se quando Goldmundo lhe estendeu a moeda de oiro.

- Era essa a tua ideia? - disse ele rindo. - Não, meu rapaz, fica com a tua moeda. Agora ouve. Disse-te o que é uso na nossa corporação, com respeito aos aprendizes. Mas, nem eu sou um mestre vulgar, nem tu um vulgar aprendiz. É aos catorze ou quinze anos, o mais tardar, que se costuma iniciar a aprendizagem e metade desse tempo é passado a fazer ofício de mandarete. Ora tu és já um homem feito, com a idade que tens já podias ser oficial ou mesmo mestre. Um aprendiz com barba, seria coisa nunca vista na nossa corporação. Já te disse também que, na minha casa, não quero aprendizes, nem tu me pareces pessoa que se deixe mandar a recados.

A impaciência de Goldmundo atingira o auge; as palavras ponderadas do mestre infligiam-lhe torturas e pareciam-lhe abominavel-mente maçadoras e pedantes. Exclamou arrebatadamente: - Porque me dizeis tudo isso, se não estais disposto a ensinar-me?

O mestre prosseguiu, imperturbável, no mesmo tom: - Ponderei a tua proposta durante uma hora, agora tens que ter paciência para me ouvir. Vi o teu desenho. Tem erros, mas é belo. Se o não fosse, dava-te meio florim, mandava-te embora e não pensava mais no caso. Nada mais te direi do desenho. Gostaria de ajudar-te, talvez seja esta a tua vocação, mas, como vimos, não podes ser aprendiz; e quem não passou pelo grau de aprendiz nem cumpriu o tempo de aprendizagem, não pode, segundo a regra da nossa corporação, ser oficial nem mestre. Desde já ficas prevenido. Mas farás uma tentativa. Se conseguires demorar-te algum tempo aqui na cidade, podes vir ter comigo e aprender alguma coisa, sem contrato nem compromisso, a todo o momento poderás ir-te embora. Podes quebrar na minha oficina um par de facas de entalhar e estragar meia dúzia de pedaços de madeira; se depois viermos a apurar que não foste fadado para entalhador, terás que enveredar por outra arte. Estás satisfeito assim?

Goldmundo ouvira-o, envergonhado e comovido.

- Agradeço-vos do fundo do coração - exclamou ele. - Estou habituado à vida errante e saberei manter-me aqui na cidade, como lá fora na floresta. Compreendo que não queirais ter-me a vosso encargo e responsabilidade, como se fosse um garoto aprendiz. Para mim é uma grande ventura poder aprender convosco. Do coração agradeço o que fazeis por mim.

 

Novas imagens rodearam Goldmundo e nova vida começou para ele. Assim como aquela terra e a própria cidade o tinham recebido com sedutoras galas, assim a nova vida o recebeu plena de alegria e de promessas. Embora o fundo de tristeza se mantivesse intacto na sua alma, certo é que, à superfície, a vida se lhe apresentava em todo o seu variegado colorido. Começou para Goldmundo a época mais alegre e despreocupada da sua vida. No exterior acolhia-o complacente a opulenta cidade episcopal, com as suas artes, as suas mulheres e centenas de aprazíveis imagens e folguedos; no íntimo, o despertar da arte brindava-o com novas sensações e experiências. Por indicação do mestre, encontrou hospedagem em casa de um dourador, em frente ao mercado do peixe e aprendeu com ele e com o mestre a arte de se servir da madeira, do gesso, das cores, do verniz e das folhas de oiro.

Goldmundo não pertencia ao número daqueles inditosos artistas que, possuindo altos dons, não encontram todavia nunca os meios adequados para os exprimir. Muitos são aqueles a quem é dado sentir profundamente a beleza do mundo, que trazem na alma nobres e sublimes imagens, mas que não sabem a maneira de se desfazer delas, de fixá-las e comunicá-las para alegria dos outros. Goldmundo não sofria dessa carência. Não lhe custava servir-se das mãos e dava-lhe prazer a aprendizagem dos truques e habilidades do ofício; e também aprendia facilmente com os companheiros, nas horas de folga, a tocar alaúde e a dançar, ao domingo, nos bailes das aldeias próximas. Era fácil, aprendia-se sem custo. Tinha que esforçar-se, é certo, para aprender a arte de entalhador, é certo que encontrava dificuldade e sofria desilusões, que estragava este ou aquele pedaço de madeira, que várias vezes se feria nos dedos. Mas, em breve, dominou os princípios da arte e adquiriu destreza. O mestre, contudo, nem sempre estava satisfeito com ele e dizia-lhe às vezes: - É bom que não sejas meu aprendiz nem oficial, Goldmundo. É bom não me esquecer que vens da estrada e das flores e que um dia para lá voltarás. Não soubesse eu isso, que não és um burguês nem um artífice, mas um vadio e um boémio, que facilmente incorreria na tentação de exigir-te este ou aquele trabalho de que todos os mestres incumbem o seu pessoal. Mas tu só és um óptimo trabalhador quando te dá na veneta. Na semana passada, fizeste gazeta dois dias; ontem, dormiste metade do dia na oficina, onde devias polir os dois anjos.

As repreensões eram justas e Goldmundo ouvia-as calado, sem se desculpar. Bem sabia que não era um trabalhador infatigável, nem de confiança. Enquanto um trabalho o prendia, impondo-lhe problemas difíceis ou dando-lhe o sentimento feliz da sua habilidade, era um trabalhador diligente. Mas fazia de má vontade os trabalhos manuais pesados e eram-lhe por vezes intoleráveis certas tarefas que pertenciam ao ofício e exigiam tempo e aplicação, e não sendo embora difíceis, requeriam esmero e paciência. Ele próprio se admirava de que tivessem bastado aqueles anos de vagabundagem para o tornarem preguiçoso e irregular. Seria a herança materna a afirmar-se e a prevalecer? O que não estaria em ordem, então? Lembrava-se de ter sido um aluno bom e aplicado nos primeiros anos do convento. Como conseguira nessa altura a paciência que agora lhe faltava, como pudera entregar-se tão incansavelmente ao estudo da sintaxe latina e de todos aqueles aforismos gregos que, no fundo, nada lhe interessavam? Cogitava nisso muitas vezes. Fora o amor a Narciso que outrora o fortalecera e lhe dera asas; o seu zelo de então tinha sido um esforço instante pela conquista do amigo, cujo afecto só poderia alcançar pela via da consideração e da estima. Outrora, era capaz de esforçar-se horas e dias inteiros pela recompensa de um olhar de apreço do mestre querido. Depois, atingira o fim desejado. Narciso fora seu amigo e, surpreendentemente, tinha sido o douto e sapiente Narciso que lhe revelara a falta de vocação para o estudo e esconjurara a imagem perdida da mãe. Em vez de erudição, vida monástica e virtude, apossaram-se dele poderosos instintos elementares: erotismo, ânsia de independência, vida nómada. Quando, porém, vira a madona do mestre, despertara dentro de sí o artista e entrara em novo rumo, voltara à vida sedentária. Aonde iria ter? Por onde seguiria o seu caminho? Donde proviriam as inibições?

Não encontrou logo resposta. Só uma coisa percebia: tinha grande admiração pelo mestre Nicolau, mas não sentia por ele o afecto que outrora o ligara a Narciso! Por vezes sentia até prazer em desiludi-lo e arreliá-lo. Parecia-lhe que isso provinha da discordância observada na personalidade do mestre. As figuras saídas da mão de Nicolau, as melhores pelo menos, eram venerados modelos, mas o mesmo não sucedia com o seu criador.

A par do artista que esculpira aquela Mãe de Deus, de boca supremamente bela e dolorosa, a par do vidente e do homem sabedor, cujas mãos magicamente transformavam em figurações visíveis os pressentimentos da alma e as profundas vivências, coabitava em mestre Nicolau um segundo homem: o pai de família, o chefe de corporação severo e prudente, o viúvo, que, com a filha e a velha criada, levava uma vida pacata e um tanto tacanha na casa silenciosa, o homem que se defendia dos mais poderosos instintos e se tinha adaptado a uma vida calma, comedida, ordenada e decorosa.

Embora Goldmundo respeitasse o seu mestre e nunca se tivesse permitido indagar pormenores da sua vida ou julgá-lo diante de outros, sabia, passado um ano, tudo quanto era possível saber acerca da vida particular de Nicolau. O mestre assumia a seus olhos especial importância, amava-o e odiava-o igualmente, não lhe deixava sossego e, assim, com afecto e desconfiança e uma sempre viva curiosidade, foi penetrando nos segredos do seu carácter e da sua vida. Viu que Nicolau não tinha sob o seu tecto nem aprendiz nem oficial, apesar de haver espaço sobejo. Viu que raramente saía e com igual raridade convidava alguém para sua casa. Observou o modo enternecedor e ciumento como amava a filha e procurava escondê-la de todos. Sabia também que, para além da austera e precoce abstinência de viúvo, se agitavam ainda vivazes instintos e que, se alguma encomenda de fora o obrigava a viajar, durante esses dias transfigurava-se e rejuvenescia assombrosamente. Reparou que, na cidadezinha estranha onde armavam um púlpito entalhado, fizera uma nocturna visita clandestina a uma prostituta, e andara, durante dias, inquieto e mal-humorado.

Com o correr do tempo, além deste afã de investigação, outro motivo ainda reteve Goldmundo em casa do mestre dando-lhe que pensar. Era a formosa Lisbeth, que tanto lhe agradava. Raras vezes avia, ela nunca entrava na oficina e, assim, não pôde averiguar se o seu recato e aversão aos homens lhe tinham sido impostos pelo pai ou provinham da sua índole própria. Não lhe passava despercebido o facto de o mestre nunca mais o ter convidado para a sua mesa e era indubitável que procurava impedir-lhe qualquer encontro com a filha. Lisbeth era uma donzela preciosa e bem guardada, reconheceu ele, não podia alimentar esperanças de amor sem casamento; e quem quisesse desposá-la tinha que ser filho de boas famílias, membro de uma das corporações superiores da cidade e ainda, se possível, possuir dinheiro e casa.

A beleza de Lisbeth, tão diferente da das mulheres do campo ou de vida nómada, logo no primeiro dia prendera os olhares de Goldmundo. Tinha algo que lhe era ainda desconhecido, algo de enigmático que violentamente o atraía e ao mesmo tempo lhe inspirava desconfiança e até irritação: uma grande serenidade e inocência, um recato e pureza completamente destituídos de infantilidade, pois, para além de toda a compostura e decoro, havia oculta frieza e soberbia, que, impedindo que aquela inocência o comovesse e desarmasse, antes pelo contrário, o provocava e desafiava. Logo que se familiarizou mais intimamente com esta imagem, sentiu desejo de a reproduzir um dia; não como ela era agora, mas acordada, sensual e dolorosa; não como virgenzita, mas como Madalena; pensava às vezes que gostaria de ver aquele rosto plácido, belo e imóvel abrir-se e revelar o seu mistério, convulso pela volúpia ou pela dor.

Outra imagem habitava a sua alma que, sem lhe pertencer ainda completamente, ansiava por captar e representar um dia, mas que sempre se lhe iludia e velava. Era o rosto da mãe. Já não era o mesmo rosto que, após as conversas com Narciso, emergira outrora dos mais fundos e perdidos abismos da memória. Nos dias errantes, nas noites de amor, nas épocas de nostalgia, nos momentos de perigo e iminência de morte, tinha-se lentamente transmutado e enriquecido, tornara-se mais profundo e múltiplo; já não era a imagem da sua própria mãe; dos primitivos traços e feições surgira, pouco a pouco, uma imagem materna sem referência pessoal, a imagem de Era, a mãe do género humano. Tal como mestre Nicolau tinha representado em algumas das suas madonas a imagem dolorosa da mãe de Deus, com perfeição e vigor tão impressivo, que a Goldmundo parecia insuperável, assim também ele esperava, quando se sentisse mais amadurecido e seguro do seu saber, poder representar a imagem da mãe do mundo, da mãe Eva, a mais antiga, amada e sagrada relíquia vivente no seu coração. Esta imagem, porém, outrora só recordação da mãe e do seu amor por ela, estava em constante mutação e crescimento. As feições da cigana Lise, de Lídia, a filha do cavaleiro, e de algumas outras mulheres, tinham penetrado na imagem primitiva; e não só os rostos das mulheres amadas tinham contribuído para a conformar, também a tinham modelado as emoções e experiências, acrescentando-lhe traços. Se alguma vez, mais tarde, lhe fosse dado tornar visível esta figura, não deveria representar uma certa mulher individualizada, mas sim a própria vida como mãe primigénia. Ora julgava vê-la, ora lhe aparecia em sonhos; mas, desse rosto de Eva e da sua significação, sabia apenas que haveria de mostrar a volúpia da vida no seu mais íntimo parentesco com a dor e a morte.

Goldmundo aprendera muito durante aquele ano. Atingira rapidamente grande mestria no desenho e, a par dos trabalhos em madeira, Nicolau deixava-o ocasionalmente tentar a modelação em barro. A sua primeira obra bem sucedida foi uma figura de barro de uns dois palmos de altura, a figurinha doce e sedutora da pequena Júlia, a irmã de Lídia. O mestre elogiou aquela obra, mas não satisfez o desejo de Goldmundo de a fundir em metal; a seus olhos era demasiado mundana e lasciva para que pudesse apadrinhá-la. Depois começou o trabalho na figura de Narciso. Goldmundo fez esta imagem em madeira e representando um S. João Apóstolo, pois, se fosse bem sucedido, Nicolau projectava colocá-la em um grupo representativo da crucificação, que lhe fora encomendado, e no qual os dois oficiais trabalhavam exclusivamente há muito tempo, para depois deixar ao mestre os últimos retoques.

Goldmundo trabalhou a figura de Narciso com profundo amor; reencontrava-se a si próprio, à sua arte e à sua alma, sempre que voltava àquela obra, após frequentes interrupções; não era raro deixar-se desviar por amorios, bailes, noites de taberna em libações e jogo de dados ou por vulgares rixas; faltava um ou mais dias à oficina, ou trabalhava perturbado e de mau humor. No seu São João, cuja amada figura meditativa lhe ia surgindo da madeira, sempre mais pura, só trabalhava em horas de devoção, de fervor e de humildade. Horas em que não estava alegre nem triste, mas alheio tanto aos prazeres terrenos como à transitoriedade da vida; imergia no sentimento luminoso, reverente e puro que em tempos dedicara ao amigo, quando se sentia feliz sob a sua tutela. Não era ele, Goldmundo, que ali estava e por vontade própria esculpia aquela imagem. Era o outro, era Narciso, que se servia das suas mãos de artista para sair da transitoriedade e versatilidade da vida, para manifestar a imagem pura do seu ser.

Goldmundo sentia às vezes, com arrepio, que era assim que se criavam as obras de arte autênticas. Assim fora gerada a inesquecível madona do mestre, que, aos domingos, continuava a visitar no convento. Assim, sagrada e misteriosamente, tinham sido criadas as mais belas figuras antigas que o mestre guardava no vestíbulo. Assim, do mesmo modo, se geraria aquela imagem, a imagem única, ainda mais misteriosa e veneranda, a imagem da mãe dos homens. Se de mãos humanas saíssem unicamente essas obras sagradas e necessárias, sem a mácula da vontade e da vaidade! Mas não, bem sabia que não era assim. Criavam-se também outras imagens bonitas e deleitosas, acabadas com grande mestria, encanto dos amadores de arte e adorno de igrejas e salas de municípios - coisas formosas, sem dúvida, mas não sagradas e autênticas imagens da alma. Conhecia, da mão de mestre Nicolau e de outros artistas, essas obras que, não obstante a graciosidade da invenção e o esmero no acabamento, não passavam de futilidades; por experiência própria e para sua vergonha e desgosto, sentira já nas próprias mãos o impulso que leva o artista a lançar ao mundo essas coisas bonitas, somente pelo prazer de mostrar a sua destreza, ou por ambição, ou por frivolidade.

Quando reconheceu isto pela primeira vez, ficou mortalmente desgostoso. Para fazer bonitos querubins e outras bagatelas, por mais graciosas que fossem, não valia a pena ser artista. Talvez que, para outros, valesse a pena; para artífices, burgueses, gente tranquila e satisfeita, talvez; para ele não. Para ele, a arte e o artista deixavam de ter valor desde que não abrasassem como o sol, não devastassem como a tempestade, desde que oferecessem apenas conforto e deleite, somente comezinha felicidade. Ele aspirava a outra coisa. Dourar muito bem dourada, com folhos de oiro luzente, uma coroa de Virgem, mimosa como renda, não era trabalho para ele, mesmo bem pago. Porque se encarregaria mestre Nicolau de todas aquelas encomendas? Porque tinha a seu soldo dois oficiais? Porque ouviria horas a fio, de côvado na mão, aqueles vereadores e priores, que vinham encomendar-lhe um portal ou um púlpito? Por dois motivos mesquinhos: fazia gala em ser um artista afamado e sobrecarregado de encomendas, e queria amealhar dinheiro, que não se destinava a novos empreendimentos ou prazeres, que era para a filha, já tão rica, para o seu enxoval, para golas de renda e vestidos de brocado, para um leito nupcial de nogueira com preciosas cobertas e lençóis de linho! Como se a formosa rapariga não pudesse conhecer o amor sobre qualquer meda de feno!

Sempre que estes pensamentos assaltavam Goldmundo, refervia nele o sangue materno, o orgulhoso desdém dos nómadas pelos sedentários e proprietários; havia dias em que tanto o mestre como o ofício o nauseavam como nozes podres, e várias vezes esteve a ponto de fugir.

O mestre também frequentemente se arrependia e arreliava por ter admitido aquele rapaz indócil e difícil de aturar, que lhe moía a paciência. O que veio a saber da vida de Goldmundo, da sua indiferença pelo dinheiro e pela propriedade, da sua prodigalidade, dos seus diversos amorios e frequentes rixas, não o dispunha mais favoravelmente; tinha acolhido em casa um cigano, um tipo bizarro. Não lhe passara também despercebido, o modo como aquele vadio olhava a sua filha Lisbeth. Não obstante, tinha para com ele mais paciência do que a que lhe era natural, não por qualquer sentimento de obrigação moral ou por temor, mas tão somente por causa do São João, cuja figura via surgir. Com uma simpatia e afinidade de alma que a si próprio não confessava, via o vagabundo das florestas esculpir agora na madeira, lenta e caprichosamente, mas tenaz e infalivelmente, aquela figura de apóstolo, a partir do desenho inábil, mas belo e comovente, que o levara a aceitá-lo na oficina. Não duvidava que um dia a acabaria, apesar dos humores caprichosos e interrupções frequentes; seria então uma obra como nenhum dos seus oficiais era capaz de realizar, como mesmo aos grandes mestres só raro era dado fazer. Por muito que o discípulo lhe desagradasse sob outros aspectos, por muitas censuras que lhe dirigisse e muitas fúrias que lhe despertasse -do São João nunca lhe dissera palavra.

O resto da juvenil e cândida graciosidade que tanto atractivo dava a Goldmundo foi-se perdendo, pouco a pouco, naqueles anos. Tornara-

-se um homem robusto, de bela figura, muito pretendido pelas mulheres e pouco simpático aos homens. A sua íntima fisionomia, modificara-

-se também, desde o tempo em que Narciso o tinha acordado do suave letargo dos anos de convento, desde que o mundo e a vida errante o tinham modelado. O rapazinho da escola conventual, bonito, dócil, bem-querido de todos, piedoso e solícito, transformara-se num homem bem diferente. Narciso acordara-o, as mulheres ensinaram-no e a vida errante tirara-lhe a verdura dos tenros anos. Não tinha amigos, dera o coração às mulheres. Estas facilmente o conquistavam, um olhar de desejo bastava, não lhes resistia, respondia ao mais leve aceno. Apesar de dotado de sensibilidade apurada para a beleza, apesar da sua preferência pelas raparigas muito jovens e primaveris, deixava-se também seduzir e comover por mulheres mais maduras. Nos bailes, qualquer rapariga desanimada e sem frescura, que ninguém pretendia, facilmente o conquistava; não só pela compaixão que lhe inspirava, mas também pelo incitamento de uma curiosidade sempre desperta. Logo que começava a dedicar-se a uma mulher -por dias ou por horas -ela tornava-se bela a seus olhos, dedicava-se-lhe totalmente. A experiência mostrou-lhe que todas as mulheres são belas e sabem dar prazer, que a de aparência menos vistosa e mais desdenhada pelos homens é capaz de inaudita paixão e ardor, que, passada a juventude, a mulher é capaz de uma ternura suave e melancólica mais do que maternal, que todas, enfim, têm um segredo e um encanto cujo desvendamento o arrebatava. Sob esse aspecto, eram todas semelhantes: qualquer dom especial compensava sempre a falta de juventude ou beleza. Somente, nem todas o prendiam o mesmo tempo. A menos bela não lhe inspirava menor gratidão e ternura do que a mais jovem e formosa: a dádiva era sempre total. Havia, porém, mulheres que, após três ou dez noites de amor, o prendiam cada vez mais e outras cujo encanto se esgotava e prontamente esquecia.

O amor e a volúpia pareciam-lhe o único bem que verdadeiramente dava calor e valor à vida. Ignorava a ambição, bispo ou mendigo, a seus olhos, valiam o mesmo; o lucro e a propriedade não conseguiam cativá-lo, desdenhava-os e nunca teria feito por eles o mais ligeiro sacrifício, prodigalizava o dinheiro que em certas épocas ganhou à farta. O amor das mulheres, o jogo erótico, estava acima de tudo, e o seu frequente pendor para a tristeza e o tédio provinha, no fundo, da experiência da fugacidade efémera da volúpia, A fugaz e deliciosa chama do prazer, o seu curto e anelante ardor seguido de rápida extinção - parecia-lhe conter o âmago de todas as vivências, era para ele o símbolo da ventura e da dor da vida. Entregava-se à melancolia e ao arrepio perante a transitoriedade, com o mesmo fervor que ao amor, e essa melancolia era também amor, era também volúpia. Assim como a plenitude amorosa, no instante do supremo e ditoso apogeu, sabe que, no próximo alento, se dissipará e morrerá, assim também a mais profunda solidão e abandono à melancolia sabe que será subitamente tragada por nova ânsia de entrega à face luminosa da vida. Morte e volúpia eram uma e mesma coisa. A mãe de ambas era Eva, o manancial da ventura e a fonte da morte, eternamente gerando e eternamente matando; nela se uniam amor e crueldade. Quanto mais Goldmundo acalentava no íntimo esta imagem, mais ela se lhe tornava símbolo sagrado.

Goldmundo sabia, não conscientemente e por palavras, mas pelo mais fundo saber do sangue, que o seu caminho o conduzia à mãe, à volúpia e à morte. O lado paterno da vida, o espírito e a vontade, não eram a sua herança. Eram os domínios de Narciso e só agora Goldmundo percebia e compreendia profundamente as palavras do amigo, e reconhecia-o como ser antípoda: assim o configurava e manifestava na figura do São João. Podia ter saudades de Narciso a ponto de chorar, podia sonhar com ele, maravilhosamente - mas alcançá-lo, igualar-se a ele, não.

Goldmundo pressentia também, por qualquer secreto sentido, o mistério da sua vocação artística, do seu profundo amor à arte aliado ao ocasional ódio violento. Pressentia, sem auxílio do pensamento, em multiformes símbolos intuitivos, que a arte era a conjunção do mundo materno e paterno, do sangue e do espírito: podia partir do mais sensível e ascender ao mais abstracto ou originar-se no mundo das ideias e acabar na mais sangrenta carnalidade. Todas as obras de arte verdadeiramente sublimes, que não eram apenas espectaculosos alardes de destreza, aqueles em que, como na madona do mestre, por exemplo, palpitava o eterno mistério, todas as autênticas e indubitáveis obras de arte, enfim, tinham aquela dupla face sorridente e perigosa, aquela dualidade do masculino e do feminino, aquela conivência do instinto e da pura espiritualidade. Mais do que todas revelaria esta ambiguidade a face da mãe Eva, se alguma vez alcançasse configurá-la.

A arte e a criação artística significavam para Goldmundo a possibilidade de conciliar as suas mais fundas discordâncias, ou, pelo menos, eram o magnífico e sempre renovado símbolo das contradições da sua natureza. Mas a arte não era pura dádiva, não era, de modo algum, gratuita, custava muito e exigia sacrifícios. Goldmundo sacrificava-lhe, havia mais de dois anos, o que para ele era imprescindível e supremo, depois da volúpia erótica: a liberdade. O sentimento de livre vagabundagem no meio do infindo universo, os caprichos da vida errante, o isolamento e a independência, tudo abandonara. Os outros achavam-no, possivelmente, lunático, intratável e insubmisso, quando lhe acontecia descurar o trabalho e abandonar a oficina, furioso; mas, para ele, aquela vida era uma escravidão que o amargurava até mais não poder ser. Não era, porém, ao mestre, nem ao futuro, nem à necessidade que obedecia - era à própria arte. A arte, a deusa aparentemente tão espiritual, carecia de tantos pequenos e mesquinhos requisitos! Precisava de um tecto, precisava de instrumentos, de madeira, de barro, de cores e de oiro, precisava de esforço e de paciência. Sacrificara-lhe a bravia liberdade das florestas, a embriaguez dos horizontes longínquos, a acre volúpia do risco, o orgulho da pobreza, e constantemente renovava o sacrifício, sufocado e rangendo os dentes.

Recuperava parte do que sacrificava, vingando-se da ordem escravizante e estática da sua vida actual, em certas aventuras ligadas com os seus amores, as rixas com os rivais. Toda a violência represada do seu temperamento buscava saída por esse escape; tornou-se brigão notório e temido. A caminho de um encontro ou no regresso a casa depois do baile, sabia-lhe bem ser assaltado em viela escura e apanhar umas pauladas, voltar-se rápido como um raio e passar da defesa ao ataque, apertando de encontro a si o inimigo arquejante, dando-lhe um soco debaixo do queixo ou arrastando-o pelos cabelos e apertando-lhe vigorosamente o pescoço; agradava-lhe a luta e curava-o, por um tempo, dos acessos de mau humor. Às mulheres também aquilo agradava.

Tudo isto preenchia sobejamente os dias e tudo adquiria sentido enquanto durava o trabalho na figura do apóstolo. Este prolongou-se bastante e as últimas, delicadas modelações do rosto e das mãos, foram feitas com uma concentração festiva e paciente. Foi na pequena arrecadação, atrás da casa onde trabalhavam os oficiais, que ele terminou a obra. Raiou por fim a madrugada do dia em que a figura ficou pronta; Goldmundo foi buscar uma vassoura, varreu e limpou cuidadosamente a arrecadação, espanejou delicadamente com um pincel os últimos grãos de poeira dos cabelos do seu São João e demorou-se diante dele uma hora ou mais, festivamente impregnado do sentimento de que algo de raro e grande acontecera, que talvez se repetisse uma vez mais na sua vida, mas que podia também ser único e inigualável. Comovia-o uma emoção análoga à que pode sentir um homem na noite do casamento ou no dia em que é armado cavaleiro, ou uma mulher depois do nascimento do primeiro filho: uma unção e profunda gravidade eivada do secreto receio do momento em que a emoção suprema e única passará ao rol já vivido e arrumado, devorada pelo sorvedoiro da banalidade quotidiana,

Ergueu-se e viu o seu amigo Narciso, o mentor da sua adolescência, tal como o representara sob a invocação do formoso discípulo dilecto, em pé, de cabeça erguida e atenta, e a expressão serena e fervorosa desabrochando em sorriso. A dor e a morte não eram estranhas ao belo rosto piedoso e espiritualizado, à figura grácil e como que pairante, as mãos postas, finas e alongadas; só o desespero, a desordem e a insurreição estavam dele ausentes. Sob aqueles traços nobres a alma podia estar alegre ou triste, mas era sempre acorde e pura, sem dissonâncias.

Goldmundo contemplava de olhos fixos a sua obra. Iniciara a contemplação em piedosa homenagem ao monumento da sua primeira juventude e amizade; em breve, porém, redundou em tempestade de cuidados e pesadas cogitações. Ali estava o belo apóstolo, a sua obra que perduraria em intérmina florescência. Ele, porém, o seu autor, era forçado a dizer-lhe adeus, amanhã já não lhe pertenceria, não mais esperaria pelas suas mãos para crescer e desabrochar, não mais lhe seria refúgio, consolação e sentido da existência. Deixava-o para trás, vazio. Pareceu-lhe melhor despedir-se do São João e, no mesmo dia, também do mestre, da cidade e da arte. Nada mais ali tinha a fazer; não havia na sua alma outras imagens a que tivesse de dar forma. A almejada imagem das imagens, a figura da mãe dos homens, não a podia ainda alcançar, nem por muito tempo ainda. Para que ficaria a polir querubins e entalhar ornatos? Arrancou-se à meditação e foi procurar o mestre à oficina. Entrou sem ruído e ficou à porta, até que Nicolau deu por ele e o interpelou.

- Que há, Goldmundo?

-A minha obra está pronta. Talvez queirais ir lá acima vê-la antes do almoço.

- Vou já mesmo.

Foram e deixaram a porta aberta para entrar mais claridade. Nicolau não tinha visto a figura nos últimos tempos, para não perturbar Goldmundo no seu trabalho. Contemplava-a agora com silenciosa atenção e o seu rosto reservado, iluminou-se, tornou-se mais belo, e Goldmundo viu brilharem de alegria os severos olhos azuis.

- Está bom - disse o mestre - está muito bom. É a tua prova final, Goldmundo, aprendeste já tudo quanto podias aprender. Mostrarei a tua obra aos membros da corporação e exigirei que, por ela, te dêem a carta de mestre; é bem merecida.

Goldmundo ligava somenos importância à corporação, mas sabia quanta consideração se depreendia das palavras do mestre e regozijou-se.

Mestre Nicolau tornou a dar a volta à figura do Evangelista, dizendo, com um suspiro: - quanta piedade, clareza e a gravidade ressuma desta figura, que paz e beatitude! Dir-se-ia feita por alguém cuja alma é luminosa e serena.

Goldmundo sorriu-se.

- Bem sabeis que nesta figura não me representei a mim, mas ao meu mais querido amigo. Foi ele, não eu, que deu à imagem a clareza e a paz. Não fui eu verdadeiramente quem a realizou, mas sim ele que me habitou a alma.

- Talvez - disse Nicolau. - É um mistério a origem de obras como esta. Nascem. Eu não sou o que se pode chamar modesto mas devo dizer-te que muitos dos meus trabalhos são inferiores a este, não em esmero e arte, mas em verdade íntima. Bem sabes de resto, que uma obra assim não se repete. É um mistério.

- Assim é - disse Goldmundo; - quando a acabei e a contemplei, pensei para comigo que não faria outra igual. E por isso me parece, mestre, que em breve tornarei, de novo, à vida errante.

Nicolau olhou-o, surpreso e contrariado, e os seus olhos retomaram a habitual expressão severa.

- Falaremos disso mais tarde. Agora deveria começar para ti o trabalho a valer, não é realmente o momento oportuno de pensares em ir-te embora. Mas hoje tens feriado e és meu hóspede ao almoço.

Goldmundo voltou ao meio-dia, penteado e lavado. Desta vez sabia quanto significava o raro privilégio de ser convidado para a mesa do mestre. Quando subiu a escada e chegou ao vestíbulo pejado de figuras, não sentiu, porém, metade da reverente emoção e ansiosa alegria que o dominava, da primeira vez que entrara, de coração palpitante, naqueles calmos e bonitos aposentos.

Também Lisbeth estava ataviada e trazia um colar de pedras preciosas; na mesa do almoço, além de carpas e vinho, havia ainda uma surpresa; o mestre ofereceu-lhe uma bolsa de cabedal contendo duas moedas de oiro, o salário de Goldmundo pela obra terminada.

Desta vez não esteve calado enquanto o pai e a filha conversavam. Ambos se dirigiam a ele, fizeram-se saúdes e trocaram-se brindes. Os olhos vigilantes de Goldmundo aproveitaram a ocasião para contemplar mais à vontade a formosa rapariga de rosto distinto e altivo; o seu olhar não escondia quanto ela lhe agradava. Lisbeth foi atenciosa para com ele, mas desiludiu-o notar que não corava nem tomava maior calor. De novo desejou ardentemente fazer falar aquele rosto impávido, forçá-lo a render-lhe o seu segredo.

Depois do almoço agradeceu, demorou-se um pouco diante das esculturas do vestíbulo e vagueou toda a tarde pela cidade, irresoluto, ocioso e perplexo. Tinha sido honrado pelo mestre para além de toda a expectativa. Porque não lhe davam alegria aquelas honras? Porque teriam um sabor tão pouco festivo? Seguindo uma inspiração de momento, alugou um cavalo e dirigiu-se ao convento onde, pela primeira vez, vira a obra de mestre Nicolau e ouvira o seu nome.

Tinham decorrido alguns anos apenas e, contudo, parecia ter sido em tempos imemoriais. Na igreja do convento visitou e contemplou a madona, enlevado e novamente conquistado: era mais bela do que o seu evangelista, era-lhe equivalente em fervor e mistério, mas superior ainda em arte, em livre e pairante suspensão. Via agora pormenores que só o artista sabe ver, ligeiros e delicados movimentos das vestes, ousadias na forma das mãos e dos dedos esguios, requintados aproveitamentos de irregularidades da madeira - todas essas belezas nada eram em comparação com o todo, com a singeleza e fervor da visão, mas estavam lá, eram muito belas e só possíveis a mãos abençoadas, que soubessem a fundo do seu ofício. Uma obra assim exigia um longo acalentar da imagem na alma, e um longo exercício e adestramento de olhos e mãos. Valeria a pena, afinal, dedicar a vida inteira ao serviço da arte, sacrificando a liberdade, sacrificando as emoções, só para uma vez criar uma obra tão bela, vivida e concebida com amor, e realizada com mestria no mais ínfimo pormenor? Era uma grande interrogação.

Goldmundo regressou noite alta à cidade, no cavalo derreado. Estava ainda aberta uma taberna, onde comeu pão e bebeu vinho; depois, cheio de íntimas discordâncias, de interrogações e de dúvidas, dirigiu-se para o seu quarto.

 

No dia seguinte Goldmundo não conseguiu decidir-se a ir à oficina. Deambulou pela cidade como nos outros dias de aborrecimento. Viu senhoras e criadas fazerem compras, demorou-se especialmente no mercado do peixe onde viu os rudes peixeiros e peixeiras apregoar a mercadoria, tirando das celhas os peixes prateados e húmidos que, de bocas dolorosamente abertas e dourados olhos, fixos e apavorados, se resignavam quietos à morte ou se debatiam furiosos e desesperados contra ela. Sentiu-se possuído, como de outras vezes, de intensa compaixão por aqueles bichos e de entristecido desgosto pelos homens tão obtusos e rudes, tão desmedidamente estúpidos e imbecis; como era possível que fossem assim cegos, os pescadores, as peixeiras e os compradores, que não vissem aqueles olhos mortalmente assustados, os espasmos violentos daquelas caudas, em luta pavorosa e inútil, a intolerável transformação dos peixes misteriosos e maravilhosamente belos, percorridos, antes de morrer, por ligeiro frémito, e depois, mortos e sem brilho, lamentáveis pedaços de carne para a mesa dos glutões. Aquela gente nada via, nada sabia e em nada reparava, nada lhes faltava ao coração! Era-lhes indiferente ver estrebuchar à sua frente um lindo peixe, era-lhes indiferente que tal mestre tivesse manifestado, com verdade arrepiante, toda a esperança, toda a nobreza e todo o sentimento angustioso da vida humana, no rosto de uma santa - nada viam, nada os comovia. Andavam todos distraídos ou atarefados, afadigados com importantes afazeres, berravam, riam, arrotavam, faziam alarido, diziam chalaças, discutiam por dá cá aquela palha, e sentiam-se felizes, tudo estava em ordem e eles contentes consigo próprios e com o mundo. Porcos é o que eram, muito mais brutos ainda e piores do que porcos. Também ele, sem dúvida, muitas vezes se tinha confundido com eles, se tinha sentido satisfeito no meio dessa turba; tinha perseguido as raparigas, tinha comido, a rir e sem arrepio, os peixes fritos. Mas sempre, de quando em quando, subitamente a alegria e a tranquilidade o abandonavam, como por encanto; desprendia-se daquela ilusória vida lauta e anafada, da satisfação consigo próprio, da presunção e apática paz de alma e voltava a ser atraído pela solidão meditativa, pela vida errante e pela contemplação do sofrimento, da morte, da contingência de toda a humana agitação, pela fascinação do abismo; às vezes, depois da entrega sem esperança à visão do absurdo e do medonho, surgia de repente uma alegria, uma intensa paixão, o prazer de cantar uma linda canção ou de desenhar; e então recuperava o infantil acordo com a vida, ao aspirar o perfume de uma flor ou ao brincar com um gato. Também agora o recuperaria. Amanhã ou depois, o mundo seria de novo bom e excelente. Até que voltasse a tristeza, as cogitações, o amor opressivo e sem esperança aos peixes e às flores murchas, o pavor perante o obtuso e vergonhoso deixar correr a vida, o cego embasbacamento dos homens. Nessas ocasiões lembrava-se, com torturante curiosidade e profunda opressão, de Vítor, o vagante, a quem uma vez enterrara a faca por entre as costelas e deixara empoçado em sangue, deitado sobre a caruma; pensava e cismava forçosamente no que seria feito de Vítor, se teria sido completamente devorado pelos animais ou se alguns restos dele ainda haveria. Pelo menos os ossos, decerto, e talvez uma das mãos peludas. - E os ossos - que seria feito deles? Quantos anos ou decénios seriam precisos para que também eles perdessem a forma e se tornassem pó?

Hoje, ao olhar com dó para os peixes e com asco para a gente do mercado, cheio de receosa melancolia e amarga hostilidade contra o mundo e contra si próprio, não pôde deixar de lembrar-se de Vítor. Talvez tivesse sido encontrado e enterrado? Se assim fosse - já toda a carne, decerto, teria caído dos ossos, tudo estaria decomposto e devorado pelos vermes. Ou haveria ainda cabelos no crânio e sobrancelhas sobre as órbitas? E da vida de Vítor, tão cheia de aventuras e peripécias, do jogo fantástico das suas mirabolantes farsas e partidas -, o que restaria? Daquela existência humana, que não fora das mais vulgares, perduraria algo além da meia dúzia de recordações que o seu assassino conservava? Haveria ainda um Vítor nos sonhos das mulheres que outrora amara? Ai, tudo, certamente, passara e se desvanecera. Era assim com tudo e com todos, tudo florescia e em breve murchava coberto pela neve. Nele também, quantos sentimentos não tinham florescido, quando, anos atrás, entrara naquela cidade, anelando pela arte e cheio de profunda e tímida veneração pelo mestre Nicolau! Alguma coisa perdurara? Não, tão pouco quanto da figura grandalhona do meliante Vítor. Se alguém, outrora, lhe tivesse augurado que mestre Nicolau havia de considerá-lo seu igual e reclamaria à corporação que lhe concedesse a carta de mestre, teria julgado, nesse tempo, possuir toda a felicidade da terra. Agora, era para ele uma flor murcha e seca, que nenhuma alegria lhe dava!

Goldmundo teve, repentinamente, uma visão enquanto se entregava a estes pensamentos. Por um instante apenas viu, num lampejo, o rosto da mão primeva, inclinado em contemplação sobre o abismo da vida, com um sorriso vago e belo, mas arrepiante; viu-a sorrir às nas-cenças e às mortes, às flores e ao rumorejar das folhas outonais, à arte e à consumpção.

Tudo era o mesmo para a mãe, o seu sinistro sorriso pairava sobre todas as coisas como o luar; tão querido lhe era o Goldmundo meditativo e melancólico, como as carpas moribundas no mercado do peixe, tão querida a fria e altiva Lisbeth, como os ossos dispersos daquele Vítor que, um dia, tanto desejo tivera de roubar o ducado a Goldmundo.

Mas já o vislumbre se extinguira, já se sumira o rosto misterioso da mãe. Na alma de Goldmundo, porém, palpitava ainda o pálido fulgor e no seu coração encapelou-se, alterosa, uma onda de vida, de dor sufocante e de saudade. Não, não queria a felicidade e a saciedade dos outros, dos compradores de peixe, dos burgueses, da gente atarefada. Que o diabo os levasse a todos! Como o sorriso passara, inefável tal brisa ou luar, naquele rosto fremente e cálido!

Goldmundo voltou a casa do mestre, cerca do meio-dia, e esperou até ouvir Nicolau terminar o trabalho e lavar as mãos. Foi então ao seu encontro.

- Deixai-me dizer-vos meia dúzia de palavras, mestre, enquanto lavais as mãos e vestis o fato. Ando sequioso de um trago de verdade e gostaria de vos dizer o que só agora, talvez, possa dizer-vos. Preciso de falar com alguém e vós sois o único que porventura me pode compreender. Não falo ao dono da afamada oficina, que recebe das cidades e conventos tantas honrosas encomendas, que tem a seu soldo dois oficiais e é proprietário de uma bela e rica casa. Falo ao mestre criador da Virgem do convento, a imagem mais bela que conheço. Amei e venerei esse homem, parecendo-me que o mais alto fim que me podia propor na terra era o de me tornar seu igual. Fiz agora um trabalho, o São João, não o consegui fazer tão perfeito como a vossa madona; mas é como pôde ser. Não tenho outro a fazer, nenhuma outra imagem me solicita e constrange à realização; ou melhor, há uma, distante e sagrada, que um dia terei que criar, mas actualmente não alcanço. Para a fazer terei que passar por muito e viver muito. Talvez me bastem três ou quatro anos, talvez dez ou mais tempo ainda, talvez mesmo nunca me seja dado realizá-la. Até lá, porém, mestre, não quero continuar no ofício a polir figuras, a esculpir púlpitos, a passar a vida encerrado na oficina, a ganhar dinheiro e a tornar-me igual a todos os artífices; não, isso não. Quero viver e correr mundo, sentir o Verão e o Inverno, provar a beleza e terror da vida. Quero sofrer fome e sede, quero esquecer e libertar-me de tudo o que vivi e aprendi convosco. Gostaria de fazer, mais tarde, algo tão belo e profundamente comovente como a vossa madona, mestre - mas não queria tornar-me igual a vós nem viver como vós viveis.

O mestre tinha lavado e enxugado as mãos; voltou-se e olhou para Goldmundo, de semblante severo mas não zangado.

- Falaste - disse ele - e eu escutei-te. Basta, por agora. Não te espero para o trabalho, embora haja muito que fazer. Não te considero meu oficial, sei que precisas de liberdade. Gostaria, caro Goldmundo, de ter contigo uma conversa sobre vários assuntos; mas agora não, daqui a uns dias; entretanto, podes gastar o tempo como muito bem te aprouver. Olha, meu rapaz, sou muito mais velho do que tu e tenho alguma experiência. Penso de maneira diferente da tua, mas compreendo-te) entendo o que queres dizer. Daqui a meia dúzia de dias chamo-te. Falaremos então do teu futuro e dos planos que tenho a teu respeito. Até lá, tem paciência! Sei muito bem o que se sente ao terminar uma obra que se tomou tanto a peito, sei o vazio que nos deixa. Mas acredita que passa.

Goldmundo foi-se embora, descontente. O mestre estava cheio de boas intenções a seu respeito, mas como poderia ajudá-lo?

Conhecia um lugar à beira rio, onde a água não era profunda e corria sobre um leito de cascalho e lixo, pois para ali deitavam toda a espécie de desperdícios das casas do bairro dos pescadores. Foi até lá e sentou-se no parapeito da margem a olhar para a água. Amava a água, todas as águas o atraíam. Olhando, através dos fios cristalinos da corrente, para o fundo escuro e confuso, via, aqui e além, reluzir e cintilar, com brilho de oiro embaciado, coisas tentadoras e irreconhecíveis: talvez o caco de um prato velho, ou uma foice torta e inutilizada, ou um seixo claro e polido, ou uma telha vidrada; ou então um peixe do lodo, uma média carpa vermelha ou uma enguia, revirando-se lá em baixo e por instantes captando uma réstia de luz nas barbatanas e escamas claras da barriga - nunca se distinguia ao certo o que rebrilhava; mas era sempre magicamente bela e fascinante a breve e abafada cintilação dos tesouros submersos no seio húmido e sombrio das águas. Parecia-lhe que, como aquele pequeno mistério das águas, eram todos os autênticos mistérios, todas as reais e genuínas imagens da alma; sem contornos, sem forma, somente pressentidas como remota e bela possibilidade, velada e ambígua. O instantâneo e indecifrável lampejo, doirado ou prateado, no cerúleo fundo do rio, era um nada, mas tão ditosamente promissor como um vago perfil a três quartos é promissor de algo infinitamente belo ou infinitamente triste; uma lanterna de um carro, de noite, desenhando nos muros as sombras gigantescas das rodas, podia ser, por minutos, um jogo de sombras tão cheio de perspectivas e peripécias como a obra inteira de Vergílio. Do mesmo irreal e mágico tecido eram urdidos os sonhos, outro nada que continha todas as imagens do mundo, outras águas em cujo cristal moravam, sempiternas possibilidades latentes, as formas de todos os homens, animais, anjos e demónios.

De novo imerso naquele jogo, fitou alheado o curso do rio e viu, lá no fundo, tremeluzirem reflexos indefinidos; imaginou-os coroas reais e luminosos colos femininos. Recordou-se de ter visto, em Mariabronn, nas letras gregas e latinas, semelhantes jogos de formas e fantásticas metamorfoses. Não tinha até falado nisso a Narciso? Há quanto tempo já, há quantos séculos? Narciso! Para o ver, para falar com ele uma hora, para lhe segurar a mão e ouvir a sua voz calma e sagaz, de bom grado daria os dois ducados de oiro.

Como podiam estas coisas ser tão belas, as cintilações de oiro fundo da água, os jogos de sombras e pressentimentos, todos estes irreais fenómenos de contos de fadas - como podiam ser tão inflexivelmente belas e empolgantes, sendo, afinal, o contrário da beleza qiae o artista criava? Se a beleza daquelas aparências inefáveis não possuía forma e residia apenas no mistério, nas obras de arte dava-se precisamente o contrário; eram integralmente formais, usavam linguagem clara e perfeita. Nada era mais implacavelmente claro e nítido do que o contorno de uma cabeça ou de uma boca, desenhada ou esculpida em madeira. Goldmundo era capaz de desenhar com a maior precisão o lábio inferior ou as pálpebras da madona de mestre Nicolau; nada ali era indeciso, ilusório ou difuso.

Goldmundo meditou no caso com afã. Não conseguia compreender como a forma mais nítida e definida exercia sobre a alma um eFeito idêntico ao do mais informe e fugidio. A reflexão, porém, esclareceu-lhe o motivo porque lhe desagradavam certas obras de arte impecáveis e bem acabadas que, embora belas, lhe eram fastidiosas e quase odiosas. Enchiam oficinas, igrejas e palácios; mas, se tanto o desiludiam é porque acordavam o anseio do transcendente e não o satisfaziam porque lhes faltava o principal: o mistério. O sonho e a arte mais sublime tinham em comum o mistério.

E Goldmundo pensou ainda: mistério é também a imagem que eu amo e persigo, que várias vezes vislumbrei e que, como artista, gostaria de representar e manifestar um dia, se pudesse: a imagem da grande génitrix, da mãe dos homens, cujo mistério não ressuma, como em outra qualquer figura, deste ou daquele pormenor, da especial opulência ou esbelteza, robustez ou fragilidade; provém apenas da aliança dos maiores contrastes do mundo, geralmente inconciliáveis, mas nela reunidos: nascença e morte, bondade e crueldade, vida e aniquilamento. Se eu tivesse inventado esta imagem, se ela fosse mero jogo de ideias ou ambição de artista, não teria nada a perder, reconheceria que era um erro e esquecê-la-ia. Mas, a mãe do género humano não é uma abstracção, não a inventei, vi-a. Mora em mim e quantas vezes a encontro. Pressenti-a pela primeira vez quando, em certa aldeia, em uma noite de Inverno, tive de alumiar o parto de uma camponesa; desde então começou a imagem a viver em mim. Ora está distante e perdida por muito tempo, ora, de repente, lampeja de novo, como hoje aconteceu. A figura de minha mãe, outrora de entre todas a mais querida, transfundiu-se nesta imagem, está nela, como o caroço dentro da cereja.

Obteve a visão nítida da sua situação presente, da ansiedade em face da decisão. Tal como outrora, quando se despediu de Narciso e do convento, estava a caminho: a caminho da mãe. Talvez dela um dia nascesse uma imagem, configurada e para todos visível, por obra saída das suas mãos. Talvez fosse esse o alvo, o oculto sentido da sua vida. Não o sabia. Mas uma coisa sabia: era bom acorrer ao apelo da mãe, estar a caminho da mãe, ser atraído e chamado por ela; era bom, era a vida. Talvez nunca pudesse dar forma àquela visão, talvez fosse para sempre um sonho, um pressentimento, uma fascinação e doirada cintilação do sagrado mistério. Mas, em qualquer caso, tinha que segui-la, tinha que a deixar dispor do seu destino, era ela a sua estrela.

Estava iminente a decisão, tudo se esclarecera. A arte era bela, mas não era uma deusa, nem um alvo, pelo menos para ele; não era a arte que devia seguir, era o chamamento da mãe. De que lhe serviria adestrar cada vez mais os dedos? O exemplo de mestre Nicolau bem o mostrava: servia para obter fama e nomeada, dinheiro e vida estável, ao mesmo tempo que estiolar e definhar a sensibilidade mais profunda, a única acessível ao mistério. Servia para fazer graciosas e preciosas futili-dades, sumptuosos altares e púlpitos, santos, mártires, e querubins de lindos cabelos encaracolados, a tantas moedas cada. Os olhos doirados das carpas e a penugem fina e macia dos rebordos das asas das borboletas eram infinitamente mais belos, mais vivos, mais preciosos do que uma sala cheia de semelhantes artefactos.

Um rapaz vinha descendo a estrada marginal; cantava e calava-se, de quando em quando, para comer um bocado de um grande naco de pão branco que trazia na mão. Goldmundo viu-o e pediu-lhe um bocadinho de pão: arrancou uma porção de miolo com a qual formou bolinhas que, debruçado sobre o parapeito, foi deitando à água; via as bolinhas claras afundarem-se uma a uma na água escura, logo assaltadas pelas cabeças rápidas e vorazes dos peixes aos cardumes, em cujas bocas desapareciam. Viu, profundamente satisfeito, afundar-se e desaparecer bola após bola. Depois, sentiu fome e procurou uma das suas namoradas, criada em casa de um cortador, a quem ele chamava “a dona dos paios e chouriços”. Costumava chamá-la à janela da cozinha, com um assobio combinado, e de bom grado aceitava a oferta de qualquer provisão, que guardava e ia comer para lá do rio, em um outeiro plantado de vinha, onde a terra, vermelha e rica, brilhava de fertilidade sob a folhagem viçosa dos vinhedos, e onde, na Primavera, floresciam os pequenos jacintos azuis que exalavam um leve aroma a fruta.

Mas parecia que o dia era de decisões e intuições. Quando Catarina apareceu à janela com um sorriso no rosto aberto e rude, ao estender a mão para o sinal combinado, ocorreram-lhe forçosamente à lembrança as outras vezes que ali tinha esperado. Representou-se-lhe, com nitidez que antecipadamente o enfastiou, tudo o que nos próximos minutos se iria passar: ela reconheceria o sinal, sairia da janela para daí a pouco aparecer à proa traseira da casa com um pedaço de carne fumada na mão, que ele receberia, acariciando-a e apertando-a de encontro a si, como ela esperava - de repente, pareceu-lhe infinitamente estúpido e odioso provocar aquele mecânico desenrolar de situações tantas vezes repetidas e voltar a representar o seu papel: receber o chouriço, sentir de encontro a si os seios rijos e apertá-los como retribuição. Pareceu-lhe ver, de súbito, na face boa e rude da rapariga, os vestígios de um hábito já inanimado, no seu sorriso cordial algo demasiado visto, maquinal, destituído de mistério e indigno dele. Deixou em meio o aceno costumado e gelou-se-lhe o sorriso no rosto. Amá-la-ia ainda, desejá-la-ia ainda, a sério? Não, demasiadas vezes ali estivera, demasiadas vezes correspondera ao sorriso sempre igual, sem o imperativo de um impulso de alma. O que ainda ontem teria feito sem escrúpulo não lhe era possível hoje. Ainda a rapariga continuava a olhá-lo e já ele tinha virado costas e desaparecido por outra rua, resolvido a nunca mais voltar. Outro que apertasse aqueles seios, outro que comesse os bons chouriços! Era espantoso o que se comia e desperdiçava naquela cidade anafada e folgazã! Como eram esquisitos e de má boca aqueles amolentados burgueses, para quem todos os dias se abatiam tantos porcos e vitelas, tantos lindos e pobres peixinhos se tiravam do rio! Ele próprio - como estava mal habituado e estragado, ascorosamente semelhante àqueles nédios burgueses! Quando, nas suas jornadas, caminhavam pelos campos cobertos de neve, sabia-lhe melhor uma ameixa seca ou uma côdea dura do que o jantar de uma corporação inteira nesta terra de vida lauta. Oh vida errante, oh charneca ao luar, oh rasto cautelosamente seguido sobre a erva húmida e parda da madrugada! Na cidade era tudo tão fácil e custava tão pouco, até o amor! Farto daquela vida, cuspia-lhe em cima. Perdera todo o sabor, era osso sem tutano; tinha sido bela e valiosa enquanto o mestre era um exemplo e Lisbeth uma princesa; fora suportável, depois, enquanto trabalhara no São João Evangelista. Agora, terminada a obra, evolara-se o perfume, murchara a flor. Invadiu-o como vaga alterosa o sentimento de fugacidade que tantas vezes o assaltava, atormentando-o e inebriando-o intensamente. Tudo murchava tão depressa, tão depressa se esgotava o prazer para só ficarem ossos e pó. Não, outra coisa perdurava ainda: a mãe eterna, a antiquíssima e sempre jovem mãe, com o seu triste e cruel sorriso de amor. Voltou a vê-la por instantes, gigantesca, de estrelas no cabelo, sonhadoramente sentada à beira do mundo, colhendo a brincar e deixando cair lentamente no abismo sem fundo, flor após flor, vida após vida.

Durante dias Goldmundo viu desbotar-se atrás de si um pedaço de vida e vagueou em melancólica embriaguez de despedida pela região já familiar; mestre Nicolau não se poupava a esforços para lhe cuidar do futuro e fixar para sempre aquele hóspede desinquieto. Induziu a corporação a outorgar-lhe a carta de mestria e urdiu o plano de o ligar a ele duradoiramente, não como subordinado, mas como colaborador; combinaria e executaria com ele todas as encomendas de vulto, dando-lhe participação nos respectivos lucros. Projecto arriscado talvez, por causa de Lisbeth, pois, como era de prever, o rapaz em breve seria seu genro. Mas, uma figura como o São João, nunca o melhor dos seus oficiais seria capaz de fazer; ele próprio ia envelhecendo, escasseavam-lhe as ideias e a força criadora e não queria ver a sua afamada oficina reduzida a vulgar loja de artífice. Seria difícil fazer alguma coisa daquele Goldmundo, mas era preciso tentar.

A estes cálculos e cuidados se entregava o mestre. Mandaria arranjar para Goldmundo a oficina traseira; dar-lhe-ia o quarto na mansarda, oferecer-lhe-ia um belo fato em honra da sua entrada para a corporação.

À cautela, informou-se também da opinião de Lisbeth que, desde aquele almoço, já pressentira o que se preparava. Lisbeth não teve nada a objectar. Se o rapaz tomasse tino e fosse mestre, era quanto bastava. Por esse lado, não havia entraves. E, se nem o mestre nem o ofício tinham ainda conseguido domesticar por completo aquele vadio, Lisbeth acabaria por consegui-lo.

Assim foi tudo previsto e preparado o engodo por detrás da esparrela. Um dia mandou chamar Goldmundo, que nunca mais tornara a aparecer; novamente foi convidado para almoçar e novamente se apresenta escovado e penteado naquela sala talvez demasiado solene; novamente bebeu à saúde do mestre e da filha, até que esta se retirou e Nicolau lhe expôs o seu grande plano e oferta.

- De certo compreendeste - acrescentou ele às suas surpreendentes propostas - e não será preciso dizer-te que talvez nunca um rapaz novo, que nem sequer cumpriu os anos prescritos para a aprendizagem, ascendeu tão rapidamente a mestre e encontrou ninho tão fofo e macio. É o teu futuro garantido, Goldmundo.

Goldmundo olhou surpreso e confrangido para o mestre e afastou da frente a taça quase cheia. Tinha esperado que Nicolau o repreendesse por aqueles dias de gazeta e lhe propusesse ficar junto dele como oficial. Afinal, era aquilo o que lhe oferecia. Entristecia-o e constrangia-o estar ali sentado em frente daquele homem. Não encontrou logo resposta.

O mestre, já de semblante mais inquieto e desiludido por não ter sido imediatamente aceite o seu honroso convite, com regozijo e humildade, levantou-se e disse: - Bem, foste apanhado de surpresa pela minha proposta, talvez queiras primeiro reflectir sobre o caso. Melindra-me um pouco a tua hesitação, julguei que te dava uma grande alegria. Mas seja, pondera o tempo que queiras.

- Mestre - disse Goldmundo procurando as palavras - não me queirais mal! Agradeço-vos de todo o coração a vossa bondade e mais ainda vos agradeço a paciência com que me trataste como aprendiz. Nunca esquecerei a dívida que contraí para convosco. Mas não preciso de prazo para deliberar. Há muito que estou decidido.

- Decidido a quê?

- Ainda antes do vosso convite, quando não podia sequer presumir que ouviria de vós tão honrosa proposta, já tinha decidido não ficar aqui por mais tempo, voltar à vida errante.

Nicolau empalidecera e olhou-o com expressão sombria.

- Mestre - suplicou Goldmundo - acreditai que não vos quero ofender. Disse-vos o que estou resolvido a fazer e não modificarei a minha decisão. Tenho que partir, que correr mundo e novamente gozar a liberdade. Permiti que vos agradeça do coração e separemo-nos um do outro como amigos.

Estendeu-lhe a mão com os olhos marejados de lágrimas. Nicolau não lhe respondeu e, pálido, começou a passear de um lado para o outro, em crescente agitação e com passos que ressoavam de fúria. Depois, estacando de repente, reprimiu-se com enorme esforço e disse, por entre dentes, sem olhar para Goldmundo: - Vai então! Mas vai já! Não tornes a aparecer à minha frente! Para que não faça nem diga alguma coisa de que um dia possa arrepender-me. Vai.

Goldmundo estendeu-lhe novamente a mão. O mestre fez menção de cuspir-lhe em cima. Goldmundo voltou costas, então, lívido também; saiu silenciosamente do quarto, pôs a boina na cabeça, desceu a escada passando a mão pelos ornatos das colunas, entrou na oficina grande onde parou para se despedir do seu São João, e saiu daquela casa com mágoa mais profunda ainda do que a que outrora sentira ao afastar-se do castelo e de Lídia.

Fora rápido, pelo menos! Não tinham pronunciado palavras inúteis! Era a única consolação que lhe restava, quando transpôs os umbrais da porta e, de repente, a rua e a cidade o olharam com aquele aspecto desfigurado e estranho que tomam as coisas familiares quando o nosso coração se despede delas. Olhou para a porta - era agora a entrada de uma casa estranha e para ele fechada.

Assim que chegou ao seu quarto, começou os preparativos de partida. Não havia, de facto, muito que preparar, nada havia a fazer senão despedir-se. Na parede estava dependurado um quadro pintado por ele, uma suave madona, e alguns outros objectos que lhe pertenciam: um chapéu domingueiro, um par de sapatos de dança, um rolo de desenhos, um pequeno alaúde, umas figurinhas de barro que ele modelara e algumas recordações das namoradas: um copo de vidro cor de rubi, um biscoito já ressequido e duro em forma de coração e Outras bugigangas, todas com a sua história e o seu significado, todas de estimação, mas, nas circunstâncias actuais, incomodativos tarecos, porque não as podia levar consigo. O dono da casa trocou-lhe o copo cor de rubi por uma boa e forte faca de mato, que ele afiou no quintal, na pedra de amolar; esboroou o biscoito e deu-o a comer às galinhas dos vizinhos; ofereceu a imagem da virgem à dona da casa e recebeu, em retribuição, um presente útil: uma mochila de viagem e abundante provisão de mantimentos. Meteu na mochila, além dos víveres, algumas camisas e meia dúzia dos desenhos mais pequenos enrolados em volta de um pedaço de cabo de vassoura. O resto das bugigangas abandonava-as.

Havia várias mulheres na cidade de quem seria bonito despedir-se; ainda na véspera tinha dormido com uma delas, sem nada lhe confiar dos seus planos. Assim, antes de voltar à vida errante, tantas coisas se envencilhavam em volta de uma pessoa! Mas não se importava. Não disse adeus a ninguém, senão aos donos da casa, à noite, para partir na madrugada do dia seguinte.

Houve, contudo, quem se levantasse para o convidar a tomar umas sopas de leite na cozinha, quando de madrugada ia a sair sem ruído. Foi a filha dos donos da casa, uma criança de quinze anos, apagada e doente, de lindos olhos, mas com um defeito na perna, que a fazia coxear. Chamava-se Maria. Serviu-lhe pão e leite quente na cozinha, com ar estremunhado e pálido, mas vestida e penteada com apuro; parecia muito triste por ele se ir embora. Goldmundo agradeceu-lhe e, condoído, beijou-lhe a boca fina, à despedida. Ela recebeu o beijo, de olhos cerrados, com unção.

 

Goldmundo, nos primeiros tempos da nova peregrinação, nas primeiras vertigens da liberdade recuperada, teve que reaprender a vida nómada dos viandantes, sem sujeição a horas. Livres de qualquer disciplina, dependentes apenas do tempo e das estações do ano, sem um alvo na frente, sem tecto por cima da cabeça, sem nada possuírem e expostos a todos os acasos, gozam os vagabundos uma vida pueril e corajosa, frugal e forte. São os filhos de Adão, expulso do paraíso, e os irmãos dos bichos inocentes. Recebem do céu, hora a hora, o que lhes é dado: sol e chuva, névoa e neve, calor e frio, bem-estar e privações; para eles, não há nem tempo, nem história, nem ambição, nem os estranhos ídolos de evolução e progresso em que os proprietários acreditam tão deses-peradamente. O vagabundo pode ser delicado ou rude, hábil ou desajeitado, corajoso ou timorato, mas tem sempre um coração de criança, vive sempre no dia anterior ao início da história do mundo, norteia a sua vida por poucos instintos e necessidades elementares. Pode ser arguto ou tolo; pode saber, no mais profundo da sua alma, que a vida é frágil e transciente, que todo o ser vivente arrasta, pobre e angustiado, a sua gota de sangue quente através da algidez dos espaços universais; pode obedecer apenas às ordens do seu estômago, infantil e sofregamente: em qualquer caso é a antítese e o inimigo mortal do proprietário e sedentário, que o odeia, despreza e teme porque não quer que lhe lembrem nem a contingente existência, nem a permanente caducidade da vida, nem a morte inflexível e implacável, que nos rodeia e preenche o universo.

A puerilidade da vida dos vagabundos, a sua ascendência materna, o seu afastamento da lei e do espírito, a sua vida arriscada e em secreta e constante proximidade da morte, tinham, há muito, profundamente dominado e marcado a alma de Goldmundo. Como, além disso, morava nele espírito e vontade, como era também um artista, a sua vida era difícil e rica. Mas a discordância e a contradição enriquecem e fecundam uma existência. Que seria da sensatez e da sobriedade sem a experiência da embriaguez, que seria do prazer dos sentidos se a morte o não espreitasse emboscada, que seria do amor sem a eterna hostilidade dos sexos?

O Verão e o Outono declinaram e Goldmundo atravessou penosamente os meses inclementes e vagueou inebriado pela doce e rescendente Primavera. As estações do ano passavam tão velozmente, era sempre tão rápido o declínio do sol alto do estio! Decorreu ano após ano e Goldmundo parecia ter esquecido que outra coisa havia no mundo além da fome, do amor e da fuga silente e sinistra das estações; parecia ter mergulhado por completo no primitivo mundo materno dos instintos. Em sonhos, porém, e sempre que se demorava a contemplar, cismador, os vales vicejantes ou emurchecidos, surgia o artista pleno de ciente visão, torturado pelo anseio de esconjurar pelo espírito e transmutar em significação aquela deliciosa e absurda vida transitória.

Goldmundo, que desde a sangrenta aventura com Vítor sempre viajara sozinho, encontrou um dia um companheiro que insensivelmente se lhe associou e do qual se não pôde libertar por muito tempo. Não se parecia nada com Vítor; era um romeiro, um rapaz novo ainda, usando hábito e chapéu de peregrino; chamava-se Roberto e era natural do Lago Constança. Filho de um artífice, andara uns tempos na escola dos monges de São Gall e, criança ainda, metera-se-lhe em cabeça o projecto de uma peregrinação a Roma; acalentara sempre aquele plano dilecto e agarrara a primeira oportunidade que lhe surgiu para o realizar: a morte do pai, em cuja oficina de carpinteiro trabalhava. Mal o velho se enterrou, Roberto declarou à mãe e à irmã que nada o impediria de fazer a peregrinação a Roma para satisfazer o seu anseio e penitenciar-se dos pecados seus e do pai. Em vão ambas se lamentaram, em vão se zangaram; Roberto manteve obstinadamente o seu propósito e, em vez de cuidar das duas mulheres, partiu sem a bênção da mãe, sob uma chuva de furiosas imprecações da irmã. Movia-o, sobretudo, o amor à vida errante e aliava uma devoção superficial à propensão a demorar-se nas proximidades de lugares sagrados onde se realizassem festividades litúrgicas: baptismos, funerais, missas, incenso e velas acesas davam-lhe imenso gosto.

Sabia algum latim, mas a sua alma infantil não ambicionava erudição, queria apenas a contemplação e serena exaltação anímica, sob a sombra das abóbadas das igrejas. Em criança, dedicara-se com ardor ao serviço de menino de coro. Goldmundo não o tomava muito a sério e, contudo, gostava dele, sentia-o aparentado consigo no instintivo amor à vida errante e aventurosa. Roberto pusera-se a caminho, satisfeito, e chegara a Roma onde recebera hospitalidade em um dos inúmeros conventos e paróquias; contemplara a paisagem meridional e montanhosa e, no meio de tantas igrejas e piedosas cerimónias litúrgicas, tinha-se sentido feliz; ouvira centenas de missas, rezara e recebera os sacramentos nos lugares mais sagrados e ramosos, e engolira mais incenso do que o necessário para expiar os seus pequenos pecados de juventude e os do pai. Um ano mais passou nessas andanças e quando, finalmente, regressou à casa paterna, não foi recebido como filho pródigo; a irmã apoderara-se, entretanto, dos direitos e deveres de chefe de família, contratara um diligente carpinteiro com quem depois casara, e dominava na casa e na oficina tão completamente, que Roberto, após curta estadia, reconheceu que não fazia nenhuma falta; quando voltou a falar em partir para nova jornada, ninguém pretendeu demovê-lo o que lhe não deu demasiado abalo; recebeu da mãe umas economias, envergou outra vez o trajo de romeiro e iniciou nova peregrinação através do santo império, desta vez sem fito algum, na qualidade de vagante semi-eclesiástico. Tilintavam-lhe à cintura medalhas de cobre trazidas de sagrados lugares e rosários bentos.

Um dia, encontrou Goldmundo, com quem seguiu viagem e trocou preceitos de vagantes; perdeu-se dele na próxima cidadezinha, mas reencontrou-o e, por fim, acompanhou-o sempre, como cordato e serviçal companheiro. Afeiçoou-se muito a Goldmundo e procurava conquistá-lo com pequenos serviços; admirava o seu saber, a sua audácia e o seu espírito, e amava nele a saúde, a força e a lealdade. Acostumaram-se um ao outro, pois Goldmundo também era cordato. Só uma coisa não suportava: quando o acometiam os seus ataques de tristeza e cogitação, calava-se obstinadamente, de olhar fixo e vago, como se o companheiro não existisse; e este não devía falar, nem razer perguntas, nem consolá-lo, devia deixá-lo calado e à vontade. Depressa Roberto aprendeu como devia proceder. Desde que ouvira Goldmundo dizer de cor versos de canções latinas e explicar-lhe o significado das figuras de pedra do portal de uma catedral, desde que o vira desenhar no muro junto ao qual descansavam, a traços largos e rápidos, figuras de tamanho natural, desde então tinha o companheiro na conta de um filho dilecto de Deus, quase de um mago. Roberto observou que era também dilecto das mulheres, que conquistava algumas só com um olhar e um sorriso o que era menos do seu agrado, mas não menos digno de admiração.

Até que um dia a caminhada sofreu inesperada interrupção. Chegaram perto de uma aldeia onde os esperava um magote de camponeses armados de varapaus e manguais; o chefe do grupo gritou-lhes a distância que voltassem costas imediatamente e desaparecessem para não mais voltar, que o diabo os levasse depressa, senão davam cabo deles. Goldmundo parou e quis indagar o que havia, mas logo uma pedrada o atingiu no peito. Olhou para Roberto, que já debandara como um possesso. Os camponeses avançavam ameaçadores e Goldmundo nada pôde fazer senão seguir, mais devagar, o fugitivo. Este esperava-o a tremer aos pés dum cruzeiro, encimado por uma imagem do Redentor.

- Fugiste como um herói - disse Goldmundo rindo.

- Mas que se teria metido na cabeça daqueles estúpidos? Haverá guerra? Põem sentinelas de atalaia diante das tocas e não deixam entrar ninguém! Que diabo estará por detrás daquilo!

Nenhum deles sabia. Só na manhã seguinte descobriram, em uma herdade solitária, certos indícios que os ajudaram a desvendar o caso. A herdade, que constava da casa, curral e celeiro, rodeados de um prado onde crescia erva alta e árvores de fruta, estava estranhamente silenciosa e adormecida. Nada se ouvia; nem vozes, nem passos, nem algazarra de crianças, nem o tinir de alfaias; no prado mugia uma vaca, talvez por não ter sido ordenhada. Aproximaram-se da casa, bateram à porta, mas ninguém lhes respondeu; foram ao curral, sob cujo tecto de colmo o musgo verde rebrilhava ao sol e não encontraram viva alma. Voltaram à casa, surpresos e confrangidos com aquela desolação, bateram novamente com os punhos na porta e não obtiveram resposta. Goldmundo tenta abri-la e, para seu espanto, viu que não estava fechada; empurrou-a e entrou num quarto sombrio.

- Deus os salve - disse em voz alta - não está ninguém em casa? - Tudo permanecia em silêncio. Roberto ficara à porta. Goldmundo avançou curioso; cheirava mal na cabana, havia um cheiro estranho e repugnante. A lareira estava cheia de cinza que ele soprou; por debaixo ardiam ainda brasas sob as achas calcinadas. Viu, então, alguém sentado na penumbra, ao fundo da lareira; parecia uma mulher de idade, sentada em uma poltrona, a dormir. De nada servia chamá-la. A casa parecia embruxada. Goldmundo tocou cordialmente no ombro da mulher, que não se mexia, e viu que estava coberta por uma teia de aranha, cujos fios se prendiam ao cabelo e aos joelhos. - Está morta - pensou ele, com um ligeiro calafrio; para se assegurar, ateou o lume, soprou-o, e atiçou-o até fazer chama, com que acendeu uma acha comprida. Iluminou então a cara da mulher sentada. Viu sob os cabelos grisalhos uma face cadavérica e negra, com um dos olhos aberto oscilando vazio. Tinha morrido ali na cadeira. Nada havia a fazer.

Com a acha acesa na mão, Goldmundo esquadrinhou a casa e logo encontrou no umbral da porta que dava para um quarto traseiro, outro cadáver, o de um rapaz de oito ou nove anos, com a cara entumecida e desfigurada, vestido só com uma camisa. Atravessado na porta, estava de barriga para baixo e de punhos cerrados e coléricos. É o segundo, pensou Goldmundo; continuou, como num pesadelo, a sua busca; no quarto traseiro os postigos abertos deixavam entrar a jorros a claridade do dia. Apagou cautelosamente o archote e pisou as fagulhas no chão.

Viu três camas, uma delas com a palha a sair do estambre duro e cinzento. Na segunda jazia o cadáver de um homem de barbas hirto, de costas, com a cabeça para trás e o queixo e a barba levantados; devia ter sido o proprietário da herdade. A face encovada brilhava em lívidos e estranhos tons cadavéricos; um dos braços pendia para o chão, onde, entornado e esvaziado, estava um cântaro de barro; a água escoada não tinha sido ainda completamente absorvida e tinha escorrido para uma concavidade onde formava poça. Na outra cama, enterrada e enrodilhada em lençóis e dejectos, estava uma mulher grande e forte, com a cara encafuada na cama, de fartos cabelos, loiros como estrigas brilhando à luz clara do dia. Junta e agarrada a ela, como que presa e estrangulada pelo lençol, estava uma rapariga adolescente, igualmente loira, com manchas de azul-cinza na face cadavérica.

O olhar de Goldmundo ia de uns para os outros. Na face da rapariga, apesar de muito desfigurada, via-se ainda sinal do desamparado pavor da morte. A nuca e o cabelo da mãe, que se tinha revolvido e debatido no leito, revelavam fúria, medo e apaixonada ânsia de fuga. O cabelo indomado, sobretudo, não se resignava à morte. No semblante do lavrador havia revolta e dor contida; tivera morte difícil, parecia, mas morrera como um homem, a face hirsuta erguida, abrupta e rígida como a de guerreiro caído em campo de batalha. Era bela aquela atitude de serena revolta, firme e resistente. Não devia ter sido um homem cobarde e mesquinho quem soubera enfrentar assim a morte. O mais comovente era o cadáver atravessado, de barriga para baixo, no umbral da porta; a cara nada dizia, mas a posição e os punhos cerrados eram suficientemente eloquentes: proclamavam sofrimento e desnorteada e desamparada defesa perante inauditas dores. Rente à cabeça havia um buraco aberto na porta. Goldmundo observou tudo atentamente. Era hedionda, sem dúvida, aquela casa e fétido o cheiro dos cadáveres; mas exercia sobre Goldmundo uma profunda atracção; ressumava grandiosidade e destino; aquele espectáculo tão isento de embustes conquistou-o e repassou-lhe a alma.

Entretanto Roberto, fora da casa, chamava-o impaciente e amedrontado. Goldmundo gostava de Roberto mas, naquele momento, pensou que, em comparação com os mortos, era mesquinho e ínfimo um homem vivo, com o seu medo, a sua curiosidade e a sua puerilidade. Não deu resposta a Roberto e entregou-se por completo à contemplação dos mortos, com a insólita mescla de cordial pesar e fria observação, peculiar aos artistas. Examinou todas as figuras, as jacentes e a outra sentada, as cabeças, as mãos e as expressões petrificadas. Que silêncio naquela casa embruxada! Que estranho e horrível cheiro! Que fantástico e sinistro aquele pequeno lar humano onde ainda ardia amortecido um resto de lume na lareira, habitado por cadáveres e cheio de morte! Em breve, a carne cairia das faces imóveis, cujos dedos seriam pasto das ratazanas. A derradeira e misérrima decomposição e corrupção, que para os outros se acostumavam no caixão ou na cova, invisível e a bom recato, realizavam aqueles ali em casa, sem resguardo algum, nos seus quartos, à luz do dia, de portas abertas, despreocupada e impudicamente. Goldmundo já vira vários mortos, mas nunca contemplara tão medonha imagem da acção implacável da morte. Guardou-a no mais profundo de si.

Por fim, a gritaria de Roberto à porta, incomodou-o e saiu da casa. O companheiro olhou-o, cheio de medo.

- Que há? - perguntou baixinho, com a voz tremendo de susto. - Não está ninguém em casa? Mas que olhar o teu! Porque não falas?

Goldmundo mediu-o friamente. - Entra e olha, é uma casa bizarra. Vamos depois ordenhar aquela vaca. Anda!

Roberto entrou indeciso, dirigiu-se à lareira onde descobriu a velha sentada e deu um grande grito quando percebeu que estava morta. Saiu a correr, de olhos esbugalhados.

- Deus nos acuda! Está uma mulher morta ao pé da lareira. Que será aquilo? Porque não estará alguém com ela? Porque não a enterraram? Valha-nos Deus, já cheira mal.

Goldmundo sorriu-se.

- És um herói Roberto; mas depressa retrocedeste. Uma velha morta sentada numa cadeira é um espectáculo estranho; mas, se desses mais uns passos, verias coisas muito mais espantosas. Nas camas estão três e está um rapazito atravessado na porta. Todos mortos. Toda a família morta, na casa sem vida. Eis porque ninguém cuidou da vaca.

Roberto olhou-o horripilado e exclamou subitamente, com voz sufocada: - percebo agora porque razão os lavradores não nos deixaram ontem entrar na aldeia. Deus santo, tudo se esclarece. É a peste, por mal dos meus pobres pecados, Goldmundo. E tu lá dentro tanto tempo e tocaste possivelmente nos cadáveres. Vai-te, não te aproximes de mim, estás decerto contaminado. Lamento muito, Goldmundo, mas tenho que me separar de ti, não posso ficar contigo.

Já ia a afastar-se, mas foi agarrado pela sua veste de peregrino. Goldmundo, olhando-o com severidade e tácita censura, segurava-o, apesar de ele se debater e forcejar por libertar-se.

- Olha, meu rapaz - disse em tom de voz meio cordial meio escarninho - és mais esperto do que se poderia supor e é possível que tenhas razão. É o que saberemos na próxima herdade ou aldeia. A peste grassa provavelmente nesta região. Vamos ver se conseguimos escapar sãos e salvos. Mas repara, Robertinho, não posso deixar-te fugir. Tenho uma alma caridosa e um coração excessivamente compassivo, poderia ter-te contagiado lá dentro e, se eu te deixasse ir embora, eras capaz de cair para aí no meio do campo e morrer sozinho, sem ninguém para te fechar os olhos, para te cavar uma sepultura e deitar-te um pouco de terra por cima. Não, meu caro, que desolação. Só de pensar nisso sufoco. Repara e toma bem conta no que te digo, porque não o direi duas vezes: corremos ambos o mesmo perigo, tanto podes ser tu como eu o atingido. Ficamos, portanto, juntos e morremos ambos ou ambos escapamos a esta maldita peste. Se tu adoeceres e morreres, prometo-te que serás enterrado por mim. Se for eu que tiver de morrer, faz o que te aprouver, sepulta-me, ou foge, é-me indiferente. Antes, porém, meu caro, não penses em debandar, rapaz, nota bem! Havemos de precisar um do outro. E agora cala a boca, não quero ouvir-te mais e procura aí no curral um balde para ordenharmos a vaca.

Assim fizeram e, a partir daquele momento, Goldmundo mandava e Roberto obedecia; foi melhor para ambos. Roberto não fez mais tentativas de fuga. Disse só com ar conciliador: - Tive medo de ti, naquele instante. Impressionou-me a tua cara, quando saíste daquela casa fúnebre. Julguei que estivesses contaminado. A verdade é que a tua expressão estava mudada. Foi assim tão horrendo o que viste lá dentro?

- Não era horrendo - disse Goldmundo hesitante. - Não vi lá dentro senão o que a todos nos espera, a mim e a ti, mesmo que a peste nos não ataque.

À medida que avançavam iam encontrando por toda a parte a morte negra que assolava o país. Algumas aldeias não deixavam entrar nenhum estranho; em outras podiam passear sem obstáculo por todas as ruas. Muitas herdades tinham sido abandonadas e havia imensos mortos sem sepultura, em decomposição nos campos ou dentro das casas. Nos estábulos, as vacas mugiam cheias de leite ou esfomeadas, e o gado corria à solta pelos campos. Mungiram e deram de comer a muitas vacas e cabras; mataram e assaram, à beira da floresta, alguns cabri-tinhos e leitões, e beberam vinho e cidra de várias adegas sem dono. Levaram vida lauta, reinava a abundância. Mas nada tinha sabor. Roberto vivia em constante terror da moléstia, sentia-se mal ao ver os cadáveres e, às vezes, andava completamente transtornado de medo; volta e meia julgava-se contagiado, expunha a cabeça e as mãos, demoradamente, ao fumo da fogueira, o que era tido por salutar; mesmo a dormir passava as mãos por todo o corpo, a ver se lhe apareciam bolhas nas pernas, nos braços ou nas axilas.

Goldmundo censurava-o muitas vezes, outras vezes zombava dele. Não partilhava nem dos receios nem da náusea do companheiro; caminhava contenso, atento e sombrio, pelo reino da morte, terrivelmente atraído pela visão da grande mortandade, a alma cheia do grande Outono e o coração opresso pela melodia da foice mondadeira. Por vezes, tornava a aparecer-lhe a imagem da mãe eterna, de rosto gigantesco e pálido, de olhar de medusa e sorriso carregado de sofrimento e morte.

Chegaram a uma cidade fortificada; do portão partia, cingindo as muralhas, um caminho de ronda à altura das casas; nenhuma sentinela estava de atalaia lá em cima, nem diante do portão aberto. Roberto recusou-se a pôr os pés na cidade e suplicou ao companheiro que não entrasse. Entretanto ouviram dobrar um sino e viram sair do portão um padre empunhando uma cruz e atrás dele três carros, dois puxados a muares e outro a bois, todos eles a abarrotar de cadáveres. Meia dúzia de cangalheiros, com os estranhos capotes e as caras sumidas nos capuzes, corriam ao lado e instigavam os animais.

Roberto sumiu-se, lívido. Mas Goldmundo seguiu os carros mortuários a pequena distância; percorreram uns duzentos passos e pararam; não havia ali nenhum cemitério, mas, no meio da charneca erma, tinha sido cavada uma vala, pouco profunda, mas vasta como um salão. Goldmundo parou e observou: os serventes, munidos de varas e arpões, arrancaram os mortos dos carros e atiraram-nos aos montões para a grande vala; o padre murmurou umas palavras, brandiu por cima a cruz e retirou-se; os serventes acenderam grandes fogueiras de todos os lados do coval e voltaram, calados, para a cidade, sem tapar a vala. Olhou para baixo e viu uns cinquenta ou mais cadáveres arremessados uns sobre os outros e muitos deles nus. Aqui e além, erguia-se hirto e clamoroso um braço ou uma perna, ou esvoaçava ao vento uma camisa.

Quando voltou a reunir-se a Roberto, este implorou-lhe, quase de joelhos, que continuassem o caminho o mais depressa possível. Tinha motivo para os seus rogos, pois via em Goldmundo a expressão alheada e ausente, de fixa concentração, a atracção do horrível, a medonha curiosidade, que lhe era já sobejamente conhecida. Não conseguiu, porém, deter o amigo. Goldmundo entrou sozinho na cidade.

Atravessou o portão desguarnecido de sentinelas e o ressoar dos seus passos no empedrado fazia-lhe acudir à memória a imagem de muitas cidadezinhas e portões por onde passara na sua vida errante; lembrava-se como era recebido pela vozearia das crianças, as brincadeiras dos rapazes, as discussões das mulheres, o sonoro martelar do ferro na bigorna, o ranger dos carros, e muitos outros ruídos, uns fortes, cuja entretecida confusão anunciava a pluralidade dos trabalhos, das alegrias e das fainas da comunidade humana. Agora, naquele portão ermo e naquela ruela deserta nada ressoava, nem risos nem gritos, tudo estava petrificado em mortal silêncio e a melodia palreira da água na fonte era demasiado alta e quase ruidosa. Por detrás de uma janela aberta via-se um padeiro no meio dos seus pães e carcaças; Goldmundo fez menção de pretender um pãozinho e o padeiro estendeu-lho cautelosamente, em comprida pá; esperou que Goldmundo lhe desse a paga e, viu-o trincar o pão e afastar-se sem lhe pagar, fechou a janela zangado, mas sem alarido. Diante das janelas de uma casa bonita, estava uma fieira de vasos de barro, outrora floridos agora cacos vazios de onde pendiam folhas secas. De outra casa vinha o som de choros e clamores infantis. Na ruela seguinte, Goldmundo viu, por detrás de uma janela, uma linda rapariga a pentear-se; fitou-a até que ela sentiu e olhou para baixo, encarando-o ruborizada; ele sorriu-lhe mais afectuosamente e então um débil sorriso passou, lento, pelo rosto afogueado.

- Demora muito o penteado? - gritou para cima. Pela abertura da janela ela debruçou, sorridente, o rosto claro.

- Não estás ainda doente? - perguntou-lhe, e ela abanou a cabeça. - Vem então comigo para fora desta cidade de mortos, vamos para a floresta, vamos passar uma bela vida.

A moça interrogou-o com o olhar.

- Não demores muito a decidir-te. Estou a falar-te a sério - gritou Goldmundo. - Estás com o pai e a mãe ou a servir em casa de gente estranha? - Em casa de estranhos? - Vem comigo, então. Deixa morrer os velhos, nós somos jovens e sãos, queremos gozar a vida. Anda, moreninha, estou a falar-te a sério.

Ela olhou-o incrédula, hesitante e surpreendida. Goldmundo avançou devagar, deambulou por uma viela deserta, por outra ainda, e voltou depois, sem se apressar, ao mesmo sítio. Lá estava a rapariga ainda debruçada à janela e, ao revê-lo, alegrou-se-lhe o rosto. Fez-lhe sinal para que seguisse devagarinho e pouco depois veio no seu encalço e alcançou-o ainda antes do portão; trazia uma trouxinha na mão e um lenço vermelho na cabeça.

- Como te chamas? - perguntou Goldmundo.

- Chamo-me Lena e vou contigo. Ai, está horrível a cidade. Morrem todos. Vamos embora, vamos embora!

Próximo do portão estava Roberto acaçapado e de mau humor. Ergueu-se de um salto e esbugalhou os olhos ao ver a rapariga. Desta vez não se submeteu logo à primeira; lamentou-se e fez cenas. Trazer uma pessoa daquele maldito antro pestilento e esperar que ele, Roberto, suportasse tal companhia, era mais do que loucura, era tentar a Deus, e ele recusava-se a acompanhá-los, tinha a paciência exausta.

Goldmundo deixou-o gemer e praguejar até sossegar um pouco mais.

- Bem - disse ele - já nos moeste suficientemente os ouvidos. Agora vens connosco e hás-de gostar da boa companhia. Ela chama-se Lena e fica comigo. Vou dar-te uma alegria, Roberto. Vamos viver um tempo em paz, saúde e segurança, afastamo-nos da pestilência. Procuramos um sítio bonito onde haja uma cabana ou se possa construir uma nova. Eu e Lena seremos os donos da casa e tu o nosso amigo hóspede. Vamos gozar um pouco de conforto e tranquilidade. De acordo?

Bem, bem, Roberto estava de acordo. Desde que não lhe exigissem que apertasse a mão à Lena ou lhe tocasse nos vestidos...

- Não - esclareceu Goldmundo - ninguém lhe exigia tal, pelo contrário, era rigorosamente proibido tocar em Lena com um dedo sequer. Nem ele se atrevesse!

Seguiram caminho os três, primeiro calados, mas depois, pouco a pouco, a rapariga começou a falar, a expandir o seu contentamento por tornar a ver céu, árvores e campos; a cidade era arrepiante e indescritível. Começou a contar o que lá vira, a libertar a alma daquelas imagens hediondas e abomináveis. Contou histórias medonhas, aquela cidadezinha devia ter sido um inferno. Dos dois médicos que lá habitavam, um tinha morrido e o outro só atendia os ricos; em certas casas os mortos apodreciam sem ninguém os enterrar, em outras, os cangalheiros tinham roubado e fornicado em crassa libertinagem e era frequente arrancarem das camas, à mistura com os cadáveres, doentes ainda vivos, que arrojavam para os carros e atiravam depois para a cova. Muita coisa horrível tínha para contar. Não a interromperam; Roberto ouvia horrorizado e ávido ao mesmo tempo, Goldmundo calado e indiferente, deixava-a libertar-se daqueles horrores e não dizia palavra. De resto, que havia ele de dizer? Por fim, Lena cansou-se, estancou-se a torrente de palavras. Goldmundo afrouxou o passo e entoou baixinho uma canção de muitas coplas; de umas para outras ia elevando mais a voz; Lena começou a sorrir e Roberto ouvia-o enlevado e profundamente surpreendido. - Nunca, até aquele dia, o ouvira cantar. Tudo aquilo Goldmundo sabia, até cantar, era espantoso! Cantava com arte e com uma voz pura, mas abafada. Lena, na canção seguinte, começou a trautear baixinho e não tardou a acompanhá-lo em voz alta. Era o fim da tarde; ao longe, para lá da charneca, negrejavam florestas e, ao fundo, recortavam-se montanhas azuis e pouco altas que pareciam, por si próprias, azular-se cada vez mais. O canto soava ora alegre ora solene segundo o ritmo do compasso.

- Estás hoje tão satisfeito - disse Roberto.

- Pudera, não havia de estar; encontrei uma companheira tão linda! Ai Lena, ainda bem que os cangalheiros te deixaram para mim. Amanhã havemos de encontrar poiso para passar uma rica vida e dar graças por termos ainda a carne e os ossos no seu lugar. Lena, viste alguma vez na floresta, pelo Outono, um cogumelo graúdo e comestível, muito apreciado pelos caracóis?

- Vi sim - disse ela rindo - muitas vezes.

- O teu cabelo é da mesma cor castanha e tem o mesmo aroma. Vamos a outra cantiga? Ou terás já fome? Na mochila ainda há de comer.

No dia seguinte encontraram o que procuravam. Num pequeno bosque de bétulas havia uma cabana de troncos de árvores, construída por lenhadores ou caçadores. Estava vazia e a porta facilmente se arrombava; o próprio Roberto achou que era uma bela choupana e um sítio salubre. De caminho, tinham encontrado um rebanho de cabras tres-malhado, sem pastor, e tinham agarrado uma delas.

- Bem, Roberto - disse Goldmundo - se não és marceneiro foste, em tempos, pelo menos carpinteiro. Vamos aqui morar e tens que fazer um tabique no nosso palácio para arranjarmos dois quartos, um para mim e para a Lena e outro para ti e para a cabra. Os víveres não são muitos, hoje temos que nos contentar com o leite de cabra, muito ou pouco. Tu constróis a parede e nós vamos arranjar as camas. Amanhã irei em busca de alimento.

Puseram logo mãos à obra. Goldmundo e Lena trouxeram mato, fetos e musgo para as camas e Roberto afiou a faca em pedregulho para cortar ripas para o tabique. Não conseguiu, contudo, acabá-lo no mesmo dia; nessa noite foi dormir ao ar livre. Goldmundo encontrou em Lena uma doce companheira, tímida e inexperiente, mas cheia de amor. Encostou-a suavemente ao peito; já ela tinha adormecido há muito, fatigada e saciada, e ainda ele permanecia acordado, sentindo-lhe bater o coração. Aspirou o cheiro dos cabelos castanhos e aconchegou-se a ela, pensando ao mesmo tempo na vala grande e pouco profunda, onde aqueles diabos disfarçados tinham lançado as carradas de mortos. A vida era bela, bela e efémera a felicidade, bela a juventude cedo emurchecida.

O tabique ficou muito bem feito; por fim, todos trabalharam nele. Roberto queria mostrar a sua arte e não se cansava de falar no que poderia fazer se tivesse um banco de carpinteiro e ferramenta, esquadro e pregos. Como só tinha a faca e as mãos contentou-se em cortar uma dúzia de tronquinhos de bétula com que fez um tapume firme e sólido implantado no chão da cabana. Vedariam com tojo entrelaçado os espaços entre as ripas. Levou tempo, mas foi agradável, e todos ajudaram um pouco. Entretanto, Lena encarregara-se de colher amoras e tratar da cabra e Goldmundo, em pequenas batidas, explorava a região e os arredores em busca de sustento, e sempre conseguia trazer qualquer vitualha. Não havia ninguém nas redondezas o que foi para Roberto motivo de grande satisfação; estavam assim livres de contágio e hostilidades; a única desvantagem era encontrar-se pouco que comer. Perto havia, abandonada, uma cabana de cultivadores, esta sem mortos; e Goldmundo propôs que a escolhessem para habitação em vez da cabana de troncos; mas Roberto recusou-se, arrepiado, e viu com maus olhos que Goldmundo penetrasse na casa deserta e de lá trouxesse utensílios, que tiveram primeiro de ser defumados e lavados antes de Roberto lhes tocar. Não foi grande coisa o que Goldmundo lá encontrou: dois escabelos, uma vasilha para leite, algumas peças de loiça de barro, um machado, e duas galinhas que descobriu um dia soltas no campo e agarrou. Lena andava apaixonada e feliz e todos tinham gosto em melhorar e alindar a cabana, de dia para dia. Faltava pão, mas em compensação arranjaram mais uma cabra e encontraram um campo de cenouras. Passados dias, estava pronta a parede encanastrada, estavam melhoradas as camas e tinham construído uma lareira. O riacho não ficava longe e a água era potável e clara; às vezes acompanhavam o trabalho com canções.

Um dia em que juntos bebiam o leite e gabavam aquela vida doméstica, Lena disse repentinamente com ar sonhador: - o que será de nós quando vier o Inverno? - Não lhe responderam. Roberto riu-se, Goldmundo lançou um olhar vago e estranho, perdido na distância. Lena percebeu então que nenhum pensava no Inverno, que não pensavam a sério em ficar muito tempo no mesmo lugar, que aquele poiso não era um lar, que eles eram vagabundos. Deixou pender a cabeça com desânimo. Goldmundo disse-lhe então, para a animar, em tom de brincadeira, como se consolam as crianças: - és filha de lavradores, Lena, de gente previdente e precavida. Não tenhas medo, voltarás para casa quando acabar a peste, isto não há-de durar eternamente. Vais depois para casa de teus pais ou de parentes ou tornas a ir servir para a cidade e ganhas o teu pão. Mas agora ainda é Verão, o país está todo assolado pela morte, e nós aqui estamos bem e de boa saúde. Ficaremos enquanto nos agradar, muito ou pouco tempo.

- E depois? - exclamou Lena arrebatadamente. - Depois acaba tudo? E tu vais-te embora? E eu?

Goldmundo agarrou-lhe a trança e puxou-a suavemente.

- Minha tontínha - disse ele - com que então já esqueceste os cangalheiros, as casas sem vida e a grande vala diante do portão, rodeada de fogueiras? Devias sentir-te feliz por não estar lá na vala com a chuva a cair-te em cima. Deves pensar que escapaste à morte, que sentes ainda a vida bela palpitando no teu corpo, e que podes ainda rir e cantar.

Lena não se deu por satisfeita.

- Mas eu não quero ir-me embora outra vez - gemeu ela - e não quero deixar-te partir, não quero. Não se pode ser feliz sabendo que tudo em breve passa e acaba.

Goldmundo respondeu-lhe afectuosamente, mas com uma vaga ameaça na voz:

- Olha Lenita, isso foí já o quebra-cabeças de sábios e de santos. Não há felicidade de longa dura. Se aquilo que agora temos te não basta nem te dá alegria, deito fogo neste mesmo instante à cabana e cada um segue o seu caminho. Deixa, Lena, já falámos demasiado.

E naquilo ficaram; ela submeteu-se, mas uma sombra toldara a sua alegria.

 

A vida na cabana teve um fim imprevisível, ainda antes de terminado o Verão. Um dia, Goldmundo vagueava pela região, munido de uma funda, na esperança de apanhar uma perdiz ou qualquer outra caça, pois os mantimentos escasseavam. Lena andava próximo a colher amoras; passava perto dela de quando em quando, via-lhe, por entre os arbustos, a cabeça e o pescoço moreno sobressaindo da camisa de linho ou ouvia-a cantar; aproximou-se dela uma vez para petiscar amoras, mas depois afastou-se mais e deixou de avistá-la por um tempo. Pensava nela, meio enternecido meio arreliado; Lena voltara a falar no Outono e no futuro, dizendo-lhe que estava grávida e que não o deixaria partir. Isto está a acabar, pensava ele, não tarda que esteja farto e me vá embora sozinho, separo-me também de Roberto; quero ver se até ao Inverno consigo chegar à cidade do mestre Nicolau; passo lá a estação fria e, na próxima Primavera, compro uns bons sapatos novos e ponho-me a caminho de Mariabronn para saudar Narciso; deve haver bem uns dez anos que o não vejo. Tenho que tornar a vê-lo por um dia ou dois que seja.

Um grito estranho despertou-o deste devaneio e, subitamente, fê-lo reconhecer que, em desejo e pensamento, já ali não estava, já se afastara. Escutou com atenção; o brado ansioso repetia-se e pareceu-lhe reconhecer a voz de Lena; acorreu nessa direcção, embora lhe desagradasse ser assim chamado aos gritos. Em breve se aproximou suficientemente - era realmente Lena que o chamava, presa de grande aflição. Correu célere, ainda um tanto arreliado, à medida que os gritos se repetiam, a arrelia cedeu ao cuidado e à compaixão. Quando, por fim, a avistou, estava ela sentada ou ajoelhada na charneca, com a camisa toda rasgada e em luta com um homem que a queria violentar. Goldmundo acercou-se a passos largos e toda a amargura, inquietação e tristeza que ultimamente sentira se descarregaram em louca fúria contra o autor do atentado. Surpreendeu-o no momento em que, abraçando vivamente Lena cujo peito desnudo sangrava, a ia prostrar. Goldmundo precipitou-se sobre ele e, com mãos furiosas, apertou-lhe a garganta magra, musculosa e coberta de barba lanzuda. Apertou mais e mais, com volúpia, até que o outro largou a rapariga e lhe ficou sem força nas mãos; continuando a estrangulá-lo, arrastou-o inânime e desfalecido até uns penhascos cinzentos que se erguiam escalvados da terra; aí levantou o inimigo vencido e bateu-lhe duas ou três vezes com a cabeça nas arestas do penedo. Arremessou então para longe o corpo com a cerviz fracturada; não tinha saciado ainda sua ira, teria podido maltratá-lo mais.

Lena assistira radiosa. O peito sangrava-lhe, tremia-lhe ainda o corpo e arquejava, mas levantou-se assim que pôde e viu, desvanecida de volúpia e admiração, o seu robusto amante arrastar o intruso, estrangulá-lo, quebrar-lhe a espinha e arremessá-lo para longe. O cadáver jazia agora, como cobra abatida, deslocado e flácido; a cara cor de cinza, com a barba desgrenhada e os ralos cabelos pendia-lhe lastimosamente para trás. Lena ergueu-se rejubilante e abraçou-se a Goldmundo, mas subitamente empalideceu, transida ainda do susto; sentiu-se mal e caiu exausta na erva. Pouco depois conseguiu recobrar forças para alcançar a cabana, apoiada a Goldmundo. Este lavou-lhe o peito arranhado e a ferida que os dentes do monstro tinham feito em um dos seios.

Roberto, fortemente emocionado com a aventura, tomou calor ao indagar os pormenores da luta.

- Quebraste-lhe o pescoço, dizes tu? És formidável, Goldmundo, és temível!

Mas Goldmundo não quis falar mais do caso, arrefecera-lhe a ira e, ao afastar-se do morto, lembrara-se inevitavelmente de Vítor, o salteador, e de que este era o segundo que morria pelas suas mãos. Para se descartar de Roberto disse-lhe: - Também tu podias fazer alguma coisa. Vai e vê se levas de lá o cadáver. Se for muito difícil fazer uma cova, terá que ser transportado até ao pântano ou coberto de pedras e terra. - A proposta foi rejeitada; Roberto não queria nada com cadáveres, sabia-se lá se não teriam alojada a peçonha da peste.

Lena tinha-se deitado na cabana. Doía-lhe a mordedura no peito. mas, dentro em pouco, sentiu-se melhor, tornou a levantar-se, acendeu o lume e ferveu o leite para a ceia; estava muito bem disposta, mas cedo foi mandada para a cama; obedeceu como um cordeirinho, tal era a sua admiração por Goldmundo. Este mantinha-se taciturno e sombrio; Roberto já o conhecia e deixou-o em paz. Quando Goldmundo, muito mais tarde, recolheu à sua camilha de mato, inclinou-se sobre Lena, que já dormia. Pensava em Vítor e sentia-se inquieto, ansioso e sedento de vida errante; pressentiu que chegava ao seu termo aquele brincar à vida doméstica. Uma coisa, porém, lhe dava especialmente que cismar. Tinha captado de relance a expressão de Lena, ao vê-lo sacudir e arremessar para longe o homem morto. Nunca esqueceria o olhar estranho dos olhos muito abertos, horrorizados e rejubilantes, brilhando de orgulho e triunfo, em tão profunda e apaixonada cumplicidade voluptuosa na vingança e na chacina, como nunca igual vira nem pressentira em rosto de mulher! Se não fosse esse olhar, talvez mais tarde, com o rodar dos anos, esquecesse a fisionomia de Lena. Mas aquele olhar tornara belo, grandioso e terrível o rosto da rapariguinha do campo. Havia meses que os seus olhos nada viam que fizesse palpitar nele o desejo de fixar pelo desenho o que quer que fosse. A expressão de Lena provocara-lhe novamente esse impulso, com uma espécie de terror.

Como não conseguiu adormecer acabou por levantar-se e sair da cabana. Estava fresco e uma aragem branda brincava nas bétulas. Andou para trás e para diante na escuridão, até que, sentado numa pedra, se afundou em meditação e profunda tristeza. Lamentava Vítor, lamentava aquele que hoje matara, deplorava a perdida inocência e candura da sua alma. Era para aquilo que tinha saído do convento, que deixara Narciso, ofendera mestre Nicolau e renunciara à bela Lisbeth - para ali acampar na charneca, andar à espreita de gado tresmalhado e chacinar nas pedras aquele pobre homem? Teria aquilo sentido, valeria a pena ser vivido? O coração confrangia-se-lhe com a absurda situação e o desdém de si próprio. Deixou-se cair para trás e ficou estendido, de costas, a contemplar as nuvens no céu nocturno; tanto as fitou, que se dissiparam os pensamentos; nem já sabia se estava contemplando as nuvens ou o mundo anuviado do seu íntimo.

Subitamente, no momento em que ia adormecer apoiado apareceu-lhe nas nuvens fugidias, como ao clarão de um relâmpago, um rosto enorme e pálido: o rosto de Eva, sombrio e velado, que, de repente, abriu os olhos enormes cheios de volúpia e crueldade, de maldade e crime. Goldmundo adormeceu e só acordou com o orvalho matinal. Ao outro dia Lena estava doente. Deixaram-na deitada, havia muito que fazer; Roberto tinha encontrado de manhã, na mata, dois carneiros que se lhe escaparam. Foi buscar Goldmundo e ambos os perseguiram e gastaram metade do dia para conseguir apanhar um dos animais; estavam muito cansados quando chegaram à noite com o bicho. Lena sentia-se muito mal. Goldmundo viu-a, examinou-a e encontrou-lhe bolhas de peste. Não disse nada, mas Roberto logo o suspeitou, quando soube que Lena continuava doente, e não quis ficar dentro da cabana. Procuraria lá fora um lugar para dormir - disse - e levava com ele a cabra, que podia também contagiar-se.

- Vai para o diabo que te leve - gritou-lhe Goldmundo furioso - não desejo tornar a ver-te. - Mas agarrou na cabra e levou-a com ele para detrás do tabique de tojo. Roberto sumiu-se, silenciosamente, sem a cabra; sentia-se mal, com medo da peste, medo de Goldmundo, medo da solidão e medo da noite. Deitou-se perto da cabana.

Goldmundo disse a Lena: - Não te aflijas Lena, fico contigo. Em breve estarás bem. Ela abanou a cabeça.

- Toma cuidado, Goldmundo, não apanhes tu também a doença, não deves chegar-te tanto a mim. Não tentes consolar-me. Tenho que morrer e prefiro a morte a ver um dia o teu lugar vazio a meu lado, a sentir-me abandonada. Todas as manhãs penso nisso, cheia de medo; não, prefiro morrer.

De manhã, já estava muito mal.

Goldmundo dera-lhe, de tempos a tempos, uns golos de água e dormira, ao todo, uma hora; à claridade do dia via-lhe no rosto, já murcho e desfigurado, nítidos indícios da morte próxima. Saiu por uns momentos para tomar ar e ver o estado do tempo. Na orla da floresta meia dúzia de troncos retorcidos e avermelhados brilhavam, tocados pelo sol, o ar fresco e doce, as colinas distantes estavam ainda escondidas pelas nuvens matinais. Andou um pedaço, espreguiçou os membros fatigados e respirou fundo. A vida era bela, naquela triste manhã. Em breve recomeçaria a vida errante. Só tinha que dizer adeus.

Roberto chamou-o da floresta. Se Lena estivesse melhor e se não fosse peste, ele ficava e Goldmundo que não se zangasse, tinha entretanto guardado a ovelha.

- Vai para o diabo mais a tua ovelha - gritou-lhe Goldmundo. Lena está a morrer e eu também estou contagiado.

A segunda parte era mentira, dizia-o para se livrar de Roberto. Era bom rapaz, mas Goldmundo estava farto dele, revelara-se demasiado cobarde e mesquinho, destoava daqueles tempos de convulsão e destino. Roberto afastou-se e nunca mais apareceu. O sol erguia-se claro.

Quando voltou para junto de Lena, ela dormia. Goldmundo também adormeceu e, em sonhos, viu o seu cavalo Bless e o lindo castanheiro; era como se, de ermas e longes terras, olhasse para trás, para a pátria bela e perdida; quando acordou corriam-lhe lágrimas pela cara e pela barba loira. Ouviu Lena falar em voz sumida; julgou que o chamava e ergueu-se no leito, mas ela não falava com ninguém, balbuciava apenas palavras de carícia ou de injúria, ria-se um pouco, de vez em quando, suspirava profundamente, engolindo com esforço e, pouco a pouco, sossegava. Goldmundo levantou-se, debruçou-se sobre a face desfigurada e seguiu, com amarga curiosidade, as linhas daquele rosto que, sob o hálito calcinante da morte, se contorciam e desfiguravam lastimosamente. Querida Lena - gritava-lhe o coração - minha boa, querida amiga, também tu me queres abandonar? Também tu estás farta de mim?

De bom grado teria fugido. Que bom seria andar, caminhar, respirar fundo, fatigar-se e ver novos espectáculos, talvez assim aliviasse a sua profunda angústia. Mas não era possível, não podia deixar a pobre morrer ali sozinha. Já quase mal se atrevia a sair, de tempos a tempos, para respirar um pouco de ar fresco. Como Lena não tomava mais leite, bebeu-o ele todo até se saciar, nada mais tinha, de resto, para comer. Levou também a cabra algumas vezes a pastar, beber água e mexer-se. Depois voltava para a cabeceira de Lena, murmurava-lhe palavras de carinho e, de olhos invariavelmente fixos no rosto dela, assistia inconsolável, mas atento, à sua agonia. Lena estava lúcida; às vezes adormecia e, quando acordava, só entreabria os olhos, tão enfraquecidas e cansadas estavam as pálpebras. Em torno dos olhos e do nariz envelhecia de hora para hora e o colo fresco e juvenil em breve ficou encimado por um rosto murcho de avó. Raro dizia qualquer palavra: Goldmundo, ou querido, procurando humedecer com a língua os lábios roxos e entumecidos. Goldmundo dava-lhe então umas gotas de água.

Morreu na noite seguinte, sem um queixume; teve uma breve convulsão, a respiração parou e percorreu-lhe a pele um arrepio que fez estremecer o coração de Goldmundo; lembrou-se dos peixes moribundos, que tantas vezes vira e lastimara no mercado; era assim também que eles morriam, com um sobressalto e um ligeiro e doloroso calafrio, que lhes corria pela pele, arrebatando a vida e o fulgor. Ajoelhou-se ainda ao lado de Lena e depois foi para o ar livre sentar-se nas moitas de urze. Lembrou-se da cabra, trouxe para fora da cabana o animal que se retouçou à vontade, até que se deitou na terra. Goldmundo deitou-se junto dela com a cabeça apoiada ao seu flanco e adormeceu até chegar o dia. Entrou pela última vez na cabana e, por detrás do tabique encanastrado, contemplou pela derradeira vez o pobre rosto da morta. Repugnava-lhe deixá-la assim. Foi apanhar braçadas de mato e galhos secos que atirou para dentro da cabana largando-lhes fogo. Da cabana não levou senão o fuzil. O tabique de tojo rapidamente se pôs em chamas. Goldmundo ficou de fora, com o rosto chamuscado, até o tecto se incendiar e caírem as primeiras estacas. A cabra pulava e gemia, assustada. Teria sido sensato matar o bicho e assar um pedaço de carne para cobrar forças para a jornada. Mas não teve coragem; soltou-a na charneca e foi-se embora. O fumo do incêndio perseguia-o até à floresta. Nunca começara uma jornada em tão profunda desolação.

E, contudo, o que o esperava era ainda pior do que pensara. Começou logo nas primeiras povoações e quintas, e continuou de mal a pior à medida que ia avançando. Toda a região, todo o vasto país, estava sob uma nuvem de morte, sob um véu de pavor, terror e demência; o pior não eram as casas desertas, os cães mortos de fome apodrecendo presos às correntes, os mortos sem sepultura, as crianças mendigas, as valas diante das cidades. O pior eram os vivos que, sob o fardo do susto e terror da morte, pareciam ter perdido os olhos e a alma. Coisas estranhas e arrepiantes por toda a parte se deparavam ao viandante. Pais que abandonavam os filhos quando eles adoeciam e maridos que abandonavam as mulheres; cangalheiros que imperavam como verdugos, pilhando as casas vazias e, segundo o seu capricho, ora deixando os mortos por enterrar ora arrancando dos leitos para dentro dos carros mortuários os que ainda tinham vida. Havia fugitivos aterrados, vagueando solitários e bravios, evitando todo o contacto com seres humanos, acossados pelo medo da morte. Outros, em exacerbado desejo de vida, associavam-se para beber ou para banquetear-se em festins, danças e orgias, acompanhados ao som da música que a morte lhes tocava. Outros, maltrapilhos, enlutados e blasfemos, agachavam-se, de olhos desvairados, diante dos cemitérios ou das casas despovoadas. E, pior do que tudo: todos procuravam um bode expiatório, sobre quem descarregar a intolerável desolação; todos julgavam conhecer os malvados da epidemia, os seus maléficos causadores. Dizia-se que gente demoníaca tratava de propagar o mal com maligna satisfação, indo buscar aos cadáveres a pestilente peçonha com que untavam paredes e aldrabas de portas, inquinavam fontes e envenenavam gado. Quem viesse a ser suspeito destas abominações estava perdido, se não fosse a tempo de fugir; era condenado à morte, pelas autoridades ou pelo povo. Por outro lado, os ricos deitavam as culpas aos pobres e, inversamente, os pobres aos ricos; ou então os culpados eram os judeus, os italianos, ou os médicos. Goldmundo assistiu enfurecido, numa cidade, ao incêndio das casas de uma rua inteira, habitada por judeus; em volta o povo fazia grande alarido e os pobres que, aos gritos, tentavam fugir eram repelidos a poder de armas para dentro do fogo. Na demência do terror e da amargura, por toda a parte se matavam, queimavam e torturavam inocentes. Goldmundo assistia com furor e náusea ao que se passava, o mundo parecia destruído e envenenado, parecia ter desaparecido da vida a alegria, a inocência e o amor. As vezes fugia para os brutais festins dos sequiosos de vida; por toda a parte soava o violão da morte e, em breve, aprendeu a conhecer-lhe o som; ora tomava parte nas desesperadas orgias, ora as acompanhava, tocando alaúde e dançando, ao clarão de archotes de pez, por noites de delírio.

Medo não tinha. Já provara o medo da morte, outrora: naquela noite de Inverno, debaixo dos abetos, quando os dedos de Vítor lhe estrangulavam a garganta, e em certos dias de jornada, esfomeado, sob a neve. Era uma morte com que podia lutar-se, contra a qual era possível defender-se; Goldmundo defendera-se, com mãos e pés trémulos, com estômago hiante, com membros exaustos, e tinha vencido e escapado. Mas a morte pela peste não admitia luta, era deixá-la bramir e resignar-se, e Goldmundo há muito que se resignara. Medo não tinha, a vida parecia-lhe não valer a pena ser vivida, desde que deixara Lena na cabana em chamas, desde que, dia após dia, caminhava por aquele país devastado pela morte. Espicaçava-o, contudo, uma insaciável curiosidade que o mantinha vigilante; não se cansava de contemplar a acção da grande mondadeira, de ouvir a melodia da transitoriedade; em parte alguma a evitou, tocado sempre pela serena paixão de presenciar o espectáculo, de atravessar o inferno de olhos bem abertos. Comeu pão bolorento em casas mortas, cantou e bebeu vinho nos loucos festins, colheu a flor fanada do prazer, viu os olhos fixos e alucinados das mulheres, os olhos fixos e emparvecidos dos ébrios, e os olhos mortiços dos moribundos; amou as mulheres desesperadas e febris, ajudou, por um prato de sopa, a transportar cadáveres, por dez réis, a deitar terra por cima de cadáveres nus. O mundo era treva e desvario, a morte cantava, uivante, a sua melopeia. Goldmundo, com ardente paixão, escutava-o atentamente.

O alvo visado era a cidade do mestre Nicolau, para lá o impelia a voz do coração. Era longa a jornada, juncada de morte, caducidade e agonia. Percorreu tristemente o caminho, embriagado pela mortal canção, entregue ao clamoroso sofrimento, triste e todavia ardente e de sentidos alerta.

Em um mosteiro viu uma pintura mural, de recente composição, que demoradamente contemplou. Representava uma dança macabra: a morte, sob a forma de lívido esqueleto, conduzia para fora da vida, dançando, o rei, o bispo, o abade, o conde, o cavaleiro, o médico, o camponês e o lansquenete; levava-os a todos, e outros músicos esqueletos a acompanhavam, tangendo ossos vazios. Os olhos curiosos de Goldmundo absorveram ávidos aquela imagem. Um colega desconhecido tirara a moral da experiência da morte negra e clamava estridentemente a cruel prédica da inelutável condição efémera. Era bom o quadro, era um bom sermão; o colega desconhecido não executara mal a obra: era cruel a sua visão, tinha arrepiantes ressonâncias de ossadas. Mas não era aquilo o que ele, Goldmundo, tinha visto e sentido. Estava ali representado o terror de morrer, a lei severa, implacável e irremissível. Goldmundo, porém, teria evocado outra imagem, era muito diferente para ele o som infausto da melopeia da morte; não era macabra dança de esqueletos, era antes suave, sedutora e maternalmente aliciante. Onde quer que a morte estendesse o seu domínio sobre a vida, não era somente estrídula e bélica a sua ressonância, era também profunda e cheia de amor, outonal e saciada; a candeiazinha da vida ardia mais clara e fulgida na vizinhança da morte. Podia, para outros, ser guerreiro, juiz, verdugo ou pai severo - para ele, era também mãe e amada, o seu apelo era um desafio de amor, o seu contacto um frémito de volúpia. Depois de ter contemplado o fresco que representava a dança macabra, Goldmundo seguiu, com renovado impulso, o caminho que o levaria ao mestre Nicolau e à criação artística. Mas, por toda a parte, havia paragens, novas cenas e vivências; aspirava com narinas palpitantes a atmosfera mortal; a compaixão ou a curiosidade exigiam-lhe dias ou horas. Durante três dias levou consigo um rapazito choramingão, filho de camponeses, de uns cinco ou seis anos de idade, meio morto de inanição, com quem andou horas inteiras às costas, que o meteu em trabalhos, e de quem dificilmente se libertou. Por fim, a mulher de um lenhador tomou conta do pequeno, tinha-lhe morrido o marido e queria sentir à sua volta um ser vivente. Dias e dias andou Goldmundo acompanhado por um cão sem dono, que lhe comia da mão e o aquecia quando dormia mas, certa manhã, perdeu-se e desapareceu. Teve pena, tinha-se habituado a falar com o bicho, dirigia-lhe discursos e lucubrações sobre a maldade dos homens, sobre a existência de Deus, sobre a arte, sobre os seios e as ancas da jovem filha de um cavaleiro, chamada Júlia, que conhecera outrora na sua juventude. Como era natural, Goldmundo ficara um pouco louco na sua peregrinação pelo país da morte, toda a gente, na região onde grassava a peste, estava algo demente e alguns tinham perdido por completo o uso da razão. Meio louca, também, estava a jovem judia chamada Rebeca, uma bela morena de olhos flamejantes, com quem Goldmundo perdeu dois dias.

Encontrou-a no campo, defronte duma cidade, agachada diante dum montão negro e calcinado, a chorar, a bater no rosto e a puxar os cabelos negros. Goldmundo teve pena dos cabelos tão belos; agarrou-lhe as mãos enfurecidas, segurou-as, e animou-a com boas palavras, reparando então que também o rosto e o corpo eram de grande formosura. Rebeca chorava o pai que, com mais catorze judeus, tinha sido queimado, por ordem das autoridades; ela conseguira fugir, mas voltara para trás, desesperada, acusando-se por não se ter deixado queimar juntamente com os outros. Goldmundo segurou-lhe pacientemente as mãos convulsas, consolou-a suavemente, rabujou compassivo e protector e ofereceu-lhe a sua ajuda. Ela pediu-lhe que a auxiliasse a enterrar o pai; juntaram os ossos na cinza ainda quente e levaram-nos para o meio do campo, onde os cobriram com terra em lugar escondido. Entretanto anoitecera e Goldmundo procurou lugar para dormir; arranjou num bosquezinho de cavalos uma camilha para a rapariga, prometeu-lhe ficar de vela e, depois de deitada, ouvia-a chorar e soluçar, até que, por fim, adormeceu. Mais tarde também ele dormiu um pouco e, na manhã seguinte, começou a requestá-la. Disse-lhe que não podia ficar assim sozinha, que a reconheceriam por judia e a matariam, que vagabundos brutais abusariam dela, e que a floresta estava inçada de lobos e de ciganos. Com ele estaria protegida dos lobos e dos homens; lamentava-a, gostava dela, tinha olhos na cara e sabia o que era beleza, nunca permitiria que aquelas pálpebras expressivas e aqueles ombros encantadores fossem pasto de feras ou queimados em fogueira. Ela ouviu-o com ar sombrio, ergueu-se e deitou a fugir. Teve que persegui-la e agarrá-la, antes de continuar a expor-lhe as suas razões.

- Rebeca - disse - bem vês que é para teu bem. Estás amargurada, lembras-te de teu pai, não queres, agora, pensar em amor, mas amanhã ou mais tarde, tornarei a interrogar-te e, até lá, protejo-te, trago-te o sustento e não te toco. Entrega-te à tua tristeza o tempo que quiseres. Comigo poderás sempre estar triste ou alegre, poderás sempre fazer o que te der maior satisfação.

Mas todas as palavras foram baldadas. Não queria satisfação nenhuma, disse ela irritada e furiosa, só queria sofrer, nunca mais pensaria em alegrias e, quanto mais depressa os lobos a comessem, melhor. Ele que se fosse embora, nada havia a fazer, já tinham falado demais.

- Olha, Rebeca - disse ele - não vês que por toda a parte reina a morte, que se morre em todas as casas e cidades, que tudo está cheio de desolação. A fúria da gente estúpida, que lançou o teu pai à fogueira, não é mais do que desolação e miséria, provém só do excesso de sofrimento. Repara: também a morte nos virá buscar em breve, ficaremos a apodrecer no campo e a toupeira brincará com os ossos. Antes disso, vamos viver e amar. Ai, que pena perder-se o teu branco colo e o teu pé pequenino! Linda, querida, vem comigo, não te toco, só quero ver-te e cuidar de ti.

Suplicou insistentemente, mas sentiu que era inútil pretender conquistá-la por palavras e argumentos. Calou-se e olhou-a com tristeza. O rosto dela, altivo e majestoso, estava rígido de recusa.

- Aí está como vocês são - disse, por fim, com voz vibrante de ódio e desdém; - aí está como são vocês todos, os cristãos! Primeiro ajudas uma filha a enterrar um pai que a tua gente assassinou e de quem um só dedo valia mais do que tu; depois, mal ele está enterrado, logo a filha havia de pertencer-te e juntar-se contigo. Aí está como vocês são! Julguei que eras boa pessoa; mas era lá possível! Ui, porcos é o que vocês são!

Goldmundo viu-lhe brilhar nos olhos, para além do ódio, algo que o comoveu e envergonhou. Viu-lhe a morte nos olhos; não a morte como fatalidade, mas a livre decisão de morrer, não o ter-de-morrer, mas o querer-morrer, a serena entrega ao apelo da mãe telúrica.

- Rebeca - disse ele baixinho - talvez tenhas razão, não sou bom, embora quisesse o teu bem. Perdoa-me, só agora te compreendo.

Tirou a boina, dirigiu-lhe uma profunda vénia, como a uma princesa, e afastou-se consternado; tinha que a deixar morrer. Por largo tempo ainda, andou perturbado e sem dar palavra a ninguém. Embora aquela pobre rapariga judia pouco se parecesse com Lídia, a filha do cavaleiro, qualquer semelhança as aproximava. O amor por aquelas mulheres trazia sofrimento. Pareceu-lhe contudo, durante algum tempo, que nunca amara senão aquelas duas, a pobre Lídia timorata e a judia esquiva e amargurada. Muitos dias, ainda, pensou na rapariga morena e ardente, e várias noites sonhou com a beleza esbelta escaldante daquele corpo, destinado à plenitude florescente e, afinal, sacrificado à morte. Era horrível pensar que aqueles seios ficariam a apodrecer no meio dos campos! Não haveria sortilégio algum que salvasse aquelas flores preciosas? Havia, sim: continuariam a viver na sua alma conservadas e fixadas por ele. Cheio de terror e enlevo, sentiu a alma plena de imagens, gravadas no seu íntimo durante a longa travessia do país da morte. Aquele acervo de figuras desgarrava-lhe o coração e ansiava por concentrar-se e deixá-lo expandir e transmutar-se em obras duradoiras. Avançava com mais ardor e ansiedade, sempre de olhos atentos e sentidos curiosos, mas cheio da veemente nostalgia do papel, lápis, barro e madeira, da oficina e do trabalho.

O Verão passara. Muitos asseguravam que, com o Outono ou pelo menos com o início do Inverno, acabaria o mal. Foi um triste Outono. Goldmundo atravessou regiões onde não havia quem colhesse a fruta, que caía das árvores e apodrecia no solo; em alguns lugares era pilhada e desperdiçada por hordas selvagens, que vinham das cidades em brutais incursões.

Ia-se aproximando lentamente da sua meta e, naqueles últimos tempos, muitas vezes o acometera o medo de apanhar a peste, de sucumbir para ali em qualquer curral, antes de chegar ao fim da jornada. Não queria morrer agora, não queria morrer antes de ter gozado a ventura de se sentir outra vez na oficina, entregue ao trabalho criador. Pela primeira vez na vida parecia-lhe o mundo demasiado vasto e o império germânico demasiado grande. Nenhuma cidadezinha o tentava a descansar, nenhuma louçã camponesa o prendia além de uma noite.

Certa vez, passou por uma igreja, cujo portal era adornado por antiquíssimas estatuetas de pedra, dentro de nichos profundos erguidos sobre colunelos: eram figuras de anjos, apóstolos e mártires, semelhantes a muitas que já vira; no seu mosteiro, em Mariabronn, também as havia. Outrora, quando adolescente, tinha-as contemplado com prazer, mas sem paixão; pareciam-lhe belas e venerandas, mas demasiado solenes, hirtas e arcaicas. Mais tarde, no termo da sua primeira grande época de peregrinação, sentira-se tão comovido e arrebatado diante da doce e triste madona do mestre Nicolau, que considerara aquelas solenes estátuas da era francónia demasiado pesadas, rígidas, distantes; olhara-as com certa sobranceria, vendo no novo estilo do mestre uma arte muito mais viva, animada e fervorosa. Hoje, porém, que voltava da nova peregrinação pelo mundo com a alma recheada de imagens e retalhada de cicatrizes, marcado pelas violentas aventuras e vivências, preso da dolorosa ânsia de concentração e criação, aquelas severas e antiquíssimas figuras comoviam-no com súbita e irresistível força. Parou com unção diante das venerandas imagens de uma época revoluta, pelas quais, terrores e deslumbramentos de gerações há muito desaparecidas, após séculos ainda, desafiavam, petrificadas, a transitoriedade. No seu coração conturbado elevou-se um fremente e humilde sentimento de profunda veneração e um horror à sua vida desperdiçada e queimada. Fez o que há tempos infindos não fazia; procurou um confessionário para confessar-se e submeter-se a um castigo.

Embora houvesse confessionários naquela igreja, em nenhum havia sacerdote; tinham morrido uns, estavam outros no hospital, outros ainda tinham fugido receando o contágio. Na igreja despovoada os passos de Goldmundo ressoavam cavos sob as abóbadas. Ajoelhou diante dum confessionário, fechou os olhos e murmurou para dentro de um dos locutórios: - Meu Deus, vede o que foi feito de mim. Venho do mundo, onde me tornei um homem mau e inútil, desperdicei como perdulário os meus anos de juventude e pouco me resta. Matei, roubei, forniquei, andei à boa vida e comi o pão dos outros. Meu Deus, porque nos fizeste assim, porque nos conduzes por tais caminhos? Não somos teus filhos? Não morreu por nós o teu filho? Não há santos e anjos para nos guiarem? Ou tudo isso são histórias da carochinha, fábulas inventadas para as crianças e de que os próprios padres se riem? Não te compreendo, Deus pai, criaste um mundo mau e não o manténs em ordem. Vi casas e ruas juncadas de mortos, vi os ricos entrincheirarem-se nas suas casas ou fugirem, os pobres deixarem os irmãos sem sepultura, vi-os suspeitarem uns dos outros e matarem os judeus como quem dizima gado. VI morrer e sofrer tantos inocentes, e tantos criminosos nadar num mar de rosas. Esqueceste-nos e abandonaste-nos completamente? Estás assim tão desgostoso da tua obra? Queres deixar-nos a todos sucumbir?

Saiu pelo alto portal e, suspirando, olhou as silenciosas estátuas de anjos e de santos, descarnadas e altas sob os seus trajos de pregas hirtas, imóveis, inacessíveis, sobre-humanas e, contudo, formadas pela mão e pelo espírito do homem. Erguiam-se lá no alto sobre a escassa base, severas e surdas, fora do alcance de qualquer súplica ou postulação. No entanto, assim sobrevivendo em atitude bela e digna às gerações sucessivamente desaparecidas, significavam consolação infinita, triunfante vitória sobre a morte e o desespero. Oxalá ali estivesse também a pobre Rebeca, a pobre Lena incinerada na cabana, a bela Lídia e o mestre Nicolau! Mas estariam um dia e perdurariam; ele as ergueria, e estas imagens, para ele agora amor e tortura, angústia e paixão, seriam mais tarde, para os vindouros, serenos e silenciosos símbolos da vida humana sem nome e sem história.

 

Estava finalmente alcançada a meta e Goldmundo entrou na almejada cidade pela mesma porta de outrora, por onde, há tantos anos, entrara pela primeira vez em procura do mestre. Várias notícias lhe tinham chegado da cidade episcopal, à medida que se aproximava; sabia que também lá grassara e talvez grassasse ainda a peste, ouvira falar em distúrbios e insurreições populares, e tinham-lhe dito que o imperador mandara para lá um governador para promover a ordem, proclamar leis de emergência e proteger a vida e bens dos cidadãos. O bispo abandonara a cidade logo que se declarara a epidemia e residia longe, em um dos seus palácios no campo. Essas notícias pouco o tinham impressionado; conquanto a cidade estivesse de pé e as oficinas onde queria trabalhar! Nada mais lhe importava. Quando chegou, já a epidemia acabara. Esperavam o regresso do bispo e todos se regozijavam com a saída do governador imperial e o regresso à vida habitual e pacífica. Ao tornar a ver a cidade o coração de Goldmundo foi invadido por uma onda de emoção até então nunca sentida; fez uma cara desacostumadamente severa para se dominar. Tudo estava ainda no seu lugar: as portas, o belo marco fontanário, as rorres, a antiga e maciça da catedral e a moderna e esbelta da igreja de Santa Maria, o alegre repique dos sinos de S. Lourenço e a vasta e luminosa praça do mercado! Que bom que tudo aquilo tivesse esperado por ele! Quando vinha a caminho, não sonhara que chegaria lá e encontraria tudo estranho e modificado, parte destruída e em ruínas, parte irreconhecível por novas construções e insólitas e desagradáveis inovações? Tinha os olhos marejados de lágrimas reprimidas ao percorrer as ruas, reconhecendo casa por casa. Não seriam, afinal, dignos de inveja os burgueses, nas suas bonitas casas protegidas, na sua vida resguardada, no sentimento apaziguante e reconfortante da posse de um lar, de morarem no que era seu, na casa e na oficina, entre a mulher e os filhos, os criados e a vizinhança?

Ao cair da tarde, as casas, as tabuletas das estalagens e corporações, as portas lavradas e os vasos de flores do lado ensoalhado da rua, estavam envoltos em uma poalha de luz quente. Nada fazia lembrar que aquela cidade também tinha sido assolada pela fúria da morte e a louca angústia dos homens. O rio transparente e cristalino corria em tons frescos de verde e azul-claro sob as arcadas ressoantes da ponte; Goldmundo sentou-se no parapeito do muro, da margem de onde se viam deslizar os peixes, escuros como sombras, ou parar, imóveis, de bocas voltadas contra a corrente, lá em baixo no verde cristal; reluziam como sempre, aqui e além, na penumbra do fundo das águas, as cintilações doiradas tão promissoras e propícias ao devaneio. Também em outras águas se viam, outras pontes e cidades eram igualmente belas e prazenteiras e, contudo, parecia a Goldmundo que, há muito, não via nada igual nem sentia nada de semelhante.

Dois moços de talho levavam a reboque um vitelo e trocavam olhares e gracejos com uma criada, que apanhava roupa num caramanchão. Como tudo passava célere! Há pouco, ainda, tinham ali ardido as fogueiras da peste e tinham imperado os abomináveis cangalheiros; agora, já a vida continuava, já havia risos galhofeiros e gracejos; e, não se daria com ele exactamente o mesmo? Ali estava exultante pelo regresso, penetrado de gratidão, dando até aos burgueses um lugar no seu coração, como se não tivesse conhecido a miséria e a morte, nem Lena, nem a princesa judia. Levantou-se sorrindo e continuou a andar; quando se aproximou da rua de mestre Nicolau, seguindo o mesmo caminho que outrora percorria diariamente para ir ao seu trabalho, começou a sentir o coração opresso e inquieto. Estugou o passo, queria apresentar-se hoje ainda ao mestre e saber o que o esperava, não suportava mais detença, não podia esperar pelo dia seguinte. O mestre ainda estaria zangado com ele? Passara já tanto tempo sobre o caso que não era possível que tivesse ainda importância e, de qualquer modo, saberia vencer. Conquanto lá estivesse o mestre e a oficina, pelo resto respondia ele. Apressado, como se à última hora pudesse ainda perder por chegar tarde, encaminhou-se para a casa tão sua conhecida, agarrou a aldraba da porta e assustou-se fortemente ao notar que a porta estava fechada. Seria mau sinal? Nunca, antigamente, aquela porta estivera fechada enquanto era dia claro. Deixou cair a aldraba com estrondo e esperou. Sentia-se subitamente possuído de profunda ansiedade.

Apareceu a mesma velha que o recebera outrora, quando, pela primeira vez, entrara naquela casa. Mais feia não estava, mas ainda mais velha e mal encarada e não reconheceu logo Goldmundo. Este perguntou pelo mestre com voz ansiosa. Ela fitou-o com ar estúpido e desconfiado.

- Mestre? Não há aqui nenhum mestre. Siga o seu caminho, homem, não entra aqui ninguém.

Queria empurrá-lo para fora da porta; Goldmundo agarrou-a por um braço e berrou:

- Por amor de Deus, Margreta, responde-me. Sou o Goldmundo, já não me conheces? Tenho que falar ao mestre Nicolau.

Nos olhos cansados e mortiços não lampejaram boas-vindas.

- Não há aqui nenhum mestre Nicolau - disse ela rebarbativa - já morreu. Ande lá, vá-se embora, que eu não posso estar aqui a dar à língua.

Goldmundo sentiu que tudo se desmoronava no seu íntimo; empurrou a velha, que se pôs a correr atrás dele, e precipitou-se em direcção à oficina pelo corredor escurecido. Estava fechada. Seguido pelas lamúrias e impropérios da mulher subiu a correr a escada até à sala tão sua conhecida, onde, na semi-obscuridade, viu as figuras coleccionadas pelo mestre. Chamou em voz alta pela menina Lisbeth.

A porta do quarto abriu-se e Lisbeth apareceu. Quando a reconheceu - não foi logo à primeira vista - ficou confrangido com a visão que se lhe deparava. Se tudo naquela casa embruxada e fantástica lhe parecera angustioso pesadelo desde o momento em que, assustado, encontrara fechada a porta, agora, ao ver Lisbeth, percorreu-o, realmente, um calafrio; a bela e altiva Lisbeth transformara-se em uma velha alcachinada e amedrontada, de rosto amarelo e doentio, de olhar assustadiço e gesto inseguro, vestida de preto sem nenhum adorno.

- Perdoai - disse ele - Margreta não me queria deixar entrar. Não me reconheceis? Sou o Goldmundo. Dizei-me se é verdade que o vosso pai morreu?

A expressão dela revelou que o estava a reconhecer e que a recordação não lhe era grata.

- Sois Goldmundo? - disse, e na voz distinguiam-se vestígios da antiga arrogância. - Em vão vos incomodastes a vir até aqui. Meu pai morreu.

- E a oficina? - exclamou impensadamente.

- A oficina? Está fechada. Se é trabalho que procurais, tereis que ir bater a outra porta.

Tentou reagir.

- Menina Lisbeth - disse cordialmente - não procuro trabalho, vinha só saudar-vos a vós e ao mestre. Desola-me profundamente o que acabo de saber! Vejo que passastes um mau bocado. Se a gratidão de um discípulo de vosso pai vos pode ser de algum préstimo, dizei, teria a maior satisfação em poder ser-vos útil. Corta-me o coração ver-vos imersa em tão fundo pesar.

Lisbeth recolheu-se para dentro do quarto.

- Obrigada - disse hesitante - não lhe podereis prestar nenhum serviço e a mim também não. Margreta acompanha-vos à porta.

A voz dela soava a falso, entre irritada e receosa. Goldmundo sentiu que só lhe faltara a coragem para o pôr na rua injuriosamente.

Já estava na rua, já a velha fechara a porta e correra as trancas. Ouviu o choque áspero das duas trancas, que lhe pareceu o bater da tampa de um caixão.

Voltou devagar para o muro, à beira-rio, e sentou-se no lugar costumado. O sol já se tinha posto, da água subia uma aragem fria e fria era a pedra onde se sentara. A ruela marginal estava silenciosa, a torrente marulhava nos arcos da ponte e no fundo do rio escuro nenhuma cintilação doirada reluzia. Oh! - pensou ele - quem me dera deixar-me cair e desaparecer para sempre no rio! O mundo estava outra vez cheio de morte. Passou uma hora e a noite sucedeu ao crepúsculo. Goldmundo, sentado no parapeito, chorou; as lágrimas caíam-lhe escaldantes sobre as mãos e os joelhos. Chorava o mestre falecido, chorava a beleza perdida de Lisbeth, chorava Lena, Roberto e a jovem judia, chorava a sua juventude esbanjada e emurchecida.

Mais tarde visitou uma taberna onde, antigamente, várias vezes abancara com companheiros, a beber um copo de vinho. A patroa reconheceu-o; Goldmundo pediu-lhe uma fatia de pão e ela, amavelmente, deu-lhe além disso um copo de vinho; mas, nem uma nem outra coisa conseguiu engolir. Passou a noite deitado num banco da taberna. Quando a patroa o acordou de madrugada, agradeceu-lhe e foi-se embora; só a caminho comeu a fatia de pão.

Dirigiu-se para o mercado do peixe, para a casa onde tivera outrora o quarto. Ao lado da ponte, as peixeiras ofereciam a sua mercadoria viva e Goldmundo olhou para as celhas e para os lindos peixes luzidios. Tantas vezes, em outros tempos, contemplara aquele espectáculo e tantas vezes tivera dó dos peixes, furioso com as peixeiras e os compradores. Recordou aquela vez em que deambulara por ali muito triste, a admirar os peixinhos e a encher-se de compaixão; desde então, quanto tempo já passara, quanta água correra debaixo das pontes! Lembrava-se que se sentira muito triste nessa ocasião, mas já não sabia porquê. Até a tristeza era transitória, até as dores e os desesperos se desvaneciam; tal como as alegrias, passavam, empalideciam, perdiam a intensidade e o valor, até ao momento em que já não era possível lembrar algo, outrora tão doloroso. Também as dores murchavam. Murcharia um dia e perderia o valor a sua mágoa actual, o desespero pelo desaparecimento do mestre, que morrera zangado com ele, a revolta pela falta de uma oficina onde pudesse gozar a ventura da criação artística e descarregar da alma o peso das imagens. Aquela dor, aquela amarga aflição, também envelheceria e se esgotaria, seria sem dúvida esquecida. Nem sequer o sofrimento era duradoiro.

Enquanto olhava fixamente para os peixes, absorto nestas reflexões, ouviu uma voz suave e afectuosa pronunciar baixinho o seu nome.

- Goldmundo - exclamava tímida; quando ele se voltou encontrou-se diante de uma rapariguinha franzina, com ar doentio e lindos olhos escuros. Não a reconheceu.

- Goldmundo! És tu, não és? - dizia a voz tímida. - Há quanto tempo voltaste à cidade? Não me conheces já? Sou a Maria.

Mas Goldmundo não a reconhecia. Ela teve que explicar-lhe que era a filha dos seus hospedeiros e que, na madrugada em que ele partira, lhe tinha fervido leite para ele tomar. Ruborizou-se ao contar isto.

Era então a Maria, a criança franzina da perna doente, que, em tempos, tinha sido tão cuidadosa com ele, tão amorável e tímida. Lembrava-se agora de tudo: tinha esperado por ele naquela fria madrugada, triste por ele se ir embora, tinha fervido leite para ele beber e despedira-se dela com um beijo, recebido imóvel e solenemente, como se fosse um sacramento. Nessa altura era ainda uma criança. Agora, crescera e possuía uns lindíssimos olhos, mas ainda coxeava e tinha um ar fatigado. Deu-lhe a mão. Foi para Goldmundo uma alegria que alguém, naquela cidade, ainda o conhecesse e lhe tivesse afeição.

Maria levou-o e ele não se fez muito rogado. Em casa dos pais, na sala, ainda estava na parede o seu quadro; o copo vermelho de rubi adornava ainda o rebordo da chaminé; obrigaram-no a demorar-se uns dias, contentes por tornarem a vê-lo. Veio então a saber o que se passara em casa do mestre. Nicolau não morrera de peste; a bela Lisbeth é que caíra à cama e estivera às portas da morte; o pai tratara-a até à exaustão e veio a morrer antes da filha estar curada. Ela salvara-se, mas perdera a beleza.

- A oficina está vaga - disse o dono da casa - para um entalhador capaz, está ali um belo estabelecimento e dinheiro à farta. Pensa nisso, Goldmundo! Ela não diria que não. Já não tem por onde escolher.

Contaram-lhe, também, vários episódios da peste; a populaça incendiara um hospital, assaltara e pilhara algumas casas de gente rica e, durante algum tempo, não houvera na cidade nem ordem nem segurança, pois o bispo tinha fugido. O imperador, que nessa data se encontrava justamente nas proximidades da cidade, mandara-lhes um governador, o conde Henrique. Esse homem resoluto restabelecera a ordem com o seu punhado de peões e cavaleiros, mas agora era já tempo de acabar o seu regimento; esperava-se a volta do bispo. O conde tinha exigido demasiado aos burgueses da cidade e estes estavam fartos dele e da concubina, a Inês, que era um vivo demónio. Felizmente já pouco faltava para se irem embora, a vereação estava cansada de suportar, em vez dum bispo benévolo, um cortesão e cabo-de-guerra favorito do imperador, que constantemente recebia, como se fosse um príncipe, deputações e embaixadas.

Interrogaram depois o hóspede sobre as suas aventuras. - Ai - disse ele tristemente - nada tenho que contar. Andei, andei, por toda a parte grassava o mal e havia mortos espalhados; por toda a parte o medo tornara maus e dementes os homens. Escapei, enfim, e talvez um dia esqueça tudo isto. Agora que regressava venho a saber que o mestre morreu! Deixem-me ficar uns dias aqui a descansar! depois, meto-me de novo ao caminho.

Ficou, mas não para descansar; ficou porque se sentia desiludido e indeciso, porque amava a cidade que lhe recordava tempos mais felizes e porque lhe fazia bem o amor da pobre Maria. Não podia corresponder-lhe, não podia dar-lhe em troca senão afecto e compaixão, mas era consoladora a sua adoração silenciosa e humilde. Retinha-o, sobretudo, a necessidade premente de voltar à criação artística, mesmo sem oficina, mesmo recorrendo a expedientes.

Durante meia dúzia de dias Goldmundo não fez mais do que desenhar, Maria arranjara-lhe papel e pena e ele passava horas seguidas a desenhar, no seu quarto, cobrindo as folhas grandes com figuras, umas rabiscadas à pressa, outras com mão amorável e delicada, projectando no papel o álbum ilustrado do seu íntimo. Desenhou repetidas vezes o rosto de Lena, com o sorriso de satisfação, amor e crueldade, que o transfigurara depois da morte do assaltante; ou tal como a vira na derradeira noite, já em transe de dissolução no informe, no regresso à terra. Desenhou o pequeno camponês, com os punhos cerrados, que vira atravessado à porta do quarto dos pais. Desenhou uma carroça a transbordar de cadáveres, puxada por três animais e ladeada por dois soturnos cangalheiros, que empunhavam compridas varas e olhavam de revés por entre as fendas das máscaras. Desenhou várias vezes Rebeca, a morena judia de olhos negros, com a sua boca fina e altiva, amargurada e arrogante, o seu rosto cheio de dor e indignação, e a sua silhueta esbelta e jovem, que tão bem parecia talhada para o amor. Desenhou-se a si próprio, caminhando, amando, rugindo diante da foice da morte, dançando nas orgias dos ávidos de vida. Debruçado fervorosamente sobre o papel branco, traçou o rosto firme e soberbo da menina Lisbeth, tal como outrora a conhecera, a carantonha da velha Margreta, o rosto amado e temido do mestre Nicolau. Também esboçou a traços finos, premonitórios, uma grande figura feminina, a mãe telúrica, sentada de mãos no regaço, com um sorriso a dealbar-lhe no rosto, sob o olhar melancólico. O escoar das imagens, o sentir a mão desenhando e apossando-se das visões, fazia-lhe infinitamente bem. Em poucos dias encheu as folhas que Maria lhe trouxera; na última, recortou uma tira e desenhou em poucos traços o rosto de Maria, os seus lindos olhos e a boca resignada, para lhe oferecer o retrato.

Aliviou assim a alma da saturação oprimente. Enquanto desenhava, perdia a noção do lugar onde estava e o mundo consistia para ele na mesa, no papel branco e na vela acesa, quando era noite. Acordava agora, lembrando-se das mais recentes vivências, e via à sua frente, inexorável, nova peregrinação; começou a vaguear pela cidade, com o estranho e ambíguo sentimento de reencontro e despedida.

Em um destes passeios encontrou uma mulher e, ao vê-la, os sentimentos desordenados que nele se debatiam concentraram-se num único desejo. Era uma amazona, uma mulher alta e loira, de olhos azuis, curiosos e um pouco frios, robusta e esbelta; o rosto florente revelava volúpia, gozo e poder, orgulho e viva curiosidade sensual. Montada no seu cavalo castanho, pelo porte sobranceiro e autoritário via-se que estava habituada a comandar, mas não era fechada nem inabordável; pelo contrário, sob os olhos um pouco frios, as narinas vibráteis abriam-se a todos os perfumes do mundo e a boca grande e lasciva mostrava-se, em alto grau, capaz de dar e receber. Quando Goldmundo a viu, acordou por completo e sentiu intenso desejo de desafiar aquela mulher altiva. Conquistá-la pareceu-lhe um nobre objectivo, perder a vida por ela não lhe parecia morte indigna. Logo pressentiu que aquela fulva leoa, era sua igual, rica de alma e sentidos, aberta a todas as tempestades, tão violenta quanto terna e, por atávica e antiquíssima experiência do sangue, conhecedora da paixão.

Passou e Goldmundo seguiu-a com os olhos; entre os caracóis loiros e a gola de veludo azul erguia-se a nuca forte e soberba, mas de carnação tão delicada como a de uma criança. Pareceu-lhe a mulher mais bela que jamais vira. Quis segurar na mão aquela nuca e arrancar daqueles olhos o segredo do seu frio azul. Não foi difícil inquirir de quem se tratava. Soube que morava no palácio, era a Inês, a amante do governador; não se espantou, uma mulher daquelas poderia ser a própria imperatriz. Parou diante de uma fonte para ver reflectida a sua imagem, Emparceirava rigorosamente com a dela, somente estava, agora, muito descurada. Não tardou que procurasse um barbeiro seu conhecido, que convenceu a cortar-lhe e pentear-lhe, com esmero, o cabelo e a barba.

Durou dois dias a perseguição. Inês saía do palácio e, junto ao portão, lá estava o loiro desconhecido fitando-a de olhos nos olhos, com admiração. Inês cavalgava em redor das fortificações e, de entre os álamos, surgia-lhe o desconhecido. Inês ia ao joalheiro e, ao sair da oficina, encontrava o desconhecido. Os olhos autoritários olhavam-no de relance e as narinas frementes palpitavam. No segundo dia, quando saiu a cavalo e o encontrou de novo à porta, lançou-lhe um sorriso de desafio. Goldmundo também viu o conde, o governador; era um homem garboso e destemido, não era para brincadeiras; mas já tinha cabelos brancos e sulcavam-lhe o rosto as marcas dos cuidados; Goldmundo sentia que lhe levava vantagem.

Aqueles dois dias fizeram-no feliz, irradiava recuperada juventude. Era belo desafiar aquela mulher. Era belo perder a liberdade para conquistar aquela formosura. Era intensamente empolgante sentir que arriscava a vida naquele lance.

Na manhã do terceiro dia, Inês saiu a cavalo acompanhada por um escudeiro montado; os seus olhos procuravam logo o perseguidor, inquietos e ávidos de luta. Lá estava. Afastou o escudeiro com uma incumbência e foi seguindo, devagar, em direcção à porta da ponte, que atravessou. Viu o desconhecido segui-la. Esperou-o no caminho para a igreja das romagens a São Vito, que era, nessa altura um sítio isolado. Esperou meia hora por ele, que ia devagar, não queria chegar ofegante; apareceu fresco e sorridente com uma rosa brava, escarlate, na boca. Ela apeara-se, prendera o cavalo a um tronco e, encostada à hera de um muro, encarou de frente o seu perseguidor, de olhos nos olhos; ele parou e tirou a boina.

- Porque me persegues? - perguntou ela - que pretendes de mim?

- Oh! - disse ele - preferia mil vezes dar-te o que quisesses a aceitar de ti qualquer coisa. Pretendo apenas oferecer-me; faz de mim o que quiseres, linda mulher.

- Bem, verei o que pode fazer-se de ti. Mas, se pensaste colher aqui fora uma florinha, sem perigo, enganaste-te. Só posso amar um homem que arrisque a vida por mim.

- Estou às tuas ordens.

Inês tirou do pescoço uma fina corrente de oiro e entregou-lha.

- Como te chamas?

- Goldmundo.

- Bem, Goldmundo; verei se é de oiro a tua boca. Ouve-me com atenção: ao fim da tarde vai ao palácio e mostra esta corrente, dizendo que a encontraste. Que não saia das tuas mãos, quero tornar a recebê-la de ti. Vais tal como estás para que te tomem por um mendigo. Se alguém do pessoal se meter contigo, contém-te. É preciso que saibas que no palácio só tenho duas pessoas de confiança: o escudeiro Max e a minha camareira Berta. Terás que chegar junto de um deles para que te conduzam até mim. Tem cautela com todos os outros, incluindo o conde; são inimigos. Estás prevenido. Pode custar-te a vida.

Deu-lhe a mão que ele tomou, sorrindo, beijou e tocou ao de leve com a face. Guardou depois a corrente e afastou-se descendo a encosta em direcção ao rio e à cidade. As vinhas já estavam despidas e das árvores desprendia-se folha após folha amarelecida. Goldmundo abanou a cabeça, com um sorriso, ao olhar lá para baixo e achar a cidade tão amena e prazenteira. Ainda há poucos dias estivera triste, triste com a própria efémera duração da dor e da mágoa, que, de tacto, se desprendera dele como a folhagem doirada dos ramos das árvores. Nunca amor lhe parecera tão resplandecente como o daquela mulher esbelta e loira, cujo risonho viço lhe recordava a imagem da mãe, guardada na alma durante a sua adolescência em Mariabronn. Anteontem ainda, não teria acreditado que o mundo mais uma vez lhe sorrisse, que mais uma vez sentisse correr nas veias a seiva da vida, a exultante juventude. Que bom era estar ainda vivo, ter sido poupado pela morte em todos aqueles meses pavorosos.

À noite compareceu no palácio. Em frente havia grande azáfama, desselavam-se cavalos, corriam mensageiros, e um pequeno grupo de sacerdotes e dignitários da igreja era conduzido pelos criados através da porta interior, pela escadaria acima. Goldmundo quis entrar atrás deles, mas o porteiro impediu-lhe a passagem. Mostrou então o cordão de oiro, dizendo que tinha recebido a indicação de só o entregar à senhora ou à camareira. Deram-lhe um criado para o guiar e esperou muito tempo nos corredores. Por fim, apareceu uma rapariga airosa e ligeira que, ao passar por ele, lhe perguntou baixinho: - Goldmundo? - e fez-lhe sinal que a seguisse. Sumiu-se por uma porta e, passado pouco tempo, voltou e mandou-o entrar. Goldmundo encontrava-se em uma antecâmara impregnada de intenso aroma a peles e a perfumes suaves, cheia de cabides com vestidos, casacos e chapéus de mulher, e calçado vário dentro de uma arca aberta. Aí esperou uma boa meia hora; aspirou o perfume dos vestidos, passou a mão pelas peles, sorrindo e contemplando com curiosidade as coisas bonitas ali espalhadas. Por fim, abriu-se a porta de dentro e apareceu, já não a aia mas a própria Inês, vestida de azul claro e com uma guarnição de peles brancas ao pescoço. Dirigiu-se para ele, lenta e compassadamente; era grave o olhar com que o fitavam os seus frios olhos azuis.

- Tiveste que esperar - disse baixinho - creio que podemos agora estar tranquilos. O conde recebe hoje uma delegação eclesiástica, que janta com ele; seguir-se-ão longas negociações, as sessões com os padres duram sempre muito. A hora pertence-nos, a ti e a mim. Sê bem-vindo, Goldmundo.

Inclinou-se para ele, aproximou os lábios desejosos e saudaram-se ambos em silêncio, no primeiro beijo. Goldmundo, lentamente envolveu-lhe a nuca com a mão. Inês levou-o para o seu quarto, que era alto, claro e iluminado a velas. Sobre uma mesa estava preparada uma refeição; sentaram-se e ela, solícita, serviu-lhe pão, manteiga e fatias de carne e encheu de vinho branco uma linda taça azulada. Comeram e beberam da mesma taça, enquanto as mãos de ambos, brincando, travavam conhecimento.

- De que paragens vens, meu lindo passarinho? - perguntou-lhe ela. - És um guerreiro, um trovador ou um simples vagabundo?

- Sou tudo o que quiseres - disse ele sorrindo - sou inteiramente teu. Sou um trovador, se quiseres, e tu és o meu suave alaúde; quando as minhas mãos tocarem o teu colo, ouviremos cantar os anjos. Vem, meu amor, não foi pelas boas iguarias, nem pelo vinho branco, que vim ao teu encontro.

Tirou-lhe suavemente a estola de pele branca e despiu-a com galante persuasão.

Podiam, lá fora, os cortesãos e os padres continuar reunidos em deliberações, podia a criadagem deslizar furtiva pelos corredores e o delgado crescente da lua flutuar acima do arvoredo, que os amantes de nada se apercebiam. Abria-se para eles o paraíso; abraçados, mutuamente atraídos, mergulharam na paradisíaca noite rescendente, assistiram ao dealbar dos alvos mistérios florais, colheram com mãos ternas e desvanecidas os almejados frutos. Nunca o trovador tangera tão sensível alaúde, nunca o alaúde vibrara sob dedos tão robustos e talentosos.

- Goldmundo - segredou-lhe ela ardentemente - como és feiticeiro! Gostaria de ter um filho teu, meu peixinho doirado, ou, melhor ainda! queria morrer por tuas mãos.

Na garganta de Goldmundo vibrou um som exultante e profundo ao ver fundir-se e esbater-se a dureza daqueles olhos frios. Perpassou por ela um frémito, um terno estremecer de desfalecimento, semelhante ao arrepio prateado na pele dos peixes agonizantes, doirado e pálido como o reluzir das maravilhosas cintilações no fundo do rio. Toda a ventura humanamente possível parecia confluir naquele instante.

Depois, enquanto ela permanecia deitada, de olhos fechados, levantou-se devagarinho e vestiu-se. Disse-lhe, suspiroso, ao ouvido: - Deixo-te agora, meu amor. Não quero morrer, não quero ser assassinado pelo conde. Quero que voltemos a ser tão felizes como hoje. Uma vez mais, muitas vezes mais.

Inês continuou deitada e calada enquanto ele se aprontava. Cobriu-a então suavemente com a colcha, beijando-a nos olhos.

- Goldmundo - disse ela - que pena ires já embora! Volta amanhã! Se houver perigo, aviso-te. Volta amanhã, volta!

Puxou pelo cordão da campainha. À porta do quarto de vestir estava a camareira que o levou à saída do palácio. Gostaria de dar-lhe uma moeda e envergonhou-se, por momentos, da sua pobreza.

Por volta da meia-noite estava em frente de casa, na praça do mercado do peixe. Era tarde, ninguém já estaria a pé, provavelmente teria de passar fora a noite. Com espanto encontrou ainda a porta aberta. Entrou furtivamente, fechando-a atrás de si. Para ir para o seu quarto tínha de atravessar a cozinha, onde viu luz. Ao pé de minúscula lamparina estava Maria, sentada à mesa da cozinha. Acabara por adormecer depois de ter esperado duas ou três horas; assustou-se e levantou-se sobressaltada quando ele entrou.

- Ainda estás a pé, Maria - disse ele.

- Estou - respondeu ela - senão encontravas a casa fechada.

- Lamento que tenhas esperado por mim, Maria. É já tão tarde. Não te zangues comigo.

- Nunca me zango contigo, Goldmundo. Estou só um pouco triste.

- Triste, porquê? Não deves estar triste.

- Ai, Goldmundo, gostaria tanto de ser saudável, bela e forte! Já não terias de ir, à noite, a outras casas, amar outras mulheres. Talvez então ficasses comigo e me acarinhasses.

Na voz suave não vibrava esperança nem amargura, só tristeza. Goldmundo ficou perplexo junto dela, magoado e sem saber o que dizer. Poisou-lhe com ternura a mão na cabeça e afagou-lhe o cabelo; ela estremeceu, aquietou-se e chorou resignada; depois, endireitou-se e disse timidamente:

- Vai deitar-te, Goldmundo. Disse disparates, de ensonada que estou. Boa noite.

 

Goldmundo, divagando pelas colinas, passou um dia de ditosa impaciência. Se tivesse um cavalo, teria ido ao convento ver a bela madona do mestre; desejava tornar a vê-la e parecia-lhe, de noite, ter sonhado com mestre Nicolau. Ficaria para outra vez. Aquele enlevo de amor, talvez fosse de pouca dura, talvez tivesse más consequências. Mas hoje estava em plena florescência, não podia desperdiçá-lo. Não queria ver ninguém nem distrair-se, queria passar ao ar livre, sob as árvores e as nuvens, aquele suave dia de Outono. Disse a Maria que fazia tenção de dar um grande passeio pelo campo, decerto, que, regressaria tarde, e à noite, não esperasse por ele, pediu-lhe um naco de pão. Ela, sem objecção alguma, enchera-lhe as algibeiras de pão e maçãs, passara-lhe a escova pelo fato velho, cujos rasgões remendara logo no primeiro dia, e deixara-o partir.

Atravessou o rio e passou pelos vinhedos despidos de folhagem; subiu aos outeiros por íngremes caminhos em socalcos e só parou quando atingiu o mais alto cimo. O sol brilhava tépido por entre os ramos das árvores despidas; à sua frente esvoaçavam melros espantados pelos seus passos e poisavam nas moitas de onde, agachados e assustadiços, ficavam a olhá-lo de entre a folhagem, com os olhinhos pretos e brilhantes; lá em baixo, desenhava-se a curva azul do rio e a cidade parecia pequenina como um brinquedo; não chegava ali rumor algum a não ser o repicar dos sinos às horas de oração. Ali em cima havia taludes e montículos cobertos de erva, restos de antigos templos pagãos, fortificações talvez, ou túmulos. Sentou-se num deles, sobre a erva seca do Outono, ao abrigo da humidade; abarcou com a vista o extenso vale e, para lá do rio, os montes e cordilheiras, até onde montanha e céu se encontravam e se confundiam num jogo de tonalidades azuladas. Todas aquelas terras e outras mais distantes que a vista não alcançava, tinham sido calcorreadas por ele; todos aqueles lugares, agora longínquas recordações, tinham já sido próximas e presentes. Pernoitara centenas de vezes além, naquelas florestas, onde comera amoras e passara fome e frio; atravessara acolá aquelas cumeadas e charnecas, ora alegre, ora triste, ora animoso, ora cansado. Algures na distância, para além do que a vista enxergava, jaziam, calcinados, os ossos da boa Lena e por lá andava errante o seu camarada Roberto, se a peste o não tivesse levado; lá longe, algures, estaria Vítor, morto, algures se erguia o mosteiro dos seus anos de juventude e o castelo do cavaleiro, pai das lindas filhas, algures vagueava ou perecera já, a mísera e torturada Rebeca. Todos aqueles lugares dispersos e distantes, charnecas e florestas, cidades e aldeias, castelos e conventos, todas aquelas pessoas, as vivas como as mortas, viviam dentro dele, associadas em recordação, em amor e em saudade. Se amanhã a morte o levasse, aquele livro de imagens cheio de mulheres e amor, de manhãs de Estio e noites de Inverno, se desconjuntaria e apagaria. Era tempo de pôr mãos à obra, de criar algo que lhe sobrevivesse e que pudesse legar aos vindouros.

Da sua vida, das suas viagens, de todos aqueles anos vagabundos, poucos frutos restavam até hoje. Somente meia dúzia de figuras trabalhadas na oficina, especialmente o São João Evangelista; e na sua mente, esse álbum ilustrado, esse mundo irreal, belo e doloroso, feito de recordações. Conseguiria salvar e manifestar alguma coisa desse mundo íntimo? ou continuaria a suceder sempre o mesmo, por ali fora: novas cidades, novas paisagens, novas mulheres, novas emoções, novas imagens acumuladas, cujo único proveito era aquele inquieto transbordar do coração, torturante e belo?

Era vexatória a maneira como a vida ludibriava uma pessoa; dava vontade de rir e chorar ao mesmo tempo. Quem vivesse dando largas ao jogo dos sentidos, saciando-se ao peito da velha mãe Eva - gozava intensos prazeres, mas prescindia de resguardo contra a transitoriedade, à semelhança de vistoso cogumelo da floresta, hoje exuberante de cor e amanhã podre. Quem se precavesse e, fechado numa oficina, procurasse construir um monumento à vida bela - renunciava à vida, passava à categoria de mero instrumento, devotado, é certo, ao serviço do imperecível, mas entretanto estiolava e perdia a liberdade, a plenitude e o prazer de viver. Era o que tinha acontecido ao mestre Nicolau.

Afinal a vida só teria sentido, quando se pudessem alcançar ambas as coisas, não fosse dividida por aquela estéril alternativa. Criar, sem comprar a obra pelo preço da vida! Viver, sem prescindir da nobreza do acto criador! Não seria possível?

Talvez fosse possível para alguns. Talvez houvesse maridos e pais de família a quem a fidelidade conjugal não embotasse o prazer dos sentidos. Talvez houvesse burgueses a quem a ausência de perigo e a falta de liberdade não definhassem o coração. Talvez. Mas Goldmundo não conhecia nenhum nessas condições. A existência parecia assentar na dualidade, na oposição; era-se mulher ou homem, vagabundo ou filisteu, sensato ou sentimental. Nunca se viviam simultaneamente os dois momentos da respiração, o inspirar e o expirar, a masculinidade e a feminilidade, a liberdade e a ordem, o instinto e o espírito; sempre se pagava um pela perda do outro e sempre um era tão importante e desejável como o outro! As mulheres eram, sob esse aspecto, talvez mais beneficiadas. A natureza arranjara as coisas de tal modo que, nelas, o prazer dava o seu fruto, da volúpia amorosa nascia a criança. No homem, em lugar desta fecundidade simples, havia o eterno anseio. O Deus que criara assim o mundo seria mau e hostil, rir-se-ia malevolamente da sua própria criação? Não tinha sido mau quando criara as corças e os veados, os peixes e as aves, a floresta, as flores e as estações do ano. Mas havia um rasgão na sua obra; ou Deus não fora bem sucedido e deixara-a imperfeita, ou visara fins especiais através dessa lacuna e anseio da existência humana, ou seria aquilo devido à semente do inimigo, ao pecado original? Mas, como poderia ser pecado aquela nostalgia e insatisfação? Não era dela que provinha toda a beleza e toda a santidade, criada pelo homem e devolvida a Deus em acção de graças?

Angustiado pelos seus pensamentos, dirigiu o olhar para a cidade e descortinou a praça, o mercado de peixe, as pontes, as igrejas e os paços municipais. Além ficava o palácio, o soberbo paço episcopal onde imperava agora o conde Henrique. Debaixo daquelas torres e compridos telhados morava Inês, a sua bela e principesca amada, de tão altivo porte e, contudo, tão apta a esquecer-se e abandonar-se no amor. Pensou nela com júbilo, recordou a noite anterior com empolgada gratidão. Para sentir a ventura daquela noite, para poder cumular aquela mulher maravilhosa, fora necessária a sua vida inteira de aprendizagem com as mulheres e de dura vagabundagem: as noites de neve passadas a caminhar, a familiaridade com bichos, flores, árvores, águas, peixes e borboletas, os sentidos afinados pela volúpia e pelo perigo, a vida nómada sem tecto sobre a cabeça e as inúmeras imagens durante anos acumuladas. Enquanto no jardim da sua existência desabrochassem mágicas flores de encanto como Inês, não tinha razão de queixa.

Passou o dia inteiro nos cimos outonais, passeando, descansando, comendo o pão e pensando em Inês e na noite. A hora do crepúsculo estava de volta à cidade e aproximou-se do palácio. Tinha arrefecido, as casas olhavam-no com as órbitas imóveis e vermelhas das janelas; passou por ele um pequeno cortejo de rapazes cantando e empunhando paus encimados por abóboras esvaziadas, recortadas em feitio de cara, com velas acesas dentro. Da pequena mascarada, exalava-se um perfume invernal e Goldmundo seguiu-a com os olhos, sorrindo. Rondou algum tempo o palácio; a embaixada eclesiástica ainda lá estava; de vez em quando, aqui e além, via-se assomar a uma janela um dos reverendos. Por fim, conseguiu entrar furtivamente e encontrar a camareira Berta, que novamente o escondeu no vestiário, até que Inês o foi buscar e o levou, com ternura, para o quarto. O seu lindo rosto recebeu-o com meiguice, mas sem alegria; estava triste, preocupada e receosa. Goldmundo teve que esforçar-se muito para a desanuviar; aos poucos readquiriu a confiança sob os seus beijos e palavras de amor.

- És tão meigo - disse ela agradecida - tens um gorjeio tão suave, meu tenro passarinho, quando estás arrulhado e palreiro. Gosto muito de ti, Goldmundo. Ai, assim pudéssemos estar longe daqui. Já não me agrada aqui estar! será, de resto, por pouco tempo, o conde foi chamado e o parvo do bispo regressa dentro em breve. Mas o conde está zangado hoje, os padres arreliaram-no. Deus meu, que ele te não veja; não terias nem mais uma hora de vida. Estou com tanto medo por tua causa!

Recordações meio esquecidas acudiam à memória de Goldmundo - não ouvira já, em tempos, aquela mesma toada? Assim lhe falara Lídia, assim amorável e receosa, terna e triste. Era assim que ia ter com ele ao quarto, cheia de amor, de medo, de cuidado e de horríveis imagens de pavor. Gostava de ouvir aquela toada terna e amedrontada. Que seria do amor sem o segredo? Que seria do amor sem o perigo?

Enlaçou suavemente Inês, afagou-a, segurou-lhe a mão, segredou-lhe baixinho, ao ouvido, palavras enamoradas e beijou-lhe as pálpebras. Comovia-o e encantava-o vê-la tão apoquentada de cuidados e receios por sua causa. Ela recebia grata as carícias, chegava-se a ele quase humildemente, amorosamente, mas a inquietação não se desanuviava.

De repente teve um sobressalto; ouvia-se perto fechar uma porta e passos apressados aproximaram-se do quarto.

- Valha-nos Deus! É ele! É o conde! - exclamou desesperada - depressa, podes fugir pelo vestiário. Depressa! Não me denuncies!

E empurrava-o para o quarto de vestir, onde ficou tacteante na escuridão. Ouviu, do outro lado, o conde falar alto com Inês. Orientou-se às apalpadelas por entre os vestidos, pé ante pé, sem fazer barulho. Quando chegou à porta de comunicação com o corredor, tentou abri-la devagarinho. Só nesse instante, ao perceber que estava fechada por fora, se assustou também e o coração começou a bater-lhe desordenadamente. Podia ser que, por infeliz acaso, alguém a tivesse fechado depois dele ter entrado. Mas Goldmundo não acreditou que fosse por acaso. Caíra em uma cilada e estava perdido; alguém o vira entrar furtivamente. Ia custar-lhe a cabeça. Ficou a tremer na escuridão e lembrou-se das últimas palavras de Inês: - não me denuncies! - Não, claro que não a denunciaria. O coração martelava-lhe no peito, mas a sua decisão era firme e apertou os dentes, obstinadamente.

Tudo se passara em curtos instantes. A porta abria-se agora e o conde, vindo do quarto de Inês, entrava com um candelabro na mão esquerda e a espada desembainhada na direita. No mesmo instante, Goldmundo arrebatou precipitadamente uns vestidos e casacos pendurados ali em volta e segurou-os no braço. Tomá-lo-iam por gatuno, talvez fosse a salvação.

O conde já o tinha visto. Aproximou-se, devagar.

- Quem és? Que fazes aqui? Responde ou mato-te.

- Perdoai, senhor - murmurou Goldmundo - sou um pobre homem e vós sois tão rico! Vede, restituo tudo o que roubei.

- Com que então roubaste? Não foste lá muito esperto em arriscar a vida por uns trapos. És daqui da cidade?

- Não, meu senhor, sou um pobre vagabundo, sem eira nem beira; peço clemência.

- Cala-te! Gostaria de saber se te atreveste a incomodar a senhora. Como, de qualquer modo, serás enforcado, não são precisas mais averiguações. O furto basta.

Bateu com violência na porta fechada e gritou: - Estão aí? Abram.

A porta abriu-se do exterior e três homens estavam a postos, de armas em riste.

- Amarrem-no bem - ordenou o conde, e a sua voz rangia de arrogância e escárnio. - É um vadio que andava aqui a roubar. Prendam-no e amanhã de madrugada enforquem-me o malandrim.

Ataram as mãos a Goldmundo, sem que este se defendesse. Levaram-no, precedidos de um criado com uma lanterna, por compridos corredores, por escadas e através do pátio interior. Pararam diante do portão de uma cave travejado de ferro; os homens altercaram e deliberaram porque faltava a chave da porta; um deles pegou na luz e o criado voltou atrás a buscar a chave. Os três homens armados e o prisioneiro ficaram à espera diante do portão. O que empunhava a luz alumiou, curioso, a cara do preso. Nesse momento passavam dois padres dos muitos que estavam hospedados no palácio; vinham da capela, passaram diante do grupo e ambos prestaram atenção àquela cena nocturna: os três homens armados e um homem amarrado ali parados à espera.

Goldmundo não reparou nem nos padres nem nos guardas. Via a luz bruxuleante que, rente ao rosto, o encandeava. E, por detrás da luz, em penumbra pavorosa, via algo de informe, ímenso e macabro: o abismo, o fim, a morte. Nada via nem ouvia, de olhos fitos nessa visão. Um dos padres interrogou em voz baixa os homens de armas. Disseram-lhe que era um ladrão e estava condenado à morte; perguntou se tinha tido um confessor. Responderam-lhe que não, tinha sido apanhado em flagrante.

- Então de madrugada, antes da missa, irei confessá-lo e ministrar-lhe os sacramentos - disse o sacerdote. - Comprometam-se a não o executar antes disso. Ladrão ou não, o homem tem, como qualquer cristão, direito à confissão e aos sacramentos.

Os guardas não se atreveram a objectar. Reconheceram o reverendo, que fazia parte da delegação eclesiástica; tinham-no visto muitas vezes à mesa do conde. E porque não havia de conceder-se a confissão ao pobre vagabundo?

Os eclesiásticos retiraram-se. Goldmundo continuava de pé, de olhos fixos. Por fim, veio o criado com a chave e abriu a porta. Levaram-no para dentro de uma cave; desceu cambaleando e aos tropeções, meia dúzia de degraus. Dentro do recinto, que era a antecâmara de uma adega, havia umas cadeiras sem costas e uma mesa; puxaram uma cadeira para junto da mesa e mandaram-no sentar-se.

- Amanhã de madrugada vem cá um padre, podes ainda confessar-te - disse-lhe um dos guardas. Depois, foram-se embora e fecharam cuidadosamente o pesado portão.

- Deixa-me ficar a luz, camarada - pediu Goldmundo.

- Não, meu amiguinho, podias armar algum sarilho. Vais ver que passas bem sem ela. Não sejas tolo e conforma-te; também, para o tempo que uma luz destas arde! Daqui a uma hora estava apagada. Boa noite.

Goldmundo ficou só na escuridão, sentado na cadeira e com a cabeça apoiada na mesa. Estava mal sentado e as cordas apertadas nos pulsos magoavam-no, mas só mais tarde teve consciência destas sensações. A princípio ali ficou com a cabeça deitada sobre a mesa como sobre um cadafalso; sentia-se compelido a realizar com o corpo e com os sentidos o que lhe estava sendo imposto ao coração: a submissão ao inelutável, a resignação à morte.

Demorou-se assim uma eternidade, lamentavelmente abatido e tentando assumir o que lhe era imposto, tentando compenetrar-se e encher-se da iminência da morte. Era ao entardecer, caía a noite, o fim daquela noite seria também o seu fim. Era o que tinha que tentar compreender. Amanhã já não estaria vivo. Estaria enforcado, seria apenas uma coisa onde poisavam e debicavam os pássaros, seria o que já era o mestre Nicolau, o que era Lena na cabana calcinada e todos os que vira nas casas despovoadas pela morte e nas carroças atulhadas de cadáveres. Não era fácil compreender e compenetrar-se disso. Era mesmo impossível. Havia tanta coisa de que não se separara ainda, a que não dissera adeus. Restavam-lhe as horas daquela noite para o fazer.

Tinha que despedir-se da bela Inês, de quem nunca mais veria o esbelto perfil, o cabelo claro como o sol e os frios olhos azuis; nunca mais veria estremecer desfalecida a sua expressão altiva, nunca mais veria a doce penugem doirada e fragrante da sua pele. Adeus olhos azuis, adeus boca húmida e fremente! Quantas vezes ainda esperara beijá-la. Ainda hoje, ao pensar nela, nas colinas, sob o sol outonal, como lhe pertencera e a desejara! Mas também tinha que despedir-se das colinas, do sol, do céu azul semeado de nuvens brancas, das árvores, das florestas, da vagabundagem, das horas do dia e das estações do ano. A esta hora, Maria, a pobre Maria dos olhos bons e afectuosos e do andar coxo, talvez estivesse ainda sentada à sua espera ou adormecida na cozinha; quando voltasse a acordar, nem sombra de Goldmundo regressaria a casa.

Ai, e o papel e o lápis, e as figuras que ainda esperara desenhar! Tudo ia por água abaixo! E a esperança de rever Narciso, o belo apóstolo, também tinha que a abandonar. Era necessário despedir-se das próprias mãos, dos próprios olhos, da fome e da sede, do comer e do beber, do dormir e do acordar, do seu alaúde, de tudo, enfim. Uma ave que amanhã sulcasse o ar já não seria vista por Goldmundo; uma rapariga que cantasse à janela, já não seria por ele ouvida; o rio correria, deslizariam silenciosos os peixes escuros, uma lufada de ar varreria a folhagem amarelecida do chão; brilharia o sol e o firmamento estrelado, gente moça acorreria ao baile, as primeiras neves cobririam as montanhas longínquas; e tudo continuaria - as árvores a oferecer a sua sombra, os homens e as mulheres a reflectir nos olhos a alegria e a tristeza, os cães a ladrar, as vacas a mugir nos estábulos das aldeias - mas sem ele, nada já lhe pertencia, a tudo teria sido arrancado.

Reviveu o aroma matutino, sentiu o sabor do vinho novo e doce e das rijas nozes têmporas; atravessou-lhe o coração alanceado, uma revoada de recordações, um reflexo lampejante do mundo multicor; no soçobrar da despedida, toda a beleza revolta da vida lhe iluminou os sentidos; quis reprimir a mágoa que irrompia, mas já lágrima após lágrima lhe brotava dos olhos. Abandonou-se soluçante àquela onda, as lágrimas corriam-lhe em fio, deixou-se dominar por dor infinda. Oh vales e montes luxuriantes, oh regatos nos verdes bosques de ulmeiros, oh raparigas, oh noites de luar nas fontes, oh belo e radioso mundo de imagens, como hei-de deixar-te! Debruçado sobre a mesa chorava como uma criança inconsolável. Da desolação da sua alma, ergueu-se, num soluço, um grito de queixa suplicante: - Oh mãe, mãe!

E ao pronunciar a mágica palavra, respondeu-lhe das profundezas da memória a imagem da mãe. Não a figura materna dos seus pensamentos e sonhos de artista, mas a bela e vivida visão da sua própria mãe que, desde os tempos do convento, não revira. A ela dirigiu o seu queixume e o seu pranto, exaltando a insuportável angústia do ter-que-morrer; a ela se acolheu, nas mãos maternas depondo a floresta, o sol, os olhos e as mãos, a ela restituindo a sua vida e o seu ser.

No meio do choro, exausto, adormeceu. Dormiu uma hora ou duas, subtraído àquela desolação.

Quando acordou, sentiu dores violentas. As mãos atadas ardiam-lhe e sentia dores lacerantes na nuca e nas costas. Ergueu-se a custo e retomou consciência da situação. Em volta, era completa a escuridão; ignorava quanto tempo estivera adormecido, não sabia quantas horas de vida lhe restavam. Talvez já no momento seguinte o viessem buscar para a forca. Lembrou-se então da prometida visita do sacerdote. Não acreditava que os sacramentos lhe servissem de muito, não sabia se a mais completa absolvição e perdão das culpas o levaria ao céu. Não sabia se havia céu, Deus pai, juízo final e eternidade. Há muito que perdera todas as certezas a esse respeito.

Mas, quer houvesse ou não eternidade, ele não a desejava, só desejava aquela vida incerta e transiente, só queria respirar e sentir-se dentro da sua pele, queria apenas viver. Levantou-se como louco e foi cambaleante e às apalpadelas até à parede a que se encostou para se endireitar e começar a reflectir. Havia de encontrar uma saída! Talvez o padre fosse a salvação, talvez conseguisse persuadi-lo da sua inocência e levá-lo a interceder por ele, a obter um adiamento ou a ajudá-lo a fugir. Agarrou-se veemente a estes pensamentos que o assaltavam incessantemente. E, se essa tentativa não surtisse efeito, mesmo assim não desistiria, não consideraria perdida a partida. Tentaria primeiro aliciar o padre, esforçar-se-ia a todo o custo por seduzi-lo, convencê-lo, interessá-lo e lisonjeá-lo. O padre era o único trunfo no seu jogo. Todas as outras possibilidades eram quiméricas e, contudo, quem sabe, havia acasos e felizes conjunturas; o carrasco podia ser acometido de uma cólica; a forca podia quebrar-se, podia apresentar-se uma possibilidade de fuga antecipadamente imprevisível. Fosse como fosse, Goldmundo recusava-se a morrer; debalde tentara deixar-se penetrar por aquele destino e acolher aquela fatalidade; tinha sido impossível. Estaria alerta e lutaria até à última, pregaria uma rasteira ao guarda, derrubaria o carrasco, defender-se-ia até ao último instante, com cada gota do seu sangue e da sua vida. Se ao menos conseguisse induzir o padre a desatar-lhe as mãos! Seria um bom avanço!

Tentou, entretanto, roer as cordas com os dentes, desprezando as dores. Com um encarniçado esforço cruelmente longo, parecia ter conseguido senti-las menos apertadas. Ofegante na escuridão do cárcere, os braços e as mãos inchadas doíam-lhe fortemente. Quando recobrou fôlego, seguiu a parede húmida da cave, às apalpadelas em busca de uma aresta saliente. Lembrou-se dos degraus onde tropeçara ao descer para aquele calabouço. Procurou e encontrou-os. De joelhos, tentou friccionar a corda na aresta de um dos degraus de pedra. Volta e meia eram as articulações dos dedos que, em vez da corda, batiam na pedra; doía como fogo, sentia espirrar o sangue, mas não desistiu. Quando, entre o portão e a soleira, distinguiu uma réstia deploravelmente fina da luz parda da alvorada, tinha alcançado o seu intento. A corda rompera-se, soltou-a, tinha as mãos livres! Mas mal podia mexer os dedos; as mãos estavam entumecidas e dormentes, os braços retesados e rígidos até ao ombro. Teve que os exercitar, forçou-se a fazer movimentos para que o sangue circulasse. Tinha agora um plano que lhe parecia bom.

Se não conseguisse obter a ajuda do padre ver-se-ia obrigado a matá-lo, no caso de o deixarem só com ele, nem que fosse por segundos. Não seria difícil, utilizando uma das cadeiras. Estrangulá-lo não podia, para isso não tinha força suficiente nas mãos nem nos braços. O que havia a fazer era matá-lo, vestir rapidamente a sua roupeta e fugir! Antes que os outros o descobrissem, devia sair do palácio; depois, fugir com quantas forças tivesse! Maria deixava-o entrar e arranjava-lhe um esconderijo. Era de tentar. Era possível.

Goldmundo, nunca em sua vida tinha, como naquela hora, esperado e espiado com um misto de desejo e temor os alvores da manhã. Fremente de expectativa e de resolução, observava, com olhos de caçador, o lento e gradual aclarar da mísera réstia de luz por debaixo da porta. Voltou à mesa e exercitou-se a ficar sentado no escabelo, com as mãos escondidas sob a mesa, para que se não desse logo pela falta das cordas. Com as mãos livres, já não acreditava na morte. Estava resolvido a evadir-se, nem que tivesse que arrasar o mundo inteiro. Estava decidido a viver a todo o transe. As asas do nariz vibravam-lhe, ávidas de liberdade e vida. E quem sabe se, do exterior, lhe não viria qualquer auxílio? Inês era mulher, o seu poder e coragem não eram grandes, portanto, era possível que o abandonasse; mas amava-o e quem sabe se não faria alguma coisa por ele? Talvez, lá fora, rondasse Berta, a camareira - e não havia também um palafreneiro que ela dizia ser de confiança? Se ninguém aparecesse e não lhe fizessem qualquer sinal, executaria o seu plano. Se este falhasse, mataria os guardas com a cadeira, dois ou três, quantos viessem. Tinha sobre eles uma decidida vantagem: os seus olhos estavam habituados à escuridão, reconhecia e pressentia na penumbra todas as formas e volumes, enquanto os outros estariam ali a princípio completamente às cegas.

Agachou-se febril de encontro à mesa, ponderando minuciosamente as palavras a dizer ao padre para obter a sua ajuda, porque teria que começar por aí. Ao mesmo tempo, observava, ansioso, o discreto crescendo da luz na fenda. Almejava agora com fervor e mal podia esperar o instante que, havia horas tanto temera; não podia suportar por mais tempo a terrível tensão. Além disso era de prever que as suas forças, o poder de atenção, a energia e vigilância diminuíssem gradualmente. Era preciso que o guarda, acompanhado do sacerdote, não se demorasse, para aproveitar o estado exacerbado e o momento culminante da resoluta vontade de salvar-se.

Por fim, o mundo acordou lá fora e o inimigo aproximou-se. Ressoaram passos no empedrado do pátio, uma chave foi introduzida e deu volta à fechadura; aqueles ruídos, depois do silêncio total da noite, soaram-lhe como um ribombar de trovão.

O pesado portão entreabriu-se rangendo os gonzos. Um sacerdote entrou sozinho, sem guarda nem acompanhamento. Trazia um candelabro de duas velas. Tudo estava a passar-se de modo diferente do que imaginara.

Como era estranho e comovente! O padre que entrara, e atrás de quem mãos invisíveis fecharam de novo a porta, envergava o hábito do mosteiro de Mariabronn, tão seu conhecido, outrora usado pelo abade Daniel, pelo padre Anselmo e pelo padre Martinho.

Ao vê-lo, sentiu um estranho baque no coração, teve que desviar os olhos para o lado. O aparecimento daquele hábito podia ser de bom augúrio, podia ser bom sinal. Mas se não houvesse outra saída além do assassínio? Rangeu os dentes. Custar-lhe-ia muito se tivesse de matar aquele padre.

 

Louvado seja Jesus Cristo - disse o padre, poisando o candelabro em cima da mesa. Goldmundo murmurou o responso de olhos baixos e fixos.

O sacerdote calou-se. Esperou calado até que Goldmundo, inquieto, levantou os olhos para examinar o homem que tinha na sua frente.

Viu então, sucumbido, que não só usava o hábito dos monges de Mariabronn, como também as insígnias da dignidade abadai.

Encarou-o então. Viu um rosto emaciado, de recorte firme e claro, de lábios muito finos, um rosto muito seu conhecido. Goldmundo contemplou, fascinado, aquele semblante inteiramente formado pelo espírito e pela vontade. Pegou com mão insegura no candelabro, levantou-o e aproximou-o do rosto do visitante, para lhe ver os olhos. Viu-os e o candelabro estremeceu-lhe na mão, quando o tornou a poisar.

- Narciso! - balbuciou, quase inaudivelmente, com voz sumida. Tudo, à sua volta, começou a andar à roda.

- Sim, Goldmundo, fui outrora Narciso; mas, há muito tempo que me despojei desse nome, já decerto te esqueceste; desde que recebi ordens chamo-me João.

Goldmundo sentiu-se comovido até às entranhas. O mundo transformou-se subitamente e a quebra repentina daquela tensão sobre-humana ameaçava sufocá-lo; tremia e as vertigens esvazíavam-lhe a cabeça, o estômago contraía-se em espasmo. Ardiam-lhe os olhos como se em breve rompesse em soluços. E era, naquele momento o que o seu íntimo pedia - soluçar, desfazer-se em lágrimas, desmaiar.

Mas, do fundo das recordações de juventude, esconjuradas pela presença de Narciso, surgiu uma advertência: quando era rapaz, tinha, certo dia, chorado diante daquele belo e severo semblante, tinha sucumbido diante daqueles olhos escuros e omniscientes. Agora Narciso aparecia novamente, como um fantasma, no mais estranho momento da sua vida - provavelmente para o salvar - e ele havia de romper outra vez em soluços ou cair desmaiado? Não, não e não. Conteve-se; refreou o coração, dominou o estômago e expulsou a vertigem da cabeça. Não podia agora mostrar-se fraco.

Conseguiu dizer, com voz aparentemente calma: - tens que permitir-me que continue a chamar-te Narciso.

- Sem dúvida, meu amigo. Não me queres apertar a mão?

De novo, Goldmundo fez um esforço. Proferiu a sua resposta em tom de pueril desafio e leve zombaria, como nos antigos tempos de estudante.

- Desculpa, Narciso - disse com frieza e um certo cepticismo. - Vejo que és agora abade. Eu, porém, continuo sendo um vagabundo. E, além de mais, não poderá ser longa a nossa conversa, por muito que a deseje. Repara Narciso, estou condenado à forca e dentro de uma hora ou mais cedo já não estarei vivo. Digo isto para te esclarecer a situação.

Narciso ficou impávido. Aquele vislumbre de puerilidade e bravata na atitude do amigo, enternecia-o e regozijava-o. Agradava-lhe o orgulho que impedia Goldmundo de se lançar nos seus braços a chorar; compreendia-o e aprovava-o cordialmente. Não era nestas condições que imaginara reencontrá-lo, mas, no seu íntimo, estava de acordo com aquela pequena comédia; de nenhum outro modo o amigo melhor tornaria a insinuar-se no seu coração.

- Bem sei - disse ele, representando o papel da indiferença. - De resto, quanto à forca, posso sossegar-te. Estás perdoado; fui incumbido de comunicar-te a notícia e levar-te comigo, porque não podes ficar aqui na cidade. Teremos, pois, tempo suficiente para contarmos muita coisa um ao outro. Não me queres enfim apertar a mão?

Foi um longo aperto de mão, ambos estavam profundamente comovidos. Nas palavras, porém, a comédia esquiva durou ainda mais algum tempo.

- Bem, Narciso, deixaremos então este tecto pouco honroso e juntar-me-ei à tua comitiva. Voltas para Mariabronn? Sim? Óptimo, então. E como? A cavalo? Excelente. Terá que arranjar-se um cavalo para mim.

- Arranjá-lo-emos, amice, e partiremos dentro de duas horas. Oh, em que estado te puseram as mãos! Deus meu, todas arranhadas, inchadas e a escorrer sangue. Ah, Goldmundo, como te maltrataram!

- Deixa, Narciso, fui eu que lhes dei estes tratos. Estavam amarradas e tinha que as libertar. Posso dizer-te que não foi fácil. De resto, foste muito corajoso entrando aqui sem um guarda.

- Corajoso, porquê? Não havia perigo nenhum.

- Havia apenas o pequeno perigo de seres morto por mim. Era esse o meu plano. Como me disseram que havia de vir um padre, matava-o e fugia vestido com as suas roupas. Era um belo plano.

- Não querias, então, morrer? Querias defender-te?

- Queria, sem dúvida. Só não podia prever que o sacerdote fosses precisamente tu.

- Mesmo assim - disse Narciso hesitante - era, de facto, um plano bastante feio. Serias realmente capaz de matar um sacerdote que viesse confessar-te?

- A ti não, Narciso, claro que não, e, talvez mesmo, nenhum padre da tua ordem, que usasse o hábito de Mariabronn. Mas qualquer outro... podes estar certo que sim.

A voz velou-se-lhe, subitamente entristecida.

- Não seria o primeiro homem que eu matava. Calaram-se. Ambos se sentiram constrangidos.

- Sobre esses assuntos - disse Narciso em tom indiferente - falaremos mais tarde. Podes um dia confessar-te, se quiseres, ou contar-me a tua vida. Também eu tenho muito para te contar. Já antecipadamente me regozijo; vamo-nos embora?

- Um momento ainda, Narciso! Ocorreu-me neste instante que já uma vez te chamei João.

- Não te compreendo.

- Nem podes compreender. Ainda não sabes nada. Foi há muitos anos que, uma vez te dei o nome de João, e para sempre te ficará: em tempos fui entalhador e penso, aliás, voltar ao ofício. A melhor obra que fiz nessa altura, foi a figura de um jovem, em tamanho natural, que era o teu retrato, mas em vez de Narciso, chamava-sec João. Era um São João Evangelista aos pés da cruz.

Levantou-se e encaminhou-se para a porta.

- Pensaste, então, alguma vez em mim? - perguntou Narciso, baixinho.

Goldmundo respondeu no mesmo tom: - sempre pensei em ti, Narciso, sempre, sempre.

Escancarou com violência o pesado portão, por onde assomou a manhã lívida. Não disseram mais nada. Narciso levou-o para o quarto onde estivera hospedado durante aqueles dias. Um novo noviço seu acólito estava ocupado a preparar a bagagem. Goldmundo comeu e lavaram-lhe e ligaram-lhe as mãos. Pouco depois trouxeram os cavalos.

Quando montaram, Goldmundo disse: - tenho ainda um pedido a fazer-te. Deixa-me passar pelo mercado do peixe, tenho que lá deixar em ordem umas coisas.

Partiram e Goldmundo olhou para todas as janelas do palácio, na esperança de ver Inês aparecer a qualquer delas. Mas não voltou a vê-la. Cavalgaram em direcção ao mercado do peixe. Maria estivera em cuidado. Goldmundo despediu-se dela e dos pais, agradeceu-lhes muito, prometeu voltar e partiu. Maria ficou à porta até perdê-los de vista, e entrou depois, coxeando, para dentro de casa.

O grupo que seguiu viagem a cavalo, compunha-se de quatro pessoas: Narciso, Goldmundo, o noviço e um palafreneiro armado.

- Ainda te lembras do meu cavalinho Bless, que ficou nas vossas cavalariças? - perguntou Goldmundo.

- Lembro-me, sim. Já lá o não encontrarás, nem esperavas, de certo, encontrá-lo. Há sete ou oito anos teve de ser abatido.

- O quê, ainda te lembras disso?

- Lembro-me.

Goldmundo não se entristeceu com a morte de Bless; alegrou-o saber que Narciso estava tão bem informado a respeito do bicho, ele que nunca se tinha importado com animais e nunca, decerto, soubera o nome de nenhum outro cavalo das cavalariças do convento.

- Hás-de rir-te de mim - prosseguiu ele - o primeiro habitante do convento por quem pergunto é o cavalo. Não foi bonito da minha parte. Queria, de facto, fazer-te outras perguntas, sobretudo acerca do nosso abade Daniel. Mas já calculava que tivesse morrido, visto que és seu sucessor. E, por agora, queria evitar falar de mortes. Não estou nesta altura muito inclinado para esse assunto, devido à noite passada e devido à peste cujos estragos vi demasiado de perto. Mas, já que tocámos no assunto e como alguma vez terá de ser, diz-me quando e como morreu o abade Daniel, que eu tanto venerei. Diz também se os padres Anselmo e Martinho ainda são vivos. Estou preparado para ouvir o pior. Como a peste te poupou a ti, pelo menos, já me dou por satisfeito. A bem dizer, nunca pensei que podias ter morrido, sempre acreditei firmemente que nos tornaríamos a encontrar. A crença também pode enganar, como infelizmente sei por experiência própria. Também não podia imaginar que o meu mestre Nicolau, o entalhador, tivesse morrido; contava voltar a encontrá-lo e a trabalhar com ele: afinal, quando cheguei, já ele morrera.

- Será breve o meu relato - disse Narciso. - O abade morreu há oito anos, sem doença nem sofrimento. Não fui eu o seu sucessor, há só um ano que sou abade. O sucessor dele foi o padre Martinho, o nosso amigo superintendente, que morreu há um ano, não contava ainda setenta anos de idade. O padre Anselmo também já não é vivo. Era teu amigo, muitas vezes falava de ti. Nos últimos tempos já não andava e a posição estendida era-lhe tormentosa; morreu de hidropisia. Também lá tivemos a peste que vitimou. Mas não falemos nisso! Tens mais algumas perguntas? - Muitas mais, certamente. E, sobretudo: como vieste aqui parar à cidade episcopal e ao palácio do governador?

- Isso são contos largos e para ti fastidiosos: assuntos políticos. O conde está nas boas graças do imperador e, em muitos casos, é seu plenipotenciário; havia várias questões a aplanar entre o imperador e a nossa ordem, e fui agregado a uma delegação encarregada de tratar com o conde. O êxito foi escasso.

Calou-se e Goldmundo não perguntou mais nada. Também não precisava de saber que Narciso, na véspera à noite, pedira ao conde a vida de Goldmundo e aquele a cedera a troco de algumas concessões.

Continuaram o caminho; Goldmundo, pouco depois, sentia-se cansado e a custo se aguentava na sela.

Narciso perguntou-lhe: - É verdade que foste preso por furto? O conde afirmava que te tinhas introduzido nos aposentos interiores do palácio para roubar.

Goldmundo riu-se: - Parecia, de facto ser esse o caso; mas a verdade é que tinha um encontro marcado com a amante do conde, e ele deve ter percebido. Muito me admira que me tivesse deixado escapar.

- Bem, lá se chegou à razão.

Não atingiram o fim da etapa marcada para aquele dia; Goldmundo estava demasiado cansado e as suas mãos quase não podiam segurar as rédeas. Pernoitaram em uma aldeia; Goldmundo foi para a cama com febre e de cama ficou ainda o dia seguinte, mas depois pôde continuar a jornada. Quando, passado pouco tempo, lhe sararam as mãos, começou a gozar a viagem a cavalo. Há quanto tempo não montava! Reviveu, remoçou, recobrou a vivacidade habitual, galopava ao desafio com o palafreneiro e, em momentos de efusão, assaltava o seu amigo Narciso com centenas de perguntas impacientes. Narciso respondia-lhe calmo e satisfeito, de novo enfeitiçado por ele; gostava das suas perguntas tão veementes, tão pueris, e tão reveladoras da ilimitada confiança no espírito e na inteligência do amigo.

- Uma pergunta, Narciso: alguma vez, lá no convento, queimaram judeus?

- Queimar judeus? Como? Não há lá judeu algum.

- É certo. Mas diz: podes sequer admitir a possibilidade de queimar judeus?

- Não, porquê? Ou consideras-me fanático?

- Compreende-me bem, Narciso! O que eu quero dizer é o seguinte: serias capaz de ordenar o extermínio dos judeus ou dar o teu consentimento para esse acto, em qualquer eventualidade? Assim procederam tantos duques, burgomestres, bispos e outras autoridades!

- Não, Goldmundo. Contudo, podia dar-se o caso de ter de assistir a essa crueldade sem a impedir.

- Não a impedirias, então?

- Decerto que não, se não estivesse em meu poder. Assististe alguma vez a um desses autos de fé, Goldmundo?

- Assisti, sim.

- E então, impediste-o? - Não - Vês tu.

Goldmundo contou pormenorizadamente a história de Rebeca, inflamando-se e apaixonando-se com a narrativa.

- E agora, diz-me lá - concluiu violentamente - que mundo é este em que vivemos? Não é um inferno? Não é odioso e abominável?

- Sem dúvida, o mundo não é outra coisa.

- Ah, sim - exclamou Goldmundo exaltado - e quantas vezes outrora me afirmaste que o mundo era divino, que era uma harmonia de esferas, no centro das quais se erguia o trono do Criador, que a existência era boa, etc. Dizias tu que o afirmavam Aristóteles ou S. Tomás. Estou curioso por ouvir-te esclarecer esta contradição.

Narciso riu-se.

- Tens uma memória espantosa, Goldmundo e, contudo, desta vez traiu-te um pouco. Sempre venerei a perfeição do Criador, mas nunca a da criação. Nunca esqueci o mal do mundo. Nenhum autêntico pensador, meu caro, jamais afirmou que a vida na terra fosse harmoniosa e justa ou que o homem fosse bom. Pelo contrário, já na Sagrada Escritura vem expressamente dito que os desígnios e aspirações da alma humana são perversos, e todos os dias vemos esta asserção confirmada.

- Muito bem. Descubro finalmente como é que vós, os homens doutos, concebeis as coisas. O homem é mau, a vida na terra é abominável e imunda; admitem-no. Mas, para além, algures nos vossos sistemas e tratados, há justiça e perfeição. Existem, podem demonstrar-se, mas não se faz uso delas.

- Grande rancor acumulaste contra os teólogos, caro amigo! Mas nem por isso te tornaste ainda um verdadeiro pensador, baralhas e confundes os problemas. Ainda tens que aprender. Porque dizes que não fazemos uso da ideia de justiça? Todos os dias e a todas as horas recorremos a ela. Eu, por exemplo, sou abade e tenho que dirigir um convento, onde tudo é tão pouco perfeito e impecável como lá fora no mundo. Todavia, opomos incessantemente ao pecado original, a ideia de justiça, constantemente procuramos aferir por ela a nossa existência precária, tentamos corrigir o mal e estabelecer uma constante relação com Deus.

- Está bem, Narciso. Não me refiro a ti, nem duvido que sejas um bom abade. Mas, quando penso em Rebeca, nos judeus queimados nas fogueiras, nas valas cheias de mortos, na grande chacina, nas vielas e quartos onde jaziam cadáveres pestilentos, em todo aquele horrendo caos - as crianças abandonadas, sós e desprotegidas, os cães mortos de fome, presos às correntes - quando penso em tudo isso e revejo estas cenas, confrange-se-me o coração e quer-me parecer que as nossas mães nos lançaram a um mundo desesperadamente cruel e diabólico, que melhor fora que não nos tivessem gerado, que Deus não tivesse criado este mundo horrendo, e que o Redentor se não tivesse inutilmente deixado crucificar por ele.

Narciso acenou afirmativamente, com expressão cordial.

- Tens toda a razão - disse com calor - desabafa à vontade, diz-me tudo o que te oprime. Há, porém, um ponto em que te enganas muito: julgas que são pensamentos o que estás a comunicar-me. Mas não, são sentimentos! São os sentimentos de alguém a quem o pavor da existência dá que cismar. Não te esqueças, porém, que, em contrapartida desses sentimentos melancólicos e desesperados, há outros completa-mente diferentes, a compensá-los. Quando te sentes feliz a cavalo, ao atravessar uma linda região, e quando, com razoável leviandade, te introduzes à noite, no palácio do conde para lhe cortejar a amada, o mundo reveste-se para ti, nessa altura, de aspectos bem diferentes; nem as casas pestilentas nem os judeus queimados te impedem de procurar o que te dá prazer. Não será assim?

- Certamente; mas é porque o mundo está tão cheio de morte e pavor que ando sempre em busca do que possa consolar a minha alma, das flores belas que ainda possa colher no meio deste inferno. Enquanto o prazer me absorve, esqueço, por uma hora, o horror. Mas nem por isso ele deixa de lá estar.

- Puseste muito bem a questão. Encontras-te no mundo rodeado de pavor e morte e buscas refúgio no prazer. Mas o prazer não perdura e volta a deixar-te no deserto.

- É isso mesmo.

- Assim acontece à maioria das pessoas, somente nem todos sofrem com a mesma força e violência que tu, e poucos sentem necessidade de tomar consciência do que se passa. Mas diz-me: além desse desesperado vaivém entre o prazer e o pavor, dessa oscilação entre a volúpia da vida e o vazio da morte - não tentaste procurar nenhum outro caminho?

- Tentei, é claro. Experimentei o caminho da arte. Como já tive ocasião de dizer-te, também fui artista além do mais. Um belo dia, havia talvez três anos que andava a correr mundo quase sem parança, encontrei na igreja de um convento uma Nossa Senhora de madeira, tão bela e impressionante que perguntei pelo mestre que a criara e fui em sua procura; encontrei-o, era um mestre afamado; fui seu discípulo e trabalhei alguns anos na sua oficina.

- Hás-de contar-me isso, mais tarde, com todos os pormenores. O que te deu a arte, que significado teve para ti?

- A arte para mim representava a superação do efémero. Da farsa ou da dança macabra da existência, algo sobrevivia e perdurava: as obras de arte. Também um dia desapareciam, ardiam, se espatifavam ou eram destruídas. Sobreviviam, contudo, a muitas gerações e formavam, para além do momento presente, um reino tranquilo de sagradas imagens. Parecia-me bom e consolador colaborar nessa tarefa de quase eternização do efémero.

- Agrada-me muitíssimo saber isso, Goldmundo. Espero que ainda venhas a fazer muitas obras belas, tenho confiança no teu talento e espero que, por muito tempo, sejas meu hóspede em Mariabronn, onde permitirás que te instale uma oficina. Há muito que o nosso convento tem falta de um artista. Mas creio que não esgotaste, com a tua definição, a maravilha da arte. Creio que o valor da arte não consiste somente em subtrair à morte e conferir maior duração a algo existente e mortal, por intermédio da pedra, da madeira ou das cores. Tenho visto várias obras de arte, alguns santos e algumas madonas, e não posso acreditar que sejam reproduções da figura de qualquer pessoa singular e existente, cujas formas e cores o artista conservou.

- Tens razão - exclamou Goldmundo apaixonadamente - não julguei que conhecesses tão bem o que é a arte! A imagem primitiva de uma autêntica obra de arte não é uma figura real existente, embora possa ser o seu móbil e pretexto. A imagem primitiva, não é de carne e osso, é espiritual, radica na alma do artista. Também em mim. Narciso, vivem essas imagens que um dia espero manifestar e mostrar-te.

- Magnífico! E assim, meu caro, entraste sem dar por isso no domínio da filosofia e revelaste um dos seus segredos.

- Estás a zombar de mim, Narciso?

- De maneira nenhuma. Falaste de imagens primitivas, de arquétipos, só existentes no espírito criador, embora possam ser realizados e manifestados na matéria. Muito antes de uma imagem se manifestar e alcançar realidade, já existia como imagem na alma do artista! Essa imagem, pois, esse arquétipo, é precisamente aquilo a que os filósofos antigos chamavam “ideia”.

- Admitamos que sim; e depois?

- Ora bem, na medida em que admites as ideias e os arquétipos, penetras no domínio do espiritual, no nosso mundo da filosofia e da teologia e concedes que, no tumultuoso e doloroso campo de batalha que é a vida, no meio da intérmina e absurda dança macabra que é a existência corporal, vigora um espírito criador. Repara bem, Goldmundo: foi a esse espírito no teu íntimo que sempre me dirigi, desde que, em rapazinho, me apareceste. Esse espírito em ti não é o de um pensador, é o de um artista. Mas é espírito e mostrar-te-á o caminho para fora do conturbado tumulto do mundo dos sentidos, para fora dessa eterna oscilação entre a volúpia e o desespero. Ai, meu caro, sinto-me feliz por me teres feito esta confissão. Esperei por ela - desde outrora, desde que deixaste o teu mestre Narciso e tiveste a coragem de ser tu próprio. Agora podemos voltar a ser amigos.

Naquela hora, a vida recuperara novo sentido para Goldmundo; era como se, olhando do cimo de um monte, abrangesse nitidamente as suas três fases: a da tutela sob a dependência de Narciso; a da emancipação - o período de Uberdade e vida errante - e a do regresso e concentração, o princípio da maturidade e da colheita.

Desvaneceu-se essa visão. Mas encontrara enfim a relação que lhe competia com Narciso; não a de dependência, mas a de liberdade em equiparação. Podia, sem humilhação, aceitar a hospitalidade do homem de espírito superior que era Narciso, visto que este reconhecera nele um seu igual, um criador. Durante toda a viagem Goldmundo ansiava com crescente impaciência, por mostrar ao amigo o seu mundo íntimo manifesto em obras e regozijava-se antecipadamente. Às vezes, porém, assaltavam-no escrúpulos.

- Narciso - prevenia ele - receio que não saibas ao certo quem levas contigo para o convento. Não sou um monge nem quero sê-lo. Conheço os três grandes votos e de bom grado me submeto ao de pobreza, mas não gosto nem da castidade nem da obediência; são virtudes que não parecem muito varonis. E devoção não me resta nenhuma, há anos que não me confesso, não rezo, nem comungo.

Narciso não se inquietou. - Parece-me que te tornaste pagão, Goldmundo. Mas isso não me dá cuidado. Escusas, porém, de orgulhar-te dos teus muitos pecados. Levaste a vida que é habitual no mundo, guardaste os porcos como o filho pródigo, não sabes já o que é ordem e lei. Serias, decerto, um péssimo monge. Mas eu não te convido a entrares na nossa ordem; convido-te somente a ser nosso hóspede e a instalar junto de nós uma oficina. Mais ainda: não te esqueças de que, nos anos de juventude, fui eu quem te acordou e te deixou ir correr mundo. Para bem ou para mal, daquilo que actualmente és, a mim, depois de ti, cabe a responsabilidade. Quero ver o que foi feito de ti; hás-de mostrar-me quem és, por palavras, por actos e por obras. Se reconhecer que a nossa casa não é lugar para ti, serei o primeiro a pedir-te que a abandones.

Goldmundo ficava sempre cheio de admiração quando o amigo assim falava, quando exercia a sua autoridade de abade, com aquela serena segurança e aqueles ressaibos de ironia pelos leigos e pela vida do mundo; revelava-se-lhes nessa altura o que Narciso se tornara: um homem. Um homem da igreja e do espírito, de mãos delicadas e rosto de erudito, mas firme e corajoso, um homem detentor de responsabilidades, um chefe. Este Narciso não era já o adolescente de outrora nem o suave e fervoroso evangelista. Ansiava por modelar com as suas mãos este novo Narciso, varonil e cavalheiresco. Quantas figuras esperavam por ele: Narciso, o abade Daniel, o mestre Nicolau, a bela Rebeca, a formosa Inês, e tantas outras mais, amigas e inimigas, vivas e mortas. Não, não queria ser monge, nem devoto, nem erudito; mas enchia-o de júbilo pensar que a pátria da sua juventude seria o lugar onde nasceriam essas obras.

Prosseguiram a jornada, por aquele fresco fim de Outono. Um dia em que as árvores despidas vergavam sob a espessa geada matutina, atravessaram uma região ondulosa e vasta, de ermos e avermelhados paúis; os perfis das colinas eram singularmente evocativos, tinham ar de velhos conhecidos; passaram por uma mata de altos freixos, por um regato e por uma velha granja, que alvoroçaram dolorosa mas alegremente o coração de Goldmundo; reconhecia as colinas por onde outrora passeara a cavalo com Lídia, a filha do cavaleiro, e a charneca que atravessara imerso em mágoa, sob ligeira nevada, na manhã em que fora expulso do castelo. Emergiram depois os grupos de álamos, o moinho e o castelo, e Goldmundo reconheceu, com estranha dor, a janela do quarto onde, outrora, na sua lendária juventude, ouvira ao cavaleiro a narrativa da peregrinação e corrigira a redacção latina. Entraram na cerca; era uma das paragens previstas no itinerário. Goldmundo pediu ao abade que não pronunciasse ali o seu nome e que o deixasse na cozinha com o palafreneiro. Assim se fez. Já lá não vivia o velho cavaleiro, nem Lídia, mas alguns dos criados e caçadores eram ainda desse tempo; o castelo era agora habitado por uma fidalga formosa, altiva e despótica, Júlia, que ali vivia junto do seu esposo. Continuava sendo maravilhosamente bela, muito bela e também má; Goldmundo não foi reconhecido por ela nem pelo pessoal. Depois da refeição, à hora do crepúsculo, esgueirou-se até ao jardim, contemplou por cima da sebe os canteiros já invernosos e abeirou-se, furtivo, da porta da cavalariça para espreitar os cavalos. Dormiu sobre a palha com o palafreneiro; opresso com o peso das recordações, acordou de noite diversas vezes. Oh, como a vida lhe ficara para trás estéril e despedaçada, rica de esplendorosas imagens, mas estilhaçada e tão pobre de valor, tão pobre de amor! De manhã, ao seguir viagem, olhou ansioso para a janela, na esperança de ver Júlia, tal como, ainda há pouco, ao sair da residência episcopal, olhara em redor, na esperança de ver Inês. Não a vira, como também não voltou a ver Júlia. Toda a sua vida se passara assim: em despedida, fuga e esquecimento, de mãos vazias e coração transido. Todo o dia aquilo o obcecou e não disse palavra sorumbático e curvado sobre a sela. Narciso deixou-o à vontade.

Agora, porém, estavam próximos da meta, que alcançaram passados alguns dias. Pouco antes de avistarem a torre e os telhados do convento, atravessaram aqueles pedregosos campos baldios onde ele, há tanto tempo, fora colher hipericão para o padre Anselmo e se fizera homem graças à cigana Lise. Já atravessavam o portal de Mariabronn e desciam do cavalo por baixo do castanheiro italiano. Goldmundo, enternecido, afagou-lhe o tronco e curvou-se para apanhar uma das cascas estaladas e eriçadas de picos, que juncavam o chão, já escuras e murchas.

 

Goldmundo passou os primeiros dias alojado no convento, em uma cela reservada aos hóspedes. Depois foi-lhe arranjada, a seu pedido, instalação em frente da loja do ferreiro, nas grandes dependências oficinais, que rodeavam a grande cerca e lhe davam a configuração de uma praça de mercado.

O reencontro exerceu sobre Goldmundo uma tão poderosa fascinação que a si próprio o surpreendia. Além do abade, ninguém, no convento, o conhecia, ninguém sabia quem ele era; tanto frades como leigos viviam integrados em disciplina rigorosa, todos tinham as suas obrigações e deixavam-no à vontade. Mas reconheciam-no as árvores da cerca, reconheciam-no os portais, as janelas, o moinho e a azenha, as lajes dos corredores, os maciços murchos do claustro, os ninhos de cegonhas nos telhados do celeiro e do refeitório. De todos os recantos se evolava o perfume doce e comovente do passado, dos anos da sua adolescência; revia tudo com enternecida ânsia, ouvia todos os sons familiares, os sinos das trindades e o repique dominical, o murmúrio da ribeira da azenha entre dois barrancos estreitos e musgosos, o matraquear das sandálias sobre as lajes, o tilintar vespertino do molho de chaves do irmão porteiro, quando este, à hora do anoitecer, procedia à ronda costumada. Junto às goteiras de pedra do telhado do refeitório, por onde escorria a água da chuva, medravam ainda as mesmas ervinhas, os gerânios silvestres e a ranchagem, e a velha macieira do jardim do ferreiro conservava as suas longas pernadas retorcidas. Mais do que tudo comovia-o ouvir o toque da sineta da escola e ver, à hora do recreio, o barulhento tropel dos alunos do convento, ao descerem para a cerca. Como eram jovens aqueles rostos, lindos e tolinhos - também ele teria sido realmente assim alguma vez? Tão criança, tão desastrado, tão loução e ingénuo?

Além deste aspecto familiar do convento, descobriu outro, quase desconhecido, que logo nos primeiros dias lhe chamou a atenção e cobrou importância cada vez maior, só gradualmente se fundindo com o outro. Embora nada de novo ali tivesse sido acrescentado, embora tudo fosse igual ao que era nos seus tempos de estudante e há mais de cem anos atrás, os seus olhos é que não eram já os olhos do colegial de então. Descobria e sentia a proporção daqueles edifícios, das abóbadas da igreja, das velhas pinturas de pedra e de madeira em altares e portais; e embora visse apenas o que sempre estivera no mesmo lugar, só agora se apercebia da beleza daquelas coisas e do espírito que presidira à sua criação. Viu, na capela superior, a antiga escultura em pedra de Nossa Senhora, que já em rapaz tinha admirado e desenhado, mas, só agora, contemplava de olhos abertos; descobria uma obra maravilhosa que o seu melhor e mais bem sucedido trabalho nunca poderia suplantar, e havia mais coisas maravilhosas, nenhuma isolada ou obra do acaso; inspiradas todas pelo mesmo espírito, estavam no lugar próprio e natural dentro dos velhos muros e abóbadas. O que, durante séculos, ali fora edificado, esculpido, pintado, vivido, pensado e ensinado, era produto de uma só lei, de um mesmo espírito, tudo se conjugava como os ramos de uma árvore concordavam entre si.

Goldmundo sentia-se pequeno no meio desse mundo, dessa tranquila e poderosa unidade; e, quando mais pequeno se sentia, era quando via o abade João, o seu amigo Narciso, dirigir e governar aquela grande comunidade, aprazível e amena. Muito embora houvesse grande diferença de personalidades entre o abade João, dos lábios finos, e o simples e bondoso abade Daniel, a verdade é que ambos serviam a mesma unidade, o mesmo pensamento, a mesma ordem a que sacrificavam a sua pessoa e de onde derivava a sua dignidade e isso assemelhava-os tanto quanto o hábito monacal.

Aos olhos de Goldmundo, Narciso engrandecia-se singularmente no âmbito do convento apesar de, no convívio com Goldmundo, se mostrar apenas o amigo cordial e o hospedeiro. Passado pouco tempo, mal ousava tratá-lo por tu e por Narciso.

- Ouve, abade João - disse-lhe um dia - sempre terei de habituar-me, pouco a pouco, ao teu novo nome. Devo dizer-te que me sinto muito bem aqui convosco. Quase tenho vontade de fàzer-te uma confissão geral e, cumprida a penitência, pedir-te acolhimento na ordem, na qualidade de irmão laico. Mas seria o fim da nossa amizade, serias então para mim o abade e eu o irmão laico. O que não posso, porém, é viver assim a teu lado, ver a tua actividade e não ser nem fazer nada; não suporto isto por mais tempo. Quero também trabalhar e mostrar o que sou e valho para que possas julgar por teus olhos se mereceu a pena livrares-me da forca.

- Alegra-me o que me dizes - retorquiu Narciso e pronunciou as suas palavras com mais precisão e clareza ainda, do que era costume. - Quando quiseres podes começar a instalar uma oficina e vou já dar instruções ao ferreiro e ao marceneiro para que se coloquem à tua disposição. Utiliza o material de trabalho que aqui possa arranjar-se e elabora uma lista do que tenha que vir de fora pelos recoveiros. Ouve, agora, o que penso das tuas intenções! Tens que dar-me tempo para me expressar: sou um estudioso e queria tentar expor-te o que penso, segundo o meu modo de ver; não posso usar outra linguagem. Segue-me, pois, novamente, com a paciência que em tempos passados tantas vezes tiveste para me ouvir.

- Tento seguir-te, fala!

- Recordas-te, decerto, que já no nosso tempo da escola, dizia que via em ti um artista. Nessa altura parecia-me que poderias vir a ser um poeta; na leitura e na escrita tinhas certa aversão pelo conceituai e abstracto, e decidida preferência pelas palavras e sons possuidores de qualidades sensíveis e poéticas, ou seja, pelas palavras que representam algo de concreto.

Goldmundo interrompeu-o. - Perdoa, mas os conceitos e abstracções teus preferidos, não são também representações e imagens? Ou, para pensar, usas e preferes palavras que nada evocam nem representam? Poder-se-á pensar sem representar algo na imaginação?

- Ainda bem que perguntas! É claro que se pode pensar sem representações! O pensamento é independente das representações, não é por meio de imagens, mas de conceitos e fórmulas, que se exerce. É precisamente onde acabam as imagens que começa a filosofia. Foi a este respeito que, outrora, tantas vezes discutimos: para ti o mundo consistia em imagens, para mim em conceitos. Sempre te disse que não eras um pensador e que isso não te diminuía porque, em compensação, imperavas no mundo das imagens. Presta atenção, vou explicar-te mais claramente: se em vez de correr mundo te tivesses dedicado à filosofia, poderia ter sido desastroso. Serias um místico. Os místicos são, resumindo um tanto grosseiramente, aqueles pensadores que não conseguem sair das representações, quer dizer, que não são verdadeiramente pensadores. São artistas ignorados; poetas sem verso, pintores sem pincel, músicos sem sons. Há entre os místicos muitos espíritos superiores e dotados, mas todos, sem excepção, são infelizes. Assim poderias vir a ser. Louvado seja Deus! em vez disso, és um artista; apoderaste-te do mundo das imagens, onde és soberano e criador, e não és um pensador frustrado.

- Receio - disse Goldmundo - que não me seja possível fazer uma ideia desses teus domínios do pensamento sem representações.

- Vais compreender imediatamente. Repara: o pensador procura conhecer e representar a essência do mundo através da lógica; não ignora que o entendimento e a lógica, seu utensílio, são instrumentos imperfeitos - tal como o artista sabedor não ignora que o seu pincel, ou cinzel, não poderá nunca manifestar perfeitamente a essência radiosa de um santo ou de um anjo. E, contudo, ambos tentam fazè-lo, tanto o pensador como o artista, cada um a seu modo. Não podem, nem lhes é dado fazer outra coisa. Tentando “realizar” os dons que a natureza nos deu, cumprimos a suprema e única missão que está ao nosso alcance. Eis porque, outrora, te dizia com tanta insistência: não tentes imitar o pensador ou o asceta, sê tu próprio, procura realizar-te a ti mesmo.

- Parece-me que te compreendo. Mas que entendes, rigorosamente, por “realizar”?

- Trata-se de um conceito filosófico que não posso traduzir de outro modo. Para nós, discípulos de Aristóteles e de S. Tomás, é o conceito supremo: a perfeição do ser. O ser perfeito é Deus. Tudo o mais é apenas virtual, apenas parcial, misto, manifesto em devir e possibilidade. Deus, porém, não é misto, mas uno; não é possibilidade, mas plena realidade. Nós é que somos transientes e imperfeitos; somos possibilidade, não participamos da perfeição nem do ser pleno. Só na medida em que caminhamos da potência para o acto, da possibilidade para a realização, participamos do ser verdadeiro, subimos na escala de aproximação à divindade. A isto chamamos realizar-nos. Deves conhecer este processo por experiência própria. És artista, fizeste várias esculturas; sempre que libertaste do acidental a imagem de um homem e a reduziste a uma forma pura - realizaste como artista essa imagem.

- Estou a compreender.

- Tens-me visto, amigo Goldmundo, na posição e no cargo, em que foi relativamente fácil realizar-me. Vês-me integrado em uma comunidade e tradição que corresponde à minha índole e me ajuda. Um convento não é um céu aberto, é cheio de imperfeições; contudo, a vida monacal assumida com sinceridade e dignidade é infinitamente mais favorável a pessoas do meu tipo, do que a vida profana. Não falo só do aspecto moral; mesmo praticamente, o pensamento puro, que é minha missão ensinar e exercer, exige certo resguardo perante o mundo. Tive, portanto, muito maior facilidade em realizar-me do que tu. É para mim motivo de admiração que, não obstante, tenhas encontrado o teu caminho e te realizasses como artista. O teu caminho foi muito mais árduo.

Goldmundo ruborizou-se, confuso e radiante com o elogio. Para desviar a conversa, interrompeu o amigo. - Compreendi quase tudo o que me disseste. Mas há uma coisa que não consigo entender: é aquilo a que chamas “pensamento puro”, o teu pensamento por assim dizer sem imagens, que opera com palavras desligadas de qualquer representação.

- Basta um exemplo para te esclarecer. Pensa na matemática. Que representações contêm os algarismos? Ou os sinais “mais” e “menos”? Que imagens contém uma equação? Nenhumas! Quando resolves um problema de aritmética ou de álgebra, nenhuma representação concreta te ajuda, realizas unicamente uma tarefa formal, no âmbito de formas de pensamento aprendidas.

- Assim é, Narciso; se me escreveres uma série de algarismos e sinais algébricos, posso haver-me com eles sem recorrer a representações, posso deixar-me guiar por aí fora, pelos sinais “mais” e “menos”, pelos expoentes, pelos parênteses, e resolver o problema. Quer dizer, podia e sabia outrora, agora já há muito tempo que não saberia. Mas não posso conceber que a resolução desses problemas formais tenha outro valor além do de um exercício mental para escolares. É bom aprender a somar; mas acharia disparate e pueril alguém que passasse a vida debruçado sobre cálculos, a encher sucessivas folhas de papel com colunas de algarismos.

- Enganas-te, Goldmundo. Supões que esse diligente matemático não faria mais do que resolver exercícios marcados pelo professor na escola. Contudo, ele pode a si próprio pôr problemas que lhe surjam com permanente urgência. Um pensador precisa de medir e calcular muitos espaços reais, antes de abalançar-se ao problema do espaço.

- Bem sei. Mas o problema do espaço, como problema de puro pensamento, não me parece valer a pena que um homem desperdice com ele o seu esforço e a sua vida. A palavra “espaço” não significa nada para mim, nem sequer me parece digna de reflexão desde que não represente um espaço real, como seja, por exemplo, o espaço sideral; contemplar e medir o firmamento isso sim, parece-me tarefa bastante meritória.

Narciso obtemperou sorridente: - queres dizer que não tens consideração pelo pensamento, só o aprecias pela sua aplicação ao mundo prático e visível. Posso responder-te que não faltam ao pensador oportunidades para aplicar o seu pensamento e vontade de o manifestar. Narciso, por exemplo, aplicou centenas de vezes os resultados da sua reflexão, tanto em relação ao seu amigo Goldmundo como a cada um dos monges do seu convento e, ainda a toda a hora o aplica. Como havia, porém, de o “aplicar” se não o tivesse primeiro aprendido e exercitado! Também o artista exercita constantemente os olhos e a fantasia e reconhecemos o seu talento, mesmo que só em poucas obras reais o manifeste. Não podes condenar o pensamento como tal e aprovar a sua “aplicação”! A contradição é evidente. Deixa-me, pois, pensar à vontade e ajuíza do meu pensamento pelos seus efeitos, tal como julgarei a tua arte pelas tuas obras. Andas agora inquieto e alterado porque se interpõem ainda obstáculos entre ti e o teu trabalho. Remove-os, procura uma oficina ou instala-a de novo e põe mãos à obra! Muitos problemas se resolverão de per si.

Goldmundo não pretendia outra coisa.

Descobriu perto do portão da cerca uma dependência que estava vazia e se prestava para oficina. Encomendou a um marceneiro uma mesa de desenho e outros utensílios para os quais lhe deu rigorosas indicações. Fez uma lista, um extenso rol, dos objectos que deveriam ser trazidos a pouco e pouco, das cidades próximas, pelos recoveiros do convento. Examinou na carpintaria e na floresta todas as provisões de madeira cortada; escolheu vários toros que mandou levar para um recinto arrelvado, situado atrás da oficina; pô-los a secar, protegidos da humidade, sob um alpendre que construiu por suas mãos. Também teve muito que fazer em casa do ferreiro, cujo filho, um rapaz novo e sonhador, a breve trecho fascinou e conquistou. Com ele passou dias a trabalhar na forja, na bigorna, na tina de resfriamento e na pedra de amolar; fabricou assim todas as facas direitas e recurvas, cinzéis, verrumas e plainas de que precisava para trabalhar a madeira. Érico, o filho do ferreiro, um rapaz dos seus vinte anos, tornou-se o seu grande amigo e ajudava-o em tudo, cheio de zelo, curiosidade e interesse. Goldmundo prometeu que o ensinaria a tocar alaúde, o que ele desejava ardentemente, e que o deixaria experimentar as suas aptidões na arte de entalhador. Quando Goldmundo se sentia inútil e oprimido no mosteiro, junto de Narciso, tinha a possibilidade de se retemperar no convívio com Érico, que lhe votava um tímido afecto e uma veneração desmedida. Era frequente pedir-lhe que lhe falasse de mestre Nicolau e da cidade episcopal; Goldmundo de bom grado acedia e, quantas vezes, subitamente, se surpreendia consigo próprio, ao ver-se ali sentado a relatar viagens e feitos do passado, como um velho, quando, afinal, a vida deveria agora começar.

Ninguém notava que, nos últimos tempos, se modificara muito e apresentava um envelhecimento precoce: ninguém o conhecera antes. As agruras da vida errante já decerto o teriam minado; depois, o período da peste com os seus sustos e, por fim, a prisão e aquela pavorosa noite na cave do castelo, tinham-no abalado profundamente e deixado vestígios: fios grisalhos na barba loira, finas rugas na pele do rosto, insónias e, por vezes, na alma, um certo esgotamento, um afrouxamento da curiosidade e do prazer, uma morna e cinzenta sensação de fartura e saciedade. Nas conversas com Érico, nas lides em casa do ferreiro e do marceneiro, ao preparar o trabalho, arrebitava, animava-se e remoçava; todos o admiravam e gostavam dele; mas sucedia-lhe frequentemente ficar sentado horas inteiras, fatigado, sorridente e absorto em devaneio, entregue à apatia e à indiferença.

Tinha um problema muito importante a resolver: por onde começaria o seu trabalho? A primeira obra que ali faria, em retribuição da hospitalidade do convento, não devia ser uma obra do acaso, executada por curiosidade; deveria, tal como o antigo património artístico, condizer e conjugar-se com o estilo e vida do convento, tornar-se parte integrante do conjunto. Teria preferido executar um altar ou um púlpito, mas não havia espaço nem necessidade de nenhum. Encontrou, em compensação, outra coisa. No refeitório dos padres havia um nicho elevado onde, durante as refeições, um dos irmãos mais novos lia o hagiológio. Não tinha adorno algum. Goldmundo resolveu fazer para a tribuna de leitura e para o acesso a ela, um revestimento de madeira entalhada, de forma semelhante à de um púlpito, com figuras em meio relevo e outras quase desprendidas do fundo. Comunicou o plano ao abade que o elogiou e acolheu com satisfação.

Quando, por fim, o trabalho pôde iniciar-se - havia neve e o Natal já tinha passado - a vida de Goldmundo adquiriu novo sentido. Parecia ter desaparecido do convento, ninguém mais lá o viu, não voltou a esperar pelo rancho dos rapazes à saída das aulas, nem a vaguear pela floresta, nem a passear pelo claustro. Tomava agora as refeições com o moleiro, que não era já o mesmo que, nos seus tempos de rapaz, visitava com tanta frequência. Na oficina não deixava entrar ninguém, excepto o seu ajudante Érico; e este mesmo, em certos dias, não lhe ouvia uma única palavra.

Após longa meditação, tinha estabelecido o seguinte plano: a tribuna de leitura do refeitório, a sua primeira obra a realizar, seria constituída por duas partes. Uma representaria o mundo, a outra o “logos” divino. A parte inferior, a escada, talhada num grosso tronco de carvalho à volta do qual se enrolava, deveria representar a criação através de imagens da natureza bíblica e a vida simples dos patriarcas. A parte superior, o parapeito, ostentaria os bustos dos quatro evangelistas. Um deles seria representado sob os traços do abade Daniel, que Deus tinha, outro, sob os do padre Martinho, seu sucessor, e, na figura de Lucas, queria imortalizar o seu mestre Nicolau.

Debateu-se com grandes dificuldades, maiores do que as previstas. A obra dava-lhe cuidados, mas eram suaves cuidados. Lutou por ela, com arroubo e desespero, como se luta pela conquista de uma mulher esquiva, com a obstinação e precaução do pescador à linha empenhado na captura de um peixe de grandes dimensões; todos os obstáculos o ensinavam e lhe afinavam a sensibilidade. Esqueceu tudo mais, esqueceu o convento, quase esqueceu Narciso. Este aparecia às vezes pela oficina, onde apenas via desenhos.

Em compensação, teve um dia a surpresa de ouvir Goldmundo pedir-lhe que o ouvisse em confissão.

- Até hoje, não tinha conseguido decidir-me - confiou-lhe ele - via-me demasiado insignificante, já me sentia suficientemente humilhado perante ti. Sinto-me agora melhor. Tenho o meu trabalho, já não sou um inútil. E, visto que estou vivendo dentro de uma comunidade religiosa, gostaria de me submeter à regra geral.

Estava, agora, preparado e não queria mais adiamentos. A visão retrospectiva da sua existência adquiria certa ordem e clareza durante a vida contemplativa das primeiras semanas de fervorosa adesão e reencontro das reminiscências de juventude e depois devido às narrativas dos seus tempos nómadas, que Érico lhe pedia.

Narciso, sem nenhum aparato, ouviu-o em confissão. Durou cerca de duas horas. O abade, de rosto impassível, escutou as aventuras, sofrimentos e pecados que o amigo lhe confessava; fez-lhe algumas perguntas, mas nunca o interrompeu e, com a mesma serenidade, recebeu a parte da confissão em que Goldmundo verificava o desaparecimento da sua crença na justiça e bondade divinas. Muito do que ouviu o comoveu; ficou conhecendo as vicissitudes e sustos da vida do amigo, que, tantas vezes estivera prestes a sucumbir. Em certos passos da confissão aflorou-lhe aos lábios um sorriso enternecido perante a puerilidade e inocência que o amigo conservara; via-o preocupado e arrependido com pensamentos ímpios, inofensivos em comparação com as suas próprias dúvidas e abismos.

Perante a surpresa e quase a decepção de Goldmundo, não se escandalizou com os seus verdadeiros pecados, mas repreendeu-o e castigou-o sem indulgência por ter descurado a oração, a confissão e a comunhão. Impôs-lhe a penitência de viver frugalmente e castamente quatro semanas antes de comungar, ouvir todas as manhãs a primeira missa e rezar todas as noites três padre-nossos e uma salve-rainha.

Depois disse-lhe: - peço-te que sigas o meu conselho e não faças esta penitência de ânimo leve. Não sei se te recordas ainda do texto da missa. Deves segui-lo palavra por palavra e compenetrar-te do seu sentido. Hoje mesmo direi contigo o padre-nosso e algumas ladainhas para te indicar as palavras e significações a que deves especialmente atender. Não deveras pronunciar nem ouvir palavras sagradas como se pronunciam e ouvem palavras profanas. Sempre que te surpreendas a engrolar as orações, o que vai acontecer com maior frequência do que julgas, lembra-te da advertência que te faço e repete-as palavra por palavra, deixando-as penetrar na alma tal como vou indicar-te.

Quer fosse o efeito de um feliz acaso ou do alcance psicológico do abade, o certo é que a esta confissão e penitência seguiu-se uma época de venturosa paz e plenitude que deu a Goldmundo profunda felicidade. No meio da tensão, dos cuidados e compensações de que o seu trabalho era pródigo, o cumprimento escrupuloso, de manhã e à noite, daqueles leves exercícios espirituais, libertava-o da ansiedade do dia e restituía o seu ser a uma ordem mais alta, arrancava-o à perigosa solidão do criador e fazia-o reverter à infância abrindo-lhe as portas do reino de Deus. Tinha de vencer sozinho a luta pela sua obra, exigente de toda a paixão da alma e dos sentidos, mas a hora da oração concedia-lhe o regresso à inocência. Se no trabalho fervia de fúria e impaciência ou de exaltada volúpia, depois, ao cumprir a piedosa devoção, mergulhava em águas profundas, frescas e lustrais, que o purificavam, tanto da soberba do entusiasmo, como da soberba do desespero.

Nem sempre isso era fácil. Por vezes, à noite, depois das ardentes horas de trabalho, não conseguia tranquilidade e concentração, esquecia-se de rezar as orações ou, quando se esforçava por recolhimento, torturava-o e inibia-o pensar que aquelas preces eram, ao fim e ao cabo, um pueril apelo a um Deus, que talvez nem sequer existisse nem pudesse ajudá-lo. Queixou-se ao amigo.

- Persiste - disse Narciso - prometeste, tens que cumprir. Não deves especular sobre se Deus atende ou não as tuas preces, nem sobre a existência de um Deus tal como tu o imaginas. Não deves ponderar se os teus esforços são ou não pueris. Em comparação com Aquele a quem dirigimos as nossas orações, tudo o que fazemos é pueril. Enquanto rezas deves afastar completamente essas tolas e acriançadas especulações. Deves dizer o teu padre-nosso e a tua salve-rainha aderindo às palavras e compenetrando-te do que estás a dizer; quando cantas ou tocas alaúde, também não te empenhas em pensamentos ou especulações; executas as notas e as dedilhações umas após as outras, com o máximo de pureza e perfeição. Quando se canta, também se não pondera se o canto é útil ou não; canta-se simplesmente. É assim que deves rezar.

E de novo Goldmundo voltava a ser bem sucedido. De novo se aplacava a tensão do seu “eu” cobiçoso, no seio dessa imensa abóbada da ordem universal, de novo as palavras venerandas o atravessavam como estrelas.

O abade verificou, com o maior regozijo, que, decorrido o prazo da penitência e depois de ter recebido os sacramentos, Goldmundo continuava a cumprir as suas devoções, durante semanas e meses.

Entretanto, a obra avançava. Do grosso fuso da escada nasceu e brotou um pequeno mundo de imagens, plantas, animais e pessoas, a que presidia o patriarca Noé, ao centro, no meio de parras e uvas; era um álbum ilustrado em louvor da criação e da sua beleza, um livre jogo de imagens, orientado todavia por secreta ordem e disciplina. Durante meses ninguém viu a obra, excepto Érico a quem era permitido ajudá-lo e que sonhava vir a ser um artista. Em certos dias nem ele era autorizado a entrar na oficina; noutros, Goldmundo interessava-se por ele, ensinava-o e deixava-o experimentar, satisfeito por ter um discípulo e um adepto. Quando a obra estivesse acabada, se ficasse a seu contento, tencionava falar com o pai de Érico, para o tomar a seu cargo, instruí-lo, e ficar com ele como oficial permanente.

Às figuras dos evangelistas dedicava os melhores dias, quando se sentia em íntimo acordo e desanuviado de dúvidas. Parecia-lhe que a mais bem sucedida era a que representava o abade Daniel; tinha por ela especial predilecção, o rosto irradiava candura e bondade.

Ficou menos satisfeito com a figura do mestre Nicolau, embora Érico a admirasse acima de todas. Ressumava tristeza e dissonância, ao arroubo inspirado aliava-se o desesperado conhecimento da inanidade do acto criador, parecia repassada de mágoa pela perda da inocência e do íntimo acordo.

Terminada a figura do abade Daniel, ordenou a Érico que limpasse a oficina. Cobriu as restantes obras com panos e colocou aquela, sozinha, em plena luz. Depois foi à procura de Narciso e, como este estava ocupado, esperou pacientemente pelo dia seguinte. Levou então o amigo à oficina, à hora do meio-dia, para que ele visse a imagem. Narciso parou e olhou. Parou e não se apressou, contemplou-a com a atenção e o escrúpulo do erudito. Goldmundo, calado atrás dele, tentava dominar o tumulto que lhe ia na alma. - Deus meu -- pensava ele - é mau se um de nós fracassa neste momento. Se a minha obra não é suficientemente boa ou se ele a não compreende, todo o meu trabalho terá sido vão. Deveria ter esperado ainda.

Os minutos pareciam-lhe horas, recordou-se do momento em que Nicolau examinara o seu desenho e apertou as mãos quentes e húmidas uma na outra.

Narciso voltou-se para ele e logo sentiu a libertação. Viu desabrochar no rosto magro do amigo o que, desde os anos da infância, nunca mais tornara a ver: um sorriso, um sorriso quase tímido, no rosto modelado pelo espírito e pela vontade, um sorriso de fervoroso amor, um clarão; como se a solidão e altivez daquele semblante tivesse deixado transparecer, por instantes, o brilho do coração cheio de amor.

- Goldmundo - disse Narciso muito baixinho, pesando, mesmo então, as suas palavras - não esperas que, de súbito, me torne um conhecedor de arte. Bem sabes que não o sou. Da tua arte nada posso dizer-te que não te pareça ridículo. Mas deixa-me dizer-te uma coisa: reconheci à primeira vista, neste apóstolo, o nosso abade Daniel, e não só ele, mas também tudo o que, em tempos, ele significava para nós: a dignidade, a bondade, a candura. Tal como o víamos na nossa juventude, assim o vejo de novo e com ele tudo o que nos era sagrado e marcou inesquecivelmente esses anos. Deste-me um presente de incomparável riqueza, meu amigo; restituíste-me o abade Daniel, que Deus tem, e, pela primeira vez, revelaste-te integralmente a meus olhos. Sei agora quem és. Não falemos mais, não devo dizer-te mais nada. Oh, Goldmundo, que maravilhosa hora chegou finalmente para nós!

Fez-se silêncio no vasto aposento. Goldmundo viu o amigo profundamente comovido; confuso, sentiu a respiração entrecortada.

Bem - disse laconicamente - muito me regozijo. Mas, vão sendo horas do teu almoço.

 

Dois anos trabalhou Goldmundo naquela obra e, a partir do segundo ano, Érico foi-lhe confiado como aprendiz. Os ornatos da escada representavam um pequeno paraíso; modelou com volúpia um delicioso matagal de árvores, folhagem e hera, com aves nas ramagens e corpos e cabeças de animais emergindo por toda a parte. No meio da serena florescência daquele horto paradisíaco, colocou algumas cenas da vida dos patriarcas. Raramente a sua existência de labor constante sofria interrupção. Raros foram os dias em que o trabalho se lhe tornava impossível, em que a inquietação ou a saciedade o impediam de continuar a obra. Quando isso acontecia, incumbia o aprendiz de qualquer tarefe, e ia, a pé ou a cavalo, até ao campo; aspirava na floresta o perfume reminiscente de liberdade e vida nómada, visitava aqui ou acolá uma rapariga do campo, ou ia à caça e passava horas na verdura, fitando as abóbadas formadas pelos cimos das copas das árvores e a frondosa espessura de fetos e giestas. Nunca permanecia mais do que um dia fora do convento. Depois, lançava-se com novo ardor à obra, talhava com volúpia as plantas e ervas luxuriantes, extraía da madeira, com branda ternura, cabeças humanas, cortava, com vigoroso golpe, uma boca, uns olhos, uma barba plissada. Além de Érico, só Narciso conhecia a obra; frequentes vezes visitava a oficina, agora o seu paradeiro predilecto. Assistia com júbilo e admiração ao trabalho do amigo. Via frutificar o que o amigo acalentara no seu inquieto e obstinado coração de criança; via crescer e desabrochar uma nova criação, brotar, como um manancial, um pequeno mundo; seria um jogo, talvez, mas decerto não inferior ao jogo da lógica, da gramática e da teologia.

Uma vez, disse pensativo: - aprendo muito contigo, Goldmundo. Começo a compreender o que é a arte. Outrora, não a tomava tanto a sério como à ciência e à filosofia. O meu raciocínio era aproximadamente este: visto que o homem é uma duvidosa mescla de espírito e matéria, visto que o espírito lhe faculta o conhecimento do absoluto e a matéria, pelo contrário, o rebaixa e o vincula ao perecível, devemos ascender ao espírito, para dar valor à vida e fugir dos sentidos. Aparentava, aliás, habitualmente, a mais alta consideração pela arte, mas, na verdade, era arrogante e olhava-a com desdém condescendente. Só agora vejo quantos caminhos há na vida do conhecimento, e o caminho do espírito não é o único, nem talvez o melhor. É o meu, indubitavelmente, e nele persistirei. Mas vejo-te trilhar a via oposta, a dos sentidos, e apreender o mistério do ser com mais profunda visão e mais vívida expressão do que a maioria dos pensadores.

- Compreendes agora - disse Goldmundo - porque não posso entender o que seja pensamento sem representação?

- Há muito que te compreendo. O nosso pensamento é uma constante abstracção que descura o sensível para edificar um mundo puramente espiritual. Tu, pelo contrário, acalentas no que há de mais fugaz e perecível e desvendas o sentido do mundo precisamente através do mais transitório e efémero; não lhe foges, entregas-te, e o teu fervor transforma-o em símbolo supremo da eternidade. Nós, pensadores, procuramos aproximar-nos de Deus subtraindo-lhe o mundo. Tu aproximas-te dele amando o seu mundo e recreando-o. Ambas as atitudes são humanas e falíveis, mas a arte é a mais inocente.

- Não sei, Narciso. Parece-me que vós, os teólogos e os pensadores, conseguis melhor haver-vos com a vida e preservar-vos do desespero. Já não te invejo a ciência, meu amigo, mas invejo a tua tranquilidade, o teu equilíbrio, a tua paz.

- Não tens motivo para isso, Goldmundo. Não há a paz que tu imaginas. Há paz, sem dúvida, mas não nos habita duradoiramente e sem interrupção. Há uma paz que sempre e constantemente exige esforço incessante, que, dia a dia, tem de ser reconquistada. Não me vês lutar, não conheces as minhas lutas, nos estudos e na cela de orações. É bom que assim seja. Vês-me apenas menos sujeito aos caprichos que te atormentam e julgas que vivo em paz. Mas toda a vida que se preza, é luta e sacrifício, como a tua.

- Não vamos discutir agora esse assunto. Também tu não conheces as minhas. E não sei se poderás compreender o que sinto, quando penso que dentro em breve esta obra estará terminada. Sairá daqui, será colocada no seu lugar, receberei elogios e, depois, volto para uma oficina vazia e nua, apoquentado com tudo o que resistiu à minha vontade de perfeição e que vós todos não sabereis ver, e sentir-me-ei tão vazio e despojado como a oficina.

- Pode ser como dizes - retorquiu Narciso - nenhum de nós pode, nesse domínio, compreender o outro totalmente. Mas uma coisa é comum a todos os homens de boa vontade: todos, por fim, nos envergonhamos das nossas obras, todos temos que recomeçar, todos temos que consumar de novo o sacrifício.

A obra de Goldmundo, concluída umas semanas mais tarde, foi colocada no local a que era destinada. Repetiu-se o que ele já previa e conhecia: passou para a posse de outros, foi contemplada e elogiada, louvaram-no e prestaram-lhe homenagem; o seu coração, porém, tal como a oficina, estava vazio e Goldmundo já não sabia se a obra valera o sacrifício. No dia da inauguração foi convidado para a mesa dos padres, onde se serviu um banquete com o vinho mais velho da casa. Goldmundo comeu o bom peixe e os bons petiscos, mas, mais do que o vinho velho, reconfortaram-no o interesse e o calor com que Narciso saudou a sua obra e as homenagens de que era alvo.

Já estava planeado novo trabalho, encomendado a pedido do abade; era um altar para a ermida da Virgem de Neuzell, que pertencia ao convento e onde oficiavam padres de Mariabronn. Goldmundo projectava fazer, para esse altar, uma imagem da Virgem em que imortalizaria uma das figuras inesquecíveis da sua juventude, a bela e receosa Lídia, a filha do cavaleiro. O resto do trabalho tinha para ele menos importância, mas pareceu-lhe a oportunidade de Érico realizar a prova que o faria ascender a oficial. Se Érico desse boa conta de si, teria um colaborador de confiança que o poderia substituir e deixar livre para os únicos trabalhos que lhe interessavam. Procurou com Érico as madeiras cuja preparação lhe entregou. Deixou-o também frequentes vezes só; recomeçara as divagações e longas caminhadas pela floresta. Quando, certa vez, se ausentou por muitos dias, Érico informou o abade e este receou que ele nunca mais voltasse. Goldmundo regressou, porém, e trabalhou durante uma semana na figura de Lídia; depois vagueou novamente.

Desde que terminara a grande obra, a sua vida perdera o equilíbrio; andava preocupado, deixava de ir à missa da manhã, sentia-se inquieto e insatisfeito. Pensava muito no mestre Nicolau e receava estar prestes a tornar-se semelhante a ele: laborioso, probo e hábil, mas privado de liberdade e de frescura. Uma pequena aventura, ocorrida pouco antes, dera-lhe que pensar. Encontrara nas suas digressões uma rapariga chamada Francisca, de quem se enamorou a tal ponto que se propôs seduzi-la empregando as suas antigas artes de galanteria. A rapariga ouvia-o de bom grado, ria dos seus gracejos, mas não acedeu aos seus requestos. Pela primeira vez sentiu que era velho aos olhos duma rapariga nova. Nunca mais a procurou, mas não pôde esquecer aquele episódio. A Francisca tinha razão, ele próprio se sentia modificado e, contudo, não eram os precoces cabelos brancos nem as rugas ao canto dos olhos que o envelheciam: era o seu íntimo, era a sua alma; achava-se velho e sinistramente parecido com o mestre Nicolau. Observava-se e encolhia os ombros, desgostoso; passara a sedentário e perdera a liberdade, deixara de ser águia ou lebre para ser bicho de capoeira. Quando vagueava pelos campos ia em busca de reminiscências da sua antiga vida errante mais do que de novas aventuras ou nova liberdade; procurava-as anelante e desconfiado como um cão procura um rasto perdido. Depois de um dia ou dois de ausência, de vadiagem e folga, sentia-se irresistivelmente impelido a regressar. Assaltavam-no remorsos, sabia que a oficina o esperava, sentia-se responsável pelo altar começado, pela madeira preparada e por Érico, o ajudante. Já não era livre, já não era jovem. Tomou uma resolução inabalável: quando a Lídia-Maria estivesse pronta, empreenderia uma viagem e tornaria a experimentar a vida errante. Não lhe fazia bem viver tanto tempo num convento em convívio só com homens. Para frades talvez fosse bom, para ele não. Ali eram possíveis conversas profundas e subtis, e os homens sabiam apreciar o trabalho do artista. Mas, tudo o mais - a tagarelice, a ternura, o jogo, o amor, o simples e irreflectido bem-estar - era impossível; só as mulheres, a vida errante e a contínua renovação de horizontes permitiam essas satisfações. Aquele ambiente um tanto adusto e agreste, um tanto pesado e viril, tinha-o contagiado, introduzira-se-lhe no sangue.

Consolava-o pensar na próxima viagem; entregou-se com ardor ao trabalho para se libertar o mais depressa possível. E, à medida que, da madeira, lhe ia surgindo gradualmente a figura de Lídia, à medida que ia deixando cair sobre os joelhos tão nobremente modelados as pregas severas do vestido, empolgava-o uma fervorosa e dolorosa exaltação, uma melancólica paixão pela imagem da linda e tímida donzela, uma saudade intensa dos tempos de outrora, do seu primeiro amor, das suas primeiras viagens, da sua juventude. Trabalhou com unção na delicada imagem ligada ao melhor do seu ser, à sua juventude e às suas mais ternas recordações. Fazia-o feliz dar forma àquele colo inclinado, à boca afectuosa e triste, às mãos finas, aos dedos afilados, às curvas abauladas das unhas. Também Érico a contemplava com respeitoso enlevo e admiração.

Quando estava quase terminada, mostrou-a ao abade. Narciso disse: - É a tua mais bela obra, meu caro, não há nada que se lhe compare em todo o convento. Devo confessar-te que nestes últimos meses me tenho preocupado contigo. Vejo-te inquieto e atormentado e, quando desaparecias e ficavas fora mais do que um dia, receava que não tornasses a voltar. Afinal fizeste esta maravilhosa imagem! É grande a minha satisfação e o meu orgulho!

- Sim - disse Goldmundo - é bela a imagem. Mas agora ouve-me, Narciso: para a realizar foram necessárias a minha juventude, as minhas viagens, os meus amores e todas as mulheres que eu cortejei. Foi esse o manancial que me alimentou. Dentro em breve estará estancada a fonte, o coração está a estiolar-se. Quando terminar esta Virgem vou gozar férias por um tempo, não sei bem quanto; vou em demanda da minha juventude e de tudo o que outrora me foi querido. Poderás compreender-me? - Bem, antes assim. Como sabes, tenho sido teu hóspede e nunca aceitei remuneração alguma pelo meu trabalho...

- Muitas vezes a ofereci - objectou Narciso.

- Pois bem, agora aceito-a. Preciso de um fato novo e, quando estiver pronto, peço-te um cavalo e meia dúzia de ducados e lanço-me à aventura. Não digas nada, Narciso, e não te aflijas. Não é porque já não me agrade aqui estar, em parte alguma poderia ter melhor vida. Outra coisa está em causa. Queres satisfazer-me este desejo?

Pouco mais falaram no assunto. Goldmundo mandou fazer umas botas e um fato simples de montar; o Verão já estava próximo quando acabou a figura da Virgem e, como se fosse a sua última obra, deu com amoroso esmero o último retoque ao rosto, às mãos e ao cabelo. Parecia que estava a adiar a partida, que estava a deixar-se prender de bom grado por aqueles últimos e delicados acabamentos. Passaram-se dias e sempre encontrava uma coisa ou outra a pôr em ordem. Narciso, embora lhe custasse muito a perspectiva da despedida, sorria, às vezes, ao ver a paixão de Goldmundo pela figura de que não podia separar-se.

Um dia, porém, Goldmundo surpreendeu-o, apresentando-se-lhe inopinadamente para se despedir. Tinha-se decidido naquela noite. De fato novo e boina nova, procurava Narciso para lhe dizer adeus. Confessara-se e comungara pouco antes. Vinha, agora, despedir-se e pedir-lhe a bênção para a viagem. A ambos custou a despedida e Goldmundo fingiu-se mais indiferente e mais forte do que, de facto, se sentia em seu íntimo.

- Tornarei a ver-te? - perguntou Narciso.

- Se o teu líndo cavalo me não quebrar o pescoço, decerto nos tornaremos a ver. De outro modo não terias ninguém que te chamasse Narciso e te desse preocupações. Desculpa. Não te esqueças de olhar por Érico. E que ninguém toque na minha imagem da Virgem! Fica, como te disse, no meu quarto e não deixes sair a chave das tuas mãos.

- Estás satisfeito por partir? Goldmundo piscou os olhos.

- Bem, para falar verdade, a viagem já me deu maior satisfação do que me dá agora. Com o pé no estribo, parece-me menos divertida do que julgava. Hás-de rir-te de mim, mas a separação custa-me e não me agrada nada este apego. É uma doença que não ataca gente nova e sã. O mestre Nicolau era também assim. Enfim, não percamos tempo com inúteis considerações. Abençoa-me, meu caro, parto em seguida.

E lá partiu a cavalo.

Os pensamentos de Narciso ocupavam-se e preocupavam-se muito com o amigo de quem tinha saudades. Voltaria a ave fugitiva, o seu querido e inconstante vagabundo? Lá tornava aquele extravagante amigo a seguir o seu rumo incerto e vário, lá errava de novo pelo mundo, ávido e curioso, impelido pelos seus fortes e obscuros instintos, impetuoso e insaciável como uma criança grande. Que Deus o acompanhasse e o fizesse voltar são e salvo! Lá esvoaçava outra vez a borboleta de um lado para o outro, tornando a pecar, a seduzir mulheres, a entregar-se aos seus apetites, porventura a enredar-se, outra vez, em homicídio, perigo e cativeiro, onde poderia - quem sabe - perecer. Quantos cuidados lhe dava esse menino loiro, que se queixava de envelhecimento, com aqueles olhos de criança! Como não havia de estar em cuidado? E, contudo, quantas alegrias lhe devia. No fundo, agradava-lhe que aquela criança obstinada fosse tão indomável, tão caprichosa, que tivesse novamente sacudido o jugo até ficar escarmentada.

Todos os dias e a todas as horas o abade pensava no amigo, com amor e saudade, com gratidão e cuidado, mas também com remorso e auto-exprobração. Não deveria ter manifestado melhor ao amigo quanto o amava, quão pouco o desejava diferente do que era e quanto ele e a sua arte o tinham enriquecido? Pouco se manifestara, demasiado pouco, talvez - quem sabe se não poderia tê-lo retido? Mas Goldmundo não o enriquecera somente; empobrecera-o também, tornara-o mais fraco e indigente, e era bom que o ignorasse. O mundo em que vivia e radicava, o mundo da vida monacal, do cargo, da erudição, de todo aquele bem articulado sistema de pensamento, várias vezes fora posto em dúvida e fortemente abalado pelo amigo. É certo que, do ponto de vista eclesiástico, do ponto de vista da razão e da moral, a sua vida era melhor, mais justa, mais constante, mais ordenada e mais exemplar; era uma vida de regra e severa disciplina, um permanente holocausto, uma contínua demanda de clareza e equidade, era muito mais pura e melhor do que a vida de um artista vagabundo e sedutor de mulheres. Mas, vista lá do alto, por Deus - seria em verdade melhor a ordem e a disciplina de uma vida exemplar, a renúncia ao mundo e ao prazer da satisfação dos sentidos, o afastamento da lama e do sangue, o refúgio na filosofia e na devoção - seria tudo isso melhor do que a vida de Goldmundo? Em boa verdade, teria o homem sido criado para uma vida ordenada, de ocupações e horarios marcados pelo sino da oração? Em verdade, teria o homem sido criado para estudar Aristóteles e Tomás de Aquino, saber grego, mortificar a carne e fugir do mundo? Não fora, antes, criado com sentidos e instintos, com as trevas do sangue e o pendor para o pecado, para o prazer e para o desespero? Os pensamentos do abade giravam em torno destes problemas sempre que se ocupavam do amigo. Sim, talvez não fosse somente mais infantil e humano viver à maneira de Goldmundo: não seria, afinal, mais corajoso e heróico também, entregar-se à cruel corrente e ao tumulto do mundo, cometer pecados e arcar com as amargas consequências, em vez de levar, longe do mundo e de mãos lavadas, uma vida sem mácula, cultivando um lindo jardim de pensamentos harmoniosos e vagueando impoluto por entre os seus canteiros bem resguardados? Não seria mais difícil, mais arrojado e mais nobre calcorrear de sapatos rotos estradas e florestas, ao sol e à chuva, passar fome e privações, brincar com a satisfação dos sentidos e pagá-la com sofrimento?

De qualquer maneira, Goldmundo mostrara-lhe que um homem fadado para altos destinos podia mergulhar no tumulto sangrento do mundo, podia macular-se com sangue e poeira sem tornar-se mesquinho nem vil, sem comprometer a parcela divina que o habita, sem deixar extinguir no santuário da alma a centelha da força criadora. Narciso tivera amplo conhecimento da vida do amigo e nem o seu amor nem o seu respeito por ele tinham diminuído. De maneira nenhuma. Desde que vira surgir das mãos maculadas de Goldmundo aquelas imagens maravilhosas, cheias de silenciosa vida e transfiguradas por interna ordem, aqueles rostos fervorosos e radiosos de expressão anímica, aquelas flores e plantas inocentes, aquelas mãos implorantes ou tocadas pela graça, aqueles gestos temerários ou suaves, arrogantes ou santificados - desde então sabia ao certo que aquele irrequieto coração de artista e sedutor de mulheres era habitado pela plenitude da luz e graça divinas.

Nas conversas com o amigo fora fácil parecer-lhe superior, opor à sua paixão a disciplina e a ordem intelectual. Mas, o mais pequeno gesto de uma figura de Goldmundo - uns olhos, uma boca, uma gavinha, uma prega de vestido - não seria mais real, mais vivo e mais imprescindível do que tudo o que um pensador pudesse produzir? Não teria aquele artista, de coração cheio de contradições e agruras, erigido para inúmeras gerações presentes e futuras símbolos da sua miséria e dos seus anseios, aos quais se dirigiria a piedade e a veneração, a angústia e a nostalgia de muitos que neles encontrariam alívio, confirmação e conforto espiritual?

Narciso recordava, com um sorriso triste, as cenas da sua juventude em que tinha guiado e ensinado o amigo. Este ouvira-o sempre com gratidão e sempre admitira a sua superioridade de mentor. Agora, apresentara sem alardes as obras nascidas das tormentas e provações da sua vida; sem palavras nem doutrinas, sem comentários nem admoestações: apenas vida autêntica e sublimada. Como ele se sentia pobre em comparação, com o seu saber, a sua ascese, a sua dialéctica!

Os seus pensamentos concentravam-se em torno destas questões. Outrora interviera na vida do jovem Goldmundo, exortando-o e despertando-o para novos horizontes; agora era o amigo que, desde o regresso, o forçara à dúvida e ao auto-exame. Equiparavam-se. Narciso nada lhe dera que não tivesse sido restituído em centuplicado.

O amigo ausente concedeu-lhe tempo para estas reflexões. Passaram-se semanas, há muito que o castanheiro florira, há muito que escurecera e endurecera a folhagem verde-láctea da faia, há muito que as cegonhas tinham feito ninho na torre da portada e tinham ensinado a voar as crias. Quanto mais Goldmundo se demorava, mais Narciso lhe sentia a falta. Havia no convento alguns padres eruditos, um comentador de Platão, um excelente gramático e um ou dois subtis teólogos. Havia também, entre os monges, algumas almas leais e sinceras que tomavam a sério a sua vocação. Mas nenhum havia que se lhe equiparasse, nenhum com quem a sério se pudesse medir. Só Goldmundo lhe dera essa presença insubstituível. Custava-lhe de novo ter que prescindir dele. Tinha saudades do amigo ausente.

Dirigia-se muitas vezes à oficina para animar Érico, o ajudante que continuava trabalhando no altar, ansioso pelo regresso do mestre. Narciso abria com frequência o quarto de Goldmundo, onde estava a imagem da Virgem; levantava cuidadosamente o pano que a cobria e demorava-se em contemplação. Nada sabia da sua origem, Goldmundo nunca lhe contara a história de Lídia. Mas compreendeu tudo, sentiu que aquela figura de donzela morara muito tempo no coração do amigo. Talvez a tivesse seduzido, talvez enganado e abandonado. Na alma, porém, tinha-a guardado e preservado mais fielmente do que o melhor esposo e, por fim, talvez ao cabo de muitos anos, fizera aquela bela e comovente Virgem em cujo rosto e mãos encerrara toda a ternura, admiração e saudade de um amante. Nas figuras do púlpito de leitura do refeitório também lia este ou aquele episódio da história do amigo, a história de um vagante e homem de instintos, nómada e volúvel; mas, o que ficara dessa história era tudo bom e fiel, vivo e cheio de amor. Que mistério o daquela vida! Despenhava-se em torrentes turvas e caudalosas que desaguavam tão claras e puras!

Narciso lutou. Venceu-se, não foi infiel à sua missão, nada descurou do seu severo serviço. Mas sofria com a falta do amigo e sofria ao verificar que a sua alma, que só devia pertencer ao sagrado ministério e a Deus, estava cativa de tão profunda amizade.

 

O Verão passou, as papoíks e as centáureas, a nigela e o áster murcharam e desapareceram, as rãs emudeceram nos charcos e as cegonhas ensaiavam os voos altos, preparando-se para a despedida. Goldmundo voltou! Chegou em uma tarde de chuva miúda e não entrou no convento; passado o portão, dirigiu-se logo para a oficina. Voltava a pé, sem o cavalo.

Érico assustou-se quando o viu entrar. É verdade que o reconheceu à primeira vista, logo um rebate do coração o preveniu. Contudo, o mestre parecia um homem muito diferente: um falso Goldmundo, envelhecido de muitos anos, com o rosto terroso, coberto de poeira e semi-amortecido; os seus traços revelavam doença e sofrimento, sem amargura porém; iluminava-os um sorriso, um sorriso de velho, bondoso e paciente. Andava a custo, arrastava-se, parecia doente e extenuado.

Aquele Goldmundo demudado e desconhecido encarou com expressão estranha o seu jovem ajudante. Não fez alarido com o regresso, foi como se viesse do quarto ao lado e ainda há pouco tivesse saído. Apertou-lhe a mão e não disse palavra, nem uma saudação, nem uma pergunta, nem uma notícia. Disse apenas:

- Preciso de dormir - e parecia, de facto, terrivelmente exausto. Mandou Érico embora e entrou no quarto contíguo à oficina. Tirou a boina, deixou-a cair, descalçou os sapatos e aproximou-se da cama. Ao fundo do quarto viu a sua madona. Acenou-lhe mas não foi levantar o pano e saudá-la. Aproximou-se do postigo, por onde viu Érico, consternado, à sua espera, e gritou-lhe: - Érico, não precisas de dizer a ninguém que cheguei. Estou muito cansado. Amanhã será tempo.

Deitou-se vestido sobre a cama. Passado algum tempo, como não conseguisse conciliar o sono, levantou-se e aproximou-se, trôpego, de um pequeno espelho de parede; contemplou com atenção o Gold-mundo que o espelho lhe devolvia: um Goldmundo exausto, um homem fatigado, envelhecido e murcho, de barba completamente grisalha. Da superfície embaciada do pequeno espelho olhava-o um homem de idade, um tanto hirsuto, um rosto ao mesmo tempo familiar e transtornado, que não parecia já bem presente e pouca relação tinha com ele. Lembrava-lhe qualquer rosto conhecido, um pouco o de mestre Nicolau, um pouco o do velho cavaleiro que outrora lhe mandara fazer um trajo de pajem, um pouco também o do São Tiago da igreja, o velho São Tiago de longas barbas, tão velhinho e pardacento, sob o seu chapéu de peregrino e ao mesmo tempo tão bondoso e álacre.

Examinou com atenção o rosto reflectido no espelho como se fosse da máxima importância conhecer aquele estranho. Acenou-lhe e tornou a reconhecê-lo: era, sem dúvida, ele próprio, correspondia ao seu íntimo. Da viagem voltara um homem cansado e um tanto insensível e insignificante; não fazia cerimónia com ele, mas não tinha nada contra ele e era-lhe até simpático; tinha algo na expressão que o antigo e belo Goldmundo não possuíra: sob a ruína e o cansaço, um ressaibo de satisfação ou, pelo menos, de impassibilidade. Riu baixinho com os seus botões e viu a imagem no espelho rir com ele: que linda cara trouxera da viagem! Voltara gasto e arrasado da sua expedição; não perdera só o cavalo, a mochila e os ducados; mais coisas se lhe tinham extraviado e perdido: a juventude, a saúde, a confiança em si, a face rubicunda e o fulgor do olhar. E, todavia, agradava-lhe esta imagem: preferia aquele velhote alquebrado ao Goldmundo que tanto tempo fora. Era mais velho, mais fraco, mais lastimoso, mas também mais inofensivo, mais satisfeito e de trato mais fácil. Riu-se e baixou uma das pálpebras enrugadas. Depois voltou para a cama e adormeceu.

No dia seguinte, estava ele sentado no quarto, debruçado sobre a mesa a tentar desenhar, quando Narciso veio visitá-lo. A porta parou e disse: - Informaram-me de que tinhas voltado. Louvado seja Deus, quanto me alegro. Como não foste ter comigo, venho eu ao teu encontro. Perturbo-te no trabalho?

Aproximou-se e Goldmundo, erguendo a cabeça do papel, estendeu-lhe a mão. Embora Érico o tivesse preparado, Narciso assustou-se ao ver o amigo. Este olhava-o afectuosamente.

- Estou de volta, como vês. Deus te salve, Narciso; estivemos um bom pedaço sem nos ver. Desculpa não te ter ainda visitado.

Narciso fitou-o de olhos nos olhos; apercebeu-se não só do ar apagado e da triste ruína daquela face, mas também do resto: do estranho e ameno aspecto de impossibilidade e quase de indiferença, de resignação e de senil alacridade. Versado na leitura de fisionomias notou que aquele Goldmundo, tão mudado e irreconhecível, já não estava completamente presente, que a sua alma se afastara muito da realidade pelos caminhos do sonho, ou que estava às portas do além.

- Estás doente? - perguntou a medo.

- Sim, estou doente, é verdade. Adoeci logo nos primeiros dias da viagem. Mas compreendes, não queria voltar atrás. Ter-se-Íam rido de mim, se tão cedo regressasse e descalçasse as botas de montar. Por isso não me agradava voltar. Continuei para diante, ainda dei umas voltas de um lado para outro, envergonhado com o insucesso da viagem. Tinha tido mais olhos do que barriga. A verdade é que me envergonhava. Compreendes, é claro. És tão inteligente! Desculpa, perguntaste alguma coisa? Parece bruxedo, estou sempre a esquecer-me do que ia para dizer. Mas olha, a respeito de minha mãe, tiveste muita razão. Fez-me doer muito, mas...

O seu murmúrio extinguiu-se em sorriso.

- Vamos pôr-te bom outra vez, Goldmundo, nada te faltará. Mas parece impossível não teres voltado para trás, logo que começaste a sentir-se mal! Não tinhas nada que te envergonhasse! Devias ter voltado imediatamente.

Goldmundo riu-se.

- Bem, já sei o que estava a dizer. O certo é que me faltava simplesmente a coragem para voltar. Era um vexame. Mas agora voltei, agora já estou bem.

- Tiveste muitas dores?

- Dores? Ai sim, tive bastantes dores. Mas olha, as dores são boas, foram elas que me fizeram ter juízo. Agora nem de ti, sequer, me envergonho. Da outra vez, quando me visitaste na prisão para me salvar a vida, tive que apertar os dentes, tal a vergonha que sentia. Isso agora passou.

Narciso pôs-lhe a mão no braço e ele imediatamente se calou e fechou os olhos. Adormeceu serenamente. O abade correu consternado a chamar o médico da casa, o padre António, para que o examinasse. Quando voltaram, Goldmundo estava sentado a dormir à mesa de desenho. Levaram-no para a cama e o médico ficou à sua cabeceira.

Achou-o muito mal. Não havia esperanças de o salvar. Transportaram-no para um dos quartos da enfermaria e Érico ficou encarregado de o velar permanentemente.

A história da sua última viagem nunca chegou a ser completamente conhecida. Parte contou ele e alguns factos facilmente se adivinhavam. Havia ocasiões em que não dava acordo de si, noutras falava alto em delírio febril, noutras ainda, recuperava a lucidez; sempre que isso sucedia, Narciso dera ordem para o chamarem, porque as derradeiras conversas com Goldmundo eram para ele da mais alta importância. Alguns fragmentos dos relatos de Goldmundo foram transmitidos por Narciso e outros pelo ajudante.

- Quando começaram as dores? Foi logo no início da viagem; ao atravessar uma floresta caí ao rio com o cavalo, por uma ribanceira, e estive uma noite inteira metido na água fria. Cá dentro quebrei as costelas e alojaram-se-me desde então estas dores. Nessa altura não estava muito distante daqui, mas não queria voltar para trás; por criancice, talvez, mas pensava que seria ridículo. Continuei, pois, a viagem e, quando já não podia aguentar-me a cavalo por causa das dores, vendi o cavalinho e passei muito tempo no hospital.

Agora fico aqui, Narciso, não há mais passeios a cavalo. Acabaram-se os folguedos e as mulheres. Se isto não tivesse acontecido, permaneceria lá fora ainda muitos anos e bons. Mas quando reconheci que já não havia nenhuma alegria para mim, lá fora, pensei: antes de morrer quero desenhar e criar mais umas figuras, alguma alegria se tem que ter na vida.

Narciso confessou-lhe: - Estou tão contente pelo teu regresso. Fizeste-me tanta falta, pensava em ti todos os dias e quantas vezes receei que não voltasses mais.

Goldmundo abanou a cabeça: - Não seria grande perda, vamos lá.

Narciso, com o coração transbordando de amor e mágoa, inclinou-se lentamente para ele e, pela primeira vez após tantos anos de amizade, aflorou com os lábios a testa e o cabelo de Goldmundo. Este percebeu o que se passara, surpreendido primeiro e em seguida comovido.

- Goldmundo - segredou-lhe o amigo ao ouvido - perdoa não te ter dito mais cedo. Podia ter-te dito quando fui procurar-te em tempos à prisão, na residência episcopal, ou quando vi as tuas primeiras figuras, ou em qualquer outra ocasião. Deixa-me dizer-te hoje quanto te amo, tudo quando foste sempre para mim, quanto enriqueceste a minha vida. Para ti, pouco significado isto poderá ter. Estás habituado ao amor, o amor não é ave rara para quem foi amado e acarinhado por tantas mulheres. Para mim é diferente. A minha vida foi pobre de amor, faltou-me o melhor. O nosso abade Daniel disse-me um dia que me considerava soberbo e teve, provavelmente, razão. Não sou injusto para ninguém, esforço-me por ser equitativo e indulgente, mas amar, nunca amei ninguém. De dois eruditos do convento prefiro o mais erudito; nunca apreciei um fraco letrado, atendendo à sua fraqueza. Se, não obstante, sei o que é amar, a ti o devo. Só a ti, entre tantos, pude amar. Nem podes avaliar o que isto significa. É a fonte no deserto, a árvore em flor no ermo. A ti devo que o meu coração não tivesse definhado, que haja algo em mim susceptível de ser atingido pela graça.

Goldmundo sorriu, contente e confuso. Com a voz baixa e tranquila das suas horas lúcidas, disse: - quando, em tempos, me libertaste da forca e voltámos para o convento, perguntei-te pelo meu cavalo Bless e soubeste dar-me notícias dele. Vi, nessa ocasião, que te tinhas ocupado do cavalinho, tu que geralmente não distingues os animais uns dos outros. Percebi que o fizeras em minha intenção e regozijei-me. Reconheço agora que assim foi e que me amas de verdade. Também eu sempre te amei, Narciso, metade da minha vida passou-se no esforço pela tua conquista. Sabia que também eras meu amigo; mas nunca esperei que um dia mo dissesses, tu, tão orgulhoso. Disseste-mo neste momento em que mais nada possuo, neste momento em que a vida errante e a liberdade, o mundo e as mulheres, me desertaram. Aceito e agradeço-te.

A madona-Lídia assistia a esta cena.

- Continuas a pensar na morte? - perguntou Narciso.

- Penso, e penso no que foi a minha vida. Quando era adolescente, quando ainda era teu discípulo, tinha a ambição de vir a ser um homem tão douto como tu. Mostraste-me que não era essa a minha vocação. Voltei-me para a outra face da vida e as mulheres faulitaram-me a descoberta do prazer, são tão ávidas, cão dóceis. Mas não quero dizer mal delas nem da volúpia dos sentidos, tantas vezes me fizeram feliz. Foi-me dada a ventura de descobrir que se pode insuflar alma à sensualidade, que é essa a origem da arte. Agora, ambas as chamas se extinguiram. Não tenho já a satisfação animal da volúpia - e não a teria mesmo que as mulheres ainda hoje me pretendessem. E já não desejo também criar outras obras de arte, bastam-me as realizadas, o número não importa. Chegou, portanto, a minha hora. Estou conformado e cheio de curiosidade.

- Curiosidade porquê? - perguntou Narciso.

- Talvez seja tolice da minha parte. Mas estou deveras curioso. Não é curiosidade do além, o além dá-me poucos cuidados e, para te falar abertamente, não acredito em nenhum além. A árvore seca, morreu para sempre; a ave enregelada nunca mais torna à vida e o mesmo acontece ao homem quando morre. Pode ainda ser lembrado por um tempo, mas nem isso é de longa dura. Não, se estou curioso da morte é unicamente porque continuo a crer ou a sonhar que estou a caminho de minha mãe. Espero que a morte seja uma grande ventura, tão grande como a da primeira plenitude amorosa. Não posso impedir-me de pensar que, em vez da morte com a sua foice, será a minha mãe que me levará consigo e me fera voltar ao nada e à inocência.

Depois de Goldmundo ter estado vários dias sem falar, Narciso encontrou-o, de novo, lúcido e comunicativo.

- O padre António afirma que deves ter dores intensas, com frequência. Como podes suportá-las tão pacientemente, Goldmundo? Parece-me que encontraste agora a paz.

- Referes-te à paz com Deus? Não, essa não a encontrei. Nem quero a paz com ele. Ele fez mal ao mundo, não temos que louvá-lo e a ele também pouco se lhe dá, decerto, que o louvemos ou não. O mundo está mal feito. Mas fiz as pazes, é certo, com as dores no meu peito. Dantes não suportava bem as dores e julgava erradamente que a morte me seria fácil. Quando estive em sério risco de morrer, naquela noite na prisão do conde Henrique, bem se viu que me enganava: não podia morrer de maneira nenhuma, era ainda demasiado forte e impetuoso, teriam que matar duas vezes cada parte do meu corpo.

Cansava-o falar, a voz enfraqueceu-lhe e Narciso pediu-lhe que se poupasse.

- Não - disse ele - tenho que contar-te tudo. Outrora teria tido vergonha de to confessar. Vais rir-te. Quando montei a cavalo e parti daqui, não ia completamente ao acaso. Chegara aos meus ouvidos o boato que o conde Henrique se encontrava de novo na região e com ele a Inês. Bem, a ti não te parece que isto fosse importante; a mim, agora, também não mas, ao tempo, aquela notícia consumia-me. Só pensava em Inês. Era a mulher mais bela que jamais conhecera e amara, queria tornar a vê-la, queria voltar a gozar com ela a felicidade de outros tempos. Passada uma semana encontrei-a. Foi nessa hora que se deu a minha transformação. Como ia dizendo, encontrei Inês, não menos formosa do que antes e tive oportunidade de vê-la e falar-lhe. E vê tu, Narciso, ela não quis saber de mim. Era demasiado velho para ela, não era já suficientemente jovem e bonito, já nada esperava de mim. Foi aí que terminou realmente a minha viagem. Mas continuei, não queria voltar tão desiludido e ridículo; fui para diante, mas já a força, a inteligência e a juventude me tinham abandonado por completo; caí com o cavalo num barranco, parti as costelas e fiquei estatelado na água. Ao cair, senti rebentar qualquer coisa no peito e regozijei-me, ouvi com gosto o estalido e folguei. Estava caído na água e soube que ia morrer, mas tudo era muito diferente do que fora outrora na prisão. Não tinha nada a objectar, a morte não me parecia má. Acometeram-me estas dores violentas que, desde então, tenho tido com frequência; mas, ao mesmo tempo, tive um sonho ou uma visão; senti uma dor dilacerante no peito, resisti e gritei, quando ouvi o riso de uma voz - uma voz que desde a infância não mais ouvira. Era a voz de minha mãe, uma voz profunda de mulher, cheia de volúpia e amor. Vi então que era ela, a mãe, que estava comigo, me tinha sentado ao seu colo, me tinha rasgado o peito e metido os dedos entre as costelas para me arrancar o coração. Quando a vi e compreendi quem era, não senti mais dores. Agora, sempre que voltam, já não são dores, não são inimigas; são os dedos da mãe arrancando-me o coração. E empenha-se com afã. Por vezes carrega mais e geme voluptuosamente. Outras vezes ri-se e balbucia palavras ternas. Outras ainda não está comigo, está lá em cima no céu, vejo-lhe, entre as nuvens, o rosto grande como elas, pairando e sorrindo tristemente; e o seu sorriso triste absorve-me e arranca-me o coração do peito. Voltava constantemente a falar da mãe.

- Lembras-te ainda? - perguntou em um dos últimos dias. - Tinha esquecido a minha mãe e tu esconjuraste-a. Também nessa ocasião me fez doer muito, foi como se bocarras de animais me devorassem as entranhas. Ao tempo éramos ambos uns rapazinhos jovens e bonitos. Mas já então a mãe me chamou e tive que a seguir. Estava por toda a parte. Ela era a cigana Lise, a bela madona do mestre Nicolau, a vida, o amor, a volúpia e também a angústia, a fome e o instinto. Agora é a morte e tem os dedos cravados no meu peito.

- Não fales demais, meu caro - pediu Narciso - espera até amanhã.

Goldmundo olhou-o, sorrindo com aquele novo sorriso trazido da viagem, que lhe dava, às vezes, uma aparência tão frágil e senil, quase demente, e era, outras vezes, uma transfiguração em pura bondade e sageza.

- Meu querido - ciciou ele - não posso esperar por amanhã. Tenho que despedir-me de ti, tenho que dizer-te tudo antes de me despedir. Ouve-me mais um momento. Queria falar-te da mãe e de como o meu coração está preso pelos seus dedos. Há muitos anos que o meu mais dilecto e misterioso sonho era fazer uma imagem da mãe, para mim a mais sagrada imagem; trazia-a sempre comigo, cheia de amor e mistério. Ainda há pouco tempo me teria sido insuportável pensar que morreria sem a ter realizado; toda a minha vida me pareceria inútil. E agora, vê como é estranho o que se passou comigo e com ela: em vez de as minhas mãos a formarem e configurarem, é ela que me forma e configura. Agarra no meu coração, desprende-o e deixa-me vazio; arrastou-me à morte com a sua sedução e comigo morre também o meu sonho, a bela imagem da grande mãe Eva. Ainda a vejo e se tivesse força nas mãos, poderia modelá-la; mas ela não quer que eu revele o seu segredo. Prefere que eu morra. E morro de bom grado, ela suaviza-me a morte.

Narciso ouviu consternado aquelas palavras e teve de se debruçar muito sobre o rosto do amigo para as poder compreender. Mal distinguiu algumas, outras ouviu bem, mas não lhes entendia o sentido.

Goldmundo voltou a abrir os olhos e contemplou longamente o rosto do amigo. Despedia-se dele com o olhar. E, com um gesto, como se tentasse abanar a cabeça, segredou: - como hás-de tu morrer, Narciso, se não tens mãe? Sem mãe não se pode amar, sem mãe não se pode morrer.

O que depois ainda murmurou, não era já compreensível. Narciso passou os derradeiros dias sentado à cabeceira do amigo, dia e noite assistindo à sua agonia. As últimas palavras de Goldmundo queimaram-lhe, como fogo, o coração.

 

                                                                                Hermann Hesse  

 

                      

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