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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM - P.2 / Jorge Amado
NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM - P.2 / Jorge Amado

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM

Segunda Parte

 

Bahia, 1963.

O jardim

 

Anna Seghers sentada embaixo do sapotizeiro, no jardim. João Jorge trouxe a mesa de armar, mesa de jogo, Paloma a cadeira de metteur-en-scène de cinema, Anna escreve contos cuja ação se desenrola na Alemanha — viveu na França, no México, viajou o mundo do exílio, a saga espantosa está contada em Transit, mas seu tema e sua humanidade são alemães. Nasceu para ser fiel, era exata por mais parecesse ser estouvada, habitante do mundo da lua — por que penso na lua ao pensar em Anna? Pela beleza de certo, não conheci mulher mais bela, não conheci ser mais adorável, minha irmãzinha Anna, quando morreu me senti sozinho, diminuído, faltava-me uma parte do coração. No jardim Anna escreve, mestre maior do conto e do romance como quem mais o seja, o compromisso cumprido até o fim não lhe limitou a grandeza criadora. Na recente caça às bruxas, no ajuste de contas, há quem busque negá-la, esmaecer a luz que ela acendeu em seu percurso de escritora, da Sétima Cruz ao conto do juiz íntegro, testamento literário e político, lido em Mayence, cidade natal de Anna, nas comemorações de seus noventa anos. As fogueiras do preconceito terminarão por se apagar, a visita da Santa Inquisição se encerrará, a criação de Anna Seghers permanecerá no ápice da literatura alemã, impossível escamoteá-la, as trevas da noite não conseguem impedir a afirmação do dia.

Nasceu Netty Reiling, o pai era antiquário, em 1928 publicou seu primeiro livro e aderiu ao Partido Comunista, passou a ser Anna Seghers, escritora e militante. Na manhã do jardim, toma do lápis, escreve, o sol da Bahia em seus cabelos brancos. O marido, professor Schmidt — Rudolph Radvanyi —, foi ditar conferências em Recife, a convite de Paulo Cavalcanti* — uma neta de Paulo um dia habitará Berlim leste, estudando a obra de Anna. Professor Schmidt não se contenta em ser sério, é solene, o oposto de Anna, catedrático de materialismo dialético na Universidade Marx-Engels-Lenine, marxista integral zela pela pureza da doutrina, ideólogo construído em aço. No entanto dão-se bem: Anna, o pássaro canoro, a ave solta no céu, a ternura, a decência, a alegria de viver, e o irredutível teórico, o guardião da doutrina — como se sabe e se diz, o amor não conhece barreiras, supera qualquer fronteira, vence qualquer distância.

*Paulo Cavalcanti, escritor.

 

Anna na roda de amigos, quem mais devota da amizade, quem mais fraterna? No picadeiro da ação política, na tentativa de vislumbrar o futuro, Anna, gentil domadorar dança com seus três ursos, assim dizia de Ilya, de Pablo e de mim, confiava em mim, acreditava-me capaz de desatar o nó, de indicar a rota e resolver o problema. Roda de amigos, tantos, a vida inteira, um deles se chamou Gyorgy Lukács, filósofo, quis traçar os rumos da literatura comunista na incerteza das circunstâncias, nos currais do pecê ousou pensar por sua cabeça, tentou acender uma lanterna na escuridão do stalinismo, pagou caro a audácia do pensamento e da ação, penou misérias. Ministro da Cultura no governo de Imre Nagy foi condenado à morte como os demais, não se atreveram a enforcá-lo, viveu prisioneiro o resto de seus dias, no opróbrio, na solidão, pregada ao peito a estrela da traição, judeu, dissidente, renegado, homem livre. No degredo afirmava a liberdade, Gyorgy Lukács.

Ao ver-me aparecer na fímbria do jardim, Anna suspende a escrita e propõe: vamos escrever uma carta a Gyorgy? Vive tão abandonado, quem sabe a carta chegará às suas mãos? Redigimos a missiva de carinho e de saudade. Soube por Anna que o condenado a recebeu, sentiu o calor da amizade, havia quem pensasse nele e o sustentasse. Anna me explica num gorjeio:

— Cada qual seu erro, o de Gyorgy é a dúvida, o meu é a certeza. Ele deixou de acreditar, eu acredito e acreditarei mesmo contra a evidência.

Mesmo contra a evidência, assim Anna marchou soldado raso até a morte: cada qual seu erro, me disse no jardim. Anos depois, um dia, seu filho Pierre* buscou no jardim da casa do Rio Vermelho, à sombra do sapotizeiro, o rastro da mãe: a doçura, a intransigência, a lealdade, tudo nela foi por demais.

*Pierre Radvanyi, físico.

 

 

Rio de Janeiro, 1953.

Direitos autorais

 

Recebo uma carta de Howard Fast, trata de direitos autorais, ao que parece a ele os devo e não lhe pago. Conheci Howard Fast em Paris, em 1949, no Congresso Mundial dos Partidários da Paz, ele e Paul Robeson eram os expoentes da delegação norte-americana. De Robeson fiquei amigo e o fui enquanto ele viveu, com Howard Fast tratei pouco, apesar de ser admirador babado de Spartacus e de Meus gloriosos irmãos. Em 1956, como resultado da denúncia do stalinismo por Kruchev, escreveram-se numerosos livros, sobretudo dois deles me agradaram: O retrato, de Oswaldo Peralva — tudo que nele está contado é a expressão da verdade —, e O Deus nu, de Fast, sofrido e emocionante.

Em 1953 eu criara a coleção Romances do Povo na editora do pecê, dirigida à época por Alberto Passos Guimarães, escolhia os livros, os tradutores quando era o caso. Inaugurei-a com a tradução de Les Seigneurs de la Rosée (Os donos do orvalho), de Jacques Roumain, publiquei Dalcídio Jurandir, Alina Paim, Anna Seghers, Halldor Laxness, Ting Ling, Boris Polevoi, Ferreira de Castro, entre outros bons autores. Dois livros de Howard Fast: Spartacus e Sacco e Vanzetti.

A carta de Fast relata que seu agente literário comunicava-lhe a existência de edições piratas no Brasil, de dois livros tem certeza, obteve exemplares, uma das obras vítimas da vigarice, Spartacus, anda pela segunda tiragem. O agente cita os nomes da editora e do diretor da coleção, anuncia processo, providências drásticas, ao ler meu nome Fast pede-lhe que espere, vai me escrever, perguntar o que se passa. Escreve-me, pergunta-me o que se passa, respondo-lhe: a coleção existe, sou o diretor, escolho os títulos, os tradutores, aí termina minha responsabilidade, o estabelecimento dos contratos, o pagamento dos direitos são assuntos que competem à editora, o agente deve se dirigir à empresa, nada tenho a ver. A Editora Vitória, aviso, pertence ao Partido Comunista Brasileiro, solicito um favor a Howard Fast: se conseguir receber um tostão que seja, me avise por telegrama, a Vitória me deve uma fortuna, cinco edições do Mundo da Paz, não sei quantas do Cavaleiro da Esperança, nem um vintém furado de direitos autorais.

 

Nada mais cansativo, mais estafante, mais terrível do que as reuniões ditas sociais, coquetéis, recepções, jantares, festinhas, outras chatices semelhantes.

A obrigação de ser inteligente, os convidados esperando as frases de efeito, a profundeza, o brilho do escritor: é de lascar. Fico apavorado se não tenho jeito de escapar, como ser inteligente ao fim da tarde ou na mesa de jantar de cerimônia, com gravata e paletó? Emburreço por completo, dá-me aquela inibição, emudeço, perco o dom da fala, ainda mais parvo do que no dia-a-dia.

 

 

Rio, 1936.

Editor

 

José Olympio ao estabelecer sua editora no Rio de Janeiro, em 1934, revolucionou a indústria editorial brasileira e possibilitou aos escritores nacionais atingirem o público, até então extremamente restrito. Ao comentar a promoção desmedida de livro da autoria de figura prestigiosa — os jornais não falavam de outra coisa, os críticos endeusavam o autor e a obra, lhe concediam prêmios —, opina em nossa conversa matinal, quotidiana, sou empregado da editora:

— Nenhuma promoção faz um livro ruim se transfere num bom livro. O noticiário, a crítica de encomenda, os elogios a granel podem enganar o público durante certo tempo, peque De repente, cessado o foguetório, o livro acaba, de vez.

José Olympio entendia de livros e autores. Revolucionou a indústria editorial, a afirmação é correta mas, em verdade, sua empresa, a Casa como ele dizia ao se referir à editora, jamais perdeu os contornos patriarcais que caracterizavam a edição brasileira de antes da Segunda Guerra Mundial. A Casa viveu sempre à sombra do poder do Estado, primeiro sob a proteção de Getúlio, depois dos militares da Redentora. Proteção que lhe dava segurança e permitiu a José Olympio investir com coragem e visão nos autores nacionais, a Casa foi pátria e família de mais de uma geração de literatos — poetas, ficcionistas, cronistas, ensaístas — do modernismo aos jovens dos anos quarenta: o romance de trinta, os estudos brasileiros. Louve-se ademais a isenção política, plumitivos das ideologias mais opostas, esquerda e direita, comunas e integralistas, José Olympio não fazia distinção: livro bom, ele editava.

Tinha a generosidade dos patriarcas. Lúcio Cardoso, grande romancista, não possuía público numeroso, as tiragens de seus livros não ultrapassavam os mil exemplares, enquanto José Lins do Rego saía de cinco mil na primeira edição. José Olympio contratava com Lúcio uma edição de dois mil exemplares, pagava direitos correspondentes aos dois mil, imprimia mil. Dobrava assim o público do autor de Salgueiro, o público e os direitos autorais.

 

Pequim, 1986.

Embaixador

 

Alfredo Machado toma conhecimento da carta que escrevi a José Sarney recusando o posto de Embaixador do Brasil na França. Estava eu em Pequim quando o então Presidente da República me telefonou do Palácio do Planalto para transmitir-me o convite: ao amigo agradeci, recusei ao Presidente. Não me considero competente para exercer o posto, nulo que sou em economia para citar apenas uma das matérias sobre as quais deveria tratar e resolver. Sarney demorou a aceitar minha recusa, insistiu durante mais de um mês, mas como fiz pé firme terminou por desistir de fazer-me Embaixador.

— Só mesmo você para recusar a Embaixada na França. Você não tem jeito, é maluco,

— Recusar a Embaixada não é nada. Não esqueça que em 1950 rompi relações com a editora Gallimard.

Decisão muito mais grave, desistência muito mais difícil, real-mente acontecera. Jovem escritor brasileiro, me vi em 1938 traduzido para o francês e publicado pela editora Gallimard, quase me empanzinei de glória, considerei-me o máximo, vi-me famoso e rico. Depois de ter reeditado, após a guerra, em 1949, a tradução de Jubiabá*, a Gallimard comprou-me os direitos em língua francesa de Capitães da Areia. Enquanto o livro estava sendo traduzido Roger Caillois** regressou da América do Sul e fundou na editora a coleção Croix du Sud, destinada a escritores dos países da América Latina.

*Bahia de tous les Saints.

*Roger Caillois, (1913/1978), escritor francês.

 

Estando de partida para a Tchecoslováquia, procurei Claude Gallimard e lhe pedi que a tradução dos Capitães não fosse incluída na nova coleção. Expliquei-lhe a razão, nada tinha a ver com Roger Caillois, um bom amigo e, sim, com minha ojeriza aos guetos, a Croix du Sud era, a meu ver, um gueto de autores latino-americanos. Claude Gallimard disse-me que fosse descansado, prometeu-me providências no sentido de atender a meu pedido. Estava eu em Praga quando Capitaines de Sable foi publicado na Croix du Sud, decerto Claude Gallimard esquecera o prometido. Logo depois uma reedição de Jubiabá foi colocada ela também na coleção. Afastei-me da Gallimard, levei anos para voltar às boas com a grande editora francesa, que atualmente possui em seu catálogo vários livros meus.

Editor, Alfredo Machado concorda que me afastar da Gallimard foi ousadia maior do que recusar a Embaixada, foi loucura.

— Não se esqueça de que eu era um jovem de trinta e poucos anos. Hoje, velho de setenta e cinco, sou capaz de recusar a Embaixada, mas não sei se teria o topete de brigar com a Gallimard.

 

 

Paris, 1990.

O baiano de Paris

 

Político capaz, porém frio, de muitas bocas ouvi a afirmação peremptória sobre Luiz Viana Filho. Tenho razões para contestar a definição: ao negar calor humano ao autor de O Negro na Bahia, ela lhe diminui a personalidade solidária. Em duas ocasiões pude medir a inteireza do baiano de Paris — nasceu na capital francesa mas foi registrado brasileiro nato em cartório da rua da Misericórdia* — e hoje quando ele já não está entre nós desejo dar testemunho de seu humanismo.

*Em Salvador, Bahia.

 

Gravemente enfermo, obstinado comunista, o mais pobre dos pobres, mestre romancista da Amazônia, Dalcídio Jurandir foi candidatado por Marques Rebelo e por mim ao Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira. Contra seu nome levantaram-se resistências numerosas, obstinadas, não somente pelo fato de Dalcídio manter-se inscrito no pecê, subversivo malvisto pelos donos do poder, sobretudo devido a incidentes políticos ocorridos na área literária, nos quais o romancista desempenhara papel de relevo. De fato Dalcídio fora figura central no conflito — por pouco degenera em pugilato — que conduziu à ruptura entre as correntes constitutivas da ABDE. Nascida na preparação do histórico Primeiro Congresso de Escritores*, a ABDE, após uma primeira diretoria unitária, foi terreno de luta sem quartel entre os comunistas e os liberais. As divergências se acentuaram no Segundo Congresso**, a briga chegou ao extremo de batalha campal em 1949 quando da eleição de nova diretoria.

A direção do pecê decidira obter o comando da Associação, mesmo que custasse o preço da divisão dos escritores brasileiros, na ocasião eu já estava cumprindo tarefas na Europa, mas sei de ciência certa ter Dalcídio discordado do ponto de vista do Partido, voto vencido na Comissão de Cultura presidida por Astrojildo Pereira. Exatamente porque discordara, foi-lhe dada — era a regra partidária — a tarefa de fazer cumprir a decisão tomada pela maioria da Comissão — em realidade decisão ditada pelo Bureau Político, apenas referendada pelos míseros literatos sem nenhuma possibilidade de independência vis-à-vis da direção.

*Reunido em São Paulo em janeiro de 1945.

**Reunido em Belo Horizonte em 1947.

 

Assim, lá se foi Dalcídio para o sacrifício. Na assembléia da ABDE em que deveria ser eleito o novo Presidente coube ao autor de Chove nos Campos de Cachoeira o comando das hostes comunistas. O que se passou na famigerada reunião não me cabe relatar, pois não estava presente: a história da vida literária guarda memória de fatos lastimáveis. Trocaram-se acusações, insultos, as mães dos líderes dos dois campos foram xingadas, houve ameaças de bofetões. Tudo culminou quando Dalcídio — e esta foi a imagem que dele restou —, no cumprimento da tarefa recebida, arrancou, a muque, das mãos do poeta Carlos Drummond de Andrade, o livro de atas da reunião, Desde então o romancista do ciclo do Extremo Norte ficou marcado: o vilão principal, o vil bandido, o agressor, aquele monstro. Pobre Dalcídio, doce e terna criatura, o índio sutil: manifestara-se contra a decisão sectária, o sectarismo era estranho à sua natureza, mas, comunista convicto, sujeito à disciplina do Partido, cumprira a tarefa recebida, fazendo das tripas coração. Tantos anos decorridos, alguns senhores Acadêmicos vacilavam em lhe conceder o prêmio que sua obra novelística merecia por demais.

Marques Rebelo telefona-me do Rio para a Bahia às vésperas da votação: faltava a Dalcídio um voto para abiscoitar os cobres os parcos cruzeiros da dotação da láurea máxima da Academia iriam servir para a compra dos medicamentos caríssimos. Telefonei ao Acadêmico Luiz Viana Filho — um dos chefes de fila dos escritores atropelados pela disciplina partidária de Dalcídio —, fui vê-lo em sua casa baiana, perguntei se ele era capaz de esquecer o passado e votar no vilão da história. Luiz tomou do papel e da caneta, entregou-me o voto com o qual Dalcídio ganhou o Prêmio Machado de Assis.

De outra feita, eu me preparava para viajar à Europa, Glauber Rocha telefonou-me de Los Angeles em estado de desespero, ameaçava suicidar-se se não pudesse voltar imediatamente para o Brasil: me mato, gritava. Fiquei alarmado.

Glauber exilara-se após vigorosa atuação contra a ditadura militar, nas colunas de O Pasquim, em manifestações de rua, inclusive participara da vaia ao Marechal Castelo Branco*, em frente ao Hotel Glória. Manifestação de repúdio promovida por intelectuais, a comitiva do Marechal atravessara por entre insultos, ofensas, xingos, da comitiva fazia parte Luiz Viana Filho, Chefe da Casa Civil da Presidência. A condição de escritor fê-lo merecedor de apupos preferenciais dos manifestantes, logo presos.

*Na época Presidente da República.

 

Andou Glauber de ceca em meca com seu gênio, sua rebeldia, sua ânsia de fazer cinema. No exílio realizou dois longa-metragens, um filme espanhol, outro africano. No mais, pelo mundo afora as portas se fecharam para ele, seja na área capitalista, seja na área socialista, inclusive sua aventura cubana foi das mais frustrantes. Terminou nos Estados Unidos, ali queimou os últimos cartuchos de paciência e de esperança, tampouco nos States lhe deram trabalho, roteiro a realizar. Entrou em crise, telefonava-me diariamente: se não puder voltar me mato.

De novo fui visitar Luiz Viana Filho na casa baiana tão aprazível e acolhedora, mais uma vez lhe perguntei se ele era capaz de esquecer o passado, mesmo tendo se sentido ofendido e magoado. Relatei-lhe o drama de Glauber: se existe alguém capaz de resolver o problema, esse alguém é você, pode obter do governo — estávamos no governo Geisel, Golbery era o homem forte no Planalto — garantias para a volta de Glauber. Mas garantias reais — no governo Medici, Zuzu Angel havia obtido licença para o retorno do filho: pode vir, nada acontecerá. O rapaz desembarcou, foi preso e em seguida assassinado de maneira a mais cruel.

Vou ver o que se pode conseguir, respondeu-me Luiz, fique descansado, farei o possível. E o impossível? — perguntei. Sim, o possível e o impossível, concluiu. Marcamos encontro em Londres onde ele devia estar daí a alguns dias. De tudo dei conhecimento a Glauber: Luiz Viana? Acreditas? Eu o conheço bem, acredito.

Na data combinada recebi, em Londres, telefonema de Luiz Viana, falava do Brasil, adiara a viagem, mas o problema de Glauber já o havia resolvido, nosso amigo podia regressar ao Brasil quando melhor lhe parecesse. Eu quis saber se havia garantia absoluta que nada de ruim lhe iria suceder. Nada, respondeu Luiz, tenho a palavra de Golbery e a do Presidente Geisel.

Voltou, assim, Glauber Rocha ao Brasil pela mão de Luiz Viana filho, não foi incomodado, realizou seu derradeiro longa-metragem, A idade da Terra. Vale acrescentar que, ao retornar, Glauber viu-se vítima do mais terrível patrulhamento, a ralé dos radicais o insultou e caluniou de traidor e vendido, disseram-lhe todas as baixezas e o fizeram com a maior ferocidade, com o ódio dos nulos, dos mesquinhos ideólogos. Sei quanto Glauber se sentiu ferido: estou envolto em infâmia, afogado em merda, me disse um dia.

Recebo em Paris a notícia da morte de Luiz Viana Filho. Nesta cidade nasceu o baiano ilustre, filho de pai igualmente ilustre, tiveram os dois o privilégio de governar a Bahia. Ao recordar o baiano de Paris, que aprendi a estimar na luta contra o Estado Novo, e de quem não me afastaram as divergências, desejo dizer de seu calor humano, o oposto da frieza política que lhe atribuíram. Eu o revejo ao lado de seus iguais: Dalcídio Jurandir, Glauber Rocha, Luiz Viana Filho, três mestres da cultura brasileira.

 

 

Bahia, 1980, Paris, 1990.

Concordância

 

Tony Cartano* sempre se mostrou generoso a propósito das traduções de meus livros, sobre eles escreveu elogios por mais de uma vez. Em artigo no Magazine Littéraire porém, baixou o pau, de rijo, em Os Subterrâneos da Liberdade** quando apareceu a edição da Messidor, incriminando o autor por ter-se sujeitado aos cânones do realismo-socialista ditados por Zdanov. Tony conta-me de sua surpresa ao receber carta minha, da Bahia, concordando com as críticas feitas ao romance.

Dez anos depois, Dominique Fernandez*** dedica uma página em Le Nouvel Observateur a falar bem de mim e de meus romances, ao aplaudir o livro Conversations, de Alice Raillard — além das traduções de Tereza Batista e de Tenda dos Milagres, entre outras assim perfeitas, devo a Alice o renome de seu livro e a amizade.

*Tony Cartano, romancista francês.

**Les Souterrains de Ia Liberte, éditions Messidor.

***Dominique Fernandez, romancista francês.

 

Dominique desestima, porém, O País do Carnaval, que vem de aparecer em francês sessenta anos após eu tê-lo escrito, denuncia em meu primeiro romance a influência malsã das letras européias, imitação barata. Escrevo-lhe uma carta para dizer de minha concordância com a crítica feita a O País do Carnaval, salva-me saber que dois anos depois do primeiro livro publiquei Cacau, outra coisa, liberto para sempre dos modismos europeus.

De Tony Cartano já era amigo quando lhe escrevi sobre os Subterrâneos, de Dominique passei a ser amigo a partir da carta que lhe enviei a propósito de seu artigo sobre o livro de Alice Raillard.

 

 

Paris, 1948.

Presente de aniversário

 

João Jorge completa um ano de idade, nossa pobreza impede festas e presentes, ainda assim Zélia reúne amigos no quarto do Hotel Saint Michel, em torno de um ponche de champanhe e fraises du bois: Alfredo Varela, André Kedros, Renaud de Juvenel*, Adelita e Hector Polleo**, Misette*** — que é de casa — e a turma brasileira: Vasco, Jacques, Zora, Henda, Santoro, Jamile e Israel Pedrosa, Castiel, Paulo Rodrigues. Madame Salvage, a dona do hotel, comparece sobraçando garrafas de conhaque, Carlos Scliar traz uma lata de goiabada brasileira.

*Renaud de Juvenel, escritor francês.

**Hector Polleo, pintor venezuelano, Adelita, sua mulher.

***Misette, Marie Louise Nadreau, marchand d'art.

 

Escrevo um romancinho, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, história de amor, do amor impossível de um felino e um passarinho, meu presente para o aniversariante a fim de lhe ensinar a ter horror aos preconceitos. O conto termina mal com a vitória do preconceito: a andorinha casa com um rouxinol, o gato parte para a solidão pior que a morte. Se o escrevesse hoje, o romancinho terminaria com a vitória do amor, a derrota do malefício: eu era jovem, ainda não acreditava no impossível.

Não me limitei ao livro. Na intenção de bem educar João Jorge compus a letra de uma canção guerreira para que ele a cantasse com Misette no reino quotidiano do Jardim do Luxemburgo, nos passeios matinais no Boul'Mich'. Pensei que ainda a guardasse na memória, ledo engano. Recorro a João Jorge: de todos os presentes até hoje por ele recebidos, foi o de que mais gostou, ainda a cantarola, sabe a letra inteira. João manda que Jorginho, o filho caçula, atenda ao meu pedido:

— Cante para seu avô o hino da vitória.

Sete anos de malícia, o moleque se executa:

Joãozinho / Piça d'Aço / Foi à caça / Foi à caça / Joãozinho / Piça d'Aço / Que caçou? / Que caçou? / Bucetinha / Bucetinha / Piça d'Aço / Já caçou / Joãozinho / Pica d'Aço / Já caçou

Para ser cantada com a música da Internacional.

 

 

São Paulo, 1933, 1938, 1945.

O revolucionário

 

O jargão esquerdista reduziu a significação das palavras revolução e revolucionário, deu-lhes conteúdo ideológico estreito, limitado, retirou-lhes a amplitude e a grandeza. Também a direita concorreu para a falsificação, não fez por menos: classificar o golpe de estado militar de 1964 de revolução é desconhecer, deturpar a verdade dos fatos, cada qual sua salafrarice. Revolucionário passou a identificar qualquer borra-botas a militar em partido ou grupelho dito operário ou marxista, os teóricos de oitiva nos diversos desvios do leninismo, do trotskismo, do stalinismo, do maoísmo, os simpatizantes do sistema soviético de governo, enquanto pessoas, fatos, livros realmente revolucionários perderam o direito a serem considerados como tais. Revolução virou etiqueta de ditadura, revolucionário é corruptela. Quem sabe agora, com o desmascaramento das ideologias, possamos reencontrar a dimensão, a amplitude real de palavras de conteúdo tão denso e expressivo, espero que aconteça.

Devido a tal deturpação o aparecimento de livros determinantes, Casa-grande & senzala, o romance A bagaceira, não foi considerado fato revolucionário no âmbito do pensamento e da criação nacionais. Figuras decisivas na evolução da sociedade, portadoras do fermento revolucionário, não foram reconhecidas como tais, ao contrário, se viram tachadas de conservadoras de reacionárias. Assim sendo, rótulos os mais diversos e absurdos foram pespegados à personalidade revolucionária de Flávio de Carvalho, arquiteto, artista, inovador, agitador — às experiências, ao debate desencadeado: da rua ao palco, do projeto à construção, do salão de arte ao figurino provocador, deles tudo se disse sem se dizer o essencial. Em certas ocasiões o apuparam, noutras condenaram, jamais foi concedida à sua obra e à sua atuação importância que uma e outra mereciam e continuam a merecer. Se alguém renovou no campo da cultura brasileira, esse alguém chamou-se Flávio de Carvalho, gigante paulista na estatura e na valentia, no arrojo. Na coragem de pensar, de empreender, de realizar.

Eu o conheci quando fui a São Paulo pela primeira vez, em 1933, em companhia de Santa Rosa. Hospedamo-nos em casa de Tarsila do Amaral* e Osório César**, na ocasião marido e mulher — haviam recém-chegado de Moscou, ir à URSS naquele então era aventura cercada de dificuldades, viagem de espantos — realizavam uma exposição de cartazes soviéticos, insólitos e românticos, no Clube de Artistas Modernos, organismo criado e dirigido por Flávio de Carvalho, na época o centro de cultura mais sério do Brasil, o que colocava a proposta mais avançada. Ali pronunciei conferência sobre as crianças nas plantações de cacau, autografei o livro ilustrado por Santa Rosa, assisti ao Bailado do Deus morto, de Flávio, que espetáculo!, logo proibido pela polícia política. A censura não dava tréguas ao CAM, trazia-o no cortado, vigiava-lhe as promoções, a montagem da peça de Oswald de Andrade, O homem e o cavalo, viera de ser vetada, as autoridades de olho, prontas para intervir e proibir: Flávio personificava a subversão em marcha, ameaçava a ordem e a moral.

*Tarsila do Amaral (1886/1973), pintora.

**Osório Taumaturgo César (1895/1965), psiquiatra.

 

Fiquei amigo de Flávio nessa ocasião e o fui enquanto ele viveu. Entre os artistas brasileiros foi ele sem dúvida o que mais ousou, estendeu a ousadia ao limite extremo, refiro-me por exemplo aos desenhos da mãe em coma, recordo o escândalo. Foi aquele que levou a pesquisa mais longe, não se limitava nem se deixava intimidar pela crítica, pelo desdém, pelo ataque dos revolucionários profissionais, os de carteirinha. Revolucionário foi ele, Flávio de Carvalho, o artista, o cidadão.

Desconheceram seu estudo sobre a psicologia das massas, relatada em Experiência n° 2***, livro que está a exigir reedição urgente, publicam tanta besteira sobre psicanálise por que não trazem de volta às livrarias a pesquisa pioneira de Flávio, realizada no perigo das ruas e não na masturbação dos gabinetes? Riram dele nos jornais quando exibiu nas avenidas de São Paulo**** o traje ideal para nosso clima: hoje parece-nos inconcebível como se escreveu tanta tolice sobre o desfile do saiote. Flávio estava avançado sobre o tempo.

***Experiência n° 2, publicado em 1931.

****Em novembro de 1956.

 

A ação era-lhe tão necessária quanto a criação, todo ele ímpeto e generosidade, fundador do Clube dos Artistas Modernos, organizador do Salão de Maio. Colaborei com ele na preparação do Segundo Salão, em 1938 — vivi uns tempos em São Paulo à procura de trabalho, o Estado Novo fazia-me a vida difícil.

Geraldo Ferraz e eu fomos ao Rio em busca de quadros, Santa Rosa nos ajudou, Geraldo inventara o Club dos Mulatos Gordos assumira a Presidência, nomeara Santa Rosa o primeiro vice, o segundo era Gobbis*. Inventei os títulos dos quadros que Flávio pintara para o salão, me fez presente de um deles, A avó, mas de imediato o tomou de empréstimo, nunca mais o devolveu.

*Vittório Gobbis, (1894/1968), pintor.

 

O atelier de Flávio ficava em edifício situado na esquina de Barão de Itapetininga com a Praça da República, ademais de atelier, era sala de reunião, lar, campo de batalha sexual — sobravam as candidatas, artistas e simpatizantes, tantas, inesquecíveis, Flávio as devorava, não escapava uma. De uma quero citar o nome, negra de beleza peregrina, foi esposa de pintor surrealista, alemão negreiro. De natureza dadivosa, divertia-se polígama, que corpo, Senhor meu Deus, possuo retrato seu pintado por Rebolo*, mas só lhe mostra o rosto, o demais nada ficava a dever. Não, não vou citar-lhe o nome, para quê?, mais do que o nome vale a lembrança, a recordação. No mesmo andar do edifício morava Quirino da Silva**, pintou meu retrato, um senhor retratista.

*Francisco Rebolo Gonzales (1902/ 1980), pintor, craque de futebol.

**Quirino da Silva (1897/1981), pintor.

 

Meu retrato Flávio o pintou em 1945, o meu, o de Guillén, o de Neruda. Pablo posou na Fazenda de Valinhos, em matéria de artes plásticas era um tanto acadêmico, ao ver o quadro pronto, comentou: não é um retrato, é uma natureza-morta. Arquiteto de projetos discutidos no Brasil e no estrangeiro, Flávio construíra as primeiras casas modernas de São Paulo, no Pacaembu, inventara a casa da Fazenda Capuava*, maravilha, a imensa porta de entrada. Com o mesmo entusiasmo se entregava à arte e às tarefas de fazendeiro, às colheitas de figos, à venda de leite na capital, forneci-lhe o nome para a empresa leiteira, José e sua boa vaca. Reunia amigos em Capuava, hospedagem farta e alegre, serões de música e bate-papo. Convidado, carregando o violão e a maleta, Dorival Caymmi desembarcou do carro, entrou na calçada que levava à porta do paraíso, deparou com a pianista Mercês da Silva Telles, alta, torneada, beleza grega, nua na piscina, doirando ao sol o corpo de estátua, Dorival largou mala e violão, exclamou: está pra mim!, começou a executar o passo do siri-boceta.

*Em Valinhos, a casa projetada em 1929 foi construída em 1938.

 

A experiência número dois, a massa ofendida, em desvario, a procissão de Corpus Christi desatinada atrás do homem de chapéu na cabeça desafiando a lei da seita, a número três foi o desfile do New Look no Viaduto do Chá. Nunca se soube qual a experiência número um, será que J. Toledo, seu confidente, seu testamenteiro, no livro monumental que está preparando sobre Flávio vai nos revelar o segredo? Somente ele sabe o código que permite abrir o cofre.

Antes que eu houvesse aparecido no campo da liça para travar o combate decisivo e conquistar a praça inexpugnável, Flávio cantou Zélia em plena rua, ela se dirigia à Light para pagar a luz, ele atrás no galanteio. Por um lado honesta, por outro jovem, Zélia o desdenhou, não lhe correspondeu aos acenos, às palavras doces, achava-o velho e feio e, sendo comunista, definia-o burguês liberalóide, rico e maluco, enfim, um reacionário. Ainda bem, em certas horas a ideologia tem valor e vez.

 

 

Londres, 1968.

Macunaíma

 

Os devotos das caminhadas no calçadão de Copacabana — Zélia é um deles e me arrasta — já possuem inclusive um jornalzinho, redigido pelo doutor Cardoso*, médico com tendência a literato, irmão de minha amiga Maria Cardoso. Ao ritmo da caminhada, o jornalista quer saber qual entre os nossos contemporâneos é ou foi o maior dos brasileiros. Essa medida do maior bole com meus nervos, refiro dez ou quinze maiores, de José Américo de Almeida a João Guimarães Rosa, para lembrar apenas dois escritores. Admira-se que eu não cite Getúlio, Eduardo Gomes, Mascarenhas de Morais, espanta-se ao ouvir alguns dos nomes por mim citados, por que Grande Otelo, me pergunta. Entre os contemporâneos decerto existe brasileiro tão eminente quanto Grande Otelo, não duvido, nenhum porém maior. Pequeno, magro, feio, chegado à boêmia, sem eira nem beira, o oposto do solene e do sensato, não sei de brasileiro mais importante, eu não vacilaria em dizer o maior se tal medida não me parecesse absurda, errada, restritiva.

*Dr. Francisco Stolzer Cardoso, médico.

 

Em mil circunstâncias eu o vi único, sem igual, quero apenas recordar uma delas, impossível esquecê-la. Aconteceu em Londres quando da apresentação aos ingleses do filme de Joaquim Pedro*, adaptado do romance de Mário de Andrade, Macunaíma, com Otelo vivendo o herói sem nenhum caráter. Trajando terno rosa-choque, colete e gravata borboleta, Grande Otelo, Macunaíma em carne e osso, improvisou, com verve, eloqüência e erudição, discurso em língua inglesa para saudar o Lord Mayor da capital d Grã-Bretanha, num banquete de celebridades internacionais. Só vendo e ouvindo para crer. Grande Otelo, gênio.

*Joaquim Pedro de Andrade, cineasta.

 

Não invejo quem quer que seja. A riqueza, o talento, o sucesso, a glória de meu próximo e de meu distante não me afligem, sou capaz de admiração, de bater palmas, aplaudir, gritar hosanas, carregar em andor, gosto de fazê-lo. O sucesso de um amigo é meu sucesso, não precisa ser amigo, basta ser patrício, baiano, brasileiro, por vezes nem isso, basta que lhe descubra talento, vocação. Alegra-me deparar com um poeta, com um romancista jovem, estreante de inspiração verdadeira, saio a anunciar o acontecimento.

Imune à inveja, sou livre para a admiração e a amizade, que beleza! Nada mais triste do que alguém que sofre com o êxito dos demais, que é escravo da negação e do azedume, que baba inveja, rasteja no despeito, um infeliz.

 

 

Frankfurt, 1970.

Gabo

 

Nos portos do mundo encontro Gabriel Garcia Márquez. Em Barcelona ele nos espera em companhia de Carmen Balcells, a agente literária, terror dos editores, o editor Alfredo Machado a estimava: ela briga para defender os autores. Fomos tomar o café da manhã em botequim das proximidades. Em Cartagena, do navio avistamos Gabo e Mercedes, sua mulher, vamos saborear o café da Colômbia na residência dos pais do Prêmio Nobel. Em Havana jantamos em sua casa na companhia de Fidel Castro.

Leio Garcia Márquez de há longo tempo, não sei se fui eu quem recomendou Cem anos de solidão a Glauber Rocha ou se foi Glauber quem chamou minha atenção para o livro do colombiano. Gabo escreveu dois romances definitivos: o dos Cem Anos e O amor nos tempos do cólera.

Eu o conheci pessoalmente há mais de vinte anos num encontro de escritores da América Latina*, decorrido no quadro da Feira de Livros de Frankfurt, no qual professores e estudiosos alemães demonstraram conhecimento e interesse acerca das literaturas de nossos países e uma boa parte dos convidados hispano-americanos exibiu-se despudoradamente em busca de editor. Ainda outro dia recordei com Eduardo Portella a indignação de Adonias Filho, pouco afeito à disputa feroz por um lugar ao sol no mapa do universo literário, ao assistir à competição de títulos alardeados pelos candidatos a traduções e artigos, Adonias ficou sufocado: não vim aqui para isso, nos disse, a Eduardo e a mim, éramos os três brasileiros presentes, corpos estranhos na algazarra castelhana dos confrades. Chamou-me a atenção o comedimento de Garcia Márquez, em silêncio numa ponta de mesa, sem participar na feira das vaidades.

*Frankfurt, 1970.

 

Vindo de Moscou, Gabo telefona-me em Paris para dar recado de Doc Comparato, pergunto em que hotel se hospeda, ouço-lhe o riso:

— Jorge, quando um escritor latino-americano chega a certa idade, se tem juízo, deve fazer o que fizeste, comprar um apartamento em Paris — dá-me o endereço e o telefone.

 

 

Rio de Janeiro, 1946.

o discurso

 

Enquanto os peritos organizavam os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte*, durante cerca de uma semana subiram à tribuna representantes das diversas bancadas para o histórico da ditadura do Estado Novo e da luta pela democracia. Já não recordo todos os oradores, mas lembro ainda discurso de Otávio Mangabeira, em nome da UDN, peça oratória dita de improviso por ator de grande classe. Consta que Otávio escrevia os discursos, depois os burilava, decorava e os recitava diante do espelho ensaiando a gesticulação, no Parlamento os improvisava da tribuna, um espetáculo.

*Em 1946, Câmara e Senado recém-eleitos reuniram-se em Constituinte.

 

Para falar em nome da bancada comunista nesta primeira rodada de retórica parlamentar foi designado Claudino José da Silva deputado pelo Estado do Rio, o primeiro negro retinto a ocupar cadeira na Câmara Federal — esse, sim, o primeiro. Homem de poucas letras, soletrava com dificuldade, pessoa de fina educação, a fina educação do povo, apesar de possuir apenas uma muda de roupa, era dos congressistas mais elegantes, o mais elegante de todos, segundo Ivete Vargas.

Marighela e eu, quem sabe por baianos, fomos nomeados redatores dos discursos a serem pronunciados por camaradas pouco afeitos à escrita. Nossa prova inicial, o discurso lido por Claudino, ganhou foros de peça incomparável, ficou famoso nos anais da Constituinte de 1946 pela extensão. Dividíramos o terna em quatro partes, duas a serem redigidas por Carlos, duas por mim, pusemo-nos ao trabalho, resultou oração veemente, patética e sobretudo longa. Escritas as quatro partes tornou-se necessário juntá-las num todo com unidade, passamos a estabelecer o que Marighela intitulou de pontes, as pontes a ligar as quatro partes o número de páginas duplicou.

Da colaboração, trabalho consciencioso e um tanto divertido, resultou um senhor discurso, de fôlego, de muito fôlego: o bom Claudino levou quatro horas e vinte e cinco minutos, contados no relógio, a pronunciá-lo da tribuna da Assembléia. Parlamentares eleitos após oito anos de ditadura, na euforia democrática do após guerra, no início dos trabalhos da Constituinte senadores e deputados compareciam em massa às sessões, sentavam as bundas nas cadeiras, não tugiam nem mugiam, escutavam os oradores com atenção, evitando cochilar, aplaudiam forte. No caso de Claudino ouviam com atenção redobrada por se tratar de representante da bancada comunista, ainda por cima negro, deixá-lo falando sozinho seria tirar certificado de reacionário com ranço fascista.

Claudino na tribuna gaguejando o discurso interminável, Marighela, suplente de quarto secretário sentado na ponta da mesa diretora, acenava para mim, piscava o olho, gozando a caveira de pessedistas e udenistas. Puxávamos as palmas, ele lá em cima, eu cá embaixo, os colegas de todas as bancadas, unânimes, acompanhavam. Quando por fim Claudino desceu da tribuna e fomos todos abraçá-lo, Nestor Duarte, moleque como ele só, murmurou-me ao ouvido: que peça, puta merda!

 

 

Bahia, 1985.

Sic transit gloria

 

Desço a Ladeira do Pelourinho com Jacques Chancel que filma um programa sobre a Bahia para a televisão francesa. Os capitães de areia — que fornecem aos turistas verdades históricas em troca de moeda de vintém — nos cercam, apontam para o sobrado, hoje um hotel, onde morei adolescente em 1927, eu tinha quinze anos:

— Naquela casa Jorge Amado nasceu no ano de 1500. Não faz falta traduzir, Jacques, poliglota, entende e se diverte:

— És um notável da cidade desde mil e quinhentos... — Goza-me a glória de séculos.

De séculos porém efêmera, um dos meninos me reconhece, avisa aos companheiros: cala a boca, gente, não vê que é o pai do professor? O Professor, assim chamado, é João Jorge, meu filho, sociólogo, durante anos funcionário do IPAC*, ocupava-se com a população da área constituída em sua maioria por marginais e putas. Ocupou-se sobretudo com as crianças, de parceria com a atriz Aydil Linhares fundou para elas um teatro, espero que ainda funcione.

*Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural.

 

Contente com a popularidade de João entre a molecada, prossigo com Jacques em direção ao Largo onde ele vai documentar o desfile dos Filhos de Gandhi. O Largo está repleto de turistas franceses, descobrem o compatriota famoso, assediam-no, aplaudem-no, calorosos: foi preciso vir ao Brasil para encontrar em carne e osso o figurão da rádio e da tevê, Jacques distribui autógrafos. Dou-lhe o troco, gozo-lhe a glória atlântica:

— Notável és tu, notabilidade universal...

Os Filhos de Gandhi, no fausto dos trajes de carnaval, conduzindo o estandarte e a cabra, ocupam o Pelourinho, cercados por capitães de areia e por turistas, Jacques assume a direção da equipe de filmagem, o batuque irrompe, o cortejo se organiza.

 

 

Karachi, 1957

Acompanhamento

 

Com Aríete Soares* acompanhamos em Veneza os funerais de Stravinski, as obséquias na Basílica dei Santi Giovanni e Paolo, oficiadas por meia dúzia de padres católicos e outros tantos popes ortodoxos, uns e outros na pompa do ritual, a música do desvario, o incenso em labaredas, o pássaro de fogo nos turíbulos, o coro em língua russa, coisa de ver-se e de ouvir-se. A gôndola com o esquife singra o rio dei Mendicanti no rumo do cemitério, a marcha fúnebre se evola da nave da Basílica, cobre os canais e os palácios da Sereníssima.

*Aríete Soares, editora e fotógrafa.

 

O povo dos candomblés acorre em luto, o enterro de mãe Runhó sai do Bogun, no Rio Vermelho, atravessa a cidade em direção ao cemitério das Quintas, o acompanhamento semelha uma cobra, desmedida sucuruju, Oxumaré desdobra o arco-íris no céu da Bahia. Runhó morreu às vésperas dos cem anos de idade, dias antes mandara me chamar para se despedir. Dois passos à frente, um atrás, os cânticos jêjes, Margarida de Yansã, feita na roda do Axé, seu marido Aurélio, ogan de sala, o povaréu e os encantados, outro ogan do terreiro do Bogun, o poeta Jeovah de Carvalho*, lavado em lágrimas, discursa à beira do túmulo Mãe Runhó embarca no arco-íris.

*Jeovah de Carvalho, poeta e radialista.

 

Nas ruas de Karachi, entre automóveis, bicicletas, ônibus, a criança vestida de trapos empurra uma espécie de carriola armada com sobras de tábuas, de fabricação caseira, leva o corpo do avô, velho sem idade, seminu, exposto ao sol, no rumo da cova rasa — sem acompanhamento, a morte apenas, trivial.

 

 

Rio de Janeiro, 1960.

Reeleição

 

Sentindo-se popular, aplaudido pelo povo devido ao caráter democrático, progressista de seu governo — a implantação da indústria automobilística, a construção de Brasília —, quando se aproximava o fim do mandato, Juscelino Kubitschek sonhou com a possibilidade de reeleição. Não era fácil, a Constituição proibia, mas... Consultou Otto Lara Resende, o oráculo lhe disse: quem sabe um manifesto encabeçado por homens de cultura poderia dar início ao movimento. Fui contactado juntamente com alguns outros escritores.

Para começo de conversa, Eduardo Portella e eu pusemos de pé uma carta de reivindicações referentes à política interna e externa, reivindicações reclamadas por muitos intelectuais e pelas massas populares. Se Juscelino se comprometesse com tal programa talvez fosse possível lançar-se uma campanha pela reeleição. Eram quinze ou vinte itens, quantos e quais já não guardo memória, sei, porém, que o Presidente ao examiná-los concordou com todos menos com um. Aquele que reclamava posição independente do Brasil na guerra pela independência das colônias africanas sujeitas ao império luso: exigíamos que o governo brasileiro deixasse de apoiar o poder salazarista na reação contra os movimentos independentistas, deixasse de ser sabujo e se proclamasse neutro. Juscelino, até então entusiasmado com nosso programa, arrepiou carreira:

— Isso não. Não posso fazer uma coisa dessas com doutor Antônio.

Doutor Antônio era Antônio de Oliveira Salazar, os políticos brasileiros, mesmo os que se intitulavam progressistas, lambiam as botas do ditador de Portugal. Quem veio romper com tais dependências, históricas e humilhantes, da política externa do Brasil foi mesmo Jânio Quadros, queiram ou não aqueles que escrevem a História ao sabor das ideologias.

 

 

Viena, 1956.

O paraguaio

 

Faminto, fome de comida e de mulher, assim encontro o compositor José Asunción Flores, meu camarada, personalidade de relevo no pecê paraguaio, meu amigo de velha data, vem-me consignado pelos companheiros argentinos, traz-me carta de Rodolfo Ghioldi. Passa por Viena a caminho de Moscou, os soviéticos demonstram interesse por suas composições, a celebridade do autor de Índia e sua posição política abrem-lhe as portas da União Soviética.

Asunción recebera as passagens enviadas pelos russos — Buenos Aires, Londres, Viena, Moscou e vice-versa —, é tudo quanto tem para a viagem intercontinental. Pobre de pobreza guarani, total, os pesos conseguidos com Élvio Romero*, compatriota e correligionário de partido e de penúria, ele os gastou no aeroporto de Buenos Aires em sanduíches e frutas: gordo e glutão, eterno esfomeado. Não importa, não terá problemas de nenhuma espécie, pois é convidado da União de Músicos Soviéticos, está por conta da URSS, a URSS é poderosa e rica, nada lhe faltará a partir do momento em que ponha o pé no avião, sua confiança nos Poderes do socialismo é absoluta.

*Élvio Romero, poeta paraguaio.

 

Não decorreu com tanta facilidade quanto pensara. As confusões começaram no aeroporto de Londres, onde desembarcou por volta do meio-dia, após travessia longa e cansativa — naquele tempo de aviões a hélices, o vôo Buenos Aires—Londres devia durar boas trinta horas, talvez mais. O amigo Élvio, viajante experiente, havia-lhe explicado: desembarcas, te levam para a sala de trânsito, o vôo para a Áustria sai uma hora depois, ficas atento, quando ouvires chamar os passageiros para Viena embarcas, em Viena terá gente te esperando, tudo em ordem, não pode haver complicação.

Houve. Asunción não falava outra língua além do guarani e do espanhol: desembarcou, levaram-no à sala de trânsito onde se sentou à espera que anunciassem o embarque para Viena, devia suceder daí a uma hora, não sucedeu. Quer dizer, sucedeu o vôo para Wien, corno iria o compositor adivinhar que Wien era Viena? Sobraçando a pasta repleta de composições, ouvido atento, como recomendara Élvio, não ouviu jamais a palavra mágica, Viena, pronunciada ao microfone Chegara à sala de trânsito pouco depois do meio-dia, às seis da tarde apertado para fazer pipi, morto de fome, sem saber a quem se dirigir, Asunción, de hábito cidadão calmo, afobou-se.

Élvio lhe recomendara não abandonar a sala de trânsito, mas Asunción não teve alternativa, abriu uma porta, enxergou do outro lado balcão com letreiro: INFORMATION, dirigiu-se para a moça que atendia, começou a explicar a situação, a lady ao balcão não falava espanhol, Flores ia tentar a língua guarani, estava quase mijando nas calças quando, ao escutar os gritos: soy el compositor Asunción Flores, autor de Índia, um senhor elegantérrimo se aproximou e lhe perguntou o porquê de tamanha agitação. Tratava-se do Embaixador da Argentina em Londres, acabava de chegar de Manchester, ouviu a história de Asunción, começou por indicar-lhe o toalete, esperou que voltasse.

Admirador do músico paraguaio — quem não o era na América Latina? — tratou de resolver-lhe os problemas, vários: visto de entrada na Inglaterra válido por vinte e quatro horas, revalidação da passagem, reserva de lugar no primeiro vôo do dia seguinte para Viena. Levou-o a um hotel próximo do aeroporto, pagou-lhe quarto e jantar, pela manhã mandaria o chofer ajudá-lo no embarque. Tudo em ordem, para finalizar pediu o autógrafo do compositor: mi mujer canta en el bano sus guaranias.

Foi assim que, sobraçando a pasta repleta de partituras, da qual jamais se separava, Asunción Flores chegou a Viena com atraso de um dia. Ninguém a esperá-lo, sua salvação foi a carta de Ghioldi para mim, no envelope o endereço da sede do movimento da paz. Lá conseguiu chegar, me encontrou, paguei o táxi.

Asunción morria de fome, começava a morrer de fome cinco minutos após ter almoçado, levei-o a um restaurante, estava conosco a camarada que o Conselho Mundial da paz designara para me servir de intérprete, austríaca gorducha e sardenta, baixota, Asunción dividia os olhares de gula entre ela e o goulash, faminto de comida e de mulher, assim se declarara ao abraçar-me, exigindo que eu lhe resolvesse as aflições — era dos que acreditavam que eu poderia solucionar qualquer problema. Fez-me uma revelação: cidadão paraguaio, disse-me, após quatro dias sem mulher já não leva em conta idade, raça e sexo, ele completara cinco dias.

A sardenta, vendo-o gesticular, ansioso, quis saber o que se passava, por que estava tão agoniado o camarada Flores — de quem eu já lhe dera as coordenadas, informando-a sobre as guarânias e a popularidade. Expliquei-lhe ser ele paraguaio e que um paraguaio após quatro dias sem mulher etecetera e tal. Perguntei-lhe se ela não se dispunha a resolver o problema do camarada, ali estava excelente ocasião para pôr em prática o interna-cionalismo proletário. Ouviu-me com atenção, depois mediu Asunción de alto a baixo, gordo e calvo, a cabeça um queijo-do-reino, quis saber:

— Ele é mesmo muito célebre?

— Três célebre! En Buenos Aires les femmes se battent pour coucher avec lui...

Novo exame do físico do paraguaio, o resultado pareceu-me pessimista:

— Célebre somente na América Latina, não é?

Vi a situação periclitante, Asunción em maus lençóis, recorri aos princípios:

— Não esqueças que as músicas dele vão ser tocadas em Moscou, será a glória universal. — Senti que a abalara, fui decisivo: — Tarefa de partido, minha bela.

Argumento é argumento, a sardenta sorriu para o careca. Paguei a conta, me retirei discreto, deixei-os tête-à-tête, afinal Asunción me acreditava capaz de resolver qualquer problema, não podia abandoná-lo no alvéo.

 

 

Rio de Janeiro, 1939.

Os dez mais

 

A Revista Acadêmica, nascida órgão estudantil na Faculdade de Direito, transformada em magazine de cultura, ganha-pão de Murilo Miranda*, literato por analogia e parentesco, era de periodicidade irregular, saía quando Murilo arranjava anúncios ou patrocínio, realizou em cinco ou seis números um concurso para saber quais os dez melhores romances brasileiros. Voltavam apenas escritores, a relação dos votantes fora publicada na revista, cada qual compunha uma lista de dez romances de sua preferência, as listas eram divulgadas nas páginas da Acadêmica.

*Murilo Miranda, ensaísta.

 

A apuração final considerou os dez autores mais votados e de cada um deles o livro com maior número de sufrágios, se tivesse considerado os dez livros teriam entrado na relação dois romances de Machado, Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas Se não me falha a memória os dez mais foram — não estão em ordem de votação, já não a relembro: Dom Casmurro, Iracema, de Alencar, Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, O cortiço, de Aluísio, Os corumbas, de Amando Fontes Angústia, de Graciliano, Bangüê, de Zé Lins, Caminhos cruzados, de Érico, Macunaíma, de Mário de Andrade, Jubiabá, de minha autoria — vale lembrar que o concurso aconteceu em 1939.

Graciliano deixou para votar na última apuração, mostrou-me sua escolha, dois fatos chamaram-me a atenção. O velho — não completara ainda cinqüenta anos, por que o tratávamos de velho? — votava apenas em nove títulos, deixava um lugar vago, não lhe perguntei a razão, desconfiei que, por modéstia, falsa modéstia, não colocava na relação romance seu. Perguntei-lhe porém por que não votara em Os corumbas: romance de Amando Fontes, considerado na época o máximo, recolhia quase unanimidade dos sufrágios. Graça bebeu um gole de café, puxou a fumaça do cigarro Selma, estávamos no café Mourisco, esquina da rua do Rosário com a avenida Rio Branco:

— Esse filho-da-puta não votou em mim. — Passou a outro assunto, a seu ver de maior valia: — Tu pensas que daqui a vinte anos ainda haverá quem nos leia?

O concurso foi acompanhado com interesse pelos escritores, agitou os meios literários, provocou debates na Livraria José Olympio, no consultório de Jorge de Lima, na redação de Dom Casmurro, mas ninguém contestou o resultado. Não sei tampouco de romancista que tenha cabalado voto, se o concurso dos dez mais acontecesse hoje ia ser um deus-nos-acuda com cabo eleitoral e leilão de sufrágios. Um detalhe para que se saiba como era malvista, na época, a literatura de Oswald de Andrade: o rebelde paulista só obteve um voto, dado por mim a Serafim Ponte Grande, meu e único.

 

Desistir agora, não — disse eu a Paloma quando, machucada, ela pensou em pedir o boné e ir embora. Estamos numa briga, vamos brigar até o fim. Depois farás o que quiseres, o que te parecer melhor, Não agora. Perdi muitas brigas em minha vida, paciência, mas não fugi de nenhuma, fui sempre até o fim.

 

 

Paris, 1992.

A poeta e a fundação

 

Da Bahia Rosane me envia o livro de poemas de Myriam Fraga, Os deuses lares, ilustrações de Calasans Neto. A dupla é imbatível, Calá nasceu para ilustrar a poesia de Myriam, os poemas e as monotipias são da mesma matéria, visceral.

Leitor cativo de Myriam Fraga, tomo do livro e constato que seu canto atingiu a madureza, a densidade dramática, a sabedoria da palavra precisa e mágica. Que poeta, meu Deus! Que Deus a abençoe, o Deus da Fundação, o compadre Exu. Fuso e roca / roca e roca / tinjo e lavo / lavo com água e / mornos sais / o corpo / as feridas / na fimbria / no remoto — vou parar senão transcrevo o livro todo, verso a verso.

Nós o lemos juntos, Zélia e eu, não sei de prazer maior que o de ler poesia com a namorada, em conluio. Invadido de remorsos, acuso Zélia: a culpa é tua, foste tu a inventar a Fundação onde Myriam se encerra dia e noite no trabalho, na luta, na estafa, no planejamento, na realização, na busca mesquinha e heróica de dinheiro para poder levar avante a cultura, no afã de criar condições para a literatura e a arte na Bahia, para o estudo do romance brasileiro, pauta de afazeres pejada de problemas.

Myriam teria escrito e publicado nesses anos pelo menos três livros de poemas, sem falar no lazer abandonado, a casa de praia em Mar Grande, os fins de semana na fazenda, já não lhe sobra tempo para nada, vive amarrada às cadeias de mil dificuldades, carrega nas costas essa tal de Fundação, a tua Fundação. Zélia não se abala, diz estar certa que Myriam o faz com prazer, além de poeta é combatente, as dificuldades não a assustam, ao contrário, a seduzem. Quanto à poesia, que eu não me incomode, a poesia brota e resplandece, vive dentro de Myriam e nada a impedirá.

Quando digo que Zélia é a responsável pela existência da fundação cultural estabelecida no Pelourinho, nascida da doação de meu acervo literário leva meu nome, digo a verdade. Não fosse Zélia o acervo estaria a essa hora em universidade norte-americana.

Começara por me desfazer de minha biblioteca, nunca foi grande, mas eu já não tinha, fosse na Bahia, fosse no Rio, onde botar tantos livros. Passei a doá-los a bibliotecas públicas, muitos volumes foram para Lençóis Paulista onde funciona a Biblioteca Orígenes Lessa. A partir de certo momento, atendendo sugestão feita por Carlos Cunha, venho doando os livros à Biblioteca da Academia de Letras da Bahia. Guardo apenas uns poucos tomos de minha preferência absoluta, mestres que me marcaram, amigos a quem quero, uns quantos álbuns, poucas centenas de volumes, bastam e sobram. Também o acervo se acumulava, onde guardar tanta papelada?

Pesava eu propostas recebidas de universidades americanas, da Pensilvânia e de Boston, desejavam receber o acervo em doação, propunham-me zelar por ele, colocá-lo à disposição dos interessados em pesquisá-lo, criando para tanto verbas e espaços. Eu testemunhara, durante minha estada na Penn State University*, como tais universidades trabalham com eficiência e dedicação. Estava quase a decidir-me, Zélia se opôs com determinação à minha idéia de oferecer à organização estrangeira documentos, correspondência, livros, fotos, diplomas, a massa dos guardados: esse acervo só sairá do Brasil, da Bahia, se passarem por cima de meu cadáver, tem de ficar aqui, é o seu lugar. No decorrer de quase meio século de coabitação aprendi que não adianta discutir com Zélia, perco sempre, até agora não ganhei uma.

*Em 1971.

 

O escritor José Sarney, na época Presidente da República, em cerimônia no Palácio do Planalto** instituiu a Fundação. Ao agradecer eu disse esperar que a Casa não se transformasse num museu, fosse realmente centro de cultura para o estudo da literatura baiana e do romance brasileiro, trabalhasse em conjunto com os outros organismos culturais. Acrescentei que sendo na Casa apenas personagem, não me envolveria em sua administração nem no planejamento das tarefas. Por fim, referindo-me à doação por James Amado de escultura de Tati Moreno, coloquei a Fundação sob a proteção, os cuidados de Exu, entregue ao seu desvelo.

**Brasília, 1986

 

Sob a grande placa das três raças que se misturaram, os índios, os negros e os brancos, arte de Carybé, erguido diante da Casa, Exu preside o destino da Fundação, ali foi plantado o fundamento na noite de inauguração. Dos diversos axés e ilês vieram as mães e as filhas-de-santo para o canto e a dança em seu louvor. Antes o Presidente da República, acompanhado pelo Ministro da Cultura, Celso Furtado, pelo Ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães, pelo Governador do Estado, João Durval Carneiro, declarara a Fundação inaugurada. Dom Timóteo aspergiu a água benta da Igreja Católica, o babalorixá Luiz da Muriçoca soltou a pomba branca do culto do candomblé, Casa do sincretismo e da miscigenação. No palco armado no Largo desfilaram à noite os músicos e intérpretes que, de uma ou de outra maneira, estão ligados a meu trabalho de escritor, foram comandados por Nilde Spencer, minha amiga, grande dama do teatro da Bahia. Mais de vinte mil pessoas lotavam o Pelourinho na noite da inauguração*. Ao lado de Waldir Pires, governador eleito, e de José Aparecido de Oliveira, governador de Brasília, assisti de uma janela ao começo da festa, não tive condições de ficar até o fim, o coração tem seus limites.

*Maio de 1987.

 

Aqui nestas lembranças desejo apenas agradecer a todos e a cada um dos que concorreram para a existência e a atuação da Casa, são muitos. José Sarney que a instituiu, Antônio Carlos Magalhães, Celso Furtado, Waldir Pires, João Durval Carneiro, ministros e governadores, Lafayete Ponde Filho, presidente do Banco da Bahia, Renato Martins, da Odebrecht, Mário Gordilho, Germano Tabacov, reitor da UFBA**, que preside seu destino desde a instalação, os que compõem os Conselhos, os que nela trabalham: Rosane Rubim, Zilá Azevedo, Maria de Lurdes, cito apenas as que começaram com a Casa, ao poeta Claudius Portugal que inventou e dirige a revista Exu, órgão da Fundação. Quando me anunciou o projeto temi pelo futuro do organismo, a revista iria devorar-lhe o patrimônio, ser arauto da subliteratura, nunca cometi engano tamanho, a revista é uma beleza e não custa um centavo aos cofres magérrimos que Myriam administra.

**Universidade Federal da Bahia.

 

Diretor-executivo, Myriam Fraga moureja buscando solução para os problemas, não se queixa, não se abate por mais difícil pareça e seja a manutenção da Casa, a execução dos projetos. Myriam dirige a Fundação em poesia, em fuso e roca, no embruxedo, na fantasia, dona e comparsa, no esconjuro e na esperança, um ato de amor que ela repete a cada dia, a poeta Myriam Fraga.

Agradeço também a Zélia: só passando sobre o meu cadáver! Não fosse ela, a Casa não teria nascido, a papelada estaria nos States.

 

 

Bahia, 1987.

Almoço

 

Ao despedir-se, Ângelo Calmon de Sá me abraça: — Só mesmo você conseguiria esse impossível, não creio no que vi hoje aqui. — Refere-se ao almoço no qual, para festejar a inauguração da Fundação Casa de J.A., reuni os opostos, os adversários, os inimigos políticos e até inimigos pessoais.

Sentaram-se para almoçar na casa do Rio Vermelho naquele dia trezentas e três pessoas, fora os penetras, não sei quantos: no costume local o convidado traz a família toda, bem-vindos todos. Vínhamos das eleições para o Governo do Estado, para senadores, deputados federais e estaduais, os combatentes ainda não haviam deposto as armas. Como se haviam xingado, ofendido, de ladrão, como e canalha, as senhoras mães não escaparam da baixaria sem limites. Zélia e eu recebemos nossos convidados sem querer saber o que pensavam uns dos outros, Sarney com Marly, Antônio Carlos, Celso Furtado, José Aparecido o governador que deixava o cargo, João Durval, o que ia assumir, Waldir, o prefeito em exercício, Manuel Castro, o prefeito eleito Mário Kertz, não faltou ninguém. Pedro e Paloma tiveram a missão de dispor os convidados nas mesas usando a conveniência e o respeito, seria demasia colocar inimigos lado a lado. Certo deputado, neto miúdo de um grande baiano, deu entrevista aos jornais dizendo que não compareceria, invocou razões políticas, em verdade creio que não apareceu pelo simples motivo de não ter sido convidado. Todos os convidados vieram, não houve brigas, atritos, rosnar de dentes, a paz reinou e se afirmou a boa educação.

Estavam governo e oposição, os políticos e os intelectuais, os ricos e os pobres, Vitor Gradim e Camafeu de Oxóssi, o poeta soviético Evtuchenko, o francês Francis Combe e o baiano Carlos Capinan, Combe escreveu um poema de luz e sombra sobre a Bahia. Sucesso total, assim noticiou em sua coluna a convidada July. generosa amiga.

Ai, para mim não foi tão total assim o sucesso do almoço que dona Zélia e eu oferecemos a Germano Tabacov e a Myriam Fraga, presidente e diretora-executiva da Fundação: conto o fracasso, carregarei a vergonha comigo até a cova. Havíamos decidido não servir uísque, escritor que vive de direitos autorais não tem verba para oferecer uísque a trezentos convidados, a boca livre seria à base da batida e da cerveja. Encomendáramos não sei quantos engradados de cerveja, metade para o almoço, metade para a festa da Fundação, à noite. Na geladeira restavam apenas umas poucas garrafas, as do consumo diário.

É meu costume, quando recebemos, dar uma volta a ver como estão servidos os convidados. Assim fiz, pedi licença a Marly, deixei a mesa, saí pelo jardim, pela varanda, pela piscina, a saudar a uns e a outros, perguntar se não faltava nada. Numa das mesas almoçavam Antônio Carlos e Walter Moreira Sales, eu os cumprimentei, perguntei se precisavam de alguma coisa, Antônio Carlos disse que haviam pedido mais cerveja ao garçom, o dito cujo não trouxera, sumira. Decerto esqueceu, vou providenciar agorinha mesmo, coisa de minutos, sai às pressas.

Dirigi-me à cozinha, lá soube que não era possível servir cerveja por não haver em casa uma só garrafa, as poucas existentes antes haviam sido rapidamente consumidas, os engradados comprados para o almoço não haviam chegado à rua Alagoinhas, toda a encomenda fora enviada à Fundação. Impossível remediar a ocorrência, dar jeito na situação, fazer fosse o que fosse, na maior confusão, sem saber como agir, faltou-me ânimo para voltar à varanda, deixei ministro e banqueiro a ver navios.

Walter Moreira Sales, velho amigo, fora de gentileza extrema: deslocara-se a Brasília para assinar no Planalto a ata de instituição Casa, viera à Bahia para a solenidade da inauguração, ficara para o almoço, nunca mais tive cara para procurá-lo e quando, em momento da maior dificuldade, Myriam me disse que pensava visitá-lo em busca de socorro, eu pedi que não o fizesse, Walter Moreira Sales passara sede em minha casa.

 

 

Paris, 1991.

Jacques Tati

 

Vizinhos que somos em Paris da Ópera Bastilha, tendo acompanhado durante dois anos a construção do edifício, Zélia e eu subimos pela primeira vez suas escadarias convidados de Costa-Gavras* para o Festival do Cine-Memoire. O Festival se inicia com a projeção de Playtime, filme de Jacques Tati.

*Costa-Gavras, cineasta francês de origem grega.

 

Estivemos presentes à estréia mundial de Playtime num cinema próximo aos Champs Elysées, em 1967. Na versão original o filme durava três horas com um intervalo de quinze minutos entre as duas partes que o compunham, a película foi remontada para duas horas de projeção. Adorei revê-lo, tenho pela obra de Tati mais do que admiração e apreço, tenho-lhe amor. Jour de Fête, Les Vacances de Monsieur Hulot, Mon Oncle, Trafic, sempre os revejo, mas não havia voltado a assistir Playtime, das películas mais importantes de sua tão pequena e tão imensa produção (dele conheci também um documentário sobre circo). Situo Tati entre os monstros sagrados do cinema (para usar expressão de Zé Berbert) entre os maiores, os principais, seus filmes me divertem e me comovem. Mestre do cinema e do humanismo, tudo nele é decência, fraternidade, compreensão, amor ao homem, guarda distância da violência, da mesquinhez, da discriminação, das modas, nele tudo é eterno, nada é transitório.

Vi Tati em pessoa uma única vez, por ocasião da venda de livros autografados pelos autores em benefício do Comitê National des Écrivains, promoção anual que movimentava toda Paris, a começar pelo Presidente da República, dela participei nos anos 48 e 49. Em 49 dirigia-me ao local onde Anna Seghers e eu, os dois únicos estrangeiros, autografaríamos, passei diante do stand de Georges Sadoul, éramos amigos, apertei-lhe a mão, enxerguei Tati ao seu lado, estrela a acompanhar o ensaísta nos autógrafos.

A propósito de Jacques Tati, Sadoul contou-me, em 1953 se não cometo erro, divertida história. Sadoul fora ao Brasil, visitou o Rio, a Bahia e São Paulo. No Rio eu e Alex Viany lhe fizemos sala, na Bahia Walter da Silveira o comboiou, em São Paulo espantou-se ao encontrar em casa de Silveira Sampaio um gato siamês que atendia pelo nome de Sadoul. Quis saber o porquê do batismo, ficou sabendo: o gato assim se chamava em homenagem a ele, Georges, prova da admiração que Silveira Sampaio lhe devotava. O gato era manso, Georges o teve ao colo, a homenagem o comoveu, deu-lhe a medida de seu renome, da repercussão de sua obra de crítico de cinema em terras tão distantes.

A história que me contou se passara no dia dos autógrafos no Comitê National des Écrivains a que me referi acima: fila grande diante de Sadoul que autografava sem parar. De repente deu-se conta de que escrevera no exemplar do Histoire de 1'Art du Cinéma... o nome de Jacques Tati e não o seu, comentou para o metteur-en-scène:

— Imagina que escrevi teu nome em vez do meu num exemplar.

— Num exemplar? Em mais de cinqüenta. Há pelo menos meia hora que eu assino Georges Sadoul nos livros onde assinaste Jacques Tati. Como vês, tudo bem. — Ao contar, Sadoul comenta: parecia uma cena de filme de Jacques.

Durante a estada no Rio e em São Paulo, Sadoul passou a maior parte do tempo nas cinematecas cariocas e paulistas, assistindo filmes brasileiros, reafirmou sua opinião sobre Humberto Mauro, colocava-o na lista dos cem diretores mais importantes do cinema.

Admirador de Sadoul e de Tati, eu o sou igualmente de Costa-Gavras, também ele um mestre do cinema e do humanismo, sua câmera denuncia a opressão e o ditador. Sinto-me vaidoso da estima em que tem meu trabalho de romancista. Zélia e eu comemos comida grega em seu apartamento da rue Saint Jacques, ele e Michelle comeram feijoada na mansarda do Quai des Celestins. Agora o tenho mais próximo e fraterno, liga-nos o amor que dedicamos a Jacques Tati, somos da mesma confraria.

 

 

Porto Alegre, 1942.

Conspiração palaciana

 

Homenagem de despedida em Montevidéu, aos exilados brasileiros que regressam à pátria — o Brasil declarou guerra ao Eixo nazifascista, decidimos ser nosso dever cooperar com o governo no esforço de guerra, iremos impávidos para a cadeia. Ato político, gesto altissonante, de repercussão, alguns milhares de uruguaios se reúnem para saudar os últimos Soviéticos. Discursos, hinos, vivas às nações unidas, à União frente, aos líderes, a Churchill, a Roosevelt, a Stalin, Stalin à frente e acima, Deus é bigodudo e nasceu em Gori, na Geórgia. Rodolfo Ghioldi* ao fim da oratória chama-me para conversa a sós, anuncia-me a decisão dos pecês da Argentina e do Uruguai:

*Rodolfo Ghioldi, dirigente do pecê argentino.

 

— Tu não irás com eles.

Irrompo em desagrado, por que motivo tentam roubar-me a glória de estar entre os patriotas que se oferecem em holocausto? Rodolfo aplaca minha ira: tranqüiliza-te, irás amanhã para o Brasil, apenas não irás no trem com os demais, vais de avião cumprir uma tarefa em Porto Alegre, de importância. Passa a explicar, escuto com atenção, tem a ver com Prestes, sinto-me recompensado.

O interventor do Estado do Rio Grande do Sul é o general Cordeiro de Farias, no futuro será marechal, no passado foi um dos comandantes da Coluna Prestes, ressaltei-lhe a coragem e a capacidade militar em O Cavaleiro da Esperança, deve estar cocando os ovos de contente. Minha missão é procurá-lo, obter um encontro, explicar-lhe a posição dos comunistas solidários com o governo de Getúlio na guerra contra o Eixo e lhe dizer como seria desejável e útil que ele, Cordeiro de Farias, fizesse uma visita a Prestes de quem se proclama amigo. Romperia o isolamento em que vive há sete anos o comandante-em-chefe da Coluna — minto: o comandante-em-chefe foi o general Miguel Costa, Prestes era o chefe do estado-maior, ou seja, aquele que mandava, ditava ordens inclusive a Miguel Costa. Os camaradas dirigentes dos dois partidos comunistas consideravam que tal proposta, provindo de mim, escritor conhecido, autor do livro badalado no qual o general Cordeiro fazia figura de herói, teria possibilidades de ser aceita e levada a cabo. Rodolfo entrega-me a passagem de avião, aperta-me contra o peito, sei quanto Carmen e ele gostam de mim, nossa amizade vem dos tempos perseguidos da intentona.

Desembarco em Porto Alegre, hospedo-me com Henrique Scliar, o velho anarquista recebe-me com o afeto de sempre, não me faz perguntas. Durante a viagem amadureci um plano de ação, não pude fazê-lo antes, a noite eu a ocupara em despedida: Maria Condessa dos Seios de Limão, fidalga rural, viera de la hacienda na província do Oriente, o marido me enviava uma caneta de ouro, e mínima, perfumada de boceta. Católica praticante ela não trepava, pecava o pecado da carne, fogueira de lenho sagrado, gozava em latim: mea culpa, mea máxima culpa. Saía da cama para o confessionário.

Manuelito d'Ornelas, escritor de projeção regional, meu amigo, é secretário de Educação do Estado. Tenho o endereço da residência, espero o fim da tarde para visitá-lo. Vou devagar pela rua tranqüila, deserta de passantes, chego em frente à casa térrea, pela janela aberta vejo Manuelito sentado à escrivaninha lendo, bato palmas à porta. A esposa vem abrir, ao reconhecer-me contém um grito, manda-me entrar, rápida tranca a porta, vai chamar o marido, aproveita para fechar as janelas, sou um zumbi.

Converso com Manuelito na obscuridade da sala, a dona da casa foi providenciar um cafezinho: explico o problema, reage bem, coloca-se às ordens. Vou falar com o Interventor em seguida, me espere aqui, volto com a resposta. A senhora chega com as xícaras de café: coei agorinha mesmo, sorri refeita do susto. Jorge vai jantar conosco, avisa Manuelito, eu vou sair mas não demoro. Ela move a cabeça em concordância, pede licença, deixa-me só por um momento, vai à cozinha dar ordens para reforçar a bóia. De regresso faz-me sala, é inteligente, fala de livros, pergunta pelo Uruguai. Manuelito retorna, o general me espera à meia-noite, no Palácio.

Da meia-noite às três e meia da manhã o general Cordeiro de Farias e eu discorremos sobre a política mundial e a brasileira, os percalços da guerra, os prognósticos. Começamos pelo panorama das frentes de batalha, Manuelito me acompanhara para introduzir-me, participa, ele e eu arriscamos palpites, mas o general, falastrão e simpático, teórico em assuntos militares, pontifica. Manuelito se despede, deixa-me a sós com Cordeiro de Farias, entro no assunto, dou o meu recado.

Falo da posição dos comunistas, igual no mundo inteiro, tudo Pela guerra, abandono do radicalismo, mudança se necessário do nome do partido — vem de acontecer em Cuba onde os comunistas e o ditador Batista se uniram em frente antifascista —, o que importa é derrotar Hitler, tudo o mais torna-se secundário, as palavras de ordem convocando à luta contra o Estado Novo já não têm razão de ser, nem a agitação social, reivindicações e greves, o importante é unir toda a nação em torno do governo, em torno de Getúlio. Cordeiro, dublê de militar e de político, ouve interessado.

Chego a Prestes, falamos de meu livro, eu o escrevi para ajudar a anistia dos presos políticos, sabemos que há um longo caminho a palmilhar antes de consegui-la, Cordeiro agradece-me os elogios feitos à sua atuação, relata circunstâncias, diz bem de Prestes, do comandante e do homem de princípios: nem por discordar da ideologia marxista e condenar o comunismo, deixou de admirá-lo e de estimá-lo, na minha vista, diz, não admito que se levante a voz contra ele. O acento sincero, a voz firme, sinto-me animado, avanço com a proposta da visita.

Visitá-lo? O general fica pensativo, como a pesar e a medir os prós e os contras. Bem que gostaria de visitá-lo, a situação de Prestes o confrange, não há direito de tratá-lo com tamanha crueldade, não esconde sua pouca estima por certas figuras do governo. Promete-me fazer uma démarche junto a Getúlio, tentará obter a autorização, mas será que Getúlio conseguirá dobrar Dutra, Filinto, Góes Monteiro, os demais centuriões do regime? Tem dúvidas, Getúlio chuta com os dois pés, equilibra-se entre as tendências que se hostilizam no seio do governo, de um lado Lourival Fontes, de outro o coronel Afonso de Carvalho, mulato e nazista, imagine-se! Não tem papas na língua, parece sentir prazer em abrir o jogo, revelar seu pensamento. Quanto à visita, Orlando Leite Ribeiro já tentara junto a Vargas salvo-conduto para visitar Luiz Carlos, não conseguira, os dois maiores amigos de Orlando são exatamente Prestes e Getúlio. O general tentará mas tem dúvidas sobre o resultado, é pessimista. Vá ficando por aqui, diz-me em despedida, mas se receber ordens do Rio não terei outro jeito senão mandar lhe prender, quanto à visita vou mexer meus pauzinhos, vamos ver que bicho dá. Leva-me até a porta de saída, os soldados de guarda batem continência.

Manhãzinha chego à casa de Henrique Scliar, espera-me em vigília, pensou que eu tivesse sido preso. Preso? Ainda não. Estou chegando do Palácio, de conspirar com o General Interventor, guarde sigilo. Meto a mão no bolso em busca de lenço para enxugar o suor do rosto, em vez de lenço elevo na mão o trapo negro, a calcinha de Maria Condessa dos Seios de Limão, na sala O odor de almíscar selvagem, o velho Scliar aspira: que perfume! Concordo, morto de saudade, desejo boa-noite, levo a relíquia comigo, vou dormir.

 

 

Bahia, 1974.

Nudismo

 

Em 1974 deu-se a casualidade de se encontrarem ao mesmo tempo na Bahia três equipes de cinema, uma francesa, duas brasileiras, filmando adaptações de livros meus, boa parte das filmagens aconteceu na área do Pelourinho, cenário de vários romances de minha autoria. Ali Nelson Pereira dos Santos, assistido pelo filho Nei e pela sobrinha Tizuka*, montou o escritório da produção de Tenda dos Milagres, enquanto Bruno Barreto o fazia no Largo da Palma, para Dona Flor e seus Dois Maridos. Marcel Camus, os bolsos repletos de francos franceses para produzir Os Pastores da Noite alugara o antigo terreiro do Caboclo Pedra Preta, casa-de-santo onde fui, em tempos idos, levantado ogan de Yansã por Joãozinho da Goméia.

*Tizuka Yamasaki, cineasta.

 

Os três diretores rodaram cenas no Largo do Pelourinho e em ruas adjacentes, sendo que dois deles, Marcel e Bruno, tinham em seus roteiros locações na Igreja do Rosário dos Negros, pediram minha intervenção junto ao Cardeal para obter as autorizações necessárias. Pedi, o Cardeal, amável, concordou, daria ordens. Disse e cumpriu, dentro e fora do templo Bruno rodou as seqüências finais da película.

Filmagem realizada numa tarde de domingo, dez vezes ao menos a mesma tomada foi repetida, pois a multidão reunida no largo para assistir entrava em delírio ao ver José Wilker — o Vadinho do romance — destacar-se de trás de uma coluna na porta do templo, nu em pêlo, dar a mão a Sônia Braga dona Flor, que saía da igreja pelo braço de Mauro Mendonça, o farmacêutico Teodoro, descerem os três, de braços dados, felizes a ladeira — a gritaria, as vaias, os aplausos explodiam à visão dos quimbas de Vadinho, comprometiam o fundo musical, festivo, o som dos sinos. Bruno quase perde a cabeça, o povo gostou demais.

Dias depois, pela manhã, recebo telefonema aflito de Marcel. Acompanhado de figuração vasta, cerca de cinqüenta pessoas, homens de branco, mulheres em trajes de baiana, fora impedido pelo pároco de entrar na igreja: proibição de qualquer filmagem no interior do templo e nas escadarias. Com uma mão na frente e outra atrás, em desespero, Marcel apelava para mim: falasse com o Cardeal para renovar a ordem com urgência, cada minuto custava uma fortuna à produção.

Não foi fácil conseguir dom Avelar Brandão* ao telefone o secretário me informou com sequidão que Sua Eminência estava em retiro espiritual. No sufoco forcei a mão, dei um esporro o xibungo recuou da má-educação, consegui que fosse portador de um recado. Dom Avelar saiu do retiro ou da mentira, veio ouvir-me. Narrei-lhe o drama de Camus com cinqüenta extras pagos à hora esperando na rua diante da porta trancada da igreja. É verdade, disse-me o Cardeal, a permissão foi retirada devido ao sucedido no domingo durante a filmagem de Dona Flor: cenas de nudismo no interior do templo, houve quem falasse em bacanal, católicos revoltados, beatas em desmaio e faniquito.

*Dom Avelar Brandão (1912/ 1986) foi Cardeal Primaz do Brasil de 1971 a 1986.

 

Expliquei o sucedido, nem bacanal nem nudismo, invenção de solteironas. A única pessoa nua, e assim mesmo nem de todo nua, coloquei um cobre-sexo na vara de Vadinho, estivera sempre do lado de fora da igreja, envolto num roupão até o momento em que dera o braço a Dona Flor na escadaria: jurei pela alma de minha mãe, consegui convencer dom Avelar, um quarto de hora depois Marcel invadia o adro, ocupava a igreja para filmar o batismo do filho do negro Massu, tendo de padrinho Ogum, orixá dos metais, ocasião em que Exu pintou e bordou, segundo conta a história. Ninguém protestou, as beatas puritanas, as vitalinas encruadas silenciaram, não clamaram aos céus, não fizeram escândalo. Ao contrário do nudismo, o sincretismo não causou revolta, não provocou grita, escarcéu, reafirmou-se a realidade da Bahia: filhas-de-santo entraram em transe na igreja, seis Oguns compareceram, cavalgaram seus cavalos, testemunharam o batizado, um cortejo de padrinhos.

 

 

Bahia, 1962,

Zuca

 

Aprendo com Zuca* a não ter pressa. Tirante Aurélio, que exerce as funções de chofer e é pau para toda obra há cerca de trinta anos, rapaz moderno quando chegou, hoje com fios de prata na carapinha, Zuca foi o empregado de mais longa permanência na casa do Rio Vermelho. Instável população de secretárias, bibliotecárias, arrumadeiras, cozinheiras, lavadeiras, moços-de-recado, alguns de prolongado exercício, de vários fomos e permanecemos amigos. Valdomiro que cuida da piscina e com ela mantém misteriosa relação caminha para alcança o recorde de Zuca, mas ainda não chegou lá: por vinte anos Zuca exerceu o posto de jardineiro.

*José Laurêncio Carvalho.

 

De jardinagem pouco ou nada entende, em troca é matador de formigas de inestimável capacidade, num combate sem tréguas acabou com as formigas que infestavam o terreno quando o compramos, acabou com os formigueiros da casa e os de todo o bairro. Técnico competente, Antônio Carlos o nomeou funcionário público, ganhou cabo eleitoral de devotada eficiência. Coração de ouro, pai de dez filhos de seu sangue, a eles acrescentou os órfãos que criou em meio às dificuldades de pobre: se faltou pão alguma vez, jamais faltou carinho.

Baiano rematado, descansado, risonho, simpático, boa-praça: o tempo lhe pertence, Zuca o governa, dispõe dele a seu bel-prazer, não se sujeita a horários. Vou a um pomar, compro mudas de pitangueiras, trago para casa, digo a Zuca que as plante, ele as arruma junto à rampa, à espera — à espera de quê? Só ele sabe, interrogo:

— Zuca, quando vai plantar os pés de pitanga?

— Hoje é segunda-feira... — Zuca faz as contas nos dedos: — ... sexta-feira eu planto, Professor. — Trata-me por Professor com deferência.

— Sexta-feira? — Também eu faço as contas nos dedos: — Daqui a cinco dias? Não pode ser, Zuca.

— O Professor quer antes? Então planto na quinta...

— Quinta? Muito tarde, Zuca.

— Muito tarde? — Admira-se, mas se conforma: — Então na quarta..

— Antes da quarta, Zuca.

— O Professor está com pressa, não é? Planto amanhã...

— Amanhã não, Zuca. Hoje, agora.

Zuca olha-me com estima e comiseração, atropelo o tempo e a vida:

— O Professor é interessante. Tem cada uma...

Violentado, mas não convencido, vai plantar as pitangueiras, cresceram lindas, jamais deram pitangas. Peço explicações a Zuca, com a voz calma e cantada me esclarece: machearam, Professor, acontece muito:

— Também, plantadas naquela correria...

 

 

Bahia 1967.

Os clássicos

 

Na livraria de Demê pago contas elevadas, repetidas, livros às mãos-cheias comprados por João Jorge — ponha na conta de meu pai —, toda uma biblioteca de marxismo-leninismo.

O retrato de Che Guevara, foto de Korda, a mais reproduzida em todo o mundo, preside o quarto de João na casa do Rio Vermelho, as prateleiras ocupadas pelos mestres do materialismo dialético, pelos ideólogos do comunismo soviético, Marx e Engels Lenine, Bukarin, Stalin, os porretas todos, não falta nenhum. Duas edições de O capital, uma espécie de resumo em português, outra completa, encadernada, soberba, em espanhol. Numerosos volumes em espanhol, Demê os importa por vias travessas, custam os olhos da cara. Um volume em francês, Le Fils du Peuple com dedicatória de Maurice Thorez* para le camarade brésilien J. Amado, surrupiado de meu acervo.

*Maurice Thorez (1900/1964), secretário-geral do pecê francês.

 

As edições nacionais, quase todas, trazem o selo da Civilização Brasileira, a editora de Ênio Silveira, amigo e companheiro. Ênio carrega nas costas vários processos, habitue das comissões militares de inquérito, não se emenda, corre novos riscos, camarada de coragem comprovada: continua a editar autores proibidos, presta serviço à causa, afirma liderança entre a inteligentzia, ganha dinheiro.

Examino a estante pejada de ideologia. Constato — com certa satisfação, confesso — que meu filho não leu uma linha sequer dos clássicos da revolução proletária, os tomos estão virgens como saíram dos prelos de Ênio. Nisso João Jorge imita os dirigentes do pecê: não lê os clássicos do marxismo, os mestres do leninismo, pergunto-me quem os lê, muito vendidos, pouco lidos — como sucede hoje em dia com romancistas em voga, nacionais e estrangeiros.

Dirigente estudantil em luta contra os gorilas no poder, jovem comuna sectário porém bem-humorado, João Jorge escreve peças infantis, colabora no teatro de arena, comanda passeatas, namora à farta, nas horas vagas (raras) freqüenta o curso de sociologia na Faculdade de Filosofia e, se não lê os clássicos, lê romancistas e poetas. Os livros de ler estão espalhados pelo quarto, não merecem as honras da estante, largados em cima das cadeiras, ao pé da cama, ao lado da latrina. Examino autores e brochuras, as leituras do adolescente: Dumas, Castro Alves, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Steinbeck, Aluísio de Azevedo, Lolita, de Nabokov, A mãe, de Máximo Gorki — afinal um soviético. Quero saber: entre eles, qual o preferido? João Jorge não vacila: gosto de Eça de Queiroz, ele é o tal. Aprovo mas continuo a interrogar: que livro de Eça? A ilustre casa de Ramires? Os Maias? João Jorge aprecia Os Maias, acha João da Ega o máximo, não leu A ilustre casa, mas o Eça que prefere é o de A relíquia. Aconselho-o a ler Dickens e Mark Twain. Diz-me que de Twain já leu Tom Sawyer e Huck, eu lhe proponho os contos, vou ao gabinete buscar Mister Pickwick.

Eis que por coincidência Ênio Silveira aparece na Bahia, vem receber o título de cidadão baiano que a Câmara Municipal lhe concedeu. Conta-me das dificuldades que a editora atravessa, a perseguição política, a luta pela sobrevivência. Ajudo-o a vender uma batelada de títulos da boa literatura que ele também edita ao governador do Estado, Antônio Carlos Magalhães. Antônio Carlos não é ingênuo, está por nascer quem o poderá enrolar, sabe que, ao comprar livros de Adonias Filho, Guilherme Figueiredo, Nabokov, Steinbeck, Hemingway, Campos de Carvalho, está subvencionando a tradução e a difusão dos subversivos do marxismo-leninismo, ele o faz em sã consciência. Ênio me agradece a solidariedade que demonstro à Civilização Brasileira.

— Solidariedade com tua editora? Não é de hoje. Não sou eu, por acaso, quem a sustenta? Gasto fortunas com a cultura marxista de João Jorge. Vives às custas de meu filho, caro Ênio.

 

Após trinta anos de vida em comum, de amigação — gosto demais da palavra amigação, usada para nomear o que o código de família denomina concubinato, tenho aversão à palavra concubinato, má e feia, filha do preconceito e da discriminação —, Zélia requer, no uso da lei, o direito de usar meu sobrenome, assinar-se Amado. Na Bahia perde a causa, o juiz encagaçou-se, ignomínia; em São Paulo ela a ganha, junta Amado a seu nome de solteira.

Não tarda, Nelson Carneiro* vence a guerra do divórcio, eu e Zélia nos casamos. Três anos depois, dona Zélia sai do sério, escreve e publica um livro, Anarquistas, graças a Deus, em cujas páginas narra sua infância de filha de imigrantes, italianos anarquista católicos, no quadro de uma São Paulo afarista onde nasciam capitalismo com os matarazzos e os crespi e o movimento operário na sede das Classes Laboriosas e de outros grêmios culturais e reivindicativos. O livro fez sucesso, ainda o faz, repetem-se as edições, é traduzido, virou série de televisão na transposição (magnífica) de Walter Avancini. Dona Zélia tomou gosto, anda pelo quinto volume de memórias sem falar nas histórias para crianças. Não querendo usar muletas na caminhada literária, assinou seus livros com o nome de solteira, voltou a ser Zélia Gattai, renome nacional, por pouco tempo lhe servi de arrimo.

Para mim, nem Amado nem Gattai, apenas Zélia, quando não Zezinha.

*Nelson Carneiro, advogado e político.

 

 

Rio de Janeiro, 1939.

Urca

 

Tempos bicudos, pobre de Jô, sou redator-chefe de Dom Casmurro semanário de literatura, espécie de Nouvelles Littéraires traduzidas em brasileiro por Brício de Abreu, bon-vivant com muitos anos de Paris, o cargo não me rende vintém furado. Tampouco o de redator de Diretrizes, na primeira fase da revista de Samuel Wainer. Vivo de biscates.

A ditadura do Estado Novo fecha-me as portas, dificulta as oportunidades de trabalho, tentei São Paulo, sem sucesso. Escrevo sob pseudônimo para Carloca e Vamos Ler!, revistas do grupo de A Noite, meus amigos Magalhães Júnior e Antônio Vieira de Melo facilitam-me uns caraminguás semanais. Redijo diálogos para chanchadas, colaboro com Alinor de Azevedo* e Moacir Fenelon** em cenários para filmes da Atlântida, Carmem Santos, a inesquecível, compra-me os direitos cinematográficos de Mar Morto. Faço de um tudo e mais que tudo participo da atividade do pecê.

*Alinor de Azevedo, cineasta.

**Moacir Fenelon, cineasta.

 

Os tempos são bicudos porém alegres, meu apartamento na Urca, ao lado mesmo do Cassino, é uma espécie de república das letras e das artes em festa permanente. Nele se hospedam por alguns meses ou alguns dias uma caterva de iluminados: o pintor Carlos Scliar, o cineasta Fernando de Barros, o arquiteto Português Eduardo Anhaory, a artista plástica Tereza d'Amico, ávida e travessa.

Scliar nos sustentou durante meses pintando os retratos das irmãs e de outras parentas de Maria de Ademar de Barros: aluna de piano de Mário de Andrade, apaixonou-se pelo professor, arremeteu, Macunaíma fugiu-lhe dos braços. No desgosto ela se tornou amante oficial de Ademar, interventor do Estado de São Paulo, dinheiro farto, automóvel de luxo, cadilac, romântica ao luar do galanteio, devassa no leito da suruba, flor de pessoa. Era nossa patronesse, convidava-nos a jantar, servia patê de foie gras e champanhe Veuve Clicquot. Que fim terão levado as aquarelas de Scliar, retratos de família, Maria de Ademar e as irmãs, todas bem amigadas, ela com o governo de São Paulo, as irmãs com milionários: amoráveis, boas de cama.

Vivemos igualmente às custas de A arte de ser bela, livro de receitas de maquiagem assinado por Fernando de Barros, maquiador a serviço da perfumaria Coty que lhe encomendara o volume para presentear com ele a freguesia. Fernando chegara ao Brasil em 1938 em companhia de Chianca de Garcia, na intenção de filmar Capitães da Areia, sendo Capitães livro proibido filmaram Pureza de Zé Lins. Escrevi o livro de Fernando em duas noites, Scliar fez as ilustrações, Anhaory desenhou a capa, Zélio Valverde editou. A arte de ser bela nos deu de-comer e de beber, dinheiro para o aluguel do apartamento: bons tempos.

A partir das nove da noite o apartamento se enchia de visitas, as convidadas de Anhaory, condessas e midinettes, as de Fernando, senhoras de alta estirpe, coristas do Cassino, freguesas da Coty, estrelas do teatro de revista, clientela vasta a dos dois mondrongos. Vinham os namorados de Tereza, ela os revezava, variava muito, açambarcadora, durante três semanas foi noiva de Otávio Malta, figura grada, jornalista de renome, capapreta do Partido, nossa ligação com o Bureau Político, ainda noiva pespegou-lhe chifres, Malta abandonou a raia. Apareciam os artistas, a banda de Scliar, Ceschiati começava a esculpir, Athos Bulcão já era gordo, carregavam telas, pincéis e tintas, suavam talento por todos os poros.

Para completar a festa, a turma de Diretrizes, os literatos, os políticos, os subversivos: Samuel, Malta, Moacyr Werneck, Carlos Lacerda, Noel Nutels, e uma trupe de judias casadas e solteiras, uma sardenta se chamava Bertinha, morreu adolescente, quis-lhe muito, dediquei-lhe um livro. Moacyr Werneck de Castro noivava Lygia Fagundes Telles, novel ficcionista, já então uma beleza, não tanto ainda quanto hoje. Maria de Ademar e as irmãs não faltavam, eram da família, ao menos primas, seriam irmãs não fosse incesto.

Terminado o show no palco da Urca, as grandes estrelas subiam ao apartamento, davam o ar de sua graça, gente no tope da fama, d'aquém e d'além-mar: Sylvio Caldas, Pedro Vargas, Beatriz Costa, Grande Otelo, a mexicana Elvira Rios, Jean Sablon, Ary Barroso, Dircinha e Linda Batista. Uma noite Sylvio chegou apavorado, na pressa do horário do show atropelara um homem na Avenida da Ligação, fui em busca do Rolas, no Cassino. Beatriz Costa tornou-se amiga e comadre, viera pela mão de Anhaory, a franja do cabelo, a verve, a picardia, o riso, o improviso, a graça portuguesa, o palavrão palavra doce, a Beatrizinha como lhe dizíamos. Nos cinemas triunfava com a Aldeia da roupa branca, de Chianca, em carne e osso na ribalta, tripudiava.

A grande sensação foi a visita, certa noite, quase madrugada, de Josephine Baker, atuava no Cassino, chegou com Tereza d'Amico, acompanhada por Oswald de Andrade e Julieta Barbara, sua mulher. Não sei como ela e Tereza se haviam conhecido, pareciam íntimas, amigonas, amigadonas.

Tempos difíceis, nem dinheiro, nem democracia, apesar disso fazíamos a festa e enfrentávamos o Estado Novo, éramos jovens, insolentes.

 

 

Rio de Janeiro, 1946.

A estrela

 

Recém-chegado ao Rio para cumprir o mandato de deputado na Constituinte de 1946, recebo na Câmara bilhete de Carmem Santos, apraza-me: te espero para jantar às nove horas, projeto um filme sobre Castro Alves, uma super-produção, direção de Mário Peixoto, história tua, estejas às nove sem falta.

Hoje irás conhecer Carmem Santos — mostro o recado a Zélia —, amiga querida, pessoa ótima, deusa do cinema: alongo-me a gabar a beleza, o charme, a elegância, o talento da comediante de Favela de meus amores, proprietária dos estúdios da Brasil Vita Films. Em 1933 Carmem comprou uma opção por dois anos para a filmagem de Cacau, em 1943 estabeleceu outra opção, também por dois anos, sobre ABC de Castro Alves, em 1938 adquiriu por cinco anos os direitos cinematográficos de Mar Morto. Não realizou nenhum dos três filmes, mas os dinheirinhos dos contratos chegaram sempre na hora certa: para ser apenas escritor, para sobreviver sem outro ofício, comi da banda podre.

Descemos do táxi, dou o braço a Zélia, toda nos trinques: para elegante, elegante e meia, dá gosto vê-la, jovem madona: penetramos o portão da mansão confortável e acolhedora na Tijuca. Pensei encontrar Mário Peixoto, mas Carmem está sozinha, faço as apresentações:

— Zélia, minha mulher...

— Oh!

Zélia sorri, Carmem cobre os seios com as mãos, surpresa. Não está com os seios nus, apenas quase: sem sutiã, a blusa transparente realça-lhes a beleza. Veste calças leves, sem outros panos, livre de combinação, anágua, a seda tênue, translúcida, revela as formas do corpo, a formosura da estrela:

— Desculpe-me, pensei que ele vinha só, não sabia que tinha se casado.

Zélia, perfeita, não se perturba: esteja à vontade, está tão elegante, nos unimos em São Paulo durante a campanha da anistia. Carmem nos deixa na sala com as bebidas, os tira-gostos:

— Vou telefonar para Mário, dizer que venha. Aproveita para mudar a blusa e as calças, retorna elegantérrima, conjunto negro e sóbrio. O cineasta de Limite não tarda a aparecer.

 

 

Paris, 1991.

A pergunta

 

O neto Jorginho, oito anos incompletos, pergunta à avó Zélia, setenta e cinco completos: — Vó, você ainda transa com o avô?

 

 

Nova Delhi, 1957.

Destino da poesia

 

O ar de vítima dos acontecimentos, Neruda traduz-me a notícia no jornal de língua inglesa, data atrasada deixado no hotel por um turista:

— Assim não é possível, não pode ser. Esses soviéticos não são sérios, compadre — na foto sobre a notícia, Kruchev e Tito trocam beijos no aeroporto de Belgrado.

Após o sucesso sem tamanho de Canto general, o livro maior, aquele que inscreveu o nome de Pablo entre os primeiros poetas de nosso tempo, o vate chileno e comunista voltara às prateleiras das livrarias com Las Uvas y el Viento, coletânea de poemas políticos, a denúncia do imperialismo norte-americano, fator de guerra e de miséria, a louvação do heroísmo soviético e dos líderes das recentes nações socialistas nascidas no rastro das vitórias do Exército Vermelho na segunda guerra mundial. Poemas maiores, poemas menores, a altura não é a mesma do Canto, mas nada do que Pablo escreve é de se jogar fora, há sempre um verso imenso, a poesia vive com ele. Um dos poemas mais vibrantes faz a apologia de Tito, comandante dos povos iugoslavos, pai da pátria, maior do que ele só mesmo Stalin. Traduzido de imediato em todas as línguas da Federação de Repúblicas da Iugoslávia.

A Editorial Losada, na Argentina, anunciava a segunda edição de Las Uvas y el Viento quando se deu a ruptura de Tito com Stalin, aquilo que sabemos, o juízo final. Enfurecido contra Tito, o traidor, Pablo retira do volume o panegírico, em seu lugar coloca poema de fúria, de denúncia, de desmascaramento: de herói dos povos, Tito é rebaixado a cão-de-fíla do imperialismo, com os aplausos dos soviéticos e de todos nós.

Depois muita água correu, aconteceu o XX Congresso do PCUS, a denúncia dos crimes de Stalin, a reabilitação de Tito, a viagem de Kruchev a Belgrado, na mão o ramo de oliveira, ao tempo em que uma editora chilena, a Nascimento, preparava nova edição das Uvas Pablo me exibe no jornal o discurso de Nikita ao desembarcar do avião e cair nos braços do marechal: querido camarada Tito.

— Escute, compadre, e me diga se está direito: querido camarada Tito! — Pablo se sente enrolado nas malhas da política, lastima o destino das uvas ao sabor dos ventos soviéticos: — Escute e me diga, compadre, o que devo publicar na edição que está no prelo? O elogio ou a descompostura? Assim fica difícil poeta engajado. Como é que pode?

Aconselho Pablo a retirar Tito das páginas do livro, de uma vez para sempre, ficará a coberto das oscilações políticas. Sobretudo, compadre, não escreva ainda a louvação a Kruchev, é melhor esperar até ver que bicho dá.

 

 

Rio de Janeiro, 1963.

Melancolia

 

O que a Academia, falo da Academia Brasileira de Letras, nos dá não é nem a imortalidade (sic!), nem a glória (puf!), nem sequer a respeitabilidade, nada disso. Nos dá apenas e isso, sim, é muito, paga a fatuidade, o transitório, o disparate, o que ela nos dá é a convivência, a amizade. Entrando para a Academia — pela porta dos fundos, a do engano, penso eu — ganhei novos e bons amigos: Antônio da Silva Melo*, Clementino Fraga**, pude privar com Pedro Calmon com quem tratara apenas em rápidos encontros.

*Antônio da Silva Melo (1886/1973), escritor, médico, professor.

**Clementino Fraga (1880/1971), escritor, médico, professor.

 

Na sala de sessões, quando compareço, sento-me entre um novo amigo, não o conhecia antes, Afonso Pena Júnior, beleza de pessoa, culto, inteligente, agradável, e um velho amigo, terno amigo, Álvaro Moreyra. A casa dele e de Eugênia foi minha casa quando, menino de dezoito anos, desembarquei no Rio de Janeiro, um filho a mais: a família era grande, os filhos que Álvaro fez em Eugênia e ela pariu e os adotados por ela e por Alvinho.

Discursa um acadêmico, Alvinho volta-se para mim, me diz:

— Ontem à noite me vi num programa de televisão, gravado dias antes. Só aí me dei conta de como estou acabadozinho, fiquei com tanta pena de mim...

Melancólica, a voz de Alvinho. Melancólica e forte, voz de surdo, ressoa alto, interrompe o orador.

 

 

Praga, 1950.

A chovinista

 

Maria da Bahia passa por Praga no rumo de Paris, vem de Sofia. Maria da Bahia porque o solar da família fica no Corredor da Vitória, nas vizinhanças do Campo Grande.

Embusteira, apresenta-se como afilhada de Graciliano Ramos por ter nascido em Palmeira dos índios, nas Alagoas, declara-se minha parenta: então não sabes que Tenente andou aos tombos com Maria Minha Irmã Caçula? Tenente é James Amado, ao tempo redator-chefe de O Momento, gazeta do pecê baiano. Subcunhado e confidente, ouço com deleite seus particulares de xibiu e coração.

Por jornalista, enviada especial de O Momento, credencial fornecida pelo cunhado Tuna (a danada sabe todos os apelidos de James), por ativista do Partido, sobretudo por morena, galante e fogosa, Maria da Bahia viaja pelas democracias populares a convite, com direito a transporte, hospedagem e mordomias variadas. Leitos ilustres a acolheram em Budapeste, Belgrado Bucareste, em Berlim Leste, em Varsóvia e Wroclaw, em Bratislava, em Sofia. Em Paris, um ano antes, de volta da Iugoslávia, confidenciou-me a cama presidencial de Tito, herói e marechal, será mentira, será verdade, impossível tirar a limpo. Falta-lhe Moscou, Eremburg garantira-lhe convite da União de Escritores Soviéticos, não cumpriu. Detém-se em Praga, hóspede da União de Jornalistas da Tchecoslováquia. Em Sofia quem a recebeu foi um parente de Dimitrov a quem ela conhecera na Embaixada da Bulgária, em Paris, Maria da Bahia é bem relacionada nas cortes socialistas.

Erguendo os cálices de slivovice, brindamos no bar do Hotel Praha o próximo regresso aos penates da jornalista brasileira. Maria da Bahia lava a alma, não vê a hora de voltar, o Brasil lhe faz falta, admiro-me, nunca a pensara chovinista. Explica-me:

— Não agüento mais dar o eu em húngaro ou em eslovaco, não posso mais. Quero ser chamada de puta em brasileiro: sua vaca! Ouvir dizer e entender para me acabar no gozo. Em língua socialista, ouvindo sem entender, não dá para gozar como se deve, perde-se o melhor, o frenesi.

Os olhos sonhadores de Maria da Bahia, de pureza imaculada. Esvazia o cálice, o secretário-geral dos jornalistas a recolhe no Tatra Plan negro a que os dirigentes têm direito e a leva no cair da tarde.

Por pouco saio correndo atrás do automóvel oficial para diz a Maria da Bahia e assim a ajudar no frenesi do orgasmo que puta em língua tcheca se diz curva, palavra bonita, sinônimo de sua vaca. Poderia lhe ser útil na hora do enrabanço.

 

 

Bahia, 1965.

As gulosas

 

Um ruído suspeito me acorda, apuro o ouvido, parece-me provir da sala de jantar. Levanto-me evitando fazer barulho, saio do quarto, avisto luz acesa na cozinha. Vou em passo de gato, surpreenderei o ladrão, a surpresa será a melhor arma, não tenho revólver em casa. Aliás nunca possuí nem usei revólver, na Câmara dos Deputados eu era o único parlamentar desarmado, me lembro do assombro de Silvestre Péricles de Góes Monteiro quando abri o paletó e ele constatou a ausência de pau-de-fogo em minha cintura: Você é maluco.

Na cozinha, o que vejo? Dona Angelina, mãe de Zélia, e minha mãe Lalu, envergando uma e outra camisolas de dormir como convém a viúvas idosas, chupam mangas — manga se chupa, não se come, caso se deseje fruir o prazer completo —, rostos lambuzados. O mel escorre dos lábios para o queixo, mancha as pulcras camisolas. Chupam as mangas com avidez e competência, o ruído que me pareceu suspeito procede das bocas das duas senhoras no gozo da fruta colhida no jardim da casa, mangas-carlotas suculentas.

Regresso ao quarto, pé ante pé, para que as duas não me vejam, morreriam de encabulamento. Aproveitam a calada da noite para o pecado da gula, o sabor das mangas chupadas assim às escondidas torna-se divino. Lalu e Angelina estalam as línguas.

 

Onde quer que eu chegue, nas comarcas do mundo, províncias e Metrópoles, vilarejos, encontro mesa posta e escuto uma palavra amiga.

Alguém me diz: li teu livro, companheiro, ri e chorei, me comovi. Tereza Batista mudou minha vida, Pedro Archanjo me ensinou o pensamento livre, a pensar por minha cabeça, aprendi com Quincas a não ser o outro e, sim, eu próprio, com o comandante Vasco Moscoso de Aragão troquei o medíocre pelo sonho, aprendi o amor com Gabriela e dona Flor dele me deu a medida exata: mais poderoso do que a morte. És escritor porque eu existo, leitor: chorei e ri, me emocionei ao ler teu livro.

Onde quer que eu chegue tenho mesa posta e alguém me diz a palavra amiga. Esse o prêmio, a razão e o compromisso.

 

 

São Paulo, 1945.

Pogrom

 

O sujeito é um monstro, um bandido, acredite, amigo... Lasar Segall aparece no apartamento da Avenida São João para meia hora de papo. Repete que não veio me visitar e, sim, ao quadro que me tendo dado de presente em 1945, me entregou um ano depois a duras penas. Conta-me a ameaça que o violenta, o terror a que está sujeito pelo miliardário americano, monstro sem entranhas.

Judeu russo, Segall veio ao Brasil pela primeira vez em 1912, ano em que nasci, voltou em 1918, tornou-se brasileiro para sempre. A guerra contra o nazi-fascismo lhe inspirou três quadros belos e terríveis, grandiosos painéis: Pogrom, Navio de imigrantes, Guerra, sendo que o menor dos três, Pogrom, parece-me o mais belo e o mais dramático.

Dos Estados Unidos chegou um rei de qualquer coisa, judeu riquíssimo, malas de dólares na bagagem, vidrou ao ver a tela do Pogrom, decidiu comprá-la. Pede preço, não está à venda, responde o pintor, o milionário declara que à venda ou não ele vai levá-la, faz oferta, alta, Segall recusa, engaja-se a peleja. O americano volta todos os dias, refastela-se na cadeira diante do quadro e tome oferta em dólares e pagamento à vista, o dinheiro está na pasta ao lado, o sádico exibe as notas verdes. No outro lado da trincheira, Segall recusa, disposto a conservar a tela em seu acervo. O desespero na voz, me diz:

— Amigo, esse sujeito é um demônio, tenta-me, oferece-me cada vez mais dinheiro, tanto nunca vi em minha vida, não sei até onde posso resistir. Quer levar meu quadro, tenho medo de ceder, amigo!

Não cedeu, Segall gostava de dinheiro, mas gostava ainda mais dos quadros que pintava, resistiu à avalanche de dólares, Pogrom permanece no acervo do Brasil.

 

 

Paris, 1991.

Surrealismo

 

Extasiada na mesa do bistrô à margem do Sena, Kristina Hering conta uma história surrealista, história de espantar mesmo no tempo em que vivemos, quando o impossível se faz quotidiano:

— Fiquei certa que tinha enlouquecido.

Tradutora de profissão, Kristina traduz do francês, do espanhol, do português para o alemão, fala o português com pronúncia lusitana, vem de concluir a tradução do volume das Conversations de Alice Raillard, está traduzindo livros de Zélia, veio a Paris conversar com suas autoras. Ainda lhe é difícil acreditar que pode inscrever-se numa excursão de fim de semana, embarcar num ônibus em Berlim, desembarcar em frente à Notre Dame. Como aceitar então o que se passara antes, durante sua estada em Cuba, não dava mesmo para acreditar.

Duas informações são necessárias para que se possa entender a história de Kristina. A primeira saber-se que antes da reunificação da Alemanha ela era cidadã da República Democrática, ou seja, da Alemanha Oriental, habitante de Berlim Leste, sujeita a todas as restrições possíveis. A segunda refere-se a programa existente na União Soviética e em cada um dos países do socialismo real, patrocinado pelas uniões de escritores. Anualmente distribuíam-se algumas bolsas a tradutores para que pudessem visitar durante um mês país de língua de sua especialidade: ganhavam as passagens e uma ajuda de custo mínima para os gastos pessoais.

Durante exatos quinze anos Kristina candidatou-se a uma dessas bolsas para qualquer dos países de fala francesa, espanhola, portuguesa, a França encabeçava a lista, logo vinham a Espanha e o Brasil. Durante quinze anos esperou em vão, mas no décimo sexto foi contemplada com uma bolsa para Cuba, um mês na ilha de Fidel. Cuba não encabeçava sua lista mas, enfim, Kristina não via razão para jogar fora a oportunidade de viajar. Arrumou a mala, tomou o avião em Berlim Leste para Havana.

Andou Cuba inteira, adorou, fez amizades, traçou projetos de trabalho, passado o mês embarcou de retorno à Alemanha Oriental — mesmo vivendo sob o mesmo regime do socialismo real, existiam diferenças entre Cuba e RDA, Cuba era o trópico. Os familiares a aguardavam no aeroporto no maior assanhamento, querendo saber como ela havia recebido a notícia.

— Notícia? Que notícia?

— A do muro.

— Que muro?

— O nosso, o de Berlim.

Quando Kristina viajara a polícia atirava e matava quem tentasse atravessar o muro, os mortos contavam-se às dezenas, os presos às centenas.

— O muro de Berlim? O que aconteceu? Não sei de nada — Baixou a voz para perguntar: — Quantos mataram nesse mês?

Durante sua ausência, o mês em Cuba, o muro de Berlim ruíra, deixara de existir, de dividir Berlim em dois, de separar as duas Alemanhas, apenas Kristina não sabia de nada. Se a imprensa cubana noticiara o fato ela não lera a informação e nenhuma pessoa com quem tratara lhe contara fosse o que fosse, a queda do muro era tabu em Cuba. Ainda no aeroporto relataram-lhe as ocorrências, simplesmente ela não acreditou. Meteram-na no carro e a levaram onde estavam as sobras do muro de Berlim, atravessaram para o outro lado, Kristina continuou sem acreditar.

— Olhei, vi, cruzei o muro e continuei a não acreditar. Primeiro pensei que tinha morrido, que existia uma outra vida, eu chegara ao paraíso. Depois pensei que simplesmente tinha enlouquecido, custou trabalho convencer-me de minha sanidade mental, de que não estava louca de jogar pedra, as pedras do muro de Berlim.

Kristina respira fundo os ares de Paris, a liberdade.

— Por vezes ainda penso que estou louca e que de repente vou ficar sã e o muro lá estará inteiro, a polícia atirando. Dá-me uma aflição, quero continuar louca, não quero me curar.

 

 

Maceió, 1933.

Se chamava augusto

 

Cicerone nas ruas e graças da cidade, Aurélio Buarque de Holanda* leva-me ao puteiro na noite morna de Maceió. O futuro dicionarista, novel literato, popular entre o mulherio, que o trata pelo apelido com intimidade, é disputado: contigo vou de graça, Belo Corpo.

*Aurélio Buarque de Holanda, escritor.

 

Apaixono-me por Lindinalva, filha de usineiro arruinado, abandonada pelo noivo. Estendidos na cama conversamos no intervalo, no quarto o olor de alfazema, o toco de vela ilumina Santo Antônio. Lindinalva é loira de trigais maduros (a imagem é velha e gasta, eu sei, mas é porreta), eu irei colocá-la inteira no Jubiabá, a Aurélio a devo, aproveito para de público agradecer a prenda. Certa vez, em sessão comemorativa de seu aniversário, pensei fazê-lo na Academia, Pedrinho Calmon me desaconselhou: o local não era apropriado, cairia mal.

Houve um momento — como direi? falta-me a palavra justa, direi que foi um momento inolvidável. Lindinalva vira de bruços: bote atrás, menino, tu nem sabe como gosto, gosto demais — lençol de oiro a crina se desdobra até o coxim da bunda. Bunda arrebitada de sinhazinha de engenho, nas cambiantes do melaço, mel de cana-caiana, rego de açúcar mascavo e o precipício. Lindinalva volta o rosto para mim, olhos azuis de água marinha: estudei no colégio de freiras mas Augusto, meu noivo, se chamava Augusto, me viciou.

 

 

Hamburgo, 1968.

Mon ami Georges

 

A neve tomba sobre Hamburgo, a cidade envolta em bruma, em frente a um cinema o cartaz exibe imagens de filme pornô: a nudez da fraulein, mamas vultosas ao gosto ianque, riso de deboche, segura um disco com o retrato de Georges Moustaki na capa e o mantém sob o mamilo intumescido, o rosto desfeito em orgasmo. Mesmo em fotografia mon ami Georges provoca paixões. Paixão, uma de suas palavras, a outra é liberdade.

Quando estamos em Paris — acontece com freqüência —, nos reunimos com Georges todo tempo, juntos em nossos restaurantes, o chinês, o marroquino, o italiano, o grego, o do Jura onde se bebe vin de paille à sobremesa, os bistrôs franceses, foi Georges quem nos levou a Au Pont Marie, de Magali*. Nossos amigos e os dele tornaram-se amigos comuns, Marta, Sérgio Reggiani, os Raillard, Albert Cosery, Antoinette, Anny-Claude, Zbitch, tantos mais, cresce a cada dia a família, les amis de Georges. Escalamos, Zélia lépida, eu arfante, as escadas que conduzem ao dúplex no sexto andar da rua Saint-Louis-en-l'Ile, no qual le patre grec pastoreia rebanho de cabritas e ovelhas, companhia feminina numerosa e juvenil — coloco o acento sobre o adjetivo juvenil, a mais idosa vem de cumprir dezoito anos.

*Magali Guiffoul, proprietária do restaurante Au Pont Marie.

 

Grego de Alexandria, judeu errante, árabe em guerra, parisiense naturalizado por Edith Piaf, marujo no mar Mediterrâneo em seu itinerário de cantiga e aventura teria de arribar ao porto da Bahia, capital-geral da Costa d'África e das Caraíbas, enseada da sabedoria e do mistério, irmã gêmea de Alexandria. Ali desembarcou na década de sessenta a convite de Vinícius de Moraes. Hóspedes do poeta, a seu pedido foram recebê-lo no aeroporto as atrizes Alexandra Stewart e Suzana Vieira.

Buscavam táxi quando um executivo ao volante de Mercedes importada lhes ofereceu carona. Disseram-lhe aonde queriam ir e a quem iriam acolher. O galã, admirador de Alexandra, devoto de Suzana, colocou-se às ordens, nada tinha a fazer, flanava em Itapuã, poderia levá-las e esperar para trazê-las de volta com o compositor de quem era igualmente fã, assoviou a melodia de Le métèque. Embarcaram, o galante perguntou a Suzana se não o estava reconhecendo. Não, não estava, quem era ele?

Orgulho ferido, o cidadão declinou nome completo, para Alexandra nada significava, para Suzana sim: som Mariel Mariscot, disse. Apesar da parecença com as fotografias nos jornais, Suzana duvidou: está pilheriando. Se duvida suspenda o tapete ao pé do banco, Suzana suspendeu, deu com a metralhadora ao alcance da mão do motorista. Também Alexandra viu a arma, quis saber a razão, Suzana traduziu em francês, trocou em miúdos, o nome do dono do automóvel que tão gentilmente as conduzia: o bandido mais temido do país, já ouviu falar no Esquadrão da Morte? Pois era o chefe em pessoa, condenado a trinta anos de prisão, fugido da cadeia. A estrela do cinema riu exaltada: que país o Brasil, único no mapa-múndi, loucura igual não existe.

Gentileza em pessoa, Mariel Mariscot depositou o compositor na porta da casa do poeta, mas declinou do convite que lhe foi feito para assistir, daí a dois dias, no Teatro Castro Alves, ao show de Vinícius e Toquinho com a participação de Moustaki: desculpassem, não podia abusar da complacência da polícia. Assim aconteceu o desembarque de Georges no Brasil, como não amar e não adotar o país surrealista? Georges o adotou, fez-se músico brasileiro, parceiro de Tom Jobim, de Chico Buarque, de Toquinho.

A Bahia des pécheurs, des marins, des filies du port tornou-se lar e musa, inspirou-lhe duas canções que correm mundo, no Rio Vermelho Georges encontrou um petit coin du paradis. Quantas vezes retornou, quantas retornará? Estava entre os músicos brasileiros na audição de Le Grand Échiquier que Jacques Chancel dedicou à Bahia, ao lado de Caymmi, Caetano e Gil, cantou com Betânia e Gal, um baiano a mais.

Voz solidária, presente onde quer que a liberdade reclame adesão e apoio, canto de amor erguido pelos palestinos, pelos lábios, pelos curdos, por Nelson Mandela, por Otelo de Carvalho, por quem mereça e necessite: a paixão e a liberdade, matrizes da criação de Moustaki. Eu poderia contar um montão de histórias, testemunhei algumas, reduzo-me a uma única, basta para dar a medida de meu amigo Georges.

Teve ele amores passageiros com viandante árabe, a estrangeira habitou curta semana de cinco dias de desvario na Ilha de Saint Louis, disse à-bientôt em despedida, não deixou endereço para correspondência. Dela Georges veio a saber dias depois pelo noticiário dos jornais: fora presa ao desembarcar no aeroporto de Tel-Aviv, o grosso de sua bagagem era constituído por bombas que, acionadas, teriam destruído metade do Estado de Israel. Interrogada pelas autoridades, declarou ser esposa do compositor francês, mundialmente conhecido, Georges Moustaki.

Surpreso, mas não embaraçado, Georges tomou conhecimento do depoimento. Para a semana de convivência não houve juiz de família, tampouco mula ou pope, rabino ou padre, apenas desejo mútuo e mútua outorga, nem por isso o compositor (mundialmente conhecido) desmascarou a terrorista, ela o nomeara esposo, ele não a desmentiu, deu-lhe assistência e afeto.

Condenada a larga pena, enquanto esteve a cumpri-la por várias vezes recebeu a visita de Georges. Cantava para ela e para as demais presidiárias, tornou-se camarada da diretora do presídio. Batalhou para diminuir-lhe a pena e o conseguiu, posta em liberdade, após cumprir três anos, para ela Georges alugou apartamento nas proximidades do seu, a moça o ocupou por breve tempo, partiu a cumprir seu destino.

 

 

Bahia, 1965.

As ânforas do recôncavo

 

Naqueles tempos divertia-me enviando aos amigos de passagem na Bahia potes de barro, porrões para guardar água, os maiores e mais feios que encontrava à venda na Feira de Água dos Meninos, mantinha em casa uma dezena de reserva para atender às eventualidades.

Na década de sessenta, o único hotel decente da cidade era o da Bahia, situado no Campo Grande, lá se hospedavam os visitantes de categoria. No dia do regresso, na hora da saída para o embarque, o viajante recebia a prenda: envolto em papel de presente, o porrão de barro, sem o menor valor artístico, em compensação descomunal, um trambolho daqueles. Acompanhado de cartão gentil — cheguei à perfeição de mandar imprimir cartões de visita com os nomes dos lordes: — receba o ilustre amigo essa lembrança de viagem, ânfora do recôncavo, peça de artesanato, recordação da Bahia. Entregue quando o ilustre amigo estava a sair para o aeroporto, que jeito senão juntar o mimo à bagagem. Mimo? Podia ser menor, ouvi Afrânio Coutinho murmurar, eu presenciava sempre que possível o bota-fora do homenageado. Ouvia os resmungos, não passavam de resmungos, pois o cartão a acompanhar o presente revelava a identidade do ofertante, figura de realce: o governador Luiz Viana Filho, o prefeito Antônio Carlos Magalhães, o jornalista Odorico Tavares, o diretor do Museu do Estado Carlos Eduardo da Rocha, o banqueiro Clemente Marianni. Quem iria largar no hall do hotel lembrança atenta e decerto valiosa de Sua Excelência? Um estorvo sem dúvida, mas que delicadeza!

 

 

Rio de Janeiro, 1970.

Tema de conversação

 

Adolfo Bloch oferece no edifício da Manchete almoço em homenagem ao editor português Francisco Lyon de Castro, reúne mesa graúda, diretores da empresa, escritores, Fernando Sabino, Carlos Heitor Cony, Pedro Bloch, Paulo Mendes Campos, os acadêmicos Raymundo Magalhães Júnior, Adonias Filho, Josué Montello. De Adonias e Josué — e de Dalcídio Jurandir, Wilson Lins, Antônio Callado — Chico Lyon irá publicar edições portuguesas em série brasileira dirigida com devotamento e competência por Álvaro Salema.

Na mesa, após o habitual protocolo das matérias de interesse do forasteiro, no caso problemas editoriais, a censura salazarista agride a indústria e a literatura, a conversa recai em tema de agrado dos nacionais. Vem à baila assunto apaixonante, empolga a assistência — à exceção do hóspede português, todos os demais convivas são conhecedores do tema, teóricos com maior ou menor prática, a matéria lhes é familiar desde a juventude: as casas de putas, nacionais e estrangeiras. Não o baixo meretrício, é claro: castelos, pensões elegantes, discretas, caríssimas, o supra-sumo. A erudição dos vários debatedores, diretores da empresa e escritores é vasta, abrange a geografia e as especialidades. Explicam, narram detalhes, relembram momentos, incidentes, personagens, fornecem endereços.

Raymundo viveu anos nos Estados Unidos, traça os mapas da luxúria ianque, o que sabe em teoria e prática daria para mais de um volume. Adolfo é universal, globe-trotter, Europa, Ásia, América. Fernando por demais imaginoso parece-me pouco confiável. Desfilam ao sabor da conversa as maisons-close, os motéis, os castelos, os puteiros para milionários e personalidades, de cidade em cidade, os roteiros da libertinagem. Ao que me recordo Cony foi de bom aviso no que se refere ao produto nacional.

Chico Lyon ouvia, pareceu-me siderado, a conversa sem peias, a tagarelice libidinosa transcende os hábitos, ultrapassa as contingências do editor lusitano. Em certo momento um dos peritos — qual deles? Diretor da empresa, escritor? Se fizer um esforço de memória talvez possa recordar, valerá a pena? — A voz severa, mastigando o filé macio, aponta o garfo para o peito do convidado, queixa-se veemente e amargo:

— Em sua terra, meu amigo, é terrível, o hábito intolerável...

— O que lhe parece intolerável? — Chico feliz com a volta da conversa aos assuntos políticos, quer saber que coisa mais terrível é essa, assim tão insuportável, em Portugal, decerto a censura, as prisões, a perseguição...

— Nem censura, nem perseguição, muito pior. Entro numa Pensão, escolho uma cachopa, vou com ela pro quarto, na hora agá a gaja me pergunta: como poderei servir melhor Vossa Excelência? Não há tesão capaz de resistir a Vossa Excelência, meu amigo, brocho cada vez que ouço.

Na pausa do riso, pergunto a Lyon de Castro:

— Diga-me uma coisa, Chico: num almoço de escritores e editores na Europa-América, esse tema de conversação seria debatido à mesa, como aqui?

Hábitos de recato, hábitos de dissimulação, os costumes severos pudicícia ou fingimento, realidades do além-mar. Atropelado na távola redonda da Manchete, perplexo, Chico estremece na cadeira, esquece a fina educação, deixa escapar o que lhe vai no pensamento:

— Nem na Europa-América, nem em nenhuma mesa portuguesa.

Vossa Excelência! rosna Adolfo, ainda inconformado.

 

Até hoje não aprendi a empregar corretamente os verbos — retificar e ratificar — tenho de parar e pensar antes de usá-los.

 

 

Paris, 1991.

Monteiro Lobato

 

Desde que, há alguns anos, encontrei num buquinista volume da tradução francesa de Urupês, toda vez que sigo pelos diversos cais do Sena procuro outro exemplar para com ele presentear um amigo francês interessado em bons autores brasileirios. Até agora busca inútil, não perco a esperança.

Em minha opinião de leitor, o escritor principal do Brasil na década de vinte não foi nenhum dos papas do modernismo e, sim, Monteiro Lobato. Refiro-me ao contista de Urupês e de Cidades Mortas, prosa moderna (despida dos tiques modernistas), recriação amorosa e contundente de certa sociedade brasileira da época — dessa sociedade tudo que resta hoje são os contos de Lobato.

Monteiro Lobato não participou do movimento modernista e até se posicionou contra num famoso artigo de crítica à não menos famosa exposição de pintura de Anita Malfatti* aí pelos idos de 1918. Artigo feroz onde Lobato, pintor acadêmico de fim de semana, classificou a artista de prostituta ou coisa que o valha — a baixaria da crítica brasileira é antiga. Não foi, contudo, essa posição conservadora que determinou o esquecimento atual da obra do contista. O escritor Monteiro Lobato foi vítima de outro segmento de sua vasta produção literária, o dos livros infantis, popularíssimos. A série do Sítio do Pica-pau Amarelo com Pedrinho, Narizinho, a boneca Emília, o Marquês de Rabicó, Dona Benta, a negra Anastácia obteve um sucesso tal, tão descomunal (perdura até hoje, segundo me dizem) que escondeu o outro Lobato, o maior.

*Anita Malfatti (1889/1964), pintora.

 

De sua obra de literatura infantil não sou apreciador, por vários motivos. Mas que grande, que extraordinário contista, agradável de ler-se (sei que atualmente o fato de um livro ser agradável de ler-se não significa virtude e, sim, defeito), cheio de graça, pleno de humor, de conhecimento da vida e do povo brasileiros!

Aproveito para anotar o reconhecimento que devo a Lobato: antes de nos termos conhecido pessoalmente, o mestre paulista saiu do sério ao ler Mar Morto, em 1936: exaltou-se, fez-me elogio tão grande como jamais voltei a receber.

 

 

Pequim, 1952.

Ópera de Pequim

 

Logo na primeira noite de Pequim, deslumbrados, Rosa e Nicolás Guillén, Zélia e eu fomos levados ao teatro para assistir à representação de uma ópera milenar — tudo na China é milenar, o recente tem quinhentos anos. A ópera de Pequim assistida in locum em nada se parece com o espetáculo circense, em geral de alta qualidade, que percorre o mundo sob o mesmo nome. Na China é peça de teatro, texto poético, música estridente, o povo adora. Na sala repleta, os espectadores bebem chá, comem bananas, chupam tangerinas, mascam sementes de abóbora e amendoins enquanto os atores evoluem no palco. Para nós tudo é novidade e encanto.

Naqueles idos eu armava as piores molecagens aos meus amigos, algumas divertidas, outras de mau gosto, quem conviveu comigo foi vítima. Assim o fiz na noite da ópera de Pequim ao ver Nicolás e Rosa em desespero querendo saber o que se passava no palco, o intérprete deles, um velho senhor, morto de cansaço, adormecera antes da peça começar. Abriu os olhos com o ruído da orquestra, mas logo voltou a dormir, a música o embalava (sic), deu-nos trabalho acordá-lo no final do espetáculo.

Nicolás e Rosa ficaram na minha dependência, eu lhes repetia em espanhol o que Liu, nosso intérprete, meu e de Zélia, nos traduzia em francês, aliás não repetia nada do que Liu dizia — inventava outra história, e que história! Da mais baixa pornografia. A ópera contava da guerra que o Imperador levava a cabo, com o apoio decisivo da Favorita, para desbaratar os inimigos que tentavam destroná-lo, exércitos se enfrentavam, uma epopéia. Na minha versão o Imperador decidira vingar-se das traições da Favorita, ninfomaníaca que transava com uns e outros, sobretudo com afetado malandrim, escriba do palácio. O dito cujo adentrara a cena executando o passo do jovem letrado — no teatro chinês reconhece-se a profissão do personagem pelo passo peculiar a cada um — que adotei de imediato: tentei imitá-lo enquanto estive na China, sem êxito apreciável.

Vingança à altura dos chifres imperiais: mandou entregar a adúltera aos cortesãos que a quisessem possuir, a bacanal se desenrolou no palco. Não contente, colocou-a à disposição da soldadesca, por fim o arremate da cópula da Favorita com os cavalos. A ausência de cenários, absoluta, tudo no faz-de-conta, facilitava minha trapaçaria, embuste absurdo, inacreditável.

Inacreditável, Nicolás, porém, acreditava, eu lhe sussurrava devassidões, ele se assombrava, Rosa, de ouvido atento, deixava escapar exclamações, oh! hein? ah! Dios! Zélia continha-se para não rir, durou horas — a representação de qualquer ópera de Pequim dura horas, é preciso ter paciência de chinês para agüentar.

Ainda recordo uma passagem: após desmascarar e mandar prender o primeiro-ministro conspirador, a Favorita entra em cena num palanquim de faz-de-conta, transportada aos ombros dos criados, fatigada deita-se em cima dos coxins a descansar. Na minha versão erótica a Favorita, após ter sido estuprada por um batalhão de soldados, atira-se semimorta sobre as almofadas. Pobrecita, disse Rosa, que horror, exclamou Nicolás. No faz-de-conta da entrada em cena dos cavalos, atingiu-se o cúmulo da emoção: os cavalos vão traçá-la, comuniquei aos compadres estarrecidos. Quadro movimentado e feérico, o dos cavalos disparados cruzando o palco, entre a Favorita e o Imperador, sempre no faz-de-conta da dança e dos ouropéis, prestava-se a qualquer interpretação.

Decorridos alguns dias fomos recebidos, os quatro, na União dos Escritores Chineses, encontro com os maiorais da literatura e das artes, do teatro e do cinema, com os ideólogos do Partido. Falamos sobre Cuba e Brasil, Nicolás declamou em espanhol, tudo bem, gentilezas, elogios a granel, solidariedade revolucionária, para finalizar os companheiros chineses pediram que opinássemos sobre o que nos era dado ver na República Popular da China, jovem nação socialista — estávamos em fevereiro de 1952, Mao assumira o poder em fins de 1949. Sobretudo critiquem os erros, assim nos ajudarão a corrigi-los.

Línguas de louvor as nossas: tudo a aplaudir, nada a criticar. Nicolás, porém, atendendo à solicitação feita, reclamou um esclarecimento: não entendia por que punham em cena num teatro de Pequim ópera como aquela a que assistira, por que motivo? O ideólogo explicou que realmente o conteúdo da ópera era um tanto quanto feudal, o argumento situava-se em passado distante, amores de Imperador e Favorita, a guerra pelo poder absoluto, mas que fazer se o povo não podia passar sem as óperas, espetáculo tradicional e popular? Como ainda não tinham obras novas, de conteúdo socialista, viam-se obrigados a apresentar as do tempo do feudalismo.

Não se tratava de feudalismo e sim de pornografia, replicou Guillén, devassidão tamanha jamais vira em cena nem sequer no bas-fond de Nova York. Pornografia? Não estou entendendo — estranhou o porta-voz do pecê chinês. Não consegui me conter, o fou-rire se me escapou e descabido ressoou no auditório da União de Escritores. Nicolás fuzilou-me com o olhar, buscou o que dizer, a indignação não lhe permitia encontrar as palavras de cólera para me insultar e condenar. Fitou-me, eu ria, Zélia ria, Rosa entendeu e riu seu riso sonoro das Antilhas, de repente aconteceu o imprevisível, Nicolás se juntou a nós na gargalhada, poucos sabiam rir com tanto gosto. Compadre, me disse entre frouxos de riso, nunca mais vou acreditar em ti.

Discretos, os chineses não fizeram perguntas, mas Rosa exigiu de Zélia o entrecho verdadeiro da ópera, queria saber tintim por tintim a história das guerras e dos amores do Imperador da China e da Favorita, fiel e devotada, casta.

 

 

Lisboa, 1966.

Autógrafos

 

O navio se aproxima do cais, a primeira pessoa que vejo, agitando os braços, é Luiz Henrique, está em Portugal pesquisando para um livro. Grita, não ouço nada, logo diviso Ferreira de Castro, Álvaro Salema, Francisco Lyon de Castro e Odylo Costa, filho. O navio atraca, sobem a bordo. Luizinho, alvoroçado, dá-nos a boa-nova: podem desembarcar, foi permitido Ao tomar o barco na Bahia recebera a notícia de que o governo português mais uma vez me negara entrada enquanto o espanhol me concedera o visto até então recusado. Tomamos o navio para Vigo, vou com Zélia e os filhos em viagem à Europa Paloma nasceu em Praga, não festejara um ano quando veio para o Brasil. João Jorge foi para Paris em 1948, voltou de Gênova em 1952, aos cinco anos incompletos. Sobre a entrada na França nada sei, devo encontrar notícias de Guilherme Figueiredo em Madri, quem sabe me darão o visto de quinze dias que solicitei.

O direito de desembarcar em Lisboa eu o devo aos esforços reunidos de Maria de Lourdes Belchior e Odylo Costa, filho, adidos culturais, ela de Portugal no Brasil, ele do Brasil em Portugal. Ao saber no Rio que eu obtivera o visto espanhol ao mesmo tempo em que me eram fechadas as portas lusitanas, Maria de Lourdes tomou o avião para Lisboa, gritando escândalo. Também Odylo se moveu, moveu céus e terras, o direito de desembarcar foi-me concedido com uma restrição: proibidas notícias na imprensa, devo passar anônimo. Noticiário nos jornais não me interessava, meu interesse era Portugal, o país e o povo. De Lisboa o navio irá ao Porto antes de chegar a Vigo, Lyon de Castro mete-nos no automóvel, arrancamos pelas estradas, iremos embarcar no Porto, viagem inesquecível.

Dois meses depois estamos de volta, para estada maior. O editor aproveita, promove sessão de autógrafos, desconhece a interdição de meu nome na imprensa, coloca anúncio nos jornais convocando os leitores para encontro comigo na Sociedade Nacional de Belas-Artes, às três da tarde. Foi o fim do mundo, os leitores abandonaram a clandestinidade, às onze da manhã a fila já se estendia rua afora, dezenas, centenas de pessoas. Escoltado por Beatriz Costa e Raul Solnado, pelas meninas Eunice e Zélia assinei durante horas e horas, perdi a conta. Havia quem trouxesse malas repletas de livros, todos proibidos, comprados por baixo do pano, lidos nos esconsos das prisões, no campo do Tarrafal. Cada qual tinha uma história para contar, me lembro de um camarada que havia lido Capitães da Areia transcrito em pequenos pedaços de papel, passados de cela em cela. Fui acarinhado, ouvi loas que não eram loas e, sim, ternura, beijaram-me a face e me disseram amigo, companheiro. Se emoção matasse, eu teria morrido naquela sessão de autógrafos em Lisboa.

 

 

Rio de Janeiro, 1979.

Maestria

 

Assumo o telefone, ligo para a Bahia, uma chamada atrás da outra, ao Governador, ao Prefeito, ao diretor da Bahiatursa, a amigos: a José Calasans*, autoridade máxima a respeito de Antônio Conselheiro e da guerra dos pobres, a Antônio Celestino, ao historiador Luiz Henrique Dias Tavares, ao escultor Mário Cravo que talhou no tronco da mangueira a figura do enviado de Deus, ao pintor Sante Scaldaferri: com as tintas sujas da miséria e da opressão, com a tinta rubra da esperança, Sante pintou o sertão, a fome e a luta. Busco abrir caminho para a travessia da caatinga projetada por Mário Vargas Llosa: planeja escrever um romance sobre a saga de Canudos — e o escreve, La guerra del fin de mundo.

*José Calasans, historiador.

 

Em Londres o romancista peruano me falara de seu intento, não me entusiasmei, mostrei-me reticente: um romance com o tema da guerra sertaneja, o Brasil dos beatos e cangaceiros? Temi que Mário fosse se meter em camisa de onze varas, pois sendo, como sou e se sabe, limitado no que se refere à criação literária não sei trabalhar senão a realidade que conheço por tê-la vivido, sou ficcionista de dois temas únicos, as terras do sem fim do cacau, a vida popular da cidade da Bahia, voltejo em torno deles, repito cenários, personagens, emoções. Daí ter-me assustado com a notícia.

Tema suntuoso o de Canudos, onde o grande romance braseiro a recriá-lo? Inspirados pelo livro de Euclides, alguns tentaram fazê-lo sem maior sucesso, ninguém conseguiu igualai a grandeza de Os sertões. Dispõe-se agora um índio peruano, mestiço de espanhol, a enfrentar o desafio, eu o vi perdido nas trilhas do sertão, em meio aos jagunços, incapaz de entendê-los. Mario, porém estava entusiasmado, calei minhas reservas, prometi-lhe apoio.

Em julho de 1979, Mario chega ao Brasil para presidir Congresso do Pen Club, cobra-me a promessa de colocá-lo em contato com quem possa ser-lhe de utilidade na Bahia, tomo do telefone, falo com meio mundo, encomendo e recomendo, boto de pé sua estada. Quando dou a tarefa por terminada, Patrícia mulher de Vargas Llosa, em tom de zombaria, louva sorrindo minha maratona ao telefone:

— Só faltaste arranjar mulher para Mario.

— Para isso ele não precisa de ajuda — respondo ao sorriso e à zombaria.

Guia e passaporte do romancista, Renato Ferraz me conta que na caatinga homens e mulheres diziam-no o argentino, as mulheres apaixonaram-se, os homens se fizeram seus amigos. Quanto ao romance, ao receber o exemplar da edição espanhola que o autor me enviou, ainda temeroso, não o li de imediato. Só o fiz quando Mario reclamou opinião. Enganei-me, Deus seja louvado! Aquilo que nós, brasileiros, não arriscamos fazer, o peruano o fez com maestria, por fim se escreveu o romance de Antônio Conselheiro, a saga sertaneja de Canudos ganhou dimensão universal.

 

 

Bahia, 1972.

Cinqüentenário

 

Telefonema do Rio, a voz de Caymmi, inimitável, canta uma cantiga nova, que beleza!, audição em primeira mão, privilégio. — Que achas da oração que acabo de compor para Menininha? Gostas?

Mãe Menininha do Gantois festeja cinqüenta anos de sacerdócio, de elevação a mãe-de-santo, era uma menina quando da sucessão de Pulquéria, sua avó de sangue. Na história dos candomblés da Bahia não se tem notícia de festa igual. Para as comemorações Dorival compôs a Oração a Mãe Menininha: a Oxum mais formosa está no Gantois / a mãe da ternura está no Gantois, o canto irrompe e se eleva em todo o território do Brasil. Carybé, Pierre Verger, James Amado, Waldeloir Rego, Mário Cravo, Dorival Caymmi e eu constituímos a comissão dos festejos, para o presente Manolo Moreira nos cedeu a preço de banana colar antigo, de ouro, uma placa foi afixada na porta do Axé: ... há cinqüenta anos Menininha do Gantois zela, no posto de iyalorixá, com exemplar dedicação e perene bondade, pelos orixás e pelo povo da Bahia.

Assim tão grande e bela nunca vista, a festa cresceu no terreiro sagrado do Ilê Ilya Omin Axé Iyamansê, a multidão sobrou na praça em frente, encheu as ladeiras e as ruas em derredor. Na sala prestam reverência o Governador, o Prefeito, ex-governadores, senadores, deputados, industriais, banqueiros, comerciantes, os grandes do mundo e o povo da Bahia, reunidos. Pela manhã o Abade de São Bento, dom Timóteo, rezou missa no altar da Virgem Maria, Oxum é Nossa Senhora da Aparecida. Menininha está além e acima das divergências de classe e de credo, é a Rainha Mãe do Brasil. Filha de escravos, só não nasceu escrava porque já havia a lei do ventre livre: essa a nossa realidade mágica, goste quem quiser, quem não quiser que se dane de raiva.

Na madrugada daquele dia das comemorações, no segredo da camarinha, Oxalá chega das lonjuras para saudar a Mãe da bondade, a Oxum que preside o destino e sabe o amanhã. Cavalgando Carmem, sua montaria, Oxalá dança e canta em louvor de Menininha, conduz o ebó do cinqüentenário e o deposita em minhas mãos, vou colocá-lo aos pés do encantado, no coração do mistério. Honra maior não me foi dada em minha vida.

 

 

Paris, 1949.

Perde-se a mão

 

Conheci Michael Gold em 1937 quando estive em Nova York, voltando do México para o Brasil. Judeus sem dinheiro, primeiro (e único) romance de Mike, obtivera acesso mundial, no Brasil de trinta foi um estouro, ainda me lembro do artigo com que Genolino Amado o saudou: quem ler esse livro e não se comover é um cretino — mais ou menos isso. Na década de oitenta Alfredo Machado o reeditou, passou despercebido.

Fui procurá-lo na redação de The Daily Worker, o jornal do pecê norte-americano: comunista militante, Mike assinava uma coluna diária. Contei-lhe de seu livro no Brasil, simpatizamos, levou-me a um teatrinho no Harlem onde representavam peça sua. Reencontrei-o em Paris, em 1949, nossos hotéis eram próximos, víamo-nos todos os dias, viajamos juntos pelo mundo socialista, congressos às pamparras. Num vôo para Praga, dois motores do quadrimotor pifaram sobre a Alemanha, íamos lado a lado, demo-nos as mãos esperando a morte, ainda bem que a morte não chegou.

Mike conseguira enfim libertar-se das tarefas diárias do Partido, viera escrever em Paris o segundo romance, Chomeur sobre o tema do craque financeiro de 1929. Anunciado vinte e cinco anos antes, o escritor não conseguira tempo para realizá-lo, militava. Agora, sim, livre em Paris, dedicava-se à escrita do romance: obrigação única, tarefa exclusiva. Nos fins de tarde, no Boul'Mich', sentados à mesa do café, Mike, cada vez mais abatido, desanimava:

— Perdi a mão, já não sei escrever romance, levei demasiado tempo sem fazê-lo, perdi a mão.

Morreu sem ter escrito Chomeur, gastou a vocação e a vida em míseras tarefas de militante, artigos, reuniões, crítica e autocrítica, tanta tolice, perdeu a mão.

 

Nenhum de meus detratores, esses tantos que não perdem vaza para dizer mal de mim, sabichões cuja missão crítica é negar qualquer valor a meus livros, nenhum deles conhece tão bem minhas limitações de escritor quanto eu próprio, delas tenho plena consciência, não permito que me iludam os ouropéis e os confetes.

Sei também, de ciência certa, existir nas páginas que escrevi, nas criaturas que criei, algo imperecível: o sopro de vida do povo brasileiro. Não carrego vaidade, presunção, e sim, orgulho.

 

 

Rio de Janeiro, 1956/58.

Paratodos

 

O Paratodos, quinzenário de cultura, datado do Rio e de São Paulo, durou de abril de 1956 a setembro de 1958, a ele dediquei todo meu tempo durante dois anos e meio, tirante uma viagem ao Oriente, em 1957, e a escrita de Gabriela, Cravo e Canela. Tarefa árdua, bastante divertida.

Fundado por um grupo de intelectuais, provindos em sua maioria das hostes do pecê — uns quantos se haviam afastado, deixando de militar, era o meu caso, o de James, outros perseguiam inscritos, mas se aproveitavam da abertura determinada pelo XX Congresso para assumir posições democráticas —, o Paratodos exerceu papel de relevo na vida intelectual, influiu, agitou, marcou época.

A equipe com cargos de direção na empresa e no jornal era constituída por Oscar Niemeyer, Moacyr Werneck de Castro, James Amado, Alberto Passos Guimarães e por mim próprio. Entre os redatores e responsáveis por setores e sessões, estavam Dalcídio Jurandir, Dias da Costa e Renard Perez (literatura), Vera Tormenta, Anna Letícia e Mark Berkowitz (artes plásticas), Alex Viany (cinema), Antônio Bulhões (teatro), a sucursal de São Paulo era assegurada por José Geraldo Vieira. Entre os principais colaboradores vale citar os nomes de Joaquim Cardozo — grande poeta, notável crítico de arte, escreveu do primeiro ao último número —, Álvaro Moreyra, Barão de Itararé*, Vinícius de Moraes, Miécio Tati, Paulo Mendes Campos, Maria de Lourdes Teixeira, Ruggero Jacobi, Moacyr Félix, Antônio Olinto, Ary de Andrade, Enio Silveira, Roberto Alvim Correia. Importante núcleo de artistas assessorava a redação: Oswaldo Goeldi, Carlos Scliar, Iberê Camargo, Fayga Ostrower, Darei. O ilustrador era Otávio Araújo. Cito apenas alguns nomes, é longa a lista daqueles que colaboraram, de uma maneira ou de outra, com o Paratodos, em compensação minha memória é fraca, devo estar esquecendo gente importantíssima.

*Barão de Itararé, Aparício Torelli (1895/1971), humorista.

 

Zélia deu ajuda decisiva, andou o Brasil de norte a sul, de leste a oeste angariando dinheiro, o jornal viveu sempre no vermelho, raros anúncios de editoras, nenhuma verba oficial, nem sequer o famigerado ouro de Moscou. Os salários não passavam de abstrações para aqueles que formalmente os deviam receber, outros não tinham nem mesmo promessa de estipêndio. Oscar botou um bocado de dinheiro no jornal, eu botei um pouco, mais não tinha, trabalhávamos à míngua sem perder o bom humor, ninguém se deixou, muito ao contrário.

O Paratodos significou tentativa, a única que eu conheço, de estabelecer livre e sadia convivência entre os intelectuais brasileiros, entre os criadores nos campos das letras e das artes. A época ajudava: governo de Juscelino, democrático, desenvolvimentista, a fundação de Brasília e o crescimento industrial, reinavam o otimismo e a confiança entre a população, nunca mais aconteceu.

Já que se fala em Brasília, aproveita-se para registrar que a nova capital foi objeto da crítica e do combate os mais violentos Juscelino alvo de calúnia, insulto e negação: a quase totalidade dos intelectuais cariocas juntou-se contra a construção de Brasília numa guerra sem quartel, cruel, por vezes infame. As modas de então eram mais cordiais que as de hoje, menor a baixaria. As mazelas, porém, da vida cultural já proliferavam: os sabidos, os mesquinhos, os safardanas.

 

 

Paris, 1949.

Cidadão argentino

 

Nos corredores do Congresso Mundial da Paz, na sala Pleyel, espanta-me ver Miguel Otero Silva, venezuelano orgulhoso de sua cidadania, quase chovinista, declarar-se cidadão argentino, de Buenos Aires, ao fornecer nome do hotel e número da suíte à jovem Marie de la Banlieu, militante do pecê francês em trabalho voluntário, encantadíssima com o camarada latino-americano. Miguel Otero é charmoso quarentão, machista como devido, bem-falante, o acento hispânico torna ainda mais sedutor o seu francês fluente.

Poeta e romancista, homem político, líder comunista, senador, milionário, dono de cavalos de corrida, proprietário e diretor de El Nacional, um dos dois maiores diários de Caracas, por que cargas-d'água o venezuelano ilustre se diz argentino?

— Cidadão argentino, Miguel? Desde quando?

— Desde que saio em viagem, apenas tomo o navio ou o avião revisto-me com a nacionalidade argentina. Medida das mais oportunas, aconselho-te a adotá-la.

— Oportuna? Por quê?

— Porque se te declaras argentino não pesarão sobre tua pátria e teus patrícios os ônus dos vexames que causares, das tolices que disseres, das tonterias que praticares, dos erros, das gafes e do resto — acentua a palavra, y de lo demás, como se quisesse dar-lhe significação especial.

— Que resto?

— Levas para a cama nupcial uma preciosa, como a que viste conversando comigo ainda agora, reparaste na elegância? Na hora da verdade fracassas, sobrevem a impotência, o fracasso fica por conta do argentino.

— Impotente, tu, o galã das Caraíbas?

— Sucede a los mejores, hermano. Pero el ridículo queda con el porteño. — Cantarola a música de Mi Buenos Aires Querido.

Não demoro a seguir o conselho de Miguel Otero. Por dever de solidariedade nacional, marco presença na sala do Congresso, ouço com ouvido mouco interminável lengalenga em francês de ginasiano: frases-feitas, repetidos slogans políticos. Na tribuna um desembargador de Belém do Pará, antifranquista tão combativo quanto chato, deságua infindável repertório de lugares-comuns, haja saco! Roger Vaillant entra na sala, senta-se a meu lado, presta atenção ao orador, francês precário, pronúncia amazônica, relambório. O romancista de Drôle de Jeu não tarda a se encher:

— Qui est-ce, l'emmerdeur?

— Un juge de l'Haute Cour de l'Argentine, três célebre a Buenos Aires.

Roger ouve um pouco mais:

— Juge, celui là? Célebre? Sais-tu ce qu'il est, l'argentin? Un con! Cest ça qu'il est.

Quantas vezes já salvei a honra do Brasil, graças ao conselho de Miguel Otero Silva, bom conselho?

 

 

São Paulo, 1947.

Oferta

 

Venho a São Paulo, será minha última viagem na condição de deputado federal ao Estado que me elegeu, a batalha da cassação dos mandatos comunistas aproxima-se do fim, estamos em dezembro, a cassação irá acontecer nos primeiros dias de janeiro.

Recebo recado de Júlio de Mesquita Filho, quer me ver, tem assunto sério a tratar comigo. Atendo ao chamado, tenho aliás o hábito de visitá-lo sempre que volto a São Paulo. Recebe-me com a gentileza habitual, a educação de lorde inglês acrescida pela estima em que me tem. Mandou me chamar porque deseja que eu leve recado seu a Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista. Comentamos os acontecimentos, a cassação está à vista, Prestes vai perder a cadeira de Senador da República.

— E as imunidades — acrescenta Julinho, a voz pausada.

O diretor de O Estado de São Paulo é um democrata, respeitoso dos direitos humanos em geral e do direito de opinião em particular, a melhor prova é seu jornal. Anticomunista — aquele anticomunista! — é igualmente radical na defesa da liberdade de expressão, condena a censura e a perseguição políticas. Combate o fascismo português, acolhe e emprega no Estadão intelectuais emigrados, perseguidos por Salazar, o comunista Miguel Urbano ocupa posto de relevo na redação. Na conversa Julinho demonstra-se pessimista em relação à contingência democrática sob o governo Dutra, sente ameaçadas as garantias, violentados os direitos constitucionais: o quadro parece-lhe inquietante. O Partido Comunista já foi posto na ilegalidade, sua existência legal não completou dois anos, vai acontecer a cassação dos parlamentares — o que ainda impede o desencadeamento da reação é a existência da bancada. Julinho teme que as medidas restritivas se ampliem, que a ação da polícia política volte aos contornos do passado ainda próximo, Dutra nasceu da ditadura, ainda ontem seu sustentáculo militar. Teme que Prestes seja alvo da violência, prisão, processo, mesmo sua vida pode ver-se ameaçada. Diz-me que ele fez por isso, não há dúvida, suas posições merecem discussão e crítica, seus pronunciamentos merecem repulsa, mas nem assim cabe direito à proibição, à perseguição.

Topando a provocação de um deputado, Juracy Magalhães se não me falha a memória, Prestes afirmara da tribuna que, em caso de guerra entre o Brasil e a URSS, se colocaria ao lado da URSS, pois ela jamais atacaria o Brasil, se guerra houvesse, seria de agressão ao socialismo. Mesmo assentadas em tais razões, a declaração foi de exemplar estupidez política, deu pasto à reação, custou o registro eleitoral do Partido Comunista, Prestes pagou caro pelo sectarismo (que não era somente dele, era de todos nós). Júlio de Mesquita Filho, conservador até a medula, reacionário para usar a palavra com que tantos o queriam limitar, é um ser humano de horizonte amplo e generoso, um democrata, repito. De longa data estima Prestes e o admira, nem por ter o Cavaleiro da Esperança aderido ao comunismo Julinho deixou de estimá-lo e de admirá-lo. Quis me ver para mandar um recado a Prestes:

— Diga ao Capitão (é como o trata) que, assim que seja cassado, venha para minha fazenda, ficará o tempo que quiser, e não lhe imponho nenhuma condição, não o restrinjo em nada, pode receber e despachar. Lá ninguém ousará molestá-lo, minha fazenda é meu reino, lá mando eu e mais ninguém. Diga ao Capitão que ele será bem-vindo.

 

 

Paris, 1989.

Vocação

 

Quem me dera ser português para votar em Mário Soares para a Presidência da República, telégrafo ao Presidente Mário Soares, vem de ser reeleito no primeiro turno, maioria absoluta.

Combatente anti-salazarista o mais determinado e conseqüente, sujeito à perseguição, à cadeia, ao exílio, irredutível, não guardou rancor nem travo de amargura, militante da liberdade, na luta contra o autoritarismo preparou-se para o governo democrático. Ainda assim para explicar a qualidade de sua presidência é preciso entender que ele nasceu com o destino da Presidência da República, nasceu para ocupá-la, ninguém pode exercê-la com mais competência: os outros são eleitos, ele além de eleito veio ao mundo para cumprir a sina, a curul presidencial.

Mitterrand também nasceu com a mesma vocação e a cumpre com excelência, mas uma coisa é ser Presidente da França, outra, mais difícil, é o ser de Portugal — ou será o contrário? Difícil ser Presidente seja onde for e do que for, como disse João Nascimento Filho ao recusar a presidência da Banda de Música de Estância, em Sergipe.

O segredo reside, creio eu, no fato de Mário ser um democrata, ou seja, o oposto do ditador: não é o poder que o tenta e o avassala — o poder corrompe e agride — e, sim, o exercício da presidência da república para o qual nasceu predestinado, tarefa a ser cumprida na alegria do compromisso com o povo e a cultura, um ato de amor, não mais que isso.

 

 

Rio de Janeiro, 1957.

O grosso

 

Meu sobrinho Paulo, filho de Fanny e Joelson, é uma criança adorável — em minha exclusiva opinião, a dos demais é outra, negativa. Paulo, quatro anos, loiro, forte, genioso, de grossura impecável, não falha nunca. Bruto, responde mal, olha com raiva, fecha-se em copas, eu me divirto com a sua má educação, com elogios a alimento, contra todos eu a sustento: apoio decisivo.

Nosso vizinho Myra y Lopez*, educadíssimo, encontra Paulo no elevador:

*Emílio Myra y Lopez (1896/ 1964), médico e professor espanhol.

 

— Como vai, jovem?

Paulo, na tampa:

— Não vou!

Transformou-se em executivo competente e atencioso, nem por isso lhe retirei meu bem-querer. Vejo-o babado a brincar com os filhos lindos, espero que um deles herde a esplêndida grosseria do pai, terá meu elogio, meu apoio, contra todos o sustentarei.

 

 

Bahia, 1980.

Purismo

 

Não sei que espécie de babaquice atacou Verger, padre François* e os demais velhinhos filhos-de-santo, ogãs, babalaôs, sábios titulares do candomblé baiano, mestres de tudo quanto se refere às seitas afro-brasileiras, ao sincretismo religioso e cultural, estudiosos das relações África x Brasil, conhecedores das similitudes e das diferenças, sabendo que elas existem e porque existem, de repente, sem prévio aviso, se fazem puristas africanos, negros imaculados. Pretendem que cerimônias, rituais, designações, a língua iorubá, o culto nagô, o candomblé enfim se processe na Bahia igualzinho ao da África, sem tirar nem pôr: muito se tirou, muito se pôs.

*Padre católico François Le Espinay.

 

Estabeleceram para tanto um projeto e o levaram a cabo. Tempo perdido, resultado nulo, mais poderosa que qualquer ideologia, mesmo baiana, é a realidade que determina e impõe régua e compasso.

Resolveram os bons velhinhos, os veneráveis, montar uma casa-de-santo na cidade da Bahia que fosse a reconstituição exata de candomblé de Lagos ou de Porto Novo, na costa ocidental da África, desaprenderam o que sabem por estudo, pesquisa e experiência. Compraram terreno nas proximidades do aeroporto) construíram terreiro, casas de residência e hóspedes, camarinha, pejis para os orixás, a morada dos eguns, tudo na perfeição, gastaram bom dinheiro, desembolsaram economias.

Escolheram a dedo um filho de Xangô, dançarino singular, soberbo mocetão, feito por mãe Senhora em barco de iaôs no Axé Opô Afonjá, nascido cavalo-de-santo de Zora, sua mãe pequena moço baiano de pura cepa, e o levaram a Lagos para fazer dele sacerdote africano, babalorixá à medida e à imagem dos ritos nagôs, como são praticados nos templos da Nigéria e do Benin. Após movimentada temporada de iniciações, trabalhos, ebós, o aprendizado da dança e do canto originais, o aperfeiçoamento da língua iorubá, trouxeram o mancebo de volta aos pejis baianos e o entronizaram babalorixá no novo terreiro de pureza exemplar. Ali pai Balbino, o africano, devia zelar pelos preceitos chegados à Bahia nos navios negreiros, não permitir que se deturpassem como sucedera antes. Os velhinhos esfregavam as mãos no regozijo da experiência posta em prática: o puro, o puríssimo candomblé da África negra por fim estabelecido na terra do sincretismo. Quantas casas-de-santo existem na Bahia, digo na cidade, mais de mil, de mil e duzentas tenho notícia, no Estado multiplicam-se, os atabaques roncam no Rio e em São Paulo, no Recife, em São Luís, em Porto Alegre, no imenso território do Brasil, sem falar na umbanda, pois a umbanda já é outra história. São terreiros de nações diversas: nagô, jêje, banto, congo, ijexá, angola e tantas mais, além dos inumeráveis candomblés de caboclo. Alguns de muita grandeza, a Casa Branca (Axé Ya Nassô), o Gantois (Axé Iyamansê), o Cruz Santa (Axé Opô Afonjá), o Alaketu, o Bate-Folhas, congolês, o Bogum, jêje, o terreiro angolano de Ciríaco e a Aldeia de Zumino-Renzanzarro Gangajti, casa de caboclo do pai-de-santo Neive Branco. Centenas de pequenos ilês batem vez Por outra, alguns uma vez por ano na festa do dono da casa: Oxumaré, Tempo ou Ossain. Na Itália Patrizia Giancotti festeja a cada trinta e um de dezembro sua Yemanjá vinda da Bahia num saveiro; em Paris Severo Sarduy dá a comer ao Exu Sete Pinotes, Senhor da Encruzilhada da Muriçoca.

No Brasil os negros originários de tribos diferentes misturaram-se nas senzalas, os senhores de escravos impediam a formação de quistos nacionais. Quando ainda negros recém-chegados já os sangues tribais se mesclaram, angolanos e sudaneses, nagôs e malês e todas as demais nações antes mesmo que se desse a grande mistura com os índios e os brancos. Todo candomblé baiano — seja angola, seja jêje, seja congo ou ketu, seja candomblé de caboclo, pode virar a nação a um sinal da mãe-de-santo: os atabaques mudam o ritmo da dança, no terreiro orixás, enkices e caboclos confraternizam. Nosso pai Oxalá habita na Colina Sagrada do Bonfim, após a festa no terreiro vem repousar no altar-mor de Nosso Senhor Jesus Cristo na Basílica católica em cujo adro se celebra na terceira quinta-feira de janeiro a festa mais bela que se possa conceber, a maior do sincretismo religioso em todo o mundo, a procissão das águas de Oxalá.

Quem mais sabe disso tudo é Pierre Verger, mais que ninguém nos revelou a face mestiça da verdade, pois ele é Ojuobá os olhos de Xangô, tudo enxerga, nada lhe escapa. Ei-lo sentado à mão direita do babalorixá Balbino no Ilê Axé Opô Agujá, empunha o adajá, à esquerda padre François, os dois franceses zelam pela pureza afro do ritual. No terreiro a festa se desenrola no rigor da intransigência, não fosse o povo misturado, a mulataria de todas as nuances da amálgama, se poderia pensar que a festa decorresse num templo de Oyo, no reino de Xangô, ou de Ketu, no reino de Oxóssi. Pierre e François sorriem, sorriso de vitória, de deleite: Balbino, o africano, dança a dança guerreira de Xangô, martelo de duas cabeças, kauô kabiesile, lança erguida, fulguração.

Waldeloir Rego, o da Capoeira de Angola, livro clássico, não sabe apenas de capoeira, sabe o bê-a-bá completo da vida comunitária dos terreiros, sabe do conjunto e dos detalhes, de cada pormenor, o mais secreto, pois Oxalá, seu pai, lhe deu direito e obrigação de tudo saber quando mãe Senhora lhe tocou a cabeça com a lâmina da navalha e o proclamou Ekerin Magbá. O riso escorre pelos cantos dos lábios de Ekerin Magbá, confidencia-me o que se passa no Ilê:

— Apenas os velhinhos vão às suas casas repousar, no terreiro troca-se de nação, a festa nagô se dá por terminada, a orquestra bate caboclo nos atabaques e os índios velhos, os juremeiros, os pajés, os pais-joão, as marias-padilha juntam-se aos orixás na dança agora improvisada, no canto em português, o sincretismo se impõe, não resta fumaça da pureza que os mestres foram buscar na África. Sultão das Matas e Oxóssi, Laje Grande e Ogum, Rei da Hungria e Yemanjá, Rei das Hervas e Ossain, Rompe Nuvem e Yansã. Balbino é Flecha Negra, caboclo esplêndido, tão singular quanto Agunjá, seu Xangô.

Apagado o sorriso, Waldeloir se recolhe ao mistério:

— Eu não lhe disse nada. Está rebocado se contar.

 

 

Viena, 1952.

Os maus alunos

 

Un nègre racine d'arc-en-ciel, encontro René Depestre e sua Edith no mato sem cachorro, em Viena, nos corredores do Congresso Mundial dos Partidários da Paz.

Mais uma vez posto fora da França, onde pousar la petite lampe haitienne, onde crier la joie de vivre?

Busco e encontro porta de saída para o poeta do Haiti, sou patriota vodu de quatro costados, leitor de Jacques Roumain, governador do orvalho, leitor e amigo de Jacques Stephan Alexis, compère general soleil, no terreiro do Bogum assisti Oxumaré desembarcar do arco-íris vindo de Port-au-Prince em vôo rasante, sou cúmplice de René Depestre. No Mundial de Viena decidiu-se a realização de um Congresso Continental Americano de Cultura em Santiago do Chile, pátria de Neruda, regime democrático, pecê forte e legal, sou o responsável pela organização diante das altas esferas. Primeira medida, coloco René no secretariado do Congresso, representante da América Central e das Antilhas, para alguma coisa vale ser haitiano, assim descolo com o movimento da paz passagens para ele e Edith, de Marseille a Valparaiso: va mon nègre courir a toute bride les esperances du monde. Juntos com Neruda, Volodia Teitelboim*, Diego Rivera**, Élvio Romero, uns quantos mais, fizemos o Continental, trabalhamos duro, divertimo-nos a valer.

*Volodia Teitelboim, escritor chileno, secretário-geral do PC.

**Diego Rivera (1886/1957), pintor mexicano.

 

Do Chile, René e Edith mudam-se para o Brasil onde residem alguns anos entre Rio e São Paulo, depois o poeta prosseguirá a correr coxia mundo afora, esperanças e desesperanças. Breve temporada no Haiti no início da dinastia Papa Doc, seu ex-parceiro de pôquer no exílio parisiense, a longa permanência em Cuba, pátria de refugiados, entusiasmo e desencanto, jornalismo em Moscou, os casamentos após Edith e antes de se acolher ao porto seguro de Nelly, tu es le sablier de la douceur. Não o perco de vista em sua travessia, de poema em poema, de narrativa em narrativa, La femme-jardin e Hadriana, reencontro-o aqui e acolá, em seu correr de brida solta até assentar a tenda de escritor no interior da França, o riso permanece alegre e caloroso, permanece acesa la petite lampe sur la mer. Na clandestinidade do Partido Comunista Brasileiro, nos idos de 1953, fomos colegas no Curso Stalin. De olhos vendados, várias horas de percurso, chegávamos ao local do curso clandestino, qualquer parte na zona rural, durava um mês de lições ditadas pelos dirigentes. Mas já estávamos os dois, René e eu, tomados pelas dúvidas e certas proposições dos professores nos deixavam arrepiados. A nós e a Alina Paim, também aluna, também invadida pelo desassossego.

Lembro-me como se houvesse acontecido ontem de uma aula sobre a revolução chinesa, a referência do conferencista a documento do pecê de Mao recomendando que os filhos denunciassem os pais, obrigação de militante: vencer os sentimentos burgueses de família, cumprir o dever revolucionário. Não se tratava de invenção maoísta, novidade: na URSS haviam levantado estátua a um menino que assim agira — espionara os pais e os denunciara, levara-os ao patíbulo, herói stalinista. O professor perora contra a moral burguesa.

Sentado junto a mim na primeira fila, René me cutuca, no outro lado da sala o olhar aflito de Atina Paim, desarvorada. Lições que não conseguimos aprender, valores que não conseguimos aceitar, comunistas inconseqüentes que já somos, incapazes de vencer as abusões, de abandonar sentimentos soezes de amor aos pais.

— Denunciar os pais... Preferia me matar. — Considera Alina na hora do recreio.

— Quelle connerie! — Cospe René, apaga o cuspe com o pé.

— Dose para elefante — digo eu.

Espavoridos, três maus alunos de marxismo-leninismo no Curso Stalin.

 

 

Bahia, 1991.

Dou a mão à palmatória

 

Por puro acaso, com certa má-vontade e um tanto admirado inicio a leitura de entrevista do senhor Fausto Silva nas páginas amarelas da revista Veja: vamos lá ver as asneiras que esse idiota esbraveja. A admiração resulta do fato de que em princípio essas páginas amarelas são ocupadas por personalidades quase sempre eminentes, ao menos distintas, merecedoras da deferência. Ora, o senhor Fausto Silva não é outro senão o apresentador de televisão Faustão que aos domingos comanda programa de grande audiência: nem eminente, tampouco distinto, no melhor dos casos um porra-louca, se não imbecil de pai e mãe: sobram no humorismo da tevê.

Devo confessar nunca ter assistido ao programa do Faustão, apesar das reiteradas recomendações de João Jorge que busca reduzir minhas idiossincrasias: dá uma espiada, pai, você vai gostar, é muito bom, tem graça e imaginação. Resisto, não aceito o conselho, nenhum outro motivo além do preconceito: esses jovens de hoje se contentam com bem pouco, adoram qualquer porcaria de programa, uso a precaução, defendo-me da tolice e da impostura. Sou de pouca televisão, tirando o noticiário e o futebol, Chico Anísio e Jô Soares, raramente fico desperto diante do vídeo, mas o uso com constância, não existe melhor sonífero: ligo o aparelho, não resisto cinco minutos à burrice, ao ridículo, entrego-me ao sono reparador, ronco ao ritmo dos clips de rock, a atroada me embala. O programa do Faustão? Nesta não me pegas, João, o senso de humor de tua geração não é o meu, sou antigo.

Vamos ver o que diz esse cretino, começo a ler, caio de costas, não é nenhum cretino, não esbraveja asneiras, afirma coisas corretas e não barbaridades, analisa com rara acuidade a televisão brasileira, faz o processo de nossa vida cultural, dos hábitos mesquinhos, das mazelas, a denúncia vai do patrulhamento ao desejo de acabar com o que é bom — o que é bom choca e irrita nossos intelectuais, eles detestam a perfeição e o sucesso. Vou de surpresa em surpresa: o jovem é um homem que sabe o que diz e diz coisas que valem a pena ler, a entrevista enche-me as medidas. Faustão não é eminente, menos ainda distinto, mas é um brasileiro que conhece nossa realidade, a sociedade em que vivemos, observa e critica com precisão, um porreta. Entrego os pontos.

Aprendi algumas coisas boas no Partido Comunista, inclusive a autocrítica: reconhecer o erro, dar a mão à palmatória, sempre o faço com prazer. Dou a mão à palmatória, no começo da tarde de domingo estiro-me na gasta cadeira-de-papai para assistir o programa do Faustão: sentei-me ainda desconfiado, decerto não tardaria a ressonar com a presepada. Dou as duas mãos à palmatória: não dormi, acompanhei a sucessão de quadros com interesse, ri, me diverti, sobra a razão João Jorge, o tipo tem graça e imaginação, fico com a impressão de que também ele se diverte com a loucura, o disparate, por vezes a grossura do programa, inscrevo-me entre os admiradores radicais do Faustão, que conheci senhor Fausto Silva afirmando acerbas verdades nas páginas amarelas da revista.

 

 

Paris, 1992.

Tom Jobim

 

No Brasil, o sucesso é ofensa pessoal, releio em revista francesa, L'Autre Journal, a afirmação de Tom Jobim, vítima permanente das patrulhas.

Verdade verdadeira, deve-se no entanto estabelecer a distinção, dar nome aos bois: a inveja, a calúnia, a salafrarice são dogmas das elites, prática da inteligentzia; do povo são o louvor e o bem-querer. No desfile das Escolas de Samba, Tom Jobim é enredo da Mangueira, que importam o insulto, o vômito do escriba do jornal? Vacina infalível, o amor do povo imuniza contra a peçonha dos amargos.

 

 

Varsóvia, 1953.

As galinhas

 

Varsóvia coberta de neve, o vento do pólo norte: ao entrar no hall em ruínas do Hotel Bristol, deparo com José Guilherme Mendes junto à calefação; conhecidos de velha data, confraternizamos. O jornalista realiza uma série de reportagens sobre a implantação do socialismo na Polônia, está encantado com o socialismo e com a Polônia, jura pelo sucesso dos projetos do governo.

Ao jantar vibra de entusiasmo narrando as peripécias da jornada, dia movimentado, de manhã à noite na cooperativa agrícola Aurora Vermelha. Não viu as plantações de batatas, o campo está gelado, mas visitou a criação de aves, a granja exporta ovos e galinhas para os gastronomes de Moscou. Almoçou em companhia dos heróis do trabalho socialista em casa do Presidente da Aurora Vermelha, regabofe com vodca e vinho, discursos, brindes, internacionalismo camponês. Os camaradas polacos expõem as vantagens da economia socialista para o cultivo da terra e o trato avícola, recitam estatísticas, quadro róseo, comem com apetite, bebem com sede e competência. Bom orador, Zé Guilherme descreve a miséria no latifúndio brasileiro, os senhores e os servos da terra, a seca do nordeste implantada pela burguesia para obter vetas do governo podre, regalias, quadro funesto, os convivas se emocionam às lágrimas, Zé Guilherme é eloqüente, cita Prestes e Josué de Castro, e tome vodca que ninguém é de ferro. No clube da cooperativa, à tarde, improvisam arrasta-pé em honra do hóspede brasileiro, o jornalista é pé-de-valsa, as roceiras eslavas são loiras e fogosas. Escutamos o relato, eu e o tradutor de meus livros, Eugenius Gruda — por falar nele, que fim terá levado em meio à confusão polaca?

Antes de prosseguir na leitura das reportagens de José Guilherme, vale um parênteses para contar do tradutor: emigrara menino para o Brasil, estabeleceu-se comerciante no interior do Paraná, o negócio prosperava, veio a guerra, a ocupação da Polônia, a divisão do território entre as tropas nazistas e as soviéticas. Patriota, o jovem Gruda não vacilou: vendeu os bens, embarcou num cargueiro para Londres, escapou aos submarinos nazistas, inscreveu-se no Exército da Polônia Livre, organizado na Inglaterra sob o comando do general... como era mesmo o nome? No primeiro dia de exercício o recruta Gruda, destinado como todos os demais componentes do batalhão — o Exército não passava de algumas centenas de polacos — à invasão aérea da Polônia, pára-quedas às costas, subiu a uma torre de madeira para treinar os saltos. Saltou, o pára-quedas não abriu, esborrachou-se no chão, quebrou razoável quantidade de ossos, saiu do hospital aleijado da perna esquerda, foi desmobilizado. Terminada a guerra, libertada a Polônia das tropas de Hitler (não das de Stalin), os ingleses mais que depressa despacharam os polacos, soldados e capengas, para a pátria liberta da ocupação alemã, Proclamada pelos soviéticos república democrática popular em vias de construir o socialismo.

Até então Gruda mantivera-se apenas patriota, em Varsóvia, com os novos donos do poder, fez-se comunista com presteza e veemência, o aleijão da perna, atestado de luta antifascista, lhe Proporcionou modesto emprego na União dos Sindicatos, engordava o salário mínimo com os direitos autorais das traduções de meus livros. Eu era muito traduzido e bastante lido na Polônia então — o único escritor comunista que os jovens estimavam ler, disse-me Roman Polanski ao me visitar na Bahia —, cito a circunstância para acrescentar que, apenas desembarcava em Varsóvia, tradutor informava a chefia de sua repartição de minha chegada e de como ele, Gruda, me era indispensável: o Prêmio Internacional Stalin necessitava de sua assistência permanente com o que obtinha licença com vencimentos, assistia-me no café da manhã, no almoço, no jantar, malandro brasileiro desterrado no inverno da Polônia, sabidório tirando de letra o socialismo Gruda me divertia, me fazia rir. Para ele eu era uma espécie de divina providência.

No dia seguinte — casacão, luvas, cachecol, gorro de peles —, Zé Guilherme saiu pela manhã para visitar indústrias recém-instaladas, voltaria somente à noite, marcamos encontro para a hora do jantar. Resolvi pregar-lhe uma peça, meus amigos eram vítimas de minhas molecagens, ninguém escapava. Expliquei o projeto ao tradutor, ele adorou, dirigimo-nos ao mercado, comprei a peso de ouro quatro galinhas e um galo — sobravam-me slotys, pois as editoras polacas, na época, não pagavam os direitos em divisa. Metemos as penosas no carro, levei-as para o hotel. Enrolei o fulano da portaria, obtive a chave do apartamento de Zé Guilherme, subimos com as aves, abrimos a porta e as soltamos no quarto, pude ver o galo pular para a cama.

Gruda trouxe de casa papel timbrado da União dos Sindicatos, utilizava-o em sua correspondência particular, tinha blocos e envelopes de reserva, enquanto esperávamos Zé Guilherme para jantar, ditei e Gruda traduziu para o polonês missiva assinada pelo Presidente de imaginário sindicato dos criadores de aves de poleiro: os membros do sindicato, informados das terríveis condições de vida dos camponeses brasileiros, haviam decidido enviar-lhes de presente um galo de raça e algumas galinhas, poedeiras de exceção, provas do sucesso dos métodos socialistas de produção. Os galináceos se destinavam a cooperativa de camponeses pobres, poderiam dar início a uma criação que os resgatasse da miséria. Escrita e assinada a mão, jamegão incompreensível, a carta impressionava.

Zé Guilherme demorava a chegar, a fome apertou, fomos para o restaurante, já estávamos no fim da refeição quando o jornalista apareceu:

— E então, as fábricas? — perguntei.

Formidáveis, disse Zé Guilherme, sentando-se, tomando do menu. Nós o sentimos tenso, ele desabafou: depois conto a visita às fábricas, antes quero falar de um problema que surgiu e me preocupa. Tirou a carta do bolso: Eu a recebi ao chegar, quer traduzi-la? — pediu a Gruda. Tradução feita, Gruda comentou, ovante: isso é que é solidariedade revolucionária, como polonês e comunista sinto-me orgulhoso. Pôs-se de pé, apertou a mão de Zé Guilherme, eu me continha para não rir. Dobrou a carta, meteu-a no envelope e a entregou ao destinatário: é preciso respondê-la. O jornalista parecia-nos abatido, confuso: comovedor exemplo de internacionalismo, concordou com Gruda, porém um tanto quanto embaraçoso, em verdade um estorvo.

— As galinhas? — perguntei.

— Sujaram o quarto todo, subiram na cama, cagaram tudo. Por pouco não caí na gargalhada, me segurei. Zé Guilherme queria conselho, como se livrar das aves. Assumi ar grave, preocupado. De nenhuma maneira podes devolver o presente, seria ofender o poder socialista, os camponeses da Polônia. Vamos buscar uma solução conveniente. Para começo de conversa José Guilherme redigiu carta ao presidente do sindicato dos criadores de galinhas agradecendo a generosidade em nome dos camponeses brasileiros, Gruda a guardou, ia traduzi-la em casa, a tradução acompanharia o original em português. Estudamos longamente o que fazer com as penosas, a vodca ajudava. Vendo o amigo num beco sem saída, o tradutor, em prova de amizade, aceitou guardar as aves, por aquela noite, no pequeno quarto onde morava, levou-as consigo num táxi, após tê-las caçado no apartamento de Zé Guilherme e lhes atado os pés e as asas, sabia coisas. Partiu feliz da vida, Zé Guilherme deu-lhe com que pagar a corrida e dar gorjeta ao chofer que resmungara ao ver a bagagem galinácea. Ao despedir-se, Gruda prometeu enviar a carta logo pela manhã, sem falta. Quanto a Zé Guilherme, eu o ajudei a retirar os lençóis da cama sujos de cocô de galinha, fediam. Quis emprestar-lhe um dos meus, recusou, a colcha de lã, grossa, por sorte estava limpa, nela se enrolou.

No outro dia lhe contei a verdade, pois sofria horrores ao Pensar que o quisessem obrigar a levar as galinhas e o galo para Brasil, carga insólita. De tão aliviado que ficou não se zangou, ainda forneceu uns cobres a Eugenius Gruda destinados à compra temperos para o escaldado de galinha. Cozinheiro de mão cheia, Eugenius Gruda se queixou: galo mais velho nunca vi, carne mais dura que sola de sapato.

 

 

Bahia, 1985.

Os cabrões

 

Almoço em residência de Auta Rosa e Calá em homenagem a dois baianos honorários, hospedam-se na Casa Real de Itapuã quando em visita à pátria de adoção: Francês Switt* e padre Michel Schooyans*. Convidados em grande número, comida farta e de primeira — o sarapatel de Aíla só se compara ao da mãe de Dmeval Chaves, santa, ao falecer levou a receita para o reino de Deus —, bebida variada, uísque, conhaque, as batidas celebradas da dona da casa, do Liebfraumilch alsaciano ao gaúcho Capelinha os vinhos do gosto dos anfitriões, água-de-coco para matar minha sede, regalia de amigo.

* Frances Switt, diplomata norte-americana.

** Michel Schooyans, sacerdote belga, professor universitário.

 

Francês ocupa quarto no primeiro andar, padre Michel, estudioso das festas populares do fim e do começo do ano, das novenas da Conceição da Praia à procissão da Lavagem do Bonfim, repousa no quarto do andar de baixo, tem entrada independente. Observo o padre e a diplomata em prosa e riso, interpelo Auta Rosa para debochar:

— É ele quem sobe ao quarto dela ou é ela quem desce ao quarto dele?

Auta quase se ofende, responde rebarbativa:

— Michel é padre de verdade, pronunciou os votos e os cumpre, é pedra do saber, fortaleza da castidade, direito como ele só. Por Francês não boto a mão no fogo, por Michel boto as duas e não me queimo.

Tanta convicção me tolhe a malícia, declaro-me testemunha do comportamento sem mácula do sacerdote: ama a vida como pouca gente, respeita sua condição religiosa como poucos padres. Dedico-me ao sarapatel e à água-de-coco mas fico com o garfo no ar, boquiaberto, ao ouvir Auta Rosa declarar alto e bom som:

— Nesta casa não entra corno, seja rico ou famoso, nunca entrou nenhum, não admito.

Na seriedade de Michel, eu acredito, junto-me a Auta na proclamação das virtudes do sacerdote, mas a afirmação dos chifrudos, essa não engulo nem com o auxílio da água-de-coco verde:

— Eu bem que tenho visto entrar alguns, mas não digo nada... — contesto mas não polemizo, não sou maluco de contradizer Auta Rosa, se deu mal quem o fez.

Com o rabo do olho mostro-lhe o fidalgo do Recôncavo, Auta me segreda: esse não vale, herdou os chifres da família, não tem culpa. Calá completa, o casal é solidário na maledicência:

— Não é que ele seja cabrão, ela é que é dadivosa.

Aluna de história das freiras ursulinas de Ilhéus, Auta Rosa desfia a crônica do barão do açúcar: já o bisavô, fundador da casa nobre, portava galhas com dignidade, o avô foi chifrudo de renome nacional, o pai nem se fala — pai apenas por consorte da mãe, o conviva era filho do engenho vizinho. Mais do que a história dos romantismos da família dos Cornélios, interessam-me as manobras da baronesa: ocupa a cadeira junto ao sacerdote, vaga com a saída de Francês que foi se servir pela terceira vez, ainda não provara a galinha de molho pardo, pena que esteja fazendo regime, não pode ir à carne-de-sol. Michel está empenhado na conversa sobre sincretismo com Hélio Vieira e Claudius Portugal, não repara em Maria Mel de Cana sentada em sua frente, exibe as coxas, mesmo não querendo vê-las quem não as vê? Claudius se regala, Hélio arrisca um olho, só Michel não se dá conta. Saliente, Maria Mel de Cana ronda o servo de Deus, ri, toca-lhe o braço, a perna, temo que ouse levar os dedos à altura da braguilha, não tem tempo de ousar, Francês retorna, roga-lhe devolução da cadeira. Michel perora sobre mestiçagem, Maria Mel de Cana dá uma trégua na ofensiva.

Eu a alcanço na passagem, somos amigos, sou seu confidente, estima me contar os desvelos de cama, pergunto-lhe o motivo de tamanho assanhamento, conheço-lhe as preferências, os menininhos dente de leite, padre Michel é cinqüentão, por que, me diga, tanto arroubo? Maria Mel de Cana baixa os olhos:

— Nunca provei rola de padre, quero saber o paladar.

De onde está, padre Michel percorre a sala com os olhos, feliz de se encontrar na Bahia, entre os amigos, sorri para um e outro, faz-me um aceno de amizade, inocente das intenções da baronesa, sorri para ela, Maria Mel de Cana sobe aos céus:

— Está no papo.

 

 

Moscou, 1953.

O pranto

 

Desço do avião que nos traz de Viena, a Zélia e a mim, são cinco horas da tarde, noite fechada em Moscou, inverno rude, estamos em janeiro de 1953, voltamos à União Soviética pela primeira vez desde o regresso ao Brasil. Alguns amigos nos esperam no aeroporto, entre eles Vera Kutekhkova*, a animação em pessoa: vai nos servir de intérprete durante nossa estada.

*Vera Kutekhkova, hispanista russa, membro da Academia de Ciências da URSS.

 

Já éramos amigos por correspondência quando nos conhecemos pessoalmente em 1948. Responsável pelas literaturas de línguas espanhola e portuguesa no Instituto Gorki de Literatura Universal, Vera escrevera um ensaio sobre meu trabalho, publicado numa coleção de plaquetes editada pelo Pravda. Para Zélia e para mim, Vera e seu marido Lev**, hispanista renomado, autor de livros sobre Lorca, Neruda e Diego Rivera, são nossa família soviética, não precisamos falar para nos entender.

**Lev Ospovat, hispanista russo.

 

Vera vem tomar conosco o café da manhã, no hotel. Estendo-lhe o exemplar do Pravda, peço-lhe tradução imediata da manchete que ocupa todo o alto da página, parece-me notícia importante. Vera lera o jornal antes de sair de casa, ainda assim, em vez de adiantar a informação, toma da gazeta, traduz. Trata-se do anúncio da descoberta de infame complô norte-americano para assassinar Stalin. Os imundos, os monstruosos agentes da conjura são os médicos, os médicos mais eminentes da URSS, que têm a responsabilidade de zelar pela saúde dos potentados do Kremlin — todos eles judeus, informa o Pravda.

De boca aberta, sem saber o que dizer, o que pensar, vejo Vera em minha frente. Parada, cerra as mãos, morde os lábios, o pranto escorre de seus olhos: não precisamos falar para entender.

 

 

Lisboa, 1981.

A pensão residencial

 

Sabendo-nos de partida para Lisboa, um amigo roga-nos um favor: buscar para ele e a esposa cômodos numa residência, a capital portuguesa é bem servida de pensões familiares, Nosso amigo obteve uma bolsa de estudos, vai fazer pesquisas para um livro, creio ter sido Luiz Henrique mas não tenho certeza. Quem sabe Edivaldo Boaventura.

Pelas quatro da tarde subíamos a Avenida da Liberdade em direção à Praça Marquês de Pombal, passamos em frente a uma escadaria, chamam-nos a atenção os corrimões forrados de veludo vermelho, deve ser a residencial mais confortável da cidade, Decidimos entrar, cumprir o compromisso, galgamos as escadas. Somos acolhidos por senhora amável, de meia-idade, queremos ver os quartos, saber os preços, estamos interessados. Olhou-nos um tanto surpresa mas nos atendeu com polidez: o quarto à direita no momento estava ocupado mas abriu a porta do apartamento à esquerda, acendeu a luz, meia luz, deu para ver o luxo do leito, as cortinas de cetim, os tapetes, o banheiro ao fundo, impossível pedir melhor. Restava-nos obter as informações: o preço completo, morada e refeição.

— Incluindo a comida para o casal quanto custa por mês?

— Por mês? — admirou-se. — Cobramos por hora mas pode ser também por uma tarde ou por uma noite. Não servimos refeições... — sorriso cúmplice para os dois velhinhos sem-vergonha: — Mas podemos fornecer champanhe, vinho do Porto, uísque.

Entendemos, Zélia me belisca, com que intenção? Desistimos de outras perguntas, vãs. Não fosse o Tivoli tão confortável, bem poderíamos tomar o quarto por algumas horas, encomendar champanhe: tentação fugidia de quem em tempos de outrora fora freqüentador. No outro lado da Avenida conseguimos reserva na Residencial Sancho para o casal baiano — teriam sido ou não Laurita e Luisinho? Ou Solange e Edivaldo?

 

Que outra cidade no mundo ocidental, além de Paris, pode se orgulhar de tantos e tão maravilhosos monumentos quanto Roma, a das sete colinas?

Séculos e séculos de criação se acumulam em suas artérias, nada pode haver de mais belo do que a escadaria que leva à Praça do Campidoglio a não ser a própria Praça, degraus e espaço criados pelo gênio de Michelangelo Buonarroti, foi ele também quem pintou a Capela Sistina. Os gênios se atropelam nas ruas de Roma. A boca aberta, os olhos gratos, o coração alegre, por onde se vá a beleza nos acompanha: palácios, fontes, templos, ruínas, estátuas, murais, sacadas, túmulos, o Coliseu, o Palácio de la Signoria, Moisés em S. Pietro in Vincoli. A beleza repetida ao infinito.

De repente, porém, inesperada e bruta surge a monstruosidade o que pode existir de mais feio e agressivo a sujar a beleza, a diminuí-la, a tornar a cidade incerta, desigual, Roma é imprevisível

Possui inclusive aquele que é sem dúvida o mais medonho de todos os monumentos execráveis do universo. Falo do bolo de noiva erguido em homenagem a Vittorio Emanuele II, além de horrendo enorme, descomunal, abjeto no conjunto e nos detalhes, nas curvas e nos ângulos. Sozinho é mais feio do que todos os feios monumentos de Buenos Aires, cidade tão formosa e agradável que se permite o luxo de possuir tão grande número de fealdades. Um único de Roma, o de Vittorio Emanuele II os supera, hediondez incomparável.

 

 

Rio de Janeiro, 1934.

Galo doido

 

Entrevista de Vinícius de Moraes à revista Manchete (em 1970?) — para mim, naquele tempo de Faculdade, ele era o diabo, revela o poeta falando a meu respeito — faz-me recordar Galo Doido. Vejo-o intransigente, radical, a figura desconforme, o olho cego, na agitação, no conflito, erguendo as bandeiras da libertação nacional, da revolução proletária.

Diabo era Galo Doido, agitador competente, comuna dos brabos. Nem eu nem Carlos Lacerda, nem Ivan Pedro de Martins, tampouco Chico de Assis Barbosa, nenhuma das estrelas da esquerda na Faculdade de Direito da rua do Catete naqueles antanhos se lhe comparava em audácia e devotamento: arrastava a massa estudantil, enfrentava a polícia.

Vinícius fazia parte do CAJU, grêmio com pecha de reacionário, reunia o escol da Faculdade: Otávio de Faria, Santiago Dantas, Américo Jacobina Lacombe, Almir de Andrade, meu primo Gilson Amado. A maioria ingressará na Ação Integralista, uns tantos escapam: Almir de Andrade torna-se psicanalista, Vinícius desvia-se nas encruzilhadas libertárias. Vários dos camisas-verdes chegam-se à esquerda no pós-guerra, Santiago termina ministro de João Goulart. Aqui ou ali apenas nacionalistas, o resto era rótulo.

Otávio de Faria já era autor de sucesso, publicara Machiavel e o Brasil e O destino do socialismo, revelação de ideólogo da direita. Apesar do antagonismo político tornamo-nos amigos: freqüentava as sessões do Chaplin Clube e foi Otávio quem levou, em 1931, os originais de O País do Carnaval à Editora Schmidt para publicação. Escreveu o primeiro artigo a saudar meu romance de estréia, estampado em A razão, jornal paulista de Plínio Salgado. Na data ainda não existia a Ação Integralista e eu ainda não entrara para a Juventude Comunista. Mesmo depois, porém, continuamos amigos e o fomos até a morte do romancista de A tragédia burguesa, saga patética da burguesia brasileira.

Carlos Lacerda e eu éramos íntimos, mas o meu amigo do peito, de todos os dias, não tinha etiqueta política: Haroldo Aguinaga, boêmio, filho de pai ilustre e rico. Varávamos a noite de Copacabana na conquista de domésticas — algumas deslumbrantes: a mulata Conceição, noiva dele e minha, deixou a vassoura e o ferro de engomar, a cama dos estudantes, para casar-se com um português comerciante rico, quase morremos de dor de corno.

A esquerda na Faculdade contava com o apoio de um grupo de professores eminentes: Castro Rebelo, Hermes Lima, Carpenter, os três acabaram na cadeia em 1935 em conseqüência da intentona comunista. No lançamento da Aliança Nacional Libertadora, em comício na Esplanada do Castelo, coube a Carlos Lacerda a prerrogativa de ler o manifesto de Prestes, com Roberto Sisson e vários outros soltei o verbo, depois fomos comemorar em casa de Álvaro Moreyra.

Eu ingressara na Faculdade para fazer o gosto a meu pai que queria o filho com diploma de doutor, naquele então dizia-se doutor a todos os que completavam curso universitário. Passei o exame vestibular com média alta pois um dos examinadores foi o professor Porto Carreiro, tradutor de Cirano de Bergerac de Rostand. Devorador de literatura francesa, eu conhecia a tradução, sabia versos de cor, declamei-os, desdobrei-me em elogios. Tive dez em literatura, nota máxima, somada às notas de história e de filosofia fiquei com oito e meio de média, o coronel João Amado vibrou, aumentou-me a mesada.

Não seio que foi feito de Galo Doido, que fim levou, como andará sua exaltação, seu fanatismo? Não consigo sequer recordar-lhe os nomes de batismo e de família, a glória é passageira. Não a glória de Vinícius, ainda na Faculdade ganhou o louvor da crítica e das elites com os poemas católicos, odes e elegias, ganhou o povo com os versos de amor, com o poema O operário em construção, publicado no primeiro número do Paratodos, conquistou o mundo com o cancioneiro musicado por Tom Jobim Vinícius de Moraes dito o poetinha por ser o poeta bem-amado E porque hoje é sábado, dia da criação, recordam-se do poema? Eu me recordo: Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas / Porque hoje é sábado.

 

 

Lisboa, 1980.

O gigolô

 

Desembarco no aeroporto de Lisboa, acompanho Zélia que vem participar do lançamento da edição portuguesa de seu primeiro livro, Anarquistas, graças a Deus. Os jornalistas me atropelam, mostro-lhes Zélia:

— Hoje é com madame. Venho na qualidade de esposo da escritora com a esperança de em breve aqui chegar na qualidade de gigolô.

Imprensa pudorosa, a portuguesa, nenhum dos repórteres presentes deu curso à minha perspectiva de vadiagem, pretensão ao ócio, à boa vida, não me levaram a sério.

 

 

Bahia, 1966.

Os tamarindeiros

 

Conduzo Maureen Bissiliat a recantos da cidade que me parecem merecedores do enfoque de sua câmera mágica, Maureen veio levantar um painel fotográfico da Bahia na intenção de um livro: lugares e figuras. Já fez a Rampa do Mercado, os saveiros, as frutas e os peixes, Camafeu de Oxóssi, mestre Pastinha, Olga do Alaketu, o casario do Pelourinho, as putas do Maciel, os Filhos de Gandhi.

Conto-lhe da existência de uma avenida de tamarindeiros seculares em Periperi, para vê-los e fotografá-los vale a pena deslocar-se até o bucólico subúrbio dos aposentados. Chegamos, deparo com escavadeiras, gruas, máquinas infernais, operários, está sendo aberta uma estrada, passa exatamente sobre a avenida dos tamarindeiros, parece de propósito. Das dezenas de pés de tamarindo restam apenas quatro, mais correto dizer três, pois o quarto já se encontra com as raízes à vista, no ponto de ser arrancado pela grua.

Volto à Bahia espumando de raiva, dou pressa a Aurélio, tomo do telefone, falo com Antônio Carlos, prefeito da cidade, clamo aos céus. Ele me dá razão mas nada pode fazer, pois a estrada é estadual, assunto para o governador. O governador é Luiz Viana Filho, de nada sabia, fica alarmado, garante providências. Vai em pessoa a Periperi, constata a violência, determina um desvio no traçado da estrada, salvam-se os quatro últimos tamarindeiros. Salvaram-se porque Maureen Bissiliat foi à Bahia fazer fotografias.

 

 

Monte Estoril, 1992.

Mídia

 

Escrevemos no Monte Estoril, Hotel Atlântico, o calendário mente ao anunciar inverno: a primavera se antecipou. No júbilo do sol nos debruçamos na varanda do apartamento sobre a opulência da baía de Cascais, Zélia alimenta pardais e gaivotas antes de sentar-se ao computador na redação de seu quinto livro de memórias, os turistas ingleses desfilam no calçadão em mangas de camisa.

Nos intervalos da escrita leio jornais brasileiros datados da véspera, tomo um porre de noticiário carioca e paulista, o escândalo e a catástrofe. Espanta-me a pobreza atual dos suplementos dedicados às artes e às letras, neles estruge o estrépito dos grupos de rock and roll de todas as procedências, a isso se reduz a música bem vista pela mídia, um concerto de Pavarotti no Pacaembu é tratado no deboche, vira potin em coluna social.

Busco os grandes artigos, consagradores, as análises da obra, por ocasião dos noventa anos de Lúcio Costa*, nosso orgulho, nossa glória, encontro duas notas breves contando sua ida a Brasília, dez linhas em cada jornal, não mais que isso. Michael Jackson, páginas e páginas.

*Lúcio Costa, arquiteto e urbanista.

 

 

Bahia, 1929.

O engabelador

 

Por ser o mais idoso, andaria pelos vinte e cinco anos, senhor casado, por exercer emprego público remunerado, não um borra-botas como nós outros, João Cordeiro era uma espécie de Presidente da Academia dos Rebeldes. O posto não existia mas ele o exercia no trato da amizade, poder moderador em nossas aleivosias literárias.

Em 1932, por aí, publicou Corja — o título original era Boca suja, o editor Calvino Filho não gostou, trocou —, romance da classe média baiana que lhe deu certa projeção na época. Herberto Salles, ao tempo em que exerceu a direção do Instituto Nacional do Livro, pretendeu reeditar o romance de Cordeiro, devolvendo-lhe o título dado pelo autor, mas os herdeiros, vagos herdeiros a viúva morrera e não houvera filhos, se assanharam acreditando que a edição significaria incalculável soma de dinheiro, fortuna em direitos autorais, impossível tratar com eles, a boa idéia de Herberto não se concretizou.

Ao contrário dos demais rebeldes, bando de famintos, Cordeiro não vivia à míngua, assim lhe competia quase sempre a despesa (ínfima) da turma nas tardes do bar Brunswick. Nos começos do mês, ao chegar do engenho de açúcar no recôncavo, a mesada no bolso, Clóvis Amorim bancava os gastos com direito a pinga, poucos dias. No geral, o anfitrião era Cordeiro, nos apertos a ele recorríamos, nos emprestava algum, de retorno duvidoso.

O mais pobre de todos nós seria Edison Carneiro, membro de família numerosa. O pai, professor Souza Carneiro, catedrático da Escola Politécnica, mal ganhava para as despesas inadiáveis da prole, consta que jamais pagou o aluguel da casa dos Barris — nós a intitulamos de Brasil, por imensa e suja — com sótão e jardim onde vivia com a mulher e os filhos: todos vestidos com batas de professores da Politécnica, arrebanhadas pelo catedrático. O mais velho deles, Nelson, na ocasião líder estudantil, terminou Presidente do Senado. Ainda hoje é senador eleito pelo Rio de Janeiro, parlamentar de longo tirocínio, responsável pela lei do divórcio, batalha que empreendeu e ganhou com a ajuda de um bispo protestante do Rio Grande do Sul que fez a cabeça do presidente Geisel durante a ditadura militar. O professor Souza Carneiro, uma das figuras mais sedutoras entre quantas conheci: sua vida de pobreza, trabalho e bom humor daria o mais extraordinário romance picaresco, tão rica que nenhum de nós se atreveu a transformá-la em ficção.

Os míseros tostões que ganhávamos nas lides jornalísticas não nos permitiam, a nenhum de nós, prodigalidades, esbanja-mentos. Menos ainda a Edison, leitor incurável, salário recebido, salário entregue aos donos dos sebos na Praça da Sé ou a dom Paço, da Livraria Espanhola, recriado personagem, com amor, por Nélson de Araújo* em novela sobre os galegos da Bahia. Para atravessar o resto do mês, Edison ia esfaqueando a um e a outro, parentes e conhecidos, vítima principal João Cordeiro. De quinze em quinze dias sacava do confrade uma nota de cinco mil-réis com o pretexto de ir ao meretrício dar abasto ao corpo: estou no atraso e na lona, mestre Cordeiro.

*Nelson de Araújo, escritor, homem de teatro.

 

— Dou cinco mil-réis a Edison para ir às putas, desconfio que me engabela, para tirar a limpo eu o sigo sem que me veja: o crioulo vai direto à livraria de dom Paço foder um livro.

Cioso do bem-estar do amigo, Cordeiro terminou por acompanhá-lo até o castelo, efetuar ele próprio o pagamento da trepada, constatou que o negro Edison preferia as loiras.

 

 

Lisboa, 1980.

Os ancestrais

 

O prazer de ouvir Luís Forjaz Trigueiros contar histórias, casos, só comparável ao de ler seus contos portugueses. Histórias várias, a memória fugidia embaraça-me nas datas, nos sítios onde sucederam, nos personagens que participaram. Ainda assim não abro mão de repetir um caso, quase uma anedota pois dá a medida exata do que significam a unidade nacional e a cultura mestiça do povo brasileiro. Faltará ao conto a graça da narrativa de Luís, paciência.

Na versão de que guardei lembrança sucedeu pelos anos oitenta, os personagens são Maria Helena e Luís Forjaz, Pilar e David Mourão Ferreira, além do grupo de pseudojaponeses, a ação se desenrola no mar Egeu durante excursão de barco pelas ilhas gregas — chatíssimas excursões, diga-se de passagem, também a fizemos, Zélia e eu, salvou-nos do tédio a companhia de Eunice e Chico Lyon.

No tombadilho do navio discutiam os dois casais, não preciso dizer que acaloradamente, de outra maneira não discutem os portugueses, discutiam poesia, assunto explosivo, sob a vista de um grupo de japoneses postados atentos na amurada. No auge do debate, um dos japoneses aproxima-se dos polemistas e a eles se dirige:

— Estão falando português, não é verdade? De onde são?

— De Portugal, ora pois, somos portugueses — contesta David Mourão.

O rosto nipônico se abre em sorriso brasileiro:

— São portugueses... — anuncia ao grupo na expectativa: — ...são nossos ancestrais.

Nossos ancestrais. Pensando nas epopéias lusas no oriente, coitos monumentais, ignotas descendências, Luís Forjaz deseja saber se por acaso eles têm sangue português nas veias asiáticas, um navegador de passagem na rota das descobertas, quem sabe?

— Sangue português? Nós? Não. Somos brasileiros nascidos em São Paulo, os portugueses são antepassados dos brasileiros— ensina. — São nossos bisavós.

De todos os brasileiros, com certeza. Filha de pai e mãe italianos, Zélia sente-se em casa na cidade de Lisboa, é estrangeira em Florença, onde nasceu seu pai, no Vêneto, terra de sua mãe.

 

Nos aviões roubo guardanapos, talheres nos restaurantes, sobretudo colheres de café, nos hotéis recolho e levo para casa todo o material de banho e o mais que haja, meu acervo de sabonetinhos é digno de visita e vistoria pela quantidade e pela variedade intercontinental Tenho sócios, Rízia* quando se hospeda conosco faz mão baixa em meus guardados: quem rouba ladrão tem cem anos de perdão, esclarece.

O hábito dessas pequenas gatunagens eu o aprendi com meu tio Álvaro Amado, mão leve, por onde andava recolhia. Dormindo comigo na mesma cama há quase meio século, Zélia ainda não se conformou, até hoje torce a cara ao me ver enfiar no bolso o guardanapo com a rosa-dos-ventos, a dez mil metros de altura sobre o oceano.

O coronel João Amado passava fácil de perdulário a canguinha, também eu, bom filho de meu pai, navego entre jogar dinheiro fora e economizar moedas de dez réis.

*Rízia, advogada, nora de J. A.

 

 

São Paulo, 1965.

Pronúncia

 

Comissário de Cuba à Bienal de Artes Plásticas de São Paulo, Guillén vale-se do melhor os cicerones, o poeta Paulo Mendes de Almeida, de quem se tornara amigo em viagem anterior. Paulo se encarrega de ampliar o cartaz do cubano nos meios de comunicação, leva-o a programa de entrevistas numa cadeia de televisão, na época ainda longe das competências atuais.

O apresentador, pernóstico como ele só, ao anunciar Guillén aos telespectadores, escandiou-lhe as sílabas dos nomes de batismo e de família: nosso entrevistado de hoje, o grande poeta negro das Américas, glória de Cuba, A-ris-ti-des Gui-llén. Contente da performance, dirige-se ao entrevistado, reclama aprovação:

— Pronunciei bem o nome do poeta?

O poeta não lhe falta com o elogio:

— Muy bien, muy bien. Guillén usted lo pronuncio perfecto, absolutamente perfecto. Pero, en Cuba, Aristides se pronuncia Nicolás — soletrou: — Ni-co-lás.

 

 

Petrópolis, 1984.

Comissão de leitura

 

Pergunto a Alfredo Machado por que devolveu os originais de conhecido contista, excelente escritor, originais que, ademais, lhe haviam sido recomendados por amigos que muito lhe mereciam. Respondeu-me, abrupto:

— A comissão de leitura da editora achou o livro fraco. Digo-lhe o que penso da comissão de leitura da editora, ele me interrompe, categórico:

— Se pago uma comissão para julgar originais, devo acatar seu julgamento, sem o quê estaria jogando dinheiro fora.

Assim agem no mundo inteiro os editores ditos profissionais. Com o quê colocam-se à margem de pedidos, da intervenção de terceiros, não lhes nego razão. Por outro lado, ficam à mercê de leitorado nem sempre competente quando não discriminatório, o Patrulhamento ideológico ditando apreciações, conheço mais de um caso.

Habituado às editoras brasileiras, patriarcais, uma recomendação tinha valor, o profissionalismo das editoras norte-americanas e européias causou-me, antes que nele me enquadrasse, algumas amofinações. Quem me esclareceu foi meu amigo Alfred Knopf, cuja casa se tornou famosa pela qualidade literária de seus autores, entre os quais os brasileiros Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, José J. Veiga, Antônio Callado.

Devo a Knopf a pequena presença que tenho junto ao público de língua inglesa. Antes de nos conhecermos pessoalmente fez traduzir e publicou, em 1946, Terras do Sem Fim* anos depois saiu do sério para apresentar num texto caloroso a tradução de Gabriela aos leitores de sua editora. Daí por diante não mais se deteve no apoio aos meus livros.

The Violent Land. Knopf.

 

Por três vezes veio ao Brasil, fez-se amigo de Alfredo Machado e de Dorival Caymmi, viajamos Bahia, Alagoas, Pernambuco, varamos o sertão, subimos o rio São Francisco. Tive a alegria de vê-lo, ao lado de Helen, servir champanhe aos convidados no dia em que comemorou noventa anos bem vividos, em sua casa de Purchaise. Ali fomos seus hóspedes, Zélia e eu, em fins de semana de apurada mordomia. Mantínhamos correspondência semanal e, no bom hábito brasileiro de recomendar livros a editores, eu lhe enviava, a pedido dos autores ou por diligência própria, romances e volumes de contos que me pareciam merecer tradução.

Foi assim que enviei a Alfred Knopf, acompanhado de carta entusiástica, exemplar de Terra de Caruaru, romance de José Conde, escritor e pessoa de minha estima. Informei Conde da iniciativa e ele passou a cobrar-me, com natural impaciência, a resposta do editor, resposta que não chegava nunca. Um dia dei-me conta de que José duvidava do envio, nem exemplar nem carta de recomendação, conversa fiada, fiquei molesto, escrevi a Knopf reclamando do silêncio. Aproveitava para lhe perguntar por que jamais acusava recebimento dos livros que eu lhe remetia antevendo possíveis traduções.

A resposta veio pela volta do correio, Alfred agradecia o envio dos volumes, tanto de Terra de Caruaru quanto dos anteriores. Cada um deles havia sido entregue ao comitê de leitura da editora, se o autor não recebera proposta de contrato era sinal de que o leitorado não recomendara a tradução. E fim de papo.

Ainda hoje não perdi o hábito de recomendar autores brasileiros a editores estrangeiros, feliz quando um livro obtém aprovação do comitê de leitura na França, na Itália, na Alemanha, na Argentina.

 

 

Rio de Janeiro, 1982.

Candidato a pulso

 

Marcara encontro com Josué Montello na Academia para formalizarmos a candidatura de Álvaro Salema à vaga aberta com a morte do filósofo Rebelo Gonçalves no quadro dos membros correspondentes. Na escadaria de entrada deparo com Pedro Calmon, saúda-me com espanto e estima:

— Coisa rara vê-lo por aqui. A que veio?

— Encontrar Josué. Vamos inscrever candidato à vaga de Rebelo Gonçalves que morreu no Porto.

— E quem é o candidato de vocês, pode-se saber?

— O ensaísta Álvaro Salema.

Pedrinho sustem o passo, toma-me do braço:

— Sei quem é, autor de um ensaio sobre Cervantes, de primeiríssima. Nome excelente, podem contar com meu voto.

Passada a eleição, meses depois, Pedrinho me revelou que naquele dia também ele viera à Academia com a intenção de indicar pretendente à mesma vaga. Ao ouvir o nome de Salema decidira juntar-se a Josué e a mim, guardara sua proposta para outra ocasião.

Inscrevemos Álvaro Salema candidato com os aplausos de Pedro Calmon e de toda a Academia, mas contra a vontade dele, do indigitado. Nossa vantagem, e a usamos, decorria do fato de que para membro correspondente os nomes são indicados por acadêmicos de número, brasileiros, ninguém se propõe ou registra a própria candidatura. Josué e eu indicamos o nome do autor de Tempo de leitura sem de novo o consultar para não ouvir a repetição da negativa. Assim, quase a pulso, Salema foi eleito por unanimidade para a Academia Brasileira de Letras.

Da Bahia, Rosane* me telefona a notícia: Urbano Tavares Rodrigues acaba de ser eleito para ocupar a vaga de Álvaro, falido no ano passado, estamos em março de 1992. Fico contente, Álvaro não teria pensado noutro confrade, se lhe coubesse escolher seu sucessor. O nome do romancista foi lembrado por Luís Forjaz Trigueiros, Josué e eu o inscrevemos, Josué acompanhou a eleição com a competência reconhecida, votação unânime. Excetuando-se o fato do primeiro ter sido ensaísta, crítico literário, de ser o outro um criador, autor de contos e romances, em tudo o mais se comparam e se assemelham: na discrição e na decência, no amor às letras, na luta contra o fascismo, a guerra e a injustiça, Álvaro e Urbano iguais no sonho de um mundo mais fraterno.

*Rosane Rubim, secretária de J. A.

 

 

Bahia, 1972.

Veneza

 

No meio da correspondência, cartão-postal de Carybé: os canais de Veneza, os palácios, as pontes. Leio: Estou sentado na Praça de São Marcos, esta cidade não existe.

 

 

Rio de Janeiro, 1940.

Indecisão

 

Na Cinelândia reencontro Maria a da Pinta no Queixo, vive na Europa, o marido é diplomata. Sentamos à mesa de um café, conversamos sobre amigos comuns, recordamos passado recente. A da Pinta no Queixo — a pinta dá-lhe uma graça brejeira — de súbito quer saber:

— Por que você não me quis? Por que me desprezou? Fico atônito, eu tanto a quis e desejei, no Cassino da Urca no jantar com Samuel e Bluma, eu a cantei, ela revidou com um não tão decisivo que recuei, não insisti: que pensa de mim, sou mulher casada. Relembro o fato, teria ela esquecido? Não, não esquecera:

— E por que eu teria de dizer sim na primeira investida? Eu estava doida para te dar mas queria ser conquistada, não era uma putinha para me atirar correndo ao primeiro aceno. Que iria você pensar de mim? Fiquei esperando que voltasses à carga, como não voltaste imaginei que a cantada não fosse pra valer.

Abri a boca para voltar à carga, levantou-se, anunciou:

— Agora é tarde, viajo hoje à noite para Berna. Mesmo que eu quisesse não poderia ser.

Deixa-me na mesa, antes de dobrar a esquina volta-se, fica parada por um instante como se à espera, dá adeus com a mão, desaparece. Dou-me conta de que a perdi pela segunda vez, devia ter ido atrás dela, afinal eram tão-somente duas da tarde, sobrava tempo. A pinta no queixo lhe dava um ar maroto.

 

 

Bahia, 1960.

Álbum de autógrafos

 

A notícia do desastre de automóvel sofrido por Carlos Pena Filho no Recife transforma a festa dos livros na Bahia em pesadelo. Cadinhos em coma na clínica, em torno os médicos e os amigos, nós, em casa de Odorico, ao telefone com Berrão*, na angústia, à espera de um milagre. O milagre não acontece, Carlinhos enverga as asas de anjo, parte em vôo rasante sob o céu da Avenida Guararapes. Passo dez anos sem voltar a Pernambuco, as ruas de Recife na ausência de Carlinhos são calçadas com as areias do deserto.

*Eufrásio Barbosa, sogro de Carlos Pena Filho.

 

De luto, Tânia vem esquecer e recordar junto a nós, no Rio, percorremos o álbum de autógrafos, lembranças daqui e de acolá, deste e daquele, o notável e o penetra, guardados de Zélia. Lá está, manuscrito, o poema de Carlinhos para Paloma, inventado no Recife em dias de riso e amizade: só para Paloma este verso efeito /pois só ela entende um verso desfeito.

Paloma andava pelos oito anos, era um pássaro no céu de Pernambuco, respondeu na tampa ao poema de Carlinhos, Zélia guardou os rabiscos e os borrões: para uma pena uma pluma / para uma pluma uma pena / para Carlos Pena uma pluma / uma pomba uma pena / o pavão tem uma pluma / e para Tânia e Clarinha / uma peninha azulzinha.

Só Carlos Pena Filho entende o verso de uma criança, não era ele uma criança sem malícia? Uma criança ou um anjo, não tinha idade, os anjos não cumprem aniversário, possuem asas e andejam sobre as pontes, sobre os rios. Carlinhos sobrevoa a Avenida Guararapes, no peito uma pluma de pavão que lhe foi ofertada por Paloma num verso ao inverso, desfeito.

 

 

Paris, 1992.

As coincidências

 

Atrasado, desço ao encontro de Ernesto Sábato, vamos almoçar no bistrô dos italianos. Ernesto veio a Paris inaugurar exposição, hoje o ficcionista argentino dedica parte de seu tempo às artes plásticas, está contente com a repercussão que sua pintura vem obtendo nos arraiais da crítica francesa. Há dois anos fui conhecer seus quadros nas salas do Centro Pompidou, lá encontrei Georges Raillard, crítico de arte competente e rigoroso, fartou-se em elogios à mostra, o pintor não fica a dever ao novelista.

Ernesto salta do automóvel, avanço para ele, no meio da rua nos abraçamos, afobação de velhos, por um triz escapamos do carro em disparada, subimos no passeio, Ernesto exclama:

— Se nos matam se termina la literatura latinoamericana...

Rimos os dois: podemos proclamar a boutade porque nos rimos dela, o portenho e o baiano, aos oitenta anos estamos a salvo das vaidades fáceis: ele os cumpriu em junho de 1991, eu os cumprirei no próximo agosto. Autores tão diferentes, a visão dramática da vida e dos seres não o faz pessimista, quanto a mim participo da festa da vida, sendo escritores tão dessemelhantes, na vida em muitas coisas coincidimos. Zélia e Isabel* se divertem à afirmação das coincidências repetidas ao sabor do risoto e da lasanha.

*Isabel Soto, tradutora de Sábato.

 

Na mesa do bistrô passamos em revista a vida e o mundo, o mundo de espantos, das mudanças impossíveis, vamos da Feira Internacional de Sevilha ao Iraque do após guerra, cavalgamos problemas, do nacionalismo de Ieltsin à tragédia da Iugoslávia, analisamos situações, Ernesto fala com admiração da cultura árabe, sem os mouros o que teria sido da Espanha, o mundo contemporâneo terá capacidade para entender as evidências e os mistérios da cultura muçulmana? Por falar em árabe, conto-lhe que um poeta, dublê de jornalista, Wally Salomão, brasileiro de origem árabe, veio me entrevistar em outubro do ano passado, garantiu-me que daí a dias, informação segura, canal diplomático, o Prêmio Nobel seria concedido ao argentino Ernesto Sábato, deixara-me nadando em mar de rosas, o Prêmio foi para a África do Sul, outorgado a Nadine Gordimer, mais pela circunstância histórica do que pela importância literária e social de sua obra de romancista. Prêmio Nobel? Sábato revela: por cinco vezes seu nome foi levado à consideração da Academia da Suécia mas ele sabe que não receberá o Nobel. E por quê, pergunto, se o mereces como poucos? Responde-me após o gole do vinho da Sicília: Arthur afirmou, em entrevista, que a obra dele, Sábato, escassa — escassa, o termo que usou — para tão gordo prêmio:

— Artur? Quem é?

— Artur Lundqvist, é quem manda no Prêmio.

Ao ouvir o nome do sueco, Zélia solta o riso enquanto Ernesto acrescenta ter deixado de ir a Estocolmo desde que lá tendo ido para o lançamento da tradução do Anjo das trevas, em Buenos Aires escreveram que fora trabajar el Nobel. Cresce o riso de Zélia, Ernesto se surpreende: por que ris com tanto gosto? Rio-me com as coincidências, diz Zélia, depois de Lundqvist, a exclusão da Suécia dos roteiros de viagem. Nós não voltamos a Estocolmo já nem sei há quantos anos, conta ela, quando lá estivemos pela última vez nosso primo Luiz* era segundo secretário da Embaixada, fez-nos sala, hoje é Embaixador saiu numa coluna de jornal que Jorge fora à Suécia cavar o Nobel, resultado: Suécia nunca mais. Mais do que em tais pequenezes de prêmios — pequenez, o Nobel, saco de dólares? — e de notícias salafrárias, coincidimos, estranha coincidência como diria dona Arminda, personagem de romance, coincidimos no local de moradia pois Sábato habita Santos Lugares, delícia de subúrbio de Buenos Aires. Assim o era em mil novecentos e quarenta e um quando lá vivi na chácara de um italiano, ali escrevi O Cavaleiro da Esperança. Surpreendi-me ao saber pelos jornais que Sábato residia em Santos Lugares. Um dia a surpresa se fez assombro: ao jornalista brasileiro que, ao entrevistá-lo, lhe perguntou se era verdade que morava na mesma cidadezinha onde habitara o biógrafo de Prestes, Sábato revelou que não apenas na mesma povoação, morava na mesma casa onde ele escrevera o livro sobre o preso.

*Luiz Amado, diplomata.

 

Coincidência, essa sim importante, é o desgosto que nos causam as fardas, o desgosto se torna horror quando envergadas por militares no poder. Alfonsín designou o homem certo, o cidadão exemplar para a Presidência da Comissão encarregada de apurar os crimes dos gorilas argentinos, ponto alto na biografia de Ernesto Sábato. A casa do escritor em Santos Lugares foi naqueles dias o refúgio da justiça e da verdade, ali se acolheram o sofrimento e a esperança das vítimas da ditadura dos videlas.

De Santos Lugares vamos a Buenos Aires em nossa volta ao mundo de espantos e reminiscências, recordamos alguém caro ao meu coração, também ao dele, Rodolfo Ghioldi. Eu o conheci no Brasil, em 1935, gramou anos de prisão após a intentona*, um comunista decente e devotado, criatura humana acima das contingências, limitações e misérias impostas pela ideologia. Demoramos a recordar Rodolfo e Carmen**, quando estive exilado na Argentina eles foram minha família, a casa deles era minha casa. Também Ernesto os conheceu e estimou, a amizade vinha dos tempos em que militara no pecê da Argentina, eu não sabia que ele tivesse sido inscrito no partido: foste comunista?

*A tentativa de levante militar dirigida pelos comunistas em 1935.

**Carmen Ghioldi, mulher do líder comunista.

 

— Todos nós o fomos, Jorge, todos.

De fato me pergunto qual o intelectual válido, o homem político de importância da América Latina que não tenha assentado praça no pecê de seu país: não serão muitos. Em certo momento cada um de nós pensou que o pecê fosse a melhor trincheira para lutar a luta de nossos povos — os melhores e os piores homens que conheci e com quem tratei milharam nas fileiras comunistas, os mais dignos, os mais sórdidos.

O almoço chega ao fim, enxugamos a garrafa do Corvo generoso, não sendo leviano, Sábato não proclama superioridade do vinho argentino sobre o italiano:

— Matilde y yo les esperamos, a vos, Zélia, a vos, Jorge, en nuestra casa, en vuestra casa de Santos Lugares. — No espanhol da Argentina vos quer dizer tu, em língua de intimidade, de bem-querer, em língua de compadrio.

 

 

Rio de Janeiro, 1977.

O robe de ouro

 

Chega-se ao fim de uma batalha que durou oitenta anos, tantos quantos os da Academia*: as mulheres de agora em diante poderão se candidatar às vagas, ganhar a eleição, vestir o fardão com o peitoril de ouro. Como será o fardão das damas? Robe verde, pano de bilhar, ourama no parapeito, desenhado por Austregésilo**. Apesar da ameaça do robe, apoio com alvoroço a luta pela entrada das literatas, voto a favor da proposição de Osvaldo Orico***.

*Academia Brasileira de Letras.

**Austregésilo de Athayde, Presidente da ABL.

***Osvaldo Orico (1900/1981), escritor.

 

Essa história de exclusão das mulheres dos quadros acadêmicos foi uma das salafrarices cometidas por Machado de Assis quando fundou a chamada Ilustre Companhia, não foi a única, sujeitinho mais salafrário nosso venerado mestre do romance. Custou-lhe esforço chegar a branco e a expoente das classes dominantes, mas tendo lá chegado não abriu mão de nada a que tinha direito, culminou a carreira bem-sucedida de burocrata com a fundação da Academia: até hoje a preside, entronizado de sobrecasaca no pátio de entrada do Petit Trianon. Crítico entre amável e sarcástico da burguesia brasileira da época, da classe média alta, o mestre romancista; sustentáculo de seus privilegio e preconceitos, o cidadão Joaquim Maria Machado de Assis, marido de dona Carolina, casou com portuguesa.

Estabeleceu ele próprio a relação dos fundadores, inscreveu os vetos. Nem boêmios — Emílio de Menezes* só pôde ser eleito após a morte de Machado —, nem mulheres. Na época havia uma escritora de renome estabelecido — e merecido, vale a pena ler seus romances, Júlia Lopes de Almeida**, impossível passá-la para trás, se ela protestasse seria o escândalo, como fazer para não colocá-la entre os quarenta ilustres titulares? Machado, o manipulador, deu a volta por cima, encontrou como impor o machismo. Barganhou com dona Júlia: ela ficava de fora, mas em troca ficaria de dentro, acadêmico de número, o marido dela, Filinto d'Almeida, escrevinhador de pouca valia. A romancista achou, com razão, que o consorte precisava bem mais que ela dos bordados da Academia, cedeu-lhe a cadeira, a ela bastavam os romances. Com o quê Machado fechou de vez as portas do silogeu às saias femininas. Nem mulheres nem boêmios, mas teve vaga para jovem de 20 anos, quase inédito, Magalhães de Azeredo, dele se conhecia apenas páginas de louvor, aliás justo, aos livros do fundador da Instituição. Também vem de Machado a tradição das cadeiras reservadas aos candidatos das diversas categorias do poder, cadeiras cativas do Exército, da Igreja, do Judiciário, das letras médicas: a tradição dos expoentes perdura ainda hoje. Escritores, uns poucos e nem sempre os melhores. Deixa pra lá.

*Emílio de Menezes (1866/1918), poeta.

**Júlia Lopes de Almeida (1862/1934), romancista.

 

Certa quinta-feira, dia de sessão, na sala do chá testemunhei ácido debate entre Luiz Viana Filho e Magalhães Júnior a propósito de Rui Barbosa, alvo da crítica do rebarbativo Raymundo. A memória dos grandes homens, exemplo para a juventude, deve estar acima de qualquer restrição, branca de leite, limpa e polida de qualquer defeito, impoluta para a admiração da posteridade, arengava Luiz. Viu-me parado a escutar, olhou-me com o rabo do olho, sorriu-me mas, político habilíssimo, não pediu minha opinião. O cidadão Machado de Assis, não o romancista, muito tem se beneficiado com a tese da memória pulcra dos grandes mortos.

Na votação da proposta que abriu as portas da Academia às mulheres, Hermes Lima surpreendeu-me: voto contra. Vendo meu espanto, explica-me: isso aqui não passa de um clube de homens, Jorge, no dia em que entrar mulher nem isso mais será: nossa paz se terminará, a fofoca substituirá a convivência.

Um jornal faz uma enquete às vésperas da decisão, pergunta qual das nossas beletristas (!) deve ser a primeira a envergar o fardão — perdão, o robe. Em minha opinião, digo ao repórter nenhuma de nossas confrades merece mais a consagração, os pechisbeques (!) da Academia do que a poetisa — naquele tempo dizia-se poetisa, hoje poetisa é xingo — Gilka Machado, figura singular em nossa literatura. Poetou sobre o desejo da mulher, a tesão pelo homem, o amor sem peias quando as outras reservaram o coito para os confessionários das igrejas: ousou quando a ousadia significava discriminação, repulsa, abjeção. Sugeri que as prováveis candidatas assinassem manifesto propondo aos Acadêmicos o nome de Gilka Machado: mais que outra qualquer merecia ser a primeira mulher a ingressar no fatal cenáculo. A sugestão caiu no vazio das vaidades, tampouco eu acreditava fosse avante, sou ingênuo mas não tanto. As impacientes andavam pelos alfaiates, de figurino em punho, estudando o robe: ainda mais solene e triste do que o fardão.

 

 

Milão, 1949.

O conde

 

A prestação de contas de Bompianni — a primeira editora a me publicar na Itália — chega em boa hora: se a maquia não é grande, não deixa de ser apreciável, refere-se às vendas de Terre del Finemondo e ao adiantamento sobre a tradução de São Jorge dos Ilhéus*, que vai sair no próximo setembro.

*A Terra del Frutti d'Oro, Bompianni, Milão.

 

As liras vão nos servir para a projetada viagem de férias, Zélia desembarcara em Gênova em maio de 1948, uma correria de quatro dias em Roma, não dera para ver a pátria de Ernesto e Angelina. Pensamos voltar, um mês inteiro, escrevo à Editora pedindo que deixe o crédito à minha disposição, quando for a Milão o cobrarei.

Passado algum tempo tomamos o trem, segunda classe, no bolso o suficiente para dois dias de hotel e pizzeria, os cobres da Bompianni, cobrados assim cheguemos a Milão, assegurarão a continuação da viagem. Apenas não contávamos com o ferragosto, aliás nem sabíamos o que era ferragosto — uma semana que começa a 15 de agosto quando indústrias, bancos, grande parte do comércio cerram as portas, a vida pára.

Liguei para a Editora, o telefone soava, ninguém atendia, o porteiro do pequeno hotel me informa sobre o ferragosto, alarmado resolvo ir até a sede da Bompianni, lá chego com Zélia, encontramos as portas fechadas. Tanto bato com os punhos, tanto grito diante da entrada principal, que por fim me aparece o encarregado da segurança. Quero falar, lhe digo, com alguém da firma, nada a fazer, responde-me ele, antes do fim do ferragosto que começou na véspera.

Explico-lhe a situação em que nos encontramos, tivemos sorte, o guardião é pessoa prestativa, condoeu-se, interessa-se por nossa desdita, toma do telefone, durante cerca de uma hora busca falar com il signore Conte Valentino Bompianni a descansarem sua casa de campo. Custa tempo e paciência, Zélia e eu pendentes do telefone, o bom italiano insiste, não aceita as recusas dos domésticos do Conde, o assunto é sério, diz e repete. E o faz com tamanha disposição que obtém Sua Excelência ao telefone, passa-me a ligação. Com o que terminaram as dificuldades.

Digo ao ilustre quem eu sou, gentil ele me saúda, conto-lhe o imbróglio em que nos encontramos. O Conde compreende, fique tranqüilo, me acalma.

— Sabe a quanto monta o seu crédito?

Sei, digo a soma modesta dos direitos de novel autor, primeiro livro recém-publicado em italiano. Conde Bompianni marca encontro comigo no hotel, às dez da manhã do dia seguinte. Zélia e eu, salvos do naufrágio, melhor dito da mendicância, beijamo-nos diante do guardião, vamos tomar vinho e comer pizza, alegres namorados.

Pontualíssimo, elegantíssimo, às dez em ponto, o Conde desce da limusine luxuosa, uma pasta na mão, nela os meus direitos de autor — naquele tempo a moeda italiana se distinguia pelo tacanho das notas, enormes. Pagamento em espécie, os bancos fechados, se já tive vontade de beijar as mãos de um benfeitor foram as do Conde Bompianni.

Pagou mas não foi embora: amabilidade insuperável, levou-nos a um bistrô, tomamos cappuccino, conversamos por mais de meia hora. O Conde Valentino Bompianni, até hoje sou-lhe grato.

 

 

Rio de Janeiro, 1956.

Ante-sala

 

Vou ao Palácio do Catete buscar o texto sobre Oscar Niemeyer prometido por Juscelino Kubitschek, Presidente da República, para o número especial que o Paratodos vai dedicar ao cinqüentenário de nascimento de seu diretor-presidente, o arquiteto de Brasília.

No Palácio não encontro Paschoal Carlos Magno, meu contato com Juscelino, recorro aos bons ofícios de Cyro dos Anjos* ofícial-de-gabinete. Dele conheço os romances, o personagem conheço pouco e mal. Gentil, coloca-se à minha disposição, o Presidente está em audiência com um Ministro, devo aguardar. Oferece-me cadeira, dispõe-se a cavaquear. Ora, eu andava tomado de paixão pela literatura de Guimarães Rosa, jurava por Sagarana, babava-me ao falar de Grande Sertão: Veredas, ninguém me ganha em admiração pelo mestre mineiro. Sendo Cyro igualmente mineiro pareceu-me não existir melhor tema para ocupar o tempo de espera, desfaço-me em elogios a Rosa: renovador da língua literária, criador imenso, a hora e a vez de Augusto Matraga, o sertão de Diadorim, a vida dos bravos, o amor e a morte — quando admiro não tenho peias na língua. Cyro dos Anjos parece ouvir-me com interesse, balança a cabeça, aprovativo, creio.

*Cyro dos Anjos, escritor.

 

Faço uma pausa, ele toma a palavra. Guimarães Rosa, de acordo, tudo que eu disse é possivelmente certo, mas repare, se detenha a examinar e verá que a obra de Guimarães Rosa se apoia sobre três suportes. Primeiro: o manejo dos dicionários para fabricação de palavras, para o que se fazem necessários paciência, método e tempo disponível de quem não tem obrigações a cumprir. Segundo: o conhecimento dos romances de cavalaria, o que é Grande sertão: veredas, me diga, senão um romance de cavalaria? Para finalizar, o terceiro: a sensibilidade feminina de homossexual, basta ler com atenção.

Juscelino encerra a audiência, manda me chamar. Levanto-me, atarantado recolho os restos mortais de Guimarães Rosa. Cyro dos Anjos retorna a seus papéis de burocrata.

 

Um conto se conta, não se explica e quanto ao personagem deve ser pessoa em carne e osso com sangue nas veias e miolo na cabeça, não um títere em mãos do romancista. Sinto que o personagem está posto de pé quando se recusa a fazer aquilo que não cabe no contexto de sua personalidade, acontece por demais, eu poderia escrever uma brochura contando casos sucedidos no decorrer de meu trabalho.

Por mais de uma vez referi o que se passou com dona Flor: quando eu me aproximava do fim da história de seus dois maridos, chegou à Bahia minha sobrinha Janaína*, sabia do romance, interessou-se em saber mais. Dona Flor no dilema, querendo dar a Vadinho, o primeiro marido, a saudade, o desejo de novamente transar com ele o tinham trazido de volta, viera da morte, cobrava o preço da viagem, dona Flor morria de vontade de pagar. Por outro lado ela era uma pequeno-burguesa amarrada aos preconceitos de honra conjugai, o casamento com o doutor Madureira a elevara da pequena à média burguesia, fortalecera-lhe o respeito às convenções, às leis, aos vetos, Dona Flor era o oposto da adúltera, jamais pensara trair o farmacêutico, pôr-lhe os chifres.

*Janaína Amado de Figueiredo, historiadora, professora universitária, filha de James.

 

Eu chegara exatamente às páginas que precediam a entrega de Dona Flor, o amor vencendo as barreiras, o amor acima das limitações. Disse a Janaína: está claro que ela vai dar, não deseja outra coisa. E depois, tio, como vai acabar o livro, como será o final?

Pesando os prós e os contras, recordando o ebó mandado fazer por Dona Flor para obrigar Vadinho a retornar ao nada de onde chegara, imaginei que não tendo resistido, tendo se realizado, a boa esposa ficara ao mesmo tempo morta de vergonha e de remorso por haver traído a confiança de Teodoro, na ânsia e no desespero ao ver o ebó produzir efeito, Vadinho se dissolvendo no ar, Dona Flor irá com ele em sua viagem do nunca mais. Penso uma página poética onde o leitor perceba que ela está delirante, febre e despedida, vai morrer junto a Vadinho, só a morte compensará seu crime. Bonito, elogia Jana.

A sobrinha viajou, prossegui no meu trabalho, como eu pensava Dona Flor chegou ao fim da resistência, gemeu de novo ais de amor na estrovenga de Vadinho, escrevi a cena à noite — naquele tempo, bons tempos, ainda escrevia à noite —, fechei a máquina, fui dormir. No dia seguinte retomei o romance, eis que estando Flor nua na recordação do gozo, um resto de desejo no xibiu, Teodoro Madureira entrou no quarto metido no pijama de listras, bonitão Ao vê-la nua, subiu-lhe o pau, desceu a calça do pijama, montou na esposa bem-amada, ele por cima ela por baixo como manda a boa educação. Deu-se que Dona Flor achou bom, nem por ser feita de mel e pimenta a vara de Vadinho anulava o gosto de chá de camomila da arma bem-proporcionada e valente do farmacêutico. Tendo gostado de um e outro e tendo perdido a viseira que lhe cobria a visão e limitava a aventura, Dona Flor sem me consultar, muito menos me dar satisfação, ficou com os dois maridos, o devasso e o bom doutor, ora apimenta, ora o chá de camomila, gostava do molho picante e da suave beberagem.

Zélia chegou à sala, eu comentei: essa tua amiga Dona Flor saiu-me uma salafrária, quem diria. Por falar em Zélia, até hoje me crítica por não ter feito no romance de Gabriela o casamento de Gerusa e Mundinho Falcão, eu lhe digo que não sou padre nem juiz, não faço casamentos, quem os faz é a vida, por amor ou interesse. O romance tem um tempo e um espaço, o tempo do romance de Gabriela chegara ao fim, o espaço se fechava, se Gerusa e Mundinho depois se casaram ou não, isso não sei, da história sei apenas o que está no livro.

Lembro-me de que durante a elaboração de Tenda dos Milagres onde narro de como se forjou a nação brasileira, ao criar a figura de Tadeu Canhoto, filho de Pedro Archanjo, imaginei fazê-lo o herói que prosseguiria e levaria adiante a luta do mulato. Imaginei-o militante, mais avançado, mais radical do que o pai, um resto de sectarismo ainda me marcava, não me dava conta que Archanjo atingira o limite justo, mantivera-se livre, não se amarrara à seita.

Para pôr a figura de pé nos termos imaginados, comecei a amassá-la no barro de Carlos Marighela e o inscrevi na Escola Politécnica, a prova de matemática em versos decassílabos feita por Tadeu é a que Marighela fez quando estudante de engenharia. Fui desdobrando os fios da meada, queria Tadeu fundador do Partido Comunista, esqueci-me de que a ação do romance se desenrola na realidade dos anos vinte e sobretudo esqueci de consultar Tadeu: eis que ele recusou a ideologia e a militância. Como os demais mulatos e pobres de seu tempo o que ele queria era ser branco e rico, em vez de revolucionário tornou-se genro de fazendeiro, embranqueceu, deixou o Pelourinho pelo Corredor da Vitória: Pedro Archanjo foi a exceção, seu materialismo não o limitou, prosseguiu pardo, paisano e pobre, cumprindo obrigações de candomblé. Os personagens nos ensinam a não violar a realidade, a não tentar impor, não somos deuses, apenas romancistas.

 

 

Nice, 1990.

Gil

 

Na platéia do teatro superlotado, de pé aplaudimos nosso Gilberto Gil, nosso por brasileiro e baiano, amorável criatura, intérprete da luta e da esperança, da vida contra a morte, voz do povo desatada no canto anti-racista, no louvor da natureza: marulho de onda, rugido de tempestade.

A música mestiça domina a assistência, os franceses cantam em português do Brasil, dançam em afro-brasileiro, estamos na croisette de Nice ou no Largo do Pelourinho? Eduardo Jasmim Tawil, correspondente de A Tarde, comanda o samba na sala de espetáculo, repleta, enlouquecida.

Recordo dois outros momentos de Gilberto Gil, duas emoções que me tocaram o coração e os quimbas. O primeiro aconteceu no Teatro Castro Alves, em 1968, na Bahia: Gil e Caetano haviam saído da cadeia dos milicos, partiam para o exílio em Londres, foi-lhes permitido um show para que pudessem angariar um pouco de dinheiro. Platéia de jovens contestatários da ditadura, o clima é tenso e solidário. Gilberto Gil toma do violão e entoa Aquele abraço, samba de despedida e de saudade. O teatro é protesto e vibração, canta em uníssono com Gil e Caetano: à frente dos jovens vejo o poeta Castro Alves em seu teatro. O coração dispara, o frio do pólo atravessa-me os ovos.

A outra vez foi em 1987, vinte anos depois, e o palco onde Gil cantava e deslumbrava era o do Olympia, em Paris. Gil me dedica a canção que compôs para o filme Jubiabá de Nelson Pereira dos Santos adaptado de meu romance. A multidão em transe o acompanha na oração do pai-de-santo Jubiabá, o nome do personagem ressoa no teatro ilustre. Estremeço: calor no coração, frio nos quimbas, os olhos apertados.

 

 

Cantão, 1952.

O que sabe melhor

 

Na ida para o restaurante Ilya exige que Ting Ling* lhe esclareça uma curiosidade: qual a carne de cachorro a saber melhor, a dos criados em cativeiro nos canis dos restaurantes, engordados para o forno e o fogão, ou a dos vira-latas caçados nas ruas pelos pobres?

*Ting Ling, escritora chinesa.

 

O hábito dos chineses de prepararem pratos com carne de cachorro — iguaria predileta nas casas de pasto de Cantão, só as serpentes gozam de fama igual — horrorizava Eremburg, que criava com mimos, em seu apartamento de Moscou, três schnawzers de estimação. Posso entender a repugnância de Ilya, até hoje não aceitei provar carne de cavalo.

— Quais os mais saborosos?

Ting Ling furta-se à resposta, busca escapatória, fala de outras excelências, teatro, bale, a flor-de-lótus, Ilya implacável insiste. Por fim a romancista, sem porta de saída, cansada de subterfúgios, baixa a voz, murmura entre dentes:

— Prefiro os vira-latas, a carne é mais saborosa.

Restaurante especialista em pato laqueado, os chineses refinados comem apenas a pele crestada, jogam a carne fora, Ilya come pele e carne, com apetite, nenhuma restrição se lhe escapa dos lábios enegrecidos pelo molho ferrugem. Nem a ele nem a mim: comemos pato e porco, boi e cabrito com gula e gosto, não comer cachorro, cavalo, serpente, apenas preconceito.

 

 

Bahia, 1989.

A herança

 

A pedido de Sérgio Machado telefono para Paulo Niemeyer*, no Rio de Janeiro, Alfredo vem de terminar os exames médicos a que se sujeitou, solicito o diagnóstico, recebo a confirmação terrível: tumor no cérebro. Caso difícil, escuto e esqueço nomes de sarcomas cada qual mais maligno, caso perdido. A Paulo Niemeyer não lhe parece que operação possa resolver, ele não operará, mas se Alfredo e a família quiserem tentar clínica norte-americana...

*Paulo Niemeyer, médico, neurocirurgião.

 

Quem não quer tudo tentar, o possível e o impossível, da quimioterapia aos ebós de candomblé, cirurgia se for o caso, na luta contra a morte? Lá se vai Alfredo para os Estados Unidos apoiado no braço de Glória, os doutores ianques confirmam a decisão do sábio brasileiro: inútil operar, vão experimentar tratamentos novos, quem sabe, pode ser. Inicia-se um período de viagens sucessivas entre Rio e Nova York, Alfredo não perde o ânimo, lutador incorrigível. Zélia e eu telefonamos diariamente, ele próprio atende, fala de sua luta contra o mal, conta a última anedota, a ameaça e a esperança — a esperança, ai, diminui a cada dia.

Por mais de um ano, a morte de Alfredo nos faz companhia, não consigo escrever, perco o gosto da conversa e do riso. Saio do Brasil para não ter que ir ao Rio visitá-lo. Escondo-me no tumulto, na correria de um lado para outro, de cidade em cidade, de país em país, congressos, seminários, simpósios, vou de evento em evento.

A morte de Alfredo é prolongada e mundial. Amigos de toda parte telefonam por notícias, Herbert Lottman, Jean-Claude Lattès, Ray-Gude Mertin, Carmen Balcells, Jean Rosenthal, Tom Colchie, os Raillard, Jurgen Gruner, dos Estados Unidos, da França, da Alemanha, Nurchian Kesim telefona de Istambul, de Roma Luciana Stegagno Picchio, de Lisboa João Conde em pranto. Alfredo tem amigos no mundo inteiro, escuto-os ao telefone, a voz aflita, à espera de um milagre. Mais que todos telefona o próprio Alfredo, no passar dos dias a conversa vai-se fazendo penosa, interrompida de silêncios, recebo pelos ares o cansaço e a mágoa.

Eu transmitira a Alfredo a idéia de um romance contando as atribulações de jovem brasileiro na circunstância da ditadura militar, década de 60 com os hippies, faça o amor não faça a guerra, a revolução sexual, a promiscuidade, a maconha, a guerrilha urbana, a contestação geral, aquela confusa atmosfera. Romance na linha das histórias de Quincas Berro d'Água e do Capitão de Longo Curso, ou seja, a identidade discutida, onde a verdade, onde a mentira? Da ação nada sabia, nunca sei a não ser quando me ponho a escrever e os personagens começam a viver. Mas já tenho o título, o nome do herói, causa de equívocos: chamar-se-á Bóris, o Vermelho.

Alfredo, editor por excelência, não me largou mais o pé, queria o livro a todo o preço. Durante os quatorze meses da marcha impiedosa cobrou-me o romance que, a partir de certo momento, perdera para mim todo o interesse. Um dia Sérgio telefona: o fim se aproxima. Zélia liga para Alfredo, diz-lhe que estou trabalhando no romance de Bóris, não tardarei a lhe enviar os originais. Contém o choro, inventa: a mentira sai-lhe correntia, a ela que não gosta de mentir. Alfredo ainda tem forças para pedir detalhes.

Dias depois, esperada, incrível, a notícia do falecimento. Alfredo deixa-me de herança a idéia do romance, a promessa de colocar no papel as atribulações do jovem brasileiro. Vou para a máquina de escrever, a sombra de Alfredo me acompanha, vai comigo, de fiscal. Quatro vezes comecei, quatro vezes desisti, mas um dia hei de terminar a história de Bóris, o Vermelho, mais de Alfredo Machado do que minha.

 

 

Istambul, 1989.

Pierre Loti

 

Ver, ouvir, rir com Yachar Kemal*, tenho a impressão de reencontrar Nazim Hikmet**, feitos os dois da mesma argamassa turca, mistura da miséria e do heroísmo popular com a luta e a esperança, a argamassa do sonho, matéria da poesia de Nazim, da narrativa de Yachar.

*Yachar Kemal, escritor turco.

**Nazim Hikmet (1902/1963), poeta turco.

 

Visitamos o Museu Pierre Loti, do alto da praça, abancados à mesa do café, contemplamos Istambul, o povo nas ruas a passear, em cada canto sítios onde deter-se para o gozo da conversa, cidade onde viver e amar, ao fundo a beleza do Bósforo. Acanhado e pobre, o Museu Loti guarda memória do escritor francês que morou na Turquia e a estimou: louvou-lhe a paisagem, descreveu-lhe os costumes. Conto a Yachar uma história, passou-se na URSS, durante os festejos do cinqüentenário de Nazim, em 1952.

O ato maior das comemorações do cinqüentenário aconteceu na Sala Tchaikovski, sessão de gala com a presença do poeta — Nazim vivia numa dacha nas aforas de Moscou. Após os discursos, as saudações, as mensagens, o aniversariante subiu à tribuna para agradecer e dizer poemas — a seu lado sucediam-se escritores soviéticos, Nazim declamava um poema em turco, o soviético declamava a tradução que dele fizera, em russo ou em outra língua da União Soviética, homenagem à altura da grandeza e do internacionalismo do turco. Convidados, lá estávamos na primeira fila Zélia e eu.

Acompanhava-nos como intérprete Satva, filha de Otávio Brandão, comunista histórico, exilado na URSS nos anos trinta. Satva, uma soviética, pois ali chegara menina, ali crescera, estudara, se formara, se casara, tivera filho, trabalhava na Rádio de Moscou, redigia e apresentava programas em língua portuguesa, encanto de pessoa, despida de malícia. Soviética exemplar, continuava contudo brasileira no amor à pátria distante, Otávio ensinara o Brasil às filhas, eram quatro, recitava-lhes Castro Alves, cantava-lhes sambas — modificava as letras para fazê-las revolucionárias, limpá-las do sal e da pimenta —, arriscava feijoadas apesar da falta de ingredientes.

Enquanto Nazim declamava em turco, Satva nos informava sobre o poeta que esperava na tribuna para ler a tradução. Na vez de Konstantin Simonov, nosso amigo, Satva, dispensada de biografá-lo, ao dar-se conta de que o poema de Nazim tratava de Pierre Loti, aproveitou para nos contar como durante sua adolescência o pai Otávio lia para as filhas páginas dos livros de Loti que ele considerava admiráveis, sobretudo as descrições de recantos de Constantinopla e da vida na Turquia. Satva guarda lembrança enternecida dessas leituras, sente-se grata a Nazim por ter dedicado um poema ao autor que a fizera sonhar com o Bósforo.

Nazim chega ao fim do recitativo em turco, Simonov, antes de iniciar a leitura da tradução, pronuncia palavras de admiração e afeto, conta do trabalho que lhe custara colocar em língua russa os versos de fogo escritos pelo irmão e camarada. Competente, Satva traduz o discurso palavra por palavra. Simonov passa ao poema, Satva atenta ouve os primeiros versos, de súbito coloca a mão sobre a boca num gesto de assombro:

— Parece que o camarada Hikmet não aprecia Pierre Loti, está a acusá-lo de sujo agente imperialista, diz que ele não entendeu nada da Turquia e do povo turco, um renegado.

Olha para nós em busca de explicação, já não sabe o que pensar, onde e como situar o escritor francês: na admiração paterna ou ao admirar Loti estará cometendo pecado contra a religião do marxismo-leninismo? Os olhos arregalados, a mão cobrindo a boca.

Yachar Kemal desata em riso mas logo se contém, diz que Satva é um personagem de romance na trama das ideologias, por que não a coloco num livro: pura, ingênua, leal, invadida pela dúvida, dramática. Toma de minha mão: somos todos personagens, meu irmão.

 

 

Bahia, 1973.

Toninho

 

A construção do Centro Administrativo avança em ritmo veloz, alguns dos prédios que acolherão as secretarias do governo encontram-se em vias de conclusão, Jenner Augusto e eu visitamos o canteiro de obras a convite do governador Antônio Carlos Magalhães, ele nos explica a importância e o significado do Centro. A urbe vai sair dos limites históricos, vai se estender em direção a Itapuã, crescerá na orla marítima, a velha cidade do Salvador da Bahia de todos os Santos, capital da colônia, modorrenta se transformará na capital dinâmica de um Estado industrial. O governador traça o futuro — pagará a pena?, me pergunto.

Chegado às artes plásticas, possui uma senhora coleção, as más línguas espalham que as melhores peças foram recebidas de presente, possa ser, como se diz aqui, Toninho pretende colocar painel de artista baiano em cada um dos edifícios, decorar salas e gabinetes com óleos, aquarelas, desenhos, deseja que sua administração decorra sob o signo da arte, pede-nos, a Jenner e a mim, que o ajudemos no projeto. Aceitamos a prebenda, parece-nos válida por todos os motivos: inclusive por bem-vinda às finanças sempre parcas dos artistas.

Para começo de conversa proponho a Antônio Carlos que a realização do grande painel destinado ao plenário da Assembléia Legislativa do Estado seja confiada a Carlos Bastos, o convite valerá como reparação ao pintor, vítima de discriminação e preconceito por parte do clero do Rio de Janeiro. Haviam-lhe encomendado dois murais para a igreja do Parque da Cidade, Carlos pôs-se ao trabalho e, como já fizera em outras obras, deu o rosto dos amigos aos personagens, vestiu com trajes bíblicos pessoas de sua admiração e sua estima: nas paredes da igreja estamos Di Cavalcanti, Djanira, Pele, Vinícius de Moraes, eu próprio. Caetano Veloso é Jesus, Betânia encarna a Virgem Maria, Gal Costa é Maria Madalena. Os padrecos não gostaram, um deles escreveu artigo no Jornal do Brasil, denúncia dirigida à censura militar: inadmissível blasfêmia tais pinturas, como tolerar nas paredes de templo católico, transmudados em anjos do Senhor, um negro jogador de futebol e um escriba subversivo e pornográfico, referia-se a Pele e a mim, o alcagüete de batina estampava nossos nomes na pasquinada.

Toninho aprovou a sugestão, Carlos Bastos voltou a residir na Bahia, ergueu casa na Pedra do Sal, somos vizinhos na fimbria do oceano, vizinhos iguais a ele e a Altamir* estão por se inventar. Para o plenário da Assembléia, Carlos executou painel monumental em fibra de vidro, o maior do Brasil, em tamanho, em beleza não se compara. O tema escolhido foi a procissão de Bom Jesus dos Navegantes, realiza-se na baía de Todos os Santos a cada primeiro de janeiro. O golfo coalhado de embarcações: saveiros, barcos a motor, veleiros, barcaças, navios da Baiana, iates, ferry-boats, acompanham a imagem do santo protetor dos navegantes até a entrada da barra onde começa o mar Atlântico. Vinda de sua igreja em Mar Grande, a imagem pernoita na igreja da Conceição da Praia, Jesus em visita à Maria, sua mãe, na versão dos reverendos, Oxalá em visita a Yemanjá, sua mulher, na devoção das iyalorixás.

*Altamir Galimberti, artista plástico.

 

A idéia de Antônio Carlos era embarcar na galeota e nos barcos as personalidades intelectuais mais em evidência na vida baiana, entre as quais ele próprio pois Toninho é meu colega na Academia de Letras da Bahia e entre os egrégios não faz feio, herdou de Magalhães Neto, seu pai, a erudição e as letras — quanto aos epigramas, o pai era mestre na especialidade, os substituiu pelas frases de efeito, virulentas.

Aconteceu, é compreensível, uma correria de políticos e de notáveis: secretários de governo, desembargadores, cônegos, coronéis, nobreza e clero, classes armadas: todos queriam lugar nas embarcações, Carlos só faltou endoidar, os penetras chegavam de retrato em punho, diziam-se enviados pelo Governador. O painel, majestoso bem da cidade e do povo, enquanto esteve na sala de sessões foi atração para os habitantes e para os turistas em visitação.

Coube-me organizar a relação dos privilegiados com direito a figurar na procissão, sujeitei-a a Toninho, reunião a sós, examinou cada um dos nomes, acompanhava-os às vezes de um comentário ácido, num dente do siso esconde na boca gotas de vitríolo. Aqui e ali a constatação de um inimigo político no cais de embarque a meu convite, para Toninho um intrometido, gratifica-o com um adjetivo córneo mas não lhe discute o direito à procissão. Vetou apenas um nome de forma estrita: esse não, tenha paciência, é meu inimigo pessoal, fala mal de mim pelas esquinas, me trata de energúmeno.

Vetava Zitelman Oliva, desembarcava-o aos xingos, se pudesse o afogaria nas imediações de Itaparica. Zitelman, diretor de jornal, diretor de banco, membro do Tribunal de Contas e da Academia de Letras, articulista, de presença marcante na vida cultural, como ignorá-lo, deixá-lo em terra a chuchar o dedo?

Impossível ignorar o que existe e acontece, contestei o veto. Se Zitelman não figurar no cortejo do Senhor dos Navegantes não será ele a ficar malvisto, será Antônio Carlos, o governador: retirou Zitelman da procissão porque não gosta dele, só é intelectual de barco, a vela ou a motor, quem é amigo do chefão, aos desafetos demite da cultura, e por aí fui, argumentando, Toninho só ouvindo, por fim deu a mão à palmatória:

— Tu tens razão, não sou mesquinho, dizem-me vingativo sou apenas brioso, não engulo insultos. Deixe o sujeito no barco tomara que o barco vire e ele se afogue.

Assim Zitelman embarcou e acompanhou a procissão, o barco não virou, ele não se afogou, desapareceu como todos nós, os outros passageiros, inclusive Antônio Carlos, quando o fogo consumiu o painel de Carlos Bastos, deixando a cidade ainda mais pobre.

Vamos mudar a Bahia, esse o slogan da campanha de 1986 quando da eleição do sucessor de João Durval Carneiro na governadoria, disputavam-na as correntes que apoiavam o governador em exercício e o cacique Antônio Carlos, e as que faziam violenta oposição ao governador, mais ainda ao cacique. Numa e noutra formação se misturavam centro, esquerda e direita, o positivo e o negativo, o bom e o ruim, o inteligente e o burro, mas em hora de disputa política a burrice sempre predomina. Na oposição — vai ganhar as eleições, será governo — a mistura degenera em mixórdia espantosa, vai de homens de talento, cidadãos íntegros, Waldir Pires, o poeta Capinan, ao que existe de mais atrasado e reacionário. De mãos dadas, os decentes e os salafrários, em coro altissonante, prometem mudar a Bahia.

Ora, a verdade manda dizer e reconhecer: quem mudou a Bahia foi Antônio Carlos Magalhães. Primeiro a urbe, quando Prefeito. Acanhado burgo de província, em suas mãos de administrador virou a metrópole que aí está. Rasgou avenidas, assentou bairros, construiu esgotos, não existiam, obra impopular, não traz votos, realizou reformas, retirou a cidade do marasmo e a fez de novo e outra. Se melhor para viver, não sei, pois sou de natural refratário aos grandes centros, prezo as cidades pequenas, por isso gosto de Paris, conglomerado de cidadezinhas, todas elas fascinantes, mas essa é outra história.

Governador (por três vezes) mudou o Estado: de agrícola e retrógrado transformou-o em industrial e progressista, é preciso ser cego para não ver. Quem mudou a Bahia foi Antônio Carlos, todos sabem, inclusive os que o negam, combatem, querem acabar com ele: ferocidade e ódio. No político discutido, Toninho é a própria polêmica, estimo sobretudo duas coisas: o sentimento da Bahia que ele traz nas veias, entranhado sob a pele, e o amor à cultura que, já o disse, herdou do pai, Magalhães Neto (autor de um epigrama me gozando, pena não sabê-lo de memória para transcrevê-lo aqui).

Na relação dos artistas que deviam realizar painéis, colocar esculturas, quadros nas paredes, nos jardins, nas salas do Centro Administrativo, coloco o nome de Juarez Paraíso, professor da Escola de Belas-Artes, desenhista, gravador, pintor, agitador cultural: figura na lista de pleno direito por se tratar de um dos principais artistas brasileiros, nada fica a dever aos demais, é um mestre. Mas é igualmente personalidade difícil, esbarra, choca-se com outros artistas, inclusive é malvisto pelos donos do poder, pelos milicos naquele então no auge da repressão. Por afirmativo e malcriado, Juarez cultivava desafetos nas áreas do elogio mútuo, o feto não pesava na balança da decisão do Governador a respeito de seu nome, era o de menos. O de mais era a ação política, acusado de subversão Juarez acabara de sair de uma cadeia de meses. Na impossibilidade de ocultar-lhe a posição de militante de esquerda, ao propor-lhe o nome castiguei nos elogios ao artista: para mim dos primeiros da Bahia, eu o situo entre os principais.

— Não precisas exagerar na louvação — interrompeu-me o manda-chuva —, conheço e aprecio a obra de Juarez, quanto à cadeia não fui eu quem o prendeu, não discrimino, bem o sabes.

Ficou acertado de pedra e cal que Juarez faria o painel para a Secretaria da Agricultura. Magro Pedro Archanjo no filme de Nelson Pereira dos Santos — o do meu romance é gordo —, Juarez vivia na ocasião apertos de dinheiro como sempre viveu o personagem que encarnou, desejava montar um atelier, faltava-lhe verba, a encomenda do Estado chegava na hora certa, mão na roda. Na Escola de Belas-Artes Juarez misturava ensino e criação por lhe faltar espaço seu, exclusivo, onde cavar a madeira, misturar as tintas, malhar o ferro em brasa, o contrato prometido ia-lhe fornecer a grana para o terreno em Itapuã onde armar a tenda. Elaborou o projeto do painel, dos mais belos, diferente de todos os demais na matéria e na concepção, enviou-o à autoridade competente, a autoridade competente ao ver a assinatura perseguida engasgou-se, enfurnou o projeto na gaveta das rejeições, os milicos aplaudiriam a decisão — quem sabe pensava estar prestando um favor a Toninho nem sempre atento a tais detalhes. Os contratos iam sendo assinados com a rapidez exigida por Antônio Carlos para gáudio dos artistas que se punham ao trabalho, na Secretaria de Planejamento já se podiam admirar a matriz de Calasans Neto, no painel em madeira a cidade da Bahia, e a escultura de Mário Cravo, A tentação de Santo Antônio, resgatada do abandono à chuva e ao tempo no jardim do atelier. Carybé trabalhava a parede da Secretaria de Finanças, Hansen Bahia a do quartel da Briosa Floriano a do prédio da Secretaria de Energia, Transporte e Comunicação, só o contrato de Juarez não se estabelecia. Pela manhã e pela tarde o artista ia à repartição saber da encagaçada autoridade competente a decisão sobre o contrato, volte amanhã lhe dizia a secretária ocupada em pintar as unhas, o doutor não está. Juarez foi se enchendo se encheu, dispôs-se a mandar recado ao diretor pela moça das unhas cor de lacre: diga a ele para enfiar o contrato no rabo, não volto mais aqui, mas ao chegar ao local do crime deparou com o fulano em vias de se esconder, não houve tempo, Juarez deu-lhe dois gritos. O cara se ofendeu, meteu-se em brios: já que tanto quer saber lhe digo que o Governador não gostou de seu projeto e o recusou, fez mais, riscou seu nome da lista, até logo, passe bem.

Juarez apareceu-me na maior frustração à porta da casa do Rio Vermelho, não quis entrar, não queria incomodar, não era de incomodar. Queria apenas me agradecer o esforço feito para lhe obter a encomenda do painel, tudo fora por água abaixo inclusive o sonho do atelier, o diretor acabara de lhe informar da recusa do Governador, não gostara do projeto e recusava trabalho a artista contestatário, saíra da lista do Centro por estar na lista negra dos gorilas. Não sendo de emprenhar pelos ouvidos, resolvi tirar a coisa a limpo:

— Antônio Carlos boicotou teu nome? Não acredito.

Obriguei Juarez a entrar e a sentar-se, Eunice foi buscar-lhe um cafezinho, liguei o telefone para Ondina, pedi para falar com Antônio Carlos, mandaram-me esperar, ouvi-lhe a voz e a pilhéria habitual, encurtei conversa, perguntei-lhe o que achara de ruim no projeto de Juarez e por que mudara de opinião sobre o artista. Que história é essa de projeto? — pediu explicação, expliquei: o fulano lá do Centro disse que recusaste o projeto e riscaste da lista o nome de Juarez. Toninho tem pavio curto:

— Não vi o projeto, pensava que ainda não o havia terminado, não cortei o nome de ninguém, são esses cagões que se borram de medo, não se atrevem a assinar contrato com alguém que esteve preso. Um bando de capados, é o que mais tem. Diga ao Juarez que esteja hoje às quatorze horas — eram dez da manhã — no Centro, sem falta, para assinar o contrato. Se houver qualquer dificuldade que ele me telefone.

Não houve dificuldade, os cagões tinham mais medo de Antônio Carlos do que do SNI*, assinaram. Toninho pode ter defeitos, todos temos, mas não é homem de se encagaçar. Bem haja, como dizia na terrinha o mondrongo seu avô, lá dele.

*Serviço Nacional de Informações, uma das várias polícias políticas.

 

 

Bahia, 1966.

Giovanni

 

Era manhãzinha, apressados Mirabeau e eu saltamos do carro, entramos na clínica, no quarto Jacy* e o médico, aproximamo-nos da cama, o olhar de Giovanni nos localiza, ardente, logo a luz foge-lhe da retina, esperara nossa chegada para morrer.

*Jacy, mulher de Giovanni Guimarães.

 

Amigos desde a infância, nos conhecêramos no Colégio Antônio Vieira dos padres jesuítas, nos começos dos anos vinte, juntos havíamos convivido e militado: nas redações, na Aliança Nacional Libertadora, no Partido — membros Giovanni e eu, Mirabeau simpatizante — nas pistas de dança do Tabaris, nas mesas de jogo do Palace, nas casas e nos seios das putas, juntos os três e mais alguns fiéis da amizade, Vadinho entre eles. Giovanni esperara que nós chegássemos para morrer, nós lhe trazíamos a vida inteira, a baderna, a gargalhada, o bom humor contagiante, o deboche, a lealdade, a decência e a ternura: o boêmio inveterado fizera-se pai de família tranqüilo. Na hora da morte, ao pé do leito de Giovanni Guimarães, nosso parceiro, nosso chapa, nosso companheiro e camarada, nosso irmão mabaça, Mirabeau e eu depositamos a alegria de viver. O dia que começa já não será igual ao de ontem quando na porta do edifício o despedimos, ia passar o fim da semana na fazenda — latifundiário explorador, lhe atiramos ao rosto, ele dobrou a gargalhada, a sua — de lá retornou na coragem e nos braços de Jacy, o coração ferido, esperou que chegássemos para morrer.

 

 

Paris, 1990.

As medalhinhas

 

Napoleão Sabóia, amigo leal e perigoso — e como! —, correspondente de imprensa em Paris, invade a mansarda do Quai des Celestins, na mão o livro de Sylvíe Pierre sobre Glauber Rocha, recita a dedicatória da autora: A Napoleão qui partage avec moi le secret d'une étrange décoration..., rosna entre dentes: os filhos da puta... Estando por dentro do segredo, vou torná-lo público para que se saiba e se avalie a prática das pequenezas nos gabinetes presidenciais ao término dos mandatos.

No exercício da Presidência da República, o escritor José Sarney fez duas visitas à França: convidado para os festejos do bicentenário da Revolução Francesa e de passagem para Moscou. Numa e noutra ocasião condecorou com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul personalidades eminentes da vida francesa ligadas ao Brasil e intelectuais* que nas universidades, nas editoras, nos meios de comunicação se batem pela divulgação da cultura brasileira, amigos de nosso país e de nossa gente, pessoas a quem muito devemos — pela primeira vez um Presidente lhes agradeceu de público a dedicação.

*Foram agraciados, entre outros, nas duas primeiras listas: os franceses Maurice Druon, Jean d'Ormesson, Claude Lévi-Strauss, Georges Raillard, Georges Boisvert, Alain Toureine, Guy Sorman, Mario Carelli, Alice Raillard, Nicole Zand, Jacques Chancel, Francis Combe, Anny-Claude Basset, Anita Andres Clemens, a italiana Luciana Stegagno Picchio, o haitiano René Depestre, o grego Georges Moustaki.

 

Vez por outra Napoleão aparece na hora do jantar para a sopa de dona Zélia, é recebido com alvoroço, seu riso descontrai, passamos em revista Oropa, França e Bahia. Foi assim que, ao fim do governo Sarney, comentou conosco entre o gole de vinho e o bocado de pão com queijo a ausência entre os condecorados de figuras igualmente merecedoras, esquecidas ao azar dos alvitres, Zélia e eu concordamos, acrescentamos nomes aos lembrados por Napô. Da conversa nasceu a sugestão, transmitida ao Presidente e por ele aceita, de sanar a injustiça promovendo uma nova leva de agraciados: deveriam receber a honraria — as medalhinhas, no pitoresco argot do jornalista — antes da mudança de governo. Assinado o decreto*, enviado ao Itamaraty e de lá à Embaixada do Brasil na França, deu lugar às providências para a entrega solene, solene e urgente, de medalhas e diplomas, Sarney deixaria o Planalto daí a alguns dias. O Embaixador João Hermes** entrou em ação, transmitiu ao Quai d'Orsay a decisão do Governo do Brasil e apressou-se a fazê-lo aos distinguidos, com a solicitude de quem comunica grata notícia. Eu soube do acontecido porque dois dos merecedores, Remy Kolpa Kopoul**, divulgador de nossa música na Europa, e Annik Thebia-Melsan, que morre de saudades do Brasil, me telefonaram para dizer como se sentiram felizes com a notícia de que iam receber a Ordem do Cruzeiro do Sul.

*Na última (e sabotada) lista, além dos nomes citados, ainda estavam Pierre Gervaiseau, Charles Trenet, Jean Sablon, Pierre Barouth, alguns mais.

**João Hermes Pereira de Araújo, diplomata.

***Remy Kolpa Kopoul, jornalista, crítico de música de Liberation.

 

Mais feliz ainda se sentiu Sylvie Pierre, a autora do livro sobre Glauber, sabe o cinema brasileiro de trás para diante e ainda mais: o Maire de Vincennes, cidade onde Sylvie mora, informado pelo Quai d'Orsay, promoveu un vin d'honneur en hommage a notre compatriote Sylvie Pierre qui vient d'être decorée par une grande nation étrangère, le Brésil, assim rezava o convite. Compareceu multidão de amigos, parabéns, felicitações, beijos, abraços, discursos e champanhe, telegrama de Jack Lang, Ministro da Cultura, tudo a que ela tinha direito, au grand complet.

Tudo menos a medalhinha, nunca a recebeu, jamais a Embaixada entregou as condecorações aos condecorados, o decreto assinado, remetido e divulgado virou pó de traque, fumaça de bufa — assunto desagradável, mesquinharias de palacianos quando o Presidente arruma as malas para entregar a faixa. Esse o segredo compartilhado por Sylvie e Napoleão, ela o conduz com o bom humor que é de seu feitio, ele safado da vida, não engoliu a salafrarice, quando se refere ao sumiço das medalhinhas arrenega pestes.

 

 

Pequim, 1957.

Ting ling

 

Aproxima-se o fim de nossa estada na China, desembarcáramos, Pablo e eu, na ilusão do discurso de Mao sobre as mil flores que a seu convite deviam se abrir ao sol do dia, constatamos que ao contrário os horizontes se fechavam. Um figurão do pecê da URSS me dirá em Moscou, dias depois, que o discurso de Mao não passara de uma cilada: os adversários da ideologia dominante foram na conversa, botaram as cabeças para fora, ficara mais fácil cortá-las. Como acreditar em tal interpretação? — Tanta coisa difícil de acreditar-se, verdades impossíveis.

As sombras descem sobre nós, encobrem os amigos, onde estão eles que sumiram, pergunta Pablo, a voz embargada. Emi Siao foi o primeiro a sumir, logo chegou a vez de Ai-Ching, os dois poetas do regime, Siao e Mao nasceram na mesma aldeia, Emi escrevera a biografia do dirigente máximo. Por fim Ting Ling deixou de aparecer, não veio terminar o diálogo sobre os problemas da narrativa em que nos empenhávamos. São as antevésperas do terror denominado Revolução Cultural, mal denominado — houve no ocidente quem jurasse por Jiang Qing*, eu já estava fora do circuito, curado do stalinismo, imunizado aos vírus dos radicalismos. Ting Ling era a mais eminente personalidade da ficção chinesa, seus romances, clássicos da literatura revolucionária estavam traduzidos em dezenas de línguas, eu mesmo fiz traduzir e publiquei um deles, Sol sobre o rio Sang Kan, na Coleção Romances do Povo. A escritora participara da Grande Marcha ao lado de Mao, de toda a guerra de libertação, o povo a amava, onde quer que chegasse era cercada de carinho, posso dar testemunho. A Revolução Cultural assassinou dirigentes da categoria de Li Shao Chi, que ocupava a Presidência da República, humilhou e degradou sábios da altura de Kuo-Mo-Jo, condenou à prisão e aos trabalhos mais duros e penosos poetas, romancistas, cantores, cineastas, os criadores de todas as categorias. A Ting Ling retiraram os títulos e os cargos, era presidente da União de Escritores Chineses, destituíram-na, condenaram-na a limpar as latrinas do prédio da União, faleceu executando essa tarefa. Emi morreu apenas posto em liberdade após dezesseis anos de prisão, em 1986 quando voltei à China só encontrei Eva, recordamos os dias alegres de Praga e os dias tristes de Pequim. Ai-Ching veio ver-me apenas cheguei, trôpego, apoiado à bengala, quase cego, cumprira pena tão extensa quanto a de Emi, numa fazenda coletiva, proibido de escrever e publicar.

*Mulher de Mao Tsé Tung, chefe da Revolução Cultural.

 

No hotel de Pequim encontro o viúvo de Ting Ling, abre uma pasta de relíquias: fotos tiradas por Zélia em 1957, onde estamos, a romancista, Pablo e eu, fotocópias das cartas que escrevi à amiga, exemplar da edição brasileira do romance, conta-me como as coisas se passaram, nos olhos baços a luz de uma lágrima.

Era alegre, daquela alegria contida dos chineses, tímida, reservada, a maldade e a hipocrisia repugnavam-lhe, sabia da luta por tê-la vivido, mantinha a confiança, não queria descrer, igual a Anna Seghers. Quando lhe falei das dúvidas que me esmagavam o coração, ela me respondeu: tu duvidas só porque constatas errou injustiças? Ting Ling não duvidava. Ou não admitia duvidar? Me disse: se piso na lama, limpo os pés, sigo adiante.

Na última vez que nos vimos, ao despedir-se — amanhã prosseguiremos nossa conversa, sorriu triste, já sabia que a versa não teria seguimento —, Ting Ling voltou da porta para uma vez nos apertar a mão, a Pablo, a Matilde, a Zélia e a mim, não nos demos conta de que voltara para a despedida derradeira.

 

Os intelectuais da elite brasileira, os de esquerda e os de direita, irmãos gêmeos na pretensão e na tolice, uns quantos imitam os europeus, a maioria é fotocópia dos ianques, de brasileiros não têm quase nada: mesmo livresco e limitado, o saber os coloca acima da cidadania, sentem-se superiores, repudiam a criação popular viram a cara, tapam o nariz à rua, à praça, ao folclore, o povo fede e eles são uns senhoritos.

Tem razão Joãozinho Trinta que exerce a profissão brasileira por excelência, a de carnavalesco, os nossos intelectuais amam e desfrutam a miséria, capital para uso e abuso, rende juros políticos, dividendos. Do povo brasileiro só lhes interessam a miséria e a ignorância: ontem juravam pelos Estados Unidos os da direita, juravam pela União Soviética os da esquerda, vão acabar reduzidos ao Japão e a Cuba.

Existem exceções, confirmam a regra e honram a inteligência brasileira, nem toda ela inteligentzia. Vêem-me à boca no vício das citações nomes e títulos: Antônio Cândido*, Eduardo Portella, Antônio Houaiss, vão os três como exemplo mas aqui quero me referir a dois outros mestres brasileiros, venho de ler sobre eles nos jornais.

*Antônio Cândido, critico.

 

Declarações de Darcy Ribeiro** sobre educação, afirmações claras, corretas, ele sabe o que diz, sabe de ciência certa, pode ser gabola mas nunca será solene, sendo de fato douto não se farda de doutor, o Brasil é seu partido e o povo é o seu umbigo. Sei que leva a viseira no bolso para colocá-la quando as mesquinharias da política partidária o obrigam a usá-la mas, ao vesti-la, pisca o olho de malandro, a malandrice brasileira lhe é inata, não o deixa ser um a mais no meio do rebanho, Darcy, ovelha negra, mineiro e carioca, índio do mato na aparência ingênuo ganha todas para os espertos da cidade. Ousa afirmar e quase sempre acerta.

**Darcy Ribeiro, escritor e político.

 

Outro que pensa pela própria cabeça, livre inclusive de entulhos partidários, é Roberto Da Matta***, sabe a verdade do Brasil, os dois lados da cara, não escamoteia, não falsifica, exibe o ruim, o pequeno, o triste, o que não o impede de enaltecer o belo, o grande, o alegre. Expõe sua visão carnavalesca da realidade nacional, do caráter do povo, sua invencibilidade, ele sabe a origem, o percurso e o amanhã, não come no prato frito das ideologias os restos dos banquetes da Europa e dos States. Existem outros eu sei, infelizmente o número é pequeno, não preciso estender a lista das citações, todos nós sabemos quem no Brasil significa progresso, revolução, e quem é atraso, palavrório, reacionarismo em todas as latitudes das doutrinas à direita e à esquerda ou navegando entre dom Leonardo Boff, o da teologia da libertação, e o bispo dos integristas, aquele arcebispo do Rio Grande do Sul, não me lembro o nome, uma espécie de Dom Lefebvre do Brasil. Uns tantos são criadores de cultura, da cultura mestiça do Brasil, os outros repetem de oitiva o discurso importado, o bestialógico.

***Roberto Da Matta, sociólogo.

 

 

Moscou, 1948.

O incondicional

 

Francisco Ferreira, português, trabalha na Rádio de Moscou ao lado de Satva Brandão nas emissões de língua portuguesa, alimenta com ideologia e notícias alvissareiras os camaradas do Brasil e de Portugal, das colônias salazaristas da África. Jovem comunista, participou das Brigadas Internacionais na Guerra da Espanha, com a derrota foi evacuado para a União Soviética. Casou-se com espanhola, é competente radialista, pessoa simpática, cordial e expansiva, capaz de solidariedade humana, como deu provas na dedicação com que se devotou à irmã e à filha de Prestes, Lígia e Anita, exiladas na capital soviética Membro exemplar do partido português, seu sectarismo não tem limites, é total.

Pela primeira vez na URSS, procuro me informar sobre a vida, os costumes, as benesses e as mazelas.

— Ladrões? — O bom Ferreira se exalta: — Na pátria do socialismo, o roubo não existe. Ladrão é coisa do passado, do czarismo.

Na véspera, em armazém do GUM tentaram roubar a bolsa de Zélia por duas vezes, Vera Kuteichkova nos havia recomendo: todo cuidado é pouco, os ladrões pululam. Desmascaro o informante: não seja mentiroso, Chico. Mas o patriota Ferreira não dá o braço a torcer:

—Existem ladrões, sim, não vou esconder, são sobras da guerra. Em compensação são os ladrões mais hábeis do planeta. Na semana passada tomei um ônibus na hora do almoço, ia lotado, só em casa me dei conta: tinham roubado tudo que eu levava em cima de mim, cortaram-me o sobretudo com lâmina de barbear, trabalho tão bem feito, nem senti. Ladrões tão capazes você não vai encontrar em nenhuma parte. — No acento luso o orgulho soviético.

Comentamos as diferenças nos hábitos da vida sexual no ocidente capitalista e no leste socialista. Nosso Ferreira é peremptório:

— Essas degenerescências não existem na União Soviética. — Refere-se ao hábito do adultério: — As mulheres soviéticas são fiéis aos maridos, a moral proletária é rígida, você sabe. Uma aventura, um deslize, infidelidade conjugal — coisas raríssimas, de se contar nos dedos.

As informações que já possuo, de escritores e de operários, faço amigos por onde passo, contradizem a afirmação do incondicional Chico Ferreira. Mais uma vez o desmascaro com bonomia, pois na falsa informação do comuna português não vejo outras intenções além do desejo de salvaguardar a imagem da URSS, para ele sagrada: para ele e para mim, para milhões e milhões na vastidão do mundo.

— Não seja cínico, Chico. As mulheres daqui dão sem que seja necessário se pedir, quem bem sabe é você que vive em ambiente de rádio propício, favorável à putaria. Quer que eu lhe cite exemplos?

Quis exemplos, pois a pudicícia do regime não reduz o interesse dos camaradas pela vida alheia, pelo disse-que-disse, sobretudo quando o comadrismo se refere a desmandos das magnas figuras da intelectualidade. Conto-lhe algumas fofocas notórias, freira escuta, faz-me repetir, pede detalhes, deliciado. Quando me calo, ele confessa:

— Prevaricam, sim, e muito. Mas vou te dizer uma coisa, camarada: no mundo inteiro não existe mulher que na cama se compare com as mulheres soviéticas. Pelo menos na Espanha e em Portugal, o resto desconheço.

Francisco Ferreira não tem jeito, tudo na URSS é o melhor do mundo, negar verdade tão patente é fazer o jogo do imperialismo norte-americano. As melhores do mundo, meu bom Ferreira, as mulheres soviéticas, melhores que as gitanas de Sevilha ou as cachopas do Minho? Pobres mulheres soviéticas, vítimas do preconceito e da ignorância: desconhecem o Kama Sutra, condenadas ao leito de papai/mamãe, para variar só lhes resta o adultério e o exercem com constante assiduidade. Mudam de parceiro na mesa do banquete, mas o cardápio se repete igual: a batata cozida na água e sal de cada dia, ela por baixo, ele por cima.

 

 

Bahia, 1923.

Internato

 

Bicho Preguiça, Paulo, devido à voz arrastada, à mansidão; Macaco pela carantonha, o nariz achatado, a carapinha, a bocarra sempre a rir, dentes à mostra, Giovanni; Gato Preto, Maximiano, retaco, ágil, mulato de pele escura; eu era Piolho por ser vermelhinho e por ter sido campeão em 1923 da praga de piolhos, sempre a primeira das infalíveis epidemias anuais; seguiam-se a catapora, o sarampo, a papeira, nessa ordem. A papeira merecia cuidados especiais, constava que, mal medicada, descia para os ovos provocando orquite.

Na divisão dos menores no internato dos jesuítas, andávamos pelos onze anos de idade, éramos inseparáveis, prosseguimos fraternos pela vida afora. Filhos de fazendeiros os quatro: Paulo e eu provínhamos do eldorado do cacau, Giovanni dos criatórios de gado do sertão, Maxi viera das lonjuras de Goiás, dias e dias a cavalo. O Colégio Antônio Vieira, discriminatório além de caro, acolhia os filhos de ricos, de senhores, os padres projetavam influir sobre os futuros governantes.

Giovanni e Maxi eram os dois únicos alunos do Vieira considerados negros numa população de mais de duzentos internos: o pardo Giovanni, o cafuzo Maxi, os demais passávamos por brancos — a cor da pele e não o sangue ditava a classificação. Maxi manteve-se mulato até a morte, em Goiânia; Giovanni com o passar do tempo alvejou, ocorre muito na Bahia, a carapinha denunciadora se transformou em careca luzidia, ao subir na vida abandonou a mesa de bacará pela mesa de bridge no Clube Inglês, adotou o cachimbo, eu o atucanava para vê-lo desatar a gargalhada: não contente de virar branco, queres virar inglês, és um exagerado.

Faz-se necessário juntar um quinto membro à curriola: não tinha apelido, não precisava, o pai francófílo já o registrara Mirabeau. Externo, era nossa ligação com o mundo além das grades do internato. Para mim prisão insuportável, não cumpri o terceiro ano de pena, fugi no dia da inscrição quando meu tio me deixou na portaria: os jesuítas celebraram missa de deo gratia, no ano anterior para escândalo dos padres monarquistas declarara-me de público ateu e bolchevique, revelara-me contestatário e insubmisso. Logo eu em quem no primeiro ano eles haviam percebido vocação de noviço: a vida é engano e ilusão.

A vida não nos separou, a amizade iniciada nos bancos do Vieira superou as diferenças e as divergências. Seguimos amigos, cada um o seu caminho cumprindo sina: a carreira, a projeção, os obstáculos, as vitórias, a sujeição, as implicações, jamais nos faltou a solidariedade dos outros quatro, a mão estendida quando necessário.

O engenheiro Paulo Peltier de Queiroz, diretor da Divisão de Rios, Portos e Canais, voz mansa, a discrição e a modéstia, punha e dispunha no Ministério de Viação e Obras Públicas. Por mais de uma vez assumiu o cargo de Ministro na ausência dos titulares, mesmo sem assumi-lo era ele quem o exercia, mandava e desmandava, resolvia.

Casado em segundas núpcias com Lúcia, criatura adorável, senhora dona letrada, amiga devota, o casal acolhia em torno à mesa da mais requintada cozinha baiana, na casa da rua Leôncio Corrêa, sumidades das finanças, da política, da intelectualidade, de Juracy Magalhães a Otto Lara Resende, dos Monteiro de Carvalho a Antônio Vilaça, de Antônio Balbino a frei Leonardo Boff. Pai competente e extremoso, os filhos só lhe deram alegria, orgulhava-se da nora Márcia, poeta, apresentadora de tevê, quase tão consagrada quanto o sogro.

Maximiano da Mata Teixeira, de volta a Goiás com o canudo de bacharel em direito, fez carreira, jurista e magistrado, começou juiz em Goiás Velho, sua cidade natal, foi desembargador, presidente do Tribunal de Justiça, professor da Universidade. Apenas assumiram o poder, os gorilas o cassaram do Tribunal e da Universidade por esquerdista: além de esquerdista, patriota e homem decente. Formava com sua mulher Amália — também ela professora universitária, historiadora, botânica — par de namorados em arrulho e festa. Acampavam à beira dos rios, intimavam com os índios, Maxi era pescador, Amália pesquisava espécies raras de orquídeas, a uma delas deram seu nome de descobridora: Amaliae.

Na prática dos ritos de amizade, reuníamo-nos os cinco ao menos uma vez por ano. Com a placidez e a segurança de comandante em navegação de longo curso, Paulo dava ordens pelo telefone interurbano: vamos a Goiás visitar Maxi, passar uns dias com ele, se eu não podia ir, iam ele e Lúcia, os dois sozinhos. Deu-se o luxo de vir com ela comemorar aniversário em Paris, onde estávamos eu e Zélia, festejou conosco e com Norma e Renato Simões, também velhos amigos. A amizade comandava nossos passos.

Quando juntos os cinco no atelier de Mirabeau, recordávamos peripécias da vida no Vieira, Mirabeau ia buscar fotografias: a divisão dos menores, os congregados marianos, os premiados no dia da premiação. Retornávamos ao riso da infância, acusavam-me de desertor, pois capara o gato, caíra fora, eles tinham gramado missa e confessionário até o fim do curso, haviam esperado as faculdades de medicina, direito, engenharia para a boêmia e o esquerdismo. Relembrávamos os acontecidos, repetíamos as mesmas histórias cada vez mais divertidas.

No colégio Paulo era considerado gênio em matemática, eu era nulo, ainda o sou, nas provas escritas de aritmética, álgebra, geometria, abancava-me a seu lado para colar, copiava-lhe na íntegra as respostas aos quesitos. Numa prova de álgebra, Gato Preto sentado do outro lado de Paulo, puxou-lhe o paletó, rogou-lhe que lhe desse o resultado do primeiro problema, prestativo o sabichão começou a ditar-lhe a solução:

— Vamos supor que... Maxi perdeu a calma:

— Supor o quê, Preguiça, isso lá é hora de se supor, seu filho-da-puta?...

Terminávamos todos aprovados nas ciências matemáticas às custas do saber de Paulo Preguiça, nas análises de Os Lusíadas colávamos de Gato Preto, a par do predicado, do sujeito, do pronome, eu era bom de redação, ruim de gramática, piorei na redação, continuei péssimo na gramática, ainda hoje não lhe decorei as regras.

A cada ocasião em que nos reuníamos os cinco coniventes, os co-réus, vinha à baila o assunto do bilhete que Giovanni recebeu no dia mesmo em que ingressou no Colégio Antônio Vieira, as aulas já tinham começado: sem dúvida uma das mais curiosas mensagens de amor já redigidas em língua portuguesa.

Freqüentava as classes dos menores um colega que devido à idade habitava na divisão dos maiores, andava pelos quinze anos quando nenhum de nós passara dos doze. O pai explorava garimpos na zona diamantina, aconteceu-lhe a fortuna de repente, decidira mandar o filho para o melhor colégio da Bahia, o menino era um bitelo, sabia das coisas da vida, atrasado nos estudos, calado, macambúzio, um personagem: tinha fama de ser o maior fanchono do internato.

Vale recordar que nos anos vinte a condição de homossexual só era atribuída aos passivos — aquele dá, dizia-se em língua de acusação —, alcunhados de xibungos com desprezo, vítimas do preconceito, perseguidos, marginalizados, excrescências. Os ativos, os que comiam, eram olhados com admiração e inveja, considerados machões, não estavam sujeitos à crítica e à discriminação, os fanchonos.

A mando do professor, padre Garnier, fizemos lugar para o recém-chegado na ponta do banco onde nos sentávamos Paulo Preguiça, Gato Preto e eu, Piolho, Giovanni nos sorriu com simpatia. No banco atrás o veterano da divisão dos maiores batucou o olho de sedutor no novato, achou-o de apetite, revelava-se de mau gosto pois Giovanni era feio de doer, não por acaso logo o apelidamos de Macaco. Tocou-lhe o ombro, sorriu-lhe, piscou-lhe o olho, perguntou-lhe o nome. Inocente dos hábitos do taludo, no desejo de relacionar-se com o colega, Giovanni respondeu-lhe ao sorriso e à piscadela, disse chamar-se Giovanni Guimarães, às suas ordens. O grandão deixou o lápis cair, abaixou-se para apanhá-lo, como quem não quer nada passou a mão na bunda do calouro, Giovanni se sentiu o toque não lhe concedeu categoria de carícia, simples casualidade.

De novo o fanchono tocou o ombro do novato, passou-lhe um bilhete rabiscado a lápis num pedaço de papel rasgado do caderno de anotações, Giovanni o leu, só então se deu conta da realidade, compreendeu, vinha do sertão, também ele sabia algo da vida, fez um gesto com a mão como a dizer: espere e verá, o missivista tomou-o por mensagem positiva, assentimento, sorriu com todos os dentes, botou as mãos em cima da barriga, estirou as pernas, prestou atenção aos últimos momentos da aula de religião, o padre Garnier fechou o livro dos pecados e das penitências, bateu palmas com a mão anunciando os minutos de recreio, ajeitou a batina, deixou a sala.

Levantamo-nos todos em alvoroço, o grandalhão andou para Giovanni, o sorriso de galã prelibando o rabo do neófito, ia pousar-lhe no ombro a mão de proprietário, recebeu o soco na cara, tão inesperado que não reagiu de imediato. Quando gritou seu filho-da-puta e partiu para acabar com o ousado, Giovanni desferiu-lhe um ponta-pé nos culhões, o menino sertanejo calçava borzeguins ferrados por medida de economia no salto e na ponta, uma catapulta; o fanchono se dobrou em dois, soltou um vagido de demente, escapuliu porta afora segurando os quimbas.

Giovanni ganhou de vez e para sempre respeito, admiração e amizade, a classe em peso o aplaudiu. O recado que recebera passou de mão em mão, frase curta, mensagem ardente e delicada: Gió, peço-te encarecidamente o cu.

 

 

Kandi, 1957.

A jaca e os cocos verdes

 

Vestidos de turistas, Matilde e Pablo, Zélia e eu viajamos a ilha do Ceilão — já então país independente ainda não era Sri Lanka. Ao volante do carro arcaico, sobrado da colônia, o chofer, cinqüentão inglês, usa gravata e chapéu gelo, um senador da República. Não digo que nos olhe com desprezo, mas pouco falta.

Maratona de templos budistas, maometanos, brâmanes, campos de esculturas, os deuses terríveis do Oriente, Vishnu, Civa, a dos braços de serpentes, os Budas imensos, os elefantes: nos painéis, nas paredes de granito, nas fachadas de pedra, nos bronzes, exibem-se posições do Kama Sutra, acrobacias. Descalço, em Kandi, marcho quilômetros tentando esquivar-me das cusparadas vermelhas de bétel para chegar à entrada do Dala Maligawa, santuário onde se venera um dente de Buda, relíquia única segundo os monges que recolhem as espórtulas. Soube depois que na China existe outro dente de Buda, também único.

Obtive dois triunfos na excursão cingalesa, causei sensação, recolhi aplausos: quando rasguei a jaca e expus os bagos e quando dei a beber a água de cocos secos, vanglorio-me.

Os cocos secos, meia dúzia, estavam expostos na porta da quitanda perdida na mata, ao vê-la gritei alvíssaras, morríamos de sede:

— Água-de-coco, viva! Estamos salvos. Seria melhor de coco verde mas de coco seco também serve.

O senador desceu — ou elevou-se — do posto de motorista ao de tradutor, queríamos comprar os cocos para beber-lhes a água, os roceiros do Ceilão, gozadores iguais aos brasileiros, divertiram-se à grande: como iríamos fazer? Queriam ver. Tomado de escrúpulos, o dono do negócio, um velho de barbicha, explicou aos turistas, decerto bárbaros norte-americanos, que a água dos cocos se derramaria quando os partíssemos, se quiséssemos comer a polpa, saborosa, valia a pena comprá-los, pela água era jogar dinheiro fora. Óbvio!, acrescentou por conta própria o senador, esboçando um sorriso de escárnio. Ri do óbvio britânico e dos escrúpulos do quitandeiro pois já vira o prego na parede da vendola: deixem comigo.

Um prego caibral, a ponta apenas enfiada no adobe, foi fácil arrancá-lo. Com ele furei o olho cego de cada um dos cocos, bebemos a água com avidez, o senador aceitou participar: coube-lhe um coco inteiro, sorveu a água, comeu da polpa. Aplaudido Pela assistência, forneci de graça a tecnologia brasileira aos cingaleses.

Após visitar as ruínas do palácio do rei Kasyapa em Sigiriya, cansados da escalada do rochedo — cansados eles três, Zélia, Matilde, Pablo, eu não, não sou de escalar rochedos para ver ruínas —, mortos de fome os quatro, avistamos uma palhoça à sombra de palmeiras e nela à venda alguns legumes e uma jaca, exclamei eureca, grito de triunfo. Descemos do automóvel, aproximei-me, apalpei a fruta enorme e perfumada, jaca-mole no ponto de ser comida: sou conhecedor, papa-jaca desde a infância nas roças de cacau. Em frente à choupana alguns vadios matavam o tempo em conversa fiada, viram-me apalpar a casca da jaca, trocaram olhares de zombaria. Com a ajuda do senador, outra vez intérprete, perguntei o preço, paguei, a gozação dos nativos cresceu, fitavam-me com curiosidade, diziam-se coisas, riam, ansioso por saber que diabo eu iria fazer com aquele trambolho.

Para manter o suspense, antes de tomar da jaca, sentei-me num caixão vazio, pedi a Zélia o canivete do qual não se separa arranquei umas taliscas das folhas das palmeiras, comecei a transformá-las em palitos e os distribuí pela equipe do automóvel — sobraram alguns, coloquei-os sobre o pedaço de tábua que servia de balcão, sorri para os impacientes à espera, levantei-me.

Botei a jaca de pé sobre o caixão, com a mão esquerda segurei o cabo do bagunço, com a direita rasguei-a de alto a baixo como se faz na zona grapiúna — não é difícil —, expondo à luz os bagos amarelos: o mel escorria, dava água na boca. Arranquei o bagunço, com ele removi o visgo que cobria os bagos, tarefa delicada — experimente quem a imagina fácil —, quando vi a superfície limpa enfiei a talisca, retirei um bago e o saboreei, estava suculento, estalei a língua. Matilde, Zélia, Pablo, o senador por fim rendido às minhas habilidades regalaram-se, os aplausos dos nativos afagaram-me a vaidade. Sendo descomunal, a jaca permitia a generosidade, distribuí palitos, fiz sinal de convite aos presentes: aceitaram, desprezaram os palitos, foram de dedos aos bagos como se faz nas roças de cacau. Jaca mais gostosa não comi em minha vida, a salva de palmas lhe concedera sabor especial.

Gabei-me dos êxitos, não devo escamotear a derrota: vencidos pelo colonialismo britânico batemos em retirada, cabeças baixas, os narizes tapados com os dedos. A meta da primeira jornada era Kandi, capital do antigo reino do Ceilão, lá devíamos pernoitar e passar um dia. No desejo de aprofundar nosso conhecimento da vida e da gente do país, comunicamos ao senador a decisão de não tomar alojamento em hotel inglês, queríamos hospedaria nacional. O chofer tentou nos demover, iríamos cometer um erro, não nos convenceu, Pablo quase se zangou, fiz pé firme, as donas nos apoiaram: ficaríamos onde ficavam os cingaleses: abaixo os resquícios do colonialismo! O senador não discutiu, apenas não nos acompanharia, manteria seus hábitos. Ao chegar a Kandi parou diante de uma porta semi-aberta, dava entrada para terreno plantado de capim, sobradão ao fundo: o melhor hotel cingalês da cidade.

O senador não permitiu às senhoras descerem do carro, aconselhou que esperassem comodamente sentadas enquanto Pablo e eu iríamos reservar os aposentos. Tampouco retirou as bagagens do porta-malas nem se propôs a nos acompanhar até a recepção, com um gesto indicou-nos a porta. Após atravessá-la não avançamos mais de dois ou três passos. Recuamos diante da sujeira e da fedentina: o terreno servia de latrina, montes de bosta sobre o capim, poças de merda, um hóspede de cócoras defecava.

Cabisbaixos retornamos ao automóvel, o senador não tripudiou, tomou do volante em silêncio, nos conduziu à higiene inglesa, água com cloro, gosto de iodo, odor de desinfetante. Revalidamos nossa posição antiimperialista indo jantar frango ao carril em restaurante hindu, um tanto quanto sujo mas não demais.

 

 

Rio, 1967.

Os cadernos de estudante

 

Em 1967 compus com Guimarães Rosa e Antônio Olinto a comissão julgadora do Prêmio Walmap, prêmio dotado com vinte mil cruzeiros — ou vinte milhões, na escalada da inflação, quem sabe a verdade da moeda brasileira? Cruzeiro, cruzado, cruzeiro novo, centenas, milhares, milhões, hoje se conta em dólar — dez mil dólares para o primeiro colocado, cinco para o segundo, três para o terceiro, os últimos dois mil divididos em quatro prêmios de consolação. Ganhou os dez mil um romancista mineiro, nome para nós tão desconhecido que ao anunciar o resultado aos jornalistas dissemos tratar-se de um estreante. Informação inexata. Oswaldo França Júnior já havia publicado um Pequeno (e ótimo) romance, O viúvo, a crítica o desconhecera, o público não o lera, em verdade a carreira literária que o levaria a leitores de várias línguas começou com Jorge, um brasileiro, o livro premiado.

Havíamos combinado, no almoço do banqueiro que pagava o prêmio, ler os originais em nossas casas, não nos reunirmos a não ser com a leitura concluída, não discutir durante, não confrontar opiniões. Ao término da tarefa cada um de nós três poria no papel os títulos e os pseudônimos dos concorrentes de nossa preferência, nos reuniríamos no Rio, cotejaríamos as listas, discutiríamos, escolheríamos os premiados. Assim acertado, viajei para a Bahia, onde certa tarde um caminhão descarregou na porta da casa do Rio Vermelho uma tonelada de romances, se não chegavam a quinhentos, andavam perto. Comprei um caderno de estudante, iniciei a maratona, de nenhum li menos de cinqüenta páginas, foi de lascar. Nas páginas do caderno eu escrevi o título do livro, o pseudônimo do autor, o número de inscrição, seguia-se breve comentário, por vezes reduzido a uma ou duas palavras: porcaria, nada de interessante, ruim demais. Tivesse o original qualquer interesse eu o consignava no caderno.

Acordava cedo para cumprir a tarefa, enfrentava a montanha de originais: havia um de mil e trinta páginas, três de mais de oitocentas, uns retados, os autores. Certa manhã quando Zélia chegou para o café com inhame e aipim, com fruta-pão e cuscuz de mandioca — atochava-me de comida para dar-me as forças necessárias à faina do prêmio — eu lhe disse: hoje li um romance que me pareceu extraordinário, moderno, brasileiro, a vida transbordando, mostrei-lhe os originais de Jorge, um brasileiro, prossegui: como serei o único a gostar dele vou lutar para que lhe seja dado um dos pequenos prêmios. Exausto, farto de romances, cheguei ao fim da empreitada, escrevi minha relação, 21 títulos e pseudônimos, meti o caderno na mala, fui para o Rio. Reunimo-nos, as três vítimas, no gabinete de Olinto no Ministério da Viação, trocamos as listas, entreguei cópias da minha, recebi as dos outros dois.

Percorri com os olhos a lista de Rosa para ver se dela constava o meu livro preferido, lá estava ele, também na lista de Olinto. Exclamei: Rosa, estou feliz porque em tua lista está Jorge, um brasileiro. Ele abriu-se num sorriso:

— Se depender de meu voto ganhará o primeiro prêmio.

— Então já ganhou porque eu também voto nele, somos a maioria absoluta.

Nele também votou Antônio Olinto em cuja lista o romance de França Júnior estava colocado em igualdade de condições com o de Maria Alice Barroso — Um nome para matar — que abiscoitou o segundo prêmio. Romance escrito por homem macho, assim Rosa classificou o livro enquanto abríamos os envelopes com os nomes verdadeiros dos concorrentes, o homem macho era Maria Alice. O prêmio dos três mil coube a Otávio de Melo Alvarenga, a decisão dos primeiros lugares não custou trabalho, foi fácil, unanimidade rápida. Trabalho custou decidir sobre os quatro prêmios de quinhentos, os de consolação, depois de muita discussão concedidos a Paulo Jacob, romancista da Amazônia, hoje autor de obra vasta, rica de interesse, consagrada, a Benito Barreto, os mineiros levaram a metade dos prêmios, Benito já era romancista de renome, a Ricardo Dicke, um desconhecido, e a Paulo Rangel. No momento de se escolher o último premiado, eu disse a Rosa, que comandara a escolha dos laureados anteriores: Rosa, já demos quase todos os prêmios a romancistas que são de nosso gosto literário, vamos dar pelo menos um a quem não seja de nosso partido, Olinto concordou, fomos atrás de um romance intimista, decidimos pelo de Rangel.

Terminado o julgamento, abertos os envelopes, proclamados os prêmios na A.B.I., durante uns quantos dias Guimarães Rosa, ao sair pela manhã para o Itamaraty — era diretor da Divisão de Fronteiras, das fronteiras do romance no dizer de Miécio Tati —, detinha-se em nosso apartamento da Rodolfo Dantas. Entrava, tirava o paletó, sentava-se no sofá, ao ver Zélia de câmera em punho baixava os suspensórios, posava para a foto, ordenava-me: o caderninho, vamos comparar. Rosa tivera, ao iniciar a leitura dos originais, a mesma idéia que eu, anotara suas observações sobre cada livro num caderno de estudante pela ordem de inscrição. Armados com nossos cadernos, face a face, começávamos:

— Vamos ver o que te pareceu o 38...

— Quero saber do 173, que comentário fizeste...

Incrível a coincidência de opiniões, raríssimas as discordâncias. Era uma diversão, a manhã dos caderninhos. Bebericando o Cafezinho, Rosa comentou: descobri que sou mau-caráter, original com sacanagem, por pior que fosse, eu o li até o fim, tenho o espírito vicioso. Também no vicioso concordávamos, havia um manuscrito em dois volumes, somava setecentas páginas recheadas de Putaria, não tinha a qualidade de Henry Miller, ainda assim tracei K setecentas laudas, uma a uma, até o último orgasmo.

 

 

Bahia, 1956.

O magnífico

 

Os meninos da revista Mapa — Glauber Rocha, Fernando da Rocha Perez*, Calasans Neto, Sante Scaldaferri, Paulo Gil Soares* — decretam e promovem guerra sem quartel a Edgard Santos, reitor da Universidade Federal, a quem a cultura da Bahia tanto deve.

*Fernando da Rocha Perez, escritor.

**Paulo Gil Soares, cineasta.

 

Mapa expressa em suas páginas as modernas tendências da arte e da literatura, a poesia, a pintura, o cinema, a gravura, o teatro, destrói e propõe, influi mas, ah!, corre perigo, vai deixar de aparecer, não tem anunciantes, não há dinheiro para pagar papel e oficina, problemas que afligem e derrotam as publicações de vanguarda.

Um lambe-botas qualquer, é o que mais existe, vai correndo levar a Edgard Santos o que lhe parece ser a boa, a grata notícia: a revista da subversão não mais circulará, a gráfica já não lhe faz crédito, menos ainda o fornecedor de papel, os ataques à administração do Reitor estarão silenciados para sempre, viva, viva! Edgard Santos escuta, agradece a informação, manda pagar imediatamente o papel e a oficina, exige apenas dos credores sigilo sobre quem está assumindo as despesas, os meninos não devem saber: poderiam recusar, pior ainda poderiam entrar em crise de consciência devido aos ataques ao Reitor.

Risonho, na mesa do almoço comenta o episódio, estamos Odorico, Carlos Bastos e eu: essa revista Mapa é o que há de melhor na Universidade, já pensaram se desaparecesse agora o que iriam dizer de mim? Iriam me chamar de reacionário, intolerante, teriam razão. Enquanto eu for reitor a circulação da revista está garantida, só que os meninos não devem desconfiar.

Faz uma pausa, saboreia o acarajé, sabe da Universidade, dos professores e dos alunos, Magnífico Reitor:

— São meninos de talento, amanhã serão os mestres. Mas entre eles tem um moleque, um tal de Glauber, esse é gênio, vai deslumbrar o mundo.

 

 

Moscou, 1988.

Vaidade

 

Na porta do hotel, em Moscou, estou entrando no automóvel, se adianta um brasileiro, membro da comitiva de Sarney, primeiro Presidente da República a ter coragem de ir em visita oficial à URSS, me informa, alvoroçado:

—Você aparece no novo romance de Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, que acaba de sair na Itália.

Vaidade patriótica a do patrício, que dizer da que me invade? : a vaidade não é o meu defeito, sentimento pouco habitual, no entanto a notícia envolve-me num calor de vangloria, sorrio para Zélia. Devido, sem dúvida, à estima em que tenho o escritor italiano, não apenas o romancista, também o articulista ferino e divertido que amo ler.

Há tempos recomendei sem sucesso a um editor brasileiro a publicação em língua portuguesa de Pastiches et Postiches, título da tradução francesa em que li Diário Mínimo, delícia de livro. O editor desejava, isso sim, o novo romance, filé mignon, como me disse, e não volume de crônicas, carne de segunda para sua ambição de best-seller.

Mesmo os grandes editores se enganam. José Olympio não recusou, na década de trinta, traduzir e publicar... E o vento levou? Contando ninguém acredita.

 

 

Bahia, 1965.

O casamenteiro

 

Fomos padrinhos, Zélia e eu, do casamento de João Gilberto com Astrud, o casal se separou nos Estados Unidos para onde Joãozinho viajara a fim de participar de um show, obteve tamanho sucesso que ficou por lá anos a fio.

No dia de seu embarque, indo para o aeroporto passou por nosso apartamento para o abraço de despedida, vestia roupa leve, própria para o verão carioca, em Nova York a crueza do inverno era manchete nos jornais. Ao vê-lo tão desagasalhado retirei do guarda-roupa um sobretudo usado: vista-o ao desembarcar do avião senão vai morrer de frio, pegar pneumonia. Essa a minha contribuição para o êxito do cantor nos States, o sobretudo que o salvou da pneumonia dupla.

Contribuí também para seu casamento com Miúcha*: do primeiro matrimônio fui testemunha, no segundo funcionei de casamenteiro. Um dia recebi na Bahia telefonema de Joãozinho, ligava de Nova York, aflito como sempre, não mudara, continuava o mesmo:

*Miúcha, Heloísa Buarque de Holanda, cantora.

 

— Jorginho, você é muito amigo de Sérgio Buarque de Holanda, não é?

— Sou, sim, Joãozinho, por quê?

Figura das mais fascinantes da comparsaria intelectual, Sérgio concedeu-me o privilégio de sua intimidade, coloquei-o de personagem em O Capitão de Longo Curso, assim homenageio aqueles que mais estimo e prezo, pondo-os nas páginas de meus romances. Juntos, durante um congresso de literatura em Recife, fundamos na Igreja de São Pedro dos Clérigos a Benemérita e Venerável Ordem do Hipopótamo Azul, dedicada ao trato das donzelas, e criamos a teoria das baquianas, as balzaquianas quando baqueiam, baseada na agitação das literatas locais que cortejavam Eduardo Portella, o sedutor. Na época do telefonema o mestre historiador se vangloriava de ser o pai de Chico Buarque, compositor que estourara nas paradas de sucesso.

— Jorginho, estou apaixonado pela filha dele, a Miúcha, irmã do Chico. Miúcha anda por aqui, ela também gosta de mim, queremos nos casar mas temos medo que Sérgio se oponha, você sabe como é, deve ter ouvido horrores a meu respeito. Queria que você falasse com ele, pedisse a mão de Miúcha em casamento, para mim. Diga a ele que não sou tão ruim como dizem por aí.

Habituado a me envolver com a vida de Joãozinho, prometo interferir — depressa, daqui a uma hora telefono de novo para saber o resultado. Desligara agoniado, eu ainda procuro o número de Sérgio no caderno de telefones, Joãozinho volta a ligar: eu 'tava tão vexado que não mandei um beijo para Zelinha.. Vexado, Joãozinho.

Disco o número paulista, Amélia atende, trocamos gentilezas, desejo falar com vosso ilustre consorte, Sérgio vem ao telefone, sabendo que sou eu começa a imitar sotaque holandês, é de morrer de rir mas eu me ponho sério para lhe informar:

— Te telefono para pedir a mão de tua filha Miúcha em casamento.

— Hem? Que história é essa? — Abandona o acento batavo, coloca-se em posição de defesa, que peça estou querendo lhe pregar?

— Não é para mim, é para João Gilberto, estão apaixonados, querem se casar, ele pediu que te dissesse que não é tão ruim assim, tão má pessoa como consta por aí, não deves acreditar nas más línguas...

— Que me contas? É brincadeira ou falas a sério?

Falo a sério, relato a conversa de Joãozinho, telefonema em dólares de Nova York, repetida, esquecera o beijo para Zélia. Empolga-me a paixão dos dois cantores, coisa linda, faço o elogio do candidato a genro e o faço com amor. De Joãozinho sei o direito e o avesso, do menino de Juazeiro nas barrancas do São Francisco ao músico ainda desconhecido, lutando no Rio em dias de aperto, sou seu parceiro, fiz a letra do Lamento de Marta, composto para o filme de Alberto D'Aversa*. Quando solteiro, Joãozinho aparecia à noite no apartamento da Rodolfo Dantas, trazia o violão, ficava até a madrugada, cantando. Acontecia que Zélia e eu, cansados, íamos dormir, Joãozinho prosseguia em companhia de João Jorge, menino ainda, privilegiado. João Gilberto tocava, cantava, tendo como ouvintes apenas o moleque e o pássaro sofre: vivia solto na sala e assobiava as músicas que Joãozinho dedilhava ao violão.

*Alberto D'Aversa, diretor de teatro de origem italiana.

 

Sérgio escuta em silêncio minha lengalenga, a proclamação das virtudes de Joãozinho, gênio musical, amigo terno, pessoa amorável. No dia seguinte toma o avião para Nova York, vai estudar o assunto in locum, apaixona-se pelo candidato, só podia acontecer.

Para terminar, um post-scriptum: já levava João Gilberto vários anos residindo nos Estados Unidos quando um dia apareceu-me em casa um portador trazendo encomenda enviada pelo músico: um sobretudo novo em folha, soberbo, eu o usei longo tempo, ainda o tenho. Ou será que o dei a João Jorge, o ouvinte solitário, o privilegiado?

 

 

Rio de Janeiro, 1954.

Promoção

 

Na manhã de domingo trabalho na redação de um manifesto — quantos redigi? —, Janaína e João Jorge chegam do banho de mar em correria, trazem e exibem prospectos atirados de avião sobre Copacabana e Ipanema, inundam a praia e as ruas. Entregam-me, ficam à espera de minha reação, Janaína risonha, gozadora, João Jorge de cara fechada, pronto para a briga.

A campanha anticomunista ganha os céus, dois teco-tecos sobrevoam o bairro, a serviço da Liga Anticomunista, organização presidida pelo Almirante Pena Boto — a guerra contra os comunistas é um bom negócio, rende juros altos, como irão se arranjar agora os Pena Boto da vida, sem o ouro de Moscou para aplicar no medo dos ricalhaços e arrancar as verbas? Vão lastimar o fim da URSS, acabou-se o que era doce de coco, rapadura.

Militante de base — seria mesmo de base? Nunca freqüentei célula, sempre a cumprir tarefas da direção, especiais —, escritor conhecido, a Liga do Almirante oferece-me galardão de líder prerrogativas de chefe: o volante na mão de Janaína, João Jorge me entregara o dele, refere-se a este vosso criado: o texto e o desenho. Ressalta minha notoriedade, promove-me, já me esqueci dos xingos, os de sempre, traidor da Pátria, vendido a Moscou, capacho de Prestes, mas me lembro do desenho: balanço-me no regalo de uma rede, dois camaradas de Partido, amigos meus, o juiz Irineu Joffily, o advogado Letelba Rodrigues de Brito, empunham abanos, com eles fazem mais delicioso meu descanso, com a brisa dos leques combatem o calorão: regalias de paxá comunista, Pena Boto reclama cadeia e processo.

Leio e vejo, caio na gargalhada, Jana e Jucá riem comigo, mas Zélia se indigna: cães da reação, ratos de sarjeta, agentes do imperialismo, se ela encontrasse esse tal de Pena Boto lhe diria poucas e boas. Punho fechado, lhe mostraria quem é traidor da Pátria, seu canalha! Jana e Jucá recolhem o riso, empunham os tacapes, armam-se em guerra.

 

Do sangue derramado na luta pela posse da terra, adubo sem igual, não floresceram apenas as roças de cacau, os frutos de ouro da riqueza, floresceu também a cultura grapiúna, singular. A poesia e a ficção nasceram da conquista da mata, da colonização de sergipanos e árabes, da luta contra o feudalismo — os primeiros sindicatos rurais do Brasil surgiram nas lavras do cacau e a lei medieval foi rompida por moços socialistas, João Mangabeira exerceu a Prefeitura de Ilhéus.

Os coronéis do cacau queriam orgulhar-se de filhos doutores, advogados, médicos, engenheiros, lá fomos nós para os colégios da capital, os dos padres jesuítas, maristas, salesianos, os leigos, o Ginásio Ipiranga de Isaías Alves de Almeida*. Nos internatos aprendemos português e aritmética, nas roças, nos povoados, na gestação das cidades aprendemos a vida. Assim brotou a flor da poesia, Sosígenes Costa, Florisvaldo Matos, Teimo Padilha, amadureceu o fruto da ficção, Elvira Foeppel, Adonias Filho, James Amado, Sônia Coutinho, Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Euclides Neto, o árabe Jorge Medauar, o sergipano Marcos Santarrita, os doutores do cacau, filhos dos coronéis. Sou um deles, possuo um mérito, único: ter sido aquele que primeiro começou a contar a saga das terras grapiúnas.

*Isaías Alves de Almeida (1888/ 1968), educador.

 

 

Madri, 1986.

O ipsilone

 

Rafael Alberti* termina a leitura do texto afetuoso, honrou-me vindo dizer de sua estima da tribuna desta Semana do Autor dedicada a meu trabalho**, a sessão é suspensa, os leitores se aproximam, trazem livros, pedem autógrafos. Uma senhora de meia-idade, pimpona, maquiada, lábios no acinte do batom vermelho, sobe ao estrado, se apresenta, recorda:

*Rafael Alberti, poeta espanhol.

**Realizada em 1987.

 

— Eu lhe escrevi para a Bahia há vários anos querendo saber como era o ipsilone de Tieta, se lembra...

Lembro-me muito bem, em meio às cartas de leitores a dela chamara-me a atenção, mostrei-a à Zélia: veja esta carta, engraçada... Havia sido lançada a edição espanhola de Tieta do Agreste, pastora de cabras. Tieta, como sabe quem leu o livro, era disposta, não usava meias-palavras e não tinha meio-termo em sua atuação pública e privada, nos deleites de cama doutora de borla e capelo, sabia os abecês inteiros, o latino, o gótico, o cirílico, todos os demais, sem esquecer o Kama Sutra da primeira à última página. Entre os refinamentos, o romance refere o ipsilone, especialidade de Tieta: praticava o ipsilone simples quando devorada pelo desejo, em desvario de paixão recorria ao ipsilone duplo.

A leitora espanhola estende-se em percalços de vida e de Cama. Casada com marido pudibundo, limitara-se ao papai-e-mamãe por mais de quinze anos, só após a morte do cônjuge veio a conhecer o orgasmo pleno e o prazer do corpo, um primeiro amante iniciou-lhe a educação, outros a completaram, formou-se, fez mestrado e doutorado, igual a Tieta é honoris causa, sabe tudo na ponta da língua e do grelo, ai, só não sabe o ipsilone, jamais o praticou, deseja praticá-lo, o quanto antes Pede-me os detalhes do requinte. Sai dessa!, diz-me Zélia devolvendo a carta.

Respondo à leitora, esclareço: nada sei sobre o ipsilone não tendo tido a glória do leito de Tieta, nas conversas de amigo, se bem livres, marcadas pela franqueza, ela nunca me dera detalhes a respeito, apenas se referira ao deleite, ai que deleite quando executava o ipsilone, prendia para sempre escravo o beneficiário, o felizardo. Do ipsilone eu sabia apenas que Tieta o praticava, o romancista sabe uma porção do acontecido, não o todo.

Mistério da criação, os absurdos do ofício do romance, os imprevisíveis segredos dos personagens: por volta de 1938, descíamos o elevador da redação de Diretrizes, Samuel Wainer de repente me interpelou:

— Tem uma coisa que desejo te perguntar desde que li Mar Morto: por que diabo o velho Francisco não quis receber o irmão que apareceu depois de tantos anos, por que o expulsou, não está no livro. Por que foi, me diga.

— Não sei. O velho Francisco não me disse a razão, devia ser grave, também eu gostaria de saber.

A espanhola repimpona me estende o exemplar de Tieta para a dedicatória, eu lhe pergunto: y el ypicilone, ya lo sabe? Encontró quien lo ensenara a praticarlo? — Todavia no, pero inventé el doblevê, es la sensación de España. Recorda-me o nome para a dedicatória, não o reproduzo aqui por discrição. Tampouco ela, na confusão dos leitores em busca de autógrafo, me revelou como era o doblevô, por espanhol o imagino dramático, com certa crueldade católica.

 

 

Berlim, 1982.

Quelle solitude!

 

Em seu apartamento de Berlim Leste, Anna nos cerca, nos acarinha, nos envolve em amor: toma de nossas mãos, nos obriga a comer, a mesa cheia de gulodices, um desvario de alegria, também Zélia e eu estamos no limite da emoção.

Anna completou oitenta anos, na Alemanha do Leste saudaram-na como símbolo da literatura a serviço da classe operária, festejaram sobretudo a comunista de crença inabalável no Partido: a escritora, apesar da fidelidade comprovada da militante, não merece irrestrita confiança, é grande demais para ser escriba oficial. Anna passa a mão em nossas faces, nas de Zélia, nas minhas, olha-nos e ri, sabe que viemos apenas para vê-la, a mais ninguém, a nada mais. Risos e lágrimas misturados, atropelamos as palavras, demoramos em silêncio, tantos mortos vivem em nossos corações, falamos de Ilya, de Pablo, estão aqui conosco.

Nicole Zand* — os que têm interesse pela literatura sabem de quem falo, em sua rubrica Des Autres Mondes, em Le Monde, esbanja conhecimento, ressuma compreensão, transborda de interesse pelas letras dos países distantes e deserdados —, Nicole dá-nos conta da conversa que manteve em 1991 com Pierre Radvanyi, o filho de Anna, depoimento lancinante sobre os anos da guerra, o exílio, a viagem sem porto de destino. Pierre explica o comportamento político da autora de Transit, a fidelidade sem limites: elle se sentait une sorte d'obligation morale de ne pas se déjuger. Julgar é fácil, difícil é compreender.

*Nicole Zand, jornalista.

 

Naquele dia, em Berlim, Anna recusou-se a falar de literatura e de política, o tempo era curto para a festa da amizade. Recordou o Brasil, suas estâncias no Rio e na Bahia, a viagem de carro pelo interior, o faquir de Jequié, a inauguração do café no Largo do Machado, a casa do Rio Vermelho, o jardim onde escreveu, as crianças em seu derredor. Dia de exaltação, dia de amor, encontro de irmãos que não se viam há tanto tempo, sabiam que não se veriam mais. Quando chegou a hora do adeus, ela me disse:

— Eu acabara de te escrever uma carta, quando soube que tu vinhas, não a enviei, vou te entregar, quero que a leias.

Deixa-nos na sala, vai buscar a carta, volta, toca-nos a face, afago-lhe os cabelos, as mãos se soltam. No hotel abro o envelope, a escrita em tinta azul recobre as folhas do papel, notícias correntias, nada especial mas na primeira página Anna rabiscara com força, em tinta verde, na entrelinha do parágrafo: quelle solitude! Creio que somente a mim confiou o desabafo.

 

 

Sorrento, 1988.

O coadjuvante

 

Meu relacionamento com o cinema brasileiro vem dos tempos heróicos e, se bem em certos momentos tenha sido bastante intenso, não me dá direito a outro título senão o de vago coadjuvante. Não me animo sequer a falar em colaboração, tão anônima foi quase sempre minha presença na aventura.

Para marcar data mais precisa devo me reportar ao ano de 1933 quando Carmem Santos pagou-me a quantia de três contos de réis por uma opção de dois anos para a filmagem do romance Cacau, recém-publicado. Além de que os três contos de réis, um dinheirão na época, foram muito bem chegados, essa proposta de filmagem significou o início de minhas relações com o cinema brasileiro e de uma amizade que durou enquanto Carmem Santos viveu: poucas pessoas foram tão caras a meu coração. Carmem, tão bela quanto famosa, ainda haveria de adquirir opções sobre outros dois livros meus, Mar Morto e ABC de Castro Alves. Não conseguiu filmá-los, poucos projetos pôde ela levar a termo entre os muitos que concebeu e tentou realizar. Era no tempo da filmagem de Favela de meus amores: Carmem Santos, produtora, proprietária dos estúdios da Brasil Vita Filme, estrela máxima, esquerdista, simbolizava os anseios e os sonhos de todos nós e todos nós estávamos apaixonados por ela, ela por alguns, apenas.

Naqueles idos, no Brasil recém-chegado da Revolução de 30, a febre do cinema se alastrava e se afirmava, abrindo caminhos que iam da produção das chanchadas tão brasileiras até as realizações de Limite e de Barro Humano. Mário Peixoto e Humberto Mauro, os dois mestres daquele fascinante começo, somente muitos anos depois, com o advento do Cinema Novo, viriam a encontrar continuadores, enquanto a chanchada ainda espera que sejam retomados o espírito nacional e a graça popular que a caracterizaram e lhe proporcionaram o imenso sucesso de público que até hoje o cinema brasileiro não conseguiu reeditar, muito menos superar.

Tempo da Atlântida e da Cinédia, de tantos nomes inesquecíveis, de tantos filmes feitos na base do sacrifício, da dedicação, do amor pelo cinema. Tempo de Moacir Fenelon, de Alinor de Azevedo, de Adhemar Gonzaga, de Oscarito, de Zé Trindade, de Ankito, de Grande Otelo, de Gilda de Abreu, de Zezé Macedo, de Eliana e Adelaide Chiozo, de Raul Roulien, nosso homem em Hollywood, de Ruy Santos, de Chianca de Garcia e Fernando de Barros, de Lima Barreto e Araçary de Oliveira, de tantos e tantos outros, cito ao azar da memória falha, de certo esqueço nomes importantes. Muitos já se foram, entre eles tantos amigos meus: ao escrever estas recordações eu os revejo animados de entusiasmo, vibrantes de esperança, dispostos a assentar as bases definitivas da arte e da indústria cinematográficas no Brasil.

Quanto a mim, nesta época distante, participei, quase sempre anonimamente, da preparação de diversos filmes da Atlântida e de outras empresas — aquelas que nasciam e viviam o curto tempo de um projeto que nem sempre chegava ao fim. Escrevi, sozinho ou em colaboração com terceiros, diálogos e cenários de chanchadas e de pretensiosas produções; foram de minha autoria, por exemplo, os diálogos da chanchada Uma valsa para dançar — já não recordo se este era o título do filme ou apenas do tema musical, valsa inesquecível, e os da superprodução de Leitão de Barros sobre Castro Alves, roteiro de Joracy Camargo. Com Fernando de Barros, fraterno amigo, colaborei nos cenários e nos diálogos de várias chanchadas, recordo o título de uma delas: O Cavalo número 13. Nelas brilhavam o cameraman Georges Fanto que viera para o Brasil com Orson Welles e minha comadre Maria della Costa, estrelíssima. Estrelíssima ela, Maria Fernanda, Odete Lara, Ruth de Souza, Marisa Prado.

Escrevi e assinei o cenário de Estrela da manhã a pedido de Ruy Santos mas, durante a filmagem, o produtor e o diretor Codificaram por completo a história singela de pescadores que eu havia imaginado para ser vivida por Dorival Caymmi e Dulce Bressane. Trabalhei durante algumas semanas, a convite de Carmem Santos, com Mário Peixoto na elaboração do roteiro para um filme sobre Castro Alves, baseado no livro de minha autoria. O projeto não foi adiante, uma pena.

Depois veio a aventura da Vera Cruz, dela quase nada sei, a não ser o melancólico final quando fui encontrar Alberto Cavalcanti, grande cineasta, eminente brasileiro, arrasado, em São Bernardo do Campo, vítima do engodo e da salafrarice. Convenci-o a voltar para a Europa e participei, com Joris Ivens, do bom complô que o levou aos estádios da Wien-Filme para filmar o Puntila de Bertholt Brecht.

Depois, bem, depois são os tempos de agora, o Cinema Novo: Luiz Carlos Barreto, o patriarca, jovem patriarca, Nelson Pereira dos Santos, Caca Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Rui Guerra, Bruno Barreto, uma geração porreta. Com uma estrela no peito e a paixão do Brasil, Glauber comandou o pelotão, foi crucificado pelos patrulheiros em nome das ideologias caducas. O tempo do vago coadjuvante passou, estou aposentado.

Outro dia, durante o Festival de Cinema de Sorrento, os jornalistas me perguntaram que recomendação gostaria de fazer aos cineastas brasileiros, respondi:

— Devem pensar menos nos festivais, nos prêmios, no elogio mútuo e pensar mais no público, nos espectadores, na gente brasileira. De repente o dinheiro fácil da Embrafilme se acaba, quem irá bancar a produção cinematográfica se o filme não falar ao público, não levar os espectadores ao cinema?

 

 

Lisboa, 1987.

A lápide

 

Com Antônio Alçada almoçamos no restaurante do Manuel, no Parque Mayer, em mesa do canto para conversar em paz. Antônio relata a história de sua tia, de uma delas — de todas tem histórias a contar —, daquela que nos tempos dos comunistas avançando em marcha forçada para o poder, haviam dado início à requisição de propriedades privadas, mandou pintar os largos e extensos muros da quinta em Covilhã, despesa bruta: por que a faz, tia, quis saber o sobrinho, em zelo de herdeiro presuntivo.

— Quero que os comunistas quando chegarem para tomar a quinta encontrem tudo no melhor estado e digam: que senhora mais ajeitadinha...

Em meio ao riso provocado pelo conto, creio ouvir meu nome pronunciado em voz alta, presto atenção, é verdade, Zélia confirma. Um senhor bem trajado, de pé junto à mesa de centro, dirige-se aos presentes, sou o tema do discurso. O orador diz que estou almoçando no Manuel o que lhe parece, não sei bem por quê, feto significativo, digno de admiração e oratória, o acontecimento não deve passar em brancas nuvens, precisa ser fixado em lousa para que os pósteros saibam que naquela data o fulano aqui presente esteve no restaurante do Manuel empanturrando-se de caldo verde e sarrabulho, queijo fresco, pão saloio e meloa, era época de meloa, o gosto volta-me à boca. Sendo ele, orador, homem de ação, propõe que de imediato se recolham doações entre os que ali estão, imprudentes, almoçando sem esperar a facada, e que o total seja destinado à colocação na parede da casa de pasto de lápide comemorativa — a palavra lápide soa-me fúnebre, lembra mausoléu e cemitério, apavoro-me. A lápide, conclui o tribuno, o braço estendido em minha direção, conterá epígrafe referente ao frito (o feito?).

— Minha senhora vai percorrer as mesas para recolher os óbolos: lápide, óbolo, o que falta ainda para acabar comigo? Tenho pavor a elogio de corpo presente, estou morto de vergonha, desejo esconder-me sob a mesa, Zélia e Antônio Alçada se divertem às minhas custas.

Óbolos recolhidos, dinheiro contado pelo mandante do confisco, a recolha rendera o suficiente para pagar a lápide, declara ao revelar o total da coleta. Convoca voluntários para a redação da frase a ser gravada, apresentam-se dois senhores com vocação literária e uma cachopa de óculos, feiosa, redigem o necrológio, a de óculos declama o escrito, o orador retoma a palavra, dá por findos a tarefa e o discurso. De referência ao discurso busquei ser sucinto ao transcrevê-lo mas o orador não cultivava a síntese, não fazia economia da retórica, poucas vezes sofri vexame igual: soube depois tratar-se de advogado de renome e clientela, mandei-lhe um livro com autógrafo, afinal sua intenção era me homenagear.

Antônio Alçada pagou a conta, deixei que o fizesse, divertira-se, eu não: atravessei de cabeça baixa entre os clientes. Estava à nossa espera o motorista Francisco, chofer de Manuel Telles*, que me leva e traz do Estoril para Lisboa, gentileza do executivo nos ritos da amizade, almoçara no Manuel às custas de Alçada. Ao entrar no carro, pergunto-lhe:

*Manuel Telles, empresário português.

 

— Você também contribuiu?

— Morri em cem paus.

Restituo-lhe duzentos, concorro para a lápide. Anos depois, a par do caso, João Jorge arrasta-me ao restaurante do Manuel, lá está ela, a placa, posta na parede sobre a mesa onde sentáramos no canto da sala. Não é feia, faz vista, parece uma grande bandeja côncava.

 

 

Bahia, 1972.

Vinho Capelinha

 

Por princípio (ou por tolice, por preconceito?) não aceito fazer o garoto-propaganda, na tevê, na rádio, na imprensa, tenho recusado, perdido um dinheirão, sem falar em máquinas de escrever, geladeiras, televisões, etcetera e tal. Não posso dizer que nunca o fiz pois de graça prestei-me ao papel de bobo em duas ou três ocasiões — a pagamento posei de bermudas e chapéu de palha, a foto anda nas revistas, anunciando um cartão de crédito, mas os níqueis foram para a Fundação que tem meu nome, está escrito no contrato.

Em compensação em meus livros, sem a menor premedita-ção, com o objetivo de localizar o romance no tempo e no espaço, cito nomes de firmas, de bebidas, de restaurantes, por aí afora. Em troca, industriais agradecidos enviam-me presentes, sobretudo bebidas: conhaques, licores, aguardentes, o produto citado por personagem ou pelo autor, chegam-me garrafas a granel. Por uma única vez quis me aproveitar da circunstância, resultado negativo, apostei na popularidade de meus romances, dei-me mal. Passo a contar.

Nos antigamente pois hoje tornou-se requintada em matéria de queijos e de vinhos, nos tempos d'antanho, minha amiga Auta Rosa, senhora Calasans Neto, consumia nas refeições e oferecia aos hóspedes um vinho chamado Capelinha, não era lá essas coisas segundo me informou Fernando da Rocha Perez, abarrotado de sarapatel durante almoço em casa de Cala. De mim nada posso afirmar já que por prudência não bebo vinho nacional.

Labutava eu na escrita do romance Tereza Batista Cansada de Guerra, chegava ao fim da trabalheira, quando ouvi Auta se queixar do aumento do preço de seu vinho favorito. Não se preocupe, disse-lhe eu do alto de minha petulância, vou botar o nome de tua zurrapa em meu romance, os fabricantes me enviarão com largueza e constância dúzias de garrafas, podes contar com Capelinha para o resto de tua vida.

Essa a razão por que no casamento de Tereza Batista os convidados ingerem um único vinho, o Capelinha, bebem, estalam a língua, regalados, voltam a encher os copos. O ensaísta Cláudio Veiga*, erudito em literatura francesa e em vinhos em geral, ao falar-me do livro criticou a escolha, o caro amigo poderia ter referido beberagem melhor, considerou, citou duas ou três marcas rio-grandenses que não fazem feio junto às estrangeiras. Também Ildásio Tavares**, experto em vinhos nacionais, acusou-me de falta de conhecimento da matéria e de falta de consideração para com os convidados, alguns deles gente fina, João Ubaldo, Jeovah de Carvalho, ele próprio, Ildásio, dando-lhes a beber vinho de segunda quando se impunha no mínimo tinto chileno: afinal o noivo não era um pé-rapado. Quis saber se havia sido propaganda encomendada por agência, bem paga com certeza. Expliquei ao ensaísta e ao poeta o motivo da escolha, entenderam, Ildásio inquiriu: quantas caixas de vinho Capelinha eu já recebera e passara para a adega de Calá e Auta Rosa, decerto o carregamento de um caminhão.

*Cláudio Veiga, escritor, presidente da Academia de Letras da Bahia.

**Ildásio Tavares, escritor, dublê de poeta e romancista.

 

Fui obrigado a confessar a triste verdade, nem um caminhão de engradados nem sequer meia dúzia de garrafas de consolação, os proprietários da indústria não eram meus leitores e, se por acaso souberam da referência ao produto, consideraram que sendo casamento de gente de pouca distinção, sem fidalguia, sem notícia nas colunas sociais, a citação não promovia as vendas. Saí do casamento de cabeça baixa, um tanto constrangido.

A sorte é ter-se modificado a situação da família Calasans Neto, a clientela do artista cresceu e cresce, Deo gratia! Já o intitulam nababo da gravura, o gosto da senhora Rosa aprimorou-se, hoje só se bebe no solar de Itapuã néctares franceses e alemães, quando convidam Myriam e Carlos Fraga, Elcy e Jorge Lins Freire*, os anfitriões abrem champanhe Cristal — lá se vai de graça a propaganda. Quem sabe receberei umas garrafas.

*Jorge Lins Freire, político, Elcy, sua mulher.

 

 

Xi-An, 1986.

Mercado

 

Soterrados durante séculos, os exércitos de terracota, guerreiros montados em cavalos, homens e bestas em tamanho natural, quantos não sei, serão milhares, nem os chineses sabem pois não completaram ainda as escavações. Vem gente do mundo inteiro para ver, não pode existir nada de mais impressionante, só a muralha da China se compara ao desfile gigantesco Emudecemos, demoramos a ver para poder contar, Zélia fotografa o tempo todo.

Duas noites seguidas conseguimos sair do hotel às escondidas de nossos acompanhantes chineses, designados pelas autoridades do governo e do pecê para zelar pelo conforto e garantir a segurança dos hóspedes brasileiros: recolheram-se cedo, foram dormir, a visão dos exércitos é deslumbrante e tremenda.

Vagabundeamos pela cidade, deparamos com o mercado, misto de feira livre e circo pobre, a festa da comida popular, maravilhosa, a mais maravilhosa. A feitura do macarrão, espetáculo de malabarismo, o saltimbanco que suspende a massa no ar, a estende e a encomprida, é um prodígio. Jamais nenhum de nós comeu tão bem, mãos e beiços lambuzados.

Estamos a família toda, Zélia, João Jorge e Rízia, Paloma e Pedro, viajar com os meus para mim é o máximo, o que de melhor pode me acontecer. Demoramos horas de barraca em barraca, comemos tudo que nos propõem, é barato demais e por demais gostoso. Arroz de Cantão feito sob nossas vistas, ao escrever estas linhas sinto-lhe de novo o gosto: bom demais, fartamo-nos.

Na segunda noite um dos intérpretes nos viu sair, sorrateiro nos acompanhou de longe até o mercado, voltou correndo ao hotel para avisar ao chefe. Vieram todos, eram sete responsáveis, queriam porque queriam nos conduzir ao hospital para exames de saúde, a comida podia ter-nos feito mal, comida grosseira destinada ao estômago do povo: os ideólogos, os intelectuais em geral, aqui e lá, fazem porca idéia do povo. Tive de ser impositivo para evitar o pior, consegui.

Nossa estada em Xi-An foi abreviada, fugir ao controle tornou-se mais difícil. Ainda assim em Xangai escapamos após o jantar, varamos a noite nas ruas da cidade, apesar de não existir prostituição na China conforme nos garantiu o dirigente, vimos as putas no cais com os marinheiros.

 

 

Ilhéus, 1929.

Humilhação

 

Brigávamos no Bataclan, o cabaré pegava fogo, todas as noites na disputa do xodó das raparigas de casa posta pelos coronéis do cacau, de um lado a banda dos cometas, os caixeiros-viajantes, nação de chapéu-palheta, cabelo de topete à Epitácio Pessoa*, paletó almofadinha, bons de valsa e tango, do outro a banda dos estudantes em férias, frangotes a cantar de galo nas regalias de filhinhos de papai. Por um dá cá aquela palha a competência degenerava em conflito, pancadaria grossa. Certa noite deram um tiro no pé de Zequinha Adami: meu pai me acuda que me mataram! Por muitos anos exibi nas costas da mão direita os cortes de navalha do cometa dublê de capoeirista: no brilho da arma eu elevara a mão para defender o rosto.

*Presidente da República de 1916 a 1920.

 

Magro gabiru, magérrimo, usava bigodinho, o cabelo no lustre da brilhantina, recente dom-juan de pensão alegre, apaixonava-me, cometia versos livres, não sabia contar as sílabas nem rimar: teus lábios de carmim, teus seios de coral, teu ventre de bilha enluarada... as raparigas, românticas e carentes, adoravam. Nós, os estudantes, na petulância da adolescência, no arroto da valentia — em Ilhéus a coragem era a virtude maior, a principal — ameaçávamos a hegemonia dos caixeiros-viajantes que iam de cidade em cidade vendendo os estoques das firmas da capital, arrebatando corações, castigando xibius. Nas noites do Bataclan nos enfrentávamos, apanhei bastante.

Louco de jogar pedra e catar caco de vidro, numa das brigas encarei e desafiei um caixeiro-viajante de estatura desmedida, um golias, peito de armário, mãos descomunais, devia ser campeão de luta livre, encarei e desafiei: venha se é homem. Ao escutar o desaforo, me mediu, molecote atrevido, recém-desmamado, apertou-me a cabeça entre suas mãos, tenazes colocadas sobre minhas orelhas, sem esforço elevou-me no ar, aproximou meu rosto de sua carantonha, ordenou-me: vá pra casa, menino. Abriu as mãos, soltou-me, caí de bunda, ai a humilhação! Antes tivesse me dado um tiro (no pé).

 

 

Nova York, 1971.

Os racismos

 

Convidados de Harry Belafonte, participamos, Zélia e eu, do jantar anual da Academia de Artes e Letras Negras dos Estados Unidos, no Waldorf Astoria Hotel, em Nova York única ocasião em que tive de vestir smoking durante sete meses de estadia nos Estados Unidos.

Experiência emocionante, honraria alvissareira, somos apenas oito brancos (em meu caso, branco baiano) em meio aos mais expressivos representantes negros da cultura norte-americana em sua amplitude e em sua limitação, mais de quinhentos militantes anti-racistas levantados contra a discriminação que persegue e assassina. Viera de acontecer em Attica, prisão onde os negros cumprem pena, o massacre, o ódio desatado.

Surpresa de ouvir meu nome pronunciado na tribuna: Katherine Dunham, a dançarina, fala sobre o que viu e aprendeu no Brasil, a luta singular do povo brasileiro. Emociono-me de novo durante a homenagem prestada a Paul Robeson, amigo e companheiro, faço parte dos fundadores do Memorial que recorda sua presença no combate. O filho do cantor vem até a mesa dos Belafonte conversar comigo, lembramos Paul em Moscou, em Paris, em Praga, voz dos discriminados.

Apesar de saber da força e da violência da luta dos negros norte-americanos na defesa de seus direitos, espanta-me o radicalismo dos discursos. A hora é de intransigência e de revide, o massacre na prisão repercute na sala, a emoção atinge o auge quando a mãe dos Jackson, os irmãos assassinados em Attica, órfã de seus filhos, sobe à tribuna e denuncia.

Entendi como jamais que a violência conduz à violência, constato a cada dia, durante esses meses que, nos Estados Unidos, os racismos se entrechocam, o branco, o negro, o judeu, o latino, o grego, tantos mais. Existem norte-americanos anti-racistas, são milhões lutando contra o preconceito de raça e de sangue, mas a filosofia de vida ianque é racista, está presente a cada momento. Exatamente o contrário do Brasil onde existem, sem dúvida, centenas de milhares, talvez milhões de racistas, mas onde a filosofia de vida é anti-racista, o povo brasileiro é a negação do racismo. Digo o povo, não incluo as chamadas elites.

 

Acho difícil que alguém tenha escrito tantos prefácios, tantas apresentações para catálogos de artistas, tantas opiniões sobre filmes brasileiros, quanto este vosso criado às ordens, às ordens de todos os que me pedem um elogio. Se me pedem, por que negar que custa fazer um elogio, não sinto pejo em fazê-lo, é tão grande o prazer que se proporciona, brilham os olhos do favorecido, o sorriso nos lábios, a alegria, ele está de acordo com a opinião entusiasta, acha que entendemos de literatura, de pintura, de cinema. Se assim é, por que negar o pedido frito pelo companheiro de jornada?

Não sou crítico literário, Deus me livre e guarde, nem crítico de arte, muito menos de cinema, não me cabe responsabilidade, posso dizer e afirmar tudo quanto queira. Nos meus prefácios todo romance é obra-prima, os poemas marcam época, fazem escola, os quadros da exposição deslumbram pela cor e pela técnica, os filmes de nossos diretores são dignos de Eisenstein, de Fellini, de Orson Welles, de Podovkine. De Podovkine, não, deixemo-lo fora disso, fomos amigos, jantei com ele em casa de Simonov na véspera de sua morte, estava feliz com o último filme que realizara, pela manhã foi jogar tênis, caiu morto na quadra, a raquete na mão.

Pior é quando além do prefácio o jovem autor quer que lhe arranje editor, se eu não o conseguir insinua que, no medo da concorrência, saboto-lhe a estréia. Ou quando o pintor agradecido, envia-me um quadro de presente e exige vê-lo pendurado na parede da casa da rua Alagoinhas. Glauber mandava em mim, abusava, exigia uma frase de bom calibre para o primeiro filme ao rapazola: tem talento e ainda por cima é baiano, uma palavra definitiva para a película de sicrano, o nosso Godard, nada fica a dever ao francês, um pequeno artigo para consagrar de vez um amigo genial e incompreendido. De acordo, digo a Glauber, escreva você mesmo a frase, o artigo, a palavra consagradora, eu assino:

— Com uma condição, não ter que assistir ao filme.

Quem disse! Glauber escrevia, eu assinava, o diretor vinha me buscar para a projeção, Glauber escondia o riso ao me ver marchar Para o sacrifício.

 

 

Bahia, 1943.

O pedido de casamento

 

Durante o dia a agitação política, durante a noite a boêmia Wilson Lins e eu inseparáveis, unha e carne. A azáfama no jornal, O Imparcial que o coronel Franklin* comprara dos integralistas, transformara em órgão de combate ao Eixo nazi-fascista. A gazeta nos tempos dos galinhas-verdes fora dirigida por Mário Simões e Mário Monteiro, diretor de redação e diretor financeiro, mereceram epigrama de Pinheiro Viegas, nunca jamais ninguém usou a arma baiana do epigrama com tamanha exatidão, pontaria tão certeira, como fez Viegas: Mário Simões bis Monteiro / Remontaram o Imparcial / São quatro mãos no dinheiro / São quatro pés no jornal.

*Franklin Lins de Albuquerque (1881/1944), industrial e fazendeiro.

 

Após a virada da camisa, Wilson e seu irmão Teódulo dirigiram O Imparcial, Wilson na redação, Teódulo no caixa Wilson e eu redigíamos as matérias políticas, Edgard Curvelo punha acento e pronomes em nossas ousadias, compunham a redação Lafayete Coutinho, Acácio Ferreira e um sobrinho de Wilson, Napoleão de nome e de esperteza, foca para todos os serviços, possuía cabeça descomunal, fora de todas as medidas. Quando ele passava perto, o bom Waldomiro já nas alturas — começava a beber ao acordar do porre da véspera — batia-lhe um tapa na cabeçorra, explicava: penso no que minha irmã sofreu para parir esse macrocéfalo! Teódulo, sóbrio e responsável, buscava controlar nossos excessos, embrião do político que viria a ser, parlamentar exímio nas conversações de bastidores, acordos obtidos nos corredores do Congresso.

Pela tarde, rotina quase quotidiana, no Largo da Sé, na Praça Municipal, no Campo Grande, os comícios: por baixo do pano da guerra, do apoio às Nações Unidas, o veneno da denúncia do Estado Novo na oratória de sotaque e sutileza. Wilson e eu éramos habitues dos palanques antifascistas, com Edgard Mata, Giocondo Dias, Luiz Rogério, João Falcão, Fernando Santana, bons tempos aqueles, comandávamos a Bahia.

Pasquineiro temido, mestre dos mestres da crônica, de Ruy Espinheira Filho, Luiz Henrique, Armando de Oliveira, Ademar Gomes, Oleone Coelho Fontes, José Berbert, Guido Guerra, na imprensa baiana a crônica floresce, Wilson escrevia os editoriais do jornal, eu redigia um texto diário, assinado, Hora da Guerra, juntos, ele e eu, fazíamos metade da gazeta. O melhor da folha no entanto era um alto de página não maior de dez ou doze linhas, grifo em uma coluna sob o título de José, o Ingênuo. Inventáramos dois personagens que fizeram época: além do crédulo José, baseado em nós mesmos, e João, o Sabido, cópia de intelectualóide dublê de latifundiário, magnata dublê de comunista. Havia quem adquirisse o jornal somente para ler a boutade, a gozação, a farpa, a risada de José e João, o ingênuo não tão ingênuo, o sabido um tanto tolo.

Um dia, nos começos de 1943, redigimos, Wilson e eu, editorial que provocou escândalo e quase fecha O Imparcial: propúnhamos o estabelecimento de relações diplomáticas entre o Brasil e a União Soviética, se estávamos juntos nas trincheiras da guerra contra o Eixo, por que continuar na política de avestruz, a cabeça enfiada no chão para não enxergar a realidade, por que desconhecer a URSS, tê-la de inimigo quando éramos aliados? Acontece que éramos aliados, sim, porém continuávamos inimigos, o tabu persistia, a interdição, a censura: os fascistas no governo, muitos e poderosos, não admitiam que se pensasse, quanto mais reclamasse relações diplomáticas com o Império do Mal que, esperavam eles sem ousar dizer, Hitler estava em trem de destruir. O editorial desencadeou o fim do mundo, estabeleceu-se o juízo final, não fossem os bons ofícios de Jorge Calmon o jornal teria sido fechado. O coronel Franklin não soubera do editorial antes da publicação, não fora ouvido pelos temerários certamente temerosos de seu veto, não teve porém um segundo de vacilação, assumiu a responsabilidade, declarou alto e bom som: fui eu quem deu ordens para escrever. Era assim o mandatário do sertão do São Francisco.

Durante o dia a política, a guerra, a luta antifascista, à noite o burburinho. Noite alta quando deixávamos a redação, partidos para a esbórnia, o cabaré, o jogo, o tango arrabalero, as senhoras putas. Wilson, boêmio sem termo e sem medida, chefiava uma caterva de valdevinos: Mirandão, Vadinho, Giovanni, Clóvis Amorim, Mirabeau Sampaio. Ceávamos nos castelos, comia-se do bom e do melhor, bebia-se cachaça e cerveja, o uísque ainda não estava em moda. Tão inconsciente e incorrigível era Wilson a ponto de ter ido na noite do dia seguinte ao do casamento de Mirabeau com Norma buscar o companheiro de farra: está na hora das putas, Mirabeau, venha logo. Norma o expulsou:

— Fique sabendo que para Mirabeau só existe agora uma puta, sou eu, sua mulher, as outras ficam todas pra você.

Íamos às nacionais e às estrangeiras, as portenhas, xodós, paixões violentas, Wilson ameaçava a argentina com o revólver, filho do coronel Franklin tinha fama de truculento, sanguinário, era pomba sem fel, nunca puxara do gatilho, não sabia atirar. Ameaçava com o revólver e com o corte das mordomias, a fama da generosidade de Wilson corria no sul do continente, as cabronas vinham de Buenos Aires, de La Plata, de Montevidéu e Punta del Este atrás do perdulário. Cantavam no Tabaris, prima-donas na medida da aposentadoria, arriscavam fichas nas salas de jogo, nos educavam no sessenta-e-nove e em outros refinamentos da civilização do Rio da Prata.

Não nos restringíamos às profissionais, gastávamos as amadoras, numerosas, filhas-de-família, patriotas das Nações Unidas, combatentes da Bebecê, referência válida tanto para a cadeia inglesa de rádio que transmitia as últimas notícias do front quanto para a confraria de boca, boceta e eu, formada pelas meninas que davam de graça aos literatos e aos antifascistas, bravas combatentes da causa sagrada, nem por nacionais, jovens e de boa família, menos capazes que as preclaras argentinas e uruguaias — paraguaia conheci apenas uma, mestiça de índia guarani, valia dez castelhanas de sangue azul. Havia um séquito de judias, estudantes nas faculdades e na sinagoga: denunciávamos o anti-semitismo na tribuna dos comícios, nas colunas dos jornais pregávamos a comunhão das raças, flertávamos as meninas das tribos de Israel.

Nas areias de Mar Grande, em fins de semana, diante do oceano, despíamos Maria do Cabula, quase cunhada de Wilson por teúda e manteúda de Teódulo, comigo não tinha parentesco e Wilson não cultivava preconceitos de afinidades familiares. Fosse na praia, fosse no consultório de Mirabeau, Maria do Cabula se fazia acompanhar por uma curriola de amigas, cada qual mais cativante. Uma delas, funcionária pública, feia de cara, ótima de corpo, noiva e virgem, habitue do consultório de Mirabeau, gostava de tomar na bunda diante das janelas que davam para o mar e a cidade baixa, dali avistava a matriz do Banco onde o noivo labutava de escriturário. Na hora do enrabanço debruçava-se na janela, arrebitava as ancas, ao sentir a estrovenga penetrar, gritava em direção ao futuro esposo: 'tou tomando no cu, seu corno! Com o que atingia o orgasmo, o delírio, esqueci-lhe o nome, será que Wilson ainda se lembra?

Assim de luta política e devassidão se compunha nossa vida, defendíamos com coragem o direito do homem à liberdade, à democracia, e o fazíamos na descontração, não posávamos de heróis e não tínhamos ambições, nos divertíamos — e como! Wilson, Giovanni, Mirabeau, os três mosqueteiros, o quarto era eu, tínhamos dos mosqueteiros o desprendimento, a audácia e a fantasia, o amor à aventura.

Eu passava diariamente na redação às onze horas para estabelecer com Curvelo o espelho da edição, Wilson aparecia somente à tarde, não se levantava do leito rioplatense antes do meio-dia. Assim me surpreendi certa manhã ao encontrá-lo no jornal à minha espera, madrugara e estava nervoso. Levou-me ao gabinete onde o coronel Franklin costumava despachar assuntos da indústria de cera de carnaúba e dava instruções aos jagunços: de quando em quando um desatinado levava uma surra de facão na noite da falta de juízo — pisam nos calos do Coronel. Devo dizer que as surras eram raras e, conforme pude constatar e posso testemunhar, todas merecidas. O executor, um sertanejo magro e desdentado, de voz mansa, doce criatura, habitava na oficina do jornal, viera de Pilão Arcado, especialista em bater sem deixar marcas.

Fechada a porta, Wilson acendeu o cigano, nem apagam o outro posto no cinzeiro, me disse: tu vais me fazer um favor, um grande favor. Hoje não é o dia de teu almoço lá em casa? Todas as terças-feiras eu almoçava em casa do Coronel com ele e dona Sofia, sua esposa, compunha a mesa uma sobrinha, filha de irmã falecida do velho Franklin, sua pupila. Por vezes um dos filhos, Franklin Júnior, Teódulo ou Waldomiro, nos fazia companhia. O motivo do almoço semanal era tão-somente o trato da amizade, nenhum outro, o coronel me tinha em grande estima. Tão grande que, detestando o comunismo e me sabendo membro do pecê, ao se referir à minha posição política dizia-me russista por não querer me ofender classificando-me de comunista, era homem atento e delicado.

Um gigante na estatura e na conduta, chefe sertanejo de presença definitiva no São Francisco, comandante de jagunços senhor de Pilão Arcado, seus galões de coronel provinham da campanha em que se empenhara à frente de tropa de cangaceiros, os combates contra a coluna Prestes, ele a perseguira até vê-la cruzar a fronteira com a Bolívia. Não admitia que se falasse mal de Prestes em sua frente, combatia-lhe as teorias marxistas, tinha admiração pelo chefe militar. Tamanho homem, de fama tão considerável, rico e poderoso, junto à dona Sofia manso cordeiro. Roceiro analfabeto quando a conhecera professora primária, com ela se casara, fora ela quem lhe ensinara a ler e a escrever.

— É hoje, sim. Tu vais comparecer? O coronel e dona Sofia vão ficar contentes, reclamam sempre tua ausência.

— De jeito nenhum. Hoje tu vais me representar. — Wilson cheio de dedos, quase gaguejava.

Por fim se explicou. Ele e Anita, a sobrinha, a pupila do Coronel, estavam de namoro há algum tempo, queriam se casar, Wilson não se atrevia a falar do assunto ao Pai, o Coronel levava a peito seu compromisso de tutor: a felicidade da sobrinha, seu futuro, queria para ela noivo abastado e sério, homem de comportamento irrepreensível, capaz de lhe dar o lar que Anita merecia, o oposto de Wilson, Wilson o sabia. Temeroso da reação do Coronel recorria a meus préstimos, eu tinha prestígio, gozava da confiança do casal. Aceitei a prebenda, amigo é para as ocasiões difíceis, para desatar nó de marinheiro.

Na mesa do almoço — a comida sertaneja de se repetir e pedir mais — apenas o Coronel, dona Sofia e a própria Anita: espichava-me uns olhos cúmplices, mais corajosa que o namorado. Ao fim do rega-bofe anunciei ao casal que tinha assunto da maior seriedade a conversar. Da maior seriedade? Diante de minha afirmativa o Coronel deu ordens para que abrissem a sala de visitas, ampla, com piano de cauda, de marca americana Steinway, na família ninguém tocava, os móveis negros, pesados, de luxo, vestidos com capas de algodão para que não se estragassem. As salas de visitas dessas casas ricas só eram abertas em ocasiões solenes, para receber visitas importantes, para o trato de assuntos de relevância. A sala de visitas do Coronel Ramiro Bastos em Gabriela não é outra senão a do coronel Franklin, na Lapinha.

Sentamo-nos os três, a voz grave, anunciei: vim aqui, hoje, pedir a mão de vossa sobrinha Anita, vossa pupila, em casamento.

Sabendo-me casado, mesmo estando separado, o Coronel estremeceu nas bases, dona Sofia manteve-se serena: Hem? Em casamento? Que quer o amigo dizer? De imediato esclareci para acalmá-lo: não para mim, é claro, é para um amigo meu, faltando-lhe coragem para vir em pessoa pediu-me para lhes transmitir seu desejo de ser o esposo de Anita. Quem é o indivíduo? Que garantia nos dá de que fará Anita feliz? Tem condições de constituir e manter família? Para minha pupila não é qualquer um que serve.

Disse que o candidato, sendo filho de pais ricos, possuía de seu apenas emprego num jornal. Jornalista? — o Coronel torceu o nariz, dona Sofia nem tugia nem mugia. Ouça, Coronel, não quero lhe enganar, mentir a respeito do fulano só por ser meu amigo, o cara não é lá essas coisas, pelo menos no que se refere à moralidade. Diverti-me traçando um quadro negativo se bem veraz do dia-a-dia do candidato: boêmio, vivia na perdição da vida noturna, dado aos jogos de baralho, desatinado apostava em par de oito na mesa de pôquer, freqüentes casos com mulheres de deplorável condição, bebia, tendo sido integralista virará a casaca para a esquerda, não queria saber de outra profissão senão a de escrever, já publicara livro, ameaçava com outros, como partido eu próprio concordava que não era dos melhores. O rosto do Coronel se ensombrecera: diga-me o nome do atrevido! Vai dar ordens ao executor, ao habitante da oficina, pensei e ri por dentro.

— O indigitado chama-se Wilson Lins e é vosso filho.

Na aparência o Coronel não se abalou, ficou calado durante alguns segundos, o olhar perdido, decerto pesando conseqüências, estava em jogo a felicidade do filho e da sobrinha bem-amados, deve ter concluído que tal casamento poderia significar a salvação de Wilson. Voltou-se então para dona Sofia: sabias disso? Ela confessou que desconfiava. E Anita, o que é que ela pensa? Levantou-se, era um gigante, andou para a porta de comunicação, a mão no ferrolho de feno cinzelado, abriu a porta num repelão, chamando: Anita venha cá, Anita, O ouvido colado à fechadura, Anita desabou na sala:

— Padrinho me chamou?

Sou bom casamenteiro, de enlace mais feliz não sei, sei de uns poucos iguais na compreensão e no amor, o meu e de Zélia, por exemplo.

 

 

Fronteira Portugal x Espanha, 1976.

Diferenças

 

Vamos no rumo da Espanha, sob o sol do verão, a família toda. Comentamos as diferenças de caráter e costumes entre os dois povos da península, a melancolia portuguesa, a dramaticidade espanhola.

Lemos nos muros slogans ainda numerosos, restos da profusão com que a liberdade encheu as paredes nas cidades e nos campos após a Revolução dos Cravos. O sol raiará para todos, escrevera o anarquista, alguém, cético, rabiscou embaixo: E nos dias de chuva? Rimos, a polêmica é cortês: gente amorosa a lusitana gente.

Atravessamos a fronteira e logo adiante, numa aldeia, a declaração ocupa toda a murada de um terreno plantado de hortaliças: te odio, te odio y te ódio! A quem será dedicado tanto ódio, três vezes repetido e ponto de exclamação? Estamos na Espanha, a violência e o desforço substituem a cortesia: nos slogans as diferenças de caráter e de costumes.

 

 

Londres, 1969.

O caderno de desenhos

 

Quando Norma morreu, em 1968, estávamos em Londres — Nancy, Carybé, Zélia e eu —, hospedados em casa de Zora e Antônio Olinto. Ao receber a notícia Carybé foi à papelaria em frente, adquiriu um caderno de estudante, lápis variados, começou a desenhar página a página até a última, mais de cem desenhos, cenas de Londres, cenas da Bahia, no silêncio da sala a ausência da amiga, aquela que não se podia comparar com nenhuma outra. Carybé assinou e datou cada um dos desenhos, meteu o caderno num envelope acolchoado, tocou-se para o correio, despachou o pacote para Mirabeau àquela hora sofrendo as penas do inferno, órfão de Norma, esposa, mãe e companheira.

Passaram-se anos, um dia Mirabeau trocou quatro ou cinco desenhos do caderno por mesa e cadeiras holandesas encontradas na Galeria Renot. Na Galeria Renot, segundo Odorico Tavares, podia-se encontrar e adquirir fosse o que fosse: além de arte baiana, antigüidades, potes de caviar russo, vinhos franceses, o que se procurasse, inclusive modelos para pintores (ou amadores), mulatas autênticas, ali Di Cavalcanti se abastecia quando na cidade. Negócio feito, Renot colocou os desenhos em passes-par-tout, os enquadrou e expôs à venda. Carybé, ao vê-los pendurados na parede da galeria, dirigiu-se ao proprietário:

— Esses desenhos, Renot, o que quer dizer isso?

— Desenhos seus, eu os consegui, custaram-me caro.

— Meus? Engano. Não são meus coisa nenhuma.

— Como não são seus? Troquei-os com Mirabeau por...

— Com Mirabeau? Está explicado, são desenhos dele, como você sabe Mirabeau desenha muito bem e imita minha assinatura na perfeição. Apenas não são meus, não os coloque à venda como obra minha, eu seria obrigado a denunciar a fraude.

Tomado de indignação, Renot partiu para a casa de Mirabeau, clamando aos céus. Chegou aos berros, falando em roubo, Mirabeau o pôs porta afora:

— Fora daqui, depressa, antes que eu lhe dê um tiro, seu filho-da-puta. Chamar-me de ladrão! Ladrão é a puta que o pariu!

No vão da porta, rindo de morrer, Carybé: quem mandou negociar os meus desenhos?

 

 

Bahia, 1964.

La pazza

 

O físico marcado pela idade, andar vacilante, as costas curvas, Ungaretti* conserva a picardia da juventude, chega à sala pelo braço da namorada, estudante de literatura, recém-saída da adolescência. Com o mestre e a discípula viaja a avó da moça — para garantir-lhe a virgindade? Pelo jeito o empenho é necessário, em estado de poesia Ungaretti revolteia em torno à jovem, mão boba e galanteio, parecem personagens de um conto de Bocaccio, a Renascença italiana acontece na cidade mestiça da Bahia, por que penso em Botticelli?

*Giuseppe Ungaretti (1888/ 1970), poeta italiano.

 

Minhas relações de amizade com Ungaretti vêm do tempo de sua cátedra no Brasil, antes dos anos quarenta, ele acompanhara com interesse a literatura brasileira, estimulara o romance de trinta, de regresso à Europa não esqueceu a experiência do trópico.

Levo o poeta, a musa e a avó a comer no Mercado Modelo o antigo, o que pegou fogo. Ungaretti se regala: a brisa do mar a visão dos saveiros, a moqueca de siri mole, a pimenta-de-cheiro, o caldo de lambreta, afrodisíaco, dizem, digo-lhe. Ri o riso do Mediterrâneo, da Renascença, depravado: é do que ando preciso, me responde. Aponta a estudante, a viração agita-lhe os cabelos, suspende-lhe a saia leve, mostra no cais as coxas da ragazza. Ungaretti explica-me o enredo: é pazza, tanto rapaz no mundo, garanhões, a pazza os desdenha por um velho bardo. Eu me pergunto se será loucura ou se será sabedoria, a ítalo-paulista se dá ao luxo do poeta famosíssimo, a astúcia da poesia a fascina mais que os bíceps, não há robustez de galã que se compare à língua de mel e fogo de um bardo renascentista, à mão que desenha arabescos na bunda da pazza ao vento. O azeite-de-dendê escorre dos lábios da avó, um saveiro sob o sol cruza o Forte do Mar.

 

 

Bahia, 1991.

Me-ufanismo

 

Ocorre-me gabar essa ou aquela circunstância brasileira, busco razão, motivo seja qual for para repetir o título do livro do conde Afonso Celso, Porque me ufano de meu país. O me-ufanismo, pobre dele, hoje anda por baixo, não somente ignorado como posto em ridículo, tão triste se nos apresenta a realidade de miséria, fome e conseqüente violência, dos assassinatos quotidianos de crianças, da destruição da natureza, das epidemias — vamos parar por aqui, a relação além de trágica é infindável.

Por isso mesmo vale lembrar aquilo ou aquele que nos dá motivo de ufanismo, existem muitos, inúmeros, encobertos sob o lixo das mazelas. Vou buscar exemplo na televisão, tudo de péssimo se diz da televisão brasileira, pois bem: diante do vídeo no mesmo dia assisto a programas de Chico Anísio e de Jô Soares, inflo de orgulho patriótico. Não sei de televisão em qualquer parte do mundo, as cadeias mais cultas da Europa, as mais ricas dos Estados Unidos, que possua criadores da qualidade, da imaginação, da inventiva dos dois humoristas brasileiros, realmente mestres.

Jô Soares, Chico Anísio, únicos, não se parecem a nenhum outro em nenhuma parte, não imitam, não copiam, são criadores originais, cada um sua originalidade, são brasileiros, não são papel carbono dos gringos. Chico e Jô, cada qual pariu a população de um microcosmo, retrataram a unidade e a multiplicidade do Brasil, nas deficiências e nos acertos, na inteligência e no analfabetismo, na velhacaria e na ingenuidade, no muito que existe de melhor e naquilo que existe de pequeno e de mesquinho.

Encheria páginas escrevendo nomes de personagens, descrevendo tipos: os tiques, as falas, as singularidades da figura e do caráter, os habitantes numerosos, os de Chico City, os de Viva o Gordo, são o nosso povo. Os dois mestres humoristas esbanjam talento, compreensão e solidariedade, sinto-me me-ufanista, respiro inteligência e confiança, sou patrício de Chico e de Jô, posso esquecer o podre e o sujo.

 

 

Lisboa, 1987.

O homem e o robô

 

Intelectual, político de pensamento tão dogmático, preso às malhas da ideologia, entrincheirado na fidelidade leia-se obstinação, na irredutibilidade leia-se apego ao poder, Álvaro Cunhal, comunista histórico, irremovível, mereceu sempre de seus adversários, inclusive dos mais raivosos, o reconhecimento de qualidades positivas: coragem, honestidade, inteligência, firmeza. O que diz bem do cidadão.

Da pessoa humana revestida com a farda de secretário-geral, porém, pouco se sabe, comunista não tem vida privada: uma das leis da estupidez a fazer do ser de carne e sangue o robô de aço, como sabeis stalin significa aço.

Por ocasião das comemorações do centenário de nascimento do pai de Álvaro Cunhal, o advogado, homem de letras e pintor Avelino Cunhal, leio no Jornal de Letras, do Zé Carlos, página do filho dirigente comunista sobre o pai burguês, tenho grata surpresa: o pequeno texto só é pequeno no tamanho, um grande, belo e comovente texto, de exemplar dignidade. Álvaro Cunhal fala do pai com reconhecimento e saudade, louva-lhe a condição de homem livre, a generosidade, a honestidade, a isenção, os traços fundamentais do pensar, do caráter, do procedimento mas não se reduz ao louvor do cidadão, recorda-o com ternura e amor filiais refere-se à felicidade de ter tido um pai assim. Surpreso me alvoroço, corro a ler o texto para Zélia. Volta-me a recordação do jovem revolucionário português, fugido da cadeia, com quem conversei uma única vez, em Paris, no Hotel Saint-Michel, nos idos de 1948. Depois só tomara conhecimento do sectário, só presenciara o dogmático.

Eu sabia que o amor supera e vence a morte, assim aprendi ao contar a história de Dona Flor e seus dois maridos. O texto do camarada de repente descido do pedestal me ensinou que o amor supera e vence também a pequenez da vida, faz desabrochar a rosa em terra safara, brotar a nascente de água no deserto.

Despido da farda e da intransigência, liberto da impostura e da intrujice, o secretário-geral desce da estátua, deixa de exibir-se insensível robô do partido, fílho-da-seita, ei-lo de novo um ser humano, de carne e sangue, filho de pai e mãe.

 

 

Rio de Janeiro, 1934.

Erico

 

A indústria editorial moderna começou a existir no Brasil com Monteiro Lobato, como é sabido, na década de vinte. De início a seu lado, Othales Marcondes* levou avante os projetos de Lobato, fundou a Editora Nacional, tão importante para a edição de livros e para a literatura quanto a Editora José Olympio. Personalidade aliciante, José Olympio permanece como símbolo e referência, mas Othales, discreto, retraído, nada fica a lhe dever em importância.

*Othales Marcondes Ferreira, editor.

 

Colecionador de móveis antigos, reservado porém cordial e solidário, sabia cercar-se de colaboradores de alta qualidade, vale citar Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira — com Anísio foi de solidariedade a toda prova nas aflições de dezembro de 1935. Na década de trinta as relações públicas da Nacional estavam em mãos de Moacyr Deabreu, autor de um único livro mas de relacionamento e prestígio amplos no meio literário. Penso ter sido Moacyr quem inventou o prêmio instituído em 1934 por Othales para romances brasileiros inéditos, o livro premiado seria editado pela Nacional. A organização ficou a cargo do Boletim de Ariel, a revista de Gastão Cruls e Agripino Grieco.

Literato fanático, eu não desgrudava da redação do Boletim, colaborador permanente, cupincha dos diretores, a par de quanto se passava, do prêmio sabia tudo. Sabia quais os candidatos com possibilidades e como se distribuíam os votos do júri constituído por eminências: Gastão Cruls, Monteiro Lobato, Gilberto Amado, Agripino Grieco — Moacyr Deabreu representava a Editora. Gastão era voto de Marajá de Marques Rebelo, Grieco preferia Totônio Pacheco de João Alphonsus, Monteiro Lobato sustentava Música ao Longe de Erico Veríssimo.

Dei conta a Erico da situação, naquele então nos escrevíamos cartas semanais, vou cantar o voto do Gilberto para você, a resposta não tardou. Concorrente com um voto garantido e possibilidade de vitória, Erico me fez saber que entre os originais enviados ao concurso estava os de um romance intitulado Os Ratos, de autoria de médico gaúcho, naquele momento, por sinal, cumprindo pena de prisão, acusado de comunista — se eu pudesse fazer alguma coisa junto a Gilberto que o fizesse em favor de Dyonélio Machado, assim se chamava o fulano. Na opinião de Erico que conhecia o manuscrito o romance do desconhecido era obra-prima.

A carta despertou meu interesse pelo livro e pelo autor: comunista e preso, credenciais maiores. Na redação do Boletim os originais destinados à leitura de Gastão e de Grieco se encontravam num armário, procurei Os Ratos, encontrei, sentei-me a um canto, devorei o romance. Vibrei de entusiasmo. Sabedor dos votos já enviados e sabendo também que Moacyr não pensava envolver-se, apenas concordar com o decidido, telefonei para Gilberto, fui visitá-lo. Primos, cultivávamos boas relações, Gilberto dizia-se grato a meu pai que o ajudara a formar-se em direito.

Perguntei-lhe se já lera todos os livros apresentados e se tinha Candidato em quem votar. Não lera nenhum, nem pretendia ler, me declarou, ali estavam os originais virgens como haviam chegado, não tinha tempo a perder, votaria com Gastão Cruls em cujo gosto e parecer confiava. Contei-lhe então da carta de Erico: apesar de estar no páreo recomendava um desconhecido, o que me fizera ler os originais: romanção, novidade em matéria de ficção brasileira. Consegui interessar Gilberto: veja se o descobre aí — apontou o monte de originais ao lado de uma estante—, se encontrar me dê, vou ler, se achar que o Erico e você têm razão até posso votar nele. No dia seguinte me telefonou: livro extraordinário, muito mal escrito mas que romance! Voto nele.

O prêmio da Editora Nacional foi dividido entre quatro livros, Othales concordou em editar os quatro, os quatro obtiveram sucesso mas foi o romance de Dyonélio que sacudiu o palanque. Conto a história para que se saiba como era Erico Veríssimo, perdeu-se a forma de confrade igual à dele, já não se faz hoje em dia.

 

 

Bahia, 1985.

Júlio

 

Thomas Borge* me escreve de Manágua, pede-me um texto sobre Júlio Cortázar, para um livro dedicado ao escritor argentino, Nosotros te queremos, Júlio, dá-me pressa. Vou para a máquina de escrever com satisfação, tenho pelo homenageado admiração de confrade, estima de companheiro.

*Thomas Borge, político e escritor da Nicarágua.

 

Onde e como conheci Júlio Cortázar** não me lembro, sei, isso sim, da simpatia mútua e de umas tantas proezas que realizamos juntos. A última delas foi um programa de televisão, na Alemanha, denunciando os regimes militares em nossas pátrias da América Latina, os governos da tortura monstruosidade e vergonha de argentinos e brasileiros. Em seu apartamento de Paris acertávamos os ponteiros de nossos relógios na hora do combate à ditadura. Durante um tempo foi casado com nossa amiga Ugne Karvelis***. Falando de Júlio, Zélia costumava dizer que no mundo da literatura não existia figura mais bonita e cativante, Júlio sofria uma enfermidade rara, não envelhecia aos poucos como toda a gente, aos sessenta anos parecia não ter completado os trinta. Autor de obra literária que levou seus livros a leitores de um mundo inteiro, cidadão de militância e solidariedade, a luta foi seu quotidiano. De literatura e luta falei no texto que escrevi e enviei a Borge.

**Júlio Cortázar (1914/1984), escritor argentino.

***Ugne Karvelis, escritora francesa.

 

Poeta e ministro do governo sandinista, Borge acusa recepção, informa que a edição está um tanto atrasada. É natural que assim seja pois a promoção é projeto de poetas. Temo pelo futuro do governo sandinista tantos são os poetas que o compõem, a primeira-dama do país, Rosário Murilo, é poeta de qualidade, publicou coletâneas de poemas, o sectarismo não consegue eliminar a emoção, seu marido Daniel Ortega, presidente, também comete versos, não sei dizer se são bons ou maus, não tive ocasião de os ler. Bom poeta é Cardenal, outro ministro, creio que da cultura, padre da teologia da libertação, padre melancia para usar a expressão de Ibrahim Sued, não é de todo injusta: a batina de Cristo, o boné proletário de Lenine. Membro do júri do Prêmio Internacional Pablo Neruda — o prêmio se acabou junto com a União Soviética — com satisfação dei-lhe meu voto, sou leitor do poeta Cardenal.

Passa-se o tempo, recebo a visita de um amigo de São Paulo, Gilberto Mansur, diretor da revista Status: colaborador antigo, não tenho o artigo que ele reclama para o número de aniversário e não me sobra tempo para escrevê-lo. Gilberto anda pela casa, abre as gavetas, vasculha os papéis, depara com cópia da matéria sobre Cortázar. Pertence aos sandinistas, aviso, suspende os ombros, não quer saber leva-a consigo, é o que precisa para o número especial.

Na revista, aprecio o texto apresentado com aparato: foto de página inteira do mais belo escritor do mundo, opinião de Anny-Claude*, Misette discorda, para ela o mais belo é Jorge Semprun. Para Zélia nenhum se compara a Paul Eluard, esse sim era de fato belo, cada qual seu gosto, quanto a mim estou no páreo dos mais feios e mais deselegantes, acumulo. Releio o escrito, penso ter feito justiça ao escritor e ao combatente, sei que Júlio está hospitalizado, meto a revista num envelope, boto o envelope no correio endereçado para Paris, explico que escrevi o artigo para o livro da Nicarágua. Não tarda, recebo carta de Júlio, gostou do texto, agradece, fala da Nicarágua e da amizade.

*Anny-Claude Basset, aeromoça e ecologista.

 

Quatro dias após a alegria da carta leio nos jornais a notícia da morte de Júlio. Nosotros te queremos Júlio, o livro encomendado pelos sandinistas para homenagear o escritor argentino foi Publicado meses depois: coroa com as flores da saudade e do amor, colocada sobre a memória do mais bonito e cativante, do mais solidário escritor de nosso continente latino-americano, o sol se apaga no Rio Vermelho.

 

Ah, meu apego às coisas velhas, sofro críticas, recriminações. Zélia vem de me dizer: já é tempo de jogar no lixo esse par de chinelas, estão feias e inúteis, dificultam-te o andar. É verdade, reconheço, mas são tão cômodas, chinelas novas são desconfortáveis, apertam os dedos, entram mal no pé e, ademais, esse par foi presente de Misette que o trouxe de Cabo Frio ou foi de Angra dos Reis? Não consigo comover Zélia mas vou tapeando, vou enrolando, conservo as chinelas.

Tenho camisas que comprei na Índia no ano de cinqüenta e sete, já não as visto pois engordei e já não me cabem, ainda assim as guardo, quem sabe um dia emagrecerei, é duvidoso. Raramente uso gravatas, em troca dão-me muitas de presente, a maioria nem chego a utilizar, passo adiante, mas, quando sou obrigado a usar tal peça, uso sempre as mesmas, cinco ou seis que acho bonitas, combinam com qualquer roupa, penso, engano-me, sou o oposto do elegante. Existe, inclusive, uma colunista em Brasília que se escandaliza com as minhas gravatas, grita de público seu horror, tenho-a em alta estima. Por mais incrível que pareça possuo uma gravata — acho-a linda, em geral não acham — comprada quando o navio Atlantique veio ao Rio pela primeira vez, no ano de 1930, houve visitação, podia-se comprar nas butiques de bordo, na ocasião contei os trocados e a incorporei ao meu patrimônio, onde persiste.

Tenho centenas de objetos inúteis, não me servem para nada, não posso viver sem eles. Meu pai, um democrata, jamais criticava os hábitos alheios, por vezes não se continha, comentava com Lalu:

— Nunca vi ninguém botar tanto dinheiro fora em coisas inúteis como Jorge. Não herdou de mim, nem de ti, é engraçado, penso que herdou do Álvaro, que também é esbanjador. Só desejo que não comece a trocar os guarda-chuvas.

Referia-se a meu tio Álvaro Amado, seu irmão caçula, pobre e perdulário, jogador de pôquer, batoteiro, herói a imitar. Esbanjador, sem dúvida, dava-me notas de um mil-réis, tio Firmo* não passava de um cruzado, tio Fortunato**, outra figura singular, de um tostão furado, os três me ensinaram a intrepidez, a inconseqüência, a inventiva, coronéis do cacau no risco da vida e da morte. Meu tio Álvaro tinha hábitos que me deslumbravam, o dos guarda-chuvas referido por meu pai era um deles, eu o via sair com o guarda-chuva velho, esperava vê-lo de volta, o riso no canto da boca, o guarda-chuva novo em folha pendurado ao braço. Dia chuvoso, a prática repetia-se: tio Álvaro partia levando o objeto imprestável, onde chegasse — bar, restaurante, casa de amigos, casa de putas — colocava-o no porta-chapéus, ao retirar-se ali o deixava, escolhia em troca o de melhor qualidade e menos uso. Terei saído a ele, como temia o coronel João Amado?

*Firmo Ferreira Leal (1885/1964), irmão de Lalu.

**Fortunato Ferreira

 

Meu tio Álvaro Amado, tão grande figura, o mais fascinante personagem de minha infância, nunca ousei colocá-lo herói principal de um romance. Quando aparece é sempre em segundo plano: tão se mostrava, agia na discrição. Amava as coisas velhas, terno seu durava uma eternidade, saí a ele.

 

Rio de Janeiro, 1991.

Fardão

 

Envergo o fardão, há muito que não fecha, quando fui eleito* era esbelto beletrista, a barriga apenas despontava, hoje, trinta anos após, é aquela pança, uso o fardão como se fosse casaca, assim faziam Joaquim Nabuco e Alceu de Amoroso Lima, assim o faz Barbosa Lima Sobrinho, ínclitos exemplos.

*Eleito em 1961.

 

Há quanto tempo não o visto? Serviu-me quando participei da comitiva de Sarney na visita a Portugal**: Fernando Santana, João Conde, além de uma dúzia de Acadêmicos, em ridículas casacas de aluguel, pavoneio-me de fardão, alguma utilidade terminou por ter. Na Academia serviu-me raras vezes, avesso às sessões de gala fujo às solenidades, mal-educado não compareço à posse dos confrades. Essa é a segunda vez que nele me enfio para receber um colega, a primeira foi para dar as boas-vindas a Adonias Filho, amigos de infância nas roças de cacau, nas ruas de Ilhéus, adversários políticos desde a juventude, ele integralista, eu comunista, fraternos a vida inteira. De Dias Gomes sou amigo, amigo antes de tê-lo conhecido, pois seu irmão Guilherme foi meu colega na Academia dos Rebeldes, o atual Acadêmico usava calças curtas. Dessa vez recebo não um adversário e, sim, um correligionário da esquerda, a luta reforçou ainda mais nossa amizade; somos compadres, não carregamos preconceitos: Zélia e eu, ateus, batizamos a filha do outro ateu.

**Viagem a Portugal em 1986.

 

Quando ele me telefonou convidando-me para saudá-lo no dia da posse eu preveni com lealdade: estás cometendo um erro, compadre, sou incapaz de fazer a análise que tua obra merece e reclama. Porque não convidas um papa da crítica literária — tens dois na pequena bancada baiana, Afrânio Coutinho e Eduardo Portella e, nas fileiras da esquerda, nosso mestre Antônio Houaiss que pelo saber e pelas virtudes merecia ser baiano. Não aceitou meus argumentos, tive de envergar o fardão e mandar brasa.

Alegrou-me o coração fazer o elogio do dramaturgo, o do palco e o da televisão, criador de tantas figuras que reunidas são o povo brasileiro, louvar o cidadão cuja vida decorreu na luta por uma sociedade melhor, mais justa, mais digna para esse povo do qual é filho e pai ao mesmo tempo. A obra de Dias Gomes é uma dessas poucas que se incorporam à criação anônima da gente brasileira. Zé do Burro não é apenas personagem de peça de teatro, de filme de cinema, é símbolo e referência. Os heróis de suas peças deixaram de lhe pertencer, sua criação virou domínio público, bem de todos, patrimônio nosso. Glória maior não pode desejar um escritor.

Ressaltei em meu discurso a importância da dramaturgia televisiva. Sendo um de seus criadores, dos maiores, sem dúvida de todos o mais popular, com ela Alfredo presta serviço ao povo, fonte de sua inspiração, com a mesma lealdade e paixão com que o serve nas peças levadas à cena nos teatros. Apenas com a televisão alcançou um público imenso, pôde influir sobre milhões, ampliou as fronteiras de seu combate. Sua novelística de televisão proporcionou aos brasileiros as horas de diversão tão necessárias, forneceu-lhes matéria viva para a reflexão e a ação. Sei que falar em divertimento na tevê ou de qualquer outro tipo é tocar num tabu dos intelectuais. Não posso esquecer Oriana Fallacci, literata italiana, radical brasileira, na sacada do hotel de cinco estrelas em Copacabana, indignada ao ver o povão no banho de mar: gente ignara no vício da praia em vez de empunhar as armas da guerrilha. Mesquinhos e estreitos, os papas de nossa inteligentzia, não lhes parecendo punição suficiente a vida miserável a que a população brasileira está sujeita, querem lhe retirar o direito ao ócio, à diversão, à descontração, ao riso: nossos intelectuais têm horror ao povo.

Ao lembrar que jornal português atribui-me a autoria de uma de suas novelas de televisão, O Bem Amado, contei da tribuna uma história que se passou em Lisboa, o protagonista foi João Ubaldo Ribeiro — aproveitei a circunstância para propor a candidatura à Academia desse escritor universal: também baiano e também compadre.

Em companhia de João Ubaldo, fazíamos compras no Rocio, Zélia e eu: na loja uma das vendedoras me reconheceu, foi aquele burburinho, a novela adaptada de Gabriela por Walter Georges Durst obtivera sucesso em Portugal, por isso, com freqüência, sua autoria me é atribuída, a dela e a das demais: as balconistas queriam saber se eu era o gajo que escreve as novelas de televisão. Ê ele, sim, o autor de todas elas só que às vezes em lugar de assiná-las com o próprio nome, as assina com o pseudônimo de Janete Clair.

Janete Clair, ela também pioneira da dramaturgia televisiva, a primeira esposa, mãe dos filhos mais velhos de Alfredo, das meninas menores a mãe, minha comadre Bernadete, resplandece feliz no dia da posse do marido na Academia. Esquecia-me de consignar que o novel Acadêmico foi eleito apesar de militante comunista, bem haja, como se diz em Portugal. Ao recebê-lo, eu lhe digo axé, em língua negra da Bahia.

 

 

Zurique, 1948.

Rato de livraria

 

Aos quatorze anos eu lia Vargas Vila, escritor venezuelano, adquiria os livros na Librería Española, do galego Leon Santos, Dom Paço, na Praça da Sé. Que fim teria levado Vargas Vila? Não lhe encontro o nome no Petit Larousse, tampouco no Petit Robert.

Já no Rio, aos dezenove anos, li os romancistas revolucionários, com eles me identifiquei, decidi ser um a mais na predica da justa causa. O romance de Kurt Klaber, com prefácio de Thomas Mann, Passageiros de Terceira, proclamava-se romance proletário. Mais do que a técnica, redigido todo em diálogos, mais do que a descrição da viagem de volta à pátria de emigrantes alemães desencantados com os Estados Unidos, a qualificação me seduziu. Cacau subtitulou-se romance proletário.

Na Europa, em 1948, busco me informar sobre o destino do escritor alemão que me influenciara, em Paris ninguém sabe dele, em Roma nem o nome lhe conhecem. Em Zurique, porém, um rato de livraria, Madame Utzel, os cabelos despenteados, as mãos sujas de tinta, me dá notícia do desaparecido. O romancista proletário, com a tomada do poder pelo nazismo, asilara-se na Suíça onde vivia.

Continua escrevendo? — quis saber. Continuava sim, — Madame Utzel é uma enciclopédia — porém mudara de gênero, segurem-se para não cair de costas: de proletário passara a romancista para jeunes-filles, Coleção das Moças, Bibliothèque Rose, êmulo de Ardei, Dely, Florence Barclay. Fico em dúvida: será verdade ou Gertrud estará gozando minha curiosidade latino-americana? Rato de livraria, desmazelada, nem por isso deixa de ser vistosa e insolente: quer mais algumas informações? Aqui estou para servi-lo: a boca de malícia semi-aberta.

 

 

Bahia, 1969.

As cigarras

 

Transmitida pela televisão, a notícia da morte de Júlio de Mesquita Filho me aflige e entristece, saio a andar por entre as árvores do jardim, sento-me no banco de azulejos sob a copa da mangueira e o revejo alto e decoroso, cônscio de seu poder e de sua responsabilidade.

A presença de Julinho comprovava a possibilidade de convivência civilizada, democrática, a negação do conceito político tão em voga entre a chamada elite, que considera o adversário inimigo a odiar e a exterminar. Penso nas relações que mantivemos a partir dos dias de exílio na Argentina, as diferenças não marcaram distâncias, as divergências não se radicalizaram em confrontos. As cigarras cantam em despedida, a tarde tomba das árvores de súbito e de vez, a noite chega e me envolve.

Telégrafo ao Estado de S. Paulo: De Júlio de Mesquita Filho se podia ser ao mesmo tempo adversário e amigo.

 

 

Saint-Malo, 1989.

Dépechez-vous

 

Dépechez-vous, disse-me o monsieur na gare de Rennes quando, tendo descido do TGV que nos trouxera de Paris, buscávamos embarcar no trem maria-fumaça para Saint-Malo. Segundo Zélia recomendar-me pressa é cometer erro fatal, creio que ela exagera mas quem sou eu para discutir?

Prometera a Auta Rosa, ainda nas mordomias de Porto Rico, levá-la a ver o Mont Saint-Michel e a rezar diante do Menino Jesus de Praga, as duas aspirações maiores de seus roteiros de viagem, com o que consigo trazê-la à Europa, a ela e a Cala. A França não me estima, declara-me Auta Rosa, a sério, para comprovar a afirmação conta-me a queda que levou no bulevar Saint-Germain e as duas tentativas fracassadas de alcançar o monastério de Saint-Michel: da segunda vez chegou a menos de trinta quilômetros quando o carro empacou em definitivo.

Promessa feita, promessa em vias de ser cumprida. Embarcamos, os dois casais, no TGV em direção a Saint-Malo em cuja gare Dodik e Gwen* estarão à nossa espera com hotel reservado e programa de passeios para o fim de semana. Em Rennes devemos mudar de trem, o tempo para o transbordo é curto, diz o senhor a quem peço indicar-nos o caminho: dépechez-vous, me estimula. Precipito-me com bolsas e maletas para garantir lugares, desço escadas, subo escadas, encontro a composição, bloqueio quatro assentos, volto à plataforma para esperar Zélia, Auta e Calá, não os avisto, corro a apressá-los, não os enxergo, não estão em parte alguma, fico alarmado, o pessimismo de Auta Rosa me contagia: não será ainda desta vez que a Rainha de Itapuã chegará ao Mont Saint-Michel. Vou até a porta da estação, nem sombra deles, refaço o caminho, enfrento as escadas, botando os bofes pela boca chego a tempo de ver o comboio partir.

*Dodik e Gwen Jegou, ceramista e escultor franceses.

 

Tomo um táxi, são setenta quilômetros de estrada, o chofer não garante chegar antes do trem a Saint-Malo: se for trem parador — existem três estações entre Rennes e Saint-Malo —, é bem possível, se for direto não conseguiremos. Era direto, na gare não estava mais ninguém, consegui recuperar maleta, bolsas e boné deixados sobre os bancos. Sobrecarregado pergunto a um chofer se sabe onde fica, no entremuros, o atelier dos Jegou, ele sabe, Dodik e Gwen têm presença marcante na região, vai me conduzir. Acaba de me anunciar que estamos perto quando vejo e reconheço a fachada do hotel onde nos hospedáramos dois anos antes, eu e Zélia. Mando o chofer parar, pago o devido, retiro as bolsas, a maleta, apresento-me na portaria, pergunto pelos sumidos. Sim, ali se encontravam hospedados, reservas feitas por Dodik, a recepcionista liga para o quarto, Zélia atende recupero a namorada, reencontro o casal de amigos, divertem-se com meu relato, dépechez-vous. No trem, Calá já se divertira às pampas, declarara: Raoni* abandonou a tribo. Quem quiser viajar em riso e bom humor deve viajar em companhia de Calá.

*Chefe indígena muito em vista na ocasião.

 

Da aventura resultou uma dúvida, ainda persiste. O hotel próximo ao atelier de Dodik e Gwen, não era o mesmo em que tínhamos nos hospedado na estada anterior, situavam-se em lados opostos da cidade, como eu adivinhara que eles ali estavam? Discuto, não aceito a afirmação do hotel não ser o mesmo onde nos hospedáramos, trata-se de gozação, mas diante do testemunho de Dodik sou obrigado a acreditar em Zélia. Recuso, porém, com determinação, atribuir à casualidade minha certeza, reles tentativa de me desmoralizar. Casualidade, uma ova! Premonição, não tentem enfraquecer ainda mais minha posição já um tanto quanto abalada pela perda do trem.

Naquele mesmo dia Auta Rosa percorreu de ponta a ponta, de alto a baixo e vice-versa, o Mont Saint-Michel, conversou com o Arcanjo Miguel, viu o poço sem fundo onde o Demônio foi precipitado, concordou com o Maire: trata-se da oitava maravilha do mundo. Por gratidão ajuda-me a roubar um guardanapo no restaurante.

Para Praga viajamos de automóvel, João Jorge ao volante, não houve troca de trem (ou de pneu) nem desencontro. O menino Jesus agradeceu a visita de Auta Rosa, deitou-lhe a bênção, revimos a Mala Strana, esticamos até Dobris, no Zamek mergulhamos no passado, tomei da mão de Zélia nas alamedas do jardim, na sala de jogo reencontramos Drda, Jofika e Antonin Pelc*, Marie Puimanova**. A emoção encurtou o tempo, João Jorge na avidez de recuperar a infância, Auta Rosa e Calá no alvoroço da descoberta, no fascínio da cidade, não tive condições de utilizar, de pôr em evidência os poderes de adivinho. Ademais, não se deve abusar.

*Antonin Pelc, artista plástico tcheco, Jofika, sua mulher.

**Marie Puimanova, escritora tcheca.

 

 

Dakar, 1979.

Íle de Gorée

 

Xavier d'Orville* leva-nos à Íle de Gorée, na véspera ao jantar conversáramos com Senghor sobre o tráfico de escravos, o nome Senghor é corruptela da palavra senhor, de língua portuguesa.

*Xavier d'Orville, romancista martiniquenho.

 

Paloma e Pedro vão conosco, estamos os quatro passando uns dias em Dakar. A visão da porta do nunca mais — quem por ela sai não voltará — me agonia, cerra-me a garganta. De repente a tragédia da escravidão, o porão dos navios negreiros, a viagem com a morte para os portos da ignomínia se concretiza. Já não são páginas da História, relatos, nem sequer o poema imortal de Castro Alves: os gritos, os gemidos, os lamentos que ali permanecem, na Ilha de Gorée, ecoam em meus ouvidos. A porta se abre sobre o mar Atlântico, sobre a desgraça.

Nos bons tempos dos vôos do Concorde, Rio—Dakar—Paris e vice-versa, duas vezes por semana, eu, que tenho horror às viagens aéreas, aproveitava-me da velocidade supersônica, tomava o Concorde no Rio, duas horas e meia de vôo, descia em Dakar, lá passava três dias, flanando, até o vôo seguinte, duas horas e quarenta Dakar—Paris, o tempo do medo se reduzia: não faço nada durante travessia aérea, ocupado em conduzir o avião, em segurá-lo no ar, impedir a explosão, a parada dos motores, a queda. Terminou-se a linha do Concorde para o Brasil, volto a sofrer as onze horas de pânico.

Em Dakar, a poesia e a festa. Léopold Senghor é Presidente da República do Senegal, exerce a presidência como escreve poesia, com grandeza: uma única democracia na África, o Senegal, onde coexistem em paz muçulmanos e católicos, o multipartidarismo funciona, realizam-se eleições. Vamos jantar em Palácio, conversamos o mundo e a literatura, em matéria de literatura Senghor e eu temos em comum três prêmios, o Nonino, o Mont Saint-Michel, o Cino del Duca e, já que falamos em prêmios, ele me comunica ter proposto meu nome para o Nobel, a proposta vale mais que o prêmio, agradeço.

Na Embaixada do Brasil, o embaixador é João Cabral*, atravessamos a noite na conversa de sotaque sobre literatura e vida literária. Renato Denys sucede a João Cabral, realiza uma Semana de Cultura da Bahia, uma corte de negras voluptuosas o rodeia na marina. As manhãs no Mercado, as tendas coloridas, a pechincha: combien vous me donnez, toi? Fiquei tão íntimo da gente do Mercado a ponto de um comerciante entregar-me a gerência do negócio ao ausentar-se para cobrar dívida, vanglorio-me, hábil no cerimonial da pechincha vendi a bom preço dois bubus e um fez vermelho.

*João Cabral de Melo Neto, poeta e diplomata.

 

Membro do Júri do Prix de Ia Mémoire, concedido anualmente pela Fondation France Liberte, de Danielle Mitterrand, votei para que o prêmio fosse concedido à Fundação da Ilha de Gorée, não me sai da memória a porta aberta sobre o oceano, fechada para a liberdade, o embarque dos escravos, o navio negreiro, Castro Alves empresta-me a voz de fogo: Senhor Deus dos desgraçados I dizei-me vós, Senhor Deus I Se eu deliro... ou se é verdade I tanto horror perante os céus...

 

 

Paris, 1948.

Os imbecis

 

No quadro da preparação do Congresso Mundial dos Intelectuais pela Paz* convocamos uma entrevista coletiva onde explicaremos as causas e os objetivos do evento. Presentes no tablado responsáveis pela organização entre os quais recordo Aragon, Renato Guttuso, Iwaszkiewiez, Pierre Gamara, outros ilustres, Ilya Eremburg veio especialmente de Moscou.

*Wroclaw, Polônia, 1949.

 

Jornalistas em grande número, damos nosso recado sobre os temas do Congresso, aproveitamos para malhar o imperialismo norte-americano, eu me refiro à situação do Brasil, já difícil àquele tempo. Começam as perguntas, as da imprensa comunista são maneiras e respeitosas mas eis que o correspondente da Associated Press dirige-se a Eremburg, anuncia que vai ler e traduzir trecho de um artigo publicado em gazeta de Moscou, ele a exibe dobrada em quatro, não dá para ver de que jornal se trata. O correspondente serviu longo tempo na URSS, lê em russo, traduz para francês, trata-se de afirmação literária, concludente: o articulista assegura que o dramaturgo Ostrovski* é o maior de seu tempo, junto a ele Molière não passa de um pé-rapado:

*Alexandre Nikolaievitch Ostrovski (1823/ 1886), teatrólogo russo.

 

— O que diz a isso, Monsieur Eremburg?

Monsieur Eremburg fita mais uma vez o jornal nas mãos do repórter, responde:

— Nós, soviéticos, nos propusemos acabar com os capitalistas, jamais dissemos que íamos acabar com os imbecis.

Finda a coletiva, Ilya conversa com o representante da AP, lê trechos do artigo chovinista. Saímos juntos, ele me diz:

— Só queria ver o nome do jornal, a afirmação foi no Literatura Gazeta, tudo bem, palpite de literato: se fosse no Pravda, afirmação do Partido, eu estaria fodido — je serais foutu, em francês não soa mal.

 

Entre os seres que amei entranhadamente, deles tenho saudade todos os dias, com alguns sonho repetidas noites, estão gatos, cachorros, um papagaio, um pássaro sofre.

O casal de pugs veio da Inglaterra onde eu os adquirira em canis recomendados por Ovídio Melo*, diplomata dublê de pintor naïf, irá desempenhar papel decisivo no reconhecimento do Governo comunista de Angola, exercia funções diplomáticas em Luanda quando a independência aconteceu.

*Ovídio Melo, diplomata, o pintor Juca.

 

Tanto o macho como a fêmea tinham nomes longos e difíceis, recordavam as ascendências nobres, os pedigrees. Joguei fora os pergaminhos, rebatizei-os, chamei o macho de Mister Pickwick, em honra a Dickens, à fêmea dei o nome de Capitu, em honra a Machado de Assis, os olhos não eram de ressaca e o caráter não era dúbio, doçura de olhos, fidelidade total ao companheiro de expatriação. Durante dezenove anos Picuco e Capita foram minhas sombras, não largavam de meu pé, deitados sobre minhas chinelas quando eu estava em casa, esforçando-se para acompanhar-me os passos se eu saía à rua, morriam de tristeza quando viajávamos. Por mais fizéssemos, Zélia e eu, para esconder deles os planos de embarque, eles os pressentiam, envolviam-se em tristeza. A gente da casa nos contava que dias antes de nossa chegada despiam-se da desolação, voltavam à alegria, adivinhavam que em breve estaríamos de retorno. Amigos mais leais, mais devotados, onde encontrá-los?

Carybé, possuidor de uma cadela de raça visla, da Morávia, esgalga e premiada, morria de inveja, dizia horrores de meus britânicos, jurava pela tcheca. Nas ilustrações para O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, reproduziu sua cadela e nossos cães, a cadela uma princesa de olhos azuis, os pugs um horror, a inveja conduz ao desatino. Não contente pintou um quadro, uma aquarela, retratando Pickwick e Capitu, dragões da idade das cavernas, monstros, não contente escreveu embaixo um manifesto contra eles, mistura de morcego, torresmo e telefone, a inveja degrada o caráter.

Capitu morreu logo após cumprir dezenove anos de Brasil, perdera a classe britânica, virará baiana, rebolava-se ao andar Mister Pickwick durou uns meses mais, permaneceu mister, lorde inglês até a morte. Teve descendência numerosa e ilustre, filhos e netos seu foram campeões, Zélia barganhou um deles contra óleo de Di Cavalcanti, o pintor deu o pug de presente de aniversário à Beril, a esposa inglesa, uma lady. No fim da vida, Picuco, cego e surdo movia o rabo de contentamento quando eu lhe cocava as costas, sabia-me junto a ele: glutão, conservava o prazer da comida, pretexto que eu usava para não mandar sacrificá-lo como me aconselhavam. De viagem quando ele morreu, fui poupado de assistir seu fim. Sonho com ele e Capitu noites seguidas: estão deitados sobre minhas chinelas: Picuco arranha-me as pernas pedindo colo, aconchega-se a mim na cadeira de papai, dorme, ronca forte.

Lalu era fanática por gatos, teve sempre um bichano a seu lado, eu o sou até hoje, gato é meu animal preferido, tivemos alguns, Zélia e eu, memórias sagradas em nosso afeto. Sacha, mestiça de persa e siamês, de caráter indomável, de cio tremendo, emprenhou jovem, na hora de parir, tarde da noite, subiu na cama, acomodou-se sobre a barriga de Zélia, não houve como retirá-la. Zélia terminou por cobrir barriga e cama com jornais e plástico, Sacha desovou oito gatinhos. Dedicava à Zélia amor exclusivo, feito de devoção e de ciúme, acompanhava-a pela casa como se fosse um cão, Zélia a punha no colo, conversava com ela, fazia-lhe perguntas indiscretas sobre namorados, sequiosa malta de gatos a cortejá-la, Sacha respondia com miados diversos, Zélia domina o idioma dos felinos. O pai de Sacha, persa agigantado, belíssimo, atendia pelo nome de Dona Flor, o documento de pedigree afirmara-o de sexo feminino. Ao revelar-se macho e garanhão, Zuca, o jardineiro, passou a tratá-lo por dom Floro. A mãe foi Gabriela, siamesa viúva de Nacib, um de meus amigos mais fiéis.

Nacib era-me tão devoto quanto Sacha o foi de Zélia, as horas que concedia ao convívio com os humanos guardava-as todas para mim. Na ocasião eu trabalhava no romance de dona Flor, escrevia na varanda da casa do Rio Vermelho, a máquina e as folhas de papel em cima da mesa desmontável, Nacib, ao ver-me ali sentado, saltava sobre a mesa, deitava-se em cima dos originais, assistia-me na escrita, os olhos semicerrados, ronronando. Se o telefone chamava e eu ia atender ele abria os olhos, esperava a ver se eu voltaria, se me fosse embora também ele se ia, dava por finda a tarefa do romance. Morreu engasgado com uma espinha de peixe, por mais bem alimentado não deixava de fuçar as latas de lixo da vizinhança.

Sacha viveu cerca de vinte anos, para um felino idade de Matusalém, tinha uma caterva de amantes que a seguiam apaixonados, ela os tratava na unhada, era de caráter violento. Certa feita trouxemos da Inglaterra um casal de gatos da ilha de Man, andam aos saltos como coelhos, estávamos assanhados com os novos habitantes da casa, dedicávamos-lhes tempo e cuidados, Sacha se envenenava de ciúmes vendo Zélia cuidar dos estrangeiros com solicitude maternal Após acarinhá-lo, Zélia depôs o macho no chão, ao lado da piscina, Sacha em crise saltou sobre ele, com os dentes partiu-lhe a espinha dorsal, deixou-o morto, olhou para Zélia, miou alto, fugiu para o telhado. Menos de vinte e quatro horas depois do primeiro assassinato cometeu o segundo, matou a fêmea. Eu tinha medo que, com ciúmes de Zélia, me atacasse, mas pelo visto concedia-me alguns direitos.

Fomos possuidores de duas seriemas mansas que atendiam a nosso chamado, uma no sítio em São João de Meriti, o Peji de Oxóssi, a outra na casa do Rio Vermelho, Zélia a chamava de Siri e ela a acompanhava no passeio entre as árvores. Durante anos um sapo-cururu habitou no jardim onde havia um tanque, sua moradia. Vinha à varanda nos visitar, Zélia coçava-lhe as costas, ele inchava, duplicava de volume.

No Peji de Oxóssi dedicávamo-nos à criação de aves domésticas, numerosa e variada, sobretudo antieconômica, criávamos para nossa diversão, custava-nos dinheiro, enchia-nos o tempo, era uma festa. A cadela Ventania, boxer estabanada e terna, adorava permanecer na sala, no desejo de mantê-la limpa e em ordem Zélia proibia a entrada da cadela, ela furava o bloqueio, escondia o corpanzil atrás de minhas costas no sofá. Quando deixamos o sítio e fomos para a Europa, deu-se à tristeza, suicida passou a recusar o de-comer, morreu de saudade, Ventania.

Havia um casal de marrecos de Rouen, lindos, um era de Zélia, outro meu, os Irmãos Karamazov, tarados sexuais amavam as patuassus bem maiores do que eles. Sempre juntos, inseparáveis, quando viam pata dando sopa atacavam, entre os dois a sujeitavam, enquanto um a mantinha parada, o outro mandava brasa. Não sei bem por que motivo o meu era sempre o primeiro, o que deixava Zélia enraivecida, humilhada.

Hugo del Carril, tendo de viajar, pediu-nos para guardar por uns dias o pássaro sofre, ele o adquirira em Copacabana, pagara caro, valia os pesos despendidos, era belo e manso, vivia solto, pousava em meu dedo, na cabeça de Neruda, beliscava a mão de Simone de Beauvoir, acompanhava a música de João Gilberto. Voava janela afora em passeios longos pelo céu de Copacabana, voltava sempre, dormia na cantoneira plantada de crotons e de antúrios. Meses passados Hugo mandou um portador buscá-lo, já o corrupião se fizera nosso, não o devolvemos: fugira, menti e lastimei. Mudou-se conosco para a Bahia, tinha viveiro seu deporta aberta, assistiu o jardim crescer em floresta tropical, viveu mais de vinte anos, assobiava a bossa nova.

Papagaio verde, vermelho e amarelo, Floro habitou em minha companhia por mais de trinta anos, era fêmea sem dúvida pois me amava de amor profundo e possessivo, tinha raiva das damas gentis que me vinham calentar o leito. Quando Zélia mudou-se para o apartamento na Avenida São João, Floro a perseguia de peça em peça na intenção de bicá-la e expulsá-la. Andava num passo de urubu malandro, de marinheiro bêbado, mas avançava rápido, Zélia tinha-lhe medo, refugiava-se em cima das cadeiras. Floro terminou por aceitar a presença em casa de minha namorada mas nunca lhe concedeu qualquer intimidade enquanto eu podia fazer com ele, perdão — com ela — o que quisesse. Prendia-lhe o corpo na mão, enfiava-lhe a cabeça em minha boca, adorava que lhe cocasse as penas, virava de costas para que eu lhe catasse pulgas inexistentes na barriga, convivência de amantes, a nossa. Só usava a gaiola para dormir, passava o dia rodando pela casa, de dedo em dedo.

Tenho sangue de papagaio — ter sangue de papagaio é como se diz na Bahia para designar as pessoas capazes de fácil relacionamento com o pássaro nacional por excelência, herói de contos e relatos, malandro, sabichão. Possuí vários: Titio e Titia, dois papagaios da Amazônia, lindíssimos, tive uma maracanã que falava sem parar, mas meu amigo mesmo foi Floro, morreu velhíssimo (velhíssima), um ancião (uma anciã), entrevado de reumatismo. Veio para minha companhia de casa de mulheres da vida em rua de canto, o que talvez explique nossas afinidades, teve por mim xodó de mulher-dama.

Voltando da fazenda para tomar o avião em ilhéus, o coronel João Amado, ao atravessar a zona do meretrício em Pirangi, deparou com o papagaio solto na gaiola pendurada ao lado da janela na pensão de mulheres da vida. Voz fanhosa, esganiçada, vitrola a toda corda, palavrões cabeludos, modinhas pornográficas, declamava a ementa do bordel, fazia a propaganda das especialidades: Josefa chupa pica, Terezinha dá o cu. O Coronel encantou-se, eis o presente ideal para Jorge, parou a montaria, entabulou negócio, queria comprar o falastrão. A mãezinha respondeu que vender seu bicho de estimação, isso nunca, por nenhum dinheiro mas quando o Coronel puxou da carteira a nota de quinhentos, mudou de opinião: bote mais uma em cima dessa, leve o pobrezinho. Como se chama?, quis saber meu pai, a patroa respondeu que não tinha nome, as sem-vergonhas diziam-lhe buchê, minete, sessenta-e-nove, cu-de-ferro. No Rio, Lalu deu-lhe o nome de Pioro, simples e decente.

Presente do Coronel encantado com os palavrões e as cantigas de deboche, Floro veio viver comigo minha vida incerta, levei-o para São Paulo, fomos casal feliz. Aprendeu linguagens finas, fez-se militante, repetia slogans políticos, vote em Fiúza!, abaixo Dutra!, dava vivas a Prestes e ao Partido Comunista, substituiu as modinhas pornôs por composição eleitoral: ai Maria, ai Maria, vamos votar / ai vamos votar / com Prestes votar no Partido Comunista. No Peji de Oxóssi assobiava chamando os cães, ciscava convocando as galinhas, parecia regenerado, abandonara a bandalheira. Mas de quando em quando, ao ouvir certas palavras — cabaré, por exemplo —, voltava-lhe o passado inteiro: a má vida, o raparigal, os palavrões, as cantigas porcas, de letra fescenina: ai que cheiro de cu, ai que cu mais cheiroso, nunca vi tanto cu, se lhe desatava a língua suja: o xibiu de Felipa é de chupeta, comi o eu de Laura no curral, gritava chamando por Betinha, Betinha não respondia, Floro se zangava: cadê tu, Betinha, puta descarada? Um show, Marighela teve ocasião de ouvi-lo, se encantou. Na Bahia, acompanhava Carybé e João Ubaldo na melodia do capim barba-de-bode, afinadíssimo.

Depois da morte de Capitu e Pickwick decidi não ter mais nenhum bicho em minha companhia, quando um deles se finava meu sofrimento era por demais terrível, igual ao que sinto com a morte do amigo mais querido.

 

 

Rio de Janeiro, 1930.

O brocha

 

Brochei, não uma, várias vezes, humilhação suprema. Acontece a intensidade do desejo resultar em inibição, quase sempre me recuperei a tempo de afirmar-me macho garanhão. Algumas vezes, porém, não teve jeito, gramei a vergonha da bandeira a meio-pau, pururuca, quando não arriada sobre os ovos, inútil, incapaz.

De um fracasso jamais me esqueci, ainda ressoa em meus ouvidos a voz do infante despertado do sono. Conheci Maria de Montevidéu na praia de Copacabana, infalível por volta das nove da manhã, maio pudico, de samba, pela mão o filho de três anos. Enquanto a criança ia e vinha nas proximidades, cavava túneis na areia, Maria de Montevidéu namorava, não tinha outra hora para o galanteio: o marido, representante de firma da República Oriental, trabalhava em casa, transformara a sala de visitas em escritório. Ela não era aquela beleza fatal mas bonitona e audaz ria com os dentes brancos e trauteava tangos: o tango nasceu no Uruguai, os argentinos nos roubaram, dava detalhes.

Deitava-me a seu lado, havia apertos de mão quando o menino se afastava, beijinhos, ela mostrava a língua de todas as promessas, só que não marcava encontro para os esponsais. Tinha medo do marido, poço de ciúmes, ameaçava-a com chicote se a visse sorrir para terceiros. Além do chicote, exibia revólver com oito balas, gaúcho campeão de tiro ao alvo: se desconfiar nos mata, a miy a vos!

Um dia, por fim chegara o dia, me comunicou a boa nova: a chamado da firma o Otelo do Uruguai embarcaria naquela tarde para Montevidéu, ela o levaria ao cais, para comprovar assistiria à partida do navio, teríamos duas semanas para a desobriga. Deu-me o endereço, se não houvesse transtorno me esperaria às nove da noite junto à porta apenas encostada, eu só teria de empurrar. Entrasse com cuidado para não acordar o menino, dormia na sala de jantar.

Na Avenida Fon-Fon, beco sem saída, a casa modesta, toquei a porta com a mão, abriu — o marido viajara, respirei com alívio. Estava retado de tesão, penetrei no pequeno corredor, Maria de Montevidéu prendeu-me em seus braços, senti-lhe o corpo sob a camisola, trocamos o primeiro beijo de verdade. Na pressa esqueci-me da recomendação de não fazer barulho, pisei forte, da sala de jantar chegou a voz da criança despertada: papá, papá, dizia e repetia, fiquei gelado. Maria de Montevidéu empurrou-me para o quarto, foi à sala acalmar o filho, o choro triste do menino sucedera à esperança de ver o pai de volta. Maria de Montevidéu demorou uns minutos, cantava um acalanto em espanhol, canción de cuna de melodia e palavras preciosas, aqueceu-me o coração, enregelou-me de todo a estrovenga.

Quando entrou no quarto já estava nua, arrancara a camisola, eu ainda de paletó e gravata, sentado à beira da cama. Ajudou-me a tirar a roupa, tinha pressa, ao ver-me em pêlo buscou com a mão o deus-menino, teve um sobressalto ao constatá-lo um trapo. Experiente, recorreu à boquilha, nunca falhara, falhou.

Não deu mesmo, acontecera o revertério, não houve como, nem mão de fada nem língua da Rainha de Sabá. Noite de tormentos, ela em ânsia a esfregar-se, gata cm cio, arranhou-me, mordeu-me, sugou-me: não podia acreditar que jovem tão jovem permanecesse insensível à sua gula — por mais tivesse se esforçado não obteve resposta. Masturbou-se diante do tarado, aproveitei para me vestir e ir embora, gemia baixinho quando fugi. Ao som dos passos a criança voltou a acordar e a chamar: papá, papá. Saí correndo.

Garoto de dezoito anos, tesão para dar e vender, vivia de pau duro, brochei, ainda ouço o infante na saudade do pai, o cabrão devia ser o pai mais amoroso.

 

 

Bahia, 1973.

Revisão

 

Matilde, viúva de Pablo Neruda, telefona de Caracas, virá por uns dias, mudará de avião no Rio, precisa conversar comigo. Fazia pouco tempo da morte de Pablo — dois, três meses, já não recordo —, logo após a queda de Allende. Matilde conseguira salvar da sanha de Pinochet os textos do livro de memórias e os enviara por via diplomática para Miguel Otero Silva na Venezuela. Telefona-me de lá, da casa de Miguel. Zélia e eu a aguardamos no aeroporto, ninguém sabe de sua vinda, no Passaporte estabelecido em nome de Matilde Urrutia não consta o nome de Neruda.

Com Miguel Otero, Matilde organizara os originais de Confesso que vivi, as memórias do poeta, mas antes de entregá-las às editoras deseja consultar-me sobre alguns detalhes, problemas políticos referentes a Cuba e China: Pablo confiava em ti, quero ouvir teu parecer. Desvendamos a Bahia a Matilde que mal a conhece da rápida passagem anterior, ela se deslumbra. Voltará anos depois para se despedir, sabia que lhe restava pouco tempo, o câncer se alastrara, deu a Zélia de presente um cinto de prata, antigo, de seu uso pessoal, beijou-me o rosto, não a vimos mais.

Na China estivemos juntos os quatro(em 1957), quando se instalava a reação que iria conduzir ao morticínio da Revolução Cultural, após a farsa das mil flores que tanta esperança nos havia dado. Na face dos amigos, Emi, Ai-Ching, Ting Ling, a angústia: desapareceram antes que embarcássemos de volta, Pablo de tão amargurado perdera o comedimento. No banquete de despedida, quando o camarada representante do governo ergueu um brinde ao maior poeta das Américas, Pablo Neruda, e ao maior poeta da Ásia, Mao-Tsé-Tung, Pablo mandou a prudência às favas e com sua voz arrastada disse ao agradecer que não lhe parecia justo considerar maior poeta da Ásia quem escrevera apenas dezessete poemas: foi quando fiquei sabendo o número exato dos poemas de Mao. O assunto de Cuba eu o conhecia em detalhe, sabia quem redigira e quem assinara o manifesto ignóbil, a posição de Depestre, exilado em Havana: negou-se a subscrevê-lo apesar das ameaças.

Dei meu aviso a Matilde depois de termos examinado juntos cada parágrafo, estudado as frases uma a uma, pesado as palavras. De Barcelona, Carmen Balcells telefonava dando pressa no envio dos originais, discutia sobre o possível editor francês. Matilde decidiu por Gallimard, Pablo não aceitaria outro. Ao desembarcar tínhamos combinado que a imprensa não saberia de sua estada mas, na véspera da partida, fiz vir ao Rio Vermelho nossa amiga July* a quem Matilde concedeu uma entrevista a ser publicada quando ela já estivesse em Santiago.

*Julieta Isensée, jornalista.

 

Após a partida de Matilde e antes que A Tarde divulgasse a entrevista, a policia federal apareceu-me em casa, nas figuras de um principal e dois subalternos, deixei-os de pé, perguntei a que vinham. Queriam apenas confirmar se a senhora Urrutia, que fora por uma semana nossa hóspede, era de fato a viúva de Pablo Neruda de cuja estada na cidade estavam a par, respondi que sim, ela mesma. Desejavam deixar claro, penso eu, que sabiam da presença de Matilde, não eram incompetentes, não a tinham incomodado porque assim melhor lhes parecera. Tendo dado o recado, foram-se embora.

 

 

Goiânia, 1954.

O mapa da África

 

Anda relegada ao esquecimento uma das figuras políticas mais singulares de nosso tempo, refiro-me a Gabriel d'Arboussier, do amigo tenho saudades todos os dias. Em Gabriel harmonizavam-se a erudição francesa e a vitalidade africana para dar corpo e alma a uma personalidade que exerceu enorme fascínio sobre a inteligência negra no após-guerra — não falo no fascínio que levava as mulheres a fazer fila ao pé de seu leito. Pergunto-me que fim teriam levado o mapa da África traçado por Gabriel e o manuscrito de suas memórias.

Deputado pelo Senegal à Assembléia das Nações Francesas, seu Vice-Presidente, secretário-geral do Movimento Democrático Africano, o partido da independência da África Ocidental Francesa, membro do Bureau do Conselho Mundial da Paz, orador excepcional, Gabriel em certo momento teve dificuldades com o Partido Comunista da França, o pecê defendeu tese de difícil aceitação pelos líderes africanos: já que os comunistas iam empalmar o poder na França a luta pela independência não só perdia a razão de ser, passava a significar retrocesso político, pois, com os comunas no Palais de l'Elysée, as colônias iriam beneficiar-se das vantagens do socialismo, das benesses. Gabriel protestou, classificou a tese de colonialista, suas relações com Thorez e Casanova* deterioram-se. O pecê colocou-o no limbo e por vias travessas buscou eliminá-lo da vida política. Gabriel, atazanado, macambúzio, vivia um mau quarto de hora, dei-lhe a mão, convidei-o a vir ao Brasil para o Congresso Nacional de Intelectuais reunido em Goiânia em 1954 sob a égide do pecê brasileiro — o romancista Miécio Tati foi o secretário-geral do evento, eu era o capa-negra do Partido, ditava as ordens.

*Laurent Casanova, membro do bureau político, responsável pelo movimento da paz e pela cultura.

 

Em Goiânia, conversando sobre o futuro da África, Gabriel me falou de seu projeto de um mapa para o continente negro após a independência, ele o vinha elaborando, mostrou-me o trabalho já feito, as grandes linhas. A idéia era realmente revolucionária e, por isso mesmo, enterraram-na, quando a independência das colônias africanas aconteceu o mapa de Gabriel sumira, perdeu-se o rastro da proposta, nunca mais ouvi menção. Ousada e simples, a proposição partia de consideração indiscutível: a independência, no quadro das fronteiras colonialistas, não passaria de um ato falho, o domínio das metrópoles se manteria inteiro, aproveitando-se das dissensões e lutas entre as etnias que compunham cada uma das colônias. Gabriel propunha o traçado de novas fronteiras que passassem pela realidade racial e social das etnias para a composição de estados com unidade, capazes de vida democrática e progresso econômico. Dedicou-se de corpo e alma, com a colaboração dos jovens da negritude que viam nele o líder sem outro compromisso além da África.

A independência se deu conservando a velha carta geográfica dos colonialistas — os de direita e os de esquerda —, como Gabriel previra não houve vida democrática nem progresso econômico, persistiu a mão de ferro da exploração colonial, os novos Estados viram-se envolvidos na luta fratricida entre as diversas etnias, basta lembrar Biafra. Na quase totalidade dos países foram estabelecidas ditaduras monstruosas, vigorou a lei do partido único — de direita ou de esquerda, iguaizinhos —, a África virou o que se sabe e vê, realidade além de todos os limites do negativo, o quarto mundo. Os governantes da negritude conseguiram o que o pecê francês não tinha conseguido: eliminar d'Arboussier da vida política. Ministro da Justiça do Senegal no governo Senghor, terminou a vida como embaixador. Onde andará o mapa?

Em 1966 Gabriel era vice-secretário-geral das Nações Unidas, veio ao Brasil para uma conferência antiapartheid reunida em Brasília. Foi passar o fim de semana conosco na Bahia, matar saudades, mais uma vez nós o escutamos rir, mais uma vez discutimos os destinos do mundo, os do Brasil sob a opressão dos militares, os da África, as ditaduras que ele temera, previra, anunciara. Foi nessa ocasião que me deu a ler o manuscrito da primeira parte do livro de memórias em cuja redação labutava.

Dos amores de general francês — comandante das tropas da metrópole, governador geral da África Ocidental — com negra de beleza proclamada nasceram dois filhos, Gabriel e uma menina, foram educados na França, sob os cuidados de uma irmã do General, bom pai dos filhos africanos, negros. A menina tornou-se freira, abadessa de convento na Córsega, Gabriel formou-se em direito, enveredou pela política, na luta pela independência nenhum líder desempenhou papel mais relevante do que ele.

Não sei se chegou a concluir o livro de memórias. A primeira parte ocupava exatas noventa páginas a máquina, ele não aceitou minha sugestão de publicá-las num primeiro tomo, queria o livro completo: a vida política, a luta no parlamento, na imprensa, junto às grandes massas da África, a colaboração com De Gaulle para a independência da Argélia, a paixão da liberdade, do respeito aos direitos humanos, a batalha pela democracia. Completo, seria um livro que levaria à reflexão, um ato político importante. A primeira parte era apenas a infância, o menino africano.

A leitura do texto dessas memórias de infância apaixonou-me. A casa do comandante, do governador-geral, rica e primitiva, onde tigres andavam soltos e soltos voavam pássaros, a figura da mãe, a doçura e a força, o tio feiticeiro na intimidade dos orixás, uma atmosfera entre a realidade e o sonho, a cultura européia e a africana, a mistura, o sincretismo, a mestiçagem, a poesia. Atmosfera semelhante eu viria a encontrar, muitos anos depois, em romance de Henri Lopes, Le Chercheur d'Afrique.

Que fim teriam levado os manuscritos de Gabriel, onde estarão? Quem sabe não estarão perdidos, virão um dia à luz das livrarias? A circunstância da morte de Gabriel quando exercia o cargo de Embaixador do Senegal junto aos governos de língua alemã — nas duas Alemanhas, na Suíça, na Áustria — até hoje persiste envolta em mistério e dúvida. Gabriel d'Arboussier, o sorriso único, a alegria de viver a vida uma aventura plena de possibilidades, dele tenho saudades todos os dias, foi maior do que o papel que lhe coube representar.

 

 

Samarkand, 1951.

O bardo

 

Aqui decorreram as histórias de Sheerazade, palácios, ogivas pátios das mil e uma noites, a cidade das odaliscas e dos sultões, eu as busco nos becos, nas mesquitas, nas ruínas, nos mausoléus, na fascinação de Samarkand. Perpassam nas ruas as sombras de Tamerlão, nasceu em Kech, subúrbio da cidade, e de Alexandre, o Grande, que a ocupou com seus exércitos.

Fosse cidade de país capitalista, o visitante encontraria boates no esplendor da putaria oriental, as sheerazades fariam strip-tease mas ai, estamos em república soviética, a do Usbequistão, o socialismo real possui fachada puritana, a devassidão é prerrogativa dos dirigentes, para o povo resta a mão de bronha. Em vez de irmos à boate para a dança dos sete véus, vamos ouvir o bardo mais célebre da República.

Na fraude da fraternidade entre as nações que constituem a URSS, na impostura do desenvolvimento das culturas nacionais, os bardos usbeques, afegãos, turcomênios, azerbes, quirdijisques, tadjiques estão em moda, postos em relevo nos palcos, levados em triunfo às capitais das demais repúblicas para que recitem seus poemas, infindáveis lengalengas, com o acompanhamento de estranhos instrumentos, violas árabes. Recordam-me os cantadores nordestinos, os trovadores de cordel, são velhos de barbas brancas, quanto mais velho mais famoso e respeitado.

O bardo que nos cabe aproxima-se dos cem anos, parece menos, insinuo a Marina* que talvez aumente a idade para obter cachê mais alto, Zélia chama-me às falas, exige que me comporte: o bardo vibra o instrumento — o verbo é impróprio, mal se escuta a vibração —, reza uma cantilena que um moscovita com cara de malandro carioca traduz para o russo, do russo para o português Marina se ocupa.

*Marina Kontrizin, intérprete.

 

De início, dois ou três poemas cantam a natureza, o trabalho dos colcozianos, as grandezas da pátria soviética, o prato de resistência, porém, é poema desmedido pelo tamanho e pela adjetivação, canto em louvor a Stalin, pai da pátria, do povo, da humanidade, do universo. Pouco se ouve a voz do bardo longevo mas a tradução em russo ressoa altissonante na voz do intérprete loiro e jovem. Jamais se gastou tanto adjetivo de consagração, a apologia vai em crescendo, aonde chegará? Marina traduz da tradução, imprime o ritmo do russo que por sua vez tenta imitar o da cantoria do usbeque.

De repente cresce a voz do bardo, torna-se audível, cresce também a do malandro de Moscou: Stalin é o próprio Deus, o Ser Supremo, Marechal da Vitória, junto a ele Alexandre, o Grande, fazia as vezes de soldado raso, no máximo chegará a caporal. O bardo larga o instrumento, gesticula, grita o verso, o tradutor se eleva também ele, repete os gestos com que o bardo acentua o heroísmo: Stalin genial, libertou os povos, salvou a humanidade. Eis que, na primeira fila da platéia, quase ao nosso lado, levanta-se um usbeque magro, de barba rala e voz tonitruante, brada aos céus, Marina arregala os olhos azuis de eslava, a gargalhada é dela e da sala inteira, envolve em riso a tradução:

— O bardo está dizendo que quer fazer pipi.

 

 

Tbilissi, 1948.

O tempo que se vive

 

Ouço os contos georgianos nos brindes repetidos: onde se bebe mais, em Moscou, em Kiev ou em Tbilissi? De vários guardo memória, de um desejo dar notícia, dele uso e abuso ao falar da amizade.

Contam que em dia de inverno um arqueólogo membro da academia de ciências da URSS, em visita à República da Geórgia, percorreu velho cemitério da cidade, do tempo quando Tbilissi ainda era Gori, na mão o caderno de apontamentos científicos e o lápis de apontar. Foi de mausoléu em mausoléu, de sepulcro em sepulcro, de tumba em tumba, tomando notas para uma tese funerária, era um sábio sapiente, projetava escrever o tratado definitivo sobre a cidade dos pés juntos.

Percorrendo o cemitério, deu-se conta da existência de uma aberração, patente em cada sepultura, nos mausoléus, covas rasas. No mausoléu daquele que fora o homem mais rico da cidade, leu: Aqui jaz fulano de tal, nasceu em 1834, faleceu em 1904, viveu apenas sete anos. Erro na inscrição, pensou o sábio, afazendo as contas na ponta do lápis: não sete como dizia a lápide e sim setenta. Na sepultura seguinte, se renovou o engano pois da baronesa Irina Moscovitch Kalininova, que viera ao mundo em 1812 e dele se fora velhinha em 1906, constava ter vivido somente vinte primaveras. O sábio fez a subtração, dona Irina falecera aos noventa e quatro anos, conta errada no mármore. De lápide em lápide constatou o absurdo: de todos se dizia terem vivido um tempo bem menor que aquele delimitado pelas datas de nascimento e morte, todos à exceção de dois defuntos, ambos em covas pobres, uma costureira, Katia dos Anzóis Carapuça, um carteiro de segunda classe, Alexis Ignatiev, neles as datas quase coincidiam. Tomado de indignação o sábio dirigiu-se ao zelador do cemitério, velho sem idade ali esquecido pelos poderes públicos, exigia explicação sobre o absurdo da repetição de erro tão grosseiro em local público. O velho tossiu, fitou o visitante, explicou: só se vive o tempo da amizade, não sabia? O mais é tempo perdido, inútil e vazio, não é vida, apenas purgatório, quando não é inferno.

Contado o conto, erguem-se os cálices, bebe-se à amizade, sal da vida.

 

 

Nova York, 1937.

O neto

 

Sou apresentado a John dos Passos num ato que tem como objetivo angariar dinheiro para os republicanos espanhóis, o romancista acaba de chegar do front e vai voltar. Conta as dificuldades do governo legítimo da Espanha, a ofensiva fascista dos generais de direita, a ajuda maciça de Hitler e Mussolini a Franco.

Tendo lido Manhattan Transfer em tradução espanhola, juro por John dos Passos: para puxar conversa com o ídolo pergunto-lhe por sua ascendência portuguesa, o sangue luso nos aproxima. Não o sensibilizo, responde-me com o que me parece ser a repetição de uma boutade:

— Meu avô era português, meu pai falava português, eu sou um americano de Chicago.

Fala em espanhol, acento carregado, morre a tentativa de aproximação, nunca mais voltei a vê-lo, limitei-me a leitor apaixonado do romancista que abriu novos espaços à ficção contemporânea.

 

A partir de certo momento passamos a viver mais com os mortos do que com os vivos, a ter mais amigos do lado de lá do que do lado de cá.

 

 

Paris, 1992.

Miná

 

Ao ver que a escrita destes apontamentos aproxima-se do fim, Zélia chama-me a atenção: não fazias questão de falar no nome de Miná? No entanto ainda não o citaste. Tem razão, sempre tem razão, jamais a tenho eu, o desmemoriado.

É agora e já, lhe respondo. Antes que seja tarde, aqui escrevo com estima o nome de Gianni Miná, um varão italiano de muita picardia. Homem de variados afazeres e múltiplas competências —jornalista, personalidade da televisão, autor de livros, perito em futebol, em mulheres belas, em culinária, companheiro de causas e andanças.

Escrevo-lhe o nome e fim de papo, se eu fosse contar as empreitadas em que me meteu, dobraria o número de páginas deste livro em demasia volumoso.

A última teve a ver com Cuba e com Fidel, custou-me esforço, tive de apertar o crânio para atender a pedido seu, prefácio Para um segundo livro de conversações com o líder dos barbudos. Não foi tarefa fácil pôr no papel, com pensamento livre e língua solta, tudo de bom que penso da revolução cubana e as restrições e críticas que faço ao regime, à falta de liberdade característica das ditaduras marxistas. Suei sangue, não sei se consegui me explicar como devido.

 

 

Tarrafal, 1986.

O candomblé marxista

 

Faço questão de conhecer Tarrafal, digo a Jorge Miranda Alfama*, a negregada fama do presídio de Salazar me persegue há muitos anos. Quero ver o lugar onde penaram Luandino Vieira, Chico Lyon de Castro e tantos outros amigos, lá vamos nós da cidade de Praia a Tarrafal.

*Jorge Miranda Alfama, diretor, na época, do Instituto do Livro de Cabo Verde.

 

Estamos na República de Cabo Verde, não são onze ilhas como ensinam os compêndios, são províncias da lua ancoradas no mar Atlântico, paisagem de vulcão extinto, a terra é negra, não chove nunca, árvores raras. Quando os primeiros navegadores chegaram não existiam habitantes, apenas o oceano, os peixes e o sal, lua minguante, despovoada.

Antes de visitar o presídio desativado, à espera de ser museu, avistamos a praia, poucas serão tão suntuosas. No campo de concentração mostram-nos a cela onde o poeta Agostinho Neto cumpriu sentença: morreu Presidente de Angola.

De volta à capital, paramos para almoçar em meio do caminho, na cidade de Santa Catarina. O prefeito providenciou comida e bebida, dança e canto para os viajantes. Na praça pública exibe-se o corpo de bale formado por mulheres do povo, cabrochas caboverdeanas iguais às mulatas caboverdes do Brasil no requebro e na graça. Roda de candomblé em plena rua, filhas-de-santo que não cumpriram obrigação na camarinha, não rasparam os pêlos da cabeça, do sovaco e do xibiu, nem por isso os encantados deixam de baixar à terra e possuí-las na vertigem da dança, ao som do canto. Zélia aponta uma das formosas: olhe como aquela parece Olga do Alaketu*. Estamos na Bahia, o ritmo e os deuses são os mesmos, no Brasil e na África.

*Olga do Alaketu, mãe-de-santo da Bahia.

 

As cantigas porém não são as mesmas, na Bahia se canta em iorubá, em cabinda, cantos rituais em honra aos orixás, aos inkices, em Cabo Verde se canta em crioulo, hinos políticos marxistas-leninistas em honra do Partido, deus único, todo-poderoso. Não importa, é tudo a mesma coisa: o baile recrudesce, os encantados dançam acima e além das ideologias.

 

 

Lisboa, 1967.

Fado moderno

 

Ferreira de Castro leva-nos a jantar numa casa de fados na Mouraria. Norma Sampaio, nossa companheira de viagem, e Assis Esperança* completam a mesa ao fundo da sala, escolhida a dedo pelo mestre de Terra Fria para fugir às correntes de ar: temia as correntes de ar como o diabo teme a cruz, tinha pavor aos resfriados.

*Assis Esperança (1892/1975), escritor português.

 

No restaurante exibe-se cantor de fama recente, escapa-me o nome, mas guardei o do pai, fadista extraordinário, Alfredo Marcineiro, dias antes tínhamos ido ouvi-lo cantar, levados por Beatriz Costa; creio que era Alfredo Júnior, especialista no fado moderno: que diabo seria o fado moderno, pergunto-me curioso.

A dona da casa de pasto recebe-nos com fidalguia lusa, reverências para Ferreira e Assis, conhecia-os de renome, palavras gentis para o conviva brasileiro. Na mesa Assis Esperança conta histórias de sua juventude de anarquista: pour épater les bourgeois fumava cinco cigarros ao mesmo tempo, puxava a fumaça dos cinco encarreirados na boca e a tragava, soltava-a de volta pelo nariz, chaminé de fábrica. Ferreira pede a Zélia e a Norma que cantem sua cantiga preferida, Luar do Sertão, moda sertaneja de Catulo da Paixão Cearense, não deu tempo, as guitarras atacaram antes. Comemos o bacalhau, para casa de fados não estava de todo ruim, saudamos com palmas a entrada do fadista.

De certo instruído pela proprietária o artista saudou a companhia ilustre, acrescentou aos nomes de Ferreira e Assis, que lhe soavam às ouças, um terceiro que lhe era de todo desconhecido: o do poeta português Jorge Amado, subi às nuvens, nada desejei tanto na vida como ser poeta, quanto a ser português o sou pela metade, a outra metade é angolana.

Marcineiro Júnior dedica-me o primeiro fado: ao grande poeta português, reafirma minha dupla condição de poeta e português e faz-me grande, ganha de imediato minha simpatia: o fado moderno caracteriza-se pelo ritmo rápido, "corridinho" para usar expressão de Norma, autoridade em música popular. Terminada a cantoria, o fadista vem à mesa nos cumprimentar, Ferreira de Castro lhe pergunta: em que língua o amigo cantou? Em português, ora pois.

— Em português? Não acredito, não entendi uma única Palavra.

Nem ele, nem eu, prefiro o fado tradicional, o de Amália de Hermínia e Carlos do Carmo.

 

 

Paris, 1948.

Hotel Saint-Michel

 

Um único desentendimento não chegou a empanar as relações de estima que até hoje mantenho com Madame Salvage*, ela me adotou assim me conheceu.

*Madeleine Salvage, proprietária do hotel.

 

O choque de personalidades se deu quando recém-chegado a Paris descobri que o único quarto de banho existente nos seis andares do hotel** estava transformado em depósito de bagagens. Ameacei partir, ela concordou em colocar a sala de banho em funcionamento, Madeleine amava a literatura e Carlitos*** lhe havia oferecido um exemplar de Terre Violente****, constatou-me escritor, pensou-me importante. Mesmo assim, o problema brasileiro do banho diário não se resolveu por completo: Madeleine controlava o aquecedor, no melhor da festa, o corpo coberto de sabão, a água quente sumia da torneira.

**Grand Hotel, Saint-Michel, 19, rue Cujas, Paris 5ème.

***O pintor Carlos Scliar.

****Titulo da primeira tradução francesa de Terras do Sem Fim.

 

O Grand Hotel Saint-Michel foi reduto de comunas latino-americanos e lusos, literatos e artistas de preferência, seria longa a lista de nomes a citar, creio que Nicolás Guillén e Justino Martins, por mulherengos, a cada noite mulher nova a galgar as escadas, eram os preferidos da proprietária: as belas enfrentavam as escadas, não havia elevador. Nicolás convidou-a a visitar Cuba após a vitória dos barbudos, ela adorou a ilha e o povo com uma única restrição: o discurso de Fidel, durou seis horas, dose para elefante, nem assim Madeleine se dessolidarizou da revolução cubana.

Inconstante o humor de Madame Salvage, gritava com os hóspedes se atrasavam no pagamento, ameaçava despejo, parecia que o mundo vinha abaixo, não vinha, nunca pôs ninguém na rua, era tudo da boca para fora, Madeleine possui um coração de mel. Certa feita ouvindo-a insultar cliente de aluguel vencido, perguntei-lhe por que tanto azedume, respondeu-me que naquele dia ainda não recebera sua dose de espermatozóides. Paixão de fazer chorar só lhe conheci uma, pelo escritor uruguaio Francisco Spínola, habitou o Saint-Michel durante anos pagando a conta em espécie, Madeleine louvava-lhe o tamanho e o vigor da arma de combate.

Quando, após dezesseis anos proibidos de entrar na França, Zélia e eu retornamos a Paris, ela nos recebeu aos beijos e nos hospedou de graça, fez questão de não cobrar, prova definitiva de amizade. De passagem em Paris vamos visitá-la, o hotel floresce, ducha em cada quarto, elevador, Madeleine arrasta Zélia de andar em andar, exibe as instalações, invade os quartos sem anúncio prévio, Zélia bateu os olhos num casal em plena ação. Numa das vezes em que vim cumprimentá-la dei-lhe notícias de Roberto Gusmão, jovem comuna com mandato da UNE* no estrangeiro, habitara no Saint-Michel:

*União Nacional dos Estudantes.

 

— Se lembra do Gusmão? Pois é Ministro do Comércio, sabe?

— Ora, Ministro... Mário Soares é Presidente da República, não passa por Paris sem vir me visitar.

Mário foi um de seus muitos hóspedes ilustres, paupérrimos exilados, igual a Varela, a Marinelo, a Gravina, a Maria Lamas, a Mário Schemberg, a Massera. Mais do que um hotel, o Saint-Michel foi lar de revolucionários, casa da ciência, das artes e das letras, ninho de amores. O chinês Liu, pau para toda obra, habitava no vão da escada, via as donas subirem de braço com os hóspedes, acompanhava-as com olhos de cobiça, todas elas suas amantes na solidão das bronhas. Durante o dia atendia o telefone na recepção, transmitia as mensagens, era discreto. Zélia denunciou-lhe os truques: sendo meu simpatizante, quando o telefonema era de homem, Liu me chamava aos gritos mas se a voz era de mulher subia a escada até o primeiro andar para segredar-me a chamada, Zélia tinha ânsias de esganá-lo.

Ao saber de nossa expulsão da França, Madame Salvage chorou no ombro de Zélia, velou em pranto o sono de João Jorge, colocou suas economias à nossa disposição. Anos felizes os do Hotel Saint-Michel, anos de exílio, de pobreza, de luta, éramos jovens, tirávamos de letra. De letra se deve tirar cadeia e exílio, bancar o herói não paga a pena.

 

 

Bahia, 1970.

O dicionário

 

Personagem de romance dificilmente retrata tal ou qual pessoa, não é ninguém por ser quase sempre a soma de vários indivíduos, de cada um toma detalhe físico ou moral: do vizinho usa o bigode, daquela morena a pinta no seio, do lorde baiano a arrogância, a bunda de Maria, a maneira de andar do malandro Mirandão, o ar de dignidade e superioridade do cafifa rioplatense, a manemolência de João das Flores, a doçura de Rita das Dores, o rebolado das ancas da quituteira, a coragem, a covardia, a temeridade, o bom coração, o azedume de Fulano, de Beltrano, de Sicrano.

Pode acontecer o romancista se basear na personalidade de um único cidadão; ao ser posto nas páginas do romance, no contexto de tempos e figuras, no espaço em que a ação se desenrola, transforma-se em outra criatura, já não é o indivíduo tomado da vida real pelo autor para agir nas páginas do livro. O banqueiro Celestino de Dona Flor e seus Dois Maridos tem algo em comum com o senhor Antônio Celestino, diretor do Banco Econômico, seu ponto de partida. O crítico de arte Antônio Celestino de O Sumiço da Santa tem a ver com o erudito do Pátio das Artes, inclusive o título da coluna semanal em A Tarde, porém dele mais se diferencia do que se assemelha. Cito um exemplo, poderia estender-me, no particular sobra-me experiência.

As línguas de trapo divertiam-se nas terras do cacau designando os modelos dos vários coronéis que povoam meus romances do cacau. Espalhavam ser o coronel Horácio da Silveira a cópia fiel, o retrato do coronel Basílio de Oliveira, desbravador de terras, chefe de jagunços, amigo de meu pai, avô de Itassucê*. Em verdade, Horácio é soma e síntese de coronéis de minha infância: o citado Basílio, Henrique Alves, Pedro Catalão, Misael Tavares e João Amado de Faria, meu pai. Sinhô Badaró, personagem de Terras do Sem Fim, tem o nome exato de outro conquistador de terras cuja majestade se impunha à imaginação do menino grapiúna, o personagem herdou-lhe a figura de profeta e a soberbia, o resto tomou de outros menos imponentes. De todos os coronéis do cacau apenas Teodoro das Baraúnas nasceu de uma única pessoa, decalque do marido de minha tia Doninha, tio Manuel Alves, aventureiro e embrulhão. No livro virou outra pessoa, nem sequer meu tio nele se reconheceu.

*Esposa de Raymundo Sá Barreto, fazendeiro.

 

Curiosa circunstância, de começo os indigitados recusavam-se a assumir o personagem que lhes era atribuído, mas a partir das novelas de televisão adaptadas de Gabriela, de Terras do Sem Fim para cada um dos figurantes sobrava meia dúzia de modelos, todos queriam ser o coronel Ramiro Bastos, Mundinho Falcão, Tônico, sedutor. Tônico Pessoa* usava cartão de visita onde se lia debaixo de seu nome verdadeiro o de Tônico Bastos, encarnara o personagem. Do tabelião Pessoa, o tabelião Bastos tinha a fantasia, o gosto das mulheres, o medo da esposa, nele pensei ao criar a figura mas não apenas nele, pensei também em outro tabelião, dublê de literato, Raymundo Sá Barreto, e no jornalista Otávio Moura, mulherengo.

*Antônio Pessoa Júnior (1892/ 1985), tabelião.

 

Durante a exibição da novela Gabriela, sucesso de Walter Avancini, consagração de Sônia Braga, compareci a uma festa em Ilhéus e lá encontrei as senhoras da sociedade todas elas fantasiadas de putas do Bataclan, uma delas debruçou-se sobre mim, sussurrou-me ao ouvido: sou Clarinda, rapariga de Augusto Juvenal e teu xodó, te lembras? De Clarinda me lembrava, nunca a esquecerei, mulata caboverde, rosto oriental, riso de malícia, olhos de quebranto, boca de, peço perdão, não digo de quê a boca, seria falta de respeito para com a brancarrona cor de leite, quarentena grã-fina e licenciosa a querer passar por puta inocente, saí de baixo.

Criatura adorável, Paulo Tavares, letrado e pesquisador, frágil criança na cadeira de rodas de entrevado, dependente dos cuidados de Haydée, não dependia de ninguém para a análise e a pesquisa, capaz e diligente enfrenta a lida, não teme a estafa. Dedicou parte de sua vida ao estudo de meus romances: escreveu livro sobre minha vida, realizou um dicionário de meus personagens**, preparava outro sobre os personagens de Graciliano, Pensava publicá-lo no ano do centenário do mestre alagoano, as torças lhe faltaram, quando Haydée se deu conta Paulo havia partido, do guerreiro restava nos lábios o sorriso de criança.

**Criaturas de Jorge Amado, Record.

 

Uma de minhas diversões durante o trabalho duro e difícil do romance é colocar nomes de amigos nos personagens: a um frade cachopeiro e mandrião batizei com o nome de Nuno Lima de Carvalho, todo o contrário: burro-de-carga no trabalho, não respeita domingo nem feriado, ex-seminarista casto permanece pudico e só reza missa no altar de santa Clarinda, esposa e mártir. Natário da Fonseca, jagunço e capitão da Guarda Nacional, herdou o prenome de um pasteleiro, notabilidade de Viana do Castelo, siô Manuel Natário o dos pães-de-ló. Meu amigo Gravata Galvão batizou o capitão Gravata de Farda, Fardão, Camisola de Dormir. Ao batizá-lo emprestou-lhe as qualidades que fazem do modelo exemplo a imitar de boa praça, de rapaz direito, de pessoa nascida para a convivência. Mirabeau está em vários livros meus, Giovanni Guimarães em quase todos eles, é nome de rua, de escola primária, discute com Zitelman Oliva em O Sumiço da Santa, em Dona Flor relato-lhe as façanhas de boêmio e jogador. Carybé, useiro e vezeiro em meus romances, neles pinta o sete, rouba, falsifica, inventa e alardeia, amplio as medidas do personagem, nem assim lhe alcanço a travessura.

Uma das partes do dicionário de Paulo Tavares refere-se aos viventes e aos defuntos cujos nomes aparecem em meus romances. Paulo consigna-lhes os nomes, a profissão real, a data de nascimento, a da morte se já se foram. Para garantir informação correta, para registrar detalhes, Paulo se mata na pesquisa, na colheita de dados, empregou os direitos autorais na compra de dicionários e enciclopédias. Esforço, dedicação, seriedade, por vezes não receberam a justa recompensa, foram objeto de objeção e de repulsa.

Recém-publicado o livro de Paulo, nossa comadre Beatriz Costa dá-nos a alegria de passar uns dias na casa do Rio Vermelho, tem roda de amigos na cidade, mesa cativa, a agenda de compromissos sempre repleta, mas a comadre veio em busca de sossego e paz, está entregue de corpo e alma, de corpo sobretudo, a paixão voraz, devoradora, coisa boa, nada existe de melhor, regalia. Enquanto recorda peripécias de amor, o pensamento naquele que árdego e impaciente a espera em Portugal, diverte-se lendo o livro de minhas criaturas, a obra de Paulo.

Lá encontra seu nome, ilustre e popular, pois entre a multidão de admiradores brasileiros de seu talento e de sua picardia achava-se Vadinho e num livro se conta que tendo o boa-vida ido ao Rio foi ao Recreio aplaudir a estrela máxima do teatro de revista. No volume, o nome de Beatriz, o local de nascimento, os dados todos e, entre eles, valha-nos Deus!, a data fatídica e ignorada do nascimento. Beatriz se exalta: não pode ser! Onde esse tal de Paulo Tavares, sujeito metido, maldizente, mentiroso, provocador, foi buscar a informação desnecessária? Indignada, procura e encontra no caderno de endereços o número do telefone de Paulo, liga, Haydée atende, ao saber quem fala vibra de emoção: Paulo, adivinhe quem é! Paulo toma do aparelho cumprimenta extasiado, desdobra-se em amabilidades, na outra ponta do fio, Beatrizinha educada, da fina educação saloia, quer saber por que ele inventou e pespegou no verbete aquela data fatal de nascimento. Paulo, atarantado, se explica: nada inventou, penou a buscá-la nos dicionários, nas enciclopédias, em parte alguma encontrava o esclarecimento, de data nem cheiro nem rastro, já pensava em se dar por vencido: Beatriz não nascera, surgira no palco em dia de triunfo, eis que deparou com a informação:

— Encontrei-a no Leio, dona Beatriz. Estará errada, por acaso, se está corrijo na próxima edição, a primeira não tarda a se esgotar.

Não sendo de mentir, Beatrizinha não contestou a exatidão da data. De volta a Lisboa, aos braços, aos lábios e aos demais do mocetão, mexeu os pauzinhos, tomou as providências exigidas, nas novas edições da Enciclopédia Leio a data inútil não aparece, afinal datas pouco ou nada significam, o que vale e conta é a vivacidade, a força, o ânimo, a brasa acesa, a fogueira, a juventude, a meninice, a menina Beatriz, assim dizem o povo e o rapagão, a menina Beatriz.

 

 

Estoril, 1981.

Dome de Domitila

 

José de Dome* recolheu em seus óleos as cores do amanhecer e as do crepúsculo, os ocres e os amarelos das flores e da caatinga do nordeste. Depois de muito labutar e de sofrer com valentia conseguiu construir casa em Cabo Frio onde vivia e pintava.

*José de Dome, pintor sergipano.

 

Chegou à Bahia direto de Estância, disposto a ser pintor, começou trabalhando de operário, serrando madeira, saía às cinco da manhã, voltava às sete da noite, viveu nas ruínas de uma construção no Rio Vermelho, cuidava do irmão cego, surdo e mudo, passava a noite pintando o nascer do sol na barra da manhã, o morrer do sol na fímbria da tarde, o sol a pino do meio-dia. José, dito de Dome por ser filho de Domitila, rapariga de Porta aberta, Dome, morena cor de jambo, sem nome de família Para deixar de herança ao filho, deixou o apelido.

Pouco a pouco sua pintura feita de cor cresceu na estia dos Críticos e dos colecionadores, expôs na Bonino, os marchands passaram a se interessar por seu trabalho. Carlos Lacerda deu-lhe mão forte, encomendou-lhe obras para o Banco do Estado, ajudou-o a internar o irmão no Instituto de Surdos-Mudos. No Rio viveu em nosso apartamento longo tempo, antes de erguer a casa em Cabo Frio.

Ainda na Bahia, no atelier do Largo de Sant'Ana pintou o retrato do irmão, tela dramática, bela e terrível. Propus-me de comprador, não quis vendê-la, tampouco a Carlos Lacerda e a Giovanna Bonino, também se candidataram. Era o quadro de sua vida, queria conservá-lo. Para mim pintou Dona Flor com uma rosa de ouro, Gabriela num guache de amarelos pálidos, Tieta do Agreste com o bode Inácio, presentes de Natal.

Encontrei-o em Portugal, no Estoril, pintando pescadores, a banca de peixes, a lota, Zélia conseguiu data para que expusesse no Casino. Conversa vai, conversa vem, perguntei-lhe pelo retrato do irmão, ainda o tinha: está na casa de Cabo Frio, dele não abro mão. Zélia e eu voltamos para o Brasil, ele continuou em Portugal. No Natal daquele ano recebi um engradado enviado de Cabo Frio, continha um quadro, o retrato do irmão cego, mudo e surdo de José de Dome. No Estoril dissera-me: dele não abro mão, agora me escrevia no bilhete: quero que fique com você, presente do último Natal de sua vida.

Na casa de Cabo Frio José de Dome possuía um viveiro de pássaros, mais de trinta, variedades de cores e trinados. Naquela manhã vestiu o calção de banho para a ida à praia, quotidiana. Antes de sair dirigiu-se ao quintal, abriu a porta do viveiro, soltou os pássaros, olhou-os voar em direção ao mar, andou para a porta da rua, apenas atravessou o batente caiu morto, foi com pássaros para o céu dos sergipanos onde santa Domitila o esperava, uma flor amarela nos cabelos.

 

 

Paris, 1971.

O filho

 

Tan*, gentil e atento, nos serve os pratos chineses no restaurante Tai-San-Yuen, situado em frente à Sorbonne, ao lado do Museu Cluny, somos fregueses antigos, dos anos do exílio, morávamos pertinho no Hotel Saint-Michel, à rua Cujas. Ao desembarcar em Paris, ali vamos comer o primeiro almoço da temporada.

*Tan Ky Hong.

 

Durante anos, discreto, sorriso tímido, Tan nos oferece o aperitivo em nome dos proprietários, guarda-nos a mesa do canto atrás da porta de entrada, a minha preferência. Conhecemo-nos há bastante tempo, trocamos frases, amabilidades, jamais conversa longa, Tan vai de mesa em mesa, de freguês a freguês, não lhe sobra tempo para a convivência.

Um dia, após retirar os pratos vazios, antes de servir o lichi de sobremesa, perfila-se, pigarreia, estabelece um clima de solenidade, discursa. Revela-se cambodjano, nós o pensávamos chinês, a voz grave nos anuncia:

— Quero vos comunicar que vos escolhi para meus pais.

Dois beijos nas faces de Zélia, bonjour, maman, dois nas minhas, bonjour, papa, nosso filho inesperado, fomos escolhidos pais, nos comovemos. Casou-se com Thérèse, assistimos à festa do casório, jantar de pratos cozinhados no vapor, incomparáveis. Deixou o ofício de garçom, mudou-se de Paris, habita e trabalha em Clichy-sous-bois, pelo ano-novo nos envia foto recente da família, nos braços de Thérèse o último rebento, já nos deu quatro netos, nosso filho cambodjano.

 

 

Carnaxide, 1992.

As pernas

 

Enquanto os senhores mais ou menos graves discutem economia e Ivan* rememora peripécias — o manifesto do Congresso Juvenil Estudantil Proletário e Popular, em 1934, foi assinado por ti, por mim e pelo Carlos Lacerda, te lembras? Lembro-me, Elsie Lessa recorda, com seu jeito traquinas, a década de quarenta, a vida literária, escola alsaciana risonha e franca, narra histórias, a sala se povoa, Zé Lins entra porta adentro.

*Ivan Pedro de Martins, escritor.

 

O almoço em casa de Solange e Luís Henrique** homenageia os quarenta anos de crônicas (admiráveis) de Elsie nas colunas de O Globo, a globe-trotter nos atalhos do mundo, sou seu leitor há quarenta anos. Poderia ser homenagem aos oitenta anos de vida, mas quem diz que ela os cumpre se está na flor da idade, se a cabeça é jovem, reinadia, e a formosa literata de quarenta é hoje a mais bela senhora de Cascais?

**Luís Henrique Pereira da Fonseca, diplomata, Solange, sua mulher.

 

Antes de entrar na sala em Carnaxide, nos bons tempos Zé Lins estava na piscina do Copacabana Palace em companhia de um senhor de fato escuro, colete branco e plastrom, típico intelectual hispano-americano. Elsie saía da piscina em maiô de banho, dava na vista, Zé do Rego chamou por ela. Viu em mim a tábua de salvação, conta Elsie, se adiantou, me disse: esse cara que está comigo é um colombiano, sujeito importante, sociólogo, amigo de Gilberto***. Ele só fala espanhol e eu não falo língua nenhuma Além de que tenho um encontro agora, tá danado. Me tira dessa converse com ele enquanto vou ali, não demoro.

***Gilberto Freyre.

 

Apresentada com os devidos rapapés ao famoso sociólogo, Elsie recusou o uísque, pediu suco de laranja, caprichou no espanhol, meu espanhol de tango, deitou erudição continental: Gabriela Mistral, Cyro Alegria, Eduardo Mallea, Max Dickman, César Vallejo e daí para mais: Subercaseaux, o do Chile o una loca geografia. Fez as honras da casa a capricho, Zé Lins voltou, ela despediu-se, saiu certa de ter deixado impressão favorável acerca de sua condição literária.

Decorridos alguns dias, num almoço da ABI* encontra Zé Lins, o cabelo lustroso, a voz de nordestino arrastada e forte, Elsie quis saber.

****Associação Brasileira de Imprensa.

 

— E o sociólogo? Voltou para a Colômbia? Fiz-lhe sala como me pediste.

— Foi embora, sim, gostou muito de você, deixou até um livro para lhe entregar. Sabe o que ele me disse? Que se você for tão boa para escrever como é boa de pernas deve ser uma grande escritora.

Boa de pernas, boa de escrita, jovem de oitenta anos, Elsie ri, riso de moleque, eu o ouço há quarenta anos. José Lins do Rego, de novo entre nós, a acompanha, solta a gaitada dos meninos de engenho da Paraíba.

 

 

Panamá, 1973.

Os antituristas

 

Conselho se pede, não se dá, não sou de dar conselhos mas quem viajou e se estrepou, pagou o pato por não aceitar alvitre de quem sabe as coisas, tem deveres para com o próximo, assim me sinto. Acresce que, no caso, o conselho não provém apenas de minha experiência, quem vos ensina a gramática do globe-trotter, com conhecimento e prática bem superiores às minhas, é o senhor Júlio Páride, Carybé de nome verdadeiro. Em algumas ocasiões o certo é colocar de lado os preconceitos, despir-se das roupagens da elite intelectual, assumir a condição de turista, acompanhar o rebanho para não rebentar os chifres no muro dos equívocos.

No Panamá há uma semana, esperando o navio que nos levaria ao Rio, já havíamos feito tudo e o resto, a demora começava a ficar chata, eis que Zélia chega do salão de beleza, engalanada, unhas feitas, repleta de prospectos. Propõe partirmos em visita aos índios da ilha de San Blas, os que fazem as molas*, trabalho realizado com tiras coloridas de tecido costuradas em forma de desenho, ora abstrato, ora representando animais, as molas são o cartão de visita do país. Compráramos em grande quantidade para nossa casa e para presentear amigos, Zélia anuncia: em San Blas, além da beleza das ilhas, do contato com os índios em seu quotidiano, teríamos molas a preço de banana. Contagiado, parti com Zélia para a agência de viagens.

*Artesanato dos índios panamenhos.

 

O que sobretudo nos seduzira, a ela e a mim, fora o conjunto arquitetônico formado por malocas iguaizinhas às habitadas pelos índios mas dotadas com o conforto dos hotéis de cinco estrelas — a descrição no prospecto colorido despertava entusiasmo, as fotos em cor exibiam cabanas novas em folha em meio às palmeiras, tentação para os amantes da natureza, dormir ali ao menos uma noite passou a ser a aspiração de nossas vidas. Por uma noite seríamos índios panamenhos na circunstância de maloca equipada com a tecnologia e a mordomia exigidas pelos hóspedes ianques.

O senhor ao guichê, magro, de meia-idade, nos informou sobre a excursão: partia para as ilhas às nove da manhã, conduzindo vinte e dois turistas. Vôo curto cruzando o estreito, chegaríamos à ilha onde estavam instalados a administração e o conjunto hoteleiro, dali partiríamos em canoa para a visita às demais ilhas, habitadas pelos índios, convívio direto com as tribos, o gozo da ecologia: as danças rituais, os cantos guerreiros, a aquisição de molas autênticas pagando pouco. De volta à ilha principal, o almoço de pratos regionais, por fim às 15 horas o regresso à cidade de Panamá. Tudo ótimo, preço conveniente, mas, para nós, não bastava, queríamos prolongar a estada até o dia seguinte, alugar uma das malocas, nela passar a noite, não éramos turistas, não nos confundisse com o rebanho.

O senhor do guichê nos considerou com ar que me pareceu entre piedoso e reticente, com certa vivacidade — não fosse ele

o vendedor dos pacotes eu diria que o fizera com insistência —

nos aconselhou a nos contentarmos com a excursão habitual salientou o preço salgado da diária nas malocas. Maior que a sua foi a nossa insistência, não éramos turistas, jamais o seríamos, queríamos a maloca, o preço não importava. O homem do guichê estava ali para vender excursões, hospedagens, bilhetes de viagem, já havia atendido aos reclamos da consciência, suspendeu os ombros, satisfez-nos a vontade.

Na ilha principal apenas algumas habitações, residências precárias da guarnição, meia dúzia de soldados panamenhos, e o restaurante distante uns cem metros do conjunto das malocas. Deixamos a maleta com a gerente do restaurante, davam-nos pressa, tomaríamos posse da maloca ao voltarmos, de longe pareciam lindas e confortáveis. Embarcamos nas canoas anunciadas nos prospectos, não eram canoas e, sim, barcos a motor, visitamos as ilhas plantadas de palmeiras, pitorescas, contactamos com os índios: mansos cidadãos, comerciantes sabidos.

Duas dezenas de nativos, mulheres na maioria, em trajes típicos — soubemos que o grosso da população partia manhãzinha para o continente em canoas, verdadeiras, sem motor, no continente os índios laboravam as terras dos ricaços. Ficavam nas ilhas aqueles poucos para o canto, a dança, o comércio de molas. Visitamos três ilhas, uma em seguida à outra, a dança e o canto, repetidos, a venda e a compra de molas, mais caras do que as das lojas da capital, pagava-se a cor local, o exotismo. O regresso à ilha inicial, o almoço fraco, o embarque dos excursionistas no avião ao meio da tarde, a partida da máquina voadora. Zélia e eu nos vimos sozinhos, quando digo sozinhos não estou usando de metáfora, refiro a realidade. A índia que vendia molas em frente ao restaurante recolhera seu material, fora-se embora, para onde só Deus sabe. A mestiça de espanhol que dirigira e servira o almoço fechava o restaurante, preparava-se para partir, restituiu-nos a maleta, entregou-nos um molho de chaves, indicou-nos com o dedo o conjunto das malocas, perguntamos qual a nossa, disse-nos para escolher qualquer delas, estavam todas vazias, éramos os únicos hóspedes. Custou-nos muito rogo e gorjeta alta obter que prometesse voltar às seis da tarde para nos servir um prato de sopa, os restos do almoço.

Tomamos da maleta, marchando sobre terreno encharcado dirigimo-nos às malocas. Erguidas no brejo, pouco usadas, quase novas, continham cama, colchão sobre estrado de madeira, armário empoeirado, roupa de cama: dois lençóis, um cobertor de lã, úmidos, ali postos sabe Deus quando, o cheiro de mofo e a nuvem de mosquitos. Mosquito é o que existe de sobra no Rio Vermelho, até nos orgulhávamos, arrotávamos recorde mundial, mas diante da mosquitaria das ilhas de San Blas perdemos a empáfia, reconhecemos nossa modéstia. Nem na Amazônia, quando por lá andei tirando cadeia, admirei exércitos de mosquitos assim numerosos e aguerridos. Olhamos um para o outro, eu e Zélia, cabiam-nos duas opções: rir ou chorar, preferimos rir e louvar os escrúpulos do senhor do guichê, fizera o possível para mudar nossa decisão, mais não podia fazer, era pago para vender excursões aos turistas e alugar malocas a algum louco que por ali aparecesse, fugido do hospício. Aparecêramos dois, Zélia e eu.

Voltamos ao restaurante acompanhados pela vanguarda do exército de mosquitos, zuniam um canto de guerra, o campo de batalha eram nossos pescoços e nossas faces. O restaurante estava fechado, à falta de cadeiras sentamo-nos no batente da porta, pedi a Zélia para cantar modas brasileiras, terminei por botar a cabeça em seu regaço, estirar-me no assoalho, adormeci, Zélia cobriu-me o rosto com o lenço mas os mosquitos de San Blas eram competentes, ficamos, eu e ela, repletos de picadas. A mulher do restaurante apareceu na hora marcada, sopa apenas morna, dois pedaços de peixe, requentados, nem sobremesa, nem café. De novo sozinhos, Adão e Eva em jejum entre os mosquitos, regressamos à maloca, nem mudamos a roupa, estiramo-nos na cama, a nuvem de mosquitos nos cobriu. In-vejamos os turistas, àquela hora banhados, alimentados, fazendo amor em bom hotel.

Na manhã seguinte, estremunhados, famintos, sujos, o chuveiro da maloca não funcionava, como e alma picados, coçávamo-nos sem parar, aconteceu o inesperado: a chegada de pequeno avião em busca de soldado enfermo, queimando de febre, no delírio da maleita transmitida pelos mosquitos. Brasileiros, eu e Zélia, estávamos a salvo, ela por paulista empaludada desde a infância, eu por grapiúna imune às epidemias. O aviador concordou em nos salvar a vida, pela janela do aparelho olhamos a paisagem, vistas do alto as malocas faziam efeito, o ideal para um fim de semana de repouso, como rezava o prospecto ilustrado a cores.

Com Carybé sucedeu pior: acalentava o projeto de conhecer a Ilha de Páscoa, sonho de toda sua vida. Terminou por descobrir um vôo semanal da Air France, levava turistas da França ao Taiti com escala de horas, quantas não sei, na Ilha de Páscoa. Inscreveram-se ele e Nancy mas, não sendo turistas — no rebanho não nos pegarão jamais, jurava o artista —, não se sujeitariam à limitação dos horários de excursão, interromperiam o vôo na Ilha de Páscoa, lá ficariam durante uma semana, no vôo seguinte prosseguiriam para o Taiti. Carybé queria demorar-se na visão e no exame das esculturas, não espiar de relance como o faz o compadre Jorge.

Desembarcaram, junto com os turistas visitaram a ilha, viram as esculturas todas sem faltar nenhuma, exclamações de assombro: olalá! voilà! ça alors!, os franceses embarcaram, o avião partiu, Nancy e Carybé ficaram em terra, eles e os nativos. Chovia a cântaros, nem hotel, nem pensão, nem quarto com banheiro a alugar, obtiveram a preço de ouro hospedagem em cabana de pescador, mataram o tempo jogando biriba — Nancy não se separa do baralho, ainda bem —, Carybé tem horror, detesta qualquer jogo de carta, odeia biriba e chuva, antiturista por excelência teve biriba e chuva a semana inteira.

É no que dá o preconceito contra o turismo e os turistas, preço a pagar para ser aquele intelectual retado, um porreta, preço que pagamos Zélia e eu nas Ilhas de San Blas, os compadres Nancy e Carybé na Ilha de Páscoa.

 

 

Bahia, 1982.

Alívio

 

Duas preocupações assaltaram-me naqueles dias de confraternização luso-brasileira. A primeira referia-se à exposição de José Franco*, a segunda à conferência de Namora**. Haveria compradores para as peças do artista? Haveria público para ouvir o escritor?

*Ceramista português.

**Fernando Namora, escritor português.

 

Sob o comando de Manuel Telles, Santos Martins* e Nuno Lima de Carvalho desembarca na Bahia com objetivo de intercâmbio cultural luzidia delegação d'além-mar, basta citar alguns nomes da literatura, das artes, do jornalismo: Amália Rodrigues, José Carlos de Vasconcelos, Cargaleiro, Relógio, Dorita, o Conde da Bahia Chartres de Almeida, Amadeu Costa, folclorista de Viana do Castelo — não eram os únicos, estavam outros expoentes, vieram às carradas.

***Santos Martins, embaixador, na época Presidente da TAP.

 

Helena e José Franco possuem casa no Rio Vermelho, com placa de cerâmica na porta da rua, são baianos. Zélia e eu possuímos casa e atelier em Sobreiro, somos saloios. Na Bahia José Franco usou o forno de Grace* para queimar peças amassadas em barro brasileiro, os santos do artesão de Mafra figuram em coleções, quanto a mim juro pelos galos, pelos porcos, pelos bois, pelas bilhas, pelas bonecas — tenho para mais de vinte saloias na varanda e os grandes galos cantam na entrada da casa, quantas peças possuímos saídas das mãos criadoras de mestre Franco? Perdi o número.

*Grace Gradim, ceramista.

 

Sendo ele, porém, desconhecido na Bahia, temo que a exposição na Galeria do Hotel Salvador Praia mesmo sendo sucesso de vernissage não o seja de vendas. Enganei-me, ainda bem. Meia hora depois de aberta ao público, que sobrou da sala tão numeroso foi, não havia mais uma peça disponível, todas vendidas num piscar de olhos, José Franco teve de voltar ao forno da casa de Grace para queimar novos santos, as encomendas se acumularam.

Quanto à conferência de Namora, na Universidade, a convite de Cláudio Veiga*, meus temores vinham do fato de que ela seria balizada em dia de jogo do Brasil na Copa do Mundo da Espanha. Escritor português de público brasileiro cativo, o mais lido depois de Ferreira de Castro, não lhe faltariam ouvintes em outra ocasião toas em dia de jogo entre a Pátria e a União Soviética, válido para a classificação, quem deixará o pijama e as chinelas para ir ouvir inferência sobre a moderna literatura portuguesa? A hora do encontro de Namora com seus leitores não coincide com a do jogo, Cláudio Veiga não é louco nem muito menos, marcou para duas horas antes, ainda assim tremo nas bases.

**Cláudio Veiga, na época diretor do Instituto de letras da UFBA.

 

Respiro quando, ao chegar ao Instituto, encontro a sala repleta, todas as cadeiras ocupadas, gente de pé, muitos jovens, detalhe do agrado do romancista que começa por autografar dezenas de livros. Namora fala por uma meia hora, traça o panorama da poesia, da ficção, do ensaio lusitanos. Seguem-se as perguntas dos leitores, muitas e ricas de interesse. Fanático de futebol, olho as horas no relógio, também as olha Cláudio, com discrição. Um jovem se levanta, diz que tem uma série de questões a colocar, todas de interesse. Namora também controla a hora no relógio:

— Vamos marcar encontro em meu hotel, lá responderei a tudo que quiser. Aqui, agora, não, pois vamos encerrar nosso encontro, está na hora de torcer pelo Brasil, por Sócrates, Falcão e Zico — sabe o time de memória, recita os nomes, ovação.

Cláudio Veiga respira aliviado, eu também, o público sai em disparada. Na casa do Rio Vermelho, bebericando uísque, Namora assiste na televisão à vitória do Brasil, 3x1 se me recordo bem.

 

 

Paris, 1988.

O helicóptero

 

Aprontei muitas e boas (boas?) e para todas Zélia buscou e encontrou desculpas nas limitações do indivíduo que lhe coube por revés da sorte: ignorância, incompetência, imperfeição, tendências, instintos, o caráter do delinqüente.

Perdoou-me todas, menos uma. Ainda hoje o tema do helicóptero do Presidente é tabu, evita-se falar, se o assunto vem à tona provoca mal-estar, riso amargo, motejo, ranger de dentes. Aconteceu em setembro, no fascínio do outono, as enfermeiras insurgiam-se em Paris, do automóvel oficial vimos a manife imensa cruzar a ponte sobre o Sena, os cartazes, as faixas, o protesto — sinto-me solidário, Zélia sussurra-me sua tentação de descer do carro e juntar-se às celestinas, não consegue resistir a uma boa manifestação de rua. Helicópteros da polícia, em prevenção e advertência, sobrevoam o cortejo das reivindicações.

Convidados do Presidente da República vamos almoçar a cerca de cem quilômetros, no Castelo de propriedade de Thierry de Beauce, na ocasião Secretário de Estado para Assuntos Culturais no Ministério das Relações Exteriores. O que se chama de almoço íntimo, poucos convivas, nem pauta de trabalho nem tese a debater, bate-papo ao correr dos vinhos, o branco, o tinto, preciosos ambos. O anfitrião, François Mitterrand, à cabeceira da mesa, em derredor, além do proprietário do Castelo, a editora Odyle Jacob, o escritor Jorge Semprun, Ministro da Cultura da Espanha, Jorge chegou de Madri especialmente, Michele Cotta* e o casal de escribas brasileiros.

*Personalidade notória da TV francesa.

 

Falou-se da França, da Espanha, do Brasil, da Europa em construção, do mundo em decomposição, os impossíveis do leste europeu, os espantos — Zélia e eu partiremos para Moscou daí a dois dias, vamos ver com nossos olhos que a terra há de comer. Dizer que o almoço foi agradável é pouco dizer: eu diria pequena obra de arte, miniatura belle époque. Grande painel das eleições presidenciais francesas, o rápido esboço de uma aparição na tevê, sempre obra de arte, de perfeita execução e fino acabamento, assim vejo e aprecio a presença e a atuação de François Mitterrand: mais do que homem político — e como ele o é! — um artista no encargo e no prazer da criação.

Após a refeição, a visita ao Castelo, a conversa se prolonga, aqui nasceu Villegaignon, terminou ilha na Baía de Guanabara, a cadela negra salta em torno a seu dono, Mitterrand afaga-lhe a cabeça, chega a hora de partir, o Presidente da França tem muito o que fazer, o helicóptero da Presidência esquenta os motores, Jorge Semprum embarca. Apresentamos nossas despedidas, Mitterrand nos convida a ir com ele no helicóptero, pega-me de surpresa — Zélia se assanha inteira, da cabeça aos pés, o convite a encanta, adora voar e se a máquina voadora é presidencial, ah que convite mais gentil, mais bem-vindo, mais irrecusável. Antes que abra a boca e aceite, deleitada, falo eu, o grosso.

Recuso o irrecusável, recuso de pé firme, sem deixar lugar à dúvida, à discussão: muito obrigado, Presidente, merci, M. le Président, não serei eu a entrar nessa máquina infernal. Se não Sabem, fiquem sabendo: tenho horror aos aviões, mas esse horror é nada, coisa alguma, se comparado ao pavor que tenho dos helicópteros — aquelas pás no alto do aparelho a se moverem me aterrorizam: podem parar a qualquer momento.

Mitterrand insiste, vôo de quinze minutos até o Palais de l'Elysée, mandará o carro nos levar ao Quai des Celestins, por que fazer cem fatigantes quilômetros de automóvel? Zélia desfeita repete a pergunta do estadista: por quê? A voz dura da senhora me alarma, sei o que me espera, mas faço das tripas coração, comprovo minha condição de homem, de macho: recuso-me a entrar no helicóptero, morro de medo, Presidente, essa a verdade. Não olho para Zélia, não sou doido.

Cem quilômetros de carro até Paris, estrada ótima, refastelados num Citroen cara-de-sapo do maior conforto, mordomia ministerial, não consigo arrancar uma palavra de Zélia, sorriso nem pensar — a cabeça no helicóptero presidencial. A doce face faz-se severa, o olhar perdido no desgosto, puxo conversa, comento o almoço, recordo a inteligência, o bom humor, a malícia dos convivas e do anfitrião, digo gracinhas, exibo-me, exagero. Silêncio de túmulo, o automóvel, mísera máquina do começo do século, é uma acusação em movimento.

A manifestação das enfermeiras dissolvera-se na Praça da Bastilha, um cartaz abandonado junto à ponte acusa os potentados, a indignação contra as injustiças da vida sombreia o rosto de Zélia, fechado nas copas do desgosto. O ruído das pás cortando o ar, um último helicóptero da polícia sobrevoa, a baixa altura, o automóvel da decepção.

 

 

Colônia, 1970.

A batina

 

Arlete Soares nos leva pelas estradas da Europa, de Portugal à Escandinávia, nas asas da longeva quatre-elles, nem um único incidente em milhares de quilômetros. Vive em Paris, na Cite Universitaire, comanda na Maison du Brésil o combate ao regime militar, os espiões do SNI destacados no estrangeiro a espionam dia e noite, Aríete não dá bola, faz o sol e a chuva, dita a lei entre os bolsistas brasileiros. Ela própria bolsista, redige tese de doutorado sobre os pescadores da praia de Jauá na orla da Bahia, governa hoste de moças contestatárias. Cida, Rina, Dina, Saula, Marta, a portuguesa Rosa, botão de rosa, cada qual mais linda escrava. Para levar a tese avante, Aríete trabalha de balconista em butiques de perfume, de doméstica na casa de Miguel Angel Asturias e da comadrita. Entre a política e o amor não terminou a tese que prometera me dedicar: cadê a tese, Aríete?

Em Colônia (ou foi em Munique?) pendura-se horas ao telefone, eu a vejo de volta toda prosa, quero saber o porquê da euforia:

— Dei sorte, o padreco estava na paróquia, falei com ele, marquei encontro.

— Namorado?

— Não sabias que sou nora de Deus?

Conta os amores com sacerdote católico, também ele bolsista, se hospeda na Cite quando em Paris, um alemão loiro o corpo todo, da cabeça aos pés, uma espiga de milho. Aríete ronrona.

— Prêtre ouvrier? — Os padres operários estão em moda, são de esquerda e Aríete est une radicale de gauche.

— Não, vaticano puro no temor de Deus, na obediência ao Papa. Veste batina, só a retira na hora agá e olhe lá: em cima da pele branca, a batina negra. Foi a batina que fez minha cabeça.

Toma do volante da quatre-elles, parte ao encontro do servo de Deus que por amor a ela renegou os votos de castidade, tirou a batina, perdeu a virgindade, praticou o pecado da carne, pecado mortal, Aríete é o Tentador em figura de gente.

 

Devo e não nego, a deus e ao mundo, ao diabo e à mãe-de-santo, ao grande e ao pequeno, influências que sofri, sofri não é o termo justo, só me trouxeram benefícios. Se devoro livros até hoje, eu o devo ao pai Dumas, o mulato Alexandre, foi ele quem me deu o gosto de ler, o vício: aos onze anos encontrei abandonado no navio para Itaparica o exemplar de Os Três Mosqueteiros, contraí o vírus da leitura para sempre.

Devo a Rabelais e a Cervantes, deles nasci. Devo a Dickens: me ensinou que nenhum ser humano é de todo mau, a Gorki: me deu 0 amor aos vagabundos, aos vencidos da vida, os invencíveis. Devo a Zola, com ele desci ao fundo do poço para resgatar o miserável, a Mark Twain devo ter soltado o riso, arma de combate, a Gogol, o nariz, as botas e o capote.

Devo a Alencar o romantismo e a selva, a Manuel Antônio de Almeida a graça da picardia, do burlesco, na praça do povo soltei o verbo com Castro Alves, denunciei a infâmia, com Gregório de Matos aprendi a generosidade do insulto fui boca de inferno, cuspi fogo, pela sua mão descobri as ruas da Bahia, o pátio da Igreja, a viela das putas.

Devo ao cronista anônimo do Mercado, ao contador de casos da feira de Água dos Meninos, ao trovador devo o arroubo, a invenção ao mestre de saveiro: namorou Yemanjá nas cercanias da ilha de Itaparica, dormiu com Oxum no leito de águas mansas do rio Paraguassu, possuiu Euá na cachoeira de Maragogipe, derrubou-a na fonte de caracóis e pétalas de rosa. É necessário saber e inventar.

Devo ao poeta de cordel, devo.

 

 

Praga, 1952.

O bravo soldado

 

Respondo carta de Miécio Tati, quer saber se Kafka é o espelho do povo tcheco, sua face, seu coração. Para Miécio a literatura é coisa viva, não apenas papel impresso, perdura além das páginas dos livros, os personagens andam nas ruas. Encontro nas ruas de Praga os personagens de Kafka?

Creio que os personagens de Kafka, nós os encontramos em todos os caminhos do mundo, em todos os becos da angústia, não importa se são tchecos, alemães, judeus, poderiam ser brasileiros, não é a nação que os marca e, sim, o drama, são uma casta e não uma pátria. Se queres saber dos tchecos, quem são e como são, eu te recomendo ler Jaroslav Hasek*, seu livro sobre as aventuras do bravo soldado Chveik, ali, sim, está a nação. O sargento patriota que se inscreve soldado para fazer a guerra, ingênuo de aparência, é em verdade a recriação do povo tcheco, mestre da astúcia e da generosidade, intrépido e manhoso, sério mas não severo, risonho porém jamais estrepitoso. Figura imortal, o soldado Chveik: poucas vezes um romancista encarnou com tal graça e tamanha perspicácia a imagem de seu povo num personagem, Hasek é o espelho da Boêmia e da Morávia. Consigo um exemplar da edição francesa da história do bravo soldado e o remeto a Miécio.

*Jaroslav Hasek (1883/1923), escritor tcheco.

 

Se há quem ainda não tenha lido a saga de Chveik, Dom Quixote contemporâneo, aconselho a que o faça o quanto antes, estou certo de que me agradecerá pelo alvitre. Complete a paixão por Hasek lendo, se tiver a sorte de o encontrar à venda, a curta ficção que ele escreveu contando suas aventuras de comissário político do Exército Vermelho nos idos de 1919, nos começos heróicos e românticos da revolução soviética: a sátira e a solidariedade. Quando o li já Miécio tinha morrido, foi-se moço dessa vida, já não pude lhe enviar exemplar, ele devorara Le brave soldat Chveik: espelho do povo, me escrevera agradecendo.

 

 

Bahia, 1963.

A missa

 

Dom Clemente* vem em visita de pêsames, abraça Lalu, apresenta-lhe as condolências pela morte do Coronel.

*Dom Clemente da Silva Nigra (1903/ 1987), monge beneditino, diretor do Museu de Arte Sacra da Bahia.

 

Veste calça e paletó, camisa aberta no peito, impecável, penteado, perfumado, um almofadinha, desfila pela casa, vai de objeto em objeto, comenta as peças da coleção de arte popular, gestos adamados. Dom Clemente é notabilidade, museólogo eminente, montou e dirige o Museu de Arte Sacra, bem da cidade, menina dos olhos de Edgar Santos, seu renome corre mundo. O dom Maximíliano de O Sumiço da Santa tem algumas coisas dele: a erudição, a competência, os ademanes. Lalu segue a visita com olhos de suspeita: será por acaso avinhais? Por avinhais ela designa os homossexuais, vá-se lá saber por quê, dona Angelina diz mariquinhas, as duas matriarcas da casa possuem vocabulário próprio.

— Quem é este senhor? É mais um pintor? — Pintor para Lalu é sinônimo de vagabundo, boa-vida.

— Não, mãe. Este é dom Clemente, é padre.

Dom Clemente se distancia na varanda, Lalu duvida:

— Padre? Não parece.

— Foi ele quem rezou a missa de mês do velho.

— Ele rezou a missa de João? Chi... Então tem de mandar celebrar outra porque essa não valeu.

 

 

Montreux, 1988.

A máfia

 

Em Montreux encontro Alfredo Bini**, meu velho cúmplice de cinema e farsa, somos membros do Júri do Festival de Cinema Eletrônico em companhia dos metteurs-en-scène Bertrand Labrusse, Marina Goldovskaya e Nagisa Oshima, o do Império dos sentidos — Bini propõe que o japonês faça demonstração pública de cenas da película famosa, com bom humor Oshima promete um strip-tease, é pessoa de boa convivência.

**Bini, produtor de cinema italiano.

 

A soviética Goldovskaya e Fan Siao Ping, produtora radicada em Hong-Kong, se apaixonam por película japonesa, paisagens filmadas com competência, irresistível debulhar de lágrimas, romantismo. Bini e eu preferimos um comercial da Fiat, no gênero é obra-prima. Evidente a inclinação da maioria do júri para conceder o Grande Prêmio à película dos suspiros, a russa conta nos dedos os compromissos, arrota vitória antes de tempo, não levou a sério a dupla Bini-Amado, imbatível em tais desafios. Além do Grande Prêmio existem prêmios por categoria: ficção, documentário, propaganda, musical, invertemos a ordem de votação, começamos pelos prêmios das categorias, por unanimidade o nipônico das paisagens lindas é proclamado vencedor na categoria ficção, por já ter sido escolhido o declaramos fora da competição para o Grande Prêmio, a ele e aos demais premiados: o comercial da Fiat concorre sem competidor que possa ameaçá-lo, abiscoita a láurea. A soviética não consegue entender o passe de mágica, até hoje não encontrou explicação para o sucedido: o filme japonês contava com a maioria absoluta como se explica que o comercial italiano tenha levado a palma? Me pergunta, mando-a a Bini, Bini escuta e sorri: que mulher no mundo resiste ao sorriso de Alfredo Bini? Não sei de nenhuma, quem souber me diga.

Em hora da saudade, Alfredo me diz: precisamos inventar uma produção baseada em romance teu para que eu possa voltar ao Brasil, é tudo que desejo, rimos recordando ocorrências passadas durante a tentativa de colocar de pé a produção de filmes baseados em livros meus, Bini quer assegurar os direitos para cinema de meu próximo romance: vou tratar de pôr de pé a produção, fique descansado.

Nada teve ele a ver, no entanto, com o telefonema de Dino de Laurentis* nos meados da década de cinqüenta, quer saber quais os meus romances livres para o cinema, está de viagem para a Venezuela, vai filmar a vida de Bolívar, já que se encontrará na América do Sul daria um salto no Brasil para rodar filme inspirado em história minha, a idéia me empolga, forneço títulos, De Laurentis vai escolher um deles, voltará a telefonar, nunca mais telefonou, decerto descobriu a tempo que a distância a separar Caracas do Rio de Janeiro não é tão curta como a que separa Roma de Paris.

*Dino de Laurentis, produtor de cinema italiano.

 

Tampouco teve Bini a ver com o projeto de De Sica de filmar o conto do comandante Vasco Moscoso de Aragão com roteiro de Zavattini*, o projeto ficou nas conversas e nos telefonemas — o que os produtores italianos gastam em telefone daria para financiar filme brasileiro. Falando no Capitão de Longo Curso, festejarei em breve vinte anos de relacionamento com Anthony Quinn e de seu projeto de filmagem, a história de Vasco Moscoso o fascina, para levá-lo a cabo associou-se com a Warner Brothers, proprietária dos direitos de cinema do romance. Anuncia vindas à Bahia, marca encontro, esquece de avisar que suspendeu a viagem. A indústria do cinema é especial, não se rege pelas mesmas leis que as demais.

*Cesare Zavattini (1902/1989), roteirista italiano.

 

O primeiro a adaptar romance meu para cinema italiano foi Sérgio Amidei, a produção seria de Carlo Ponti com Sofia Loren no rol de Lívia, o projeto não se realizou apesar de Bini não estar metido na produção. Também não lhe cabe culpa em minhas aventuras com Rosselini, o pai — teve participação no projeto do filho, Renzo, mas vamos por partes, respeitando os direitos dos mais velhos comecemos com Roberto, o grande, o magnífico, o inesquecível, não apenas por se tratar do autor de Roma, Cidade Aberta mas também por ser aquela maravilha de pessoa.

Telefonema de Roberto Rosselini, trocamos lembranças de Roma, recordações, nos conhecemos de há muito, o motivo da chamada é comunicar-me sua decisão de filmar Jubiabá, quer saber se os direitos de cinema estão livres, estão, sim, respondo, então o produtor vai te enviar um contrato, anuncia-me dólares às dezenas de milhares, a emoção desata-me os intestinos, Rosselini chegará ao Rio daí a quinze dias para os trabalhos de locação e para discutir o roteiro, voltará a telefonar para dar o número do vôo e a data exata. Voltou a telefonar cinco anos depois, deu a data exata e o número do vôo mas esquecera por completo o assunto da filmagem de Jubiabá, vinha para fazer um filme em episódios sobre o Brasil como o que fizera sobre a índia, obtinha sucesso nas salas de cinema: conto contigo, me disse.

Conto contigo, e como! Fez-me escrever em quinze dias onze histórias diferentes para os onze episódios do filme, passados em onze cidades: Rio, São Paulo, Bahia, Fortaleza, Manaus, Porto Alegre, Ilhéus — uma história ligada ao cacau —, Blumenau, Goiânia, Santos e São Luís do Maranhão, cada uma com tema e Personagens específicos, a loucura. Hospedara-se no Copacabana Palace, em frente de nosso edifício na Rodolfo Dantas, tomava o café-da-manhã, vinha ao trabalho, trabalhei como um escravo. Sem falar que, a partir de certa hora, começavam a chegar os amigos, o apartamento se enchia, rolava o uísque, Di Cavalcanti, Samuel Wainer, Adolfo Celi. Rosselini atacava ao mesmo tempo as duas linhas de trabalho: a redação do cenário e a criação de um grupo de magnatas brasileiros para a co-produção, Samuel traçava planos, telefonava a capitalistas, rolavam no gabinete cifras de milhões. A lida e o pagode: a invenção dos contos, os almoços, os jantares, as boates, foram quinze dias de arrocho e pândega.

Terminadas as histórias, roteiro concluído, iniciadas as negociações com os banqueiros nacionais, Roberto disse até logo: vou a Roma terminar de pôr de pé a produção, volto em seguida com a equipe, nunca mais voltou. Quem veio, anos depois, foi seu filho Renzo, veio com Bini, tratava-se de Tieta.

Bini já viera antes em companhia de Franco Cristaldi*, velho amigo meu, eu o conhecera jovem produtor quando naqueles antanhos sonhei em Roma ser cineasta, sonho triturado na militância partidária. Vieram Franco e Alfredo comprar-me os direitos de Tereza Batista por cinco anos, compraram e até pagaram: por fim depois de tantos anos eu vi a cor de dólares italianos. Ouvindo-me relatar as contingências anteriores, gratuitas, Bini arrotou riqueza e correção: comigo é assim, pão pão queijo queijo.

*Franco Cristaldi, produtor italiano.

 

Já não estava Franco casado com Carla Simonetti, tendo produzido um filme estrelado por Zeude Araya, negra abissínia de beleza para dar e vender, apaixonou-se perdidamente e para sempre, fez de Zeude esposa e estrela, seria a Tereza da película. Estiveram na Bahia, exibi Zeude no Mercado Modelo, foi aprovada com louvor e gula para o papel pelos bebedores do caldo de lambreta com cachaça — afrodisíaco de primeira —, Zeude nada ficava a dever em matéria de beleza à personagem, e de afrodisíaco bastava ela própria: Zeude maravilha!

Terminados os cinco anos do contrato, Bini deslocou-se da China onde filmava com Cristaldi a película sobre Marco Polo, veio encontrar-me em Lisboa, por mais cinco anos os compadres compraram-me os direitos, pagaram-me corretamente, pão pão, queijo queijo, repetiu Alfredo. A pretexto de montar a produção, no decorrer daqueles dez anos, Bini, o produtor, esteve diversas vezes na Bahia. Mais que uma festa, sua presença era um festival, não se inventou ainda ninguém mais agradável do que Alfredo Bini. Os dez anos se esgotaram, o filme não chegou a ser iniciado, mas o que nos divertimos daria um livro.

Não tendo mais Tereza Batista, Bini passou-se para Tieta, foi quando desembarcou com Renzo Rosselini, anunciando para os dias próximos a chegada de Lina Wertmuller. Enquanto a aguardava, Bini se juntou de cama e mesa, na prática esposou judia jovem e graciosa, cujo marido, marchand de tableau, encerrara seu negócio de arte na Bahia para abrir galeria em São Paulo, queria enricar muito e depressa como sucedera com Valdemar Szaniecki, seu conterrâneo de raça e religiões, ambos ortodoxos, ambos ogans de candomblé. Abandonou a boazuda sem dinheiro a cuidar dos filhos, Bini a conheceu no banho de mar, italiano bel'uomo, famoso cineasta, ela se encantou, precisava de consolo, ele se propôs, era de bom consolo, ela não aceitou subir ao quarto do hotel, não pegava bem, mas o convidou para jantar no lar vazio, casa de viúva em luto. Bini levou vinho alemão por falta de marca italiana no mercado, hospedou-se com a abandonada durante o resto da estada na Bahia, usava pela manhã pijama do marchand, durante a noite não precisava, os jogos de cama ele e a formosa os praticavam em pêlo. Encontrou-a triste e deprimida, logo lhe voltaram o riso e a euforia, quanto ao lar, quando ele chegou, estava em total desorganização, uma bagunça, as crianças mal-educadas, pouco afeitas ao estado, cobradores à porta exigindo pagamento de contas em atraso. Bini pôs tudo nos eixos, a casa ficou um brinco, não por acaso era produtor de filmes, discutiu com os credores e os convenceu a esperar com paciência e esperança a volta do marchand, os bolsos recheados de dinheiro ganho em São Paulo, botou os meninos a fazer banca, deu uns cascudos no mais velho, puxou a orelha do sardento para lhes ensinar obediência, no terceiro dia os meninos já lhe pediam a bênção. Em curso intensivo, aulas pela manhã, à tarde e durante toda a noite, doutorou a dama em variadas matérias da boa brincadeira, ela só conhecia o bê-a-bá sionista, deixou-a em ponto de bala, apta a festejar como devido a volta do marido.

Lina Wertmuller chegou à Pedra do Sal pela mão de Bini, Zélia e eu a recebemos de braços abertos, adorávamos seus filmes. Ela trazia pronto o roteiro adaptado de meu romance, pela primeira vez Lina ia filmar história alheia, até então somente rodara argumento seu. Mostrou-me o manuscrito, colocou-o sobre a estante: quero que leias e me digas. Lina ia partir em viagem, o sertão da Bahia, o estado de Sergipe, as cidades de Aracaju e de Estância, a praia de Mangue Seco, ia ver os locais, tratar com a gente, encher-se de Brasil, assim me disse e acreditei. Agradeci e recusei o convite para acompanhá-la no teco-teco alugado por Bini para sobrevoar campos, praias e povoados a baixa altura. Quanto ao roteiro, adiei a leitura para a volta de Lina, sei quanto é falsa e deformada a visão que os intelectuais europeus fazem do Brasil, conhecem de ouvir dizer, em geral de ouvir dizer ideológico, maniqueísta.

De retorno dias depois, ao entrar na sala, Lina me perguntou:

— Leste o cenário?

Disse que não o havia lido, estava onde ela o pusera, na estante. Respirou aliviada: ainda bem que não o leste, não tem o que se aproveite, o Brasil não é nada do que escrevi. Nada do que ela havia ouvido e imaginado, do que pusera em sua história, era diferente; por vezes o oposto. Ali mesmo rasgou as páginas do roteiro: vou escrever outro, agora sei, irás gostar, me disse. Assim aconteceu, o novo cenário recriava o Brasil com os olhos e o talento de Lina. Pena a falência do Banco Ambrosiano, liquidou o projeto às vésperas de se iniciarem as filmagens de Tieta.

Ah, a máfia do cinema italiano, adorável. Dinheiro escasso, filmagem só de raro em raro, mas que prazer de criação, que encanto de convivência, que calor de amizade. Eu os adoro, os mafiosos da irreverência, da graça, da loucura solta, não fossem assim não teriam realizado o milagre do cinema italiano, único, a exaltação do homem, o mais miserável é um comandante, um sonhador, a mulher mais puta é uma madona, uma santa sem pecado, Ia mamma.

Outro dia, quando o assassinato de Chico Mendes estava nas manchetes, Bini me telefonou de Roma para a Bahia: quanto queres para escrever um roteiro de cinema, a história de Chico Mendes, os seringais, os garimpeiros, os índios, a floresta virgem, já estou pondo a produção de pé, te pago em dólares, já imaginaste como vamos nos divertir na Amazônia?

 

 

Purchase, 1979.

Os charutos e o vinho

 

A cada portador eu enviava para Alfred Knopf charutos baianos como nome do gringo gravado nas caixas, repetido no anel em volta da regalia, charutos de São Felix enrolados nas coxas das moças ribeirinhas. Fernando Suerdieck*, herdeiro da indústria e da tradição, fornece-me o presente no capricho — e de graça. Fumante e entendido, Alfred me garante serem os charutos da Bahia os melhores entre os melhores, tirante os de Cuba, hors concours. No particular a opinião do editor ianque coincide com a do escritor soviético Ilya Eremburg — outro freguês meu ou seja dos charutos baianos, só que para Ilya os melhores de todos eram os do Mercado, os charutos de vintém.

*Fernando Suerdieck, industrial.

 

Ora, de volta da viagem aos States, portador do presente que eu mandara, Alfredo Machado desata a língua em inconfidência: Knopf lhe pedira para nada me dizer, não se deve alardear tristezas, mas acontece que ele perdera o gosto do charuto. Todos os dias, num ritual preciso, fumava o primeiro às dez horas em ponto da manhã, no banco do jardim, ao lado de Helen. Pois naquele dia acendeu o charuto, um puro cubano, puxou a primeira baforada e não lhe sentiu o aroma, soube-lhe sem graça, não lhe dava mais prazer, não o fazia partir nas asas do sonho, Alfred perdera o gosto do fumo do charuto. Nunca mais voltou a sentir a volúpia da fumaça, a viver o requinte das marcas, das procedências, quando se perde o gosto é de todo e para sempre.

— Rezo a Deus todos os dias para que me conserve até à morte o gosto do vinho, se o perdesse o que me restaria?

Do vinho não perdeu o gosto nem o requinte. Em 1979, Zélia e eu viajamos aos Estados Unidos para estar com Alfred no dia de seus noventa anos vividos entre livros e amigos, ele convocara os diletos, os do peito, Helen nos quis em Purchase onde seria a festa, lá passamos a semana. Alfred escolheu os brancos e os tintos a servir na data das noventa primaveras e ele próprio os serviu aos convidados, após tê-los degustado, conservar inteiro o gosto do vinho, fechava os olhos para saborear.

 

 

Rio de Janeiro, 1970.

O almirante

 

Sessão solene na Academia* ostentamos o fardão, cai bem em Silva Melo, alto e magro, em Afonsinho*, aristocratas mineiros, nasceram para envergar fardão, em Alceu* e Barbosa Lima* que o usam como casaca, à moda de Joaquim Nabuco, em outros não vai tão bem, fico parecendo moço-de-recados em casa rica. Afrânio Coutinho lembra um conde dublê de Almirante da Marinha de Guerra, elegantérrimo.

*Academia Brasileira de Letras.

*Afonso Arinos de Mello Franco, escritor e político.

*Alceu Amoroso Lima, escritor.

*Barbosa Lima Sobrinho, jornalista e político.

 

Catedrático da Universidade Federal, na ocasião Afrânio era Diretor da Faculdade de Filosofia que funcionava em prédio construído pela Inglaterra, pavilhão britânico na Feira Internacional, comemorativa do centenário da Independência do Brasil, em 1922, vizinho do Petit Trianon, pavilhão da França, doado à Academia. Estava Afrânio em galanteria, exibindo o fardão e a sabença à assistência feminina em roda de conversa antes da abertura da sessão, quando o vêm buscar às pressas pois ocorriam violências no recinto de sua Faculdade.

Os estudantes contestavam a ditadura, faziam-no com veemência e valentia, a ditadura reagia com ferocidade, patrulha do Exército, comandada por subtenente na arrogância de ordens superiores, acabara de invadir a sede da Faculdade de Filosofia com o objetivo de prender alguns contestatários. Responsável pelo local e pelos rapazes, Afrânio não vacilou, pediu licença às senhoras e aos colegas, dirigiu-se ao prédio vizinho disposto a garantir as instalações da Faculdade e os direitos dos alunos. Imponente no fardão, uma das mãos no punho da espada, na outra o tricórnio de Napoleão.

O espetáculo que lhe foi dado ver encheu-lhe o peito de indignação: soldados agrediam os rapazes, arrastavam dois deles, tentavam embarcá-los na viatura militar para a tortura nos quartéis. Afrânio irrompeu aos gritos, quando se deu conta brandia a espada, fúria desatada. Ao vê-lo e ouvi-lo, os facínoras soltaram os estudantes, recuaram, partiram, o subtenente baixou a crista, bateu continência ao Almirante, não era General mas equivalia.

A façanha custou processo militar, Afrânio escapou por pouco de condenação e xilindró, acusado de ter se apropriado de farda de Almirante da Marinha e de tê-la usado para interromper, impedir a ação das autoridades na manutenção da ordem: trampolineiro e farsante, subversivo, para tudo dizer um terrorista.

 

 

Praia do Guincho, 1980.

Os seguranças

 

Na rua deserta, passa de uma hora da madrugada, Alfredo Machado se assusta ao não ver os homens da segurança: onde estão eles? Um apenas, ajuda o chofer a abrir as portas da limusine negra, o carro oficial do presidente da República de Portugal. Acabamos de jantar com o Presidente Eanes no apartamento de José Carlos de Vasconcelos, além dos donos da casa, Alfredo, Zélia e eu. Alfredão nunca viu uma coisa dessas, acostumado ao exército de seguranças fardados e à paisana que protegem no Brasil os passos dos gorilas alçados à Presidência — um presidente em exercício e sua esposa, protegidos apenas por um segurança. É que, ao contrário dos gorilas, não precisam de proteção das armas, têm a estima do povo.

Para nós não é novidade, já tínhamos testemunhado o absurdo quando o casal Manuel Telles convidou Maria Manuela e Antônio Ramalho Eanes — ele cumpria o primeiro mandato — para um almoço conosco e mais James Amado e Antônio Celestino no Hotel do Guincho. Na hora marcada estávamos no portão à espera, como manda o protocolo, um fusca se aproxima, na direção o Presidente da República de Portugal, desce, oferece a mão à esposa, Maria Manuela, de segurança nem rastro.

Nesse tempo o presidente não era de muito rir talvez porque, tendo assumido responsabilidades ainda jovem, desejasse afirmar a seriedade. Ao deixar a Presidência, dois mandatos de cinco anos cada um, aprendeu o gosto de rir com Calasans Neto, mestre na matéria, quem ainda não ouviu a história da baleia que ele conta é um infeliz — ou talvez um privilegiado, pois vai ouvi-la pela primeira vez, eu já a ouvi mais de cinqüenta.

Durante longo tempo Alfredo ainda se espantava: o Presidente e a Primeira-Dama vindos de jantar em casa amiga, um único segurança para acompanhá-los. Alfredo se deparara de repente com a democracia na madrugada portuguesa, no Brasil era a noite dos milicos.

 

 

Bahia, 1970. Os hippies

 

Na porta, as duas moças, adolescentes lindas e imundas. Apesar das calças lees desbotadas, com rasgões, o t-shirt com a palavra de ordem: faça o amor, não faça a guerra, as sandálias de cangaceiro, mesmo para hippies estavam por demais sujas. A que me tratava por meu tio explicou que acabavam de sair da cadeia: a polícia dera uma batida sem aviso prévio na capital latino-americana do movimento hippie, situada na praia de Arembepe, subúrbio da cidade da Bahia, encanara centenas de jovens (e alguns idosos boas-vidas). Eu sabia do acontecido, recebera telefonemas de amigos do Rio e de São Paulo, Fernando, Samuca*, Helena, Miécio, Chico Barbosa, pedindo minha intervenção para libertar filhas insurrectas, ativistas da revolução sexual. Convido as moças: entrem por favor.

*Samuel Wainer.

 

— Tio, o carnaval começa daqui a quatro dias, a gente queria assistir, então vim pedir ao tio que nos deixasse acampar por uma semana em seu jardim, passado o carnaval a gente pira.

— Acampar no jardim?

— Só até a quarta-feira de cinzas, tio.

Tinha direito a me chamar de tio, os pais eram amigos queridos, meus compadres, eu batizara a irmã cadete, menor de cinco ou sete anos, ainda não tinha idade para militar nas hostes da boa causa, mas já era simpatizante, disse-me a mais velha quando pedi notícias da afilhada. Considerei o pedido com simpatia, busquei encontrar solução que preservasse o jardim e atendesse o carnaval, a súplica me sensibilizara. Encontrei a solução antes que as duas revolucionárias do sexo escolhessem local onde armar a tenda no jardim. Existiam dezenas de hoteizinhos mais ou menos familiares, a Avenida Sete estava repleta desses albergues acanhados, porém baratos, eu conhecia o dono de um deles, sergipano, primo de Nelson de Araújo, ao vir residir na Bahia o contista ali se hospedara, de graça é claro. Mandei que as meninas se sentassem, Zélia providenciou xícaras de café com leite e as sobras da mesa matinal: cuscuz de puba, fruta-pão, fatias-de-parida, devoraram, a comida do xilindró era parca e ruim de gosto.

Telefonei para o parente de Nelson, identifiquei-me, tratou-me por doutor, perguntei-lhe se tinha quarto vago, de casal, ainda tinha um, fiz a reserva: vou mandar duas moças, ficarão uma semana, até o fim do carnaval, a despesa é minha, assim viajem me telefone dando a conta, mandarei pagar. Aurélio foi levá-las, Zélia forneceu-lhes farnel nutrido, desvelos de tia.

Esqueci o assunto por completo, tinha muito em que pensar, o carnaval aconteceu, deixou saudades, fartei-me com as moquecas da Semana Santa, na Bahia a paixão de Cristo é festival de culinária, chegou-se à festa da aleluia, fui chamado ao telefone. Era o sergipano dono da pensão, recordou a encomenda de quarto para as moças, só faltei morrer de vergonha. Desdobrei-me em explicações: perdoe o esquecimento, a hospedagem das meninas fugira-me da memória, estava devendo, mas ia mandar pagar em seguida, qual o montante da nota, quantos dias elas tinham demorado, uma semana exata, quando foram embora?

— Ainda não foram. Não estou cobrando, só queria saber se o doutor ainda se responsabiliza pela conta... Das moças e do rapaz.

— Do rapaz?

— Do namorado...

— Quer dizer que são dois quartos?

—Não, doutor, é um quarto só, a maior despesa que o moço faz é de coca-cola, nunca vi gostar tanto.

A sobrinha veio ao telefone, desculpou-se: sabe, tio, a gente não se dá conta, vai ficando, mas já estamos de viagem marcada, amanhã pegamos o ônibus para o Rio. Apareceram em casa para se despedir: a sobrinha, a amiga e o rapaz. Ele me trazia um livro, sua estréia na ficção, um colega, um concorrente, assinava-se Ramirão ão ão, o volume se intitulava Urubu Rei.

Li, disse a Zélia: o folgado tem talento só que é maluco, mas maluquice passa. A dele passou, Ramiro de Matos em homenagem ao bisavô Gregório assina-se Gramiro de Matos, hoje professor universitário, sem dúvida o mais importante especialista nas literaturas dos países africanos de língua portuguesa. Quando lhe paguei o consumo de coca-cola e o regalo da dupla amigação, era Ramirão ão ão, nome porreta de porta-voz da revolução sexual, faça o amor, não faça a guerra — não pode haver palavra de ordem mais sedutora e válida, mudou o mundo.

 

— Seu Aurélio, a vida é um absurdo.

— Daí pra mais, doutor.

 

 

Roma, 1990.

Grandeza

 

Concedido pela primeira vez o Prêmio das Literaturas Latinas, patrocinado pela União Latina, é ganho por Juan Carlos Onetti, o uruguaio bem o merece, o resultado me deixa alegre, sou amigo de Juan Carlos desde os anos de exílio no Uruguai nos idos de quarenta.

O prêmio se decidiu, na última votação, entre Onetti e o romancista italiano Vicenzo Consolo. Quando recebi da União Latina a lista de candidatos — nela figurava pelo Brasil meu compadre João Ubaldo Ribeiro —, pensei que a decisão se daria entre Onetti e o português Miguel Torga, para surpresa minha Torga foi eliminado no primeiro escrutínio, o único voto que teve foi o meu.

Vem-me à cabeça uma pergunta: se amanhã os suecos derem o Prêmio Nobel a escritor português que o ganhe por estar em moda e o mereça por ser de fato grande, me pergunto se sua grandeza o levará a proclamar que, antes dele e de qualquer outro escritor das línguas portuguesas, mereceria recebê-lo o poeta e prosador Miguel Torga, face e culhões de Portugal. Tão grande quanto o escritor deve ser o cidadão, a grandeza não comporta limites, não possui duas medidas.

 

 

Rio de Janeiro, 1957.

Acervo

 

A campanha de desestalinização come solta na União Soviética, não vai durar por muito tempo, a memória dos tiranos encontra sempre fanáticos a sustentá-la. Kruchev muda o nome do Prêmio Stalin, passou a se denominar Prêmio Lenine, decreto com efeito retroativo.

Fui stalinista de conduta irreprochável, subchefe da seita, se não bispo ao menos monsenhor, descobri o erro, custou trabalho e sofrimento, deixei a missa em meio, saí de mansinho. Nem por haver-me dado conta e abandonado o redil escondi ou neguei ter recebido, em dia de glória, com honra e emoção inimagináveis, o Prêmio Internacional Stalin*.

*Na segunda entrega da láurea, em 1951.

 

Eis que me chega às mãos carta do Comitê do Prêmio, comunicando-me a mudança, deixo de ser Prêmio Internacional Stalin para ser Prêmio Internacional Lenine, a carta vem acompanhada de medalha de ouro com a efígie de Vladmir Ilitch para substituir a primeira, a de Joseph Vissarianovitch, de diploma recém-passado a pendurar na parede em lugar do anterior. O presidente do Comitê pede devolução urgente da medalha e do diploma que na solenidade de Moscou me foram entregues por Ilya Eremburg.

Arrecado já sem entusiasmo medalha e diploma e os remeto à gaveta onde se encontram os antigos. Não atendo porém ao pedido de devolução, guardo uns e outros: concederam-me o Prêmio Stalin, momento culminante de minha vida, por que mandar de volta a medalha de ouro, o pergaminho do diploma?

As duas medalhas, os dois diplomas estão hoje no acervo da Casa do Largo do Pelourinho* na Bahia — lá podem ser vistos junto a outros paramentos e ornatos.

*Fundação Casa de Jorge Amado.

 

 

Viena, 1991.

Protesto

 

Os jornalistas que cobrem o Congresso Internacional do Pen Club querem saber minha opinião sobre o caso Salman Rushdie, não posso conter a indignação. De Rushdie li um romance, Les Enfants de Minuit, gostei, e um pequeno livro sobre a Nicarágua sandinista, páginas de solidariedade. Onde se esconde a solidariedade ao escritor ameaçado?

Parece-me absurdo, inacreditável, inaceitável, que no fim do século XX um escritor esteja encerrado em esconderijo, sob a proteção da polícia, proscrito da sociedade, condenado à morte por uma seita no exercício da discriminação religiosa, pela inquisição xiíta, com o aval do governo do Irã. Penso que a comunidade internacional dos criadores de literatura, arte e ciência não tem estado à altura do protesto que tal situação exige. Nem um único escritor pode se manter indiferente a essa agressão sem medida ao direito de criar, à liberdade de pensamento e de expressão. Aquele que não protestar, que não exigir que a ameaça de morte que pesa sobre Salman Rushdie seja retirada, está faltando ao seu dever, o mais elementar. O direito de criar corre perigo, a própria existência da literatura está sob ameaça.

 

 

Bahia, 1991.

Eunice

 

O escritor estreante entra sala adentro, originais em punho, estou trabalhando mas que jeito senão atender? Recebo os originais para leitura, prefácio, recomendação a editor — prometo e, pior ainda, faço. Todos os dias se repete a circunstância, rouba-me o tempo e o ânimo para escrever, fico possesso, chamo Eunice às falas, ela trabalha conosco vai para vinte anos, nesta casa do Rio Vermelho seus cabelos pratearam, não lhe diria empregada, e, sim, amiga.

Igual a meu pai só sei falar gritando, assusto as pessoas, até hoje Zélia não se habituou — faço um esforço, baixo a voz para reclamar:

— Eunice, eu não lhe pedi para dizer que não estou em casa?

O sorriso de Eunice, o autêntico sorriso angelical:

— Um moço tão simpático, não tive coragem de bater a porta na cara dele...

Quando me vê deveras furioso, Eunice confessa:

— Não sei mentir, me dá um nó na garganta.

Pela porta de Eunice entra quem chega à minha procura: o repórter, a equipe de televisão, o conselheiro econômico, o rapaz da esquina, o chato de galochas, os meninos em confusão e arrelia que querem autógrafo de Dorival Caymmi quando não é de Vinícius de Moraes, a filha-de-santo, o ecologista da Lagoa do Abaeté, o pintor naïf, o poeta marginal e a récua de turistas. Ameaço Eunice:

— Se não trabalho, como vou pagar teu ordenado? Terei de te mandar embora.

— Pode mandar, se quiser, só que eu não vou. Não é preciso me pagar.

Batem à porta, Eunice vai abrir.

 

Quero aqui consignar, para subscrevê-la, frase de Romain Rolland*, o humanista de Jean-Christophe, datada de 1927: je ne reconnais a aucune minorité, a aucun homme, le droit de contraindre un peuple, fut-ce à ce que l'on croit son bien, par des moyens atroces. É isso aí.

*Romain Rolland (1866/1944), escritor francês.

 

 

Bahia, 1981.

A festa de Carybé

 

Em companhia de Guga*, vou a Antônio Carlos, governador do Estado, conversar a propósito de edição do livro de aquarelas de Carybé sobre os orixás africanos no candomblé da Bahia, livro fundamental. Vazios os cofres da Universidade, Guga me propusera sairmos de visita aos banqueiros, pedinchando verbas. Vamos primeiro a Toninho, eu lhe disse, ir aos banqueiros sem falar com ele é ofendê-lo. Assim é, conheço Antônio Carlos de cor e salteado, eu o sei desde rapazola.

*Luiz Fernando Macedo Costa (1925/1984), médico, então reitor da UFBA.

 

Não só o conheço, gosto dele, gosto das pessoas tanto pelas qualidades quanto pelos defeitos. No caso de Toninho, ele é a Bahia, cara e entranhas, ou seja, o sim e o não. No político e administrador duas coisas sobretudo me seduzem: a sua qualidade intrínseca de baiano, Toninho é baiano antes de tudo, e seu permanente interesse pela cultura, comprovado, verdadeiro. Referi duas qualidades, tem muitas outras, os defeitos não preciso dizer, a parte da mídia que não gosta dele, porcentagem considerável, os estampa a cada dia nas páginas dos jornais: malvadeza, reacionarismo, sócio da Tevê Globo e outros etceteras, na catilinária existem pouca verdade e muita baixaria.

Antônio Carlos está acabando de almoçar, ver Aríete — sofrida, contida, amável, perfeita, composta só de qualidades — é um prêmio. Carybé vai cumprir setenta anos, digo a Toninho, dos quais mais de trinta recriando a Bahia, nosso povo, nossa vida, nosso mistério, tudo isso está no livro dos orixás que chegaram da África nos porões dos navios negreiros e aqui se batizaram. Falamos do projeto de edição, a Universidade não tem tostão, eu obtivera um milhão com Herberto Salles**, Guga quer pedir o resto aos banqueiros, Toninho me interrompe a ladainha:

**Herberto Salles, na época diretor do Instituto Nacional do Livro.

 

— Banco a edição. — Serve-se da goiabada com moderação, em nenhum momento deixa de ser o político, sabe de cada gesto retirar o lucro: — Lançaremos a edição numa cerimônia solene no palácio, convidaremos os senadores, deputados...

Interrompo eu:

— Cerimônia solene no Palácio? Para Carybé? Nada disso. Festa popular no Pelourinho com o povo da Bahia.

Deleitado, Antônio concorda, tens razão: mais vale o povo do que os políticos.

Noutro lugar não poderia acontecer festa assim, apanágio da Bahia, quinze mil pessoas ali se reuniram, no Largo do Pelourinho, para festejar os setenta anos de um coestaduano que nasceu noutro país. Fui entrevistado pela televisão, recordei que Carybé, a quem o povo homenageava em canto e dança, não era nem político nem banqueiro, nem milionário nem senhor de terras, nem general nem cardeal, apenas um artista, nada mais, o povo ama os artistas.

A festa foi presidida por Mãe Menininha do Gantois, quando fui convidá-la os parentes, os médicos, os notáveis do Axé manifestaram dúvidas, a saúde da venerável não lhe permitia excessos, discutiram, vi a coisa em maus lençóis. Menininha acompanhava em silêncio a discussão, abriu a boca, declarou:

— Vou sim senhor, seu Carybé merece.

Antônio Carlos entregou à mãe-de-santo o primeiro exemplar da edição do grande livro, arte e documento, as aquarelas realizadas ao longo da travessia do pintor pelo mistério da Bahia. Nana Caymmi iniciou a festa cantando a Oração para Mãe Menininha composta por Dorival, obá de Xangô. A dança das filhas-de-santo, Carybé é um encantado: as cantigas de Oxóssi para saudar o filho do rei das matas. O jogo de capoeira-angola, Camafeu e Cobra Verde executam meias-luas, rabos-de-arraia, Carybé aprendeu a brincadeira com Pastinha e Valdemar, foi parceiro de Traíra e de mestre Bimba, os afoxés desfilam, Carybé é vice-presidente vitalício dos Filhos de Gandhi: sentada num sofá de vime, Menininha aplaude.

As televisões nacionais, as estações de rádio, os fotógrafos dos jornais, a promoção au grand complet, a festa vista e ouvida no país inteiro, mostrada ao vivo. Toninho cochicha ao meu ouvido:

— Você, Carybé e eu vamos suspender o sofá com Menininha, elevá-la no ar, mostrá-la ao povo...

Concordo com o projeto:

— Tu, Carybé e eu e mais quatro estivadores, vejo vários aqui...

Não são decorridos cinco minutos, a um aceno do Governador as câmaras de televisão tomam posição, os refletores se acendem iluminando o tablado: quatro gigantes — ou seriam seis? — e mais Toninho e Carybé levantam o sofá, passeiam Menininha nas alturas, o povo delira. Presto solidariedade moral, não faço força mas toco com os dedos no sofá. Viva, vivô!

 

 

Paris, 1989.

Recomendação

 

Vamos pelo Marais com Anny-Claude, falamos de livros recentes, francesa de nascimento, educação, cultura, é leitora fanática, brasileira por adoção, é carnavalesca de samba no pé. Adotou o Brasil, os brasileiros a adotaram, tem casa em Paris e casa no Rio, o coração dividido. Dividido? Penso que não, inteiro aqui e lá: em Paris, na platéia da Comédie Française para aplaudir Roland Bertin em 1'Avare de Molière, na Praça da Apoteose para saudar a bateria da Mocidade Independente no desfile das Escolas de Samba, no carnaval do Rio.

Atravessamos a Pont Marie, vamos tomar sorvete na Ile de Saint-Louis, nos detemos a ver o Sena sob a luz do outono, ah, esta cidade de Paris, só a cidade da Bahia se lhe pode comparar. Anny gostou do romance de Roger Grenier*, Partita, também das memórias de André Kedros** quer saber: tu que conheceste Neruda tão bem, pensas que Kedros é justo quando fala dele?

*Roger Grenier, escritor francês.

**André Kedros, escritor grego

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Ao ver-me, a moça se destaca do braço do rapaz, vem correndo em minha direção, pergunta se sou Amadô, sim, na França sou Amadô, no Brasil sou Jorge, na Bahia Jorginho, le petit Jorge, respondo rindo. Ela porém não ri, toma-me da mão, tenta beijá-la, não deixo, começa a chorar. Merci, diz e repete, merci, merci, vos livres ont changé ma vie. Fico sem jeito, ainda não me habituei, já devia ter-me habituado com o alvoroço, com a comoção do leitor a fustigar-me o peito. Tenho as mãos da moça entre as minhas, sinto Zélia sorrir a meu lado, comovida. Quando a moça retorna ao encontro do namorado, enxugando as lágrimas, digo a Anny, talvez para aliviar-me da emoção: não contes isso no Brasil irias passar por mentirosa.

Sucede com mais freqüência do que se poderia imaginar, ser parado nas ruas de Paris por leitores franceses que me reconhecem e vêm me falar, dizer que leram esse ou aquele livro, dizer como e quanto lhes agradou. Afinal a primeira tradução francesa de livro meu a Gallimard a publicou em 1938, há mais de meio século: o público se conquista dia a dia, livro a livro — o livro traduzido pode obter de logo sucesso de estima, ninguém pode dizer que possui público na França antes de chegar às coleções de bolso, as de preço barato, o livro ao alcance de todas as economias.

A cada leitor francês que me reconhece e vem dizer de sua estima, repito a Zélia a recomendação feita a Anny na Pont Marie, quando a luz do outono refulgia no casario e nas águas do Sena: não contes isso no Brasil, os patrulhadores não perdoarão, no mínimo serás acusada de embusteira e retirarão meu nome da resenha literária.

 

 

Bahia, 1991.

Família Caymmi

 

No domingo, Paloma telefona de Paris, ruído de conversação e riso quase lhe encobre a voz:

— Pai, estou oferecendo um almoço à família Caymmi que se exibiu em Montreux com sucesso absoluto. Dorival vai te falar.

A família Caymmi, minha família. Certa tarde, em 1939, Samuel Wainer e eu, de padrinhos, levamos Adelaide Tostes, quer dizer Stela Maris, uma vespa pela cintura e pelo resto, cantora de blues na Rádio Mayrink Veiga, e Dorival Caymmi, o moço Caymmi, cantor das graças da Bahia, à Vara de Família no Rio de Janeiro para que os nubentes assinassem a certidão de casamento. Enquanto dizem sim ao magistrado, Samuel me pergunta: pensas que ela ainda é virgem ou ele já a papou? — Com o lábio aponta Stela vestida de donzela pura. Conhecendo o noivo como o conheço de outros carnavais, não escondo meu ceticismo: é duvidoso.

Do casamento da radialista e do compositor nasceram Nana, Dori, Danilo, partos felizes para a modinha brasileira. Primeiro andou cada qual para seu lado. Stela, com os encargos de matriarca, aposentou-se dos blues, criar os dois meninos e a menina, três capetas, ai, não era brincadeira, a tarefa demandava energia, firmeza de caráter, tempo e amor, Stela dedicou-se, ganhou a guerra. Dorival, de pouco trabalhar, trabalhou pra burro compondo o que de melhor por aqui já se compôs, soltou a voz a salvar o mar, os pescadores, os mestres de saveiro, Itapuã, Yemanjá, Mãe Menininha, o povo da Bahia: para ensinar o que é que a baiana tem, desse samba desabrochou uma baiana universal, Carmem Miranda.

Os meninos quebravam a cara no batente para levar avante a vocação herdada, a voz de Nana, o saber de Dori, o talento de Danilo. Até que um dia Stela os reuniu em torno do moço Dorival, o mais moço do clã, foram de visita a Tom Jobim, cantaram juntos para bem dizer o amigo, e desde então a família Caymmi passou a ocupar espaço único, inconfundível, no panorama da música nacional. Agora atravessa as fronteiras, deslumbra os gringos em Montreux.

Nana, Dori, Danilo, filhos de sangue, paridos do ventre de Stela, meus sobrinhos. Do conúbio de Dorival com Tom Jobim nasceram os demais, aqueles que hoje compõem cantam a canção da luta e da esperança, do sonho brasileiro. São muitos e múltiplos, vários, os caetano, os gilberto gil, os joão gilberto, tantos. Todos nascidos na Bahia como os três citados? Nem todos, alguns não tiveram o privilégio, nasceram por aí.

 

 

Paris, 1990.

Os suicidas

 

Malas feitas, de partida para Madri, vamos participar, Zélia e eu, dos cursos de verão da Universidade Complutense, acabamos de chamar o táxi que nos levará ao aeroporto, o telefone soa, atendo, é Jacques Danon:

— Mestre Jorge, acabo de chegar em Paris, preciso te ver, falar contigo com a maior urgência, estou perdido, não sei o que pensar, não consigo entender o que está se passando, o mundo vem abaixo, estou me esvaziando, sofro pra caralho.

Fala sem parar, em agonia, repete uma, duas três vezes que precisa me ver, falar comigo, somente eu posso lhe explicar. Porque confia em mim, eu sei, Jacques veio mocinho para Paris com bolsa de estudo de ciências, eu o apresentei a Irene e Frédéric Joliot-Curie em cujo laboratório foi trabalhar, ali iniciou a carreira que faria dele no correr dos anos cientista de renome mundial. Também fui eu quem o apresentou a Madame Leclerc*, mãe de Anny** com quem Jacques se casou.

*Françoise Leclerc (1908/1983), dirigente do movimento da paz.

**Anny Prouvost Alvarez, cientista.

 

Entre os expulsos da França, na leva dos vinte e tantos castigados, estava Jacques, na polícia disseram-lhe o motivo por que o punham fora das fronteiras: por ser secretário de Jorge Amado — em verdade camarada de partido, de idéias, amigo. Se existe alguém no mundo que confia em mim, esse alguém é Jacques Danon.

Quanto desespero, Jacques não é o único nem o primeiro, sei de muitos. Homens e mulheres, pessoas magníficas, de súbito se encontram desamparadas, esvaziadas, mergulhadas na dúvida, na incerteza, na solidão, perdidas, à beira do suicídio. O mundo do leste, o do socialismo real, se esboroa, aquilo que inspirou e conduziu pela vida afora milhões de criaturas, o ideal de justiça, de beleza pelo qual se bateram, pelo qual tantos sofreram perseguição e violência, exílio, cadeia, tortura, se transformou em fumaça, em nada, em coisa nenhuma, foi apenas mentira e ilusão, mísero engano, ignomínia. De muito sei nos limites da angústia, como se a noite eterna, sem esperança de luz do dia, se houvesse abatido sobre o mundo de vez e para sempre. Ainda há poucos dias, com Joelson e Fanny vieram nos visitar um médico de São Paulo e sua mulher, meus velhos conhecidos da militância comunista. Faltavam-lhes as palavras para falar das transformações, do fim de um tempo, sobravam o nó na garganta e a dor no peito, os olhos úmidos do camarada, as lágrimas de sua companheira.

Canso-me de explicar aos que perderam o norte: de mim não vejo motivo para desespero e suicídio. Permanecem atrozes e urgentes os problemas por cuja solução nos batemos, o sonho que sonhamos permanece íntegro em seu fascinante desafio. Apenas rasgou-se o véu da fantasia, viu-se exposta ao sol a indigente nudez das ilusórias ideologias que cerceiam e diminuem o ser humano, armas de opressão, fábricas de ditaduras: veio abaixo o que era falso e feio, podre e perverso.

Não se trata, como os reacionários desejam fazer crer, da batalha final no confronto histórico entre capitalismo e socialismo, o combate se trava entre democracia e ditadura. Não é o socialismo que está acabando, e, sim, contrafação fraudulenta e desumana, o chamado socialismo real, imposto por déspotas através da mais monstruosa máquina de embuste e opressão. Socialismo sem democracia significa ditadura e nenhuma ditadura presta, seja de direita, seja de esquerda, a mesma merda.

Há dois séculos a Revolução Francesa mudou a face do mundo, novos valores, maiores, se estabeleceram, a vida tornou-se mais justa e mais bela. Mas os caminhos da democracia foram abandonados para dar lugar à ditadura sangrenta do Terror, ainda mais degradante porque exercida em nome do povo, houve volta atrás semelhante à que hoje acontece na URSS e nos países ditos socialistas. De Napoleão à restauração dos Bourbons, o avanço da sociedade parecia terminado, acontecia o regresso às trevas. Tal retorno ao passado não significou, no entanto, o fim, a liquidação dos valores novos e maiores trazidos no bojo da Revolução Francesa, o mundo não voltou a ser o mesmo de antes, aquele que a Revolução destruiu, liquidou para sempre. Também a Revolução de Outubro, a Revolução Socialista, mudou a face do mundo e a vida dos homens, e o fez para sempre. Os valores novos e maiores por ela proclamados persistem mais além da suposta derrota de hoje. Foi válida a luta que nos coube lutar por mais grosseiros e terríveis tenham sido os erros cometidos.

Foi válida e persiste pois o capitalismo permanece o mesmo sistema econômico e político falho e injusto que sempre foi, em nada melhorou e, no Brasil, os problemas se agravaram. O quadro atual da sociedade brasileira é deplorável, trágico quotidiano de miséria e fome, a guerra contra milhões de crianças condenadas ao crime, o latifúndio semifeudal, a devastação do solo, a extinção das florestas e das espécies animais, a degradação da natureza, o abastardamento do caráter das elites. Nosso retrato nacional mostrado diariamente nos vídeos de televisão dá vontade de chorar.

Temos de prosseguir na luta se ainda desejamos ter pátria e chão, se desejamos que a cordialidade e o riso retornem, que o brasileiro retome suas virtudes de povo, reencontre o canto, a dança, o futebol, o carnaval, a festa.

No Escoriai, nos dias do curso de verão da Complutense, penso em Jacques e na conversa que teremos, espero ser-lhe de utilidade, para mim é quase um filho, era rapazola quando o tomei pela mão.

Chegamos a Paris, corro para o telefone, ligo para o apartamento da filha de Jacques, onde ele se hospeda, Irene atende, não contém o pranto, Jacques morreu dois dias antes, enfarte fulminante.

 

 

Paris, 1990.

O Victor Hugo

 

Deus ou o Diabo, quem me deu a capacidade, o dom de relacionar-me, estabelecer conhecimento, ligar-me por laços de estima? Da juventude livre na cidade da Bahia, nas ruas, becos e vielas, nas encruzilhadas, nas casas-de-santos, nas igrejas, nas escolas de capoeira, no cais dos navios e dos saveiros, cortando as águas do golfo e as do rio Paraguaçu, da minha adolescência creio provir a facilidade com que me entendo com as pessoas, simpatizamos, fazemo-nos conhecidos, amigos, íntimos, fraternos. Amigos eu os possuo nos quatro cantos do mundo e nos arredores, refiro-me a pessoas que conheço, de quem privo a intimidade, não me refiro aos leitores, esses são o capital e os juros do escritor. Poucos milhares ou multidão sem conta, deles vive o romancista, deles se alimenta na mesa de trabalho, na mesa do de-comer. Em certo momento leitores e amigos pessoais se misturam na mesma confraria de afeto e de cumplicidade.

Em quatro anos de repetidas e largas temporadas no pied-à-terre do Quai des Celestins, neste bairro do Marais onde Paris nasceu, travei conhecimento com dezenas de pessoas, com elas tenho tratado, relações casuais, transformaram-se em convivência afetuosa, com a cumplicidade de Paris. Paris possui sobre as demais metrópoles a vantagem de ser um aglomerado de pequenas cidades onde as pessoas se conhecem, conversam, convivem. Ninguém pode saber da cidade inteira, imensa, cada um tem sua Paris, a cidadezinha onde vive, trabalha, diverte-se, transa e sonha. A minha Paris, durante cerca de quarenta anos, foi a Rive Gauche, o cinquième e o sixième arrondissements, conheço como as palmas de minhas mãos o mapa das ruas, dos squares, das praças, das livrarias, dos quiosques de jornal, dos cafés, dos bistrôs, posso marchar de olhos fechados pelo Boul'Mich', por Saint-Germain, no Luxemburgo João Jorge brincou, menino, na Igreja de Saint-Germain-de-près batizei Nicolás Bay, dito Nikili, filho de André e de Marie-Pierre.

Faço o aprendizado do quatrième, do troisième, do bairro do Marais, aqui ao lado fica o Hotel de Sens, vem do século XI, no Pont Marie debruço-me sobre o Sena, para onde quer que me volte, estou cercado de beleza. Ando a pé, ruas, avenidas, boulevards, sento-me com Zélia em banco de jardim na Place de Vosges, acompanho a construção de l'Opéra Bastille, visito o Hotel de Ville, o Museu Picasso, o Centro Pompidou, o Hotel de Sully, percorro a Ile de Saint Louis, entro em livrarias, descortino o panorama, a Notre Dame, a Universidade, a sinagoga, o Instituto do Mundo Árabe, desfruto da paisagem, convivo com o saber, a cada canto, em todos os momentos a beleza. Envolvo-me na luz, nos ruídos, na atmosfera, no burburinho para tocar o sangue, as veias, a carne viva, a humanidade, sentir as batidas do pulso e do coração de Paris: sou cidadão desta cidade, limitado e ignaro mas parisiense em minhas tripas de glutão, nos pés de andarilho, na cabeça do escritor, no peito do combatente — esta é a Cidade, a dos direitos do homem, da democracia e da civilização. Perlustro as ruas do Marais, faço amigos. De alguns desejo dar rápida notícia, transcrever os nomes, longe de Paris me lembro deles, ouço-lhes a voz, escuto-lhes o riso.

Uns até já se mudaram do Marais, mas não os esqueço na ciranda do bem-querer. O velho jornaleiro do quiosque ao lado da boca do metrô Saint-Paul, ele e a mulher revezavam-se no negócio, por vezes coincidiam, eu chegava escoteiro ou acompanhado por Zélia em busca de jornais e de revistas. Fizemos camaradagem devido quem sabe aos cabelos brancos, os deles e os meus, as esposas ainda não os têm, eram vítimas (ou heroínas?) do sotaque de nossos diálogos de maridos oprimidos, sem direito a voz e a voto. Desatávamos em queixas, expúnhamos reclamações. Enquanto Zélia protestava e revidava, a senhora jornaleira ouvia em silêncio, o rosto sério, penso que não achava graça nas pilhérias. Um dia não se conteve, mediu o marido fuxiqueiro, rosnou entre dentes: ordure!

Durante meses e meses, o velho do quiosque de jornais não soube de mim senão a ancianidade e a caduquice, soltava a língua e a verve. Um dia viu minha foto publicada, ficou sabendo de meu ofício, conheceu meu nome sem lustre porém impresso no jornal. Desde então tornou-se formal, passou a tratar-me com deferência e distância, terminaram-se as pilhérias conjugais. Ao regressar do Brasil não mais os encontrei, a ele e à sua esposa, se haviam aposentado, passado o negócio a outro dono. Para não lhes sentir a ausência todas as tardes mudei de quiosque de jornal, aportei no bigodudo da rue Saint-Antoine, sabe de política, dá-me dicas, não sabe do escritor, ainda bem.

Quero dizer duas palavras de carinho sobre Regina e Romeu Sparagano, marido e mulher, ele primeur de fruits com comércio estabelecido nas ruínas da primeira igreja de Saint-Paul*, ela jornalista. Após correr o apartamento que terminamos por comprar parei diante do balcão de frutas, provei cerejas e morangos, disse à Zélia: habitantes do Quai aqui compraremos frutas e legumes para a sopa, assim aconteceu, assim acontece diariamente. Apesar da jornalista logo descobrir o ofício do freguês, as relações floresceram em estima, os Sparagano nos adotaram, ele siciliano, Zélia italiana de São Paulo, confraternizam nas receitas de pratos, risotos e lasanhas, ele a presenteia com invenções de molhos para o macarrão, Zélia prepara gulodices brasileiras, creme de abacate, doce de banana em rodinha, para oferecer ao casal — e à belle-mère, Madame Suzanne, amor de pessoa, contabilista contabiliza os lucros do negócio. De pequenas coisas se nutre a amizade, que é, como sabeis, o sal da vida, o sal e a pimenta. Leio no Guide Gault Millau o elogio de Les Halles du Marais: conserve, en plein coeur du Marais, tout le charme des petits commerces de plein vent d'autrefois.

*Demolida em 1799.

 

Quem me apresentou a Françoise Raoult foi James Amado: vem com Luísa a cada ano gozar as benesses da civilização e conviver com os irmãos, hospedam-se no Hotel de la Septième Art, hotel de Calá e Auta Rosa, de Lulu de Paris*, de Laurita e Luisinho: os brasileiros são tratados nas palmas das mãos, carregados ao colo por Yolene e Michel Koenig.

*Maria Lúcia Pessoa, sobrinha de Calasans Neto.

 

James surge de cabelo cortado, complacente e elogioso, coisa rara, anunciando qualidades: tem uma barbeira aqui ao lado, trabalha bem e rápido, é bonita e culta, vive lendo, enquanto manejava a tesoura e o pente conversamos sobre James Joyce, tive a sensação de que era Antônio Houaiss quem cortava meu cabelo. Além do mais não cobra caro: James dá-se à economia, o hábito enraizado lhe vem dos tempos de jornalista a soldo do Partido Comunista cadê o soldo? o gato comeu, de funcionário da Petrobrás desempregado pelos milicos.

Segui o conselho do mano, entreguei a juba branca aos cuidados de Françoise, revelou ter lido livros meus, discutiu literatura e arte, assim se passa aqui: as pessoas lêem, freqüentam os museus, vão aos concertos, sabem as coisas. James tem olho, Françoise é bonita como ele constatou, acrescento que é casada, o marido é pensador político, um retado, se vivesse no Brasil passaria diariamente na televisão — pensador político e sexóloga é o que mais dá no vídeo brasileiro —, Zélia e eu fomos jantar com o casal, o monsieur ditou-nos aula sobre a Iugoslávia. Incorporei Françoise à trupe de minhas pupilas, clube internacional presidido por Anny-Claude Basset.

Outra amiga estabelecida no bairro, Madame Neuve-Eglise, pede-nos notícias de Calasans Neto a cada vez que Zélia e eu entregamos nossos pés difíceis a seus cuidados: podologue da maior competência, tanta que não me atrevo a classificá-la calista ou pedicure. Calá chegara a Paris sem poder andar, os sabichões de Nova York não lhe curaram as unhas encravadas, saiu do gabinete da rua du Petit Musc dançando o samba. Madame Neuve-Eglise não o esquece. Luiz Carlos Tornaghi, empresário de capacidade e posses, viaja do Rio a Paris para consultá-la — vale a pena pagar o preço da passagem, sai barato, diz-me na satisfação dos pés novos em folha gastando sola de sapato nas ruas do Marais.

Na rue Saint-Antoine, minha artéria predileta, comércio de alimentação capaz de abrir o apetite do sujeito mais biqueiro, meu amigo Abitbol Gady me espera à porta do Sole Mio, comércio de especialidades italianas: tenho uma coisa para si, entrega-me uma cassete, canção cantada nas rádios de Israel pela cantora Rita, música de Ramy-Kleintchen, o tema da composição é um certo romance, intitulado Mar Morto, de um certo foliculário da Bahia, o livro tem sucesso em idioma hebreu, Abitbol sabe de meus livros em Paris e em Tel-Aviv, acompanha-lhes a trajetória, o comerciante de produtos italianos é um intelectual, amigo de Amos Oz, de escritores e artistas judeus, patriota israelense mas não fanático, o sectarismo é estranho à sua natureza, possui o sorriso mais terno desse mundo e uma esposa tão simpática quanto ele, dona Wanda, ajuda-o no Sole Mio. Uma vez eu os vi tristes, o rosto em sombras, foi durante a Guerra do Golfo, o filho mais velho correra a alistar-se no exército de Israel. A guerra terminou, o sorriso voltou aos lábios do casal, o filho soldado está a salvo. Abitbol e eu trocamos livros e conselhos de leitura.

Já que falo de produtos italianos, falarei de dona Tereza, não se chama Tereza e, sim, Huguette, o marido é André Cherpin. Passei cerca de um ano em Londres escrevendo Tieta do Agreste, Zélia a fiorentina, a vêneta, era freguesa do negócio intitulado Tereza, nome da proprietária, a dona do Ville de Turin parece com a italiana de Londres, vende os mesmos produtos, é dotada de idêntica gentileza, para nós ficou sendo Tereza algum tempo até que as relações de freguesia se estreitaram.

Dar conselhos não é de meu gosto, quase sempre significa intromissão na vida alheia, implica assumir responsabilidade mas não posso me eximir de aconselhar — quem sabe já o fiz no contexto destas páginas — aos visitantes que queiram comer do melhor e do mais fino a freqüência aos pequenos restaurantes, aos bistrôs. Em Paris come-se bem em qualquer parte, inclusive nos restaurantes de luxo, bem e caro, são para gente de paladar milionário, minha amiga Regina Simões, minha comadre Carmo Vilaça e o senhor seu marido Ministro e Acadêmico, o ricalhaço do tabaco Mário Portugal. Mas para comer o supra-sumo, para regalar a alma, deve-se ir aos restaurantes familiares, freqüentados apenas por franceses, os bistrôs onde não acontecem turistas, apenas nacionais, saídos todos dos romances de Georges Simenon: servem-se pratos de sabor incomparável a preço cômodo.

O conselho vale de introdução a almoço na Enoteca, a jantar em Au Pont Marie, quem seguir o meu alvitre vai lamber os beiços e me agradecer a sugestão. Os italianos ficam na rue Saint-Paul, em meio aos antiquários, os franceses no Quai de Bourbon, o jantar dá direito à visão da lua sobre o rio Sena.

Foi Moustaki quem nos levou a Au Pont Marie e nos apresentou à Magali, a matriarca: por leitora me recebeu com alvíssaras, ofereceu champanhe. O restaurante é empresa familiar, Jean, o pai, e Laurence, a filha, atendem às mesas, Jean Charles, o filho, é o mestre-cuca, Magali cobra a conta, a família Guiffoul, encantadora. Já que me meti a sebo, entro em detalhes, a ementa é toda de primeira ordem mas eu recomendo o feuilleté de roquefort, o confit de canard, o cassoulet, perguntem a Roberto Da Matta, a Adilson Monteiro Alves, a Zequinha Sarney se quiserem comprovar, Antônio Alçada Baptista, perito em senhoritas e em culinária, meu convidado, ficou freguês de carteirinha. Laurence era solteira quando a conhecemos, casou, já teve filho, nosso neto torto, temos vários.

Temos vários netos de araque, dois deles são netos de sangue de Madame Christine Moulian, motorista que nos conduz a Orly, nos recebe em Charles De Gaulle, nas saídas e chegadas, não habita no bairro mas está inscrita na roda de amigos, de papel passado.

Os italianos da Enoteca me estimam por escritor e por homem de esquerda, são simpaticíssimos, não fossem italianos: o bistrô vive cheio, não tem mesa que chegue, a freguesia cresce sem parar. Pino Mitrani e Gianni Mainardi comandam cardápio e vinhos, cozinha e adega da Itália, requintadas. Quem o diz não sou eu, é la signora Giannola Nonino, a da grapa e dos prêmios literários, autoridade máxima, veio almoçar, repetiu.

O bairro floresce em livrarias, vou de uma em uma, o vício de folhear e comprar livros me acompanha desde a juventude da Libreria Española de dom Paço, a Praça da Sé da Bahia, eu ia pelo último Vargas Vila. Na Virgule busco livros ilustrados por Dubout, livraria especialista em bandedessinée, na Librairie Henri IV sou recebido com demonstrações de apreço por Madame Françoise Butin e Monsieur Albert Zenouda, somos vizinhos, a bela livraria fica a dois passos da porta do edifício, livros de arte, estoque de novidades, quando sai tradução de autor brasileiro Madame Butin me telefona: saiu um livro de Moacyr Scliar, está vendendo muito bem.

Existem no bairro duas Librairie Epigramme, freqüento pouco a da rue de la Roquette, de instalação recente, a minha é a mais antiga, a da rue Saint-Antoine, freguês bem visto até me fiam quando esqueço de levar o cartão de crédito. Os Moreau — Françoise, Gerard, Laurence, mãe, pai e filha, o ativista Christoph Mollo, a gentil Marie Despierres, são nossos parentes, gente de nossa família e os filhos colombianos de Françoise e Gerard são nossos netos mais velhos de Paris. Na Epigramme Zélia assinou a tradução francesa de seu Jardim de inverno* com a livraria repleta de leitores e amigos, a gente do bairro compareceu em peso. A livraria é a casa do escritor, repito o lugar-comum, para dizer que tenho várias casas em Paris onde cultivo o vício, os palácios da FNAC, o Oeil et Écoute na rue Vieux Colombier, no sixième, o doce lar da Epigramme Saint Antoine. Sou confidente de Laurence, não me conta seus amores, mas os adivinho.

* Jardin d'Hiver, Stock, Paris 1991.

 

Atravesso a Praça da Bastilha, rue de Ia Roquette, entro na fromagerie, sempre repleta, pois Monsieur Peron é affineur de competência celebrada o que explica a clientela numerosa e de categoria. Freguês ignorante, escuto conselhos de Monsieur Peron enquanto Madame Peron vai em busca da caixa de cottage cheese que me traz ao negócio às sextas-feiras. Trata-se de um queijo magro, popular na Inglaterra e nos Estados Unidos, aprendi a apreciá-lo em Londres. Na França tem pouco gasto, importado para gordos sujeitos a regime, é o meu caso.

No decorrer dos meses trocamos informações de família, o casal Peron e o casal Amado. Perguntam quantos netos temos e ficamos a par do filho Peron que estuda em universidade norte-americana, desejamos boa viagem aos pais quando fecham as portas do negócio por uns dias, vão a Nova York à formatura do rapaz. Sabem meu nome de família, consideram-me bom freguês, simpático, de mim é tudo quanto sabem, nada melhor do que ser anônimo cidadão.

Ora, acontece que certa tarde penetro na queijaria lotada como sempre, coloco-me na fila à espera de ser atendido, Madame Peron me avista, perde a continência, exclama aos berros:

— Alors, M. Amado, c'est pas bien, je suis fachée avec vous. Vous êtes célebre et vous ne dites rien...

— Quoi?

Madame Peron aponta-me aos fregueses, todos se voltam para mim, a estudar a avis-rara, Madame Peron está exaltada:

— Ce Monsieur là est un écrivain fameux, vous ne le connaissez pas?

Elogio de corpo presente me apavora, sou alérgico, sinto-me no banco dos réus, quero afundar terra adentro. Madame Peron explica à clientela que o Le Figaro daquele dia dedica meia página a M. Amado, não meia coluna o que já é muito, meia página, nada mais, nada menos.

Parte para o fundo do negócio, volta com o jornal na mão, esfrega meu retrato na cara dos presentes, está contente de saber das merdolências do freguês. Dou-me conta do que se trata, naquela manhã Le Figaro publicara entrevista minha na qual falei de literatura e da Bahia, das terras do cacau e de Gabriela, ao lado da entrevista artigo de André Brincourt sobre as traduções francesas de meus livros, ele os estima. Com o dedo Madame Peron aponta a legenda sob a foto, rejubila:

— Vous êtes le Victor Hugo du Brésil, et vous ne dites rien, c'est pas sérieux. Sou o Victor Hugo do Brasil, Madame Peron proclama a notícia aos quatro ventos, só que eu não sabia.

 

 

Mont Saint-Michel, 1988.

O motor

 

No aeroporto espio o pequeno avião da companhia regional, demonstro minha repugnância, Zélia tenta levantar-me o ânimo, acontece a cada viagem: semana sim, semana não, estamos embarcando numa dessas máquinas mais pesadas que o ar, contrariam a ciência, violentam o ser humano.

Claude Couffon é todo entusiasmo ao telefone com a grata notícia: cher Jorge, le Grand Prix du Mont Saint-Michel t'a été decerné, felicitations. Vais receber carta de Dodik Jegou, Presidente de Les Rencontres Poétiques Internationales de Bretagne com todos os dados, contamos contigo, de 1 a 3 de outubro, à bientôt à Saint-Malo. Quem é Dodik, o que são Les Rencontres Poétiques? Claude responde: Dodik é ótima, Les Rencontres tu vais ver. Desliga, tem mil coisas a fazer.

Zélia se exalta: viajante sem pouso falta-lhe conhecer o Mont Saint-Michel, ilustra minha ignorância: a oitava maravilha do mundo, não sabias? Sabe tudo acerca do Mont Saint-Michel, declama esplendores, inicia o festival de poesia. O festival de poesia me alarma, les rencontres poétiques, conheço o filme, senhoras pelancudas, pigarrentas, subliteratos ávidos, perigosos. Essa tal de Dodik deve ser uma dessas viragos de recitativo em punho, de idade indefinida, ai meu Deus do céu, Zélia me anima: apenas uma hora de avião, quantos minutos estará escondendo no desejo de me tranqüilizar?

Devo logo dizer que Les Rencontres Poétiques não reúne subliteratos, reúne poetas comandados pelo próprio Claude, que as poetisas não são tão velhas assim, algumas ainda agüentam um tranco. Quanto a Dodik Jegou começa por não ser poeta e, sim, ceramista de nome feito e fama extensa, recria em seus esmaltes as legendas da Bretanha, é casada com Gwen, cujo renome de escultor eu já conhecia, fiquei conhecendo a criatura humana, ele e Dodik são amorosos como dizem os portugueses quando querem deveras elogiar alguém. O prêmio resultou numa festa, apesar da viagem pagou a pena.

Quando digo que pagou a pena, faço afirmação categórica, dotada de conteúdo trágico e real, pois, para chegar a Saint-Malo, corremos perigo de vida, de morte em desastre de avião. Entramos no aparelho, um turboélice da idade da pedra, já deveria estar aposentado. Levantamos vôo, encolho-me na poltrona, envolto em medo, Zélia inicia seu sacerdócio: busca levantar-me o moral. Sentada ao lado da janela, inclina a cabeça para ver a paisagem lá embaixo, anuncia-me, ar de triunfo:

— O motor desse avião é Rolls-Royce!

— Que queres dizer com isso?

— Rolls-Royce, o melhor motor do mundo, todo mundo sabe. Eu não sabia mas a nova me dá certa segurança, é o que Zélia deseja.

— E como sabes que é Rolls-Royce?

— Como sei? Está escrito no próprio motor, espie.

Abre espaço junto a janela, por ele espio, fixo a vista, a voz me sai trêmula:

— Te anuncio que teu motor Rolls-Royce acaba de parar.

— Hem?

Enfia a cabeça, constata, além do mais ouve-se a voz do comandante, anunciando que houve pane no motor da esquerda mas o avião pode viajar com um só motor os passageiros não devem entrar em pânico, mudamos de rumo, vamos descer em dez minutos num aeroporto próximo, surtout pas de panique.

Pas de panique! Os dez minutos anunciados foram vinte minutos de pânico, de pânico total, o aparelho adernado, a morte cavalga o motor Rolls Royce, o único que resta, Zélia segura minha mão: vamos morrer de mãos dadas, me diz, exaltada. No aeroporto onde baixamos sem maiores tombos nos esperam carros de bombeiros, ambulâncias.

Ainda assim o Mont Saint-Michel — o Monastério, a legenda, os Rencontres Poétiques — a cerimônia do prêmio com o Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, o discurso de Claude, o carinho de Dodik e Gwen, a gata Dodik e o passarinho Gwen, o Mont Saint-Michel compensaram o susto do motor.

 

 

Paris, 1992.

Ricardo

 

Vai-se Ricardo Ramos, merda! A cada dia lá se vai alguém de nosso amor, um amigo, um companheiro de aventura, um parente. De Ricardo posso dizer parente, não sei qual o grau de parentesco, sei apenas que próximo ao meu coração cansado. Filho de Heloísa e de Graciliano, eu o conheci meninote, acompanhei-lhe a vida e a carreira, a carreira de um escritor de qualidade, sutil e requintado em sua escrita, tão diferente do pai — o vento da tarde e o tufão. Não é fácil afirmar-se escritor sendo filho de Graciliano Ramos, Ricardo o conseguiu na medida de uma criação original, o peso imenso do velho Graça não lhe reduziu a vocação.

Foi tão de repente, tão terrível, entre a notícia da moléstia e a da morte decorreram vinte dias, vinte dias, ai, de agonia: no telefone para São Paulo onde Luísa e James foram acompanhar Heloísa e Marise* na via crucis, ou a pensar neles, o nome de Heloísa na boca de Zélia o dia todo. Na idade a que chegamos não devíamos enterrar mais nenhum amigo, os funerais fazem-nos morrer aos poucos.

*Marise, mulher de Ricardo.

 

Vejo Ricardo no apartamento dos pais, no Rio, mocinho, lendo para mim páginas das Memórias do Cárcere que Graciliano estava redigindo, o velho Graça escutava, fazia-o repetir passagens.

 

Paloma, que passa para o computador as páginas datilografadas destas notas à proporção que as entrego, reclama no seu (meu) jeito brusco: já li o nome de Jorginho três vezes, dos outros netos e netas nem uma única: ai de mim, não é fácil escrever um livro mesmo quando só de apontamentos.

Aqui me desobrigo, coloco os nomes dos netos por ordem de idade, espero não cometer engano: Bruno, Mariana, Maria João, Cecília, João Jorge Filho dito Macau ou Jonga, sem falar no já (e novamente) citado Jorginho Piça d'Aço Neto, ao todo seis entre varões e senhoritas. Cometo erro pois são nove contando as netas de Zélia, as paulistas: Adriana, Camila e Valéria, três senhoritas em flor, delas sou apenas avô torto mas as quero tanto quanto aos demais.

Sou mau avô, reconheço. Talvez por ter sido bom pai, restou-me pouco amor para dar aos netos, mas Zélia lhes dá amor de sobra, por ela e pelo avô ranzinza.

 

 

Bahia, 1952.

O consultório

 

Médico formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, a primeira e a mais famosa do Brasil, a dos lentes oradores e gramáticos, a dos sábios professores da estatura de Pirajá da Silva, teve Mirabeau Sampaio o bom senso de jamais exercer a profissão. Nomeado médico do Estado, reduziu-se a assinar, com razoável eficiência, atestados de vacina em postos de saúde. Em compensação possuiu o mais confortável consultório da cidade da Bahia, instalado no extremo do luxo e do conforto pelo pai que adorava o filho e previa para ele brilhante carreira de esculápio.

Vazio de clientes, repleto de mulheres, ah! o consultório de Mirabeau em edifício novo, na rua Chile: perdição de donzelas, local de sacrifício de muita honra familiar, senhoras excelentes ali fabricavam chifres para os cônjuges em companhia daqueles sem-vergonha que éramos nós, Mirabeau e o bando de desvairados. A garçoniêre mais bem posta e mais bem mantida da cidade, nada faltava, da música à bebida, dos livros de arte aos chocolates. Madames de perfeita saúde sentiam um arrepio, um comichão ao ver a mesa para exame dos enfermos, a colchoneta, a almofada de plumas, o lençol de linho, nela se estendiam, abriam as pernas, para que os doutos localizassem o comichão.

Assim era o consultório do doutor Mirabeau Sampaio, com placa reluzente na porta do edifício. Vindo à Bahia para ilustrar um guia das ruas e dos mistérios da cidade, o pintor paulista Manuel Martins a recriou numa série magnífica de xilogravuras, ladeiras, becos, igrejas e putas. Numa das salas do consultório de Mirabeau estabeleceu atelier onde ensinou pintura e sacanagem a moças da sociedade dotadas de vocação artística.

Para não dizer que Mirabeau jamais teve cliente a atender, desejo recordar que teve um, por sinal francês. Desembarcados de navio de turismo em escala na cidade, os europeus se espalharam nas ruas e nas praias, alguns mais bem informados quiseram conhecer a culinária baiana, um deles tanto apreciou o vatapá, o caruru e as moquecas de minha comadre Maria de São Pedro que terminou pelo meio da tarde com a maior perturbação intestinal da paróquia: com as calças na mão saiu em busca de doutor que o pudesse medicar.

No centro da cidade deparou com a placa do esculápio à entrada do imponente edifício — Doutor Mirabeau Sampaio, clínica geral —, o nome Mirabeau despertou no enfermo patriotismo e confiança, devia tratar-se de médico de primeira, o francês tomou o elevador.

Médico de senhoras, constatou ao vislumbrar a clientela feminina numerosa e galante que lotava as dependências do consultório. Quanto ao médico, ainda jovem, bem-posto, elegante, falando um francês fluente se bem um tanto acadêmico, após conversa relaxante e sucinto exame, tranqüilizou-o: nada de grave, nem febre amarela, nem cólera, nem varíola, apenas caganeira natural a quem se iniciava no dendê e no leite-de-coco, na pimenta-malagueta. Não só o receitou como lhe forneceu remédios — amostras gratuitas que jaziam nos armários ao lado do vinho do Porto, do vermute e do conhaque, nada lhe cobrou pela consulta nem pelos medicamentos, o máximo em matéria de assistência médica na opinião do francês. Um único cliente, mas que glória!

 

 

Monte Estoril, 1991.

O ex da ex

 

Entre as comemorações do natal e do ano-novo assistimos na televisão à tragédia da destituição de Mihail Gorbachev, mais uma vez humilhado por Boris Ieltsin. Nós o vemos, àquele que foi todo-poderoso, abandonar a mesa de trabalho, a Presidência da União Soviética, a ex: a URSS já não existe. O rosto marcado do estadista não esconde quanto lhe custam a queda, a exclusão, a renúncia a seu projeto de um estado comunista e democrático: seria possível? Digo a Zélia: cada vez gosto mais de Gorbachev, cada vez gosto menos de Ieltsin.

Redijo e envio telegrama a Gorbachev. Agradeço-lhe a ação decisiva com que pôs término à guerra fria, tornou mais distante e mais difícil uma terceira guerra mundial, atômica, será o fim da vida sobre a Terra, me disse Frédéric Joliot-Curie em Helsinque, em 1955. Agradeço-lhe igualmente a ação decisiva com que abriu perspectivas para o estabelecimento da democracia nas nações que constituíram o império soviético e viviam sob a ditadura. Eu o saúdo e a Raisa, sua mulher, tão gentil em Moscou no trato com Zélia e comigo: meu escritor predileto, Gabriela é meu livro de cabeceira, ainda não sendo verdade, apenas gentileza ou astúcia política, foi agradável de ouvir pois Raisa é bela e inteligente.

Com Gorbachev estive apenas uma vez, no jantar que ofereceu a Sarney, no Kremlin: citou-nos, a mim e a Oscar Niemeyer, no discurso com que saudou o presidente brasileiro. Vejo-o no vídeo no momento em que deixa o poder, não o faz com o desafogo de quem se liberta de um fardo e, sim, com desencanto, decepcionado, vencido, perdeu as últimas batalhas da guerra que empreendeu para mudar a face da URSS e do comunismo.

Gosto cada vez mais de Gorbachev, em verdade devo dizer que voltei a me solidarizar com ele no momento do golpe de estado, os ortodoxos em desespero na investida final para dar marcha atrás e proclamar ainda uma vez o stalinismo. Dele eu me distanciara quando, temeroso do futuro, tentou sustar o processo que ele próprio desencadeara com coragem, patriotismo e clarividência, buscou aliar-se com os conservadores, os reacionários, em lugar de disputar o comando dos progressistas, na mesma ocasião em que Chevardnadze pediu demissão do cargo de Ministro do Exterior — ainda ouviremos falar desse georgiano, tenho certeza. Ao duvidar, ao recuar, Gorbachev começou a despedir-se do poder.

Vendo-o abandonar o gabinete onde trabalhou, veio-me à memória a profecia de Ignacio Silone, mestre italiano do romance, quando disse a Palmiro Togliatti*: A luta final se dará, um dia, entre os comunistas e os ex-comunistas. Entre o comunista soviético Mihail Gorbachev e o ex-comunista e grão-russo Boris Ieltsin.

*Palmiro Togliatti (1893/1964), político italiano, por muito tempo secretário-geral do PC.

 

Ainda meio dormido, as vésperas dos oitenta anos, estendo o braço, toco teu corpo, sinto teu calor, tua respiração. Amanhece, a luz do novo dia desponta tênue na barra da manhã, penso nos privilégios que detenho, mordomias. Teus olhos, teu sorriso, os seios, o ventre, a bunda, o coração, a inteireza, a decência, a mansidão, o devotamento. A vida nasce de ti na madrugada.

 

 

Bahia, 1987.

Odorico

 

Sonhei com Odorico Tavares, vinha ao meu encontro trazendo o neto pela mão, levantara-se da cadeira de rodas, liberto da paralisia, de novo grandalhão e ruidoso a desafiar-me para o pôquer: venha se é homem, hoje é meu dia, arruíno todos os canalhas, vocês todos.

Cortava-me o coração ver Odorico, um comandante, para-lítico, reduzido, no fracasso do esforço para se exprimi; o neto o salvou do pior, uma réstia de alegria. Godofredo Filho me telefonava: vamos lá, vamos visitá-lo, Godô ia todos os domingos, eu o acompanhava se para tanto reunia coragem. Um dia foi Maria* quem me telefonou: Odorico pedia-me para ir sem falta naquela tarde, assunto urgente a tratar comigo, lá me fui. Com o neto ao lado, me sorriu, nada de importante a conversa, era para despedir-se que me queria ver. No decorrer de uma semana morreram ele, Gersina e Jader, pai, mãe e filho, uma tragédia, disse-me o sogro de Jader, Ulysses Mascarenhas**, estrangulando um soluço.

Conheci Odorico em 1933, publicara no Recife, em co-autoria com Aderbal Jurema***, uma coletânea de 26 Poemas, de temática social e afirmação política, dois jovens comunistas. Encontramo-nos pela primeira vez na instalação do Congresso Juvenil Estudantil Proletário e Popular no Teatro João Caetano, no Rio: realização do pecê, no conflito com a polícia Aderbal levou um tiro no pé, Odorico e eu escapamos ilesos.

*Maria Tavares Taboada, filha de Odorico.

**Ulysses Mascarenhas, médico, professor universitário.

***Aderbal Jurema, político.

 

Jornalista formado na escola de Assis Chateaubriand, homem de sua confiança e amizade, colecionador de artes plásticas e gráficas, autoridade na matéria, Odorico colaborou com o diretor dos Diários Associados na cruzada pelos museus de arte, do MASP de São Paulo ao Museu de Feira de Santana com sua extraordinária coleção de pintura inglesa contemporânea, conselheiro e executivo. Tendo vindo dirigir os dois órgãos da cadeia dos Associados existentes na Bahia, a Bahia o educou, o amansou, aparou-lhe as arestas a ponto de terminarem seus amigos mesmo os que o acusavam dos males do mundo. O que a arte moderna da Bahia lhe deve não há como pagar, ele a carregou nas costas e a implantou na praça pública.

Nos tempos em que me dedicava a pregar partidas aos meus amigos Odorico foi de minhas vítimas prediletas. Convidados para os festejos de seu cinqüentenário, fomos, Carybé e eu, ao quartel da Polícia Militar, convencemos o comandante a enviar a banda da Briosa para tocar em homenagem ao aniversariante em frente à residência no Morro do Ipiranga na hora da recepção. Recepção de alto coturno, o governador, o cardeal, o general, o almirante, o brigadeiro, os lordes, os ricos, de repente ressoam na rua os acordes da marcha militar, os soldados postam-se em posição de sentido diante da casa de Odorico. Os moleques do morro excitados gritam Revolução!, os filhos do vizinho Dmeval Chaves anunciam a ocupação da rua, Demê saiu do chuveiro onde se banhava para ir à festa, atirou-se para a porta gordo e nu como viera ao mundo.

Carybé e eu riamos à socapa, Odorico não se enganou, filhos das putas! disse ao passar por nós para ir receber a homenagem. Nós o acompanhamos para lhe lembrar que não bastava mandar servir cerveja aos músicos, devia concorrer com um cheque para a caixa da banda que executava sem parar dobrados de ensurdecer. Dêem vocês, se quiserem, seus escrotos.

Na mesa de pôquer com Mirabeau, Yves Palermo, David Araújo, Wilson Lins, Fernando Coelho, Carlinhos Mascarenhas, era vítima de roubos e trapaças, Carlinhos fazia misérias, Odorico erguia os braços para os céus: que crime cometera para ter de suportar aqueles miseráveis? No sonho eu o vejo, o neto pela mão, vem desafiar-me para o pôquer: hoje é meu dia, traga dinheiro, vou levá-lo à falência, seu canalha.

 

 

Lisboa, 1957.

A cidade proibida

 

Retorno de viagem a Moscou, em 1957, em Copenhague tomo o avião da SAS* para o Rio, escalas em Zurique, Lisboa, Dakar, Recife — aviões a hélices, vinte e seis horas de sofrimento, O trajeto de Zurique a Lisboa durava quatro horas, nunca menos. Ora, acontece que com apenas três horas e pouco de vôo o aparelho começa a descer, reconheço os telhados de Lisboa: sem direito de entrar em Portugal tudo que eu conhecia de Lisboa eram os telhados. Durante a escala, reduzido à sala de trânsito, sonhava com as ruas, as ladeiras, os cafés, fanático de Eça de Queiroz, por ele sabia da cidade.

*SAS, Scandinavian Airlines.

 

Interrogo a aeromoça, me explica que daí a uma hora começaria a greve dos pilotos da SAS, antes que comece os aviões descerão no aeroporto mais próximo. Para não criar maiores transtornos aos passageiros, o comandante resolvera abreviar o tempo de vôo para Lisboa, onde com facilidade poderíamos encontrar lugares para a América do Sul em aeronaves de outras companhias. Acrescentou que seguiríamos viagem pela Swissair no dia seguinte pela manhã, primeiro vôo previsto.

Levaram nossos passaportes, na sala de trânsito aguardamos até que nos conduziram primeiro à polícia, em seguida à alfândega. No guichê da polícia recebemos de volta os passaportes com visto válido por vinte e quatro horas. Observado pelos olhos curiosos do policial, recebi o meu, lá estava o visto, quase não acreditei, andei para a alfândega, os funcionários revistavam a bagagem de mão de cada um. Era o fim de uma tarde de inverno.

Somos levados de ônibus a um hotel do centro no qual a companhia aérea já tinha reservado apartamentos. Ao entregar o passaporte na recepção enxerguei um tipo de olhos postos em mim, envergava chapéu e gabardine, o polícia clássico: o secreta menos secreto do mundo. De posse da chave e de convite da SAS para jantar numa casa de fados com os demais passageiros, subi ao quarto, além dos fados eu tinha outra opção: minha amiga Beatriz Costa exibia graça e talento num teatro do Parque Maye; conforme eu lera num jornal enquanto aguardava na sala de trânsito a decisão das autoridades. Nem a nostalgia dos fados, nem a picardia de Beatriz: eu tinha finalmente Lisboa ao meu alcance pelo tempo limitado daquela noite, a cidade sonhada e proibida, ia percorrê-la, andar nas ruas.

Desci à portaria, cambiei um pouco de dinheiro, perguntei como chegar ao Rocio, sob as vistas e os ouvidos atentos do policial: levantara-se de uma cadeira onde estivera sentado durante minha breve ausência. Saí na direção indicada, em busca do Rocio, alguns passos atrás o tira, fechara a gola da gabardine, fazia frio.

Noite sem história. Eu andava lentamente, tentando receber tudo quanto Lisboa tinha a me dar: os perfumes, as cores, os ruídos, casas, rostos, vozes, risos, tanta coisa. Meu coração pulsava acelerado e eu decerto sorria, os olhos úmidos pois palmilhava as calçadas de Lisboa. Parava em frente às montras, fitava as pessoas, lia tabuletas, nomes de travessas, de tascas, de cafés. Demorei-me diante da vitrine da livraria do Diário de Notícias, vislumbrei uma edição portuguesa de Degelo, de Ilya Eremburg. Eu lhe entregara em Moscou uma semana antes a edição brasileira do mesmo romance, a livraria estava aberta, entrei, comprei um exemplar—quando tivesse ocasião o enviaria a Ilya — e uma bela edição d'0 livro de Cesário Verde. Demorei-me no vício de folhear livros, seria a presença ostensiva do policial que despertara a curiosidade do balconista? Olhava-me como a adivinhar minha identidade, uma pergunta nos lábios, não se atreveu a fazê-la. Quando saí, ele cochichou com a moça da caixa. Lá fomos nós, eu e meu acompanhante, em direção à Praça do Comércio.

De volta ao Rocio sentei-me a um café, feliz da vida, o secreta encostou-se a um poste, suspendeu a gola da capa, o frio aumentara, ri por dentro. Informei-me com o garçom sobre Alfama e Mouraria e para lá seguimos os dois: eu era na época andarilho competente, por vezes o secreta via-se obrigado a apressar o passo para não me perder de vista. Por casualidade assisti meus companheiros de avião desembarcarem do ônibus diante da casa de fados mas não os acompanhei ao bacalhau à Gomes de Sá, contentei-me com a leitura da ementa fixada à porta, preferi a noite perfumada e friorenta de Lisboa, as ruas calmas, algumas desertas, aquele encontro de amor.

Começara a cair uma chuva fina, bem agasalhado no Couraçado Potenkin, meu casaco russo, perambulei sem destino até altas horas, ria sozinho pensando no tira sob a chuva e o frio, passava de uma da madrugada quando regressei ao hotel, cansado e exultante. Da portaria, ao receber a chave, avistei o homem da gabardine parado na entrada, à espera de ver-me tomar o elevador. Quase lhe acenei adeus pensando que não mais o encontraria, engano: na manhã seguinte quando me dirigi ao ônibus que levaria os passageiros de volta ao aeroporto, lá estava ele, na calçada. Ocupou um lugar no fundo do veículo, acompanhou-me até a sala de trânsito, não sei se fora dormir em casa ou se passara a noite no hall do hotel mal sentado na cadeira incômoda. No ônibus espirrava, ossos do ofício.

Assim decorreu aquela noite quando o acaso decretou a greve dos tripulantes da SAS para que as portas da cidade me fossem abertas e eu pudesse sentir a atmosfera, o hálito, entrever a beleza, tocar o mistério e a vida de Lisboa. Com a mesma emoção com que se toca pela primeira vez corpo de mulher desejada e proibida.

 

 

Porto Alegre, 1966.

Os burros

 

Partimos em viagem pelo sul do país, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande, pelo sul do continente, Uruguai, Argentina, Paraguai, a família toda no possante Veraneio do qual ainda hoje Aurélio tem saudade: carro igual, doutor, nunca mais. Participa da excursão nossa comadre Norma Sampaio, viajar com Norma é festa constante, o riso encurta a estrada.

Em Porto Alegre vamos visitar Erico Veríssimo, Mafalda reúne amigos, oferece de comer e de beber; conversamos recordações de um tempo em que, jovens autores, começávamos a ganhar público. Fui dos primeiros a saudar Erico, a proclamar-lhe o talento em artigo de jornal, ele viera de publicar Clarissa. Hóspede dele e de Mafalda, logo depois de Luis Fernando* ter nascido, nós o apelidamos de João, parecia João e não Luis Fernando, como terminou por se afirmar, para orgulho dos pais e de uns quantos tios. Quando Erico, em 1935, ganhou o Prêmio Graça Aranha com Caminhos Cruzados, era meu hóspede no Rio. Depois permanecemos durante anos os dois únicos escritores brasileiros a viver de direitos autorais, hoje somos vários, felizmente.

*Luis Fernando Veríssimo, escritor.

 

Certos críticos, quase sempre os mesmos, alguns sérios e amargos, outros brilhantes e salafrários, nunca nos perdoaram o público que nossos livros conquistaram, nos malharam a vida inteira. Comentamos, Erico e eu, nossa polêmica fortuna crítica. Erico, riso tranqüilo no rosto de índio, taxativo:

— Eles nos acham muito burros, Jorge.

Depois dubitativo:

— Quem sabe, somos?

 

Até ouço dizer que a velhice é boa coisa, tem encantos, prazeres, eu pergunto quais. Saber um pouco mais, ser menos limitado, menos preconceituoso? De que adianta se a vida já se vai e a experiência não serve a nada nem servirá a outrem, experiência não se herda, não se doa em testamento.

A quantas misérias o homem se vê sujeito quando a idade pesa e o passo se faz trôpego, vacilante. Sem sequer falar na solidão, a que tantos estão condenados na velhice, basta pensar no desencontro entre o desejo e a competência nas comarcas do leito: o desejo embacia os olhos, queima o peito, desce aos quimbas e os quimbas pururucas cumprem mal o seu dever, se é que o cumprem.

O douto descobrirá no ocaso da vida o prazer mais refinado, o mais sutil, servirá de consolo e de deleite, leio nos livros da sabedoria. Mirabeau, um sábio, vive na saudade: aqueles tempos — recorda-se, recorda-me — em que a gente era capaz de dar três e quatro sem tirar o pau de dentro. Recordar aqueles tempos, será esse o prazer de que se fala?

 

 

Aracaju, 1936.

O camisu

 

Venho a Aracaju cobrar uns dinheiros devidos pelo Estado à Editora José Olympio, tenho direito a pequena comissão, os trocados serão bem-vindos à pobreza franciscana do desterro. Tenciono voltar a Estância pelo ônibus do fim da tarde, mas, adiado o pagamento para o dia seguinte, devo aguardar. Hotéis repletos, os poucos que existiam, sou obrigado a pedir dormida a um tio de Matilde, militar posto na reserva no grau de coronel.

Sou acolhido com gentileza, a tia prepara um café gordo — não temos o costume de jantar, explica. Inhame, aipim, cuscuz de puba, de tapioca, banana frita, bolachão, sem falar nas frutas, no suco de graviola e no de pitanga. Me regalo que nem bispo em missão apostólica, deixo os hospedeiros satisfeitos.

O quarto de hóspedes preparado, debaixo da cama o pinico de porcelana, perfume de alfazema, sobre os lençóis vejo, em lugar de pijama, modernice, uma camisa de dormi; flores azuis bordadas nos punhos e no pescoço. O dono da casa, idoso, aposentado, nunca se habituara ao uso do pijama, indumentária incômoda, desculpa-se sorrindo, meio encabulado.

Envergo o camisu, lembro de meu avô José Amado de Faria, em Itaporanga, eu ia com meu pai visitá-lo no fim do ano, ele usava camisu o dia inteiro. Apesar da lembrança do velho patriarca, senti-me violentado em meu machismo, que era grande e soberbo, as flores azuis nos punhos e no pescoço pareceram-me ridículas, que diriam os camaradas se me vissem assim vestido? Felizmente ninguém verá nem saberá.

Deito-me, passo os olhos num jornal da terra, fecho a luz, adormeço. Constato: para dormir na comodidade nada igual ao camisu, amplo, solto, leve, o conforto. Um dia ainda hei de adotá-lo, vencerei a inibição, os preconceitos grandes e pequenos que discriminam, ridicularizam, interditam o camisu.

 

 

Paris, 1949.

Albert Camus

 

Posso dizer que conheci Albert Camus? Uma única vez o vi, quase de relance, ele saía da sala de Claude Gallimard, na editora, eu entrava, fomos apresentados, fitei-o boquiaberto, ele me sorriu, apertamo-nos as mãos, não voltei a vê-lo, aconteceu em fins de 1949.

Não lhe agradeci sequer o artigo que dez anos antes escrevera saudando o lançamento da edição francesa de Jubiabá, devo ter passado por presunçoso ou descortês mas como fazê-lo se eu não sabia da existência daquele texto? Somente em 1989 dele vim a tomar conhecimento, pude lê-lo e sentir-me grato. Imagino como me teria exacerbado a vaidade se o houvesse lido em 1939 quando foi publicado.

Roger Grenier que me dá a honra de sua estima, especialista dos estudos sobre Camus, tendo vindo nos visitar, recordou o artigo, espantou-se ao saber que eu não o conhecia, mandou-me cópia fotostática. Só então entendi o sorriso de Albert Camus quando nos vimos por um instante na porta do gabinete de Claude Gallimard.

 

 

Praga, natal de 1953.

Solidão

 

O meu clima não é solidão. Sou da convivência, gosto de estar com as pessoas, conversar e rir, sou de natureza solidária. Sei no entanto o que a solidão significa, por mais de uma vez nela mergulhei, me senti sozinho, abandonado, o coração trespassado de anseios e de saudade, na desolação, no deserto, nada existe de pior.

Viera de Viena para Praga de automóvel, cadeias nas rodas do carro, marcha lenta sobre a neve, pensei que não chegaríamos, enfim chegamos. De Praga deveria ir de avião a Copenhague, tinha passagem na Scandinavian Airlines para o Rio de Janeiro, onde chegaria a tempo de passar o Natal em casa, com os meus. O inverno, de rigor incomum, fechara o aeroporto de Praga, nada a fazer senão esperar.

Na véspera de Natal, perdida a esperança de alcançar o Rio para a ceia e a confraternização, sou informado ao meio-dia, na recepção do Hotel Alcron, que será posto no meu quarto um prato com frios, pois o restaurante não funcionará para o jantar, tampouco qualquer outro serviço: noite de natal, noite em que as famílias se reúnem.

Canso-me de ler, a cabeça longe, saio para a rua, desço a Praça de Venceslau, vazia, não há viva alma nem corpo vivo, ninguém, absolutamente ninguém, os hotéis fechados, os bares, as cervejarias, estou sozinho, eu e somente eu na noite de Natal em Praga. Percorro as ruas, chego à Praça Velha sem encontrar vivente, sequer um cão vadio, um gato vagabundo. E os amigos? São muitos mas não me atrevi a incomodar nenhum, estão com os familiares, celebrando.

A neve cai, o frio me atravessa, avantesma em Praga, penso nos meus, o coração pesado, aprendo a solidão de uma vez e para sempre.

 

 

Sagres, 1976.

Good

 

Desembarcamos da carrinha, tomo da mão de Paloma, avançamos pelo espaço amplo diante do mar do Infante Dom Henrique, mar das descobertas, oceano. O resto da família vem mais atrás na animação da conversa.

Gordíssimo, nunca estive tão gordo, no verão de turismo visto bermudas, camisa do Havaí, flores vermelhas e azuis, sandálias exibindo o dedão do pé, boné de marinheiro, ianque em férias. No caminho uma barraca de guloseimas, frutas secas, nozes, avelãs, amêndoas, tâmaras, tanta coisa de apetite. Paro a admirar, o dono do negócio me encara interessado, na esperança de boa venda, mondrongo retaco, parrudo, meia-idade. Tiro um figo do monte, mordo, saboreio, escapa-me um suspiro. O vendedor acompanha com os olhos a mastigação do norte-americano em sua frente: a pança e a gula.

— Good? — Pergunta-me em seu inglês comerciante.

— Good! — Repito, afirmativo.

Em torno riem com o diálogo, riem ainda mais quando ele me mede de alto a baixo:

— Estás gordito, hem, fílho-da-puta?

O riso nos assalta, a Paloma e a mim, por pouco não me engasgo. Paloma, contida a gargalhada, comenta alto:

— Ele pensa que és americano, pai!

— Ai que são brasileiros! — Geme o vendedor.

Encomendo quilos de frutas secas, figos, avelãs, tâmaras de minha paixão. Leitores se aproximam, caneta em punho, pedem autógrafos, o dono da barraca não sabe para onde se virar:

— Ai que o gajo é artista de cinema!

 

 

Mar Negro, 1992.

A rainha mãe e o generalíssimo

 

Sandálias do deserto, atravesso as páginas do Velho Testamento no cortejo do rei David, os Salmos cantam a grandeza do Generalíssimo. Sonho confuso e agitado, se desdobra em pesadelo, na noite de breu o navio enfrenta águas picadas do Mar Negro, procedente de Odessa, no rumo de Yalta.

Ontem aqui era a União Soviética, superpotência, superpátria de centenas de milhões espalhados nos cinco continentes, das capitais à derradeira ilha da Oceania. Quando foi, ninguém mais sabe, perdeu-se a memória, lêem-se versões contraditórias nos compêndios dos historiadores, circulam lendas na boca do povo. Decerto aconteceu no começo dos tempos, pois no Cântico dos Cânticos o Rei Salomão compara a magnitude das ancas da Rainha de Sabá à bigodeira do Generalíssimo.

Naquele tempo que de repente se apagou, em sala de Palácio desta cidade de Yalta — na costa do Mar Morto ou às margens do Eufrates? — se reuniram em conferência o generalíssimo Josef Stalin e dois outros senhores, ambos de língua inglesa, dividiram o mundo, cada qual abocanhou seu naco, haviam-no conquistado nos campos de batalha.

Foi na hora precisa da divisão, a solenidade soleníssima fez o inglês Churchill sorrir sarcástico, quando — naquele preciso instante, antes do anúncio do tratado, o imprevisto aconteceu e o sonho perdeu o conteúdo de testemunho da história para se transformar em amargura e queixa: a cena inteira dominada pela majestade (intempestiva) de Luz da Serra a me acusar de ingrato e mau amigo. Não chegava da Bahia pois estávamos na Bahia, para ser exato constato que estávamos no hall do Teatro Castro Alves. O que fora fazer ali não me recordo, ia perguntar ao diretor Orlando Sena, não tive tempo, Luz me interpelou:

— Estás chegando ao fim desse malfadado livro que, se não é de memórias, de que diabo é? e ainda não falaste sobre mim, não te referiste aos meus. Por mim e por Walter não ligo a mínima, mas por que esqueces os meninos? Nessas páginas rabiscadas em teu português capenga, sem regra de gramática, onde sobejam galicismos, em que língua tu escreves, mãe de Deus!, nelas ainda não li o nome festejado do compositor Walter Queiroz Júnior, no entanto dizes apreciar as melodias que ele cria ao violão: o samba, a marcha, a modinha — que reles amigo me saíste! Faltar a mim, te esqueces que sustentei teu nome na praça pública da contestação, na feira das mesquinharias, quando te negaram pão e água, faltar logo a mim, tua chapa Luz da Serra.

Debato-me no sonho, reajo contra o libelo e a dúvida, os ritos da amizade são sagrados para mim:

— Ai, Luz, não me digas mau amigo, não o sou. Ainda não coloquei ponto final nos apontamentos, lembranças de coisas e pessoas, leitura para familiares e comparsas. Somos comparsas, tu e eu, aqui inscrevo teu nome e o de Walter mais uma vez te proclamo a mãe por excelência, mãe excelsa, de teu ventre nasceram a bailarina e o pintor, la mamma de Waltinho Queiroz, compositor que, adolescente, estreou nas paradas de sucesso com meu voto, te lembras, Luz da Serra Queiroz? No júri da música popular baiana, voto de pouca valia, o meu, mas os de Caymmi, Cyva, Coqueijo, Manuel Veiga proclamaram o nome de teu filho. Compositor da admiração de Mareei Camus, eu o constato ligado a meu trabalho de escritor, musicou o filme do francês sobre os pastores da noite da Bahia. O samba de sua criação entra-me casa adentro vindo da rua onde o povão o canta no carnaval do Bloco do Jacu: do alto do trio elétrico, Waltinho comanda a folia.

Se vieste me lembrar, perdeste teu tempo, como poderia esquecer a Rainha Mãe? Antes de saber de ti e de tua picardia, soube de teu cunhado José, fomos colegas de Colégio no Ypiranga, companheiros e adversários nos arraiais da subliteratura, nos xingávamos e nos negávamos naqueles idos de 1928, José era de nós todos o mais moço, apenas completara 15 anos, publicou um romance, virou celebridade, Carlos Chiacchio* colocou Queiroz Júnior nas alturas, sua glória nos regalou a todos, fomos todos reconhecidos, recebemos carteira de escritor, de Brício de Abreu a Aydano do Couto Ferraz, guerreiros pés rapados.

*Carlos Chiacchio (1884/1947), crítico literário de A Tarde.

 

Onde estás, Luz da Serra, que já não te vejo na sala da Conferência de Yalta? Quem eu vejo passar, altissonante, é o deputado Ulysses Guimarães, vai apressado:

— A Presidência está vaga, Roosevelt morreu, vou ocupá-la, me cabe de direito.

Churchill se opõe, o Generalíssimo alisa os punhos da espada, Ulysses se precipita. Molotov toma da palavra, pede silêncio, lê o papelório, a ata da divisão do mundo: o Brasil e a metade do planeta Terra couberam aos norte-americanos; Cabo Verde, Angola, Moçambique e a outra metade quase inteira compõem o mapa vermelho das colônias soviéticas; do que sobrou, o Portugal de Oliveira Salazar persiste inglês, restou para os franceses a Argélia em convulsão — ainda hoje em convulsão. A dividir, somente o universo: a Lua, Marte, Vênus e Júpiter, o sistema solar, a Via Láctea, a disputa se dará na guerra fria das estrelas.

Proclamados o talho e o retalho, o Generalíssimo deitou a bênção, cofiou a bigodeira. Assim se deu em Yalta, fui testemunha. Terminou como se sabe. Ou não se sabe? A Criméia é Rússia, Ucrânia ou nação independente? Quem pode assegurar de certeza certa? O tempo da certeza terminou, afirmar seja o que seja, quem é louco? Acabou-se o que era doce.

Acordo estremunhado, querendo saber que fim levou Ulysses Guimarães.

 

 

Ilhéus, 1925.

A moralista

 

De férias em Ilhéus Eurico e Emílio, filhos de dona Julieta, e eu, filho de dona Eulália — Emílio festejara treze anos, Eurico e eu ainda não — enchemo-nos de coragem, adentramos o puteiro de Antônia Machadão (em Gabriela mudei-lhe o prenome para Maria), o mais renomado da zona cacaueira. Além de nacionais vindas da Bahia, de Aracaju, do Rio, nele exerciam uma francesa e uma polaca, profissionais civilizadas, as gringas faziam de um tudo.

Alvoroça-se o mulherio ao ver os filhos-de-família, infantes decerto cabaçudos, somos cercados, abraçados, beijados, riem, debocham, oferecem-se para a festa do desvirginamento. Emílio tenta bancar o veterano, Eurico emudece, encabulado, a polaca senta-se em meu colo. A algazarra traz Antônia Machadão à sala, foi o dia do juízo final.

Conhecida e estimada por todos na cidade apesar do comércio que explorava com proveito, Antônia tivera duas filhas de xodós diferentes, adotadas uma e outra por famílias ilheenses, dava-se com as senhoras da sociedade, as esposas dos fregueses do castelo, nenhuma lhe negava o cumprimento. Com minha mãe batia longos papos quando habitávamos na rua do Unhão, não longe da pensão alegre. Ao lado de Lalu, sentadas as duas no batente da porta, comentavam a chuva e o bom tempo, a previsão da safra e o preço do cacau. Na região grapiúna onde ainda se morria e se matava pela posse da terra, as distinções sociais não ditavam os costumes.

Ao nos ver nos braços das raparigas, em vias de escolher parceira, ir para a vida na cama, Antônia Machadão virou fera:

— Fora, fora daqui, seus moleques descarados, fora agora mesmo. Que haveriam de dizer dona Julieta e dona Eulália se soubessem que permiti que seus meninos freqüentem casa de mulher-dama. Fora daqui!

Expulsos, humilhados, o galanteio das putas se transforma em vaia, saímos rua afora rabo entre as pernas: Antônia Machadão, cafetina, zelava pela moral na cidade de Ilhéus.

 

 

Buquim, Sergipe, 1936.

As duas casas

 

Meu pai vem passar uns dias comigo em Estância: sucos de graviola, caju, cajá, de manga e umbu, almoços monumentais em casa de parentes, banhos de rio na bacia das moças. Em sua cidade natal o coronel do cacau rejuvenesce. As três irmãs surgem, curiosas, querendo conhecê-lo, afoitas voltejam em torno do velho João Amado. Velho? Anda pelos cinqüenta e cinco anos, com a mão alisa os bigodes negros, ajeita as mechas da cabeleira, os olhos brilham. Mede as moças, cada qual mais formosa, passa a língua pelos lábios: sinto meu harém ameaçado.

Meu pai leva-me a Buquim em visita à sua irmã mais velha, minha tia Yayá. Meu avô José Amado de Faria faturou 21 filhos, 18 do primeiro matrimônio, 3 do segundo. Yayá, primogênita, completara 84 anos e seu marido José era um ano mais velho.

Casa ampla de comerciante rico, na praça central de Buquim, a sala de visitas é aberta aos visitantes, os móveis caros e pesados são despidos das coberturas que os resguardam, a ocorrência é solene: visita de irmão fazendeiro de cacau em Ilhéus, de sobrinho escritor de nome nos jornais. Conversamos durante o almoço grandioso, oito pratos, peixes, camarões, pitus, galinha — a galinha de parida de minha tia Yayá, falada até em Aracaju —, carne de boi e de porco, feijão, branco e mulatinho, arroz, farofa, abóbora, fruta-pão, jiló, maxixe, chuchu, batata-doce, aipim, inhame, banana-da-terra e por aí afora, um desparrame.

Na mesa, além do casal — minha tia Yayá é monumental, buço forte sobre o lábio, quase um bigode, usa óculos, enrola o cabelo num coque alvo de algodão, ar de senhora grada, meu tio José é um caboclo de muitos sangues misturados, o rosto aberto, as mãos poderosas, a grenha e os bigodes brancos, o cigarro de palha, o riso fácil —, além deles a filha viúva, a filha solteirona e o filho mais moço, Antônio, único varão, terá seus cinqüenta anos, por aí, bigodudo como o pai de quem herdou as feições morenas e o riso cordial. Antônio, acanhado, conta-me que leu Jubiabá e Mar Morto, tece elogios. Três filhas morreram num surto de bexiga e minha tia abortou de gêmeos. Aprendo histórias da bexiga negra que, em mais de uma ocasião, lavrou em Buquim sua lavra de morte.

Após o almoço tio José, lépido apesar dos 85 anos de labuta, toma do chapéu e da bengala e nos convida a dar uma volta. Volta que nos leva à casa militar, numa rua de canto, residência tão ampla quanto a da casa civil e ainda mais agradável, pois fica no centro de vasto terreno plantado de mangueiras, cajueiros, abacateiros, umbuzeiros, cajazeiras, pés de pinha, graviola e fruta-pão, mangabeiras, uma roça de pitangas, além do agreste jardim de flores tropicais.

Tio José nos apresenta a Rosa, mulata bem fornida de carnes, risonha, a bunda vistosa empinando a saia, formosura doce e sensual: hoje já não se fazem dessas mulatas de antes, gordas e belas, são magras e xexelentas. Na carapinha bem cuidada uma flor do campo, colares e pulseiras de ouro, os dentes de morder, admiráveis, os olhos lânguidos, Rosa nascida para a cama. Várias crianças vêm correndo da casa e do pomar tomar a bênção ao pai, a mais velha andará pelos quinze anos, a mais moça, de meses, dorme no colo da ama-de-leite.

Redes brancas nas varandas, para a sesta. No comando de um batalhão de mucamas Rosa serve doces e compotas incomparáveis: doce de banana de rodinha, de jaca, de caju, de batata-doce, de abacaxi, de limão inteiro e descascado, cada qual mais divino. Que dizer do requeijão que os acompanha, a manteiga escorrendo? O café fumega nos bules esmaltados.

Os olhos cúpidos do coronel João Amado demoram nas ancas de Rosa, nos seios que se revelam no decote da bata branca. Também meus olhos se perdem naquelas formosuras.

Rosa sentada atrás da rede onde tio José descansa pitando seu cigarro de palha, faz-lhe cafuné, carinhosa, arrulha no riso de dentes brancos. No calor da tarde a brisa convida ao cochilo, o tempo passa.

Vamos regressar à casa civil, à majestade da tia Yayá, no portão da casa militar, ao deixarmos a mansidão de Rosa, meu pai aponta o bando de crianças que corre entre as árvores, os filhos da amásia:

— São todos seus, José?

O velho ri sob os bigodes brancos:

— Todos meus, João Amado. — Amplia o sorriso, nos olhos a malícia e a ternura: — Meu filho Antônio me ajuda um pouco...

A tarde cai, amena, luminosa, a doce viração do pôr-do-sol nos acompanha rua afora na cidade de Buquim.

 

Em tão longa e difícil travessia quem não se fere e não se suja?

 

 

Fazenda Santa Eulália, Pirangi, 1924.

A égua

 

Minha primeira vez foi na fazenda, com a égua Furta-Cor, montaria nervosa e elegante, espantadiça, passarinheira. Menino solto nas roças de cacau, inúmeras vezes assisti à cópula dos alugados com éguas, mulas e jumentas. Furta-Cor era viciada: uma palmada nas ancas, amava os quartos, punha-se em posição.

Amores no pasto sob a lua, de Furta-Cor sofri ciúmes, não me era fiel, traía-me com trabalhadores e jagunços, o negro Honório, o curiboca Argemiro, o sarará Dioclécio, com toda a molecada da fazenda, não tinha preconceitos de raça e classe: tarada, gostava de homens.

 

Tomo da mão de minha namorada, cúmplice da aventura há quase meio século, co-piloto na navegação de cabotagem: vamos sair de férias, mulher, bem as merecemos após tanto dia e noite de trabalho na escrita e na invenção, nossas primeiras férias em tantos anos. Vamos de passeio, sem obrigações, sem compromissos, vamos vagabundear sem montra de relógio, sem roteiro, anônimos viandantes, convidaremos Misette a vir conosco, é boa companhia para a descontração e o riso, daremos uma de turistas para escândalo dos letrados.

Não me digas que se acerca a hora das comemorações, não me tentam, não vejo por que o estardalhaço dos oitenta anos, quero sossego e paz, a carga dos mortos que carregamos no cangote pesa e cansa, nossos mortos, homens e bichos, não faço distinção. Por que comemorar oitenta anos? — Não repitas que são oitenta primaveras, ai são invernos, as palavras não curam o reumatismo. Vamos desencomendar o foguetório, guardar o fogo de artifício, a missa campal das ursulinas, a festa do axé no terreiro do Afonjá, vamos tudo guardar para daqui a três anos, três, exatos, para o nosso aniversário. Foi em julho de mil novecentos e quarenta e cinco que nosso enlace aconteceu, lembro cada gesto, ouço cada palavra, os suspiros, os ais de amor. Vínhamos de uma festa política, éramos cidadãos cumprindo o dever da cidadania, combatentes, aconteceu na aurora da liberdade, embarcaste na barra da manhã, no cais da Avenida São João, assumiste o leito, o coração do doidivanas, desde então comandas a navegação de cabotagem, a mão no leme, nos lábios a cantiga de Euá: te darei um pente para teus cabelos penteares.

Navio de rodas ou saveiro, de certeza ainda não sei, sei que não é transatlântico de turismo, tampouco iate de milionário, barco de papel em branco, armado em guerra pela boa causa. Daqui a três anos, sim, será nossa festa, o cinqüentenário da primeira noite: o porto á vista, as bandeiras ao vento, festejaremos.

 

Como dizer para nomeá-la? Não direi vulva, vagina, boceta, babaca, não direi, como então designá-la? Ai falta-me o dom da poesia para criar a imagem justa, encontrar comparação para a incomparável. Queria coroá-la com as flores do poema, falta-me a inspiração do bardo, a frágua mágica do vate, prosador terra-a-terra não sei como denominá-la, não a mereço.

Flor de cacto, trago de aguardente, cratera de vulcão, a engole-pau, afeita de cravo e de canela, poço sem fundo, porta-do-oriente, mansão de árabe, mesquita, precipício, a xoxota em fogo de Gabriela.

La chatte de madame, pasto de miosótis, campo de papoulas, chão dos prazeres, mapa do refinamento, caftina de velhos, mestra de meninos, gata em cio, matriz do ipsilone, o xibiu doutor honoris causa de Tieta.

Os três vinténs, a vendida, a comprada, a violada, a conspurcada, fonte de mel, barra da manhã, luz de candeeiro, labareda, nascente d'água, foz de rio, concha do mar, ai a boca do mundo de Tereza.

Não direi rosa chá, marulho, fogo do inferno, bálsamo da estrovenga, o altar-mor a gruta escura, a aurora, a noite, a estrela, a colina do deleite, o ostíolo, a buça de chupeta, a madona, a contadina, a pazza, a louca de albano, Ia mamma, a prova dos nove, os nove-fora, lar da pudicícia, porta da devassidão, apocalipse, não direi abismo onde faleço e ressuscito, não direi mãe de Deus, mulher do cão:

Irei buscá-la onde um dia a coloquei para resguardá-la, a escondi lá onde sabes, no xis de dona Flor, e direi a peladinha de Euá. Direi a peladinha e tu entenderás que a ela me refiro, tomaras da chave da adivinha e abrirás a porta do tabernáculo, cavaleiro e montaria, amazona bravia e árdego ginete percorreremos os caminhos, minha égua se chama a peladinha, teu cavalo se nomeia o bom de trote e de galope.

Na hora derradeira quero nela pousar a mão, tocar-lhe a penugem, a pétala do grelo, sentir-lhe a doce consistência, a maciez, nela depositar meu último suspiro.

 

Aproxima-se a data dos oitenta anos, por que se considera tão curto tempo de vida façanha a celebrar, empreitada a saudar com estrondo e festa? De toda parte, do Brasil e do estrangeiro, chegam convites para comemorações, atropelam-se as notícias, os projetos, programas infindáveis de solenidades, cresce a pressão para que aceite ir aqui, ali e acolá de ceca em meca, ouvir discursos, pronunciá-los, agradecer elogios de corpo presente, participar de atos, seminários, fóruns, almoços e jantares, quanta coisa se inventa para proclamar-se a caduquice. A generosidade dos amigos, o carinho dos leitores me comovem, mas todo esse cerimonial parece-me conter laivo de despedida, tem ar de adeus em necrológio: aqui repousa em paz, epígrafe em mausoléu, letras de ouro em campo-santo.

Digo não ao discurso, à medalha, à fanfarra e aos tambores, à sessão solene, ao incenso, à fotografia de fardão ou em mangas de camisa exibindo as pelancas e a dentadura, não sou andor de procissão. Dá-me tua mão de conivência, vamos viver o tempo que nos resta, tão curta a vida!, na medida de nosso desejo, no ritmo de nosso gosto simples, longe das galas, em liberdade e alegria, não somos pavões de opulência nem gênios de ocasião, feitos nas coxas das apologias, somos apenas tu e eu. Sento-me contigo no banco de azulejos à sombra da mangueira, esperando a noite chegar para cobrir de estrelas teus cabelos, Zélia de Euá envolta em lua: dá-me tua mão, sorri teu sorriso, me rejubilo no teu beijo, laurel e recompensa. Aqui, neste recanto do jardim, quero repousar em paz quando chegar a hora, eis meu testamento.

Nasci empelicado, de bunda para a lua, uma estréia no peito, a sorte me acompanha, tenho o corpo fechado à inveja, a intriga não me amarra os pés, sou imune ao mau-olhado. A vida me deu mais do que pedi, mereci e desejei. Vivi ardentemente cada dia, cada hora, cada instante, fiz coisas que Deus duvida, conivente com o Diabo, compadre de Exu nas encruzilhadas dos ebós. Briguei pela boa causa, a do homem e a da grandeza, a do pão e a da liberdade, bati-me contra os preconceitos, ousei as práticas condenadas, percorri os caminhos proibidos, fui o oposto, o vice-versa, o não, me consumi, chorei e ri, sofri, amei, me diverti.

Fujo aos festejos, ao fogo de artifício, ao banquete, fujo ao necrológio, estou vivo e inteiro. Amanhã, passado o obituário de reverências, voltarei ao romance, Bóris, o Vermelho me espera na esquina da máquina de escrever com seu desafio de trapaça e juventude. Obstinado, vou prosseguir com orgulho e humildade a tarefa de emprenhar nos esconsos da cidade, conceber e parir homens e mulheres, capitães da areia, mestres de saveiro, jagunços, vagabundos, putas, são a inocência e a fantasia, nascem de minhas entranhas fecundadas pelo povo, do coração, dos miolos e das tripas, dos culhões.

Não vou repousar em paz, não me despeço, digo até logo, minha gente, ainda não chegou a hora de jazer sob as flores e o discurso. Saio porta afora para o bulício da rua, Bóris, o Vermelho vem comigo, obrigado por tudo, agradeço e vou adiante, vou me divertir, axé.

 

                     Bahia — Paris, julho de 1991 / junho de 1992

 

                                                                                Jorge Amado  

 

                      

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