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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NECROTERIO - P.2 / Patricia Cornwell
NECROTERIO - P.2 / Patricia Cornwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Teria Fielding discutido o caso de Patten com a sra. Gabriel, e com quem ela falou primeiro, com Fielding ou comigo? Ela telefonou para Dover por volta de sete e quarenta e cinco. Sempre preencho um registro de chamadas e me lembro de ter anotado a hora quando me sentei em meu pequeno escritório no necrotério de Dover, examinando as tomografias e suas coordenadas, que me ajudariam a localizar, com a precisão de um GPS, o fragmento e outros objetos que haviam penetrado o corpo muito queimado de seu filho. Com base no que me contou, enquanto tento agora reconstruir a conversa, ela provavelmente falou primeiro com Fielding. Isso talvez explique suas repetidas referências a "outros casos".


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Alguém havia colocado em sua cabeça uma ideia do que fazemos em outros casos. Ela estava com a clara impressão de que extraíamos sêmen das vítimas de forma rotineira e que, na realidade, encorajávamos isso, e lembro-me de ter ficado surpresa, pois o procedimento precisa ser aprovado e está repleto de complicações legais. Eu não imaginava o que lhe havia dado essa ideia e poderia ter feito perguntas se ela não estivesse tão ocupada em me criticar e xingar. Que espécie de monstro impediria uma mulher de ter os filhos do namorado morto ou proibiria que a mãe de um filho morto se tornasse avó? Nós fazemos isso em outros casos, por que não no do filho dela? "Não tenho mais ninguém", gritou. "Isso é burocracia sem sentido, admita", vociferou ela. "Burocracia sem sentido para encobrir mais um crime motivado por preconceito."
"Tem alguém em casa?" É Benton no vão da porta.
A sra. Gabriel me chamou de militar preconceituosa. "Você faz para os outros, contanto que sejam brancos", disse ela. "Você cuidou daquele outro rapaz que morreu em Boston e ele nem era um soldado americano, mas não do meu filho, que morreu por seu país. Imagino que tenha a cor errada", continuou ela e eu não fazia ideia do que estava querendo dizer ou no que estava baseando tal acusação. Não tentei descobrir porque me pareceu histeria, nada mais, e a perdoei no mesmo instante. Ainda que aquilo obviamente tenha me magoado muito e eu não tenha conseguido tirar suas palavras da cabeça desde então.
"Olá?" Benton está entrando.
"Outro crime de ódio, só que ele vai ser descoberto e gente como você não vai ser recompensada dessa vez", e ela não explicou no que estava pensando quando disse
essa coisa horrível. Mas não lhe pedi que se justificasse e na hora não dei muito crédito a seus comentários venenosos porque ouvir gritos, xingamentos, ameaças
e até mesmo ser atacada por pessoas que normalmente são civilizadas e controladas não é uma experiência nova. Não tenho vidros à prova de estilhaçamento instalados
nos saguões e nas salas de visualização das repartições em que trabalhei por temer que os mortos tenham um acesso de raiva ou me ataquem.
"Kay?"
Meus olhos focalizam Benton segurando dois cafés e tentando não os derramar. Por que Julia Gabriel teria telefonado para cá antes de me telefonar em Dover? Ou foi
Fielding quem telefonou e, em ambos os casos, por que teria conversado com ela? Então recordo que Marino me contou que o soldado de primeira classe Gabriel foi a
primeira baixa de Worcester e que a imprensa havia feito contato com o CFC como se o corpo estivesse aqui e não em Dover, e que houve vários telefonemas para cá
por causa da ligação com Massachusetts. Talvez Fielding tenha descoberto dessa forma, mas por que falaria ao telefone com a mãe do soldado morto, mesmo que ela tivesse
telefonado para cá por engano e precisasse que a lembrassem de que o filho estava em Dover? É claro que ela sabia. Como a sra. Gabriel não saberia que o filho havia
sido levado de avião para Dover? Não consigo enxergar nenhum motivo legítimo para Fielding ter conversado com ela, nem o que poderia ter dito para ajudar, nem como
se atreveu a fazer isso.
Ele não é militar nem consultor do AFMES. É civil e não tem o direito de investigar detalhes relativos a vítimas de guerra, a segurança nacional, nem se envolver
em conversas sobre tais assuntos, que são claramente definidos como confidenciais. Inteligência médica e militar não são da sua conta. O RUSI não é da sua conta.
As eleições no Reino Unido também não. A única coisa que deveria ser da maldita conta de Fielding foi o que ele negligenciou por completo: sua enorme responsabilidade
aqui no CFC e a suposta lealdade a mim.
"Muito gentil da sua parte", digo a Benton em tom distante. "Um café vai me fazer bem."
"Onde você estava agora há pouco? Além de no meio de uma briga imaginária. Você parece a ponto de matar alguém."
Ele se aproxima da escrivaninha e me observa como quando está tentando adivinhar meus pensamentos, porque não vai acreditar no que eu disser. Ou talvez saiba que
o que tenho a dizer é só o começo e que não faço a mínima ideia do restante.
"Você está bem?" Ele deposita o café sobre a mesa e puxa uma cadeira.
"Não, eu não estou bem."
"O que há de errado?"
"Acho que acabo de descobrir o que significa quando alguma coisa atinge a massa crítica."
"Qual é o problema?", pergunta ele.
"Tudo."
12
"Por favor, feche a porta." E me ocorre que estou começando a agir como Lucy. "Não sei por onde começar, são tantos problemas."
Benton fecha a porta e reparo na aliança simples de platina em seu dedo anular esquerdo. Às vezes, ainda sou pega de surpresa por estarmos casados, por grande parte
de nossa vida ter sido mutuamente consumida, quer estejamos juntos ou separados, e sempre concordamos que não precisávamos disso, não precisava ser oficial e formal,
porque não somos como as outras pessoas, mas de qualquer forma foi o que fizemos. A cerimônia foi pequena e simples, menos uma comemoração que um juramento porque
de fato falamos sério quando dissemos até que a morte nos separe. Depois de tudo por que passamos, foram mais que palavras, foi mais um juramento público, uma ordenação
ou talvez um resumo do que já havíamos vivido. E eu gostaria de saber se ele alguma vez se arrependeu. Por exemplo, neste momento, ele deseja poder voltar a ser
como antes? Eu não o culparia por pensar naquilo de que abriu mão e de que sente falta, e há muitas complicações por minha causa.
Ele vendeu o imóvel da família, uma elegante mansão do século XIX no Boston Common e não pode ter gostado de alguns locais em que moramos ou nos quais passamos temporadas
por causa de minha profissão, além das preocupações pouco comuns, da existência caótica e dispendiosa apesar das minhas melhores intenções. Enquanto seu exercício
da psicologia forense se manteve estável, minha carreira sofreu mudanças nos últimos três anos, com o fechamento de uma clínica particular em Charleston, Carolina
do Sul, do escritório em Watertown, devido à economia, e a passagem por Nova York, Washington, Dover e o CFC.
"O que está acontecendo neste lugar?", pergunto como se ele soubesse e não entendo por que saberia. Mas tenho essa sensação, ou talvez apenas deseje que seja assim
porque estou começando a sentir desespero, aquela sensação de pânico de estar caindo e agitando os braços para me agarrar a alguma coisa.
"Preto e extraforte." Ele senta e empurra a caneca de café para perto de mim. "E não é de avelã. Mesmo que você tenha um bom estoque dele, pelo que soube."
"Jack ainda não apareceu e ninguém ouviu falar dele, imagino."
"Aqui ele com certeza não está. Acho que você está tão segura no escritório dele quanto ele tem estado no seu", diz Benton como se tivesse mais de uma coisa em vista
e reparo em como está vestido.
Mais cedo, ele estava usando seu casaco de inverno e, na sala de raios X, estava coberto por um jaleco descartável antes de subir para o laboratório de Lucy. Realmente
não notei o que estava vestindo por baixo. Botas táticas pretas, calça tática preta, uma camisa de flanela vermelho-escura, um relógio de borracha à prova d'água
com mostrador luminescente. Como se previsse sair no mau tempo ou ir a algum lugar que castigaria suas roupas.
"Então Lucy te contou que ele parece estar usando meu escritório", digo. "Com que finalidade, não sei. Mas você talvez saiba."
"Ninguém precisou me contar que existe uma mentalidade de saque no... como é que Marino chama este lugar? COMCENT? Ou isso só se refere ao santuário interno ou o
que deveria ser o santuário interno, seu escritório? Um navio sem capitão. Você sabe o que acontece. A bandeira pirata sobe, os reclusos comandam o porão, os bêbados
controlam o bar, se é que posso incluir essas metáforas."
"Por que você não disse nada?"
"Eu não trabalho no CFC. Nem para ele. Sou só um convidado quando necessário", responde Benton.
"Você sabe muito bem que isso não é resposta. Por que não me protegeu?"
"O que você está querendo dizer é da maneira que você acha que eu deveria ter protegido", responde ele, porque é uma bobagem a sugestão de que Benton não me protegeria.
"O que está acontecendo por aqui? Se você me contar, posso descobrir o que precisa ser feito", digo então. "Sei que Lucy tem conversado com você. Seria interessante
que alguém conversasse comigo. Ponto por ponto, com franqueza total."
"Sinto muito que você esteja zangada. Lamento que tenha vindo para casa nessa situação angustiante. Sua volta deveria ter sido alegre."
"Alegre. E o que é isso?"
"Uma palavra, um conceito teórico. Como franqueza total. Posso te contar o que presenciei em primeira mão, o que aconteceu nas várias vezes em que estive aqui. Para
discussões de caso. Houve duas que me envolveram." Ele desvia o olhar. "A primeira foi por causa do jogador de futebol americano da Universidade de Boston no outono
passado, pouco depois que o CFC assumiu os casos forenses do estado."
Wally Jamison, de vinte anos, o célebre zagueiro da Universidade de Boston. Apareceu boiando no porto de Boston na madrugada de 1o de novembro. Causa da morte: hemorragia
devido a contusão e múltiplos cortes. Caso de Tom Booker, um de meus outros legistas.
"Jack não trabalhou nesse caso", relembro.
"Bom, se perguntar a ele, você talvez tenha uma impressão diferente", informa Benton. "Jack analisou o caso de Wally Jamison como se fosse dele. O dr. Booker não
estava presente. Isso aconteceu na semana passada."
"Por que na semana passada? Não sei nada sobre isso."
"Nós tínhamos novas informações e queríamos conversar com Jack; ele pareceu disposto a cooperar, a dar informações."
"Nós?"
Benton ergue seu café, então muda de ideia e torna a pousá-lo sobre a mesa desarrumada de Fielding, com todos os objetos de coleção ao seu redor. "Acho que a atitude
de Jack foi a de quem pode não ter feito a autópsia, mas isso era só um detalhe técnico. Um ingresso para o draft da NFL vinha bem a calhar ao Homem de Ferro maluco
que é o seu sub."
"Homem de Ferro maluco?"
"Mas imagino que tenha sido falta de sorte dele estar fora da cidade quando Wally Jamison foi espancado e retalhado até a morte. Wally teve um pouco menos de sorte
ainda."
Acredita-se que Wally tenha sido raptado e assassinado no Halloween. O local do crime é desconhecido. Não há suspeitos. Não há motivos nem uma teoria verossímil.
Só a especulação da iniciação de algum culto satânico. Que tinha como alvo um atleta famoso. Fazê-lo refém em algum local clandestino e matá-lo de forma brutal.
Muito se falou na internet e na imprensa. Boatos que se tornaram verdades.
"Estou cagando para os sentimentos de Jack ou para o que lhe vem a calhar", diz uma parte minha, dura e repleta de cicatrizes, que está completamente saturada de
Jack Fielding.
Percebo que estou furiosa. De repente me dou conta de que no cerne de meu relacionamento doentio com Jack há uma fúria pastosa.
"E Mark Bishop, também na semana passada. Na quarta-feira foi o jogador de futebol americano. Na quinta foi o garoto", declara Benton.
"Um garoto cujo assassinato pode estar relacionado a alguma iniciação. Uma gangue, um culto", interrompo. "Uma especulação semelhante à que diz respeito a Wally
Jamison."
"Especulação é a palavra-chave. De quem?"
"Não minha." Penso em Fielding com raiva. "Eu não especulo, a menos que esteja atrás de portas fechadas e com alguém em quem confie. Sei que não vale a pena liberar
informação, que a polícia manipula, depois a imprensa manipula. Quando vou ver, um júri também acredita nela."
"Padrões e paralelos."
"Você está associando Mark Bishop e Wally Jamison." Isso me parece incrível. "Não consigo enxergar o que eles possam ter em comum além de especulação."
"Estive aqui na semana passada para analisar os dois casos." Os olhos de Benton estão fixos em mim. "Onde estava Jack no último Halloween? Você sabe com certeza?"
"Sei onde eu estava, essa é a única coisa de que tenho certeza. Eu estava em Dover. É tudo o que sei e o que devia saber. Não contratei Jack para tomar conta dele.
Não sei onde estava no Halloween. Imagino que você vá me dizer que ele não estava por aí com os filhos pedindo doces."
"Ele estava em Salem. Mas não com os filhos."
"Eu não podia saber disso e não sei por que motivo você sabe ou por que é importante."
"Não era importante até muito recentemente", diz Benton.
Torno a olhar para suas botas, então para a calça escura com forro de flanela e bolsos traseiros para pentes de armas e lanternas, o tipo de calça que ele usa quando
está trabalhando em campo, quando vai a cenas de crime ou sai para a neutralização de materiais bélicos ou explosivos com policiais, com o FBI.
"Onde você esteve antes de me buscar em Hanscom?", pergunto. "O que estava fazendo?"
"Temos muita coisa para resolver, Kay. Acho que mais do que eu imaginava."
"Você estava vestindo roupas de campo quando me pegou no aeroporto?" Penso que talvez não. Ele trocou de roupa. Pode ainda não ter feito nada, mas está prestes a
fazer.
"Tenho uma mala no carro, como você sabe", diz Benton. "Já que nunca sei quando posso ser chamado."
"Para ir aonde? Você foi chamado para ir a algum lugar?"
Ele olha para mim, então pela janela, para o horizonte gredoso de Boston na escuridão repleta de neve.
"Lucy disse que você estava no telefone." Continuo a alfinetá-lo em troca de informações que percebo que não vou obter agora.
"Tenho medo o tempo todo. Medo de que existam mais coisas do que pensei", ele diz e para. É tudo o que vai mencionar sobre o assunto. Ele vai a algum lugar, tem
algum lugar para ir. Não é um bom lugar. Andou conversando com pessoas, não sobre coisas agradáveis, e não vai me informar agora. Franqueza total e alegria. Quando
isso existe, é só uma amostra, um indício do que não temos no resto do tempo.
"Você veio na quarta-feira e depois na quinta. Para discutir os casos de Wally Jamison e Mark Bishop aqui no CFC", recapitulo. "E suponho que Jack também estava
presente na discussão do caso de Mark Bishop. Ele se envolveu nas duas discussões. E você não mencionou isso há pouco tempo, quando conversamos no carro."
"Não tão pouco tempo atrás. Há mais de cinco horas. E muita coisa aconteceu. Houve revelações desde que estávamos no carro, como você bem sabe. Das quais a menor
não foi o que agora percebemos que é outro assassinato. O terceiro."
"Você está ligando o homem de Norton's Woods a Mark Bishop e Wally Jamison."
"Muito provavelmente. Na verdade, eu diria que sim."
"E as reuniões da semana passada? Com Jack? Ele estava presente", pressiono.
"Estava. Na quarta e na quinta passada. No seu escritório."
"O que você está querendo dizer com meu escritório? Este prédio? Este andar?"
"No seu escritório pessoal." Benton indica meu escritório na sala ao lado.
"No meu escritório. Jack fez reuniões no meu escritório. Entendo."
"Ele fez as duas reuniões no seu escritório. Na mesa da sua sala de reuniões."
"Ele tem sua própria mesa de reuniões." Olho para a mesa preta oval laqueada com seis cadeiras ergonômicas que comprei em um leilão do governo.
Benton não responde. Sabe tão bem quanto eu que a decisão inconveniente de Fielding de usar meu escritório particular nada tem a ver com a mobília. Penso no que
Lucy mencionou sobre vasculhar meu escritório à procura de dispositivos de vigilância escondidos, embora não tenha dito diretamente quem poderia estar espionando
ou se havia alguém fazendo isso. O candidato mais provável ao tipo de indivíduo que poderia implantar microfones em meu escritório e escapar impune seria minha sobrinha.
Talvez induzida pelo conhecimento de Fielding estar usando o que não é seu por direito. Pergunto-me se o que aconteceu em meu espaço pessoal durante minha ausência
foi secretamente gravado.
"E você não mencionou isso na ocasião", continuo. "Podia ter me contado quando aconteceu. Podia ter me comunicado que ele estava usando meu escritório como se fosse
o diretor desse lugar."
"Fiquei sabendo disso na semana passada quando me encontrei com ele. Mas não estou dizendo que não tenha ouvido certas coisas sobre o CFC e sobre ele."
"Teria ajudado se eu tomasse conhecimento das coisas que você ouviu."
"Boatos. Fofoca. Eu não tinha certeza."
"Então você devia ter me contado há uma semana quando ficou sabendo com certeza. Na quarta-feira você teve a primeira reunião e descobriu que foi no meu escritório,
um escritório que Jack não tinha permissão para usar. O que mais não me contou? Que novos acontecimentos?"
"Estou te contando o máximo que posso e quando posso. Sei que você entende."
"Não entendo. Você devia ter me contado tudo desde o começo. Lucy também. E Marino."
"Não é tão simples assim."
"A traição é muito simples."
"Ninguém está te traindo. Marino e Lucy não estão. E eu com certeza não estou."
"Mas estão sugerindo que alguém está fazendo isso. Só que não vocês três."
Ele fica quieto.
"Você e eu conversamos todos os dias, Benton. Você deveria ter me contado", digo então.
"Vamos ver quando eu poderia ter te sobrecarregado com tudo isso, enquanto você estava em Dover. Quando você telefonava às cinco da manhã antes de ir para o necrotério
para cuidar dos nossos heróis mortos na guerra? Ou à meia-noite, quando finalmente desligava o computador ou parava de estudar para as provas?"
Benton não diz isso em tom grosseiro nem defensivo, mas entendo seu ponto de vista não tão sutil, e ele é justificado. Estou sendo injusta. Hipócrita. De quem foi
a ideia, já que não temos praticamente tempo um para o outro, de não nos estender em trabalho, em detalhes domésticos, ou isso é tudo que vai restar? Como um câncer,
sou rápida em propor minhas analogias médicas inteligentes e meus insights brilhantes quando é ele o psicólogo, foi ele quem dirigiu a unidade de elaboração de perfis
do FBI em Quantico, é ele quem pertence ao corpo docente do departamento de psiquiatria de Harvard. Mas sou eu que apresento toda a fala inteligente, todos os exemplos
profundos, comparando trabalho, detalhes domésticos triviais e danos emocionais a cânceres, cicatrizes, necrose e segundo meus prognósticos, se não formos cuidadosos,
um dia não vai sobrar tecido saudável e a morte é o que vem a seguir. Sinto-me envergonhada. Superficial.
"Não, não abordei certos assuntos até virmos para cá e agora estou te contando mais, o que posso", diz Benton com uma calma estoica, como se estivéssemos em uma
de suas sessões e a qualquer momento ele fosse simplesmente anunciar que precisamos parar.
Não vou parar até saber o que preciso. Ele precisa me dizer algumas coisas. Não só por lealdade, é questão de sobrevivência, e percebo que estou me sentindo insegura
com Benton, como se já não o conhecesse mais. Ele é meu marido e me fere a percepção de que alguma coisa mudou, um novo ingrediente foi acrescentado à especialidade
da casa.
O que é?
Analiso o que estou intuindo como se provasse o que mudou.
"Mencionei minha preocupação de que a interpretação de Jack dos ferimentos de Mark Bishop é problemática", continua Benton e ele parece precavido. Está pesando cada
palavra como se outra pessoa estivesse ouvindo ou como se fosse relatar nossa conversa a terceiros. "Bom, com base no que você descreveu sobre as marcas de martelo
na cabeça do menino, a interpretação de Jack está errada, não poderia estar mais errada e desconfiei disso na ocasião, quando ele estava revisando o caso conosco.
Desconfiei que estivesse mentindo."
"Conosco?"
"Eu disse que tinha escutado coisas, mas, para ser honesto, não tenho passado tempo com Jack."
"Por que você está dizendo 'para ser honesto'? Em contraste com desonesto, Benton?"
"Sou sempre honesto com você, Kay."
"É claro que não, mas agora não é hora de discutir esse assunto."
"Sim. Sei que você entende." E ele sustenta meu olhar por um longo instante. Está me pedindo para, por favor, deixar de lado a questão.
"Tudo bem. Desculpe." Vou deixar de lado a questão, mas não é o que quero.
"Eu não via Jack há meses e o que vi por mim mesmo foi... Bom, ficou bastante claro durante aquelas discussões na semana passada que tem alguma coisa errada com
ele, muito errada", prossegue Benton. "Ele estava péssimo. Com os pensamentos precipitados, desorganizados. Estava logorreico, grandioso, hipomaníaco, agressivo,
com o rosto vermelho, como se fosse explodir. É claro que tive a impressão de que ele não estava sendo honesto, que estava nos enganando deliberadamente."
"Por que você está falando no plural?" Mas começo a entender o motivo.
"Fielding já esteve em um hospital psiquiátrico, foi tratado, diagnosticado com algum distúrbio de humor? Ele nunca mencionou nada assim?" Benton me questiona de
forma inesperada e intimidante e recordo o que senti no carro quando vínhamos para cá. Só que agora é mais evidente, mais reconhecível.
Ele está agindo como quando ainda era agente, como quando estava autorizado pelo governo federal a fazer cumprir a lei. Detecto uma autoridade e confiança que ele
não manifesta há anos, uma convicção que lhe faltou depois que ressurgiu da proteção de testemunhas. Benton voltou se sentindo perdido, fraco, nada mais que um acadêmico,
como muitas vezes se queixava. Castrado, dizia. O FBI devora seus filhos e me devorou. Essa foi minha recompensa por perseguir um cartel do crime organizado. Finalmente
recuperei minha vida e não quero o que sobrou dela, dizia. É uma casca. Eu sou uma casa. Eu te amo, mas por favor entenda que já não sou o que era.
"Ele já delirou ou foi violento?", Benton está me perguntando e não é só um médico falando.
Eu me sinto interrogada.
"Jack tinha que esperar que você me contasse que estava usando meu escritório como se fosse dele. Ou que eu ia descobrir." Penso em Lucy outra vez, em espionagem
e gravações clandestinas.
"Sei que ele é temperamental", continua Benton, "mas estou me referindo a violência física possivelmente acompanhada de fuga dissociativa, desaparecer durante horas,
dias, semanas, com pouca ou nenhuma recordação. O que estamos vendo com alguns desses homens e mulheres que voltam da guerra, desaparecimentos e amnésia provocados
por trauma severo e muitas vezes confundidos com fingimento. A mesma coisa de que Johnny Donahue supostamente está sofrendo, só que não sei o quanto disso foi sugerido
ao pobre do rapaz. Fico me perguntando de onde surgiu essa ideia, se alguém sugeriu isso a ele."
Benton diz isso como se na realidade não estivesse se perguntando.
"Jack com certeza é famoso por dar a impressão de fingimento, por fugir de suas responsabilidades desde o começo", prossegue Benton.
Eu criei Fielding.
"O que você não me contou sobre ele?", pergunta Benton.
Fiz de Fielding o que ele é. Meu monstro.
"Um histórico psiquiátrico?", continua Benton. "Inacessível até mesmo para mim, até para o FBI? Posso descobrir, mas não vou ultrapassar esse limite."
Benton e o FBI. De novo. Não um agente de rua. Não consigo imaginar. Analista de investigação criminal, analista de inteligência criminal, analista de segurança.
O Departamento de Justiça tem muitos analistas, agentes que são uma combinação acadêmica e tática. Pessoas também podem ir para a prisão ou ser baleadas pelas mãos
de um policial com ph.D.
"O que você sabe sobre Jack, seu protegido, que eu não sei?", pergunta Benton. "Além do fato de que ele é um doente fodido? Porque ele é. Em algum lugar, uma parte
sua sabe disso, Kay."
Sou o monstro de Briggs e Fielding é o meu. É uma volta ao início dos tempos.
"Estou bastante ciente do abuso sexual", diz Benton em tom delicado, como se não se importasse com o que aconteceu a Fielding quando criança, como se não desse a
mínima.
Não um psicólogo, mas outra coisa falando, e tenho certeza disso. Policiais, agentes federais, promotores públicos, aqueles que protegem e punem, são calejados em
relação a desculpas. Julgam os "sujeitos" e "pessoas relevantes" pelo que fazem, não pelo que foi feito a eles. Pessoas como Benton não dão a mínima para o motivo,
ou se alguma situação não pôde ser evitada, independentemente das definições, destilações e predições que apresentam de forma tão astuciosa, tão hábil. No fundo,
Benton não tem nenhuma simpatia por pessoas odiosas e nocivas, e os anos de clínica e consultoria foram cruéis e insatisfatórios para ele, davam a sensação de falsidade,
como me confessou mais de uma vez.
"Essa é uma questão de domínio público, já que o caso foi a julgamento." Benton sente a necessidade de me dizer algo que nunca perguntei a Fielding.
Não me recordo quando e como tomei conhecimento da escola especial que Fielding frequentou quando menino perto de Atlanta. De alguma forma sei disso, e tudo que
me vem à mente são referências suas a certo "episódio" no passado, de que o que ele vivenciou com certa "orientadora" faz com que tenha uma terrível dificuldade
de lidar com tragédias que envolvem crianças, principalmente se estas tiverem sofrido maus-tratos. Tenho certeza de que nunca o pressionei a contar os detalhes.
Sobretudo naquela época, eu nunca teria feito isso.
"Em 1978", diz Benton, "quando Jack tinha quinze anos, ainda que tenha começado aos doze e continuado por alguns anos até que eles foram pegos tendo relações no
banco de trás da caminhonete dela, estacionada na beira do campo de futebol americano como se quisesse ser pega. Ela estava grávida. Outra história horrível sobre
internatos, esse não católico, mas para adolescentes problemáticos, um desses centros de tratamento/escola que têm estância no nome. O que a terapeuta fez para ser
condenada por dez acusações de agressão sexual a um menor não foi o que você não me contou a respeito de Jack."
"Não conheço os detalhes", declaro por fim. "Não todos, nem mesmo a maior parte. Não lembro o nome dela, se é que algum dia soube; não sabia que estava grávida.
Era filho dele? Ela teve o bebê?"
"Revi as transcrições do caso. Ela teve o bebê."
"Eu não tinha motivos para examinar as transcrições do caso." Não pergunto a Benton por que ele tem um motivo. Não vai me revelar isso agora e talvez nunca o faça.
"É uma pena que exista mais uma criança no mundo que Jack criou mal. Ou nem criou", acrescento. "É triste."
"Kathleen Lawler também não teve uma boa vida", Benton começa a contar.
"É muito triste."
"A mulher condenada por molestar Jack", diz ele. "Não tenho informações sobre a criança, uma menina, nascida na prisão, dada para adoção. Levando-se em consideração
a carga genética criada, provavelmente também está presa, ou morta. Kathleen Lawler se meteu em uma confusão atrás da outra, atualmente está em uma penitenciária
feminina em Savannah, Georgia, cumprindo vinte anos por homicídio culposo por condução de veículo sob efeito de drogas. Jack se comunica com ela por correspondência,
embora use um pseudônimo, e não foi você que me contou isso, porque duvido que soubesse."
"Quem mais compareceu às reuniões na semana passada?" Estou com tanto frio que minhas unhas estão azuis; eu gostaria de ter trazido meu casaco. Reparo em um jaleco
atrás da porta de Fielding.
"Passou por minha mente enquanto estávamos sentados no seu escritório", diz Benton, o ex-agente do FBI, ex-testemunha sob proteção e mestre dos segredos, que não
está mais agindo como ex-coisa nenhuma.
Benton está agindo como se estivesse investigando um caso, não apenas como consultor. Estou convencida de que minhas desconfianças são verdadeiras. Ele está com
os federais outra vez. As coisas terminam onde começam e começam onde terminam.
"Um transtorno afetivo. Pensei bem sobre isso, tentei me lembrar dele nos velhos tempos. Pensei muito nos velhos tempos." Benton fala com naturalidade, como se não
tivesse sentimentos a respeito do que está divulgando e do que está me acusando. "Ele nunca foi normal. É essa minha opinião. Jack tem uma patologia subjacente significativa.
Foi por isso que foi enviado ao internato. Para aprender a controlar a raiva. Aos seis anos, ele feriu outra criança no peito com uma esferográfica. Aos onze, atacou
a mãe na cabeça com um ancinho. Então foi mandado para a estância perto de Atlanta, onde só fez ficar mais furioso."
"Não faço ideia do que ele fez enquanto estava crescendo", retruco. "Não é uma prática comum realizar verificações extensas do passado de médicos passíveis de contratação,
na realidade, isso era inédito quando comecei, quando ele começou. Não sou agente do FBI", acrescento em tom incisivo. "Não desenterro tudo que posso sobre as pessoas
e saio por aí interrogando os vizinhos com quem elas cresceram. Não interrogo seus professores. Não localizo seus amigos por correspondência."
Levanto-me da escrivaninha de Fielding.
"Ainda que eu provavelmente devesse ter feito isso. Provavelmente vou fazer de agora em diante. Mas nunca acobertei Fielding", prossigo. "Nunca o protegi dessa forma.
Admito que fui muito compreensiva. Admito que consertei as confusões dele ou tentei. Mas nunca acobertei nada indevido, se é que é isso que você está dizendo que
fiz. Eu nunca faria nada antiético por ele nem por ninguém." Não mais, acrescento mentalmente. Fiz isso uma vez, e não por Jack Fielding. Nem mesmo por mim, mas
pelo país.
Ando pelo escritório, com frio, exausta e com vergonha de mim mesma. Tiro o jaleco de Fielding do gancho no alto da porta fechada.
"Não sei o que você acha que eu não contei, Benton. Não faço ideia de com que ou com quem ele está envolvido. Nem de delírios, estados dissociativos ou perdas de
consciência. Não na minha presença, e ele nunca compartilhou informações desse tipo, se é que são verdade."
Visto o jaleco, que é imenso, e detecto um leve, mas distinto odor de eucalipto, como Vick, como Bengay.
"Talvez um transtorno de humor com um toque de narcisismo e explosões de raiva intermitentes", continua Benton como se eu não tivesse dito nada. "Ou drogas, para
aumentar o desempenho esportivo. Ele não representa bem o CFC, o que é o eufemismo do século, e isso não passou despercebido a Douglas nem a David, o que fez o CFC
começar com o pé esquerdo desde o início de novembro, quando se envolveram no sequestro e assassinato de Wally Jamison. Você pode imaginar o retorno que Briggs e
outros receberam. Jack está a um passo de estragar tudo, o que dá lugar aos oportunistas. Como eu disse, ele inicia uma mentalidade de saque."
Paro diante de uma das janelas e olho para a rua escura, coberta de neve, como se fosse descobrir alguma coisa que vá me fazer lembrar quem sou. Alguma coisa que
me dê forças, alguma coisa que me conforte.
"Ele causou muito prejuízo." É a voz de Benton atrás de mim. "Não sei se foi intencional. Mas desconfio que em parte sim, por causa do relacionamento complicado
de vocês."
A neve golpeia em ângulo acentuado, batendo quase horizontalmente na janela, produzindo estalos rápidos que lembram unhas tamborilando, ou alguma coisa impaciente
e perturbada. Quando olho para a neve que atinge o vidro, fico tonta. Olhar para ela e depois para baixo me dá vertigem.
"É disso que se trata, Benton? Do meu relacionamento complicado com ele?"
"Preciso saber. É melhor que seja eu a perguntar do que outra pessoa."
"Você está dizendo que está tudo arruinado e prejudicado por causa disso. Que essa é a raiz de tudo que está errado." Não me viro; continuo a olhar para fora e para
baixo até não aguentar mais ver os flocos esvoaçantes de neve, a rua embaixo, o rio escuro e a noite de inverno volátil. "É nisso que você acredita." Quero que ele
confirme o que acaba de dizer. Quero saber se o que foi arruinado e prejudicado enquanto estive fora inclui Benton e eu.
"Só preciso saber o que você não me contou", diz ele em resposta.
"Tenho certeza de que você e os outros precisam saber." Não digo isso com gentileza. Meu pulso acelera.
"Entendo que questões do passado não se resolvem facilmente. Entendo de complicações."
Viro-me e encontro seu olhar. O que vejo nele não são apenas casos, gente morta, minha repartição amotinada ou meu sub imprestável. Vejo a falta de confiança de
Benton em mim e em meu passado. Vejo meu marido duvidando de meu caráter e de quem sou para ele.
"Nunca dormi com Jack", anuncio. "Se é isso que você está tentando descobrir para poupar outra pessoa do constrangimento de me perguntar. Ou é com o meu constrangimento
que você está tão preocupado? Nunca dormi com ele. Isso não vai surgir, porque não aconteceu. Se é isso que você está tentando perguntar, eis a resposta. Pode passar
a informação para Briggs, para o FBI, para o procurador geral, para quem você quiser passar essa merda."
"Eu ia entender... Quando Jack foi seu colega de trabalho, quando vocês dois estavam só começando em Richmond."
"Tento não fazer do relacionamento sexual com meus orientandos uma prática", digo em um surpreendente arroubo de impaciência. "Gostaria de pensar que não sou igual
à Lawler, a mulher presa na Georgia."
"Você não conheceu Jack aos doze anos."
"Nunca aconteceu. Não faço isso com meus orientandos."
"E com seus mentores?" Os olhos de Benton estão fixos em mim enquanto continuo ao lado da janela.
"Não é por esse motivo que John Briggs e eu temos problemas", respondo com raiva.
13
Volto à escrivaninha de Fielding e torno a me sentar enquanto toco alguma coisa lisa e fina dentro de um dos bolsos do jaleco. Extraio um quadrado de plástico transparente
fino como papel.
"Os federais não precisavam ter uma primeira impressão ruim do CFC, mas estou certo de que você vai mudar isso", diz Benton como que arrependido do que acabara de
perguntar, como se lamentasse aquilo com que acabara de me confrontar no cumprimento do dever.
Cheiro o que Fielding deve ter arrancado de um emplastro de eucalipto e penso com ressentimento, É, realmente, os federais. Estou muito feliz de poder mudar o que
os federais pensam de mim.
"Não quero que você se sinta negativa com relação a tudo por aqui, tudo para o que voltou", continua Benton. "Não ia ajudar em nada. Temos muito que fazer, mas vamos
chegar lá. Sei que vamos. É uma pena que nossa conversa tenha precisado tomar certos rumos. Realmente me desculpe por ter que abordar tudo isso."
"Vamos falar de Douglas e David." Lembro os nomes aos quais se referiu momentos antes. "Quem são eles?"
"Não tenho dúvidas de que você vai prevalecer e fazer esse lugar funcionar, vai transformar o CFC no que deveria ser, uma excelente repartição, diferente de todo
o resto. Melhor do que o que existe na Austrália, na Suíça, melhor ainda do que em qualquer lugar onde fizeram isso primeiro, inclusive Dover. Tenho total confiança
em você, Kay. Quero que nunca se esqueça disso."
Quanto mais Benton me assegura de sua confiança, menos acredito nela.
"A polícia te respeita, os militares te respeitam", acrescenta, e tampouco acredito nisso.
Se fosse verdade, ele não precisaria dizer. E daí?, penso com uma hostilidade que parece ter surgido do nada. Não preciso que as pessoas gostem de mim ou me respeitem.
Não é um concurso de popularidade. Não é o que Briggs sempre diz? Não é um concurso de popularidade, coronel. Ou, quando está mais simpático, Não é um concurso de
popularidade, Kay. E abre um sorriso irônico, com um lampejo implacável de malícia nos olhos. Briggs não dá a mínima se alguém gosta dele; na realidade, adora que
as pessoas não gostem, e vou começar a gostar também. Para o inferno com todos. Sei o que preciso fazer; alguma ação é necessária. Vou fazer alguma coisa. Eles estão
pensando que vou voltar para casa e simplesmente aceitar isso, não fazer nada a respeito, deixar quem quer que seja conseguir o que quer? Não. Não mesmo. Isso não
vai acontecer. Quem quer que cogite isso não me conhece.
"Quem são Douglas e David?", torno a perguntar em tom cortante.
"Douglas Burke e David McMaster", responde Benton.
"Não conheço. Quem são eles para você?" Agora sou eu a fazer o interrogatório.
"São do escritório de Boston do FBI, do Departamento de Segurança da região metropolitana de Boston. Você não conheceu o pessoal local, não os principais, mas vai
conhecer. Inclusive a guarda costeira. Vou te ajudar a conhecer todo mundo por aqui se você deixar. Posso ser útil para variar. Senti falta de poder ser útil para
você. Sei que está aborrecida."
"Não estou aborrecida."
"Seu rosto está vermelho. Você parece aborrecida. Não quero te aborrecer. Sinto muito se foi o que fiz. Mas eu precisava saber por vários motivos."
"E está satisfeito?"
"É fundamental saber a sua posição e quem você é em tudo isso", diz ele, enquanto seguro a fina camada de plástico, um quadrado mais ou menos do tamanho de um maço
de cigarros.
Ergo-o contra a luz e vejo as impressões digitais avantajadas de Fielding na película transparente e outras menores, que devem ser minhas. Fielding tem distensões
musculares crônicas, está sempre dolorido e machucado, especialmente quando abusa de esteroides anabólicos. Quando retoma os velhos maus hábitos, cheira como uma
maldita pastilha mentolada para tosse.
"O que o Departamento de Segurança e a guarda costeira têm a ver com tudo isso?" Abro gavetas da escrivaninha, procurando por Motrin, emplastros Bengay, pomada Tiger
Balm ou o que quer que confirme minhas suspeitas.
"O corpo de Wally Jamison estava boiando no porto no Sistema de Comando de Incidentes da guarda costeira, o Comando de Apoio Integrado deles. Bem debaixo do nariz
deles. Deve ter sido o local do crime", responde Benton enquanto me observa.
"Ou o local foi o cais, que fica deserto depois de escurecer. Um dos poucos na área onde dá para ir de carro. Conheço bem aquela área. E você também. Algumas das
pessoas que trabalham lá provavelmente nos reconheceriam, passeamos por lá muitas vezes, bem em frente de onde quase nunca vamos quando conseguimos escapar, ficar
sozinhos e ser gentis um com o outro." Pareço sarcástica e má.
"Só pessoal autorizado. Posso perguntar o que você está procurando? Tenho certeza de que é alguma coisa que está bem à vista."
"Este escritório é meu. Este prédio inteiro é meu escritório. Vou procurar o que quiser, esteja ou não bem à vista." Meu pulso está disparado e me sinto agitada.
"O cais não é aberto ao público. Nem todo mundo pode ir até lá de carro", retruca Benton enquanto me observa com atenção, preocupado. "Não tive a intenção de te
aborrecer tanto assim."
"Passeamos por lá o tempo todo e ninguém pede nossa identidade. Ninguém fica de guarda com metralhadoras. É uma área turística." Estou argumentativa e combativa
e não é o que quero.
"O SCI da guarda costeira não é uma área turística. É preciso passar por um portão de guarda para sair no píer", diz Benton muito calmo, com muito bom senso, ainda
olhando para seu iPhone. Ele olha para o aparelho, depois para mim, para um e outro, atento a ambos.
"Sinto falta disso. Vamos passar alguns dias lá assim que der." Tento parecer gentil, pois estou sendo horrível. "Só nós dois."
"Vamos. Vamos fazer isso. Assim que possível", diz ele. "Vamos conversar e esclarecer tudo."
Imagino com surpreendente clareza nossa suíte preferida no Hotel Fairmont, em Battery Wharf, que se estende em direção à água como a ponta de um dedo, bem ao lado
do SCI da guarda costeira. Vejo as águas verde-escuras onduladas do porto e ouço seu marulho de encontro às estacas como se estivesse ali. Ouço o ranger das docas,
o estrépito dos cordames contra os mastros e os tons graves das buzinas dos grandes navios como se tudo fosse audível dentro do escritório de Fielding.
"E não vamos atender o telefone, vamos só caminhar, pedir serviço de quarto e ver da janela os navios, os rebocadores e os petroleiros. Eu ia adorar. Você não?"
Mas meu tom não é agradável. Pareço agressiva e furiosa.
"Vamos este fim de semana se você quiser. Se possível", diz ele enquanto lê alguma coisa no iPhone, rolando o texto para baixo com o polegar.
Afasto meu café e o canto da mesa parece arredondado, não reto. É muita cafeína e meu coração está batendo forte. Estou zonza e nervosa.
"Odeio quando você fica olhando para o telefone o tempo todo", digo antes que consiga me conter. "Você sabe que detesto isso quando estamos conversando."
"Agora não posso evitar", diz ele enquanto olha para o aparelho.
"Saindo da rua 93 e entrando na Commercial Street você chega lá", retomo a discussão. "Uma maneira conveniente de se livrar de um corpo. Levar de carro até lá e
atirar no porto. Nu, assim qualquer vestígio do porta-malas do carro, por exemplo, é eliminado." Fecho uma gaveta e soo estranha até para mim mesma quando murmuro
com ar distraído: "Emplastros para aliviar a dor. Nenhum. E também não vi nenhum nas gavetas da minha escrivaninha. Só chiclete. Nunca masquei chiclete. Bom, quando
criança. Dubble Bubble no Halloween, com o papel amarelo torcido nas pontas".
Visualizo o chiclete. Sinto seu cheiro. Minha boca se enche de água.
"Eis um segredo que nunca contei a ninguém. Eu reciclava. Mascava o chiclete e tornava a embrulhar. Durante dias, até ficar sem sabor."
Tenho água na boca e engulo várias vezes.
"Parei de mascar chiclete quando parei de pedir doces no Halloween. Está vendo, você me fez lembrar que eu pedia doces, uma coisa em que não penso há tantos anos
que não posso acreditar que tenha me vindo à cabeça. Às vezes esqueço que já fui criança. Já fui jovem, idiota e crédula."
Minhas mãos estão tremendo.
"É melhor não gostar de coisas que não se pode pagar, então não criei o hábito de mascar chiclete."
Estou trêmula.
"É melhor não parecer que cresceu na classe baixa, principalmente se de fato cresceu na classe baixa. Quando você me viu mascar chiclete? Nunca vou fazer isso. É
baixo."
"Nada em você é classe baixa." Benton me observa com atenção e cautela, e percebo o que há em seus olhos. Eu o estou assustando.
Mas não consigo me controlar. "Dei um duro danado na vida para não parecer classe baixa. Você não me conheceu quando eu estava começando e não fazia ideia de como
as pessoas realmente são, pessoas que têm total poder sobre você, pessoas que você realmente venera e que são capazes de te atrair para situações que fazem com que
você nunca mais se sinta da mesma forma consigo mesmo. E então você enterra tudo, como aquele coração batendo debaixo das tábuas do assoalho em Edgar Allan Poe,
mas sabe que está sempre lá. E não pode contar a ninguém. Mesmo que te deixe acordado à noite. Não pode contar nem mesmo à pessoa de quem você é mais chegado que
existe esse coração morto e frio debaixo das tábuas do assoalho, que ele está ali por culpa sua."
"Jesus Cristo, Kay."
"É estranho como tudo que amamos parece estar muito próximo de alguma coisa detestável e morta. Bom, nem tudo", vem-me à mente a seguir.
"Você está bem?"
"Estou ótima. Só estressada. E quem não estaria? Nossa casa fica em frente a Norton's Woods, onde alguém foi assassinado ontem, e ele talvez estivesse na Galeria
Courtauld ao mesmo tempo que Lucy e eu no verão anterior ao Onze de Setembro, que por sinal ela acha que foi causado por nós. Liam Saltz também estava lá, na Courtauld,
era um dos palestrantes. Não o conheci na ocasião, mas Lucy tem um CD dele. Não lembro sobre o que ele falou."
"Estou curioso para saber por que você mencionou esse sujeito."
"Um link em um site que Jack por algum motivo estava pesquisando."
Benton nada diz e não tira os olhos de mim.
"Você e eu vamos ao Biscuit quando estou em casa nos fins de semana, talvez a gente tenha estado lá ao mesmo tempo que Johnny Donahue e a amiga dele do MIT", continuo
e não consigo acompanhar meus pensamentos. "Adoramos Salem, os óleos e velas das lojas de lá, as mesmas lojas que vendem cravos de ferro, os ossos do diabo. Nosso
refúgio favorito em Boston fica perto de onde foi encontrado o corpo de Wally Jamison na manhã seguinte ao Halloween. Alguém está nos vigiando? Alguém sabe tudo
que fazemos? O que Jack estava fazendo em Salem no Halloween?"
"O corpo de Wally chegou aonde estava de barco, não pelo píer", responde Benton, e não sei onde obteve a informação.
"Todas essas coisas em comum. Parece que moramos em uma cidade pequena."
"Você não me parece bem."
"Tem certeza de que foi um barco? Sinto uma onda de calor." Toco meu rosto, levanto a mão de encontro a ele. "Meu Deus. Depois vai ser isso. Tanta coisa pela frente."
"O mais relevante é o fato de que alguém jogou deliberadamente o corpo onde as lanchas da guarda costeira ficam fundeadas, com guardas a bordo." Benton observa cada
movimento meu. "E perto do nascer do sol, o pessoal de apoio e outros tripulantes aparecem para trabalhar e o cais vira um estacionamento. Todas aquelas pessoas
saltaram do carro e viram o corpo mutilado boiando na água. Foi um atrevimento. Matar um menino no próprio quintal enquanto os pais estão dentro de casa é atrevimento.
Matar alguém no domingo do Super Bowl em Norton's Woods enquanto ocorria um casamento VIP é atrevimento. Fazer tudo isso na nossa comunidade é atrevimento. Claro
que é."
"Primeiro você sabe que foi um barco. Depois sabe que houve um casamento VIP, não só um casamento, mas um casamento VIP." Não pergunto, afirmo. Ele não diria se
não soubesse. "Por que Jack estava em Salem? Fazendo o quê lá? Não se consegue um quarto de hotel em Salem no Halloween. Não dá nem para andar de carro, de tanta
gente."
"Você tem certeza de que está bem?"
"Você acha que isso é pessoal?", pergunto, obcecada com o quanto o mundo é pequeno. "Volto para casa e essa é minha recepção. Toda essa feiura, morte, falsidade
e traição cai praticamente no meu colo."
"Até certo ponto, sim", diz Benton.
"Bom, obrigada por isso."
"Eu disse 'até certo ponto'. Não tudo."
"Você disse que acha que é pessoal. Quero saber exatamente de que forma."
"Tente se acalmar. Respire devagar." Ele tenta pegar minha mão, mas não vou permitir que me toque. "Calma, Kay."
Afasto-me e ele torna a pousar a mão no iPhone, que emite um lampejo a cada dois segundos à medida que as mensagens chegam. Não quero que ele me toque. É como se
eu não tivesse pele.
"Não tem nada para comer nesse lugar? Posso mandar buscar alguma coisa", diz Benton. "Talvez seja hipoglicemia. Quando você comeu pela última vez?"
"Não. Eu não ia conseguir comer agora. Vou ficar bem. Por que você disse VIP?", ouço-me perguntar.
Ele torna a olhar para o celular, a luzinha emitindo seu alerta. "Anne", informa ele quando lê o que acaba de entrar. "Ela está a caminho, deve chegar em poucos
minutos."
"O que mais? Posso baixar o exame aqui, dar uma olhada."
"Ela não enviou. Tentou ligar para você. Mas você não estava na mesa. Havia agentes infiltrados no casamento. Protegendo um VIP, mas é evidente que não era ele quem
precisava de proteção", diz Benton. "Ninguém estava prestando atenção a quem precisava de proteção. Não sabíamos que ele ia estar lá."
Respiro fundo outra vez e tento diagnosticar um ataque cardíaco, se estou tendo um infarto.
"Os agentes viram o que aconteceu?" Mount Auburn é o hospital mais próximo. Não quero ir para o hospital.
"Os que estavam posicionados nas portas externas não estavam olhando para o sujeito e não viram o que aconteceu. Viram gente correndo em volta dele quando caiu.
Não havia motivo para que se interessassem por ele, então mantiveram seu posto. Era o que tinham que fazer, caso aquilo fosse alguma manobra para desviar a atenção.
Os agentes sempre mantêm o posto quando estão em um destacamento de segurança; com raras exceções, não se afastam."
Concentro-me no desconforto no centro de meu peito e em minha falta de ar. Estou suada e zonza, mas não sinto dor nos braços. Nem nas costas. Nem no maxilar. Não,
dor irradiada e ataques cardíacos não causam pensamentos distorcidos e contemplo minhas mãos. Conservo-as a minha frente, como se enxergasse o que há nelas.
"Quando você se encontrou com Jack na semana passada, ele cheirava a mentol?", pergunto. "Onde ele está? O que ele fez exatamente?"
"Qual é o problema do mentol?"
"Emplastros extrafortes de mentol, emplastros Bengay, alguma coisa assim." Me levanto da mesa de Fielding. "Quando ele está usando isso e cheira a eucalipto e mentol
em geral é uma indicação de que está se excedendo fisicamente, detonando-se na academia, nos torneios de tae kwon do, tem dores crônicas e agudas musculares e articulares.
Esteroides. Quando Jack está usando esteroides... Esse sempre foi o prelúdio para outras coisas."
"Com base no que vi na semana passada, ele está usando alguma coisa."
Já estou despindo o jaleco de Jack. Dobro-o em um quadrado perfeito, que deixo em cima da mesa.
"Tem algum lugar onde você possa se deitar?", pergunta Benton. "Acho que você devia. Nos quartos do plantão lá embaixo. Tem uma cama. Não posso te levar para casa.
Você não pode ir para lá agora. Não quero que saia desse prédio, não sem mim."
"Não preciso me deitar. Não vai resolver. Vai piorar." Entro no banheiro de Fielding e pego um saco de lixo embaixo da pia.
Benton está de pé, vendo o que estou fazendo, de olho em mim enquanto enfio o jaleco dobrado dentro do saco de lixo e retorno ao banheiro. Esfrego as mãos e o rosto
com sabão e água quente. Lavo todas as áreas de pele que podem ter entrado em contato com a película plástica que encontrei no bolso do jaleco de Fielding.
"Drogas", anuncio quando torno a me sentar.
Benton retorna à sua cadeira, tenso, como se pudesse se levantar de um salto novamente.
"Alguma coisa transdérmica que com certeza não é Motrin. Não sei o que é, mas vou descobrir", informo.
"O pedaço de plástico que você estava apalpando."
"A menos que você tenha envenenado meu café."
"Um adesivo de nicotina?"
"Você não me envenenou, não é? Se não quer mais estar casado, existem soluções mais simples."
"Não vejo por que ele usaria nicotina, a não ser como estimulante. Imagino que sim. Alguma coisa desse tipo."
"Não é nada desse tipo. Eu vivia a base de adesivos de nicotina e nunca me senti assim, nem quando acendia um cigarro usando adesivos de vinte e um miligramas. Uma
verdadeira viciada. Essa sou eu. Mas não drogas, não o que quer que seja isso. O que ele fez?"
Benton contempla sua caneca de café, delineando o símbolo do AFMES na cerâmica preta vitrificada. Seu silêncio confirma minhas suspeitas. Seja no que for que Fielding
esteja envolvido, está ligado a tudo mais: a mim, a Benton, a Briggs, ao jogador de futebol americano morto, ao menino morto, ao homem de Norton's Woods, aos soldados
mortos da Inglaterra e de Worcester. Como aviões iluminados à noite, conectados a uma torre, em um padrão, por vezes parecendo estar suspensos no escuro, mas tendo
estado em algum lugar e indo a algum lugar, forças individuais que fazem parte de algo maior, algo incompreensivelmente grande.
"Você precisa confiar em mim", diz Benton baixinho.
"Briggs fez contato com você?"
"Vêm acontecendo certas coisas há algum tempo. Você está bem? Não quero sair antes de saber que sim."
"Foi para isso que treinei, fiz tantos sacrifícios." Decido aceitar a situação. A aceitação me facilita saber o que fazer. "Passei seis meses afastada de você, afastada
de todos, abrindo mão de tudo para poder voltar para casa e para alguma coisa que já vem funcionando há algum tempo. Um projeto."
Quase acrescento exatamente como no começo, quando eu mal era patologista forense e era muito ingênua para ter ideia do que estava acontecendo. Quando prontamente
saudava e respeitava a autoridade e, pior, confiava nela e, muito pior, acatava, e ainda pior que isso, admirava, e o pior de tudo, admirava tanto John Briggs que
faria qualquer coisa que ele quisesse, absolutamente qualquer coisa. De alguma forma consegui acabar no mesmo lugar. Outra vez a mesma coisa. Um projeto. Mentiras
e mais mentiras, e gente inocente que é descartável. Crimes tão friamente cometidos quanto qualquer outro que eu já tenha visto. Joanne Rule e Noonie Pieste surgem
claras em minha mente, tão reais quanto sempre foram.
Vejo-as em macas amassadas, com ferrugem nas juntas soldadas e rodinhas; lembro que meus pés grudavam ao percorrer o velho piso de pedra branca que não se conservava
limpo. O necrotério da Cidade do Cabo estava sempre ensanguentado, com corpos por toda parte, e na semana que passei ali, vi casos tão estranhamente extremos quanto
o continente em sua magnífica beleza. Pessoas atingidas por trens, atropeladas na estrada, mortes domésticas e ocasionadas por drogas nas favelas, um ataque de tubarão
na baía False e um turista morto em uma queda na montanha Table.
Tenho a ideia irracional de que se descer e entrar em minha geladeira, os corpos daquelas duas mulheres assassinadas estarão me esperando por exatamente como naquela
manhã de dezembro depois de eu ter voado dezenove horas em uma poltrona apertada para encontrá-las. Só que elas já haviam sido examinadas quando me apresentei, e
isso teria sido verdade se eu houvesse voado em Mach II no Concorde ou estivesse a um quarteirão de distância quando elas foram assassinadas. Não consegui chegar
com rapidez suficiente. Os corpos poderiam muito bem fazer parte de algum filme, de tão simulados. Jovens inocentes assassinadas por uma notícia, por questões de
poder, influência e votos, e não consegui impedir.
Não só não consegui impedir, mas ajudei a fazer com que acontecesse, porque permiti isso e recordo o que a mãe do soldado de primeira classe Gabriel declarou a respeito
de crimes movidos por preconceito e de ser recompensado por eles. Meu escritório em Dover fica bem ao lado da suíte de comando de Briggs. Lembro que alguém passou
várias vezes por minha porta fechada enquanto eu conversava com ela. Quem quer que tenha sido parou pelo menos duas vezes. Na hora me passou pela cabeça que alguém
estivesse esperando para entrar, mas podia ouvir através da porta que eu estava ao telefone e não queria interromper. O mais provável é que alguém estivesse escutando.
Briggs, ou alguém aliado a ele, havia posto alguma coisa em movimento e Benton está certo, vem acontecendo há algum tempo.
"Então os últimos seis meses nada mais foram que uma manobra política. Que triste. Que coisa de mau gosto. Que decepção." Minha voz é firme e pareço completamente
calma, do jeito que fico antes de fazer alguma coisa.
"Você está bem? Porque precisamos descer se você estiver. Anne está aqui. Temos que conversar com ela e depois vou sair." Benton se levantou e está perto da porta,
esperando por mim com o telefone na mão.
"Me deixe adivinhar. Briggs garantiu que eu conseguisse essa colocação para poder manter o lugar aberto para quem quer que ele realmente tenha em mente", prossigo,
e meu coração desacelerou e meus nervos parecem mais calmos, como se funcionassem normalmente outra vez. "Queria que eu mantivesse a cadeira quente. Ou fui eu a
desculpa para construir este lugar, conseguir o apoio do MIT, de Harvard, de todo mundo, para justificar uns trinta milhões em subvenções?"
Benton lê mais alguma coisa à medida que as mensagens surgem do nada, uma após a outra.
"Ele poderia ter evitado muitos problemas", digo ao levantar da mesa.
"Você não vai desistir", diz Benton, lendo o que alguém acaba de enviar. "Não dê a eles essa satisfação."
"Eles. Então é mais de um."
Benton não responde enquanto digita com os polegares.
"Bom, sempre foi mais de um. É só escolher", digo enquanto saímos juntos.
"Se desistir, você vai dar a eles exatamente o que querem." Ele lê e rola o texto para baixo no telefone.
"Gente assim não sabe o que quer." Fecho a porta do escritório de Fielding atrás de nós, certificando-me de que esteja trancada. "Só pensa que sabe."
Damos início à descida no prédio em forma de bala dundum, que, em noites escuras e dias tristes, é cor de chumbo.
Conto a Benton sobre a escrita marcada no bloco de notas enquanto descemos em um elevador que pesquisei e escolhi por reduzir em cinquenta por cento o consumo de
energia. O interesse de Fielding na palestra que o dr. Liam Saltz proferiu em Whitehall não pode ser coincidência, digo enquanto os números mudam em um mostrador
digital, à medida que descemos suavemente andar por andar sob o brilho ameno dos LEDs em meu elevador ecológico que, pelo que ouvi, ninguém que trabalha aqui aprecia
por pouco que seja. Há muitas queixas porque a máquina é lenta.
"Ele é um extremo e a DARPA é certamente o outro; nenhum dos dois está sempre certo, isso com certeza." Descrevo o dr. Saltz como um cientista da computação, engenheiro,
filósofo, teólogo, cuja arte certamente não é a guerra. Ele detesta guerras e aqueles que as promovem.
"Sei tudo sobre ele e sua arte." Benton não diz isso de forma positiva enquanto paramos com suavidade e as portas de aço se abrem praticamente sem ruído. "É lógico
que lembro aquela vez na CNN que você e eu discutimos por causa dele."
"Não me lembro de ter discutido." Voltamos à recepção, onde Ron está firme e atento atrás da divisória de vidro, exatamente como o deixamos há muitas horas.
Em monitores de vídeo divididos, vejo carros parados no estacionamento atrás do prédio, utilitários que não estão cobertos de neve e têm os faróis acesos. Agentes
ou policiais à paisana, e recordo as janelas iluminadas nos prédios do MIT que se erguem acima da cerca do CFC, lembro-me de ter percebido isso na hora que Benton
entrou com o carro e agora sei por quê. O CFC tem estado sob vigilância e o FBI, a polícia, não estão fazendo nenhum esforço para disfarçar sua presença agora. Tenho
a impressão de que o local está interditado.
Desde que saí do necrotério em Dover, estou acompanhada ou trancada dentro de algum prédio protegido, e o motivo não é o que foi apresentado, pelo menos não o único.
Ninguém estava tentando me trazer para casa o mais rápido possível por causa de um corpo sangrando na geladeira. Isso era uma prioridade, mas certamente não a única
e talvez nem mesmo a mais importante. Certas pessoas usaram isso como desculpa para me escoltar, certas pessoas como minha sobrinha, que estava armada e brincando
de guarda-costas, e não acredito que Benton não esteja envolvido nessa decisão, não importa o que sabia ou não na ocasião.
"Talvez lembre que ele deu em cima de você", esclarece Benton à medida que percorremos o corredor cinza.
"Você parece estar achando que transo com todo mundo."
"Não com todo mundo", diz ele.
Sorrio. Quase solto uma gargalhada.
"Você está se sentindo melhor", diz ele, tocando meu braço com delicadeza enquanto caminha comigo.
O que quer que eu tenha sentido passou e eu gostaria que não fosse uma hora tão desolada da manhã. Gostaria que houvesse alguém no laboratório de vestígios de provas
para que pudéssemos dar uma olhada na película plástica à qual fui exposta, provavelmente tentar primeiro o microscópio eletrônico de varredura, depois a espectroscopia
no infravermelho ou quaisquer detectores necessários para descobrir o que há nos emplastros de Fielding para dor. Nunca tomei esteroides anabólicos e não sei em
primeira mão como ia me sentir, mas imagino que não seja o que senti lá em cima. Não com tanta rapidez.
Cocaína, cristais de metanfetamina, LSD, qualquer coisa poderia entrar em meu organismo instantaneamente por via transdérmica, com sorte espero que nada disso, mas
o que sei sobre como ia me sentir? Não foi um opiáceo como Fentanil, que é o narcótico mais comum liberado por emplastros. Um analgésico forte como Fentanil não
me faria reagir da forma que reagi, mas, novamente, não tenho certeza. Nunca usei Fentanil. Cada pessoa reage de forma diferente a medicamentos e substâncias não
controladas podem estar contaminadas por impurezas e apresentar doses variáveis.
"Sério. Já está parecendo você mesma." Benton me toca outra vez. "Como está se sentindo? Tem certeza de que está bem?"
"Já passou, o que quer que tenha sido. Eu não cuidaria do caso se não fosse assim, se estivesse me sentindo debilitada, mesmo que só um pouco", respondo. "Acho que
você também vai para a sala de autópsias", observo, já que estamos indo para lá.
"Um drinque. Certo." Benton está de volta a Liam Saltz. "Ele dá de cara com você na CNN e te convida para tomar um drinque com ele à meia-noite. Isso não é exatamente
normal."
"Não sei bem como entender essa situação. Mas não estou me sentindo lisonjeada."
"A reputação dele com as mulheres é igual a de certos políticos que não vou nomear. Qual é o jargão hoje? Comportamento sexual compulsivo?"
"Bom, se você está dizendo..."
Passamos pela sala de raios X e a porta está fechada, a luz vermelha, apagada, pois o aparelho não está em uso. O andar inferior está vazio e silencioso e me pergunto
por onde anda Marino. Talvez esteja com Anne.
"Ele fez contato com você desde então? Isso foi quando? Há dois anos?", pergunta Benton. "Ou talvez com algum colega seu no Walter Reed ou em Dover?"
"Não comigo. Não sei quanto aos outros, a não ser que ninguém envolvido com as Forças Armadas seja fã do dr. Saltz. Ele não é considerado patriota, o que na verdade
não é justo se você analisa o que ele está realmente dizendo."
"O problema é que ninguém mais parece entender o que as pessoas estão dizendo. As pessoas não ouvem. Saltz não é comunista. Não é terrorista. Não cometeu traição.
Só não sabe controlar seu entusiasmo e calar aquela boca grande. Mas ele não é de interesse para o governo. Bom, não era."
"De repente é", suponho que seja o que Benton vá me dizer a seguir.
"Ele não estava em Whitehall ontem. Não estava nem mesmo em Londres." Benton espera até agora, que paramos diante das portas de aço duplas trancadas da sala de autópsias,
para me informar isso. "Acho que você não encontrou essa parte na internet quando estava tentando decifrar as marcas da escrita de Jack", acrescenta em um tom matizado
de outros significados. Com uma pitada de hostilidade, não dirigida a mim, mas a Fielding.
"Como você sabe onde Liam Saltz estava ou não estava?", pergunto ao mesmo tempo que penso no que Benton mencionou lá em cima. Ele se referiu ao evento em Norton's
Woods como um casamento VIP e fez menção à presença de seguranças. Agentes infiltrados, disse, ainda que durante um intervalo em que eu não estava pensando com a
devida clareza.
"Ele fez o discurso via satélite em uma grande tela de vídeo, para o pessoal em Whitehall", diz Benton como se houvesse comparecido. "Teve uma complicação, um assunto
de família, e teve que deixar o país."
Penso no homem atrás das portas de aço fechadas. Um homem cujo relógio de pulso, quando morreu, talvez estivesse ajustado ao horário da Inglaterra. Um homem com
um velho robô chamado MORT em seu apartamento, o mesmo contra o qual Liam Saltz e eu testemunhamos, convencendo as pessoas que se achavam no poder a proibir sua
utilização.
"Era por isso que Jack estava pesquisando o dr. Saltz, pesquisando o RUSI ou o que quer que estivesse fazendo ontem de manhã?", pergunto enquanto digitalizo o polegar
para destrancar a sala de autópsias.
"Fico me perguntando como aconteceu, se Jack recebeu um telefonema e então fez a pesquisa ou se, por algum motivo, sabia que o dr. Saltz estava em Cambridge", responde
Benton. "Fico me perguntando um monte de coisas que espero que sejam respondidas em breve. O que sei é que o dr. Saltz estava aqui para o casamento. Da filha da
atual mulher, que devia ser entregue ao noivo pelo pai biológico, que pegou gripe suína."
"Eu te enviei uma mensagem de texto", diz Anne, dirigindo-se a mim. Ela está envolta em azul enquanto trabalha no computador confinado em um compartimento de aço
inoxidável à prova d'água, o teclado lacrado instalado a uma altura adequada para digitar em pé. Atrás dela, na mesa de autópsias da estação um, que agora está limpa
e reluzente, encontra-se o homem de Norton's Woods.
"Peço desculpas", digo em tom distraído enquanto penso em Liam Saltz e temo a ligação que possa ter com o morto, afora os robôs, particularmente o MORT. "Meu telefone
ficou no escritório e eu não estava lá", explico a Anne. Então pergunto a Benton: "Ele tem outros filhos?".
"Está no Hotel Charles", retruca Benton. "Alguém está a caminho para conversar com ele. Mas, respondendo sua pergunta, tem. Tem vários filhos e enteados de múltiplos
casamentos."
"Eu queria que você soubesse que não me senti segura para fazer o upload dos exames dele para enviar por e-mail", diz Anne. "Não sei com o que estamos lidando e
achei melhor não correr o risco. Se vai ficar por aqui, você precisa de proteção", diz ela, dirigindo-se a Benton. "Não faço ideia de a que esse sujeito foi exposto,
mas ele não disparou nenhum alarme. Pelo menos, não está radioativo. E o que quer que exista dentro dele também não, graças a Deus."
"Imagino que tudo tenha corrido tranquilamente no hospital. Sem incidentes", diz Benton. "Eu não vou ficar."
"O segurança nos escoltou para entrar e sair, e não vimos mais ninguém... nenhum paciente, nenhum funcionário."
"Você encontrou alguma coisa nele?", pergunto.
"Vestígios de metal." As mãos enluvadas de Anne se movem sobre o teclado do computador e clicam o mouse, tendo ambos recebido uma camada recente de silicone industrial.
A presença desleixada de Fielding se acha visivelmente ausente da sala de autópsias e vejo água na pia da estação um - a minha - e uma esponja grande; os instrumentos
cirúrgicos estão limpos, resplandecentes e impecavelmente arrumados no tabuleiro de dissecção. Vejo um esfregão que não estava aqui mais cedo e uma pedra de amolar
sobre uma bancada.
"Estou impressionada", digo a Anne, olhando ao redor.
"Ollie", retruca ela, clicando no mouse. "Liguei para ele e ele voltou e ajeitou o lugar."
"Você está brincando."
"Não que a gente não tenha tentado enquanto você esteve fora. Mas Jack tem usado esse espaço de trabalho e aprendemos a manter distância."
"Como pode haver metal que não apareceu na TC?" Benton a observa enquanto ela percorre os arquivos que criou no laboratório de neuroimagem, à procura das imagens
de ressonância magnética que deseja.
"Se os pedaços forem muito pequenos", eu explico. "De menos de meio milímetro, não seria detectado na TC. Foi por isso que quisemos descartar a possibilidade fazendo
a ressonância magnética que, ao que tudo indica, foi uma coisa boa."
"Mas talvez não se ele estivesse vivo", diz Anne, clicando em um arquivo. "Você não vai querer que haja nada ferromagnético em uma pessoa viva, porque o objeto vai
girar. Vai se mover. Como os fragmentos de metal nos olhos de quem exerce uma profissão com esse risco. Elas talvez nem saibam até fazer uma ressonância. Aí ficam
sabendo, ah, se ficam. Ou quando têm piercings no corpo e não dizem nada; já vimos isso várias vezes", ela diz a Benton. "Ou, Deus me livre, um marca-passo. O metal
se movimenta e aquece."
"Teorias?", pergunto a Anne, pois não consigo imaginar um evento ou uma arma que produza o que acaba de ocupar a tela de vídeo.
"Seu palpite é tão bom quanto o meu", responde ela enquanto examinamos as imagens de alta resolução das lesões internas do morto, uma área escura distorcida de ausência
de sinal que começa no interior do ferimento semelhante a uma casa de botão e torna-se cada vez menos pronunciada quanto mais profunda a penetração nos órgãos e
nas estruturas de tecidos moles do tórax.
"Por causa do campo magnético, mesmo com o que devem ser partículas minúsculas, você vai perceber o artefato. Bem aqui", chamo a atenção de Benton. "Essas áreas
muito escuras e distorcidas onde não há penetração de sinal. Você percebe o artefato ao longo do prolongamento da ferida, do que sobrou do prolongamento da ferida,
porque o sinal foi apagado pelo metal. Ele tem algum tipo de corpo estranho ferromagnético dentro dele."
"O que pode provocar isso?", pergunta Benton.
"Vou ter que recolher uma parte e analisar." Penso no que Lucy disse a respeito dos flybots. Seriam tão ferromagnéticos quanto projéteis, ambos compósitos de metal
tendo em comum o óxido de ferro.
"Meio? Do tamanho de uma partícula de poeira?" Os olhos de Benton estão distraídos por outros pensamentos.
"Um pouco maior", responde Anne.
"Mais ou menos do tamanho dos resíduos de um disparo, de grãos de pólvora que não queimaram", acrescento.
"Um projétil como uma bala poderia ser reduzido a fragmentos não maiores que os grãos de pólvora de um disparo", reflete Benton, e percebo que está relacionando
o que estou dizendo a outra coisa. Penso em minha sobrinha e me pergunto o que exatamente ela disse a Benton enquanto os dois estavam juntos no laboratório dela
esta manhã. Penso em arpões e nanoexplosivos, mas não há lesões térmicas, nenhuma queimadura. Não faz sentido.
"Nenhum projétil que eu já tenha visto", diz Anne, e concordo. "Sabemos mais alguma coisa sobre quem ele é?" Ela está se referindo ao corpo sobre a mesa. "Não é
minha intenção bisbilhotar."
"Espero que em breve", responde Benton.
"Você parece ter alguma ideia", diz Anne.
"Nossa primeira pista é que ele deu as caras em Norton's Woods ao mesmo tempo que o dr. Saltz estava no prédio, e isso foi verificado por causa de certos interesses
que esses dois indivíduos teriam em comum." Imagino que esteja se referindo aos robôs.
"Acho que não sei quem é ele", diz Anne.
"Um cientista que ganhou o prêmio Nobel e mora fora do país", explica Benton e, quando o observo com Anne, lembro que os dois são colegas e amigos, que ele a trata
com uma familiaridade fácil, com uma confiança que não demonstra perto da maioria das pessoas. "E se ele" - Benton indica o morto - "sabia que o dr. Saltz vinha
a Cambridge, a questão é: como?"
"Sabemos se ele sabia disso?", pergunto.
"Neste momento, não temos certeza."
"Então o dr. Saltz estava no casamento. Mas esse aqui não estava vestido para um casamento." Anne aponta para o corpo nu sobre a mesa. "Ele estava com o cachorro.
E uma arma."
"O que sei até agora é que foi um casamento diferente", informa Benton, como se esse detalhe tivesse sido cuidadosamente verificado. "O pai da noiva, que deveria
entregar a filha, ficou doente. Então ela pediu de última hora ao padrasto, o dr. Saltz, que não podia estar fisicamente em dois lugares ao mesmo tempo. Ele chegou
a Boston de avião no sábado e fez sua apresentação em Whitehall via satélite. Um sacrifício da parte dele. Tenho certeza de que a última coisa que queria fazer era
entrar outra vez nos Estados Unidos e dar as caras em Cambridge."
"Os agentes secretos?", pergunto. "Eram para ele? Nesse caso, por quê? Sei que tem inimigos, mas por que o FBI ofereceria proteção a um cientista civil do Reino
Unido?"
"Essa era a ironia", diz Benton. "A segurança no evento não tinha nada a ver com ele, mas com os convidados do casamento, a maioria ingleses, por causa da família
do noivo. Ele é o filho de Russell Brown, David. Tanto Ruth, enteada de Liam Saltz, quanto David cursaram direito em Harvard, que foi um dos motivos para que o casamento
tenha ocorrido aqui."
Russell Brown. O secretário de Estado de Defesa, cujo discurso acabei de ler no site do RUSI.
"Ele aparece em um evento como esse e está armado", digo ao me aproximar da mesa de aço. "Uma arma com o número de série apagado."
"Certo. Por quê?", pergunta Benton. "Para se proteger, ou ele era um possível agressor? Ou para se proteger por um motivo não relacionado ao casamento e às pessoas
que acabo de mencionar?"
"Talvez tenha a ver com a tecnologia ultrassecreta com a qual ele estava envolvido", sugiro. "Tecnologia que vale muito dinheiro", acrescento. "Tecnologia pela qual
as pessoas são capazes de matar."
"E talvez tenham matado", diz Anne, olhando para o jovem morto.
"Temos esperança de descobrir isso em breve", diz Benton.
Olho para o morto, deitado de costas, rígido, os dedos curvos, braços, pernas, mãos e cabeça exatamente na mesma posição de antes, independentemente do quanto o
agitaram durante o transporte e os exames. O rigor mortis é total, mas ele não vai oferecer muita resistência quando eu o examinar, pois é magro. Não possui muita
fibra muscular para armazenar os íons de cálcio depois que os neurotransmissores deixaram de funcionar. Posso movê-lo com facilidade. Dobrá-lo à minha vontade.
"Preciso ir", diz Benton. "Sei que você quer cuidar disso. Vou precisar de ajuda com uma coisa quando você estiver pronta para sair daqui, mas não vá embora sozinha.
Prometa que ela vai me ligar", ele pede a Anne, que está etiquetando tubos de ensaio e recipientes de amostras. "Ligue para mim ou para Marino", acrescenta. "Avise
com uma hora de antecedência."
"Marino vai estar com você...?", começo a perguntar.
"Estamos trabalhando em uma coisa. Ele já está lá."
Não pergunto mais a Benton a que está se referindo quando fala no plural; ele me olha mais uma vez, seus olhos encontrando os meus com a intimidade de um toque prolongado,
então deixa a sala de autópsias. Ouço o som cada vez mais afastado de seus passos acelerados ao longo do corredor de ladrilhos, depois sua voz e outra voz enquanto
ele conversa com alguém, possivelmente Ron. Não consigo entender uma palavra do que dizem, mas eles parecem sérios e intensos antes que o silêncio retorne de forma
abrupta. Imagino que Benton já tenha deixado a recepção e fico surpresa ao vê-lo em um monitor de vídeo. Captado pelas câmeras de segurança, ele atravessa um vão
enquanto fecha o casaco de lã que lhe dei há tanto tempo que não recordo o ano, só sei que foi em Aspen, onde ele tinha uma casa.
No circuito fechado de TV, vejo Benton abrir a porta lateral que fica perto da porta industrial maciça, então outra câmera o capta fora do prédio enquanto passa
pelo utilitário verde estacionado em minha vaga. Ele entra em um utilitário diferente, escuro, grande, com faróis resplandecentes que a neve golpeia e limpadores
de para-brisa que se deslocam de um lado a outro; não consigo enxergar quem está dirigindo. Em meu estacionamento coberto de neve, vejo o utilitário dar ré, avançar,
ficar parado enquanto o portão grande se abre e por fim desaparecer no mau tempo às quatro da manhã, uma hora completamente estéril, com meu marido no assento do
passageiro, conduzido por alguém, talvez seu amigo Douglas do FBI, ambos partindo rumo a um destino do qual, por alguma razão, não fui informada.
14
Na antecâmara, eu me preparo para a batalha como de costume, vestindo a armadura feita de plástico e papel.
Nunca me sinto uma médica, nem mesmo uma cirurgiã, ao me preparar para realizar um exame post mortem, e desconfio que só pessoas que lidam com a morte como meio
de vida consigam entender o que quero dizer. Durante minhas residências na faculdade de medicina, eu não era diferente dos demais médicos, cuidando de doentes e
feridos nas alas e salas do pronto-socorro e ajudando nos procedimentos cirúrgicos nas salas de operações. Portanto, sei o que é incisar corpos quentes com pressão
sanguínea e algo vital a perder. O que estou prestes a fazer não poderia ser mais diferente disso, e a primeira vez que inseri a lâmina de um bisturi na carne fria
e insensível, que fiz minha primeira incisão em Y em um paciente morto, abri mão de alguma coisa que nunca mais recuperei.
Abandonei qualquer noção de ser mais divina, heroica ou talentosa que os outros mortais. Rejeitei a fantasia de ser capaz de curar qualquer criatura, inclusive a
mim mesma. Nenhum médico tem o poder de fazer o sangue coagular, de regenerar um tecido ou um osso, de reduzir um tumor. Nós não criamos, apenas fazemos com que
as funções biológicas trabalhem ou não da forma correta por conta própria e, nesse aspecto, os médicos são mais limitados que os mecânicos e engenheiros, que de
fato criam alguma coisa a partir do nada. A escolha de uma especialidade médica que minha mãe e minha irmã ainda consideram mórbida e anormal provavelmente me tornou
mais honesta que a maioria dos médicos. Sei que quando administro meu poder curativo aos mortos eles permanecem inalterados por mim e meus métodos. Continuam tão
mortos quanto antes. Não agradecem, não mandam cartões de boas festas, nem batizam os filhos em minha homenagem. É claro que eu estava ciente de tudo isso quando
optei por patologia, o que é o mesmo que você dizer que sabe o que é o combate quando se alista na Marinha e então ser mobilizado para as montanhas do Afeganistão.
Na realidade, as pessoas desconhecem as situações até que de fato aconteçam.
Nunca consigo sentir o cheiro acre, oleoso e penetrante do formaldeído não diluído sem recordar o quanto fui ingênua ao supor que a dissecção de um cadáver doado
à ciência para fins pedagógicos assemelhava-se à autópsia de uma pessoa não embalsamada cuja causa da morte é questionada. Realizei a primeira no necrotério do hospital
Hopkins, local rudimentar comparado ao que há nesta sala onde, neste minuto, estou dobrando meu uniforme do AFMES e o depositando sobre um banco, sem me importar
com o vestiário ou o recato a esta hora. A mulher, de cujo nome ainda me lembro, tinha somente trinta e três anos e deixou dois filhos pequenos e o marido ao morrer
de complicações pós-operatórias de uma apendicectomia.
Até hoje lamento que ela tenha sido meu projeto. Lamento que tenha sido colocada na posição de ser objeto de estudo de qualquer residente de patologia e me lembro
de ter pensado no absurdo de um ser humano tão jovem e saudável ter sucumbido a uma infecção causada pela remoção de uma bolsa vermicular inútil do intestino grosso.
Eu queria fazê-la melhorar. Enquanto trabalhava, praticava nela, queria que recobrasse os sentidos e saltasse daquela mesa de aço arranhada no centro do piso sujo
no interior daquela sala subterrânea sombria que cheirava a morte. Eu a queria viva, bem e consciente de que eu tinha alguma coisa a ver com isso. Não sou cirurgiã.
O que faço é exumar a fim de justificar minhas posições quando entro em guerra com assassinos ou, de forma menos dramática e mais habitual, com advogados.
Anne foi atenciosa o bastante e encontrou um jaleco cirúrgico recém-lavado tamanho médio e no verde institucional ao qual estou acostumada; eu o visto e então, por
cima, coloco um avental descartável, que amarro firmemente antes de extrair protetores para sapatos de um dispensador e cobrir os sapatos de borracha que Anne descobriu
em algum lugar. Em seguida vêm a touca e as mangas protetoras, uma máscara, uma viseira e, por fim, luvas.
"Talvez você possa escrever para mim", peço ao retornar à sala de autópsias, um espaço grande e vazio de um branco reluzente e aço brilhante. Estamos só os três
aqui se eu incluir meu paciente na primeira mesa. "Para o caso de eu não conseguir ditar minhas conclusões logo depois, já que parece que vou ter que sair."
"Não sozinha", lembra ela.
"Benton levou as chaves do carro", recordo.
"Isso não é nenhum empecilho, já que temos veículos, então não tente me enganar. Quando for a hora, vou ligar para ele e não vamos discutir." Anne consegue dizer
quase qualquer coisa sem parecer desrespeitosa ou grosseira.
Ela bate fotografias enquanto colho material da entrada do ferimento na região lombar. Em seguida, colho material dos orifícios do corpo para a hipótese remota de
que este homicídio envolva agressão sexual, embora eu não veja como, com base no que foi descrito.
"Estamos procurando um unicórnio." Lacro os esfregaços anais e orais em envelopes de papel, que rotulo e rubrico. "Não um pônei comum, e de qualquer forma não vou
acreditar em nada, já que não fui à cena do crime."
"Bom, ninguém foi", diz Anne. "O que é uma vergonha."
"Mesmo que alguém tivesse ido até lá, eu continuaria a procurar um unicórnio."
"Você não tem culpa. Eu não confiaria em nada do que as pessoas estão dizendo se fosse você."
"Se você fosse eu." Coloco uma lâmina nova em um bisturi enquanto ela enche de formalina um jarro plástico etiquetado.
"A menos que fosse eu que estivesse falando", retruca ela sem olhar para mim. "Eu não mentiria, não enganaria, não usaria coisas que não são minhas. Nunca trataria
esse lugar como se me pertencesse. Não importa. Eu não devia ter tocado nesse assunto."
Não vou permitir que Anne faça isso. Não é necessário colocá-la nessa situação, a de trair as pessoas que me traíram. Conheço a sensação de ser colocada nessa posição.
É um dos piores sentimentos que existem e promove mentiras, abertamente ou por omissão, sensação que também conheço. Uma mentira que se aloja intacta no âmago do
seu ser como o milho não digerido encontrado em múmias egípcias. Não há como se livrar de uma coisa dessas, como desfazê-la sem entrar na questão, e não sei ao certo
se tenho coragem para isso quando penso nos degraus de madeira gasta que conduzem ao porão da casa em Cambridge. Penso nas paredes de pedra bruta debaixo da terra
e no cofre de seiscentos e oitenta quilos com sua porta de cinco centímetros de espessura com combinação tripla.
"Imagino que você não tenha ouvido comentários sobre onde anda todo mundo", digo em seguida. "Quando esteve com Marino no McLean." Inicio a incisão em Y, cortando
de clavícula a clavícula, então desço longa e profundamente em linha reta com um ligeiro desvio em torno do umbigo, terminando no osso púbico na parte inferior do
abdome. "Você faz ideia de quem está no nosso estacionamento e do que está acontecendo? Já que pareço estar em prisão domiciliar por motivos que ninguém se sentiu
inclinado a esclarecer completamente."
"O FBI." Anne não diz nada que eu já não saiba enquanto vai até a parede onde há pranchetas penduradas em ganchos ao lado das prateleiras plásticas para os formulários
e diagramas em branco. "Pelo menos dois agentes no estacionamento, e um nos seguiu. Alguém seguiu." Ela recolhe a papelada de que precisa e escolhe uma prancheta
depois de se certificar de que a esferográfica presa a ela por um cordão tem tinta. "Um detetive, um agente. Não sei quem nos seguiu ao hospital, mas foi alguém
que alertou a segurança antes de a gente chegar." Ela retorna à mesa. "Quando chegamos ao laboratório de neuroimagem, havia três seguranças do McLean, mais emoção
do que eles já tiveram em anos. E então essa pessoa em um utilitário, um Ford, um Explorer ou um Expedition azul-escuro."
Talvez o veículo no qual Benton partiu. Pergunto a Anne: "Ele ou ela saltou do carro? Imagino que você não tenha conversado com quem quer que seja". Puxo para trás
tecido mole. O homem é tão magro que possui somente uma camada bem fina de gordura amarela antes que o tecido se torne vermelho e musculoso.
"Estava difícil de enxergar, e eu não ia até lá para ver. O agente continuava sentado no utilitário quando saímos e nos seguiu na volta para cá."
Anne pega os cortadores de costelas no carrinho cirúrgico e me ajuda a remover o peitoral, expondo os órgãos e uma hemorragia significativa. Sinto o cheiro das células
começando a se decompor, um indício do que promete se tornar pútrido e repugnante. Os odores emitidos pelo corpo humano ao se decompor são singularmente desagradáveis.
Não são semelhantes aos dos pássaros, dos gambás, nem aos do maior mamífero no qual é possível pensar. Na morte, somos tão distintos das demais criaturas quanto
em vida, e eu reconheceria o mau cheiro da carne humana em decomposição em qualquer lugar.
"Como você quer fazer isso? Em bloco? E lidar com o metal depois de estarmos com os órgãos na tábua de cortar?", pergunta Anne.
"Acho que precisamos sincronizar o que estamos fazendo centímetro a centímetro, passo a passo. Alinhar tudo aos exames da melhor forma possível, porque não tenho
certeza se vou conseguir ver o que são esses corpos estranhos ferromagnéticos, a menos que esteja olhando direto para eles com uma lente." Limpo minhas luvas ensanguentadas
em uma toalha e me aproximo da tela de vídeo, que Anne dividiu em quadrantes para me dar opções nas imagens da ressonância magnética.
"Eles estão distribuídos como a pólvora de um disparo", ela lembra. "Ainda que não dê para ver as verdadeiras partículas de metal, porque elas anularam o sinal."
"É verdade. Mais um artefato, mais vazios no início que no fim. Grande quantidade na entrada." Aponto para a tela com o dedo enluvado e ensanguentado.
"Mas nenhum resíduo de nada na superfície", diz ela. "E isso é diferente do ferimento provocado por um tiro, de um ferimento de contato."
"Tudo aqui é diferente do ferimento provocado por um tiro", retruco.
"Dá para ver que o que quer que seja esse troço, ele começa aqui." Anne indica a entrada do ferimento na região lombar. "Mas não na superfície. Logo abaixo, talvez
um centímetro abaixo dela, o que é realmente estranho. Estou tentando imaginar e não consigo. Se alguém pressionasse alguma coisa contra as costas dele e disparasse,
haveria resíduos do disparo nas roupas e na entrada do ferimento, não a dois centímetros de profundidade e depois mais fundo ainda."
"Examinei as roupas dele mais cedo."
"Sem queimaduras nem fuligem, nenhuma evidência de resposta galvânica da pele", diz ela.
"Não grosseiramente", eu a corrijo, pois não conseguir enxergar os resíduos de um disparo não significa que não estejam presentes.
"Exato. Nada visualmente."
"E Morrow? Imagino que ele não tenha descido ontem quando Marino estava com o corpo na ID, colhendo as digitais e os objetos pessoais. Imagino que ninguém tenha
pensado em pedir a Morrow para fazer um teste para nitratos nas roupas, já que não sabíamos, na ocasião, que poderia haver resposta galvânica da pele ou mesmo que
existia um ferimento de entrada que corresponde a cortes na roupa."
"Não que eu saiba. E ele saiu cedo."
"Ouvi dizer. Bom, ainda podemos fazer o teste, mas eu ficaria muito surpresa se fosse isso o que estamos vendo na RM. Quando Morrow ou Philip chegarem, vamos pedir
a eles que façam um teste de Griess só para satisfazer minha curiosidade antes de seguir adiante. Aposto que vai dar negativo, mas não é destrutivo, então nada se
perde."
É um procedimento simples e rápido, que envolve papel fotográfico dessensibilizado tratado com uma solução de ácido, água destilada e alfanaftol em metanol. Quando
o papel é pressionado contra a área de tecido em questão e então exposto ao vapor, os eventuais resíduos de nitrato se tornam alaranjados.
"É claro que vamos fazer uma análise SEM-EDX", acrescento. "Mas hoje é uma boa ideia fazer mais de uma coisa, já que devagar, mas com certeza, o chumbo vai desaparecer
da munição, e a maioria desses testes está à procura de chumbo, que é tóxico para o meio ambiente. Então precisamos começar procurando por ligas de zinco e alumínio,
além de diversos estabilizantes e plastificantes, que são adicionados à pólvora durante a fabricação. Aqui nos Estados Unidos, de qualquer forma. Não tanto em combate,
onde envenenar o meio ambiente com metais pesados é considerado uma boa ideia, já que o objetivo é criar bombas sujas, e quanto mais melhor."
"Não é o nosso objetivo, espero."
"Não, não o nosso. Não fazemos isso."
"Nunca sei em que acreditar."
"Sei em que acreditar, pelo menos no que diz respeito a algumas coisas. Sei o que volta para nós quando nossos prestadores de serviços são devolvidos a Dover", retruco.
"Sei o que há dentro deles. Sei o que não há. Sei o que é fabricado por nós e o que é fabricado por outros, a insurgência iraquiana, o talibã, os iranianos. Essa
é uma das coisas que fazemos, análise de materiais para descobrir quem está fabricando o quê, quem está fornecendo."
"Então quando ouço essas coisas sobre armas ou bombas fabricadas no Irã..."
"É de onde elas vêm. É como os Estados Unidos ficam sabendo. Inteligência proveniente dos nossos mortos, proveniente do que eles nos ensinam."
E paramos nossa conversa sobre a guerra por aqui, por causa dessa outra guerra que matou um jovem. Um homem que levou um galgo velho para um passeio a pé no mundo
civilizado de Cambridge e acabou aos meus cuidados.
"Desenvolveram uma tecnologia muito interessante no Texas que quero que a gente investigue." Volto ao resíduo de pólvora porque é mais seguro conversar sobre isso.
"Combinando microextração em fase sólida com cromatografia gasosa, conjugadas a um detector nitrogênio-fósforo."
"O que é apropriado, já que pela lei estadual do Texas todo mundo anda armado. Ou será que as armas de fogo são dedutíveis do imposto, como a agricultura e a pecuária
por aqui?"
"Bom, não exatamente", respondo. "Mas vamos querer investigar para fazer alguma coisa parecida no CFC, visto que espero uma crescente predominância de munição verde."
"É claro. Não polua o meio ambiente enquanto estiver atirando de um veículo."
"O que os cientistas propuseram na Sam Houston pode detectar até uma única partícula de pólvora, o que não é relevante nesse caso, já que sabemos que esse homem
tem metal dentro dele, quase a nível microscópico, mas em grande quantidade. Preliminarmente, de qualquer forma, Marino devia ter usado um kit de resposta galvânica
cutânea pelo menos nas mãos. Uma vez que o homem estava armado."
"Sei que ele fez isso antes de colher as impressões digitais", informa Anne. "Por causa da arma, ainda que não houvesse sinais de ela ter sido disparada. Mas quando
entrei na ID a certa altura, vi Marino usando um tubo nas mãos."
"Mas não no ferimento, porque foi descoberto mais tarde. Não foi colhido material dele."
"Eu não fiz nada. Nem teria feito. Não é meu departamento."
"Bom. Vou cuidar disso quando chegar lá, quando a gente virar o corpo", concluo. "Vamos extrair os órgãos para eu poder colher material das superfícies na extensão
do ferimento. Vou usar a RM como mapa e colher o máximo de material metálico que conseguir, na esperança de que mesmo que a gente não consiga ver, colhamos parte
dele. Sabemos que é metal. A questão é: que tipo de metal e de onde procede?"
Nos armários de aço com portas de vidro fixados na parede, encontro uma caixa de papel mata-borrão enquanto Anne retira do corpo o bloco de órgãos e o deposita sobre
o tabuleiro de dissecção.
"Você não imagina o problema que é, hoje, ter pessoas com metal dentro delas", comenta Anne enquanto recolhe fragmentos de órgãos da cavidade torácica, que está
aberta e vazia como uma xícara de porcelana, as costelas cintilando opacas através do tecido vermelho brilhante. "Inclusive balas antigas, do tipo não ecológico.
Recebemos pacientes para pesquisa depois que o hospital colocou anúncio à procura de voluntários, e é claro que estou me referindo aos normais. Toda essa gente que
chega e tal. E que não tem nada a relatar. Ah, tudo bem. Como se fosse muito normal ter uma bala velha dentro do corpo."
Ela devolve fragmentos do rim esquerdo, do pulmão esquerdo e do coração às posições anatômicas corretas no bloco de órgãos como se montasse um quebra-cabeça.
"Acontece com mais frequência do que a gente imagina", continua. "Bom, não com mais frequência do que alguém como você poderia pensar, já que vemos coisas assim
no necrotério o tempo todo. E depois tem a velha rotina de que as balas são de chumbo e o chumbo não é magnético, então tudo bem examinar a pessoa. Em geral, um
dos psiquiatras, que não sabe de nada e parece não conseguir lembrar que está errado. Chumbo, ferro, níquel, cobalto. Todas as balas e projéteis são ferromagnéticos,
não importa que sejam as tais ecológicas, elas vão girar por causa do campo magnético. Isso pode ser um problema quando alguém tem no corpo um fragmento muito próximo
a um vaso sanguíneo, a algum órgão. Deus nos livre que alguma coisa tenha sido deixada no cérebro de uma pessoa baleada na cabeça tempos atrás. Nem Paxil, nem Neurontin,
nem nada parecido vai ajudar no transtorno de humor da pobre coitada se uma bala antiga se realojar em lugar errado."
Ela enxágua um pedaço de rim e o coloca no tabuleiro de dissecção.
"Vamos precisar medir quanto sangue tem no peritônio." Estou inspecionando a cavidade no diafragma que vi horas antes quando acompanhei o prolongamento da lesão
durante o exame de TC. "Vou chutar que temos pelo menos trezentos mililitros procedentes do diafragma lacerado e pelo menos cinquenta mililitros no pericárdio, o
que em geral pode sugerir um intervalo de tempo antes da morte pelo tanto que ele sangrou. Mas a gravidade dessas lesões, semelhante às lesões produzidas por uma
explosão? Ele não teve tempo de sobrevida. Só o tempo que levou para o coração e a respiração pararem. Se eu quisesse usar a expressão morte instantânea, ela se
qualificaria."
"Isso é pouco comum." Anne me entrega um pequeno fragmento de rim, duro, marrom, descolorido e com bordas retraídas. "Quer dizer, o que é isso? Parece quase cozido
ou coisa assim."
Há mais. Quando aproximo uma luminária e examino o bloco de órgãos, reparo em fragmentos duros e secos no lobo inferior do pulmão esquerdo e no ventrículo esquerdo
do coração. Usando um béquer de aço, recolho sangue acumulado e hematoma do mediastino, ou a região intermediária da cavidade torácica, e encontro mais fragmentos
e coágulos sanguíneos muito pequenos, irregulares e duros. Examinando com atenção o rim esquerdo rompido, constato hemorragia perirrenal e enfisema intersticial,
e mais indícios da mesma alteração anormal de tecido em áreas próximas ao prolongamento da lesão, áreas mais suscetíveis aos danos de uma explosão. Mas que explosão?
"Isso me lembra de tecido congelado, quase liofilizado", digo enquanto etiqueto folhas de papel mata-borrão com abreviações para a localização da origem da amostra.
LIE para lobo inferior esquerdo, RE para rim esquerdo e VE para ventrículo esquerdo.
Sob a luz forte de uma lâmpada cirúrgica e a ampliação de uma lente manual, mal consigo distinguir partículas prateadas escuras do que quer que tenha explodido dentro
desse homem quando ele foi esfaqueado nas costas. Vejo fibras e outros fragmentos que só serão discerníveis quando examinados sob um microscópio, mas me sinto esperançosa.
Alguma coisa que o perpetrador provavelmente não planejou ficou depositada, vestígios de provas que talvez forneçam informação a respeito da arma e da pessoa que
a usou. Ajusto a coifa na regulagem mais baixa para que não haja mais que uma troca de ar e começo delicadamente a colher material com o mata-borrão.
Encosto o papel estéril nas superfícies de tecido fragmentado e nas bordas das lesões e coloco as folhas, uma a uma, no interior da coifa, onde o ar que circula
com suavidade vai facilitar a evaporação, a secagem do sangue sem perturbar o que quer que tenha aderido a elas. Coleto amostras do tecido de aparência liofilizada
e guardo-as em caixas de papelão plastificadas e também em pequenos jarros de formalina; digo a Anne que vou querer um monte de fotografias e que vou pedir a colegas
que examinem as imagens das lesões internas e do tecido duro e descolorido. Vou perguntar se já viram coisa parecida e, enquanto estou dizendo tudo isso, pergunto
a mim mesma quem tenho em vista. Não Briggs. Eu não me atreveria a lhe enviar nada. Certamente, não Fielding. Ninguém que trabalha aqui. Ninguém me vem à mente à
exceção de Benton e Lucy, cuja opinião não vai ajudar nem importar. Cabe só a mim, gostando ou não.
"Vamos virar o corpo", digo. Sem os órgãos, o tronco está leve e a cabeça, pesada.
Meço a entrada do ferimento, descrevo sua aparência, a localização exata e examino o prolongamento da lesão através do bloco de órgãos, descobrindo todas as áreas
que foram perfuradas pelo que agora tenho certeza de que foi uma lâmina estreita dupla e de um só gume.
"Se olhar para o ferimento, você vai ver claramente as duas extremidades pronunciadas, os cantos produzidos por dois gumes afiados", explico a Anne.
"Estou vendo." Seus olhos parecem dúbios por trás dos óculos de plástico.
"Mas olhe aqui, onde o prolongamento da lesão termina no coração. Está vendo como ambas as extremidades do ferimento são idênticas, ambas muito pronunciadas?" Aproximo
a luz e estendo as lentes de aumento.
"Ligeiramente diferente do ferimento nas costas", diz ela.
"Isso. Porque quando a lâmina chegou ao músculo cardíaco, não penetrou com tanta profundidade; só entrou a ponta. Ao contrário de quando essas outras lesões foram
produzidas." Mostro a ela. "A ponta penetrou e foi seguida pela passagem da extensão da lâmina e, como você pode ver, uma extremidade do ferimento é um pouco áspera
e ligeiramente distendida. Dá para ver isso principalmente aqui, onde a lâmina penetrou o rim esquerdo e continuou."
"Acho que estou vendo o que você está dizendo."
"Não o que seria de esperar com um canivete borboleta, uma faca de desossar, uma adaga, que têm dois gumes, ambos os lados da lâmina afiados da ponta ao cabo. Isso
lembra alguma coisa como a ponta de um arpão - cortante de ambos os lados na ponta, mas com um só gume depois disso, como já vi em algumas facas de combate ou, em
particular, um facão de caça ou uma baioneta, cuja ponta da lâmina é afiada em ambas as bordas para facilitar a penetração. Portanto, o que temos é uma entrada um
centímetro linear; ambos os lados do ferimento são acentuados, com um ligeiramente mais rombudo que o outro. E a largura aumenta para um centímetro e meio." Meço
e Anne anota a medida em um diagrama do corpo.
"Então a lâmina tem um centímetro na ponta e, na parte mais larga, um centímetro e meio. É muito estreita. Quase um estilete", diz ela.
"Mas o estilete tem dois gumes na lâmina inteira."
"De fabricação caseira? Uma lâmina que injeta alguma coisa que explode?"
"Sem causar lesões térmicas. Na realidade, o que estamos vendo é mais consistente com ulcerações provocadas pelo frio, onde o tecido parece duro ao tato e descolorido",
lembro enquanto meço a distância do ferimento nas costas até o alto da cabeça do homem. "Sessenta e seis centímetros, cinco centímetros à esquerda da metade da coluna
vertebral. A direção é para cima e anterior, com enfisema tecidual subcutâneo extenso ao longo do prolongamento, perfurando o processo transverso na décima segunda
costela à esquerda da coluna vertebral. Perfurando a musculatura em torno da coluna, a gordura perirrenal, a suprarrenal esquerda, o rim esquerdo, o diafragma, o
pulmão esquerdo e o pericárdio, terminando no coração."
"Que comprimento tem que ter uma lâmina para que alguma coisa perfure tudo isso?"
"Pelo menos treze centímetros."
Anne liga a serra de autópsia na tomada e tornamos a deitar o corpo de costas. Coloco um apoio sob o pescoço e faço uma incisão de orelha a orelha no couro cabeludo,
acompanhando a linha do cabelo para que as suturas não sejam visíveis depois. O topo do crânio é branco como um ovo quando puxo o escalpo para trás e o rosto para
baixo como uma meia, como algo triste, as feições se contraindo como se ele estivesse chorando.
15
Só me dou conta de que o sol nasceu e a frente ártica desceu rumo ao sul quando abro a porta de meu escritório e sou acolhida por um céu azul-claro para além das
altas janelas.
Olho sete andares abaixo e há alguns carros avançando devagar na rua coberta de um branco estriado; deslocando-se em sentido oposto, um caminhão de retirar neve
vasculha com sua lâmina amarela suspensa como a garra de um caranguejo, procurando pelo lugar certo, então baixa a lâmina com um ruído que não ouço daqui e raspa
o calçamento, que não vai ficar de todo limpo por causa do gelo.
A margem do rio está branca e o Charles, da cor das garrafas antigas de vidro azul e ondulado por causa da correnteza; ao longe, a silhueta de Boston capta a luz
da manhã e a torre John Hancock se ergue muito acima de qualquer outro edifício, altiva e inflexível como uma coluna solitária em meio às ruínas de um templo antigo.
Penso em café e é um desejo fugaz quando entro no banheiro e olho para a máquina sobre a bancada ao lado da pia e para as caixas de K-Cup, que incluem o sabor avelã.
Passei do ponto de ser ajudada por estimulantes, não sei se sentiria a cafeína. Minha barriga está vazia. Esporadicamente, sou apunhalada pela náusea, depois sinto
fome, então absolutamente nada, só a névoa da falta de sono e vestígios persistentes de uma dor de cabeça que mais parece uma lembrança. Meus olhos ardem e os pensamentos
se movem turvos, mas abrem caminho com força, como ondas pesadas batendo contra as mesmas perguntas obstinadas e tarefas a fazer. Não vou esperar por ninguém se
tiver opção. Não posso esperar. Não tenho escolha. Vou ultrapassar limites se necessário, e por que não? Os limites que estabeleci foram pisoteados a torto e a direito
por outros. Vou fazer as coisas sozinha, o que sei fazer. Estou sozinha, mais sozinha que antes, porque mudei. Dover me modificou. Vou fazer o que for necessário
e talvez não seja o que as pessoas querem.
São sete e meia e estive lá embaixo esse tempo todo porque Anne e eu cuidamos de outros casos depois de concluir o do homem de Norton's Woods, cujo nome não estou
nem perto de descobrir e, se alguém sabe, não me informou. Conheço detalhes íntimos a seu respeito, que não deveriam ser da minha conta, mas não os fatos mais importantes:
quem ele é, o que fazia e no que esperava se tornar, seus sonhos, do que gostava e o que detestava. Sento em minha mesa, verifico as anotações que Anne fez para
mim lá embaixo e acrescento algumas, certificando-me de que vou recordar mais tarde que ele havia comido alguma coisa com sementes de papoula e queijo amarelo pouco
antes de morrer, que a quantidade total de sangue e coágulos no hemotórax esquerdo era de mil e trezentos mililitros e que o coração foi dividido em cinco pedaços
irregulares que continuavam ligados no nível das válvulas.
Ocorre-me que vou querer enfatizar isso para a acusação, pois estou pensando em tribunal. Para mim, é onde tudo termina, pelo menos no lado civil da vida. Imagino
o promotor empregando uma linguagem exaltada que não posso usar, contando ao júri que o homem comeu queijo e pão com sementes de papoula e levou seu velho cão resgatado
para passear, que seu coração foi feito em pedaços, o que causou uma hemorragia de mais de um terço da totalidade de sangue corporal em questão de minutos. A autópsia
não revelou o objetivo da morte do homem, ainda que, ao menos provisoriamente, a causa seja simples, e a escrevo de forma distraída enquanto continuo a refletir,
meditar e fazer planos.
Facada/perfuração atípica no dorso esquerdo.
Um diagnóstico patológico que parece trivial depois do que acabo de ver e que me faria hesitar se deparasse com ele em algum lugar. Eu o consideraria obscuro, quase
irônico e reticente, como uma piada de mau gosto se alguém tivesse conhecimento do restante, da ruptura generalizada dos órgãos lembrando uma explosão e de que a
morte é um homicídio cruel e calculado. Visualizo a bainha do longo casaco preto oscilando de passagem e o que deve ter acontecido apenas segundos antes, quando
a pessoa que o vestia enfiou uma lâmina na parte inferior das costas da vítima. Por um instante ele sentiu a reação física, o choque e a dor quando exclamou "Ei...!"
e agarrou o peito, caindo com o rosto no chão.
Imagino a pessoa do casaco preto se curvando rápido para apanhar as luvas pretas do homem e se afastar depressa, possivelmente enfiando a lâmina em uma manga ou
dentro de um jornal dobrado, não sei. Mas, enquanto imagino, acredito que a pessoa do casaco longo e preto é o assassino e foi secretamente gravada pelos fones de
ouvido do morto, o que faz com que eu torne a me perguntar quem estava espionando. O assassino plantou microdispositivos de gravação nos fones de ouvido da vítima
para poder segui-la? E imagino um vulto em um casaco longo e preto atravessando com rapidez o bosque coberto de sombras, surgindo por trás da vítima, que não ouviu
nada além da música nos fones de ouvido quando foi apunhalada pelas costas e caiu rápido demais para se virar. Pergunto-me se ele morreu sem saber quem lhe fez isso.
E depois? Foi o que Lucy propôs? A pessoa do casaco longo e preto viu os arquivos de vídeo e, a partir de um site em algum lugar, concluiu que não era necessário
deletar, que na realidade seria mais inteligente não interferir?
Tudo tem seus motivos, digo a mim mesma o que sempre foi verdade, mas nunca parece ser enquanto estou no meio do problema. Existem respostas e vou descobri-las,
e ainda que a física da execução do ferimento fatal possa parecer difícil de adivinhar, garanto que existem pistas que o assassino deixou para trás. Capturei pegadas
no papel mata-borrão. Vou segui-las até quem fez isso. Você não vai se dar bem nessa, penso, como se conversasse com a pessoa do casaco preto longo. Espero, quem
quer que você seja, que não tenha nada a ver comigo, que não seja alguém que ensinei a ser meticuloso e inteligente. Concluí que Jack Fielding está fugindo ou está
preso. Passa-me pela cabeça que pode estar até mesmo morto. Mas me sinto exausta. Não dormi. Meus pensamentos não estão devidamente disciplinados. Ele não pode estar
morto. Por que estaria morto? Vi os mortos lá embaixo e Jack não estava entre eles.
Meus outros pacientes da manhã foram bastante simples e exigiram pouco de mim: uma morte por acidente com veículo motorizado na qual senti cheiro de bebida alcoólica
e constatei que a bexiga do morto estava cheia, como se ele tivesse bebido até o momento em que saiu do bar e sentou atrás do volante em uma tempestade de neve que
o fez derrapar e bater de encontro a uma árvore; uma morte por tiro em um motel decadente, e vi as marcas de agulhas e as tatuagens de cadeia em mais um que morreu
como viveu; uma asfixia provocada por um saco plástico de limpeza a seco amarrado ao redor do pescoço de uma viúva idosa com uma fita velha de cetim vermelho, talvez
sobra de alguma festividade em dias melhores, seu estômago repleto de comprimidos brancos dissolvidos e, ao lado da cama, o frasco vazio de um benzodiazepínico receitado
para insônia e ansiedade.
Não tenho nenhuma mensagem no escritório nem em meus celulares, nenhum e-mail que me interesse no momento e nessas circunstâncias. Lucy não estava em seu laboratório
quando fui conferir e, no momento que chequei com o segurança, descobri que até mesmo Ron havia ido embora e sido substituído por um guarda que não conheço, desengonçado
e com orelhas de abano como Ichabod Crane, alguém chamado Phil que diz que o carro de Lucy não está no estacionamento e que os guardas de segurança foram instruídos
a não deixar ninguém entrar no prédio, nem pelo nível inferior nem pelo saguão, sem falar comigo. Não é possível, informo a Phil. Os funcionários já deveriam estar
chegando ou vão chegar a qualquer momento e não posso dar uma de porteira. Deixe entrar quem tem o direito de estar aqui, eu disse a ele antes de subir. Menos o
dr. Fielding e, quando acrescentei isso, percebi que não era necessário. O guarda chamado Phil estava evidentemente prevenido de que Fielding não pode simplesmente
aparecer, não vai ou talvez não seja capaz disso e, além do mais, o FBI controla meu estacionamento. Vejo o utilitário deles de forma tão nítida quanto o dia frio
e luminoso na tela em minha mesa.
Giro minha cadeira até a bancada de granito preto polido atrás de mim, para o arsenal de microscópios e o que os acompanha. Colocando um par de luvas de exame, abro
um dos envelopes que lacrei com fita crepe pouco antes de subir e extraio a folha de papel mata-borrão manchada com um generoso esfregaço de sangue seco proveniente
da área do rim esquerdo, onde vi uma densa coleção de corpos estranhos metálicos na RM. Acendendo a lâmpada de meu microscópio de materiais, uma Leica na qual confio
há anos, coloco o papel na platina com cuidado. Inclino as lentes oculares para um ângulo de visão que não vá tensionar meu pescoço nem meus ombros e percebo de
imediato que os ajustes foram alterados para alguém destro e muito mais alto que eu, alguém que toma café com creme e masca chiclete de hortelã, desconfio. O foco
ocular e a distância interocular também foram modificados.
Trocando a regulagem para a mão esquerda e ajustando a altura para que o aparelho se adapte melhor a mim, começo com uma ampliação de cinquenta vezes, controlando
o botão do foco com uma das mãos enquanto uso a outra para mover a folha de papel mata-borrão na platina, ajeitando o esfregaço de sangue até encontrar o que procuro,
fragmentos e flocos em um tom prata esbranquiçado brilhante, em meio a uma constelação de outras partículas tão diminutas que quando aumento a ampliação para cem
vezes não distingo suas características, somente bordas ásperas, arranhões e estrias nas partículas maiores, o que parecem lascas de metal não queimadas e limalha
moída por alguma máquina ou ferramenta. Nada do que vejo lembra os resíduos de um tiro, não lembra nem remotamente os flocos, discos ou bolas que associo com pólvora,
com os fragmentos irregulares ou partículas de um projétil ou sua cápsula.
Mais curiosos são outros fragmentos misturados com sangue e seus elementos óbvios, detritos que parecem confetes coloridos e constituem a poeira comum entrelaçada
a eritrócitos empilhados como moedas e leucócitos granulares similares a amebas, presos como se estivessem congelados no tempo, nadando e dando cambalhotas com um
piolho e uma pulga que, em tamanho aumentado, fazem-me recordar os motivos por que a Londres do século XVII entrou em pânico quando Robert Hooke publicou Micrografia
e revelou o aparelho bucal e as pinças penetrantes do que infestava gatos e colchões. Reconheço fungos e esporos que parecem esponjas e frutas, pedaços de pernas
de inseto cobertos de espinhos e cápsulas de ovos de insetos que parecem delicadas cascas de noz ou caixas esféricas confeccionadas com madeira porosa. À medida
que desloco o papel na platina, encontro mais apêndices peludos de monstros mortos há tempos, tais como mosquitos, ácaros, os olhos compostos arregalados de uma
formiga decapitada, a antena emplumada do que talvez tenha sido um mosquito, camadas sobrepostas de pelo animal, possivelmente de cavalo, cachorro ou rato e manchas
vermelho-alaranjadas do que poderia ser ferrugem.
Estendo a mão para o telefone e ligo para Benton. Quando ele atende, ouço vozes ao fundo e deparo com uma conexão ruim.
"Uma faca afiada ou moldada em alguma coisa como um torno, talvez enferrujado, em uma oficina ou porão, quem sabe um celeiro antigo com mofo, insetos, vegetais em
decomposição, provavelmente um tapete úmido", digo de imediato enquanto inicio uma busca na internet em meu computador, digitando "faca" e "gases explosivos".
"O que foi afiado?", pergunta Benton, e em seguida diz alguma coisa a alguém, alguma coisa como "Precisa das chaves" ou "Precisa deixar". "Estou andando, é difícil
conversar agora", ele torna a se dirigir a mim.
"A arma usada para esfaquear o sujeito. Um torno, um esmeril, provavelmente velho e malcuidado, com traços de ferrugem, com base nos fragmentos de metal e partículas
muito pequenas que estou vendo. Acho que a lâmina foi amolada, quem sabe para ficar mais fina e transformar a ponta em um arpão. Talvez tenham usado uma grosa ou
uma lima para afiar e polir.
"Ferramentas mecânicas ou elétricas velhas e enferrujadas. Muita ferrugem?"
"Algum tipo de ferramenta para metal, não necessariamente uma ferramenta mecânica ou elétrica; não estou em posição de ser tão detalhada. Não sou especialista em
metalurgia e não sei muito sobre a quantidade de ferrugem. Só que encontrei o que parecem alguns flocos." EXPLODINDO INTESTINOS. COMO LIMPAR AS VELAS DE IGNIÇÃO.
GASES COMUNS ASSOCIADOS A METAIS E FACAS FORJADOS À MÃO, leio silenciosamente o que surgiu na tela do computador, e então digo a Benton: "Não que eu queira ser perita
em vestígios de evidências, mas, microscopicamente, não é nada que eu não tenha visto antes, só que nunca tinha visto explodir dentro de um corpo. Por outro lado,
nunca procurei isso. Nunca tive motivos para procurar alguma coisa assim, não estou acostumada a usar papel mata-borrão no interior do corpo de alguém que foi esfaqueado.
Imagino que possa haver todo tipo de fibras, restos, partículas invisíveis injetadas dentro de pessoas que foram baleadas, esfaqueadas, perfuradas ou sabe Deus o
quê."
Digito "faca de injeção" no campo de busca porque, enquanto ouço a mim mesma, lembro-me de dardos de entrega remota, de armas acionadas por CO2 para disparar o que
é basicamente um míssil tranquilizante ou imobilizador de longo alcance com uma pequena carga explosiva e uma agulha hipodérmica. Por que não seria possível fazer
a mesma coisa com uma faca, desde que houvesse uma maneira de acioná-la e um canal estreito passasse através da lâmina com um orifício de saída perto da ponta?
"Estou indo para o carro agora", diz Benton. "Chego aí em quarenta e cinco minutos, uma hora se o trânsito estiver ruim. As estradas parecem boas."
"Bom, isso não foi difícil." Estou decepcionada. Nada com tanto potencial para causar danos letais deveria ser tão fácil de encontrar.
"O que não foi difícil?", pergunta Benton enquanto olho, espantada, para a imagem de uma faca de combate de aço com um orifício para a saída de gás e cabo de neoprene
em um estojo de plástico revestido de espuma.
"Um cartucho de CO2 atarraxa no cabo...", leio em voz alta. "Empurre a lâmina de aço inoxidável de doze centímetros para dentro do alvo e use o polegar para apertar
o botão de disparo, que faz parte do eixo de segurança..."
"Kay? Quem está aí com você agora?"
"Injeta uma bala de gás congelante do tamanho de uma bola de basquete, ou mais de seiscentos e cinquenta mililitros a sessenta quilos de pressão por centímetro quadrado",
prossigo, olhando para as imagens em um site bem elaborado enquanto me pergunto quantas pessoas têm essa arma em casa, no carro, no equipamento de camping, ou andam
por aí com ela presa ao corpo. Tenho de admitir que é engenhosa, talvez uma das coisas mais assustadoras que já vi. "Pode matar um mamífero grande com uma única
facada..."
"Kay, você está sozinha?"
"Congela instantaneamente o tecido ferido, retardando o sangramento e o surgimento de outros predadores. Caso precise se defender de um tubarão-branco, por exemplo,
ele só vai começar a sangrar e atrair outros tubarões quando você já estiver bem longe." Leio, resumo e fico enojada. "Se chama WASP. Você pode comprar uma por menos
de quatrocentos dólares."
"Vamos conversar sobre isso quando eu chegar", diz Benton ao telefone.
"Nunca ouvi falar nisso." Leio mais sobre a faca de injeção de ar comprimido que posso encomendar neste instante desde que tenha mais de dezoito anos de idade. "É
recomendada para integrantes das Forças Especiais, da SWAT, pilotos em alto-mar, mergulhadores. Aparentemente, foi desenvolvida para matar predadores marinhos de
grande porte - como eu disse, tubarões, mamíferos, talvez baleias..."
"Kay?"
"Ou ursos-pardos, por exemplo, quando você está cuidando da própria vida em uma caminhada simpática pelas montanhas." Não faço o menor esforço para manter o sarcasmo
longe de meu tom de voz, para esconder a raiva que sinto. "E, é claro, por militares em geral, mas não é nada que eu tenha visto nas baixas antes..."
"Estou em um celular", interrompe Benton. "Prefiro que você não comente isso com mais ninguém. Ninguém aí no escritório. Ou você já fez isso?"
"Ainda não."
"Você está sozinha?", ele torna a perguntar.
Por que não estaria? Mas respondo simplesmente: "Estou".
"Talvez você deva excluir isso do histórico, limpar a memória, caso alguém resolva ver suas pesquisas recentes."
"Não posso impedir Lucy de fazer isso."
"Não é com Lucy que estou preocupado."
"Ela não está aqui. Não sei aonde foi."
"Eu sei", diz ele.
"Tudo bem então." Ao que parece, Benton não vai me dizer onde está minha sobrinha, nem onde está qualquer outra pessoa. "Vou fazer sequências de provas, cuidar do
máximo que puder e te encontro lá embaixo quando você chegar." Desligo e tento raciocinar sobre o que acaba de acontecer. Tento não me sentir magoada enquanto esmiúço
a situação do ponto de vista lógico.
Benton não pareceu surpreso nem especialmente preocupado. Não pareceu alarmado pelo que descobri e, sim, pelo fato de eu ter descoberto e pela possibilidade de ter
contado a mais alguém, o que provavelmente significa o mesmo que venho sentindo desde que voltei de Dover. Talvez não seja eu quem está descobrindo coisas. Talvez
eu seja apenas a última a saber e ninguém quer que eu descubra nada. Que situação embaraçosa, quando não sem precedentes, penso enquanto faço o que Benton pediu
e esvazio a memória e limpo o histórico, dificultando que alguém veja o que andei procurando na internet. Ao fazer isso, pergunto-me quem na realidade fez o pedido:
meu marido ou o FBI? Quem acaba de falar comigo me dizendo o que fazer, como se eu não soubesse?
São quase nove horas e a maior parte de minha equipe já chegou, aqueles que não estão usando a neve como desculpa para ficar em casa ou ir a algum lugar onde preferem
estar, como Vermont, por exemplo, para esquiar. No monitor de segurança, vi carros pararem no estacionamento e pessoas entrarem pela porta dos fundos, mas muitas
mais chegando pela entrada da frente no térreo, pelo lobby de pedra com suas esplêndidas esculturas e bandeiras, evitando o domínio sombrio dos mortos no piso inferior.
Os pesquisadores raramente precisam receber os pacientes cujos fluidos corporais, pertences e outras evidências testam, e então ouço os sons de meu administrador,
Bryce, no corredor, destrancando a porta que conduz a seu escritório, contíguo ao meu.
Torno a lacrar o papel mata-borrão em um envelope limpo e destranco uma gaveta para recolher outros itens que guardei em segurança enquanto tento não afundar em
um espaço escuro, com pensamentos sombrios a respeito do que acabo de ver em um site e o que isso significa sobre os seres humanos e sua capacidade de criar formas
imaginativas de fazer mal a outras criaturas. Em nome da sobrevivência, passa-me pela cabeça, mas raras vezes tem realmente alguma coisa a ver com permanecer vivo;
ao contrário, tem a ver com se certificar de que outro ser morra e com o poder que as pessoas sentem quando dominam, mutilam e matam. É terrível, medonho, e não
tenho dúvidas sobre o que aconteceu ao homem de Norton's Woods: alguém se aproximou por trás dele e o apunhalou com uma faca daquelas, detonando uma bala de gás
comprimido em seus órgãos vitais; se foi CO2, nenhum teste vai revelar. O dióxido de carbono é ubíquo, tão literalmente presente quanto o ar que exalamos, e visualizo
o que vi na TC, os bolsões escuros de ar espalhados pelo pulmão, qual deve ter sido a sensação e como vou responder a pergunta que sempre me fazem?
Ele sofreu?
A resposta honesta seria que ninguém sabe uma coisa dessas a não ser a pessoa que morreu, mas eu diria que não, que ele não sofreu. Diria que sentiu. Sentiu que
alguma coisa catastrófica estava ocorrendo. Ele não permaneceu consciente tempo o bastante para sofrer durante seus últimos momentos de vida, mas deve ter sentido
a perfuração na região lombar, acompanhada de uma tremenda pressão no peito quando os órgãos se romperam, tudo de uma vez. Deve ter sido a última coisa que sentiu,
com exceção talvez de um lampejo, um flash de pânico ao achar que estava prestes a morrer, e então paro de pensar nisso porque me atormentar e imaginar mais seria
teorização desnecessária e autoindulgente, paralisante e improdutiva. Não posso ajudar ninguém se estiver angustiada.
Sou inútil para toda e qualquer pessoa se sentir o que sinto, exatamente como quando cuidei de meu pai e me tornei perita em abafar emoções que brotavam dentro de
mim como criaturas desesperadas tentando escapar. "Eu me preocupo com o que você aprendeu, minha pequena Katie", dizia ele quando eu tinha doze anos e ele era um
esqueleto no quarto dos fundos, onde o ar era sempre muito quente e cheirava a doença, e a luz se infiltrava fracamente pelas ripas das venezianas que conservei
fechadas durante a maior parte de seus últimos meses. "Aprendeu coisas que jamais devia ter tido que aprender, especialmente na sua idade, minha pequena Katie",
ele me dizia quando eu fazia a cama com ele ali, tendo aprendido a limpá-lo religiosamente para que escaras não o acometessem, e trocava os lençóis sujos deslocando
seu corpo, que parecia vazio e morto, exceto pelo calor da febre.
Eu virava delicadamente meu pai, segurando-o de um lado, depois do outro, apoiando seu corpo contra o meu, porque ele não conseguia se levantar no final, não conseguia
nem mesmo sentar. Estava fraco demais para me ajudar a movê-lo durante o que o médico chamava de fase blástica da leucemia mieloide crônica; por vezes ele me vem
à mente e sinto seu peso de encontro a mim quando estou envolta em trajes protetores, espreitando através dos óculos de segurança, trabalhando em minha mesa de aço
temperado.
Preencho pedidos de análises laboratoriais que vão precisar ser assinados por cada pesquisador a quem encomendo vários itens a fim de manter a cadeia de evidências
intacta. Então me levanto da minha mesa.
16
Bato uma vez e abro a porta que conduz ao escritório de Bryce.
A porta compartilhada fica bem em frente ao meu banheiro privativo, que aprendi a deixar entreaberto. Se as duas portas de metal cinza estão fechadas, tenho uma
tendência a me confundir e entrar no escritório de Bryce quando quero café, lavar as mãos e o rosto ou vou usar o banheiro. Bryce está à sua mesa de costas para
mim e retirou o casaco, que está pendurado, mas continua usando os grandes óculos de sol de marca que parecem ridiculamente grandes, como se tivessem sido desenhados
no rosto dele. Bryce está com botas de neve L.L. Bean que não combinam com seu conjunto previsivelmente circunspecto: um blazer de casimira azul-marinho, jeans preto
justos, camisa de gola olímpica preta e cinto de couro trabalhado com uma fivela grande de prata em forma de dragão.
"Vou usar o telefone e não posso ser incomodada", digo como se estivesse aqui todos os dias nos últimos seis meses, como se nunca tivesse me ausentado. "Então preciso
ir embora."
"Alguém vai me dizer o que está acontecendo por aqui? E bem-vinda de volta, chefe." Ele ergue o olhar em minha direção, os olhos encobertos pelos óculos escuros
avantajados. "Imagino que os carros sem identificação no estacionamento não sejam parte de festa surpresa, porque sei que não estou dando nenhuma. Não que eu não
quisesse e não estivesse pretendendo fazer isso mais à frente, mas quem quer que sejam eles não estão aqui por minha causa, e quando pedi a um deles que fizesse
a gentileza de me dar uma explicação e tirar o rabo dali para eu poder estacionar na minha vaga, digamos que ele ficou irritado."
"O caso de ontem de manhã", começo a dizer.
"Ah, é esse o motivo? Bom, não é de admirar." Seu rosto se ilumina como se o que acabei de dizer fosse uma boa notícia. "Eu sabia que era importante, de alguma forma
sabia. Mas ele não morreu aqui, por favor, diga que isso não é verdade, que você não encontrou nada que indique uma coisa tão horrenda, senão acho que vou começar
a procurar outro emprego neste instante e dizer a Ethan que não vamos comprar aquele bangalô que tínhamos em vista. Conhecendo você, tenho certeza de que a essa
altura já descobriu o que aconteceu. Provavelmente demorou cinco minutos."
Bryce retira as botas, empurrando as duas para o lado, e reparo que seu cabelo está com um corte irregular e que o bigode e a barba que ostentava quando o vi pela
última vez foram raspados. De constituição sólida, Bryce é magro porém forte, com uma beleza de coroinha louro. Ele não se parece consigo mesmo de barba, o que provavelmente
é o objetivo, parecer com outra pessoa, virar algum personagem formidável e viril como James Brolin, ou ser levado a sério como Wolf Blitzer, seus heróis. Meu principal
administrador e braço-direito tem uma penca de amigos imaginários famosos de quem fala com facilidade como se o ato de os ver na TV de tela grande os tornasse tão
reais quanto vizinhos próximos.
Muito bom no que faz, com títulos acadêmicos em justiça criminal e administração pública, de relance Bryce Clark parece inapropriado, como se houvesse saído do set
do E!, e venho usando isso em meu benefício nos poucos anos em que ele trabalha para mim. Gente de fora e mesmo as pessoas que trabalham aqui nem sempre percebem
que meu chefe de gabinete janota, falador compulsivo, mórmon em recuperação, não está para brincadeiras. Ele é um voyeur e adora "me substituir", como diz. Gosta
de reunir informações como um corvo e levar de volta ao ninho. É perigoso quando não gosta de alguém. E é pouco provável que essa pessoa desconfie disso. Suas brincadeiras
e seu afeto calculado são o abrigo por trás do qual se esconde seu ser mais perigoso e, em certo sentido, ele lembra minha secretária Rose. Aqueles que cometiam
o erro de tratá-la como uma velha tonta um dia se pegavam com um membro a menos.
"O FBI? A segurança nacional? Não é ninguém que eu já tenha visto." Bryce se debruça na cadeira enquanto abre uma mala de ginástica de náilon, os pés calçando meias
plantados no chão.
"Provavelmente o FBI..." Mas ele não vai me deixar concluir.
"Bom, o cara grosseiro me pareceu bastante apropriado para isso, totalmente sarado em um terno cinza e casaco. Acho que o FBI demite o pessoal que engorda. Bom,
boa sorte com a contratação nos Estados Unidos. Lindo de morrer, isso eu tenho que admitir. Você viu o cara? Nós sabemos o nome dele e em que departamento trabalha?
Não é ninguém que conheci em Boston. Talvez seja novo."
"Quem?" Meus pensamentos se chocam contra uma parede.
"Meu Deus, você está cansada. O agente naquele Ford Expedition grande, mau, preto, o retrato escarrado do jogador de futebol americano do Glee - ah, você provavelmente
também não assiste isso, que é só o melhor programa da TV, e não consigo imaginar que não goste de Jane Lynch, a não ser que não saiba quem ela é, já que provavelmente
não assistiu The L Word, mas quem sabe viu Best in Show ou Talladega Nights? Meu Deus, que buzina. O rapaz do Bureau no Ford preto é igualzinho ao Finn..."
"Bryce..."
"Enfim, vi a sangueira, o tanto que o corpo de Norton's Woods sangrou dentro do saco; foi terrível e pensei comigo: É isso aí. É o fim desse lugar. Enquanto isso,
Marino bufa e ofega de raiva, prestes a botar a casa abaixo, dando os ataques que só ele consegue dar porque alguém foi entregue vivo e morreu na geladeira. Então
eu disse a Ethan que talvez a gente precise guardar alguns tostões porque posso ficar desempregado. E o mercado de trabalho agora? Dez por cento de desemprego ou
algum pesadelo do tipo, e duvido muito que Doctor G vá me contratar porque todos os funcionários de necrotério do planeta querem estar no programa dela, mas eu te
pediria para pegar o telefone e me recomendar, por favor, se esse lugar descer pelo ralo. Por que não podemos fazer um reality show? Você tinha seu próprio programa
na CNN alguns anos atrás; por que não podemos fazer alguma coisa aqui?"
"Preciso conversar com você sobre..." Mas não vale a pena quando ele fica assim.
"Ainda bem que você está aqui, mas fico triste que tenha voltado por causa de uma coisa tão terrível. Passei a noite toda acordado pensando no que vou dizer aos
jornalistas. Quando vi os utilitários atrás do prédio, pensei que fossem as caminhonetes das emissoras de TV..."
"Bryce, você precisa se acalmar e tirar esses óculos escuros..."
"Que eu saiba, não saiu nada nos noticiários e nenhum repórter me telefonou, nem me deixou alguma mensagem aqui nem nada..."
"Preciso repassar algumas coisas e você realmente tem que calar essa boca, por favor", interrompo.
"Eu sei." Ele retira os óculos escuros enquanto enfia o pé em um tênis preto de cano alto. "Estou só um pouco agitado, dra. Scarpetta. E você sabe como fico quando
estou agitado."
"Teve notícias de Jack?"
"Onde está a Boca da Verdade quando você precisa dela?", pergunta enquanto amarra os tênis. "Não me peça para fingir e exijo, com todo respeito, que comunique que
não respondo mais diretamente a ele. Agora que você está em casa, graças a Deus."
"Por que está dizendo isso?"
"Porque tudo que Jack faz é me dar ordens como se eu trabalhasse no drive thru do Wendy's. Jack grita e dá esporro quando o cabelo dele cai e então fico me perguntando
se vai chutar alguém, talvez a mim, ou me estrangular com aquele cinto preto dele ou qualquer outra merda que tenha, desculpe a linguagem. E a situação piorou, mas
não queríamos te incomodar em Dover. Eu disse a todo mundo para te deixar em paz. Todo mundo dizia a todo mundo para te deixar em paz ou ia se ver comigo. Estou
percebendo que você passou a noite inteira acordada. Está horrível." Seus olhos azuis me examinam de cima a baixo, observando como estou vestida. A mesma calça de
brim cáqui e polo preta com o emblema do AFMES que vesti em Dover.
"Vim direto para cá e não tenho nenhuma outra roupa." Consigo interromper a tagarelice afinal. "Não sei por que você se deu o trabalho de trocar suas L.L. Beans
por esse par velho de Converse que sobrou do acampamento de basquete."
"Sei que seu olho é melhor que isso e sei que você sabe que nunca fui a um acampamento de basquete, porque eu passava todos os verões no acampamento de música. Hugo
Boss pela metade do preço no Endless.com mais frete grátis", acrescenta ele, erguendo-se. "Vou fazer café e você quer um gole. E não, não tive notícias de Jack;
você não precisa me dizer que estamos com problemas e que talvez estejam relacionados àqueles agentes no estacionamento, que obviamente sofrem de algum transtorno
de personalidade. Não sei por que eles não podem fazer uma forcinha para serem simpáticos. Se eu portasse uma arma grande e pudesse prender pessoas, seria a Pequena
Miss Sunshine com todo mundo, sorridente e gentil. Por que não?" Bryce roça em mim ao passar, entra em meu escritório e desaparece no banheiro. "Posso passar por
sua casa e pegar algumas coisas se você quiser. É só mandar. Um terninho ou alguma coisa mais informal?"
"Se eu ficar presa aqui..." Começo a dizer que talvez aceite o oferecimento.
"Realmente precisamos providenciar um armário para você, um pouco de alta-costura no quartel-general. Ahhhh, guarda-roupa?", grita ele enquanto prepara o café. "Se
fizéssemos nosso próprio programa, teríamos guarda-roupa, cabelo, maquiagem, e você nunca vestiria as mesmas roupas sujas com o perfume da morte, não que eu esteja
dizendo que... Bom, de qualquer forma, o melhor seria ir para casa e direto para a cama", continua ele enquanto a água quente atravessa ruidosamente um K-Cup. "Ou
posso sair e comprar alguma coisa para você comer. Quando estou cansado e sem dormir descubro...", anuncia ele, saindo do banheiro com dois cafés, "a gordura. Tem
hora e lugar para tudo. O croissant do Dunkin' Donuts, que tal? Talvez você precise de dois. Está um pouco magra. A vida militar não serve para você, chefe."
"Você está sabendo que uma mulher chamada Erica Donahue telefonou para cá?", pergunto ao voltar para minha mesa com um café que não tenho certeza se devo beber.
Abrindo uma gaveta, procuro um Advil na esperança de que realmente haja um frasco escondido em algum lugar.
"Ela telefonou. Várias vezes." Bryce beberica o café quente com cuidado, apoiado na moldura da porta que nos conecta.
Como não diz mais nada, pergunto: "Quando?".
"Depois que o filho dela começou a aparecer nos noticiários. Há uma semana, acho, quando confessou ter matado Mark Bishop."
"Você conversou com ela?"
"Mais recentemente, tudo que fiz foi redirecionar a chamada para Jack quando ela procurou por você."
"Mais recentemente?"
"Você devia ouvir dele a parte que lhe diz respeito. Desconheço os detalhes", diz Bryce, que não costuma ser cauteloso comigo. De repente, ele se mostra precavido.
"Mas ele conversou com ela."
"Isso foi, me deixa ver..." Ele tem o hábito de olhar para o alto, para a cúpula de vidro, como se as respostas para tudo estivessem ali. Também é sua tática preferida
de prorrogação. "Quinta-feira passada."
"E você falou com ela. Antes de transferir a chamada para Jack."
"Fiquei principalmente ouvindo."
"Qual foi o comportamento dela e o que disse?"
"Foi muito educada, pareceu a mulher inteligente de classe alta que é, com base no que ouvi. Quer dizer, saiu uma tonelada de coisas sobre a família Donahue. Ele
ficou quase tão famoso quanto Johnny Hinckley Junior... E quando viu o que havia feito, enfiou a pistola de pregos no coldre... Mas você provavelmente não leu toda
aquela merda em sites macabros como o Morbidia Trivia, o Cryptnotes, ou seja lá o que for, e tenho que acompanhar o que eles publicam como parte do meu trabalho,
faz parte de me manter informado sobre o que estão dizendo lá fora, no reino sensacionalista da cibernética, que adora a transgressão."
Bryce está à vontade outra vez. Só fica constrangido quando sondo a respeito de Fielding.
"A mãe foi uma pianista quase conhecida em uma vida anterior, tocava em uma orquestra sinfônica. Acho que em San Francisco", prossegue Bryce. "Reparei por acaso
em algumas publicações no Twitter sobre ela ter sido aluna de Yundi Li, mas duvido muito que Li dê aulas, e ele tem só vinte e oito anos, então não acredito nisso
nem por um segundo. É claro que ela está alvoroçada. Já imaginou? Dizem que o filho é savant, tem habilidades bizarras, como conhecer bandas de rodagem de pneus.
O detetive de Salem, Saint Hilaire, que você ainda não conhece e é tudo menos isso, comentou o assunto. Aparentemente, Johnny Donahue pode olhar para um padrão de
marcas de pneu em um estacionamento sujo e dizer: 'Esse é um pneu de moto Bridgestone Battle Wing dianteiro'. Só sugeri esse porque é o que Ethan tem na BMW, da
qual eu queria que ele não gostasse tanto, porque para mim motos são máquinas doadoras de órgãos. Pelo jeito, Johnny consegue resolver problemas de matemática de
cabeça e não estou me referindo a problemas tipo se uma banana custa oitenta e nove centavos, quando custa a penca de seis? Mais einsteiniano, do tipo quanto é nove
vezes cento e três elevado à raiz quadrada de sete ou coisa assim. Mas você provavelmente sabe disso tudo. Tenho certeza de que tem acompanhado o caso."
"O que exatamente ela queria discutir comigo? Ela te disse?" Conheço Bryce. Ele não transferiria alguém como Erica Donahue sem deixar que falasse até ficar sem palavras
ou ele perder a paciência. É por demais futriqueiro, sua mente é uma fábrica tagarela de fuxicos.
"Bom, é óbvio que ele não fez isso e, se alguém realmente examinasse os fatos sem preconceitos, enxergaria todas as inconsistências. Todos aqueles conflitos...",
retruca Bryce, soprando seu café sem olhar para mim.
"Que conflitos exatamente?"
"Ela diz que falou com ele no dia do assassinato por volta de nove da manhã, antes de ele sair para aquele café em Cambridge na esquina da sua casa, que agora ficou
famoso", continua Bryce. "O Biscuit? Com filas na porta por causa da publicidade. Nada como um assassinato. Em todo caso, ele não estava se sentindo bem naquele
dia, segundo a mãe. Tem alergias terríveis ou coisa do tipo e estava se queixando de que os comprimidos, injeções ou o que quer que estivesse tomando não estavam
mais adiantando; ele tinha aumentado muito a dose e estava se sentindo punk, foi a palavra que ela usou. Acho que se uma pessoa está com os olhos coçando e o nariz
escorrendo não vai matar ninguém. Eu não quis dizer a ela que um júri não ia botar muita fé em uma defesa baseada em espirros..."
"Preciso dar um telefonema e depois fazer a ronda", interrompo antes que ele divague pelo resto do dia. "Você pode verificar no setor de Vestígios se Evelyn está
e, nesse caso, por favor dizer a ela que tenho algumas urgências? O que consegui precisa começar com ela, depois com impressões digitais, então DNA, depois toxicologia
e um item em particular vai voltar aqui para cima, para o laboratório de Lucy. Ainda há pouco, não vi ninguém por lá. E Shane, estamos à espera dele? Porque vou
precisar de uma opinião a respeito de um documento."
"Não somos um time de rúgbi encalhado em uma nevasca nos Andes prestes a recorrer ao canibalismo, pelo amor de Deus."
"A tempestade durou a noite inteira."
"Você passou tempo demais no sul. São o quê? Vinte centímetros? Um pouco gelado, mas nada demais para essas bandas", diz Bryce.
"Na verdade, pode pedir a Evelyn para subir agora e abrir para ela o escritório de Jack." Decido que não vou esperar quando me lembro do jaleco dobrado dentro do
saco de lixo.
Explico a Bryce o que há no bolso e quero que a substância seja imediatamente examinada no microscópio eletrônico de varredura; quero também uma análise química
não destrutiva.
"Tome muito, muito cuidado para não abrir o saco e tocar em alguma coisa", previno. "E diga a Evelyn que a película plástica tem digitais. O que significa que também
vai ter DNA."
Com meu administrador silenciosamente fora de alcance no outro lado da porta fechada que compartilhamos, decido adiar o telefonema para Erica Donahue até ter uma
chance de pensar no que vou fazer. Preciso pensar em tudo.
Quero reler sua carta e me certificar das minhas intenções enquanto reflito e recordo o que aconteceu desde que saí de Dover. Contemplando o céu azul-claro de um
novo dia, sei que ainda estou de ressaca da última mãe com quem falei. Sinto-me envenenada pela lembrança de Julia Gabriel ao telefone, enquanto alguém se demorava
diante da minha porta fechada no necrotério da base aérea. Os nomes pelos quais ela me chamou e as coisas das quais me acusou foram vis e dolorosos, mas, na realidade,
não deixei que me atingissem no sentido de conferir poder a suas palavras até deparar com o que descobri no escritório de Fielding. Desde então, há uma sombra fria
e tenebrosa como o lado escuro da lua por trás de meus pensamentos e humor. Não sei o que está sendo dito ou decidido a meu respeito, nem o que foi ressuscitado
como algo cruel que nunca morreu e agora está se movendo.
Que registros foram encontrados e o que se passou do que secretamente temi todos esses anos e ao mesmo tempo esqueci? A verdade esteve sempre presente, como um objeto
impróprio escondido em um armário, um objeto pelo qual nunca procuro, mas, se lembrado, sei que não desapareceu porque nunca foi jogado fora nem devolvido a seu
legítimo dono, que nunca deveria ter sido eu. O caso infame foi entregue como se fosse meu. E foi deixado em suspenso. Desde que os feitos da África do Sul ficassem
escondidos em meu armário em vez do lugar que lhes competia, eu ficaria bem, foi a mensagem que recebi quando voltei ao Walter Reed depois de trabalhar naquelas
duas mortes e aceitar os agradecimentos por meus serviços ao AFIP, e estaria livre para sair antes da hora. Dívida paga na íntegra. Eles tinham uma colocação adequada
para mim na Virginia, onde eu ia prosperar desde que conservasse na mente a lealdade e levasse minha roupa suja comigo.
Será que aconteceu outra vez? Será que Briggs tornou a fazer aquilo comigo e em breve vai me mandar arrumar as malas? Para onde dessa vez? Aposentadoria precoce
me passa pela cabeça. Tudo está vindo à tona piorado, e a isso não é possível sobreviver, decido, por não saber mais em que pensar. Briggs contou a alguém e alguém
contou a Julia Gabriel, que me acusou de ódio, preconceito, insensibilidade, desonestidade, e preciso lembrar que esse miasma nocivo permeia qualquer decisão que
eu possa tomar agora, isso e o cansaço. Seja extremamente cuidadosa. Use a cabeça. Não se renda às emoções e fique tranquila... é o que me passa pela cabeça. Lucy
disse alguma coisa a respeito de gravações de segurança; pego o telefone e chamo Bryce.
"Diga, chefe", atende ele em tom alegre, como se não conversássemos há dias.
"Nossas gravações das câmeras de circuito fechado por toda parte", digo. "Quando a capitã Avallone veio de Dover para cá? Sei que Jack a recebeu."
"Ah, meu Deus, isso faz tempo. Acho que foi em novembro..."
"Lembro que ela foi para casa no Maine passar o feriado de Ação de Graças", explico. "Sei que se ausentou de Dover nessa semana, porque tive que ficar. Estávamos
com falta de pessoal."
"Parece que foi isso. Acho que ela esteve aqui naquela sexta-feira."
"Você fez essa maravilhosa visita com eles?"
"Não. Não fui convidado. E Jack passou um bocado de tempo com ela no seu escritório, só para você ficar sabendo. Aí dentro com a porta fechada. Eles almoçaram na
sua mesa."
"Preciso que você entre em contato com Lucy, mande uma mensagem de texto ou o que for necessário e avise a ela que quero examinar todas as gravações de segurança
com Jack e Sophia, inclusive o que aconteceu no meu escritório."
"No seu escritório?"
"Há quanto tempo ele vem usando meu espaço?"
"Bom..."
"Bryce? Há quanto tempo?"
"Praticamente o tempo todo. Jack se utiliza dele quando quer impressionar as pessoas. Quer dizer, ele não usa seu espaço para o estudo de casos com muita frequência.
Usa principalmente quando está sendo cerimonioso..."
"Diga a Lucy que quero as gravações do meu escritório. Ela vai saber exatamente o que tenho em mente. Quero saber o que Jack e a capitã conversaram."
"Ótimo! Vou resolver isso agora."
"Estou prestes a dar um telefonema importante, então, por favor, não me interrompa", digo em seguida. Quando desligo me dou conta de que Benton estará aqui em breve.
Mas resisto à tentação de me apressar. É prudente desacelerar, permitir que meus pensamentos e percepções se organizem, esforçar-me para obter clareza. Você está
cansada. Exercite a cautela e tome só as decisões certas quando estiver assim. Só há um jeito de fazer isso da forma correta e todos os outros caminhos estão errados.
Não dá para saber o caminho certo até acontecer, e uma pessoa tensa e confusa não vai reconhecê-lo. Estendo a mão para minha caneca de café, mas mudo de ideia acerca
disso também. Não vai ajudar no momento, só vai me deixar nervosa e prejudicar ainda mais meu estômago. Extraindo outro par de luvas de exame de uma caixa sobre
a bancada de granito atrás da minha mesa, retiro a carta do saco plástico em que o lacrei.
Faço as duas grossas folhas de papel deslizarem para fora do envelope que abri no utilitário de Benton enquanto avançávamos em meio à nevasca, que agora me parece
ter ocorrido em outra existência, mas ainda não se passaram nem doze horas. À luz da manhã e depois de tudo que aconteceu, parece mais extraordinário que antes essa
pianista clássica que Bryce descreveu como inteligente e racional ter usado uma fita vedante em seu papel de carta elegantemente impresso. Por que não o durex comum
transparente em vez dessa fita feia e larga cinza-chumbo de um lado a outro? Por que não fez o que faço quando coloco um memorando particular em um envelope e simplesmente
assino ou rubrico o lacre da aba? O que Erica Donahue temia que acontecesse? Que seu motorista quisesse ler o que ela escreveu para alguém chamado Scarpetta, de
quem, aparentemente, nunca tinha ouvido falar?
Aliso as páginas com a mão coberta pela luva e tento intuir o que a mãe do universitário que confessou um assassinato transferiu às teclas de sua máquina de escrever,
como se o que sentiu e acreditava ao escrever o pedido endereçado a mim fossem uma substância química que posso absorver e então me inteirar do que lhe passa pela
mente. Ocorre-me que inventei essa analogia devido à película plástica que encontrei no bolso do jaleco de Fielding. Horas depois da inquietante experiência com
a droga, percebo o quanto foi de fato ruim, que não posso ter sido eu mesma com Benton e o quanto ele deve ter ficado perturbado. Talvez por isso esteja tão reticente
e me repreendendo por divulgar informação a quem quer que esteja por perto como se eu, entre todas as pessoas, não soubesse das coisas. Talvez ele não confie em
meu julgamento nem em meu autocontrole e tema que os horrores da guerra tenham me transformado. Talvez não tenha tanta certeza de que a mulher que voltou de Dover
para casa e para ele seja a que conhece.
Não sou quem você conhecia, passa-me pela cabeça. Não tenho certeza de que você já tenha me conhecido, sussurra meu pensamento, e, à medida que leio as linhas perfeitas,
datilografadas em espaço um, acho incrível que em duas páginas não haja um único erro. Não vejo vestígios de fita corretora ou corretivo líquido, nenhum erro ortográfico
nem má utilização da gramática. Quando penso na última máquina de escrever que usei, a IBM Selectric rosa-escura em que escrevia nos primeiros anos que passei em
Richmond, recordo minha irritação crônica com fitas que se rompiam, com a necessidade de trocar a peça que parecia uma bola de golfe quando desejava mudar de fonte,
com o manejo de um cilindro sujo que deixava manchas no papel, sem falar em meus dedos apressados pressionando as teclas erradas. Ainda que minha ortografia e gramática
sejam boas, decerto não sou infalível.
Como dizia minha secretária Rose quando entrava com minha última tentativa datilografada na máquina: "Em que página do manual de estilo está isso, ou talvez esteja
no guia de estilo da Associação de Línguas Modernas e eu não consegui encontrar? Vou refazer, mas toda vez que você datilografa alguma coisa é assim?". E fazia aquele
seu gesto de mão característico que perguntava: "Por que se dar o trabalho?". Então interrompo esses pensamentos porque pensar nela me entristece. Sinto saudades
todos os dias desde que Rose morreu e, se ela estivesse aqui agora, de alguma forma as coisas seriam diferentes. Ao menos pareceriam diferentes. Ela era minha clareza.
Eu era a vida dela. Ninguém como Rose deveria desaparecer da face da terra e ainda não consigo acreditar nisso; mas agora não é uma boa hora para pensar nela ou
no rapaz louro de tênis pretos de cano alto sentado na sala ao lado em vez dela. Preciso me concentrar. Em Erica Donahue. O que vou fazer com essa mulher? Alguma
coisa, mas preciso ser esperta.
Ela deve ter datilografado a carta endereçada a mim mais de uma vez, tantas quanto foi necessário para deixá-la impecável, e recordo que quando seu motorista chegou
no Bentley parecia não saber que o destinatário do envelope lacrado era uma mulher, e na realidade achou que um homem de cabelo grisalho fosse eu. Lembro a mim mesma
que a mãe de Johnny Donahue também não parece estar ciente de que o psicólogo forense que está avaliando seu filho, esse mesmo homem de cabelo grisalho, é meu marido;
além disso, ao contrário do conteúdo da carta, não existe uma unidade para os "criminalmente insanos" no McLean, nem ninguém avaliou Johnny como criminalmente insano,
que é um termo legal, não um diagnóstico. Segundo Benton, ela também entendeu outros fatos de forma errada.
Confundiu detalhes que podem muito bem atrapalhar o filho, talvez prejudicar seu principal álibi. Ao afirmar que ele saiu do Biscuit em Cambridge à uma da tarde
e não às duas, como sustenta Johnny, ela tornou muito mais verossímil que ele tenha conseguido transporte e chegado a Salem a tempo de matar Mark Bishop por volta
das quatro da mesma tarde. Depois, há a referência ao fato de seu filho ler livros de terror e gostar de filmes do gênero e de diversões violentas, e, por fim, o
que ela disse acerca de Jack Fielding, da pistola de pregos, de um culto satânico, nada disso correto ou comprovado.
Onde ela obteve detalhes tão perigosos - sério, onde? Acho que Fielding pode ter colocado essas ideias na cabeça da mulher quando conversou com ela ao telefone se
é verdade que ele está espalhando esses boatos agora, se é verdade que está mentindo, que é o que Benton parece pensar. Independentemente do que Fielding tenha ou
não feito, de suas verdades ou inverdades, ou de seus motivos para o que quer que esteja acontecendo, minhas perguntas se voltam para a mãe de Johnny Donahue. Obrigo-me
a voltar a ela porque não enxergo motivação lógica. O fato de ter entreguado essa carta a mim realmente não fez nenhum bem. Parece fora de propósito. Parece errado.
Para alguém tão meticuloso no que diz respeito a erros e construção frasal, sem mencionar a atenção que deve prestar à sua música, surpreende-me que ela não pareça
dar a devida importância aos fatos concernentes à confissão feita por seu filho de um dos atos de violência mais hediondos da história recente. Cada detalhe é levado
em conta em um caso como esse, e como uma mulher inteligente, sofisticada, com advogados caros, pode não saber disso? Por que se arriscaria a revelar alguma coisa
a alguém como eu, uma completa estranha, especialmente por escrito, quando seu filho enfrenta a possibilidade de passar o resto da vida trancafiado em uma instituição
psiquiátrica forense como Bridgewater ou, pior, em alguma prisão, onde um assassino de crianças condenado com síndrome de Asperger, o dito savant, que consegue resolver
de cabeça os mais difíceis problemas de matemática, mas é deficiente quando se trata de relações sociais comuns, não está apto a sobreviver por muito tempo?
Reabasteço minha memória com todos esses fatos e pontos relevantes ao mesmo tempo que percebo que estou me sentindo e me comportando como se dissessem respeito a
mim. O que não deveria acontecer. Preciso ser objetiva. Você não toma partido; não é função sua se preocupar, digo a mim mesma. Não se preocupe com Johnny Donahue
nem com a mãe dele, de um jeito ou de outro, e não é detetive nem agente do FBI, penso com firmeza. Você não é nem advogada de defesa nem terapeuta de Johnny e não
deve se envolver, digo a mim mesma com severidade, pois não estou convencida. Luto contra impulsos que se tornaram incrivelmente fortes e não sei como desligá-los,
se consigo ou devo fazer isso. Sei que não quero.
Algumas das coisas com as quais me acostumei não só em Dover, mas em casos não relacionados ao combate, de jurisdição do AFMES, ou o que basicamente constitui o
trabalho do médico-legista federal é bastante compatível com minha verdadeira natureza, e não desejo voltar ao modo antigo e circunspecto de proceder. Sou e não
sou militar. Sou e não sou civil. Estive em Washington e fora de Washington, morei em uma base da Força Aérea, fui repetidas vezes enviada em missões de recuperação
de acidentes aéreos, durante exercícios de treinamento e mortes em instalações militares ou óbitos envolvendo as Forças Especiais, o Serviço Secreto, um juiz federal,
até mesmo um astronauta nos últimos meses, lidando com um monte de situações delicadas que não posso mencionar. O que estou sentindo é a parte negativa da equação.
Não sou uma única coisa e não me sinto nem um pouco propensa a me render a limitações, a me sentar de braços cruzados porque não é meu departamento.
Como oficial envolvida em inteligência médica, devo investigar certos aspectos da vida e da morte que ultrapassam determinações clínicas comuns. O material que removo
dos corpos, os tipos de lesão, a balística do ferimento, as resistências e deficiências da proteção blindada e infecções, doenças, lesões, quer originadas por parasitas
ou por anfípodes, calor extremo, desidratação, tédio, depressão, drogas - são todos questões de defesa e segurança nacional. Os dados que coleto não visam apenas
as famílias e, em geral, não se destinam à corte criminal, mas podem ter influência nas estratégias de guerra e no que nos mantém seguros na esfera nacional. Devo
fazer perguntas. Seguir pistas. Passar informação ao chefe de Saúde Pública, ao Departamento de Defesa, ser extremamente diligente e proativa.
Você está em casa agora. Não quer ser vista como coronel ou comandante, certamente não como prima-dona. Não quer que as acusações de um caso sejam retiradas nem
ver o caso afastado do tribunal. Não quer causar problemas. Já não chega? Por que promover outros? Briggs não quer você por aqui. Tenha cuidado para não justificar
sua posição. Seu próprio pessoal parece não querer você por aqui. Não facilite. Seu único objetivo legítimo ao contatar Erica Donahue é lhe pedir que não torne a
fazer contato com você ou com seu escritório, para o bem dela mesma, para sua própria proteção.
Decido usar exatamente essas palavras e quase acredito em minha motivação quando ligo para o número do telefone fixo datilografado no final da carta.
17
A pessoa que atende parece não entender o que estou dizendo e preciso me repetir, explicando que sou a dra. Kay Scarpetta e estou respondendo à carta que acabo de
receber de Erica Donahue. Pergunto se ela pode atender.
"Peço desculpas", diz a voz bem modulada. "Quem está falando?" É uma voz de mulher, porém baixa, quase tenor, e poderia pertencer a um rapaz. Ao fundo soa um piano
desacompanhado, um solo.
"É a sra. Donahue?" Sinto uma sensação desagradável.
"Quem está falando e por que está telefonando?" A voz soa mais forte e irritada.
Repito o que disse enquanto reconheço um exercício musical de Chopin e recordo um concerto no Carnegie Hall. Mikhail Pletnev, excelente em seu domínio técnico da
composição bastante difícil de executar. A música de uma pessoa detalhista e meticulosa, que gosta de tudo perfeito. Alguém nem um pouco descuidado, que não comete
erros. Alguém que não estragaria um envelope elegantemente impresso com fita vedante. Não uma pessoa impulsiva e, sim, inclinada à antecipação.
"Bom, realmente não sei quem é", diz a voz, que agora creio que seja a da sra. Donahue, fria e cortante de desconfiança e aflição. "E não sei como conseguiu este
número, já que não está na lista nem foi publicado. Se isso é algum tipo de trote, é absolutamente ofensivo e, quem quer que você seja, devia se envergonhar..."
"Garanto que não é um trote", interrompo antes que ela desligue enquanto penso em Erica Donahue ouvindo Chopin, Beethoven, Schumann, preocupada com a própria vida,
sofrendo por um filho que provavelmente a angustiou desde que deu à luz. "Sou diretora do Centro Forense de Cambridge, legista-chefe de Massachusetts", explico em
tom autoritário porém calmo, a mesma voz que uso com famílias à beira de perder o controle, como se ela fosse Julia Gabriel e estivesse prestes a gritar comigo.
"Estive fora da cidade e quando cheguei ao aeroporto ontem à noite seu motorista estava lá com sua carta, que li com toda a atenção."
"Isso é totalmente impossível. Não tenho motorista e não escrevi carta nenhuma. Não escrevi para ninguém no seu escritório e não faço ideia do que está dizendo.
Quem é? Quem está falando e o que quer?"
"Tenho a carta na minha frente, sra. Donahue."
Olho para a mensagem sobre minha mesa e torno a alisar as folhas com cuidado e deliberação, pois me incomoda fazer perguntas a respeito de Fielding, dos motivos
por que ela telefonou e o que ele disse. Incomoda-me o fato de não querer que ela me odeie ou pense que sou insensível e qualquer outra coisa que não honesta. É
possível que Fielding tenha me denegrido junto a ela, da mesma forma que desconfio que fez com Julia Gabriel. Estou prestes a perguntar, mas paro. O que foi dito
e o que Erica Donahue foi levada a crer? Mas não agora. Autocontrole, digo a mim mesma.
"O que indica que a carta foi enviada por mim?", pergunta a sra. Donahue em tom indignado.
"Um papel bege com marca-d'água." Aproximo a folha superior da luminária em minha mesa, ajeitando o quebra-luz para que a lâmpada incida direto sobre o papel, mostrando
claramente a marca d'água, como o funcionamento interno de um caranguejo aparecendo através da casca perolada. "Um livro aberto com três coroas", digo, e imediatamente
fico abalada.
Não deixo que ela repare no choque em minha voz. Certifico-me de que não perceba o que me passa pela cabeça à medida que descrevo o que estou vendo, como um holograma,
na folha de papel que seguro contra a luz: um livro aberto entre duas coroas, com uma terceira coroa embaixo e três potentilhas de cinco pétalas em cima. Foram essas
as flores que Marino se esqueceu de mencionar e que evidentemente não pertencem ao brasão de Oxford e evidentemente não pertencem ao brasão da Universidade on-line
da Cidade de San Francisco. O que estou vendo não foi o que Benton encontrou na internet esta manhã enquanto estávamos todos na sala de raios X, mas o que vi no
anel de ouro de sinete que retirei do armário de provas antes de subir e depois de examinar as roupas do morto.
Abro o pequeno envelope de papel pardo e deixo cair o anel na palma da minha mão enluvada. O ouro captura a luz da luminária e brilha contra o algodão branco enquanto
giro a peça em várias direções para examiná-la, percebendo que está muito arranhada e a base do aro está desgastada. O anel me parece velho, uma antiguidade.
"Bom, parece meu brasão e meu papel. Admito isso", a sra. Donahue está dizendo ao telefone, então leio o endereço de Beacon Hill impresso no envelope e no papel
timbrado, e ela confirma que é o seu. "Meu papel de carta pessoal? Como é possível?" Ela parece zangada, como as pessoas ficam quando sentem medo.
"O que a senhora pode me falar sobre seu brasão? Pode me explicar o que significa?", pergunto.
Olho para a insígnia idêntica gravada no anel de sinete em ouro amarelo que agora seguro sob uma lupa. As três coroas e o livro aberto surgem em grandes dimensões
sob a lente de aumento, e a gravação quase desapareceu em certos pontos; por causa da idade do anel, especialmente as flores de cinco pétalas, as potentilhas, são
apenas uma sombra do que foi antes profundamente gravado, submetido por alguém ao uso e ao desgaste, ou talvez por várias pessoas, inclusive o homem de Norton's
Woods, que o estava usando no mindinho da mão esquerda quando foi assassinado. Não pode haver dúvida de que ele o estava usando, de que o anel chegou com o corpo.
Não houve confusão por parte da polícia, de algum hospital ou casa funerária. O anel estava lá quando Marino retirou os objetos pessoais do homem ontem pela manhã,
guardou-os e ficou com a chave até entregá-la a mim.
"Meu nome de família é Fraser", explica a sra. Donahue. "É o brasão da minha família; esse em particular enaltece Jackson Fraser, um bisavô que, ao que tudo indica,
mudou o desenho para incorporar elementos como o azul na base, uma borda dourada e uma terceira coroa vermelha, que é difícil de ver a menos que se esteja olhando
para uma réplica do brasão colorida, tal como a que tenho emoldurada na minha sala de música. Você está dizendo que alguém escreveu uma carta no meu papel e fez
com que um motorista a entregasse em mãos a você? Não entendo nem vejo como isso seja possível, não sei o que significa nem por que alguém faria uma coisa dessas.
Que tipo de carro era? Não temos motorista. Tenho um Mercedes antigo, meu marido dirige um Saab e, de qualquer forma, está fora do país no momento. Nunca tivemos
motorista. Só usamos motoristas quando viajamos."
"Eu gostaria de saber se o brasão da sua família aparece em algum outro lugar. Bordado, gravado, além de emoldurado na parede da sua sala de música. Se é conhecido
ou foi publicado, se alguém pode ter se apoderado dele." Independentemente de como eu formule, soa estranho questionar a mulher a esse respeito.
"Se apoderado dele para fazer o quê? Com que objetivo?"
"Seu papel de carta, por exemplo. Vamos pensar nisso e em qual pode ser esse objetivo fundamental."
"O que você tem foi gravado ou impresso?", pergunta ela então. "Você percebe a diferença entre gravação e impressão só de olhar?"
Você não sabe quem ele é, penso. Não sabe se o homem que morreu usando o anel não é um membro da família, um parente, e me lembro de Benton mencionar que Johnny
Donahue tem um irmão mais velho que trabalha em Langley. E se por acaso ele esteve em Cambridge ontem, em um apartamento perto de Harvard, talvez o apartamento de
um amigo com um packbot obsoleto, um amigo dono de um galgo, um amigo que talvez trabalhe em um laboratório de robótica? E se o irmão mais velho ou algum outro homem
importante para a sra. Donahue estivesse no exterior, na Inglaterra, tivesse voltado de repente e estivesse morto e ela não sabe, a família Donahue não sabe? Qual
é a cara do irmão de Johnny?
Não pergunte a ela.
"O papel de carta é gravado", respondo à sra. Donahue.
E se a família dela está de alguma forma ligada a Liam Saltz ou alguém que tenha comparecido ao casamento da filha dele no domingo? Os Donahue podem ter alguma ligação
com um membro do Parlamento chamado Brown?
Fique longe disso.
"Bom, não dá para tirar um papel de carta gravado da cartola, produzir isso em um minuto", a sra. Donahue diz.
Agora estou examinando o envelope, a fita vedante no verso, que pensei em preservar.
"Especialmente se não tiver as matrizes", acrescenta ela.
Na área forense, usamos fita adesiva o tempo todo, para recolher vestígios de provas de um tapete, de um estofamento, para retirar fibras, lascas de tinta, fragmentos
de vidro, resíduos de pólvora, minerais, até mesmo DNA e impressões digitais de todo tipo de superfície, inclusive corpos. Qualquer pessoa sabe disso. É só ver televisão.
É só digitar no Google "equipamento e técnicas de investigação na cena do crime".
"E se alguém pegou minhas matrizes? Mas quem? Quem pode estar com elas?", protesta a sra. Donahue. "Sem elas, levaria semanas. E imprimir provas tipográficas, que
naturalmente é o que faço, acrescentaria muitas semanas. Isso não faz sentido."
Ela não colocaria fita vedante no verso de seu envelope elegante, que leva muitas semanas para ser gravado. Não essa mulher meticulosa, orgulhosa, que ouve estudos
de Chopin. Se outra pessoa fez isso, talvez eu tenha uma ideia do motivo. Especialmente se foi alguém que me conhece ou sabe de que forma penso.
"E, sim, a insígnia está gravada em vários objetos. Está em minha família há séculos", acrescenta, pois quer conversar. Há muita coisa reprimida dentro dela, que
quer deixar sair.
Deixe que faça isso.
"É escocesa, mas você provavelmente já adivinhou isso com base no nome", diz Erica Donahue em seguida. "Está emoldurada na parede da sala de música, como mencionei,
gravada em parte da prataria da família e tivemos alguns objetos de prata roubados há anos por uma governanta que foi despedida, mas nunca a acusamos de nada, porque
na verdade não tínhamos provas, para a satisfação da polícia de Boston. Imagino que a prata da minha família possa ter acabado em alguma casa de penhores por aqui.
Mas não vejo o que isso tem a ver com meu papel de carta. Você parece estar insinuando que alguém produziu um papel de carta com gravações idênticas ao meu, com
o objetivo de se fazer passar por mim. Ou alguém roubou o papel. Está sugerindo roubo de identidade?"
O que respondo? Até onde vou?
"E alguma outra coisa que tenha sido roubada, qualquer coisa com o brasão da sua família?" Não quero perguntar diretamente sobre o anel.
"Por que a pergunta? Tem mais alguma coisa?"
"Tenho uma carta supostamente sua", reitero em lugar de responder as perguntas. "Foi redigida em uma máquina de escrever."
"Eu ainda uso máquina de escrever", confirma ela, parecendo perplexa. "Mas geralmente escrevo cartas à mão."
"Posso perguntar com o quê?"
"Uma caneta, claro. Uma caneta-tinteiro."
"E qual é o estilo de fonte da sua máquina de escrever? Mas a senhora talvez não conheça estilos de letras. Nem todo mundo conhece."
"É só uma Olivetti portátil que sempre tive. A fonte é cursiva."
"Deve ser muito antiga", comento examinando a carta, a fonte cursiva apertada produzida pelos golpes dos tipos de metal sobre a fita com tinta.
"Pertencia à minha mãe."
"Sra. Donahue, sabe onde está sua máquina de escrever?"
"Vou até o armário da biblioteca onde ela fica guardada quando não está em uso."
Ouço a mulher se dirigir a outro lugar da casa, e ela parece depositar o telefone sobre uma superfície dura. Em seguida, uma série de portas se fecha, talvez de
armário, e um instante mais tarde a sra. Donahue está de volta, quase sem fôlego. "Ela desapareceu. Não está aqui."
"A senhora lembra quando viu essa máquina pela última vez?"
"Não sei. Semanas atrás. Provavelmente perto do Natal. Não sei."
"E não está em outro lugar? Talvez a tenha mudado de lugar ou emprestado a alguém."
"Não. Isso é terrível. Alguém pegou a máquina e meu papel de carta. A mesma pessoa que escreveu para você como se fosse eu. Não fiz isso."
A primeira pessoa que me vem à mente é seu filho Johnny. Mas ele está no McLean. Não poderia ter pego emprestada a máquina de escrever, a caneta e o papel de carta
da mãe e depois contratado um homem e um Bentley para me entregar a carta. Supondo que tivesse tomado conhecimento de quando eu chegaria no helicóptero de Lucy na
noite passada, e tampouco vou perguntar isso à mãe. Quanto mais pergunto, mais informação forneço.
"O que está escrito na carta?", insiste ela. "O que alguém escreveu como se fosse eu? Quem pode ter levado minha máquina de escrever? Devemos chamar a polícia? Mas
o que estou dizendo? Você é a polícia."
"Sou médica-legista", corrijo a sra. Donahue com naturalidade enquanto o ritmo de Chopin se acelera em um exercício musical diferente. "Não sou da polícia."
"Mas na verdade você é. Médicos como você investigam como a polícia, agem como a polícia e têm poderes como a polícia. Conversei com seu assistente, o dr. Fielding,
sobre o que está sendo atribuído ao meu filho, como sei que você está ciente. Você deve saber que liguei para seu escritório a respeito disso e por quê. Deve saber
por que e o quanto isso está errado. Você parece uma mulher justa. Sei que não estava aqui, mas devo dizer que não entendo tudo que foi tolerado, mesmo à distância."
Giro na cadeira e fico de frente para a parede curva, que nada mais é que vidro, meu escritório no formato exato do prédio visto de lado, cilíndrico e arredondado
em uma extremidade. O céu da manhã está azul e radiante, o que Lucy chama de claridade dura, e percebo que alguma coisa se move na tela de segurança, um utilitário
preto estacionando nos fundos.
"Fui informada de que a senhora telefonou para falar com ele", declaro, pois não posso dizer o que está prestes a transbordar de dentro de mim. O que não é justo?
O que foi que tolerei? Como ela soube que eu não estava aqui? "Entendo sua preocupação, mas..."
"Não sou nenhuma ignorante", interrompe a sra. Donahue. "Não sou ignorante nessas coisas, mesmo que nunca tenha me envolvido em nada tão terrível, mas ele não tinha
motivos para ser tão grosseiro comigo. Eu estava no meu direito de perguntar o que perguntei. Não consigo entender como você pode tolerar isso e talvez não tenha
tolerado. Talvez não esteja ciente de toda essa confusão sórdida, mas como não? Você está no comando e agora que estamos ao telefone talvez possa me explicar como
seria justo, apropriado ou mesmo legal que alguém na posição dele esteja envolvido nisso e tenha tanto poder."
A palavra cuidado lampeja em minha mente, como se eu tivesse um aviso luminoso na cabeça, piscando em néon vermelho.
"Peço desculpas se a senhora teve a impressão de que ele foi grosseiro ou pouco prestativo." Ponho em prática meu próprio aviso e sou cuidadosa. "A senhora compreende
que não podemos discutir casos com..."
"Dra. Scarpetta." Notas de piano sustenidas soam como que em resposta ou vice-versa. "Eu nunca faria isso e certamente não fiz", diz ela com emoção. "Me dê licença
enquanto abaixo isso. Você provavelmente não conhece Valentina Lisitsa. Se eu pudesse ao menos ouvir sem todas essas outras coisas terríveis martelando em minha
cabeça, como se fossem potes e panelas batendo! Meu papel de carta, minha máquina de escrever. Meu filho! Ah, meu Deus, ah, meu Deus." A música para. "Não fiz perguntas
indiscretas ao dr. Fielding sobre alguém que foi assassinado, muito menos uma criança. Se foi por isso que ele disse que telefonei, é absolutamente falso. Só vou
dizer isso. É mentira. Uma mentira ordinária. Não me surpreende."
"A senhora telefonou querendo falar comigo", digo porque é só o que de fato sei, a não ser por suas declarações a Bryce a respeito de Johnny e sua inocência e alergias.
É óbvio que ela não faz ideia de que não conversei com Fielding, de que, ao que parece, ninguém conversou. E quanto mais eu subestimar ou ignorar completamente o
que está dizendo, mais barulho ela vai fazer, mais voluntariosa vai ficar.
"No fim da semana passada", diz ela com energia. "Porque você está no comando e não cheguei a lugar nenhum com o dr. Fielding; é claro que você entende minha preocupação
e isso é realmente inaceitável, se não for criminoso. Eu queria me queixar; sinto muito que você tenha voltado para casa e encontrado essa situação. Quando me dei
conta de quem você era, de que não era um trote, meu primeiro pensamento foi o de que essa chamada tinha a ver com o fato de eu ter apresentado queixa contra seu
escritório, nada tão oficial quanto estou fazendo parecer, pelo menos ainda não, embora nosso advogado certamente esteja ciente e a assessoria jurídica do CFC também.
Agora talvez eu não precise registrar nada. Depende do acordo a que chegarmos."
Acordo a respeito do quê?, penso, mas não pergunto. Ela sabia que eu estava voltando para casa, o que tampouco se encaixa com o que supostamente me escreveu. Mas
se encaixa com o fato de um motorista ter ido me encontrar em Hanscom Field.
"O que está escrito na carta? Você pode ler para mim?", ela pede.
"É possível que outra pessoa em sua família tenha me escrito com o seu papel de carta e tomado emprestada sua máquina de escrever?", sugiro.
"E assinado meu nome?"
Não respondo.
"Estou supondo que provavelmente assinei o que quer que você tenha em mãos, ou você não teria motivos para achar que foi enviado por mim, a não ser pelo endereço
gravado, que poderia indicar meu marido, que está no Japão a negócios desde sexta-feira, ainda que seja um momento dos mais inoportunos para ele estar fora do país.
Seja como for, não escreveria uma coisa dessas. É claro que não."
"A carta foi supostamente escrita pela senhora", retruco e não informo que acima de seu nome datilografado em fonte cursiva está assinado "Erica" e que o envelope
foi endereçado com letra ornamentada em tinta preta de caneta-tinteiro.
"Isso é muito preocupante. Não sei por que não lê para mim. Tenho o direito de saber o que alguém escreveu como se fosse eu. No fim das contas, acho que nosso advogado
vai ter que chegar a um acordo com você, o advogado que representa Johnny, e imagino que diga respeito a ele, essa carta que é uma mentira, uma fraude. Provavelmente
um truque sujo das mesmas pessoas que estão por trás de tudo isso. Ele estava muito bem até ir para lá, e então se transformou em um monstro, o que é uma coisa difícil
de dizer a respeito do próprio filho. Mas é o único jeito em que consigo pensar para que você entenda como ele está mudado. Drogas. Deve ser, ainda que os testes
tenham dado negativo, de acordo com nosso advogado. E Johnny nunca usaria drogas. Ele sabe que não vale a pena. Sabe que sua condição já é complicada o bastante
sem isso. Mas não sei o que mais poderia ser além de drogas, de alguém que apresentou a ele alguma coisa que o transformou, que teve um efeito terrível, o de deliberadamente
destruir a própria vida, de armar uma armadilha para ele..."
Ela continua a falar sem parar, cada vez mais exaltada, quando soa uma batida em minha porta externa e alguém tenta a maçaneta, ao mesmo tempo que Bryce abre nossa
porta comum e balanço a cabeça em negativa. Agora não. Então ele sussurra que Benton está à minha porta, ele pode deixar meu marido entrar? Aceno com a cabeça, ele
fecha uma porta e a outra se abre.
Coloco a chamada da sra. Donahue no viva-voz.
Benton fecha a porta atrás de si e ergo a carta para indicar com quem estou conversando. Ele puxa para perto de mim uma cadeira enquanto a sra. Donahue continua
a falar e eu escrevo para ele: Não foi ela que escreveu - não era o motorista nem o Bentley dela.
"... naquele lugar", soa a voz da sra. Donahue em meu escritório, como se ela estivesse presente.
Benton se senta e não esboça nenhuma reação; seu rosto está pálido. Ele parece esgotado e cheira a fumaça.
"Não estive lá porque as visitas não são permitidas, a menos que tenham algum evento especial...", prossegue a voz.
Benton pega uma caneta e escreve na mesma folha que eu. Otwahl? Mas faz isso de forma mecânica. Não parece particularmente curioso.
"E então é preciso passar por uma segurança igual à da Casa Branca, ou talvez mais radical que isso", queixa-se a sra. Donahue. "Não que eu tenha certeza, mas de
acordo com meu filho, que estava assustado e um caco nos últimos meses que passou lá. Seguramente desde o verão."
"A que lugar a senhora está se referindo?", pergunto enquanto escrevo outra anotação para Benton.
A máquina de escrever desapareceu da casa dela.
Ele olha para a nota e balança a cabeça como se já soubesse que a velha Olivetti manual de Erica Donahue desapareceu ou foi roubada, supondo que o que ela acaba
de me contar seja verdade. Talvez Benton de alguma forma saiba o que ela me disse e me invade os pensamentos o fato de que meu escritório provavelmente está grampeado.
A alegação de Lucy de ter vasculhado meu escritório à procura de dispositivos de vigilância possivelmente significa que os instalou e minha atenção vagueia pela
sala como se eu pudesse encontrar câmeras ou microfones diminutos escondidos em livros, canetas, pesos para papel ou o telefone no qual estou conversando. É ridículo.
Se Lucy tiver grampeado meu escritório, não tenho como descobrir. Ou, mais precisamente, Fielding não tem como descobrir. Espero pegá-lo contando coisas à capitã
Avallone, sem se dar conta de que os dois estão sendo discretamente gravados. Espero pegar ambos conspirando para me destruir, para me expulsar do CFC.
"... onde ele fez estágio. Aquela empresa de tecnologia que fabrica robôs e coisas que ninguém deve saber...", a sra. Donahue está dizendo.
Vejo Benton unir as mãos no colo, entrelaçando os dedos como se estivesse calmo quando está tudo menos sóbrio e descontraído. Conheço sua linguagem corporal, seu
jeito de sentar e mover os olhos e percebo seu nervosismo no que parece a mais absoluta imobilidade corporal e espiritual. Ele está estressado e esgotado, porém
há mais. Alguma coisa aconteceu.
"... Johnny teve que assinar contratos e vários acordos legais prometendo que não falaria sobre a Otwahl, nem mesmo o que o nome significa. Você pode imaginar uma
coisa dessa? Nem mesmo isso, o que significa Otwahl. Mas não é de admirar! O que essa gente está fazendo? Contratos secretos imensos com o governo, e ganância. Uma
ganância enorme. Então você se surpreende que objetos desapareçam e pessoas tenham sua identidade roubada?"
Não faço ideia do que significa Otwahl. Pensei que fosse o nome de uma pessoa, do fundador da empresa. Olho para Benton. Ele fita o outro lado da sala com ar inexpressivo,
prestando atenção à sra. Donahue.
"... a respeito de nada, certamente não o que acontece e tudo que ele fez por lá pertence a eles e permanece lá." Ela fala rápido, e sua voz já não soa como se fosse
proveniente de seu diafragma, mas do alto da garganta. "Estou apavorada. Quem são essas pessoas e o que elas fizeram com meu filho?"
"O que a faz pensar que fizeram alguma coisa a Johnny?", pergunto enquanto Benton, calma e silenciosamente, escreve na folha, a boca apertada em uma linha firme
e fina, sua expressão típica nesses momentos.
"Porque não pode ser coincidência", responde ela, e sua voz me faz lembrar a fonte cursiva de sua velha Olivetti. Algo elegante que está se deteriorando, desaparecendo,
que está se transformando em algo menos distinto e ligeiramente turvo. "Ele estava bem, depois não estava, e agora está trancado em um hospital psiquiátrico confessando
um crime que não cometeu. E então isso", diz ela com voz rouca, limpando a garganta. "Uma carta em meu papel de carta, ou no que parece ser meu papel de carta, que
é claro que não foi escrita por mim e que não faço ideia de quem entregou a você. E minha máquina de escrever desapareceu..."
Benton empurra a folha em minha direção e leio o que ele escreveu com sua letra elaborada.
Nós temos conhecimento disso.
Olho para ele e fecho a cara. Não estou entendendo.
"... Por que iam querer que ele fosse acusado de alguma coisa que não fez e como conseguiram fazer essa lavagem cerebral para que ele pensasse que matou aquela criança?",
continua a sra. Donahue. "Drogas. Só posso supor que sejam drogas. Talvez um deles tenha matado o menino e precisava de alguém como bode expiatório. E lá estava
meu pobre Johnny, que é ingênuo, que não entende as situações da mesma forma que os outros. Quem melhor que um adolescente com Asperger para se escolher como vítima?"
Continuo olhando para a anotação de Benton. Nós temos conhecimento disso. Como se, lendo mais de uma vez, eu vá compreender o que ele sabe, ou ele e os outros, os
invisíveis, a entidade a que ele se refere como "nós", sabem. Mas, sentada aqui, concentrada no que a sra. Donahue está dizendo e tentando decifrar o que ela está
de fato me comunicando enquanto extraio com cuidado as informações, tenho a sensação de que Benton não está realmente ouvindo. Parece pouco interessado, diferente
de seu eu naturalmente perspicaz. O que detecto é que ele quer que eu encerre a chamada e saia com ele, como se alguma coisa já tivesse sido resolvida e tivessem
restado apenas as pendências, como se fosse apenas uma questão de arrumar a bagunça. Era assim que ele agia quando um caso o esgotava durante meses ou anos e por
fim se resolvia, era abandonado ou o júri chegava a um veredicto e de repente tudo terminava e ele ficava arrasado, exausto e deprimido.
"Quando a senhora começou a perceber a diferença em seu filho?" Não vou desistir agora, independentemente do que Benton saiba ou do quanto esteja cansado.
"Em julho, agosto. Em setembro com certeza. Ele começou o estágio na Otwahl em maio passado."
"Mark Bishop foi assassinado em 30 de janeiro." É o mais perto que ouso chegar de apontar o óbvio: o que ela continua a afirmar sobre seu filho ter sido falsamente
incriminado não faz sentido, por uma questão de cronologia.
Se a personalidade de Johnny começou a mudar no verão passado quando ele estava trabalhando na Otwahl e Mark Bishop só foi assassinado em 30 de janeiro, o que ela
está sugerindo é que alguém planejou que Johnny levasse a culpa por um crime que ainda não havia acontecido e só aconteceria muitos meses depois. O caso de Mark
Bishop não se encaixa com algo meticulosamente planejado, mas com um ataque violento, absurdo e sádico a um menino que estava em casa, brincando no quintal, em um
final de tarde de um fim de semana, quando estava escurecendo e não havia ninguém olhando. Parece-me um crime de oportunidade, um assassinato perpetrado por alguém
à procura de emoções, o jogo perverso de um predador, possivelmente com tendências pedófilas. Não um homicídio. Não um ato de terrorismo. Não creio que a morte do
garoto tenha sido premeditada e executada com um objetivo em mente, tal como segurança nacional, poder político ou dinheiro.
"Pessoas que não entendem a síndrome imaginam que os que sofrem de Asperger são violentos, quase não são humanos, não sentem as mesmas coisas que o resto de nós,
ou simplesmente não sentem nada. As pessoas imaginam todo tipo de coisas não por causa da doença em si, mas de sua singularidade. Essa é uma desvantagem significativa."
A sra. Donahue fala rápido e não ordena os pensamentos. "Você aponta para mudanças de comportamento que são alarmantes e as outras pessoas acham que é dele. Que
é uma particularidade de Johnny, outra desvantagem, como se ele precisasse de mais uma. Bom, não é essa a questão. Alguma coisa horrível começou quando ele entrou
naquele lugar, a Otwahl, em maio do ano passado..."
Também me passa pela cabeça o que Benton mencionou horas antes, que a morte de Mark Bishop pode estar relacionada a outras: do jogador de futebol americano da Universidade
de Boston, que foi encontrado no porto em novembro passado, e provavelmente do homem assassinado em Norton's Woods. Se Benton estiver certo, então Johnny Donahue
teria de ser culpado dos três homicídios, e como isso seria possível? Ele estava internado no McLean quando o assassinato em Norton's Woods ocorreu, por exemplo.
Sei que Johnny não poderia ter cometido esse homicídio e não vejo como possa ser incriminado, a menos que não estivesse sob a tutela do hospital, a menos que estivesse
em liberdade e armado com uma faca de injeção.
Benton escreve novamente. Precisamos ir. E sublinha as palavras.
"Sra. Donahue, seu filho está tomando algum remédio?", pergunto.
"Na verdade, não."
"Algum medicamento controlado ou talvez sem receita?", pergunto com calma, o que requer esforço de minha parte, pois estou perdendo a paciência. "Talvez a senhora
deva mencionar qualquer coisa que ele estava tomando antes de ser hospitalizado ou outros problemas médicos que talvez tenha."
Quase digo "talvez tenha tido", como se ele estivesse morto.
"Bom, ele usa um spray nasal. Especialmente nos últimos tempos."
Benton ergue as mãos como se dissesse Isso não é novidade. Ele conhece a medicação de Johnny. Está sem paciência também e sinais disso irrompem através de sua impenetrabilidade.
Quer que eu desligue o telefone e saia com ele agora.
"Por que nos últimos tempos? Ele estava tendo problemas respiratórios? Alergia? Asma?", pergunto enquanto puxo um par de luvas do dispensador e o entrego a Benton.
Em seguida estendo o envelope pardo que contém o anel.
"Pelo de animais, pólen, poeira, glúten, o que você escolher, ele é alérgico e foi tratado por alergistas a vida inteira. Estava ótimo até o último verão, e depois
nada mais funcionou. Havia muito pólen no ar, e o estresse piora tudo. Ele estava ficando cada vez mais estressado. Começou a usar novamente um spray contendo um
tipo de cortisona. O nome agora me foge..."
"Corticosteroide?"
"É, é isso. Fiquei me perguntando se o remédio afetou seu humor, seu comportamento. Coisas como insônia, altos e baixos, irritabilidade, que, como você sabe, se
tornaram extremos, culminando com perdas de consciência, delírios e, por fim, a hospitalização."
"Ele já tinha usado o spray de corticosteroide?"
"Sim, por muitos anos. Mas então ele começou um novo tratamento e não precisou mais de injeções. Por cerca de um ano, pareceu mágico; depois ele ficou doente outra
vez e voltou a usar o spray."
"Fale a respeito do novo tratamento."
"Tenho certeza de que você conhece aquelas gotas embaixo da língua."
Não estou ciente de que imunoterapia sublingual seja algo novo e pergunto: "Seu filho fazia parte de alguma experiência médica?". Rabisco outra anotação para Benton.
Levar spray e gotas para o laboratório imediatamente. E sublinho o imediatamente.
"Sim, através do alergista dele."
Olho para Benton para ver se sabe alguma coisa a respeito, e ele olha de relance para minha anotação, coloca as luvas, então olha para o relógio. Só vai examinar
o anel porque pedi. É como se já o tivesse visto, já soubesse que não é importante ou já tivesse chegado a uma conclusão a respeito. Alguma coisa chegou ao fim.
Alguma coisa aconteceu.
"É o que chamam de utilização não indicada na bula, supervisionada pelo médico, mas acabaram as idas ao consultório para injeções semanais", diz a sra. Donahue,
parecendo momentaneamente aliviada ao falar das alergias do filho em vez de todo o restante, sua dor em remissão, mas isso não vai durar.
Se alguém adulterou a medicação de Johnny, talvez explique por que sua alergia tornou a piorar. O que ele estava pingando sob a língua ou pulverizando no nariz talvez
tenha sido quimicamente alterado para tornar a medicação ineficaz, para não dizer extremamente prejudicial. Olho para Benton enquanto ele examina o anel de sinete.
Seu rosto não exibe nenhuma expressão. Ergo uma folha do papel de carta para que ele veja a marca d'água. Benton não tem nenhuma reação visível e reparo em uma teia
de aranha em seu cabelo. Estendo a mão para removê-la e ele devolve o anel ao envelope. Seus olhos encontram os meus e Benton os arregala como faz em festas e jantares
quando quer sinalizar: Agora vamos.
"... Johnny coloca várias gotas debaixo da língua diariamente e por algum tempo os resultados foram excelentes. Mas também parou de funcionar, e às vezes ele ficava
deprimido. Em agosto passado, ele retomou o spray, mas a situação só pareceu piorar e ainda surgiram aquelas mudanças muito perturbadoras de personalidade. Outras
pessoas perceberam, e ele se meteu em encrenca por agir de forma impulsiva, foi expulso da classe, como você sabe, mas não faria mal àquela criança. Acho que Johnny
nem mesmo sabia da existência dela, quanto mais faria alguma coisa..."
Benton retira as luvas e as joga no lixo. Aponto para o envelope e ele balança a cabeça. Não pergunte à sra. Donahue sobre o anel. Ele não quer que eu o mencione
e talvez não seja necessário trazer à baila o assunto por causa do que Benton sabe e não sei, então reparo em suas botas táticas pretas. Estão cobertas de poeira
cinza que não estava ali antes, quando conversamos no escritório de Fielding. As pernas de sua calça tática preta também estão bastante empoeiradas e as mangas de
seu casaco de couro estão sujas, como se ele tivesse roçado em alguma coisa.
"Era a principal coisa que eu queria perguntar, mais uma questão pessoal dirigida a ele como homem que ensina artes marciais e deve obedecer a um código de honra",
diz a sra. Donahue, tornando a atrair minha atenção e me pergunto se entendi mal. Não posso ter ouvido o que ouvi. "Foi mais isso que qualquer outra coisa, não o
que você imaginou ou o que ele contou. Ele mentiu, tenho certeza, porque, como eu disse, se ele alega que telefonei para pedir detalhes do que foi feito àquela pobre
criança, então está mentindo. Dou minha palavra de que não perguntei sobre Mark Bishop, que não conhecíamos pessoalmente, por sinal. Só o vimos lá algumas vezes.
Não pedi informação a respeito dele..."
"Sra. Donahue, desculpe. A chamada está cortando." Não é verdade, mas preciso que ela repita e esclareça o que disse.
"São esses telefones sem fio. Melhorou? Desculpe. Estou andando pela casa enquanto converso."
"Obrigada. A senhora pode por favor repetir as últimas coisas que disse? Sobre artes marciais?"
Ouço a sra. Donahue me lembrar, com outra descarga de descrença, o que presume que sei, que seu filho Johnny conhece Jack Fielding através do tae kwon do. Quando
telefonou várias vezes para o escritório para falar com Fielding e por fim se queixar comigo, foi por causa desse relacionamento. Fielding era instrutor de Johnny
no Cambridge Tae Kwon Do Club. Fielding era também instrutor de Mark Bishop, treinava uma turma de Tiny Tigers, mas Johnny não conhecia Mark e com certeza não estavam
na mesma turma, não treinavam juntos, a sra. Donahue é inflexível quanto a isso, e pergunto quando Johnny começou a ter aulas. Explico que não estou bem certa quanto
aos detalhes e devo ter um relato preciso para lidar de forma apropriada e justa com sua queixa a respeito de meu subordinado.
"Ele tinha aulas desde maio passado", diz a sra. Donahue, enquanto meus pensamentos debandam e arremetem sem controle. "Você pode entender por que meu filho, que
nunca teve amigos, seria facilmente influenciado por alguém que adora e respeita..."
"Adora e respeita? A senhora está se referindo ao dr. Fielding?"
"Não, não, não", diz ela em tom incisivo, como se realmente detestasse o homem. "Primeiro a amiga dele estava envolvida com isso, já fazia algum tempo. Ao que tudo
indica, várias mulheres levam o tae kwon do bastante a sério e, quando ela começou a trabalhar com Johnny e eles ficaram amigos, ela o incentivou, mas eu gostaria
que ele não tivesse dado ouvidos. Isso e, é claro, a Otwahl, aquele lugar e o que quer que ocorra por lá, e veja o que aconteceu. Mas você certamente pode imaginar
por que Johnny queria ser forte e capaz de se proteger. Para não ser importunado e se sentir menos sozinho quando a ironia, evidentemente, é que, para ele, esse
tempo já tinha passado. Ele não era intimidado em Harvard..."
Ela continua, desconexa, menos incisiva e autoritária agora, mas seu desespero é palpável. Posso sentir na atmosfera do escritório quando me afasto da mesa.
"... como ele se atreve. Isso no mínimo constitui uma violação do juramento médico dele. Como pode continuar responsável pelo caso de Mark Bishop à luz do que todos
sabemos que é verdade?", diz ela.
"A senhora pode ser mais específica sobre a verdade a que está se referindo?" Olho pela janela, para a manhã de uma luminosidade gritante. O sol e a claridade são
tão intensos que meus olhos lacrimejam.
"O preconceito dele." Suas palavras soam às minhas costas, no viva-voz. "Nunca gostou de Johnny ou foi particularmente agradável com ele, fazia comentários grosseiros
na frente dos outros. Coisas como 'Você tem que olhar para mim quando estou me dirigindo a você, e não para a porcaria do interruptor'. Bom, como tenho certeza de
que você está ciente, por causa da singularidade de Johnny, sua atenção é atraída por coisas que não fazem sentido para as outras pessoas. Ele não faz contato visual
e isso pode ser ofensivo a algumas pessoas, que não entendem que é assim que seu cérebro funciona. Você tem algum conhecimento da síndrome de Asperger ou seu marido...?"
"Não sei muita coisa a respeito." Não pretendo entrar no que Benton disse ou deixou de dizer.
"Bom, Johnny fica obcecado por detalhes que não têm a menor importância para ninguém e fica olhando para eles enquanto alguém conversa com ele. Digo alguma coisa
importante e ele fica olhando para um broche ou pulseira que estou usando, faz algum comentário ou ri quando não deveria. E o dr. Fielding o repreendia por rir na
hora errada. Depreciava meu filho na frente de todos, e foi quando Johnny tentou reagir. Esse homem tem tantos graus de faixa preta quanto alguém pode ter, e meu
filho, que pesa sessenta e quatro quilos, tentou lhe dar um chute e foi forçado a deixar a turma para sempre. O dr. Fielding o proibiu de voltar e de tentar ter
aulas em qualquer outro lugar."
"Quando foi isso?" Ouço a mim mesma como se fosse outra pessoa falando.
"Na segunda semana de dezembro. Tenho a data exata. Tenho tudo anotado."
Seis semanas antes de Mark Bishop ser assassinado, penso, atônita, como se fosse eu a ter sido chutada. "E a senhora disse ao dr. Fielding...", começo a dizer ao
telefone na mesa, como se olhasse para a sra. Donahue e ela pudesse me ver.
"Com certeza!", diz a mulher agitada, em tom provocador. "Quando Johnny começou a balbuciar aqueles absurdos sobre ter matado o menino durante um apagão e que o
instrutor deles de tae kwon do fez a autópsia! Você pode imaginar minha reação?"
O instrutor deles de tae kwon do. A quem mais ela está se referindo? À amiga de Johnny do MIT ou há outros? Quem mais Fielding estava treinando e o que poderia ter
induzido Johnny Donahue a confessar um assassinato que Benton acredita que não cometeu? Por que Johnny pensaria ter feito algo tão terrível durante um suposto apagão?
Quem o influenciou ao ponto de admitir o crime e fornecer detalhes tais como o fato de a arma ser uma pistola de pregos quando isso não é verdade? Mas não vou perguntar
mais nada à sra. Donahue. Já fui longe demais; tudo foi longe demais. Fiz a ela mais perguntas do que deveria e Benton já conhece as respostas para qualquer coisa
em que eu possa pensar. Percebo pelo jeito como está sentado na cadeira, olhando para o chão, o rosto tão duro e sombrio quanto o revestimento metálico do prédio.
18
Desligo o telefone e permaneço diante da minha parede curva de vidro, olhando para a miscelânea de telhas de ardósia e neve entremeada de campanários que se estendem
à minha frente nos domínios do CFC.
Espero meu coração desacelerar e minhas emoções assentarem, engolindo com força para empurrar garganta abaixo a dor e a raiva, distraindo-me com a visão do MIT e,
depois dela, a de Harvard e do que há mais à frente. Enquanto permaneço no interior de meu império de muitas janelas e observo o que devo comandar quando o pior
acontece às pessoas, entendo. Entendo por que Benton está agindo dessa forma. Entendo o que terminou. Foi Jack Fielding.
Lembro-me vagamente de ele haver mencionado, não muito depois de ter se mudado para cá, vindo de Chicago, que tinha se apresentado como voluntário em um clube de
tae kwon do e nem sempre estaria disponível para cuidar dos casos nos fins de semana ou após o expediente por causa de sua dedicação ao ensino, a que se referia
como sua arte, sua paixão. Quando necessário, compareceria a torneios, disse, e presumiu que teria "flexibilidade". Como chefe interino durante minhas longas ausências,
ele contava com flexibilidade, repetiu, quase me repreendendo. A mesma flexibilidade que eu teria se estivesse aqui, declarou, como se fosse um fato consagrado eu
ter flexibilidade quando estou em casa.
Recordo ter ficado contrariada ante suas exigências, já que havia sido ele a telefonar me pedindo emprego no CFC, e a posição que concordei em lhe oferecer, como
um idiota, supera qualquer outra que já teve. Em Chicago não tinha muito status. Era um dos seis médicos-legistas e não era cogitado para nenhuma promoção, foi o
que me confidenciou seu chefe quando conversamos sobre o fato de eu contratar Fielding e o tirar de lá. Seria uma tremenda oportunidade profissional, e muito bom
para ele em termos pessoais, porque estaria perto da família, disse seu chefe, e fiquei profundamente comovida por Fielding pensar em mim como família. Fiquei contente
que tivesse sentido minha falta e quisesse voltar a Massachusetts e trabalhar para mim, como nos velhos tempos.
E a ironia que deveria ter me deixado furiosa e que eu certamente deveria ter sinalizado em vez de, como sempre, fazer a vontade de Fielding, era essa noção de flexibilidade,
como se eu fosse e viesse ao meu bel-prazer, como se tirasse férias, saísse correndo para ir a torneios e desaparecesse por vários fins de semana todos os meses
por causa de alguma arte ou paixão que sobrepuja minha profissão, que sobrepuja o que faço todo santo dia. Minha paixão é o que vivo todo santo dia, as mortes de
que me ocupo todo santo dia, as pessoas que ficam para trás, de que forma se levantam e seguem em frente e como de alguma forma as ajudo a fazer isso. Ouço a mim
mesma e me dou conta de que disse essas coisas em voz alta. Sinto as mãos de Benton em meus ombros quando ele se coloca às minhas costas enquanto enxugo as lágrimas
que me escorrem dos olhos. Ele repousa o queixo no alto de minha cabeça e me envolve em seus braços.
"O que foi que eu fiz?", pergunto.
"Você aturou Fielding por tempo demais, mas não é culpa sua. O que quer que ele tenha feito, usado e escondido... Bom. Você teve uma amostra mais cedo, então pode
imaginar." Ele está se referindo às drogas com as quais Fielding talvez tenha impregnado seus emplastros para dor e que talvez estivesse vendendo.
"Vocês o encontraram?", pergunto.
"Sim."
"Ele está sob custódia? Foi preso? Ou só está sendo interrogado?"
"Ele está conosco, Kay."
"Acho que é melhor." Não sei mais o que perguntar, a não ser como ele está, o que Benton não responde.
Desejo saber se Fielding precisou ser colocado em algum dispositivo de retenção ou quarto acolchoado, e não posso imaginá-lo em cativeiro. Não consigo imaginá-lo
na prisão. Ele não vai aguentar. Vai se atirar contra as grades até morrer, como uma mariposa em pânico, se ninguém o matar antes. Também me passa pela cabeça que
já esteja morto. Então tenho um pressentimento. O sentimento se instala de forma pesada, como um torpor, um bloqueio nervoso.
"Temos que sair. Vou explicar da melhor forma que puder, da melhor forma que sabemos. É complicado; é muita coisa", ouço Benton dizer.
Ele se afasta e já não me toca, e é como se nada mais me segurasse aqui, como se eu fosse sair voando pela janela, mas, ao mesmo tempo, há esse peso. Tenho a sensação
de que me transformei em metal ou pedra, em alguma coisa que já não tem vida, não é humana.
"Eu não podia contar antes; não que tudo já esteja esclarecido", diz Benton. "Peço desculpas por ter que esconder as coisas de você, Kay."
"Por que ele, por que alguém...?", começo a fazer perguntas que nunca serão respondidas de forma satisfatória, as mesmas que sempre fiz. Por que as pessoas são cruéis?
Por que matam? Por que sentem prazer em destruir os outros?
"Porque ele podia." Benton responde como sempre.
"Mas por que faria isso?" Fielding não é assim. Nunca foi diabólico. Imaturo, egoísta e disfuncional, sim. Mas não perverso. Não mataria um menino de seis anos para
se divertir e depois se deleitaria imputando o crime a um adolescente com Asperger. Fielding não está equipado para orquestrar um jogo cruel desses.
"Dinheiro. Controle. Vício. Corrigir erros que remontam à sua infância. E o fato de estar descompensado. Em última análise, destruir a si mesmo, porque era ele quem
estava realmente sendo destruído com a destruição de outras pessoas." Benton tem tudo equacionado. Todo mundo tem tudo equacionado, menos eu.
"Não sei", sussurro. Digo a mim mesma para ser forte. Preciso cuidar disso. Não posso ajudar Fielding, não posso ajudar ninguém se não for forte.
"Ele não escondeu bem as coisas", diz Benton quando me afasto da janela. "Assim que descobrimos onde procurar, ficou cada vez mais óbvio."
Alguém está acionando as pessoas, acionando tudo. É por isso que não está bem escondido. É por isso que é óbvio. Dever ser óbvio para nos fazer achar que certas
coisas são verdadeiras quando talvez não sejam. Não vou aceitar que a pessoa por trás de tudo isso seja Fielding até ver por mim mesma. Seja forte. Você precisa
cuidar disso. Não chore por ele nem por ninguém. Não pode fazer isso.
"O que preciso levar?" Pego meu casaco em uma cadeira, a jaqueta tática de Dover, que está longe de ser suficientemente quente.
"Temos tudo lá", responde ele. "Só suas credenciais, caso alguém peça."
É claro que eles têm tudo lá. Tudo e todos estão lá, menos eu. Pego minha bolsa atrás da porta.
"Quando você descobriu?", pergunto. "O bastante para conseguir mandados e encontrar Jack, pelo menos? Ou o que quer que tenha acontecido?"
"Quando você descobriu que o homem de Norton's Woods era um caso de homicídio, mudou tudo. Então Fielding estava ligado a outro homicídio."
"Não vejo como", retruco enquanto saímos juntos e não aviso a Bryce que estou indo embora. No momento, não quero encontrar ninguém. Estou sem disposição para conversar,
ser cordial ou mesmo civilizada.
"A Glock tinha desaparecido do laboratório de armas de fogo. Você não foi informada disso e poucas pessoas sabem", diz Benton.
Recordo os comentários de Lucy sobre ter visto Morrow no estacionamento dos fundos por volta de dez e meia da manhã de ontem, aproximadamente meia hora depois de
ter recebido a pistola no laboratório e, segundo Lucy, não ter se dado o trabalho de examinar a arma. Se estava ciente do desaparecimento da Glock, Lucy escondeu
essa informação crucial, e pergunto a Benton se ela deliberadamente mentiu para mim, sua chefe, por omissão.
"Porque ela trabalha aqui", digo enquanto esperamos que o elevador suba ao nosso andar. Ele está parado no andar mais baixo, como se alguém estivesse mantendo a
porta aberta, o que os funcionários às vezes fazem quando estão carregando ou descarregando muita coisa. "Ela trabalha para mim e não pode me esconder informações.
Não pode mentir para mim."
"Ela não sabia disso na ocasião. Marino e eu sabíamos e não contamos a ela."
"E vocês sabiam sobre Jack, Johnny e Mark. Sobre o tae kwon do." Tenho certeza de que Benton sabia. Provavelmente Marino também.
"Estávamos vigiando Jack, investigando. É verdade. Desde que Mark foi assassinado na semana passada e descobri que Jack treinava Mark e Johnny."
Penso nas fotografias que faltam no escritório de Fielding, os pequenos orifícios na parede dos ganchos removidos.
"Começou a fazer sentido que Jack tenha assumido o controle de certos casos. O de Mark Bishop, por exemplo, mesmo que ele deteste trabalhar com crianças", prossegue
Benton, olhando ao redor, certificando-se de que não há ninguém por perto para ouvir. "Que oportunidade perfeita de encobrir os próprios crimes."
Ou os crimes de outra pessoa, penso. Fielding é do tipo que encobriria alguém. Ele precisa desesperadamente ser poderoso, bancar o herói, e então me lembro de parar
de defendê-lo. Até que você tenha provas. O que quer que se apresente como verdade vou aceitar, e me ocorre que as fotografias desaparecidas do escritório de Fielding
eram poses de grupo. Isso me parece familiar. Quase consigo visualizá-las. Possivelmente das turmas de tae kwon do. Fotos contendo Johnny e Mark.
Desejo saber, mas não pergunto, se Benton ou Marino retiraram aquelas fotografias, ao passo que Benton continua a explicar que Fielding percorreu um longo caminho
para manipular a todos para acreditarem que Johnny Donahue matou Mark Bishop. Fielding usou um adolescente comprometido, vulnerável, como bode expiatório, então
teve que ampliar ainda mais suas manipulações depois que neutralizou o homem de Norton's Woods. É esse o termo que Benton emprega. Neutralizar. Fielding neutralizou
o sujeito, em seguida tomou conhecimento da Glock encontrada no corpo e percebeu que havia cometido um grave erro tático. Estava tudo degringolando. Ele estava perdendo
o controle, como Ted Bundy pouco antes de ser apanhado, diz Benton.
"O erro fatal de Jack foi passar no laboratório de armas de fogo ontem de manhã e perguntar a Morrow pela Glock", continua Benton. "Pouco depois a arma tinha desaparecido,
assim como Jack, o que foi impulsivo, descuidado e muito idiota da parte dele. Teria sido melhor deixar a arma ser rastreada até ele e então alegar que tinha sido
perdida ou roubada. Qualquer coisa teria sido melhor do que o que fez. Tirar a arma do laboratório mostra o quanto estava descontrolado."
"Você está dizendo que a Glock do sujeito de Norton's Woods pertence a Jack?"
"Isso."
"Com certeza pertence a Jack", repito, e agora o elevador está subindo, fazendo muitas paradas no caminho, e me dou conta de que é hora do almoço. Os funcionários
estão se encaminhando à sala de descanso ou deixando o prédio.
"É isso. O morto tinha uma arma que foi rastreada até Fielding quando usaram ácido no número de série apagado", diz Benton, e para mim fica claro que ele sabe quem
é o morto.
"Isso foi feito. Não aqui." Não quero pensar em mais uma coisa que desconheço sendo realizada dentro de meu prédio.
"Horas atrás. Na cena do crime. Cuidamos da identificação lá."
"O FBI."
"Era importante saber imediatamente a quem a arma estava relacionada. Confirmar as suspeitas. Depois ela veio para cá, para o CFC e foi guardada em segurança no
laboratório de armas de fogo. Para exames posteriores", diz Benton.
"Se foi Jack quem matou o sujeito, devia ter atinado com o problema da Glock quando recebeu o primeiro chamado sobre o caso na tarde de domingo", retruco. "Ainda
assim, esperou até segunda de manhã para se preocupar com uma arma que sabia que levaria até ele?"
"Para evitar suspeitas. Se começasse a fazer um monte de perguntas sobre a Glock à polícia de Cambridge antes do corpo ser transportado para o CFC, ou exigido que
a arma fosse trazida de imediato quando os laboratórios estavam fechados, teriam estranhado. Fielding dormiu pensando no assunto e provavelmente, na segunda de manhã,
estava fora de si, planejando o que fazer quando a arma chegasse. Ia pegar a pistola e fugir. É bom lembrar que ele não tem sido muito racional. É importante ter
em mente que ele estava cognitivamente prejudicado pelo abuso de substâncias."
Penso na cronologia. Reconstruo os passos de Fielding na manhã de ontem com base nas informações na gaveta de sua escrivaninha e nas marcas de escrita no bloco de
notas. Pouco depois das sete da manhã, ele parece ter conversado com Julia Gabriel, antes que ela me telefonasse em Dover; cerca de meia hora mais tarde, entrou
na geladeira e, poucos minutos depois, disse a Anne e Ollie que o corpo de Norton's Woods estava inexplicavelmente sujo de sangue. Parece mais lógico considerar
que foi a essa altura que Fielding reconheceu o morto e se deu conta de que a Glock de que tinha sido informado pela polícia de Cambridge levaria até ele. Se não
reconheceu o morto até segunda-feira pela manhã, então Fielding não o matou, digo a Benton, que retruca que ele tinha um motivo que não tenho como saber.
O padrasto do morto é Liam Saltz, informa Benton. Foi confirmado há pouco quando um agente do FBI foi ao Hotel Charles, conversou com o dr. Saltz e mostrou uma fotografia
de identificação do homem de Norton's Woods batida por Marino. Seu nome era Eli Goldman, tinha vinte e dois anos, era estudante de pós-graduação do MIT e funcionário
da Otwahl Technologies, trabalhando em projetos micromecânicos especiais. Os vídeos dos fones de ouvido de Eli foram rastreados até um site de webcam em um servidor
da Otwahl, conta Benton, mas não especifica se foi Lucy quem fez o rastreamento.
"Ele mesmo montou os fones de ouvido?", pergunto quando por fim o elevador chega e as portas se abrem.
"Parece provável. Ele adorava montagens."
"E o MORT? Como conseguiu aquilo? E para quê? Mais montagem?" Sei que pareço cínica.
Sei quando as pessoas estão com a cabeça feita e não estou pronta para deixar que façam a minha. Nada deveria ser concluído assim tão rápido.
"Uma réplica, uma maquete que ele fez quando garoto", explica Benton. "Com base em fotografias que o padrasto tirou quando estava fazendo lobby contra o verdadeiro
há oito ou nove anos e você e o dr. Saltz testemunharam perante a subcomissão do Senado. Ao que tudo indica, Eli faz maquetes de robôs e inventa coisas praticamente
desde que usava fraldas."
Descemos lentamente andar por andar enquanto pergunto por que a Otwahl contrataria o enteado de um detrator como Liam Saltz e quero saber o que significa Otwahl,
pois a sra. Donahue mencionou essa questão. "O. T. Wahl", responde Benton. "Um jogo de palavras porque o último nome do fundador da empresa é Wahl. On the Wall,
como uma mosca na parede, e o último nome de Eli não é Saltz", acrescenta Benton como se eu não tivesse escutado quando ele me informou que era Goldman. Eli Goldman.
Mas a Otwahl teria feito uma investigação do passado dele, saliento. Eles certamente sabiam quem era seu padrasto, mesmo que o sobrenome não fosse o mesmo.
"O MORT foi há muito tempo", diz Benton quando as portas do elevador se abrem no andar inferior. "E não sei se a Otwahl fazia ideia se Eli e o padrasto eram filosoficamente
compatíveis."
"Por quanto tempo Eli trabalhou lá?"
"Três anos."
"Talvez há três anos a Otwahl não estivesse fazendo nada com que Eli ou o padrasto se preocupassem", sugiro à medida que percorremos os ladrilhos cinza enquanto
Phil, o segurança, nos observa por trás da divisória de vidro. Não aceno. Não me sinto amistosa.
"Bom, Eli estava preocupado, e há meses", diz Benton. "Ia fazer uma demonstração ao padrasto de uma tecnologia que não ia de maneira nenhuma aprovar: uma mosca que
podia espionar da parede, detectar e carregar explosivos, drogas, venenos ou sabe-se lá o quê."
Nanoexplosivos ou drogas perigosas transportados por algo tão pequeno quanto uma mosca, penso enquanto passamos por funcionários que não vejo há meses. Não paro
para conversar. Não aceno, não cumprimento, sequer faço contato visual.
"Ele estava prestes a fornecer ao padrasto uma informação importante dessas e, convenientemente, morre", retruco.
"Exatamente. Pelo motivo que mencionei", diz Benton. "Drogas", torna ele a dizer, e então me conta mais, dá detalhes do que o FBI tomou conhecimento a partir de
Liam Saltz há poucas horas.
Sinto-me triste e preocupada outra vez quando visualizo o que Benton está me contando a respeito de um rapaz tão encantado pelo padrasto famoso que sempre que iam
se encontrar acertava o relógio, reproduzindo o fuso do dr. Saltz, na expectativa do encontro, peculiaridade que tem suas raízes no passado doloroso de Eli de lares
desfeitos e figuras paternais ausentes e adoradas à distância. Recordo o que vi nos vídeos, Eli e Sock se encaminhando a Norton's Woods, e em seguida imagino o dr.
Saltz saindo do prédio, já quase escuro, depois do casamento para o qual Eli não foi convidado. Imagino o ganhador do prêmio Nobel olhando ao redor e se perguntando
onde estava o enteado, sem a menor ideia da terrível verdade. Morto. Fechado dentro de um saco e não identificado. Um jovem, pouco mais que um menino. Alguém com
que Lucy e eu talvez tenhamos cruzado em uma exposição em Londres no verão de 2001.
"Quem matou o rapaz e para quê?", pergunto enquanto passamos pelo vão de entrada vazio, a van do CFC para o transporte dos corpos tendo partido. "Não vejo de que
forma o que você acaba de me contar possa explicar o assassinato de Eli por Jack."
"Tudo aponta na mesma direção. Sinto muito, mas aponta."
"Simplesmente não vejo por que e para quê." Abro a porta que conduz ao exterior e o dia está bonito e ensolarado demais para estar tão frio.
"Sei que é difícil", diz Benton.
"Luvas informatizadas?", pergunto à medida que avançamos com cuidado sobre a neve lisa e escorregadia. "Uma mosca micromecânica? Quem ia apunhalar o rapaz com uma
faca de injeção e por quê?"
"Drogas." Benton volta ao tema. "Eli de alguma forma teve a infelicidade de se envolver com Jack ou vice-versa. Drogas muito perigosas, para aumentar a resistência.
Ele provavelmente estava usando e vendendo, e Eli ou alguém na Otwahl era o fornecedor. Não sabemos. Mas o fato de Eli ter sido morto ao sair com um flybot para
encontrar o padrasto não foi coincidência. Esse foi o motivo."
"Por que Jack estaria interessado em um flybot ou em um encontro?", pergunto enquanto avançamos bem devagar, um passo de cada vez, meus pés prestes a deslizar. "Isso
está parecendo um ringue de patinação", eu me queixo, pois a neve do estacionamento não foi retirada e precisa receber uma camada de areia. Ninguém vem administrando
este lugar como necessário.
"Desculpe, é aqui que estamos", diz Benton, enquanto avançamos devagar em direção à cerca dos fundos. "Mas foi tudo que conseguimos. A conexão da droga", diz Benton
a seguir. "Não drogas de rua. Isso tem a ver com a Otwahl. Com uma quantia enorme de dinheiro. Com a guerra, com a possibilidade de violência em escala internacional
e generalizada."
"Se o que você está dizendo está certo, parece implicar que Jack estava espionando Eli. Que equipou os fones de ouvido com dispositivos de gravação ocultos e seguiu
o rapaz até Norton's Woods. Isso faria sentido se o objetivo do assassinato fosse impedir que Eli mostrasse ou entregasse o flybot ao padrasto. De que outra forma
Jack saberia o que Eli estava prestes a fazer? Ele ou alguma outra pessoa devia estar espionando o rapaz."
"Duvido que Jack tivesse alguma coisa a ver com os fones de ouvido."
"É exatamente o que acho. Jack não se interessaria por uma tecnologia assim nem seria capaz disso e não se interessaria por um lugar como a Otwahl. Você não está
se referindo ao Jack que conheço. Este é completamente comandado pelo sistema límbico, impaciente demais, simples demais para fazer o que você acaba de descrever."
Quase digo primitivo demais, pois isso sempre foi parte do seu charme. Sua fisicalidade, seu hedonismo, seu jeito linear de encarar as coisas. "E os fones de ouvido
não fazem sentido", insisto. "Me fazem pensar que alguém mais pode estar envolvido."
"Sei como você se sente. Posso entender por que você quer pensar assim."
"E o dr. Saltz sabia que seu adorado enteado estava usando drogas e tinha uma arma ilegal?", pergunto. "Chegou a mencionar os fones de ouvido ou outras pessoas com
quem Eli podia estar envolvido?"
"Ele não sabia nada sobre os fones e muito menos sobre a vida pessoal de Eli. Só que estava preocupado com a própria segurança. Como eu disse, estava preocupado
há meses. Sei que isso é doloroso, Kay."
"Preocupado com o quê, especificamente?", pergunto enquanto avançamos bem devagar, e alguém vai se machucar aqui fora. Alguém vai escorregar, quebrar alguns ossos
e processar o CFC. Isso vai acontecer em breve.
"Eli estava envolvido em projetos perigosos e rodeado de gente má. Foi como o dr. Saltz descreveu a situação", responde Benton. "É muita coisa para explicar, e não
o que você possa imaginar."
"Ele sabia que seu enteado tinha uma arma, uma arma ilegal?", repito a pergunta.
"Não. Imagino que Eli não tenha mencionado."
"Todos parecem estar imaginando um monte de coisas." Paro e olho para Benton, nossa respiração produzindo fumaça no ar frio; estamos nos fundos do estacionamento
agora, perto da cerca, no que chamo de sertão.
"Eli devia saber o que o dr. Saltz pensava a respeito de armas", diz Benton. "Jack provavelmente vendeu ou deu a Glock a ele."
"Ou alguma outra pessoa", repito. "Da mesma forma que alguém deve ter dado a ele o anel de sinete com o brasão dos Donahue. Não imagino que Eli também estivesse
envolvido com tae kwon do." Vejo utilitários que não pertencem ao CFC, mas não vejo os agentes no interior dos veículos. Não vejo ninguém enquanto protejo meus olhos
do sol.
"Não", diz Benton. "Wally Jamison, o jogador de futebol americano, também não, mas frequentava a academia que eles usavam, a mesma academia de Jack. Talvez Eli também."
"Eli não parece frequentador de academia. Mal tem um músculo no corpo", comento enquanto Benton aponta uma chave de segurança na direção de um Ford Explorer preto
que não lhe pertence e as portas destravam com o ruído característico. "E se Jack matou Eli, por quê?", torno a perguntar, pois para mim não faz sentido, mas talvez
isso se deva ao cansaço. Estou sem dormir, muito traumatizada e cansada demais para compreender o mais simples dos fatos.
"Talvez a conexão tenha a ver com a Otwahl, Johnny Donahue e outras atividades ilegais nas quais Jack estava envolvido e que você está prestes a descobrir. O que
ele estava fazendo no CFC, como estava ganhando dinheiro enquanto você estava fora." A voz de Benton soa inflexível ao dizer isso enquanto abre a porta para mim.
"Não sei de tudo, mas o suficiente, e você tinha razão ao perguntar o que Mark Bishop estava fazendo no quintal de casa quando foi morto. Do que ele estava brincando.
Quase não acreditei quando me perguntou isso e não pude responder na ocasião. Mark frequentava uma das turmas de Jack, como a sra. Donahue mencionou, para crianças
de três a seis anos. Tinha começado em dezembro e estava praticando tae kwon do no quintal quando alguém, e acho que sabemos quem, apareceu e mais uma vez você provavelmente
está certa sobre o resto."
Enquanto Benton contorna até o lado do motorista para entrar, procuro meus óculos escuros dentro da bolsa e fico impaciente e frustrada quando um batom, canetas
e um tubo de creme para as mãos caem sobre o tapete de borracha no chão. Devo ter deixado meus óculos de sol em algum lugar. Talvez no escritório em Dover, onde
mal me lembro de ter estado. Parece que faz uma eternidade e no momento me sinto enojada para além do que conseguiria descrever. Não me contento com ouvir que estava
certa a respeito de alguma coisa. Não dou a mínima para quem está certo, só quero que alguém esteja, mas não acho que seja o caso. Simplesmente não acredito.
"Uma pessoa de quem Mark não tinha motivos para desconfiar, como seu instrutor, que atraiu o menino para uma fantasia, um jogo, e o matou", continua Benton enquanto
dá partida no utilitário. "E então inventou um jeito de colocar a culpa em Johnny."
"Não falei isso." Recoloco os itens na bolsa, pego o cinto de segurança e o fecho, então decido soltar o cinto e retirar o casaco.
"Que parte?" Benton insere um endereço no GPS.
"Eu não disse que Jack inventou um jeito de fazer com que Johnny acreditasse que enfiou pregos na cabeça de Mark Bishop", respondo. O utilitário está aquecido por
Benton ter dirigido até aqui, e o sol bate quente no vidro.
Dispo a jaqueta e a atiro na parte de trás do carro, onde há uma caixa grande e pesada com etiqueta da FedEx. Não sei para quem é e não estou interessada, provavelmente
algum agente que Benton conhece, talvez o tal do Douglas, e acho que logo vou descobrir. Torno a apertar o cinto, fazendo tanto esforço que fico praticamente sem
fôlego e meu coração acelera.
"Eu não quis dizer que essa parte veio de você. São muitas as perguntas. Precisamos que nos ajude a responder o máximo possível", diz Benton.
Começamos a dar ré, saindo do estacionamento, esperando o portão se abrir. Eu me sinto manipulada e mimada. Não sei ao certo se me lembro de alguma vez ter me sentido
tão desnecessária em uma investigação, como se fosse um obstáculo e um aborrecimento com o qual as pessoas precisam ser politicamente corretas devido à minha posição,
mas não levada a sério, e indesejada.
"Pensei que já tivesse visto de tudo. Estou avisando que a coisa é ruim, Kay." E a voz de Benton soa sem energia quando ele diz isso. Soa oca, como algo eviscerado.
19
A casa cinza com fundação de pedra antiga e um porão frio foi construída há séculos por um capitão de navio. A propriedade está gasta e foi corroída pelas intempéries,
diretamente exposta ao sopro do mar, e jaz isolada no fim de uma rua estreita e gelada que recebeu uma camada grosseira de areia por parte da equipe de emergência
municipal. Onde galhos se romperam, o gelo está estilhaçado sobre a terra congelada e brilha como vidro quebrado sob o sol alto que não oferece calor, apenas uma
luz ofuscante.
A areia range contra a parte de baixo do utilitário enquanto Benton dirige bem devagar, procurando um lugar para estacionar, e eu olho para a claridade da rua coberta
de areia, para o azul profundo e ondulante do mar e para o azul mais claro do céu sem nuvens. Já não tenho sono, nem mesmo a sensação de que conseguiria dormir se
tentasse. Tendo acordado pela última vez às cinco e quinze da manhã de ontem em Delaware, estou de pé há cerca de trinta horas, o que para mim não é inédito, nem
é fora do comum, quando paro para pensar em quantas vezes isso ocorre em uma profissão em que as pessoas não fazem a gentileza de matar ou morrer durante o expediente.
Mas esse é um tipo de falta de sono diferente, estranha e pouco habitual, com a emoção adicional, que beira a histeria, de ter sido informada, ou de ter ficado implícito,
que vivi muito tempo de minha vida com uma pessoa perigosa e de que sou o motivo de ela ter se transformado nisso.
Ninguém utilizou exatamente essas palavras, mas sei que é verdade. Benton é diplomático, mas eu sei. Não disse que é minha culpa o fato de pessoas terem sido mortas
de forma brutal e inúmeras outras terem sido desrespeitadas e aviltadas, sem mencionar os que foram vítima das drogas, cujo nome talvez nunca saibamos, "ratos de
laboratório", como coloca Benton, de um projeto científico maléfico envolvendo uma forma potente de esteroide anabólico ou testosterona acrescida de um alucinógeno
para aumentar a força e a massa muscular e acentuar a agressividade e a coragem. Para fabricar máquinas de matar, para transformar seres humanos em monstruosidades
sem córtex frontal, que não sabem medir as consequências, robôs humanos que matam selvagemente e não sentem remorso, não sentem praticamente nada, nem dor. Benton
descreveu o que o dr. Liam Saltz contou ao FBI esta manhã, o pobre homem, desolado e aterrorizado.
O dr. Saltz desconfia que Eli tenha se envolvido com uma tecnologia perigosa e não autorizada na Otwahl, encontrando-se no meio de uma pesquisa da DARPA que deu
errado, assustadoramente errado, e que estava prestes a avisar seu humanitário padrasto ganhador do Nobel, apresentar provas e implorar que desse um fim àquilo.
Fielding acabou com Eli por estar usando essas drogas perigosas, talvez ajudando na distribuição, mas meu sub, com sua eterna paixão por força e beleza física e
seus tormentos e dores crônicos, era acima de tudo um viciado. É essa a teoria por trás dos crimes perversos de Fielding, mas não creio que seja assim tão simples
ou mesmo verdade. Acredito em outros comentários que Benton fez, no entanto. Eu fui boa demais com Fielding. Sempre fui. Nunca o enxerguei pelo que é ou aceitei
seu potencial de causar danos reais. Consequentemente, permiti que causasse.
A neve se transformou em uma chuva gelada nos locais em que o oceano aquece o ar, e esta área de Salem Neck, também chamada Winter Island, onde Jack Fielding investiu
em uma propriedade histórica da qual eu não fazia ideia, continua sem energia devido aos fios derrubados. Para chegar a ela é necessário passar pelo Lar Plummer
para Meninos, uma bela mansão verde-musgo erguida em uma graciosa extensão de gramado com vista para o mar e uma vista distante do próspero resort de Marblehead.
Não posso deixar de pensar na maneira como as coisas começam e terminam, como as pessoas tendem a correr sem sair do lugar, a apenas manter a cabeça fora d'água,
nunca indo além de onde e como tudo começou.
Fielding interrompeu a vida onde decolou de forma abrupta, em um cenário pitoresco para jovens problemáticos que não podem viver com a família. Eu me pergunto se
a escolha do local a pouca distância de um lar para meninos foi proposital, se foi um fator subconsciente para optar pela propriedade onde me contaram que pretendia
se aposentar, ou quem sabe vender com lucro quando o mercado imobiliário se recuperasse, depois que a tão necessária reforma estivesse terminada. Ele mesmo vinha
trabalhando na casa e nos anexos e fazia um serviço ruim; Benton me avisou que estou prestes a ver a manifestação de sua mente desorganizada e caótica, a obra de
alguém completamente fora de controle. Prestes a ver de que forma meu protegido viveu e sucumbiu.
"Você continua conosco? Sei que está cansada", diz Benton, tocando meu braço.
"Estou bem." Percebo que ele estava falando e eu não estava escutando.
"Não parece bem. Ainda está chorando."
"Não estou chorando. É o sol. Não acredito que tenha largado os óculos em algum lugar."
"Eu disse que você pode usar os meus." Ele me passou seus óculos enquanto continuava avançando lentamente ao longo da rua coberta de areia sob o sol ofuscante, produzindo
um som áspero.
"Não, obrigada."
"Por que não me conta o que está acontecendo com você? Não vamos ter chance de conversar direito por algum tempo", diz ele. "Está com raiva de mim?"
"Você só está fazendo o seu trabalho, seja ele qual for."
"Está com raiva de mim porque está com raiva de Jack e tem medo de sentir raiva dele."
"Não tenho medo disso. Tenho mais medo dos outros", retruco.
"E isso quer dizer o quê, exatamente?"
"É uma coisa que estou percebendo e com a qual você não concorda, então vamos deixar por isso mesmo", digo olhando pela janela para o oceano azul e frio e para o
horizonte distante, onde distingo casas à beira-mar.
"Talvez você possa ser um pouco mais específica. O que está percebendo? É algum raciocínio novo?"
"Não. E não é nada que ninguém queira ouvir", respondo e contemplo a tarde luminosa enquanto continuamos a rodar à procura de um local para estacionar.
Na realidade, não o estou ajudando a procurar vaga. Estou sentada, olhando pela janela enquanto minha mente vai para onde quer, como um pequeno animal se lançando
em todas as direções, à procura de um lugar seguro. Benton provavelmente me considera uma inútil. Apoiou e estimulou minha inutilidade ao esperar todo esse tempo
para ir me levar a algo que acontece há horas. Estou chegando no meio do espetáculo, como se fosse um musical ou uma ópera, e não tivesse problema perambular por
ali no meio ou perto do fim, dependendo do ato em que estamos.
"Meu Deus, isso é ridículo. Alguém podia ter deixado uma vaga para nós. Eu devia ter pedido a Marino para colocar cones, para guardar alguma coisa." Benton descarrega
sua raiva nos carros estacionados e na rua estreita, em seguida diz: "Quero ouvir seja o que for. Seja ou não um novo raciocínio. Agora, enquanto temos um minuto
sozinhos".
Não adianta dizer o resto, repetir o que estou percebendo, que há uma lógica calculista e cruel por trás do que foi feito a Wally Jamison, Mark Bishop e Eli Goldman,
por trás do que aconteceu com Fielding, por trás de tudo, uma pauta formulada com precisão, mesmo que não tenha acontecido como planejado. Não que eu esteja ciente
do plano em sua totalidade, talvez nem mesmo da maior parte dele, mas o que noto é palpável, inegável, e não vão me convencer do contrário. Confie em seus instintos.
Não confie em mais nada. Isso tem a ver com poder. O poder de controlar pessoas, de fazer com que se sintam bem ou assustadas, ou que sofram de forma insuportável.
Poder sobre a vida e a morte. Não vou repetir o que tenho certeza que parece irracional. Não vou dizer outra vez a Benton que percebo um insaciável desejo de poder,
que sinto a presença de uma entidade assassina nos observando de algum lugar escuro, à espera. Certas coisas terminaram, mas não tudo, e não digo nada disso a ele.
"Vou ter que enfiar esse carro aqui e que se dane o resto." Na verdade ele não está falando comigo, mas consigo mesmo, aproximando-se o máximo possível de um muro
de pedra para não deixar metade do carro para fora, na direção da rua escorregadia e coberta de areia. "Vamos esperar que ninguém bata em mim. Se isso acontecer,
vai acabar tendo uma surpresa desagradável."
Imagino que o que ele esteja querendo dizer é que não seria divertido alguém se dar conta de que a porta na qual acaba de bater ou o para-choques que acaba de arranhar
é do FBI. O utilitário é um típico veículo do governo, preto com vidros escuros, assentos de tecido e luzes de emergência ocultas; no chão atrás, há dois copos de
café impecavelmente presos dentro de uma caixa de papelão para viagem, junto com um saco de comida fechado. O veículo de guerra de algum agente atarefado, alguém
asseado mas que nem sempre se encontra em local conveniente para jogar o lixo. Eu não sabia que Douglas era uma mulher até há pouco, quando Benton se referiu à agente
especial que fazia uso do carro como "ela", ao me contar que tinha pesquisado a placa do Bentley que nos encontrou em Hanscom ontem à noite, um Flying Spur preto,
2003, quatro portas, de propriedade particular do presidente de uma empresa de serviços com sede em Boston, que fornece "motoristas discretos, com ares de porteiro",
para conduzir qualquer veículo requisitado, explicando o motivo pelo qual o Bentley não possuía a placa de identificação para carros de aluguel.
A reserva foi feita on-line por alguém que usou um endereço de e-mail pertencente a Johnny Donahue, paciente do McLean sem acesso à internet ontem, quando o e-mail
foi enviado de um endereço de IP que indicou um cibercafé próximo à Universidade Estadual de Salem, muito perto daqui. O cartão de crédito utilizado pertence a Erica
Donahue, mas, até onde se sabe, ela não faz nada on-line e não mexe com computadores. É desnecessário dizer que nem o FBI nem a polícia acreditam que ela ou o filho
tenham contratado o Bentley ou o motorista.
O FBI e a polícia acreditam que foi Fielding, que ele provavelmente teve acesso às informações do cartão de crédito da sra. Donahue a partir dos pagamentos que ela
fez pelas aulas de tae kwon do que seu filho recebeu até ser impedido de voltar após ter tentado chutar seu instrutor, meu subordinado, grão-mestre faixa-preta de
sétimo grau. Não está claro de que forma Fielding teve acesso à conta de e-mail de Johnny, a menos que, de alguma forma, tenha manipulado o adolescente ingênuo e
vulnerável para que lhe fornecesse a senha, ou a tenha descoberto por outros meios.
O motorista, que não é suspeito de nada, a não ser de não ter se dado o trabalho de pesquisar Scarpetta antes de lhe entregar alguma coisa, recebeu a tarefa por
despacho e, segundo esse despacho, ninguém que trabalha na empresa conheceu a suposta sra. Donahue ou conversou com ela ao telefone. Na seção de avisos da reserva
on-line, foi requisitado um "carro de luxo exótico" para uma "missão", com a explicação que instruções adicionais e uma carta a ser entregue seriam deixadas no escritório
central da empresa. Aproximadamente às seis da tarde, um envelope de papel pardo deslizou pela fenda de correspondências da porta principal e cerca de quatro horas
mais tarde o motorista apareceu com ele em Hanscom Field e concluiu que Benton era eu.
Saltamos no ar frio e puro, e há gelo por toda parte, iluminado pelo sol, como se estivéssemos no interior de um lustre de cristal reluzente. Protegendo os olhos
com a mão, vejo o mar azul-escuro se erguer e contrair como um músculo, arremetendo rumo ao interior para quebrar e espumar de encontro à costa polvilhada de rochas
onde ninguém vive. Bem aqui, em outros tempos, um capitão de navio avistou uma paisagem que duvido que tenha mudado muito em centenas de anos, quilômetros de costa
rochosa e praia, com matagais e árvores de madeira de lei, intocados e inabitáveis, pois fazem parte de um parque marinho recreativo, que por acaso possui uma doca.
Pouco adiante, depois do camping, onde a península se enrosca ao redor do porto de Salem, há uma área reservada aos iates, onde o Mako de vinte pés de Fielding foi
envolto em película plástica e suspenso quando a polícia o encontrou esta manhã. Sei vagamente que Fielding possui um barco porque o ouvi fazer menção a ele, mas
não sabia onde o guardava. Há vinte e quatro horas, eu nunca teria imaginado que o barco, o SUV Navigator azul-escuro sem a placa da frente, a pistola Glock com
o número de série apagado ou tudo que Fielding possui e fez ao longo de toda a sua existência se tornaria o foco de uma investigação de homicídio.
No alto, um helicóptero Dauphin laranja, um HH-65A, também conhecido como Golfinho, avança baixo no céu azul e frio, seu rotor de cauda Fenestron embutido de dez
pás produzindo o som modulado característico, descrito como ruído baixo, mas que para mim é um tom alto moderado, ameaçadoramente lamurioso, que lembra um pouco
o C-17. O Departamento de Segurança está realizando vigilância aérea, do que também fui informada. Não sei por que motivo a polícia federal se ocupou do policiamento
aéreo, terrestre e marítimo, a menos que haja alguma preocupação com a segurança geral do porto de Salem, um local importante com uma imensa central energética.
Ouvi a palavra terrorismo ser mencionada de passagem por Benton e há poucos minutos por Marino, quando estava com ele ao telefone, mas atualmente ouço muito essa
palavra. Na verdade, o tempo todo. Bioterrorismo. Terrorismo químico. Terrorismo doméstico. Terrorismo industrial. Nanoterrorismo. Tecnoterrorismo. Quando paro para
pensar a respeito, tudo é terrorismo. Da mesma forma que qualquer crime violento é abominável e, no fundo, um crime de ódio.
Continuo voltando à Otwahl, tudo me leva de volta à Otwahl, meus pensamentos conduzidos na asa de um flybot ou, como diz Lucy, ao Santo Graal dos flybots. Então
penso no MORT, meu inimigo do passado, e no modelo em tamanho natural empoleirado como um inseto mecânico gigante no interior do apartamento em Cambridge alugado
por Eli Goldman; em seguida, preocupo-me com o controverso cientista Liam Saltz, que deve estar irremediavelmente inconsolável. Talvez tenha apenas sido apanhado
em uma dessas coincidências terríveis que acontecem na vida, tendo a trágica infelicidade de ser o padrasto de um jovem brilhante que se envolveu com uma ciência
perversa, drogas e armas de fogo ilegais.
Um garoto inteligente demais para seu próprio bem, como coloca Benton, assassinado enquanto usava um anel de sinete antigo que desapareceu da casa de Erica Donahue,
assim como desapareceram seu papel de carta, sua máquina de escrever e uma caneta-tinteiro, itens dos quais Fielding deve ter se apropriado de alguma forma. Ele
deve ter se apossado de todo tipo de coisa pertencente ao aluno rico de Harvard que ele intimidava, Johnny Donahue, e não importa que para mim tudo isso pareça falso.
Não posso provar que Fielding não trocou o anel de ouro por drogas. Não posso provar que não trocou a Glock por drogas. Não posso dizer que não é esse o motivo pelo
qual Eli estava de posse do anel e da arma, que há algum outro, muito mais nefasto e perigoso do que o que Benton e os demais estão sugerindo.
Posso dizer e disse que Eli Goldman era um obstáculo ao progresso mercenário de uma empresa como a Otwahl, o denominador comum em tudo, mais do que o tae kwon do
ou Fielding. Em minha opinião, se Fielding é tão direta e unicamente responsável como todos afirmam, então deveríamos dar uma olhada séria e especial na Otwahl e
nos perguntar o que ele tinha a ver com o lugar, além de ser um usuário, ou cobaia em alguma pesquisa, ou simplesmente alguém que ajudou a distribuir drogas experimentais
até que ocasionaram sua completa aniquilação.
"A Otwahl e Jack Fielding", eu disse a Benton há pouco. Se Fielding é culpado de assassinato, de adulteração de caso, de obstrução da justiça e todo tipo de mentira
e conspiração, então está intimamente ligado à Otwahl, ao seu estacionamento, onde o Navigator provavelmente ficou escondido ontem à noite durante a nevasca. "Você
tem que estabelecer essa conexão de forma significativa", eu disse a Benton repetidas vezes durante o trajeto a este lugar desolado, dolorosamente belo e ainda assim
destruído, como se a propriedade de Fielding fosse um borrão feio na tela de uma paisagem perfeita.
"A Otwahl Technologies e a casa de um capitão de navio do século XVIII em Salem Neck", eu disse a meu marido e pedi sua opinião a respeito, sua opinião honesta e
objetiva. Afinal de contas, ele deveria ter uma opinião muito bem informada e totalmente objetiva, dada sua aliança com o nós bem informados e completamente objetivo,
conforme declarei, esses seus companheiros anônimos, soldados misteriosos de um FBI ao qual Benton não mais pertence, ou pelo menos é o que alega, embora eu não
acredite. Ele pertence ao FBI, tudo bem, e parece tão reservado e motivado quando o recordo de uma época que já passou faz tempo que eu talvez conseguisse aceitar
se não me sentisse tão completamente só.
Benton nem sequer me ouve mais, praticamente ficou me olhando há alguns minutos quando comentei que Fielding deveria ter alguma ligação com a Otwahl além de ensinar
artes marciais para alguns alunos inteligentes que estagiaram no monstro da tecnologia. A ligação deve ser mais do que apenas drogas. Emplastros analgésicos impregnados
de droga não podem ser toda a explicação para o que estou prestes a encontrar no interior de um minúsculo anexo de pedra que Fielding estava transformando em quarto
de hóspedes antes de supostamente ter descoberto outro uso para ele, o que lhe valeu outros nomes.
O Chalé da Matança, penso sombria e amargamente. A Casa do Sêmen, imagino, agora cínica.
Destinado a ser a mais nova atração de Salem no Halloween, que se prolonga por todo o mês de outubro, com um milhão de pessoas provenientes do país inteiro peregrinando
até aqui. Outro exemplo de local que se tornou famoso por atrocidades que já não parecem reais, lendas quase caricatas, como a bruxa na vassoura retratada no logotipo
da cidade, que se encontra nos distintivos da polícia e até mesmo na porta das radiopatrulhas. Cuidado com o que você odeia e mata, porque um dia isso vai te dominar.
A Cidade das Bruxas, como as pessoas apelidaram o lugar onde homens e mulheres foram conduzidos ao que hoje se chama Gallows Hill Park, o parque da forca, local
semelhante àquele onde Fielding comprou a casa do capitão de navio. Locais que não mudam muito. Locais que hoje se transformaram em parques. Só que Gallows Hill
é feio, e deveria mesmo ser. Um campo aberto e estéril, devastado pelo vento, onde predominam rochas, ervas daninhas e grama desigual e inferior. Nada cresce ali.
Pensamentos como esses são erupções solares e se erguem e aguilhoam com uma cadência que não consigo controlar quando Benton toca meu cotovelo, depois o segura com
força ao atravessarmos a rua sem saída coberta de areia que se transformou em estacionamento de veículos da polícia, caracterizados ou não, alguns com o logotipo
de Salem, a silhueta de uma bruxa montada em uma vassoura. Estacionada perto da casa do capitão, quase encostada aos fundos da construção, encontra-se a van branca
para transporte de corpos do CFC, que Marino trouxe para cá horas atrás, enquanto eu estava na sala de autópsias e depois no andar de cima, sem a menor ideia do
que ocorria cerca de cinquenta quilômetros a noroeste. A traseira da van está aberta, e Marino está lá dentro, usando botas verdes de borracha, capacete amarelo
e macacão nível A amarelo, o que usamos para tarefas que requerem proteção contra riscos biológicos e químicos.
Cabos serpenteiam sobre o piso de aço e saem pelas portas de metal abertas por sobre o caminho sem calçamento coberto de gelo, desaparecendo na frente do chalé de
pedra, que deve ter sido um anexo atraente e aconchegante antes de Fielding o transformar em um canteiro de obras com blocos de fundação expostos, o chão coberto
de gelo cinza. A área atrás da casa do capitão é um feio despejo de cimento, pilhas caídas de madeira e tijolos, ferramentas enferrujadas, telhas, tiras para vedação
e pregos por toda parte. Um carrinho de mão se acha frouxamente coberto por uma lona preta que se agita, todo o perímetro cercado pela fita amarela de isolamento
de cena de crime, que balança e salta ao sabor do vento.
"Temos energia suficiente nessa coisa para as luzes e é isso aí. Restam aproximadamente cento e vinte minutos de operação", informa Marino enquanto vasculha um recipiente
de armazenagem embutido.
Ele está se referindo à unidade auxiliar de energia, o APU, que mantém o sistema elétrico da van em funcionamento com o motor desligado e fornece energia externa
de emergência em quantidade limitada.
"Supondo que a energia elétrica não volte. Mas talvez a gente tenha sorte. Fiquei sabendo que pode voltar a qualquer momento, que o principal problema são aqueles
postes derrubados pelas árvores quebradas por que você provavelmente passou na Derby Street, a caminho daqui. Mas, mesmo que a eletricidade volte, não vai adiantar
de grande coisa lá dentro." Ele está se referindo ao anexo de pedra. "O lugar não tem aquecimento nenhum. Está frio para cacete e depois de algum tempo isso afeta
a pessoa, já vou avisando", diz ele do interior da van, enquanto Benton e eu permanecemos do lado de fora ao vento e ergo a gola do casaco. "Frio como a porra da
nossa geladeira no necrotério, se é que você consegue se imaginar trabalhando ali durante horas."
Como se eu nunca tivesse trabalhado em cenas de crime com o tempo gelado e não estivesse familiarizada com geladeiras de necrotério.
"É claro que há algumas vantagens nisso se a luz cai, o que acontece por essas bandas quando ocorrem tempestades. Ele não tinha gerador de emergência", continua
Marino.
Fielding, Marino quer dizer.
"Quando o freezer desliga, ele perde tudo. Ligar um aquecedor portátil na potência máxima claramente pretendia destruir o DNA, assim nunca saberíamos de quem ele
tinha colhido a merda. Você acha que é possível?", pergunta ele.
"Não tenho certeza de que parte...", começo a dizer.
"Para que a gente não identifique os corpos. Não é possível?", continua Marino, falando sem parar, como se estivesse bebendo café desde que o vi pela última vez.
Seus olhos estão injetados de sangue e opacos.
"Não", respondo. "Não acho possível. Acho que vamos descobrir de qualquer jeito."
"Então você não acha tão inútil quanto tapioca?"
"Jesus", diz Benton. "Eu podia ter passado sem essa. Como eu queria que você parasse com as analogias culinárias."
"Precisamos de um número baixo de cópias." Lembro a Marino que podemos conseguir um perfil de DNA a partir de apenas três células humanas. A menos que praticamente
todas as células estejam degeneradas, estaremos bem, asseguro.
"É justo tentar." Marino fala comigo como se Benton não estivesse presente, dirigindo todos os comentários a mim, como se estivesse no comando e não quisesse se
lembrar de meu marido do FBI ou ex-FBI. "O que estou querendo dizer é, e se fosse seu filho?"
"Concordo que temos que fazer as identificações e avisar os parentes próximos", respondo.
"E ser processados, agora que estou pensando nisso", reconsidera Marino. "Bom, talvez não devêssemos informar a ninguém. Parece-me que só precisamos saber de quem
o material se originou. Por que avisar as famílias e jogar merda no ventilador?"
"Divulgação completa", diz Benton em tom irônico, como se de fato soubesse o que é isso. Ele está olhando para seu iPhone, lendo alguma coisa, em seguida acrescenta:
"Porque muitos deles provavelmente já sabem. Estamos presumindo que Fielding combinou com eles de antemão para pagarem pelo serviço que estava oferecendo. Não dava
para esconder".
"Não vamos fazer isso", retruco. "Não escondemos nada, ponto final."
"Bom, vou te dizer. Acho que realmente devíamos instalar câmeras dentro da geladeira, não só do lado de fora, no corredor, na baia e em certas salas, mas lá dentro
de fato", diz Marino se dirigindo a mim, como se sempre tivesse acreditado que devêssemos ter câmeras no interior das geladeiras. Na realidade, ele nunca mencionou
a ideia. "As câmeras funcionariam lá dentro?", continua ele.
"Funcionam ao ar livre. Aqui faz mais frio no inverno do que na geladeira", comenta Benton em tom enfadonho, mal ouvindo Marino, que está cheio de si, desfrutando
seu papel no drama que se desenrolou, além de nunca ter gostado de Fielding. Não consigo pensar em um Não disse? maior que esse.
"Então precisamos fazer isso", diz Marino. "Instalar câmeras e chega dessa merda, chega de gente fodendo tudo e achando que pode se dar bem."
Olho para trás, para as botas e os sapatos enfileirados diante da passagem que conduz ao interior do chalé. O Chalé da Matança. O Chalé do Sêmen. Alguns policiais
o estão chamando de a Pequena Loja dos Horrores.
"Câmeras", ouço Marino enquanto olho para o chalé de pedra. "Se tivéssemos câmeras na geladeira, teríamos tudo registrado em fita. Talvez isso seja uma coisa boa.
Merda, imagine se uma coisa dessas vazasse e acabasse no YouTube. Fielding fazendo isso com todos os cadáveres. Jesus. Mas aposto que vocês têm câmeras assim em
Dover."
Ele nos entrega macacões amarelos iguais ao dele.
"Dover tem câmeras nas geladeiras, certo?", continua ele. "Tenho certeza de que o Departamento de Defesa bancaria isso e nada melhor que o momento presente para
pedir, certo? À luz dos acontecimentos, acho que nada está fora de cogitação quando se trata de reforçar a segurança do local..."
Percebo que Marino continua falando comigo, mas não respondo, porque estou preocupada com o que há na cabine da van. De repente, sinto meu corpo se inundar de compaixão
enquanto permaneço ali de pé exposta ao frio, ao vento e à luz ofuscante, com meu macacão nível A dobrado e enfiado embaixo do braço enquanto Benton veste o dele.
E Marino prossegue alegremente, como se fosse o mais perfeito carnaval:
"Como eu disse, é bom que esteja frio. Não me imagino trabalhando nisso em um daqueles dias de trinta e cinco graus de Richmond, úmidos, em que nada se move. Que
babaca de merda. Nem olhava o banheiro lá dentro; a última vez que deram a descarga deve ter sido quando ainda queimavam bruxas por aqui..."
"Elas foram enforcadas", ouço minha própria voz dizer.
Marino olha para mim com ar inexpressivo no rosto avantajado. Seu nariz e suas orelhas estão vermelhos, o capacete está empoleirado no alto da calva como a tampa
de um hidrante amarelo.
"Como ele está?" Indico a cabine da van e seu conteúdo.
"Anne é a própria dr. Dolittle. Sabia que ela queria ser veterinária antes de virar a Madame Curie?" Ele continua a dizer curry, como o condimento, não importa quantas
vezes eu tenha dito que é Curie.
"Mas vou te dizer uma coisa", prossegue ele então. "É bom que o aquecimento não tenha ficado desligado na casa por mais de cinco, seis horas antes que alguém chegasse.
Cães como esse não têm muito mais pelo que eu. Ele se enfiou debaixo das cobertas no ninho de rato que é a cama de Fielding e continuava tremendo como se estivesse
tendo uma convulsão. É claro que ficou apavorado. Todos esses policiais, o FBI invadindo com todo o equipamento tático, com tudo. Sem falar que já ouvi dizer que
galgos não gostam de ficar sozinhos, têm... como se chama? Ansiedade pela separação?"
Marino abre outro compartimento de armazenagem e me entrega um par de botas, sabendo meu tamanho sem perguntar.
"Como é que você sabe que é a cama de Jack?", pergunto.
"Tem merda dele para todo lado. De quem mais seria?"
"Precisamos ter certeza de tudo." Vou continuar dizendo isso. "Ele estava aqui no meio do nada. Sem vizinhos, sem olhos nem ouvidos, o parque deserto nesta época
do ano. Como tem certeza de que estava sozinho? De que ele não recebeu ajuda?"
"De quem? Quem diabos ajudaria Fielding a fazer uma coisa dessas?" Marino olha para mim e vejo em seu rosto amplo o que está pensando. Que não consigo ser racional
quando se trata de Fielding. É exatamente o que ele pensa, provavelmente o que todos pensam.
"Precisamos manter a mente aberta", retruco, em seguida torno a indicar a cabine da van e perguntar pelo cão.
"Ele está bem", responde Marino. "Anne conseguiu comida, frango e arroz daquele restaurante grego em Belmont, ajeitou uma cama boa e confortável, e o aquecimento
está detonando, aquilo parece um forno, provavelmente puxando mais para aquecer o rabo magro dele do que o porão. Quer ver o cachorro?"
Ele nos entrega grossas luvas de borracha preta e luvas de nitrila descartáveis, e Benton sopra as mãos para aquecê-las enquanto continua a enviar e ler as mensagens
de texto que chegam a seu telefone. Não parece interessado em nada do que Marino e eu estamos dizendo.
"Primeiro vou cuidar das outras coisas", respondo por não conseguir, no momento, ver um cão abandonado que foi deixado só em uma casa escura como breu, sem aquecimento,
depois de o dono ser assassinado pela pessoa que o roubou. Ou assim reza a teoria.
"A rotina é a seguinte", diz Marino então, pegando dois capacetes amarelos e os estendendo em nossa direção. "Ali vocês vão ver cubas de plástico para descontaminação."
Ele aponta para um trecho de terra perto de uma placa de madeira compensada que faz as vezes de porta principal do chalé. "Não vão querer deixar rastos de nada fora
do perímetro. Os macacões e botas ficam bem ali."
Ao lado das três cubas plásticas cheias de água, há um frasco de detergente e fileiras de calçados, botas e sapatos das pessoas que estão no interior do chalé, inclusive
o que reconheço como botas marrons em tamanho masculino. Com base no que estou vendo, há pelo menos oito investigadores trabalhando na cena, até mesmo alguém que
talvez pertença ao Exército, que pode ser Briggs. Marino se curva para verificar o medidor do APU revestido em aço na traseira da van, em seguida desce ruidosamente
os degraus rumo à claridade e o brilho do gelo que recobre as árvores desfolhadas como se estivessem cheias de vidro. Pendurados por toda parte, há longos e afiados
pingentes de gelo, que me fazem recordar cravos e lanças.
"Então o que vocês podem fazer agora é vestir o equipamento", diz Marino em meu favor, já que Benton se afastou sem ouvir, ocupado com o telefone, comunicando-se
com alguém.
Marino e eu começamos a caminhar rumo ao chalé, tomando cuidado para não escorregar no gelo acidentado que recobre a terra e a lama sulcadas e o entulho que Fielding
não limpou.
"Deixe os sapatos aqui", instrui Marino, "e se você precisar usar o banheiro ou sair para respirar um pouco de ar puro se certifique de tirar as botas antes de tornar
a entrar. Tem um monte de merda lá dentro que você não vai querer espalhar por toda parte. Nem mesmo sabemos do que se trata, pode ser algo que não conhecemos, é
a minha opinião. Mas o que sabemos é que é alguma coisa que você não vai querer espalhar por todo lado, e sei que dizem que o vírus da aids não consegue viver muito
tempo depois da morte, ou seja lá o que for, mas eu é que não quero testar isso."
"O que já foi feito?" Desdobro o macacão e o vento quase o arranca das minhas mãos.
"Coisas que você não vai querer fazer e que não deveriam ser problema seu." Marino enfia as mãos imensas em um par de luvas roxas.
"Vou fazer tudo o que precisa ser feito", lembro.
"Você vai precisar das luvas grossas de borracha se for começar a tocar em tudo lá dentro." Marino as coloca a seguir.
Sinto vontade de retrucar que não estou aqui para fazer turismo. É claro que vou tocar em tudo. Mas não pretendo me rebaixar dizendo que apareci para trabalhar a
cena do crime, como se fosse um soldado prestando contas a Marino e batendo continência a seguir. Não que eu não perceba o que Marino está fazendo, o que todos estão
fazendo. Ironicamente, ninguém quer que eu me sinta culpada daquilo que a sra. Donahue acusa Fielding. Tampouco quero gerar conflito e compreendo que não deveria
ser eu a examinar alguém que trabalhou para mim e, segundo os boatos, com quem fiz sexo a certa altura da vida.
O que não compreendo é por qual motivo não me sinto mais contrariada do que estou. A única tristeza da qual estou ciente no momento é a que sinto pelo cão, que está
dormindo sobre toalhas na cabine da van do CFC. Tenho medo de sucumbir se vir o cachorro e, de cada dois pensamentos, um é de ansiedade por ele. Para onde vai? Não
para um abrigo de animais. Não vou permitir. Faria sentido Liam Saltz ficar com ele, mas Saltz mora na Inglaterra e como levaria o cão para o Reino Unido a não ser
no bagageiro de algum jato, o que também não vou permitir? A pobre criatura já passou por muita coisa na vida.
"É só ter cuidado." Marino prossegue com suas instruções, como se eu não soubesse nada do que está acontecendo. "E, só para você saber, fizemos a van ir de um lado
para o outro, como um relógio."
É, estou sabendo. Fui eu que dei corda no mecanismo. Vejo Benton se encaminhar de volta à van, conversando com alguém ao telefone, e me sinto desprezada. Irrelevante.
Sinto que não sou útil nem de interesse para nada nem ninguém.
"Praticamente sem parar; já temos trinta ou quarenta amostras de DNA em andamento, muitas delas não completamente descongeladas, então talvez você esteja certa e
tenhamos sorte. A van leva as provas, dá meia-volta e retorna, está chegando agora mesmo enquanto conversamos", diz Marino.
Eu me curvo e desamarro uma das botas.
"Anne dirige como um demônio. Eu não sabia. Sempre imaginei que dirigisse como uma velha, mas ela entra e sai daqui deslizando como se aquela porcaria estivesse
em cima de esquis. É impressionante", diz Marino, como se gostasse dela. "De qualquer maneira, está todo mundo trabalhando como ajudante de Papai Noel. O general
disse que pode trazer pesquisadores de Dover para dar cobertura. O que você acha?"
No momento não sei o que quero, fora a oportunidade de avaliar a situação por mim mesma, e deixei isso bem claro.
"Não é uma decisão sua", respondo, desamarrando a outra bota. "Vou cuidar disso."
"Ao que parece, seria útil ter o AFDIL." Marino diz isso de um jeito que me deixa desconfiada e olho para as botas de combate marrons ao lado das cubas de descontaminação.
Já é bastante estranho que Briggs esteja aqui, e me passa pela cabeça que ele talvez não seja o único de Dover a ter dado as caras.
"Quem mais?", pergunto a Marino enquanto me apoio em blocos de concreto para recuperar o equilíbrio. "Rockman ou Pruitt?"
"É, o coronel Pruitt."
Outro homem do Exército, Pruitt é diretor do Laboratório de Identificação de DNA das Forças Armadas, o AFDIL.
"Ele e o general vieram juntos", acrescenta Marino.
Não pedi a nenhum dos dois que viesse, mas não precisam que eu peça. Além disso, Marino pediu, ou ao menos admitiu ter convidado Briggs. Ele me contou ao telefone,
quando eu estava a caminho. Disse, de passagem, que esperava que eu não me importasse por ele ter tomado essa liberdade, sobretudo visto que Briggs supostamente
vinha telefonando e eu supostamente não vinha atendendo, então Briggs saiu atrás de Marino. Queria notícias de Eli, o homem de Norton's Woods, e Marino contou o
que sabíamos sobre o caso e "tudo o mais", segundo me informou, esperando que eu não me importasse.
Respondi que me importava, mas que o que está feito está feito. Ao que parece, repito isso um bocado, e foi o que eu disse a Marino ao telefone durante o trajeto
de carro até aqui. Que certas coisas haviam sido feitas porque Marino as havia feito, e que não posso administrar uma repartição assim, embora o que estava implícito
mas não tenha sido expresso era que a presença de Briggs era um desses casos. Ele está aqui porque não consigo administrar uma repartição. Não dessa forma. De modo
algum. Se conseguisse administrar o CFC como o governo, o MIT, Harvard e todos esperavam, ninguém estaria investigando a cena desse crime, pois ela não existiria.
O macacão amarelo é duro e pressiona meu queixo enquanto calço as botas verdes de borracha e Marino afasta do caminho a porta improvisada de madeira compensada.
Por trás dela, uma ampla folha de plástico translúcido e grosso presa à parte superior da moldura da porta pende como uma cortina.
"Só para que fique claro, estou mantendo a cadeia de custódia", torno a dizer. "Vamos fazer isso como sempre fizemos."
"Se você está dizendo."
"Estou dizendo."
Tenho o direito de dizer isso. Briggs não está acima da lei. Precisa respeitar a jurisdição e, para o bem ou para o mal, este caso pertence a Massachusetts e aos
poderes de onde o crime ocorreu.
"Só acho que qualquer ajuda que conseguirmos...", começa Marino.
"Sei o que você acha."
"Olha, não vai haver nenhum julgamento", diz ele a seguir. "Fielding poupou à comunidade um monte de dinheiro."
20
O ar está pesado pelo cheiro de fumaça, e percebo que a lareira, na parede mais afastada, está repleta de pedaços de madeira parcialmente queimada, cobertos por
nuvens onduladas de cinza esbranquiçada, delicada, como que tecida por uma aranha, porém em camadas. Alguma coisa de combustão limpa, como tecido de algodão, imagino,
ou um papel caro, com baixo teor de madeira.
Quem quer que tenha acendido o fogo o fez com a chaminé fechada, e a suposição é que tenha sido Fielding, mas ninguém sabe ao certo por que, a menos que ele estivesse
fora de si ou esperasse que a Pequena Loja dos Horrores por fim se reduzisse a cinzas. Mas, se foi essa sua intenção, ele seguramente não seguiu o caminho certo,
e tomo mentalmente nota de um galão de gasolina a um canto e de latas de solvente, panos e pilhas de madeira serrada. Para onde quer que eu olhe, vejo oportunidades
de deflagrar facilmente um incêndio, portanto a lareira não faz sentido, a não ser que ele estivesse muito perturbado para pensar com clareza no final, ou não estivesse
tentando incendiar a construção, mas se livrar de alguma coisa, talvez destruir provas. Ou outra pessoa pode ter tentado fazer isso.
Olho ao redor sob a iluminação desigual e hostil das extensões provisórias de luz de baixa voltagem penduradas em ganchos instalados em postes, com as lâmpadas dentro
de gaiolas. Espalhadas sobre uma bancada velha, escoriada e manchada de tinta, há ferramentas manuais, braçadeiras, brocas, pincéis, baldes com pregos e parafusos
em L para assoalhos e ferramentas elétricas, como uma furadeira conectada a um parafusador, uma serra circular, uma lixadeira de acabamento e um torno mecânico em
um suporte metálico. Há lascas de metal, algumas delas reluzentes, e serragem sobre a bancada e o piso de concreto, tudo imundo e coberto de ferrugem, sem nada,
além de plástico grosso e mais compensados de madeira presos com grampos e pregos às janelas protegendo da maresia e do mau tempo os investimentos de Fielding em
reforma doméstica. No outro lado do aposento há uma segunda entrada, escancarada, e ouço vozes e outros sons que procedem da escada que conduz ao porão.
"O que vocês recolheram aqui dentro?", pergunto a Marino enquanto olho ao redor e imagino o que vi ao microscópio. Se eu pudesse ampliar amostras do espaço de trabalho
de Fielding, desconfio que veria um depósito de lixo composto de ferrugem, fibras, mofo, poeira e partes de inseto.
"Bom, quando você examina as lascas de metal, é óbvio que algumas delas são recentes, porque não enferrujaram e estão muito brilhantes", responde Marino. "Então
colhemos amostras, que foram para o laboratório para ver se, ao microscópio, elas parecem com o que você encontrou no corpo de Eli Saltz."
"O sobrenome dele não é Saltz", lembro pela enésima vez.
"Para comparar as marcas", continua Marino. "Não que existam motivos para duvidar do que Fielding fez. Encontramos a caixa."
A caixa da WASP.
"Um par de cartuchos de CO2 usados, um par extra de cabos, até o manual de instruções", continua Marino. "A parafernália toda. De acordo com a empresa, Jack encomendou
a faca há dois anos. Talvez por causa do mergulho." Ele encolhe os ombros grandes dentro do macacão amarelo avantajado. "Não acho que ele tenha encomendado o instrumento
dois anos atrás para matar Eli. Nessa época Jack estava em Chicago. Mas dá para se perguntar para que ele precisaria da WASP." Marino perambula com suas imensas
botas verdes e não para de olhar para a abertura que conduz à escada que dá no andar inferior, como se estivesse curioso a respeito do que está sendo dito e feito
lá embaixo. "Que eu saiba, a única coisa que mata nos Grandes Lagos é a quantidade de mercúrio nos peixes."
Ele continua: "Está com a gente. Estamos com a caixa e os cartuchos de CO2. Estamos com tudo".
Quero saber em que laboratório. Quero ter certeza de que Briggs não está enviando minhas provas para o laboratório do AFMES em Dover.
"Menos a faca que estava na caixa, a WASP em si. A faca ainda não apareceu. Meu palpite é que ele se livrou dela depois de esfaquear o cara, talvez a tenha atirado
de cima de alguma ponte ou coisa assim. Não é de admirar que não quisesse que ninguém fosse até a cena em Norton's Woods, certo?" Os olhos injetados de Marino me
contemplam, em seguida examinam distraidamente o entorno, como agem as pessoas quando nada do que estão vendo é novidade. Ele chegou muitas horas antes de mim.
"E aqui dentro?" Agacho em frente à lareira, que é aberta e feita de tijolos refratários antigos, provavelmente originais. "O que foi feito aqui?" Meu capacete desliza
na direção dos olhos. Eu o retiro e deposito no chão.
"O que você quer saber?" Marino me observa do alto.
Desloco meu dedo enluvado na direção das cinzas esbranquiçadas, que não têm peso e se erguem e rodopiam à medida que o ar se movimenta, como se meus pensamentos
as estivessem agitando. Cogito a melhor maneira de preservar o que estou vendo, sendo as cinzas demasiado frágeis para serem deslocadas como um todo, e estou certa
de que identifico o que ocorreu na lareira, ou ao menos parte do que ocorreu. Já vi isso, mas não recentemente, talvez há mais de dez anos. Quando documentos são
incinerados hoje, em geral foram impressos, não datilografados, em papel barato, com alto teor de polpa de madeira, que queima de forma incompleta, gerando muita
cinza preta e fuliginosa. Papel com alto teor de pasta de algodão tem aparência completamente diferente quando incinerado, e o que me vem de imediato à mente é a
carta que Erica Donahue alega não ter escrito.
"O que recomendo", digo a Marino, "é cobrir a lareira para que as cinzas não se alterem. Precisamos fotografá-las no local antes de movê-las. Então, vamos fazer
isso antes de recolher o material para levar ao laboratório de documentos."
Os pés de Marino, cobertos por botas, aproximam-se, e ele pergunta: "Para quê?".
O que está realmente perguntando é por qual motivo estou agindo como investigadora da cena do crime. Minha resposta, caso fosse dar alguma, o que não vou fazer,
é porque alguém precisa agir como tal.
"Vamos terminar isso da maneira como deve ser, como sempre fizemos." Enfrento seu olhar vidrado e o que estou de fato dizendo é que nada está encerrado. Não me importa
o que todos pensam. O caso não está encerrado até que termine.
"Vamos ver o que temos aí." Ele agacha ao meu lado, os macacões amarelos produzindo um som de plástico à medida que nos movimentamos. Seu leve odor me faz lembrar
cortinas de chuveiro novas.
"Caracteres datilografados." Aponto e as cinzas tornam a se mover.
"Você é vidente e devia conseguir emprego em alguma loja de magia por aqui se consegue ler algo que foi incinerado."
"Dá para ler algo porque o papel caro tem combustão limpa, fica branco e dá para enxergar os caracteres a tinta produzidos pela máquina de escrever. Já vimos coisas
assim, Marino. Só que faz muito tempo. Está vendo para onde estou olhando?" Aponto, o ar se movimenta e as cinzas se agitam mais um pouco. "Dá para ver a gravação
a tinta do papel timbrado dela, ou um pedaço pelo menos. Boston e parte do código postal. O mesmo da carta que recebi da sra. Donahue, ainda que ela tenha dito que
não me mandou nada e que sua máquina de escrever desapareceu."
"Bom, temos uma aqui na casa. Verde, antiga, portátil, em cima da mesa da sala de jantar." Marino se ergue e dobra as pernas, como se seus joelhos doessem.
"A casa ao lado tem uma máquina de escrever verde?"
"Pensei que Benton tivesse contado."
"Acho que ele não conseguiu me contar tudo em uma hora."
"Não fique irritada. Ele provavelmente não conseguiu mesmo. Você não vai acreditar no monte de merda que tem aqui ao lado. Ao que parece, quando Fielding se mudou
para cá, não arrumou as coisas. Tem caixa para tudo quanto é lado. Aquilo lá parece a porra de um depósito de lixo."
"Duvido que ele tivesse uma máquina de escrever portátil. Duvido que fosse dele."
"A menos que estivesse em conluio com o Donahue. E foi daí que resultou um monte de merda."
"Não de acordo com a mãe dele. Johnny não gostava de Jack. Então, como Jack podia estar com a máquina de escrever da sra. Donahue?"
"Se é que é a dela. Não sabemos. E, depois, tem as drogas", diz Marino. "É óbvio que Johnny vem usando desde que começou a ter aulas de tae kwon do com Fielding.
Um mais um é igual a dois, certo?"
"Vamos descobrir o que faz sentido e o que não faz. E papel de carta?"
"Não vimos nenhum."
"A não ser o que parece estar ali dentro." Lembro que, aparentemente, parte do papel de carta de Erica Donahue pode ter sido incinerado, ou todo ele, a não ser pela
carta que alguém me escreveu fingindo ser ela.
"Escute..." Marino não conclui o que está prestes a dizer.
Não é necessário. Sei o que é. Vai lembrar que não sou razoável quando se trata de Fielding. Marino acha que eu já deveria saber disso. Por nossa própria história.
Ele também estava lá no começo. Recorda a época em que Fielding era meu colega em patologia forense em Richmond, meu protegido e, na cabeça de muita gente, ao que
tudo indica, muito mais que isso.
"Isso estava aqui exatamente assim?", pergunto a seguir, indicando um rolo de fita vedante cinza-chumbo sobre a bancada.
"Estava, com certeza", responde ele enquanto se agacha ao lado de uma maleta aberta no chão, contendo kits de cena de crime, e extrai um saco para acondicionar evidências,
pois o rasgo no rolo de fita pode corresponder à última tira extraída dele. "Então me diga: como ele pode ter se apoderado dela e para quê?"
Ele está se referindo a Fielding. Como Jack Fielding se apoderou da máquina de escrever de Erica Donahue e qual foi seu propósito ao escrever uma carta supostamente
de autoria dela e fazer com que me fosse entregue em mãos por um motorista de aluguel que em geral trabalha em eventos como bar-mitzvá e casamentos? Johnny Donahue
de fato entregou a Fielding a máquina de escrever e o papel de carta? Nesse caso, por quê? Talvez Fielding tenha simplesmente manipulado Johnny. Atraído o rapaz
para uma armadilha.
"Quem sabe numa última tentativa de incriminar o garoto?", diz Marino então, respondendo a própria pergunta, que expressa minhas reflexões e o que estou prestes
a descartar. "Uma boa pergunta para Benton."
Mas Benton está afastado, falando ao telefone ou talvez em uma conferência com seus colegas do FBI, possivelmente com a agente Douglas. Fico aborrecida ao pensar
nela e espero estar apenas paranoica e magoada e que não tenha motivos para me preocupar com a natureza do relacionamento dele com ela. Espero que o copo extra de
café na traseira do utilitário não pertença a Benton, que ele não tenha rodado por aí com ela, passado muito tempo juntos enquanto eu estava em Dover e antes disso,
quando ficava indo e voltando de Washington. Ocorre a mim que sou não só facilitadora e má mentora, mas uma péssima esposa. Tudo parece destruído. Acabado. Parece
que estou trabalhando na cena da minha própria morte, como se a vida que eu conhecia de alguma forma não tivesse sobrevivido enquanto estive fora e estou investigando,
tentando reconstruir o que me matou.
"É isso o que precisamos fazer agora", digo a Marino. "Imagino que ninguém tenha mexido na máquina de escrever... é uma Olivetti?"
"Ficamos bastante ocupados por aqui." O que ele está dizendo é que a polícia tem assuntos mais importantes a tratar do que uma velha máquina de escrever. "Encontramos
o cachorro lá dentro, como já contei. E um quarto que Fielding aparentemente estava usando; dá para perceber que ele estava morando esporadicamente na casa, mas
foi aqui que aconteceu." Marino indica o anexo onde estamos. "A máquina de escrever está dentro de uma maleta em cima da mesa da sala de jantar. Abri para ver o
que tinha dentro, mas foi só."
"Colha esfregaços das chaves em busca de DNA antes de acondicionar a maleta para transportar para o laboratório, e quero que os esfregaços saiam na próxima viagem
que a van fizer para levar as provas. Eles devem ser analisados em primeiro lugar, porque podem nos informar quem escreveu a carta endereçada a mim", digo.
"Acho que sabemos quem foi."
"Depois a máquina de escrever vai para o laboratório de documentos, para podermos comparar a tipologia com a da carta que recebi, com uma fonte cursiva, e analisamos
a fita vedante do envelope para ver se é proveniente do rolo que acabamos de encontrar e se descobrimos nela alguma pista, DNA, impressões digitais ou sabe-se lá
o quê. Não se surpreenda se as informações apontarem para os Donahue. Se as pistas procederem da casa deles, ou as impressões digitais e o DNA forem oriundos dessa
fonte, quer dizer."
"Por quê?"
"Para incriminar o filho deles."
"Eu não sabia que Jack era assim esperto", diz Marino.
"Eu não disse que ele incriminou ninguém. Não investiguei nem condenei Jack ou qualquer outra pessoa", retruco sem rodeios. "Temos o perfil de DNA e as impressões
digitais dele para fins de exclusão, assim como os de todos nós. Então ele deve ser fácil de incluir ou excluir como culpado. E se houver outros perfis? Se encontrarmos
DNA de mais de uma fonte, o que certamente deveríamos esperar? Passamos os perfis imediatamente pelo CODIS."
"Certo. Se é isso que você quer."
"Examinamos os perfis de saída, Marino. Porque sabemos onde está Jack. Mas e se alguém mais estiver envolvido, inclusive os Donahue? Não podemos perder tempo."
"Certo, doutora. O que você quiser", diz Marino, e posso ler seus pensamentos.
Esta é a casa de Jack Fielding. Este é seu Porão da Morte, sua Pequena Loja dos Horrores. Por que ter todo esse trabalho? Mas Marino não vai me dizer isso. Acha
que estou em processo de negação. Que conservo a esperança, remota e irracional, de que Fielding não matou ninguém, que outra pessoa estava magicamente usando sua
propriedade e seus pertences e é responsável por tudo, outra pessoa que não Fielding, que é a vítima e não o monstro que todos agora acreditam que seja.
"Não sabemos se a família dele esteve aqui", lembro a Marino em tom paciente e sereno, porém apreensivo. "A mulher dele, as duas filhas. Não sabemos quem esteve
na casa e tocou nos objetos."
"Só se elas vieram de Chicago para ficar nessa espelunca."
"Quando exatamente se mudaram de Concord?" A família morava com Fielding lá, em uma casa que ele havia alugado e o ajudei a encontrar.
"No outono passado. O que se encaixa", Marino levanta ainda mais uma hipótese. "Com o jogador de futebol americano e o que aconteceu depois que a família de Fielding
voltou para Chicago e ele veio para cá, viver como um vagabundo enquanto ajeitava o lugar. Ele podia ter te enviado um e-mail e informado que as coisas não estavam
dando certo para ele por aqui. Que a mulher e as filhas se mandaram pouco depois que o CFC começou a funcionar."
"Ele não me contou. Isso me entristece."
"É, bom, não me venha dizer que eu deveria ter contado." Marino lacra o rolo de fita vedante em um saco plástico para evidências. "Não era assunto meu. Eu não ia
iniciar minha carreira aqui dedurando funcionários e contando a você que Fielding continuava o fodido anticonvencional de praxe; você com certeza devia esperar por
isso quando achou que era uma ideia brilhante trazer o cara de volta."
"Eu devia esperar por isso?" Sustento o olhar injetado e ressentido de Marino.
"Coloque o capacete antes de descer. Tem um monte de merda pendendo do teto, tipo essas luzes idiotas penduradas, como se fosse Natal. Tenho que voltar à van e sei
que você precisa de um minuto."
Ajusto a catraca do capacete para deixá-lo mais apertado, e não é porque preciso de um minuto que Marino não vai descer comigo ao porão. Não é por ser sensível o
bastante para me dar uma chance de lidar com o que há lá embaixo sem que esteja ao meu lado, bafejando em meu cangote. Talvez ele tenha se convencido disso, mas
enquanto o ouço mergulhar as botas nas cubas diante da porta, entrando e saindo da água, posso imaginar quão desagradável dever ser para ele uma cena como essa.
Tem pouco a ver com o desagrado acerca dos fluidos corporais descongelando e se decompondo, ou mesmo com sua preocupação com hepatite, HIV ou algum outro vírus,
e tudo a ver com a maneira como os fluidos corporais chegaram aqui. A ablução de Marino nas cubas plásticas cheias de água e detergente é sua tentativa de se purificar
da culpa que sei que sente.
Ele não viu Fielding fazer nada do que fez, e é esse o problema que Marino está enfrentando. Ele acha que deveria ter percebido, e, tal como expliquei a Benton enquanto
estávamos vindo para cá e depois expliquei a Marino ao telefone, a extração de esperma não difere muito de uma vasectomia, a não ser pelo fato de que, quando o procedimento
é realizado em um cadáver, é ainda mais rápido e mais simples, por razões óbvias. Não é necessária anestesia local, e o médico não precisa se preocupar com os sentimentos
do paciente, se ele mudou de ideia ou apresenta alguma outra reação emocional.
Tudo que Fielding teve de fazer foi realizar uma pequena perfuração em um dos lados do escroto e introduzir uma agulha no canal deferente para extrair esperma. Poderia
ter feito isso em poucos minutos. Provavelmente não ocorreu durante a autópsia, mas antes, entrando na geladeira quando não havia ninguém por perto, certificando-se
de alcançar o corpo o mais rápido possível após a morte, o que, em retrospecto, talvez explique por que percebeu antes de qualquer outra pessoa que o homem de Norton's
Woods estava sangrando. Fielding entrou na geladeira assim que chegou ao prédio na segunda-feira cedo para obter sua última doação de esperma involuntária e foi
quando reparou que havia sangue na bandeja, embaixo do saco que continha o corpo. Então desceu o corredor às pressas e notificou Anne e Ollie.
Se alguém teria notado a ocorrência de algo parecido durante os seis meses que passei em Dover seria Anne, eu disse a Marino. Ela não viu nem tinha ideia do que
Fielding estava fazendo, e sabemos que ele extraiu esperma de pelo menos cem pacientes com base no que foi encontrado em um freezer no porão e no que estava espalhado
pelo chão, cem mil dólares em potencial, talvez muito mais, dependendo do quanto ele cobrava e se usava tabela variável, tendo em conta o que a família ou outra
parte interessada poderia pagar. Ouro líquido, como os policiais estão chamando o que Fielding estava vendendo em um mercado negro criado por ele, e não paro de
pensar na escolha de Eli como doador involuntário, supondo que fosse essa a intenção de Fielding, o que, na realidade, nunca saberemos.
Mas quando Fielding entrou na geladeira ontem de manhã, havia apenas um corpo jovem do sexo masculino fresco o suficiente para ser um candidato adequado a uma extração
de esperma, que era Eli Goldman. O outro caso do sexo masculino era idoso e é altamente improvável que houvesse alguém interessado em comprar seu sêmen. Um terceiro
caso era uma mulher. Seria Fielding tão descarado e imprudente a ponto de colher o esperma de Eli se o tivesse matado com a faca de injeção? E a quem ele planejava
vender o material sem se incriminar? Se tentasse algo parecido, confessaria o homicídio.
Continua a me inquietar o fato de que Fielding talvez não soubesse quem era o jovem morto não identificado quando foi notificado do caso na tarde de domingo. Ele
não se deu o trabalho de ir até a cena, não se interessou, e na ocasião não tinha motivos para se interessar. Continuo a desconfiar que ele não fazia ideia até entrar
na geladeira, então reconheceu Eli Goldman, pois de alguma forma os dois tinham uma ligação. Talvez fossem as drogas, e por esse motivo Fielding estava de posse
de uma das armas de Eli. Talvez Fielding tenha dado ou vendido a Glock a Eli. Com certeza alguém o fez. Drogas, a arma, quem sabe mais alguma coisa. Se eu ao menos
pudesse estar na mente de Fielding quando entrou na geladeira pouco depois das sete da manhã de ontem... Então entenderia. Entenderia tudo.
Afasto do caminho uma lâmpada suspensa para evitar que bata em meu capacete enquanto desço os degraus de pedra vestindo o macacão amarelo volumoso e as imensas botas
de borracha.
Um suor frio escorre pela lateral do meu corpo e me preocupo com Briggs e o que vai acontecer quando eu o confrontar; me preocupo com um galgo chamado Sock. Preocupo-me
com tudo o que posso me preocupar, porque não suporto o que estou prestes a ver, mas é melhor assim, e por mais que eu me queixe Marino fez a coisa certa. Eu não
ia querer que o corpo de Fielding fosse transportado para o CFC. Não ia querer vê-lo pela primeira vez em um saco sobre uma maca ou uma bandeja de aço. Marino me
conhece bem o suficiente para concluir que, dadas as opções, eu pediria para ver Fielding da forma como morreu, para me convencer de que ocorreu exatamente do jeito
que aparenta, que o que Briggs determinou ao examinar o corpo horas antes é o mesmo que observo e que Briggs e eu partilhamos da mesma opinião a respeito da causa
e do tipo de morte de Fielding.
O porão é de pedra caiada com teto arqueado e sem janelas. Um espaço muito pequeno para tanta gente vestida de amarelo como eu, com luvas pretas grossas, botas verdes
de borracha e capacete amarelo. Algumas pessoas usam viseira de proteção, outras, máscaras cirúrgicas, e reconheço meus próprios pesquisadores, três deles do laboratório
de DNA, colhendo esfregaços de uma área do piso de pedra repleta de tubos de ensaio quebrados e tampas de plástico preto. Ali perto se encontra o aquecedor portátil
que Marino mencionou e um freezer criogênico vertical de laboratório em aço inoxidável, da mesma marca e modelo que usamos em laboratórios onde temos de armazenar
amostras biológicas a temperaturas ultrabaixas.
A porta do freezer está escancarada, as prateleiras ajustáveis no interior estão vazias, porque alguém, aparentemente Fielding, removeu todos os espécimes e os quebrou
de encontro ao piso de pedra, depois ligou o aquecedor. Reparo em partes de rótulos presas a fragmentos de vidro em um piso que, fora isso, está limpo. O porão parecendo
ter sido caiado com alguma substância fosca, como um primer, como a adega de um produtor de vinho que foi transformada em laboratório, com pia, bancada de aço, prateleiras
para tubos de ensaio, grandes tanques de aço de nitrogênio líquido e, no cento do aposento principal onde estou, uma longa mesa de metal que Fielding provavelmente
usava para expedição, com várias cadeiras, uma delas ligeiramente afastada, como se alguém tivesse sentado ali. Olho primeiro para a cadeira e procuro sangue, mas
não encontro.
A mesa está coberta com papel parafinado e, dispostos sobre ela, há pares de luvas criogênicas azuis que vão até o cotovelo, ampolas, bases rolantes, canetas à prova
de manchas, rolhas compridas, varas de medição para recipientes de armazenamento e, empilhadas embaixo, caixas de papelão brancas chamadas CryoCubes, que são os
contentores de transporte baratos que normalmente usamos para o envio de materiais biológicos acondicionados dentro de uma lata de alumínio, onde podem permanecer
congelados a menos cento e cinquenta graus centígrados por até cinco dias. Esses recipientes de embalagem especiais também podem ser usados para enviar sêmen congelado
e, de fato, são muitas vezes chamados "tanques de sêmen", os preferidos por criadores de animais.
Só posso presumir que os equipamentos e materiais que Fielding usava em sua indústria ilegal e ultrajante foram roubados do CFC, que, na calada da noite ou após
o expediente, ele de alguma forma conseguia surrupiar dos laboratórios o que queria sem que a segurança visse. Ou é possível que simplesmente encomendasse o que
necessitava e cobrasse de nós, mas mandasse o material ser entregue direto aqui. Enquanto reconstituo o que ele talvez tenha feito, Fielding está tão perto de mim
que eu poderia tocá-lo, deitado no chão limpo pintado com primer branco sob um lençol azul descartável manchado de sangue em uma das pontas do papel plastificado,
mancha que faz parte de uma poça maior sob sua cabeça, com base no que sei. De onde estou, vejo que o sangue começou a se diferenciar e coagular, encontra-se nos
estágios iniciais de decomposição, processo drasticamente retardado pela temperatura ambiente do porão. Está frio o suficiente para tornar a respiração visível,
frio como em uma geladeira de necrotério.
O flash de uma câmera explode, então explode outra vez quando uma figura de ombros largos vestindo amarelo resplandecente fotografa uma área enegrecida e asquerosa
da parede caiada, onde foi montada uma estação completa sobre um tripé amarelo, e imagino que o sistema eletro-óptico de medição de distância já tenha mapeado a
cena, registrando as coordenadas de cada detalhe, inclusive o que o coronel Pruitt está fotografando. Ele me pega o observando e leva a câmera à lateral do corpo
enquanto me encaminho a uma parede onde farejo morte, o mau cheiro leve, bolorento e irritante de sangue decomposto e ressecado ao longo de meses em um ambiente
frio e sem sol. Farejo mofo. Farejo poeira e reparo em pilhas de tapete sujo rasgado e compensados de madeira a pouca distância, contra uma parede diferente, e percebo,
pelo pó e pela sujeira no piso branco, que o tapete e a madeira foram recém-arrastados até o local em que se encontram.
Fixadas à pedra na altura da minha cabeça há uma série de manilhas de aço que associo a estruturas empregadas em içamentos. Com base em rolos de corda, pistolas
de lubrificação, braçadeiras, um carrinho de carga, ganchos e anéis giratórios no teto, suspeito que Fielding tenha concebido um equipamento criativo para trocar
os pesados tanques de nitrogênio líquido e em algum momento o sistema se desvirtuou para se transformar no que desconfio que ele nunca pretendeu quando começou a
extrair e vender sêmen.
"Pelo que consegui descobrir até agora, o principal instrumento usado foi o malho, o que explicaria tanto os ferimentos sem corte quanto os com corte", começa Pruitt,
sem me cumprimentar, como se nosso encontro aqui fosse normal, nada mais que a continuação do tempo que passamos juntos em Dover. "Basicamente, uma marreta de cabo
longo de um lado, com o outro lado afiado como um machado. Estava embaixo do tapete e da madeira, junto com uma jaqueta de couro da Universidade de Boston, um par
de tênis e itens de vestuário que achamos que pertenciam a Wally Jamison. Toda esta área estava coberta por aquela coisa ali." Ele aponta para os tapetes e a madeira
que foram deslocados, que suponho que tenham sido usados para cobrir a cena do crime. "Tudo, inclusive o malho, é claro, já foi embalado e enviado ao instituto.
Você viu a arma?", pergunta Pruitt.
"Não."
"Não consigo imaginar alguém me perseguindo com uma coisa dessas. Jesus. E pedaços de corda ensanguentada, do enforcamento." Pruitt aponta para as manilhas e anéis
fixados à pedra, encrostada e enegrecida do sangue velho, e quase farejo medo aqui embaixo, o terror inimaginável do jogador de futebol americano torturado e assassinado
no Halloween.
"Por que ele não limpou isso?", faço a primeira pergunta que me vem à mente enquanto examino uma cena que não parece ter sido tocada depois que Wally Jamison foi
assassinado de maneira brutal e sádica.
"Imagino que tenha tomado o caminho mais fácil, cobrindo tudo com madeira compensada e tapetes velhos", responde Pruitt. "É por isso que temos sujeira e fibras por
toda parte. Ao que tudo indica, depois do homicídio ele não se deu o trabalho de limpar absolutamente nada. Só jogou tapetes por cima e encostou aquelas tábuas na
parede." Pruitt torna a indicar a pilha de tapetes velhos rasgados de diversas cores e, ao lado dela, as largas placas de compensado de madeira amontoadas sobre
o piso branco perto de uma porta de acesso fechada que conduz para fora do porão.
"Não entendo por que não fez uma limpeza", repito. "Isso aconteceu três meses atrás. Ele abandonou a cena do crime como se fosse uma cápsula do tempo? Só jogou tapetes
e madeira por cima?"
"Uma das teorias é que ele sentia prazer nisso. Como as pessoas que fotografam ou filmam o que fazem para continuar a sentir o prazer depois do fato. Todas as vezes
que descia até aqui, ele sabia o que havia por trás da madeira e do tapete, o que estava escondido por baixo deles, e se satisfazia com isso."
Ou alguém se satisfazia com isso, penso. Jack Fielding nunca sentiu prazer com sangue coagulado. Para um patologista forense, ele na realidade era bastante sensível.
Benton vai dizer que foi influência das drogas. Provavelmente todos estão dizendo isso, e talvez seja verdade. Fielding estava alterado, quanto a isso não tenho
dúvida.
"Podemos te ajudar com isso", diz Pruitt a seguir, olhando para mim através da viseira plástica de proteção, que embaça a intervalos, conforme ele respira o ar frio
do porão. Seus olhos castanhos parecem atentos e amistosos enquanto me observam, mas ele está inquieto. Como não se inquietar? Gostaria de saber se está sentindo
o mesmo que eu. Gostaria de saber se tem uma sensação de que há alguma coisa errada em tudo isso. Gostaria de saber se está fazendo a mesma pergunta que eu neste
momento, ao examinar a parede caiada enegrecida com as manilhas enferrujadas presas à pedra.
Por que Jack Fielding faria uma coisa dessas?
Extrair sêmen para vender a fim de saquear as famílias é quase compreensível. É fácil culpar a ganância ou mesmo o desejo de gratificação, o poder que deve ter sentido
quando foi capaz de devolver a vida que havia sido roubada. Mas quando visualizo as fotografias, os vídeos e os exames de TC que vi do corpo mutilado de Wally Jamison,
recordo o que me passou pela cabeça na ocasião. O assassinato me pareceu sexual e emocionalmente motivado, como se a pessoa que brandiu a arma nutrisse sentimentos
contra ele, decerto uma raiva que não se encerrou até que Wally estivesse lacerado, retalhado, cortado e contundido para além do reconhecimento, e sangrasse até
a morte. Depois, o corpo nu foi transportado, provavelmente por barco, provavelmente pelo barco de Fielding, e descartado no porto, perto da guarda-costeira, atitude
que Benton descreve como ousada, como uma provocação aos oficiais responsáveis pelo cumprimento da lei. E isso tampouco parece com Fielding. Para um grão-mestre
tão musculoso e violento, ele era um covarde.
"Obrigada. Vamos ver o que é necessário", digo a Pruitt.
"Bom, o DNA, para começar. Já temos centenas de amostras, não só do sêmen. Estamos colhendo esfregaços de tudo."
"Eu sei. É um trabalho imenso e vai continuar por um bom tempo, porque não sabemos o que aconteceu aqui. Só em parte. O que havia no freezer e tudo o que foi feito
além do que estou supondo que seja o homicídio do estudante da Universidade de Boston, Wally Jamison." Visualizo o rapaz enquanto pronuncio seu nome, o queixo quadrado,
o cabelo negro encaracolado, os olhos brilhantes, sua constituição vigorosa. Então, recordo sua aparência depois. "A que horas você chegou aqui?"
"John e eu viemos cedo, chegamos há mais ou menos sete horas."
Não pergunto onde está Briggs no momento.
"Ele fez o exame externo e vai revisar os detalhes com você quando estiver pronta", acrescenta Pruitt.
"Ninguém tinha tocado nele antes disso?" O corpo de Fielding foi descoberto pouco depois das três da manhã. Ou foi o que me informaram.
"Quando John e eu chegamos, o corpo estava coberto exatamente como agora. A Glock não está aqui. Depois que o FBI reconstituiu o número de série apagado, a arma
foi ensacada e agora está no seu laboratório." Pruitt me diz o que Benton fez.
"Eu não sabia disso até pouco tempo atrás. Quando estava vindo para cá."
"Olhe. Seu eu estivesse aqui às três da manhã e dependesse de mim..." Ele começa a dizer que teria me contado tudo o que estava acontecendo. "Mas o FBI quis manter
as coisas sob controle, já que ninguém sabia ao certo se ele estava trabalhando sozinho." Pruitt se refere a Fielding. "Por causa de todos os outros fatores, como
o dr. Saltz, o membro do Parlamento, e assim por diante. Do medo de terrorismo."
"Certo. Só que esse não é o tipo de terrorismo com que eles normalmente precisam se preocupar. É um tipo diferente de terrorismo", comento. "Parece pessoal. Não
acha? O que você pensa de tudo isso?"
"Ninguém tinha tocado o corpo quando o FBI o encontrou." Pruitt não quer me dizer o que pensa. "Sei que tinha a mesma temperatura do cômodo na ocasião, já estava
aqui embaixo há algum tempo, mas você devia conversar sobre isso com John."
"Você está dizendo que o corpo tinha a mesma temperatura que o ambiente às três da manhã."
"Quatro graus, ou perto disso. Talvez um pouco mais, por causa de todas as pessoas aqui embaixo. Mas você precisa pegar os detalhes com John."
Pruitt encara o monte em formato humano coberto pelo lençol azul no outro lado do porão, perto do freezer, perto dos fluidos descongelados sobre o piso de pedra,
onde os investigadores estão usando joelheiras, recolhendo um a um os cacos de vidro, coletando esfregaços e acondicionando cada item separadamente em envelopes
de papel que rotulam com pincel atômico. Não vou fazer os cálculos até examinar o corpo, mas o que estou ouvindo só aumenta minhas suspeitas. Alguma coisa está errada.
21
A mancha na parede caiada é escura e feia e está a cerca de um metro e oitenta acima do piso de pedra, provavelmente onde ficaram a cabeça e o pescoço de Wally Jamison
ao ser acorrentado, espancado e retalhado até a morte.
Fora da mancha maior, há uma constelação de pequenos respingos, diminutas marcas pretas que, sob inspeção atenta, são alongadas e angulosas - o sangue produzido
pela arma ao ser brandida repetidas vezes conforme se cobria repetidas vezes de sangue proveniente do impacto contra a carne humana; visualizo o malho de madeira
que Pruitt mencionou e concordo com ele. Que forma terrível de morrer. Então penso na faca de injeção. Outra forma terrível de morrer. Sadismo.
"Ele devia ter um sistema para manter o controle das amostras", digo a Pruitt enquanto observo os investigadores vestindo amarelo apoiados nas mãos e nos joelhos,
alguns dos quais não conheço. Possivelmente St. Hilaire, de Salem. Possivelmente Lester "Lawless", de Cambridge. Na realidade, não sei quem está aqui, só que o FBI
está trabalhando em conjunto com uma força-tarefa especial que abrange investigadores de vários departamentos, integrantes do Conselho de Aplicação da Lei no Nordeste
de Massachusetts. "Se ele de fato estava vendendo sêmen extraído", prossigo com minha sequência de ideias, "eu partiria do princípio de que tinha uma forma de registrar
as amostras." Chamo atenção para os pedaços de etiquetas ainda colados ao vidro quebrado no chão. "Encontrar esse tipo de informação vai nos ajudar com a identificação,
talvez fornecer informação preliminar, que depois podemos confirmar através do DNA. Se todas as amostras são provenientes de casos do CFC, temos DNA em cartões de
coleta de sangue no registro de cada caso."
"Sei que Marino está investigando isso e pediu para alguém procurar todos os casos de jovens do sexo masculino que seriam candidatos viáveis. Especialmente se Fielding
tiver feito as autópsias."
"Com todo respeito, essa era uma ordem minha, não de Marino." Ouço o tom defensivo que não consigo afastar da voz, mas estou farta de meu autodesignado chefe em
exercício, Pete Marino. Estou farta das referências que sugerem que ele dirige minha repartição.
"Ainda não encontramos nenhum registro", acrescenta Pruitt. "Mas Farinelli está com o laptop, que estava tão morto quanto ele quando chegamos aqui. Talvez o registro
esteja lá."
É sempre estranho ouvir investigadores se referirem à minha sobrinha pelo sobrenome. Lucy deve estar na casa ao lado, onde não há luz nem aquecimento, a menos que
a eletricidade tenha voltado. Percebo que aqui embaixo não tenho como saber, já que estamos usando a iluminação auxiliar trazida e instalada. Vou até um estojo Pelican
aberto quase ao pé da escada e encontro uma lanterna, em seguida retorno à parede para iluminar as manchas de sangue e ver o que mais elas têm a me dizer antes de
examinar a pessoa que supostamente as causou, meu sub, atuando sozinho em seu Porão da Morte. Meu sub, o lobo solitário que não recebeu ajuda em nada disso. Penso
com ceticismo e indignação crescentes na polícia, no FBI, em todos que começaram a investigar a cena sem mim.
Abaixo da área mais escura na parede caiada há uma área escura correspondente no piso pintado de branco, uma miríade de gotas que se combinam para formar uma mancha
contínua, o que posso perceber que era uma poça de sangue agora quase negra e descamando, grande parte tendo sido absorvida pela pedra porosa pintada de branco.
Algumas das gotas nas bordas da ampla área manchada são perfeitamente redondas, apenas com uma pequena distorção ou rebordos ao redor das margens devido à aspereza
da pedra, respingos passivos do sangramento da vítima. Outras manchas foram apagadas por alguém, possivelmente o agressor, por ter pisado nelas ou arrastado alguma
coisa sobre elas enquanto ainda estavam molhadas. Talvez ao transportar o tapete e os compensados de madeira, penso. As únicas manchas de sangue que mostram um sentido
de deslocamento são as da parede e do teto, negras e alongadas, ou em forma de lágrima, e creio que a maior parte foi projetada pelos movimentos e golpes repetidos
da arma.
A vítima estava de pé quando sangrou, acorrentada à parede, ao que parece, e o que não consigo descobrir é o momento de pelo menos um golpe que sei que foi fatal.
Aconteceu no início ou mais tarde? Quanto antes, melhor, não posso deixar de pensar enquanto imagino o que foi feito, enquanto reconstruo a dor, o sofrimento e,
principalmente, o terror. Espero que ele não tenha sido submetido a violência por muito tempo quando uma artéria se rompeu, provavelmente a carótida no lado esquerdo
do pescoço. O padrão de afluência inconfundível na parede provém de sangue arterial esguichando sob alta pressão ao ritmo das batidas do coração, e recordo as fotografias
que vi, os cortes profundos em seu pescoço.
Wally Jamison teria vivido poucos minutos após sofrer tal ferimento, e me pergunto por quanto tempo os cortes e golpes prosseguiram depois de ser tarde para machucar
mais o rapaz. Penso na raiva e na ligação que poderia haver entre Wally Jamison e Jack Fielding. Tinha de ser mais que o simples fato de os dois frequentarem a mesma
academia. Wally não praticava artes marciais e, tanto quanto se sabe, não conhecia Johnny Donahue, Eli Goldman ou Mark Bishop. Tampouco trabalhava ou estagiava na
Otwahl, e aparentemente nada tinha a ver com robótica ou outras tecnologias. O que sei a respeito de Wally Jamison é que nasceu na Flórida, era aluno do último ano
da Universidade de Boston, onde estava se especializando em história, e era, de certa forma, uma celebridade devido ao futebol americano, além de festeiro e mulherengo.
Não consigo pensar em um único motivo para Fielding o conhecer, a menos que tenham se encontrado por acaso, quem sabe por causa da academia e depois devido às drogas,
o coquetel hormonal que Benton mencionou.
A toxicologia de Wally Jamison deu negativo para drogas ilegais e terapêuticas, e para álcool, mas não fazemos testes de rotina à procura de esteroides a menos que
tenhamos razões para desconfiar que a morte possa estar relacionada a eles. A causa da morte de Wally não era controversa. Não havia motivos para pensar que esteroides
o mataram, pelo menos não diretamente, e agora pode ser tarde demais para voltar atrás. Não vamos conseguir outra amostra de urina, embora possamos testar seu cabelo,
onde as moléculas de esteroide podem ter se acumulado, no interior da fibra capilar. Um teste como esse seria um tiro no escuro e não vai nos informar se Wally os
obteve de Fielding, se conhecia ou foi assassinado por ele. Mas estou disposta a tentar qualquer coisa, pois ao percorrer o porão com o olhar e ver o contorno do
corpo de Fielding sob o lençol no chão, quero saber o motivo. Tenho que saber e não vou aceitar a hipótese de que ele estava louco, de que perdeu a cabeça. Não é
o suficiente.
Voltando ao estojo Pelican perto da escada, encontro um par de joelheiras e o coloco antes de ajoelhar ao lado do amplo lençol azul; quando o afasto do rosto de
Fielding, não estou preparada para o quanto ele parece presente. É essa a palavra que me vem à mente, presente, como se ele continuasse ali, como se dormisse, mas
não estivesse bem. Não há nada vital ou vibrante nele, e meu cérebro dispara através dos detalhes que estou vendo, os fios de cabelo duros do gel que ele usava para
esconder a calvície, as manchas vermelhas no rosto inchado e pálido; em seguida afasto o lençol, que farfalha à medida que o tiro do caminho. Sento sobre os calcanhares
da bota de borracha e o examino, reparando no cabelo alourado repleto de gel rareando no topo e ausente em certos pontos, e no sangue seco ao redor dos ouvidos e
empoçado sob a cabeça.
Imagino Fielding apontando o cano da Glock para o ouvido esquerdo e apertando o gatilho. Tento entrar em sua mente, tento invocar seus últimos pensamentos. Por que
faria isso? Por que o ouvido? A lateral da cabeça é comum em suicídios com armas de fogo, mas não o ouvido, e por que o lado esquerdo e não o direito? Fielding era
destro. Eu costumava provocá-lo por ter o que eu chamava de "extrema tendência a usar a mão direita". Ele não conseguia fazer nada de útil com a esquerda, nada que
exigisse algum grau de habilidade ou rapidez. Fielding certamente não atirou no ouvido esquerdo enquanto segurava a pistola com a mão direita, não a menos que na
minha ausência tenha se tornado um contorcionista, e talvez essa seja outra especulação que todos vão sugerir. Mas preciso conferir o ângulo. Aponto o indicador
da mão direita para o interior de meu canal auditivo esquerdo da melhor forma possível, fingindo que meu dedo é o cano da Glock.
"Na verdade, a situação não é tão ruim assim", diz uma voz profunda. "Não chegamos a esse ponto, chegamos?", pergunta o general John Briggs.
Ergo os olhos e o vejo de pé acima de mim, com as pernas afastadas e as mãos às costas, alto e corpulento, vestindo amarelo, mas sem viseira de proteção, luvas ou
capacete, e seu rosto se mostra severamente coercitivo, enegrecido pela barba por fazer, já tendo sido descrito como o de um falcão. Ele é moreno e, não importa
quantas vezes se barbeie, sempre parece necessitado disso, os olhos do mesmo cinza-escuro do revestimento de titânio do meu prédio, o basto cabelo negro com muito
poucos fios grisalhos para a idade, exatos sessenta anos.
"Coronel", diz ele a seguir e agacha ao meu lado, pegando a lanterna que eu estava usando antes e havia deixado na vertical sobre o piso de pedra. "Imagino que esteja
se perguntando o mesmo que eu." Ele acende a lanterna.
"Duvido muito", respondo enquanto ele dirige a luz para o interior da orelha esquerda de Fielding.
"Quero saber onde ele estava", diz Briggs. "Estou procurando respingos lançados em alta velocidade, alguma coisa que indique que estava bem aqui. Porque... qual
foi o motivo? Ele estava de pé ao lado do freezer criogênico e simplesmente enfiou uma arma no ouvido?"
Retiro dele a lanterna a fim de direcioná-la para onde quero enquanto examino o interior do ouvido de Fielding e o que vejo é principalmente sangue seco escuro e
endurecido, mas, quando me debruço mais, distingo o pequeno ferimento negro de entrada, uma ferida de contato alongada. Angulada. Há grande quantidade de sangue
sob a cabeça. Uma poça de sangue grosso e de aparência pegajosa devido à umidade do porão, e sinto o cheiro do início da decomposição, o leve mau cheiro adocicado.
Em seguida detecto álcool. Não me surpreenderia que Fielding estivesse bebendo. Quer tenha se matado ou outra pessoa o tenha feito, ele provavelmente estava em uma
situação difícil, e recordo o imenso utilitário com faróis de xenônio que me seguiu há cerca de dezesseis horas quando eu e Benton íamos ao CFC em meio à nevasca.
A hipótese vigente é a de que era Fielding no utilitário, que se tratava de seu Navigator, e de que ele havia removido a placa da frente para que não percebêssemos
que estava atrás de nós.
Ninguém apresentou um motivo satisfatório para ele ter decidido nos seguir, ou explicou como conseguiu desaparecer instantaneamente, sem aviso prévio, depois que
Benton parou no meio da estrada coberta de neve na esperança de que nos ultrapassasse. Pareço ser a única a me preocupar com o fato de a Otwahl Technologies ficar
muito próxima à área onde o utilitário com faróis de xenônio e de neblina desapareceu, e se alguém possuísse um abridor de portão, algum código daquele lugar ou
estivesse familiarizado com a segurança privada, poderia ter enfiado o Navigator lá dentro como se desaparecesse na Bat Caverna. Descrevi a possibilidade a Benton,
que não me pareceu impressionado. "Por que Jack Fielding teria acesso livre à Otwahl?", perguntei no caminho para cá. "Mesmo que estivesse envolvido com pessoas
que trabalham lá, ele poderia usar o estacionamento da empresa? Poderia ter entrado tão rápido e confiar que a segurança privada que patrulha a área não se incomodaria?"
"Com todas as superfícies pintadas de branco aqui dentro", Briggs está dizendo, "seria de pensar que conseguiríamos encontrar alguma coisa que pudesse indicar onde
o tiro ocorreu."
Olho para as mãos de Fielding. Estão tão frias quanto a pedra no porão, e ele está completamente rígido. Sendo um homem musculoso, é como mover os braços de uma
estátua de mármore enquanto lanço a luz da lanterna em suas mãos grossas, fortes, examinando-as, reparando nas unhas limpas e aparadas, que me surpreendem. Eu esperava
que estivessem sujas, tão fora de controle quanto todos acreditam que ele estava. Percebo os calos, que Fielding sempre teve por usar pesos na academia, trabalhar
em seus carros e fazer alguns consertos em casa. Ele dá a impressão de ter morrido segurando a pistola com a mão esquerda, ou é o que parece ter feito, os dedos
firmemente curvados e a marca produzida pelo cabo pontilhado antideslizante da Glock na palma da mão. Mas não noto a névoa fina de sangue que deveria ter retrocedido
e respingado quando ele puxou o gatilho. O esguicho para trás é um efeito que não pode ser encenado.
"Vamos fazer o teste de resposta galvânica da pele nas mãos", comento e percebo que Fielding não está usando sua aliança de casamento. Da última vez que o vi, a
aliança estava no lugar, mas isso foi em agosto. Pelo que sei, ele continua morando com a família.
"A boca da arma tinha sangue", informa Briggs. "A parte interna foi manchada pelo sangue sugado."
O fenômeno é causado por gases explosivos quando o cano da arma é pressionado contra a pele e ela é disparada.
"E a cápsula do cartucho ejetado?", indago.
"Está ali." Ele indica uma área do piso branco a cerca de dois metros do joelho direito do corpo.
"E a arma? Em que posição estava?" Deslizo as mãos sobre a cabeça de Fielding e sinto a protuberância dura produzida pelo metal irregular sob o couro cabeludo acima
da orelha direita, onde a bala saiu do crânio e ficou presa sob a pele.
"Ainda na mão esquerda. Tenho certeza de que você percebeu como os dedos estão curvados e a marca do cabo na palma da mão. Tivemos que arrancar a arma dele."
"Entendo. Então ele se matou com a mão esquerda, mesmo que fosse destro. Não é impossível, mas é raro, e ou ele já estava deitado no chão quando fez isso, ou caiu
com a arma ainda presa à mão. Um espasmo cadavérico e ele agarrou a pistola com força. E caiu de costas assim, de forma impecável. Bom, é uma situação e tanto para
imaginar. Você sabe o que penso de espasmos cadavéricos, John."
"Eles acontecem."
"É como ganhar na loteria", retruco. "Isso também acontece. Só que nunca comigo."
Sinto a alteração de uma fratura óssea sob os dedos enquanto apalpo com delicadeza a cabeça de Fielding e visualizo a trajetória ascendente e um tanto retrógrada
do ferimento, a bala tendo se alojado a aproximadamente oito centímetros do ângulo mais baixo do maxilar direito.
"Ele se suicidou assim?" Torno a transformar a mão esquerda em uma arma e aponto o dedo indicador coberto pela luva roxa de nitrila em um ângulo estranho, como se
estivesse atirando em meu ouvido esquerdo. "Mesmo que ele tenha segurado a pistola com a mão esquerda sem ser canhoto, é meio esquisita e incomum a forma como meu
cotovelo tem que se manter baixo e atrás de mim, não acha? E eu esperaria uma névoa fina de respingos para trás na mão dele. É claro que essas coisas não são verdades
absolutas", digo.
E prossigo: "O mais estranho quando alguém dá um tiro no próprio ouvido é que as pessoas em geral são antecipadamente sensíveis ao ruído, o que não é racional, porque
estão prestes a morrer, mas é da natureza humana. É o mesmo que atirar no próprio olho. Quase ninguém faz isso".
"Precisamos conversar, Kay", diz Briggs.
"E, acima de tudo, o momento em que o freezer criogênico foi desligado", continuo. "O aquecedor ligado e o que foi incinerado lá em cima, provavelmente o papel de
carta de Erica Donahue. Se Jack fez tudo isso antes de se suicidar, então por que não há sêmen e vidro quebrado embaixo dele?" Estou manipulando o corpo volumoso
de Fielding, que é um peso morto, completamente rígido e relutante enquanto o movimento um pouco, contemplando, embaixo, um piso branco e limpo. "Se ele desceu até
aqui e quebrou todos esses tubos de ensaio e depois se deu um tiro no ouvido, devia haver vidro e sêmen embaixo do corpo. Tem vidro e sêmen por toda parte, mas não
embaixo dele. Ele tem um caco de vidro no cabelo." Recolho-o e o examino. "Alguém quebrou tudo isso depois que ele estava morto, depois que já estava caído no chão."
"O vidro pode ter prendido no cabelo quando ele quebrou os tubos de ensaio, quando destruiu tudo com violência", diz Briggs, que soa paciente e gentil, o que é incomum.
Parece quase pesaroso por mim. Outra vez minhas inseguranças.
"Você já chegou a uma conclusão, John? Você e todos os outros?" Ergo os olhos e inspeciono seu rosto coercitivo.
"Você sabe muito bem como são as coisas", responde ele. "Temos muito que conversar e prefiro não fazer isso aqui, na frente dos outros. Quando estiver pronta, estou
na casa principal."
A energia voltou a Salem Neck por volta das duas e meia, quando eu estava terminando com o corpo, ajoelhada ao lado dele no chão frio de pedra até meus pés começarem
a formigar e meus joelhos, a doer e queimar, apesar das joelheiras.
As luzes embutidas em sua velha cozinha obsoleta estão acesas, e a casa está bastante fria, mas com uma promessa de calor no ar que sinto entrar pelas aberturas
no chão enquanto perambulo vestindo botas táticas, uniforme de combate e jaqueta, tendo despido os trajes de proteção, a não ser pelas luvas descartáveis. A pia
branca de porcelana está repleta de pratos e a água está coberta de espuma, com uma mancha coagulada de gordura amarela flutuando no topo, e a cortina fina que cobre
a janela sobre a pia está manchada e suja.
Para onde quer que eu olhe encontro restos de comida, lixo e bebida que me fazem recordar a imundície das inúmeras cenas que investiguei, a podridão e o declínio,
os cheiros bolorentos, a frequência com que a vida que precede a morte é o verdadeiro crime. Os últimos meses de Fielding foram muito mais torturantes do que ele
merecia, e não posso aceitar que desejasse nada do que fez a si mesmo. Não foi isso que ele definiu como objetivo final, não foi para isso que nasceu, e continuo
a pensar em quando ele me lembrava de que não tinha nascido para isso ou nascido para aquilo, especialmente quando eu lhe pedia que fizesse alguma coisa que ele
considerava chata ou desagradável.
Paro ao lado de uma mesa de madeira com duas cadeiras também de madeira sob uma janela que dá para a rua gelada e a água azul-escura e agitada além dela; a mesa
se encontra coberta de jornais e revistas velhos que espalho com a mão enluvada. The Wall Street Journal, The Boston Globe, The Salem News. Constato que os mais
recentes são de sábado. Lembro-me de ter visto vários jornais cobertos de gelo na calçada em frente, como se tivessem sido atirados ali e ninguém os tivesse trazido
para dentro antes da tempestade. Há cerca de meia dúzia de exemplares da revista Men's Health e reparo que as etiquetas de postagem exibem o endereço de Fielding
em Concord. Os números de janeiro e fevereiro foram trazidos para cá, assim como muitas outras cartas na pilha que examino. Recordo que Fielding deu início ao processo
de aluguel da casa em Concord há quase um ano, e com base na desordem e na mobília que reconheço como sua e no que me contaram a respeito de seus problemas domésticos,
faria sentido não renovar o contrato. Ele se transferiu para uma casa antiga e repleta de correntes de ar, completamente desprovida de charme devido a condições
precárias e, embora consiga imaginar o que idealizou quando se apaixonou pelo lugar, alguma coisa mudou.
O que aconteceu com você? Percorro com o olhar o rastro de imundície que ele deixou. Quem era você no final? Visualizo suas mãos mortas, recordo a frieza, a rigidez,
o quanto pareciam pesadas quando eu as segurei. Estavam limpas, as unhas bem cuidadas, e esse pequeno detalhe não parece se encaixar em tudo que estou vendo. Foi
você quem fez essa bagunça? Ou foi outra pessoa? Alguém desleixado e enlouquecido esteve na sua casa? Mas também sei que a coerência é o fantasma das mentes tacanhas,
que o que Ralph Waldo Emerson escreveu é verdadeiro. Não é fácil explicar ou definir as pessoas e nem sempre o que elas fazem é coerente. Fielding pode muito bem
ter desmoronado com tudo ao seu redor, mas continuar vaidoso o suficiente para manter a higiene. Pode ser verdade.
Mas não tenho como saber. O exame de TC e a autópsia não vão esclarecer isso. Há muita coisa que nunca vou entender, inclusive o motivo por que ele não mencionou
a casa em Salem. Benton diz que Fielding a comprou pouco depois que se mudou para Massachusetts, o que fez um ano em janeiro, mas ele não me contou. Não sei se para
esconder alguma atividade criminosa que estava fazendo ou pretendia fazer, mas tenho a sensação de que queria algo só seu, que não estivesse relacionado a mim, sobre
o qual eu não teria opinião e não poderia ajudá-lo a melhorar, a reformar. Ele não queria que eu o tutelasse quando começasse a transformar o porto seguro do capitão
do século XVIII em seu próprio porto, ou em um investimento, ou no que quer que tenha originalmente sonhado em ter só para si.
Se isso for verdade, é bem triste, penso enquanto contemplo a água que brilha como safira, ondula e rebenta de encontro à costa cinza e rochosa para além da rua
coberta de gelo e areia. Atravesso uma ampla abertura, outrora com portas de correr, até a sala de jantar de vigas de carvalho escuras e aparentes em um teto branco
de gesso com manchas de umidade, reparando que a luminária de bronze deveria estar pendurada em uma das entradas, e não sobre a mesa de imbuia, que está coberta
de pó e cercada de cadeiras que não combinam e pedem um estofamento novo. Não culpo Fielding por não me querer aqui. Sou muito crítica, demasiado confiante em meu
maldito bom gosto e minhas opiniões abalizadas, e não me admira que o tenha levado ao desespero. Fui não apenas a facilitadora, mas uma péssima mãe, quando não tinha
o direito nem de ser uma boa. Não era meu papel ser para ele nada além de chefe e, se Fielding estivesse aqui, eu pediria desculpas por isso. Pediria que me perdoasse
por conhecê-lo e me preocupar com ele. Porque de que adiantou? Que bem fez isso?
Concentro-me na área, em uma das extremidades da mesa, onde o pó foi alterado e alguém esteve comendo ou trabalhando, possivelmente onde ficava a máquina de escrever
Olivetti, e a cadeira em frente acha-se em melhor estado que as demais. Sua almofada de veludo vermelho, puída e desbotada, está intacta e provavelmente é segura,
e penso em Fielding aqui, datilografando. Tento situá-lo à mesa com suas janelas de batente e seu visual triste da entrada de cascalho e não consigo imaginá-lo curvado
na cadeira pequena sob a luminária suspensa, datilografando repetidas vezes a carta de duas páginas no papel com a marca d'água até ter uma versão final impecável.
Fielding e seus dedos grandes e impacientes, que não tinha nada de datilógrafo, era autodidata, praticava o que chamava de "correr atrás do milho" em vez de "catar
milho", e a ideia do documento supostamente enviado por Erica Donahue é ilógica se partiu dele. Levando-se em conta as condições de Fielding, com base no que Benton
viu quando se encontrou com ele em meu escritório na semana passada, não me parece plausível que meu sub fosse tão longe para emboscar e incriminar um estudante
de Harvard pelo homicídio de Mark Bishop. Por que Fielding mataria aquele menino de seis anos? Não acredito no que Benton diz, que estava matando a si mesmo quando
criança ao enfiar pregos na cabeça do menino. Fielding estava pondo fim à sua própria infância de abusos, explicou Benton, mas não estou convencida disso.
Mas preciso lembrar a mim mesma que há muitas coisas na vida que fazem sentido para as pessoas que as estão fazendo, ao passo que o restante de nós não consegue
entender. Mesmo quando somos informados do motivo, muitas vezes a explicação não se encaixa em nenhum modelo que faça sentido. Paro diante de uma janela, ainda despreparada
para sair deste cômodo e entrar no seguinte, onde ouço Briggs perambulando com suas botas. Ele está conversando com alguém ao telefone; pego o meu para verificar
as mensagens e vejo que há uma de Bryce.
Ligue para Evelyn.
Tento falar com ela no laboratório de vestígios de provas e outro microscopista atende, um jovem pesquisador chamado Matthew.
"Você está perto de algum computador?" A voz dele parece confiante e tensa de agitação. "Evelyn foi ao banheiro, mas queríamos te enviar uma coisa muito estranha,
que ou é um erro ou a mais bizarra das contaminações que já vi. Você sabe que um fio de cabelo tem cerca de oitenta mil nanômetros, certo? Então imagine alguma coisa
com quatro nanômetros, em outras palavras, um fio de cabelo tem vinte mil vezes esse diâmetro. E não é orgânico, mesmo que a impressão elementar seja quase de puro
carbono, embora também tenhamos detectado traços residuais do que parecer ser fenilciclidina..."
"Vocês encontraram PCP?", interrompo seu discurso ofegante.
"Sim, pó de anjo em quantidade muito pequena, minúscula, na verdade. Usando a espectroscopia de infravermelho de Fourier. Com ampliação de cem, dá para ver os grânulos
e muitos outros fragmentos microscópicos, especialmente fibras de algodão no verso do emplastro para dor. Provavelmente algumas dessas estruturas granulares são
PCP, talvez Nuprin, Motrin também, o que quer que o emplastro originalmente contivesse, e possivelmente outras substâncias químicas."
"Matthew, fale mais devagar."
"Bom, a cento e cinquenta mil vezes no microscópio eletrônico, você vai ver o que estou dizendo no tamanho de uma caixa de sapato, dra. Scarpetta. É isso que queremos
enviar."
"Vá em frente. Se não conseguir daqui, vou até a van e me conecto. Mas mandem em PDFs, para que eu possa tentar no iPhone. Do que exatamente você está falando?"
"Parecem fulerenos, como um halter, mas com pernas. É definitivamente artificial, com o tamanho de um filamento de DNA, como eu disse, quatro nanômetros e puro carbono,
a não ser pelo que se destinava a liberar. E traços de polietilenoglicol, que achamos que era o revestimento externo do que deveria ser liberado."
"Explique a parte do o que se destinava a liberar. Alguma coisa construída em nanoescala para liberar uma pequena quantidade de PCP?"
"Essa não é minha área, obviamente, e nós não temos um microscópio de força atômica aqui, fica a dica. Eu diria que ingressamos em uma nova era em que vamos começar
a procurar por coisas assim, coisas que talvez seja necessário ampliar milhões de vezes. E na minha opinião, algum equipamento tipo um microscópio de força atômica
teve que ser usado para montar isso, para fazer a nanomontagem, para manipular os nanotubos, as nanopartículas, enquanto tentavam fazer com que se encaixassem, usando
uma nanossonda ou seja lá o que for. Bom, provavelmente podemos lidar com muitas dessas coisas com um microscópio eletrônico, mas um microscópio de força atômica
seria uma boa ideia se é isso que vai aparecer, se é com isso que vamos começar a bater de frente, dra. Scarpetta."
"Vocês não sabem o que encontraram, mas pode ser algum tipo de nanorrobô, na opinião de vocês, para liberar alguma droga, ou mais de uma, é isso? Encontraram algum
na película adesiva que estava no bolso do jaleco?" Não explico qual.
"Só um misturado às partículas, fibras e outros fragmentos, porque não analisamos a película inteira, só o espécime que montamos no suporte. O resto da película
plástica está no laboratório de impressões digitais neste exato momento, depois vai para o de DNA, depois para a cromatografia gasosa e a espectrometria de massas",
diz Matthew. "E está quebrado ou degradado."
"O quê?"
"O nanorrobô. Ou parece quebrado, talvez esteja se deteriorando, já que deveria ter oito pernas, mas estou vendo quatro de um lado e duas do outro. Estou enviando
por e-mail para você agora algumas fotografias que tiramos para que você mesma veja."
Consigo abrir as imagens no iPhone e é uma sensação inexplicável registrar a assustadora simetria, ter em mente que o nanorrobô parece a versão molecular de uma
mosca micromecânica. Não tenho como saber se o Santo Graal dos flybots de Lucy se parece com esse nanorrobô ampliado milhares de vezes, mas a estrutura artificial
nas fotografias assemelha-se a um inseto, com seu corpo alongado e acinzentado de fulereno. Os delicados nanofios que constituem os braços ou pernas e continuam
intactos acham-se dobrados em ângulos retos com apêndices que parecem garras na ponta, possivelmente para se agarrar às paredes das células ou penetrar em vasos
sanguíneos ou órgãos - em outras palavras, para o dispositivo encontrar o alvo e aderir a ele enquanto libera o medicamento ou possivelmente drogas ilegais destinadas
a determinados receptores cerebrais.
Não é de admirar que a triagem de drogas de Johnny Donahue tenha dado negativa, ocorre-me. Se foram adicionados nanorrobôs a seu preparado sublingual para alergia
ou, melhor ainda, a seu spray nasal de corticosteroide, as drogas talvez estivessem abaixo do nível de detecção. De forma ainda mais surpreendente, talvez não tenham
penetrado a barreira hematoencefálica, mas foram programadas para se ligar a receptores no córtex frontal. Se as drogas não penetraram a corrente sanguínea, não
foram excretadas na urina. Não acabaram no cabelo, e é esse o objetivo do emprego da nanotecnologia na medicina: tratar doenças e distúrbios com drogas que não são
sistêmicas e, por essa razão, são menos prejudiciais. Como acontece com todo o restante, tudo que pode ser usado para o bem certamente será usado para o mal.
A sala de estar de Fielding tem o piso e as paredes descobertos e está cheia quase até o teto de caixas marrons empoeiradas, todas do mesmo tamanho, com o logotipo
da empresa de mudanças Gentle Giant nas laterais, dezenas de caixas de papelão em pilhas cúbicas, como se não tivessem sido tocadas desde que foram trazidas para
cá.
No meio desse bunker de papelão acha-se Briggs, o que me faz recordar uma fotografia de Matthew Brady de um general da Guerra Civil vestindo botas e o uniforme de
campanha verde desbotado, com um Macbook no colo, as costas espadaúdas apoiadas no espaldar reto da cadeira. Concluo que seria do seu feitio sentar e me fazer ficar
de pé, para coreografar nossa conversa de modo a que eu me sinta pequena e subserviente, mas ele se levanta e digo que não há necessidade. Vou continuar de pé. Assim,
é o que ambos fazemos, encaminhando-nos a uma janela, em cujo peitoril ele deposita o laptop.
"Acho interessante que ele tenha uma rede sem fio aqui", diz Briggs de imediato, observando o panorama proporcionado pelo oceano e pelas rochas para além da rua
coberta de gelo e areia. "Com tudo o que viu aqui, você esperaria que ele tivesse uma rede sem fio?"
"Talvez Fielding não fosse a única pessoa aqui."
"Talvez."
"Você ao menos admite a possibilidade. É mais do que os outros estão fazendo." Coloco o iPhone no peitoril da janela para ver o que há na pequena tela e Briggs contempla
o aparelho e afasta o olhar.
"Imagine dois tipos de nanorrobô", diz ele como se conversasse com alguém do outro lado da janela antiga e instável, como se sua atenção estivesse lá fora, na luz
do sol, na água cintilante, e não na mulher de pé ao seu lado, que sempre se sente jovem e insegura com ele, não importa a idade que tenha ou quem se tornou.
"Um nanorrobô biodegradável", continua ele, "que a certa altura desaparece, depois de liberar uma dose diminuta de alguma droga psicoativa, e então um segundo tipo
de nanorrobô que se autorreplica."
Sempre me sinto outra pessoa com Briggs, alguém diferente de mim mesma, e aqui ao seu lado, a manga de nossas camisas roçando de modo que posso sentir seu calor,
penso nas maneiras maravilhosas e terríveis pelas quais ele me moldou.
"O que se autorreplica é o que mais nos preocupa. Imagine ter uma coisa assim dentro de você", diz ele, e o que trago dentro de mim é a força irresistível que representa
o general John Briggs, e entendo o que Fielding sentia, o quanto deve ter me venerado e guardado rancor de mim.
Compreendo quão terrível e maravilhoso é se deixar dominar por alguém. É como uma droga, ocorre-me. Um vício que você deseja desesperadamente superar e manter. Acho
que Briggs vai ter sempre esse efeito sobre mim. Não vou me recuperar nesta vida.
"E o nanorrobô autorreplicante permite a liberação prolongada de substâncias como a testosterona", diz Briggs, e sinto sua energia e intensidade, ciente de quão
próximos estamos, atraídos um pelo outro, como sempre estivemos e nunca deveríamos ter estado. "Uma droga como a PCP não poderia se replicar, é claro, portanto seria
uma dose única, que se repetiria só quando o sujeito usasse o spray nasal, tomasse as injeções ou aplicasse um novo emplastro transdérmico impregnado de nanorrobôs
biodegradáveis. Mas uma substância que o corpo naturalmente produz poderia ser programada para se replicar, fazendo com que o nanorrobô se replique, circulando livremente
através do corpo, através das artérias, ligando-se a áreas-alvo como o córtex frontal do cérebro sem necessidade de bateria. Autopropulsionado e se replicando."
Briggs me encara e seus olhos são duros, mas há neles alguma coisa que sempre demonstrou por mim, uma ligação tão constante quanto ambivalente. Recordo nitidamente
quem éramos no Walter Reed, quando nosso futuro encerrava mistério e possibilidades ilimitadas, ele mais velho e impressionante, eu um prodígio. Briggs me chamava
de major Prodígio, mas então voltei da África do Sul e fui para Richmond, e ele não me telefonou uma vez sequer durante anos. O que sentíamos um pelo outro era complexo
e insondável, e recordo tudo outra vez quando estou com ele.
"As guerras não seriam mais necessárias", diz ele. "Não o tipo de guerra que conhecemos, Kay. Estamos no limiar de um novo mundo, onde as velhas batalhas vão parecer
fáceis e humanas."
"Jack Fielding não era esse tipo de cientista", retruco. "Não fabricou aqueles emplastros e provavelmente teria resistido e ficado muito aborrecido se alguém tentasse
induzi-lo a usar drogas liberadas por nanorrobôs. Eu ficaria surpresa se ele até mesmo soubesse o que é um nanorrobô ou tivesse alguma noção de que era isso que
estava deixando à solta no próprio organismo. Fielding provavelmente achava que estava tomando algum novo tipo de esteroide, um modelador, alguma coisa que ajudasse
a musculação, ajudasse a aliviar suas dores crônicas devido a décadas de abusos, ajudasse a combater o envelhecimento. Ele detestava envelhecer. Não era uma opção
para ele."
"Bom, ele não vai ter que se preocupar com isso."
Não, não vai. Mas o que digo é: "Ele não se matou porque não queria envelhecer. Ele nem se matou. Tenho muitas dúvidas a esse respeito".
"Pelo que entendi, você foi exposta a um dos emplastros", diz Briggs então, "e sinto muito, mas se isso não tivesse acontecido você não saberia o resto. Kay Scarpetta
drogada. É uma ideia e tanto. Lamento não estar presente para ver."
Benton deve ter lhe contado.
"É isso que estamos enfrentando, Kay", continua Briggs. "Nosso admirável mundo novo, o que chamo de neuroterrorismo, que é como o Pentágono também está chamando,
o grande medo. Deixe-nos loucos e você ganha. Deixe-nos loucos o bastante e matamos a nós mesmos, poupando o trabalho. No Afeganistão, dê ópio aos soldados, benzodiazepínicos,
alucinógenos, alguma coisa para aliviar o tédio, e depois veja o que acontece quando eles entram nos helicópteros, nos caças, nos tanques e nos Humvees. Veja o que
acontece quando voltam para casa viciados, ensandecidos."
"A Otwahl", comento. "Estamos desenvolvendo armas assim?"
"Nós não. Não é por isso que a DARPA está pagando milhões, droga. Mas alguém na Otwahl está, e achamos que não é uma pessoa só. É um grupo pequeno de supercérebros
envolvido em experimentos não autorizados que não têm como ser mais perigosos."
"Imagino que você saiba quem são essas pessoas."
"São crianças", diz ele, contemplando a tarde luminosa. "Dezessete, dezoito anos, com QI acima da média e cheias de entusiasmo, mas sem nada aqui dentro." Briggs
bate na testa. "Não preciso mencionar os rapazes, com o lobo frontal pouco desenvolvido, imaturos até a metade da casa dos vinte, e ainda assim eles estão lá, brincando
em laboratórios de nanotecnologia, ou com supercondutores, robótica e biologia sintética, o que você quiser. Já é um bocado difícil dar a eles armas e atirá-los
em caças stealth, mas pelo menos temos regras", diz ele em tom severo. "Temos estruturas, regulamentos, liderança, uma supervisão das mais rígidas, mas que diabos
você acha que acontece em um lugar como a Otwahl, onde o objetivo não é nem segurança nacional nem disciplina, mas dinheiro e ambição? Aqueles malditos garotos inteligentes,
como Johnny Donahue, não sabem merda nenhuma sobre o Afeganistão, o Paquistão, ou o Iraque, pelo amor de Deus. Nunca puseram os pés em uma base militar."
"Não vejo a ligação de Jack com isso, além de ele ensinar artes marciais a alguns deles." O céu é de um turquesa profundo e imaculado e, sob ele, o oceano azul oscila.
"Fielding se envolveu com eles e meu palpite é que involuntariamente se tornou seu projeto. Você sabe muito bem o que acontece com projetos de pesquisa e experimentos
médicos, só que aqueles com que estamos acostumados são supervisionados e rigorosamente monitorados por comissões de ética em pesquisa humana. Então, como conseguir
voluntários se você é um engenheiro técnico de dezoito anos de Harvard ou do MIT na Otwahl? Só podemos imaginar que Jack tenha feito seus contatos, provavelmente
através da academia, através do tae kwon do. Todos estamos dolorosamente cientes dos constantes problemas dele com abuso de substâncias, sobretudo esteroides, então
chega alguém que distribui o elixir da vida, a fonte da juventude em emplastros analgésicos. Mas ele com certeza não obteve aquilo por que barganhou. Nem Wally Jamison,
nem Mark Bishop, nem Eli Goldman."
"Wally Jamison não trabalhou na Otwahl."
"Por algum tempo namorou alguém que trabalha. Dawn Kincaid, uma neuroterrorista de lá."
"A melhor amiga de Johnny Donahue", digo. "E onde ela está agora?", pergunto. "Parece que todos que você mencionou estão mortos. Menos ela." Sinto um alarme disparar
dentro de mim.
"Desaparecida", diz Briggs. "Não deu as caras na Otwahl nem ontem nem hoje, provavelmente tirou férias."
"Com certeza."
"Vamos encontrar a garota e conseguir o resto da história, porque sem dúvida ela vai contar, visto que sua especialidade é nanoengenharia, síntese química em nanoescala.
Com base no que descobrimos, provavelmente foi ela que desenvolveu esses nanorrobôs que abriram caminho até Jack Fielding e o transformaram em um monstro, para não
dizer coisa pior."
"Um monstro", repito. "A mesma coisa que Erica Donahue disse sobre seu filho", enfatizo. "Só que duvido que Johnny tenha matado alguém."
"Ele não matou aquele menino."
"Você está convencido de que foi Jack."
"Fora de controle", diz Briggs.
"E depois matou Eli." Meu comentário fica pairando no ar e me pergunto se soa tão irreal para Briggs quanto para mim. Pergunto-me se ele consegue perceber com que
veemência não acredito nisso.
"Você se dá conta de que isso se deve à maldita gripe suína?" Ele continua a contemplar o dia que resplandece por trás do vidro antigo e empoeirado. "Se o pai biológico
da enteada não tivesse ficado doente, Liam Saltz não teria precisado entregar a moça no casamento e não teria vindo aos Estados Unidos, a Cambridge, a Norton's Woods,
no último minuto. E Jack não precisaria apunhalar Eli pelas costas com uma faca de injeção."
"Para impedir Eli de contar ao dr. Saltz o que você está me contando."
"Infelizmente, não podemos perguntar a Jack."
"Talvez eu conseguisse entender se Eli fosse contar ao dr. Saltz ou a alguém que Jack estava vendendo sêmen que roubava dos cadáveres. Isso seria um motivo."
"Não sabemos do que Eli estava informado. Mas provavelmente tinha ciência de Jack e das drogas; é óbvio que conhecia Jack o bastante para ter uma de suas armas.
Jack deve ter se preocupado quando descobriu, através da polícia de Cambridge, que o morto portava uma Glock com o número de série apagado."
"Parece que Marino já te forneceu as informações. Contou tudo isso como se fosse o histórico irrefutável do caso. E não é. É uma teoria. Não temos provas tangíveis
de que Jack tenha matado alguém."
"Ele sabia que estava em dificuldade. Acho que disso temos certeza", retruca Briggs.
"Tanto quanto temos certeza de qualquer outra coisa. Concordo que ele não teria tirado a Glock do laboratório se não estivesse com medo. Minha pergunta é se ele
estava protegendo a si mesmo ou outra pessoa."
"Ele sabia muito bem que nós íamos restaurar o número de série, que a pistola nos levaria até ele."
"Nós", retruco. "Estou ouvindo muito isso ultimamente."
"Sei como você se sente quanto a isso." Briggs pousa as mãos no peitoril da janela e se inclina para a frente, como se estivesse com dor na região lombar. "Acha
que estou tentando tirar alguma coisa de você. Acredita nisso." Ele abre um sorriso carrancudo. "A capitã Avallone esteve aqui no outono passado."
"Alguém tão inferior assim? Para não levantar suspeitas?"
"Exatamente, para parecer casual, uma visita informal enquanto ela estava a caminho de outro lugar. Quando a realidade é que ficamos sabendo de coisas das quais
não gostamos sobre a forma como seu sub estava administrando o CFC. E não preciso dizer que temos um interesse especial. O AFMES, o Departamento de Defesa, muita
gente tem. A repartição não é sua para estragar."
"Não é minha em hipótese nenhuma", digo. "É óbvio que fiz um péssimo trabalho antes mesmo de começar..."
"Você não fez um péssimo trabalho", interrompe ele. "Sou culpado na mesma medida. Você escolheu Jack ou, melhor dizendo, cedeu ao desejo dele de voltar e não interferi;
com certeza deveria ter interferido. Não quis passar por cima de você, mas precisava ter feito isso nesse caso. Calculei que em quatro meses você estaria em casa
e honestamente não imaginei o caos que o sujeito poderia causar em tão curto espaço de tempo, mas ele se envolveu com a gangue juvenil do laboratório da Otwahl,
perdendo o controle com as drogas."
"Foi por isso que você adiou minha partida de Dover? Para ganhar tempo e substituir a liderança do CFC? Para poder me substituir?", pergunto da forma mais corajosa
que consigo.
"Pelo contrário. Para te deixar fora disso. Eu não queria que se sujasse. Retive você tantas vezes quanto possível sem um completo sequestro, então o pai da noiva
em Londres pega gripe suína e um cadáver começa a sangrar. E sua sobrinha aparece de helicóptero em Dover. Tentei fazer com que você ficasse me oferecendo para transportar
o corpo, mas você não quis e fim da história. Aqui estamos de novo."
"É, de novo."
"Já nos envolvemos em confusões antes. E provavelmente vamos nos envolver outras vezes."
"Você não mandou Lucy me buscar."
"Não. E acho que ela não é propensa a receber ordens minhas. Graças a Deus que nunca pensou em se alistar. Ia acabar na penitenciária em Leavenworth."
"Você não pediu a ela para grampear meu escritório."
"Sugeri de passagem, para saber o que exatamente Jack estava fazendo."
"Sua sugestão é o mesmo que o convite casual de um canibal para jantar", retruco.
"Uma analogia e tanto."
"As pessoas prestam atenção ao que você sugere, e sabe disso."
"Lucy presta atenção quando lhe convém."
"E a capitã Avallone? Ela conspirou com Jack, conspirou contra mim?"
"Jamais. Eu já te disse por que ela apareceu em novembro passado para uma visita. É totalmente leal a você."
"Tão leal que contou a Jack sobre a Cidade do Cabo." Surpreendo a mim mesma ao dizer isso em voz alta.
"Não. Sophia não sabe nada sobre a Cidade do Cabo."
"Então como Julia Gabriel sabia?"
"Quando gritou com você? Entendo", diz Briggs como se eu tivesse acabado de responder a uma pergunta que ele não fez. "Parei na frente do seu escritório para conversar
e ouvi você ao telefone, percebi que estava muito envolvida. Ela falou comigo também. Falou com várias pessoas depois de tomar conhecimento do boato de que extraímos
sêmen em Dover, de que todas as repartições de medicina legal fazem isso como rotina, o que é a mais absoluta bobagem. Nunca faríamos uma coisa dessas, a menos que
fosse totalmente apropriado e aprovado. Ela ficou com essa impressão porque era o que Jack estava fazendo em segredo no CFC, e foi o que fez no caso do homem que
morreu no táxi em Boston no dia do casamento. E acho que você consegue entender como ela teve a ideia de que seu filho Peter deveria receber o mesmo tratamento especial."
"Ela não sabe nada pessoal a meu respeito? Não se referiu a nada pessoal? Você tem certeza?"
"Por que você acreditaria em coisas negativas sobre sua pessoa?", pergunta ele.
"Acho que você sabe por quê, John."
"Ela não estava se referindo a nada específico, de jeito nenhum. É uma mulher inflamada, militante, e só estava descarregando quando xingou você das mesmas coisas
que me xingou, assim como xingou várias outras pessoas em Dover. Preconceituosos. Racistas. Nazistas. Fascistas. Muitos funcionários ouviram essas coisas naquela
manhã."
Briggs afasta-se da janela e pega o laptop no peitoril, seu jeito de dizer que precisa ir. Ele não consegue ter uma conversa que dure mais de vinte minutos e, na
realidade, a que acabamos de ter foi longa para os padrões dele, testou sua paciência e chegou perto demais de muitas coisas.
"Quero te pedir um favor", diz ele. "Pare de dizer às pessoas que considero o MORT a melhor coisa depois do pão fatiado."
Benton, acho. Imagino que os dois tenham ficado bastante chegados.
"Não é assim, mas entendo que sejam essas suas lembranças e lamento termos batido cabeça a respeito disso", continua Briggs. "No entanto, se as opções são um robô
arrastando um cadáver no campo de batalha e uma pessoa arriscando a vida e a integridade física para fazer isso... É a escolha de Sofia. Não existe uma boa opção,
só duas ruins. Você não estava certa e eu também não."
"Então vamos deixar por isso mesmo", digo. "Nós dois tomamos decisões ruins."
"Como se já não tivéssemos feito isso antes", resmunga ele.
Briggs deixa a casa do capitão junto comigo, passando por cômodos nos quais já estive. Todos os espaços parecem vazios e deprimentes, como se a casa nunca tivesse
sido habitada. Fielding não parece ter vivido aqui, só se aboletava enquanto fazia suas reformas e trabalhava em segredo no porão. Não consigo entender o que o motivou.
Talvez dinheiro. Ele sempre quis e nunca teria em nosso ramo, outra coisa que o incomodava com respeito a mim. Ganho mais que a maioria. Planejo bem e Benton tem
sua herança, além disso Lucy é indecentemente rica devido às tecnologias de informática que vende desde sempre, quando não era mais velha que os neuroterroristas
que Briggs acaba de mencionar. Com a graça de Deus, pelo que sei, as invenções dela são legais.
Lucy está dentro da van do CFC com Marino e Benton; os macacões e capacetes amarelos foram removidos e todos parecem cansados. Anne tornou a sair na outra van para
fazer entregas aos laboratórios enquanto mais provas a aguardam aqui, caixas brancas repletas de sacos de papel brancos.
"Deixei um pacote para você no carro", diz Briggs na frente dos outros. "O último e melhor colete nível IV-A, desenhado especialmente para mulheres no teatro de
operações, o que seria ótimo se vocês se preocupassem em utilizar um."
"Se o colete for confortável...", começo a dizer.
"Acho que é, mas minha constituição é um pouco diferente da sua. O problema vai ser se ele não fechar completamente nas laterais. Já vimos isso muitas vezes, o projétil
encontra a maldita abertura."
"Vou experimentar para você", oferece-se Lucy.
"Muito bom", diz Marino. "Você veste o colete e começo a atirar para ver se funciona."
"O trauma do impacto direto, que é do que a maioria das pessoas parece se esquecer", digo a Briggs. "Os disparos não penetram o colete, mas se a força do impacto
chega a quarenta e quatro milímetros é impossível sobreviver."
"Faz tempo que não fico na linha de tiro", Lucy diz a Marino. "Talvez a gente consiga emprestado o campo de tiro de Watertown. Vocês já estiveram no campo novo dele?"
"Jogo boliche com o coordenador deles."
"Ah, é, seu time de cretinos. Como é que se chama? Bolas na Canaleta?"
"Não poupe ninguém. Você devia jogar com a gente qualquer dia desses", Marino diz a Briggs.
"Você aceitaria, coronel, que o AFDIL enviasse um reforço de pesquisadores para ajudar no CFC?", pergunta Briggs, dirigindo-se a mim. "Já que parece que temos uma
avalanche de provas que não para de chegar."
"Qualquer ajuda vai ser muito apreciada", respondo. "Vou trabalhar agora mesmo no colete."
"Vá dormir primeiro", diz Briggs, como se fosse uma ordem. "Você está péssima."
22
O Hospital Veterinário de Referência de Massachusetts possui um serviço de emergência que funciona vinte e quatro horas e, ainda que Sock não pareça estar sofrendo
enquanto ronca enroscado como um cão pequeno, um chihuahua ou um poodle, que caberia dentro de uma bolsa, preciso descobrir o que puder sobre ele. Está escurecendo
e Sock está em meu colo, os dois no banco traseiro do utilitário emprestado, rumando para o norte na I-95.
Tendo identificado o homem que foi assassinado enquanto passeava com Sock, pretendo tratar o cão de corrida resgatado tão bem quanto seu antigo dono, pois ninguém
parece saber de onde saiu o animal. Liam Saltz não tinha conhecimento de que seu enteado Eli possuía um galgo ou qualquer animal de estimação. O síndico do prédio
perto de Harvard Square informou a Marino que animais não são permitidos ali. Segundo todos os relatos, quando Eli alugou o apartamento na primavera passada, não
tinha cachorro.
"Não precisamos fazer isso hoje", diz Benton enquanto seguimos, e acaricio a cabeça sedosa do galgo, com pena do animal. Tomo cuidado com as orelhas imperfeitas,
porque ele não gosta que as toquem. O galgo também tem cicatrizes antigas no focinho pontiagudo. Ele é quieto, como uma criatura muda. Se ao menos você pudesse falar,
penso.
"O dr. Kessel não se importa. É melhor fazer isso enquanto estamos fora", retruco.
"Eu não estava pensando no incômodo para o veterinário."
"Sei que não", digo enquanto acaricio Sock, percebendo que talvez queira ficar com ele. "Estou tentando lembrar o nome da mulher que toma conta de Jet Ranger."
"Não vamos pensar nisso agora."
"Lucy também não para em casa e dá tudo certo. Acho que é Annette, ou Lanette. Vou perguntar se pode dar uma passada durante o dia, quem sabe cedo, todas as manhãs.
Pega Sock, leva para a casa de Lucy, então ele e Jet Ranger fazem companhia um para ou outro. À noite, Annette, ou qualquer que seja o nome dela, traz Sock de volta.
O que tem de difícil nisso?"
"Vamos encontrar um lar para Sock quando for a hora certa." Benton pega a saída de Woburn, a placa ostentando um verde iridescente quando os faróis a iluminam, e
então diminui a marcha no declive.
"Você vai ter um ótimo lar", digo a Sock. "O agente Wesley disse isso. Você ouviu."
"Você não pode ter um cachorro agora pelo mesmo motivo de sempre", soa a voz de Benton na penumbra, vinda do banco da frente. "Seu QI cai uns cinquenta pontos."
"Daria um número negativo então. Menos dez ou coisa do gênero."
"Por favor, não comece a falar que nem bebê, ou como quer que você fale com os animais."
"Estou tentando descobrir onde parar para comprar comida para ele."
"Eu levo vocês e depois corro até alguma loja de conveniência ou mercado e compro alguma coisa", diz Benton em seguida.
"Nada enlatado. Preciso fazer uma pesquisa sobre marcas primeiro, provavelmente uma ração para cães pequenos e idosos, porque ele não é um menino. Por falar nisso,
vamos fazer peito de frango, arroz, peixe, quem sabe colocar uma semente saudável como quinoa? Então acho que você vai precisar de um supermercado de verdade. Deve
ter um aqui perto."
No Hospital Veterinário de Referência, sou conduzida ao longo de um corredor claro, repleto de salas de exame, e o técnico que nos acompanha é muito bondoso com
Sock, que percebo que é bastante indolente. Seu corpo parece leve sobre as pequenas patas, e ele percorre o corredor devagar, como se nunca tivesse participado de
uma corrida na vida, nem fosse capaz disso.
"Acho que ele está assustado", digo ao técnico.
"Ele é preguiçoso."
"Quem pensaria isso de um cachorro que corre sessenta e cinco quilômetros por hora?", comento.
"Quando é necessário, mas eles nunca querem. Preferem ficar dormindo no sofá."
"Bom, não quero puxá-lo. Ele está com o rabo entre as pernas."
"Pobrezinho." O técnico para a cada dois segundos para acariciar Sock.
Desconfio que o dr. Kessel alertou os funcionários das tristes circunstâncias do galgo. Todos só demonstraram consideração, compaixão e nos dão muita atenção, como
se Sock fosse famoso, o que espero sinceramente que não. Não ia ajudar em nada se a notícia se tornasse pública, se ele se tornasse assunto na internet, incitando
o voyeurismo e as piadas de mau gosto que sempre parecem brotar a minha volta. Levo Sock para o necrotério? Ele pode ser treinado para cuidar de cadáveres? O que
vai fazer quando eu chegar em casa cheirando a defunto?
Ele não tem febre, os dentes e as gengivas estão saudáveis, o pulso e a respiração, normais e não há sinais de sopro cardíaco nem de desidratação, mas não vou permitir
que o dr. Kessel colha sangue nem urina. Proponho deixar um checkup completo para outra hora, pois Sock não necessita de mais traumas. "Deixe que me conheça primeiro
antes de me associar a dor e sofrimento", sugiro ao dr. Kessel, um homem magro de jaleco, que parece jovem demais para ter concluído o curso de veterinária. Usando
um pequeno scanner que chama de varinha mágica, ele procura o microchip que dever ter sido implantado sob a pele do dorso ossudo de Sock, que se senta na mesa de
exame. Eu o acaricio.
"Bom, ele tem um pequeno chip RFID bem onde deveria estar, acima do quarto dianteiro", informa o dr. Kessel, examinando o que aparece no visor de sua varinha mágica.
"É um número de identificação; vou dar um telefonema rápido para o Registro Nacional de Animais de Estimação e vamos descobrir a quem pertence esse rapaz."
O dr. Kessel faz as ligações e toma notas. Instantes depois me estende um pedaço de papel com um número de telefone e o nome Lost Sock.
"Um nome e tanto para um cão de corrida, hein, rapaz?", diz o veterinário. "Talvez tenha correspondido às expectativas e por isso foi encostado em algum canto. Código
de área sete-sete-zero? Tem ideia de onde fica?"
"Não."
Ele se encaminha a um computador sobre uma bancada, digita o código de área em um campo de pesquisa e diz: "Douglasville, Georgia. Provavelmente alguma clínica veterinária
lá. Quer ligar daqui para ver se está aberta? Você está muito longe de casa", diz ele, dirigindo-se a Lost Sock, e já sei que não vou chamá-lo assim.
"Você nunca mais vai se perder", digo a Sock quando voltamos ao carro, porque não quero dar o telefonema diante de uma plateia.
A mulher que atende diz simplesmente alô, como se eu tivesse ligado para um número residencial. Digo-lhe que estou telefonando por causa de um cachorro com esse
número de telefone em um microchip.
"Então ele é um dos nossos resgates", informa ela, que tem a fala arrastada do Sul. "Provavelmente de Birmingham. Recebemos muitos deles, afastados da pista de corrida
de lá. Qual é o nome dele?"
Digo a ela.
"Branco e preto, cinco anos?"
"Isso", retruco.
"Ele está bem? Não está machucado nem nada? Não foi maltratado?"
"Está enroscado no meu colo. Ele está bem, sim."
"Ele é um amor. Todos são. Eles toleram gatos e cães menores e se dão bem com crianças, desde que não puxem ou apertem as orelhas dele. Se esperar um minuto, vou
buscar o nome no computador, para ver o que consigo descobrir a respeito de onde ele deveria estar e com quem. Lembro que foi levado por uma estudante, mas não recordo
o nome. Ela era do norte. Ele estava perdido? De onde você está ligando? Sei que ele foi adestrado e socializado, concluiu o programa com distinção, então você tem
um cachorro muito legal, e tenho certeza de que a dona deve estar louca atrás dele."
"Adestrado e socializado?", pergunto e penso em Sock com uma estudante. "Que programa? Seu grupo de resgate está envolvido com algum programa especial que leva galgos
a comunidades de aposentados ou hospitais, algo do tipo?"
"Prisões", responde ela. "Ele foi liberado da pista de corrida em julho passado e passou pelo nosso programa de nove semanas, onde são os presos que fazem o verdadeiro
treinamento. No caso de Lost Sock, foi Chatham, em Savannah, Georgia."
Lembro-me de Benton ter me contado a respeito da mulher encarcerada em uma prisão localizada em Savannah, a terapeuta condenada por molestar Jack Fielding quando
era um menino problemático e foi enviado para viver em uma fazenda perto de Atlanta.
"Nós nos envolvemos com eles porque já estavam treinando cães farejadores de bombas e achamos que talvez quisessem fazer alguma coisa mais interessante, mais difusa",
diz a mulher. Coloco-a no viva-voz e aumento o volume. "Como acolher um desses animais encantadores", ela continua. "O preso aprende paciência e responsabilidade,
tem a sensação de ser incondicionalmente amado, e o galgo aprende os comandos. Seja como for, Lost Sock foi treinado por uma presidiária em Chatham que disse que
queria ficar com ele quando saísse, mas acho que ainda vai levar algum tempo. Então foi adotado por alguém que ela recomendou, a jovem em Massachusetts. Você tem
como tomar nota?"
Ela me fornece o nome Dawn Kincaid e vários números de telefone. O endereço em Salem é o local onde estivemos, a casa de Jack Fielding. Duvido muito que Dawn Kincaid
morasse lá, mas talvez aparecesse com frequência. Também duvido que morasse com Eli Goldman. Mas ele talvez cuidasse do cachorro para ela.
Eli obviamente a conhecia, estando os dois na Otwahl, e lembro-me de Briggs ter dito que a área de especialização de Dawn Kincaid era síntese química e nanoengenharia.
Qualquer especialista em nanoengenharia consideraria brincadeira de criança ocultar microgravadores de áudio e vídeo em fones de ouvido. Dawn provavelmente teria
fácil acesso aos fones e ao rádio portátil via satélite de Eli. Trabalhavam juntos. Seu cão estava no apartamento dele, o que significa que ela devia estar sempre
lá. Talvez tenha dormido lá. Talvez tivesse a chave.
Bryce ainda está no CFC quando ligo e informo que fiz uma fotocópia da carta de Erica Donahue antes de entregá-la ao laboratório. Peço-lhe que encontre o arquivo
e leia os números de telefone. Anoto-os e pergunto o que está acontecendo no laboratório de DNA.
"Está trabalhando dia e noite", ele responde. "Espero que não venha hoje. Descanse um pouco."
"O coronel Pruitt voltou a Dover ou está no laboratório?"
"Eu o vi ainda há pouco. Estava com o general Briggs. O pessoal deles está vindo de Dover. Bom, é o seu pessoal também, imagino..."
"Encontre o coronel Pruitt e pergunte se, conforme minhas diretrizes, os perfis da máquina de escrever estão sendo imediatamente passados pelo CODIS, antes de qualquer
outra coisa. Talvez eles já tenham algum resultado. Ele vai saber a que estou me referindo. Mas o que é realmente importante é que quero que seja feita uma pesquisa
familiar que confronte todos os perfis com o DNA de exclusão de Jack Fielding e uma pesquisa familiar no CODIS que inclua uma comparação com o perfil de uma presidiária
do Instituto Correcional de Chatham em Savannah, Georgia. Seu nome é Kathleen Lawler." Soletro o nome. "Reincidente..."
"Onde?"
"Chatham, um presídio de mulheres perto de Savannah, Georgia. O DNA dela deve estar no banco de dados do CODIS..."
"O que isso tem...?"
"Ela e Jack tiveram uma filha. Quero uma pesquisa familiar para ver se conseguimos alguma correspondência com o que foi recuperado..."
"Ele o quê? Ele o quê com quem?"
"E as impressões virtuais na película plástica...", começo a dizer.
"Tudo bem. Agora você está embaralhando meus miolos..."
"Bryce, desembaralhe e fique quieto. É melhor tomar nota."
"Estou anotando, chefe."
"Quero que as impressões da película sejam comparadas com as de Fielding e as minhas e quero o DNA pronto o mais rápido possível. Veja quem mais pode ter tocado
a película. Possivelmente quem quer que tenha alterado o emplastro de onde ela veio. Meu palpite é que a Otwahl colhe as impressões digitais dos funcionários e deve
ter um arquivo contendo todas. Um lugar tão ciente da segurança... É muito importante que a gente descubra exatamente quem forneceu aqueles emplastros adulterados.
O coronel Pruitt e o general Briggs vão entender tudo isso."
Em seguida, converso com Erica Donahue ao telefone enquanto Benton percorre Cambridge, passando pelas mesmas ruas que Eli quando passeou pela última vez com Sock
no domingo, a caminho de encontrar seu padrasto e denunciar a Otwahl para um homem que poderia fazer alguma coisa a respeito.
"Bem-vinda significa com que frequência?", pergunto à sra. Donahue depois que ela me informa no viva-voz que Dawn Kincaid esteve várias vezes na casa dos Donahue
em Beacon Hill e é sempre bem-vinda. Os Donahue aparentemente a adoram.
"Ela vem jantar ou nos visitar, especialmente no fim de semana. Você sabe, ela subiu na vida apesar de tudo. Teve que trabalhar muito e sofreu uma série de infortúnios.
A mãe morreu em um acidente de carro, depois o pai morreu de forma trágica, não lembro como. Uma menina simpática, sempre muito carinhosa com Johnny. Os dois se
conheceram na primavera passada, quando ele começou na Otwahl, embora ela seja mais velha e esteja cursando um programa de doutorado no MIT, transferida de Berkeley,
acho; é muito inteligente e bonita. Como você a conhece?"
"Não conheço. Nunca nos encontramos."
"É na verdade a única amiga de Johnny. Certamente a mais chegada que ele já teve. Mas não é um relacionamento romântico, ainda que eu tivesse esperanças. Acho que
nunca vai ser. Parece que ela está saindo com outra pessoa na Otwahl, um pesquisador com quem trabalha."
"A senhora sabe o nome dele?"
"Desculpe, não recordo de já ter ouvido. Acho que ele também era de Berkeley e acabou vindo para cá por causa do MIT e da Otwahl. É sul-africano. Ouvi Johnny se
referir de forma um tanto rude ao nerd africano que Dawn namora, e outros nomes que não vou repetir. E antes disso era algum atleta idiota, segundo meu filho, que
fica um pouco enciumado..."
"Atleta idiota?", pergunto.
"Uma coisa terrivelmente grosseira de dizer sobre alguém que morreu de maneira tão trágica. Mas Johnny não tem tato. Faz parte da singularidade dele."
"A senhora sabe o nome do garoto que morreu?"
"Não lembro. Aquele jogador de futebol americano que encontraram no porto."
"Johnny conversou com a senhora sobre esse caso?"
"Você não está insinuando que meu filho teve alguma coisa a ver com..."
Asseguro-lhe com toda a calma que não estou insinuando nada assim e encerro a chamada quando o utilitário tritura a neve congelada que cobre a entrada da nossa garagem
em Cambridge. No final, sob os galhos nus de um imenso carvalho, fica a casa em estilo cocheira, a garagem reformada, as portas duplas de madeira iluminadas pelos
faróis.
"Você ouviu em primeira mão", digo a Benton.
"O que não significa que Jack não tenha feito nada. O que não significa que não tenha matado Wally Jamison, Mark Bishop ou Eli Goldman", diz ele. "Precisamos tomar
cuidado."
"É claro que precisamos tomar cuidado. Sempre tomamos. Você não sabia de nada disso?"
"Não posso revelar o que um paciente me contou. Mas vamos colocar dessa forma: o que a sra. Donahue acaba de mencionar é interessante, e eu ainda não estou convencido
no que se refere a Fielding. Só estou dizendo que precisamos tomar cuidado porque neste momento não temos certeza de determinadas coisas. Mas vamos ter certeza.
Isso eu posso prometer. Está todo mundo procurando por Dawn Kincaid. Vou passar adiante essa última informação", diz Benton, mas o que ele está de fato querendo
dizer é que não há nada que possamos fazer a respeito, ou nada que devamos fazer, e ele está certo. Não podemos sair os dois no encalço de Dawn Kincaid, que a esta
altura provavelmente está a milhares de quilômetros daqui.
Benton para o utilitário e aponta o controle remoto na direção da garagem. A porta de madeira se ergue e uma luz se acende no interior, iluminando seu Porsche preto
conversível e três outras vagas desocupadas.
Ele guarda o utilitário ao lado do carro esporte. Deslizo a corrente pelo pescoço longo e fino de Sock e o ajudo a saltar de meu colo e do banco traseiro para a
garagem, que está muito fria devido à ausência de vidro na janela nos fundos. Conduzo Sock através do piso emborrachado e olho para o quadrado preto e, depois dele,
para o quintal coberto de neve. Está muito escuro, mas distingo a neve alterada, com muitas pegadas, as crianças da vizinhança tendo outra vez usado nossa propriedade
como atalho, o que vai acabar. Temos um cachorro e vou murar ou cercar o quintal. Vou me tornar a vizinha má e ranzinza, que não permite invasão.
"Que piada", comento com Benton quando deixamos a garagem desligada da casa rumo ao acesso coberto de neve e escorregadio, a noite bastante fria, branca e muito
silenciosa. "Você decide comprar um sistema de alarme para a garagem. Então precisamos deixá-lo desligado e qualquer pessoa pode entrar pela janela. Quando vamos
instalar o vidro?"
Encaminhamo-nos para a porta dos fundos, avançando com cuidado sobre a neve áspera, que Sock claramente detesta, puxando as patas para cima como se estivesse pisando
em brasas e tremendo. Árvores escuras balançam ao vento, o céu noturno repleto de estrelas, a lua miúda e branca como osso acima dos telhados e da copa das árvores
de Cambridge.
"É uma droga", diz ele, transferindo a sacola de compras para o outro braço enquanto procura a chave da porta. "Amanhã vou me certificar de afastar essa garotada
daqui. É que não tenho parado e alguém precisa ficar em casa."
"Você acha que seria um problema cercar os fundos? Assim podemos deixar Sock do lado de fora sem medo que ele saia correndo."
"Você disse que ele não gosta de correr." Benton destranca a porta da varanda envidraçada.
Mais adiante, veem-se os contornos escuros das árvores de Norton's Woods. A construção em madeira com seu telhado de metal em três níveis ergue-se ameaçadora em
contraste com a noite, sem luzes acesas no interior. Sinto-me triste ao contemplar a sede da Academia de Artes e Ciências dos Estados Unidos e penso em Liam Saltz
e seu enteado morto. Pergunto-me se o flybot mutilado continua lá fora em algum lugar, enterrado e congelado, inativo, como Lucy sinalizou, pois o sol não consegue
alcançá-lo. Tenho a estranha sensação de que alguém o encontrou. Talvez o FBI, concluo. Talvez o pessoal da DARPA, do Pentágono. Talvez Dawn Kincaid.
"Acho que vamos precisar de botas para ele", digo. "Existem botinhas para cães, e ele precisa de alguma coisa assim para não cortar as patas no gelo e na neve congelada."
"Bom, ele não vai muito longe nesse frio." Benton abre a porta e o alarme começa a emitir bipes. "Acredite em mim. Você vai ter que o obrigar a sair com esse tempo.
Espero que só faça as necessidades lá fora."
"Ele precisa de casacos. Estou surpresa que Eli, Dawn ou quem quer que seja não tivesse casacos para ele. Galgos precisam disso por aqui. Na realidade, este não
é o melhor lugar do mundo para os galgos, mas as coisas são como são, Sock. Você vai ficar aquecido, alimentado e bem."
Benton insere o código no teclado numérico e desativa o alarme no instante em que fecha a porta atrás de nós; Sock se apoia em minhas pernas.
"Você acende a lareira e eu preparo as bebidas", digo a Benton. "Depois vou cozinhar frango e arroz, ou então peixe e quinoa, mas não agora. Ele comeu frango e arroz
o dia todo e não quero que fique doente. O que você vai querer? Ou talvez eu deva perguntar o que temos em casa..."
"Ainda temos pizza no freezer."
Acendo as luzes. As janelas de vitrais na escada parecem escuras, mas devem ficar lindas vistas de fora, iluminadas do interior da casa. Imagino os cenários franceses
de vida selvagem brilhantemente iluminados quando levar Sock para passear à noite e em como vai ser agradável. Imagino-me brincando com ele no quintal na primavera
e no verão, quando faz calor, e vendo as janelas vibrantes acesas à noite, parecendo pacatas e civilizadas. Vou morar perto de Harvard, voltar do escritório para
casa e para meu velho cão, plantar um jardim nos fundos, e penso no quanto tudo isso vai ser bom.
"Não quero comer nada agora", diz Benton, tirando o casaco. "Primeiro uma bebida bem forte, por favor."
Benton dirige-se à sala de estar e as unhas de Sock estalam de encontro à madeira, então silenciam sobre os tapetes à medida que passamos de um cômodo a outro e
entramos na cozinha, onde o sinto encostar em minhas pernas quando abro os armários de cerejeira escura acima dos utensílios de aço inoxidável. Para onde quer que
eu vá, ele me segue e se comprime de encontro a mim, empurrando a parte posterior de minhas pernas enquanto providencio copos, depois gelo, em seguida uma garrafa
do nosso melhor uísque, um Glenmorangie single malt de vinte e cinco anos, presente de Natal de Jaime Berger. Meu coração dói quando sirvo as bebidas e penso na
separação de Lucy e Jaime, nas pessoas que morreram, no que Fielding fez com a própria vida e no fato de que agora está morto. Ele vinha se matando desde o princípio,
e então alguém completou o serviço por ele, encostou uma Glock em sua orelha esquerda e apertou o gatilho, provavelmente enquanto estava de pé ao lado do freezer
criogênico, onde guardava o sêmen obtido de forma ilegal antes de enviá-lo às mulheres, mães e amantes de homens que morreram jovens.
Em quem Fielding confiaria tanto a ponto de permitir que entrasse no porão, compartilhasse seu capitalismo ilegal de risco, pegasse emprestada sua casa e provavelmente
tudo que possuía? Recordo o que seu ex-chefe em Chicago me disse. Que estava satisfeito que Jack estivesse de mudança para Massachusetts para ficar perto da família.
Ele não estava se referindo a Lucy, a Marino, a mim nem a nenhum de nós, nem mesmo à sua mulher e às duas filhas deles. Ele se referiu a alguém que eu nem sabia
que existia até agora. Se não fosse tão egocêntrica e narcisista, talvez esse pensamento tivesse me ocorrido antes.
É bem do meu feitio assumir tal importância na vida de Fielding, que em hipótese alguma estava pensando em mim quando mencionou sua família ao ex-chefe. Fielding
se referiu à filha de seu primeiro amor, provavelmente a primeira mulher com quem manteve relações sexuais, a terapeuta da fazenda perto de Atlanta que teve uma
filha dele e então a abandonou, exatamente como Fielding foi abandonado. Segundo Benton, uma menina com uma carga genética que a colocaria na prisão se não acabasse
morta. E ela se mudou de Berkeley para cá no ano passado, depois Fielding veio de Chicago.
"Mil novecentos e setenta e oito", digo ao entrar na sala escura e aconchegante, com estantes embutidas e vigas antigas aparentes. As luzes estão apagadas, o fogo
crepita e arde na lareira de tijolos e as fagulhas enxameiam quando Benton desloca uma acha com o atiçador. "Ela teria a idade de Lucy, trinta e um." Estendo o copo
de uísque, uma dose generosa com poucos cubos de gelo. Parece acobreado à luz da lareira. "Você acha que é ela? Que essa Dawn Kincaid é filha dele? Porque é o que
eu acho. Espero que você ainda não saiba nada sobre ela."
"Juro que não. Se for verdade."
"Você realmente não deu atenção a Dawn Kincaid ou à filha que Fielding teve com a mulher na prisão?"
"Não. Você precisa lembrar que tudo isso é recente, Kay." Acomodamo-nos ao lado um do outro no sofá e Sock instala-se em meu colo. "Ele não estava no radar de ninguém
até semana passada, pelo menos não por nada criminoso, nada violento. Mas eu devia ter me dado o trabalho de descobrir alguma coisa sobre o bebê", diz Benton, parecendo
ligeiramente irritado consigo mesmo. "Sei que mais à frente ia descobrir, mas ainda não tinha feito isso porque não me pareceu importante."
"No esquema maior das coisas, na ocasião, não era. Não estou tentando te deixar na defensiva."
"Fiquei sabendo, pelos registros que examinei, que o bebê, uma menina, foi dada para adoção quando a mãe foi para a prisão pela primeira vez. Uma agência de adoção
em Atlanta", diz ele. "Talvez ela tenha começado a procurar pelos pais biológicos, como algumas crianças adotadas fazem."
"Esperta como é, isso provavelmente não foi muito difícil."
"Cristo!" Benton toma um gole de uísque. "É sempre aquilo que você acha que não tem importância, aquilo que considera que pode esperar."
"Eu sei. Quase sempre é assim. O detalhe com o qual você não quer se preocupar."
Sentamos no sofá, olhando para o fogo, e Sock está enroscado em cima de mim. Está ligado a mim. Não me perde de vista. Precisa ficar se encostando em mim, como se
tivesse certeza de que vou desaparecer e ele vai ser novamente abandonado em uma casa decadente, onde coisas horríveis acontecem.
"Acho que existe uma probabilidade muito boa de que seja isso o que o DNA vá nos informar a respeito de Dawn Kincaid", continua Benton em tom inexpressivo. "Quem
me dera soubéssemos antes. Mas não havia motivo para investigar."
"Não precisa ficar repetindo isso. Por que teria investigado? O que um bebê que Jack teve quando adolescente teria a ver com o que aconteceu?"
"Porque teve."
"Depois da batalha, todo mundo é general."
"Eu sabia que ele estava escrevendo para Kathleen Lawler, mandando e-mails, mas não há nada de criminoso nisso, nada nem mesmo suspeito, e não havia nenhuma menção
a alguém de nome Dawn, só a um interesse que eles tinham em comum. Estou lembrado da frase, o interesse que eles compartilhavam. Pensei que Jack estivesse se referindo
ao crime, possivelmente o antigo crime dos dois, e como aquilo mudou a pessoa que eram para sempre; pensei que fosse esse o interesse que eles tinham em comum",
diz Benton com ar triste, tentando compreender à medida que fala. "Agora preciso me perguntar se o interesse que eles compartilhavam era a filha deles, talvez Dawn
Kincaid. Que infelicidade Jack nunca ter superado essa parte da vida, ter continuado ligado a Kathleen Lawler, e provavelmente ela a ele. E então surge uma filha
com as partes boas e as partes ruins dele. E as partes boas e as partes muito ruins da mãe. E quem vai saber por que lugares essa garota andou? Ela nunca morou com
o pai, que desconfio que só conheceu depois de crescida. É claro que isso é pura especulação da nossa parte."
"Na verdade, não. É como uma autópsia. Na maioria das vezes, ela me diz o que já sei."
"A gente tinha como saber. Realmente tinha. E é uma história horrível. Nem me fale sobre a semente do mal e os pecados do pai."
"Nesse caso, alguns diriam que foram os pecados da mãe."
"Eu devia dar alguns telefonemas", diz Benton, bebendo em frente à lareira, olhando para ela.
Ele está com raiva de si mesmo. Não se permite ter deixado escapar esse detalhe, como diz. Na cabeça dele, localizar um bebê nascido de uma mulher na prisão há mais
de trinta anos deveria ter se tornado a mais urgente das prioridades, o que é irracional. Por que ele daria importância a isso?
"Jack nunca mencionou Dawn Kincaid ou uma filha que foi dada para adoção, absolutamente nada do gênero. Eu não fazia ideia." O uísque me aqueceu e acaricio Sock,
sentindo suas costelas, e a tristeza que despencou sobre mim e não vai embora. "Duvido muito que ela tenha morado com ele, a não ser, talvez, em um passado muito
recente; fora isso, não vejo como. Não em Richmond, claro que não. E é pouco provável que as mulheres que teve permitissem que uma filha proveniente daquele romance
criminoso prematuro fizesse parte da vida deles, supondo que soubessem. Jack provavelmente não contou, a não ser que tenha feito referência à sua dificuldade de
lidar com casos que envolviam crianças. Se ele ao menos tivesse contado esse detalhe às mulheres da vida dele."
"Jack contou a você."
"Eu não era só uma mulher na vida dele. Era a chefe dele."
"Não só isso."
"Por favor, de novo não, Benton. Sério. Isso está ficando ridículo. Você está de mau humor e nós dois estamos cansados..."
"É só que você não está sendo honesta comigo. Não me interessa o que fez naquela época. Não tenho o direito de me importar com o que fez antes de ficarmos juntos."
"Bom, você se importa, e tem o direito de se importar com o que quiser. Mas quantas vezes vou ter que dizer?"
"Eu me lembro da primeira vez que saímos."
"Como isso soa antiquado... Duas pessoas na casa dos cinquenta anos conversando sobre isso em um domingo à noite." Estendo a mão para segurar a dele.
"Em 1988, naquele restaurante italiano no Fan. Lembra o Joe's?"
"Era onde íamos parar toda vez que eu saía com a polícia. Nada como um belo prato de espaguete depois de uma cena de homicídio."
"Não fazia muito tempo que você estava na chefia." Benton conversa com o fogo e acaricia delicadamente minha mão, as duas pousadas em Sock. "Perguntei sobre Jack
porque você tinha muito tato, era cuidadosa, voltada para ele, o que eu achava estranho. Quanto mais sondava, mais você se mostrava evasiva. Nunca esqueci."
"Não foi por causa dele", explico. "Foi por causa da forma como eu me sentia."
"Por causa de Briggs. Não é fácil ficar por baixo de um homem como ele. E eu não pretendia dizer isso do jeito que saiu. Não que você ficaria necessariamente por
baixo dele ou de qualquer outra pessoa. Provavelmente ficaria por cima."
"Por favor, não seja maldoso."
"Estou brincando, e nós dois estamos muito cansados e desgastados para provocações. Peço desculpas."
"De qualquer forma, o que aconteceu foi culpa minha. Não posso culpar Briggs nem ninguém", prossigo. "Mas ele era Deus naquela época. Para alguém como eu. Eu era
realmente muito resguardada. Acho que tudo o que fiz foi ir para a faculdade, estudar, consumir-me nas residências, meu Deus, quantos anos disso, como um longo sonho
de trabalhar duro, raramente dormir e, é claro, fazer o que as pessoas em posição de autoridade mandavam. No começo, praticamente sem questionar. Porque eu achava
que não merecia ser médica. Deveria ter administrado a quitanda do meu pai, tornado-me esposa e mãe, ter simplesmente vivido, como todas as outras pessoas na família."
"John Briggs foi a pessoa mais poderosa com quem você deparou. Posso entender por quê", diz Benton, e tenho a sensação de que ele talvez conheça Briggs melhor do
que imaginei. Pergunto-me o quanto conversaram nos últimos seis meses, não só a respeito de Fielding, mas de tudo.
"Por favor, não se sinta ameaçado por ele", digo enquanto me pergunto o que Benton sabe sobre Briggs e, acima de tudo, o que sabe sobre mim. "Meu passado com ele
não importa mais. E, de qualquer forma, essa era uma percepção minha. Eu precisava que ele fosse poderoso. Precisava disso naquela época."
"Porque seu pai era tudo menos poderoso. Passou muitos anos doente, com você cuidando dele, cuidando de todo mundo. Queria alguém que cuidasse de você para variar."
"E quando você consegue o que quer, adivinhe o que acontece? John teve um cuidado horrível comigo. Ou seria mais exato dizer que eu tive um cuidado horrível comigo.
Aprendi - ou melhor, fui persuadida - a ir contra minha consciência e me deixei levar para o que não era certo."
"Política", diz Benton como se soubesse.
"O que você sabe sobre o que aconteceu naquela época?" Olho para ele e as sombras se deslocam sobre seu rosto muito bonito à luz da lareira.
"Acho que são dois anos de serviço para cada ano da faculdade de medicina ou de direito pago pelas Forças Armadas. Então, a menos que eu seja muito ruim em matemática,
você devia ao governo dos Estados Unidos oito anos de serviço na Força Aérea, mais especificamente no AFIP e no AFMES."
"Seis. Concluí a Hopkins em três anos."
"Tudo bem. Mas você serviu o quê, um ano? E sempre que eu perguntava sobre isso você vinha com a mesma lenga-lenga a respeito do AFIP querer estabelecer um programa
de parceria na Virginia e ter decidido te plantar lá como chefe."
"Demos início a um programa em parceria com o AFIP. Na época, não existiam muitas instituições se você pertencesse ao AFIP e quisesse se especializar em ciência
forense. Depois anexamos Richmond. E agora, é claro, nós. O CFC. Vamos nos preparar para isso em breve. A qualquer momento, vai acontecer."
"Política", Benton torna a dizer enquanto toma um gole de uísque. "Você sempre se sentiu culpada por alguma coisa, e por muito tempo pensei que fosse Jack. Por ter
tido um caso com ele e repetido o dano inicial. Uma mulher poderosa, responsável por Jack, tem relações sexuais com ele, vitimando-o outra vez, fazendo-o voltar
à cena do crime original. Para você isso teria sido imperdoável."
"Só que não fiz isso."
"Jura?"
"Juro."
"Bom, você fez alguma coisa." Ele não vai parar até esclarecer tudo.
"Fiz, mas foi antes de Jack", explico.
"Você fez o que te mandaram fazer, Kay. E tem que tirar isso da cabeça", diz Benton, porque ele sabe. É óbvio que sabe.
"Nunca contei às famílias", retruco, e Benton nada diz. "As duas mulheres assassinadas na Cidade do Cabo. Não pude chamar as famílias e contar o que de fato aconteceu.
Eles acham que foi racismo, integrantes de gangues africanas durante o Apartheid. A alta taxa de negros matando brancos foi conveniente a certos líderes políticos
na época. Eles queriam que fosse verdade. Quanto mais, melhor."
"Esses líderes já se foram agora, Kay."
"Você devia dar seus telefonemas, Benton. Ligar para Douglas ou quem quer que seja e contar sobre Dawn Kincaid, quem ela provavelmente é e os exames que pedi."
"A administração Reagan acabou faz tempo, Kay." Benton vai me obrigar a falar sobre o assunto e estou convencida de que já o discutiu. Briggs provavelmente contou
a ele alguma coisa, pois sabe muito bem o quanto isso me persegue.
"O que eu fiz não acabou", retruco.
"Você não fez merda nenhuma de errado. Não tem nada a ver com a morte delas. Não preciso saber de todos os detalhes para dizer isso", declara Benton enquanto entrelaça
os dedos nos meus, nossas mãos unidas subindo e descendo ao ritmo da respiração de Sock.
"Eu me sinto como se tivesse tudo a ver com isso", confesso.
"Mas não tem", diz ele. "Outras pessoas têm, e você foi obrigada a ficar calada. Sabe quantas vezes não posso dizer o que sei? Minha vida inteira foi assim. A alternativa
é tornar as coisas ainda piores. O teste é esse. Contar torna tudo pior, faz com que outras pessoas sejam perseguidas e mortas? Primum non nocere. Primeiro, não
prejudique ninguém. É esse o parâmetro que uso para tudo e tenho certeza de que você faz o mesmo."
Não quero um sermão agora.
"Acha que foi ela que fez isso?", pergunto enquanto Sock respira devagar, satisfeito, como se sempre tivesse vivido aqui e estivesse em casa. "Que matou todos eles?"
"É o que estou me perguntando agora." Ele olha para a bebida, que parece cor de mel à luz da lareira.
"Para acabar com o sofrimento de Jack?"
"Ela provavelmente detestava Jack", diz Benton. "Foi por isso que se aproximou dele, que quis conhecer o pai já adulta, se é que foi o que ela fez."
"Bom, não acho que ele tenha algemado e retalhado Wally Jamison no porão até acabar com ele. Se Wally foi até a casa em Salem de bom grado, provavelmente foi a convite
de Dawn, para vê-la. Talvez para realizar alguma fantasia, um jogo sexual macabro no Halloween. Talvez ela tenha feito a mesma coisa com Mark Bishop e, quando tinha
os dois sob controle, enfeitiçados, exatamente onde queria que estivessem, tenha atacado. Foi uma investida, uma emoção para alguém diabólico assim."
"A segunda mulher de Liam Saltz, mãe de Eli, é sul-africana", diz Benton. "Assim como o pai biológico de Eli, e Eli estava usando um anel que provavelmente foi tirado
da casa dos Donahue, provavelmente roubado por Dawn junto com a máquina de escrever e o papel de carta. Talvez ela tenha usado a fita vedante para coletar fibras,
vestígios, DNA da casa dos Donahue enquanto estava por lá. Para fazer com que a carta parecesse realmente enviada pela mãe, para se certificar de enfraquecer ainda
mais o álibi de Johnny."
"Agora você está pensando de forma tão irracional quanto eu", retruco em tom irônico. "Isso é o que acredito que tenha acontecido, ou quase isso."
"O jogo", reflete Benton no tom que usa quando detesta o que alguém fez. "Jogos e mais jogos, dramas elaborados, intrincados. Mal posso esperar para conhecer essa
vaca. Realmente mal posso esperar."
"Talvez você já tenha bebido uísque demais."
"Não cheguei nem na metade. Quem melhor para manipular Johnny Donahue que alguém assim, uma mulher atraente, altamente qualificada e mais velha? Para plantar a ideia
na cabeça do pobre do garoto de que ele assassinou uma criança de seis anos enquanto estava delirando e tendo lapsos de memória por causa das drogas que ela estava
adicionando aos remédios dele? Adulterando os remédios de Fielding. Sei lá o que mais. Uma pessoa diabólica que destrói aqueles que deveria amar, paga na mesma moeda
por cada crime cometido contra ela. E você pode acrescentar a isso a predisposição genética e quem sabe o mesmo coquetel que Fielding estava tomando."
"Seria um completo desastre, como dizem."
"Vamos ver que tipo de máquina de matar consigo ser e ainda assim me dar bem", diz Benton naquele seu tom. Se eu o olhasse nos olhos, sei o que veria. Completo desprezo.
"E depois que terminou não sobrou ninguém, só ela. Uma fodida à prova de balas."
"Você pode estar certo." E me lembro da caixa que deixei no carro. "Por que não dá seus telefonemas?"
"Limítrofe, sádica, manipuladora, narcisista."
"Acho que algumas pessoas são tudo isso." Pouso o copo na mesinha de centro, afasto Sock do colo e o coloco sobre o tapete.
"Algumas pessoas são exatamente isso."
"Esqueci a caixa que Briggs deixou para mim", digo ao levantar do sofá. "E vou levar Sock para passear. Pronto para ir ao banheiro?", pergunto ao cão. "Depois vou
esquentar pizza. Imagino que a gente não tenha nada para preparar uma salada. Que diabos você comeu durante esse tempo todo que estive fora? Deixe eu adivinhar.
Passou no Chang An para comprar comida chinesa e ia se alimentar disso nos próximos três dias."
"Seria muito bom agora."
"É o que você provavelmente tem feito todas as semanas."
"Prefiro sua pizza a qualquer hora."
"Não tente ser legal", retruco.
Entro na cozinha para pegar a coleira de Sock, que coloco em seu pescoço, e encontro uma lanterna em uma gaveta, uma Maglite antiga que Marino me deu há milênios,
comprida, de alumínio preto, alimentada por pilhas grandes, o que me faz lembrar os velhos tempos em que a polícia carregava lanternas do tamanho de cassetetes,
em vez de ser tudo tão pequeno, como as lanternas SureFire das quais Lucy tanto gosta e que Benton tem no porta-luvas. Desarmo o sistema de alarme e me preocupo
com Sock, pois está muito frio, percebendo enquanto descemos os degraus dos fundos no escuro que não me dei o trabalho de pegar um casaco para mim. Reparo que a
luz do sensor de movimento da garagem está apagada. Tento lembrar se estava apagada há mais ou menos uma hora quando chegamos em casa, mas não tenho certeza. Há
tanta coisa para consertar, tanto a mudar, a fazer. Por onde começo amanhã?
Benton não trancou a porta da garagem, que fica separada da casa, porque de que adiantaria, com uma janela sem vidro do tamanho de um telão de TV? O interior da
cocheira reformada está escuro e terrivelmente frio, e o ar entra pelo quadrado negro aberto, que mal consigo distinguir. Ligo a Maglite, que não funciona. As pilhas
devem estar descarregadas e foi burrice minha não conferir antes de sair de casa. Aponto a chave para o SUV e a trava emite um ruído, mas a luz interna não se acende
por se tratar de um carro do FBI; a agente especial Douglas não tem a menor pretensão de que a luz interna acenda. Tateio o banco de trás à procura da caixa, que
é bem grande, e percebo que não vai ser fácil carregá-la e lidar com Sock. Na verdade, não vou conseguir.
"Desculpe, Sock", digo ao cachorro quando o sinto tremer de encontro a minhas pernas. "Sei que está frio aqui dentro. Só um minuto. Sinto muito. Mas, como você está
vendo, sou uma idiota."
Uso a chave do carro para cortar a fita adesiva no topo da caixa e extraio um colete que me é familiar, mesmo que não tenha examinado essa marca específica, mas
reconheço a sensação do náilon resistente e a rigidez das placas de cerâmica Kevlar que Briggs ou alguém já inseriu nos bolsos internos. Separo as tiras de velcro
nas laterais para abrir o colete e colocá-lo no ombro. Sinto o peso ao fechar a porta do carro e Sock salta para longe de mim como um coelho e me arranca a guia
da mão.
"É só a porta do carro, Sock. Está tudo bem, vem aqui..." Começo a chamá-lo ao mesmo tempo que mais alguma coisa se move no interior da garagem, próximo à janela
aberta, e viro para ver o que é, mas está escuro demais para enxergar.
"Sock? É você que está aí?"
O ar escuro e gelado se desloca ao meu redor e o golpe que recebo nas costas me parece um martelo entre as escápulas, como se um dragão que produz um alto silvo
estivesse me atacando; perco o equilíbrio.
Ouço um grito e um silvo agudos e um vapor quente umedece meu rosto quando bato com violência no SUV, então invisto com toda a minha força contra o que quer que
seja. A Maglite golpeia como um bastão algum objeto duro, que cede sob o peso da pancada e depois se desloca; invisto novamente e torno a atingir alguma coisa, diferente
agora. Sinto o odor ferroso de sangue e seu gosto nos lábios e na boca enquanto golpeio o ar repetidas vezes, depois as luzes se acendem, a claridade me cega e encontro-me
coberta por uma fina película de sangue, como se tivessem me pintado com spray vermelho. Benton acha-se no interior da garagem, apontando uma pistola para uma mulher
que veste um imenso casaco preto e tem o rosto colado ao piso de borracha. Reparo na poça de sangue sob a mão direita ensanguentada da mulher e, perto dela, a ponta
decepada de um dedo com a unha branca brilhante em estilo francesinha; perto dela, há uma faca com uma fina lâmina de aço e cabo preto grosso com um botão disparador
no anteparo de metal reluzente.
"Kay? Kay? Você está bem? Kay! Você está bem?"
Percebo Benton gritando comigo enquanto me agacho ao lado da mulher, toco-a na lateral do pescoço e procuro alguma pulsação. Certifico-me de que esteja respirando
e giro o corpo para examinar as pupilas. Nenhuma das duas está fixa. O rosto acha-se coberto de sangue devido ao golpe da Maglite e estou assustada com a semelhança,
o cabelo louro-escuro cortado muito curto, os traços fortes e o lábio inferior carnudo, iguais aos de Jack Fielding. Até mesmo as orelhas miúdas, pegadas à lateral
da cabeça, parecem com as dele. Sinto a força da parte superior do corpo, dos ombros, embora ela não seja alta, tenha talvez um metro e sessenta e sete, um metro
e setenta, e seja magra, mas com ossos largos como os do falecido pai. Tudo isso me inunda os sentidos enquanto digo a Benton para correr até em casa, ligar para
a polícia e trazer uma vasilha de gelo.
23
Uma frente quente chegou durante a noite e trouxe mais neve, desta vez uma neve macia, que cai em silêncio, emudecendo tudo, cobrindo o que é feio, arredondando
o que é pontiagudo e rijo.
Estou sentada na cama do quarto no segundo andar da casa em Cambridge e a neve cai e se acumula nos ramos nus do carvalho diante da janela grande mais próxima a
mim. Há poucos instantes, lá estava um esquilo cinza e gordo, perfeitamente equilibrado no menor dos galhos, e ficamos olhos nos olhos, seu focinho se movendo conforme
me observava pela janela enquanto eu examinava a papelada e as fotografias em meu colo. Sinto o cheiro de papel velho, de poeira e do remédio que usei em Sock, cujas
orelhas, desconfio, não foram limpas na história recente, talvez nunca, não da forma como as limpei. A princípio ele não gostou, mas eu o convenci com voz gentil
e um biscoito que Lucy trouxe quando me deu uma caixa dos lenços que usa em seu buldogue. Miconazol e clorexidina são bons contra os pachydermatis, cometi o erro
de mencionar à minha sobrinha bem cedo esta manhã quando ela deu uma passada para me ver.
Jet Ranger não ia gostar de ser chamado de paquiderme, rebateu Lucy. Ele não é um elefante nem um hipopótamo, e não há o que fazer quanto ao peso dele. Ela o colocou
em uma nova dieta para cães idosos, mas ele não pode se exercitar por causa da displasia nos quadris e, por algum motivo, a neve provoca erupções nas patas; suas
pernas são curtas demais para neve desta altura, portanto ele não pode fazer nem o mais curto dos passeios nesta época do ano. Lucy não parava de falar, e eu a havia
realmente ofendido sem querer. Mas é assim que se comporta quando está preocupada ou assustada e, acima de tudo, aborrecida pela ausência da noite passada. Lucy
está furiosa porque não estava aqui para lidar com Dawn Kincaid, mas não fico nem um pouco triste. Não posso dizer que me orgulhe de mim mesma por causar em alguém
uma fratura de crânio linear e uma concussão, mas se Lucy estivesse na garagem em vez de mim haveria mais uma pessoa morta. Minha sobrinha teria matado Dawn Kincaid
com toda a certeza, provavelmente atirado nela, e pessoas demais já morreram.
Também é possível que Lucy não sobrevivesse ao confronto, não importa o que diga. O fato de eu continuar aqui e Dawn Kincaid estar trancafiada na ala forense de
um hospital da região contou com dois detalhes que fizeram a diferença. Acho que ela não esperava que eu entrasse na garagem. Estava à espreita do outro lado da
janela aberta, aguardando que eu levasse Sock para o quintal às escuras. Mas eu a surpreendi ao entrar primeiro na garagem para pegar o que havia deixado no carro
e, quando ela deslizou pelo imenso espaço onde deveria estar a janela, eu já havia aberto a caixa e pendurado no ombro o colete tático IV-A. Quando ela me apunhalou
pelas costas com a faca de injeção, atingiu uma placa de cerâmica Kevlar coberta de náilon e o tremendo solavanco causado por essa completa obstrução fez com que
seus dedos deslizassem ao longo da lâmina. Ela cortou três dedos até o osso e teve a ponta do mindinho decepada. O CO2 foi liberado, e uma névoa de seu sangue respingou
por todo meu corpo.
Meu argumento com Lucy foi que, a não ser que ela fizesse Dawn perder o elemento surpresa para o ataque e a não ser que Lucy por acaso também vestisse um colete
à prova de balas ou no mínimo tivesse um pendurado em seu tronco, ela talvez não tivesse minha sorte. Portanto, minha sobrinha deveria parar de dizer que foi uma
pena ela não estar aqui ontem à noite, alegando que com certeza teria dado conta do recado, como se eu não tivesse feito isso, pois foi o que fiz, mesmo que por
sorte. Acho que cuidei muito bem de tudo e só espero poder cuidar de um assunto muito mais importante que ainda não me matou, mas que por vezes dá a impressão de
que poderia me matar.
"Ela me contou que houve vaias e comentários ofensivos", está dizendo a sra. Pieste ao telefone enquanto repasso com ela o caso de sua filha. "Chamaram minha filha
de bôer. Mandaram os bôeres irem para casa. Você deve saber que esse é o termo africâner para fazendeiro, mas que na realidade tinha em vista depreciar todos os
sul-africanos brancos. E eu ficava dizendo ao homem do Pentágono que não me interessava o motivo, se foi porque Noonie e Joanne eram brancas, americanas, ou tinham
sido tomadas por sul-africanas. Não me interessava o motivo. Eu só não queria acreditar no sofrimento que ele descreveu."
"A senhora lembra quem foi o homem do Pentágono?"
"Um advogado."
"Não foi um coronel do Exército?", torço em voz alta.
"Foi um advogado jovem do Pentágono, que trabalhava para o secretário de Defesa. Não lembro o nome dele."
Então não foi Briggs.
"De fala acelerada", acrescenta a sra. Pieste com desdém. "Eu me lembro de não ter gostado dele. Mas não gostaria de ninguém que dissesse o que ele disse."
"O único conforto que posso oferecer em tudo isso", repito, "é que Noonie e Joanne não sofreram como a senhora foi levada a crer. Não posso dizer com absoluta certeza
que não estavam conscientes quando foram estranguladas, mas é muito provável que não, porque tinham sido drogadas."
"Mas foram feitos testes para isso", diz a sra. Pieste, e sua voz tem o sotaque de Massachusetts, ela não pronuncia todos os erres, e não se percebe que é originalmente
de Andover. Depois do assassinado de Noonie, os Pieste se mudaram para New Hampshire, acabo de descobrir.
"Sra. Pieste, acho que entende que nada foi testado como deveria", retruco.
"Por que não?"
"O médico-legista na Cidade do Cabo..."
"Mas você assinou a certidão de óbito, dra. Scarpetta. E o relatório da autópsia. Tenho as cópias que aquele advogado do Pentágono me enviou."
"Eu não assinei esses documentos." Recusei-me a assinar documentos que eu sabia serem uma mentira, mas o fato de saber que eram uma mentira fizeram com que eu me
sentisse culpada da mesma maneira. "Eu não tenho cópias, por mais que a senhora ache isso difícil de acreditar", digo então. "Não me forneceram cópias. O que tenho
são minhas próprias anotações, meus próprios registros, que enviei de volta aos Estados Unidos antes de deixar a África do Sul, porque fiquei preocupada que minha
bagagem fosse revistada, e foi."
"Mas você assinou as que eu tenho."
"Garanto que não", retruco calma, porém firme. "Meu palpite é que determinadas pessoas se certificaram de forjar minha assinatura nesses documentos falsificados
para o caso de eu decidir fazer o que estou fazendo agora."
"Caso você decidisse contar a verdade."
É difícil ouvir isso de forma tão direta. A verdade. Insinuando que o que revelei ou deixei de revelar ao longo dos anos me torna mentirosa.
"Peço desculpas", torno a dizer. "A senhora tinha o direito de saber a verdade na época, por ocasião da morte da sua filha. E da morte da amiga dela."
"Mas posso entender por que não disse nada na época", garante a sra. Pieste, parecendo só um pouco perturbada. Parecendo principalmente interessada e aliviada por
conversar sobre algo que dominou grande parte de sua vida. "Quando as pessoas fazem coisas assim, não se sabe onde vão parar. Bom, não há limites. Outras pessoas
teriam sido prejudicadas. Inclusive você."
"Eu não queria que ninguém mais se machucasse", respondo e me sinto ainda pior se o que ela está dizendo é que me calei por temer por minha própria segurança. Eu
tinha medo de muitas coisas e de várias pessoas que não podia ver. Tinha medo de que outras pessoas morressem, fossem injustamente acusadas.
"Espero que você entenda que quando li a certidão de óbito e o relatório da autópsia, não que eu tenha entendido grande parte dos termos médicos, bom, pensei que
as conclusões fossem suas", diz a sra. Pieste.
"De jeito nenhum. São falsas. Não houve resposta do tecido aos ferimentos. Tudo aconteceu depois da morte. Na realidade, horas depois das mortes, sra. Pieste. O
que fizeram a Noonie e Joanne ocorreu muitas horas depois que as duas morreram."
"Se não houve testes para detectar a presença de drogas, como você pode ter certeza de que deram alguma coisa a elas?", prossegue a voz, e ouço alguém pegar outro
fone.
"Aqui fala Edward Pieste", diz uma voz de homem. "Também estou na linha. Sou o pai de Noonie."
"Sinto muito por sua perda." Isso soa ridículo, completamente insípido. "Eu gostaria de saber o que dizer aos dois. Lamento que tenham sido enganados, que eu tenha
permitido isso, e ainda que não vá inventar desculpas..."
"Entendemos por que você não pôde contar o que aconteceu", retruca o pai. "Os sentimentos na época, nosso governo conspirando em segredo para manter o Apartheid.
Era por isso que Noonie estava fazendo aquele documentário. A equipe de filmagem foi impedida de entrar na África do Sul. Todos tiveram que entrar como se fossem
turistas. Um segredo importante e sujo que nosso governo estava sustentando para apoiar as atrocidades ali."
"Não era um segredo tão importante assim, Eddie." É a voz da sra. Pieste.
"Bom, a Casa Branca manteve as aparências."
"Tenho certeza de que você foi informada a respeito do documentário que Noonie estava fazendo. Ela tinha tanto futuro", diz a sra. Pieste enquanto examino uma foto
de sua filha que não gostaria que vissem.
"Sobre os filhos do Apartheid", retruco. "Vi o documentário quando foi ao ar aqui."
"Os males da supremacia branca", explica ela. "De qualquer supremacia, ponto final."
"Perdi a primeira parte da conversa de vocês", diz o sr. Pieste. "Eu estava limpando a garagem."
"Ele não ouve", diz a mulher. "Um homem na idade dele limpando a neve, mas ele é cabeça-dura", constata ela com um afeto triste. "A dra. Scarpetta estava me contando
que Noonie e Joanne foram drogadas."
"Verdade? Bom, já é alguma coisa", diz ele em um tom de voz desprovido de energia.
"Cheguei ao apartamento vários dias depois da morte das duas e fiz uma retrospectiva. Foi tudo montado, é claro; a cena do crime era uma encenação", explico. "Mas
havia latas de cerveja, taças de plástico e uma garrafa de vinho no lixo da cozinha, uma garrafa de vinho branco de Stellenbosch. Consegui pegar as latas, a garrafa,
as taças de plástico junto com outros itens e enviar tudo para cá, onde fiz com que fossem testados. Encontramos altos níveis de GHB na garrafa de vinho e em duas
taças. Ácido gama-hidroxibutírico, geralmente conhecido como a droga do estupro."
"Eles falaram que houve estupro", diz o sr. Pieste no mesmo tom vazio.
"Não tenho certeza disso. Não havia sinais físicos disso, nada de ferimentos, a não ser os que foram montados, infligidos depois da morte, e os esfregaços que mandei
testar em segredo aqui nos Estados Unidos deram negativo para esperma", retruco, examinando as fotografias dos corpos nus amarrados a cadeiras nas quais sei que
as mulheres não estavam sentadas quando foram assassinadas. Vejo close-ups que exibem um padrão de livor mortis que me revelou que permaneceram deitadas na cama,
sobre lençóis amarrotados, por pelo menos doze horas depois da morte.
Examino fotografias, que bati com minha própria câmera, de contusões e cortes que mal sangraram, e de ataduras que mal deixaram marcas na pele, porque as pessoas
cruéis por trás de tudo isso eram ignorantes demais para saber o que estavam fazendo. Possivelmente alguém contratado, designado pelo governo ou por agentes militares
para colocar drogas em uma garrafa de vinho local e beber com as mulheres, talvez um amigo, ou elas acharam que a pessoa fosse amistosa e idônea quando agora é evidente
que era tudo menos isso. Menciono que os testes sorológicos que fiz depois de voltar para casa indicaram a presença de um homem. Mais tarde, quando os testes de
DNA ficaram prontos, obtive o perfil de um homem branco que permanece desconhecido. Não posso afirmar com certeza que seja o perfil do assassino, mas é o de alguém
que bebeu cerveja no apartamento, acrescento.
Tanto quanto é possível reconstruir o que quer que seja, conto aos Pieste o que acho que aconteceu. Depois que Noonie e Joanne estavam drogadas, grogues ou inconscientes,
o homem as ajudou a ir até a cama e as sufocou com um travesseiro, e baseio isso em hemorragias localizadas e outros ferimentos, explico. Então, por algum motivo,
essa pessoa deve ter saído. Talvez quisesse voltar mais tarde com outros envolvidos na conspiração, ou pode ser que tenha aguardado a chegada de seus colegas ao
apartamento, não sei. Mas, quando as mulheres foram amarradas, cortadas e mutiladas de forma tão selvagem, estavam mortas havia algum tempo, e isso não poderia ter
ficado mais óbvio para mim quando as vi.
"Aqui já estamos com dez centímetros", diz o sr. Pieste instantes depois, após ter ouvido o suficiente. "Isso em cima do gelo. Tem gelo aí em Cambridge?"
"Acho que temos que dar queixa a alguém", diz a sra. Pieste. "Será que importa quanto tempo já se passou?"
"Não importa o tempo que passou quando se está falando a verdade", respondo. "E não existe estatuto de prescrição para homicídios."
"Só espero que não prendam ninguém injustamente", diz a sra. Pieste a seguir.
"Os casos permaneceram sem solução. Foram atribuídos a integrantes de gangues negras, mas ninguém foi preso", informo.
"Provavelmente foi um branco", diz ela.
"Alguém branco bebeu cerveja no apartamento, isso eu posso dizer com razoável certeza."
"Você sabe quem fez isso?", pergunta ela.
"Porque gostaríamos que eles fossem punidos", diz o marido.
"Só sei que tipo de pessoa fez isso. Gente covarde, que só pensa em poder e política, e vocês devem fazer o que tiverem vontade, o que estiver no coração de vocês."
"Eddie, o que acha?"
"Vou escrever uma carta para o senador Chappel."
"Você sabe o bem que isso vai fazer."
"Então para Obama, Hillary Clinton, Joe Biden. Vou escrever para todo mundo", diz ele.
"O que qualquer dessas pessoas vai fazer a respeito agora?", pergunta a sra. Pieste ao marido. "Não sei se consigo passar por tudo isso outra vez, Eddie."
"Bom, tenho que limpar a calçada novamente", diz ele. "Preciso ficar em cima da neve, que está caindo para valer. Obrigado por seu tempo e sua preocupação", diz
ele, dirigindo-se a mim. "E por ter ido em frente e nos contado. Sei que não foi uma decisão fácil e tenho certeza de que minha filha gostaria de estar aqui para
dizer isso em pessoa."
Depois de desligar, continuo sentada na cama por um tempo, a papelada e as fotografias já de volta à pasta onde permaneceram por mais de duas décadas. Vou devolvê-la
ao cofre no porão, decido. Mas não agora. Não sinto vontade de descer até o cofre neste momento e acho que alguém acaba de entrar em nosso caminho de acesso à garagem.
Ouço a neve ranger, mas não tenho disposição para ver quem quer que seja. Vou ficar aqui em cima um pouco mais. Talvez faça uma lista de compras, encarregue-me de
alguns recados ou simplesmente fique afagando Sock por um ou dois minutos.
"Não posso te levar para passear", digo.
Ele está enroscado ao meu lado, a cabeça em minha coxa, impassível ante a conversa triste que acaba de ouvir, sem a menor ideia do que isso quer dizer sobre o mundo
em que vive. Mas, por outro lado, ele conhece a crueldade, talvez melhor que o restante de nós.
"Nada de passeios sem casaco", continuo, afagando o animal, e ele boceja e lambe minha mão. Ouço os bipes do alarme ao ser desativado, em seguida a porta da frente
se fecha. "Acho que vamos experimentar as botas", explico a Sock enquanto as vozes de Marino e Benton sobem, procedentes da entrada. "Você provavelmente não vai
gostar desses sapatinhos que fabricam para cachorros, e é possível que fique bastante irritado comigo, mas juro que é uma coisa boa. Bom, nós temos companhia." Reconheço
os passos pesados de Marino na escada. "Você está lembrado dele, de ontem. No caminhão. O homem grande vestindo amarelo que me deu nos nervos a maior parte do tempo.
Mas, para referência futura, não precisa ter medo dele. Ele não é má pessoa e, como você deve saber, pessoas que se conhecem há muito tempo tendem a ser mais indelicadas
umas com as outras do que com pessoas de quem não gostam nem a metade."
"Tem alguém em casa?" O vozeirão de Marino o precede, a maçaneta gira e ele bate antes de abrir a porta do quarto. "Benton disse que você estava vestida. Com quem
estava falando? Ao telefone?"
"Ele é clarividente então", respondo da cama, onde estou sob as cobertas, de pijama. "E não estou ao telefone nem estava falando com ninguém."
"Como vai Sock? Como vai, rapaz?" E então pergunta antes que eu consiga responder: "Por que ele está com esse cheiro esquisito? O que você colocou nele, remédio
para pulga? Nesta época do ano? Você parece bem. Como está se sentindo?".
"Limpei as orelhas dele."
"E como vai você, doutora?"
Marino se agiganta sobre mim e sua presença parece maior que de costume, porque ele está usando um anoraque pesado, boné de beisebol e botas de cano alto, ao passo
que não estou vestindo nada além de flanela e de estar enfiada debaixo de um cobertor e um edredom. Traz uma pequena pasta preta nas mãos, que reconheço como o iPad
de Lucy, a menos que tenha comprado um, o que duvido.
"Eu não me machuquei. Não tem nada de errado comigo. Só resolvi ficar em casa de manhã para cuidar de algumas coisas", respondo. "Imagino que Dawn Kincaid esteja
bem. A última informação que tive foi que estava estável."
"Estável? Você está brincando, certo?"
"Estou me referindo às condições físicas dela. À recolocação do dedo e às lesões nos restantes, os outros três que foram cortados de forma grave. Talvez o frio que
estava fazendo na garagem tenha sido bom para ela. E, é claro, o fato de termos colocado a mão e o dedo decepado no gelo. Espero que tenha ajudado. Você sabe? Ainda
não tive notícias. Qual é o estado dela? Não tive informações desde que foi internada ontem à noite."
"Você está brincando, certo?" Marino olha para mim e seus olhos estão tão vermelhos quanto ontem em Salem.
"Não estou brincando. Ninguém me disse uma palavra. Benton disse mais cedo que ia conferir, mas acho que não fez isso."
"Ele passou a manhã inteira com a gente no telefone."
"Então talvez você possa fazer a gentileza de ligar para o hospital e verificar."
"Como se eu não estivesse cagando se ela perder um dedo ou toda a porra da mão", diz Marino. "Por que isso te interessa? Tem medo que ela te processe? Talvez processe,
e não faz parte? Provavelmente vai processar mesmo, talvez por perder o uso da mão, por não poder mais construir nanorrobôs ou seja lá o que for, aquela psicopata.
Acho que psicopatas são estáveis, em termos de doença mental. Você pode ser louco e psicopata? E ainda ser suficientemente coerente para trabalhar em um lugar como
a Otwahl? Esse caso vai ser um problemão. Você consegue imaginar o que vai acontecer se ela sair?"
"Por que sairia?"
"Só estou dizendo que esse caso vai ser um problemão. Você não vai estar segura se ela ficar livre outra vez. Nenhum de nós vai estar."
Marino senta-se ao pé da cama, que afunda, e de repente tenho a sensação de estar sentada em cima de um morro enquanto ele se acomoda, acariciando Sock e me informando
que a polícia e o FBI encontraram o "ninho de rato" que Dawn Kincaid havia alugado, um apartamento de um quarto em Revere, nos arredores de Boston, onde permanecia
quando não estava com Eli Goldman, com Jack Fielding ou com quem quer que ela tenha enredado em sua teia no momento. Marino retira o iPad da pasta e liga o aparelho
enquanto conta que ele, Lucy e vários outros investigadores vasculharam o lugar durante horas, investigaram o computador de Dawn e tudo o que ela tem, inclusive
tudo o que roubou.
"E a mãe?", pergunto. "Alguém conversou com ela?"
"Dawn manteve contato com ela por vários anos e de vez em quando a visitava na prisão na Georgia. Ao longo dos anos, restabeleceu contato esporádico com ela e com
Fielding. Agarra quando quer alguma coisa, uma manipuladora e aproveitadora de primeira categoria."
"Mas a mãe sabe o que aconteceu aqui?"
"Por que você está interessada no que aquela pedófila sabe?"
"O relacionamento dela com Jack não era tão simples assim. Não se explica com a facilidade com que você tão eloquentemente colocou. Eu não gostaria que ela tivesse
notícias dele pelos jornais."
"E quem se importa?"
"Nunca quero que alguém descubra as coisas assim", retruco. "Independentemente de quem seja. O relacionamento deles não era simples", repito. "Relacionamentos assim
nunca são."
"Puro e simples para mim. Branco no preto."
"Se ela ouvir no noticiário...", contesto e me dou conta de que estou insistindo. "Detesto que isso aconteça. É uma forma muito desumana de as pessoas descobrirem
coisas horríveis como essa. É isso que me preocupa."
"Cleptomaníaca", diz Marino então, pois seu único interesse é o caso e o que os investigadores descobriram no apartamento de Dawn Kincaid.
Ao que tudo indica, Dawn é uma autêntica cleptomaníaca, continua Marino. Alguém que parece ter se apropriado de lembranças de todo tipo de gente, inclusive itens
roubados de pessoas que não fazemos ideia de quem são. Mas parte do que os investigadores encontraram até agora foi identificada como joias e moedas raras da casa
dos Donahue, e também vários manuscritos musicais raros autografados, que a dona da casa não fazia ideia de que haviam desaparecido da biblioteca da família.
Dentro de um baú trancado em um armário no apartamento de Dawn estavam armas que se acredita que tenham sido removidas da coleção de Fielding e a aliança dele de
casamento. Também nesse mesmo baú havia uma sacola que ele usava para artes marciais e, dentro dela, uma faixa de cetim preto, um uniforme branco, acessórios de
boxe, uma caixa repleta de pregos enferrujados em L para assoalhos, um martelo, um par de tênis de tae kwon do Adidas que provavelmente são os que Mark Bishop calçava
quando estava praticando chutes em seu quintal no final de tarde em que foi morto. Embora ninguém saiba ao certo como Dawn induziu o garoto a deitar de bruços e
permitir que ela fizesse com ele uma brincadeira terrível, que incluía "fingir" martelar pregos em sua cabeça ou, mais especificamente, o primeiro prego.
"Aquele que entrou bem aqui", continua Marino a especular, apontando para o espaço entre sua nuca e a base do crânio. "Deve ter matado o garoto instantaneamente,
certo?"
"Se é que podemos usar essa frase", respondo.
"O que quero dizer é que ela talvez tenha ajudado o menino em algumas aulas da turma de Tiny Tigers de Fielding", prossegue ele, alongando a história. "Então o garoto
estava familiarizado com ela, venerava a mulher, e ela é gostosa, quer dizer, é bem bonita. Se fosse eu, diria ao garoto que ia mostrar um novo movimento ou coisa
assim e pedia a ele que deitasse no quintal. E é claro que o garoto ia fazer o que uma pessoa experiente pediu, o que alguém que está lhe dando instruções pediu,
então ele deita, está quase escuro e bum! Acabou."
"Alguém assim não pode sair nunca", digo. "Ela vai fazer mais e vai fazer pior da próxima vez, se é que isso é possível."
"Ela vai negar tudo. Não está falando, a não ser para dizer que Fielding fez tudo isso e ela é inocente."
"Não foi ele."
"Estou contigo."
"Ela não vai conseguir explicar o que tem no apartamento", saliento enquanto continuo a examinar as fotografias. Marino deve ter batido centenas delas.
"Ela é bonita, charmosa e muito inteligente. E Fielding está morto."
"O que é incriminador." Eu já disse isso várias vezes enquanto examino as fotografias no iPad. "Deve ser muito útil para a acusação. Não sei por que você acha que
esse caso vai ser um problemão."
"Vai ser. A defesa vai imputar tudo a Fielding. A cadela psicopata vai conseguir um grupo incrível de advogados influentes, e eles vão fazer com que o júri acredite
que Fielding fez tudo." Marino se debruça mais para perto de mim e a inclinação da cama torna a mudar; Sock ronca baixinho, nem um pouco interessado em sua antiga
dona ou em seu ninho de rato, onde havia uma cama de cachorro, mostra Marino.
Ele se aproxima e clica em várias fotografias da cama em lã colorida do animal e inúmeros brinquedos, e sinalizo que prefiro ver as fotografias por mim mesma. Ele
e Sock estão em cima de mim e estou me sentindo sufocada.
"Pensei que eu ia te mostrar, já que fui eu que bati as fotos", diz Marino.
"Obrigada. Eu me viro. Você fez um ótimo trabalho."
"A questão é que é óbvio que o cachorro ficava aqui." O que Marino está querendo dizer é que Sock morava no ninho de rato de Dawn Kincaid. "E também com Eli e com
Fielding", acrescenta ele. "Se formos dar algum crédito a ela, acho que gostava do cachorro."
"Ela deixou Sock na casa de Jack sem aquecimento e sozinho." Clico em fotografias que são decididamente incriminadoras.
"Ela não dá a mínima para ninguém, a menos que lhe convenha. Quando não convém, ela se livra do que quer que seja de um jeito ou de outro. Se importou com ele enquanto
foi conveniente."
"Essa é a descrição mais provável", concordo.
Vejo fotografias de uma cama de casal desfeita e, em seguida, outras fotos de um quarto minúsculo chocantemente cheio de tralha, como se Dawn Kincaid fosse uma colecionadora.
"Além disso, ela teve outro motivo para abandonar Sock", continua Marino. "Se deixa o cachorro na casa de Fielding, talvez a gente pense que foi ele mesmo quem matou
todo mundo e depois se matou. O cachorro está lá. A coleira vermelha está lá. O barco que provavelmente foi usado para desovar o corpo de Wally Jamison está lá e
as roupas de Wally e a arma do crime estão no porão de Fielding. O Navigator sem a placa dianteira está lá. Você devia pensar que Fielding estava seguindo você e
Benton quando os dois saíram de Hanscom. Fielding estava louco. Estava vigiando vocês. Estava seguindo, tentando intimidar, espionar, ou quem sabe também matar vocês."
"Jack já estava morto quando fomos seguidos. Ainda que eu não possa ser precisa quanto à hora da morte, calculo que está morto desde segunda-feira à tarde, provavelmente
pouco depois de chegar à casa em Salem saindo do CFC com a Glock que tinha tirado do laboratório. Era Dawn que estava seguindo a gente no Navigator na segunda à
noite. A louca é ela. Colou no nosso para-choque para se certificar de que a gente soubesse que estava sendo seguido, depois desapareceu, provavelmente se escondeu
no estacionamento da Otwahl. Então, no devido tempo, íamos pensar que era Jack, que na realidade já tinha sido assassinado por ela com a pistola que provavelmente
entregou ao namorado, Eli, antes de matá-lo também. Mas você está certo. É provável que tenha tentado estruturar as coisas para que tudo isso recaia sobre Jack,
que não está mais aqui para se defender. Ela armou para Jack e fez parecer que ele estava armando para Johnny Donahue. É assustador."
"Você precisa fazer o júri acreditar nisso."
"É sempre esse o desafio, independentemente do caso."
"É ruim que o cachorro estivesse na casa de Fielding", repete Marino. "Conecta Fielding ao assassinato de Eli. O vídeo mostra Eli passeando com o cachorro quando
foi esfaqueado."
"O microchip", lembro. "O microchip conduz a Dawn, não a Jack."
"O que não quer dizer nada. Ele mata Eli e leva o cachorro, e o animal conhecia Fielding, certo?", diz Marino como se Sock não estivesse a poucos centímetros dele,
dormindo com a cabeça em minha perna. "O cachorro conhecia Fielding porque Dawn estava sempre lá em Salem, passava parte do tempo com o cachorro na casa de Fielding,
ou seja lá o que for. Então Fielding mata Eli e leva o animal quando se afasta, ou é isso que Dawn quer que a gente pense."
"Não foi o que aconteceu. Jack não matou ninguém", digo enquanto concluo que o apartamento de Dawn revela a mesma imundície que observei na casa de Fielding em Salem.
Há entulho e caixas por toda parte. Roupas amontoadas e espalhadas por locais estranhos. Pratos empilhados na pia. O lixo transbordando. Montes de jornais, folhas
impressas, revistas e, sobre uma mesa de jantar, grande número de itens etiquetados e colocados ali pela polícia, inclusive um relógio esportivo equipado com GPS
igual ao que dei de aniversário a Fielding há vários anos, e um jogo de instrumentos de dissecção militar da Guerra Civil em um estojo de pau-rosa, idêntico ao que
dei a ele quando trabalhava para mim em Richmond.
Há uma foto em primeiro plano de um par de luvas pretas, uma delas com uma caixinha também preta no pulso, que Marino descreve como luvas de dados sem fio leves
e flexíveis, com acelerômetros embutidos, trinta e seis sensores e um transmissor-receptor integrado ultradiscreto, só que tenho que deduzir tudo isso, peneirar
seus erros de pronúncia e descrições deturpadas. As luvas, que foram examinadas de perto tanto por Briggs quanto por Lucy na cena, destinam-se claramente ao controle
robótico estabelecido por gestos - especificamente, a controlar o flybot que Eli levava consigo quando foi assassinado pela mulher que lhe havia dado o anel de sinete
roubado que estava usando quando o corpo chegou ao CFC.
"Então o flybot estava no apartamento dela", deduzo. "Benton te ofereceu café?"
"Tenho café saindo pelas orelhas. Alguns de nós ainda não foram para a cama."
"Estou na cama trabalhando. O que não quer dizer que tenha dormido."
"Deve ser bom. Eu gostaria de ficar em casa e trabalhar na cama." Ele toma de mim o iPad e procura arquivos.
"Talvez a gente possa ajustar as descrições dos cargos. Você pode ficar em casa e trabalhar na cama determinado número de dias a cada ano, dependendo da sua idade
e decrepitude, o que vamos ter que avaliar. Imagino que eu mesma vá avaliar."
"Ah, é? E quem vai avaliar você?" Ele encontra uma fotografia que quer que eu veja.
"Não preciso de avaliação. É óbvio para todo mundo."
Marino me mostra um close do flybot, só que de relance é difícil saber o que é, apenas um objeto brilhante e rijo sobre um quadrado de papel branco em cima da mesa
de jantar de Dawn Kincaid. Ocorre-me que o dispositivo micromecânico poderia ser um brinco. Um brinco de prata pisoteado, que é exatamente o que se suspeita, diz
Marino. Lucy acha que o flybot foi pisado enquanto os paramédicos estavam atendendo Eli, então, mais tarde, quando retornou a Norton's Woods, Dawn o encontrou, possivelmente
usando o mesmo casaco longo e preto de lã que estava vestindo em minha garagem, um casaco que creio que pertencia a Fielding. Uma testemunha afirma ter visto um
homem ou mulher jovem, a pessoa não sabia ao certo, com um casaco preto longo, perambulando por Norton's Woods com uma lanterna várias horas depois que Eli Goldman
morreu. O indivíduo com o casaco longo estava sozinho, e a pessoa que o viu achou estranho porque ele ou ela não tinha cachorro e parecia estar procurando alguma
coisa enquanto fazia gestos estranhos com a mão.
"Devia ficar enorme nela e quase pegar no chão", diz Marino, levantando da cama. "Não estou dizendo que ela estivesse tentando parecer um homem, mas com o cabelo
curto e aquele casaco e vestindo gorro e luvas ou o que quer que seja? Desde que a pessoa não visse os peitos dela. Ela tem um peito e tanto. Tinha isso em comum
com o pai, certo?"
"Eu nunca soube que Jack tivesse peitos grandes."
"O que eu quero dizer é que os dois são fortes."
"Então ela voltou quando achou que era seguro e, mesmo muito danificado, o flybot respondeu aos sinais de radiofrequência enviados pelas luvas de dados?" Desligo
o iPad e o entrego a Marino.
"Acho que ela simplesmente viu o aparelho no chão, deve ter brilhado à luz da lanterna, e assim o encontrou. Lucy afirma que o inseto está morto. Esmagado."
"Sabemos exatamente o que ele faz ou deveria fazer?"
Marino dá de ombros, erguendo-se imponente acima de mim, ainda em seu anoraque, que ele não se deu o trabalho de desabotoar, como se não pretendesse demorar muito.
"Essa não é minha área de especialização, você sabe. Não entendi metade do que estavam falando, Lucy e o general. Só sei que o potencial do que quer que essa coisa
supostamente faz é preocupante, e o Departamento de Defesa pretende fazer algum tipo de inspeção na Otwahl para ver o que está realmente acontecendo por lá. Mas
não tenho certeza se ainda não sabem exatamente o que está acontecendo por lá."
"E isso quer dizer o quê?"
Ele devolve o iPad à pasta e responde: "Quer dizer que minha preocupação é que exista algum trabalho de pesquisa e desenvolvimento rolando e o governo sabe muito
bem do que se trata, só não queria que ninguém mais soubesse, mas os garotos saíram de controle e a merda bateu no ventilador. Acho que você entende o que estou
querendo dizer. Quando volta a trabalhar?".
"Hoje provavelmente não", respondo.
"Bom, temos um monte de merda para fazer e desfazer", diz ele.
"Obrigada pelo aviso."
"Me dê um toque se precisar de alguma coisa. Vou ligar para o hospital e te falo como a maluca está passando."
"Obrigada pela visita."
Espero até que o som de seus passos pesados pare na porta da frente, a porta se feche, Benton reinicialize o alarme após um intervalo. Ouço seus passos, que são
muito mais leves que os de Marino, quando ele passa pela escada e dirige-se aos fundos da casa, onde tem um escritório.
"Vamos, vamos levantar", digo a Sock, e ele abre os olhos, olha para mim e boceja. "Você sabe o que significa tchau? Acho que não. Ninguém te ensinou isso na prisão.
Você só quer dormir, não é? Bom, tenho umas coisas para fazer, então vamos lá. Você é realmente muito preguiçoso, sabia? Tem certeza de que já ganhou ou mesmo participou
de alguma corrida? Não acredito nisso."
Afasto a cabeça de Sock e coloco os pés no chão, concluindo que deve haver algum pet shop na vizinhança que tenha tudo que um galgo magricela, preguiçoso e velho
necessita neste clima.
"Vamos dar uma volta." Converso com Sock enquanto procuro meus chinelos e um roupão. "Vamos ver o que o agente secreto Wesley está fazendo. Provavelmente está no
escritório, ao telefone outra vez, quer apostar? Eu sei, ele está sempre falando ao telefone e é mesmo muito irritante. Quem sabe ele leva a gente para fazer compras
e depois eu preparo uma massa gostosa, um papardele caseiro com molho à bolonhesa encorpado, com carne de vitela moída, vinho tinto e montes de champignon e alho?
Preciso explicar de cara que você só vai comer comida canina; é a regra da casa. Estou pensando em quinoa e peixe para você hoje." Continuo a conversar enquanto
descemos as escadas. "Vai ser uma ótima mudança depois de todo aquele frango com arroz do restaurante grego."

 

 

                                                                  Patricia Cornwell

 

 

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