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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NASCIDA AO ANOITECER / Maggie Shayne
NASCIDA AO ANOITECER / Maggie Shayne

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Como era possível que um vampiro trouxesse um bebê ao mundo? Aqueles desumanos cientistas tinham manipulado a jovem Angelica para criar uma nova vida. Agora alguém tinha feito desaparecer seu pequeno anjo e só Jameson Bryant, o implacável agente que Angelica tinha estado a ponto de matar, poderia ajudá-la a salvar a sua filha.. Mas, seria ele capaz de salvar Angélica também?

 

 

 

 

- Estou condenada. Estou condenada. Estou condenada...

Aquelas foram as únicas palavras que pude pronunciar enquanto perambulava pelas ruas na primeira noite de minha nova vida. Tinha o cabelo emaranhado e a roupa rasgada e suja. A gente que passava a meu lado olhava e em seguida desviava a vista com medo. Ou seria desprezo?

Eu tinha ido pelo bom caminho. Ou, ao menos, nisso acreditava. Talvez tivesse estado muito segura de mim mesma. O orgulho precede sempre à queda, mas sem dúvida o pecado da soberba não garantia um pedágio tão severo. Seguro que não tinha sido a mão de Deus a jogar tão baixo.

Não, Deus não tinha nada que ver com aquilo. Nem tampouco Satanás, a não ser um monstro. Uma criatura muito mais atroz que nunca poderia chegar a ser Lúcifer.

Durante treze anos eu tinha sido tão pura e tão santa como acreditava que deviam ser os anjos. Da noite mais escura de minha vida, quando minha mãe me deixou no altar de São Cristóvão, me prometendo que retornaria logo para me buscar, só tinha feito o bem. Embora então fosse muito pequena para distinguir o bem do mal, uma menina de nove anos que foi abandonada por sua mãe aprende muito depressa.

As irmãs me criaram bem, ensinaram-me tudo o que sabiam sobre a verdade e a bondade no nome de Deus. E eu não as deixei quando cheguei à idade adequada, mas sim fiquei no refúgio que tinha encontrado entre elas.

Teria tido que jurar meus últimos votos uma semana depois daquela horrível noite. Só uma semana mais. E durante um instante me perguntei se teria me libertado do monstro por ter tomado os hábitos? Me teria protegido a minha devoção?

- Estou condenada -murmurei de novo, me deixando cair nas escadas de uma formosa catedral. Não me maravilhei ante a beleza das vidraças. Não pude. Meus olhos monstruosos só se centraram nas partes de cristal vermelho. E uma fome atroz surgiu do mais profundo de minha alma. Uma fome pecaminosa, que não podia, que não devia satisfazer.

Tinha saído sozinha aquela noite de inverno apesar das sérias advertências das irmãs...

Meus sapatos emitiram um som queixoso enquanto descia a toda pressa as escadas de madeira de minha cela. Estava desejando sair. Lá fora nevava! Tinha estado percorrendo minha habitação de cima abaixo, incapaz de me concentrar em meus estudos. Só o que podia fazer era me voltar para a única janela que tinha e ver cair a neve.

Não fomos uma ordem de clausura. Tínhamos contato com o mundo exterior, mas só para servir ao Senhor ou quando a Madre Mary Ruth achava absolutamente necessário. Aquela noite me tocava trabalhar no refúgio. E embora soubesse que deveria me regozijar em poder servir a Deus ajudando a meus irmãos em tempos de necessidade, o certo era que o que me alegrava era a oportunidade de sair e pisar na neve recém caída.

Pus um xale sobre meu hábito, que era uma versão simplificada daquela que vestiam as verdadeiras irmãs. Logo teria um como o delas. Em uma semana juraria solenemente meus votos.

Mas meus passos se detiveram quando cheguei ao final da escada e vi a irmã Rebecca, que ia acompanhar me ao refúgio, apoiada na coluna com aspecto de quem não passava bem.

         - Irmã, o que ocorre?

         Corri para ela com o coração encolhido tanto pela perspectiva de ter que ficar aquela noite como pela idéia de que a irmã Rebecca estivesse doente. Sempre trabalhávamos de duas em duas no retiro. Sempre íamos e voltávamos juntas.

         -Acredito que tenho um vírus gastrintestinal -respondeu ela.

Era jovem, como eu. Só fazia um ano que tinha jurado os votos definitivos, e às vezes eu pensava que era uma pena que não chegasse nunca a casar-se e a ter filhos, porque era muito bonita. E quando pensava aquilo, às vezes uma pequena dúvida tratava de abrir-se em meu cérebro, mas eu a rechaçava radicalmente. Aquela era a única vida que eu tinha conhecido.

         _ Não se preocupe -disse a irmã Rebecca elevando com valentia o queixo e tentando abrir um sorriso-. Não vou pedir que me tirem de meu posto. Leva-se todo o dia esperando isto.

         Tão transparente tinha sido?

         _ Não, irmã Rebecca. Não permitirei que saia à rua estando tão mal. Deveria estar na cama.

         Pus-lhe a mão na fronte e senti o calor. Então me voltei e a ajudei a subir as escadas.

         -Agora suba e descanse.

         Ela ficou tensa, tal e qual imaginei que ficaria. -Não irá sozinha. Já conhece as normas da madre superiora.

         _Sem dúvida faria uma exceção se soubesse que está você doente.

A irmã Rebecca sacudiu lentamente a cabeça.

_Olhe! Esta noite seus olhos brilham. O que a faz tão emocionada, Angélica?

_A neve - respondi me virando com impaciência para a janela.

Os flocos de neve faziam pentes de prender cabelos no brilho das ruas iluminadas.

_Quero estar ali fora. Senti-la no rosto.

_Já virão mais neves, Angélica - assegurou a irmã, pondo a mão sobre o meu ombro com suavidade.

_Mas estas são as primeiras - protestei eu me virando para olhá-la de novo-. Por favor, deixe-me ir. As mulheres saem pela cidade todos os dias.

-Nenhuma mulher desta ordem o faz -começou a dizer a irmã.

-Bom, tecnicamente eu não pertenço à ordem... ainda. Assim posso fazer o que quiser.

-Angélica...

Detive-me em meu caminho para a porta e me voltei para olhá-la.

Ela me sorriu, e vi a febre em suas bochechas ruborizadas e seus olhos brilhantes.

-É uma jovem muito obstinada, Angélica -disse sem deixar de sorrir-.E um pouco travessa. Muitas vezes me pergunto se haveria pensado bem na decisão que tomou.

         Eu me limitei a me encolher de ombros.

-Vou ao retiro. A madre superiora me poderá chamar quando retornar, mas até então, vou sair para a neve.

Ela assentiu com a cabeça, num gesto de derrota.

        -Então vá depressa. Não perca o ônibus. Mas se o perder, volte imediatamente A...

Mas eu já estava saindo pela porta.

Ah, a neve! Elevei a cabeça para permitir que os flocos gelados e úmidos me escorregassem pelas bochechas e o nariz. E inclusive os provei do mesmo modo que o faria uma menina. A neve fazia brilhar tudo o que eu ia encontrando em meu caminho, como se fosse um manto de açúcar e eu estava fascinada e emocionada.

E equivocada. Tinha-me equivocado ao sair sozinha, rompendo as normas da ordem. Mas estava acostumado a fazê-lo com tanta freqüência que certamente as irmãs estariam já acostumadas. Certamente teria que deixar atrás minha rebeldia e me conformar um pouco mais quando fizesse meus votos, mas me negava a fazê-lo até que tivesse mais remédio. Depois de tudo...

Uma vez mais, aquela sombra de dúvida. Uma vez mais a rechacei. Pensaria nisso mais tarde. Só o que queria fazer naquele instante era caminhar sozinha, rompendo as normas a cada passo que dava e desfrutando da neve.

E isso foi precisamente o que fiz. Mas quando cheguei à parada do ônibus o fiz bem a tempo para ver meu meio de transporte afastar-se de mim.

Fiquei desconcertada, mas foi só um momento. Depois de tudo, já quase fazia parte da Ordem das Irmãs da Caridade. Eu era boa. Vivia para servir a Deus, e asseguro que ninguém o fazia com tanto entusiasmo como eu. E certamente, onde quer que fosse ia acompanhada pelo amparo de Seu amor. De fato, sentia-me invulnerável. Sentia-me protegida por um escudo protetor que não permitiria que nada me fizesse mal. E devido a isso, decidi estupidamente percorrer caminhando as seis quadras que me separavam do refúgio. E aquilo, dei-me conta depois, foi o estúpido orgulho que me levou diretamente à queda.

Ele estava esperando, escondido entre as sombras de um beco cheio de lixo. O monstro me chamou quando me viu passar, e meus passos se foram fazendo mais lentos até que me detive. Que estúpida fui!

_Irmã! Irmã, por favor, me ajude!

Minha adorada neve continuava caindo com suavidade quando me virei para olhar na escuridão, incapaz de ver o dono daquela voz queixosa. Fiquei ali quieta e senti pela primeira vez um calafrio de medo.

_Quem está aí? -gritei-. Saia onde possa vê-lo...

_Não posso. Estou ferido. Por favor, irmã. Não me deixe morrer aqui com este frio. Ajude-me.

Meu medo não se evaporou. Simplesmente, ficou em segundo plano sob minha absoluta segurança em mim mesma. Ajudaria a aquela pobre alma do beco, mas tomaria cuidado. Seria prudente, sábia. Entrei devagar na escuridão e um calafrio me atravessou a nuca, me gelando a alma. Eu devia saber naquele mesmo instante que não deveria ter dado nem um só passo mais.

_Aqui - gemeu ele para me atrair para onde estava. Aproximei-me até que a rua iluminada e cheia de gente ficou fora de meu alcance. E quando estive suficientemente perto, ainda cegada pela escuridão, ele se aproximou. Uns braços ossudos que tinham a força do Sansão se fecharam sobre mim e estiveram a ponto de me esmagar. Uma mão me tampou a boca. Lutei. Lute com todas minhas forças. Nunca tinha sido tímida nem débil, nem tampouco covarde. Chutei-o com tal força que certamente devia lhe arrebentar as pernas e me revolvi para tentar escapar e tentei mordê-lo na mão. Mas nada parecia lhe fazer efeito. Não deu nem um coice, nem sequer protestou. O coração me pulsava com tanta força que não podia ouvir outra coisa enquanto me introduzia mais para dentro do beco. E comecei a rezar em silêncio para pedir minha salvação, para não perder a vida. Meu Deus, me perdoe por este engano. Deveria ter rezado pela salvação de minha alma imortal, não por preservar esta vida, este corpo.

O homem me jogou sobre o lixo com tanta força, que quando caí fiquei sem respiração. E então se jogou em cima de mim enquanto eu tentava recuperar o fôlego. O fedor era insuportável. Agüentei a respiração e abri os lábios para gritar, mas ele voltou a me tampar a boca. Ficou ali sentado escarranchado sobre mim e com a mão que tinha livre me arrancou a touca da cabeça, deixando meus cabelos soltos e me agarrando as mechas.

_Seda negra -sussurrou me acariciando os cabelos com os olhos de ônix. É perfeita.

Eu me revirei debaixo dele.

_Perfeita. Já não estarei sozinho nunca mais.

Continuava sem poder vê-lo bem. Só distinguia a forma de seu rosto e o escuro poço de seus olhos. Mas não me escapava a sensação de que ele sim podia enxergar a mim perfeitamente.

_Levei muito tempo observando-a, sabe? Escolhi-a entre todas as que conheci. Deveria estar agradecida a mim, Angélica, pelo presente que está a ponto de receber.

Eu sacudi a cabeça, mas não adiantou nada.

_Sim, agradecida -continuou ele-. Nada de ordens de clausura para você. Nada de votos. Não foi feita para isso. Você foi feita para mim.

O monstro se inclinou sobre mim. Aproximou-se de meu pescoço, e o estômago me revirou quando senti o contato de sua boca fria sobre a pele. Com uma mão me jogou a cabeça para trás, e logo veio o momento que não esquecerei enquanto viva. Pensei que me violentaria, que me assassinaria. Pensei muitas coisas. Mas não aquilo.

Doeu-me. Doeu-me durante um instante quando seus incisivos furaram a tenra pele de meu pescoço. E logo a dor desapareceu e fiquei com o horror do que me estava ocorrendo. Sua boca sugou meu pescoço enquanto ele bebia o sangue de meu corpo. Podia sentir como ia a vida por aqueles dois pequenos buracos. Tudo ao meu redor nublou. Tudo desapareceu, e fiquei sem nada. Tudo se concentrou naquela parte minha da qual o monstro se estava alimentando.

Ele levantou a cabeça. Eu fiquei estendida, apenas consciente, incapaz de me mover nem de articular nenhum som. Ele se moveu e vislumbrei um brilho prateado. Nem sequer pude sentir temor quando me ocorreu que estava brandindo uma espada. Que ia acabar comigo. Não podia ouvir nada. Os sons da cidade já não entravam por meus ouvidos. Só escutava sua voz.

Ele me levantou e apertou meu rosto contra seu pescoço.

_Bebe, Angelica - sussurrou-me-. Bebe... E vive. Apertou-me contra si me sujeitando a cabeça com a mão. E meus lábios roçaram algo úmido e quente em seu pescoço. Tentei me afastar, mas minha debilidade me impediu isso. E quando minha língua provou aquilo, meus sentidos despertaram. Um espasmo gelado como uma rajada de vento me atravessou. Acredito que abri os olhos de par em par. Meus lábios se entreabriram em um gemido e por minha boca se deslizou um pouco mais daquele líquido. Se não o tivesse tragado, teria morrido afogada. E se eu tivesse sido tão devota como me julgava, isso era exatamente o que deveria ter feito. Deixar-me afogar naquele elixir maldito. Dirigir-me aos braços do Senhor antes que me render ao desejo instintivo de sobreviver. Mas traguei. E aquela foi a primeira vez que experimentei o poder daquela fome diabólica. Atravessou-me, sobrepondo-se a tudo o que eu tinha sido sempre. Uma necessidade que não era capaz de identificar tomou conta de mim. Fechei os lábios sobre a ferida de seu pescoço... E bebi com ânsia e desespero. Bebi, e enquanto o fazia meu corpo se encheu de vida com umas sensações que nunca tinha experimentado. Foi tal minha gulodice que ele teve que me puxar quando se completou o processo.

Fiquei ali, estendida sobre o lixo e de repente minha visão se esclareceu. Podia vê-lo todo. Todos os matizes de seu rosto branco, seus olhos escuros e seus lábios manchados de sangue. Cada grão de areia dos tijolos que formavam o edifício que tinha ao lado. Todas as estrelas do céu. Minha pele estremeceu sob uma nova vida. Sentia como nunca antes havia sentido. Sentia a forma de cada floco de neve que caía sobre minha pele. Cada fragmento de lixo que se ocultava debaixo de mim. Podia identificar cada fedor. E o ouvido... Escutava as conversas das pessoas que passavam pela rua. O som dos pneumáticos sobre o asfalto.

_O que é isto? -gritei.

E minha própria voz me soou tão diferente, tão rica, tão clara e tão vívida que tapei os ouvidos e fechei os olhos com força.

_Aprenderá a controlá-lo -disse-me ele-. Poderá escutar só o que quiser ouvir. Eu lhe ensinarei.

Tirou-me as mãos dos ouvidos e as apertou contra o lixo que tinha ao lado.

_Ensinarei você. Viverá para sempre, Angélica. Já não é mortal. Agora é como eu.

Eu abri os olhos, horrorizada.

-Como você?

-Sim.

Senti que o coração deixava de pulsar ao me dar conta do que me tinha feito, o que eu lhe tinha permitido que me fizesse.

_Estou condenada - sussurrei. -Vamos. Espera-o sua primeira classe.

Ajudou-me a me pôr de pé e me arrastou para a boca do beco, embora eu tentasse impedi-lo. Tinha o hábito destroçado.

_É forte -sussurrou-. Já é muito forte. E o será ainda mais, quando nos tivermos alimentado. deteve-se na entrada do beco e vi como seus olhos escuros e estranhos observavam às pessoas.

_Nos alimentar? -murmurei assustada.

_Sim -respondeu ele sorrindo.

Então vi-lhe os dentes, aqueles caninos afiados e brilhantes.

_Deles - concluiu assinalando com um gesto da cabeça às pessoas.

Meu coração encheu-se de horror. Era um monstro! Um demônio. Um... vampiro. Estremeci quando aquela palavra me passou pela cabeça. Fazia-se de mim uma criatura como ele. E eu o tinha permitido.

Tomou-me em seus braços, embora eu resistisse, e voltou a me levar ao beco. Comigo pendurada no ombro, agarrou-se à parede do edifício e começou a subi-lo. Abriu caminho até o extremo superior como se fosse uma aranha. Meus amado flocos de neve se converteram em armas. Pequenas flechas que lançava o anjo do Senhor para me castigar. Cortavam-me a cara como se fossem ferroadas. E, entretanto, não tinha frio.

Subiu até o telhado e saltou correndo de telha em telha. Gritei quando atravessamos o céu da noite como autênticos demônios.

Voltamos para chão, às ruas, e eu soube onde estávamos. Não longe do retiro onde aquela noite eu tinha pensado ir. Por que tinha sido que ser tão rebelde e tão arrogante? Por quê?

Ele gesticulou e eu olhei. Um punhado de vagabundos estavam reunidos ao redor de uma fogueira, esquentando as mãos no calor das chamas.

_Ali - disse ele -. Nossas vítimas, Angélica. Suas vidas não valem grande coisa.

Era a gente que eu tinha passado anos tentando ajudar.

_Não - supliquei-lhe-. Por favor, não devemos. Matar é pecado!

Ele me soltou para que saísse correndo se quisesse. Mas sabia que não o faria. Como um lobo adulto e faminto, aproximou-se sigilosamente deles. Mas depressa. E então, sem vacilar, agarrou um. Ouviu-se um grito de alarme e os outros desapareceram na escuridão. Ele sujeitou ao homem que tinha eleito, um homem que tinha recebido de mim pratos de sopa, mantas e o pulôver que usava. Eu tinha rezado com ele.

Corri para eles, mas foi muito tarde. A besta tinha enfiado os dentes no pescoço daquele homem inocente. Golpeei-o na cabeça, arranhei-lhe na cara, mas só soltou a sua vítima quando a esvaziou. Elevou a cabeça e me sorriu. Seus lábios brilhavam com um tom escarlate sob a luz do fogo. Eu dava um passo atrás, negando com a cabeça e abrindo a boca, mas fui incapaz de articular palavra.

O homem cujo nome não podia recordar caiu ao chão com os olhos muito abertos, embora já não visse. Seu rosto tinha a expressão da morte.

O monstro limpou os lábios e logo, com a rapidez de uma cobra, agarrou-me pelo cabelo e atirou-me longe, fazendo-me gritar de dor.

_Não volte a me enfrentar, Angelica. Agora é minha, entende? Estive observando você durante toda sua vida, esperando. Irá onde eu for. Fará o que eu disser. Se alimentará quando eu o fizer.

Olhou por detrás de mim, para as sombras, e voltou a sorrir daquela forma diabólica.

_Espere sua primeira vítima. Ali está, tremendo na escuridão, pensando que não podemos vê-lo. Trarei ele e você tomará, Angelica. Irá deixá-lo seco ou sofrerá minha ira.

Soltou-me e avançou uns passos. Eu dava a volta e vi o menino, que era apenas um pirralho, vestido com uns farrapos, tremendo de medo na escuridão com os olhos muito abertos. Não podia permitir que aquele monstro lhe arrebatasse a vida.

Agarrei um pedaço de madeira que havia ao lado da fogueira. O extremo que eu agarrei não queimava, mas quando o tirei vi que o outro ardia em chamas. Com um grito surdo que não podia acreditar que proviesse de mim, lancei-me brandindo minha tocha como uma arma, com minha recém adquirida força.

Mas não foi a potência de meu golpe o que provocou a façanha. A parte candente da madeira golpeou a cabeça do vampiro, fazendo-o cair de joelhos. Mas estou convencida de que o dano que lhe causei foi mínimo. Foi a chama. O fogo pareceu apoderar-se dele, lhe alcançando primeiro o cabelo e depois a roupa. Benzi-me enquanto via como o consumia. Parecia que estava molhado de gasolina, a julgar pelo modo como as chamas se estenderam. Dava um passo atrás quando chegou a minha altura. E isso foi tudo. Caiu ao chão e houve algumas labaredas brancas. E logo nada. O fogo se extinguiu como se jamais tivesse existido. Nem sequer ficaram cinzas que sujassem a perfeição da neve que havia sob meus pés.

O menino que se escondia entre as sombras tinha desaparecido. Podia ouvir seus passos velozes em meus ouvidos enquanto corria. Eu cambaleei um pouco. Estava abalada. Assombrada. Aterrorizada. Tinha matado. Era um feto igual ao que tinha assassinado. Estava condenada.

Aqueles malditos o mataram.

Tinha passado três dias preso àquela mesa, dentro daquela minúscula cela em que uns cientistas de bata branca o tinham cravado uma e outra vez até que não ficou nem um pedaço de pele virgem. Não tinha ficado nenhum fluido corporal que não tivessem tomado amostras, mas não era humilhação o que sentia. Era raiva. Aqueles malditos pagariam. Talvez Jameson Bryant não fosse um vampiro, mas tampouco era um menino. Era um homem, e aquela noite era um homem sedento de vingança. Quando estivesse livre destroçaria aquele edifício tijolo a tijolo. Destroçaria a Divisão de Investigações Paranormais e a todos os que estivessem relacionados com ela.

Jameson compreendia o interesse da Divisão por ele. Seu grupo sangüíneo era muito estranho, compartilhado sozinho por umas quantas pessoas. O antígeno da beladona o convertia em um objeto de estudo para aqueles cientistas. Os poucos indivíduos que tinham aquele grupo sangüíneo eram os únicos mortais capazes de converter-se em vampiros. E todos os vampiros tinham reclamado o antígeno da beladona durante suas vidas mortais.

Os cientistas da DIP, em seu intento por conhecer tudo que fosse possível sobre os mortos-vivos para libertar o mundo de sua presença, utilizavam com freqüência sujeitos vivos para investigar. Mas já tinham tido sua oportunidade com Jameson muito tempo atrás, quando era só um menino. E o teriam matado se não fosser por seus amigos os mortos-vivos, especialmente Roland. Em qualquer caso, tinham tido seu momento para experimentar com Jameson Bryant. Claro que já não podiam aprender nada novo dele.

Deus, e pensar que Tamara tinha trabalhado uma vez com aqueles malditos... Mas ela não sabia. Não sabia.

 

Jameson não entendia por que não se aliavam todas as criaturas sobrenaturais que havia no planeta para destruir à Divisão, como a DIP tentava destruir a elas. Não se mereciam a perseguição constante, o medo com qual viviam por culpa daquela agência secreta do governo. Sim, certamente que havia gente má entre os vampiros. Igual a qualquer espécie. Mas em sua maior parte, eram a melhor gente que Jameson tinha conhecido, não tinham se livrado dele quando sua mãe morreu. Tinham-no criado, de verdade.

Bem, pois se Roland, Eric e outros não moviam um dedo para acabar com aquela organização, fa-lo-ia Jameson. Já era hora.

Tinha-os ouvido dizer que já tinham seus espécimes. O experimento se completou em um tempo recorde e podiam continuar com a fase dois, significasse o que significasse aquilo. Em qualquer caso, não eram tolos. A Divisão sabia por experiência que os amigos de Jameson Bryant não eram o tipo de gente com quem queriam relacionar-se. Assim «se desfariam do sujeito» antes de que o fizesse algum de seus protetores.

Jameson tirou as correias que lhe prendiam os braços e as pernas à fria maca metálica. Não pensava morrer sem lutar.

- Jamey!

Ao escutar aquele sussurro rouco, Jameson virou a cabeça, tudo o que lhe permitia sua posição e viu que Roland estava abrindo os barrotes da cela como se fossem de borracha.

-Que demônios está fazendo aqui? -Você que demônios crie?

Roland entrou na cela e desatou sem dificuldade as correias que tinham aprisionado Jameson.

 

-Está bem, Jamey?

-Perfeitamente. E me chamo Jameson.

Sentou-se, desceu da maca e olhou de frente o homem a quem queria como a um pai. Um homem que tinha centenas de anos mas que não tinha aspecto de ser muito mais velho que Jameson. Embora tivesse a pele um pouco mais pálida e lhe brilhassem os olhos um pouco mais que aos mortais.

-Já sabe que não quero que meus amigos ponham em perigo sua vida por mim.

-Teria sido mais arriscado deixá-lo à mercê deles -assegurou Roland encolhendo os ombros com gesto angélico-. Rhiannon me teria jogado como comida para seu gato.

Jameson tratou de continuar zangado, mas foi um esforço inútil. Podia imaginar a companheira de Roland ameaçando-o desse modo e, dado que seu «gato» era nada menos que uma pantera, não era uma ameaça para se ignorar. Embora nunca a tenha levado a cabo. Rhiannon adorava seu marido.

Jameson abraçou Roland, que por sua vez o abraçou. Fazia muito tempo que não se viam. Jameson tinha estado levando uma vida normal em San Diego sob uma identidade falsa com a esperança de que a DIP não voltasse a encontrá-lo. Era proprietário de um bar que lhe dava bons lucros.

E então um dia, depois de fechar e dirigir-se para seu carro, dois tipos de traje escuro o tinham agarrado e em seguida estava nu sobre uma maca.

-Já nos daremos um jeito -disse Roland soltando-o-. Eric está...

-Eric está aqui? -perguntou Jameson, zangando-se de novo.

Maldição, quando aprenderiam a não pôr em perigo suas vidas cada vez que ele tinha problemas?

-E Tamara?

-Está esperando fora com o Rhiannon. Jameson deu um passo atrás com fúria renovada. -Maldito seja, Roland, como você deixou que Tamara viesse aqui? Já sabe o que poderia ocorrer se voltassem a lhe pôr em cima suas mãos sujas...

-Não queria ficar. Conhece-a o suficiente para saber que...

Eric apareceu na porta da cela. Tinha uma pequena ferida vermelha na frente.

-Um deles saiu Y...

Interrompeu-se e observou Jameson com os olhos muito abertos da cabeça aos pés.

-Céus, passou tanto tempo assim? Como você cresceu!

Jameson sacudiu a cabeça e se perguntou como era possível que um homem de trinta anos voltasse a sentir-se com quatorze anos outra vez. Supôs que aquilo só ocorria porquê os dois homens que ele via eram vampiros, com uma centena de anos cada um. Roland o agarrou por braço e o tirou da cela. Correram pelo corredor detrás do Eric, que os guiou para a janela mais próxima. Ali se deteve e a abriu.

Jameson parou e olhou primeiro para um homem e depois para o outro.

-Estão de brincadeira, não é? Estamos no décimo andar Y...

Os dois o rodearam, agarraram-no pelos braços e saltaram.

- Dois guardas mortos -repetiu Wes Fuller, o supervisor ( da Divisão de Investigações Paranormais) -.E outros seis feridos. E esse desgraçado de Jameson Bryant fugiu.

Fuller deu uma volta e esvaziou o tabaco em um cinzeiro de cristal.

-Não importa -assegurou o assistente Stiles, comprovando a lista que tinha na mão e assentindo ao mesmo tempo com a cabeça-. Temos tudo o que necessitávamos dele. Nossa teoria era correta. Quando se transformam, os machos ficam estéreis. Entretanto, enquanto continuam humanos...

-Nada de humanos. Esses seres não são mais que animais.

-Sim, bom -continuou Stiles limpando a garganta-. Em qualquer caso, antes que se produza a mudança, são férteis. O antígeno da beladona não parece afetar seu esperma.

-Isso é o que me preocupa.

Fuller apartou a cadeira da mesa de conferências e ficou em pé. Olhou à doutora Rose Sversky, que roçava já os setenta anos e continuava sendo o membro mais competente da equipe de investigação.

-Tem os dados? -perguntou Fuller-. Qual é a conclusão?

Rose ajustou seus óculos de fundo de garrafa e limpou a garganta.

-Das doze mil e quinhentas fêmeas que analisamos nas duas décadas passadas -começou a dizer com voz asséptica e fria-, mais de três mil tinham óvulos férteis em seus ovários. Noventa por cento (elas levavam menos de um ano transformadas. Nenhuma delas mais de vinte e três meses).

Elevou a vista de suas notas e baixou os óculos para poder olhá-lo por cima deles.

-Em resumidas contas, sim, senhor Fuller. É completamente possível que uma vampiresa recente se junte com um mortal e conceba um filho.

Hilary Garner deixou cair o lápis que tinha entre os dedos. O som fez que Fuller a olhasse com olhos de aço.

-Tente continuar, Garner. Necessitaremos das notas que está tomando.

-Sim, senhor.

Hilary pestanejou para afastar de si o horror e se aproximou do escritório para procurar um lápis novo. Acabavam de promovê-la há pouco tempo, como secretária executiva de Weston Fuller. O cargo implicava um bom salário, bonificações... E revelações aterradoras, como por exemplo, no que consistia verdadeiramente aquela organização.

Quando sua amiga e companheira Tamara Dey tentou adverti-la anos atrás, ela não acreditou. Não viu nada que indicasse que o que Tamara lhe dissera fosse verdade. Os seqüestros, as torturas, os assassinatos...

Hilary se deteve e ficou olhando seu reflexo no sólido porta-lápis de prata que havia no delicioso escritório do Fuller. Uma pele de caramelo e uns olhos grandes e castanhos emoldurados por uns poucos pés-de-galinha lhe devolveram o olhar, e seu reflexo sussurrou: « Que diabos está fazendo aqui?»

-Depressa, Garner. Não tenho todo o dia.

Hilary pigarreou,tirou um lápis e correu a sentar-se ao lado do Fuller.

-Continuemos, pois - disse dirigindo-se a Rose Sversky, que parecia muito amável e muito mais com uma médica patologista do que alguém metido em uma agência secreta do governo. Mas o estava. Até as sobrancelhas. Era a melhor forense patológica do mundo, para não dizer a única, especializada no exame dos restos de vampiros. Mas Fuller seguia falando e supunha que Hilary devia estar atenta.

-Suponhamos que uma dessas fêmeas se acasale com um mortal que possui o antígeno. Qual seria o resultado?

-Um bebê, suponho -respondeu Rose encolhendo-se de ombros. Escutou-se um murmúrio de risadas entre os assistentes.

-Sim, mas, que tipo de bebê?

Fuller olhou para todos e cada um dos agentes especializados que tinha sentados à mesa.

-Será que não vêem onde quero chegar? Se essas criaturas encontrarem a forma de reproduzir-se, em poucos anos nos superarão em número.

-E o que sugere que façamos a respeito?

Todos os olhos se voltaram para Hilary quando deixou escapar aquela pergunta. Supunha-se que ela não tinha nada que dizer ali. Devia limitar-se a tomar notas enquanto os meninos maiores faziam seus planos.

Wes Fuller se reclinou em sua cadeira, cruzou-se de braços E a olhou como se estivesse esperando uma desculpa. Hilary se sentou um pouco mais reta, olhou-o aos olhos e não lhe disse nada.

A tensão alcançou seu ponto culminante e finalmente ele se inclinou para diante e colocou as palmas das mãos na mesa.

-O que vamos fazer a respeito, senhorita Garner, é averiguar qual seria o resultado de semelhante união. Investigação, Garner. Isso é o que fazemos aqui.

Fuller retornou a confortável posição que tinha antes na cadeira e continuou falando.

-Temos as amostras congeladas do Jameson Bryant, e diz você que é fértil...

-Sim, senhor -respondeu Stiles.

-Bem -disse voltando-se para Whaley, o coordenador da operação deste zona-. Necessitamos uma fêmea recentemente transformada. É preferível que esteja perto para que não tenhamos problemas em trazê-la até aqui.

-Porei em marcha o sistema operacional de toda a zona -assegurou Whaley-. Nesta semana teremos o sujeito.

-Bem -disse Fuller sorrindo e olhando Hilary-. Parece-lhe isto algum problema?

Ela piscou, inclinou a cabeça e não disse nada.

-Espero que não -continuou Fuller-. Porque aqui tratamos com muita severidade aos empregados que não levam a sério o trabalho que fazemos, senhorita Garner. Com muita severidade.

-Entendo -respondeu ela.

Entendia-o perfeitamente. Se tentasse partir, se tentasse de fugir... Morreria. Ou desapareceria, como ocorreu à bela e jovem Tamara.

Fuller disse a todos que saíssem, e foram abandonando um por um a sala. Ele se deteve na porta e apontou com um gesto o bloco de papel de notas que se deixou sobre a mesa.

-Passe essas notas ao coordenador e me entregue isso antes de uma hora -ordenou-lhe, antes de sair para o corredor com outros.

Hilary se limitou-se a assentir e a vê-lo partir.

-Está tudo bem, querida?

A jovem levantou a cabeça e se encontrou com o rosto sulcado de rugas de Rose Sversky, que estava recolhendo uns papéis da mesa.

Estavam sozinhas no despacho do Fuller. Hilary fechou a porta apesar do arriscado do gesto.

-Rose... Como você pode fazer parte de algo assim?

-De algo como o quê? -perguntou por sua vez a anciã franzindo o cenho-. É investigação. É necessário.

-É mais que isso.

Rose a olhou então e a jovem avançou, como se a proximidade lhe permitisse conhecer melhor à mulher.

-Este lugar é um cárcere. Sabe que têm prisioneiros nos porões, encerrados em celas como se fossem animais?

-É obvio que sei, querida. Sou a chefe de investigação.

Céus, pensou Hilary. Certamente ela sabia desde o começo. Hilary tinha descoberto recentemente, e tinha imaginado estupidamente que aquela mulher mais velha, de aspecto agradável, estaria tão horrorizada com a notícia como ela mesma.

-Mas Rose...

-Mas nada. Aqui não estamos falando de genocídio. São animais, não seres humanos. Alimentam-se de humanos. Pelo amor de Deus, são eles ou nós.

-Mas... mas... E o que vão fazer? -perguntou Hilary dando um passo atrás-. Um bebê, pelo amor de Deus! E o que lhe acontecerá se tiverem êxito?

-Não será um bebê. Será um cachorrinho -assegurou a doutora-. Será a oportunidade de investigação mais incrível que já tivemos.

Hilary engololiu a bílis. Aquilo era um pesadelo e sentia vontades de vomitar. Teve que agarrar-se à mesa para evitar cair.

-Hilary -começou a dizer Rose dando um passo adiante e entreabrindo os olhos- Entende por que isto é necessário, não é? Porque se não for assim...

Hilary engoliu saliva e sacudiu a cabeça.

-Acho que agora entendo melhor. Você tem razão. Eu... me alegro de que tenhamos falado. -É obvio -respondeu Rose sorrindo com sinceridade-. Sempre que tiver alguma dúvida venha falar comigo, de acordo?

-Obrigada. Farei isso.

«E você irá correndo contar a Fuller a conversa que acabamos de ter».

O que poderia fazer agora? Teria conseguido salvar-se a tempo ou se condenou por completo? Estava aterrorizada. Deus,estava aterrorizada.

 

Jameson e outros ficaram uns dias no apartamento de cobertura que Rhiannon tinha em Manhatan. Todas as janelas estavam cobertas por grossas cortinas negras. E não havia ataúdes. Todos dormiam em camas por ordem expressa de Rhiannon. Gostava da boa vida. Lençóis de seda em todas as camas.

Jameson não pôde evitar sorrir. Gostava de guardar as formas, para total desespero de Roland.

Roland. Quantas vezes até o momento tinha salvado a vida de Jameson? Três? Quatro? Primeiro aquela vez, quando um agente a DIP o tinha seqüestrado quando tinha doze anos e o tinha deixado em um edifício abandonado em pleno inverno. Tudo tinha sido um ardil para chegar até Tamara. Se Roland não o tivesse encontrado justo depois de cair pelas escadas...

E logo mais tarde, depois da morte de sua mãe, aquele maldito do Lucien o tinha levado e o tinha feito negociar sua vida em troca do dom negro. Uma vez mais, seus amigos tinham chegado para salvá-lo. Rhiannon quase tinha morrido naquela ocasião por causa do esforço.

E ali estavam outra vez. Arrancando-o das fauces da morte bem a tempo.

Mas ele já era meio vampiro. Vivia como um deles. Dormia de dia e trabalhava de noite. Era-lhe natural depois de ter vivido tanto tempo na companhia deles.

Algum dia, supunha, pediria a algum deles que o transformasse. Algum dia. Mas ainda não. Ainda tinha muitos anos de vida mortal e queria ver muitos amanheceres antes de despedir-se deles para sempre. Gostava de comer uma boa carne, seu copo de vinho, e ainda não estava preparado para substituí-los por uma dieta de só líquidos.

 

-Meninos, não deveriam ficar muito tempo na cidade –advertiu-os aquela noite, a terceira que passavam ali-. Já sabem que está monopolizada por esses miseráveis da Divisão.

         -Oxalá me encontrasse com um deles -assegurou Rhiannon, acariciando a cabeça de Pandora.

         -Tem razão, Jamey -disse Tamara com doçura enquanto se aproximava de uma das janelas para abrir as cortinas e contemplar o horizonte brilhante-. Mas eu não quero ir até que você parta. Sei que ainda está furioso. E que quer vingança.

         -Esse é meu problema -respondeu ele encolhendo os ombros-. E estou farto de dizer que não quero que se envolva com meus problemas, Tam. Um destes dias vai conseguir que a matem.

         -Tive um sonho.

         Jameson se calou quando ela deu a volta e lhe cravou os olhos negros.

         -Sonhei com você, Jamey.

         Eric elevou uma sobrancelha ao escutar a sua esposa e deixou o livro que estava lendo. Um de física quântica.

         -A primeira vez não disse nada... Mas hoje tornei a sonhá-lo -continuou sacudindo a cabeça com tristeza-. Foi só uma sensação, a sensação horrível de que vai ocorrer algo com você, Jamey. Nesta cidade. Assim não irei até que você vá.

         Jameson baixou a cabeça, sabendo que era inútil discutir com a Tam. Tinha sido como uma irmã para ele, inclusive quando era mortal.

         -Estou de acordo -interveio Rhiannon aproximando-se com movimentos tão felinos como os de sua pantera para sentar-se ao lado da Tamara-. Ficamos.

         Jameson apertou os dentes. Era mais alto e forte que Roland, e seus músculos, treinados em horas de ginásio, mais firmes que os do Eric. Mas sempre o veriam como um menino necessitado de amparo. Sempre.

         Deu a volta e saiu pela porta do apartamento, agarrando antes seu casaco.

         -Vou dar uma volta -disse voltando-se para olhá-los, com a mão no trinco-. E se algum de vocês se atrever a me seguir, juro-lhes por Deus que nunca mais voltarei.

        E dito aquilo saiu do apartamento.

 

         Caminhou sozinho na escuridão sem sentir nenhum temor. Só sentia raiva e, naquele momento, mais que nunca, depois de ter sido utilizado e humilhado como adulto com suas mãos sujas. Conhecia-os muito bem. Mataram os pais de Tamara para poderem pegá-la. Tinham-na utilizado como cobaia desde que era uma menina porque sabiam que tinha o antígeno e que, que cedo ou tarde, algum vampiro lhe apareceria.

         E quando o que tinham escolhido como seu guardião mortal, o encantado Daniel Sant Claire, mudou de opinião e decidiu que não podia seguir utilizando a menina que tinha criado como se fora dela, então também o mataram.

         Jameson queria saber por que o tinham levado aquela vez. Que tipo de informação andavam procurando? Por que tinham tomado aquelas amostras tão concretas de seu corpo e o que tentaram fazer depois?

         Como averiguá-lo? Era nisso que tinha que pensar, e tinha que fazê-lo sozinho.

         Caminhou depressa, desfrutando do frio e pensou. Talvez poderia entrar nos escritórios da DIP e revisar os arquivos, usar seus computadores e ver que informação havia. Ou poderia fazer-se com um deles. Por exemplo, com essa doutora de aspecto nazista, Rose Sversky. Ou com o cão mulherengo do Fuller, Stiles. Poderia torturar um deles até fazê-lo falar. Talvez inclusive ao mesmo Fuller. Jameson sorriu ao pensar na dor que queria causar naquele maldito. O mesmo que ele tinha feito a tanta gente durante tanto tempo.

         Decidisse o que decidisse, não poderia fazer nada até que convencesse Eric, Tamara, Roland e Rhiannon para que saíssem dali e o deixassem sozinho. Se ficassem, ver-se-iam envolvidos em seus problemas, como sempre, e Jameson não queria que seus amigos, ou sua família, ficassem em perigo por culpa de sua necessidade de vingança.

         Deteve-se na rua e ficou ali em silêncio, com a cabeça ligeiramente inclinada enquanto o vento frio lhe revolvia o cabelo e lhe congelava as bochechas. Tinha escutado algo. Um pouco tênue que nenhum transeunte mais parecia ter ouvido. Esforçou-se para voltar a escutá-lo no meio do tráfego e das buzinas. Transcorreu um segundo, e logo outro. E então voltou a ouvi-lo. Era o som de um gemido de dor e agonia. E era a voz de um vampiro.

         Jameson sentiu um calafrio na nuca quando vislumbrou de onde procedia o som. De um edifício abandonado que havia a vários metros dali.

         Ela estava ali.

         Jameson não sabia como soube, nem como podia escutar o som de sua voz, porque não era audível. Ao menos para os mortais. Seus ouvidos eram os de um mortal. Então, como podia escutá-la, sentir onde estava? Por que podia sentir sua dor?

 

         Jameson Bryant não era nenhum imbecil. encontrou-se com antecedência com outros seres sobrenaturais aos quais não conhecia e sempre os evitava. Certo que ia contra sua natureza fazer mal a um dos seus, aos escolhidos, os escassos mortais com o antígeno da beladona correndo por suas veias. Os vampiros sempre identificavam aquele antígeno. Pressentiam-no de algum jeito e a maioria deles, tentavam se proteger e se afastar de mortais que possuíam o antígeno.

         Mas dessa vez lhe foi diferente. Sentia-se atraído, arrastado por uma força misteriosa que não reconhecia nem compreendia. Talvez estivesse louca. Talvez fosse uma assassina e o atacasse. Mas não teve mais remédio a não ser atravessar a porta semi-destruída do edifício e atravessar os escombros até chegar onde ela estava.

         E quando por fim a viu, o coração lhe deu um salto. Estava sentada em uma esquina em posição fetal. Seu vestido negro, ou o que fora aquilo, estava destroçado e feito farrapos. Igual a seu cabelo negro como o ébano, que lhe caía sujo sobre a cara. Estava extremamente pálida e magra. Desnutrida, quase. E as mãos... Céus, viam-se até os ossos.

         Jameson avançou um passo mais para ela e a jovem elevou a cabeça rapidamente. Tinha os olhos muito abertos e neles se refletia o pânico. Quando o olhou, as nuvens deixaram ao descoberto a lua, permitindo que sua luz atravessasse o cristal quebrado e lhe banhasse o rosto e os olhos com brilho etéreo. Estava muito magra, mas ainda assim era muito bonita. Tinha as maçãs do rosto altas e marcadas e uma mandíbula delicada. Os lábios grossos, ligeiramente entreabertos, e um pescoço comprido e esbelto que Jameson observou sem mover-se. Então ela inclinou ligeiramente a cabeça e a luz lhe brilhou diretamente nos olhos. Jameson conteve a respiração. Eram violetas e brilhavam tanto que teria pensado que eram artificiais se não soubesse o que ela era. Era uma vampira, e certamente perigosa. Isso sabia.

         E também sabia muitas coisas mais.

 

         Sabia que aquela vampira estava à beira da inanição. Sabia que podia ter transpassado já a soleira da loucura. E sabia que devia partir.

E também sabia perfeitamente que não o faria.

 

         Tinha estado perambulando durante três dias, me escondendo nas zonas mais marginais da cidade, porque era o que eu merecia. Acaso não era eu agora um ser vil e imundo?

         E eu sabia que era culpada, porque poderia ter dito que não. Não devia beber quando me apertou o rosto contra seu pescoço, mas o fiz.

         Mas havia algo que não faria. Prolongar essa vida me alimentando dos vivos. Os cordeiros inocentes de Deus. E eu era o lobo que tinha fome deles. Deus, como me queimava a fome! Quando algum ser humano passava perto das janelas de minha guarida e soprava o vento, captava o aroma de seu sangue e me vinha água na boca. Os olhos se me enchiam de lágrimas. Com cada poro de meu ser desejava tomar algum deles, como tinha visto o monstro fazer.

         Havia algo, uma pequena parte da pessoa que uma vez fui, que permanecia viva em mim, e a ela recorria, para continuar resistindo.

 

         E ao crucifixo que tinha atado ao pescoço. O símbolo de tudo no que tinha acreditado. Aquilo me fazia continuar, mas não me liberava da loucura. E então ele chegou.

         Cheirei-o como a outros, mas ele não era igual. Seu aroma me chegou com mais força e acariciou meus sentidos de um modo mais profundo, assim que me refugiei em uma esquina, ergui os joelhos no peito e escondi o rosto nas pernas, rezando para que partisse. E que o fizesse depressa, antes de que aquele suculento aroma me deixasse completamente louca.

         Mas ele não se foi. Seu aroma se ia fazendo mais forte e mais delicioso a cada segundo que passava, e se aproximou. Elevei o olhar e ali estava. Sua respiração provocava nuvenzinhas de vapor na escuridão e ele me olhava como se nunca tivesse visto nada mais patético que eu.

         -Não tenha medo -disse-me.

         Senti desejos de jogar a cabeça para trás e rir, mas não tinha forças. Aquele pobre e inocente mortal me dizia que não tivesse medo dele... Que ironia.

         Fiquei sentada olhando-o e sua beleza me impressionou. Observei-a como observava agora todas as coisas, nos detalhes. Inclusive naquela escuridão podia vê-lo.        Tinha os olhos de um suave veludo marrom, adornados com uns pontos dourados que brilhavam ao redor de suas pupilas como os raios do sol.

         Ele era como o sol... Esse sol que eu nunca poderia voltar a olhar.

         Tinha muito cabelo e o tinha comprido. Distingui seu brilho e sua qualidade apesar da distância. Aquela massa de cachos rebeldes parecia ter a suavidade da seda e ele tinha a pele de um tom bronzeado, como se tivesse metido o corpo em um barril de mel só para mim.

 

         Umedeci os lábios e meus olhos se deleitaram em seu pescoço musculoso. E fechei os olhos. Desejava-o. Desejava seu sangue e também seu corpo. Eu, uma virgem cuja intenção tinha sido oferecer-se a Cristo e permanecer casta até a morte. Desejava-o com uma urgência tão carnal que me surpreendeu.

         -Vá embora -disse-lhe com voz rouca-. Aqui não está a salvo.

         Mas o homem se aproximou mais e ficou olhando com aqueles olhos listrados com compaixão, quando deveria havê-lo feito com asco.

         -Está faminta, não é?

         Sim, estava faminta. E agora podia escutar o batimento do seu coração. O rio de sangue correndo por suas veias. Podia escutá-lo!

         -Por favor! -exclamei afundando o rosto entre as mãos-. Vá embora! Não posso suportá-lo!

         E então afastou-me o cabelo do rosto com a mão, levantou-me brandamente a cabeça e me obrigou a olhá-lo.

         -Acabou de estrear, não é?

         Mas meus olhos tinham encontrado o ponto de seu pescoço no qual pulsava o sangue e não podia afastar a vista dali.

         -Posso ajudar -disse-me-. Tudo estará bem, vai ver.

         -Vá embora, por favor...

         Mas minha voz carecia já de convicção. Só pensava em como seria o seu sabor. Em pôr minha boca sobre sua pele. Em sentir o calor de seu sangue enquanto eu...

         -Não posso partir e deixá-la aqui. Está sofrendo.

         Eu gemi no mais profundo de minha garganta e as lágrimas começaram a me escorrer. Aquele belo e estúpido desconhecido me rodeou com seus braços poderosos e senti a firmeza de todos e cada um de seus músculos sob sua roupa. Estreitou-me contra si, me abraçando e me embalando com ternura. E me dizia:

         -Shh... Não foi nada. Tenho amigos que são como você. Podem ajudar. Tudo vai ficar bem.

         Continuou assim, me acariciando as costas e o cabelo. E seus movimentos me deixavam louca, com um desejo antinatural. Louca de luxúria por ele, por seu corpo e por seu sangue. E ambos os desejos pareciam entrelaçar-se até que já não pude distinguir entre o anseio carnal e aquela fome antinatural. Meu rosto descansava no oco da base de seu pescoço. Meus lábios roçavam inclusive sua pele salgada e cálida enquanto me abraçava. E aquilo foi o fim. Já não pude suportá-lo mais. Naquele momento não ficava em mim nenhuma grama de humanidade. Eu era só um animal faminto e ele, minha comida.

         Rodeei com meus braços o corpo daquele homem, abri a boca e afundei minhas novas e afiadas presas nele. Pele, músculo e depois aquele pequeno estouro quando alcancei a jugular. Ele gemeu, mas não tentou resistir. De fato se aproximou mais de mim, e senti que se estremecia. Voltou a gemer e me passou os dedos pelo cabelo, apertando os quadris contra mim. Senti sua ereção, sua dureza me golpeando entre as pernas. E, como se fosse uma vulgar prostituta, arqueei-me contra ele.

         Acredito que talvez não fui consciente de que aquilo seria seu final. Não soube até que o deixei quase seco. Aí foi que começou a mover os braços e a tentar afastar-se. Mas eu tinha tanta fome que foi inútil. Não podia escapar de mim. Já estava muito fraco pela perda de seu delicioso sangue.

         -Já chega -escutei-o sussurrar perto de meu ouvido-. Por favor, já chega...

 

         Mas eu o abracei com mais força, mordi-o ainda mais e continuei sugando. Sua força me atravessou, encheu-me, fez-me voltar para a vida.

         -Maldição, está me... está me matando -disse em um sussurro apenas audível.

         Horrorizada, separei-o de mim. Mas ele caiu ao chão como um boneco de trapo e ficou ali caído, me olhando com os olhos muito abertos até que os fechou.

         -Jesus, María e José, o que é o que estou fazendo? -sussurrei me dando a volta para sair correndo.

         -Alto aí!

         Aquela voz surgiu bruscamente do outro lado da soleira da porta. Era uma voz autoritária e ameaçadora. Fiquei quieta, sentindo que o pânico me congelava o corpo. Aquele desconhecido não podia ver o homem que acabava de matar. De ali não. Não podia suportar que ninguém visse o que tinha feito, no que me tinha transformado.

         O homem apareceu em meu campo de visão. Estava-me apontando com uma arma.

         -Aqui há um tranqüilizador -disse-. Sim, vnha comigo pacificamente, ou terei que utilizá-lo.

         -Ir aonde? -perguntei olhando primeiro a arma, depois aquele homem.

         -É muito jovem, não? Quando a transformaram aqueles miseráveis? -perguntou com um tom de voz repentinamente amável.

         -Faz três noites -respondi com sinceridade. Não via razão para mentir-lhe. A luz que o homem levava na mão me dava nos olhos. Depois a desceu para o meu crucifixo, iluminando também meu destroçado hábito.

         -Pelo amor de Deus -murmurou-. É a monja desaparecida.

 

         -Noviça. Ainda não sou monja -assegurei fechando os olhos e afastando o rosto do foco de luz-. E agora nunca mais o serei.

         -Posso ajudar você -disse ele apagando a lanterna no que pareceu um gesto de boa vontade-. Trabalho para a Divisão de Investigações Paranormais. É uma agência do governo, irmã. Estamos investigando o...

         -Não me chame irmã -interrompi-o.

         -Sinto muito. Escute... Venha comigo. Estamos trabalhando em um antídoto. Há uma possibilidade de que possamos ajudá-la.

         -Onde? -perguntei-lhe entreabrindo os olhos e observando-o.

         -Em nossa sede. No White Plains. Não está muito longe. Vamos, vêem comigo. Deixe-me ajudá-la. Quer voltar a ser humana, não é certo?

         Eu pisquei e estudei seu rosto. Seria aquilo possível? Poderia recuperar meu ser mortal e com ele minha alma imortal?

         « Não! Não confie nele!»

         Pus-me tensa ao escutar com total nitidez aquela voz sedosa dentro de minha cabeça. A voz de minha vítima. Olhei detrás de mim e seus olhos, apenas abertos, encontraram-se com meus e sustentaram meu olhar.

         «Não vá com ele. Não vá».

         Virei a cabeça e ignorei o homem moribundo. Certamente seus conselhos não seriam os melhores naqueles momentos. Tinha admitido que tinha amigos que eram... como eu. Como ia confiar em um amigo daquelas sanguessugas com forma humana? Não.           Odiava-os. A todos, e odiava-me a mim mesma por ser como eles.

 

         -Irei com você - falei.

         E o desconhecido me agarrou a mão. «Estúpida».

         Continuei escutando aquela voz enquanto ia com o homem. Embora se fizesse cada vez mais e mais débil.

         «Traidora. Traiu aos seus. E merece tudo o que lhe vão fazer ali».

         Eu fechei os olhos e tentei afastar sua voz de mim. «Poderia tê-la ajudado. Ainda vai desejar que o tivesse feito... Juro-lhe que o desejará».

         E logo nada mais. Nada absolutamente. Teria morrido por fim? Uma tristeza como nunca antes tinha experimentado caiu sobre meu coração. Tinha matado. Duas vezes.

         O desconhecido me abriu a porta de seu carro e entrei. E voltei a escutar aquela voz musical, talvez em seu último fôlego.

         «Tinha razão, Tam. Maldição, preciso de ajuda. Eu... Eu...»

         Já não disse nada mais. Uma lágrima escorregou por minhas faces enquanto dobrávamos a esquina e o edifício abandonado desaparecia de minha vista.

 

         -Jameson, pode me ouvir?

         -Ficará bem, Tamara. Nós o encontramos a tempo.

         -Mas Eric...

         -Sshh. Deixe-o descansar. Vai necessitar de toda sua força quando despertar. Não lhe será fácil enfrentar isto. Já sabe que não estava preparado.

         -Sei.

         Uma mão acariciou o rosto de Jameson.

 

         -Sinto muito -sussurrou-. Mas não podíamos deixá-lo ir.

         Jameson abriu os olhos e piscou, porque tinha um problema de visão. Tudo estava muito brilhante. Muito claro. Voltou a fechá-los rapidamente, sobressaltado.

         -O que houve? -murmurou rebuscando em sua memória.

         -Atacaram-no -disse Tamara brandamente.

         E Jameson se surpreendeu ao ver que podia escutar a vibração de suas cordas vocais enquanto lhe falava.

         -Pediu-me ajuda. Nós o encontramos em...

         -Espere. Lembro-me. Aquele edifício em ruínas...- Tudo voltou-lhe à mente com perfeita clareza, mas quando ergueu a mão para evitar que Tamara falasse, se deu conta de que tinha um esparadrapo num pulso. E também no outro.

         -O que está acontecendo?

         Rhiannon se sentou à sua esquerda em uma cadeira.

         -Algum desgraçado renegado te esvaziou até a beira da morte, Jameson -explicou-lhe, tomando-lhe a mão-. Não tivemos escolha.

         Ele negou com a cabeça, mas a verdade foi abrindo caminho em sua cabeça. Estava sentindo coisas. Todas as rugas dos lençóis. Sua pele estava viva, e podia escutar o som da brisa arrastando cada folha morta no exterior.

         -Não entendo -disse olhando de novo os esparadrapos.

         -Estava inconsciente -murmurou Tamara-. Muito fraco para beber. Morria, Jameson. Assim...

         Eric virou-se para as janelas e observou a noite sem olhar Jameson aos olhos.

 

         -Tive que improvisar um tubo -disse-. Para a transfusão.

         -Transfusão? -perguntou movendo os olhos para cravá-los em Roland, que permanecia em silencio em um canto da casa.-.Estão dizendo que sou...?

         Roland assentiu com a cabeça.

         -Sim. Sua vida mortal terminou ontem à noite, Jameson. Não pudemos fazer nada para salvá-la. A única...a única coisa que pudemos fazer por você foi lhe dar outra vida para substituir a que aquele maldito lhe roubou. Uma vida de... uma noite sem fim.

         Jameson fechou os olhos e amaldiçoou entre dentes. Escutou o pranto calado de Tamara e sentiu a mão de Rhiannon apertando a sua.

         -Não posso acreditar nisso -murmurou-. Deus, não posso acreditar nisso... Quem de vocês fez? -perguntou olhando-os a todos-. De quem é o sangue que corre agora por minhas veias? Seu, Roland?

         -De todos -respondeu Tamara suspirando-. Todos lhe demos isso, Jameson.

         -Maldição -murmurou ele-.Eu não queria isto. Ainda não. Talvez nunca. Maldição...

         -Já basta!

         Jameson fechou a boca de repente ao escutar a ordem de Rhiannon. Ela se levantou da cadeira e se inclinou sobre ele com os olhos entreabertos.

         -Demos-lhe a vida, Jameson. A alternativa era a morte. Deveria estar agradecido a nós. A menos, é obvio, que tivesse preferido a segunda opção. E nesse caso não é ainda muito tarde.

         -Rhiannon! -exclamou Tamara ficando em pé-. Como se atreve?

 

         -Claro que me atrevo, querida -respondeu ela se erguendo e jogando o cabelo para trás- E sinceramente, estou um pouco cansada de sua constante falta de gratidão.

         Jameson não podia acreditar que Rhiannon estivesse assim de zangada com ele. Mas estava.

         -Cuidamos de você quando foi um menino, Jameson - disse com voz tão suave como um tecido de seda negra-. Salvamos-lhe a vida em mais de uma ocasião, nos arriscando por você. Encontramos seu pai para você. E a única coisa que você tem feito é se queixar. Que o tratamos como um menino, que utilizamos o diminutivo para chamá-lo, que não lhe deixamos suficiente espaço...

Jameson se sentou na cama, apartou os lençóis e pôs para fora os pés.

         -E logo, mete-se em outra confusão, e enquanto dava o que podia ter sido seu último suspiro, invoca-nos para nos pedir ajuda -continuou Rhiannon-. Que diabos esperava que fizéssemos? Não podemos ressuscitar os mortos! Pediu-nos ajuda e lhe demos a única podíamos lhe dar. E continua se queixando.

         -Já é suficiente, Rhiannon -interveio Roland-. Não tem nem idéia do que Jameson está sentindo agora mesmo.

         -E você sim? - cutucou ela.

         -Sim -assegurou Roland assentindo com a cabeça-. Rhiannon, Tamara e você procuraram esta vida. Eu não. Vi-me forçado a ela quando você me encontrou quase morto naquele campo de batalha com a armadura cheia de sangue.

         -Eu também -disse Eric com doçura-. Quando Roland veio para mim naquela imunda cela francesa, na noite anterior a que teria de enfrentar a guilhotina.

         Eric olhou Jameson nos olhos.

         -Eu também estava aterrorizado ao ver no que me tinha transformado. E embora nos conheça bem, imagino que terá medo. Pensa que agora é um monstro, igual a nós.

         Jameson sentiu um nó na garganta.

         -Nunca hei de pensar que algum de vocês seja monstro, Eric. É só que... Tudo isto... Pensei que teria tempo de me acostumar à idéia -confessou sacudindo a cabeça-. Acreditei que seria eu quem decidiria quando estaria preparado para isto, se é que o estava alguma vez.

         Jameson ergueu a cabeça e cravou o olhar nos olhos furiosos de Rhiannon.

         -Tem razão, princesa. Estou me comportando como um imbecil, e o lamento. Se não tivesse sido por todos vocês agora mesmo estaria morto, e para isso estou ainda menos preparado.

         Deu-se conta de que Rhiannon relaxava. Sabia que gostava que se dirigissem a ela por seu título. Apesar de tudo, era a filha de um faraó.

         -Assim parece. E não pode ser mudado. Suponho que o melhor será que vá se acostumando à idéia.

         -Vai estar bem, Jameson -interveio Tamara-. Prometo-lhe isso.

         Ele levantou a cabeça, olhou-a aos olhos e pensou que não era tão mal. Seria inclusive mais fácil para atacar a DIP com suas novas faculdades. Flexionou a mão, perguntando-se quão forte seria agora. Talvez o suficiente para ir até aquele edifício do White Plains e pô-lo abaixo tijolo a tijolo. Ou para que aqueles malditos lhe dissessem qual era o objeto das últimas provas que lhe tinham feito. E depois poderia matá-los a todos.

         -Acredito que o primeiro que temos que lhe ensinar é a guardar seus pensamentos -disse Roland olhando-o aos olhos-. Mesmo quando são tão absurdos como esse, talvez seja melhor que todos os conheçamos.

         -Jameson, nos fale da besta que o atacou -pediu-lhe Eric aproximando-se-. Como era?

         -Era uma mulher -respondeu ele ficando de pé-. E não é preciso que lhe demos caça. Rendeu-se ante uma operação da DIP diante de meus olhos. Vendeu-se sem pestanejar. Acho que acreditou no que o cara lhe disse, que poderia voltar a convertê-la em humana.

         -Meu Deus! -exclamou Tamara-. Quem era, Jameson? Tinha-a visto alguma vez?

         -Acho que o agente sim sabia quem ela era, mas não me lembro bem -assegurou ele negando com a cabeça. Estava enlouquecida, acredito. Tinha a roupa feita farrapos. Parecia muito jovem, e acredito que estava à beira da inanição. Escutei-a chorar e por isso me aproximei. Pensei em trazê-la aqui para que a ajudassem.

         -E o faríamos -assegurou Tamara.

         -Se voltar a vê-la alguma vez, arrebentarei seu precioso pescoço.

         Jameson pensou no quão frágil ela lhe tinha parecido... Até que lhe cravou as presas na garganta. E logo recordou um pouco mais e teve que afastar o olhar dos outros.

         Céus, por que ninguém lhe havia dito o que era aquilo? Era normal reagir daquela maneira? Nunca em sua vida tinha estado tão excitado como quando ela o estreitou contra si e tomou-lhe o pescoço com a boca e os dentes. E ele o desejava. Desejava-a. E durante uns minutos pensou que estaria bem. Que só tomaria o suficiente para continuar viva e depois se deteria.

         Mas não se deteve. Tinha tentado matá-lo. E ele tinha continuado excitado até que caiu a seus pés. Céus.

         -Eu a matarei –murmurou.

         -A vingança é um sentimento inútil, Jameson -disse-lhe Tamara.

         -Tentou me matar. -Talvez não sabia.

         -Ou possivelmente simplesmente perdeu o controle -interveio Rhiannon-. Às vezes ocorre... Em determinadas circunstâncias.

         Jameson ergueu os olhos rapidamente e se perguntou se todos estavam lendo o seu pensamento. Decidiu não contar nada mais de seu ataque erótico. Tentaria não pensar mais nele, mas lhe pareceu muito mais difícil do que imaginava.

         Era o momento de mudar de assunto.

         -Escutem: Se os da Divisão estão indo à caça de vampiros para algum de seus experimentos, talvez seja o momento de sairem da cidade.

         -Exato -disse Roland-. Mas não se esqueça, amigo, de que agora você também é um vampiro. Jameson franziu o cenho. Maldição.

         -Embora você queira seguir adiante com seus planos de saber o que queriam de você, reconhecerá que é melhor esperar. Necessita tempo para se acostumar à sua nova natureza e para aprender a controlá-la.

         Nisso tinha razão.

         Roland sorriu. Sem dúvida tinha escutado aquele pensamento também.

 

         -De acordo -disse finalmente Jameson-. Iremos todos. Mas eu voltarei. Averiguarei o que querem de mim esses malditos, nem que seja a última coisa que faça em minha vida.

Todos pareceram preocupados exceto Rhiannon. Ela tinha um sorriso igual ao da Mona Lisa. Muito misteriosa. E Jameson se perguntou em que diabos estaria pensando.

         Subiram-me em elevador a uma habitação esterilizada e branca em que havia uma cama, uma cadeira e pouco mais. Como me ajudariam? O que era aquele experimento que devolveria minha humanidade?

         Voltei-me para perguntá-lo, mas me encontrei com uma sólida porta de aço que se fechou em meu nariz. Ouvi como jogavam os ferrolhos e senti crescer dentro de mim uma sensação de medo. Aproximei-me da porta e tratei de empurrá-la, mas não adiantou de nada. E deveria ter servido. Eu era forte, mais forte que qualquer ferrolho.       Disso estava certa.

         Mas aquele homem me tinha injetado algo. Uma droga, disse-me, para preparar meu corpo para o impacto de voltar a ser mortal. E devia ser isso que me tinha tirado as forças.

         E agora estava ali, presa. Era uma prisioneira. E recordei a voz de minha bela vítima me advertindo de que não confiasse neles.

         Deus, teria cometido um terrível engano?

         Percorri a habitação de cima abaixo. E quando por fim se abriu a porta, uma mulher de cabelo branco e aspecto amável me sorriu.

         -Olá -disse-. Sou a doutora Rose Sversky. Cuidarei de ti enquanto esteja aqui.

         -Por que me prenderam? -perguntei.

         -OH, querida, deviam ter lhe explicado isso - disse a doutora fechando a porta detrás de si -.Aqui há outros como você aos quais estamos tentando ajudar.

         A doutora sacudiu a cabeça e estalou a língua.

         -Mas alguns são uns monstros, sabe? Atacam todo mundo, inclusive aos de sua espécie.

         Acreditei imediatamente. Eu tinha sido vítima de um deles, e não tinha nenhuma dúvida de que todos eram como bestas.

         -Os ferrolhos são para mantê-los fora, querida, não para mantê-la aqui dentro. É para sua própria segurança, seriamente. Deviam ter-lhe dito.. E agora, se for para a cama -pediu-me com um sorriso tranqüilizador-, poderei começar o processo de convertê-la de novo em humana.

         -Quanto tempo ficarei aqui?-perguntei-lhe, obedecendo imediatamente.

         -Para ser sincera, digo que poderiam ser semanas -respondeu a doutora tirando uma agulha hipodérmica do bolso-.O processo consta de várias etapas, mas não tem do que preocupar-se.

         A ponta da agulha cravou-se no meu braço e durante uns segundos meu mundo se tornou escuro e nebuloso. Caí na inconsciência.

         Quando despertei levava posta uma bata de hospital. Tinham-me banhado e tinha o cabelo limpo e escovado. Sentia-me estranha, como se me tivessem violado.     Perguntei o que teria feito comigo aquela doutora tão amável, mas não tinha como saber.

         Passado um momento se voltou para abrir a porta e entrou um homem jovem e forte que me deu um copo com um líquido vermelho e partiu sem dizer nenhuma palavra. Como se eu fosse um objeto ou um mascote a que tinham que alimentar. Bebi aquele preparado frio que me deram, mas lhe faltava a calidez do sangue dos vivos.

         Mas não queria aquele calor. Não queria devorar aos inocentes. Queria voltar a ser mortal, recuperar minha antiga vida. Assim bebi e rezei para não ter que passar muito tempo naquele lugar.

         Hilary Garner escutou o relatório do Rose Sversky e tentou fazer um gesto de cínica indiferença. Não estava muito segura de havê-lo conseguido, mas o tentou.

         -Fertilizamos com êxito um único óvulo da criatura. Só um. Espero que a implantação se desenvolva sem problemas, porque não acredito que possamos levar a cabo outro intento. Teremos que conseguir outras criaturas ou duas mais antes de obter êxito.

         Fuller assentiu com a cabeça e olhou de esguelha a Hilary, como se esperasse algo. Ela manteve sua máscara inexpressiva.

         -A implantação terá lugar esta noite -disse-. Como está ela?

         -A sua ironia sempre me surpreende, senhor Fuller -respondeu a doutora com seu sorriso amável. Mas desta vez se superou. A criatura é virgem. Além disso, colabora completamente. Ainda acredita que voltará a ser mortal. Não nos dará nenhum problema.

         -Não esteja tão segura disso, Sversky -disse Fuller-. Nos dará muitos problemas quando souber que está grávida. Será melhor que lhe prepare uma das celas de máxima segurança.

         Estava ficando louca pouco a pouco. Não tinha livros. Nem televisão. Nem rádio. Permitiam-me tomar banho de noite. E minhas comidas líquidas me eram trazidas por uns indivíduos vestidos de branco que não me falavam. Alimentava-me através de copos, não de corpos quentes. Comecei a suspeitar que na bebida havia algum tipo de tranqüilizador, porque já não experimentava aquela força vampírica que sentia antes.

         Devia havê-lo suspeitado. Devia ter visto os sinais. O desgosto que refletiam os olhos daqueles serventes. Olhares que se cruzavam. Quando me queixava de alguma das condições sob as quais vivia, diziam-me que não poderiam me ajudar a recuperar minha forma mortal se não cooperasse com eles. Assim o fiz.

         Tinha sido tão estúpida... Tão incrivelmente estúpida. ..

         Não tinha nem idéia do que me faziam. Mas logo se fez aparente. Passaram meses antes que compreendesse o que estava ocorrendo. Meu ventre começou a avultar-se, e mais que isso, podia sentir uma força vital dentro de mim. Notava-a. Um ser independente de mim, crescendo em meu interior. Estava esperando uma criança, compreendi assombrada.

         E quando aquela certeza caiu sobre mim golpeei a porta de minha cela gritando. Mas ninguém veio me dizer por que me tinham feito aquilo.

 

         Deixei-me cair no chão só quando senti que a luz do dia pintava a terra e me roubava lentamente a consciência. E aquela vez, quando despertei, estava em um lugar diferente. Estava fechada em uma caixa escura, parecida com um ataúde. O pânico se apoderou de mim e golpeei a tampa com os punhos, gritando até que fiquei afônica.

           Finalmente a tampa se levantou. Saí a toda pressa de minha prisão, mas três homens fortes me agarraram. Gritei e chutei. Perguntei-lhes, supliquei-lhes que me dissessem por que me tinham feito aquilo, mas não serviu de nada. Voltaram a injetar-me aquela droga já familiar, retornei ao patético estado de debilidade no qual passava as horas e então me soltaram. Deixei-me cair ao chão e me sentei. Pesavam-me os olhos, mas examinei a habitação em que estava. As paredes brancas tinham desaparecido. Estava em uma cela em que logo que havia luz. Um dos homens me obrigou a me pôr de pé e me levou até a parede do fundo enquanto outro me punha umas cadeias nos pés e depois nos pulsos. Estava encadeada à fria parede de pedra que tinha à costas.                                           

         Puseram-me na mão um copo daquele líquido repugnante. A cadeia era suficientemente larga para me permitir beber. Mas não o fiz. Fiquei olhando fixamente o copo e neguei com a cabeça.

         -Não -disse-lhes elevando o queixo em gesto desafiante-. Não beberei. Prefiro morrer do que continuar vivendo nesta prisão. Soltem-me!

         -Se não se alimentar perderá o bebê - disse um dos homens depois de soltar uma gargalhada-.E não quererá matar de fome a seu próprio filho, não é?

         Eu engoli em seco. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Eu não deixaria morrer meu filho. E eles sabiam.

         Bebi, porque não tinha mais opção. E assim vivi. Vivi graças a aquele líquido adulterado com droga que me fazia permanecer suficientemente fraca para não poder romper minhas cadeias, nem lutar contra meus captores. Permanecia toda a noite encadeada ao muro, mas durante o dia era muito pior. Cada madrugada, meus vis carcereiros me desatavam e me encerravam naquela caixa com forma de ataúde. A maioria das vezes caía a tarde e eu despertava metida naquele estreito sarcófago.          Gritava e chutava, e os escutava rir quando passavam ao lado.

         Aprendi algo naqueles meses de cativeiro. Quando comecei a sentir que a criança ia crescendo em meu ventre, comecei a lhe cantar com uma voz que a mim mesma surpreendeu por sua qualidade sobrenatural e sua pureza. E à medida que passava o tempo, fui me dando conta de que amava ao bebê que levava dentro. Estava convencida de que era uma menina, e sabia que me tentariam tirar isso assim que nascesse.

         De vez em quando, Hilary descia às celas de máxima segurança que havia no porão e observava a aquela moça de olhos tão abertos. E em uma ocasião, quando a experiência estava chegando a seu fim, escutou algo que lhe tocou o coração. Escutou-a cantar. Com o canto mais puro e angélico que tinha escutado em sua vida.

         Ao notar sua presença, a jovem, que se chamava Angelica, elevou a vista para olhá-la com aqueles muito belos olhos violeta e deixou de cantar de repente. Hilary foi incapaz de apartar o olhar. Estava tão só e tão assustada... Era horrível o que a organização estava fazendo com ela.

         «E se tento ajudá-la, me matarão», pensou. «Desaparecerei igual a Tamara».

         Mas o certo era que Tamara não tinha desaparecido. Diza-se que fazia anos que ela se transformara em um deles. Seria verdade?

          Hilary espantou aquele pensamento e voltou a olhar à mulher da cela. Em seus olhos continuava refletida uma súplica. E Hilary soube que tinha que ajudá-la.

             Fechou os olhos e se deu a volta. Era-lhe difícil, entrar no escritório de Fuller para a reunião daquela noite, mas tinha que fazê-lo. Faria um esforço.

             E isso fez enquanto intervinha a doutora Sversky.

             -Não podemos fazer uma cesárea -disse ao medico-. Sangram como os hemofílicos. Certamente a mãe sangraria antes de que pudéssemos tirar o menino, e então os perderíamos a ambos.

             -Então, que seja normal -sugeriu Fuller enchendo seu cachimbo de tabaco enquanto Hilary tomava notas.

           -Com sua permissão, senhor -interveio Stiles-. Já sabe que as dessa espécie sentem a dor como se fosse multiplicada por mil.

             -E a mim o que me importa -respondeu Fuller.

               -Precisa estar tranqüila -assinalou Rose Sversky-. Com a força sobre-humana que tem, se empurrar poderia esmagar o bebê-. Daremo-lhe uma dose de droga superior a que lhe pomos normalmente. O suficiente como para que esteja semi-consciente quando lhe provocarmos o parto.

         -E o que acontecerá com o bebê? -perguntou Hilary em um sussurro.

         -Será nosso mais prezado objeto de investigação -explicou Fuller-. Senhorita Garner, este é o primeiro. O único. Nascerá vampiro, mortal ou será uma espécie de mutante? Aprenderemos mais dessa criatura que de... Senhorita Garner?

         Observava-lhe o rosto. O melhor seria que saísse dali rapidamente, antes de perder o controle e tornar a chorar diante de todos. Tratou de compor a expressão e ficou de pé muito devagar.

         -Sinto muito, mas terão que me desculpar um instante -disse voltando-se para a porta-. Estou um pouco mal do estômago.

 

         Era uma mescla de dor, pânico e medo. A primeira droga que me administraram me deixou meio paralisada. E a segunda trouxe consigo a dor. Não podia pensar enquanto me tinham atada à maca até o elevador. Levaram-me a uma sala em que havia gente com bata branca, máscara e equipamento médico. Não entendia o que diziam de tão enjoada estava. Doía-me, isso era só o que sabia, doía-me tanto que pensei que o corpo me ia partir em dois. E gritei.

         E todas aquelas batas brancas me olhavam com olhos curiosos. Só havia uma que parecia diferente, aquela mulher de pele escura e olhos de gazela. Tinha-a visto com antecedência. Tinha os olhos mais amáveis que eu tinha visto em minha vida. Parecia tão horrorizada detrás daquela máscara como eu. Estava a meu lado, me acariciando o rosto sem falar. Então aquela mulher olhou aos pés da maca, onde estavam outros, e eu segui seu olhar. E vi meu bebê. A mulher que eu tinha considerado amável a tinha nos braços. Era um pedacinho de carne rosa inquieto e tinha o cabelo negro como a asa de um corvo.

 

         -É uma menina -disse a mulher de olhos de gazela inclinando-se para mim-.E parece sã.

         -Por favor... -sussurrei eu estirando os braços para minha filha-.Me ajude... Ajude-a...

         A mulher me olhou e assentiu levemente com a cabeça, sem dizer nada, antes de seguir às batas brancas, que saíram rapidamente pela porta com minha filha em braços. Eu gritei de dor ao vê-los desaparecer com ela.

O anúncio classificado dizia assim:

Tamara, lembra-te de mim? Fazem dezoito anos. Você pediu frango e eu frutos do mar. Ambas bebemos vinho. Muito. E aquele bolo de queijo foi mais do que pudemos resistir. Muito colesterol... Poderia me custar a vida. Me chame. 374-555-1092.

         A ninguém teria parecido suspeito, mas a Tamara sim. Eric parecia preocupado.

         -De onde o tirou? -perguntou-lhe ela no interior daquela grande casa que tinham comprado aos subúrbios de San Diego.

         Jamey tinha retornado para pôr suas coisas em ordem. Vender o bar e o carro e comprar outro com outro nome. Também estava tentando esconder seu dinheiro para que não lhe seguissem a pista. Agora teria que viver como os outros. Escondido.

         -Uma vampiresa chamada Cuyler o viu, reconheceu seu nome, seguiu-nos a pista e o enviou. Pensou que poderia significar algo para você. É?

         -É obvio -assegurou Tamara-. É da Hilary Garner. Trabalhamos juntas na DIP Recordo aquela noite. Retornei para casa só. Foi a noite em que quase...

         -Prefiro não recordar o que esteve a ponto de lhe ocorrer aquela noite -disse Eric aproximando-se para lhe acariciar o cabelo-. Isto poderia ser uma armadilha, Tamara. Hilary continua trabalhando ali.

         -Não -respondeu ela negando com firmeza-. Hilary não faria algo assim. Além disso, olhe a última frase: «Poderia me custar a vida». Quer que saiba que é algo urgente. Tenho que chamá-la, querido.

         Ele inclinou a cabeça e Tamara se alegrou de que por uma vez não a contrariasse.

         -Estava temendo que dissesse algo assim -respondeu com um suspiro-. Instalarei algo no telefone . Assim não poderão localizar a chamada.

         Ela sorriu e lhe deu um beijo.

         Desde sua transformação, Jameson estava aprendendo. Provando sua energia e sua força. Pondo à prova suas capacidades mentais. E estava muito satisfeito com seus progressos. Podia correr quase tão depressa como Eric e subir e saltar igual a Roland. Podia falar com qualquer deles sem pronunciar uma palavra. Aquele era certamente o aspecto mais surpreendente de sua nova natureza.

         Pensou que ia sentir falta de uma boa comida mas, para sua surpresa, não foi assim. Seus outros sentidos se tinham afinado de tal modo que encontrava um prazer sensual em quase tudo.

         Lamentava não ter tido a oportunidade de completar seu sonho de ter outra vida mortal normal. Uma vida com uma família, uma esposa, talvez filhos. Mas tampouco teria tido possibilidades de fazê-lo. Sempre tinha sabido que os poucos indivíduos que levavam consigo o antígeno da beladona não viviam muito tempo. Muito poucos ultrapassavam trinta anos. Jameson tinha trinta, e embora não tivesse experimentado nenhum sintoma, certamente não faltaria muito tempo para que começasse. Assim, sua raiva inicial contra seus mais queridos amigos tinha ficado reduzida a nada.

         Entretanto, a fúria que sentia contra a mulher que o tinha atacado permanecia no vermelho vivo.

         Tinha-o atacado, alimentou-se dele sem seu consentimento e tinha estado a ponto de matá-lo. Como gostaria de voltar a encontrar-se com aquela vampira andrajosa... Agora era forte, mais do que ela seria nunca, porque lhe tinham derramado sangue de um autêntico ancestral, concretamente de Rhiannon.

         Embora certamente nunca pudesse dar vazão àquela fúria. Ela estaria morta, provavelmente. Jameson sabia muito bem que as vampiras não sobreviviam muito tempo em cativeiro. Sobretudo porque seus captores não lhes encontravam utilidade quando terminavam suas experiências.

         Para sua estranheza, Jameson não encontrava prazer ao imaginar morta a aquela vampira magra e pálida.

         -Jamey, preciso falar com você -disse Tamara entrando em casa.

Não tinha deixado de chamá-lo Jamey, e tinha perdido toda esperança de que deixasse de fazê-lo alguma vez.

         Jameson franziu o cenho e a olhou nos olhos. Tamara teve que agarrar-se ao armário ao entrar.

         -Céus, o que há? -perguntou ele ajudando-a a sentar-se em uma cadeira

 

         -Jamey...meu Deus, não sei nem como lhe dizer isto -começou a dizer Tamara-. Tem que ter calma. Se for daqui cego de fúria, só conseguirá será que o matem, e isso não ajudará em nada. Isto é... Isto é horrível. Talvez não seja verdade. Mas se for, temos que entrar em ação. Com cabeça fria, planejando bem e com extrema cautela.

         -Não tenho nem idéia do que está falando, Tamara -disse Jameson entreabrindo os olhos.

         Ela se umedeceu os lábios e fechou os olhos durante um longo instante.

         -Quando os da Divisão o agarraram a última vez... Tomaram amostras de seu sêmen?

         -Por Deus, Tamara! -exclamou ele voltando-se envergonhado para lhe dar as costas-. por que me pergunta algo isso?

         -Tenho que sabê-lo. Lembra-se da Hilary, minha amiga que trabalhava na Divisão? Contou-me que lhe tiraram sêmen, Jamey. Contou-me que o congelaram porque... Já os conhece. Jamey. Queriam saber o que ocorreria se uma vampira tivesse um filho com um dos escolhidos.

         -Está-me dizendo que pretendem fecundar uma mulher com minha semente? -perguntou ele, virando-se para olhá-la.

         Tamara mordeu o lábio inferior. Tinha os olhos cheios de lágrimas.

         -Não, meu querido. Estou lhe dizendo que já o fizeram -assegurou, colocando as mãos sobre os ombros do Jameson-. A semana passada uma das vampiras que têm presas lá deu a luz a um bebê. Sua filha, Jameson. É uma menina

         -Não! -exclamou ele afastando-se-. Não, isso é impossível.

         -Sinto muito -sussurrou Tamara-. Mata-me ter que dizer isto, mas Hilary diz que é verdade. Eles... eles têm a sua filha.

         -Matarei esses malditos! -exclamou Jameson-.Juro que matarei até o último deles. Avançou pela habitação e abriu a porta, mas ao fazê-lo tropeçou com uma sólida parede.

         Roland, Eric e Rhiannon estavam ali lhe bloqueando o caminho. Jameson tentou passar, mas Roland lhe prendeu as mãos para impedir-lhe

        

         -Jameson, espere e escute...

         -Não! Estou farto de escutar. Se o que disse Tamara é certo, utilizarão a essa menina, a minha filha, para seus experimentos. Rhiannon, você foi uma vez sua prisioneira e sabe do que são capazes.

         -Claro que sei -respondeu ela-. E estou de acordo em que esses animais devem pagar, mas temos que ter em conta antes várias coisas.

         -Montaremos um dispositivo de resgate para recuperar a menina -interveio Eric-. Mas há algo que deve estar consciente antes de nos pormos em marcha. Tem que estar preparado, meu amigo. Não sabemos que tipo de menina vamos encontrar. Se será mortal Ou... Ou...

         -Ou vampira? -interrompeu-o Jameson olhando-o aos olhos-. Meu deus, Eric, não pode ser... Um vampiro recém-nascido... É muito horrível para expressá-lo com palavras. Uma menina que se alimentará de sangue? Que alguma vez crescerá? Me escutem todos -pediu-lhes afastando-se um pouco-. Nunca lhes pedi nada, mas agora lhes rogo, suplico-lhes, que me deixem ir sozinho a procurar a minha filha.

         -Não! -exclamou Tamara elevando a cabeça de repente.

         -É minha filha -insistiu Jameson-. Minha responsabilidade. Por favor, já sou um dos seus. Não é necessário que continuem me protegendo. Se necessitar, juro-lhes que os chamarei.

         Tamara ficou tensa um instante, secou os olhos e finalmente assentiu com a cabeça.

         -De acordo. Vá. Estaremos esperando.

         -Há muitos dos nossos, Jameson -disse Roland-. Outros poderão ir em sua ajuda. Damien, o maior de todos nós, o primeiro. Acudirá rapidamente. E sua companheira, Shannon. E muitos outros.

         Jameson assentiu com a cabeça. Uma filha recém-nascida. Sua filha estava esperando em algum lugar que seu pai fosse a resgatá-la. Seu pai. Jameson fechou os olhos ante a enormidade daquela palavra. Seu pai.

         Quando deu a volta para partir, uma única lágrima lhe escorreu lentamente pela face.

         Regaram-me com uma mangueira como se fosse um animal e logo devolveram à minha cela. Uns homens me levantaram na maca e me deixaram cair sem nenhum cuidado na caixa com forma de ataúde em que estava condenada a passar meus dias.

         Então me dei conta vagamente de que não tinha amanhecido. Ainda era noite fechada, e o sonho não me chegaria até várias horas depois. As cadeias da parede eram mil vezes preferíveis a estar fechada naquela caixa.

         -Por favor -disse aos dois homens que me tinham metido na minha prisão-, ainda não é dia.

         Não me responderam. Meteram-me no ataúde e se dispuseram a fechá-lo. Eu gritei, esperneei, tentei tirar aquela tampa pesada que me mantinha prisioneira, mas meus esforços foram inúteis e exaustivos. Só podia me limitar a ficar ali naquela estreita escuridão. Lentamente fui me dando conta da espantosa verdade. Aquela gente me tinha utilizado e já não tinham motivos para me manter com vida. E soube com uma certeza absoluta que a tampa daquele ataúde não voltaria a abrir-se jamais.

         A bata branca tinha pertencido ao homem que agora ocupava um espaço no rincão mais escuro da sala de suprimentos. E também o cartão de identificação.          Jameson sabia que não era o plano perfeito, mas não estava tão mal. Lendo-lhes o pensamento, saberia quem suspeitavam dele e os quais acreditariam nas suas histórias. Estava nos corredores do quarto porão, o último lugar em que lhes ocorreria encontrar um vampiro. Sabia que os prisioneiros estavam nos porões, e que quanto mais perigoso fossem, mais abaixo estariam. Jameson empurrava um carro cheio de material cirúrgico para dar mais credibilidade a seu disfarce. Escondida dentro do carro havia outra bata branca. Sabia que havia uma saída traseira que se utilizava para tirar os corpos dos que morriam ali. E um elevador que levava diretamente para aquela saída. E um grande forno crematório para o qual se abria aquele elevador.

         Cruzou com uma jovem de bata branca e se deteve ao sentir seu olhar sobre ele, um olhar de aprovação a seu aspecto físico, o início de uma atração.

         -Desculpe, poderia me ajudar? -perguntou-lhe Jameson-. Estou um pouco perdido.

         -O que está procurando? -perguntou ela com um sorriso, reparando em seu cartão de identificação.

         -A mãe.

         A mulher franziu o cenho e em sua mente surgiu a desconfiança. Ele ouviu claramente seus pensamentos. « Para que quererá ver essa? Além disso, certamente já estará morta».

 

         -Disseram-me que lhe tirasse algumas amostra e depois levasse seus restos aos forenses -acrescentou rapidamente.

         -Ah -respondeu a jovem mais tranqüila-. Está no último porão. Cela de isolamento 516-S. -Obrigado.

         Jameson e avançou pelo corredor para os elevadores. Cruzou com mais gente, mas ninguém lhe deu atenção. O quinto porão era como uma masmorra. E Jameson soube em seguida que ali era onde levavam aos vampiros quando terminavam de utilizá-los.

         Encontrou a cela que procurava. Naquele porão não havia guardas. Ao que parecia achavam que não eram necessários. Jameson agarrou o trinco e, utilizando só uma mínima parte de sua força, abriu-a, rompendo as fechaduras no processo.

         Entrou e segurou a respiração ao ver uma caixa com aparência de sarcófago ao fundo da cela. Não havia nenhum bebê à vista e, por sorte, tampouco nenhum ataúde infantil. Jameson se aproximou da caixa e partiu os ferrolhos da tampa como se fossem galhos secos.

         Ela estava ali deitada, quieta e pálida.

         -Você! -exclamou olhando-a com surpresa.

         -Por favor -sussurrou ela abrindo aqueles olhos violeta-. Mi... minha filha.

         Por que diabos tinha que ser ela? Que giro do destino tinha provocado aquela ridícula ironia?

         -Onde está a menina? -inquiriu ele, agarrando-a nos ombros-. Onde?

         -Eles... a levaram -sussurrou com voz débil.

         -Aonde, maldita seja!

         Ela abriu mais os olhos ao escutar a raiva em sua voz. E então o olhou fixamente, como se o estivesse vendo pela primeira vez.

 

         -Está vivo -disse com um suspiro.

         -Não graças a você, certamente. E agora, maldita seja, onde está a menina?

         -Não sei. Pressinto que já não está neste edifico.

         Jameson soltou um palavrão e começou a dar voltas em círculo.

         -Por favor -suplicou a mulher-. Não... não me deixe aqui.

         -Quer que te ajude? -perguntou Jameson depois de soltar uma gargalhada amarga-. Eu, o homem mortal ao qual esteve a ponto de assassinar? Deixou-me seco, à beira da morte, e foi com esses maditosl. É culpa sua que tenham posto suas garras em minha filha, e merece tudo o que...

         -Sua filha?

         Jameson deixou de falar e se aproximou da caixa para observar a aquela mulher patética e ao mesmo tempo tão bonita.

         -Sim -respondeu com doçura-. Minha filha. Estive prisioneiro aqui, como você agora. E utilizaram meu sêmen para fecundá-la. Ela é minha menina. E a encontrarei.

         -Eu... posso ajudar -assegurou a jovem fechando os olhos e exalando um suspiro de dor-. Por favor, me ajude a sair deste ataúde.

         Jameson se aproximou e rodeou seu corpo magro com seus braços para tirá-la. Mas quando pôs-lhe os pés no chão lhe falharam as pernas.

         Jameson a ajudou, e ao fazê-lo despertaram nele lembranças desagradáveis da última vez que a havia segurado assim. Do desejo que sentiu quando ela lhe pôs a boca no pescoço. Naquele tempo ela estava desesperada. Faminta. E agora parecia estar mais.         Jameson esperou, tenso e espectador, com os braços lhe rodeando a cintura para evitar que caísse, e com o corpo apertado contra o seu. E sentiu seus lábios lhe roçando a pele do pescoço.

         -Me diga como pode me ajudar a encontrar a minha filha.

         -Minha filha -sussurrou ela sem mover-se-. Existe... Existe um vínculo entre nós dois. Inclusive antes que o bebê nascesse sabia que aspecto teria e falava com ela. Estou convencida de que me ouvia.

         -Claro que sim -disse Jameson sem acreditar nenhuma palavra do que estava ouvindo.

         -Podia senti-la -continuou a jovem elevando a vista para olhá-lo-. Fui consciente do momento em que a tiraram do edifício. E sei que voltarei a senti-la quando estiver perto dela.

         Jameson levantou-lhe o queixo com uma mão e observou seu rosto para averiguar se estava dizendo a verdade. E logo escaneou sua mente, embora pensasse que não encontraria nada ali. Guardaria seus pensamentos se queria enganá-lo. Mas para sua surpresa, viu que tinha a mente completamente a descoberto.

         « Tem que me tirar daqui! Sim, é um monstro, como o outro. Mas é melhor que morrer aqui. Fugirei dele assim que deixe atrás destes muros e utilizarei este laço psicológico para encontrar eu mesma a minha filha. Separa-la-ei deles... E dele».

         Jameson inclinou ligeiramente a cabeça e a estudou. Ficou impressionado pela raiva que desprendiam seus olhos. Fome. Estava faminta. E pensava que ele era um vil monstro.         Curioso, porque se pensava que os vampiros eram monstros, deveria ser consciente de que ela também era um deles.

         Ela o odiava. Odiava o que Jameson era. Odiava a todos os de sua espécie. Era uma criatura traidora e assassina. E queria separar a sua filha dele.

         Mas ele necessitava dela para recuperar a menina. Senão já se ocuparia mais tarde.

         Ela deu um só passo e caiu no chão. Jameson olhou, ali estirada, tão indefesa, e fechou muito devagar os olhos. Sabia perfeitamente o que era que teria que fazer. Não podia tirá-la nos braços daquele lugar sem arriscar-se a ser visto. Tinha que usar uma bata como a que ele levava e sair por seus próprios pés. E não podia fazê-lo naquele estado de debilidade.

         Jameson se agachou e a estreitou nos braços. Logo lhe voltou o rosto para seu próprio pescoço enquanto lhe sujeitava a nuca com a mão. Compartilhar o sangue com outro vampiro... Tinham-lhe advertido do laço que aquilo podia criar. A atração que despertaria. O desejo que se agarraria às profundidades de sua alma como um vício. Mas não havia outra solução.

         Ela afastou o rosto.

         -Sabe tão bem como eu que isto é necessário -disse-lhe Jameson-. Faça.

Ela abriu a boca e afundou as presas em sua carne. Jameson deixou escapar um suspiro profundo. Sentiu como sua boca trabalhava nele, vacilante ao princípio e cada vez mais rápido e mais forte à medida que a luxúria de sangue se apoderava dela. Sentiu cada movimento de seus lábios, cada movimento de sua língua faminta. E ele mesmo sentiu também o desejo, que o debilitou. Caiu de joelhos, mas continuou segurando-a contra seu pescoço. Roland lhe tinha advertido da relação intensa que se desenvolvia entre a sede de sangue e o desejo sexual entre os de sua espécie. Mas aquilo era mil vezes mais forte do que tinha experimentado com ela antes. Não esperava sentir aquela necessidade de lhe fazer o mesmo que ela fazia nele. De tomá-la em todos os sentidos possíveis até que...

 

         Ela levantou a cabeça, piscou e olhou a seu redor com gesto confusa. Jameson não lhe havia dito que parasse. Tinha-o feito por própria iniciativa. E a julgar pela expressão de seus olhos, pensou que tinha experiente o mesmo desejo que ele.

         Jameson engoliu em seco, ficou de pé e a deixou no chão. Ainda tremia de desejo. Já não tinha o rosto pálido, mas sim pouco a pouco se ia insuflando de uma cor saudável. Seus olhos também pareciam mais brilhantes a cada segundo que transcorria e seu cabelo apagado adquiriu um novo fulgor.

         Céus, que linda era.

         -Me... sinto-me mais forte -sussurrou com o impacto do súbito desejo ainda refletido nos olhos-. Obrigado.

         Estava desconcertada. Não tinha nem idéia do que tinha ocorrido entre eles. Jameson tirou do carro o avental de laboratório e a ajudou a vesti-lo. Logo lhe entregou também uma máscara cirúrgica e um gorro de papel elástico.

         -Isto servirá -disse depois de esconder-lhe o cabelo dentro-.Vamos.

         Jameson a tirou dali. Saíram da cela e entraram pelo corredor. Apertou-lhe a mão por alguma razão que não soube explicar. Talvez para acalmar seu medo. Estava fria e tremia.

         -Não sei como se chama -disse ele com doçura-. Que ironia, não é? Temos um filho em comum e não sabemos nem o mais básico um do outro.

         -Meu nome é Angelica -sussurrou ela.

         Angelica. Anjo, pensou Jameson. Um anjo sombrio, assustado e solitário.

         -Eu sou Jameson.

         Chegaram ao elevador que levava a forno crematório. A essas horas da noite não devia haver ninguém ali. Entraram e as comportas se fecharam atrás deles.

         -Lamento o lhe que fiz -sussurrou ela-. É culpa minha que agora seja um...

         -Um quê, Angelica? Um monstro? Isso é o que acha que sou, não é?

         Ela o olhou enquanto as comportas voltavam a abrir. -decidi que estará a meu lado até que encontremos a nossa filha. Como minha prisioneira se for necessário -assegurou Jameson guiando-a pelo corredor-Mas não se preocupe. Não sou nem por sonho tão monstruoso como você parece acreditar.

 

         Fui com ele, mas só porque não tinha outra opção. Ainda estava débil, e era óbvio que ele era muito mais forte que eu. Eu não sabia quase nada de minhas próprias habilidades nem dos limites de meu poder. Só sabia que podia morrer se me expusesse ao fogo, como tinha ocorrido a meu criador. E que a fome me deixava débil. Assim fui com aquele vampiro que assegurava ser o pai de minha filha, mas jurei a mim mesma em silêncio que assim que estivesse mais forte, fugiria. Se ele podia me ler o pensamento, que o lesse. Eu fugiria dele à primeira oportunidade.

         Eu tinha medo. Quando pus a boca sobre sua pele, uma loucura selvagem se deu em mim. Uma paixão que ardia em si mesma como um inferno. Envergonhavam-me os sentimentos o que aquele homem despertava em mim, e o que mais me assustava era que tinha a impressão de que ele sentia o mesmo.

         Tinha que escapar. Mas enquanto isso, aproveitaria o tempo. Utilizaria-me dele para recuperar forças e descobrir o alcance de minhas faculdades. Assim poderia resgatar a minha filha da garras daqueles animais. Jameson me levou para aquela grade alta e provavelmente eletrificada que rodeava a prisão. Nada mais de vê-la, todas minhas esperanças se desvaneceram rapidamente.

         -E agora o que? -perguntei me voltando para olhá-lo.

         -Agora -disse virando-se para mim e me tirando a máscara e o gorro-, agora temos que saltar. -Isso é impossível.

         -Não tem nem idéia de quão forte é, não? Quanto tempo faz que se transformou, Angelica?

 

         Eu encolhi os ombros e voltei a me virar para a grade, ignorando sua pergunta.

         -Envolva-me os ombros com seus braços -ordenou-me.

         Eu duvidei um instante, mas obedeci. Jameson me passou o braço pela cintura.      Seus dedos apertavam meu ventre com firmeza enquanto me atraía para si. E voltei a experimentar aquela onda de desejo. O que era aquela loucura?

         -E agora... Salta! -disse agachando-se comigo.

         E isso fiz, igual a ele. Estive a ponto de rir ante aquela idiotice. Esperava saltar um metro no ar e voltar a cair onde estava, mas saímos disparados para o céu da noite como dois foguetes. A malha da grade apareceu ante meus olhos como desfocada, e depois a ultrapassamos vários metros. E quando começamos a descer para o outro lado, senti que o coração me parava pelo medo. Vi o estacionamento a movendo-se debaixo de nós e escondi o rosto no ombro do Jameson, muito assustada para voltar a olhar. Ele me estreitou contra si com o braço que tinha livre. Precipitamo-nos para o chão, e eu pensei que íamos nos machucar muito diante do impacto.

         Mas meus pés tocaram a terra e depois o fizeram meus joelhos, seguidos do resto. Meu corpo absorveu o impacto sem dor. Cambaleei e caí de costas, me soltando de Jameson, o que foi ao mesmo tempo um alívio e uma desilusão.

         Quando se aproximou para me ajudar a levantar, eu só tinha olhos para a grade que acabávamos de saltar sem muito esforço. Não podia acreditar nisso.

         -Não tinha nem idéia, não é, Angelica? -perguntou olhando-me nos olhos-, Quem lhe fez isso? Que tipo de vampiro foi capaz de transformá-la e logo deixá-la sozinha?

         -Está-me perguntando coisas que não lhe concernem -respondi-lhe elevando o queixo.

         Jameson piscou, mas terminou por assentir com a cabeça e deixou de esperar minha resposta. Tirou-me dos braços e me levou até o estacionamento, no qual havia um carro negro nos esperando entre as sombras da noite.

         -Como encontraremos a nossa filha? -perguntei-lhe uma vez dentro-. Por onde começaremos?

         -Averiguaremos quem sabe -respondeu Jameson ligando o motor-. Os faremos prisioneiros e os interrogaremos um por um.

         -Nunca nos dirão isso -disse eu negando com a cabeça e sentindo que perdia toda esperança.

         -Farão -respondeu ele cravando os olhos na estrada enquanto punha o carro em marcha-. Farão se quiserem continuar vivendo.

         Jameson tratou de concentrar-se na condução, mas a curiosidade que sentia pela mulher que tinha ao lado aumentava a cada segundo. Tinha-lhe perguntado sobre suas origens, mas lhe tinha negado a resposta com brutalidade.

         Entretanto, não podia evitar perguntar-se por ela. Que classe de mulher teria sido em vida? Quando se transformou e quem foi o artífice? E por que detestava assim a sua própria espécie?

         Ela estava recostada no assento do passageiro, com a cabeça reclinada contra o couro e os olhos fechados. Mas não dormia. Estava sentindo. Jameson deixou que sua mente entrasse sigilosamente em seus pensamentos e percebeu que estava totalmente concentrada naquela conexão que a avisaria quando estivesse perto de sua filha.

         Tinha bebido muito pouco dele, e Jameson se dava conta agora de que não era suficiente. Estava esgotando suas energias com aquela busca mental.

 

         Estava empalidecendo e tremia ligeiramente. Jameson queria desprezá-la. E o faria.          Ela tinha tentado de assassiná-lo. Tinha permitido que seus velhos inimigos a utilizassem, e por sua culpa agora tinham a sua filha. A única filha que teria.

         -Angelica -disse tratando de mostrar-se autoritário, e não preocupado-. Já basta. Não está o suficientemente forte.

         Ela abriu os olhos muito devagar e piscou enquanto o olhava, como se despertasse de um sonho muito profundo. Logo entreabriu os olhos.

         -O que importa o quanto forte eu esteja? Você me detesta, lembra?

         -Isso é algo difícil de esquecer -respondeu Jameson-.E minha única preocupação é que não gaste toda sua energia e morra antes de encontrar a minha menina.

 

         Nos olhos da Angelica despertou uma fúria que o pegou de surpresa.

         -Que fique clara uma coisa, vampiro -espetou-a com raiva-. Nunca terá essa menina inocente. Eu sou sua mãe, e a criarei de uma maneira moral. Não permitirei que nem você nem os seus a corrompam com sua maldade. Se a quiser... Terá que me matar -concluiu fechando os olhos como se o esforço de falar a tivesse deixado seca.

         -Angelica, você é um dos meus...

         -Não -respondeu ela apartando a vista para olhar pelo guichê-.Eu nunca serei como você.

         -E como pode estar tão segura disso, se não ter nem idéia de como sou? -perguntou tomando a estrada que levava a propriedade de Eric em Long Island.

         -Sei como é -respondeu ela em um sussurro ainda mais débil.

         Angelica estava recordando algo que lhe provocava um nó no estômago e lhe acelerava o coração. Um beco escuro e um homem incrivelmente forte que a sujeitou e...

         -Já basta! - gritou voltando-se para olhá-lo com fúria-. Deixe de invadir minha mente, maldito seja! - Tinha todo o direito de lhe ordenar aquilo. Jameson sabia que não devia ler a mente de ninguém sem seu consentimento, mas tinha tanta curiosidade... E aquelas lembranças aterradoras que tinha espionado faziam-no sentir ainda mais.

         -Não simpatizo com você, Angelica -disse suspirando-. Não é nenhum segredo. Mas se for ajudar a encontrar a nossa filha terá que aprender algo mais de sua própria natureza. E suponho que o único que pode ensiná-la sou eu.

         -Não quero aprender nada que você possa me ensinar -respondeu apoiando-se no encosto.

         -Ah, não? -perguntou Jameson elevando uma sobrancelha Nem sequer a guardar seus pensamentos para que os monstros como eu não os leiam ?

         Lançou-lhe um olhar carregado de desconfiança.

         -É muito simples, Angélica. A única coisa que tem que fazer é imaginar que sua mente é uma casa, e você sua proprietária. Assim, tem que construir um muro ao redor para que ninguém possa ultrapassá-lo, a menos que você queira. Vamos, tente.

 

         Ela fez um gesto desdenhoso com a mão. Mas uns segundos mais tarde a viu reclinar-se para trás, relaxar-se e concentrar-se no que lhe havia dito. Jameson lhe deu um pouco de tempo e logo enviou sua mente para a dela, provando. E encontrou o muro. Uma barreira muito fina. A vontade de Jameson, que naquele momento era mais forte, poderia destruí-la se fosse necessário, mas as defesas da Angelica se iriam fazendo mais fortes com o tempo.

         -Não está mau -disse-lhe-. O certo é que fez muito bem. Verá, vai ser muito útil, sobretudo quando tiver problemas. Seu grito de auxílio se escutará a quilômetros e outros virão em sua ajuda.

         -Me viro sozinha se for o caso, obrigado. Jameson deixou que o silêncio se instalasse entre eles. Pouco tempo depois viu seu ponto de destino iluminado ante as luzes dos faróis.

         -Aqui é onde ficaremos por ora. Nossa base de operações -disse Jameson mostrando a casa-. Ao menos até que a descubram. Certamente não demorarão muito.

         -Não quero estar aqui -assegurou Angelica negando com a cabeça-. Quero ir procurar a minha filha.

         -Logo que tiver forças -insistiu ele abrindo a porta para descer-. Precisa descansar e se alimentar. Além disso, logo se fará de dia. Começaremos a busca quando anoitecer.

         Ela apertou os dentes num gesto frustrado e Jameson lhe apertou a mão.

         -E não tente escapar, Angelica. Este lugar talvez lhe pareça decrépito, mas é só uma aparência. Meu amigo Eric possui as últimas inovações tecnológicas. Isto é uma fortaleza, Angelica, e eu tenho a chave.

         -Desprezo-o! -exclamou ela soltando sua mão. A casa dava muitíssimo medo. Eu estava aterrorizada. Só com um monstro que parecia saber mais de mim que eu mesma. Um homem que me tinha tirado de uma prisão para me levar para outra. Mas aquela era de vampiros. E talvez aquilo fosse pior.

         Passamos por uma porta de ferro muito alta que se abriu diante nós. Por cima se via um arco no qual estava esculpido o nome Marquand. A entrada estava coalhada de ramos de árvores, ervas e arbustos. E então a casa apareceu diante de nossos olhos como um gigante diabólico. Era uma torre de pedra cinza quase comida pela hera. Na imensa porta de entrada tinha cravados vários tablones. O corrimão de ferro que havia ao lado dos degraus estava carcomido. Detrás da casa se adivinhava um escarpado que dava para o mar. Pude distinguir a água escura na distância, escutei as ondas batendo contra a borda rochosa.

         Jameson continuava dirigindo. Virou pela entrada e conduziu através do terreno, e então apareceu um atalho diante de nossos olhos onde antes não havia nada. Conduzimos através de um túnel feito de arbustos tão densos que se tornava impossível vê-lo de fora.     Engenhoso, pensei.

         E então Jameson desligou o motor. Mas deixou as chaves na ignição. Para sair correndo caso necessário, supus.

         -Já pode descer -disse-me me olhando na escuridão com tanta claridade como podia vê-lo eu. Odiava ter que obedecer aquele homem, mas não tinha opção. Abri a porta do carro e desci. Jameson se colocou a meu lado e me agarrou pela cintura. Naquele instante fui consciente de que nunca me tinha feito mal, embora fosse certo que em mais de uma ocasião ele tivesse querido.

         Pensei na crueldade do miserável que me levara para o beco. Aquele sim me tinha feito mal. Uma e outra vez. Sem dúvida.

         Entretanto, seria um engano pensar que ambos fossem distintos. Eram iguais, ambos os malditos demônios.

         Não permitiria que sua amabilidade me cegasse. Tinha que escapar dele. E isso faria.

         Internou-me naquele túnel de vegetação até chegar a uma porta. Então afastou alguns ramos e baixou-se um pouco, me levando com ele.

         Uma escada... Construída na mesma terra, que descendia em espiral. Durante um instante imaginei o fogo do inferno me esperando ali abaixo, e me apertei contra Jameson.

         -Não tenha medo, Angélica -assegurou ele virando-se para me olhar-. Não há nada que temer. Sei que tudo isto parece absurdo, mas me acredite, é necessário para nossa segurança. Venha.

         Engoli o medo e o segui até as profundidades da terra, e logo passamos por um passadiço estreito. Quando por fim saímos dele, aparecemos diante de uma maciça porta que dava a uma sala, e foi então que pisquei assombrada.

         Aquilo não era o que eu tinha esperado. Contava com uma horrível masmorra, mas não com aquilo.

         A sala era grande e bonita. Ao fundo havia uma chaminé de pedra disposta para ser acesa e ao lado havia um montão de lenha de cerejeira que cheirava muito bem. As paredes estavam pintadas de um rosa pálido, e nelas viam-se várias pinturas. Eram preciosas. Muitas delas incluíam magníficos sóis iluminando paisagens de campo e de mar. O chão estava repleto de tapetes orientais e em uma das esquinas havia um sofá de veludo coberto de almofadas e almofadões. Na outra, uma cadeira de balanço antiga de madeira de cerejeira. Uma mesa de mármore cheia de objetos de arte. Havia abajures por toda parte. E portas.

         Jameson fechou a porta pela qual tínhamos entrado e pela primeira vez vi o painel digital a um lado. Ele apertou alguns botões e se acendeu uma luz vermelha. Então, era certo o que havia dito. Estava presa.

         -Já vê - disse voltandoo-se para mim-. Não há nada que temer. Por ali há um banheiro e encontrará roupa de sobra e toalhas nos armários. Poderá tomar um banho e vestir outra roupa. Vai fazê-la sentir-se bem depois de tantos meses vestida só com isto.

         Jameson tocou a fina túnica branca que eu levava e me acariciou o ombro.          Estremeci.

         -Tudo o que precisa está aqui -continuou deixando escorregar a mão-.Todas as salas têm saída, túneis iguais ao que nos trouxe até aqui. Cada um deles dá para uma parte diferente da propriedade, assim se precisarmos escapar, podemos fazê-lo. E aqui há sustento suficiente para que continuemos vivendo -concluiu assinalando uma espécie de geladeira pequena que havia na parede.

         -O que... o que quer dizer? - perguntei olhando a portinhola.

         Jameson a abriu fazendo uma pequena reverência. Não estou muito certa do que esperava encontrar. Uma larga fila de corpos de suas vítimas ou algo igualmente horrendo, suponho. Mas o que vi foi uma fila de bolsas de plástico transparentes como as que se utilizavam nos hospitais e bancos de sangue. Jameson me olhou como se soubesse o que estava pensando.

         -Vê-se que pouco sabe, Angélica... Não nos alimentamos dos vivos. Isso se vê só nos filmes de monstros que passam à tarde. Por que diabos quereríamos atacar a humanos inocentes quando há suficiente sangue disponível? Sugiro que se alimente. Vou tomar uma ducha e me trocar. Não tente partir. As portas não se abrirão sem o código apropriado. E se conseguisse abrir, sairia para ao ar livre, sem nenhum refúgio e com a luz do dia quase surgindo. Torraria-se ao sol – assegurou, dando a volta para me deixar sozinha.

         -E o sol me mataria? -perguntei sem poder evitá-lo.

         Tinha vivido durante nove meses sem saber nada sobre mim. Jameson me tinha feito notar, de maneira crua, o pouco que sabia. Nem sequer sabia o que me podia matar.

         -É obvio - respondeu ele virando-se para me olhar com expressão benévola-. Meu deus, Angélica, nem sequer sabe isso?

         Ficou me olhando fixamente durante uns instantes esperando uma resposta. Mas não estava disposta a dar-lhe, assim troquei totalmente de assunto.

         -Onde vou dormir? -perguntei.

         -Ah, essa é outra das maravilhas do Eric. Ensinarei-lhe isso - disse passando diante de mim para abrir outra porta-. Não é o que eu teria escolhido, certamente, mas quando vir o quanto são seguros, entenderá. Eric é um gênio. Instalou... Angélica?

         Não podia me mover. Fiquei olhando horrorizada os dois ataúdes que brilhavam na escuridão. Não podia respirar. Estava paralisada pelo terror. Com apenas em olhá-los já me via presa dentro, sentindo como aquele espaço reduzido se fechava a meu redor.

         Jameson me tocou no ombro e todo meu orgulho desapareceu quando me voltava para olhá-lo. Caí de joelhos e o agarrei pelas mãos.

         -Suplico-lhe - solucei inclinando a cabeça-. Não me coloque aí. Por favor.

Jameson sentiu que lhe parava o coração quando viu o que suas palavras tinham provocado naquela mulher tão valente. Estava ajoelhada no chão, agarrando-lhe a mão e tremendo. Estava fria como o gelo. Deus, como tinha sido ser tão cruel e esquecido onde a tinha encontrado?

         Inclinou-se e lhe rodeou a cintura com as mãos para ajudá-la a levantar-se. Quando lhe ergueu o queixo, viu que tinha os olhos cheios de lágrimas.

         -Jesus, anjo, é obvio que não. Não estava pensando em... Realmente acha que sou um monstro, não é? - murmurou tirando-a daquela sala -. Realmente achou que a obrigaria a colocar-se em um desses ataúdes e a encerraria nele como fizeram esses malditos da Divisão?

         Ela fechou os olhos e Jameson notou que estava tentando controlar o pânico.

         -O que podia pensar? Disse que era sua prisioneira, que me reteria a seu lado até que a encontrasse.

         -Estava pensando em sua segurança. Esses ataúdes estão equipados com toda classe de... Dá no mesmo. Deveria ter pensado nisso antes de lhe mostrar. Não pretendia assustá-la.

         Jameson voltou-se e cruzou de novo a primeira sala para abrir uma porta que havia no lado contrário. Daquela vez entrou ele primeiro, permitindo que ela o seguisse por sua vez. Jameson se aproximou da mesinha de cabeceira e se inclinou para acender um abajur de azeite. Não o necessitavam para enxergar, mas pensou que a luz âmbar faria que as coisas parecessem mais cálidas.

         Angelica entrou muito devagar, vacilante, e examinou aquele quarto de aspecto normal. Havia uma cama enorme de aspecto régio. Idéia de Rhiannon, é obvio. Ela preferia o luxo à cautela.

         -Prefere assim? -perguntou-. O banho está ali, ao fundo.

         -Sim -murmurou ela exalando um suspiro-. Isto está muito melhor.

         -Será melhor que se alimente agora, Angelica - sugeriu-lhe Jameson como quem se dirigia a um menino pequeno-. Falta pouco para que amanheça, e necessita de alimento antes de dormir.

         Ela assentiu com a cabeça, processando aquela informação.

         -Sim, de acordo.

         E passou na frente dele em direção à outra sala. Jameson a ouviu abrir a geladeira e servir-se do líquido em um dos copos que havia.

         Ele se perguntou como ia odiar a uma mulher que o necessitava tão desesperadamente. Não sabia nada. Nem de sua força, nem de suas habilidades psíquicas. Nem sequer como alimentar-se, nem o que podia matá-la.

Assim tentaria ajudá-la, em vez de odiá-la. Mas, como ajudar a uma mulher que o detestava? Odiava aos de sua espécie e a ela mesma. Não queria explorar sua nova natureza.

         Talvez com sua ajuda, Angélica conseguisse dar-se conta de que os vampiros não eram mais monstruosos que os mortais. De fato, na maioria dos casos eram bem menos. E talvez renunciasse a aquela estúpida idéia de afastar a sua filha dele.

Havia muito no que pensar. Mas no momento se limitaria a acender o fogo e comprovar que se alimentou o suficiente. Logo a deixaria descansar até o dia seguinte.

Mas então deu-se conta de outro problema: do perigoso que podia resultar em não odiar a aquela mulher. Porque quando não a odiava, desejava-a.

         Jameson não encontrou tempo para tomar banho naquela madrugada. Ficou muito tempo olhando-a e o sonho diurno lhe escapou com a chegada do amanhecer. Angelica tinha-se alimentado, colocou-se na cama de casal e se adormeceu imediatamente. E ele continuava olhando-a.

         Finalmente, Jameson se levantou e sentou-se no sofá que havia na outra sala.

Quando o sol voltou a cair, Jameson se levantou antes que ela. Meteu-se no banheiro antes inclusive de olhá-la. Enquanto tomava banho, recordou-se várias vezes que a odiava. E que ela o odiava. E que o fato de ter compartilhado seu sangue era o que o unia a ela daquela maneira. O que o fazia sonhar com ela.

         Depois de haver-se convencido disso, saiu do banho envolto em um penhoar e secando o cabelo úmido com uma toalha. Mas se deteve quando viu Angelica observando o armário com gesto confuso. Tinha melhor cor que no dia anterior e parecia mais forte.

         -Ocorre algo? -perguntou Jameson. -Esta roupa é... muito... normal.

         -O que esperava? Capas de seda negra e gargantas? - brincou ele aproximando-se do armário e tirando um pulôver de Tâmara -. Toma, isto lhe servirá para esta noite. E também uns jeans. Que tamanho?

         -Não... não sei ao certo.

         -Como pode alguém não saber que tamanho usa? - perguntou Jameson rebuscando entre os cabides.

         -É que faz muito tempo que não uso jeans.

 

         Aí estava. Uma pista sobre aquela misteriosa mulher.

         -E por que, Angelica? Que tipo de roupa usava? Talvez encontre algo que esteja mais acostumada.

         -Não acredito que encontre nada no armário de uma vampira -respondeu ela esboçando pela primeira vez uma ameaça de sorriso-. Os jeans estão bem.

         Mas Jameson não parecia tão disposto como ela a trocar de tema.

         -A primeira vez que a vi levava uma espécie de vestido -recordou Jameson tirando uns jeans. Então ainda não tinha visão noturna, mas me pareceu que era negro e solto. Como um...

         -Vou tomar um banho -interrompeu-o Angelica-. Não me importa a roupa que vá pôr. Só quero poder logo começar a procurar a minha filha.

         Angelica agarrou os jeans e atravessou o aposento em direção ao banheiro, fechando a porta atrás dela.

         E pela primeira vez, Jameson tentou recordar aquela noite em que esteve a ponto de matá-lo. Tinha pensado muitas vezes nela, mas sempre se concentrou em recordar o que tinha sentido ao notar o corpo da Angelica apertado contra o seu, enquanto sua boca avara se alimentava de seu pescoço.

         Agora precisava superar aquela loucura e concentrar-se em outras coisas. Nos detalhes. Jameson se sentou na cama, fechou os olhos e tratou de repetir mentalmente todo o ocorrido. O cabelo revolto. A cara suja. As maçãs do rosto sobressalentes e os olhos violeta. E aquela roupa negra feita em farrapos...

         Entre suas mãos tinha algo parecido com umas contas com as quais estava brincando e que tinha deixado cair bruscamente quando lhe falou. Umas contas que passavam uma por uma, murmurando algo...

         Céus. Seriam as contas de um rosário? E o vestido negro podia ter sido... um hábito. Seria certo? Angelica tinha sido uma freira em sua vida mortal? Tinha sentido. Preocupavam-lhe Deus e Satã, o bem e o mal.

         Jameson continuou ali sentado, quando ela saiu do banho um momento depois com os jeans e o pulôver. E continuava mais decidido que nunca a averiguar a verdade. Embora houvesse uma parte dele que estava tentando interpor-se em sua curiosidade. A parte dele que sabia perfeitamente que Angelica não levava prendedor, porque não tinha dado nenhum. Cravou os olhos em seus seios sem poder evitá-lo. A lã do pulôver os marcava porque estavam úmidos. E pôde perceber claramente sua forma sob o tecido. Os mamilos sobressaíam como reação à suavidade da lã.

         Jameson se umedeceu os lábios e se obrigou a trocar de pensamento.

         -Angélica, estava me perguntando se... -começou a dizer, limpando a garganta-, se não deveria me dirigir a você como «Irmã Angélica».

         Deu-lhe a impressão de que ela prestava muita atenção à pergunta. Limitou-se a suspirar antes de responder.

         -Se tivesse jurado meus votos solenes me teria convertido na irmã Mary Elizabeth. Como esse dia nunca chegou, continuo sendo somente Angélica -respondeu com certo nervosismo-. Quero ir. Quero encontrar a minha filha. Por onde começaremos?

         Jameson ficou olhando-a um instante. Agora que a via mais forte, devia ser-lhe mais fácil odiá-la. Então, por que não o sentia?

         Antes de distrair-se por seu aspecto e pela dúvida de quem poderia ter sido no passado, Jameson tinha pensado na melhor maneira de adverti-la sobre a possível natureza de sua filha. Não tinha chegado a nenhuma conclusão, mas sabia que tinha que dizer algo. Prepará-la no caso de...

         -Antes de partirmos -disse lentamente-, há algo... Não sei se está consciente de...

         -Está-me assustando, vampiro -respondeu ela franzindo o cenho-. Seja o que seja diga-me o de uma vez e nos ponhamos a caminho.

         Jameson se umedeceu os lábios e afastou o olhar. Para ele tinha sido um impacto pensar na natureza de sua filha a primeira vez. Mas estava entre amigos, gente que o queria e que o apoiaria.

         Mas para ela seria muito pior. Estava sozinha, com a única companhia de um homem que desprezava. Jameson fez um esforço por olhá-la aos olhos, que brilhavam como ametistas sob a luz do abajur.

         -Nunca antes tinha nascido um filho de uma vampiresa. Pelo menos que se saiba. Angélica, não temos modo de saber... o que nós encontraremos quando dermos com nossa filha.

         -O que quer dizer? -perguntou ela piscando.

         -Não sabemos se será mortal... ou imortal. Se será um cruzamento entre os dois. Ou se...

         -Não!

         Angélica deu dois passos atrás e se agarrou no respaldo de uma cadeira.

         -Tomara que seja uma menina normal, mas não podemos estar certos até que a vejamos. Seria uma tragédia que...

         -Os de sua espécie -sussurrou ela interrompendo-o-, não crescem, não é?

         -Não. Os de nossa espécie não crescem.

         -Ficará para sempre presa no corpo de um recém-nascido? -perguntou Angélica negando energicamente com a cabeça -. Não, não pode ser. É muito horrível.

         -Talvez não seja assim. Eu só... só queria te avisar no caso de...

         Angélica elevou o queixo e o olhou aos olhos. Os seus estavam cheios de determinação.

         -Deus não faria uma coisa assim. A ela não. Já é suficiente me haver castigado . Minha menina é normal e saudável. Sei disso.

 

         -Tem razão -disse Jameson assentindo com a cabeça-. Ela está bem. Certo.

         E naquele momento, seus olhares se cruzaram e algo ocorreu entre eles.          Estabeleceu-se uma conexão. Mas então Angélica afastou a vista e a sensação desapareceu.

         -Tem algum plano? - perguntou a Jameson.

         -Só um ponto. A mulher que contatou com Tamara para lhe contar da menina, Hilary Garner. Trabalha na Divisão mas, ao que parece, achou demais que usassem assim a um bebê. Tenho seu endereço. Iremos ali esta noite e falaremos com ela. Talvez saiba onde levaram a menina e esteja disposta a nos dizer isso.

         -E se não estiver?

         -Então, teremos que convencê-la -assegurou Jameson apertando os dentes.

 

         A esperança renasceu em meu coração quando nos aproximamos do edifício no qual vivia aquela mulher. Concentrei-me em busca de algo que me indicasse que minha filha estava perto, mas não senti nada. Mas essa mulher poderia nos ajudar. Se não, nunca se teria colocado em contato com a amiga de Jameson.

 

         Jameson não estava cumprindo as expectativas que eu tinha de um monstro. Tinha-me tirado daquele horrível lugar. Tinha-me alimentado com seu próprio corpo sangue, tinha-me consolado. E além disso parecia tão decidido como eu a resgatar a nossa filha.

         Nossa filha. Não era certo continuar referindo-me a ela daquele modo.

         -Necessita de um nome -sussurrei.

         Jameson virou-se para me olhar, com as sobrancelhas elevadas e logo as baixou quando o compreendeu.

         -Sim, é mesmo. Tem algum em mente?

         -Quando estava prisioneira, falava com ela. Cantava-lhe, afagava o ventre como se a embalasse. E a chamava Lily, porque assim era como a via. Tão perfeita e delicada como uma formosa açucena. E Amber, porque era um mistério tão antigo como o tempo. Uma filha nascida de uma vir...

         Mordi o lábio, mas foi muito tarde.

         -Nascida de uma virgem? -perguntou Jameson-. É quase... algo sagrado -disse sorrindo-. A primeira criança vampira nasceu de uma virgem.

         -Não há nada de sagrado no que me fizeram.

         -Não, certamente que não -assegurou ele - Eu sei o que é isso. Também me deixaram prisioneiro.

 

         -Talvez saiba o que é o cativeiro, mas não tem nem idéia do que se sente quando seus inimigos arrancam a sua filha das vísceras.

         Os olhos se me encheram de lágrimas. Aquela dor ainda continuava aguda.

         -Não. Não posso sabê-lo. Deve ser espantoso.

         -Teria preferido que me arrancassem o coração – assegurei, apartando a vista para ocultar minhas lágrimas.

         -Não passa nada, Angelica. Entre nós não deve haver nada de que se envergonhar.

         Olhei-o e soube que tinha razão. Estávamos unidos pelo sangue e pela filha que compartilhávamos. Por muito que nos desagradássemos um ao outro, aquele laço não poderia romper-se com facilidade. Possivelmente não poderia romper-se nunca.

         -Encontraremos-na -murmurou ele aproximando-se para me abraçar-. Amber Lily estará bem. E quando estiver a salvo, os farei pagar. Vou matá-los. Um a um. A todos. Merecem-se algo pior que a morte pelo que têm feito.

         -Só Deus pode dizer quem merece a morte, Jameson -disse-lhe.

         -Deus é muito lento -assegurou com o ódio refletido em seus olhos escuros.

         Deteve o carro e elevou a vista para o edifício de apartamentos.

         -E minha vingança começará agora mesmo, com esta mulher, a menos que me diga o que quero saber.

         O apartamento de Hilary Garner tinha sido saqueado. Jameson conhecia as táticas da DIP, e sabia que levavam a cabo os registros com tanta cautela que muita gente nem sequer se dava conta do que tinha acontecido. Mas desta vez era claro. Deviam estar muito zangados com aquela mulher.

         Ela não estava ali, e Jameson se perguntou se continuava com vida. A Divisão não dava moleza aos agentes que traíam a organização.

         Escutou o grito da Angelica e, quando voltou-se, viu-a observando uma fotografia que havia em um marco de prata. Era Hilary Garner com uma amiga, sorrindo à câmara.

         -Esta mulher -disse assinalando-a-, esteve comigo quando eu dava à luz. Ela... Pude ver em seus olhos que estava sofrendo. Inclinou-se para mim e me disse que tinha sido uma menina.

         -Mas não fez nada para impedir que esses malditos a levassem.

         -Supliquei-lhe que ajudasse Amber Lily. E ela assentiu com a cabeça.

         -Para aliviar seu próprio sentimento de culpa -assegurou ele, lhe dando um tapa na fotograva e atirando-a ao chão.

- Ficou em contato com você. Tentou ajudar.

-Trabalhava para eles, Angelica. Durante anos serve ao mesmo demônio.

-Inclusive os piores pecadores podem se arrepender -sussurrou ela.

-Ao diabo com o arrependimento. Quero que pague! Quero que todos eles paguem!

         Jameson acertou um murro ao lugar no que antes estava a foto e a madeira se partiu pela metade. Tinha os olhos cheios de lágrimas pela desilusão. Estava tão convencido de que encontraria algo ali...

         - Está chorando? -perguntou-lhe Angelica inclinando brandamente a cabeça.

Ele se voltou bruscamente. Não queria que nem ela nem ninguém percebesse a tormenta que se estava desenvolvendo em seu interior.

         - Não sabia que... não sabia que... Preocupa-se com Amber Lily tanto como eu, não é, Jameson?

         - Céus, Angelica, o que acha que estou fazendo aqui? - perguntou-lhe ele suspirando.

         -Mas eu pensava... Pensava...

         -Pensava que sou um monstro sem sentimentos. Bom, pois surpresa, Angelica. Cortaria um braço meu para salvar Amber desses malditos. Sou tão humano agora como era antes, igual a você embora não se dê conta. As diferenças são físicas, não espirituais. Inclusive sinto as coisas com mais intensidade que antes. E você também.

Ela negou lentamente com a cabeça. Jameson suspirou profundamente, cansado de tentar fazê-la entender.

         -Saiamos daqui - disse então bruscamente.

         -Você a quer? -perguntou-lhe ela elevando a mão para tocar-lhe o rosto.

         - Mais que a minha própria vida, Angelica. Morreria aqui e agora se com isso pudesse pô-la a salvo. E sei que a quererei ainda mais quando a ver.

         As lágrimas começaram a lhe escorrer pelo rosto. Angelica deu um passo adiante e sorriu com acanhamento.

         - Oh, Jameson é tão bonita... - sussurrou-. Tem o cabelo forte e sedoso e de um negro azeviche. «Como o teu», pensou ele lhe acariciando uma mecha. - E os olhos tão escuros como a noite. Grandes e inocentes.

         E aquilo foi mais do que pôde suportar. Soluçou e todo seu corpo tremeu enquanto Jameson a atraía para si.

         -Tudo vai sair bem, anjo. Encontraremos-na – assegurou-lhe acariciando-lhe as costas -.Já a verá.

         -Olhe só, não é comovente?

         Jameson ficou tenso. Aquela voz profunda tinha surto da soleira, e ambos se giraram. Um homem estava lá, olhando-os e apontando-lhes uma arma. Jameson sabia que continha uma das ferramentas mais terríveis do arsenal da DIP A droga que convertia ao mais possante dos vampiros em um inútil sem forças.

         Jameson colocou instintivamente Angelica atrás dele com um movimento rápido.

         - Não lhes servimos para nada - disse Jameson ao homem com muita calma -.Já têm o que queriam. Não se arrisque a perder o pescoço por nada.

         - Pareço-lhe um estúpido? - perguntou o homem com um leve sorriso-.E agora fala, Bryant. Onde está a menina?

         -Que diabos quer dizer com isso? -perguntou Jameson sentindo que o sangue lhe gelava nas veias-. São vocês os que... Não sabem onde está? - perguntou entreabrindo os olhos.

         - Já basta de jogos. Mantivemos este lugar durante dias sob vigilância, se por acaso Garner resolveu voltar, embora me custe acreditar que fora tão estúpida. E agora me diga, onde estão escondendo a menina?

         Jameson sentiu os olhos da Angelica cravados em suas costas e uma espécie de esperança.

         -A menina está em um lugar onde nunca poderão encontrá-la -disse lentamente -. Custodiada por cem vampiros. Que serão um milhar no final desta semana. Diga a seu chefe que abandone essa idéia. Acabou-se. Ganhamos.

         -Está mentindo -disse o homem franzindo o cenho-. Vamos, venham comigo. Arrancaremo a verdade de vocês...

         Olhou por cima do ombro de Jameson, para Angelica.

         -Se a tocar lhe arrancarei o coração! -exclamou Jameson.

         Os olhos daquele homem brilharam de raiva, e apontou diretamente o cano da arma ao peito de Jameson.

         -Não, isso não é necessário -assegurou Angelica saindo de detrás dele-. Por favor, não a utilize.

         -Olha só, parece que sua garota está disposta a cooperar -disse o homem.

         Angelica estava muito triste para ocultar seus pensamentos. E se sentia doente só de pensar que aquele porco pudesse lhe pôr as mãos em cima. Mas se renderia se aquilo servisse para mantê-la com vida até que pudesse resgatar a sua filha.

         -De acordo -disse Jameson – Iremos sem opor resistência. Pode baixar a arma.

         Deu um passo em direção ao homem, que pareceu surpreso. Mas logo foi como se se orgulhasse. Baixou a barreira da arma e Jameson avançou para ele.

         « Não!»

         Os pensamentos de Angelica entraram rapidamente em sua mente.

         «Jameson, não avance mais. Ela vai atirar em você». «Tranqüila, anjo», disse-lhe sem palavras. «Este animal não lhe porá nem um dedo em cima. Confia em mim. Só preciso me aproximar um pouco».

         Jameson se aproximou uns quantos passos mais... E se lançou a tal velocidade que soube que aquele mortal não viu mais que uma sombra. Tirou-lhe a arma com uma mão e com a outra lhe golpeou com dureza a cara. E terminou em cima de seu atacante, que estava inconsciente, apontando-lhe a arma. Sabia que a droga seria letal para um mortal.

         -Não tem por que matá-lo - disse então Angelica lhe agarrando-lhe o braço-.Já não é uma ameaça.

         -Tem razão, não tenho por que matá-lo - respondeu ele tragando a bílis que tinha na garganta. Vou matá-lo porque quero.

         Jameson fechou o dedo ao redor do gatilho. As mãos da Angelica se moveram como o vento e lhe arrebataram a arma. Não teria podido fazê-lo se ele tivesse esperado, mas não esperava. Enquanto Jameson a olhava assombrado, ela lançou a arma, que cruzou a habitação, rompeu o cristal da janela e caiu para o vazio da noite.

         - Por que diabos protege a este maldito? - espetou-lhe-. Se soubesse o que queria fazer com você...

         -O assassinato é pecado, vampiro. Não tem justificação.

         -Segundo seu critério eu já estou amaldiçoado, assim, o que importa se acrescentar um pecado mais a meu histórico? Jameson se inclinou e agarrou ao homem pela gola, levantando-o do chão.

         -Não! -exclamou Angelica -. Não, Jameson. Talvez... Talvez tenha estado enganada.

         Ele se voltou para olhar aqueles olhos violeta implorantes.

         -Por favor - suplicou-lhe -. Não mate este homem. Não tem necessidade de fazê-lo.

         E não pôde fazê-lo. Naquele momento não. Por alguma razão, seus olhos o convenceram e Jameson deixou cair o corpo daquele homem ao chão.

         - É certo que não veio sozinho -disse-.Vamos.

         Jameson a guiou para o corredor, mas não em direção aos elevadores ou à escada principal. Encontrou o elevador de serviço e apertou o botão que marcava o terraço. E então se permitiu um pouco de esperança. Um instante de alívio e felicidade.

         -Escutou o que disse esse maldito, Angelica? Eles não a têm. Não têm a nossa menina.

         -Ouvi - respondeu ela com a mesma emoção refletida nos olhos.

         - Garner -murmurou Jameson pensando em voz alta-. Tem que ser Garner. Deve haver a levado. Ignoro a razão, mas...

         - Essa Hilary Garner tinha uns olhos amáveis. Está tentando nos ajudar. Não lhe fará mal.

         -Melhor pra ela.

         O elevador de serviço se deteve e as portas se abriram. Jameson saiu e dando um salto se colocou no terraço. E com outro salto mais estava no telhado, sob as estrelas. Olhou para baixo e viu carros estacionados na rua por toda parte e homens saindo deles em direção aos edifícios.

         - Este lugar está abarrotado.

         - Há uma saída de incêndio deste lado do edifício -disse Angelica.

         Jameson se virou para olhá-la e durante um instante se deteve. Sua silhueta se recortava sob a noite estrelada, e seu cabelo revoava ao vento como uma brilhante bandeira de ébano.

         - Jameson... A saída de incêndios.

         Ele se sacudiu mentalmente.

         - Isso será o que esperam.

         Virou-se e observou o edifício do lado que o separava de um beco.

         - Vamos ter que saltar, meu anjo.

         -Não podemos - assegurou ela, aproximando-se com as pernas trementes antes de olhar abaixo.

         - Este é um salto pequeno para você. É forte. Mais forte que dez deles -assegurou apontando com a cabeça para os homens que havia embaixo.

         -Não sou.

         - Claro que sim -insistiu ele-. Quer conhecer nosso segredo melhor guardado, anjo?

         -Sim - respondeu ela olhando-o nos olhos assustada.

         - Os mais antigos... Podem inclusive voar –assegurou -. ririam de nós durante toda a eternidade se não pudéssemos dar este pequeno salto. Vamos, anjo, confia em mim. Levo toda minha vida entre vampiros -Jameson tirou a mão dela -. Se não sair daqui, não poderemos ir em busca de nossa filha. Faça-o por nossa Amber Lily.

         O medo desapareceu daqueles olhos violeta e Angelica assentiu com a cabeça firmemente.

         - De acordo.

         -Boa garota.

         Jameson lhe apertou a mão e saiu correndo. Ela o imitou. Sem duvidar, sem vacilar. Saltaram como se fossem um e se elevaram muito alto em meio da noite. Então caíram com força no outro edifício, e Jameson a estreitou contra ele para impedir que caísse de bruços. Rodeou-lhe a cintura com os braços e lhe apertou o corpo contra o seu. Quando baixou a vista para olhá-la viu que estava... sorrindo. Brilhavam-lhe os olhos.

-Conseguimos!

-Disse-lhe isso.

         Aquele sorriso... Isso foi o que o comoveu. Vê-la sorrir depois da terrível agonia pela qual tinha passado. Mas agora havia uma esperança que também estavam compartilhando. Jameson inclinou a cabeça e a beijou. Foi uma loucura. Mas ela tinha os lábios úmidos e apetecíveis, e os sentiu suaves sob os seus. E se afundou neles, percorreu-os com a língua, e com a língua os separou.

 

         O desejo o golpeou como um trem de mercadorias, e sentiu que Angelica também experimentava o mesmo. Ela estremeceu e se pendurou nele, abriu os lábios e inclinou a cabeça para trás. Jameson lhe introduziu com força a língua na boca, desejando poder afundar do mesmo modo o corpo no seu.

         Um pensamento que esqueceu de ocultar.

         Ela o escutou forte e claro e ficou tensa. Logo, lentamente, aastou-o de si e virou-se. Estava sem fôlego. Igual a ele.

         -Eu... - começou a se explicar Jameson passando-lhe mão pelo cabelo.

         Céus, acabava de beijar apaixonadamente uma quase-freira. E tinha pensado em lhe fazer muito mais.

-Sinto muito.

-Temos que ir, vampiro - disse Angelica com voz tremente-. Se ficarmos, encontrar-nos-ão.

         Jameson deixou que fosse ela primeiro nesta ocasião. Seguiu-a perguntando-se que classe de loucura se teria apossado dele.

        

         Quando voltarmos a pisar no chão, Jameson e eu deslizaremos entre as sombras da noite. Podia escutar com clareza o som de seus rádios enquanto falavam os uns com os outros. Mas em realidade era a nossa filha a quem queriam. Um bebê que nem sequer sabia por que havia tanta gente perseguindo-a.

         E eu morreria antes de permitir que a levassem.

         Olhei o homem que tinha a meu lado e me dava conta de que ele faria o mesmo. Já tinha posto em perigo sua vida, e mais de uma vez. Talvez... Talvez não fosse o monstro que eu pensava que era.

         Ou talvez sim. Tinha visto a raiva em seus olhos, disposto a tirar a vida de um homem. Talvez só mostrasse um pouco de honra e de nobreza no que se referia a sua filha. Talvez.

         Tinha-me beijado.

         Ainda me maravilhava pensar como tinha ocorrido, mas era fácil de entender. Ambos estávamos entusiasmados ante a idéia de que talvez nossa filha estivesse a salvo. De outro modo nunca me teria posto uma mão em cima, disso não tinha nenhuma dúvida. Odiava-me e me fazia única responsável pelo perigo que corria Amber Lily. E entretanto eu respondia como uma amante faminta. E não entendia a razão.

         Agora estávamos no beco, observando na escuridão aos homens que rodeavam o edifício. O carro negro do vampiro nos esperava uns metros mais à frente. Os homens estavam de frente ao edifício, esperando a que saíssemos. Davam-nos as costas.

         «Podemos chegar ao carro», escutei-lhe dizer. E então me dava conta de que não o havia dito. Aquele modo de falar em silêncio me enjoava. Soltou-me a mão e me levou para diante. Abriu a porta do lado do condutor, que estava mais perto e deslizei até o assento. Uma vez ali, mantive a cabeça baixa.

         Jameson subiu a toda pressa e fechou a porta muito devagar. E então ligou o motor. Imediatamente, os homens se deram conta. Jameson colocou a primeira marcha e o carro ficou em movimento. Mas não antes que começassem a disparar. Meu guichê se fez em migalhas e escutei Jameson soltar um palavrão enquanto agarrava com força o volante. Uns segundos mais tarde, outros veículos saíram a nos perseguir.

         Mas aquela perseguição não era minha maior preocupação. Uma dor aguda, como provocado por um fio candente, introduziu-se em minha mente, envolvendo todo meu corpo. Nunca havia sentido uma dor tão forte. O parto também tinha sido duro, mas estava drogada. Aquilo era imediato e espantoso. E entretanto a dor não era minha. Não era minha.

         -Não se preocupe - disse Jameson manobrando o veículo a uma velocidade de vertigem-. Nunca nos alcançarão. Este carro corre como um diabo, e levo vantagem. Posso conduzir sem luzes.

         Olhou para mim e eu tentei dissimular a dor, mas quando nossos olhares se encontraram viu a agonia em meus olhos.

         -Angelica?

         - Diga-me uma coisa, vampiro -disse-lhe com suavidade-. Só o que pode nos matar é o sol? Ou também valem as balas?

         Enquanto falava, ergui a mão e a coloquei na sua cintura. Senti que o sangue me empapava a palma.

         - Nos preocuparemos mais tarde com isso -disse. Mas eu sabia que ele estava sofrendo terrivelmente. -Primeiro temos que sair daqui.

         Dobrou uma esquina tão depressa que me precipitei contra ele. Eu gritei quando sua dor se fez mais intensa e ele me olhou fixamente um instante.

         -Angelica, não está ferida, né?

         -Não -sussurrei observando horrorizada o sangue que parecia alagar todo seu assento-. Não. O que sinto é sua dor. Como se fosse minha. Por que?

         -Não sei -respondeu Jameson apertando os dentes.

         -Está se enfraquecendo! -exclamei sabendo de algum jeito -.Sangrará até morrer, não é?

         -Ponha pressão na ferida – pediu, me agarrando a mão e colocando-a sobre a ferida que sangrava. Não deixe que fique sangrando, anjo. Podemos nos sangrar em questão de minutos e é mortal.

Eu fiz o que me dizia, mas me tremia a mão e tinha medo de que meus esforços não servissem para deter a hemorragia. Mas então a dor começou a desvanecer-se. E Jameson deixou cair a cabeça a um lado e fechou os olhos.

         -Mantenha-se acordado, maldito seja! - ordenei-lhe agarrando o volante ao ver que ele deixava cair os braços-. Não morra! Agüente!

        

Mas acredito que não me ouviu. ficou ali encurvado e a dor desapareceu. Eu tirei o carro da estrada, afastei Jameson do volante e me pus no lugar dele. Já quase tínhamos chegado à casa próxima ao mar, mas estava aterrorizada. Tinha terror de que ele morresse e me deixasse sozinha para confrontar aquela provocação. Havia me tornado dependente dele em muitos sentidos. E necessitava sua ajuda. Aquilo era verdade, mas tampouco era a causa de minha angústia.

Simplesmente, não queria que aquele homem, aquele enigma que estava começando a descobrir, morresse. Não queria que me deixasse. Assim não. Ainda não.

E aquele sentimento me assustou quase tanto como o sangue que emanava de seu flanco.

         Aquele desgraçado o tinha acertado. Não deveria haver-se arriscado. Deveria ter deixado o maldito carro em seu lugar e continuar andando. Tinha sido um idiota ao pensar como um mortal, algo que pensava que tinha superado depois das constantes advertências de Rhiannon.

         Quando piscou para recuperar do enjôo que a ferida lhe provocava, viu que Angélica estava conduzindo. Devia havê-lo afastado do volante em algum momento, embora ele não recordasse, e avançava a toda velocidade pela auto-estrada como se a perseguisse o próprio diabo.

         Vários quilômetros mais tarde, quando pensou que tinha perdido de vista a seus perseguidores, Angélica diminuiu a marcha. Depois de olhar nervosamente pelo retrovisor, saiu da estrada e deteve o carro. Logo se virou para Jameson, que seguia meio curvado no assento, tentando manter-se consciente. Já se tinha desacordado em um par de ocasiões, e sabia que se voltasse a fazê-lo talvez não despertasse.

         Os belos olhos de Angélica se abriram ainda mais quando pensou aquilo.

         - Melhorou muito lendo-me o pensamento - conseguiu dizer ele.

         - Está muito fraco para evitá-lo - respondeu enquanto lhe abria camisa.

         Ao fazê-lo apertou os dentes, obrigando a Jameson a baixar a vista. A ferida era como uma lágrima dentada situada uns centímetros por cima do quadril e sangrava a um ritmo alarmante. Era uma ferida que logo seria uma pequena ameaça para um mortal.

         - Por que sangra tanto? -sussurrou Angélica enquanto abria o porta-luvas e procurava algo -. Não é tão grave. Por que não para?

         - Qualquer ferida pode matar um vampiro - explicou-lhe Jameson-. Tendemos a sangrar como os hemofílicos. Temo, anjo, que se não determos a hemorragia estarei morto em questão de minutos.

         Angélica lhe tirou a camisa, fazendo-a farrapos. Rompeu-lhe uma manga com os dentes e fez uma bola com ela, aproximando-a da ferida para tapá-la. Com o resto da camisa fez uma tira larga que enrolou ao redor da bola e lhe atou ao corpo com tanta força que Jameson mal podia respirar. Angélica apertou mais para pressionar a ferida e ele gemeu. Estava-lhe provocando uma intensa dor e sabia. Ela também o estava sentindo com uma intensidade que Jameson ainda não podia compreender. Talvez Roland pudesse explicar-lhe

 

         Quanto à dor, não se podia fazer nada. Pensava que Angélica seria mais apreensiva na hora de infligi-la, mas não tinha sido assim. Não vacilou nem um instante, e certamente aquilo tinha sido o melhor. Em caso contrário teria morrido.

- Não sangre - murmurou para si mesmo e para a ferida -. Não sangre, não sangre...- É inútil -disse Jameson reclinando-se no assento e fechando os olhos.

- Não me deixe - pediu-lhe ela.

         Ele a olhou com o cenho franzido. Mas Angélica não disse nada mais. Voltou a arrancar o carro e se dirigiu para a casa de Eric a toda a velocidade que o motor do carro lhe permitia. Uma vez ali o rodeou com seus braços e o tirou do carro. Jameson tentou ajudá-la, ficou inclusive de pé. Passou-lhe o braço pelos ombros e o ajudou a entrar em uma habitação. Uma vez dentro, ativou as fechaduras detrás, após ter fechado a porta.

         -Angélica -disse Jameson detendo-se enquanto ela o ajudava a cair na cama-, isso foi uma estupidez.

-A que se refere?

- As fechaduras. Não sabe o código. Como diabos sairá daqui se eu morrer?

-Terá que se manter com vida, vampiro. Em caso contrário ficarei aqui encerrada. Assim se anime e me diga o que tenho que fazer.

         E então, quando começou a notar que dormitava, inclinou-se sobre ele e lhe sacudiu os ombros. -Maldito seja, Jameson, me diga o que posso fazer.

         E ele viu as lágrimas em seus olhos.

         Uma vez mais, Angélica era a mulher que não podia odiar. A mulher que necessitava dele. Sempre havia sentido uma inclinação pelas mulheres em apuros. Primeiro tinha sido Tamara. Recordou que uma vez, quando tinha doze anos, tentou enfrentar-se a murros com um homem para protegê-la. Inclusive Rhiannon, a mulher mais forte que tinha conhecido em sua vida, tinha seus momentos de debilidade. E Jameson teria feito algo para protegê-la.

         E agora Angélica. Não queria sentir a necessidade de protegê-la, mas era inevitável. Embora fosse ele quem estivesse às portas da morte, sentia que ela necessitava dele. Assim ia lutar para continuar vivo. Queria estar com ela quando encontrassem a sua filha. Queria ver aqueles olhos cor de violeta quando estivessem alegres e felizes.

         Diabos, estava começando a querer bem aquela mulher.

         -Qualquer ferida sanará durante o sono diurno - disse-lhe tirando uma mecha de cabelo de seu lindo rosto-. Só o que tem que fazer é me manter vivo até lá...

         -Como?

         -Detenha a hemorragia -murmurou ele esboçando um meio sorriso-. Substituir o sangue que perdi. Procure no banheiro, anjo. Ali deve haver algo para este tipo de emergências.

         Tocou-lhe o rosto, revisou a ferida e foi ao banho. Quando retornou trouxe uma porção de ataduras, e inclusive umas agulhas e fio de seda. As ataduras teriam que valer. Não queria ficar ali quieto enquanto o costuravam. Além disso, não haveria tempo. Logo amanheceria.

         Angélica se aproximou da cama, retirou sua vendagem improvisada e observou com horror como a ferida voltava a sangrar de novo. Apertou-a com uma mão enquanto com a outra ia cortando ataduras, ajudando com os dentes. Logo juntou os dois extremos da ferida e foi unindo pouco a pouco, fechando-a. Quando terminou, como o sangue continuava emanando, pô-lhe uma nova atadura que amarrou com força ao redor do corpo. E logo suspirou aliviada assentindo com a cabeça. Jameson imaginou que aquilo significava que a hemorragia se deteve.

         Ficou ali estendido, pensando que no final todo ia acabar bem. Mas então Angelica agarrou uma agulha e um pouco de linha de seda.

         - Não - protestou ele em um sussurro-. Não é necessário.

         - Isso acreditei eu no princípio - disse-lhe Angelica mostando a agulha -. Mas agora vejo que estava enganada. Assim que se mover, começará a sangrar de novo. Agüenta, vampiro - pediu-lhe aproximando-se. - Isto vai doer muito.

 

         Ante a intensa dor que sentiu quando comecei a lhe costurar, Jameson se deprimiu. Por alguma razão, eu sentia também sua dor, mas não o de nenhum outro vampiro.

         O homem estava em meu sangue, em minha alma. Era como um vírus do qual não podia me curar, que crescia lentamente e se expandia por todo meu sistema.

         Em um espaço muito curto de tempo me tinha ido unindo a aquele homem que me chamava de sua prisioneira. É obvio, tudo tinha começado com as sensações físicas que experimentei quando o tomei. E logo estava o desejo. Aquele anseio de ter mais. Acredito que tudo se intensificou pela filha que compartilhávamos. Eu tinha levado dentro de mim sua carne e seu sangue durante meses.

         Como não ia me sentir unida a ele? Inclusive eu gostava dele, apesar de ser um monstro. Aquela noite tinha poupado a vida de um homem porque [i]eu[/i] tinha pedido. Claramente não era como a besta que eu tinha imaginado. Jameson nunca abusaria assim de mim.

         Embora uma parte de mim, no mais profundo, desejasse que o tivesse feito. Porque assim poderia experimentar a plenitude que ansiava viver com ele sem ter que sofrer a culpa de ser eu mesma quem tomasse a decisão.

         Aquele pensamento me fez-me ruborizar, e o separei de mim para me concentrar no que tinha entre mãos. Costurei a ferida, limpei-a e a enfaixei. E então ergui a vista para olhá-lo ali estendido em seu próprio sangue. A hemorragia tinha cessado. E se o que me havia dito sobre as qualidades regeneradoras do sono diurno eram certas, sobreviveria.

Mas precisava alimentar-se, recuperar tudo o que tinha perdido. E descansar. E eu teria que me assegurar de que a ferida não se abrisse antes do amanhecer.

         O pulôver que eu tinha posto estava empapado no sangue do Jameson. E também os jeans. Os seus também estavam manchados, e soube que teria que lavá-lo.      Não havia ninguém mais ali para fazê-lo.

         E a idéia me excitava.

         Mas primeiro me despojei de minha própria roupa e me coloquei sob a ducha brevemente, o suficiente para me limpar o sangue. Logo pus um penhoar e corri de novo para seu lado. Levantei-o um pouco, tirei-lhe pela cabeça a camisa e a atirei ao chão. Quando me voltei de novo para ele, fiquei completamente paralisada.          Nu de cintura para acima estava... espetacular.

         Nunca tinha visto o corpo de um homem. Não assim. Era firme e musculoso e, ao mesmo tempo, esbelto. Sua pele tinha um aspecto suave e apetecível, e eu morria de vontade de tocá-la.

         Nunca antes tinha experimentado aqueles ataques de desejo. As irmãs tinham satisfeito minha curiosidade me respondendo simplesmente que aqueles pensamentos eram pecaminosos e impróprios de uma jovem. Nada mais. Me proibiram tocar meu próprio corpo, explorá-lo e aprender os segredos de seus prazeres. Mas agora havia segredos que desejava desvelar.

         Umedeci os lábios e afastei a vista. Mas não podia evitar olhá-lo.

         Jameson necessitava naquele momento de minha ajuda, não minha paixão, recordei-me. Mas enquanto lhe desabotoava as calças, as minhas mãos tremiam. E todo meu corpo estremeceu enquanto me colocava em cima dele para lhe baixar os jeans pelos quadris, as pernas e finalmente os pés. Disse-me que não devia voltar a olhá-lo, e mantive os olhos afastados enquanto me dirigia ao quarto de banho em busca de uma terrina com água quente e uma toalha limpa. Mas tive que olhá-lo enquanto lhe retirava suavemente o sangue. Limpei-lhe os braços e o peito enquanto meus olhos se deleitavam na firme pele de seu ventre. Limpei-lhe o abdômen liso e duro e a estreita curva de seus quadris enquanto observava aquelas coxas poderosas e o pêlo negro e encaracolado que havia entre eles. E sua virilidade, agora adormecida, mas bela e cheia de promessas eróticas que não podia nem começar a entrever. Escura. Misteriosa. E eu queria tocá-lo, aprender os segredos de seu prazer e do meu.

         Aqueles pensamentos não eram dignos de mim. Mordi o lábio e os tirei de minha cabeça. Sabia que não estava certo olhá-lo assim quando ele não podia impedi-lo. E seria ainda pior se o tocasse enquanto descansava. Porque talvez se pudesse objetar, faria isso...

         Limpei-lhe cuidadosamente o sangue das pernas, mas até aquilo me causou um prazer sensual, ao percorrer-lhe acima e abaixo uma e outra vez com a suave toalha. Senti um formigamento pelas mãos ali onde o tocava. E me senti bem. Pecadora, mas bem.

         Quando terminei, estava excitada. Respirava com dificuldade e umas finas gotas de suor me perolavam o rosto e o pescoço. Desejava-o, e para mim era o mesmo que me odiasse. Como não o desejaria qualquer mulher se o tivesse ali diante, nu e maravilhosamente indefeso? Inclusive uma virgem, ou uma freira ou uma Santa se sentiriam atraídas por ele. E naquele momento eu não era nenhuma das três coisas. Era uma vampira cheia de sensualidade em estado puro e que magnificava cada sensação.       E pela primeira vez me dava conta de que estava desfrutando de minha nova natureza.

         Perguntei-me o que sentiria ao fazer amor com aquele homem.

         Mas me estava distraindo muito com minha recém descoberta atração pelo corpo masculino. Jameson precisava alimentar-se.

         Pu-me de pé, deixei a toalha na bacia e me dirigi para buscar umas quantas bolsas de substância. Mas então me detive e me dei conta de como seria difícil alimentá-lo. Só havia copos. E ele estava inconsciente. Talvez pudesse despertá-lo para lhe fazer beber, mas...

         Não queria lhe dar um copo frio e duro. Eu conhecia a diferença entre aquilo e o sangue quente e vivo. E desejei alimentá-lo. Queria sentir sua boca em mim, seus dentes cravando-se em minha carne, seus lábios bebendo de minha essência. Aquilo aumentaria ainda mais meu desejo, pressentia-o pelo que tinha ocorrido cada vez que tínhamos compartilhado sangue. Mas também me proporcionaria um enorme prazer.

         Armando-me de coragem, estendi-me na cama junto a seu corpo nu vestida unicamente com seu penhoar. Coloquei-o suavemente de lado e depois o baixei um pouco para que sua cabeça e seu ombro ficassem sobre meu peito. E então fechei os olhos e suspirei angustiada ao notar meus peitos sobre seu torso. Fazia muito tempo tinha decidido que não conheceria nunca aquelas sensações que me tinham estado proibidas, mas nesse momento me deleitei em cada sensação, desfrutando-as antes de passar para a seguinte. Abri o penhoar e deixei meus seios a descoberto para poder sentir melhor seu peito. E eu gostei. Acariciei-lhe a espinho dorsal acima e abaixo, fechando os olhos enquanto conhecia sua forma. Cobri-lhe as nádegas. Pareceram-me pequenas e firmes sob as palmas de minhas mãos. Apertei-as e arqueei os quadris para sentir sua ereção.

         Sim. Sua ereção. Jameson estava duro agora. Nem sequer estava consciente, mas respondia a minhas carícias como se o estivesse. Senti que o desejo corria em ambas as direções.

         Elevei uma mão e a deslizei pela perfeita musculatura de suas costas, lhe agarrando a nuca e lhe guiando brandamente o rosto para meu peito. Concentrei-me para lhe chegar à mente com a minha, do modo em que ele me tinha ensinado.

         «Alimente-se agora, vampiro. Tome o que necessitar... O que desejar... Toma- o de mim».

         E isso se fez. Sua boca deslizou por minha pele e eu fechei os olhos. Beijou-me no peito e logo abriu os lábios e seus dentes furaram minha pele tenra. Eu gritei de prazer e de dor e ele bebeu de mim como eu tinha bebido dele. Seus movimentos eram lentos e entorpecidos. Sugou-me devagar, muito devagar e com suavidade. Muita suavidade. Elevou as mãos como se fora um sonâmbulo e deu com meu cabelo, acariciando-o uma e outra vez. E meu desejo para ele crescia raivosamente, aumentado de intensidade cada vez que ele tragava.

         Senti como recuperava seu poder. Logo suas mãos ficaram em movimento, encontraram as minhas e deslizaram por meus braços até chegar aos ombros. E então levantou a cabeça e abriu os olhos. Uns olhos cheios de desejo, nublados pela paixão.       Cruzaram-se com meus só durante um instante, mas neles não havia dúvida nem vacilação. Só desejo.

         Senti surgir em meu interior uma pontada de pânico. Perguntei a que tipo de monstro teria despertado. Deveria afastá-lo brandamente de mim, sem lhe dar a oportunidade de despertar de todo.

         Jameson umedeceu lentamente os lábios e voltou a inclinar a cabeça. Então todas minhas boas intenções se dissolveram. Seus lábios riscaram um caminho por meu ombro e logo me mordeu ali com seus dentes fortes e afiados. Eu deixei cair a cabeça e gemi de prazer. E então ele voltou a mover-se justo debaixo de meu peito. Provou meus seios, meu ventre e meus quadris. E logo afundou o rosto entre minhas pernas, sugando e me mordendo inclusive ali. Quando voltou a subir lentamente por meu corpo, eu já estava agonizando.

         Jameson estirou seu corpo nu em cima do meu e inclinou os lábios sobre minha boca. Eu lhe segurei o rosto com as mãos e sussurrei:

         -Espere.

         Deus, o olhar daqueles olhos listrados... Era uma criatura totalmente consumida pelas sensações naquele momento. E eu estava muito perto de me reunir a ele naquele estado.

         -Esperar o que, anjo? - sussurrou do mais profundo de sua garganta.

         Eu inclinei a cabeça para um lado. Talvez não devesse começar aquilo nunca.

         - Está condicionado pela luxúria do sangue -consegui lhe dizer, embora não sentisse desejo de falar.

         Não queria lhe explicar nada nem lhe fazer advertências. Só queria que me tomasse. Queria senti-lo dentro de mim. E que se movesse rápido e forte.

         - Sim -disse ele-. Rápido e forte, anjo.

         OH, céus. Tinha-me esquecido de esconder meus pensamentos.

         - Por Deus, anjo... me toque. Me toque como quiser.

         Então tomou a mão e a colocou entre nós. E isso fiz. Percorri-lhe a ereção acima e abaixo com as pontas dos dedos, acariciei-a e apertei-a. E li todos e cada um dos pensamentos que lhe passaram pela cabeça. Não os estava bloqueando. A única coisa que Jameson podia pensar era em que cada sensação se via aumentada por mil desde que se transformou. E em que Rhiannon lhe havia dito que com o sexo se multiplicava por um milhão. E que ele não tinha experimentado ainda. E em como o desejava. Em como tinha sonhado fazer aquilo comigo. Então me tirou o penhoar com frenesi e me ajudou a levantar a parte superior de meu corpo para tirá-lo. Seu coração pulsava contra meu peito. Ofegava e ardia-lhe a pele. Murmurou algo e eu o beijei e o arranhei, algo um tanto incoerente com o desejo que sentia. Jameson sabia quão entristecedor podia chegar a ser aquele desejo. Eu o notava. Tinham lhe explicado pacientemente, assim sabia a que ater-se, dizia-se. Em meu caso era distinto. Só sabia era que cada célula de meu corpo exigia um alívio. Ele estava fraco pela ferida da bala, e eu estava certa de que tampouco era consciente de tudo do que estava fazendo. Mas eu já não podia parar.

         -Angélica...

         Eu o afastei um pouco, elevei-me o suficiente e abri mais as pernas, me colocando justo debaixo dele. Seus olhos nublados de paixão sustentaram os meus enquanto descia o corpo e entrava em mim. Eu me arqueei contra ele para recebê-lo enquanto me investia com mais força. Fechei os olhos e gemi. E aquele som pareceu terminar com sua última resistência. Agarrou-me pelas nádegas e me apertou contra si, afundando-se por completo em meu corpo. Eu joguei a cabeça para trás e gritei de prazer. Jameson começou a mover-se dentro de mim e eu me aferrei enquanto lhe pedia mais.

         Quando comecei a tremer e a me contorcer, e quando abri os olhos de par em par, soube. Eu tampouco tinha levantado nenhum escudo ao redor de meus pensamentos, assim soube exatamente o que estava sentindo. Estava assombrada diante do prazer daquilo. Nunca tinha experimentado nada igual, não sabia o que era o êxtase e, entretanto, dirigia-me irremediavelmente para ele.

         E quando chegou, Jameson agachou a cabeça, afundou os dentes em meu pescoço e sugou. E o orgasmo se dobrou e se triplicou e assim sucessivamente. Senti que me partia pela metade e gritei. Cravei-lhe as unhas com força no peito e apertei os quadris contra sua ereção tudo o que pude, pressionando o pescoço contra seus dentes. Então ele também estremeceu e pareceu pulverizar dentro de meu corpo algo mais que sua semente. Parecia como se tivesse derramado também a alma e eu tivesse feito o mesmo dentro do dele. O êxtase foi tão intenso que pensei que ia morrer.

         Mas não morri. Retornei muito lentamente a mim mesma e, quando o fiz, senti-me desconectada, enojoada, como se meu cérebro continuasse flutuando em alguma parte.

         Jameson estava como desacordado em cima de mim. Rodeando-me com seus braços e com a cabeça apoiada em meu peito. Absolutamente depravado.

Quando despertasse...

         Aspirei com força o ar e o soltei muito devagar. Quando despertasse aquilo ia ser um inferno. Duvidava muito que me perdoasse por aquela última transgressão.     Aquilo tinha estado muito perto da violação.

         Procurei com a mão o edredom e puxei-o para nos cobrir. Fiquei ali caida e desejei que aquele encontro sexual enfebrecido tivesse bastado para mitigar a fome que sentia por ele. Mas não foi assim. Continuava ardendo dentro de mim, crescendo. Só tinha servido para fazê-lo mais poderoso.

         Quando despertei, vi-me nua como Deus me trouxe para o mundo e enredada como a hera ao redor do corpo daquele vampiro. E me sentia mortificada.

         O pior para mim naqueles momentos era que recordava perfeitamente tudo o que tinha acontecido em cada segundo. Cada som gutural que eu tinha emitido, cada coisa que tinha feito...

         Liberei-me muito devagar de seus braços, sentei-me... E contive um gemido de horror ao me dar conta do que tinha feito. Tinha-lhe deixado o peito marcado com as unhas. E estava nu, adormecido e tão belo como um deus.

         Que Deus me ajudasse, mas senti renascer o desejo em meu interior ao olhá-lo. Acariciei-lhe o rosto, envergonhada. E então chorei. Porque não reconhecia à criatura em que me tinha convertido. Não a conhecia de nada. E não estava muito segura de querer fazê-lo.

         - Angelica... -sussurrou Jameson voltando a si e me roçando os ombros.

         Mas naquele momento eu não podia suportar seu contato de tanto que o desejava.

         -Como pude fazê-lo? - sussurrei.

         -Por Deus, Angelica...

         - Devia me advertir. Sabia o que me ocorreria se te deixasse beber de mim. Porque foi o mesmo quando eu bebi de ti. Sabia, não é verdade? Não é, vampiro?

         - Sim, conhecia o desejo que se apoderaria de seu ser se bebesse de você, meu anjo. Mas nunca pensei que fosse fazer isso. Assim, para que te advertir?

         - Devia ter feito isso –insisti, cobrindo o rosto com os lençóis-. O que me fez?

         - Eu não fiz nada, Angelica. É o que é, e é você a que me tem feito exatamente o que queria fazer. Você foi a agressora, meu anjo. Eu estava meio inconsciente.

         Virei a cara envergonhada, incapaz de negar que tinha razão. Porque a tinha.

         -Desejava-o tanto como eu, Angelica. Os dois somos adultos. O que a mortifica tanto?

         -Você me fez desejá-lo - sussurrei. Mas sabia que Jameson dizia a verdade.

         -Tentei detê-la - murmurou enquanto eu saía da cama enredada na colcha-. Mas anjo, fiquei tão louco que...

         Eu apertei os dentes e me separei dele.

         -Está enojada pelo que fez, não é, anjo? -perguntou-me-. Envergonha-se?

         -É obvio que me envergonho! - exclamei.

         -Claro. Não podia ser de outro modo. Está enojada. Deixou-se levar por um desejo físico e fez amor com um monstro. Um homem ao qual despreza.

         Eu neguei com a cabeça. Tinha-me dado conta de que não era nenhum monstro. Era minha própria lascívia o que me horrorizava.

         -Sou tão monstro como você, Angélica - assegurou com os olhos brilhantes pela raiva-. Mas pense o que quizer. Não voltarei a te tocar nunca. Não o teria feito a não ser pelo delírio em que me encontrava por ter perdido tanto sangue. Acredite, tampouco me entusiasma a idéia do sexo com uma pessoa a qual detesto.

         E dito aquilo, ficou de flanco e me deu as costas.

         Assim ele me detestava. Tinha estado a ponto de lhe dizer que me tinha enganado com ele. Que me envergonhava de minha natureza pecadora, não de desejá-lo. Porque já que tinha que desejar a alguém, parecia-me o mais natural que fosse ele.

         Mas me alegrava de não lhe haver dito nada, porque agora sabia que me odiava. Saí da sala e me dirigi ao outro quarto, me sentindo pior que nunca.

         -Vamos, vista-se. Já é de noite.

         Despertei ao sentir sua mão me sacudindo o ombro. Eu o afastei lhe dando um empurrão no ponto em que antes estavam as ataduras sem me dar conta do que fazia, mas imediatamente pisquei surpreendida e retirei a mão em gesto automático.

         - O sonho diurno é regenerativo - recordou-me Jameson-. Cura-nos.

         Sentei-me na cama puxando o lençol à altura do peito e lhe observei a cintura, esperando ver um buraco sangranto. Mas não havia nada. E então elevei a vista para olhá-lo. Estava ali de pé com um jeans limpo e abotoava devagar uma camisa. E as marcas que eu lhe tinha feito com as unhas e os dentes tinham desaparecido também.

         -Veja -disse-me-. depois de tudo, não aconteceu nada. Agora volte a ser virgem.

         -É um maldito.

         -Será melhor que se vista, Angelica - respondeu ele me dedicando um sorriso amargo -. Logo teremos companhia. Vão vir meus amigos. Uns monstros, igual a mim. Mas não fique nervosa - disse aproximando-se para me acariciar o rosto com gesto zombeteiro -Talvez queiram machucar seu lindo pescoço do mesmo modo que você me deixou ali, para que morresse, mas não os deixarei.

         Eu abri muito os olhos. Então, sem prévio aviso, abriu-se a porta de repente e me encontrei cara a cara com uma mulher que certamente seria a rainha de todos eles. Era alta, de porte régio, e tinha um cabelo comprido e muito negro que lhe chegava quase até o chão. Seus olhos escuros brilhavam de raiva. Eu retrocedi muito devagar. O coração me pulsava a toda pressa.

         - Jameson! -exclamou com voz rica e profunda - Por que quer assustá-la deste modo? Olha, está tremendo.

         - É o mínimo que merece, Rhiannon -respondeu ele me olhando com uma careta sarcástica.

         - Não tenha medo -disse outra mulher de cabelo encaracolado e aspecto miúdo entrando em sua vez-. Somos amigos. Estamos aqui para ajudar. Sério.

         - Não se lance tão rápido para consolá-la, Tamara - disse Jameson enquanto dois homens faziam também sua aparição, um deles vestido com uma capa que chegava até o chão-. Mas estou sendo tão mal educado. Eric, Roland, senhoras, eu gostaria de lhes apresentar a Angélica. A vampiresa que me atacou faz menos de um ano e deixou-me à morrer.

Todos me olharam fixamente. Eu me vrei e saí correndo da sala, fechando a porta com atrás de mim, embora soubesse que nada poderia impedir que entrassem, se quisessem.

Fiquei ali tremendo, esperando que qualquer deles jogasse a porta abaixo em qualquer momento. Meu Deus, aqueles eram seus amigos. Os vampiros protetores. Os que lhe tinham salvado a vida quando eu o deixei meio morto. Na certa que acabariam comigo.

Tremendo, procurei algo para vestir, sem perder a porta de vista. Encontrei uma espécie de vestido negro ajustado com umas tiras que cruzavam o peito e subiam pelo pescoço, e cruzavam as costas. Agora já estava decentemente vestida. Ao menos não morreria nua.

- De verdade foi ela a que o atacou aquela noite? - perguntou Tamara.

- Sim, mas o fez por ignorância - reconheceu Jameson -. Mas já lhes contarei isso com mais calma. Agora precisamos encontrar Amber Lily ...

- Amber Lily? -perguntou Tamara sonriendo-. OH, Jamey, é um nome precioso...

 

         - Sim, e ela também o é -assegurou Jameson sem poder evitar sorrir por sua vez -. Assim diz Angelica.

         - Mas antes deixe que Tamara e eu falemos com a mulher que esteve a ponto de matar de medo - interveio Rhiannon passando diante dele. Então abriu o ferrolho e entrou seguida de Tamara.

 

         -Bom, Jameson - disse Roland aproximando-se da geladeira e abrindo-a -. Onde têm escondida a sua filha?

 

Rhiannon era como uma rainha da antigüidade. Levava um vestido escarlate ajustado completamente ao corpo que lhe chegava até o chão, e um colar antigo. Tinha as unhas muito largas e pintadas de vermelho sangue. Tamara em troca parecia uma garota normal. Ia vestida com jeans, como estava acostumada a se vestir, e um pulôver azul turquesa. Parecia a mais acessível das duas.

         - Não tenha medo - disse Rhiannon com seu profundo tom de voz -. Jameson nos contou um pouco o que ocorreu. É verdade?

         Eu assenti com a cabeça, embora continusse tremendo.

         - Me... surpreendeu-me que me defendesse. Porque ele me odeia.

         - Suspeito que quer que siga pensando assim - murmurou Rhiannon dirigindo a Tamara um olhar cúmplice -. Mas você sabe que não é , ok?

         - Eu já não sei o que pensar. Nem sequer sei quem sou... Ou o que sou. Nem o que sinto.

         - OH, Angelica, está chorando... - disse Tamara aproximando-se e me abraçando como uma irmã.

         -Como pode não saber o que é, querida? - perguntou Rhiannon elevando as sobrancelhas -. É imortal! Deveria desfrutar de sua nova natureza.

         - Rhiannon, para alguns é difícil - assegurou Tamara virando-se para olhá-la com dureza -. Isto leva seu tempo, Angélica, mas logo se dará conta de que é a mesma mulher que antes. As mudanças são só físicas. Sua dieta mudou e agora é mais forte. Seus sentidos estão mais agudos e não morrerá por nenhuma dessas «causas naturais» que se levam a tantos mortais. Não envelhecerá. Mas dentro, no mais profundo de sua alma, é a mesma. Diga-me, o que fazia antes de sua transformação?

         - Era... Estava na ordem das Irmãs da Caridade – falei, secando as lágrimas.

         - Foi... freira? -perguntou Rhiannon abrindo muito os olhos.

         - Quase - respondi eu -. Estava a ponto de jurar meus votos.

         - Com razão está tão confusa -murmurou Rhiannon percorrendo a sala -. Quem a transformou? Tomou pela força, não é? Me diga seu nome e eu lhe darei uma lição.

         -Está... morto.

Rhiannon se deteve em meio da sala. Eu elevei o queixo e enfrentei seu olhar, disposta a receber um castigo por ter confessado meu sombrio segredo. Não só tinha atacado a um de seus amigos e o tinha deixado ali para que morresse, mas tinha assassinado a um dos seus.

- Matou a um homem inocente diante de mim – falou -. E logo tratou de me obrigar a fazer o mesmo. Com um menino assustado. Não pude fazê-lo. Assim...

-Matou-o, não é? - perguntou Rhiannon detendo-se diante de mim.

Eu baixei a vista e assenti uma vez com a cabeça. Fez-se o silêncio e finalmente ela esboçou algo parecido a um sorriso.

- Vá, vá - disse-me-. Parece que é feita de um material mais forte do que aparenta. – Ele merecia o que lhe ocorreu - interveio Tamara-. Não deve se culpar por isso, Angélica. Não é pecado matar para defender a outro.

- Por favor, não posso continuar falando disto - assegurei me tampando o rosto com as mãos-. Estou condenada. Todos estamos...

- Acaso acredita-se com capacidade para conhecer a mente do Todo-poderoso? -espetou-me Rhiannon com crueldade -. Como sabe que não foi ele quem nos criou? Crê que um Deus de Amor amaldiçoaria a alguém só por ser diferente?

- Por que deveríamos estar condenados só porque bebemos sangue e vivemos de noite? Os mortais comem carne, né? -acrescentou Tamara.

Eu inclinei a cabeça e as observei. Duas vampiresas bonitas e amáveis me dizendo que não eram servas de Satã. Só pessoas como as demais.

- Não sei o que dizer - assegurei tentando vê-las dessa forma-. Não tinha pensado desse ponto de vista.

- Angelica - disse Tâmara -. viemos para lhe ajudar a recuperar a sua filha. Mas... eu gostaria de ser mais que sua amiga... Se me deixar.

Nos olhos de Tamara não vi mais que sinceridade. E quando me virei para Rhiannon, dava-me conta de que ela também estava desejando me ajudar.

- É obvio que sim – disse -. E lamento o que disse antes. Têm razão. Eu não sou Deus. Não deveria me atrever a julgar a ninguém.

-Bom, já é suficiente -disse Rhiannon ao ver que a situação ficava muito emotiva-. Ali fora há uma menina que necessita de nossa ajuda. Será melhor que ponha um calçado - sugeriu olhando meus pés nus.

Tamara abriu o armário e tirou um par de sapatos negros.

-Estes irão maravilhosamente com o vestido - disse-me -. A Jamey lhe sairão os olhos das órbitas.

- Jamey -murmurei com um sorriso ao conhecer o diminutivo que lhe tinham posto seus amigos-. Não acredito que lhe interesse o mínimo o meu aspecto.

-Nisso está muito equivocada, menina -assegurou Rhiannon.

Bateram na porta, e logo se abriu. Jameson estava ali de pé, e quando nossos olhares se cruzaram me pareceu ver na sua face um pouco de preocupação.

-Vai tudo bem por aqui? -perguntou olhando Tamara e Rhiannon.

-É obvio -assegurou a rainha aproximando-se dele-. O que pensava?

-Já basta de perder do tempo - disse o homem da capa agarrando Rhiannon pelo braço-. Jameson acredita que Hilary Garner escapou com a menina. Temos que lhe seguir a pista imediatamente. Não poderá esconder-se da DIP durante muito tempo.

-Hilary tem parentes no norte -assegurou Tamara-. Estava acostumada a ir visitá-los. Estavam em uma cabana nas montanhas.

-Isso é muito vago -disse eu-. Como vamos encontrá-la?

-Se você conhecer a existência dessa cabana, Tamara -interveio Eric, o outro homem-, então é muito possível que a Divisão também a conheça.

-Nesse caso estaria refletido no expediente da Hilary. Eric, se pudéssemos entrar no computador... - Podemos entrar no banco de dados da DIP, ver tudo o que têm da Hilary e copiá-lo - assegurou Eric assentindo com a cabeça.

Enquanto discutiam o plano falando muito depressa, eu sentia que o coração me pulsava com tanta força que enjoei. Levei a palma da mão ao peito e me apoiei contra a parede.

- O que ocorre, anjo? - disse Jameson aproximando-se de mim -. O que acontece?

-Não sei. Sinto que... Temos que chegar a ela. Agora. Não podemos esperar.

Olhou-me fixamente nos olhos.

-Tem uma conexão com a menina -explicou sem afastar a vista de mim-. Sente coisas. Devemos nos meter próximo do norte agora mesmo. Poderia me dar algum dado mais? - disse virando-se para a Tamara.

-Hilary estava acostumada tomar o trem para um lugar chamado Petersville -disse a jovem fechando os olhos para tratar de recordar-. Acredito que ali alugava um carro.

-E ali será onde iremos - assegurou Jameson atirando-me um olhar.

-Nós averiguaremos o que poderemos daqui e depois nos reuniremos com vocês -disse Rhiannon com voz grave-. E cuide bem dela, Jameson. Se algo ocorrer a esta jovem, terá que responder diante de mim.

-O que é isto? -perguntou ele assombrado-. Você se transformou de repente em sua melhor amiga?

-Cai-me bem -respondeu secamente antes de abandonar a sala.

Os outros três a seguiram e me deixaram sozinha com ele. Jameson estirou a mão para me agarrar por braço mas, ante o temor de que o fizesse com brutalidade, afastei-me.

-Tinha-me esquecido que meu contato a repugna - murmurou olhando-me com os olhos escuros como carvões -.Tentarei lembrar disso, Angélica.

-Isso não é justo -assegurei eu-. Não entende que...

-Não se preocupe, anjo. Só quero que saiba que não mancharei sua pele imaculada com minhas sujas mãos nunca mais.

Eu lhe dei uma bofetada na cara. Tão forte que a cabeça lhe girou para um lado e lhe apareceu uma vermelhidão na face.

Segurou-me a mão com força e me atraiu para seu corpo. Seu peito duro se apertou contra meus seios. E embora naquele momento eu o odiasse com todo meu ser, também o desejava. E ele sabia.

-Sim - sussurrou-. Isso você gostaria.

Então me soltou de repente, deu a volta e me deixou ali sozinha. Dirigiu-se à saída que levava até o esconderijo do carro, entre os arbustos.

O canalha sabia que o desejava. E eu deveria me sentir humilhada por isso. Mas não o estava, porque eu podia ver seu desejo por mim muito claramente.

 

Jameson conduziu em silêncio durante várias horas sem saber direito onde ia. Só contava com a vaga referência que lhe tinha dado Tamara: Petersville. Uma vez ali não sabia o que fazer, mas se preocuparia quando chegado o momento. Naquele instante tinha outras coisas na cabeça.

Angelica.

Estava sentada a seu lado, pensativa e silenciosa, e ele sabia que estava preocupada com o Amber Lily. Tinha falado muito pouco desde que subiu ao carro. Mas ainda não tinha a arte dominada de guardar seus pensamentos, assim podia ler-lhe a mente.

Jameson tinha a suspeita de que embora conseguisse construir um muro sólido ao redor de sua mente, ele seria capaz de ver em seu interior. Porque havia algo potente entre eles. E estava começando a acreditar que todas suas explicações não eram mais que tolices. Porque tinha a impressão de que aquilo era algo que tinha surgido entre eles desde o começo. O que tinha permitido que seus ouvidos de mortal escutassem seus soluços sobrenaturais. Que lhe tinha impulsionado a entrar naquele edifício. Que tinha feito com que ela perdesse o controle quando tomou-a na primeira vez.

Jameson não sabia o que era exatamente. Mas havia algo. E tinha sido um estúpido. Porque pensava que era a mulher mais formosa, apaixonada e forte que tinha conhecido em sua vida. E quanto mais a olhava, mais a desejava.

Olhou-a de esguelha. Angelica estava sentada muito tensa, concentrando-se em tentar captar a presença da menina. Mas não parecia estar tendo muito êxito.

-Não há razão para pensar que não esteja a salvo com a Hilary Garner -disse-lhe Jameson-. Tamara diz que é uma boa pessoa. Temos que crer nisso.

-Já sei -respondeu ela com secura.

Mas continuou preocupando-se. Doía-lhe a cabeça até o pescoço. E a pena a estava debilitando.

- Vai ficar doente, Angélica.

-Não posso evitá-lo - assegurou ela virando-se para olhá-lo com expressão dolorida.

-Tem que fazê-lo. Tente não pensar no pior. Quando a encontrarmos, estará tão esgotada que não será de grande ajuda.

-A preocupação pode me debilitar? -perguntou Angélica inclinando a cabeça.

-Não, mas a dor de cabeça que lhe está provocando, sim.

-Tenho a impressão de que a raiva que você tem por dentro pode ser tão devastadora como minha preocupação, vampiro -assegurou ela.

-Certamente tem razão -reconheceu Jameson apertando os lábios.

-Por que os odeia tanto?

-Têm a nossa filha, Angelica. Como pode me perguntar por que os odeio?

-Já os odiava antes. Odiava-os na noite em que fui estupidamente com aquele agente. Por que?

Jameson elevou o queixo e engoliu saliva.

-Há anos tornaram Rhiannon prisioneira. Ataram-na a uma maca enquanto tomavam amostras. Aquilo foi antes de que desenvolvessem seu maldito tranqüilizante. A única maneira que tinham de nos manter muito fracos para lutar era a inanição. Não havia nada para acalmar a dor de seus experimentos. Aqueles malditos a torturaram até quase deixá-la louca. Mas ela escapou. E de passagem matou a um de seus cientistas mais importantes. Rompeu-lhe o pescoço.

-Acredito.

-Quando Tamara era uma menina pequena, seus pais morreram em conseqüência de um estranho vírus. E o médico que de algum jeito a tinha acolhido sob sua asa se ofereceu como seu tutor. Não havia ninguém mais, assim sua petição foi aceita.

Angélica abriu os olhos em sinal de interesse.

-Resultou que o doutor trabalhava em realidade para a DIP, e a morte dos pais da Tamara fazia parte de um plano bem esboçado. Sabiam que a menina tinha o antígeno da beladona, esse estranho grupo sangüíneo que permite a um humano converter-se em vampiro. E também sabiam que as pessoas com esse grupo tem um laço especial com um vampiro em particular que está acostumado a protegê-los.

-É isso certo? -murmurou Angelica brandamente-. Não tinha nem idéia.

         -Sim, é certo -continuou ele-. Esse vampiro sente uma especial afinidade por esse mortal em concreto, pressente quando está em perigo. E com freqüência tende a protegê-lo, embora o mortal nem se inteire na maioria das ocasiões. Eric tinha sido o protetor de Tamara. Salvou-lhe a vida uma vez quando era uma menina pequena. E a Divisão sabia, sabia que retornaria algum dia. Assim queriam reter Tamara como isca. E não se detiveram diante de nada.

Angélica sacudiu a cabeça, sentindo uma enorme simpatia pela menina que Tamara tinha sido.

-Mataram a seus pais... meu Deus, é horrível. E você, Jameson? -perguntou virando-se para ele-. Quando entrou em contato com eles?

-Conheci Tamara quando trabalhava para a DIP

-Ela...?

-Sim -assentiu Jameson-. Bom, recorda que foi um deles quem a criou. Ele a meteu na organização em grande parte para mantê-la vigiada. Mas não formava parte realmente da quadrilha. Davam-lhe os casos mais singelos. Como descobrir os supostos poderes psicológicos de um menino de doze anos...

-Você? -perguntou ela.

-Sim. Só que o assunto da psicologia era uma fachada. O que queriam era me ter vigiado porque eu tinha o antígeno. O maldito círculo ia começar de novo. Mas Tamara o sentiu. Os malditos me seqüestraram para dar com ela e com Eric. Roland me salvou o traseiro. Foi a primeira de muitas outras vezes. Minha mãe e eu tivemos que fugir. Roland nos levou para a França com ele, conseguiu um trabalho para minha mãe, enviou-me a um bom colégio...

-E você sabia... que eram vampiros?

-É obvio. Era pequeno, mas não cego.

-E não lhe davam medo?

-Os que me davam medo eram os malditos da Divisão.

Angelica assentiu com a cabeça, e ele teve a impressão de que lhe interessava o que lhe estava contando.

-E onde está agora sua mãe?

-Morreu alguns anos mais tarde. Roland se ocupou de mim até que esses filhos de cadela encontraram de novo nossa pista. Depois disso lhe ocorreu que estaria melhor com meu pai biológico. Assim contratou um detetive para que o encontrasse e terminei em San Diego vivendo com meu pai até que morreu, há dois anos. E meus velhos amigos da Divisão não deram comigo até o ano passado. Meteram-me em uma de suas malditas caminhonetes cinzas e me levaram a seu «centro de investigações» para fazer experiências comigo.

-Assim a Divisão foi uma cruz para você quase toda sua vida...

-Seguiram-me sempre os passos. Igual aos outros. Ninguém deveria ter que viver assim.

-E vai ser você o que terminará com isso.

-Alguém tem que fazê-lo -assegurou Jameson apertando os dentes-. Tenho uma motivação, Angelica. Nossa filha. Não vou permitir que cresça com a constante ameaça desses canalhas vigiando-a.

Ela piscou e assentiu com a cabeça.

-Assim agora já sabe por que sou um monstro -disse-lhe Jameson-. Os ódio. Quero que paguem, todos eles. E pretendo me vingar com minhas próprias mãos. Assim que minha filha esteja a salvo.

-Está permitindo que sua raiva o controle -assegurou Angelica sacudindo a cabeça-. Poderia morrer no intento.

-Nesse caso, morreria por uma boa causa.

-Sei que nunca me perdoará por ter ido com aquele agente -murmurou Angelica-. É certo, eu acreditava que você tinha sido o monstro e o agente era mais seguro. Que me transformou...

Angélica deixou que suas palavras se perdessem.

- O que aconteceu com ele? -perguntou Jameson, que podia sentir o terror que lhe suscitava só pensar nele. Nunca me contou isso, Angélica. O que ocorreu?

-Não acredito que sirva de nada lhe contar isso.

Jameson suspirou. Não ia rogar lhe que contasse. Demônios, lhe tinha contado a história de sua vida e ela não podia lhe falar daquela pequena parte de seu passado. Jameson não pôde evitar de zangar-se.

 

Durante vários quilômetros esteve muito calado, e eu também. Tinha-me contado muitas coisas nas quais pensar. Podia inclusive compreender seu ódio irracional pela DIP, mas seguia sem aprovar sua intenção de destruir a tudo o que estivesse relacionado com ela.

-Nunca lhe disse isso, vampiro - disse-lhe depois de um longo período de silêncio-. Mas lamento o que lhe fiz na noite em que nos conhecemos.

-Pois eu não.

Olhei-o e notou a minha surpresa.

-OH, acredito que ainda não estava preparado para a mudança -disse com a sinceridade que o caracterizava-, mas sou melhor que antes. Mais forte e mais inteligente. Estou desfrutando da vida como nunca antes.

Eu assenti com a cabeça, esperando que continuasse.

-Quando bebeu de mim aquela noite... Deus, não tinha nem idéia de que pudesse ser assim. Nem sequer resisti, lembra-se?

-Sim, lembro -assegurei eu-.Ao final você resistiu...

-Era puro êxtase -sussurrou Jameson-. Não queria que terminasse.

 

Eu recordava perfeitamente o calafrio erótico que me percorreu enquanto sugava seu pescoço. Aquilo me tinha assustado, encantado e confundido, tudo de uma vez. E o fato de que Jameson confessasse que tinha sentido o mesmo me desconcertou. Certamente não me odiaria tanto se tinha estado disposto a colaborar em sua própria perdição.

-Esse é o encanto dos vampiros -disse-me-. Suas vítimas se oferecem a eles de boa vontade, e morrem em meio de uma tormenta de sensações que são semelhantes ao orgasmo físico.

-Sim -sussurrei eu fechando os olhos.

Recordei o que havia sentido quando na noite anterior me tinha levado até uma cópula semelhante durante as horas prévias à saída do sol.

-Por isso não bebemos dos vivos, Angélica. Seria muito fácil deixar-se levar. Fazer-lhes mal por beber muito. Privamo-nos desse agrado para protegê-los. Mas o desejo sempre está aí. Sempre.

Eu assenti com a cabeça. O desejo estava ali, naquele momento, me queimando as vísceras. me sussurrando que embora não podíamos beber dos vivos sim podiam beber um do outro. me sussurrando que se Jameson podia sentir minha dor, também sentiria o anseia que se deu procuração de mim e que suplicava por sentir uma vez mais suas carícias, seus dentes e seu sabor.

Rhiannon me tinha advertido. E se nos deixávamos levar outra vez por aquela luxúria, só serviria para ficar mais forte a seguinte vez, e a seguinte.

Jameson limpou a garganta e me olhou de esguelha. Tinha a mandíbula apertada e os olhos brilhantes de paixão.

-O sinal -disse com voz rouca-. Petersville, oito quilômetros.

-Bem -respondi eu-.Já estamos perto.

-Teremos que encontrar um refúgio -sugeriu-. Logo amanhecerá.

Nossos olhos se encontraram, e eu lhe sustentei o olhar. Sei que viu meu desejo porque seus olhos me devolveram o reflexo.

Mas embora Jameson estivesse de acordo em que a paixão era mútua, estava muito claro que não gostava. Que não confiava em mim. Como ia ter relações sexuais com um homem ao qual eu nem sequer gostava? Não permitiria que meus instintos animais me ultrapassassem até chegar a aqueles extremos vergonhosos. Outra vez não.

E soube que ele viu a firmeza de minha decisão refletida em meus olhos. Porque os seus se obscureceram com uma raiva renovada e apertou ainda mais a mandíbula.

Deteve-se frente a uma casa arruinada e abandonada situada a dois quilômetros do grupo de casas de campo que constituíam o povoado de Petersville. A construção tinha sido modesta, uma granja de dois pisos. Não estava ruída nem destroçada, mas tinha quase todas as janelas rotas e a madeira estava cortada, cinzenta e necessitada de uma boa mão de pintura. Jameson deixou o carro na parte de atrás, de modo que não pudesse ser visto da estrada. E quando desligou o motor, ficamos uns minutos na escuridão, calados e tensos.

-Suponho que deveríamos entrar -disse finalmente com voz dura-. Para nos assegurar de que é um lugar resguardado do sol no qual possamos descansar.

-Sim.

Eu abri a porta do carro, baixei-me e caminhei pela erva seca. Não queria entrar na casa com ele. Não queria me quedar a seu lado naquele momento, quando ainda faltava mais de uma hora para que a chegada do sol me incitasse a dormir.

-Tem medo -disse colocando-se a meu lado-. Não confia em mim, verdade, Angélica?

Como lhe dizer que não era dele de quem desconfiava, mas sim de mim?

-Não se preocupe -espetou-me ao ver que eu não respondia, nem sequer o olhava-. Não voltarei a tocar em você. Já lhe havia isso dito, não?

Eu fechei os olhos e me esforcei por evitar que ele pudesse escutar meus pensamentos. Queria que me tocasse, que me fizesse perder a cabeça como já tinha feito. Queria que a decisão não dependesse de mim para não sentir a vergonha e a culpa que sabia que sentiria.

Envergonhei-me daqueles pensamentos, assim baixei a cabeça e o segui para o interior da casa.

-Há um porão. Será o lugar mais seguro - disse com frieza.

Jameson se deteve na entrada e olhou para baixo. Eu me aproximei dele tudo o que me atrevi e segui a direção de seu olhar. Não havia escadas. Deveriam existir no passado, mas só ficavam umas quantas peças de madeira destroçadas. Sem dizer uma palavra, Jameson saltou para diante e para baixo e caiu com os pés no chão.

-Vem? -perguntou se virando para mim e sacudindo o pó das calças.

Eu engoli em seco. Sabia que já era quase tão forte como ele, mas para uma mulher que ainda se sentia mortal era muito pedir que se lançasse pelo oco de uma escada inexistente. Mas apertei os dentes, fechei os olhos e me lancei.

Jameson deu um passo atrás, mas de todas maneiras caí justo em cima dele. Podia cheirar a essência masculina e exótica que emanava de seu corpo, e podia escutar o ritmo do sangue que corria por suas veias debaixo de sua pele. Eu também tinha o pulso acelerado.

Jameson pôs as mãos nos meus ombros e me levantou com suavidade enquanto saía de debaixo de mim. Limpou a garganta mas não me olhou.

-Precisa praticar mais.

Não era prática o que eu necessitava, e sim escapar dele. Seguiria acordada ainda uma hora mais, e aquele desejo por sentir suas carícias acabaria me voltando louca.

-Acredito que deveríamos nos separar -disse com voz trêmula.

-Acredita nisso?

Assenti com a cabeça e me obriguei a olhá-lo.

- Assim poderíamos cobrir mais terreno. Encontraríamos antes Amber Lily.

- Quer dizer que você a encontrará antes. É a que tem a conexão com ela. E logo o que? Desaparecerá com a única filha que eu poderei ter na vida?

- Dou-lhe minha palavra de que não fugirei -assegurei elevando o queixo.

- Ah, mas agora é uma dos condenados, não é certo, anjo? Um monstro como eu, sem alma e sem moralidade. Que vale agora sua palavra?

- Não vou fugir -repeti-. Além disso, você diz que entre nós há uma conexão. Decerto que se eu escapar você me encontrará.

- Encontraria - assegurou Jameson com tranqüilidade-. Mesmo que tivesse que percorrer para isso a Terra inteira, encontraria-a. Não duvide nem um momento.

- Então, por que não me deixa partir?

- Porque não quero ter que procurar por você. E porque não confio em você. Não quero que cometa um engano que provoque a morte de minha filha.

Eu baixei a cabeça, fechei os olhos e me sentei no chão de concreto.

- Então, as coisas que disse no carro eram mentira. Devia tê-lo suposto.

- Falemos de mentiras, anjo? -disse aproximando-se para sentar-se a meu lado.

Eu ergui a cabeça e o olhei. Vi a raiva refletida em seus olhos.

- Eu não menti – falei.

- Claro que sim. Não quer se afastar de meu lado pelo bem da menina, mas sim pelo seu próprio. Não pode suportá-lo, verdade, anjo? Uma Santa como você... o estômago se lhe revolve por sentir-se tão atraída por um monstro como eu, não é?

Eu afastei o rosto, mas Jameson me apertou o rosto com a palma para me obrigar a olhá-lo.

-Acha que não posso vê-lo? Deseja-me. Queima-se por dentro por mim. Não pode deixar de pensar em minhas mãos sobre seu corpo. Em minha boca sobre a sua.

Jameson sorriu amargamente e sacudiu a cabeça. -O espírito da pobre Angelica está em luta com sua carne, e ela está desgostosa por isso.

-Está equivocado -disse-lhe-. Não te desejo! Nem sequer quero estar na mesma habitação que você! Odeio-o!

-Já sei que me odeia -sussurrou ele-. Mas isso não importa, não é?

Eu neguei com a cabeça, pus-me de pé e lhe dei as costas. Mas ele estava justo detrás de mim, tão perto que podia sentir o calor de sua pele. Afastou-me o cabelo da nuca com uma mão e inclinou a cabeça até que seus lábios roçaram levemente meu pescoço, mas sem tocá-lo. Estremeci-me e todo meu ser suplicou que me tocasse.

Ele moveu o quadril e sua ereção se apertou contra minhas costas. E logo se inclinou um pouco mais e seus lábios me roçaram o pescoço. Eu deixei de lutar e suspirei profundamente, deixando cair a cabeça para trás e para um lado, lhe oferecendo meu pescoço sem condições.

-Pensei que não quisesse estar na mesma casa que eu - sussurrou apenas sem fôlego.

-Por favor... - gemi eu do mais profundo de minha garganta.

           Então Jameson se separou de mim bruscamente e passou as mãos pelo cabelo.

           -Quem está mentindo agora, anjo? -grunhiu.

           Eu rodeei o corpo com os braços e fui caindo lentamente de joelhos. Inclinei a cabeça e chorei de frustração.

           Jameson continuou de pé, me olhando.

         -Acredite, para mim é igualmente repugnante desejar a alguém a quem não posso suportar ter diante de mim...Você não vai a nenhuma parte, assim ambos teremos que viver com esta situação.

                  Eu me pus de pé. A raiva e a indignação me deram força que sua presença me tinha roubado tão somente uns segundos atrás. Andava em redor e o olhei aos olhos.

-Nem sonhe - disse-lhe.

Então me virei para a porta que havia na parte de acima, dobrei os joelhos e saltei. Para meu assombro, foi tão singelo como esquivar um atoleiro na calçada, e aterrissei no piso de acima. E então saí correndo da casa.

 

O vento soprava em meus ouvidos e me alvoroçava o cabelo enquanto corria. Sabia que Jameson corria detrás de mim, mas não me voltei para confirmá-lo. Só corri, e em questão de segundos me esqueci de meu perseguidor. Encontrei um novo prazer em correr assim rápido, tanto que tudo o que havia para mim ao redor ficou impreciso, mas uma espécie de sistema de navegação interior me servia para me esquivar dos obstáculos e dos possíveis perigos do caminho. Corri através do bosque durante muitos quilômetros.

E logo me detive. Nem sequer estava cansada. Incrível. Sentia o sangue renascer em minhas veias, o coração pulsar seguro e forte dentro de meu peito. Sentia-me forte. Mais forte que nunca em toda minha vida.

-Maldita seja, Angélica, que diabos acha que está fazendo?

Ah, sim. Meu lúcifer me tinha capturado finalmente. Virei-me para olhá-lo de frente.

-Não pode me reter contra minha vontade -protestei-. Sou tão forte como você.

Então, naquele momento escutei algo. Um pranto muito longínquo. O pranto de... um bebê. O coração me deteve um instante. Mas os soluços se foram fazendo mais altos e insistentes.

-A menina -sussurrei.

Jameson olhou-me nos olhos. De seu olhar tinha desaparecido qualquer sinal de animosidade. Como se fôssemos um, corremos o mais rápido que pudemos em direção a aquele som. Baixamos quase voando por uma colina até que chegamos a uma estrada de cascalho.

-Ali! -gritou Jameson.

Virei-me e vi uma mulher caída muito quieta no chão. O pranto se escutava agora com mais força que nunca. De um salto me coloquei ao lado da mulher e lhe levantei a cabeça e os ombros do chão para sacudi-la.

-Acorde, mulher! Onde está? Me diga onde está a menina!

A mulher abriu lentamente os olhos e os manteve muito abertos. Um olhar de pânico se apoderou deles enquanto escaneava a zona. E logo gritou e levou as mãos ao rosto. Gritou e gritou e gritou.

Eu olhei na direção aonde ela estava olhando e então o vi. O carro completamente ao reverso, dado a volta. O bebê preso dentro, pendurado do cinto e chorando de medo. As chamas lambendo o céu da noite da base do carro, onde estava o tanque de gasolina.

-Minha menina! -gritava a mulher uma e outra vez Por favor, salvem a minha menina!

Sua menina. Não a minha. O pranto que eu tinha ouvido era o do bebê daquela mulher que tinha sofrido um acidente de tráfico.

-Depressa! -gritou lutando por ficar em pé Depressa, pelo amor de Deus! O depósito!

E então começou a balbuciar em meio de um torvelinho de soluços ininteligíveis.

Não podia acreditar o que estava vendo. Jameson tinha subido ao carro e estava tentando abrir a porta mais próxima ao bebê. As chamas o rodeavam perigosamente. E eu já tinha comprovado os efeitos explosivos do fogo nos vampiros.

Pus-me de pé, deixei a mulher ali e corri para o carro. Jameson arrancou a porta e a lançou através da noite. Se a luz do dia tivesse permitido que aquela jovem mãe visse sua força, teria desmaiado. Eu estive a ponto de fazê-lo quando vi quão longe que jogou aquele pedaço de metal. E então Jameson entrou e começou a manobrar as ferragens do cinto que tinham aprisionado o bebê. Teve que parar por pelo menos três vezes para apagar as chamas que lhe cercavam a roupa. Mas sempre voltava pelo bebê.

Aproximei-me mais e cheguei ao carro bem a tempo de vê-lo sair com a menina nos braços. Correu para mim, passou-me o bebê e caiu de joelhos. Foi então que me dei conta de que sua delicada pele de vampiro estava se queimando. Dela saíam espirais de fumaça como se fossem fantasmas voando pelo céu da noite. Seus olhos negros se cravaram nos meus durante um instante e vi a agonia refletida neles. E logo senti as marcas quentes lhe atravessando a pele como se fosse comigo. Jameson ficou de pé e se dirigiu para um arroio que corria ao longe. Escutei o som de seu corpo ao lançar-se nele e o calor desapareceu de meu corpo. Mas não a dor.

A menina resmungou, chamando minha atenção. Olhei-a e a embalei brandamente entre meus seios. Mas me doía o coração. Tinha o cabelo vermelho, não negro. E os olhos azuis. E a firmeza de suas faces e a papada me fizeram pensar que era bastante maior que minha Amber Lily. Talvez estivesse nascendo, inclusive, os dentes.

Uma mãozinha gorducha se ergueu para me agarrar uma mecha de cabelo.

- Por favor...

Ergui os olhos. Era a mulher. Ela tinha se arrumado para ficar de pé outra vez. Tinha-a diante de mim, com o rosto arranhado, o cabelo revolto e os lábios sangrando. Estirou os braços para sua filha com os olhos cheios de lágrimas.

Eu fechei os olhos e engoli em seco. Sua filha. Sua filha preciosa, não a minha. Inclinei-me para beijar o rostinho rosado da menina e depois a pus nos braços da mãe.

Ela a abraçou com força e inclinou a cabeça sem deixar de soluçar. Então se ouviram sirenes na distância. Um veículo detendo-se no meio-fio. Luzes brancas iluminando a escuridão, poluindo sua beleza sobrenatural. Luzes. Umas luzes que não pertenciam à noite. Eu era uma intrusa.

Olhei uma vez mais a mãe e a filha, abraçadas e soluçando. E logo deslizei entre as sombras, para o lugar ao qual pertencia.

 

Jameson estava metido até o pescoço nas geladas águas daquele arroio. Deixou que o frio se apoderasse dele, que abrisse caminho entre seus poros para acalmar a espantosa sensação de queimação. Aliviou-lhe um pouco a dor. Mas não o suficiente.

Deus, como doía.

Jameson fechou os olhos com a esperança de que a água fria o anestesiasse, mas sabia que não podia ser. O melhor que podia fazer era encontrar um refúgio e deixar que o sonho diurno fizesse seu trabalho.

E assim que morresse o sol iria em busca de Angelica. Esperava que não tivesse encontrado a sua filha e a tivesse levado para algum lugar desconhecido. Queria ver Amber Lily e estreitá-la entre seus braços antes de partir para terminar com a DIP

O certo era que não podia culpar Angelica por vê-lo como um pai inadequado. Um vampiro sem sentimento de culpa devia lhe parecer muito estranho. Alguém que desfrutava de sua natureza e que não retornaria ao estado mortal embora fora tão simples como tomar um comprimido.Quando aquilo era o que ela desejava mais que nada no mundo.

O som de um suave chapinhar fê-lo virar rapidamente a cabeça. E então piscou várias vezes para convencer-se de que não estava tendo visões. Angelica nadava pelo arroio. A saia de seu vestido negro, tão sexy, estava à altura de seu quadril enquanto se aproximava dele. Deteve-se a seu lado. Jameson a olhou nos olhos e calculou a possibilidade de fazer algum comentário sarcástico respeito de imaginá-la tão longe naquele momento.

Mas não pôde. Porque o que viu em seus olhos foi desolação. Ela o olhou com expressão desolada e os olhos frágeis. Mas não chorou. Lutou para conter as lágrimas corajosamente. E o conseguiu.

Diabos, Jameson conhecia bem aquela angústia amarga. Ele também a sentia. Ao princípio, quando escutou o pranto daquele bebê, pensou que...

Pensou que por fim tinha encontrado a sua filha. E quando tirou aquele bebê nos braços, embora soubesse que não era sua menina, esteve ao mesmo tempo no céu e no inferno.

Angelica deixou escapar um suspiro e pôs as costas retas. Parecia uma deusa surgindo de entre as águas.

-Pode se pôr de pé? - perguntou-lhe Angelica-. Caminhar?

Perguntou com voz cortante como o gelo. Ela o odiava. E Jameson não a culpava por isso depois do que lhe tinha feito no porão. Mas estava meio cego de desejo por ela. Morria para tê-la. Fantasiava com as coisas que gostaria de fazer. Sabia perfeitamente que Angelica sentia o mesmo... E também sabia que sentia repulsão por desejá-lo assim.

Jameson se havia sentido excitado, frustrado e furioso com toda aquela situação. E quem melhor que ela para pagar o pato?

Angelica colocou a mão no seu ombro.

-Perguntei-lhe se pode andar, vampiro. Responda.

-Posso andar -assegurou ele ficando em pé para demonstrá-lo.

-Então será melhor que o faça. E depressa. Logo amanhecerá.

Jameson entreabriu os olhos e inclinou a cabeça para um lado.

-Acreditei que tinha decidido ir por sua conta. Pensei que a estas alturas estaria já a caminho de Tombuctú.

-Pois já vê que não.

Angelica ia caminhando muito perto dele, com a mão colocada perto de seu cotovelo para sustentá-lo para evitar que caísse. Caminhava devagar, arrastando o vestido pelas águas escuras. Jameson se perguntou por que não o teria deixado. Por que o estava ajudando. E por que se zangava tanto por conhecer seus verdadeiros sentimentos. Os emocionais, não os físicos.

Para seu horror, cambaleou assim que pôs o pé fora da água. Sem a ajuda do gelo, a dor tinha retornado.

Mas seu anjo estava ali mesmo, e lhe passou o braço pela cintura para ajudá-lo. Abraçou-o com tanta força que parecia que realmente se importava. Piscava cada vez que a dor se fazia mais intensa, e Jameson soube que ela também estava sentindo.

Não podia ir muito longe, isso sabia. Não tinha a força e nunca conseguiria chegar à granja abandonada. Não o conseguiria antes do amanhecer. Teria que ir sozinha. Tinha que lhe dizer que...

 

Mas não tinha com que preocupar-se. Uns minutos mais tarde encontraram um refúgio, uma cova diminuta escavada na rocha, aos pés de uma colina. Angelica o ajudou a entrar até o mais profundo, e logo o deixou sobre o chão frio e rochoso. Então saiu a toda pressa, deixando-o sozinho. Retornou uns minutos mais tarde com os braços carregados de lenha de pinheiro. Trazia metade da árvore, pelo menos. Colocou os troncos à entrada da cova e fez um muro sólido com eles para evitar que entrasse o sol. Logo se aproximou de Jameson e entreabriu os olhos enquanto observava as marcas vermelhas que marcavam seu corpo.

-Isto o matará?- sussurrou-lhe olhando-o nos olhos.

-Não terá tanta sorte -respondeu ele.

-Dói-lhe demais.

-E em você também - assegurou Jameson sentando-se um pouco para lhe ver o rosto.

Ela moveu-se rapidamente, mas ele teve tempo de ver-lhe as lágrimas.

-A dor desaparecerá com o sono, meu anjo. Só faltam uns minutos para que amanheça. Mas a sua a perseguirá em sonhos, não é?

Os ombros da Angelica estremeceram, e quando se virou para olhá-lo de novo tinha as faces úmidas e o corpo tremente.

-Pensei que era ela -sussurrou-. Quando escutei aquele bebê chorando, pensei...

-Sei -disse Jameson com voz algo trêmula-. Sei, meu anjo. Eu também pensei.

Angelica inclinou a cabeça quando já não pôde controlar mais as lágrimas, e Jameson não foi capaz de evitá-lo. Rodeou-lhe o corpo tremente com os braços e a atraiu para si. E a abraçou enquanto lutava para conter suas próprias lágrimas. Disse a si mesmo que odiava aquela mulher. Odiava-a porque sentia asco por ele.

Ao diabo com aquilo. Voltaria a odiá-la mais tarde. Naquele momento não podia. Era impossível. Acariciou-lhe o cabelo sedoso e os ombros trêmulos, embalando-a entre seus braços até que as agulhas de pinheiro da entrada começaram a iluminar-se com a luz do sol nascente. E continuou embalando-a até que ela dormiu. Uns instantes mais tarde, ele fez o mesmo .

Não era um monstro. Despertei aninhada entre seus braços com a cabeça apoiada sobre seu peito. E soube que o tinha julgado mau. Desde o começo o tinha obrigado a ficar na defensiva, atacando-o e acusando-o, e ele me tinha mostrado em resposta seu lado pior. Dava-me conta então que tinha seus motivos para me desprezar.

Jameson sabia que o bebê que chorava não era sua filha. Tinha sabido antes de aproximar-se do carro, mas tinha ido de todas formas e se arriscou a morrer para salvar o bebê de uma desconhecida.

Eu tinha conhecido homens mortais, homens cristãos, que não teriam feito o mesmo que aquele demônio sombrio. Não era a encarnação do mal. Era simplesmente um homem, pensei erguendo a cabeça para poder estudar seu rosto. Um homem cheio de ira e de sede de vingança, sim, mas também um homem de bom coração e grande valor.

E de belos olhos castanhos com raias de ébano que brilhavam sob a luz da lua. E que me desprezava com razão.

Jameson abriu os olhos e se mirou-se nos meus.

 

-Despertou antes de mim - disse ainda meio sonolento-. Isso não é normal.

-As queimaduras devem tê-lo debilitado mais do que pensava.

Levantei-me muito devagar, lamentando ter que afastar meu corpo daquele maravilhoso refúgio que era seu peito.

-Acho que tem razão. Ainda estou um pouco enjoado.

Eu virei a cabeça e o olhei fixamente nos olhos. -Talvez precise...

Seu olhar cravou-se em meu pescoço durante um instante antes de fechar os olhos e torcer o nariz.

-O que preciso é sair desta cova.

Jameson ficou de pé e se aproximou da entrada. Bastou um golpe de seu braço poderoso para lançar pelos ares a improvisada porta de pinheiro. Logo saiu, inclinou a cabeça para trás e abriu o peito para respirar a brisa da noite. Eu fiquei na entrada olhando-o, admirando-o, e senti um calafrio na base do pescoço. Mas então me dava conta de que não era só excitação o que estava ocorrendo aos meus sentidos. Havia algo mais. Algo brilhante.

E o reconheci. Minha filha... Estava perto. E estava bem. Contente e a salvo. Quente, confortável e sem medo. Pouco a pouco renasceu em mim a esperança e a certeza de que antes de que acabasse a noite abraçaria aquele bendito pedacinho de carne. E aquela certeza me deixou quase morta de emoção.

Saí da cova e corri ao lado do Jameson.

-Ela está bem - disse-lhe, e ele se virou para me olhar com o cenho franzido-. Amber Lily está bem, a salvo. E estamos muito perto dela, Jameson. Posso senti-la.

Ele sorriu de orelha a orelha. Eu não recordava haver visto nunca antes um sorriso assim. Aproximou-se de mim e me tocou as mãos.

-Tem certeza?

-Sim – respondeu -. Estamos muito perto. Vamos encontrá-la logo. Sei disso.

-Bem - murmurou Jameson fechando os olhos e exalando um suspiro -. Outros chegarão em qualquer momento. Encontraremo-nos com eles na casa abandonada em que deixamos o carro.

- Como sabe que estão em caminho? -perguntei-lhe inclinando a cabeça para um lado.

- Angelica, não somos os únicos vampiros que podemos nos comunicar sem palavras -respondeu Jameson após soltar uma gargalhada-. Embora... acredito que entre você e eu é mais poderoso. Mas feche esses olhos de ametista, meu anjo. E pense neles. Fale com eles.

-Mas se nem sequer estão aqui.

-Tente.

E isso fiz. Fechei os olhos e desenhei o rosto amável de Tamara em minha cabeça.

«Tamara? Está aí? Pode me ouvir?»

«Verei você dentro de uma hora mais ou menos, Angelica»

Escutei a voz doce da Tamara com toda nitidez, como se me estivesse falando ao lado. Abri os olhos em gesto de surpresa.

« Percebeu algo?», perguntei-lhe, sentindo de novo aquela esperança.

«Temos a cabana localizada. Quando voltarem ao carro já estaremos ali>

-Acabo de falar com a Tamara! -exclamei olhando ao céu-.E está a muitos quilômetros de distância. Dá-se conta de quão incrível é isso, Jameson?

-Sim, dou-me conta -respondeu com um sorriso.

-Mas, sabe o que mais me surpreende? - perguntei suspirando antes de olhá-lo-. Que sou mãe. Não estava em meus planos, sabe? Nem me tinha passado pela cabeça. Mas estou começando a pensar que... Que talvez esse porco me tenha feito um favor aquela noite. Tremi ao recordar aquela imagem aterradora. Mas me tirei isso da cabeça.

- Agora sou mãe, e não posso me imaginar não sendo.

- Está... mais segura, Angelica -murmurou Jameson me segurando os ombros e me esquadrinhando o rosto.

-Se - reconheci eu assentindo com a cabeça-. Muito segura. Já é hora de deixar de choramingar e enfrentar tudo, não é?

- Nunca me falou naquela noite -disse-. Eu lhe contei todos meus segredos, anjo.

 

Eu assenti com a cabeça. Era o momento. Talvez o que aquele homem e eu precisávamos era começar de novo. Talvez se o tratasse como um homem e não como um monstro poderíamos chegar a nos entender.

Assim lhe contei o ocorrido aquela noite. Como saí sozinha do convento, e como aquele monstro estava me esperando no beco, e como tentei me defender, caída no lixo.

-Ele a. .. obrigou a receber o presente sombrio?

Eu assenti com a cabeça, incapaz de olhar Jameson.

-E logo a deixou sozinha, sem lhe explicar nada de sua nova natureza?

-Não. Queria me ensinar. Uma vez me disse que alguns vampiros têm uma união especial com um humano. Acredito que eu era o seu. Disse-me que tinha me seguido durante toda minha vida. Mas era um ser retorcido, doente. Minha primeira lição ia ser como matar um jovem inocente. Primeiro me mostrou a técnica atacando um ancião assustado.

Elevei a cabeça para olhar Jameson nos olhos.

-Agarrei uma parte de madeira incandescente e o golpeei o mais forte que pude. O golpe o fez cair de joelhos, mas o que o matou foi o fogo.

- Matou-o...- murmurou entre dentes me olhando sem acreditar -. Bem. Assim me economizou o trabalho de fazê-lo eu.

- Pensei que Deus tinha me castigado - continuei dizendo -. Pensei que só poderia sobreviver matando. E jurei que não o faria. Assim que me escondi para esperar a morte. Não sabia que a sede de sangue seria tão forte.

-Não sabia nada - refletiu Jameson.

-Mas decidi aprender - assegurei eu com firmeza -. Porque agora sei que ela está a salvo. Sei, e pela primeira vez desde aquela espantosa noite... Sinto-me bem.

Aquilo era mentira. Não era a primeira vez. Havia-me sentido muito bem em outra ocasião. Quando ele me tinha feito experimentar aquele êxtase sem limites.

Virei a cabeça, porque senti que Jameson estava tentando ler o meu pensamento. E então me pus a caminhar depressa em direção à casa abandonada em que tínhamos deixado o carro. Ele me alcançou imediatamente, e então começamos os dois a correr em uma provocação silenciosa. Ao chegar me deixei cair de costas sobre a erva, olhando as estrelas e pensando que nunca antes tinha apreciado a beleza etérea da noite.

Jameson ficou olhando-a. Sim, estava emocionada pela sensação que tinha experiente quando aquele sexto sentido lhe tinha assegurado que a menina estava bem, a salvo e muito perto. Mas Jameson tinha a impressão de que havia algo mais. Que possivelmente Angelica estivesse começando a reconciliar-se com sua nova natureza.

         E ao ir afastando pouco a pouco seus medos e suas inseguranças, estava começando a ressurgir a mulher que tinha sido antes.

         A mulher assustada e se desesperada que conhecia não era nem a sombra da verdadeira Angelica. Deus, e ele tinha pensado que não havia nada mais.

         Agora estava deitada na erva, seu cabelo sedoso esparramado a seu redor. A luz das estrelas se refletia nos seus olhos. E Jameson esteve quase gemendo diante da força do desejo que sentia por ela. Esteve a ponto de cair em cima dela, ali mesmo

         -Haham! -pigarreou Roland.

         Jameson se virou e encontrou seu amigo ali mesmo, detrás dele, e se perguntou se teria lido seus últimos pensamentos.

         -Já estão aqui. Bem.

         -Tem melhor aspecto, passarinho - disse Rhiannon deitando na grama ao lado de Angelica.

         -Está muito perto - assegurou a jovem levantand-se com um sorriso-. Pressinto.

         -E? -animou-a a continuar a outra mulher.

         -E... E ao saber que está a salvo... Não sei. É como se me tivessem dado uma pausa de minha preocupação por ela. E tenho feito o que me disse, Rhiannon. Permiti-me... desfrutar do que sou agora.

         -E faz muito bem, garota.

         -Onde estão Eric e Tamara? - perguntou Jameson afastando os olhos de seu belo rosto e virando-se para Roland.

         -Foram vigiar o terreno enquanto esperam nossa chegada. Pensamos que era melhor que fossem se adiantando se por acaso fugissem outra vez com a criança. O lugar está a poucos quilômetros daqui.

         - Temos pressa -interveio Angelica olhando-o com olhos suplicantes.

         Jameson sentiu que lhe apertava o coração. Maldição, por que não podia aceitar a amizade que ela parecia estar lhe oferecendo e deixar as coisas assim? Por que tinha que desejar muito mais?

         -Quero estreitá-la entre meus braços -continuou Angelica-. Por favor.

         Ele assentiu com a cabeça e desviou o olhar, porque não queria ver o amor que brilhava nos olhos da Angelica. Amor por sua filha. Encaminhou-se para o carro com Angelica ao lado, mas se deteve o dar-se conta de que Roland não os seguia.

-O que está esperando?

         - Já sabe o que penso desses cachorros - falou seu amigo acenando para o carro com um gesto-. A viagem até aqui já foi bastante estressante. Rhiannon e eu chegaremos por nossos próprios meios. Atalharemos pelo bosque e certamente chegaremos antes que vocês

         -É mais rápido que um carro? -perguntou Angelica inclinando a cabeça-. Então deve ser muito velho.

         -Senhorita, sou um ancião - respondeu Roland com um sorriso-. E entretanto minha querida companheira é vários séculos mais velha que eu.

         -Sou a filha de um faraó, menina -assegurou Rhiannon aproximando-se para agarrar o braço do Roland-. Quando construíram as pirâmides eu já tinha nascido. Contar-lhe-hei isso algum dia.

         - Gostaria mesmo - pediu-lhe Angelica abrindo muito os olhos.

         Logo deu a volta e se dirigiu ao carro. Roland tinha dado a Jameson a direção, assim que este se despediu de seus amigos e se colocou à frente do volante.

 

         Estacionamos um pouco mais longe e depois deslizamos pelas sombras da noite para a cabana. Estava construída no alto de uma colina, em meio de um bosque de pinheiros que alagava o ar com sua fragrância.

         Jameson me segurava um ombro enquanto nos movíamos em silencio através do bosque. Ao nos aproximarmos da cabana distingui o brilho dos abajures de azeite nas janelas e a suave espiral de funo que saía flutuando pela chaminé. Cheirava a madeira ardendo.

         Mas havia algo... Que não cheirava bem.

         -Tamara e Eric não estão aqui - disse Jameson girando-se para mim com o cenho franzido.

         Eu fechei os olhos e tratei de me concentrar em minha filha. Ainda podia sentir a calma, a segurança do ambiente que a rodeava. E também sua presença.

         Mas não estava tão perto como deveria estar.

         O coração parou-me. Toda a emoção se esvaiu dentro de mim como se tivesse uma adaga cravada no peito.

         -Não está na cabana -sussurrei-. chegamos muito tarde, Jameson.

         -Não, ouça - falou ele negando com a cabeça-, talvez Hilary tenha ido em busca de provisões ou algo assim. Com certeza que Eric e Tamara a acompanharam.

         Seus olhos pareciam esperançosos, e conseguiu me contagiar com aquela sensação.

         -Você acredita?

         - Claro que sim, anjo. Vamos nos aproximar um pouco mais, certo?

         Eu assenti com a cabeça e engoli as lágrimas. Abandonamos o bosque e saímos ao claro. A casa parecia completamente vazia, sem vida.

         Até que uma luz cegante apontou-nos aos olhos e escutamos uma voz grave gritar:

         -Se derem um passo mais mataremos a menina!

         O pânico me cravou os pés ao chão, mas Jameson se colocou a toda pressa diante de mim em um gesto protetor.

         -Recue lentamente -sussurrou-me.

         Eu fiz exatamente o que me dizia, sabendo que o que procurava era o amparo das árvores. Agarrei a cintura dele enquanto andava para trás.

         -Falei quietos! Não se movam ou a menina morrerá!

         -Mentira! -exclamei-. Não têm a minha filha!

         Apesar de minhas valentes palavras, fiquei quieta, duvidando de meus próprios instintos.

         -Aqui não - respondeu a voz -, mas estamos com ela. Adiante, ponham-se a correr e o comprovarão.

         Entortando os olhos um pouco através da luz distingui as formas de vários homens. E então um deles deu um passo adiante e eu gritei. Porque estava com a doce Tamara. A cabeça da jovem pendia para diante, e parecia que era seu captor o que a estava sustentando, e não suas próprias pernas.

         -Tam! -gritou Jameson lançando-se para diante, mas detendo-se quando o homem colocou a seu amiga uma navalha no pescoço.

         -Fique onde está ou a verá sangrar!

         Jameson fez o que lhe diziam, e eu pude sentir sua angústia. Compartilhei-a com ele.

         -Não lhe faça mal -disse Jameson com voz forte e clara-. Deixa-a partir.

         Deu um passo pequeno para diante com os braços ao alto, em gesto de rendição.

         -Deixa-a partir e tome a mim em seu lugar. -Tomaremos a todos -afirmou o agente.

         O estômago se me retorceu de terror quando reconheci o poderoso tranqüilizante que continham aquelas armas. De onde estava agora podia ver os corpos de Eric e de Roland atirados no chão. Estavam inconscientes... Ou talvez mortos. E justo detrás deles estava Rhiannon, a mais régia de todos os vampiros. Vários homens carregavam seu corpo para a parte de trás de uma caminhonete.

         Dava um passo adiante enquanto sentia crescer em meu interior uma fúria desconhecida.

         « Corre, Angelica!», gritou-me a mente do Jameson. « Pode fugir! Vamos, encontre a nossa filha e fique o mais longe possível deles!»

         -Não posso deixá-los assim -sussurrei automaticamente em voz alta.

         « Vá! É a única oportunidade que tem agora nossa filha! Se prenderem a todos, será sua para sempre. Faça-o, anjo, corra!»

         Tremendo dos pés à cabeça, virei-me e corri para as árvores. Escutei o disparo e olhei para trás bem a tempo para ver o Jameson interpor-se no caminho do dardo que ia dirigido a mim. Cravou-se-lhe no peito e o vi cair ao chão. Gritei.

         «Corra...», dizia enquanto seus pensamentos se debilitavam como conseqüência do dardo. «Pelo amor de Deus... corra».

 

E corri.

         Corri através do bosque sem direção. Os ramos me golpeavam o rosto e me faziam farrapos a roupa. Corria utilizando toda minha força vampírica para fugir deles. Jameson tinha razão. Tinha que encontrar Amber Lily e salvá-la das garras daquelas bestas. Mas outro pensamento me rondava a cabeça enquanto atravessava grosseiramente as profundidades do bosque. Tinha que permanecer livre para poder voltar. Por ele. Por todos eles.

         Hilary Garner correu. Tinha-os visto chegar, rodear a cabana que tinha sido o único refúgio seguro que lhe tinha ocorrido para proteger a menina. E que Deus a ajudasse, tinha raptado o bebê justo diante de seus narizes no White Plains. Não tinha nem idéia se a mãe continuava ainda viva. Mas o pai sim. Tam tinha recebido a mensagem em código que lhe tinha enviado Hilary e lhe havia dito que Jameson estava a caminho. Mas lhe tinha sido impossível esperá-lo.

         Cada dia, Hilary tinha observado a recém-nascida. Aqueles olhos escuros, o cabelo de seda, as mãos pequenas... adorava-a. E não podia esperar. A lista de experimentos que ia levar a cabo a DIP já estava terminada. E Rose Sversky já tinha o primeiro deles consertado. Hilary não podia esperar.

Assim levou-a para a cabana. E os desgraçados a tinham encontrado. Um deles deve ter-se dado conta de que escapou também da cabana, porque podia escutar como se aproximavam com pisadas fortes, rompendo os galhos do chão enquanto corriam para ela.

         Hilary estreitou com força à menina entre seus braços.

         -Não se preocupe, benzinho -sussurrou-lhe-. Hilary cuidarei de você. Prometi a sua mamãe. Prometi que lhe cuidaria até que seu papai viesse a lhe buscar. E isso é o que vou fazer.

         Correu mais depressa esquivando-se das árvores, mas os passos se aproximaram mais e se fizeram mais sonoros. Ouviram-se disparos no meio da noite e Hilary sentiu como se lhe tivessem golpeado as costas com vários chicotes.

         -Basta, idiotas! -gritou um homem.

Hilary tentou avançar, mas não sentia as pernas. Dobraram-se-lhe e caiu de joelhos. E logo depois de bruços. Inclinou a cabeça para beijar a facea do bebê. -Cumprirei minha promessa -sussurrou.

         Antes de que pudesse terminar a frase, dois homens se inclinaram sobre ela e lhe tiraram a menina dos braços.

         -Tome -disse um deles passando-a ao outro-. Whaley disse que chamassemos por rádio quando a tivéssemos e que a colocássemos imediatamente no carro em direção à sede central. Sem paradas. Sem desvios. Entendido?

         Hilary virou fracamente a cabeça e viu o outro homem assentir com a cabeça e partir com a menina.

         -Não... não conseguirá levá-la de novo à sede -conseguiu dizer-. Não o permitirei.

         -Não acredito que você sirva de muita ajuda para ninguém, Garner.

         -Tenho que fazê-lo -sussurrou ela-. Prometi.

 

         O homem sacudiu a cabeça em gesto de desgosto e deu a volta. Deixou-a ali.

         -Aqui já acabou -disse aos outros-. Voltemos para a casa e levemos os outros à fossa.

         -Mas ainda tem um solto, senhor.

         -Com um podemos -respondeu o outro-. Mais tarde. Primeiro nos encarregaremos dos outros.

         Hilary o escutou partir. Seus passos se foram fazendo mais longínquos e logo desapareceram de todo. Hilary fechou os olhos e apoiou a cabeça contra a pedra coberta de musgo.

         -Por favor, Senhor -sussurrou-. Faz muito que não falo a ti... Sei. Mas... Mas sinto por isso.

         Apertou os dentes pela dor e forçou a si mesma a continuar.

         -Não sei se poderá me perdoar por... por todo o tempo que passei trabalhando para esses monstros. Mas não sabia, Senhor. Não sabia.

         O vento parecia sopro entre os ramos dos pinheiros. Parecia chamá-la por seu nome.

         - Me perdoe, Senhor - continuou dizendo -. E me ajude. Necessito Sua ajuda para cumprir minha promessa. Hilary abriu os olhos e observou o céu escuro. - me mande um sinal -sussurrou-. Me mande um anjo e saberei que me perdoou. Saberei que agora me escuta se me enviar um anjo.

 

         Jameson despertou preso. Tinha a mente Confusa e debilitada pela droga, mas lutou contra seus efeitos debilitadores, piscou para melhorar a visão e tentou dar uma olhada aos arredores.

         Estava debaixo da terra. O aroma de umidade o rodeava inclusive por cima do muro circular construído com blocos de concreto. Deus, estava em uma espécie de masmorra redonda. Estava deitado sobre um chão duro, com as pernas atadas com grilhões à parede que tinha atrás e os braços amarrados. Apertou a mandíbula e moveu as cadeias, mas se limitaram a soar em resposta. Estava muito fraco para liberar-se. Maldição.

         Escutou um gemido que o obrigou a mover a cabeça, e viu os outros presos igual a ele. Eric e Roland, Tamara e Rhiannon, com seu cabelo escuro lhe caindo sobre o rosto. Mas Angelica não estava.

         Angelica tinha conseguido escapar. Graças a Deus. Roland se cambaleou sobre os pés quando Jameson o olhou. Seus olhares se encontraram.

         - Onde diabos estamos? - perguntou Jameson, embora tivesse certeza de que seu amigo sabia tanto quanto ele.

         - Não estou certo. Certamente em uma dessas casas seguras que os canalhas têm alugadas por todo o país. Suponho que trarão reforços antes de tentar nos mandar de novo ao White Plains.

         - Querem todos - disse Jameson com a língua pastosa pela droga -.Angelica escapou. E é a única que ficou para tentar resgatar a criança.

         - Sim - murmurou Roland assentindo lentamente. Querem eliminar qualquer possível ameaça. Certamente a considerarão sua prisioneira mais valiosa.

         - Não acredito que a tenham.

         Eric estava despertando. Como Tamara e Rhiannon.

         - O que o faz pensar isso, Jamey? - sussurrou Tamara.

         - Não sei o que ocorreria depois, mas no momento em que nos deram caça, Angelica estava convencida de que a menina continuava a salvo. Não acreditou quando disseram que a tinham. Eu creio nisso, porque ela sente a menina e estava... emocionada, convencida de que Amber Lily estava em boas mãos.

         -Talvez Hilary conseguisse escapar antes de que encontrassem a cabana -sugeriu Tamara.

         -Sim -interveio Eric com voz débil-. Sabiam que viríamos à cabana a procurá-la, assim embora não tenham podido pegá-la, quiseram nos esperar prmeiro.

         - Ao nos fazer prisioneiros, asseguram-se de que não encontraremos a criança antes deles - disse Roland.

         Rhiannon elevou a cabeça. Seus olhos soltavam faíscas de fúria.

         -O cativeiro não é o que têm pensando para nós, benzinho. Não querem correr riscos -assegurou elevando a cabeça antes de fechar os olhos-. Olhem acima.

         Outros elevaram um a um a vista. Jameson também, e ao fazê-lo sentiu como se lhe tivessem dado uma patada no estômago. Não havia outro piso em cima deles. Não havia chão, não era uma masmorra, mas sim uma fossa com paredes de pedra. Uma fossa coberta por um teto muito alto fabricado totalmente em cristal.

         Jameson voltou a mexer nas cadeias com renovado vigor. Maldita droga! Estava tão fraco como um mortal!

         -Céus, não - sussurrou Tamara.

         E então Jameson a viu chorar. Ela procurou com os olhos ao Eric e tratou de enlaçar a mão dele com a sua, mas havia muito espaço entre eles.

         -Te amo tanto, meu bem -murmurou entre soluços, você me deu tanta alegria ... Tanta felicidade...

         -Tamara... -disse Eric tentando escapar das cadeias.

         -Já basta! -atalhou Rhiannon entreabrindo os olhos-. Basta de declarações de amor agonizante! Estamos muito longe do final.

         Mas sua voz não soava com a convicção habitual. Porque ela sabia, como os outros, que assim que saísse o sol e enchesse aquele buraco com sua luz dourada, seria o final para todos.

         - Eu não devia permitir que vocês se metessem nisto -disse Jameson-. Sabia que só lhes traria problemas.

         - Somos família, Jameson -disse Roland com voz pausada-.Tínhamos que intervir.

         - Ao menos sua filha tem uma oportunidade, Jamey - Sussurrou Tamara -Angelica a encontrará.

         -Minha filha não terá nunca nenhuma oportunidade - assegurou ele sentindo como a raiva se apoderava de todo seu ser -. Até que se destrua a Divisão. Não descansarão até aniquilar nossa espécie.

         Ninguém disse nada. Jameson sabia que tinha razão. Algum dia alguém se rebelaria. Alguém os guiaria para uma revolução e seria o fim da DIP Ele tinha querido ser esse alguém, mas pelo visto aquela tarefa tocaria a outro.

         Talvez à sua própria filha.

         Jameson inclinou a cabeça, fechou os olhos e se concentrou em Angelica com todo seu ser.

         «Encontre-a, anjo. Meu lindo e sombrio anjo. Encontre-a e mantenha-a a salvo. Eu não poderei estar aí para ela. Mas você se puder... Salve-a e lhe fale de mim. Diga-lhe que... diga-lhe diga que a quero muito bem».

         Deixei de correr. O que me fez parar foi uma espécie de sensação. De pressentimento. E então a voz do Jameson inundou meu pensamento. Sua despedida. E me pesou o coração.

         -Não! -gritei agitando os punhos para a noite-. Não me faça isto, vampiro! Não me deixe! Mas não houve resposta. Tentei averiguar onde estava utilizando a mente, mas não encontrei nada. E chorei, chorei com grandes soluços que me deixaram debilitada.

         Tinha que encontrá-lo. E também à minha filha. E o faria. Corri pelos bosques utilizando meus sentidos para que procurassem por mim.

         Havia alguém perto.

         Detive minha amalucada corrida e me virei lentamente. E então escutei. Um gemido suave, gutural e assustado. Aproximei-me muito devagar e então a vi. Estava tombada entre os arbustos e a seu redor cheirava a sangue.

         Quando fiquei a seu lado, abriram-se uns olhos castanhos. Aquela era a mulher de pele escura com os olhos amáveis. A que me tinha prometido sem palavras que ajudaria aquele bebê inocente.

         Hilary Garner. Estava muito quieta, quase morta. Em seu corpo havia buracos de bala, e o sangue emanava de cada um deles.

         -Você -sussurrou ela fazendo um tremendo esforço para falar.

         -Estou aqui – falei, afastando-lhe o cabelo do rosto -. Não tente falar. Tudo ficará bem.

         -Não -respondeu Hilary negando com a cabeça. Não há nada... que possa fazer. É suficiente... que esteja aqui.

         Entretanto, eu apertei as mãos sobre as feridas de seu peito em um intento de evitar que a vida escapasse do corpo daquela mulher.

         -Pedi a Deus que me enviasse um anjo -murmurou-.E... mandou você. Levaram a menina.

         -Vou resgatá-la -assegurei arrancando pedaços de meu vestido para lhe tapar as feridas.

         - Ele... a protegerá -disse brandamente.

         - Devo-lhe mais do que poderei lhe pagar, Hilary Garner -sussurrei.

         - White Plains -disse debilitando-se por momentos-.vão tentar... levá-la outra vez para lá.

         -Irei procurá-la. Não se preocupe, vou encontrá-la.

         Uma mão suave me agarrou o pulso enquanto eu tentava deter a hemorragia com outro pano.

         -Primeiro... os... outros. Rota... dez - gemeu mordendo o lábio -. Doze quilômetros ao norte. Uma antiga... estrada. A fossa.... Morrerão... ao amanhecer...

         As mãos me paralisaram e senti um frio me atravessando a espinha.

         -Ao amanhecer?

         Céus, como ia fazer isso? Como ia poder resgatar eu sozinha todos outros antes de que saísse o sol? Era impossível.

         -Eu não sabia -disse Hilary em um fio de voz -.Todos estes anos trabalhei para eles... mas não sabia...

         - Sei. É uma boa mulher, Hilary. Uma mulher boa, doce e carinhosa.

         - Reze por mim, irmã. Reze... por mim.

         Eu fechei os olhos ante a angústia daquela mulher. E pelo que me estava pedindo.

         -Não posso. Deus já não está ao meu lado.

         -Sim. Claro que pode. Deus a enviou... para que me encontrasse. Ele... ainda a escuta.

         Os olhos se me encheram de lágrimas, porque desejava com toda minha alma que aquilo fosse verdade. Mas fosse ou não, não podia lhe negar aquele pequeno consolo.    Assim inclinei a cabeça e juntei as mãos.

         -Pai nosso que estais nos céus...- sussurrei.

         Ela murmurou as palavras junto, mas deteve-se antes de terminar.       Então se desenhou um débil sorriso em seus lábios e abriu os olhos.

         -Obrigado - disse-me olhando por cima de mim para algo que eu não podia ver- Sim -sussurrou-. Sim, manterei minha promessa.

         Seu rosto relaxou-se e fechou lentamente os olhos. Deixou cair um braço ao chão. E durante um instante pareceu que de seu corpo emanava um brilho branco que parecia elevar-se como a neblina. Eu pisquei e esfreguei os olhos, mas quando voltei a olhar, não havia nada.

         Enterrei Hilary Garner em uma tumba que escavei na terra com minhas próprias mãos. Recolhi todas as pedras que pude encontrar perto para improvisar uma lápide. E soube que aquilo era suficiente. Senti-o no coração. Nada perturbaria sua paz.

         Logo me levantei com as pernas tremendo e me dirigi para o caminho que me levaria àquela estrada.

         Stiles dirigia enquanto o agente especial Keller, que tinha saído do bosque com a menina em braços, ia no assento de trás ao lado da menina. Tinha a arma preparada e observava com os olhos muito abertos os bosques escuros que percorriam. Era um agente novato, e estava assustado. Stiles reconhecia o medo quando o via, e aquele novato tinha todos os sintomas.

 

         Era inconcebível que lhe tivessem atribuído uma recruta sem experiência para uma missão tão importante como aquela. Se tornasse perder a menina, Whaley lhe cortaria a cabeça.

         Estavam já quase em Petersville.Stiles olhou com gesto automático pelo espelho retrovisor e viu com a claridade a criança. Remexia-se e mordia o punho como qualquer bebê de sua idade.

         O estômago lhe deu uma retorcida quando sua consciência lhe falou. E se aquela menina fosse... normal? E se não fosse como aqueles animais que a tinham concebido?

         Stiles se obrigou a afastar a vista do espelho e, ao fazê-lo, soltou um palavrão e deu uma freada. O carro chiou e foi deter-se na sarjeta.

         -Que diabos está fazendo? -gritou Keller agarrando a arma do chão-. Quer nos matar?

         -Havia algo...-murmurou.

         Saiu do carro e deu uns passos pela estrada suja. Logo se deteve e olhou de ambos os lados.

         -Viu algo? -perguntou Keller colocando-se a seu lado com a arma na mão.

         -Sim -murmurou Stiles-. Mas... Suponho que você não terá visto nada, não é?

         -Não -assegurou o agente-. O que era, um cervo? Ouça, Stiles.... Não seria um deles, seria?

         -Não. Maldito seja, Keller, não pode contar isto a ninguém, de acordo? -exigiu Stiles sacudindo lentamente a cabeça -. Mas vi uma luz que... E ao me aproximar, parecia....

         -Parecia o que? - urrou Keller.

         -Um anjo - disse suspirando -. Vestido de branco, com asas e tudo. Brilhava com essa luz branca e estava justo no meio desta maldita estrada.

         Stiles voltou a sacudir a cabeça e soltou uma gargalhada nervosa.

         -E logo partiu. Que tolice, heim? Acredito que preciso dormir mais. Ou talvez tirar umas férias...

         -Ou talvez... talvez não -disse Keller.

         Stiles virou a cabeça e viu a cara pálida do novato. Assinalava com um dedo tremente para o carro. Quando Stiles olhou, observou o mesmo brilho branco saindo de todos os lados do veículo. Brilhava mais do que poderia fazê-lo qualquer luz criada pelo homem. Durou só um instante, e logo desapareceu.

         Stiles sacudiu a cabeça, como se quisesse melhorar a visão, e logo obrigou a si mesmo a aproximar-se do carro. Mas tinha uma ligeira idéia do que ia encontrar se ali. Agachou-se um pouco, olhou pela janela e depois se endireitou para olharpara Keller.

         -A menina? -perguntou o agente.

         Stiles piscou. Sentia-se enjoado e confuso. Ele assentiu. Desaparecida.

         Keller começou a respirar com dificuldade.

         -Temos que sair daqui - murmurou aproximando-se a toda pressa ao carro -Talvez volte por nós. Stiles o segurou no ombro para detê-lo.

         -Ouça, Keller. Ninguém vai saber do que vimos aqui esta noite, entendido? Se souberem disso nos prendem em uma cela isolada. Diabos, talvez inclusive sejamos objeto de estudo por parte da Divisão.

         Keller engoliu em seco ao escutar isso.

         - Caímos numa armadilha -disse muito devagar. Baixamo-nos a trocar o pneu e alguém levou a criança. Não vimos nada.

         Stiles assentiu com a cabeça, engoliu em seco e retornou ao carro sem deixar de olhar para trás a cada segundo.

         Susan Jennings não podia deixar de pensar que aquilo tinha sido um milagre. Fazia só vinte e quatro horas tinha tido que dar uma freada para se esquivar de um cervo e tinha perdido o controle do carro. Deus, nunca esqueceria o horror que sentiu naquele instante.

         Ou o espanto posterior quando tratou de se levantar do chão e se deu conta de que a pequena Alicia continuava dentro do carro.

         E então, como se fossem anjos, tinham aparecido dois desconhecidos. Sorriu enquanto dava impulso à cadeira de balanço, embalando Alicia e lhe colocando a mamadeira nos lábios. Tinham salvado a vida de sua filha e tinham desaparecido no meio da noite sem lhe dar a oportunidade de agradecer-lhes.

        

         Alicia bebeu devagar e logo se deteve, fechando seus olhos azuis. Susan se levantou com cuidado e caminhou nas pontas dos pés pela sala para deixar a menina em seu berço. Logo a cobriu delicadamente com a colcha.

         Escutou um som suave na porta de entrada. Susan deu a volta e franziu o cenho ao comprovar a hora no relógio de parede. Quem diabos seria àquelas horas da noite?          Aproximou-se da porta, abriu-a um pouco e encontrou-se com os olhos escuros mais doces que tinha visto em sua vida.

 

         Dirigi a toda velocidade em direção ao norte pela rota dez com o carro de Jameson, que encontrei justaamente onde o tínhamos deixado. Vi a estrada abandonada que levava para o leste, mas a passei e deixei o carro em um arvoredo que havia ao lado da sarjeta para retornar a pé.

         E quando cheguei à estrada abandonada não segui por ela, mas sim me deslizei pelas sombras das árvores que a circundavam. A escuridão era naquela noite mais amiga minha que nunca. E à medida que ia aproximando, umas nuvens negras cruzaram a face da lua, intensificando a noite.

         Vi uma borbulha no chão, como se fosse uma cúpula de cristal. E ao redor havia quatro homens custodiando um valioso tesouro. Sabia que estavam todos armados. Não podia atacá-los aos quatro de uma vez.

         O que podia fazer?

         Atrai-los a todos, pensei. Um a um, se fosse necessário. Mas Deus, o sol não demoraria muito em sair. E agora entendia por que isso provocaria a morte nas quatro pessoas que deviam estar lá dentro.

         Agarrei um raminho de pinheiro e o quebrei em dois. Isso provocou um estalo nomeio da noite que obrigou aos quatro guardas a ficarem em alerta.

         -O que foi isso? -perguntou um elevando a arma-. Quem está aí?

         -Com certeza um animal -disse um segundo.

         -Não acredito.

         -Então vá e comprove.

         -Whaley disse que fizessemos tudo de dois em dois -assegurou o primeiro negando com a cabeça-. Já sabe como são que são os de sua espécie.

         -De acordo. Então, vamos os dois.

         Os dois homens se encaminharam na minha direção movendo-se lentamente, com as armas em riste. Um (o que levava uma lanterna na mão livre) apontou para mim e acendeu a luz. Eu saltei rapidamente e fui parar junto aos ramos de um pinheiro antes que a luz me alcançasse. Meu plano era atacá-los um de cada vez, não os dois, mas teria que me virar. Jameson estava preso como um rato, e quando saísse o sol...

         Estremeci ao pensar na agonia com que morreria. E de só pensar senti um vazio imenso.

         Fiquei muito quieta e esperei. Os dois sentinelas não avançavam juntos, mas tampouco suficientemente longe um do outro. Alguém se deteve justo abaixo de mim.

         O outro estaria a uns dois metros e me dava as costas. Tinha que ser rápida. Mais que eles. Não devia ser muito difícil, pensei. Eu era uma vampira.

         Deixei-me cair da árvore e caí justo em cima do homem. Emitiu um som gutural antes que meus punhos lhe golpeassem a cabeça, deixando-o inconsciente. O outro homem se virou ao escutar o ruído e me apontou com a arma. Eu me joguei rapidamente para um lado e o dardo me passou roçando o braço, sem cravar-se nele.           Rezei para que não me tivesse introduzido nenhuma droga. No décimo de segundo que demorou o homem em voltar-se para mim, eu arranquei o dardo da árvore em que se cravou e o lancei.

         Cravou-se no pescoço de meu atacante. Deixou cair a arma ao chão e revirou os olhos antes de cair para frente. Não voltou a mover-se.

         Mas eu não tinha sido tão silenciosa como queria. Os dois sentinelas que ficavam na cúpula se deram conta de que algo passava e um deles levou o rádio à boca. Agarrei a arma do chão, apontei e apertei o gatilho. Mas só se escutou um clique. Não se tinha recarregado a arma.

         -Algo está acontecendo! -gritou o guarda através do rádio.

         Então eu lhe lancei a arma vazia com todas as minhas forças.

         -Mandem refor... Ah!

         O metal da arma o golpeou em plena cara, e caiu para trás com tanta força que se estatelou contra a cúpula de cristal que tinha detrás, rompendo-a. Escutei como golpeava o chão que havia mais abaixo e logo não ouvi mais nada.

         Fiquei ali de pé, ao descoberto, com os olhos nos do homem que ficara.          Ele levantou as mãos e sacudiu a cabeça de lado a lado.

         -Por favor... vamos fazer um acordo? Só....

         Eu devia ser uma visão bastante espantosa para aquele pobre mortal. Tinha o cabelo revolto e decerto cheio de folhas de pinheiro e folhas secas. Tinha também as mãos sujas depois ter cavado a tumba da Hilary. O vestido estava rasgado por causa de minha corrida pelo bosque e os braços e o peito, manchados com o sangue de Hilary e com o meu próprio.

         Fiz um gesto em direção à arma do sentinela e ele a deixou cair ao chão. Levantei a mão e apontei o rádio que levava no cinturão, e também o atirou. E então me aproximei dele. Vi o medo refletido em seus olhos e quase senti lástima por ele. Começou a andar para trás, mas como eu não queria que caísse de costas pela cúpula feita pedacinhos, antes que pudesse mover-se mais, tinha-o segurado pelas lapelas da camisa.

         -Não... Não me mate -sussurrou-. Por favor.

         Rodeei-o fortemente com meus braços e saltei através do cristal para a bolha. O sentinela gritou quando caímos, mas eu o segurei com força e não perdi o equilíbrio, como me estava acostumando a fazer.

         Senti ao redor de mim as expressões de assombro de outros. Mas eu só apartei os olhos de meu prisioneiro um instante, o suficiente para me assegurar de que todos estavam ali, e vivos. Meus olhos cruzaram com os de Jameson durante um longo instante. Ele se revolveu inutilmente dentro das cadeias que lhe atavam os punhos ao muro, e eu senti uma raiva até então desconhecida contra aqueles que o tinham colocado ali para deixá-lo morrer. Mas me obriguei afastar o olhar.

         -Onde está minha filha? -perguntei sacudindo o guarda.

         -Não.... Não sei, juro -assegurou com expressão de absoluto terror.

         -Preste atenção, maldito mentiroso - insisti sacudindo-o com tanta força que a cabeça foi para trás-. Onde está? Onde está minha menina?

         - Levaram-na de volta... à sede central - confessou o sentinela-. Mas tiveram... tiveram um problema. Desceram para... para trocar o pneu...E... E...

         -E o que, mortal?

         -E a menina já não estava - concluiu entre soluços -. Tinha... tinha desaparecido.    Alguém a tirou do carro. Acreditávamos... acreditávamos que tinha sido você.

         Pensei que o homem estava dizendo a verdade, ou ao menos toda a verdade que ele sabia. É obvio, o que estava contando não pode ter sido o que realmente ocorreu. Todos os que teriam condições de restgatar a minha filha estavam ali, incluída eu. À exceção da Hilary, claro. Mas Hilary estava morta. Tinha-a enterrado sob os pinheiros.

         -Mas eu pensei... Pensei que Hilary tinha a menina -murmurou a voz doce de Tamara.

         Eu virei a cabeça e me encontrei com seus olhos feridos.

         -Sinto Tamara. Eles... mataram Hilary.

         Tamara gritou quando disse aquilo, e deixou cair a cabeça para o peito. Chorou em silêncio.

         -Ela me disse onde estavam. Já descansa em paz, Tamara -disse para tranqüilizá-la-. Agora a Divisão tem outra vez a minha filha...

         -Não a têm -interveio o guarda-. Já lhe disse que...

         -Claro que lhe mentiram para eu cair em uma armadilha -disse eu-. Se por acaso eu viesse e o obrigasse a falar.

         Olhei os outros, as cadeias que os atavam à parede e logo olhei para o céu. Começava a clarear. Voltei a sacudir o sentinela.

         -As chaves.

         -No... no bolso de cima.

         Tirei-as dali e o arrastei comigo até onde estava Jameson, pálido e com os olhos chorosos. Agarrando o guarda com uma mão, soltei com a outra as correntes do vampiro.

         -Não deveria estar aqui, Angélica -disse-me Jameson me olhando fixamente-. Maldita seja, por que uma vez não faz o que lhe digo?

         -Estou-lhe salvando a vida, vampiro - falei-lhe enquanto colocava os grilhões no guarda -. Ou ainda não percebeu?

         Logo corri para outros e fui soltando um a um. Todos me agradeceram.

         - Não a agradeçam tão cedo. Ainda não saímos daqui -assegurou Jameson olhando para cima-. Nenhum de nós está o suficientemente forte para saltar até lá encima.

         -Nenhum exceto eu, quer dizer.

         Dei-lhe um tapinha no ombro Tamara e quando se virou para mim a rodeei com meus braços, pus-me de cócoras e saltei com todas minhas forças. E sobrevoamos por cima da cúpula rota para ir parar sãs e salvas no chão.

         -Esconda-se -disse-lhe-. Um deles conseguiu utilizar o rádio. Talvez venham mais em breve.

         Logo retornei aos outros e fui tirando um a um da mesma maneira.

         Jameson insistiu em ser o último. Quando lhe tocou a vez, olhamo-nos o um ao outro durante um longo momento.

         -Não deveria ter vindo -insistiu-. Disse-lhe que fosse em busca da menina.

         -Tenho muitas possibilidades de encontrá-la com sua ajuda -respondi.

         -É uma cabeça dura e uma estúpida.

         -E você é um imbecil arrogante e insuportável. Agarre-se em mim - pedi-lhe deslizando os braços por sua cintura.

         Ele me agarrou pelos ombros e olhou-me nos olhos.

         -Não -disse eu sem poder evitar que me tremesse a voz-. Agarre-se mais forte.

         Jameson me olhou longamente e logo me estreitou entre seus braços, inclinou a cabeça e me beijou na boca. Apaixonada, cegamente. Desesperadamente. E eu me abracei a ele e o beijei também com a mesma ânsia.Quando finalmente ele levantou a cabeça eu tremia de desejo por aquele homem que não sentia por mim nada mais que desprezo. Mas eu desejava as carícias dele. E não achava que aquilo fosse um pecado terrível.

         Flexionamos as pernas e saltamos juntos, embora Jameson estivesse ainda muito debilitado e não fosse de grande ajuda. Fomos parar no chão sem nos soltar. Ele ficou de pé, ajudou-me a levantar e, por alguma razão, agarrou-me com força a mão enquanto corríamos pelo bosque pela mesma direção que tinham tomado outros. Não voltamos a falar. Eu vi luzes na distância e escutei as vozes dos agentes da Divisão escondidos no bosque como soldados, nos buscando. Sem dúvida com a intenção de nos matar assim que nos vissem. Movemo-nos muito depressa mas em silêncio, e quando chegamos ao carro nos colocamos dentro. Inclusive Roland, que tanto protestava contra andar em carros.

         O céu se ia ficando mais claro enquanto eu corria a toda velocidade para o único refúgio que me ocorreu: A casa abandonada em que Jameson e eu tínhamos planejado ficar na primeira noite. Mas quando detive o carro e fiz ameaça de sair, ele me agarrou pelo braço.

         -Deixaremos o carro aqui. Se o encontrarem, pensarão que estamos dentro da casa e isso nos fará ganhar tempo. Mas acredito que deveríamos nos dirigir para nossa cova.

         -Não há tempo - assegurei eu olhando-o intensamente.

         -No bosque está mais escuro -interveio Rhiannon-. Se nos apressarmos chegaremos.

         Apressamo-nos, embora os outros fossem mais devagar que eu. Tamara me disse duas vezes que corresse, que os deixasse atrás e os esperasse na cova, mas eu me recusei a deixar meus novos amigos. Em tão pouco tempo tinha me afeiçoado a eles. Converteram-se na família que nunca tive. A recompensa que, quando era menina, pensava que Deus me daria. Todos estavam arriscando sua vida para resgatar a minha filha. E eu daria a vida por qualquer deles.

         Mas além do carinho que sentia por Rhiannon e por Tamara, não teria sido capaz de me separar de Jameson. Embora naquele momento saísse o sol e me abrasasse a pele, não iria sem ele.

         Jameson deu a volta e olhou-me, e senti como se dentro de mim algo despertasse de um profundo sonho. E soube então que havia um laço entre nós. Mas não dependia só de nossa filha.

         Havia algo mais. Algo que nem eu mesma era capaz de começar a entender.

         «Está apaixonada por ele, moça», sussurrou-me a voz de Rhiannon na cabeça.

         Virei-me para olhá-la, assombrada, me dando conta de que me tinha esquecido guardar meus pensamentos. Ela me sorriu e me piscou um olho. Percebi que ela estava falando só comigo de modo que Jameson não podia nos ouvir. Outro truque que eu gostaria de aprender.

         «É obvio, soube no primeiro momento que falou de você. Será boa para ele, Angelica. É exatamente o que nosso jovem e arrogante Jameson precisa».

         Seu sorriso se fez mais amplo depois de olhá-lo. Logo voltou a dirigir seu olhar para mim.

         «Mas não diga nada ainda, moça. Acho que precisa sofrer ainda um pouco mais».

         Sofrer? Talvez Rhiannon fosse muito sábia, mas não parecia conhecer Jameson. Não estava sofrendo por minha culpa, mas sim pelo desejo de ver nossa filha e de vingar-se da DIP. Talvez me desejasse com paixão, mas não havia nada mais lá. E quanto a mim, bom, certamente não estava apaixonada por ele.

         Certamente, seria muita estupidez apaixonar-se por um homem que me desprezava.

 

         Jameson despertou muito devagar. Tinha sonhado com Angelica. Com seus lábios suaves e seus gemidos de prazer.

         Tinha dormido apoiado contra o frio muro de pedra. E com Angelica muito perto. Mas enquanto se espreguiçava, virou-se para olhá-la e assegurar-se de que não era tão formosa como a pintavam seus sonhos, embora soubesse de sobra que sim, era. Mas já não a encontrou. Fora-se.

         -Bem, já despertou -disse Roland-. Temos que nos pôr em marcha logo se quisermos alcançá-los antes que levem a menina ao edifício White Plains.

         Outros também se levantaram. Rhiannon estava escovando o cabelo. Tamara esfregava os olhos para despertar.

         -Não -assegurou Jameson com firmeza-. Não concordo que continuem arriscando suas vidas por mim. E o risco é ainda maior agora. Estarão furiosos por que escapamos, e mais decididos que nunca a nos matar.

         Enquanto falava, Jameson dirigiu a vista para a entrada da cova, mas não havia nem rastro de Angelica.

         -Está preocupado por ela? - perguntou Rhiannon.

         Jameson virou a cabeça e se encontrou com seus olhos negros, que desprendiam um brilho travesso.

         -Onde está?

         -Foi vigiar a zona. Disse que falta ter certeza de que não haveria ninguém nos arredores quando saíssemos.

         -Não devia sair sozinha -disse Jameson aproximando-se da entrada.

         -O que há entre vocês dois? -perguntou Tamara.

         -Nada -apressou-se a responder ele-. Uma criança, nada mais.

         -OH, há muito mais que isso -interveio Rhiannon elevando uma sobrancelha-. Há paixão. O ar virtualmente fica tenso quando estão juntos. E o modo em que se olham ... Acredito que ama essa garota, Jameson.

         -Rhiannon... -alertou-a Roland com suavidade.

         Escutar aquela frase em voz alta só serviu para fazê-lo sentir-se mais desgraçado que nunca.

         -É obvio que não a amo - respondeu.

         Seria um estúpido se o fizesse, já que sabia perfeitamente que Angelica não sentia nada por ele. Ao menos nada que fosse além de uma atração física.

         -Não sinto nada por essa mulher - afirmou.

         Um som na porta da cova o obrigou a girar a cabeça. Os olhos da Angelica se encontraram com os seus, mas ela afastou os olhos rapidamente. Jameson não teve nenhuma dúvida de que tinha escutado suas palavras. E viu a dor refletida em seus olhos. Ridículo.

         - Não vejo nenhum agente escondido entre as árvores -disse ela-. Acredito que podemos sair.

         - Da próxima vez, me espere - disse-lhe Jameson. Seus olhos violeta se cravaram nele olhando-o com rebeldia.

         - Entendo. Continuo sendo sua prisioneira, não? Perdoe-me por não ter pedido permissão para desaparecer de sua vista. Foi uma estupidez de minha parte acreditar que salvar-lhe a vida mudaria as coisas, não é?

         -Não é isso o que quis dizer... Angélica!

         Mas ela deu a volta e tornou a sair.

         Jameson saiu correndo da caverna, lançando-se agradecido à frieza da noite. Àquela noite a lua parecia completamente invisível, escondida como estava atrás das nuvens escuras que cobriam o céu. A princípio não a viu, mas logo a divisou de costas para a caverna, contemplando o bosque. Seu cabelo balançava ao vento, como se fossem dedos de seda brincando com seu rosto.

         Jameson aproximou-se dela, sabendo que estava sendo vítima de seu encanto silencioso. Mas depois de tudo, aquilo era o que tinha ocorrido desde o começo.    Diabos, ele não era um homem que reconhecesse facilmente uma derrota. Colocou-se detrás dela, muito perto. Mas Angélica nem sequer o olhou.

         -Não quis dizer que precisasse pedir permissão para se afastar do meu lado, Angelica. E sabe. Mas é que pode ser perigoso sair sozinha. Estava preocupado por sua segurança. Isso é tudo.

         Enquanto falava foi se colocando a seu lado. Continuava sem tocá-la, embora todo seu ser o desejasse. Angélica lhe dedicou um olhar de soslaio, mas em seguida voltou a contemplar o bosque.

         -Bem, pois lhe agradeço a preocupação, vampiro, mas não é necessária. Se por acaso não percebeu, estou aprendendo muito depressa a cuidar de mim mesma.

         -Sim me dei conta -respondeu Jameson.

         Olhou para as árvores de ao redor com a esperança de ver o que era o que tanto a tinha encantado, mas ao não ver nada incomum concluiu que, simplesmente, não queria olhá-lo.

         -Certamente terei parecido uma vampira patética -sussurrou Angelica-. Não sei por que demorei tanto em voltar a encontrar a mim mesma, mas lhe asseguro que quando era mortal nunca fui tão débil nem tão carente.

         -Nunca me pareceu débil.

         Angelica voltou-se para olhá-lo de frente.

         -Mas continuo sendo sua prisioneira. Me diga a verdade, a sério crê que ainda tenho intenção de levar a nossa filha para longe de você?

         - Não sei - reconheceu Jameson, incapaz de afastar o olhar daqueles olhos violeta-. Faria isso?

         Ela deixou escapar um suspiro de frustração entre dentes e voltou a lhe dar as costas.

         - Se fosse assim, por que teria voltado para você? Poderia tê-lo deixado morrer. Assim teria minha filha só para mim quando a encontrasse.

         - Isso se a encontrasse - particularizou Jameson-. Como você disse, terá mais oportunidades de achá-la com minha ajuda.

         -E acha que essa é a única razão pela que voltei para para você?

         -E que outra coisa quer que pense?

         Jameson apoiou o ombro contra um pinheiro grande, cruzou os braços e a observou. Angelica não sentia nada por ele. Desprezava-o. Assim dissera.

         -Entre nós há muita atração, Angélica. Mas não acredito que arriscasse seu bonito pescoço só pela possibilidade de voltar a me ter.

         -É um estúpido arrogante.

         -Não sou tão arrogante. Isto é recíproco. Sabe. Jameson ergueu uma mão e lhe roçou levemente a pele do pescoço com os nós dos dedos. Precisava assegurar-se.    Afastou-lhe a mão com um tapa, não sem que Jameson notasse antes o leve estremecimento que lhe percorreu o corpo. Sim, Angélica ainda o desejava. E sim, ainda a repugnava aquele desejo. Já tinha sua resposta.

         -Vamos, tolinhos -gritou Rhiannon sem poder conter a brincadeira em seu tom de voz-. Temos que andar.

         Jameson se inclinou sobre Angélica e lhe sussurrou:

         -Não importa que meu contato lhe enoje, não? Os dois sabemos que morre de desejo que a toque.

         - Lembre-me isso da próxima vez que me tocar e lhe arrancarei os dedos da mão, vampiro.

         E depois pronunciar aquelas palavras tão mordazes, Angélica se virou e foi se reunir com outros.

         Pouco tempo depois, entravam todos no carro e se dirigiam para o sul. Seu destino era a sede central do White Plains.

         Mas assim que percorreram uns doze quilômetros viram uma caminhonete da DIP e vários carros com o emblema do governo na porta. Todos estavam estacionados nos extremos da estrada, abordando virtualmente o povo do Petersville. Homens vestidos de uniforme batiam nas portas da casas para falar com os vizinhos.

         -Que diabos é isto? -sussurrou Jameson enquanto reduzia a marcha do carro e conduzia muito devagar pela rua principal da cidade.

         -Ou decidiram vender cosméticos para tirar um salário extra, ou estão procurando casa por casa -disse Tamara.

         -A nós? -perguntou Angelica abrindo muito os olhos.

         -Não - interveio Rhiannon -. Nós não temos por costume procurar refúgio nas casas dos mortais. Por que diabos acreditam que teríamos que começar a fazê-lo agora?

         Jameson piscou. No assento do lado, Angelica deixou escapar um suspiro trêmulo.

         - O bebê? -sussurrou.

         -Talvez aquele guarda não estivesse mentindo quando disse que ela tinha desaparecido - refletiu Roland.

         -Mas é impossível. Quem a teria levado? E com que motivo, pelo amor de Deus? Angelica elevou o tom de voz, e Jameson soube que estava assustada.

         -Que tipo de pessoa seqüestraria um bebê de um carro parado enquanto seus ocupantes trocam um pneu?

         -Angelica.

         Jameson lhe cobriu a mão com a sua e a estreitou. Sentiu como tremia. Era curioso como esquecia a raiva que sentia por aquela mulher assim que a via triste.

         -Não pense no pior. Nem sequer sabemos o que é tudo isto. Poderiam perfeitamente estar nos buscando.

         - Continue dirigindo, Jameson. Averiguaremos o que está acontecendo aqui -ordenou Eric.

         E isso fez Jameson, mas sem soltar a mão da Angelica. Entretanto, antes que chegassem ao centro do povoado pôde ver um controle de tráfego na sarjeta. A caminhonete que ia adiante deles teve que deter-se. Interrogaram ao condutor e a registraram. Jameson olhou ao redor em busca de outra saída da cidade, mas não viu nenhuma. Se parasse no meio da rua levantaria suspeitas, e se dessem meia volta, os matariam.

         A mão que estava segurando fez uma leve pressão, e quando olhou Angelica viu que estava apontando com a cabeça para uma cabana moderna que havia ao final da vila, situada em cima de uma pequena colina.

         -Ali -disse Angelica-. Parece que não há ninguém. Dobre a esquina, como se vivêssemos ali.

         -E se houver gente?

         Jameson se perguntou por que se sentia inclinado a dar sempre o contra.

         -Olhe os andaimes que tem a um lado. E o telhado. Está sem terminar.

         -Angelica tem razão - afirmou Eric-. A casa ainda está em construção. Vamos, Jameson. Em qualquer caso, não muitas mais opções.

         Jameson assentiu com a cabeça e fez a volta. Subiu todo o caminho para a casa e depois desligou o motor. Ficaram em silencio aos pés da cabana.

         -É uma casa preciosa -comentou Tamara.

         -Está repleta de janelas -interveio Rhiannon-. Estes mortais estúpidos e seu amor pelo cristal...

         -Deveríamos entrar -sugeriu Angelica olhando com preocupação os carros que continuavam bloqueando a saída da cidade -. Se ficarmos aqui sentados levantaremos suspeitas.

         -Se descermos todos de uma vez e nos verem...

         -Está escuro, Jameson - assinalou Rhiannon -. A lua está coberta de nuvens.Mal podem ver diante de seus narizes, e muitos menos poderão contar cabeças aqui embaixo.

         E como estava sentada ao lado de uma das portas de trás, abriu-a e saiu do carro. Roland e Tamara a seguiram, e Eric desceu pela porta da frente, estendendo a mão para ajudar Angélica. Jameson também desceu. Agruparam-se em torno dos grossos degraus, subiram-nos e entraram na casa através do alpendre, abrindo uma porta de vidro. Estavam fechadas com ferrolho, mas os mortais ainda tinham que inventar uma fechadura mais resistente.

         Dentro encontraram uma grande chaminé de mármore, uma barra de madeira brilhante, um tapete que ia de parede a parede e um sofá, poltronas e assentos que pareciam de pelúcia.

         -Este lugar é fabuloso -assegurou Tamara deixando-se cair sobre uma poltrona, que pareceu que a abraçava -. Pergunto-me se estará terminado o encanamento. O que eu não daria agora por um banho quente...

         -Não ficaremos muito tempo -disse Jameson, tenso.

         Tamara virou a cabeça e franziu o cenho ao mesmo tempo.

         -Não podemos avançar, Jamey. A estrada está bloqueada.

         -Sabe que sim, podem -respondeu ele-. Só o que têm que fazer é tomar o caminho do bosque e contorná-los. Tomar emprestado outro veículo ao sul da cidade e sair daqui.

         Roland inclinou a cabeça.

         -E você? - perguntou Eric elevando uma sobrancelha.

         -Eu fico - afirmou Jameson-. Ficarei o tempo suficiente para ver o que é o que estão procurando exatamente. Se não for a minha filha, então farei o mesmo que vocês.

         -E voltará para o White Plains.-perguntou Eric.

         Ele se limitou a assentir com a cabeça.

         Tamara ficou de pé.

         -Ficaremos todos -disse, embora soubesse que Jameson discutiria-. E logo partiremos todos juntos.

         -Tam...

         -Jameson tem razão.

         Foi Angélica que falou, e todos se viraram para olhá-la com olhos curiosos.

         -São muito bons amigos, mas estiveram a ponto de morrer nesta busca. Pensem no que significaria para Jameson se algum de vocês perdesse a vida no processo.

         Eric apertou os dentes e assentiu com a cabeça. Roland baixou a cabeça. Inclusive Rhiannon parecia resignada.

         -Esta noite haverá tempo de sobra para que saiam daqui -disse Jameson-. Não quero que fiquem presos neste vilarejo com os agentes pululando ao redor como moscas. Eu tampouco ficarei aqui mais tempo do necessário.

         Viu como se umedeciam os olhos da Tamara. Mas a jovem assentiu com a cabeça.

         -De acordo -disse-. Acho...acho que eu me sentiria igual se estivesse em seu lugar.

         -Sabe que sim.

         Jameson se virou então para a Angélica, sabendo que aquela ia ser a batalha mais dura de liderar.

         -Nem pense em sugeri-lo -disse ela. Jameson deixou escapar um suspiro.

         -Posso pesquisar eu sozinho o que precisamos saber -assegurou-. Não é necessário que corramos risco os dois. Vá com eles. Encontraremo-nos no White Plains.

         -E se Amber Lily está aqui? E então, Jameson? Talvez passe a seu lado e você não perceba. Não. Não, se quiser que eu vá terá que me tirar à força.

         -Angélica...

         -Sou mãe -afirmou olhando-o com determinação-. Tenho todo o direito do mundo de estar aqui. E aqui fico.

         Jameson fechou os olhos e deixou cair a cabeça para diante.

         Tamara se aproximou dele e o abraçou com força.

         - Gosto muito de você, Jameson. Por favor, tome cuidado.

         Jameson a abraçou a sua vez. Logo se despediu de outros e percebeu, e não pela primeira vez, que parecia lhes custar tanto deixar Angélica como deixar a ele.

         Finalmente, outros se deslizaram pela parte de trás da casa e desapareceram entre os acolhedores braços do bosque. Jameson os viu partir e depois começou a percorrer a habitação de cima abaixo. Necessitava um plano sólido para descobrir o que estava ocorrendo sem que o reconhecessem. E sem pôr Angélica em perigo.

         Mas maldição, não lhe ocorria nada.

         Ela estava sentada no sofá, brincando com a manta afegã que tinha às costas. E Jameson não queria nem olhá-la, porque a desejava tanto que lhe era doloroso.

         Assim entrou no que sem dúvida seria a cozinha quando estivesse terminada. Naqueles momentos não era mais que uma área branca coberta de manchas irregulares. No meio da casa havia uma escada de pintura e uma broxa.

         Jameson deu a volta quando escutou entrar Angélica. Soube que estava ali antes inclusive de vê-la.

         -Não podemos ficar aqui sentados -disse-lhe.

         -Temos que descobrir o que estão procurando.

         -E o que sugere que façamos, Angelica? Vamos lá e perguntemos?

         -A eles não, mas não seria tão complicado perguntar a algum morador.

         Angélica tinha colocado a manta afegã sobre os ombros, como se fosse um xale, e tinha feito também uma espécie de capuz que lhe cobria o cabelo.

         -Não vai sair -advertiu-lhe ele.

         -Viram você mais recentemente que a mim, vampiro. De fato, quando eu estive prisioneira muito pouca gente me viu. A maioria não me reconheceria nem que não levasse este pequeno disfarce. Irei a um desses coméricos pelos quais passamos e fingirei que estou indo comprar algo. Será fácil.

         -Não.

         Angélica se aproximou mais dele e lhe colocou as mãos nos antebraços.

         -Jameson, por favor. Temos que fazer algo. Não posso ficar aqui sentada. Fico louca.

         Jameson viu o desespero em seus olhos. Maldição, não podia lhe negar nada quando o olhava assim.

         -De acordo. Se insistir, irei com você.

         Angélica ergueu os olhos.

         -Não deveria. Reconheceriam-lhe em seguida -disse-.Você mesmo me contou a quantidade de vezes que esteve com eles.

         Mas por uma vez, Jameson estava preparado para rebater seus argumentos.

         -Seguirei você.. Me esconderei nas sombras. Ninguém me verá.

         -E se o virem, o que pensarão de um desconhecido seguindo a uma mulher só no meio da noite?

         -À minha maneira ou de maneira nenhuma, anjo. Ou vou com você ou não vai.

         -Enquanto estamos discutindo isto, nossa filha poderia estar... -Angélica fechou os olhos e deixou a frase sem terminar-. De acordo -disse-.Você ganhou.

         -Vamos, se arrume um pouco -disse-lhe ele-. Se for assim certamente chamará a atenção.

         Angélica olhou sua roupa como se tivesse esquecido do estado em que estava.

         -Certo.

         Jameson a viu sair em direção ao quarto de banho, escutou os sons que fez, a água escorregando por sua pele. Não demorou muito. Em questão de minutos estava de volta e parecia mais asseada mas não menos preocupada.

         Sem esperar a obter sua permissão, Angélica passou na frente dele e atravessou o salão para encaminhar-se à porta de entrada.

         -Espere, Angélica -disse ele correndo a seu lado e lhe colocando a mão sobre o ombro-. Se for fingir que vai comprar algo vai precisar de dinheiro. Tome.

         Pôs-lhe na mão várias notas. Sentiu como ela tremia de nervosa.

         -Vá devagar -advertiu-lhe Jameson-. E mantenha a cabeça baixa. Tome cuidado, Angélica. Estarei perto se por acaso precisar.

         Ela o olhou e manteve o olhar durante um longo instante. Jameson teve a impressão de que queria lhe dizer algo, mas pareceu mudar de opinião. Voltou-se e avançou a passos largos para a porta.

         Jameson passou as mãos pelo cabelo. Não gostava do que estava sentindo, mas não queria pensar nisso agora. Mas logo teria que enfrentar aquilo que parecia havê-lo possuído por completo.

         Logo. No momento tinha que seguir um anjo.

         Eu sabia que manteria sua promessa de me seguir. Podia sentir sua presença perto de mim onde quer que eu fosse, embora não o visse nem uma vez.

         A loja não estava muito longe. Encontrei-a com facilidade e agradeci ao céu que ainda estivesse aberta. Embora estivesse totalmente vazia. Dava a impressão de que a maioria do pessoal dali se recolheram cedo às suas casas naquela noite. Certamente, os agentes os tinham assustado. A loja era um local grande repleto de comida enlatada e aperitivos. Uma camapinha soou alegremente quando atravessei a soleira da porta.

         -Olá -disse uma voz masculina com tom amável. Eu elevei os olhos, sobressaltada. Mas estava só atrás do balcão e seus olhos não encerravam maldade nenhuma.

         -Em que posso ajudá-la?

         -Tem postais? - perguntei tentando ocultar o medo em meu tom de voz.

         A loja cheirava a café fresco e a hortelã.

         -Claro.

         O homem saiu de atrás do balcão e me guiou Havia uma vitrine cheia de postais.

         -Busca alguma paisagem em particular?

         -Reconhecerei assim que ver – eu disse sorrindo forçadamente.

         E comecei a rebuscar entre as postais, como se estivesse procurando um em especial.

         -Acredito que não a conheço. Você deve ser turista.

         -Sim. Estou de passagem.

         Tirei um postal em que havia uma foto com árvores, montanhas e o céu azul.

         -Parece que vim em um mau momento – continuei -. A julgar pelos controles de trânsito e todos esses homens percorrendo a cidade... escaparam todos os detentos de algum presídio próximo, ou um algo parecido?

         O homem negou com a cabeça enquanto eu lhe estendia o postal e se aproximava da caixa registradora.

         -Uma autêntica vergonha, isso é o que é. Não sei aonde vamos parar.

         Teclou e a caixa fez um ruído. Abriu-se a gaveta de baixo.

         Eu lhe entreguei uma nota de um dólar.

         -O que aconteceu? -atrevi-me a perguntar. Ele voltou a negar com a cabeça.

         -Um seqüestro -disse-. Um casal jovem ia viajando em direção ao norte e tiveram um pneu furado. Saíram para trocar e quando voltaram a entrar no carro descobriram que sua filhinha já não estava mais lá. Alguém a tinha levado.

         Fiquei sem respiração.Meu Deus, era possível que o guarda me houvesse dito a verdade? A Divisão tinha roubado a minha filha, e alguém a tinha roubado deles. Mas quem?

         -Sabe - continuou dizendo ao homem sacudindo de novo a cabeça-. É algo terrível. Não posso acreditar que algo assim tenha ocorrido em Petersville.

         Eu contive a respiração e tentei prosseguir falando.

         -E o que estão fazendo para tentar encontrar a menina?

         -Bom, puseram um bloqueio de estrada ao sul da cidade e registram cada veículo que passa. Pelo bosque há também patrulhas e agentes que vão de porta em porta para fazer perguntas. Pessoalmente, acredito que não vai servir para nada. Quando um desses depravados pega uma criança... Bom, é difícil que a encontrem. Ao menos com vida.

         Eu me agarrei ao mostrador para evitar que me dobrassem as pernas.

         -Com vida?

         -Os tipos assim normalmente procuram meninos um pouco maiores. Não posso nem imaginar o que farão com alguém tão pequeno. Malditos filhos da...

         O homem rebuscou na gaveta da caixa registradora para me dar o troco.

         -Obrigado, senhorita.

         Eu estirei a mão para receber as moedas.

         -Obrigado -murmurei dando a volta para partir.

         -Não se esqueça do postal! - gritou-me o homem. Eu voltei. O postal estava em cima do balcão. Recolhi-o com mãos trêmulas.

         - Tenha uma boa viagem - disse-me o homem enquanto eu saía da loja.

         Eu me limitei a assentir com a cabeça enquanto partia.

 

         Estava tremendo quando saiu da loja acompanhada do som daquelas campainhas que tocavam ao menor movimento. Saiu à calçada e ficou completamente quieta durante um instante com os olhos fechados. E logo estremeceu visivelmente antes de dar a volta e sair correndo.

         Jameson ficou tão assombrado que a um princípio não reagiu. ficou ali como um tolo e a viu correr, viu a manta que pôs a modo de xale flutuando por cima de seus ombros e caindo ao chão.

         Jameson se recuperou e saiu correndo atrás dela sem lembrar-se de seu propósito de manter-se oculto. Deteve-se onde tinha caído a manta, recolheu-a e apertou sua suavidade de lã. Maldição, algo ia mau. Fosse o que fosse o que tinha averiguado na loja, tinha-a afetado muito.

         Durante um instante se perguntou por que não lhe vinha à mente uma explicação mais óbvia para sua fuga.

         Não lhe ocorria pensar que Angelica estivesse fugindo dele e não do que tinha escutado na loja? Não lhe ocorria que tinha escapado como prometeu que faria, que tentaria encontrar a sua filha e levá-la o mais longe possível de um monstro como ele?

         Certamente. Se Jameson acreditasse de verdade nas coisas que desde o começo esteve dizendo a si mesmo sobre Angelica, certamente acreditaria naquilo

com convicção. Se aceitasse sem reservas o modo tão duro com que a julgava, a ladainha que tinha repetido em sua cabeça uma e outra vez, que ela os via como animais e se considerava melhor que outros... então naqueles momentos estaria furioso com Angelica.

         Mas não estava. Estava preocupado. E por alguma estranha razão, estava absolutamente convencido de que não tinha fugido dele. Como era possível?

         Porque tinha arriscado sua vida para salvar a dos mais queridos amigos de Jameson. E a sua própria. Porque a tinha visto abraçar Tamara e o afeto que desprendiam seus olhos quando falava com Rhiannon. Porque a tinha visto ir acostumando-se pouco a pouco à sua nova força, explorá-la e prová-la. Correr a seu lado como uma ninfa travessa do bosque. Saltar para comprovar quão alto podia chegar. Desfrutar da beleza da noite. Maravilhar-se ante seus poderes psíquicos. Vencer quatro homens armados como uma leoa protegendo a sua ninhada.

         Angelica não era nenhuma das coisas que tinha pensado dela. E certamente, tampouco era uma egoísta. E não negaria a sua filha. Não, porque sabia quanto significava para ele aquela menina. E ela sabia, não podia evitar sabê-lo. Estavam conectados. Ela sentia o que ele fazia. E ele...

         Jameson fechou os olhos e a buscou com a mente. Angústia. Lágrimas. Soluços tão intensos que doíam. E medo, um pânico atroz e paralisante. Aquilo foi o que sentiu naquele momento, umas sensações que procediam claramente de Angélica.

         Jameson se aproximou da esquina da casa e olhou em direção ao caminho que percorria a seu lado, que subia por uma colina e desaparecia no bosque. Angelica tinha ido por ali. E a encontraria.

         Talvez ela o detestasse. Que diabos, uma parte de Jameson não podia culpá-la por isso. Tinha-a tratado como uma estúpida da noite em que a tirou da cela. Tinha-a transformado em sua prisioneira, tinha-a ameaçado e se entregou à necessidade física quando sabia que Angélica não a podia controlar. Porque, maldição, tampouco ele podia controlá-la.

         Sim, certamente tinha razões de sobra para considerá-lo um monstro e para odiá-lo. Mas Jameson percebeu então que ele tinha mentido ao dizer que também a odiava.

         Nunca a tinha odiado. Nem mesmo naquela noite já tão longínqua em que esteve a ponto de deixá-lo sem vida.

         Jameson virou e andou pelo caminho que ela tinha tomado enquanto a buscava com a mente. E não demorou muito tempo em encontrá-la. Estava justo à entrada do bosque e olhava fixamente para o chão coberto de musgo. Todo seu corpo estremecia com a força de seus soluços. Jameson ficou ali de pé, perguntando-se por que sentiria tanto dor ao vê-la assim. Não se tratava de pena de Angélica, embora também a sentisse, mas sim dele próprio. Por que lhe formava aquele nó no estômago ao vê-la chorar? Por que lhe fechava a garganta? Por que lhe queimavam os olhos?

         -Anjo... -sussurrou.

         Ela deixou escapar um suspiro. Logo se apoiou nas mãos para ficar de pé e ergueu a cabeça para olhá-lo. Tinha o rosto empapado em lágrimas, e os olhos inchados e vermelhos. Algo o fez acariciar seus braços e a estreitou contra o peito.

         -Anjo... -voltou a sussurrar, embora lhe fosse difícil falar-. Não chore, por favor. Mata-me vê-la chorar.

         Seus dedos lhe acariciavam o cabelo como se tivessem vida própria, e lhe segurou a parte de trás da cabeça.

         -É... é certo -sussurrou ela entre soluços-.Alguém a levou, Jameson. Não sabem quem levou a nossa menina. Não sabem onde está. E se...

         -Sshh...

         Jameson lhe acariciou o cabelo, os ombros e as costas com a esperança de que seu corpo deixasse de sofrer aqueles espasmos.

         -Eles não a levaram, anjo. Não podem lhe fazer mal.

         -Mas, que tipo de pessoa pode tê-la levado? E se for algum pervertido, um demente...?

         -Não.

         Jameson a segurou pelos ombros e a separou uns centímetros dele, o suficiente para poder olhá-la aos olhos enquanto falava, o justo para que pudesse ver a convicção que se refletia seu olhar.

         -Se estivesse em perigo você sentiria. Sabe que sim. E não sente.

         Angélica piscou para afugentar as lágrimas que alagavam seus olhos de ametista e olhou tão profundamente nos seus que Jameson sentiu que podia ver tudo o que tinha sido e o que chegaria a ser.

         -Não -disse suavemente, não sinto.

         -Então está a salvo. Temos que nos agarrar a isso, meu anjo. Agora mesmo está a salvo. E longe desses malditos. Encontraremos-na antes de que o eles façam. Juro-lhe isso por Cristo, anjo. Encontraremos a nossa filha.

         Jameson viu que lhe tremiam os lábios e impulsivamente apertou os seu contrário eles. Naquele momento só o que tinha em mente era acalmar seus tremores, tranqüilizar aquela mulher. Saboreou suas lágrimas. Quando Jameson ergueu a cabeça, ela esquadrinhou seu rosto.

         -Tenho muito medo por ela, Jameson.

         -Sei. Eu também tenho.

         Ele forçou-se a afastar os braços de Angélica. Porque sabia que se deixasse passar uns instantes mais não seria capaz de fazê-lo.

         -Não -disse ela.

         Jameson a olhou e viu que seu rosto tinha uma expressão confusa.

         -Eu preciso... -começou a explicar Angélica. Mas não pôde terminar a frase.

         -O que precisa, anjo?

         -De você. Sua força. Por favor, me abrace. Não me solte. Agora não. Nunca me senti tão sozinha. Nunca havia sentido esta necessidade, e não posso...

         Ele tinha jurado que a rechaçaria da próxima vez que fosse atrás dele. Tinha jurado que... Ah, mas tinha sido um estúpido. Nunca poderia rechaçá-la. Se ela fosse para ele um milhão de vezes, um milhão de vezes a aceitaria. Porque ele...

Não, não era isso.

         Jameson a estreitou entre seus braços com força e Angélica se agarrou a ele como se fosse a cair se a soltasse. Ela elevou o rosto para ele e Jameson a beijou. Sem perguntas, sem preocupar-se com conseqüências. Da culpabilidade que Angélica sentiria quando terminassem. Da repulsão que experimentaria quando se desse conta de que se entregou uma vez mais a um homem que desprezava. Esse momento chegaria, não tinha nenhuma dúvida. Mas não lhe importava. Ela o necessitava. Havia dito. E Jameson a necessitava naquele preciso instante também. Angélica era a única pessoa do mundo que compreendia perfeitamente sua angústia por sua filha. Aquela agonia era só do que compartilhavam. E parecia lógico que ambos compartilhassem também o consolo.

         Jameson beijou-a, e seus lábios se abriram quando os respirou com a língua. Saboreou sua boca e soube que a doçura da Angélica era seu vício. Nunca tinha bastante dela. As mãos enfebrecidas dela começaram a lhe abrir a camisa e lhe desabotoar os botões com urgência. E então afastou a boca da sua e o beijou no pescoço, no peito e no ventre enquanto ele se ajoelhava sob os pinheiros. Cada vez que ela o roçava com a boca ele estremecia.

         Jameson se inclinou para lhe levantar o vestido destroçado e tirá-lo pela cabeça. Seus seios nus se apoiaram contra seu peito enquanto voltava a beijá-la uma vez mais nos lábios e notava como seus mamilos se endureciam. Jameson a segurou pelos ombros e a deitou delicadamente antes de cair sobre ela para alimentar-se de seus seios como um possesso. Sugou-a com força, com ferocidade, mordendo aqueles mamilos duros.

         Aquilo era a loucura. A loucura absoluta. Mas não podia lutar contra ela. Não queria lutar contra ela

         Jameson se levantou e a ajudou a endireitar-se. E com suavidade lhe apoiou as costas contra o tronco de um pinheiro. Ela ficou ali preparando-se, com os olhos semi fechados e os lábios úmidos pelos beijos, os mamilos eretos e palpitantes. E Jameson baixou as calças e as tirou. Então ajoelhou-se e beijou o pêlo encaracolado que Angélica tinha entre as pernas. Deslizou a língua entre seus lábios, saboreando a salgada umidade que ali havia e Angélica gemeu. Separou as coxas e afundou o rosto entre suas pernas, lambendo-a até dentro, ficando mais louco a cada gesto, e introduzindo cada vez mais profundamente a língua. Mas devorá-la não lhe parecia suficiente, embora tentasse. Utilizou os dentes e a boca, escutou-a gritar e sentiu suas mãos lhe acariciando o cabelo.

         E então ele voltou a ficar de pé, lhe deslizando os lábios pelo ventre e lhe saboreando os seios no caminho antes de voltar a beijá-la na boca, mantendo-a apertada contra a árvore com seu corpo enquanto suas mãos faziam com que ela ficasse tão louca por ele como ele o estava por ela.

         -Tome, vampiro -sussurrou-lhe jogando a cabeça para trás e apoiando-a contra o tronco da árvore, elevando o queixo e lhe oferecendo seu pescoço luxurioso. Oferecendo tudo o que tinha. Toda ela-. Faça com que me esqueça de tudo.

         Jameson a agarrou pela parte de atrás das coxas e a levantou. Então se afundou dentro dela. Angélica gemeu de prazer e ele se introduziu com mais força nela, entrando e saindo uma e outra vez. Sentiu como o corpo dela respondia, sentiu como se esticava ao redor dele. Angélica lhe rodeou a parte de trás da cabeça com as mãos, lhe guiando a boca para o pescoço.

         -Faça-o -gemeu.

         E Jameson obedeceu. Deslizou a boca por sua carne fresca e então a mordeu, lhe furando a pele e depois a jugular. Empurrou os quadris com mais força ainda, afundando-se enquanto bebia nela. E quando Angélica chegou ao êxtase, todo seu corpo vibrou. Apertou o corpo do Jameson com as pernas, introduzindo-o ainda mais dentro. Jogou a cabeça para trás para que as presas dele se lhe cravassem com mais força no pescoço. Arqueou as costas para recebê-lo inteiro e gritou. O membro de Jameson entrou nela e ele se apertou a seu corpo inteiro. Todo. E logo a seguir veio um momento mais forte que a loucura, e seu corpo se relaxou. Então ambos caíram ao chão como se fossem um.

         Jameson não queria que terminasse. Não estava preparado para a culpa e a repulsão. Para o ódio de Angelica contra ele e os de sua classe. Enquanto a abraçava, elevou-lhe o queixo e inclinou a cabeça para beijá-la. A paixão já tinha passado e estavam, no momento, saciados. Mas Jameson a beijou de todos os modos. E foi um beijo comprido e doce.

         Quando elevou a cabeça, ela abriu os olhos para observar sua expressão. Estava confusa.

         -Não é minha prisioneira, Angelica. O certo é que não foi nunca -disse-lhe-. Quando quiser partir é livre para fazê-lo.

         -Não quero deixar você -sussurrou ela.

         E durante um instante viu em seus olhos refletido algo que o deixou sem respiração.

         - Nunca -disse mordendo o lábio e lhe evitando o olhar-. Quero dizer, não até que encontremos Amber Lily.

         Jameson se limitou a assentir com a cabeça. E então a soltou embora, para sua surpresa, percebeu que ela não tinha muita pressa por que o fizesse. Ele ficou de pé e recolheu sua roupa. E antes de ficá-la sua se aproximou da Angelica com aquele vestido destroçado que tinha conhecido dias melhores. O colocou pela cabeça e a ajudou com delicadeza a colocar os braços pelas mangas, desfrutando de cada instante no que tinha a oportunidade de tocá-la.

         Angelica ficou depois sentada no chão, olhando-o fixamente enquanto ele se vestia.

         -Estive totalmente enganada... Em muitas coisas.

         Jameson não queria interpretar mal. Não queria chegar a conclusões precipitadas porque aquilo poderia destruí-lo.

         -No que, Angelica?

         Ela fechou os olhos. A brisa lhe agitou suavemente o cabelo, brincando com ele. Então ergueu a cabeça e abriu muito os olhos.

         -Escute -disse.

         Jameson franziu o cenho e obedeceu. Mas não ouviu nada, exceto os clássicos sons do bosque.

         -Do que se trata, anjo?

         -Não as ouve? -perguntou ela inclinando a cabeça-. São sinos, vampiro. Sinos de uma igreja. Jameson sentiu um calafrio lhe percorrendo o espinho dorsal, porque não havia nenhum sino. Céus, seu pobre anjo sombrio teria começado a perder a razão?

         -Anjo -sussurrou tomando sua mão.

         Mas ela se pôs em pé e se virou para aquele som imaginário, olhando como se estivesse hipnotizada ou algo pior. E começou a andar.

         -Angelica, espera, onde vai?

         -À igreja -murmurou ela virando-se para olhá-lo com olhos completamente cordatos-. Faz já muito tempo, Jameson. Acusei a Deus de me dar as costas, mas estava equivocada. Não vê? Hílary... Ela me fez ver isso com clareza. Quando estava agonizando no bosque... Disse-me que Deus estava comigo, que guiava meus passos. Disse-me que Ele a ajudaria a manter sua promessa, cuidaria de Amber Líly até que estivesse de novo a salvo conosco. E agora... estes sinos...

         Jameson viu o alívio refletido em seus olhos e desejou com toda sua alma que aqueles sinos fossem reais.

         -Tem que significar algo, Jameson. Deus não me condenou. Talvez tenha estado a ponto de me condenar sozinha, mas já não penso assim. Tudo vai acabar bem.

         -Sim -respondeu ele-.É. Prometo-lhe isso. Acariciou-lhe o rosto.

         -Venha comigo.

         E Jameson assentiu com a cabeça, porque não teve coragem de lhe dizer que estava imaginando coisas. Angelica soltou-lhe mão e começou a caminhar através dos pinheiros, cada vez mais alto pela ladeira de uma colina.

         E quando o vento se deteve durante um instante, Jameson teve a impressão de estar escutando... Sinos.

         Seguiu o som daqueles sinos porque senti que tinha que fazê-lo. Tinha que ir à Casa de Deus e me pôr de joelhos, lhe dizer que O sentia. Que agora O compreendia. Tudo o que me tinha ocorrido tinha uma razão de ser e, quem era eu para pretender conhecê-la? Não a conhecia.     

         Só o que sabia era que Deus continuava tendo um plano para mim. Não me tinha deixado de lado nunca.

         Quando chegamos ao alto da colina, escutei Jameson murmurar algo entre dentes. Os sinos se detiveram, mas já não os necessitava. A ermida estava situada no meio do verdor dos pinheiros. Nós tínhamos chegado atravessando o bosque, mas vi o caminho estreito que descia até o povoado. Não era uma construção espetacular. Tinha uns vitrais lisos em lugar das tradicionais vidraças. Na entrada havia uma pequena porta vermelha.

         Suspirei aliviada, sentindo que tinha chegado. E subi os degraus. Jameson ia a meu lado, agarrado à minha mão, me olhando de vez em quando. A porta estava aberta, como eu imaginei que estaria.

         A igrejinha estava cheia de velas amarelas que titilavam e brilhavam nos bancos de madeira e no altar. Só havia uma pessoa. Uma mulher que estava sentada no primeiro banco e que movia o carrinho de bebê que tinha diante dela. Eu a reconheci.

         -Olhe -sussurrei ao Jameson-. É ela.

         Ele assentiu com a cabeça.

         -Sim. A mulher que teve o acidente de carro. -Aquela pela qual você arriscou sua vida para salvar a sua filha – falei, apertando-lhe a mão.

         Dei um passo adiante. Jameson se sentou no banco e deixou que eu fosse sozinha. E isso fiz. Benzi-me e me ajoelhei diante do crucifixo de madeira que havia no altar e, em silêncio, rezei.

         Jameson observou Angélica ali ajoelhada. De repente parecia tão serena... Sabia que para ela fazer as pazes com Deus significava muito. Jameson tomou assento ao lado da mulher cujo nome não podia recordar e ela o olhou. Abriu muito os olhos e lhe sorriu.

         -Você! -sussurrou-lhe.

         -Sim. Que coincidência, não? Como está a pequena?

         -Alicia está bem -murmurou a mulher. Mas sacudiu a cabeça.

         Jameson franziu o cenho a perceber sua confusão.

         -Aconteceu alguma coisa?

         -Não, nada, é só que... aconteceram tantas coisas estranhas... Voltar a vê-lo é só uma mais, suponho.

         A mulher fechou os olhos.

         -Dois milagres em tão curto espaço de tempo. Primeiro você e... aquela jovem tão bonita resgatam a minha filha do carro. E logo...

         A mulher inclinou a cabeça e balançou o carrinho de bebê que tinha diante dela com suavidade.

         -E logo?

         -Logo... Não sei exatamente. Mas acredito que veio um anjo me visitar.

         Céus, como era possível que a religião tornasse tão loucas algumas pessoas?, perguntou-se Jameson.

         -Ela também era muito bonita. Um anjo de pele escura com os olhos castanhos mais doces que vi em minha vida. Estava toda vestida de branco e... parecia que brilhava.

         Jameson viu Angélica ficar tensa. Mas não se voltou. Ficou de joelhos muito quieta, escutando.

         -E.. o que queria esse anjo? -perguntou Jameson.

         -Foi algo incrível -continuou a mulher sacudindo sua loira cabeça-. Disse que eu tinha que pagar uma dívida. Que tinham salvado a minha filha e eu devia salvar à filha de outras pessoas. Tinha uma menina pequena em seus braços. Uma recém-nascida. Deu-me isso e me disse que devia mantê-la a salvo até que sua mãe viesse a procurá-la.

         Angélica emitiu um grito surdo e ferido. ficou de pé e se virou lentamente com os olhos tão abertos e tão esperançosos que Jameson pensou na possibilidade de partir o pescoço daquela mulher se estivesse inventando aquela história.

         Antes de seguir falando, a mulher olhou Angélica nos olhos e então as palavras lhe foram saindo muito devagar.

         -O anjo me disse... Disse que a reconheceria quando a visse -disse sorrindo-. E é você, não é?

         Mas Angélica era incapaz de falar. Abriu os lábios, mas não emitiu nenhum som. Os olhos lhe encheram de lágrimas.

         -Sim -afirmou Jameson-. Se tiver encontrado um bebê perdido, é nossa filha. Por favor...

         -Algo me disse que viesse aqui. Que viesse à igreja e esperasse. É certo que...

         Voltou a sacudir a cabeça e ficou de pé, aproximando-se do carrinho e afastando os lençóis.

         Jameson olhou. Angélica não. Ficou petrificada onde estava, como se tivesse medo de olhar. Medo de comprovar que sua menina não estava ali.

         O bebê de bochechas gordas e cabelo de cenoura, Alicia, parecia adormecida no carrinho. E ao lado dela havia uma menina menor de cachos negros como a asa de um corvo e uns olhos grandes e escuros como o ébano que o olharam de frente.

         Jameson sentiu que o coração lhe enchia, tanto que acreditou que lhe ia rebentar. Inclinou-se sobre o carrinho e agarrou com suas grandes mãos aquele vulto tão frágil. Estreitou-a com força entre seus braços e fechou os olhos.

         -Amber Lily... - sussurrou quase sem fôlego.

         Porque não podia falar mais alto. Tinha o rosto úmido. E quando abriu os olhos de novo e levantou a cabeça viu Angélica ali, piscando confusa, com seus formosos olhos violeta cravados na menina. Engoliu em seco, voltou a piscar e caiu ao chão. As pernas pareceram converter-se o em manteiga.

         Jameson se aproximou dela e se ajoelhou a seu lado. E então colocou brandamente à menina nos braços de sua mãe. Todo o corpo da Angélica estremeceu.       Sorria, chorava e tremia, tudo de uma vez. Inclinou-se para beijar a fronte de sua filha. A menina agarrou uma mecha de seu cabelo.

         Angélica o olhou através de seus olhos cheios de lágrimas. E Jameson soube naquele instante que a amava. Amava-a. E amava a menina que tinham concebido juntos. Sempre a amaria. Passasse o que passasse. E uma parte dele, a mais importante, desejou as estreitar as duas entre seus braços e sair correndo para refugiar-se e viver para sempre em alguma cabana afastada do mundo.

         Mas outra parte dele sabia que aquilo era impossível. E não só porque Angélica nunca chegaria a sentir por ele o mesmo. Mas sim porque não haveria paz nem felicidade para ela nem para sua filha até que a DIP fosse aniquilada.

         Ninguém mais poderia fazê-lo, pensou enquanto olhava a mulher que amava embalando entre seus braços a sua filha. E sabia por quê. Porque ninguém tinha tantos motivos.

         Jameson estirou o braço e deslizou lentamente a mão pelas faces úmidas de Angélica.

         -Espere aqui, meu anjo -disse-lhe-. Irei ao povoado procurar o carro e sairemos daqui.

         -Sim.

         Não o olhou quando lhe falou. Só tinha olhos para sua filha, e estava tão cheia de amor que Jameson acreditou que tanta beleza matá-lo.

         Inclinou-se para beijar a menina e depois deu a volta e saiu da igreja. Foi só o tempo necessário para assegurar-se de que não havia ninguém ao redor e que ninguém veria como atravessava os bosques que havia na parte de trás da cidade, tomando um atalho para aparecer justo na colina que havia detrás da cabana vazia em que tinha deixado o carro.

         Então apressou-se. Meteu-se no carro e desceu pelo caminho que levava à cidade. Uma vez ali diminuiu a marcha para não chamar a atenção. Mas agora que estava ali não viu nenhum veículo de aspecto oficial nem nenhuma caminhonete estacionada nas sarjetas, como tinha visto antes. E tampouco havia homens vestidos com uniformes negros batendo nas portas nem fazendo perguntas aos transeuntes.

         Que diabos estava se passando? Não era possível que se rendessem tão cedo.

         Sentiu um calafrio percorrendo-lhe a espinha dorsal quando virou o carro para o caminho de terra que levava de novo à igreja.

         E foi então quando escutou o grito da Angelica.

         Não o ouviu com os ouvidos. Só com a mente. E não era uma questão de telepatia. Ela não estava dirigindo-se intencionadamente a ele. Mas estava terrivelmente assustada... Ou ferida. Ou ambas as coisas.

         Então deixou de gritar e Jameson não escutou nada mais. Apertou a fundo o acelerador. As rodas levantaram uma fumaça de pó ao avançar pela terra do caminho. Tomou as curvas a toda velocidade e a ponto esteve de perder o controle várias vezes. Mas não diminuiu a marcha. E não deixou de sentir aquela espantosa sensação de que não devia tê-las deixado sozinhas. Nem por um minuto.

         O céu brilhava lá em cima. Uma fumaça negra subia para as nuvens como se fosse o fôlego do diabo. Jameson dobrou uma esquina e se deteve frente à igrejinha, mas já não era uma igrejinha, mas um pesadelo. A pequena construção estava já virtualmente abrasada. Não ficara nada que pudesse identificá-la como o que tinha sido. Era só uma massa de chamas e fumaça.

         Jameson abriu a porta do carro e saiu correndo, cobrindo o rosto com o braço quando sentiu que a carne começava a lhe queimar.

         -Atrás! -gritou-lhe uma voz apenas audível através do bramido do fogo-. Está muito perto! Jameson tinha a mente nublada e o corpo congelado até as vísceras a pesar do calor. Deu a volta e viu a mulher loira embalando a sua filha entre os braços, soluçando e lhe estendendo uma mão. Aproximou-se dela sacudindo a cabeça em busca de respostas.

         -Angélica! Minha filha! Onde estão?

         Mas a mulher se limitou a soluçar e a negar com a cabeça.

         Jameson se deteve diante dela.

         -Que diabos ocorreu aqui? Conta-me, maldita seja!

         -Não sei -disse ela com a voz débil-. Eu acabava de sair quando a igreja... Foi como se uma bomba tivesse explodido em seu interior. Deus, foi horrível. Horrível!

         Não. Não podia ser.

         -Angélica e a menina estavam ainda dentro?

         Jameson deu a volta com a intenção de dirigir-se uma vez mais para aquelas ruínas incandescentes, mas a mulher o reteve para impedir-lhe .

         -Não tiveram nenhuma oportunidade. Que Deus as tenha. Sinto muito.

         -Não!

         Jameson cravou os olhos no fogo, no montão de escombros, e soube que se estavam dentro quando teve lugar a explosão, agora estariam mortas. As duas.          Mortas. As lágrimas lhe cegaram os olhos. Apertou os punhos.

         -Não! -gritou outra vez.

         Então jogou a cabeça para trás e uivou de dor, de angústia e de fúria incontida. E seu grito sobrenatural se perdeu na noite em direção ao céu, e reverberou com força pelo bosque, fazendo tremer aos pinheiros.

 

         Minha filha era preciosa. E estava sã. E era mortal. Não estava tão aflita para não compreender o significado do que me tinha contado Susan, assim se chamava aquela mulher. Disse-me que Amber Lily tinha sido muito boa e tinha dormido toda a noite. Também me comentou quão bem comia. Tinha estado alimentando a minha filha com o mesmo leite em pó que dava à sua. E me assegurou que Amber Lily tinha ganho quase um quilo e que o cabelo lhe tinha encaracolado ainda mais.

         Era mortal. Crescia e mudava como o faria qualquer bebê humano. Não sabia que características de vampiro teria herdado de mim, se é que tinha herdado alguma. Mas me aliviava profundamente saber que não teria que alimentar-se como o faziam seus pais, e que não ficaria presa durante toda a eternidade no corpo de uma recém-nascida. E ambas as coisas me davam muitas esperanças.

         Tudo ia ficar bem. Por fim. Estava desejando que Jameson retornasse para poder contar-lhe

         Susan, aquela mulher a que nunca poderia lhe agradecer o bastante o que tinha feito, disse que tinha que retornar para sua casa e me desejou o melhor.

         -Obrigado -disse-lhe-. Já sei que não é suficiente, mas...

         -Não foi nada -assegurou ela me olhando profundamente aos olhos-.Agora estamos em paz.

         Eu assenti com a cabeça e sorri de pura felicidade enquanto Amber Lily se mexia entre meus braços.

         Vi como partiam Susan e Alicia. Quando fecharam a porta atrás delas que notei a presença.

         Dava a volta e vi vários homens entrando na igreja, invadindo sua santidade por uma porta traseira.

         -Não se mova -ordenou-me um deles levantando seu rifle-. Nem sequer respire. Estou apontando na menina, assim se fizer o mais mínimo movimento lhe meto um tiro na cabeça. Estamos mais que fartos de jogar como gato e rato.

         Não me movi. Não podia fazê-lo, porque sabia que não mentia. Mataria a minha filha sem duvidá-lo nem um instante. Outros formaram um círculo ao meu ao redor, e então um deles me cravou uma agulha e senti que me enfraquecia. Foi então quando um terceiro arrancou a minha filha dos braços e eu entrei em pânico. Mas não era necessário. Jameson retornaria, retornaria por nós.

         Levaram-me arrastando à porta de trás enquanto a droga ia fazendo rapidamente efeito, convertendo meu corpo em uma massa sem vontade. Jameson estaria a ponto de chegar, pensei. Chegaria e saberia o que tinha ocorrido. Saberia que nos tinham levado com eles. E saberia onde nos buscar.

 

         Jogaram-me no assento de atrás de um carro e então um deles se virou para olhar a hora em seu relógio. Ficou ali de pé, esperando, e eu franzi o cenho.

         [i]Então a igrejinha explodiu em uma deflagração branca que sacudiu o chão que havia debaixo do carro. Eu gritei horrorizada, me perguntando se Susan e a pequena Alicia se teriam afastado o suficiente para ficar a salvo. Então o homem sorriu e se colocou atrás do volante. E soube. Soube o que pretendiam. Queriam que Jameson pensasse que tínhamos morrido na igreja. Assim não tentaria nos buscar.

         Enquanto me mantiveram drogada, pensei que deslizar para aquele espantoso sonho escuro ao que me induzia essa droga, seria incapaz de fazer saber o contrário. Havia dois homens diante do carro e outros dois se aproximaram para sentar-se a meu lado. Um deles levava a minha filha.

         Assim que pude me mover, consegui me tirar um pé de sapato, e quando o homem se inclinou para entrar no carro, deixei cair o sapato ao chão. Então eles fecharam a porta e o carro se foi. Eu cravei o olhar nos olhos de ébano de minha menina até que já não pude mais.

         Ficou ali sentado no chão, e a mulher acabou partindo. Então apareceram outros mortais. Um caminhão de bombeiros vermelhos e voluntários com mangueiras. Finalmente o fogo ficou reduzido a uma pilha de escombros carbonizados. Jameson ficou ali sentado, sem mover-se. Não podia fazê-lo, não voltaria a mover-se nunca mais. Ficaria ali sentado até que o sol saísse, e o receberia agradecido.

 

         Tinha-as perdido. As duas. E maldição, logo que tinha tido a oportunidade de conhecer sua filha.

         Mas tinha conhecido Angélica. Sua risada, a luz de seus olhos violeta. Tinha conhecido suas carícias. Tinha-a amado. Maldição, tinha-a amado com toda sua alma e nunca imaginara.

         Como era possível que tivesse desaparecido assim, que a tivessem arrancado dele sem prévio aviso?

         E por que, pelo amor de Deus?

         -Filho, por que não deixa que os médicos lhe dêem uma olhada?

         -Sua esposa e sua filha estavam na igreja -disse outra voz desconhecida-. Isso é ao menos o que dizem.

         -Céus, não é pra menos que esteja assim.

         -Será que pode nos ouvir?

         -Não. Acho que o homem perdeu completamente a cabeça.

         -Vamos, filho. Levante-se.

         Jameson não disse nada, mas se levantou. Não queria que aqueles mortais bem intencionados o incomodassem. Queria partir e ficar só para recordar Angélica enquanto esperava o amanhecer. Arrastou os sapatos pelo chão enquanto se separava das pessoas e se dirigia às cinzas da igreja, rodeando-as em círculo como se fosse um planeta girando ao redor do sol. Parecia que uma força desconhecida o impedisse de abandonar aquela órbita. Seu coração... Seu coração estava naquela massa queimada. Sua alma. Sua menina...

Seria verdade?

         A DIP tinha qualificado Amber como seu objeto de investigação mais prezado. A teriam destruído realmente?

         Tropeçou em algo e olhou para baixo, irritado.

         -OH, Deus... -sussurrou, porque a dor que sentiu então lhe foi mais dura do que podia suportar-. OH, Deus, é o sapato de Angélica...

         Deixou-se cair de joelhos e o segurou com a mesma delicadeza que se estivesse segurando um tesouro frágil, e logo o levou ao peito. Começou a chorar entre soluços.    Porque sabia que os agentes talvez vacilassem antes de assassinar Amber Lily, mas não duvidariam em matar a sua mãe. Não se via com forças para viver sem ela. E entretanto teria que encontrar uma maneira de fazê-lo. Por sua filha.

         Quando esteva muito fraco para continuar sentado, atirou-se de bruços ao chão. Suas lágrimas amargas furaram o pó. Não podia respirar, mas não lhe importava.

         A idéia foi chegando lentamente. Muito lentamente. Mas quando lhe acertou em cheio bastou para tirá-lo daquele poço de neblina inconsciente no que se colocou. Foi suficiente para que tentasse pensar, e para sentir talvez... Esperança. Jameson se sentou outra vez e observou o sapato que tinha na mão. Não estava queimado. Nem sequer sujo. Nem prejudicado.

         Virou a cabeça e comprovou que havia muita distância entre os restos da igrejinha e aquele lugar. E ao examinar a zona viu que ali não havia mais escombros. A explosão não tinha arrojado nada mais assim de longe. E os rastros de pneumáticos...

         Aquela era a parte de trás da ermida. Jameson ficou de pé e avançou devagar para o que restava da igreja. Estava certo de que encontraria rastros de botas. E assim foi. E também havia umas marcas que sugeriam que tinham arrastado algo. Ou alguém.

         -Está viva -sussurrou apertando com força o sapato enquanto caía ali mesmo de joelhos.

         Jameson deixou cair a cabeça e fechou os olhos. -Está viva... Tem que estar. Graças a Deus – sussurrou.

 

         Jameson estava na parte exterior da grade que rodeava todo o perímetro da sede central da Divisão, no White Plains. Angélica estava dentro. Sabia com a mesma certeza que conhecia seu nome. E tudo estava preparado. Encontrou-se com outros ao norte da cidade e lhes tinha explicado o ocorrido. Tamara se tinha posto em contato com Susan Jennings e lhe tinha dado mais dinheiro de que ela jamais tinha visto em sua vida para que se reunisse com eles e cuidasse de Amber durante o dia. Ninguém lhe tinha explicado a razão, nem tampouco Susan tinha perguntado. Jameson confiava nela.

         Tinha tido aquele instante tão curto e tão maravilhoso com sua filha. Agora tinha terminado. Já não haveria mais tempo. Mas a resgataria daqueles miseráveis. E depois se asseguraria de que não tivesse que voltar a preocupar-se nunca mais com aquela maldita perseguição. Reduziria aquele lugar a escombros... Naquela mesma noite. Faria do mundo um lugar mais seguro para ela. E morreria com gosto durante o processo, mas não antes de ter completado o que tinha ido fazer. E o sacrifício valeria a pena. Asseguraria assim que Angélica e Amber tivessem a vida que mereciam. E ao diabo com as conseqüências.     Valia a pena fazê-lo por elas. Elas mereciam tudo.

         Saltou a grade e começou a avançar. Ia fazer aquilo porque tinha que fazê-lo. E o faria sozinho. Então se deteve, porque alguém estava ao chão a seu lado.

         -Nada de sozinho -disse a voz de Eric, que lhe sorria-. Nada disso.

         E antes que tivesse terminado de falar, apareceram outros que surgiram das sombras um a um e ficaram a seu lado. Tamara estava ali, e também Roland e Rhiannon. Inclusive o gato de Rhiannon tinha ido. E muitos outros. Havia um em particular que tinha o semblante de um rei.

         Era mais alto que outros, mais moreno e mais forte. Sua voz ressoava como o trovão.

         -Sou Damien -disse tendendo a mão ao Jameson.

         Ele piscou confuso enquanto a estreitava. Damien era o mais antigo, o primeiro de todos eles.

         -Agradeço-lhe que nos tenha posto em ação.

         -Mas eu não... -começou a dizer Jameson.

         -Não. Foi sua Angelica. Mas por seu bem.  

         -Parece que ao final conseguiu dominar esses poderes psíquicos -comentou Rhiannon com doçura-.E embora esteja fraca e drogada conseguiu nos chamar. Ela sabia que viria, Jameson, e nos rogou que não lhe deixássemos fazer isto sozinho. Disse que preferia morrer ali dentro antes que saber que tinha entregue sua vida tentando salvá-la.

         -Contou-nos o que pretende fazer esta noite; e nos envergonhou pensar que não estaríamos aqui para lhe ajudar -acrescentou Damien-.Assim aqui estamos -disse assinalando com um gesto todos os que os rodeavam.

         -Minha noiva, Shannon, o ex-agente da Divisão, Ramsey Bachman e sua esposa, Cuyler Jade. E todos os vampiros que Angélica conseguiu chamar.

         Damien lhe pôs a mão no ombro.

         -Estamos juntos nisto -disse-. Sua Amber Lily não é só sua filha, Jameson. É nossa também, nosso milagre, a primeira de uma nova geração, seja mortal ou não. E vai ser a pessoa mais querida do mundo.

         -Necessitará de ajuda para cuidar dela -disse a mulher chamada Cuyler Jade-. Será difícil dormindo durante o dia. Mas há um lugar ao norte no qual a escuridão dura muito mais que a luz do dia a maior parte do ano. Quero que leve a sua filha ali para que seja ela, e não o sol, quem decida a que horas dormir.

         -Sim -interveio o homem que estava a seu lado. E deveríamos procurar outro lar ao sul para o resto do ano.

         -Todos nós ajudaremos.

         Eric assentiu com a cabeça.

         -Por agora já temos um refúgio cômodo e seguro nos esperando, e Susan, sua amiga mortal, está ali, preparada para cuidar de Amber durante as horas do dia.

         Jameson assentiu com a cabeça, vendo que era possível que Angelica e a menina estivessem em boas mãos.

         -Talvez tenha que levá-las dali você mesmo, Eric. Não tenho intenção de partir deste lugar até que tenha ficado reduzido a escombros.

         -Isso será feito -disse-lhe Eric olhando de esguelha para Damien.

         -É necessário -assegurou o vampiro assentindo com a cabeça-. Todos sabemos, e estamos aqui para nos assegurar de que assim seja.

         Jameson ergueu os olhos para a grade e piscou maravilhado. Havia centenas, talvez inclusive mais de mil deles. E diante de seus olhos rodearam a grade que cobria o perímetro do edifício. Uma cadeia de mortos viventes reclamando seu direito a existir.

         Jameson se concentrou em Angelica enquanto começava a avançar com outros.          Formavam um muro de justiça em movimento que se ia fechando em torno do coração de seus perseguidores.

 

         Não sabia se outros teriam escutado minhas preces, mas sabia que Jameson estava a caminho. Sentia-o dentro de mim . Os esforços que tinha feito para contatar com outros e lhes suplicar ajuda para aquela noite, unidos aos efeitos da droga, tinham-me deixado debilitada e semi-inconsciente. Acreditava haver ficado com força suficiente para contatar com Jameson. Para lhe falar da enormidade do que sentia por ele se fosse a última oportunidade que tinha para fazê-lo. Mas não ficava energia. Embora assim que estivesse consciente saberia que a noite estava a ponto de terminar.

         Amanheceria em menos de uma hora. Os raios do sol poderiam cair sobre Jameson antes de que os agentes da Divisão o assassinassem. As probabilidades de que triunfasse eram escassas, mas eu rezei com toda minha alma para que Deus o protegesse e protegesse também a minha filha. Porque os amava com toda minha alma.

         Não levavamos ali muito tempo. Tinham encerrado a Amber e a mim em uma das celas dos níveis mais baixos enquanto os guardas permaneciam do outro lado de nossa porta, que era impenetrável, esperando a chegada de seu chefe e as ordens. Perguntei-me que ordens seriam. Como tentariam me matar desta vez e o que seria de minha preciosa menina.

 

         Tinham-me deixado sem amarrar, crentes que eu estava muito fraca para causar algum problema. Sentei-me no chão em um canto e abracei com força a minha filha, lhe cantando como tinha feito durante aqueles compridos e solitários meses anteriores a seu nascimento. E ela sorriu. Sorriu-me enquanto cantava.

 

         Aquilo não era bonito, mas Jameson já sabia que não seria. Era a guerra, e assim tinha de ser. Aquela gente estava tentando matar aos seus. Assim que os avistaram, saíram guardas armados de todas partes disparando balas de verdade em sua maioria, embora alguns as tinham arrumado para agarrar também as armas carregadas de tranqüilizadores. Mas tinham escassas oportunidades, porque os vampiros eram muitos.

         Eram imortais. Moviam-se mais rápido do que o olho humano podia apreciar. Podiam saltar sobre as balas que lhes disparavam e com um só movimento da mão deixar o inimigo inconsciente... Ou algo pior. E Damien...

         Jameson se deteve um instante para observar maravilhado o incrível poder do mais antigo dos imortais. O modo que podia cravar o olhar em algo até fazê-lo arder em chamas. O modo em que girava sobre si mesmo até desaparecer na noite.

         Mas nem sequer a maravilha de ver pessoalmente as legendárias habilidades daquele homem devia distraí-lo mais de um instante. As primeiras linhas de defesa estavam já quase derrubadas. Jameson foi o primeiro vampiro a cruzá-las, derrubando uma porta com um chute furioso.

         Os que se aproximaram dele saíram voando pelos ares, precipitaram-se contra as paredes e caíram ensangüentados e imóveis. Alguém gritou às suas costas e, quando Jameson voltou-se, viu Pandora saltando em cima de um guarda que tinha estado a ponto de lhe disparar pelas costas.

         A seu redor só se escutavam gritos, disparos e o sons das explosões. Jameson passou ao lado do laboratório de investigação justamente quando as janelas se fizeram em pedacinhos e as hordas de vampiros entraram para tentar destruir toda a informação que aqueles canalhas tinham recolhido. Escutou o ruído dos computadores ao se quebrarem contra o chão, cheirou a fumaça que desprendiam os arquivos ao queimar-se. Mas não se deteve.       

         Seguiu avançando até que se encontrou com um imbecil de bata branca que estava implorando piedade.

         -Onde estão? -perguntou-lhe empurrando-o contra a parede.

         Ao ver que o homem não respondia, voltou a empurrá-lo e os óculos lhe caíram ao chão.

         -A... Abaixo. Por... por ali...

         Jameson soltou o homem e correu pelas escadas na direção que lhe tinha dito. E só se deteve quando chegou a um corredor escuro e frio que havia no nível mais baixo. Porque... tinha-a escutado.

         Estava cantando. Tinha a voz tremente e débil... mas estava cantando. E aquele era o som mais lindo que tinha escutado em sua vida.

         -Anjo...

         Sentiu que os joelhos lhe fraquejavam de alívio, mas obrigou-se a manter-se firme

e correu para a porta que se interpunha entre eles. Gritando pelo esforço, a derrubou.

         Angélica estava sentada no chão. Ergueu a cabeça e o olhou nos olhos.

         -Você veio -sussurrou com os olhos cheios de lágrimas.

         -Sabia que o faria -disse Jameson correndo para ela.

         Caiu de joelhos e segurou-lhe suavemente a cabeça, observando-a.

         -Está bem? Me diga que está bem, anjo, porque não acredito ainda...

         -Estou bem. É... É a droga. Só isso.

         Jameson fechou os olhos num gesto de alívio e voltou a abri-los quando uma mãozinha lhe acariciou o queixo. Então viu sua filha sã e salva nos braços da mãe.

         -E você também está bem, não, meu amor?

         A menina gaguejou como se fosse um passarinho provando seu canto.

         -Está mais que bem -sussurrou Angélica-. É mortal, Jameson. Come, dorme e cresce... Como qualquer outra criança.

         -Não, como qualquer outra criança não -assegurou ele-. Minha Amber não é nada normal. É a filha de um anjo.

         Jameson se inclinou para beijar Angélica nos lábios. Ela fechou os olhos para desfrutar daquele beijo.

         - Segure bem Amber Lily, doce anjo - pediu-lhe então Jameson lhe deslizando as mãos por debaixo das pernas-. Vou tirá-las daqui.

         Jameson saiu correndo e subiu as escadas com elas nas costas. Atravessaram a porta de entrada, deixando atrás as chamas, a fumaça e os escombros, mas agora havia já poucos tiros. A batalha estava chegando a seu fim. Uma vez fora, Jameson as deixou em

um refúgio feito de arbustos que havia perto.

         Então se voltou para olhar de novo para o edifício.

         -Não vai voltar -disse Angélica segurando-o pelo braço.

         -Tenho que fazê-lo.

         -Poderiam te matar -assegurou ela.

         -Agora isso já não me importa -confessou Jameson olhando-a aos olhos-. A menina e você estão a salvo.

         -Não, Jameson, não vou permitir que vá. Não entende? Você me importa mais que nunca.

         Ele a olhou com o cenho franzido e viu que tinha os olhos cheios de lágrimas.

         -Mas...

         -Mas nada. Maldito seja, vampiro, não sobrevivi a tudo isto para perdê-lo agora...

         Angélica ficou sem voz e mordeu o lábio inferior.

         Jameson sentiu o coração disparar, mas não se atreveu a pensar que... Não, estava drogada, agradecida e estressada pela situação.

         -Angélica -disse ajoelhando-se diante dela-. Amber Lily e você estão a salvo agora. E são livres. Não tenho mais desculpa para obrigar você a ficar comigo. Pode... -suspirou com força-. Pode partir se quiser. Mas Angélica, não... não acredito que queira viver para te escutar me dizer adeus.

         -É imortal -sussurrou ela-. E além disso, nunca poderia viver tanto.

         -O que me está dizendo, anjo? -perguntou olhando-a.

         -Estou dizendo que o amo, Jameson -disse Angelica entre lágrimas-.Amo-o.

         Jameson piscou e ficou com a boca aberta. Tinha o coração aos pulos. Não podia falar.

         -Esperava... esperava que você também sentisse algo por mim -murmurou ela baixando a cabeça. Talvez... Talvez estivesse equivocada.

         Jameson a estreitou entre seus braços, com sua filha no meio, e esteve assim uns instantes antes de levantar a cabeça.

         -Amei-a sempre, Angélica. Inclusive naquela primeira noite senti algo... Algo que não saberia explicar. Disse a mim mesmo que a odiava, mas não era certo. Não poderia. É... Você é tudo para mim, anjo. Tudo.

         Ela sorriu fracamente e Jameson a beijou sem deixar de abraçá-la. Acariciou-lhe o rosto, deleitando-se em sua presença, em seu amor. E enquanto estavam abraçados, outros saíram do edifício. Multidão deles, todos os que tinham entrado e ainda mais. Os prisioneiros, agora livres. Alguns fracos, outros meio mortos, mas todos felizes. E quando todos estiveram a salvo fora, Damien deu um passo adiante e cravou o olhar no edifício durante uns compridos e tensos instantes. E de repente, fez-se uma explosão, convertendo-se em uma imensa bola de fogo. Todos os tijolos se esmiuçaram. A deflagração sacudiu a terra e as chamas se elevaram para o céu como uma tocha de esperança. Um grito de vitória surgiu das gargantas de todos os vampiros.

 

         Ninguém teria imaginado que a maioria dos adultos que foram ao baile de formatura eram vampiros.

         Jameson levava a sua mulher abraçada. Balançavam-se brandamente com a música que tocava uma orquestra de jovens situada no meio do ginásio decorado para a ocasião. Angélica e ele estavam entre as sombras, como a maioria de seus amigos. Rhiannon e Roland estavam sentados em uma mesa iluminada por uma vela, observando a festa. Eric e Tamara dançavam perto da porta dos fundos. Não queriam chamar muito a atenção. Tinham prometido a sua menina. Além do mais, aquela era sua noite.

         -Adiante -disse vários metros mais à frente um jovem a outro que estava a seu lado, muito nervoso-. Peça-lhe.

         -Nem pensar. Com certeza que me vai dizer que não, e então terei que me atirar de uma ponte.

         -Ao melhor diz que sim -disse o primeiro.

         Os dois estavam olhando a jovem mais bela de todo o baile. Era alta e esbelta, com o cabelo negro como a asa de um corvo que lhe caía até a cintura e mexia-se como ondas. E tinha uns olhos escuros como o ébano que pareciam albergar infinitos secretos. Estava ao lado do jarro de ponche com sua melhor amiga, Alicia, e ambas se moviam ao ritmo da música.

         O nervoso adolescente limpou a garganta e se aproximou dela.

         -Olá, Amber -disse-lhe.

         -Olá, Jimmy -respondeu ela sorrindo.

         -Você gostaria... quer dançar?

         -Eu adoraria.

         O rosto do jovem se iluminou com um sorriso de felicidade, e tomou entre seus braços.

         Amber olhou do outro lado da pista e captou o olhar de seu pai.

         «Gosto de você, papai».

         «Eu também gosto de você, Amber Lily», respondeu Jameson enviando aquele pensamento à sua filha sem dizer uma palavra. «assegure-se de que esse jovem não se aproxime muito de vocêi».

         Amber sorriu, enquanto seu companheiro a fazia girar sobre a pista.

         -Conseguimos, acredita? -perguntou- Jameson a Angelica lhe mordiscando o lóbulo da orelha ao falar.

         -Fazê-la feliz? Sim, Jameson. Acredito que sim.

         -Talvez não devêssemos ter vindo -lhe ocorreu dizer a ela -. Talvez a estejamos superprotegendo.

         -Não lhe importa absolutamente -assegurou Angelica-. Ela nos ama, Jameson. Não percebe?

         Ele assentiu com a cabeça pensativamente, mas continuava temendo ter ofendido a filha ao oferecer-se para acompanhá-la ao baile. Queria-a muito, e lhe era difícil saber quando estava sendo muito protetor e quando, simplesmente, razoável.

         -É preciosa -murmurou inclinando-se para beijar aquele pescoço que tanto o tentava-. Igual à sua mãe.

         -E tão cabeça-dura como seu pai -replicou Angélica.

         -Bom, e o que lhe parece Jimmy? -perguntou Jameson franzindo o cenho e olhando para a pista de baile.

         -Acredito que é muito bonito -assegurou ela com uma gargalhada-.E também acredito que deveríamos deixar que Amber Lily decida sobre ele. Também herdou a inteligência do seu pai, sabe?

         Jameson fechou os olhos e suspirou.

         -Está ótimo.

         -Ainda tem dúvidas? -perguntou Angélica-. Mas se obrigou Eric a repetir as análise de sangue cinco vezes para se assegurar... O antígeno da beladona é diferente nela -recordou-lhe-. O gen que provoca a morte prematura em não-mortais desapareceu.

         -E entretanto, seus poderes psíquicos são tão fortes como os nossos -acrescentou Jameson-. E sua força física cresce cada dia de maneira impressionante.

         - Rhiannon gosta de pensar que ela herdou suas habilidades sobrenaturais de sua tia princesa - murmurou Angélica.

         - É um milagre - assegurou Jameson olhando-a nos olhos com um sorriso.-. Ela é um milagre. Disse-lhe recentemente quanto a adoro, meu anjo?

         - Sim - respondeu ela-. Mas pode voltar a me dizer isso?

         Quando ia beijá-la sentiu uma mão tocando-o no ombro. Quando voltou-se viu sua menina de mãos dadas com um jovem.

         Jameson ficou reto e limpou garganta.

         -Mamãe, papai, apresento-lhes Jimmy.

         -Olá -disseram os dois de uma vez.

         Jimmy ficou olhando-os um instante e depois voltou a olhar para Amber.

         -Deve ser uma brincadeira. Esta é sua mãe?

         -Está maravilhosa para sua idade, não é mesmo? - perguntou ao jovem, olhando a mãe de novo com um sorriso.

         -Sim. Quero dizer que... Encantado de conhecê-los, aos dois.

         - Igualmente -respondeu Jameson.

         Amber olhou para o pai.

         -Acho que este é o último baile -disse-lhe-. Reservei-o para você.

         Jameson sentiu um nó na garganta e os olhos começaram a lhe arder. Mas lutou para conter as lágrimas quando tomou sua filha pela mão e caminhou com ela para a pista de dança. Enquanto a levava entre os braços, procurou o olhar de Angelica no outro lado da sala e viu o brilho de umas lágrimas de felicidade que se correspondiam com as suas.

         - Alegro-me de que esteja aqui esta noite, papai -sussurrou Amber.

         -Sempre estarei com você quando precisar de mim, Amber Lily - prometeu Jameson-. Sempre.

 

 

                                                                                                    Maggie Shayne

 

 

 

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