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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NASCIDA INOCENTE 2 - B. J. Hurwood & G. Dipego
NASCIDA INOCENTE 2 - B. J. Hurwood & G. Dipego

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

 

   

Emma Lasko entreabriu a porta dos balneários e observou a trémula rapariguinha, que acabava de se vestir, de pé sobre os mosaicos. Era quase uma criança e puxava desajeitadamente o vestido de algodão às flores, que se lhe colava ao corpo húmido. Metade da vida de Lasko fora passada como vigilante, mas ainda se comovia, de vez em quando, com a entrada de uma caloura. E aquela tinha o tipo desamparado e ingénuo que a fazia amaldiçoar a sua profissão. Era franzina, morena e de grandes e assustados olhos verdes, a contrastarem com o cabelo liso e escuro. E aquela maldita expressão de desamparo em cada gesto! Uns minutos antes, a vigilante mandara‑a despir‑se e submetera‑a à inspecção rigorosa. Depois, tivera de lhe repetir três vezes que tomasse duche e lavasse a cabeça com o champó desinfectante. A garota parecia prestes a desmaiar de terror. Lasko deixou‑a por algum tempo sozinha e aguardou no corredor, escutando o ruído da água a correr, ao qual se vinham misturar soluços abafados. A jovem fitava‑a, agora, com olhos avermelhados, como apanhada em falta.

         ‑ Se já acabaste, levar‑te-ei ao dormitório ‑ disse Lasko, em tom neutro. ‑ Poderás deixar lá as tuas coisas e descansar um pouco antes de jantar.

         A rapariga anuiu, calçando os sapatos com lentidão. A vigilante deu meia volta e começou a caminhar pelo corredor. A rapariguinha foi rapidamente no seu encalço. Saíram para um pátio ajardinado e seguiram na direcção dos dormitórios. Durante todo o percurso, a jovem não ergueu a cabeça.

         A essa hora, a maior parte das internas estava a descansar ou a conversar nos quartos, mas um grupo de três ou quatro assomou à galeria, ao ouvir os passos inconfundíveis da vigilante.

         ‑ Carne fresca, hem, Lasko? ‑ zombou uma delas.

         ‑ O que e. que essa criancinha fez? ‑ perguntou outra. ‑ Fugiu da terra da parvoeira?

         ‑ Engaiolaram‑na por fazer chichi nas fraldas

‑ explicou uma terceira.

         Todas se puseram a rir e outras cabeças curiosas assomaram às esquinas da galeria.

         ‑ Vamos a ver se se calam ‑ replicou Lasko sem se deter. ‑ Ou já se esqueceram como se sentiram no primeiro dia em que para cá vieram?

         Uma loura alta e forte, de rosto anguloso, postou‑se diante da vigilante, interceptando‑lhe o caminho. A pequena novata deu um salto e ocultou‑se, aterrada, por trás do corpo da mulher.

‑ Deixa‑me passar, Moco ‑ disse Lasko, em voz calma.

         A loura espetou o queixo, em ar de desafio, e sorriu, pondo as mãos na cintura. Ouviram‑se algumas risadinhas ansiosas.

         ‑ Com quem a vai pôr, Lasko? ‑ perguntou Moco.

         ‑ Certamente que não será contigo.

         A vigilante estendeu a mão para o ombro de Moco e empurrou‑a, suave mas firmemente, contra a parede. Fez um gesto à novata e continuou a andar.

         ‑ É injusta ‑ gritou Moco nas suas costas. ‑ Sou a que está há mais tempo sozinha. Desde que Crash se foi, não põe ninguém comigo!

         ‑ Sabes muito bem porquê ‑ respondeu Lasko, sem se voltar.

         As risadas tornaram a explodir escandalosamente, desta vez escarnecendo Moco, que deitou a língua comprida e agressiva de fora, exibindo‑a às outras. Depois, encolheu os ombros e regressou ao seu quarto. Lasko conduziu a novata até ao extremo da galeria e viraram para o último corredor, à direita. Havia várias portas de um lado e do outro; a vigilante deteve‑se em frente de uma delas, que estava fechada.

         ‑ Bom, bem‑vinda ao lar ‑ disse Lasko, com uma rude jovialidade, e abriu a porta.

         Uma jovem de cerca de quinze anos, apenas vestida com um soutien cor de carne e uns coçados blue jeans, encontrava‑se deitada numa das duas camas existentes, absorta. O seu rosto, talvez demasiado redondo, revelava traços curtos e harmoniosos de uma maturidade precoce. As pontas do comprido cabelo castanho roçavam‑lhe os seios redondos e bem torneados. Deixou passar uns instantes antes de se dar conta de que alguem estava à porta. Depois, colocou as mãos debaixo da nuca e olhou para Lasko, como quem olha para um móvel. O seu olhar deteve‑se por um instante na jovenzinha que a acompanhava, fechou de seguida os olhos, deixando escapar um longo e expressivo suspiro.

         ‑ Chris ‑ disse Lasko ‑, esta é Carrie Watts. A partir de hoje, compartilhará o quarto contigo.

         Carrie esboçou um tímido sorriso de esperança. Chris observou‑a impassível, com os lábios ligeiramente franzidos, e, depois, fitou o tecto, sem responder. Lasko virou‑se para a novata.

         ‑ É Chris Parker ‑ explicou. ‑ Gosta de se dar ares de indiferente, mas é boa pequena. Está, agora, no quarto grau e é possível que dentro em breve se vá embora. Entretanto, será uma boa companheira para ti. Verás, daqui a pouco, que se irão dar muito bem.

‑ Carrie assentiu e Lasko indicou‑lhe a cama vazia.

‑ Podes pôr as tuas coisas ali. Corresponde-te metade do armário. A casa de banho fica ao fundo da galeria. Não são permitidas visitas nos dormitórios, nem fumar, nem falar às escuras, nem demonstrar afecto ‑ concluiu Chris, virando‑se de barriga para baixo.

         ‑ É o regulamento ‑ disse Lasko, ligeiramente enfadada.

         ‑ E não foi a senhora quem o fez, já sabemos

‑ suspirou Chris.

         Carrie pareceu despertar subitamente. Arremessou o esfiapado saco de marinheiro para a cama e, depois, sentou‑se, inclinando o corpo e deixando pender as mãos frouxas entre as coxas afastadas.

         ‑ A puta que me pariu ‑ exclamou, na sua voz infantil.

         Chris e Lasko não se contiveram e explodiram uma gargalhada.

         Antes do jantar, as internas dispunham de cerca de meia hora para ouvir música, ver televisão, fumar e confraternizar no refeitório. Uma válvula de escape fugaz e controlada antes dos fantasmas da noite invadirem o reformatório. Chrris derramou meio frasco de água‑de‑colónia no cabelo de Carrie, para dissipar o odor penetrante do sabão mata‑piolhos. Foi o seu primeiro gesto de amizade e Carrie aceitou‑o com um agradecimento mudo e exagerado. Explicou‑lhe, depois, as verdadeiras normas do pavilhão, que não eram as do regulamento de Lasko. Solidariedade, respeito para com as veteranas, não ter intimidades com as vigilantes, não comprometer as outras e, se houvesse problemas, calar o bico: as líderes sabiam muito bem como manejar o assunto.

- Quem são as líderes? ‑ perguntou Carrie.

         ‑ Moco e eu ‑ disse Chris, com naturalidade. ‑ E Josie, no pavilhão dela.

         ‑ Não te imaginava amiga de Moco ‑ comentou a novata.

         ‑ Não somos amigas ‑ respondeu Chris, conduzindo‑a ao refeitório.

A entrada de Carrie produziu um súbito e tenso silêncio que interrompeu bruscamente as conversas e risos que se ouviam na sala. Enquanto todos os olhares se cravavam na pequena e harmoniosa figura da novata, desde os gastos mocassins até ao oleoso cabelo preto, apenas a voz céptica do comentador da televisão se fazia ouvir, avaliando as possibilidades do americano Jimmy Carter ser consagrado candidato democrata nas próximas eleições. Depois, alguém baixou o volume do aparelho. Chris e Carrie avançaram até uma das mesas, como numa espécie de cerimónia ritual. Ouviram‑se murmúrios e alguns risinhos isolados, mas não houve ditos obscenos nem intencionadas perguntas em falsete. Assombrada, Carrie verificou que a presença de Chris produzia mais respeito entre as internas do que a própria Emma Lasko.

         Uma vez sentadas, aproximou‑se uma mulata ondulante e expansiva que Chris apresentou como sendo a sua amiga Josie. Também se aproximou outra rapariga taciturna, chamada Ria, e a inevitável Moco. Betty Ramos, a vigilante auxiliar, andava de grupo em grupo acendendo cigarros, dado que não era permitido às internas possuírem fósforos ou isqueiros. Chris tirou um cigarro do bolso de Ria e meteu‑o entre os lábios. Depois, fez estalar os dedos, indicando a Betty que desse lume.

         - Mas tu não fumas, Chris - replicou Betty, visivelmente enfadada.

         - Quero oferecer um cigarro à minha nova companheira de quarto - disse Chris.

         Carrie, obediente, aceitou a dádiva e aspirou uma longa fumaça. O seu rosto pôs‑se rubro e explodiu, lacrimejante, num intenso acesso de tosse. Josie, Ria e Chris riram, divertidas, enquanto Betty meneava a cabeça.

         - Vocês só querem é troçar - disse, ofendida, dirigindo‑se para o outro extremo da sala.

Enquanto comiam, Josie fez a Carrie um pormenorizado e novelesco relato da revolta que Chris encabeçara há uns meses atrás e que culminara num verdadeiro motim. A novata escutava de olhos arregalados, fitando alternadamente Josie e Chris.

         ‑ E tudo porque Lasko não lhe quis dar champô para lavar o cabelo ‑ observou Ria.

         Chris chupou lentamente um espargo e, depois, colocou o caule no prato.

         ‑ Não foi assim ‑ replicou. ‑ Ela esbofeteou‑me.

         Josie e Ria entreolharam‑se com ar cúmplice. Josie mordeu os lábios e, depois, pôs‑se a brincar com o garfo, espetando‑o na toalha de plástico.

         ‑ Isso foi o que disseste à Comissão ‑ afirmou, sem olhar para Chris ‑, mas nós estávamos lá. A velha Lasko portou‑se estupidamente mas não te tocou num cabelo. Tu, em contrapartida, acertaste‑lhe em cheio no nariz.

         Chris pôs‑se pálida e, por um instante, os seus olhos lançaram chispas, como se estivesse prestes a saltar sobre Josie. Depois, baixou a cabeça e encolheu os ombros.

         ‑ Tive de mentir ‑ admitiu. ‑ Estavam dispostas a fazer de mim bode expiatório. Não quero passar a vida enjaulada aqui, portanto, hei-de mentir e fingir as vezes que for necessário. ‑ Levantou a cabeça e fitou intensamente as outras. ‑ É a única maneira, meninas. Quando para aqui entrei, era tão ingénua e submissa como esta pequena Carrie. Tive de aprender a sobreviver. Mas também não lhes vou dar o prazer de me cavarem a cova, como faz Moco com os seus desplantes de machona.

‑ Acalma‑te, Chris ‑ disse Ria, em tom conciliador. ‑ Só queríamos contar a Carrie uma história divertida...

         - Para mim, não foi divertida ‑ afirmou, categoricamente, Chris.

         Mais tarde, enquanto ouvia a jovem novata a dar voltas, agitada na cama contígua, Chris fez um balanço da sua situação. Havia já dois meses que a tinham posto no quarto grau, o último antes da liberdade condicional. Conseguir que as autoridades esquecessem aquele motim, além de uma anterior tentativa de fuga, custara‑lhe muitas genuflexões e artimanhas. Mas agora, até Lasko parecia ter apagado da mente aquele murro e a insidiosa acusação de Chris. A vigilante tratava‑a com consideração, quase com respeito, e Chris estava certa de que dera boas referências dela à Comissão. Barbara, a professora, já não era a sua confidente, desde que adivinhara que mentira acerca daquela famosa bofetada, mas, ultimamente, a sua frieza dissipara‑se, graças aos esforços de Chris nos estudos. Restava Cynthia, a directora‑adjunta, uma burocrata que precisava de espaço para as novas reclusas e que não se queria sobrecarregar de trabalho. Chris sorriu com tristeza ao pensar que, para aquela mulher, cada uma delas representava apenas uma ficha. Não se oporia a retirar a ficha de Christine Parker se o resto da Comissão estivesse de acordo. A própria Lasko dissera a Carrie nessa mesma tarde: "Chris está agora no quarto grau e é possível que dentro em breve se vá embora." E é possível que dentro em breve se vá embora. Chris adormeceu embalada nessas palavras, imaginando que já era livre e que podia ir para qualquer lado, ter um trabalho e dinheiro seu, visitar o irmão, Tom, e ajudá‑lo a cuidar do seu pequeno filho, conseguir que os pais se dessem bem e, sobretudo, fazer o que lhe desse na gana, sem ter de se ocultar ou olhar por cima do ombro. Como se todo esse longo ano tivesse sido apenas um pesadelo horrível, sonhado por uma mente enferma...

         No domingo, durante a hora de visita, Chris procurou no pátio um lugar tranquilo e deixou‑se cair na relva, solitária e ausente como um lagarto ao sol. Chegavam até ela os risos e os gritos de um grupo de internas que jogava voleibol, abafados pela distância e pelo ar pesado da tarde. De vez em quando, ouvia fragmentos de conversas, sempre que alguma interna e as suas visitas passavam perto dela. O tema era sempre o mesmo: o bom comportamento e as possibilidades de sair em liberdade. Chris negou‑se a recordar que fora o próprio pai a pedir que a mantivessem reclusa. Deixou que o sol lhe penetrasse na pele, de olhos fechados e a mente vazia.

         Uma hora depois, pequenas gotas de suor perlavam a fronte de Chris e a bexiga, repleta, ardia‑lhe, impelindo‑a a sentar‑se. Durante uns minutos, o desejo de urinar lutou com a placidez e a lassidão física do resto do corpo, sem que ela parecesse intervir. Finalmente, decidiu ir até à casa de banho porque, além disso, sentia sede e a pele dos braços e das faces ardia‑lhe. Ao entrar no edifício, a obscuridade e a diferença de temperatura provocaram-lhe um calafrio agradável. Atravessou o dormitório deserto e, de repente, ouviu um ansioso cochichar no corredor que dava para os duches.

         Moco e duas das suas sequazes rodeavam uma quarta rapariga, encurralando‑a contra a parede. Chris reconheceu o vestido às flores de Carrie e viu, depois, os seus grandes olhos suplicantes, assomando por cima da grande mão de Moco, que lhe cobria o nariz e a boca. Outra das raparigas maniatava agora a novata pelas costas e a terceira tentava levantar‑lhe a saia, apesar dos pontapés de Carrie.

         ‑ É melhor que fiques quietinha, boneca ‑ sussurrou Moco entredentes, com a voz entrecortada pelo esforço e pela excitação. ‑ Se resistires, Johnny é capaz de te magoar.

         Só então é que Chris se apercebeu que a mão livre de Moco erguia o desentupidor, empunhando‑o com o cabo virado para a frente. Uma onda feroz de raiva fez estremecer o corpo de Chris e subiu‑lhe à cabeça. Num segundo, relembrou a dor, a humilhação e a vergonha que sofrera meses atrás, nessa altura também uma novata, quando a sádica e velhaca Denny a tinha brutalmente violado com esse mesmo instrumento. Aquele vexame terrível e gratuito traumatizara‑a para sempre. Lembrou‑se também que Moco fazia parte do grupo e que fora ela quem lhe maniatara os braços, enquanto Denny lhe lacerava uma e outra vez as entranhas, com um frenesim mórbido.

         Num salto felino, arremessou‑se sobre o grupo, soltando um berro que era, simultaneamente, um queixume angustioso e um grito de guerra. Aferrou‑se ao braço de Moco e tirou‑lhe facilmente o pau, erguendo‑o, disposta a partir o crânio da adversária. Moco, apanhada de surpresa, reagiu dando meia volta para se agachar e proteger a cabeça com o outro braço. Chris mudou a direcção do ataque e descarregou raivosamente a arma no miserável traseiro de Moco, que uivou de dor.

         ‑ Degenerada! Monstro! Fressureira-gritava Chris fora de si, sem deixar de espancar as nâdegas da vítima.

‑ Devia‑te há muito esta tareia!

         As outras duas, estupefactas perante a intervenção de Chris, largaram Carrie e olhavam para a cena sem pensarem em intervir. Carrie, prestes a desmaiar, deslizou pela parede até ficar sentada no chão. Finalmente, Chris deixou Moco e dirigiu‑se para a janela. Apelando para todas as forças, deitou fora o nefasto Johnny. O cabo de madeira deu várias voltas no ar antes de cair na terra acinzentada, levantando uma leve camada de poeira.

         ‑ Ficaste maluca, Chris ‑ grunhiu Moco, esfregando a zona maltratada. ‑ Vais pagá‑las.

         Chris, sem se virar, deu um profundo suspiro e aspirou, longamente, o ar da tarde. Depois, voltou‑se e enfrentou as outras.

         ‑ Moco, enquanto cá estiver ‑ disse numa voz quase calma ‑, não haverá mais agressões às novatas. Estou a falar a sério, se tentares de novo, irás para o hospital.

         Moco franziu os lábios e hesitou. Não era a primeira vez que Chris desafiava o seu poderio, mas, agora, parecia falar a sério. As duas sequazes e Carrie olhavam‑nas fascinadas, à espera do desfecho do confronto. Optou por um ataque lateral, procurando minar o crescente prestígio da adversária.

         ‑ Parece que Lasko conseguiu uma nova ajudante

‑ disse, torcendo a boca num esgar de desprezo.

‑ Não se trata de Lasko ‑ replicou Chris. ‑ Se tiveres coragem, podes meter-lhe o pau. Mas não voltes a tocar em qualquer das moças, entendido?

         Moco compreendera. Encolheu os ombros e teve um sorriso forçado.

         ‑ Palavra de honra que não pensava fazer aquilo. Só queríamos pregar um susto á miúda. Bem sabes que essas coisas partiam de Denny.

         Ouviram‑se passos na galeria e Betty Ramos apareceu, correndo para elas com ar preocupado.

- O que se passou? Quem estava a gritar?

         As reclusas entreolharam‑se, enquanto Carrie se punha de pé, tentando passar despercebida. Moco compôs o cabelo e foi a primeira a falar:

         - Fui eu quem gritou. Tivemos uma discussão com Chris e acho que me pus um bocado histérica. ‑ E acrescentou, com discreta humildade: ‑ Desculpe, Betty.

         A aludida fez um gesto de dúvida com as sobrancelhas e perscrutou as outras.

         ‑ E tu ‑ disse, apontando para Carrie ‑, porque estiveste a chorar?

         ‑ Porque se sente triste ‑ respondeu rapidamente Chris. ‑ No lugar dela, como se sentiria?

         Betty Ramos coçou a orelha com ar pensativo. Sabia que lhe estavam a mentir descaradamente, mas não conseguia detectar qualquer indício do que ocorrera, além do que a intuição lhe dizia. Ao fim e ao cabo, era apenas uma vigilante auxiliar e não se queria envolver numa polémica na qual estariam metidas nada menos que Moco e Chris. Até a própria Lasko, disse para consigo, costumava, naqueles casos, ser prudente e distraída, não havendo pelo meio nem sangue nem destroços.

         ‑ Está bem ‑ disse, por fim, com um suspiro ‑, vamos supor que acredito. Na verdade, tenho andado Á tua procura, Chris. Tens uma visita.

         Chris inclinou a cabeça e semicerrou os olhos, num gesto de desconfiança.

         ‑Visitas...?‑ murmurou.

         ‑ O teu irmão está cá há meia hora. Esteve a falar com Miss Cynthia e pediu‑me para te ver.

         O coração de Chris teve um sobressalto e, depois, começou a bater violentamente, como se procurasse um sitio por onde sair. Tom viera. Estava ali, no reformatório, à sua espera. Sem dúvida, arrependido por a ter entregue a Polícia quando lhe fora pedir ajuda. Disposto a levá-la com ele para casa; por isso estivera a falar com a directora. Tom! A única pessoa que proporcionava à pequena Chris protecção e carinho. Que a livrara de inúmeras sovas do pai, que a embalara nos braços amigos enquanto a mãe curtia as bebedeiras solitárias. Tom, o irmão.

         Chrris apressou o passo atrás de Betty Ramos, enquanto ambas atravessavam o pátio em direcção ao edifício principal, ofuscadas pelo sol intenso da tarde.

 

No vestíbulo da entrada havia vários grupos de internas e de visitantes, falando em voz baixa, espalhados pelos bancos de madeira ou pelas cadeiras agrupadas aqui e ali. Chris percorreu com o olhar a ampla sala, até descobrir a desajeitada figura de Tom, sentado a um canto, com o seu revolto cabelo ruivo e os braços demasiado compridos.

         ‑ Tom! ‑ gritou, correndo para ele.

         O rapaz pôs‑se de pé e sorriu com ar embaraçado. Chris deteve‑se a uns metros do irmão. Durante um longo segundo, olharam‑se, sem saberem o que fazer ou dizer. Finalmente, ela arremessou‑se para os seus braços e estreitou‑o fortemente, de olhos marejados. Tom reteve‑a contra si, acariciando‑lhe o cabelo. Depois, sentaram‑se ambos num banco um tanto isolado dos restantes.

‑ Sabia que virias, Tom ‑ disse com ansiedade.

‑ Tenho‑me portado muito bem, sabes? Já estou no quarto grau e Lasko disse que dentro em breve poderei sair. ‑ Reparou que ele a escutava um tanto perturbado e sorriu abertamente. ‑ Também esqueci aquele assunto da Polícia. Compreendi que nessa altura não podias fazer outra coisa, mas, agora, será diferente, não é verdade, Tom?

         O jovem assentiu com um gesto ambíguo, evitando olhá‑la de frente. Chris pressentiu que se passava qualquer coisa e pegou‑lhe na mão.

         ‑ Janie e o menino, como estão? ‑ perguntou.

         ‑ Oh, eles vão bem ‑ replicou Tom.

         ‑ E em casa, o Pai e a Mãe?

         Tom baixou a cabeça. Suspirou, antes de responder, e apertou com força a mão de Chris.

         ‑ Aconteceu uma coisa, Chrissie ‑ começou, de olhar fixo no pavimento de mosaicos. ‑ O Pai... não está bem. Sofreu um ataque há dois dias...

         ‑Um ataque?

         ‑ Sabes como ele era,.. Nervoso, hipertenso.. Qualquer coisa que lhe rebentou na cabeça, é tudo. ‑ Tom fez uma pausa e olhou para a irmã, passando a mão pelo rosto sardento e perlado de suor. ‑ Pediu que o fosses ver ‑ concluiu.

         Era agora a vez de Chris desviar o olhar e fixá‑lo no chão. Um surdo rancor que ela própria desconhecia formigava‑lhe no peito. Pensou, cuidadosamente, nas palavras que ia proferir, esforçando‑se por ser compreendida por Tom.

         ‑ Não, Tom. Neste momento não tenho vontade de o ver. Custou‑me muito chegar ao ponto em que me encontro, só graças ao meu próprio esforço, depois de ter sido obrigada a voltar para aqui por culpa dele.

‑ Chris levantou a cabeça e fitou o tecto liso e as paredes pintadas de ocre. ‑ Deixei pedaços da minha alma neste lugar ‑ prosseguiu. ‑ Quando fosse altura de sair, estava a pensar pedir‑te que me aceitasses por uns tempos em tua casa. Lá poderei ir visitar a Mãe e a ele também, se o desejar. Mas hoje não o irei ver por estar doente, ainda guardo a marca das suas pancadas.

         ‑ Não julgues que não te entendo ‑ suspirou Tom ‑, mas acho que não compreendeste. Ele não está simplesmente doente, Chris. Os médicos não têm qualquer esperança... Na verdade, é só uma questão de dias, ou de horas...

         Chris sentiu qualquer coisa gelada no ventre. Olhou intensamente para o irmão, como se pretendesse captar‑lhe no rosto qualquer expressão que lhe indicasse que mentia. As palavras chegaram‑lhe com dificuldade aos lábios, entrecortadas.

         ‑Ele... não me pode fazer isso ‑ balbuciou..-.... preciso de lhe demonstrar...

         ‑ Demonstra‑o a ti própria ‑ interrompeu‑a o irmão. ‑ Mas, agora, irás comigo vê‑lo. Se não quiseres fazer por ele, fá‑lo pela Mãe... e por mim. Isto não é fácil para ninguém, compreendes?

         Chris encolheu‑se no banco, desejando que alguma força sobrenatural viesse em seu auxílio. Praticamente, haviam‑na expulsado de casa, tinham assinado papéis a pedir que permanecesse reclusa, o próprio Tom negara‑lhe abrigo e denunciara‑a, como se fosse um vulgar delator, e vinham, agora, pedir‑lhe que assistisse, como uma filha exemplar, a agonia do pai. Como se toda aquela maldita malta tivesse sempre constituído uma família modelo! Mas não se podia opor a Tom. Simplesmente, não podia. Talvez lhe não importasse a morte iminente de um pai crápula nem a desolação de uma mãe alcoólica, que, sem dúvida, encontraria melhor consolo numa garrafa. Mas Tom, o irmão egoísta e traidor, estava ali a pedir‑lhe que o seguisse até ao Inferno e ela era incapaz de recusar. Porque, quando ele a abraçara, uns instantes atrás, sentira, pela primeira vez há muito tempo, que a vida merecia ser vivida. Não, não podia contrariar Tom.

         - Acredita que gostaria de ir, Tom ‑ murmurou ‑, mas bem sabes que não posso entrar e sair daqui com essa facilidade toda.

         - Não te preocupes com isso ‑ replicou ele. ‑ Falei com a directora e dar‑te‑á três dias de licença, à responsabilidade da família. Para falar verdade, mostrou‑se muito compreensiva.

         Chris encolheu os ombros, lamentando ver a sua desculpa malograr‑se.

         ‑ Compreensiva uma ova! ‑ disse, ofegante. ‑ Sabe que só se estivesse chalada é que tentaria qualquer coisa, agora que falta tão pouco tempo para sair pela porta principal.

         ‑ Seja como fôr, nada te impede que me acompanhes.

         Chris assentiu sem dizer palavra. Permaneceram os dois calados, mergulhados, por uns minutos, nos seus pensamentos. Chris largara a mão dele e retorcia maqui nalmente uma madeixa dos cabelos. Fazia esse gesto involuntário sempre que algo a inquietava.

         ‑ Vamos agora? ‑ perguntou em voz baixa.

‑ É o melhor. Tenho o carro lá fora.

         Chris pôs‑se de pé e olhou abertamente para o irmão, que lhe sorriu com o seu maldito e irresistível sorriso, que reflectia, simultaneamente, um terno misto de desamparo e de cumplicidade. Sentiu desejos de o abraçar de novo, mas limitou‑se a sorrir‑lhe e a piscar‑lhe um olho.

         - Está bem, Tom, ganhaste. Iremos a esse maldito sanatório. Lamento ter sido brusca contigo.

         ‑ Não te preocupes, Chrissie. Sei como as coisas são.

         ‑ Terás de esperar uns minutos.

         ‑ De acordo ‑ aceitou, levantando‑se por seu turno.

‑ Fico à tua espera junto à entrada. Vê se te despachas. Temos de lá estar antes das oito.

         Uma vez no quarto, Chris não fez qualquer tentativa para se apressar. Pelo contrário, escolheu com extrema lentidão as poucas coisas de que iria necessitar nesses três dias e meteu‑as na velha maleta. Precisava de uns minutos de solidão e de paz para ordenar as ideias. Carrie dormitava, enrodilhada na cama, com um ar de infantil desamparo. Os traços secos das lágrimas sulcavam‑lhe ainda as faces. Chris observou‑a por um instante, tocada por um sentimento remoto de ternura. A rapariguinha abriu os olhos, como se tivesse sentido o olhar de Chris. Depois, avistou a maleta em cima da cama e soergueu‑se.

         ‑ Vais-te embora?

         ‑ Sim, mas depressa voltarei ‑ respondeu Chris.

         Carrie franziu o sobrolho e deu um soco desajeitado nos cobertores.

         ‑ É a minha sina! ‑ exclamou. ‑ Sempre que encontro alguém que...

‑ Disse‑te que depressa estarei de volta ‑ repetiu Chris, indo fechar a maleta. ‑ Em qualquer dos casos, será bom que aprendas a desenvencilhar‑te sozinha. Aqui dentro não há outra alternativa.

         Deu uma palmadinha no rosto de Carrie, em jeito de despedida, e abandonou o quarto. Percorreu sem pressa a galeria deserta e chegou ao refeitório, desejando que também ali não houvesse ninguém. Mas Moco e as suas duas

guarda-costas encontravam‑se lá, refasteladas, a fumar e a ver televisão. Numa das mesas, Josie e Ria disputavam uma concentrada partida de damas.

         ‑ Caramba! ‑ disse Moco ao ver Chris com a maleta. ‑ A princesa vai‑se embora do palácio!

         Chris não conteve um sorriso e aproximou‑se do grupo. Josie e Ria também a fitavam, surpreendidas.

         ‑ Dão‑me três dias de licença ‑ explicou Chris.

‑ O velho Parker foi parar ao hospital e parece que está a dar o bafo.

         As outras entreolharam‑se em silêncio.

         ‑ Sentimos muito ‑ murmurou Ria, com ar solene.

         ‑ Foi por isso que o boneco do teu irmão te veio buscar, hem? ‑ interveio Josie, tentando quebrar o gelo.

         ‑ Foi ‑ replicou Chris. ‑ Depois, dirigiu‑se a Moco:

         - Ouve, Moco, queria dizer-te que fizeste bem em não contar a Betty que te havia desancado.

         A aludida fitou‑a, sorriu e encolheu os ombros.

         ‑ Não sou engraxadora. Tu também nos safaste ao conseguir que não fizesse perguntas a Carrie.

         ‑ De acordo ‑ concordou Chris, pegando novamente na maleta. ‑ Mas o que te disse antes continua de pé. Se quando voltar tiver acontecido qualquer coisa à miúda, irei buscar aquele desentupidor e meter‑to‑ei já sabes onde, antes de to partir na cabeça. ‑ Depois, sorriu, como se tivesse gracejado.

         As outras olharam para Moco e o ambiente pôs‑se tenso. Moco apagou o cigarro e sorriu, por seu turno, meneando a cabeça de um lado para o outro.

         ‑ Oh, não falemos mais nisso, de acordo? Só nos queríamos divertir um bocado.

         Mas ambas sabiam que a advertência de Chris era muito a sério.

 

         Tom guiava em silêncio, concentrando‑se excessivamente na estrada, a essa hora quase deserta. Chris também não sentia vontade de falar. Recostada de lado, as pernas encolhidas sobre o assento, via desfilar as povoações cinzentas do itinerário, os postos de gasolina, os motéis de nomes equívocos, os grandes cartazes erguidos no meio dos campos, com anúncios de lubrificantes ou de bebidas gasosas. A tarde caía lentamente e o crepúsculo fez Chris sentir um aperto no coração. Experimentava uma estranha mágoa e, pela primeira vez na vida, desejou estar nesse momento no reformatório, enrodilhada na cama como Carrie, envolta pela fria mas segura protecção do cercado de arame. "Devo estar a ficar maluca", pensou.

         Tom deixou o carro no amplo parque de estacionamento do hospital, que quase ocupava meio quarteirão. Chuviscava persistentemente e o jovem passou o braço pelos ombros da irmã, para a proteger enquanto atravessavam o grande espaço aberto, saltando por entre as poças. Chris aconchegou‑se a Tom e sentiu‑se um pouco mais animada. Uma vez no interior do edifício, largou‑a e conduziu‑a para o vestíbulo dos elevadores. Duas enfermeiras que cochichavam entre si e um casal de velhos com expressão preocupada aguardavam tambem para subir. Chris admirou as batas brancas e o aspecto cuidado e agradável das enfermeiras, que revelavam desenvoltura e segurança em cada gesto. "Deve ser uma profissão interessante", pensou. "Talvez estude para enfermeira quando sair." Reparou que Tom também admirava as enfermeiras, especialmente uma delas, loura e esbelta, cuja bata deixava adivinhar as formas de um corpo firme e harmonioso. Chris sorriu para si, ligeiramente perturbada.

         Subiram até ao sexto piso e seguiram pela galeria da direita. Mal deu alguns passos, Chris reconheceu a mãe, sentada numa das salas reservadas às visitas. Ao vê‑los, a mulher levantou‑se, vacilante. Tentou ir ter com eles, mas cambaleou e foi obrigada a apoiar‑se no cadeirão.

         - Esteve a beber outra vez - resmungou Tom entredentes. ‑ Não a podemos deixar sozinha.

         Chrís deteve‑se em frente da mãe. Esta pôs‑lhe as mãos nos ombros e fitou‑a, pestanejando, com os olhos húmidos e um sorriso hesitante.

         - Fico contente por teres podido vir, Chrissie - disse, pronunciando as palavras com dificuldade.

         Chris engoliu a saliva e conteve a respiração, envolvida no hálito amargo do álcool barato que saia da boca da mãe.

         - Também estou contente por te ver, Mãe ‑ disse, beijando levemente as faces da mulher.

‑ Tresandas a genebra a uma légua ‑ interveio Tom, aborrecido. ‑ Disse‑te que não saísses do hospital.

         ‑ Há um bar na cave ‑ explicou a mãe com naturalidade, quase divertida. ‑ Ben começou a queixar‑se ali dentro... ‑ interrompeu‑se e deixou‑se cair no cadeirão, a soluçar...... - não pude suportá‑lo,.......

         ‑ Está bem, Mãe, acalma‑te ‑ murmurou.

         ‑ Vais‑me obrigar a internar‑te num asilo ‑ ameaçou Tom, recostando o corpo à parede e puxando de um cigarro.

         A mãe olhou‑o, aterrada, contendo as lágrimas.

         ‑ Não te atreverás ‑ balbuciou.

         Tom encolheu os ombros e acendeu o cigarro. As mãos tremeram‑lhe, do esforço que fazia para se dominar. Chris sentiu pena dos dois e dela própria. Deu um suspiro, encheu‑se de coragem e dirigiu‑se para a porta do quarto onde jazia o pai.

 

Era estranho ver o grandalhão e violento Ben Parker estirado naquela cama, sem sequer poder mexer um dos braços, com um olho semicerrado e um dos lados da boca retorcido, num esgar que se assemelhava a um sorriso comprometido. O olho são teve um clarão intenso ao ver Chris e, depois, rodou até fitar a cadeira que se encontrava junto da cama. Ela sentou‑se à beira do assento, aprumada e sem poder acreditar que aquele gigante vencido e grotesco fora o seu temível pai.

         A tua hora chegou, Benjamin Parker", pensou, acho que sinto pena de ti. Portaste‑te sempre como um papão comigo e pouco mais fizemos que nos odiar a vida inteira. Mas era porque ambos estávamos convencidos que eras imortal e que haveria tempo para consertar as coisas. Agora estás aqui, a morrer de maneira ruim, e é demasiado tarde para tudo. O que foi que falhou entre nós dois? A Mãe disse que, depois do nascimento de Tom, desejavas ardentemente uma menina. Que tolice! Teria preferido ser rapaz, sabes? Talvez para um dia te poder retribuir todas as sovas que me pregaste." Chris sorriu interiormente, com amargura. "Porque, olha, nestes quinze anos me pregaste cada tareia! De cada vez que me aproximava de ti, acabava sempre por ficar com a cara cheia de nódoas negras ou com um olho inchado. Sei que, no fundo, não o queria fazer, mas a verdade é que o fizeste. Também é certo que os poucos momentos em que foste terno e carinhoso para comigo foram os melhores da minha vida... E também da tua, parece‑me."

         O monólogo de Chris foi interrompido por um calafrio e pela sensação de um intenso sopro de angústia a vergastar-lhe o peito, como se o corpo estivesse todo vazio por dentro. Inclinou‑se para o doente, apertou‑lhe as mãos inteiriçadas, cruzadas sobre o ventre e beijou‑o com suavidade na cara. O olho são de Ben Parker ficou a olhar para o rosto da filha. Uma única lágrima humedeceu‑lhe a pálpebra inferior, tremulou nas pestanas e evaporou‑se no ar seco do quarto.

         - Está tudo bem, tranquiliza‑te ‑ murmurou Chris, num fio de voz, desconhecendo se ele a conseguia ouvir.

         Depois, pôs‑se lentamente de pé e saiu do quarto, sem voltar a olhá‑lo.

         Tom e a mãe aguardavam‑na, para que fosse com eles comer qualquer coisa no bar da cave. Mas ela disse que não tinha fome e que preferia descansar um pouco num dos cadeirões.

         ‑ Posso trazer‑te uma sanduíche ‑ ofereceu Tom.

‑ Palavra de honra que não tenho fome ‑ insistiu Chris. ‑ Se quiseres, podes trazer‑me uma Coca‑Cola, quando voltares.

         ‑ Bom, de acordo ‑ replicou, com um sorriso.

‑ Agora, procura descansar.

         Ao ficar sozinha, Chris acomodou‑se como pôde no incómodo cadeirão de ferro e cabedal, sem conseguir relaxar o corpo. As tensões do dia foram excessivas e uma prostração dolorosa trepava‑lhe pela espinha e oprimia‑lhe os ombros e a nuca. A cena com Moco, a chegada imprevista do irmão, o desamparo assustado de Carrie, os tristes esforços da mãe para disfarçar a bebedeira e, finalmente, o espectáculo do pai agonizante era demasiado para um dia só. O esforço para se controlar, para não chorar, para não gritar nem se deixar abater em cada uma daquelas situações esgotara‑lhe a resistência física. O corpo, oprimido e prostrado, pedia, ansioso, a trégua do sono. Mas a mente recusava‑se a capitular. As imagens e pensamentos acumulavam‑se, sobrepunham‑se e rodopiavam desordenadamente. Mas havia uma ideia que rondava essa semimodorra, sem se atrever a ocupar o centro da cena:

o pai ia morrer e as coisas nunca mais voltariam a ser as mesmas.

         Quando abriu os olhos, a luz fosca de um amanhecer chuvoso assomava às janelas quadradas da sala. Doía-lhe a cabeça, mas o corpo parecia que estava anestesiado, a ponto de não conseguir mexer um único músculo. A mão de Tom apertou‑lhe novamente o ombro, com mais força. Virou penosamente a cabeça e olhou para o rosto pálido e delgado do irmão, extenuado pela falta de sono.

         ‑ Acabou‑se, Chrissie ‑ disse Tom. ‑ Morreu agora mesmo.

 

         Nenhum enterro é agradável, mas o de Benjamin Parker foi particularmente sombrio e penoso. O dinheiro chegara apenas para uma cerimónia modesta e para um caixão barato no sector mais triste e inculto do cemitério. Quem quer que conhecesse o carácter de Ben podia vaticinar que não teria muitos amigos a acompanhá‑lo na sua última viagem. Assim aconteceu. Apenas a família e alguns vizinhos e colegas de trabalho, que assistiram por obrigação e se apressaram a retirar‑se mal o pastor finalizou a oração fúnebre. A Senhora Parker agradeceu os pésames com gestos maquinais, como um sonâmbulo, sem vontade própria. Em parte pela dor da perda, em parte porque há vinte e quatro horas que não provava uma gota de álcool, em virtude da estreita vigilância de Tom. Este, por seu turno, parecia incomodado e pesaroso, como se tivesse pressa que tudo acabasse de uma vez. Chrris pediu a Janie, a mulher de Tom, que a deixasse pegar no bebé durante a cerimónia. Apoiou o rostozinho de Tommy contra o seu e, em voz muito baixa, contou-lhe tudo o que sentia e lhe acontecia naquelas alturas. O garoto não a podia compreender, mas o calor infantil do seu corpinho e a ternura inocente do seu abraço constituíram um refúgio para a desolação de Chris.

         à noite, logo que Tommy adormeceu no que fora o quarto de solteiro do pai, Tom reuniu as três mulheres na sala de jantar. Janie fizera café e ele trouxe uma garrafa de brande do automóvel. Serviu‑se de um copo e estendeu outro, cheio até meio, à mãe.

         ‑ Agora podes beber, Mãe. Acho que vais precisar dele.

         ‑ Há horas que preciso ‑ disse a Senhora Parker, pegando no copo, mas sem o levar aos lábios

         ‑ Bem ‑ começou Tom ‑, talvez pareça um pouco brusco, a poucas horas do enterro do Pai, mas acho que quanto mais depressa decidirmos o que há a fazer no futuro melhor será para todos. ‑ Mordeu os lábios e observou as mulheres com uma certa perplexidade.

‑ Mãe, sabes que és uma doente, uma dipsómana, é evidente que, sozinha, não te consegues aguentar. Não aprovo os métodos do Pai para te controlar, mas, pelo menos, evitou que te prejudicasses demasiado.

         A Senhora Parker olhou assombrada para o filho e, sem dizer palavra, bebeu o seu primeiro trago.

         ‑ Tu, Chrissie ‑ continuou Tom, virando‑se para a irmã ‑, estás internada num reformatório controlado pelo Estado. Sabes que penso que isso foi um erro, mas, actualmente, é uma realidade que temos de encarar. Quanto a mim e à Janie, temos apenas vinte anos, uma casa com dois quartos, um filho pequeno, outro a caminho e o ordenado dos dois mal chega para nos aguentarmos. Todos sabemos que o Pai não era rico. Deixou esta casa, algumas dívidas, dois mil dólares no banco e uma pensão que equivale a metade do seu salário.

‑ Tom bebeu, então, um longo trago e, com um gesto resignado, voltou a olhar sem rodeios para a família.

‑ Alguma de vocês tem qualquer ideia para resolver este problema?

A Senhora Parker pigarreou e afastou polidamente o copo uns centímetros, empurrando a base com ambas as mãos.

         ‑ Foi um lindo discurso, Tom, mas julgo que um tanto dramático. É verdade que costumo beber demais e, embora lamente dizê‑lo, isso ficou a dever‑se em boa parte ao facto de ter de viver com o teu pai. Nenhum de vocês foi obrigado a suportar isso, ultimamente...

         ‑Não te estava a acusar, Mãe...

         ‑ Deixa‑me falar! - exigiu a Senhora Parker.

‑ Terei sido isso que dizes. dipsômana, mas posso deixar de o ser. Pelo menos tentar. A verdade e. que continuo a ser tua mãe e tenho agora a obrigação de velar por ti e por Chris, na medida das minhas forças. E também por Janie e pelo pequeno Tommy, que é meu neto. Segundo parece, Chris, dentro de pouco tempo, poderá sair do reformatório e ambos temos o dever de lhe proporcionar um lar. Vocês têm lutado por seguir em frente, mas, neste momento, sem muito êxito. Fico sozinha, com uma grande casa, com uma pensão que tu chamas modesta mas que, para mim, chega e sobra.

‑ A mulher fez uma pausa e olhou para o filho, que a escutava desconfiado. ‑ Penso que a solução dos nossos problemas está a vista.

        ‑ A Mãe tem razão ‑ interveio Chris com veemência. ‑ Tens de compreender, Tom! Se aliarmos os nossos esforços, talvez nos possamos safar. ‑ As ideias começaram a avolumar‑se‑lhe na cabeça e expunha‑as com precipitação: ‑ Poderíamos vender esta casa e comprar outra mais adequada, posso arranjar um emprego quando sair e Janie ficará mais livre se a Mãe cuidar da casa e de Tommy. Tu ficarás mais tranquilo se permanecermos todas juntas e...

         Deteve‑se ao notar que o irmão a escutava surpreendido; Tom contava com os olhares cúmplices de Janie.

         ‑ Acho que não é uma boa solução, Chris ‑ declarou Tom, cravando os olhos no copo, que fez girar nas mãos. ‑ Janie e eu já falámos do assunto e achamos que viver todos juntos não será a melhor solução para ninguém ‑ Olhou fugazmente para a esposa, como à espera da sua aprovação, e, depois, permaneceu em silêncio, com a cabeça afundada entre os ombros.

         A Senhora Parker, de um trago, acabou a sua bebida e, depois, teve uma exclamação de enfado.

         ‑ Jesus, Tom! ‑ disse, ofegante. ‑ Desembucha de uma vez!

         ‑O quê Mãe?

         ‑ O que tu e a Janie decidiram fazer connosco

‑ replicou calmamente a mulher. ‑ O dia foi comprido

e difícil. É tolice continuarmos a dar voltas à questão

quando vocês já têm tudo resolvido. Portanto, deita cá

para fora tudo o que tiveres para dizer e depois vamos

todos para a cama.

         Tom remexeu‑se, incomodado, na cadeira, como um garoto apanhado em falta. Com um gesto nervoso, alisou os cabelos ruivos e pigarreou, sem se atrever a levantar a cabeça.

         ‑ Bem... ‑ começou em tom hesitante. ‑ Janie e eu pensámos que será melhor que tu e Chris fiquem aqui.. Que vivam juntas nesta casa.

         ‑ Chris vive no reformatório ‑ elucidou a mãe, em voz neutra.

- Eu sei ‑ concordou Tom ‑, mas podemos solicitar agora mesmo a sua liberdade condicional, alegando que tem de cuidar de ti e que a situação familiar mudou com a morte do Pai. Lá, têm, agora, uma boa opinião de Chris e estou certo que a recomendação delas perante o juiz será positiva.

         ‑ Um momento! explodiu Chris, pondo‑se de pé.

‑ Se alegas essa razão para que me soltem, perderei todo o terreno ganho. Só ficarei em liberdade condicional para cuidar da Mãe. Se, depois, vivermos todos juntos, a assistente social solicitará o meu reingresso e terão de reconsiderar todo o assunto. Tom, isso pode demorar meses!

         ‑ Não te preocupes ‑ respondeu Tom, friamente.

‑ Nunca viveremos juntos.

         Angustiada, Chris afundou‑se na cadeira e meneou a cabeça de um lado para o outro. O comprido cabelo castanho cobriu‑lhe parte do rosto.

         ‑ Não te compreendo. Não consigo entender porque te empenhas em prejudicar‑me e em prejudicar‑nos a todos. Tom, eu gosto de ti e sei que gostas de mim. Quando estive na cela do castigo, a única razão que fez que não perdesse o juízo foi a ilusão de que algum dia voltaria a estar a teu lado. ‑ Tom engoliu a saliva e apertou os maxilares, enquanto Chris se levantou e se aproximou da Senhora Parker, pondo‑lhe as mãos nos ombros. ‑ E que dizes tu da Mãe? ‑ continuou, arquejante. ‑ Está sozinha, doente e já não tem os teus egoístas vinte anos. O menos que merece é poder viver rodeada pelos seres que lhe são queridos. Claro, esperas que deixe a bebida, mas condena‑la a tentá‑lo longe do filho e do único neto. Achas que conseguirá? Importas‑te, realmente?

         ‑ Acalma‑te, Chris ‑ interveio a mãe, dando uma palmadinha na mão da jovem, apoiada no seu ombro.

‑ Agradeço, profundamente, as tuas palavras, mas é inútil. Não é verdade, Tom?

         ‑ Olha, mãe... Na realidade eu...

         ‑ Se tu não consegues, vou eu explicar ‑ interrompeu, subitamente, Janie, inclinando o corpo para trás e cruzando os braços sobre o ventre, que começava a arredondar‑se por causa da gravidez. ‑ A verdade é esta, Chris, lamentamos, sinceramente, a situação em que vocês se encontram e tentaremos ajudar, mas também temos os nossos problemas. O que Tom está a propor é justo e sensato. Na pior das hipóteses, ficarão melhor do que estavam enquanto o Pai Ben foi vivo. Podem contar connosco, mas há um limite em que não iremos transigir. ‑ Janie fez uma pausa, enquanto todos os olhares se fixavam nela. ‑ Não queremos que os nossos filhos cresçam junto de uma avó alcoólica e de uma tia que acaba de sair do reformatório.

         Janie espetou o lábio inferior, em ar de desafio. Depois, baixou a cabeça. Um silêncio tenso pairou pela sala, até que a Senhora Parker, com a palma da mão, deu uma palmada na toalha.

         ‑ Foste muito clara, Janie. Acho que, agora, as cartas estão todas na mesa. Assim, se ninguém se opuser, vou dormir, logo que Tom me sirva o último trago.

         Tom levantou a cabeça e olhou‑a, imóvel. A mãe suspirou e serviu‑se ela própria, generosamente. Com

o copo na mão, dirigiu‑se para as escadas e, depois, virou‑se.

- Boa noite, filhos ‑ murmurou com uma certa tristeza irónica.

         Para Chris, não foi uma boa noite. A dor ambígua pela morte do pai continuava a latejar‑lhe num recôndito do peito, mas a raiva e a decepção pelo comportamento de Tom queimavam‑na como uma labareda. Apostara sempre no irmão, mas, nos últimos tempos, perdia sempre. Porquê? Porque se transformara ele naquele tipo duro e egocêntrico que só pensava na sua própria tranquilidade? Porque continuava ela a confiar sempre na solidariedade dele, como quando era pequena e aguardava a sua chegada para se lhe lançar nos braços e lhe confiar os seus desgostos? Remexeu‑se na cama e afastou os lençóis do corpo, que ardia de angústia. As imagens rodopiavam‑lhe, desordenadamente, no cérebro, como num caleidoscópio partido. "Caso curioso", pensou, "a Mãe é a única que mantém a calma. Parece ter reencontrado uma espécie de dignidade que lhe permite enfrentar a morte do Pai e a deserção de Tom sem perder o aprumo, embora a esta hora deva estar embriagada na sua grande cama solitária." Chris suspirou com um gemido audível e olhou para a janela. A chuva, que enlutara esses três dias, parara. No céu negro da noite, as estrelas cintilavam como uma luz velada.

         Na manhã seguinte, quando a Senhora Parker desceu, com o rosto tão macilento e enrugado como a sua velha bata de trazer por casa, encontrou o filho a escrever à máquina. Saudou‑o em voz baixa e ele correspondeu‑lhe sem se voltar. Ela continuou o seu caminho em direcção à cozinha.

‑ Anda cá, Mãe ‑ disse Tom repentinamente.

‑ Quero que vejas isto.

         A mulher retrocedeu com lentidão.

         ‑ De que se trata? ‑ perguntou, com ar desconfiado.

         Tom tirou o papel da máquina e estendeu‑o à mãe. Ela, com um gesto maquinal, limpou as mãos à saia antes de lhe pegar. Tinha um timbre oficial e vários parágrafos impressos, com espaços em branco, que Tom preenchera com a máquina de escrever que pertencera a Ben. Mas as letras recusavam‑se a alinhar‑se para que ela as pudesse decifrar.

         ‑ Não tenho os óculos ‑ murmurou.

         - É a petição ao juiz para a liberdade condicional de Chris. Deram‑me este impresso no reformatório, quando a fui buscar. Poderei levá‑lo hoje, a caminho de casa, mas antes tens de assiná‑lo.

         A Senhora Parker baixou o papel e olhou para o filho, com estranheza.

         ‑ Quando foste buscar Chris...? Mas Ben, nessa altura, ainda estava vivo...

         ‑ Assina, se fazes o favor ‑ replicou Tom, tapando a máquina com uma pancada seca. ‑ Janie e eu queremos partir cedo.

         Estendeu uma esferográfica, que a mãe pegou, com ar hesitante.

         ‑ Ali em baixo ‑ indicou Tom ‑, onde está marcado com a cruz.

         A manhã tinha esse ar límpido e radioso que costuma seguir‑se às chuvas prolongadas. Chris levantara‑se cedo, um pouco mais animada com a ideia de não voltar para o reformatório, e deambulara pelo exíguo jardim dos Parker, com um certo arzinho de posse. Agora, encarrapitada na descolorida cerca de madeira, contemplava a velha casa rebocada de branco, com ervas e algumas flores murchas a rodeá‑la. "Não é grande coisa", pensou. "Parece uma lata de cerveja virada para baixo. Mas, de qualquer modo, é o meu lar, e talvez fique melhor se as janelas forem pintadas e o jardim arranjado." Meditava nisto, banhada pelo sol morno da manhã, quando Tom saiu de casa, com a sua maleta e o carrinho de bebé. Meteu ambas as coisas no automóvel e, depois, avistou a irmã, que o olhava em silêncio.

         - Olá, Chrissie! ‑ saudou, metendo as mãos nos bolsos e aproximando‑se com ar despreocupado.

         ‑ Bons dias ‑ respondeu ela, esforçando‑se para que não houvesse rancor na sua voz.

         ‑ Eh... Acho que ontem à noite não fui muito amável...

         Chris encolheu os ombros, desviou o olhar e começou a brincar com um ramo de arbusto do descuidado jardim.

         ‑ Disseste o que tinhas a dizer. Suponho que não te sentias com disposição para ser mais cuidadoso.

         Tom concordou, em silêncio. Com a biqueira da bota traçou um sulco no cascalho da vereda. Depois, olhou de frente para a irmã.

         ‑ Sei que pensas que sou egoísta ‑ disse, e fez uma breve pausa; Chris não esboçou um único gesto. ‑ Gostaria que me compreendesses, Chris. Tenho agora outra família para cuidar e esta também é a minha família. Janie quis explicá‑lo ontem e fê‑lo de modo grosseiro e estúpido. Depois, tive de lhe chamar a atenção para...

         ‑ Não quero que me contes ‑ advertiu Chris.

‑ Está bem. Só queria que soubesses que não é a minha maneira de sentir

         ‑ Qual é a tua maneira de sentir, Tom?

         A voz de Chris traía um distante cansaço. Tom esquivou‑se ao seu olhar, embaraçado.

         Nesse momento, Janie assomou ao velho alpendre de madeira, trazendo o filho ao colo. A Senhora Parker precedia‑a. Janie agitou a mão livre e chamou por Tom, gritando‑lhe que estava pronta para partir. Tom, impulsivamente, estreitou Chris nos braços e apoiou o rosto ao dela.

         ‑ Vais ver, Chrissie ‑ disse‑lhe ao ouvido ‑, um dia poderemos viver todos juntos, como tu desejas. Mas deixa‑me, antes, resolver umas coisas.

         ‑ Se o não sentes, não o digas ‑ suplicou Chris.

         ‑ É uma promessa de Thomas Lee Parker! ‑ alardeou ele, correndo para o alpendre.

         Enquanto Tom se despedia da mãe, Chris aproximou‑se, lentamente, de Janie e do pequeno Tommy. A cunhada, impassível, deixou que ela beijasse a criança e a apertasse por um instante contra o corpo.

         ‑ Boa sorte, Chris ‑ disse com amabilidade. ‑ Vais ver que tudo há‑de correr bem.

         ‑ Não te preocupes ‑ murmurou Chris.

         Ficou plantada no meio do jardim, com os polegares fincados dos bolsos dos blue jeans, enquanto o velho Chevrolet de Tom deixava a sua marca no cascalho ainda húmido, atravessava o portão que dava para o passeio e se afastava lentamente, rua abaixo. "És uma parva, Chris", disse de si para si. "O maldito filho da mãe bajulou‑te de novo com três palavras ternas e tu já sentes um calor de esperança no coração."

‑ Até à vista, Tom - disse num sussurro. - Toma muito cuidado contigo.

         Permaneceu ali uns minutos, como hipnotizada pelo sol que lhe inflamava o rosto e lhe dourava a ténue penugem loura dos braços. Depois, deu meia volta e entrou em casa. Ofuscada pela luz do exterior, demorou uns segundos a adaptar as pupilas à fresca penumbra da sala de jantar. Aspirou, com prazer, o conhecido cheiro a humidade e a madeira que sempre reinava naquela casa e lhe fazia recordar as sestas da infância. Avistou, então, a mãe, que, em bicos dos pés, procurava qualquer coisa no armário.

         ‑ Olha, Chris ‑ disse a Senhora Parker, simulando surpresa ‑, Tom esqueceu‑se de levar o brande. Ainda sobra meia garrafa.

         Pousou a garrafa na mesa e, sem esperar resposta, tirou dois copos do móvel.

         ‑ Suponho que ninguém dirá nada se ambas bebermos um trago, para esquecer os desgostos e celebrar a nossa vida nova em comum, hem, Chrissie?

         ‑ São dez da manhã ‑ disse Chris.

         ‑ Descontá‑lo‑ei nos tragos da tarde ‑ respondeu a mãe, ao mesmo tempo que destapava a garrafa com gestos ansiosos.

         Com um movimento rápido que não pôde controlar, Chris arrancou a garrafa das mãos da mãe e, apertando‑a contra o peito, dirigiu‑se à cozinha. A Senhora Parker correu atrás dela e puxou‑lhe pela manga da camisa, com uma expressão desesperada.

         ‑ Filha, o que vais fazer? ‑ perguntou, ofegando.

         Chris, sem responder, com um braço, manteve‑a afastada, enquanto com a outra mão virava a garrafa para o ralo da pia. O líquido ambarino começou a escorrer lentamente, aos borbotões.

         ‑ Chris, não faças isso! ‑ gritou a mãe, tomada de um ataque de histeria.

        A jovem cravou os dedos no ombro da mulher e, com um violento empurrão, afastou‑a. A Senhora Parker tropeçou e foi‑se apoiar ao frigorífico, respirando agitadamente e de olhos arregalados.

         ‑ Enquanto cá viver, não haverá mais álcool nesta casa ‑ ameaçou Chris, lançando a garrafa vazia para o caixote do lixo.

         A mãe teve um estremecimento convulsivo e foi escorregando, até ficar ajoelhada no chão. Aí, explodiu numa crise angustiosa de pranto e de gemidos, balbuciando palavras incomprensíveis. Chris cerrou os dentes e esforçou‑se por manter a calma. Acendeu um dos bicos de gás.

         ‑ Vais beber um pouco de café e, depois, ajudar‑me a pôr a casa em ordem ‑ disse com firmeza. ‑ Daqui em diante, temos muito que fazer.

         Abriu a torneira e encheu a cafeteira da água, sem poder evitar que as mãos lhe tremessem, ao colocá‑la ao lume.

 

A luz, que se filtrava pela janela aberta, acariciou as pálpebras de Chris. A jovem virou‑se para o outro lado, enrodilhando‑se nos lençóis. Mas o sono foi desaparecendo pouco a pouco no ar tépido da manhã e resignou‑se a um despertar sem pressas. Decorridos alguns minutos, abriu, penosamente, os olhos e relanceou‑os pelo quarto. As velhas manchas de humidade foram tapadas com posters de actores e de desportistas. Da janela, pendiam cortinas novas e os caules mais compridos das flamejantes flores do jardim assomavam ao peitoril. Chris sorriu, satisfeita, enquanto se espreguiçava lentamente. Nessas duas semanas, a casa dos Parker transformara‑se num local acolhedor, graças a umas tantas alterações que ela e a mãe haviam realizado com entusiasmo e bom humor. Para surpresa e alegria de Chris, a Senhora Parker não voltara a beber. Passados os dois ou três primeiros dias críticos, nos quais se punha a tremer sem motivo ou caía em profundas depressões, a mulher conseguira, por si só, dominar a compulsão alcoólica. Agora, mostrava‑se mais animada e parecia ter rejuvenescido.

         Por seu turno, Chris consagrara todas as energias na remodelação da casa e a apoiar, discretamente, a surda luta da mãe contra a dipsomania. As coisas estavam a correr bem e a jovem, por intuição, não desejava fazer muitos projectos. Bastava‑lhe encontrar‑se ali, ocupar‑se das pequenas tarefas quotidianas e deixar que a triste lembrança do reformatório se fosse apagando, um pouco mais, em cada dia que passava. Tinha apenas uma certeza: nunca mais queria voltar para semelhante sítio.

         O juiz outorgara‑lhe três meses de experiência, com vista à liberdade definitiva, e, na véspera, recebera a visita da assistente social, Miss Crosswell. Era uma morena de cerca de quarenta anos, que parecia amável e compreensiva. Fez algumas perguntas, percorreu superficialmente a casa e aceitou uma chávena de chá. Comportara‑se como uma tia que estivesse de visita, mas Chris suspeitou que não seria fácil enganá-la. Ao retirar‑se, Miss Crossweel prometeu voltar dentro de uns dez dias. Enquanto ajeitava as almofadas debaixo dos ombros, Chris lembrou‑se da promessa. Disse para consigo mesmo que nesse lapso de tempo teria de fazer novas alterações para impressionar aquela mulher. "Mas terá de ser algo mais que cortinas e florzinhas", pensou, sorrindo.

         Ouviu umas leves pancadas na porta e, acto continuo, a Senhora Parker entrou no quarto, cuidadosamente vestida e penteada, trazendo um tabuleiro.

‑ Bons dias, Çhrissie! - saudou em voz cantante, pousando o tabuleiro na mesinha que estava junto da cama. ‑ Trouxe‑te o pequeno‑almoço.

         Chris sentiu água na boca ao contemplar o conteúdo da bandeja: ovos com presunto, café, sumo de laranja e os seus bolos favoritos, com marmelada e creme de manteiga. Olhou, perplexa, para a mãe, que se sentara aos pés da cama.

         ‑ Hum, Mãe! ‑ exclamou. ‑ Isto é um verdadeiro banquete! Que estás tu a tramar?

         ‑ Nada, filha ‑ disse, rindo, a Senhora Parker.

‑ Senti apenas desejos de te dar um pouco de mimo, como quando eras pequena.

         Chris foi incapaz de se recordar de alguma ocasião, quando pequena, em que a mãe lhe tivesse levado o pequeno‑almoço á cama. Mas não disse nada. Atacou com bom apetite os ovos com presunto e bebeu um longo trago de sumo de laranja. Esboçou um gesto de aprovação, comendo com voracidade. A Senhora Parker meneou a cabeça, satisfeita, dando palmadinhas nas pernas da filha, por cima do cobertor.

         ‑ Agrada‑me que estejas aqui comigo, Chris ‑ afirmou. - É como se tivesse recuperado a alegria de viver... E a ti o devo.

         Chris, pensativa, pegou num bolo e começou a barrá‑lo com manteiga. Os olhos da mãe brilharam, húmidos.

         ‑ Colaboraste muito, Mãe. Eu mais não fiz do que dar uma ajudinha. ‑ Interrompeu o que estava a fazer e, com a faca, apontou para o rosto sorridente da Senhora Parker. ‑ Assim é que é bom ‑ prosseguiu ‑, cada uma de nós lutar por si mesma.

‑ É verdade ‑ reconheceu a mulher ‑, mas também

é bom podermo‑nos ajudar uma à outra, não é assim?

Penso-.. penso que deveríamos continuar juntas... por

muito tempo, não achas...? ‑ Mordeu os lábios e baixou

a cabeça, para a filha não ver as lágrimas que lhe

assomavam aos olhos.

         Chris bebeu a última golada de café, olhando‑a com ar sério. Depois, afastou o tabuleiro.

         ‑ Chega-te aqui ‑ disse com uma inflexão um tanto imperiosa.

         A Senhora Parker aproximou‑se, titubeante. Chris observou-lhe atentamente os olhos chorosos. Depois, atraiu‑a a si e estreitou‑a fortemente contra o peito.

         ‑ Vamos, Mãezinha ‑ sussurrou com uma terna entoação. ‑ Que estás tu a pensar? Achas que vou sair daqui a correr, mal o juiz me der a liberdade?

         A Senhora Parker assentiu, abafando um soluço. Afastou‑se da filha e pegou‑lhe no rosto com ambas as mãos.

         ‑ Andaste sempre a fugir de mim, Chrissie ‑ afirmou sem que na sua voz houvesse ressentimento.

         ‑ Oh, na realidade, ninguém sabe do que foge, Mãe ‑ declarou Chris. ‑ Simplesmente, temos vontade de correr, de nos afastarmos e somos incapazes de resistir.

         ‑ Sei o que isso é ‑ disse a Senhora Parker com gravidade.

         Chris sorriu e pegou‑lhe na mão.

         ‑ Não te preocupes. Já aprendi que fugir não leva a nada. ‑ A jovem hesitou um instante. ‑ Ou melhor, vai dar a um sítio de que já estou farta. Não quero voltar para lá, Mãe.

‑ Não voltarás ‑ assegurou a Senhora Parker com renovada decisão ‑, mostraremos a Miss Crosswell e a esse palerma do Tom do que somos capazes as duas juntas.

         Chris deslizou da cama e foi à procura da colorida blusa de tecido escocês, que tirou do armário. A mãe olhou para as suas longas pernas e para as nádegas altas e firmes, por sob as caicinhas, como se estivesse surpreendida por a filha ter formas de mulher.

         ‑ Sabes o que tenho estado a pensar? ‑ disse Chris, vestindo os blue jeans. ‑ Que talvez pudesse arranjar qualquer trabalho aqui perto. Sei que não será fácil, vindo eu donde venho, mas tu vives há mais de vinte anos neste bairro e pode ser que convenças algum comerciante a admitir‑me como empregada ou qualquer coisa do género... Preciso de estar um pouco ocupada e alguns dólares a mais não nos prejudicarão.

         A Senhora Parker levantou‑se, excitada.

         ‑ É uma ideia excelente! ‑ aprovou com entusiasmo. ‑ Se não me engano, Stone, o da drogaria, despediu o ajudante. Apesar de tudo, estimava bastante o teu pai. Hoje mesmo, irei falar com ele sobre o assunto.

         ‑ Não tenhas pressa ‑ advertiu Chris, acabando de abotoar a blusa ‑, é melhor falar‑lhe na presença da assistente social.

         ‑ Não vejo porque há‑de ela ter de autorizar‑te.

         ‑ Não se trata disso. É só para a deixarmos convencida de que a ideia partiu dela. Na altura da papelada, isso ajudará a ter Miss Crosswell mais do nosso lado.

         ‑ Chris! Saíste‑me uma intriguista! ‑ troçou a Senhora Parker, fingindo‑se escandalizada.

‑ Isso sabe o reformatório ensinar ‑ respondeu Chris.

         Duas semanas mais tarde, a vida das Parker, mãe e filha, decorria ainda num ambiente de cordialidade e compreensão mútuas, como se tivessem descoberto uma forma de relacionamento que nunca lhes ocorrera. Miss Crosswell aprovara entusiasticamente a ideia de Çhris começar à procura de qualquer trabalho, embora o Senhor Stone não tomasse uma decisão até ao mês seguinte: "Caramba", explicou à Senhora Parker, "Deus é testemunha de como desejo ajudar a filha do pobre Ben, mas a vizinhança sabe onde ela esteve e algumas das minhas freguesas são autênticas víboras. Não quero que a façam passar por um mau bocado." A Senhora Parker não se deixou amedrontar, replicou que Chris não iria sofrer na drogaria qualquer humilhação que não pudesse sofrer nas ruas do bairro. "Por outro lado", assegurou, "todas as vizinhas sentiam tanta admiração pelo Senhor Stone que iriam, sem dúvida, respeitar a decisão dele." "Assim o espero", replicou Stone, na dúvida. "Dê‑me duas ou três semanas para reflectir."

         Entretanto, Chris não ficara inactiva. Ocupou‑se, principalmente, das compras domésticas, irradiando uma tal cordialidade e modéstia que muitas senhoras que nunca a haviam cumprimentado começaram a sorrir‑lhe, quando se cruzavam com ela. Um empreiteiro reformado, que vivia a duas ruas de distância, ofereceu‑se para a ajudar a reparar a cerca. E até a Senhora Smithfield, secretária do clube Feminino da zona, lhe prometeu um dos cachorros que a sua cadela estava prestes a ter. "Duas mulheres sozinhas precisam de um cão que lhes guarde a casa", afirmou. "Quando Belia der à luz, podem vir tomar chá comigo e escolheremos um cachorro do sexo masculino." Chris agradeceu-lhe polidamente e afastou‑se, pensando, de súbito, que o Senhor Stone não teria argumentos para lhe recusar o emprego.

                   ‑ Queres um pouco de café? ‑ perguntou a Senhora Parker ao vê‑la entrar.

                   ‑ Talvez mais tarde. Ainda há muito que fazer.

                   ‑ Tolice! ‑ insistiu a mãe, jovialmente. ‑ A comida está preparada e já levei a roupa à lavandaria. Gostaria de falar um pouco contigo.

                   ‑ Está bem ‑ anuiu Chris. ‑ Não ponhas muito açúcar, a boa vida faz‑me engordar.

                   Rindo, a Senhora Parker dirigiu‑se para a cozinha. Chris recostou‑se no velho cadeirão do pai e apoiou os pés na mesa, numa atitude displicente. "Bem", disse para consigo, "estás prestes a transformar‑te na menina modelo da vizinhança, na filha exemplar e abnegada, ajudante do droguista. Era isso que querias, Christine Parker?" Preferiu deixar a resposta em suspenso e soltou um profundo suspiro de perplexidade.

                   ‑ Moco morreria a rir ‑ proferiu em voz alta.

                   ‑ Que dizes? ‑ perguntou a mãe, atarefada com o café.

                   ‑ Disse que encontrei a velha Smithfield - respondeu Chris. ‑ Quer presentear‑nos com um dos seus malditos cachorros.

                   A Senhora Parker assomou à soleira da porta, repetindo o seu gesto maquinal de enxugar as mãos.

                   ‑ Isso é muito bom, não achas? ‑ aventurou com uma certa ansiedade na voz.

                   Chris encolheu os ombros e disse:

‑ Não sei. Não gostaria que essa gente acabasse por jogar golfe no nosso jardim.

         ‑ Por Deus, Chris! ‑ exclamou a mãe, com um riso nervoso. ‑ No nosso jardim, não há espaço para se jogar golfe!

         ‑ É isso mesmo que quero dizer ‑ respondeu a jovem com enfado. ‑ Não somos como eles, não temos espaço para eles. Estou disposta a trabalhar a troco do dinheiro deles, para que nos deixem em paz. Mas não quero fazer de bode expiatório, para que esse bando de porcos justifique a sua parcela no céu...

         ‑ Vamos, filha ‑ disse a Senhora Parker em voz tensa‑, trata‑se apenas de fazer boa vizinhança. Tu própria disseste que era necessário.

         As chávenas tilintaram ligeiramente quando as pousou na mesa.

         ‑ Pode ser que tenha dito, mas desagrada‑me fazê‑lo ‑ disse Chris, encolerizada.

         A mãe sentou‑se em frente dela e bebeu o café em silêncio, observando‑a com apreensão. Ao cabo de alguns instantes, Chris levantou a cabeça e sorriu‑lhe, tentando tranquilizá‑la.

         ‑ Está bem, Mãe, não te assustes. Talvez não me tenha acostumado ainda à liberdade. Lá no "qasebre", quase todas eram delinquentes, mas não havia hipócritas.

         - O mundo é assim ‑ murmurou a Senhora Parker.

         Nesse momento, tocaram à campainha e ambas se viraram para a porta. Chris soergueu‑se e distinguiu uma figura delgada e morena encarrapitada no gradil pintado de fresco.

‑ Josie! ‑ gritou, como se estourasse. ‑ Josie!

‑ E lançou‑se, a correr, para o jardim.

         As duas raparigas abraçaram‑se, rindo e gritando e depois avançaram, abraçadas, pelo atalho de cascalho. A Senhora Parker retirou‑se da janela pela qual espreitava e foi à procura de outra chávena, com uma opressão indefinível no peito. Josie mostrou‑se muito amável com ela. Elogiou o café e os pormenores da casa e chegou mesmo a dizer que não esperava que a mãe de Chris fosse tão nova. A senhora não estava acostumada aos elogios e corou, sentindo‑se agradavelmente perturbada. As jovens entreolharam‑se, com ar cúmplice.

         ‑ Bom ‑ disse a Senhora Parker, suspirando ‑, a roupa já deve estar pronta e vocês hão‑de ter muito que falar. ‑ Levantou‑se e pegou na sua pequena carteira.

         - Vou até à lavandaria, Chris, voltarei dentro de meia hora. Josie ficará para almoçar ‑ acrescentou em voz polida

         Josie sorriu e esboçou um suave gesto de negação com a crespa cabeça escura.

         ‑ Agradeço-lhe muito, Senhora Parker, mas o meu amigo está lá fora à minha espera, no carro dele. Pensamos continuar viagem para Nevada hoje mesmo. ‑ A sua língua rosada humedeceu fugazmente os lábios carnudos e morenos, prosseguindo: ‑ Na realidade, pensava pedir‑lhe licença para Chris ir almoçar connosco.

         A Senhora Parker abriu a boca e voltou a pousar a bolsa na mesa.

         ‑Bem... ‑ hesitou ‑, na verdade... ‑ Fez uma pausa, desconcertada, e, depois, alteou o peito com um trémulo sorriso. ‑ Parece‑me uma ideia formidável. Chris precisa de se distrair e far‑me‑á bem ficar um bocado sozinha. às Vezes, os velhos como eu gostam da Solidão - acentuou, dirigindo‑se a Josie.

         O "amigo" de Josie era um mulato alto e bem parecido que estava sempre a sorrir. O rosto, de uma beleza juvenil, contrastava com alguns cabelos brancos nas têmporas e com as pequenas rugas em torno dos Olhos, como traçadas por um fino alfinete. Arranjou espaço para Chris no seu descapotável, ficando esta entre Josie e ele. Sem deixar de tagarelar, conduziu O carro até um luxuoso restaurante dos arredores. A sua conversa era divertida e variada. Saltava da infância picaresca em Bronx para anedotas da época em que fora extra de filmes; da sua participação na campanha de Robert Rennedy ("Vi‑o cair morto a meus Pés."), para os dois anos passados em Saigão, durante a guerra ("Nunca cheguei a estar na frente, meti‑me no negócio da "erva" e os oficiais Protegiam-me.") Chamava‑se Morti mer - Jones e, certamente, era um homem seguro da sua Pessoa. Josie ouvia‑o embevecida e estremecia com as distraídas caricias que ele lhe prodigalizava durante o seu monólogo.

         Os três desfrutaram o almoço com Parcimónia, que durou mais de duas horas, matizado pelas infindáveis aventuras de Mortimer. Depois, o homem propôs que descansassem e apanhassem um Pouco de ar num lago próximo. O lugar era realmente plácido e acolhedor. Deixaram o carro estacionado junto da estrada e as raparigas sentaram-se na erva fresca e macia, à sombra de um arvoredo. Num rasgo inesperado de discrição, Mortimer decidiu deixá‑las um Pedaço sozinhas, enquanto fazia uma incursão em redor do lago, para desentorpecer as pernas. Quando se afastou, as duas raparigas ficaram uns minutos em silêncio, fitando o lento e continuo golpear da água contra a borda pedregosa.

         Depois, Josie relatou a Chris o que lhe acontecera recentemente. O velho juiz do Tribunal de Menores tinha‑se reformado e o sucessor reconsiderara alguns processos. O resultado fora várias reclusas do quarto grau serem beneficiadas com a liberdade condicional, de acordo com os mais liberais critérios defendidos pelo jovem juiz. Josie encontrava‑se entre elas e recebeu a notícia com uma feliz incredulidade. Chris disse‑lhe que a sua petição fora também resolvida de maneira rápida e generosa e ambas se congratularam com a sua sorte e de como fora oportuna a mudança de magistrado.

         ‑ Moco também saiu? ‑ perguntou Chris.

         Jesie negou, sorrindo.

         ‑ Não, só as quatro ou cinco que estavam mais "limpas". Como sabes, os antecedentes de Moco ocupam um armário inteiro.

         Riram‑se com gosto. Depois, Chris, repentinamente séria, virou‑se para a amiga.

         ‑ Que pensas fazer?

         Josie encolheu os ombros e deixou que o olhar vagueasse pela límpida superfície do lago. Ao longe, na margem oposta, a figura de Mortimer era uma pequena mancha confusa que se movia, semioculta pelos juncos.

         ‑ Conheci Mort há uma semana ‑ informou em voz neutra. ‑ Acho que me apaixonei por ele. É sócio de uma espécie de clube nocturno no Nevada e propôs‑me trabalhar lá com ele. Nada excessivamente difícil: alternar com os clientes, estimulá‑los a beber e a apostar dinheiro na roleta. O que os anúncios do clube chamam "companhia gentil", compreendes?

         - A tua assistente social não vai gostar - comentou Chris, meneando a cabeça.

         - Mort arranjará as coisas - assegurou Josie com convicção. - O sócio principal é um tipo importante e tem amigos nas cúpulas. - Baixou a cabeça e espiou Chris pelo canto do olho. - De qualquer das maneiras, já não suportava mais a minha tia.

         - Compreendo - disse Chris. - E quanto à tua idade? Não acredito que menores Possam trabalhar nesses sítios.

         Josie franziu o sobrolho, incomodada, e deu um estalo com a língua.

         - Já te disse que o velho do clube é pessoa influente - replicou. - Que diabo se passa contigo? - inquiriu

depois, com o olhar inflamado. - Ao fim e ao cabo, de que lado estás tu?

         Chris fitou‑a desconcertada e pensou que era uma boa pergunta. Mas não tinha resposta.

                   - Desculpa‑me - suplicou, em ar conciliador

- Não queria que fosses prejudicada.

- Mort cuidará de mim - afirmou Josie.

         ‑ Vais... ‑ Chris hesitou um instante ‑, vais viver com ele?

         - Viver com ele? ‑ repetiu Josie, e, depois, teve uma gargalhada nervosa. ‑ Santo Deus, Chris, tens cada uma! Mort é mais velho que eu quinze anos! - Fez uma pausa e passou lentamente a mão pelo cabelo encrespado. ‑ Além disso, é casado e tem três filhos.

         ‑ Eu não aceitaria uma situação dessas ‑ disse Chris impulsivamente, arrependendo‑se logo.

         Mordeu o lábio inferior, disposta a aguentar a explosão da amiga. Mas Josie limitou‑se a olhá‑la com uma espécie de serenidade resignada.

         ‑ Eu sei que não é como nas novelas ‑ murmurou ‑, mas é bom ter alguém que me queira e que se preocupe comigo. Ainda que acabe mal, vale a pena tentar.

         Chris recordou então que Josie era órfã desde os cinco anos. A tia que a recolhera era uma mulher irascivel, que lhe batia brutalmente por qualquer motivo. A garota fugia dela sempre que podia e, assim, a sua infância, praticamente, decorrera na rua, sob a lei da sordidez e da miséria dos bairros pobres. Olhava‑se agora com os seus olhos perscrutadores e astutos, iluminados por uma débil esperança de amor. Desejou que a terra a engolisse por ter sido tão rude. Sorriu para Josie e disse‑lhe que, naquelas semanas, qualquer coisa lhe estava a acontecer. Qualquer coisa que lhe desagradava.

         ‑ Vais ver que tudo correrá bem ‑ disse sem convicção, invadida por uma tristeza indefinível.

         Permaneceram ambas em silêncio, imersas nos seus próprios receios e ilusões, até que Mortimer regressou do passeio. A insistente jovialidade do homem fez que a depressão das jovens se fosse desvanecendo pouco a pouco

         Quando o automóvel se deteve em frente da casa de Chris, esta e Josie abraçaram‑se longamente, de olhos marejados. Mortimer desceu e segurou cavalheirescamente a porta, a fim de que Chris pudesse sair do carro. A jovem deu‑lhe um rápido e impulsivo beijo na face.

         - Toma bem conta dela - Suplicou.

         - E tu de ti - disse ele, sorrindo-lhe calorosamente. Depois, contornou o veículo e, de um salto, sentou‑se ao volante. Dirigiu-lhe uma ultima piscadela de olho enquanto punha o motor a trabalhar. Quando o carro arrancou, Josie agitou o seu lenço de seda escarlate, em sinal de despedida. Chris, por seu turno, levantou a mão, de olhos cravados no Pequeno Pedaço de tecido que se agitava e ia desaparecendo na luz opaca do crepúsculo. Deu um profundo Suspiro e acariciou o queixo, assaltada por uma angústia indefinível. A Pequena Josie corria a saborear de um só trago a liberdade antes que alguém lha arrebatasse. Ela, Chris, ia construindo dia a dia uma liberdade submissa e discreta, que pretendia que fosse segura. No fim, qual das duas seria a Primeira a voltar ao "pesebre"? Recordou o que, meses atrás, Sara, uma das veteranas do terceiro Pavilhão, lhe dissera: "Se estiveste aqui uma vez, já não há saída. Faças o que fizeres, voltarás sempre." Teve um arrepio e pensou que estava a pôr‑se frio. Quando abriu o portão gradeado e atravessou O jardim,

         cobrindo os ombros com as mãos, verificou que em algumas casas vizinhas se tinham já acendido as primeiras luzes, alumiando a escuridão que caía.

         Ao abrir a Porta, sentiu uma presença na penumbra e acendeu a luz ténue do vestíbulo. A Pálida claridade

permitiu-lhe distinguir a mãe no sofá da sala de jantar, encolhida e silenciosa. O seu rosto reflectia uma espécie de dor antiga. Tinha ambas as mãos ligadas até aos cotovelos. O arPeeado da casa cheirava a chamusco.

Chris não se mexeu nem perguntou nada. Uma opressão conhecida avassalou-lhe o peito e embargou-lhe a garganta. Inconscientemente, apoiou‑se à parede, desejando que a vida voltasse atrás, como num filme a ser passado ao contrário. imaginou‑se a si própria a recusar jovialmente o convite de Josie e a ficar a comer com a mãe, para depois tagarelarem futilidades enquanto lavavam os pratos. "Passou‑se qualquer coisa desagradável", disse de si para si. "Não a devia ter deixado tanto tempo sozinha." A pressão na garganta subiu‑lhe à cabeça, que bamboleou pesadamente, como a de um animal ferido. De repente, alguém abriu a porta da casa de banho e uma faixa de luz inundou o quarto, recortando a figura trágica da Senhora Parker. Uma silhueta alta emergiu da soleira da porta, trazendo uma toalha nas mãos. Chris não se surpreendeu ao reconhecer o rosto sombrio e os cabelos ruivos do irmão.

         ‑ Até que enfim que chegaste ‑ disse-lhe ele suavemente, mas traindo a raiva que procurava conter.

‑ Desta vez, fizeram‑na bonita.

         Deu três passadas e postou‑se diante de Chris, olhando‑a com um misto de ódio e de pena.

         ‑ Santo Deus, Chrissie! Porque a deixaste sozinha?

Chris baixou a cabeça e, como num sonho, observou os desenhos do chão de mosaicos.

         ‑ O que se passou? ‑ perguntou, espantando‑se por ouvir a própria voz.

         Tom virou-lhe as costas e dirigiu‑se lentamente para a mesa. Pegou num objecto e ergueu‑o, sem se voltar. O vidro da garrafa semivazia irradiou uns leves reflexos.

- Quase um litro de uisque - disse Tom, como se verificasse um dado impessoal; em seguida, deu uns passos em direcção à mãe. - Deve tê-la bebido em meia hora, por volta do meio‑dia - descreveu, com o tom de um delegado que relata ao Tribunal as circunstâncias de um crime. - Depois, segundo parece, tentou acender o fogão para aquecer a comida. Mas estava demasiado embriagada e o fogo pegou‑se às tuas cortinas de plástico novas e tambem à toalha da mesa. Ao tentar apagá‑lo, o que fez foi queimar as mãos. - Desviou O olhar de Chris e fixou‑o na mãe, que o fitava, impassível.

         - Queimaduras de segundo grau. Um vizinho deu pelo fumo e acudiu a tempo de evitar que o fogo se propagasse. A mulher dele telefonou ao médico e depois avisou‑me. Foi o que se passou. - Pronunciou esta última frase a resmungar, enquanto se dirigia para a cozinha, passando em frente de Chris como se ela não existisse.

         Ao ficarem Sozinhas, Chris e a Senhora Parker entreolharam-se pela Primeira vez, demoradamente. Os Olhos da mãe estavam congestionados pelo choro e pelo alcool ingerido.

         - Não sei Porque o fiz - balbuciou com dificuldade.

         - Mal saiste por aquela Porta, deitei a Correr pela rua à procura de uma garrafa.

         - às vezes acontece - acudiu Chris.

         - Parece que estraguei tudo - disse a Senhora Parker, a Soluçar e enxugando as lágrimas com a mão ligada

         - Sim - concordou a jovem, - É Possível.

         Naquela altura, não queria discutir. Os Seus sentimentos eram contraditórios e tanto desejava esbofetear a mãe como correr para ela e apertá‑la nos braços. Num ponto, ela tinha razão, era possível que tivesse deitado tudo a perder. Chris respirou fundo e encaminhou‑se para a cozinha, à procura do irmão.

         Tom estava agachado, a limpar os vestígios do incêndio.

         ‑ Tom, o que pensas fazer? ‑ perguntou a rapariga num fio de voz.

         Passaram‑se uns minutos, durante os quais o rapaz permaneceu em silêncio, esfregando obstinadamente as manchas de fuligem. Depois, levantou‑se. O seu olhar dirigiu‑se para as cortinas da janela, que pendiam como negros farrapos esfiapados. Também mais de metade da toalha da mesa estava queimada, assim como parte do monte de roupa lavada, que era um amálgama informe de panos chamuscados.

         ‑ Podia ter queimado a casa toda ‑ murmurou como para si mesmo.

         ‑ O que pensas fazer com ela? ‑ repetiu Chris, com ansiedade.

         Tom virou‑se e olhou‑a com certa surpresa, como se até àquele instante não tivesse dado pela presença da irmã.

         ‑ Interná-la‑emos numa instituição para alcoólicos

‑ respondeu, implacável ‑, não podemos correr mais riscos.

         Chris concordou em silêncio. Passou a lingua pelo lábio superior, desviando a vista dos olhos cansados do irmão. O cheiro a cinza molhada revolveu‑lhe o estômago. Engoliu em seco e sentiu que a temida pergunta se lhe formava, hesitante, nos lábios, até conseguir sair:

         ‑ E o que vai ser de mim?

Tom pôs‑se de pé e limpou, cuidadosamente, as joelheiras das calças.

         ‑ Voltarás para o reformatório - esclareceu; depois, a cólera reprimida endureceu‑lhe a voz. ‑ Nunca deverias ter saído de lá.

 

‑ Barbara, preciso de lhe falar?

         A professora afastou a loura cabeça dos apontamentos que estava a ler e tirou os óculos para perscrutar

o rosto compungido e ansioso da jovem reclusa, que aguardara que todas as outras saíssem da aula para se aproximar da secretária.

         ‑ O que se passa, Çhris?

         A voz de Barbara Clark revelava uma particular benevolência, pois começara a sentir de novo apreço por Chris Parker. Não havia dúvida que já não era a mesma rapariga rebelde e arrogante que lhe iludira a confiança há um ano atrás. Pelo contrário, durante o tempo que se passara desde o seu regresso ao "pesebre", Chris havia‑se comportado de forma exemplar. Era esse o comentário das autoridades e das vigilantes e Barbara estava disposta a corroborá‑lo veementemente. chris demonstrava um interesse e afinco excepcionais nos estudos e tinha, certamente, um espírito activo e penetrante. Era uma pena que aquele infeliz acidente familiar a tivesse obrigado a voltar de novo para o reformatório. Mergulhada neste pensamento, Barbara deu‑se conta de que não escutara o que Chris lhe dizia. Prestou atenção ao resto da frase:

         - talvez me pudesse indicar o que devo fazer

‑ finalizou a rapariga.

        Barbara titubeou por um instante, procurando adivinhar qual era o assunto.

         - Fazer... Em que sentido?

         - Não me estava a ouvir - acusou Chris.

         - É verdade, distraí‑me - reconheceu Barbara, - mas estava a pensar em ti.

         Chris fez um gesto infantil de dúvida e dirigiu‑se para o quadro. Pegou num pedaço de giz e começou a fazer uns rabiscos, de costas viradas para a professora.

         - Tudo o que eu disse foi que queria sair daqui - explicou.

         Barbara esboçou um sorriso.

         - Parece‑me que é um desejo bastante generalizado - comentou, - mas já conheces as regras. Alem disso, o teu caso é especialmente difícil.

         Chris deu meia volta, enfrentando Barbara, com o corpo agachado e os olhos vigilantes.

         - Difícil? Está a troçar de mim? Há três malditos meses que me comporto como uma freira no convento! Sou o bobo do pavilhão inteiro!

         ‑ Só o fazes para poderes sair?

         Chris arrependeu-se do deslize, notando que Barbara lhe perscrutava agora os gestos, como a tentar confirmar uma suspeita. "Santo Deus!", pensou. "Decerto que o faço apenas para poder sair!" Custara‑lhe sangue aguentar submissamente as bravatas de Moco e as tolas exigências regulamentares de Betty Ramos. Inclusive Ria, Jax, Bea e, até, a própria Carrie tinham perdido o respeito por ela e tratavam‑na com uma certa comiseração despeitada. Valeria a pena suportá‑las, fingir continuamente, ser humilhada, só para poder sair? "Decerto que sim", disse de si para si.

         ‑ Evidentemente que não ‑ respondeu a Barbara.

‑ Mas sinto‑me como se qualquer coisa dentro de mim se estivesse a deteriorar neste sítio. ‑ Captou um lampejo de interesse nas pupilas da professora. ‑ Barbara, sabe, aos poucos, vamo‑nos contagiando com as outras..., com o ambiente... ou começamos a odiar sem motivo as vigilantes..., ocorrem‑nos ideias de fuga-.. ou de suicídio... Já me aconteceu antes e, agora, não quero que me volte a suceder. ‑ Barbara baixara a cabeça, como se estivesse impressionada, e Chris decidiu dar a estocada final. ‑ Suponho que é... por estar encarcerada. A senhora nunca esteve presa, não é verdade?

         Barbara meneou negativamente a cabeleira loura. Ao erguer o rosto, os seus olhos estavam húmidos e o queixo tremia‑lhe ligeiramente.

         ‑ É difícil ‑ repetiu, mas sem firmeza.

         Chris correu a prostrar‑se junto dela, agarrando‑lhe os joelhos com as mãos.

         ‑ Barbara, tem de me ajudar! ‑ implorou. ‑ Sei perfeitamente que me poderei comportar bem lá fora, se me derem uma oportunidade.

         ‑ Já te demos uma oportunidade ‑ replicou Barbara, na defensiva.

Chris pôs‑se de pé, soltando um profundo suspiro. Afastou os braços do corpo, num gesto de impotência e começou a dar voltas em frente da secretária da professora.

         - É verdade ‑ disse. ‑ Mas tudo estava a correr às maravilhas até que a minha mãe teve aquele acidente. Talvez não devesse deixá‑la sozinha... Mas, de qualquer das maneiras, foi um acidente e, até àquela altura, tudo corria bem! Pode perguntar à assistente social...

         ‑ Falei com Miss Crosswell ‑ confirmou Barbara ‑, o seu relatório é bastante favorável. Mas o juiz Turner está muito reticente connosco. Ao assumir

o cargo, concedeu‑nos seis liberdades condicionais e, pouco depois, quase deixas morrer a tua mãe, outra das raparigas foi surpreendida a roubar num supermercado e Josie desapareceu, valendo‑se de relações no sector mais corrupto da Administração.

         ‑ Não sabia ‑ mentiu Chris, de rosto sobressaltado ‑, e lastimo.

         ‑ Quem mais se lastima é o pobre do juiz Turner. Deves imaginar os problemas que teve, quase o puseram na rua. ‑ A professora levantou‑se e aproximou‑se de Chris, pousando‑lhe a mão no ombro e deixando que os dedos brincassem com o longo cabelo castanho da rapariga. ‑ Mas ainda que conseguissemos convencer o juiz, Chris, já não tens casa para onde ir. A tua mãe está internada e ambas sabemos que o teu irmão e a mulher não consentirão que vás viver com eles.

         Chris franziu os lábios e sentiu que um nó de angústia se lhe formava na garganta. O que teria dito Tom para que todos soubessem que não a queria com ele?

         ‑ Tem razão ‑ disse num fio de voz. ‑ De qualquer maneira, agradeço‑lhe ter‑me escutado. ‑ E dirigiu‑se, com passo inseguro, para a porta.

         ‑ Espera! ‑ pediu Barbara subitamente; Chris deteve‑se e depois virou‑se com lentidão. ‑ Talvez haja uma solução... Como sabes, às vezes, vêm cá familias que querem albergar algumas das raparigas..., para companhia ou para ajuda...

         - Para criadas ‑ exclamou Chris, com desprezo.

         O rosto da professora tornou‑se duro.

         ‑ Queres ou não sair? ‑ perguntou.

         ‑ Sim - replicou Chris, mordendo os lábios ‑, quero sair.

         ‑ Nesse caso, temos uma possibilidade. Mas não mexerei um dedo se não me garantires que te portarás bem.

         ‑ Compreendo‑a ‑ desculpou‑se Chris ‑, sinceramente, compreendo‑a.

         O rosto de Barbara suavizou‑se.

         ‑ Bom, não te prometo nada. Se continuares a portar‑te bem, como até agora, voltaremos a falar sobre o caso.

Passou‑se quase um mês, sem que Barbara voltasse a tocar no assunto. Chris manteve a sua conduta submissa, mas estava frequentemente distraída e nervosa. Não prestava atenção às aulas, discutia com Carrie por qualquer detalhe insignificante sobre a arrumação do quarto que compartilhavam, ou permanecia meditabunda por longos minutos no refeitório, sem comer nada. Facto curioso, era Moco, a sua antiga rival, que então se aproximava dela ou utilizava a sua influência para impedir que as outras a molestassem. Chris agradecia a solidariedade inesperada de Moco, mas não desabafava com ela. Na realidade, quase não falava com ninguém, nem participava nos jogos e debates que as raparigas organizavam para ajudar a passar os longos dias de clausura. Aguardava, apenas, em silêncio, deixando desfilar pela mente fantasias sobre a sua vida futura no exterior, quando Barbara Clark cumprisse a sua promessa.

         Uma tarde, depois do lanche, Lasko aproximou‑se de Chris, com o seu andar pesado de sargento. A jovem estava cabisbaixa, contemplando o prato vazio. Lasko deu‑lhe um piparote no ombro para lhe chamar a atenção

         ‑ Chris, Miss Parker quer‑te ver ‑ anunciou com indiferença.

         O coração de Chris teve um sobressalto e, por um momento, ficou absorta, de olhos cravados no casaco cinzento da vigilante. Depois, deu uma espécie de salto silencioso e esgueirou‑se pela porta, em direcção ao edifício principal. Lasko meneou resignadamente a cabeça e correu atrás dela.

         O gabinete de Cynthia Parker, a directora‑adjunta, situava‑se na ala esquerda, junto do escritório do director e da sala de reuniões. Chris esperou por Lasko em frente da porta fechada, aproveitando para recuperar

o fôlego e tentar acalmar‑se. A vigilante alcançou‑a, também ofegante. Lançou à sua pupila um mudo olhar de recriminação e bateu com os nós dos dedos na escura madeira polida. A voz pausada e firme de Miss Parker convidou‑as a entrar.

         Barbara Clark encontrava‑se também no gabinete, num dos lados da espaçosa secretária de Cynthia. Isso parecia ser um bom indício. A professora piscou discretamente o olho a Chris, quando esta cumprimentou ambas com ar respeitador. A directora‑adjunta limitou‑se a um leve geste com a cabeça e, depois, dirigiu‑se a Lasko:

         ‑ Pode ficar, Lasko, isto também lhe diz respeito.

‑ O seu olhar calmo e distante virou‑se então para Chris: ‑ Senta‑te, Chris.

         A jovem sentou‑se na cadeira que se encontrava em frente da secretária. Lasko, depois de hesitar por um instante, optou pelo cadeirão igual ao que Barbara ocupava, um pouco mais afastado. Cynthia pigarreou e pegou numa pasta de cartão, que colocou à sua frente, sem a abrir.

         ‑ Bem, Chris ‑ começou ‑, Miss Clark é de opinião que te encontras em condições de sair daqui para viveres por uns tempos com uma das famílias que hospedam as nossas internas. ‑ Chris assentiu, sem desviar os olhos do rosto impassível da directora‑adjunta. ‑ Pessoalmente, confio no critério de Miss Clark desde que Lasko esteja de acordo, evidentemente.

         Cynthia fez uma pausa e as três olharam para a vigilante. Esta esboçou um gesto de perplexidade, acomodou o corpo robusto no cadeirão, olhou para as mãos, cruzadas no regaço.

         ‑ Chris tem‑se portado bem ultimamente ‑ declarou; abriu a boca, como se fosse a acrescentar qualquer coisa, mas voltou a fechá‑la, com um ligeiro encolher de ombros.

         ‑ Assim parece ‑ corroborou Cynthia em voz neutra. ‑ De modo que não vejo qualquer inconveniente em fazermos a experiência.

Chris julgou que ia pôr‑se a dar pulos de alegria, ali mesmo. Inclinou o corpo para diante e teve um rasgado sorriso para a directora‑adjunta.

         ‑ Agradeço‑lhe tanto, Miss Porter! As três foram... foram tão boas para mim...!

         ‑ Não se trata da liberdade, evidentemente ‑ interveio Barbara ‑, nem sequer de liberdade condicional. De momento, ainda que vivas com uma família, continuarás a depender desta escola. Estás a compreender o significado das minhas palavras?

         ‑ Estou ‑ declarou Chris.

         ‑ Terás de te compenetrar de que isso representa uma grande responsabilidade para nós ‑ interveio Cynthia, depois abriu a pasta e tirou um papel, que olhou atentamente. ‑ Há um casal... Johnson, que esteve cá a semana passada. Temos boas informações deles e penso que podem ser a família adequada. Voltarão depois de amanhã e avistar‑se‑ão contigo, Chris. Se se puserem de acordo, poderás ir com eles. Depois veremos.

         Miss Porter fechou a pasta e sorriu formalmente, dando a entender que a entrevista terminara.

         Ao sair para o pátio, o coração de Chris parecia prestes a rebentar. As lágrimas lutavam para lhe correrem pelo rosto, que, no entanto, revelava uma alegria trémula e irreprimível. Olhou para a alta cerca de arame, pensando que dentro em breve estaria do outro lado e a clausura deixou de lhe parecer tão opressiva. E mesmo essa hora triste e vazia do crepúsculo foi para ela risonha e agradável, como um quente amanhecer que se segue a uma longa noite de pesadelos.

Lasko deteve‑se junto da porta do pavilhão e pousou a robusta mão no ombro de Chris, fitando‑a preocupada.

         ‑ Esforça‑te por seres diligente desta vez ‑ advertiu em voz grave. ‑ Se regressares aqui, nunca mais voltarás a sair.

 

Buster Johnson e a esposa, Eileen, chegaram à maturidade acumulando dias e anos sem se darem conta. Ele era gerente de uma importante companhia de seguros e tal facto proporcionava‑lhe, aos cinquenta anos, uma posição cómoda, com a perspectiva de uma luta iminente e impiedosa pela vice‑presidência. Ela pouco mais representava do que a mulher do Senhor Johnson. Uma mulher como tantas outras, de traços harmoniosos mas vulgares, cujo corpo engordara e cujo rosto começava a envelhecer. Os Johnson não tinham filhos. De início, porque teriam representado um estorvo para as contínuas transferências de Buster, na sua qualidade de vendedor. Depois, quando conseguira chegar a chefe de secção e o seu trabalho se estabilizara, porque não era altura para as crianças lhes dificultarem a vida social ou lhes desvastarem a moderna casa dos arredores, que tantos esforços lhes havia custado. Por fim, tinham‑se acostumado a viver sozinhos e o assunto fora pouco a pouco desaparecendo, primeiro, das suas conversas e, depois, dos seus pensamentos.

         Um ano antes, a nova promoção de Buster obrigara‑o a viajar outra vez, a fim de controlar as numerosas sucursais. Eileen, que atravessava com dificuldade o período da menopausa, caiu em crises frequentes de depressão, agravadas por ataques cada vez mais intensos de ciúmes e de manias de abandono. "Coitada, precisa de alguém que lhe faça companhia", pensou o Senhor Johnson.

 

         O luxuoso Pontiac cor de aço parou em frente da garagem de uma linda vivenda de dois pisos, circundada por um jardim amplo e cuidado. Chris, pela janela da parte de trás, observou com olhar inquieto o seu novo lar. Os Johnson recordavam-lhe a Senhora Smithfield e o marido, mas eram, sem dúvida, ainda mais ricos. Naquela manhã, comportaram-se razoavelmente na entrevista, na presença de Cynthia Porter. Mas, depois, durante o percurso de automóvel, limitaram-se a dirigir‑lhe duas ou três palavras. É verdade que também pouco falavam um com o outro, pareciam representar, quase continuamente, para eles próprios, os papéis de marido e mulher. Chris começava já a aborrecer‑se e ainda não tinham entrado em casa.

                   - Anda, Christine - disse-lhe a Senhora Johnson. - Vou dizer‑te onde é o teu quarto.

         A jovem recebeu a maleta das mãos do Senhor Johnson e entrou atrás da mulher. A antessala era quente e luminosa, com móveis baixos de cara singeleza e grandes quadros sem moldura nas paredes. A meio da sala, havia uma lareira de pedra e uma árvore verdadeira crescia a um canto, saindo o tronco por uma abertura praticada no tecto. "Raios!", pensou Chris. "Gostaria de conhecer o tipo que desenhou esta casa!" Decerto não fora o austero Buster Johnson.

         A nova tutora chamou‑a do patamar da escada. No segundo andar havia um vestíbulo para o qual davam várias portas e uma janela de parede a parede que se abria para um terraço de inverno. A copa da árvore estava ali, pairando acima de um pretencioso jogo de cadeirões de ferro pintado. Chris esboçou um gesto de admiração, que foi captado por Eileen.

         ‑ A casa é um pouco invulgar, mas acostumar‑te‑ás a ela ‑ disse.

         ‑ Agrada‑me ‑ afirmou Chris com sinceridade.

         ‑ Também a Buster ‑ informou a mulher em voz neutra. ‑ Foi o irmão dele quem a desenhou.

         Conduziu Chris por umas escadas mais estreitas, até a uma espécie de desvão, dividido em três partes:

um pequeno vestíbulo, uma casa‑de‑banho, também minúscula, e um quarto de tecto inclinado, com a janela quase a rasar o chão.

         ‑ Julgo que poderás ficar aqui à vontade ‑ disse Eileen correndo as cortinas ‑, não é muito grande, mas tem uma certa independência.

         Esta última palavra soou como música aos ouvidos de Chris, enquanto os seus olhos se extasiavam na contemplação da cama fofa estilo marinheiro e dos rústicos e sólidos móveis de madeira clara.

         ‑ Está muito bem, minha senhora. Realmente é perfeito ‑ disse, pousando a maleta na escrivaninha que se encontrava junto à janela, com um gesto de alegre posse.

         ‑ Almoçamos dentro de meia hora ‑ anunciou Eileen ‑, mais tarde, indicar‑te‑ei as tarefas.

         As tarefas de Chris não ficaram muito definidas, e consistiam em dar uma ajuda a Stella, a mulata entrada de carnes que se ocupava da casa e da comida, acompanhar por vezes Eileen às compras e, em geral, estar sempre perto e disponível caso esta precisasse dela. A tarefa realmente pesada estava a cargo de uma mulher robusta e incrivelmente branca e loura, que vinha três horas por manhã e tinha um indecifrável apelido dinamarquês. Stella decidira chamar‑lhe simplesmente Dinamarquesa. A Senhora Johnson e, depois, a própria Chris acabaram por também utilizar essa alcunha.

         Para Chris, os melhores dias eram aqueles em que Eileen saía de manhã sozinha ou ficava na cama, vítima das suas frequentes enxaquecas deprimentes. A jovem podia, então, palrar livremente com Stella na cozinha, participar nos seus jocosos regateios com os fornecedores ou ler as histórias românticas de uma revista sentimental, que a mulher escutava, absorta, de lágrimas nos olhos, sem que as suas mãos incansáveis parassem de trabalhar. Se Stella se encontrava demasiado ocupada, ou mergulhada nos seus próprios problemas, Chris optava por passar o tempo com a Dinamarquesa. Esta, no seu inglês pobre e vacilante, relatava‑lhe uma interminável tragédia familiar de imigração, doença, crise económica, crianças órfãs e homens doidos e embriagados que morriam crivados de dívidas. Chris nunca conseguiu perceber se a protagonista do penoso relato era a própria Dinamarquesa, a mãe dela, qualquer outra parente ou se se tratava apenas de uma antiga novela escandinava.

         Mas o normal era o dia de Chris girar em torno da sombria e vazia vida quotidiana de Eileen Johnson. Esta costumava pedir‑lhe para lhe escovar o cabelo, para a ajudar a vestir‑se ou para ficar simplesmente junto dela, no jardim, enquanto bebia o seu Martini, à espera que o dia findasse de vez. Era uma mulher silenciosa e distante que quase sempre parecia mergulhada numa espécie de devaneio. Em cada duas ou três horas subia ao quarto para descansar e depois reaparecia com outro vestido, embora não esperasse visitas nem o marido estivesse em casa. Chris acabou por se acostumar a estas irregularidades e chegou a pensar que o silêncio da mulher obedecia a uma profunda e um tanto estranha vida interior. Mas, com o decorrer do tempo, começou a suspeitar que Eileen Johnson falava pouco porque não tinha muito para dizer.

         Paulatinamente, também, Chris começou a refugiar‑se no quarto e dentro de si própria, sempre que podia, como contagiada pela atmosfera solitária e nostálgica daquela casa. As semanas iam passando e ela não podia determinar a causa da ligeira angústia que se lhe alojara no peito.

 

                   Querido Tom:

                   O meu novo lar é muito bonito e tenho um quarto e uma casa‑debanho só para mim. A Senhora Johnson é muito boa e não me dá muitas tarefas para fazer. Escrevi à Mãe, mas ainda não respondeu à carta. O que tens sabido dela? Não julgues que esqueci a promessa de um dia vivermos juntos! Trata de fazer que seja depressa, por favor! Não penses que desejo incomodar‑te, mas, aqui, aborreço‑me bastante e tenho muitas saudades de vocês.

                   Um abraço à Janie e ao pequeno Tommy. Tua irmã que te adora, Chris

 

         Quinze dias se passaram até que, uma manhã, Stella se aproximou, sorridente, de Chris, que tomava o pequeno‑almoço na salinha contígua à cozinha, com uma expressão distraída.

         ‑ Correio para ti, Menina! ‑ exclamou a mulata, atirando para cima da mesa um sobrescrito azul‑claro acabado de chegar.

         Chris reconheceu a letra larga e nervosa do irmão, que atravessava diagonalmente o sobrescrito. Pegou nele emocionada e com os dentes rasgou uma das pontas. Depois, introduziu a faca para cortar um dos lados, enquanto cuspia o papelinho mastigado para a chávena vazia. Com esforço, extraiu uma breve missiva, dobrada em três.

 

                   Chrissie:

                   Fico contente por saber que estás bem aí. A Mãe também está boa. Janie e o menino recordam‑te com muito afecto. Beijos, Tom

 

         ‑ Bom, não se pode dizer que esbanje tinta ‑ comentou Stella, lendo por cima da cabeça de Chris.

‑ Mete‑te na tua vida! ‑ exclamou a rapariga, ocultando apressadamente a carta. ‑ A correspondência é privada!

         ‑ Se chamas a isso correspondência... ‑ escarneceu a mulher, encolhendo os ombros e voltando aos seus afazeres.

         No dia seguinte, Buster Johnson regressou de uma das suas contínuas viagens. Pareceu surpreendido por ver Chris, como se tivesse esquecido a sua presença em casa. Mas, depois, mostrou‑se amável com ela e insistiu em ajudá‑la a servir o jantar frio que Stella deixara preparado, pois era a sua noite de folga. Eileen desceu pouco depois, cuidadosamente penteada e maquilhada, envolta num vestido de grandes flores vermelhas sobre um fundo branco que, apesar do indubitável bom corte, parecia um tanto inadequado para a sua idade e corpulência. Não obstante, Buster elogiou o aparato e propôs que comessem os três na varanda, junto do jardim. Eileen reagiu com um gesto quase imperceptível de contrariedade, mas não se opôs, talvez porque não se sentisse com ânimo para iniciar uma discussão.

         ‑ Sabes onde passei o fim‑de‑semana? ‑ perguntou Buster mais tarde, atacando um pedaço de carne assada com molho.

         ‑ Como posso saber? ‑ retorquiu Eileen, desconfiada.

         ‑. Em casa do meu irmão Jack. Ficava‑me a caminho e há que tempos que não visitava aquela súcia de malandros.

         ‑ Como estão? ‑ perguntou ela, com fria polidez.

         ‑ Optimamente! Jack recebeu uma bela soma pelo edifício bancário. Lembras‑te? ‑ Buster agitou o garfo no ar. ‑ Aquele que parecia uma caixa de chapéus achatada.

         ‑ Sim ‑ disse Eileen com um sorriso de circunstância ‑, lembro‑me que nos mostrou os projectos.

         ‑ Pois bom, já está concluído, e até funciona! Jack e Monica gastarão parte da massa num cruzeiro às Caraíbas logo que tiverem convencido Charlie a passar uns dias connosco.

         Chris, que escutava em silêncio, ergueu os olhos e surpreendeu um relancear fugaz da Senhora Johnson na sua direcção.

         ‑ Charlie? ‑ repetiu Eileen numa voz estranhamente aguda. ‑ Parece‑te correcto?

         O marido parou de comer e observou‑a, surpreendido.

         ‑ Correcto? Porque diabo tem de ser correcto? Não é a primeira vez que o meu sobrinho vem passar uma temporada a nossa casa.

         Eileen sentia‑se visivelmente incomodada e lançava, agora, frequentes olhares de soslaio a Chris.

         ‑Digo... ‑ insistiu ‑, porque antigamente estávamos sozinhos.

         O Senhor Johnson franziu o sobrolho e reflectiu uns segundos até que compreendeu o sentido das palavras da esposa.

         ‑ Referes‑te a Chris? ‑ resmungou finalmente e depois riu com gosto: ‑ Vamos, Eileen, não sejas absurda! Charlie é um excelente rapaz e a pobre da Chris também precisa de um pouco de distracção. ‑ Olhou para ambas e, depois, meneou a cabeça, num gesto irónico: ‑ Não deve ser divertido passar aqui o dia contigo.

‑ E tu que o digas! ‑ resmungou a mulher com aspereza.

                   Buster deu um profundo suspiro e abriu ambas as mãos, em sinal de protesto.

                   Falava de Chris ‑ esclareceu. ‑ Penso que a presença de Charlie poderá distraí‑la um pouco.

                   ‑ Distraí‑la? ‑ Os olhos verdes de Eileen lançaram chispas de despeito e a mão tremia‑lhe ao pegar no copo de vinho branco. ‑ Parece que te esqueces de onde ela vem.

                   Chris levantou‑se como impelida por uma mola

                   e teve de fazer um esforço enorme para não esbofetear a mulher. Conseguiu acalmar‑se e com ambas as mãos

                   aferrou‑se aos bordos da mesa. As articulações estavam brancas da força com que se agarrava.

         - Vou levar algumas coisas para a cozinha ‑ balbuciou, e começou a empilhar os pratos com restos de comida.

                   ‑ Ouve, Chris, não fiques assim ‑ suplicou, em tom conciliador, o Senhor Johnson. ‑ Tenho a certeza que Eileen não estava a pensar no que disse. Charlie virá para cá e verás que bem nos daremos todos juntos.

                   O homem rematou a frase com uma palmada familiar no traseiro da rapariga. Involuntariamente, a sua mão deteve‑se na nádega, redonda e suave através do tecido. Chris deu um safanão e uma porção de salada russa caiu da pilha de pratos sobre as calças brancas do Senhor Johnson.

                   ‑ Oh, desculpe! ‑ exclamou a jovem. ‑ Que desastrada fui!

- Não te preocupes - disse Buster, limpando os pedaços de comida com as costas da mão ‑, o desastrado fui eu. Foi sem intenção...

         Interrompeu‑se ao ouvir um seco estalido de vidros partidos. Voltaram‑se ambos na direcção de Eileen. Sorria com um riso histérico, mas a crispação dos seus dedos partira o rebordo do seu copo. Um ténue fio de sangue tingiu de púrpura o pálido resto de vinho.

 

‑ De modo que tu és a famosa Chris ‑ disse Charlie Johnson.

         Sorria, e o seu rosto expansivo e suave de adolescente assomava por entre as traves das escadas, emoldurado pelo cabelo liso e muito preto, que lhe caía até aos ombros.

         ‑ Enganas‑te ‑ replicou Chris ‑, eu sou Stella, a cozinheira.

         Charlie soltou uma gargalhada, que foi como um grito breve, e de um salto aterrou junto dos pés da rapariga que instintivamente encolheu as pernas. Estava sentada num dos cadeirões, a limpar com um pano de flanela a baixela de prata da Senhora Johnson. Charlie chegara na noite anterior, quando ela já se deitara, e talvez não fosse por casualidade que naquela manhã se instalara ali, ao pé das escadas, absorvida numa tarefa desnecessária. O rapaz acocorou‑se ao seu lado, no tapete, e estudou‑a detidamente, com uma simulada gravidade.

         - Não ‑ disse por fim ‑, acho que não és Stella. Ela é gorda, morena e simpática. Tu és magra, branca e tens mau génio. - Fez uma pausa e o seu olhar foi eloquente. - Embora seja obrigado a reconhecer que tens umas pernas estupendas.

         Chris puxou a saia para os joelhos e Sorriu, com desajeitada garridice.

         - Quem te disse que tenho mau génio?

         - Ninguém. Conheço as pessoas. - Charlie assinalou Chris com o dedo. - As trigueiras sardentas de olhos azuis enfadam‑se com muita facilidade, ao passo que as morenas de lábios carnudos costumam ser muito meigas e pacientes.

        - Isso é uma palermice - disse Chris, agastada.

         - Ah, vês que tenho razão? ‑ observou ele.

         - Não estou aborrecida, digo simplesmente que é uma palermice avaliar as pessoas pela cor do cabelo ou dos olhos.

         ‑ Ainda que sejam uns olhos muito bonitos? ‑ perguntou Charlie intencionalmente, de olhar fixo nela.

         Chris corou e baixou a cabeça, lisonjeada e sentindo‑se pouco à vontade. O rapaz inclinou-se para ela e estendeu o braço até conseguir acariciar‑lhe o cabelo.

         - O teu cabelo também é muito bonito ‑ acrescentou, retendo umas madeixas entre os dedos.

         ‑Chris!

         A voz seca e autoritária da Senhora Johnson desabou sobre eles com um tremor de ansiedade. Estava no cimo das escadas, olhando para eles, e fez um esforço visível para se dominar.

‑ Chris ‑ repetiu mais suavemente ‑, fazes o favor de subir e ajudar‑me por um momento?

         ‑ Decerto ‑ respondeu Chris, perturbada, pondo‑se de pé.

         Charlie observou a rapariga com uma incontrolada admiração, enquanto esta subia os degraus. Depois, levantou‑se e ergueu os olhos para a tia.

         ‑ Há quanto tempo nos estavas a espiar, Eileen?

‑ perguntou, com ar velhaco.

         ‑ Não sejas infantil, Charlie ‑ replicou a mulher, em voz desdenhosa. ‑ Não me sinto com ânimo para suportar as tuas palhaçadas.

         Charlie levantou as mãos com as palmas viradas para cima, num cómico gesto de paz. A Senhora Johnson deu meia volta e dirigiu‑se para o seu quarto, seguida por Chris.

         A partir daquele dia, Charlie passou a cortejar alegremente a jovem, apesar da declarada interferência de Eileen Johnson, que achava sempre um motivo para interromper as suas conversas e afastar Chris com uma desculpa trivial. Ele não parecia incomodado, mas antes bem mais divertido com aquela surda oposição da tia. A ponto de Chris começar a interrogar‑se se Charlie procurava falar com ela porque lhe agradava ou simplesmente para aborrecer a dona da casa. Assim, os dias sucediam‑se entre essas escaramuças e Charlie idealizava formas de lhe deixar ternas e cómicas mensagens em sítios inverosímeis ou de lhe declarar o seu afecto a cinco metros de distância, através de mudas e engenhosas pantomimas.

De início, Chris entrou neste jogo sem compromisso de maior, desempenhando o seu papel de donzela afectada e saboreando os ardentes elogios de Charlie, embora sem lhes conceder grande importância. Também ele não parecia levar muito a sério aquelas cenas e pouco tempo depois começou a utilizar o pequeno carro de desporto de Eileen para visitar antigas amizades da vizinhança, embora sem deixar de rondar Chris de vez em quando.

         Uma noite, em que Buster se encontrava em casa, este insistiu para que os quatro compartilhassem de um desses jantares íntimos e ligeiramente formais que gostava de organizar quando regressava das suas viagens. Durante a refeição, Chris surprendeu‑se a escutar, embevecida, as explicações que Charlie dava ao tio sobre os seus estudos de Arte. Ou seguindo, fascinada, os gestos das longas mãos do rapaz. Em determinada altura, o seu olhar cruzou‑se com as pupilas escuras dele e o seu coração teve um sobressalto, enquanto se sentia invadida por uma doce perturbação. "Jesus!", pensou. "Acho que gosto muito mais deste rapaz do que estou disposta a reconhecer!"

         Chris nunca se sentira atraida daquela forma por ninguém e não soube o que fazer com aquele sentimento novo e indomável, que lhe aquecia o ventre e lhe humedecia as palmas das mãos. à sobremesa, Charlie anunciou com uma expressão maliciosa que tinha um compromisso e perguntou a Eileen se podia utilizar o seu carro. Ela assentiu e Charlie despediu‑se do casal. Depois piscou um olho a Chris, com ar de cumplicidade, e com a ponta dos dedos atirou‑lhe um beijo. Chris dirigiu-lhe um sorriso forçado.

         ‑ Não esperem por mim! ‑ gritou Charlie da porta.

‑ É possível que venha tarde.

Chris subiu para o quarto com o peito oprimido por um desassossego inexplicável. Não desejava fazer qualquer das tarefas que reservava para essa altura, antes de se deitar: lavar o cabelo, arrumar a roupa ou ler algum dos best‑sellers que Eileen lhe emprestava depois de os ter folheado. Mas, também, não conseguia estar quieta. Deambulava pelo quarto, sentava‑se por um instante e voltava a levantar‑se, punha‑se à janela, invadida por um formigueiro nervoso nos braços e nas pernas, que a impedia de se descontrair. A expressão risonha e cómica de Charlie, ao despedir‑se nessa noite, voltava‑lhe repetidamente ao pensamento. "Não esperem por mim, voltarei tarde", repetiu Chris em voz alta, com despeito. Sabia muito bem do que se tratava e ele nem se dera ao trabalho de o dissimular.

         Abriu o armário e olhou‑se ao espelho de corpo inteiro que ocupava todo o interior da porta. Estudou‑se, com um nó de angústia a embargar‑lhe a garganta. Então, sorriu penosamente.

         ‑ Chris Parker, estás com ciúmes! ‑ atirou à sua própria imagem.

         Despiu a saia e depois começou a desabotoar lentamente a blusa. O seu corpo jovem e esbelto, quase nu, tremeu imperceptivelmente no cristal. Desapertou o soutien e os mamilos rosados surgiram, inquietos, coroando os seios redondos e firmes. Levantou os braços e virou‑se, para se observar de perfil e depois por trás. "As raparigas sempre disseram que tenho boa figura", pensou de si para si. "Que diria Charlie... " Corou perante a audácia da sua imaginação e baixou os braços. Tirou o pijama do armário e, depois, fechou‑o, ocultando a silhueta que o espelho reflectia.

Deitou‑se e as horas foram decorrendo sem que Chris fosse capaz de Conciliar o sono. Deviam passar das cinco quando Ouviu um estalido metálico e, depois, um ruido abafado, no silêncio da casa. Podia ser a porta da rua. Endireitou‑se, às escuras, e apurou o Ouvido, na expectativa. Passaram‑se alguns segundos e, depois, percebeu uns passos cuidadosos e vacilantes que subiam para o primeiro andar. Era Charlie, não havia dúvida. Escutou o "dique" do interruptor e uma débil faixa de luz esgueirou‑se por baixo da porta. O rapaz devia tê‑la acendido para se dirigir para o quarto, que dava para o vestíbulo superior, no extremo oposto ao dos Johnson. Impulsivamente, Chris pensou em saltar da cama e assomar à pequena escada do desvão; precisava de ver Charlie, talvez trocar duas ou três palavras com ele.

         É possível que o tivesse feito, mas, nessa altura, a voz incerta de Eileen chegou do andar de baixo:

         - Charlie? És tu?

         Houve uma pausa de silêncio, entretanto, em cima, Chris mordia Os lábios.

         - Sim, Eileen. Desculpa ter‑te acordado.

         - Não faz mal, esta noite estou com insónias. Estás bem?

         - Perfeitamente. Precisas de alguma coisa?

         Outra pausa tensa, durante a qual Chris sentiu a tentação de espreitar. Mas não chegou a fazê‑lo.

         - Não, obrigada, Charlie. Vai descansar.

         ‑ Vou já. Boa noite.

         A luz apagou-se e as portas fecharam‑se. Chris aconchegou-se entre Os lençóis. Alegrava-a saber que não era a única a estar acordada quando o jovem Charlie Johnson ia para a paródia. Riu interiormente e sentiu que um sono profundo e atrasado lhe invadia finalmente o corpo. Dormiu até que os primeiros fulgores do dia iluminaram os vidros da janela.

         Stella abriu a porta e entrou como um furacão cantarolante. De passagem, deu uma palmada no traseiro de Chris e afastou as cortinas. A luz jorrou para dentro do quarto, como um gato amimado que tivesse ficado na rua demasiado tempo. Chris pestanejou e virou‑se, a protestar, meio adormecida.

         ‑ Vamos, Menina, hoje não é domingo! ‑ exclamou Stella, alegremente. ‑ Não sei que diabo está hoje a acontecer com toda a gente! São quase dez e ninguém se levantou ainda. Nem os senhores, nem o Menino Charlie, nem sequer tu, minha preguiçosa.

         Chris espreguiçou‑se e sentou‑se na beira da cama, de olhos sonolentos. Com os pés nus procurou as pantufas. Aquela mulher negra vestida de branco olhava‑a, de mãos nas ancas, e toda a sua imponente figura parecia irradiar uma auréola de energia e de solidariedade.

         ‑ Stella, alguma vez estiveste apaixonada?

         A aludida sorriu e, depois, pôs‑se séria e finalmente meneou a cabeça, num gesto de perplexidade.

         ‑ Acaso tenho cara de apaixonada? ‑ bufou.

         Chris teve de fazer um esforço para não rir. Dirigiu‑se até à cadeira e, com gestos lentos, começou a mudar de roupa.

         ‑ Quero dizer..., quando eras nova, como eu ‑ insistiu. ‑ Alguém deve ter‑te agradado de maneira especial...

         A mulher sentou‑se aos pés da cama e deixou que o olhar vagueasse, sorrindo ambiguamente.

‑ Diabo de rapariga ‑ murmurou como de si para si‑, as coisas que pergunta. ‑ Olhou para as mãos grosseiras, marcadas pelo trabalho.‑ Sim, Menina, também tive dezasseis anos, e uma figura melhor que a tua, fica sabendo. Os rapazes da vizinhança andavam atrás de mim. Mas o meu pai afugentava‑os com o seu vozeirão trovejante, mesmo antes de chegarem à porta.

‑ Stella deu uma gargalhada impregnada de nostalgia. ‑ Havia um que nunca me dirigiu, sequer, um olhar, era desse que gostava. Santo Deus! Por ele teria ido até. ao fim do Mundo!

         Chris, já completamente vestida, aproximou‑se de Stella e sentou‑se ao seu lado.

         ‑ E... como te sentias?

         Stella estendeu os lábios grossos e semicerrou os olhos.

         ‑ Bom, tu sabes como é. Julgamos que o coração nos vai saltar do peito e basta estarmos em frente dele para tremermos e suarmos ao mesmo tempo.

         ‑ Era isso que receava ‑ murmurou Chris.

         A mulher suspirou e pôs‑se de pé, apoiando‑se no ombro de Chris.

         ‑ Despacha‑te, Menina ‑ disse apressadamente ‑, lá em baixo espera‑nos muito trabalho. ‑ Depois, como por acaso, acrescentou: ‑ Se fosse a ti, não teria muitas ilusões quanto a Charlie Johnson, é um rapaz encantador, mas tem muitos macaquinhos no sótão.

         ‑ Quem falou de Charlie Johnson? ‑ replicou Chris.

         Uns dias depois, ao entardecer, Eileen anunciou que não se sentia bem. Decidiu subir para repousar um pouco antes de Buster chegar para o jantar. Chris acompanhou‑a até ao quarto, ajudou‑a a tirar os sapatos e massajou-lhe suavemente as têmporas, até que a mulher adormeceu. Depois, cobriu‑a com uma manta de viagem leve. Pela janela, viu a figura esbelta de Charlie, que atravessava o jardim em direcção à garagem.

         Movendo‑se com cautela, Chris apagou o candeeiro quebra‑luz da Senhora Johnson e desceu as escadas em bicos de pés. Stella cabeceava na mesa da cozinha, diante de uma das suas revistas sentimentais. A jovem passou cuidadosamente por trás dela e saiu para o jardim pela porta de serviço. Um curto caminho de pedras, ladeado pela relva, marcava os escassos metros que a separavam da pequena porta lateral da garagem. Chris abriu‑a e desceu os cinco ou seis degraus que a separavam do desnível. Viu Charlie de pé, no meio do piso de betão, iluminado pela luz oblíqua do sol poente que entrava pelas extravagantes clarabóias idealizadas pelo pai.

         Bruscamente, o rapaz moveu um dos braços, como agitando um chicote invisível e ouviu‑se um ruído seco na parede oposta, forrada de grossas vigas de madeira.

         ‑ Que estás a fazer? ‑ perguntou Chris.

         Ele teve um estremecimento de surpresa, mas foi suficientemente hábil para não se virar.

         ‑ Olha para isto ‑ respondeu, indicando um ponto da parede com o seu longo e gracioso dedo indicador.

         Sobre as tábuas rústicas, havia um círculo desenhado a giz e, quase no centro, uma navalha que parecia ainda vibrar com a força do impacto. Chris aproximou‑se, sem se atrever a tocar nela. Charlie sorriu‑lhe, piscou-lhe um olho em ar de camaradagem e extraiu a arma com facilidade.

         ‑ É uma maravilha ‑ disse, passando‑a habilmente de uma mão para a outra. - O meu pai trouxe‑a de Espanha.

         Chris observou aquele objecto esbelto e nervoso com maior interesse. Tinha um punho escuro, adaptá vel à forma de uma mão fechada, e filigranas finas na parte superior da lâmina. Charlie deu uns passos e Virou‑se. Por um momento balanceou a navalha no ar, semicerrou os olhos e, com um movimento fugaz e quase invisível, voltou a cravá‑la a escassos milímetros da marca anterior.

         ‑ Bravo! ‑ exclamou Chris com entusiasmo. ‑ Deixa experimentar.

         ‑ Não é tão fácil como parece ‑ disse, estendendo‑lhe a arma.

         Colocou‑se por trás dela e passando‑lhe uma das mãos pelo ombro, guiou‑lhe o braço com suave segurança. A navalha deu três voltas no ar e cravou‑se na madeira, fora do círculo e um tanto inclinada, mas com firmeza.

         ‑ Consegui! ‑ exclamou Chris, voltando‑se para o rapaz.

         ‑ É um começo excelente.

         Deram‑se então conta de que estavam praticamente abraçados. Lentamente, ele fez descer as mãos pelas costas de Chris, que estremeceu e encostou a cabeça ao ombro do rapaz. Sentia‑se embargada por uma emoção desconhecida e pensou que ia desfalecer. Recordou vagamente as palavras de Josie: "É bom ter alguém que nos qeira... Ainda que acabe mal, vale a pena tentar." Com doçura, Charlie levantou‑lhe o queixo e obrigou‑a a olhá‑lo nos olhos. Estavam serenos e ternos. Sorriu e beijou‑a meigamente na comissura dos lábios. Depois, fez deslizar a boca para a dela. Chris sentiu uma onda de quente prazer que lhe percorria a espinha e fincou as mãos nos ombros de Charlie. Ele entreabriu os lábios e o beijo tornou‑se mais intenso, enquanto ambos deslizavam para o chão, enlaçados. Sem deixar de a beijar, o rapaz libertou uma das mãos e começou‑lhe a acariciar suavemente o corpo, desde os ombros, aflorando‑lhe os seios e deslizando pelas costas até às ancas. Depois, a mão pousou por um instante no joelho e, em seguida, subiu pela coxa, levantando a saia. Chris, mergulhada num prazer inédito e profundo, sentiu que se ateava nela um fogo de desejo e de alarme à medida que a mão dele, sem pressa, ia deslizando. Quando a mão contornou o delicado sulco da virilha e se deteve, tensa, na entreperna, uma espécie de curto‑circuito sacudiu a mente adormecida da rapariga. Mil imagens brutais avassalaram‑lhe o espírito e deu‑se uma explosão de terror irracional que lhe perturbou o corpo. Soltou um guincho estridente e empurrou Charlie com ferocidade, fechando as pernas e virando‑se. Chorosa, convulsa, apoiou‑se contra a parede para se levantar. Depois, olhou para o rapaz, que permanecia sentado no chão.

         Charlie contemplou‑a com uma calma surpreendente.

         ‑ Que diabo se passa contigo? Não ia fazer nada que tu não desejasses.

         Chris respirou fundo e os fantasmas retrocederam no seu espírito, que pouco a pouco foi voltando à realidade.

- Desculpa - murmurou. - Não é nada relacionado contigo.

         Com palavras entrecortadas, relatou aquela brutal experiência sofrida pouco depois de entrar para o reformatório. Charlie escutou-a com um assombro respeitador, Depois, meneou a cabeça e mordeu os lábios, como se não soubesse o que dizer.

         - Santo Deus! - murmurou. - Uma pessoa lê essas coisas nos jOrnais, mas não acredita que aconteçam realmente.

         - Acontecem - disse Chris.

         Ele Pôs‑se de pé, com gestos desastrados e aproximou‑se timidamente dela.

         - Acho que me portei como um bruto.

         Ela hesitou e, depois, estendeu a mão para o rosto Pálido e preocupado de Charlie Johnson.

         - Não - declarou, roçando-lhe a face com as costas da mão. ‑ És um rapaz excepcional e gosto muito de ti. Sou eu que tenho demasiados Problemas.

         Ele animou-se e houve um brilho quente nos seus olhos. Atraiu‑a a si, sorrindo.

         - Como diz o meu pai - sentenciou, - uma rapariga sem problemas é como um automóvel com mudanças automáticas, é mais fácil de conduzir, mas não tem sabor.

         Chris sorriu por entre lágrimas e Charlie pegou-lhe no rosto com ambas as mãos, olhando‑a fixamente.

         - Se te serve de consolo - acrescentou, - para mim também teria sido a primeira vez.

         Ela Olhou‑o incrédula e, depois, ambos se puseram

a rir, abraçando-se com amizade.

A porta automática da garagem abriu‑se com um chiar estridente e os potentes faróis do Pontiac de Buster Johnson surpreenderam o abraço do jovem par. Os faróis permaneceram por uns instantes imóveis, IlUminando a cena, e, depois, avançaram vagarosamente, ofuscando e hipnotizando.

 

Nem naquela noite nem nos dias seguintes, o Senhor Johnson fez qualquer comentário sobre a cena que surprendera na garagem. A vida, em casa, continuou a sua rotina e os jovens evitaram, por uns tempos, encontrar‑se a sós. Buster não mudou de atitude, como se, realmente, não tivesse dado importância ao abraço que presenciara, Ou inclusivamente o tivesse esquecido. Não obstante, Chris reparou que, por vezes, o tutor ficava a olhá‑la, em silêncio, sondando nela algo que era incapaz de definir.

         Cerca de uma semana depois daquele incidente, Buster, num domingo, ficou em casa a trabalhar. à tarde, chamou Charlie ao gabinete luminoso que ocupava a parte traseira do terreno, com grandes janelas que davam para o jardim e para as longínquas colinas azuladas. O homem vestia calções e uma camisa desportiva, embora tivesse passado a maior parte do dia encerrado naquela sala. Quando o rapaz entrou, levantou‑se e serviu generosamente duas doses de Uísque. Estendeu um dos copos a Charlie, sorriu com certo embaraço e acomodou-se por trás da cómoda secretária.

         - Já são horas de beber um trago - comentou com uma jovialidade forçada.

         Charlie não respondeu imediatamente. Bebeu um gole e sentou‑se no baixo peitoril da janela, observando o tio com um olhar de receio.

         - Buster, que tens tu na manga? ‑ perguntou suavemente.

         O Senhor Johnson arqueou as sobrancelhas, simulando surpresa, e pigarreou.

         - Não te percebo.

         - Refiro‑me a toda esta fantochada de nos metermos aqui a beber uísque como se fóssemos dois malditos executivos.

         - Eu Sou um maldito executivo - resmungou Buster, voltando a encher o copo.

         Charlie sorriu a contragosto

         Mas hoje é domingo, e estás com o teu sobrinho favorito, que não passa de um estudante de Arte, com fama de Iiippie.

         - Só queria cavaquear um pouco contigo e tratar da tua partida. - O homem desviou o olhar para a difusa paisagem crepuscular.

         - A minha partida? - exclamou Charlie, desconfiado. - Ainda faltam quinze dias para o regresso dos meus pais.

         Buster encolheu Os ombros, incomodado. Pegou numa lapiseira e Pôs‑se a brincar com ela.

‑ Prometeste visitar também a Tia Clara ‑ argumentou, sem convicção.

         - A ela tanto se dá ‑ afirmou o rapaz ‑ e eu preferia ficar cá, se não te importas.

         ‑ Importo‑me, sim! ‑ exclamou, repentinamente, o homem, de rosto congestionado, depois, suavizou a expressão e começou a bater nervosamente com a lapiseira num monte de papéis. ‑ Olha, Charlie, acontece que Eileen está um pouco abalada dos nervos e..., quando ontem lhe fiz referência àquela cena entre tu e Chris, na garagem...

         Charlie pestanejou e olhou‑o com verdadeira surpresa.

         ‑ Então sempre lhe disseste.

         - Não sei porque lhe havia de ocultar uma simples travessura de garotos ‑ defendeu‑se Buster; depois, teve uma careta de ansiedade. ‑ Porque foi só isso, não é verdade? Uma brincadeira inocente...?

         ‑ Qual é a tua opinião? ‑ inquiriu Charlie, semicerrando os olhos com desconfiança.

         O Senhor Buster começou, então, a apertar a lapiseira, como se a quisesse partir.

         - é difícil. Tenho a melhor opinião de ti e de Chris, como sabes, mas Deus me livre de me meter em complicações... ‑ Interrompeu‑se e fitou o rapaz com olhos implorantes. ‑ compreende, Charlie, Eileen enche‑me a cabeça e eu...

         ‑ Está bem! ‑ suspirou Charlie, arrebatando‑lhe a lapiseira e colocando‑a no sítio. ‑ Posso partir amanhã mesmo, se telefonarmos hoje à Tia Clara.

         Buster manteve‑se de olhos baixos e parecia um tanto surpreendido com a sua vitória inesperada.

- Escuta, Charlie - balbuciou, - não quero que penses que te estamos a pôr na rua, ou qualquer coisa do género..

         - Já te explicaste, Buster - disse o rapaz com frieza, - e comprendi perfeitamente. De maneira que quanto mais depressa resolvermos o assunto melhor.

         Charlie telefonou nessa mesma noite para a Tia Clara, irmã da mãe, mas ela respondeu-lhe que tinha hóspedes até terça‑feira, de forma que a viagem do rapaz ficou adiada por dois dias. Dois dias cheios de tensão silenciosa, dado que toda a gente da casa parecia carrancuda e mal‑humorada. No segundo dia, à tarde, chegaram inesperadamente dois casais amigos dos Johnson. Buster e Eileen foram obrigados a recuperar o ânimo e desempenhar o seu famoso papel de casal afectuoso e bem sucedido, enquanto todos tomavam umas bebidas no jardim. Charlie aproveitou a ocasião para se esgueirar para dentro de casa e introduzir-se furtivamente no quarto de Chris. Esta, sentada junto da janela teve um leve sobressalto ao vê‑lo entrar.

         - Consegui iludir a vigilância - disse, intencionalmente, o rapaz. - Não sei se mais tarde te poderei ver a sós.

         - Tenho pena que sejas obrigado a ir embora - murmurou Chris.

         - Também eu. Mas o velho tio tornou‑se realmente maçador. - Sabes porquê? - o rosto de Charlie iluminou‑se travessamente, enquanto se inclinava para lhe sussurar: ‑ A velha dama tem ciúmes de ti, como a madrasta da Branca de Neve.

         Chris riu e meneou a cabeça, satisfeita.

- Charlie, tu és impossível. Vou sentir muitas saudades de ti.

         O jovem pegou‑lhe nas mãos e observou‑a com atenção.

         - Já te disse que me agradas muito? - Chris fez um gesto afirmativo.

         - Tu também me agradas.

         Charlie voltou a sorrir, no seu jeito apalhaçado.

         - É uma pena, mas a nossa famosa primeira experiência terá de ficar para outra vez.

         ‑ Talvez seja melhor assim - disse Chris.

         Ele encolheu os ombros e fitou‑a atentamente. Rebuscou nos bolsos.

         ‑ Trouxe‑te um presente de despedida.

         E tirou a navalha espanhola, estendendo‑a com a mão levemente trémula.

         Chris observou a arma escura e luxuosa, cuja lâmina estava recolhida na cavidade do punho, dando‑lhe um ar a um tempo inocente e perigoso. Estendeu a mão, tocou‑lhe com a ponta dos dedos, mas não se atreveu a pegar‑lhe.

         - Não deves desfazer‑te dela - afirmou ‑, significa muito para ti.

         Charlie sorriu com tristeza e estendeu‑a um pouco mais para ela.

         ‑ Também tu significas muito para mim, Chris

‑ murmurou, desviando a vista dos olhos brilhantes da rapariga. ‑ Suplico‑te que a conserves. Se o fizeres, sentirei que, de algum modo, continuo a proteger‑te.

         Pegou suavemente na mão de Chris e colocou‑a sobre a arma, que descansava na palma aberta da sua, como se fizesse um juramento. Entreolharam‑se, dessa vez com intensidade.

         ‑ É possível ‑ continuou Charlie em voz rouca

‑ que precises mais dela do que eu.

         E fechou‑lhe os dedos de maneira suave.

         ‑ Não sei manejá‑la ‑ argumentou Chris, já com a navalha em seu poder.

         ‑ Pega nela com firmeza, deixando este lado livre e aperta o botão da ponta.

         Ela fez o que Charlie lhe indicava. Com um estalido seco, a lámina brilhante saltou do seu esconderijo, palpitando na penumbra. Chris sentiu que o latejar das suas veias parecia transmitir‑se, através do seu punho cerrado, à subtil vibração do gume. Invadiu‑a uma contraditória sensação de respeito e de poder pela arma que lhe vibrava na mão, como o cavaleiro que pela primeira vez monta um puro‑sangue. Fascinada, baixou lentamente o braço.

         Charlie, satisfeito, ensinou‑a a fechar a arma e depois instruiu‑a sobre o seu manejo, indicando‑lhe como lançar as duas ou três estocadas fundamentais.

         ‑ É formidável! ‑ exclamou Chris, fendendo o ar.

‑ Prometo‑te que andará sempre comigo.

         O jovem deteve-lhe a mão armada com um gesto terno e beijou‑a rapidamente na boca.

         ‑ Tenho de ir ‑ disse‑lhe. ‑ Não deixes de me procurar, quando puderes sair daqui. ‑ Ela assentiu, com um nó na garganta, enquanto ele assomava pela última vez por trás da porta, apontando para a navalha. ‑ E de cada vez que a enfiares em alguém, lembra‑te de mim.

         De lá de baixo, chegou o som de vozes e exclamações em falsete. Os Johnson despediam‑se dos convidados, acompanhando‑os até aos carros. Charlie dirigiu‑lhe uma última piscadela de olho e escapuliu‑se para o quarto.

         Uns minutos mais tarde, Buster Johnson regressou a casa, soltando um profundo suspiro. Bebeu o resto do uísque de um dos copos e, depois, teve um longo bocejo, cruzando as mãos atrás da nuca. Ouviu o ruído dos saltos altos da mulher, no mármore da entrada.

         ‑ Foi um dia esgotante ‑ disse como de si para si, abafando um bocejo. ‑ Depois de levar Charlie ao aeroporto, espero poder descansar.

         Eileen acendeu um cigarro e retocou o penteado, olhando‑se no espelho circular do vestíbulo. Observou o rosto fatigado do marido, que se reflectia no cristal, por sobre o seu ombro.

         ‑ Realmente tens um aspecto cansado ‑ comentou.

‑ Será melhor eu levar o garoto no meu carro. Far‑me‑á bem tomar um pouco de ar.

         Buster considerou por um momento a ideia e fez um gesto ambíguo.

         ‑ Não acho que seja necessário...

         ‑ Está decidido ‑ interrompeu Eileen, numa amável resolução. ‑ Sabes que se não te sentes bem, não é conveniente conduzires.

         ‑ Já que insistes... ‑ aceitou o Senhor Johnson.

‑ Acho que vou tomar um banho morno e meter‑me depois na cama. Amanhã tenho uma reunião de Direcção e devo mostrar‑me bem disposto.

         Nesse instante, Charlie desceu as escadas, carregando a sua maleta de viagem. Saíram os três para o jardim e Eileen dirigiu‑se à garagem para tirar o carro desportivo. Tio e sobrinho ficaram sozinhos na escuridão, procurando algum tema, trivial e breve, que preenchesse O incómodo tempo de espera. Antes que lhes ocorresse qualquer coisa, a Senhora JOhnson saiu com o carro em marcha atrás e atravessou-o em frente da porta principal da casa. Buster abraçou formalmente Charlie e grunhiu qualquer coisa como "tem cuidado contigo, rapaz". O jovem fez uma leve careta de assentimento e trepou para junto de Eileen. O homem apoiou as mãos na porta e explicou à mulher como havia de chegar ao aeroporto por um desvio, evitando o trânsito intenso da auto‑estrada.

         - E não deixes o pé colado à embraiagem - advertiu, sem necessidade, dado que ela conduzia desde os doze anos.

         Como resposta, O Pequeno carro deu um safanão para a frente, com um bramido, e, depois, entrando em segunda, contornou, resvalando, a curva da vereda, saindo para a rua. Buster meneou a cabeça e franziu desaprovadoramente os lábios, ao mesmo tempo que erguia a mão, num gesto incerto de despedida.

         Fechou à chave a porta principal e certificou-se de que o resto da casa também estava fechada. Eileen levara o porta‑chaves dela e iria demorar umas boas duas horas, de modo que ele já estaria a dormir. Deleitou‑se com a ideia de um prolongado banho com sais relaxantes e pensou que, depois, já na cama, poderia dar uma última vista de olhos pelos apontamentos para a reunião do dia seguinte. Talvez bebesse então um último trago, pensou, enquanto subia as escadas.

         Ia acender a luz do primeiro andar quando viu a ténue faixa dourada que se escoava por baixo da porta do quarto de Chris, em cima, no desvão. Por qualquer razão, veio‑lhe à ideia que o quarto onde Stella dormia ficava afastado, junto da salinha contígua à cozinha, e que tinha o sono muito pesado. "Talvez a garota precise de um pouco de companhia", disse para consigo, "afeiçoou‑se a Charlie e a partida dele deve tê‑la afectado. Ao fim e ao cabo, tenho de me comportar como um pai para com ela. Não haveria nada de mal se subisse a dar‑lhe as boas noites."

         Buster vacilou no primeiro degrau, com um travo amargo a álcool na boca. Esforçou‑se, sinceramente, por afastar do pensamento a súbita imagem de Charlie e Chris, abraçados na garagem, sob a luz crua dos faróis do Pontiac. Desde aquele dia, a cena voltava‑lhe, com nitidez, à mente, várias vezes, embora não fosse capaz de precisar se alguns detalhes eram reais ou imaginários. De repente, agarrado à balaustrada, a memória reviveu o contorno suave das nádegas de Chris, a estremecerem debaixo da sua mão, na noite em que Eileen a insultara de forma tão grosseira. "Realmente", pensou, "não me ocupei como devia dessa rapariga."

         E começou a subir, às escuras, tendo o cuidado de fazer que os degraus não rangessem sob o seu peso.

 

Uma tristeza inquieta e persistente envolveu Chris depois de Charlie ter saído do seu quarto. Mais uma vez, alguém que ela estimava abandonava‑a, talvez para sempre. Enxugou o nariz e sentiu os olhos marejarem‑se, ao pensar que não voltaria a ver o sorriso cordial de Charlie Johnson nem sentiria as doces carícias do rapaz na sua pele solitária, enquanto o terno afecto da voz dele lhe aquecia a alma. A primeira pessoa, à parte do irmão, que ela conseguira amar realmente acabava de sair por aquela porta, descrevendo uma pirueta, e, agora, o discreto e diligente Senhor Johnson devia- estar a levá‑lo ao aeroporto, para que voasse de regresso ao seu mundo distante. Um mundo de mansões luxuosas e estranhas, de cruzeiros no alto mar, de sofisticadas Escolas de Arte, de festas em piscinas, com palmeiras e herdeiras bronzeadas e fúteis, que nunca ouviram falar de um reformatório. Esse mundo do sol e do dinheiro que Stella admirava nas revistas ilustradas. Não tardaria muito que Charlie Johnson esquecesse a rapariguinha ingénua que servira de distracção às suas forçadas e aborrecidas férias em casa dos tios.

         A este pensamento, Chris sentiu uma onda de raiva e de impotência e lançou um pontapé inútil à cadeira, que se deslocou uns centímetros, com um ranger surdo. Aliviada por esse gesto irracional, deu‑se conta de que

o despeito suportava‑se melhor que a tristeza. Mais tranquila, sentou‑se à beira da cama, descalçou‑se e despiu os blue jeans, que atirou, com um golpe, para cima da torturada cadeira. Depois, acendeu o candeeiro pequeno e pousou a navalha em cima da mesa de cabeceira. Subiu para a cama e sentou‑se, cruzando as pernas como um buda. Começou a brincar com a arma, enquanto a mente ia ordenando os bons momentos passados junto de Charlie, para os guardar junto das poucas recordações felizes que a sua jovem existência registava.

         Foi nesse instante que o Senhor Johnson abriu a porta, sem bater. Deteve‑se, titubeante, no umbral, de semblante desfigurado e os olhos cravados com insistência nas coxas, redondas e nuas, cuja brancura ressaltava sobre o azul‑marinho da manta.

         - O que se passa? - perguntou Chris, sinceramente admirada.

         Buster fez um esforço e desviou o olhar, para encontrar os olhos redondos e confiantes da rapariga, que pestanejou, com uma sombra de inquietação.

         - Desculpa, Chris - balbuciou. ‑ Eileen foi levar Charlie ao aeroporto e... pensei que podias precisar de alguma coisa..

‑ É muito amável, Senhor Johnson ‑ respondeu em voz formal ‑, mas acho que não preciso de nada. Obrigada.

         ‑ Bom, na verdade.., eu... ‑ insistiu o homem

- estive a pensar que temos poucas ocasiões para falar e, ao fim e ao cabo, consideram‑me o teu tutor...

        Fechou a porta atrás de si e deu dois ou três passos em direcção a Chris. Ela, com um gesto instintivo,

apertou o objecto que tinha na mão e fez saltar a brilhante lâmina de aço. Buster deu um safanão ao corpo

e recuou, apontando para o gume afiado que a mão

distraída da rapariga lhe apontava.

         ‑O que.. o que tens aí?

         ‑ Oh ‑ disse ela ‑, é apenas uma navalha que Charlie me deu de presente.

         O seu punho moveu‑se lentamente, seguindo os movimentos do homem.

         ‑ Apenas uma navalha? ‑ replicou ele, tentando recuperar a calma. ‑ Pode ser uma arma perigosa. Ensinas‑me como se maneja.

         Chris encolheu os ombros e mal afrouxou os dedos, que se cravavam no cabo, mantendo‑o, no entanto, a uma distância prudente do visitante.

         ‑ Não tem nada de especial ‑ começou, fazendo oscilar levemente a mão.

         Buster olhou para a arma como hipnotizado, enquanto estendia disfarçadamente um dos pés, fazendo‑o deslizar pelo chão. Depois, apoiou nele todo o peso do corpo e, inclinando‑se para a frente, bateu com a quina da mão no antebraço de Chris. Era um estratagema que aprendera no Exército, na Coreia. Dorida, ela abriu a mão e a navalha saltou no ar, indo cair junto da janela.

         O homem virou‑se para a apanhar, ao mesmo tempo que Chris dava um salto desesperado da cama e se arrastava, de joelhos, para a arma. Buster deteve‑a com um dos braços e, com o outro, ergueu a navalha por cima da cabeça. A rapariga agarrou‑se à camisa dele e conseguiu levantar‑se, lutando por alcançá‑la. Por uns momentos, forcejaram denodadamente, em silêncio. Mas Buster, apenas com um braço, conseguia conter os ímpetos da rapariga.

         - Dê‑me isso - suplicou Chris ‑, é minha.

         Buster rodeou‑lhe a cintura e manteve‑a imobilizada contra o corpo, enquanto colocava a arma na prateleira mais alta da pequena estante. Chris fez um esforço violento e libertou‑se dele, tentando alcançar a navalha. Mas Buster prendeu‑a pelas costas e, girando sobre si mesmo, afastou‑a do seu objectivo.

         - Paremos com esta brincadeira, pequena - balbuciou ‑ podes‑te magoar.

         Chris retorceu‑se nos seus braços e, talvez involuntariamente, as mãos dele foram subindo até lhe rodearem os seios. Ambos souberam então do que se tratava. Ela, invadida por uma aguda sensação de asco e de terror, deixou por um instante de resistir. Buster, a tremer, desabotoou um botão da blusa e procurou desapertar o soutien, com gestos desastrados. Chris reagiu baixando a cabeça e cravando‑lhe os dentes no pulso, com todas as forças. O homem soltou um uivo rouco. Levantou a rapariga no ar e arrastou‑a para a cama. Ela caiu de bruços, indefesa, sentindo o peso dele sobre as costas, as nádegas e as coxas entreabertas.

‑ Verás agora, putazinha de reformatório - resfolegou ao seu ouvido ‑, que o Tio Buster te vai dar o que andas à procura e muito melhor do que esse maricas do Charlie. Ou pensas que não me dei conta das porcarias que faziam na garagem?

         Soergueu‑se, apoiando‑se numa das mãos, e tentou fazer deslizar a outra por baixo do peito de Chris. Mas ela aproveitou essa ocasião para deitar um dos braços para trás. às cegas, agarrou num punhado de cabelos, puxando‑os com desespero. Ouviu um gemido de dor e Buster resvalou para o lado, libertando‑a parcialmente. Chris girou sobre a manta e começou a esbofeteá‑lo e a dar‑lhe pontapés, tentando atirá‑lo para fora da cama. Mas apenas conseguiu excitar ainda mais o alterado Senhor Johnson, que sorria com ferocidade e se defendia habilmente do ataque da jovem, aguardando que ficasse esgotada. Um dos inúteis socos de Chris embateu no candeeiro, que caiu da mesinha de cabeceira e se apagou, com um estalido abafado. Só o pálido luar iluminava agora os dois corpos que lutavam na penumbra. Finalmente, o homem conseguiu enganchar‑se no ventre da rapariga e começou a dar-lhe socos no rosto e na cabeça com uma força calculada.

Debilitada, sentiu que a consciência lhe fugia, enquanto umas vozes confusas lhe gritavam aos ouvidos e antigas imagens de dor e de humilhação lhe rodopiavam no cérebro enervado. Percebeu, como num sonho, que alguém a despia e que uma boca febril lhe percorria o pescoço, os ombros e os seios. Tentou desenvencilhar‑se, mas os seus músculos pareciam de algodão e era outra vez o braço rude de Jax que a impedia de se mover, enquanto Moco lhe maniatava os pulsos, grunhindo como uma fera. Outras mãos nervosas percorriam‑lhe agora as ancas, lutando com o elástico das calcinhas. O tecido quente da manta transformou-se no frio chão dos chuveiros e já não sabia se o que estava a acontecer era um pesadelo atroz, que recordava o vexame do passado, ou um facto novo que desapiedada mente o repetia. Num esforço supremo, abriu OS Olhos e o rosto excitado e suado de Buster Johnson sumiu‑se numa nuvem, para encarnar as feições Crueis e doen tias de Denny. "Eh.!", murmurou uma Voz cava e fantasmagórica: "Quero apresentar-te a JOhny!" Os azulejos começaram a rodopiar, enlouquecidos, aos clarões da Lua, enquanto uma força irresistível lhe afastava de novo os joelhos. Mais uma Vez, o peso lhe asfixiava o corpo e um violento furor queimava-lhe o ventre, com frenesim, até desmaiar..

         Ouviu o estertor do Senhor Johnson junto ao pescoço. "Está bem, agora basta", ordenou Moco secamente, do fundo da sua lacerada memória. Manteve os olhos fechados, até sentir que o homem se levantava pesadamente. Escutou alguns ruídos furtivos e, depois, a porta a fechar‑se, com um chiar abafado. Recuperava a lucidez, mas o corpo era uma massa informe e distante, que latejava de dor e de humilhação. Passado muito tempo, abriu os olhos. Na escuridão, um fulgor da Lua despertava a alma metálica da navalha.

 

Oprimida de dor e de ódio, Chris permaneceu sobre a cama, sem se atrever a esboçar um único movimento nem a olhar para o corpo magoado e dorido. Com os olhos fixos no tecto, cujas vigas escuras e oblíquas traçavam um leque impreciso por cima da sua cabeça, deixou que a dor e a raiva aos poucos se aplacassem. Vagamente, foi compreendendo o que lhe acabara de suceder. Mas a mente negava‑se a aceitar a dura e sórdida palavra que o qualificava: violação.

Passou‑se mais de uma hora quando, finalmente, se levantou. Entumescida e em passos inseguros, dirigiu‑se à casa‑de‑banho. Em frente do pequeno espelho rectangular, compadeceu‑se do seu rosto inchado e violáceo. Tinha um hematoma no pômulo esquerdo, que lhe semicerrava o olho, e uma mancha arroxeada do outro lado, em torno das pálpebras. Mal aflorou a zona tumefacta, teve de reprimir um grito de dor. O lábio inferior, tambem um tanto inchado, mostrava uma ferida vertical, coberta de sangue coagulado. O Senhor Johnson fizera um belo trabalho, não havia dúvida, e Chris desejou que o rosto conservasse aquele aspecto, quando comparecesse diante do juiz, depois de ter assassinado Buster. Consolada com este pensamento, abriu a torneira do chuveiro e meteu‑se bruscamente debaixo da água fria, que lhe atenuou o sofrimento do corpo. Um tanto mais descontraída, lavou‑se cuidadosamente e voltou para o quarto.

         Vestiu uma blusa ligeira de malha branca e os seus velhos blue jeans azuis. Depois, calçou os gastos sapatos de ténis. Fez‑lhe bem sentir‑se limpa e vestida. A sua mente, mais desanuviada, dissipou os últimos vestígios de fadiga e de perturbação. Respirou fundo, de pé, em frente da janela aberta, e interrogou‑se se ia realmente matar Buster Johnson. "Pelo menos vou tentar", decidiu, "se o não fizer, nunca mais me poderei ver ao espelho. É o menos que esse porco merece." Aproximou‑se da estante, pegou na navalha, que estava ainda pousada na prateleira superior, e meteu‑a no bolso.

         A porta do quarto dos Johnsons encontrava‑se entreaberta, deixando escapar um fio de luz pardacenta. Chris empurrou‑a suavemente com o pé. Buster estava estendido de bruços em cima da cama, com o cabelo em desalinho e um braço pendendo para o chão. Estava sozinho. Talvez o avião de Charlie se tivesse atrasado e Eileen ficasse no aeroporto, a fazer‑lhe companhia. No tapete, perto da mesinha de cabeceira, brilhava uma garrafa de uísque meio vazia. O homem tinha o dorso nu, mas conservava as calças e as peúgas. A camisa, que Chris recordou ter rasgado durante a luta, fora atirada para um canto, feita um molho. O rosto inchado de Buster descansava de lado, sobre a almofada, penado de finas gotas de suor. De vez em quando, emitia uma série de roncos baixos e descompassados. Sem dúvida dormia profundamente. Chris observou‑o com atenção durante uns momentos e, depois, enchendo‑se de coragem, deu alguns passos pelo quarto. As finas cortinas de cor creme ondulavam suavemente, impelidas por uma brisa súbita. A jovem calculou que não seria difícil aproximar‑se um pouco mais do corpo estendido e, utilizando ambas as mãos, mergulhar uma e outra vez a lâmina da navalha nas amplas costas balofas que se ofereciam como um alvo fácil e indefeso. Imaginou o sangue a brotar e a escorrer pelos flancos, empapando os lençóis e o grito assombrado e tardio de Buster, que só acordaria para morrer.

         Dirigiu a mão para o bolso e apalpou a arma, como a adverti-la de que em breve entraria em acção. Deu mais um passo em direcção à cama, mas, nessa altura, ressoaram‑lhe inesperadamente à memória as palavras de Lasko: "Se regressares para aqui, nunca mais voltarás a sair." Deteve‑se, estonteada, e, pouco a pouco, foi compreendendo que apunhalar Buster Johnson não remediaria o vexame que lhe infligira e, decerto, significaria uma nova e prolongada reclusão. Hesitou, imóvel, no meio do quarto silencioso. A sua mão deteve‑se e caiu ao longo do corpo. Soube que não o faria e essa certeza produziu um misto de alívio e de desalento. Nessa altura, o homem soltou uma espécie de gemido e, em sonhos, virou‑se na cama, ficando agora de barriga para cima. Instintivamente, Chris retesou o corpo. Observou o rosto desprevenido e grosseiro do tutor. Mais abaixo, o sítio onde batia o coração que ela planeara atravessar com um único gesto. Agora, seria até mais fácil. Partindo do mamilo esquerdo, cinco centímetros mais abaixo e até ao centro; a arma penetraria assim por entre as costelas e o esterno, atingindo em cheio o órgão vital. A punhalada teria de ser firme e seca, com a lâmina apontada para cima, num ângulo de cerca de trinta graus. Explicara‑lho uma vez alguém, ou lera‑o, possivelmente.

         Por um instante, vacilou e a tentação detestável do crime açoitou‑a como uma rajada gelada. Todo o seu corpo foi sacudido por um estremecimento. Não podia desviar os olhos do círculo imaginário traçado no peito branco da vítima, que subia e descia ritmicamente, seguindo o arquejar penoso do ventre. A oportunidade estava demasiado à vista e Chris compreendeu que nunca o poderia fazer dessa forma, a sangue frio, mesmo se estivesse certa de sair totalmente impune. Soltou um suspiro e dirigiu‑se para a porta, olhando uma última vez para o brutal agressor, agora tão desprotegido. "Teria sido diferente se a arma se encontrasse em cima daquela cama, enquanto ele me espancava", pensou. E contornou a porta.

         Sem acender as luzes, desceu ao rés‑do‑chão e, às apalpadelas, procurou o corredor que ia dar ao isolado escritório do Senhor Johnson. A porta não tinha chave e o fecho cedeu à ligeira pressão da mão da rapariga, quase sem fazer ruído. A luz esbranquiçada da noite entrava pelas amplas janelas, imprimindo à sala o aspecto fantasmagórico de um palco abandonado, depois do espectáculo. Chris avançou até ao meio da espaçosa divisão. Depois, com passos cautelosos, aproximou‑se da mesa e sentou‑se no macio cadeirão giratório. Este balançou‑se com um ranger agudo, que pareceu ecoar pelo profundo silêncio. A jovem, paralisada, esperou ver acender‑se alguma luz na casa ou ouvir ruídos alarmantes no andar de cima. Mas nada disto se passou. Pelo que parecia, Buster continuava a curtir a bebedeira e Eileen a demorar. Chris, sentindo um pungente receio, calculou que a mulher e Charlie haviam partido há mais de três horas. Imaginou ambos parados junto à estrada, devido a uma providencial falha no motor, acariciando‑se confusamente, enquanto o avião partia sem o rapaz para a terra de ninguém. Sabia agora como faziam os Johnson quando se tratava de seduzir menores.

         Uma onda de vergonha e de raiva espalhou‑se‑lhe pelo rosto ao relembrar a cena recente e bestial ocorrida no seu quarto. Febrilmente, pegou nos arrumados papéis que Buster preparara para a reunião da manhã seguinte e, com gestos nervosos rasgou‑os um a um, até juncar o chão de inúteis pedacinhos esbranquiçados. Depois, estimulada pela sua própria cólera, revolveu as gavetas da secretária, atirando ao chão o conteúdo e rasgando pastas de cartão, sobrescritos, apontamentos e folhas, cujos pedaços se foram acumulando aos seus pés, como a folhagem de um Outono intempestivo. Desvairada, pôs‑se de pé e repetiu a operação com o armário‑arquivo que se encontrava junto da porta, cujas fichas e documentos amachucou e rasgou repetidamente. Por fim, destruiu a estante onde Buster guardava os seus livros de consulta.

         Alagada em suor, de pé, no meio daquele caos subreptício e feroz, Chris apercebeu‑se do doce alívio da vingança. O seu rosto irradiava uma espécie de agitado contentamento. Buster não iria acordar com um punhal cravado no peito, mas talvez o tivesse preferido. Sorriu, imaginando a cara do homem, ao ver aquela destruição e, nessa altura, avistou, na secretária, um pequeno sobrescrito azul, debaixo de um pisa‑papéis de ónix, que sobrevivera milagrosamente à sua fúria. Já serena, pegou‑lhe, e puxou com parcimónia as cinco notas de dez dólares que continha. Para ela, era quase uma fortuna.

         Voltou de novo a subir, correu imprudentemente, sem se preocupar com o barulho que fazia. No quarto de dormir principal tudo se mantinha na mesma, quando espreitou rapidamente, a fim de se certificar. Buster encontrava‑se ainda estirado de barriga para cima, ignorando que escapara por um triz de ser assassinado. Chris, em três saltos, subiu as escadas do desvão. Tinha de se apressar, se queria fugir antes do regresso de Eileen. Depois do que acontecera e da confusão que armara no escritório, não lhe restava outra alternativa. Os cinquenta dólares seriam suficientes para chegar à cidade onde Tom vivia e, até, para comer qualquer coisa pelo caminho. Sorriu perante a antecipação feliz da liberdade iminente. Tom protegê‑la‑ia, sem dúvida, e denunciaria o vândalo atentado do Senhor Johnson contra a irmã. Aquele animal balofo iria ver o que era viver enjaulado! Alegremente, Chris reuniu os poucos pertences e enfiou‑os ao acaso na maleta. Depois, dobrou meticulosamente as cinco notas e fê‑las deslizar pelo peito, ocultando‑as entre a pele e o soutiã. Por fim, certificou‑se de que a navalha estava bem enfiada no bolso traseiro, sem perigo de cair, mas ao alcance da mão. Apagou a luz e saiu, disposta a executar a parte mais difícil do seu plano.

         Mais uma vez, empurrou cuidadosamente a porta e caminhou com cautela pelo tapete até à ampla cama do casal. Buster, em sonhos, mexera‑se. Repousava agora de borco, com as pernas encolhidas, como um feto gigantesco e embriagado. Se as chaves dele estivessem no bolso das calças, seria quase impossível tirá-las sem o acordar. Chris deteve‑se a escassos centímetros do homem adormecido e olhou em torno de si. Deu um abafo suspiro de alívio ao ver o porta‑chaves sobre o vidro biselado que cobria o toucador de Eileen, entre as escovas, pós e boiões de cosméticos. Com dois dedos, pegou na delicada corrente de prata e as chaves tilintaram antes de lhe deslizarem para a mão. O Senhor Johnson emitiu um grunhido. Virou‑se, sobressaltada, e ocultou‑se parcialmente atrás das cortinas. Buster abriu os olhos e o seu olhar vagueou, incerto, pelo quarto. Chris esperou, tensa, apertando o cabo da arma através do tecido dos blue jeans. Mas o homem virou‑se para o outro lado, murmurou qualquer coisa ininteligível e continuou a dormir.

         Desceu, como um raio, até ao vestíbulo, pousou a maleta no chão e começou a escolher, com mão trémula, a chave que abria a porta da rua. Um único gesto, uns segundos apenas, a separavam da liberdade.

         Finalmente, reconheceu a base rectangular da chave adequada, percorrendo‑lhe a borda com os dedos. Nesse momento, ouviu o ruído de um motor. Uma luz esbranquiçada varreu horizontalmente a penumbra da casa, através das janelas. Chris espiou pela vigia da porta e viu o carro de Eileen com os máximos acesos que contornava impetuosamente a curva do jardim. As luzes escapuliram-se pelo outro extremo da sala e, agora, iluminavam, imóveis, a silhueta rústica da garagem.

         Enquanto subia, Chris compreendeu, angustiada, que tivera tempo de escapar, enquanto Eileen metia o carro na garagem. Mas um cego instinto infantil fizera‑a a correr para o seu único e seguro refúgio, o desvão. Agora era tarde e estava encurralada. Ouviu a mulher entrar em casa e acender as luzes. Demorou-se em baixo, sem dúvida para beber um trago e, depois, Chris reconheceu nitidamente Os passos dela pelas escadas. Disse para consigo que com um pouco de sorte, podia esperar que a Senhora Johnson se deitasse, para reiniciar o plano de fuga. Sim, talvez fosse melhor esperar.

- Chris? Estás acordada? - A voz de Eileen chegou do patamar, ameaçando-lhe as esperanças.

         Chris conteve a respiração.

         Tomada por um terror repentino e premente, inclinou‑se para a janela. Uns cinco metros separavam-na da relva tratada do jardim, que se espraiava, como um manto escuro, decorado pelo brilho lácteo das pedras.

         - Chris? - insistiu a voz, com uma entoação de ansiedade.

         Pareceu‑lhe ouvir um leve ruído de passos na escada. Atirou a maleta pela janela e viu‑a mergulhar nas trevas da noite. Depois, sem pensar duas vezes, arrojou-se para o vácuo.

         Por um instante, foi como um pássaro assustado.

 

Perante os sinais de Chris, a camioneta municipal do lixo deteve‑se, com um resfolegar abafado. O condutor assomou a cabeça pela janela da cabina. Era um homem de cabelo grisalho e rosto sonolento. Vestia um coçado uniforme cinzento e mascava energicamente pastilha elástica. Ouviu a pergunta que ela fez, enquanto a observava de alto a baixo, cofiando o queixo. Levou tempo a responder e Chris passou mentalmente em revista o seu próprio aspecto. Uma rapariga com o rosto inchado e de sapatos enlameados devia tornar‑se suspeita àquelas horas da noite.

         Finalmente, o homem estendeu o braço direito, apontando para o fundo da rua.

‑ Segue pela avenida até chegares àquele posto de gasolina ‑ explicou. ‑ Estás a vê‑lo? Tem umas luzes verdes de néon. ‑ Chris assentiu com um gesto enérgico. ‑ Bem, ali, viras à esquerda, duas ruas mais abaixo, verás a paragem do autocarro. As bilheteiras ficam dentro do edifício, junto ao bar.

         ‑ Obrigada - disse Chris ‑, foi muito amável.

         Deu dois ou três passos, coxeando. Torcera um tornozelo no salto que dera da janela do desvão e doía‑lhe atrozmente de cada vez que fazia força no pé. Mas se chegara até ali, disse para consigo, não iria desistir no escasso trecho que ainda lhe faltava percorrer.

         ‑ Eh, rapariga! ‑ Chris virou‑se lentamente, o condutor da camioneta do lixo observava‑a, de mãos na cintura. ‑ Não terás tu fugido de algum sítio, hen!

         ‑ E se tivesse fugido?

         A voz de Chris deixou transparecer um tremor de desafio.

         O homem semicerrou os olhos, mordeu os lábios e, depois, encolheu os ombros.

         ‑ Vê se não te apanham ‑ disse, com um sorriso inesperado.

         Moveu uma das alavancas que se encontravam junto dos pés e acenou‑lhe um gesto de despedida. O veículo cor de laranja começou a vibrar e deslizou lentamente para diante, enquanto as suas escovas enormes gritavam pelo asfalto. Quando o carro passou em frente dela, resfolegando, Chris ergueu a mão para saudar o condutor. A rapariga viu‑o afastar‑se e meneou a cabeça. Ao fim e ao cabo, pensou, nem toda a gente era uma merda.

         Coxeando resolutamente, foi pela avenida abaixo e percorreu uns quatrocentos metros, não fazendo caso das pungentes alfinetadas do pé magoado e da cãibra dolorosa que lhe atenazava os ombros, por mais que mudasse a maleta de uma mão para a outra. Deteve‑se por baixo da luz esverdeada do posto de gasolina, que se encontrava praticamente deserto. Espreitou para o interior do escritório envidraçado e viu apenas um empregado, que dormitava por trás do balcão, entre latas de lubrificantes e peças mecânicas.

Numa das partes laterais do edifício, brilhava um

        cartaz branco, com uma figurinha de mulher em preto. Chris passou junto do escuro posto de gasolina e meteu‑se na casa‑de‑banho. Correu o ferrolho, enquanto dava

        um suspiro de alívio, e pousou a maleta no chão, junto da porta. Sobre um armário revestido de plástico, havia uma pilha de toalhas lavadas, vários pentes e pedaços de sabão. Possivelmente, a empregada deixara já tudo preparado para a manhã seguinte. Chris depositou umas moedas no pratinho, escolheu uma toalha branca e um pedaço de sabão de lavanda. Lavou‑se cuidadosamente, compôs as roupas e penteou‑se com esmero. Ao olhar‑se no espelho, verificou que o seu aspecto já não era tão lamentável e parecia até bonita, com o cabelo repuxado para cima da nuca. Limpou o melhor que pôde os sapatos enlameados, retirando a lama com as costas do pente e escovando‑os em seguida com uma pequena escova de unhas. Depois, rasgou em duas uma toalha e com ela ligou o tornozelo lesionado, que tinha começado a inchar. Reanimada por estes cuidados, sorriu para a sua imagem reflectida no espelho e voltou a empreender o seu caminho.

         O homem da bilheteira tinha cara de cão espancado e olhos avermelhados de sono. Olhou com inquietação para o rosto desfigurado de Chris, mas optou por lhe estender o bilhete, sem fazer perguntas. Ela comprendeu que se queria concluir com êxito o seu plano, não podia continuar a mostrar às pessoas que acabara de ser violada. No amplo vestíbulo do terminal, havia um quiosque onde vendiam tabaco e acessórios de viagem. Comprou uns óculos, que lhe ocultavam metade da cara. Estes ir‑lhe‑iam permitir esconder as marcas da tareia de Buster Johnson. Decidiu comprovar a eficácia do seu novo aspecto diante da empregada do bar, uma loura chocarreira e opulenta que pavoneava os grandes seios diante dos olhos sonolentos, mas ávidos, de dois ou três clientes que a essa hora se apoiavam ao balcão, esperando que a noite acabasse. A mulher atendeu Chris com naturalidade, sem sequer olhar‑lhe duas vezes para a cara, e continuou a gracejar com os clientes. Satisfeita, a jovem devorou a ressequida sanduíche de queijo com presunto e bebeu lentamente a Coca‑Cola. Depois, já convencida da eficácia da sua camuflagem, sentou‑se num dos cadeirões alinhados contra a parede, para uso dos passageiros Faltava mais de uma hora para a partida do autocarro, mas julgava que não iria dormir. Tirou da maleta a pequena agenda pessoal e folheou‑a ao acaso. Tinha apenas três direcções anotadas: a de Tom Parker, o irmão, a de Charlie Johnson e a do clube nocturno onde Josie trabalhava, no Nevada. Disse para consigo que uma vez que Tom lhe normalizasse a situação e ficasse legalmente livre, procuraria Charlie e talvez fossem juntos visitar Josie. Com uma sombra de remorso, recordou a si própria que no itinerário deveria incluir o albergue onde a mãe estava internada. As pálpebras cerraram‑se‑lhe sobre a divagação destas imagens felizes e errantes e um torpor de cansaço inclinou‑lhe a cabeça sobre o peito, mergulhando-a numa suave modorra.

 

O sargento Jonas Mansfield deixou que o telefone tocasse várias vezes antes de levantar o auscultador com um gesto displicente.

         ‑ Aqui esquadra da Polícia, sargento Mansfield

‑ recitou. ‑ Quem...? Buster Johnson...? Ah, sim, Senhor Johnson, lembro‑me perfeitamente do senhor. Como está? Como..? O que se passou? Na sua casa...? ‑ O sargento pegou num lápis e anotou qualquer coisa na agenda. ‑Sim... É o que acontece com essas galdérias do reformatório. Não nos podemos fiar... Sim, senhor, devia ter sido mais prudente... Como...! Bateu a asa com quinhentos dólares..! Com uma navalha? Tem sorte em estar vivo, Senhor Johnson! Sabe se ela ainda a traz...? Bom, vamos lá ocupar‑nos do assunto. Dê‑me o nome da rapariga e descreva‑a o melhor que puder. ‑ O polícia voltou a tomar nota, com a língua entre os dentes. ‑ Já chega, Senhor Johnson, em breve terá notícias nossas... É assim mesmo, Senhor Johnson, é o que estou sempre a dizer à minha senhora, uma geração sem moral, não há maneira de os entender... Isso mesmo... Como? Não, não será necessário, não se preocupe. Passaremos por aí para legalizar a denúncia. A que horas lhe convém.? Perfeitamente. Ah, e não toque em nada dos danos que essa galdéria provocou no seu escritório, é possível que tiremos umas fotografias. O senhor sabe, o roubo com destruição tem sempre uma sentença mais severa.

         ‑ De que se trata? ‑ perguntou o agente Simmons, balouçando‑se nos calcanhares.

         ‑ Johnson ‑ resmungou Mansfield ‑, o vice-presidente da cooperativa polícial do Distrito. Tinha adoptado uma rapariga do reformatório para ajudar a esposa e ontem à noite, ao ficar sozinha, pôs a casa do avesso. Fez estragos no escritório, sem mais nem menos, e escapou‑se com quinhentos dólares.

         - Talvez estivesse drogada ‑ alvitrou Simmons.

         - Tu sabes como gostam disso.

         - É uma ideia - aceitou o sargento - revistaremos, depois, o quarto dela. Entretanto, teremos de controlar os autocarros e comboios que saírem da cidade. Avisa também a patrulha das estradas. Se ela nos escapar, teremos problemas com o delegado.

         - Esses ricalhaços são assim ‑ comentou o outro ‑, para economizarem uns dólares, metem em casa uma presidiária.

         ‑ E depois somos nós que temos de fazer o trabalho sujo ‑ sentenciou Mansfield.

 

         O altifalante encostado à parede anunciou em voz discreta a saída do próximo autocarro. Chris emergiu da sua modorra, tirou o pé magoado de cima da maleta e levantou‑se, entorpecida. Uma dúzia de passageiros comprimia‑se na plataforma, debaixo do sol indeciso da manhã. Chris saiu para o exterior e permaneceu um pouco afastada. Esperava que os outros subissem primeiro, quando as portas do veículo se abrissem, a fim de não chamar a atenção.

         ‑ Diz‑me, filha, é este o autocarro que vai para o Oeste?

         A velhota contemplava‑a com ar ansioso e desconcertado, carregando dois grandes sacos de viagem. Não devia ter menos de setenta anos e o seu rosto enérgico balanceava‑se imperceptivelmente, como é frequente nos anciãos.

         ‑ Sim, minha senhora, é este. Deixe que a ajude.

         Chris, com a mão livre, pegou num dos sacos e a mulher agradeceu‑lhe com um sorriso de aprovação.

         ‑ Deveria haver carregadores num sítio destes, mas não há ‑ lamentou‑se.

         Chris fez‑lhe um gesto de cumplicidade e colocaram‑se ambas no fim da bicha. Dois homens de calças e camisa azuis subiram para o autocarro vazio, parado junto da plataforma. Enquanto um se sentava ao volante e punha o motor a trabalhar, o outro instalava‑se ao pé da porta. Os passageiros, que eram cerca de vinte, começaram a subir um a um, mostrando os bilhetes ao que fazia de revisor.

         ‑ Vou visitar a minha neta ‑ informou a velhota a Chris ‑, faço‑o sempre nesta altura do ano.

         A jovem não lhe respondeu. Hipnotizada de terror, olhava para o carro‑patrulha que dava a volta pelo amplo parque de estacionamento contíguo e se detinha a uns metros do sítio onde se encontravam. Um polícia de aspecto temível e andar resoluto, dirigiu‑se para o autocarro e murmurou qualquer coisa ao ouvido do homem que controlava os bilhetes. Este negou primeiro e, depois, assentiu com movimentos sucessivos de cabeça, sem interromper o seu trabalho. O guarda subiu os degraus e passeou o olhar pelo grupo de passageiros. Deteve‑se, alerta, quando chegou a Chris. Esta adivinhou a feroz ansiedade do caçador diante da presa, esboçada no fino sorriso do homem, por baixo dos óculos escuros. Que fazer? Já era tarde para tentar a fuga e não lhe ocorria qualquer desculpa convincente.

Sem deixar de olhar para ela nem de sorrir, o polícia avançou

         - Apostaria O dobro do dinheiro que tenho em como

o teu nome é Christine Parker - declarou, cravando os Polegares no cinturão e balançando‑se sobre as botas, como um xerife de cinema. - O sargento Mansfield vai gostar de ter uma conversazinha contigo.

         Chris ficou emudecida. Abriu a boca mas não achou qualquer resposta. As Palavras acumulavam‑se-lhe no cérebro, numa agitada confusão, e imagens terriveis de reclusão e de castigo desfilaram velozmente, sobrepondo‑se umas às outras, como num caleidoscópio partido.

         - Pois perderia o seu dinheiro, jovem. - A voz da velhota soou firme, enquanto apertava O pulso de Chris. - Ela é minha neta e, que eu saiba, o seu nome é Elizabeth Robertson. Devo ter por aqui os nossos documentos.

         A mulher rebuscou convicentemente no bolso, mas o guarda perdera já o aprumo.

         -Não é necessário, minha senhora - esclareceu, com um gesto de hesitação, - a rapariga que procuramos anda sozinha. Desculpe- tê‑las incomodado.

         A Senhora Robertson fingiu que não lhe prestava atenção e deu uma palmadinha no ombro de Chris, empurrando-a bruscamente para o autocarro.

         - Sobe, Elizabeth! - ordenou, - e arranja dois lugares bons do lado da sombra. Não temos tempo a perder.

         A última frase foi acompanhada por um olhar eloquente dirigido ao desconcertado polícia.

- Não se Preocupe, jovem - disse‑lhe, - está a cumprir o seu dever. Dê cumprimentos meus a esse malandrete do Jonas Mansfield; ele sabe bem quem sou.

         O homem levou a mão à pala do boné e ajudou a velhota a subir os degraus, atrás de Chris.

         ‑ É um prazer verificar que as nossas forças da ordem ainda conservam as suas boas maneiras - declarou, sorridente, a mulher.

         Inesperadamente, o condutor accionou a alavanca da porta, que se fechou na cara do polícia. Este deu um salto e, depois, regressou para junto do carro‑patrulha. O sargento Mansfield observou‑o maliciosamente, acendendo um cigarro.

         ‑ O Condado não te paga o salário para ajudares senhoras idosas, Simons ‑ observou, enquanto contemplava o autocarro, que contornava a rua ‑, para isso temos os escuteiros.

         ‑ Era a Senhora Robertson ‑ ripostou o outro, pouco à vontade ‑, manda‑lhe cumprimentos.

         ‑ Sei quem é ‑ assentiu Mansfield. ‑ Uma velha amiga da minha mãe, com tendência para rasgos novelescos.

         ‑ Rasgos novelescos...?

         ‑ Tal e qual ‑ o sargento fez um sinal ao motorista, que tirou lentamente o carro‑patrulha do parque de estacionamento ‑, como encobrir uma jovem fugitiva, por exemplo.

         Simmons aferrou‑se às costas do assento dianteiro e gritou ao ouvido do condutor:

         ‑ Segue esse autocarro, Burt! Interceptá‑lo‑emos na auto‑estrada!

         Como resposta, Burt espiou o sargento pelo retrovisor.

‑ Vamos para casa, Burt - disse Mansfield em voz calma ‑, não seria apropriado pregar um susto à Senhora Robertson. A minha mãe não mo perdoaria. Em dez minutos a rapariga estará fora do Condado e sabemos já para onde vai. Há tempo de avisar os colegas do Oeste para que lhe dêem as boas‑vindas logo que puser pé em terra.

         O autocarro avançava com rapidez pela faixa cinzenta da estrada, atravessando um prado que ondulava levemente. Chris e a "avó" tinham realizado o primeiro trecho em silêncio, sentadas ao pé uma da outra, enquanto o veículo saía da cidade e atravessava os subúrbios.

         ‑ Tenho de lhe agradecer ‑ murmurou Chris, com esforço.

         ‑ Oh, esses papalvos mais não fazem do que incomodar a gente nova ‑ afirmou a idosa senhora. ‑Uma rapariguinha educada como tu não pode ter feito grande mal. ‑ Virou‑se para fitar Chris com um súbito interese. ‑ Ou talvez me engane ao supor que não fizeste nada de mal?

         A rapariga, sem responder, mergulhou o olhar na paisagem verde e amarela que se escapulia pela janela. Não podia mentir àquela velhinha solidária, mas parecia‑lhe arriscado contar‑lhe toda a verdade.

         ‑ Fugi de casa ‑ disse Chris empregando um tom ambíguo.

         ‑ Era o que imaginava ‑ comentou a mulher com ar satisfeito, depois olhou para as mãos, cruzadas no regaço, e pareceu que corava. ‑E.... eu também fugi uma vez, fica sabendo ‑ confessou em voz baixa.

         ‑ Acho que não sou a única. Suponho que muitas o fazem ‑ disse Chris.

- É verdade. Mas naquela época não era tão frequente ‑ replicou a velhota com ar sonhador. ‑ Agora trata de dormir um pouco, que avisar‑te‑ei quando chegarmos. Nunca durmo durante as viagens.

Chris reclinou a cabeça sobre o espaldar do banco

e fechou os olhos, ocultos pelos vidros escuros dos

óculos. Mas foi incapaz de conciliar o sono, mau‑grado

a fadiga que lhe prostrava o corpo. Sabia agora que a

Polícia estadual andava à sua procura, e que, mais tarde

ou mais cedo, a apanhariam.

 

Quando o autocarro chegou ao fim do percurso, a Senhora Robertson esperou uns instantes que os outros passageiros descessem. Na sua idade, não gostava de apertos e também não tinha pressa. O condutor estacionara o veículo num dos extremos do terminal e contemplava com ar impaciente a trôpega fila de passageiros que avançava com lentidão pelo corredor, acotovelando‑se uns aos outros, na ânsia de pegarem nas suas coisas.

A Senhora Robertson olhou pela janela e avistou dois polícias, postados, sem grande dissimulação, junto da porta do autocarro. Era evidente que aguardavam a descida de alguém que lhes interessava. A velhota meneou a cabeça grisalha. Esboçou um sorriso astuto e levantou‑se, pegando nos seus dois pesados sacos. A sua jovem amiga, pensou, fora muito esperta ao convencer o motorista a deixá‑la sair uns minutos antes, à entrada da cidade.

         ‑ Senhora Robertson?

         O polícia interceptou‑lhe o caminho, levando a mão ao boné, num gesto de saudação.

         ‑ Sim, jovem ‑ respondeu a mulher, rindo‑se para si. ‑ Passa‑se alguma coisa?

         O homem fitou‑a antes de responder e, depois, espreitou para dentro do autocarro, que já se encontrava vazio. Fez um gesto de evidente contrariedade.

         ‑ Esperávamos poder falar com a sua neta ‑ disse em tom de censura.

         ‑ Nada mais fácil. Ela vive nesta cidade, com o marido. ‑ Por cima do ombro do polícia, espiou os contornos desolados da estação. ‑ Na verdade, devia estar aqui, à minha espera.

         ‑ Referimo‑nos à rapariguinha que entrou no autocarro com a senhora ‑ interveio o outro polícia, que era gordo e tinha o cenho ainda mais carrancudo.

         ‑ Oh, aquela rapariga! ‑ escarneceu a Senhora

Robertson. ‑ Realmente uma criatura muito agradável.

Desceu numa paragem do caminho, faz já várias horas.

Não me recordo do nome daquela povoação

         Os agentes da Lei entreolharam‑se, desconcertados. A velhota ergueu a bagagem e dispôs‑se a continuar o seu caminho. Mas o polícia gordo deteve‑a pegando‑lhe no braço, suave mas firmemente.

         ‑ Acho que não se está a dar conta da sua situação, avozinha ‑ disse, deixando transparecer uma ameaça velada. ‑ A senhora assegurou à Polícia que essa rapariga era sua neta ‑ asseverou, franzindo as espessas sobrancelhas.

‑ Bom, já sabem como é ‑ explicou a mulher, sorrindo com inocência ‑, toda a gente me chama avó e sinto que todos os jovens são um pouco meus netos. Foi tudo.

         O agente deu um profundo suspiro. Depois, puxou de um lenço e enxugou o pescoço e o queixo, sem deixar de olhar para a velhota com ar perplexo.

         ‑ Explica‑lhe tu, Joe ‑ pediu ao companheiro.

         O outro assentiu e tomou a palavra:

         ‑ Essa rapariga tem uma acusação de roubo, destruição e fuga. Estava sob o regime de reformatório.

‑ O homem fez uma pausa e empurrou a viseira para trás. ‑ Sabemos que a senhora afirmou que era sua neta, dando‑lhe um nome e apelido para evitar que fosse detida. Isso não se faz Senhora Robertson. Rigorosamente, cometeu um delito chamado receptação.

         ‑ Terá de vir connosco, "avó" ‑ salientou velhacamente o gordo.

         A Senhora Robertson encolheu os ombros, sem se perturbar.

         ‑ Desde que o senhor tenha a amabilidade de carregar com estes malditos sacos...

         O guarda corpulento pegou na bagagem da velhota e conduziu‑a ao carro‑patrulha, enquanto o companheiro trocava umas palavras com o motorista do autocarro.

         Nesse momento, um Packard preto chegou a grande velocidade e deteve‑se em frente deles com um chiar de travões. Dentro dele vinha um casal. A mulher, uma jovem trigueira de elegante figura, desceu rapidamente e correu a abraçar efusivamente a Senhora Robertson.

‑ Avó! ‑ gritou. ‑ Ainda bem que te apanhámos. Ron teve uma demora inesperada no escritório e isso atrasou‑nos. Anda, sobe para o carro, levar‑te‑emos a casa.

         ‑ Receio que não seja possível, Bess. Este senhor leva‑me presa.

         ‑ Presa?

         A pergunta cheia de assombro, partiu de Ron, que se aproximara e fitava o obeso polícia com grave surpresa.

         Mas mais surpreendido ainda parecia o polícia que, boquiaberto, atónito, contemplava o marido de Bess de olhos arregalados. Este, por seu turno, dirigiu‑lhe um olhar carrancudo, como à espera de uma explicação. Ante o pesado silêncio, a Senhora Robertson decidiu fazer as apresentações.

         ‑ O senhor deve conhecer o meu neto, agente

‑ anunciou com candura ‑, trabalha nesta cidade como promotor do Distrito.

         Poucos minutos depois, um Ron ainda mal‑humorado regressava a casa, levando no assento de trás a mulher, a avó e os seus inseparáveis sacos.

         No terminal, o gordo e suado agente maldizia a sorte, embora dando graças a Deus pelo facto do seu superior não ter levado as coisas muito a sério.

         O outro polícia voltou para junto dele, ignorando

o ocorrido, e pespegou‑lhe uma cordial palmada no ombro.

         ‑ Que se passa, Moe? Deixaste escapar a velhota?

         ‑ Maldita mulher ‑ resmungou ‑, esteve a gozar connosco. Sabes quem é a sua verdadeira neta? Pois é a mulher de Ron Phillips, nada mais nada menos que o promotor do Distrito.

         ‑ Caramba! exclamou o outro. ‑ Não admira que parecesse tão segura da sua pessoa.

         ‑ E tu que o digas! ‑ trovejou o gordo. ‑ Por sorte, o tipo não armou muito escândalo. Deve saber que a velha está chalada.

         ‑ Topa‑se à légua ‑ concordou o que se chamava Joe. ‑ Mas não desanimes que ainda somos capazes de ter sorte. Estive a falar com o motorista do autocarro e ele assegurou‑me que a Parker desceu na cidade, pouco antes de chegar ao terminal.

         ‑ Maldita avó! ‑ balbuciou Moe. ‑ Mentiu como um contrabandista.

         ‑ Agora deixa a velha em paz e vamos mas é ver se apanhamos a miúda.

         ‑ Que me cortem o que tu sabes se neste preciso momento não está em casa do irmão! ‑ exclamou o obeso polícia, dirigindo‑se a grandes passadas para o carro‑patrulha.

 

Chris chegou à rua de Tom depois de ter andado mais de uma hora. O tornozelo doía‑lhe outra vez com insistência e estava tão inchado que a carne formava uma espécie de bola avermelhada, por cima do sapato de ténis. Caminhava apenas apoiada na ponta do calcanhar, mas, mesmo assim, cada passo era como uma ferroada. "Espero que Tom tenha um bom calmante", pensou, "e conheça algum médico que não faça muitas perguntas." Era um bairro modesto, isolado, e a rua formava uma ladeira ligeiramente abaulada. De um lado, erguia‑se o muro alto e cinzento do que parecia ser uma fábrica e, na vereda oposta, alinhava‑se uma série de casinhas iguais de um só andar e com um pequeno jardim na parte da frente. Chris procurou a que correspondia ao número 59. Reparou, desgostosa, que era a mais arruinada e descolorida de todas. Teve um estremecimento ao pensar que, de certo modo, aquela casa se assemelhava à desmantelada habitação do falecido Ben Parker, embora em tamanho reduzido. Ao aproximar-se, viu uma criança de pouco mais de um ano, que brincava entre o seco e desprezado matagal do que se pressupunha ser um jardim.

         - Tommy! - exclamou em voz comovida. ‑ Oh, Tommy, anda cá! Aproxima‑te! Lembras‑te da Tia Chris? Anda...!

         O menino olhou‑a com os seus grandes olhos redondos e pestanejou várias vezes. Depois, sorriu e avançou, em passos vacilantes, até se agarrar ao pequeno portão que dava para a vereda. Emitiu um balbuciamento ininteligível e depois repetiu várias vezes: "Tia Quis, Tia Quis." Ela, com o rosto banhado de lágrimas, e rindo ao mesmo tempo, agachou‑se para o tomar nos braços e cobri-lo de beijos.

         - Meu menino, como estás crescido! Em breve serás um homem grande e forte como o pai, hem?

         - Tia Quis, Tia Quis. ‑ repetiu o garoto e reclinou‑se sobre o ombro dela.

         Pela porta da casa assomou o rosto intrigado de Janie. Ao reconhecer Chris, abafou uma exclamação e dirigiu‑se para ela, balançando o volumoso ventre de grávida.

‑ Caramba! É Chris Parker em pessoa! ‑ disse com verdadeiro assombro.

         - Olá, Janie. Como estás? Custou‑me bastante a encontrar a vossa casa.

         A cunhada concordou e contemplou‑a detidamente, com uma certa apreensão. Os seus olhos fixaram‑se nos grandes óculos escuros e deslizaram pela roupa amarrotada, suja e manchada de suor até ao tornozelo inchado, cuja ligadura se desprendera e pendia sobre o pé.

         ‑ Fugiste, não é verdade?

         O seu tom parecia não esperar resposta.

         ‑ É um assunto complicado, já vos contarei. Tom está em casa?

         Janie não respondeu. Pegou no garoto ao colo e abriu a pequena cancela, cujos gonzos chiaram.

         ‑ Entra ‑ disse em entoação resignada ‑, vou fazer-te um pouco de café.

         O interior era ainda mais humilde do que a modesta fachada sugeria. Uma reduzida cozinha‑sala de jantar, de paredes descascadas, e dois pequenos quartos, com móveis em segunda mão. O exíguo espaço livre estava atulhado de pratos sujos, louça ordinária, roupa por lavar, papéis velhos e brinquedos baratos.

         ‑ Acomoda‑te ‑ indicou Janie ‑, está tudo um pouco desarrumado.

         Chris tirou umas revistas velhas e um ursinho estropiado do assento de uma das cadeiras e deixou‑se cair nela com verdadeiro cansaço.

         Janie retirou a cafeteira de um dos bicos de gás.

         ‑ Tom demorará muito? ‑ perguntou a rapariga.

‑ Preciso de falar com ele.

A cunhada meneou a cabeça e serviu o café em duas grandes chávenas sem asa. Olhou de esguelha para Chris e respondeu com outra pergunta:

                   ‑ Como chegaste aqui?

         A jovem bebeu um longo trago de café. Sentiu que o líquido quente e amargo lhe aplacava o estómago e lhe desanuviava a mente embotada. Depois, fez a Janie um relato sucinto das suas desventuras desde que fora para casa dos Johnson, não se referindo aos seus sentimentos por Charlie e suavizando a cena entre ela e Buster, na noite anterior.

         - Tive de fugir, como hás‑de compreender - concluiu. ‑ Os chuis andam atrás de mim e não poderei ficar muito tempo, a não ser que Tom encontre qualquer solução.

         ‑ Há muito que Tom encontrou a solução dele

‑ retorquiu Janie, com amarga ironia.

         Perante essas palavras, Chris adivinhou qual era a situação e surpreendeu‑se por não se ter dado antes conta de um facto que era evidente. Sentiu que algo dentro de si se dilacerava e o seu castelo de ilusões desmoronou-se inteiramente, como abatido por um vento silencioso e irremediável.

         ‑ O que... queres dizer? - balbuciou, embora soubesse a resposta.

         ‑ O teu querido irmãozinho bateu a asa há um mês ‑ disse entre dentes.

         A rapariga observou a cunhada, cujo ventre parecia a ponto de estalar e para o garoto que brincava debaixo da mesa, balbuciando os seus monossílabos. Um confuso sentimento de comiseração e impotência oprimiu‑lhe o peito.

‑ Queres dizer...? Queres dizer que vos abandonou?

         Janie virou‑se para ela com um sorriso amargo, desiludido.

         ‑ Ele disse que não ‑ explicou. ‑ Contou‑me uma história sobre que aqui não tinha futuro e que onde está agora poderá ganhar muito dinheiro. Prometeu que então nos mandaria buscar. ‑ A sua voz tornou‑se mais triste. ‑ Já deves ter ouvido isso noutro lado, ou lido nas novelas. É a treta habitual, nestes casos...

         ‑ Sim, parece que sim ‑ disse Chris com involuntária crueldade. ‑ Achas que o poderia ver?

         A mulher cruzou as mãos sobre o ventre e suspirou, arqueando as sobrancelhas num gesto de dúvida.

         ‑ Não será fácil para ti, na situação em que te encontras e eu pouco te posso ajudar. Só sei que está no México ou pelo menos ia para lá. Desde que saiu por aquela porta nem sequer um postal mandou.

         ‑ O maldito filho da mãe...! ‑ resmungou Chris.

         Janie aproximou‑se dela e pousou‑lhe a mão nos cabelos castanhos e macios, acariciando‑os levemente.

         - Durante a primeira semana, repeti essa maldição dia e noite, chorando todo o tempo e sem poder comer nem dormir ‑ murmurou. ‑ Agora, penso que talvez não lhe restasse outra alternativa. ‑ Chris levantou a cabeça e encarou‑a com um assombro comovido. ‑ Não passa de um garoto, Chris, e é possível que não tenhamos sabido entendê‑lo. Todas nós lhe pedíamos demasiado e lhe dávamos muito pouco, não achas? Ao fim e ao cabo, no seu lugar, talvez também tivesse fugido.

         Os olhos de Janie estavam húmidos e os seus lábios e queixo eram agitados por um tremor imperceptível, como se estivesse a ponto de se desfazer em soluços.

Chris, por seu turno, passou rapidamente a mão pelas pálpebras, com a garganta embargada, e esforçou‑se por se controlar.

         ‑ Tudo o que me dizes está muito certo, Janie

‑ murmurou com dificuldade, fungou e estreitou com força a mão da cunhada. ‑ Se houvesse alguma maneira de te poder ajudar...

         ‑ Será melhor que te ajudes a ti própria ‑ interrompeu‑a Janie ‑, eu cá me arranjarei. Agora vou dar‑te qualquer coisa para te aliviar a dor no pé e uma ligadura lavada. Também poderás mudar de roupa, ainda tenho alguns presentes de quando era solteira que te assentarão bem. Vamos, não tens muito tempo!

         Chris tomou um duche rápido e refrescante na pequena casa‑de‑banho. Depois, atou cuidadosamente o pé com uma ligadura elástica que havia entre os remédios. Encheu‑se de água‑de‑colónia e vestiu uma blusa limpa que trazia na maleta e uns blue jeans claros que Janie insistira para que aceitasse. Quando regressou à sala de jantar, a cunhada esperava‑a com uns ovos com presunto, torradas e uma lata de cerveja. Sentou‑se à mesa e começou a devorar tudo com bom apetite.

         ‑ Não é uma grande refeição, mas não tinhas avisado que vinhas ‑ comentou Janie com humor. ‑ Preparei‑te também um farnel para a viagem. Pelo que me contaste, não é conveniente que permaneças aqui.

         Como se as suas palavras fossem proféticas, ouviu‑se um leve ruído de travões, que chegava da rua. Ambas se precipitaram para a janela e viram o carro‑patrulha que parara em frente da casa. Instintivamente, Janie correu as cortinas. Através do tecido translúcido, adivinharam, como num filme confuso, as silhuetas uniformizadas de Joe e de Moe que desciam do veículo. Com uma lentidão exasperante, os polícias abriram o pequeno portão, atravessaram o jardim e detiveram‑se em frente da porta.

         O toque estridente da campainha gelou o coração das mulheres, paralisadas no meio da sala.

 

‑ Achas que consegues correr com o pé assim?

‑ perguntou Janie, ansiosa.

         ‑ Achas que valerá a pena?

         Moe tentava já espreitar pelos cortinados da janela e Joe voltava a carregar na campainha, com insistência. Nesse instante, talvez assustado com o barulho, o pequeno Tommy começou a chorar.

         ‑ Saberei entretê‑los ‑ assegurou Janie. ‑ Uma criança que chora é uma boa razão para a mãe demorar e estar um bocado distraída. Sai pela porta das traseiras, verás um bosquezinho que cobre o resto do bairro, atravessa‑o e encontrar‑te‑ás na estrada. É possível que algum automobilista te livre de apuros. Caso contrário...

         ‑.. pelo menos teremos tentado ‑ concluiu Chris, levantando‑se, novamente esperançada.

Pegou na maleta que deixara junto da porta do quarto de dormir e beijou apressadamente a cunhada. Esta reteve‑a contra si, por um momento.

         - Para onde irás? - perguntou.

         A campainha zunia no cérebro de Chris.

         ‑ Talvez haja alguém que me Possa ajudar ‑ murmurou com certa desconfiança ‑ Depois irei ao México, claro.

         O rosto de Janie iluminou-se e largou o braço da rapariga.

         ‑ Se encontrares Tom ‑ pediu ‑, diz‑lhe que faça o que tem a fazer. Que nós o esperaremos aqui o tempo que for necessário.

         Chris dirigiu‑lhe um ultimo sorriso de solidariedade.

         ‑ Dir‑lhe‑ei ‑ prometeu, escapulindo‑se pela porta traseira.

         Janie respirou fundo. Passou a mão pela cabeça e depois acariciou rapidamente o ventre. Pegou na criança e dirigiu‑se para a entrada, abrindo a porta. Joe, que se apoiava nela, precipitou‑se involuntariamente para o interior. Moe surgiu atrás dele, mais carrancudo que o habitual.

         - Se demorasse mais um instante, minha senhora, teríamos arrombado a porta ‑ trovejou.

         ‑ Foi o que me pareceu ‑ disse Janie com dignidade. ‑ O que se passa?

         Joe pigarreou e alisou o uniforme, recuperando o aprumo.

         ‑ Queremos falar com Thomas Lee Parker ‑ anunciou. ‑ É o seu marido?

         ‑ Habitualmente é. Mas agora não reside aqui, está no México, a tratar de uns negócios.

‑ Negócios, hem? ‑ gracejou Moe, espiando o interior da modesta vivenda. ‑ Haveria algum inconveniente se déssemos uma vista de olhos?

         Janie pareceu hesitar.

         - Para isso não é necessário uma ordem do juiz?

‑ inquiriu com inocência.

         ‑ Poderíamos obtê‑la ‑ sugeriu Joe. ‑ De momento apenas estamos a pedir‑lhe a colaboração.

         Janie mordeu os lábios e, depois, fez um gesto de aquiescência, indicando a Moe o reduzido espaço da habitação. O polícia passeou os olhos pela sala de jantar e lançou‑se para dentro do quarto de dormir. Joe fechou a porta da rua, com um gesto casual. Tirou o boné e sorriu formalmente à mulher.

         ‑ Estamos a ter um Verão mais quente ‑ disse em tom neutro.

        Tommy deixara de chorar e contemplava, fascinado, o homem de uniforme. A mãe deixou‑o deslizar pelo corpo até que os pezinhos tocassem no chão. O garoto cambaleou um segundo e, depois, foi pegar no urso de peluche que Chris deixara em cima da mesa.

         ‑ Tom fez alguma asneira? ‑ perguntou Janie.

         ‑ Oh, não temos nada contra ele ‑ tranquilizou‑a Joe, corroborando as suas palavras com um gesto ‑, só andamos à procura da irmãzinha dele.

         Moe emergiu do quarto de dormir. Em atitude de alerta, meteu‑se no pequeno quarto de Tommy.

         ‑ Ah, essa rapariga ‑ assentiu Janie, simulando indiferença. ‑ Não estava internada no reformatório?

         ‑ Escapou de casa dos tutores. Mas voltará a passar um bom tempo encarcerada, quando conseguirmos deitar‑lhe a mão.

‑ Ninguém ‑ anunciou Moe, regressando da sua inspecção. ‑ O pássaro teve tempo de sobra para voar, se é que esteve aqui.

         ‑ Chris, aqui? ‑ assombrou‑se a mulher. ‑ Não seria tão tola que fizesse isso. Sabe perfeitamente que tanto Tom como eu a teríamos entregue à Polícia mal cruzasse aquela porta.

         ‑ Vocês denunciariam a própria irmã? - perguntou Joe, com simulado assombro.

         ‑ Não gostamos de ter delinquentes na família

‑ afirmou Janie com desprezo. ‑ Ela outra coisa não

fez que amargurar a existência de Tom e dos pais, desde

que começou a fazer uso da razão. Não, senhor, por aqui

não passará e ficaria contente se nunca mais a voltasse

a ver.

         Moe soltou uma breve gargalhada nas suas costas. Janie virou‑se, sobressaltada.

         ‑ Bonita representação, minha senhora ‑ elogiou o polícia. ‑ Mas não lhe servirá de nada ‑ e com o polegar indicou a porta da casa‑de‑banho ‑, a senhora tem ali dentro um par de blue jeans cheios de lama e e uma ligadura suja.

         Ao ouvi‑lo, Joe soltou uma imprecaução. Com um safanão, pôs o boné e precipitou‑se pela porta das traseiras, levando a mão ao coldre. Moe olhou‑o com uma serena satisfação e meneou a cabeça, acomodando‑se na cadeira que Chris ocupara minutos antes.

         - O velho JOe apanhá‑la‑á, disso não restam dúvidas. É um verdadeiro cão de caça. ‑ Tirou uma torrada do prato e começou a mordiscá‑la. ‑ Sabe, minha senhora, pode ser acusada de um delito que se chama... hã... reptação, é isso.

- Isso é o que veremos‑ replicou Janie, num último desafio.

         A polícia observou‑a com uma sombra de inquietação enquanto voltava a pousar a torrada no prato.

         ‑ Ouça ‑ inquiriu com desconfiança ‑, a senhora não será, por acaso, parente do promotor do Distrito?

 

         Chris correu pelo bosquezinho sem virar a cabeça.

O pé magoado, adormecido pelo calmante, já não a incomodava. Quase sem fôlego, trepou a escarpada ladeira, onde o arvoredo se tornava mais denso, enquanto os arbustos secos lhe arranhavam as pernas. Esgotada, deteve‑se para recuperar o alento. Largou a maleta, que foi a rolar, aos tombos, e escalou o último trecho, utilizando ambas as mãos. Ali estava o caminho, ardendo debaixo do sol impiedoso do meio‑dia. Diante dela, surgia uma desolada faixa de asfalto, que circundava os limites daquele subúrbio, e uma fileira dupla de vias férreas.

         Dois grandes camiões iguais passaram, atroando, um atrás do outro, e Chris nem sequer se lembrou de lhes fazer sinal. Ao longe, em direcção contrária, começou a crescer o vulto de um automóvel que brilhava como um farol naquela paisagem melancólica. A rapariga agitou os braços por cima da cabeça, chamando a a atenção do condutor invisível. O carro, um modelo desportivo cor de fogo, passou junto dela abrandando a marcha e deteve‑se uns metros mais adiante, travando a fundo. As rodas traseiras deslizaram pelo asfalto. O veículo ficou ligeiramente atravessado, à espera. Chris correu para ele e espreitou pela janela. Uma mulher elegante de cerca de quarenta anos, rosto bronzeado pelo sol e completamente vestida de branco, reclinava‑se no luxuoso estofo de cabedal, cor de tabaco. Com um gesto languido, pousou a mão no quadro polido e girou o interruptor do leitor de cassetes. A cena parecia envolta num manto de silêncio.

         ‑ Olá ‑ saudou a condutora em voz suave e profunda ‑, por acaso sabes como chegar à auto‑estrada? Acho que me perdi.

         ‑ Desculpe, também sou forasteira ‑ disse Chris, agitada. ‑ Por favor, a senhora não me poderia levar?

         A mulher não respondeu imediatamente. A rapariga, inquieta, virou‑se e olhou para baixo. No extremo do bosquezinho, divisou a camisa empapada de suor de Joe, que se agachava entre as silvas para apanhar a maleta que ela abandonara.

         ‑ Em que direcção vais? ‑ perguntou a mulher.

         ‑ Na mesma que a senhora - suplicou Chris em voz angustiada. ‑ Depois passou a língua pelos lábios ressequidos. ‑ É uma emergência.

         ‑ Estou a ver ‑ concordou a outra, inclinando‑se para abrir a porta. ‑ Sobe, tentaremos encontrar o nosso caminho.

         Chris entrou de um salto. O automóvel arrancou, ziguezagueando pela berma da estrada e depois recuperou a estabilidade. Quando Joe atingiu a borda do declive, viu apenas um ponto veloz e brilhante que se perdia no horizonte.

 

Acariciada pela frescura do ar condicionado e envolvida pela música suave que o altifalante do carro irradiava, Chris sentiu o corpo descontrair‑se no suave estofo, enquanto a faixa cinzenta do caminho deslizava velozmente diante dela. A mulher guiava em silêncio, sem esforço aparente. Tinha acendido um cigarro e ofereceu outro a Chris, que recusou, com um gesto. Não falaram durante os minutos iniciais, até que a condutora abrandou a marcha ao passar em frente de uma tabuleta.

         ‑ Deste‑me sorte ‑ comentou, voltando a acelerar ‑, estamos apenas a quinhentos metros da auto‑estrada. Convém‑te ir até à Costa?

         ‑ Para mim é igual ‑ disse Chris ‑, desde que saiamos deste Estado.

         ‑ Não falta muito para isso ‑ replicou a outra, rindo interiormente.

Permaneceram caladas, enquanto o carro seguia por um desvio que se elevava e voltava a descer, num amplo semicírculo que acabava por desembocar na recta imponente da auto‑estrada. Uma vez nela, o veículo ganhou velocidade, ultrapassando outros que circulavam mais lentamente. A misteriosa mulher apagou a beata no cinzeiro e espiou a sua acompanhante pelo canto do olho.

         ‑ Estás metida em apuros?

         A pergunta fora pronunciada em tom casual e uma leve risada acompanhou-a, parecendo tirar toda a importância à resposta. Chris decidiu aventurar-se pela sinceridade.

         ‑ Seria tolice pretender negá‑lo ‑ disse, cautelosa. A mulher fez um gesto afirmativo. Compôs desnecessariamente o espelho retrovisor, lançando um olhar atento ao próprio rosto.

         ‑ É evidente que foges de alguém.

         ‑ Da Polícia ‑ precisou Chris.

         A outra soltou um assobio de admiração

         - Não terás assaltado um banco ou cometido um crime? Não tens tipo disso.

         A rapariga fitou‑a, para ver se estava a troçar dela. Mas a mulher permanecia séria e devolveu-lhe rapidamente um olhar cordial, cheio de interesse.

         ‑ É um tanto complicado de explicar ‑ balbuciou a rapariga.

         ‑ Temos tempo ‑ insistiu a condutora em voz amável, baixando O volume do leitor de cassetes.

         Chris engoliu em seco e pensou que não tinha outra alternativa. O menos que aquela fada salvadora merecia era inteirar‑se dos apuros dos quais a livrara. Decidiu fazer um relato honesto, dentro das circunstâncias. Talvez fosse bom para ela própria resumir as suas desventuras em frente de uma desconhecida gentil.

         ‑ Nos últimos dois anos, passei a maior parte do tempo numa escola‑reformatório ‑ começou, e fez uma pausa.

         ‑ Por que razão? ‑ perguntou a mulher.

         ‑ Tinha fugido de casa. O meu pai batia‑me com frequência e a minha mãe bebia demasiado. Aguentei enquanto pude, até que um dia deitei a fugir. Foi o meu próprio velho quem pediu que me internassem. Sei que parece uma novela barata, mas acho que os tipos que escrevem essas coisas se devem inspirar em casos como o meu.

         ‑ A realidade supera a ficção ‑ disse a fada.

         Absorvida no seu relato, Chris concordou, sem perceber a ironia.

         ‑ Da última vez que me tiraram de lá, decidi sacrificar‑me e ser bem comportada, para sair o mais rapidamente possível. As tipas da Comissão morderam a isca e consegui chegar à primeira etapa: viver uma temporada numa casa particular. Sabe do que se trata?

         ‑ Tenho uma ideia aproximada ‑ murmurou a mulher. ‑ Conti-a.

         ‑ Bom, a coisa corria mais ou menos sem problemas até que ontem à noite o dono da casa e eu ficámos sozinhos. O tipo tinha bebido muito, pôs‑se com ares paternais e quis violar‑me. ‑ A palavra teve um travo amargo na boca de Chris, que conteve um estremecimento. ‑ Num momento de distracção, consegui saltar pela janela. Desde então, ando a fugir, com os polícias grudados aos calcanhares. Aquele tipo deve ter‑lhes contado uma data de mentiras.

         ‑ Devias tê‑lo denunciado naquela precisa altura - disse a outra, sem desviar os olhos da estrada. - Fugir é o mesmo que confessar.

         - Não teria resultado ‑ afirmou a jovem.

         ‑ Tentou abusar de ti, não é verdade? Isso constitui um delito ‑ replicou a mulher com uma entoação de cólera; depois espiou o rosto de Chris, meio oculto pelos óculos descomunais. ‑ E, além disso, se não me engano, pregou‑te uma boa sova.

         ‑ Sim ‑ concordou a rapariga ‑, mas venho do outro lado da rede.

         Ambas mergulharam nos seus próprios pensamentos, envoltas num silêncio absoluto. A cassete tocava uma série de temas de bossa nova, que mal se ouviam. O automóvel corria veloz e incansavelmente pela auto‑estrada, como se ninguém o guiasse.

         ‑ Chamo‑me Chantal ‑ disse de repente a mulher ‑, talvez te possa ajudar. O que pensas fazer?

‑ Chris arqueou as sobrancelhas e encolheu os ombros.

‑ Há algum lugar para onde queiras ir? Tens alguém

que se encarregue de ti?

         Chris captou uma entoação de ansiedade na voz da sua interlocutora, mas não lhe deu importância. A preocupação daquela mulher parecia autêntica e a jovem começou a pensar que era possível que a sua sorte estivesse a mudar.

         ‑ A única pessoa que me pode safar de tudo isto é o meu irmão Tom ‑ declarou, reflectindo em voz alta. ‑ Mas está no México.

‑ Isso é demasiado longe para mim ‑ suspirou Chantal. ‑ Não tens mais ninguém?

         ‑ Tive uma professora, Barbara Clark, que costumava interessar‑se por mim. Embora seja uma hipótese demasiado arriscada; de certa forma, ela faz parte dos carcereiros.

         ‑ Compreendo.

         Chantal voltou a cair num dos seus frequentes períodos de silêncio, que Chris também não se atreveu a interromper.

         ‑ Talvez houvesse uma solução ‑ murmurou repentinamente a mulher. ‑ Sabes alguma coisa de massagens?

         ‑ Massagens...? ‑ repetiu Chris, surpreendida.

‑ Sim.., aprendi um pouco disso no reformatório... Eileen Johnson costumava garantir que só eu conseguia fazê‑la descontrair‑se...

         ‑ É uma possibilidade ‑ hesitou Chantal. ‑ Dirijo um instituto de beleza na Costa... Talvez pudesses trabalhar ali por uns tempos, até conseguires juntar dinheiro para viajares até ao México.

         ‑ Isso seria estupendo! ‑ disse Chris, entusiasmada, mas, de súbito, recordou‑se da sua difícil realidade. ‑ Se bem que julgue não ser possível ‑ acrescentou, compungida ‑, seria demasiado comprometedor para a Senhora, por causa da minha situação...

         ‑ Referes‑te à Polícia? ‑ riu Chantal, com veleidade. ‑ Tolices! Deixa isso por minha conta. Estaremos noutro Estado e tenho amigos influentes.

"Tal qual Mortimer H. Jones", pensou Chris. Mas conservou a boca fechada. Aquela mulher estava a oferecer‑lhe uma saída e ela não tinha muito por onde escolher.

         O centro de beleza e de descanso Sereia de Ouro (exclusivamente para senhoras) dominava um penhasco isolado sobre o mar, não muito longe dos bairros residenciais encravados em suaves colinas, ao sul da cidade.

O seu estilo imitava a simplicidade altiva do período colonial espanhol, com os seus telhados de telhas vermelhas e as suas paredes caiadas, circundadas por galerias de arcos semicirculares. Mas sob a rusticidade aparente, palpitava um luxo discreto, requintado, que indicava, sem dúvida, uma clientela selecta e sem problemas financeiros.

         Chris caminhou atrás de Chantal, olhando, extasiada, em seu redor, enquanto atravessavam os amplos jardins. Passaram junto de uma piscina de formas irregulares e entraram numa sombra fresca do pátio, cujas laranjeiras em flor acentuavam o romantismo discreto do lugar. Debaixo das árvores de fruto, havia um poço verdadeiro, revestido de azulejos coloridos. Uma jovem vestida com uma bata verde mar, com debruns dourados, onde, sobre o peito, brilhava uma sereiazinha bordada a ouro, dirigiu-se para elas em passo ligeiro. Tinha uma figura esbelta e o rosto sereno e doce, de traços euro-asiáticos.

         ‑ Bons olhos te vejam, Chantal ‑ disse em voz cantante ‑, espero que tenhas feito uma boa viagem

         ‑ Obrigada, Rita ‑ respondeu a mulher, beijando-a suavemente na face. - Esta é Chris Parker, vai trabalhar uns tempos connosco e queria pÔ‑la na tua secção.

         ‑ Olá, Chris - saudou a rapariga, com ar sorridente.

‑ Olá ‑ disse Chris.

         ‑ Rita é uma verdadeira perita em massagens

‑ declarou Chantal ‑, ensinar‑te‑á todos os seus segredos.

         ‑ Mas agora vou indicar‑te o teu quarto ‑ propôs Rita, pegando‑lhe na mão. ‑ Anda.

         Atravessaram a escura galeria e entraram numa sala espaçosa, decorada com severos e escuros móveis monacais. Uma rapariga com uma idêntica bata verde mar passou por elas. Olhou para Chris com curiosidade, embora sem se deter. Rita não lhe prestou atenção e conduziu a sua hóspede até ao primeiro andar, subindo por umas escadas de mosaicos arroxeados. O quarto destinado a Chris era estreito mas confortável, com uma janela em ogiva que dava para um sector dos jardins e da qual se podia avistar o mar. Chris sentou‑se na cama e depois deixou‑se cair para trás, seduzida pela macieza do colchão.

         ‑ Com isto ficarás mais à vontade ‑ disse Rita na sua voz adocicada, abrindo o armário e apontando para uma das batas verdes e macias da casa, que estava pendurada no interior.

         ‑ Parece estar à minha medida ‑ comentou Chris.

         ‑ Se quiseres tomar banho, o duche fica do outro lado do corredor.

         ‑ Mais tarde ‑ respondeu Chris, ‑ agora preferia descansar um bocado.

         ‑ Não é má ideia ‑ aprovou a outra. ‑ Hoje tens

o tempo todo à tua disposição. Amanhã assistirás a uma sessão de massagem.

         ‑ De acordo ‑ disse a rapariga ‑, estou nas tuas mãos.

Rita emitiu uma risada levemente irónica e nos seus olhos houve um lampejo voraz. Chris começou a despir‑se. A jovem massagista foi pegando nas peças que ela tirava e colocou‑as no armário.

         ‑ Aqui não vais precisar delas ‑ explicou.

         Depois, contemplou detidamente o corpo da rapariga, com um interesse ao mesmo tempo distante e inquietante.

         - Que tens no tornozelo?

         ‑ Oh, nada de especial. Uma simples torcidela.

         ‑ Deixa‑me vê‑lo ‑ pediu Rita, num tom subitamente profissional.

         Com uma das mãos, levantou delicadamente o pé dorido e com a outra apalpou com suavidade a zona afectada. Os seus dedos eram seguros e firmes e irradiavam uma espécie de calma ao deslizarem pela carne lacerada.

         ‑ Tens uma luxação ‑ anunciou. ‑ Caminhaste muito depois da entorse?

         ‑ Bastante.

         ‑ Bom, vamos pô‑lo no lugar. Não vai doer, mas escusas de olhar.

         Chris deixou cair a cabeça em cima da almofada, como se a calma que aquelas mãos profissionais transmitiam ao pé lhe trepasse lentamente pelo corpo, mergulhando‑a numa placidez irresistível. Sentiu um puxão seco e ouviu um estalido abafado, que lhe pareceu muito distante. Quando levantou a cabeça, Rita sorria, enquanto colocava um almofadão debaixo do pé doente.

         ‑ Já está, voltou tudo ao seu lugar ‑ declarou com

o seu sorriso imperturbável. ‑ Agora vou buscar um pouco de gelo para a inflamação e ligar‑te muito bem o pé. Amanhã estarás como nova. Queres que mande também qualquer coisa para comer?

         ‑ Não, obrigada ‑ murmurou Chris, sem conseguir dominar o nervosismo. ‑ Logo que acabares, acho que vou dormir vinte horas seguidas.

         Quando despertou, emergindo com dificuldade de um sono profundo e persistente, o sol entrava pela janela em ogiva, formando um desenho caprichoso no chão de tijoleira. O marulhar distante do mar recordou‑lhe onde se encontrava. Confusamente, foi reconstituindo tudo o que acontecera no dia anterior. Deu duas ou três palmadas na cara, para se assegurar de que estava bem acordada. Depois, saltou da cama, verificando com uma surpreendida alegria que o pé deixara de lhe doer. O tornozelo tinha, inclusivamente, quase recuperado o seu aspecto normal e apenas umas manchas arroxeadas marcavam tenuamente a pele. Tomou um banho prolongado debaixo do duche de água quente e depois vestiu‑se sem pressa, apreciando a limpeza agradável e fresca da sua flamante bata verde mar. Estava a interrogar‑se quanto ao que havia de fazer quando o rosto enigmático e sorridente de Rita assomou à porta.

         ‑ Bons dias, Chris ‑ saudou ‑, descansaste bem? - Chantal quer‑te ver.

A directora daquele curioso lugar estava a tomar o pequeno‑almoço numa das mesas do jardim, perto da piscina. Acompanhava‑a um homem de cerca de trinta anos, com a pele assombrosamente bronzeada, escassos cabelos louros e olhos de um azul deslavado, que brilhavam debaixo dos óculos. Chantal convidou as duas raparigas a sentarem‑se à mesa e fez as apresentações. O visitante chamava‑se Laffont e era o enviado de uma revista suíça, cuja especialidade Chris não conseguiu decifrar. Rita e ela tomaram o Pequeno‑almoço num silêncio respeitoso e atento, enquanto Laffont fazia perguntas a Chantal. Ao que parecia, preparava um artigo sobre a Sereia de Ouro para os seus leitores europeus. O homem pousara um minúsculo gravador junto do açucareiro, para registar a entrevista.

         Pelas respostas de Chantal, Chris conseguiu ficar com uma ideia mais precisa daquele sítio. A Sereia de Ouro, explicou a mulher, dirigindo‑se em parte ao visi tante e em parte ao gravador, era o Único instituto no seu género na América. A ele recorriam as mulheres mais famosas e sofisticadas de diversos pontos da Costa Oeste e do resto dos Estados Unidos. Não, Chantal não podia citar nomes; era uma das normas da casa, cuja discrição lhe garantia o prestígio que gozava. O objectivo do centro era, se Chris não compreendera mal, "proporcionar paz e prazer Psicofísicos" a essas damas.

O pessoal era exclusivamente seleccionado entre raparigas com menos de vinte anos e convinha assinalar que era proibida a presença masculina, quer na qualidade de empregados, quer na qualidade de clientes. "Um mundo feminino", observou Chantal e em seguida teve um elegante gracejo, dando a entender que Laffont devia considerar a sua presença ali como uma verdadeira excepção. O jornalista sorriu e respondeu-lhe em francês. A partir daí, o diálogo prosseguiu nesse idioma e Chris considerou-se desobrigada de lhe prestar qualquer atenção, dedicando-se com prazer à preparação de uma suculenta torrada com manteiga e compota de morango.

Uns minutos mais tarde, Chantal voltou a falar em inglês, para sugerir a Laffont que completasse a reportagem entrevistando as duas raparigas.

         ‑ São os dois extremos da minha equipa ‑ sussurrou: ‑ uma profissional e uma principiante.

         O jornalista fez duas ou três perguntas a Rita, que respondeu com desembaraço, dentro do seu estilo calmo e discreto. Explicou que trabalhara num centro similar na Tailândia e que depois se aperfeiçoara em Viena. Enumerou uma série de nomes de difícil pronúncia, aos quais Laffont assentia com acenos de aprovação. Chris, por seu turno, esteve realmente inspirada: declarou com muito à vontade que desde miúda sonhara com aquele trabalho, sabendo ser a única vocação da sua vida. Descreveu como tinha praticado os rudimentos do ofício no colégio de raparigas onde fizera os seus estudos. Acrescentou depois que Chantal era uma pessoa maravilhosa e que lhe estava muito grata por lhe ter dado a oportunidade de entrar na Sereia de Ouro. A mulher escutava‑a com um sorriso divertido. Depois, pôs‑se de pé, dando a entrevista por terminada. Despediu‑se amavelmente de Laffont, pedindo a Rita que o acompanhasse até à saída.

         ‑ Senta‑te, Chris. Não acabaste o teu café ‑ disse Chantal, quando ficaram sozinhas.

         ‑ Já está frio ‑ murmurou Chris. ‑ Espero não ter sido imprudente diante daquele senhor.

         ‑ Pelo contrário, querida, estiveste mesmo magnífica ‑ disse a mulher rindo abertamente. ‑ Vamos agora iniciar o teu treino.

         Chantal conduziu a rapariga pela ala mais afastada do edifício, onde se situavam as saunas e os salões de massagens. Percorreram um corredor fracamente iluminado e a mulher parou diante de uma das portas. Era uma divisão pequena, apenas mobilada com um cômodo cadeirão, junto do qual havia uma mesa baixa, com um cinzeiro, um copo e uma garrafa de água mineral. Chantal afastou uma cortina encostada à parede, pondo a descoberto uma espécie de janela interior com o tamanho e a forma de um écran de televisão. Através dela, via‑se grande parte do quarto contíguo, totalmente alcatifado de verde. Paredes, chão e tecto formavam algo como uma caixa de jade, envolta numa luz diáfana que parecia brotar de todos os lados e de nenhum. No centro, havia um divã completamente branco, com cerca de um metro de altura. Chris contemplou, extasiada, aquela decoração singular e depois olhou interrogativamente para a sua acompanhante, à espera de uma explicação.

         ‑ Interessante, não é verdade? ‑ comentou Chantal. É uma das nossas salas de massagens. Dentro de uns instantes, Rita atenderá ali uma cliente. ‑ A mulher consultou automaticamente o relógio de pulso.

‑ Senta-te acolá e observa, será a tua primeira lição. - Chris aproximou‑se do cadeirão, sem desviar os olhos da janela.

         ‑ O que dirá a sua cliente quando me vir aqui, a espiar...? ‑ perguntou.

         ‑ Oh, ela não te poderá ver. Do outro lado, toda esta parede é um espelho.

         A rapariga pestanejou, admirada, sem poder acreditar no que ouvia.

         ‑ Que raio de truques que vocês usam ‑ murmurou.

‑ Dá‑nos bons resultados ‑ informou a mulher, sorridente ‑, algumas senhoras, que pedem sigilo, pagam uma bela soma para se sentarem nesse cadeirão. Agora tenho de ir, quando a sessão terminar, vai ter comigo.

         Confusa, Chris sentou‑se e esboçou um gesto de resignação. Chantal sorriu mais uma vez e esfumou‑se por trás da porta. "Bom", disse a rapariga para consigo, "já que vou trabalhar aqui, será melhor aprender como fazem." Na tela, abriu‑se uma porta dissimulada na parede e Rita entrou no quarto, no seu andar suave e elástico. Piscou um olho a Chris e desapareceu do seu campo visual, em direcção a um dos lados. "Pelo menos ela conhece o ardil", pensou a jovem. Rita voltou a cruzar a cena, virando‑lhe as costas, a tempo de receber a cliente. Era uma mulher loura e alta, de meia idade, que beijou Rita na face e trocou com ela algumas palavras que Chris não conseguiu ouvir. Depois, a rapariga ajudou a mulher a despir a bata que a cobria. Ficou completamente nua. Tinha o corpo ainda esbelto e firme, com essas formas cheias e ligeiramente lúbricas do começo da maturidade. Chris, perturbada, desviou os olhos. Tinha a garganta ressequida e serviu‑se de um pouco de água mineral. Quando voltou a olhar para o écran, a cliente encontrava‑se em frente dela, observando‑a atentamente através do vidro. A rapariga ergueu‑se, atónita, à procura da porta, para fugir. Lembrou‑se então que o outro lado da parede era um espelho. A única coisa que a mulher fazia era contemplar o próprio corpo.

         "Acalma‑te, Chris, estás a portar‑te como uma tola", aconselhou‑se a si própria. "Sabes perfeitamente que as pessoas se despem para receber massagens, será melhor que te concentres e estudes o comportamento de Rita, se não queres perder o teu novo emprego." Com esta admoestação em mente, a rapariga voltou a sentar‑se e dispôs‑se a prestar atenção ao que se passava no outro quarto. Rita entrou na cena, surgindo do seu canto invisível, com um copo alto de uísque e gelo na mão. A mulher agradeceu‑lhe com um sorriso e bebeu um longo trago. Depois, dirigiu‑se para o centro do quarto, bebeu outro gole, pousou a bebida no chão e estendeu‑se de barriga para baixo, no cómodo divã.

         Foi então que Rita iniciou o trabalho. As suas mãos afloravam a nuca, os ombros e as costas da cliente, em movimentos igualmente leves e seguros. A mulher fechou os olhos e em pouco tempo o seu corpo começou a relaxar‑se visivelmente, como uma boneca insuflável a quem se tirasse a pouco e pouco o excesso de ar. Os braços penderam, frouxos e descontraídos, a silhueta estendida pareceu perder peso e amoldar‑se brandamente às linhas graciosas do divã. Rita suspendeu a tarefa e voltou a desaparecer do campo de visão. A cliente apenas sorria, de olhos fechados, em estado de beatitude. "Caramba!", pensou Chris. "Esta rapariga é uma verdadeira mestra!" A aludida regressou, trazendo um boião de vidro. Polvilhou o corpo estendido com qualquer coisa parecida com uma cinza cor de ámbar e recomeçou a tarefa. Trabalhava agora na cintura, nas ancas e nas pernas, suavizando paulatinamente os seus movimentos até os transformar em ligeiras carícias. Depois, pousou ao de leve as mãos sobre as nádegas, fazendo‑as deslizar em gestos circulares, que de vez em quando rondavam a entreperna. A mulher teve um estremecimento e virou‑se de barriga para cima. Chris pôde ver‑lhe claramente o rosto: parecia descontrolado, oprimido, tenso. Pronunciou umas palavras e virou de novo a cabeça, com os olhos semicerrados e um esgar de prazer nos lábios. Rita sorriu e, inclinando‑se lentamente, beijou‑a na boca. Chris, sobressaltada, deu um pulo. Pôs‑se erecta, afastando‑se do cadeirão. Uma ideia inquietante começou a penetrar‑lhe confusamente no cérebro. As mãos da jovem massagista percorriam habilmente os seios, os quadris e o ventre da mulher, que estremeceu, de dentes cerrados. Depois, Rita variou de técnica, concentrando a sua manipulação em torno da púbis, coberta por uma penugem espessa e alourada. A mulher, respirando agitadamente, afastou as coxas e deixou pender as pernas para os lados do divã. Todo

o seu corpo se arqueou para cima, como impelido por uma mola invisível. Rita, imperturbável, começou a parte culminante da sua tarefa.

         Chris negou‑se a presenciá‑la. Ergueu‑se bruscamente, tremendo, e virou as costas para o écran, apertando os braços com as mãos. Fora uma estúpida em não ter percebido antes o tipo de negócio que Chantal exercia na Sereia de Ouro e que era o que esperavam dela.

         Abandonou o quarto com andar inseguro, com um travo a náusea. Mais uma vez se sentiu só e encurralada num mundo hostil.

 

Chantal estava de pé, junto da janela. No amplo e luminoso escritório de móveis episcopais, cada detalhe revelava uma sóbria sumptuosidade. Chris abriu a pesada porta de madeira lavrada e por um instante observou a mulher, sem dizer palavra. A outra, de costas para ela, não pareceu dar‑se conta da sua presença. Envolta num conjunto de casaco e calças de seda preta, o seu vulto parecia ainda mais alto e esbelto, ao recortar‑se, imóvel, contra a luz diáfana do meio‑dia.

         ‑ És tu, Chris? ‑ perguntou sem se virar, numa entoação de quem já sabe a resposta.

         ‑ Sim, senhora ‑ respondeu a rapariga, dirigindo‑se para ela.

         Permaneceram ambas diante da grande janela de três corpos, que se abria para a costa rochosa. As vagas azuis do Pacífico iam quebrar‑se contra as pedras, numa nuvem furiosa de espuma branca. Chris observou, como hipnotizada, aquela eterna e inútil demonstração de força e de beleza. Ao fundo, um horizonte quase curvo, no qual a água e o céu apenas se separavam por uma mudança de cambiante na sua cor brumosa.

         ‑ Lindo, não é verdade? ‑ comentou Chantal, olhando pela primeira vez para a jovem.

         Chris concordou sem responder. A mulher sorriu, aflorou distraidamente com os dedos o rosto da rapariga, num esboço de carícia e depois dirigiu‑se para a secretária oval de acaju. Sentou‑se por trás dela, num cadeirão de veludo cor de ocre e começou a folhear uns papéis, com ar distante. A jovem deu uns passos para ela e deteve‑se a meio da sala. Sentiu que a sua determinação começava a fraquejar naquele ambiente irreal. A firme suavidade de Chantal, a calidez luxuosa do seu amplo gabinete de trabalho, aquele oceano formidável espraiando‑se pela janela, pareciam nada terem a ver com a cena duvidosa que presenciara minutos antes.

         ‑ Quero ir‑me embora, Chantal ‑ disse de súbito como a assegurar‑se de que recuperava a sua convicção.

         A mulher levantou os olhos dos papéis e fitou‑a detidamente, sem surpresa. Mas a sereiazinha dourada do peitilho do casaco agitava‑se ao ritmo de uma respiração nervosa.

         ‑ Viste o trabalho da Rita? ‑ inquiriu em tom neutro.

         ‑ Sim ‑ afirmou Chris ‑, e é por isso que me quero ir embora. Acho que não sou capaz de o fazer.

         Os seus olhos sustentaram o olhar límpido e firme de Chantal, que passados uns instantes se desviou lentamente para o mar. - Não quero insistir ‑ disse a mulher ‑, mas talvez devesses tentar. Não é tão difícil como parece.

         Chris observou friamente a ponta dos pés, enquanto procurava as palavras adequadas.

         ‑ Não se trata de ser difícil ‑ murmurou por fim‑, mas de não querer fazer aquele tipo de coisas.

         ‑ Compreendo! ‑ Chantal reclinou‑se no cadeirão e o cabelo escuro fez contraste com o veludo cor de ouro velho do encosto. ‑ Já o esperava, até. ‑ Os seus lábios esboçaram uma espécie de sorriso de despeito. ‑ Mas deixa‑me que te diga que estás enganada. Se te fores embora daqui, depressa estarás a fazer coisas piores e com menos proveito.

         ‑ É possível ‑ admitiu Chris ‑, mas prefiro experimentar.

         ‑ O que se passará com a Polícia?

         A rapariga mordeu os lábios e depois teve um sorriso forçado.

         ‑ Talvez se tenham esquecido de mim.

         ‑ É contigo. Só te quis dar uma oportunidade.

         ‑ Eu sei, Chantal, e agradeço‑lhe sinceramente.

‑ Chris levantou a cabeça e voltou a enfrentar os olhos verdes da sua interlocutora. ‑ Mas não posso aceitá‑la.

         Chantal encolheu os ombros e acendeu um cigarro. A mão tremeu‑lhe ligeiramente ao segurar o isqueiro. Levantou‑se e contornou a mesa com passos lentos, aproximando‑se da rapariga.

         ‑ És uma verdadeira lástima ‑ afirmou. ‑ Eu, no teu lugar, não teria tantos escrúpulos.

         ‑ Não conseguiria fazê‑lo, palavra de honra ‑ insistiu Chris.

‑ Já o disseste! ‑ exclamou a mulher, dirigindo‑se para a porta; ao voltar‑se, o seu rosto recuperara a calma e sorria com veleidade. ‑ Se alguma vez mudares de ideias, o que tens a fazer é regressar. Haverá sempre um lugar para ti na Sereia de Ouro.

         Chantal fez um gesto de resignação e estendeu-lhe a mão. Chris, impulsivamente, deu‑lhe um rápido beijo na face. Depois, abriu a porta.

         ‑ Obrigada, Chantal ‑ murmurou a jovem. ‑ Um dia voltarei a visitá‑la ‑ prometeu.

         ‑ Fico à tua espera ‑ assegurou a mulher e seguiu com o olhar a figura de Chris que se afastava pelo corredor, enfeitado de majólicas.

         Uma vez no quarto, a rapariga despiu a fresca bata verde mar e voltou a vestir a sua coçada roupa de fugitiva. O estabelecimento encontrava‑se discretamente murado e o guarda do portão de acesso mandou Chris esperar, enquanto confirmava pelo telefone se tinha autorização para sair. Depois, mostrou‑se um tanto mais amável e informou‑a que, ao chegar à estrada, poderia apanhar um autocarro que a levaria à cidade. Ela começou a percorrer o deserto caminho privado, debaixo do sol escaldante da tarde.

 

As crianças que brincavam no parque, fazendo deslizar pelo lago os seus barcos de plástico, não prestaram atenção à rapariguinha esfarrapada e de aspecto cansado, que parecia dormitar num dos bancos. Chris tinha caminhado muito nessa tarde. As suas últimas moedas foram gastas no bilhete do autocarro e numa sanduíche que comprara ao chegar. Mordiscando o frugal almoço, percorreu ao acaso as ruas daquela cidade desconhecida e abafada, enquanto a cabeça embotada se recusava a tomar qualquer decisão. Decerto não era fácil. Sem dinheiro, sem amigos e na sua situação, tornava‑se cada vez mais difícil encontrar uma saída. A fuga de Tom para o México fora um duro golpe, mas o fracasso do seu providencial encontro com Chantal tornava‑se demasiado. Nessa altura, só um milagre lhe permitiria levar o seu plano avante. Mas depois do que se passara na Sereia de Ouro, sabia que mesmo os milagres tinham um preço que ela não estava disposta a pagar. Agora, com as pernas doloridas estiradas na vereda e os sapatos na mão, pensou que se um polícia a reconhecesse e a detivesse naquele mesmo instante, de certo modo se sentiria aliviada. "Estás a chegar ao fim, Chris", disse para consigo, "já não te restam mais truques."

         Começou a calçar‑se com lentidão e foi nessa altura que avistou as botas pretas e as calças azuis com orlas brancas que se detinham em frente dela. Levantou vagarosamente a cabeça, recordando um ditado que a avó materna costumava dizer, quando ela era muito novinha: "Basta que menciones o nome do Diabo, mesmo que seja em pensamento, para que ele apareça." Pois o Diabo encontrava‑se ali, fitando‑a com curiosidade. Era um desses velhos polícias de aspecto irlandês e ar protector que costumam aparecer nos filmes, encontrando crianças extraviadas ou sendo espancados à traição por delinquentes sem escrúpulos.

         ‑ O que se passa contigo pequena? Tens algum problema?

A mente de Chris começou a trabalhar desordenadamente, à procura de uma desculpa convincente, enquanto sorria ao paternal agente, inclinado para ela, e se demorava a fazer o nó do sapato. As palavras saíram‑lhe, aos borbotões, dos lábios, sem as conseguir controlar.

         ‑ Acabo de chegar de uma excursão à montanha

‑ ouviu‑se, assombrada, a dizer. ‑ O meu pai está à minha espera no porto, para voltarmos a casa no nosso iate, mas acho que me perdi pelo caminho.

         Já estava dito e não havia maneira de voltar atrás. A única esperança consistia em que a história fosse demasiado incrível para ser inventada. Mas Chris sabia que nesses tempos, aquele estratagema era fraco.

         O veterano polícia lançou o corpo para trás e coçou o pescoço, num gesto de dúvida.

         ‑ Uma excursão, hem? ‑ disse como de si para si. - E onde estão as tuas roupas de montanha?

         ‑ Oh, deixei‑as com Charlie! ‑ afirmou a jovem com uma candura absoluta.

         ‑ Charlie?

         ‑ É o meu.. É o rapaz que sai comigo, percebe? Esta noite vai levar as minhas coisas ao cais e espero que o Papá o convide para jantar a bordo connosco.

         ‑Jantar a bordo?

         O homem parecia cada vez mais surpreendido ou mais indignado, era difícil de perceber.

         ‑ Será uma simples refeição de marinheiro, o senhor sabe. Conservas, cerveja e café. O importante é que Charlie e o Papá se possam conhecer ‑ arriscou Chris, como o maior descaramento.

O polícia estava perplexo. Ela admitiu, para com os seus botões, que se ele lhe pregasse um bom pontapé no traseiro e a levasse até à esquadra por uma orelha tê‑lo‑ia merecido. Mas o homem mais não fez do que suspirar.

         ‑ Que tempos estes ‑ disse ‑, já não é possível distinguir uma galdéria de uma menina de bem. Se fores a primeira, deve haver mais de vinte neste parque e não me subiriam de posto se te metesse na gaiola. Se fores a segunda, o sargento pôr‑se‑á de todas as cores. Que farias tu no meu lugar?

         Chris riu gostosamente, sentindo ter ganho a batalha.

         ‑ Seja eu quem for ‑ fanfarronou ‑, só lhe pedia que me indicasse o caminho do porto. Se tiver dúvidas, pode acompanhar‑me e é possível que o Papá o convide a beber uma cerveja.

         ‑ Não julgues que me desagradaria ‑ afirmou o polícia ‑, mas estou de serviço e é preferível que tentes chegar sozinha. Só tens de ir pelo caminho da esquerda e, na primeira avenida, seguires a direcção do trânsito. Em pouco menos de cinco minutos, estarás no porto.

         ‑ Oh, não sabe quanto lhe agradeço! ‑ assegurou

Chris. ‑ Eu teria ido para o outro lado.

         ‑ Nesta cidade, é fácil uma pessoa perder‑se ‑ afirmou o polícia levando a mão à pala.

         Chris seguiu pela direcção indicada e, depois de caminhar cerca de trinta metros, virou‑se para saudar o polícia, que lhe respondeu com outro gesto informal. Ficou a olhar para a rapariga, que desaparecia na relva, por entre as árvores seculares, até que uma palmada no ombro o arrancou do seu devaneio. Era um jovem colega que fora recentemente designado para aquela zona.

         ‑ Que fazes, Tio Bob? ‑ perguntou o recém‑chegado.

         ‑ Estive a falar com a maior aldrabona da tua geração ‑ declarou o velho alegremente.

         ‑ Espero que não se tratasse desta rapariga ‑ disse o outro, estendendo‑lhe uma fotografia ‑, procuram‑na por fuga, roubo e destruição intencional de documentos. Os do Leste supõem que deve andar por aqui.

         O polícia veterano pegou na pequena cartolina quadrangular e colocou‑a à sua frente, afastando‑a e aproximando‑a até focar nela os olhos cansados.

‑ Não ‑ disse ‑, não se parece nada.

         A tarde caía lentamente, tingindo de reflexos rubros os alpendres e os armazéns portuários, por trás da rede de arame. Mais longe, um céu de chumbo eriçado de mastros e de chaminés de barcos ancorados nos molhes. As lojas de artigos náuticos começavam a fechar as portas, enquanto se iluminavam os letreiros de néon dos bares e das tabernas dos marinheiros dos arrabaldes. A habitual tristeza do crepúsculo tornava‑se mais patente no porto e Chris deu um profundo suspiro, sem saber que rumo tomar. Sentia‑se desamparada e exausta. O tornozelo começara a incomodá‑la outra vez, tinha fome e um profundo cansaço espalhava‑se‑lhe pelos ombros e pescoço, vergando‑lhe o andar vacilante.

         Escolheu uma ruela estreita e afastada, embrenhando‑se por ela à procura de um sítio escondido e tranquilo onde pudesse descansar. O sono latejava‑lhe pesadamente na cabeça e a fome aguilhoava‑lhe o estómago. à sua esquerda, erguia‑se o vulto escuro de um edifício em construção. No passeio oposto, os muros altos e sombrios do depósito de uma companhia marítima. A noite cerrara‑se já completamente, não havia luar e só o clarão distante da esquina, uns trinta metros adiante, desenhava com reflexos bruxuleantes as estruturas metálicas da construção.

         Chris começou a procurar intervalos na cerca que rodeava as obras até que as tábuas cederam aos seus esforços, deixando uma abertura estreita. Esgueirou‑se para dentro e deu dois ou três passos, procurando acostumar os olhos à escuridão. De súbito, uma potente luz acendeu‑se em frente dela, encadeando‑a.

 

‑ Ora! Ora! Olha o que temos aqui!

         A voz aguda e trocista obteve um coro de gargalhadas na escuridão. Chris cobriu os olhos com as mãos para evitar o brilho ofuscante da lanterna.

         ‑ Apaga, Sum. Isto não é Hollywood Bowl ‑ ordenou outra voz, pausada e autoritária. ‑ Tu, boneca, aproxima-te e não tentes armar‑te em esperta.

         A luz executou uma pirueta no ar e apagou‑se. Envolta nas sombras, Chris deu uns passos na direcção da segunda voz. Ao cabo de alguns instantes distinguiu duas silhuetas agachadas contra uma pilha de tijolos. Uma terceira pessoa, sem dúvida a que se chamava Slim, colocara‑se por trás dela, tão próximo que podia ouvir‑lhe a respiração.

         ‑ Não é nada má ‑ opinou Slim, quase sobre a nuca da jovem. ‑ Poderíamos passar um bom bocado com ela. Que dizes, Brian?

‑ Cala‑te, Slim ‑ sussurrou a outra voz do monte de tijolos ‑, vais assustar a menina. Como te chamas, boneca?

         - Magda ‑ disse Chris.

         ‑ Bom, Magda, vais agora dizer‑nos o que estavas a fazer por aqui.

         Brian pôs‑se de pé. Os olhos da rapariga tinham‑se já acostumado à escuridão do lugar e pôde observar, assombrada, que o rapaz usava gravata e casaco. Não lhe pôde distinguir com precisão as feições, mas era, sem dúvida, alto e não parecia muito mais velho que ela.

         ‑ Procurava um lugar para dormir ‑ respondeu Chris com simplicidade.

         ‑ Ai sim? ‑ disse Slim rindo. ‑ Pode‑se dizer que o encontraste!

         Os dentes de Brian brilharam, num sorriso fugaz.

         ‑ Dormes sempre em sítios como este? ‑ perguntou.

         ‑ Durmo onde posso. ‑ Chris fez uma pausa para se encher de coragem, antes de pronunciar a frase seguinte. ‑ Ando a fugir da Polícia.

         A jovem inclinou a cabeça e pôs as mãos nas ancas, deitando o corpo para trás.

         ‑ Que me dizem, amigos? ‑ sibilou velhacamente.

‑ Magdazinha saiu‑nos uma perigosa delinquente! - Deu dois passos em direcção a Chris e um par de olhos vivos brilhou‑lhe no rosto invisível. ‑ Pode‑se saber que crime cometeste?

         ‑ Seria demorado explicar.

         Os olhos pestanejaram e o sorriso alvo iluminou‑se de novo, uns centímetros mais abaixo.

         ‑ Já calculava. ‑ Brian parecia duvidar e estudou Chris em silêncio. ‑ Ouve, Magda ‑ disse depois ‑, não serás tu um bufo dos chuis ou qualquer coisa do género, hem?

         ‑ Dou‑te a minha palavra ‑ respondeu ela solenemente, provocando outra gargalhada gutural de Sum.

         Brian meneou a cabeça e passou a mão pelo cabelo.

         ‑ Trazes contigo dinheiro, "erva" ou qualquer coisa de valor?

         ‑Não.

         ‑ Revista‑a, Slim ‑ ordenou Brian numa voz subitamente dura.

         Chris sentiu no ombro o peso da mão de Slim e

desenvencilhou‑se dele com um rápido safanão, dando um salto para o lado. Instintivamente, tirou a navalha do bolso traseiro dos blue jeans. Fez saltar a lâmina e agachou‑se, tensa, sem tirar os olhos do adversário. O rosto anguloso de Sum denunciava uma estranha expressão de surpresa. Olhou de soslaio para Brian, como a pedir‑lhe conselho.

         ‑ Guarda isso, beleza ‑ aconselhou Brian com calma ‑, podes‑te magoar.

         A rapariga retrocedeu lentamente, vigiando ambos, sem deixar de esgrimir a arma.

         ‑ Diz a esse macaco famélico que se afaste de mim ‑ exigiu.

         Por um momento, os quatro permaneceram calados e imóveis.

         ‑ Faz o que ela diz, Slim ‑ pediu depois Brian, com amabilidade. ‑ Mudei de opinião. É possível que nos possas ser útil.

         ‑ Já sabia que nos poderia ser útil ‑ resmungou Slim, com velhacaria, indo sentar‑se junto do outro companheiro.

Sem se alterar, Brian aproximou‑se lentamente de Chris. Entrou numa zona menos escura e a jovem conseguiu ver‑lhe o fato azul, de bom corte, e o rosto infantil de feições delicadas. O rapaz deteve‑se e com um gesto indicou a navalha.

         ‑ Guarda essa porcaria, se fazes o favor ‑ pediu muito suavemente.

         Chris hesitou uns segundos, estudando aqueles olhos azuis‑claros e penetrantes.

         ‑ De acordo, Brian ‑ disse‑, confiarei em ti.

         Fechou a navalha e meteu‑a no bolso.

        ‑ Assim é que és bonita ‑ aprovou o jovem. - Agora anda e senta‑te connosco. Comeremos qualquer coisa enquanto nos pomos de acordo.

         Estendeu a mão e pegou levemente no braço de Chris, guiando‑a para junto dos outros. Slim fez um gesto de resignação e o terceiro rapaz, magro e de aspecto mexicano, nem sequer olhou para ela.

         ‑ Acende a lanterna entre esses dois sacos ‑ indicou Brian a Slim ‑, assim teremos alguma luz sem que o clarão chegue à rua. Tu, Pablo, ocupa‑te da comida.

         Slim fez uma espécie de pequeno abrigo com dois sacos de cimento e colocou a lanterna no interior. Uma luz ténue iluminou o grupo e Chris teve oportunidade de ver melhor os seus companheiros ocasionais. O nariz rezingão e o queixo firme de Brian; o rosto magro e adunco de Slim, de lábios grossos e olhar ambíguo; o rosto moreno e impenetrável de Pablo que, com gestos parcimoniosos pegou num saco desportivo que se encontrava a um canto e tirou um embrulho de sanduíches e várias latas de cerveja.

‑ Ainda está fresca ‑ comentou Sum, pegando numa das latas.

         Chris aceitou uma sanduíche de queijo e presunto. Brian, com um gesto, recusou a comida, mas abriu uma das cervejas, agachando‑se junto da rapariga.

         ‑ Ouve, Magda ‑ disse‑lhe ‑, como deves ter adivinhado, não estamos a fazer um piquenique. Também temos os nossos problemas e devemos abandonar a cidade quanto antes. Tu para onde vais?

         ‑ México ‑ respondeu ela, mastigando com a boca cheia.

         Slim soltou um assobio.

         Brian bebeu um longo trago de cerveja e atirou a lata para a escuridão.

         ‑ Que pena ‑ disse ‑, nós vamos para o Leste. "O Leste!", pensou Chris. Dali vinha ela. Lá encontravam‑se os Johnson e o reformatório. Também várias dúzias de polícias no seu encalço. Não, senhor, não havia ninguém no Leste que a pudesse ajudar... Ninguém? Uma luzinha de esperança brilhou lá muito ao longe, no desolado horizonte do seu cérebro. Quem sabe se apesar de tudo o encontro com Brian e os seus companheiros acabasse por ser providencial...

         Pousou o resto da sanduíche no chão e limpou os dedos aos blue jeans.

         ‑ Talvez me convenha ‑ sugeriu. ‑ Que me ias propor?

         Nos olhos penetrantes de Brian houve um brilho de entusiasmo.

         ‑ Precisamos de um carro ‑ explicou. ‑ Estava a pensar tomá‑lo emprestado e tu poderias ajudar.

         ‑ A troco de quê?

‑ Se tudo correr bem, atravessaremos o país de uma ponta à outra. Só tens de dizer onde te queres apear.

         Chris meditou uns instantes, observando o chão e coçando o nariz. Depois levantou a cabeça e olhou de frente para o rapaz.

         ‑ Diz‑me o que tenho a fazer.

 

         Uma hora depois, num grande estabelecimento de automóveis de ocasião, Chris conversava com o guarda nocturno. Estava‑lhe a impingir uma complicada história de menina perdida que era uma versão ampliada da que contara ao polícia do parque. O homem escutava‑a com um misto de sonolência e perplexidade, de cotovelos fincados na mesa do confortável gabinete envidraçado. O parque de estacionamento ao ar livre ocupava quase um quarto de quarteirão e mais de metade da sua capacidade estava coberta de carros usados, das mais diversas marcas e modelos. Para facilitar a escolha dos compradores, cada carro tinha o preço pintado sobre o pára‑brisas. Ao fundo, situava‑se o edifício dos escritórios e o salão de vendas. Mais ou menos a meio caminho, para a direita, erguia‑se a guarita de vigilância.

O local estava inteiramente rodeado por uma vedação de tubos de aço e rede e tinha dois portões, um para a entrada dos automóveis e outro, dando para a rua lateral, para a saída destes. De noite, eram ambos fechados com uma grossa corrente. Chris, ao entrar, limitara‑se a desenganchar uma delas e a deixá‑la no chão. Depois atravessara o vasto pátio deserto e batera à porta da casinha.

Enquanto terminava a sua intrincada história, Chris conseguiu descortinar as silhuetas de Brian e dos amigos esgueirando‑se por entre as sombras, à procura do carro adequado aos seus objectivos.

         ‑ É possível que o teu pai tenha cá estado antes de eu começar o turno ‑ sugeriu o homem ‑, mas não depois das oito. Daqui vê‑se o sítio todo e ter‑me‑ia chamado a atenção se alguém tivesse andado a rondar.

         ‑ É estranho ‑ afirmou Chris com o seu ar mais inocente ‑, tenho a certeza que era esta a esquina que combinámos. Não me atrasei mais de meia hora e ele deveria estar aqui à minha espera, para irmos para casa.

         Por cima do ombro do guarda, viu que um dos carros começava a deslizar lentamente em direcção à saída, com as luzes apagadas.

         ‑ Talvez tenha ficado preocupado com a tua demora e fosse à Polícia ‑ sugeriu o homem. ‑ Se quiseres, podes perguntar na esquadra, não fica muito longe daqui.

         ‑ Oh, não queria incomodá‑los.

         ‑ Incomodá‑los? Eles estão lá para isso. Vocês, os jovens, parecem ter esquecido que esse é o sitio a que devem recorrer quando estão em apuros ‑ acrescentou o homem com uma entoação admoestadora.

         ‑ É possível que o senhor tenha razão. ‑ Disse Chris, alargando o sorriso. ‑ De qualquer das maneiras, não posso permanecer aqui a noite inteira.

         - Eu explico‑te como se vai lá ter ‑ disse o guarda, dirigindo‑se para a porta.

         ‑Espere...!

         O homem virou‑se, com uma expressão intrigada.

- Desculpe... O senhor... o senhor não terá por aí uma aspirina? ‑ balbuciou a rapariga, esfregando a testa e as sobrancelhas com um gesto de dor. ‑ Estou com uma enxaqueca terrível... ‑ O homem observava‑a, indeciso.‑Acho... acho que vou desmaiar.

         ‑ Aguenta‑te! ‑ exclamou o guarda, voltando apressadamente para a sua mesa. ‑ Espera um instante, devo ter por aqui qualquer coisa.

         Rebuscou afanosamente nas gavetas, enquanto ela espiava o parque de estacionamento através da vidraça.

O carro franqueava já o portão e alcançava a rua, guiado por mãos invisíveis.

         ‑ Aqui está! ‑ quase gritou o homem, triunfante, agitando uma amachucada embalagem de aspirinas.

‑ Vou‑te buscar um copo de água.

         Dirigiu‑se até ao fundo do compartimento onde havia uma torneira e um pequeno lavatório. Encheu um copo de papel e estendeu‑o a Chris. Esta tirou dois comprimidos e meteu‑os na boca, bebendo depois um longo gole de água. Aquilo da enxaqueca fora um truque para ganhar tempo, mas as aspirinas vinham‑lhe a calhar ao corpo esgotado e ao pé dorido. O homem olhava‑a com ansiedade.

         ‑ Obrigada ‑ disse Chris ‑, vai‑me passar com isto. Desculpe ter‑lhe causado tanta maçada.

         ‑ Não te preocupes. O importante é que consigas encontrar o teu pai. Irás à esquadra?

         ‑ Acho que é o melhor a fazer ‑ afirmou a jovem em tom convencido.

         O guarda acompanhou‑a até à porta e indicou‑lhe o caminho. Chris agradeceu‑lhe de novo e despediu‑se, atravessando depois o escuro parque de estacionamento.

‑ Ouve, pequena!

         Chris virou‑se, com o coração aos saltos.

         ‑ Ao sair, fecha o portão com a corrente. Não quero que me roubem algum carro.

         A jovem assentiu, aliviada. Colocou cuidadosamente a corrente no respectivo lugar e perdeu‑se nas trevas da rua. Depois, de acordo com o que combinara com Brian, virou três ruas à esquerda e duas à direita. Era a primeira vez que colaborava premeditadamente num delito e sentia‑se inquieta. O homem podia ter desconfiado e avisar a Polícia. As coisas tinham corrido com demasiada facilidade e isso não a tranquilizava. Olhou, nervosa, para todos os lados e acelerou o passo. Teve de se dominar para não deitar a correr.

         Brian sorria, muito calmo, recostado contra a porta do quase novo Chrysler preto. Sum, já acomodado no interior, piscou um olho a Chris através do vidro traseiro. Pablo estava a acabar de apagar os números do preço pintados no pára‑brisas. O jovem cabecilha do bando abriu galantemente a porta, a fim de que Chris pudesse subir para o carro. Depois, virou‑se, fez um sinal ao mexicano para subir e instalou‑se ao volante. Sem dizer palavra, conduziu lentamente o carro por um labirinto de ruelas portuárias, até desembocar numa avenida, profusamente iluminada. O Chrysler ganhou velocidade.

         ‑ Bem, meninos ‑ disse Brian ‑, já vamos a caminho.

         Todos sorriram aliviados e Slim acendeu um cigarro, estendendo outro a Brian.

         "Um trio curioso", pensou Chris, recostando‑se no banco. "Pelo que vejo, têm bons motivos para fugir da cidade. Vestem roupas demasiado boas para serem simples vagabundos ou assaltantes de lojecas e o chefe cara‑de‑bebé não largou em qualquer momento aquela pequena maleta de cabedal cor de tabaco. Mesmo para conduzir, colocou‑a entre as costas e o encosto do banco. Seria interessante saber o que contém." Chris sorriu para si. "Não é dinheiro, evidentemente; se fosse, não se teriam arriscado a roubar o carro. Jóias, talvez. Ou qualquer tipo de documentos importantes."

         Como se lhe tivesse adivinhado o pensamento, Brian virou‑se para ela.

         ‑ Deixa de dar voltas à cabeça, Magda ‑ aconselhou. ‑ É melhor que tentes dormir um pouco, ainda faltam várias horas para chegarmos ao teu destino.

         ‑ Se é que chegamos ‑ disse Chris.

         ‑ Oh, não te preocupes! Aqui o Brian cumpre sempre as suas promessas.

         ‑ Assim o espero ‑ murmurou a jovem, recostando‑se e inclinando a cabeça para o lado da janela.

         Pouco depois, fechou os olhos. Um profundo torpor invadiu‑lhe o cérebro, como se fosse um nevoeiro. Foi adormecendo, embalada pelo ronronar do motor e pela trepidação distante das rodas sobre o asfalto.

         Entre as brumas do seu cérebro, emergiram as velhas imagens melancólicas que costumavam ultimamente assediar‑lhe os sonhos: o velho Ben Parker, estendido na cama do hospital, imóvel, perseguindo‑a com o seu olho terrível e desesperado; os arquejos e ameaças de Denny e o seu bando, enquanto a maniatavam, despida, no chão do balneário, misturavam‑se com o rosto alterado de Buster Johnson e o riso trocista de Rita, que se aproximava, flutuando no ar e estendia a Chris as mãos hábeis, esgrimindo aquele macabro cabo azul que servira às companheiras do reformatório para a ultrajarem brutalmente.

         Despertou com as pernas encolhidas, doridas e o peito oprimido pela angústia. Brian abrandara a velocidade até quase parar o carro e os seus dois companheiros inclinavam a cabeça para a frente, entorpecidos. Na estrada, a cerca de cem metros, uma barreira da Polícia interceptava‑lhes o caminho.

         O Chirysler continuou a avançar lentamente até à barreira, guardada por dois agentes da Polícia da estrada. De repente, Pablo, o mexicano, soltou uma espécie de gemido e fincou os dedos no ombro de Brian.

         ‑ Atropela, Brian, atropela! ‑ exigiu. ‑ Se parares, apanhar‑nos‑ão como a ratos.

         ‑ Acalma‑te, pá ‑ disse Brian ‑, sei o que estou a fazer.

         ‑Atropela... pelo... amor de Deus! ‑ gemeu o rapaz, a chorar, dando socos na beira do encosto.

         Slim, com uma fúria impaciente, pegou‑lhe pelo pescoço e arremessou‑o para trás.

         ‑ Cala‑te já, índio ‑ cuspiu com desprezo. Chris olhava, como hipnotizada, para as luzes encarnadas da barreira, que de segundo a segundo se tornavam mais nítidas. Um dos polícias, de botas reluzentes e insígnias de sargento, acendeu uma lanterna.

‑ Que acontecerá se aquele tipo tiver participado o roubo do carro? ‑ perguntou Chris, sem se dirigir a ninguém em particular.

         - Mandar‑nos‑ão para a gaiola ‑ disse Brian.

         ‑ E se atropelarmos a barreira?

         ‑ Mandar‑nos‑ão para o inferno ‑ interveio prontamente Slim ‑, têm ali pelo menos dois carros‑patrulha e sabe Deus quantos chuis mais.

         ‑ Então não há qualquer possibilidade ‑ suspirou Chris.

         ‑ Acalma‑te, beleza ‑ aconselhou Brian. ‑ Acho que não armaram este banzé todo em nossa honra. Não somos peixes tão graúdos. ‑ Retirou o pé do acelerador, deixando o carro deslizar em ponto morto. ‑ Verão agora quanto pode um bom fato e uma gravata de seda ‑ anunciou, travando ao chegar junto do polícia.

         O veículo deteve‑se suavemente e Chris lamentou não se lembrar de nenhuma oração apropriada ás circunstâncias. Brian fez assomar pela janela a cabeça loura, de cabelo bem cortado.

         ‑ Que se passa, senhor guarda? - perguntou em voz educada, que à jovem pareceu demasiado melíflua.

         ‑ Interrompemos a estrada ‑ informou o polícia ‑; acaba de se dar um acidente.

         ‑ Oh, lamento sinceramente ‑ condoeu‑se o jovem.

‑ Não há maneira de passar? Tenho de levar a minha noiva de volta a casa antes da meia‑noite.

         O polícia franziu os lábios num gesto ambíguo. Atrás do Chrysler, tinham‑se já detido outros três ou quatro carros, formando bicha.

         Brian aguardou, serenamente. O homem inclinou‑se e observou fugazmente os ocupantes do veículo. Chris dirigiu‑lhe um sorriso forçado e Slim e Pablo, no banco traseiro, pareciam estátuas talhadas em pedra.

         ‑ Quem são aqueles dois?

         ‑ Amigos da minha região ‑ improvisou Brian com desenvoltura.

         - Está bem, pode passar. Avance devagar pela berma da estrada. Vinte metros adiante, encontrará um atalho, à direita. Siga por aí e faça um desvio, continuando sempre pela esquerda: não perderão mais de dez minutos.

         Três profundos suspiros de alívio quebraram o ambiente tenso do interior do Chrysler. Brian assentiu com um rasgado sorriso, encolheu a cabeça para dentro e meteu a primeira.

         ‑ Obrigado, senhor guarda.

         O homem apoiou a mão enluvada na borda da porta.

         ‑ Um momento ‑ disse ‑, tomarei nota da sua documentação, para o caso de precisar de o mencionar como testemunha.

         O sorriso de Brian gelou.

         ‑ A verdade é que não presenciamos o acidente

‑ argumentou.

         ‑ Oh, é uma simples formalidade..- só para ficar com os dados do primeiro automobilista que chegou ao local do acidente. Garanto‑lhe que não será incomodado. ‑ O polícia puxou de um livrete e pousou os cotovelos no tejadilho do automóvel, de maneira que o seu ventre e o cinturão ficaram enquadrados pela janela.

         Dê‑me a sua carta de condução e os documentos do carro ‑ pediu, estendendo a mão direita, que já empunhava uma esferográfica.

         ‑ Decerto ‑ disse Brian, a sua mão roçou a perna de Chris. ‑ Por favor, dá‑mos, sim, querida?

Sem vacilar, a rapariga, num movimento veloz, puxou da navalha fechada e colocou‑a na mão do rapaz. Este dirigiu‑lhe um gesto imperceptível de aprovação. Nesse momento, outro polícia saiu detrás da barreira e aproximou‑se, a correr.

         ‑ Parece que há um morto, sargento ‑ disse, ofegante. ‑ O médico da ambulância quer falar consigo.

         O agente afastou‑se do Chrysler e deu uns passos para o subordinado.

         ‑ Está bem, Bates. Continue você a desviar os veículos ‑ ordenou, dirigindo‑se, a grandes passadas, para a barreira.

         Bates fez um gesto de assentimento e depois aproximou‑se de Brian.

         ‑ Bom, em que ponto estavam vocês? ‑ perguntou sem grande interesse.

         ‑ O sargento tinha acabado de nos indicar como entrar pelo desvio ‑ informou o jovem.

         - Então avance. Não temos tempo a perder.

         Sem mais comentários, Brian pisou o acelerador e soltou lentamente a embraiagem. O carro avançou e o rapaz fê‑lo deslizar com suavidade pelo espaço reduzido deixado pela barreira. Depois, passaram em frente de um automóvel cuja metade dianteira estava amolgada como um acordeão, com os vidros em estilhaços. Havia um corpo de homem aprisionado no interior, entre a amálgama de ferros retorcidos. O sargento, o médico e o enfermeiro inclinavam‑se para ele, afanando‑se por o extrairem dos restos do veículo. Vários metros adiante, outro enfermeiro prestava assistência a uma mulher, que jazia no pavimento, com as saias levantadas e o rosto coberto de sangue. Finalmente, um camião enorme atravessado, obstruia a estrada a toda a largura juncada de laranjas que tinham tombado do reboque, meio caído na valeta. O camionista, num acesso de nervos, discutia com outro agente, junto do carro‑patrulha. Chris sentiu o estômago revolver‑se. Brian manobrou o volante e o Chrysler entrou aos tombos pelo atalho, que era apenas uma mancha confusa.

         ‑ Virgen santísima! ‑ exclamou Pablo em espanhol, persignando‑se.

         ‑ Escapámos por um triz ‑ disse Slim.

         Chris inclinou‑se para Brian.

         ‑ Devolve‑me a navalha ‑ pediu.

         O jovem sorriu, sem deixar de olhar para o caminho sinuoso, que se embrenhava na noite sem estrelas.

         ‑ Toma ‑ disse ‑, estiveste bestial, Magda. Realmente és corajosa.

         A rapariga guardou a arma e encolheu os ombros.

         ‑ Foi uma tolice ‑ afirmou. ‑ Era só o que nos faltava, ferir um sargento da patrulha.

         ‑ Não disse que pensava usá‑la ‑ esclareceu Brian, acendendo os máximos.

         Os potentes faróis iluminaram o rudimentar atalho que serpenteava por entre pastos amarelos, agitados por uma brisa persistente.

         ‑ Vamos ter tempestade ‑ anunciou Pablo, laconicamente.

         Brian virou para a esquerda e entraram numa estrada pavimentada. Uns minutos depois, desembocavam na estrada principal, ao mesmo tempo que um vento tempestuoso e uma chuva intensa açoitavam os flancos do Chrysler.

Viajaram durante várias horas debaixo do temporal. Chris não tinha sono e olhava, como hipnotizada, para as gotas de água que embatiam no vidro e o vaivém do limpa‑pára‑brisas, que marcava o lento compasso dos segundos. Alguém roncava no assento de trás e Brian conduzia em silêncio, fumando cigarro após cigarro. Encerrada naquela gaiola silenciosa e rodeada de trevas, começou mais uma vez a sentir que a sua fuga não tinha saída. Talvez fosse um grave erro retroceder, afastando‑se do México e regressando ao cenário das suas desventuras. Agora, enquanto o Chrysler corria para o Leste, no meio da chuva, compreendeu que decidira acompanhar os rapazes porque se sentia já incapaz de continuar a deambular sozinha e não porque fosse o melhor dos seus planos. Tudo o que estava a conseguir era voltar ao ponto de partida, implicada no roubo de um automóvel e ajudando um bando que cometera sabe Deus que delito. Quando Brian lhe propusera acompanhá‑los pensara que a única pessoa, à excepção de Tom, que poderia compreendê-la e ajudá‑la era Barbara Clark. Mas à medida que encurtava a distância entre as suas ilusões e a realidade, sentia‑se menos segura de poder encontrar a antiga professora e menos ainda desta acreditar nela e estar disposta a corroborá‑la nos seus planos. Chris deu um estalo com a língua, na escuridão. "De qualquer dos modos", murmurou, "as cartas já estão na mesa."

         ‑ Que estavas a murmurar? ‑ perguntou, surpreendido, Brian.

         ‑ Só pensava em voz alta.

         O rapaz sorriu e voltou a pousar os olhos no caminho.

‑ Tive uma tia‑avó que também falava sozinha, durante a noite ‑ contou. ‑ Acabou metida num manicómio, doida varrida.

         ‑ E no entanto talvez fosse feliz ‑ disse Chris sombriamente.

         O rapaz observou‑a de novo, com um misto de compaixão.

         ‑ Muitos problemas, hem?

         ‑ Bastantes ‑ respondeu ela, suspirando profundamente.

         ‑ Estou a ver. Queres um cigarro?

         ‑ Não, obrigada, nunca fumo.

         ‑ Caramba, miúda! ‑ exclamou Brian com uma gargalhada espontânea. ‑ Não fumas, não bebes, com certeza és virgem, mas andas por aí a fugir da Polícia e a ameaçar as pessoas com uma navalha. E, ainda por cima, falas sozinha. Se não te modificas, vais acabar como a minha tia.

         Houve um momento de silêncio.

         ‑ Não sou virgem ‑ disse Chris de repente.

         ‑ Diabo! ‑ resmungou Brian. ‑ Essa, sim, é uma boa notícia.

         ‑ Por favor não troces.

         ‑ Ora vamos, Magda, não sejas ridícula! ‑ Brian olhou‑a com malícia e deu‑lhe uma palmada amigável na coxa.

         O rapaz soltou uma gargalhada. O olhar de Chris tornou‑se sombrio.

         ‑ Fui violada ‑ disse sem inflexão. ‑ Por duas vezes.

         Brian, pondo‑se sério de repente, retirou a mão e cravou o olhar na chuva. Pestanejou várias vezes e engoliu em seco. Depois, para fazer qualquer coisa, pegou no lenço e com um gesto nervoso limpou o pára‑brisas embaciado.

         ‑ Lamento sinceramente ‑ disse em voz rouca. ‑ A minha vontade era enforcar os tipos que fazem dessas coisas.

         ‑ E as tipas ‑ acrescentou Chris.

         Ao amanhecer, o temporal passara a um chuvisco miudinho. O céu foi clareando lentamente, com uma luz macilenta e o Chrysler entrou na cinzenta paisagem suburbana, enquadrado pela ténue cortina de chuva.

         ‑ Estamos a chegar ‑ anunciou Brian ‑, onde queres descer?

         ‑ Para mim é igual ‑ respondeu ela.

         ‑ Eh, Brian, tenho fome! ‑ queixou‑se Slim, espetando o nariz adunco. ‑ Não poderíamos parar e tomar o pequeno‑almoço?

         ‑ Ainda não é conveniente. Deixaremos Magda e viajaremos ainda umas duas horas.

         O carro meteu pela cidade por uma avenida semideserta. Era ainda cedo e só uns escassos transeuntes transitavam diante das lojas fechadas. O pouco trânsito do amanhecer circulava de luzes acesas, devido à pouca visibilidade daquela hora, agravada pela chuva miudinha. Brian reduziu a velocidade e conduziu o carro para junto do passeio, olhando para um lado e para o outro. Deteve‑se na entrada de uma rua e, depois de deitar uma olhada, virou à direita. Uns trezentos metros mais abaixo, entrevia‑se o vulto pardacento de uma estação de caminhos de ferro. O rapaz travou diante das portas envidraçadas de um bar, que mostrava um movimento apreciável de clientes, apesar do cedo da hora.

‑ Poderás tomar aqui qualquer coisa quente sem chamar a atenção ‑ disse a Chris. ‑ Não vás para a rua até a cidade animar um pouco. Os polícias, a estas horas, andam à pesca e em minutos terias um a fazer‑te perguntas difíceis. Percebes?

         ‑ Percebo.

         ‑ Se tiveres de andar, fá‑lo pelas ruas mais concorridas e com naturalidade. Trata de te misturares com as pessoas e põe uma cara de saberes muito bem para onde vais. De acordo?

         ‑ De acordo, professor ‑ respondeu Chris, piscando‑lhe um olho.

         ‑ Bom ‑ concordou o rapaz ‑, vou descer para dar uma olhadela.

         Ela virou‑se para o banco de trás. Slim espreguiçava‑se ruidosamente e Pablo observava‑a impassível. Parecia não ter dormido nem ter mudado de posição em toda a noite.

         ‑ Adeus, rapazes. Foi um prazer conhecê‑los ‑ disse com um sorriso.

         Sum balançou‑se para a frente e apertou‑lhe a mão.

         ‑ Adeus, beleza, toma cuidado contigo.

         ‑ Boa sorte, Magda ‑ sibilou formalmente o mexicano.

         Pareceu a Chris que sorria, embora não pudesse assegurá‑lo.

         Brian esperava‑a à porta do bar. Ao aproximar‑se dela, pegou‑lhe no braço e puxou‑a para um lado.

         ‑ Parece um bom lugar ‑ disse. ‑ Tens dinheiro?

         ‑ Sobram‑me algumas moedas.

         O rapaz meteu a mão no bolso das calças e tirou algumas notas enrugadas.

‑ Posso emprestar‑te dez dólares ‑ propôs.

         ‑ Cinco chegam.

         Tirou duas notas de cinco e colocou‑as na palma da mão de Chris. Fechou‑lhe a mão e manteve‑a entre as suas, observando‑a firmemente. A sua segurança de candidato a gangster parecia ter‑se esfumado, para dar lugar a uma timidez comovente.

         ‑ Eh... tens a certeza que... preferes ficar aqui...?

‑ balbuciou.

         Chris pestanejou, surpreendida.

         O rapaz cravou o olhar na biqueira dos sapatos e meneou a cabeça.

         ‑ Ouve, Magda... Se... Se quiseres continuar connosco... Posso convencer a malta.

         ‑ É muito generoso da tua parte, Brian, mas julgo que não é uma boa ideia.

         ‑ Palavra de honra que gostaria ‑ insistiu ele..-.... simpatizo contigo e se tudo correr bem...

         ‑ É mais fácil que tudo corra bem se cada um seguir o seu próprio caminho ‑ interrompeu ela com firmeza. Agora põe‑te já a mexer, é perigoso estar na rua a estas horas.

        ‑ É verdade ‑ concordou ele com um sorriso triste ‑, os chuis andam à pesca.

- Adeus, Brian, e obrigada por tudo.

         O rapaz largou‑lhe a mão e Chris retrocedeu uns passos.

         ‑ Voltar‑nos‑emos a ver ‑ disse.

         ‑ Decerto. Não deixes de visitar de vez em quando as obras de construção.

         ‑ Descansa que visitarei ‑ prometeu ele, rindo, e subiu para o automóvel.

Chris chamou‑o, procurando fazer‑se ouvir no meio da trepidação do motor.

         ‑Brian...? ‑ ele olhou‑a, arqueando as sobrancelhas. ‑ Também simpatizo contigo.

         O rapaz assentiu com um rasgado sorriso e o carro pôs‑se em andamento. Chris ainda conseguiu ver Sum dar uma palmada no ombro de Brian, com um gesto trocista, antes do Chrysler acelerar e contornar a esquina. Deu um suspiro e entrou no bar. Era um desses locais típicos, impessoais e heterogéneos, próximos das estações ferroviárias. Nele misturavam‑se empregados a caminho do escritório, ociosos madrugadores, viajantes ocasionais e trabalhadores nocturnos que bebiam um refresco antes de regressarem a casa. Se havia um lugar na cidade onde podia passar despercebida, era ali, pensou, aprovando a escolha de Brian. Optou por uma mesa isolada e vários minutos se passaram antes que um empregado cinquentão se aproximasse, arrastando vagarosamente os pés.

         ‑ Um café e uma torrada com manteiga, se faz o favor ‑ pediu Chris.

         ‑ Leite também?

         ‑ Não, só café. Poderia trazer‑me por um instante a lista telefónica?

         O homem esboçou um gesto de resignado aborrecimento, como se estivesse cansado de toda a gente lhe pedir a cada instante coisas absurdas.

         ‑ Não posso trazê‑la às mesas ‑ informou. ‑ Encontrá‑la‑á nas cabinas telefónicas, junto da caixa.

         Reconfortada com a torrada estaladiça e com o quente amargo do café, Chris dirigiu‑se, minutos depois, ao sítio que o empregado lhe indicara. Uma caixeira amável e ruiva trocou‑lhe algumas moedas e meteu‑se numa das cabinas. Fechou a porta e consultou o primeiro volume da lista. Era o seu dia de sorte. Barbara figurava ali e era das primeiras, entre os muitos Clark que por ordem alfabética preenchiam mais de duas páginas. Chris marcou cuidadosamente o número. Do outro extremo, o telefone tocou várias vezes, até que alguém levantou o auscultador.

         ‑Sim...? Faz favor... ‑ murmurou uma voz sonolenta.

         Era Barbara Clark.

         Sem dizer palavra, Chris pousou o auscultador. Só desejava saber se a mulher estava em casa, mas não queria alertá‑la sobre a sua visita. Releu três vezes o endereço que figurava na lista: Yellowstone Street, número 42, oitavo andar.

         ‑ Por favor, onde fica a Yellowstone Street?

         A banca de jornais da estação parecera‑lhe um sítio apropriado para fazer a sua averiguação, dado que muitos passageiros costumavam pedir informações e era mais fácil passar despercebida. Para maior segurança, tinha comprado um matutino da cidade e uma revista de música moderna. Enquanto lhe entregava o troco, o jornaleiro coçou o lóbulo da orelha, franziu o sobrolho e com o olhar consultou o ajudante.

         ‑ Que dizes, Sam? Essa rua fica para norte, não é verdade.

         ‑ Não, senhor ‑ respondeu o rapaz. ‑ Você está a referir‑se ao Yellow Park. Mas há uma Yellowstone Street que atravessa a avenida, pouco antes de chegar ao supermercado. ‑ Olhou apreciativamente para Chris. - Para ir a pé, fica longe.

‑ Estou habituada ‑ disse ela.

         ‑ Bem, indicar‑te‑ei como hás‑de lá chegar.

         Minutos depois, Chris subia a avenida, sem pressa, detendo‑se nos semáforos e deixando‑se levar pelo formigueiro humano que àquela hora invadira já os passeios. Uma tímida luz de esperança havia‑lhe renascido no coração.

 

‑ Christine Parker!

         Barbara Clark abafou a sua exclamação de assombro levando os dedos aos lábios. Permaneceu na soleira da porta, paralisada, de boca aberta e os cabelos louros caindo em desordem em torno do seu bonito rosto sem maquilhagem. Chris olhou‑a fixamente. Ainda estava a tempo de deitar a correr e desaparecer pelas escadas. Mas o olhar surpreendido de Barbara, sob as pálpebras ainda inchadas pelo sono, parecia revelar uma expressão amistosa. A rapariga decidiu arriscar‑se.

         ‑ Posso entrar? ‑ perguntou.

A mulher desviou‑se para um lado e abriu totalmente a porta. Chris respirou fundo. Deu dois passos, deteve‑se um instante à entrada e depois entrou no apartamento, banhado pela claridade da manhã. Ouviu o ruido do trinco a dar uma volta e imaginou Barbara encostando‑se à porta fechada. Mas não se virou. Contemplou com ar de aprovação o calor informal da sala, decorada com objectos artesanais e recordações de viagens. Havia um cómodo fogão de sala de estilo rústico e do outro lado, junto à luminosa janela, uma parte adaptada de molde a servir como lugar de trabalho: prateleiras repletas de livros, uma mesa de escritório com mais livros, papéis, uma máquina de escrever e um cinzeiro cheio de beatas. De uma maneira vaga e imprecisa, Chris sentiu que invejava profundamente o estilo de vida independente, atarefado e livre que aquele lugar parecia sugerir. Sorriu interiormente ao recordar que as raparigas costumavam comentar que a "Mãe" Barbara devia meter‑se numa espécie de sarcófago quando terminava as aulas no reformatório. Aquele sítio não era, decerto, um sarcófago, e Chris não teria estranhado se se lhe deparasse um pressuposto professor de Psicologia a dormir nú no quarto contíguo.

         ‑ Está tudo um pouco desarrumado. Ontem trabalhei até muito tarde ‑ explicou Barbara, como uma dona de casa apanhada em falta.

         ‑ É um apartamento muito bonito ‑ comentou a jovem, contemplando uma passamana mexicana que revestia uma das paredes e a recordação de Tom embargou‑lhe um pouco a garganta.

         Barbara acomodou‑se num dos cadeirões. A camisa de noite abriu‑se, deixando ver as suas pernas bem torneadas. "Para a idade tem uma figura excelente", pensou Chris, "deve rondar os trinta anos." Com um gesto cordial, a professora indicou‑lhe o outro cadeirão.

         ‑ Bom, temos muito que falar, Chris ‑ disse suspirando. ‑ Desta vez meteste‑te num grande sarilho.

‑ Parece que sim ‑ admitiu a rapariga, atirando‑se para o macio assento de tecido ‑, ainda estou para compreender como tudo aconteceu.

         A mulher inclinou‑se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.

         ‑ Terás tempo para me explicar ‑ disse em tom compreensivo. ‑ O importante é que decidiste voltar e ficar sob a alçada da Lei.

         Chris levantou de súbito a cabeça e todo o seu corpo retesou‑se. Os olhos brilharam à contra‑luz, com um misto

         de desafio e de medo.

         ‑ Não me vim entregar ‑ afirmou.

         ‑ Pensei que... ao vires aqui... ‑ balbuciou Barbara, desconcertada.

         ‑ Só desejo falar consigo. Não tenho mais ninguém.

         A mulher mordeu os lábios e fez um esforço para se dominar. A sua cabeça esboçou um gesto de assentimento.

         ‑ Compreendo ‑ disse, pondo‑se de pé. - Queres uma chávena de café?

         ‑ Já tomei o pequeno‑almoço.

         ‑ Pois eu ainda não, vou preparar um pouco. ‑ Barbara dirigiu‑se para a cozinha, separada do quarto por um arco rectangular. ‑ Acho que vou precisar dele.

         Chris permaneceu sentada, mordiscando o polegar. A coisa não ia bem. Aquela mulher tinha‑lhe afecto mas a sua solidariedade condicionava‑se a que ela se comportasse como uma "boa menina", capaz de ser redimida segundo os seus próprios moldes. Ou seja, passando pelo juiz e pelo reformatório. "Chantal tinha razão", pensou Chris, enquanto a outra se atarefava na cozinha. "Fui uma estúpida em não aceitar o trabalho."

Mas agora estava ali e era inútil lamentar‑se. Começou a meditar na forma mais convincente de expor a Barbara o seu plano. Esta sorria‑lhe, enquanto pousava duas chávenas e um açucareiro na mesinha.

         Acompanhas‑me? ‑ perguntou. ‑ Posso fazer‑te uns ovos.

         A rapariga encolheu os ombros. Depois levantou‑se e foi‑se sentar numa das banquetas, junto da mesa.

         ‑ Beberei só café ‑ disse.

         A mulher concordou sem deixar de sorrir e regressou com a cafeteira fumegante. Encheu as duas chávenas até à borda e aproximou uma caixa de biscoitos de queijo. Tirou um e começou a mastigá‑lo maquinalmente, com olhar cravado em Chris.

         ‑ Bom, o que foi que aconteceu realmente? ‑ perguntou.

         Chris observou‑a com desconfiança, ocultando‑se por trás da chávena.

         ‑ O que foi que lhe contaram?

         Barbara afastou uma madeixa de cabelos da cara. A sua expressão tornou‑se sombria e a sua voz soou com uma certa dureza.

         ‑ Há uma grave acusação contra ti ‑ declarou.

‑ Na ausência dos teus tutores, destruiste documentos importantes e fugiste levando quinhentos dólares.

         ‑Cinquenta ‑ corrigiu Chris.

         Barbara continuou a falar:

         ‑ Faz já três dias que andas fugida da Justiça e cada hora que passa agrava mais a tua situação.

         Chris encolheu os ombros e teve um gesto depreciativo.

         ‑ E muitos mais passarão. Não faço tenções de me entregar.

Barbara, inquieta, desferiu um soco, com o punho, na mesa.

         ‑ Que diabo, Chris ‑ exclamou ‑, deixa de te portares como uma garotinha malcriada! Não compreendes a gravidade do que fizeste? ‑ A professora afastou a chávena de café e apoiou os dedos nas têmporas, fazendo um esforço para se acalmar. ‑ à parte o prejuízo que causaste aos Johnson, estavas sob a custódia da nossa escola ‑ disse; depois, a sua voz tornou‑se mais áspera. ‑ Aproveitaste uma situação de privilégio e isso é ainda mais grave do que se tivesses fugido directamente do reformatório!

         Chris permaneceu em silêncio, alinhando meticulosamente uma fileira de biscoitos de queijo em frente do prato. Os ruídos da rua penetravam pela janela entreaberta, abafados e distantes. Barbara, com um gesto nervoso, bebeu o resto do café, que já esfriara.

         ‑ Tive as minhas razões ‑ murmurou a jovem.

         A professora meneou a cabeça e os seus lábios desenharam um ricto de amargura.

         ‑ Ouve‑me, Çhris ‑ disse com uma suavidade inesperada ‑, estou de acordo com o facto do nosso "pesebre", como vocês lhe chamam, poder não ser o sítio ideal para recuperar uma jovem que se extraviou. Também entendo que seja possível que os Johnson não tenham compreendido a tua situação e talvez te tenham humilhado ou insultado. Sei que essas coisas acontecem e que são desagradáveis. Mas há outras maneiras de...

         ‑ Johnson é um mentiroso nojento! ‑ exclamou Chris, pondo‑se de pé e dirigindo‑se para a sala.

Barbara pareceu notar uma convulsão nos ombros da rapariga, como se abafasse um soluço. Passou a língua pelos lábios e levantou‑se lentamente. Pigarreou para afastar a emoção que lhe embargava a garganta e esforçou‑se para que a voz saísse neutra.

         ‑ Estás a tentar dizer‑me que aquilo do roubo e da fuga é mentira?

         De costas para ela, recortada pelo sol intenso que queimava os vidros, a cabeça de Chris inclinou‑se para trás e a jovem emitiu um som gutural. Podia ser um novo soluço ou possivelmente o começo de uma gargalhada, sufocada pelas suas palavras.

         ‑ Oh, evidentemente que é verdade! ‑ exclamou com voz tensa. ‑ Deveria ter visto como ficou aquele maldito escritório!

         Chris virou‑se. Os seus olhos húmidos e magoados encararam a sua antiga professora.

         - Só que esse porco do Buster se esqueceu de mencionar um pequeno detalhe...

         ‑ Qual? ‑ perguntou Barbara, desejando não o fazer.

         ‑ A sua própria participação em toda a história.

         ‑ A sua participação... Tu estavas sozinha em casa.

         A cabeça de Chris negou com veemência. O seu cabelo agitou‑se no ar e depois caiu‑lhe sobre a cara, como se tivesse sido acometida por um ataque epiléctico.

         ‑ Não é verdade! ‑ gritou. ‑ Ele estava comigo!

‑ deixou‑se cair sobre o sofá, os seus dedos cravaram‑se no estofo, procurando conter o tremor involuntário que lhe percorria o corpo; mais calma, respirou profundamente antes de prosseguir o seu relato: ‑ Eileen levou Charlie ao aeroporto. Imediatamente Buster subiu ao meu quarto, procurando conversa. Bebera muito e pretendeu tirar‑me a navalha que Charlie me oferecera. Resisti e então começou a espancar‑me e a insultar‑me, atirou‑me para cima da cama e obrigou‑me...

         ‑ Queres dizer que abusou de ti? ‑ perguntou Barbara num fio de voz.

         ‑ Quero dizer que me violou.

         A dura palavra encheu a sala inteira, como um ar pesado. Barbara, visivelmente tensa, dirigiu‑se à secretária e tirou um cigarro. Ao acendê‑lo, as mãos tremiam‑lhe. Chris perscrutou com ansiedade o rosto da mulher.

         ‑ Não acredita em mim, não é verdade?

         ‑ Não sei o que pensar, Chris. ‑ Barbara expeliu uma fina nuvem de fumo dos lábios comprimidos. ‑ Se o que dizes é verdade, a situação muda completamente de figura.

         ‑ Deixar‑me‑iam em liberdade?

         ‑ Talvez não. Mas seria uma atenuante fundamental.

         Pela janela, a mulher olhou para os telhados cinzentos, eriçados de antenas de televisão. Era evidente a luta que lhe ia no interior e Chris sentiu que tinha de inclinar a balança a favor dela.

         ‑ Barbara, você conhece‑me ‑ disse em voz pausada. ‑ Sabe que não teria fugido daquela casa se não tivesse um motivo tão horroroso como este.

         ‑ É possível ‑ disse Barbara, na dúvida. ‑ Sei também que já uma vez acusaste alguém injustamente, para te livrares do castigo.

         ‑ Refere‑se a Lasko?

         Barbara assentiu. Chris abriu os braços num gesto de impotência e soltou um profundo suspiro.

- Pois desta vez é verdade ‑ murmurou.

         ‑ É a tua palavra contra a de Johnson.

         ‑ Claro! ‑ A jovem dirigiu‑lhe um olhar inflamado e raivoso. ‑ E vocês preferem sempre acreditar nele! Eu estou do outro lado da rede.

         A professora acusou o impacto. Instintivamente, deu uns passos para Chris e com a ponta dos dedos acariciou a cabeça inclinada e rígida da rapariga.

         ‑ Torna‑se difícil acreditar em ti, Chris. Sobretudo quando já passaram três dias. Se esse homem se comportou como dizes, porque não recorreste imediatamente à Polícia, ou a mim, como o fazes agora?

         Chris virou a cabeça, esquivando‑se à carícia da mulher e observando‑a com frio rancor.

         ‑ Nunca foi violada, pois não, Barbara.

         A professora abriu desmesuradamente os olhos, pestanejou várias vezes e endireitou as costas.

         ‑Não... ‑ balbuciou. ‑ Evidentemente que não...

         ‑ Depois de uma coisa dessas, uma pessoa só pensa em fugir..., ou em vingar‑se ‑ disse Chris em voz rouca; tirou a navalha do bolso e mostrou‑a à mulher, mantendo‑a entre o polegar e o indicador. ‑ Estive prestes a matá‑lo, com isto. Talvez devesse tê‑lo feito.

         Atirou a arma para o cadeirão que se encontrava na sua frente e permaneceu calada e pensativa. Barbara sentiu uma onda de ternura e de comiseração pela rapariga, mas não ousou acariciá‑la de novo.

         ‑ Não és uma assassina, Chris ‑ disse.

         ‑ Ninguém é nada enquanto as coisas não acontecem ‑ respondeu a jovem com tristeza. ‑ Johnson não é um violador, eu não sou uma ladra e você não é delatora. Mas ele violou‑me e moeu‑me de pancada, eu roubei‑lhe cinquenta dólares e você vai‑me denunciar á Polícia. ‑ Chris esboçou um sorriso triste. ‑ Ou não é o que está a pensar fazer?

         ‑ Fá‑lo‑ei, se estiveres de acordo.

         - Nunca conseguirá convencer‑me, Barbara. Não sou assim tão estúpida.

         ‑ Mais tarde ou mais cedo apanhar‑te‑ão.

         ‑ Talvez não, se me ajudar.

         Barbara Clark olhou fixamente para a ex‑discípula. Os seus olhos inteligentes brilharam com um clarão divertido.

         ‑ Estás a propor‑me que seja tua cúmplice?

         Chris deslizou para a beira do sofá e levantou o rosto para Barbara com uma expressão a um tempo decidida e suplicante.

         ‑ Só lhe proponho um acordo ‑ disse. ‑ Estou disposta a assinar uma confissão sobre os danos, os dólares e essas coisas. Mas também farei uma descrição detalhada do que Buster me fez naquela noite. ‑ Chris agarrou‑se à camisa de dormir da professora. ‑ Levará por mim ambas as coisas ao juiz e ele saberá em quem acreditar. Charlie Johnson pode testemunhar que o Tio Buster ficou em casa naquela noite. Talvez Stella tenha também ouvido qualquer coisa.

         ‑ Parece razoável ‑ concordou Barbara. ‑ Entretanto, que farás tu?

‑ Irei ao México procurar Tom. Aqui entra você de novo. ‑ A rapariga franziu o sobrolho e recostou‑se nas costas do sofá. ‑ Preciso que me empreste dinheiro para a viagem, acho que trezentos dólares chegarão.

         A mulher sorriu e meneou a cabeça, como se não pudesse acreditar no que ouvia.

‑ Estás completamente louca ‑ afirmou.

         ‑ Em menos de uma semana estarei de volta com o meu irmão. Apresentar‑me‑ei e acatarei a decisão do juiz, seja ela qual for. - A voz de Chris assumiu um tom desesperado: ‑ Ajude‑me, Barbara; estou no direito de o tentar! Tom tem agora um bom emprego no México. Poderá pagar os prejuízos e devolver‑lhe a massa, juro‑lhe!

         Barbara sentou‑se junto da rapariga e reteve uma das mãos dela entre as suas.

         ‑        Não se trata do dinheiro, Chris. Acontece que o teu plano é uma loucura completa. Como farias para chegar ao México? Andas fugida da Justiça e nem sequer tens passaporte.

         ‑        Há maneiras... ‑ sugeriu Chris.

         ‑        Ilegais. Mais não farias que acrescentar novos delitos aos que cometeste. E aposto que nem sequer tens a direcção de Tom

         ‑        Não... ‑ reconheceu a rapariga, com um ricto de tristeza.

         ‑        Já vês. Por outro lado, nenhum juiz prestará atenção à denúncia de uma fugitiva. Só apresentando‑te poderás conseguir uma sentença justa.

         Chris estremeceu e esfregou os ombros, como se sentisse frio. Depois levantou‑se e dirigiu‑se até à janela. Em baixo, na rua, os automóveis pareciam de brinquedo e os transeuntes, pequenos insectos apressados.

         ‑        De maneira que não me vai ajudar ‑ murmurou.

         ‑        Não da forma que tu propões. Mas estou disposta a ir contigo fazer essa denúncia ao juiz e testemunhar a teu favor.

‑ Não vou apresentar‑me a nenhum maldito juiz!

‑ gritou Chris fora de si, batendo com o pé no chão.

         ‑ Como queiras ‑ disse Barbara com solenidade, pondo‑se de pé.

         A rapariga virou‑se e, por um momento, as duas entreolharam‑se com receio.

         - Suponho que vai chamar a Polícia ‑ disse Chris, em tom de desafio.

         Barbara fechou os olhos por um instante. Quando os voltou a abrir, o seu rosto tinha serenado.

         ‑ Dir‑te‑ei o que vou fazer ‑ anunciou. ‑ Tomarei um banho e mudarei de roupa. A porta da rua não tem chave. Se quando acabar ainda estiveres aqui, chamarei a Polícia.

         ‑ E caso contrário?

         ‑ Caso contrário, dar‑te‑ei três horas de avanço e, de qualquer das formas, chamarei...

         A mulher dirigiu‑se ao cadeirão e pegou na navalha espanhola.

         ‑ Guardar‑te‑ei este brinquedo por uns tempos

‑ anunciou. ‑ De momento, não precisarás de apanhar laranjas.

Sem se virar, dirigiu‑se para a casa‑de‑banho e fechou‑se nela. Pouco depois, Chris ouviu correr a água do duche. "Maldita e cobarde intrometida!", pensou. Deu um safanão ao cinzeiro, que se ergueu no ar e rolou depois pela alcatifa, jucando‑a de cinza e de beatas retorcidas. "Julga‑se muito esperta, com os seus ares de promotor de Distrito". Resmungando, revistou rapidamente a desarrumada mesa de escritório. Um livro qualquer caiu no chão. Sem se preocupar com o barulho que fazia, Chris remexeu as gavetas, não encontrando o que procurava. Depois, dirigiu‑se para o quarto de dormir. Não havia ali qualquer amante escondido, mas umas notas sobre a mesinha de cabeceira: dezoito dólares e algumas moedas. A jovem voltou a colocar

o dinheiro no sítio e deu um suspiro. Lentamente, regressou à sala e deteve‑se em frente da porta da entrada. Fincou os polegares na cintura dos blue jeans e contemplou a placa de madeira polida orlada por uma moldura mais escura. Considerou as possibilidades que teria lá fora e o seu balanço não foi muito optimista.

Mas seria melhor que nada. Estendeu a mão e apoiou‑a no trinco, que cedeu com facilidade. Com a língua entre os dentes, assomou ao estreito patamar que conduzia ao elevador e à rua. Depois, voltou para trás e fechou a porta. Deu uma volta e atirou‑se para o sofá, ocultando o rosto entre os braços. Um pranto sentido, curto e silencioso, subiu‑lhe do peito para a boca e para os olhos.

         Barbara reapareceu, penteada e maquilhada, vestindo uma blusa branca e uma saia cor de tabaco. Contemplou o corpo estirado no sofá, que estremeceu, emitindo apenas um breve gemido. Depois aproximou‑se do telefone e começou a marcar o número. Manteve uma breve conversa e desligou. Chris observou‑a de olhos marejados, por sob o cotovelo dobrado por cima da cabeça.

         ‑ Vêm já ‑ disse Barbara.

 

Stella remexeu o corpo no banco dos réus. O seu vasto traseiro ultrapassava os limites do reduzido assento de madeira e as coxas gordas espreitavam pelas varetas laterais. O juiz Turner contemplava‑a pacientemente, aguardando que respondesse à sua pergunta, com a mão apoiada no queixo e o corpo um tanto inclinado para a frente, por cima da mesa. A mulata pensou que tinha aspecto de um homem demasiado jovem para o cargo, mas também metia medo, sentado ali em cima, com a sua toga negra e a sua voz grave e autoritária.

         ‑ Não, senhor... ‑ respondeu finalmente a mulher.

‑ Não estava presente quando os Senhores Johnson foram para o aeroporto. Naquela noite tiveram visitas e depois de eu ter servido as bebidas, a Senhora Eileen deu‑me licença para me retirar. Lembro‑me que comi qualquer coisa na cozinha e que depois fui para o meu quarto e me deitei a ler uma revista. Devo ter adormecido em poucos minutos.

O jovem magistrado anuiu. A sua mão foi até à orelha e começou a coçar o lóbulo, num gesto maquinal. Depois pegou na esferográfica e anotou qualquer coisa nos papéis, antes de formular a pergunta seguinte:

         - A senhora ouviu algum ruído fora do comum, gritos ou discussão, durante a noite?

         ‑ Durante a noite? Não senhor. ‑ Stella sorriu e meneou a cabeça, num gesto expressivo. ‑ Embora seja obrigada a dizer que tenho o sono muito pesado... A casa poderia vir abaixo que eu nem sequer pestanejaria...

         ‑ Compreendo ‑ disse o juiz com um sorriso fugaz.

‑ Quando se deu conta do ocorrido

         - Na manhã seguinte. Então, sim, houve cá um rebuliço! O Senhor Buster levantou‑se mais cedo que o costume e as pragas que disse quando entrou no escritório deviam ouvir‑se no bairro inteiro.

         ‑ Christine Parker já não se encontrava lá?

         A mulata fez um gesto de assombro. Os seus olhos redondos abriram‑se ainda mais, ressaltando sobre a pele morena.

         ‑ Chris? Claro que não - afirmou. ‑ Pois se fora ela quem provocara toda aquela destruição...!

         ‑ De acordo ‑ interrompeu o juiz. ‑ Uma última pergunta: notou qualquer coisa de estranho na conduta de Christine, nos últimos dias?

         Stella mordeu o grosso lábio inferior e entrecerrou os olhos.

         ‑ Estranho? Bem... não diria que fosse "estranho", na idade dela..., mas andava de cabeça maluca pelo Menino Charlie ‑ a mulata soltou uma risada inesperada. ‑ Chegou até a dizer‑me que o rapaz se ia embora porque o tio o tinha apanhado a beijá‑la! Veja o senhor.

‑ Ou seja que Christine estava, digamos, aborrecida com o tutor.

         ‑ Foi o que me pareceu ‑ confirmou a mulher.

‑ Mas o senhor sabe como são as raparigas.

         O juiz Turner fez um gesto ambíguo, que parecia indicar não estar tão certo de saber "como eram as raparigas". Deu o interrogatório de Stella por terminado e agradeceu‑lhe muito formalmente que tivesse prestado a sua colaboração. A mulher desfez‑se em sorrisos e vénias e pôs‑se de pé, um tanto desconcertada. O oficial de diligências aproximou‑se dela e conduziu‑a através da sala vazia até à porta. Salvo o próprio juiz, só participavam nessas audiências um escrivão calvo e magro, que revia com parcimónia as suas notas, na pequena secretária que ocupava, à esquerda da mesa.

         O oficial de diligências consultou um papel que trazia no bolso e desapareceu atrás da porta. No silêncio da sala, ecoaram, nítida e remotamente, os sons de um campanário. O magistrado fechou os olhos e esfregou as pálpebras, num gesto de cansaço. Quando voltou a abri‑los, Charlie Johnson atravessava a sala, com uma atitude desenvolta. O escrivão confirmou a sua identificação e depois, num susurro, indicou‑lhe para subir para o banco dos réus. Quando o rapaz se sentou, o homem calvo pôs‑se de pé e pigarreou:

         ‑ Comparece Charles Winston Johnson, de dezassete anos; que declara apresentar‑se a instancias deste Tribunal, por sua própria vontade e com a autorização dos pais ‑ anunciou em voz solene.

         O juiz assentiu e fez um leve gesto ao escrivão, indicando‑lhe que podia voltar a sentar‑se. Depois, e pela primeira vez, virou‑se para Charlie. Este permanecia muito aprumado e formal, com um meio sorriso de circunstância.

         ‑ Antes de começar, jovem ‑ disse em tom pausado ‑, desejo esclarecer‑lhe que isto é uma audiência informativa, sem implicações processuais. O Tribunal de Menores do Estado convida‑o a facultar informações e a responder a algumas perguntas, a fim de esclarecer a conduta da nossa pupila Christine Parker. Não obstante, é necessário que, ao responder a essas perguntas, tenha presente que o faz em prol do esclarecimento da verdade e da melhor administração da Justiça. ‑ Turner rematou o seu pequeno discurso com um pigarro e cravou em Charlie os seus olhos cinzentos e penetrantes. ‑ Compreendeu?

         ‑ Sim, senhor doutor juiz ‑ respondeu resolutamente o rapaz, concentrado no seu papel.

         ‑ Bom. Suponho que já está inteirado do assunto que nos ocupa.‑O magistrado voltou a inclinar o tronco para a frente. ‑ Pode indicar a este Tribunal quais as pessoas que o acompanharam naquela noite ao aeroporto, desde a casa dos seus tios?

         ‑ Precisamente eles, senhor doutor juiz: Buster e Eileen Johnson ‑ respondeu sem pestanejar. ‑ O meu tio sentia‑se um pouco cansado e Eileen levou‑nos, a mim e a ele, no seu carro. O avião teve um atraso de várias horas, mas eles insistiram em fazer‑me companhia até que me chamassem para o embarque. Recordo‑me que conversámos e bebemos um ou dois drinques no bar...

         ‑ De acordo. Quando vocês saíram, quem ficou em casa?

‑ Chris, evidentemente. Despedi‑me dela pouco antes de descer para ir ter com os meus tios. ‑ O rapaz hesitou um momento. ‑ Acho que Stella, a criada, também estava.

         O magistrado mudou de posição, lançou um breve relancear aos papéis e prosseguiu o interrogatório:

         ‑ Quais foram as suas relações com Christine durante a sua permanência na mesma casa?

         Charlie pareceu perder parte do aprumo. O seu corpo encolheu‑se na cadeira e passou a mão pela testa, que estava húmida.

         - bem ‑ tartamudeou. ‑ Eu... diria que foram as normais..., dadas as circunstâncias. Ela e eu temos quase a mesma idade e dada a diferença de... ‑ um tanto mais recomposto, o rapaz procurou a palavra adequada ‑, de... educação, convivemos bastante bem. Evidentemente que ela tinha uma função em casa e tive de tomar o cuidado de não exceder a minha familiaridade, por respeito aos meus tios.

         ‑ Compreendo ‑ aprovou o juiz. ‑ O senhor diria que eram amigos?

         ‑ Não, senhor doutor juiz. A nossa intimidade não passou de umas conversas ocasionais.

         Turner franziu o sobrolho e o seu olhar tornou‑se mais penetrante. Soergueu‑se no cadeirão e fincou ambas as mãos na beira da mesa.

         ‑ O que não impediu de obsequiar Chris com uma valiosa navalha lavrada que o seu pai lhe trouxera da Europa ‑ afirmou asperamente.

         ‑Navalha...? ‑ repetiu Charlie, simulando surpresa; ergueu a vista para o tecto e fingiu dar tratos à imaginação. ‑ Ah, sim... Agora me lembro! Chris estava fascinada com ela e uma vez ensinei‑a a manejá‑la. Ao fazer as malas, dei pela sua falta e pensei que a tinha perdido e que em qualquer altura iria aparecer a um canto. ‑ O rapaz olhou de frente para o juiz. ‑ Mas agora, que o senhor faz menção disso, é provável que ela a tenha roubado... Evidentemente não me consta... - esclareceu com polida gravidade.

         Uns minutos depois, ao sair da sala de audiências para o espaçoso e sombrio vestíbulo do Tribunal, Charlie viu Chris num dos bancos de madeira que se alinhavam contra as paredes bolorentas. Junto dela, estava sentada uma inexpressiva guarda judicial e do outro lado uma mulher loura que cochichava ao ouvido da rapariga. Nesse momento, aproximou‑se delas o oficial de diligências e as três puseram‑se de pé. Charlie ocultou‑se por trás de uma coluna, com a desculpa de acender um cigarro. Pelo canto do olho viu que a guarda voltava a sentar‑se, enquanto Chris e a mulher seguiam

o oficial de diligências através do vestíbulo. O rapaz esperou que entrassem na sala e depois esgueirou‑se para a porta de saída.

         Uma vez na rua, atravessou a calçada e meteu‑se no brilhante Pontiac cor de aço que aguardava no passeio oposto. Buster Johnson pôs o motor a trabalhar e Eileen virou‑se, sorridente, para o sobrinho.

         ‑ Como correu? ‑ perguntou com uma piscadela de olho de cumplicidade.

         Charlie, no assento traseiro, sorriu e aspirou profundamente o cigarro.

         ‑ às maravilhas ‑ disse, expelindo uma nuvem de fumo que ficou a flutuar diante do seu rosto. ‑ Acho que aquela aldrabona da Chris não nos trará mais problemas. Na dúvida, dei-lhe um empurrãozinho para a cadeia, sugerindo ao juiz que ela também me tinha roubado a navalha ‑ anunciou, satisfeito.

         Buster deu um alegre suspiro, enquanto detinha o Pontiac diante de um sinal vermelho.

         ‑ Foste magnífico, rapaz ‑ aprovou. ‑ Agradeço‑te sinceramente.

         ‑ Não penses nisso. Ela merecia‑o.

         - Imagina! ‑ comentou Eileen com uma entoação de zombaria. ‑ Acusar o pobre do Buster nada mais nada menos que de violação!

         O rapaz inclinou‑se para a frente e bateu com os dedos no ombro do Senhor Johnson.

         ‑ Aqui para nós, não te terás realmente aproveitado, hem, Tio.

         Buster fez‑lhe uma careta velhaca pelo espelho retrovisor e os três riram perdidamente.

 

         O juiz Turner contemplou alternadamente Barbara e Chris. Esta última ocupava agora o banco dos réus e a professora uma das cadeiras do outro lado da mesa, em frente do escrivão. Turner soltou um breve suspiro e desviou o olhar para os papéis. Por uns segundos o silêncio e a imobilidade das cinco pessoas que se encontravam na sala foi absoluto, como se constituíssem um grupo de figuras de cera de museu. Finalmente, Chris emitiu uma tossezinha nervosa e o juiz encarou‑a com expressão ausente.

         ‑ Christine Parker ‑ disse, sem inflexão.

         A rapariga pôs‑se de pé, numa atitude contrita.

         ‑ Sim, senhor doutor juiz..

- Não posso dizer que me alegre por te ver novamente diante deste Tribunal. ‑ Turner apoiou os cotovelos na mesa e cruzou os dedos em frente de si. ‑ Li a tua "denúncia", se assim se pode chamar, e, em atenção a Miss Clark, efectuamos uma pequena investigação a esse respeito. Devo dizer‑lhes que lamento ter‑me deixado surpreender na minha boa‑fé. Temos já bastante trabalho aqui, sabes? Além disso, fomos obrigados a incomodar inutilmente várias pessoas. ‑ O magistrado franziu o sobrolho e o seu olhar tornou‑se mais severo. - Não há neste teu relato uma única palavra verdadeira.

         Chris aferrou‑se à balaustrada, sem poder acreditar no que ouvia.

        ‑ Mas é verdade! ‑ exclamou, a chorar. ‑ Tudo o que eu disse é verdade! Eu... eu...

         ‑ Cala‑te! ‑ ordenou secamente o juiz. ‑ Não te dei autorização para falar. ‑ Depois virou‑se para o lado onde Barbara se encontrava. ‑ Miss Clark, poder‑me‑ia explicar as suas razões, se é que as tem, para acreditar e corroborar diante do Tribunal as invenções desta rapariga?

         Barbara não titubeou. Sabia desde o início que em qualquer altura esta pergunta lhe seria formulada.

         ‑ Não são invenções, senhor doutor juiz ‑ afirmou com serenidade. ‑ Conheço Chris há já algum tempo e prezo‑me de saber quando diz a verdade.

         O magistrado recostou‑se no cadeirão e sorriu com um trejeito de desdém.

         ‑ A sua opinião não é só subjectiva como também presunçosa ‑ salientou com frieza. ‑ As testemunhas propostas pela própria Christine desmentem totalmente as suas afirmações.

‑ Mentem! ‑ quase gritou Barbara, de rosto crispado. ‑ Essas duas testemunhas têm uma estreita relação com Buster Johnson e é evidente que tentaram protegê‑lo.

         - Agradeço‑lhe que não tente ensinar‑me o ofício - resmungou Turner com um trejeito de ironia. ‑ Ontem de manhã, um médico do Tribunal submeteu Chris a um exame ginecológico. Como essa jovenzinha muito bem sabe, não foi encontrado o mínimo vestígio de violação ou de agressão sexual.

         Chris mordeu os lábios, salgados e húmidos das lágrimas que lhe corriam em silêncio pelo rosto. A lembrança da cena humilhante com o médico, embargou‑lhe a garganta. Mas maior mágoa provocava‑lhe o facto de verificar que Stella e Charlie mentiram para a prejudicarem.

         ‑ É lógico que não haja marcas ‑ disse Barbara.

         O juiz virou‑se bruscamente para ela, arqueando as expressivas sobrancelhas.

         ‑Lógico...?

         Barbara aguentou o olhar assombrado de Turner e encheu‑se de coragem para prosseguir.

         ‑ Ela foi deflorada há vários meses, no reformatório.

‑ No reformatório? ‑ A incredulidade do magistrado era cada vez maior. ‑ Sabe o que está a dizer, Miss Clark?

         ‑ Sim, senhor doutor juiz. Algumas reclusas violentaram Chris com o cabo de um desentupidor. Ela não quis revelar os nomes.

         ‑Desentupidor... ‑ repetiu Turner, corando, mau‑grado seu.

Barbara insistiu.

         ‑ Não é a primeira vez que as veteranas agridem sadicamente uma caloura. O senhor sabe disso.

         O juiz, visivelmente impressionado, fez um esforço para se acalmar.

         ‑ Suponho que terá presenciado o facto ‑ disse.

         O rosto de Barbara, desconcertado, ensombrou‑se.

         ‑Não... Não me encontrava lá, obviamente...

         Turner começou a recuperar o aprumo.

         ‑ Aposto que foi Chris quem lho contou ‑ acusou.

         - Sim. ‑ murmurou debilmente a professora.

         Sentia que estava a perder a jogada; não só perante o juiz como também perante si mesma. Seria possível que Chris a tivesse enganado desde o primeiro momento com aquela história do balneário? O magistrado estudava‑a, ansioso e triunfante, como um boxeur que depois de ter perdido aos pontos investe com um golpe decisivo e se dispõe a eliminar o adversário.

         ‑ Miss Clark ‑ começou com suavidade ‑, vejo‑me obrigado a assinalar que a senhora é extraordinariamente crédula para a sua profissão e experiência. Nessa altura, Christine facultou‑lhe qualquer prova concreta? Qualquer testemunha, talvez?

         ‑ Não-.. quer dizer ‑ balbuciou a professora, já contra as cordas e sem forças. ‑ Ela fora castigada e eu... A sua atitude...

         O juiz observou‑a com uma falsa benevolência.

         ‑ Não se esforce, minha amiga ‑ rogou. ‑ Os seus

conhecimentos de psicologia são sem dúvida superiores aos meus. Entretanto, há‑de concordar que esta garota

costuma inventar histórias de violação quando está iminente a possibilidade de ser castigada.

‑ É... é possível ‑ admitiu Barbara, vencida e confusa. ‑Nunca... nunca considerara o caso por esse prisma...

         ‑ Pois é altura de o considerar ‑ interrompeu Turner. ‑ Deseja ainda manter o seu testemunho a favor dela, inculpando o Senhor Buster Johnson de violação premeditada de uma menor a seu cargo

         A mulher não respondeu imediatamente. Teve um estremecimento e depois deixou pender os braços ao longo do corpo.

         ‑ Não, senhor doutor juiz ‑ disse por fim. ‑ Acho que não... Não estou de posse de elementos objectivos para acusar esse homem. ‑ Barbara engoliu em seco e humedeceu os lábios. ‑ Desisto formalmente do meu apoio à denúncia.

         Algo se despedaçou dentro de Chris quando ouviu estas palavras. As lágrimas deixaram de correr, como se um vento escaldante lhe tivesse subitamente enxugado os olhos. Também tinha o coração seco e parecia que deixara de bater. Uma angústia diferente, parada e dura, alojara‑se-lhe no peito. Fitou Barbara, mas a professora esquivou‑se ao seu olhar, mantendo a cabeça baixa e a vista cravada no chão.

         ‑ Christine Parker, põe‑te de pé ‑ ordenou o magistrado; ela fê‑lo com uma certa lentidão, como um autómato. ‑ Desde que estás a cargo deste Tribunal que tens causado bastantes problemas ‑ prosseguiu Turner. ‑ Mas estás com sorte, o Senhor Johnson insistiu em retirar a sua denúncia por roubo e destruição de documentos, em atenção a seres menor. Também quero crer que és redimível, apesar de não teres dado muitas provas de te desejares reabilitar. Esquecerei, pois, essa denúncia absurda de violação que impingiste, levantando falsos testemunhos contra um cidadão respeitável, dado que ele decidiu perdoar‑te. Mas fica de pé o facto de teres escapado à nossa custódia, aproveitando uma situação de privilégio, como o é viver numa casa particular. E é por essa razão que tenho de te castigar. O juiz fez uma pausa e serviu‑se de um copo de água do jarro que tinha junto do monte de papéis; um pesado silêncio desabou sobre a sala e Chris pensou que também ela tinha sede. ‑ É minha decisão ‑ prosseguiu Turner, mantendo o copo na mão ‑ que voltes para a escola‑reformatório dependente deste Tribunal, para o primeiro grau de reclusão, permanecendo a esse nível durante dois anos. Depois, se a tua conduta o tornar aconselhável, subirás os restantes graus e estarás livre ao chegar à maioridade.

         "São pelo menos quatro anos de confinamento", calculou Chris. "É mais do que uma pessoa pode suportar."

         Lasko fitou‑a longamente, com um esboço de sorriso a bailar-lhe no rosto, endurecido pelo ofício. Chris desceu do carro e esquivou‑se‑lhe ao olhar, observando o que a rodeava: o mesmo edifício quadrado e os mesmos pavilhões alinhados junto do pátio de terra pardacenta. Onde antigamente se situavam os campos de ténis, perto das redes de arame, alguns operários erguiam novas instalações. Todo aquele sector era uma amálgama de material de alvenaria, sacos de cimento e paredes semiconstruídas. Mentalmente, a rapariga encolheu os ombros. "De qualquer dos modos", pensou, "nunca joguei ténis." A guarda judicial que a trouxera até ali num carro do Tribunal fez um gesto de impaciência.

         - Queria falar com Miss Cynthia ‑ grunhiu

- tenho de lhe entregar esta reclusa e não disponho do dia inteiro.

‑ Ela está ocupada ‑ respondeu Lasko. ‑ Mas pode confiar‑me a mercadoria. É um velho conhecimento nosso.

         A outra vigilante pareceu hesitar, mas finalmente aceitou a proposta.

         ‑ De acordo ‑ disse ‑, desde que assine o recibo de recepção.

         Lasko pegou nos papéis, escolheu uma folha amarela e rectangular, assinou‑a e devolveu‑a à mulher. Esta deu um grunhido de assentimento e trepou para o automóvel, que contornou o descuidado jardim de ervas secas e desapareceu na estrada.

         ‑ Bom, Chris, bem‑vinda a casa ‑ disse Lasko sem ironia. ‑ Como foi o teu passeio pelo exterior?

         ‑ Mau ‑ respondeu a jovem com desalento ‑, já está a ver onde acaba.

         Lasko teve uma risada rouca e meneou a cabeça.

         ‑ Nunca mudarás, Chris. E isso alegra‑me: é melhor um pássaro na mão...

         ‑ O mesmo digo eu ‑ salientou a rapariga, provocando outra das risadas ásperas da vigilante.

         ‑ Bom, já conheces o programa. Vamos! - Abandonaram o pórtico do edifício principal e atravessaram o pátio, até ao primeiro pavilhão. O sol tombava, abrasador, sobre a cabeça de Chris e o suor empapara‑lhe a roupa. Lasko, que caminhava à frente dela, virou‑se para apontar para o sector das obras em construção.

         ‑ Estamos a ampliar as instalações ‑ anunciou.

‑ O hotel já não dá vazão e no Outono que vem teremos mais dois pavilhões.

         ‑ Bestial ‑ disse Chris.

Mais uma vez o triste ritual se repetiu; porém, a atitude da rapariga foi, nessa altura, quase tão maquinal e impessoal quanto a de Lasko. Entraram no balneário e Chris despiu‑se completamente, permanecendo de pé, com as pernas afastadas. A vigilante revistou‑lhe cuidadosamente as orelhas e o cabelo. Depois, mandou‑a abrir a boca. Em seguida, pôs‑se de cócoras e revistou‑lhe rapidamente as partes Intimas. Levantou‑se, pediu a Chris que afastasse os braços e com um gesto fatigado, observou-lhe as axilas. Finalmente, confirmou os dados sobre o período menstrual e doenças. Logo que terminou a inspecção, estendeu à rapariga o famoso mal‑cheiroso frasco de desinfectante capilar.

         ‑ Esperava que tivessem mudado de champô - comentou Chris, franzindo o nariz.

         ‑ Da próxima vez, hei‑de comprar‑te um da Revlon

‑ prometeu Lasko fechando a porta, enquanto a rapariga abria as torneiras do duche.

         Decorrida meia hora, lavada e penteada, mas tresandando ainda a mata‑piolhos, Chris fazia a sua entrada no refeitório.

         Havia muitas caras novas e algumas antigas e conhecidas. Moco, ao vê‑la, armou uma verdadeira barafunda e mandou calar toda a gente para que Chris contasse as suas aventuras. Ela fê‑lo o melhor que pôde, suavizando alguns factos e exagerando outros, para agradar ao auditório. Houve exclamações, risos, aplausos e assobios de aprovação. Depois, alguém ligou o televisor e o centro de atenção transferiu‑se de Chris para um programa de música rock. A jovem suspirou, aliviada, e atirou‑se para um cadeirão, deixando‑se envolver pelo ritmo frenético e monótono que não a deixava pensar.

De repente, viu diante de si uns estreitos blue jeans e uma figura delgada e ondulante, que se balançava suavemente, sobrepujada por uma mata de cabelos encarapinhados.

         ‑ Josie! ‑ exclamou. ‑ Que diabo fazes tu aqui?

         O belo rosto escuro de Josie iluminou‑se, mostrando uma fileira de dentes brancos e perfeitos e um brilho cordial nos olhos penetrantes.

         ‑ O mesmo que tu ‑ disse. ‑ Estou a pagar pelos dias de alegria.

         ‑ Os meus não foram tão alegres ‑observou Chris.

         Josie deu uma gargalhada e ambas se confundiram num apertado abraço, salpicado de lágrimas de amizade. Algumas raparigas reclamaram silêncio.

         ‑ Anda ‑ sussurrou Josie ao ouvido de Chris ‑, vamos até à galeria.

         A noite tombava lentamente e os últimos fulgores do crepúsculo tingiam de rubro as bordas de uma Lua cheia. As duas amigas apoiaram‑se na balaustrada que se erguia no meio das sombras furtivas do pátio. Chris deixou passar uns instantes. Depois, apertou o braço da amiga e formulou a pergunta que lhe queimava os lábios:

         ‑ Que se passou com o simpático Mortimer e com aquele clube nocturno no Nevada?

         Josie encolheu os ombros, como se fosse coisa sem importância. Mas, na penumbra, a voz soou nervosa.

         ‑ Correu tudo mal ‑ resmungou. ‑ O trabalho era uma porcaria e Mort, com a mulher e os filhos a rondarem, já não era o mesmo. ‑ A rapariga hesitou e a ténue brisa do crepúsculo agitou‑lhe o cabelo crespo.

‑ De qualquer das maneiras, ele também não se sentia bem e o nosso sonho era economizar o suficiente para fugirmos juntos para o Hawai.

         Hawai! ‑ Chris deu um assobio de admiração.

         ‑ Mort tinha lá um amigo. Pensávamos que em seis meses juntaríamos a massa suficiente para nos pirarmos e nos aguentarmos durante os primeiros tempos. Mas, uma noite, apareceram no clube, inesperadamente, os tipos da brigada de narcóticos. Havia toneladas de "erva". Como os chuis eram federais, o chefão viu‑se de todas as cores. Adivinhas como se conseguiu desenrascar?

         ‑ Não me digas ‑ murmurou Chris ‑, atirando as culpas para cima do bom do Mort.

         ‑ Exactamente. O pobre do mulato apodrece agora na prisão e, quanto a mim, despacharam‑me por avião para o Tribunal de Menores.

         ‑ E Turner pregou‑te com um lacónico sermão e mandou‑te para aqui.

         ‑ Mais ou menos ‑ concordou Josie. ‑ O filho da puta sabia no que eu estava metida, pois dera‑me liberdade condicional, lembras‑te? Não me espantaria que se tivesse posto na pista dos narcóticos.

         ‑ Não esqueças que a Justiça é cega ‑ sentenciou Chris.

         Nesse momento, Moco fez assomar pela porta envidraçada o rosto quadrado e maciço. Contemplou, com uma expressão de crítica, as raparigas, que sussurravam, enlaçadas pela cintura.

         ‑ Ora! Ora! E depois queixam‑se por passarem por heterossexuais! ‑ exclamou na sua voz de mezzosoprano fumadora. ‑ A sopa está a arrefecer ‑ acrescentou em tom familiar.

Passaram duas semanas e Chris viu‑se uma vez mais mergulhada na rotina enfadonha e sem novidades do reformatório. Embora toda a gente a tratasse com uma certa deferência, incluindo Lasko e a sua ajudante Betty Ramos, comportava‑se de maneira irascível e insociável. A ideia de passar quatro anos a repetir os mesmos gestos dentro daquele universo programado, cujo horizonte terminava no pátio sombrio e nas cercas de rede, enchia‑a de pavor. Por outro lado, a amizade incondicional de Josie e a zombeteira mas sólida adesão de Moco, sua antiga rival e verdugo, era o que mais se assemelhava ao afecto que há muito tempo não experimentava. Mas, por qualquer razão, não lhe chegava. Além disso, tentara, na medida do possível, evitar as aulas de Barbara Clark; embora em três ou quatro ocasiões não lhe tivesse restado outra alternativa senão assistir. Nessas alturas, o relacionamento entre ambas fora tenso e distante. Era precisamente aquela atitude de culpa e de insegurança que fazia que Chris não conseguisse odiá‑la por completo, apesar da "traição" dela no Tribunal. Ao comportar‑se daquela maneira, Barbara revelava um lado fraco e humano, que a rapariga associava ‑ de má vontade ‑ ao que ela chamava "os que estão do outro lado da rede".

         Um sábado à tarde, deparou‑se‑lhe Josie e Moco apoiadas no peitoril de uma janela, contemplando as obras, que naqueles quinze dias avançaram notoriamente.

         ‑ Quê?! ‑ perguntou, admirada. ‑ Estão a observar as obras?

         ‑ Não ‑ informou Moco laconicamente. ‑ Hoje é sábado.

Josie, muito séria, pegou no braço de Chris e indicou‑lhe um sector do terreno. Era onde os trabalhos se encontravam mais atrasados e viam‑se apenas os caboucos dos alicerces, cujas extremidades acabavam na cerca de rede.

         ‑ Olha bem para aquilo ‑ disse a mulata.

        Chris seguiu a direcção assinalada pela unha aguçada e comprida da amiga. Viu um buraco na cerca, dissimulado por uma pilha de sacos de cimento. Possivelmente os pedreiros tinham‑se visto obrigados a abri‑lo para cavarem o fosso e depois deslocaram três ou quatro sacos para ocultá‑lo parcialmente. Calculou que o buraco não tinha mais de dois palmos de altura e três de largura, a rasar o chão.

         ‑ Achas que seríamos capazes de passar? ‑ inquiriu Moco.

         Chris observou com atenção o local.

         ‑ Passar, sim ‑ declarou. ‑ Mas, e depois, o que aconteceria?

         ‑ Depois veríamos ‑ interveio Josie, bastante excitada. ‑ Moco e eu estamos decididas a tentar. Vens connosco?

         Chris viu‑se reflectida nos olhos escuros da amiga. Como um filme alucinado, desfilaram‑lhe pela mente uma série de imagens e de ideias. Tom, Janie, Chantal, Brian, Barbara; as estradas intermináveis e os polícias à espreita. Sabia muito bem que não era fácil fugir constantemente e que o mundo, lá fora, não era um paraíso. Mas a simples ideia da fuga fazia‑lhe latejar o sangue nas veias e tornar insuportável a monotonia de quatro anos de confinamento. Além disso, havia elas: Josie e Moco. Se ambas se escapassem, deixaria de fazer sentido permanecer no "pesebre". Chris teve consciência de que não poderia decidir‑se naquele momento.

         ‑ É possível que vos acompanhe ‑ prometeu vagamente. ‑ Deixem‑me pensar por uns dias.

         ‑ Por uns minutos ‑ disse Moco. ‑ Os proletários voltam na segunda‑feira e podem‑nos fechar a porta. E ainda que fizessem vista grossa, Lasko e as outras descobri-lo‑iam a qualquer momento. Não podemos perder tempo.

         ‑ Pensamos fazê‑lo amanhã ‑ precisou Josie ‑, aproveitando a confusão da hora das visitas.

         ‑ Andaremos por aí com ar distraído e ao primeiro descuido: zás! ‑ descreveu Moco. ‑ Que dizes?

         Chris encolheu os ombros e mordeu os lábios, num gesto de dúvida. Olhou longamente para o buraco antes de responder.

 

                                                                               B. J. Hurwood & G. Dipego 

 

 

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