Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
NASCI NUM HARÉM
"Nasci num harém em Fez, Marrocos..." assim começa a história de uma infância passada por detrás dos muros proibidos de um harém.   Com uma voz carregada de emoção e um exotismo comparável ao das "Mil e Uma Noites", Fatima narra as suas memórias e os sonhos e fantasias das mulheres que a viram crescer. Mulheres a quem o mundo exterior era interdito e que usavam o puro poder da imaginação para o recriar. Por entre o inebriante aroma a incenso e a suavidade dos véus multicores, ela viveu uma infância exuberante e mágica, mas também isolada e com pouco ou nenhum contacto com a realidade. A sua timidez e docilidade eram uma fonte de preocupação para a sua mãe, uma mulher rebelde e inspiradora, que a instigava a sonhar mais alto e a ousar transpor os muros proibidos para ver o mundo com os seus próprios olhos. E Fatima ganhou asas e voou. Esta é a sua inesquecível jornada de descoberta e crescimento face aos mistérios do mundo e da feminilidade. Uma história pessoal que contém em si a universalidade do que significa ser mulher. Ao cruzar memória e fantasia, Fatima Mernissi lança uma luz sem precedentes sobre as vidas das mulheres muçulmanas.
AS MINHAS FRONTEIRAS NO HARÉM
Nasci em 1940 num harém em Fez, uma cidade marroquina do século IX, cinco mil quilómetros a oeste de Meca e mil quilómetros a sul de Madrid, uma das perigosas capitais dos cristãos. O meu pai costumava dizer que os problemas com os cristãos começavam quando as fronteiras sagradas, ou hudud, não eram respeitadas. Nasci em pleno caos, uma vez que nem os cristãos nem as mulheres aceitavam as fronteiras. Mesmo no nosso patamar havia mulheres do harém que discutiam e brigavam com Ahmed, o porteiro, enquanto os exércitos estrangeiros do Norte continuavam a chegar à cidade. De facto, os estrangeiros haviam chegado já à nossa rua, que ficava exatamente entre a cidade antiga e a Ville Nouvelle, uma cidade nova que estavam a construir para si próprios. Por alguma razão, dizia o meu pai, Alá criou o mundo e separou os homens das mulheres, colocando um mar entre muçulmanos e cristãos. A harmonia existe quando cada grupo respeita os limites dos outros; a transgressão só leva ao arrependimento e à infelicidade. Mas as mulheres sonhavam com o proibido a toda a hora. A sua obsessão era o mundo do lado de lá dos portões. Durante todo o dia fantasiavam passear por ruas desconhecidas, enquanto os cristãos continuavam a atravessar o mar, trazendo consigo a morte e o caos.
Os problemas e os ventos frios vêm do Norte e nós voltamo-nos para oriente para rezar. Meca fica longe. Se uma pessoa souber concentrar-se, é possível que as suas orações cheguem lá. Fui ensinada a concentrar-me quando acharam que era o momento adequado. Os soldados de Madrid tinham acampado a norte de Fez e até o meu tio Ali e o meu pai, que eram muito poderosos na cidade e davam ordens a toda a gente em casa, tiveram de pedir licença a Madrid para assistir ao festival religioso de Moulay Abdesslam, a trezentos quilómetros, perto de Tânger. Mas os soldados que estavam do lado de fora do nosso portão eram franceses e pertenciam a outra tribo. Eram cristãos como os espanhóis mas falavam outra língua e viviam mais a norte. A sua capital era Paris. O meu primo Samir dizia que Paris devia ficar a uns dois mil quilómetros e que devia ser duas vezes mais longe do que Madrid, e duas vezes mais feroz. Os cristãos, tal como os muçulmanos, estavam em permanentes disputas entre si, e os espanhóis e os franceses quase se mataram uns aos outros quando atravessaram a nossa fronteira. Depois, quando chegaram à conclusão de que nenhum dos lados conseguia derrotar o outro, decidiram dividir Marrocos ao meio. Puseram soldados próximo de Arbaua e disseram que doravante era necessária uma autorização para ir para norte, porque se passava para o Marrocos espanhol. Para ir para sul era necessária outra autorização, porque se passava para o Marrocos francês. E quem não seguisse escrupulosamente estas determinações, ficava retido em Arbaua, um lugar arbitrário onde haviam construído um portão enorme que, segundo afirmavam, era uma fronteira. Mas o meu pai dizia que Marrocos tinha existido unido durante séculos, que já existia mesmo antes do aparecimento do Islão há catorze séculos. Até então ninguém ouvira falar de uma fronteira que dividisse o solo marroquino em dois. A fronteira era uma linha invisível que só existia na mente dos guerreiros.
O meu primo Samir, que por vezes acompanhava o tio Ali e o meu pai nas suas viagens, dizia que para criar uma fronteira bastavam soldados que obrigassem os outros a acreditar nela. Na paisagem propriamente dita nada se altera. A fronteira está na mente dos poderosos. Eu não podia comprovar isto pessoalmente, porque o meu tio e o meu pai diziam que as raparigas não viajam. Viajar é perigoso e as mulheres não podem defender-se. A minha tia Habiba, que fora subitamente repudiada e expulsa de sua casa por um marido a quem amava ternamente, dizia que Alá enviara para Marrocos os exércitos do Norte com o intuito de castigar os homens por terem violado as hudud que protegiam as mulheres. Quando alguém magoa uma mulher, viola a fronteira sagrada de Alá. É ilícito magoar os fracos. A minha tia Habiba chorou durante anos.
Educação é conhecer as hudud, as fronteiras sagradas, dizia Lalla Tam, a diretora da escola corânica para onde me mandaram quando eu tinha três anos e que já era frequentada pelos meus dez primos. A minha professora tinha um chicote comprido e ameaçador e eu estava inteiramente de acordo com ela em tudo: a fronteira, os cristãos, a educação. Ser muçulmano era respeitar as hudud. E para uma criança, respeitar as hudud era obedecer. Eu queria desesperadamente agradar a Lalla Tam e por isso, quando ela não me podia ouvir, perguntei à minha prima Malika, dois anos mais velha do que eu, se me mostrava onde ficavam situadas as hudud exatamente. Respondeu-me que a única coisa que sabia com certeza era que tudo correria bem se eu obedecesse à professora. Hudud era tudo o que a professora proibia. As palavras da minha prima tranquilizaram-me e comecei a desfrutar da escola.
Mas desde então, procurar a fronteira tornou-se a ocupação da minha vida. A ansiedade consome-me quando não consigo situar a linha geométrica que organiza a minha impotência.
A minha infância foi feliz porque as fronteiras eram claras como água. A primeira fronteira era o patamar que separava o salão familiar do pátio principal. De manhã não me deixavam sair para o pátio até a minha mãe acordar, o que significava que tinha de me entreter sozinha sem fazer barulho desde as seis até às oito da manhã. Podia sentar-me no frio patamar de mármore branco, mas não podia juntar-me aos meus primos mais velhos que já estavam a jogar.
– Ainda não sabes defender-te – dizia a minha mãe. – Até a brincadeira é uma espécie de guerra.
Eu tinha medo da guerra, por isso colocava a minha pequena almofada no patamar e jogava ao l-msaria b-lglass (literalmente, «O Passeio Sentado»), um jogo que inventei na altura e que ainda hoje me é extremamente útil. Para jogar são necessárias apenas três coisas: a primeira é permanecer quieto no mesmo sítio, a segunda é termos um lugar onde nos sentarmos, e a terceira é alcançar um estado de ânimo humilde e aceitar que o nosso tempo não vale nada. O jogo consiste em contemplar o território familiar como se fosse algo de estranho para nós.
Sentava-me no patamar e contemplava a nossa casa como se nunca a houvesse visto antes. Primeiro havia o pátio, quadrado e severo, onde a simetria dominava tudo. Até a fonte de mármore branco, permanentemente a borbulhar no meio do pátio, parecia controlada e domesticada. A fonte tinha um fino friso de faiança azul e branco que reproduzia o desenho das incrustações que uniam os azulejos quadrados no chão. O pátio era rodeado por uma galeria de arcos, sustentada por quatro colunas a cada um dos cantos. As colunas eram de mármore na base e no capitel; no centro, os azulejos azuis e brancos reproduziam como um espelho os desenhos da fonte e do pavimento. Ao fundo do pátio havia quatro enormes salões dispostos em pares, em frente uns dos outros. Cada salão tinha uma entrada central gigantesca que dava para o pátio, ladeada por duas enormes janelas. De manhã cedo, e também no inverno, as entradas costumavam estar fechadas com as suas portas de cedro, talhadas com desenhos de flores. Mas no verão as portas costumavam estar abertas e as entradas eram cobertas com cortinados de espesso brocado, veludo e renda, que permitiam que a brisa circulasse, mas impediam a entrada da luz e dos ruídos. As janelas do salão tinham postigos de madeira trabalhada no interior, tal como as portas, mas do exterior só se viam as grades prateadas de ferro forjado, encimadas por uns arcos de cristal de cores maravilhosas. Eu gostava daqueles arcos de vidro colorido, pela forma como o sol da manhã ia transformando os seus encarnados e azuis em tonalidades diferentes, e suavizando os amarelos. No verão as janelas ficavam abertas de par em par, tal como as pesadas portas de madeira, e os cortinados só eram corridos à noite e durante a sesta, para proteger o sono.
Quando se levantava o olhar para o céu via-se uma bela estrutura de dois andares cujos pisos superiores repetiam a colunata arqueada do pátio, protegida por um parapeito de ferro forjado. E por último havia o céu – suspenso no alto mas também de uma forma rigorosamente quadrada, como tudo o resto, e bem marcado num friso de madeira com um desenho geométrico em desmaiados tons ocres e dourados.
Contemplar o céu do pátio era uma experiência avassaladora. A princípio parecia domesticado por causa daquela estrutura quadrada feita pela mão do homem. Mas depois o movimento das primeiras estrelas da manhã desvanecia-se lentamente no profundo azul e branco e tornava-se tão intenso que nos entontecia. Na verdade, em alguns dias, especialmente durante o inverno, quando os raios do sol púrpura e rosa intenso expulsavam do céu as últimas estrelas que cintilavam teimosamente, ficavam facilmente hipnotizados. E assim, contemplando o céu quadrado, com a cabeça recostada, deixávamo-nos adormecer; mas precisamente nessa altura as pessoas começavam a invadir o pátio, vindas de todos os lados, das portas e das escadas... Ah, quase me esquecia das escadas. Ficavam nos quatro cantos do pátio e eram importantes porque até os adultos se entregavam a uma espécie de gigantesco jogo das escondidas subindo e descendo pelos seus reluzentes degraus verdes.
O salão do meu tio, da sua mulher e dos seus sete filhos ficava mesmo em frente do local onde eu estava sentada, e era uma reprodução exata do nosso próprio salão. A minha mãe não admitia diferenças publicamente visíveis entre o nosso salão e o do tio Ali, embora ele fosse o primogénito e a tradição estabelecesse o seu direito a aposentos mais amplos e luxuosos. O meu tio não só era mais velho e mais rico do que o meu pai, como também tinha uma família mais numerosa. Nós éramos apenas cinco: a minha irmã, o meu irmão, os meus pais e eu. A família do meu tio era formada por nove pessoas (ou dez, se contássemos com a irmã da sua mulher, que vinha frequentemente de Rabat para visitá-los e que por vezes ficava seis meses seguidos, desde que o marido arranjara uma segunda mulher). Mas a minha mãe, que odiava a vida comunitária do harém e sonhava com um eterno tête-à-tête com o meu pai, só aceitara o que ela chamava o acordo da azma (situações de crise) com a condição de que não fossem feitas quaisquer distinções entre as esposas. Ela desfrutava exatamente dos mesmos privilégios da mulher do meu tio, apesar das suas diferenças de classe. O meu tio respeitava escrupulosamente este acordo porque num harém bem dirigido quanto mais poder se tinha, mais generoso se tinha de ser. Na verdade, os seus filhos dispunham de mais espaço, mas unicamente nos andares de cima, longe do pátio, que era um lugar demasiado público. O poder não devia ser ostentado descaradamente.
A nossa avó paterna, Lalla Mani, ocupava o salão à minha esquerda. Só lá íamos duas vezes por dia, uma vez de manhã para lhe beijar a mão e outra vez à noite, para repetir o ritual. À semelhança de todos os outros salões, também o dela estava mobilado com divãs cobertos de brocado de seda e almofadas ao longo das quatro paredes; além de um grande espelho central, que refletia o lado interior da porta e os seus cortinados cuidadosamente dispostos, e um tapete floreado, em tons claros, que cobria completamente o chão. Não podíamos pisar o tapete da minha avó com as babuchas calçadas, e muito menos com os pés molhados, o que era praticamente impossível de evitar durante o verão, porque o chão do pátio era regado duas vezes por dia com água da fonte para o refrescar. Quando era preciso limpá-lo, as jovens da família, como a minha prima Chama e as suas irmãs, aproveitavam a ocasião para jogar a la piscine (a piscina), que consistia em deitar baldes de água para o chão e salpicar «acidentalmente» as pessoas que se encontrassem nas proximidades. Isto, claro, encorajava os mais novos (especificamente o meu primo Samir e eu) a correr para a cozinha e a voltar armados com a mangueira de regar. Nessa altura, sim, encharcávamos toda a gente, e todos gritavam e tentavam deter-nos. Os nossos gritos incomodavam inevitavelmente Lalla Mani que, zangada, levantava as cortinas e nos avisava que nessa mesma noite faria queixa ao meu tio e ao meu pai.
– Vou dizer-lhes que já ninguém respeita a autoridade nesta casa – dizia-nos.
Lalla Mani detestava levar com água, tanto como detestava pés molhados. Na verdade, se íamos falar com ela depois de termos estado junto da fonte, dizia-nos para não nos mexermos um centímetro.
– Não falem comigo com os pés molhados – dizia. – Vão secar-se primeiro.
Na opinião de Lalla Mani, qualquer pessoa que violasse a regra dos pés limpos e secos ficava estigmatizada para sempre; e se nos atrevêssemos a cometer a ousadia de pisar ou manchar o seu tapete floreado, recordava-nos a desobediência durante muitos anos. Lalla Mani gostava de ser respeitada, isto é, que a deixassem contemplar o pátio em silêncio, tranquilamente sentada com o seu toucado de joias. Gostava de estar rodeada de um profundo silêncio. O silêncio era o privilégio luxuoso de que apenas desfrutavam os poucos afortunados que podiam permitir-se manter os filhos afastados.
Por último, à direita do pátio ficava o salão mais elegante e maior de todos: a sala de jantar dos homens, onde eles comiam, ouviam as notícias, fechavam negócios e jogavam às cartas. Teoricamente, os homens eram os únicos membros da casa que tinham acesso à enorme telefonia guardada no canto direito à entrada do salão; quando a telefonia não estava ligada, as portas do móvel permaneciam fechadas à chave (mas havia altifalantes instalados fora para que todos pudessem ouvi-la). O meu pai estava convencido de que ele e o meu tio tinham as únicas chaves do móvel. No entanto, por estranho que pareça, quando os homens não estavam em casa, as mulheres arranjavam maneira de ouvir a Rádio Cairo regularmente. Quando não havia homens à vista, Chama e a minha mãe costumavam dançar ao som das músicas que tocavam e cantavam «Ahwa» (estou apaixonada) com a princesa libanesa Asmahan. Lembro-me perfeitamente da primeira vez em que os adultos utilizaram a palavra khain (traidores) para se referirem a Samir e a mim quando o meu pai nos perguntou o que havíamos feito enquanto ele estava fora e lhe contámos que tínhamos ouvido a Rádio Cairo. A nossa resposta indicava a existência de uma chave ilegal. Indicava, mais especificamente, que as mulheres haviam roubado a chave para fazerem uma cópia.
– Se fizeram uma cópia da chave da telefonia, em breve farão uma para abrir os portões da rua – resmungou o meu pai. Seguiu-se uma acesa discussão e as mulheres foram interrogadas uma a uma no salão dos homens; mas ao fim de dois dias de investigação concluiu-se que a chave do móvel devia ter caído do céu. Ninguém sabia de onde surgira.
Apesar disso, depois da investigação as mulheres vingaram-se em nós, dizendo que éramos uns traidores e que por isso iriam excluir-nos dos seus jogos. Isto era uma perspectiva aterrorizadora e defendemo-nos alegando que apenas disséramos a verdade. A minha mãe replicou então que havia coisas que com efeito eram verdade, mas que uma pessoa não podia dizê-las: devia guardá-las em segredo. E acrescentou que o que uma pessoa diz e o que guarda em segredo não tem nada a ver com a verdade e com as mentiras. Pedimos-lhe que nos ensinasse a reconhecer a diferença, mas não nos deu nenhuma resposta satisfatória.
– Têm de julgar por vocês próprios as consequências das vossas palavras – disse. – Se o que vocês dizem pode prejudicar alguém, então é melhor ficarem calados.
Este conselho não nos ajudou grande coisa. O pobre Samir odiava que lhe chamassem traidor. Revoltou-se e exclamou que era livre para dizer o que queria. Eu, como de costume, admirei a sua audácia, mas mantive-me silenciosa. Se, para além de ter de distinguir a verdade das mentiras (o que já me estava a dar bastante trabalho), também tinha de distinguir esta nova categoria de «secreto», acabaria completamente confusa e não teria outro remédio senão aceitar que de vez em quando me insultassem e me chamassem traidora.
Um dos meus prazeres semanais era admirar Samir quando organizava os seus motins contra os adultos, e eu sentia que se permanecesse a seu lado nada de mal me aconteceria. Samir e eu tínhamos nascido no mesmo dia, numa longa tarde de Ramadão1, com uma escassa hora de diferença. Ele nasceu primeiro, no segundo andar, e era o sétimo filho. Eu nasci uma hora depois no salão do andar de baixo; era a primogénita dos meus pais, e embora a minha mãe estivesse exausta, insistiu em que as minhas tias e familiares celebrassem por mim as mesmas cerimónias a que Samir tivera direito. Nunca admitiu a superioridade masculina, que considerava absurda e totalmente antimuçulmana – «Alá fez-nos a todos iguais», costumava dizer. A casa, como ela recordaria mais tarde, vibrou pela segunda vez com o tradicional yu-yu-yu-yu2 e os cânticos festivos, e os vizinhos ficaram confusos porque pensaram que tinham nascido dois rapazes. O meu pai estava excitadíssimo: eu era bastante rechonchuda e tinha a cara redonda «como uma lua», e ele decidiu imediatamente que eu seria muito bela. Para o provocar, Lalla Mani disse-lhe que eu era um pouco pálida de mais e tinha os olhos demasiado rasgados e as bochechas demasiado altas, enquanto Samir tinha «uma bela cor de um moreno dourado e uns olhos pretos aveludados como nunca se vira». A minha mãe contou-me depois que ficara calada, mas que assim que conseguiu pôr-se de pé foi a correr verificar se era verdade que Samir tinha os olhos aveludados, e que efetivamente assim era. Ainda os tem, embora toda essa doçura aveludada desapareça quando está zangado com alguma coisa, e sempre me perguntei se a sua tendência para se pôr aos saltos quando se revoltava contra os adultos não se deveria muito simplesmente à sua forte constituição.
Eu, pelo contrário, era tão rechonchuda que nunca me passou pela cabeça saltar quando alguém me aborrecia; limitava-me a chorar e ia esconder-me entre as pregas do cafetã da minha mãe, que me dizia que eu não podia contar que Samir se revoltaria sempre para me proteger.
–Tens de aprender a gritar e a protestar, do mesmo modo como aprendeste a andar e a falar. Chorar quando és insultada é como pedir mais.
A minha mãe preocupava-se tanto com a ideia de que eu me transformasse numa mulher submissa que durante as férias de verão consultou a avó Yasmina, que era exímia em confrontos. A avó aconselhou-a a deixar de me comparar com Samir e a incitar-me a desenvolver uma atitude protetora para com as crianças mais novas.
– Há muitas formas de criar uma personalidade forte – disse. – Uma delas é desenvolver a capacidade de se responsabilizar pelos outros. Ser simplesmente agressiva quando o vizinho do lado comete um erro é uma forma de o conseguir, mas não é certamente a mais elegante. Incitar uma criança a responsabilizar-se pelos mais pequenos no pátio permitir-lhe-á criar defesas. Agarrar-se à proteção de Samir poderia ser uma solução, mas se ela aprender a proteger os outros poderá usar a mesma técnica para se proteger a si própria.
No entanto, foi o incidente da telefonia que me ensinou uma lição importante. Foi nessa altura que a minha mãe me explicou a necessidade de mastigar bem as palavras antes de as deixar sair cá para fora.
– Não abras a boca sem ter mastigado as palavras com os lábios bem fechados – disse. – Porque uma vez proferidas, podes ter muito a perder.
Mais tarde lembrei-me de que num dos contos de As Mil e Uma Noites uma palavra mal proferida poderia trazer a desgraça ao infeliz que, ao pronunciá-la, poderia desagradar ao califa ou ao rei. Por vezes até chamavam o siaf, o carrasco.
Contudo, as palavras podiam salvar a pessoa que as soubesse manejar engenhosamente. Foi o que aconteceu a Xerazade, a autora dos mil e um contos. O rei estava quase a cortar-lhe a cabeça mas ela conseguiu impedi-lo no último instante utilizando apenas palavras. Eu estava ansiosa por saber como o tinha feito.
1 Ramadão, o nono mês sagrado do calendário muçulmano, é cumprido com um jejum que vai do nascer do dia até ao pôr do sol.
2 yu-yu-yu-yu é uma canção alegre que as mulheres cantam para celebrar os acontecimentos felizes, desde o nascimento e o casamento até aos mais simples, tais como o terminar de um bordado ou a organização de uma festa para uma tia velha.
XERAZADE, O REI E AS PALAVRAS
Um dia à tarde a minha mãe arranjou o tempo necessário para me explicar porque os contos de As Mil e Uma Noites se chamavam assim. Não era nenhum acaso, pois em cada uma daquelas incontáveis noites Xerazade, a jovem esposa, teve de contar uma história emocionante e envolvente para conseguir que o seu marido, o rei, esquecesse o seu terrível plano de a executar ao amanhecer. Fiquei aterrorizada.
– Mãe, queres dizer que o rei chamaria o seu siaf se não gostasse do conto de Xerazade?
Continuei a procurar alternativas para a pobre rapariga. Eu queria que houvesse outras possibilidades. Porque não podia o rei deixar que Xerazade vivesse embora não gostasse do conto? Porque não podia Xerazade dizer simplesmente o que quisesse sem ter de se preocupar com o rei? Ou porque não podia dar a volta à situação no palácio e pedir que o rei lhe contasse a ela uma história empolgante todas as noites? Assim ele compreenderia como era horrível ter de agradar a alguém que nos podia cortar a cabeça. A minha mãe disse-me que primeiro eu tinha de conhecer os detalhes e que depois poderia procurar soluções.
Explicou-me que o casamento de Xerazade com o rei decorrera em circunstâncias terríveis. O rei Xariar surpreendera a sua mulher na cama com um escravo e, profundamente magoado e enraivecido, decapitara-os a ambos. No entanto, para seu grande espanto, descobriu que o duplo assassinato não apaziguara a sua cólera. A vingança tornou-se uma obsessão para ele. Precisava de matar mais mulheres. Por isso pediu ao vizir, o oficial mais importante da sua corte, que por acaso também era o pai de Xerazade, que lhe levasse uma donzela diferente todas as noites. Desposava-as, passava a noite com elas e ao amanhecer ordenava que as executassem. E assim fez durante três anos, matando mais de mil jovens inocentes, «até que o povo levantou o seu grito irado contra ele e o amaldiçoou, pedindo a Alá que acabasse com ele e o seu reinado; as mulheres clamaram e as mães choraram e os pais fugiram com as suas filhas até que na cidade não ficou uma única pessoa jovem para a cópula carnal»3. Cópula carnal, explicou a minha mãe quando o primo Samir se pôs a dar saltos, pedindo aos gritos uma explicação, era quando a noiva e o noivo se deitavam na mesma cama e dormiam até de manhã.
Chegou finalmente o dia em que só restavam duas donzelas na cidade: Xerazade, a filha mais velha do vizir, e a sua irmãzinha Doniazade. Quando o vizir chegou a casa nessa noite, pálido e preocupado, Xerazade perguntou-lhe o que se passava. O vizir contou-lhe o seu problema e ficou surpreendido com a reação da jovem: em vez de lhe suplicar que a ajudasse a escapar, ofereceu-se imediatamente para ir passar a noite com o rei. «Desejo que me ofereçais em casamento ao rei Xariar», disse. «Viverei ou serei o resgate das donzelas muçulmanas e a causa da sua libertação das mãos dele e das tuas.»
O pai de Xerazade, que a amava ternamente, opôs-se a este plano e tentou convencê-la a ajudá-lo a encontrar outra solução. Oferecê-la em casamento a Xariar era o mesmo que condená-la a uma morte certa. Mas, ao contrário de seu pai, ela estava persuadida de que tinha um poder excecional e que conseguiria pôr fim às mortes. Curaria a alma atormentada do rei falando-lhe de coisas que haviam acontecido a outros. Levá-lo-ia a terras longínquas para que observasse costumes estranhos e tomasse uma maior consciência da sua própria estranheza interior. Ajudá-lo-ia a ver a sua própria prisão, o seu ódio obsessivo pelas mulheres. Xerazade tinha a certeza de que se conseguisse fazer com que o rei se visse a si próprio, desejaria mudar e amar mais. Finalmente o vizir acedeu contrariado e Xerazade casou-se nessa mesma noite com Xariar4.
Ao entrar nos aposentos do rei, Xerazade começou a contar-lhe um conto maravilhoso e interrompeu-o tão habilmente na parte mais emocionante que ele não conseguiu suportar separar-se dela ao amanhecer, de forma que a deixou viver até à noite seguinte para que acabasse de o contar. Na segunda noite, Xerazade contou-lhe outra história maravilhosa, mas como ao romper a aurora ainda não tinha acabado, o rei teve de lhe poupar a vida outra vez. Na terceira noite aconteceu o mesmo, e na seguinte, e assim durante mil noites, que são quase três anos, até que o rei não conseguiu imaginar a sua vida sem ela. Nessa altura já tinham dois filhos, e ao cabo de mil e uma noites o rei renunciou ao seu horrível costume de decapitar as mulheres.
– Mas como se aprende a contar histórias que agradem aos reis? – perguntei quando a minha mãe acabou de contar a história de Xerazade.
A minha mãe murmurou, como se estivesse a falar para consigo, que esse era precisamente o trabalho que ocupava as mulheres durante toda a sua vida. A resposta não me ajudou grande coisa, claro, mas depois acrescentou que a única coisa que eu precisava de saber de momento era que as minhas possibilidades de ser feliz dependeriam da minha habilidade com as palavras. Sabendo isto, Samir e eu – «que graças ao incidente da telefonia tínhamos decidido deixar de aborrecer os adultos com palavras inoportunas» – começámos a treinar-nos. Passávamos horas a praticar em silêncio, mastigando as palavras e revirando-as sete vezes na língua enquanto olhávamos para os adultos para ver se reparavam em alguma coisa. Mas os adultos nunca reparavam em nada, e menos ainda no pátio, onde a vida era muito correta e estrita. Só nos andares de cima as coisas eram menos rígidas. Aí, as tias divorciadas e viúvas, os seus filhos e outros parentes ocupavam um labirinto de pequenos quartos. O número de familiares que viviam connosco num determinado momento variava segundo a quantidade de problemas que tivessem. Em certas alturas, uma parente afastada desavinda com o marido vinha bater à nossa porta e durante algumas semanas refugiava-se nos andares superiores. Outras vezes vinham com os seus filhos passar apenas alguns dias, só para mostrar aos maridos que tinham outro sítio onde ficar, que se podiam desembaraçar sozinhas e que não estavam completamente dependentes. (Esta estratégia resultava frequentemente e voltavam para casa numa posição mais forte para negociar.) Mas outras parentes ficavam para sempre depois de um divórcio ou de qualquer outro problema grave, e esta era uma das tradições que preocupavam o meu pai quando alguém atacava a instituição do harém. «Para onde irão as mulheres aflitas?», costumava ele dizer.
Os quartos de cima eram muito simples: pavimento de azulejos brancos, paredes caiadas e poucos móveis. Havia alguns divãs muito estreitos, cobertos com mantas rústicas de algodão estampado com flores, almofadas e esteiras de ráfia facilmente laváveis. Os pés molhados, as babuchas e até mesmo uma chávena de chá entornada sem querer não provocavam aqui reações tão exageradas como lá em baixo. A vida nos andares de cima era muito mais agradável, principalmente porque tudo era acompanhado de hanan, uma qualidade emocional marroquina que poucas vezes encontrei noutro lugar. É difícil defini-la com exactidão, mas consiste basicamente numa corrente de ternura que flui com naturalidade, despreocupada e sempre disponível. As pessoas que oferecem hanan, como a minha tia Habiba, nunca ameaçam retirar o seu afeto a alguém que cometa um erro leve ou mesmo uma infração grave mas involuntária. Em baixo era difícil encontrar hanan, especialmente entre as mães, que estavam demasiado ocupadas a ensinar os filhos a respeitar as fronteiras para se preocuparem com a ternura.
Lá em cima era também o lugar onde se contavam histórias. No cimo de centenas de degraus reluzentes ficava o terceiro e último andar da casa e em frente o terraço, todo caiado, espaçoso e acolhedor. Era ali que vivia a tia Habiba, no seu quarto pequeno e bastante vazio. O seu marido ficara com todas as coisas do casamento, achando que desse modo poderia levantar um dedo para que ela voltasse de cabeça baixa a correr para junto dele.
– Mas nunca poderá tirar-me o mais importante – dizia por vezes a tia Habiba –, a minha alegria e todas as histórias maravilhosas que posso contar quando o público o merece.
Uma vez perguntei à minha prima Malika o que queria a nossa tia dizer com «um público que não merece», e ela confessou que também não sabia. Eu disse-lhe que talvez devêssemos perguntá-lo à tia Habiba pessoalmente, mas Malika disse que era melhor não o fazer porque a tia Habiba poderia começar a chorar. A tia Habiba chorava frequentemente sem razão, todos o diziam. Mas nós gostávamos muito dela e às quintas-feiras à noite quase não conseguíamos dormir por causa da excitação das histórias das sextas-feiras. Estas reuniões costumavam acabar numa grande confusão porque se prolongavam demasiado, e as nossas mães viam-se obrigadas a subir as escadas para nos ir buscar. E então protestávamos, e os meus primos mais mimados, como Samir, rebolavam-se pelo chão e gritavam que não tinham sono.
Mas quando conseguíamos ficar até ao final da história, isto é, até que a heroína vencia os seus inimigos e regressava por sobre «os sete rios, as sete montanhas e os sete mares», tínhamos de defrontar-nos com outro problema, o medo de descer as escadas. Em primeiro lugar, não havia luz. Ahmed, o porteiro, controlava todos os interruptores a partir da entrada. Apagava as luzes às nove da noite para indicar a todos os que se encontrassem no terraço que deviam entrar e que o trânsito ficava oficialmente interrompido. O segundo problema era uma população inteira de djinnis, uns demónios que rastejavam em silêncio lá fora à espera de nos saltarem em cima. E por último, mas não menos importante, havia o facto de o primo Samir imitar tão bem os djinnis que muitas vezes o tomei por um a sério. Em várias ocasiões tive de fingir que desmaiava para ele deixar de fingir que era um djinni.
Por vezes, quando uma história durava horas e as nossas mães ainda não tinham ido buscar-nos, a casa ficava subitamente mergulhada no silêncio e suplicávamos à tia Habiba que nos deixasse passar a noite com ela. Então ela estendia o seu precioso tapete nupcial, que guardava cuidadosamente dobrado atrás do baú de cedro, e cobria-o com um lençol limpo e perfumado com água de flor de laranjeira, reservada para a ocasião. Usávamos as almofadas como travesseiros e embora não fossem suficientes para todos, não nos importávamos. Partilhava connosco a sua grande e espessa manta de lã, apagava a luz e colocava uma grande vela no patamar, aos nossos pés.
– Se por acaso alguém precisar de ir urgentemente ao quarto de banho – dizia –, lembrem-se de que este tapete é a única recordação que me resta da minha vida anterior como mulher casada e feliz.
Assim, naquelas noites encantadas adormecíamos ao som da voz da nossa tia, uma voz que abria portas de vidro mágicas que davam para pradarias banhadas pelo luar. E quando acordávamos de manhã, a cidade inteira estava aos nossos pés. O quarto da tia Habiba era pequeno, mas tinha uma grande janela com uma vista que se estendia até às montanhas do norte.
Ela sabia como falar no escuro. Valendo-se apenas de palavras, podia pôr-nos num grande navio que navegava desde Adem até às Maldivas, ou levar-nos até a uma ilha onde os pássaros falavam como seres humanos. Embalados pelas suas palavras, viajávamos para além de Cind e Hind (Índia), deixávamos para trás os territórios muçulmanos, vivíamos perigosamente e fazíamos amizade com cristãos e judeus, que partilhavam os seus estranhos alimentos connosco e nos observavam a rezar as nossas orações, tal como nós os observávamos a rezar as suas. Por vezes viajávamos até terras tão longínquas que não havia deuses, apenas adoradores do Sol e do fogo, mas a tia Habiba apresentava-os de tal maneira que até nos pareciam afáveis e simpáticos. As suas histórias faziam-me desejar ser adulta para me transformar numa contadora profissional de histórias. Queria aprender a arte de falar no escuro.
3 Citação retirada da excelente tradução The Book of the Thousand and One Nights, de Richard F. Burton, editado pelo Burton Club, sem data (introdução escrita em 1885), vol. I, p. 14. Mas por vezes a tradução de Burton pode ser um pouco confusa por causa da linguagem arcaica. Talvez as traduções mais recentes sejam mais simples para os leitores principiantes.
4 Fiquei surpreendida ao aperceber-me de que muitos ocidentais consideravam Xerazade uma animadora encantadora mas simplória, alguém que narra histórias inócuas e se veste de maneira fabulosa. No nosso mundo, Xerazade é vista como uma heroína corajosa e é uma das nossas raras figuras míticas femininas, uma estratega e grande pensadora que utiliza o seu conhecimento psicológico dos seres humanos para os fazer andar mais depressa e saltar mais alto. Como Aladino e Simbad, torna-nos mais ousados, mais seguros de nós mesmos e da nossa capacidade para transformar o mundo e os seus habitantes.
O HARÉM FRANCÊS
O portão de nossa casa era uma hudud, ou fronteira bem definida, porque era necessária uma autorização para entrar e sair. Havia que justificar cada movimento e até o próprio facto de nos aproximarmos do portão despoletava todo um processo complicado. Se se vinha do pátio, primeiro havia que atravessar um corredor interminável e depois dava-se de caras com Ahmed, o porteiro, que costumava estar sentado no seu divã-trono, sempre com a bandeja de chá ao lado para oferecer ao primeiro que aparecesse. Como o direito de passagem implicava invariavelmente um processo de negociação bastante complexo, convidava as pessoas que queriam sair a sentar-se junto dele no seu imponente divã, ou à sua frente, devidamente relaxadas num inverosímil «fauteuil d’França», uma espécie de cadeira dura, velha e almofadada, que ele mesmo tinha escolhido numa pouco habitual visita ao jutya, a feira de antiguidades local. Ahmed costumava ter ao colo o mais novo dos seus cinco filhos, porque tomava conta deles quando Luza, a sua mulher, ia trabalhar. Luza era uma cozinheira de primeira e aceitava trabalhos ocasionais fora da nossa casa quando lhe pagavam bem.
O portão da nossa casa era uma gigantesca arcada de pedra com imponentes portas de madeira trabalhada, separando o harém das mulheres de todos os estrangeiros de sexo masculino que passassem na rua (a honra e o prestígio do meu tio e do meu pai dependiam daquela separação, diziam-nos). As crianças podiam sair sempre que os pais lhes dessem autorização, mas as mulheres adultas não.
– Eu acordaria de madrugada – dizia a minha mãe de vez em quando – se pudesse sair para passear de manhã cedo quando as ruas estão desertas. A essa hora a luz deve ser azul, ou talvez cor-de-rosa, como durante o crepúsculo. De que cor será a manhã nas ruas silenciosas e desertas?
Ninguém respondia às perguntas da minha mãe. Num harém as perguntas não implicam necessariamente obter respostas. Faz-se perguntas apenas para se compreender o que está a acontecer. Deambular livremente pelas ruas era o sonho de todas as mulheres. A história mais popular da tia Habiba, que ela contava apenas em ocasiões especiais, falava da «mulher com asas», uma mulher que podia sair a voar do pátio sempre que queria. Cada vez que a tia Habiba nos contava esta história, as mulheres do pátio enfiavam os cafetãs no cinto e dançavam com os braços estendidos como se fossem levantar voo. A minha prima Chama, que nessa altura tinha dezassete anos, confundiu-me durante anos, porque me convenceu de que todas as mulheres tinham asas invisíveis, e que as minhas também cresceriam quando eu fosse maior.
O portão da nossa casa também nos protegia dos estrangeiros que estavam a poucos metros de distância, numa outra fronteira igualmente concorrida e perigosa: a que separava a nossa cidade antiga, a Medina, da nova cidade francesa, a Ville Nouvelle. Por vezes, quando Ahmed estava a falar com alguém ou a dormir uma sesta, os meus primos e eu escapulíamo-nos pelo portão para dar uma espreitadela aos soldados franceses: vestiam uniformes azuis, levavam espingardas ao ombro e tinham pequenos olhos cinzentos sempre alerta. Tentavam frequentemente falar connosco porque os adultos nunca falavam com eles, mas tinham-nos ordenado que nunca lhes respondêssemos. Sabíamos que os franceses eram gananciosos e que tinham percorrido um longo caminho para conquistar a nossa terra, embora Alá já lhes tivesse dado uma bonita terra, com cidades buliçosas, florestas frondosas, belos campos verdes e vacas muito maiores do que as nossas e que davam quatro vezes mais leite. Mas por alguma razão os franceses precisavam de obter mais.
Como nós vivíamos na fronteira entre a cidade antiga e a nova, podíamos ver como a Ville Nouvelle francesa era diferente da nossa Medina. A Ville Nouvelle tinha ruas grandes e a direito, iluminadas à noite por luzes brilhantes (o meu pai dizia que desperdiçavam a energia de Alá, porque as pessoas não precisavam de tantas luzes brilhantes numa cidade segura). Também tinham carros velozes. As ruas da nossa Medina eram estreitas, escuras e sinuosas, com tantas voltas e reviravoltas que os carros não podiam entrar, e quando os estrangeiros se aventuravam nelas não conseguiam encontrar o caminho de volta. Esta era a verdadeira razão pela qual os franceses tiveram de construir uma nova cidade: tinham medo de viver na nossa.
Na Medina quase toda a gente andava a pé. O meu pai e o meu tio tinham mulas, mas os pobres como Ahmed apenas tinham burros, e as crianças e as mulheres tinham de andar a pé. Os franceses tinham medo de andar a pé. Andavam sempre de carro. Quando as coisas se tornavam complicadas, nem sequer os soldados se atreviam a sair dos seus carros. O medo deles surpreendia-nos porque nos apercebemos de que os adultos podiam ter tanto medo como nós. E aqueles adultos que tinham medo estavam no exterior, e eram supostamente livres. Os poderosos que haviam criado a fronteira eram também os que tinham medo. A Ville Nouvelle era como o seu harém: também eles não podiam andar livremente pela nossa Medina, tal como as mulheres. No fundo, uma pessoa podia ter muito poder e não obstante ser prisioneira de uma fronteira.
Embora a maioria das vezes os soldados franceses parecessem extremamente jovens, assustados e solitários nos seus postos, aterrorizavam a Medina inteira. Tinham poder e podiam fazer-nos mal.
A minha mãe contava-nos que num dia de janeiro de 1944 o rei Mohammed V, apoiado por nacionalistas de todo o Marrocos, tinha ido ver o administrador colonial francês mais importante, o Résident General, para lhe apresentar um pedido formal de independência. O Résident General ficara muito aborrecido. «Como é que vocês, marroquinos, se atrevem a pedir a independência?!», deve ter gritado; e, para nos castigar, enviou os seus soldados para a Medina. Os carros blindados abriram caminho pelas ruas sinuosas tão depressa quanto puderam. As pessoas voltaram-se para Meca para rezar. Milhares de pessoas recitaram a oração da ansiedade que consiste na repetição de uma única palavra durante horas quando uma pessoa enfrenta algum desastre: «ya latif, ya latif, ya latif!» (oh Misericordioso!). Ya latif é uma das centenas de nomes que damos a Alá, e a tia Habiba costumava dizer que era o mais belo de todos porque descreve Alá como uma fonte de terna compaixão, que sente a nossa dor e nos pode ajudar. Mas os soldados franceses vinham armados e ao verem-se encurralados nas estreitas ruas da Medina, rodeados pelos cânticos de Ya latif repetidos milhares de vezes, ficaram nervosos e perderam o controlo, começando a disparar contra a multidão de fiéis. Em poucos minutos os cadáveres amontoavam-se à porta da mesquita, enquanto os cânticos continuavam lá dentro. A minha mãe contou-nos que quando isto aconteceu Samir e eu tínhamos apenas quatro anos e que ninguém reparara que estávamos junto ao portão a observar enquanto os cadáveres ensanguentados, todos vestidos com a djellaba branca cerimonial, eram transportados para suas casas.
– Samir e tu tiveram pesadelos durante meses – disse a minha mãe – e cada vez que vias algo encarnado corrias para te esconderes. Tivemos de te levar ao santuário de Mulay Driss muitas sextas-feiras seguidas para que os sharifs (homens sagrados) celebrassem ritos protetores para ti, e durante um ano tive de pôr um amuleto corânico debaixo da tua almofada, até voltares a dormir normalmente.
Depois daquele dia trágico, os franceses andavam sempre armados por toda a parte, enquanto o meu pai teve de pedir autorização a diferentes autoridades só para poder conservar a sua espingarda de caça, e mesmo assim tinha de a levar escondida, exceto na floresta.
Todos estes acontecimentos me desconcertaram e falei muitas vezes deles com Yasmina, a minha avó materna, que vivia numa bonita quinta, rodeada de vacas e ovelhas e infindáveis prados de flores, uma centena de quilómetros a oeste, entre Fez e o oceano. Íamos visitá-la uma vez por ano e eu falava com ela de fronteiras, de medos, de diferenças e do porquê de tudo isto. Yasmina sabia muito acerca do medo, de todos os tipos de medos.
– Sou uma perita em medo, Fatima – dizia-me, acariciando-me a testa enquanto eu brincava com as suas pérolas e contas cor-de-rosa. – Quando fores mais velha, explicar-te-ei as coisas. Vou ensinar-te a vencer os medos.
Muitas vezes não conseguia dormir nas primeiras noites que passava na quinta de Yasmina, porque lá as fronteiras não estavam suficientemente definidas. Não havia portões fechados em lado nenhum, apenas campos planos e imensos onde as flores cresciam e os animais passeavam tranquilamente. Mas Yasmina explicou-me que a quinta era parte da terra original de Alá, que não tinha fronteiras, apenas vastas extensões sem barreiras nem limites e que eu não devia ter medo. Mas como podia eu passear pelo descampado sem ser atacada?, perguntava incessantemente. E então Yasmina, para me ajudar a dormir, inventou um jogo que eu adorava: chamava-se mshia-f-lekhla (o passeio pelos campos). Abraçava-me com força quando me deitava e eu segurava nas mãos as contas dos seus colares, fechava os olhos e imaginava-me a passear por um infindável campo florido.
– Anda com cuidado – dizia-me Yasmina – para poderes ouvir a canção das flores. Estão a murmurar «saiam, saiam» (paz, paz).
Então eu repetia o canto das flores tão depressa quanto conseguia, o perigo desaparecia e eu adormecia. «Salam, salam», murmuravam as flores, Yasmina e eu. E no instante seguinte era já de manhã e eu estava na enorme cama de ferro de Yasmina, com as mãos cheias de pérolas e contas cor-de-rosa. Lá de fora chegava a música da brisa que acariciava as folhas e dos pássaros que falavam uns com os outros; e não se via vivalma, à exceção do Rei Faruk, o pavão, e Thor, o pato branco rechonchudo.
Na verdade, Thor também era o nome da coesposa do meu avô que Yasmina mais detestava, embora eu só pudesse chamar-lhe assim em pensamentos. Quando pronunciava o seu nome em voz alta, tinha de dizer Lalla Thor. Lalla é o tratamento respeitoso que damos a todas as mulheres importantes, tal como Sidi é o tratamento de respeito que damos a todos os homens importantes. Na minha condição de criança, tinha de chamar Lalla e Sidi a todos os adultos importantes, e beijar-lhes a mão ao pôr do sol, quando se acendiam as luzes e dávamos as msakum (boas noites). Todas as noites Samir e eu tínhamos de beijar a mão a todos os presentes o mais rapidamente possível se queríamos continuar com os nossos jogos sem ouvir a desagradável observação de que a tradição estava a perder-se. Fazíamo-lo tão bem que conseguíamos realizar todo o ritual a uma velocidade incrível, mas por vezes corríamos tanto que chocávamos um com o outro e caíamos no colo das pessoas importantes ou até mesmo no tapete. Nessas alturas todos desatavam a rir. A minha mãe ria até ter lágrimas nos olhos.
– Coitadinhos – dizia –, já estão fartos de beijar mãos, e ainda agora começaram.
Mas, na quinta, Lalla Thor nunca ria, tal como Lalla Mani também não o fazia em Fez. Estava sempre muito séria e era extremamente formal e correta. Como primeira mulher do avô Tazi, ocupava uma posição muito importante na família. Era muito rica e em casa não tinha obrigações, dois privilégios que Yasmina não aceitava.
– Pouco me importa que seja muito rica – dizia Yasmina –, mas deveria trabalhar como todas nós. Somos muçulmanas ou não? Se o somos, todas deveríamos trabalhar. Alá assim o disse. E o mesmo pregou o seu profeta.
Yasmina dizia-me que eu nunca deveria aceitar a desigualdade porque não era lógica. Por isso tinha dado ao seu pato rechonchudo o nome de Lalla Thor.
A PRIMEIRA COESPOSA DE YASMINA
Lalia Thor ficou fora de si quando soube que Yasmina tinha posto o seu nome a um pato. Chamou o avô Tazi ao seu salão, que na verdade era um palácio independente, com um jardim interior, uma grande fonte e um esplêndido vitral de vidro veneziano que ocupava toda a parede de dez metros de comprimento. O avô apareceu relutante, caminhando com grandes passadas, com um exemplar do Corão na mão, como que para mostrar que fora interrompido na sua leitura. Vestia as suas habituais calças brancas de algodão largas, qamis branca e farajiya de chiffon branco de algodão e as suas babuchas de couro amarelo5. Dentro de casa nunca vestia djellaba, exceto quando recebia visitas.
O meu avô tinha o aspeto físico típico dos nortenhos da região do Rif, de onde era originária toda a sua família. Era um homem alto e esbelto, com uma cara angulosa, tez clara, olhos claros bastante pequenos e um ar altivo e muito distante. As pessoas do Rif eram orgulhosas e pouco loquazes, e o meu avô detestava quando as suas mulheres discutiam ou provocavam conflitos de qualquer tipo. Uma vez deixou de falar a Yasmina durante um ano e saía sempre que ela entrava porque tinha provocado duas disputas num só mês. Depois disso Yasmina não pôde dar-se ao luxo de se envolver em mais do que uma briga em cada três anos. Desta vez era o pato, e toda a quinta estava alerta.
Antes de abordar o tema, Lalla Thor ofereceu chá ao avô. Depois ameaçou deixá-lo se ele não mudasse imediatamente o nome ao pato. Era a véspera de um festival religioso e Lalla Thor estava vestida a preceito: tinha posto o seu diadema e o seu cafetã lendário, bordado com pérolas e granadas autênticas, para recordar a todos o seu estatuto privilegiado. Mas aparentemente o avô achava aquele assunto bastante divertido, porque sorriu quando Lalla Thor lhe falou do pato. Sempre considerara Yasmina bastante excêntrica e na verdade levara bastante tempo a habituar-se a alguns dos seus costumes, como subir às árvores e ficar lá pendurada durante horas a fio. Por vezes Yasmina convencia mesmo as outras esposas a acompanharem-na e tomavam chá sentadas nos ramos. Mas o que a salvava sempre era o facto de fazer rir o meu avô, o que era um acontecimento, já que ele era uma pessoa bastante taciturna. Naquele dia, apanhado no luxuoso salão de Lalla Thor, o avô sugeriu-lhe astutamente que retaliasse chamando Yasmina à sua feia cadela:
– Isso obrigará a rebelde a mudar o nome ao pato.
Mas Lalla Thor não estava com disposição para brincadeiras.
– Estás totalmente enfeitiçado por Yasmina! – gritou-lhe. – Se a deixas levar a sua avante, amanhã comprará um burro e chamar-lhe-á Sidi Tazi. Essa mulher não respeita hierarquias. É uma fonte de conflitos, como todos os do Atlas, e vai instalar o caos nesta casa decente. Ou dá outro nome ao pato, ou eu saio desta casa! Não compreendo a influência que exerce sobre ti. Se fosse bonita, seria outra coisa; mas é tão alta e tão magra! Parece uma girafa horrível.
Era verdade que Yasmina não correspondia aos padrões de beleza da sua época, dos quais Lalla Thor era um modelo perfeito: tinha a pele muito branca, a cara redonda como uma lua cheia e abundantes carnes, sobretudo nas ancas, nas nádegas e no peito. Yasmina, pelo contrário, possuía a tez morena e curtida dos montanheses, um rosto comprido de pómulos muito salientes e quase não tinha peito. Media quase um metro e oitenta, pouco menos do que o avô, e a razão por que conseguia trepar tão bem às árvores e fazer toda a espécie de acrobacias devia-se às suas pernas incrivelmente compridas, que pareciam paus debaixo do cafetã. Para escondê-las, tinha feito umas sarwals (calças de harém) enormes e com muitas pregas e para dar algum volume ao corpo usava o cafetã curto aberto de ambos os lados. A princípio Lalla Thor tentou que todos se rissem do inovador vestuário de Yasmina, mas as outras esposas apressaram-se a imitar a rebelde, porque os cafetãs encurtados e abertos de lado permitiam maior liberdade de movimentos.
Quando o avô foi ter com Yasmina para se queixar acerca do pato, ela não se mostrou muito compreensiva: que importância tinha que Lalla Thor se fosse embora?, disse; ele nunca se sentiria só.
– Ficarias ainda com oito concubinas para cuidarem de ti!
De modo que o avô tentou suborná-la oferecendo-lhe um grosso bracelete de prata de Tiznit, em troca do qual teria de fazer cuscuz com o pato. Yasmina aceitou o bracelete e disse que precisava de uns dias para refletir no assunto. Na sexta-feira seguinte fez uma contraproposta: não podia matar o pato porque se chamava Lalla Thor! Seria um mau augúrio. Mas podia prometer que não voltaria a chamar-lhe aquele nome em público, só em pensamento. Ordenaram-me que fizesse o mesmo, e a partir de então esforcei-me muito por manter o nome do pato em segredo.
Depois também havia a história do Rei Faruk, o pavão da quinta. Quem teria a ideia de pôr a um pavão o nome do famoso soberano do Egito? Que fazia o faraó na quinta? Ora, Yasmina e as outras coesposas não gostavam do rei egípcio, pois este ameaçara repudiar a sua encantadora mulher, a princesa Parida (de quem acabou por se divorciar em 1948). O que tinha levado o casal a tal impasse? Que delito imperdoável cometera a mulher? Tinha dado à luz três filhas, nenhuma das quais podia ascender ao trono.
Segundo a lei muçulmana, as mulheres não podem governar um país, embora a minha avó dissesse que isso nem sempre fora assim há alguns séculos. Com a ajuda do exército turco, Shajarat al-Durr sucedeu ao trono do Egito após a morte do seu marido, o sultão Al-Salih. Shajarat al-Durr era uma concubina, uma escrava de origem turca, e reinou quatro meses, governando nem melhor nem pior do que os homens antes e depois dela6. Claro que nem todas as mulheres muçulmanas são tão astutas nem tão cruéis como Shajarat al-Durr. Quando o seu segundo marido decidiu tomar uma segunda mulher, Shajarat al-Durr esperou que ele entrasse no hammam para tomar banho e, enquanto ele relaxava, «esqueceu-se» de abrir a porta. Claro que ele morreu por causa do vapor e do calor. Mas a princesa Parida não era uma criminosa perfeita, e não sabia manobrar nos círculos do poder nem defender os seus direitos no palácio. Era de origem modesta e também um pouco indefesa, razão pela qual as mulheres do meu avô, de origem semelhante, gostavam dela e sofriam pelas suas humilhações. Segundo Yasmina, para uma mulher não há nada mais humilhante do que ser repudiada.
– Zás! Atirada para a rua como um gato. Parece-te uma maneira decente de tratar uma mulher?
Além disso, acrescentou Yasmina, por mais importante e poderoso que o Rei Faruk fosse, não sabia como se fazia bebés.
– Se soubesse – disse –, saberia que a sua mulher não era responsável por não ter um filho rapaz. Para fazer um filho são precisas duas pessoas.
E eu sabia que nesse ponto Yasmina tinha razão. Para fazer bebés, os noivos enfeitavam-se, punham flores no cabelo e deitavam-se juntos numa cama muito grande. A notícia seguinte que havia deles, muitas manhãs depois, era que havia um bebezinho a gatinhar entre os dois.
Na quinta seguiam-se os caprichos conjugais do Rei Faruk pela Rádio Cairo e Yasmina apressou-se a condená-lo firmemente.
– Que espécie de bom líder muçulmano rejeita uma mulher só por não ter um filho? O Corão diz que só Alá é responsável pelo sexo das crianças. Se o Egito muçulmano fosse governado de forma justa, o Rei Faruk seria deposto! Pobre e encantadora princesa Parida, sacrificada por simples ignorância e vaidade! Os egípcios deveriam repudiar o seu rei.
E foi assim que o pavão da quinta veio a chamar-se Rei Faruk. Mas embora para Yasmina fosse fácil condenar os reis, lidar com uma coesposa poderosa era uma coisa totalmente diferente, mesmo depois de ter levado a melhor ao dar a um pato o nome da sua rival.
Lalla Thor era poderosa e era a única das mulheres do avô Tazi que provinha de uma família aristocrática e urbana.
O seu apelido também era Tazi, já que ela e o avô eram primos, e trouxera como dote uma tiara de esmeraldas, safiras e pérolas cinzentas, que o avô guardava no seu cofre, no canto direito do salão dos homens. Mas tal facto não impressionava Yasmina, que era de origem rural e humilde, como as outras mulheres do avô.
– Ninguém é superior apenas porque tem uma tiara – dizia. – Além disso, por mais rica que seja, continua confinada a um harém, tal como eu.
Perguntei a Yasmina o que significava estar confinada a um harém e ela deu-me várias respostas diferentes, que obviamente só serviram para me confundir.
Por vezes dizia que estar confinada a um harém significava apenas que uma mulher perdera a liberdade de movimentos. Outras vezes dizia que um harém era sinónimo de infelicidade porque uma mulher tinha de partilhar o seu marido com muitas outras. Ela, por exemplo, via-se obrigada a compartilhar o avô com oito coesposas, o que significava que tinha de dormir sozinha durante oito noites antes de poder finalmente abraçá-lo e aconchegar-se junto dele7.
– E abraçar e aconchegar-se junto do marido é maravilhoso – dizia. – Fico muito satisfeita por saber que as mulheres da tua geração já não terão de partilhar os maridos.
Os nacionalistas, que lutavam contra os franceses, haviam prometido criar um novo Marrocos, no qual haveria igualdade para todos. Todas as mulheres teriam o mesmo direito à educação que os homens e também teriam direito a desfrutar da monogamia, isto é, uma relação exclusiva e privilegiada com os seus maridos. Na verdade, muitos líderes nacionalistas e os seus seguidores de Fez já tinham uma única mulher e olhavam com desdém aqueles que tinham muitas. O meu pai e o meu tio, que abraçavam as ideias nacionalistas, tinham uma única mulher cada um.
Os nacionalistas também se opunham à escravidão. Segundo Yasmina, a escravidão era comum em Marrocos no princípio do século, mesmo depois de os franceses a terem declarado ilegal, e muitas das suas coesposas tinham sido compradas em mercados de escravos (Yasmina também considerava que todos os seres humanos eram iguais, independentemente do dinheiro que tivessem, da sua origem, do lugar que ocupassem na hierarquia, ou da sua língua ou religião. Se se tinha dois olhos, um nariz, duas pernas e duas mãos, então era-se igual a toda a gente. Eu lembrei-lhe que se considerássemos como mãos as patas da frente de um cão, então também seria nosso igual, ao que ela se apressou a responder: «Mas claro! Os animais são exatamente como nós; só lhes falta falar»).
Algumas das coesposas de Yasmina que haviam sido escravas tinham vindo de países estrangeiros como o Sudão, mas outras tinham sido roubadas aos seus pais no próprio solo marroquino, durante o caos que se seguira à chegada dos franceses em 1912. Yasmina costumava dizer que as mulheres pagavam sempre um preço alto quando o Makhzen, o Estado, não exprimia a vontade do povo, porque então instalava-se a insegurança e a violência. Foi exatamente isso que acontecera: o Makhzen e os seus funcionários, incapazes de enfrentar os exércitos franceses, tinham assinado um tratado que dava à França o direito de governar Marrocos como protetorado; mas o povo recusara-se à rendição. A resistência nascera nas montanhas e nos desertos e a guerra civil espalhara-se lentamente.
– Havia heróis – dizia Yasmina –, mas também havia todo o tipo de criminosos armados por toda a parte. Os primeiros lutavam contra os franceses, enquanto os segundos roubavam o povo. No sul, junto ao Sara, havia heróis como Al-Hiba e o seu irmão, que resistiram até 1934. Na minha região, o Atlas, o orgulhoso Moha ou Hamu Zayani manteve o exército cercado até 1920. No norte, o príncipe dos guerreiros, Abdelkrim, derrotou os franceses e os espanhóis – até que uns e outros se juntaram contra ele e o derrotaram em 1926. Mas durante toda esta agitação, nas montanhas os pais pobres viam as suas filhas pequenas serem-lhes roubadas para serem vendidas nas grandes cidades aos homens ricos. Tratava-se de uma prática habitual. O teu avô era um homem bom, mas comprou escravas. Naquela altura era normal fazê-lo. Agora ele mudou e apoia os ideais nacionalistas, como quase todos os notáveis das grandes cidades, e isto inclui o respeito pelo indivíduo, a monogamia, a abolição da escravatura e por aí fora. No entanto, por mais estranho que pareça, nós, mulheres do teu avô, sentimo-nos mais unidas do que nunca, embora as que foram escravas tenham tentado localizar as suas famílias originais e pôr-se em contacto com elas. Sentimo-nos como irmãs; a nossa verdadeira família é a que formamos em torno do teu avô. Poderia mesmo conceber mudar de opinião a respeito de Lalla Thor se ela deixasse de nos olhar de alto porque não temos tiaras.
Chamar ao pato Lalla Thor era a forma que Yasmina arranjara de participar na criação do Marrocos novo e belo, o Marrocos onde eu, sua netinha, iria viver.
Dizia frequentemente que Marrocos mudara rapidamente e que continuaria a fazê-lo.
Esta previsão fazia-me muito feliz. Eu cresceria num reino maravilhoso no qual as mulheres teriam direitos, incluindo a liberdade de abraçar os seus maridos todas as noites. Mas apesar de Yasmina lamentar ter de esperar oito noites para se deitar com o seu marido, acrescentava que não devia queixar-se demasiado, porque as mulheres de Haru al-Rashid, o califa abássida de Bagdade, tiveram de esperar novecentas e noventa e nove noites porque ele tinha miljaryas ou escravas.
– Esperar oito noites não é o mesmo que esperar novecentas e noventa e nove – dizia Yasmina. – Isso são quase três anos! Por isso as coisas estão a melhorar. Em breve será um homem, uma mulher8. Vem, vamos dar de comer aos pássaros. Teremos tempo de sobra para continuar a falar sobre haréns.
E então corríamos para o jardim para dar de comer aos pássaros.
5 Na década de 1940, a maioria dos homens e mulheres marroquinos das cidades vestiam-se da mesma maneira, utilizando três vestimentas sobrepostas: a primeira, a qamis, era muito suave, de algodão ou de outra fibra natural como a seda. A segunda, o cafetã, era de lã espessa e não se usava na primavera, quando o tempo aquecia. A terceira vestimenta, a exterior, era a farajiya, uma túnica fina, por vezes transparente, aberta dos lados, e que se punha sobre o cafetã. Quando os homens e as mulheres apareciam em público, acrescentavam às três vestimentas anteriores uma quarta, a djellaba, uma túnica larga e comprida.
No entanto, na década de 1950, com a independência, o vestuário marroquino sofreu uma transformação. Em primeiro lugar, tanto os homens como as mulheres começaram a usar ocasionalmente vestuário ocidental. Depois, o vestuário tradicional transformou-se e adaptou-se aos tempos modernos. Tinha começado a era do vestuário individualizado e inovador, e se observarem atualmente uma rua urbana marroquina, repararão que não há duas pessoas vestidas do mesmo modo. Homens e mulheres vestem coisas uns dos outros, do resto da África e do Ocidente. Por exemplo, hoje em dia os homens também usam cores vivas, que outrora eram exclusivas das mulheres. As mulheres utilizam as djellabas masculinas e os homens túnicas femininas (bubus) bordadas, largas e compridas, originárias do Senegal e de outros países muçulmanos negros. As jovens marroquinas criaram mesmo inovadoras mini-djellabas «sexy» decalcando o estilo italiano.
6 Shajarat al-Durr tomou o poder no ano de 648 do calendário muçulmano (1250 d.C.).
7 Chegados a este ponto, talvez seja útil estabelecer uma distinção entre dois tipos de haréns: chamaremos haréns imperiais aos primeiros e haréns domésticos aos segundos. Os primeiros floresceram com as conquistas territoriais e a acumulação de riquezas das dinastias imperiais muçulmanas, começando com a dos Omíadas, dinastia árabe do século VII, sediada em Damasco, e terminando com os Otomanos, dinastia turca que ameaçou as capitais europeias desde o século XVI até que em 1909 as potências ocidentais depuseram o seu último sultão, Abdelhamid II e desmantelaram os seus haréns. Chamaremos haréns domésticos aos que continuaram a existir depois de 1909, quando os muçulmanos perderam o poder e os seus territórios foram ocupados e colonizados. Os haréns domésticos eram na verdade famílias alargadas, como a que se descreve neste livro, sem escravos nem eunucos e, em muitos casos, com casais monogâmicos, mas que mantinham a tradição da reclusão das mulheres.
Foi o harém imperial otomano que fascinou o Ocidente quase até à obsessão. Este harém turco inspirou centenas de pinturas orientalistas dos séculos XVIII, XIX e XX, como o famoso Banho Turco (1862) de Ingres, as Mulheres Turcas no Banho (1854) de Delacroix ou o In the Bey’s Garden (1865) de John Frederick Levis. Os haréns imperiais, isto é, esplêndidos palácios repletos de mulheres luxuosamente vestidas e lascivamente reclinadas em poses indolentes, com escravos a seu lado e eunucos vigiando os portões, existiam quando o imperador, o seu vizir e os seus generais, cobradores de impostos, etc., tinham influência e dinheiro suficientes para comprar centenas e por vezes milhares de escravos nos territórios conquistados e manter essas casas tão dispendiosas. Porque tiveram os haréns do império otomano um impacto tão grande na imaginação ocidental? Uma das razões poderia ser a espetacular conquista de Constantinopla, a capital bizantina, pelos otomanos em 1453 e a subsequente ocupação de muitas cidades europeias, bem como o facto de que eles eram os vizinhos mais perigosos mais próximos do Ocidente.
Por outro lado, os haréns domésticos, isto é, os que continuaram a existir no mundo muçulmano depois da sua colonização pelo Ocidente, são bastantes aborrecidos devido ao seu caráter acentuadamente burguês e porque, como referido anteriormente, são mais uma espécie de família alargada, praticamente sem nenhum aspeto erótico digno de menção. Nestes haréns domésticos, o homem, os seus filhos e as respetivas mulheres viviam juntos e uniam os seus recursos, e pedia-se às mulheres que se abstivessem de sair. Não era imperioso que os homens tivessem várias mulheres, como o caso do harém que inspirou os contos deste livro. Não é a poligamia que o define como harém, mas sim o desejo de os homens manterem as suas mulheres reclusas e uma família alargada em vez de dividi-la em unidades nucleares.
8 Na verdade, a lei não mudou. Hoje, e após quase meio século, as mulheres muçulmanas ainda lutam pela abolição da poligamia. Mas os legisladores, todos eles homens, dizem que a Shari’a é uma lei religiosa que não pode ser alterada. No verão de 1992, uma associação de mulheres marroquinas (L’Union d’Action Feminine, presidida pela brilhante socióloga e jornalista Lahfa Jbabdi), que tinha recolhido um milhão de assinaturas contra a poligamia e o divórcio, transformou-se num alvo da imprensa fundamentalista, que publicou um decreto religioso (fatwa), pedindo a sua execução por heresia. Quanto ao estatuto das mulheres, pode dizer-se que o mundo muçulmano regrediu desde o tempo da minha avó. A defesa da poligamia e do divórcio por parte da imprensa fundamentalista é, na realidade, um ataque ao direito de as mulheres participarem no processo legislativo. Quase todos os governos muçulmanos, bem como as suas oposições fundamentalistas, mesmo aqueles que se autoproclamam modernos, mantêm a poligamia no código do direito familiar, não porque esteja particularmente difundida mas sim porque querem mostrar às mulheres que as suas necessidades não têm importância. A lei não existe para as servir a elas, nem para garantir o seu direito à felicidade e à segurança emocional. Segundo a crença dominante, não é imperioso que as mulheres e a lei tenham relação uma com a outra; as mulheres devem aceitar a lei dos homens porque não a podem mudar. A supressão do direito masculino à poligamia significaria que as mulheres têm uma palavra a dizer sobre a lei, que a sociedade não se rege apenas por e para os homens e seus caprichos. A importância que um governo muçulmano dá ao problema da poligamia é uma boa forma de medir até que ponto aceita as ideias democráticas. E se tomarmos isso como um índice da democracia, veremos que poucos países muçulmanos estão atualizados no que respeita aos direitos humanos. A Tunísia e a Turquia são os mais progressistas.
CHAMA E O CALIFA
«O que é exatamente um harém?» Não era propriamente o tipo de pergunta a que os adultos respondiam voluntariamente. Mas eles insistiam sempre para que as crianças usassem as palavras exatas. Diziam que cada palavra tinha um significado específico e que deveria ser utilizada apenas para esse fim concreto, e para nenhum outro. Mas se me tivesse sido oferecida uma alternativa, eu teria utilizado palavras diferentes para o harém de Yasmina e para o nosso, tão diferentes que eram. O harém de Yasmina era uma quinta aberta sem muros altos visíveis. O nosso de Fez era como uma fortaleza. Yasmina e as suas coesposas montavam a cavalo, nadavam no rio, pescavam e cozinhavam o peixe em fogueiras ao ar livre. A minha mãe não podia pôr um pé fora de casa sem ter de pedir múltiplas permissões; e mesmo assim, a única coisa que podia fazer era visitar o santuário de Mulay Driss (o santo patrono da cidade) ou o seu irmão que vivia na mesma rua, ou assistir a um festival religioso. E a infeliz tinha de ir sempre acompanhada por outras mulheres da casa e por um dos meus jovens primos. Por isso, parecia-me descabido utilizar a mesma palavra para a situação de Yasmina e para a da minha mãe.
Mas sempre que tentava averiguar mais sobre a palavra «harém», seguiam-se discussões amargas. Bastava pronunciar a palavra e começavam a chover os comentários mordazes. Samir e eu falávamos neste assunto e chegávamos à conclusão de que se as palavras em geral eram perigosas, «harém» em particular era explosiva. Quando alguém queria iniciar uma guerra no pátio, bastava-lhe fazer chá, convidar algumas pessoas, pronunciar a palavra «harém» e esperar cerca de meia hora. Então as senhoras elegantes, serenas e vestidas com lindos cafetãs de seda bordados e babuchas bordadas a pérolas, transformavam-se subitamente em fúrias vociferantes. Por isso, Samir e eu decidíramos que, na nossa condição de crianças, era nosso dever proteger os adultos. Utilizaríamos a palavra «harém» com parcimónia e recolheríamos as nossas informações de uma forma discreta e baseada na observação.
Um grupo de adultos dizia que o harém era uma coisa boa e o outro grupo dizia que era uma coisa má. A avó Lalla Mani e a mãe de Chama, Lalla Radia, pertenciam ao grupo pró-harém; a minha mãe, Chama e a tia Habiba pertenciam ao grupo que era contra o harém. A avó Lalla Mani costumava iniciar a discussão dizendo que se as mulheres não estivessem separadas dos homens, a sociedade pararia e ninguém faria o seu trabalho.
– Se as mulheres andassem livremente pelas ruas, os homens deixariam de trabalhar porque quereriam divertir-se – dizia ela. E acrescentava que, infelizmente, o divertimento não ajudava uma sociedade a produzir os alimentos e os bens necessários à sobrevivência. Por isso, se se queria evitar a fome, as mulheres deveriam manter-se no lar, que era o seu lugar.
Mais tarde, Samir e eu tivemos uma longa conversa sobre a palavra «divertimento» e decidimos que, quando os adultos a utilizavam, tinha a ver com sexo. Mas como queríamos ter a certeza absoluta disso, abordámos o assunto com a prima Malika, que nos confirmou que estávamos absolutamente certos. Então, tentando aparentar um ar tão entendido quanto possível perguntámos-lhe:
– Na tua opinião, o que é o sexo?
Não é que não soubéssemos a resposta, mas queríamos ter a certeza. Mas Malika, que achava que não sabíamos nada, deitou as tranças para trás solenemente, sentou-se num divã, pôs uma almofada no colo como fazem os adultos quando refletem e disse lentamente:
– Na noite de núpcias, quando vão todos dormir, o noivo e a noiva ficam a sós no seu quarto. O noivo pede à noiva que se sente na cama, dão as mãos e ele tenta fazer com que ela o olhe diretamente nos olhos. Mas a noiva resiste, mantém os olhos no chão. Isso é muito importante. A noiva é muito tímida e está assustada. O noivo recita um poema. A noiva ouve com o olhar fixo no chão e finalmente sorri. Então ele beija-a na testa. Ela continua com o olhar baixo. Ele oferece-lhe uma chávena de chá e ela bebe-o lentamente. Ele retira a chávena, senta-se ao seu lado e beija-a.
Malika, que manipulava descaradamente a nossa curiosidade, decidiu fazer uma pausa no relato do beijo, sabendo que Samir e eu morríamos por saber exatamente onde o noivo beijava a noiva. Beijar na testa, na face e na mão não era nada do outro mundo, mas na boca era outra história. Contudo, decidimos dar uma lição a Malika, e em vez de mostrar curiosidade, pusemo-nos a cochichar entre nós, ignorando-a completamente. A tia Habiba tinha-nos explicado recentemente que demonstrar um total desinteresse pelo orador era uma boa maneira de os fracos ganharem poder.
– Falar enquanto outros escutam – dissera –, é na verdade a própria expressão do poder. Mas mesmo o ouvinte aparentemente submisso e silencioso tem um papel altamente estratégico, o da audiência. E se o orador poderoso fica sem audiência?
De facto, Malika prosseguiu imediatamente a sua dissertação sobre o que se passa na noite de núpcias.
– O noivo beija a noiva na boca. Depois deitam-se juntos numa cama grande sem ninguém a olhar.
Não fizemos mais perguntas. Tudo o resto já sabíamos. O homem e a mulher despem-se, fecham os olhos e poucos meses depois nasce uma criança.
O harém impede que os homens e as mulheres se vejam, por isso cada qual cumpre com os seus deveres. Enquanto Lalla Mani elogiava a vida do harém, a tia Habiba chispava de raiva ao ouvi-la; notava-se pela forma como ajustava a touca, apesar de ela não estar a escorregar. Mas como estava divorciada não podia contrariar Lalla Mani abertamente, pelo que tinha de resmungar as suas objeções em voz baixa e deixar que a minha mãe e Chama protestassem. Só os que tinham poder podiam corrigir os outros abertamente e contrariar os seus pontos de vista. Uma mulher divorciada não tinha um verdadeiro lar e tinha de pagar a sua presença tentando passar despercebida. A tia Habiba nunca usava roupa de cores brilhantes, por exemplo, embora por vezes manifestasse o desejo de voltar a pôr a sua farajiya encarnada. Mas nunca o fez. Vestia-se quase sempre de cinzento claro ou bege, e a única maquilhagem que utilizava era um pouco de kohl em volta dos olhos.
– Os fracos têm de ser disciplinados para evitar a humilhação – dizia. – Nunca deixes que outros te lembrem qual é o teu lugar. Podes ser pobre, mas a elegância está ao alcance de qualquer um.
A minha mãe costumava iniciar o ataque às opiniões de Lalla Mani sentando-se sobre as pernas no divã, com as costas direitas e uma almofada no colo. Cruzava os braços e olhava Lalla Mani nos olhos.
– Os franceses não aprisionam as suas mulheres atrás de muros, querida sogra – dizia. – Deixam-nas apanhar ar à vontade no suk (mercado local) e todos se divertem; e não é por causa disso que as pessoas deixam de trabalhar. Na verdade, trabalham tanto que podem dar-se ao luxo de equipar grandes exércitos e virem até aqui para disparar contra nós.
Então, sem dar tempo a Lalla Mani de recuperar forças para um contra-ataque, Chama expunha a sua teoria de como o primeiro harém começara a funcionar. Nessa altura as coisas tornavam-se verdadeiramente más porque tanto Lalla Mani como a mãe de Chama começavam a gritar que aquilo era um insulto aos nossos antepassados, uma ofensa às nossas tradições sagradas.
A teoria de Chama era na verdade bastante interessante, e Samir e eu adorávamo-la. Há muito tempo atrás, defendia ela, os homens lutavam continuamente entre si. Havia muito derramamento inútil de sangue, de forma que um dia decidiram nomear um sultão que organizasse as coisas, que exercesse a sulta, ou autoridade, e dissesse aos outros o que tinham de fazer. Todos tinham de lhe obedecer. «Mas como decidiremos qual de nós será o sultão?», interrogaram-se os homens quando se reuniram para considerar este problema. Refletiram profundamente até que um deles teve uma ideia: «O sultão deverá ter algo que os outros não têm», disse. Refletiram um pouco mais até que outro homem teve uma ideia: «Deveríamos organizar uma expedição para capturar mulheres», sugeriu, «e o homem que conseguir mais será nomeado sultão».
Os homens concordaram que era uma ideia excelente, mas como avaliariam os resultados? «Quando começarmos a correr pela floresta para caçar mulheres, dispersar-nos-emos. Precisamos de arranjar uma maneira de imobilizar as mulheres uma vez apanhadas, para podermos contá-las e decidir quem é o vencedor.» E assim surgiu a ideia de construir casas. Eram necessárias casas com portões e fechaduras para fechar as mulheres. Samir disse então que teria sido mais fácil atar as mulheres às árvores, uma vez que tinham as tranças tão compridas; mas Chama replicou que antigamente as mulheres eram muito fortes porque corriam pelos bosques tal como os homens, e se atassem duas ou três mulheres a uma árvore, elas podiam arrancá-la. Além disso, era preciso muito tempo e energia para atar as mulheres fortes, que podiam arranhar a cara do seu captor ou dar-lhe um pontapé num certo sítio inominável. Era muito mais fácil construir paredes e metê-las lá dentro. E foi isso o que os homens fizeram.
Organizou-se a expedição em todo o mundo e os bizantinos ganharam a primeira volta9. Os bizantinos, que eram os mais malévolos de todos os romanos, viviam próximo dos árabes no Mediterrâneo Oriental, onde nunca perdiam uma oportunidade de humilhar os seus vizinhos. O imperador dos bizantinos conquistou o mundo, capturou um grande número de mulheres e pô-las no seu harém para demonstrar que era o chefe. O Oriente e o Ocidente submeteram-se a ele pois temiam-no. Mas os séculos passaram e os árabes começaram a aprender a conquistar territórios e a caçar mulheres. Tornaram-se peritos no assunto e sonhavam conquistar os bizantinos. Finalmente, o califa Harun al-Rashid teve esse privilégio. Derrotou o imperador romano no ano 181 do calendário muçulmano (798 d.C.) e continuou a conquistar outras regiões do mundo. Quando já tinha reunido mil jaryas (escravas) no seu harém, construiu um grande palácio em Bagdade e instalou-as lá para que ninguém duvidasse de que ele era o sultão. Os árabes tornaram-se nos sultões do mundo e juntaram mais mulheres. O califa Al-Mutawwakil aprisionou quatro mil. Al-Muqtadir conseguiu enclausurar onze mil10. O mundo estava impressionado; os árabes davam as ordens e os romanos submetiam-se a elas.
Mas enquanto os árabes estavam ocupados a encerrar as mulheres, os romanos e os outros cristãos juntaram-se e decidiram alterar as regras do jogo do poder no Mediterrâneo. Declararam que já não era importante aprisionar mulheres e que a partir desse momento só seria sultão quem conseguisse construir as armas e as máquinas mais poderosas, incluindo armas de fogo e grandes navios. Mas os romanos e os outros cristãos decidiram não explicar a alteração aos árabes; guardá-lo-iam em segredo para os surpreender. Assim, os árabes adormeceram, achando que conheciam as regras do jogo do poder.
Neste ponto Chama fazia uma pausa, punha-se de pé de um salto e começava a representar a história para Samir e para mim, ignorando por completo Lalla Mani e Lalla Radia, que protestavam aos gritos. Entretanto, a tia Habiba franzia os lábios para dissimular o riso. Então Chama levantava a qamis de laço branco para poder saltar para o divã vazio. Estendia-se como se fosse dormir, enterrava a cabeça num dos grandes almofadões, tapava a cara com o cabelo ruivo rebelde e declarava:
– Os árabes estão a dormir.
Depois fechava os olhos e começava a ressonar, para logo a seguir se levantar e olhar em volta como se acabasse de acordar de um sono profundíssimo, e fixava o olhar em Samir e em mim como se nunca nos tivesse visto antes.
– Finalmente, os árabes já acordaram! – dizia. – Os ossos de Harun al-Rashid tornaram-se pó e o pó misturou-se com a chuva. A chuva corre para o rio Tigre e depois para o mar, onde todas as coisas grandes se tornam minúsculas e desaparecem na fúria das ondas. Um rei francês governa agora o nosso mundo. O seu título é Président de la République Française e tem um palácio enorme em Paris chamado Eliseu e, surpresa, uma única mulher! Nem um harém à vista. E essa única mulher passa o tempo a percorrer as ruas com uma saia curta e um grande decote. Toda a gente lhe pode ver o rabo e o peito, mas ninguém duvida por um só instante de que o Presidente da República Francesa é o homem mais poderoso do país. O poder dos homens já não se mede pelo número de mulheres que podem aprisionar. Mas isto é novidade na Medina de Fez, porque os relógios continuam parados na época de Harun al-Rashid!
Então Chama saltava outra vez para o divã, fechava os olhos e voltava a esconder a cara na almofada de seda estampada com flores. Silêncio.
Samir e eu adorávamos a sua história porque ela era uma excelente atriz. Eu estava sempre a observá-la atentamente para aprender a exprimir os movimentos em palavras. Era necessário utilizar as palavras e gesticular ao mesmo tempo. Mas nem todos estavam tão entusiasmados com a história de Chama. A sua própria mãe, Lalla Radia, a princípio ficara horrorizada e depois indignada, principalmente quando ela mencionara o califa Harun al-Rashid. Lalla Radia era uma mulher culta que lia livros de História, um talento que aprendera com o pai, que era uma autoridade religiosa em Rabat. Não gostava que as pessoas fizessem pouco dos califas em geral e de Harun al-Rashid em particular.
– Oh Alá! – gritava. – Perdoa à minha filha, que mais uma vez ataca os califas e lança a confusão na cabeça das crianças. Dois pecados igualmente monstruosos. Pobres pequenos, que ideia tão distorcida terão dos seus antepassados se Chama prosseguir com isto.
Lalla Radia pedia-nos então a Samir e a mim que nos sentássemos ao seu lado para nos contar a versão correta da História e nos fazer amar o califa Harun.
– Ele foi o príncipe dos califas – dizia. – Conquistou Bizâncio e fez hastear a bandeira muçulmana nas capitais cristãs.
Insistia também que a sua filha estava completamente enganada em relação aos haréns. Os haréns eram uma coisa maravilhosa. Todos os homens respeitáveis cuidavam das suas mulheres, para que elas não tivessem de sair para as ruas, sempre tão perigosas e inseguras. Ofereciam-lhes magníficos palácios com chão de mármore e fontes, bons alimentos, vestidos bonitos e joias. De que mais precisava uma mulher para ser feliz? Apenas as mulheres pobres como Luza, a mulher de Ahmed, o porteiro, precisava de sair para ir trabalhar e ganhar o seu pão. As mulheres privilegiadas eram poupadas a esse trauma.
Muitas vezes Samir e eu sentíamo-nos perplexos com todas estas opiniões contraditórias e tentávamos organizar um pouco a informação. Os adultos eram muito desorganizados. O harém tinha a ver com homens e mulheres, isso era certo. Também tinha a ver com casa, muros e a rua, isso também era certo. Tudo isto era bastante simples e facilmente compreensível: uma pessoa erguia quatro paredes rodeadas de ruas e tinha uma casa. Depois fechava as mulheres dentro da casa e deixava sair os homens e tinha um harém. Mas que sucedia, atrevi-me a perguntar a Samir, se puséssemos os homens na casa e deixássemos sair as mulheres? Samir disse que eu estava a complicar as coisas justamente quando começávamos a compreender alguma coisa. Por isso acedi a fechar de novo as mulheres e a fazer sair os homens para prosseguirmos com a nossa investigação. O problema era que os muros e tudo o resto serviam para explicar o nosso harém em Fez, mas não serviam de forma alguma para nos esclarecer sobre o harém da quinta.
9 Para uma divertida espreitadela aos haréns do império romano, veja-se Goddesses, Whores, Wives and Slaves: Women in Classical Antiquity, de Sarah B. Pomeroy, Schocken Books, 1975.
10 A dinastia abássida, segunda dinastia do império muçulmano, durou quinhentos anos, de 132 a 656 do calendário muçulmano (750-1258 d.C.), terminando quando os mongóis destruíram Bagdade e assassinaram o califa. Harun al-Rashid foi o quinto califa da dinastia abássida, governando entre 786 e 809. As suas conquistas tornaram-se lendárias e o seu reinado é considerado um modelo da idade de ouro muçulmana. O califa Al-Mutawwakil foi o décimo soberano da dinastia (847-861 d.C.) e o califa Al-Muqtadir o décimo nono (908-932 d.C.).
O CAVALO DE TAMU
O harém da quinta estava instalado numa gigantesca construção de um único andar em forma de T, rodeado por jardins e lagos. A ala direita da casa pertencia às mulheres; a esquerda aos homens; e um delicado biombo de bambu de dois metros de altura marcava a hudud (fronteira) entre ambas. As duas partes da casa eram na realidade dois edifícios similares construídos costas contra costas, com fachadas simétricas e galerias com arcadas que mantinham os salões e os quartos mais pequenos frescos mesmo quando estava calor lá fora. As galerias eram perfeitas para jogar às escondidas e as crianças da quinta eram muito mais atrevidas do que as de Fez. Subiam para as colunas descalças e saltavam do alto como acrobatas. Não tinham medo dos sapos, das lagartixas e dos pequenos animais voadores que pareciam saltar continuamente sobre quem atravessasse os corredores. O chão era pavimentado com azulejos brancos e pretos e as colunas estavam revestidas com uma estranha combinação de mosaico amarelo e dourado escuro que o meu avô adorava e que nunca vi em nenhum outro sítio. Os jardins estavam rodeados por altas grades de ferro forjado com portas arqueadas que pareciam sempre fechadas; mas bastava empurrá-las para se sair para o campo. O jardim dos homens tinha algumas grades e muitos arbustos de flores bem cuidados, mas o das mulheres era outra história. Estava repleto de árvores estranhas, de plantas bizarras e de animais de todas as espécies, porque cada coesposa reclamava uma parcela de terreno para a transformar no seu jardim pessoal, onde plantava hortaliças e criava galinhas, patos e pavões. Não se podia dar um passeio pelo jardim das mulheres sem invadir o território de alguém, e os animais começavam a seguir o intruso mesmo debaixo das arcadas, fazendo uma grande algazarra que contrastava com o silêncio sepulcral do jardim dos homens.
Para além do edifício principal da quinta havia alguns pavilhões anexos. À direita via-se apenas o de Yasmina, que insistira para que assim fosse: segundo explicara ao avô, tinha de estar o mais longe possível de Lalla Thor. Lalla Thor tinha o seu próprio palácio independente no edifício principal, com espelhos de parede a parede e madeira talhada policromada nos tetos, nos rebordos dos espelhos e nos candelabros. O pavilhão de Yasmina, por seu lado, era um quarto grande, muito simples e sem luxos, pois não se preocupava com essas coisas, desde que não tivesse de se aproximar do edifício principal e dispusesse de espaço suficiente para fazer experiências com árvores e com flores e criar todo o tipo de patos e pavões. O pavilhão de Yasmina também tinha um segundo andar, que fora construído para Tamu quando esta escapara da guerra deslocando-se das montanhas do Rif para norte. Yasmina tomara conta de Tamu quando ela estivera doente e as duas haviam-se tornado amigas íntimas.
Tamu chegou à quinta em 1926, depois da derrota de Abdelkrim pelos exércitos espanhóis e franceses. Apareceu numa madrugada, no horizonte da planície do Gharb, montada num cavalo espanhol selado e vestida com uma capa branca de homem e uma touca de mulher para que os soldados não disparassem contra ela. Todas as mulheres do meu avô gostavam de descrever a sua chegada à quinta, que era tão interessante como os contos de As Mil e Uma Noites, ou mais ainda, porque Tamu estava ali para ouvir, sorrir e ser a estrela. Na manhã em que chegara tinha pesados braceletes berberes de prata com pontas salientes, o tipo de braceletes que se podia usar em autodefesa se fosse necessário. Também tinha um khandjar, ou punhal, pendurado na coxa direita e uma autêntica espingarda espanhola escondida na sela, debaixo da capa. Tinha um rosto triangular, com uma tatuagem verde no queixo afilado, olhos negros e penetrantes que olhavam sem pestanejar e uma comprida trança acobreada que lhe pendia sobre o ombro esquerdo. Deteve-se a poucos metros da quinta e perguntou pelo dono da casa.
Naquela manhã ninguém o sabia ainda, mas a vida na quinta nunca mais voltaria a ser a mesma. Porque Tamu era uma rifenha e uma heroína de guerra. Todo o Marrocos admirava o povo do Rif, os únicos que haviam continuado a lutar contra os estrangeiros muito tempo depois de o resto do país se ter rendido; e ali estava aquela mulher, vestida como um guerreiro, atravessando a fronteira Arbaua para entrar na zona francesa, completamente só e em busca de auxílio. E como era uma heroína de guerra, certas regras não se lhe aplicavam. Comportava-se mesmo como se ignorasse a tradição.
Provavelmente o meu avô apaixonou-se por Tamu logo que a viu, mas as circunstâncias do seu encontro foram tão complexas que só se apercebeu disso ao fim de alguns meses. Tamu tinha ido à quinta com uma missão: o seu povo caíra numa emboscada da guerrilha na zona espanhola e tinha de lhes levar ajuda. De forma que o meu avô lhe deu a ajuda de que necessitava, assinando um rápido contrato de casamento para justificar a sua presença na quinta caso a polícia francesa aparecesse à sua procura. Depois Tamu pediu-lhe que a ajudasse a levar alimentos e remédios ao seu povo. Havia muitos feridos, e com a derrota de Abdelkrim cada aldeia tinha de sobreviver por sua conta. O avô deu-lhe as provisões e Tamu partiu durante a noite com dois carros que desceram lentamente, sem luzes, pela berma da estrada. À frente, montados em burros, iam dois camponeses da quinta, que se faziam passar por vendedores e serviam de batedores aos carros com lanternas.
Uns dias depois, Tamu regressou à quinta num dos carros, levando quatro cadáveres cobertos com hortaliças. Eram os corpos do seu pai, do seu marido e dos seus dois filhos, um rapaz e uma rapariga. Enquanto os descarregavam, ela manteve-se à distância, em silêncio. As mulheres do avô trouxeram-lhe um tamborete para se sentar e ela ficou ali a olhar enquanto os homens cavavam as covas e depositavam os cadáveres cobrindo-os com terra. Tamu não chorou. Depois, os homens plantaram flores para ocultar as sepulturas. Quando terminaram, Tamu não conseguia aguentar-se de pé; o avô chamou Yasmina, que a agarrou pelo braço e a levou para o seu pavilhão para a deitar na cama. Tamu passou muitos meses sem falar e todos pensavam que havia perdido a capacidade para o fazer.
Mas gritava regularmente em sonhos, enfrentando agressores invisíveis nos seus pesadelos. Mal fechava os olhos era assaltada por imagens de guerra; então punha-se em pé de um salto ou ajoelhava-se, suplicando misericórdia em espanhol. Precisava que a ajudassem a superar a dor sem lhe fazerem perguntas inconvenientes nem revelar nada aos soldados espanhóis e franceses que, segundo parecia, procediam a investigações do outro lado do rio. Yasmina era a pessoa indicada para o fazer e cuidou de Tamu no seu pavilhão durante meses, até que esta recuperou. Depois, uma bela manhã, viram Tamu acariciar um gato e pôr uma flor no cabelo; nessa mesma noite Yasmina organizou uma festa para ela. As mulheres reuniram-se no pavilhão de Yasmina e cantaram para que Tamu se sentisse como em sua casa. Nessa noite sorriu algumas vezes e depois pediu um cavalo para montar no dia seguinte.
Tudo na quinta mudou com a simples presença de Tamu. O seu corpo minúsculo parecia refletir as mesmas convulsões violentas que dilaceravam o seu país e era acometida de desejos incontroláveis de montar cavalos velozes e realizar acrobacias. Era a sua forma de combater a dor e encontrar um efémero significado para a vida. Em vez de ter ciúmes dela, Yasmina e as outras mulheres do meu avô começaram a admirá-la porque, entre outras coisas, ela tinha muitos talentos que as outras mulheres normalmente não tinham. Quando Tamu se restabeleceu completamente e voltou a falar, descobriram que sabia disparar uma espingarda, falava espanhol fluentemente, dava grandes saltos no ar e cambalhotas sem ficar tonta e até injuriava em vários idiomas. Nascida numa região montanhosa constantemente atravessada por exércitos estrangeiros, tinha chegado a confundir a vida com a luta e o descanso com a corrida. A sua presença na quinta, com as tatuagens, o punhal, os braceletes defensivos e as permanentes cavalgadas, mostrou às outras mulheres que havia muitas formas de ser bela. Lutar, injuriar e ignorar a tradição podiam tornar uma mulher irresistível. Tamu tornou-se numa lenda desde o momento em que apareceu e fez com que toda a gente na quinta tomasse consciência da sua própria força interior e da sua capacidade para enfrentar qualquer destino.
Durante a doença de Tamu, o avô visitara o pavilhão de Yasmina diariamente para saber da sua saúde. Mas quando melhorou e pediu um cavalo, ficou nervoso, com medo de que ela o deixasse. Embora encantado com a beleza que ela aparentava – novamente desafiadora e plena de vida, com a sua trança acobreada, os seus penetrantes olhos negros e o queixo com a tatuagem verde –, não estava certo dos sentimentos que ela nutria em relação a ele. Na realidade, não era sua mulher, já que o casamento fora apenas um acordo legal e, ao fim e ao cabo, ela era uma guerreira que a qualquer momento podia afastar-se, cavalgando para norte e perdendo-se no horizonte. Por isso o avô convidou Yasmina para um passeio com ele pelo campo e explicou-lhe os seus temores. Yasmina também ficou muito nervosa, porque admirava muito Tamu e não suportava a ideia de a ver partir. Por isso sugeriu ao avô que perguntasse a Tamu se queria passar a noite com ele.
– Se a resposta for sim – alvitrou Yasmina –, é porque não tenciona ir-se embora. Se for não, é porque se vai.
O avô voltou ao pavilhão e falou com Tamu em privado enquanto Yasmina aguardava no exterior. Quando por fim saiu, Yasmina compreendeu pelo seu sorriso que Tamu havia aceitado a proposta de se tornar sua mulher. Meses depois, o avô construiu um pavilhão novo para Tamu por cima do de Yasmina e a partir de então a sua casa de dois andares separada do edifício principal transformou-se na sede oficial das corridas de cavalos de Tamu e da solidariedade feminina.
Uma das primeiras coisas que Yasmina e Tamu fizeram quando o segundo pavilhão ficou pronto, foi criar uma bananeira para que Yaya, a coesposa negra estrangeira, se sentisse em casa. Yaya, a mais tranquila das esposas do meu avô, era uma mulher alta e esbelta, que parecia terrivelmente frágil no seu cafetã amarelo. Tinha um rosto de traços finos, o olhar sonhador e mudava de turbante segundo os seus estados de espírito, embora a sua cor preferida fosse o amarelo («Como o sol. Ilumina-te»). Yaya era propensa a constipações, falava árabe com sotaque e não frequentava a companhia das outras coesposas, por isso ficava tranquilamente no seu quarto. Tinha um ar tão frágil que pouco tempo depois da sua chegada as outras coesposas decidiram dividir entre si o trabalho que lhe competia. Em troca, Yaya prometeu contar-lhes uma vez por semana uma história sobre a vida na sua aldeia natal no Sul, no Sudão, a terra dos negros, onde não cresciam laranjeiras nem limoeiros, mas abundavam os coqueiros e as bananeiras. Yaya não se lembrava do nome da sua aldeia, mas isso não a impediu de se tornar na contadora oficial de histórias do harém, tal como a tia Habiba o era no de Fez. O avô ajudava-a a repor a sua reserva de contos lendo-lhe em voz alta passagens de livros de histórias sobre o Sudão, os reinos de Songhoy e Gana, os portões dourados de Tombuctu e todas as maravilhas das selvas do Sul que escondem o sol. Yaya dizia que os brancos eram vulgares (encontravam-se em toda a parte nos quatro cantos do universo), mas os negros eram uma raça especial porque só existiam no Sudão e nas terras vizinhas, a sul do deserto do Sara.
Na noite em que Yaya contava uma história, as mulheres reuniam-se todas no seu quarto e serviam chá enquanto ela falava da sua maravilhosa pátria. Ao fim de alguns anos as outras mulheres conheciam a vida de Yaya tão detalhadamente que podiam ajudá-la quando ela hesitava ou começava a duvidar da fidelidade da sua memória. E um dia, depois de ouvi-la descrever a sua aldeia, Tamu disse-lhe:
– Se a única coisa de que precisas para te sentires em casa é de uma bananeira, plantaremos uma para ti aqui mesmo.
A princípio ninguém acreditava que fosse possível plantar uma bananeira no Gharb, onde sopravam os ventos do norte vindos de Espanha e chegavam as nuvens espessas do Oceano Atlântico11. Mas o mais difícil foi encontrar a árvore. Tamu e Yasmina explicaram repetidamente a todos os comerciantes nómadas que passavam nos seus burros como eram as bananeiras, até que finalmente um lhes levou uma bananeira da região de Marraquexe. Yaya ficou tão excitada ao vê-la que cuidou dela como se fosse uma criança, e quando soprava um vento frio corria a cobri-la com um grande pano branco. Anos mais tarde, quando a bananeira deu os primeiros frutos, as coesposas organizaram uma festa e Yaya vestiu três cafetãs amarelos, enfeitou o turbante com flores e afastou-se a dançar até ao rio, embriagada de felicidade.
O que as mulheres podiam fazer na quinta não tinha realmente limites. Podiam cultivar plantas raras, montar a cavalo, entrar e sair livremente, ou pelo menos assim parecia. Em comparação, o nosso harém de Fez era como uma prisão. Yasmina dizia mesmo que a pior coisa que podia acontecer a uma mulher era separá-la da Natureza.
– A Natureza é a melhor amiga de uma mulher – dizia frequentemente. – Se tens problemas, banha-te no tanque, estende-te num campo, ou contempla as estrelas. É assim que uma mulher cura os seus medos.
11 Isto passava-se na década de 40. Atualmente, graças à tecnologia moderna, cultivam-se bananas e outros frutos equatoriais em toda a planície do Gharb.
O INTERIOR DO HARÉM
O nosso harém de Fez estava rodeado por muros altos e, à exceção do pequeno quadrado de céu que se via do pátio, a Natureza não existia. Claro que se se subisse como uma flecha até ao terraço, ver-se-ia que o céu era maior do que a casa, maior do que tudo; mas, contemplada do pátio, a Natureza parecia insignificante. Tinha sido substituída por motivos geométricos e florais nos azulejos, nas madeiras e no estuque. As únicas flores de beleza impressionante que havia na casa eram as dos brocados coloridos que cobriam os divãs e as dos cortinados de seda bordada que protegiam portas e janelas. E se alguém quisesse escapar àquela geometria, era impossível abrir uma persiana para olhar para fora. Todas as janelas davam para o pátio. Nenhuma dava para a rua.
Uma vez por ano, na primavera, íamos em passeio fazer uma nzaha, ou piquenique, à quinta do meu tio em Oued Fez, a dez quilómetros da cidade. Os adultos importantes iam em carros, enquanto as crianças, as tias divorciadas e os outros parentes se deslocavam em dois grandes carros alugados para a ocasião. A tia Habiba e Chama levavam sempre pandeiretas e faziam tal algazarra durante o caminho que o condutor perdia a cabeça.
– Se as senhoras não param com isso – costumava exclamar o homem –, saio da estrada e atiro com toda a gente para o vale.
Mas as suas ameaças eram inúteis porque as pandeiretas e as palmas afogavam a sua voz.
No dia do piquenique acordávamos todos ao amanhecer e andávamos às voltas pelo pátio como se fosse um festival religioso; havia grupos por toda a parte: uns organizavam a comida, outros preparavam as bebidas, e por todos os lados se via gente a enrolar panos e tapetes. Chama e a minha mãe encarregavam-se dos baloiços.
– Como é que se pode fazer um piquenique sem baloiços? – diziam quando o meu pai propunha que os esquecessem, porque demorava muito tempo a pendurá-los nas árvores. E costumava acrescentar, só para provocar a minha mãe:
– Para além do mais, os baloiços são ótimos para as crianças. Mas, tratando-se de adultos pesados, as pobres árvores sofreriam.
Enquanto o meu pai falava esperando que a minha mãe se zangasse, ela continuava a embrulhar os baloiços e as cordas sem sequer olhar para ele. E Chama cantava em voz alta: «Se os homens não podem atar os baloiços / as mulheres fá-lo-ão / lá-lá-lá», imitando a melodia aguda do nosso hino nacional, Magrebuna Watanuna (Marrocos, a nossa Pátria)12. Entretanto, Samir e eu procurávamos febrilmente as nossas alpercatas, porque as nossas mães estavam tão ocupadas que não podíamos contar com a sua ajuda; e Lalla Mani estava a contar o número de copos e de pratos «só para calcular os estragos e ver quantos seriam partidos até ao final do dia». Ela podia passar sem piqueniques, costumava dizer, sobretudo porque, no que dizia respeito à tradição, a sua origem era duvidosa.
– Nem sequer são mencionados nos hadices – dizia. – E até poderia ser contado como pecado no dia do Julgamento Final13.
Costumávamos chegar à quinta a meio da manhã, equipados com dúzias de tapetes, assentos portáteis e khanuns14. Uma vez estendidos os tapetes, abriam-se os assentos, acendiam-se as fogueiras e preparavam-se os shish kebabs. Os bules cantavam em uníssono com os pássaros. Mais tarde, depois do almoço, algumas mulheres dispersavam-se pelo bosque e pelos campos em busca de flores, ervas aromáticas e outras plantas para utilizá-las em tratamentos de beleza. Outras faziam turnos nos baloiços. Só iniciávamos a viagem de regresso a casa após o pôr do sol, e então os portões voltavam a fechar-se atrás de nós. Depois, a minha mãe sentia-se muito infeliz durante dias.
– Quando se passa um dia inteiro entre as árvores – dizia –, torna-se insuportável acordar com quatro paredes como horizonte.
Só se podia entrar em nossa casa passando pelo portão principal, controlado por Ahmed, o porteiro. Mas para sair podia-se utilizar outro caminho: o terraço. Podia-se saltar do nosso para o dos vizinhos e depois sair para a rua pela porta deles. Lalla Mani guardava oficialmente a chave do nosso terraço e Ahmed apagava a luz das escadas quando o sol se punha. Mas como o terraço era utilizado ao longo do dia para diversas atividades domésticas, desde ir buscar azeitonas, que eram ali armazenadas em grandes barricas, até lavar e estender a roupa, frequentemente a chave ficava a cargo da tia Habiba, que ocupava o quarto contíguo.
O acesso ao terraço raramente era vigiado, pela simples razão de que era muito complicado aceder à rua através dele. Para o fazer, era imprescindível ser bom em três habilidades: escalar, saltar e aterrar com agilidade. Quase todas as mulheres sabiam escalar e saltar bastante bem, mas poucas conseguiam aterrar graciosamente. Por isso, de vez em quando aparecia uma com o tornozelo ligado, e toda a gente sabia o que se tinha passado. A primeira vez que desci do terraço fiquei com os joelhos a sangrar e a minha mãe explicou-me que o maior problema da vida de uma mulher era calcular uma boa aterragem.
– Quando embarcas numa aventura – disse –, não tens de pensar na descolagem, mas apenas em como vais aterrar. Por isso, quando tiveres vontade de voar, pensa como e onde acabarás.
Mas havia outra razão mais solene pela qual as mulheres como Chama e a minha mãe consideravam que escapar pelo terraço não era uma alternativa viável ao portão principal. O acesso ao terraço tinha um aspeto clandestino e furtivo que repugnava àqueles que defendiam o direito de as mulheres se movimentarem livremente. Confrontar-se com Ahmed no portão era um ato heroico, mas escapar pelo terraço não trazia consigo a chama inspiradora e subversiva da libertação.
Nenhuma destas intrigas se aplicava à quinta de Yasmina, pois aí o portão não fazia sentido porque não havia muros. E para estar num harém, pensava eu, era necessária uma barreira, uma fronteira. Quando visitámos Yasmina naquele verão, contei-lhe a versão de Chama sobre a criação dos haréns. Quando reparei que não estava a ouvir-me, decidi mostrar-lhe todos os meus conhecimentos históricos e falei-lhe dos romanos e dos seus haréns e de como os árabes se haviam transformado nos sultões do planeta graças às mil mulheres do califa Harun al-Rashid e de como os cristãos tinham enganado os árabes alterando as regras do jogo enquanto eles dormiam. Yasmina riu muito ao ouvir a história e disse que era demasiado ignorante para avaliar os factos históricos, mas que tudo lhe parecia muito divertido e lógico. Perguntei então se a versão de Chama era verdadeira ou falsa e Yasmina respondeu que todo aquele assunto de verdadeiro e falso deveria ser encarado com serenidade. Disse que algumas coisas podiam ser verdadeiras e falsas, e outras nem uma coisa nem outra.
– As palavras são como as cebolas – disse. – Quanto mais cascas se tira, mais significados se encontra. E quando começas a descobrir a multiplicidade de significados, essa história de verdadeiro e falso torna-se irrelevante. Todas as perguntas que tu e Samir têm feito sobre os haréns são muito pertinentes, mas haverá sempre algo mais por descobrir. Agora vou tirar outra casca para ti. Mas lembra-te de que é só uma entre todas as outras.
Disse-me que a palavra «harém» era uma ligeira variação da palavra haram, o proibido, o proscrito. Que era o contrário de halal, o permitido. Harém era o lugar onde um homem alojava a sua família, a sua mulher ou mulheres, e os seus filhos e parentes. Podia tratar-se de uma casa ou de uma tenda e designava tanto o espaço como as pessoas que viviam nele. Dizia-se «o harém de Sidi Fulano-de-Tal» referindo-se tanto aos membros da sua família como à casa propriamente dita. Uma coisa que me ajudou a compreender isto melhor foi quando Yasmina explicou que Meca, a cidade santa, também se chamava haram. Meca era um lugar onde o comportamento era estritamente codificado. Quando uma pessoa chegava à cidade, ficava submetida a uma série de leis e regulamentos: as pessoas que entravam em Meca tinham de ser puras, tinham de realizar rituais de purificação e não podiam mentir, enganar nem cometer más ações. A cidade pertencia a Alá e se se entrava no seu território tinha de se cumprir a sua lei sagrada ou Shari‘a. E o mesmo se aplicava a um harém quando se tratava de uma casa pertencente a um homem: os outros homens não podiam entrar nela sem autorização do dono, e quando o faziam tinham de obedecer às suas regras. Um harém tinha a ver com o espaço privado e as regras que o regiam. E não eram precisos muros, disse-me Yasmina. Uma vez que uma pessoa sabia o que era proibido, tinha o harém no seu íntimo. Tinha-o na cabeça, «gravado na testa e debaixo da pele». A ideia de um harém invisível, uma lei tatuada na mente, parecia-me terrivelmente inquietante. Não me agradava nada e Yasmina teve de mo explicar melhor.
Disse que a quinta era um harém, mas não tinha muros.
– Só são precisos muros quando há ruas!
Mas se alguém decidia viver no campo, como o avô, então não necessitava de portões, porque estava no meio dos campos e não havia transeuntes. As mulheres podiam sair livremente porque não havia homens estranhos a rondá-las e a espiá-las. Podiam cavalgar ou passear horas a fio sem ver vivalma. E se por acaso encontravam um camponês no caminho e ele via que não tinham o véu posto, cobriria a cabeça com o capuz da djellaba para mostrar que não estava a olhar para elas. Por isso, neste caso, disse-me Yasmina, o harém estava na mente do camponês, gravado algures sob a sua testa. Ele sabia que as mulheres da quinta pertenciam ao avô Tazi e que não tinha o direito de olhar para elas.
Essa história de andar por aí com uma fronteira na cabeça perturbou-me e levei discretamente a mão à testa para me certificar de que estava lisa, só para ver se por acaso estava livre do harém. Mas nessa altura a explicação de Yasmina pareceu-me ainda mais alarmante porque a seguir me disse que todos os espaços onde entrava tinham regras próprias que eram invisíveis e que uma pessoa tinha de decifrar.
– E quando digo «espaço» – continuou –, refiro-me a qualquer espaço: um pátio, um terraço, um quarto ou mesmo a rua, se for preciso. Onde há seres humanos há uma qa’ida, ou regra invisível. Se a respeitares, nada de mal te acontecerá.
Lembrou-me que, em árabe, qa’ida tinha vários significados, todos eles com uma premissa básica comum. Uma lei matemática ou um sistema legal era uma qa’ida, tal como acontecia com os alicerces de um edifício. Qa’ida era também um costume ou um código de comportamento. A qa’ida estava por toda a parte. Nessa altura acrescentou algo que me assustou verdadeiramente:
– Infelizmente, a qa’ida funciona quase sempre contra as mulheres.
– Porquê? Isso não é justo, pois não? – perguntei, aproximando-me mais para não perder nenhuma palavra.
O mundo, disse Yasmina, não se preocupava em ser justo com as mulheres. As regras eram feitas de forma a despojarem-nas de uma forma ou de outra. Por exemplo, disse, tanto os homens como as mulheres trabalhavam da alvorada até à noite. Mas os homens ganhavam dinheiro e as mulheres não. Essa era uma das regras invisíveis. E quando uma mulher trabalhava arduamente e não ganhava dinheiro, estava enfiada num harém embora não visse os muros.
– Talvez as regras sejam cruéis porque não são feitas pelas mulheres – foi a conclusão de Yasmina.
– E porque não são feitas pelas mulheres? – perguntei.
– Sê-lo-ão no momento em que as mulheres forem espertas e começarem a fazer-se essa mesma pergunta – respondeu ela – em vez de cozinharem e esfregarem docilmente. Descobrirão então a forma de alterar as regras e voltar o planeta do avesso.
– E quanto tempo demorará até isso acontecer? – perguntei.
– Muito tempo – respondeu Yasmina.
A seguir perguntei-lhe se podia explicar-me como decifrar a regra invisível ou qa’ida quando entrava num espaço novo. Havia sinais ou algo tangível que eu pudesse procurar? Não, respondeu ela, infelizmente não havia indícios, exceto a violência posterior ao facto. Porque seria castigada no momento em que desobedecesse a uma regra invisível. Contudo, observou que muitas das coisas que as pessoas mais gostavam de fazer na vida, como passear, descobrir o mundo, cantar, dançar e exprimir uma opinião, figuravam muitas vezes na categoria do estritamente proibido. Na verdade, a qa’ida, a regra invisível, muitas vezes era pior do que os muros e os portões. Com os muros e os portões pelo menos uma pessoa sabia em que águas navegava.
Perante tais palavras, quase desejei que todas as regras se transformassem subitamente em fronteiras e muros visíveis diante dos meus próprios olhos. Mas depois tive outra ideia inquietante. Se a quinta de Yasmina era um harém, apesar do facto de não ter muros visíveis, o que significava então hurriya ou liberdade? Transmiti a minha ideia a Yasmina e ela pareceu um pouco preocupada; disse que gostaria que eu brincasse com as outras crianças e deixasse de me preocupar com muros, regras, restrições e o significado de hurriya.
– Se pensares demasiado em muros e regras, perderás a oportunidade de ser feliz, minha querida pequena – disse. – O objetivo principal da vida de uma mulher é a felicidade. Por isso, não desperdices o teu tempo à procura de muros para dares com a cabeça contra eles.
Para me fazer rir, Yasmina deu um salto, correu para a parede e fingiu dar cabeçadas contra ela, gritando:
– Ai, ai! A parede está a magoar-me! A parede é minha inimiga!
Desatei a rir à gargalhada, aliviada por saber que, apesar de tudo, a felicidade era possível. Yasmina olhou-me fixamente, levou um dedo à têmpora e perguntou-me:
– Percebes o que quero dizer?
Claro que percebia o que Yasmina queria dizer, e a felicidade pareceu-me absolutamente possível, apesar dos haréns, fossem eles visíveis ou invisíveis. Abracei-a e enquanto ela me apertava e me deixava brincar com as suas pérolas cor-de-rosa, murmurei-lhe ao ouvido:
– Adoro-te, Yasmina. A sério. Achas que vou ser uma mulher feliz?
– Claro que sim! – exclamou ela. – Serás uma senhora educada e moderna. Realizarás o sonho dos nacionalistas. Aprenderás línguas estrangeiras, terás passaporte e falarás como uma autoridade religiosa. No mínimo, terás uma vida mais confortável do que a da tua mãe. Lembra-te de que mesmo eu, inculta e de pés e mãos atadas pela tradição, consegui tirar alguma felicidade desta maldita vida. Por isso não quero que estejas sempre a pensar em fronteiras e em barreiras. Quero que penses antes no divertimento, na alegria e na felicidade. Esse é um bom projeto para uma jovem ambiciosa.
12 Magrebe é o nome árabe de Marrocos, a terra do sol poente, de Gharb (Ocidente).
13 O hadiz é uma compilação dos atos e afirmações do profeta Maomé. Recolhidos e escritos depois da sua morte, são uma das primeiras fontes do Islão, sendo a primeira o Corão, o livro revelado diretamente por Alá ao seu profeta.
14 Khanuns são uma espécie de recipientes de carvão portáteis, o equivalente marroquino do churrasco. Podem ser metálicos ou em cerâmica.
LAVA-LOIÇAS AQUÁTICO
Para chegar à quinta de Yasmina só tínhamos de viajar algumas horas, embora parecesse que partíamos para uma das longínquas ilhas da tia Habiba no mar da China. As mulheres da quinta faziam coisas de que nós, na cidade, nem sequer tínhamos ouvido falar, como pescar, trepar às árvores e banhar-se num riacho que desaguava no rio Sebu antes de chegar ao Oceano Atlântico. Desde que Tamu chegara ao norte, as mulheres tinham inclusive começado a participar em corridas de cavalos. Já montavam a cavalo antes da chegada de Tamu, mas só o faziam discretamente, quando os homens não estavam, e na realidade nunca tinham ido muito longe. Tamu transformara a equitação num ritual solene, com regras fixas, treinos e aparatosas cerimónias de entrega de prémios e condecorações.
A vencedora da corrida recebia um prémio providenciado pela última a chegar à meta: uma enorme pastilla, o mais delicioso dos variados manjares de Alá. A pastilla é doce e salgada, feita com carne de pombo e frutos secos, açúcar e canela. Oh! A pastilla estala quando é mastigada e tem de ser comida com gestos delicados e sem pressas, senão ficamos com a cara cheia de canela e açúcar. Preparar uma pastilla demora vários dias porque é feita com camadas de massa quase transparentes, recheada de amêndoas torradas moídas e muitas outras surpresas. Yasmina costumava dizer que se as mulheres fossem espertas, não serviriam aquela maravilha como parte das suas obrigações domésticas, mas vendê-la-iam e ganhariam algum dinheiro.
À exceção de Lalla Thor, que era uma mulher urbana com a pele muito branca e mortiça, a maioria das mulheres do meu avô possuía as inconfundíveis feições rurais do Marrocos montanhoso. Também ao contrário de Lalla Thor, que nunca fazia tarefas domésticas e andava sempre com três capas de cafetã descontraidamente caídas até ao tornozelo, as outras mulheres do avô recolhiam-nas e enfiavam-nas nos cintos e arregaçavam as mangas debaixo dos braços com cintas elásticas coloridas para que parecessem o takhmal15 tradicional. Este tipo de vestuário permitia-lhes movimentarem-se com rapidez durante todo o dia, desempenhando as tarefas domésticas e dando de comer a pessoas e animais.
Uma das preocupações constantes das coesposas era tornar o trabalho doméstico mais divertido. Um dia, Mabruka, que adorava nadar, propôs lavarem os pratos no rio. Lalla Thor ficou escandalizada e disse que semelhante ideia era totalmente contrária à civilização muçulmana.
– Estas camponesas acabarão por destruir completamente a reputação desta casa – resmungou. – Tal como o venerável historiador Ibn Khaldun previu há seiscentos anos no seu Muqaddimah, quando disse que o Islão era essencialmente uma cultura urbana e os camponeses a sua ameaça16. Ter tantas mulheres da montanha só podia levar ao desastre.
Yasmina replicou que Lalla Thor seria muito mais útil aos muçulmanos se deixasse de ler livros antigos e se começasse a trabalhar como todas as outras. Mas Lalla Thor sentia tais ciúmes da ideia de as outras coesposas se divertirem um pouco que a contou ao avô, que chamou Mabruka e Yasmina à sua presença para lhe explicarem a sua ideia. Elas argumentaram logo que embora fossem ambas camponesas ignorantes, não eram parvas e não podiam aceitar as palavras de Ibn Khaldun como sagradas. Bem vistas as coisas, disseram, ele fora apenas um historiador. Estavam dispostas a renunciar de boa vontade à sua ideia se Lalla Thor lhes mostrasse uma fatwa, um decreto das autoridades religiosas da mesquita Qarauíne, que proibisse as mulheres de lavar os pratos no rio; mas até lá fariam como entendessem. Afinal de contas, o rio era criação de Alá, uma manifestação do seu poder; e se nadar fosse um pecado, pagariam por isso quando chegasse o seu dia do Juízo Final.
Impressionado pela lógica dos argumentos, o avô deu por encerrada a reunião dizendo que se sentia satisfeito por no Islão a responsabilidade ser um assunto pessoal.
Na quinta, como em todos os haréns, as tarefas domésticas realizavam-se seguindo um estrito esquema rotativo. As mulheres organizavam-se em equipas reduzidas, de acordo com a amizade e os interesses, e dividiam as tarefas. A equipa que durante uma semana se encarregava de cozinhar, na seguinte lavava o chão; na terceira preparava o chá e o café e tomava conta das bebidas; na quarta lavava os pratos e na quinta relaxava e descansava. Raramente as mulheres formavam um único grupo para realizar uma tarefa. A exceção era a lavagem dos pratos, uma tarefa habitualmente aborrecida; com o plano de Mabruka, pelo menos nos verões em que eu lá passei, transformou-se numa fantástica exibição aquática, com participantes, espectadores e até claques.
As mulheres formavam duas filas na margem do rio. As da primeira fila metiam-se quase completamente vestidas com água até aos joelhos. As mulheres da segunda fila, que tinham de ser boas nadadoras, metiam-se na água até à cintura e muitas vezes só levavam vestida a qamis, enrolada e bem presa ao cinto. Também costumavam levar a cabeça descoberta, porque não podiam lutar contra a corrente se tivessem de se preocupar com a possibilidade de perder os lenços e turbantes de preciosa seda bordada. A primeira fila fazia a lavagem inicial, esfregando panelas, frigideiras e tagines (tachos de barro), com tadekka, uma pasta feita com areia e argila que recolhiam na margem do rio. Depois entregavam as frigideiras e panelas às mulheres da segunda fila para que fizessem outra lavagem. Entretanto, o resto da louça passava de mão em mão no sentido contrário à corrente, para tirar bem a tadekka.
Finalmente aparecia em cena Mabruka, a estrela nadadora. Raptada numa aldeia próxima à cidade costeira de Agadir durante a guerra civil que se seguira à tomada do poder pelos franceses, Mabruka passara a infância a mergulhar de altos penhascos para o oceano. Não só nadava como um peixe e aguentava muito tempo debaixo de água, como também salvara muitas das coesposas das fortes correntes que as arrastariam até Kenitra, a cidade onde o rio Sebu desagua no mar. A sua tarefa na lavagem da louça consistia em recuperar as panelas e frigideiras que escapavam às outras mulheres, lutando contra a corrente para as trazer de novo para terra. Quando aparecia à superfície com uma frigideira ou um prato na cabeça, as mulheres irrompiam em gritos e aplausos, e nessa mesma noite a «infratora» que deixara escapar o prato tinha de lhe conceder um desejo, que variava segundo os seus talentos. Quando a culpada era Yasmina, Mabruka pedia-lhe sfinge, os incomparáveis bolos da minha avó.
Quando as panelas estavam limpas, entregavam-nas a Yasmina, que por sua vez as passava a Krisha, o homem-chave de toda a operação. Krisha significa literalmente «a barriga» e era a alcunha que todas as senhoras tinham posto a Mohammed al-Garbaui, o seu condutor preferido e que mimavam muito. Krisha nascera na planície do Gharb, entre Tânger e Fez. Vivia com a sua mulher Zina a uns cem metros da quinta e nunca saíra da sua aldeia, mas tinha a certeza de que não perdia grande coisa.
– Não existe no mundo lugar mais belo do que o Gharb, à exceção de Meca – costumava dizer.
Krisha era muito alto e usava sempre um impressionante turbante branco e um espesso albornoz castanho que punha aos ombros com elegância. Parecia uma pessoa autoritária, mas na verdade não o era. Não estava interessado em exercer poder nem em defender a ordem. Aborrecia-o impor regras. Era apenas uma pessoa simpática que acreditava que todas as criaturas de Alá tinham inteligência suficiente para se comportar e agir de uma forma responsável, começando pela sua mulher, que pouco fazia em casa e não sofria quaisquer consequências por isso.
– Se ela não gosta do trabalho doméstico – dizia ele – , não faz mal. Não vou divorciar-me por isso. Cá nos arranjaremos.
Krisha não era o que se pode chamar um homem ocupado. Quando não conduzia a sua carroça, estava a comer ou a dormir, embora costumasse participar nas atividades das mulheres, sobretudo quando era necessário transportar pessoas e objetos.
Sem a ajuda de Krisha, lavar a loiça no rio teria sido impossível, uma vez que em muitos casos se tratava de pesadas panelas de cobre, frigideiras de ferro e tachos de barro que pesavam mais de seis quilos cada um (para cozinhar para uma família extensa como a da quinta eram precisas panelas e frigideiras muito grandes). Teria sido impossível transportar estes utensílios até à margem do rio sem a ajuda de Krisha e da sua carroça puxada por cavalos. Krisha, o barriga, não conseguia resistir a uma boa refeição, e se lhe preparassem o seu cuscuz preferido, com passas, pombos recheados e abundantes cebolas doces, era capaz de mover montanhas.
Uma das obrigações oficiais de Krisha consistia em levar as mulheres ao hammam ou banhos públicos de duas em duas semanas. Os banhos ficavam situados numa aldeia vizinha, Sidi Slimane, a dez quilómetros da quinta, e era muito divertido ir com Krisha. As mulheres não paravam de dar saltos na carroça e de dois em dois minutos pediam-lhe que parasse «para fazerem chichi». Ele respondia sempre a mesma coisa, que fazia toda a gente rir:
– Senhoras, é aconselhável e até recomendável que façam chichi nas vossas sarwal (calças). O mais importante é que, façam ou não chichi, continuem nesta maldita carroça até eu chegar são e salvo a Sidi Slimane.
Quando chegavam a Sidi Slimane, Krisha descia lentamente do assento do condutor e, de pé na calçada, contava as mulheres com os dedos à medida que iam entrando.
– Não desapareçam no vapor, senhoras, por favor – costumava dizer-lhes. – Preciso que todas respondam «presente» quando voltarmos esta noite.
Oh, era um delírio na quinta de Yasmina!
15 A palavra takhmal vem do verbo árabe coloquial khammal, «fazer a limpeza». O takhmal é uma fita elástica ou uma longa fita bordada que as mulheres utilizavam para segurar as mangas compridas arregaçadas. Agarravam na fita com um metro de comprimento, atavam-na em forma de laço e enroscavam-na de maneira a formar um oito. Metiam o braço no laço, por forma a que o nó ficasse nas suas costas, e enfiavam a manga arregaçada até à axila. Para ocultar o aspeto prático do takhmal, muitas mulheres bordavam o laço ou a fita elástica com contas e pérolas. As mulheres ricas utilizavam colares de pérolas ou correntes de ouro em vez de laços e fitas.
16 Um dos mais brilhantes historiadores sociais do Islão, Ibn Khaldun, viveu na Espanha muçulmana durante o século XIV. Na sua obra-prima, Muqaddimah (Introdução), tentou submeter a História a uma análise meticulosa para descobrir os seus princípios orientadores. Ao fazê-lo, identificava as populações urbanas como os pólos positivos da cultura muçulmana e as populações periféricas, camponeses e nómadas, como os pólos negativos e destruidores. Esta noção dos centros urbanos como berço das ideias, da cultura e da riqueza, e das populações rurais como improdutivas, rebeldes e indisciplinadas, está fortemente enraizada em todas as ideias árabes de desenvolvimento até aos dias de hoje. O epíteto arubi, ou seja, «pessoa de origem rural», é ainda hoje considerado um insulto em Marrocos.
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NOITES DE ALEGRIA AO LUAR
Na quinta de Yasmina nunca se sabia a que horas se comeria. Por vezes só se lembrava no último minuto que tinha de me dar de comer e tentava convencer-me de que umas azeitonas e um pedaço do excelente pão que cozera ao nascer do dia seriam suficientes. Mas no nosso harém de Fez era uma história completamente diferente. Comíamos a horas fixas, e nada entre as refeições.
Para as refeições em Fez, devíamos sentar-nos nos lugares marcados numa das quatro mesas comuns. A primeira mesa era para os homens, a segunda para as mulheres importantes e a terceira para as crianças e as mulheres menos importantes, o que nos fazia felizes, porque significava que a tia Habiba comia connosco. A última mesa era reservada aos criados e a todos os que chegavam tarde, independentemente da sua idade, posição hierárquica ou sexo. Geralmente essa mesa estava sempre cheia, e para todos os que cometiam o erro de se atrasarem era a última oportunidade de poder comer algo.
O que a minha mãe mais odiava na vida comunitária era comer a horas fixas. Estava sempre a aborrecer o meu pai com a possibilidade de se emancipar e ir viver para outro lugar com a nossa família mais chegada. Os nacionalistas defendiam a abolição da reclusão e do véu, mas nem sequer mencionavam o direito de um casal se tornar independente da sua família. Na verdade, a maioria dos líderes viviam com os seus pais. O movimento nacionalista masculino apoiava a libertação das mulheres mas não aceitava a ideia de que os velhos vivessem sós, nem que os casais se emancipassem e vivessem em casas separadas. Nenhuma destas ideias parecia correta ou elegante.
A ideia de almoçar a uma hora fixa desagradava particularmente à minha mãe. Costumava ser a última a acordar e gostava de tomar um pequeno-almoço tardio e abundante que, numa extravagante atitude de desafio, ela mesma preparava para si própria sob o olhar crítico da avó Lalla Mani. Fazia ovos mexidos e baghrir, crepes finos cobertos de mel puro e manteiga fresca e, claro, chá em abundância. Tomava o pequeno-almoço normalmente às onze em ponto, mesmo quando Lalla Mani se dispunha a iniciar a cerimónia de purificação para a oração do meio-dia. Duas horas mais tarde e já na mesa comum, por vezes a minha mãe era completamente incapaz de comer fosse o que fosse. Outras vezes dispensava o almoço pura e simplesmente, sobretudo quando queria aborrecer o meu pai, porque abdicar de uma refeição era considerado um comportamento bastante grosseiro e além disso assumidamente individualista. A minha mãe sonhava viver sozinha com o meu pai e os filhos.
– Quem ouviu falar de dez pássaros apertados no mesmo ninho? – dizia. – Não é natural viver num grupo grande, a menos que o objetivo seja tornar as pessoas infelizes.
Embora o meu pai dissesse que na realidade não sabia como os pássaros viviam, compreendia a minha mãe e sentia-se dividido entre o seu dever para com a família tradicional e o desejo de a tornar feliz. Sentia-se culpado por romper a solidariedade familiar, pois compreendia perfeitamente que as famílias numerosas em geral e a vida do harém em particular se estavam a transformar rapidamente em relíquias do passado. Chegava mesmo a profetizar que dentro de poucas décadas seríamos como os cristãos, que raramente visitavam os seus velhos pais. Na verdade, muitos dos meus tios já tinham saído da grande casa familiar e quase nunca arranjavam tempo para visitar Lalla Mani às sextas-feiras, depois da oração.
«Os seus filhos já nem sabem beijar as mãos», costumava dizer a cantilena. Para piorar as coisas ainda mais, todos os meus tios só se tinham ido embora quando a oposição das suas mulheres à vida em comum se tornara insuportável. Era isto que dava esperanças à minha mãe.
O primeiro a deixar a grande família foi o tio Karim, o pai da prima Malika. A sua mulher adorava música e gostava de cantar acompanhada pelo tio Karim, que tocava alaúde maravilhosamente. Mas ele quase nunca acedia ao desejo da mulher em passar todo um serão a cantar no salão deles, porque o irmão mais velho, o tio Ali, considerava impróprio que os homens cantassem ou tocassem um instrumento musical. Finalmente, um dia a mulher do tio Karim agarrou nos filhos e voltou para casa dos pais, dizendo que não fazia tenções de voltar a viver numa casa comum. Então o tio Karim, um homem alegre que muitas vezes se sentira constrangido com a disciplina da vida no harém, viu a oportunidade de se ir embora a aproveitou-a, com a desculpa de que preferia ceder aos desejos da mulher do que estragar o casamento. Pouco tempo depois os meus outros tios saíram também, um atrás do outro, até que só ficaram em casa o meu pai e o tio Ali. Por isso, a partida do meu pai teria significado a morte da nossa grande família.
– Enquanto a minha mãe viver – costumava dizer –, não atraiçoarei a tradição.
No entanto, o meu pai amava tanto a sua mulher que se sentia infeliz por não ceder aos seus desejos e nunca deixou de lhe propor concessões recíprocas. Uma delas foi providenciar um armário cheio de comida para que ela pudesse comer discretamente, separada do resto da família. Porque um dos inconvenientes da casa comum era que ninguém podia abrir o frigorífico sem mais nem menos quando tinha fome, nem tirar o que quisesse. Em primeiro lugar, porque na altura não havia frigoríficos. Mas principalmente porque no harém se vivia ao ritmo do grupo, não se podia comer quando nos apetecia. Lalla Radia, a mulher do meu tio, tinha a chave da despensa e embora depois do jantar perguntasse sempre o que nos apetecia comer no dia seguinte, tínhamos sempre de comer o que o grupo decidisse após prolongada discussão. Se o grupo escolhesse cuscuz com ervilhas e passas, então era isso que comíamos. E se por acaso alguém odiasse ervilhas e passas, não tinha alternativa senão calar-se e contentar-se com uma refeição frugal à base de azeitonas e muita discrição.
– Que perda de tempo estas discussões intermináveis sobre as refeições! – dizia a minha mãe. – Os árabes fariam muito melhor se deixassem cada qual decidir o que quer comer. Obrigar toda a gente a partilhar três refeições diárias só complica as coisas. E para que sagrado fim? Nenhum, claro.
Depois começava a lamentar-se de que toda a sua vida era um absurdo e que nada fazia sentido, enquanto o meu pai se limitava a dizer que não podia ir-se embora sem mais nem menos, pois se o fizesse a tradição desapareceria.
– Vivemos tempos difíceis, o país está ocupado pelos exércitos estrangeiros e a nossa cultura está ameaçada. A única coisa que nos resta são estas tradições.
Este raciocínio do meu pai punha a minha mãe fora de si.
– Achas que ficando juntos nesta casa enorme e absurda conseguiremos a força necessária para expulsar os exércitos estrangeiros? E o que é mais importante, em todo o caso: a tradição ou a felicidade das pessoas?
Isto punha um ponto final brusco na conversa. O meu pai tentava acariciar-lhe a mão, mas a minha mãe retirava-a.
– Esta tradição asfixia-me – murmurava ela com lágrimas nos olhos.
Por isso o meu pai continuava a oferecer-lhe soluções de compromisso. Não só lhe proporcionou a sua própria provisão de alimentos como também lhe levava coisas de que ela gostava, como tâmaras, nozes, amêndoas, mel, farinha e azeites requintados. Ela podia preparar todas as sobremesas e bolachas que quisesse, mas não devia cozinhar um prato de carne ou uma refeição principal, pois isso significaria o princípio do fim da ordem comunitária. Os seus pequenos-almoços individuais aparatosamente preparados eram já uma grande bofetada no resto da família. Frequentemente a minha mãe conseguia arranjar maneira de preparar um almoço ou um jantar completos, mas devia ser discreta e conferir-lhe um certo tom exótico. A sua tática mais comum era disfarçá-lo de lanche-jantar servido no terraço.
Estes ocasionais jantares ao luar durante as noites de verão eram outra oferta de paz do meu pai para acalmar um pouco a ânsia de privacidade de minha mãe. Mudávamo-nos para o terraço como nómadas, com colchões, mesas, bandejas e o berço do meu irmãozinho, que colocávamos no meio de tudo. A minha mãe ficava absolutamente louca de alegria. Ninguém do pátio se atrevia a aparecer porque compreendiam perfeitamente que a minha mãe tentava fugir das outras pessoas. O que ela mais apreciava era que o meu pai saísse da sua autocontrolada pose convencional. Depois começava a comportar-se como uma pateta ou uma criança pequena e desafiava o meu pai para a perseguir pelo terraço.
– Já não consegues correr, estás demasiado velho! – dizia-lhe. – Só serves para te sentar a tomar conta do berço do teu filho.
O meu pai, que até esse momento tinha estado a sorrir, olhava-a como se ela tivesse acabado de dizer algo que não o afetava minimamente. Mas depois o seu sorriso desaparecia e começava a correr atrás dela pelo terraço, saltando por cima dos divãs e dos tabuleiros de chá. Às vezes inventavam jogos que incluíam a minha irmã, eu própria e Samir (que era o único do resto da família a quem permitiam assistir às nossas reuniões ao luar).
Mas o mais frequente era esquecerem-se do resto do mundo e no dia seguinte passávamos o tempo a espirrar porque nessa noite se tinham esquecido de nos tapar.
Depois destas noites maravilhosas, a minha mãe costumava passar uma semana estranhamente tranquila e sorridente. Em seguida dizia-me que, fizesse o que fizesse da minha vida, tinha de a vingar.
– Quero que a vida das minhas filhas seja excitante, muito excitante e cem por cento feliz, nada mais, nada menos – dizia.
Eu levantava a cabeça, olhava para ela muito séria e perguntava-lhe o que significava ser feliz a cem por cento, porque queria que soubesse que me propunha fazer todo o possível por consegui-lo.
Uma pessoa era feliz, explicava-me ela, quando se sentia bem, alegre, criativa, satisfeita, amando, sendo amada e livre. Uma pessoa infeliz tinha a sensação de que existiam barreiras que esmagavam os desejos e os talentos que tinha no seu íntimo. Uma mulher feliz era aquela que podia exercer todo o tipo de direitos, desde o direito de se movimentar até ao direito a criar, competir e desafiar e, ao mesmo tempo, sentir-se amada por fazê-lo. Parte da felicidade consistia em ser amada por um homem que apreciasse a força da sua mulher e se orgulhasse dos seus talentos. A felicidade também tinha a ver com o direito à privacidade, o direito a renunciar à companhia dos outros e mergulhar numa solidão contemplativa. Ou com o facto de uma pessoa se sentar sozinha durante um dia inteiro, sem fazer nada e sem ter de se desculpar ou de se sentir culpada por isso. A felicidade era estar com os seres amados e apesar disso sentir que existíamos enquanto ser individual, que não vivíamos só para fazer os outros felizes. A felicidade era o equilíbrio entre o que se dava e o que se recebia. Perguntei-lhe então se era muito feliz, só para ter uma ideia, e ela disse-me que variava com os dias. Nalguns dias era feliz apenas a cinco por cento; noutros, como as noites que passava com o meu pai no terraço, era feliz a cem por cento.
Quando era pequena, aspirar a cem por cento de felicidade parecia-me um pouco excessivo, sobretudo porque via o quanto a minha mãe trabalhava para esculpir os seus momentos de felicidade. Quanto tempo e energia empenhava naquelas maravilhosas noites ao luar, sentada ao lado do meu pai e falando-lhe ternamente ao ouvido com a cabeça encostada no seu ombro! A mim parecia-me um grande feito, porque ela levava dias a convencê-lo, e depois tinha de tratar de toda a logística, de cozinhar e de se encarregar do transporte das coisas. Era impressionante trabalhar com aquela determinação só para conseguir algumas horas de felicidade, e pelo menos eu sabia que isso era possível. Mas como, perguntava-me, ia eu criar um nível de excitação tão alto e mantê-lo durante uma vida inteira? Bem, se a minha mãe achava que era possível, eu devia pelo menos tentá-lo.
– Os tempos vão melhorar para as mulheres, minha filha – dizia-me ela. – Tu e a tua irmã vão ter uma boa educação, vão andar livremente pelas ruas e descobrir o mundo. Quero que vocês se tornem independentes, independentes e felizes. Quero que brilhem como luas. Quero que a vossa vida seja uma torrente de prazeres serenos. Felicidade a cem por cento. Nada mais, nada menos.
Mas quando lhe pedia mais pormenores sobre como criar essa felicidade, a minha mãe impacientava-se.
– Tens de trabalhar nisso – dizia. – Os músculos para se ser feliz desenvolvem-se do mesmo modo que os que servem para andar ou para respirar.
Por isso todas as manhãs eu sentava-me no patamar do nosso salão a contemplar o pátio deserto e a sonhar com o meu maravilhoso futuro, com uma torrente de prazeres serenos. Lutar pelas noites românticas no terraço ao luar, desafiar o marido amado a esquecer as suas obrigações sociais, descontrair, brincar e contemplar as estrelas enquanto ele segurava na minha mão podia ser uma maneira de desenvolver os músculos para a felicidade. Esculpir noites suaves nas quais o som do riso se misturava com as brisas primaveris, podia ser outra.
Mas aquelas noites mágicas eram raras, ou pelo menos assim pareciam. A vida seguia sempre o seu curso rígido e disciplinado. Na casa Mernissi, os saltos e as brincadeiras não eram permitidos; tudo isso estava confinado a momentos e espaços clandestinos, tais como os fins de tarde no pátio quando os homens estavam fora, ou as noites nos terraços desertos.
O SALÃO DOS HOMENS
Na nossa casa, o problema com o entretenimento, o divertimento e a brincadeira era que os distraídos facilmente os perdiam. Nunca eram planeados com antecedência, a menos que a prima Chama ou a tia Habiba se encarregassem de o fazer, e mesmo nessas alturas estavam sujeitos a grandes limitações de espaço. As sessões de histórias da tia Habiba e as peças de teatro da prima Chama tinham de desenrolar-se no andar de cima. No pátio nunca era possível haver grandes divertimentos, era um lugar demasiado público. No momento exato em que nos começávamos a divertir, chegavam os homens com os seus planos, que normalmente implicavam grandes discussões, como analisar assuntos de negócios, ouvir rádio e discutir as notícias ou jogar cartas; e nessas alturas tínhamos de ir para outro sítio qualquer. Um bom espetáculo exige concentração e de silêncio, por forma a que o mestre de cerimónias, os contadores de histórias e os atores possam criar a sua magia. No pátio era impossível criar magia, com tantas pessoas a subirem e a descerem pelas escadas ou a falar de um patamar para o outro. E é claro que ninguém podia criar magia quando os homens estavam a falar de política, ou seja, a ouvir a rádio pelos altifalantes ou a ler a imprensa local e internacional.
As discussões políticas dos homens tinham sempre um grande conteúdo emocional. Se ouvíssemos atentamente o que diziam, tinha-se a impressão de que se aproximava o fim do mundo (a minha mãe dizia que se acreditássemos na telefonia e nos comentários dos homens, o planeta já teria desaparecido há muito tempo). Falavam dos alemães, uma nova raça de cristãos que estavam a derrotar os franceses e os ingleses, e falavam da bomba que os americanos tinham lançado no Japão, que era uma das nações asiáticas próximas da China, mil quilómetros a leste de Meca. A bomba não só havia matado milhares e milhares de pessoas e derretido os seus corpos, como também arrancara florestas inteiras da superfície da terra. As notícias sobre aquela bomba mergulharam o meu pai, o tio Ali e os meus primos num profundo desespero, porque se os cristãos haviam lançado aquela bomba sobre os asiáticos que viviam tão longe, seria apenas uma questão de tempo até atacarem os árabes.
– Mais cedo ou mais tarde – dizia o meu pai –, também tentarão queimar os árabes.
Samir e eu adorávamos as discussões políticas porque os homens aceitavam a nossa presença num salão cheio de gente. O meu tio e o meu pai, ambos comodamente vestidos com uma djellaba branca, sentavam-se rodeados pela chabab, a juventude, isto é, as dúzias de adolescentes e jovens rapazes solteiros que viviam na casa. O meu pai costumava meter-se com eles por causa do seu incómodo e apertado vestuário ocidental, e dizia que eles deveriam sentar-se em cadeiras. Mas claro que toda a gente detestava as cadeiras; os divãs eram mais cómodos.
Eu costumava saltar para o colo do meu pai e Samir para o do seu. O meu tio sentava-se com as pernas cruzadas no centro do divã mais alto, com a sua djellaba e o seu turbante de um branco imaculado, e Samir no seu colo com uns calções príncipe de Gales. Eu enroscava-me no colo do meu pai, muito bem arranjada com um dos meus curtíssimos vestidos franceses, com laços de cetim na cintura. A minha mãe insistia sempre em vestir-me à última moda ocidental: vaporosos vestidos curtos de renda com laços às cores e sapatos pretos brilhantes. O único problema é que ela ficava numa fúria quando eu sujava o vestido ou desmanchava os laços, e eu costumava suplicar-lhe que me deixasse pôr as cómodas sarwal (calças do harém) ou qualquer vestuário tradicional, que requeriam menos cuidados. Mas a minha mãe queria tanto que eu me libertasse da tradição que só me deixava usar o cafetã em dias de festa religiosa, quando o meu pai insistia muito.
– A roupa revela muito dos propósitos de uma mulher – dizia. – Se tencionas ser moderna, exprime-o através do que vestes, de contrário encerrar-te-ão atrás dos portões. Os cafetãs podem ser de uma beleza sem igual, mas o vestuário ocidental representa o trabalho assalariado.
Por isso cheguei a associar os cafetãs com as festas luxuosas, os festivais religiosos e os esplendores do nosso passado ancestral, e o vestuário ocidental com cálculos pragmáticos e tarefas profissionais quotidianas e rigorosas.
No salão dos homens, o meu pai sentava-se sempre em frente ao meu tio Ali, no divã junto à telefonia, para poder controlar os botões. Todos os homens costumavam vestir uma djellaba dupla: a exterior era de uma lã branca pura como a neve, uma especialidade de Ouazzane, uma cidade religiosa do Norte com grande tradição em tecelagem; a interior era de pano mais espesso. O meu pai também costumava vestir o que constituía a sua única e modesta excentricidade, um turbante amarelo claro de algodão bordado de Cham, na Síria.
– Mas o que adianta vestirmos o vestuário tradicional – disse um dia o meu pai a brincar, dirigindo-se aos meus primos que estavam sentados à volta dele –, se todos vocês se vestem como Rudolfo Valentino?
Todos sem exceção usavam vestuário ocidental e cabelo curto descoberto, cortado acima das orelhas, parecendo-se bastante com os soldados franceses que viviam no final da rua.
– Um dia talvez consigamos expulsar os franceses, só para acordarmos e descobrirmos que nos tornámos iguais a eles – acrescentou o meu tio.
Entre os primos jovens que frequentavam o salão, contavam-se os irmãos de Samir, Zin, Jawad e Chakib, e os filhos das tias e parentes viúvas e divorciadas que viviam connosco. A maioria deles frequentava as escolas nacionalistas, embora alguns mais inteligentes frequentassem o muito seleto Collège Musulman, que ficava a poucos metros da nossa casa. O Collège era um liceu francês que preparava os filhos das famílias mais importantes para ocupar postos-chave, e a excelência académica dos estudantes media-se pelo seu domínio da língua e da História, tanto árabe como francesa. Para vencer o Ocidente, a juventude árabe precisava de dominar pelo menos duas culturas.
Zin era considerado o mais dotado dos meus primos. Sentava-se no salão ao lado do meu tio, com os jornais franceses ostensivamente abertos no colo. Era muito bonito, tinha um belo cabelo castanho, olhos em forma de amêndoa, pómulos altos e um pequeno bigode. Parecia-se nitidamente com Rudolfo Valentino, que costumávamos ver com frequência no ecrã do cinema Bujelud, onde nos eram oferecidos dois filmes por sessão: um egípcio, em árabe, e outro estrangeiro, em francês. A primeira vez que Samir e eu vimos Rudolfo Valentino, aceitámo-lo imediatamente como membro do nosso harém por se parecer tanto com o nosso primo Zin. Nessa altura Zin adotara já a expressão solene, o vestuário sombrio, o penteado com risco ao meio e a minúscula flor encarnada no bolso do peito que caracterizavam o Xeque.
O nome Zin significava muito apropriadamente «beleza» e eu admirava a sua figura e elegância. Como todos os outros, respeitava-o pela sua eloquência em francês, língua que dominava melhor que do ninguém na família. Podia passar horas a ouvi-lo pronunciar aqueles estranhos sons franceses. Todos os outros também o olhavam espantados quando o meu tio lhe indicava com um gesto que lesse os jornais franceses. Ele lia rapidamente os títulos e depois passava para os artigos que o meu tio e o meu pai escolhiam mais ou menos intuitivamente, uma vez que o seu francês era bastante pobre. Zin lia os artigos em voz alta e depois resumia-os em árabe.
A sua maneira de falar francês, e mais concretamente a forma como arrastava os r, davam-me arrepios. Os meus r eram desastrosamente insípidos mesmo em árabe, e enquanto eu recitava o Corão, a minha professora Lalla Tam costumava interromper-me para me lembrar que os meus antepassados tinham utilizado r muito enérgicos.
– Tens de respeitar os teus antepassados, Fatima Mernissi – dizia-me. – Porquê massacrar o inocente alfabeto?
Eu detinha-me, ouvia-a educadamente e jurava que respeitaria os meus antepassados. Depois reunia todas as forças que tinha no peito e esforçava-me corajosa e desesperadamente por pronunciar um r forte, acabando simplesmente por me engasgar. E ali estava o talentoso Zin, tão dotado e eloquente que podia falar francês e pronunciar bem centenas de r sem esforço aparente. Muitas vezes observava-o e pensava que se me concentrasse o suficiente adquiriria parte da sua graça e talvez a sua misteriosa habilidade com aquela consoante.
Zin trabalhava arduamente para se transformar no ideal do nacionalista moderno, isto é, em alguém que possuísse um vasto conhecimento da História, das lendas e das poesias árabes, e que dominasse o francês, a língua do nosso inimigo, por forma a poder decifrar a imprensa cristã e descobrir os seus planos. Conseguiu-o na perfeição. Embora a moderna supremacia cristã na ciência e nas matemáticas fosse evidente, os líderes nacionalistas encorajavam os jovens a ler os tratados clássicos de Avicena e Al-Khwarizmi17, «só para terem uma ideia de como as suas mentes funcionavam. É sempre útil saber que os vossos antepassados eram rápidos e precisos». O meu pai e o meu tio respeitavam Zin como membro da nova geração de marroquinos que salvariam o país. Ele guiava a procissão para a mesquita Qarauíne às sextas-feiras, quando todos os homens de Fez, novos e velhos, compareciam à oração pública com a djellaba branca e as elegantes babuchas amarelas tradicionais.
Aparentemente, o motivo da reunião de sexta-feira na mesquita era religioso; mas toda a gente, inclusive os franceses, sabiam que muitas decisões políticas importantes da Majlis al-Baladi, ou Câmara Municipal, eram tomadas precisamente ali. Não só todos os membros do Conselho, como o tio Ali, assistiam àquela cerimónia, como também delegados de todos os grupos de interesse municipal, dos mais prestigiosos aos mais humildes. A mesquita, que estava aberta a todos, compensava a natureza exclusiva do Conselho, que segundo o meu tio Ali tinha sido criado pelos franceses como assembleia de dignitários.
– Embora os franceses tenham derrubado os seus nobres e reis – dizia o meu tio –, ainda preferem falar com os homens importantes, e compete-nos a nós, os locais, ser responsáveis e comunicar com o povo. Qualquer pessoa que detenha um cargo político devia frequentar regularmente a oração das sextas-feiras. Só assim manterá o contacto com o seu eleitorado.
Todas as sextas-feiras, os grupos mais bem representados na mesquita eram os cinco que, durante séculos, haviam sido os garantes da posição económica e intelectual que Fez ocupava em Marrocos. Em primeiro lugar estavam os ulemas, homens sábios que dedicavam as suas vidas à ciência e cuja ascendência, em muitos casos, podia ir até à Andaluzia ou à Espanha muçulmana. Eram eles que mantinham viva a tradição de venerar os livros, desde o aspeto material que incluía o fabrico do papel, a caligrafia e a encadernação, até ao fomento de hábitos de leitura, escrita e coleção de edições raras. Depois vinham os sharifs, ou descendentes do profeta, que gozavam de enorme prestígio e desempenhavam papéis simbólicos relevantes nas cerimónias de casamento, de nascimento e de morte. Sabia-se que os sharifs provinham de meios modestos. Fazer dinheiro e amealhar fortunas não eram as suas principais preocupações, ao contrário dos tujjar, ou mercadores, que constituíam o terceiro grupo, aventureiros de grande mobilidade e astúcia que nos intervalos entre as orações costumavam descrever as suas arriscadas viagens à Europa e à Ásia, onde compravam artigos de luxo e maquinaria, ou para o Sul, mais além do deserto do Sara.
Depois vinham as famílias fellah, ou terratenentes, grupo a que pertenciam o meu tio e o meu pai. A palavra fellah significava duas coisas contraditórias: por um lado os camponeses pobres e sem terras e, por outro, os proprietários de terras, ricos e sofisticados latifundiários. O meu pai e o meu tio orgulhavam-se de serem fellah, mas pertenciam à segunda categoria. Ambos estavam ligados à sua terra e, embora tivessem escolhido viver na cidade, não havia nada que lhes desse mais prazer do que passar longos dias nas suas quintas. Os fellah cultivavam a terra mais ou menos em grande escala, e estavam frequentemente ocupados a familiarizarem-se com as modernas técnicas agrícolas introduzidas pelos franceses coloniais. Muitas famílias latifundiárias eram, como a nossa, originárias da região que ficava a norte da cidade, junto às montanhas do Rif, e orgulhavam-se da sua origem rural, sobretudo quando se defrontavam com a preconceituosa arrogância dos andaluzes, o grupo culto.
– De facto, os ulemas são importantes – dizia o meu pai sempre que surgia o tema da hierarquia da cidade –, mas morreriam de fome se nós não produzíssemos alimentos para eles. Um livro tem muita utilidade: podemos contemplar as suas imagens, lê-lo, refletir sobre as suas ideias, etc. Mas não se pode comê-lo. É esse o problema dos intelectuais. Por isso não devemos impressionar-nos demasiado com os intelectuais. É melhor ser fellah como nós, que amamos a terra e a admiramos e depois nos educamos. Se puderes lavrar a terra e ler livros, nunca fracassarás.
O meu pai preocupava-se muito com os jovens da família (os chabab), pois temia que pudessem retirar demasiado prazer dos livros e perdessem o interesse pela terra, e por isso insistia que durante as férias de verão eles ficassem junto dele na quinta do meu tio, a poucos quilómetros de Fez.
O quinto grupo mais importante da cidade, e o mais numeroso, era o dos artesãos, que produziam praticamente tudo o que era necessário em Marrocos antes dos franceses invadirem o mercado com os seus produtos industriais. Os bairros de Fez eram conhecidos pelos nomes dos artigos que os artesãos aí produziam. Haddadin, literalmente «ferreiros», era o bairro onde se faziam os objetos em ferro e bronze; Debbaghin (couro curtido) era o bairro dos curtidores; os ceramistas trabalhavam no Fakharin (bairro da cerâmica); e quando se queria comprar artigos em madeira ia-se ao Najjarine (bairro da madeira). Os artesãos mais prósperos eram aqueles que trabalhavam o ouro e a prata e os que transformavam os fios de seda em luxuosa sfifa, a passamanaria utilizada para completar os cafetãs que as mulheres bordavam previamente18. Os moradores do mesmo bairro costumavam sentar-se juntos na mesquita e regressavam a casa em grupo, conversando e trocando ideias sobre as últimas notícias.
Todas as sextas-feiras, o primo Zin e os outros jovens iam a pé até à mesquita, enquanto os homens mais velhos os seguiam a uns metros de distância, a pé ou nas suas mulas. Samir e eu adorávamos que o meu tio e o meu pai levassem as mulas porque assim também podíamos participar na festa. Cada um de nós sentava-se na mula do respetivo pai, à frente da sela. O meu pai não ia muito convencido a primeira vez que me levou à mesquita com ele, mas gritei tão alto que o meu tio disse que não fazia mal nenhum levar uma menina pequena. O Hadit dizia que o profeta, que Alá o Abençoe e Lhe Dê Paz, dirigia as orações na mesquita com uma menina a brincar diante dele.
Às sextas-feiras, em vez de irem com a cabeça descoberta, os jovens levavam o chapéu de feltro triangular que se tornara popular entre os nacionalistas egípcios, e essa era a sua única concessão à tradição. Em tempos de agitação, quando a polícia francesa ficava histérica, estes chapéus podiam criar problemas, porque a moda de usá-los havia arrasado a nossa Medina quando Aliai al-Fassi, um herói nascido em Fez que se opôs à presença francesa no norte de África e fora aprisionado e exilado várias vezes, apareceu com um na mesquita de Qarauíne. Mais tarde, numa reunião oficial com o Résident General francês em Rabat, o nosso rei Mohammed V utilizou o chapéu de feltro inclinado para trás com elegância, deixando a sua testa serena a descoberto, e os analistas estrangeiros de assuntos árabes concluíram que não deveriam esperar nada de bom dele no que dizia respeito aos seus interesses. Ninguém podia confiar num rei que trocava o turbante tradicional por um subversivo chapéu de feltro.
Fosse como fosse, a tradição e a modernidade coexistiam harmoniosamente, tanto no vestuário dos homens jovens como em nossa casa durante as sessões de notícias dos homens. Primeiro ouviam todas as notícias da rádio em francês e em árabe; depois o meu pai desligava o rádio e o grupo ouvia os jovens ler e comentar a imprensa. Servia-se chá e esperava-se que Samir e eu ouvíssemos sem interromper demasiado. No entanto, muitas vezes eu apoiava a cabeça no ombro do meu pai e murmurava:
– Quem são os alemães? De onde vêm e porque combatem com os franceses? Onde se escondem se os espanhóis estão no norte e os franceses no sul?
O meu pai prometia-me sempre que mais tarde, quando estivéssemos sozinhos no nosso salão, me explicaria tudo. E a verdade é que me explicou muitas vezes, mas a minha confusão nunca se dissipou, nem a de Samir, apesar dos nossos esforços por ordenar todas as peças do puzzle.
17 Avicena (980-1037 d.C.), conhecido em árabe como Ibn Sina, e Al-Khwarizmi (cerca de 800-847 d.C.) foram dois dos muitos ilustres eruditos que floresceram sob o mecenato do sétimo califa abássida, Al-Ma’mun (813-833 d.C.). Avicena reuniu nos seus extensos escritos todos os conhecimentos médicos da sua época. Al-Khwarizmi foi pioneiro na utilização da numeração e das técnicas de cálculo hindus na matemática árabe. Estes e outros eruditos árabes conservaram e transmitiram ao Ocidente um grande leque de conhecimentos baseados no grego, persa, sânscrito e sírio clássicos.
[A tradução das suas obras introduziu no Ocidente a chamada «numeração árabe», baseada no número dez e no zero. Esse sistema passou a ser conhecido pelo seu nome, entrando no latim como algorismus e, posteriormente, como algorismo, algarismo. No final do século XVII houve contaminação dessa palavra com o grego aritmós «número», nascendo assim o vocábulo algoritmos, que passou ao francês como algoritme e posteriormente para as outras línguas modernas. A própria palavra álgebra provém do árabe al-jabrâ «ciência da reunião e equação», que era título de um dos tratados de Al-Khwarizmi, entrando no latim como álgebra e depois para todas as outras línguas. (N. do E.)]
18 Os homens e as mulheres complementavam os respetivos trabalhos no processo de produção. Por exemplo, os cafetãs de seda eram em primeiro lugar desenhados por uma mulher, que decidia o tecido e o feitio e os bordava, passando-os depois a um artesão, que os cosia e acrescentava os remates de passamanaria. O mesmo se passava em relação às babuchas de couro: os homens cortavam o couro à medida e passavam as peças às mulheres, que as bordavam e depois as devolviam aos homens para serem cosidas.
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL VISTA DO PÁTIO
Os alemães eram cristãos, disso não havia dúvida. À semelhança de todos os outros cristãos, viviam no Norte, naquilo a que chamávamos Blad Teldj, a Terra das Neves. Alá não tinha favorecido os cristãos; o seu clima era rígido e frio, o que os tornava coléricos ou até malvados, quando o sol não brilhava durante meses. Para se aquecerem, tinham de beber vinho e outras bebidas alcoólicas, e depois tornavam-se agressivos e começavam a provocar distúrbios. Por vezes até bebiam chá, como toda a gente, mas até o seu chá era amargo e bebiam-no a ferver, ao passo que o nosso era sempre aromatizado com menta, absinto ou verbena. O meu primo Zin, que visitara Inglaterra, dizia que lá o chá era tão amargo que o misturavam com leite. Por isso, uma vez Samir e eu deitámos um pouco de leite no nosso chá de menta, só para experimentar: bah! era horrível! Não admirava que os cristãos estivessem sempre infelizes e à procura de lutas.
Fosse como fosse, parecia que os alemães tinham estado a preparar um enorme exército secreto: ninguém sabia de nada e um dia, de repente, invadiram a França. Colonizaram Paris, a capital francesa, e começaram a dar ordens às pessoas, o mesmo que os franceses faziam connosco em Fez. Mas nós tivemos sorte, porque pelo menos os franceses não gostavam da Medina, a cidade dos nossos antepassados, e tinham construído para eles a Ville Nouvelle. Perguntei a Samir o que se teria passado se os franceses tivessem gostado da Medina, e ele respondeu que nesse caso ter-nos-iam expulsado e teriam ocupado as nossas casas.
Os misteriosos alemães, no entanto, não perseguiam apenas os franceses; também obrigavam os judeus a vestir qualquer coisa amarela sempre que saíam à rua, tal como os homens muçulmanos pediam às mulheres que usassem um véu, para assim poderem localizá-las imediatamente. No nosso pátio ninguém sabia exatamente por que razão os alemães perseguiam os judeus. Durante as tardes tranquilas, Samir e eu não parávamos de fazer perguntas, correndo de um grupo de bordadeiras para outro, mas apenas conseguíamos conjeturas.
– Talvez se passe o mesmo que aqui com as mulheres – dizia a minha mãe. – Ninguém sabe exatamente por que razão os homens as obrigam a usar véu. Provavelmente tem a ver com a diferença. O medo da diferença faz com que as pessoas se comportem de formas muito estranhas. Talvez os alemães se sintam mais seguros quando estão sozinhos, tal como os homens da Medina ficam nervosos quando as mulheres aparecem. Se os judeus insistem na sua diferença, isso poderia inquietar os alemães. É um mundo louco.
Em Fez, os judeus tinham o seu próprio bairro, que se chamava Mellah. Demorava exatamente meia hora a chegar lá de nossa casa. Os judeus tinham o mesmo aspeto que as outras pessoas: vestiam túnicas compridas semelhantes às nossas djellabas e em vez de turbantes usavam chapéus, era apenas essa a diferença. Viviam as suas vidas e limitavam-se ao seu Mellah, onde faziam bonitas joias e cozinhavam os vegetais de uma forma deliciosa. A minha mãe tinha tentado cozinhar courgettes, pequenos pepinos e beringelas minúsculas, à maneira dos judeus, mas nunca conseguira.
– Eles devem usar algumas palavras mágicas – concluiu.
Tal como nós, os judeus tinham as suas próprias orações, amavam o seu Deus e ensinavam aos filhos o livro sagrado. Tinham construído uma sinagoga para Ele, que era como a nossa mesquita, e partilhávamos os mesmos profetas, com exceção do nosso amado Maomé, que Alá o Abençoe e Lhe Dê Paz (nunca consegui enumerar os profetas, porque era difícil e tinha medo de cometer um erro. A minha professora Lalla Tam dizia que cometer erros em assuntos religiosos podia enviar uma pessoa para o inferno. Chamava-se tashif, blasfémia, e como eu já tinha decidido que ia para o paraíso, procurava evitar os erros). Uma coisa era certa, os judeus viveram sempre com os árabes, desde o início dos tempos, e o profeta Maomé gostava deles, pelo menos ao princípio, quando começara a pregar o Islão. Mas depois fizeram algo de mau, e ele decidiu que se ambas as religiões tinham de coexistir na mesma cidade, deveriam viver em bairros separados. Os judeus estavam bem organizados e tinham um grande sentido comunitário, muito mais forte do que o nosso. No Mellah, estavam sempre a tratar dos pobres e todas as crianças frequentavam as extremamente disciplinadas escolas da Alliance Israélite.
O que eu não conseguia compreender era o que faziam os judeus no país dos alemães. Como tinham chegado lá, à Terra das Neves? Eu achava que, tal como os árabes, os judeus preferiam os climas quentes e se afastavam da neve. Nos tempos do profeta, há catorze séculos, viviam na cidade de Medina, em pleno deserto árabe, não era? E antes disso haviam vivido no Egito, não muito longe de Meca, e na Síria. Fosse como fosse, estiveram sempre próximo dos árabes19. Durante a conquista árabe de Espanha, quando a dinastia omíada árabe de Damasco transformou a Andaluzia num jardim sombreado e construiu palácios em Córdova e Sevilha, os judeus seguiram o mesmo caminho. Lalla Tam explicou-nos tudo isto, mas falava-nos tanto no assunto que um dia fiquei confusa, e até pensei que era mencionado no Corão, o nosso livro sagrado.
Porque, compreendem, Lalla Tam não se dava ao trabalho de nos explicar o significado dos versos do Corão. Em vez disso, às quintas-feiras obrigava-nos a copiá-los nas nossas luha, lousas, e aprendê-los de cor aos sábados, domingos, segundas e terças. Cada um de nós sentava-se na sua almofada, com a luha no colo, e lia em voz alta, cantando até decorar as palavras. Depois, às quartas-feiras, Lalla Tam perguntava-nos o que tínhamos aprendido. Tínhamos de pôs as luha no colo, viradas para baixo, e recitar de cor. Se não nos enganávamos, Lalla Tam sorria. Mas quando chegava a minha vez, raramente sorria.
– Fatima Mernissi – costumava dizer-me enquanto agitava o chicote sobre a minha cabeça –, não irás muito longe na vida se as palavras continuam a entrar-te por um ouvido e a sair-te pelo outro.
Depois do dia de récita, as quintas e as sextas-feiras pareciam umas férias, embora tivéssemos de limpar a luha e escrever outros versículos. Mas durante todo esse tempo Lalla Tam nunca explicava os versículos. Dizia que era inútil fazê-lo.
– Aprendam de cor o que escreveram na luha – dizia-nos. – Ninguém vos vai perguntar a vossa opinião.
No entanto, explicava-nos uma e outra vez como tínhamos conquistado Espanha, e quando eu fiquei confusa e pensei que aquela história fazia parte do livro sagrado, ela gritou que era uma blasfémia e mandou chamar o meu pai, que demorou muito tempo a esclarecer as coisas. Disse-me que se uma jovem queria deslumbrar o mundo muçulmano era essencial aprender algumas datas importantes, e tudo o resto viria por si mesmo. Disse-me também que a revelação do Corão acabava com a morte do profeta, no ano II da Hégira (a fuga de Maomé de Meca), que corresponde ao ano 632 do calendário gregoriano. Pedi ao meu pai que me simplificasse as coisas limitando-se por ora ao calendário muçulmano, porque o gregoriano era muito complicado; mas ele disse-me que uma senhora esperta nascida na costa do Mediterrâneo tinha de saber navegar valendo-se de dois ou três calendários pelo menos.
– Mudar de calendário será algo automático se começares a fazê-lo desde cedo – disse-me ele.
No entanto, aceitou pôr de lado o calendário judeu porque era muito mais antigo do que todos os outros, e eu ficava tonta só de imaginar até onde podia retroceder no tempo.
Fosse como fosse, e voltando ao tema, os árabes conquistaram a Espanha quase um século depois da morte do profeta, no ano 91 da Hégira. Portanto, a conquista não é mencionada em parte nenhuma do livro sagrado.
– Então porque continua Lalla Tam a falar dela? – perguntei.
O meu pai respondeu que provavelmente era porque a família de Lalla Tam provinha de Espanha. O seu apelido era Sabata, que deriva de Zapata, e o pai dela ainda conservava a chave da sua casa de Sevilha.
– Tem simplesmente saudades de casa – disse o meu pai. – A rainha Isabel massacrou quase toda a sua família.
Depois explicou-me que os judeus e os árabes tinham vivido na Andaluzia desde o século II ao século VII da Hégira (dos séculos VII ao XV do calendário gregoriano). Ambos os povos tinham chegado a Espanha quando a dinastia omíada tinha conquistado os cristãos e erigido um império com capital em Córdova. Ou Granada? Ou Sevilha? Lalla Tam nunca mencionava uma dessas cidades sem mencionar também as outras, talvez para que as pessoas tivessem de escolher entre as três capitais, embora normalmente só fosse permitida uma. Mas claro que nada era normal em relação a Espanha, que os Omíadas rebatizaram com o nome de Al-Andaluz.
Os califas omíadas foram um grupo animado que se divertiu à grande construindo um palácio fabuloso, o Alhambra, e uma torre, a Giralda. Depois, para demonstrar ao resto do mundo quão extenso era o seu império, construíram uma torre idêntica à de Marraquexe e chamaram-lhe Kutubiya. No que lhes dizia respeito, não existiam fronteiras entre a Europa e a África.
– Todos gostam de misturar os dois continentes – disse o meu pai. – Aliás, porque estão os franceses neste momento acampados mesmo diante da nossa porta?
Assim, os árabes e os judeus vadiaram pela Andaluzia cerca de setecentos anos, divertindo-se enquanto recitavam poesias e contemplavam as estrelas nos seus lindos jardins de laranjais e jasmins, que regavam através de um complexo e inovador sistema de irrigação. Aqui em Fez tínhamo-nos esquecido de quase tudo acerca deles, até que um dia, ao despertar, a cidade os viu chegar a Marrocos às centenas gritando de medo, com as chaves das suas casas na mão. Uma rainha cristã muito cruel, chamada Isabel, a Católica, surgira da neve e perseguia-os. Derrotara-os esmagadoramente e dissera-lhes: «Ou rezam como nós, ou atiramos-vos ao mar.» Mas a verdade é que os seus soldados os atiraram todos para o Mediterrâneo sem esperar sequer pela resposta. Muçulmanos e judeus nadaram juntos até Tânger e Ceuta, exceto os poucos felizardos que encontraram barcos, e depois correram para se esconderem em Fez. Tudo isto tinha acontecido há quinhentos anos e por essa razão havia uma grande comunidade andaluza em pleno coração da nossa Medina, próxima da mesquita Qarauíne, e o grande Mellah, o bairro judeu, a umas centenas de metros.
Claro que isto também não explica como é que os judeus acabaram na terra dos alemães, pois não? Samir e eu discutimos o assunto e chegámos à conclusão de que quando Isabel, a Católica começou a vociferar, talvez alguns dos judeus se tenham enganado no caminho e se tenham dirigido para norte e não para sul, para chegar ao coração da Terra das Neves. E como os alemães eram cristãos como Isabel, a Católica, também haviam expulsado os judeus porque não rezavam como eles. Mas a tia Habiba disse-nos que esta explicação não parecia correta, porque os alemães também estavam a lutar contra os franceses, que eram cristãos e adoravam o mesmo deus. E assim a nossa teoria foi por água abaixo. A religião não podia explicar a guerra da cristandade.
Eu estava quase a sugerir a Samir que deixássemos o misterioso problema judeu até ao ano seguinte, em que seríamos muito mais velhos e sábios, quando a prima Malika apareceu com uma explicação sensata mas apavorante. A guerra tinha a ver com a cor do cabelo! As tribos de cabelo loiro estavam a combater as tribos de cabelo escuro. Que disparate! Nesse caso, os alemães eram os loiros, altos e pálidos, enquanto os franceses eram os morenos, mais baixos e mais escuros. Os pobres dos judeus, que simplesmente se tinham enganado no caminho quando Isabel os expulsara de Espanha, estavam encurralados entre os dois. Era um acaso que estivessem na zona de guerra e era um acaso que tivessem o cabelo castanho: não faziam parte de nenhuma das fações!
E assim os poderosos alemães perseguiam todos os que tivessem cabelo e olhos escuros. Samir e eu estávamos aterrorizados. Comprovámos com o primo Zin o que Malika nos havia explicado, e ele disse que era absolutamente verdade. Hi-Hitler – era assim que se chamava o rei dos alemães – odiava cabelo e olhos escuros e mandava os aviões lançar bombas sobre todos os lugares onde viviam populações de cabelo escuro. Atirar-se para a água não adiantava nada porque ele mandava submarinos para apanhar os fugitivos. Samir levantou o olhar para o seu irmão mais velho, levou as mãos ao cabelo liso e preto como o carvão e disse:
– E tu achas que quando os alemães tiverem eliminado os franceses e os judeus continuarão para sul e chegarão a Fez?
Zin deu uma resposta vaga; disse que os jornais não mencionavam nada sobre os planos alemães a longo prazo.
Naquela noite, Samir implorou à sua mãe que lhe prometesse pôr-lhe hena no cabelo da próxima vez que fôssemos ao hammam (banhos públicos) para que ficasse castanho, e eu andava com a cabeça envolta num lenço da minha mãe até que ela se apercebeu e me obrigou a tirá-lo.
– Nunca cubras a cabeça! – gritou-me. – Percebeste? Nunca! Eu estou a lutar contra o véu e tu pões um?! Que disparate vem a ser este?
Expliquei-lhe então a história dos judeus e dos alemães, das bombas e dos submarinos, mas ela não ficou impressionada.
– Mesmo que Hi-Hitler, o Todo-Poderoso Rei dos alemães te persiga – disse –, terás de enfrentá-lo com a cabeça descoberta. Tapar a cabeça e esconderes-te não serve de nada. Esconder-se não resolve os problemas de uma mulher e só a identifica como uma vítima fácil. A tua avó e eu já sofremos o suficiente com esta história de cobrir a cabeça. Sabemos que não funciona. Quero que as minhas filhas andem com a cabeça bem levantada e caminhem pelo planeta de Alá olhando as estrelas.
E com estas palavras arrancou-me o lenço e deixou-me completamente indefesa diante de um exército invisível que perseguia as pessoas de cabelo escuro.
19 Esta ideia da convivência entre judeus e muçulmanos pode parecer estranha hoje em dia, mas os acontecimentos deste livro tiveram lugar antes da criação do Estado de Israel em maio de 1948. Naquela altura, estava muito difundida a ideia de fortes laços históricos e culturais entre os judeus e os muçulmanos, sobretudo em Marrocos, onde ambas as comunidades conservavam ainda fresca na memória a Inquisição espanhola, que levou à sua expulsão de Espanha em 1492. Bernard Lewis escreveu um interessante capítulo sobre esta ideia anterior a 1948, onde explica que muitos europeus acreditavam então que os judeus e os muçulmanos conspiravam conjuntamente contra os interesses cristãos no século XIX e princípios do século XX (Bernard Levis, «Les juifs pro-islamiques», in Le Retour de 1’Islam, tradução francesa, Ed. Gallimard, Paris, 1985, p. 315). A mudança radical de panorâmica relativamente às alianças das três religiões do litoral mediterrânico aconteceu num período incrivelmente pequeno. De facto, mesmo em finais da década de 1940, quando a comunidade judaico-marroquina era muito numerosa e um dos pilares da tradição dentro da cultura berbere pré-islâmica. Desde então, muitos judeus deixaram Marrocos, emigrando para Israel e para outros países, como a França e, posteriormente, o Canadá. Atualmente, o Mellah de Fez é totalmente habitado por muçulmanos, e no país só restam algumas centenas de judeus. Por isso, muitos intelectuais marroquinos judeus têm tentado documentar com a máxima rapidez as características culturais da comunidade judaico-marroquina, uma das mais antigas do mundo, que desapareceu em menos de uma década.
ASMAHAN, A PRINCESA CANTORA
Por vezes, ao anoitecer, assim que os homens saíam de casa, as mulheres corriam para a telefonia, abriam-na com a sua chave ilegal e iniciavam uma busca frenética por música e canções de amor. Chama era a perita, porque entendia as letras estrangeiras gravadas em carateres dourados sobre o impressionante painel da telefonia. Ou pelo menos assim nos parecia. Os homens manipulavam os botões com gestos leves e precisos, decifrando todos aqueles letreiros misteriosos. Mas embora Chama tivesse aprendido o alfabeto francês sem a ajuda de ninguém, não conseguia decifrar o significado de SW (ondas curtas), MW (ondas médias), e LW (ondas longas). Suplicou aos seus irmãos Zin e Jawad que lhe explicassem o significado das letras e quando estes se negaram ameaçou engolir o dicionário de francês inteiro. Eles disseram-lhe que, mesmo que o fizesse, continuaria a ter o mesmo problema, porque aquelas letras representavam palavras inglesas. Nessa altura desistiu da abordagem científica e desenvolveu uma extraordinária técnica manual, manipulando muitos botões ao mesmo tempo em busca de uma melodia e silenciando implacavelmente todas as emissoras de notícias, sermões nacionalistas e canções militares. Uma vez encontrada, tinha de procurar ainda mais até o som da estática desaparecer – e sintonizar aquela enorme telefonia podia levar uma eternidade.
Mas quando Chama finalmente conseguia sintonizar uma voz masculina terna e quente que enchia o ar, como a de Abdelwahab, o Egípcio, cantarolando «Ahibi ‘Itchi L-hurriya» (Amo a vida livre, sem correntes), o pátio inteiro começava a gemer e a ronronar com deleite. Era ainda melhor quando os dedos mágicos de Chama sintonizavam a encantadora voz da princesa Asmahan do Líbano, que sussurrava nas ondas aéreas «Ahwa! Ana, anã, ana, ahwa!» (Estou apaixonada! Eu, eu, eu, estou apaixonada!). Nessa altura as mulheres entravam no mais puro êxtase. Tiravam as babuchas e dançavam em procissão à volta da fonte, segurando os cafetãs com uma mão e abraçando um companheiro masculino imaginário com a outra.
Mas infelizmente era difícil sintonizar as melodias de Asmahan. Ouvíamos com muito mais frequência os hinos nacionalistas cantados pela diva egípcia Um Kelthum, que podia passar horas a chilrear acerca do grandioso passado árabe e a necessidade de recuperar a nossa glória enfrentando os invasores colonialistas.
Que diferença tão grande entre Um Kelthum, uma rapariga pobre com uma voz de ouro que fora descoberta numa obscura aldeia egípcia e que abrira caminho até ao estrelato graças a disciplina e trabalho duro, e a aristocrata Asmahan, que nunca tivera de mexer uma palha para atrair a fama! Um Kelthum transmitia a imagem de uma mulher árabe invulgarmente enérgica e segura de si própria, que tinha um objetivo na vida e sabia o que fazia, enquanto Asmahan nos enchia os corações de insegurança e espanto. Um Kelthum, sólida e bem dotada (nos filmes do cinema Bujelud aparecia sempre com túnicas compridas e largas que ocultavam o seu peito maternal), pensava em todas as coisas nobres e justas (a difícil situação dos árabes e a sua dor perante o presente humilhante) e dava voz aos nossos anseios nacionalistas de independência. Apesar disso, as mulheres não gostavam dela como gostavam de Asmahan.
Asmahan era exatamente o oposto de Um Kelthum. Era uma mulher gorducha, de peito pequeno, e parecia ao mesmo tempo absolutamente confusa e extraordinariamente elegante: vestia blusas ocidentais decotadas e saias curtas. Asmahan ignorava a cultura, o passado e o presente árabes e entregara-se à busca fatalmente trágica da felicidade. Não poderia ter-se interessado menos pelo que acontecia no planeta. A única coisa que queria era enfeitar-se, pôr flores no cabelo, estar encantadora, cantar e dançar nos braços de um homem apaixonado que fosse tão romântico como ela, um homem terno e carinhoso que tivesse a coragem de se separar do grupo e de dançar em público com a mulher que amava. As mulheres árabes, obrigadas a dançar sós em pátios fechados, admiravam Asmahan por concretizar os seus sonhos de dançar agarrada a um homem numa dança de estilo ocidental e deixar-se conduzir por ele num abraço apertado. O divertimento sem objetivos, partilhado com um homem entregue ao mesmo fim, era a imagem que Asmahan transmitia.
Asmahan usava sempre um colar de pérolas em volta do seu comprido pescoço e eu suplicava a Chama que me deixasse usar o seu durante uns minutos, apenas para criar uma ligação misteriosa entre mim e o meu ídolo. Uma vez atrevi-me a perguntar a Chama se havia alguma possibilidade de me casar com um príncipe árabe, como Asmahan fizera, e ela respondeu-me que o mundo árabe caminhava para a democracia e que os poucos príncipes disponíveis seriam maus bailarinos e estariam «muito ocupados com a política. Se queres dançar como Asmahan, arranja um professor de dança».
Todos conhecíamos a vida de Asmahan em pormenor, porque Chama a interpretava constantemente nas peças de teatro que organizava no terraço. Encenava a vida de heroínas de todas as espécies, mas a princesa romântica era de longe a mais popular. A sua vida era tão fascinante quanto um conto de fadas, embora, como seria de esperar, tivesse um final trágico, porque uma mulher árabe não podia aspirar ao prazer sensual, à diversão frívola e à felicidade sem pagar por isso. Asmahan nascera nas Montanhas Druze do Líbano e casara muito jovem com o seu primo, um príncipe rico chamado Hassan; divorciou-se aos dezassete anos e morreu aos trinta e dois, em 1944, num misterioso acidente de automóvel no qual estiveram envolvidos espiões internacionais. Entretanto, foi cantora e atriz e viveu no Cairo, onde se tornou imediatamente na grande sensação de todo o mundo árabe. Cativava as multidões com um sonho inédito: a felicidade pessoal e uma vida sensual e plena, alheia a todas as exigências e códigos do clã.
Asmahan praticou e cantou aquilo em que acreditava: que uma mulher podia ter amor e uma carreira. Aliás, insistiu em viver uma vida conjugal plena ao mesmo tempo que explorava e exibia os seus dotes de atriz e cantora. O seu primeiro marido, o príncipe Hassan, não o aceitou e divorciou-se dela. Asmahan tentou de novo por duas vezes e em ambos os casos os seus maridos, magnatas da indústria egípcia do espetáculo, começaram por aceder aos seus desejos. Mas os dois casamentos cedo acabaram em divórcios escandalosos; o seu último marido perseguiu-a com um revólver, tendo sido seguido por toda a polícia do Cairo, que tentava prendê-lo. O envolvimento final dela com agentes secretos ingleses e franceses, numa tentativa de impedir a presença alemã no Médio Oriente, transformaram-na num alvo fácil dos ataques moralistas e numa vítima indefesa da explosiva política da região.
Quando regressou ao Líbano, Asmahan pareceu encontrar finalmente um lugar próprio, embora apenas por alguns anos. Estava bonita, independente e feliz. Na sua residência privada de Beirute e no Palácio do Rei David em Jerusalém organizou reuniões importantes entre o general De Gaulle de França e os presidentes da Síria e do Líbano. Nos seus ecléticos serões reuniam-se nacionalistas árabes e generais europeus das Forças Aliadas e misturavam-se aspirantes a revolucionários com banqueiros.
Asmahan viveu a vida intensamente, provando tudo depressa. «Sei que a minha vida vai ser curta», costumava dizer. Ganhou muito dinheiro, mas aparentemente não chegava para pagar as despesas com joias, vestidos e caprichosas viagens. Muitas vezes surpreendia o seu séquito decidindo impulsivamente fazer uma viagem imprevista, um dos seus passatempos preferidos. E foi precisamente durante uma dessas viagens espontâneas que a morte a surpreendeu a uns cem quilómetros do Cairo: encontraram-na a flutuar num lago dentro do carro em que viajava com uma amiga. Os fãs de Asmahan choraram-na, enquanto os seus inimigos falavam de uma conspiração com espiões envolvidos. Alguns disseram que fora assassinada pelos serviços secretos britânicos porque começara a atuar com demasiada independência. Outros deram o assunto por encerrado, considerando-a uma vítima da espionagem alemã. Outros ainda, autoproclamando-se justos e virtuosos, congratularam-se com a sua morte prematura e consideraram que era castigo merecido para a sua vida escandalosa.
Mas a lenda de Asmahan recrudesceu depois da sua morte, porque havia demonstrado às mulheres árabes que uma vida deliberadamente permissiva, por curta e escandalosa que fosse, era preferível a uma vida comprida e respeitável consagrada a uma tradição letárgica. Asmahan cativou tanto homens como mulheres com a ideia de que uma vida arriscada, na qual nem o êxito nem o fracasso importavam, era muito mais aprazível do que uma vida a dormir atrás de portas protetoras. Era impossível trautear uma das suas canções sem que nos viessem à mente fragmentos da sua vida inacreditavelmente excitante, apesar de curta e trágica.
Quando Chama encenou a primeira parte da vida de Asmahan, estendeu um tapete verde no chão do terraço para que pudéssemos imaginar as florestas das escarpadas montanhas do Líbano onde nascera. Depois colocou um divã no palco para servir de cama da princesa e aplicou kohl para evocar os seus sonhadores olhos verdes. O cabelo era mais problemático: a heroína tinha-o negro como o carvão e Chama tinha de cobrir os incómodos caracóis ruivos com um turbante negro. Mas não podia fazer grande coisa relativamente às sardas, e Asmahan tinha uma tez claríssima. Por outro lado, Chama concentrou-se em recriar o famoso sinal que a atriz tinha no lado esquerdo do queixo. Teria sido impossível interpretar a sua personagem sem o sinal. Depois Chama recostava-se no divã, vestida com uma qamis de cetim alargada com arame por baixo para que parecesse um vestido romântico ocidental e ficava durante algum tempo a olhar para o céu com uma expressão triste e melancólica. Então, por detrás das cortinas, começava a ouvir-se uma canção triste sobre o absurdo de perder tempo ali deitada quando o divertimento estava por todo o lado. As lindas vozes pertenciam às irmãs de Chama e a outras primas.
Junto ao leito de Asmahan havia um cavalo de madeira, porque ela aprendera a montar desde muito cedo. Que outra coisa podia fazer uma mulher extremamente bela no seio de uma família nobre de uma longínqua região árabe, onde todos recordavam as antigas cruzadas, temiam a ocupação estrangeira e vigiavam o mais ínfimo movimento das mulheres? Asmahan montava a cavalo, como Tamu na região do Rif devastada pela guerra; para ela, a libertação significava correr. Ser livre era estar em movimento. Correr velozmente, mesmo sem meta, fazia-a feliz; mover-se pelo puro prazer de o fazer. Por isso Chama saía da cama e montava o cavalo imóvel, enquanto atrás das cortinas as vozes continuavam a cantar como era deprimente ver-se apanhada numa situação sem saída. Por vezes Samir e eu empurrávamos o cavalo para trás e para a frente para dar a impressão de movimento, enquanto o público (a minha mãe, as minhas primas adolescentes, a tia Habiba e todas as outras tias viúvas e divorciadas e demais familiares) cantava com o coro.
Em seguida, Samir e eu puxávamos as cortinas para passar à cena do casamento. Chama não gostava de ver o público mergulhado no desespero durante muito tempo.
– O objetivo do espetáculo deve ser a libertação dos sentimentos desagradáveis – dizia.
Nessa altura aparecia o primo Zin vestido com uma capa branca, representando o papel do noivo, o príncipe Hassan. Eu desfalecia ao ver a beleza de Zin e negligenciava as minhas funções de assistente de palco. Então o público começava a protestar porque era responsabilidade dos assistentes providenciar refrescos sempre que ocorria um acontecimento importante como um casamento ou um nascimento. Samir e eu encarregávamo-nos das bolachas. Numa ocasião o público pediu chá a acompanhar as bolachas e ameaçou retirar-se se não lho trouxéssemos. Mas partiram-se tantos copos que a avó Lalla Mani interveio, proibindo-nos de voltar a servir chá.
– Em primeiro lugar – disse –, o teatro é uma atividade pecaminosa. Não é mencionado no Corão e nunca se ouviu falar dele quer em Meca quer em Medina. Agora, se as mulheres negligentes insistem em se entregar ao teatro, que o façam. No dia do Juízo Final, Alá pedirá contas a todos pelos seus pecados. Mas partir os copos de chá do meu filho só porque Asmahan, essa galdéria escandalosa, se vai casar, é uma imprudência absoluta!
A partir de então, os casamentos teatrais tiveram de ser celebrados com grande ascetismo e só no último minuto distribuíamos as bolachas, muitas vezes preparadas pela tia Habiba. Para ter espectadores, havia que tratá-los bem.
Mas voltemos à peça. Ainda não haviam acabado as bolachas e já o príncipe Hassan expulsava Asmahan, e Chama aparecia então no palco com as bochechas palidamente maquilhadas, arrastando um grande baú a caminho do Cairo. O coro cantava a separação, o doloroso abandono e o exílio, enquanto a tia Habiba murmurava para a minha mãe:
– Asmahan tinha apenas dezassete anos quando se divorciou. Que pena! Claro que era a sua única oportunidade de sair daquelas sufocantes montanhas do Líbano. Quando se pensa nisso, o divórcio é sempre uma espécie de progresso. Obriga uma pessoa a arriscar-se, algo que de outra forma nunca faria.
O que dava a tudo um interesse especial era que o príncipe expulsara a sua mulher porque ela queria que ele a levasse aos cabarés para dançar! Não só usava vestidos ocidentais decotados, saltos altos e cabelo curto, como também queria frequentar os salões de dança, onde as pessoas se sentavam em duras cadeiras ocidentais em volta de mesas altas, falando de coisas triviais ou dançando até ao amanhecer. Durante essa cena, Chama, pálida e receosa, avançava uns passos na direção do público e, com os olhos semicerrados, dizia:
– Asmahan queria ir a restaurantes elegantes, dançar como os franceses e apertar o príncipe nos braços. Queria dançar com ele toda a noite, em vez de ficar nos bastidores a vê-lo deliberar nos intermináveis conselhos tribais exclusivamente masculinos. Odiava o clã e a sua lei absurda e cruel. A única coisa que queria era entregar-se sem pensar a momentos de felicidade e sensualidade. Não era nenhuma criminosa e as suas intenções não eram más.
Nesta altura a tia Habiba costumava interromper o espetáculo.
– Nunca sonhei com semelhantes coisas – cantava, imitando as melodias de Asmahan. – E também eu me divorciei! Por isso, senhoras, lembrem-se por favor: não se reprimam. A mulher árabe que não procura a lua é uma idiota.
– Silêncio! – gritavam todos; e Chama prosseguia a representação da busca sensual de Asmahan por aventura numa sociedade em que o véu abafava os caprichos femininos mais elementares. Vendo Chama atuar, jurei a mim própria que, quando fosse mais velha e tão alta como ela, me dedicaria ao teatro. Deslumbraria as multidões árabes que me contemplariam ordenadamente sentadas em filas e explicar-lhes-ia o que significava ser uma mulher embriagada de sonhos numa terra que esmaga tanto os sonhos como os sonhadores. Fá-los-ia chorar as oportunidades desperdiçadas, os cativeiros absurdos, as ilusões destroçadas. E então, quando estivessem no mesmo comprimento de onda que eu, cantaria as maravilhas da exploração pessoal e a emoção provocada pelos saltos arriscados para o desconhecido.
Oh, sim, falar-lhes-ia dos impossíveis, de um mundo árabe novo em que homens e mulheres pudessem abraçar-se e dançar sem medo e sem barreiras que os separassem.
Oh, sim, encantaria o meu público e, com palavras mágicas e gestos estudados, tal como Asmahan e Chama antes de mim, recriaria um planeta sereno em que as casas não tivessem portas e as janelas se abrissem de par em par para ruas seguras.
Ajudá-las-ia a caminhar num mundo em que a diferença não precisasse de véus e onde os corpos das mulheres se movessem com naturalidade e os seus desejos não criassem angústias.
Criaria com o público longos poemas sobre a ausência do medo. O novo jogo a explorar seria a confiança e eu confessaria humildemente que também não sabia nada acerca dele.
Ganharia dinheiro suficiente no meu teatro para servir chá e bolachas, por forma a que o público passasse longas horas distraído, digerindo a nova ideia de um planeta em que as pessoas caminhassem sem medo.
Apenas caminhar, sem sentir a arrepiante necessidade de véus nem limites.
Caminhar apenas, com um pé diante do outro e com os olhos fixos num horizonte novo, quase inimaginável e sem ameaças.
Convenceria todos de que a felicidade pode florescer onde quer que seja, até nos becos escuros das Medinas agredidas.
Asmahan, eu reivindicá-la-ia. Ela podia existir, e não apenas como vítima trágica. Poderia haver Asmahans que não tivessem de morrer aos trinta e dois anos, em obscuras conspirações estrangeiras e desastres de carro sem sentido.
Derramei muitas lágrimas pela trágica vida de Asmahan nas sessões de teatro vespertinas daquele terraço distante, ajudando Chama nas suas efémeras aventuras libanesas, sem perder de vista as estrelas cadentes que passavam por cima da minha cabeça. O teatro permitia realizar os sonhos e abandonar o corpo à fantasia, era algo de essencial. Perguntava-me porque não o declaravam instituição sagrada.
Fatima Mernissi
O melhor da literatura para todos os gostos e idades