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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NAS ESTRADAS DE PISA / Karen Blixen
NAS ESTRADAS DE PISA / Karen Blixen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "VT"

 

 

 

Sete Contos Góticos / Isak Dinesen

 

 

                   O FRASQUINHO DE SAIS

Corria o ano de 1823. Por uma tarde bonita de Maio, no jardim de uma osteria perto de Pisa, sentado à mesa cujo tampo era a mó de um moinho, o conde Augustus von Schimmelmann, jovem aristocrata dinamar quês de temperamento melancólico, um belo homem, se não fosse um tanto gordo, escrevia uma carta. Como não conseguisse terminá-la, ergueu-se e foi dar um passeio pela estrada real, enquanto na pousada se fazia o seu jantar. O sol quase desaparecia já. Raios de ouro caíam por entre os altos choupos que bordavam a estrada. O aroma das ervas e das copas enchia o ar cálido e puro, e bandos imensos de andorinhas cruzavam os céus em todas as direcções, como se quisessem gozar cada minuto dessa última meia hora de luz.

 

Os pensamentos do conde Augustus iam só para a carta. Era dirigida a um amigo na Alemanha, camarada dos tempos felizes de estudante em Ingolstadt, e a única pessoa com quem podia usar de uma absoluta franqueza. Mas terei sido, pensou, absolutamente verdadeiro na minha carta para ele? Dava um ano de vida para poder conversar com ele esta noite, e enquanto falasse observar o seu rosto. Como é difícil conhecer a verdade. Será de todo impossível sermos absolutamente verdadeiros quando estamos sós? A verdade, como o tempo, é uma ideia derivada e dependente das relações entre os seres humanos. Qual é a verdade sobre uma montanha de África, que não tem nome nem um carreiro que a sulque? A verdade sobre esta estrada é que vai dar a Pisa, e a verdade sobre Pisa é a que pode achar-se nos livros escritos e lidos por seres humanos. Qual é a verdade sobre um homem numa ilha deserta? E eu, eu sou um homem numa ilha deserta. Nos meus tempos de estudante, os amigos riam-se de mim, porque tinha o hábito de me ver ao espelho, e decorava os meus quartos com espelhos. Pensavam eles que eu tinha vaidade na minha pessoa. Mas não. Na realidade, se me olhava ao espe lho era para conhecer-me. Os espelhos não mentem. Com um arrepio de nojo, Augustus recordou o dia em que fora levado, criança ainda, a ver a sala dos espelhos do Panoptikon em Copenague, onde vemos a nossa imagem reflectida à esquerda e à direita, no tecto e no chão, em uma centena de espelhos que, um a um, distorcem e pervertem o nosso rosto e figura de um modo sempre diferente - já encurtando, já esticando, já alargando ou comprimindo as formas, mantendo porém uma sorte de se melhança connosco - e pensou como esta sala se parecia com a vida real. Ali também o próprio eu, a personalidade e a existência se reflectem na alma daqueles que nos conhecem e connosco vivem, numa semelhança, numa caricatura de nós que permanece viva e finge ser, de um certo modo, a verdade sobre nós. A imagem mais lisonjeira é tão-somente uma caricatura e uma falsidade. Um coração a que nos liga o afecto e a simpatia, e assim é o de Karl - pensou ele - é como o espelho verdadeiro da alma e por isso a sua amizade me é tão cara. O amor deveria ser mais ainda este espelho. Deveria dar-nos, pelas estradas da vida, a companhia de uma outra alma que reflectisse a nossa fortuna como o nosso infortúnio, e que nos provasse que tudo não é sonho. O casamento tem sido para mim o ideal desta presença, na minha vida, de uma mulher com quem eu possa falar amanhã do que ontem me aconteceu.

 

Suspirou, e os seus pensamentos voltaram-se de novo para a carta. Nela tentava explicar ao amigo as razões que o tinham afastado de sua casa. Tivera o infortúnio de casar-se com uma mulher muito ciumenta. Não é, pensou ele, que ela tenha ciúmes das outras mulheres. De facto não tem, de modo algum, e as razões para tal são, a primeira, ela saber que pode ombrear com qualquer mulher, pois é a mais encantadora sempre; e a segunda, ela sentir que as outras mulheres pouco signifi cam para mim. O próprio Karl há-de lembrar-se que as breves aventuras que tive em Ingolstadt significaram menos para mim do que a ópera, quando uma companhia de cantores ia dar a Alceste ou o Don Giovanni - e menos ainda que os estudos. Os ciúmes que ela tem são dos meus amigos, dos meus cães, das florestas de Lindenburg, das minhas pistolas e dos meus livros. Ela tem ciúmes das coisas mais ab surdas.

 

Augustus recordou o que se passara seis meses depois do casamento. Fora ao quarto da mulher para dar-lhe um par de brincos que obrigara um amigo a comprar para ele em Paris, de entre os bens do duque de Berri. Sempre gostara de jóias, conhecia bem o seu valor e era um en tendido em lapidação. Aborrecia-o até por vezes que os homens não fossem livres de usar jóias e, uma vez casado, fora para ele um prazer oferecê-las à mulher, a quem realçavam a beleza e ficavam tão bem. Estes brincos então eram perfeitíssimos, e ele ficara tão satisfeito por obtê-los que os quis fechar por suas mãos nas orelhas da mulher, e segurou o espelho para que ela os admirasse. Ela observava-o, e reparou que os olhos dele estavam fitos nos diamantes e não no seu rosto. Imediatamente os tirou e lhos devolveu. «Creio bem - disse ela, e os seus olhos enxutos eram mais trágicos do que se estivessem marejados de lágrimas - que não tenho o seu gosto pelas coisas boni tas.» Desde esse dia ela nunca mais pôs uma jóia e adoptou um estilo de vestir-se tão severo como o de uma freira, mas tão elegante e graciosa era ela que, fez sensação e criou toda uma escola de imitadoras.

 

Poderei fazer o Karl entender, pensou Augustus, que ela tem de facto ciúmes das próprias jóias? É uma loucura, que ninguém poderá compreender. Aliás, nem eu mesmo a compreendo, e penso até que muitas foram as vezes em que a fiz tão desgraçada como ela me fez infeliz. Esperava encontrar na minha mulher alguém com quem pudesse partilhar cada emoção da minha alma. Mas com Malvina foi absolutamente impossível. Ela obrigava-me a mentir vinte vezes por dia, a enganá-la até com o olhar e a voz. Não, estou certo que aquilo assim não podia continuar, que tive razão em abandoná-la, porque, enquanto vivesse com ela, seria sempre a mesma coisa. Mas que será de mim agora? Não sei o que fazer de mim ou da minha vida. Poderei eu confiar no destino para que me ajude e me estenda a mão pela primeira vez?

 

Tirou do bolso do colete um pequeno objecto e contemplou-o. Era um frasquinho de sais, desses que as senhoras de uma geração passada costumavam usar, feito na forma de um coração. Tinha pintada uma paisagem de grandes árvores, e uma ponte sobre um rio. Ao fundo, num alto monte ou rochedo, erguia-se um castelo rosado com uma torre, e numa fita, sob a paisagem, liam-se as palavras Amitié Sincère.

 

Sorriu ao pensar no quanto esse frasquinho pesara na sua decisão de vir a Itália. Pertencera a uma donzela tia de seu pai, que fora uma beldade nos seus tempos e ele estimara muito. Em rapariga tinha viajado pela Itália e estivera hospedada naquele mesmo palácio cor-de-rosa, e todos os sonhos de quimera e aventura estavam no seu espírito ligados a ele. Tinha fé no seu frasquinho de sais, pensava que era remédio para todas as dores - dos dentes ou da alma. Enquanto foi menino, Augustus partilhou destas fantasias da tia-avó, inventando histórias sobre as belas coisas que haveria nessa casa, e a vida feliz dos que lá viviam. Agora que a tia-avó tinha morrido, há muitos anos, ninguém mais sabia onde se achava tal lugar. Talvez, pensou ele, um dia eu atravesse a ponte sob as árvores e veja a fraga e o castelo diante dos meus olhos.

 

Como é misterioso e difícil viver, pensou, e que é a vida? Porque se me afigura a minha vida tão extraordinariamente importante, mais importante que outra coisa qualquer já sucedida? Talvez daqui a cem anos haja quem leia sobre mim, e sobre a minha tristeza desta noite, e nela ache tão-somente, se nela achar alguma coisa, um amável entretém.

 

                     O ACIDENTE

Nesse instante foi interrompido em seus pensamentos por um ruído medonho atrás de si. Voltou-se; o Sol poente brilhou intenso nos seus olhos, cegando-o, e por segundos ele viu o mundo todo em prata, ouro e chamas. Numa nuvem de pó um grande coche vinha-se aproximando a uma velocidade aterradora, os cavalos correndo num galope desenfreado e atirando a carruagem de um ao outro lado da estrada. Nesse entretanto julgou ver duas formas humanas que o tumulto derribava e cuspia. Efectivamente, cocheiro e trintanário viravam da boleia e caíam, arremessados à estrada. Augustus ainda pensou em atravessar-se na carreira dos cavalos no intuito de os fazer parar, mas, antes que o coche o alcançasse, alguma coisa se quebrava; primeiro um, depois o outro, os cavalos desprendiam-se e passavam por ele a galope. Atirada para a berma, a carruagem ali parou de todo, com uma das rodas traseiras solta. Augustus acorreu.

 

Contra o assento da carruagem desfeita, agora imóvel no pó, jazia um velho calvo de rosto distinto e grande nariz. Fitava Augustus nos olhos, mas era tal a sua palidez e tão extrema a sua quietude, que Augustus supôs vê-lo já morto afinal.

 

- Deixe-me ajudá-lo, cavalheiro - disse Augustus. - O senhor sofreu um horrível acidente, mas espero que os seus ferimentos não sejam graves.

 

O velho voltou a fitá-lo como antes, de olhos espantados.

 

Uma robusta moça que antes viajava no banco fronteiro e tombara de mãos e joelhos, começava a desenvencilhar-se agora de almofadas e pacotes, em altos choros. O velhote volveu os olhos para ela e disse:

 

- Ponha-me o chapéu.

 

A criada, pois outra não era a moça, com algum esforço logrou alcançar um grande chapéu com plumas de avestruz e fixá-lo na cabeça calva. Presa ao interior do chapéu estava uma profusão de caracóis prateados, e de um momento para o outro o velho transformou-se numa senhora de aparência requintada e imponente. O chapéu parecia devolver-lhe a serenidade. Achou até a sombra de um sorriso com que docemente agradecia a Augustus.

 

O cocheiro aproximava-se correndo, todo coberto de pó, enquanto o trintanário permanecia estendido e desacordado no meio da estrada. Também a gente da osteria aí vinha, de braços levantados e em sonoras exclamações de compaixão. Um deles trazia um dos cavalos, e ao longe viam-se dois camponeses tentando agarrar o outro. Entre eles carregaram a velha senhora dos destroços do veículo para o melhor quarto da pousada, que se encontrava adornado com um leito enorme de cortinas vermelhas. Ela estava ainda mortalmente pálida, e respirava com dificuldade. O braço direito parecia haver-se fracturado acima do pulso, mas se outros ferimentos tinha não o sabiam eles dizer. A criada, os grandes olhos redondos como dois botões negros, voltou-se para Augustus e perguntou:

 

- O senhor é médico?

 

- Não - disse a velha senhora, da cama, numa voz muito sumida, rouca pela dor. - Não, ele não é médico nem padre, e eu também não quero nada nem dum nem doutro. É um fidalgo, e só de um fidalgo eu preciso. Saiam do quarto, todos, e deixem-me falar com ele em particular.

 

Quando ficaram sós, o seu rosto alterou-se e ela fechou os olhos; depois disse-lhe que se aproximasse e perguntou-lhe o nome.

 

- Conde - disse ela, após um curto silêncio - o senhor acredita em Deus?

 

Esta pergunta, tão directa, lançou Augustus em confusão, mas, como sentisse os olhos pálidos e cansados da senhora pousados nele, respondeu:

 

- Era exactamente essa a pergunta que eu fazia a mim mesmo quando os cavalos de Vossa Excelência largaram em disparada. Não sei.

 

- Deus existe - disse ela - e até os muito jovens se aperceberão disso um dia. Eu vou morrer - prosseguiu - mas não posso, não quero morrer sem ver a minha neta uma vez mais. O senhor, que tem sangue fidalgo e uma alma nobre, quererá encarregar-se de a descobrir e de a trazer aqui?

 

Fez uma pausa, e uma estranha série de expressões perpassou pelo seu rosto.

 

Diga-lhe que eu já não posso erguer a mão direita e que lhe darei a minha bênção.

 

Augustus, depois de reflectir por um instante, perguntou onde poderia achar a jovem.

 

- Ela está em Pisa - disse a avó - e o seu nome é Donna Rosina di Gampocorta. Se estivesse neste país há nove meses atrás, haveria de saber o seu nome, pois nessa altura não se falava de outra coisa.

 

Era tão fraco o seu murmúrio que ele precisou de encostar a cabeça ao travesseiro para ouvi-la, e por momentos julgou que ela se finava. Foi então que pareceu recuperar as forças. A sua voz era outra, chegando a ser por vezes muito clara e aguda, mas ele não tinha a certeza de que ela o via, ou sabia onde se encontrava. Uma leve cor rosada subiu-lhe às faces; as pálpebras, como um espesso crepe, estremeciam ligeiramente. Estranhas e profundas emoções se apoderavam de todo o seu ser.

 

- Vou contar-lhe a minha história - disse ela - para que o senhor possa entender o que pretendo de si.

 

                   A HISTÓRIA DA VELHA SENHORA

Sou uma velha - disse - e conheço o mundo. Não me apego a ele, pois conheço-o o suficiente para saber que, quanto mais nos apegamos a uma coisa, seja o que for, mais somos vítimas do seu desprezo ou do seu cansaço. Nem sequer me apego a Deus, e pela mesma razão. Não queira ter pena de mim por eu estar a morrer, porque eu penso que estar-se morto é realmente mais comme il faut do que estar-se vivo.

 

Tive apaixonados, um marido, centenas de amigos e admiradores. Eu própria só amei na vida três pessoas, e só uma delas me resta agora, esta menina, Rosina.

 

Sua mãe não era minha filha, realmente - era minha enteada. Mas o afecto que nos unia era mais profundo que o foi jamais o amor de mães e filhas verdadeiras. Eu assim o quis, aliás, pois desde muito nova sempre tive o maior terror do parto, e quando fui pedida em casamento por um viúvo cuja primeira mulher morrera ao dar à luz, impus-lhe como condição que eu nunca lhe daria filhos, e ele, movido pela minha beleza e pela minha fortuna, aceitou. Essa menina, Anna, era tão linda que eu vi com os meus próprios olhos a imagem de São José na Basílica voltar a cabeça para a seguir, saudoso do rosto da Virgem no tempo do seu noivado. Os seus pés eram como o bico de um cisne, e o sapateiro fazia os nossos sapatos na mesma forma. Eu eduquei-a na aceitação de que a beleza da mulher é a arte suprema de Deus, e que se não deve desperdiçá-la, mas, quando ela fez dezassete anos, apaixonou-se por um homem, um militar, ainda para mais - porque se estava no tempo das guerras com os franceses e com o seu horrível Imperador. Anna casou com ele e seguiu-o, e um ano mais tarde morria, em grande sofrimento, como sua mãe.

 

Embora eu nunca me sentisse capaz de gostar verdadeiramente de uma criança do sexo masculino, tive esperanças que o bebé fosse um rapaz. Mas era uma menina, e foi confiada aos meus cuidados visto o pai não suportar vê-la sequer; ele acabou por morrer de desgosto poucos meses mais tarde, deixando-a herdeira de grandes riquezas, das quais a maior parte provinha dos saques de guerra.

 

Agora, que via crescer a minha neta, há-de compreender que não me saía do pensamento a preocupação de preparar-lhe o futuro. Disse-lhe que a beleza da mãe fora a arte suprema do Altíssimo? Não, essa foi afinal o esboço, e Rosina, ela sim, era a obra-prima das Suas mãos. Era tão loura que se dizia em Pisa que, ao beber ela vinho tinto, se podia seguir o curso do líquido passando pela sua garganta e pelo seu peito. Eu não desejava que ela casasse, e por isso dava-me grande alegria ver a aspereza e o desdém com que essa criança tratava todos os homens, em especial os jovens e brilhantes mancebos que a cercavam em adoração. Mas eu envelhecia, e não queria, quando morresse, deixá-la só no mundo. Na manhã dos seus dezassete anos levei à Igreja de Santa Maria della Spina um grande tesouro que estivera na família de minha mãe por muitas centenas de anos: um cinto de castidade que um dos meus antepassados mandara fazer em Espanha quando foi combater os infiéis. E porque a sua esposa era uma sobrinha de São Fernando de Castela, estava o cinto cravejado de cruzes em rubis. Ofereci-o aos santos, para que eles me ajudassem a achar o que devia fazer.

 

Nessa mesma noite dei um grande baile, durante o qual o príncipe Pozentiani viu Rosina e solicitou a sua mão. Agora pergunto-lhe, conde, não estava ali a resposta às minhas orações? Porque o príncipe era um magnífico partido. Ele é hoje o homem mais rico da Província, pois é voz corrente que a sua família não sabe como impedir-se de fa zer fortuna, seja por que maneira for. Embora seja um tanto entrado em anos, é uma pessoa absolutamente encantadora, um Mecenas, um homem de gostos requintados e de muitos talentos, e um velho amigo meu. E eu sabia também que um capricho da natureza o tornou, admirador que era do sexo feminino, incapaz de ser amante ou marido. Era a sua vaidade ou a sua fraqueza não gostar que isto se soubesse, e costumava manter consigo as mais dispendiosas cortesãs, e todos tinham medo dele, por isso o segredo nunca foi espalhado. Mas eu sabia-o porque, muitos anos antes, ele fora um dos meus maiores admiradores, e eu gostara muito dele. Fiquei tão feliz, tão grata, que vi no meu próprio rosto, sorrindo-me no espelho, a imagem de uma alma em glória.

 

A jovem Rosina também ficou satisfeita com a proposta do príncipe, e durante uns tempos gostou muito dele, pela sua inteligência, pelo seu encanto de maneiras, e por todos os ricos presentes com que ele a cu mulava. Era já público o noivado quando, uma noite, estando eu recolhida, Rosina entrou no meu quarto com o seu vestido de cetim ver melho-vivo. À luz das velas era tão linda como o jovem São Miguel comandando as hostes divinas, e ali me disse, como se me agradassem tais notícias, que se tinha apaixonado pelo seu primo Mario e só casaria com ele e com mais ninguém. Já nesse momento eu senti o cora ção estremecer dentro de mim. Mas controlei a expressão do rosto, e apenas lhe fiz lembrar que o príncipe era um atirador temível e que, pensasse ela o que pensasse do primo, seria preferível afastá-lo do caminho do príncipe, se é que realmente o amava. Ela respondeu-me de tal forma que parecia estar apaixonada pela própria Morte.

 

Eu não desgostava de Mario, pois sempre tive uma curiosa inclinação pela família de meu marido, embora todos eles tenham um quê de excêntricos, e essa excentricidade, neste Mario, surgiu em forma de paixão pela astronomia. Mas, como marido, não podia comparar-se ao príncipe - e, para além do mais, bastava-me ver Rosina perto dele para compreender que a menor fraqueza da minha parte a levaria fatalmente, dentro de nove meses, ao túmulo de sua mãe. Os galanteios do príncipe tinham dado volta à cabeça de Rosina. Imaginava que, se quisesse a Lua, acabaria por obtê-la, quanto mais o seu jovem primo. Quando vi que ela persistia nas suas loucuras, chamei-a perante mim e tive com ela uma conversa franca. Mas eu não sei o que terá dado a esta geração de mulheres que nasceu depois da Revolução Francesa, e dos romances dessa tal Madame de Sta~el - a riqueza, a posição e um marido tolerante não lhes bastam, querem o amor como nós outras o Sacramento.»

 

Neste ponto a velha senhora interrompeu a sua história.

 

- O senhor é casado? - perguntou.

 

- Sou. Sou casado - respondeu o jovem.

 

- Não precisarei então - prosseguiu ela, como se a satisfizesse o tom daquela resposta - de lhe expor a loucura de tais ideias.

 

«Rosina foi tão obstinada que eu não consegui dissuadi-la. Se ao fim ela me tivesse dito que tudo o que ambicionava era ter nove filhos, eu não teria ficado surpreendida.

 

Cheguei a uma idade em que não suporto já ser contrariada. Fiquei furiosa com ela, tão furiosa como se tivesse visto um bandoleiro atirá-la para a garupa e fugir com ela para as montanhas mais ermas. Disse ao príncipe que apressasse o casamento e fechei Rosina em casa. Vivi esses meses numa angústia mortal, a ponto de quase não dormir e cada noite ser como uma viagem à roda do mundo.

 

Rosina tinha uma amiga, Agnese delle Gherardesci, a quem desde sempre ela quis quase tanto bem como a mim própria. Um dia em que estavam ambas a bordar, picaram os dedos, misturaram o sangue e juraram ser irmãs até à morte. Esta menina foi criada ao deus-dará, e tornou-se num verdadeiro produto do nosso tempo. Meteu na cabeça que era pare cida com Lord Byron, de quem tanta coisa se diz, e gostava de vestir-se e montar como um homem e de escrever poesias. Para ver Rosina mais feliz mandei chamar Agnese, que ficou a fazer-lhe companhia nessa última semana antes do casamento. Mas as raparigas são um verdadeiro demónio quando julgam que está em perigo um romance de amor, e eu acho que Agnese conseguiu, não sei como, trazer a Rosina cartas de Mario.

 

Na véspera do casamento, pela manhã, Agnese foi buscar um fiacre, Rosina escapuliu-se de casa, e juntas tomaram a estrada de Pisa. Uma criada fiel revelou-me o segredo, e eu meti-me no meu coche e segui-as imediatamente. Ao meio-dia ultrapassei a tipóia na estrada, era Agnese que a conduzia, vestida com um capote de cocheiro, os cavalos meio mortos, enquanto os meus estavam mais vigorosos do que nunca.

 

Quando Rosina viu que eu me aproximava a grande velocidade, saiu, e eu também, ao chegar junto dela, desci para a estrada, mas nenhuma de nós disse uma palavra. Meti-a no coche, sem prestar qualquer atenção à sua amiga, e disse ao meu cocheiro que voltasse para casa. Na estrada há uma capelinha por entre as árvores. Acercando-nos, Rosina pediu-me licença para mandar parar a carruagem e entrar por uns momentos. Disse de mim para mim: «Vai fazer um voto qualquer«, e desci a acompanhá-la à igrejinha. Mas no interior dela, escuro e que cheirava a incenso frio, senti com desespero que o coração de uma donzela é, como a igreja às escuras, um lugar de mistério onde uma velha, por mais que o queira, jamais há-de penetrar. Rosina encaminhou-se para o altar e caiu de joelhos. Olhou para o rosto da Virgem e depois saiu, como se eu fosse uma velha camponesa rezando solitária na capela. A minha dor era imensa, pois por nada deste mundo eu conseguia formular uma oração. ERa como se me dissessem que a Virgem e os santos haviam ensurdecido. Quando saí depois e a vi junto ao coche, os olhos perdidos na distante Pisa, disse-lhe:

 

- Eu sei, se a menina o não sabe, a loucura que é deixar que um homem, seja ele quem for, se atravesse entre nós duas. Se a menina pode fazer um voto, eu também posso. Assim um dia nos encontremos as duas no Pa raíso, juro que, enquanto eu puder erguer a mão direita, não darei a minha bênção a qualquer casamento que faça, excepto se for com o prín cipe.

 

Rosina olhou para mim e fez uma mesura, como quando era pequenina, e não disse palavra. No dia seguinte o casamento celebrava-se com todo o esplendor.

 

Um mês depois Rosina pedia ao Papa a anulação do casamento pela razão de não ter sido consumado.

 

O escândalo foi enorme. O príncipe tinha amigos poderosos e ela estava completamente só, a princípio, e era muito nova e inexperiente; mas soube resistir com uma força espantosa até que, por fim, ninguém mais falava de outra coisa, e ela reuniu à sua volta toda a cidade de Pisa. O príncipe não era pessoa benquista, principalmente devido à sua infeliz paixão pelo dinheiro; e as histórias de amor, como sabe, atraem as simpatias do povo. Acabaram por ver nela uma espécie de santa, e quando teve quem finalmente a apresentasse em Roma, a população dessa cidade rodeou-a nas ruas e aplaudiu-a como se ela fosse uma prima donna da ópera. O príncipe fez a asneira de mover as suas influências para que Mario fosse expulso de Pisa, o que, naquelas circunstâncias, foi provavelmente a coisa mais estúpida que ele podia ter feito, troçou da Igreja e ofendeu o povo.

 

Rosina lançou-se aos pés do Santo Padre com os certificados de todos os médicos e parteiras de Roma. O príncipe ficou fulminado quando soube disto, e por três dias não foi capaz de articular palavra. Teve de cerrar as janelas para não ouvir o povo, que nas ruas cantava cantigas à Virgem de Pisa, e chorava e mordia os dedos ao imaginar a felicidade dos dois jovens - coisa, creio eu, que ele fazia muito bem - porque, assim que recebeu a carta de nulidade do Papa, Rosina casou com Mario.

 

Durante todo este tempo, ainda que a própria brisa me murmurasse o seu nome, recusei-me a vê-la e procurei não pensar nela. Mas o que há no mundo que possa distrair uma velha do que foi o seu constante pensamento durante dezassete anos, quando ela o quer esquecer?

 

Há dois meses atrás, fui informada que a minha neta espera um filho. Embora eu já estivesse preparada para isto, evidentemente, a notícia foi para mim um golpe fatal. Quase me matou. Pensei na sua mãe e no meu voto. Já não conseguia ter fé nos santos. Tinha presente noite e dia a imagem de Rosina na capela, e o meu coração estava tão cheio de amargura como não é justo que alguém o suporte ainda na minha idade. Deixei por fim de pensar no Paraíso, porque, para mim, cem anos de glória não valiam uma semana junto dela em Itália. Durante muito tempo a minha saúde não me permitiu viajar, mas ontem pus-me a caminho de Pisa.

 

Agora, meu amigo, sabe toda a minha história; escuso de lhe dizer mais: o senhor reflectirá nos desígnios da Providência.»

 

Aqui ela fez uma longa pausa. Quando, assustado pelo seu silêncio, ele foi observar-lhe o rosto, viu que tinha descaído. Toda ela parecia ter mirrado, mas sob as pálpebras de cera os olhos claros estavam ainda fitos nele.

 

- Estou pronta a deixar este mundo - disse ela. - O mundo já deve conhecer-me de cor, por esta altura, como eu o conheço a ele. Nada mais temos a dizer um ao outro. A mim mesma parece curioso que sinta ainda tanto afecto, e tanto interesse por esta velha Carlotta di Gampocorta, que em breve desaparecerá da face da Terra, a ponto de não a deixar partir sem lhe dar a oportunidade de ver e perdoar aqueles que a têm ofendido. Mas que quer? Não é fácil mudar-se de hábitos na minha idade. Vai procurar por mim a minha neta?

 

O seu braço esquerdo moveu-se no lençol, como se quisesse alcançar a mão de Augustus. Ele tocou os dedos frios.

 

- Estou ao dispor de Vossa Excelência - disse ele.

 

Ela soltou um profundo suspiro e fechou os olhos. Augustus apressou-se a ir buscar o médico, que fora chamado à aldeia.

 

Ordenou aos criados que preparassem tudo para partirem de manhã cedo, e como queria enviar a carta antes de deixar a pousada, voltou a ela e terminou-a. Ao reler as suas reflexões sobre a vida, pensou que a tristeza delas poderia preocupar o seu bom Karl, por isso tomou da pena e acrescentou dois versos do Fausto de Goethe, uma citação dilecta do amigo, que com ela muitas vezes, em Ingolstadt, encerrava as discussões de ambos:

 

Todo o homem bom, no mais escuro transe, sabe distinguir o caminho certo.

 

E, sorrindo quase, fechou a carta.

 

                 AS PENAS DA JOVEM SENHORA

Na pousada onde em seguida Augustus se acolheu - que era a última antes de chegar a Pisa, e tinha à sua volta mais casas, carroças e gente, sentindo-se ali o viajante próximo já da grande cidade - um faetonte veio parar mesmo à sua frente e dele desceu um esbelto rapaz de grande capote negro, e um velho major-domo em tudo semelhante ao Pantalone. Escurecia. Algumas estrelas tinham despontado no profundo azul do céu, e no ar soprava uma ligeira brisa. Augustus sentia aquela impressão de realmente estar de passagem que é quase toda a felicidade dos que amam viajar. Passara por tantos caminhantes durante o dia - homens a cavalo ou montados em burros, guiando carros de bois ou carroças puxadas por mulas - que lhe parecia haver um rumo na vida e considerara que para ele também a vida por força teria um sentido. Agradou-lhe o ruído, a luz do lampião, e o cheiro da lenha que ardia, da gordura, e do queijo, que vinha da pousada. O ar de Itália parecia ter descido as montanhas e atravessado os rios para suavemente lhe acariciar o rosto.

 

A osteria fora em tempos o pavilhão de uma extensa villa; tinha um belo salão com pinturas a fresco nas paredes. Augustus, ao entrar, viu o velho estalajadeiro com dois criados pondo a mesa junto a uma janela aberta, e enquanto isso embrenhados em acesa discussão, de que o velho se afastou contrariado para vir receber o hóspede e assegurar-lhe que tudo faria para que ele fosse feliz ali. Mas tantos hóspedes ilustres que chegavam ao mesmo tempo, de improviso, a uma casa tão vivamente interessada em manter a sua renommée, quase o deixavam acabrunhado. Porque o príncipe Pozentiani viria dentro de meia hora, e com ele o seu jovem amigo, o príncipe Giovanni Gastone. Estes eram homens que sabiam apreciar a comida, e haviam encomendado codornizes, mas o cozinheiro tinha cometido um erro ao prepará-las. Augustus perguntou se o rapaz que ele vira chegar momentos antes era o príncipe Giovanni. Ah, não, disse o velho, esse era sem dúvida outro rico e exigente freguês. Mas seria possível que o fidalgo nunca tivesse ouvido falar do príncipe Nino? Era um jovem como não havia senão na Toscana. Em bebé a sua beleza era tanta que ele foi o modelo do Menino Jesus no quadro da catedral. Onde quer que fosse, todos o amavam. Porque ele era um patriota, um verdadeiro filho da Toscana. Embora tivesse sido enviado pela mãe, senhora ambiciosa, para as cortes de Viena e de Sam petersburgo, voltara sem vontade de falar outra língua que não fosse a dos grandes poetas. Os seus palazzi eram governados à boa maneira toscana: mantinha uma orquestra, que apenas tocava música italiana; inscrevia os cavalos nas corridas clássicas; e, quando acabavam as vindimas, as festas - em que se dançavam as velhas danças, e em que as virgens da aldeia pisavam, nuas, as uvas, e os improvisatori recitavam à maneira antiga - traziam de volta os tempos felizes de outrora.

 

Com um pano engordurado preso no braço e os olhinhos pretos vigiando cada movimento dos criados, o velho possuía a vivacidade de espírito bastante para se ocupar também do hóspede estrangeiro com uma conversa efusiva. Não tinha o príncipe Nino, quando um cantor alemão teve a audácia de actuar na Ballerina Amante, a ópera de Cimarosa, expulsado o fulano do palco e cantado ele próprio todo o papel, perante um público extasiado? Quanto ao belo sexo - aqui a larga face do estalajadeiro pareceu contrair-se ao mínimo de um ponto, tão concentrada ficou na comunicação - o fidalgo por si saberia, quando elas se querem atirar para os braços de um homem, que há-de o homem fazer? E mesmo nesse ponto ele se mostrou um verdadeiro filho da sua pátria. Porque teria podido casar com uma arquiduquesa, e até com a irmã do Czar da Rússia, que enlouqueceu de amor por ele quando o viu na corte de Sampetersburgo, mas ele disse-lhe, com as palavras desse admirável Renti no seu Baco na Toscana, que só as pipas de vinho toscano haviam de gemer às suas carícias. Dizia-se também que os maridos da Toscana nem sempre censuravam a sua invencibilidade tanto quanto se poderia pensar, porque a mulher que tivesse pertencido ao príncipe Nino jamais condescendia a tomar novo amante, e não eram poucas as senhoras galantes que, abandonadas por ele, se consagravam ao marido e às recordações. Fora uma verdadeira pena ter dissipado como o fez os bens da sua casa, e até a fortuna da mãe, pois ficara à mercê do velho príncipe Pozentiani, que é dos que emprestam dinheiro. Dizia-se que ultimamente estava mudado. Contava-se que um dia um milagre cruzara o seu caminho e o fizera acreditar em milagres. Alguns pensavam que a Rainha Santa Matilde, sua antepassada, lhe apareceu em sonhos e o fez desviar os olhos do mundo. Neste ponto um dos criados cometeu um erro tão grave ao pôr a mesa que o velho, como num terrível frenesim espiritual, deixou por ali a conversa e precipitou-se para a mesa. Voltou um pouco mais tarde, sorridente mas silencioso, com o vinho que Augustus pedira, e ali o deixou com uma profunda vénia.

 

Dois velhos padres sentaram-se a beber o seu vinho junto aos carvões rubros da lareira, que luziam nas gordurosas batinas pretas, e o rapaz que tinha conduzido o faetonte estava, pensativo, a beber café por um copo, que o seu velho criado lhe trouxera, sentado num banco baixo sob um quadro que representava os anjos visitando Abraão. A jovem silhueta era tão graciosa que Augustus, sempre um admirador da beleza, e encontrando no seu puro rosto pensativo uma semelhança com o do seu amigo Karl em rapaz, achou os olhos presos nele. Quando o velho major-domo, ao voltar, relatou uma discussão entre o cavalariço de Augustus e o seu próprio sobre qual seria o lugar melhor da cocheira, Augustus aproveitou a oportunidade para fazer ao rapaz umas perguntas sobre a estrada de Pisa, e pedir-lhe que o acompanhasse num copo de vinho. O rapaz, com muita cortesia, declinou, dizendo nunca ter pro vado vinho, mas, vendo que Augustus era um estrangeiro e desconhecia a estrada, sentou-se à sua mesa por momentos, a dar-lhe a informação pretendida. Enquanto falava, o jovem descansou o braço esquerdo na mesa e Augustus, reparando, pensou em como é fácil imaginar os naturais deste país, ao vê-los de perto, vivendo desde sempre em palácios de mármore, ocupados em escrever tratados de filosofia, en quanto os seus antepassados, esses, nas extensas florestas talhavam as armas na pedra e vestiam as peles dos ursos a que bebiam quente o sangue. Para que esta mão se formasse, este pulso, deviam ter sido precisos decerto mil anos, reflectiu ele. Na Dinamarca toda a gente tem os tornozelos e os pulsos grossos, e quanto mais alto se sobe em sociedade mais grossos eles são.

 

O rapaz corou de prazer ao ouvir que Augustus era dinamarquês, e disse-lhe que ele era a primeira pessoa que conhecia do país do príncipe Hamlet. Estava familiarizado com a tragédia inglesa, e falava como se Augustus tivesse saído da corte do rei Cláudio. A sua cortesia italiana não lhe permitia o deter-se nos acontecimentos trágicos, como se Ofélia fosse a prima recentemente falecida de Augustus, mas citou o solilóquio de um modo encantador, e disse que em pensamentos muitas vezes visitara Elsinore e estivera no cimo do penedo horrendo que avança sobranceiro pelo mar. Augustus não quis dizer-lhe que Elsinore é uma cidade absolutamente plana, por isso perguntou-lhe se não es crevia poemas.

 

- Ah, não - disse o rapaz, sacudindo os sedosos caracóis castanhos - já escrevi, mas abandonei a poesia há um ano.

 

- Fez mal, talvez - disse Augustus sorrindo. - A poesia é decerto um dos prazeres da vida, e ajuda-nos a suportar a monotonia do mundo.

 

O rapaz pareceu sentir que este estrangeiro era um amigo ou um irmão do infeliz príncipe dinamarquês, e que podia por isso abrir-lhe o coração.

 

- Uma coisa me aconteceu - disse ele após um curto silêncio - que não posso transformar em poesia. Já escrevi comédias e tragédias, mas também nelas não pode caber.

 

E de novo se seguiu uma breve pausa.

 

- Agora - acrescentou ele - vou para Pisa estudar astronomia.

 

Os seus modos graves e amistosos atraíram Augustus, que também em Ingolstadt dedicara muito tempo ao estudo das estrelas. Delas falaram, pois, por algum tempo, e ele contou ao rapaz como o grande astrónomo dinamarquês Tycho Brahe encomendara em Ausburgo a construção de um quadrante com dezanove pés e um globo celeste de cinco pés de diâ metro.

 

- Quero estudar astronomia - disse o rapaz - porque já não suporto pensar no tempo. É como viver numa prisão; se eu pudesse escapar-lhe inteiramente, creio que havia de ser feliz.

 

- Também eu já pensei o mesmo - disse Augustus, melancólico - e no entanto reflecti que, se num momento qualquer da nossa vida, mesmo naqueles momentos que nós julgamos ser os mais felizes, nos dissessem que esse instante continuaria para sempre, concluiríamos que tínhamos sido educados não para a felicidade eterna, mas para o sofrimento sem fim.

 

Lembrou-se com tristeza de como esta recordação antiga lhe viera à mente num certo momento, até, da sua noite de núpcias. O jovem parecia seguir-lhe o curso dos pensamentos com simpatia.

 

- Tenho a infelicidade, Signor - disse ele pouco depois, o jovem rosto mais pálido talvez, os olhos mais escuros do que antes - de ter sempre presente a recordação de uma única hora da minha vida. Até essa hora eu costumava pensar com prazer tanto no passado como no futuro ou no presente, e o tempo era uma estrada que atravessa uma agradável pai sagem e na qual eu podia vaguear, seguir, retroceder, como eu bem quisesse. Mas hoje eu não posso afastar o pensamento dessa hora. Cada segundo nela me parece maior que os anos todos da minha vida. Tenho de fugir-lhe enquanto é tempo. Eu sei - disse ainda - que alguns me recomendariam a ideia de um infinito moral, essa que nos é dada pela religião, como o refúgio seguro, mas já experimentei e de nada me va leu; pelo contrário, a ideia da omnipotência de Deus, do livre-arbítrio do homem, do Céu e do Inferno, tudo me lembra aquilo que eu mais quero esquecer. Quero voltar-me então para o infinito do espaço, e pelo que tenho ouvido parece-me que as estradas dos planetas e das estrelas, as suas elipses e os seus círculos no espaço infinito, devem ter o poder de desviar a mente para novos caminhos. Não pensa o mesmo, Signor?

 

Augustus reflectiu nessa época, não há muitos anos, em que ele próprio sentira ser o espaço sideral a sua verdadeira morada.

 

- Penso - disse ele tristemente - que a vida tem as suas leis de gravitação, tanto as físicas como as espirituais. A herança dos nossos avós, as mulheres'''

 

E olhou pela janela. No céu azul dessa tarde primaveril Vénus brilhava como um diamante.

 

O rapaz voltou-se para ele.

 

- Não pensa, realmente - disse - que eu seja um homem? Não sou, e dê-me licença que lhe diga que me acho feliz por não o ser. Sei, evidentemente, que os grandes feitos foram obra dos homens, mas, mesmo assim, penso que o mundo seria um lugar mais tranquilo se os homens não viessem destruir, tantas vezes, o que nós outras amamos.

 

Augustus sentiu-se confundido ao perceber que vinha tratando uma jovem senhora como se fosse um rapaz, mas não podia desculpar-se por uma coisa que não fora culpa sua. Apressou-se a declinar o nome e a ofere cer-se para lhe prestar auxílio na viagem. A rapariga, porém, não alterou de forma alguma a sua atitude para com ele, e pareceu de todo indiferente a qualquer mudança que a informação pudesse ter causado em Augustus. Continuou sentada na mesma posição, cruzando as pernas elegantes sob o capote, e de mãos entrelaçadas à volta do joelho. Au gustus pensou que nunca, até aí, estivera falando com uma jovem mulher cujo interesse principal na conversa não fosse a impressão que lhe estaria causando, e reflectiu que seria esse o motivo por que geralmente os colóquios com mulheres lhe pareciam difíceis e fastidiosos. O modo como esta jovem parecia tomar um interesse amistoso e confiante por ele, sem aparentemente se importar com o que ele pensava dela, pareceu-lhe doce e novo, como se subitamente compreendesse que toda a vida tinha procurado esta atitude nas mulheres. Desejava agora que ele próprio conseguisse evitar o tom convencional das conversas entre os homens e as mulheres.

 

- É muito triste - disse ele pensativo - que tenha de nós tão fraca opinião, pois estou certo que todos os homens que a conheceram tentaram agradar-lhe. Não me quer dizer porque pensa assim? Já me aconteceu muitas vezes que uma senhora me dissesse que eu a fazia infeliz, e desejava que ela e eu morrêssemos, numa altura em que precisamente eu tentava com todas as minhas forças fazê-la feliz. Passaram tantos anos depois que Adão e Eva - e olhou na parede da osteria o quadro que os representava - estiveram juntos no Paraíso, que me parece profundamente lamentável não termos aprendido já a agradar uns aos outros.

 

- E a ela, não lho perguntou? - disse a rapariga.

 

- Perguntei - respondeu ele - mas parecia ser o nosso destino que nunca enfrentássemos estas questões a sangue-frio. Quanto a mim, acho que as mulheres, por alguma razão, não querem que os homens conheçam a resposta. Não querem ser compreendidas. Querem mobilizar-se para a guerra. Mas eu desejava que, por uma vez em todo o tempo que houve homens e mulheres, dois embaixadores pudessem encontrar-se, em abertura de espírito, e alcançassem entender-se um ao outro. É verdade - acrescentou ele momentos depois - que um dia conheci em Paris uma mulher, uma grande cortesã, que talvez pudesse ser essa embaixatriz. Mas a senhora não lhe teria dado as suas credenciais, nem haveria de submeter-se às suas decisões. Nem sei se não a consideraria uma traidora ao sexo feminino.

 

A jovem reflectiu por algum tempo no que ele dissera.

 

- Suponho - disse ela então - que até no seu país há festas, bailes e conversazione?

 

- Sim - respondeu ele - com efeito.

 

- Então há-de saber - continuou a jovem lentamente - que o papel do convidado é diferente do papel do anfitrião, ou da anfitriã, e que as pessoas não querem, nem esperam, o mesmo dos dois diferentes papéis.

 

- Penso que tem razão - disse Augustus.

 

- Ora Deus - disse ela - quando criou Adão e Eva - e também ela olhou para o quadro na parede fronteira - fê-los de tal modo que o homem se coloca, nestas questões, no papel de convidado, e a mulher no de anfitriã. Por isso para o homem o amor é encarado com ligeireza, visto a honra e a dignidade da sua casa não se encontrarem envolvidas. E também porque, sem dúvida, pode ser-se convidado de muita gente que nunca havíamos de receber em nossa casa. Diga-me então, conde, que deseja o convidado?

 

- Creio - disse Augustus, depois de reflectir por momentos - que, se ignorarmos, como penso que devemos fazer neste caso, o homem grosseiro que vem para se banquetear, se aproveita do que há e se vai embora, um convidado ambiciona, acima de tudo, divertir-se, esquecer a monotonia diária ou as suas preocupações. Em segundo lugar, o convidado decente quer brilhar, expandir-se, imprimir a sua personalidade naquilo que o rodeia. E em terceiro lugar quer, talvez, achar toda uma justificação para a sua existência. Mas, já que põe a questão em termos tão cativantes, diga-me, Signora: Que quer então a anfitriã?

 

- A anfitriã - disse a jovem - quer que lhe agradeçam.

 

Neste momento sonoras vozes vindas do exterior puseram fim à conversa.

 

                         A HISTÓRIA DO MATADOR

O dono da osteria entrou primeiro, às arrecuas, segurando um candelabro de três velas em cada mão, e com surpreendente graça e leveza para um homem da sua idade. Após ele, veio o grupo de três homens para quem se pusera a mesa, os dois primeiros dando-se o braço. A sua chegada transformou toda a sala num momento, tanta era a luz que traziam consigo e tanta a cor e altas vozes - e mesmo matéria palpável, já que dois deles eram homens corpulentos.

 

Aquele que atraiu a atenção de Augustus, como chamaria sempre a atenção de quem dele se abeirasse, era um homem de cerca de cinquenta anos, muito alto, muito largo de ombros, e extremamente gordo. Trajava com elegância, de preto, a sua camisa de linho branco resplandecia, usava nas mãos pesados anéis e na charpa imensa um diamante que fais cava de luz. O cabelo fora tinto de um negro asa-de-corvo, e o rosto pintado e empoado. Apesar da gordura e do espartilho movia-se com uma graça peculiar, como se possuísse um ritmo próprio. Em tudo, pensou Augustus, se pudéssemos afastar a ideia convencional de como deve ser a aparência de um ser humano, ele seria um belo objecto e um excelente ornamento em qualquer lugar, e teria dado, por exemplo, um ídolo poderosíssimo, impressionante. Era ele que falava, numa voz aguda e estrídula, e ao mesmo tempo curiosamente agradável.

 

- Ah, é um encanto, um encanto, meu Nino - dizia - estarmos juntos de novo. Mas só soube de si na semana passada, e soube também que comprou uma Danae de Corregio e 16 cavalos malhados de Cascine para acompanharem a sua carruagem.

 

O jovem a quem falava, dando o braço, parecia não lhe prestar muita atenção. Ao observá-lo Augustus compreendeu porque as pessoas da região admiravam tanto a sua beleza. Estivera Augustus visitando mui tas galerias de pintura ultimamente, e reflectira que desses jovens São Sebastião ou São João Baptista, alimentados a mel de abelhas bravas e gafanhotos, ou até desses anjos no Sepulcro aberto, qualquer um poderia descer da moldura, vestindo roupas modernas com elegância e displicência, e ser como ele. Havia até nos tons castanhos e intensos dos seus cabelos, da face e dos olhos, algo da pátina dos velhos quadros, e demais tinha a aparência de não estar pensando em nada, o que deve ser natural no Paraíso, onde não há necessidade de pensar.

 

O terceiro homem do grupo era um rapaz alto, também ricamente vestido, que tinha cabelos louros e ondulados e o rosto como de um carneiro cor-de-rosa, que se continuava pelo pescoço sem o mínimo sinal de um queixo. Estava absorvido a escutar o velho, e não despregava os olhos dele. Todos três se sentaram a cear, com a luz das velas incidindo sobre eles.

 

A jovem senhora olhou os recém-chegados por poucos segundos, levantou-se e, envolvendo-se no capote, saiu da sala. Augustus seguiu-a até onde o criado velho a esperava com uma vela.

 

Ao voltar traziam-lhe a ceia, e ele sentou-se em frente de um capão e de um bolo decorado com natas tintas de cor-de-rosa. Os que ceavam na mesa maior tanto barulho faziam que os pensamentos de Augustus foram perturbados e de tempos a tempos os seus olhos eram arrastados para eles. Reparou que o velho, enquanto obrigava os convidados a beber, bebia apenas limonada, mas todavia não lhes ficava atrás em crescente animação, como se possuísse uma natural embriaguez a que podia recorrer sem auxílios exteriores. Uma vez a sua voz, falando por longo tempo, se impôs à atenção de Augustus, pois contava aos rapazes uma história.

 

«Em Pisa - relatava ele - estive, há muitos anos, presente quando o nosso glorioso Monti, o poeta, sacou da pistola e disparou sobre Monsignor Talbot. Aconteceu numa ceia, tal como esta nossa, com apenas três convivas. E tudo nasceu de uma discussão sobre as penas eternas.

 

Monti, que tinha então acabado o Don Giovanni, estivera por algum tempo mergulhado numa profunda melancolia, e não queria comer nem falar, e Monsignor Talbot perguntou-lhe o que tinha, espantado por ele não estar feliz quando alcançava um tão grande sucesso. Então Monti perguntou-lhe se ele não pensava que poderia pesar na alma de um homem o ter criado um ser humano que estava condenado a arder eternamente nas chamas do Inferno. Talbot sorriu e declarou que isso era coisa que podia suceder apenas às pessoas reais. Ao ouvir isto o poeta, vociferando, perguntou-lhe se o seu Don Giovanni não era real, e monsignor, sorrindo ainda por o outro ter tomado a questão a peito, e recostando-se na cadeira, explicou que reais eram para ele os seres que têm realmente uma existência carnal.

 

- Carnal! - exclamou o poeta. - Pois duvida que Don Giovanni tenha uma existência carnal quando, só em Espanha, se podem achar mil e três senhoras habilitadas a testemunhar o facto?

 

Monsignor Talbot perguntou-lhe se acaso se considerava um criador na mesma acepção de Deus.

 

- Deus! - exclamou Monti - Deus! Pois não sabe que a real ambição de Deus é criar o meu Don Giovanni, e o Odisseus de Homero, e o Cavaleiro de Cervantes? Muito provavelmente esses são os únicos homens para quem se fez o Céu e o Inferno, pois não se concebe que um Deus Todo -Poderoso continue pela eternidade infinita na companhia da minha sogra e do Imperador da Áustria! A humanidade, os homens e as mulheres da Terra são apenas o barro de Deus, e nós, os artistas, somos os Seus instrumentos, e quando a estátua fica pronta, no mármore ou no bronze, Ele parte-nos a todos. Quando morrer, Monsignor, há-de provavelmente apagar-se como uma vela, e nada restará de si, mas nas mansões do Eterno hão-de vaguear Orlando, o Misantropo, e a minha Donna Elvira. Esse é o processo da criação de Deus, e se O achamos um tanto lento, quem somos nós para criticá-Lo, nós que nada sabemos do tempo e da eternidade?

 

Monsignor Talbot, embora ele próprio um grande admirador das artes, começou a sentir-se pouco à-vontade perante estas opiniões heréticas, e exprobou o poeta.

 

- Pois então vá lá o senhor ver como é! - exclamou Monti e, apoiando na quina da mesa o cano da pistola com que estivera brincando, disparou à queima-roupa sobre o monsignor, que se sentava em frente e caiu banhado em sangue. Foi um caso sério, porque Monsignor Talbot teve de submeter-se a uma operação delicada e ficou muito tempo entre a vida e a morte.»

 

Os dois rapazes, que por esta altura tinham já bebido muito, largaram em pilhérias sobre o mote, submetendo ao narrador as várias formas de imortalidade que poderia obter às mãos de diferentes poetas. Ao fazê-lo usaram muitos nomes e expressões que Augustus não conhecia; também as suas vozes eram menos nítidas que a do velho, por isso Augustus só voltou a dar atenção quando este falou de novo.

 

- Não, meninos, não - dizia ele - eu tenho outras esperanças. Mas como lhes poderá fazer bem ocuparem-se uns momentos pensando no Além, e porque assim talvez se dissipe essa nobre melancolia do nosso doce Nino, com que toda a província se aflige, contar-lhes-ei uma outra história.

 

Recostou-se na cadeira, e durante toda a narrativa não mais tocou no prato ou no copo. Augustus reparou que, à medida que ele prosseguia, o rapaz moreno, a quem o velho chamara «o seu Nino», adoptava comporta mento idêntico, de modo que dos três só o rapaz louro com cara de carneiro continuava a deliciar-se com os prazeres da mesa.

 

«Em Pisa viveu, caros amigos - começou o velho - no tempo do meu avô, um fidalgo de alta nobreza e grande fortuna, que conheceu a experiência de ver um jovem amigo, a quem cumulara de mercês, voltar-se contra ele com a comum ingratidão da juventude e infligir-lhe um insulto extremo, um insulto que, para mais, o cobriu de ridículo aos olhos do mundo. Este nobre era um filósofo, e mais do que tudo na vida prezava a sua paz de espírito. Ao compreender que a afronta começava a perturbar-lhe o sono, e que não teria prazer nem recobraria a saúde até vingar-se no sangue do seu jovem inimigo, decidiu-se a verter esse sangue. Ora, devido à sua posição e a outras circunstâncias, não viu modo de ser ele próprio a fazê-lo, e foi por isso falar com um jovem matador da cidade. Nesses tempos tais homens ainda existiam. Este rapaz era de um temperamento extravagante, e, como tal, havia contraído pesadas dívidas, estando numa situação tão desgraçada que não via outra saída excepto o casamento. O amigo do meu avô disse-lhe:

 

- Quero que todos saiam desta pendência perfeitamente satisfeitos. Pagar-te-ei pela minha paz de espírito o que penso que ela vale, e é muito. Presta-me este serviço que em troca liquidarei todas as tuas dívidas até ao terço de contas de coral que tu empenhaste e era da tua avó.

 

Ouvindo isto o matador concordou, e entre os dois se combinou tudo.»

 

Um grande gato, que andava passeando pela sala, neste ponto saltou para os joelhos do velho que contava a história. Sem o olhar, este acariciou-o enquanto prosseguia a narrativa.

 

«O relógio bateu a meia-noite quando o matador o deixou, e ele, sabendo que não conseguiria dormir até ter a certeza de estar re solvido o caso, ficou de vigília no seu quarto, esperando o regresso do rapaz, e mandou que lhe servissem ali mesmo uma ceia, composta de finas iguarias. Ao bater da uma hora no relógio, o rapaz entrou com a morte estampada no rosto.

 

- O meu inimigo está morto? - perguntou o fidalgo.

 

- Está - respondeu o matador.

 

- E tens a certeza? - tornou o mandante, sentindo o coração dançar-lhe no peito.

 

- Tenho - disse o matador - que só pode estar morto o homem que recebe o meu stiletto no coração três vezes até ao cabo. Todos deviam sair, como Vossa Senhoria bem disse, perfeitamente satisfeitos desta pendência. Agora vou beber uma garrafa de champanhe convosco.

 

E assim os dois partilharam de uma agradável ceia.

 

- Sabe Vossa Senhoria - disse o matador - o que eu acho que é uma grande pena? É que todos nos tivéssemos tornado tão cépticos que já mal acreditamos no que as nossas piedosas avós nos ensinaram. Porque me daria grande prazer pensar que, tanto eu como Vossa Senhoria, havemos de padecer as penas eternas do Inferno.

 

O fidalgo ficou surpreendido, e teve pena do rapaz, que parecia tresloucado. Sentiu-se preso de afeição por ele, e por isso tentou consolá-lo.

 

- Isto foi de mais para ti - disse ele. - Supus-te mais homem. Quanto às penas do Inferno, percebo o que me queres dizer, e creio que é muito provável que tenhas razão. O assassínio que cometeste esta noite já eu o tinha cometido muitas vezes em pensamento, e as Escrituras dizem que pensá-lo é o mesmo que fazê-lo com as próprias mãos. Os sofistas poderiam até provar que a tua parte nele foi puramente ilusória, e que hás-de lavar ainda os teus vestidos no sangue do Cordeiro e torná-los brancos. Mesmo assim devo dizer que a soma que recebeste foi a paga do incómodo que por mim tiveste, e do perigo que ainda corres perante as leis de Pisa e os parentes desse meu inimigo que mataste. Na tua alma eu não tinha pensado. Para compensar-te desse risco, por mais pequeno que eu o considere, dar-te-ei, além do que já tens, este anel.

 

Com estas palavras tirou do dedo um anel com um grande rubi, uma pedra muito valiosa, e entregou-o ao rapaz, que se riu ao vê-lo, como se não estivessem falando de coisas sagradas, e se foi embora. O nosso fi dalgo foi para a cama e dormiu bem, pela primeira vez em muitos meses, na consciência de ter enfim satisfeito o seu desejo, e também de ter usado de grande generosidade para com o seu matador.»

 

Neste ponto da história o gato atravessou a mesa e saltou para o colo do jovem príncipe. Como se ele fosse o reflexo num espelho do seu vizinho, também ele começou a acariciar meigamente o animal, recostando-se na cadeira e ouvindo.

 

«Mas era o seu destino - prosseguiu o velho - ver abalada a sua fé nos seres humanos. Poucas semanas mais tarde, e enquanto gozava ainda, como uma segunda juventude, o convívio dos amigos, a música, e a beleza da paisagem dos arredores de Pisa, recebeu uma carta de um seu amigo em Roma, em que este lhe contava que o seu inimigo, esse por cuja morte havia pago um tão alto preço, estava lá, mais vivo do que nunca, e recebendo a alta estima da sociedade romana e da corte papal.

 

Esta última prova da perfídia humana e da loucura que é confiar em amigos ou contratados, foi um duro golpe para esse homem, que a não esperava. Caiu doente e sofreu dores por muito tempo nos olhos e no braço direito, de modo que se viu forçado a ir a banhos para Pyrmont. Mas omitirei esse triste período. Direi somente que esse homem, dado sempre à meditação, entrou em especular no seu futuro e no do seu matador, tal como o haviam discutido à mesa da ceia. Será realmente, pensou ele, a intenção apenas que faz pesar o prato da balança, e nos salva ou nos condena, e não terá a acção nenhum papel aí? Quanto mais pensava nisto mais compreendia que assim devia ser. Provavelmente, pensou ele, a intenção só terá um peso enquanto permanecer uma intenção e nada mais. Porque a acção destrói o desejo. A maneira sem dúvida mais segura de não cobiçar a mulher do próximo é possuí-la, e poderemos amar os nossos inimigos e rezar por aqueles que desdenhosamente se servem de nós apenas se estiverem mortos. Lembrou -se da bondade com que pensara no seu jovem inimigo durante o breve tempo em que o julgara morto.

 

Portanto, pensou ele, o Inferno estará provavelmente cheio de gente que não levou a cabo o que intentara. Seu é o verme que não conhece a morte. E assim - disse o velho, a voz subitamente muito vagarosa e tão suave como uma carícia - tendo perdido a fé nos matadores, ele decidiu que, de futuro, levaria ele próprio a cabo as suas intenções. Mas ainda uma coisa - prosseguiu, no mesmo tom de voz - ele gostaria de saber, antes de votar ao esquecimento essa tragédia: quanto, perguntava-se, é que este seu matador, a quem ele pagara tão generosamente, quanto teria ele recebido por conta do outro lado?»

 

- Esta, meu doce Nino, é a minha história, e espero não o ter maçado com ela. Far-me-ia um grande favor se me dissesse o que pensa dela.

 

Fez-se um silêncio. O jovem príncipe moreno inclinou-se, pousou o braço na mesa e o queixo na mão, e olhou para o velho. Este movimento pareceu-se tanto com o do gato sentado no seu colo, que muito surpreendeu Augustus.

 

- Sim, e se me dá licença - disse ele - maçou-me um pouco; parece-me que, para história, a sua foi demasiado longa, e nem mesmo teve um fim. Que me diz de lhe darmos um fim esta noite?

 

Voltou a encher o copo com a mão esquerda e esvaziou metade dele. Depois, num movimento suave, como se tivesse bebido a ponto de não ser capaz de um esforço mais violento, atirou o copo através da mesa à cara do velho. Escorreu o vinho pela boca de escarlate e o queixo empoado. O copo rolou para o seu colo, e daí tombou ao chão e partiu-se.

 

O rapaz do cabelo louro e encaracolado deu um grito. Num salto, levantou-se, sacudiu um lencinho de renda, e tentou limpar do vinho a cara do outro, como se fosse de sangue. Mas o velho gordo empurrou-o. O seu rosto permanecia absolutamente imóvel, tornado em máscara. Instantes depois nele irradiou, como se vinda do mais íntimo de si, uma luz estranha de triunfo. Impossível seria dizer que as faces se coloriram sob a pintura, mas nelas se manifestou subitamente o mesmo efeito de uma intensa vitalidade, primitiva. Fora um velho enquanto contara a sua história. Ei-lo agora que dava uma impressão de juventude, ou de infância. Augustus viu então quem ele era verdadeira mente: ele tinha toda a corpulência mole, e oculto nela o grande poder, das antigas estátuas de Baco. A atmosfera da sala tornava-se resplendente com os seus raios, como se o velho deus se tivesse revelado aos mortais coroado de folhas de videira. Tomou de um lenço e cuidadosamente limpou a boca; depois, com os olhos fitos no lenço, falou em voz baixa e suave, a voz que um deus usaria ao falar com se res humanos, consciente que o seu vigor normal lhes seria insuportável.

 

- É uma tradição na sua família, Nino, eu sei - disse ele - este requintado savoir-mourir.

 

Sorveu um gole de limonada, para tirar o gosto do vinho que tocara a sua boca.

 

- Que excelente crítico você é - prosseguiu - não só das suas canções toscanas, mas da prosa moderna também. Era esse exactamente o defeito da minha história: não ter um fim. É uma coisa encantadora, um fim, quer vir amanhã ao nascer do Sol ao pátio nas traseiras desta casa? Eu conheço o lugar; é excelente.

 

- Irei - disse Nino, ainda na mesma atitude, com o queixo apoiado na mão.

 

- Obrigado - disse o velho - obrigado, meu caro. E agora - prosseguiu, com uma dignidade calma - se me dá licença, retiro-me. Não posso - disse ele, relanceando um olhar à camisa manchada - continuar em sua companhia neste preparo. Arture, dê-me o seu braço. Já lho mandarei, Nino, para combinarem. Boa-noite, durma bem!

 

Depois de ele sair pelo braço do rapaz louro que, mortalmente pálido, parecia tomado de pânico, o outro deixou-se ficar sentado durante algum tempo sem se mexer, como se tivesse adormecido à mesa. Então, voltando-se, olhou directamente para Augustus, de cuja presença parecia só agora dar-se conta, encaminhou-se para ele e saudou-o com toda a delicadeza. O seu passo não era muito firme, mas ainda assim tinha o ar de quem, espiritualmente, estava pronto a tomar parte num ballet.

 

- Foi testemunha, Signor - disse ele - de uma questão entre mim e o meu amigo, o príncipe Pozentiani, a quem terei de dar satisfações. Quererá o senhor, como fidalgo que é, fazer-me o obséquio de ser o meu padrinho amanhã de manhã? O meu nome é Giovanni Gastone, da Toscana, ao seu serviço.

 

Augustus disse ao príncipe que nunca na vida ele travara um duelo, e que tomar parte num, agora, o deixava inquieto.

 

- Gostaria de poder ajudá-lo - disse ele - mas não posso deixar de pensar que seria preferível resolver uma questão como esta, entre amigos e à ceia, de um modo amigável, e que, além disso, o senhor não há-de querer bater-se com um homem muito mais velho por uma questão que nem merece tal nome.

 

Giovanni sorriu-lhe com toda a doçura.

 

- Tranquilize a sua consciência, conde - disse-lhe - o príncipe é o ofendido e será ele a escolher as armas. Se vivesse na Toscana já teria ouvido falar na sua pontaria. Quanto à idade, é certo que ele já viveu o dobro dos anos que eu vivi, ou o senhor, mas apesar disso é uma criança, comparado com qualquer de nós. Ser-lhe-á coisa natural viver até aos duzentos anos, como para nós viver até aos sessenta. Aquilo que nos derruba a ele nem o atinge. Esse homem é um autêntico prodígio.

 

- O que diz - replicou Augustus - não me parece trazer mais sensatez ao vosso duelo. Não poderá ele então matá-lo a si?

 

- Não, não - disse o rapaz - que ele tem sido o meu melhor amigo há muitos anos. Queremos saber qual dos dois realmente está nas boas graças de Deus.

 

O grito claro e profundo de um pássaro soou no jardim, como se fora a voz da própria noite.

 

- Ouve cantar l'aziola? - perguntou Giovanni. - Antigamente era sinal que algo de bom me iria acontecer. Não sei - acrescentou depois - o que me anuncia agora, a menos que Deus tenha muito mais imaginação do que eu próprio''' ou melhor, a menos que Ele seja muito mais pa recido com o meu amigo príncipe do que é parecido comigo. Mas, evidentemente, confio que Ele o seja.

 

Ficou pensativo por uns momentos.

 

- Esses cavalos que eu comprei - disse ainda - não lhes dei nome. O príncipe, sabe?, acharia facilmente uns nomes para eles. Lembra-se o senhor de algum?

 

                           AS MARIONETAS

Quando o jovem príncipe, agradecendo uma e outra vez, desejou as boas-noites ao padrinho e o deixou, o velho criado que Augustus vira no faetonte veio por trás dele, silencioso como um gato, e tocou-lhe na manga. A sua ama, disse ele, havia sido incomodada pelo barulho, e desejava que o senhor conde lhe dissesse o que se passava. Estava, aliás, à espera do conde na esquina da casa, onde a luz de uma janela batia num banco de pedra. O velho criado manteve-se às ordens, a pouca distância, junto a uma grande árvore.

 

Augustus hesitou em informar a jovem do duelo, mas afinal ela já sabia tudo, pois o velho major-domo e o patrão da estalagem tinham estado a escutar à porta. O que ela queria saber, e que muito parecia agitá-la, era como surgira a questão. Augustus pensou que o melhor seria contar-lhe, para o caso de haver mais tarde um inquérito, e assim, declarando que ele próprio não via como daí nascera uma luta de vida ou de morte, repetiu-lhe os passos da conversa de que ainda se lembrava. Ela ouviu-o sem dizer nada, tão direita e imóvel como uma estátua, mas no meio da narrativa pegou-lhe no braço e conduziu-o até ao círculo de luz. Quando Augustus terminou, ela pediu-lhe que contasse de novo toda a história do matador, interrompendo-o para que ele repetisse certas palavras e figuras.

 

Quando Augustus, pela segunda vez, chegou ao fim, ela subitamente virou-se para a luz, e ele assustou-se por ver no seu rosto, como no reflexo de um espelho, a expressão do velho príncipe ao ser tão vivamente insultado. Ela não usava pó nem pintura, de modo que Augus tus pôde seguir o curso do sangue que lentamente lhe subiu à testa, até que todo o rosto enrubesceu como se ela tivesse feito um violento exercício ou bebido um vinho forte. De uma forma mais ligeira - porque não carregava como ele um peso físico ou moral - ela compartilhou nesse instante da sua metamorfose divina, e podia ter passado, seguindo as pisadas desse velho Dionísio, por uma jovem bacante ou, até, tal era a luz dos seus grandes olhos, por uma das suas panteras.

 

Respirou profundamente.

 

- Desde o primeiro instante que o vi, Signor - disse ela - soube que algo de bom iria acontecer-me. Diga-me, peço-lhe: é possível, se ambos dispararem ao mesmo tempo, e ambos fizerem boa pontaria, que as duas balas atinjam os corações de ambos no mesmo instante, e que ambos morram?

 

Augustus pensou que esta jovem senhora tinha uma alma sanguinária, que não se coadunava com o seu interesse pela filosofia e pelas estrelas.

 

- Nunca ouvi dizer que tal coisa tivesse acontecido - disse ele - embora eu não possa afirmar que não seja possível. Por mim, estou inquieto com o resultado deste duelo; é uma estranha coincidência ter ouvido mencionar, ainda ontem, que este velho príncipe era um atirador temível.

 

- Toda a gente sabe - disse ela - que, se ele não consegue assustar as pessoas de outro modo, usa das pistolas. Mas diga-me, peço-lhe, Signor - prosseguiu ela - quem é o jovem que o príncipe vai matar? Não me disse ainda o seu nome.

 

Augustus disse-lho. De novo ela ficou em silêncio, imóvel.

 

- Giovanni Gastone - repetiu lentamente. - Então eu mesma já o vi. No dia da minha primeira comunhão, há cinco anos, ele acompanhava a avó à Basílica, e segurava a sombrinha para a proteger, no caminho da carruagem ao portal, porque chovia muito.

 

- Que se deite - disse ela pouco depois. - Se esta há-de ser a última noite em que ele poderá deitar-se, que a durma. Mas nós, Signor, nós não poderemos conciliar o sono, e que faremos? O meu criado disse-me que está uma companhia de marionetas na pousada, e, como os carroceiros de Pisa voltam tarde, os artistas vão dar um espectáculo daqui a pouco. Vamos nós também assistir.

 

Augustus sentia que, por si, também não seria capaz de adormecer. Com efeito, jamais se sentira tão desperto, ou em mais agradável vigília. Sentia o corpo mais leve, como quando era rapaz. Com o espanto feliz de um pesquisador que descobre um filão de ouro na rocha, Augustus reflectiu que dera com todo um filão de acontecimentos na vida. A companhia da jovem também lhe agradava particularmente, e ele pensava se não seria, em parte, por ela estar vestida como ele de longas calças pretas, que lhe pareciam ser o trajo normal de um ser humano. Os folhos e caudas com que as mulheres em geral acentuam a sua fe minilidade, por força, pensou, levam os homens a falar-lhes como a soldados em uniforme, ou clérigos de batina, e nem uns nem outros nos dirão grande coisa. Seguiu-a, pois, até ao grande celeiro caiado onde se levantava o teatro e já a peça corria.

 

A atmosfera ali era quente e sufocante, embora no alto uma janela se abrisse para o esmalte azul do céu nocturno. Pessoas enchiam até meio a casa, muito escassamente iluminada por umas lanternas velhas que pendiam do tecto. À volta do palco as velas da ribalta criavam um oásis mágico de luz, fazendo o carmim, o laranja e o verde vivo dos fatinhos dos bonecos, provavelmente fanados e baços à luz do dia, brilhar, resplandecer como jóias. As sombras dos bonecos, muito maiores do que eles, reflectiam todos os seus movimentos na brancura do pano de fundo.

 

O artista interrompeu a representação à chegada dos distintos espectadores, foi buscar-lhes duas poltronas e colocou-as junto ao palco, à frente da plateia. Depois retomou o fio à meada onde se interrompera, falando bem alto nas vozes diferentes das suas personagens.

 

A peça que se representava era a imortal Vingança da Verdade, a mais encantadora das comédias de marionetas. Todos se lembrarão que a acção começa quando uma feiticeira pronuncia, na casa onde se reúnem todas as personagens, uma maldição que é a seguinte: toda a mentira que ali se disser se há-de tornar em verdade. Assim, a rapariga mercenária que tenta caçar um marido rico fazendo-o crer que o ama, apaixona-se de facto por ele; o fanfarrão torna-se um herói; os hipócritas tornam-se ao fim realmente virtuosos; e o velho avarento, que diz a toda a gente que é pobre, acaba por perder a fortuna. Quando se encontram sozinhas, as mulheres falam em verso, mas a linguagem dos homens é por vezes bem grosseira; só um rapazinho, o único inocente da comédia, tem algumas belas canções, que são acompanhadas por um bandolim atrás do palco.

 

A moral da peça agradou ao público, e os rostos cansados e encardidos iluminaram-se quando riram de Mopsus, o palhaço. A jovem seguia o desenrolar da acção com os olhos de um oficial do mesmo ofício. Augustus sentiu, com estranheza, nesta sua disposição de ânimo, que algumas das falas das personagens lhe iam direitas ao coração. Quando o apaixonado disse à bela que um pedaço de pão seco mata melhor a fome do que todo um livro de cozinha, ele tomou a frase quase por uma advertência. A vítima, que não desconfia das intenções do assassino, fala da beleza do luar, e o vilão responde-lhe com uma dissertação sobre o absurdo do poder divino, que nos faz ter prazer com as coisas que não encerram para nós qualquer vantagem, e que podem afinal, muito pelo contrário, prejudicar-nos; e prossegue dizendo que, portanto, Deus nos ama da mesma forma que nós gostamos dos cães: quando Ele está bem-disposto nós andamos bem-dispostos; quando Ele está deprimido, nós ficamos deprimidos; e se Ele, num gesto romântico, cria uma noite de luar, nós seguimos, pequeninos, o Seu humor, tão bem quanto podemos. Isto fez sorrir Augustus. Pensou no quanto gostaria de sentir-se, ainda uma vez, como quando era criança, um dos cãezinhos de Deus.

 

No fim a feiticeira volta a aparecer, e ao perguntarem-lhe o que é realmente a verdade, ela responde «A verdade, meus filhos, é que nós estamos, todos nós, a representar uma comédia de marionetas. O que é importante, o mais importante de tudo, numa comédia de marionetas, é manter a clareza das ideias do autor. É essa a verdadeira felicidade; e eu, que finalmente entrei numa peça de marionetas, desejo nunca mais sair dela. E vós, actores meus irmãos, mantendo a clareza das ideias do autor. Ah, levai-a até às últimas consequências.» Esta fala pareceu a Augustus, subitamente, encerrar grandes verdades. Sim, pensou ele, se a minha vida fosse apenas uma comédia de marionetas onde me coubesse um papel, e eu o soubesse bem, então vivê-la talvez me fosse mais leve e doce. As gentes deste país parecem de algum modo praticar este ideal. São imunes aos terrores, aos crimes e aos milagres da vida, onde têm um papel como se fossem os pequeninos actores no palco do velho titereiro. Para os povos do Norte, as fortes agitações da alma sobrevêm a cada vez como estranhas, e, quando se encontram agitados, as palavras saem-lhes aos tropeços. Mas estes aqui falam fluentemente sob as mais violentas paixões, como se a vida fosse, em cada um dos seus caprichos, uma comédia que eles já tivessem ensaiado. Se eu agora, finalmente, pensou ele, entrei numa peça de marionetas, desejo nunca mais sair dela.

 

Durante a última cena, quando todas as marionetas em palco recebiam os aplausos do público, Augustus ouviu uma porta que se abria ao fundo do celeiro, e ao voltar-se viu o príncipe Giovanni e o seu criado que entravam e olhavam a assistência como à procura de alguém. Julgando que era ele a quem buscavam, Augustus levantou-se e foi ter com eles, que se mantinham um pouco afastados do barulho do teatro. Sentia-se um tanto envergonhado por ter saído a divertir-se nessa noite que poderia ser a última para o rapaz, mas Giovanni não parecia surpreendido e perguntou-lhe se a peça tinha sido boa.

 

- Aconteceu um lamentável percalço - disse ele. - O jovem amigo do príncipe, que seria seu padrinho, está com um ataque. Sente-se muito agoniado e não consegue parar de chorar. Eu lembrei-me de o ter vis-to ao serão em companhia de um rapaz que tomei, dado o modo como o senhor lhe falava, por um jovem da alta nobreza, talvez seu compatriota. Vim rogar-lhe que o convença a tomar o lugar de padrinho amanhã de manhã, porque nem eu nem o príncipe queremos adiar o combinado.

 

As palavras do príncipe colocaram Augustus num dilema. Não queria revelar o segredo da jovem senhora, e reflectiu que talvez fosse melhor manter Giovanni na suposição de que ela era realmente um rapaz do seu país, de quem Augustus estivesse mais ou menos encarregue.

 

- Esse jovem - disse ele - parece-me ser demasiado novo para tomar parte em caso tão sinistro. Mas, como ele está aqui comigo, se quiser esperar, eu vou falar com ele.

 

Ao voltar para junto da jovem senhora, ela estava ainda olhando o palco, mas nesse preciso momento o pano desceu pela última vez. Au gustus repetiu-lhe a conversa que tivera com o príncipe, e sugeriu que encontrassem uma desculpa que lhe permitisse a ela partir de manhã cedo, para não se envolver na questão. Ela pensou por uns momentos, levantou-se e olhou para Giovanni que, no outro extremo do celeiro, olhava para ela e para Augustus.

 

- Signor - disse ela em voz lenta e grave - gostaria de conhecer o seu amigo, o príncipe Nino, e nada me daria mais prazer do que ser padrinho no seu duelo. As nossas famílias nunca mantiveram relações de amizade, mas em pendências de honra é um dever ignorar quaisquer divergências do passado. Tenha a bondade de lhe dizer que o meu nome é Daniele delle Gherardesci, e que estou ao seu dispor.

 

O príncipe Giovanni, ao ver que ambos o olhavam, aproximou-se e, quando Augustus os apresentou, os dois jovens trocaram um cumprimento de extrema cortesia. Ela virava as costas ao palco, e as luzes da ri balta punham uma auréola no seu cabelo, de tal modo que, na sua atitude serena e arrogante, ela parecia um jovem santo mascarado de dandy. A assistência, que se levantava, ao reconhecer o príncipe parou a olhar para ele, mantendo-se a uma certa distância do grupo.

 

O príncipe exprimiu a sua gratidão pela cortesia que lhe fora feita.

 

- O príncipe - disse a rapariga - no Egipto, onde ela era uma velha mulher e ele o primeiro-ministro, su-cedeu que a mulher de Putifar obteve uma audiência com José para pedir-lhe a grande Ordem da Estrela do Paraíso para o genro. «Penaliza-me importuná-lo, Excelência - disse ela - mas sinto que já passou tanto tempo desde que lhe pedi alguma coisa que espero ser ouvida sem desagrado.» Ao que o primeiro-ministro respondeu: «Senhora, um dia houve em que estive no cárcere. Ali não podia olhar as estrelas, mas costumava sonhar com elas. Sonhava que, por não poder vigiá-las, elas corriam por todo o firmamento, e os pastores, que à noite conduziam as ovelhas e os camelos, se perdiam no caminho. Sonhei, até, uma vez consigo, senhora, e que, ao encontrar a estrela Aldebarã caída do céu, a apanhei e lha ofereci. A senhora colocou-a então no seu fichu e disse: Mil vezes obrigada, José. Ainda bem que o meu sonho se tornou mais ou menos realidade. A Ordem que pretende para o seu genro já a ele pertence.»

 

Pouco depois separavam-se.

 

                       O DUELO

O Sol não nascera ainda, mas havia no ar a maravilha de uma promessa de luz, e nem uma nuvem no céu. As lajes do pátio estavam ainda húmidas de orvalho; um pássaro primeiro, depois outro, começaram a cantar, ocultos nas árvores do jardim, e da estrada chegaram as vozes dos carroceiros que já se tinham posto a caminho e seguiam a pé, ao lado dos bois de longos cornos.

 

Augustus foi o primeiro a sair da pousada. A friagem da manhã e o ar, puro como um copo de água, fizeram-no inspirar profundamente, lentamente gozando o aroma da lenha, das árvores em flor e do pó da estrada. Parecia-lhe estranho que andasse neste ar a morte, e todavia era certo que os dois adversários encaravam o duelo com a mais grave seriedade; e, pelas regras que ouvira ditar na noite anterior, pensava ele ser muito provável que um dos dois não visse já o Sol do meio-dia nesse céu sem uma nuvem.

 

A ideia da morte ia sendo cada vez mais imperiosa à medida que os seus passos se encaminhavam, lentos, para o extremo do longo pátio. Dali se descobria um vasto panorama da estrada, com os seus renques de árvores que em meandros subiam e desciam pela paisagem. Distinguiu no horizonte uma linha baixa, irregular, azul, sobre a qual pairava no céu uma pequena nuvem. Quando o Sol fosse alto, pensou ele, nela se acharia Pisa. Ei-la, a primeira estação da sua jornada, pois tinha cartas de apresentação para várias pessoas da cidade. Mas estes, aqui, apressavam-se a seguir para uma estação derradeira de uma jornada mai or, e ele reflectiu que deviam ter, de um certo modo, percorrido e conhecido mais estradas do que ele, para assim se encontrarem prepa rados a porem-lhe um fim desta maneira.

 

Ao voltar sobre os seus passos viu Giovanni sair, acompanhado pelo criado, e deter-se a olhar o céu azul como ele próprio havia feito. Vendo-o, o jovem italiano foi ao seu encontro e desejou-lhe um bom dia, e juntos caminharam de um lado ao outro do pátio, falando de assuntos indiferentes. Se o duelista estava nervoso, sepultava a inquietação no mais íntimo de si, só a deixando transparecer nessa nova suavidade e jovialidade de maneiras. Ao mesmo tempo Augustus tinha a sensação de que ele se abraçava à proximidade da hora fatídica com uma ternura apaixonada, como para não deixar que o mundo lha roubasse.

 

Dois criados do velho príncipe saíram, transportando uma vasta poltrona. A corpulência do príncipe não lhe permitia bater-se de pé, e costumava praticar o tiro sentado. Perguntaram os criados a Augustus onde haviam de colocar a cadeira, e todos começaram a procurar um sítio perfeitamente plano do lajedo. Teria de haver uma distância de 10 passos entre os combatentes, e estes foram escrupulosamente medidos, marcando-se depois o lugar onde havia de ficar Giovanni. Os criados do velho príncipe trouxeram também um par de pistolas num estojo muito elegante, e colocaram-no, junto a um copo de limonada e um lenço de seda, sobre a mesinha perto da cadeira. Voltaram a entrar na pousada. Enquanto se procedia a estes preparativos, a rapariga e o seu velho criado atravessaram o longo pátio. Ela vinha pálida, no seu grande capote, e mantinha-se um pouco afastada dos outros. O médico, que fora chamado à aldeia - um velho que cheirava a hortelã-pimenta e usava ainda a cabeleira de bolsa da geração anterior - chegou ao mesmo tempo e quedou-se junto dela, entretendo-a com histórias de duelos que lera ou ouvira contar, e que acabavam todas em mortes. O jovem príncipe, à distância, olhava-os de vez em vez. O ar parecia encher-se aos poucos de luz; o canto dos pássaros fez-se de súbito muito claro. Pairava a sensação de que alguma coisa iria suceder. Na estrada um grande rebanho de ovelhas passou, levantando uma nuvem de poeira que já se tingia de ouro.

 

Olhavam a porta da osteria quando esta foi aberta e o velho príncipe surgiu, apoiado no braço do criado. Estava vestido com muita elegância num casaco verde-garrafa, tinha-se pintado com grande esmero, e deslo cava-se com toda a graça e dignidade. Patenteava-se no seu rosto uma profunda comoção. O Sol ergueu-se então acima do horizonte, mas a sua chegada não transformou ou dominou a cena tanto como a entrada do velho. Todos os outros, de uma ou outra maneira, reprimiam ou dis farçavam as suas verdadeiras emoções, ao passo que ele mostrava a sua angústia com a simplicidade de uma criança pura, perfeitamente con fiante na simpatia de tudo o que a rodeia. Os seus olhos negros estavam húmidos, mas eram francos e gentis como se tudo na vida lhe fosse natural e benigno, dando a mesma impressão de segurança e mestria que um grande virtuoso ao percorrer no violino todas as escalas, até ao trilo do Diabo, como se fossem brincadeiras de crianças. Este seu equilíbrio mental era tão impressionante, tão surpreendente como o equilíbrio do seu obeso corpo nos pés minúsculos e elegantes. No momento em que os seus olhos encontraram os de Augustus, nessa manhã, no pátio, este ficou certo que o tiro desse velho seria mortal. O próprio Júpiter, o raio oculto no bolso da casaca, não teria provocado mais forte impressão de invencibilidade.

 

A todos cumprimentou, cortês e afável, e logo pareceu fazer do médico um seu escravo. Os olhos de peixe do clínico seguiam os menores movimentos do grande homem. Este não tinha pressa, mas também não queria retardar as coisas. Era claro, desde o momento em que ali apareceu, que tudo se processaria dentro da medida e graça de um perfeito minuete.

 

Após algumas observações sobre o tempo e o cenário, e depois de expressar a sua gratidão aos dois padrinhos, o príncipe, ainda de pé, deu as pistolas a escolher ao amigo; quando Giovanni, com uma das armas na mão, se retirou para a posição que lhe fora destinada, ele libertou-se do braço do criado, curvou-se perante o adversário numa vénia profunda e, com um grande movimento de alívio, como se agora chegasse ao fim feliz da existência quotidiana e ao princípio da verdadeira vida, segurando a outra pistola sentou-se na vasta poltrona, descansando por momentos a arma no joelho. Augustus ocupou o seu lugar a uma distância igual dos duelistas, para que ambos pudessem ouvir o seu sinal. Uma leve brisa perpassou então na folhagem do jardim, fazendo cair as flores das árvores e espalhando a sua fragrância.

 

Augustus já pigarreava, a preparar-se para o um, dois, três da praxe, quando a fraca figura da jovem, que o estava fitando, avançou até ao velho príncipe e, erguendo a mão até à anca, falou numa voz clara e profunda, como se um pássaro do jardim viesse pousar no ombro do velho e só para ele cantasse.

 

- Permita-me, príncipe - disse ela - que eu lhe fale antes que atire. Tenho algo a dizer-lhe. Tivera eu uma certeza absoluta no desfecho deste duelo, que havia de aguardar que matasse o seu amigo, mas ninguém pode adivinhar quais os desígnios da Providência, e eu não quero que morra, senhor, sem ouvir o que tenho a dizer-lhe.

 

Todos os rostos se tinham voltado para ela, mas ela fitava apenas o rosto sereno e pesaroso do velho. Parecia muito jovem e pequena, mas a profunda gravidade e o sangue-frio davam à sua figura uma importância terrível, como se um anjo destruidor e jovem tivesse descido veloz do céu azul até ao pátio de pedra, para ali presidir a um julgamento.

 

«Há um ano atrás - disse ela - Rosina, sua esposa, foi a meio da noite encontrar-se com o primo, que iria deixar Pisa nessa manhã, em casa da velha ama, junto ao porto. Era necessário que os dois se falassem, e decidissem o que fazer, e Rosina sentia, além disso, que as forças a abandonavam, que precisava de ver mais uma vez o amado, pois se o não visse cuidava ela que morria.

 

Rosina, como sabe, tinha sempre uma lamparina acesa no quarto, e não ousava apagá-la nessa noite com medo que o senhor pudesse entrar ou mandasse uma das suas espias, as criadas dela, espreitar, e sendo assim, vendo o quarto vazio, acordasse toda a casa. Por isso pediu à sua melhor amiga, uma virgem como ela, alguém que, por virtude de um juramento sagrado, estaria sempre pronta a servi-la, pediu-lhe que tomasse o seu lugar na cama por essa única hora. Entre ambas subornaram a sua criada negra, Baba, com dez varas de veludo carmesim e um cãozinho de Bolonha, que pertenciam à amiga de Rosina - e que era tudo o que elas possuíam no mundo e podiam oferecer-lhe - para que lhes abrisse a porta. Entraram e saíram vestidas como ajudantes de boticário, oficial que por vezes era chamado a dar um clister à sua velha governanta. Rosina foi a casa da ama e falou com Mario na presença da velha mulher, pois assim devia ser. Juraram um ao outro fidelidade eterna, e ela deu-lhe uma carta para o tio-avô em Roma, e voltou ao palazzo quando passava já da uma hora. Esta, príncipe, é a minha história, que eu queria que soubesse.»

 

Todos estavam perfeitamente imóveis, como um grupo de bonequinhos de madeira colocados naquele pátio, no meio de um grandioso cenário - Augustus e o velho médico, porque não percebiam o que as palavras significavam; o velho príncipe e Giovanni porque a impressão que elas causavam era tão profunda que os paralisava.

 

Por fim o velho falou.

 

- Quem - disse ele - o mandou hoje aqui para me dizer isso, meu bonito e jovem Signor?

 

A rapariga fitou-o nos olhos.

 

- Não me reconhece, príncipe? - perguntou. - Eu sou aquela rapariga, Agnese delle Gherardesci, que prestou a sua mulher tal serviço. Viu-me o senhor no seu casamento, onde fui como dama de honor, vestida de amarelo. E também outra vez em que entrou nos aposentos de Rosina e eu jogava xadrez com o professor Pachiani, que o senhor mandara para lhe falar dos seus deveres de esposa. Ela estava de pé, junto à janela, para que não se visse que chorava.

 

Depois que a jovem disse estas palavras, o príncipe Giovanni nunca mais desviou os olhos do seu rosto; por tudo o que depois aconteceu ele se quedou imóvel como as árvores do jardim.

 

O velho príncipe, sentado na sua vasta poltrona, mais se assemelhava agora a um velho ídolo, sereno e belo, feito de um mosaico de ouro, marfim e ébano. Fitou com interesse a rapariguinha.

 

- As minhas desculpas, Signora - disse ele, numa profunda mesura. Depois voltou a sentar-se em silêncio.

 

- Então - disse ele devagar, ao fim de algum tempo - se a Baba me ti vesse sido fiel eu encontraria os dois naquela noite, na casa junto do porto, e tê-los-ia em meu poder?

 

- Assim seria - disse a rapariga. - Mas eles não se importariam de morrer às suas mãos se pudessem morrer juntos.

 

- Não, não, não - disse o velho príncipe - de modo algum! Como pôde imaginar que eu os matava? Mas havia de os despir e lhes dizer que os iria mandar matar de uma maneira horrível na manhã seguinte, e fechá -los-ia juntos no mesmo quarto. Ela, quando se assustava ou se zangava, o seu rosto, todo o seu corpo se ruborizava como a flor do aloendro.

 

À recordação, mergulhou em pensamentos por largo tempo. Parecia entorpecer cada vez mais, como coisa inanimada, até que, subitamente, uma onda de cor se espalhou pelo seu rosto.

 

- E então - exclamou com profunda emoção - ainda eu a teria, a minha linda criança, para brincar comigo!

 

Fez-se um silêncio longo; ninguém se atreveu a falar na presença de tanta dor.

 

De súbito ele sorriu para todos; foi um sorriso muito suave e doce.

 

- Sempre pecamos - disse ele em voz aguda e clara - por pequenez. In vejava esse rapaz, Mario, por isso, e era um sentimento mesquinho. E na minha vaidade achei que preferia que o herdeiro do meu nome, se tivesse de existir, fosse da semente de uma casa ducal. Tão pequeno que eu fui, tão pequeno, para querer entender os caminhos de Deus!

 

- Nino - disse ele momentos depois - Nino, meu amigo, perdoe-me. Dê-me a sua mão.

 

Profundamente comovido, Giovanni largou a pistola e tomou nas suas a mão do velho amigo. Mas o príncipe, depois de apertar os dedos do rapaz, de novo tomou da pistola, como a pôr-se em guarda contra um inimigo maior.

 

Os negros olhos profundos fitavam um ponto à sua frente. Os lábios estavam entreabertos, como se fosse cantar.

 

- Carlotta - disse.

 

E depois, num estranho movimento de cansaço voltou-se para o lado direito e tombou, arrastando a cadeira, de lado no chão, o grande peso ressoando na laje com um baque surdo. A cadeira ficou com duas pernas no ar quando ele rolou do assento para o chão e se imobilizou. Nesse instante a arma, que ele ainda segurava na mão, disparou-se, e a bala, tomando uma estranha trajectória, rasou de tão perto a cabeça de Augustus que ele ouviu-a assobiar como se fosse o canto de um pássaro. Atordoou-o durante uns segundos, e trouxe-lhe a imagem da mulher. Quando voltou a sentir as pernas firmes viu que o médico, ajoelhado junto ao velho príncipe, erguia ambos os braços ao Céu. O rosto do velho tomava lentamente uma cor de cinza. A pintura das faces e dos lábios parecia um esmalte rosa e carmesim sobre um campo de prata.

 

O médico deixou cair os braços e colocou uma das mãos sobre o peito da figura imóvel. Momentos depois voltou a cabeça e encarou os que permaneciam atrás dele, o seu rosto preso de um tão imenso terror que toda a expressão dele tinha desaparecido. O seu olhar encontrou o dos outros, e o rosto alterou-se. Ergueu-se, e declarou em tom solene: - Morreu.

 

Ninguém foi capaz de um gesto. A figura do velho príncipe, jazendo imóvel no pátio, era ainda o centro do quadro, tal como se estivesse lentamente subindo aos céus e eles, os seus discípulos, deixados para trás, o seguissem ainda com os olhos. Só Nino, como uma dessas figuras que são postas nos quadros sacros para retratar o doador, só ele mantinha em certa medida uma perspectiva própria.

 

O Sol, erguendo-se no céu azul da manhã emprestava uma flor de neblina ao verde pano que cobria as pesadas curvas do corpo do velho sobre o lajedo do pátio.

 

                           A CATIVA LIBERTADA

Quando os criados do velho príncipe o ergueram e transportaram para dentro, Giovanni e Agnese acharam-se face a face no pátio então deserto. Os olhos negros de ambos encontraram-se e, como se esta fosse a mais fatal das suas missões nessa manhã de Primavera, ela fitou-o por todo o tempo que levou o galo do estalajadeiro - que descendia do galo da casa do sumo-sacerdote Caifás, e cujos antepassados foram trazidos para Pisa pelos Cruzados - para erguer e acabar um longo canto. Então ela voltou-se para seguir os outros e entrar na pousada. Nesse momento ele falou, ainda imóvel.

 

- Não se vá.

 

Ela deteve-se por instantes esperando, mas não lhe dirigiu uma palavra.

 

- Não se vá - repetiu ele - antes de consentir que eu lhe fale.

 

- Não creio - retorquiu ela - que possa ter alguma coisa a dizer-me.

 

Por largo tempo ele se quedou, muito pálido, como se fizesse um grande esforço para recuperar a voz, e depois disse, num tom grave e mudado:

 

 

Lo spirito mio, che giá cotanto

 

tempo era stato ch'alla sua presenza

 

non era di stupor tremando affranto

 

senza degli ochi aver più conoscenza,

 

per occulta virtù che da lei mosse

 

d'antico amor senti la gran potenza.

 

 

Seguiu-se um longo e profundo silêncio. Ela seria uma pequena estátua do jardim se o fraco vento matinal não brincasse nos seus cabelos, erguendo os sedosos caracóis.

 

- Tinha-te deixado - disse ele, falando como alguém que sonhasse - e ia-me embora, mas ao chegar à porta voltei-me para trás. Estavas sentada na cama. O teu rosto mergulhava na sombra, mas a lamparina iluminava-te os ombros e as costas. Estavas nua, pois eu tinha rasgado os teus vestidos. A cama tinha cortinas verdes e amarelas, como as minhas florestas nas montanhas, e tu eras a minha imagem de Dafne, que se volta e é transformada em loureiro. E eu estava ali, na escuridão. O relógio bateu a uma hora. Durante um ano - exclamou ele - não pensei em mais nada senão nesse momento!

 

De novo os jovens se imobilizaram. Como as marionetas da noite anterior, estavam em poder de outras mãos, mais fortes, e não tinham ideia do que iria suceder-lhes. Ele falou de novo:

 

Di penter si mi punse ivi l'ortica

 

che di tutt'altre cose, qual mi torse

 

più nel suo amor, più mi si fe' nemica.

 

Tanta riconoscenza il cuor mi morse

 

ch' io caddi vinto.

 

Deteve-se porque, embora tivesse repetido a si próprio tantas vezes estes versos, nesse momento não conseguiu lembrar-se do resto. Era como se ele também tombasse morto, como o velho adversário.

 

Ela voltou-se e de novo o olhou, muito severamente, e no entanto o seu rosto expressava a clareza e a calma que os sons da poesia produzem naqueles que a amam. Falou para ele, muito lentamente, na sua clara e doce voz, como a de um pássaro:

 

''' da tema e da vergogna

 

voglio che tu ormai ti disviluppe

 

e che non parli più com' uom che sogna.

 

Por um momento ela desviou o olhar, inspirou profundamente, e a sua voz ganhou mais força:

 

Sappi che il vaso che il serpente ruppe

 

fu e non è, ma chi n'ha colpa creda

 

che vendetta di Dio non tene suppe.

 

Com estas palavras ela afastou-se e, embora passasse tão perto dele que Giovanni poderia tê-la retido, se estendesse a mão, ele não se moveu nem fez um gesto para tocá-la, permanecendo no mesmo lugar como se pretendesse ali ficar para sempre, seguindo-a com os olhos até ela entrar na pousada.

 

Augustus saía nesse preciso momento e foi ao seu encontro. Embora profundamente afectado pelos acontecimentos dessa manhã, e finalmente por ver o corpo do velho príncipe, agora jazendo em paz e dignidade sobre uma larga cama da pousada, a sua consciência dizia-lhe que devia fazer um esforço por levar a mensagem da velha senhora até Pisa, e de sejava que a rapariga o ajudasse e o guiasse nesse empenho. Ao mesmo tempo, e agora que melhor compreendia o que provocara a tragédia dessa manhã, temia acercar-se da jovem, que era uma das figuras principais dela, e falar-lhe de coisas tão triviais como estradas e carruagens. Ela reuniu-se-lhe, porém, como se ele fosse um velho amigo que lhe desse alegria encontrar. Tomou a sua mão e olhou para ele. Estava mudada, como se a estátua tivesse ganho vida, pensou ele.

 

A jovem ouviu com grande interesse tudo quanto ele tinha a dizer-lhe, e ficou naturalmente ansiosa por levar a mensagem à amiga o mais brevemente possível. Sugeriu que viajassem ambos no faetonte, que seria mais rápido que a carruagem de Augustus. Disse-lhe ainda que ela própria conduziria o faetonte.

 

- Meu amigo - disse ela - vamos embora. Vamos para Pisa, e tão depressa quanto possível. Porque eu estou livre. Posso ir onde eu quiser, posso pensar no dia de amanhã. Acho que amanhã será um dia lindo. Posso lembrar-me de que tenho dezassete anos, e que, pela graça de Deus, terei ainda mais sessenta anos de vida. Já não estou encerra da dentro de uma só hora. Meu Deus! - disse ela, percorrida por um súbito e forte arrepio - já nem conseguiria lembrar-me, se o quisesse.

 

Parecia um jovem auriga confiante de vencer a corrida. A velocidade era neste momento a ideia de todas a mais atraente. Ao dirigirem-se para a pousada, ela voltou-se a olhar o pátio.

 

- Todos estávamos errados - disse ela. - Esse velho era um grande homem, e merecia ter sido amado. Enquanto viveu desejámos-lhe a morte, mas agora que está morto acho que todos desejamos que ele estivesse vivo.

 

- É o que nos faz compreender - disse Augustus, que estivera reflectindo na sua própria existência - como cada ser humano que en contramos e conhecemos é afinal alguma coisa de nossa invenção, como uma árvore plantada no nosso jardim ou os móveis da nossa casa. Será melhor guardá-los e dar-lhes algum préstimo que atirá-los fora e acabarmos não possuindo nada.

 

Ela pensou nestas palavras durante algum tempo.

 

- Então o velho príncipe há-de ser - disse ela - no jardim da minha alma uma grande fonte, em mármore negro, junto da qual tudo é sempre tranquilo e fresco e da qual grandes cascatas de água se precipitam e brincam. Hei-de ir lá sentar-me às vezes, quando tiver muito em que pensar. Se eu fosse Rosina, não teria procurado fugir dele. Tê-lo-ia feito feliz. Teria sido bom se ele fosse feliz; dói muito fazer alguém infeliz.

 

Augustus, que julgou ouvir na sua voz a sombra de um remorso tardio, disse para a consolar:

 

- Lembre-se que salvou a vida do outro.

 

Ela mudou de cor e ficou silenciosa por momentos. Depois voltou-se e olhou-o com profunda serenidade.

 

- Quem - disse ela - poderia consentir que um homem fosse tão injustamente acusado?

 

Pronta a carruagem, ambos empreenderam a viagem até Pisa, partindo a grande velocidade. O dia começava a aquecer, a estrada era poeirenta, e as sombras das árvores uniam-se a seus pés. Augustus deixara o seu endereço com o velho médico, para o caso de haver um inquérito, mas, afinal, o velho príncipe morrera de morte natural.

 

                   UM PRESENTE À DESPEDIDA

O conde Augustus von Schimmelmann estava em Pisa há mais de três semanas e começava a gostar da cidade. Tivera uma ligação amorosa com uma senhora sueca, alguns anos mais velha do que ele, que vivia em Pisa para estar longe do marido e tinha em sua casa um pequeno teatro de ópera, onde se apresentava perante um público de amigos. Era uma discípula de Swedenborg, e disse a Augustus que tivera uma visão de ambos no outro mundo. O que mais o interessava, porém, eram as ten tativas de dois padres, um velho e o outro novo, para convertê-lo ao catolicismo. Embora não fizesse tenções de converter-se, era para ele uma surpresa e um prazer que alguém resolvesse ocupar-se tanto da sua alma, e afadigava-se a explicar aos dois clérigos as suas ideias e os seus estados de ânimo. Previa, no entanto, que esta sedução espiritual não iria durar eternamente e havia de acabar, como - para sua pouca sorte - todas as outras seduções, mais tarde ou mais cedo; principiou então a dedicar muito do seu tempo a uma sociedade política secreta, a que fora apresentado como alguém oriundo de uma nação mais livre. Nessas sessões conheceu um velho jacobino autêntico, um exilado, um antigo membro da Montanha, que fora amigo de Robespierre. Augustus visitava-o assiduamente, no quartinho sujo e escuro na trapeira de uma velha casa, e com ele discutia a liberdade e os tiranos. Tomava também lições de pintura, e começara a copiar um quadro antigo da galeria.

 

Certa vez recebeu uma carta da velha condessa di Gampocorta, que estava então residindo na sua villa nos arredores de Pisa, onde lhe pedia que a fosse ver. Escrevia-lhe com muito afecto e gratidão, e dava-lhe notícias. Ao ser informada, simultaneamente, do acidente da avó e da morte do primeiro marido, a jovem Rosina dera à luz um meni no, que fora baptizado com o nome de Carlo em homenagem à bisavó, e que esta descrevia como sendo um bebé de grande maravilha. As duas senhoras, a velha como a jovem, encontravam-se bem agora, ainda que a velha condessa escrevesse que abandonara qualquer esperança de recuperar o uso da mão direita, e ambas ansiavam por demonstrar-lhe todo o reconhecimento pelo auxílio que lhes prestara Augustus nessa hora de aflição.

 

Augustus dirigiu-se à villa da condessa numa tarde extraordinariamente quente. Ao aproximar-se do local uma trovoada, que ameaçara Pisa durante três dias, rebentou enfim. O enxofre saturava, no estranho cheiro do ar, na cor que enchia o céu, e as grandes ár vores negras junto à estrada vergavam-se às rajadas do vento. Relâmpagos terríveis pareciam faiscar bem junto à carruagem, seguidos por longos, furiosos roncos de trovões. Chegou depois a chuva, em grossas e quentes bátegas, e num momento a paisagem toda se velou ante os seus olhos, sob a capota da carruagem, atrás de fiadas de água cinzenta e luminosa. Ao passar por uma ponte de pedra com um parapeito baixo, ele viu a chuva raiar o rio escuro de mil setas. Subia a estrada por uma encosta rochosa e íngreme, traiçoeira devido à chuva, e ao parar a carruagem juno à alta escadaria de pedra, na frontaria da casa, logo veio correndo um lacaio com um enorme chapéu-de-chuva a proteger o visitante.

 

Na sala espaçosa, que abria para um longo terraço de pedra com vista para o rio, o som do rápido martelar das pesadas gotas de chuva sobre a laje era tão distinto como se na própria sala chovesse. Com ele veio, pelas altas janelas abertas, o cheiro do súbito frescor e humidade do ar, e das pedras quentes que arrefeciam sob a chuva. A sala, essa, cheirava a rosas. No outro extremo dela um velho abbate estava dando lição de piano a uma pequenita, mas interromperam-se porque o barulho da trovoada e da chuva interferia com a contagem dos tempos, e agora olhavam ambos da janela o rio e o vale.

 

A velha condessa e a jovem mãe, num sofá, tinham mandado que trouxessem o bebé para o verem. Estava nos braços da ama, uma robusta e magnífica rapariga vestida de rosa e vermelho, como a flor do aloendro, e parecia extraordinariamente pequeno, como uma maçãzinha assada a que tivessem atado grandes expansões de rendas e de fitas. A atenção delas dividia-se entre a criança e a trovoada, e ambos os temas as tinham levado a um estado de exultação, como se as suas vidas fossem nesta hora chegadas a um zénite.

 

A velha senhora quisera levantar-se para receber Augustus, mas ficou tão abalada pelas próprias emoções ao vê-lo que não pôde mover-se. Os seus olhos, sob as velhas pálpebras que eram como um crepe, mareja ram-se de lágrimas que, de vez em vez, durante a conversa, rolavam pelo seu rosto. Beijou-o em ambas as faces, e apresentou-o, pro fundamente comovida, à neta, que era na realidade tão linda como as Madonas que ele vira na Itália, e ao bebé. Augustus nunca pudera sentir outra coisa além de medo na presença de crianças muito pequenas - embora fossem, convinha ele, de algum interesse como sorte de promessa - e surpreendeu-o perceber que as mulheres eram todas de opinião que o bebé nesta idade tinha chegado ao auge mesmo da per feição, e que era uma tragédia que tivesse um dia de mudar, esta opinião que a raça humana culmina no nascimento para depois e sempre declinar impressionou-o, por a julgar mais simples de cumprir-se que a sua visão.

 

A velha senhora mudara desde o dia em que ele a tinha encontrado na estrada. O amor por uma criatura do sexo masculino, que ela afirmara ter sido então incapaz de sentir, envolvera a sua vida de uma doce e grande harmonia. Ela própria o confessou no decurso da conversa.

 

- Quando eu era pequena - contava - diziam-me que eu nunca deveria mostrar a um tolo uma coisa meio feita. Mas que outra coisa nos faz o Senhor por toda a nossa existência? Se Ele me tivesse mostrado esta criança no princípio, eu teria sido dócil e deixado que Ele me conduzisse na direcção que Lhe aprouvesse. A vida é um mosaico saído das mãos de Deus, e que Ele continua a encher, pedrinha a pedrinha. Se eu tivesse visto este pedacinho de linda cor como a peça central, teria compreendido o desenho e não o teria arremessado ao chão e destruído tantas vezes, dando ao Senhor o trabalho de o refazer.

 

Os seus outros temas de conversa foram o acidente e a tarde que ambos tinham passado juntos na pousada. Falava com esse grande prazer em recordar que dá valor a quaisquer ocorrências do passado, por mais insignificantes que hajam sido no momento.

 

Um criado veio trazer vinho e uns pêssegos lindíssimos, e o jovem pai entrou e foi apresentado ao visitante; mas não desempenhava nesse quadro mais importante papel que o mais jovem dos Magos em adoração, tendo a velha condessa reservado para si o papel de São José.

 

Quando a chuvada acalmou, a velha senhora conduziu Augustus à janela para que desfrutasse o panorama.

 

- Meu amigo - disse ela enquanto ali estavam os dois, um pouco afastados dos outros - nunca lhe poderei expressar devidamente a minha gratidão, mas quero oferecer-lhe uma pequena prova dela, para que se lembre de mim quando estiver muito longe, e espero que me dê o prazer de a aceitar.

 

Augustus estava olhando a paisagem do vale. Alguma coisa nela julgou familiar e o fez sentir uma leve tontura.

 

- Quando nos conhecemos - prosseguiu ela - disse-lhe que tinha amado três pessoas na minha vida. Duas já sabe quem são. A terceira, ou a primeira, foi uma menina da minha idade, uma amiga de um país longínquo, que eu tive apenas por pouco tempo e depois perdi. Mas prometemos lembrar-nos eternamente uma da outra, e é a sua memória que muitas vezes me dá forças, nas vicissitudes da vida. Quando nos se parámos, com muitas lágrimas, oferecemos uma à outra uma recordação. Porque este objecto me é precioso, e o símbolo de uma verdadeira amizade, quero que o leve consigo.

 

Com estas palavras, ela tirou do bolso um pequeno objecto que lhe entregou.

 

Augustus pôs nele os olhos e inconscientemente levou a mão ao peito. Era um pequeno frasquinho de sais com a forma de um coração. Nele estava pintada uma paisagem com árvores, e ao fundo uma casa branca. Ao vê-la compreendeu que essa casa era a sua, a sua casa na Dinamarca. Reconheceu os telhados altos de Lindenburg, e até os dois carvalhos em frente ao portão, e os longos renques de tílias bordando a alameda, nas traseiras da casa. O banco de pedra sob os carvalhos tinha sido pintado com grande minúcia. Em baixo, numa fita pintada, liam-se as palavras Amitié Sincère.

 

Augustus sentiu a forma do seu frasquinho dentro do bolso do colete, e esteve tentado a mostrá-lo à velha senhora. Sentia que esse gesto iria dar uma história que ela havia de lembrar com prazer, e repetir; uma história a que ela talvez dedicasse o último pensamento no seu leito de morte. Mas deteve-se; pressentia que, nesta decisão do destino, alguma coisa lhe era dada a ele só - um valor, uma intensidade, um socorro até, que na vida só a ele pertencia, e que não podia partilhar com mais ninguém, tal como não poderia partilhar os seus sonhos.

 

Agradeceu à velha senhora com muita emoção, e como ela compreendesse o quanto era apreciado o seu presente, respondeu-lhe com orgulho e dignidade.

 

Despediu-se Augustus da sua velha amiga e do jovem casal com todas as expressões de uma amizade sincera, e tomou a estrada de Pisa.

 

A chuva tinha parado. O ar da tarde era quase frio. Uma luz de ouro e sombras de um azul profundo e plácido entre si dividiam toda a paisagem. Um arco-íris baixava do céu.

 

Augustus tirou um espelhinho do bolso. Colocando-o na palma da mão, mirou-se nele, pensativo.

 

                                                                                Karen Blixen  

 

                      

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