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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NASCI COM PASSAPORTE DE TURISTA / Alves Redol
NASCI COM PASSAPORTE DE TURISTA / Alves Redol

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Os textos reunidos neste volume não constituem a integralidade dos dispersos de Redol, inéditos de natureza diversa a cuja publicação, criteriosamente, se irá procedendo.
Não referenciando espécimes epistolográficos, nótulas ensaísticas, guiões para filmes, esboços, avulsos de circunstância, sobram narrativas que correspondem a um percurso inicial credor da maior atenção.
O critério seguido, no presente empreendimento, sustenta-se, antes de mais, nas indicações da bibliografia que o Autor elaborou. Dela se extraíram conclusões óbvias, confirmando propósitos nunca escamoteados: a programação de uma refundição de velhos trabalhos por si considerados reabilitáveis; a índole relativamente subalterna do género narrativo não romanesco na sua produção; o esmero com que, à semelhança do que ocorreu com Avieiros (afinal, com quase todos os títulos primogénitos), se impunha remanejar o que fora, a seus olhos, menos logrado. Na verdade, os anos sucediam-se e, enquanto esse intento aprimorador aguardava hora propícia, o infatigável Redol - a quem nunca faltaram ousados planos a que deitar mão - afeiçoava experiências novas. Impulso congénito para o permanente recomeço, de que tantas vezes falou?
Alguma incomodidade diante dos frutos de um alvorecer eivado de normais perplexidades e insuficiências? O certo é que se não conhecem quaisquer revisões da parte do espólio que, em 1991, se dá à estampa.
Apoiado na trave desta opção indeclinável, o labor de organização da colectânea preteriu contos, noveletas e crónicas anteriores a Nasci com Passaporte de Turista, integradores de uma antologia que, de modo rigoroso, aglomere e trate os primeiros escritos do jovem vilafranquense. Desde Gente Rude e Um Drama na Selva, de 1932, a Degredo, de 1937, vai uma colaboração com a imprensa regional e nacional (Notícias Ilustrado, Mensageiro do Ribatejo, Vida Ribatejana, O Diabo, entre outros) que muito importa para a exegese da literatura redoliana. Itinerários tenteantes, marcados por influências contraditórias, de Gladkov a Ferreira de Castro, tecidos de ingenuidade e franqueza, testemunham, clarividentemente, um tropismo para o compromisso social e, mesmo quando ténues do ponto de vista da efabulação ou do discurso, anunciam o prosador da maturidade, tão decisivo na afirmação do neo-realismo entre nós.
Por agora, coligem-se esparsos que, datando de 1939 ou sendo posteriores ao lançamento (em 1940, pela Livraria Portugália), de Nasci com Passaporte de Turista, e, portanto, ao ano (1939) do aparecimento de Gaibéus, se propende a aceitar como expressão de um processo já assumido, com os sucessos e imperfeições inerentes, pelo romancista de Barranco de Cegos. com efeito, as narrativas escolhidas ou constam da lista das "Obras de Alves Redol" - como acontece com Espólio (1944) ou O Comboio das Seis (1946) - ou, porque vieram a lume em revistas significativas (a Vértice, por exemplo) e compilações colectivas de relevo (Três Contos de Dentes para o Ofício 4001, in Histórias Breves de Escritores Ribatejanos, 1968), ao longo de décadas, coincidem com fases de uma convicção estética que, não abjurando de um determinante sentido de busca, melhor denunciam a singularidade do Autor.

 


 


A MARCA
- Lá está ela, ó Ruço!
O outro ergue o olhar parado, onde brilha a fugacidade de um clarão, e vai remando sempre, mãos calosas fincadas nos punhos, pés descalços na estribeira, a mover
o busto rijo num ritmo certo, num vaivém que o espadanar das pás marca no silêncio.
Já há estrelas que dormitam. Já o poalho da Estrada de Santiago se desfaz lá no alto.
Correm nuvens largas que envolvem o luar de roupagens tristes. Só a estrela da aurora rutila, anunciando aos homens o alvorecer.
- Já nun vem cedo... Estou c'uma alma!
- Com'à pescada ao sol. Grande soma!
Pousam nela os olhos ensonados, ardentes da atenção de toda a noite, a romper trevas na marcação das recolhas.
Passa um suão frio que vem Tejo acima e tange as árvores. E deixa nos corpos dos homens vincos de verdasca. Mas lá arriba a estrela da aurora cicia-lhes que o dia
vem aí. É um sol que desponta nas brumas da sua noite.
Rio fora, as luzernas das redes, embaladas nos cabeceiros, enfeitam a escuridão, como lá em cima as estrelas - estrelas do Tejo por onde os homens se guiam.
Estrelas sem poesia. E são muitas.
Desde o lance do cenoite, a remar, a remar sempre,
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olhando as outras luzes que vogam à volta e são outras tantas vidas que lutam por pão amargo.
E um debruça-se nas águas a deitar e a colher redes - a deitar sonhos e a colher desenganos. E o outro balouça o corpo, mãos à frente, punhos ao peito, ora agachado
ora hirto, no remar à jouja, de punhos cruzados como tesouras.
Embala-os o rangido dos toletes, onde os cágados se movem. É um lamento que parece expirar e nunca finda.
No fundo negro das bateiras, nas cavernas de escoar, agitam-se corpos palhetados de prata - últimos anseios de vida que se esvai. Saracoteiam alguns, saltando a
prumo sobre a cabeça e sapateando com os rabos nos panais, num frenesi de desespero, numa agonia sem eco. Abrem as barbatanas em leque, e das guelras escorre um
fio de sangue que macula os outros que não lutam mais. Transidos de angústia, os corpos crispam-se, percorridos de estertores.
Choram por eles os toletes e as árvores que o vento fere.
E o Tejo vai banzeando a bateira, enquanto canta num marulho brando.
Ouvem-no as sabogas. E os homens também. Os homens remam sempre. Sempre... E pensam.
As sabogas erguem-se ainda, boca a abrir-se em gritos que não se ouvem, mas se adivinham, tocadas de uma última ânsia. E morrem.
A estrela da aurora brilha, piscando, a espaços, como vaga-lumes, os punhais doirados das suas pontas.
- Vamos ó alvor, ó Ruço?!...
O arrais pousa os antebraços nos punhos, passa a mão pela carapinha do barrete, puxando-a aos olhos, e vagueia o olhar Tejo abaixo.
- Vamos lá à despedida?
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- Vamos lá.
E olhando no fundo do saveiro o pescado a agitar-se.
- Dizia o meu avô que o Tejo era um mar de peixe. Hoje...
- Ficaram os pegadoiros p'ra animar a gente.
- Anda por aí o peixe sem destino, a escarnicar dum homem, e à rede nun vem, nem que o amolem. Águas luzinhas ou barrazelas, ninguém acolhe lance de benza-te deus.
É assim uma coisa p'ra enganar.
- O peixe d'agora é como os rapazes. Traz lume no olho...
Chapinha a rede no rio e o barco afasta-se do cabeceiro, como cavalo aos galões. O camarada vai atando a mão de barca e assobia a tirana.
- A água está zarolha, mas o peixe nun aveza estes caminhos. Assim... mais vale a gente meter ferro em casa e esperar as quatro tábuas.
- O João Correia lá está à espera. Abre cama num virote.
- Até daí um homem vê o mar...
- É sina da gente. Por mais voltas que se dêem... O arrais cia e o saveiro balouça quase quedo, para
depois singrar ao impulso de quatro remadas.
Vão despindo trevas, receosos, os montes do Norte. Definem-se cabeleiras de pinheiros e neves de casario.
Nas cavernas das bateiras, as sabogas vão lutando ainda, a estrebuchar de angústia. Movem-se em últimos agitares, rebeldes sempre, contraídas de desespero, transmitindo
entre si, pelo contacto, o sonho de liberdade que acarinharam e a realidade dolorosa destruiu.
Vai chegando à margem gente para a lota. Os tamancos batem, marcando um compasso estranho no recolhimento da borda d'água. Os homens enrolam-se nos varinos, barretes
bem cingidos à fronte, mãos gretadas
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dos remos, descaídas, sem gestos. E as mulheres vão chegando, mais e mais, em roupagens negras, canastras à cabeça ou entre o xaile, e sentam-se sobre elas, entre
calhaus e dejectos. Cabelos esfiampados entre os lenços ruços, adornando os rostos morenos. As mãos arrepanham as saias de roda larga e cingem às faces os xailes
remendados e sem cadilhos.
Uma aragem de lâmina afiada corre do suão. Os aposentos do Cabo estão a envolver-se de um vermelho diluído em oiro, e o Sol, não tarda muito, vai pôr no rio a tremulina
da sua luz.
Nos saveiros, os camaradas vão puxando as redes para o último lance, curvados e ofegantes, a desemalhar o peixe. E a fadiga venceu os arrais que remam ainda.
Do mouchão para riba, as meias-luas das bateiras balouçam-se nas águas mansas, rumo à lota.
Olham-nas as mulheres sentadas, pondo neles o olhar mortiço. Mas não vêem - nem sonham. A sua tragédia anda ali, por entre os barcos que ficaram na margem, presos
aos paus fincados no lodo. Braços nus e descarnados que se erguem ao céu numa prece muda - braços que clamam pão para os homens que labutam.
Na varanda do posto, "seu" Santos surgiu a esfregar as mãos e a bater as solas grossas nas tijoleiras de vermelho patinado. Tem um sol com ele. Mas aquele sol não
aquece - enregela.
E as mulheres volvem os olhos para a sua figura atarracada e membruda.
Os saveiros vão-se aproximando - envolve-os uma neblina de gaze que lhes amacia a cor. Os remos erguem-se e tombam no remar de tesoura, ora envoltos na luz da água,
ora mergulhados no Tejo barrento. Para a ré, os camaradas vão metendo o peixe nas caixas - mudos de palavras, tagarelas de pensamentos.
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E as sabogas lutam ainda, sangue a pintalgar a argenta das palhetas, rostos agitados em convulsões de agonia.
Junto ao barracão do estaleiro, pousado em cavaletes, entre a morraça verde-negro agitada pela aragem, o bojo de uma fragata desarmada com um remendo à proa, onde
o brilho do alcatrão já pousou.
Passa um bando de corvos.
E um velho, gibo de tronco, pendente de cabeça pelos anos de tráfego e de pescas, deita-lhe os olhos.
- Corvos por cá?... Amanhã, à geada para pescar. Num falha!
Já vieram dois guardas, de livro em punho, para o local da lota. Olhos piscos de sono, boca em ó, de quando em quando, corpos amolentados pela indolência.
Um deles pousou o livro num tabuleiro e levou os braços às costas, cerrando os punhos e pondo-se em bicos de pés, a espreguiçar-se.
- Eh pá, que sono!
E o outro ri-se, mostrando a fileira de dentes da nicotina.
E, lado a lado, iniciam um passeio entre calhaus e dejectos, falando alto e rindo.
Ao portão da fábrica, um grupo de mulheres rodeia a Iria, sempre linguareira e viva, por muitas penas que o coração vestisse. E contava-lhes na sua linguagem livre,
esbracejando e a menear a cabeça, o escândalo que alarmara a rua.
- Quando o homenzinho voltar, em casa é que ele não entra. Nem de lado... E temos aí o Manel Custódio, com os cabrestos do Palhas a levá-lo p'ràs Cortes. Vai ser
uma toirada!
As outras gargalharam, levando as pontas do avental aos olhos, faces vermelhas da risota.
- E tu vais espantá-lo, ó Iria?
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- Nesse dia fecho-me a sete chaves. Que eu com matreiros... Olha!
- Quem é maluca!
E as gargalhadas soaram mais alto, fundindo nelas os gritos do rapazio a desafiar o Torto, feito toiro, de cavaco entre as mãos, a bufar e a mugir.
- Mau...
- Eh boi!...
O cavaleiro ergue a mãozita, cerrando o punho, a ladear em requebros de cavalo de alto preço. Empina a cabeça num gesto arrogante, avançando para o outro que o fita
de olhar baixo, a escarvar o chão com os pés descalços.
- Man... Man...
- Eh toiro real!... Eh garraio!...
Já saltaram capinhas para a brincadeira, atirando bonés e correndo. E o Torto raspa o lodo, voltando ora a um ora a outro, como animal ressentido, senhor de seu
poder, mas falto de casta.
- Eh pá, corre, anda! Assim, nunca mais és boi. O cavaleiro não cessa de lhe lançar desafios, esticando o busto e acenando o punho.
A garalhada insoa tudo. As mulheres saíram dos seus pesares e batem palmas, rindo alto. A Iria calou-se, a ver o rapazio, cerzindo outra história que lhe contaram
na venda de quarta-feira.
E os arrais remam sempre, num vaivém de autómatos.
- Eh malesso!...
E quando o Torto investe, de cabeça baixa e mãos em riste, o outro furta-lhe o corpo num requebro imitado, pousando-lhe a mão na nuca, como se farpa garrida tivesse
cravado cachaço de toiro. O cavaleiro sai-se da sorte aprumado e pimpão, e uns entoam música vivaz, mãos espalmadas e unidas, como instrumentos flamejantes de metais
polidos.
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- Anda Torto!
- Eh toiro!...
Vem-lhes ao rosto o rubor da correria, cabelos revoltos empastados de suor, narinas resfolegando pelo cansaço, ranhosos e desajeitados. O Torto agora investe sempre,
cada vez mais, estendendo as mãos para colher os que o desafiam e se furtam de pé leve. Já não vai a direito. Põe o cavaco de lado para ensejar o primeiro que lhe
passe mais de perto. A camisita saltou-lhe das ceroulas e faz-lhe um rabo, a que outro se agarra, puxando-o para trás, como rabejador famoso.
- Eh pá, larga-me! Larga-me.
E atira os pés, a escoicinhar, mais vermelho pela cólera.
- Assim nun vale, pá!
As mulheres riem e incitam-nos. Os outros lançam-lhe bonés, e os músicos voltam a espalmar as mãos, tocando para a pega.
- Tátarará... Tátarará...
- Eh toiro!...
- Eh boi bonito!...
Mas o rabejador não o larga de mão, furtando-se ligeiro aos pontapés. Segurando firme a camisa, de todo liberta do afogado das ceroulas.
O Torto, ira a brilhar-lhe nos olhos, estrebucha ainda aos sacões, para se libertar. E, como o outro o não larga, deita o cavaco ao chão e agarra-o a mãos ambas,
furioso, pontapeando-lhe as pernas. Rolam no lodo, qual de baixo, qual de cima, entre a morraça que a aragem agita.
Agatanham-se e socam-se. As mulheres riem mais.
- Até t'escamulro!...
- Amalçoados!...
O "seu" Santos vem à varanda impor silêncio.
- Um dia... vai tudo daqui p'ra fora. Gente danada!...
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Passa um olhar pelas mulheres que cingem mais os xailes, e apaga-se no limiar da porta, praguejando baixo.
O rapazio aquieta-se. O Torto levanta a mão para o outro a prometer-lhe sova e vai cingindo ao corpo a camisa desbotada e rota.
As bateiras vêm rio acima colhendo o alvor.
As árvores da lezíria, são pedaços de noite que ficaram na margem de lá a ver passar o Tejo. E a estrela da manhã acolcheta de oiro a capa azul do céu.
- com gente desta nun se pode falar. As águas descarnadas e as companhas pelo lodo acima até às ventas.
Os homens rodeiam o ti Rendeiro, robusto como fragata, a imprecar na sua voz roufenha, irmã da nordestía.
- Nun vêem estas almas que os pobres têm de andar mão por baixo, mão por cima, com estes danados... Santo Antoninho aonde te porei!... Às vezes com uma vontade...
Ah rapazes!...
E fincou os dentes no lábio, cerrando os olhos.
- Vossemecê queria pedir, ti Rendeiro?
- Pois então!... Não sou como o Coxo que lá por nun ir ao mar já não vê os outros. Por ter andado a vida inteira metido nisto é que eu sei o que isto é. Um homem
quando salta da bateira...
- É como se fosse às áfricas por morte de gente.
- Isto quando se nasce...
Os saveiros vão virando ao lodo as proas em bico. E os mais tardios recolhem os sabogais no findar da faina.
Um comboio passa e abala tudo - abala mais as almas que as coisas. Depois o silvo esvai-se ao longe e fica só o ruído dos motores da fábrica.
Os dois guardas continuam passeando e rindo. Andam
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com eles os olhares das mulheres, mudas na revolta, a cochichar imprecações entre si.
- O bigode daquele é como um barbo. Jeitoso!...
E riem baixo, em gargalhadas de ódio. Vêem-se a calcorrear caminhos e atalhos, canastra à cabeça de manhã à noite, estoirando veias e pulmões na venda do pescado.
Fica a filharada em casa, a comer escasso, de fiado.
E os homens, abatidos da faina da noite, pensam ainda, revolvendo-se nas enxergas.
- As redes por pagar...
E elas riem-se dos que vão passeando entre calhaus e dejectos.
A Gracinda do Manco vem à lota pela primeira vez, depois que o marido se finou. Traz com ela os dois filhitos, ensonados e rabugentos. O mais velho, agarrando-lhe
as saias, a tiritar, encolhido, camisita rota a cobrir-lhe a barriga bojuda e tostada das soalheiras, sexo destapado, pernas finas e arqueadas. O mais novo - poucos
meses ainda - enrola-se-lhe no xaile, rosto sujo de quanta porcaria lhe veio à mão, rameloso, olhos azuis a fixarem-se no Tejo, como retendo lá dentro a miragem
de uma tragédia que um dia lhe contarão, quando começar na labuta do rio, como moço de fragata ou aprendiz de pescador.
- O teu pai...
E saberá que naquele lodaçal imenso, castanho e negro, onde a erva que cresce é de um verde sinistro, o pai se ferira para a morte na luta do pão dos seus. Um tétano
levara-o em poucos dias, consumindo-lhe o corpo de gigante.
Um frio agudo e trágico passa nos corpos enregelados daquelas gentes, que um suão de Março fustiga. É um frio álgido de morte que arranca aos moinhos do monte gemidos
de tortura - gemidos que invadem o rebanho a agitar-se na lota.
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As mães cingem mais aos peitos amarfanhados de labutas os filhitos a tiritar. Parecem querer defendê-los do sorvedouro onde as bateiras adormeceram.
A fábrica fumega, maculando o espaço do seu penacho negro. E a figura do Manco passa entre os homens.
Ouvem-lhe os gemidos - e são lamentos das velas dos moinhos a chorar nos búzios. Vêem-lhe os olhos tocados de um clarão de angústia - e os olhos do Manco estão no
rosto de cada homem que foi à safra.
Os guardas vão conversando e rindo. O "seu" Santos vem à varanda, relógio na mão, espreitar se o Sol nasceu. Lá do alto, a sua figura agiganta-se e lança uma sombra
que esmaga a varinagem.
As árvores calaram carpires. No silêncio das mulheres estrangulam-se revoltas.
E as primeiras companhas encalham as bateiras, proas viradas ao lodaçal, remos poisados nas bordas. Erguem-se os arrais, esticando os braços, enfastiados do vaivém
dos punhos, numa noite inteira, sem repouso, e ficam todos olhando terra, a agitar barretes e bonés para os que não foram ao mar.
Os de cá adejam as mãos sapudas, em gestos vagos. Alguns gritam, mas os brados perdem-se no uivar do vento do sul, que sopra raivoso, correndo sem freio pela lezíria.
O poalho da água sobe no espaço e o seu bafo frio faz fremir os homens.
Ainda singram saveiros na recolha dos sabugais, ouvindo a cantilena triste dos toletes que a escassez do peixe não alegra.
A faina vai findar, mas os pescadores movem-se arrastados e abatidos.
Talvez porque o canto dos toletes parece um choro reprimido.
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Em terra, à volta da Gracinda, as mulheres apertam-se, sem palavras de conchego, que ela é a miragem viva dos seus pesares de sempre. E a voz do ti Rendeiro, roufenha
e áspera, como vendaval bramando, transmite a todos uma esperança que logo naufraga.
- A gente não vamos pedir por morte d'homem. Se isto num é de razão, que o Tejo se levante tanto, que nem aqueles ciprestes botem a cabeça de fora.
E abrindo em concha as mãos fortes como garras, chagadas de calos pelas fainas, negras de soalheiras e de nordestes:
- Quando um homem tem disto e pede uma coisa de justiça, nun há ninguém que o prenda como ladrão.
- Pedir...
- É de mais vergonha a gente estender a mão por esmola; e quando a barriga arrefenta, nun se lhe dá outro jeito.
- Um homem quanto mais se agacha, mais mostra o rabo, ti Rendeiro. Estamos fartos!...
- Um homem nunca se farta de pedir o que lhe devem. Pobres de tudo, menos de vergonha e de razão. Hoje... Amanhã... Depois... depois. Sempre! Uma raia se lá no mar
alto a gente a acolhe, chora na bateira que até um homem se desfaz em lágrimas. Parece uma pessoa. Eh João, tu nunca apanhaste uma danada dessas?
O outro acena-lhe a cabeça, franzindo a boca.
- Eu cá se vem uma à rede, fico logo mal. A safra já nun me corre a jeito. Quantas eu tenho deitado ao mar?!... E a gente faz como a raia. Tanto um homem há-de zunir
às orelhas que eles um dia...
Os olhos que o fitam estão estagnados pela descrença. Tiritando de nervos, os homens chupam sôfregos nas pontas dos cigarros.
E as mulheres incitam-nos, premindo-lhes os braços,
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a transmitir-lhes alentos. Os seus olhares vão do Tejo para os filhos, que afagam carinhosas e jungem ao peito, como a resguardá-los do amanhã.
Pudessem elas parar o tempo!...
Encarquilhadas pelos anos, faces cosidas de rugas, as velhas movem os lábios desbotados, talvez numa prece. As pupilas mortas de expressão vagueiam pelos rostos.
E a rapaziada, brama, correndo no lodo, por uma bola de meia azul, pintalgada de branco.
Os guardas pararam a incitá-los. E o mais novo, quando a bola lhe passa perto, deita-lhe a mão, comprime-a nos dedos e dá-lhe um pontapé, ficando-se a vê-la subir,
com sorriso de garoto. O rapazio dá-lhe palmas e grita mais:
- Éina pai! Tão alto!...
"Seu" Santos volta à varanda a esfregar as mãos arroxeadas de inacção. E faz sinal para as bateiras começarem a descarga. Os homens ficaram de braços cruzados, pondo
os olhares no lodaçal que vai até à lota e onde os vidros fulgem num brilho sinistro.
Vem de longe o silvo de um comboio. É um grito doloroso que penetra as almas, como se a máquina clamasse por aquela gente.
E o silvo corre, passa e esvai-se.
A gente fica - fica com as suas angústias. E o silvo irá rasgando o silêncio, estrada fora, gritando a tortura daquelas almas.
No fundo das embarcações, as caixas do peixe esperam que os homens lhes deitem mão - mas os homens estão quedos, como tocados de morte.
E os guardas esbracejam na praia.
Uma golfada de sol doirou o zinco do barracão do estaleiro.
Manco de uma perna, espadaúdo e alto, o ti Rendeiro caminha até à escada da varanda. Seguem-no
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mais dois velhos, secos e dobrados - vida inteira no Tejo a remar e lançar redes.
Vão neles as ilusões e pesares da gente do rio.
Deitam aos barretes as mãos trémulas, num sinal de submissão. São brancos os cabelos já ralos, desgrenhados e sem atavios. E os seus olhos humildes encontram a lâmina
fria dos olhos piscos do "seu" Santos.
- Que há então?!... Novidade?!...
Assobiou em surdina, sobrolho franzido a vincar-lhe as rugas.
- Vimos pedir uma coisa a vossemecê.
- Logo vi. Não me vinham cá dar nada... Diga lá! Um tremor desconhecido agitou o corpo do ti
Rendeiro, destemido a quanto vendaval corresse o rio ou o mar, nas Berlengas, quando, pela safra da lagosta, ali levava a bateira.
Um choro de criança estremeceu-o mais. Um mugido do vento cingiu-lhe as pupilas de uma contracção que lhe correu no nariz.
- As companhas pedem a vossemecê que deixe tirar as caixas... lá abaixo... à ponta da Areiazinha...
E num voltar de cabeça indicou a direcção. Entre as mãos, o barrete arruçado girava e comprimia-se. O silêncio do outro deu-lhe mal-estar.
- Está por aqui este lameiro...
E falou-lhe das canseiras dos pescadores, das suas desditas no trabalho, dos perigos da descarga.
- É um favor que o senhor faz...
- É só isso?!...
As mulheres foram-se chegando. À volta da varanda havia um friso de rostos suplicantes, tocados dos mesmos anseios.
- Tenha paciência!
- Paciência!... Dizem que é boa para a vista e nem sempre.
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A vida morta. Nem o vento corre agora.
- E acaba-se...
Ficou voltado para o rio estremecendo o corpo membrudo, botas raspando as tijoleiras carcomidas.
- E acaba-se. Sol fora e as caixas dentro das bateiras. Aqui estão os criados uma manhã inteirinha, à espera que a vocês lhes dê na bola.
Some-se na penumbra da porta, a cofiar o mento saliente, manchado de barba rala.
O relógio dá horas. Uma buza de fábrica atira o seu apelo ao espaço. Os homens miram-se às furtadas, receosos.
E "seu" Santos assolapa o rectângulo de noite do limiar da porta, vermelhudo de ira, correndo no rebanho o seu olhar toldado.
- Então?!... Que temos ainda?!...
O tio Rendeiro esboça com a mão um gesto que anuncia palavras.
- Vejam lá se sujam as pernas. A descarga foi sempre assim. E quem não quer ser lobo não veste a pele. Larguem as redes...
- Medo de sujar nun é senhor. Mas anda um homem moído uma noite inteira e depois vir lama acima.
- Sempre à espera que um vidro o corte...
- Isso até faz bem. Sangra!
- Mas morreu o marido daquela...
O mais novo da Gracinda choramingou. E o outro, puxando-lhe as saias, pediu pão.
- Ó mãe!... Tenho fome!
Uma velhinha mirrada, envolta no negro dos seus lutos, lembrou o neto arrastado na safra.
- Pelas chagas do santíssimo!
E postou as mãos trémulas e descarnadas, como diante do seu deus. Respondeu-lhe um uivo do vento, plangente e trágico.
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O sol já inundou toda a lota, a chapinhar na morraça, a brincar nas bateiras.
- Fora daqui. Não temos mais conversas.
- Mais dez minutos... e não se recebe nem uma escama de peixe... Isto não é quando vocês querem! Aqui quem manda sou eu. E adiante! Ala!...
Dos saveiros vieram gritos e imprecações. Os olhos correram, lá abaixo, até à cinta azul do Tejo.
Uma companha saltara ao lodo, de caixas à cabeça, a querer ganhar terra. Arregaçados, submersas as coxas no lodaçal, avançavam praia acima, jungidos ao peso do pescado,
fustigados pelos chicotes das pragas.
E o Chico Leirão saltou também, ira a sacudir-lhe o corpo, ódio a pôr-lhe lividez no rosto tomado de canseiras.
- Ah malandros!... Ah malandros!...
Opressos, esfalfados, troncos em concha, a procurar equilíbrio, canha nas bordas da caixa, dextra bamboleando, os outros continuavam na fuga, dentes rilhando dentes.
A cada passo, o lodo a recusar-lhes ajuda, a fadiga a vencer-lhes os músculos. E à sua volta, os vidros e cacos a fulgirem lâminas ao sol, prontos a retalharem-lhes
as carnes estorricadas do tempo.
Mas os olhos só buscam a muralha de gente que lá acima impreca e gesticula.
- Ah amalçoados!...
- Malandros!...
- Ladrões!...
E o caminho parece não ter fim, a desdobrar-se cada vez mais - passo a passo, maior ainda.
O lombo do lameiro, a brilhar no seu visco castanho-negro, onde há leitos de águas podres que correm para o rio, levanta-se mais alto que a massa amarela da fábrica.
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E eles fincam os dedos nos lábios gretados, a lutarem com o abatimento que lhes tolhe a marcha e lhes ritma em galope as pulsações do peito. Ouvem, agarra-que-agarra,
o praguejar do Leirão a ir-lhes no encalço. E querem ir mais prestos. Os calcanhares tacteiam no lodo, buscando apoio para apressar a fuga, mas somem-se nele; os
joelhos parecem dilatar-se, querendo safar-se das grilhetas do lamaçal; os troncos pendem-se mais, a aliviar as coxas da sua carga e os lábios quase beijam os dejectos
da praia.
- Anda Chico!...
- Anda Chico!...
- Ah malandros!...
E a cada passo dado, as pernas atolam-se até ao sexo, esparrinhando lama. E o caminho parece não ter fim, a desdobrar-se cada vez mais - cada vez maior ainda.
O arrais vem à frente, por mais safo de pés, e já os rostos da gente que lhes pragueja se definem na massa negra a agitar-se.
Doirados, a prometer-lhe abrigo, lá estão as estrelas dos bonés.
A caixa verte água das sabogas e empasta-lhe os cabelos, escorre-lhe nas faces e ensopa-lhe a camisa. E mistura-se com o suor. Nos esgares de fadiga que o carão
afogueado projecta, divisam-se arrebóis de alegria.
"Falta pouco!... Falta pouco!..."
Não o percorrem já os tremores que o frio do lameiro lhe fazia correr dorso acima. E não ouve agora as imprecações do Leirão a persegui-lo, agarra-que-agarra.
Estuga o passo que o caminho é curto e não tarda o lodo a enrijar.
"Falta pouco!... Falta pouco!..."
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Da praia seguem-lhe as pisadas, amaldiçoando-o. Vêem-no pender-se a um lado, como pássaro ferido, mão ainda fincada na caixa, a querer sustê-la - e a prata das sabogas
enfeita a lama.
Os risos vão até ele. A raiva desprende-lhe lágrimas. Fica-se a olhar o peixe - canseira de toda a noite.
- Amalçoado!.
O Chico Leirão ganha alentos de o ver ali vencido no meio do lodo e vai-se ao outro. Mas cai de borco no atoleiro, faces picadas pela morraça.
Ergue-se de pronto, agatanhando os calhaus e dejectos. A fadiga vence-o. Ginga o corpo, como se pescasse à chincha e a ponta do ressoeiro lhe cortasse o ombro, aperreado
pelo caminhar da maré.
O outro esgueira-lhe o olho a medir distâncias. Vê-o abatido no seu marchar penoso, pé aqui, pé ali, boca em rictus amargo, braços balouçando sem jeito.
E pára, resfolegando como máquina velha - suor a engrinaldar-lhe a fronte. Treme-lhe a carcaça rendida também pelo esforço e invade-lhe os ouvidos um silvo longo
que ecoa no cérebro, vazio agora de pensamentos. À volta dos olhos um rodopio de cores em marcha alucinante tolda-lhe a vista enfraquecida.
A mulher caminha para ele de braços abertos, lágrimas nas faces, como a defendê-lo das iras da gente que cá em cima impreca.
Mas outra deita-lhe as mãos e sacode-a.
Ambas lutam, esganiçando-se em ultrajes. Os lenços desaparecem rasgados pelos dedos aduncos de raiva.
Os filhos caminham para elas nos seus passitos hesitantes, olhando-as estranhos, a fazer beiço e a carpir. E o ti Rendeiro vara com o pensamento, o homem que vem
praia acima.
- É o Zé Santana!
- Morto foras por quantos raios caem na terra!...
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As imprecações despertam-no. As duas mulheres rasgam-se numa luta sem tréguas.
E as outras correm ao meio da morraça, xailes descaídos, a agatanhar o lodaçal, atirando-lhe chapadas de lama. Os gritos apagam o ruído monótono da fábrica.
O Zé Santana, lívido, transido de angústia, hesita agora, para logo voltar à marcha, enterrando as pernas magras. É como um animal maldito perseguido pela chama
ardente das pupilas tocadas de maldições.
Chap-chap, as mãozadas de lodo caem-lhe em cima, a tomar-lhe o caminho. E volta-se a um lado e outro, esgazeado, boca seca, membros em tremuras.
Uma bola de lama apanha-o entre os olhos e fá-lo soltar um grito. As gargalhadas de terra troam-lhe nos ouvidos.
"Tinham razão os outros!... Tinham razão os outros!"
Aqui te deixo, ali te agarro, o Leirão vinha-lhe na cola. E limpou o rosto com a mão, para prosseguir de novo, esfalfado e cambaleante. As mulheres não cessavam
de lhe atirar lodo - de lhe bradar pragas.
Na proa de uma bateira o Sol pôs uma língua de fogo.
Foi uma luz que lhe nasceu lá dentro.
Sentiu o lameiro endurecer sob os pés enregelados e um clarão de alegria acendeu-se no olhar mortiço de fadiga. Pelo corpo alquebrado subiu um fogo novo que lhe
entregou forças.
E uns braços, como tenazes de ferro, apertaram-lhe o arcaboiço opresso. Abriram-se-lhe os dedos que se fincavam nas bordas da caixa. Ouviu o baque surdo da sua queda
no lamaçal - e aquele baque ressoou no espaço, num eco sem fim.
- Nun vens ouviste?!...
Fez-se silêncio. As mulheres ergueram o busto, mãos enconchadas com lodo.
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- Largue-me ti Rendeiro!... Largue-me!...
Saía-lhe dos cantos da boca, pregueada pelo cansaço, um fio de espuma. E debatia-se, agachando o corpo, para se furtar, ao poder do outro. Mas o arco que o oprimia
vincava-lhe no dorso uma cintura de ferro.
E rosto a rosto, o ti Rendeiro sorria-lhe num esgar de ódio.
- Nun tivesse companheira e haveras de ser estripado. Lembravas-te sempre deste dia, ladrão.
Pôs os olhos flamejantes nos olhos apagados do Zé Santana e gargalhou.
- Estás que nem uma enguia, cachorro! Mas saibas que tens um homem p'ra te agarrar. Sais daqui quando me der na gana... Os velhos quando têm razão, valem quantos
malandros novos há.
E erguendo-o à altura do peito, atirou-o ao lodo.
- Nem que fosses meu filho te moía!... Comia-te os olhos.
O outro ficou deitado, bagas de suor frio a perlá-lo, crispações de dor a percorrê-lo. E as mulheres voltaram a atirar-lhe lama, ferindo-lhe a camisa de pontos negros
que alastravam.
O ti Rendeiro, tremente de ira, como sacudido por um frio de sezões, estava entre os dois guardas que o agarravam, cabeça erguida, olhar parado no Tejo, fixando-lhe
o ondular manso.
Nascera a ouvir-lhe o canto brando nos cascos frágeis das bateiras e nos arcaboiços rijos das fragatas. Crescera a namorar-lhe a safira do dorso e a mirar as velas
que o percorriam de lês a lês, num vaivém constante.
Brincara junto dele, conhecera-lhe a voz - aprendera-lhe os segredos. Em noites de luar vinha estender-se-lhe nas margens, sentindo-o tocar-lhe os pés numa carícia
de noiva rendida pelos desejos.
Ali amara pela primeira vez. Ele lhe dissera as palavras
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que aquela mulher ouvira. E a mulher afagava-o submetida aos seus braços, dando-lhe beijos novos, com uns lábios gastos de privações e entregas.
Depois ela fora-se.
E o rio ficara a repetir-lhe os desejos que ela lhe ciciara.
O Tejo e as estrelas eram os seus guias - o único livro que lhe deram para ler e decorar. Conhecia-o irado pelos temporais e ventaneiras, galgando as embarcações,
beijando-lhe o rosto tostado. Vira-o, quantas vezes, erguer-se como um gigante e varrer tudo, nas cheias imensas que cobriam o Ribatejo de um lençol doirado.
Curvara-se sobre ele no ganho do pão. Cansaram-se-lhe os olhos a desvendar-lhe os mistérios e a adorá-lo.
"Como tudo ia longe!..."
O Tejo era o seu livro de memórias, escrito, dia a dia, com labutas e suores. Dera-lhe o seu vigor de moço, nele depunha, a todas as horas, as esperanças nascidas
das cinzas de amargas desilusões.
E a velhice viera tendo de seu uma bateira e redes, irmãs das que o pai lhe deixara, quando dores fundas lhe tolhiam o corpo vencido. Parassem os braços e logo em
casa não entrava côdea nem luz.
Mas amava o Tejo.
Que outros o odiavam nos momentos de desânimo, no desfiar de amarguras. Ele fora assim também.
Quantas vezes o amaldiçoara, como causador dos seus pesares!
Mas um dia pensou. E amou o Tejo mais do que nunca - e ficou-lhe dos homens, dos homens que moldam a vida, numa imagem cruel.
O clamar do "seu" Santos chamou-o ao presente. Descera cá abaixo, do seu altar, e sujava na praia as botas lustrosas, bramando injúrias.
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Os homens da safra queriam lutar ainda, mas a sua luta não tinha norte.
E foram saltando à lama, calças arregaçadas arriba do joelho, caixas à cabeça. O olhar ao erguer-se vê as pontas agudas do verde-negro dos ciprestes, balouçadas
pela ventaneira. É um aviso lá no alto, um farol que os acorda para a vida - um farol que avisa morte.
Passam-lhes os filhos e as companheiras pelas retinas esgotadas de penetrar a noite. Mas o verde dos ciprestes devassa tudo. E a plangência do seu rumorejar é um
lamento.
Cada passo dado é um anseio doloroso.
Quando os pés tocam a epiderme da praia, a vida pára à sua volta. E o lodo traga-lhe as pernas afracadas.
Seguem-lhes o caminho, as mulheres ansiantes rostos tomados de desespero, peitos opressos de incerteza. Um ou outro brado se eleva. Depois, de novo, o domínio de
um silêncio forçado.
"Um vidro... e depois a enxerga. Depois..."
E a lança dos ciprestes acutila o azul e rasga o futuro da gente que na praia sofre.
Param os homens, de quando em quando, a retomar forças. Correm-lhes nas frontes gotas de suor. Passam-lhes nos corpos espasmos de abatimento.
E nos peitos das mulheres desmoronam-se preces erguem-se tormentos.
- Senhor meu!...
- Pelas chagas!...
E eles retomam a marcha, pernas retesadas pelo esforço, dorsos curvados pelo cansaço.
Vêm ali, como um rebanho de animais, dispersos pelo lamaçal, unidos por invisíveis correntes que os grilhetam. Já os braços pendentes se apoiam nas coxas a mitigar-lhes
o caminho. Já no vale das omoplatas se cravam lâminas de dores.
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E o verde-negro dos ciprestes tinge tudo da sua coloração trágica.
Os primeiros vão chegando.
As caixas alinham-se junto às mesas e os vendedores já gritam.
- Quanto vale esta?
- Doze escudos!...
- Doze!
- Quinhentos!
- Doze e quinhentos!... Treze!... E quinhentos!... Lá do alto, o "seu" Santos vigia, cravando na roda o
seu olhar pisco. E os vendedores apregoam, olhando à volta, atenciosos ao mexer dos lábios e ao menear das cabeças.
As sabogas ainda lutam. Sacodem as barbatanas e estremecem. Depois saracoteiam os rabos em movimentos frenéticos.
- Dezoito mirreis! Dezanove!...
- E quinhentos!
- E quinhentos!
- Dezanove e quinhentos! É da Chica Baldaia!
Mais caixas estão vindo. com as pontas das camisas desfiadas, limpam a testa e as faces a verter suor. E nos seus carões entristecidos, emoldurados de barba basta,
lucilam lumes de cigarros.
- Vinte!... Vinte!... Abato um!... Dezanove!...
Das tecas o peixe vai para os oleados das canastras, onde as mulheres o ajeitam, preparando a venda pelos casais dos Montes.
- É uma carga! Dezanove e quinhentos!... E quinhentos!...
- Tão carinho mulher! Parece ardido!...
- Ardido?!... Se estivesses tão ardida, já estavas no hospital!...
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E riem, consertando os cabelos a evadirem-se dos lenços.
Sobe o ruído dos vendedores e varinas na disputa dos lances.
Um cão esfaimado, ventas no chão a buscar ossos, solta um latido. Um garoto atira-lhe uma pedrada. O cão gane e uma velha encolhida de frio, mãos cruzadas no peito,
entre o xaile, dá-lhe um pontapé. O cão vai praia fora, rabo entre as pernas, a rosnar.
- Abato quinze tostões!
- Dezoito!...
- E quinhentos!...
- É um ror de tecas, ó Calçoa!
- Vinte e um!... Vinte e um!...
- Rosalina Bela!
E os guardas vão assentando nos linguados de papel. As caixas chegam sempre. As sabogas lutam.
- Deixa ver por dezoito, amalçoada!...
- Querias mama, ó Rita?
- É uma carrada, mulher!
- Ó Paloa, então?!...
O cheiro do peixe empesta o ambiente. Os pescadores seguem a venda, olhos mortiços das fainas, mãos afundadas nas algibeiras.
À volta das mesas as rodas apertam-se. As mulheres que despicam têm o olhar pregado no vendedor que grita. E levantam a cabeça para cobrir os lances.
Há garotos que dormitam ao colo das mães. E moscas vão pousar-lhes nas boquitas, percorrendo-as em corridas curtas.
Passa no rio uma barca de velas enfunadas, a singrar ligeira, ferindo o Tejo com a proa. E o arrais, ao leme, desbarreta-se e faz sinal para terra.
- É o compadre João, mulher!... Anda no vinho.
- Tem sorte aquele!...
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- Sorte?!... Isso é coisa qu'a gente coma?
- É dinheiro, ó menos.
- Já nun há sorte, mulher!... Na carreira ou na pesca nun há lance que livre um homem da lama.
- Ainda há gente na graça de Deus, deixa lá. O Zé Palão deita casas novas e está-se a fazer às do Vieira. E compra-as.
- Isso nun é sorte!...
- É Nossa Senhora que o alumia... - e pôs os olhos no céu.
- Nas noites de candonga?... é um ar. Se isso é sorte!... Eu cá... chamo-lhe ladroeira. Moidinho, mas limpo.
- Livra sezões depois de morto.
- com estes - e ergueu os braços - quanto mais a gente se mexe, parece que mais se atola. É como se um homem caísse a um lodo fundo. Sorte!...
E seguiram a Boa Viagem até à ponta do Mouchão. Já se ouvem pregões de mulheres pela estrada fora.
- Viva, grande!...
Lá vão, a cirandar, ancas enlaçadas pelo braço da cinta, alegrando os olhos de quem passa. Só elas não vão alegres. Riem às vezes...
- Chorar p'ra quê?... A vida é isto...
E os vendedores gritam nas suas vozes roucas.
- Vinte!... Vinte!... Vinte e um!...
- É uma teca d'oiro, ó Iria!
- É uma teca de ralações, mulher!
- E quinhentos!...
- E quinhentos!...
- Vinte e dois!... Vinte e dois!...
E as sabogas andam numa roda viva, das tecas para as canastras, crispando ainda os corpos afadigados.
Mendigos, amarroados ao portão da fábrica, deitam-lhes olhares famintos, à espera que alguém se lembre
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deles. Encolhem-se nos seus farrapos, a tiritar, chupando as pontas de cigarros que outros fumaram.
Uma mulher atira a um cachorro um pedaço de pão. Os mendigos olham-no - talvez invejosos.
- Quanto vale esta?!... É cada uma que nem braço d'homem!
- Dezoito!...
- Dezoito!... Dezoito!...
- Vinte e um!...
- Dezoito e quinhentos!...
Os pregões cruzam-se numa algaraviada incessante.
O ti Rendeiro tem à sua volta os homens da safra. Nos corpos alquebrados anda-lhes todo o esforço daquela faina madrasta. E os rostos, sem sol que os ilumine, têm
harmonia com as camisas remendadas e abertas.
- Disseram-me que ia ao posto e vou sem medo. Pedir nun é pecado. E aqueles cachorros de seiscentos diabos fazerem daquelas... Nem que tivesse de morrer ali... Mas
nun vinham. Saltarem todos depois de nada se arranjar, estava certo. O pão nun vem de outra banda...
- Tenha-lhe olho, ti Rendeiro!... Olhe que aquilo nun é de assoar.
- Vão-se lá ao resto, rapazes! Entre mortos e feridos... Limpam alguns pescadores as caixas de dentro dos
saveiros. Lavam depois os pés e as pernas, agitando-os na água.
Esquecem-se a pensar - a pensar... Nem eles sabem.
As varas que estão cravadas no lodo são árvores desfolhadas de uma floresta sem beleza. Os mastros atravessados nas bordas parecem dormitar. E há bateiras que se
afastam, ao impulso de varadas, que os homens, de pé, como negros guiando dongos, atiram ao fundo do rio, buscando apoio.
Vão ao repouso, singrando serenas na mansidão do Tejo, ferido de luz adusta.
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- É p'ra acabar!... Quinze!... Quinze!...
- Estás com remorsos, ó Iria?
- Assenta à Calçoa. Vá mais! Vira-te depressa.
- Quanto vale?
- Dá cá por dez.
- Isto é um ror de tecas, ó Gracinda!
- Dezasseis!... Dezasseis!...
Os guardas vão anotando nas folhas de papel. Na ponta do estaleiro duas companhas lavam as redes. Atiram-nas de um para outro saveiro e vão-nas erguendo e baixando
num movimento cadenciado dos braços.
A água salta branca e diáfana, como espuma de rebentação. Para o fundo da ré, puxam a parte já lavada, e a rede traça no espaço um arco abatido, pintalgado pelos
pontos negros das bóias.
Na lama ficaram as pegadas da descarga, e alguns homens trazem ainda as últimas caixas para a lota. Vêm exaustos, como animais acossados.
O barulho da lota é agora mais brando. As vozes perdem a aspereza do despique e os vendedores lançam os preços num carpir.
- Dezassete!... Dezassete!... Abato um!
- Abato um!... Dezasseis!...
- Tão vivinhas!...
E as sabogas ainda lutam.
Pela praia fora, como bustos de mulheres, as proas dos saveiros estão voltadas ao norte. Sobem fumos dos almoços das companhas. E os homens estendem-se no fundo
das embarcações, mãos na nuca e olhos no azul.
O ti Rendeiro desapareceu, a manquejar, por detrás da fragata suspensa no atoleiro. E o Santana espreita-o, pupilas penetrantes, de ódio a seguir-lhe os movimentos,
rosto a animar-se por chama de vingança.
- Pagas-mas com língua de palmo.
E vai rastejando por entre as bateiras, cauteloso,
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dentes fincados, mãos contraídas, boca abafando a respiração. A carapinha esfalrripada do barrete põe-lhe um arco de fogo à volta da cabeça. E encarquilha-o entre
as mãos, atirando-o ao lodo.
O outro está de costas, voltado para as chulipas da vedação, assobiando baixo.
O rumor da venda é um sussurro brando. O Tejo canta nos saveiros, mágoas do seu vaivém.
O ti Rendeiro volta a cabeça por instantes, como pressentindo o inimigo. Mas o Santana acaçapa-se de borco sobre os calhaus e dejectos da praia.
Esgueira um olho por detrás de uma bateira desmantelada pelo tempo e vê a camisa de castorina cinzenta do outro, empolada pelo vento, que leva no redemoinho papéis
velhos, como numa dança vertiginosa de rodares. Hesita ainda. Palpita-lhe na fronte um latejar constante que se aviva em duas punhadas fundas.
Giram-lhe à volta, em rodopio, as proas e as varas, as chulipas e a camisa de castorina. Tudo se choca e se penetra num caos de pensamentos.
Busca qualquer coisa nos bolsos descaídos. E no corpo passa-lhe um sopro de gelidez ao contacto da navalha. Ouve-se um estalido, e a lâmina fulge ao sol em pequenos
revérberos que lhe queimam a vista e as mãos.
O outro encolhe o busto, deixando descair o braço.
E o assobio continua.
É como que um desafio - um desfiar de ironias e humilhações. Acende-se-lhe no corpo ira maior.
"Maldito assobio aquele!"
Parece-lhe que se o não ouvisse, não arranjaria ganas de lhe sair ao caminho, a pedir desforra. Toda a gente da rua respeitava o ti Rendeiro e ele próprio lhe devia
os conselhos dos seus anos de pesca.
Alguma coisa lhe agarra os ombros para o não
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deixar seguir. Mas vê-se atirado à lama, entre risos e imprecações.
Sentimentos inimigos em batalha. Cabeça num rodopio de vertigem, onde as coisas e os pensamentos se fundem.
E o assobio continua.
É um eco dos risos e das imprecações das mulheres e dos camaradas.
A mão treme-lhe. Alça o corpo, de navalha em riste, marchando em passos medidos e lentos. Cabeça baixa e olhar erguido.
Um cão ladra. Recua num medo instintivo. É maior o tropel de reacções.
"Por que teria ladrado o cão?!..."
Fica parado, a arquejar, suor frio a correr-lhe no rosto. Olha à volta. Ninguém.
O cão não ladra mais. Caminha de novo. O ruído da lota traz-lhe gargalhadas. Riem-se dele.
"Tem de m'as pagar..."
Aquela ideia vence-lhe a indecisão. Já não ouve, nem os pensamentos se baralham. Todo ele é um pensamento só. As outras recordações morreram - ficou aquela.
Dá uma corrida.
E ficam frente a frente. Os olhares cruzam-se.
- Que queres tu, ó Santana?...
- Fazer contas...
- De navalha?!
- Não pregunto a maneira. Fazer contas!...
O arco de fogo queima-lhe de novo a cabeça. Os lábios secaram-se por uma ardência que lhe corre nas veias. Acendem-se nos olhos lampejos febris.
"Agora tem de ser..."
Dá mais um passo e pára. O outro não se move. Cruza os braços, arrepanha a camisa - camisa de
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quadrados. Vê ali uma evocação. O Ralaças voltara de cumprir pena e contara-lhe tudo.
As grades e o silêncio. Anos sem sol nem mulheres.
- Então?!...
Vem de longe um brado que penetra no sussurro da lota. Ouve-se o chapinhar de redes na água e uma cantiga triste, de óis prolongados, que se esvai.
A mão treme-lhe. Não sabe por que está ali. Vazio como rede em lance macho.
- Menos tempo levaste a pular à lama, malandro!... É um safanão que o desperta. Um pensamento só.
Esquece tudo. A camisa de quadrados não lhe lembra o Ralaças.
E num salto está a dois passos do outro, maxilares endurecidos, peito ofegante. Leva a mão atrás empunhando a navalha. O outro espreita-lhe os gestos.
Aquele olhar vara-o, como se a lâmina se voltasse para si e o ferisse. Sente-se invadido de novo abatimento. Enfraquece-lhe a ira.
"Na rua se diria que tivera medo. Nem de navalha era homem para o outro."
Tolda-se-lhe a vista. Um frio abala-o.
- Então?!...
Atira-se para a frente numa fúria cega. Sente a mão do outro a oprimir-lhe o pulso e um amolecimento entra-lhe nos dedos. Busca forças para se libertar, mas as cadeias
apertam-se mais.
Apressa-se-lhe a respiração. Os músculos enrijam e logo afrouxam.
- Ah malandro!...
O ti Rendeiro, sentindo-o afracar, dá-lhe um impulso e derruba-o.
Tacteia o lodo com a mão, procurando a navalha para o defrontar, olhos postos nos do outro.
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- Nun te mexas Zé que me desgraças!
Os dedos estão a tocar o cabo. Agora se puder agarrá-la, há-de cosê-lo de traços. Na praia ficará uma mancha de sangue que nem as marés lavarão. Para sempre se falará
no Zé Santana. Nas tabernas da rua os homens hão-de contar a história daquele dia.
Mas o outro cai-lhe em cima, cingindo-lhe os braços. Estrebucha para o sacudir e a tenaz é mais forte. Tem desejos de gritar. O ti Rendeiro é outro homem que ele
desconhece. Pensa que ninguém virá, quando souber o que se passa.
"Nunca mais os camaradas o tratarão de amigo. Na rua se dirá que teve medo."
No olhar apaga-se-lhe o ódio - nasce a súplica. O outro não o vê.
Sente os dedos a oprimirem-lhe o glúteo e a respiração a espaçar. No azul do céu, o rosto do ti Rendeiro projecta-se a cobrir o Sol.
Um grito abafado e rouco.
O sangue esparrinha-lhes as camisas e deixa, no rosto do Santana, um traço vermelho a borbotar.
- Marcado, malandro!... Marcado p'ra sempre! Cem anos que vivas, te acompanhará. E todos saberão quem és.
E ergueu-se.
No dorso do rio houve um chap que engoliu a navalha e lhe deixou, por instantes, uma mancha viva.
Depois, tudo ficou em recolhimento. O sussurro da lota ao longe.
- Bem marcado!... Marcado p'ra sempre!
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AQUELA HISTÓRIA.

Sentara-se na secretária fechado ao ambiente. Na outra sala traquinava a máquina de escrever, e ali mesmo, defronte dele, o Rebelo perguntava-lhe outra vez se podia
mandar o Vieira para a cobrança da praça.
Via-o, mas não lhe tomara a compreensão aquela imagem. Era como um móvel que se tivesse deslocado e, por uma alucinação, ganhasse movimentos e expressões.
Acenou a cabeça e ouviu-o falar. Mas as palavras empastelaram-se, como se as letras se baralhassem, perdidos os elos de ligação.
"A vida é sempre amarga. A sorte passa uma vez, ao menos, à porta de cada um."
Aquele pensamento fê-lo rememorar. Aquela ideia não era sua.
"Sim, fora no teatro que a ouvira. Um camarote que o primo lhe trouxera numa noite em que jantara em sua casa. Oferta ao Zé Jaime pelos seus seis anos."
O Alves da Cunha nas Cobardias. Ouvia-lhe a voz rija, como um martelo a pregar aquela ideia.
"É preciso deitar-lhe a mão, quando ela passa. Depois, talvez não volte mais."
Tinha-a agora ali bem agarrada, tão segura como o cabo da raspadeira. Sentia-a bem sua, conquistada para sempre.
E os dedos delgados aperrearam-se, como se na concha da mão a vida se agitasse, querendo forçá-los.
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Anos e anos de luta. Começara com afã, pela conquista do seu lugar no mundo. Todos os dias sentia desenganos - e todos os dias ganhava esperanças. Parecia-lhe até
que assim tinha mais beleza. A vida tomada palmo a palmo, ganha pelo ardor da sua fé.
Viria a hora da libertação.
O dinheiro era o sangue que corria nas veias do mundo. Via-o passar no bico do seu aparo em lançamentos de contos e contos. Jogava com ele em partidas de deve e
haver.
Desvelava-se no trabalho. Tinha as horas cheias pelo registo de vendas e pelos números dos balancetes. Os progressos firmados em cada balanço eram os arautos do
seu futuro.
O Sr. Elísio Reis saberia reconhecer. Era um homem brusco, assim com modos de quem nascera para esmagar os outros. Olhava-o de cima, como se a sua cabeça tocasse
as nuvens. Mas parecera-lhe que havia no fundo daquele olhar turvo uma chama que só ele adivinhava. Interpretara-a como um carinho recalcado, que um dia ganharia
expressão.
Todo sobriedade, criava um muro entre si e os outros. Entendia, porém, que essa parede cairia para si.
Pouco a pouco, viera a descrença. Primeiro em interrogações, em altos e baixos, depois a firmar-se como um fatalismo do seu nascimento.
Ensaiara diálogos para esclarecer tudo.
- Sr. Reis... Isto assim não pode continuar. Dei quanto pude por esta casa e afinal...
Abandoná-lo. Mandar-lhe um bilhete, informando-o secamente que não voltaria ao escritório. Nada de explicações; que nem isso merecia.
Os livros queimavam-lhe os dedos. Perdera o gosto pelos mapas a duas cores e em letra apurada. Deixava o serviço correr, sem reagir. Os negócios levavam-no.
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Não era ele que os conduzia agora, pela previsão dos câmbios e dos mercados.
Depois entendera que era melhor esperar. Fazer-lhe sentir a indiferença e depois pôr tudo a limpo quando o chamasse.
- Anda doente?!...
- Doente, eu?... Não!... Felizmente...
- Vejo-o sem gosto por isto...
Seria o momento de lhe colocar o problema.
- O senhor compreende... Já lá vão doze anos a viver para a casa, cuidando de tudo como se meu fosse, e nem uma esperança de sair desta cepa torta, amarrado à secretária,
como um cão a guardar-lhe os lucros... Isto é de mais, Sr. Reis!...
Cara de quem não percebia, a querer ensaiar desculpas, o outro titubeava.
- Mas Sr. Faria...
Dava vontade de atravessar a conversa e fazer graça.
- Agora já não sou Faria. Chame-me Sr. Fez...
- Mas isso...
- Isso acaba-se agora mesmo. Vou-me embora! Não ficaria um dia só, quanto mais dois meses. Que o levassem preso. Não cuidava de leis.
O Sr. Reis nunca o chamara. Aquele desejo de vingança foi afrouxando. O Negrão andava de anúncio em anúncio, sem encontrar coisa que se visse. Esse matara-lhe os
últimos restos de amor-próprio.
- Sabes lá!... É um pavor! Escadas cheias. Qualquer dia ainda temos de pagar.
Casado e com três filhos. Ainda se não tivesse casado! Culpa do Sr. Reis que parecia ter no fundo do olhar uma chama de promessa.
Solteiro até tinha interesse. Fazer vida de pária e escrever um diário. Podia arranjar editor e criar um grande nome. Fora o seu grande sonho de rapaz.
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A vida complicava-se e tudo isso ficara em cartas escritas aos amigos. Lembrava-se de Fradique. Depois passara a lembrar-se das contas do merceeiro e do recibo da
casa.
Tinha morto o futuro.
Fizera-se autómato. Quando fechava o balanço crescia-lhe uma ponta de ansiedade. Ficava a apontar o lucro líquido, à espera da tal hora que não chegara ainda.
O Sr. Reis oferecia-lhe um cigarro, esfregava as mãos e repetia o mesmo de todos os anos.
- Supunha mais!... Supunha bem mais! E degolava-lhe as ansiedades.
Agora tinha-a ali tão segura como o cabo da raspadeira.
A Sociedade Exportadora convidara-o para a chefia do escritório. Ordenado maior e comparticipação. Sabiam que ele guardava todo o segredo de Elísio Reis e era a
primeira cartada. Dissera que ia pensar. Falara em confidência ao Rebelo.
- O Sr. Reis chama-o.
Alguma das dele, pensara. Ia começar a comédia. Não conheceria as escadas do Negrão.
- Sente-se.
E apontara-lhe uma cadeira.
- Estou bem.
- Faz favor...
Ficara inquieto. Estranhava-lhe os modos e o olhar. Viu-o passar nos dedos o sinete de prata.
- Vamos tratar do seu futuro.
- Do meu futuro?!...
No seu rosto havia mais do que assombro, com certeza. Porque o Elísio Reis rira-se, rebolando o corpo na cadeira de braços.
Depois a sua voz ganhou carinhos e ficara-se a ouvi-la, embalado pelo plano.
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- Não tenho filhos...
Viu-se atirado para o passado - ainda não deitara à escola. Calção de cotim e blusa branca com pintinhas azuis. A perna direita ligada. Aquele bruto do Sardinheira
arranjara-lhe a bonita no "lado detrás".
As janelas abertas para deixarem entrar o fresco da noite e de companhia com ele os gritos dos camaradas. Moído para ali de raiva. Se não fosse de temer chinelo,
dava veneta de puxar a meada de lã da prima Constança e escangalhar-lhe o apuro da malha. Ou pegar nas cadeiras e atirá-las ao ar, até que lhe abrissem a porta.
Aquela malta na brincadeira e ele a amorrinhar em casa, a puxar os atacadores das botas e a esfanicar o lenço.
A voz do Maneta a desafiá-lo.
- Um, dois, três, lá vai alho!
Feito menino de sala e o sangue a ferver-lhe, mesmo de perna atada.
Que culpa tinha ele que o Abílio não viesse apertar as mãos da prima Constança? Um dia punha tudo em pratos limpos.
- Tia Mónica! A prima enfia as pernas nas do Abílio por debaixo da mesa.
E depois que o desfizessem a tabefes. Então havia de se esmoncar em gritos de "ó da guarda" e esperneares. Não queriam dar fita, mas ele havia de a fazer sozinho.
Na cozinha o passar de águas e o cantarolar da tia. Lá fora os camaradas na galhofa.
Era de perder a cabeça. Resmungava desforras e palavrões. A prima a bater o pé de inquieta.
- O Abílio hoje fez gazeta, anh!... Se calhar esqueceu-se com a criada do Bento.
E ela a vará-lo com os olhos grandalhões.
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- Anda lá, meu...
Era paga com paga. A moerem-se um ao outro.
A tia vinha e fazia tréguas na sala. Puxava a cadeira pequena, remexia a caixa, em busca das "cangalhas", e deitava-se à roupa.
- Tia Mónica deixe ir...
Rebuscava tons macios na voz tomada de angústias.
- Deixe ir... É só ver...
- Podem-te escangalhar a perna, rapaz.
- É só ver...
- Vem p'ra aqui.
Afagava-lhe os cabelos e voltava à agulha.
A presença dela amainava os gritos dos amigos.
- Tia Mónica...
E a vontade de sair aquebrantava-se. A prima Constança a enganar-se a cada momento no entrançado da malha. Moída com a ausência do Abílio, perdia o jeito dos dedos
e esquecia-se da amostra que a D. Beatriz lhe tirara.
- Tia Mónica...
- Não me rales, rapaz. Metes-me a alma no inferno. Sorria-se satisfeito de ver ambas contrariadas. E então
atirava o pedido.
- Tia Mónica... Conta-me aquela história?...
Ela ajeitava o monte da roupa, pendia mais a cabeça nos farpões da sua camisa e fazia que o não ouvira. Gostava de ser rogada. Era como ele, quando o deixavam sair
para a rua e o Marreta lhe pedia.
- Eh pá, conta aquela história.
Sabia-a de fio a pavio, mas não se cansava de a escutar, porque a tia Mónica tinha passagens que ainda não decorara bem.
- Vê se te calas.
Punha-lhe as mãos nos joelhos e os seus olhos encontravam-se.
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- Era uma vez um rei, mais rico que todos os reis da terra. Tinha tantos vassalos, como de estrelas tem o céu. No seu reino todos eram felizes. A rainha já morrera,
minada de saudades da sua terra.
- Onde era a terra dela, tia Mónica?!...
- Muito longe. Num país onde os passarinhos e as flores falavam.
- Ah!...
E parecia-lhe que lhes ouvia os diálogos. O Marreta é que se pelava, se pudesse estar ali com ele. Torto que nem um arrocho, era o mais calado, quando ele contava
a história.
- A terceira filha disse-lhe: gosto tanto de meu pai como do sal. O rei ficou capaz de morrer. Chorou duas noites e dois dias, e encheu de sangue dos olhos dez alguidares
de oiro com pedras preciosas.
"Eina pai!... Assim gostava ele de chorar..."
- E chamou o carrasco para que lhe tirasse a filha mais nova e a matasse. Antes disso, cortou-lhe os cabelos e mandou fazer do seu fio de oiro um cesto para lhe
levar o pão para a mesa.
Aquela voz era cada vez mais branda. Ficara-se a ouvi-la embalado pelo plano.
- Não tenho filhos...
Era como se deitasse a cabeça nas pernas gordas do Sr. Elísio Reis e ele lhe contasse uma história mais linda do que todas as da tia Mónica.
Daí a pouco, quando cabeceasse, o Sr. Elísio Reis pegava nele ao colo e ia pô-lo na cama para dormir.
- Pata aqui, pata ali. Filha de rei a guardar patos foi coisa que nunca vi.
Já não sabia contar aos filhos aquela história que aquietava a ruindade do Marreta.
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- Pai, conte!...
E ele contaria numa voz tomada de desespero.
- Quando a Sociedade Exportadora rebentou, o Reis esqueceu-se de tudo que me prometera. Fui-lhe à fala. Pôs-me com dono,
E agora sou companheiro do Negrão.
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A CORNETA DE BARRO

O trabalho não era bom, mas pegara-lhe. Da Boiça só fora ele e o Desajeitado. Mais três homens das Cachoeiras e o resto das bandas do Cartaxo e de Azambuja.
A cava de surriba, embora áspera, trazia-lhes saudades. À Vala de Vila Nova só ia pessoal de corda no pescoço. Dos que não podiam estar parados uma hora, quanto
mais semanas. E por ali não havia trabalho, por muito que buscassem e pedissem.
Moídos das caminhadas, voltavam à noite a casa.
- Então?!...
- Nada!...
As companheiras suspiravam. Eles punham a cabeça entre as mãos e a lareira continuava apagada.
Aquela notícia correra da Borda d'Água aos Montes. Muitos recusaram.
- Só lá vamos ganhar maleitas!...
Estava no João da Pataca, na Loja Nova, quando a soube. As malhas de ferro tilintavam nos tabuados dos paulitos, no despique duma rodada. Deitara lá naquela tarde,
sem saber onde matar o tempo. Farto de correr tudo e sempre a mesma resposta.
- Nada!... Isto está mau!
Começaram a falazar da vida e a descrença invadiu-os. Dali ouviam o eco das enxadas em Santo António. Eram felizes aqueles. Pagos a jorna baixa, mas felizes. Só
eles não adregavam trabalho, por muito que pedissem.
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O eco foi-se avolumando. O João Desajeitado abalou como um raio.
- Parece que escarniçam dum homem, as danadas! Os outros volveram-lhe os olhos e ficaram. Melhor
ali do que em casa. Dolorosos aqueles sons que lhes falavam dos dias parados e do rol na loja. Mas ouvir as companheiras e os fedelhos, pior ainda.
O silêncio caiu entre eles.
O João da Pataca voltou para dentro do balcão a lavar os copos e o chap-chap tinha gargalhadas. Era a resposta aos gritos das alfaias. Riam deles.
Um galo cantou no quintal. O Marujo pôs-se a enrolar um cigarro, piscando os olhos. Faiscou a pederneira.
- E s'a gente fosse jogar uma rodada?
O Taranta levantou-se logo. Os outros seguiram-no. Ele ficou-se a remoer pensamentos.
- Então, Zé Boiça?!...
O eco das enxadas a falar-lhe da vida.
- Já lá vou!...
"Ainda se tivesse o seu bocado, como tantos outros... O pai nada lhe deixara. A mulher só trouxera para o casal os braços nunca negados ao trabalho. Onde o houvesse,
ela abalava que nem um homem. Os dois numa lufa-lufa constante. Nos primeiros anos a sonharem com uma casita - quatro paredes que fossem para se abrigarem. Mas em
cada dia a vida trazia novos desenganos."
- Eh Zé Boiça!
Arrastou o banco e foi para junto dos companheiros. As malhas tilintando nos tabuleiros, cobriram aos poucos o eco das enxadas.
Olhos vesgos para os paulitos.
- Jogo de ponto, ó Marujo!
- Ninguém vê o pau.
Pé atrás, pé à frente, mão alçada ao correr da vista.
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- Marca lá três, ó Taranta!
- Hoje está tudo cego!
Malha no ar, os olhos a segui-la e o soar alegre no estrado.
- Tudo à bambolhona!...
- Eh seu João!
O Pataca surgiu à porta, limpando os dedos às calças de cotim.
- Encha-me esses copos. O pessoal está com falta de gasolina.
- Tudo cego!
O eco das enxadas em marés contínuas a lembrar-lhe a vida.
"Era uma pena. O rapazeco com vontade de deitar à escola a aprender umas letras e ele sem lhe encontrar jeito. Depois, um ofício qualquer. Trolha ou serralheiro."
- Eh Zé BoiçaL. Atira lá, homem. E vê se me pões lume nesse olho que com essa certeza pagamos a rodada.
Deitou a malha. Saiu-lhe torta da mão e foi cair para lá do tabuleiro. Os outros riram. Só ele ouviu os gritos das enxadas. Pôs-se de banda, sem escutar as conversas
dos companheiros.
"Que isto de cavar não é ofício, nem dá benefício. Vida toda de canseiras e agora para ali a moer tempo sem pão em casa. Não lhe deixava courela, nem beira. Um ofício
ao menos. E mesmo assim... tudo a pior. Só no calçado ia uma fortuna. Bem andavam os varinos. Mas por ali... Descalços nem os pobres das portas."
O Pataca trouxe o vinho na medida e foi enchendo
os copos.
- Já cá faltava, ó seu João!... Quando precisar do quintal cavado é mandar p'ra cá esta gente jogar o chinquilho. Nem enxadas dão tanta saída.
- Também me parece ó Toino. Velho como estou, ainda fazia uma figura ao pé desta malta.
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Emborcaram os copos. Os dichotes aumentavam. Gargalhadas para cada palavra.
- Estou na minha que a quatro passos das árvores de Santo António vossemecês não lhe davam.
- Se fosse uma libra em oiro, numa noite sem lua...
- Todos arremelgavam. Riram.
"A companheira sem trabalho. Ele naquela pasmaceira. Dava vontade de pegar numa sacola e abalar por aí fora a pedir alguma coisa. Mas quem estende a mão um dia,
nunca mais agarra jorna. É pior que cadeia."
- Eh Boiça! Dormes de pé, homem?... Pegou na malha, balouçou o braço e atirou-a.
- Marca lá três.
- É o primeiro pau que derrubas neste jogo. "Tanto lhe fazia. Que quando há trabalho ainda um
homem se apura em acertar. Então valia a pena pôr-se a preceito. Assim..."
Malhas de um tabuleiro ao outro. O Pataca, para se entreter, pôs-se a marcar pontos.
- Trinta e nove!
- E a gente?!...
- Vossemecês vão à coxa. Estão a treze.
Os parceiros começaram a meter-se em brios, que uma rodada sempre aleijava e aquilo dava conversa por muitos dias. O Pataca incitava-os. Não tinha a porta aberta
para outra coisa.
Só ele ouvia o eco das enxadas a desafiá-lo.
"Mais quantos dias assim?!"
O João Desajeitado entrou de roldão, por ali dentro, como se toiro o perseguisse. Sentou-se na borda do tanque e pôs-se a acenar as mãos para os companheiros.
As malhas tombaram abandonadas.
A arfar, boca aberta pelo cansaço, dedos correndo
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a testa ensuada, ficou sem uma palavra. Os outros olharam-se desconfiados. Esperavam que viessem gargalhadas pela partida feita. O Taranta abanou-o.
- Então?!... Comeste algum borrego inteiro?
Os companheiros apertaram a roda. Ele cerrou os olhos febris.
- Disse... na taberna do Careca...
O Pataca entregou-lhe um copo. A tremelicar, os dedos pegaram-lhe. Levou-o à boca, e virou-o dum trago. Gotas de vinho correram-lhe no queixo.
- Há trabalho!...
Rostos mudados. Esperanças nos olhares.
- Aonde homem?...
- Em Vila Nova... na vala...
"Empreitada dura aquela. Todo o dia em água. Pá sem descanso e sezões de paga."
Só ele ficou com o outro. Os companheiros pegaram nas malhas e voltaram ao jogo.
Tilintar nos tabuleiros. Brados em gritos. Todos ouviam as enxadas em Santo António.
- E a jorna, ó João?... - perguntou o Marujo.
- Oito!...
- Eles que a comam.
Saíram. Estrada fora, sem conversas. O dia a desmaiar de luz. Um rebanho de volta ao curral, a chocalhar.
Lado a lado a passo aberto - sem olhares, nem palavras.
Trabalho!...
Chama na lareira e azeite na candeia.
Da Boiça fora ele e o Desajeitado. Mais três homens das Cachoeiras e o resto das bandas do Cartaxo e de Azambuja.
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Alforge mal aviado e os dois a caminho. Quando a fortuna são os braços, não há que cuidar de maleitas. Maleita grande é arca vazia e não se lhe dá cura.
Pegaram-lhe com alma.
Pá a cuspir lama, de sol a sol. Braços autómatos em movimento decorado. Fadigas e frios a tomar-lhes o corpo.
O Desajeitado largou primeiro e lá se foi, mirrado e verde, sem ganhar mais jorna. Ficou ainda. Da Boiça só ele.
Nunca se sentiu tão pegado aos companheiros. Faziam roda à noite, à volta do lume, e ali falavam da vida. Tosses a chamar silêncios. Depois a conversa de sempre.
Malteses sem eira, nem beira. Como cães vadios. Os de Azambuja deitavam a casa e os outros ficavam a desejar mulheres que não chegavam nunca.
Todos os dias vinham muitos pedir trabalho. Alforges escorridos, olhos sem luz, troncos em curva. E olhavam-nos, humildes e desajeitados. Tinham mulher também. E
abalavam sem rumo, em busca de pão.
E ali só achavam jorna, quando aqueles caíam sem poder dar passo.
E iam estrada fora, como mendigos, a bater aos portões das quintas.
- Nada!... Isto está mau, está!...
E não descansavam da jornada.
Ficou-lhe para sempre aquela quebra no corpo. Duas semanas de enxerga e já chegara o trabalho dos lagares. A companheira foi para a vindima no Farrobo e o miúdo
fez rabisco por sua conta.
Voltava a casa noite feita. Botas ao ombro, camisa
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à solta, boné e saco cheios de esgalhos. Almoço e jantar comidos à sombra das videiras a depenicar cachos.
- Isto tudo, pai!... e mostrava-lhe a colheita. Sorria-se e puxava-o a si.
"Dar-lhe um ofício. Cavar não era empreitada de gente. Vê-lo de fato-macaco como os dois rapazes do Peru. Safavam num dia por dois homens e antes do sol-posto já
na Boiça."
- Fiz a volta toda, pai. Trago aqui cachos d'almude. Mas hei-de comprá-la.
E ficava a ruminar naquela esperança. A feira não estava longe. Mais dois dias e era abalar estrada abaixo a Santa Sofia e depois à Vila.
- Das de riscas brancas, pai!
E deitava-se a pensar na sua "feira". A fadiga vencia-o. Os sonhos abriam-lhe sorrisos e agitavam o seu sono.
Na tarde de sábado não buscou brincadeira. Já dissera aos companheiros que havia de comprar e depois teriam corneta para o toiro e para tudo o que quisessem. O Pipio
riu-se com ar de troça e deu-lhe ganas de se pegar com ele.
- Vais ver, vais ver! Não lhe pões os beiços, p'ra não estares com essas.
O outro embezerrou e veio dizer-lhe que não se tinha rido por mal.
Também tocava. E havia de se ouvir nas Cachoeiras e em Santo António. E fariam toiradas a sério, com corneta e tudo. Bem se cansara naquilo, O pai prometera-lhe,
mas não podia trabalhar. Veio-lhe a ideia do rabisco. E teria a sua "feira".
Não largou as saias à mãe toda a tarde. Nas costas da cadeira estava o fato dos dias grandes. Meias pretas até acima. Botas com sebo, boné de quadradinhos com pala
rija.
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"Havia de deixar por fora as orelhas das botas. Tinham letras amarelas e gostava de ver aquilo a baloiçar quando corria. Bonitas aquelas botas! E quase novas!...
Todos gostavam de estrear alguma coisa em Outubro. Ele estreava a sua corneta de barro. com a volta muito bem feitinha e riscos brancos até à boca. Não havia brinquedo
mais bonito. Bonecos e cavalos não prestavam. Aquilo sim. com um carapuço de papel e corneta, dava inveja a toda a malta das Cachoeiras. Andavam sempre a dizer que
na Boiça não havia igreja, mas também lhes ferrava com aquela. E depois que viessem brincar!...
- Ó mãe já posso?...
A mãe repudiava-o e depois ria-se.
- Não me larga a saia, o raça do rapaz. Ó homem leva-o. Fica lá esta noite para não perder pitada.
Foi sentar-se no pial à espera. De vez em quando um olhar para dentro. Lume na lareira com a panela grande.
"Daí a bocado a chapinhar em água quente dentro do alguidar e a mãe, fogo-que-fogo, a esfregá-lo de sabão azul. Depois cama. E pela manhãzinha, toca por aí abaixo.
Qual café, nem meio café!... Uma bucha para o caminho"...
O sono nunca mais vinha. No pinhal de baixo os grilos na cegarrega. O pai a ressonar. Noite grande que nem um ano. Ouviu passos na estrada. Gente que ia para os
toiros. E o pai no quarto. Pareceu-lhe que o sol já entrava pelo telhado. Na capoeira cantou o galo.
- Ó pai!... Pai!...
"a ser bonito se perdia aquilo."
Mexeram-se na outra cama.
"Era agora. Toca de vestir o fato e pôr o boné... Meias até acima e botas com sebo. Só por pirraça é que o pai se não levantava. Lá por andar doente..."
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Ressonares do quarto. E o galo já tinha cantado. Sentou-se. Desceu da cama a escorregar. Escuridão à volta. Tudo sossegado. Mais vozes na estrada. Os grilos no pinhal.
- Ó Pai!... Pai!...
A sua voz receosa a repetir-se. Um ar frio estremeceu-o.
"E se chovesse?!... Má coisa!... Lá ia tudo."
Pôs as mãos à frente, a tactear, e foi andando. Tropeçou na cadeira. Fez barulho. Na outra cama mexeram-se.
Tudo quedo outra vez. Deu-lhe vontade de chorar.
"Se não fosse por coisas..."
- Ó pai... pai!...
- Que é, homem?... Tens medo?
- Não senhor. Estou aqui!
- O que é?!...
- Já são horas, pai. Já vai gente não sei há quanto tempo.
Estava frio. Queixo a tremelicar. Braços encolhidos, agarrados ao corpo.
Um fósforo riscou a escuridão.
- Vai-te lá, homem. É meia-noite! Agarras aí alguma!...
"Meia-noite. Podia lá ser. Há mais de quanto tempo deitado e as horas na mesma. Era mesmo não querer ir. Também..."
Risos na outra cama. Os grilos tomaram conta dos risos e ficaram a repeti-los no pinhal.
Já a tinha nas mãos. "Feira" bonita a sua. Mal vira passar os toiros. Algazarra rua fora, corridas por todos os lados e campinos à frente, a galopar, vara às costas.
No meio das guias, de chocalhos grandes, os toiros.
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E os homens a deitarem-lhes casacos, capas e sacas. Só um salgado deitou a cabeça de fora, mas continuou na crença.
Gritos de todos os lados - das janelas e das ruas.
- Toiro!... Toiro!...
- Eh toiro!...
E eles na ponta da unha, rua abaixo. Atrás deles rapazes e velhos atropelando-se.
- Talvez fujam no Campo da Feira - disse-lhe o pai. Ainda havia pazada por aí.
Entristeceu.
"Não fossem aqueles diabos passar ao outro campo e dar para entender com as barracas. Hoje não queria espera. Queria a sua corneta. E depois era tocar..."
Os foguetes estralejaram. Rostos desanimados. Nas janelas ficaram aguardando que os campinos passassem.
- Isto já não são esperas, nem nada!...
- Iam encabrestados os malessos.
- Agora não há toiros, nem gente. Era meter-se um ali à cara e haverá de se ver se eles não saíam.
O pai também não gostara. Um campino passou por eles e convidou-o para um copo. Ele impaciente.
- Ó pai!... pai!...
A mão sacudia-o. E os dois a falarem de toiradas e de trabalho. Moeram tempo para ali. O outro abalou. Gente para a feira.
- Quem é este homem, pai?
"Não gostava daquela cara. Palavras a compasso, remoídas que nem bandeiras de milho em boca de boi. Tinha-lhe uma sede..."
E só pela tarde o levou.
Todo o caminho às corridas, pela mão do pai.
"Se tivesse forças, puxava-o para andar mais depressa. Tanta gente para a feira!... Se dessem de comprar cornetas não teria a sua, quando chegasse".
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Passitos curtos e rápidos. Ouviam-se gritos e tiros das barracas. Uma qualquer música fanhosa e aborrecida. Feira com sol. Vinha o poder do mundo pela rua fora.
E agora já a tinha nas mãos.
Tudo vago à sua volta. Ruídos baralhados. A andar sem rumo. O cornetim do circo a tocar uma marcha. A campainha a chamar toda a gente da feira.
- É entrar!... É entrar, meus senhores!... O maior espectáculo de todo o mundo! Feras terríveis!... É entrar!...
O pai a puxá-lo para ali. Os outros ficavam a ver as caretas dos palhaços e os sorrisos das meninas de saia curta.
"Não percebia por que o pai só olhava as meninas. Os palhaços tinham mais graça. Aquele de colete branco largo e olhos até à boca era melhor que tudo. Melhor que
o de estrelas no fato e cara branca."
E esqueciam-se os dois de tudo o mais. Mas hoje não tinha olhos para nada. O pai teimoso sem arredar pé. Músicas a dizerem alegrias falsas.
- Ó pai, vamos embora!...
A roda dos cavalinhos a girar sempre. Luzes de muitas cores, lá no alto.
E os rapazes à volta, à espera de vez. Era de ficar tonto. Bonés na mão e braços abertos a mostrar avarias. Olhos arremelgados a quererem fixar formas. Gritos de
mulheres encolhidas nos carros, e risos dos que estavam cá fora.
"Tinha ali a melhor feira. Tudo na sua corneta. Os fantoches estavam com ele. Já sabia de cor a do esqueleto e a da criada do padre. A dos jesuítas e a do Zé Broa."
Apertou-a nos braços. Os outros tocavam as suas, mas ele queria experimentá-la em casa. Passava-lhe os dedos, como a animá-la. Riscos brancos até ao bocal. Nenhuma
mais linda.
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Doíam-lhe as pernas de andar. Na cabeça uma confusão de ruídos e desejos. E os tiros do canhão cada vez mais fortes.
Quando o pai foi para a saída, não lhe pediu, como nos outros anos, para dar outra volta. Levava a feira consigo. Circo e roda de cavalinhos. Fantoches e luzes de
cores. Tudo na sua corneta.
"Caminho comprido. Mais comprido que na vinda. Era o primeiro brinquedo seu. E ganho por ele. Bem empregadas canseiras no rabisco. Na Boiça haveria mais brincadeira.
Tocaria para o toiro e como os militares. E como o homem do circo, a chamar todo o mundo para a entrada. Mandaria nas brincadeiras, porque a corneta era sua. Acabavam-se
os empurrões do Pipio. Se quisessem corneta seria homem da unha, capinha e até cavaleiro. Estava farto de ser boi. Deitado para o chão nas pegas, picado nas esperas.
Agora a coisa mudara."
- Ó pai!... Lá em casa toco muito. P'rò toiro e p'rà unha.
O pai, distraído, pensava nas meninas de saia curta e sorrisos de convite.
- Não toco, pai?!...
- Tocas, pois.
Passaram Santa Sofia e já se via o Farrobo.
Caminho comprido - mais comprido que na vinda.
Corneta encostada ao peito. Os dedos a correrem nos riscos brancos. A casa perto. Lá estava a parreira. O pai assobiou.
"Dali tocaria a chamar os outros. E os outros viriam, de corrida, ouvir a sua corneta. Melhor que todas, a sua. Melhor que a do companheiro do faz-tudo de olhos
até à boca."
A mãe apareceu à porta a acenar-lhe a mão. Levantou o bracito para que visse bem a sua "feira". Era uma
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corrida e estaria lá. Sorriu-lhe. Gritou-lhe. Os dedos do pai a afagar-lhe o boné de quadradinhos e pala rija.
"Tudo na sua corneta. Palhaços e meninas de saia curta. Zé Broa e cavalinhos de cabelos brancos."
Olhou o pai, hesitante. Viu-lhe alegria na cara. A mãe a chamá-lo, de braços abertos.
- vou, pai!...
- Vai, pois!...
Deitou a correr. Toda a feira com ele. Bracito alçado para que a vissem melhor.
E o boné caiu-lhe. E a meia alta rasgou-se.
Correram os dois a levantá-lo. Sacudiu-os num safanão. Mãos vazias. Lágrimas nos olhos.
O bocal separado do resto. Traços brancos interrompidos.
E na fúria do seu desespero, saltou-lhe em cima e pisou-a.
- Era minha!... Era minha!...
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LUA DE Pé.

Os homens andavam por ali, como velas sem vento. Nem um bafo a alegrá-los. As safras iam escassas desde o Inverno Bem singravam os saveiros, da Vala até Sacavém,
ao impulso rijo dos seus braços. As sávaras pouco sável tinham recolhido; os sabugais não avezaram melhor sorte. E todas as artes que lançavam ao Tejo, mal davam
para o imposto e para a caldeirada das companhas.
O Tejo estava vazio e só algum pegadouro se emalhava nas redes para as rasgar.
Eram safras de tendal.
Ali no Campo da Feira, ao rumorejar dos ciprestes, os homens iam perfiando as redes que os pegadouros devastavam. E poucas falas tinham que a vida era madrasta para
todos - a nenhum afagava, que o rio agora não era aquele jardim de peixe tão cantado pelo velho Nana.
Os pescadores não se lembravam de uma seca tamanha.
Os anos tinham passado por eles, sempre a trabucarem no Tejo. Meninos ainda, já camaradas de bateira ou moços de fragata. Podiam vendar-lhes os olhos que eles navegavam
ali sem perigo de encalhe. Conheciam-no de ponta a ponta - da Vala até Sacavém.
Sabiam-lhe de cor os cabeços e os fundos, os ventos e as calmarias. As férias dos lances, onde os saveiros se reúnem para começar as pescas, e as carreiras em que
o peixe mais morria.
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Liam nele como liam nas estrelas.
As estrelas eram os guias das suas fainas.
Lá estava a da tarde a dizer-lhes que eram horas de lançar o cenoite. Rutilava a da aurora a ensinar-lhes que a manhã ia chegar e tinham de remar para a lota. Deitavam
as redes para o alvor e toca de tomar rumo a terra.
Mas agora...
De ponta a ponta, o Tejo não lhes fecundava as artes.
Estivessem as águas lusas ou houvesse barrazela doida que o rio estava sempre mudo - dele não vinha um alento.
Lua de pé naquela noite - marinheiro deitado.
Alguns em grupos, pelas tabernas, a falar da vida, beberricando. Conversas de palavras vagas e silêncio. Depois com o esvaziar dos copos, gargalhadas altas e coisas
brejeiras.
O Manco ficara em casa a ouvir a lamúria dos filhos.
- Ó mãe!... Mãe!... pão!...
A companheira partiu um naco duro que deu aos dois mais pequenos. O Bogas já sabia o que o pão custava e ficou sentado na borda da lareira, cotovelos nas coxas,
mãos enconchadas na cabeça.
Os dois mais pequenos foram para a porta ver passar os automóveis e ouvir as gargalhadas dos homens que estavam nas tabernas.
- O Gonçalo nun entrega mais peixe. Pedi ao Vieira e disse-me o mesmo. Amanhã nun faço venda...
Silêncio. O cheiro do petróleo empestava o ambiente.
- E o João?!...
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- Já lá devemos trezentos malréis...
Mais silêncio. O zuído das moscas em sarrazina.
- Ainda se as safras dessem coisa de se ver... Depois que as submarinas vieram, só se apanha lixo e alguma "folheca de oliveira", de negaça.
O Bogas levantou-se e foi encostar-se ao postigo do quintal. Noite fria, mas estrelada.
Lua de pé como bateira empinada por vendaval.
- Cambada de ladrões!... Deram conta da ria de Aveiro e do Sado. Agora voltam-se para aqui...
- Enquanto cá houver sombra de barbatanas nun se vão.
- Se todos fossem da minha marca...
E apalpou o cabo da navalha no bolso.
- Uma data de mortos... Só têm disto...
Tocou a ponta da língua e ficou-se a coçar a barba ruiva.
A companheira arrumou o alguidar da louça nas travessas da mesa e foi sentar-se na lareira a fitar o marido. Da porta chegou o choramingar de um dos mais pequenos.
O Bogas continuava ao postigo do quintal a olhar a Lua e a pensar na vida.
- O Arriques nun me larga de mão. Quer dinheiro da sávara e o resto da bateira.
- Ainda se eu fosse à venda...
- Nem com isso, mulher. E com lances machos só se apanham canseiras.
- Nossa Senhora há-de olhar p'rà gente, home. Isto nun há-de ser a desandar...
Os pensamentos tomaram-lhes as palavras. Penderam as cabeças, fixando os olhos no chão. Ela aconchegou a ligadura que lhe cingia a perna das varizes rebentadas.
Lembrou-se dos cansaços por atalhos e caminhos, de madrugada à noite, a oferecer pescado. Das tantas em diante, a manquejar daquela perna mais
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pesada que a canastra. Trambolho como um cepo, lá a ia arrastando.
- Ó freguesa!...
Outro monte a subir, outro vale a descer... Vendas de rol que pelos campos a vida não ia melhor. Mas sempre havia a esperança de um dia pagarem tudo... Amanhã não
sairia. O Vieira não fiava mais. O João já tinha a sua conta. Pior ainda. Ali ficaria todo o dia obrigada a pensar.
O Manco levantou-se e foi acender o cigarro no candeeiro. Os olhares encontraram-se.
- Ó rapaz vem daí!...
Lua de pé naquela noite. Rio sem bateiras. Uma cartada a mais. com peixe maluco nem se conhecem os ensejos.
- Traz a chincha...
- A chincha, pai?!...
- Pois!...
O Bogas abriu a porta e afogou-se na noite.
- Ah home vê lá...
- A sorte da gente é escapar. Se derem com ela, são umas semanas de sombra e rede queimada. P'rò que a gente faz e p'rò que elas dão...
- Ah home vê lá...
Tocou-lhe o ombro com a mão, como a abençoá-lo.
Ele já se esgueirava travessa acima, não fossem os camaradas dar de língua nos dentes ao cabo do mar. O filho ia-lhe à frente, de pé leve, assobiando uma moda qualquer
que ele não conhecia.
A bateira estava encalhada no lodo da lota de companhia com as outras. Naquela noite tudo estava silencioso a ouvir a canção de embalo do Tejo - noite de lua de
pé...
Aquilo era meter rua fora, passar ao Campo da Feira e atravessar a linha. Mas os companheiros estavam
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nas tabernas e, se o vissem passar, ririam de pescador sair para a safra com tempo assim.
Deram a volta pelo cemitério. O Bogas atrasou o passo com medo do piar dos mochos e das luzinhas que corriam pela encosta abaixo.
"Só por madureza se ia ao mar naquela noite. E passar por ali onde as avejãs vinham contar penas e as bruxas pentear cabelos... A Gracinda à espera dele ao postigo
e sem lhe dar aviso. Amanhã tinha queixas de razão. Coisas do pai!..."
Caminhavam a par, calados, como se temessem despertar as luzes, a torcerem-se no seu facho amarelo triste. Mesmo assim, elas subiam agora pela encosta e vinham rodeá-los
num corropio de alucinar.
Cada luz uma alma. A noite mais fria ainda. Aqueles fachos não aqueciam. E as bruxas e as avejãs não tardariam à galhofa.
Uma moita estalou. Pararam a interrogar-se. Os nervos em cavalgada a abalar-lhes o corpo. E as luzinhas a persegui-los sempre, como imagens vivas das suas angústias.
Quando os dois desapareceram na curva da travessa, ela encostou a porta e foi buscar os pequenos. Deitou-os na cama, onde o pai morrera tolhido de reumático, e foi
sentar-se junto da janela a espreitar a rua.
Amanhã não ia à venda. Pelo hábito, levantar-se-ia de madrugada e ouviria as companheiras a tairocar a caminho do cais. A canastra adormecida no quintal e o oleado
a pender da corda balouçada pelo sopro da manhã. Não iria povoados além, a oferecer pescado como nos outros dias. Ficaria em casa de luz apagada, a sentir-lhes os
passos, a adivinhar-lhes as vozes.
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- A Maria Bela...
- A Ruça...
Quando as camionetas chegassem, já elas estariam sentadas nas valetas, acocoradas nos portais, de xailes puxados ao rosto, de mãos esquecidas nas coxas.
Os archotes a lamber a noite do seu brilho triste. E elas à espera. Só ela não teria que esperar. O Vieira não fiava mais. O João já tinha a sua conta.
As companheiras estariam ali a acalentar esperanças de uma venda melhor. Ririam dos ditos da Iria e dos farrapos do Sapateiro. Quando as camionetas chegassem, todas
correriam a rodeá-las, deitando o olho às caixas. E os vendedores começavam na lengalenga dos pregões.
- Sardinha a saltar!... Vinte e seis!... Vinte e seis!... As luzes dos archotes a chamar o sol. As companheiras a picar os lances e a encher as canastras.
A sua adormecida no quintal e o oleado a pender da corda balouçada pelo sopro da manhã.
As companheiras, caminho fora, a gritar pregões, todo o dia ao tempo. Ela estranha, como em casa alheia, a ouvir os choros dos rapazes e os brados do seu tormento.
Ainda se os lances daquela noite dessem alguma coisa... Mas lua de pé...
Nossa Senhora na moldura de conchas com o seu menino ao colo. A lamparina a iluminá-la no seu pingo de claridade. E Nossa Senhora sorria-lhe.
Cerrou as portas e caiu de joelhos defronte da cómoda. Silêncio em toda a casa. Os rapazes adormecidos, a pêndula do relógio sem movimento.
Ela e Nossa Senhora. Nossa Senhora a sorrir-lhe.
"Avé-Maria cheia de graça...
"Amanhã não iria à venda. Os homens para o rio e a lua de pé."
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No quadro da moldura de conchas estava agora a cara do Vieira.
"Se o Vieira fiasse... "Avé-Maria cheia de graça..."
Nem uma bateira no rio. Só os dois a remar e os remos a ranger nos toletes.
- Safra de lixo, pai!
- O rio todo embalado de ponta a ponta... Um punhado de camarão estreminho... é tudo.
Fincadas as mãos nos punhos, braços e tronco na faina de sempre. Os pés na estribeira em rogo de apoio.
Luzes a escorrerem dos montes. Mais estrelas no céu que peixe na caverna de escoar.
O saveiro parou encalhado no lodo, batido pelo refego das águas mansas - calma podre. Chicote de ressoeiro na mão, o Manco saltou a terra, de calções curtos, camisa
de mangas arregaçadas. O Bogas prendeu a mão de barca no buraco do traste e sentou-se de cotovelos apoiados nas pontas dos punhos dos remos.
- Damos o lance daqui para o Lombo Tejo. Tu vais a canzonar daqui até lá. Eu lá vou...
A bateira afastou-se às guinadas, acompanhada da chiada dos toletes nos cágados. Aqueles gemidos dão a cadência aos músculos já duros do rapaz. Braços com êmbolos,
busto no mesmo passeio.
Um chocalho ao longe. Um silvo de comboio estridente e triste.
O Manco puxou o chicote do ressoeiro para o ombro e pegou-lhe com alma, a mãos ambas.
"Se aquele lance pegasse... A companheira poderia ir ao mercado fazer a venda. O rio deserto sem barcos. Se viesse alguma coisa de jeito o preço seria bom."
Aquilo emprestou-lhe forças novas.
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Cabeça pendida, tronco à frente, braços retesados. E as pernas a sumirem-se no lodo, sempre sôfrego e frio. A bateira estacava junto à mancha do mouchão, findo o
seu caminho. A estrada do Manco só começara ainda.
No céu a lua de pé. As luzes mais dispersas a escorrerem dos montes.
"Se aquele lance pegasse..."
O lamaçal mais fundo a cada passo e as pernas sem alentos para continuar. A rede descrevia na água um meio círculo, da mão de barco ao ressoeiro, e o chicote fugia-lhe
dos dedos, como enguia a libertar-se.
"Pelo peso era peixe graúdo. Talvez pagasse ao Vieira a conta toda. A mulher sairia no dia seguinte."
Meteu rio dentro a fechar o cerco. Os pés encontravam apoio na areia do fundo e a faina alegrava agora. A água subia-lhe ao tronco e lavava-o de suor. Só no rosto
o suor corria em bagas grossas.
O Bogas saltou da bateira e veio dar-lhe ajuda.
- Ala!...
- Pelo peso...
Cabeça a tocar o peito. Peito oprimido pelo esforço. As mãos fincadas na corda com mais afã - a rede levava chumbo.
Silêncio. Só o rio a afagar o mouchão.
"Nas tabernas os camaradas a gargalhar uma alegria alheia. Se o tivessem visto, o cabo do mar esperava-o agora no cais ou na lota.
"- Sr. Vieira, aqui tem o dinheiro.
"O outro riria, batia-lhe no ombro e convidava-o para beber dois.
"- Pode levar o que quiser...
"A companheira iria à venda. Em casa tornaria o pão."
Lodo outra vez. Atolados até ao sexo. Água pelas
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axilas. E os braços cada vez mais tensos a aguentar o puxão da rede. O salgadiço do suor a amargar-lhes na boca aberta a resfolegar.
- Vá, rapaz!...
Sem forças - mais forças. As mãos a arder pelo roçagar do chicote. Um alfinete nos pulmões. Logo outros e outros. As costas derreadas, vencidas de fadiga.
Mais fadigas - mais forças.
- Vá, rapaz!...
O Bogas largou a corda a tremelicar. Não sabia se de frio, se de cansaço. E o pai a caminhar sempre, cabeça cada vez mais pendida, pernas apegadas no lodo, braços
inanimados de ganas.
Nos pegos das margens do mouchão, as pedras a defendê-lo. Os pés resvalavam e tropeçavam. Uma dor na coxa direita. Um grito abafado. Depois o lamaçal sorvia e apagava
tudo.
O Bogas já saltara ao saveiro a estender a mão para ajuda. O pai deu-lhe o chicote e saltou acima. A rede veio ao lume de água. O Manco deitou a mão a um dos calões
e foi sacudindo para que o peixe se encaminhasse para o saco.
Mais estrelas no céu que peixe na caverna de escoar. Os gemidos dos toletes nos cágados a ferir o silêncio. Montes sem luzes. Companha sem esperanças. E a lua de
pé...
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RAFEIROS

Toda a gente que ali punha mão no trabalho sabia que o patrão tinha dois rafeiros.
Na Vila, à mesa do café, entre duas baforadas de cigarrilha e piscadela de olho, em ditos picantes - por fêmeas era tanto como por colheitas -, o patrão exaltava-lhes
os méritos.
Quando os dois estão em campo, posso dormir à perna solta. Não há ladrão que me entre com o arranjinho.
E ria de gosto, sacudindo o corpanzil basto de carnes e safo de canseiras. O Tejo guardava-lhe a capoeira e o Feliciano da Emposta a maltesia.
Se o avistavam no carril - sol de estorricar ou chuva de dilúvio -, vinham-lhe ao encontro, lado a lado.
O Tejo ladrando, rabo felpudo a dar que dar, olhos meigos a fitar-lhe a égua; o Feliciano da Emposta, pimpão na sua jaqueta de cotim, calça afiambrada e barrete
verde, fincando a canhota num marmeleiro, que só largava quando se estendia na esteira.
Um trazia-lhe as carícias das patas e da língua, e os seus ladridos de júbilo. O outro vinha dar-lhe novas de searas e gados ou de algum alugado mais respingão ou
mais sorna no trabalho.
Os ranchos, quando os viam assim, logo passavam dichote.
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- Lá tão os canzões a ladrar!...
- Nunca vi almas tão irmãs.
- Que dois tiros tão bem ajeitados.
E um sentimento gémeo, a evadir-se dos olhares baixos que lhes lançavam, acolhia o grupo que vinha pelo carril, estorricasse o sol ou a chuva fosse de dilúvio.
Por isso a malta dizia que o patrão tinha dois rafeiros.
Ali, a dois passos da estrada de ferro sob as agulhas dos mastros das fragatas, se lançava o destino dos homens por toda a semana.
Em grupos, alugados a um lado, abegões a outro, falavam uns da escassez das jornas, dos males que iam lá por casa - mais uma boca para comer, a mulher com maleitas
que a deitavam à enxerga -, outros, combinando preços de oferta, não fosse o patrão dar-lhes remoque por férias tão altas.
E, de grupo para grupo, havia hostilidade nos olhares e nos gestos.
Lá estavam os valadores e os criados - pau para toda a obra -, os ceifeiros e os atadores, os campinos e os carreiros.
Era ali que se lançava o destino dos homens por toda a semana.
Postos em praça, ali se alugavam sob as agulhas dos mastros das fragatas, a dois passos da estrada de ferro.
Por isso, os grupos dos que não tinham trabalho falavam baixo, se falavam, porque os remendos das farpelas e a lividez dos rostos diziam tudo quanto não podiam dizer.
Naquela feira de gado, o Feliciano da Emposta era sempre o primeiro a oferecer preços.
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Quando o viam sair da sua roda, os homens estremeciam - daquela banda nunca o Sol os aquentava.
E se algum lhe dizia da magra jorna, os seus olhos pequeninos e negros, como contas a lucilarem no carão de barba descuidada, varavam-no de ódio.
O Feliciano da Emposta só tinha olhar ameno para
os que imploravam trabalho, oferecendo-lhe quinhão.
- Se nam querem é sempre a andar. Eu cá nam
posso oferecer mais. Gaibéus e caramelos a cinco mal-
réis, é quantos me der na gana.
Eram sempre as negaças, daquela rede que lhes armavam, os gaibéus e os caramelos - gente que vivia não se sabia de quê, vinda da casa de um raio.
- Valadores a nove e ceifeiros a seis!... Gaibéus e caramelos a cinco malréis, é quantos me der na gana.
Por isso a malta dizia que o patrão tinha dois rafeiros.
- Eh! rapaz, olha essa espiga!...
- Eh! cachopa, anda-me co'essa foice!...
- A jorna nam se ganha com cantigas! Essas mãos mais ligeiras...
E o rancho curvado sobre a terra, quase a beijá-la, foice numa dobadoura a cortar caules, deixando um rasto de paveias no seu caminho penoso.
A restolhada do trigo, a balouçar pelo impulso da ceifa, matava o arfar dos peitos.
O oiro das espigas inundava os olhos dos ceifeiros, apagando-lhes imagens e luz.
Como ponta de ferro incandescente, o Sol revolvia cruel as chagas dos dorsos quebrados.
E o Feliciano da Emposta sempre a atazanar, bramando injúrias.
Na resteva as paveias crepitavam.
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- Eh! cachopa, olha essa ponta!... Sempre tudo certo!...
- Quem nam pode, fica na poisada!...
E o Sol a causticar cada vez mais, devorando em brasas os corpos aquebrantados dos ceifeiros. Que o vigor já se findou e a malta é como a máquina lançando o braço
com a foice.
- Auga!. Auga!.
Deitam os lábios sôfregos às bilhas que os aguadeiros lhes levam - mas a água parece que acende mais aquele fogo que sobe lá dentro.
- Chegaram as securas a toda a gente!... São como os rapazes!
Chiam carros pelos carris, levados por toiros de amansia, que os aguilhões e os "óis" fustigam na marcha.
E na eira sobe o bafo de fumo da debulhadora.
E há uma mulher que canta.
O canto embala os ceifeiros e as foices que não param nunca.
Naquele mar de cromo gritam os vermelhos dos lenços das mulheres - gritam por elas.
As cabeças pendem-se mais e os braços não têm alento.
Mas o trabalho não pára - o trabalho não pára nunca.
Os lábios estão sedentos - sedentos de água e justiça.
O Feliciano da Emposta brama sempre.
E há uma mulher que canta.
O canto embala os ceifeiros e as foices que não param nunca.
A passarada recolheu-se a fugir da canícula e pipila nos choupos.
A malta deixa um rasto de paveias no seu caminho penoso.
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- Eh! rapaz de uma corja!... Nan ouves?! Larga lá a foice, anda!... Ficas a meio dia que eu cá nan quero galhofas.
Por isso a malta dizia que o patrão tinha dois rafeiros.
Não tinha um amigo, nem um afago.
Só o Tejo lhe lambia as mãos, quando o soltava da corrente, ao pé da capoeira.
Se batia sezões na poisada, ninguém se chegava a ele a desejar-lhe melhoras ou a oferecer-lhe préstimos.
Lembravam-se da sua figura sinistra, devassando os aposentos, à cata de alguém que não ferrasse no trabalho, por doença contraída ali em canseiras e privações.
Não perdoava nunca.
Que o patrão pagava-lhe para pôr aquela gente a direito.
Fosse a condoer-se e aquilo eram poisadas cheias de langões.
- Descontas meio quartel!...
Não tinha um amigo, nem um afago.
E as mulheres fugiam a entregar-se por muitas oferendas que lhes fizesse.
Quando o cio apertava, tinha um olhar de bonança para as fêmeas.
Andava à volta dos quartéis, a espreitar pelas frinchas, guloso de carnes nuas, largando o seu dichote a quantas viessem cá fora, abaixar-se.
Mas as mulheres passavam por ele, sem um sorriso, e diziam às outras:
- O Emposta ladrou-me agora. Vá noivar o patrão. Ora o estojo!
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E ele ouvia-lhes as gargalhadas.
E as mulheres davam-se aos alugados que o Feliciano da Emposta escorraçava.
Não tinha um amigo, nem um afago.
Porque ele era o melhor cão daquele senhor que tinha dois rafeiros.
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NASCI com PASSAPORTE DE TURISTA

Não sei falar o yiddish e, quando passava às sinagogas, Jeovah nunca me chamou. As palavras quentes e os gestos largos dos rabinos nunca me souberam levar ao rebanho
de Israel. O sábado foi sempre, como outro qualquer, um dia sujeito a desditas ou alegrias.
Só sabia compreender a voz da vida em toda a gama das suas contradições. Sempre em mim encontrei alentos para não baixar a cerviz e caminhar vencida.
Por isso, o Deus da minha raça nunca me chamou, nem pude compreender os messias das outras.
Nunca confiei na morte, para procurar a felicidade que a minha vida de assalariada me negava. Da morte só a de Isolda me seduzia.
A violência construtiva da música de Wagner achava eco em mim, para me impelir com mais firmeza na estrada da vida. A morte de Isolda era a morte doutro mundo diferente
do meu. De um mundo que teimava em não me acarinhar e que eu trazia às costas de companhia com outros - muitos outros, quase todos.
Minha mãe voltava confortada da sinagoga. Todos os confortos que me ampararam, os encontrei na rua - nos marinheiros de todos os cais, nos operários de todas as
fábricas, nos estudantes de todas as universidades. Gente desconhecida que passava por mim muitas vezes sem me olhar, mas que eu sentia melhor do que a Herr Kriiger,
sempre sorrisos e denguices se lhe entrava na loja.
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Na loja de Herr Kriiger morriam todas as esperanças. Ali desaguava todo o nosso bairro - arianos e semitas, judeus e cristãos. E Herr Kriiger sorria sempre, rosado
que nem uma peça de fiambre, loiro que nem um feixe de trigo. Tinha cara de bebé e mãos de polvo, Herr Kriiger.
Por isso não o compreendia, como aos que passavam por todas as ruas da cidade e nem sequer me olhavam.
Um sábado, minha mãe levou-me à sinagoga. Nem mesmo lá dentro Jeovah me chamou.
Tão estranho tudo aquilo... Um silêncio pesado... Palavras sem sentido...
Julguei-me noutro mundo - na antecâmara da morte. Cabeça despejada de pensamentos, corpo sem vigores.
Quando voltei à rua, pude encontrar-me de novo. Ali era a minha sinagoga. No bulício daquela tarde fria e parda, entendi melhor os pregões dos vendedores, o claxonar
dos autos, as gargalhadas das gentes.
E pedi a minha mãe que nunca mais me levasse. Abanou a cabeça e ficou triste. E falou-me do 1919 na Hungria, cintilando águas no azul dos seus olhos cansados. Na
sua transparência serena eles reflectiam toda a tragédia vivida.
Meu pai lá ficara. Só o conhecia de um retrato a carvão, feito por um qualquer artista ignorado. Era um homem ossudo, de expressão viva, como iluminado de bondade.
Os traços vincados dos seus maxilares não lhe endureciam o rosto - definiam-no melhor.
- Era contramestre de uma fábrica. Tinha um amigo em cada operário...
No azul dos olhos cansados de minha mãe vi reflectida toda a tragédia. Mas não compreendi por que ia ela à sinagoga pedir justiça para todos os homens iluminados
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de bondade. Jeovah tinha muito em que pensar e nunca poderia ouvi-la.
E disse-lhe que na rua, ao contacto dos marinheiros de todos os cais, dos operários de todas as fábricas, dos estudantes de todas as universidades, ela poderia apagar,
na claridade dos seus olhos azuis, aquela manhã de
1919.
Ali ficava toda a minha infância e os melhores dias da minha juventude. Senti o coração cerrar-se quando dei a volta à chave - mais do que a porta, ela fechava a
minha vida.
Jamais aquelas mãos suaves como brisas, belas como vidros da Boémia, me afagariam os cabelos, me embalariam esperanças. A sua boca cerrada para sempre num sorriso,
como a dizer Edith, como a dar-me ainda uma última bênção, nunca mais me contaria aquela história triste...
- Era contramestre de uma fábrica. Em cada operário tinha um amigo...
E os seus olhos azuis só podiam espelhar aos vermes as imagens daquela tragédia.
Tanto me custou a sair dali!...
Fui para o passeio defronte e esqueci-me a admirar aquele prédio velho, desbotado e que pede camartelo. Mas ele era o monumento dos dias da minha vida. Um monumento
triste, sem figuras rompantes de atitudes, sem símbolos nus de coisas vagas.
Um todo simples - o símbolo expressivo do meu passado.
Fora azul - ainda me lembro bem, quando os homens o vieram pintar. Tantos anos!... Vejo o mestre Heine com o seu bigode farto, os seus olhos pequeninos como contas,
a beliscar-me a face e a dizer-me carinhos. E o seu fato branco salpicado de azul, daquele azul que vinha numa lata pela mão do aprendiz, e ele
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entregava às paredes na brocha grossa, como feita do seu bigode farto e ruivo.
O tempo fez o prédio cinzento e fez-me mulher.
Naquela janela da esquerda passei longas horas de meditação, devorando páginas de livros que me emprestavam. Que abismo se abria, se me debruçava no parapeito da
janela e olhava os que iam e vinham. Aqueles livros não me diziam dos que voltavam a casa de camisolas ensopadas, rostos negros e mãos a abanar.
E comecei a perceber as causas daquele abismo. E nunca mais vim para ali devorar romances.
Minha mãe ficava lá dentro, numa cadeira baixa a coser roupa, tendo enrolado aos pés, a dormitar, o Reno - um gato felpudo, de arminho, ronceirão e fidalgo.
- Edith!.
E estendia-me a agulha com a linha, ficando-se a mirar-me.
Nunca mais ali voltarei. O rapaz de fato castanho, quando passar, não achará os meus olhos. Talvez tenha saudades, como as que já sinto. Depois outra virá para aquela
janela e ele terá outro olhar a chamá-lo.
Passarão rapazes de fato castanho à minha outra rua?!...
A noite vai chegando e a Sr.a Gold está à minha espera. Amanhã vou entregar a chave - a chave do meu passado. E não voltarei a subir aquela escada, nem ouvirei o
assobio estridente do Otto, em valsas alucinantes.
Herr Kriiger continuará fazendo denguices e abrindo sorrisos, aos semitas e arianos, aos cristãos e judeus do meu bairro. E neste momento só me lembro que Herr Kriiger
tem cara de bebé. Não lhe vejo as mãos.
Tenho de me ir embora e gostaria de estar aqui toda a noite, sem sentir os encontrões e as palavras
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ciciadas dos que passam e me julgam à sua espera. E eu estou à espera do futuro, olhando o passado.
Parece que voltei ao berço - os pés não sabem andar. Caminho hesitante, olhos pregados naquele prédio cinzento que pede camartelo e é o monumento da minha vida.
As lâmpadas acenderam-se. As paredes ficaram mais tristes, gafadas pela lividez da luz. Um pregão apagou-se na minha indiferença.
vou andando. Mais adiante é a esquina e, quando a dobrar, entrarei no porvir. Não receio dobrar a esquina - tenho confiança no futuro, porque confio na rua. Mas
ali fica alguma coisa de meu, que nunca mais encontrarei.
- Edith!.
E estendia-me a agulha com a linha, ficando-se a mirar-me.
As suas mãos jamais cruzarão sobre o peito o xaile de malha. E os meus cabelos não terão afagos.
Ela ia todos os sábados à sinagoga encontrar-se com meu pai. Era lá que o tinha mais junto de si. Jeovah o trazia com o rosto iluminado de bondade.
Todas as tardes aqui virei. A estrada da minha vida pode passar a este bairro que desagua na loja de Herr Kriiger. com o tempo muitos se esquecerão de mim. E julgarão,
quando me virem defronte do prédio cinzento que já foi azul, que estou à sua espera.
Entrei no futuro. Como ouço bem o ruído das ruas por onde passo!...
Naquela manhã os jornais foram mais violentos. Todas as desgraças, todos os cataclismos, toda a crise que o
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país sofrera e sofria, tivera origem em nós. Amaldiçoados pelos jornais e pelas gentes desvairadas.
Muitos se recolheram à sinagoga pedindo protecção. Eu contemplei o retrato de meu pai e lembrei-me da Hungria.
A cidade estava inquieta. Havia mais nervosismo no agitar da multidão, nos claxons dos automóveis, nos pregões dos vendedores. Gestos de títeres, destrambelhados,
como se todos tivessem perdido a personalidade e mão invisível os movesse.
Eu própria achei-me estranha. Ia para o escritório e esqueci-me por que saíra. A Sr.a Gold estaria mais trémula àquela hora, vendo-se só. Gostaria de voltar a casa
e dar-lhe os meus consolos, oferecer-lhe as minhas certezas.
Os jornais falavam de nós, mas tinham-se enganado. Porque a Sr.a Gold perdera o filho e o marido na guerra, e eu era assalariada de uma companhia onde não tinha
capitais.
Que tínhamos nós com aquilo?!... Sabíamos que o mal nos batera à porta e nada fizéramos para que viesse. E ambos rogávamos que se fosse para sempre e chegasse a
paz e o pão para todos.
Encontrava estas esperanças no caos do meu espírito e logo as via arrastadas pelo nervosismo que transbordava das ruas. E ficava abatida, esquecendo-me que sempre
ali tinham nascido os meus alentos.
A caminho do escritório - a caminho da incerteza.
Voltaria amanhã por aquela rua?!...
Estávamos para ali como desconhecidos que não pudessem confraternizar. O teclado da minha máquina era-me estranho. As letras saltavam desencontradas, fugindo aos
meus dedos entorpecidos, esgueirando-se ao meu contacto.
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Não havia um sorriso, uma palavra a mais, para amainar aquela tempestade surda. Éramos inimigos metidos na mesma cela, sofrendo o mesmo cativeiro, sem nos sabermos
compreender.
- Olly?!...
Não levantou a cabeça e encolheu os ombros. Quis romper o silêncio e a minha voz ficou a decorar-se na incompreensão dos outros, no bater das máquinas, nos ruídos
da rua. Aquele nome pegou-se-me aos lábios, a repetir-se sempre. E só a minha cabeça, cheia e vazia, lhe desdobrava o eco, cada vez mais alucinante.
Vida impossível - horas dolorosas de muitas horas. Cada qual encerrado em si, sem sentir os outros. Não íamos além das fronteiras do nosso corpo. Para lá o silêncio
- um silêncio frio, maior que um oceano, mais ameaçador que uma floresta de baionetas.
- Olly?!
Nem encolheu os ombros. O seu nome ficou a boiar na minha angústia.
As máquinas a cantarem como metralhadoras. Olhares encontrados e logo repelidos. Uma ordem do chefe estalou no ar, como uma chicotada.
Todos assalariados e cada um entregue a si. Fronteiras a separar-nos. Inimigos agora... Amigos ontem...
Da rua vieram gritos, tilintar de vidros e um uivar de ciclone. Ninguém foi à janela. Vimos tudo, pressentindo. Eu preferia que ali dentro gritássemos também e disséssemos
os nossos ódios, cara a cara. Não compreendia por que na rua se gritava, embora soubesse quem gritava. Mas percebia menos o silêncio do nosso escritório.
Parece-me que chorei. A boca tem um travo a salgado e no rosto alguma coisa corre ainda.
Tenho a certeza agora que são lágrimas que me andam na face. Choro a incompreensão dos outros.
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Os gritos da rua são mais dolorosos. O uivar mais selvagem.
As máquinas a cantarem como metralhadoras.
- Estão na limpeza!... É preciso varrer isto tudo... Que não fique nem um!
Não sei quem disse aquelas palavras. Não fui eu, nem a Sali, nem o Isaac.
Havia ali dentro dois mundos num mundo só.
O relógio nunca mais galgava o tempo, como de propósito. Era também nosso inimigo o relógio. E eu que lhe tinha tanta simpatia!
É uma tara minha - que fazer?!... Ligo-me a estas pequenas coisas...
Por que teimavam os ponteiros em não andar?... Ainda se tivessem lido os jornais daquela manhã!... Quando os homens não reparam que somos como eles, que exigir do
relógio?!...
As máquinas a cantarem como metralhadoras. Os olhares a repelirem-se.
Por toda a parte a devastação, como numa cidade invadida. A rua é a continuação do escritório. Nesta tarde nem nela encontro esperanças.
Os homens saíram de si e andam desorientados à procura da personalidade - são fantoches movidos por mão invisível. E lembro-me das mãos de Herr Kriiger. Não lhe
vejo o rosto de bebé.
Luta de Herr Kriiger com Herr Jacob. Estão ambos vazios de olhar e não reparam na multidão. E a multidão está de retinas apagadas, porque não vê a luta de Herr Kriiger
com Herr Jacob.
Se a visse...
Não havia vidros em estilhaços, gritos alucinantes e vedações de arame farpado.
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Eu espero que os homens se encontrem. Mas vou abatida pela impressão dolorosa de tudo isto. A rua é outra. Naquele jardim por onde passo sempre, a encantar-me do
chilreio das crianças, só lá brinca o silêncio. Há bancos que mudaram. Se me quisesse sentar, teria de escolher um da minha cor. Dois jardins num jardim.
vou andando para o meu antigo bairro. Lembro-me do prédio cinzento que já foi azul. E toda eu tremo com aquela ideia, outrora sempre amiga. Fico ali parada a escolher
rumo.
Se lá passasse, creio que me faria bem olhar a janela da esquerda e recordar.
- Edith!.
E estendia-me a agulha com a linha, ficando-se a mirar-me.
Oiço o assobio do Otto. Vejo o Reno felpudo, ronceirão e fidalgo. O rapaz de fato castanho ainda não passou e os meus olhos inquietos buscam-no na multidão.
Mas agora tremo com aquela ideia.
É que ali vieram também os homens em fúria e apagaram todos os vestígios do meu passado. Vejo o prédio cinzento salpicado de sangue e a janela é uma bocarra disforme,
onde me não debruço.
Otto e o rapaz de fato castanho saíram de si e correm na rua clamando ódios. Não os conheço. São outros. São fantoches movidos pelas mãos de polvo de Herr Kriiger.
E lembro-me da Sr.a Gold. Penso que precisará da minha presença para lhe aquietar os receios. Andará pela casa, desconhecida de si, espreitando à janela. A sinagoga
está fechada e não poderá rogar a protecção para todos os que tiveram hoje o seu 1919-
Ouço gritos, mas não vejo quem clama. Caminho sempre, agora mais apressada ainda. Aqueles gritos dizem-me que a Sr.a Gold precisará de mim.
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A cortina não está afastada e o seu rosto macerado e triste não me procura na rua. A loja de Herr Jacob tem os vidros partidos. Foi Herr Kriiger que desvairou os
homens, movendo-os com os seus sorrisos e as suas denguices. Só ele quer ter mãos de polvo e não perdoa a concorrência do outro.
E a multidão não compreendeu ainda que é vítima desta luta.
Os meus passos ressoam na escada num eco estranho. Dezasseis degraus. É a primeira vez que os conto. Outros dezasseis e estarei junto da Sr.a Gold.
Silêncio frio. Silêncio que escorre das paredes húmidas. Tropeço em qualquer coisa. É um livro.
Quem teria perdido este livro na escada?!...
A escuridão domina ali. Tacteio-lhe as capas. Parece-me que o conheço. Aquela ponta quebrada... É o romance de Gaeser.
Subo os últimos degraus numa corrida. A porta está entreaberta e julgo-a de ferro, fechada a segredo. Tenho receio de a empurrar. Fico à escuta.
Nada!... Teria saído a Sr.a Gold?!...
A porta abre-se mais. Não lhe toquei - foi o vento. Só cá mora o vento. O vento, o silêncio e eu.
Encosto-lhe a mão. Sinto frio. Não posso ficar aqui toda a noite com aquele receio. A porta abre-se mais.
Houve alguém que me atirou lá para dentro. Alguém que se meteu dentro de mim e me impeliu.
Não vejo.
Agora, sim... Uma claridade... Começo a perceber formas. A mesa no canto de lá... Coisas pelo chão... Não há quadros pelas paredes...
- Sr.a Gold!...
Estou inquieta. Dou dois passos. Na mesa alguma coisa se mexeu. Caminho para ali.
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- Sr.a Gold!... Responde-me um gemido.
Quero começar uma vida nova. Voltarei um dia àquele país quando os homens tiverem voltado. Luto há trinta dias para começar e estou nesta antecâmara de incerteza
sem saber o que serei. Aqui não posso ter emprego remunerado. E eu sou assalariada, sem poder gozar exílio na Cote d'Azur ou em Biarritz. Trouxe comigo as economias
de três anos. A Sr.a Gold deu-me as suas, com uma insistência que não pude rejeitar.
- És nova e poderás, longe daqui, ter outra pátria. Leva isto.
Recusei. Instou.
- Não tenho filhos...
Lembrei-me que o seu morrera na guerra, lutando por aquele país.
- Estou velha. Parte tu que bem o mereces. Aceitei. Disse-lhe os meus projectos.
- Quando a minha vida recomeçar irá para junto de mim. Viveremos juntas sempre.
Não disse palavra. Creio que naquele momento a Sr.a Gold não sabia falar. As suas mãos tactearam-me os cabelos e disseram-me tudo.
- Edith!.
Minha mãe deixara-lhe os seus afagos - os mesmos carinhos, a mesma voz. Minha mãe voltara naquela mulher que não tinha marido, nem filho. Senti que não estava só
no mundo. O meu futuro era das duas. Trabalharia uma vida inteira sem ouvir os relógios. Fora do tempo, vencendo as horas e o cansaço. Vencendo tudo.
O meu corpo perderia o viço - nos meus cabelos cairia o Inverno, na minha face floririam rugas. Mas
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ganhava uma amizade. Ganhava as carícias de minha mãe, perdendo os olhares de todos os rapazes de fato castanho.
Que importava?!...
A Sr.a Gold chorou. Limpei-lhe as lágrimas com os meus beijos. E pôde sorrir. E eu pude ter esperanças naquela hora em que Herr Kriiger desvairava os homens e aumentava
a sua conta no Banco.
Concebemos um plano para vencermos a notícia que chegara pela Sr.a Moller.
- Na fronteira ninguém passa com mais de dez. E os que levem roupas de luxo e jóias, terão de as pagar novamente.
Isso não era comigo. Os teares e as minas não produziam para me dar futilidades.
Toda a noite estivemos de volta do rolo da minha Mercedes. Pudemos furá-lo. Nele escondi todo o dinheiro.
Deram-me passaporte. A Sr.a Gold foi à estação. O comboio gritou por nós. E o seu lenço branco ficou a acenar-me saudades. Toda a viagem o vi, pairando nos meus
pensamentos, como uma pomba que me anunciasse paz.
Pobre Sr.a Gold!...
Mas tê-la-ia bem breve junto de mim.
Passei a fronteira depois de me revistarem. Parti marcada. Já não era Edith - era Sarah. E um J vermelho tatuava-me para sempre. Sentia aquela letra a manchar-me
toda. Era o signo do meu futuro. Mas confiava nos outros homens que ririam daquele estigma e me abririam o mundo.
E o mundo desiludiu-me.
Ali tive o primeiro desengano - não me deixavam trabalhar. Poderia ir aos casinos, às corridas, aos teatros, mas vedavam-me o ganho da vida. E o meu dinheiro e o
da Sr.a Gold não me deixavam fazer flirts nas casas
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de chá, nem ir passear o meu exílio a Nice ou a Biarritz.
Corri consulados.
- Sim... Certamente! Poderá partir como turista! Nascera com passaporte de turista. Marcada com J
para sempre. Turista olhada de revés.
Já não era Edith - era Sarah.
Falaram-me da América do Sul como da terra da promissão. Ali precisavam de gente que trabalhasse, que fizesse novas cidades, que revolvesse os campos. Os outros
ficariam na Europa a entreter saudades dos seus lares.
O meu futuro estava noutro continente e o dinheiro talvez desse ainda para tomar aquele rumo.
Indicaram-me a rua. Esqueci que estava em país estranho e tudo me anunciava que encontraria pátria.
As salas eram acolhedoras. O empregado que me atendeu lembrou-me o rapaz de fato castanho. Contei-lhe ao que ia.
- Como turista?!...
- Não, não. Trabalhar!... Sou assalariada.
- Impossível!... Não podemos pôr vistos de emigrantes a senhoras sós.
E esclareceu-me a resolução como um preventivo contra o tráfico da carne branca.
Instei. Nada podia fazer.
Nascera com passaporte de turista. De país em país, como um vagabundo entediado e opulento. E eu precisava de trabalhar. Era mulher e julgava-me com direito a maior
protecção. Enganara-me com o mundo.
- Não podemos pôr vistos de emigrantes a senhoras sós.
E depois para outro. Ali deram-me uma esperança.
O empregado foi muito amável.. Ofereceu-me um
cigarro. Fumámos. E falei-lhe da minha vida, como se
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o conhecesse de há muito. Parece-me que o vi comover-se. Os seus olhos não me enganavam. A sua mão acariciou a minha.
Pediu-me que voltasse.
- Falarei ao senhor cônsul. E talvez...
Aquele talvez foi uma certeza. Jantei com apetite glutão. No fim pedi doce e um cálice de Graves.
Sonhei toda a noite - toda a noite acordada.
Que lindo barco. Nunca um navio me pareceu tão simpático. No cais uma multidão. Uma multidão de lenços. E vi o da Sr.a Gold muito branco, como uma pomba a anunciar
paz.
E o barco a afastar-se. E para além daquele mar uma vida nova.
Levantei-me, como se tivesse dormido de um sono. Na pensão estranharam-me. Cantei o Zauber de Schiller.
Es lãchelt der See, er ladet zum Bade.
Eu era o jovem pescador que passeava no meu barco, no lago dos Quatro Cantões, na abertura de Guilherme Tell.
Voltei ao consulado.
A sala estava mais bela - azul e oiro. Enquanto o empregado não veio, fiz daquilo um símbolo. O azul o mar. O oiro a vida.
Estava louca. Na vida das assalariadas não há oiro. Mas não vi isso.
Azul e oiro. O azul o mar... O oiro a vida...
Se não fosse por parecer mal teria cantado o Zauber. Mas com letra minha. Talvez assim...
A vida e o mar, são oiro azul...
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Fumámos. Acariciou-me as mãos. Senti-lhe o bafo quente e disse-me que tinha uns lindos cabelos. Gostou muito do meu vestido negro.
- Oh!. Fica notável!... Hoje é a primeira vez que a vejo.
E abriu os braços.
- Falou ao senhor cônsul?
Não me ouviu. A sua mão cingiu-me. Não percebi bem o que queria. Lembrei-me que ontem os seus olhos se tinham comovido quando lhe contei tudo.
- Oh!. a vida nocturna!... Um passeio no boulevard... Um dancing. Gozemos a vida!
Não o compreendi.
Fez uma cena de opereta e convidou-me para "uma noite de sonho".
E achei-me na rua sem visto no passaporte.
Veio-me à recordação o prédio cinzento que fora azul. Agora, mais do que nunca, precisava que aquelas mãos me acarinhassem.
- Edith!...
Já não era Edith - era Sarah. E tinha um J vermelho a tatuar-me.
Passaporte de turista.
A noite invadira tudo. Esqueci-me do mundo. Não ouvi o apregoar dos jornais que sempre me traziam uma esperança. Lia-os de ponta a ponta. Nada!...
Nunca me lembrava que Herr Kriiger era sócio de Mister Brown e de Monsieur Deschamps. Naquele momento ainda me recordava menos. Nem ouvia o apregoar dos jornais.
Fiquei a pensar no rumo da minha vida.
Para onde?!...
Clarão de luzes - nem um cintilar de esperanças.
Aquela mulher...
Parece-me que a conheço. O seu passito leve e
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saltitante não me é estranho. Rebusco o seu nome. Já a vi muita vez...
Parou ao pé do candeeiro defronte e olha os que passam.
É ela, sim. É a Magda. Veio no comboio comigo. Encontrámo-nos na fronteira. Levanto-me do banco para lhe falar. Talvez tenha encontrado maneira de ficar ali e me
possa ensinar o que devo fazer.
Um homem atravessou-se entre nós. Conversaram e ouvi-lhe uma gargalhada. Uma gargalhada sinistra.
Fiquei na sombra e vi-os partir. Iam como dois noivos.
Noiva de todos os homens.
A Magda agora também era Sarah - Sarah como eu. E tinha um J vermelho a tatuá-la.
Passaporte de turista.
Turista das ruas - faire lê trottoir.
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ESPÓLIO

Naquele dia todos iam à feira e ele também não quis faltar, embora, como muitos outros, não soubesse o que ia lá fazer. Moer tempo, distrair os olhos ou acrescentar
penas às muitas que já lhe tomavam o peito. Qualquer coisa. Talvez por tudo isso e talvez por coisa nenhuma. Alegria não a tinha para se meter em festas, e esperanças
não guardava para confiar em alguém. Mas fora. Metera a cabeçada na Judia, arranjara com guita uma tira descosida, pusera-lhe no lombo a manta esfarrapada, e saíra
de casa com aquele destino traçado, como se ainda estivesse à espera de S. Martinho para vender e mercar.
Esqueceu-se de si, estrada fora, caminhando com os outros que lhe iam passando à frente por mais lestos de pernas, e porque quem vai cedo melhor deita contas ao
gado para negócio. Uma chuva morrinhenta, que parecia pegar-se, de mole, ao asfalto, aos combros, às árvores e aos homens, não afrontava. Todo o ano se pensara naqueles
dias e em Novembro já é costume ter tempo mal-encarado, para que alguém se não fizesse à jornada.
Arreata enfiada no braço, barrete jungido às orelhas, puxadas as bandas do casaco bem ao peito, que a camisa se pusera no fio, continuava sempre, sem olhar os marcos
da estrada que indicavam a distância. Parecia-lhe que ia dar conta dalgum afazer e não o preocupavam, como antes, a roupa suja e rota e as botas
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comidas nas solas, por onde a humidade entrava a tolher-lhe as pernas. Trôpega, como ele, ferraduras gastas e já descravadas, a Judia seguia no mesmo passo sem fazer
uma escusa, mas também sem mostrar ganas de aligeirar a marcha. Caminhavam os dois de cabeça baixa, indiferentes aos que os ultrapassavam e se riam, às vezes, daquela
parelha estafada - homem e besta - que atravancava a berma da estrada.
- Eh seu homem, puxe lá isso para a direita!
Chegava-se mais ao lado e nem volvia o olhar, porque já tinha de cor as expressões dos que seguiam para a feira. Ouvia a guizalhada dos animais, o rodar das carroças
e as gargalhadas dos homens, sorrindo também num esgar, que a barba farta escondia melhor.
Muitos daqueles também mais tarde seriam como ele. Passariam outros que lhes diriam o mesmo. Puxe lá isso para a direita! "Isso" era ele e a Judia. Uma vida de trabalho
e depois ser olhado como coisa inútil, que atrapalha a carreira dos outros.
Ia naquele dia disposto a não se enlear em más ideias. Tinha uns cobres na algibeira, de dois dias de nora com a Judia, e isso dava para uns gastos no Largo do Arneiro,
acamaradando com amigos que não faltariam.
Que passassem os outros e se rissem. Ele também se ria deles, pois bem conhecia da vida para ter a certeza que iam enganados. Fossem andando agora, a folgar enquanto
era tempo. "Atrás de tempo, tempo vem."
E meneava a cabeça, levando à cara as pontas dos dedos para a limpar da chuva, miudinha como poeira, que não parava, de cair, embora das bandas da Chamusca o céu
quisesse clarear numa promessa. Já ao longe alvejava o amontoado do casario da vila e as pernas melhor o sentiram que os olhos.
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- Judia óóó!.
Falou-lhe, como a dizer-lhe que a jornada estava no fim, e que em breve a poria a descansar, presa no cabeçalho dum carro, porque os ciganos enxameiam o Arneiro
e não se lhes dá de deitar mão a égua cansada. Nem por isso estugaram a marcha, pois a certeza de chegar bastava a ambos, uma vez que não podiam já correr a foguetes,
como era de uso dizer-se. Devagar se alcança jornada. Quando demais para mais nada se tem para fazer, e as horas são para gastar de qualquer maneira.
Apetecia-lhe fumar uma cigarrada para espairecer e enganar-lhe a moinha que levava no estômago, a sanfonar como um realejo que tocasse sempre a mesma música.
A chuva tinha desfeito todas as pontas desprezadas e nem valia a pena perder tempo à procura de alguma.
Chapéus abertos, escarranchados nas bestas ou apinhados nas mesas das carroças, os outros passavam a chupar os tições sem se lembrarem que ele também gostaria de
levar na boca o travo amargo do cigarro. Mas a Judia, se pudesse, também aligeiraria o passo, e ia ali, de cabeça pendida, crinas descuidadas a pingar, corpo todo
flácido sem um músculo vivo.
- Chega lá isso p'rà banda!...
"Isso" era ele e a Judia. E um dos que passaram levantou o chicote e descarregou-o no lombo da égua, que teve um estremecimento e continuou na mesma frouxidão. Praguejou
ao outro e o outro riu-se, pondo-se de pé para atiçar o seu macho russo, todo esperto de orelhas, ligeiro de pernas que nem um poldro.
A vila estava perto. Tinha quase à mão o muro do cemitério, por cima do qual galgavam as agulhas dos ciprestes, mais tristes agora naquela tarde incerta de chuva
miúda e céu pesado.
Deu-lhe um baque no peito e sentiu-se mais cansado,
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com vontade de ficar ali, bater ao portão de ferro e dizer ao coveiro que lhe abrisse morada junto da sua Ana. Se lhe atendessem o pedido, seria capaz de o fazer.
Lembrara-se - quantas vezes? - de acabar com a vida. Mas depois punha-se a pensar, a remoer ideias
- volta para a direita, volta para a esquerda - e esquecia-se de dar fim. Esquecia-se que era homem. Se o fosse...
Tirou o barrete, benzeu-se e foi até à outra ponta do muro, de cabeça descoberta, lágrimas teimosas a bailarem-lhe nos olhos, enquanto acariciava a égua, cada vez
mais trôpega.
- Judia óóó!.
Mirrava-se-lhe o peito com aquela mágoa, desordenava-se-lhe a respiração, enfraqueciam-se-lhe os membros, e julgava que se ia deixar assim para sempre, sentado ali
perto, à beira da estrada, para não dar trabalho a mais ninguém no último carrego. Ficaria ali a tomar o seu lugar lembrando aos moços que passavam qual seria o
fim de muitos deles, se não de todos.
Puxou a égua à frente, como que para a mostrar. A sua Ana, se os pudesse ver, ficaria ainda contente, apesar de tudo. Fora ela que lhe pedira para nunca se desfazer
da Judia. Restava-lhe a casita, a cair aos bocados, e a égua tão velha como ele.
Ao longe estralejaram foguetes a lembrar aos casais e às aldeias próximas que no Arneiro se fazia a feira de S. Martinho.
Retomou a jornada, enfiando o barrete na cabeça, e apalpou as moedas no bolso do colete. Havia de se esquecer de tudo, logo que chegasse à primeira venda. Voltou
os olhos mais uma vez e a companheira veio pôr-se ao seu lado, a lembrar-lhe os dias que não voltariam mais.
- Zé!.
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E dizia-lhe das mercas que haviam de fazer para o arranjo da casa e da fazenda, as fiadas de pinhões que teriam de comprar para os afilhados e os quilos de passas
para os compadres irem fazer serões nas noites de Inverno. Para ela apreçariam uns sapatos, para ele uma jaqueta e para a Judia uma cabeçada nova e mais uns ceirões,
que aqueles já não estavam capazes.
- Mal raios esta coisa!...
Vinha hoje para não se recordar do passado e afinal tudo lhe voltava numa alucinação. Se adivinhasse, teria atravessado ao Espargal, para ganhar o caminho da Baralha,
e não cruzaria aquele portão onde lá dentro se guardavam os melhores dias da sua vida.
Fincou os dedos nas fontes cerrando os olhos, como a querer esfrangalhar tais lembranças. Mas os passos da égua no asfalto matraqueavam o passado em todos os pormenores,
como se ela o quisesse mortificar também.
Já não via os que passavam por ele. Esticou as arreatas para apressar o passo e o animal continuou na mesma frouxidão, sem compreender por que o dono a queria mais
ligeira.
- Vá, Judia!... Vá!...
Esticava a tábua magra do pescoço, sacudia as orelhas, mas nem sinais dava de fazer um meio galope, quanto mais não fosse. Ainda por cima se parou de todo, quando
deu com um punhado de palha na valeta, relinchando de satisfação.
Aquilo deu-lhe volta aos fígados.
- Eh égua dum filho da mãe! Eh égua!...
As pontas dos ciprestes, galgando ao longe por cima do copado das oliveiras, diziam-lhe ainda o que queria esquecer.
- Judia, vá!...
Puxou mais uma vez, mas agora ela fincava a dentuça no freio, para chegar às palhas. A sua passividade transtornara-se
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à vista daquele resto que quase não lhe chegaria ao estômago. Um ciclista passou por eles, a buzinar, e gritou-lhe "Que levasse o animal ao colo".
- Pedaço de bruto!...
Se ainda tivesse pernas leves e as mãos de outro tempo, bem havia de lhe dar conta. Não pôde fazer mais que deitar-lhe um olhar atravessado, relampejando ira nas
retinas piscas, perdidas nas sobrancelhas fortes.
- Judia!...
Quis lembrar-lhe quanto passara por ela, os sacrifícios que fizera para a não vender. Se a sua Ana visse aquilo... Acarinhou-lhe as crinas e as ancas para a convencer,
batendo-lhe no lombo como que para aquecê-la da chuva que não parara ainda. Olhou à volta e deu-lhe vontade de se deixar cair na valeta, misturando as suas lágrimas
com a água do regueiro.
Mas depois pensou que apesar de velho ainda chegava para a égua.
- Vá, Judia!... Judia óóó!...
Como ela não cedesse, puxou a arreata aos sacões, com vontade de lhe partir os dentes, e atirou-lhe dois murros às ventas. O animal empinou-se, levantando as mãos,
deu um salto para trás e espirrou com ruído. Ficou queda de novo, procurando chegar com o focinho às palhas, impassível às ameaças do dono. Viu-o agatanhar o combro
que separava o Espargal da estrada, em busca de alguma coisa e aproveitou o ensejo para comer, mascando com sofreguidão os restos que qualquer outro deixara.
Zé Maçarico quando deu com uma rama jeitosa esgalhou-a e saltou para a estrada. Puxou as calças acima, cofiou a bigodeira que lhe caía aos cantos da boca, e pegou
na arreata. Depois descarregou a verdasca nas orelhas da égua com quantas forças ainda tinha, atirou-lhe dois pontapés nas joelheiras que vertiam sangue e
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só se deu por satisfeito quando se sentiu cansado de todo, a arfar, como se tivesse feito o caminho até ali numa corrida louca.
- Judia...
E a égua retomou o passo, balouçando todo o corpo, cabeça mais pendida ainda, porque os olhos já não luziam bem e não queria deixar na estrada qualquer resto de
palha que tivesse ficado de animal enfartado.
Zé Maçarico puxou ao peito as bandas do casaco e sentiu-se satisfeito por ser capaz de dominar alguma coisa no mundo. A chuva parou e o sol fez um arco-íris no céu.
Zé Maçarico benzeu-se, pois aquilo era sinal para as bruxas se pentearem. Ouviu um pio, que lhe pareceu de mocho, e todo ele se arrepiou.
Lembrou-se da casa e da companheira. Incitou a égua com frenesi, desejoso de chegar às primeiras casas da vila. O asfalto brilhava, deixando projectar-se-lhe as
copas das oliveiras pendidas para a estrada.
- Arre!... Vá!...
Importava-lhe agora menos os que o ultrapassavam, rindo-se do seu preparo e da sua Judia.
- Vais vender isso?!... - gritou-lhe um rapagão, sentado num varal dum carro.
- Não, rapaz!... vou ver se compro a tua mãe que a esta hora já está à espera do feirante.
O outro atirou-lhe uma asneira, gesticulando com os braços. Ele respondeu-lhe na mesma e desatou uma gargalhada sem tempero, mas que lhe soube melhor que quantos
jantares lhe oferecessem.
Quando reparou, estava à entrada da vila. Dirigiu os passos para a primeira venda, amarrou a arreata da égua à rabeira dum carro e entrou. Foi sentar-se numa mesa
do fundo, sozinho, cabeça entre as mãos, sem saber o que devia pedir. Remexeu o dinheiro, contou-o na palma da mão gretada e suja, e pôs-se a pensar.
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Pareceu-lhe que gastar aqueles cobres era disparate, pois não sabia quando seria capaz de ganhar outros, uma vez que os braços lhe faltavam e não avezava um bocado
de seu para tapar as folgas da jorna.
"Dias não são dias, lá isso é verdade, mas o diabo é depois..."
Depois era amanhã, o outro dia, o outro...
Era um ror de tempo sem fim. O Inverno já batia à porta e se é mau para quem trabalha, pior ainda para quem leva capotes de todos os amos.
Do balcão o taberneiro perguntou-lhe o que queria. Ficou-se a olhá-lo, piscando os olhitos negros e a puxar as pontas dos bigodes para a boca. Fez uma careta e bateu
com os dedos no bolso do colete, onde guardava o dinheiro. O outro voltou-lhe as costas e foi atender um esgalgadão, meio vergado de bebida, que entrara pela porta
dentro aos solavancos e a cantarolar.
"Lá isso, não. Dinheiro também ele tinha e não admitia que o julgassem freguês de asilar, à espera de algum companheiro para pagar uma rodada."
Cresceu-lhe uma gana de pedir o vinho todo da casa.
- Venha lá um litro!
Todos olharam para ele. Arrependeu-se de ter pedido tanto e começou a fazer contas. Mas agora não podia voltar atrás.
- Há aqui para muito mais. E se for preciso vende-se a égua, que com aquele corpo magro, ainda é capaz de fazer frente ao maior alazão de todo o Campo da Golegã.
Quando o outro lhe pôs a garrafa à frente, deitou-lhe a mão e levou-a à boca. A pouco e pouco esqueceu-se que a Judia ficara à porta e que viera para distrair os
olhos no Arneiro, correndo o lugar a mirar
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o gado para venda ou até à rua onde os senhores passeavam os seus cavalos, entre filas de gente que ali passava o dia.
O que entrara já meio torto, correu o olhar à volta e, quando deu com ele, embicou para o seu lado. Pediu licença para se sentar e ele ofereceu-lhe uma pinga. Daí
a pouco conheciam-se como dois amigos.
- Chamo-me Chico. Em Santa Cita tratam-me por Chico Lá Vem Um. Coisas de "família". E vossemecê?!
- Zé!
- Zé quê?!... isso é pouco...
- Zé Maçarico!
- Pois é verdade, seu Zé Maçarico...
E a conversa não teve fim; foi como as cerejas. Dito atrás de dito, gracejo atrás de gracejo, esqueceram-se os dois da feira. O outro mandou vir um litro. Esvaziou
o alforge em cima da mesa, para lhe mostrar o que comprara de manhã na praça.
- Que ricas sardinhas, ó compadre Lá Vem Um.
- São um espelho.
- Se tivesse visto irmãs também comprava.
O outro propôs-se vender-lhe umas tantas pelo mesmo preço.
- Dois mil réis a dúzia. Ah?!... Que lhe parece?!... E bamboleava o tronco, que parecia um vime a
dobrar-se com a aragem. Beberam mais uma golada e fizeram negócio.
- Leve mais, compadre Zé Maçarico.
- Na!... Três chegam bem. Sou sozinho... Voltou-lhe à ideia a companheira e lembrou-se da
égua. Ficou triste, a ruminar naquilo. O outro reparou.
- A modo que o compadre está assim meio mazombo.
- Coisas da vida!
- Ora, deixe-se disso, homem.
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Soprou, assim com jeitos de quem muito tem de se queixar, e bateu palmas para o balcão. Enquanto não lhe trouxeram a garrafa, pôs-se a cantarolar entredentes, interrompendo-se
às vezes com soluços e caretas. Ele tirou o barrete e pô-lo ao lado, com vontade de se deixar dormir, antes que se emaranhasse em coisas tristes. Tinha o corpo à
roda e uma fraqueza maior em todo o corpo. O outro ia cantando
Ó meu amor quem te deu...
e parecia que miava quando queria esmerar-se na cantiga.
- Ó compadre! Faz-me um favor?...
- Homem...
Abriu os braços, como a pôr-se inteiramente às ordens, e as mãos acenavam sem jeito.
- Vossemecê diz. A gente conhece-se há migalha, mas é como se fosse meu irmão. Pois, irmão. - E reparando que o companheiro era mais idoso: - Um irmão mais velho,
está certo.
Zé Maçarico queria dizer a sua, mas o outro não o deixava, impelido palavra atrás de palavra. Aquilo deu-lhe volta ao miolo e descarregou um murro na mesa que fez
balouçar a garrafa. O outro alçou a cabeça e quis fixá-lo; porém os olhos fechavam-se-lhe, deixavam fugir imagens e mal viam já a cara do velho.
- Vossemecê agora...
- Gaita! Deixe-me falar, homem.
- Pronto!...
O outro, que tinha fama de zaragateiro, estava por tudo naquele dia. E encostou a cabeça à mão direita, pouco firme com aquele peso em cima.
- Ó compadre não cante. Fico triste...
- Ó homem, pronto!
Falaram de quanto lhes veio à ideia. O taberneiro
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já se ria de os ver naquela sarrazina e indicava-os com o olhar aos fregueses que entravam. Os outros miravam-nos e sorriam também. Eles só atentavam na garrafa
e na conversa.
- Isto vai mal, compadre. Vai mal, sabe?!...
Zé Maçarico meneou a cabeça e deu uma vista de olhos pelo seu fato. Tinha ainda os pés encharcados da chuva e agora só se alguém lhe desse algum calçado poderia
mudar aquele.
- Tenho umas jeirazitas, mas os anos vão mesmo ruins. Nem p'rà bucha dão... É o diabo!
O velho cofiava o bigode, deixando os dedos correrem no queixo, todo atento às palavras do companheiro. Na rua passavam rebanhos a caminho da feira.
- Tenho que pedir uma quantiasita p'ra ver se ponho as coisas a direito.
Zé Maçarico levantou-se num repente, fincou os dedos no braço do outro e sacudiu-o, rosto lívido e olhos arregalados, mas sem poder dar fala. Só acenava a cabeça
e engolia em seco.
- Sente-se mal, compadre?!... Suspirou fundo e pôde falar então.
- Não queira, compadre Lá Vem Um. Não queira!... Vossemecê nem sabe no que se mete.
Depois deixou-se cair no banco, pousou a cabeça na mesa e pôs-se a chorar baixinho.
- Não queira!... Não queira!...
O outro acalentava-o sem compreender. Para um freguês que entrara, o taberneiro explicou que o velho estava bêbedo e tinha o vinho triste.
Na cabeça do Zé Maçarico passava todo o passado numa vertigem, imagem atrás de imagem, num encadeamento febril.
- Não queira, compadre.
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E contou tudo ao outro.
Tinha a mulher doente e em médico e garrafadas iam os olhos da cara. As migalhas da última colheita tinham já ido por água abaixo. Falara naquilo com ele...
Quando disse ele, Zé Maçarico transtornou-se mais e parecia que a palavra lhe custava a passar na boca. Decorava a sua voz.
Não era de alma do outro mundo. Era deste e bem deste.
- Ó homem, se a doença da Ana te levou as economias, não deixes por isso de atirar a semente à tua jeira.
Respondeu embaraçado com um nó a fechar-lhe a fala.
- Quanto precisas tu?!... Isso é pouco, homem. Não sejas pobre no pedir.
E rira-se. Pusera-lhe a mão no ombro e continuava.
- Sabes que não faço isto a todos. Há por aí bicho-careta que nem o pó dos sapatos... Mas tu és dos poucos que ainda têm vergonha na cara. E homens de vergonha levam-me
para onde querem.
com uma fala daquelas era de lhe beijar a sola das botas. Titubeara, tivera calor e frio, vontade de rir e chorar. Afagara o pescoço e puxara a carapinha do barrete,
com ganas de gritar que estava salvo. Assoara o nariz seco. Coçara as costas sem comichões.
- Ó seu Manel... Por muitos anos que viva, nem que lhe ande a tapar a sombra de sol a sol, eu lhe pago esta mercê.
- Deixa-te dessas coisas, homem. Vamos fazer a escritura e tens quanto quiseres.
Escrituras e papeladas nunca o tinham incomodado. Ficara a aconselhar-se para dentro e o outro nem o deixara tomar tino.
- A escritura é só para pôr o preto no branco.
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Amanhã um de nós pode morrer, que a morte não manda aviso, e as coisas estão encaminhadas. Nem tu és para te negares nem eu para pedir mais. Mas ficam os pontos
nos in e o que é claro não mete confusões, nem deixa lugar para ditos.
O notário lera duas folhas de papel e olhara para ambos.
- Sabe escrever?!...
- Não senhor... E sorrira-se.
Três anos chegaram para ficar sem uma cepa nem um pedaço de terra.
As mãos tremiam-lhe, os olhos cansados de lágrimas fixavam-se no outro, como a quererem transmitir-lhes melhor as palavras que não sabia dizer. Deitou a mão à garrafa
e bebeu outra golada. Depois deixou cair a cabeça na mesa, como para dormir.
- Não queria, compadre! Não queira!...
O taberneiro não se riu mais do velho que estava bêbedo.
Abanou a cabeça, naco de broa esquecido na mão. No brasido a última sardinha estava a largar gordura.
Só aquela chama na lareira e ele.
"Há quantos meses a não acendia!..."
Cinza era em barda por todos os cantos, onde os gatos do Casal de Baixo vinham esgravatar e largar o preso. Assim a modos como que a apoucarem, quem não tem gosto
nem vintém para cuidar do caruncho das portas. Nem de lintriscos avezava a vassoura, pois onde a alegria não vai, entra o desleixo.
"Voltasse a sua Ana... Logo daria de pensar que tomara por outra porta e abalaria carreiro acima em busca do seu arranjo."
Deitou os olhos de fugida, a espreitar aquele canto onde a vira todas as noites para riba de quarenta anos.
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Estava lá a cadeira azul, mercada pelo S. Martinho quando vendera a Arisca. Mas a sua Ana bem fechada lha levaram numa tarde do mês de Maria, seca que nem um tojo
estorricado.
Da ponta da cadeira balouçava agora para o armário a teia arriscada de uma aranha. O pó, as aranhas e os gatos sabiam bem que o vasculho apodrecera de humidade arrimado
à parede. Que haviam de julgar de quem petiscava broa sem conduto, quase todos os dias, e deixava a casa às goteiras, no Inverno, sem cuidar de telhas?...
"Queda, só quando ele voltava do trabalho repassadinho de suor. De mimices não era ela, que isso de apaparicos cheira a velhacaria. Mas eram os olhos, era a desenvoltura
com que lhe enchia a malga, era o paladar que lhe punha na sopa. Uma sopa quente que lhe fazia na cara as carícias que ela tinha nos olhos e nas mãos amuadas debaixo
do avental. Fora disso não dava uma trégua ao corpo em toda a roda do dia, nem badalava das vidas alheias como tantas outras. Vivia para o seu cantinho. Faltaria
tudo, mas cal na lata e alfazema na roupa bem batida... Se voltasse agora... A arca vazia e nem um lençol na cama. A mesma manta listrada, rota como um farrapo.
O frio entrava por ela como cão em igreja. A mesa manca daquele lado que nem encosto já oferecia. Não era casa de gente. Casa de valdevinos ou de coisa pior."
Levantou-se num gemido e curvou-se no braseiro a farejar a sardinha.
"Pelo tempo já devia estar. Que não podia comer com os olhos o tostado da escama. Onde ia o candeeiro?!... Talvez na poeira que o vento lá fora levava."
Foi depenicando a petinga, a remoer a broa dura de três dias. Enxugou com as mãos o pingo do nariz e fungou. Os olhos fecharam-se. De sono não era, talvez
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daquele peso que tinha no coração e lhe afrouxava todo o corpo.
- Vida... Vida...
Um arrepio varou-lhe as cruzes, como se a voz fosse de outrem e as palavras uma ameaça. Má ameaça!
Suspirou.
"Que pior coisa havia que viver?!... A sua Ana fora bem melhor. Se tivesse ainda que passar por tudo aquilo... Deus, ou que é, fizera bem em levá-la. De mal só para
ele que sozinho carregava um fardo tão grande. Algum pecado... Pecado de ser um parrana para os patrões, pernas abertas para tudo em que lhes visse gosto. Braços
mais valentes que os seus havia-os à larga. Mas com tanta gana pelo trabalho, tanta sofreguidão em fazer muito, é que queria as suas meças. Agora só lhe restava
aquela telha e Judia. Nem ganas tinha para começar de novo. A vontade precisa de braços e fica como maldição quando entra na tonta de quem tem os pés para a cova.
Bons tempos os da gadanha!... Mesmo sozinho que fosse, não lhe faltava coragem. Olhava a seara de trigo ou de ferrejo, media-a bem com os olhos e deitava-se ao trabalho.
As pontas das espigas cortavam a cara como navalhas. O Sol afiava o gume e não queria deixá-lo romper. Na curva da lombeira as dores saltitavam, ora cá em baixo
nos rins ora lá acima na ponta dos pulmões. Depois juntavam-se todas e o corpo era um trambolho mecanizado pelo vaivém da alfaia.
Mas os olhos volviam-se, corriam os molhos derrubados, defrontavam as espigas a adejar, e a certeza estava nos braços sempre rijos, entumescidos de vigor sempre
novo.
Levantou-se e foi enterrar as espinhas no monte das cinzas. Se as quisessem comer, bem lhes havia de amargar. Tomara asco aos gatos. Os homens lamentavam-no
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, mas os gatos... Bem percebia a troça no seu miar.
- Seu Zééé... Seu Zééé...
E passavam pelos buracos da porta, vinham para ali viver como em hospedaria, faziam necessidades pelos cantos e em cima da lareira. Na escuridão da casa os seus
olhos faiscavam como lanternas lúgubres. Saltavam-lhe por cima quando dormia, zaragateavam numa miada sem fim.
Nem caçadeira já tinha para lhes ensinar que com homem perdido ninguém se mete. Se lhes atirava o cacete, esgueiravam-se de pé leve e de longe repetiam a surriada...
- Seu Zééé... Seu Zééé...
Fechava a porta num arremesso e apagava nas costas das mãos aquelas gotas que lhe corriam na barba e não eram de suor. Enrolava-se na manta...
Agora só tinha aquela telha e a Judia.
Pôs-se a passear, aconchegando as bandas do casaco e a estrupir os pés. Estava gelado. Não sabia se era o vento entrando pelos buracos da porta e pelas fendas do
telhado que o arrefecia, se o frio que sentia dentro dele e gelava o ambiente, fazendo agitar o bafo da noite.
Esfregou as mãos e deu-se de torcê-las, como se nelas esmagasse a vida.
Bateram. Deu-lhe um baque no peito e ficou especado no meio da casa, respiração opressa para não desviar a atenção dos ruídos lá de fora. Apurou melhor o ouvido,
enquanto o coração lhe martelava a dúvida. Bateram outra vez, agora com mais força, e conheceu as pancadas. Ficou hirto, sem dar um passo, indeciso e acabrunhado.
"Nada tinha para lhe dar - nem um troço, nem um grão, um fio de palha, sequer, para lhe estender nos dedos com um afago.
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"Fosse um vagabundo que viesse acoitar-se do frio da noite e abriria a porta contente, porque sabia agora, melhor do que nunca, o que é caminhar pelas estradas sem
conhecer rumo. Seria um parceiro para conversar - e certamente lhe faria bem ouvir as queixas de qualquer. À volta dos restos do brasido aqueceriam a velhice e talvez
se sentissem mais confortados. Se o outro não tivesse manta, podia oferecer-lhe um bocado da sua, apesar de rota. Os mendigos têm tanto que conversar..."
Bateram de novo. Era um hábito ganho noutro tempo e que ainda lhe não esquecera. Àquela hora, como se um relógio lhe marcasse o tempo, a Judia empurrava a porta
do curral e vinha lembrar-lhe a ceia, afocinhado no postigo cerrado. Esperava uns momentos, depois insistia uma vez, duas... Era capaz de ficar assim a noite inteira.
Suspirou fundo, cruzando os braços no peito e querendo furar a escuridão com os olhos piscos e quase apagados. Na lareira consumiam-se os restos do fogo. Deu uns
passos, voltou-se e veio pôr-se no mesmo sítio, como se ali pudesse resolver melhor aquele problema.
Voltaram-lhe as recordações. Quis fugir-lhes, esmagá-las na cabeça, porque saudades assim só fazem a vida mais amarga. Apertou-a entre as mãos e encontrou o barrete.
Arrepanhou-o, torceu-o e deitou-o para um canto da casa.
- Raio!...
Sempre, àquela hora, ela deixava o curral e vinha lembrar-lhe a ceia. A sua Ana abria a porta de mansinho, sorria-se para ele e afagava-lhe a crina por largos momentos.
A égua meneava a cabeça, a sacudir-se contente, batendo com as ferraduras no poial da porta. Ele engrolava a ceia, bebia o resto do vinho e ia tratar-lhe da ração.
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- Judia!... Magana!...
Aqueles olhos grandes tinham agradecimentos que bem se conheciam na meiguice do olhar. Batia-lhe nas ancas, corria-lhe a mão na garupa, acariciava-lhe a testa marcada
por uma mancha cinzenta. E o seu chocalho badalava a alegria de se ver tratada.
Pedaço de animal! Ajudara-o a fazer casa e o seu Manel levara-lhe tudo. O esforço dos três perdera-se com aquele papel lido pelo tabelião, numa tarde de Maio, tão
bonita, que ninguém diria poder nela passar-se uma coisa tão desgraçada.
As pancadas eram agora mais constantes. Foi à porta para lha abrir, mas recuou como se tivesse medo do seu olhar. Via-lhe a cabeça sacudir-se, sem o garbo dos outros
tempos, a bater no postigo.
"Que lhe ia dar?!... Afagos?... O corpo não os conhece, quando a barriga os não sente."
Bem compreendia que aquelas pancadas eram palavras de condenação - queixas e censuras. Mas ele não sabia explicar-lhe que o culpado de tudo fora o seu Manel, com
aquelas palavrinhas mansas de mafarrico, capaz de tentar o mais santo de todos os santos dos reinos do céu.
Muitos dias passara sem ceia, só para que lhe não faltasse. Entrara à socapa em muitos palheiros, para que a manjedoura não ficasse na tábua. Fizera mão baixa em
muita eira, ele que não tirava a ninguém um naco de pão para si. Dera-lhe toda a palha do colchão para a não ver definhar.
"Saiu e tentara-se. Entrara na venda para esquecer, para abafar as mágoas que o atormentavam. Depois viera o outro e as garrafas não tiveram conta. Comprara-lhe
as sardinhas... Talvez fosse má compra. Mas se há tanto tempo não punha o dente numa."
A porta abanava-se como se fosse para cair aos
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pedaços. Não era um rogo, era uma intimação violenta. De lá estava o seu último amigo - o seu último inimigo.
Suplicou com o olhar para o lado da porta e afagou a barba num acanhamento.
Não podia mais. Ia acabar com aquilo. Mal fizera em não levá-la para o arneiro e passá-la aos ciganos por trinta réis que fosse. Depois que se aguentasse cacete
no lombo por quem fosse enganado com ela. Longe da vista, longe do coração.
Tacteou no escuro e encontrou o cabo da gadanha. Pegou-lhe com ambas as mãos e brandiu-a. A lâmina fez um risco de som no silêncio.
"Abria a porta, media-lhe bem a tábua do pescoço e mostraria pela última vez que ainda tinha unhas para a manejar. Seria a última história que contaria. A sua melhor
história de gadanheiro."
Mas aqueles olhos passaram a porta e puseram-se defronte dos seus. Viu-os, maiores que nunca, buscarem-no na escuridão. E dizerem-lhe de frente que ela nunca mais
daria passo nos carreiros das noras, nem nos caminhos das eiras. Que se aviesse sozinho, já que com dinheiro no bolso dela se tinha esquecido.
As pancadas não cessavam. Lá fora estava o seu último inimigo - o seu último amigo.
Nada mais tinha para lhe dar que amarguras. Nem pasto lhe podia oferecer, que a erva que a terra cria, mesmo sem semente, tem dono. O tempo e os homens tinham-lhe
desfeito as suas melhores esperanças. Ficara a manta rota, a égua velha e a casa aberta ao pó, às aranhas e aos gatos.
Ergueu a cabeça e os braços enrijaram-se-lhe num acesso de ódio. Era passar o fio da gadanha, alçá-la e tudo acabaria.
"Depois seria qualquer coisa. Talvez descesse à vila a procurar o seu Manel..."
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O bater era mais nervoso agora. Correu o fecho e o ranger de ferro velho passou-lhe no peito. Uma ponta de vento esgueirou-se e abalou-lhe o corpo. A égua meteu
a cabeça, meneou-a e relinchou. Tinha a tábua do pescoço ali à mão. Era medi-la bem e abater o braço.
Sentia-se capaz de tudo. Ajeitou o cabo da gadanha na mão direita, deu uns passos ao lado e ficou assim por momentos.
- Judia...
O chocalho badalou. Como a oferecer-se ao sacrifício, a égua meteu mais o focinho no limiar da porta, e pôs-se a procurá-lo nas trevas.
Sem saber como, a mão saiu-lhe do corpo e perdeu-se na crina do animal, áspera primeiro, depois a repetir as carícias de sempre.
- Judia!.... Judia!...
Largou a gadanha num arremesso, teve vontade de gritar, torceu as mãos e abalou casa dentro a fugir àquela obsessão. O chocalho pôs-se a chamá-lo. Atirou-se sobre
as tábuas e enrolou-se na manta, tapando a cabeça para não ouvir.
Ficou assim tempo sem conta. Fez-se silêncio. Mas mais ao tarde os gatos vieram. Vieram e ficaram toda a noite a repetir o mesmo escárnio.
"Seu Zééé... Seu Zééé..."
Toda a noite.
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OS SONHOS

Mãe: nesta noite de natal em que não posso invocar a nossa lareira porque nunca a tivemos, nem o jantar melhorado com doces, porque nunca pudemos consegui-lo, eu
gostaria de te escrever, se tivesse dinheiro para o papel e para o selo. Deixa-me, porém, sonhar encostado a estas grades, pelas quais tento adivinhar a noite fria
e silenciosa, supondo-me um homem que não está na cadeia como vadio, mas que, embora trabalhando menos do que tenho trabalhado, gozasse o respeito dos outros e se
pudesse dar ao luxo de ditar uma carta.
Deixa-me pensar que estou longe, num país qualquer, onde a aventura me levou ou um grande negócio da companhia de que sou director, e vou dizendo a uma dactilógrafa
loira (talvez não saibas que gosto de loiras), tudo quanto gostaria que tu ouvisses de mim esta noite de natal, cujo ar eu quero absorver por entre grades de ferro...
Esquece as grades, esquece que estou preso como vadio, e deixa-me converter o guarda fardado que passeia no corredor na tal rapariga loira que escuta as minhas palavras
e as anota com nervosismo numa folha de papel, oferecendo-me de vez em quando um lindo sorriso carinhoso. Como eu faria feliz uma secretária que me deixasse afagar
os cabelos! Assim, mãe. Assim, de mansinho, e cingindo-lhe a nuca com os meus dedos, a puxasse para mim e lhe dissesse na boca algumas palavras que não poria na
carta que te quero escrever.
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Já que os outros tudo me recusam, desculpa tu este meu desejo de sonhar. Supõe... Agora me lembro, mãe, de uma noite de natal bem distante...
Nunca fui capaz de te explicar por que voltei a casa sem dinheiro. Bateste-me e eu nunca te disse que tinhas sido injusta. Conto tudo agora, uma vez que sou um vadio
feito pela lei e disponho de tempo para te escrever.
Falei-te em sonhos... E foi por causa dos sonhos que tu me deste aquela tareia. Lembras-te?! Não esforces a memória: eu te ajudarei a recordar. E já agora, que nunca
chegarás a receber esta carta, não estranhes que algumas vezes te trate por mãezinha. Deu-me esta noite para a ternura e para as saudades. Supõe que fui comprar
um sonho de fantasia e açúcar, daqueles que me entregaste para vender nessa noite, e que lá dentro estavam todos estes sentimentos que nunca encontraste em mim,
pois sempre me supuseste um filho ingrato e rebelde.
O pai tinha morrido a bordo do barco, esmagado por uma lingada de sacos de café, havia poucos meses. Tu andavas ainda com um lenço preto na cabeça, em sinal de luto
- como as pequenas coisas não esquecem! Fazias uns dias como lavadeira em qualquer parte e eu passava as manhãs na gandaia da lota, roubando peixe das canastras
e das padiolas. A alcofa e as mãos eram a minha ferramenta e aquele trabalho divertia-me, já porque me ajudava a viver, já porque tinha a emoção das fitas de piratas.
Sabes que fui sempre um doido por fitas. E era bom fugir por entre aquele povo, perseguido pelas mulheres e pelos polícias. Se tivesse tempo, contava-te algumas
façanhas do Toni, que era o nosso companheiro mais destemido e morreu abatido a tiro... Mas deixemos isso por agora. Eram histórias largas que nunca mais teriam
fim.
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Nessa tarde vi-te arregaçada a amassar farinha num
alguidar e esse trabalho divertiu-me tanto que não saí para a galdeirice na rua. Deslumbrou-me o chapinhar da água quente, a marca dos nós dos teus dedos na massa,
a elasticidade que tu conseguias dar-lhe, quando a repuxavas para um dos bordos do alguidar e a atiravas depois para o outro, como se estivesses entretida num jogo
qualquer. Quando a massa estava fresca
- lembras-te mãezinha? - (por que diabo estarei eu J hoje assim?), o chap-chap das tuas mãos cerradas sugeriu-me o ruído de um carro aparatoso, puxado por uma linda
parelha de cavalos, a passear pelas ruas encharcadas da cidade. E a força que fazias, o suor a molhar-te a testa, os pequenos gemidos que soltavas, recordaram-me
uma daquelas brutais lutas de cowboys num café de exploradores de oiro, quando, depois de todos os outros vencidos, só ficam o herói e o pirata, frente a frente,
num trocar de golpes que entusiasma, nos faz bater palmas e levar os dedos à boca para assobiar.
Os meus olhos deviam brilhar de entusiasmo, porque estava tão quieto, sentado à tua frente, que acabaste por reparar no meu sossego e disseste que, se pudesses,
amassarias farinha com açúcar todos os dias, só para me teres mais tempo junto de ti.
A vitória pertenceu-te, eu bem o compreendi. Polvilhaste a massa com farinha, fizeste uma reza qualquer entredentes, e com um dedo traçaste-lhe uma cruz por cima.
Deu-me vontade de te aplaudir. Vencias o pirata e davas-lhe sepultura, coisa que eu nunca vira nas aventuras do cinema. Antes disso, tinhas provado a
mistura e estendeste-me também um pedaço na ponta dos dedos.
- Que tal? Doce?... Acenei-te a cabeça e sorri.
- É prà gente?...
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Vi-te um gesto amargo no rosto cansado e respondeste que comeríamos alguns.
- Todos? - insisti ainda.
- Não, não pode ser. Irás vendê-los para o Cais do Sodré. Esta noite deve haver procura e poderemos ganhar alguma coisa para o almoço de amanhã.
Então pulei à tua volta, abracei-te e quis pendurar-me no teu ombro, para que me fizesses rodar. Porém, tu estavas fatigada e afastaste-me com uma carícia.
Passou muito tempo. Entretive-me como pude, esquecido da rua, dos meus companheiros e das corridas pelo bairro. Queria ver o fim de tudo, já que seria eu o vendedor
triunfante daqueles sonhos. Parecia-me que a minha presença era indispensável para que fossem realmente sonhos, como os que eu tinha à noite, deitado contigo na
enxerga, e me traziam guloseimas, brinquedos e até fatos à maruja, que foram sempre a minha maior ambição de rapazito pobre.
Quando começaste a pô-los na frigideira, onde o azeite espirrava, tive a impressão que eram os meus olhos que lhes davam os feitios caprichosos. Deste-me um, depois
outro, e eu furtei-te outro ainda, quando te apanhei distraída. Rapei o fundo do alguidar e, acabadas todas as migalhas, lambi também os dedos. Nunca na vida comi
uma coisa tão doce! Mais doce do que esses sonhos, só este sonho de te escrever e sair para a rua em liberdade, assobiando com as mãos nos bolsos, sem destino, talvez,
mas liberto destas grades de ferro que nem me deixam ver a noite. Permite-me que corte esta alusão às grades, porque eu estou agora num país distante - ainda não
resolvi se em viagem de recreio ou de negócios -, ditando à minha secretária loira esta carta para ti, mãezinha.
Puseste os bolos numa travessa, deitaste-lhes açúcar
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por cima, mais uma vez, e recomendaste-me que tivesse cautela.
- Levas quarenta, ouviste? A tostão cada um...
- Não é barato, mãe?...
Não me respondeste, tão atrapalhada estavas a fazer a conta. Tentei ajudar-te, mas não fui capaz de te dizer quanto dinheiro te deveria entregar quando voltasse.
- Tens de trazer quatro milréis.
- Quatro milréis?...
- Sim, quatro milréis.
E repetimos aquela quantia, não me lembro quantas vezes, tão deslumbrados estávamos com aquela fortuna. Mesmo à porta ainda me disseste:
- Olha que são quatro milréis. Quatro milréis!...
Saí delirante, com desejos de correr pelas ruas e chamar os meus companheiros para que me vissem. Logo pensei que me poderiam roubar algum sonho, e fui à socapa,
pela escuridão, já receoso que me encontrassem, apertando no peito a travessa rachada que me havias confiado. A noite estava fria. Senti arrepios na carne, mas levava
dentro de mim um calor muito suave que me fez esquecer tudo o mais. Fui para junto de um banco e ali fiquei de pé, a apregoar, desejoso de vender os doces num instante
e correr para casa a entregar-te o dinheiro que nos daria o almoço do dia seguinte.
- É a tostão cada um, é sonhos!... Doces!...
Quis lembrar-me de uma coisa doce que lhes servisse de comparação, mas não fui capaz, porque ainda não sabia o gosto da liberdade. Recordei-me dos fatos à maruja,
mas pareceu-me tolice incluí-los no meu pregão - e mais do que tolice, uma traição imperdoável aos meus sonhos.
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Passavam vadios, raparigas pintadas e sem rumo, procurando companheiro pelos bancos, velhos famintos e rapazes como eu. Como eu, não! Porque mais nenhum apregoava
sonhos naquela noite fria.
- Sonhos, ó sonhos!
Vendi quatro, cinco, mais dois... E então apossou-se de mim uma angústia enorme, quando pensei que dentro em pouco nada teria na travessa. Lembrei-me dos que havia
comido em casa, da massa lambida nos dedos, do seu gosto a açúcar, da fome... Era bem doloroso, mãezinha!... Só tinha comido um naco de pão com uma sardinha frita
e uma impressão confrangedora oprimia-me o estômago; não posso explicar bem se era dor, se só tortura, se ambas as coisas ao mesmo tempo. De qualquer modo comecei
a sentir-me inquieto com vontade de abalar dali, para que mais ninguém viesse comprar sonhos. Era como se quisessem adquirir o meu direito à vida. Fiquei alarmado,
julgando que de todos os cantos da praça corria gente para mim, disposta a roubar-me aquele bem precioso. Eu tinha fome, mãezinha! E a presença dos sonhos ali à
minha mão, guardados por mim mesmo, eram um desafio à minha heroicidade.
Eles estavam tão tostados, loirinhos, macios, com um cheiro de tal modo penetrante, que pensei... Tu sabes lá o que pensei nessa noite!
Afaguei um e outro, e mais outro; lambi os dedos sujos de açúcar, e à socapa, como se cometesse o maior crime do mundo, trinquei a ponta de um deles. Ainda fechei
os olhos para o comer todo, parecendo-me que dessa maneira a falta não teria significado. Como se fosses tu que mo viesses meter na boca durante o meu sono. Mas
até essa tentação eu fui capaz de vencer. E ainda outra mais forte que me veio logo depois, quando me lembrei de te dizer que um
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dos bolos caíra no chão e já o não pudera aproveitar. Espanta-me neste momento como resisti a tudo isso!
Fui um herói, acredita. Só tu me podias dar força para tanto.
Vi-te à frente do alguidar naquela luta sem igual, recordei-me das esperanças que puseras na minha volta e também no prazer que sentira ao teu lado, incitando-te
com o meu deslumbramento. E apregoei de novo.
- Sonhos, ó sonhos!... Cá estão sonhos!...
Vieram comprar-me mais uns tantos e cada um que levavam era bem um pedaço da minha alma que iam a trincar até à primeira taberna. Sangrava-me o coração, acredita!
Tive vontade de chorar, mas de chorar com ruído, para que os vadios, as raparigas e os velhos famintos viessem acudir-me naquela batalha desigual uma travessa de
sonhos posta nas mãos de uma criança sem jantar. E tudo repeli. Tudo, mãezinha!
O pior foi depois... Sim, depois. Enquanto fui sozinho... Se não se aproximasse aquele velho de barba esbranquiçada, mãos trémulas e olhar vivo e inquieto, eu chegaria
a casa com os quatro milréis no bolso.
Ele aproximou-se de mim e perguntou-me o preço. A tostão cada um, respondi-lhe.
- São baratos os sonhos. A tostão...
E sentou-se no banco, a fitar a travessa e a mastigar saliva.
- Precisava de comprar dos outros, dos que dão esperanças para a vida, mas agora preferia desses para comer. Ainda hoje não comi. Se pudesse comprar um, ao menos.
Dizem que esta é a noite da família. E os que a não têm? É lá família a minha gente!
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O seu rosto e aquelas palavras impressionaram-me. Os seus olhos continuavam a penetrar nos meus e senti-me impotente para lhe resistir. Pensei em abalar mas uma
força estranha prendia-me ao banco.
- Se me fiasses um, ao menos...
Ainda pensei em falar-lhe de ti. Ainda quis evocar o nosso almoço do dia seguinte e descrever-lhe até os sacrifícios que fazíamos para viver. Mas aquele homem lembrou-me
o pai. Não sei porquê, mas lembrou-me. Não era parecido, acredita. Mais magro, mais velho, trémulo... Mas pensei no pai. Dei-lhe um sonho e para lhe fazer companhia
comi outro.
A conversa animou-se e ele contou-me coisas da sua vida. Ficou alegre, riu-se, perdeu aquele ar combalido e eu esqueci-me de todas as obrigações. Achei-me naquele
momento um grande senhor que pudesse dar felicidade a alguém. Pus-lhe a travessa à frente e comemos ambos. Ele ainda me falou nas contas que eu tinha de te prestar,
mas entendi que não me devia diminuir aos seus olhos, e disse-lhe que não se preocupasse. Então... Não foi difícil chegar ao fim.
Quando me despedi, abraçou-me e chorou. Tive pelo menos essa impressão. E achei que estavam bem pagos os sonhos que comêramos.
Já era tarde. A noite estava mais fria, eu, porém, caminhava satisfeito, a assobiar, como se tivesse cumprido à risca as tuas recomendações. Mais ainda, talvez,
mãezinha. E tu foste injusta quando me bateste. Foste injusta, sim. Mete bem a mão na tua consciência e confessa. Estás arrependida?...
A tareia que me deste só me doeu na alma. Chamaste-me malandro. Malandro, eu!...
Diz lá, não te confranjas em confessá-lo. O que lá vai, lá vai. Mas tu achas realmente que eu fui malandro e mereci aquela tareia, quando dei sonhos a um velho
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desiludido?... Quando dei sonhos a uma criança sem jantar e cheia de tentações?...
Se nesta noite alguém me fiasse um sonho!
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O COMBOIO DAS SEIS

Fica na linha de resguardo aquela fiada de carruagens velhas e sujas, onde, à socapa, se escondem vadios quando as noites estão chuvosas. Se o tempo corre ameno,
eles preferem os bancos da avenida ou, se dali são espantados pelos guardas, a cumplicidade dos eucaliptos lá de cima, coito também das rapariguitas que vendem amor
aos marujos e aos rapazolas da vila.
O comboio permanece toda a noite no resguardo, à espera dos operários que trabalham nas oficinas e fábricas semeadas pelo caminho até Lisboa. É a composição mais
sórdida numa linha de comboios sórdidos. Também se serve unicamente para levar homens ao trabalho, que outras carruagens deveria a Companhia mandar para ali?!
Àquela hora as pessoas consideradas dormem ainda; e não podia destacar-se um comboio menos ronceiro, porque, às seis da manhã, ninguém se lembra de viajar senão
por grande necessidade.
Toda a vila já o conhece pelo comboio dos operários; por isso mesmo não há quem estranhe que a maior parte dos passageiros vá de pé, as portas custem a fechar-se,
as janelas funcionem mal e o interior das carruagens tenha a tinta substituída pela mascarra do fumo e das faúlhas que a máquina cospe sem cessar.
Parece para ali um monstro adormecido, negro e disforme, confundindo-se com as trevas, enjeitado até pelos homens sem casa, quando o tempo está brando.
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Também nessas noites os descarregadores não o percorrem para espantar os hóspedes, e o comboio fica abandonado à espera da tabela da madrugada.
Quando os galos começam a cantar nas capoeiras, receosos ainda, acende-se uma lâmpada na estação, chegam o maquinista e o fogueiro, derreados de sono e de cansaço,
bocejantes e a espreguiçar-se, olham para a máquina, atiram duas asneiras e galgam-lhe para dentro.
- Esta MarianaL. Já nem serve para fazer café diz o fogueiro ainda estremunhado. - Qualquer dia dá aí um estoiro!....
- Também tem razão. Já cá andava quando eu entrei ao serviço da Companhia e pouco falta para me deixar no caminho. Até haver ferro tem de ser máquina!
- E eu que me mate a meter-lhe carvão e lenha, responde o outro de mau humor.
O maquinista pega na almotolia e começa a revistar as rodas. O fogueiro despe o casaco de ganga, deita a mão à pá e, abrindo a porta da fornalha, onde o fogo ainda
crepita, atira-lhe carvão para dentro. Cospe nas mãos um líquido negro e viscoso, limpa o suor ao braço, e cantarola entre os dentes uma sarrazina qualquer. De vez
em quando espreita o manómetro, deita um olhar para fora e volta a debruçar-se num monte de carvão, atirando pazadas para a fornalha.
Então começam a chegar os primeiros passageiros. Vêm com o cesto do almoço a balouçar numa das mãos, calados e sombrios, gingando o corpo, como se precisassem daquele
balanço para poderem andar. Trazem o boné puxado para os olhos e os casacos remendados cingindos ao peito pela mão livre. Lucilam cigarros e ouvem-se bocejos.
- bom dia!
- bom dia, aí!...
E atravessam o cais e as duas linhas, encafuando-
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-se nos cantos das carruagens, para poderem continuar o sono. Fecham as janelas, acomodam-se de mão no rosto e daí a pouco estão a ressonar.
Pelo cano da locomotiva sai um fio de fumo que a aragem da madrugada esfrangalha. O maquinista sopra nas mãos e o fogueiro pragueja, a pingar suor.
De todos os cantos da noite vêm homens a passo ronceiro, como temendo acordar alguém que lhes meta medo. De longe chega um assobio; isso parece tão estranho que
os homens volvem a cabeça.
- bom dia!
- bom dia, aí!...
- Vais carregado com o cesto, pá! Isso é que é um almoço!...
- Um almoço?... Uma festa... Uma perna de vitela...
- E a mãe da vitela?...
- Ainda está na barriga da avó...
- Ou na... alma do avô. Sardinhas e é um pau!
- Isto de cesto já é costume.
E sobem para o comboio, percorrendo as carruagens, à procura de sítio para dormir. As luzes estão apagadas para poupar energia. Agora que as estrelas fecharam os
olhos, a noite tornou-se mais escura. Para as carruagens de segunda e primeira ainda ninguém entrou - aquilo não são horas de viajar!
A máquina começa a deitar vapor, um pequeno clarão assoma ao cano, e uma faúlha ou outra risca as trevas e logo se desfaz.
- bom dia!
- bom dia, mestre Zé!
- O rapaz?...
- Ainda não entrou. Diz que não há camas...
- Anh!
Caminham lado a lado, mas não falam. Querem dizer alguma coisa, dão voltas à cabeça, para arranjar
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conversa, e continuam calados. "Falar em quê?!... Falam quase sempre no mesmo!"
- Está fresco...
- Está fresco, está... Fresco está isto tudo.
E lá vão a balouçar os cestos, de troncos curvados, saudando grupos que estão pelo cais, a remoer conversas.
Na estação acende-se outra luz. Uma rapariga surge do lado das cancelas, olha para o relógio e respira fundo, pondo a mão no peito.
- Já vinhas à rasca, anh? - diz-lhe um homem saindo-lhe ao caminho.
- Se te parece... bom dia! A minha mãe deixou-se dormir e não ganhei pró susto. Lá se ia o quartel da manhã e o passeio a pé até Alhandra...
- Estás agora na Chemina?
- Estou. O mestre daqui queria corda, mas eu já tenho quem me aqueça.
E abre a boca num bocejo, percorrendo o rosto com as pontas dos dedos. O homem repara-lhe no peito e um clarão acende-se-lhe no olhar. Aproxima-se mais e diz-lhe
um gracejo; a rapariga empurra-o e dá uma gargalhada, atravessando a linha a menear os quadris. Ele segue-a por um instante; depois mete-se num dos grupos, fixando
a carruagem onde ela se sumiu.
- bom dia!
- bom dia, aí!...
Pela porta da estação entram agora três rapazes de fatos de ganga, muito curtos nas pernas, empurrando-se uns aos outros e acordando a sonolência do ambiente com
as suas gargalhadas. Alguns dos homens que estão sentados nos bancos do átrio levantam o olhar e repreendem-nos, como invejosos daquela alegria que já não podem
sentir. Os outros movem-se a
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aconchegar os casacos e continuam, talvez, pensando no rumo que hão-de dar à vida. Muitos deles não esperam qualquer comboio para os levar. Estão para ali, fingindo
esse pretexto, para enganarem os carregadores e até eles próprios, na ilusão de encontrarem um caminho que lhes prometa alguma esperança. - E onde está a esperança
para eles?! Talvez nas gargalhadas dos rapazes que os incomodam.
- Está quieto, pá!
Um dos rapazes encolhe-se a um canto, de braços a defender a cabeça, enquanto os outros dois lhe atiram socos aos flancos e procuram jeito para lhe darem chulipas.
Na fila de passageiros que vão tirar bilhete, alguns ficam distraídos com a brincadeira. Há bocejos ruidosos e corpos que se espreguiçam. A máquina de furar bilhetes
desfere o seu golpe de vez em quando, na placa de metal traquinam moedas que as mãos deformadas empurram com vontade de segurar.
- Foram só três a zero! - grita agora o rapaz que se viu livre dos outros e fugiu para o cais. - O Benfica foi p'rà Mitra! - Insiste ainda triunfante e galhofeiro.
- Acabem lá com a paródia! - resmunga um velho que se metera na bicha para comprar o semanal.
- O mestre Zé é do Benfica? - pergunta-lhe, descarado, um dos moços, puxando para os olhos a pala do boné.
- Aqui é tudo do Benfica - responde um homem esgalgado e magro, acotovelando o companheiro da frente, num piscar de olho.
Uma mulher espreita para dentro do átrio, olha para o céu e acaba por se ir sentar no banco comprido. Cambaleia um pouco, funga com ruído e aconchega-se no xaile,
pedindo licença para se sentar entre dois vagabundos. Olha para ambos e depois chega as pernas para o que lhe parece mais abonado. O homem corre-a
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com o olhar e, abanando os ombros, recosta-se a rumar uma ponta de cigarro.
Os rapazes gritam lá fora no cais. Os grupos dispersam-se à procura de lugar; os que chegam vêm mais apressados, fazendo traquinar a loiça dentro dos cestos. O maquinista
dá volta à locomotiva, de martelo em punho, e desfere pancadas que ficam a vibrar. O penacho de fumo é mais denso. O fogueiro brilha de suor, carregando achas de
lenha para a boca da fornalha.
- Pior que uma cafeteira, esta Mariana! - diz entredentes. E há naquelas palavras um misto de carícia e de enfado.
Das carruagens vem um sussurro de conversas. De vez em quando, uma voz mais alta ou o tossicar de alguém quebra a monotonia dos diálogos e o ruído das cardas nas
pedras dos cais. As luzes do comboio ainda não se acenderam. Encostado a uma das janelas, um rapaz abre um livro e procura ler com a ajuda da lâmpada da gare, que
balouça ao vento no alto de uma coluna de ferro. As letras baralham-se, os olhos doem-lhe, mas ele teima ainda, porque aquele livro é como um guia do futuro, em
cuja conquista tem de comparticipar.
Por outras carruagens, mais homens esperam a luz para abrirem os seus livros. No comboio das seis há agora muitos homens que lêem - e formam-se grupos para conversar
da vida e de livros. Alguns enervam-se com a demora, espreitando às janelas o relógio da estação, tirando desforra em comentários amargos.
- Isto só com uma bomba atómica!
- Se houvesse gente na carruagem dos "cartolas", já estava aí a luz há que tempos! Como é o comboio da ferrugem!...
- Ferrugem que lhes dá a bucha?
- bom dia, aí!
- bom dia, Manel! A patroa?...
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- Sei lá, homem. Aquilo não anda nem desanda.
- Já veio ordem do sanatório?
- Quando não for preciso, como para a companheira do Póvoa. Dois anos depois de enterrar é que chegou o papelinho.
- E os rapazes?...
- Ora! Lá estão com ela... A minha sogra teve que ir para o campo ganhar alguma coisa. Como é que eu a posso ter em casa?...
Senta-se na ponta do banco, de cabeça amarrada entre as mãos. Os companheiros calam-se, esquecidos da falta de luz. Por um instante, só se ouve o bichanar de uma
voz de rapariga. Depois as conversas generalizam-se, com os protestos dos que querem dormir.
- Isto aqui não é o Ribatejano! - sussurra uma voz rouca, num tom de graçola.
- Mas também não é "cavalhariça"! - responde agressivo um dos ensonados.
- Pois "cavalhariça" é que é mesmo.
- E "cavalhariça" de cocheiro barato - junta, a sorrir, uma voz esganiçada. - Há cavalos de luxo que se vivessem aqui, morriam de mal-estar.
- Quem se sentir cavalo... - interveio alguém com despeito.
- Pois eu sinto-me burro.
- Mas não fales nos outros, homem. Cada um pode sentir-se o que quiser.
- Vejam lá se magoei o príncipe... Ora gaita p'rà conversa! Isto há coisas...
- Quem não estiver bem vá pró jota.
- Já está a conversa atravessada. Acabem lá com isso!...
Faz-se um silêncio que aborrece os que estão entretidos com a disputa. Bichanam-se comentários entredentes, com remoques à mistura; uma gargalhada
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da rapariga fica a boiar na carruagem. Um dos companheiros do banco aproveita o momento para mexer no cesto e, à socapa, apalpa-lhe uma perna.
- Já andam por aqui mãos a mais - denuncia a moça, em voz alta.
- Talvez seja a minha - grita um homem do outro extremo.
- Eina rapazes que grande mão!
- Se a ideia de um homem tivesse braços...
- Já te tinha comido, ó Deolinda.
- E os ossos?...
- Comia-se-lhe o tutano e o resto deitava-se aos cães.
E alguns riem.
- Mas a mãozinha é que foi o elas.
- Não era uma mão...
- Uma mão é um burro de dois anos - responde a moça, já esquecida do incidente e entregue à galhofa.
- E tu eras capaz de não fazer má cara. Burro ou bezerro...
- Shui!
- Malcriados!
O rapaz que está junto dela enceta conversa para dizer que os outros são umas "bestas" e não sabem viajar ao pé de gente. Como paga, ela deixa-o encostar o joelho
e ciciar-lhe ao ouvido que as mulheres bonitas deviam estar na cama àquela hora.
O cheiro dos corpos e do tabaco não se dissolve, apesar de a porta se abrir de vez em quando, para dar passagem a alguém. Os três rapazolas surgem de um dos lados
e atravessam a carruagem numa corrida e aos gritos. Estende-se um pé qualquer, e o rapaz que fecha a fila vai cair em cima de um velho caldeireiro que dormita. O
alarido cresce. O velho agarra o rapazola
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pelo casaco, sacode-o com desespero, e atira-lhe um bofetão que faz cair o boné.
- Eu tive culpa, seu João?... Tive culpa?... - choraminga o rapaz.
Da plataforma os outros dois provocam-no com surriada.
- Vossemecê bateu-me porque sou mais novo. Se não lhe tivesse respeito...
O velho encosta a cabeça ao punho, cerrando os olhos.
- Larga-me, rapaz! Levas aí uma maquia!...
- Ainda gostava de ver isso. Julga que é só bater?... Mas quando o velhote faz um gesto para se sentar
melhor, o moço abala para a plataforma perseguido por uma chuva de cachações que lhe cai no lombo. Ele protesta; porém as suas palavras perdem-se nas gargalhadas
de toda a carruagem. Só o rapaz que espera a luz para abrir o livro não acha graça àquilo. Olha pela janela, à procura de qualquer coisa que o distraia, e vê um
garoto espreitar à porta da estação.
O menino está deslumbrado. Procura reter com o olhar inquieto todo o ambiente, para depois contar no casal aos companheiros quanto vira por ali. Repara nos carris
que brilham junto da lâmpada acesa, para logo depois se fixar na luz. Não percebe como é aquilo à primeira vista, porque não vê uma chaminé igual à do candeeiro
da sua casa. A bola de luz balouça e ele acha que o petróleo está naquele grande tubo de ferro que se prende ao chão. Se lhe dissessem que ali dentro estava um pedacinho
de sol, ele acreditava.
O ruído da locomotiva chama-lhe a atenção. Vê aquele monstro de ferro a deitar fumo, percebe o clarão da fornalha, da cor de certas nuvens vermelhas que gosta de
admirar no céu, e, quando repara que os homens sobem para aqueles grandes caixões com janelas, o
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menino ganha um certo receio. São mais negros do que a noite e aquilo talvez não seja o comboio de que lhe falaram. "Será ali a cadeia, para onde a mãe lhe disse
que vão os homens maus?... E também os bons, no falar do ti Zé Melecas que emendou a mãe quando ela lhe contou para que servia a cadeia? A fornalha será o inferno,
onde são queimadas as pessoas que têm pecados?"
O menino volta-se para dentro da estação, procurando o pai na fila de gente que está defronte da janelinha do homem de boné. Vai para falar, mas repara que aquele
boné tem umas fitinhas que brilham como os carris do comboio. Agora percebe, sim. O comboio anda por cima de uma fita que tem uma luz branca lá dentro e se mete
pela escuridão até casa do padrinho que ele vai hoje visitar.
Ali também há bolas de luz como a que está lá fora; só não tem o tubo grande para o petróleo e fica intrigado sem saber o que há-de pensar.
- Pai, a luz...
- Está quieto.
Resolve-se a ir para o lado dos bancos e repara nos homens e na mulher que estão sentados. Sorri para um velho, primeiro com receio, e depois com a boca inteira
e com os olhos. Aproxima-se devagar e aponta as bolas de luz.
- Onde está o "pitrol"?
O velho acaricia-lhe o rosto, mostrando as gengivas desdentadas, numa gargalhada que o faz balouçar os ombros.
- Aquilo é electricidade.
- E a luz por onde vem?...
- Pios fios...
O menino também ri, porque lhe parece que o velhote está a gracejar. A mulher mete-se na conversa
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e puxa-o para si, esquecendo-se do homem que está encostado ao seu corpo. Tira-lhe o boné da cabeça, num enlevo que os vagabundos não compreendem
- nem talvez alguém no mundo - e quando lhe vê os caracóis castanhos, passa-lhe os dedos, abstrai o olhar turvado pelo vinho, meneia a cabeça e esboça um sorriso,
para logo depois ficar com uma expressão dolorosa na boca cansada. E a mão tacteia, afaga aqueles caracóis, lembrando-lhe um outro menino que desapareceu da sua
vida. "Talvez fosse melhor para ele... com um mundo assim... Ah, mas para ela, para ela...."
- Como te chamas?
O menino não percebe o enlevo da mulher bêbeda, porque pensa no comboio, nas bolas de luz e na fita brilhante do boné daquele homem que vende os bilhetes à janelinha
de rede.
- Onde está o "pitrol"?...
- Não tem, filho.
A voz magoada da mulher faz o menino abrir os olhos e observá-la com atenção. Sente qualquer coisa que não sabe explicar, aproxima-se mais, agarrando-lhe na mão
abandonada.
- E como faz luz?...
- Nunca viste luz desta?
O rapazito abana a cabeça, sentindo vontade de a encostar naquele peito; sorri-lhe depois, com o pressentimento de que ela precisa do seu sorriso.
- É luz eléctrica.
- Eléctrica?...
- Sim. Vem nos fios de muito longe...
- Naqueles que estão no chão, lá fora?
- Não, vem pelo ar, de muito longe!...
- De muito longe?
- Sim, de muito longe.
Fica intrigado, sem compreender, mas não insiste.
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A mulher agarra-lhe no queixo e fala para o velhote que está a seu lado, deixando as palavras correr num murmúrio.
- O meu menino também tinha caracóis. Era assim como este, bonito! Tão bonito!
E sorri num encantamento que ninguém sabe entender, vidrando-se-lhe os olhos.
- Já tiveste um filho?... Tu um filho?...
O velhote não sente que a mulher se transformou e continua a gracejar.
- Sabias quem era o pai?
- Era meu filho. Mesmo que não soubesse...
- Falas verdade?... Se falas verdade ainda bem que te morreu. Querias que fizesse esta vida?... Devíamos todos cantar pelos que morrem. Cantar e bater palmas.
- Talvez...
- Talvez o quê?...
O menino não percebe o que as palavras significam, mas sente compaixão pela mulher. Se não fosse o desejo de ir ver o comboio e andar dentro dele, para visitar o
padrinho, não se importaria de ficar ali mais tempo. Não entende as palavras, mas gosta de as ouvir; elas falam-lhe de qualquer coisa que o comove sem saber porquê.
O pai chama-o, acenando-lhe a cabeça, já próximo da porta que se abre para a gare. Ele desprende-se com dificuldade daquelas mãos, sorri para a mulher, mais e mais,
até todo o rosto se iluminar, e dá um beijo nos dedos que o acarinham.
- O meu nome é Luís.
E sente-se envergonhado do seu à-vontade, correndo para junto do pai, com desejos de se voltar só uma vez e dizer adeus à mulher e ao velho. Fica, porém, com a impressão
de que eles troçam do beijo e do seu nome, e foge para o cais, confundido de enleamento,
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para de lá volver os olhos; mas já os não vê, porque outras pessoas atravessam a porta e tapam-lhe o átrio.
- Mas o comboio?...
- Onde, pai?...
Procura na noite os carros lindos que não precisam de cavalos nem de bois para os puxar, e só vê os caixões sombrios, para onde sobem os homens de cestos na mão.
- Ali, homem.
- Aquilo?... É aquilo, pai?...
- Pois. Não gostas?...
O menino fica calado e prefere olhar para o brilho dos carris que traçam caminho nas trevas. Repara depois num homem que está a seu lado de lanterna na mão e aproxima-se
para ver a luz. "Onde estarão os tais fios que vêm de longe?... Será aquela a pitrol?..." O condutor repara na sua curiosidade, levanta-lhe a pala do boné e dá-lhe
um belisco na face.
- Quantos anos tens?
- Não sabes responder? - incita-o o pai. - És mesmo parvo.
- Deixe-o lá. Aí sete anos, talvez...
- É verdade, sete anos. "Feze-os" pelos Reis.
- É da idade do marquês que lá tenho em casa. O meu está mais magrito. vou vê-lo hoje.
Tem um olhar de ternura para o menino e abala, atravessando o caminho de chulipas, a balouçar a lanterna na mão.
- Este homem é do comboio?...
- Ganhaste fala agora, não?... Tanta falaça em casa, para aqui te fazeres parvo. Sempre quero ver com o padrinho...
De calções compridos a taparem-lhe os joelhos, meias pretas até acima e botas grossas, desajeitado num casaco de cotim velho, o menino amua e vai pela mão do pai,
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tão triste que nem repara que no céu ainda há uma estrela.
Galos cantam ao longe, mais decididos com a aproximação da manhã. O menino lembra-se do seu casal, escondido por detrás dos montes, de muitos montes que calcorreou
durante a noite; e sente saudades dos companheiros. Leva muito que lhes contar; só tem pena que o comboio não tenha carros bonitos com flores a enfeitá-los e muitas
cores às riscas, como ele o sonhara durante duas noites, depois de o pai lhe dizer que iam fazer uma viagem. "Esses, sim, é que eram lindos. Carros maiores que o
do lavrador, onde o pai e a mãe trabalhavam, com rodas do tamanho das pedras da azenha, todas verdes e depois com traços de tantas cores que nenhuma era igual. E
flores encarnadas nas janelas e no telhado..."
- Aquilo é que é o comboio, pai?...
- Então o que "haverá" de ser?...
Naquele instante as luzes acendem-se - o menino arregala os olhos e sorri, lembrando-se que no seu sonho não havia luzes. "com aquilo já o comboio lhe parecia outra
coisa. Era bonito... bonito, sim. Tinha um homem com lanterna na mão, outro com luz branca nas fitas do boné, um carro que deitava fumo como as casas dos montes
e uma fornalha igual ao forno de cozer pão. E agora tudo aceso, como se o Sol nascesse dentro dos caixões sombrios. Se tivesse as cores e as riscas..."
O pai ajuda-o a subir, pegando-lhe no braço, e depois vai buscar o cabaz com as lembranças que levam para o padrinho. Ele espreita, receoso, pela abertura da porta,
como temendo que o descubram de dentro, e vê muitos homens sentados - uns dormitando, outros de conversa e a fumar, alguns de olhos postos no chão, com um modo triste,
quando em seu entender toda
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aquela gente devia rir, bater palmas, talvez até levar música como se fosse para a festa de Arruda e nesse dia esquecesse as suas mágoas.
- Entra, anda.
Tenta penetrar pela abertura da porta, metendo-se de lado, mas já o pai pegara no fecho e a fizera correr. Então dá dois passos para dentro e pára, confundido com
as vozes que falam, os olhos que o fixam e as mãos que gesticulam. O pai empurra-o com o cabaz, indicando-lhe que siga; ele volta-se para ver se percebe o que deve
fazer sentindo-se corar de vergonha.
- Vamos sentar, anda.
Corre o olhar por toda a carruagem e acha que o pai está a dizer uma tolice. "Nunca pensara que podia ir ali tanto povo, quando mais descobrir um sítio para se sentar!"
- Olha, aqui - diz um homem para o pai. - O rapaz talvez possa ir ao colo.
- E ele paga?
- Quantos anos tem?
- Sete.
- Diga que tem cinco. Senão fazem-no "alancar" com meio bilhete.
- E eles acreditam?
- Se o revisor começar com partes, discuta e não vá nisso. A Companhia não precisa.
Mais dois passageiros se metem na conversa para falarem da Companhia e de bilhetes. Um deles põe-se a contar um caso que lhe sucedera numa viagem para Lisboa,
- Fazia o meu António seis anos e quis levá-lo ao jardim da bicharada. No tempo em que a gente ainda podia levar a família a passear. Vai o revisor pergunta...
No banco ao lado, quatro homens jogam as cartas e pegam-se em discussão por causa do valete de copas.
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Um deles, de barba ruiva e olhos chorosos, esbraceja com uma carta na mão, atirando-a depois para cima da maleta que lhes serve de mesa.
- Comigo nunca mais jogas tu. Não é pela bola, mas só para não te armares em vivaço. Julgas que os outros nasceram ontem?...
- És mais velho que eu...
- Mais velho e mais sério - responde-lhe o ruivo, a cuspir as palavras.
- Shui! - diz uma voz.
- Manda lá calar a tua prima.
- Mais sério o quê, seu Manei? O que quer vossemecê dizer com isso?...
- Sim, nunca fui...
- O quê, diga, homem. Ladrão?...
- Talvez pior.
Fixa-o com desprezo e ódio, e atira-lhe o insulto, como se o esbofeteasse.
- Amarelo!
O outro fica lívido, pretende ainda defender-se, mas de todos os lados vêm chufas que o hostilizam. A rapariga também ajuda e ele chama-lhe galdéria.
- Tão galdéria como a sua mãe. Ora o trongo, anh?... Amarelo!
O menino não percebe a discussão; acha, porém, que o homem a quem chamam amarelo não devia zangar-se. Ele entende que é uma cor bonita, embora goste mais de verde
e de encarnado.
- É por isso mesmo que já chegaste a contramestre. Por tua culpa foram dentro dez companheiros.
- Vocês dão confiança a gajos que sopram e depois... Comigo não joga ele nem que traga oiro nas mãos.
- Cale-se lá, seu Manel. Vossemecê sabe bem que
eu nunca...
- Só te peço é que não me lixes a mim. Porque
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se me lixas, perdes o cantar. Juro-te pelos cinco que lá tenho em casa.
Lá fora soa o sinal da partida.
- Vai atrasado - diz uma voz.
- Começa cedo...
A locomotiva apita. O maquinista abre o vapor, espreita a linha pelo óculo de vidro, e a marcha começa. O fogueiro ergue-se um pouco para dar folga aos rins, apoia
a mão no punho da pá e limpa com os dedos da direita as bagas de suor que lhe correm na testa.
- Esta Mariana!. É mesmo como uma mulher... Teimosa e fingida como não há outra.
O menino levanta a cabeça, empertigando-se nas pernas do pai, e olha as luzes da estação. Depois ficam as trevas e o reflexo da lâmpada no vidro da janela. Um homem
percebe a sua curiosidade, prontificando-se a levá-lo nas pernas.
- Obrigado, não senhor - diz o pai. - Ele já é pesado.
- Deixe lá vir a criança.
O menino repara no homem e gosta daquela cara. Mal se lhe vê a pele, debaixo da barba espessa e negra, mas tem uns olhos meigos que lhe agradam e lhe percorrem o
corpo numa carícia branda. As suas grandes mãos cingem-no pelo peito e sorri-lhe num agradecimento, antes de olhar pela janela.
- Nunca andou de comboio; é a primeira vez. Por isso vai assim - explica o pai, puxando a carapinha do barrete para a testa.
- E ainda bem. Olha que se tivesse de andar aqui todos os dias como a gente, já nem podia com esta sucata.
- Gostas de andar de comboio?
Acena a cabeça, mas fica absorto, pensando no comboio que sonhara. Depois da -ceia, fora logo para
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a cama, querendo estar mais só com aquela ideia de tanto tempo. A espertina tomara-lhe conta dos olhos; não conseguira dormir um instante, com vontade de chamar
o pai, não fossem perder o "carro" e lá se ia aquela oportunidade. Todos os ruídos lhe anunciavam a manhã; quando o galo cantara, esquecera-se de que também dava
sinal à meia-noite e ficara inquieto, sentado na cama, à espera que se levantassem. Por fim não pudera calar-se por mais tempo.
- Pai!... Já são horas!
- O quê, rapaz?
- Vamos embora.
- É muito cedo.
E mãe rira-se daqueles cuidados.
- Dorme, anda. O comboio não vai sem ti. Mesmo assim não fora capaz de pregar olho toda
a noite. Fantasiara o comboio de mil maneiras, apurando-o sempre, juntando-lhe as mais belas coisas que conhecia, para que fosse realmente um lindo comboio. Só não
pensara nas luzes e no apito; no resto, porém, o seu comboio era mais bonito do que aquele em que viajava.
Vai agora de cabeça encostada à janela, pensando no seu sonho, e contrariado com a escuridão que lhe não deixa ver as formas vagas que se escapam na noite.
O silvo da máquina cobre os ruídos da carruagem e magoa o silêncio dos campos. O maquinista vigia pelo óculo, atento aos sinais luminosos que deslumbram o menino,
quando os vê fugir dos seus olhos. Julga que são estrelas desprendidas do céu e com uma cor que ele nunca vira.
- Estrelas verdes, pai, olhe!
Riem-se todos os que o ouvem, menos o homem que o leva nos joelhos e lhe explica que são faróis para o comboio seguir a marcha.
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- Há outros vermelhos...
- Vermelhos? Que cor é?
- Encarnado. Mas vermelho é mais bonito. Então o menino volta-se para o pai e, como o vê
distraído, chama-lhe a atenção.
- Aquelas flores encarnadas lá de casa são vermelhas. É mais bonito...
- É o que tu quiseres, homem.
Agora ele fica com um pretexto para espreitar a noite - quer ver uma luz vermelha, para ter a certeza que é mesmo encarnada.
Na carruagem começam a levantar-se alguns passageiros que se empurram nas portas. A rapariga fica para trás, entretida com a conversa do companheiro do banco. Olha
para o homem que está à sua frente, lembrando-se do apalpão na perna, e fixa-o com curiosidade. O homem desvia os olhos, fingindo-se interessado com a conversa do
outro banco, onde quatro homens discutem o "balão" da fábrica de Sacavém.
- Foram vinte e cinco ao ar. E p'rà semana mais cinquenta, dizem.
- A gente escapou do primeiro, mas do segundo...
- Eu é que não fico; não lambo as botas ao encarregado nem por nada.
- Estás como eu. Aquele lanzudo...
- O pior é a frangalhada - interveio um homenzito muito encolhido no seu fato de ganga, de rosto amarelento e chupado, com um tique nervoso na boca que a faz mover
de um lado para o outro, como se estivesse a mastigar.
- Não estás pior que eu, não.
- Mas aquilo dá dinheiro!
- Para os administradores. E tanto tiraram...
O rapaz que vai entretido a ler levanta os olhos e faz um sorriso amargo.
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- Vocês não percebem o que é?... O filho do capitalista principal casou com uma filha do dono da fábrica do Seixal.
- E então?!... Até deviam continuar mais com esta.
- Nem sabem ter dinheiro... - gemeu o magrizelas.
- Pois isso é que eles sabem e cada vez melhor. Acaba a concorrência, os preços vão subir, fazem mais trabalho no Seixal com a mesma gente e aqui há "balão". Ganham
por dois carrinhos e o pessoal daqui que governe a vida por outro lado ou que coma as guelras...
Os outros acenam a cabeça.
- Agora oiço eu - diz um homem fanhoso e de bigode rebelde.
- Mas cá na minha...
O comboio pára e há atropelos para a saída. De fora há gritos, corre-se, pragueja-se e há risos. Novos passageiros entram de roldão e empurram-se para a conquista
do lugar.
- Eh ranhoso!
- Não chores, pá - chalaceia um dos homens que embarcara em Vila Franca.
- Olha o caldeira negra!
- E se calhar vocês choram por não terem caldeira nenhuma.
- Nem um barco quanto mais caldeira -, diz outro, muito mazombo, sorrindo-se só com os olhitos perdidos no matagal das sobrancelhas.
O menino está atordoado com o barulho e não consegue reter imagens nem palavras. Tudo lhe parece confuso ali dentro, como se os homens fossem tocados de loucura
e corressem na carruagem sem pretexto. Em certo momento tem vontade de gritar com eles, ir para o corredor e dar empurrões, praguejar e dizer gracejos.
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"Terá sucedido alguma desgraça ou houve qualquer coisa que lhe passou e dá vontade de rir?" Esquece-se de procurar a luz vermelha na escuridão e, a pouco e pouco,
volta a encontrar as caras conhecidas e as mesmas conversas.
A noite tão escura recorda-lhe a cantiga com que a mãe o embalava, sempre que o sono se fazia rogado.
Na noite vão de mansinho Cinco cavaleiros valentes, Em cinco cavalos negros, com suas espadas d'oiro...
E a ponta das espadas São o bico das estrelas Que se prendem lá no céu E contrapiscam meninas Que as namoram toda a noite E toda a noite não dormem.
E os cinco cavalos negros...
Lá à frente a máquina apita, os freios gemem, a carruagem balouça num esticão e a marcha continua.
O condutor recolhe a lanterna do sinal, indo sentar-se num caixote do vagão. Aperta no peito as bandas do sobretudo a desfiar-se, começando a enrolar um cigarro.
A cabeça pende-lhe de sono e esquece-se de acender o tição, depois de o entalar entre os beiços. Logo se ergue num rompante, como se fosse iniciar qualquer tarefa
com entusiasmo, mas dá umas passadas no espaço que lhe fica livre, espreguiça-se e boceja com ruído. Vai espreitar à porta, reparando que no horizonte começa a pintar-se
um vago clarão. Lembra-se que a folga se aproxima, após seis dias de horários
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sem regra, dormindo nas estações de destino as horas escassas que lhe restam do trabalho e das idas às tabernas com os camaradas. Longe de casa torna-se outro homem,
fraco a quantas tentações se lhe oferecem. Tem falta da presença dos filhos e daquele ambiente de ternura que lhe toca o coração e o faz mais calmo. Recorda-se,
então, do rapazito que lhe foi espreitar a lanterna, e volta a sentar-se no caixote, apoiando os cotovelos nas coxas.
O silvo do comboio fende a quietude da madrugada. O vento traz já o bafo do dia, embora naquele plaino corra e sopre desenfreado. É o mesmo vento que fecundou as
éguas da lezíria e faz gemer os búzios dos moinhos no coruto dos montes. O comboio solavanca-se nos carris, como se arfasse de cansaço com aquele peso que o faz
guinchar; a marcha abranda quando se aproxima de uma colina, onde se pintalgam luzes que tremelicam. O menino fica deslumbrado com aquele luzeiro e chama a atenção
do pai. Uma voz grita: Marrocos! O jogo da bisca continua com outro parceiro; as cartas passam nos dedos lambidos e relambidos, atiradas com ímpeto para a maleta
que serve de mesa.
- Aguenta lá essa!
- É a última que fazes. Depois há aqui metralha...
- Garganta!
O magrizelas cospe entre as pernas, faz uma careta, torcendo-se no banco, e fica mais triste, sem se contaminar pelo entusiasmo do parceiro.
Quando o comboio pára, repete-se o burburinho da outra estação. Há zangas e encontrões, pisadelas e olhares de desafio. Uma mulherzita muito mirrada que entrara
em Alhandra senta-se no primeiro lugar vago e esmaga uma lágrima na ponta dos dedos. Tem os olhos cansados - talvez do trabalho ou de chorar -, uma ruga
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muito funda na testa e na boca sem viço, com pregas de desalento. Um rapaz aproxima-se mais, debruça-se sobre ela e continua a conversa que tinham interrompido.
- Sabe quando ele sai?
- Parece que vai ser julgado. Ele já está afeito àquilo e nunca o vejo triste. Mas eu... Não é pela caminhada nem p'las horas que se está ao tempo. É por vê-lo ali
dentro...
- Aquilo fez-se para os homens, tia Ana.
- Mas não para homens como ele.
- Há-de chegar esse dia!
- É o que ele me diz; fala nisso como se fosse já amanhã.. E eu quando o vejo assim contente, também acredito.
E a mulher desfaz com um sorriso as pregas de desalento na boca sem viço, ganhando no olhar uma luz de esperança.
- Deus queira!
- Hão-de querer os homens, tia Ana! Os homens como ele...
A mulher passa um sinal para o rapaz, indicando-lhe com a cabeça um homem que os vigia. O rapaz encolhe os ombros e muda de conversa.
O comboio estuga a marcha, como se o vento o arrastasse. Os campos acordam, e na estrada a luz de uns faróis roda numa curva, lambendo por um momento um morro de
areia. O maquinista abre mais o vapor, pedindo um cigarro ao fogueiro que se encostou por um instante de pá na mão, e em cujo rosto mascarrado só brilham os olhos
e os dentes. Acendem os cigarros e vão conversando, enquanto o maquinista continua sempre atento aos sinais da linha.
- Se um dia deixo a Mariana e passo a segunda classe!
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- Eu desejo isso por causa da "massa". Mas levo saudades deste cangalho. A gente habitua-se, conhece-lhe as manhas...
- É como uma mulher... Uma mulher que engana.
- E um homem fica com vontade de a vencer, toma-lhe raiva, mas fica sempre até se apoderar dela.
- Julgo que a conheço como os meus dedos e está sempre a fazer-me partidas.
Ambos vagueiam o olhar pela locomotiva com uma expressão de carinho. O fogueiro agarra um pedaço de desperdício, passando-o pelo manómetro, no jeito de uma festa.
- É como se fosse a nossa casa. E mesmo que se passe para uma melhor, um homem ainda tem saudades da outra.
- Ficam sempre coisas!
- A mim... a melhor parte da minha vida. A melhor parte...
Levanta a pala do boné, debruça-se no monte de carvão e deita mais umas pazadas para a fornalha que lhe calcina o rosto e as mãos. O maquinista abre a válvula de
segurança - um silvo repercute-se nos campos.
O menino ouve-o e estremece, parecendo-lhe um grito humano. Repara depois que, se se afastar do vidro da janela, vê o seu rosto lá reflectido e começa a fazer caretas.
O homem que o leva nos joelhos deixa-o descair um pouco, mas logo que vê o revisor puxa-o para si, segredando-lhe para que se encolha. O menino não percebe, continuando
a fazer caretas para o vidro.
- Os seus bilhetes!
O pai do garoto fica trémulo, rebusca o seu nos bolsos do colete, procura nos das calças e não encontra.
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- Donde vem?
- De Vila Franca.
- Passo bilhete?...
- Já comprou - diz um dos companheiros do banco.
- Mas se não aparecer...
- Procure no barrete, homem - lembra-lhe o velhote de voz rouca.
Ele vira o carapuço, mete as mãos até ao fundo e sorri ainda embaraçado.
- Obrigado!
Depois entrega o bilhete, mirando o filho de soslaio, como se receasse denunciá-lo com um olhar franco.
- E o rapaz?
- O rapaz não tem; fez cinco anos.
- Cinco anos?... Está muito crescido para isso.
- Pois é a idade dele.
Logo lhe parece que precisa de dizer mais alguma coisa para se justificar.
- O meu António ainda era mais tamanhão. É de família!...
O revisor olha o menino com desconfiança, passando depois a outro banco. O velhote baixa-se, diz qualquer coisa para o camponês e disfarça num arranco de tosse a
sua vontade de rir.
- Falta muito para Santa Iria?
- Só uma paragem e depois é logo.
Os homens que entraram em Alverca discutem com os de Alhandra um resultado de futebol. Falam em jogadores comprados, atribuem culpas ao árbitro, dizem-se cegos e
anjinhos, enquanto o rapaz do livro vai explicando aos companheiros de banco por que motivo o nazismo ainda sobrevive.
- Isto agora é tudo bola! - remorde o velho caldeireiro já cansado da gritaria dos que discutem. - Bola
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e coice! No meu tempo falava-se de toiros e de fado. Agora...
- Agora em que fala vossemecê? - pergunta-lhe, de carinha na água, um rapazola trigueiro, encostado à porta com as mãos afundadas nos bolsos das calças.
- Falo da paparoca. Nem me importam os toiros nem o fado quanto mais a bola. Faço campeonato com a féria e o mercado negro.
- E está sempre off-side, não?
- Vocês é que estão fora de jogo. Eu cá vou fazendo o que posso...
E martela as últimas palavras, fixando bem o olhar no rapazola.
- Já lhe faltam as pernas.
- Mas sobeja-me a alma.
O menino volta-se para trás, porque o comboio vai afrouxando e ele quer ver o movimento dos passageiros. Tem pena de não ir nas janelas do outro lado, pois deve
ser engraçado assistir aos empurrões e aos gritos daquela gente. Os freios gemem, a carruagem dá dois solavancos, como se fosse a desengatar-se, e logo a balbúrdia
começa, agora também com vozes de mulher e choros de criança. No meio de toda a barafunda, o menino fixa-se naquele choro, ficando inquieto, com vontade de ir ajudar
o seu camarada. Um homem entra apopléctico pela porta, sacudindo os braços e bradando contra os que se aglomeram na plataforma e não deixam entrar nem sair.
- Querem ir ao relento e os outros que se lixem. Data de camelos!
- Camelos, não, anh? - responde uma voz de fora. Cuidado com essa aldraba!
- Cuidado o quê?!... Nunca tive medo de papões nem de...
E o homem faz menção de voltar atrás, mas uma
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mulher que entrara com o filho ao colo pega-lhe no braço e roga-lhe com os olhos que não vá. Entra mais gente e eles têm de se afastar para o meio do corredor, até
juntarem fila com os que subiram pelo outro lado. As discussões abrandam; toda a gente se habitua aos apertos - até a criança deixa de chorar, levantando os braços
para a lâmpada que lhe fica por cima da cabeça. Na gare soa um apito; o silvo do comboio responde-lhe lá adiante e a marcha prossegue mais ronceira, como se o comboio
sentisse o peso daquele povoléu que se comprime nos caixões imundos e mais parece uma massa humana a caldear-se num alto-forno donde sairão os homens para o futuro.
O menino olha pela janela mais uma vez, e resolve voltar-se para dentro, porque nem as luzes vermelhas surgem no caminho nem o sol dá sinais de aparecer. Ele gostava
de ver o sol ali do comboio, para o comparar ao outro que se levanta por detrás de uma lomba, mesmo à frente do casaleco onde mora, e pinta a vinha e as árvores
de uma cor que o menino gosta, mas não sabe comparar a qualquer das que conhece. "Como seria o sol no comboio?... E se tivesse medo do barulho e dos apitos?... O
sol também terá medo?... Sim, no seu casal tudo se aquieta para ele aparecer, enquanto ali os homens vão zangados uns com os outros e gritam. E se ali fosse sempre
noite?..."
- Eh pá! Lá na Póvoa as chaminés já deitam fumo?
- Até tu o deitavas pelas "pontas", se lá morasses.
- Só se fosse casado com a tua irmã.
- E então!... Era cunhado de um malesso...
- Vai marrar com o comboio, pá! Larga-me da mão!
O menino começa a divertir-se com os diálogos, deixando-se escorregar das pernas do homem que o leva. O pai levanta-se para puxar o cesto e dá o lugar
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à mulher que tem o menino ao colo. Ele parece não gostar da mudança, porque choraminga, querendo atirar-se para a lâmpada que lhe fica mais distante; a mãe bem lhe
dá palmadinhas para o fazer calar, mas ele teima e o pai pega-lhe para o erguer nos braços. Então, o menino sorri e muitos homens deixam de estar sombrios para sorrirem
com ele.
Sozinho, no seu vagão, o condutor conta as estações que faltam para chegar ao destino; o tempo pesa-lhe e os minutos parecem desdobrar-se em longos dias. Sente-se
longe de casa, embora o comboio rasgue a madrugada para o levar depressa. Ele, porém, entende que o comboio nunca se deslocou tão devagar, fazendo-lhe pirraça com
a sua ronceirice. "Quando acabará aquilo?! Os filhos irão recebê-lo à porta com palmas e gritos, contando-lhe cada um as suas queixas dos irmãos, e perguntando-lhe
se ficará muitos dias junto deles." E lembra-se mais uma vez do rapazito que estendera a mão para a lanterna.
Lá à frente, o fogueiro atira lenha pela boca da fornalha, enquanto o maquinista cantarola, vigiando a linha.
- Vamos atrasados seis minutos. No Rossio temos
cegarrega, com certeza.
- Para lenha e pó de carvão ainda vamos muito adiantados. Estou aqui de todo! Que venham para cá e puxem por ela...
O maquinista não lhe responde para tomar atenção à paragem que se aproxima. Repara na fábrica de açúcar, acciona os travões e o comboio vai afrouxando, depois de
atirar um silvo que fica preso no ar, por instantes. A luz do apeadeiro parece um vaga-lume no meio da noite. A poucos metros passam os cabos de alta tensão, mas
a companhia entende que a despesa não é merecida com uma paragem onde só há passageiros de terceira. Nem um casinhoto para abrigo, quanto mais
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luzes vivas para iluminarem os cais. É bom que haja trevas pelos campos, embora a electricidade lhes passe por cima e só a não ignorem, num instante, os rapazes
que trepam aos postes e estrebucham fulminados, quando tocam os fios.
Dentro da carruagem, onde tudo se discute e comenta, e alguns homens tentam dormir, o camponês vai furando com o cesto, por entre os que travancam a passagem, distribuindo
desculpas e encontrões. O menino segue-o com saudades de não ir no comboio até ao fim da viagem, para saber se o sol teria medo ou se aparecerá como na lomba defronte
do seu casal. Vai reparando nas caras, atenta nas conversas, tropeça nos pés, agarra-se às abas de um casaco de ganga e lá continua, com o pai já distante, perto
da porta. Aquela massa de gente fecha-se constantemente, e ele esgueira-se aqui, fura acolá, para logo desanimar bloqueado e pedir depois que o deixem passar. Agora
já está junto da porta; mas os que entram, querem atirá-lo para dentro, e ele empurra com as mãozitas, deixa cair o boné e fica a hesitar, se deve sair ou apanhá-lo.
De fora, a voz do pai chama-o. Ele responde, já com receio, tomado por um grande desejo de chorar.
- Deixem passar o rapaz! - grita um homem da porta.
O menino agarra no boné, escapa-se por aquela abertura e chega à plataforma. Olha para fora e não vê o pai; chama e a voz que lhe responde parece perdida nas trevas.
Tropeça ainda num cesto e deseja poder voar para fora daquele labirinto de pernas e de gente amontoada. Encosta-se às grades de ferro, a choramingar. Uma mulher
dá-lhe a mão e vai assim até à porta do estribo, radiante com a ajuda.
Lá adiante a locomotiva resfolega, expele um jacto de vapor, depois um silvo de angústia, e a marcha
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recomeça, enquanto o condutor recolhe a lanterna dos sinais, lembrando-se dos filhos. O menino vê a terra fugir, não sabendo se é o comboio que caminha, se as coisas
que abalam em correria. Vê o pai no meio do cais a acenar-lhe os braços e atira-se para ele, como se pudesse vencer aquele espaço, voando-lhe para o peito
como uma ave.
Há ainda um braço que o procura segurar, um grito de mulher e umas trevas que rodopiam, correndo sempre na noite.
Cinco cavaleiros valentes... Na noite vão de mansinho,
Logo depois é uma pancada na cabeça, uma confusão de ferros e vozes, a luz dos carris fugindo, um desejo de chorar e uma inconsciência que o leva para longe de tudo
aquilo, tão distante agora que ele se não lembra da luz vermelha nem do sol, nem dos rostos dos homens que conversavam na carruagem e agora espreitam à janela, interrogando
a escuridão.
Todo o comboio é um único grito.
O pai fica tolhido de angústia, sem poder dar um passo, de olhos abertos que querem ganhar mãos, para o irem buscar entre as rodas que correm nos carris. Só sabe
contorcer-se, arrancar o barrete da cabeça e ficar com ele entre os dedos, amarfanhando-o numa impotência que nem encontra palavras para se exprimir. Tem na garganta
súplicas e maldições, mas só pode rouquejar soluços abafados.
O condutor espreita à porta do seu vagão, vai para buscar a lanterna, mas o comboio pára. De todos os lados sai gente que corre.
- Está morto com certeza.
O condutor ouve aquela sentença e fica tolhido na
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carruagem, a olhar a lanterna. "Fora ele que dera o sinal de marcha. E agora?!... Que teria sucedido?!"
O cais está cheio de uma massa que se agita para um lado e para o outro, como se a aragem da manhã a levasse e trouxesse num jogo. Há mulheres que gritam e homens
que imprecam. Espreitam os mais decididos por entre as rodas do comboio, mas ninguém vê o menino.
- Nem sinal!
- Ficou esmigalhado com certeza!
- Esmigalhado, sim!
A nova vai de boca em boca, por aquela amálgama de povo, entra nas carruagens, vai ao vagão e chega à máquina. Uma mulher perde os sentidos e outra chora, em gritos
que mais parecem ganidos.
- Uma luz! Uma luz!
- Tragam uma luz!
O pai isolado, incapaz de se mover, torce o barrete nas mãos, pensando que gostaria de fazer o mesmo ao comboio.
- Meu rico filho! Meu rico menino!
Dois homens vão para o consolar, mas as palavras ficam em gestos. E o pai compreende-os.
- Uma luz!
- Ouvi aqui um gemido! Aqui!
- Aqui! Aqui!
- Está aqui! Uma luz!
O menino não vê os homens que o querem agarrar, nem ouve, sequer, o seu gemido. Sente só muito ao longe um apito que brada na noite e um calor que o acaricia - talvez
o Sol tenha já nascido e queira vir aquecê-lo à janela do comboio. E vêm luzes vermelhas, muitas luzes, e verdes também... amarelas...
Um operário levanta-o de cima das chulipas e entrega-o a outro homem.
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- Ainda respira!
- O menino ainda respira!
- Está vivo ainda!
- Vivo o quê? Aquilo ficou num farrapo.
- Tem a cabeça numa posta de sangue!
- A roda cortou-lhe a cabeça rente ao pescoço!
- É melhor levá-lo para o hospital!
- Para o hospital, sim!
- Qual hospital! Já não há quem o salve!
- Meu rico menino!
O pai aperta-o no peito, beija-lhe o rosto sujo de sangue e os caracóis da cabecita pendida. Toda a vida do filho lhe passa pela imaginação. Vê-o a correr nos campos,
galgar às árvores em busca de ninhos e de frutos, a gralhar pelos carreiros com os outros do seu tamanho... A fazer campanas e a deslizar com elas pelo declive do
casal onde moram, a bater palmas aos bois que passavam pela estrada, a assobiar aos melros e a atirar pedras aos pardais... Seu rico filho! "Pai, são horas!... O
comboio pode abalar! Vista-se depressa!"
E o menino fica nos seus braços de olhos fechados, acompanhando um sonho que o leva para longe, atrás do sol que vai a fugir com medo do comboio.
- Raios os partam!
- Malandros! É para isto que um homem tem os filhos?...
- Se fosse meu, trincava-te as goelas! Bandido!... E aquela massa vai-se movendo para junto do vagão,
e os gritos crescem, multiplicam-se, correm na noite e voltam a repetir-se; desdobram-se e depois são uníssono, num clamor que afugenta a última estrela que ainda
brilha no céu. O condutor espreita atemorizado, para falar àquela gente, mas a emoção, e logo o medo, se lhe apoderam da boca.
- Estavas com pressa, bêbedo?!
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- Filho dum corno!
- Até te comia a alma, malandro!
- Vêm para aqui cheios de aguardente!
- Vem cá para baixo, lanzudo! Bandido!
- Estavas com pressa, anh?...
O condutor esbraceja lá de cima, treme perante aquela massa que se levanta defronte do vagão e não percebe como o não compreendem. Tenta ainda falar, mas dá um grito
e cai de borco em cima de uma saca. Mais duas pedras batem na parede de madeira do fundo e um homem salta para cima, pega-lhe nos braços, sacode-o e atira-lhe um
pontapé.
- Cão danado!
- Malandro!
- O homem está ferido! - grita uma voz.
- Precisava era morto!
O maquinista agarra na lanterna, ergue-lhe a cabeça e vê um fio de sangue a correr-lhe na barba ruiva. O pai traz o menino nos braços e sobe com ele para o vagão.
Mira à sua volta, num olhar vago, e não sabe odiar o condutor que os outros acusam em gritos. Ouve-lhe os gemidos e babuja o rosto do filho, encharcando a boca de
sangue.
- Não tive a culpa! Não tive, não! Julguei que todos tinham descido... Não se via nada! Não há luz...
Os passageiros voltam para a carruagem. Lá à frente a máquina apita, move-se primeiro a custo mas depois ganha alento e solavanca-se para vencer a distância. O seu
silvo soa triste nas trevas e talvez vá cravar-se no coração da mãe que lá longe, nos montes, se sorri de ternura, lembrando-se da alegria do seu menino.
- Não há luz!... Eu não via...
A poucos metros de distância, os cabos de alta tensão, prenhes de energia, passam nos braços robustos dos postes de ferro e balouçam levemente com o soprar do vento.
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O CRAVO

No pátio todos pensaram que eu estava bêbedo quando fiz aquela zaragata por causa da lata dos cravos; mas nessa tarde só bebera um copo de vinho na taberna do Cão
Pelado e não era isso que me ia transtornar. Sou um homem de poucas bebidas e de poucas falas. Se nos dias em que não trabalho me meto na taberna, é só porque não
sei onde passar o tempo e por ali sempre se arranja conversa para um homem se distrair. É claro que "empino" o meu copo; mas poucas vezes terei estado mais são como
dessa vez.
Nalguns momentos penso que os cravos não valiam tamanho chinfrim... Pus os rapazes fora da barraca e bati-lhe com gana, como se estivesse a dar conta dalgum diabo
que se atravessasse na minha vida. "Não é assim que se bate numa mulher", disse-me o chefe da esquadra. O certo é que lhe deixei a cara negra com murros.
Ouvi dizer há já muito tempo que numa mulher não se toca nem com uma flor. E afinal foi por causa dos cravos da lata de manteiga que houve aquele "arraial" no pátio
e ela abalou. Tenho pena é dos rapazes; fazem-me falta. Ganhei-lhes amizade, embora só um deles fosse meu filho. A gente habitua-se às crianças e depois já nos parece
que são todas do nosso sangue. Eu, pelo menos, sou assim.
Dela é que não tenho saudades nem penas escangalhou-me a vida.
Apareceu lá pela terra e o cheiro da cidade que
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levava deu-me um apetite qualquer - coisas de rapaz!... À volta da festa metemos por um carreiro do pinhal e as coisas sucederam - o destino tem muita força. Andei
vaidoso, confesso. Ela era uma mulher diferente das outras e o caso foi falado. Não é por me gabar, mas naquele tempo havia por lá umas cachopas que me davam conversa.
Nunca fui mandrião... a velhota tinha os seus bocados... Era um bom partido!
Uma noite a minha mãe disse-me à ceia: olha, Maurício, isso de mulheres que vão a Lisboa são mulheres perdidas para os homens como tu. Já não se afazem à vida da
nossa "parvalheira" e desencaminham um homem. Distrai-te que estás em idade para isso, mas não te deixes agarrar.
Mas deixei-me... E ela começou a falar-me da cidade. Que me arranjava trabalho de serventia numa obra, que talvez conseguisse emprego numa fábrica ou na Carris...
Deu-me volta ao miolo com tanta coisa. Numa tarde em que a minha mãe foi ao Brejo regar uma leivazita, meti a roupa num saco, roubei-lhe dinheiro da arca e fui apanhar
a camioneta verde que todos os dias passava ao longe, na estrada real.
Ela abalara na véspera, por causa das más línguas, e eu jurara-lhe que no dia seguinte lá estava também. Vi muita terra pelo caminho; gostei daquilo, lá isso é verdade.
Devo-lhe ao menos esse favor. O que conheço do mundo foi ela que mo ensinou e vamos lá, com trinta diabos, não estou repeso de todo... Um homem sabe lá alguma vez
quando está repeso!...
Ao princípio tudo correu bem, mesmo quando ela me mostrou os filhos. Naquela altura os rapazes é que se mostraram desconfiados e eu fiz tudo para os meter logo no
coração. E meti-os; meus amigos eram eles. E fazem-me falta agora.
O pior é que a pouco e pouco comecei a cansar-me
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do pátio. Andávamos em cima uns dos outros, aquele barulho entontecia-me e às vezes julgava que me tiravam o ar. O sol não era o mesmo da minha terra. Fazia-me falta
o cheiro das searas e dos pinheiros... Aqui tinha às vezes a impressão de que se abrisse os braços batia em toda a gente; e que se desse um grito, daqueles que a
gente dá na aldeia, para se ouvir ao longe, todos me julgariam maluco.
Os tombos que levei não importa - são coisas da vida. Aprendi muito, é verdade, mas nada chegava àquela falta que sentia de ver o campo e os montes da minha "parvalheira".
Aos domingos ia à bola com outra malta, bebia o meu copo, jogava às cartas... E nunca lhe disse nada da minha tristeza; tinha assim receio a modos de a magoar. Sou
homem de poucas falas...
Lembro-me ainda como se fosse agora. O mestre-de-obras suspendeu pessoal e fui dos que saíram naquele "balão". Fiquei derrancado de todo. "Raios parta a sorte!",
disse cá na minha. Mas não sei porquê aquilo passou-me depressa. Fui à mercearia do seu Artur e comprei-lhe aquela lata de manteiga com uns patacos que trazia na
algibeira.
"P'ra que é isso?!", perguntou-me ela. "Cá p'ra uma coisa..." E naquela altura, palavra de honra, pensei que lhe ia dar uma grande alegria. Fui de madrugada ao jardim
da Patriarcal e roubei uma lata de terra preta bem estrumadinha. E aquele cheiro fez-me melhor que eu sei lá o quê. Arranjei as sementes, enterrei-as na terra, como
se guardasse algum tesoiro do tempo dos franceses, e passei a vir mais cedo para a barraca, só com o cuidado de as regar e de um dia ver a hastezinha cá fora ao
sol. Então os rapazes chegavam-se para o pé de mim e fizemo-nos ainda mais amigos. Já o meu António tinha quase dois anos - como o tempo passa!... Ainda me parece
que foi ontem que abalei da terra.
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A gente discutia às vezes. Era ela sempre quem mais bramava, porque sempre fui um homem de poucas falas. "Cala-te aí que a vizinhança ouve", dizia eu. E ela sempre
na mesma sanfonice que nem um realejo parecia que gostava de moer as palavras até ao fim. Que eu gostava de me encostar ao "partido", que ela não podia sustentar
mandriões... Mandrião eu!... Eu que nunca me neguei fosse lá ao que fosse. Que o digam todos os mestres-de-obras para quem tenho trabalhado. É verdade que de princípio
me envergonhava de pedinchar emprego. Lá na terra vinham ter comigo ou ia à praça e não era preciso nada daquilo. Mas até a isso me habituei. E ela que não percebeu
nada por que é que eu ficava calado, pôs-se a abusar. Por tudo e por nada, zás. Eu encolhia os ombros e ia para o pé da lata, depois de procurar os cantos do pátio
onde o sol lhe batesse melhor.
Dei muitas vezes com ela a olhar-me a modos de quem troça e a dar à cabeça quando eu me punha naquilo. Aquele acenar de cabeça dava-me voltas cá dentro que só eu
sei - até as mãos me tremiam logo. E ficava-lhe com raiva, só porque ela não percebia o que se passava dentro da minha alma. O vaso para mim era um bocado da vida
que já não me pertencia.
Mas tudo isso esqueci no dia em que se abriu o primeiro cravo; quase chorei de contentamento. Chamei os rapazes, o Jerónimo Estucador, a vizinhança... Todos vieram
mirar o cravo roxo e só ela ficou de longe, com aqueles olhos pequeninos, matreiros e maldosos a rir-se de mim e da flor. De mim ainda vamos lá... Mas da flor qvfe
era a lembrança do meu passado é que não lhe podia perdoar. E naquela altura tive logo vontade de lhe bater.
- O cravo é roxo e tem pintas brancas - disse o meu filho, num grito de alegria.
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- É cravo espanhol - juntou a mulher do Pendurinhas.
- Se fosse encarnado era do Benfica... Todos riram.
Havia alguma coisa de novo naquele pátio, bem diferente das discussões e da gritaria do costume; e só ela continuava indiferente à porta da barraca com aqueles olhos
maldosos e trocistas, como se a flor lhe fizesse afronta. Consegui depois esquecê-la, tão feliz me sentia, ao lembrar-me que outros cravos viriam nascer junto daquele
e tudo ficaria menos sujo e sombrio.
- E serão todos da mesma cor?...
- Era bonito que não fosse...
E eu pensei em todas as cores dos campos da minha terra, dos amigos que nunca mais vira e da minha mãe, lá longe, roída de saudades pela ausência do único filho
que lhe ficara. Tive vontade de chorar, palavra de honra... E desejei que me deixassem sozinho ao pé das minhas flores. Passou tempo, mas fizeram-me a vontade.
Os rapazes voltaram para a brincadeira com a bola de trapos; os homens enfiaram-se nos quartos ou foram para a taberna; e as mulheres ficaram cá fora a fazer a sopa
do jantar ou a pentearem-se no chão, falando umas das outras.
Estive ali tempo sem conta, calado, a pensar na casa que gostaria de ter e nas flores do jardim que gostava de tratar. O cravo era roxo e tinha pintas brancas...
Apetecia-me mexer-lhe e ao mesmo tempo receava estragá-lo. E era meu. E a terra cheirava à terra da minha aldeia quando chove e aquele cheiro entrava-me no coração,
para me lembrar todas as coisas que antes gostava de esquecer.
Foi então que ela disse: agora fica aí o resto da vida e eu que me amole a trabalhar p'ra ti.
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Levantei a cabeça, como se quisesse perceber bem que era ela que falava e fui pôr a lata dos cravos na armação de arame que tinha ao pé da porta. E respondi-lhe
entredentes: se não fosse cá por coisas partia-te a cabeça.
Ela ficou a falazar e eu fui meter-me na taberna do Cão Pelado. Petisquei qualquer coisa e bebi um copo - só um copo de três, palavra de honra! Todos disseram depois
que eu estava bêbedo, mas não era verdade. O que me pôs doido, foi ter chegado a casa e ver a lata no chão com a terra espalhada e o cravo com o pé partido.
Abri a porta com raiva, fui direito à tarimba e puxei-lhe por um braço. "Quem foi que fez aquilo à flor?..." Ela sorriu e voltou-se para o outro lado, sem me dar
troco. Era de mais. Galguei-lhe para cima, procurei descobrir-lhe a cara e assim que apanhei uma aberta, atirei o primeiro murro. Bati com força às cegas - bati-lhe
com quanta força tinha.
Os rapazes gritaram e pu-los fora. A vizinhança acordou, veio a polícia e fui preso. E o chefe disse-me: não é assim que se bate numa mulher.
Mas ele não me podia perceber; ela ia rir-se também, com certeza, se eu lhe dissesse que o cravo roxo me fazia falta e era naquele momento a única coisa que a vida
me parecia reservar, para que eu ainda gostasse de viver.
Ele ia rir-se e por isso fiquei calado. Meteram-me dois dias no calaboiço, mas antes assim - há coisas que a gente deve guardar no fundo do coração...
Ela abalou com os rapazes e só deles tenho saudades, embora só o mais pequeno seja meu filho. Um homem habitua-se às crianças... Paciência!... Dela é que não quero
mais ouvir falar, porque me estragou a vida.
Voltarei para a minha terra, mas já agora só o faço
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quando puder comprar uma camisa nova, para que os meus amigos e a minha mãe não julguem que andei à esmola por Lisboa.
Talvez nada disso sucedesse, se ela me não tem estragado o craveiro... Mas não estou arrependido de lhe ter "esfarrapado" a cara, embora tenha a certeza que me dói
mais a falta do cravo roxo, do que a ela as negras que lhe fiz naquela noite.
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ROMARIA

Eh rapaziada! Aí vêm os musiquentes!...
É o grito que corre a aldeia quando se aproxima o som da banda, empoleirada num carro, desde a estação de Marinhais, levando no meio, eufórico de gestos e alegria
- o vinho branco de Almeirím é o diabo! -, o Sebastião que esteve na outra guerra e calhou este ano a juiz da festa. E ele que é opinioso - ah bom! apostou cinco
litros na taberna do Pasmarra, em que por este S. Miguel há-de ouvir-se na Glória mais barulho do que nunca, porque ele escapou do 9 de Abril lá nas Franças, e ainda
tem nos ouvidos a infernia dos bombardeamentos desse dia trágico. E se tomou a capa de juiz na procissão do outro Setembro, foi só por graças a esse milagre - que
aquilo ali, disse-o muitas vezes com as lágrimas nos olhos, a valentia estava na ponta dos cabelos arrepiados de medo, e era bem pior que bater as palmas a um toiraço
em pleno campo.
Por isso mesmo - um homem sentir-se vivo é uma grande coisa! - ele se desfaz em gestos, a pedir mais barulho aos musiquentes, e em especial aos do trombone, dos
pratos e do bombo. O povo pagou para a festa e confia no Sebastião.
- Toca de lhe dar! Vá rijo! - grita ainda, vermelho do esforço e da pinga.
Aos solavancos, pela estrada ruim que leva à aldeia, a carripana chocalha os músicos.
- Eh rapaziada! Aí vêm os musiquentes!...
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Os que ainda não chegaram ao cruzeiro de madeira, revestido de folhas e flores, onde os dez festeiros, de capas azuis e brancas, fazem guarda de honra, correm para
lá, numa gargalhada, de risos e galhofas. As mulheres vão descalças - vão a pé de pombo, como dizem -, porque o dia da "casião", o dia grande da festa, é amanhã
e chega bem para o martírio dos sapatos de fivela niquelada.
Aquilo começa às seis da tarde deste sábado e vai até às seis de segunda-feira. Em dois dias há que tirar a forra de um ano inteirinho de canseiras e preocupações,
agora que pelo Carnaval já se não faz a dança do cadrómetro - dezasseis homens bailando à volta de um mastro que outro transportava, e do coruto do qual pendiam
dezasseis fitas de várias cores -, nem pela mesma época, à noite, se representa o auto do Bicho do Entrudo, cujos papéis passavam por tradição oral e de que eram
personagens os dois Velhos (o comprador e o vendedor), as seis Colmeias, o Burro, o Cão, o Lobo e o Moço do Burro.
Esses bons tempos acabaram - sabe-se lá porquê!
Ficaram, porém, estes dois dias de festança rija, com mais foguetes e morteiros do que árvores se vêem no horizonte, já iniciada com uma girândola de dois estalos
que o Sebastião fez subir, mal a carripana parou.
Empunhando bandeiras da Senhora, os festeiros tomam os seus lugares e marcam passo; sem interromperem a "marcha" que sopram sempre, os musiquentes galgam do carro
e alinham-se também, em filas de três, para que pareçam mais. O juiz agarra num morteiro, chega-lhe o morrão, e deixa-o disparar, enquanto o povo fica à espera que
rebente, para se certificar se o fogo é rijo. Eles querem que no Granho, em Marinhais e Muge, até mesmo em Coruche e Salvaterra, se oiçam os sinais do "dia da casião"
feito em honra da sua
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padroeira que salvara o senhor D. Pedro I das garras de um bicho fero e outra coisa não era senão o dianho a tentá-lo, nos tempos em que tudo aquilo era um matagal,
onde se dava montaria a corças, lobos, porcos-espinhos e raposas. Na igreja actual lá está a cabeça do bicho, salva das ruínas da capela primitiva, junto da qual
havia uma arena para correr novilhos no dia da "casião".
São estes pergaminhos que os glorianos não esquecem, quando a banda dá a volta à aldeia, a cumprimentar os festeiros do último ano, à porta dos quais foi içada uma
bandeira nacional.
O Sebastião não pára um só instante. Esbraceja, grita para os músicos, distribui apertos de mão e sua sua mais do que se estivesse numa ceifa de empreitada, em Agosto,
na charneca de Coruche. Está ainda uma tarde real de calor e ninguém a acusa mais do que ele, preocupado com todos os acertos da festa, desde a peanha para a música
aos festões de papel e aos mastros fálicos das ornamentações, do lançar do fogo à lista das fogaceiras que amanhã se hão-de ir buscar
a casa.
Está ali a aldeia em peso, menos as viúvas e as cachopas que têm rapaz na tropa, o que para elas é meia viuvez. Não saem de casa, vestem de roxo e nem um só atavio
lhes cobre a blusa. Ir para a tropa é tanto como degredo, porque daquela aldeia só há setenta anos saiu o primeiro homem para servir o rei. Antes disso, as mercês
estabeleciam que àquela gente bem bastaria habitar esta charneca desoladora, concedendo-se até perdões aos que de mau porte ali se acolhessem.
Engrola-se a ceia, às pressas, e vá de se prepararem para o arraial, no largo da igreja, onde se armaram barracas de comes e bebes, quermesses com tômbola,
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coreto, enfeitado a rama de pinheiro, e tabuleiros com bolos.
A mocidade - a bugalhada - tira o aço aos espelhos e, embora a festa a solicite, não cede tempo no apuro das farpelas. As raparigas esmeram-se nas blusas, bem ornadas
de fitas aos repregos, e nas saias compridas de roda de sino, sempre de cores escuras, a que uma barra de fita clara empresta alegria. Todas às preguinhas, apertam-nas
com grandes cintas vermelhas ou pretas que passam pelo sexo e amarram atrás, num grande laço. Vestem muitas saias - é o seu luxo. Esmeram-se no lenço da cabeça,
sempre atado arriba, e no avental garrido, muito ataviado com abertos e folhinhos.
Sorriem-se para toda a gente da casa, menos para as irmãs que têm rapaz na tropa, a quem não querem hostilizar com a sua alegria. Partem depois para o largo, em
grandes grupos, com os pais atrás, revendo-se nelas e cochichando entre si, não vão as cachopas ouvi-los: que bem estuada vai a nossa Maria! Está uma bugalhona,
graças à Senhora...
E os "bugalhôes" dos rapazes já as esperam no lugar marcado para a gente da Glória dançar, entre o coreto e a quermesse, enquanto os homens vão para as barracas
conversar e beber.
- Vá lá um traçado!
E os taberneiros enchem os copos de aguardente e capilé, se lhes não pedem a "traviscada", que é mistura de vinho e gasosa, mais popular ainda. Ali ficam a caturrar
diz, tu, direi eu, em falas de trabalho ou em recordações de outros tempos, entre nuvens de poeira que vêm dos terreiros dos bailaricos, onde as raparigas dançam
"a pé de pombo".
Solicitado de todos os lados, o juiz anda tonto de tarefas e vinho.
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- Anda aqui beber, homem! Está uma festa "chica".
- Vá mais esta "traviscada" - incitam-no de outro lado.
- Tu lembras-te do Carneiro Velho?...
- Se nValembro...
E o João Arregueifa começa a dizer, para o seu grupo, os versos que o poeta compusera de memória, enquanto o Sebastião abala a inspeccionar o fogo preso que logo
há-de deslumbrar os olhos:
No lugar de Benflca Houve uma admiração; Contada é coisa rica: Namorar moça à traição Só em palha, João, É que tal coisa se vê...
Chega-se mais gente para ouvir também. As rodadas de bebida não param. As mulheres dos tabuleiros apregoam bolos que os garotos namoram de longe, depois de namorarem,
sem resultado, os bonecos da quermesse.
- Vai andar à roda! É mais um número e abala! Os músicos estão cansados, mas não podem parar
por muito tempo. O Sebastião está em brios, e se lhe largam alguma graçola espuma de indignação, direito ao coreto, a pedir outra moda.
- Que raça de musiquentes arranjaste tu!... Salta-lhes à garupa, anda!...
O do cornetim, que é mestre, alanzoa com o Sebastião.
- E amanhã, para o resto?! Vossemecê julga que os beiços são de ferro?...
O do trombone, embora latagão, já tem picadas no peito e a boca rebentada, mesmo sem comer figos.
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- Deite lá o fogo preso! - gritam-lhe de outra banda.
- Isso é comigo. O juiz da festa sou eu e mais ninguém.
A "bugalhada" espera mais música, de olhos postos nela. Muitos pensam já no namoro quando, ao sábado, se falarem sentados na esteira, à porta, ou nos bailes do largo
do Pinheirão, e trocarem o lenço sujo que ele trouxe toda a semana pelo outro que ela bordou com letras, flores, signos-saimões e cercaduras.
- Então isso vai, ó quê?!...
E os musiquentes lá começam outra marcha, mais saltitante ainda, a ver se cansam aqueles dianhos.
Nas barracas ainda se bebe; os homens da quermesse gritam, já roucos, os números de outra tômbola; os musiquentes sopram qualquer coisa, por desfastio, e já o arraial
se desfaz. Ficam, até ao fim, os bêbedos a caturrar e o Sebastião que só agora parou, para beber mais um traçado.
- E amanhã?!... Amanhã é que vai ser o delas! afirma ele para um grupo que o envolve.
E é mesmo.
Logo pela alvorada arrasa-se tudo com foguetes e música.
- Toquem-lhe com força, porque no saco das esmolas é que eu sinto a diferença - recomenda o Sebastião com a prática de tais andanças. E como os musiquentes lhe chegam
bem, não vá haver alguma dúvida no resto da paga, todos deitam o mais que podem no saquitel.
- Lá te caem as unhas, "melfão" - comenta o juiz para um dos dadores.
- É o mais que posso oferecer e é para "ombrar"
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com os outros - responde-lhe o Alexandre, com toda a família à volta. - Lá tens logo as duas raparigas com fogaças. Que mais queres?
- E não te esqueças de as vires buscar, anh? - recomendou a Quitéria. - Até te arrenegava, se me fizesses uma dessas.
Mas o Sebastião tem tudo bem escrito a lápis, com uns sinais que só ele conhece, embora não saiba fazer uma letra. E abala, seguido da música, com a capa azul e
branca, a dar que dar, tudo às pressas, porque a aldeia já é grande, e logo, depois do meio-dia, há que fazer nova volta, sem contar com a procissão.
- Vais à frecha, danado!
Ele faz que os não ouve - vá lá mais um foguete para os calar.
Nas casas das fogaceiras são boas horas de compor a oferenda. Desvairadas, as cachopas andam a correr do quarto para o casão das arcas e do prateleiro, sem saberem
se hão-de vestir-se, se preparar a fogaça.
- Estás variada, cachopa! - grita a mãe da Elvira, porque a moça lhe tirou das mãos os arcos de cores com que enfeitava a cesta toda ornada de flores silvestres
e fitas de seda. Mas a cachopa faz preceito na sua fogaça, traz despique com a Maria do Alexandre e jurou dar-lhe uma cresta; até fez uma ermida de papel para colocar
no alto do seu cesto.
Do fundo da rua chega o som de música. A Elvira corre de um lado para o outro, à procura ainda de qualquer coisa que não sabe bem o que é.
- Que te falta, cachopa? - pergunta-lhe a avó, revendo-se nela.
- A cabeça, se calhar - resmunga a mãe, ainda aborrecida com a cena de há pedaço.
O Sebastião já chama por ela, à porta. A música rompe com um ordinário e só então a Elvira se lembra,
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o pai ainda não lhe dera o dinheiro para a esmola. Mete-o depressa ao bolso, iça a fogaça para riba da cabeça e, quando a porta se abre, toma um ar solene, muito
calmo. É a última a entrar no cortejo, mas não se importa, porque os ahs dos que a esperam dizem-lhe bem que levou a palma à Maria do Alexandre.
Dali até à capela, onde vão ouvir missa, e mais ainda no largo, é um deslumbramento, passa-se por entre filas de povo, sob cordas de papel colorido e ao som de mais
música. É o momento solene do dia. Dentro da capela não cabe toda a gente, ficando à porta um magote que se comprime, enquanto outros se dividem pela barraca do
fotógrafo e pelas mesas das tabernas.
Já a banda toca nova música para os festeiros cumprimentarem a irmandade, enquanto dentro da igreja começa o leilão dos lugares preferidos no acompanhamento da santa.
- Andor da Senhora da Glória! - grita o Sebastião.
- Dez escudos!
- Onze!
- Doze!
O despique é aceso. Alguns perderam a cabeça no leilão que por teima são piores do que burros de almocreves.
- Vinte! - grita uma voz.
Todos se voltam para ver a cara do melfão. Há comentários em voz baixa: sobem os despiques. Lá fora os foguetes estralejam, dando pretexto a correrias da rapaziada,
mais miúda.
Do andor passam ao leilão do pálio, das velas, das bandeiras e dos andores mais pequenos.
- Vinte e cinco tostões!
- Vinte seis!
- Três mil réis!
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Daí a pouco está tudo liquidado e já começam a sair as fogaceiras que se chegam para um dos lados da praça, onde a multidão se comprime, sob o cáustico de um Sol
impenitente que morde os corpos. De olhos postos na porta da ermida, todos aguardam a saída da procissão. O sino começa a tanger. Surgem capas azuis e brancas; bandeiras
descaem dos pendões, sem um bafo que as sacuda.
De foguetes na mão, os "mordomos" esperam o momento escolhido para lhes deitarem o fogo. Pesado, como o dia, o sino badala sempre. Vem o primeiro andor, depois outro...
Lá surge o pálio, seguido de uma longa fila de penitentes, vestidos de longa camisa branca, até às canelas, e touca da mesma cor na cabeça. São os que levam a "mortalha",
por promessa feita em momento de angústia, o povo diz que vão de anjos e enternece-se com eles.
Depois, por fim, aparece o andor da Senhora, aquela que no seu cancioneiro os glorianos cantam:
A Senhora da Glória Tem uma estrela na testa Que lhe prantaram os anjos No dia da sua festa
Presas no seu vestido de seda branca, ornada de doirados, a Senhora leva notas de vinte e cinquenta escudos, medalhas, pregadeiras, uma variedade de atavios que
os crentes lhe entregaram.
Estralejam foguetes; o sino badala cansado.
E outra fila de penitentes, a dois e dois, de olhos postos no chão, desfiam preces; logo as "mordomas", com a frente dos casacos cheias de lembranças dos namorados
- bolotas, machadas corticeiras, cestinhos pintados, tudo feito a canivete por eles, nas horas de
201
folga do trabalho, com madeira ou ponta de chavelho (pau-do-ar, como lhe chamam).
O Sebastião não parou ainda, dando ordem a tudo. O cortejo move-se com lentidão, arrastando consigo nuvens de areia.
O sino tange um repique dobrado.
Embuçadas nas saias pretas que deitaram sobre a cabeça, em feitio de capucha, as viúvas espreitam às portas, rezando uma fileira de padre-nossos pelo seu morto;
acompanham-nas as moças que têm o prometido na tropa, mais tristes agora nos seus trajos roxos.
E o Sol abrasa aquele descampado que os homens teimaram habitar, tornando-se num suplício com as nuvens de areia que os pés levantam. Lento e enfadonho, o cortejo
dá a volta à aldeia, numa bênção. E quando volta ao largo da capela, estralejam mais foguetes e o sino dobra o mesmo toque compassado.
É nessa noite que o Tóino fala pela primeira vez à Eugenia.
- Queria-te p'ra mulher s'a gente s'entendesse...
E quando o Manel Raposo rapa da gaita de currabeiços e toca um fandango para o bater com o Zé da Mela, os namorados sonham na festa do seu casamento, que há-se ser
para o ano, e em que o fandango também será a música de saudação.
O noivo está de cadeira E a noiva de cadeirinha;
Volta-se o noivo p'rà noiva: Anda cá que já és minha.
São essas invocações, e muitas outras, que neste arraial de domingo fazem os namorados - porque a noite tem o seu nome e mais ninguém baila no terreiro, junto do
coreto.
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As cavalhadas de manhã e o baile, a harmónium, já pouco contam nestes dois dias de festa da Glória, a "terruça" onde o fumo das chaminés não alteia, segundo palavras
do ti Bento que é o oráculo do povo.
Depois é trabalhar, sofrer e esperar o outro mês de S. Miguel, porque não há mais festa por ali, agora que já se não faz a dança do cadrómetro nem se representa
o auto do Bicho do Entrudo.
203

A TATUAGEM

O barco afastara-se há muito de Lisboa e nem a costa já se divisava. Só então o comandante deu ordem para eles virem cá acima.
Atropelaram-se todos no fundo da escada íngreme, de degraus curtos chapeados, cada um dos sete com ganas de chegar primeiro ao tombadilho, até que o mais forte conseguiu
romper por entre as raivas frustradas dos companheiros. Esse apareceu à luz da tarde com os olhos sôfregos de imagens, de ombros atirados para a distância e mãos
cabeludas arrepanhadas no corrimão de ferro. Pareceu ficar tonto por um instante com a chapada de sol, mas logo correu para a amurada, sacolejando o corpo atarracado;
seguiram-no os demais na mesma ânsia de esperança, numa golfada vertiginosa que espalhou o silêncio entre os passageiros de terceira.
E ficaram ali, lado a lado, volvidos todos para o horizonte que só era céu e mar, querendo abrir no infinito uma clareira por onde se visse a terra que deixavam
e tinham presa no sangue como um sonho. Amaciaram-se-lhes as expressões de anseio, lassas pelo desengano e pela impotência; sumiram-se-lhes os olhos na amargura
daquela massa azul que se confundia sem recortes de outras cores nos longes.
Só havia céu e mar.
E no mar aquela punhalada branca de espuma da hélice do navio que os levava para o degredo. Rasos
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de água, os olhares seguiram a estrada de água que mais parecia de lágrimas que eles não sabiam chorar e levava cada homem ao seu mundo privado.
"Para quando os pregões da Madragoa, a taberna do Artur e o fato de ganga?..." "Para quando o Chafariz de Dentro com os companheiros da descarga e as carícias da
Florinda?..." "Para quando a aldeia da Serra, as malhadas de centeio, as sementeiras e os braços da mãe?..." "Para quando a gandaia da Ribeira com os gritos de arreda
dos padiolas, os chuis das varinas na lota e a púcara de café bebida ao sol?..." "Para quando a busa da fábrica, as madrugadas pela estrada dos Casais e o matraqueio
dos teares?..." "Para quando a lezíria e as tralhoadas, as manadas de éguas e toiros e os bailes com as gaibéuas?..." "Para quando a Maria?" "Para quando tudo o
que a Maria lembrava em si?... Para quando, sim, para quando?..."
A estrada branca levava cada homem à sua vida e nenhum deles podia lá chegar, porque tudo era água e céu. "Para quando, sim, para quando?..."
Foi então que o Magrizelas, um rapazola franzino que viera ao tombadilho no cabo da fila, ergueu a cabeça e reparou no bando de gaivotas. Elas rodeavam os mastros,
despenhavam-se sobre o mar, perseguiam alguma que voava desgarrada, lá mais adiante, e manchavam o céu com as suas asas inquietas que só os condenados pareciam compreender.
E todos olharam com o Magrizelas; e todos pensaram no mesmo. "Se eles pudessem também..." Ficaram ali como crianças a seguir uma história maravilhosa, tendo nos
rostos endurecidos uma transparência que os tornava diferentes daqueles mesmos homens condenados pelos códigos. "Para quando, sim, para quando?..."
O barco, porém, sujeitava-se à rota marcada e tinha pressa de chegar. E as asas brancas das gaivotas, depois
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de rodopiarem à volta do navio num voo alucinante, acenaram o último adeus aos sete, homens que, as olhavam do tombadilho. Então, o rapaz franzino deixou o grupo,
em passadas lentas de renúncia, aproximou-se da escotilha, volveu o olhar saudoso para a luz da tarde e começou a descer às trevas do porão.
Um dos companheiros gritou-lhe ainda: O senhor comandante deu-nos uma hora; falta muito?
Ele nem hesitou nas escadas; foi descendo sempre, mansamente, e a alma pedia-lhe que aqueles degraus levassem ao cabo da vida. Ao menos, lá bem no fundo do navio
ele só teria o seu pensamento e esse não conhecia os limites do mar nem do céu - ia levá-lo agora mesmo à porta da Maria, com um sorriso de brejeirice nos olhos,
batendo-lhe ao postigo... Boa tarde! Olá, boa tarde!... Queres vir esta noite ao miradouro?!... Se o meu pai não vier com a pinga... Diz que vais a casa da Celeste.
E quando ela aparecesse, poderiam andar por ruelas e becos, de braços apertados e dedos presos, parando nos recantos mais sombrios...
Vieram depois outros passos pela escada - outros e outros ainda.
O comandante dera-lhes uma hora de liberdade no tombadilho, mas nenhum deles a gastou até ao fim.
Habituaram-se ao céu e ao mar, como antes se tinham conformado às grades.
Formavam um grupo à parte, vigiado de longe. Falavam mais; riam já algumas vezes. Até que um dia o Toni, sempre com a pala quebrada do boné a tapar-lhe o olho direito,
trouxe cá para cima as agulhas e as tintas das tatuagens, como um pintor que viesse com a paleta para o ar livre. Mostrou os seus braços marcados e os companheiros
do campo deslumbraram-se
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com aquela maravilha de um homem trazer agarradas à pele as mais belas coisas da vida.
- Se quiseres, eu faço-te...
Já não olhavam o mar. Calados, sentavam-se no chão à volta de Toni, seguindo cada gesto seu, cada contorno que as agulhas e as tintas marcavam no corpo dos outros.
Ali ficavam emocionados, toda a hora que o comandante lhes concedia, a quererem adivinhar a insígnia que o companheiro trabalhava com desvelo. Uma hora nunca chegava
para acabar uma tatuagem e desciam às trevas do porão a desejar o dia seguinte. Mal pensavam que o seu mundo ficava cada vez mais longe. "Para quando, sim, para
quando?!..."
O Toni transformava-se naqueles momentos. Ele não era mais o condenado de olhar duro e malandro. Adoçava-se-lhe a expressão; tinha um olhar de ternura que parecia
iluminar-lhe a pele crestada pelas tarefas do cais; as mãos sapudas humanizavam-se e moviam as agulhas com suavidade; a sua boca asneirenta deixava escapar um sorriso
ingénuo da criança que ele nunca fora. Irascível e violento, tornava-se paciente e dócil.
- Não te mexas...
E compunha os seus pequenos quadros, agarrando nos braços que punha a maior distância para escolher entre as minguadas cores das suas tintas a que melhor ali ficava.
Deslumbrados, os outros mal se moviam; embrulhavam cigarros sem conta, para conterem a emoção, e ali ficavam toda a hora com o olhar preso nos seus dedos mágicos.
- Também queres?!...
- Sim - respondiam-lhe de sorriso aberto. Trocavam de lugares e ele começava nova insígnia,
sempre com uma certa expressão de ternura.
- vou agora fazer um pássaro - ciciou com volúpia. E todos recordaram as gaivotas que haviam abalado
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por sobre a estrada de espuma aberta pela hélice na imensidão do mar.
O Toni só desenhava pássaros, estrelas, o Sol e uma flor que parecia um malmequer e cujo significado só ele entendia. "Dá-me essa flor, Mariana! Dou-te um beijo
em troca." Antes de ter ido à cadeia também sabia fazer barcos; mas era um barco que o levava agora ao degredo e ele queria esquecer que para além da amurada só
se via mar e céu - as grades da sua nova prisão.
"Para quando os pregões da Madragoa, a taberna do Artur e o fato de ganga?..." "Para quando o Chafariz de Dentro com os companheiros da descarga e as carícias da
Florinda?..." "Para quando a gandaia da Ribeira com os gritos de arreda dos padiolas, os shuis das varinas na lota e a púcara de café bebida ao sol?..." "Para quando
a aldeia na aba da Serra, as malhadas de centeio e os braços da mãe?..." "Para quando a lezíria e as tralhoadas, as manadas de éguas e toiros e os bailes com as
gaibéuas?..." "Para quando a buza da fábrica, as madrugadas pela estrada dos Casais e o matraqueio dos teares?..." "Para quando a Maria? Para quando tudo o que a
Maria lembrava em si?... Para quando, sim, para quando?..."
Era tudo isso que o Toni lhes marcava na pele, ali mesmo agarrado à carne, por cima do sangue que lhes escaldava as veias.
Naquelas tatuagens estavam as mais belas coisas da vida - aquilo que nem os condenados com os seus crimes, nem os códigos com as suas leis, nem o navio com a sua
distância seriam capazes de destruir alguma vez.
A tatuagem da esperança que os homens sabem guardar no fundo do coração e onde a vida renasce sempre após os grandes vendavais.
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TRÊS CONTOS DE DENTES PARA O OFÍCIO 4001

Abre a boca, abre, cerra os olhos, sofre, sofre a impotência de obedecer, apetece-lhe gritar asneiredo grosso, sua, sua um suor frio, pegajoso, que tacteia com as
pontas dos dedos trémulos, um suor de raiva e medo, soube, sabe, saberá a vida inteira que um dia partiram um maxilar e o amigo morreu talvez porque tivesse de morrer,
que homem? um homem como ele, sentado como ele numa cadeira de torturas, entre aparelhos cromados com pontas com bicos com curvas, com bicos e curvas, com curvas
e bicos, estiletes, água canalizada por um tubinho de plástico, faça favor de bochechar, bocheche e deite fora, ele hesita, não percebe, só vê um sorriso gozador
e malandro no fundo dos olhos do outro, e então admite que o torturam por vingança, sua um suor ainda mais frio, saliva, a boca tornou-se uma fonte de baba, de saliva
branca, uma baba de caracol a escorrer pelos cantos da boca,
abra mais a boca, esteja à vontade, não se enerve, e o outro fala, gargalha com as palavras, tem uma voz grave de orador, também ele gostava de falar assim no dia
da visita, faltam oito dias, sete, mais sete do que oito, o Presidente, o Senhor Presidente da Câmara sabe de cor o ofício 4001 ordena-me Sua Excelência o Senhor
Governador Civil deste Distrito para comunicar a Vossa Excelência que se deslocará à Sede desse Concelho para visita oficial e tal e tal, dia 18, calha a um sábado
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e todos o chateiam, abre a boca para o outro meter o tubo de extrair a saliva que não o deixa trabalhar, já lhe percebeu o desprezo no sorriso e lembra-se do filho
mais novo todo guedelhas, a sorrir, quando lhe encontrou no quarto um retrato de Che Guevara, no meu quarto tenho o que quero dei-lhe uma sova, esfarrapei-lhe as
ventas, ceguei e só me apeteceu matá-lo, ele fez força, sim, o Luís, o mais novo, e então joguei-o ao chão, pisei-o, assustei-me quando lhe vi sangue na cara, o
outro manda-o cuspir e na saliva há laivos de sangue, a mulher gritou no corredor, a Ernestina grita, bate com os punhos na porta do quarto, a Tonicha chora, e eu
golpeio a cara de Che que incha, és um assassino!
o Luís cerra os olhos, lívido, parece de cera, e ele pensa que o matou, assusto-me, abro a porta, ligo o telefone para o Sousa e Paiva, o vice-presidente, médico
e vice-presidente, que é no fundo o culpado da ânsia em que vivo desde que na Secretaria se recebeu o ofício 4001,
abra a boca, mais, um pouco mais, aproveitamos a sua decisão, não acha? para tirarmos também esses dois dentes da frente, estão um pouco salientes, não acha? faremos
uma prótese rigorosa, impecável, estudei na Alemanha, os alemães nisso são mestres, e a sua dentição é incorrecta, deformou-lhe o maxilar superior, houve um homem
a quem partiram o maxilar e que morreu, tinha eu dezoito anos, em Luanda, sim, numa noite serena, silenciosa, chamava-se Renato, esperávamos na escada do hospital,
éramos muitos à espera, ele sentara-se quando teve uma vertigem, sim, sentei-me quando julguei desmaiar ao ouvir essa voz que nos disse: morreu...
Uma noite transparente. Serena. Os vultos vestem-se
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de veludo negro (digo de veludo porque a noite de luz macia cintilava nas coisas onde repousava), as vozes abafam-se de silêncio. Uma noite quente. E a morte lá
dentro muito fria, estampada, nos olhos de Renato, o seu amigo. Esquecera-o. Julgava que o tinha esquecido. Entrei em casa muito contente, aquela visita era uma
vitória minha, pois todos diziam que eu seria demitido depois do caso do contrabando de azeite, a coisa esteve séria mas resolveu-se, claro, ofereceram-me um banquete
de 400 talheres e ali se disse quanto o concelho me deve em sacrifícios de saúde e dos meus interesses particulares, devoção, patriotismo, hora de sacrifícios, revolução
de paz, maré alta de progresso, etc.. etc.. etc.. a união de todos os homens bons, o bem da Pátria, etc.. etc.. comovi-me, e a mulher lembra-lhe que andava com uma
boca indecente para aparecer em festas oficiais, tinha piorreia, percebera-se mal o que dissera no banquete, parece que tens boca de favas, e mete-me a alma num
inferno com a dentadura, abra mais a boca, mais, agora tiramos o molde, o gajo queria arrancar-me os dentes todos e eu disse-lhe não, tenha paciência, mas ele pegou
num espelho e eu vi, vi o que o tempo destrói nas pessoas paciência! lembrei-me das mulheres da minha vida, tens uns dentes maravilhosos, querido, o Senhor Presidente
vai rejuvenescer trinta anos! a Tonicha, a filha, pede-lhe que ponha dentadura, a Ernestina não o larga, insiste, resmunga, acaricia-o, sinto-me infeliz e começo
a ter receio de falar, deixo de sorrir e isso não pode ser, o sorriso faz parte dos meus deveres oficiais, deve sorrir para incutir confiança, pelo menos os americanos
sorriem sempre nos retratos, até nos funerais eles sorriem, por favor, sorria, aí vai o passarinho, sorria, só o rosto golpeado de Che o desvaira ainda, o filho
fugiu de casa e desapareceu, dizem que
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está em França, e eu digo que não: um filho meu não pode fugir para França, e no meio deste inferno de sugestões, de zangas, de dúvidas e de piorreia, o Senhor Presidente
acaba por permitir as placas.
- Meta-lhe o freio, doutor! - diz um da oposição para o dentista.
Entre aparelhos cromados, bochechos, água, desinfectantes, estiletes, brocas, curvas e bicos, bicos e curvas, suor, saliva, preparam-no para a prótese. Mentalizam-no.
As implacáveis placas vão tirar-lhe o paladar; as implacáveis placas vão dar-lhe o sorriso da glória e do piano que a mulher tem na sala, mudo há alguns anos, e
sonha nisso quase todas as noites, ainda ontem sonhei que a Ernestina tocava música nos meus dentes, mas só com um dedo, e que o dentista tomava nota da encomenda
ao colo da minha filha e que me mandavam fazer quatro dentaduras de cores diferentes, uma para inaugurações, outra para discursos, ainda outra para enterros, fora
a corriqueira, de marfim, e acordei a gritar que não, que não queria a dentadura roxa, a chorar como um cachopo; então a Ernestina aconchegou-me no seio para me
perguntar se a Esposa de Sua Excelência também vinha, sabes se traz chapéu? se calhar temos de ir ao Porto para eu comprar um chapéu, faltam dois dias, quer pensar
no discurso de inauguração e ouve o Sousa e Paiva falar com os vereadores para sugerir que talvez seja melhor fazer ele o discurso de boas-vindas a Sua Excelência,
pois o Senhor Presidente não poderá sorrir na sessão solene e o concelho perderá com isso, certamente, sim, certamente, convinha uma comparticipação para o campo
de futebol, quinhentos contos, depois fazia-se uma campanha de cimento entre os emigrantes, porque o concelho, graças a Deus, tinha muitos emigrantes.
Resolve. Resoluto resolve. Emocionado resolve.
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- Preciso tudo pronto para o dia 17. No dia 18 discurso.
O discurso custa-lhe 3 contos em dentes. Mas fica obra asseada, garante-lhe o outro.
- E não cairá?!...
- As próteses feitas por mim são garantidas, Senhor Presidente. Só emprego materiais de primeira...
E conta histórias de dentaduras impecáveis, todas impecáveis, se Sua Excelência não vir inconveniente paga em duas prestações, é costume, e ele que paga tarde e
a más horas, passa logo um cheque, três contos de dentes, fica com as suas dúvidas quanto à eficiência das placas, sim, claro, sempre são três contos, o secretário
devia meter isto nas contas da recepção, e ameaça o outro:
- Se a dentadura me deixar mal, mete-o na cadeia! Olarila! Mete-o na cadeia de Lisboa!
O gajo assustou-se com as minhas palavras, porque já doutra vez... não com ele, claro, mas com outro que andou a dizer que eu fizera grossa traficância nos terrenos
da Avenida Nova, arranjei-lhe cama de seis meses preventivos, e então o dentista propôs que ensaiassem a dentadura antes da visita do Governador Civil, convinha,
ele dava-lhe algumas instruções, havia uma técnica, tudo em segredo para que a vila se surpreendesse e não começassem as más línguas a ratar na inovação, pois chamavam-lhe
o Dente de Foca, não tanto pela sua conhecida sovinice como pelos dois dentes que lhe mordiam o lábio a igual distância, muito certos naquela absurda posição de
pressas. Escolheram o tom, mais branco ou mais amarelo? A Dona Ernestina pediu outro dia para pensar, quis ouvir a Tonicha, eu preferia um nadinha amarelo para parecer
mais natural, voltei a lembrar-me do sonho das quatro placas de cores diferentes, achei-me infeliz, e, na noite seguinte, sem ouvir a
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opinião da minha mulher, resolvi a meu modo, em segredo, pois, o gajo pede-me segredo e vem ao consultório depois da meia-noite, embuçado para que o não reconheçam,
quer fazer surpresa a todos, mas o único que me interessa lixar é o Sousa e Paiva a quem tive de pôr na ordem em plena reunião camarária, quando sugeriu que não
deveria ser eu a saudar Sua Excelência.
Na noite de 17 a dentadura fica pronta. Estão os operários a colocar bandeiras nos mastros das ruas por onde passará o cortejo, chegaram vinte dúzias de foguetes
e cinquenta morteiros, a criançalha das escolas sabe que vai atirar pétalas, sempre é mais bonito do que as bandeiras, diz o inspector escolar, na Câmara preparam
a alcatifa de veludo azul, limpam o brasão de prata, dão ordem à polícia para que os mendigos não entrem na vila, a banda ensaia o hino, ainda não sabem se os músicos
levam a farda azul ou a farda branca, foi destacado um vogal da Direcção para ver na TV o boletim meteorológico, virá gente das aldeias com os párocos e os regedores,
o Sousa e Paiva tem uma cólica de fígado, perdeu a partida e sabe que o outro vai baldeá-lo dentro de quinze dias, e então nessa noite, às onze menos um quarto,
o dentista sobe a escada da vivenda do Senhor Presidente, do Dente de Foca, sobraçando o estojo em que leva três contos de dentes para o discurso, o discurso que
anda a decorar há uma semana e que lhe escreveu certo amigo do Porto, uma bela cabeça, todo dado às poesias e à batota de Espinho.
O Senhor Presidente mal jantou. Está todo enfiado na emoção da surpresa. Abre os braços, ergue o esquerdo acima da cabeça, treme a mão e fala, fala, repete passagens,
volta atrás e fala, enquanto a mulher e a filha ensaiam também o seu número e a criada velha recorda o seu menino, o Luisinho, ninguém fala nele agora, são ordens
do Senhor Presidente, mas ela
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adivinha, adivinha-lhe o coração que o seu menino anda por França, sim, todos os que abalam vão agora para França; também ela lá tem as duas filhas e os netos. Vai
abrir a porta ao doutor, boa noite, senhor doutor, bons olhos o vejam, os paizinhos do senhor doutor como vão, e condu-lo até ao escritório onde o Senhor Presidente
espera entre suspiros e preocupações, receei sempre que o gajo caísse no caminho e quebrasse as placas ou que morresse, sei lá, toda a noite andei numa batalha de
sustos, porque no momento exacto em que ia fazer o meu discurso, surgiu a mão de alguém, talvez a de Che ou a do Luís ou a do Sousa e Paiva, para me roubar a dentadura
e fugir com ela, agarra que é ladrão! agarra que é ladrão!
Agora, graças a Deus, caem nos braços um do outro, apertam-se, afastam-se um pouco e olham-se, abraçam-se com ímpeto maior ainda, a mulher olha-os e comove-se, não
diz uma palavra e senta-se, enquanto os dois homens vão para o canto do escritório, conversando em voz baixa:
- Que tal? Veja-se neste espelho.
- Aperta-me as gengivas, parece que engoli uma pedra...
- Tem de se adaptar, Senhor Presidente. Todos temos que nos adaptar a qualquer coisa...
Sorri. É o dentista que sorri e lhe pede para sorrir também.
- Articule com os maxilares, mova os lábios...
A esposa corre até eles e pede para ver. Desvanece-se.
- Não te dizia?!... Pareces um rapaz.
Sinto-me contrafeito, tenho a impressão de que se descerrar os lábios a dentadura vai saltar, cair e partir-se toda a meus pés, três contos de dentes, abra mais
a boca, esteja à vontade, não se enerve, fico com a
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impressão de que estou no alfaiate quando ele me tira a placa de cima e diz que lhe vai dar um toque; dirige-se para o candeeiro da secretária, mexe e remexe no
estojo, daí por momentos regressa até junto do Presidente para lhe meter de novo a placa e perguntar a sorrir, guizalheiro, se agora não a sente perfeitamente adequada
à boca. Dona Ernestina acena a cabeça para que diga que sim e ele diz que sim, agora sim, enquanto o dentista se senta na cadeira de braços e espera que o Senhor
Presidente comece o seu discurso.
- Senhor Governador Civil...
Atira as palavras num arranco atroador, mas ganha medo e cerra as duas fileiras de dentes, move os lábios, ninguém o ouve, é babugem de som que se lhe escapa da
boca empregueada, um fio de voz, um sussurro; o outro faz-lhe sinal para que fale mais alto, isso mesmo, mais alto, mais alto! ele desabrocha a flor mirrada dos
beiços tímidos e perora, esquece-se dos gestos, atrapalha as palavras numa cambulhada que só ele escuta, golfando uma vez por outra a parlenga oratória, logo estancada
porque os dentes lhe fogem, chocalham, mirram e engrossam, parece que os engulo, penso que não devo engolir três contos de uma vez e aperto os lábios, embora o gajo
e a Ernestina me transmitam coragem. A Tonicha traz um copo de aguardente e bebo-o de um trago.
- Vamos começar. Abra mais a boca, esteja à vontade, não se enerve...
Respira fundo, baixa a cabeça numa vénia floreada
e sussurra:
- Senhor Governador Civil... Excelência! Apaga-se-lhe a voz. O dentista num gesto de mão
manda subir o tom. E o Presidente fala aos arquejos, bolsando:
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- Abre-se num sorriso a terra que Vossa Excelência pisa, feliz terra que o reconhece como a um Pai...
E aí lhe foge a voz esganada e aí regressa às ondas; pouco faltou para não agarrar no telefone e ordenar ao Sousa e Paiva que lesse o meu discurso de boas-vindas,
mas sou um homem de têmpera e prossigo, não arreio, não arreio às primeiras, a Ernestina sorri, a Tonicha sorri, sorri o gajo e ele experimenta sorrir também o seu
sorriso oficial, amplo e infeliz, conveniente e infeliz, porque se lembra, claro que se lembra...
De que se lembrará Sua Excelência o Governador Civil quando o ouvir amanhã?!...

 

 

                                                                  Alves Redol

 

 

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