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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NAVEGUE A LAGRIMA / Leticia Wierzchowski
NAVEGUE A LAGRIMA / Leticia Wierzchowski

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Uma casa de praia, num idílico balneário no Uruguai, é o cenário de duas histórias de amor e perdas, separadas no tempo. Consumida pelo luto, a editora Heloísa escolhe se afastar da cidade onde morava e levar uma vida de isolamento na residência de veraneio que pertenceu à Laura Berman, uma escritora consagrada.
Entre muitos drinques, cercada de pertences e memórias dos antigos moradores, Heloísa começa a ser visitada pelas lembranças guardadas entre aquelas quatro paredes: a correria de crianças, dias de sol preguiçosamente passados à beira da piscina, o romance terno de Laura e seu marido Leon. Se é delírio ou magia, a nova moradora não consegue distinguir. Aos poucos, enquanto revira baús, ela mergulha no universo conflituoso da escritora, descobre pequenas traições cotidianas e o inexorável desgaste realizado pela passagem do tempo nas relações mais sólidas. Essa compreensão permite que, lentamente, Heloísa consiga enfrentar seus próprios fantasmas e desvelar a história de uma grande paixão. SOBRE A AUTORA Leticia Wierzchowski nasceu em Porto Alegre em 1972 e estreou na literatura aos 22 anos. Publicou treze romances e nove livros infantis. É autora de A casa das sete mulheres, que inspirou a série homônima produzida pela Rede Globo, exibida em 30 países. Com obras traduzidas para nove idiomas, a escritora recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura, em 2011, por Neptuno. Em 2012, publicou Sal, seu primeiro romance pela Intrínseca.

 

 

 

 

1. O SEU AVÔ

NASCEU na Polônia e ela gostava muito dele, sei disso porque escreveu um longo romance sobre o velho. Ela era dada a reminiscências como a maioria dos escritores
e, antes de conseguir colecionar um bom punhado de histórias de sua vida pessoal, aquele avô havia sido para ela uma espécie de boia de salvação no mar tempestuoso
das fantasias literárias e das adversidades reais. Afeiçoou-se bastante ao velho, ficcionalmente falando. Pobre coitada, apesar de o avô ter morrido quando ela estava
com apenas sete anos, ela tratou de dar um nó nas datas, aumentando o tempo de convívio entre ambos, e transformou sua obscura pessoa num dos mais fundamentais alicerces
da sua vida. Tinha até uma foto dele ao lado da cabeceira da cama, dividindo espaço com as dos filhos e do marido, vejam só. Estou meio obcecada pela vida dessa
mulher e por isso comecei a escrever esta história. Os motivos dessa obsessão vocês vão entender em breve, porém posso adiantar que não fui eu quem saiu atrás dela.
Tampouco posso dizer que foi ela que me buscou - a coisa está mais para uma interseção entre as nossas vidas, e é nesse espaço misterioso e atemporal que nós duas
nos encontramos. É engraçado, talvez eu esteja apenas repetindo o seu comportamento em relação ao avô polonês - aqui onde vivo, andando pelos cômodos desta casa
sombreada e calma, sozinha neste verão que já está chegando ao fim, mal posso me lembrar dela sem a ajuda de uma das fotografias espalhadas por aí. Aliás, sempre
tive a impressão de que eles saíram da casa de modo apressado, embora eu saiba que não foi nada disso, tal a quantidade de pertences que deixaram para trás, como
se fosse insuportável levar tudo, não marcar território e presença nesta casa onde foram tão felizes. De qualquer modo, no começo eu precisava buscar uma fotografia
dela para poder recordá-la, e quando a evocava a imagem que vinha à minha mente era estática, não uma recordação viva da mulher que ela foi e sim apenas uma reprodução
de alguma das fotos que encontrei espalhadas por aí. De fato, convivemos pouco e ela nunca me fez uma única confidência. Isso foi no tempo em que eu ainda trabalhava
como estagiária na editora, fazendo revisão de textos, e ela era uma autora de relativo sucesso cuja obra começava a ser conhecida do grande público. Tomamos uma
ou duas xícaras de chá juntas, entre anotações e páginas de originais, e ela costumava falar com carinho do marido e do filho mais velho, o único nascido naquela
época. Achei-a elegante e discreta, quase esquiva. Eu era jovem, tinha apenas 22 anos. Ela estava com 32 e era senhora do seu tempo, uma mulher inteligente, calma
e determinada. Esses encontros entre nós não passaram de cinco ou seis - o suficiente para resolvermos algumas questões de um dos seus romances em fase de revisão,
mas a sua figura e a aparente serenidade e leveza no trato com a própria ficção me marcaram. Alguns autores ficavam bastante incomodados quando a gente sugeria uma
alteração num texto ou assinalava alguma incongruência ficcional; ela não. Depois, no ano seguinte, creio que era 1976, ela trocou de editora e ficamos um longo
tempo sem manter contato. Eu a acompanhava pelos jornais e li todos os seus romances, alguns passaram sem fazer nenhuma marola em mim, outros me trouxeram grande
prazer. Foi bem depois, quando a vida tinha me dado a maior rasteira e, no fundo da minha tristeza, dei de cara com o anúncio desta casa, exatamente o que eu estava
procurando, que as nossas vidas voltaram a se cruzar tão misteriosamente. Com o anúncio em mãos, corri para o telefone e então soube, através do corretor, que esta
casa era deles - dela e do marido. As suas fotos, presas nas paredes da sala de estar, espalhadas entre outras fotografias de velhos bons momentos da minha vida,
estão por todos os recantos. Nunca tive coragem de me desfazer das fotos dela e acho que esse gesto foi uma espécie de convite para o que aconteceu algum tempo depois.
No entanto, eu gostava mesmo das fotos, de todas as fotos que eles deixaram na casa... Sei lá, me transmitiam uma espécie de "sensação de felicidade" e, naquela
época, eu estava realmente precisada disso. Ela, a escritora, até que foi bem bonita durante a juventude. Não uma beleza óbvia, delicada e feminina. Tinha um nariz
um pouco grande, um nariz que, com o passar dos anos, deve ter ficado parecido com o do avô polonês dos seus livros. Os olhos eram negros, brilhantes e alegres,
e os dentes, excepcionalmente brancos, sempre à vista num sorriso, chamam a atenção em todos os retratos. Engraçado como ela mudava os cabelos; nesse ponto, era
camaleônica. Posso vê-la loira, morena, de cabelos curtos e crespos, longos e lisos, longos e crespos. Acho que, no decorrer do tempo em que foi feliz e não precisava
se preocupar com a sua vida cotidiana, ela se dedicou a transformar os cabelos. Alguns resultados são melhores do que outros, mas, por fim, ela parece ter adotado
os cabelos loiros e lisos, compridos. Sentada aqui na sala enquanto o sol cai lá fora e crianças gritam em alguma piscina da vizinhança, posso vê-la passar usando
um maiô preto, as longas pernas bronzeadas, risonha e ocupada com os seus dois meninos. É como se o passado às vezes ressuscitasse nesta casa, a interseção entre
os nossos mundos, o dela e o meu - e ouço as suas risadas: um dos meninos diz alguma coisa divertida -, e vejo-a correr com uma toalha porque o caçula molhou todo
o tapete da sala ao tirar a sunga ensopada de água, e ela (que sempre adorou tapetes e usou essa analogia, a da mulher tecedeira, em um dos seus livros), bem, ela
seca o menino com vigor e chama por alguma empregada da família; foram várias no decorrer dos anos. Atarefada com a toalha, recrimina docemente a criança, dizendo
que os trabalhos manuais, e aquele tapete, feito a mão por alguma mulher desconhecida numa província argentina, deveriam ser cuidadosamente respeitados. "Cada ponto
guarda um pensamento", é o que ela fala para o filho, séria. O menino ri sem entender muito, e então, seco e com um calção limpo no corpo, corre para o gramado para
jogar bola com o irmão mais velho. É incrível como, quando prestamos a devida atenção, é possível ver que o passado permanece vivo e que o tempo é uma coisa única,
circular e eterna. O fato é que andamos sempre tão envolvidos com as múltiplas obrigações da vida comezinha que não notamos absolutamente nada disso. Eu demorei
a entender a subjetividade do tempo. Mas algumas coisas começaram a mudar quando vim definitivamente para esta casa, no final daquele trágico ano de 1995. E começaram
a mudar de uma maneira tão clara, tão evidente, que não pude ignorar essa transformação. Ou seja, nada do que aconteceu aqui é mérito meu, não mesmo; de algum modo
eu fui escolhida, a vida ou os acontecimentos me escolheram e, quando dei por mim, estava recompilando a história dela e vivendo nesta casa, exatamente nesta casa.
Sim, a casa havia sido dela. Da escritora de cabelos loiros e maiô preto. Era a casa de férias, um desses lugares muito amados e cuidados com extremo zelo, onde
famílias felizes passam seus melhores momentos, as férias, feriados e aniversários. Desde que vivo aqui sozinha, o passado vem me visitar como uma espécie de curiosa
novela em capítulos. Geralmente ao entardecer, essa hora cálida; e os finais de tarde neste lugar se alongam sem nenhuma pressa, até que a última gota do dia desapareça
no horizonte. Sim, na grande maioria das vezes, é ao entardecer que as coisas acontecem. *** A grande bola de fogo escorrega para o oceano no lado oposto da península
onde a minha casa se situa. Nas mornas areias da Playa Mansa, jovens alegres e salgados de mar aplaudem o balé luminoso. Aqui, o espetáculo também é bonito. O céu
se pinta quase inteiro de vermelho e dourado, bem lá no alto, algum azul ainda teima em permanecer, como uma mancha disforme na qual em breve cintilarão as primeiras
estrelas. Sento-me na sala com todas as portas abertas para o jardim, enquanto as caturritas gritam e fazem alvoroço no alto das árvores, e os vizinhos acionam os
seus sprinklers e gastam água como se os recursos naturais do planeta estivessem na melhor forma; então ela, todos eles, na verdade, saem das fotografias, lindos,
bronzeados, felizes e irreverentes (quem, afinal de contas, tem porta-retratos de momentos ruins da vida?), eles saem e desfilam diante dos meus olhos com suas histórias,
alegrias e medos, um pouco de sexo, bellinis, baldes de praia e chuvas de verão. E eu fico aqui, eu acompanho tudo, todas as histórias, as pequenas brigas cotidianas
e as declarações de amor, os aniversários de casamento e os pileques; eu vejo os meninos dizendo suas primeiras palavras, vejo-os aprendendo a mergulhar, ganhando
autonomia para ir até a parte funda da piscina, vejo as frágeis gavinhas dos livros dela se estendendo sobre tudo isso, crescendo e fazendo sombra, e posso reconhecer,
perdidos na ficção, um ou outro sopro desses instantes do passado. E nesse momento, confesso a vocês, mesmo sendo uma criatura resistente, uma dessas mulheres às
quais a vida já deu uma ou duas boas caneladas, fico aqui, afundada no sofá branco, e choro, choro de mansinho enquanto lá fora o céu começa a se transformar novamente,
tingindo-se de violeta e negro, e Aldebarã se acende para mim. Estou no meio de um vórtice, e a vida dela, desmembrada e desordenadamente, dança ao meu redor. O
resultado disso poderia ser deprimente e confuso, mas, na verdade, tem sido emocionante. Calhou que fosse a vida dela, a da dona da casa - o que parece lógico no
meio de toda essa falta de lógica -, no entanto, no fundo, todas as vidas se assemelham na sua ânsia por felicidade, não é mesmo? Sentada aqui, me pego pensando
por que diabos a existência tem de ser assim, essa curva descendente e cruel atenuada por minúsculos e fugazes intervalos de genuína felicidade. Por que, de tudo
isso que vi nos últimos tempos, esse filme de quatro pessoas felizes na sua casa de praia, de uma autora jovem e promissora e o marido apaixonado, por que sobrou
tão pouco, tão pouco mesmo, a não ser essas fotografias espalhadas pela casa que eles já não habitam, amarelando a cada inverno? Mas talvez não seja nada disso,
talvez a vida deles tenha continuado bem longe daqui, trágica e feliz ao mesmo tempo, como todas as vidas têm a sua porção de tragédia e de alegria, e estas minhas
considerações desesperadas não passem apenas de um misterioso efeito colateral das minhas doses diárias de martíni. Tudo, porém, tem o seu começo, tudo mesmo. E
essa curiosa interseção entre as nossas vidas começou um dia num entardecer primaveril. *** 2. SE VOU CONTAR A SUA HISTÓRIA...

SE VOU CONTAR A SUA HISTÓRIA preciso dar-lhe um nome. Isso eu aprendi nos meus tempos editorais. Durante anos fui editora de ficção nacional de uma grande casa
editorial, e a quantidade de originais que li naquele tempo ensandecido da minha vida, enfileirada, daria uma volta inteira nesta península. Como seria o seu nome?
Vamos chamá-la Laura. Laura Berman. Atrevo-me a renomeá-la nestas linhas, acho mesmo que ela usou esse nome - Laura - em três ou quatro dos seus romances, portanto
não desgostava dele. Não quero ser indelicada com a pobre Laura, que Deus a tenha. Quero fazer-lhe uma pequena reverência, nada hiperbólico, apenas um esboço, um
bordado (ela gostaria tanto dessa palavra!) de um tempo de sua vida que já desapareceu e, com ele, o seu talento. Parece que depois que se divorciou não escreveu
mais nada de muito relevante e o seu nome, como tantos outros, foi caindo na obscuridade; e os seus livros, que outrora ocupavam as mais destacadas prateleiras das
livrarias, passaram a perder espaço para novas criaturas reluzentes neste mundo voraz e dinâmico. Laura sumiu dos holofotes, se é que algum dia realmente esteve
sob eles - era uma mulher mais para tímida que gostava sobretudo de fugir para esta casa com a família. Enfim, após o final do casamento, entrou numa crise emocional
aguda, enfiou-se em algum solar alugado no interior, cuidou dos dois filhos do jeito que conseguiu e parece que, entre sebes e comprimidos para dormir, perdeu a
luminosa inspiração que a guiara tão firmemente na primeira fase da vida. Isso, porém, foi muito depois das fotografias. E eu tenho toda a longa trajetória das fotos
aqui na minha frente - gosto de preservar o passado, assim como Laura, e não é à toa que estou nesta casa, pequeno museu de uma vida que, de certa forma, agora é
minha também. Quando me enfiei nesta península, disposta a passar um ano distante da agitação da cidade grande, nos primeiros tempos, apesar da beleza, do silêncio,
do ar puro e das caminhadas, me aborreci bastante. Esse aborrecimento foi extremamente curioso para mim, pois eu me achava uma criatura sossegada, que se sentia
tolhida pela agitação interminável das metrópoles, com o seu excesso de gente, de compromissos e de individualismo. Mas as nossas idiossincrasias vivem nos surpreendendo:
ao me instalar nesta linda casa, com o seu roseiral, as amplas salas, a piscina, a cozinha, cuja janela dá para duas laranjeiras, e o caminho de pedra da entrada
de carros, depois que limpei e pintei e renovei o que o tempo tinha borrado e apagado - pois a casa ficara fechada por quase cinco anos -, quando era o momento de
relaxar e curtir a beleza ao redor, eu fiquei - como dizer? - meio maluca. De repente, senti um profundo temor de ser esquecida por todos lá na metrópole, pelos
amigos que me encontravam para o happy hour, as pessoas do clube, do prédio, da editora onde eu trabalhara por tantos anos. Eles estavam sem mim e, nos poucos e
lacônicos contatos que tivemos naqueles primeiros tempos, pareciam alegremente dispostos e ocupados com as suas rotinas e agendas, e a minha ausência era mais um
motivo de graça que de tristeza. Pensei: ficarei sozinha na nova casa. Ficarei sozinha para sempre. (Hoje, a minha relação com esse pensamento mudou de maneira radical,
e talvez eu deva agradecer um pouco a Laura, ou melhor, aos Berman.) Naquele tempo, essa constatação da solidão indissociável da existência humana foi uma coisa
que me abalou terrivelmente. Eu queria ir embora, mas a leveza com que os meus amigos encararam a minha partida foi um belo tranco. Até mesmo o meu filho, Rodrigo,
envolvido com os primeiros semestres da faculdade, estava constantemente adiando as visitas e, por fim, foi viver na Europa por um tempo. Talvez a maioria dos meus
amigos já tivesse descoberto as coisas que só agora entendi - talvez inclusive Rodrigo, que viveu a experiência do meu divórcio com o pai dele, já estivesse escolado
nas verdades intrínsecas da vida. Vai ver. Eu não sei bem o que imaginara ao me mudar para longe - além, é claro, da premente necessidade de sossego e tempo para
colocar as ideias em ordem depois de tudo que eu tinha experimentado recentemente. Entretanto, acho que criei a ficção de que, com a minha ausência, as coisas na
cidade nunca mais seriam iguais. Uma tolice, eu sei. A premência da vida e do cotidiano rapidamente apaga os vestígios da maioria das coisas; a saudade, como um
cubo de gelo ao sol, vai diminuindo, diminuindo, até virar apenas uma leve mancha de umidade, uma marca dolorida, uma pegada do tempo. Eu mesma, depois da morte
de Lucas (ainda não falei sobre ele, mas chegarei lá em breve), um dia me descobri sorrindo, e esse sorriso foi tão doce quanto cruel para mim. Voltando ao começo
de tudo, logo percebi que a minha partida mudara muito pouco a vida dos meus amigos e a vida do meu filho. A grande mudança estava, de fato, diante de mim: uma rotina
de todo nova e o tempo abundando, silencioso, manso e debochado como um velho e ardiloso amigo de cuja companhia eu abdicara por motivos que me pareciam já bem nebulosos.
Adquiri alguns hábitos estranhos - o bom de viver sozinha é que a estranheza passa a ser simplesmente um padrão. Já nos primeiros dias, comecei a conversar com as
rosas que proliferavam, quase silvestres; creio que o jardineiro que chamei para colocar o jardim em ordem novamente, um senhor de traços indiáticos que agora vem
duas tardes por semana, achou que eu era do tipo caduca. Eu me sentia uma personagem de Virginia Woolf, a grande bruxa inglesa, e tinha conversas cada vez mais literárias
com as minhas rosas. Foi quando dei para beber - o que também não deixa de ser literário: os escritores sempre foram chegados a um copo, conquanto alguns escondessem
o vício, como John Cheever, e outros o tenham transformado numa charmosa peculiaridade, como Scott Fitzgerald. Bem, os exemplos são muitos quando o assunto é bebida.
Quanto a mim, mantive as aparências bastante bem e nunca fui vista cambaleando pelas belas ruazinhas arborizadas da península, nem dirigindo alopradamente o meu
Chevrolet pelas alamedas de chão batido que vão terminar na praia. Sempre gostei de um bom drinque no final do dia para aliviar a tensão lá da editora. Mas aqui
os drinques se multiplicaram rapidamente: num passe de mágica, passei da cerveja para o espumante, depois para os bellinis (inspirada nas fotos, pois os Berman adoravam
bellinis) e, por fim, quando cheguei aos martínis, quatro ou cinco por noite, foi que a história toda realmente se desvelou para mim. Oh, sim, preciso voltar à história...
Os Berman, e como eles finalmente entraram na minha vida. O fato é que, no dia do nosso "primeiro encontro", a minha solidão, de certa forma, ganhou um ponto final.
Eu lembro exatamente tudo o que aconteceu naquela primeira vez... Como numa peça de teatro, de repente as luzes se acenderam e os atores entraram em cena, saindo
das fotografias diante dos meus olhos atônitos. Toda a família Berman, carnificada e sorridente - Laura, os dois filhos, Daniel e Max, e Leon, o marido. Cada dia
um pequeno esquete. Voltemos a eles. Anoitecia. Lembro-me do céu de um tom de violeta, rubro para os lados do poente numa promessa de sol para o dia seguinte. Da
janela, eu podia escutar a furiosa gritaria das aves nos galhos mais altos dos pinheiros, e elas pareciam brigar violentamente lá no enorme ninho que ficava perto
da piscina. Eu estava na cozinha, terminando com a coqueteleira - a última dose chega sempre tão rápido -, quando ouvi um ruído curioso no jardim. Eram vozes infantis
rindo, e o barulho de água sendo espanada, água da piscina, e sobre tudo isso uma voz masculina, alegre e leve, admoestando as crianças a respeito da confusão que
faziam. Tomei um susto. Os vizinhos da esquerda não tinham crianças, e o meu terreno pelo outro lado é grande o suficiente para que nenhum ruído me venha da imensa
propriedade que faz divisa à direita com a minha casa. Era ainda começo de primavera, a tarde esvaía-se e o ar estava picante; quem quer que estivesse na piscina
acabaria com um belo resfriado. Com a última dose de martíni nas mãos, saí desconfiada pela porta da cozinha e contornei a casa até a piscina, que fica no fundo
do terreno, perto das árvores e da cerca de madeira. Havia no ar um perfume de rosas e de lavanda tão característico que, sempre quando viajo, ao me lembrar de casa,
esse odor toma de assalto a minha memória. Quando anoitece, as flores parecem exalar longos suspiros, e tudo, tudo mesmo - a casa, o jardim, as calçadas silenciosas
e as ruas estreitas que cortam o parque de arvoredos até a praia -, é tomado por esse perfume. Cruzei o jardim através do caminho de pedras e alcancei a borda direita
da piscina. Espiei entre os galhos do enorme limoeiro e lá estavam os Berman. ***

3. Os BERMAN...

Os Berman! Ora, imaginem o meu espanto... Era a primeira vez que eu os via, em carne e osso, ou seja lá o que fosse aquilo. Eles estavam ali, todos os quatro, tão
vivos e palpáveis como as próprias árvores, os pássaros e as rosas desfolhadas e rubras. Era fácil reconhecê-los pelas fotografias, e vi Leon sentado despojadamente
na beira da piscina. Dentro da água, com as sungas listradas e os seus sorrisos adoráveis, Max e Daniel armavam a maior baderna. Fiquei parada num canto perto do
muro, escondendo-me por entre a galhada do limoeiro, as folhas pinicando o meu rosto - precaução idiota, pois eu ainda não tinha entendido que eles não podiam me
enxergar. Apesar de o jardim estar imerso nas sombras azuladas do anoitecer, reconheci Laura no seu maiô negro, parada perto dos vasos de lavanda que ficam ao redor
da piscina. Ela usava grandes óculos escuros e estava às voltas com um vidro de óleo de bronzear. "Eles vão se machucar assim, Leon", ouvi-a dizer ao marido. "Que
nada", Leon retrucou, alegre. "Estão se divertindo, só isso. São dois meninos." Então, olhando as crianças, ele disse: "Não vá pro fundo, Max, você não dá pé ainda
aí." Max era o mais novo e parecia estar com quatro anos. Daniel tinha dez, e era um menino de tez clara que lembrava o pai, mas possuía os mesmos belos olhos negros
da mãe. Eu não podia acreditar. Olhei para o meu martíni como se ele fosse o culpado daquilo, mesmo assim esvaziei a taça - eu precisava de álcool mais do que nunca.
Fiquei algum tempo encostada ao muro, os pés na terra úmida, sentindo um pouco de frio, tentando colocar as ideias em ordem. Anoitecia lentamente, pois as noites
austrais chegam sem pressa, são como belas mulheres atrasadas e vaidosas; porém os Berman se comportavam como se o sol ainda estivesse alto: Laura com seus óculos
e o óleo de bronzear e Leon estirado na borda da piscina como um gato preguiçoso. Aos poucos, compreendi. Eles estavam em outro tempo, eu não sabia dizer quando.
Diante dos meus olhos, desenrolava-se uma tarde em família, uma tarde passada havia mais de dez anos e que, por algum misterioso desencaixe da roldana do tempo,
viera dar ali no meu jardim, como uma folha caída de uma árvore distante que, ao ser soprada pelo vento, vai para longe, para muito além da sua origem. Eu sabia
perfeitamente bem que, àquela altura, Max já devia estar roçando os quinze anos e que Daniel tinha mais de vinte. Eu tinha lido em algum lugar uma nota sobre Max,
alguma coisa a ver com estudos poéticos; porém, naquele tempo, no começo de tudo, eu não estava a par do talento do mais jovem dos Berman. O fato é que lá estavam
eles à minha frente: Laura e Leon, ainda jovens e bonitos, e os dois meninos pulando, pulando, no auge da infância. Eu podia sentir os respingos da água fria nos
meus pés descalços, mas não conseguia compreender como era possível que aquele curioso acontecimento se desenrolasse bem ali no meu jardim. *** Fiquei um bom tempo
acompanhando o assunto dos Berman. Eles estavam em dúvida sobre jantar em casa ou ir a um restaurante e ficaram falando sobre isso até que Daniel, que parecia estar
bastante interessado no desfecho da conversa e ser um bom conhecedor dos restaurantes da região - este é um balneário da costa uruguaia famoso no mundo inteiro e
bons restaurantes se espalham pela península e pelo campo até o farol de José Ignácio -, bem, Daniel foi quem escolheu um lugar pequeno e tradicional chamado Andrés.
Conheço o lugar, fica na ponta da península, a parte mais visitada pelos turistas, perto do porto, e já estive lá várias vezes. É um restaurante do tipo familiar
- foi o lugar preferido do escritor argentino Bioy Casares e algumas fotos dele espalham-se pelas paredes, como as fotos de Laura na minha casa. De qualquer modo,
a família decidiu-se pelo Andrés e ficaram ali na piscina por mais algum tempo, quando Max começou a choramingar de frio e Laura surgiu com uma toalha branca na
qual enrolou o menino, correndo depois para dentro de casa a fim de dar-lhe um banho bem quente. A noite caíra e fiquei lá fora sob as estrelas, sentindo o ar úmido
e limpo entrando pelos pulmões, clareando as minhas ideias. Eu não estava tendo nenhuma alucinação, não mesmo. Vi Leon chamar Daniel, já era tarde até mesmo para
eles, ao que parecia, e os dois seguiram pelo jardim, um ao lado do outro, rindo baixinho numa camaradagem afetuosa, e entraram na casa. Eu estava louca de frio,
a primavera aqui costuma ter noites gélidas, mas não sabia exatamente o que fazer. Não havia mais nenhuma gota no fundo da taça de martíni e eu a segurava como um
salvo-conduto. Estava sozinha de novo no jardim já quase escuro e, me esquivando pelas sombras como se a casa não fosse propriedade minha, entrei na cozinha pela
porta que deixara entreaberta, esperando ver Leon e Daniel ali dentro, pingando sobre o piso de azulejos, fazendo um lanchinho antes da hora de jantar no Andrés.
Mas não, a cozinha estava quieta e, afora a luz perolada que entrava pela janela sobre a pia, filtrando-se por entre os galhos das laranjeiras, a peça estava escura.
Acendi o interruptor, larguei minha taça e fiquei ali parada, confusa. Para além da cozinha, a casa estava silenciosa. Onde eles tinham se metido? Cuidadosamente,
resolvi sair da cozinha e me embrenhei pelo corredor que levava aos quartos, meus pés descalços sentindo o frio que subia do chão de pedras. As portas dos três quartos
enfileiravam-se à minha frente de um lado; as portas dos banheiros, de outro. No primeiro banheiro, não havia ninguém. Os dois quartos pequenos estavam vazios. Caminhei
até o fundo do corredor rumo ao banheiro que servia a suíte, esperando, torcendo para que Laura Berman estivesse lá com o menino mais novo mergulhado na grande banheira
de louça branca. Entrei pisando leve, porém as únicas coisas que me receberam foram o silêncio frio e úmido e o cheiro cansado das lavandas no vaso sobre o aparador.
Os Berman tinham ido embora do mesmo modo como vieram. Eu estava decepcionada. Não que esperasse que eles se transformassem em meus hóspedes, de repente rompendo
a barreira que nos separava, e pudéssemos jantar todos juntos ao pé do fogo, compartilhando histórias. Não, nada disso. Eu estava fascinada pelo papel que me coubera,
o papel de observadora externa da vida íntima deles, por isso queria continuar a vê-los sem que me vissem, queria muito. Mas eles tinham partido. Então, voltei à
sala vazia e tudo o que encontrei ali foram os porta-retratos que eu mantinha por teimosia: Max em bebê, rechonchudo e com o pequeno nariz arrebitado; Daniel na
adolescência, um belo rapaz loiro, com uma masculinidade incipiente, prometedora. Havia Leon sorrindo na Riviera Francesa, queimado de sol, e Laura, sorridente e
um tanto descabelada, sentada numa mureta à beira-mar, segurando de um jeito estranho uma enorme bolsa de palha amarela, como se a bolsa contivesse o seu futuro.
Eu estava indubitavelmente sozinha outra vez. Pensei nos Berman com carinho, pensei neles a partir da perspectiva do futuro, um futuro cujas linhas gerais eu conhecia,
e desejei com fervor que estivessem sentados numa mesa lá no Andrés, uma mesa perto dos ventanales com vista para o mar, brindando às férias, para sempre parados
no tempo, imutáveis e eternos, imunes aos caprichos e volteios da vida. Desejei que seguissem sempre juntos, felizes, afastados de qualquer doença ou fatalidade,
desconsolo ou violência, intocados pelo tempo e pelas suas misérias, pela falta de amor e pela solidão. Eu sabia que nada mais seria como antes, a vida mudava sempre,
incessantemente girando, girando, mudava para mim também a vida. Nunca nada permaneceria imutável, nem para os Berman nem para ninguém. OS BERMAN se conheceram por
causa de um livro. Sempre que penso neles me vem à mente um poema, "Amor à primeira vista", da polonesa Wislawa Szymborska. O poema fala de dois apaixonados que
vivem um amor súbito, mas brinca com o fato de que o acaso talvez já viesse jogando com eles pelos descaminhos da vida, aproximando-os ali ou acolá - o acaso "ainda
não totalmente preparado para transformar-se em destino", pregando pequenas peças nos dois futuros amantes. Esse poema ilustra o caso dos Berman... Um deus qualquer,
mundano e brincalhão, jogou deliberadamente com eles durante certo tempo e ambos cresceram perto um do outro, nascidos com a diferença de alguns anos. Imagino Leon,
um menino de cabelos claros, de óculos, parado ao lado da mãe numa daquelas missas festivas da comunidade polonesa do Sul do país - eram ambos, tanto Laura como
Leon, descendentes de imigrantes poloneses, acho que ainda não falei isso. Bem, fecho os olhos por um instante e posso ver o jovem Leon, já entrando na adolescência,
com suas pernas inquietas, os braços pálidos, os olhos bonitos, entediado no duro banco da pequena igrejinha polonesa, enquanto o padre fala o sermão, fala-o em
polonês, é claro - e Leon não entende polonês, não muito mais do que um gracejo ou outro usado cotidianamente pela avó, que ele adora. Então, no lado oposto da igreja,
uma menina fala alto alguma coisa engraçada e sua voz aguda ecoa pela nave. Leon ri. Ele ri sem saber, sem sequer desconfiar que aquela menina irrequieta, tentando
escapar dos pais, talvez para brincar no pequeno pátio atrás da igreja, significará tanta coisa na sua vida. E eu posso ver a pequena Laura, com cinco anos mais
ou menos, os cabelos presos em um rabo de cavalo, as pernas finas, compridas, tentando convencer a mãe de que lá fora está muito mais agradável do que ali dentro,
pois ela jamais gostou de missas e não entende nada do que o padre diz. A mãe dá uma bronca em Laura e a menina sossega, emburrada. E deve ter havido outros encontros.
A comunidade polonesa era pequena e assídua, e o avô de Laura um homem influente. Talvez uma tarde numa festa de Páscoa, um encontro na rua, um avô que conheceu
o outro sem muita intimidade... Houve mesmo uma amiga em comum para as duas avós, e essa amiga, transitando durante anos entre as duas famílias, levava pequenos
avisos, ainda não decodificados pelo destino, avisos que passaram por Leon sem lhe causar qualquer revelação, nenhum sinal, nada. Os anos correram e o tempo passou,
de modo que Leon foi-se embora da cidade onde cresceu, foi-se embora para uma metrópole, um lugar mais importante e com mais oportunidades, afastando-se do seu destino
sem o saber, dando uma volta na roldana da vida, enquanto o deus brincalhão dava linha a Leon, preparando o seu anzol para, no instante certo, fisgar aquele peixe
de uma vez por todas. *** Ah, de repente eu sei... Posso vê-los, todos eles. Até mesmo o deus, posso vê-lo maquinando as suas artimanhas, o deus divino e tão mundano,
tão parecido com um vizinho que tive certa vez, um Pã meio gorducho, de longas suíças castanho-avermelhadas e com uma língua fininha e rosada que escapava de dentro
da boca, sibilando pequenos gracejos. Eu posso ver o deus tramando a sua teia, escolhendo, com humor e certa dose de romantismo - vamos, sejamos gentis com nosso
Pã -, o modo mais divertido de juntar aqueles dois. Foi um livro que os uniu. Foi a ficção o ímã dessa história de amor - de amor e de tantos outros sentimentos,
alternando-se ao longo dos anos, tantos anos de uma vida em comum. Foi um livro, o primeiro livro da jovem escritora ansiosa de futuro. Não deixa de ser um modo
curioso de começar um amor, daria uma análise tão profunda como o mar, e às vezes bem salgada. Tudo o que Leon encontrou naquelas páginas escritas por Laura durante
dias e noites a fio trancada no quarto, escrevendo como quem respira, buscando furiosamente alguma coisa que ela não sabia bem qual era, alguma coisa ou alguém bem
longe da sua realidade. E o que lhe apareceu primeiro? Leon. O filho da moça polonesa que ia à igreja aos domingos, sentando-se três fileiras para trás e à esquerda
da sua mãe. Teria sido mais fácil um encontro no átrio da igrejinha, ou no pátio sombreado, os dois correndo pelas escadas - ou Laura correndo, e Leon, já um menino
crescido, apenas olhando-a -, mas não seria tão bonito, nem tão promissor. Como uma espécie de Sherazade, Laura escreveu e escreveu, colocou naquele livro o que
de melhor sabia - as palavras, as imagens, as histórias que sempre haviam povoado a sua cabeça, sussurrando-lhe todos os tipos de loucuras enquanto ela tentava pegar
no sono durante a sua longa e tediosa adolescência incompreendida. Foram anos de tormento, pobre Laura, as histórias falando e falando, vozes e vozes soprando nos
seus ouvidos exaustos. Um dia, finalmente, ela domou o fluxo daquelas vozes, canalizando tudo, tudo mesmo, prendendo na página os suspiros, as mortes, as paixões,
os dramas, os silêncios e gemidos todos - e o livro, esse livro, venceu vários descaminhos, driblou algumas impossibilidades e foi pousar exatamente nas mãos de
Leon. Creio que o deus foi generoso com Laura, deixando aquela pista, entre tantas outras pistas possíveis, para Leon. Assim, depois de todos aqueles anos, dos encontros
fortuitos e malfadados, depois que as duas avozinhas polonesas já tinham morrido, e até mesmo o adorado avô polonês de Laura sucumbira a um câncer, depois de terem
sido esquecidas as missas de Páscoa, os jejuns, as quermesses e a própria língua polonesa, Leon finalmente mordeu a isca do destino. Numa nebulosa tarde de sábado,
no distante ano de 1972, ele se sentou numa mesa de um pequeno restaurante judeu que costumava frequentar, sentou-se com o livro de Laura no colo; e, como num sopro,
como se tivesse sido fácil e simples e espontâneo, pôs-se a lê-lo e alguma coisa aconteceu com ele. Leon gostou do livro, gostou muito, de verdade. Uma outra coisa,
contudo, uma coisa mais profunda e impalpável, ficou tamborilando dentro dele, assumindo a voz de um ou de outro personagem, chamando-o, ele não sabia bem para quê.
Foi fácil - não estava escrito, mas estava escrito. No final do livro, havia uma foto da autora, como é de praxe. Havia um sorriso e um par de olhos escuros. Ela
não parecia polonesa e não evocou em Leon nenhuma lembrança daquelas antigas e desbotadas tardes de quermesse da infância; só que o nome, ah, o nome, uma mistura
impronunciável de consoantes, era, de fato, um nome polonês. Leon era um homem bastante experiente e vivido, mas a ficção de Laura exerceu sobre ele o seu poder,
o poder sobrenatural de toda ficção quando ela semeia a alma de um leitor. Ao terminar de ler aquele romance, Leon Berman pôs mãos à obra - voltou para casa e escreveu
uma longa, divertida e curiosa carta para Laura, evocando as emoções e os cheiros da história recém-terminada, e endereçou-a à casa editorial que a publicara, pedindo
que repassassem o envelope à autora em questão. E onde estava Laura? Quando um autor escreve um livro, não o está escrevendo diretamente para esta ou aquela pessoa
- creio, sinceramente, que o escreve para si mesmo. É claro, sempre existe uma pilha de contas a serem pagas sobre a mesa - ele, mais do que ninguém, sabe quanto
custa viver da sua arte. É necessário escrever um livro a cada dois anos e vendê-lo com certa fartura, aí surgem as palestras, as feiras literárias e os eventos;
se o autor passa a ser uma "personalidade", as coisas ficam bem mais fáceis e ele ganha certo status entre o seu público leitor; talvez concorra a alguns prêmios
literários, com sorte ganhará um deles, podendo tirar a conta bancária do vermelho. Ainda assim, quando começa a escrever um livro, o assunto diz respeito somente
a ele. Enquanto Leon lia o livro de Laura, navegando ardorosamente entre as páginas, ela estava na casa dos pais, vivendo uma rotina maçante e um pouco solitária
demais - era o seu primeiro livro, o começo de uma estrada, e as coisas não andavam fáceis para a pobre Laura. Aos 29 anos, ela começava a engendrar um novo romance,
sonhando com uma editora maior. Não conhecia Leon, nem nunca ouvira falar dele, embora, na época, ele fosse já um marchand conceituado e atuante - mas Laura não
entendia de artes plásticas. Provavelmente, quando Leon pulou da última página do romance para a sua eufórica missiva e fez uma pequena e genial digressão sobre
a própria infância numa casa polonesa (aquele nome cheio de consoantes lhe abrira uma porta fantástica e Leon sabia aproveitar as oportunidades), Laura estava vendo
a novela das oito no sofá da sala, ao lado da mãe. Quatro dias depois, ela recebeu a carta, enviada por correio expresso, das mãos de um funcionário da editora.
Leu-a em casa, deitada na cama, saboreando aquele mistério - Leon era o primeiro leitor que lhe escrevia. No dia seguinte, ela despachou uma resposta meio tímida,
porém cheia de orgulho da própria ficção, informando, entre uma coisa e outra, alguns pensamentos e desejos muito pessoais, e a dança de selos e envelopes e frases
lidas com o peito em fogo começou para aqueles dois. Laura morava com os pais num sobrado enorme e meio desconjuntado; era a segunda de quatro irmãos e a mais confusa
de todos. Ninguém conseguia entender como ela, uma jovem inteligente e determinada, pudera largar tudo para arriscar-se no arenoso caminho da ficção literária. Os
pais a olhavam quase com pena, e ela escrevia como quem nadava contra a corrente. Já abandonara dois cursos universitários atrás de alguma coisa que não sabia bem
qual era - mas, certo dia, quando por acaso começou a escrever uma pequena história, a revelação simplesmente aconteceu. Na verdade, não era confusa: era obstinada,
parecida com o avô polonês que a embalara em pequenina. Queria escrever, queria criar personagens e mundos, queria imiscuir-se à fantasia, viver dela. Com a publicação
do primeiro livro, Laura efetivamente colocou o pé na estrada. Ocorre que o caminho era sinuoso e cambiante - nem sequer era uma estrada - e ia sendo aberto à medida
que ela avançava na bruma daquele sonho. Embora temesse fracassar, sabia que escrever era o seu destino ou a sua sina, e voltar atrás seria impossível. Depois de
receber a carta de Laura, Leon escreveu-lhe um pequeno texto cheio de savoirfaire, falando da própria infância regada a borshs e pierogis, e da sua avozinha polonesa
que gostava de fazer pastéis e cuidar de rosas - era o tipo de sortilégio perfeito para Laura. (Talvez, mais para o final do casamento, choramingando pelos cantos
da casa, ela deva ter se questionado a respeito dos avós polacos: estariam eles tão desleixados a ponto de permitir que as coisas aqui embaixo saíssem de tal forma
dos eixos? Não era a avó polonesa uma virtuose com as roseiras? Não era o avô um homem criterioso e determinado - como poderiam ambos permitir que tudo se descompusesse
daquele jeito?) Mas isso foi muito, muito depois. Àquela altura dos acontecimentos, Laura e Leon engrenaram uma furiosa correspondência que culminou, três meses
mais tarde, num encontro numa noite de sábado, pois Leon anunciou que tomaria um avião para conhecê-la pessoalmente, e a providência de Laura a respeito, acima de
tudo ela era uma mulher, foi comprar um vestido novo. Eu não encontrei nenhuma fotografia desse primeiro encontro, a imaginação, no entanto, é uma ferramenta tão
útil... Ora, todas as histórias são aditivadas pela fantasia de um narrador, e a história dos Berman não foge à regra. Posso vê-los andando pela rua numa morna noite
sulista de verão, ainda dois desconhecidos, havia tanto e tão pouco entre eles! Acho que começaram pelo passado, a ascendência comum era um assunto fácil e curioso;
e aos poucos, pulando dos avós para os pais, logo chegaram neles mesmos. Sonhos, desejos, medos foram revelados entre taças e olhares numa mesa de bar. Parecia certo
que ele iria beijá-la, mas ele não a beijou e, de alguma forma, aquilo foi bom. Eles beberam e riram e fizeram pequenas confidências até bem tarde da noite, depois
Laura deixou-o na porta do hotel e, ao voltar para casa, naquela noite de fins de novembro de 1972, sentia-se um pouco diferente, não muito. Havia alguma coisa sutil
crescendo dentro dela; de qualquer modo, Leon tinha visto, ele tinha gostado - ainda antes de gostar dela - daquilo do qual Laura mais se orgulhava: a sua capacidade
de contar histórias. Laura sentiu-se mais lisonjeada por isso do que se um homem elogiasse as suas pernas ou o seu sorriso. Leon Berman viera de longe, até mesmo
tomara um avião, ele entendera - Laura havia gasto muito tempo tentando explicar aos pais, aos irmãos, a tanta gente, mas, afora uma ou outra amiga, ninguém nunca
compreendera, ninguém pudera ver como Leon vira - que ela não era apenas ela e sim todos aqueles personagens, incontáveis criaturas que brotavam da sua alma sem
muito controle, povoando os seus pensamentos dia e noite. Laura não sabia exatamente por que, porém, depois daquele primeiro encontro, voltara para casa feliz. Pendurou
o vestido novo no armário e dormiu a noite inteira. Quanto a Leon, não conseguiu conciliar o sono até alta madrugada. Ele teve um pressentimento, uma intuição. A
vida deliberadamente colocava-o diante do seu destino, e o seu destino era Laura. Muitos anos antes, ele deixara aquela cidade, deixara a família e o passado e conseguira
apagar tantas coisas. Mas tinha encontrado Laura no meio das cinzas e cavou, e cavou, até que os seus dedos ardessem de encontro às brasas. Em algum lugar, num outro
plano, nosso pequeno e risonho deus estava feliz da vida, coçando a barriga e se regozijando com seu trabalhinho bem-feito. *** Laura e Leon tiveram um namoro rápido
e alguns meses mais tarde estavam no altar. Foi uma paixão como um vento de temporal. Laura era um pouco inexperiente, já Leon tinha uns bons anos de aventura nas
costas; porém, quando conheceu Laura, meteu na cabeça que ela era a mulher da vida dele (o deus, ah, o nosso risonho e gorducho Pã...). As providências foram tomadas,
os convites foram impressos e logo Leon estava de mudança para Ashburnham, abrindo uma pequena galeria na cidade de onde partira havia anos. Foi como uma barganha,
algo do gênero. E ele voltou, feliz, com as alianças na mala e um largo sorriso no rosto. Acho que tenho uma fotografia de Leon dias antes do casamento, reunido
com os amigos numa espécie de comemoração, como se diz mesmo?,uma despedida de solteiro. Ele está magro, jovem, e seus olhos verdes luzem para a câmera; está confiante
e excepcionalmente bonito. Estou escrevendo sobre eles - e por que mesmo? Desde que me mudei para cá o tempo me sobra, mas não escrevo sobre os Berman por falta
do que fazer. Quando você habita as ruínas de uma grande civilização, não é coerente estudar essa civilização? O que despertaria a sua curiosidade: os imponentes
templos de pedra abandonados há séculos, as estradas gastas por onde sábios e profetas trilharam, proclamando verdades mortas, ou as pequenas marcas que o tempo
não apagou - os pedaços de um jarro cujo conteúdo saciou a sede de alguém, a cabana semiconservada de um pastor de ovelhas, a estátua rota de um deus esquecido?
Eu vim morar nesta casa, nas ruínas da vida dos Berman, e desde então penso neles dia e noite. Entendam, ainda posso farejar a felicidade daqueles dois. Eles tiveram
de tudo, do bom e do ruim, no entanto, a felicidade deles parece que se refugiou aqui, nesta casa à beira-mar, entre as paredes de tijolos, nos nichos das estantes,
no jardim... Felicidade, que palavra linda. Mas tudo, absolutamente tudo na vida encontra o seu fim, e a história dos Berman, daqueles dois jovens bonitos e cheios
de sonhos, não escapou dessa regra. De qualquer modo, estou contaminada deles - sim, os Berman, e principalmente Laura, se imiscuíram em mim. Comecei a coisa meio
sem perceber, as fotos esquecidas nas gavetas, os livros deixados na estante, pedaços de velhos bilhetes que resgatei do mofo do armário na garagem - e a partir
daí os Berman se materializaram no meu jardim, naquele anoitecer, diante dos meus olhos incrédulos, para contar-me a sua história ainda uma vez mais, toda a história
cujos pedaços se perderam no tempo sem deixar vestígios nem registros, e eles vêm todos os dias, todas as noites, e durante todo o tempo eu espero por eles.

*** 4. EU TAMBÉM TIVE A MINHA...

Eu Também tive a minha história de amor, e quando ela chegou ao fim precisei juntar os meus pedaços e colá-los, um a um. Não foi fácil, não foi nada fácil mesmo.
Durante um tempo, como uma convalescente proibida de se expor aos rigores do clima, eu nem mesmo podia chegar à janela do meu passado. Fiquei um longo, um longuíssimo
tempo sem olhar para trás, vivendo um eterno presente, galgando os minutos, as horas, os dias, como quem escala a mais cruel das montanhas nevadas. Creio que os
Berman me ajudaram com isso, com a minha profunda ferida de amor. Não foi uma coisa à toa, vocês vão ver, e nem toda a humildade, nem toda a contrição ou paixão
ou coragem do mundo poderiam amenizar o meu sofrimento. Simplesmente não dava para voltar atrás. Então os Berman surgiram na minha vida e me fizeram companhia naqueles
primeiros e dolorosos tempos, e a felicidade deles brilhou para mim como uma estrela morta brilha no céu de verão. A vida dá as suas voltas, as suas circunvoluções
e, um dia, lá estava eu novamente. Refeita, curada, diferente e íntegra. Ao meu redor, as coisas pareciam todas nos devidos lugares. Eu me sentia como alguém que
sai de um tenebroso e interminável inverno e vê os primeiros brotos no jardim. Lembro que fui tomada de alívio, ergui os olhos pro céu e vi as nuvens, fiapos brancos
que se desfaziam no azul, e achei aquilo tão bonito, mas tão bonito, que comecei a chorar. Eu chorara muito nos últimos meses, evidentemente, só que nunca por uma
coisa boa. Agora era um choro completamente novo, e eu era outra, renascida. Eu fizera coisas e tomara decisões sob o impacto dos acontecimentos, assinara papéis
e encaixotara bens, e toda essa faina transformadora não passava de uma memória nebulosa. Surpreendentemente, no entanto, tinha feito as escolhas certas. Estava
aqui, nesta casa, na casa que comprei dos Berman; e embora os últimos dois anos tivessem sido de lágrimas e de desespero, a casa, agora pintada e consertada, parecia
linda e perfeita para mim, para a nova mulher na qual eu havia me transformado. Mas preciso contar as coisas desde o começo. Estou criando teses, fantasiando sobre
a vida dos Berman, meus hóspedes imaginários, e o mínimo que posso fazer é ser clara e concisa a meu próprio respeito - a minha vida é de meu inteiro conhecimento,
mais do que imaginá-la eu a vivi, minuto a minuto, com toda a sua dor e alegria. Assim, talvez seja elegante contar-lhes que me chamo Heloísa e estou caminhando
relutantemente para os sessenta anos. Fui casada por onze anos com um sujeito, que hoje é um belo desconhecido para mim, e tivemos um filho. Esse filho, o Rodrigo,
a despeito dos meus problemas conjugais, trouxe-me uma imensa felicidade durante alguns anos, os quais praticamente vivi para ele. Um dia, o menino cresceu, a atenção
massiva que eu lhe dedicava passou a ser-lhe um incômodo e sobrou-me tempo para enxergar o vasto deserto do meu matrimônio. Acho que, àquela altura, Paulo, meu ex-marido,
e eu, passávamos dois ou três dias sem nos falarmos. Dividíamos a casa com serenidade, cumprindo compromissos sociais de comum acordo, e creio que não havia nada
mais além disso. Eu era uma editora de prestígio. Trabalhava numa editora grande e importante, recentemente comprada por uma renomada empresa espanhola, e que vinha
passando por uma série de reformulações. Temi perder o emprego, todavia, ao contrário, fui promovida e passei a ser responsável também pela editoria de outras duas
empresas menores que haviam sido adquiridas pelo grupo. Depois que as coisas se organizaram melhor no meu novo posto, achei que era hora de cuidar da vida pessoal.
Meu filho já estava com onze anos. Paulo entrava e saía, tinha um escritório de advocacia em São Paulo, onde vivíamos, mas viajava constantemente para o Sul, e eu
nunca poderia dizer onde ele estava. Certa tarde, cheguei mais cedo da editora, abri uma garrafa de vinho e esperei por ele. Assim que abriu a porta, Paulo viu que
havia alguma coisa no ar. "O que aconteceu, Heloísa?", perguntou, entrando na sala com aquele seu jeito displicente, meio jocoso, e esparramando-se no sofá, deixando
ver os belos sapatos italianos. Eu lhe disse que era hora de tomarmos uma decisão sobre a nossa vida em comum. Vínhamos protelando havia muito tempo, eu não lhe
tinha rancor, ambos havíamos deixado as coisas chegarem àquele ponto. Estávamos, havia anos, parados naquela nebulosa esquina, quietos, acomodados, sem que nenhum
dos dois mostrasse qualquer intenção de mudar as coisas para um lado ou para outro. Meu marido arregalou os olhos. Não ferido, nem magoado - creio que, em São Paulo,
desde certo tempo ele tinha algo mais que um escritório. Eu encontrara um bilhete comprometedor, certa vez, ao colocar suas calças na máquina de lavar. Porém, nunca
toquei no assunto. Rodrigo era pequeno, seria complicado demais, e eu tinha tanto, mas tanto trabalho... São mulheres passageiras como temporais de verão, eu pensava,
aferrando-me àquela vida tão regulada e cotidiana. Do seu lugar no sofá, Paulo esperava que eu continuasse o que havia começado. "E eu nem sei dizer como", falei,
tomando um gole do vinho, "nem sei dizer quando eu deixei de te amar. O sentimento foi se apagando em mim aos poucos... Acho que o mesmo aconteceu com você." Porque,
um dia, tínhamos nos amado, isso eu garanto. Eu era muito jovem quando nos conhecemos, e ele também, houvera planos e sonhos e noites em claro, e depois, cedo demais,
os enjoos e o aperto de mão do médico: eu seria mamãe. Não me lembro de que Paulo tenha esboçado nenhuma reação em contrário ao meu pequeno discurso, além do leve
risinho de escárnio atrás do qual costumava esconder o orgulho ferido. Não disse mais do que duas ou três frases desimportantes, não tentou me dissuadir. Aceitou
a separação como quem aceita a previsão do tempo e sai em busca da capa de chuva. No dia seguinte, ele já estava tomando providências, pendurado no telefone com
uma corretora de imóveis. Foi fácil assim, no entanto levou um tempo longo, muito longo. Acho que perdi uns oito anos da minha vida naquele casamento apático, maturando
a decisão de seguir adiante sozinha; em troca, ao menos o final foi indolor. Assim, em dois ou três meses, pulei alegremente daquele maldito barco à deriva e caí
na água com um novo e indescritível sentimento de liberdade e um levíssimo aperto de medo no fundo das entranhas. Apesar disso, ou por causa disso, fiquei quatro
anos sozinha após o divórcio. Olhando para o passado, aquele foi um tempo bom. Rodrigo cresceu ainda mais, transformando-se num adolescente em cujos traços eu buscava
vestígios do menininho de outrora. Aos quinze anos, decidiu morar por uns tempos com o pai e eu me vi totalmente sozinha no sobrado em que habitávamos. Foi um pouco
difícil me acostumar com a solidão, depois de tantos anos de dedicação familiar, mas segui trabalhando na editora, praticando ioga, lendo meus livros e tomando quase
uma garrafa de vinho todas as noites. Um dia, conheci Lucas. (Quando penso em Laura Berman, instintivamente penso na minha própria vida, fazendo analogias entre
Laura e Leon e Lucas e eu...). Mas deixem que eu fale sobre Lucas Stern. Ele era - sim, era - um artista plástico e nos conhecemos num vernissage, apresentados por
um amigo em comum. Uma coisa curiosa é que Lucas conhecera e trabalhara por algum tempo com Leon Berman - mais uma vez os nossos caminhos estranhamente se cruzavam.
Eu não estava preparada para ele, quer dizer, amar de novo não fazia parte dos meus planos. Mas, assim que nosso amigo fez as apresentações, no instante primeiro
em que Lucas segurou a minha mão, fui atingida por uma estranha inquietude, uma agonia que se traduziu em um formigamento que me subia do estômago, correndo pelo
meu braço até a ponta dos dedos, envoltos pelo calor das suas mãos. Acho que corei de leve - eu sempre tive uma tendência a corar diante dos outros, o que considero
uma fraqueza desleal, uma injustiça genética. Lucas sorriu para mim, olhando-me fundo nos olhos. Talvez ele tenha sentido alguma coisa, acho que depois me disse
que sim, que também tinha sido tocado, só que ele não deu o menor sinal disso. Apenas sorriu, lânguida e docemente, e percebi que o seu sorriso nascia primeiro dos
olhos, espalhando-se pelas feições como se todo o seu rosto se contaminasse de uma luz alegre, improvável e inocente. Sorrindo, ele voltava a ser um menino. Como
fogo num campo seco, a coisa se alastrou rapidamente. Fiquei fascinada por ele. Quando dei por mim, estávamos afastados do tumulto das gentes, apertados numa minúscula
sacada que dava para uma avenida tumultuosa. O vernissage acontecia num andar alto de um prédio no Centro, os barulhos do tráfego chegavam abafados até nós e o cheiro
fresco da noite se misturava ao odor fétido dos motores a gasolina. Pensei em Romeu e Julieta na sua pequena varanda em Verona, enquanto Lucas saía em busca de dois
cálices de vinho, e senti medo de que ele não voltasse, de que encontrasse companhia mais agradável no salão cheio, mas mantive a fleuma e debrucei-me sobre o parapeito,
olhando a confusão da avenida aos meus pés, como se a volta de Lucas não fosse de fato importante para mim. Ele voltou. E voltou e voltou. Durante muitas e muitas
noites, Lucas voltou para mim. Vinha sempre à noitinha, com uma boa garrafa de carménère ou um prosecco e um saco de pães artesanais que costumava comprar numa padaria
perto do seu atelier. Acho que não contei ainda, mas Rodrigo vivia uma fase de revolta e quase nunca queria passar os finais de semana comigo, preferindo viajar
com Paulo para o Sul, onde ele tinha negócios e - creio que já disse - uma namorada. Aquele desprezo filial foi muito dolorido para mim... Depois de algum tempo,
achei que o melhor modo de combatê-lo era ignorá-lo. Eu tinha sido uma boa mãe, e quando seus hormônios se acalmassem e sua mente clareasse, meu filho voltaria a
ser o que era. De fato, eu estava solta no mundo pela primeira vez, acho que desde que saí da casa dos meus pais, com 23 anos, para viver com Paulo. E foi fácil,
foi tão fácil Lucas entrar na minha vida, parecia que eu o esperara desde sempre, que preparara tudo para a sua chegada. As noites foram se sucedendo com a naturalidade
das ondas do mar. Saíamos, ríamos, fazíamos confidências - quase todo mundo já se apaixonou por alguém e sabe como são esses primeiros momentos em que tudo, absolutamente
tudo, parece possível e mais fácil, quando o mundo inteiro se reveste de uma luz mais brilhante e até o sangue corre mais rápido dentro das veias. Vejam bem, eu
não quero, o meu objetivo principal aqui não é falar de amor. Tanto já se falou, talvez não haja muito mais a ser dito. Entretanto, o que aconteceu depois, e a forma
como aconteceu, bem, isso só pode ser compreendido se eu antes repisar esse terreno já gasto, o dos primeiros tempos de uma grande, jubilosa paixão. Assim como quando
conto a vida dos Berman, não me interessa o seu final, e sim o durante, a extrema, luminosa e inquebrantável felicidade que os envolveu durante um longo tempo -
a qual, tenho certeza, veio refugiar-se nesta casa, como um urso na sua toca, e vem me ajudando, todos os meses, a superar as minhas tristezas. Sim, eu acredito
nisso, que a felicidade dos Berman tem me curado como uma espécie de xarope que eu tomo às colheradas, todos os dias antes do anoitecer. Agora voltemos a Lucas Stern.
Saímos durante um ou dois meses, e ele sempre amanhecia na minha casa. Eu levantava cedo, arrancada do sono pela campainha do despertador, então me punha em alerta,
pensando nos compromissos e reuniões que me esperavam na editora, enquanto Lucas remexia-se sob os lençóis, calmamente, mergulhado no seu sono infantil. Ele só acordava
muito tarde e depois partia para o atelier, onde tinha um quarto. Era lá que vivia, se não em perfeito conforto, com uma boa dose de classe e de cor. Um dia, dei
por mim convidando-o a morar comigo. Parecia tão natural quanto respirar e Lucas encarou aquilo com tranquilidade. O que estava feito, estava feito, ele disse. "Agora
que você me fisgou, pode me fritar para o jantar." Uma semana mais tarde chegaram as suas caixas e o material de trabalho. Ele montou o seu atelier na minha garagem,
depois de duas demãos de pintura e da abertura de uma grande janela lateral com vista para as dracenas. E até que ficou bom. Eu não tinha carro e a garagem era um
pequeno e simpático anexo que dava para o jardim. Eu estava nervosa quando telefonei ao meu filho para contar a novidade, porém Rodrigo encarou a chegada de Lucas
com uma calma cheia de desinteresse. Ele era um rapaz de dezesseis anos muito inteligente, adiantado na escola e ocupado com as primeiras namoradas e o vestibular
- o fato de eu estar apaixonada importava-lhe mesmo muito pouco. Foi assim que Lucas e eu passamos a viver juntos e, de certo modo, também estávamos bastante despreocupados
quanto ao resto do mundo. Depois de anos presa num casamento de fachada, a coisa que eu mais queria era voltar para casa no final do dia, abrir uma garrafa de vinho
e passar horas estirada em algum rincão da sala, apenas conversando com Lucas. Falávamos sobre tudo e sobre nada, sobre o passado, nossos casamentos anteriores -
ele fora casado durante cinco anos com uma francesa que acabara voltando para Grenoble -, falávamos sobre livros, filmes, irmãos, ex-colegas de faculdade, ah, falávamos
tanto que nossas gargantas secavam e era necessário providenciar com urgência uma nova garrafa de vinho, e então tudo era motivo para graça e logo estávamos na cama.
Invariavelmente, jantávamos tarde da noite. Lucas era um bom cozinheiro, como era bom em todas as coisas que exigiam meticulosidade e paciência; preparava deliciosos
omeletes e tartiflettes e fazia uma sopa de cebolas como nunca comi em nenhum restaurante francês de São Paulo. "Foi tudo o que restou de Noemie", ele dizia, rindo,
quando eu elogiava a sua boa cozinha. "Nem me lembro mais da cor dos seus cabelos, só que nunca esqueci a sua receita de croque-madame." Lucas Stern era um cara
talentoso, beirando os cinquenta anos, e suficientemente malsucedido em termos financeiros para despertar em mim alguns instintos de proteção que eu considerava
mortos. Ele não se preocupava com dinheiro, isso não era mesmo importante. Ele queria criar e passava dias inteiros enfurnado na garagem, inclinado sobre as suas
peças, ouvindo Gainsbourg ou Bob Dylan, resmungando baixinho trechos de suas antigas canções. Ele passara por uma meia dúzia de agentes inescrupulosos e galeristas
aproveitadores (Leon Berman não está incluído nessa lista, porém as coisas também não funcionaram muito bem com ele). Eu podia imaginar que trabalhar com Lucas não
fosse exatamente fácil, ele esquecia pequenos compromissos e era capaz de sumir por dias atrás de uma família que andasse rastreando. Explico-me: à época em que
o conheci, Lucas construía pequenas miniaturas, quase joias, a partir de objetos herdados por famílias judias que tinham fugido da Europa durante a Segunda Guerra
Mundial. Ele mesmo descendia de uma dessas famílias, mas o seu passado era nebuloso - era filho único e sua mãe, vítima de Alzheimer, vivera seus últimos doze anos
numa clínica. Lucas nunca me contou muito sobre a história da sua família. Tinha perdido o pai, Elias, bem cedo - um judeu sobrevivente do campo de Majdanek que
viera para o Brasil aos vinte anos de idade. Elias Stern tinha um buraco no peito, palavras de Lucas. Uma laceração incurável, cósmica. Durante toda a infância,
Lucas acordara com os gritos do pai. Esses pesadelos descompunham Elias a tal ponto que a esposa tinha de abraçá-lo, ninando-o como um bebê até que ele parasse de
chorar. Um dia, quando Lucas estava com quatorze anos, Elias sumiu. Simplesmente sumiu. Deixou o dinheiro do mês sobre a mesa da cozinha e saiu de casa para nunca
mais voltar. Foi encontrado cinco semanas depois num abrigo para indigentes no Centro da cidade. Sofrera um ataque cardíaco durante a noite, mas como andava com
os documentos no bolso do velho paletó, os agentes sociais conseguiram avisar a família a tempo do enterro. Essa terrível história torturava Lucas, até que um dia
ele começou a fazer as suas pequenas obras de arte, preenchendo o silêncio do seu passado com as aventuras e desventuras de outras famílias judias. Depois disso,
o assunto ganhou contornos artísticos e Lucas se libertou da penosa lembrança dos pesadelos paternos. Era mesmo um trabalho curioso o dele. Enfiava-se por dias inteiros
em bibliotecas e voltava com criteriosas listas de sobreviventes do Holocausto. Essas listas jogavam-no numa eufórica confusão de pesquisas, telefonemas e cruzamentos
de dados - navios que tinham partido da Europa antes ou durante a guerra, árvores genealógicas de famílias ashkenazitas, ocidentais e sefarditas, consulados, sinagogas.
Depois de algum tempo, como quem espreme misteriosos frutos, o sumo de todas essas pesquisas e andanças lhe dava cinco ou seis nomes de descendentes radicados no
Brasil. Então Lucas saía atrás dessa gente. Era assim que, numa manhã nublada, ou numa bela tarde de sol, Lucas Stern tocava o interfone do seu escolhido, o primeiro
da lista. Do outro lado, alguém atendia achando tratar-se da entrega do supermercado ou do homem do gás. Imagino o espanto da criatura, ao escutar a voz de Lucas
e a extraordinária história da sua caçada através de anos e registros empoeirados e velhas senhoras judias e rabinos sisudos. Ele nunca telefonava antes, nunca mesmo,
isso estava fora de questão para ele. Era uma espécie de superstição, de regra afetiva. Gostava de chegar de surpresa e, se fosse malsucedido, voltava duas, três
vezes. Seu método consistia em olhar a pessoa nos olhos (mesmo através de uma dessas câmeras de segurança) e desfiar a sua apaixonada história. Lucas costumava ser
bem-sucedido graças às suas credenciais totalmente autênticas. Com exceção do pai, o resto da família não fora muito além de Majdanek. Sua mãe era filha de judeus
emigrados no século XIX, embora tivesse sido criada bem longe das crenças judaicas, a ponto de nunca ter comido nada kosher. Elias Stern, por sua vez, já passara
fome suficiente na vida para abolir as regras alimentares religiosas. Mas Lucas era judeu, seu nariz agudo e alguma coisa nos olhos escuros confirmavam isso. Assim,
a pessoa do outro lado apertava o botãozinho e, clact, a porta se abria. Eram bonitos os trabalhos de Lucas: ele juntava pequenos objetos, heranças valiosas ou não,
pedras, tampas de canetas, antigas abotoaduras, fotografias, grampos de cabelo, lenços, folhas amareladas de romances muito lidos, documentos, ingressos de cinema,
colares, botões - ele juntava tudo o que pudesse encontrar e receber de uma determinada família e construía as suas pequenas peças, os seus relicários, as joias,
como uma homenagem àqueles destinos tragicamente interrompidos. Duzentos anos de uma mesma gente condensavam-se num anel ou numa pequena caixa, que depois ganhava
um texto explicativo, quase literário, sobre todos os descaminhos e agruras dos proprietários dos objetos usados naquele trabalho. *** Lembrar tudo isso não é fácil
para mim. Estou exatamente onde quero estar agora, nesta casa branca entre as árvores e, quando não tem vento, posso escutar a cantiga das ondas lá na praia deserta.
Mas estou sozinha. As coisas de Lucas estão encaixotadas, guardadas no fundo do jardim. Sim, as coisas mudaram de garagem. Não pude deixar nada para trás, nada mesmo.
Como os judeus que Lucas farejava, recolhi tudo o que podia levar comigo e fugi, fugi para o mais longe que me pareceu viável, fugi até onde o meu dinheiro me podia
levar, mas as suas obras - algumas das quais pendurei nas paredes, ou ainda uso, como um anel feito em homenagem aos Kujik - às vezes parecem gritar o nome dele.
Fugi, só que o passado veio comigo e precisei de um longo e dolorido tempo para acertar as contas com ele. Nisso, posso lhes garantir, os Berman me foram de muita
ajuda. Enfim, eu estava contando a minha história. É preciso contá-la, do começo ao fim, para que me liberte finalmente. Dou muito valor às palavras escritas. Dou
um grande valor a elas. E aqui vou eu, rendendo a minha homenagem, horas em frente ao computador para a eterna estranheza de Eve, minha empregada. Durante três anos,
a vida com Lucas foi assim. Éramos felizes. A inescrutabilidade da vida amorosa se prova no fato de que, quando queremos colocá-la em palavras, ela sempre soa um
tanto ridícula. Tudo, aqueles dias todos, horas e horas de risos, de convivência, olhares, calor - e eu digo "éramos felizes". Ah, como soa mal... Por isso respeito
as palavras. Ninguém pode cortejá-las em vão. Estou aqui, tentando, implorando mesmo, e as palavras me deixam sozinha, não dançam comigo. No entanto, preciso contar,
preciso contar tudo isso, eu sei que Laura Berman deseja que eu conte, que desnude a minha vida deixando-a em paz por algum tempo. Os Berman me ensinaram, de certa
forma, a valorizar tudo de bom que passou. A felicidade tem uma resiliência fantástica, pena que nos esquecemos disso tão constantemente, porque não basta as coisas
existirem, temos que fazer uso delas. Depois desses anos com Lucas, da sua faina pesquisadora e de jantares com descendentes cujos objetos viravam material para
a sua obra, depois de noitadas que terminavam em lágrimas, com velhos álbuns de fotografias abertos sobre joelhos tímidos aquecidos por alguma dose de vinho e espectros
de tios-avós e primos volitando entre nós, acabei aprendendo muito sobre a saga judia, o Holocausto, os pogrons, Israel, sionismo etc., e descobri que Lucas era
um grande contador de histórias. De fato, cada vida que ele pesquisava virava um perfeito apanhado de palavras. Acabei também por sugerir que ele escrevesse um livro
no qual pudesse colocar um pouco de tudo aquilo, de toda aquela gente. Eu trabalhava numa editora e, claro, tinha essa mania com livros. Só que as palavras escritas
não eram para Lucas, ele gostava da cor e do tato, gostava do pó e dos velhos armários. "As palavras não têm olhos, não riem e não choram", ele me dizia. Assim,
Lucas nunca escreveu o livro que poderia ter publicado. Seguiu com o nariz enfiado nas suas caixas e joias e velhos bilhetes de bonde e todas aquelas fotografias,
manchadas pelo tempo e pelas lágrimas, que recortava como se estivesse numa guerra muda com Átropos, como se, com seu trabalho diletante e apaixonado, tivesse alguma
chance de mudar o que já estava feito. Agora estou aqui, tomando coragem de contar esta história - cinco anos já se passaram desde que Lucas morreu. Agora estou
aqui, nesta casa que já pertenceu aos Berman, esta casa que eu passei a amar, tentando misturar o passado de Laura e de Leon ao meu, vivendo de passado como quem
vive por semanas das sobras requentadas de um banquete. Não é tão mau assim... Não é mesmo. Posso sair pelas ruas ensolaradas e ver as altas árvores recortando-se
sob o céu azul, posso me misturar aos turistas, olhar as vitrines, tomar um clericot e fingir que a vida é confiável. Posso, posso, posso. Eu posso o que quiser,
qualquer coisa. Mas o que mais quero é ficar aqui, escrevendo, fuçando as velhas caixas dos Berman, catalogando as anotações de Lucas, os seus papéis e pesquisas.
Eu zombava de Lucas, zombava amorosamente da sua mania de revirar velhos armários e velhas vidas e agora estou aqui, fazendo exatamente o que ele fazia. Só que em
mim dói muito mais.

*** 5. E ENTÃO ELES SE CASARAM


E ENTÃO ELES SE CASARAM, passando a ser, de fato, os Berman. E começaram a longa escalada de uma vida em comum. Eu fecho os olhos e vejo Laura - uma Laura que
é um misto das fotografias com a mulher que vinha fazer aquelas reuniões na editora -, vejo-a em seu vestido branco, o corpete justo, a longa saia de cetim que lhe
descia pelas pernas; ela está muito bonita, alta e esguia, e seu bronzeado suave se destaca por causa do tecido tão claro, mas o que mais me chama a atenção são
os olhos, uns olhos esfomeados e, ao mesmo tempo, satisfeitos, como se a vida e ela estivessem, finalmente, em perfeita simbiose. Então Leon se aproxima, eles estão
no centro de um salão decorado com jasmins e rosas brancas, e toda aquela felicidade tão comum às festas de casamento oscila pelo ambiente, parece descer dos lustres
perfeitamente limpos, corre pelo piso, borbulhante como água. Eles se dão as mãos, não se beijam. Apenas os olhos, um mergulha nos olhos do outro. Laura não pode
acreditar que tudo aquilo - as noites insones sobre o livro, o medo, a ansiedade, as vozes soprando nos seus ouvidos no meio da madrugada - a tenha guiado até ele.
Laura não consegue mesmo acreditar que tudo foi tão fácil. Depois de tão longa dificuldade, aqui estão eles. E Leon? Ah, eu também posso vê-lo, meu doce e querido
Leon. Está parado na minha frente, na sua roupa de noivo, piscando para mim. Os olhos brilham, um pouco por causa do champanhe e também de felicidade. Leon olha
Laura falando com alguém, e o que enche o seu peito é um orgulho quente, seu coração acelera e ele sorri. Deixou tudo para trás, abriu a galeria na cidade de Laura,
na cidade que abandonara havia tantos anos. Está feliz. Tudo foi tão fácil, afinal de contas. Como as coisas tinham começado mesmo? Ele se lembra da frase, a primeira
do livro. Ele se lembra daquela tarde em São Paulo, sentado num restaurante judeu dos Jardins, comendo varenikes, a mesma comida da avó, que ali era servida com
nome diferente. E foi com a boca cheia daquele gosto da infância que começou a ler o livro. O livro de Laura. Do outro lado da rua, olhando distraidamente as vitrines,
o deus gorducho ajeita os óculos no nariz bulboso. O deus caminha olhando os objetos expostos nas lojas elegantes do bairro, só que, na verdade, ele não precisa
de nada daquilo. Espia Leon de longe, analisa o seu perfil, o nariz pequeno, os cabelos escuros, as orelhas que ficarão enormes na velhice. Leon abre o livro e lê
algumas frases em voz alta, como se provasse do texto, e o deus sorri. O deus é cético, debochado, oh, pequeno Pã libidinoso... Porém, ao ouvir a voz de Leon nos
seus ouvidos, sente a emoção como cócegas nas bochechas. O que está feito, está feito, sorri, contente. *** Numa das primeiras arrumações que fiz na casa, logo que
cheguei, encontrei uma velha e apagada fotografia dos dois, Laura e Leon. A casa estava fechada havia alguns anos, talvez porque, depois do divórcio, nenhum dos
Berman tivesse mais coragem de ficar muito tempo por aqui. Assim, no meio das tantas coisas que deixaram para trás, encontrei essa fotografia. Estava num velho móvel,
lá na garagem, junto com outras coisas esquecidas e empoeiradas. É uma fotografia dos Berman na Côte d'Azur e nela posso ver Laura, bronzeada e feliz, numa ruela
francesa. Creio que foi Leon quem bateu a foto; pela luz, imagino uma manhã já quase finda, os dois recém-saídos do hotel. Laura está bonita na foto, com um lenço
colorido amarrado nos cabelos, como era moda no começo da década de 1970. Ela era um bom prêmio e Leon a merecia. Na lua de mel, Leon apresentou a Europa a Laura,
e cada descoberta dela era um triunfo dele. Mas Laura era uma mulher sóbria, orgulhosa, e Leon teve de ser atento para pescar, nos seus sorrisos, a alegria dos dias,
o seu encanto ao circular pela cidadezinha de Vallauris, escolhendo com cuidado algumas cerâmicas, suspirando na pequena capela sob La guerreetlapaix. Eles viajaram
de carro pela França e pela Itália, parando em hotéis caros e tomando bellinis ao entardecer; nadaram na piscina onde Scott Fitzgerald nadara, e dormiram, e fizeram
planos, e se perderam entre magníficos jardins com o Mediterrâneo sob os pés e um futuro promissor à frente. Laura era comum até o tutano dos ossos e isso deve ter
sido um alívio para Leon, um marchand cercado de artistas temperamentais e quase sempre imprevisíveis. Ambos tiveram uma infância simples, e todos aqueles pierogis
e kluskis e as conversas sobre uma vida perdida e sobre a dureza do futuro ainda estavam frescas na cabeça deles. Era divertido olhar para o céu e dizer, veja eu
aqui, avô, olha eu aqui, vovó. E eles faziam isso tarde da noite, altos de champanhe, com suas roupas de festa compradas para a lua de mel. Foi um tempo bom aquele
começo. Afinal de contas, os deuses são cruéis, mas também sabem ser magnânimos. Quando você escolhe a sua vítima, para que a queda tenha o impacto esperado é preciso
que antes ela suba muito, muito alto. *** Laura era uma escritora, vivia desfiando histórias. Ela foi feliz com o marido em muitos aspectos, e ele tinha uma coisa
muito importante - fundamental para ela. Ele a entendia. Quando Leon lia um livro seu, um livro ainda inédito, naquele ponto em que o escritor está seguro e ao mesmo
tempo não está de que escreveu alguma coisa interessante, alguma coisa que valha a pena; bem, quando Leon lia um livro de Laura era como se uma outra parte dela,
mais sábia, mais serena, mais crítica, estivesse lendo. Ela confiava plenamente, precisava mesmo de Leon. Era quase uma dependência, era uma necessidade vital. O
caminho que começara com o primeiro livro tinha de ser traçado por todos os outros, e as palavras, feito soldadinhos obedientes, milhares deles em formação, marchavam,
marchavam na direção de Leon sempre que um ponto final aparecia. Durante anos, muitos anos, Leon leu absolutamente tudo aquilo que Laura escreveu antes de qualquer
outra pessoa. Ele aceitou o seu papel com bastante serenidade - não era a literatura o farol que o guiara até Laura? Leon era um bom navegante, não temia o mar encapelado,
nem o canto das sereias, nem as funduras oceânicas com seu negror e seus animais misteriosos, horripilantes. A armadilha fora montada com bastante engenho: o velho
Pã, irônico e sábio, determinara que, por mais que os Berman perdessem tudo, sempre teriam as palavras. Eram as palavras a fonte de união entre os dois, isso ficara
tacitamente entendido desde o começo. Pode parecer estranho, mas era um vínculo importante. Era também muito delicado. Era frágil e inexpugnável ao mesmo tempo.
Eles tiveram os seus maus bocados, os Berman, como quaisquer outras pessoas caminhando sobre a face da Terra. Isso foi bem depois do começo, decerto. Porém, os maus
momentos chegaram como a noite. Laura apaixonou-se certa vez, profunda e platonicamente. Mas nunca, em nenhum instante dessa paixão não resolvida ela sequer cogitou
abrir mão de Leon. Ele era uma outra parte sua, Laura sempre tivera essa certeza. Leon também teve das suas, sem nunca se imaginar longe de Laura. E, acima de tudo,
ou à parte de tudo, até mesmo dos filhos, Daniel e Max, havia aquele amor pela palavra, pelos livros. Às vezes, um sequer podia olhar o outro. Como qualquer casal,
os Berman tinham brigas devastadoras. Laura era teimosa e Leon era como uma lagoa: sob a superfície plácida havia profundezas impensáveis; era fácil se afogar em
sua ira. Mesmo nas horas mais duras, as palavras eram um ponto de apoio entre ambos. Leon queria dizer: "Sinto que você esteja longe de mim", mas apenas falava:
"Estou terminando o livro daquela indiana, é muito bom, é incrível." Laura queria responder: "A distância não é falta de amor", e apenas conseguia dizer: "Guarde
o livro, vou lê-lo depois de você." Assim, quando não podiam estar juntos e unidos em carne e alma, faziam-no através dos livros. Tinham uma casa de livros e de
quadros. Como já disse antes, Leon era um marchand respeitado. Ele adorava artes plásticas quase tanto quanto livros. Tinha um faro genial para pintores e gravuristas
e algumas obras acabavam em sua casa. As paredes eram pequenas para tantas estantes repletas de livros, para os quadros que se multiplicavam pelos cômodos. Foi nesse
cenário que, um ano depois do casamento, Daniel nasceu. *** 6. A MINHA VIDA COM Lucas

LUCAS seguiu o seu ritmo. Eu era como uma galinha protetora, sempre às voltas com ele, mas aquilo me fazia feliz. Acho que Lucas permitia os meus excessos conscientemente,
ele tinha pouco a me dar, a não ser a própria pessoa e todas aquelas histórias de judeus que tinham atravessado o mundo em busca de um recomeço. Quero dizer com
isso que eu praticamente o sustentava. Eu podia fazer isso porque num certo momento da vida recebi uma herança de uma velha tia que vivia na Argentina: uma fazenda,
uma verdadeira estância, com gado e tudo o mais a que um lugar desses tem direito. Era um negócio rentável que ficava no leste da província de Formosa, um lugar
onde nunca tinha posto os pés, assim como vira essa minha tia uma meia dúzia de vezes em toda a vida. Mas eu era a sua única sobrinha e a propriedade caiu no meu
colo - isso foi quando Rodrigo era pequeno, quase um bebê, e eu, ainda muito nova, com a ajuda de Paulo, coloquei a estância à venda e guardei uma quantidade de
dinheiro suficiente no banco para não ter mais preocupações financeiras na vida. Além disso, eu tinha crescido bastante na editora e, aos quarenta anos, ganhava
um bom salário. Eu não me importava de fazer depósitos mensais na conta de Lucas e falávamos pouco sobre isso. Tão pouco que, realmente, não sei por que estou me
lembrando disso agora. Nunca foi um fator importante na nossa relação. Com a minha ajuda, ele podia se dedicar às suas obras com serenidade, e eu era uma enfática
entusiasta do seu trabalho. Não quero resumir a minha vida com Lucas, não quero mesmo. Os dias escorreram pelos dedos, todos eles. Naquele tempo, meu filho já tinha
entrado numa universidade a trezentos quilômetros de distância, onde estudava Oceanografia, e nossa relação tinha se estruturado outra vez. Quando Rodrigo vinha
à cidade, costumava ficar na minha casa - ele também não escapou do carisma de Lucas e posso dizer que foram bons amigos. Acho que já estávamos morando juntos havia
dois anos quando Lucas começou a sentir aquelas dores de cabeça. Não que me contasse, era teimoso como a maioria dos homens e encarava qualquer transtorno na base
do estoicismo: acreditava piamente que bastava ignorar o incômodo, fosse ele qual fosse, para a coisa se cansar e acabar por ir embora, mais ou menos como uma dessas
crianças manhosas desiste de chorar. Não funcionou com a dor de cabeça, não funcionou mesmo. Ela foi aumentando, as crises passaram a ser mais frequentes. Eram acessos
muito doloridos que o punham a nocaute. Como eu passava a maior parte do dia na editora, Lucas escondeu isso de mim por um bom tempo. Se forço a memória, recordo
uma noite ou outra, uma queixa leve, uma certa palidez ou falta de apetite. Sugeri que fosse a um oftalmologista e ele aceitou a sugestão, mas não creio que algum
dia tenha marcado aquela consulta. Ao contrário dos Berman, não consigo exercer a minha imaginação sobre a figura de Lucas. Não consigo vê-lo no cenário provável
daqueles últimos tempos, ele não era massa maleável nas minhas mãos, ele não cedia às palavras. Era muito desconfiado delas, das palavras. Sonho com ele, sonho muito.
Ele vem e me visita e nunca parece triste nem entediado, sempre dá aquele sorriso, o seu melhor sorriso, o sorriso de menino, é sempre isso que ele me dá. Certa
noite me disse: "Pare com isso, Heloísa. Pare de abrir as caixas." Acordei com essa frase nos ouvidos, só que dessa vez fui eu quem desdenhou do conselho. Estou
abrindo as caixas, todas elas, uma a uma. É um trabalho doloroso, extenuante. Passo os dedos suavemente pela lateral da caixa, ela parece perfeitamente vedada, porém
coisas vazam, coisas pingam no meu colo, frases, momentos, um anel, uma flor, as abelhas loucas ao redor da dracena no jardim. Procuro com os dedos usando de uma
delicadeza quase desconhecida em mim e aí encontro o fecho. A caixa faz um clique e se abre feito uma flor. *** Então estou lá, na minha casa paulista, o sobrado
de tijolos com o seu quintal de grama verde, o anexo que se transformou no estúdio de Lucas. É feriado. Um dia de sol tão bonito, sem vento, serenamente luminoso.
Estou feliz, estou perfeitamente feliz porque Rodrigo veio do litoral, veio da universidade passar os feriados conosco. É Páscoa, meu filho chegou na quarta-feira,
quarta-feira foi ontem, e eu me espantei ao vê-lo, tão grande, alto e parecido com o pai. Conversamos até tarde e bebemos um pouco de vinho. Lucas veio logo depois
do jantar; e quando entrou pela porta, com seu suéter bege, de repente vi aquela sombra escura sob seus olhos. Parecia ter vindo de uma longa jornada, mas o cansaço
como que se desfez assim que pôs os olhos em Rodrigo. Quer dizer, era uma cena afetuosa, a mãe e o filho distante em suave confraternização doméstica, e Lucas absorveu
aquilo e entrou na dança. Meu filho e ele se abraçaram com afeto. Esqueci a sensação ruim que tive ao ver Lucas no vestíbulo havia poucos instantes e peguei mais
uma taça no armário. Se tinha uma coisa que Lucas não conseguia negar era uma taça de vinho. Foi na manhã seguinte que a coisa aconteceu. Rodrigo acordara cedo e,
na cozinha, me disse: "Vou dar uma volta pela vizinhança, mãe." Mostrou-me os tênis coloridos: "Sabe como é", ele disse, rindo. "Vou correr um pouco atrás das lembranças."
Aquele jeito de falar mexeu comigo. A vida passava rápido, foi o que pensei. Rodrigo estava já um homem de dezoito anos, alto - eu já disse -, solidamente composto,
atlético, e seus traços lembravam muito os do pai à época em que nos conhecêramos, no tempo da faculdade. Ele já estava saindo, enquanto eu derramava essas considerações
na minha xícara de chá, mas, antes de fechar a portinhola de tela (tínhamos aquela porta extra para que o ar fresco do jardim circulasse pelo grande cômodo onde
eu cozinhava nos finais de semana e onde também fazíamos as refeições), Rodrigo parou e me disse, distraidamente: "Acho que Lucas bebeu demais ontem. Eu o encontrei
antes de descer e ele estava branco como uma folha de papel." Sorri, meio sem jeito. "Você sabe que Lucas eu temos um fraco por um bom carménière...", foi o que
eu disse. Então Rodrigo saiu para a corrida matinal e eu fiquei ali, com o pensamento dando voltas. Como as coisas tinham mudado! Ainda podia me lembrar de Rodrigo
sentado no cadeirão, balançando as perninhas roliças e me vendo esmagar as verduras da sua papinha. Ainda podia ouvir as suas palavras sopradas, os deliciosos erros
de concordância, a sua risada macia e doce de menino. Subi para ver Lucas. Encontrei-o dormindo outra vez, sereno, os cabelos escuros desgrenhados fazendo contraste
com a fronha de linho branco. Ele parecia bem, mergulhado na manhã preguiçosa do feriado. Agora me pergunto se teria feito diferença tê-lo acordado naquela hora,
ou se houve outros, vários momentos desimportantes, pistas tão frágeis como o pão jogado pelas trilhas em uma floresta. Certa palidez num domingo à tarde, o jantar
na casa dos Milman, no qual Lucas não comera absolutamente nada, lembro bem. Em retrocesso, posso ver as pegadas na areia e elas são nítidas, não tão nítidas quando
a gente olhava uma a uma de perto, todavia elas traçavam um caminho. Elas traçavam um caminho que eu não trilhei. Sendo assim, voltei à cozinha e me meti na lida
do almoço. Gosto de cozinhar, ainda que não diariamente. Gosto de cozinhar como um encontro que tenho com os meus pensamentos, com as minhas mãos, com a calma dos
movimentos mínimos, cautelosos, da faca dançando nos legumes, com o olor de cebola no azeite, a solidez das panelas, o silêncio afetuoso das colheres de pau. Gosto
das cozinhas repletas de pensamentos, de palavras não ditas, afogadas em xícaras de café. Fiquei muito tempo ali preparando um arroz de bacalhau, às voltas com as
postas de peixe salgado, com os pimentões, a cebolinha verde, o alho e os tomates. A manhã já findava. Rodrigo chegou em casa, entrando na cozinha como um sopro
de vento, sorridente e suado. No andar de cima, escutei os passos de Lucas, o ruído da porta do box sendo fechada, esses pequenos estertores de uma casa amada, que
reconhecemos com alívio diariamente sem lhes dar a devida importância. São eles que empurram para a frente os dias, tenho certeza disso. "O cheiro está ótimo", disse
Rodrigo. Eu ri. "Vá tomar um banho então", respondi. "Sirvo em uma hora. Depois chame o Lucas e coloquem a mesa para mim, está bem?" Meu filho me abraçou por trás
e me deu um beijo leve, antes de seguir para o andar superior. Eu estava terminando de desfiar a última posta de bacalhau, quando Rodrigo gritou. Larguei tudo sobre
a bancada da pia e subi correndo. Eu ouvira, talvez, um estranho baque seco, poderia ter sido qualquer coisa, um objeto caído, uma bota pisando o chão com mais força.
Era Lucas. Lucas estava caído no banheiro ainda úmido, usando uma calça jeans. Seu rosto estava com espuma de barbear apenas de um lado, como se ele estivesse com
o trabalho pela metade quando passou mal. Rodrigo ajoelhara-se a seu lado, segurando-lhe a cabeça. Havia um cheiro de sabonete de oliva no ar, jamais esquecerei
aquele perfume. Nunca mais usei aqueles sabonetes, eram umas barrinhas verdes, quadradas, da marca Nüve, da Turquia. Acho que Lucas tinha ganhado uma caixa grande
de alguma das famílias das suas pesquisas. Ficaram lá e depois dei-os para algum amigo, sequer lembro para quem foi. Estou dando voltas, eu sei... Não quero ver
Lucas, não quero mesmo. No entanto ele está ali, a cabeça apoiada sobre as pernas do meu filho. "Mãe, ele está respirando", disse Rodrigo. "Acho que desmaiou." Fiquei
um tempo sem saber como agir, as mãos ainda gordurosas e salgadas, o caldo de legumes cozinhando lá embaixo, só que nada daquilo tinha mais importância, nada daquilo
teria importância novamente. Respirei fundo, limpei as mãos na blusa, toquei a fronte morna de Lucas e, confusa, disse: "Fique aí com ele, Rodrigo. Vou chamar uma
ambulância." Foi o que fiz. Não me lembro de tê-lo feito, o fato é que a ambulância dobrou a minha rua quinze minutos mais tarde, a despeito do trânsito sempre caótico
da cidade. Mas era feriado. Era Sexta-Feira Santa. Quando a ambulância chegou, Lucas já tinha voltado a si; sentia muitas dores na cabeça e balbuciava algumas frases
confusas. Rodrigo estava assustado e eu - o que dizer sobre mim? -, eu fui obrigada a manter a calma, assim como Moisés diante do povo judeu quando a décima praga
dizimou os primogênitos. "Tudo vai dar certo", eu disse, enquanto dois paramédicos examinavam os sinais vitais de Lucas, e Rodrigo, encostado à parede, perdia-se
no jardim lá fora. Senti raiva de mim, da minha própria voz, repetindo aquele chavão. Eu sabia que alguma coisa estava errada, terrivelmente errada. Sabia havia
dias, talvez meses, que Lucas estava estranho, abatido e mais silencioso. Eu me forçara a não ver. Colocaram-no na maca e o levaram pelo caminho de pedras do jardim.
Despedi-me de Rodrigo, pedindo que fosse dar uma olhada na cozinha, que comesse alguma coisa, eu daria notícias em breve. E entrei na ambulância, sentindo que entrava
num segundo momento da minha vida, que virava uma esquina importante. Sentada no banco duro reservado ao acompanhante, da janelinha vi minha casa, os tijolos luzindo
ao sol, as flores no jardim fronteiriço; a rua estava calma, e no céu azul nuvens passavam sopradas de leve pelo vento. Então o motorista ligou a sirene e o velho
e bom Jacques, meu vizinho, espiou pela janela da sala de estar, alarmado. Saímos em disparada, cortando a paz do começo daquela tarde de sexta-feira; e só nesse
instante entendi o quanto estávamos encrencados, Lucas e eu, rumo ao hospital e ao ocaso da nossa vida. ***

7. Eles Estiveram Por Aqui...


ELES ESTIVERAM POR AQUI, os Berman... Vieram me visitar, ou seja lá como posso denominar esses súbitos aparecimentos. A primeira estranheza que notei foi a luz,
como se a tarde tivesse ganhado um aspecto granuloso e denso. É como um filtro, um filtro que transforma sutilmente a realidade, mudando um pouco a cor das coisas,
alaranjando a tonalidade do céu. Então eles surgem. Vieram ambos, Laura e Leon, trazendo pela mão o pequeno Daniel, com seus cabelos cacheados de puro ouro, uma
criança maciça e bonita, muito comportada. Pelos passos rápidos e trôpegos de seus pezinhos gorduchos, calculei que estava com um ano e meio, mais ou menos. Eles
entraram pela sala aberta, acho que já disse que tenho ventanales enormes que se abrem para o jardim, como se as paredes fossem suprimidas. Foi por ali que eles
entraram solenemente, me atrevo a dizer. Andaram por toda a casa, olhando tudo, pequenos detalhes, o piso de pedras cinza-claro, a conformidade dos tijolos, as vigas
do teto. Laura passava as mãos, as suas longas mãos de veias salientes pelas paredes, provando com alegria a solidez da casa. Eu os segui, é um costume que tenho
desde que entendi que não me veem. Estavam sozinhos e pareciam discretamente alegres, como se tivessem bebido algumas taças de vinho. Eles atravessaram as duas salas
sem notar os próprios objetos pessoais, a maioria dos quais mantive. Faziam pequenos comentários práticos sobre a casa. "Podemos pintar as paredes de branco", disse
Leon, de repente, parado no meio do pequeno corredor que dá acesso à cozinha. "A casa toda de branco, como uma boa casa de praia", acrescentou. "Eu não gosto dessas
madeiras marrons", respondeu Laura, sorrindo. "Mas o branco vai ficar bonito, Leon", disse, aproximando-se do marido e o enlaçando com um beijo carinhoso. Vejo que
eles estão felizes. Daniel aproveita o abraço dos pais e, como se uma súbita ideia lhe ocorresse - ver os passarinhos amarelos ou pegar uma pinha bem graúda -, ele
corre atravessando as portas escancaradas até o jardim florido. "Volte aqui", chama Leon, docemente. "Dan..." Laura solta o marido. "Deixa que eu pego ele, Leon.
Pode ser perigoso lá no pátio. A casa está em mau estado e o jardim, nem se fala." E ela vai. Leon segue pelo corredor, deixando a cozinha, e ruma para o lado direito,
onde os quartos se enfileiram. Somente nesse momento eu entendo, posso entender que não veem a casa como ela é, como a mantiveram depois, sempre tão bem-cuidada,
sempre impecavelmente branca e resolutamente limpa. A casa está à venda. Uma família de argentinos em apuros pede por ela um valor bem abaixo do mercado local e
os Berman, que estavam por aqui, se interessaram pelo negócio. (Se havia um corretor junto com eles deve ter entendido, talvez por ser uma alma refinada, a intimidade
de um primeiro encontro entre uma casa e a sua futura família.) Acho que li sobre isso em algum lugar, a compra da casa, nos velhos documentos que ficaram esquecidos
nas gavetas cheias de pó. A casa deles. O receptáculo de toda aquela felicidade. Todos os verões, as alegrias, as tardes na piscina - ainda não há uma piscina (isso
eu li na escritura, na qual consta uma reforma, uma pequena ampliação e a construção da piscina). Os Berman estão a ponto de realizar esse sonho, pois, sim, era
um sonho em comum esta casa de verão, pequena e aconchegante; eles a sonharam juntos por noites e noites seguidas. Eles a montaram, de pouco em pouco, detalhe por
detalhe, gastando aqui os direitos autorais de um ou outro livro, a comissão sobre a venda de uma obra de Iran do Espírito Santo, os aluguéis de um pequeno apartamento
em São Paulo - aqui eles investiram o dinheiro extra, aqui eles investiram tanto tempo e tanto amor, eu sei, eu sinto, tudo isso vibra entre as paredes quando passo
as mãos por elas, exatamente como Laura Berman fez há tantos anos, antes de sair em busca do seu menino lá no jardim em frangalhos e ainda deserto da sua piscina.
E Laura gostava de casas, basta ver sua literatura. Em todo romance sempre havia uma casa, como uma raiz numa árvore. Ela própria era como uma dessas plantas de
raízes grossas e esparramadas; ela se fixava em um lugar e a partir dele é que crescia, brotando, para o alto e para os lados, em histórias e personagens. Sempre
dentro de uma casa, com os filhos, escrevendo os seus romances, as flores nos vasos, a comida na mesa - esse era o lugar de Laura. Sei o que essa casa representou
para ela, sei perfeitamente bem. Não apenas posso vê-los, como posso senti-los. Estar aqui era estar bem, Laura sempre pensou assim. Aqui teve a ideia de um dos
seus mais bonitos livros, sobre um verão antigo e duas crianças que descobriam o amor. Foi aqui também que Max realmente vingou dentro dela, Max, aquela sementinha
temperamental. Aqui, aqui, aqui. A casa deles. Eu me senti uma intrusa gentilmente recebida quando as coisas entre eles já tinham degringolado. Como aconteceu com
a família argentina, a roda da vida girou outra vez e lá estava eu, com o dinheiro no banco, guardado havia tantos anos, da minha herança - argentina também. Teria
o deus, aquele mesmo que descrevi em outras partes desta história, teria o deus, gorducho e maquiavélico, me envolvido na sua trama? Claro que sim, tenho a mais
absoluta certeza de que esse encontro, esses encontros entre mim e os Berman também são obra dele, desse Pã de camisa xadrez e docsaids; ele anda pela vizinhança
quando amanhece, bem cedinho, pedalando a sua desconjuntada bicicleta, vigiando-me de longe. Mas Laura não volta com o pequeno Daniel, e Leon dá uma última olhada
na suíte, depois fecha a porta com cuidado e sai pelo corredor, cruzando os ventanales até o jardim. Eu não vou atrás deles, não agora. Eu me sento no sofá grande,
branco e macio, e fico ali muito quieta, melancólica. A casa está silenciosa outra vez. Eles se foram, os Berman. Em algum lugar do tempo devem estar rindo numa
aflitiva felicidade, fazendo planos e contas antes de ligarem para o seu advogado, para o contador, para o homem da imobiliária. Pois esta casa estava fadada a lhes
pertencer. A casa deles. E se isso não for pura poesia, não sei o que é. *** Há uma coisa que eu gostaria de falar sobre os Berman. Uma coisa deles, especialmente
deles: aqueles dois tinham uma afinidade fora do comum. Não estou falando de sexo - bem, entre tantas interseções da vida deles com a minha, não nos cruzamos em
nenhum momento de tamanha intimidade, o que é um grande alívio para mim. Enfim, estou falando de outra coisa, uma afinidade intelectual. Talvez seja esse o nome
que eu posso dar para a corrente invisível que unia aqueles dois. Laura e Leon se completavam. Fundamentalmente, como duas peças de uma engrenagem um se encaixava
no outro e, juntos, eles criavam combustão. Pensavam juntos muito melhor do que em separado, liam juntos, e o livro, quando dividido, sempre parecia melhor, maior
e mais complexo. Há uma boa dose de incompreensão no amor, é isso que sustenta ou afoga um relacionamento. Laura não entendia Leon completamente, e creio que o mesmo
aconteceu com ele muitas vezes em relação à Laura. Porque eles eram de fato opostos em várias coisas, mesmo com aquele amor em comum pela arte. Laura era sonhadora
e frágil, quase infantil para algumas coisas, turrona e obsessiva para outras. Leon era um homem solto; quando abandonou a sua cidade pela primeira vez, livrou-se
de todas as amarras para sempre. Laura acabou sendo uma talinga e tanto para ele, inesperadamente. Mas eles se entendiam, aqueles dois. Eles se amavam. Em uma gaveta,
no fundo de uma caixa cheia de velhas notas fiscais e cartões de empresas, encontrei um pequeno bilhete. Um trecho de bilhete, melhor dizer, porque parte dele havia
sido rasgada, talvez para anotar um recado mais urgente, um número de telefone, uma conta bancária. A vida é assim, uma urgência vai substituindo a outra. Guardei
o bilhete, que dizia: "É como andar numa corda bamba... Vejo que nem tudo está bem pra você, dias felizes, outros não. Me dá um medo. Medo por você, por mim, por
nós. Medo de eu ter empurrado você pra esse picadeiro. Desculpa, meu amor. Conta comigo, meu amor." Eles também tinham seus maus momentos, aqueles dois. Os seus
picadeiros, como diz o bilhete. Entretanto, compraram a casa e durante meses se ocuparam de reformá-la, de escolher as flores para o jardim, de cavoucar o chão e
construir, lá no fundo do terreno, a piscina onde os dois meninos aprenderam a nadar e para a qual escolheram metais e azulejos. Com as próprias mãos, Laura costurou
as colchas e as almofadas, e a faina de transformar os escombros da velha casa gerou brigas e brindes, e Daniel já a amava com seu coraçãozinho infantil, e finalmente
eles vieram para cá, em meados de um dezembro caloroso e azul, e aqui passaram o primeiro de muitos Natais. *** 8. POUCOS DIAS ANTES DA Derradeira...

Poucos dias antes da DERRADEIRA crise de Lucas, havíamos comemorado o Pessach na casa dos Blum, uma família de origem judaica cujo patriarca, Julius, tinha uma galeria
bem conceituada no bairro dos Jardins, onde Lucas eventualmente expunha algumas obras. Confesso aqui que eu entendia muito pouco dos costumes judaicos até que Lucas
Stern apareceu em minha vida, com seus arquivos mortos cheios de fantasmas dos campos de concentração, seus cadernos em ordem alfabética repletos de famílias em
fuga e suas histórias incríveis. Aprendi muito com Lucas. Jacó e seus doze filhos, as dez pragas do Egito, a saga de Moisés. Ele não acreditava realmente nisso,
mas guardava um profundo carinho por essa mitologia. Era uma história bastante boa em tudo o que tinha de bravura e de heroísmo e, de certo modo, colocou-a no lugar
do seu passado, do pai que fugira de casa depois de anos de depressão não diagnosticada para morrer como indigente. Porque o pai de Lucas abandonara o judaísmo,
ele até mesmo tinha raiva do judaísmo e de um Deus que não fora capaz de poupá-lo dos terríveis horrores que vivera nos campos de concentração. E isso era mais um
dos hiatos na vida de Lucas. Voltando ao assunto, dias antes tivéramos o jantar do Pessach. Julius Blum partira o pão ázimo e todos nos abraçamos e nos congratulamos
e rimos. Um bom vinho, deliciosos pratos e horas de amigável conversação substituíram a saga dos judeus através do Egito, depois que a última das dez pragas exterminara
os primogênitos. No hospital, levaram Lucas direto para os exames. Uma pilha de exames. E eu fiquei horas sentada numa salinha asséptica, com uma televisão que não
parava de falar, perdida em devaneios angustiantes. Pensei que o anjo da morte tinha nos visitado, como na história de Moisés. Ele viera na calada da noite, ultrapassando
nossas janelas, que não estavam untadas com o sangue de nenhum cordeiro. Esse maldito anjo tocara Lucas enquanto eu dormia, tocara-o de modo profundo e irremediável,
e não havia mais nada a ser feito, mais nada, senão esperar e esperar e esperar, até que alguém viesse pelo corredor e finalmente me chamasse pelo nome. Nenhuma
enfermeira parecia saber diminuir o volume da televisão presa no canto superior da parede da saleta, onde eu deveria aguardar; na verdade, nenhuma delas parecia
se incomodar com aquele barulho. Fiquei ali por horas e meus pensamentos confusos, exaustos, misturaram-se aos comerciais de frango empanado e de alvejante para
roupas delicadas. De repente, pela janela do corredor, vi que o céu enchera-se de nuvens cinzentas. O sol partira cedendo lugar a um entardecer lúgubre, cheio de
maus agouros para mim. Eu me recostei na parede, apoiando as costas naquele encosto duro que algumas pessoas supõem ser um conforto para os acompanhantes de almas
em frangalhos, e fechei os olhos. Não sei quanto tempo se passou, mas em algum momento senti o leve toque de uma mão sobre o meu ombro. Abri os olhos, assustada,
e dei de cara com um homem de meia-idade, olhos bondosos, que me fitava séria e delicadamente. "Desculpe acordá-la, senhora Franco. Sou o doutor Gabor. Eu estava
cuidando de Lucas Stern." Eu me recompus como foi possível, ou melhor, coloquei em ordem a parte de mim que ainda tinha algum jeito, corri as mãos pelos cabelos,
alisei a blusa e me ergui. O doutor permanecia em pé, sereno. Era um homem com uns olhos cor de mel, dourados e aprazíveis. Ele abriu um sorriso e disse: "Vou convidá-la
a sentar novamente, senhora Franco. Tenho algumas coisas a lhe explicar. Pode ser aqui mesmo. Ou a senhora prefere subir até a minha sala, no quinto andar?" Antes
que eu respondesse, ele deu alguns passos e desligou a maldita televisão, e aquilo me deu uma grande confiança nele, me deu mesmo. Então me joguei no sofá. "Como
está Lucas?", perguntei. "Está sedado", respondeu, sentando-se ao meu lado. O tal doutor Gabor tinha alguma coisa solidária, bem diferente desses médicos de cinema,
tão inumanos, apressados e ambiciosos; ele parecia à vontade ali naquela saleta fria, usando o jaleco branco com um crachá em que se lia o seu nome. Ele era um importante
neurocirurgião, porém eu ainda não sabia disso. Estava de plantão quando Lucas chegou, o que foi uma sorte, creio, embora as coisas tenham terminado como terminaram.
"Deixe-me lhe explicar, senhora Franco. Lucas teve uma crise epilética durante o primeiro exame que fizemos. Depois que controlamos tudo, fizemos uma tomografia
e uma ressonância magnética." Ele me olhou por um longo momento e quis saber: "Senhora Franco, desde quando Lucas vem apresentando esses sintomas?" Dei de ombros.
Eu estava tão desesperadamente nervosa... Olhei para os lados, procurando pelo meu filho. Ele não estava ali, claro, estava em casa, esperando notícias. "Hoje foi
a primeira vez que eu vi", respondi, finalmente. "Lucas fica muito em casa, ele é artista plástico. E eu trabalho fora, sou editora. Se ele tem tido alguma coisa,
doutor Gabor, não comentou nada comigo." Doutor Gabor sorriu. "Os homens são péssimos pacientes, senhora Franco." E depois começou a falar e a falar... Meu Deus,
como ele falou. Eu corria pelas palavras dele como uma criança assustada em meio a uma multidão. Ele não falava com pressa, porém cada palavra - ah, as palavras!
-, cada palavra tinha um peso tremendo, era como uma gigantesca pedra que eu tinha de escalar, seguindo para outra e outra, e assim sucessivamente. "Deixe-me lhe
dizer o que penso, senhora Franco", ele continuava. "Coisas que eu penso e que confirmei com os exames que fizemos. A senhora não esperou à toa. Vamos internar o
Lucas, senhora Franco. Porque acho que ele vem mentindo para a senhora. Acho que vem tendo dores muito fortes de cabeça, cefaleias agressivas, tonturas e vômitos.
Pelos exames, posso ter quase certeza de que Lucas está com um astrocitoma difuso na parte frontal esquerda do cérebro... Pela aparência do tumor e pelas zonas de
necrose, eu poderia apostar que temos aqui um grau três, e isso não é bom. Não é mesmo nada bom..." Então, ele parou de soco, suspirou fundo e, puxando a minha mão
para dentro da sua, quente e macia, resumiu: "Senhora Franco, sinto muito lhe dizer, mas Lucas está com um gravíssimo tumor cerebral. Vamos ter que operá-lo com
urgência, só que nem mesmo a operação é garantida, pois este é um tumor infiltrativo que impede a sua completa remoção." Comecei a chorar. Não havia ninguém por
ali, a sala e os corredores se mostraram subitamente desertos como para dar espaço ao meu pânico. Apenas o doutor Gabor, com aqueles olhos compreensivos, parecia
me autorizar a ter uma crise histérica ou coisa parecida. Chorei por alguns segundos, umas lágrimas quentes e salgadas, e subitamente me controlei, limpando o rosto
com a manga da blusa num gesto não muito elegante, para perguntar: "Quando vão operá-lo, doutor?". "Amanhã", respondeu Gabor, simplesmente. Depois daquilo, me fizeram
assinar uma papelada enorme e providências de toda ordem foram tomadas para que a cirurgia acontecesse na manhã seguinte. Eu mal tinha saído de casa com os meus
documentos, então havia muita coisa a ser recolhida e levada ao hospital, papéis de Lucas, do plano de saúde, infinitos detalhes e explicações sobre horários e tipos
de leito e o diabo a quatro no emaranhado labiríntico das minúcias hospitalares. Só duas horas mais tarde, e já era noite, foi que o vi. Estava num leito na Emergência,
aguardando que liberassem um quarto. Havia um biombo separando-o do resto das camas, não chegava a ser consolador, porém era alguma privacidade. Lucas abriu os olhos
quando me viu e eu tentei sorrir o mais encorajadoramente possível. Estava pálido e a sombra da barba por fazer, apenas em um lado do rosto, dava-lhe um certo ar
grotesco e tristonho, como um palhaço no final da função circense. "Acho que me pegaram de jeito", foi o que ele disse, tentando fazer graça com uma voz cansada.
Corri os dedos pela sua fronte, beijei-o de leve na boca. "Você devia ter me contado." "Achei que não era nada, um problema de coluna, uma virose, ressaca. Sei lá...",
ele disse, baixando os olhos. "Se eu não disser coisa com coisa, me avise. Parece que andei dizendo umas besteiras por aqui." "Você está falando perfeitamente bem."
"Amanhã vou pra faca?" "Bem cedinho", respondi. "Rodrigo vai trazer tudo o que é necessário e eu ficarei com você." Ele fechou os olhos. Perguntei se a cabeça doía,
ou o pescoço, ou se ele estava enjoado. Lucas não respondeu, ficou assim um largo tempo, acho que somente digerindo aquela brusca mudança de realidade; afinal de
contas, o eixo da mudança era ele, era a sua cabeça e aquela massa expansiva aumentando dentro do seu crânio, imiscuindo-se em seu cérebro lenta e laboriosamente.
Nós ficamos ali, atrás daquele miserável biombo, como se separados do mundo. Ele e eu. Não havia nada a ser dito, nenhuma palavra que pudesse nos socorrer ou iludir,
nada. Apenas o silêncio, aquele silêncio branco do hospital, sempre interrompido pelos múltiplos ruídos da miséria humana - gemidos, tosses, suspiros. E essa é a
pior parte da história, meus caros. Falar disso aqui, reviver tudo isso, é um castigo para mim. Mas aconteceu, aconteceu exatamente do jeito que estou narrando.
Um dia, conheci Lucas. Provavelmente, ele já tinha aquele tumor escondido nos recônditos do cérebro, ou não. Ninguém pode saber. Talvez o tumor tenha surgido de
um dia para o outro, como nasce o sol ou uma flor desabrocha. Surgiu e tomou o seu espaço, crescendo, crescendo com uma fome carnívora, escrevendo a história silenciosamente
- a pior parte da história. Ah, a finitude, essa malvada. A inalienável finitude, essa devassa. Lucas estava muito doente e o prognóstico da cirurgia não era dos
melhores, não era mesmo. O doutor Gabor usava as palavras com delicadeza, só que elas continuavam mantendo o seu trágico sentido. "Uma sobrevida de seis a dez meses",
foi o que ele disse, o bondoso doutor Gabor. E nem isso ele acertou, que grande lástima, que danação. Mas eu ainda não cheguei lá. Ainda não, quase.

*** 9. Voltemos Aos Bermans

VOLTEMOS AOS BERMAN, meus inquilinos emocionais. Preciso me esquecer um pouco de Lucas e daqueles dias. Vocês sabem, fiquei com o espírito abalado por um ou dois
anos. Até que a casa, a felicidade que habita esta casa, começou a exercer seus benéficos efeitos sobre mim. Eu já disse que os Berman me visitam quase diariamente
nos últimos anos. Não há uma constância, de fato, mas eles entram e saem de um modo estarrecedor. É como se o passado desta casa tivesse sido guardado aqui sob uma
espécie de encantamento, de imanência. A coisa é quase ritualística, eu posso senti-los chegando, seja lá de onde eles venham. O modo como a brisa fresca do anoitecer
faz dançar uma das cortinas da sala, um acorde musical, e então, eu sei, eles estão vindo... Apressadamente, corro à cozinha e ponho em ação a coqueteleira, servindo-me
do meu primeiro martíni, enquanto, lá fora, as estrelas se abrem no céu feito minúsculos botões de luz. Sempre me acomodo num canto, faço questão dessa discrição,
eles a merecem, afinal de contas eu cheguei depois. Já disse mais de mil vezes que eles me venderam a casa. Na época, creio, não havia outra coisa a ser feita e
eu devo ter parecido uma compradora extremamente conveniente, pois não era de todo desconhecida dos Berman. Ao contrário, Laura voltara a ter ligações com a minha
casa editorial naquele tempo e eu era uma viúva realmente precisando de consolo. Além disso, eu tinha dinheiro, todo o dinheiro necessário para quitar a compra em
uma única parcela. E, assim, eles me venderam este lugarzinho. Não passavam os verões aqui fazia bastante tempo. No começo da separação, Laura viera com os meninos,
mas as lembranças devem ter doído demais e as temporadas foram escasseando... Já pensei muito sobre isso, sobre as voltas que a vida dá. Creio que os Berman não
me venderam tudo, toda a casa que foi deles. Vejam, entendam comigo, ela está aqui, cada parede e cada tijolo, os quartos, banheiros e salas, o jardim com as suas
árvores, o limoeiro, as laranjeiras, a piscina e o anexo da garagem com o seu caminhozinho de pedras escorregadias - está tudo aqui. Até os móveis, a maioria dos
móveis que eles deixaram. Mas os Berman guardaram a casa, a casa deles. Eles levaram uma parte importante dela, cada um dos dois - e talvez os meninos também, quase
posso ter certeza disso, porque lembro como a infância sabe ser criteriosa. Tanto Laura quanto Leon, ambos levaram um pouco da casa com eles. E a levaram de muitas
formas... Eles a levaram dentro de livros, os bons romances que leram aqui. Quando os abriam, onde quer que estivessem, os velhos livros lidos em algum verão luminoso,
no jardim sob as árvores ou na varanda; quando eles abriam esses livros, ao lerem algumas frases, lá vinha todo o passado pulando sobre eles, intacto e imortal nos
mínimos detalhes. Bastava que Leon escolhesse um trecho, um trecho de um determinado romance, digamos, O bom soldado, e, entre as palavras de Madox Ford - "E então,
de repente, sob a luz clara da rua, eu vi Florence correndo" -, levantava-se uma outra tarde, cuja luz, também muito clara, maravilhosamente suave, guardava os gritos
alegres de Daniel e de Max correndo entre os esguichos gélidos dos sprinklers do jardim, com suas sungas de lycra, na tarde quente e pacífica, e, na cozinha, Laura
picava morangos para uma salada de frutas. Ou, vários anos depois, já na casa de vidro no alto da serra, quando Laura abrisse displicentemente o primeiro volume
de Guerra e paz e seus olhos corressem pelo texto - "Para Pierre, educado no exterior, aquela noite em casa de Anna Pávlovna era a primeira reunião social da qual
participava na Rússia. Sabia que ali se achava toda a inteligentsia de Petersburgo e, como uma criança numa loja de brinquedos, não sabia o que escolher, como um
mistério inexplicável mas plenamente justo" -, o jardim se ergueria diante de seus olhos, com os pinheiros altos dançando contra o azul, e as trepadeiras carregadas
de flores lilases bailariam ao sabor da brisa marinha, enquanto, sob o abrigo da varanda, Leon tirava um cochilo, com seu livro aberto sobre o peito e os braços
escondidos pelas almofadas coloridas do sofá. Eles levaram a casa nas fotos... Milhares delas, as fotos dos verões, de todos os verões, nas quais os filhos cresciam
assombrosamente, na felicidade azul das férias. Eles deixaram muitos retratos para trás, porém levaram uma quantidade impressionante consigo, pois - acho que eu
não disse ainda - Leon era um aficionado da fotografia. Ele registrou incansavelmente os bons momentos, imprimiu-os e os enquadrou numa vã tentativa de eternizá-los;
não o logrou de todo, porém não creio que tenha sido completamente fracassado no seu intento. Os Berman guardaram a casa em cadernos de anotações diárias - eles
eram, ambos, muito afeitos a rascunhar seus pensamentos, transformando instantes em palavras e dias em parágrafos. Eles eram assim... E a casa resistiu nesses cadernos,
resistiu inteiramente nas palavras escritas com esferográfica, nos rabiscos de poemas que Leon costumava fazer quando, sozinho na sala enquanto Laura e os meninos
estavam na praia, dava vazão aos pensamentos. Acima de tudo, talvez Laura tenha levado a casa consigo na sua ficção - ela adorava casas, eu já disse. A casa foi
ressuscitada, ou eternizada, em um ou dois dos seus romances de maneira bastante eficiente e emotiva. Ela não se deu o trabalho de modificar detalhes, não mesmo,
a casa estava lá, com as suas rosas, as gardênias e as margaridas, talvez estivesse lá antes mesmo de existir, como a semente de um futuro que está sempre se transformando
em passado, morrendo e renascendo dele mesmo a todo instante. *** Nos primeiros anos, o aparecimento diário e fortuito dos Berman em um de seus dias de verão era
para mim uma epifania. Como e quando as coisas, os dias e os anos se tinham misturado dessa maneira, a minha vida atual e a vida passada deles, num único torvelinho,
coabitando esta casa em tempos estanques cujo contato às vezes parecia gerar uma espécie de curto-circuito temporal? Durante um tempo, isso me assombrou realmente,
mas nunca a ponto de comentar com alguém. Parecia-me profano trazer um estranho para dentro do nosso segredo e não tive coragem de dizer uma única palavra nem mesmo
a Rodrigo quando ele me telefonava de Barcelona, pois, nesse tempo, começo dos anos 2000, ele já estava fazendo uma especialização por lá. A minha vida com os Berman
parecia uma espécie de prêmio, de dádiva que eles, Laura e Leon, concediam a mim, e só a mim - essa observação cotidiana da felicidade extinta. Assim, calei-me.
Eu os vejo pelos cômodos e, depois de alguns anos, ouso dizer que isso se tornou muito natural. Somos habitantes desta mesma casa, e talvez ela - a casa - seja realmente
o segredo de tudo. Geralmente, quem chega primeiro é Leon. Ele irrompe pela sala, silencioso, imerso nos seus pensamentos, escolhe um dos livros da estante repleta
de títulos (o curioso é que Laura, uma escritora, e Leon, um leitor ávido, acabaram deixando aqui uma boa parte da sua biblioteca de verão), e então, descendo os
quatro degraus de pedra que separam a saleta de leitura da espaçosa sala de estar, ele se deixa cair num dos sofás e mergulha no livro. Eu já disse que Leon é um
leitor dedicadíssimo. Gosto de vê-lo perder-se nas páginas, sorrindo às vezes, noutras, franzindo levemente o cenho, como se discordasse do narrador ou desconfiasse
de algum detalhe da trama. Leon deixa-se levar pelo texto, e tanto que, às vezes, os contornos do seu corpo parecem imiscuir-se no enorme sofá branco onde ele lê,
como se Leon se desbotasse um tantinho, liquefeito pela ficção. Um homem lendo na própria casa, isso para mim é felicidade. Ou uma cintilação dela. Porque a felicidade
- e esta história, creio, versa um pouco sobre isso, sobre um tempo especial da vida em que todas as coisas parecem perfeitamente encaixadas, unidas com graça, elevadas
por uma simbiose perfeita -, bem, a felicidade é sutil, é discreta e delicada feito um beija-flor, esse passarinho que consegue a proeza de bater asas até oitenta
vezes em um único segundo. Assim é a felicidade, essa transformadora dos dias, hábil artesã das coincidências. Vejo Leon com seu livro neste anoitecer enquanto,
lá fora, um manto de nuvens escuras cobre os últimos brilhos de luz. As estrelas se recolhem, parece que vai chover, e a chuva aqui na península chega lépida, pois
vem do mar aberto. Leon corre pelas páginas e imagino-o anos atrás com outro livro nas mãos, o livro de Laura, o primeiro que ele leu. Leon foi o agente da felicidade
quando, impulsionado por algum curioso instinto que, mesmo sem entender, soubera ouvir, pulou da ficção para a vida real, das páginas impressas numa gráfica perdida
na fronteira sul do Brasil para aquela mesa de bar, no primeiro encontro com Laura. Foi um começo por excelência. Mas nada como o tempo para amansar a maior das
paixões. O tempo é paciente, meticuloso e mourejador. O tempo derrubou reis, gerações inteiras de reis, desfez reinados, alianças, fortunas, apagou religiões e riscou
povos inteirinhos da face desta terra de meu Deus. Por que um simples amor entre duas pessoas, um homem e uma mulher, haveria de ser, assim, imune ao tempo? Leon
ainda ama Laura, ela é a mulher da sua vida, nenhuma outra chegou nem perto de onde ela está, do que Laura significou para ele. Ele gosta do corpo dela, um corpo
esguio, elástico, dourado. Gosta do jeito que ela ri, jogando a cabeça de leve para trás; gosta de vê-la cercada pelas dúvidas que a ficção lhe impõe quando está
perdida entre as alamedas de um romance inacabado; gosta de vê-la andar pela casa naquele seu jeito enérgico e decidido, recolhendo brinquedos pelo chão, ajeitando
as almofadas nos sofás. E a paixão? A paixão aguda e ardente há muito deve ter se evaporado dentro dele. Ficou o líquido do amor, não mais o perfume, aquilo que
inebria. Antes era o instinto, puro e vivo e premente, agora o pensamento faz o seu trabalho lento e laborioso, e quando Laura surge na frente de Leon ele sorri,
mas não se acende por dentro; seus olhos se iluminam, mas não fulgurantemente. Laura agora tem um significado - e um peso na vida de Leon - que envolve um todo,
a casa, o filho. Antes, ah, antes, era apenas Laura, pura e forte como uma boa droga. Telúrica. *** Então, para meu próprio espanto, pois estou tão absorvida em
analisar Leon, Laura entra na sala de repente. E ela está grávida - grávida! O tempo deu um salto duplo, pois Laura está grávida não do primogênito, Daniel. Ela
está grávida de Max. Daniel, com seus quatro ou cinco anos, vem logo atrás da mãe, dando saltos como um animalzinho feliz. Não tenho nenhum controle sobre as coisas
que vejo aqui, elas vêm em turbilhão, misturadas pelos anos como as folhas que o vento faz rolar pelas calçadas vazias numa tumultuosa tarde de inverno. Leon deixa
de lado o seu livro e seu olhar pousa em Laura. É um olhar sereno, bom. Ele conhece Laura tão profundamente... Tiveram momentos difíceis há pouco tempo, mas, com
a gravidez, uma nova serenidade apossou-se de ambos. Leon sabe que Laura é uma estrutura forte, apoiada sobre frágeis vigas; ela é sentimental e fantasiosa. A gravidez
parece ter amenizado até mesmo esses defeitos da esposa e seus olhos negros miram-no com carinho, pacificados.
Lá fora, começa subitamente a chover. Escuto os pingos da chuva martelando com vigor no telhado, a calha escoa a água com um barulho alegre sobre os canteiros
do jardim lateral e respingos de lama pontilham o chão de pedras da varanda. O jardim agradece essa chuva depois do caloroso dia e o ar emana o perfume fresco da
grama molhada, das rosas. "Cheiro de infância", diz Leon, de repente, farejando o ar. "Me faz lembrar a minha avó, com o seu quintal de roseiras." Daniel vai até
a janela e olha a chuva, fazendo uma carranca engraçada. Laura e Leon riem do menino. "O que foi, Dan?", pergunta Laura, sentando-se no sofá ao lado do marido e
espiando, de canto de olho, o livro que ele está lendo. O livro é As brasas, de SándorMárai, e não resisto a um pequeno sorriso ao pensar na casa descrita pelo autor,
o castelo do livro, e em tudo o que lá sucedeu. Daniel aponta para o jardim escuro: "Está chovendo, papai. Íamos sair..." "Ainda vamos sair", diz Leon. "A chuva
logo para, Dan." O menino corre e abraça a mãe quando, na verdade, deveria abraçar o pai. Leon fita o filho por um instante e o vê colado à barriga protuberante
de Laura, tudo uma coisa só, aqueles três, é isso que ele pensa. Às vezes, frequentemente, sente-se um intruso entre eles. Balança a cabeça, afastando esses pensamentos
e concentrando-se na alegria dessa nova aventura, o outro filho. Levanta-se e vai acender as luzes externas do jardim. Laura permanece sentada, calmamente abraçada
a Daniel, esperando o minúsculo espetáculo das luzes amareladas nascendo na chuva, entre os canteiros de rosas e margaridas. Leon fica um momento sob a chuva no
pátio. Gosta de água, gosta de chuva. Lembra-se novamente de quando era criança, na casa da avó. O tanque, a mangueira, os temporais de janeiro. Suspira fundo, deixando
a chuva encharcá-lo. Cinco meses antes ele pensara seriamente em deixar Laura... Ninguém sabe, só eu sei. Leon sussurrou a história nos meus ouvidos, ainda ontem,
antes que o dia clareasse de todo. Não é uma bela história, tampouco é atroz, é tão humana quanto todas as histórias de homens e mulheres que se amam e subitamente
se odeiam, complementando-se e vilipendiando-se numa constância assustadora. Mas vamos à história de Leon. Ele contou-a para mim ou será que a inventei? *** A coisa
aconteceu de maneira muito inesperada, Leon não era do tipo mulherengo. Não era mesmo. Era um homem sério, dedicado e discreto. Ele estava na galeria certa tarde,
envolvido com papéis e cláusulas de pagamento, fechado no escritório. A galeria ia bem, porém não o suficiente para que se sentisse inteiramente feliz. Viviam em
Ashburnham, cidade serrana sulista relativamente pequena que recebia turistas endinheirados. (Caso vocês não tenham notado, estou inventando aqui o nome da cidade,
e o nome é uma homenagem às leituras dos Berman, que adoravam a obra de Ford Madox Ford.) Não importa, Ashburnham era a cidade onde os Bermannasceram, a cidade escolhida
pelo Pã gorducho, o nosso pequeno deus libidinoso, para palco de suas experiências. Leon queria mudar-se para o centro do país, só que Laura se negava. Detestava
cidades grandes, ela dizia. Então eles iam ficando. Naquela tarde, o telefone tocou sobre a mesa de Leon. Ele atendeu a chamada mecanicamente e, do outro lado da
linha, uma voz feminina identificou-se como Julia Vieira de Melo. De um passado bastante remoto surgiu diante de Leon o rosto pequeno, redondo e corado de uma jovem
estudante de arquitetura com a qual tivera um breve romance. Flashes de algumas tardes ensolaradas, de risos numa grande mesa num restaurante em São Paulo, uma cama
desfeita e uma coxa morna e bronzeada sobre a brancura de um lençol pularam, muito vivos, diante de seus olhos. Julia disse-lhe que estava em Ashburnham a trabalho
e que encontrara seu telefone na lista local - pois a galeria era bem conhecida, embora não fizesse muito dinheiro. Num arroubo de alegria e juventude reencontrada,
Leon convidou Julia para uma taça de vinho. A tarde ganhou outro gosto, um ar quixotesco e alegre. Ele inventou uma desculpa qualquer para Laura - ela não era do
tipo ciumento - e foi alegremente para o encontro com Julia Vieira de Melo. No bar, ele viu que o tempo tinha sido generoso com a antiga namorada: aos 38 anos, era
uma mulher bonita, magra, de cabelos escuros cortados à altura dos ombros, uma boca rubra e cheia, e olhos redondos, vivos. Estava vestida de negro e, sentada numa
cadeira, folheava atentamente um catálogo de arte quando ele entrou. "Julia", ele disse, e sua voz soou estranha aos seus ouvidos, como vinda do passado. Julia ergueu
o rosto, sorrindo. "Leon! Que bom que você veio!", respondeu ela com alegria, e o sorriso fez nascer minúsculos vincos ao redor dos olhos. "Acho que a gente não
se vê faz uns dezoito anos! Você está ótimo, ótimo mesmo!" "Eu ainda estava na faculdade a última vez em que estivemos juntos, Julia", disse ele, sentando-se, depois
de um rápido aperto de mãos. "Mas, para usar uma frase bem batida, parece que foi ontem." (Bem, preciso dizer que alguns diálogos eu estou inventando. Leon me soprou
tudo isso, só que a história era longa e eu estava morrendo de sono, estava mesmo. De qualquer modo, espero manter o espírito da coisa.) Acho que, aqui, Julia falou
mais ou menos assim, a respeito da última frase de Leon: "Ah, com o tempo a gente aprende que a vida toda não passa de um enorme clichê... Eu aqui, em Ashburnham,
procurando na lista telefônica o número do meu antigo namorado. Não é engraçado? Já vi isso milhares de vezes nos filmes." Eles ficaram quase duas horas naquela
mesa, rindo e falando de tudo (e como poderia eu ter guardado na mente tudo o que eles disseram, tim-tim por tim-tim?). O fato é que Leon sentiu-se realmente satisfeito
de ver a si mesmo sob outra perspectiva, sob os olhos de Julia, depois de todos aqueles anos de devoção a Laura, bem, aquilo era como um vento fresco numa tarde
de verão. Ah, como somos inseguros, todos nós, cambiando nossos atos, nossos mínimos gestos, de acordo com o outro que nos vê; mas também como é bom, como é renovador
nos libertarmos das nossas personas cotidianas, esses ferros que nos cingem dia e noite. Perdoemos Leon, eu o perdoo. Gosto muito, muito dele, já disse pra vocês.
Bem, naquele encontro, os dois conversaram sobre muitas coisas enquanto bebiam vinho. Velhos conhecidos, planos, sonhos desfeitos. Até que, a certa altura, os olhos
de Julia pareceram ficar mais sérios, mais atentos, e ela contou que trabalhava para um grande colecionador de arte, um armador português. Leon sentiu que tudo até
então tinha sido uma espécie de manobra, uma distração, e que somente ali chegavam ao que realmente importava. Julia não estava em Ashburnham por acaso. "Você veio
aqui me procurar?", acho que ele perguntou de repente. Ela deve ter corado um pouco ao responder, cautelosa: "Bem, colocando nestes termos, a resposta é: sim. Admiro
muito o seu trabalho, temos obras de alguns artistas que você lançou." "E o que o seu armador português quer exatamente comigo, Julia?", foi o que ele perguntou
(tenho absoluta certeza de que a pergunta foi essa). E sei também que Julia respondeu: "Ele vai abrir uma fundação em Lisboa. Eu trabalho na parte administrativa
da coisa e conceituo um pouco também." Ela deve ter sorrido, jogando os cabelos para trás, fazendo um pouco de charme; afinal, ela era uma mulher. "Você sabe, Leon,
sempre sobra um resquício da faculdade na gente. Vim aqui te fazer um convite. Precisamos de um curador. Alguém realmente bom. Como você." Era um convite para morar
dois anos em Lisboa e Leon adorava Lisboa. E adorava também, ele se lembrou disso depois da terceira taça de vinho, as largas e saborosas conversas com Julia. Leon
sentiu-se valorizado - ora, minha gente, é bem possível entendê-lo! Ele estava metido em Ashburnham até as orelhas e, apesar de gostar da cidade, queria mais. Queria
fazer alguma coisa realmente importante, visível, inovadora. Disse a Julia que ia pensar e, embora tivessem consumido duas garrafas de um elegante chardonnay, ele
voltou para casa com a cabeça fria e leve como se tivesse feito um passeio noturno de barco. Ele e Julia não tinham passado do aperto de mão, mas podia sentir o
perfume dela nas narinas, suave, puxado a verbena, no momento em que subia pelo elevador até o apartamento onde morava. Eu já disse que Leon era um homem sério e
comprometido com a família, já disse isso inúmeras vezes. Vou defendê-lo com unhas e dentes até a morte. Naquela noite, no entanto, ao deitar-se ao lado de Laura
na espaçosa cama que dividiam, Leon sentiu-se oprimido pela rotina, pelo quarto repleto de quadros, pela luz amarelada que vinha da janela trazendo os costumeiros
ruídos noturnos da rua onde viviam. Nos dias seguintes, entre um compromisso e outro, os encontros com Julia se sucederam quase incontrolavelmente. Uma tarde, depois
de correrem sob a chuva até o toldo de um pequeno restaurante italiano, com ela apresentando-lhe cifras e ofertas de salário entre a entrada e a sobremesa, numa
sequência de frases e gestos inesperados para ambos, Leon viu-se na cama de um quarto de hotel, agarrado ao corpo perfumado e macio de Julia, enquanto lá fora a
chuva tamborilava nas vidraças. Era a hora em que Daniel saía da escola, e aquela era uma tarefa de Laura. Por um instante, imaginou a mulher e o filhinho correndo
sob a chuva fria, ela, carregando a mochila escolar, ele rindo, pisando nas poças d'água, pouco se importando com as admoestações da mãe para que se apressasse e
entrasse no carro. Foi um momento fugidio e triste para Leon aquele lapso de remorso; mas depois o turbilhão do corpo de Julia engolfou-o novamente e Leon abandonou-se
em seus braços. Ficaram duas horas naquela cama de hotel, entre as paredes quase nuas, uma natureza-morta da pior categoria pendurada na parede (Leon era muito suscetível
a essas coisas), as vozes e os ruídos vindos do corredor abafados pelo grosso carpete cinzento - e, apesar da impessoalidade do lugar, um quarto comum, decorado
de forma padronizada, ele descobriu-se feliz como havia muito não se sentia. Pobre Leon, pobre Leon... Demos a ele a sua dose de humanidade, pois ele sempre fora
tremendamente dedicado a Laura. Ela não era fácil; a seu modo, não era nada fácil. Ele viveu uma grande crise depois dessa voluptuosa tarde de adultério. Não por
se sentir culpado pelas duas horas de ardor no quarto do Palace Hotel, mas porque, simples e honestamente, ele queria ir para Lisboa. Queria ficar dois anos lá,
organizando as mostras da Fundação Amoeiro e queria (essas certezas foram brotando dentro dele, e eram boas e doíam, e ele contou-as para mim uma a uma), sim, ele
também queria outros encontros sexuais com Julia. Durante algum tempo, Leon Berman tentou separar as duas questões - o convite profissional e a aventura amorosa
- e deu voltas nisso até concluir que, mesmo sem Julia, Lisboa era uma oferta realmente incrível. Ele poderia deixar alguém cuidando da galeria, pois tinha um bom,
um confiável gerente que poderia tocar as coisas em Ashburnham. Mas e Laura? Ele pensou e pensou na mulher, por dias, ensimesmou-se, decantando todo o resto, todas
as amarras, afetos e heranças da vida em comum, até que sobrasse apenas Laura, a mulher que, um dia, anos atrás, ele pescara das páginas de um livro com a certeza
de que era a companheira de uma vida. Laura, a sua velha conhecida, a narradora dos seus últimos anos de existência. Falaria com Laura sobre Lisboa, falaria sim.
Mas não tinha muitas esperanças de que ela ousasse uma mudança tão radical, para longe da sua casa editorial, das suas palestras em escolas e universidades, para
longe da sua vida cotidiana. O fato óbvio é que Laura não cabia no projeto, Laura era Ashburnham, era aquele apartamento com suas flores, com o enorme tapete de
couro, as paredes repletas de livros, a gigantesca e tosca mesa de fazenda que ocupava boa parte da cozinha, onde ela costumava fazer pão e assar biscoitos. Laura
nunca tinha demonstrado vontade de bater asas para outro lugar, ela era uma espécie de árvore. Tinha uma frondosa e exuberante sombra, desde que se caminhasse até
ela, recostando-se no seu largo tronco, deixando-se ficar no seu regaço. Além de Laura, havia Daniel. E Daniel era um caso à parte. A ideia de apartar-se do filho
o deixava maluco - Leon era um pai apaixonado, era mesmo. Daniel, porém, precisava de Laura de uma forma fundamental; não podia arrancá-lo da mãe. De certa forma,
ele sabia, aquele era um convite pessoal, uma decisão sua. Julia finalmente foi embora e as conversações seguiram por fax e pelo correio. Leon decidiu-se ao cabo
de algum tempo. Não foi uma decisão fácil, os católicos poderiam chamá-la de "um calvário". Bem, mesmo que Laura não quisesse acompanhá-lo naquela aventura, Leon
tencionava passar aqueles dois anos em Lisboa. Avisou Julia da sua decisão e cartas do advogado da fundação portuguesa começaram a chegar na sua caixa de correio.
Talvez ele andasse aéreo, mais quieto e ausente. Laura, se notou alguma mudança - e deve ter notado, porque não era nada boba -, não fez um único comentário. Em
casa, a vida seguia seu ritmo. Escola, trabalho, almoços, visitas familiares, Daniel quebrou um dente, consultas no dentista, uma exposição na galeria. Foi difícil
para Leon, foi dramático. Ele deve ter perdido um quilo ou dois naqueles meses. Com Daniel, ele pensava, sempre haveria um futuro. Mas, com a sua partida, Laura
e ele cairiam numa espécie de vácuo, como dois astronautas perdidos no espaço. E qualquer coisa poderia acontecer. Leon amava Laura, amava-a verdadeiramente. Porém,
até o maior amor tem as suas fraquezas, as suas limitações. Havia alguma coisa em Laura, eu posso ver - ainda hoje, quando tudo isso já é passado -, havia alguma
coisa nela que ele amava que era insubstituível. Isso deve ter doído muito nele, muito mesmo. Se Lisboa os separasse, a vida prosseguiria de uma forma ou de outra,
com suas surpresas, suas alegrias e medos, com tudo de bom e de ruim que o futuro poderia guardar (e guardava), mas isso, a essência inominável de Laura e seus efeitos
sobre Leon, isso se perderia para sempre. Finalmente, Leon pediu à fundação três meses para organizar sua partida. Posso vê-lo, e ele passava o dia ensaiando as
palavras, uma a uma. Rearranjava-as. Trocava um verbo, um adjetivo, começava tudo de novo. A verdade enorme daqueles dois anos do outro lado do Atlântico seria incontornável.
Ele iria primeiro, decidiu-se por dizer. Se Laura e Daniel gostassem da ideia, depois de uma visita ou duas, poderiam fechar a casa e ir viver com ele. Havia Julia,
é claro. Mas Julia era uma variante que ele não poderia - não deveria - considerar. Nunca tinham falado sobre futuro nem sobre a vida pessoal de cada um. Ela sabia
perfeitamente bem que ele era casado, que tinha um filho, e essas coisas não haviam sido levadas em consideração para o convite da fundação. E o que foi que aconteceu?
E o que foi que a vida fez com o calvário emocional de Leon, com que moeda lhe devolveu aquele profundo mergulho em si mesmo, nas trevas e luzes da própria consciência?
Antes que tivesse a coragem de chamar Laura para uma conversa franca, passados dois meses do primeiro encontro com Julia, inesperadamente Laura interpelou-o numa
tarde e, entre espantada e eufórica, contou-lhe que estava grávida. Simplesmente assim. "Estou grávida", ela disse. E isso, a inusitada gravidez de Laura, isso resumia
tudo, transformava todo o resto em pó, em fumaça, em negação. Uma brincadeira da vida, Leon pensou. E, num primeiro momento, entristeceu-se. Era como se tivesse
feito uma grande, uma perigosa e exaustiva travessia a nado e, ao chegar na praia, se desse conta de que voltara à mesma margem da partida. Toda a travessia tinha
sido apenas isso, uma travessia. *** Passados seis meses do turbilhão emocional que varrera a sua vida, Leon tinha se apaziguado de alguma forma. Admiro-o por isso,
admiro-o mesmo. Ele já não pensava em Lisboa naquele dia sob a chuva, quando saiu para o pátio para ligar as luzes do jardim. Ele não pensava mais em Lisboa nem
em Julia. Fora um voo breve. Acendendo as luzes, enchendo os pulmões com o cheiro fresco que emanava dos canteiros floridos, aquele cheiro de verão, reconfortante
e limpo, Leon Berman sentiu-se outra vez feliz, repleto de uma serenidade comezinha, quase doce, tranquilizadora. Tudo estava nos devidos lugares. E eles estavam
juntos ali. Ah, esses Berman, que boa dupla eles saíram! *** 10

TRÊS VEZES POR Semana

Três vezes por SEMANA, uma moça vem aqui para limpar a casa. Vem também o jardineiro, já falei dele. A diarista é uma jovem ruiva, alegre e falante, que mora numa
cidadezinha próxima e atravessa as ruas numa moto vermelha e barulhenta. Seu nome é Eve, ela anda por volta dos 35 anos e já faz uns sete que trabalha para mim.
Fala pelos cotovelos. Às vezes me esquivo dela e me fecho no reconfortante silêncio do meu quarto. "Estou tentando escrever, Eve", é o que sempre lhe digo. Ela então
sai de fininho, decerto curiosa com essa tarefa tão impalpável, tão refinada e desnecessária para o andamento cotidiano da vida. Deve achar que escrever não passa
de um tolo capricho. Misturar argamassa, podar o jardim, fritar bifes e limpar vidros, essas coisas Eve compreende, não se pode viver dignamente sem elas. Mas, escrever?
Sinto que, do corredor, ela olha para a porta fechada do meu quarto, olha-a sem entender o ritual que acontece aqui dentro e, talvez, já em casa, em companhia da
mãe e das amigas, desabafe sobre a estranheza inócua da minha misteriosa e interminável ocupação - escrever. Eve chega na sua moto antes das oito da manhã, coloca
um jaleco branco, prende os cabelos no alto da cabeça e se mete na faina de panos e vassouras, baldes e desinfetantes. Ela cuida de outras duas casas também, suas
mãos são ásperas de tanto lidar com essas garrafas plásticas de água sanitária e detergentes, e ela trabalha rapidamente enquanto fala. Mal me vê, já uma arenga
qualquer surge dos seus lábios - ela reclama do frio no inverno e do calor excessivo no verão, mas é, de fato, uma boa moça e muito responsável. Vivo me esquivando
dela, como um gato de um visitante desajeitado. "Estou tentando escrever, Eve." Essa frase é quase um mantra para mim. Um dia, depois de repetir isso pela enésima
vez, comecei a escrever esta história, talvez para dar mais vigor ao que, no início, tinha sido apenas uma mentira boba com a qual eu encontraria um pouco de silêncio
nos recônditos do meu quarto. Para o meu espanto, e para o de Eve, provavelmente, a história veio até mim como um passarinho que, deparando-se com um bom punhado
de alpiste na janela, avança uma barreira e entra numa casa. Foi assim que iniciei estas páginas, esta curiosa mistura entre a vida dos Berman e a minha própria
existência neste vasto mundo de desilusão. Mas preciso dizer, preciso salientar aqui (Laura pisca de forma debochada para mim de um porta-retratos sobre a escrivaninha)
que escrever me resgatou da solidão e do desespero. Isso é verdade, embora não tenha matado a minha fome em momento algum. Palavras não são como um bom bife, e nisso
Eve tem razão. *** Eve segue a sua faina do outro lado da porta do quarto e posso ouvir o ruído de panelas batendo e de armários se fechando, e o cantarolar desafinado
que acompanha toda a labuta. Quando, afinal, deixo o meu quarto, ela não faz comentários, mas me fita com aqueles olhos inquisidores e um pouquinho descrentes e
tenho vontade de lhe dizer: "As pessoas escrevem para sobreviver, Eve. É por isso que elas escrevem, são como náufragos agarrados a uma tábua no meio do oceano."
Mas não digo nada, absolutamente nada. Apenas pego um pote de cream crackers e me ocupo da laboriosa tarefa de espalhar requeijão sobre meia dúzia deles. Depois
volto com o prato de biscoitos para o quarto e recomeço com as palavras outra vez. E enquanto Eve cuida da roupa quarando no sol, ou dos ventanales da sala, fico
dançando o pas de deux com a minha história. Peço que compreendam, as noites aqui são longas, muito longas. Eventualmente, saio para jantar. Com o passar do tempo,
fiz alguns amigos que vivem nas redondezas. Marcamos encontros, tomamos uns drinques e batemos papo por aí em um dos restaurantes da península que funcionam fora
de temporada, onde todos nos conhecem pelo primeiro nome e por nossas preferências. Porque a gente que habita a maioria dos balneários forma uma espécie de família,
de grupo, um grupo bastante heterogêneo, devo dizer, mas com uma coisa em comum: o desprezo, profundo ou leve, pela furiosa horda de turistas que sempre chega no
verão. Porém, excetuando-se esses encontros com os vizinhos, eu passo a maioria das noites em casa, e então, depois de algumas voltas, vou até a minha mesa, me sento
e começo a escrever. Escrever é também uma forma de esperar. Quando ligo o computador, é como se mandasse um sinal para os Berman. Na maioria das noites, antes ou
depois disso, eles vêm. Ao primeiro sinal de aproximação dos meus inquilinos ficcionais, eu me acomodo na poltrona, em silêncio. Eles não costumam ter pressa em
atravessar essa misteriosa porta, essa ponte invisível que nos une; tampouco eu tenho pressa. Deixo que a simbiose se faça ao seu tempo, que os instantes se arrastem,
espalhando uma luminosidade opaca sobre todas as coisas, os móveis e objetos da sala, e quando tudo parece desmaterializar-se por um momento, perdendo o peso e a
massa, eu mesma me sinto mais leve como num sonho, e então, somente então, eles vêm. Escrever é uma das formas de chamá-los, a outra é ler. Essas coisas, acreditem,
foram acontecendo de forma espontânea no decorrer dos anos em que vivo aqui, e levei algum tempo para unir as pontas, causa e efeito, ação e reação. Quando leio
um dos livros de Laura é como se chamasse os Berman até mim. É como dar pão aos passarinhos. Em certos entardeceres solitários, quando o poente rubro e denso espalha
suas luzes sobre tudo e estou às voltas com meu martíni, quando sinto que as palavras não vêm me visitar, que de nada adiantará eu me acomodar em frente ao computador,
quando sinto que a prosa está rígida e seca como os campos uruguaios no verão, escolho um dos livros da estante, um dos livros de Laura, e chamo por eles. Gosto
de ler os seus livros, gosto mesmo. Gosto de buscar, no meio da sua ficção, as pistas da vida real que as páginas escondem. Ora, sei perfeitamente bem, pois sou
uma leitora voraz, que a literatura é invenção, é criação, mas sempre há o pó da vida nos cantos da literatura, como pegadas, como marcas sutis da humanidade e do
passo do autor. Eu jogo a isca e fico ali, bem quietinha, à beira do rio da ficção de Laura Berman, e então sinto o cutucar, logo em seguida o arranque furioso do
anzol... No meio da turva água das histórias, às vezes um pequeno peixe de realidade salta diante dos meus olhos, rabaneando contra o céu. Pode ser uma coisinha
minúscula, pequena e escorregadia, um pensamento, um olhar, uma rememoração sem maior importância no desfecho da cena, mas sinto que aquilo é um pouco de Laura,
da essência de Laura, da vida que ela viveu com Leon e com os filhos, como um pequeno fóssil esquecido no meio da areia de uma praia deserta. Corro até o meu caderno
e anoto esse novo detalhe, e vou juntando partes, venho juntando partes ao longo dos vários anos em que estou aqui, com esta misteriosa porta nos unindo e nos separando,
e gasto horas e dias pensando neles, nos Berman, eu no meu pequeno barco feito de noites silenciosas, navegando, navegando, enchendo meu velho balde de peixes prateados.
Talvez - eu penso mesmo muito nisso -, talvez, em algum lugar do tempo e do mundo, Leon e Laura Berman também acompanhem a minha história, talvez eu circule pelos
cômodos que eles habitam, com os meus pequenos dramas, com o meu luto e as minhas manias, talvez. *** Fecho os olhos e imagino Leon sentado na poltrona branca da
sala, rindo do meu filho Rodrigo quando ele tinha seis anos, quando perdeu o primeiro dentinho. Porque meu filho perdeu o seu primeiro dente e chorou, chorou muito
por causa do sangue. Sem dúvida, aquela foi a sua primeira perda física, o começo de uma transformação ainda totalmente incompreensível para ele, os primeiros passos
da estrada para a vida adulta. São três horas da tarde, acabei de olhar o relógio. Estamos numa praça do meu bairro, uma pequena praça bastante arborizada, com um
parquinho de brinquedos de madeira coloridos, e Rodrigo adora vir até aqui. Ele escorregou na areia e bateu o rosto; o impacto, leve, fez com que o seu dente, que
já estava mole, caísse. Deve ter doído um pouco, penso enquanto o acalento, e ele chora alto, as lágrimas pulando dos olhos. Beijo seus cabelos suados, pedindo que
se acalme, não foi nada, vai passar. Faz sol, mas é inverno e um vento frio dá traiçoeiras voltas pela praça, levantando areia e espalhando no céu um punhado de
nuvens brancas, finas, que maculam o azul muito puro. Abotoo o casaco de Rodrigo e abraço-o mais uma vez, uma pequena trouxa pulsante, lacrimosa. Ele parece nervoso,
solta-se de mim e diz: "Mamãe, você tem que me levar ao médico!" Outros meninos passam correndo por nós, são cinco ou seis, e vão atrás de um balão a gás levado
pelo vento para o lado mais arborizado do parque. Rodrigo olha a cena por um instante, depois volta a me fitar, entristecido. Eu lhe explico que o seu dente estava
para cair, que é normal nessa idade. "Acontece com todas as crianças", digo. E ele me olha, espantado. "Mas eu gostava daquele dente!" (Na poltrona branca, Leon
abre um sorriso de divertimento.) E eu continuo: "Olha, Rodrigo, outro dente vai nascer no lugar deste, um dente mais forte, um dente de gente grande. Você vai ver."
Mas o meu menino não se dá por vencido. Ele argumenta: "Era um dente bom, um dente amigo." Ele conhecia a sua preferência por chocolate, por banana em vez de maçã,
essas coisas. E então, sensibilizado, Rodrigo recomeça a chorar, e eu sorrio, sorrio porque as crianças são tão doces, porque elas crescerão e não há nada que se
possa fazer a respeito, nada, a não ser torcer para que cresçam. De qualquer modo, a tarde no parque acabou e voltamos da praça de mãos dadas, sem o dente perdido,
muito solenes. E em casa meu filho conta ao pai sobre o incidente de há pouco, mostrando a gengiva levemente inchada e o buraco que o dente sumido deixou por ali.
A tardinha de inverno já começa a esmaecer, o frio aumenta, eu esfrego as mãos uma na outra. Paulo segue com o menino para a sala, prometendo-lhe um hambúrguer,
se ele puder mordê-lo. Vão ao restaurante preferido de Rodrigo e deixo que esse companheirismo masculino se instale. Eu me afasto discretamente e nessa noite ficarei
um par de horas sozinha em casa, na casa onde, anos depois, Lucas irá viver comigo; eu fico sozinha em casa exatamente como ficaria mais tarde, aqui nesta outra
casa, branca, perto do mar. *** (Leon viu tudo isso. Como num jogo de espelhos, posso ver que ele me vê.) *** Lá fora, a noite chega. Uma noite escura, sem lua.
O breu desce sobre o jardim, coalhado pelo cri-cri dos grilos, e se espalha por todas as coisas, apagando a piscina e o contorno das cadeiras no gramado. Leon olha
pela janela, perdido em alguma memória. Ele tem uns olhos bonitos, serenos, e as primeiras marcas do tempo já se desenham nas suas têmporas, pequenos vincos que
nascem dos olhos e um levíssimo sopro de prata nos cabelos escuros. Ele não ligou as luzes externas. Laura deve ter saído com as crianças e a casa está quieta; ele
está de volta à sua poltrona, sob o facho amarelado da luz do abajur, e se entrega a esse momento de silêncio. Tem um livro sobre o colo, um livro grosso, não posso
ver o título. Abstraído pelos pensamentos, ele se esquece do livro e também da cena com Rodrigo, que não sabe como entrou na sua mente. Crê tê-la imaginado, a cena
toda, a praça com o seu colorido de sábado, as crianças correndo atrás do balão a gás e o menininho que caiu, choroso, com a mãe, a mulher alta, de cabelos castanhos
e curtos, eu. "Talvez eu devesse escrever uma história", é o que Leon pensa. São tantas histórias, ele vive entre livros e, às vezes, essa ideia o seduz. Ele já
esboçou dois ou três enredos, os arquivos estão lá no computador, alguma coisa, contudo, o segura. Ele desiste facilmente quando o primeiro silêncio se instala,
quando a palavra certa se nega a surgir. Tenho vontade de lhe dizer: "Escrever é um pouco como pescar, Leon." É preciso ficar à margem, quieto, a postos, e esperar.
É preciso preparar a isca e prendê-la no anzol, e sentar-se sob o sol por horas e horas e horas. Subitamente, o peixe da ideia fisga, fisga e puxa, e então temos
de fazer o nosso trabalho. Mas Leon está com preguiça, assim como a ideia vem, ela vai. Ele não tenta segurá-la, deixa que se afaste, fecha os olhos, recostando-se
no sofá; o silêncio da casa e o silêncio para além da casa, da rua parada e escura, penetram nele junto com o sono e ele dorme. Agora, aqui também já é noite, uma
noite tão escura quanto a de Leon. O vento sopra lá fora fazendo as copas das árvores sacudirem com violência e os troncos maleáveis dos pinheiros dançam ao relento.
Não gosto dessas noites tumultuosas, quando o vento assola furiosamente a península em busca do mar, do outro lado. De repente, uma coruja pia no jardim, posso ouvi-la
até mesmo através do agitado farfalhar das folhas. Não sei bem por que, mas essa coruja me acalma. *** 11. CREIO QUE PRECISO

Creio que preciso voltar a Lucas no hospital. Toda a sucessão de dias que vivi lá parece ressurgir sob uma densa camada de névoa que borra tudo, misturando em mim
as emoções, todos os medos. Era um hospital enorme e, na sua enormidade, os dramas se sucediam pelos corredores. Quando eu entrava ali, era como se deixasse a vida
real do lado de fora - era inconcebível que, para além daquelas paredes, pessoas rissem e andassem pelo parque na tarde de outono, que o café quente estivesse sendo
servido na cafeteria da esquina, com suas mesas na calçada sob os guarda-sóis amarelos. Mas vamos aos fatos, vamos a eles. Lucas foi operado no dia seguinte, bem
cedo. Foi uma cirurgia demorada e passei aquelas horas todas sentada no quarto, apática. Acho que Rodrigo esteve comigo por algum tempo, não muito, e depois eu devo
tê-lo despachado para o mundo lá fora. Foi um choque para ele também, pois o garoto gostava de Lucas e aquilo suscitava uma nova luz sobre a minha situação. Rodrigo
deve ter se preocupado comigo, porque prolongou a sua estada por mais uma semana, e me lembro de vê-lo entrando e saindo do quarto com pequenas porções de comida
que me trazia da cantina; por fim, foi preciso retornar à universidade e ele partiu. As horas da cirurgia se desenrolaram à minha frente como um branco e interminável
manto. Eu não tinha muito o que esperar. Doutor Gabor me explicara que o tumor tinha uma natureza infiltrativa, eles extirpariam o possível, a remoção completa seria
impossível. Meti na cabeça que Lucas morreria naquela mesa cirúrgica e esperei. Lucas aguentou bem a coisa toda. Rasparam uma parte da sua cabeça e quando pude vê-lo,
na UTI, enfaixado e adormecido, ele me pareceu tão abandonado que tive vontade de arrancar todos aqueles fios e sondas e abraçá-lo. Ele ficou dois dias desacordado;
quando voltou a si, não conseguia falar. Foi um longo calvário. O tumor comprimia o cérebro e ele tinha lapsos inesperados de audição e de fala; logo ficou claro
que o hospital seria o cenário dos próximos tempos e, de certa forma, me mudei para lá. Se vocês já passaram muito tempo em um hospital sabem do que estou falando.
A falta de intimidade, a perfeita inconstância de tudo, de enfermeiros, de silêncio, de paz. A precariedade da vida é uma verdade grande demais dentro de um hospital
para que possa ser ignorada, e passamos os dias contornando, tropeçando em tudo isso. É um tipo de massacre psicológico que me fazia ansiar por fugir com Lucas,
tirá-lo dali, como se o sol e as ruas agitadas, com seus transeuntes e prédios e morros, pudessem curá-lo, e não toda aquela procissão de solícitos médicos de branco,
o batalhão de enfermeiras anônimas, as bulas, os prontuários e as caixas de remédios sobre o criado-mudo de rodinhas metálicas. Ele tinha sido um homem bonito, o
Lucas. Mas a doença, em pouco tempo, apagara a sua beleza. Era como um quadro na chuva, a deformidade do rosto, o sorriso pendendo do lado direito. Ele se apagara
por dentro também. Não falava mais nas caixas nem nas listas de sobreviventes. Estava num estado de total desengano. Ficava olhando a rua pela janela durante horas,
sentado na cadeira cinzenta do hospital, com aquela roupa verde, e a vida lá fora chegava até ele como um prêmio para sempre perdido. Não estou aqui para ser benevolente
com meus próprios defeitos, então confesso que não fui de grande ajuda para meu pobre e querido Lucas. Eu também estava derrubada, mesmo que isso possa parecer de
um egoísmo atroz. A vida tinha me dado uma rasteira, uma tremenda rasteira, e eu estava lambendo pó. O que eu fazia? Ficava ali do lado dele, falando, falando, falava
sobre qualquer coisa. Fazia planos idiotas, planos sobre o futuro. Conhecer Bali, por exemplo, e passar duas semanas na praia tomando sol. Eu dizia essas tolices.
"Quando a gente sair daqui." Lucas me olhava um instante, depois virava o rosto para a janela outra vez. Sempre menti muito mal. Eu falava e falava, tinha muito
medo do silêncio, de dar tempo a Lucas de me fazer a pergunta, a apavorante pergunta que estava dentro dos seus olhos. Às vezes, exausta de tanto falar, eu descia
um pouco até o bar, tomava um café, saía e ficava andando pelas redondezas. Andava a esmo, olhando as pessoas. Uma criança na rua, de mãos dadas com a mãe, a senhora
no balcão da papelaria, arrancando o esmalte da unha, o menino na parada de ônibus, a florista ajeitando lisianthus no expositor. Eu olhava, olhava e olhava. Enchia
meus olhos daquilo, daquela vida simplória, desimportante a ponto de ser ignorada, vertida ao acaso. Ah, era uma bênção apenas arrumar um punhado de flores num pote
de plástico sem pressa, entrar no ônibus pensando num jantar de carne com batatas, era uma bênção viver desses gestos pequenos e irrelevantes; eu fora alçada a outro
patamar, o patamar das graves importâncias. Enquanto estava ali, andando pelas ruas do bairro, coisas assustadoras aconteciam dentro de Lucas, e cada minuto era
um minuto a menos. E agora chega disso por algum tempo, estou ficando sem ar. Levanto e abro as janelas, estou na minha casa branca e o sol se esparrama pelo chão
da sala como um tapete de luz. Estou aqui, embora ainda possa ver claramente o meu querido, o meu adorado Lucas lá na cama do hospital. Corro os olhos pela sala,
despistando o passado. Sobre o aparador há uma foto dos Berman e quero falar um pouco sobre eles, preciso do bálsamo de algum tempo com eles. Não tive muita sorte
nesta vida. Bem, você deve estar pensando: tive mais sorte do que Lucas... De qualquer modo, estou sozinha outra vez e creio que, depois de todos esses anos, agora
a coisa é irremediável. Tive um casamento e fiz um filho, um casamento de onze anos, no entanto, nunca fui plenamente feliz ao lado de Paulo. Havia sempre um buraco,
fundo e vazio, entre nós. E agora estou refazendo o passado dos Berman, e vocês devem achar que estou legando a eles um poder quase sobrenatural. Bem, é um direito
neste mundo livre. Estou na casa que pertenceu a eles e vejo - vejo de perto - e posso tirar as minhas conclusões. E sabem o que concluo? Concluo que a felicidade
dos Berman foi maior do que toda a tristeza, do que os desentendimentos, as brigas e a solidão. Estou esmiuçando a vida deles como uma formiga se esbaldando no açúcar,
mas o que sinto, acima de tudo, é que eles foram especiais. Eles tinham alguma coisa, aqueles dois, alguma coisa quando estavam juntos - uma liga, um brilho. Claro,
isso não foi suficiente - durante todos os altos e baixos desta vida egoísta - para mantê-los sempre unidos, felizes e íntegros. Acho que, em algum lugar, aquele
pequeno deus pagão, o nosso Pã barrigudo, ao cortar a ponta de um dos seus charutos cubanos, tramava um pouquinho contra os Berman. Ora, os Berman não passavam de
um joguinho, somos todos um joguinho dos deuses, e qual a graça de um jogo em que não há um pouco de fúria e de suor, de desentendimento e de sangue? Com os Berman
não foi diferente. Ah, só que eles fizeram as coisas muito bem quando estavam no auge. Eles tinham uma rara capacidade de entendimento mútuo, e eu já disse aqui
que Laura escreveu todas as suas histórias para Leon. Absolutamente todas. Até mesmo aquela primeira, quando ainda não o conhecia - sem que soubesse, Laura escrevera
cada linha e cada palavra para ele. Acho que ela deve ter entendido isso muito bem quando Leon apareceu na cidade, usando uma camisa verde, com aquele seu típico
sorriso no rosto e um buquezinho de orquídeas na mão - ela não era boba. Laura entendeu que a palavra que começava nela terminava em Leon Berman. Era uma espécie
de ciclo absolutamente natural, embora misterioso. Houve uma vez, eles já estavam na fase complicada da vida, afundando no terreno das incompreensões mútuas, dois
pobres coitados exaustos. Bem, houve uma vez em que ela tentou escrever um livro, um livro do começo ao fim sem que Leon lesse uma única palavra. Ela teve vontade,
em vários momentos, de mostrar o seu trabalho a Leon, porém refreou essa vontade - as crianças corriam na sala, ele estava ao telefone, aos gritos com alguém por
causa de um problema com um quadro na aduana, e eles tinham brigado feio na noite anterior. Nesse dia, Laura quase o chamou, quase pediu que lesse a história, era
uma história pequena, não mais do que oitenta páginas. Mas não o chamou. Mandou o livro assim mesmo para a editora e aquele foi um livro que não foi publicado. Ela
nunca se esqueceu desse episódio e talvez seja por isso que, durante o tempo, o longo tempo em que estiveram separados, não escreveu mais. Só que isso é assunto
para depois. Ouço um ruído na sala, um riso infantil que já posso reconhecer. É Max, o pequeno Maxie, aquele menino travesso. Ele está aprontando alguma coisa por
lá. "Pare já com isso, Max", escuto Laura recriminando-o com doçura. O menino sai correndo para o jardim e para a chuva. Laura tem de ir atrás dele outra vez. Sim,
eles voltaram. Os Berman. São cinco horas da tarde e chove um pouco lá fora. Fico contente que eles estejam aqui comigo, porque tenho que voltar para Lucas, tenho
que continuar a minha história, tenho mesmo. Depois que você dá o primeiro passo nesta estrada, não há como voltar atrás. *** E lá estou eu novamente... Lá estou
eu sentada em frente ao doutor Gabor, examinando as paredes branco-acinzentadas do seu pequeno consultório no hospital. Acho que nunca estive num consultório médico
de bom gosto, pelo amor de Deus. Talvez em um ou dois, mas a maioria deles parece ostentar o que os donos cansaram de exibir no lar, quadros de duvidosos vultos
femininos, esculturas do tipo que a gente ganha naquelas festas de final de ano da firma, caixas laqueadas que suas esposas devem ter descartado e que eles recolheram
por piedade ou mania. Afinal de contas, isso importa para quê? Para nada, absolutamente nada, parece me dizer o doutor Gabor com esse seu sorrisinho controlado,
esperando que eu finalmente foque os olhos nele. "Senhora Franco", ele diz, pacientemente. "Heloísa", respondo. Faz dois meses que convivemos quase diariamente,
e a minha vida, neste exato momento, está tão misturada à dele que não vejo sentido nessas etiquetas todas. Não sei o seu prenome e ele parece não querer que eu
saiba, porém, quanto a mim, se vai me dar a notícia triste que posso ver em seus olhos, prefiro que me chame pelo nome. "Heloísa", eu repito. "Pode me chamar assim,
doutor." E ele me chama. "Heloísa", diz a voz dele, a sua voz comedida, profissional e gentil. E é com essa voz que me informa que, apesar de terem removido sessenta
por cento do tumor de Lucas na cirurgia, surpreendentemente ele voltou a crescer com mais força. "As dores de cabeça vão aumentar, e as convulsões. A pressão intracraniana
está muito forte, Heloísa." Ele baixa os olhos, conferindo suas anotações ou fingindo fazê-lo. Não é fácil dar uma notícia dessas, eu imagino, nem mesmo com o passar
dos anos, com a prática. "Ele teve uma progressão muito rápida, infelizmente", diz o doutor Gabor. "Gostaria que você se preparasse." Eu aquiesço. Volto a procurar
as paredes, como se as minhas respostas estivessem escritas ali. Não há muito o que dizer. Lucas vem piorando. Às vezes ele fala a mesma frase várias vezes e então
me olha, subitamente, sem reconhecer o meu rosto. Noutras, passa horas deitado, parece dormir, mas eu sei, eu sinto que ele está muito longe, para além do sono,
como um desses aparelhos que a gente desliga quando não está usando. Ele liga e desliga agora e, lá em casa, no fundo do quintal com a grama por cortar, o seu pequeno
estúdio está quieto e empoeirado. Eu finalmente olho para o doutor e digo: "Estou me preparando, estou mesmo." Ele estica a mão sobre o tampo da mesa e, num gesto
rápido, toca a minha mão, um toque leve, gentil. "Eu me tranquilizo ao saber disso, Heloísa. Em algum tempo, talvez uma ou duas semanas, se as coisas continuarem
assim, vamos precisar sedá-lo, você entende?" "Sim, eu entendo." É isso que respondo, nessa manhã azul no princípio do inverno, e pela janela do consultório posso
ver que venta lá fora, pois as árvores do pequeno parque do hospital se agitam alegremente, como se acenassem para mim. Depois dessa conversa, as coisas todas se
misturaram na minha memória, dias e noites, semanas inteiras, como o conteúdo de uma grande gaveta cheia de pequenos objetos. Tenho que separar tudo, pegando as
recordações uma a uma, polindo-as, livrando-as do pó ao qual as releguei - pois, depois da morte de Lucas, três semanas após essa manhã no hospital, eu estava tão
acabada, tão violentamente exausta, que enfiei tudo no fundo mais fundo de mim e tratei de dar o fora da cidade do modo mais rápido possível. Comprei esta casa em
tempo recorde. Ligava dia e noite para o meu advogado, exortando-o a se apressar com os contratos, rever as cláusulas, cobrar o envio do dinheiro, e isso e mais
aquilo, e pus a minha própria casa para alugar apenas seis dias depois do sepultamento de Lucas. Eu queria dar o fora dali, queria mais do que tudo. Mas não posso
pular os fatos, ou melhor, não posso pular aquilo. Aconteceu, e não lhes digo que foi uma surpresa. Oh, não, foi apenas terrível, silenciosamente terrível. Pois
tudo aconteceu como o doutor Gabor previra, e Lucas foi mergulhando em grandes lapsos de ausência seguidos de crises convulsivas. As medicações aumentavam, enquanto
ele definhava. Os amigos iam e vinham - não, eu não me senti abandonada pelas pessoas, apenas não conseguia ser tocada por elas, deixava-me ser consolada e induzida
a pensar que tudo aquilo era, de certa forma, o melhor para Lucas, aquela derrocada violenta, aquele final abrupto. As pessoas diziam: "Ele não gostaria de estar
lúcido"; e eu concordava: "Ele não gostaria de estar lúcido, absolutamente." E diziam: "Pelo menos ele está medicado, não sente dor, não se preocupe"; e eu assentia.
E me incitavam a falar com ele por horas e horas, já que ele deveria nos ouvir, uma parte dele - a sua alma, era o que diziam - estava ali naquele quarto branco,
odioso e triste, e me ouvia, até mesmo consolava-me, e eu falava com Lucas horas e horas, falava com a sua alma. Essa fui eu naqueles dias, uma boneca, um títere,
uma idiota levada aos borbotões na correnteza daquela tragédia, subindo acima do nível da água turbulenta para respirar de quando em quando. Subitamente, tudo acabou.
Eu estava sentada na cadeira, perto da cama de Lucas, sozinha com ele no quarto. Alvorecia, porque despertei sobressaltada com a cantoria dos pardais do outro lado
da janela, no parque do hospital. Na verdade, eu sentia muito frio, pois dormira sentada naquela poltrona e as minhas costas doíam e o pescoço estalava. Levantei-me,
confusa, em busca da manta de lã que deveria estar no meu colo. Ela caíra no chão, embolada num canto perto da cama. E foi então, quando me abaixei para recolher
a manta, que percebi. Foi muito claro para mim, não sei se consigo explicar... O silêncio no quarto, uma qualidade rara de silêncio. Pelo vão das cortinas na janela
entravam os primeiros fachos de luz da manhã, uma luz pálida e cinzenta, invernal, indicando que fazia frio lá fora. Ergui o rosto devagar, acompanhando o caminho
da luz, e assim foi que o vi. Lucas em seu leito, a cabeça caída de lado sobre o travesseiro, não respirava mais. Era a ausência da sua respiração que eu sentira,
aquele ruído rítmico e agônico que vinha marcando a cadência dos dias naquele quarto. Voltei a sentar-me na cadeira. Acho que não pensei em nada, em absolutamente
nada. Um vazio branco desceu sobre mim, abafando tudo ao meu redor, e lembro que os pássaros pararam subitamente de cantar, ou eu suprimi o canto deles dos meus
ouvidos, quando me dei conta de que Lucas tinha morrido. Ele morrera enquanto eu dormia, enquanto eu sonhava, enquanto a minha nuca latejava na cadeira meio desconjuntada,
que eu preferira à cama estreita que ficava do outro lado da peça. Eu me sentara ao lado dele, o mais perto possível, podia esticar o braço e tocar-lhe a fronte
a qualquer momento da madrugada, mas ele morrera sem que eu soubesse, sem que eu notasse. Bem, a vida talvez seja apenas isso, um coração bombeando o sangue e nada
mais, esse maravilhoso sistema funcional que é o corpo humano, isso e nada mais, e nós viemos inventando coisas pelos últimos três ou quatro mil anos, significados
e continuações, poderes incorpóreos e eternidades de mil modos, brincando com o nada assim como os deuses brincam conosco. E ali estava o fato incontornável da morte
de Lucas. Logo depois disso, chegou uma enfermeira com as primeiras medições do dia e ela tomou as rédeas da situação, de modo que tudo correu conforme os trâmites,
os incontáveis trâmites, enquanto eu ficava na cadeira, ficava ali coberta pela manta que recolhera do chão, e recebia um comprimido calmante, embora estivesse calma
até demais. E acho que permaneci calma em todo aquele longo dia de papéis e telefonemas e condolências. Na manhã seguinte, no cemitério, com Rodrigo ao meu lado,
eu ainda estava perfeitamente calma ao colocar a minha pedra sobre o túmulo de Lucas. *** 12.

E Agora Posso...

E AGORA POSSO... voltar aos Berman. Ora, por favor, não me julguem insensível. Não foi fácil para mim escrever estas últimas páginas. Tenho sobre a minha mesa uma
fotografia de Lucas numa viagem a Buenos Aires. Ele está encostado na amurada sobre o rio da Prata, em Puerto Madero, e sorri para a câmera. Isso foi um ano antes
da sua morte, ele não tinha nenhum sintoma ainda. Os seus olhos estão luminosos, festivos, e ele parece feliz. Acho que um pouco dessa luz também provém de duas
ou três taças de vinho, porém ele parece estar rindo de tudo isso. Rindo de mim escrevendo esta história e sofrendo outra vez. Bem, esta é mesmo uma história triste.
Eu decidi contá-la e a contei. Fiz isso como pude e não foi fácil, já disse. Creio que Lucas foi a grande curva do meu caminho, a última curva sobre o mar. Quanto
aos Berman, eles tiveram os seus maus momentos, tiveram mesmo, mas acredito que deram uma boa enganada na vida. Eles se afastaram quando a hora disso chegou; depois,
quando a vida não estava olhando, lá estavam aqueles dois grudadinhos outra vez. Ah, o quanto o nosso amigo gorducho de costeletas e barba, aquele Pã comilão, deve
ter se divertido com as artimanhas dos Berman. Eram uma duplinha teimosa aqueles dois. Foi um tour de force, até mesmo para o velho Pã. *** O que posso contar sobre
eles? O tempo foi passando, evidentemente. Eles tiveram o pequeno Maxie, que nasceu forte e temperamental, um menino e tanto. Era bem diferente do irmão, Daniel,
isso ficou claro desde o início. Não creio que devessem ser iguais, isso seria monótono. Laura e Leon criaram aqueles dois garotos, criaram-nos com todo o amor possível
e abriram mão de muita coisa para isso. Pois só quem tem filhos sabe o quanto eles minam a vida de um casal (e, no entanto, são também o seu tesouro). Os Berman
se esforçaram por aqueles dois... Verões na casa à beira da península se sucederam e aqui, exatamente aqui, parecia ser possível toda a alegria - depois de meses
de razoável tédio, aqui eles eram felizes. Aqui, Laura conseguia luzir o seu melhor para Leon, porque os casamentos, todos eles, vão desmoronando aos poucos quando
as fraquezas de um e de outro começam a vir à tona. E o tempo, meus caros, o tempo é totalmente erosivo. Não há o que ele não exponha; o tempo cava e cava com suas
unhas afiadas, lustra e faz brotar as fraquezas todas, uma a uma. Bem, essas coisas aconteceram com os Berman na época em que os meninos cresciam. Daniel perdia
os primeiros dentes e Leon suspirava pelos cantos, querendo ir embora de Ashburnham; ele estava de saco bem cheio, ele queria novos ares, e esse desejo nascia e
fenecia nele como uma espécie de flor. E enquanto Max aprendia as primeiras palavras e virava um menininho tão lindo como um camafeu, bem, Laura queria mais do que
nunca fugir para cá. Viver aqui, longe dos perigos que ela podia prever pelas esquinas na cidade deles, viver no meio das árvores, uma vida simples, quieta, caseira,
entre livros e passeios à beira-mar. Eles se amavam, os Berman, se amavam mesmo. Sei que Leon amava Laura. Quanto a ela, os seus livros não me deixariam mentir.
Quando os leio, posso ouvir a voz de Leon sussurrando cada história na coxia; sim, ela ainda escrevia apenas para ele. E, tratando-se de Laura, aquela bela criatura
frágil e sonhadora, escrever era o máximo do amor. *** Se fecho os olhos, posso vê-los num dos seus bons momentos, e isso me acalma. Eles estão sentados no jardim,
ao abrigo das árvores, muito perto um do outro. Os meninos andam lá para dentro, entretidos com algum filme na televisão. Juntos, eles leem um livro de poemas. Sophia
de Mello Breyner, a autora portuguesa. Laura e Leon voltaram recentemente de uma pequena viagem à Europa. É verão de novo, o céu muito azul promete uma manhã calorosa,
mas um vento frio vem do mar, um vento característico dessa região, quase gelado, que empresta à manhã um clima outonal, apesar de estarmos no mês de janeiro e as
roseiras e os jasmineiros estarem em flor. Laura até mesmo usa um agasalho. Ela se apoia no marido, carinhosamente, os antebraços se tocando e os rostos tão juntos
que os cabelos dela às vezes descem sobre os olhos de Leon. Ambos leem o mesmo poema, como quem caminha por um parque, compartilhando a página. Sombra e ar passam
por eles, ali sentados no jardim silencioso, e se isso não é amor, se isso não é amor, meus amigos, eu não sei mais o que poderia ser. Eles se olham nos olhos por
um momento e sorriem. "Lindo", diz Leon. "Lindo poema." E Laura se abraça a ele, beijando a sua têmpora como ela gosta de fazer. Ergue os olhos para o céu. No azul
límpido da manhã, uma nuvem avança soprada pelo vento como um estranho animal se desfazendo numa corrida alada. A nuvem deixa fiapos de brancura que se desmancham
no azul. Os pássaros gritam em suave algazarra nos galhos mais altos dos pinheiros e o mar, lá na praia deserta (o frio assustou os banhistas), o mar dança a sua
dança na maré que sobe lentamente pela grande faixa de areia branca. *** 13.
E Assim Como O Amor

E ASSIM COMO O AMOR nasceu e vingou, chegou um tempo em que as coisas ficaram difíceis - para quem olhasse de fora, se a pessoa não tivesse uma boa dose de percepção,
o amor parecia ter ido embora. No entanto, meus caros, o amor ainda estava lá, escondido. Pulsando discretamente - apenas uns poucos podiam senti-lo. Porque não
importa aonde eu chegue - eu vi coisas, eu estive com os Berman, todavia também inventei um pouquinho aqui, outro pouquinho ali, fantasiei isso e aquilo, preenchendo
com a minha imaginação os fatos cuja inteireza me escapavam... Bem, não importa aonde eu chegue, preciso dizer-lhes que acredito que eles sempre se amaram. O amor
tem muitas qualidades, muitos disfarces, o amor é engenhoso e ladino, bem sei. Aqueles dois se amaram até quando achavam não estarem se amando, e talvez isso tenha
sido mesmo o fator dificultoso da coisa. Não esperem nenhuma tragédia, não me olhem com esses olhinhos ávidos. Se alguém queria sangue escorrendo, tapas e gritos
e vasos quebrados, pode abandonar a leitura agora. Oh, não, eu já contei a grande tragédia da coisa, e ela terminou com a pedra sobre o túmulo de Lucas. De agora
em diante, é simplesmente a vida. Por anos e anos, os Berman riram, brigaram, tomaram vinho ao jantar, bellinis no verão, fizeram longas caminhadas na praia, declararam
o imposto de renda, coletaram sangue uma vez ao ano, escolheram juntos os presentes de Natal, sofreram enxaquecas, cólicas e dores de dente, compraram bicicletas
para os filhos, viajaram pela Europa, tiveram um cachorro e depois um gato, fizeram sexo na sala e no chão frio da cozinha, depois só no quarto, quando os garotos
estavam dormindo, por fim quase não fizeram mais. Ela esqueceu a textura da língua dele, ele esqueceu o gosto que ela possuía quando se abria para a sua boca, e
um dia se olharam e alguma coisa - uma coisa sutil, orgânica e vital não estava mais lá. (Parecia que ele, o amor, tinha partido. Mas eu já falei sobre isso, sobre
o poder de camuflagem do amor.) Laura e Leon ficaram um pouco atônitos, olhando ao redor no belo cenário das suas vidas, e ambos sentiram-se incrivelmente confusos.
Eu não vi isso acontecer, não foi aqui, nesta casa. Como já disse, este lugar tinha um poder absoluto sobre aqueles dois, uma capacidade regenerativa. Talvez por
isso os Berman teimem em voltar para cá mesmo depois de tanto tempo. Como eu não vi, estou apenas supondo coisas... Isso também não está nos livros, não peçam a
Laura esse tipo de detalhe vergonhoso, ela não tinha o hábito de misturar a sua vida assim, de forma óbvia, com o material ficcional. Não, não mesmo. Agora, meus
caros, nós vamos somente no rumo das minhas suposições, pois eu, ao contrário de Laura, não sou romancista e não tenho esses pudores. Eu vim até aqui e vou seguir
em frente mais uma vez. *** Bem, isso levou alguns anos. A coisa toda entre os Berman, devo dizer. A coisa que os levou à separação. Acho que foi Leon quem primeiro
notou... Ele era um homem do tipo calado, discreto com os assuntos pessoais, mas ele observava e media e pesava os fatos, e anotava os pensamentos em cadernetas
pautadas que depois trancafiava numa gaveta. Não que aquilo - a Coisa - fosse um fato. Era mais uma sensação, uma sensação nunca nominada, nem nunca vista, que foi
crescendo entre eles, invisível e incômoda. Era como se houvesse uma terceira presença entre ambos na cama, dormindo entre eles, apartando-os. Às vezes, a Coisa
vinha nas horas mais inesperadas, quando Leon estava apenas procurando a gravata certa, ou folheando um livro antigo de Byron, do qual gostava muito, ou preenchendo
algum papel da galeria, um formulário de compra e venda, ou caminhando com Laura pela rua num sábado à tarde. Era uma espécie de latência surda, incômoda. Leon tentava
contornar a Coisa e seguir o seu dia. Aquele sopro no seu pescoço, aquele desgosto súbito. Ele balançava o rosto, espantando a Coisa e, no começo, realmente funcionava.
Era como esmagar um inseto chato. Algum tempo depois, porém, a sensação voltou mais forte, mais aguda, já imiscuída em seus pensamentos e ganhando sentido, ganhando
palavras que a definissem. Então ele lutou bravamente com aquilo, empurrando os pensamentos para longe, recobrindo-os de pensamentos melhores, e assim Leon foi avançando
corajosamente pelos dias. Alguma estrutura fundamental dentro dele, no entanto, já estava minada, como as vigas internas de uma casa quando são atacadas pelos cupins.
É um trabalho invisível e laborioso, e quando o estrago aparece, em geral é tarde demais. Laura vez ou outra sentia aquilo também, aquele desassossego. Era como
um filtro descolorindo a sua vida, uma névoa que baixasse sobre tudo de repente. Quando isso acontecia, quando era fulminada pelo desassossego, procurava Leon com
seus grandes olhos escuros, procurava-o cheia de medo e algumas vezes ela se acalmava, outras, não. Foi Leon quem esperou que Laura falasse. Ele não tinha a ficção
na qual refugiar-se. Além disso, podia reconhecer na esposa seus próprios conflitos interiores. "Hoje ela falará", ele pensava; e o dia passava sem que tocassem
no assunto. Viviam como numa corrida de saltos e chegou uma hora em que ambos estavam exaustos. Não sei se Daniel e Max notavam alguma coisa, mas as crianças são
muito mais sutis do que os adultos, por isso acho que todos os Berman viviam a sua corrida de obstáculos naquele tempo, oh, pobres coitados. Era uma farsa carinhosa
a dos Berman porque - repito - o amor estava lá. Doente, alquebrado, mas vivo, muito vivo. Eles trataram de aferrar-se às obviedades por um bom tempo, pois as miudezas
da vida - as provas de Daniel, ou a viagem escolar de Max, ou a reforma da sala de estar - eram um terreno bem mais seguro de andar. Por um longo tempo, Laura e
Leon pararam de passear pelas ruas ao entardecer, como faziam antigamente, com medo das conversas que porventura surgissem. Não liam mais poemas juntos, nem intercambiavam
romances, já que os romances nunca são muito confiáveis quando a gente quer esconder de alguém pensamentos e afinidades. Eles vinham se afastando, discreta e doloridamente.
Um dia, apesar de todos os cuidados, a história inteira se concretizou para ambos. Foi como uma epifania. Leon estava lendo um autor do qual Laura nunca ouvira falar
e ele já estava terminando o livro, um extenso romance de mais de quinhentas páginas. Laura pegou o livro sobre o sofá da sala, o livro deixado ali na noite anterior,
e então entendeu. O marido não lhe dissera uma palavra sobre o livro e, pior, ela não se lembrava de tê-lo visto lendo aquele livro. Só que ele o lera, noite após
noite, em algum dos recantos da casa. Laura sentou-se no sofá, no mesmo lugar onde Leon se sentara ainda na noite anterior, e começou a chorar. Leon viu Laura chorando
e esperou o final do dia para fazer alguma coisa. Acho que foi naquela noite que os Berman conversaram pela primeira vez. Não foi uma conversa fácil. Eles estavam
distantes. Aquilo era triste demais. Não tenho nenhum registro desse diálogo, portanto vocês terão simplesmente de acreditar em mim. Ora, aceito algum descrédito
por parte de vocês, aceito mesmo. Sei que posso estar pedindo muito ao querer que acreditem nas aparições dos Berman e, mais ainda, que confiem nas minhas conjecturas.
De fato, meu único contato efetivo com os Berman como casal foi durante a compra desta casa, e até mesmo isso aconteceu por intermédio de um preposto. No entanto,
estou absolutamente certa de que sigo pelo caminho correto e, se vocês me permitem, voltarei à minha história. Sei que, em algum lugar, em uma das muitas cadernetas
que Laura colecionava e que levou consigo para a casa na serra depois que eles se separaram, sei que ela escreveu algo a respeito. Dois ou três parágrafos de pensamentos
em meio a anotações esparsas sobre personagens para um novo romance. Como sei isso? Entrei no quarto há alguns dias e lá estava Laura folheando o seu caderno de
anotações, uma caderneta azulada, com um elástico, daquela marca que Hemingway consagrou e na qual escreveu a maioria das suas notas pessoais, e que ela usava sempre
como uma espécie de amuleto. Havia uma caixa de papelão a seus pés e eu compreendi que ela estava arrumando as suas coisas antes de colocar a casa à venda. Aqueles
olhos pisados eram por isso, aquele rosto abatido de quem parecia convalescer de uma enfermidade. Bem, meus caros, vou lhes dizer o que fiz. Eu me aproximei devagar,
me aproximei de Laura tão suavemente que, por um segundo, fui uma sombra, uma entre as tantas sombras que vagam por aí, extraviadas do tempo. E me coloquei sobre
o seu ombro e li... Sim, eu li o que ela lia, e a coisa era assim, exatamente assim: "Não havia ninguém em quem botar a culpa, e culpa é uma palavra obtusa. Acho
que nenhum de nós dois tinha culpa e assim ficamos na sala silenciosa, enquanto os carros passavam lá embaixo a intervalos regulares e, pelo ruído das rodas no asfalto,
eu soube que estava chovendo. Um carro freou com violência e encolhi o corpo, esperando o choque, porém não houve nada, só o silêncio, tão definitivo como a nossa
tristeza." Laura virou a página. Havia mais alguma coisa escrita e ela leu. "Ninguém traiu ninguém - se algum dia houve uma terceira pessoa, ela não era o motivo
da nossa conversa, estávamos ali por causa do que tínhamos e do que não tínhamos mais para dar. Uma parte de mim se orgulhava da nossa coragem, a outra sentia uma
tremenda vergonha. Desistir é como parar um livro pelo meio." Ela fechou de modo abrupto a caderneta e a jogou para a caixa, como se tivesse certo asco daquilo,
das coisas que estavam escritas ali. Então, muito dignamente, chorou, sentada na cama, os cabelos loiros desfeitos, as mãos caídas ao largo do corpo, como uma criança
com medo. Eu quis tocá-la, porém não podia, não era parte do trato, um gesto equivocado poderia desfazer o frágil e misterioso vínculo que nos unia. Por isso saí
na ponta dos pés, mais silenciosamente ainda do que havia entrado no quarto, deixando Laura sozinha com a sua dor. *** 14. O Que sei O QUE SEI é que...

O que sei É QUE, seis meses após aquela noite de chuva, quando ambos finalmente conversaram na sala da casa depois que os dois garotos foram dormir, Leon tomou providências
e se mudou para passar um tempo sabático na Europa. Fiz as contas e o ano era 1986. Alguns meses depois, Laura colocou o apartamento de Ashburnham para alugar e
foi morar com Max e Daniel numa outra cidade não muito distante dali, no alto da serra, numa casa em meio a uns jardins de lavanda e de hortênsias, uma casa de vidro
que ela alugou e, depois, quando vendeu esta propriedade para mim, anos mais tarde, acabou comprando definitivamente. Foi um tempo muito difícil para Laura. Quase
posso ouvir o ruído dos seus soluços. Ela era, no fundo, bastante frágil. Laura reconstruiu a vida como podia, muito atenta ao lado prático de tudo, e colocou a
existência rotineira dos meninos em perfeita ordem. A viagem do pai foi explicada como um período de trabalho e, apesar da saudade, Daniel e Max seguiram sem maiores
arranhões. Um dos irmãos de Laura morava na cidade e os meninos passavam os dias na casa cheia de primos. Isso os ocupou bastante bem, mas Laura ficava às vezes
por tardes inteiras sentada na mesa de trabalho, tentando em vão arrancar alguma ideia da cabeça. Sem Leon ao seu lado, ela não conseguia escrever. Ela tentava,
tentava com furioso afinco, porém as palavras pareciam querer fugir-lhe todo o tempo; ela arranjava e rearranjava as palavras no papel e o resultado sempre a punha
em terrível angústia. Eventualmente, quando os meninos voltavam da casa do tio, encontravam a mãe com os olhos vermelhos e pisados, atirada no sofá com um cálice
de vinho tinto. Eles a enchiam de carinho e ela passava algumas horas tranquilizada. No dia seguinte, contudo, o ritual se repetia - Laura ia com mais faina ainda
ao trabalho, mas deixava a sua mesa com um desespero sempre crescente. Foi o irmão de Laura, vamos chamá-lo de Ricardo, que finalmente a persuadiu a procurar um
psiquiatra, o que a ajudou, ainda que pouco. Restava a tristeza de não conseguir escrever, e aquilo era duro para ela. As histórias sempre a cortejaram, vozes e
enredos e personagens pairando, infiltrando-se nos seus pensamentos, nos sonhos. Agora, aquele vazio era atordoante. Quando Leon ligava, Laura nunca comentava com
ele a sua recente incapacidade criativa. Os meninos foram duas ou três vezes à Europa com o pai e a vida seguiu o novo ritmo, só que Laura - posso lhes assegurar
- deixou de ser feliz. A crise emocional havia corroído os pilares da sua ficção (isso e a ausência de Leon); depois de um tempo tentando, Laura Berman simplesmente
desistiu de escrever. Ora, não deve ter sido fácil. Escrever era uma maneira que Laura tinha de compreender o mundo, de melhorá-lo, de superá-lo nas suas asperezas
e violências e decepções. Ela entrou num período de intenso recolhimento e passava os dias lendo e caminhando pela mata nos arredores da casa. A sua única vida social
consistia em encontros familiares, reuniões e eventos escolares dos filhos. Quando comprei a casa, cerca de nove anos após a separação dos Berman, achei que teria
a oportunidade de rever Laura, só que ela nunca apareceu no escritório do encarregado da venda. Houve algum comentário do advogado, dando a entender que a senhora
Berman (sim, ela continuava a usar o sobrenome do marido) estava morando longe e tinha enfrentado algum tipo de doença leve nos últimos anos. Naquele tempo, eu também
estava me recuperando, ou tentando me recuperar, da morte de Lucas, de modo que, depois de uma pequena decepção inicial, desisti tranquilamente de encontrar aquela
antiga escritora das minhas primevas relações de trabalho e segui em frente no rumo dos meus planos de futuro. Quanto a Leon, meu querido Leon, não sei o quanto
ele realmente soube das dificuldades emocionais de Laura, nem o quanto pôde ajudá-la. Acho que ele usou a distância como uma bengala, apoiando-se nela para prosseguir.
Ele mesmo não deveria estar na sua melhor forma, entretanto, era uma criatura mais forte, mais talhada para os sacolejos da vida, e foi adiante com mais sucesso
que a ex-mulher. Creio que, segundo levantei nas minhas pesquisas, após um período de três anos de estudos em Roma, Leon radicou-se em Lisboa, alugando por um preço
módico um pequeno e simpático apartamento no Bairro Alto, onde, alguns anos depois, recebeu o filho mais velho, Daniel. Pois o sereno e gentil Daniel, ao terminar
o colégio, atravessou o Atlântico e foi viver com o pai. *** 15. E AGORA, AGORA AQUILO QUE...

E Agora, agora aquilo que quase ninguém imagina. O que quase ninguém sabe, o que aconteceu longe dos olhos alheios, quando Laura Berman já tinha caído no limbo
literário. Deem alguns anos para a coisa toda, por favor. Anos incolores e sem muitas novidades, nos quais os meses correram soltos, cicatrizando feridas, desbotando
algumas angústias. O tempo que eu gasto em meia dúzia de frases realmente demorou a passar para os Berman. E o que foi mesmo que aconteceu mais tarde, depois de
Laura cair em grave crise emocional e finalmente recuperar-se, voltando a ser quase a mesma mulher dos velhos tempos? O que vou narrar agora guarda certa concomitância
com a minha mudança para o Uruguai... O que aconteceu cerca de meio ano depois de a casa ser vendida para mim - a casa que ficara alguns anos cerrada, posto que
Laura perdera a coragem de encarar o seu passado e se recusava a passar os verões aqui? O que aconteceu depois de Leon partir e viver a sua vida na Europa, livre
e solto por lá como um passarinho? Depois de furiosos temporais e ventos loucos, de anos de navegação tranquila e de noites insones de fúria e turbulência, depois
das palavras ditas e esquecidas, depois de anos de uma vida em comum, depois do desfecho dessa vida e do começo de outra - duas vidas separadas, unidas por aqueles
dois belos meninos, Daniel e Max, já crescidos -, os Berman se reencontraram. Após um longo período de sofrimento mútuo, com algumas alegrias aqui e acolá, finalmente
chegou um momento em que o degelo aconteceu e toda aquela coisa que eles tinham experimentado juntos, toda aquela felicidade, voltou a pulsar como um morto que ressuscita
surpreendentemente. Se vocês quiserem, chamem de milagre - eu gosto dessa palavra. Não sou católica, não sou mesmo. Eu acho que o amor, um certo tipo de amor de
boa cepa, pode até cair em latência, mas não morre tão facilmente. O reencontro dos Berman não foi uma coisa casual, um encontrão num corredor lotado de um shopping
center na época do Natal ou na festa de aniversário de um amigo em comum. Oh, não, nada disso. Foi um reencontro definitivo, planejado e, ao mesmo tempo, inconsciente,
ansiado durante anos de pensativa espera, de calculada, ponderada solidão. Eles tiveram as suas aventuras, tanto um quanto outro, porém nunca ninguém chegou a roçar
a fímbria da emoção que ambos tinham dividido, e eles foram conscientes disso durante todos os doloridos anos de separação. Tanto Leon como Laura, depois de uma
existência tão simbiótica, saíram do casamento sem saber muito bem quais eram as suas personas - foi um período de decantação, de depuração e de profunda análise
do passado. Eu não li isso em lugar nenhum, não li mesmo, nem sobre o ombro de Laura, eu lhes juro. Mas sei que, por esse tempo, a aventura de procurar a si própria
arrancou Laura Berman da literatura; como eu disse há pouco, as palavras simplesmente se calaram para ela. Pobre Laura, foi muito duro. Todas aquelas horas em frente
ao computador, na casa nova. Ela partiu de Asburnham porque necessitava de distância, uma serena distância do passado. Na casa nova, com as suas grandes janelas
de vidro dando para o verde, Laura Berman esteve à espreita das histórias por muito tempo; ao contrário da época em que escrever lhe era quase tão fácil como respirar,
Laura estava vazia. Na solidão da sua meia-idade, agora que os meninos tinham crescido e o tempo multiplicava-se à sua frente, agora que a ficção lhe parecia a única
âncora possível, as palavras fugiam todas. Laura ficou sozinha com o seu silêncio durante anos a fio. Foi encurralada nesse silêncio que reescreveu a sua história,
que se reencontrou. Como um arqueólogo, ela voltou às ruínas da sua vida em busca de pistas, de vestígios. Ela escalou muralhas e desceu no fundo negro de cada fosso,
caminhando pelas antigas ruas da juventude atrás das próprias pegadas, refazendo os anos um por um. Tinha perdido duas coisas importantes: Leon e a palavra, e era
atrás de entender isso que Laura Berman cruzara a cidadela do seu passado, percorrera-a minuciosamente durante uma longa e solitária jornada. Creio que, ao chegar
ao final, sentindo-se liberta de anos e anos de passado, encontrou outra vez a sua verve. Um belo dia, numa tarde de verão, com o azul cintilando lá fora, sentou-se
à mesa e sentiu que as palavras voltavam. Ela arriscou pequenas histórias, mas nunca mais quis publicá-las, nunca mais. Aquilo tinha se acabado para Laura. Escrevia
e guardava, escrevia e guardava, e quando uns poucos pedidos de editores lhe chegavam ela respondia que tinha parado de publicar. Foi no silêncio desse tempo branco
que Leon voltou para Laura. Não voltou realmente - eles ficaram quase cinco anos sem sequer se encontrar, falando-se apenas por telefone e depois por e-mail e restringindo
os assuntos à vida prática e emocional dos dois filhos. Acho que nunca foi fácil para nenhum deles a separação. Acho mesmo, mas eles se jogaram para ela com a mesma
imprudência de um barco à deriva que se atira sobre um rochedo - se tivessem esperado um pouco, fincado firme o pé na terra durante o temporal da desilusão, não
teriam permanecido juntos? Realmente, não posso garantir. Gostaria de inventar outro passado para eles no que concerne aos anos de separação, só que não posso fazer
isso. Seria jogo sujo da minha parte, e Laura ficaria furiosa comigo por tentar poupá-la dos seus necessários percalços. Leon começou a voltar para Laura aos poucos.
Primeiro, nos sonhos. Leon vinha todas as noites, às vezes jovem, às vezes mais velho, como nos últimos tempos, mais magro e já com as cãs nas têmporas e os pequenos
vincos ao redor dos olhos amorosos. Essas visitas, no começo, assustaram Laura - ela conhecia os sintomas discretos da saudade. Depois, muito suavemente, como o
frio aumenta e o outono se transforma em inverno, a saudade cristalizou-se e Laura Berman passou a sentir falta física de Leon. Ela caminhava pela trilha na montanha
como fazia todos os dias e, numa curva, ao ver o vale lá embaixo, falava com Leon como se ele estivesse ali ao seu lado, falava docemente com ele, como fizera nos
anos de casamento. Sentia vergonha desses arroubos, mas eram atitudes inconscientes - sem que se desse conta, os velhos apelidos carinhosos, essas tolices íntimas
que fazem parte da vida de qualquer casal, saltavam da sua boca, deixando-a parada ali, sob o sol, com um ar meio desconsolado, perdida num tempo sem nome. As noites
também trouxeram surpresas... Numa ou noutra madrugada, ao virar-se na cama, Laura esticava o braço em busca de Leon. Ao tocar na metade vazia do colchão, abria
os olhos de repente, arrancada do sono pelo susto daquele gesto, daquele vazio, e ficava bastante tempo acordada no escuro, incrédula. O que estava acontecendo realmente?
Laura Berman percebeu que, depois de anos de laboriosa solidão, depois de remover, um a um, os escombros do casamento fracassado, e toda a poeira, toda a caliça,
toda a sujeira do tempo, da rotina, das brigas tolas, das traições sabidas e desconhecidas, grandes ou pequenas; depois dessa furiosa limpeza de tudo aquilo que
obstruía o mais profundo de si mesma, como um escavador numa mina desabada, o que Laura encontrou foi Leon. Lá, no fundo de tudo, estava o seu amor por Leon, ainda
puro e intocado pelos anos e pelas tristezas, cintilando, palpitando como ouro em meio à rocha. Eles eram complementares e, embora o tempo e o cotidiano tivessem
desgastado o encaixe perfeito dos primeiros anos, ainda havia aquela atração magnética, aquela identidade incorpórea e vital. Ora, meus caros, foi uma revelação
difícil, mas libertadora. Laura descobriu que andara em círculos concêntricos durante todos aqueles anos, naquela bela casa de vidro no alto da montanha cujo cume
quase tocava o céu - ela andara em círculos até voltar ao começo de tudo. Então, Laura esperou. *** E o que vocês acham que aconteceu com Leon? Ele também viveu
o seu processo lá na Europa. Leon viveu a sua descida até o fundo da coisa. Esteve por três anos em Roma, onde organizava exposições para a embaixada brasileira
e fazia cursos no tempo livre, depois deve ter sentido falta dos ventos atlânticos - sempre que ventava por aqui, nesta casa à beira da península, Leon ia para a
praia, beber do vento, como ele dizia - e tomou o rumo de Portugal, radicando-se finalmente em Lisboa. A pequena galeria em Ashburnham fora vendida um ano após o
divórcio com Laura e Leon prometeu-se um período de estudos que acabou não acontecendo devido ao trabalho em Roma. Mas, em Lisboa, começou a estudar dramaturgia,
preparando-se para escrever uma peça que nunca chegou a finalizar - Leon era mesmo um homem sem sistemática, um pouco desorganizado demais com o seu tempo. Ele precisava
de prazos. No lugar da peça de teatro, meio por acaso, passou a escrever textos sobre arte que acabaram publicados em conceituadas revistas do meio, e logo estava
organizando pequenas exposições em Lisboa e no Porto. Nas horas ociosas, continuava a ler romances e a trilhar longas caminhadas por Lisboa. Leon não pensava tanto
em Laura, ou melhor, não pensava tão cerebralmente nela - pensar em Laura não era um processo em andamento, um projeto de revisão do passado, mas Laura surgia das
brumas do ontem nos momentos mais inesperados e nunca desapareceu completamente do espírito de Leon. Durante o tempo em que ficaram separados, Leon Berman teve a
sua dose de casos amorosos, a maioria deles irrelevantes e irresponsavelmente divertidos. Uma berlinense atriz de circo, uma holandesa escrevendo uma dissertação
de mestrado sobre os judeus de Amsterdã, uma andaluza que trabalhava numa livraria do Chiado e, por fim, Julia - com quem andou durante quatro meses, numa crescente
decepção que, de certa forma, apagou as últimas dúvidas que tivera na época da concepção inesperada de Max. Na verdade, Leon sentia-se tão solitário quanto antes
daquela tarde epifânica com o livro de Laura, vinte anos atrás. Mas ele era um homem quieto - ele era um homem - e parecia-lhe natural que as coisas estivessem acontecendo
daquele jeito. "A solidão era uma boa forma de vida", Leon Berman se repetia enquanto caminhava à beira do Tejo, encolhido no casaco de astracã. Quase cinco anos
passaram assim. Até que um dia, numa tarde de outono em Lisboa, Leon tirou velhas caixas de um armário do quarto em busca de um documento que não conseguia encontrar.
Foi desse modo que, no meio da confusão do pequeno escritório, ele se viu frente a frente com as fotografias da viagem à Europa com Laura, a primeira de todas as
viagens com ela, na Côte d'Azur. Alguma coisa o enterneceu, um olhar, um sorriso - vejam bem, foi um sorriso seu, não de Laura. Então Leon entendeu, como num susto,
que tinha deixado para trás uma coisa importante, importante demais. Olhou ao redor e viu o pequeno apartamento com o piso de lambris onde o sofá de couro negro,
ancorado no meio da sala, aparecia pelo vão da porta; viu as janelas altas por onde a luz amarelada da tarde entrava e descia sobre ele, salientando o pó sobre a
mesa - e tudo isso lhe pareceu alheio, uma espécie de engodo, como se estivesse se enganando há tempo suficiente para transformar uma farsa muito malfeita em realidade
incontestável. Afora a deliciosa presença de Daniel, que cursava uma universidade lisboeta, nada naquela casa o definia, e ele sentiu um pouco de vergonha de si
mesmo, porque sempre se considerara uma mente clara e inteligente. Leon ficou um tempo sentado com as fotos espalhadas ao redor, fotos onde Laura multiplicava-se,
e a saudade atacou-o violentamente, a saudade veio em ondas altas, gordas, ondas de um mar flagelado por uma tremenda tempestade. Imaginem o pobre Leon: durante
todo aquele tempo ele tomara o devido cuidado, mantendo a sua cidadela isolada de qualquer possível ataque da saudade, só que agora a saudade estava bem ali, flamejante
como um exército de mil homens em frente a ele, vitoriosa, com a sua bandeira fincada no centro da praça. Com um golpe único, perfeito, a saudade ganhara aquela
guerra. Acho que Leon Berman entendeu bem rapidamente que não poderia mais fingir, nem mesmo por um único dia - dali em diante, teria de encarar o fato de que sentia
uma bruta falta de Laura, de que precisava urgentemente vê-la outra vez. Vejam bem, Leon não tinha planos, aquilo não era o ensejo de uma volta ou de um recomeço
- ele só queria rever Laura, correr seus olhos por seu perfil, observar a dança dos seus cabelos, o contorno dos ombros, o vão fundo das clavículas onde a pele de
Laura esticava-se em saliências e reentrâncias... Ele queria ouvi-la falar, queria vê-la comer e queria caminhar ao lado dela como fizera incontáveis vezes no passado.
Queria dar peso e cor às suas memórias todas, porque era como se ele estivesse murchando por dentro; Leon estava corroído pela ausência de Laura. E ele ficou pensando
nisso por um certo tempo, hipnotizado, até que o apito de um barco lá no Tejo cortou a tarde ao meio e ele se decidiu. O papel que Leon procurava era um antigo documento,
necessário para tirar a cidadania portuguesa - o seu avô materno tinha sido um comerciante inglês que se radicara em Lisboa. Mas, ao invés de seguir com a procura,
Leon ligou para o seu agente de viagens e pediu, com urgência, uma passagem para o Sul do Brasil. Rindo ao telefone, nervoso como um adolescente, ele percebeu que
já tinha feito aquilo, exatamente daquele jeito, no escuro, anos e anos antes, quando tomara um avião para conhecer a autora do livro que lera e do qual gostara
tanto. Era um risco, mas Leon queria corrê-lo... Comprou a passagem para o dia seguinte e disse para Daniel que iria ao Brasil resolver um assunto urgente relativo
à antiga galeria. Daniel não deu grande importância à viagem do pai, estava em semana de provas na universidade e também não comentou nada a respeito com Laura no
telefonema que ambos trocaram naquela noite. *** Então, meus caros, vejam que todas as licenças que tomei até aqui eram justificadas - Laura e Leon ainda se queriam.
E foi assim que, depois de horas de voo, um carro alugado e a serpenteante estrada para o alto da serra - depois de andar e andar e andar de volta ao começo de tudo,
Leon chegou até onde Laura vivia, a casa de grandes janelas de vidro no alto do morro verde, estirada sobre o sol como um animal bonito e preguiçoso. Na tarde azul
de outubro, Leon Berman tocou a campainha e, parado no pórtico branco, esperou. Não, ele não estava nervoso, nem pensem nisso. Leon era um homem muito decidido,
e se eu tivesse que apostar todas as fichas em alguém, as apostaria em Leon Berman. De qualquer modo, toda a sua ansiedade anterior se tinha desfeito ao longo do
trajeto pela estrada íngreme, cheia de curvas. Leon adorava dirigir, e dirigir acalmava a sua mente. À medida que subia a montanha para reencontrar a grande parceira
da sua vida, sentia-se mais e mais sereno. Era a coisa certa, tinha certeza disso. Quando Laura abriu a porta, seus olhos se arregalaram um pouco. Acho que ela tomou
um grande susto - eu já disse que ela era uma criatura um pouco frágil. Ela vinha esperando por Leon de maneira muito intuitiva havia bastante tempo, mas a chegada
dele, na tarde radiante... Bem, foi um pouco demais para ela. Laura prendeu a respiração e sorriu. Ficou ali parada, como uma borboleta pregada num desses álbuns
de colecionador, como se tivesse sido pega em pleno voo. Vê-la um pouco descabelada, ainda bonita, com sua roupa macia de usar em casa, descalça e com aquele ricto
de nervosismo no sorriso, meu Deus, isso foi um alívio e tanto para Leon. Leon Berman olhou Laura demoradamente, com a garrafa de vinho embaixo do braço e o coração
agitado, divertindo-se por experimentar aquela extraordinária certeza duas vezes na vida, e por causa da mesma mulher. Eles entraram, finalmente. A casa era bonita
com seus tapetes e flores, coisas da qual Laura sempre gostara, Leon sabia muito bem. Sentiu-se confortável já no primeiro instante, como se tudo aquilo também fosse
dele, como se Laura tivesse decorado o lugar conforme o gosto dele também. Não sei o que falaram. Depois de alguns momentos, eles se abraçaram longamente. Eram como
a massa de água do mar fluindo no ritmo das marés. Eles riram depois do primeiro beijo. "Você não aprendeu nada", brincou Laura. "Vinte anos depois e chega na minha
vida do mesmo jeito, sem nenhum aviso." Leon encostou-se a ela, absorvendo o seu calor. "Pelo contrário", ele disse baixinho, tinha aprendido muita coisa. E então
eles ficaram ali, na sala ampla, no amplo tempo do reencontro, e riram e contaram histórias e abriram a garrafa de vinho português trazida por Leon. Eles ficaram
juntos ali, tão unidos como sempre tinham sido, mesmo quando estavam longe um do outro; depois a tarde foi esmaecendo lentamente e o ar picante da montanha esfriou
a sala. Leon acendeu o fogo na lareira como fazia naqueles antigos verões na península uruguaia, na casa onde haviam sido tão felizes - esta casa onde eu estou,
reinventando-os com as minhas próprias palavras. Acho que, à beira do fogo, eles se disseram tudo, tudo aquilo que realmente importava do muito que tinham vivido
e sentido naqueles anos apartados um do outro. Foi como voltar ao começo outra vez. Naquela noite, ao tatear o colchão no meio da madrugada, Laura encontrou novamente
o volume do corpo de Leon a seu lado, então suspirou, o alívio invadindo o seu corpo junto com o ar que entrava nos pulmões; ela virou-se de lado e continuou dormindo,
tão serenada como uma criança que tivesse voltado para casa depois de uma longa e exaustiva viagem sob a chuva. *** 16. ACHO QUE PRECISO terminar

Acho que preciso terminar a minha história, finalmente.

Os anos passaram para os Berman, e para mim também. Eles viveram um largo tempo juntos, um segundo tempo de felicidade que durou dezesseis anos. Leon mudou-se para
a casa no alto da montanha e lá eles tiveram o seu último e prolongado idílio, entre livros e árvores. Como uma lembrança da sua antiga e adorada casa na península
uruguaia, Laura e Leon plantaram um roseiral no jardim - a avozinha polonesa de Leon, em algum lugar do universo, deve ter se alegrado com a profusão de botões e
de cores, tão linda que faria inveja aos jardins campestres de Henry James. Eles foram felizes lá, felizes de outro modo, de uma maneira mais apaziguada. Não havia
mais o sol a pino, cegando a vista e confundindo a estrada, oh, não... O tempo disso já havia passado para os Berman. Laura nunca mais escreveu e Leon deixou de
lado o seu trabalho com arte, mas seguiu produzindo pequenos textos para revistas na Europa. Na maior parte do tempo, eles apenas liam e liam. Acho que o roseiral
no jardim contentou o pequeno deus gorducho e, às vezes, ao raiar do dia, ela podia ver a silhueta de um senhor estranho com uma barbicha ruiva e olhos risonhos
a passear entre as suas roseiras, como num devaneio amoroso. Ela nunca teve certeza disso, mas imaginou que alguém da vizinhança costumava andar por ali, talvez
para roubar algumas rosas. Laura não se importava com aquilo. Aos dezoito anos, Max também foi estudar em Lisboa e fez companhia a Daniel no apartamento do Bairro
Alto. Alguns anos depois, por volta de 2002, Daniel conheceu uma jovem portuguesa, casou-se e foi morar no Porto, onde abriu um pequeno hotel. Max, o pequeno Maxie,
era mais inquieto e voltou ao Brasil meses após o casamento do irmão com um diploma de artes plásticas na mala, mas ainda sem encontrar o seu verdadeiro talento.
Fiz as contas e creio que Daniel já tinha 39 anos quando Laura Berman morreu, depois de alguns anos tratando um problema cardíaco. Oh, foi uma morte calma e sem
avisos. Laura morreu dormindo numa noite de inverno, parece que o coração parou de bater, aquele já meio gasto e bom coração que a guiara por tanto tempo. Bem, ele
simplesmente terminou o seu trabalho e apagou-se. Lembro-me bem do dia em que li no jornal sobre sua morte, em meados de 2012. Ventava e anunciavam que um ciclone
extratropical passaria pela costa ao final do dia, e eu estava com os nervos à flor da pele. Assim, quando li a notícia, perdida entre outras informações mais importantes,
comecei a chorar. Laura Berman já era, tecnicamente, uma mulher idosa, mas não era absolutamente uma mulher velha. Ainda teria um bom punhado de anos gloriosos pela
frente. Demorei um bom tempo para acreditar em tudo aquilo - a doença, a parada cardíaca. Como Laura poderia estar morta se o jardim que ela fizera e do qual cuidara
com tanto amor ainda estava lá fora, luzindo as suas cores na manhã fria e ventosa? Laura tinha morrido, afinal. Ou uma parte dela. Porque a outra ainda estava por
aqui, nas velhas fotos em que ela aparece eternamente loira e feliz, num antigo verão sem começo nem fim, envolta naquela nuvem de benesses que transbordava na confiança
com que seus olhos negros fitavam a câmera. Deixei o jornal de lado e me arrastei até a cozinha em busca de um martíni duplo, ignorando o fato de que mal passava
das dez horas da manhã. O jornal ficara aberto sobre a mesa e, num canto dele, a discreta notícia sobre a escritora brasileira que outrora vivera por estas bandas.
Quando voltei com a bebida, amassei-o com raiva e o joguei no fogo. Se fechasse os olhos, poderia ver Laura com o seu maiô negro, correndo atrás das crianças pelo
jardim, aparentando uns trinta anos, no auge da beleza. Aquela, sim, era a Laura que eu conhecera, que intuíra, a mulher que vinha visitar-me sempre ao final do
dia, minha hóspede temporal, a minha personagem derradeira, a outra narradora desta minha vida. Sim, pois Laura e Leon Berman tinham me ajudado a superar a mais
dolorosa fase que eu jamais enfrentara: a perda de Lucas. Eles tinham sido as minhas companhias ficcionais na travessia solitária e difícil do meu passado para o
meu futuro, e eu lhes era grata, tão grata como jamais fora a ninguém - a não ser ao próprio Lucas. Corri os olhos pela sala. Nada mudara ao meu redor, porém eu
podia sentir, eu podia pressentir o vazio que Laura Berman deixara com a sua partida. Quanto a Leon, ele tinha passado dos setenta anos e seguiu vivendo na casa
no alto da montanha. Parece que virou um desses senhores muito cultos e reclusos, já um pouco desligado do mundo, e as únicas coisas que lhe interessavam eram as
artes plásticas e a literatura. Fazia caminhadas vespertinas com algum livro enfiado no bolso do capote nos dias de inverno, os seus preferidos. Às vezes ia para
a Europa visitar galerias e museus e a família de Daniel, radicada na cidade do Porto. Atrevo-me a dizer que Leon aceitou bem as coisas - a perda de Laura. Sempre
tinha sido um homem pragmático. Se penso nele quase posso vê-lo lá, no alto da montanha, na sala da casa onde se reencontrou com Laura, gozando de boa saúde, cercado
por seus quadros e livros, pelas lembranças. Afora essas pequenas vaguezas, eu não soube mais dos Berman, o tempo passou no mais completo silêncio e eles deixaram
de me visitar. Às vezes, por um instante, uma luz dourada escorria pelo piso de pedras, ou eu ouvia o chilrear de um pássaro e tinha a impressão de que eles estavam
vindo, atravessando a barreira dos mundos; imaginava que chegariam aqui como chegavam outrora, como vizinhos descuidados e alegres que invadem a casa da gente sem
avisos. Mas não, tudo não passava de um engano. E, em alguns momentos do alvorecer, quando a luminosidade parecia granular-se sobre as flores no jardim, eu me sentava
no gramado e esperava por eles, esperava quieta como um cão. Eu os chamava com os meus pensamentos, tentando colocar-me em consonância com o mistério que os aproximava
de mim, que trazia os Berman até a sua casa de verão. Mas não. Nossas vidas pareciam desconectadas para sempre e fui me conformando com a minha nova solidão. Porém,
há apenas algumas semanas, uma coisa curiosa aconteceu. Vou contá-la para vocês. O fato é que precisei retornar à minha antiga casa, na furiosa e agitada cidade
de São Paulo, onde eu vivera. Rodrigo, que terminara seu mestrado em Barcelona, estava voltando para casa. Tinha sido chamado para uma vaga de professor numa conceituada
universidade e eu voltei correndo para receber meu filho. O tempo também passara para ele, Rodrigo já tinha se casado e divorciado. Voltava ao Brasil dessa vez,
segundo ele, para sempre. Então me fui, imaginem. Fiquei com meu filho na casa onde morei com Lucas. Os anos e as reformas que promovêramos lá tinham atenuado as
minhas memórias mais difíceis e foram dias bons. Ao final, acho que Rodrigo e eu estivemos juntos por uns dez ou doze dias, quando anunciei que partiria no dia seguinte
para a minha casa do outro lado da fronteira. Rodrigo tentou me demover da ideia, digamos que não por muito tempo - acho que ele também ansiava ficar sozinho e colocar
a sua nova rotina em dia. Assim, depois de umas últimas providências, meu filho me levou ao aeroporto. E foi lá, na pequena livraria que fica no final do saguão
de embarque, que encontrei, muito por acaso, o livro... *** Era um livro de poemas, meio perdido entre duas histórias policiais e uma narrativa de viagem. Quando
o vi, estava caído de lado na prateleira, como se quisesse me chamar, por isso estiquei o braço e salvei-o dali. Era um belo livro com uma elegante capa azul e prateada,
uma capa grossa e macia, mas, eu me pergunto, quem lê poemas hoje em dia? Eu o peguei porque a capa me interessou e, então, com um susto, como se tudo ao meu redor
tivesse parado por um longo e misterioso instante, o nome do autor saltou diante dos meus olhos: Max Berman. Maxie?! Max, vocês podem acreditar? O meu pequeno e
esfuziante Max, que corria de sunga molhada pela sala da minha casa. Eu não acreditei no que os meus olhos liam... Imaginem o meu nervosismo, vocês sabem como toda
a história dos Berman é tremendamente importante para mim. Embora estivessem chamando o meu voo, entrei na fila do caixa segurando o livro com força, como se ele
tivesse asas e pudesse escapar das minhas mãos trêmulas. Eu farejava as pegadas dos Berman havia tanto tempo... Ora, sou uma mulher atenta e bem-informada, uma ex-editora
que lê os jornais diários, ou a maioria deles. Como a publicação daquele livro poderia ter me escapado? Olhei a data de publicação: o livro fora lançado havia cinco
meses, justo quando eu fizera uma pequena viagem para ver meu filho na Espanha. Ninguém, ninguém comentara uma única palavra comigo e eu tinha pilhas de amigos no
mercado editorial. Mas, pensando bem, os amigos sequer desconfiavam da minha relação misteriosa com os Berman, pois eu nunca contei a ninguém - exceto aqui, para
vocês - o que acontecia lá na casa da península uruguaia. Tendo pagado o livro, corri como pude até o embarque - já não sou muito boa nisso, estou ficando velha
também, vocês podem imaginar. O rapaz que opera o aparelho de raios X olhou-me com espanto; eu estava descabelada e ofegante e fiquei um certo tempo sem coragem
de me separar do livro para que ele fizesse o seu caminho através das entranhas da máquina. Não havia muito tempo a perder; desabalei pela plataforma e, com um pouco
de ajuda de uma solícita aeromoça, me acomodei na poltrona dentro do avião. Estava muito nervosa com aquele pequeno tesouro de Max nas mãos. O avião começou a taxiar
na pista e, passando a mão pela capa do livro, ainda sem abri-lo, senti um arrepio de pânico: e se fosse ruim? E se os poemas de Maxie fossem pífios, bobos ou presunçosos?
Eu queria mais que tudo que fossem realmente bons - na verdade, eu sentia um misto de medo e de orgulho, como se aquilo tivesse mesmo uma relação pessoal totalmente
direta comigo. Imaginei Leon, lá na sua casa na serra, lendo os poemas do filho caçula e sorrindo. O avião levantou voo para a viagem. Eu voltava para o meu pequeno
paraíso e levar comigo aquele livro era, de certa forma, recuperar uma relíquia para o panteão da família - sempre senti, já disse isso inúmeras vezes, que a felicidade
dos Berman habitava esta casa, como se tudo de bom que fora vivido aqui tivesse permanecido entre estas paredes, impregnando os tijolos, o reboco, as vigas do teto,
escondendo-se nos armários e sob as camas e criados-mudos. Creio mesmo que foi essa felicidade, ou o que sobrou dela, que me fez amar este lugar, transformando um
simples esconderijo de ocasião no meu verdadeiro e derradeiro lar. Acabei por me misturar aos Berman, confundi as minhas lembranças com as deles - e eles, gentilmente,
me legaram parte da sua venturosa felicidade. *** Não li o livro de Max no avião. Era um voo relativamente curto e eu precisava de privacidade, portanto controlei
o desejo de abrir o pequeno volume de poemas. Queria lê-lo nesta casa, no lugar onde os Berman me visitaram, onde eles viveram, e onde Maxie cresceu - onde, decerto,
ele encontrou o substrato para a sua poesia ou parte dela. Era bem tarde quando cheguei em casa, pois o aeroporto fica a quase duzentos quilômetros daqui. Acendi
as luzes, abri os ventanales para a noite de primavera, respirei fundo o ar salgado e limpo e vi Órion lá no alto, brilhando calmamente sob o veludo negro do céu.
Larguei a mala num canto, para que Eve cuidasse dela no dia seguinte, tomei um banho rápido e abri uma garrafa de vinho. Acho que Leon aprovaria isso, nada pode
ser tão triste como ler poemas a seco. Sentei no velho sofá branco, onde outrora eu os esperava chegar, abrindo as páginas com cuidado como se executasse uma operação
extremosa, importantíssima, vital. Era como dar um banho num bebê pela primeira vez, assim eu me sentia ao correr os olhos pelo livro recém-aberto. Então, com o
coração contraído de alegria e de medo, comecei a ler os poemas de Max. Logo no terceiro vi o profundo vínculo que havia entre aqueles versos e a vida dos Berman
nesta casa. Lá estavam o jardim e os roseirais, a ponta de praia e os molhes, os altos pinheiros soprados pelo inquieto vento marinho. Eu me emocionei com o olhar
de Max, com os galhos tremulando contra o azul, a mesa na rua, cercada de árvores, com os vasos de lavanda perfumando a tarde. Passeei com o pequeno Maxie pelo jardim
e pela praia em frente, e um pouco da infância dele também era a minha, um pouco daquele passado também era o meu. Não consegui criar e manter uma família como os
Berman tinham feito; e olhem que tentei não uma, e sim duas vezes. A vida deles tinha se quebrado com o tempo, mas feito dois fervorosos e pacientes japoneses eles
a tinham reconstruído, restaurando-a como no método Kintsukuroi. Eles reuniram os seus dias com uma liga de ouro e transformaram o seu casamento numa coisa ainda
mais valiosa e rara do que fora no princípio. Aqueles dois, ah... Eram artífices cheios de paciência. Eu não. Eu havia feito a coisa em partes - primeiro o meu casamento,
depois o nascimento de Rodrigo, depois Lucas - e, mesmo assim, essas partes nunca se uniram num todo. Mas lá estava Max, reconstruindo com palavras a felicidade
dos Berman. Havia o chão e havia cacos; porém havia aquela felicidade, e a felicidade, enquanto lembrada, nunca, absolutamente nunca, morre. Max era hábil e delicado
com as palavras, deixando que elas respirassem no poema, que sussurrassem nos ouvidos do leitor. Seus pequenos versos eram leves, às vezes prateados; outras vezes,
densos como a noite lá fora - a noite da península sob a qual ele crescera e sonhara durante a infância e parte da adolescência. Max Berman era um belo poeta, e
eu pensei no orgulho de Leon, lá na sua casa de vidro, e em como Laura teria ficado emocionada com a poesia do filho. *** (Mas será que ela não conhecia aqueles
versos, será que Maxie nunca mostrara seus poemas para a mãe escritora?) Terminei o livro antes da garrafa de vinho. Havia um enorme silêncio pairando sobre tudo
e nenhum sopro de vento. Para os lados do horizonte, as primeiras luzes do alvorecer começavam a tingir o céu. Pensei (e desejei) que os Berman viessem até mim,
porque a luz ganhara aquela estranha qualidade que costumava anunciá-los e porque a poesia de Max parecia tê-los recuperado, e de uma maneira tão incrível que eu
quase podia ouvir as suas vozes no pátio. Fiquei quieta, esperando como um gato, durante um longo, um longuíssimo tempo. Mas nada mudou, como vocês podem bem imaginar
- não ouvi as vozes deles, nem o riso de Laura, nem a correria dos meninos sobre a grama molhada de sereno. Só muito mais tarde, quando a manhã já ia alta e o jardineiro
estava atarefado com os jasmins-do-céu é que realmente compreendi que eles tinham vindo me ver e que eu não esperara em vão. Os Berman. Eles tinham vindo na poesia
de Maxie e estavam aqui, ainda estavam aqui, nesta casa, misturados às coisas, às paredes, ao ar. Aqueles poemas, num total de vinte, eram a derradeira visita dos
Berman. Eram, também, o seu adeus. Eles nunca mais pousariam na casa da península, vindos do outro lado do tempo, nunca mais. Entendi tudo de repente, como numa
revelação. A partir daquele dia, a minha vida era somente a minha vida novamente. Eu deveria acabar estas páginas e talvez trancá-las em alguma gaveta, ou - se tivesse
coragem - procurar um velho amigo ousado o suficiente para publicar os meus curiosos alfarrábios. Quanto aos Berman e tudo o que eles haviam vivido, dali em diante
o que ainda devesse ser dito seria dito pela poesia de Max. Fiquei naquele sofá até o meio-dia sem dormir, acompanhando todas as mudanças luminosas da manhã, e vi
o jardineiro desbastar as ramas dos jasmins-do-céu para que vicejassem no auge do verão. Assim era a vida, pensei, enquanto ele ensacava os ramos e as florezinhas
azuis cortadas e me acenava um adeus distraído - o bom jardineiro que me achava estranha deveria me achar mais estranha ainda com aqueles olhos loucos, o cabelo
desgrenhado, a taça vazia e uma vontade de chorar. Sim, eu estava triste... Eu não veria mais os dois meninos, nem Laura nem Leon. A porta do tempo se tinha fechado
entre nós. Abracei o livro de Max como se ele pudesse me confortar. Então, levemente tonta de sono, saí descalça para o jardim e o sol me aqueceu; vi as altas ramas
dançando lá em cima contra o azul e de novo me senti feliz. Porque Max Berman, o poeta, finalmente redimia Laura e o vazio que a ficção deixara na sua vida, naqueles
anos em que ela ficara sem Leon. Maxie redimia os pais, unindo-os num último e derradeiro poema que nem a mais atroz realidade poderia para sempre desfazer - em
algum outro plano, muito além do visível, Laura e Leon nunca se separaram, nunca iriam se separar. Laura Berman teria se orgulhado do seu menino, imagino eu, assim
como Leon deve ter experimentado, ao ler os originais de Max na casa de vidro no alto da montanha, um grande contentamento. Porque, afinal de contas, estava tudo
certo, tudo absolutamente certo. A palavra tinha secado na mãe, mas florescera no filho com redobrada vontade, e assim a vida dava mais uma das suas voltas. "Assim
mesmo é a vida", eu disse em voz alta, sozinha no meu jardim. Tudo começava de novo, sempre. Os Berman não viriam mais me visitar na casa da península. Eles eram
aquela casa, assim como a casa, o livro de Max, as páginas que eu escrevera nos últimos anos, o próprio Max e seu irmão, Daniel, eram eles.

 

 

                                                                  Leticia Wierzchowski

 

 

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