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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NEM SÓ DE CAVIAR VIVE O HOMEM - P.2 / J. M. Simmel
NEM SÓ DE CAVIAR VIVE O HOMEM - P.2 / J. M. Simmel

                                                                                                                                                  

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NEM SÓ DE CAVIAR VIVE O HOMEM

Segunda Parte

 

Olhou para o magro Siméon com sua roupa surrada e seu sapato furado. Olhou para Cousteau que fumava parcimoniosamente o seu velho cachimbo para economizar o pcuco tabaco que lhe restava. Olhou para a sua maleta e, depois, teve um gesto que provava o seu bom coração e também que ele não se acomodara às regras egoístas do mundo egoísta aonde a sorte o precipitara...

Meia hora mais tarde, quando deixou a casa do Boulevard de Ia Corderie, viu uma sombra que saía de um desvão num muro e que o seguira nas frígidas trevas. Thomas virou uma esquina e parou bruscamente. O homem que o seguia não pôde evitar esbarrar nele.

- Oh, queira desculpar - disse o homem delicadamente, erguendo o velho e sujo chapéu. Thomas o reconheceu. Era um dos homens de Chantal. Ele engrolou umas palavras ininteligíveis e afastou-se, arrastando os pés.

A gata morena da Rue Chevalier à la Rose recebeu o seu amante com carícias e beijos impetuosos. Enfeitara-se toda para recebê-lo. Havia velas na mesa e o champanha estava gelando no balde.

- Até que enfim você chegou, querido! Esperei tanto!

- Eu fui...

- Já sei, à casa do seu coronel, Bastian contou-me.

- Onde está Bastian?

- A mãe dele ficou doente, ele teve que ir. Estará de volta amanhã.

- Ah, amanhã - disse Thomas, sem desconfiança.

Abriu a maleta ainda cheia, mas não tão cheia como quando Bergier a enchera. Chantal assobiou alegremente, entre os dentes.

- Não assobie antes do tempo, querida - disse ele. - Está faltando meio milhão.

- Como?

- Dei-o de presente a Cousteau e a Siméon. Eles estão quebrados, coitados. Era de fazer pena, sabe... Admitamos que esse meio milhão fosse a minha parte. Aí estão dois milhões e vinte mil francos para você e os seus colaboradores...

Chantal beijou-lhe a ponta do nariz. Realmente ela perdoava aquele acesso de filantropia com uma facilidade suspeita.

- Meu fidalgo! Você é um amor... Agora não ganhará nada com o negócio.

- Em compensação tenho você - disse com cortesia. Depois, sem transição: - Chantal, por que você manda que me sigam?

- Seguir? Eu? Você? - Ela arregalou os olhos de gata. - Que você está dizendo, meu bem?

- Um dos seus sujeitos chegou a esbarrar em mim.

- Só pode ter sido um acaso... Meu Deus, por que você é tão desconfiado? Que posso fazer para que acredite, afinal, que eu o amo?

- Dizer a verdade, minha vagabundinha. Mas bem sei que isto é pedir demais.

No dia 7 de dezembro de 1940, quando o rápido de Paris entrava, pontualmente, pela linha número 3, na estação de Saint-Charles, um homem de aproximadamente trinta e sete anos passou a cabeça por uma janela aberta de uma cabina de primeira classe.

Paul de Lesseps inspecionava a plataforma. Reconheceu a silhueta gorda e vistosa de Bergier, que estava parado junto a uma pequena valise.

Paul de Lesseps ergueu a mão.

Jacques Bergier ergueu a mão.

O trem parou. Bergier correu em direção ao vagão de seu amigo. A partir deste instante, tudo se passou muito rapidamente.

Antes que um só passageiro pudesse descer, trinta policiais à paisana surgiram da multidão e ergueram cordas que estavam colocadas nos dois lados dos trilhos. Estas cordas impediam o acesso às portas dos vagões.

Um comissário de polícia interpelou Bergier e prendeu o advogado, lívido de susto, como suspeito de tráfico de divisas e de ouro. Bergier tinha na mão a maleta com os sete lingotes.

Ao mesmo tempo, dois agentes, entrando pelas duas extremidades do vagão, prendiam Paul de Lesseps na sua cabina.

À mesma hora, três homens vestindo o uniforme do Hotel Bristol andavam no corredor do quarto andar do hotel. Dois deles pareciam homens da quadrilha de Chantal, o terceiro parecia-se com Thomas Lieven. Os uniformes não lhes assentavam muito bem.

Sem dificuldade, o empregado parecido com Thomas Lieven abriu a porta de um apartamento. Com uma rapidez pouco comum em empregados de hotel, os homens retiraram três enormes malas do quarto de dormir do apartamento, arrastaram-nas até o elevador de serviço, descendo até o pátio interno, e as colocaram numa camioneta da Lavanderia Salomon. Partiram, sem encontrar obstáculos. É verdade que não se dirigiram para a lavanderia, mas sim para uma casa da Rue Chevalier à la Rose.

Uma hora mais tarde, Thomas Lieven, vestido normalmente e com o semblante contentíssimo, entrou no apartamento de Jacques Cousteau, no Boulevard de Ia Corderie. Cousteau e Siméon o esperavam.

Da pasta de documentos do delicado advogado Bergier, Thomas retirou as listas onde figuravam os nomes e endereços dos espiões, colaboradores e delatores. Com ar triunfante ele sacudiu as folhas de papel. Mas, curiosamente, Cousteau e Siméon ficaram impassíveis.

- Que aconteceu? - perguntou Thomas, inquieto. - Os senhores pegaram os homens?

Custeau acenou com a cabeça.

- Eles estão na chefatura.

- Os sete lingotes?

- Nós os temos.

- E então?

- Mas é tudo que temos, M. Hunebelle - disse Cousteau, lentamente. Seus olhos fitavam Thomas fixamente. O coronel Siméon também não tirava os olhos dele.

- Como é tudo que têm? Lentier devia transportar uma verdadeira fortuna em ouro, divisas e outros valores.

- Era exatamente o que pensávamos. - Cousteau mordia os lábios.

- Não havia nada?

- Nem um só grama de ouro, M. Hunebelle. Nem um dólar. Nenhum objeto de valor. Engraçado, não acha?

- Mas... mas... ele certamente escondeu tudo. No vagão ou em qualquer parte do trem. Ele deve ter empregados da estrada de ferro trabalhando para ele. É preciso vasculhar o trem. Revistar todos os passageiros.

- Foi isto que fizemos. Fizemos retirar até o carvão do tender. Nada.

- Onde está o trem agora?

- Já partiu. Não podíamos retê-lo por mais tempo.

Sob os olhares de Siméon e Cousteau, Thomas começou a sorrir ferozmente, sacudindo a cabeça e mexendo com os lábios em silêncio. Se Siméon e Cousteau soubessem ler lábios teriam compreendido as palavras esboçadas por Thomas, isto é: ”A vagabunda”.

Mas Siméon não entendera. Empertigou-se, estufou o peito e, em tom irônico e ameaçador, perguntou:

- E então, o senhor tem alguma idéia de onde esse ouro poderá estar?

- Sim - disse Thomas Lieven lentamente. - Creio que tenho uma idéia.

Com os maxilares cerrados, os ombros caídos e fulo de raiva, Thomas Lieven lutava contra o mistral gelado, ao crepúsculo deste dia 7 de dezembro de 1940, quando entrou na Rue Paradis.

”Essa suja da Chantal!”

”Esse estéreo do Bastian!”

A tempestade aumentava de intensidade.

O vento soprava, assobiava, gemia e mugia pelas ruas. O tempo estava tal qual o estado de alma de Thomas Lieven.

Ao lado do antigo edifício da Bolsa havia um prédio sujo, de vários andares. No primeiro andar havia um estabelecimento chamado Chez Papa.

Chez Papa pertencia a um sujeito cujo sobrenome ninguém sabia e que toda a cidade conhecia por ”Olive”. Olive era rosado e gordo como os porcos que ele abatia clandestinamente.

Espessas nuvens de fumaça enchiam o ambiente do Chez Papa, iluminado por lâmpadas fluorescentes. A essa hora, os clientes de Olive tomavam seus aperitivos, como um preparo psicológico para o jantar que se seguiria e durante o qual discutiriam assuntos do mercado negro.

Quando Thomas entrou, Olive, com uma ponta de cigarro ao canto da boca, estava apoiado ao úmido balcão. Seus olhos miúdos piscaram com bonomia.

- Bonsoir, monsieur! Que vai tomar? Um cálice de pastis? - Tinha chegado aos ouvidos de Thomas que Olive fabricava, ele mesmo, o seu aperitivo, usando para isto um produto algo sinistro: álcool que lhe vinha do Instituto de Anatomia. Não havia nada a dizer contra o álcool. Mas parece que ele usava um álcool que, antes de ser roubado, tinha sido usado para conservar cadáveres. Diziam que o pastis do Olive já provocara alguns casos de loucura entre os consumidores.

- Dê-me um conhaque duplo - disse ele, por via das dúvidas. - Mas um verdadeiro.

Foi servido.

- Escute aqui, Olive, preciso falar com Bastian.

- Bastian? Não conheço.

- É claro que o conhece. Ele mora nos fundos da sua casa. Sei que é preciso passar pelo seu bistrot para chegar à casa dele. Sei, também, que é você quem o avisa de qualquer visita.

Olive encheu as bochechas. Seu olhar tomou uma expressão dura.

- Um merdinha da casa dos tiras, hein? Dê o fora já, rapaz! Tenho uma dúzia de amigos aqui; é só assoviar e eles terão grande prazer em lhe estragar a fachada.

- Eu não sou tira - disse Thomas. Bebeu um trago.

Depois puxou o seu querido relógio de repetição que salvara de todos os perigos, mesmo das garras da senhora consulesa da Costa Rica. São e salvo, ele o havia levado de Portugal a Marselha, atravessando toda a Espanha. Ele o fez soar.

O dono do bistrot olhava surpreso.

- Como você sabe que ele mora aqui? - perguntou.

- Porque ele me disse. Vá dizer que o seu caro amigo Pierre precisa falar-lhe. Se ele não receber, dentro de cinco minutos, o seu caro amigo Pierre, a coisa vai engrossar aqui...

Com os lábios abertos, de fisionomia radiante, Bastian veio ao encontro de Thomas Lieven. Os dois homens se encontraram no estreito corredor que dava da cozinha do bistrot para os aposentos de Bastian. Suas enormes mãos apertavam os ombros de Thomas.

- Como estou contente, menino. Eu ia procurá-lo.

- Tire as patas de cima de mim, seu porco! - disse Thomas encolerizado. Empurrou Bastian e entrou no apartamento.

A sala de entrada era uma enorme confusão. Estava literalmente juncada de pneumáticos, latões de gasolina e pacotes de cigarros. Na sala seguinte havia uma grande mesa e, sobre ela, uma estrada de ferro elétrica, em miniatura. Nada faltava: trilhos, curvas, passagens de nível, colinas, vales, túneis e pontes.

- Você dirige um jardim de infância? - perguntou Thomas com sarcasmo.

- É a minha distração - disse Bastian meio encabulado. - Não se encoste aí, por favor, vai quebrar o transformador... Pode dizer por que está tão irritado?

- Ainda pergunta? Ontem, você desapareceu. Hoje foi Chantal que desapareceu. Há duas horas a polícia prendeu os compradores da Gestapo, Bergier e De Lesseps. Este partira de Bandol com ouro, jóias, moedas de ouro e divisas. Mas chegou a Marselha sem divisas, sem moedas de ouro, sem jóias e sem ouro em barras. Os tiras procuraram em todo o trem, de cabo a rabo, e nada encontraram.

- Ora essa, não é possível! - riu com escárnio, e um trem começou a rodar e penetrou, com velocidade, nu túnel.

Com um safanão, Thomas arrancou a tomada. O trem parou. Ainda se podiam ver os dois últimos vagões à entrada do túnel.

Bastian ergueu-se, com jeito de orangotango irritado.

- Você vai levar um bofetão na cara, garoto! Afinal de contas, o que quer comigo?

- Quero saber onde está Chantal. Quero saber onde está o ouro.

- Aqui ao lado, é claro. No meu quarto.

- Quê? - Thomas engoliu em seco.

- Que é que você estava imaginando, boboca? Que ela tivesse dado o fora com a muamba? Ela queria simplesmente arranjar tudo como manda o figurino, com velas e tudo, para lhe dar mais prazer. - Bastian elevou a voz: - Você está pronta, Chantal?

A porta se abriu. Mais bela que nunca, Chantal apareceu à porta. Vestia calças apertadas de couro verde, blusa chemisier e um cinto preto. Um sorriso radioso deixava ver o brilho dos seus dentes de felina.

- Bom dia - disse ela, segurando a mão de Thomas. - Vem comigo. Papai Noel chegou.

Meio tonto, Thomas deixou-se levar à outra peça. Cinco pedaços de vela, colocados sobre pires por ordem de Chantal, estavam acesos. A sua luz trêmula iluminava o velho quarto e a enorme cama de casal.

Quando examinou a cama de mais perto, Thomas ficou com a garganta presa e foi a custo que pode engolir saliva. Havia motivo para tal emoção. Sobre a cama cintilavam mais de duas dúzias de barras de ouro, um número incalculável de moedas e anéis; colares e pulseiras antigos e modernos, um antigo crucifixo cravejado de pedras, um pequeno ícone incrustado de ouro e maços de dólares e libras esterlinas.

Thomas teve a impressão de que suas pernas se tinham transformado em gelatina. Caiu sentado sobre uma velha cadeira de balanço, que logo começou a oscilar.

Bastian se aproximara da patroa. Esfregava as mãos e empurrava-a com o cotovelo.

- Ele está fora de combate - rosnou ele, alegremente. - Olhe só. O garoto está branco como algodão.

- Foi um belo dia, para todos nós - disse Chantal.

Para Thomas, meio bestificado, os dois rostos pareciam duas bolas brancas flutuando na água. Firmou os pés no chão. A cadeira parou de balançar. Agora distinguia perfeitamente os dois rostos alegres de Chantal e Bastian, que pareciam crianças felizes, sem artifícios, sem malícia e sem mentira.

- Então eu tinha razão - gemeu ele.-Vocês é que furtaram tudo.

- Para você e para nós - relinchou Bastian, batendo com a mão na barriga. - Ganhamos para o inverno. Que boa redada, meus amigos!

Chantal precipitou-se sobre Thomas, cobrindo-o de beijos apaixonados.

- Como você é gentil! - exclamou ela. - Poderia comê-lo. Estou louca por você. - Sentou-se sobre os seus joelhos, a cadeira tornou a balançar e Thomas sentiu, novamente, uma onda de fraqueza que o dominava. A voz de Chantal chegou até ele como se tivesse atravessado massas de algodão.

- Eu disse aos meus rapazes: ”Este golpe, nós o temos que executar sozinhos. O meu querido tesouro é por demais honesto e escrupuloso. Não o incomodaremos com isso. Quando ele vir toda a erva, bem junto ao nariz, ficará tão contente quanto nós!”

Ainda sentindo vertigens, Thomas sacudiu a cabeça.

- Como é que vocês conseguiram botar a mão em tudo?

- Ontem, aquele sujo do Bergier disse que seu companheiro De Lesseps estava em Bandol com um bruto carregamento. Assim, três companheiros e eu fomos chispados para Bandol. Tenho amigos por lá, compreende? Soube que De Lesseps se entendia muito bem com alguns empregados da estrada de ferro. Ele tem cagaço de ser revistado ou controlado. Teve a idéia de esconder o troço todo debaixo do carvão da locomotiva que o levaria a Paris. No tender, é claro.

Bastian fez um esforço para conter o riso.

- Deixamos que ele fizesse o que queria.. E para a noite arranjamos-lhe uma garota de fechar o comércio; felizmente o tipo não é parecido com o seu colega Bergier. A garota tinha recebido ordens e as cumpriu, agindo como manda o figurino. Cumpriu-as tão bem, que quando ele tomou o trem, na manhã seguinte, ainda estava molóide e batia castanhola com os joelhos.

- Hum - fez Chantal metendo as unhas vermelhas na cabeça de Thomas.

- Vocês dois me dão dor de barriga - disse Bastian tristemente. Ele sentou-se. - Bem, enquanto M. de Lesseps tinha outras ocupações, os meus colegas e eu brincamos de estrada de ferro, que, como eu já lhe disse, é o meu divertimento. Há vários tênderes numa estação. E todos são iguais.

- Mas De Lesseps não tinha ninguém vigiando o seu?

- Tinha, sim. Dois ferroviários - Bastian ergueu e deixou cair as mãos. - Ele tinha dado um lingote a cada um. Nós lhes demos mais dois por cabeça, o negócio valia isto, e ficou tudo resolvido...

- O poder do ouro - disse Chantal, mordendo a orelha de Thomas.

- Chantal.

- Sim, meu amor.

- Levante-se, por favor - pediu Thomas. Perturbada, ela levantou-se e foi para perto de Bastian, que colocou a mão em seu ombro. Assim ficaram, sem se mexer, duas crianças alegres um instante antes e agora assustadas.

Os lingotes cintilavam, as moedas rutilavam, colares, pulseiras e anéis fulgiam.

Thomas também levantou-se. Sentiu uma imensa tristeza.

- Lamento enormemente desmanchar o seu prazer e estragar a surpresa que me prepararam. Infelizmente, porém, é impossível concordar.

- Não é possível concordar com quê? - perguntou Bastian. Sua voz era seca e sem sonoridade.

- Não é possível ficarmos com todas essas coisas. Devemos entregá-las a Cousteau e Siméon.

- Este... este biruta. - Estava de boca aberta e parecia um cão são-bernardo mergulhado na mais absoluta perplexidade. - Ele ficou doido varrido.

Chantal ficara imóvel. Somente a sua narina esquerda tremia...

- Eu acabo de deixar Siméon e Cousteau - disse Thomas, calmamente. - Concluí, com eles, um acordo perfeitamente claro. Eles recebem as listas dos espiões e colaboradores e ainda tudo que De Lesseps e Bergier tenham pilhado e roubado nesta região. Quanto a nós, ficaremos com as três malas que tiramos do quarto de Bergier. Afinal de contas, perto de sessenta e oito milhões.

- Sessenta e oito milhões de francos! - gritou Bastian torcendo as mãos. - Francos. Francos vagabundos, que baixam a cada dia!

- E é o que você troca por isto? - Chantal falava muito baixo, quase murmurando, e apontava para a cama. - Aqui estão, pelo menos, cento e cinqüenta milhões, imbecil!

Thomas encolerizou-se:

- São bens franceses. Valores que pertencem à França, que foram roubados à França. O dinheiro das malas é dinheiro da Gestapo, nós o podemos guardar. Mas isto, as jóias, o crucifixo, o ouro do Banco de França... Mas, santo Deus, sou eu, um boche, que tenho que lembrar-lhes os seus deveres de franceses?

- Tudo é nosso - disse Bastian com voz rouca. - Nós é que pegamos tudo. A Gestapo levou na cabeça. Acho que fizemos o bastante pela pátria!

Bastian e Thomas continuavam a discutir. Estavam cada vez mais irritados. Chantal, porém, estava cada vez mais calma. De uma calma assustadora,

Com as mãos nas cadeiras, os polegares enfiados no cinto, ela sacudia o pé direito e a sua narina tremia.

- Não fique irritado - interveio ela afinal, em voz baixa. - Você está em sua casa, Bastian. Seria preciso primeiro que este sujeitinho pudesse sair. Quanto a Cousteau e Siméon, seria preciso que eles pudessem entrar.

Thomas levantou os ombros e dirigiu-se para a porta. De um salto, Bastian ficou à sua frente. Tinha na mão um grande revólver.

- Aonde vai?

- Ao Papa, para telefonar.

- Mais um passo e eu o chumbo. - Bastian arfava. O cão da arma fez clique.

Thomas avançou dois passos. O cano do revólver roçava, agora, em seu peito. Avançou mais dois passos. Bastian soltou um gemido e recuou dois passos:

- Seja sensato, menino... Eu... eu vou atirar de verdade.

- Deixe-me passar, Bastian. - Thomas avançou mais um passo. Bastian estava, agora, encostado à porta. Thomas segurou a maçaneta.

- Espere - disse ele, ofegante. - Que é que eles farão com a nossa linda muamba, esses sujeitos que não prestam para nada? Negociar, esbanjar é o que eles vão fazer. Polícia, Estado, Serviço de Informações, a Pátria. Uma ova. São todos uns vagabundos.

Thomas torceu a maçaneta. Nas costas de Bastian, a porta começou a abrir. Bastian estava lívido. Fixou Chantal com olhos implorantes:

- Faça alguma coisa, Chantal, ajude-me... eu... eu... não posso meter-lhe uma bala na barriga...

Thomas ouviu um barulho e virou-se. Chantal havia caído sobre a beira da cama. Com as mãos cerradas, dava socos nos lingotes, no crucifixo, nas moedas de ouro.

- Deixe-o sair, esse sujeito... - disse ela em voz alta e hesitante -, deixe-o passar. - As lágrimas inundavam o seu belo rosto felino. Olhou para Thomas, soluçando: - Vai... vai chamar o seu Siméon... Ele pode vir buscar tudo... Salafrário, por que é que fui encontrá-lo? Eu estava tão contente...

- Chantal!

-...eu queria acabar... ir embora com você, para longe, para a Suíça. Só estava pensando em você... E agora...

- Chantal, querida.

- Não me chame de querida, seu safado! - gritou ela. Aniquilada, caiu para a frente. Com um ruído surdo e arrepiante, sua testa bateu nas moedas de ouro, amontoadas. Chantal não se movia. Chorava como se nunca mais pudesse parar.

- Dispam-se - dizia naquela hora o jovem e belo carcereiro Louis Dupont. Acabavam de trazer-lhe dois presos ao xadrez da chefatura de polícia de Marselha: Jacques Bergier, rosado, cuidado e perfumado, e Paul de Lesseps, mais jovem e mais magro.

- O senhor mandou que fizéssemos o quê? - perguntou De Lesseps com voz ameaçadora. Seus olhos frios de tubarão pareciam duas estreitas fendas, seus lábios eram dois traços esbranquiçados.

- É preciso que se dispam - disse Dupont. - Preciso examinar as suas roupas e verificar tudo que têm em seu poder.

Bergier deu uma risadinha.

- Que pensa que temos em nosso poder, meu jovem amigo? - Avançou e abriu o colete. - Venha, pode revistar-me. Procure minhas armas. - Tirou a gravata e desabotoou a camisa. Dupont ajudou-o.

- Não, não, não, meu jovem amigo - gritou Bergier -, eu sinto muitas cócegas.

- Vamos parar com isso - disse Paul de Lesseps.

- Quê? - Dupont virou-se.

- Para mim, chega. Chame o comissário. Imediatamente.

- Escute aqui, esta espécie de tom...

A voz de Paul de Lesseps não era mais que um sussurro.

- Bolas. Sabe ler? Aqui está. - Apresentou um cartão ao jovem policial. Era uma cédula de identidade que certificava, em alemão e em francês, que M. Paul de Lesseps trabalhava para os serviços de segurança alemães.

- A propósito - disse Bergier, retirando do bolso de trás uma carteira de couro, cor de malva e cheirando a couro da Rússia. Com um gesto afetado tirou da carteira uma cédula de identidade. Ambos os documentos estavam assinados por um tal Walter Eicher, Sturmbannführer1, SD. - Paris.

- Avise imediatamente o Sturmbannführer da nossa prisão - disse De Lesseps, com arrogância. - Eu disse

 

1 Dirigente militar de um grupo de ataque. (N. do E.)

 

imediatamente, senão o senhor é que sofrerá as conseqüências...

- Eu... eu vou informar aos meus superiores - gaguejou Louis Dupont. Depois que vira os cartões de identidade tinha ainda mais repugnância pelos dois indivíduos. Marselha estava na zona não ocupada. Mas, apesar disso... SD... Gestapo. Dupont não queria complicações. Pegou o telefone.

Sete de dezembro 1940. Dezessete e trinta e nove. Chefatura de polícia Marselha para polícia judicial Paris. Prendemos hoje quinze e trinta Estação Saint-Charles Paul de Lesseps e Jacques Bergier, motivo tráfico ouro e divisas. Possuem cédulas de identidade SD números 456832 série vermelha e número 11165 série azul, expedidas pelo SD Sturmbannführer Walter Eicher. Favor verificar urgentemente se pessoas presas são realmente funcionários SD. Terminado.

- De Lesseps? Bergier? - O Sturmbannführer afundou na cadeira e ficou vermelho como uma lagosta. - Sim, eu os conheço - berrou, com raiva, no telefone. - Sim, eles trabalham para nós. Peça a Marselha que retenha esses senhores. Iremos buscá-los.

Na outra extremidade da linha, o funcionário francês agradeceu, delicadamente.

- De nada, Heil Hitler! - Eicher desligou com violência. - Winter! - berrou ele.

Seu ajudante-de-ordens saiu, apressadamente, da sala contígua. Esses cavalheiros exerciam as suas sinistras atividades no quarto andar de um- suntuoso edifício da Avenue Foch.

- Sim, Sturmbannführer? - disse Winter, com voz marcial.

- De Lesseps e aquele velho afeminado Bergier foram encanados em Marselha - disse Eicher, exasperado.

- Meu Deus! E por quê?

- Por enquanto nada sei. Isso é para desesperar. Parece que só empregamos cretinos! Imagine se esse negócio chegar aos ouvidos de Canaris! Ele ficaria babado de gozo. O SD fazendo pilhagem na zona não ocupada!

Os serviços de segurança alemães e a contra-espionagem do almirante Canaris odiavam-se como cão e gato. Os receios do Sturmbannführer eram perfeitamente justificados.

- Mande verificar o Mercedes preto, Winter - rosnou ele. - Vamos a Marselha.

- Hoje?

- Como ”hoje”? Quero partir dentro de uma hora, compreendeu? Chegaremos a Marselha amanhã pela manhã. É preciso tirar esses dois cretinos da cadeia antes que façam alguma besteira.

- Às suas ordens, Sturmbannführer - latiu Winter. Bateu com a porta ao sair. ”Sempre a mesma história. Que profissão de merda..Será preciso desmarcar o encontro com Zouzou, mais uma vez. Doze horas de carro com aquele macaco. Uma noite perdida. Dá vontade de mandar tudo àquele lugar.”

Vinte e quatro horas mais tarde, na sala dos fundos do Bruleur de Loup, em Marselha, Chantal presidia a uma reunião de sua quadrilha, que se desenrolava - para não exagerar - numa atmosfera tempestuosa.

Os traficantes marselheses, os falsários espanhóis, as mulheres fáceis de toda parte, os conspiradores e assassinos marroquinos que tratavam dos seus negócios na grande sala do café lançavam freqüentes olhares de reprovação para a porta do fundo onde estava pendurada a tabuleta de ”reservado”.

Reservado, mas barulhento! Finalmente, a porta foi aberta e os freqüentadores (se fosse feito um cálculo eles passariam de quinhentos anos de trabalhos forçados) viram Bastian Fabre, que era conhecido de todos, entrar na cabina telefônica, perto do balcão. Tinha um ar preocupado...

Bastian discou o número do Chez Papa. Olive atendeu, Bastian esfregou o lenço na testa suada e chupou, nervosamente, seu charuto escuro.

- Bastian falando - disse ele, rapidamente. - O tipo que me veio procurar ontem à tarde está aí? - Ele havia pedido a Thomas que esperasse no Chez Papa o resultado da reunião.

- Está aqui, sim - respondeu Olive, com voz soturna. - Está jogando pôquer com os meus fregueses habituais. Não pára de ganhar.

- Chame-o, sim? - Bastian aspirou outra baforada e abriu a porta da cabina para fazer sair a fumaça. ”Esse safado do Pierre. Não merecia toda a trabalheira que está causando.”

Na véspera, aquele tipo tinha chamado os bonecos do Serviço de Informações e toda aquela maravilhosa muamba tinha desaparecido. Não tudo, felizmente, pensou Bastian. Enquanto Thomas telefonava, Chantal e ele tinham surrupiado algumas joiazinhas e um bom montinho de moedas de ouro... Mas, que representava aquilo comparado aos milhões que o resto valia? Era melhor nem pensar...

- Alô, Bastian? As coisas estão correndo bem, meu velho?

Foi com raiva que Bastian percebeu o desembaraço no tom de voz daquele safado.

- Pierre - disse ele -, sou seu camarada... apesar de tudo. Aceite um conselho: desapareça. Desapareça já. Sem perder um minuto.

- Ora, ora, por quê?

- A reunião vai mal. Chantal pediu demissão.

- Meu Deus!...

- Ela chorou...

- Se soubesse, Bastian, quanto sinto tudo isso...

- Não me interrompa, biruta. Ela disse que o ama, que compreende as suas razões... diante disso uma boa parte dos camaradas amoleceu...

- Viva o amor! Viva a França!

-...mas não todos. Há o grupo do Francois, o coxo, você o conhece, é chamado de Pé de Cabra...

Thomas não o conhecia, mas ouvira falar dele. Pé de Cabra era o mais antigo membro da quadrilha. O apelido provinha não só do fato de ser coxo, mas também da sua brutalidade e dos métodos que empregava para conquistar mulheres.

-...Pé de Cabra acha que você deve ser liquidado...

- Muito agradável.

-... segundo o que diz, nada tem contra você, mas acha que a sua influência sobre Chantal é desastrosa. Está fazendo dela um joão-ninguém...

- Ora, ora...

- Você representa o fim da nossa quadrilha. Para a própria proteção de Chantal, é preciso que você seja liquidado, diz ele. Dê o fora, Pierre. Dê o fora!

- Ao contrário.

- Quê?

- Escute bem, Bastian - disse Thomas Lieven.

O seu amigo ouviu. Primeiramente com repugnância, depois com dúvidas e, finalmente, com aprovação.

- Muito bem - rosnou ele. - Se você pensa que é capaz... Então, dentro de duas horas. Mas a responsabilidade é toda sua.

Desligou o telefone e voltou à sala dos fundos, cheia de fumaça, onde Francois, o coxo, alcunhado Pé de Cabra, pronunciava uma arenga inflamada visando mandar para um mundo melhor esse Jean Leblanc, ou Pierre Hunebelle... qualquer que fosse o seu nome.

-... no interesse de todos - dizia ele, enfiando na mesa a afiada ponta de uma faca de mola, muito delgada e muito afiada. Depois dirigiu-se em tom violento a Bastian : - Onde estava você?

- Acabo de telefonar a Pierre - disse Bastian, sem temor. - Ele nos convida a todos para jantar. Em minha casa, daqui a duas horas. Diz ele que poderemos conversar com tranqüilidade.

Chantal deixou escapar um grito. Todos falavam ao mesmo tempo. ”Silêncio”, berrou Francois, o coxo. Todos se calaram.

- Ele tem dois... esse sujeito - disse Francois, impressionado. Depois sorriu ameaçadoramente. - Muito bem, amigos, nós iremos...

- Sejam bem-vindos, cavalheiros - disse Thomas Lieven, beijando a mão da egéria da quadrilha, que estava lívida e com os nervos em frangalhos.

Os quinze patifes se amontoaram na sala de Bastian, alguns alegres, outros taciturnos e ameaçadores. Viram uma mesa posta para uma festa. Com a ajuda de Olive, Thomas a tinha preparado... sobre a grande mesa do trem elétrico de Bastian. As colinas, os vales, as pontes, os rios e as estações tinham desaparecido, mas havia uma linha única que ia duma extremidade à outra da toalha branca, entre os pratos e os copos.

- Muito bem - disse Thomas, esfregando as mãos. - Queiram todos sentar-se, Chantal na cabeceira. Certas razões obrigam-me a ficar na outra extremidade. Estejam à vontade, senhores. Esqueçam, por alguns momentos, os seus desígnios homicidas.

Os homens sentaram-se, sussurrando uns para os outros. Estavam alertas. Diante do lugar de Chantal havia um vaso cheio de rosas de estufa. Thomas tinha pensado em tudo.

Olive e dois dos seus garçons serviram o primeiro prato: uma sopa de queijo. Thomas a havia preparado na cozinha do Chez Papa. A louça e os talheres também eram do bistrot.

- Bom apetite - disse Thomas. Perto dele havia alguns objetos que não era possível identificar porque estavam cobertos por guardanapos. Os trilhos mergulhavam sob os guardanapos.

Os cavalheiros tomaram a sopa em silêncio. Como bons franceses, sabiam honrar um prato de categoria.

Chantal não tirava os olhos de Thomas. Nos seus olhares havia toda uma gama de sentimentos diversos. Pé de Cabra comia com a cabeça baixa, mau como a sarna e absolutamente silencioso.

Depois veio o civet de coelho. Em seguida, Olive e os dois garçons trouxeram, com grande cuidado e esforço, um prato que parecia uma torta gigantesca. Colocaram o prato aalado de Thomas Lieven, sobre uma mesinha. Thomas apanhou uma grande faca.

- Cavalheiros - disse ele, enquanto amolava a faca -, vou servir-lhes uma novidade. Uma invenção minha. Conheço bem a diversidade dos seus temperamentos. Alguns têm uma natureza conciliadora que os leva a perdoarme; outros são rancorosos e querem suprimir-me - ergueu a mão.

- Por favor. Gostos e cores não se discutem. Justamente por isto é que fiz um prato que pode agradar a todos. - Mostrou a torta. - Aqui está; é um pâté surpresa.

Dirigindo-se a Chantal: - O que você prefere, querida? - perguntou ele. - Filé de vaca, de porco ou de vitela?

- Fi... filé de vitela - disse Chantal com voz rouca. - Pigarreou para recobrar a voz e repetiu, alto: -. Filé de vitela.

- Certamente. É para já. - Thomas examinou a torta, girou-a um pouco, cortou em certo ponto uma bela fatia de filé de vitela recoberto de massa e colocou-a num prato. Passou a descobrir os objetos a seu lado e cobertos por guardanapos: a locomotiva elétrica de Bastian, com o seu tender e um grande vagão de carga e mais os aparelhos de comando do trem.

Thomas colocou o prato com o filé de vitela sobre o vagão e ligou o contato. A locomotiva partiu zumbindo e puxou o tender, o vagão e o prato ao longo da mesa, sob os olhares espantados dos quinze patifes. O trem parou em frente a Chantal. Ela retirou o prato do vagão. A surpresa provocou algumas risadas. Um dos homens bateu palmas.

Thomas fez voltar a locomotiva com o vagão vazio.

- O cavalheiro à esquerda de Chantal - indicou ele, calmamente. O cavalheiro em questão, que usava uma venda preta sobre um dos olhos, fez uma careta misturada com um largo sorriso.

- Eu quero porco - gritou ele.

- Porco, aqui está. - Examinou novamente o pâté, fê-lo girar e cortou, em outro ponto, uma fatia de filé de porco que despachou pelo trem. Os homens estavam animados. Achavam graça na idéia. Todos falavam ao mesmo tempo.

- Eu quero filé de vaca - gritou um deles.

- Com prazer - disse Thomas.

O homem foi servido pelo mesmo processo. Vários outros começaram a aplaudir.

Thomas olhou para Chantal e piscou um olho. Ela sorriu, mesmo sem querer. A alegria contagiava a todos e tornava-se cada vez mais barulhenta.

 

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       SOPA DE QUEIJO

       CIVET DE COELHO COM MACARRÃO

       PÂTÉ SURPRESA COM MOLHO DE COGUMELOS

 

8 de dezembro de 1940

Um jantar burlesco salva a vida de Thomas Lieven.

Sopa de queijo - Raspe uma boa quantidade de queijo parmesão. Junte leite e bata bastante. Derrame, com cuidado, essa mistura - ela tende a coagular - num caldo de carne em ebulição. Retire do fogo e junte uma gema, para ligar. Civet de coelho - Corte um coelho novo e de bom tamanho em pedaços médios. Em uma caçarola coloque cento e cinqüenta gramas de toucinho magro cortado em cubos; junte a carne do coelho, acrescentando-lhe o fígado do animal. Deixe a carne dourar por igual. Acrescente agora cebolinha, cebolas desfiadas e um dente de alho esmagado. Quando a carne tiver adquirido cor, junte um pouco de farinha de trigo, mexa bem e misture, pouco a pouco, meio litro de água fervendo ou de caldo de carne. Tempere com sal, pimenta-doreino, especiarias, bagas de genièvre, raspa de casca de limão e acrescente a quarta parte de uma garrafa de vinho tinto. Deixe em fogo brando até que a carne esteja bem cozida e acrescente mais uma quarta parte de garrafa de vinho tinto. Deixe cozinhar mais um pouco. Sirva com macarrão grosso, cozido em água e sal e passado na manteiga.

Pâté surpresa com molho de cogumelos - Segundo o número de pessoas a servir, empregue pedaços maiores ou menores de filé de vitela, de porco e de vaca. Esses pedaços devem ter um comprimento igual ao raio de uma grande forma para tortas. Frite ligeiramente os pedaços de filé e, depois, salgue e salpique com pimenta-do-reino. Forre o fundo e os lados da forma com massa folhada e arrume os pedaços de filé de forma que as extremidades mais finas fiquem no centro. Procure fazer com que cada tipo de filé ocupe um terço do fundo da forma. Marque a colocação de cada tipo e repita tais marcas na massa que recobrirá tudo. A partir dessas marcas faça um ornamento de massa que vá até o centro, de sorte a delimitar cada uma das terças partes do pâté. Recorte, em massa, um porco, uma vitela e um boi para decorar o terço que lhe corresponde. Pincele o pâté com gema de ovo e leve ao forno (médio) para dourar.

Sirva com um molho de cogumelos que se prepara assim:

Refogam-se, na manteiga, alguns alhos picados (sendo possível, use alho-porro) e junta-se uma boa quantidade de cogumelos desfiados.

Acrescenta-se um pouco de farinha de trigo e junta-se caldo de carne. Deixa-se a panela tampada e em fogo brando até que os cogumelos estejam cozidos. O molho deve ficar claro.

Acrescenta-se creme fresco e tempera-se com sal, pimenta-do-reino e um pouco de suco de limão. Junta-se, agora, uma gema, para ligar.

Pode-se acrescentar um pouco de vinho branco.

Os pedidos vinham de todos os lados. A pequena locomotiva não tinha descanso.

Finalmente, só havia um prato vazio, o de Francois, o Pé de Cabra.

- E o senhor, cavalheiro? - perguntou Thomas afiando novamente a faca.

Francois o fitou demoradamente, com ar meditativo. Levantou-se vagarosamente e meteu a mão no bolso. Chantal soltou um grito de pavor; Bastian puxou, às escondidas, o seu revólver, quando viu aparecer a faca na mão de Pé de Cabra. A uma pressão do dedo do coxo, a lâmina apareceu brilhando. Capengando, Pé de Cabra deu um passo em direção a Thomas. Depois outro e mais outro. Os dois homens estavam agora frente a frente. Um silêncio de morte reinava na sala. Thomas ficou imperturbável. Francois fitou-o, fixamente, o tempo necessário para contar até dez. Subitamente o seu semblante mudou por completo.

- Tome a minha faca - disse ele. - Ela corta melhor. E eu quero porco, seu porcalhão.

No dia 8 de dezembro de 1940 o Sturmbannführer e seu ajudante-de-ordens Winter chegaram a Marselha - em trajes civis, é claro - para soltar os senhores De Lesseps e Bergier. Levaram os dois imediatamente para Paris, onde os compradores foram submetidos a rigoroso interrogatório.

No dia 10 de dezembro de 1940 a SD-Paris expediu um mandado de prisão cujo objetivo foi comunicado a todos os serviços.

As coisas se desencadearam no dia 13 de dezembro, num quarto do Lutetia, hotel parisiense requisitado para os serviços da Abwehr.

O capitão Brenner, da Divisão In, leu o mandado emitido pelo serviço rival. Primeiro leu rapidamente, mas parou em certa frase e releu tudo com mais atenção.

Procuravam um certo Pierre Hunebelle e o motivo era vagamente explicado como: ”Denúncia de agentes da SD às autoridades francesas”. O capitão Brenner leu mais uma vez: Pierre Hunebelle. Rosto fino. Olhos castanhos. Cabelos castanhos. Aproximadamente um metro e setenta e cinco. Magro. Possui um relógio de repetição, de ouro, com o qual tem o hábito de brincar. Sinais especiais: gosta de cozinhar.

- Hum! Gosta de cozinhar. Hum!!!

O capitão Brenner coçou a cabeça. Não havia? Não seria? Não havia o caso de um general que fora tapeado por um indivíduo que gostava de cozinhar? Isto acontecera por ocasião da tomada de Paris. Havia um dossiê.

Um dossiê... um dossiê...

Uma hora mais tarde, o capitão Brenner encontrava, nos arquivos, o que estava procurando. A pasta era fina mas a memória não o tinha enganado. Ali estava: Thomas Lieven, também chamado Jean Leblanc. Aproximadamente um metro e setenta e cinco. Olhos castanhos. Cabelos castanhos. Possui um relógio de repetição, de ouro. Sinais particulares: é um apaixonado pela cozinha.

O capitão Brenner começou a sentir a febre do caçador. Tinha contatos pessoais no SD. Passou três dias tentando descobrir tudo e ficou sabendo, afinal, o que o Sturmbannführer Eicher tinha contra o chamado Hunebelle, aliás Leblanc, aliás Lieven. Com um sorriso sarcástico, Brenner redigiu um relatório para o grande chefão dos seus serviços...

No seu gabinete em Berlim, à margem do Tirpitz, o almirante Canaris leu o relatório do seu subordinado e à medida que lia mais difícil era dissimular o prazer. A mesma alegria, que se apoderara do seu homem em Paris, agora o invadia. ”Vejam só. A SD saqueando a França não ocupada. Aqui está algo que servirá para esfregar o nariz de Herr Himmler no seu próprio excremento.

”E o sujeito que os embrulhou é um tal Hunebelle, aliás Leblanc, aliás...”

O almirante ficou novamente sério. Releu as últimas linhas e leu pela terceira vez. Depois chamou sua secretária:

- Senhorita, traga-me o dossiê Lieven.

Um quarto de hora depois, o dossiê estava sobre sua mesa. A capa da pasta tinha, como enfeite, uma grande cruz negra. Canaris a abriu e leu a primeira página...

Colônia, 4 de dezembro de 1940 Exp: Abwehr-Colônia Dest: Chefe Abwehr-Berlim Confidencial 135892/VC/40/LV

De regresso de Lisboa informo a V.S.a que morreu o traidor e agente duplo Thomas Lieven, chamado também Jean Leblanc...

Canaris ficou imóvel por muito tempo. Depois pegou o telefone. Sua voz estava baixa, como se estivesse prestes a explodir de cólera:

- Ligue para a Abwehr em Colônia, por favor, senhorita. O comandante Fritz Loos.

Na noite tempestuosa de 28 de dezembro, Thomas Lieven ouvia o boletim informativo em francês da BBC, de Londres. Thomas ouvia Londres todas as noites, porque um homem em sua situação tinha necessidade de estar bem informado.

Estava no quarto de Chantal. A sua bela amiga já estava deitada. Tinha os cabelos penteados para cima e estava sem nenhuma maquilagem. Era assim que Thomas a achava mais bela.

Estava sentado na cama e Chantal acariciava-lhe a mão enquanto ouviam a voz do locutor:

”... na França a Resistência está cada vez mais ativa contra os nazistas. Ontem à tarde, perto de Varades, um trem transportando tropas foi dinamitado, na linha que vai de Nantes a Angers. A locomotiva e três vagões ficaram completamente destruídos. Pelo menos vinte e cinco soldados alemães morreram e cerca de cem ficaram feridos, muitos em estado grave”.

Os dedos de Chantal continuavam sobre a mão de Thomas.

”... como represália, os alemães fuzilaram, imediatamente, trinta reféns franceses...”

Os dedos de Chantal ficaram imóveis.

”...mas a luta continua: ela está apenas começando. Uma organização clandestina ataca e atrapalha, sem piedade, os alemães. Segundo fontes seguras, o grupo marselhês da Resistência conseguiu apoderar-se de grande quantidade de ouro, de divisas e de objetos de valor provenientes da pilhagem nazista. Esses recursos servirão para aumentar o ritmo dos combates. A explosão de Varades não será a única...”

Thomas estava lívido. A voz, no rádio, tornou-se insuportável e ele o desligou. Deitada, de costas, Chantal olhava-o, sem se mexer. Subitamente, esse olhar, também, tornou-se-lhe insuportável.

Com um gemido de sofrimento, ele apoiou a cabeça nas mãos. O seu crânio parecia estalar. Vinte e cinco alemães. Trinta franceses. Mais de cem feridos. E era apenas o começo. O combate continua. Financiado pela grande quantidade de ouro e divisas nazistas, recuperadas em Marselha... Desgraças, sangue e lágrimas... Financiados por quem? Com a ajuda de quem?

Thomas Lieven ergueu a cabeça. Chantal continuava a olhá-lo, imóvel.

- Vocês é que tinham razão - disse ele em voz baixa. - Bastian e você. Deveríamos ter ficado com toda a muamba. O seu instinto estava mais certo que o meu. Enganar o Siméon e os serviços de informações teria sido um mal menor...

- Nenhuma das nossas tramóias custou, até hoje, a vida de um inocente.

Thomas sacudiu a cabeça.

- Agora está bem claro. Terei que mudar a minha maneira de agir. As minhas idéias são ultrapassadas e as minhas concepções sobre a honra e a palavra empenhada são falsas e perigosas. Lembra-se, Chantal, da proposta que você me fez, em Lisboa?

- Para ser meu sócio? - disse ela, sentando-se na cama.

- Exatamente. Negócio fechado. De agora em diante sou seu sócio. Sem piedade nem fraquezas. Para mim, basta. Agora só quero é a boa grana.

- Mas, você está falando como eu, querido. Enlaçou-lhe o pescoço com os braços e beijou-o ardentemente.

Esse beijo selou uma estranha aliança, um tratado de cooperação, que até hoje é comentado em Marselha, com toda a razão. Isto porque, entre janeiro de 1941 e agosto de 1942, o sul da França foi teatro de uma avalancha de crimes que, por uma espécie de milagre, tinham, todos, uma característica comum: nenhuma das vítimas merecia a simpatia ou a compaixão do público.

A primeira vítima foi Marius Pissoladière, joalheiro marselhês. Se não houvesse chovido em Marselha, no dia

14 de janeiro de 1941, é possível que esse homem não tivesse sofrido a trágica perda de mais de oito milhões de francos. Mas acontece que choveu a cântaros, da manhã à noite, e a fatalidade seguiu o seu curso.

A elegante loja de Marius Pissoladière estava localizada na Cannebière. M. Pissoladière, riquíssimo qüinquagenário, tinha tendência à obesidade, mas vestia-se, sempre, pela última moda.

Anteriormente, Pissoladière fazia negócios nos meios internacionais da Cote d’Azur. Recentemente tinha outra clientela, também cosmopolita: refugiados dos países invadidos pelas tropas de Hitler. Pissoladière comprava suas jóias. Eles precisavam de dinheiro para fugir para mais longe, para subornar funcionários, para obter vistos de entrada, para conseguir passaportes falsos.

Para pagar o mínimo possível aos refugiados, o joalheiro tinha um sistema extremamente simples: regateava com os vendedores, durante dias e semanas, até que ficassem desesperados e se sentissem encurralados. Para Pissoladière, a guerra poderia durar dez anos mais.

Não, M. Pissoladière não podia se queixar; seus negócios estavam numa fase brilhante. E tudo teria continuado assim, ótimo, se não tivesse chovido em Marselha no dia 14 de janeiro de 1941...

No dia 14 de janeiro de 1941, cerca de onze horas da manhã, um homem de aproximadamente quarenta e cinco anos entrou na joalheria de Marius Pissoladière. Usava chapéu preto, de abas viradas, um caro sobretudo de pele, calças listradas de cinzento e preto, e polainas. Tudo de acordo com a melhor etiqueta. Tinha também, é claro, um guarda-chuva.

Na opinião de Pissoladière, aquele rosto fino, pálido e aristocrático indicava alta nobreza. Velha fortuna. Fim de raça. Era esse o tipo de cliente preferido pelo joalheiro...

Pissoladière estava só em sua loja. Esfregando as mãos, inclinou-se, com deferência, diante do comprador em perspectiva.

O elegante cavalheiro respondeu à acolhida de Pissoladière com um leve movimento de cabeça e pendurou o seu guarda-chuva (com cabo de âmbar) na beira do balcão. ”Modos aristocráticos”, disse Pissoladière a si mesmo. ”Sociabilidade. Pessoas como você e eu. Formidável.”

- Gostaria de comprar algumas jóias. Disseram-me, no Bristol, que o senhor tinha uma grande variedade.

- As mais belas pedras de Marselha, monsieur. O senhor já tem idéia do que deseja?

- Bem, espere um pouco... uma... ah... uma pulseira com brilhantes ou algo parecido.

- Temos para todos os preços. Quanto pretende gastar?

- Entre... ah... dois e... ah... três milhões - respondeu o cavalheiro, bocejando.

”Nossa Senhora”, pensava Pissoladière. ”Que linda manhã!” Dirigiu-se rapidamente para o cofre e manipulou a combinação.

- Por esse preço, há, evidentemente, algumas belas peças.

A pesada porta de aço se abriu. Pissoladière escolheu nove pulseiras cravejadas de brilhantes e colocou-as sobre uma bandeja forrada de veludo que apresentou ao cliente.

As pulseiras brilhavam e cintilavam com todas as cores do arco-íris.

O cavalheiro as contemplou demoradamente e em silêncio. Depois, escolheu uma com sua mão fina e tratada. Era uma pulseira de grande beleza, com brilhantes alongados, talhados em baguette e seis pedras de dois quilates.

- Quanto custa... hum... esta aqui?

- Três milhões, cavalheiro.

A pulseira pertencera à esposa de um banqueiro israelita, de Paris. Com os seus métodos habituais de chantagem, Pissoladière a comprara por quatrocentos mil francos.

- Três milhões é demais - disse o cavalheiro. Pissoladière reconheceu logo que estava tratando com

um amador que entendia do negócio. Somente os ignorantes aceitam o primeiro preço mencionado por um joalheiro. Foi o começo de um regatear tremendo, de um vaivém teimoso, de parte a parte.

A porta da loja foi aberta. Pissoladière levantou a cabeça. Um segundo cavalheiro entrara. Não estava tão bem vestido como o primeiro, mas, apesar disso, apesar disso... discreto. Sobretudo debruado. Luvas, polainas, chapéu e guarda-chuva.

Pissoladière ia pedir ao novo freguês que esperasse um pouco, mas este foi logo declarando:

- Preciso apenas de uma nova pulseira para o meu relógio.

Pendurou o seu guarda-chuva ao lado do do cavalheiro com a peliça e não deu a mínima demonstração de conhecê-lo.

A partir desse momento Marras Pissoladière poderia ser considerado como vendido, traído, embrulhado...

Em verdade, os dois cavalheiros que fingiam não se conhecer eram velhos amigos. Mas no decorrer das duas últimas semanas tinham sofrido uma transformação radical, por dentro e por fora.

Havia apenas duas semanas esses dois cavalheiros usavam linguagem de carroceiro, com todos os palavrões, cuspiam no chão, usavam sapatos e casacos de um amarelo-canário com ombros enormemente alargados pelo enchimento. Até duas semanas antes, as suas unhas eram negras e os cabelos compridos demais.

Na vida real pertenciam, ambos, a essa casta social misteriosa que os bons cidadãos chamam, de maneira genérica, de bas-fond1.

A quem cabia, então, o mérito de haver transformado, em tão pouco tempo - é verdade que num regime acelerado e bastante penoso -, dois cafajestes por vocação em verdadeiros homens de sociedade?

A quem? A Pierre Hunebelle, aliás, Jean Leblanc, aliás, Thomas Lieven.

Como início dos preparativos para o golpe contra o joalheiro Pissoladière, Thomas Lieven organizara um almoço, quinze dias antes.

O almoço foi servido numa sala nos fundos do Chez Papa. Além de Thomas Lieven e de sua bela amante, só havia os dois cafajestes em questão e que lá estavam usando os seus verdadeiros nomes: Fred Meyer e Paul de la Rue.

Há muito que eles pertenciam à quadrilha de Chantal mas o seu campo de ação era em Toulouse. A organização de Chantal tinha filiais. Era uma empresa alicerçada em bases sólidas.

Paul de la Rue, descendente de uma família huguenote, era alto e magro. A sua profissão era falsificar quadros. Falava com o sotaque do sul da França. Malgrado o seu aspecto pouco cuidado, sua cabeça fina tinha algumas características aristocráticas.

Quanto a Fred Meyer, a profissão que aprendera fora a de arrombador de cofres. Tivera, entretanto, outras atividades, como arrombamentos, furtos em quartos de hotel e contrabando. Ele, também, tinha sotaque do sul.

Paul e Fred reviram Chantal e Thomas com prazer. Com um sorriso nos lábios esfregavam as mãos.

- Um pequeno pastis antes de entrarmos na bóia, hein? - arrotou o descendente dos huguenotes.

- Antes de comer - disse Thomas, em tom glacial - os cavalheiros não beberão cálices de pastis mas, ao invés disso, irão ao barbeiro, cortarão os cabelos, farão a barba e lavarão o pescoço e as mãos. Ninguém se senta à mesa nesse estado.

 

1 Em francês, o submundo, a baixa sociedade. (N. do E.).

 

- Ta gueule 1, - rosnou Fred que, como Paul, mal conhecia esse tal Pierre Hunebelle. - Vá pentear macacos. A patroa é Chantal.

- Façam o que ele diz - interveio Chantal, com os lábios cerrados. - Vocês têm que ir ao barbeiro. Como estão parecem dois porcos.

Os dois saíram, resmungando. Quando ficou a sós com Thomas, Chantal demonstrou que, embora tendo desistido, para lhe ser agradável, de algumas esquisitices na maneira de vestir, ainda era fiel a si mesma. Passou-lhe uma descompostura com a fúria de um gato selvagem.

- Eu não queria dar a impressão de que não apoiava você. Se começassem a dizer que nós discutimos, a minha autoridade sobre esses sujeitos estaria acabada. Mas quero que saiba que a quadrilha é minha, entendeu?

- Lamento muito. Neste caso é melhor desistir deste negócio.

- Que você quer dizer com isso?

- Não sou seu empregado. Ou eu sou seu sócio com direitos iguais ou não somos mais coisa alguma.

Ela olhou-o, com as pálpebras semicerradas e murmurando coisas ininteligíveis. Depois bateu-lhe no ombro, com o punho.

- Muito bem, meu safado! - rosnou ela, a um só tempo irritada e achando graça. - Mas - acrescentou rapidamente - não pense que você é indispensável. Acontece, simplesmente, que eu sinto falta de um homem perto de mim, entende?

- Entendi - disse Thomas, piscando um olho. Para comemorar a reconciliação, beberam um conhaque de idade canônica.

Paul e Fred voltaram três quartos de hora depois. Estavam com aspecto mais civilizado. Logo ao início da refeição, Chantal fez uma proclamação:

- Escutem bem. Quem tentar desobedecer a Pierre terá que se haver comigo, compreenderam?

- Mas, o que há, Chantal? É a primeira vez que você...

 

Em francês no original: Cale essa boca. (N. do E.)

 

- Chega. Pierre é meu sócio.

- Que azar desgraçado! - observou o arrombador de cofres. - Creio que você está muito doente. Pobre mulher.

Em vez de uma resposta recebeu uma bofetada de estalar.

- Trate de cuidar da sua bunda - disse Chantal raivosa.

- Se nem se pode conversar, então!

- Pode conversar sobre titica! - Malgrado a sua natureza recalcitrante e independente, Chantal já tinha aprendido várias coisas com Thomas. - Seria melhor se você comesse decentemente, seu porco. Está vendo? Este tipo está cortando o espaguete com a faca.

- Mas esse negócio escorrega pelo garfo.

- Permita que eu lhe dê um conselho - disse Thomas amavelmente. - Se não consegue enrolar o espaguete no garfo, espete a quantidade que dá para uma garfada, segure a colher com a mão esquerda e apoie nela os dentes do garfo: assim. - Thomas fez a demonstração. - Agora gire o garfo. Funciona muito bem, não é?

Fred o imitou. A coisa funcionava.

- Por falar nisso, senhores - disse Thomas -, precisamos ter uma longa conversa sobre boas maneiras, pois elas são a própria base de toda a trapaça que se preze. Os senhores por acaso encontraram, alguma vez, um banqueiro que não tivesse boas maneiras?

- Um banqueiro! Quanto menos eu pensar neles, melhor.

- Boas maneiras, perfeitamente - disse Chantal em tom que não admitia resposta. - Além do mais, nós mudamos os métodos, aqui. Tratem de compreender isto de uma vez por todas. O meu sócio e eu chegamos a um acordo. A partir de agora não vamos mais procurar a grana... as nossas operações não serão com qualquer joão-ninguém...

- Mas, com quem então?

- Com os salafrários que merecem isto: nazistas, colaboradores, agentes secretos e outros parecidos. O primeiro nome da lista é esse Pissoladière...

Chantal parou de falar, porque Olive, o dono do bistrot, trazia, ele mesmo, o prato principal.

Thomas serviu as costeletas e, logo a seguir, ergueu as sobrancelhas.

- O senhor está usando o garfo de sobremesa, M. de la Rue!

- São tantos talheres que a gente mete os pés pelas mãos.

- Quanto aos talheres, senhores - disse Thomas -, caminha-se de fora para dentro. Os talheres mais próximos do prato são os que se usam por último.

- Estou curiosa por saber em que buraco de ratos vocês foram educados - disse Chantal com dignidade. Dirigiu-se depois a Thomas com a maior distinção: - Peço-lhe a fineza de continuar, chéri.

- Em conseqüência da modificação dos nossos estatutos, senhores, temos em vista, primeiramente, esse joalheiro de quem já falei. É um sujeito sórdido. M. Meyer, não se deve segurar a costeleta com a mão, para roer o osso! Onde estava eu?

- Pissoladière - soprou Chantal. Ela observava Thomas com muito carinho, amava-o e detestava-o, alternadamente. Os seus sentimentos estavam sujeitos a bruscas alterações; ela própria não os compreendia bem. Uma só coisa era certa: não podia viver sem aquele canalha.

- Tem razão, Pissoladière.

Thomas explicou por que o joalheiro era um tipo sórdido.

- Eu detesto a violência - continuou ele - e não quero, absolutamente, ver correr sangue. Por conseguinte, fica eliminada qualquer idéia de furar o teto da loja, de organizar um assalto a mão armada ou qualquer coisa parecida. Acreditem-me, senhores, para tempos novos, métodos novos. Só os que têm imaginação poderão sobreviver. A concorrência é muito forte. M. de la Rue, as batatas não se comem com as mãos, e sim com o garfo.

- E como vamos ”operar” esse Pissoladière? - perguntou Fred Meyer.

- Com a utilização de dois guarda-chuvas.

 

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           ESPAGUETE À BOLONHESA

           COSTELETAS ROBERT

           TORTA SACHER

 

3 de janeiro de 1941

Thomas Lieven troca jóias e platina por boas maneiras.

Espaguete à bolonhesa - Para meio quilo de espaguete empregue meio quilo de carne, de preferência uma mistura de vaca, porco e vitela. Corte em fatias finas meio quilo de cebolas e refogue em manteiga ou azeite e junte à carne, cortada em pequenos cubos, um dente de alho esmagado e salsa bem picada. Quando tudo estiver bem cozido, junte tomates descascados e sem sementes (ou uma boa massa de tomates) e deixe em fogo brando até obter um molho bastante espesso.

Cozinhe o espaguete - não muito tempo - em água e sal. Passe em água fria e escorra.

Junte o espaguete ao molho, que deve antes ser salgado a seu gosto.

Sirva com queijo parmesão ralado.

Costeletas Robert - Use costeletas de porco, de tamanho médio. Faça alguns cortes, na gordura em volta das costeletas. Bata para achatá-las e, em seguida, coloque-as em frigideira muito quente, sem juntar qualquer gordura.

Frite aproximadamente três minutos de cada lado, ponha sal, pimenta-do-reino e uma boa porção de manteiga. Deixe fritar mais um minuto de cada lado, retire da frigideira e coloque sobre um prato quente.

Misture, em partes iguais, vinho tinto e creme azedo, e adicione uma colher de mostarda clara. Ponha essa mistura na frigideira (onde está o caldo que ficou das costeletas), mexa bem e, em seguida, derrame esse molho sobre as costeletas, procurando cobri-las dos dois lados. Sirva imediatamente com uma guarnição de batatas fritas.

Torta Sacher - Amasse cento e vinte e cinco gramas de manteiga, junte cento e cinqüenta gramas de açúcar, cento e cinqüenta gramas de farinha de trigo peneirada, cinco gemas, um pouco de baunilha e, por fim, cento e cinqüenta gramas de chocolate derretido em banho-maria. Misture tudo bem, acrescente claras batidas em neve e numa forma de torta leve ao forno médio, durante meia hora. Para o glacê da torta use noventa gramas de chocolate derretido, cento e vinte e cinco gramas de açúcar peneirado (quanto mais fino, melhor) e duas colheres, das de sopa, de água quente. Leve ao fogo e bata vigorosamente.

Quando a torta estiver pronta, cubra-a com doce de abricó e derrame o glacê por cima. Leve ao forno quente, durante um minuto, para secar.

Deixe esfriar antes de servir.

Olive trouxe a sobremesa.

- Quero explicar logo, senhores, que a torta é comida com o garfo pequeno e não com a colher.

- Vocês terão que trabalhar muito, vocês dois, nos próximos dias - disse Chantal. - Nada de bebidas, de jogar cartas e andar atrás das meninas, entenderam?

- Pelo amor de Deus, Chantal, é tão raro virmos a Marselha...

- Primeiro temos que ter êxito no golpe; as diversões virão depois, meus amigos. Terão que aprender a se vestir como homens de sociedade, a andar e a falar como eles. Sem sotaque, se for possível. Será necessário, também, aprender a fazer desaparecer objetos sem chamar a atenção.

- Não vai ser sopa, estou avisando! - exclamou Chantal. - Vocês estarão à disposição do meu sócio, da manhã à noite...

- Mas não durante a noite - disse Thomas, beijando-lhe a mão.

Num relance, ela ficou rubra e raivosa e tentou bater-lhe.

- Não faça isso - explodiu ela. - Diante de outros, seu... seu... É indecente essa lambeção de mão.

Seus olhos lançavam chispas. Era a gata selvagem que, novamente, mostrava as garras.

Numa extremidade do balcão, o joalheiro mostrava um sortimento de pulseiras de ouro a Fred Meyer. Na outra extremidade, Paul de la Rue examinava as nove jóias cravejadas de brilhantes. Os dois guarda-chuvas estavam um junto ao outro.

Tal como aprendera, durante horas e horas de trabalho, sob a supervisão de Thomas Lieven, Paul pegou silenciosamente a pulseira de três milhões e a fez escorregar, também silenciosamente, no guarda-chuva entreaberto do seu amigo Meyer. Para garantir o silêncio da operação, a armação de aço do guarda-chuva estava coberta de algodão. Duas outras pulseiras seguiram o mesmo caminho.

Afastando-se dos guarda-chuvas, De la Rue foi até o outro lado da loja, para admirar algumas correntes de ouro.

Enquanto fazia isso passou a mão direita nos cabelos, agora bem tratados e cortados.

Obedecendo a este sinal combinado, Fred Meyer escolheu, rapidamente, uma pulseira de couro que custava duzentos e quarenta francos. Pagou a sua compra com uma nota de cinco mil francos.

Pissoladière dirigiu-se para a caixa. Registrou a venda e abriu a gaveta. Dirigiu-se a Paul de la Rue:

- Estarei à sua disposição imediatamente, monsieur.

Pissoladière entregou o troco ao comprador da pulseira de couro que, embora chovesse copiosamente, não abrira o guarda-chuva. Pelo menos não o fizera ao sair da loja...

Com andar ligeiro, Pissoladière valtou ao seu aristocrático cliente.

- E agora, monsieur,... - ia dizendo ele, mas parou subitamente. Num relancear de olhos verificara que três das suas mais valiosas pulseiras não estavam mais na bandeja aveludada.

A primeira idéia que ocorreu ao joalheiro é que se tratava de uma brincadeira. Um aristocrata degenerado pode ter idéias macabras em matéria de brincadeiras. Sorriu de maneira constrangida.

- Ah - disse ele -, monsieur assustou-me. Admiravelmente treinado por Thomas Lieven, Paul

levantou as sobrancelhas de forma inimitável.

- Que diz o senhor? - perguntou ele. - Está sentindo alguma coisa?

- Por favor, monsieur, deixe de brincadeira. Peço que ponha as três pulseiras sobre a bandeja.

- O senhor estará bêbado? O senhor quer dizer que eu... Mas ora! Onde estão as três belas pulseiras?

O rosto de Pissoladière ficou meio azulado. Sua voz tornou-se estridente.

- Monsieur, se não colocar imediatamente as três jóias em cima do balcão, chamarei a polícia!

Neste ponto, Paul de la Rue afastou-se um pouco do seu papel. Começou a rir.

Tal hilaridade fez o joalheiro perder os últimos vestígios de sangue-frio. Nervosamente enfiou a mão por baixo do balcão e apertou o botão do sistema de alarme.

Pesadas portas de aço desceram sobre as vitrinas, a porta de entrada e a saída dos fundos.

Um grande revólver apareceu na mão de Marius Pissoladière:

- Mãos ao alto! - guinchou ele. - Nem um passo... nem um movimento.

- Pobre louco - disse Paul de la Rue, com absoluta calma e levantando os braços. - O senhor vai se arrepender.

A polícia chegou pouco depois.

Com a mais absoluta calma, Paul de la Rue apresentou um passaporte francês, com o nome de visconde René de Toussant, Paris, Bois de Boulogne. Esse passaporte era uma admirável falsificação, produto da ciência dos melhores especialistas do Vieux Quartier. Apesar disso, os policiais despiram-no inteiramente, revistaram toda a sua roupa e chegaram, até, a desfazer as costuras do seu sobretudo.

Depois exigiram que o falso visconde provasse que poderia pagar três milhões.

Com um sorriso nos lábios, o suspeito pediu que telefonassem ao gerente do Hotel Bristol, que confirmou que o visconde havia depositado a quantia de seis milhões no cofre do hotel. E tinha que ser assim. Paul de la Rue estava hospedado no hotel e havia entregue, para ser guardada no cofre, a quantia de seis milhões retirada do capital da quadrilha!

Os policiais tornaram-se muito mais corteses.

Finalmente, quando a polícia parisiense respondeu que realmente morava, perto do Bois de Boulogne, um visconde René de Toussant, grande fortuna, boas relações com os nazistas e com o governo de Vichy, e que no momento estava viajando pelo sul do país, os inspetores soltaram Paul de la Rue, apresentando muitas desculpas.

Aniquilado, branco como cera, Marius Pissoladière balbuciou suas desculpas.

Quanto ao comprador da pulseira de couro para relógio, personagem que Pissoladière não podia descrever de forma útil, havia desaparecido.

Quando escolheu Paul de la Rue, por causa de sua aparência, e mandou fabricar o passaporte falso com o nome do visconde, Thomas Lieven tinha previsto, com exatidão, o curso dos acontecimentos. É verdade que o Courrier de Perpignan de 2 de janeiro de 1941 contribuíra para o êxito da operação. Na crônica social, Thomas vira uma fotografia do aristocrata pró-nazistas e a seguinte informação:

”O visconde René de Toussant, industrial parisiense, chegou a Font-Romeu para um repouso de algumas semanas...”

Não seria possível, é claro, repetir o golpe do guardachuva, em Marselha. Esse gênero de mágica só se faz uma vez. Em compensação, Bordeaux, Toulouse, Montpellier, Avignon e Béziers tiveram dias de grande animação. Nas semanas seguintes, certos joalheiros e antiquários dessas cidades passaram por coisas desagradáveis e altamente prejudiciais com fregueses que usavam guarda-chuvas. Mas, fato estranho, todas as vítimas eram, sem exceção, do mesmo tipo sórdido e mesquinho que Marius Pissoladière.

Tal semelhança entre as vítimas contribuiu para que ninguém tivesse pena delas. Muito pelo contrário! Começou-se a espalhar que tais roubos no sul da França eram feitos por um grupo de clandestinos, dirigido por uma espécie de Robin Hood.

Um encadeamento de circunstâncias fez com que a polícia seguisse uma pista falsa. Thomas Lieven era meio responsável pelo equívoco da polícia. A polícia suspeitava de que os responsáveis pelos audaciosos furtos de jóias fossem os membros da quadrilha do Careca.

Uma das mais antigas quadrilhas de Marselha era chefiada por um tal Dantes Villeforte, um corso que recebera, por motivos evidentes, a alcunha de Careca.

Quando surgiu o negócio de transportar refugiados para Portugal, Villeforte e seus asseclas também se dedicaram ao assunto. Acontece que, repentinamente, Chantal ativara enormemente os seus negócios. Mas a maneira como estava agindo era contra todas as praxes da confraria. Ela adotou o método, nem sempre seguido, de: preços baixos, grande volume de negócios, bom rendimento. Ou mesmo: ”fuja agora, pague mais tarde”.

É fácil de compreender que o Careca estivesse indignado porque Chantal estava estragando os seus negócios. Quase toda a clientela procurava Chantal e ninguém, ou quase ninguém, se dirigia a ele.

Certo dia, veio a saber que todas essas inovações eram devidas à visão e à inteligência do amante de Chantal, um homem em quem ela confiava cegamente. Um homem que era o cérebro da quadrilha e um cérebro, diziam, da mais alta qualidade.

O Careca resolveu ocupar-se, pessoalmente, desse homem.

No mês de julho de 1942, Dantes Villeforte convocou uma assembléia-geral de sua quadrilha, em seu apartamento da Rue Mazenod.

- Senhores - declarou ele -, Chantal Tessier sozinha já era uma calamidade pública. Ela sempre nos prejudicou. Sempre nos fez mal. Mas agora ela tem esse desgraçado do Pierre, ou qualquer que seja o seu nome... já passou da conta.

Murmúrios de aprovação.

- Eu repito: com Chantal nós apenas ganhávamos o suficiente para viver. Ela é uma parada dura. Mas parece que está enrabichada por esse sujeito. Nestas condições, qual será a melhor maneira de lhe dar um golpe de arrasar?

- Basta liquidar o seu amiguinho - disse alguém.

- Como? - retrucou Villeforte com rancor. - Liquidar, abrir a barriga! É a única solução que podem imaginar! Não servem para nada? Verifiquei que o tal tipo usa, entre outros, o nome de Hunebelle. E a Gestapo anda à procura de um Hunebelle. Há uma boa recompensa, se nós... Será preciso dizer mais?

Não foi preciso.

Na noite de 17 de setembro de 1942 houve um temporal. Chantal e Thomas tinham pensado em ir ao cinema mas desistiram, resolvendo ficar em casa.

Beberam Calvados, ouviram discos e Chantal estava muito carinhosa, sentimental e langorosa.

- O que você fez de mim... - murmurou ela. - Por vezes nem me reconheço.

- Chantal - disse Thomas -, precisamos sair daqui.

As notícias são péssimas. Marselha pode ser ocupada pelos alemães a qualquer momento.

- Iremos para a Suíça - disse ela. - Temos bastante dinheiro. Poderemos viver como reis.

- Sim, minha querida - disse ele beijando-a.

- Ah, meu amor - suspirou ela, com lágrimas nos olhos -, nunca fui tão feliz. Isto não durará para sempre, nada dura, mas espero que dure um momento mais, só um momento...

Mais tarde Chantal teve vontade de comer uvas.

- As lojas estão fechadas - pensou Thomas, falando alto sem perceber. - Mas na estação eu talvez encontre.

Levantou-se e vestiu-se.

- Você está louco - protestou ela. - Com um tempo destes!

- Não, não, você terá as suas uvas. Porque você gosta de uvas e eu gosto de você.

Subitamente, seus olhos ficaram, outra vez, cheios de lágrimas. Blasfemando, ela bateu com o pequeno punho sobre o joelho.

- Como eu sou idiota! Que merda, agora estou chorando porque o amo demais...

- Voltarei rapidamente - disse Thomas ao sair. Ele estava enganado.

Porque, vinte minutos depois de sair da casa da Rue Chevalier à la Rose, Tomas Lieven, aliás Jean Leblanc, aliás Pierre Hunebelle, estava nas mãos da Gestapo.

”É curioso verificar até que ponto eu estou habituado a Chantal”, pensou Thomas. ”Não posso sequer imaginar a vida sem ela. Suas loucuras, seus modos de animal feroz, a sua maneira de parecer que me vai comer vivo, tudo isto me encanta, cada vez mais. Admiro, também, a sua coragem e a sua intuição. E ela não mente, pelo menos quase nunca...”

Atravessando a Place Jules-Guesde, deserta e com o asfalto brilhando sob a chuva, Thomas entrou na pequena Rue Bernard-du-Bois, onde havia um pequeno e velho cinema que ele freqüentara, muitas vezes, em companhia de Chantal.

 

Um carro Peugeot, preto, estava parado diante do cinema. Thomas nada notou e continuou em seu caminho. Duas sombras começaram a segui-lo. Passando junto ao Peugeot preto, uma das sombras bateu no vidro da porta. Imediatamente, os faróis do carro foram acesos e apagados, rapidamente. Na outra extremidade da rua, duas sombras começaram a andar.

Thomas não os percebeu. Não viu nem os homens que vinham ao seu encontro nem os que o seguiam. Estava absorto em seus pensamentos.... ”É preciso que eu fale calmamente com Chantal. Sei de fonte limpa: tropas americanas desembarcarão no norte da África antes do fim do ano. A Resistência francesa assedia os alemães cada vez mais. Suas bases mais importantes estão no sul do país. É evidente que os alemães acabarão por ocupar, também, a zona livre. Chantal e eu devemos partir, o mais rapidamente possível, para a Suíça. Na Suíça não há nazistas, não há guerra. Poderemos viver em paz.

As duas sombras à sua frente aproximaram-se. As duas sombras que vinham atrás também se aproximaram. O motor do Peugeot foi posto em movimento. Agora, o carro andava muito lentamente, sem uma luz. E Thomas Lieven continuava sem nada perceber.

Pobre Thomas! Ele era inteligente, leal, sedutor e prestativo. Mas não era um Zorro, nem Napoleão, nem um Mata-Hari masculino, muito menos seria um novo SuperHomem. Ele não se parecia com nenhum dos heróis que se encontram nos livros, esses arqui-heróis, sempre calmos, sempre vencedores. Era apenas um homem perseguido, sem um momento de paz, e obrigado, para poder sobreviver, a tirar o melhor partido possível de uma odiosa situação.

Aí está por que nada percebeu do perigo que o ameaçava. Nada pensou de mal quando dois homens apareceram, subitamente, diante dele. Vestiam capas impermeáveis. Eram franceses.

- Boa noite, monsieur, poderia, por favor, dizer-nos que horas são?

- Pois não - respondeu Thomas. Numa das mãos segurava o guarda-chuva. Com a outra tirou do bolso do colete o seu relógio de repetição.

Apertou o botão que abria a tampa. Neste momento as duas sombras que vinham atrás também se aproximaram.

- São exatamente oito horas... - começou Thomas. Nesse instante recebeu uma terrível pancada na nuca.

O guarda-chuva voou. O relógio - felizmente preso a uma corrente - escapou-lhe das mãos. Ele caiu ajoelhado. Abriu a boca para gritar. Imediatamente uma mão surgiu, empunhando um grande chumaço de algodão. Sentindo o cheiro adocicado e repugnante, teve náuseas. Ele conhecia tudo isso: o mesmo lhe acontecera em Lisboa. Naquela ocasião tudo terminara bem. Quando já perdia os sentidos, um relâmpago de intuição lhe dizia que desta vez não teria a mesma sorte.

Depois, mergulhou na inconsciência completa e os seus raptores não tiveram problemas para atirá-lo no banco traseiro do Peugeot.

A prisão central de Fresnes ficava a dezoito quilômetros de Paris. Altas muralhas circundavam o velho edifício, que era dividido em três partes principais e flanqueado por numerosas alas complementares. Solitária e pesada, a prisão estava numa planície melancólica, onde havia árvores estioladas, pastos estéreis e campos incultos.

No primeiro corpo do edifício estavam os alemães: detidos políticos e desertores. No segundo estavam os membros da Resistência, franceses e alguns alemães. No terceiro só havia franceses.

A prisão de Fresnes era dirigida por um alemão, capitão da reserva. O pessoal era misto. Havia guardas franceses e guardas alemães, estes últimos, geralmente, suboficiais de certa idade, oriundos da Baviera, do Saxe e da Turíngia.

Na ala C do corpo I todos os guardas eram alemães. Esta ala era reservada para a SD-Paris. Lâmpadas elétricas ficavam acesas, noite e dia, nas celas individuais. Os prisioneiros nunca eram levados ao pátio para passeio. A Gestapo tinha encontrado um método muito simples para que os outros serviços, por mais poderosos que fossem, ignorassem a existência dos ocupantes da ala C: eles não constavam dos registros. Eram almas mortas. Praticamente, não existiam mais.

Na manhã de 12 de novembro, um homem moço, de rosto fino e olhos castanhos inteligentes, estava sentado, imóvel, no catre da cela 67 da ala C. Thomas Lieven tinha mau aspecto.

Com a cor acinzentada, as faces cavadas, vestia um uniforme de detento muito grande para ele. Thomas sentia frio. As celas não eram aquecidas.

Havia sete semanas que estava nessa abominável e fedorenta cela. Na noite de 17 para 18 de setembro, seus raptores o haviam entregue, perto de Chalon-sur-Sâone, a dois agentes da Gestapo. Estes o levaram para Fresnes. Depois, veio a espera de um interrogatório. Essa espera inútil já o estava esgotando, moral e psicologicamente.

Thomas havia tentado, em vão, entrar em contato com os guardas alemães. Usando o seu charme, tentou subornálos para conseguir melhor alimentação. Em vão. Dia após dia, davam-lhe sopa feita com água e nabos amarelos. Tinha tentado enviar um bilhete a Chantal. Em vão.

Por que não vinham logo para encostá-lo ao muro? Todas as madrugadas, às quatro horas, vinham tirar alguns homens de suas celas. Depois, ouviam-se ruídos de botas, ordens, gritos desesperados e os gemidos dos que eram arrastados pelos corredores. E os tiros, quando fuzilavam prisioneiros. Não se ouvia quando os enforcavam. Geralmente nada se ouvia.

Thomas teve um sobressalto. Soaram passos do lado de fora. A porta foi aberta. No corredor estava um sargento alemão, em companhia de dois enormes indivíduos que vestiam o uniforme da SD.

- Hunebelle?

- Sim. ’

- Interrogatório.

”Agora o negócio vai começar”, disse Thomas a si mesmo, ”agora vai mesmo começar.”

Algemado, foi levado para o pátio, onde estava parado um enorme ônibus sem janelas. Um agente da SD fez Thomas entrar no estreito corredor central do ônibus, onde havia numerosas portas. Atrás de cada porta havia uma cela minúscula, onde um homem poderia ficar sentado, ou melhor, enroscado.

Thomas foi empurrado para dentro de uma dessas celas. A porta foi trancada. Pelos barulhos que se ouviam, todas as outras celas estavam, também, ocupadas. Sentia-se um cheiro de suor e de angústia.

O ônibus partiu e tomou uma estrada esburacada pela artilharia.

O percurso durou meia hora. Depois o veículo parou. Thomas ouviu vozes, passos e pragas. A porta de sua cela foi aberta. ”Fora!”

Cambaleando de fadiga, Thomas seguiu o agente da SD para o ar livre. Verificou, imediatamente, onde se encontrava: Avenue Foch. Thomas não ignorava que a SD havia requisitado edifícios.

Atravessando o saguão do prédio número 84, o agente da SD levou-o a uma peça que fora antes uma biblioteca e agora servia como escritório.

Dois homens, uniformizados, estavam sentados. Um era robusto, jovial e vermelho; o outro tinha a tez pálida, o aspecto doentio. O primeiro era o Sturmbannführer Walter Êicher e o segundo o ajudante-de-ordens Fritz Winter.

Thomas ficou em silêncio diante deles.

- Então, Hunebelle - berrou o Sturmbannführer num francês horrível -, um pouco de conhaque?

Thomas tinha o coração na boca.

- Não, obrigado - disse ele, apesar do seu estado. - Meu estômago está, infelizmente, muito vazio para suportá-lo.

Eicher teve dificuldade em entender o francês de Thomas. O ajudante-de-ordens serviu de intérprete. Eicher soltou uma gargalhada.

- Creio - disse Winter com os lábios cerrados - que poderemos falar alemão com este senhor, não é?

Logo que entrara Thomas vira sobre um móvel uma pasta com o título ”Hunebelle”. Toda negativa seria inútil.

- Sim, eu também falo alemão.

- Ótimo, perfeito. Talvez mesmo o senhor seja um compatriota nosso, hein? - Com ar malicioso, o Sturmbannführer ameaçou Thomas com o dedo. - Então, seu espertalhão? Vamos, diga logo!

Soprou uma nuvem de fumaça do seu charuto no rosto de Thomas. Thomas ficou quieto. O Sturmbannführer retomou seu ar sério.

- Veja bem, M. Hunebelle, o seu nome pouco importa, o senhor talvez pense que seja divertido, para nós, prendê-lo e interrogá-lo. Com toda essa série de bobagens que contam a nosso respeito.

O nosso dever é penoso e eu asseguro que o cumprimos contra a vontade. Um alemão, M. Hunebelle, não é talhado para esse tipo de coisas.

- Eicher sacudiu a cabeça com jeito melancólico. - Mas o serviço da pátria o exige. Nós prestamos juramento ao Führer. Após a vitória final o nosso povo deverá ter a responsabilidade de dirigir todos os outros povos da Terra. Precisamos estar preparados. Cada um, sem exceção, deverá contribuir.

- O senhor também - interveio Winter.

- Perdão?

- O senhor nos embrulhou como uns trouxas, Hunebelle. Em Marselha. Com aquela história do ouro, das jóias e das divisas. - O Sturmbannführer sorriu, bem-humorado. - É inútil negar, estamos a par de tudo. Devo confessar que o seu golpe foi bem urdido. Um rapaz astucioso.

- E sendo o senhor um rapaz tão astucioso - disse Winter em voz baixa -, vai-nos contar agora qual é o seu verdadeiro nome e onde foi parar a mercadoria De LessepsBergier.

- E também, é claro, com quem o senhor trabalhava. Já ocupamos Marselha e não teremos dificuldade em reunir os seus colegas.

Thomas ficou calado.

- E então? - disse Eicher.

Thomas sacudiu a cabeça. As coisas estavam acontecendo tal como havia imaginado.

- Não vai falar?

- Não.

- Conosco, todos acabam por falar. - A bonomia sorridente desapareceu subitamente do rosto de Eicher. - Seu vagabundo de merda - disse ele com voz rouca. - Já perdi tempo demais conversando com você. - Levantou-se, flexionou os joelhos e atirou o charuto na lareira.

- Tome conta dele - disse a Winter.

Winter levou Thomas para um subsolo onde a temperatura era muito elevada. Chamou dois homens em trajes civis. Amarraram Thomas à caldeira do aquecimento central. Depois começaram a se ocupar com ele.

A coisa durou três dias.

Trajeto no veículo com as celas, de Fresnes a Paris. Interrogatório. Sessão no subsolo. Volta à cela não aquecida.

Na primeira vez, eles cometeram o erro de espancá-lo brutalmente. Thomas desmaiou. Na segunda e na terceira vez, também. Depois da terceira sessão, Thomas tinha menos dois dentes e seu corpo estava coberto de contusões. Depois da terceira sessão, foi levado para a enfermaria de Fresnes, onde ficou durante quinze dias.

Depois, tudo começou novamente.

No dia 12 de dezembro, quando o ônibus sem janelas o trouxe, uma vez mais, a Paris, Thomas estava na lona. A idéia de que ia ser novamente supliciado era insuportável. ”Vou pular pela janela”, disse ele para si próprio. ”Agora Eicher me interroga sempre no terceiro andar. É isso, vou saltar pela janela. Com um pouco de sorte morrerei. Ah, Chantal! Ah, Bastian! Como gostaria de revêlos...”

Nesse dia 12 de dezembro de 1942, Thomas foi levado, cerca das dez horas, ao escritório de Eicher. O Sturmbannführer estava em companhia de um homem que Thomas nunca vira: alto, magro e de cabelos brancos. Esse homem vestia o uniforme de coronel da Wehrmacht e tinha o peito coberto por condecorações. Levava debaixo do braço uma volumosa pasta na qual Thomas pôde decifrar a palavra ”Gekados”.

Eicher parecia estar de mau humor.

- Eis aí o seu homem - disse ele, meio contrafeito. Tossiu.

- Eu o levarei agora mesmo - disse o coronel condecorado.

- Como se trata de um Gekados, não posso objetar, coronel. Queira assinar os documentos de entrega do detido.

Thomas Lieven teve a impressão de que a sala, que os homens, que tudo girava em torno dele. Tinha grande dificuldade em permanecer em pé, dentro do seu miserável uniforme de prisioneiro. Cambaleava, mal podia respirar, engolia saliva e lembrava-se de algo que havia lido, antigamente, num livro do filósofo Bertrand Russell: ”Em nosso século, somente o imprevisto acontece...”

Com os pulsos algemados, Thomas estava sentado ao lado do coronel de cabelos brancos, numa limousine da Wehrmacht. O coronel ficou calado até que chegaram perto de Saint-Cloud.

- Ouvi dizer que gosta muito de cozinhar, Herr Lieven - disse então.

Thomas ficou estático quando ouviu chamarem-no pelo verdadeiro nome. Nervosíssimo, com a desconfiança de quem passara semanas de tortura, ele procurava pensar. Que significava aquilo? Uma nova armadilha? Lançou um olhar para o perfil do seu companheiro. Uma cabeça interessante. Inteligente e cético. Sobrancelhas cerradas. Nariz como o bico de uma águia. Boca denotando sensibilidade. ”E daí? Em minha pátria vários assassinos tocam Bach.”

- Não sei de que o senhor está falando - disse Thomas Lieven.

- Mas claro - disse o oficial -, o senhor sabe muito bem. Eu sou o coronel Werthe, da Abwehr-Paris. Tenho o poder de salvar a sua vida ou de não salvá-la. Tudo depende unicamente do senhor.

O carro parou diante de um alto muro que circundava uma grande propriedade. O chofer fez soar a buzina três vezes. Um grande portão se abriu sem que se visse ninguém. O carro entrou na propriedade e parou junto a uma rampa coberta de cascalho fino e que ia ter a uma casa com portas-janelas, paredes de cor ocre e janelas verdes.

- Levante as mãos - disse o coronel que se apresentara com o nome de Werthe.

- Para quê?

- Para que eu possa retirar-lhe as algemas. Não vejo como o senhor poderia cozinhar com elas nos pulsos. Gostaria, se o senhor concordar, de comer escalopes cordonbleu. E crêpes Suzette. Vou mostrar-lhe a cozinha. Nanette, a empregada, o ajudará.

- Escalopes cordon-bleu - disse Thomas, com voz fraca. O mundo recomeçou a girar em torno dele enquanto o coronel abria as algemas.

”Ainda estou vivo”, pensou Thomas. ”Ainda respiro. Quem sabe o que poderá sair disso tudo.”

 

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           BERINJELAS RECHEADAS

           ESCALOPES CORDON-BLEU COM ERVILHAS

           CRÊPES SUZETTE

 

Paris, 12 de dezembro de 1942

Thomas Lieven assina um pacto com o almirante diabólico.

Berinjelas recheadas - Use berinjelas grandes e de consistência firme. Depois de limpá-las, corte ao meio no sentido longitudinal. Retire, com cuidado, toda a polpa. Junte à polpa carne de porco, de vaca, miolo de pão umedecido e uma cebola. Passe tudo no moedor. Misture a massa que sair do moedor com um ovo, junte sal, pimenta-do-reino, páprica e um pouco de pasta de anchovas. Encha com essa pasta as cascas das berinjelas.

Derrame um pouco de caldo de carne numa assadeira (porcelana ou pirex), arrume as berinjelas depois de cobri-las com queijo ralado e pedacinhos de manteiga, e leve ao forno médio durante meia hora.

Escalopes cordon-bleu - Use Sifes de vitela, bem macios. Bata-os para afinar bastante. Cubra a metade de cada escalope com uma fatia de presunto e sobre esta coloque uma fatia de queijo Gruyère de maneira que sobre uma borda da largura de um dedo. Passe clara de ovo ao redor do escalope, vire a parte livre sobre a parte guarnecida e aperte bem para que as bordas fiquem aderentes. Cubra os escalopes com farinha de rosca e coloque numa frigideira, com bastante manteiga para dourar dos dois lados. Sirva com ervilhas (das menores), com sal e salsa picada. Crêpes Suzette - Prepare as panquecas da maneira usual. Aqueça manteiga (geralmente isso se faz à mesa e usando fogareiro de álcool), evitando que escureça. Junte o suco de uma laranja (de preferência da terra) e parte da casca raspada. Acrescente, conforme o gosto, um pouco de licor marasquino, de Curaçao ou de Cointreau, bem como o açúcar que desejar. Nessa mistura aqueça uma panqueca de cada vez, enrole e sirva em prato quente.

Meia hora mais tarde, Thomas explicava a Nanette como se preparam berinjelas. Nanette era uma rapariga morena, extremamente apetecível, que usava um avental branco sobre um vestido de lã preta, muito justo. Thomas estava sentado ao lado de Nanette junto à mesa da cozinha. O coronel Werthe tinha-se retirado. É bem verdade que a janela da cozinha era guarnecida de grades...

Por várias vezes Nanette tinha-se aproximado muito de Thomas. De uma feita, seu braço roçou-lhe o rosto. Outra vez, sua anca arredondada tocara-lhe o braço.

Como mulher experimentada, Nanette sabia com quem estava lidando. A despeito dos maus-tratos e das privações, Thomas ainda parecia o que realmente era: um homem, um homem de verdade.

- Ah! Nanette - suspirou ele, por fim.

- Sim, monsieur?

- Devo pedir-lhe desculpas. Você é tão bonita, tão jovem. Acredite que noutras circunstâncias eu não estaria aqui parado, como se fosse um pedaço de pau. Mas eu estou arrebentado. Moído...

- Pauvre monsieur - murmurou Nanette. Deu-lhe um beijo rápido e ficou ruborizada.

A refeição foi servida em uma grande sala revestida de escuros lambris, cujas janelas davam para o parque. O coronel, agora à paisana, vestia uma roupa de flanela cinzenta, muito bem cortada.

Nanette servia a mesa. Seus olhares caíam, sem cessar e com compaixão, sobre o homem vestido com o uniforme velho e sujo de prisioneiro e que, entretanto, tinha os modos de um lorde inglês. Ele comia com a mão esquerda, porque dois dos dedos da direita estavam enfaixados...

O coronel Werthe esperou que Nanette servisse as berinjelas e depois:

- Suculentas, Herr Lieven - disse ele. - Verdadeiramente deliciosas. Como consegue o gratinado, se é que não sou indiscreto?

- Com queijo ralado, coronel. Que quer o senhor de mim? - Thomas pouco comia. Depois das semanas de fome que passara, não queria fazer mal ao estômago. O coronel, em compensação, comia com apetite.

- Disseram-me que o senhor é um homem de princípios. O senhor prefere ser morto a revelar o que quer que seja à SD ou a trabalhar para esses sa... para essa organização.

- Sim.

- E para a Organização Canaris? - O coronel serviu-se de outra berinjela.

- Como conseguiu tirar-me das garras de Eicher? - perguntou Thomas, em voz baixa.

- Foi bastante simples. Nós temos aqui, na Abwehr, um ótimo elemento, o capitão Brenner. Há muito tempo ele acompanha com interesse a sua carreira. O senhor já não é nenhum principiante, Herr Lieven. - Thomas baixou a cabeça. - Nada de falsa modéstia, por favor. Quando Brenner descobriu que a SD o tinha preso e encarcerado em Fresnes, preparamos um pequeno caso fictício...

- Um pequeno caso fictício?

Werthe indicou com um gesto da mão a pasta marcada ”Gekados” que ele havia colocado sobre uma mesinha, perto da janela.

- É um método que inventamos para recuperar certos prisioneiros da SD. Usamos antigos casos de espionagem para com eles fabricar, sem que falte uma só peça, um novo caso inexistente. Fazemos datilografar depoimentos recentes, colocando todas as assinaturas e carimbos possíveis. Isto sempre causa certa impressão. Nesses novos depoimentos, pessoas afirmam, por exemplo, que um certo Pierre Hunebelle está implicado numa série de sabotagens, com dinamite, na região de Nantes.

Nanette trouxe os escalopes.

Ela olhou carinhosamente para Thomas e, antes de sair, cortou a carne no seu prato. O coronel Werthe sorriu:

- O senhor fez uma conquista. Onde estava eu? Ah, sim. O caso fictício. Quando o nosso processo falso ficou pronto, fui visitar Eicher e perguntei se, por acaso, a SD não teria preso um tal Pierre Hunebelle. Banquei o inocente, compreende? ”Sim”, respondeu imediatamente, ”ele está em Fresnes.” Só então lhe pus sob o nariz o meu dossiê Gekados, iniciais que significam ”assunto secreto subordinado ao comando militar”.

Com isso, e fazendo soar os nomes de Canaris, de Himmler, etc, fiz que ele jurasse manter segredo e depois permiti que lesse o processo. O resto, isto é, a transferência de Hunebelle, espião de interesse capital para a causa alemã, foi coisa fácil...

- Mas, por que tudo isso, coronel? Que pretende de mim?

- É o melhor escalope cordon-bleu que comi em toda a minha vida! Bem, vamos aos fatos. Precisamos do senhor. Verdadeiramente. Temos um problema que só um homem como o senhor poderá resolver.

- Tenho horror aos serviços secretos - disse Thomas Lieven. Pensou em Chantal, em Bastian, em todos os seus amigos e o seu coração foi invadido pela tristeza. - Tenho ódio a todos eles. E os desprezo.

- São duas horas e meia - disse o coronel Werthe. - Às quatro tenho um encontro com o almirante Canaris, no Hotel Lutetia. Ele quer falar com o senhor. Pode vir comigo. Se concordar em trabalhar conosco, a Gekados nos dará os meios necessários para tirá-lo das patas da SD. Se recusar, nada mais poderei fazer pelo senhor. Serei forçado a devolvê-lo ao Èicher...

Thomas olhou-o fixamente. Passaram-se cinco segundos.

- E então? - perguntou o coronel Werthe.

- Para a frente, rolem! - gritou o sargento Adolf Bieselang, na enorme sala de ginástica.

Arquejando, Thomas Lieven virou uma cambalhota para a frente.

- Para trás, rolem! - gritou o sargento Adolf Bieselang.

Arquejando, Thomas Lieven virou uma cambalhota para trás.

Além de Thomas Lieven, mais onze cavalheiros arquejavam tal como ele: seis alemães, um norueguês, um italiano, um ucraniano e dois hindus.

O sargento Bieselang vestia o uniforme da Luftwaffe. Tinha quarenta e cinco anos, era magro, pálido e sempre pronto a estourar de raiva. Dava medo olhar para sua boca muito aberta, que permitia ver inúmeras obturações.

Acontece que a boca do sargento Bieselang estava quase sempre escancarada: durante o dia para gritar, à noite para roncar.

O campo de atividade do sargento Bieselang - viúvo havia dois anos e pai de uma menina púbere e excepcionalmente bonita - estava situado a noventa e cinco quilômetros a noroeste de Berlim, perto da localidade de Wittstock, à margem do rio Dosse.

O sargento Bieselang era instrutor de pára-quedistas, mas não - o que provocava a sua raiva - de pára-quedistas em uniformes, mas de pára-quedistas civis: energúmenos suspeitos, com funções ainda mais suspeitas. Alemães e estrangeiros. Uma corja infecta. Uns reles paisanos.

- Para a frente, rooleeem!

Thomas Lieven, aliás Jean Leblanc, aliás Pierre Hunebelle, rolou para a frente.

Era o dia 3 de fevereiro de 1943.

Fazia frio e o céu escuro cobria a província de Brandenburgo como um manto cinzento.

Thomas Lieven, o pacifista, o gourmet, o admirador do belo sexo, o que desprezava a profissão militar, o homem que odiava os serviços secretos, tinha resolvido trabalhar, mais uma vez, para um serviço secreto.

Em companhia do coronel Werthe tinha ido ao Hotel Lutetia. Lá encontrara o almirante Canaris, o homem-mistério da contra-espionagem alemã.

Thomas sabia muito bem que, se fosse entregue novamente à Gestapo, estaria morto dentro de um mês, no máximo. Já haviam encontrado sangue em sua urina.

A vida, por pior que seja, é, apesar de tudo, preferível à mais gloriosa das mortes. Apesar disso, quando na presença do almirante de cabeleira branca, ele não renegou seus princípios.

- Herr Canaris, vou trabalhar para o senhor porque não tenho escolha. Mas tomo a liberdade de declarar que me recuso a matar, a ameaçar de torturar ou de raptar quem quer que seja. Se são essas as incumbências que pretendia me dar, prefiro voltar para a Avenue Foch.

O almirante sacudiu a cabeça com um olhar melancólico.

- Herr Lieven, a missão que eu gostaria de lhe confiar tem o objetivo de evitar o derrame de sangue e de salvar vidas humanas, na medida em que isto ainda estiver em nosso poder.

- Canaris levantou a voz. - Vidas alemãs e vidas francesas. A missão é de seu agrado?

- Salvar vidas humanas sempre será de meu agrado. Sem distinção de nacionalidade ou religião.

- Trata-se de lutar contra um perigoso agrupamento de partisans franceses. Um dos nossos homens informou que um forte grupo da Resistência, recentemente formado, está tentando entrar em contato com Londres. O senhor não ignora que o War Office ajuda a Resistência francesa e dirige mesmo vários de seus grupos. O grupo que nos preocupa ainda não tem um transmissor de rádio nem dispõe de um código. O senhor é quem lhes levará ambas as coisas, Herr Lieven.

- Ah - disse Thomas.

- O senhor fala fluentemente o inglês e o francês. Viveu na Inglaterra durante anos. O senhor saltará de paraquedas como um oficial britânico e levará consigo um transmissor. Um transmissor especial.

- Ah - disse Thomas, pela segunda vez.

- Um avião inglês o levará à região. Temos alguns aparelhos capturados à raf, que utilizamos para esses casos. Antes, é claro, o senhor deverá fazer um estágio de pára-quedismo.

- Ah - disse Thomas, pela terceira vez.

Os alemães tinham ocupado Marselha. Que teria acontecido a Chantal? Estaria viva? Teria sido presa? Torturada, como ele, talvez?

Quando um pesadelo como esse o acordava, em sobressalto, Thomas ficava deitado, com os olhos abertos no horrível quarto de caserna onde roncavam e gemiam seis homens. ”Chantal! Nós queríamos ir para a Suíça para viver em paz, em paz, miséria de vida!”

Havia semanas que Thomas tentava conseguir que uma carta chegasse às mãos de Chantal. Ainda em Paris, o coronel Werthe prometera fazer o possível para que tal carta chegasse ao seu destino. Na escola de línguas Thomas entregou outra carta a um intérprete que ia seguir para Marselha. Mas Thomas mudara várias vezes de endereço no decorrer das últimas semanas. Como poderia uma resposta de Chantal chegar às suas mãos?

O frenético sargento Bieselang continuava a exercitar os seus homens impiedosamente. Depois dos exercícios em ginásio, começaram os exercícios nos campos endurecidos pelo frio e cobertos de geada. Prendiam o aluno a um paraquedas aberto. Faziam funcionar um motor de avião chumbado a uma pequena coluna. Ao impulso violento dos turbilhões de ar o paraquedas se enfunava e arrastava, implacavelmente, o pobre aprendiz pelo chão afora. Era preciso aprender como diminuir a velocidade e a saltar sobre o paraquedas, para fazer sair o ar.

Houve galos, feridas, joelhos inchados e articulações luxadas. O sargento Bieselang massacrava os seus doze alunos das seis da manhã às seis da tarde. Depois ele os fez saltar da porta de uma reconstituição de um Junker 52. Fazia-os saltar de grande altura sobre lonas seguras por quatro companheiros.

- Não dobre os joelhos, cretino. Não dobre os joelhos - berrava ele.

Se não se conservassem os joelhos rígidos, havia o risco de cair de cara no chão ou de rebentar algum músculo. O sargento Bieselang ensinava tudo que os seus alunos deviam aprender, mas ensinava de maneira cruel.

Na véspera do primeiro salto real, obrigou todos a fazerem seus testamentos, que foram colocados em envelopes e lacrados. Antes de dormir foram obrigados a arrumar todos os seus pertences, em malas.

- É para mandar às suas famílias caso vocês caiam de cara no chão, amanhã, e passem desta para melhor.

Bieselang pensava estar armando uma ratoeira psicológica: ”Vejamos quantos desses tipos vão ficar impressionados!” Ficaram todos impressionados, salvo uma única exceção:

- Onde está o seu testamento, número 7? - berrou Bieselang.

- Eu não tenho necessidade - respondeu Thomas, doce como um cordeiro. - Um homem que aprendeu com o senhor, sargento, pode saltar sem qualquer temor.

No dia seguinte o sargento Bieselang foi muito além das suas atribuições. Com os doze homens do seu grupo ele entrou, cerca das nove da manhã, num antigo e dilapidado Junker 52. A duzentos metros de altura o aparelho passou sobre o campo de pára-quedismo. Em fila indiana e presos às cordas e tiras dos paraquedas, os homens esperavam. O sinal do piloto soou.

- Preparem-se para saltar - urrou Bieselang, afrontando o vento que entrava pela porta aberta. Todos já tinham colocado os capacetes. Os hindus tinham os capacetes por baixo dos turbantes. Todos carregavam pesadas metralhadoras.

O italiano era o primeiro. Ele avançou. Bieselang bateu-lhe no ombro e o homem, abrindo os braços saltou no espaço, em direção à asa esquerda. A corda presa a um trilho de aço esticou-se e arrancou a capa de proteção do paraquedas. No ar, o italiano desapareceu, para baixo e para trás.

O número 2 saltou. Depois o número 3. ”Como a minha boca está seca”, pensou Thomas. ”Desmaiarei no ar? Irei cair e morrer? Coisa estranha: estou com uma terrível vontade de comer foie gras. Ah, por que não foi possível ficar perto de Chantal? Nós éramos tão felizes...”

Depois foi a vez do número 6, o ucraniano. O ucraniano afastou-se subitamente de Bieselang e esbarrou em Thomas.

- Não, não, não... - gritou com voz estridente, tomado por súbito acesso de pânico.

Crise de fobia. Caso típico. ”Perfeitamente compreensível”, registrou o cérebro de Thomas. Segundo o regulamento, ninguém podia ser obrigado a saltar. Os que se recusavam em dois vôos consecutivos eram dispensados do curso.

Mas o sargento Bieselang achava que o regulamento só servia para limpar o...

- Vagabundo - berrou ele -, seu borrador de calças, você vai...

Segurou o homem que tremia dos pés à cabeça, puxou-o e desferiu-lhe um brutal pontapé no traseiro. O ucraniano saiu berrando e voando pela porta do avião.

Antes que Thomas pudesse controlar a sua indignação, sentiu-se, também, agarrado. A bota do sargento o atingiu, da mesma forma e ele caiu no vazio, caiu, caiu, caiu...

Quando Thomas voltava para o alojamento, na noite de 27 de fevereiro, passou diante de uma alta cerca de arame.farpado, que separava os agentes secretos das tropas do exército do ar. Por detrás da cerca um pára-quedista o chamou.

- Eh!

- Que há?

- Você se parece com um sujeito que o Bastian me descreveu.

- Bastian? - disse Thomas com um sobressalto.

- Você se chama Pierre Hunebelle?

- Sim, sou eu... Você... você não terá, por acaso notícias de uma tal Chantal Tessier?

- Tessier? Não... só conheço esse Bastian Fabre... Ele me deu três moedas de ouro para eu entregar a carta... Preciso ir embora, meu velho, aí vem o chato do sentinela...

Thomas Lieven sentiu um envelope na mão. Sentouse em um marco da estrada. A noite caía. Fazia frio. Mas Thomas não sentia frio. Abriu o envelope, retirou a carta e começou a lê-la enquanto o seu coração batia, batia como um martelo sobre a bigorna...

Marselha, 5 de fevereiro de 1943

Meu caro e velho Pierre

Nem sei como começar esta carta. É possível mesmo que enquanto eu esteja escrevendo você já esteja comendo flores pelas raízes.

Durante as últimas semanas, escarafunchando por toda a parte, acabei encontrando um tipo que atraca dos dois lados: ele trabalha para a Resistência e para os alemães. Ele soube, em Paris, tudo que aconteceu a você. Se eu pego um desses miseráveis da SD eu o estrangulo. Segundo o tal sujeito, você agora mudou de corporação. Eu me pergunto como o fez. Parece que o transformaram em pára-quedista, em algum lugar perto de Berlim. Eu não ligo muito a certas coisas. Meu amigo Pierre, um pára-quedista alemão! Seria para rir se não desse mais vontade de chorar.

Em Montpellier, conheci um boche camarada. Eu lhe passei uns cobres.

Ele está de partida para Berlim. Entreguei-lhe a carta.

Chantal recebeu duas cartas suas, mas não foi possível encontrar quem pudesse levar as respostas.

Meu caro Pierre, bem sabe que gosto de você e é por isso que sofro muito ao escrever sobre o que se passow aqui. No dia 24 de janeiro a Kommandantur declarou que o Vieux Quartier tinha que ser evacuado.

No mesmo dia eles prenderam perto de seis mil colegas - muitos deles seus conhecidos -, fecharam mil bistrots e casas de mulheres. As mulheres lutaram como feras. Foi uma luta-livre como você nunca viu.

Os boches só nos deram quatro horas para sair, depois vieram os sapadores. Chantal, o velho Francois (Pé de Cabra, lembra?) e eu ficamos juntos até o fim. Chantal parecia bêbada ou como se tivesse cheirado cocaína. Tinha uma idéia fixa: matar o Careca, Dantes Villeforte, sabe? Foi esse miserável que entregou você à Gestapo.

Por causa disso fomos esperá-lo, escondidos atrás dum portão, na Rue Mazenod, em frente à casa onde ele vivia. Sabíamos que ele estava escondido na adega. Chantal disse: ”Agora que os boches vão dinamitar as casas ele terá que sair”. Esperamos durante horas. Nossa Senhora, que noite! O ar estava cheio de fumaça e de poeira, as casas voavam por todos os lados, homens berravam, mulheres choravam, crianças urravam...”

O ar estava cheio de fumaça e de poeira. Ouvia-se o trovejar das explosões. Os homens berravam, as mulheres choravam, as crianças urravam...

A noite caíra. O clarão sinistro das casas em chamas era a única iluminação do Vieux Quartier. Chantal estava imóvel junto a uma porta. Usava calças apertadas, jaqueta de couro e um pano vermelho para prender os cabelos. Debaixo da jaqueta, escondia uma metralhadora portátil. Seu rosto branco e felino não tinha uma contração.

Mais uma casa voou pelos ares. Caiu uma chuva de destroços.

Ouviram-se gritos, blasfêmias em alemão, e o barulho de tacões de botas.

- Puxa, diabo! Chantal, é preciso fugir daqui! - disse Bastian em tom insistente. - Os boches vão chegar a qualquer momento! Se eles nos pegam com as nossas metralhadoras...

Chantal sacudiu a cabeça.

- Você pode ir, eu fico. - Sua voz estava rouca. Ela tossiu. - O Careca está aí na adega. Esse sujo terá que sair. E quando ele sair eu o mato. Jurei que o mataria. Mesmo que seja a última coisa que eu faça na vida.

Gritos estridentes chegaram aos seus ouvidos. Olharam para o alto da rua. Soldados enxotavam um bando de mulheres. Muitas das raparigas só tinham um peignoir em cima da pele. Elas batiam, mordiam, unhavam, davam pontapés e resistiam, como feras, à ordem de evacuação.

- São as garotas da casa de Yvonne - disse Pé de Cabra.

Palavrões e gritos vinham de todos os lados.

- Atenção! - gritou Bastian, subitamente. Acompanhado por mais três homens, Dantes Villeforte

apareceu à porta da casa em frente. O Careca vestia uma jaqueta de pele de carneiro. Os seus capangas usavam grossos pulôveres. Coronhas de revólveres saíam dos bolsos das calças.

Bastian levantou a sua arma, mas Chantal abaixou o cano, com a mão.

- Não. Vai ferir as moças.

Diante deles, as mulheres continuavam lutando com os soldados.

Todo curvado, Dantes Villeforte correu em direção a um dos militares, um suboficial, tendo sempre o cuidado de se proteger atrás de um alemão ou de uma das mulheres.

Mostrou ao suboficial um cartão assinado por um certo Sturmbannführer Eicher, da SD-Paris. O Careca falou rapidamente e apontou para a porta onde estavam Chantal, Bastian e Francois.

No mesmo instante Chantal sacou a metralhadora de baixo da jaqueta e preparou-se para atirar. Mas hesitou porque ainda havia moças na sua linha de tiro.

Essa hesitação custou a vida a Chantal.

Com um riso sardônico, Villeforte, encoberto por uma das moças, ergueu a arma e descarregou-a.

Sem emitir um som, Chantal caiu no chão sujo. Um jato de sangue tingiu a jaqueta de vermelho. Ela não fazia um movimento. Seus belos olhos perderam o brilho.

- Vá - gritou Francois. - Pelo pátio. O muro!

Bastian sabia que, agora, cada segundo valia muito. Ele girou, fez fogo contra Villeforte e viu o gangster estremecer e segurar o braço esquerdo, guinchando como porco sangrado.

Depois, Bastian e Francois correram como alucinados. Conheciam cada pedra e cada passagem do Vieux Quartier.

Atrás do muro havia uma entrada para o esgoto, protegida por uma grade. Passando por ela, era possível sair do Quartier, voltando à superfície por uma outra saída...

...Conseguimos chegar ao velho canal e escapamos.

Era o que escrevia Bastian Fabre.

Thomas tirou os olhos da carta, fixou o olhar no crepúsculo e na bruma violácea que subia do chão com o cair da noite, e enxugou as lágrimas.

Estou vivendo em Montpellier. Se algum dia você passar por aqui, procure por Mile Duvál, 12 Boulevard Napoléon: é a minha nova mulher.

Pierre, que miséria, que golpe para nós. A nossa querida Chantal está morta. Vocês se amavam, eu sei. Ela contou-me que vocês talvez se casassem. Você sabe que sou seu amigo e que, como você, tenho o coração desesperado. A vida não passa de uma merda. Algum dia tornaremos a nos ver? Quando? Cuide da sua saúde, meu velho. Tenho vontade de chorar. Não posso continuar a escrever.

Bastian.

Escurecera. Thomas estava sentado sobre o marco e não se apercebia do frio. Lágrimas corriam pela sua face.

No dia 4 de abril de 1943, pouco depois da meia-noite, um avião britânico do tipo Blenheim sobrevoou uma região deserta e arborizada, entre Limoges e Clermont-Ferrand, a uma altura de duzentos e cinqüenta metros.

Descreveu uma grande curva e sobrevoou a região uma segunda vez. Duas luzes se acenderam no solo, depois três pontos luminosos, vermelhos; finalmente o sinal branco de uma lanterna elétrica.

Na carlinga do aparelho, que tinha o emblema azulbranco-vermelho da raf, havia dois pilotos e um radioperador da Luftwaffe. Atrás deles estava um homem com uma roupa marrom made in England, equipado com um páraquedas de fabricação inglesa.

Esse homem tinha documentos britânicos falsos, admiravelmente bem imitados, com o nome de Robert Almond Everett, bem como uma caderneta militar que certificava o seu posto de capitão. O seu rosto era ornado por bigodes caídos, tipo foca, e por grandes e espessas costeletas. Além disso, levava cigarros, conservas e medicamentos ingleses.

O piloto virou-se e fez um sinal com a cabeça. Thomas Lieven consultou o seu relógio de repetição: meia-noite e vinte e oito.

O radioperador ajudou-o a lançar no espaço um grande volume preso a um paraquedas. Depois ele se aproximou da porta. O radioperador apertou-lhe a mão.

Encolhendo o corpo, tal como aprendera, Thomas fez um juramento: ”Se eu escapar e algum dia tiver a oportunidade de encontrar Dantes Villeforte, eu a vingarei, Chantal, juro que a vingarei”. E sem querer pronunciou estas palavras absurdas: ”Como eu a amo!”

Em seguida, abriu os braços e saltou, em direção à asa esquerda e na escuridão da noite...

Durante os primeiros dez segundos da queda, Thomas pensou: ”É preciso que eu caia dentro do triângulo formado pelas luzes vermelhas. Ali há uma clareira livre de árvores. Se eu errar o triângulo, tenho grande probabilidade de bater com o rabo na cerca, ou melhor, num galho de um carvalho. E pensar que este mês completo apenas trinta e quatro, anos! Vamos remar um pouco com os braços. Ótimo. Estou novamente em cima do triângulo. Lá embaixo sou esperado por bravos da Resistência francesa. Pensam que vim mandado pelo coronel Buckmaster, de Londres. Se soubessem que foi o almirante Canaris, de Berlim...”

Durante os últimos dez segundos de sua descida, Thomas pensou: ”Não há nada mais infecto que este bigode de foca. Que idéia! A toda hora estou com a boca cheia de pêlos. E, ainda por cima, as costeletas. É bem a mentalidade do Serviço de Informações. Para que eu tivesse a aparência de um capitão. Como se um verdadeiro capitão inglês, prestes a executar uma missão secreta na França ocupada, não tivesse o cuidado elementar de raspar as costeletas e o bigode, justamente para parecer menos inglês. Cambada de imbecis. Podem é...”

O contato de Thomas Lieven, aliás capitão Everett, com o solo foi brutal e doloroso. Bateu com o rosto no chão, engoliu vários pêlos do bigode e lembrou-se, felizmente, de dizer palavrões em inglês.

Levantou-se lentamente. Iluminadas por dois braseiros, quatro pessoas estavam à sua frente: três homens e uma mulher. Todos vestiam jaquetas de caça.

A mulher era jovem e bonita. Cabelos louros, sobriamente puxados para trás. Maçãs salientes e olhos amendoados. Uma bela boca.

Um dos três homens era baixo e gordo, o segundo, alto e magro, e o terceiro, cabeludo como um homem das cavernas.

O baixo e gordo dirigiu-se a Thomas em inglês:

- Quantos coelhos brincam no jardim de minha sogra?

- Dois brancos, onze pretos e um malhado - respondeu Thomas com um impecável sotaque de Oxford. - Não demore em visitar o Fernandel. O barbeiro está à sua espera.

- Gosta de Tchaikóvski? - perguntou a mulher bonita e severa, em francês. Seus olhos brilhavam, seus dentes refletiam os clarões de fogo e sua mão empunhava, apontado para ele, um revólver de grosso calibre.

Ele apressou-se em dizer, com sotaque inglês, a frase. francesa que o coronel Werthe lhe ensinara, antes de sua partida de Paris: ”Eu prefiro Chopin”. A loura pareceu satisfeita, pois botou no coldre o seu mortífero instrumento.

- Podemos ver os seus documentos? - perguntou o baixo e gordo.

Thomas mostrou os documentos falsos.

- Isto é o bastante - disse o alto e magro, com timbre de voz que denotava o hábito de comando. - Seja bem-vindo, capitão Everett.

Todos apertaram-lhe a mão, com certa formalidade.

”Então a coisa não é tão complicada assim”, pensou Thomas. ”Se tivesse, uma só vez, agido com tanta infantilidade na Bolsa de Londres, estaria falido, no mesmo dia. E como!”

A operação, realmente, não apresentara grandes dificuldades. Segundo a Abwehr tinha apurado, na romântica e selvagem região semeada de pequenas florestas que domina o vale do Creuze, havia-se organizado um novo e importante grupo da Resistência, o dos maquis de Crozant, assim denominado por causa da pequena localidade de Crozant, ao sul de Gargilesse.

Os maquis de Crozant desejavam ardentemente entrar em contato com Londres e combater os alemães em cooperação com os ingleses. O grupo era considerado muito perigoso, pelo fato de agir num setor praticamente incontrolável, percorrido por importantes vias férreas e estradas de rodagem, e onde havia usinas hidrelétricas. Os vales escarpados e as colinas rochosas impediriam qualquer iniciativa alemã com unidades blindadas ou motorizadas.

Esse novo grupo tinha contato com o grupo de Limoges, que dispunha de um radiotransmissor por meio do qual se comunicava com Londres. É verdade que o radioperador era um agente duplo, que trabalhava também para os alemães. Foi assim que a Abwehr-Paris foi informada de que os maquis de Crozant desejavam ter o seu próprio transmissor.

O telegrafista traidor comunicou tal desejo aos alemães e não aos ingleses e recebeu, depois, mensagens que eram, supostamente, de Londres, mas na realidade vinham da Abwehr-Paris. Dessa forma, foi solicitado aos maquis de Limoges que informassem aos maquis de Crozant que o capitão Robert Almond Everett saltaria de paraquedas, pouco depois da meia-noite, sobre uma clareira no bosque de Crozant...

- Onde está o paraquedas com o transmissor?..

perguntou, a seguir, Thomas Lieven, aliás capitão Everett. Estava inquieto pelo que podia ter acontecido ao aparelho, com a queda. Os técnicos alemães tinham-se esmerado na sua construção.

- Em segurança - disse a bela e severa moça, sem tirar os olhos de Thomas. - Permita que eu apresente nossos amigos.

Falava rapidamente e com segurança. Dominava os seus homens como Chantal dominara a sua quadrilha. A diferença era que a loura, em vez de entusiasmo e temperamento, agia com uma frieza toda intelectual.

Thomas ficou sabendo que o gordinho era o prefeito de Crozant. O homem magro e silencioso, de ar inteligente, era um ex-tenente chamado Bellecourt. A estranha loura apresentou o terceiro homem como sendo Émile Rouff, oleiro em Gargilesse.

”Essa grã-fina de calças está-me olhando de uma maneira curiosa”, pensou Thomas Lieven. ”Eu me pergunto por quê. Esse olhar terá uma significação mais sensual que hostil? Essa mulher me provoca arrepios nas costas.”

- Há nove meses - disse o oleiro, que usava longas barbas e uma cabeleira que esvoaçava ao vento - eu jurei que não cortaria os cabelos até a destruição da máquina hitlerista.

- Não sejamos exageradamente otimistas, M. Rouff. As suas probabilidades de ver um cabeleireiro, antes de um ou dois anos, são poucas. - Thomas dirigiu-se à jovem. - E a senhora, quem é?

- Yvonne Dechamps. Sou a assistente do professor Débouché.

- Débouché? - Thomas ergueu os olhos. - O célebre físico?

- Vejo que ele também é conhecido na Inglaterra - disse a loura Yvonne, com orgulho.

”Ele também é conhecido na Alemanha”, pensou. ”Mas isso não se diz.”

- Eu julgava que o professor ensinava na Universidade de Estrasburgo.

O magro Bellecourt fitou-o.

A Universidade de Estrasburgo foi mudada para Clermont-Ferrand. Ignoram isso em Londres, capitão?

”Cretino”, pensou Thomas. ”Isto me ensina a não tagarelar.”

Estou certo de que não - respondeu friamente.

Eu é que o ignorava. Sorry, não estava bem informado.

Houve um pesado silêncio. ”Vamos ter muito cuidado. É o único jeito.” Olhou para o tenente com altivez.

- Dispomos de pouco tempo - disse ele secamente. _ Para onde vamos?

O tenente olhou-o calmamente.

- Ver o professor Débouché - disse lentamente. - Ele está à nossa espera no moinho de Gargilesse.

- Todos os locais habitados estão cheios de milicianos de Vichy - explicou Yvonne. Trocou com o tenente um olhar que não agradou nem um pouco a Thomas. ”O prefeito e o oleiro são inofensivos”, pensou ele. ”O tenente e Yvonne são perigosos. Mortalmente perigosos.”

- Quem é o radioperador do seu grupo? - perguntou.

- Eu - respondeu a loura, quase sem descerrar os lábios.

”Bem, bem. Só faltava isto.”

O professor Débouché parecia-se com Albert Einstein: um homem baixo e troncudo com uma enorme cabeça de sábio. Tinha um olhar triste e doce e o occipital saliente. Olhou longamente para Thomas Lieven, sem dizer uma palavra. Thomas fazia um esforço para suportar com sangue-frio aquele olhar calmo e penetrante. Sentiu calor e frio, alternadamente. Cinco pessoas estavam silenciosas em volta dele.

Subitamente, o professor colocou as duas mãos sobre os ombros de Thomas Lieven.

- Seja bem-vindo - disse ele. Depois, voltando-se para os outros: - Tudo vai bem, meus amigos. Sei reconhecer um homem de bem.

A atitude dos quatro ”resistentes” mudou imediatamente. Um momento antes tinham atitude reservada e silenciosa; agora falavam todos ao mesmo tempo, batiam no ombro de Thomas e o tratavam como um velho amigo. Yvonne dirigiu-se a Thomas. Seus olhos brilhantes estavam verdes como o mar e muito belos. Ela enlaçou o pescoço de Thomas e beijou-lhe a boca. O sangue subiu-lhe à cabeça, porque Yvonne beijava com o ardor de uma patriota que exprime com seu beijo os agradecimentos da nação. Depois:

- O professor Débouché - disse ela radiante.

nunca se engana quando se trata de apreciar o valor de um homem. Depositamos absoluta confiança nele. Ele é o nosso bom Deus particular.

O professor ergueu as mãos, em sinal de protesto. Yvonne continuava perto de Thomas.

- O senhor arriscou a vida por nossa causa - disse ela com voz rouca e excitante. - E nós desconfiamos do senhor. Tem toda a razão de estar magoado. Perdoe-nos, por favor.

Thomas contemplou o bom sábio de cabelos brancos, o homem das cavernas, o tenente que pouco falava, o gordo e engraçado prefeito: todos homens que amavam a pátria. ”Vocês é que deveriam perdoar-me”, pensou ele. ”Tenho vergonha. Que deveria eu fazer? Que poderia eu fazer? Eu queria - e ainda quero - salvar-lhes as vidas. E a minha também.”

Thomas trouxera verdadeiras conservas do Exército inglês, autênticos cigarros ingleses, fumo para cachimbo e uísque escocês com a etiqueta: ”For Members of His Majesty’s Royal Air Force Only”. Todos esses excelentes artigos haviam sido capturados pelo Exército alemão.

Os maquis abriram uma garrafa e o saudaram como a um herói. Sentia-se cada vez mais envergonhado.

Para parecer mais inglês, fumou um cachimbo pela primeira vez em sua vida. A fumaça irritava-lhe a garganta. O uísque pareceu-lhe ter gosto de óleo. Ser considerado por todos como um amigo, um camarada, dava-lhe náuseas. Todos o tratavam com admiração e respeito. E aquela maneira como Yvonne o olhava! Aquela intelectual fria que agora tinha os olhos brilhantes e úmidos e os lábios entreabertos...

- O que precisamos com urgência - disse o oleiro - é dinamite e munição para as nossas armas.

O tenente Bellecourt informou que os maquis de Crozant, que eram aproximadamente sessenta e cinco, tinham pilhado dois depósitos franceses de armas e um depósito alemão.

- Temos - disse ele com certo orgulho - trezentas e cinqüenta carabinas Lebel, sessenta e oito metralhadoras portáteis inglesas da marca Sten, trinta lança-granadas alemães de cinqüenta milímetros, cinqüenta fuzis-metralhadoras modelo FN e mais vinte e quatro do Exército francês.

”Puxa, que apetite!”, pensava Thomas Lieven.

- Sem contar dezenove metralhadoras Hotchkiss, de tripé.

- Mas não temos munição - disse o prefeito de Crozant.

”Isto já é bem melhor”, pensava Thomas.

- Daremos informações detalhadas a Londres - disse o velho professor. - Tenha a bondade, capitão, de explicar o código e como funciona o transmissor.

Thomas começou a explicar. Yvonne compreendeu imediatamente o sistema de cifragem baseado na intervenção múltipla das letras e a introdução de grupos de várias palavras no lugar de uma só. Thomas ficava cada vez mais triste. ”Eu é que engendrei toda essa porcaria. E está funcionando. Eu esperava que não desse certo. E agora...”

Ligou o aparelho.

- Faltam cinco minutos para as duas - disse ele. - Às duas horas, exatamente, Londres aguarda a nossa primeira mensagem. Na freqüência de setecentos e setenta e três quilohertz. - Era a regulagem feita pelos técnicos alemães. - Os senhores se farão anunciar como ”Rouxinol dezessete”. Chamarão o posto duzentos e trinta e um no Ministério da Guerra, Londres. É o gabinete do coronel Buckmaster, do Special Operation Branch. - Levantou-se.

O ponteiro dos segundos fazia a última volta antes de chegar às duas horas da manhã. Faltavam quinze segundos. Dez. Cinco. Mais um...

Pronto.

Yvonne começou a transmitir. Os homens se aproximaram dela: o gordo prefeito, o magro tenente, o velho professor, o hirsuto oleiro.

Thomas ficara ligeiramente afastado do grupo.

”Começou”, pensava ele. ”Irremediavelmente. Que os céus os protejam a todos. E a mim também...”

- Olá - disse o cabo Schlumberger, natural de Viena -, aqui estão eles. - Com os fones nos ouvidos, ele estava sentado diante do receptor. Numa outra mesa, o cabo Raddatz examinava, com a atenção de um conhecedor, as fotografias de uma revista ”artística” francesa.

Schlumberger chamou-o, com um gesto.

- Deixe de lado as garotas. Venha até aqui. Suspirando, o cabo Raddatz, de Berlim-Neukõlln, tirou

os olhos de uma beleza de pele de ébano e foi sentar-se junto ao colega.

- Mais algumas patifarias como esta - resmungou ele colocando os fones nos ouvidos - e a vitória final está garantida.

Ambos anotaram a mensagem que chegava sob a forma de sinais longos e curtos, através da noite, do nevoeiro e de centenas de quilômetros, transmitidos pela mão de uma mulher que estava num velho moinho, na margem do Creuze.

O texto correspondia, exatamente, ao que Schlumberger tinha sob os olhos e que lhe fora entregue por Thomas Lieven, seu novo e esquisito chefe, ao deixar Paris oito horas antes.

”gr 18 34512 etkgo nspon crags”, dizia o princípio do texto que estava sobre a mesa do cabo vienense. E era exatamente ”gr 18 34512 etkgo nspon crags” que ele recebia, na freqüência setecentos e setenta e três.

- Está funcionando que é uma beleza - rosnou o vienense.

- E se os tipos de Londres também estiverem escutando? - perguntou o cabo de Neukõlln.

- Nesta freqüência, eu duvido muito - disse Schlumberger.

Eles estavam numa mansarda do Hotel Lutetia. Schlumberger anotava, os sinais. Raddatz bocejava.

- Escute aqui, Karl - perguntou ele -, você já... esteve com uma negra?

- Você vai ou não calar a boca?

- Se nós, os alemães - disse tristemente Raddatz -, nos interessássemos mais pelas mulheres, não estaríamos sempre nos metendo em guerras.

Schlumberger continuava escrevendo.

- Tudo isso é uma porcaria - disse Raddatz. - O maior imbecil sabe que não podemos ganhar esta guerra.

Por que é que esses generais de merda não querem parar? Nos fones de Schlumberger cessaram os sinais. Ele inclinou-se para trás e depois transmitiu, conforme as instruções: ”Fiquem na escuta”.

- Eu lhe perguntei - rosnou Raddatz - por que esses salafrários não acabam com isso.

- Impossível. Hitler mandava-os logo para o paredão de fuzilamento.

- Hitler. Hitler. Só ouço isto! Hitler somos nós todos. Nós é que o elegemos. Nós é que berramos ”Heil”. Como fomos cretinos! Deveríamos ter pensado, em vez de engolir tudo que diziam.

Continuaram por algum tempo esta conversa pouco marcial, e depois Schlumberger começou a transmitir a mensagem cifrada que lhe havia deixado o Sonderjührer1 Lieven. Decifrada, a mensagem era a seguinte: ”Posto 231 Ministério da Guerra Londres para Rouxinol 17. Recepção sua mensagem boa. Cumprimentos novos membros nosso Special Operation Branch. Entrem em contato diariamente à hora combinada. Daremos sempre instruções. Iremos buscar capitão Everett hoje 4 de abril 1943...

”... cerca das dezoito horas na clareira por avião Lysandre. Viva a França, viva a liberdade. Buckmaster. Terminado”, decifraram cinco homens e uma jovem mulher, em um moinho na margem do Creuze. Eles deram pulos de alegria, abraçaram-se e dançaram de tão contentes. Já eram quase três horas da madrugada quando todos foram dormir.

 

1 Chefe especial. (N. do E.)

 

Yvonne pedira a Thomas que fosse ao seu quarto dar maiores explicações sobre o transmissor-receptor. Com o folheto de instruções, em inglês, na mão, ele bateu à porta. Estava cansado e triste. Só pensava em Chantal.

- Um momento - disse a voz de Yvonne, do outro lado da porta. ”Ela acaba de se despir”, pensou ele, ”e está enfiando um peignoir”. Esperou. Depois ouviu: ”Entre, capitão”.

Ele abriu a porta.

Estava enganado. Se Yvonne estava de peignoir no momento em que ele batera, já não o’ tinha mais. No pequeno quarto rústico e muito aquecido, ela estava tal como nascera.

”Oh, não”, disse Thomas a si mesmo, ”isto não! A princípio ela desconfiou de mim. Agora quer provar que tem muita confiança... Não, não posso fazer isto. Chantal, minha pobre querida...”

Colocou o folheto sobre uma cômoda, corou como um colegial e disse, rapidamente:

- Peço muitas desculpas. Depois, saiu do quarto.

Yvonne ficou imóvel. Seus lábios tremiam. Mas ela não chorou. Cerrou os punhos. Seus sentimentos mudaram, bruscamente. ”O safado! Esse inglês frígido. Ele me pagará bem caro!”

Foi o tempo necessário para abrir e fechar uma porta. Uma mulher ansiosa por amor transformara-se em inimiga mortal.

De manhã, Yvonne havia desaparecido. Ninguém sabia para onde teria ido. Em seu quarto encontraram um bilhete que dizia:

Fui antes que vocês, para Clermont-Ferrand. Yvonne.

- Que idéia - comentou aborrecido o prefeito gordo. - Agora quem vai cozinhar? Nós queríamos oferecerlhe um almoço de despedida, capitão.

- Se os senhores deixarem o fogão à minha disposição...

- Não! O senhor sabe cozinhar?

 

                           MENU

         ROAST-BEEF COM GUARNIÇÃO DE LEGUMES

         DRIPPING-CAKE

         PUDIM DE MAÇÃ À INGLESA

 

4 de abril de 1943

A cozinha de Thomas Lieven domestica até os recalcitrantes...

Roast-beef - Coloque numa grande frigideira um bom pedaço de carne de costela de boi, sem osso, depois de deixar bastante tempo fora do refrigerador. Molhe abundamentemente com manteiga, fervendo com um pouco de gordura de rim. Leve ao fogo apenas o tempo necessário para a carne começar a tomar cor, de todos os lados. Salgue e polvilhe levemente com pimenta-do-reino.

Na própria frigideira, leve a carne ao forno pré-aquecido, durante quarenta e cinco minutos, primeiro a alta temperatura e depois a fogo médio. Molhe seguidamente com o próprio caldo mas evite, tanto quanto possível, acrescentar água. Pode virar o assado freqüentemente mas, durante o período final, a parte gordurosa do assado deverá ficar para cima.

Não corte a carne logo que a retirar do forno, do contrário ela perderá o suco e adquirirá uma cor acinzentada. Deixe o assado repousar durante alguns minutos.

Pode-se, também, assar o roastbeef na grelha do forno e assim recolher a gordura que escorre para fazer o dripping-cake.

Dripping-cake - Bata cinco ou seis ovos com cento e vinte e cinco gramas de farinha de trigo, meio litro de leite e um pouco de sal. Despeje tudo sobre a gordura quente que ficou do roast-beef. Leve ao forno quente durante dez minutos. Nesse momento, o fundo da mistura já estará solidificado e a parte de cima ligeiramente consistente. Corte o dripping-cake em pedaços e coloque-os em torno das fatias cortadas ao roast-beef.

Pode-se também fazer este prato sem o roast-beef. Nesse caso usa-se toucinho derretido, em vez da gordura da carne, e apresenta-se com o nome de Yorkshire pudding. Pudim de maçãs - Use meio quilo de farinha de trigo peneirada e meio quilo de gordura de rim (na Inglaterra usase a gordura branca de rim de carneiro para diversos pratos), que se deixa na água durante toda uma noite, depois de cortar em pedaços muito finos. Adicione uma boa colherada de gengibre em pó e um pouco de sal e misture bem. Acrescente água fria e misture até formar uma massa que não pegue nos dedos. Abra a massa com um rolo.

Coloque um guardanapo em uma vasilha funda e polvilhe com farinha de trigo. Ponha a massa, bem estendida, sobre o guardanapo e sobre ela, pedaços grandes de maçãs ácidas (descascadas). Cubra tudo com a massa, tendo o cuidado de fazer com que o recheio fique perfeitamente vedado.

Amarre as pontas do guardanapo (com tudo dentro, é claro) e faça cozinhar durante duas horas, sem interrupção, em água com duas colheres, das de sopa, de sal.

Sirva sem qualquer calda, mas simplesmente com açúcar.

Pode-se melhorar este pudim fazendo ferver, durante minutos, os pedaços de maçã, antes de colocá-los na massa e adicionando ao recheio manteiga, passas, corintos, açúcar e um pouco de rum.

- Um pouco - disse modestamente Thomas. E preparou a refeição. Como não poderia deixar de ser, foi uma refeição muito, muito inglesa. Ele não ignorava que o que ia preparar poderia diminuir a sua reputação entre os franceses que iriam comer.

Mas o seu roast-beef foi unanimemente aprovado. Somente os legumes que acompanhavam a carne suscitaram críticas do prefeito:

- Diga-me, tudo isso é cozido simplesmente em água e sal?

- Sim - respondeu Thomas, retirando alguns fios do bigode de dentro da boca. - É assim que nós, ingleses, gostamos dos legumes.

Prosseguiu numa conversa dupla, porque, ao mesmo tempo, o professor Débouché falava sobre as dificuldades que a Resistência encontrava, em Clermont-Ferrand, com os falsos documentos de identidade:

- De algum tempo para cá, as patrulhas exigem a carteira de identidade e o cartão para alimentação. Na sua opinião, capitão, qual seria o melhor método para nos proteger?

-- De que é feita a guarnição do roast-beef? - perguntou o guloso prefeito.

- Um assunto depois do outro - respondeu Thomas Lieven. - A massa é feita com leite, ovos e farinha de trigo, tudo batido junto. Sem o roast-beef, chamamos este prato de Yorkshire pudding; com o roast-beef chamamos de dripping-cake.

Depois voltou novamente a atenção para o professor. Os momentos que se seguiram fizeram dele o fundador de uma superoficina de documentos falsos.

- Os documentos falsos não devem ter uma só falha, professor - disse ele. - Os senhores certamente têm homens de confiança em todas as repartições, não é? Tudo deve coincidir exatamente: carteira de identidade, carteira militar, boletim de recenseamento, cartões de alimentação e de fumo. Um único nome falso para tudo e o mesmo registro em todas as repartições.

A sugestão de Thomas Lieven foi aceita e logo posta em prática de uma forma tal que os alemães tiveram muita dor de cabeça! Uma verdadeira avalancha de ”verdadeiros documentos falsos” inundou a França e salvou muitas vidas humanas.

No dia 4 de abril de 1943, ao escurecer, um avião Lysander da raf desceu na pequena clareira sobre a qual Thomas Lieven havia saltado dezoito horas antes. Um piloto, vestindo uniforme britânico, dirigia o aparelho. Esse piloto nascera em Leipzig. Fora escolhido pela Abwehr porque falava inglês, infelizmente com um sotaque saxônico.

Nessas condições, o piloto falava pouco e contentava-se em fazer continências... à moda alemã, o que fez gelar o sangue nas veias de Thomas Lieven.

Com um gesto marcial o piloto levava a mão à pala do boné com a palma em ângulo reto com o rosto e não inclinada para frente como faziam os ingleses.

Nenhum dos novos amigos franceses de Thomas Lieven pareceu notar a continência. Houve abraços, fortes apertos de mão e troca de votos de felicidade.

- Felicidades - gritaram os homens.

Thomas entrou no avião, descompondo o piloto, em voz baixa: - Grande cretino!

Depois ergueu os olhos. Longe, na orla do bosque, estava Yvonne, com as mãos enfiadas nos bolsos da jaqueta. Ele agitou o braço. Ela não se mexeu. Ele repetiu o gesto. Ela ficou parada, como se fosse de mármore.

Ao sentar-se no banco do avião, sentiu nitidamente que entre ele e aquela mulher não estava tudo acabado Longe disso.

A operação Rouxinol 17 corria normalmente, tal como Thomas tinha esperado.

Todas as noites, cerca das vinte e uma horas, os maquis de Crozant chamavam e os cabos Schlumberger e Raddatz, no Hotel Lutetia, recebiam a mensagem. Os maquis esperavam que a comunicação fosse decifrada e, depois, recebiam a resposta apropriada do ”coronel Buckmaster, posto

231, Ministério da Guerra, Londres”.

Dois outros homens assistiam a esse ritual: o coronel Werthe e esse capitão Brenner, que há tanto tempo e tão interessadamente seguia a carreira de Thomas Lieven. Este, na pessoa do capitão Brenner, conheceu o protótipo do soldado profissional: frio, limitado, pedante, nem desonesto nem nazista, mas um verdadeiro boneco mecânico que trabalhava como uma máquina, sem sentimentos, sem idéias críticas e praticamente sem coração.

O capitão Brenner, baixo, empertigado e com óculos de aro de ouro e gestos enérgicos, não compreendia nada do que chamava: ”Esse cinema Rouxinol 17”.

No princípio, Thomas enviava aos maquis de Crozant instruções protelatórias. Entretanto, Rouxinol 17 pedia para agir. Queriam tomar a ofensiva. Reclamavam munições para as suas armas.

Em vista disso, a equipagem alemã de um avião inglês capturado deixou cair, numa tépida noite de maio, quatro caixas de munições, presas a paraquedas, sobre a floresta entre Limoges e Clermont-Ferrand. Essas munições só tinham um defeito: nem o tipo nem o calibre correspondiam aos das armas dos maquis de Crozant.

O resultado foi uma interminável troca de mensagens pelo rádio. Mais dias passaram. ”Londres” lamentava o engano cometido. O engano seria reparado logo que tivessem conseguido as munições adequadas e que provinham de depósitos alemães e franceses.

”Londres” encarregou os maquis de Crozant de estabelecer depósitos de víveres.

Era um fato conhecido que a população daquela região de difícil acesso passava fome. E os homens famintos podem se transformar em perigosos fanáticos...

Novos aviões ingleses, pilotados por alemães, sobrevoaram a região. Desta feita soltaram paraquedas com conservas capturadas aos ingleses, medicamentos ingleses, uísque, cigarros e café.

O capitão Brenner não entendia mais nada.

- Nós bebemos Pernod falsificado e os senhores da Resistência bebem uísque escocês. Eu fumo caporal francês, os terroristas fumam provavelmente Henry Clay. Estamos paparicando esses sujeitos para que eles engordem. Isto é uma loucura, senhores, uma pura demência!

- Não é demência - replicou o coronel Werthe. - Lieven tem razão. É a única maneira de impedir que esses homens se tornem perigosos. Eles podem sabotar vias férreas e fazer ir pelos ares as usinas elétricas e depois esconderem-se em vários lugares sem que apanhemos um só deles.

Em junho de 1943, Rouxinol 17 mostrou tal agitação e impaciência que Thomas mudou de tática: os aparelhos ingleses com tripulações alemãs deixaram cair sobre a região caixas com munições que realmente serviam para as armas dos maquis.

Mas, pouco tempo depois, os maquis de Crozant receberam as seguintes instruções:

”Os maquis de Marselha foram incumbidos de operações de sabotagem e de guerrilha, de grande envergadura. É indispensável que, temporariamente, vocês ponham suas armas e munições à disposição dos seus camaradas”.

O transmissor de Crozant lançou seus veementes protestos.

Mas ”Londres” ficou inflexível. Os maquis de Crozant foram informados, com precisão, sobre a hora e o local da entrega das armas.

Numa noite tempestuosa, no bosque à beira da estrada que vai de Bellac a Mortemart, as armas mudaram de proprietário. Os novos proprietários, que tinham modos muito franceses, afastaram-se em seus caminhões. Quando se afastaram dos maquis, voltaram a falar, como de costume, na gíria dos soldados alemães.

No princípio de julho, o coronel Werthe veio a saber, pelo telegrafista traidor dos maquis de Limoges, que os maquis de Crozant estavam indignados com Londres. Uma tal Yvonne Dechamps incitava os homens. Estariam eles realmente em contato com Londres? Um tal capitão Everett parecera suspeito a Yvonne e ainda mais o piloto da raf que o viera buscar e fizera continência como um boche.

- Mas que merda! - disse Thomas quando soube desses fatos. - Eu sabia que isto aconteceria algum dia. Só nos resta uma solução, coronel.

- Qual é?

- É preciso darmos a Rouxinol 17 as ordens e a possibilidade de executar um ato de sabotagem sério e autêntico. Precisamos sacrificar uma ponte, uma linha de estrada de ferro ou uma usina elétrica para podermos salvar, em contrapartida, muitas usinas, pontes e estradas de ferro.

O capitão Brenner, que ouvia a conversa, fechou os olhos.

- Ele perdeu a tramontana - gemeu. - O Sonderführer Lieven está completamente biruta.

O coronel Werthe também manifestou uma certa agitação.

- Há um limite para tudo, Lieven. Realmente. Isso que o senhor pede é demais.

- Eu lhe peço uma ponte, coronel! - começou a berrar Thomas. - Falando sério, é impossível que não exista uma ponte na França que não nos seja indispensável.

 

O elevador parou no terceiro andar do Hotel Lutetia, requisitado para os serviços da Abwehr. Um homem de trinta e quatro anos saltou. Era magro, de estatura média, e tinha um bigode de foca.

O franzino cabo Raddatz, berlinense, enfiou no bolso o último número da revista de nus Regal e levantou-se, de um salto, estalando os calcanhares.

- Heil Hitler, chefe!

- Os cabos Raddatz e Schlumberger, dos serviços de rádio, às suas ordens, chefe - berrou o vienense em atitude exageradamente marcial.

- Heil Hitler! Seus vagabundos de uma figa - respondeu sorrindo o mais bizarro dos chefes de operações especiais jamais saído do Terceiro Reich. - Vocês já ouviram Londres?

- Sim, chefe - respondeu o vienense mantendo a posição de sentido. - Ainda há pouco.

Os três homens encontravam-se todas as noites havia três semanas e, todas as noites, antes que outros chegassem, usavam, de forma ilegal, as excelentes instalações de rádio do Exército alemão. Ouviam Londres diariamente.

- Churchill fez um discurso - disse o gordo Schlumberger. - Se os italianos continuarem do nosso lado, agora que Mussolini está encrencado, certamente merecerão ser castigados.

No dia 25 de julho, cinco dias antes, Vitorio Emanuele, rei da Itália, mandara prender Mussolini.

Na mesma data começaram os bombardeios, à luz do dia, de Kassel, Remscheid, Kiel e Bremen.

- Com mil raios - suspirou Raddatz -, as coisas estão andando depressa! Na Rússia, estamos apanhando para valer, no lago Ladoga e em Orel. Os italianos estão levando uma surra, na Sicília.

- E aqueles cavalheiros em Berlim continuam a bancar os importantes - disse Thomas sentando-se. - Não se pensa em parar. Não se admite tal hipótese.

Schlumberger e Raddatz, que serviam desde o princípio da guerra e conheciam todos os truques, sacudiram a cabeça, com ar triste. Haviam obtido algumas informações sobre Thomas Lieven. Sabiam que ele fora torturado pela Gestapo antes que o coronel Werthe o tirasse das adegas da SD, na Avenue Foch.

Thomas se havia refeito bastante bem das conseqüências de sua prisão e das horríveis sessões de interrogatório. Seu corpo ainda tinha, em vários lugares, terríveis cicatrizes, mas as roupas impecáveis que ele novamente usava cobriam-nas completamente.

- O coronel Werthe e o capitão Brenner não tardarão a chegar. Antes disso, peço a fineza de cifrar esta mensagem.

Colocou uma folha de papel sobre a mesa do berlinense. Raddatz leu, com estupefação:

- Com mil raios! - disse ele. - Cada vez mais incrível! Dessa forma parece evidente que, apesar de tudo, ainda vamos ganhar esta guerra. Olhe para isto, Karl.

O vienense leu e coçou a cabeça.

- Não entendo nada - foi o seu breve comentário.

- Calma, calma - disse Thomas. - Codifiquem a mensagem.

O texto era o seguinte:

”Para Rouxinol 17 - bombardeiro raf deixará cair no dia 1.° de agosto, entre vinte e três horas e vinte e três e quinze, invólucro de explosivo plástico sobre quadrado

167 - no dia 4 de agosto, exatamente à meia-noite, façam saltar ponte preta entre Gargilesse e Eguzon. Sejam pontuais. Boa sorte. Buckmaster”.

- Muito bem, senhores. Por que esses olhares atônitos?

- Isto é uma das brincadeiras do chefe, George - disse o vienense. - Deve ser uma pontezinha de cacaracá, entende?

- Essa ponte, senhores, atravessa o rio Creuze e leva à Route Nationale 20. É uma das mais importantes do planalto central. Ela domina a localidade de Eguzon, onde está a barragem da usina elétrica que abastece a maior parte do centro da França.

- E é justamente essa ponte que vai ser destruída?

- Tomara Deus que sim - disse Thomas. - Eu tive muito trabalho para achar essa ponte.

Desde o dia 4 de julho de 1943 Thomas procurava uma ponte. Como primeira fonte de informações ele escolheu o QG do general von Rundstedt, comandante-chefe no oeste. Nesse QG ele falou com três coronéis dos quais exigiu solenes juramentos de manter segredo, e pediu que submetessem a sua modesta solicitação às patentes superiores.

O primeiro coronel mandou que falasse ao segundo que, por sua vez, mandou-o ao terceiro. O terceiro botou-o pela porta afora e apresentou um relatório ao seu general. O general mandou o relatório ao Hotel Lutetia, acompanhado de suas próprias observações sobre a inadmissível ingerência da Abwehr em assuntos de ordem militar, como o era, evidentemente, a destruição de uma ponte.

Entrementes, os pés ágeis de Thomas já o tinham levado ao departamento técnico do Estado-Maior, onde ele explicou o que desejava a um certo coronel Ledebur. Isso às onze horas e dezoito minutos.

Às onze e dezenove a campainha do telefone do pedante e ambicioso capitão Brenner, no Hotel Lutetia, começou a soar. O miúdo e empertigado oficial de carreira, com a impecável risca nos cabelos e óculos de aro de ouro, pegou o fone e disse quem era. Depois, inclinou-se, com rigidez, ao saber que falava com um certo coronel Ledebur.

As palavras do seu superior hierárquico fizeram o capitão corar.

- É exatamente o que sempre pensei, coronel.

gritou ele. - É precisamente a minha opinião. Mas eu estou de mãos atadas. Lamento muito, coronel, mas o que posso fazer é pô-lo em contato com o coronel Werthe.

Werthe ouviu o outro coronel. Ao contrário do capitão, o coronel empalideceu quando ouviu o que tinha a dizer o seu colega.

- Obrigado por ter me avisado, coronel - disse ele por fim, com dificuldade. - Posso assegurar, entretanto, que o Sonderjührer Lieven não está maluco. De maneira alguma. Irei pessoalmente buscá-lo.

Desligou. O capitão Brenner se aproximara. Os vidros dos seus óculos lançavam chispas.

- Coronel, peço respeitosamente permissão para lembrar que eu chamei a atenção, por várias vezes, sobre esse homem. Ele realmente não é normal.

- Ele é tão normal como o senhor ou eu. Além disso, Canaris tem absoluta confiança nele. Aqui entre nós: a sua idéia de lutar contra a Resistência por métodos pacíficos não tem provado ser a melhor de todas? Abra os olhos, Brenner. Somente durante os últimos meses os maquis assassinaram duzentas e quarenta e três pessoas, atacaram trezentos e noventa e um trens e praticaram oitocentos e vinte e cinco atos de sabotagem nas indústrias. Apenas um setor ficou absolutamente calmo. O setor de Lieven.

No dia 11 de julho, Thomas Lieven chegou, de avião, ao quartel-general da Organização Todt. Devia procurar um engenheiro chamado Heinze. O nome escrito na porta que ele abriu, às onze horas da manhã, era ”Heinze”.

Na sala em que entrou havia duas grandes mesas de desenho, e diante delas dois homens de elevada estatura discutiam. Discutiam com tal violência que nem se aperceberam da entrada de Thomas Lieven. Ambos vestiam aventais brancos sobre os uniformes, gesticulavam e gritavam.

- Eu não assumo qualquer responsabilidade.

O primeiro tanque que passar pode provocar o desmoronamento!

Muito bem. Então sera preciso ir ate Argenton para encontrar outra ponte sobre o Creuze.

E eu com isto? O Exército terá que utilizar outra ponte, mesmo que tenha que andar mais. Eu repito: a ponte preta de Gargilesse é um perigo público. A sustentação do tabuleiro apresenta grandes fissuras. O meu inspetor quase desmaiou quando verificou a situação.

- Reforce a construção com estacas de aço.

- Que idéia! Você sabe muito bem que isso não adiantaria nada.

”A ponte de Gargilesse”, pensou Thomas. ”Fantástico! Absolutamente fantástico! Poder-se-ia dizer que os fatos vieram ao encontro dos meus desejos e dos meus sonhos. Os fatos vieram ao meu encontro...”

- Pense na usina elétrica. Na barragem. Se a ponte ruir haverá uma interrupção no fornecimento de energia.

- Nada disso acontecerá se nós a fizermos ir pelos ares. Nada impede que improvisemos um desvio na linha de transmissão antes de a ponte cair. Mas, se amanhã, aquela joça ruir por si mesma então haverá uma longa interrupção. Eu... que deseja o senhor?

Finalmente, a presença de Thomas Lieven fora notada. Ele inclinou-se:

- Gostaria de conversar com Herr Heinze - disse ele em tom calmo.

- Sou eu. De que se trata?

- Herr Heinze - disse Thomas -, creio que a nossa futura colaboração será iniciada sob os melhores auspícios.

Tal colaboração se desenvolveu, realmente, de maneira perfeita. A partir de 15 de julho os planos da Organização Todt e os da Organização Canaris relativos à ponte preta, ao sul de Gargilesse, estavam perfeitamente coordenados. Foi quando Thomas, aliás, ”coronel Buckmaster, Ministério da Guerra, Londres”, transmitiu aos maquis de Crozant as seguintes instruções:

”Preparem imediatamente uma lista das pontes importantes em seu setor. Anotem tipo e freqüência dos movimentos de tropas”.

Durante vários dias e várias noites os da Resistência ficaram alertas, escondidos sob os arcos das pontes ou camuflados entre os galhos de árvores, no topo de moinhos e celeiros. Com seus binóculos contavam os tanques, os caminhões e as motocicletas, e anotavam tudo com lápis e papel. Todas as noites, às vinte e uma horas, transmitiam a ”Londres” os resultados das suas observações. Havia a ponte de Feurs, a ponte de Macon. A ponte de Dompierre. A ponte de Nevers. E a grande ponte preta, ao sul de Gargilesse, em frente à barragem da usina elétrica de Eguzon.

No dia 30 de julho, cerca das vinte e uma horas, Yvonne Dechamps, o professor Débouché, o prefeito Cassier, o tenente Bellecourt e o oleiro Émile Rouff estavam reunidos na sala do velho moinho de Gargilesse. Uma espessa fumaça de cigarros flutuava no ar.

Yvonne tinha os fones nos ouvidos e captava a mensagem cifrada que lhe transmitia de Paris o gordo cabo Schlumberger:

”sv 2154621 lhvhi rhwea riehr ctbgs twoee...”

Os homens, em torno de Yvonne Dechamps, respiravam nervosamente. O professor limpava as lentes dos óculos. O tenente Bellecourt umedecia constantemente, com a língua, os lábios ressequidos.

”sntae siane krodi lvgap...” Schlumberger transmitia do último andar do Hotel Lutetia, em Paris. Os homens em volta dele, Thomas Lieven, o baixo capitão Brenner e o coronel Werthe, respiravam nervosamente. Brenner tirou os óculos de aro de ouro e começou a limpar as lentes com o maior cuidado.

Às vinte e uma e vinte, ”Londres” parou de transmitir. No velho e pitoresco moinho à beira da Creuze os chefes maquis de Crozant decifraram a mensagem, que começava assim:

”Para Rouxinol 17 - bombardeiro raf deixará cair no dia 1.° de agosto, entre vinte e três horas e vinte e três e quinze, invólucro com explosivo plástico sobre o quadrado 167 - no dia 4 de agosto exatamente à meia-noite façam saltar a ponte preta entre Gargilesse e Eguzon...”

Logo que o radiograma foi decifrado, todos começaram a falar ao mesmo tempo. Somente Yvonne ficou calada. Com as mãos cruzadas no colo, continuou sentada em frente ao receptor. Pensava naquele estranho capitão Everett que tantas suspeitas lhe causara.

O professor falava com os homens. Yvonne mal o ouvia. Seus pensamentos e pressentimentos eram pouco razoáveis e mesmo insensatos. Tinha uma dolorosa certeza de que algum dia - só Deus saberia onde e quando - ela tornaria a ver o capitão Everett...

Em torno dela elevava-se o tom das vozes. Yvonne teve um sobressalto. Compreendeu que uma discussão se estabelecera entre o prefeito, o oleiro e o professor.

- Isto aqui é a minha terra! - disse o ambicioso Cassier, batendo na mesa. - Conheço-a palmo a palmo. Eu é que vou dirigir a colocação do plástico!

- Aqui não se bate na mesa, meu amigo - disse calmamente o sábio. - O tenente Bellecourt é quem dirigirá as operações. Trata-se de um especialista. O senhor obedecerá às suas ordens.

- Sempre Bellecourt! - exclamou o prefeito. - Isto é para desanimar. Quem organizou o maquis de Crozant? Rouff, eu e mais alguns agricultores.

- É exato, foi gente daqui! - gritou o oleiro. - Vocês só vieram depois.

Yvonne fez um esforço para não pensar mais no capitão Everett.

- Acabem com essa discussão - disse ela, em tom frio. - Faremos o que o professor disse. É verdade que só nos juntamos ao grupo mais tarde, mas fomos nós que lhe demos uma organização eficiente. Foi graças a nós que vocês conseguiram o aparelho transmissor-receptor. E fui eu que lhes ensinei como trabalhar com ele.

O prefeito e o oleiro calaram-se. Sem que Yvonne percebesse, entretanto, trocaram olhares maliciosos e espertos, de velhos camponeses...

No dia 1.° de agosto, às vinte e três e dez, um bombardeiro britânico, recuperado pelo Exército alemão, deixou cair sobre o quadrado 167 um grande invólucro especial, cheio de explosivo plástico ”made in England”.

No dia 2 de agosto de 1943, um certo Heinze, da seção parisiense da Organização Todt, apareceu na usina de Eguzon e combinou com os engenheiros todas as medidas a tomar em caso de destruição da ponte vizinha à barragem.

No dia 3 de agosto, o mesmo Heinze apresentou-se ao comandante de um batalhão alemão e combinou, fazendo-o jurar segredo, que todos os pontos de guarda e patrulhas se afastariam da ponte preta, entre as vinte e três e trinta e meia-noite e meia do dia 4 de agosto.

No dia 4 de agosto, aos oito minutos, a ponte foi pelos ares com terrível estrondo. Não houve um só ferido.

No dia 5 de agosto, às vinte e uma horas, os cabos Schlumberger e Raddatz, banhados em suor, estavam sentados diante dos seus aparelhos. Atrás deles estavam Thomas Lieven, o coronel Werthe e o capitão Brenner.

Rouxinol 17 começou a ser recebido pontualmente.

- Hoje - murmurou Schlumberger continuando a escrever - não é a moça que está transmitindo. Deve ser um dos outros sujeitos...

A mensagem de Rouxinol 17 foi longa, mais longa que qualquer anterior. A mensagem parecia não acabar mais. Enquanto Schlumberger continuava a transcrever os sinais, Raddatz começou a decifrar. A primeira parte da mensagem correspondia ao que Thomas esperava:

”Missão ponte preta executada conforme instruções. Explosão destruiu totalmente a ponte. Vinte homens participaram diretamente da operação. Tenente Bellecourt quebrou perna início operação. Está sendo tratado amigos em Eguzon. Esta mensagem é transmitida por Émile Rouff. Professor Débouché e Yvonne Dechamps estão em Clermont-Ferrand”.

Werthe, Brenner e Thomas olhavam por cima dos ombros de Raddatz, que continuava decifrando.

”Esse incrível cretino, lá longe”, pensava Thomas empalidecendo, ”porque está mencionando nomes?”

Antes que ele pudesse intervir de alguma forma, sentiu que Raddatz pisava-lhe o pé. Olhou para o cabo. Os olhos do berlinense refletiam uma expressão de espanto e terror. No mesmo momento, Schlumberger entregou uma nova folha. Raddatz pigarreou, desesperado.

- Que foi? - perguntou Brenner, aproximando-se rapidamente.

- Eu... eu... nada - declarou o berlinense.

- Entregue-me isto!

Brenner’ arrancou-lhe o papel das mãos e levantou-o. Seus óculos lançavam faíscas.

- Escute bem, coronel.

Com o coração gelado e oprimido Thomas ouviu Brenner ler, em voz alta, a mensagem decifrada por Raddatz:

- ”Pedimos fineza informar general de Gaulle sobre nossa ação e fazer-lhe conhecer os nomes dos mais bravos camaradas. Elogios e distinções teriam influência magnífica sobre o moral dos combatentes...”

”Deus do céu”, pensava Thomas. ”Isto não pode ser verdade!”

- ”... depois do acidente do tenente Bellecourt o mérito principal é de Cassier, prefeito de Crozant, e de Émile Rouff de Gargilesse. Também participaram...”

Estupefato, o cabo Schlumberger tirou os olhos do seu bloco de taquigrafia.

- Continue a anotar! - berrou Brenner. Depois, o capitão virou-se para Thomas.

- O senhor dizia que seria impossível prender esses canalhas porque não sabíamos seus verdadeiros nomes e endereços, hein? - disse Brenner, com uma gargalhada metálica e de zombaria. - Pois muito bem, agora vamos mostrar-lhe que é possível.

Thomas tinhas vertigens. ”Aqueles idiotas. Aqueles pobres imbecis vaidosos. Eu sempre pensei que somente nós agíamos assim. Os franceses não são melhores.” Tudo fora em vão. Em vão.

A boca do coronel Werthe, de tão cerrada, parecia um fio.

- Queira sair da sala do rádio, Herr Lieven - disse ele com voz sumida.

- Coronel - começou Thomas -, peço que considere...

Em vão. Tudo fora em vão, por culpa de alguns imbecis loucos de desejo de poder, depois da guerra, ostentar ao peito alguns pedaços de metal...

De acordo com o rodízio do pessoal, os cabos Schlumberger e Raddatz foram substituídos cinco minutos mais tarde. Desceram para o saguão do hotel, onde Thomas os esperava.

Schlumberger tinha cara de enterro.

- Aquele cretino não pára de transmitir - disse ele. - Já mencionou vinte e sete nomes.

- Desses vinte e sete eles arrancarão os nomes de todos os demais - disse Raddatz.

Como o faziam freqüentemente, durante os últimos meses, foram ao Henri, um bistrot que Thomas descobrira na Rue Clement Marot. O patrão veio pessoalmente à mesa onde se sentaram, para dar-lhes as boas-vindas. Cada vez que ele via Thomas os seus olhos ficavam cheios de lágrimas.

Henri tinha uma cunhada judia alemã. Utilizando documentos falsos, ela estava escondida no interior. Thomas conseguira os documentos. No Hotel Lutetia havia excelentes oportunidades para encontrar documentos falsos. Thomas, de vez em quando, aproveitava tais oportunidades. O coronel Werthe bem o sabia, mas ficava calado.

- Qualquer coisa leve, Henri - disse Thomas.

Já era tarde e ele precisava acalmar os nervos. Escolheram o menu. Schlumberger manifestou um desejo:

- Peça-lhe, por favor, que nos prepare umas panquecas.

Thomas traduziu. Henri afastou-se. Fez-se silêncio na mesa dos três amigos. Um silêncio plúmbeo. Só com a chegada dos canapés de rim de carneiro é que o vienense murmurou:

- Brenner chamou Berlim. Vão proceder a uma caçada, lá onde estão os nossos maquis. Será para amanhã de manhã, o mais tardar. É claro como água que aqueles tipos estão fritos.

 

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           CANAPÉS DE RIM DE CARNEIRO

           LINGUADO À MODA DE GRENOBLE

           PANQUECAS COM GELÉIA DE CEREJAS

 

Paris, 5 de agosto de 1943

Ao saborear o peixe surgiu a idéia que salvou sessenta e sete vidas humanas.

Canapés de rim de carneiro - Tome pequenos rins de carneiro, retire a gordura e as peles. Corte-os ao meio no sentido longitudinal.

Corte fatias de pão de forma, do tamanho dos rins, passe manteiga, em ambos os lados, e cubra cada uma com a metade de um rim.

Prepare uma emulsão com mostarda forte, creme azedo, um pouco de manteiga, sal e pimenta-caiena, e com ela cubra os rins.

Asse a forno médio durante cerca de dez minutos. Espete os rins com um garfo de pontas finas. Se não sair sangue, já estarão prontos. Sirva quente. Linguado à moda de Grenoble - Embora o linguado brasileiro não seja exatamente a sole da Europa, pode ser preparado das mesmas maneiras indicadas em dezenas de receitas excelentes.

Peça ao seu fornecedor que corte o linguado em filés. Deixe-os marinar, durante pelo menos meia hora, em suco de limão com sal e pimenta-do-reino. Dessa forma a pele ficará firme e clara. Seque bem e frite, rapidamente, em manteiga muito quente.

Sirva em pratos aquecidos.

Na manteiga usada para fritar os filés, aqueça rapidamente pedaços de limão e algumas alcaparras. Derrame esse molho sobre os filés e sirva com batatas cozidas salpicadas de salsa.

Panquecas com geléia de cerejas - Preparam-se panquecas finas e de tamanho médio. Passe geléia de cerejas de um só lado, enrole e leve ao fogo em frigideira com manteiga quente. Sirva imediatamente, polvilhando, se quiser, com amêndoas moídas.

Para fazer boas panquecas deixa-se a massa repousar durante uma hora, pelo menos.

”O professor Débouché”, pensava Thomas. ”A bela Yvonne e tantos e tantos mais. No momento ainda estão vivos. Ainda respiram. Breve estarão presos. Breve estarão mortos.”

- Bolas! -.- disse Raddatz. - Há quatro anos que sou soldado. Nunca matei ninguém. É horrível ter que dizer a si mesmo que por nossa culpa...

- A culpa não é nossa - disse Thomas.

”Não é de vocês, pelo menos”, pensava ele. ”E quanto a mim? Eu, que estou irremediavelmente emaranhado numa teia de aranha, feita de mentiras, de falsidades, de má-fé e de artifícios. Serei ainda inocente?”

- Escute, Herr Lieven - disse Schlumberger ,

não é possível ajudarmos esses maquis que matam nossos camaradas.

- Não - disse Thomas -, não é possível. ”Que restava fazer?” perguntava ele a si próprio com

desespero. ”Que é preciso fazer? Como se deve agir para ser um homem digno de ser um ente humano?”

- Karl tem razão - disse o berlinense. - Eu também não sou nazista. Mas cá entre nós: imagine se esses maquis me pegassem. Eles acreditariam se eu dissesse que não era nazista?

- Eles nem dariam bola. Você estaria é liquidado. Para eles, um alemão é um alemão.

Pensativo, Thomas mexia com o garfo no prato. Subitamente ele se levantou.

- Ainda existe uma possibilidade. Uma única.

- Possibilidade de quê?

- De fazer alguma coisa e permanecer um homem decente - disse Thomas.

Foi à cabina telefônica, ligou para o Hotel Lutetia e mandou chamar o coronel Werthe. O coronel respondeu demonstrando nervosismo.

Thomas ouvia barulho de vozes. Aparentemente o coronel estava numa conferência. O suor escorria pelo rosto de Thomas. ”Manter a integridade”, pensava ele. ”Contra homens íntegros do meu país. Contra homens íntegros deste outro país. Não cair nas armadilhas da traição, da quimera, do sentimentalismo. A única coisa que importa é salvar vidas humanas... salvar vidas humanas...”

Lieven falando, coronel - disse ele com voz rouca - Quero fazer-lhe uma proposta da maior importância. O senhor não poderá agir por si só. Assim, peço que me escute e informe, imediatamente, ao almirante Canaris.

Que significa este palavrório incompreensível?

- Para quando está fixado o início da operação onde o senhor sabe?

- Para amanhã de manhã. Por quê?

- Eu suplico que me confie a direção dessa operação.

- Lieven, não estou com disposição para brincadeiras. A minha paciência está esgotada.

- Escute, coronel. Escute o que tenho a propor...

Às quatro e quarenta e cinco da madrugada de 6 de agosto de 1943, um Lysander britânico rumava para Clermont-Ferrand quando o sol emergia do nevoeiro.

O piloto, que estava separado do seu passageiro por uma divisão, pegou o telefone do aparelho.

- Aterragem daqui a vinte minutos, Sonderführer - disse ele.

- Obrigado - respondeu Thomas Lieven. Pendurou o fone. Imóvel na minúscula cabina do

avião, ele contemplava o céu puro e a gaze do nevoeiro branco e cinzento que, no momento, dissimulava ainda essa terra suja, cheia de lutas e intrigas, de baixezas e de tolices.

Thomas Lieven tinha má aparência. Em seu rosto pálido os olhos eram duas cavernas sombrias. Acabara de viver a pior noite de sua vida e preparava-se para o mais doloroso dos dias.

Dez minutos mais tarde o piloto inclinou o pequeno avião, que começou a perder altura e atravessou a camada de bruma matinal. Embaixo, viam-se as ruas de ClermontFerrand adormecida.

Às cinco e quinze Thomas Lieven tomava café escaldante na sala do capitão Oelliger, enquanto este, um tirolês troncudo que comandava uma unidade de caçadores de montanha, com sede em Clermont-Ferrand, examinava com cuidado os papéis que Thomas apresentara.

- Recebi um longo telegrama do coronel Werthe disse ele. - Além disso, ele telefonou-me há uma hora. Os meus homens e eu estamos à sua disposição, Sonderführer

- Antes de mais nada, peço um carro para levar-me até a cidade.

- Eu lhe darei uma escolta de dez homens.

- Não, muito obrigado. O que eu devo fazer tenho que fazer sozinho.

- Mas...

- Aqui está um envelope lacrado. Se dentro de oito horas não tiver notícias minhas, abra-o. Ele contém as instruções do coronel Werthe sobre o que deverá fazer, nesse caso. Adeus.

- Ou melhor, até a vista...

- Sim - disse Thomas -, esperemos que assim seja. - Tocou na madeira.

Um Citroen requisitado, mas sem placas alemãs, atravessou, aos trancos, a Place Blaise Pascal, que estava deserta. Thomas estava sentado ao lado do chofer, que ainda tinha sono e não falava. Ele vestia uma capa impermeável sobre a sua roupa de flanela cinzenta e usava chapéu branco.

O seu objetivo, àquela hora matinal, era encontrar o professor Débouché, chefe espiritual da Resistência francesa na região central. O professor tinha seus aposentos na grande cidade universitária. Thomas saltou do carro antes da entrada principal, na Avenue Carnot.

- Vire a esquina e espere por mim - disse ele. Depois, dirigiu-se para o portão. ”Agora”, pensou

ele, ”que os céus me ajudem. Que ajudem a todos nós.” Tocou a campainha e esperou. Tocou novamente, com insistência. Finalmente, apareceu o velho porteiro, resmungando, de chinelos e com uma capa sobre a camisa de dormir.

- O senhor está louco, diabos? Que deseja?

- Quero falar com o professor Débouché.

- A essa hora? Escute aqui...

O porteiro calou a boca. Uma nota de cinco mil francos acabara de mudar de dono.

- Bem, bem. Se é urgente... A quem devo anunciar?

- O senhor tem telefone em casa?

- Sim, senhor.

- Então eu mesmo falarei com ele.

Thomas suava no subsolo atravancado onde morava o porteiro. Com o fone no ouvido ele percebeu o som da campainha em casa de Débouché.

A mulher do porteiro tinha-se levantado. Muito próxima ao marido, ela sussurrava ao seu ouvido. O casal examinava Thomas, com ar apavorado. Subitamente ouviu uma voz conhecida:

- Aqui fala Débouché. Que está acontecendo?

- Everett falando - disse Thomas com voz rouca. Ouviu a respiração espantada do professor.

- Everett? Onde? Onde está?

- Na universidade. No apartamento do porteiro.

- Diga-lhe que o traga até aqui, imediatamente. Eu... eu... estou à sua espera.

Thomas desligou.

- Venha, senhor - disse o porteiro.

Ao sair, Thomas viu que ele fazia um sinal com a cabeça, para a mulher. Mas não viu quando ela, uma mulher grisalha e envelhecida, pegou no telefone.

- Por Deus, capitão Everett, por que motivo está cometendo este ato de loucura?

O célebre físico, parecido com Albert Einstein, estava diante de Thomas no salão do seu apartamento, diante da grande biblioteca que cobria, completamente, uma das paredes.

- Senhor professor, o maquis de Crozant fez ir pelos ares a ponte de Gargilesse.

- Sim, de acordo com as instruções recebidas.

- O senhor já viu os seus homens depois disso?

- Não. A minha assistente e eu estamos aqui há uma semana. Eu tinha que fazer algumas conferências.

- Mas o senhor sabe que Cassier e Rouff substituíram o tenente Bellecourt na direção da operação?

- São homens de bem.

- São homens que não prestam. Uns tolos, cheios de vaidade, senhor professor. Uns irresponsáveis.

- Mas, afinal de contas, capitão...

- Sabe o que esses malditos imbecis fizeram ontem à noite? Pegaram o transmissor e deram os nomes e os endereços de todos os membros do maquis de Crozant! Cassier, Rouff, o professor Débouché, Yvonne Dechamps, o tenente Bellecourt. Mais de trinta nomes e endereços...

- Mas, por quê, santo Deus? O velho senhor empalidecera.

- Por gabolice. Para que o general de Gaulle saiba, com segurança, quais os maiores heróis, os que merecem as maiores condecorações. Aqueles homens, professor, não passam de uns cretinos.

O velho professor olhou longamente para Thomas, sem dizer palavra.

- Evidentemente foi um erro indicar os nomes. Mas será isso um crime? A situação de Londres ficará prejudicada? Isto me parece pouco provável... Portanto, não é isto que o traz aqui, com risco da própria vida.

O professor acercou-se de Thomas até quase encostar nele. Os olhos do sábio, muito abertos, eram uma interrogação.

- Por que está arriscando sua vida, capitão Everett? - murmurou, com voz rouca.

Thomas respirou profundamente. ”Mesmo que ele me mate”, pensou ele. ”Mesmo que o meu destino seja o de não chegar ao fim do dia de hoje. Pelo menos, nos dias sujos em que vivemos, terei morrido tentando agir como um indivíduo decente.”

Repentinamente, uma grande calma o invadiu, tal como no dia em que decidira escapar aos interrogatórios da Gestapo.

- Porque - disse ele tranqüilamente - eu não sou o capitão Everett. O meu nome é Thomas Lieven.

O velho fechou os olhos.

- Porque não trabalho para Londres, e sim para a Abwehr.

O velho reabriu os olhos e fitou Thomas com expressão de infinita tristeza.

- E porque, há vários meses, o maquis de Crozant não está em contato com Londres e sim com os alemães.

Um profundo silêncio reinou na sala. Os dois homens se olharam fixamente.

- Isto seria horrível - murmurou, finalmente, Débouché. - Não posso nem quero acreditar.

Bruscamente a porta foi aberta. Arfante, sem maquilagem e quase sem roupas por baixo da capa impermeável azul, Yvonne Dechamps, a assistente do professor, estava na soleira. Seus bastos cabelos louros caíam-lhe sobre os ombros. Seus olhos verde-esmeralda estavam esbugalhados pelo pavor. Sua linda boca tremia:

- Então é verdade... capitão Everett... é realmente o senhor.

Andando rapidamente, ela aproximou-se de Thomas. Débouché fez um gesto convulso. Ela olhava fixamente para Thomas.

- A mulher do porteiro me preveniu - disse ela precipitadamente. - Eu também moro aqui... Que aconteceu, capitão? Que houve, afinal?

Thomas cerrou os lábios e ficou calado. Subitamente, ela pegou-lhe a mão e a apertou entre as suas. Foi só então que observou a atitude desanimada, senil e desesperada do professor.

- Mas, que está acontecendo, professor? - gritou ela num súbito acesso de pânico.

- Minha menina, o homem cuja mão você aperta é um agente alemão.

Lentamente, muito lentamente, Yvonne Dechamps afastou-se de Thomas. Cambaleando, como se estivesse bêbada, caiu sobre uma cadeira. Com voz rouca, Débouché contou o que Thomas tinha revelado.

Yvonne o ouviu, sem tirar os olhos de Thomas. Seus olhos verdes escureceram e pareciam carregados de ódio e desprezo. Quando falou, seus lábios quase não se mexiam.

- Acho que o senhor representa o máximo da indignidade e da baixeza, Herr... Lieven. Creio que o senhor é o maior e o mais desprezível dos crápulas.

- O que pensa de mim é-me indiferente - respondeu Thomas.

- Não sou culpado da existência entre vocês, e não somente entre nós, de imbecis tão vaidosos e convencidos como esse Rouff ou esse Cassier. Durante meses tudo correu bem...

- Que entende por ”correr bem”, seu miserável?

- Sim - disse Thomas, que se sentia cada vez mais calmo. - Exatamente. Há vários meses que não havia mortes nesta região. Nem franceses nem alemães morreram. As coisas poderiam ter continuado assim, até o fim desta estúpida guerra. Eu os teria protegido...

Yvonne, subitamente, soltou um grito histérico que mais parecia um grito de criança. Levantou-se, de um salto, vacilou e cuspiu no rosto de Thomas. O professor puxou-a, violentamente, para trás.

Thomas passou o lenço no rosto. Olhou para Yvonne, em silêncio. ”Ela tem razão”, pensou ele. ”Do seu ponto de vista, tem razão. Todos têm razão, cada um com o seu ponto de vista. Eu também. O que me importa é a segurança de todos...”

Yvonne fez um movimento para sair da sala. Thomas puxou-a violentamente, para trás, fazendo-a bater, com força, contra a parede. Arquejante, ela mostrava os dentes.

- Você não se mexerá daqui - disse Thomas ficando entre ela e a porta. - Ontem à noite, logo após a transmissão de todos esses nomes, a Abwehr informou imediatamente a Berlim. Decidiram empregar uma unidade de caçadores estacionada aqui perto. Diante disso, tive outra entrevista com o chefe da Abwehr-Paris...

- Para quê? - perguntou o professor.

- Isto é assunto meu - disse Thomas sacudindo a cabeça.

- Não tinha a intenção de ofendê-lo - disse o professor... com um olhar estranho.

”Este homem que aqui está, este homem admirável começa a me compreender, a seguir a minha idéia... se eu tiver sorte... se todos nós tivermos sorte...”

- Fiz notar ao coronel Werthe que a intervenção dos soldados iria fazer vítimas dos dois lados. Nossos homens agirão com energia. Os seus irão defender-se com a energia do desespero. Correrá sangue. Haverá mortos. Alemães e franceses. A Gestapo irá torturar os prisioneiros. Eles denunciarão os seus camaradas.

- Isso nunca! - gritou Yvonne. Thomas virou-se.

- Cale-se.

- Há torturas horríveis - disse o velho professor. Subitamente ele levantou o olhar para Thomas, sábio e triste como um profeta do Velho Testamento.

- O senhor bem sabe disso, não é, Herr Lieven? Creio que começo a compreender as coisas. Sinto que a minha intuição estava certa. Lembra-se? Certa vez eu disse que o considerava um homem de bem...

Thomas ficou em silêncio. A respiração de Yvonne sibilava.

- Que mais disse ao seu coronel, Herr Lieven? - perguntou o professor.

- Fiz-lhe uma proposta. Essa proposta foi, depois, aprovada pelo almirante Canaris.

- Qual é a proposta?

- O senhor é o chefe espiritual do maquis da região. Os homens fazem o que o senhor manda. O senhor convocará o grupo ao moinho de Gargilesse e explicará o caráter inelutável da situação. Isso permitirá aos soldados aprisioná-los sem disparar um tiro.

- E depois?

- Nesse caso, o almirante Canaris empenha a sua palavra de honra que ninguém será entregue à SD e que todos serão tratados como internados num campo militar, tal como se fossem prisioneiros de guerra normais.

- Não é uma perspectiva agradável.

- Dentro das circunstâncias é a melhor de todas as eventualidades possíveis. A guerra não será eterna.

O professor não respondeu. Com a cabeça baixa, ficou diante de seus livros. Por fim, perguntou:

- De que maneira poderei ir a Gargilesse?

- Comigo, de carro. O tempo está correndo, professor. Se o senhor recusar esta proposta, a ação das tropas começará às oito horas.

- E... e Yvonne? É a única mulher do grupo. Uma mulher, Herr Lieven...

Thomas sorriu, tristemente.

- Quanto a Mile Yvonne, penso prendê-la como minha prisioneira particular... Permita que eu conclua, por favor... numa cela da chef atura de polícia, onde ficará até que a operação esteja terminada. Isto para evitar que o seu ardor patriótico motive uma desgraça. Depois disso, irei buscá-la para conduzi-la a Paris. No caminho ela iludirá a minha vigilância e escapará.

- Quê? - disse Yvonne, olhando-o fixamente.

- A senhora conseguirá fugir - disse Thomas em voz baixa. - Foi o segundo favor que consegui obter do coronel Werthe. Trata-se, por assim dizer, de uma fuga autorizada pela Abwehr.

Ofegante de emoção. Yvonne aproximou-se de Thomas.

- Se existe um Deus, ele o castigará... Morrerá lenta e miseravelmente. Eu não fugirei. O professor não vai aceitar a sua proposta, nunca, ouviu? Vamos lutar e morrer, todos.

- Sim, está bem - disse Thomas, já cansado. - Agora sente-se e cale a boca, sua heroína de fancaria.

Confidencial. 9 de agosto, catorze e trinta e cinco. Abwher-Paris para chefe Abwehr-Berlim. No dia 7, cerca das vinte e duas horas, o batalhão de caçadores do setor de Clermont-Ferrand sob comando do Sonderführer Lieven aprisionou maquis de Crozant perto do moinho de Gargilesse. Os membros, dirigidos pelo professor Débouché, não ofereceram nenhuma resistência. Sessenta e sete homens aprisionados. Conforme instruções prisioneiros foram encaminhados ao campo de prisioneiros militar 343. Terminado.

No dia 27 de setembro de 1945, o professor Débouché declarava textualmente, perante uma comissão de inquérito aliada, em Paris:

- ”Todos os membros do maquis de Crozant foram tratados com humanidade no campo de concentração 343. Todos sobreviveram e voltaram a seus lares. É provável, devo acentuar, que todos nós devamos as nossas vidas à coragem e aos sentimentos humanitários de um alemão que primeiro nos enganou, passando por um capitão inglês, e que, no dia 6 de agosto de 1943, procurou-me, em Clermont-Ferrand.

Nessa ocasião declarou ser o Sonderjührer Thomas Lieven...”

Em vista dessas declarações, a comissão aliada de inquérito mandou procurar esse Sonderjührer Lieven. Não o conseguiram encontrar. Nessa ocasião, organizações de natureza muito diferente de uma comissão de inquérito andavam caçando Thomas Lieven. Acabava ele de... Mas não antecipemos as coisas. Ainda estamos em agosto de 1943.

- Senhores - disse o coronel Werthe -, acabo de receber ordens de Berlim. Capitão Brenner, considerando a participação que teve na liquidação dos maquis Crozant, o senhor foi promovido a major, com efeito retroativo ao dia

1.° de agosto. Além disso, em nome do nosso Führer e comandante-chefe eu o condecoro com a medalha de primeira classe do Mérito Militar.

Para o pequeno capitão, era esse o grande momento de sua vida! Por trás dos vidros dos óculos, seus olhos brilhavam como os de um menino que ganha tudo com que sonhara, na noite de Natal. Ele estava em posição de sentido, encolhendo a barriga e estufando o peito.

- Bravos! - disse o civil Thomas Lieven, que nesse dia vestia uma roupa de verão, azul, muito bem feita, camisa branca e gravata discretamente listrada de cinza e rosa. - Meus sinceros cumprimentos, major!

- É claro - disse meio confuso o major, recémpromovido - que devo tudo isso ao senhor.

- Tolice.

- Não é tolice alguma. Apenas ao senhor. Devo confessar, também, que durante esta operação eu estava quase sempre contra o senhor e que tudo me parecia uma loucura. Eu não tinha confiança no senhor...

- Se o senhor confiar em mim, daqui por diante tudo estará bem - disse Thomas, em tom conciliador.

Na verdade, a partir daquele instante, Thomas teria no major Brenner um admirador dedicado, que não mais se espantaria com os planos, mesmo os mais loucos e temerários, de seu chefe de operações especiais.

O coronel Werthe recebeu a palma da Cruz de Ferro de primeira classe.

- A cruz eu recebi na guerra de 14-18 - explicou ele.

- Veja só - disse Thomas a Brenner. - Nós iniciamos duas guerras mundiais com tão poucos anos de intervalo que todo homem robusto e de boa saúde pôde ter o prazer de conhecer a uma e outra em todas as suas heróicas grandezas.

- Basta de tolices - disse o coronel. - E que iremos fazer do senhor, seu fenômeno bizarro? O senhor é um civil.

- E assim espero continuar.

- Mas Berlim me fez uma pergunta. Que espécie de distinção gostaria o senhor de receber?

- Não seria uma condecoração que me faria feliz, coronel - respondeu Thomas. - Mas, se eu pudesse manifestar um desejo...

- Diga.

-... gostaria de mudar de atividade. Não me agrada continuar a lutar contra a Resistência, senhores. Eu gosto é de rir e viver alegremente. Estas últimas semanas tiraram-me todo o gosto pela vida alegre. Desde que sou obrigado a trabalhar para os senhores, preferiria um serviço mais agradável e divertido.

- Creio que tenho exatamente o que precisa, Sonderführer Lieven.

- Que será, coronel?

- O mercado negro francês - disse Werthe. - Nunca houve, desde que o mundo existe, um mercado negro tão louco e perigoso como o que funciona hoje em Paris.

Foi com surpresa que Thomas soube o que se passava por trás da agradável fachada da Cidade Luz, às margens do Sena.

- Aqui todo mundo compra: a Organização Todt, a Marinha, a Luftwaffe, o Exército, os Transportes Militares e, agora, também a SD entrou na brincadeira.

O marechal Goering, disse Werthe, recomendava que se lutasse contra o mercado negro. Mas, com tantos compradores alemães e cada qual oferecendo mais, os preços subiam astronomicamente.

Passando por cinco ou seis intermediários, o preço de uma máquina operatriz comum, que normalmente valia quarenta mil francos, subiu até um milhão!

Em vista disso, a SD instalou, à Rue de Saussaies, um serviço de repressão ao mercado negro, sob a direção de um ÚntersturmbannjührerJ das SS. Vieram, de todas as regiões da França, agentes da SD para serem treinados em Paris, para as suas novas funções. Mas a SD não teve sorte com o seu novo departamento. Isso porque, uma vez preparados para as suas novas funções, logo se apercebiam que era mais negócio estar do outro lado. Passaram a colaborar com os franceses. O volume das operações tomou proporções monstruosas.

Basta mencionar, como exemplo, o caso dos cinqüenta mil pulôveres que num só dia foram vendidos não uma vez, mas quatro. Três dos compradores foram assassinados. O quarto era do grupo dos traficantes. Dessa forma, os pulôveres estavam novamente à venda, no dia seguinte. O valor já fora recebido três vezes.

Pessoas desapareciam. Locomotivas desapareciam. Centenas de milhares de quilos de papel para cigarros, da melhor qualidade, desapareciam. A confusão desencadeada pelos serviços de ”repressão” ao mercado negro da SD era cada vez mais louca. Agentes prendiam outros agentes. Agentes liquidavam colegas. Funcionários da Gestapo faziam-se passar por franceses, franceses passavam por homens da Gestapo.

Isso é o que contava o coronel Werthe a Thomas Lieven, que ouvia assombrado.

- Este assunto se enquadra em suas possibilidades, Lieven? - perguntou ele, por fim.

- Creio que sim, coronel, perfeitamente.

- Não é perigoso demais?

- Para ser franco, tive uma preparação das melhores durante a minha permanência em Marselha. Além disso, tenho os elementos básicos a meu dispor. Ainda tenho uma casa no Bois de Boulogne e possuo, também, uma participação, desde antes da guerra, num pequeno banco parisiense.

 

1 Na hierarquia militar, posto imediatamente abaixo do Sturmbannführer. (N. do E.)

 

Com tais elementos, poderei inspirar muita confiança...

Isso dizia Thomas. O que pensava era: ”Poderei, finalmente, ter uma vida privada, afastar-me um pouco de vocês, meus caros. Quem sabe? Poderei mesmo, com um pouco de sorte, fugir para a Suíça...”

Thomas Lieven voltou a seu banco como aquele homem da fábula que volta a sua aldeia, depois de um sono mágico, e descobre que sete anos haviam passado. No caso de Thomas Lieven, apenas três anos eram decorridos. O sócio principal e a maioria dos empregados mais idosos estavam em seus postos. Havia menos empregados jovens.

Thomas foi ao Bois de Boulogne. Uma grande nostalgia se apoderou dele, ao ver a pequena villa onde passara tantas horas agradáveis em companhia da encantadora Mimi Chambert.

Uma empregada, jovem e bonitinha, abriu-lhe a porta. Ele pediu para falar ao dono da casa. A empregada levou-o à sala de visitas.

- O capitão virá num instante.

Thomas examinou a sala. Aí estavam seus móveis, seus quadros e seus tapetes. Gastos e mal cuidados, mas seus.

Um tesoureiro do Estado-Maior entrou na sala. Repleto de enxúndia e de pose.

- Meu nome é Hõpfner. Heil Hitler. Em que lhe posso ser útil?

- Thomas Lieven. Mudando-se imediatamente daqui. O rosto do tesoureiro ficou quase roxo.

- Está bêbado ou coisa parecida?

- Absolutamente, não.

- Então é uma brincadeira idiota?

- Não. Simplesmente acontece que esta casa é minha.

- Bobagem. A casa é minha. Há um ano moro aqui.

- Isso é fácil de ver pela sujeira que o senhor acumulou.

- Olhe aqui, Herr Lieven, ou quem quer que seja: o senhor vai sair daqui ou eu chamo a polícia.

- Vou sair - disse Thomas levantando-se. - Acho que o senhor deveria abotoar a braguilha.

Thomas foi procurar o coronel Werthe. Duas horas mais tarde o tesoureiro do Estado-Maior Hõpfner recebia do seu superior hierárquico a ordem para deixar, imediatamente, a villa do Bois de Boulogne. Foi dormir num hotel. Para ele, o mundo se transformara num enigma.

Ao mesmo tempo que o capitão-tesoureiro perdia a sua villa, o coronel Werthe perdia uma magnífica empregada: a bela Nanette - que conhecera Thomas no dia 12 de dezembro de 1942, quando ele saíra das masmorras da Gestapo - pediu, repentinamente, a sua conta. Alguns dias mais tarde o coronel a encontrou em casa de Thomas.

- Não fique zangado, coronel - sussurrou ela com voz melodiosa. - Sempre foi o meu sonho conseguir um emprego no Bois de Boulogne...

No princípio de setembro de 1943, Thomas já estava instalado como gostava. Sua adega tinha vinhos e bebidas do mercado negro e a sua despensa, alimentos da mesma procedência. A luta contra o mercado negro poderia ser iniciada.

O homem-chave - uma figura bastante misteriosa - que o coronel Werthe indicou como primeiro e principal objetivo era um certo Jean-Paul Ferroud, um gigante de cabelos brancos que era, tal como Thomas, proprietário de um banco privado em Paris. Presumia-se que as operações mais importantes e audaciosas eram levadas a cabo por seu intermédio.

Thomas convidou o banqueiro para jantar.

Em 1943, havia duas coisas que os franceses só faziam em casos excepcionais: visitar alemães ou convidá-los para vir às suas casas. Os encontros se davam em restaurantes, em bares ou num teatro, mas não em casa. Para agir de outra forma seria preciso que houvesse boas e fortes razões...

Em tais condições, o caso Ferroud começou por uma surpresa: o banqueiro aceitou o convite de Thomas.

Durante cinco dias Thomas Lieven, ajudado por Nanette, dedicou-se aos preparativos desse jantar. Ferroud chegou às oito e meia. Os dois homens trajavam smoking.

Tomaram os martinis extra-secos na sala de visitas. Depois foram para a sala de jantar.

Nanette serviu o presunto à luz de velas.

Ferroud comia como um verdadeiro apreciador.

- Absolutamente perfeito, monsieur - disse ele, lambendo discretamente os lábios. - Marinado em vinho tinto, não?

- Sim, durante cinco dias. Mas o essencial é o preparo: genebra, gengibre, louro, pimenta-do-reino em grão e cebolas. Deve-se esfregar o presunto com os condimentos, até que ele fique quase negro.

- E o senhor só usa vinho tinto?

Ferroud tinha um ar muito distinto: era o que em linguagem teatral se chama um père-noble1.

- Acrescento meia garrafa de vinagre. Alegro-me que tenha aceito o meu convite.

- Mas, por favor - disse Ferroud, provando a salada de salsão. - Convenhamos que não é todos os dias que se recebe um convite de um agente da Abwehr.

Thomas continuava comendo, calmamente.

- Procurei obter informações sobre o senhor. As poucas indicações que consegui sobre a sua verdadeira personalidade indicam que é uma pessoa em quem se pode confiar. Uma coisa, entretanto, parece evidente: disseram-me que fui apontado ao senhor como um dos elementos mais importantes do mercado negro. Não é verdade?

- É exato - disse Thomas. - Aceite mais um pouco de presunto! Há, entretanto, algo que não estou entendendo.

- E que é, por favor?

- Que o senhor tenha vindo a minha casa, a despeito de sua desconfiança e das informações sobre os meus verdadeiros objetivos. Haverá, certamente, uma razão para isso.

 

1 No teatro, o papel da personagem que possui idade, seriedade, respeitabilidade. (N. do E.)

 

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     PRESUNTO MARINADO AO VINHO TINTO

     SALADA DE SALSÃO COM BATATAS À INGLESA

     SAVARIN DE FRUTAS

 

Paris, 10 de setembro de 1943

Com um presunto, Thomas Lieven inaugura o grande circo do mercado negro.

Presunto marinado - Use um presunto inteiro, fresco, retire o couro e parte da gordura. Prepare uma pasta com cebolas raladas, pimenta-do-reino moídà, gengibre, grão de genebra (zimbro) e folhas de louro. Esfregue essa pasta, com as mãos, sobre o presunto até que ele adquira um tom castanho-escuro.

Coloque o presunto em vasilha grande e onde deverá ficar de cinco a oito dias e regue com uma garrafa de vinho tinto e meia garrafa de vinagre. Vire o presunto de vez em quando.

Antes de começar a cozinhar esfregue fortemente com sal. Coloque em panelão com a metade do líquido da marinada. Depois que boa parte do líquido se tenha evaporado leve o presunto ao forno e acrescente, pouco a pouco, o resto da marinada. Deixe assar até obter uma bela cor castanha.

Com a gordura que restar no fundo da assadeira, faça um molho, usando qualquer dos métodos que preferir e o temPero que desejar.

Dependendo do seu tamanho, o presunto levará de três a cinco horas para cozinhar. salada de salsão (céleri) com oatatas - Prepare esta salada

da forma usual. Pode-se adicionar salsa picada às batatas cozidas.

Savarin de.frutas - Use duzentas e vinte e cinco gramas de farinha de trigo, cento e vinte e cinco mililitros de leite, quinze gramas de fermento, cento e vinte e cinco gramas de manteiga, três ovos e um pouco de sal. Misture uma quarta parte da farinha com o fermento (evidentemente, a receita refere-se ao antigo fermento natural, que é quase impossível encontrar hoje em dia) e espere que comece a crescer.

Misture com a manteiga (derretida) e os outros ingredientes, e bata até que comecem a aparecer bolhas de ar. Unte com manteiga uma forma de bolo, com orifício, ou de pudim, encha-a de massa até dois terços da altura e deixe crescer, até que a forma esteja cheia. Cozinhe durante trinta minutos.

Entrementes, aqueça metades de pêssegos em conserva (podem-se, também empregar outras frutas) e sessenta gramas de geléia de abricós:

Prepare, agora, a seguinte mistura: cento e vinte e cinco mililitros da calda da fruta, duas coIheres, das de sopa, de vinho branco, uma colher de Kirsch, uma de marasquino e uma de suco de limão. Junte mais meia colher, das de café, de rum e um pouco de baunilha em pó.

Logo que retirar o savarin do forno coloque-o sobre um prato aquecido, regue-o com a calda quente, aplique a geléia, também aquecida, polvilhe com pistaches em pedacinhos e coloque as frutas, quentes, no orifício central.

O savarin pode ser preparado de véspera, mas neste caso, será necessário aquecê-lo antes de molhá-lo e decorá-lo.

- Certamente há uma razão. Queria conhecer pessoalmente o homem que, eventualmente, será meu inimigo. Além disso, queria saber qual o seu preço, monsieur, porque poderíamos, talvez, chegar a um entendimento.

Thomas ergueu as sobrancelhas.

- Evidentemente, as suas informações são falhas - disse ele, com arrogância. - É pena, M. Ferroud. Esperava encontrar um adversário digno de mim.

O banqueiro corou e parou de comer.

- Portanto, não há possibilidade de nos entendermos? Agora sou eu quem diz: é pena. Receio que não avalie realmente os perigos que passa a correr desde agora, monsieur. O senhor deve compreender que eu não posso mostrar todos os meus trunfos a quem quer que seja. Muito menos a um incorruptível...

Thomas Lieven preparava-se para a sua sesta, quando o telefone tocou. Eram treze e quarenta e seis do dia 13 de setembro de 1943 - um momento histórico. Porque, como conseqüência desse chamado telefônico, se desencadeariam acontecimentos, uma avalancha de acontecimentos que, se Thomas os pudesse prever, deixaria que a campainha soasse até o dia do Juízo Final. Entretanto, como não previa nada de parecido, levou o fone ao ouvido.

- Sim?

- M. Lieven?

Thomas reconheceu a voz do banqueiro Jean-Paul Ferroud e amavelmente indagou pela sua saúde. Ferroud respondeu que estava passando bem.

- E Mme Ferroud?

- Também está muito bem, obrigado. Escute, Herr Líeven, eu queria dizer que lamento o comportamento frio e agressivo que tive em sua casa...

- Mas, vejamos...

- Sim, sim. E tudo isso apesar daquele maravilhoso presunto... Teria muito prazer se pudesse reparar a minha estranha conduta.

”Veja só”, pensou Thomas.

- O senhor poderá nos dar, a minha mulher e a mim, o grande prazer de vir jantar conosco, esta noite?

”Com os diabos”, disse Thomas a si mesmo.

- Suponho - disse o banqueiro, com delicada ironia - que como agente da Abwehr o senhor conheça perfeitamente o meu endereço, não é?

Há muito tempo que esses dardos de ironia não faziam Thomas perder a calma.

- Mas certamente - respondeu ele no mesmo tom. - O senhor mora na Avenue Malakoff, número 24, bem perto de mim. Sua esposa é uma mulher muito bonita que se chama Marie-Louise. Seu nome de solteira era Kleber. Ela possui as mais belas jóias de Paris. O senhor tem um empregado chinês, chamado Shen T’ai, uma cozinheira que se chama Thérèse, uma arrumadeira chamada Suzette e dois bulldogs chamados Cícero e César.

- Então às oito horas, está bem? - perguntou, rindo, o banqueiro.

- Perfeitamente, monsieur, às oito horas. Thomas desligou.

Antes que ele tivesse tempo para refletir sobre o aspecto insólito do convite, bateram à porta. Ofegante, a bela Nanette entrou correndo na sala.

- Monsieur, monsieur!... O rádio acaba de anunciar que Mussolini foi libertado... Eles disseram: o Duce está a caminho de Berlim, onde vai encontrar Hitler, para combater a seu lado...

- O Benito deve estar alegre - disse Thomas. Nanette soltou uma gargalhada e chegou-se muito

perto dele.

- Ah, o senhor é tão delicado... Estou tão feliz em sua casa...

- Vamos, vamos Nanette, pense no seu Pierre.

- Ora, o Pierre - disse ela fazendo um beicinho. - Eu me caceteio quando estou com ele.

- É um rapaz simpático - disse Thomas, em tom professoral.

Levantou-se para evitar a excessiva aproximação física.

- Vamos, já para a cozinha, beleza - disse ele, aplicando-lhe uma palmada nas nádegas.

Ela riu como uma mulher que sente cócegas e retirou-se, decepcionada.

”Que quererá de mim esse banqueiro?”, pensou Thomas.

A villa da Avenue Malakoff apresentava um requintado ambiente de cultura. Havia preciosos objetos de arte tanto europeus quanto orientais. Aquele Ferroud devia ser um milionário.

O pequeno empregado chinês o recebeu com o estereotipado sorriso de sua raça, mas sua voz e os seus modos eram arrogantes e frios. Arrogante e fria também foi a empregada a quem Thomas entregou a caixk de celofane contendo três orquídeas cor-de-rosa, destinadas à dona da casa.

O dono da casa também mostrou ser arrogante e frio. Fez Thomas esperar bastante - sete minutos, pelo seu relógio de repetição - na sala de visitas. Finalmente apareceu, sempre muito elegante, apertou a mão de Thomas e começou a preparar martinis.

- Minha mulher virá dentro de poucos minutos.

”Estranho”, pensou Thomas, ”muito estranho.” Correu os olhos pelo Buda, pelos móveis envernizados, pelos tapetes e pelo lustre de quatro braços. ”Este Jean-Paul Ferroud”, continuou ele pensando, ”tem uma situação absolutamente independente. Não pode dar a menor importância a um tipo como eu. Mas, se não precisa de mim, por que me convidou? E, desde que me convidou, por que estará agindo de forma a me irritar?”

O banqueiro de cabelos brancos deixou cair, subitamente, dois cubos de gelo. Diante de um bar cujos espelhos estavam cobertos por pinturas modernas ele enchia uma coqueteleira de prata. Pigarreou e disse com um sorriso meio encabulado:

Estou ficando desajeitado. A bebida faz envelhecer.

Subitamente, Thomas percebeu só uma coisa. Esse homem não era arrogante. Estava nervoso, terrivelmente nervoso. O mesmo acontecia ao chinês e à empregada... Ele é que se enganara. Todos estavam com os nervos em petição de miséria, como se angustiadamente aguardassem algo terrível. Mas, que esperavam eles?

A dona da casa entrou na sala. Marie-Louise era alta, esguia e de uma beleza sem jaca. Seus olhos azuis brilhavam sob os longos cílios. Seus cabelos louros estavam artisticamente penteados. Usava um vestido preto, decotado. Maravilhosas jóias cintilavam em seu pescoço e nos seus pulsos. ”Nada de parecido”, pensou Thomas sem o querer, ”com as bugigangas que tiramos daquele joalheiro marselhês, o Pissoladière. Puxa, parece que fiquei mesmo com a mentalidade de um larápio.”

- Madame...

Inclinou-se, beijou-lhe a mão e constatou que aquela mão elegante, branca e perfumada estava trêmula.

Ao se levantar, notou nos belos e frios olhos azuis sinais de pânico e um enorme esforço para aparentar calma. Por quê?

A senhora agradeceu as orquídeas. A senhora estava feliz por conhecer Thomas. A senhora aceitou o martini que lhe ofereceu o marido. A senhora subitamente colocou o seu cálice sobre uma mesinha de bronze, levou a mão cerrada à boca e começou a chorar, soluçando.

Com um salto, Ferroud foi até ela.

- Mas, Marie-Louise, meu Deus, que há? Você precisa dominar-se! Que irá pensar Herr Lieven?

- Ah! - soluçou Mme Ferroud. - Perdoe-me, Jean, perdoe-me...

- São os nervos, chéríe.

- Não, não são os nervos... Não é por causa daquilo. Há outra coisa.

O rosto de Ferroud tomou uma expressão dura.

- Mas que outra coisa? Que aconteceu?

- O jantar... o jantar está estragado.

Chorando cada vez mais, a dona da casa levou o lenço ao nariz.

- Thérèse deixou cair o peixe - gritou ela. Ferroud perdeu a paciência.

- Marie-Louise, por favor. Você sabe que importância tem esta noite. Você sabe do que se trata e desanda a chorar por causa de um peixe? Você está procedendo como...

- M. Ferroud - interrompeu Thomas.

- Que quer o senhor? O assunto não lhe interessa.

- O senhor permite que eu faça algumas perguntas a madame?

- Eu... ah... bem, certamente.

- Obrigado. A senhora diz que Thérèse deixou cair o peixe...

- Foi o que ela fez. Ela está bastante velha e a sua vista não é boa. O peixe caiu sobre a chapa do fogão quando ela o tirou da água. O peixe partiu-se - ah! que coisa horrível - ficou em pedaços!

- Só há um pecado na vida: é perder a coragem. Afinal, a senhora teve a coragem de convidar um agente alemão para jantar e agora considera-se derrotada por um peixe francês?

- Isto é demais! - exclamou Ferroud levando as mãos à cabeça.

- Mas, não - disse Thomas. - Permita-me uma pergunta indicreta - disse ele, dirigindo-se à dona da casa. - Qual o prato que deveria preceder o peixe?

- Presunto ao molho Cumberland.

O rosto de Thomas parecia o de Arquimedes antes da descoberta do parafuso sem-fim.

- Hum! E depois?

- Um creme de chocolate.

- Bem, parece que as coisas vão muito bem.

- Que é que vai muito bem? - murmurou a senhora com os setenta quilates de brilhantes.

- Quer me parecer, senhora, que duas preocupações a atormentam. Eu poderei, pelo menos, livrá-la de uma delas, contanto que me permita entrar em sua cozinha.

- O senhor... acha que pode fazer alguma coisa com um peixe que está em pedaços?

O olhar de Marie-Louise exprimia uma admiração quase religiosa.

. Certamente, madame - disse Thomas Lieven. -

Acho que devemos levar os cálices e a coqueteleira. Um golezinho facilita os trabalhos culinários. Excelente este martini. Autêntico gim Gordon inglês. Como conseguiu encontrar isto depois de quatro anos de guerra, M. Ferroud?

Que havia de errado naquela casa? Thomas não conseguia descobrir o mistério na enorme cozinha ladrilhada. Vestindo um avental sobre o smoking estava ocupado em remediar a desgraça do peixe vitimado pelo acidente, sob os olhares de um público que o admirava: a velha cozinheira míope e culpada, e os donos da casa, pálidos de emoção. Naquele momento, pelo menos, o estranho casal havia esquecido o extremo nervosismo. ”Eu não tenho pressa”, pensava Thomas. ”No que me diz respeito, a função pode continuar até amanhã de manhã. Vocês acabarão contando tudo.”

Ele retirou a pele e as espinhas do infeliz peixe e cortou os filés. Depois parou um instante para beber um pouco do martini.

- Os anos difíceis que já vivi, minhas senhoras - disse ele -, ensinaram-me que a vida nos oferece, geralmente, uma última oportunidade. Um peixe em pedaços é melhor que peixe nenhum. Agora, vamos preparar um excelente molho. Você tem parmesão, Thérèse?

- Temos quanto queira - disse, pressurosa, a velha cozinheira. - Pensar que tal desgraça poderia me acontecer! Estou desolada.

- Acalme-se. Beba um gole para tomar coragem.

O dono da casa encheu um cálice para a cozinheira.

- Agora, preciso de vinho branco, creme fresco e manteiga, por obséquio - disse Thomas.

Entregaram-lhe o que pedia. Todos olhavam enquanto ele preparava o molho. Subitamente, ouviu-se uma barulheira. Uma voz feminina e uma voz masculina discutiam em altos brados. A dona da casa ficou ainda mais pálida. O dono da casa precipitou-se para a porta, onde esbarrou no empregado chinês que entrava.

Este falava rapidamente, em chinês.

Ao mesmo tempo, apontava para o interior da casa. A senhora, que evidentemente compreendia o chinês, soltou um grito. O dono da casa repreendeu-a, severamente, em chinês. Ela deixou-se cair sobre um banco de cozinha. Sem uma explicação, o dono da casa saiu, seguido de Shen T’ai. A porta bateu atrás deles.

”Eis aí”, pensou Thomas, ”como se age na alta sociedade. Que poderei fazer?”

Decidiu ficar alheio aos acontecimentos.

- Você tem alcaparras, Thérèse?

- Santa Virgem! Pobre senhora!

- Thérèse!

- Alcaparras, sim senhor.

- E cogumelos?

- Tam... também. Posso fazer alguma coisa, senhora?

A dona da casa conseguiu controlar-se.

- Peço-lhe desculpas, Herr Lieven - disse ela, erguendo a cabeça. - Shen T’ai está conosco há dez anos. Não temos segredos para ele. Está conosco desde a época em que vivemos em Xangai...

O barulho de uma nova altercação soou na casa. Alguma coisa caiu no chão com estrondo. ”Como diria o meu amigo Schlumberger”, pensava Thomas, ”deixemos mijar os carneiros.”

- Ponha isso no forno, Thérèse.

- A minha prima está me causando grandes inquietações, senhor - disse a dona da casa.

- Lamento muito sabê-lo, madame. Deixe gratinar o prato em forno médio.

- Estava combinado que ela jantaria conosco. Mas ela acaba de tentar fugir de casa. Shen T’ai conseguiu retê-la, no último instante.

- Uma noite realmente agitada. Mas por que quis fugir a sua prima?

- Por sua causa.

- Hein? Por minha causa?

- Sim, ela queria evitar encontrá-lo. Marie-Louise Ferroud levantou-se.

 

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     PRESUNTO COZIDO AO MOLHO CUMBERLAND

     PEIXE GRATINADO

     CREME DE CHOCOLATE

 

Paris, 13 de setembro de 1943

Thomas Lieven salva um peixe e também uma jovem loura.

Molho Cumberland - misture um quarto de litro de geléia de groselhas, cento e vinte e cinco centímetros cúbicos de vinho tinto, o suco de duas laranjas, uma colher das de café de mostarda inglesa em pó e a casca de uma laranja cortada em tiras bem finas. Conserve no refrigerador.

Este molho vai muito bem com todas as carnes frias e, especialmente, as de caça. Peixe gratinado - Cozinhe o peixe inteiro em court bouillon (que pode ser preparado de inúmeras maneiras) de água, sal e, se for desejado, especiarias. Retire a pele, as espinhas e corte em pedaços. Prepare um roux claro (veja o menu preparado no dia 25 de novembro de 1940) ao qual junte creme azedo, vinho branco e queijo parmesão ralado, e um pouco de água e sal (ou um caldo claro). Leve ao fogo para reduzir a quantidade, até obter um molho branco e espesso. Salgue, salpique com pimentado-reino, junte os cogumelos ligeiramente passados numa frigideira com manteiga e acrescente algumas alcaparras. Coloque os pedaços de peixe em uma forma para souffle, bem untada de manteiga, derrame o molho por cima e recubra tudo com bastante queijo parmesão ralado, farinha de rosca e bolinhas de manteiga. Leve ao forno para dourar. Como requinte, antes de servir, coloque por cima meias-luas ou flores de massa folhada já assada. Todos os peixes de carne firme servem para este prato.

Creme de chocolate - Em um litro de leite faça ferver cento e cinqüenta gramas de chocolate em pó e um pouco de açúcar.

Numa vasilha funda, bata três gemas com uma colher das de café (rasa) de fécula de batata ou maizena. Despeje o leite fervendo sobre as gemas, mexendo sem cessar. Ponha tudo numa panela em fogo brando, para engrossar, mas com cuidado, para não deixar ferver.

Retire do fogo, junte uma colher das de sopa de café solúvel (o café em pó não serve) e claras batidas em neve. Coloque o creme no refrigerador.

- Ela está na sala com meu marido. Venha comigo, por favor. Thérèse fará o resto.

- Pulverize generosamente com parmesão e farinha de rosca. Coloque por cima pedaços de manteiga, Thérèse - disse Thomas.

Ele apanhou o seu cálice e a coqueteleira.

- Estou curioso por conhecer a sua parenta, uma senhora que quer fugir de mim antes de me conhecer. Não deixa de ser envaidecedor.

Ele acompanhou a dona da casa. Quando entrou na sala, aconteceu-lhe uma coisa que nunca lhe sucedera na vida: deixou cair o seu cálice de martini. O líquido foi absorvido pelo espesso tapete.

Thomas estava como que paralisado, com os olhos sobre a jovem e esbelta mulher sentada em uma cadeira antiga. A seu lado, Ferroud estava vigilante. Mas Thomas só tinha olhos para a mulher pálida, de lábios comprimidos, com maçãs salientes, e cuja cabeleira estava puxada para trás.

- Boa noite, Herr Sonderführer - disse ela com voz rouca.

- Boa noite, Mile Dechamps - disse ele com dificuldade.

Depois, inclinou-se diante da ex-assistente do professor Débouché, ex-membro dos maquis de Crozant, essa germanófoba fanática que lhe havia cuspido no rosto, em Clermont-Ferrand, ao mesmo tempo que lhe desejava a morte, uma morte lenta e dolorosa.

Jean-Paul Ferroud apanhou o cálice que Thomas deixara cair.

- Yvonne - disse ele - não sabia o nome do nosso convidado desta noite. Quando fomos à cozinha, ela reconheceu a sua voz. Quis fugir... O senhor adivinha por quê.

- Sim...

- Muito bem, Herr Lieven, estamos em seu poder. Yvonne corre perigo de vida. A Gestapo está em seu encalço. Se ninguém puder ajudá-la, estará perdida.

Os olhos verdes de Yvonne estavam tão cerrados que pareciam duas riscas, pelas quais olhava para Thomas. No seu belo rosto podia-se ver a cólera, a vergonha, a confusão, o ódio, o medo e a revolta.

”Eu traí esta mulher por duas vezes. Uma vez como alemão, outra vez como homem. É esta segunda vez que ela não me pode perdoar. Daí o seu ódio. Se tivesse ficado em seu quarto, aquela noite em Gargilesse...”

Ferroud interrompeu as suas reflexões.

- O senhor é banqueiro, tal como eu sou. Falemos de negócios. O senhor quer informações sobre o mercado negro. Eu quero salvar a prima de minha mulher. Está bem claro?

- Perfeitamente - disse Thomas.

Seus lábios estavam secos como se fossem de pergaminho.

- Por que motivo a Gestapo a persegue? - perguntou ele a Yvonne.

Ela ergueu a cabeça e olhou noutra direção.

- Yvonne! - exclamou irritada Mme Ferroud.

- A sua prima e eu somos velhos e bons inimigos - disse Thomas, erguendo os ombros. - Ela não me perdoa tê-la deixado fugir, em Clermont-Ferrand. Eu lhe dei o endereço de um amigo, Bastian Fabre, que a teria escondido. Parece que, infelizmente, ela não o foi procurar.

- Ela entrou em contato com os chefes maquis de Limoges - disse Ferroud - para continuar a trabalhar, para a Resistência.

- Nossa pequena e heróica patriota - disse Thomas suspirando.

Yvonne lançou-lhe um olhar calmo, franco e, pela primeira vez, sem ódio.

- É a minha pátria, Herr Lieven - disse ela com simplicidade. - Queria continuar a combater pelo meu país. Que teria o senhor feito, em meu lugar?

- Não sei bem. Provavelmente a mesma coisa. Que aconteceu?

Yvonne baixou a cabeça.

- Havia um traidor no grupo - disse Ferroud. - O radioperador. A Gestapo prendeu cinqüenta e cinco membros maquis. Continua procurando seis outros e, dentre eles, Yvonne.

- Ela tem parentes em Lisboa - disse Mme Ferroud. - Se conseguir chegar até lá, estará salva.

Os dois homens se entreolharam, em silêncio.

Thomas sabia que estava a pique de iniciar uma colaboração útil. ”Mas”, perguntava ele a si mesmo, ”como poderei convencer o meu coronel a aceitar esta complicação?”

O empregado chinês apareceu e fez algumas mesuras.

- Vamos jantar - disse Mme Ferroud.

Ela os precedeu a caminho da sala. Os outros seguiram-na. Sem querer, a mão de Thomas Lieven roçou no braço de Yvonne. Ela estremeceu como se recebesse um choque elétrico. Ele olhou-a. Seus olhos tinham-se tornado escuros. O sangue subira-lhe ao rosto.

- A senhora precisa, o quanto antes, perder este hábito.

- Que... que hábito?

- De estremecer. De corar. Uma agente da Abwehr deve saber dominar-se.

- Uma o quê? - murmurou ela.

- Uma agente da Abwehr - respondeu Thomas. - A senhora pensa, por acaso, que poderei mandá-la para Lisboa com o rótulo da Resistência francesa?

O noturno Paris-Marselha, que partia da estação de Lyon às vinte e uma e cinqüenta tinha três carros-dormitórios. Na noite de 17 de setembro de 1943 duas das cabinas centrais foram reservadas para membros da Abwehr.

Dez minutos antes da partida do trem, um homem elegantemente vestido em traje civil e acompanhado por uma jovem senhora apareceu no corredor do vagão e fez um sinal para o encarregado. A mulher tinha um casaco de pêlo de camelo, com a gola levantada, e usava chapéu masculino, de abas largas, como era a moda naquela época. Era difícil ver o seu rosto.

O homem mostrou as passagens ao empregado e, ao mesmo tempo, deu-lhe uma nota de valor considerável.

- Obrigado, monsieur, vou buscar os copos.

O funcionário abriu as portas das duas cabinas reservadas para a Abwehr. Numa delas havia um balde com gelo e uma garrafa de Veuve Cliquot. Um vaso com vinte cravos vermelhos estava sobre a mesinha junto à janela. A porta de comunicação entre as duas cabinas estava aberta.

Thomas Lieven fechou a porta do corredor.

Yvonne Dechamps tirou o seu grande chapéu. Mais uma vez, o rubor subiu-lhe às faces.

- Já não a proibi de corar? - disse Thomas.

Levantou a cortina da janela e olhou para a plataforma onde passavam, naquele momento, dois suboficiais alemães do controle militar das estradas de ferro.

- Hum! - fez ele, baixando a cortina preta. - Que há? Por que me olha dessa maneira? Terei traído a França, mais uma vez?

- O champanha... as flores... Para que tudo isto?

- Para acalmá-la. Você parece só ter nervos. Qualquer ruído a faz sobressaltar. Vira-se a cada instante para ver se a estão seguindo. Sossegue, não corre nenhum perigo. Chama-se Madeleine Noel e trabalha para a Abwehr. Tem um salvo-conduto!

Para conseguir aquele documento, Thomas empregara toda a sua lábia, durante um dia inteiro, no Hotel Lutetia.

- ”Lieven” - dissera por fim o coronel Werthe, suspirando e sacudindo a cabeça -, ”você acabará sendo o coveiro da Abwehr-Paris. Só nos faltava um louco como você.”

Depois da primeira garrafa de Veuve Cliquot, Yvonne já não estava mais apreensiva. Sua tensão nervosa diminuíra. A conversa tornara-se quase alegre. Os dois começaram a rir, mas, subitamente, Yvonne afastou-se de Thomas e olhou para o outro lado.

Thomas bem compreendia o que significava essa atitude. Uma vez ele desdenhara o seu amor. É uma coisa que nenhuma mulher esquece e nenhuma mulher quer ver repetida.

Pelas onze e meia disseram boa-noite, um ao outro. ”É melhor assim”, pensava Thomas... ”Ou será realmente melhor assim?” Ele estava ligeiramente bêbado e Yvonne lhe parecia muito bonita. Quando ele beijou-lhe a mão, como despedida, ela fez um movimento de recuo e o seu sorriso crispou-se. Thomas entrou em sua cabina, despiu-se e fez a toalete. Acabara de enfiar as calças do pijama quando o trem freou bruscamente ao entrar numa curva apertada.

Thomas perdeu o equilíbrio, dançou sem querer e acabou batendo, violentamente, de encontro à porta entre as cabinas, que se abriu com o choque. Evitando uma queda, Thomas entrou na cabina de Yvonne, que já estava deitada. Apavorada, ela sentou-se na cama.

- Meu Deus!

- Peço desculpas, não foi de propósito. Realmente não... eu... boa noite.

Voltou-se para a porta.

- Espere - disse ela, nervosamente.

Ele virou-se. Os olhos semicerrados de Yvonne tinham agora um tom muito escuro. A sua boca estava meio aberta:

- Essas cicatrizes...

Seu olhar se fixara no tronco nu de Thomas onde, do lado esquerdo, havia três feias cicatrizes empoladas como as produzidas por um instrumento muito especial: uma forte mola espiral recoberta de borracha.

- Isso me aconteceu em... Foi um acidente. - Maquinalmente ergueu o braço, tentando encobrir a cicatriz.

- Está mentindo.

- Como?

- Eu tinha um irmão. Foi preso duas vezes pela Gestapo. Na segunda vez ele foi enforcado. Na primeira vez foi torturado. Quando ele... - sua voz quase sumiu - quando ele voltou do hospital, tinha... tinha as mesmas cicatrizes. E você é o homem que eu insultei, de quem suspeitei... você...

- Yvonne...

Aproximou-se dela. Os lábios de uma bela mulher beijaram as cicatrizes dos ferimentos feitos por homens brutais. Depois eles sentiram a presença um do outro. Uma onda de ternura varreu suspeitas e lembranças tristes. A locomotiva silvou estridentemente. As rodas batiam o ritmo incessante da carreira. O vaso com os cravos vermelhos tinia, baixinho, com o movimento do trem.

O bimotor especial, com as insígnias alemãs, ganhava velocidade na pista do aeródromo de Marselha. A manhã estava feia. Caía uma chuva fina.

Numa das janelas do edifício do aeroporto estava um homem que tinha vários documentos de identidade falsos. Seu verdadeiro nome era Thomas Lieven. Com as mãos nos bolsos de seu macio sobretudo de lã do Tirol, apertava, fortemente, os polegares.

No aparelho estava Yvonne Dechamps, a caminho de Madri e de Lisboa.

Haviam se amado uma única noite mas, quando o avião desapareceu nas nuvens, Thomas sentiu-se abandonado e só. Tinha a impressão de ter cem anos.

Sentiu um arrepio ao pensar: ”Adeus, Yvonne. Nos seus braços, pela primeira vez, deixei de pensar em Chantal. Mas estava escrito que não ficaríamos juntos. Os tempos que correm não favorecem os amores. O tempo em que vivemos separa os amantes, quando não os mata. Desejo-lhe felicidade, Yvonne. Não creio que venhamos sequer a ouvir falar um do outro”.

Nisto ele estava enganado.

No dia 22 de setembro de 1943 Thomas voltou a Paris.

- M. Ferroud telefonou quatro vezes - informou Nanette. - Precisa falar com o senhor, com a maior urgência.

- Venha a minha casa às quatro horas - insistiu Ferroud quando Thomas o chamou, do banco.

O elegante banqueiro de cabelos brancos recebeu Thomas com um abraço. Tinha lágrimas nos olhos.

- Monsieur - disse Thomas -, Yvonne está em segurança. O mesmo não posso dizer quanto ao senhor. Antes pelo contrário.

- Como?

- Antes de falar em nossos negócios, eu cumpri meus compromissos e agora é a sua vez. Vou resumir, em poucas palavras, os resultados de minhas investigações sobre as suas transações.

Thomas viera a saber que Jean-Paul Ferroud era um delinqüente de tipo muito especial. Tal como os tubarões do mercado negro, ele negociava com grandes quantidades de produtos chamados estratégicos, mas não para vendê-los aos alemães, e sim para retirá-los do mercado. Ele era exatamente o oposto dos traficantes comuns, que pouco se importavam em prejudicar a sua pátria.

Procurava salvar materiais franceses. Com esse objetivo, Ferroud havia falsificado balanços, fornecido indicações falsas sobre a produção das empresas administradas pelo seu banco e feito lançamentos sobre vendas fictícias aos alemães representando uma enorme quantidade de mercadorias.

Thomas disse-lhe tudo, sem rebuços. Ferroud empalideceu. Tentou protestar mas calou-se e virou as costas.

-... O que o senhor fez - concluiu Thomas - é simplesmente grotesco, monsieur. As suas empresas serão confiscadas. A sua situação não pode ser pior. É claro que se me colocar no lugar de um francês, posso compreendê-lo muito bem. Nessas condições, vou dar-lhe um conselho de amigo, antes que descubram as suas manobras: peça, imediatamente, administradores alemães. Depois disso, ninguém se preocupará mais com as suas indústrias. Quanto aos administradores, eu suponho que o senhor saberá como se arranjar com eles, não é?

Ferroud voltou-se e sacudiu a cabeça indicando que concordava.

- Obrigado - disse ele.

- De nada. Agora passemos aos nossos negócios. Mas eu o previno, Ferroud: se as suas informações não valerem nada, o senhor estará perdido. Eu não posso agir unicamente a favor dos franceses. Pesando bem as coisas, Yvonne foi salva graças à ajuda alemã.

- Eu bem o sei e reconheço - disse Ferroud aproximando-se. - O que vou revelar pode ajudá-lo a esmagar uma das maiores organizações de mercado negro de todos os tempos. Uma organização que já causou enormes prejuízos tanto ao seu país quanto ao meu. Durante os últimos meses uma enorme quantidade de bônus do Tesouro alemão foi lançada na França. O senhor conhece esses bônus?

Thomas sabia de que se tratava. Era uma espécie de moeda de ocupação que existia em todos os países invadidos pela Alemanha. Eram destinados a evitar uma exportação excessiva de moeda alemã.

- Esses bônus - disse Ferroud - são numerados em séries corridas. Dois dos algarismos da série, que estão colocados sempre no mesmo lugar, determinam a que país os bônus são destinados e permitem aos especialistas uma rápida verificação. amigo, Ora, caro durante o último semestre uma quantidade de produtos franceses, no valor aproximado de dois bilhões de francos, foi adquirida por meio de tais bônus. E mais de um bilhão desses bônus apresentam os algarismos-chave romenos e não franceses. Thomas deu um salto na cadeira.

- Romenos? Como poderia uma tal quantidade de bônus romenos ter chegado à França?

- Isso eu não sei.

De uma gaveta de sua escrivaninha, Ferroud tirou dois maços de bônus, valendo dez mil marcos cada um.

- Tudo que sei é que eles aí estão. Queira verificar os números-chave romenos. Eu não acredito que franceses poderiam fazer vir para o seu próprio país este dilúvio de bônus destinados à Romênia.

-...Ferroud não sabe de que maneira os bônus romenos chegaram à França - declarava, duas horas mais tarde, Thomas, no gabinete do coronel Werthe.

Falava rapidamente. Era presa da exaltação do caçador. Não reparava que os seus dois ouvintes, o coronel Werthe e o ambicioso major Brenner, trocavam de vez em quando olhares estranhos. Ele estava entusiasmado demais para perceber.

- Por outro lado, Ferroud está convencido de que somente os alemães poderiam importar os bônus e que, por conseguinte, os chefes da organização só podem ser alemães.

- O senhor acha que M. Ferroud está convencido. Olhando para Brenner, o coronel Werthe falava com certa insistência. Só nesse momento foi que Thomas percebeu que havia algo errado.

- Mas, que está acontecendo? Que significam esses olhares?

- Conte-lhe tudo - disse o coronel, suspirando.

- O seu amigo Ferroud deve esperar grandes aborrecimentos. Há meia hora, os homens da SD estão em casa dele. Ele está preso em casa. Se o senhor tivesse ficado mais algum tempo com ele, teria tido o prazer de cumprimentar seus velhos amigos o Sturmbannführer Eicher e seu ajudante-de-ordens Winter.

Thomas estremeceu.

- Que aconteceu?

- Há dois dias um tal Unterstnrmjührer, Erich Petersen, foi assassinado em Toulouse. Deram-lhe um tiro no hotel onde morava. O culpado evadiu-se. A SD está convencida de que se trata de um atentado político, uma espécie de demonstração. O Führer já ordenou funerais nacionais.

- Himmler exige represálias impiedosas - disse o coronel Werthe.

- A SD-Toulouse dirigiu-se à polícia francesa - continuou Brenner -, que lhe entregou uma lista de cinqüenta comunistas e cem judeus. Essa lista servirá para escolher os reféns que serão fuzilados para vingar o assassinato de Petersen.

- A polícia francesa - disse com amargura o coronel Werthe - é de um servilismo notável, não é? Quando se trata de agradar a Gestapo ela não hesita nem mesmo em sacrificar a vida de seus compatriotas.

- Um momento, um momento - disse Thomas. - Não estou compreendendo bem. Preciso fazer duas perguntas. Primeiro: por que tanto baralho por causa da morte de Petersen?

- Porque - respondeu Brenner - esse Petersen era dignitário da Ordem do Sangue. O Ministério da Segurança está de pernas para o ar. Bormann foi pessoalmente visitar Himmler para reclamar represálias sangrentas.

- Bom - disse Thomas -, até aqui eu entendi. Segunda pergunta: que ligação existe entre o meu banqueiro Ferroud e os incidentes de Toulouse?

- A SD-Toulouse ouviu várias testemunhas. Entre elas um homem de confiança da Gestapo: um pequeno emprestador sob penhores, chamado Victor Robinson. Esse Robinson deu informações que tendem a provar que o seu Jean-Paul Ferroud foi o instigador moral do assassinato de Petersen.

O cérebro de Thomas trabalhava a toda velocidade: ”Petersen, dignitário da Ordem do Sangue, foi assassinado. Suspeitam de Ferroud. Eu sei muitas coisas sobre Ferroud. Mas ele, igualmente, sabe muito a meu respeito. Terá ele agido de má-fé comigo? Terá dito a verdade?

Que vai acontecer? A ele, a mim, aos cinqüenta comunistas e aos cem judeus?”

Antes de falar, Thomas pigarreou para limpar a garganta.

Coronel - disse ele -, Ferroud está convencido

de que são alemães os organizadores de um vasto plano de fraude baseado no tráfico de bônus do Tesouro.

Hesitou, escolhendo as palavras.

Não é estranho que a SD prenda Ferroud, justamente quando ele começa a ser interessante para nós?

- Não entendo uma palavra do que está dizendo - observou o bravo major Brenner.

- Eu não esperava que entendesse - disse Thomas sem maldade. - Coronel, eu não posso provar nada do que estou antecipando, mas tenho a convicção de que não devemos abandonar Ferroud agora. Acho que a Abwehr deve permanecer nesse assunto e dele participar.

- Quais são as suas sugestões?

- O senhor sabe que eu vivi em Marselha. Naquela ocasião conheci dois homens que moram em Toulouse: Paul de la Rue e Fred Meyer...

Tratava-se dos dois vigaristas que Thomas, num curso acelerado e penoso, havia transformado em verdadeiros cavalheiros e que graças a essa metamorfose haviam podido aliviar o joalheiro Marius Pissoladière de certas jóias, no valor aproximado de oito milhões de francos.

Thomas disfarçou, com elegância, as suas verdadeiras relações com os dois criminosos.

- Por conseguinte, irei a Toulouse.

- A Toulouse?

- Sim, é claro. Nenhum crime é cometido em Toulouse sem que esses senhores saibam quem, como e quando. E a mim eles contarão o que sabem.

- E a SD?

- É indispensável que vá ver Eicher, coronel. É preciso explicar-lhe que damos grande importância a Ferroud, no momento, e oferecer-lhe a cooperação da Abwehr para esclarecer o assassinato do Untersturmführer Petersen.

O pequeno major Brenner retirou os óculos e começou a limpar cuidadosamente as lentes. ”Quando daquele incrível caso dos maquis”, pensou ele, mordendo os lábios, fiz papel de bobo.

”eu Fui contra Lieven. Cheguei a fazer escândalo. Resultado?” O major Brenner olhou para a dragona no ombro esquerdo.

- Depois de refletir profundamente, concordo com a sugestão de Herr Lieven. Não devemos permitir que nos joguem de lado. É necessário que continuemos a tratar do assunto. Esse negócio dos bônus é demasiado importante...

Thomas virou-se, para dissimular um sorriso. O coronel ficou agitado.

- Vocês pretendem que eu visite aqueles porcos, bancando o importante?

- Não se trata de bancar o importante, coronel! - exclamou Brenner. - Empreguemos o velho método. O senhor se apresentará em uniforme de gala, com um processo ultra-secreto debaixo do braço.

- Vocês estão ambos loucos. Bastará que me veja para que Eicher tenha uma apoplexia.

- Coronel, nós salvamos Herr Lieven graças a um falso Gekados. Seria incrível que não pudéssemos participar do assunto Petersen com um verdadeiro.

- Esse Lieven de merda! - disse o Sturmbannführer Walter Eicher.

Jovial, vermelhão e espadaúdo, ele estava sentado em seu gabinete na Avenue Foch, 84. Com ele estavam Winter, seu ajudante-de-ordens, e o Obersturmführer1 Ernst Redecker, um esteta louro que tinha predileção por Rilke e pelo poeta Stefan George.

Eram cerca de dezenove horas do dia 23 de setembro de 1943. Eicher terminara o seu trabalho. Depois das fadigas do dia ele gostava de palestrar durante uma hora com o seu ajudante-de-ordens, enquanto bebiam um trago. Nessas reuniões íntimas, ele gostava de receber o Obersturmführer Redecker, porque esse homem de bem tinha uma qualidade excepcional: era o próprio cunhado do Reichesfiihrer das SS e chefe da polícia alemã, Heinrich Himmler.

 

1 Na hierarquia militar, posto imediatamente acima do Sturmbannführer. (N. do E.)

 

De vez em quando Redecker recebia cartas pessoais de Reichsheine, redigidas em tom cordial, que ele exibia, por toda a parte, com legítimo orgulho. Na opinião de Eicher, tal homem devia ser bem cultivado. E era isto que ele fazia. Nesse dia, entretanto, o ambiente não era o de uma conversa ao pé do fogo.

- Todos os dias uma nova amolação - resmungou Eicher. - O coronel Werthe, da Abwehr, acaba de sair daqui.

O Sturmbannführer voltou a soltar palavrões.

- Esse Lieven de merda!

- É aquele que estava em nossas mãos? - perguntou Winter com um olhar venenoso.

- Nas mãos sim, mas não bastante seguro, infelizmente. Peço desculpas, Obersturmführer, não tenho o hábito de falar assim, mas esse patife não faz outra coisa senão causar aborrecimentos.

- De que se trata, desta vez?

- Do assassinato de Petersen.

O cunhado de Reichsheine bateu bruscamente com o seu copo de conhaque sobre a mesa. Seu rosto se crispou e ele mudou de cor. Era público e notório que Redecker fora amigo íntimo do falecido Petersen. Sua emoção era, pois, perfeitamente compreensível.

Eicher contou que o coronel Werthe viera procurá-lo para dizer que a Abwehr tinha grande interesse por um dos suspeitos do caso, o banqueiro Ferroud, que parecia ser a personagem principal de um gigantesco tráfico de divisas, no qual parecia evidente estarem também implicados alguns alemães.

Redecker bebeu. Seu súbito nervosismo era tal que derramou parte do conhaque.

- E depois? - perguntou ele com voz rouca. - Que ligação pode haver entre a morte de Petersen e esse tráfico de divisas?

- Nenhuma, é claro. Mas Werthe pediu-me que deixasse a sua organização participar do inquérito sobre o infame assassinato do nosso colega.

- E o senhor recusou, é claro - disse Redecker, agitado.

- Evidentemente, a princípio recusei.

Diante disso, ele mostrou-me Gekados e coisas parecidas. Insistiu em falar com Canaris, do meu próprio escritório. Canaris, aparentemente, falou com o seu cunhado porque, há meia hora, recebemos um telegrama do ministério ordenando que procedêssemos ao inquérito em colaboração com a Abwehr.

Gotas de suor apareceram na testa de Redecker. Ninguém percebeu, e ele virou as costas aos outros, para enxugá-las.

- Werthe já partiu para Toulouse - continuou Eicher raivoso. - E sabe quem o acompanhou? Lieven! Aquele safado de agente duplo. Um sujo que tapeou os nossos homens. Um sujeito que já deveríamos ter atirado, há muito tempo, numa vala comum.

Eicher, agitado, esvaziou o seu copo.

- Se algum dia puser as mãos naquele tipo... Que há?

Um subordinado acabara de entrar na sala.

Thomas reviu a Rue des Bergères com um sentimento de nostalgia. Já tinha sido informado de que sua antiga hospedeira, de cabeleira leonina, não estava mais em Toulouse. Teria tido prazer em revê-la, e às suas pensionistas. Apenas para falar sobre velhas lembranças, é claro...

Parou diante de um prédio dilapidado, passou por uma entrada, também em péssimo estado, e subiu ao terceiro andar.

Na porta, um letreiro dizia:

Paul de la Rue - Fred Meyer Corretores de Imóveis

Thomas fez soar a campainha contendo a vontade de rir. ”Corretores de imóveis”, pensou ele. ”Quando os conheci eram falsários, ratos de hotel e arrombadores de cofres. Que carreira fizeram!”

Ouviu-se barulho de passos e a porta foi aberta. Paul de la Rue, descendente de huguenotes, apareceu na entrada. Estava vestido com bom gosto e tinha os cabelos impecavelmente penteados. Um certo ar aristocrático emanava de sua alta estatura e de seu rosto magro.

- Bom dia, cavalheiro - disse ele com ar distinto -, queira fazer a fineza de...

Subitamente soltou um grito:

- Com mil raios, é o Pierre!

Bateu com a mão no ombro de Thomas, que conhecera como Pierre Hunebelle.

Por alguns segundos esqueceu completamente seus modos distintos:

- Puxa, quero ser mico de... Você está vivo. Contaram que a Gestapo lhe arranjara uma roupa permanente de pinho.

Thomas mal conseguiu escapar aos abraços de Paul e entrar no apartamento.

- A sua casa é bem bonita. Vejo que as minhas lições foram aproveitadas. Você precisa se desfazer, é claro, daquelas peças feias que ali estão: o veadinho, o duende e a dançarina.

- Mas onde diabo você estava? - perguntou Paul olhando-o fixamente. - Como veio aterrar aqui?

Thomas explicou a sua situação. Paul o escutou em silêncio e sacudindo a cabeça algumas vezes.

-...Assim - disse Thomas para concluir -, desembarquei em Toulouse, com o meu coronel, na esperança de que você me pudesse ajudar. Mas agora que você está com os marginais...

- Marginais, uma ova. ”Corretores de Imóveis”. A tabuleta na porta dá um ar de seriedade. Claro que fazemos os nossos negocinhos, como todo mundo. Mas nós dois somos mais espertos - graças a você, meu irmão. As suas lições foram um grande favor.

- Sim - disse Thomas -, e agora chegou a vez de vocês me retribuírem. É preciso que eu saiba quem liquidou esse Petersen. É preciso que eu saiba se foi um atentado da Resistência.

- Certamente não foi um assassinato político.

- Dê-me as provas. Diga quem matou Petersen. De que maneira e por quê.

- Mas Pierre, você não me pode pedir que denuncie um compatriota que matou um nazista!

- Escute bem, Paul. Os nazistas prenderam cento e cinqüenta pessoas: seus compatriotas. Vão fuzilar reféns. Vários. A única maneira de evitar isto seria provando que não se tratava de um crime político e que esse Petersen tinha as mãos sujas. Compreende, cretino?

- Pare com os desaforos. Estou disposto a ir à cata de informações...

Três dias mais tarde, a 27 de setembro de 1943, três pessoas almoçaram no apartamento de Paul de la Rue: o dono da casa, Thomas Lieven e Fred Meyer. Pierre havia chamado Thomas no hotel:

- Acho que tenho alguma coisa que lhe interessa. Venha até aqui. Fred também virá. Não poderia fazer um bom prato para nós? Os camaradas de Marselha disseram que um dia você lhes preparou um banquete de arromba.

- Negócio fechado - disse Thomas.

Nessa manhã ele trabalhara durante três horas na cozinha de Paul. Agora estavam sentados à mesa. Para festejar o reencontro, os larápios vestiam roupas escuras, camisas brancas e gravatas em tom prateado. Seus modos eram tão elegantes que eles se animaram a comer horsd’oeuvre - salsão recheado - com garfo e faca, o que era bastante difícil.

- Ao contrário do que sucede com outros pratos, é permitido, e mesmo conveniente, comer estas hastes com os dedos.

- Louvado seja Deus! - disse Fred. - Que queijo é este?

- Roquefort - respondeu Thomas. - Então? Quem liquidou o Petersen?

- Um certo Louis Rêveur. Um corso. Chamam-no de Louis Rêveur.

- E quem é esse Rêveur? Da Resistência?

- Claro que não. Um verdadeiro criminoso. Já cumpriu pena de quatro anos, por assassinato.

- E por que matou Petersen?

- Segundo o que apuramos, e as nossas informações são o que há de mais exato, esse Petersen era um sujo da pior espécie. Ordem do Sangue, bolas! SD, bolas! Se me fizerem cócegas, eu poderei rir. Petersen veio para cá como civil. Sabe o que ele fazia? Comprava ouro. - Veja só! - Qualquer quantidade. Ele pagava bem. Devia tratar-se de uma grande organização. O Rêveur fez vários negócios com ele. Sempre em pequenos lotes.

”Herr Petersen, da SD, um traficante de ouro”, pensou Thomas. ”E o Führer mandou que se fizessem funerais nacionais, solenes. E querem fuzilar reféns. A Alemanha perdeu um herói. Heil!”

- Pouco a pouco Petersen inspirou confiança ao Rêveur, até que um dia ele veio ao hotel de Petersen com um grande love de muamba.

No Hotel Vitória um homem moço e fraco colocou duas pesadas maletas, cheias de moedas e lingotes de ouro, sobre a mesa Luís XI do apartamento 203. Louis Monico ofegava com o esforço despendido. Sua respiração era arquejante, seus olhos brilhavam de febre.

Diante de Rêveur estava um homem baixo, vestido de flanela cinza. Tinha olhos úmidos, uma boca quase sem lábios e os cabelos louros e curtos repartidos por uma risca geométrica. Louis sabia que o homem se chamava Petersen e que comprava ouro. Era tudo que sabia. Mas, para ele, isto era suficiente.

- Quanto tem hoje? - perguntou Petersen.

- Trezentos napoleões e trinta e cinco lingotes. Rêveur abriu as maletas. O ouro cintilava sob a luz

do candelabro.

- Onde está o dinheiro?

Petersen levou a mão direita ao bolso interno do casaco. Quando a retirou segurava um cartão.

- Eu sou o Untersturmführer Petersen, da SD - disse Petersen com voz glacial. - O senhor está preso.

Enquanto Petersen falava, Louis Monico conservara a mão direita no bolso. Não a retirou. Atirou através do bolso. O dignitário da Ordem do Sangue Erich Petersen foi atingido por três balas em pleno peito. Morreu instantaneamente. Seus olhos fixavam o teto.

- Era a mim que você queria embrulhar, pobre imbecil? - perguntou Rêveur ao morto.

Passou por cima do cadáver e foi abrir a porta dupla do apartamento. O corredor estava deserto. Rêveur apanhou as duas malas e saiu. No saguão, ninguém prestou atenção nele.

-...No saguão ninguém prestou atenção nele - disse Fred Meyer. ”

 

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       CÉLERI (SALSÃO) INTEIRO RECHEADO

       RAGOUT DE CARNE À ESPANHOLA

       PÊSSEGOS FLAMBÊS

 

Toulouse, 27 de setembro de 1943

Um almoço bem picante faz estourar o grande plano.

Salsão recheado - Use salsão branco sem retirar as folhas. Prepare uma mistura de manteiga e queijo Roquefort, em partes iguais, amassando bem até ficar uma pasta homogênea.

Faça alguns talhos (ao comprido) na parte interna do salsão. Coloque um pouco da massa já preparada em cada salsão entalhado e aperte um pouco para aderir. Leve ao refrigerador.

Sirva os salsões com as folhas para cima em um recipiente com gelo picado.

Ragout de carne à espanhola - Corte pequenos bifes de filé e bata-os. Passe mostarda, salgue e polvilhe com pimenta-do-reino. Corte batatas, sem casca, em fatias finas. Refogue, em manteiga, uma boa porção de cebolas picadas.

Tome uma forma de pudim, unte-a com manteiga e polvilhe-a com farinha de rosca. Agora arrume uma camada de fatias de batata e sobre ela coloque pequenos blocos de manteiga. Em seguida ponha uma camada de carne recoberta com os cebolas refogadas. Continue repetindo a ordem até terminar com uma camada de batatas e manteiga.

Misture meia xícara de vinho tinto, meia xícara de creme fresco e meia xícara de caldo de carne, e derrame tudo sobre o que está na forma.

Cubra bem a forma e leve a banho-maria durante hora e meia.

Sem mexer, vire a forma sobre uma travessa. Pêssegos flambés - Prepare uma calda de açúcar (clara) com um pouco de manteiga e amêndoas picadas. Junte suco de laranja, ou de limão, na proporção de uma parte de suco para duas de calda. Adicione um pouquinho de Cointreau, de marasquino e de conhaque.

Coloque nessa mistura metades (bem escorridas) de pêssegos em conserva, molhando constantemente os pêssegos, para que se aqueçam. Ponha mais conhaque e flambe.

Arrume os pêssegos quentes sobre sorvete de creme em pratos individuais. Molhe com a calda e junte um pouco de creme chantilly.

Esse prato é geralmente preparado na mesa, em fogareiro a álcool.

- Onde você obteve essas informações? - perguntou Thomas.

- Com o irmão de Rêveur.

- E ele contou isso sem qualquer dificuldade?

- Sim. Porque agora isso não tem mais importância. Eu lhe disse que Rêveur era tuberculoso. Há três dias teve uma hemoptise. Está no hospital e não tem mais de uma semana de vida. Pode trazer o seu coronel, ele está pronto a prestar um depoimento.

27 de setembro de 1943, às dezesseis e quinze. O telefone soou no escritório do pequeno major Brenner. Ele pegou o fone e reconheceu a voz do seu chefe:

- Aqui fala Werthe. Estou chamando de Toulouse. Preste toda a atenção. O que vou dizer é de importância capital.

- Às suas ordens, coronel.

Werthe contou a história de Louis Monico, de sua moléstia e de sua confissão.

- Lieven, dois agentes da SD e eu próprio estávamos à sua cabeceira.

- Formidável, meu coronel! - exclamou Brenner. Seu coração saltava. ”Esse Lieven. Esse diabo de Lieven. Graças a Deus eu apoiei a sua idéia desde o início.”

- Mas esse Victor Robinson? - lembrou Brenner. - Esse que empresta dinheiro sob penhor, que acusou Ferroud.

- Nós esclarecemos esse caso. Robinson era cúmplice de Petersen. É um antigo empregado de Ferroud que foi despedido. Robinson queria vingar-se. Mas isso não é tudo, Brenner. Fizemos uma descoberta sensacional: segundo as investigações de Lieven, Petersen e o seu ouro estavam implicados num monstruoso tráfico de bônus do Tesouro... Alô, Brenner, está ouvindo?

Brenner umedecia seus lábios ressecados. ”Meu Deus, os bônus do Tesouro! Que trapalhada... que... e eu estou metido nisso.”

- Estou ouvindo, coronel - gritou com voz marcial.

- Não sabemos ainda os nomes e as ramificações, mas não há um segundo a perder, Brenner.

Se Petersen estiver realmente envolvido no negócio dos bônus, teremos um escândalo dos maiores. A SD, é claro, fará o possível para abafar o negócio. Temos uma vantagem sobre eles, mas é uma vantagem de algumas horas, no máximo. Reúna cinco homens de sua absoluta confiança, major...

- Sim...

- O apartamento de Petersen é na Avenue Wagram. Dê uma busca completa.

- Está bem, meu coronel.

- Lieven descobriu que Petersen tinha um apartamento secreto no número 28 da Avenue Mozart. Parece que a SD desconhece este fato. Vá até lá, também.

- Sim, meu coronel.

- Vire os dois apartamentos de pernas para o ar. Faça como julgar melhor. Lieven irá ao seu encontro; ele já está de regresso. Apreenda tudo que for suspeito, antes que a SD faça desaparecer.

- Sim, senhor, coronel.

Foi assim que o pequeno major foi precipitado num caso que iria fazer corar de vergonha a sua cara honesta e rubicunda; uma aventura escandalosa e tipicamente parisiense. Procuraremos relatá-la com tato.

Com os pneus guinchando, o Mercedes da Wehrmacht parou diante do número 3 da Avenue Wagram. O pequeno major Brenner saltou do carro, estufou o peito e levantou, com gesto enérgico, seus óculos de aro de ouro.

Um caminhão militar parou atrás do Mercedes. Cinco homens uniformizados desceram à rua banhada pelos últimos raios de sol de um belo dia de outono. Isto se passava às dezesseis e quarenta e seis do dia 27 de setembro de 1943.

- Sigam-me - disse o pequeno major, preparando o seu revólver.

Seguido dos seus cinco homens de elite, entrou correndo no apartamento do falecido Petersen, mas este estava vazio. As portas estavam abertas. Tapetes, móveis, tudo havia desaparecido.

- Vieram buscar tudo esta manhã - declarou o gordo porteiro, erguendo os ombros.

- Quem veio?

- Ora, homens de uma empresa de mudanças e um oficial alemão, amigo de Herr Petersen. Ele vinha muitas vezes aqui... Redecker é o seu nome.

- Redecker?

O major Brenner tinha relações na SD. Ele conhecia o Obersturmführer cunhado do Reichsführer das SS e chefe da polícia alemã, Heinrich Himmler.

Brenner teve um pressentimento sinistro. Seria Redecker cúmplice de Petersen? Se assim fosse, só lhe restavam alguns segundos. A SD, segundo o coronel, não conhecia o apartamento da Avenue Mozart. Era preciso ir para lá a toda pressa.

Os cinco homens de elite precipitaram-se pelas escadas e foram ao encontro do seu chefe, na rua. Com os motores rugindo os carros arrancaram. Com o coração disparado Brenner tinha o espírito cheio de imagens do gênero: ”Sou eu, Zorro, aqui estou”.

Alguns minutos depois, na elegante Avenue Mozart, Brenner tentava recordar o francês que aprendera no colégio para explicar ao porteiro do número 28 que ele tinha autorização para revistar o apartamento de Herr Petersen.

- Mas, monsieur, as senhoras estão lá em cima.

- As senhoras? Que senhoras?

- Mme Page e a sua empregada.

- Quem é Mme Page?

- A amiga de Herr Petersen, é claro. Ele partiu há alguns dias.

A inteligência de Brenner concluiu, com rapidez, que ali se ignorava o triste fim do traficante de ouro e dignitário da Ordem do Sangue. Mais uma vez ele se precipitou, à frente dos seus homens, e parou no segundo andar.

Uma empregadinha, muito jeitosa, atendeu ao seu toque de campainha. Brenner explicou a razão de sua visita sem, entretanto, dizer palavra (sejamos espertos) sobre a morte de Petersen. A bonita empregada ficou sem jeito e chamou a patroa.

Lilly Page apareceu com algo parecido com um vestido, mas tão transparente que, mesmo na penumbra da ante-sala, perturbava os espectadores. Seu corpo era cheio de atrativos algo opulentos.

Era, em resumo, uma pessoa bastante interessante, com olhos do feitio de amêndoas e uma pele branca como a neve.

O major verificou que os olhos dos seus cinco homens de elite pareciam querer saltar das órbitas. Havia uma categoria de mulheres com as quais Brenner jamais lidara em toda a sua vida. Mme Page era dessa categoria. Ele pigarreou, para clarear a voz, e explicou a finalidade da sua visita, com cortesia e firmeza.

A seguir, verdadeira personificação do dever, ele foi o primeiro a entrar na sala de visitas cujo arranjo era elegante e caro. Nas paredes havia vários quadros representando cenas escabrosas. Logicamente, Brenner não os olhou.

Entrementes, Lilly Page, com passos graciosos, foi até a janela e baixou a cortina, embora isso fosse absolutamente desnecessário, àquela hora do dia.

”Será que ela pensa que eu sou um imbecil?”, perguntou Brenner a si mesmo. ”Isso deve ser um sinal combinado com alguém que está na rua.” Aproximou-se da capitosa Lilly e ergueu novamente a cortina.

- Prefiro - disse ele, com a graciosidade de um pequeno elefante - admirar a sua beleza à luz do dia.

- O senhor é muito amável, major - disse Lilly sentando-se numa macia poltrona. - Pode começar a sua busca.

Ela cruzou as pernas.

Os cinco homens de Brenner, aparentemente, já tinham começado o serviço. O comandante os ouvia arrastar objetos na sala contígua, ao mesmo tempo que gracejavam com a empregada. Que tipos! Nenhuma seriedade, nenhuma noção do dever. Uma concepção muito estranha das obrigações militares.

De muito mau humor e perturbado pela presença de Lilly, Brenner abriu uma grande caixa de acaju. O que viu íê-lo corar de vergonha. Sufocou. Na sua poltrona Lilly ria ironicamente. O major bateu com a tampa da caixa. Cada vez estava mais atrapalhado.

Evidentemente, o major Brenner já ouvira dizer que havia livros, desenhos, fotografias e objetos de tal natureza que não podiam ser mostrados em público.

Mas não tinha a menor idéia do que fossem tais livros, desenhos, fotos e objetos. Agora, que abrira a caixa e seus olhares sem malícia viram coisas desse tipo, todo o seu ser se revoltava diante de tanta perversão e monstruosidade. ”Não é de admirar”, disse a si mesmo, ”que tal nação tenha perdido a guerra.”

Gritos de triunfo, que mais pareciam relinchos, fizeram estremecer o major.

- Parece - disse a mulher com olhos de amêndoa - que os seus homens descobriram a biblioteca.

Brenner precipitou-se para a sala vizinha. Quatro dos seus homens de elite estavam entretidos em explorar o arinário-estante. O major estremeceu ao ver o motivo de sua alegria. Procurou, com os olhos, o quinto homem de elite. Ele estava no quarto da empregadinha.

Brenner proibiu a exploração da biblioteca aos quatro homens. Ao quinto, quando o encontrou, proibiu a exploração da empregadinha. Os acontecimentos estavam acima de sua capacidade. O apartamento era um verdadeiro museu do inominável.

O rosto do major ficou da cor de um tomate maduro demais. Sua testa estava banhada de suor. Tomando uma decisão desesperada, chamou Toulouse, através de uma mesa de ligações da Wehrmacht, pedindo a máxima urgência.

Graças a Deus, Werthe ainda lá estava. Brenner suspirou dê alívio ao ouvir-lhe a voz. Com voz entrecortada relatou o atoleiro em que estava metido. Do outro lado, o coronel suspirou.

- E nenhuma prova? - perguntou Werthe. - Nenhum bônus? Você não encontrou nada?

- Nada, coronel.

- Ouça, Brenner: Lieven chegará sem demora a Paris. Não saia de onde está. E não fale a ninguém sobre os incidentes de Toulouse...

- Muito bem, coronel. Ficarei aqui e não abrirei a boca.

- Chame o Lutetia e o apartamento de Lieven. Deixe recado para que ele vá a seu encontro logo que chegue.

Brenner desligou. Lieven. Thomas Lieven. O chefe de operações especiais era a sua única esperança. ”Contanto que ele venha, que venha depressa...”

Vindo de algum ponto do apartamento, ouviu-se um grito da empregada, como se lhe estivessem fazendo cócegas. Colérico, o major foi procurar o culpado. Meu Deus, que situação detestável.

Tudo que o major Brenner havia encontrado, até o momento, no apartamento do dignitário da Ordem do Sangue, eram - com exclusão das coleções inomináveis - jóias de valor, grande quantidade de moedas de ouro, gravuras e esculturas orientais, mas nada que pudesse provar a participação de Petersen no tráfico de bônus do Tesouro.

Por várias vezes Mme Page procurou mexer na cortina de uma janela, até que Brenner a proibiu formalmente de fazer tal coisa.

Era decorrida uma hora e meia do início da busca. Subitamente, soou a campainha da porta de entrada. Lilly ficou lívida. Brenner empunhou o revólver.

- Nem uma palavra - ordenou ele. Atravessou a ante-sala, de costas, fez meia-volta, abriu

subitamente a porta e pegou pela gola o homem que esperava na entrada.

O homem era moço, tinha traços bonitos e cor morena. Seus cabelos eram castanhos e lisos, tinha um pequeno bigode, longas pestanas e, na face direita, duas cicatrizes que pareciam cortes de faca. Ele estava lívido.

- Imbecil - exclamou a excitante Lilly. - Por que subiu?

- Por que não deveria subir? - gritou ele. - A cortina não estava baixada.

- Ah! - triunfou Brenner.

Revistou o homem para ver se estava armado. Não estava. Segundo o seu passaporte, chamava-se Prosper Longtemps. Profissão: artista dramático. Idade: vinte e oito anos.

Brenner interrogou-o. O homem manteve um silêncio obstinado. Lilly desatou a chorar.

- Eu vou contar tudo, major - disse ela aos soluços. - Prosper é... o meu grande amor. Há muito tempo eu engano Petersen, com ele... Acredita?

- Não - disse Brenner em tom glacial.

Lieven, pensou ele, reagiria com o mesmo rigor. Mandou trancar Prosper Longtemps no banheiro.

Já eram sete horas e meia e a noite chegara. O major chamou o Lutetia e, depois, o apartamento de Lieven. Ele ainda não havia voltado.

Brenner não ousava mandar à estação um só dos seus homens de elite para o trazer diretamente ao apartamento de Lilly. Receava uma incursão da SD. Precisaria, nesse caso, de todos os seus homens para defender o apartamento e resistir ao assédio.

Que outra coisa poderia fazer? O major dava tratos à bola. A operação havia começado com tanto entusiasmo e o êxito parecia quase certo. E agora? Agora ele estava fechado na atmosfera sufocante de um apartamento cheio de coisas inomináveis mas vazio de provas. Era verdade que ele havia feito um prisioneiro. Mas quem era ele? Como saberia, algum dia, a verdade?

Para complicar as coisas, ainda havia essa perturbadora Mme Page... a linda empregadinha e cinco homens que só se interessavam pelas coisas inomináveis e pela empregada. Por que não tinha ficado em seu escritório do Hotel Lutetia? O seu forte eram as teorias do Estado-Maior, e não a estratégia e a tática da linha de frente...

Brenner teve um sobressalto: a senhora sugeriu mandar fazer uns sanduíches para os homens esfaimados.

Brenner hesitou. Poderia ele permitir tal coisa?

Afinal, Mme Page e a empregada eram os inimigos. Entretanto, os homens tinham fome e ele, como o seu superior, queria mostrar-se compreensivo. Por conseguinte, permitiu que a empregadinha fosse à cozinha e destacou um dos homens para acompanhá-la, advertindo-o de que procedesse com correção total.

Pouco depois, os homens comiam com apetite e bebiam champanha, que encontraram no refrigerador. A princípio Brenner não quis tocar em nada, mas finalmente deixou-se convencer e comeu um pedacinho e bebeu um pequeno gole.

Nove horas da noite, depois dez horas e nem sinal de Thomas Lieven. As duas mulheres disseram que queriam dormir.

Brenner concordou com o que pediam. Organizou a vigilância: um homem à porta do quarto da empregada, um homem vigiando a porta da patroa, um outro à porta do banheiro. Dois homens ficariam na entrada do prédio. Ele próprio ficaria na sala, perto do telefone.

Decidiu que não dormiria. Considerava-se como um rochedo em plena tempestade. Inamovível, incorruptível.

In...

Quando acordou sentiu que mãos suaves percorriam o seu corpo...

- Psiü - murmurou Lilly. - Todos estão dormindo... Farei tudo que quiser mas solte o Prosper...

- Madame - respondeu Brenner com firmeza e segurou os braços de Lilly com a força de tenazes -, largue imediatamente o meu revólver.

- Ah! - suspirou Lilly na escuridão. - Não é o seu revólver que eu quero, seu boboca...

Neste momento soou a campainha da porta de entrada.

Thomas Lieven regressara a Paris às vinte e duas e dez. No Lutetia, informaram-no de que o major Brenner o esperava, com urgência, na Avenue Mozart, 28, e que há duas horas não parava de telefonar. Disseram, também, que o major fora para o endereço indicado, à frente de um comando.

- Hum! - fez Thomas.

”Que diabo”, perguntava a si mesmo, ”o que pode o major estar fazendo há duas horas no apartamento clandestino do Petersen?”

No saguão do hotel viu seus dois velhos amigos Raddatz e Schlumberger, cabos radiotelegrafistas e exímios na arte de tapear o Exército. O berlinense e o vienense o acolheram alegremente. Tinham terminado o seu turno de trabalho.

- Quer vir conosco, chefe? - perguntou o vienense.

- Vamos dar uma volta em Pigalle e procurar umas boas pequenas.

- Escutem aqui, companheiros. Peço que retardem um pouco os seus excelentes projetos e venham comigo. Acho que vou precisar de vocês.

Dessa forma, os três homens chegaram à porta do apartamento da Avenue Mozart, 28, cerca de vinte e três horas. Thomas tocou a campainha. Ouviram-se vozes no interior. Depois vários barulhos e, finalmente, a porta foi aberta pelo major Brenner, vermelho como um pimentão, ofegante, despenteado e com marcas de batom no pescoço. Atrás dele, Thomas e seus amigos viram uma mulher cuja única vestimenta era uma camísola de dormir, feita de teia de aranha.

Como homem educado, Thomas beijou a mão da mulher de camisola.

A seguir, o major Brenner explicou a situação contando o que felizmente encontrara no apartamento e o que infelizmente não encontrara. Finalmente, falou sobre o seu prisioneiro.

- Prosper é o meu amante - disse Lilly Page, que agora já vestia um peignoir. - Ele ignora completamente tudo que se refere aos negócios de Petersen.

- Se referia - retificou Thomas. - Devo avisá-la de que Erich Petersen foi morto, em Toulouse, por um dos homens com quem negociava.

Os belos lábios de Lilly entreabriram-se num lindo sorriso.

- Afinal, acertaram as contas com esse grande safado.

- Madame - suplicou Thomas -, não permita que a dor a torne incoerente.

O pequeno major não entendia mais nada.

- Mas - disse ele -, mas eu acreditava que...

- Oba, oba - interrompeu a voz sonora do cabo Raddatz. - Aqui há algo de formidável...

- Quem lhe deu licença para me interromper? - gritou Brenner.

O cabo Raddatz também abrira a caixa de acaju mas não a fechara imediatamente, tal como o major, com repugnância pelo que encontrara.

Com as duas mãos retirou o que havia nas gavetas da caixa e examinou tudo, com surpresa e bom humor. Finalmente, retirou todas as gavetas e despejou o conteúdo no chão. Ele continuava a rir... Subitamente, sua hilaridade transformou-se em espanto.

- Com mil raios - disse ele. - Que lugar engraçado para guardar bônus do Tesouro!

Houve um silêncio absoluto na sala.

- Muito bem, até que enfim - disse Thomas em voz baixa.

Inclinou-se diante de Lilly Page.

- A senhora permite que recomecemos as buscas? - perguntou ele.

- Com todo o prazer - disse a bela mulher, com um sorriso fatigado. - Direi até onde devem procurar: lugares que o major proibiu os seus homens de remexer...

Encontraram cinco milhões de marcos em bônus do Tesouro, emitidos na Romênia: em caixinhas de madeira preciosas e odoríferas, que continham estranhos objetos orientais, atrás dos livros proibidos da biblioteca, escondidos debaixo de várias coleções e atrás dos escabrosos quadros da sala de visitas.

Thomas mandou que a dona da casa fosse para o quarto e foi conversar com o rapaz, pálido e apavorado, que se chamava Prosper Longtemps. Dez minutos mais tarde, ele foi ao encontro de Mme Page em seu quarto de dormir.

Ela estava deitada. Thomas sentou-se na cama.

- Estou dizendo a verdade - balbuciou ela. - Prosper é o meu único amor. Foi unicamente por causa dele que eu vim morar aqui com Erich, com aquele porco... Mas o senhor não acredita em mim...

- Acredito, sim. Acabo de conversar com Prosper. Ele me contou que a conhecia há dois anos. Há um ano a SD veio prendê-lo...

Prosper Longtemps, esse patife que tinha o dom de fazer mulheres muito felizes, tinha um passado com vários deslizes. Quando o prenderam, foi interrogado por um certo Untersturmführer Petersen. Lilly Page foi procurar Petersen para interceder a favor de Prosper. Lilly agradou a Petersen, que prometeu ser clemente com Prosper, contanto que...

Obrigada pelas circunstâncias, Lilly tornouse amante de Petersen e este mandou soltar Prosper.

- Ouça, madame, estou disposto a proteger Prosper - disse Thomas. - Mas sob uma condição.

- Eu compreendo - disse ela, olhando de lado e com um gesto lânguido.

- Creio que a senhora não está entendendo - disse Thomas, em tom cordial. - Petersen estava implicado no tráfico de bônus do Tesouro. Quero saber como esses bônus entraram na França. Se a senhora me ajudar eu me ocuparei de Prosper.

Lilly ergueu-se, lentamente, na cama. ”Ela é muito bonita. Ama esse cafajeste e fará qualquer coisa por ele. Como a vida é estranha!”

- O senhor está vendo aquele quadro? - disse Lilly.

- O que representa Leda e o Cisne? Tire-o da parede.

Thomas seguiu as instruções. Atrás do quadro havia um pequeno cofre embutido, com uma fechadura de segredo.

- Gire a combinação até chegar ao número 47132

- disse a mulher deitada na cama.

Ele levou a combinação até o número 47132 e a porta do cofre se abriu. O cofre continha unicamente um livro encadernado em couro negro.

- Erich Petersen era um sujeito repugnante e pedante. Tomava nota de tudo: homens, mulheres, dinheiro... Aí está o seu diário. Leia e saberá tudo.

Thomas Lieven teve pouco tempo para dormir naquela noite. Ele leu o diário do Untersturmführer Erich Petersen. Quando chegou a madrugada ele sabia como funcionava uma das maiores trapaças dos tempos de guerra.

Moído de cansaço, relatou tudo ao coronel Werthe, que chegara a Paris durante a manhã.

- Todos os serviços estão implicados neste caso - disse ele. - Altos funcionários do Ministério da Segurança, em Berlim. Agentes graduados da SD na Romênia. Provavelmente o próprio embaixador da Alemanha em Bucareste, Manfred von Killinger.

E, aqui em Paris, o Obersturmführer Redecker, cunhado de Heinrich Himmler.

Deus do céu! - disse, com voz débil, o coronel,

enquanto Brenner, em sua cadeira, aguardava com paciência a continuação do relato.

Redecker foi quem iniciou tudo - continuou Thomas. - Em 1942 ele pertencia à SD de Bucareste...

Naquela época os romenos eram forçados a aceitar bônus do Tesouro como meio de pagamento, mas se aparecia alguém que lhes trocasse os bônus por dólares, libras ou ouro, eles ficavam contentíssimos. A taxa pouco importava. O importante era verem-se livres daquela porcaria de papéis.

Redecker foi transferido para Paris, onde veio a conhecer Petersen. Breve verificaram que tinham muita coisa em comum. Redecker contou as suas negociatas na Romênia. Juntos organizaram o negócio em grande escala.

Petersen começou a viajar por toda a França. Comprava, estorquia, roubava e requisitava ouro. O ouro seguia para Berlim em avião especial da SD, onde havia ”associados fiéis” no Ministério da Segurança. Outros aviões da SD levavam para Bucareste o ouro francês, que era recebido por outros fiéis associados.

Homens da SD de Bucareste trocavam, em seguida, o ouro francês por bônus do Tesouro alemão, da emissão romena. Claro está que operavam essa troca pelas mais escorchantes taxas. Os bônus embrulhados e camuflados como ”processos altamente confidenciais” vinham para Paris, via Berlim.

-...As coisas se passam - concluiu Thomas - exatamente como Ferroud suspeitava. Somente alemães poderiam organizar uma combinação em escala tão grande. Redecker e Petersen roubavam tranqüilamente os bens dos franceses. Mas Petersen nunca teve plena confiança em Redecker. Foi Lilly Page quem me disse. Por este motivo, ele tinha um apartamento clandestino. Pelo mesmo motivo escrevia um diário no qual mencionava todos os negócios em que Redecker tomava parte. Queria ter um trunfo contra ele.

Thomas apanhou o livro negro. - O nome de Redecker não é o único que figura nestas páginas. Há muitos outros.

Este livro, senhores, permitirá inutilizar e destruir toda a maquinação.

- Ouça aqui, Lieven - rosnou Werthe, irritado -

você faz idéia de quem iremos acusar? O cunhado de Himmler! Um embaixador! Altos funcionários da SD! Foi você mesmo que os mencionou.

- Assim sendo, coronel, as medidas a serem tomadas exigem profunda meditação. E onde se pode refletir melhor que diante de uma boa refeição? Já dei as ordens em minha casa. Espero-os dentro de uma hora.

Quando o coronel Werthe e o major Brenner chegaram, sessenta minutos depois, à casa do Bois de Boulogne, estavam pálidos e nervosos. O major Brenner parecia prestes a chorar. O coronel, por seu lado, fixava o olhar na toalha, enquanto Nanette servia os hors-d’oeuvre. Thomas esperou que ela saísse da sala.

- Que preocupação os atormenta, cavalheiros? - perguntou ele então. - Estarão os senhores preocupados com as ameaças que pesam sobre o cunhado do Reichsführer das SS?

- Se fosse somente ele... - disse Werthe em tom soturno.

- Quem mais? - perguntou Thomas comendo melão.

- Você - disse Werthe.

Como não se deve falar com a boca cheia, Thomas engoliu, primeiro, um pedaço de melão.

- Trata-se de alguma brincadeira? - perguntou a seguir.

- Infelizmente não, Lieven. A SD quer a. sua pele. Você não ignora que Brenner tem conhecidos na SD, não é? Depois da sua partida, ele foi à Avenue Foch. Afinal de contas, fomos nós que esclarecemos o caso Petersen em Toulouse. Ele falou com Winter e fez uma constatação tranqüilizadora: a SD-Paris não tem a menor suspeita sobre a história dos bônus do Tesouro. Mas, logo a seguir, Winter começou a falar de você, Lieven.

- Ora veja só. E que disse ele?

Ele disse... hum... ele disse: ”Afinal o pegamos”.

A porta abriu-se.

- Ah! - exclamou Thomas, esfregando as mãos.

Eis aqui a adorável Nanette, com as costeletas de porco ao parmesão.

Nanette corou até a raiz dos cabelos.

- Monsieur, é preciso que não diga ”adorável Nanette” quando estou servindo um prato. Do contrário eu deixo tudo cair e quebro a sua louça.

Ela serviu o prato.

- Não tem pimenta-do-reino demais? - perguntou Thomas. - Não? Muito bom. Então eles me pegaram? E por quê, por favor?

- Você conhece uma certa Stabshauptführerin1 Mielke? - perguntou Brenner, em tom apiedado.

Thomas engoliu sem querer.

Na época em que procurava uma ponte para entregar aos maquis de Crozant, tivera, realmente, ocasião de conhecer essa senhora, alta funcionária do Ministério do Trabalho alemão e nazista fanática. Ela o tratara com tal arrogância que ele foi forçado a dizer-lhe que estava sob as ordens do almirante Canaris e não sob as suas. Essa senhora, aparentemente, não o esquecera. Por uma coincidência infeliz, ela o vira no expresso de Marselha, em companhia de Yvonne Dechamps. Através da polícia militar da estação de Lyon ela soube que a moça tinha documentos da Abwehr-Paris, com o nome de Madeleine Noèl.

Com essas informações, que ela julgava muito suspeitas, procurou o Sturmbannführer Eicher a quem pediu que aprofundasse as sindicâncias...

Eicher, que odiava Thomas, atendeu-a, com prazer. Veio a saber que Madeleine Noel vivia agora em Lisboa, sob o nome de Yvonne Dechamps.

Yvonne Dechamps... O nome parecia-lhe conhecido. Eicher percorreu as listas das pessoas procuradas. Um sorriso de triunfo aflorou-lhe aos lábios. Yvonne Dechamps, terrorista perigosa e assistente do professor Débouché. E

 

1 Chefe suprema do comando militar. (N. do E.)

 

foi Thomas Lieven quem impedira que a Gestapo a pegasse, usando documentos da Abwehr.

- Winter contou-me - disse Brenner cortando uma batata com a faca (coisa que não se faz) - que Eicher já entrou em contato com Berlim. Com Himmler.

- O cunhado de Herr Redecker! - disse o coronel. - E Himmler falou com Canaris. E Canaris chamou-me há meia hora. Ele está fulo de raiva. Você sabe como as nossas relações com a SD estão estremecidas. Foi a gota que fez transbordar a taça. Eu lamento muito, Lieven, você é um rapaz de bem. Mas as minhas possibilidades têm limites. A SD apresentou queixa contra você. Será julgado por uma corte marcial. Não há nada a fazer. E...

- Há, sim - disse Thomas.

- Como?

- Creio que há muito a fazer. Não coma carne demais, major. Temos panquecas com chocolate para a sobremesa.

- Você parece estar decidido a fazer-me enlouquecer, Lieven! - gritou Werthe. - Pare de falar em comida. Na sua opinião, que poderemos fazer?

- Segundo o senhor, a SD quer a minha caveira? Muito bem, neste caso nós é que teremos a caveira de Herr Redecker. Que dia é hoje? Terça-feira? Ótimo. Vou avisar a Eicher que o visitarei amanhã à tarde para pôr essa história em pratos limpos: refiro-me aos documentos falsos de Yvonne.

- Você... você pretende ir ver Eicher?

- Claro que sim. Lamento muito ter causado tantos aborrecimentos ao almirante Canaris.

- Mas por quê? Por que meter-se na boca do lobo?

- Porque amanhã é quarta-feira, senhores - explicou Thomas amavelmente. - E segundo o meu livrinho preto, é às quartas-feiras que remetem os bônus do Tesouro de Bucareste para Berlim. Depois do almoço combinaremos um horário exato. Não pode haver atraso ou falha...

Com um sorriso que espelhava a sua adoração, Nanette ajudou o patrão querido a vestir o sobretudo de pêlo de camelo. Thomas Lieven olhou para o seu relógio de repetição.

 

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         FATIAS DE MELÃO

         COSTELETAS DE PORCO AO PARMESÃO

         PANQUECAS COM CHOCOLATE

 

Paris, 28 de setembro de 1943

À sobremesa, Thomas Lieven tenta convencer o Reichsführer das SS.

Fatias de melão - Sirva fatias, bem geladas, de um belo melão. Cada convidado poderá usar temperos à sua vontade.

Costeletas de porco ao parmesão - Use costeletas de tamanho médio e com alguma gordura. Bata para achatar, salgue e salpique pimenta-do-reino. Arrume-as em prato de bordas pequenas e que possa ir ao fogo. Polvilhe abundantemente com parmesão ralado e adicione (sem cobri-las totalmente) creme azedo espesso.

Leve ao forno durante vinte a trinta minutos e sirva, no próprio prato em que assaram, acompanhadas de batatas cozidas e uma salada verde. Panquecas com chocolate - Prepare panquecas leves e finas, depois de deixar a massa repousar, pelo menos uma hora. Bata duas gemas com duas colheres das de sopa de açúcar. Derreta, ao fogo, três barras de chocolate com um copo de leite. Misture tudo e acrescente um pouco de essência de baunilha e uma pitada de sal. Leve ao fogo, mexendo constantemente, até obter um creme espesso. Derrame esse creme sobre as panquecas, enrole-as e pulverize com açúcar cristalizado e amêndoas ou pistaches pilados. Sirva bem quentes.

Eram dezesseis e trinta do dia 29 de setembro de 1943. Thomas olhou pela janela.

- Acha que vamos ter nevoeiro hoje, bela menina?

- Não, senhor, creio que não.

- Esperemos que o tempo não piore - disse Thomas. - Se ele continuar bom, vários cavalheiros irão dormir, hoje, na cadeia.

- Perdão, senhor?

- Não é nada, Nanette. Estou organizando uma corrida contra o relógio e gostaria muito de ganhá-la.

Era realmente uma corrida e Thomas era um dos participantes. Ele havia provocado uma avalancha mas precisava ter o maior cuidado para não ser arrastado por ela. Thomas pensava nessas coisas ao preparar-se para visitar o Sturmbannführer Eicher na sede da SD, na Avenue Foch.

A operação que Thomas esperava ver terminada com o seu triunfo começara vinte e quatro horas antes. Desejando com empenho salvar a vida do seu incrível chefe de operações especiais, o coronel Werthe enviara um longo telegrama ao almirante Canaris.

Canaris pediu, imediatamente, uma entrevista a Himmler, com quem conferenciou durante uma hora. Ele trazia más notícias para o Reichsführer das SS e chefe da polícia alemã...

- Não terei a menor contemplação - gritou Heinrich Himmler.

No dia 28 de setembro, às dezoito e trinta, uma comissão especial de oficiais partiu de avião para Bucareste.

No dia 29 de setembro, às sete e quinze, eles prenderam, no aeroporto de Bucareste, um certo Unterscharführer Anton Linser, que se preparava para partir para Berlim. A sua volumosa bagagem continha vários processos ”altamente confidenciais” que foram abertos. Encontraram dois e meio milhões de marcos em bônus do Tesouro, da emissão destinada à Romênia.

Às oito e trinta os três oficiais entraram nos escritórios da SD-Bucareste. Apreenderam grande quantidade de moedas francesas, de ouro, e somas enormes em bônus do Tesouro. Duas pessoas foram imediatamente presas.

Às treze e trinta o avião especial, vindo de Bucareste, descia no aeródromo Berlim-Staaken. Membros da comissão prenderam um tal Untersturmführer Walter Hansmann, que, muito inquieto, pedia notícias do especial de Bucareste. Após um curto interrogatório, Hansmann, apavorado, confessou a sua cumplicidade no tráfico de bônus. Ele indicou os nomes de quatro altos funcionários da SD, em Berlim, que também estavam implicados no negócio.

Às catorze horas os quatro homens estavam por trás das grades...

- Nesse caso, podemos almoçar tranqüilamente - disse, em Paris, Thomas Lieven ao coronel Werthe.

Eles estavam diante de um teletipo através do qual o almirante informava ao coronel, hora a hora, a marcha dos acontecimentos.

- Pode-se dizer que você tem sorte, seu porcalhão - disse rindo o coronel.

Thomas tocou na madeira.

- Quando partiram os nossos amigos justiceiros e vingadores?

- Há meia hora. Um juiz das SS e dois conselheiros da corte marcial. Deverão aterrar aqui entre as dezesseis e trinta e dezessete horas.

Às dezesseis e trinta, com a ajuda de Nanette, Thomas vestiu o seu sobretudo de pêlo de camelo. ”Queiram os céus que não haja nevoeiro. Se houver, o avião com os três juizes não poderá aterrar e a minha vingança contra esses carniceiros da Avenue Foch, que quase me mataram de pancadas, ficaria incompleta.”

Na Avenue Foch, os chefes da SD receberam Thomas com ar grave e severo. Ele percebeu, imediatamente, que não sabiam o que estava sendo tramado. Reicheine não os avisara.

Eicher e Winter pronunciaram palavras marciais e graves. Agiram como alguns generais, juizes militares e oficiais, que adquiriram o hábito, nos últimos anos da guerra, de condenar à morte soldados alemães, freqüentemente por motivos fúteis, e que, antes da execução de suas vítimas, explicavam aos condenados, com palavras marciais e graves, por que era indispensável que fossem fuzilados.

Os senhores Eicher e Winter usaram as mesmas palavras com Thomas Lieven, que estava sentado defronte deles, com as pernas cruzadas e vestindo roupa de alpaca cinza (camisa branca, gravata preta, meias e sapatos pretos).

Eicher - Compreenda, Lieven, pessoalmente nada temos contra o senhor. Ao contrário. Alegro-me que tenha tido a coragem de vir até aqui. Mas, trata-se do Reich, da salvação da nossa comunidade.

Winter - O senhor pode sorrir, Lieven. A corte marcial breve lhe tirará a vontade de rir.

Eicher - O bem é tudo que é útil ao povo alemão. O mal é tudo que lhe é prejudicial. O senhor prejudicou a.seu povo. Quero que se capacite...

- Posso fazer uma pergunta? - pediu Thomas inclinando-se graciosamente. - São realmente cinco e dez ou o meu relógio está atrasado?

Eicher olhou-o com ódio e admiração.

- Por que motivo, em vez de praticar o mal, o senhor não veio trabalhar conosco? Hoje seria um Sturmhannführer! Seu relógio está certo.

Thomas levantou-se, aproximou-se da janela, com calma, contemplou o jardim e depois ergueu o olhar para o céu outonal. Nem vestígio de nevoeiro.

- Contem-me, por favor, cavalheiros, como conseguiram desmascarar-me.

Eicher e o seu ajudante-de-ordens contaram, com vaidade, como haviam descoberto a fuga para Lisboa, ajudada por Thomas Lieven e acobertada pela Abwehr, de uma perigosa terrorista francesa, Yvonne Dechamps.

Thomas ouviu-os, delicadamente, e depois olhou novamente para o relógio.

- Mantendo a coragem até o fim, hein? - resmungou Eicher. - Admiro isso, meu caro, admiro muito.

Winter -- As provas reunidas contra o senhor já foram apresentadas ao Reichsführer das SS. A corte marcial se reunirá dentro de poucos dias.

Eicher - Agora ninguém mais poderá ajudá-lo. Nem o coronel Werthe. Nem o almirante Canaris. Ninguém.

Thomas olhou novamente para o relógio.

Ouviu-se um barulho na escada: vozes, ordens, o pisar de botas. Thomas sentiu que o coração batia mais rápido.

Espero que os cavalheiros me dêem a honra de sua presença quando eu for executado.

Eicher prestou atenção.

- Que está acontecendo aí fora?

A porta abriu-se bruscamente e uma ordenança entrou, com ar apavorado.

- Três cavalheiros de Berlim, Sturmbannführer - disse o soldado com voz rouca. - É muito urgente... Uma comissão especial do Ministério da Segurança.

”Enfim”, disse Thomas a si mesmo. Pela última vez nesse dia ele olhou pela janela, para o céu. ”Obrigado, meu Deus!”

Eicher e Winter pareciam atacados de paralisia.

- Com... com... - gaguejou Eicher - comissão especial?

Eles já haviam entrado na sala. O juiz das SS vestia uniforme preto e calçava botas. Tinha um aspecto sinistro. Os dois conselheiros da corte marcial eram mais baixos e usavam óculos. Os militares fizeram continência, enquanto o juiz das SS levantava a mão na saudação alemã. Sua voz era glacial.

- Heil Hitler! Sturmbannführer Eicher? Muito prazer. Darei todas as explicações necessárias, dentro em pouco. Seu nome?

- Untersturmführer Winter.

- E o senhor?

Eicher recobrou o raciocínio.

- É apenas um visitante. O senhor pode ir agora, Herr Lieven.

- O Sonderjührer Thomas Lieven? - perguntou o juiz das SS.

- Sim, senhor - respondeu Thomas.

- Faça o favor de ficar.

- Mas, por quê? - perguntou Eicher, com voz angustiada.

- Siurmbannführer, mande chamar o Obersturmführer Redecker a seu gabinete. Mas nem uma só palavra sobre o motivo, compreendeu?

O cunhado de Heinrich Himmler entrou, pouco depois, com um sorriso nos lábios. Mas o sorriso desapareceu quando viu os visitantes.

- Reviste este homem - disse o juiz das SS a Winter.

Winter obedeceu, sem compreender.

Redecker ficou sufocado, titubeou e caiu pesadamente numa cadeira. O juiz das SS olhou-o com desprezo.

- Obersturmführer - disse ele -, eu o prendo.

O cunhado de Himmler desatou a soluçar, enquanto Winter, cada vez mais pálido, engolia saliva.

- Mas, por quê? - exclamou subitamente Eicher, com voz de falsete.

- O Obersturmführer - respondeu em tom glacial o gigante de preto - está envolvido num desvio de bônus do Tesouro que alcança a milhões. Ele e o Untersturmführer Petersen, que foi morto em Toulouse, roubaram a sua pátria da maneira mais vil e ignominiosa. O inquérito nos dirá se outros membros da SD-Paris estão envolvidos nesse tráfico.

Com os olhos esbugalhados, Eicher olhou para os juizes.

- Não compreendo nada... Quem fez esta monstruosa acusação?

O juiz de preto disse quem.

O queixo de Eicher caiu. Ele fixou um olhar vidrado sobre Thomas.

- Você... você... você... - balbuciou ele.

Algo aconteceu, logo depois, que quase fez enlouquecer o Sturmbannführer Eicher: o juiz das SS aproximou-se de Thomas e apertou-lhe a mão.

- Sonderführer, permita que eu exprima o apreço e os agradecimentos do Reichsführer das SS.

- Não há necessidade disso - disse Thomas com modéstia. - Todo o prazer foi meu.

- O Reichsführer das SS comunica-lhe que já entrou em contato com Canaris. O caso que o senhor sabe não terá prosseguimento.

- Herr Himmler é muito amável.

Ao todo vinte e três prisões foram efetuadas por causa do negócio dos bônus do Tesouro. Entre os culpados havia apenas dois franceses e três romenos.

O processo foi sigiloso. Dois franceses, um romeno e o Untersturmführer Hansmann foram condenados à morte. Os outros receberam severas penas de trabalhos forçados.

Redecker foi condenado a oito anos. Himmler provou, logo que possível, que sabia ajudar a família: Redecker só ficou seis meses atrás das grades. Depois foi liberado por ordem pessoal do Reichsführer das SS e transferido para Berlim, onde ocupou um cargo subalterno até o fim das hostilidades.

Ele soube arranjar a sua vida. Hoje é membro preeminente de um partido nacionalista, no norte do país.

No decorrer do ano de 1944, Thomas desempenhou diversas missões em Marselha, onde pôde acertar suas contas com Dantes Villeforte, o assassino de Chantal, fazendo com que ele fosse, finalmente, entregue a uma comissão de inquérito aliada, como espião e colaborador da SD.

Na manhã do dia 28 de agosto, Thomas deixou o seu hotel e depositou sua mala na estação Saint-Charles. Havia algumas lutas nos arrabaldes de Marselha, mas não passavam de escaramuças. Na tarde do dia 29, Marselha foi liberada.

Depois de rasgar todos os seus documentos alemães, Thomas muniu-se de toda uma série de documentos que lhe foram de grande utilidade quando de suas encrencas com os maquis de Crozant.

Na noite de 29 de agosto de 1944, um certo capitão Robert Almond Everett, agente de informações britânico, apresentou-se aos americanos. Explicou que saltara de pára-quedas sobre a França e pedia ser enviado para Londres, por avião, o mais rapidamente possível. Os americanos presentearam o bravo aliado - que se parecia com Thomas Lieven como um irmão gêmeo - com uísque e rações K.

Tropas francesas também tinham participado da liberação de Marselha, tal como organizações da Resistência que convergiram de vários pontos do sul.

Dois dias após a vitória, houve uma grande festa no Hotel de Noailles, ocupado pelos americanos. De pé, todos os assistentes entoaram o hino nacional francês. Entre eles, o capitão Robert Almond Everett.

Ele estava entoando ”le jour de gloire est arrive1” quando sentiu uma pesada mão sobre o ombro. Fez meiavolta. Atrás dele estavam dois gigantes da polícia militar americana. Ao lado deles, um homem que parecia um Adolphe Menjou em tamanho maior.

- Prendam este homem - disse o coronel Jules Siméon, que vestia magnífico uniforme. - É um dos mais perigosos agentes alemães de toda a guerra. Mãos ao alto, Lieven. Você abusou demais. Agora está frito.

O general de Gaulle e os americanos entraram em Paris no dia 25 de, agosto. No dia 15 de setembro Thomas Lieven aterrava, pela segunda vez, na prisão de Fresnes. A primeira vez fora a Gestapo que o trancafiara. Agora eram os franceses.

Thomas Lieven ficou uma semana em sua cela. Depois duas. Nada aconteceu. Ele suportava este novo cativeiro com filosofia. Pensava nas ocorrências dos anos passados, nas trapalhadas em que estivera envolvido, mas também nos amigos que conquistara na França, nas pessoas que ajudara e nas vidas que salvara.

”Qual será a minha pena?”, perguntava a si mesmo. ”Seis meses? Poderei sobreviver e ser enfim livre e voltar para a Inglaterra. Depois de tantos anos viverei, finalmente, em paz. Nada de aventuras. Nunca mais. Levarei uma vida normal, como antes. Com o dinheiro que depositei na Suíça, durante a minha primeira permanência em Marselha...”

Um barulho de passos se aproximou. A chave girou na fechadura e a porta da cela foi aberta. Dois militares franceses estavam no corredor.

- Prepare-se - disse o primeiro.

 

1 Em francês, ”o dia de glória chegou”. Trata-se do segundo verso da Marselhesa, o hino nacional da França. (N. do E.)

 

- Até que enfim - disse Thomas, vestindo o casaco. - Levaram bastante tempo para resolver interrogar-me.

- Quem falou em interrogatório? - disse o segundo militar. - Prepare-se para ser fuzilado.

 

Nem uma nuvem maculava o azul do céu de verão. Fazia calor, muito calor, em Baden-Baden, nesse dia 7 de julho de 1945. Pálidos e mal vestidos, os habitantes da cidade arrastavam-se, sem esperança, pelas ruas.

Cerca do meio-dia, um carro do Estado-Maior, verdeoliva, atravessou a Leopoldplatz. No banco de trás estava sentado um general de duas estrelas. Um policial francês dirigia o trânsito - trânsito francês, é claro -, pois não havia automóveis alemães. Havia, sim, abundância de carros franceses. Baden-Baden era a sede do governo francês. Habitantes alemães: trinta mil. Militares e funcionários franceses, com suas famílias: trinta e dois mil.

- Pare - disse o general.

O chofer parou o carro perto do guarda. Este fez uma continência com uma desenvoltura que teria feito um general alemão dar pulos de raiva. Mas, naquela época, os generais alemães tinham - ao menos provisoriamente - cessado de dar pulos de raiva.

O homem das duas estrelas baixou o vidro.

- Eu não sou daqui - disse ele. - Em que regimento se come melhor?

- Se eu fosse o senhor, general, não iria comer em nenhum regimento. Procure o capitão Clairmont, do Serviço de Busca aos Criminosos de Guerra.

O policial explicou o caminho.

- Então vamos - disse o general, que estava com muita fome.

O carro tornou a andar, passando diante do Hotel Atlantic, do Kurlans e do Cassino.

Era difícil descrever a desolação desses lugares, outrora freqüentados pelos homens mais ricos do mundo, pelas mais elegantes mulheres e pelas cocottes mais caras. A concha acústica fora queimada, os gramados destruídos. Os preciosos móveis do Kurlans e da sala de jogos estavam atirados ao tempo.

O carro do Estado-Maior parou diante de uma grande villa que fora sede da Gestapo durante o ”Império de Mil Anos”. No momento, era ocupada pelo Serviço de Busca aos Criminosos de Guerra.

O general entrou e disse que queria falar com o capitão Clairmont.

O homem que provisoriamente tinha o nome de René Clairmont apareceu: esbelto, estatura mediana, rosto fino, cabelos castanhos e olhos inteligentes. Teria aproximadamente trinta e cinco anos e vestia um uniforme bem talhado mas que, forçoso é dizer, tinha aspecto mais civil que militar.

O capitão - que de fato se chamava Thomas Lieven e tinha feito há muito, muito tempo, uma brilhante carreira de banqueiro em Londres - apertou a mão do general de duas estrelas.

- O senhor quer nos dar a honra de almoçar conosco, general? - disse ele.

”Fuzilado?” disse Thomas apavorado para si mesmo enquanto o levavam para o sombrio pátio da prisão. ”Mas isso é incrível. Eu pensei que me condenariam a alguns meses!”

Os soldados o empurraram para o mesmo carro fedorento e sem janelas no qual soldados alemães o tinham forçado a subir.

O mesmo cheiro de suor e angústia. Thomas sentou-se, emagrecido, pálido, com a barba por fazer, vestindo uma roupa amarrotada, sem suspensórios, sem gravata e sem cordões nos sapatos. Uma espécie de náusea se apoderou dele e não o deixou mais.

Quando o carro parou em Paris - novamente num pátio sombrio - ele não poderia dizer onde estava.

Sem reagir, foi brutalmente empurrado pelos soldados para uma sala de um grande edifício.

A porta da sala abriu-se. A seguir, tudo pareceu girar em torno de Thomas e ele quase sufocou. Ouviu vozes e palavras, sem entender o sentido. Viu o homem, com o uniforme de coronel do Exército francês, e que estava sentado atrás de uma secretária: um homem de alta estatura, bronzeado, com as têmporas grisalhas e olhos expressivos. O coração de Thomas batia aceleradamente e ele percebeu que estava salvo. Tinha reconhecido o amigo de Josephine Baker, o homem cuja vida ele salvara em Lisboa: o coronel Débras, do Deuxième Bureau.

Débras não teve um gesto, não pronunciou uma só palavra que pudesse indicar que conhecia Thomas Lieven.

- Sente-se ali - gritou brutalmente. - Sente-se e cale a boca.

Thomas sentou-se onde mandaram. Thomas ficou calado. Com muita dificuldade os soldados retiraram-lhe as algemas. Após bastante tempo, eles acabaram recebendo um documento provando a entrega do prisioneiro. Só saíram da sala ao fim de uma eternidade. Finalmente, Thomas ficou a sós com Débras.

- Seu salafrário - disse Débras sorrindo. - Josephine mandou-lhe lembranças.

- Muito amável. Onde... onde está ela?

- Em Casablanca. Eu era governador da cidade.

- Não diga!

- Tive assuntos a tratar em Paris. Por acaso vim a saber da sua prisão.

Pouco a pouco, Thomas recobrava a lucidez.

- Sim - disse ele -, por instigação do seu colega, o coronel Siméon. Eu estava cantando a Marselhesa numa festa patriótica. Teria feito muito melhor se não cantasse e se tivesse ficado no hotel. Já poderia estar em Londres há muito tempo. Os hinos nacionais dão azar.

- Eu sei muita coisa sobre você - disse Débras. - Sei o que fez contra nós, mas também sei tudo que fez por nós. Eu não estou mais no Deuxième Bureau, mas sim no Serviço de Busca aos Criminosos de Guerra. A única maneira de entrar em contato com você era incluí-lo na minha lista de criminosos de guerra e declarar que iríamos fuzilá-lo.

Foi assim que consegui tirá-lo de Fresnes. Um bom truque, não acha?

Thomas enxugou a testa.

- Sim - disse ele -, um bom truque. Talvez um pouco rude para os nervos.

- Hoje em dia é a regra geral - disse Débras erguendo os ombros. -- Espero que você não tenha ilusões. Você já compreendeu, estou certo, o que significa a sua saída de Fresnes.

- Receio que sim - disse Thomas com ar resignado. - Terei que trabalhar para o senhor, não é, coronel?

-- Exatamente.

- Uma pergunta, se me permite: quem lhe disse que eu estava preso?

- Ferroud, o banqueiro.

”Honesto e bom Ferroud”, disse Thomas a si mesmo. ”Obrigado, muito obrigado!”

- Quais são os seus planos a meu respeito? O coronel fixou Thomas com simpatia.

- Você é alemão, Lieven. Precisamos de você na Alemanha. Melhor que qualquer outro, você saberá distinguir entre os grandes, os verdadeiros bandidos, e os pequenos militantes sem qualquer importância. Está de acordo?

- Estou - disse Thomas.

- Devo avisá-lo de que, na Alemanha, você será obrigado a vestir um uniforme.

- Não!!!

- Lamento, mas é o regulamento. Vamos arranjarlhe um nome francês e um posto militar: capitão, diria eu.

- Meu Deus, mas que uniforme?

- Isto é com você. Escolha o que quiser.

Thomas foi ao melhor alfaiate militar de Paris e escolheu o que queria: calças de aviador de um cinza-pomba, uma túnica bege com grandes bolsos, uma prega nas costas e bem ajustada na cintura, e um cinturão. Acrescentou um talabarte e na manga uma carlinga de avião e três divisas.

O uniforme inventado por Thomas Lieven ficou tão popular que foi adotado, um mês depois, como traje oficial do Serviço de Busca aos Criminosos de Guerra.

Como conseqüência do avanço das tropas aliadas, Thomas Lieven, aliás capitão René Clairmont, regressou à sua pátria. Ao findarem as hostilidades, estava em BadenBaden, onde instalou seus escritórios no antigo quartelgeneral da Gestapo, na Kaiser-Wilhelmstrasse.

Ao todo, dezessete homens trabalhavam no número 1 da Kaiser-Wilhelmstrasse. Residiam em uma casa que ficava em frente. A sua tarefa era penosa e cheia de desilusões. Além disso, por motivos de ordem política ou de concepções, não reinava bom entendimento entre todos. Logo no início dos trabalhos, por exemplo, Thomas Lieven teve uma divergência com o tenente Pierre Valentine, um bonito rapaz com olhos frios e lábios finos, que se poderia muito bem imaginar envergando o uniforme das SS.

Valentine requisitava e mandava prender a torto e a direito. Enquanto os oficiais eficientes e equilibrados do Serviço de Busca aos Criminosos de Guerra francês - da mesma forma que os seus equilibrados colegas dos serviços similares americanos e ingleses - limitavam-se às ”listas de pessoas procuradas”, elaboradas pelo governo militar, Valentine usava o seu poder sem qualquer escrúpulo, de forma arbitrária.

Quando Thomas chamou sua atenção ele limitou-se a erguer os ombros, desdenhosamente.

- Odeio todos os alemães - disse ele.

Thomas protestou contra essa estúpida generalização.

- Eu me limitarei a citar algarismos - disse Valentine, calmamente. - Somente no nosso setor recebemos, durante o último mês, mais de seis mil denúncias de alemães acusando outros alemães. Eles são assim. Quando invadem um pequeno país são da raça superior, são os senhores. Quando perdem a partida tocam Beethoven e se denunciam uns aos outros. E o senhor acha que eu devo respeitar tal povo?

O tenente Valentine era uma pessoa antipática, mas nesse ponto ele tinha razão: uma onda de baixeza, de delação e de mesquinha maldade varreu a Alemanha depois do fim da guerra.

No dia 2 de agosto, Thomas participou de um fato que o emocionou profundamente. Um homem, debilitado e de cabelos brancos, apareceu em seu escritório. Evidentemente subalimentado, o homem vestia uma roupa velha e amarrotada. O homem tirou o chapéu e disse:

- Bom dia, senhor. O meu nome é Werner Hellbricht. O senhor está à minha procura. Eu era chefe de um distrito agrícola. - Disse onde habitava, em plena Floresta Negra. - Estava escondido, mas hoje vim vê-lo.

- Por quê? - perguntou Thomas estupefato e fitando o homem.

- Porque compreendi - respondeu Hellbricht - que horríveis crimes foram cometidos em meu país. Estou pronto a pagar a minha dívida, a trabalhar na construção de estradas, a quebrar pedras: tudo que queiram. Lamento sinceramente ter servido a um regime criminoso. Eu acreditei. Estava enganado. Deveria ter acreditado menos e refletido mais.

- Herr Hellbricht - disse Thomas, levantando-se. - Já é uma hora. Antes de continuarmos a nossa conversa, quero fazer-lhe uma pergunta: quer almoçar comigo?

- Almoçar? Com o senhor? Mas acabo de dizer que eu era um nazista.

- Mas o senhor o disse com muita honestidade.

- Neste caso eu lhe peço um favor: venha comigo até a fazenda - disse o ex-chefe de distrito agrícola. - Quero mostrar-lhe uma coisa. Por trás da minha propriedade, na mata.

A miserável sopa que Frau Hellbricht preparara para o almoço era feita com azedinha, cerefólio, dente-de-leão e ervas silvestres. A mulher era tão pálida e tão magra quanto o marido. A fazenda estava ao abandono: vidros quebrados, fechaduras rebentadas a bala, estábulos vazios e tudo pilhado pelos trabalhadores estrangeiros dos serviços forçados.

- Não podemos nos queixar deles - disse Hellbricht com um meio sorriso. - Nós é que fomos primeiro roubá-los em seus países.

- Depois da sopa - disse a mulher do ex-chefe de distrito agrícola ao mesmo tempo que se ocupava junto ao forno da cozinha vazia - temos purê de batatas e a ração de frutas secas que acaba de ser distribuída. Lamento, mas é tudo que temos.

Thomas foi até o pátio e abriu o porta-malas do seu carro. Voltou com meia libra de manteiga, uma lata de leite condensado, uma lata de extrato de carne e uma de corned-beef.

- Deixe que eu prepare isto, Frau Hellbricht.

Thomas reforçou a magra sopa com extrato de carne, abriu a lata de corned-beef e esmigalhou o conteúdo. Depois ele viu uma tigela com queijo desnatado.

- Passe o queijo pela peneira, por favor. Nós dois vamos preparar um excelente almoço.

A mulher começou a chorar.

- Meu Deus! - disse ela. - Corned-beef! Já sonhei com isto, mas é a primeira vez que o vejo.

- E há pessoas que riem quando nos vêem jejuar - disse Hellbricht. - Pessoas que são responsáveis pela nossa miséria. Senhor capitão, eu não sou um delator, mas é preciso que eu diga: um enorme depósito de víveres está enterrado sob a relva do mato.

- Quem enterrou e quando?

- Foi no outono de 1944. O ajudante-de-ordens do ministro da Agricultura, Darré, veio procurar-me. Estava com Zimmermann, o chefe da Gestapo em Karlshue. Disseram-me que tinham recebido ordens para preparar um depósito clandestino de víveres para... para a reserva do Führer... para as pessoas altamente colocadas...

Cansada, cheia de tristeza, Frau Hellbricht passava na peneira o seu queijo desnatado.

- Foi por isso que pedimos que o senhor viesse até aqui. É preciso desenterrar as provisões. Há tanta gente com fome... Nós temos, pelo menos, um teto para nos abrigar. Conseguiremos sobreviver. Mas os feridos, os refugiados, as crianças...

Esse dia 2 de agosto de 1945 teve uma dupla conseqüência. Sem alarde, foram desenterradas milhares e milhares de latas de conserva, contendo gorduras, carne, doces, mel sintético, café, chá, chocolate, glicose, farinha de trigo, legumes e frutas.

Esses tesouros foram entregues a associações de assistência que os distribuíram aos velhos, aos doentes e às crianças.

Tão rapidamente quanto possível os buracos foram tapados e recobertos com relva, de tal sorte que não ficou vestígio das escavações. Depois disso, um destacamento especialmente selecionado do Serviço de Busca aos Criminosos de Guerra passou a vigiar, noite e dia, a mata por trás da fazenda de Hellbricht.

Ao anoitecer do dia 11 de agosto - Thomas estava de serviço, nesse dia - um homem apareceu furtivamente numa picada na mata. Olhava para todos os lados e se assustava a qualquer ruído. Tinha, às costas, um saco de montanha, vazio, e carregava uma pequena pá. A coleção de fotografias do Serviço de Busca havia familiarizado Thomas com a fisionomia pálida e feroz daquele homem.

O homem começou a cavar com grande energia. Era tarde demais quando percebeu os três homens atrás dele. Virou-se, levantou-se com dificuldade e recuou, cambaleando. O pavor deformava o seu rosto.

- Zimmermann, da Gestapo - disse Thomas apontando um revólver. - Está preso.

Vieram todos os importantes que sabiam da existência do depósito enterrado. Todos foram agarrados.

- É preciso que vocês saibam - tinha explicado Thomas Lieven aos guardas - que todos que aqui vierem são tubarões nazistas. Não deixem escapar nenhum.

Graças a esse método simples, dezessete altos funcionários nazistas foram capturados entre agosto e outubro de 1945.

Graças à intervenção de Thomas, Hellbricht foi classificado como simples simpatizante. Pagou uma multa e pôde conservar sua fazenda.

No dia 3 de dezembro, Thomas foi chamado ao quartel-general do general Koenig, onde recebeu muitos cumprimentos e manifestações de gratidão.

 

               MENU

       SOPA DE ERVAS

       PICADINHO DE CORNED-BEEF

       SOBREMESA DE QUEIJO BRANCO

 

Baden-Baden, 2 de agosto de 1945

Mesmo atualmente este menu seria passável. Naquela ocasião ele facilitou a captura de vários tubarões.

Sopa de ervas - Use ervas tal como azeda (azedinha), folhas novas de urtiga, cebolinha, salsa, cerefólio, funcho, salsão e alho-porro. Pique muito fino, depois de lavá-las.

Junte uma pequena parte das ervas a um roux claro (vide receitas anteriores), acrescente água ou caldo de carne e deixe ferver. Tempere com pimenta-do-reino, sal e um pouco de noz-moscada. Só misture o restante das ervas antes de servir.

Pode-se ligar esta sopa com uma gema de ovo ou com creme, bem como colocar, em cada prato, um ovo poché e pedacinhos de pão torrado com manteiga. Picadinho de corned-beef - Faça um refogado, na manteiga, com uma boa quantidade de cebolas cortadas em fatias finas. Junte o conteúdo de uma lata de corned-beef bem picado. Ponha para cozinhar durante alguns minutos mas sem deixar que tome cor.

Misture bem com um purê de batatas de consistência meio mole, tempere e reaqueça a fogo bem brando.

Sobremesa de queijo branco - Use queijo tipo minas ou ricota. Passe em peneira e junte açúcar e creme fresco até chegar a uma consistência macia mas não muito líquida. Junte passas e algumas gotas de suco de limão. Enfeite com creme chantilly e faça resfriar.

No dia 7 de dezembro, recebeu uma carta, com o cabeçalho do Ministério da Defesa Nacional, nos seguintes termos:

Paris, 5 de dezembro de 1945 Capitão René Clairmont Matrícula S 324213

Serviço de Busca aos Criminosos de Guerra Baden-Baden Ref. CS Hr. Zt. 342/1945

Por motivos de etc.

pedimos ao Deuxième Bureau a sua ficha pessoal completa.

Ficou evidenciado pelo seu dossiê, sobre o qual tivemos, ainda, os comentários pessoais de um dos dirigentes do Deuxième Bureau, que o senhor era um agente da Abwehr, em Paris, durante a guerra. O senhor compreenderá que nos é totalmente impossível utilizar um homem com um passado como o seu nos quadros do nosso Serviço de Busca aos Criminosos de Guerra. O coronel Maurice Débras, que naquela época o nomeou para tal organização, não mais pertence a este serviço.

Pela presente, solicitamos que evacue seus escritórios em Baden-Baden antes das treze horas do dia

15 de dezembro de 1945 e que entregue ao seu superior todos os documentos, dossiês, carimbos e tudo mais que estiver em seu poder, bem como os seus documentos militares e salvo-conduto. A partir deste momento, o senhor está suspenso de suas funções. Novas instruções serão enviadas.

A assinatura, ilegível, tinha a seguir a menção datilografada: general-de-brigada.

Sentado junto à sua mesa, Thomas Lieven começou a cantarolar. Releu a carta e novamente cantarolou.

”Mais uma vez”, disse para si mesmo, ”as coisas recomeçam. Em minha vida os acontecimentos se repetem com uma monotonia verdadeiramente incrível. Organizo um negócio pouco sério e todo o mundo me adora: recebo distinções, dinheiro e beijos e sou o querido de várias pátrias. Faço algo de bom - e zás! Caio novamente na merda.

”Um dirigente do Deuxième Bureau fez comentários a meu respeito aos cavalheiros do ministério. Um dirigente! Por conseguinte, o coronel Jules Siméon continua vivo. E continua a detestar-me...”

Uma hora mais tarde, o homem que ainda se chamava capitão Clairmont entregou os escritórios e todos os documentos em seu poder a seu chefe de serviço. No mesmo dia, às doze horas, o capitão Clairmont desapareceu. Desapareceu sem deixar qualquer vestígio.

No dia 22 de fevereiro de 1946, dois senhores dirigiram-se à portaria do Hotel Crillon, na Place de la Concorde, e pediram para falar com um certo M. Hauser.

Pelo sorriso do porteiro, era fácil perceber que esse M. Hauser era um dos hóspedes mais populares do hotel.

- Dois cavalheiros desejam vê-lo, senhor - disse o porteiro ao telefone: - M. Fabre e o barão Kutusov.

- Peça a esses senhores que subam.

Um boy levou os dois homens ao segundo andar. A crina vermelha de Bastian estava cada vez mais rija e de pé. Seu companheiro, cujo nome era o de um célebre general russo, teria seus quarenta e cinco anos. Seus ombros eram largos e sua roupa de corte burguês.

Na sala do apartamento 213, M. Hauser, trajando roupa de corte impecável, cumprimentou amavelmente os visitantes. Bastian esperou que o boy saísse do apartamento e atirou-se nos braços do seu velho amigo.

- Como estou contente de ver sua cara, companheiro!

- E eu, Bastian - disse Thomas Lieven -, e eu! Saiu do abraço do amigo e apertou a mão do russo.

- Muito prazer em conhecê-lo, barão Kutusov. É bem verdade que, a partir de agora, tomarei a liberdade de chamá-lo ”camarada comissário” e não mais ”barão”. ”Comissário Kutusov.”

- Mas, por quê? - perguntou o russo, piscando nervosamente.

- Um pouco de paciência. Vamos por etapas. Tenho muita coisa a contar-lhes, rapazes. Encomendei o almoço que será servido aqui, no apartamento.

Comeremos dentro de dez minutos. Entre outras coisas teremos borscht, camarada comissário. Sentem-se, por favor...

A calma e o sangue-frio de Thomas eram surpreendentes, especialmente para quem soubesse que as autoridades francesas estavam à sua procura, havia semanas, e que, vindo a Paris, ele estava, por assim dizer, na boca do lobo. Mas ele se tranqüilizava pensando que não é dentro da própria boca que o lobo costuma procurar suas vítimas.

Depois de sua fuga de Baden-Baden, um especialista, que anteriormente fabricava passaportes falsos para a contra-espionagem alemã, confeccionou-lhe um perfeito passaporte francês, com o nome de Michel Hauser. Depois Lieven escreveu uma carta a Bastian Fabre, em Montpellier, dizendo-lhe que estava sem vintém.

A resposta chegou pela volta do correio:

Como você vê, Pierre, agimos bem guardando parte da erva em Lender. Está à sua disposição, agora. Fiz um bom amigo aqui. Ele se chama Kutusov. O seu velho dirigia um táxi em Paris. O velho morreu e agora é o filho que dirige o carro. Ele tem um Pontiac...

Thomas telegrafou imediatamente:

Espero você juntamente com o barão dia 22 fevereiro Hotel Crillon.

Nesse famoso hotel, Thomas estabelecera, provisoriamente, seu quartel-general.

- Onde está o carro? - perguntou a seus convidados.

- Em frente ao hotel.

- Muito bem. Quero que o carro seja visto. Mas, durante algum tempo, é necessário que seja você o chofer, meu caro Bastian. O camarada comissário Kutusov irá no banco de trás. Você trouxe os napoleões?

- Estão no porta-malas do carro.

Três garçons entraram para preparar a mesa. Depois, Thomas, Bastian e Kutusov

 

             MENU

         BORSCHT

         STROGANOFF

         SOUFFLE DE LIMÃO

 

Paris, 22 de fevereiro de 1946

Depois da guerra, o primeiro grande negócio de Thomas foi feito à la russa.

Borch - Junte meio quilo de carne de vaca, meio quilo de carne de porco e duzentos e vinte e cinco gramas de toucinho defumado, meio gordo. Cozinhe tudo junto até ficar concentrado. Retire as carnes cozidas e corte em pedaços pequenos.

Em duas panelas separadas faça refogar, com o toucinho, o seguinte: primeira panela - um quilo de repolho branco desfiado com sal, pimenta-do-reino, uma folha de louro e as especiarias que desejar; segunda panela - também com toucinho, refogue beterrabas vermelhas em fatias finas, alho-porro, pimenta-do-reino, sal, uma folha de louro e um pimentão vermelho. Adicione um pouco de vinagre às beterrabas para que conservem a cor.

Uma vez cozidos os legumes, junte-os aos pedaços de carne e deixe cozinhar mais algum tempo.

Antes de servir jogue beterraba raspada sobre a sopa e, já

à mesa, ponha uma boa colherada de creme azedo e espesso sobre cada prato cheio. Stroganoff - Use filé bem descansado (retirado do refrigerador horas antes), corte em fatias e depois em pedaços achatados.

Refogue, em manteiga, cebolas picadas mas sem deixar que fiquem escuras. Junte a carne cozinhando-a ligeiramente dos dois lados. Salgue, polvilhe com pimenta-do-reino e acrescente creme azedo bem espesso.

Aqueça novamente e sirva. Soufflé de limão - Bata três gemas e três colheres, das de sopa, de açúcar. Junte o suco de meio limão e também a casca ralada, meia colher de fécula (ou de maisena) e, finalmente, três claras batidas em neve firme.

Coloque tudo numa forma para soufflé untada com manteiga e leve ao forno até que o soufflé cresça e a sua superfície fique ligeiramente escurecida. Sirva quente e com biscoitos.

sentaram-se e começaram a pôr creme fresco no borscht. O descendente da aristocracia dos táxis estava estupefado.

- Mas isso é como em minha terra! Creme na mesa!

- Posso pedir-lhe, camarada comissário, que coma de uma maneira mais popular? O cotovelo na mesa, por exemplo. Peço também que, durante algum tempo, não se preocupe com a limpeza das unhas.

- Mas por quê? Por que tudo isto?

- Cavalheiros, vou lhes propor um negócio importante. Nesse negócio o senhor, barão, representará o papel de um comissário do povo. Bastian será um chofer, e eu um atacadista de espíritos.

- Espí... que? - perguntou Bastian, bestificado.

- Engula o que tem na boca antes de falar. Um negociante de álcool! O Exército francês, senhores, decepcionou-me e desiludiu-me da maneira mais cruel. Tenho a intenção, por causa disso, de fazer o Exército francês pagar uma multa.

- Com álcool?

- Sim, com álcool.

- Mas não há álcool, cavalheiro, tudo está racionado.

- Mas haverá - disse Thomas -, e em quantidades surpreendentes, contanto que Bastian seja um bom chofer e você um bom comissário. Agora sirvam-se novamente. Depois do almoço iremos fazer compras.

- O que você pretende comprar?

- Os acessórios indispensáveis: capas de couro preto, boinas de pele, sapatões grosseiros. - Thomas baixou a voz. - Desde o fim da guerra uma delegação soviética está hospedada aqui, no Crillon. Tem a missão de zelar pelos cidadãos soviéticos residentes em Paris. Sabem quantos são?

- Não tenho a menor idéia.

- Mais de cinco mil. E todos têm o mesmo problema...

Enquanto seus dois convidados tomavam o borscht, a melhor sopa do mundo, e escutavam com grande atenção, Thomas explicou qual era o problema de todos os cidadãos soviéticos residentes na França...

Dois dias mais tarde, um Pontiac preto parou diante do Ministério do Abastecimento, onde funcionava o monopólio francês das bebidas alcoólicas. Um chofer, com casaco de couro preto e uma boina de pele sobre a cabeleira ruiva, abriu a porta. Um homem com casaco de couro preto e boina de pele saltou do carro e entrou no grande edifício cinzento e tomou o elevador até o terceiro andar, onde se dirigiu ao escritório de um tal Hippolyte Lassandre, que o recebeu de braços abertos.

- Caro Kutusov, foi comigo que o senhor falou ontem ao telefone. Tire o sobretudo, por favor, e sente-se.

Kutusov, que vestia uma roupa feita e já surrada sob o casaco de couro e usava pesados sapatos, manifestou, imediatamente, o seu mau humor.

- A atitude do seu ministério eqüivale a um ato inamistoso que eu comunicarei a Moscou...

- Caro senhor... caro comissário, eu suplico que não faça isso. Eu teria os maiores aborrecimentos com o comitê central!

- Que comitê?

- O comitê central do Partido Comunista. Sou um membro do partido, camarada comissário! Posso assegurar que não foi mais que uma simples negligência.

- Excluir, há meses, cinco mil cidadãos soviéticos de rações de álcool - disse o falso comissário com um riso sardônico. - Uma negligência? É estranho. Os ingleses e os americanos residentes na França receberam as suas rações de álcool. Mas os valentes nascidos em meu país, ao qual cabe a maior parte do mérito da vitória sobre o fascismo...

- Por favor, camarada comissário, não falemos mais nisso. O senhor tem toda a razão. É imperdoável. Mas o erro será rapidamente corrigido.

- Em nome da União Soviética eu reclamo, é claro, todas as rações correspondentes aos meses passados.

- É claro, camarada comissário, é claro.

Foi Zizi quem informou a Thomas que os cidadãos soviéticos, residentes na França, não recebiam rações de álcool. Zizi era uma mulher bonita, de cabelos ruivos, que trabalhava numa casa muito próspera de Paris. Thomas a conhecia desde o início da guerra e Zizi gostava muito de Thomas. Ele havia evitado a deportação do seu amiguinho.

Zizi contara a Thomas como os negócios prosperavam. Principalmente depois que esses russos chegaram a Paris. São os melhores clientes da casa...

- Que russos? - perguntou Thomas.

- Os da comissão que está no Hotel Crillon. Cinco sujeitos. Fortes como ursos. Esses sim, são homens.

Zizi contou que os cinco cidadãos soviéticos tinham tomado gosto pelos sintomas de decadência do Ocidente. É verdade que estavam negligenciando muito os seus deveres. Tinham por missão zelar pelos cinco mil compatriotas e convencê-los a que voltassem à mãe-pátria. Não exerciam a sua tarefa com nenhum empenho. Preferiam a companhia de Zizi e... de outras.

- Imagine só - disse Zizi a Thomas - que eles nem se ocupam com as rações de álcool!

- Que rações de álcool?

Zizi explicou de que se tratava. Imediatamente um projeto ocorreu a Thomas: um excelente projeto.

Credenciado, com documentos falsos, como funcionário soviético, o comissário Kutusov recebeu as rações atrasadas: três mil hectolitros de álcool foram transportados para uma velha cervejaria, meio arruinada, perto do aeroporto de Orly.

A cervejaria pertencia a um colaboracionista que se evadira. Não esqueçamos que em fevereiro de 1946 a situação na maioria dos países da Europa ainda era bastante confusa. E a França não era uma exceção à regra.

Oito homens começaram a trabalhar na cervejaria. Trabalhava-se noite e dia. Sob a direção de M. Hauser, fabricavam pastis por uma fórmula que fora gentilmente ensinada a Thomas por uma mulher de cor, que também trabalhava no estabelecimento de Zizi:

Para um litro de álcool quimicamente puro, a noventa por cento, empregue: oito gramas de sementes de funcho; doze gramas de folhas de erva-cidreira; cinco gramas de anis estrelado (erva-doce); duas gramas de coriandro; oito gramas de sementes de anis verde.

Deixar macerar, na escuridão, durante oito dias. Antes de filtrar, acrescente dez gotas de essência de anis. Junte água até chegar a quarenta e quatro graus.

Kutusov pagou o álcool com o produto da venda das moedas de ouro trazidas por Bastian.

Uma vez cheias, as garrafas recebiam as etiquetas que Thomas encomendara a uma pequena tipografia.

Uma vez organizada a produção em grande escala, M. Hauser visitou, na Rue Latour-Maubourg, um intendente do Estado-Maior, ao qual propôs um negócio oficioso.

- Tenho as matérias-primas em quantidade suficiente e posso produzir pastis. Eu sei que há falta de bebidas alcoólicas nos quartéis. Os meus preços são muito vantajosos.

Vantajosos? Sim, como conseqüência de um período ainda com muita desorganização e com escassez de álcool. Nos dias de hoje, os preços pedidos por Thomas Lieven, aliás M. Hauser, seriam um tanto exagerados. Ele pediu - tomando por base os preços de hoje - sessenta francos por garrafa de pastis.

O intendente do Estado-Maior aceitou a proposta, considerando-a um dos melhores negócios de sua vida. É verdade que o preço corrente naquela época - sempre com base nos valores atuais - era de cerca de cem francos, e o pastis só podia ser encontrado no mercado negro.

Os negócios prosperaram.

O volume de vendas subiu com a rapidez de um raio. Depois de adquirir o que necessitava, o intendente militar passou a boa informação a seus amigos. Dentro em pouco caminhões militares carregados de Pastis Hauser dirigiamse para todas as casernas da França.

Pode-se dizer que Thomas Lieven era o fornecedor oficial do Exército francês. E o Exército francês pagava à vista. Tudo correu às mil maravilhas até o dia 7 de maio de 1946. Nesse dia houve um pequeno incidente...

No dia 7 de maio de 1946, cerca de dezenove horas, Andrei S. Chenkov, o robusto chefe da delegação soviética, apareceu no apartamento do falso comissário Kutusov, no Hotel Crillon, e, apoplético, exigiu explicações.

Tendo decidido levar os seus deveres um pouco mais a sério, o camarada Chenkov resolvera, alguns dias antes, tratar das rações de álcool dos seus cinco mil compatriotas. No Ministério do Abastecimento informaram-no que o álcool relativo às rações de vários mêses anteriores tinha sido entregue, há bastante tempo, a um certo comissário Kutusov, residente no Hotel Crillon.

- Quero explicações - berrou Chenkov, em francês com forte sotaque russo. - Quem é o senhor? Eu não o conheço. Nunca o vi. Vou mandar prendê-lo. Eu...

- Silêncio! - exclamou Kutusov, no mais puro russo.

A seguir, ele conversou com o camarada Chenkov, durante meia hora, seguindo, ao pé da letra, as instruções de Thomas Lieven. Thomas havia previsto, é claro, desde o princípio do negócio, a possibilidade de uma tal contingência.

Depois dessa meia hora, o camarada Andrei S. Chenkov voltou ao seu quarto, pálido, agitado e suando em bicas. Seus amigos Tuschkin, Bolkonski, Balachev e Alpalyitch o esperavam.

- Camaradas - gemeu Chenkov, deixando-se cair numa cadeira -, estamos perdidos.

- Perdidos?

- Praticamente já estamos na Sibéria. Terrível! Espantoso! Sabem quem é Kutusov? É o comissário que eles mandaram para nos vigiar. Tem plenos poderes. Ele está a par de tudo que temos feito.

- Tudo? - exclamou Bolkonski, apavorado.

- Tudo - diss”e tristemente Chenkov. - Nossa maneira de trabalhar, nossas... ocupações, tudo. A nossa única possibilidade de escapar, camaradas, será fazer dele um amigo e trabalhar como mouros, dia e noite. Nada de Zizi! Nada de meias de náilon, nem conservas, nem cigarros americanos! Só assim seria possível que Kutusov fechasse os olhos, desta vez...

Dessa forma, graças ao gênio e à previsão de Thomas Lieven, o pequeno incidente não teve conseqüência e o grande negócio de pastis foi concluído sem qualquer tropeço.

No dia 29 de maio, Kutusov, ex-camarada comissário e aristocrata dos táxis de Marselha, agora um homem feliz e financeiramente à vontade, levou os seus dois amigos até Estrasburgo, em seu velho Pontiac.

Desde a época calma e feliz do Serviço de Busca aos Criminosos de Guerra Thomas tinha bons amigos entre os guardas das fronteiras, tanto franceses quanto alemães. Com a ajuda desses amigos, as malas dos senhores Lieven e Fabre passaram de um país para outro sem qualquer dificuldade. As duas malas continham os lucros de seus negócios alcoólicos.

Um belo dia de julho de 1946, um homem vestindo calça e camisa esporte passeava no gramado inglês de uma confortável residência situada em Grünwald, arrabalde próximo a Munique. A seu lado, também com roupa leve, estava um gigante com ar satisfeito. Uma basta cabeleira ruiva coroava sua cabeça.

- Então, meu velho Bastian? - disse Thomas Lieven. - Foi uma bela casinha que compramos aqui.

- E o Exército francês pagou tudo - resmungou o ex-marginal marselhês, que agora exercia as funções de criado de Thomas.

Dirigiram-se para a casa.

- Esta noite eu calculei o que devemos ao fisco francês sobre o volume dos nossos negócios.

- A quanto monta?

- Aproximadamente trinta milhões de francos - disse Thomas, com naturalidade.

- Viva o grande Exército! - disse Bastian, estourando de rir.

Alguns meses mais tarde, Thomas e Bastian estavam comodamente sentados diante da lareira de sua villa, em Grünwald.

- Estou enferrujando - disse Bastian. - Esta vida de vagabundo não me faz bem.

- Fique sossegado - respondeu Thomas. - Eu ouvi contar uma bela história e tive umas idéias.

- Deus seja louvado. De que se trata?

- De urânio.

- Uma mina? - perguntou Bastian, espantado.

- Não. Trata-se de cubos de urânio.

Fora vistos, pela última vez, num trem de evacuação que se dirigia para o sul, há dois anos.

Pelos fins do mês de abril de 1945, os trens em questão dirigiam-se para a fronteira austríaca. Estavam repletos de altos dignitários das SA e das SS, de diplomatas, de chefes de departamentos dos ministérios. Os viajantes levavam ouro, jóias, planos de novas armas, uma enorme quantidade de morfina, cocaína e outros entorpecentes dos estoques do Exército e, finalmente, cubos de urânio provenientes do Kaiser Wilhelm Institut, em Berlim.

Pouco antes de ser atingida a fronteira austríaca, os chefões nazistas começaram a se preocupar, especialmente por causa dos cubos de urânio. Atiraram-nos pelas janelas do trem.

- Nunca foram encontrados - concluiu Thomas. - Como também não o foram os planos das armas secretas e miraculosas.

Segundo os falsos documentos que ele mesmo fabricara, com perfeição, Thomas Lieven era, agora, Peter Scheuner e Bastian era Jean Lecoy.

A pequena cidade da fronteira austríaca, onde iniciaram suas buscas, estava cheia de militares aliados e de refugiados de guerra. Não havia um quarto para alugar. Hotéis e albergues estavam ultracheios.

Numa aldeia muito próxima, Thomas e Bastian conseguiram dois quartos tranqüilos na casa de um camponês. Ali se instalaram, sob suas falsas identidades, ao anoitecer de 20 de fevereiro de 1947. Ficaram durante três meses: um longo período de atividade intensa.

Para começar, dedicaram vários dias e várias noites a freqüentar o Hotel Bristol. A qualquer hora o movimento era intenso: danças, bebidas, namoros, traficâncias, murmúrios, negociações e telefonemas não paravam. No Bristol havia legiões de raparigas de vida airada, militares gastando o seu soldo, poloneses misteriosos, tchecos assustadores, alguns russos do Exército de Vlassov e, evidentemente, alemães.

Depois de observar, durante uma semana, as condições reinantes na pequena cidade, Thomas e Bastian reuniram-se, em conselho de guerra, num pequeno albergue coberto de neve da cidade.

- Meu velho - disse Thomas -, por aqui há mulheres, soldadesca e refugiados. Mas, o que se encontra mais são nazistas. Nazistas locais e nazistas importados. Eu sei disso. Os americanos parecem nada saber. Mas, você e eu não poderemos esquecer isto, por um instante. O nosso objetivo é o urânio e os planos das armas secretas.

- Se a muamba ainda estiver por aqui.

- Segundo todas as probabilidades, ainda está. Creio que imaginei um método excelente para adquirir a certeza.

- Vamos logo. Conte como é.

Thomas contou. Seu plano era tão simples quanto genial. No dia 28 de fevereiro ele o explicou, pela primeira vez. No dia 19 de abril ele tinha em seu poder: vinte e oito cubos de urânio 238, de cinco centímetros, pesando dois quilos e duzentos gramas e todos com a marca do Kaiser Wilhelm Institut, de Berlim; um modelo do mecanismo secreto de pontaria mko; os planos detalhados para a fabricação do mecanismo de que os alemães só tiveram tempo de produzir alguns exemplares, sem chegar a utilizá-los. Era destinado aos aviões de caça e permitia atingir o adversário logo que este aparecia na luneta do visor, sem que o piloto, ou artilheiro, tivesse necessidade de fazer os cálculos habituais...

Como tinha agido Thomas Lieven?

Como tinha agido o pretenso Peter Scheuner? Foi esta a pergunta que se fizeram, com justa razão, nos meados de abril de 1947, os numerosos agentes franceses, americanos, ingleses e outros, que então vasculhavam o sul da Alemanha tentando, também, descobrir a pista do dispositivo desaparecido e os planos de fabricação.

A notícia de que os tesouros em questão estavam nas mãos de Peter Scheuner espalhou-se rapidamente. Agentes de vários países vieram fazer-lhe ofertas, primeiramente, pelos cubos de urânio.

A escolha de Thomas recaiu sobre um homem de negócios argentino, confidente de Juan Domingo Perón, que fora eleito presidente da República Argentina no ano anterior.

- Este é o nosso homem, meu irmão - disse Thomas a Bastian. - Que saia da Europa esse raio de muamba. Que vá para o mais longe possível. Que vá para um país onde não a utilizarão para fazer bombas.

O argentino pagou três mil e duzentos dólares por cubo, o que deu um total de oitenta e nove mil e seiscentos dólares. O urânio seguiu para a Argentina pela mala diplomática.

A seguir, os agentes interessaram-se pelo dispositivo de pontaria mko. Como bom pacifista, Thomas Lieven havia feito algumas modificações nos planos, de sorte que mesmo os melhores técnicos perderiam o seu latim. Como bom negociante que era, tinha tirado várias fotocópias, visto que tinha uma ligeira idéia de vender os planos a vários clientes, e não a um só.

Quando as negociações estavam em franco progresso, apareceu um tal Gregor Marek, originário da Boêmia. Thomas o vira diversas vezes no Bristol. Marek parecia próspero. Sempre bem vestido, ele era baixo, forte, tinha maçãs salientes e os olhos repuxados que caracterizam os eslavos.

- Por favor - disse ele -, poderei conversar um pouco com os senhores? Parece que têm algo para vender.

Como Thomas e Bastian não demonstrassem compreendê-lo, Marek falou mais claramente.

- Conheço pessoas na Tchecoslováquia, bons amigos e bons pagadores. Mostrem-me a bugiganga e os planos. Mas é incrível! Fiz um enorme esforço, durante um ano, para encontrar estes negócios. Que fez para conseguir êxito?

- Foi bastante simples, meu caro senhor - respondeu Thomas. - Levei em consideração as idéias políticas da população. Esta região está cheia de nazistas. Meu amigo e eu, durante semanas, fomos de um nazista a outro nazista. Deixamos perceber que pertencíamos a uma organização ”Lobisomem”...

- Jesus, Maria e José! Os senhores perderam a cabeça?

- Nada disso, meu caro. O senhor pode ver que tudo correu bem. Nós simplesmente conversamos entre nazistas. Onde estava o urânio? Onde estavam os planos? Nossa organização tinha necessidade de dinheiro.

Tornara-se necessário vender o urânio e os planos. Esses senhores compreenderam muito bem. Um nos mandou falar com outro e... aí está.

E o senhor nada pagou? É simplesmente incrível.

Nem um centavo. Eram todos idealistas. Bem.

Vejamos agora a oferta dos nossos amigos do leste.

- Será necessário que eu vá obter informações.

O agente tcheco desapareceu durante três dias. Depois, reapareceu, de excelente humor.

- Os meus superiores gostariam de falar com um dos senhores. Tudo está arranjado. Um guarda-fronteira deixará passar. É claro que os planos não serão levados. E eu ficarei aqui com aquele dos senhores dois que permanecer.

Thomas e Bastian tiveram uma rápida conversa.

- Eu é que irei - disse Bastian. - Enquanto eu lá estiver, você ficará de olho nesse Marek. Se algo andar errado você o entrega aos americanos. Espero que eles lá falem o francês.

- Correntemente, senhores, correntemente - respondeu Marek quando interrogado a esse respeito.

No dia 9 de maio de 1947, Bastian Fabre partiu para a Tchecoslováquia. Esperava regressar por volta do dia 15. Não regressou. Nem no dia 15 nem nos dias que se seguiram.

Gregor Marek ficou ainda mais inquieto que Thomas:

- Alguma coisa sucedeu... isto nunca aconteceu antes... os meus patrões são homens corretos.

- Marek, se acontecer qualquer coisa ao meu amigo, o senhor pode fazer as suas últimas orações.

No dia 22 de maio, Marek recebeu a visita de um compatriota que se retirou, rapidamente, depois de entregar-lhe uma carta. Marek ia empalidecendo à medida que lia a carta. Thomas olhava-o, atentamente.

- Que aconteceu? - perguntou com impaciência. Marek estava tão agitado que mal podia falar.

- Meu Deus, meu Deus! - disse ele.

- Que houve? Vamos, fale!

- Os russos prenderam o seu amigo.

- Os russos!

- Eles descobriram que os tchecos queriam comprar o dispositivo de pontaria.

Eles proibiram que o fizessem e prenderam o seu amigo. Dizem que eles mesmos querem comprar. Meu Deus, meu Deus!

- E onde os russos têm o meu amigo preso?

- Em Zwickau. Parece que ele penetrou na zona soviética.

- Marek - disse Thomas -, arrume a sua mala.

- O senhor... o senhor quer ir a Zwickau?

- Evidentemente - disse Thomas.

Thomas consultava um mapa estendido na relva. Na orla do bosque havia um campo florido. Um riacho gorgolhava alegremente no meio do prado.

De um lado desse riacho acabava uma Alemanha, do outro lado começava a outra. O tracejado, em listas pardas do mapa, indicava claramente essa separação. ”Esperemos”, disse Thomas a si mesmo, ”que a cor desses traços tenha sido escolhida para lembrar quem tem a responsabilidade pelo fato de existirem, hoje, duas Alemanhas...”

Dia 27 de maio, meio-dia: era a hora combinada. O local estabelecido era junto às três árvores à beira do riacho. Um soldado do Exército russo lá deveria estar para receber Thomas. Mas não havia ninguém...

”Com mil raios”, pensou Thomas, ”que barafunda! Tenho comigo os falsos planos do dispositivo de pontaria. Estou pronto a ir ’desencanar’ o meu amigo Bastian, em Zwickau. Tenho um encontro combinado com um soldado russo que me deve levar à zona soviética. E o sujeito não aparece. Na vida as coisas nunca são simples.”

Esperou na orla do bosque até as doze e vinte e oito. Seu estômago começava a reclamar quando um soldado soviético apareceu na outra margem do riacho. Tinha na mão uma metralhadora portátil. Parou entre as três árvores e olhou em volta. ”Enfim”, pensou Thomas. Levantou-se e começou a caminhar em direção ao russo. Quando o jovem soldado o viu seu rosto demonstrou estupefação.

Thomas caminhava tranqüilamente: - Eh! - gritou ele, acenando amistosamente com o braço. À beira do riacho parou para retirar os sapatos e as meias e para arregaçar as calças.

Depois começou a atravessar as águas geladas. Quando chegou ao meio da corrente ouviu um grito rouco e, surpreso, levantou os olhos.

- Stoi! - gritou o soldado, proferindo, também, outras exclamações ininteligíveis.

Thomas não entendeu nada, sacudiu a cabeça amavelmente e continuou a caminhar até a outra margem. O jovem soldado precipitou-se em direção a ele. Thomas, finalmente, compreendeu. ”Com mil raios! Não é o soldado que deveria vir buscar-me. É um outro, que nada sabe sobre o encontro combinado.”

O soldado continuava gritando nervosamente.

- Escute, meu jovem amigo - começou Thomas.

No mesmo instante sentiu o cano da metralhadora bater-lhe nas costelas. Deixou cair sapatos, meias e a pasta e levantou os braços. ”Que horror”, pensou ele. ”Só me faltava mesmo o Exército russo...”

Lembrando-se das excelentes lições de judô que recebera outrora, aplicou o golpe conhecido como ”a prancha japonesa”. Uma fração de segundo depois o soldado rodava no ar, aos berros, e foi, com metralhadora e tudo, cair no riacho. Thomas apanhou os sapatos, as meias e a pasta e preparou-se para correr em direção à zona soviética.

Subitamente um barulho de galope fez estremecer o chão. Assustado, ergueu os olhos. No lado soviético do prado umas cinqüenta pessoas no mínimo - homens, mulheres e crianças - surgiram do bosque. Correndo como alucinados, atravessaram o riacho e desapareceram na zona americana.

Assombrado, Thomas seguiu-os, com o olhar. Ele havia ajudado a toda aquela gente a fugir para o Ocidente. Eles estavam à espreita, a leste, como ele próprio estivera, a oeste. Não pôde conter um riso nervoso. Depois, viu o russo surgir das águas e, com esforço, recobrar a respiração. Desandou a correr. Atrás dele, ouvia os gritos do soldado. Balas começaram a silvar nos ouvidos de Thomas, que, mentalmente, tomou nota de que as metralhadoras russas funcionam mesmo molhadas.

Um jipe russo apareceu na estrada. Um capitão estava sentado ao lado do chofer.

O capitão ergueu-se num salto e, agarrando-se ao pára-brisa, começou a berrar ordens, em russo, para o soldado que atirava como um louco. Os tiros cessaram. O jipe freou junto a Thomas.

- Gospodin1 Scheuner, não é? - disse o capitão num alemão gutural. - Desculpe atraso. Pneus não bons, rebentaram. Mas agora seja bem-vindo, gospodin, muito bem-vindo!

O Palast-Kaffee de Zwickau tinha o mesmo aspecto triste de todo o resto daquela cidade de cento e vinte mil habitantes. Seis horas após haver provocado uma grande fuga coletiva, Thomas estava sentado a um canto do estabelecimento, bebendo uma limonada artificial.

Ele nada mais tinha a fazer nesse dia 27 de maio. O capitão que o fora buscar na fronteira deixara-o no quartel-general russo de Zwickau. O comandante militar da cidade, um certo coronel Melanine, mandara pedir desculpas, por um intérprete, e marcar um encontro com Thomas para o dia seguinte às 9 horas.

Dessa forma, Thomas fora primeiro a um hotel (sinistro) e agora estava no café. Examinou a melancólica gente que o rodeava: os homens com seus ternos velhos e suas camisas puídas; as mulheres sem maquilagem, com suas meias de lã, seus sapatos com sola de cortiça, seus cabelos lisos e sem vida. ”E dizer que no lugar de onde eu venho as coisas já melhoraram muito. Negocia-se, trabalha-se duro e há açambarcadores. Mas vocês, pobres infelizes, parece verdadeiramente que foram os únicos a perder a guerra.”

Numa mesa em frente à sua havia um casal de bela aparência: na realidade, o único casal bem vestido que Thomas vira, até o momento, em Zwickau. A mulher, uma beleza de formas opulentas e firmes, uma magnífica cabeleira cor de trigo, traços eslavos e sensuais, olhos de um azul resplandecente. Trazia um vestido leve, de cor verde e muito justo. Um casaco de pele de leopardo estava na cadeira a seu lado.

Seu companheiro era um gigante musculoso com cabelos grisalhos cortados muito curtos.

 

1 Tratamento respeitoso, correspondente a ”senhor” em português. Abolido após a Revolução russa de 1917. (N. do E.)

 

Usava o terno azul, típico dos russos, com calças muito largas. Estava de costas para Thomas e conversava com a senhora. Sem dúvida alguma tratava-se de cidadãos soviéticos.

Subitamente Thomas estremeceu. A mulher de cabelos como espigas de trigo estava olhando para ele. Sorria, mostrando seus pequenos dentes, batia as pálpebras e piscava o olho...

”Hein? Eu não sou louco”, pensou Thomas. Virou o rosto e pediu outra garrafa de limonada artificial. Depois de beber alguns goles, arriscou um olhar.

A senhora sorriu. Ele, então, também sorriu. Depois as coisas se passaram com grande rapidez. O companheiro da dama parecia um Tarzan made in urss. Levantou-se num salto. Quatro passos o fizeram chegar a Thomas, a quem segurou pela gola. A clientela do bar começou a gritar. Thomas ficou irritado e a irritação aumentou quando percebeu que, por trás do gigante ciumento, a loura levantara-se e parecia estar gostando muito da cena. ”Sua vagabunda”, disse Thomas a si mesmo, ”deve ser um jogüinho seu. Sou capaz de apostar que sente sensações quando...”

Não teve mais tempo de pensar porque um soco do gigante atingiu o seu ventre. Ele mergulhou por baixo do Tarzan russo e agarrou-lhe as pernas. Mais um golpe de judô, o segundo do dia.

O Otelo das estepes, que estava junto ao vestiário, voou pelos ares e foi cair por trás do biombo. Com o rabo do olho, Thomas viu um suboficial russo que sacava o revólver.

Coragem é uma questão de inteligência. É preciso saber agir. Agachando-se, Thomas correu para a saída. Não havia nenhum militar por perto. Quanto aos alemães, esses não se preocuparam com Thomas. Todo alemão que corria tinha, imediatamente, a sua simpatia.

Thomas correu até o lago dos Cisnes. Arquejante, sentou-se num banco do velho e belo jardim. Quando recuperou o fôlego, regressou ao hotel, evitando as ruas principais.

No dia seguinte, às 9 horas em ponto, Thomas Lieven, elegante, bem barbeado e seguro de si mesmo, foi levado por um intérprete à sala do comandante da praça. É verdade que, um segundo depois, ele quase teve uma apoplexia.

Isto porque o comandante de Zwickau, que se levantava para cumprimentá-lo, era o Tarzan ciumento que, na véspera, ele atirara dentro do vestiário do Palast-Kaffee.

O gigante estava uniformizado. Seu peito ostentava muitas medalhas. Olhou para Thomas, em silêncio.

”Sala no terceiro andar”, pensava Thomas. ”A janela? Não adianta. Adeus Europa. Há quem diga que a Sibéria tem certos encantos...”

- Gospodin Scheuner - disse por fim o coronel Vassili S. Melanine, com voz gutural -, peço desculpar conduta ontem.

Thomas mirava-o com olhar sem expressão.

- Lamento. Culpa de Dunya - subitamente berrou como um possesso -, aquela diaba!

- Coronel, o senhor está-se referindo à senhora sua esposa?

- Aquela cadela - disse o coronel entre os dentes. - Eu já seria general-de-brigada. Duas vezes fui rebaixado por causa dela... porque provoquei brigas.

- Acalme-se, coronel - disse Thomas, em tom conciliatório.

Melanine deu um murro na mesa.

- Apesar de tudo amo Dunya. Mas chega disto. Falemos de negócio. Mas antes, Herr Scheuner, bebamos alguma coisa.

Acabaram com uma garrafa de vodca. Ao fim de uma hora, Thomas estava completamente bêbado e o coronel perfeitamente lúcido. Falaram sobre o negócio com eloqüência e espírito mas não chegaram a um acordo.

O ponto de vista do coronel era o seguinte:

- O senhor queria vender aos tchecos o dispositivo de pontaria mko! Mandou aqui seu amigo. Pode levar amigo de volta se nos entregar planos.

- Vender - retificou Thomas, com ênfase.

- Entregar - disse o coronel. - Nós não pagar. - Ele sorriu maliciosamente. - Habitualmente o senhor tem o espírito ágil, Thomas Lieven.

”Às vezes”, pensou Thomas, ”os joelhos parecem de gelatina.”

- Que foi que disse, coronel? - murmurou ele.

- Eu dizia Lieven. Thomas Lieven é o seu nome.

 

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         E BATATAS FRITAS

         CREME RENVERSÉ AO CARAMELO

 

Zwickau, 28 de maio de 1947

Com uma perna de frango, a russa Dunya entra na vida de Lieven.

Blinis de caviar - Para cada pessoa prepare duas pequenas panquecas. Coloque uma sobre um prato quente. Espalhe uma camada de caviar sobre ela e cubra com a segunda. Derrame sobre as panquecas manteiga derretida quente e creme azedo espesso. (Os verdadeiros blinis são feitos com farinha de trigo mourisco.)

Costeletas Marechal - Sem estragar a pele, desosse as pernas de frangos gordos e tenros. Prepare um recheio com carne branca do frango, uma colher das de sopa de manteiga e pitadas de cebolinha picada, de salsa e de estragão. Junte, ainda, uma xícara de miolo de pão embebido em vinho branco, uma colher das de sopa de cogumelos picados, sal e pimenta-do-reino. Passe tudo duas vezes pelo moedor.

Em seguida leve a mistura ao fogo brando, com uma colher das de sopa de manteiga e uma de creme fresco. Mexa sem cessar e evite que a massa fique dura.

Encha as pernas desossadas com a massa já fria, cosa as extremidades e polvilhe com farinha de rosca. Frite na manteiga até dourar.

Creme renversé ao caramelo - Ferva um litro de leite com cem gramas de açúcar e uma pequena vagem de baunilha. Deixe esfriar e, em seguida, junte cinco ovos batidos e uma pitada de sal.

Prepare uma calda (caramelo) não muito escura com duzentos gramas de açúcar e esfrie juntando um pouco de água fria. Despeje o caramelo numa forma aquecida, girando-a para que toda ela fique recoberta antes que o caramelo solidifique. Derrame o leite na forma, cubra-a e leve a banho-maria durante quarenta e cinco minutos.

Coloque a forma no refrigerador por alguns minutos e depois vire-a, sobre um prato redondo. O caramelo, automaticamente, servirá de calda.

Acha que somos idiotas, irmãozinho? Pensa que nosso Serviço Secreto não conhece os fichários aliados? Muito engraçadas as suas operações. O pessoal riu muito, em Moscou.

Thomas recobrou o sangue-frio.

- Mas, se sabem quem sou, por que me deixam em liberdade?

- Que iríamos fazer com você, irmãozinho? Você é, não se zangue, por favor, tão mau agente...

- Muito obrigado.

- Nós precisamos agentes de primeira categoria, não de personagens cômicas como você.

- Muitíssimo obrigado.

- Soube que você gosta de cozinha. Eu gosto de comer. Venha à nossa casa. Dunyacha ficará contente. Eu faço blinis. Caviar tenho bastante. Depois conversaremos. De acordo?

- É uma excelente idéia - disse Thomas Lieven.

”Então é assim”, pensou ele, humilhado, ”sou um péssimo agente. Uma personagem cômica. E tenho que ouvir tais coisas. De que me culpam eles?”

Pouco tempo depois, ele estava na cozinha de uma casa requisitada, preparando costeletas Marechal. Não se sentia à vontade. Melanine desaparecera. Em compensação, ela apareceu quando ele desossava uma perna de frango: Dunya fazia, por assim dizer, a sua entrada na vida de Thomas Lieven, embora ele ainda não o soubesse.

Que bela mulher! Que cabelos, que olhos, que boca e que corpo! Uma pele como cetim. Que frescura, que saúde, que força! Era uma mulher única. Para ela, soutiens e todo e qualquer auxílio artificial, habitualmente empregados pelo sexo fraco, eram inteiramente desnecessários.

Ela entrou, fechou a porta e fixou Thomas intensamente. Os lábios semiabertos, os olhos semicerrados. ”Se eu não a beijar”, pensou Thomas, ”creio que ela vai me estrangular com as próprias mãos. Ou então, chamará um agente da polícia secreta e me acusará de sabotagem.”

Ouviram-se passos, do lado de fora. Separaram-se rapidamente. ”Já era tempo”, pensou Thomas.

Dunya pegou a perna de frango com ar de quem está longe.

- Salve-me - sussurrou ela. - Fujamos juntos. Meu marido já não me ama. Ele me matará. Eu o matarei. A não ser que fujamos juntos.

- Mas, ma... ma... hum. Mas, senhora, donde lhe vem a idéia de que seu marido não a ama?

- Ontem, no café, você é que levou vantagem - disse Dunya, com um sorriso feroz. - Antes ele quase matava os homens. Ele nem sequer me bate mais. Isso não é amor... Eu falo bem o alemão, não acha?

- Muito bem.

- Minha mãe era alemã. Simpatizei com você à primeira vista. Posso fazê-lo muito feliz. Leve-me para longe...

Os passos se aproximavam.

Quando o coronel entrou, Dunya ainda segurava a perna de frango.

- Estava aqui, minha pombinha? - disse ele, com um sorriso enigmático. - Está aprendendo como se cozinha no Ocidente capitalista, onde se oprimem as classes trabalhadoras? Que há, Herr Lieven, não se sente bem?

- Isso passa logo, coronel. Poderia... poderia beber um pouco de vodca?

Uma coisa era certa: Thomas teria que fazer o impossível para voltar para o Ocidente o mais rapidamente possível. Ele sentia que não podia enfrentar um casal como esse. Por conseguinte, os russos teriam os falsos planos sem nada pagar. Felizmente eles não tinham o menor valor.

À mesa, ele fingiu discutir com veemência, pois sabia que os russos gostam de combates verbais. O coronel estava encantado e o contradizia com energia. Sentada entre os dois homens, Dunya os observava meditando. Comeram e beberam muito, mas, depois dos blinis, Thomas conservou a cabeça fria.

- Muito bem, coronel - disse ele. - Vou fazer-lhe uma proposta: o senhor ficará com os planos sem nada pagar mas, em compensação, libertará o meu amigo e mais uma outra pessoa.

- Outra pessoa?

- O camarada Reuben Achazian. Não sei se o senhor o conhece. Aceita mais um pouco de perna, madame?

- Aceito, com prazer, senhor.

- Ora se conheço Achazian - disse o coronel, com desprezo. - Esse patife. Esse traficante. Que pretende fazer com ele?

- Negócios - disse Thomas, com simplicidade. - O senhor bem sabe que eu preciso arranjar outro visto, já que o Exército vermelho estragou o que eu tinha.

- Esse porco armênio, onde o conheceu?

- Conheci esse porco armênio aqui em Zwickau, coronel.

Realmente, Reuben Achazian, baixo, gordo, com olhos de tubarão e um bigodinho, aparecera naquela manhã, no Hotel do Veado, quando Thomas tomava o seu café da manhã. Achazian foi direto ao assunto, sem subterfúgios.

- Escute com atenção, deixe-me falar sem interromper. Tenho pressa e o senhor também. Sei quem o senhor é.

- Como o sabe?

- Reuben Achazian sabe tudo. Não interrompa, estou em dificuldades aqui. Com os russos. Para ser franco: estou envolvido num negócio duvidoso. Agora, eles não me deixam mais trabalhar.

- Escute aqui, senhor...

- Não fale. Ajude-me a passar para o Ocidente e eu o farei um homem rico. Já ouviu falar na zvg?

- Claro que sim.

A zvg, ou Zentrale Verwertungs Gesellschaft (Sociedade Central de Exploração), tinha sua sede em Wiesbaden. Os americanos a tinham organizado. A zvg acumulava, em imensos depósitos, os excedentes de guerra, cujo valor era de muitos milhões de dólares: armas, munições, locomotivas, caminhões, remédios, madeira, aço, aviões, tecidos. A zvg era administrada por alemães, más só podia vender para exportação, exclusivamente. Tal foi a condição imposta pelos americanos.

-... a zvg só pode vender a estrangeiros - disse rapidamente Reuben Achazian a Thomas Lieven -, mas não a alemães. Eu sou estrangeiro. Comigo eles podem negociar. Tenho um primo, em Londres, que nos adiantará o dinheiro.

O senhor e eu organizaremos uma sociedade. Se me ajudar a passar para o Ocidente, dentro de um ano estará milionário.

- Herr Achazian, preciso pensar no assunto. Thomas pensara e por isso, durante o copioso almoço

na villa nazista requisitada pelos russos, pediu ao coronel Vassili Melanine que deixasse Achazian partir com ele.

- Achazian ficar aqui. Terei planos de qualquer forma.

- O senhor conhece, é claro, Marek, o agente tcheco? Eu o previno de que ele ficou no cie americano, em Holf. Se eu não o for buscar, ficarão com ele.

- E daí? Isto me parte o coração. O senhor entrega planos ou então também fica aqui.

- Muito bem - disse Thomas -, então eu também fico.

No dia 1.° de junho de 1947, Thomas Lieven, Bastian Fabre e Reuben Achazian chegaram a Munique. Cansados mas bem de saúde, foram, imediatamente, para a villa em Grünwald. Foram necessárias várias refeições e copipsas libações para fazer o coronel Melanine mudar de opinião. Finalmente, separaram-se como bons amigos. Os planos, entretanto, ficaram em Zwickau...

Os três homens pouco demoraram na capital da Bavária.

- Esses planos - explicou Thomas a Bastian -, nós os impingimos aos ingleses, aos franceses e aos russos. Eles não tardarão a descobrir que foram embrulhados. Mudemos de identidade e vamos para Wiesbaden.

- Por mim está certo, meu irmão. Mas esse Achazian me preocupa. Esse negocista quer vender armas e munições!

- Ele não fará nada disso - respondeu Thomas. - Espere até que estejamos em Wiesbaden. Achazian vai ter uma surpresa.

E por falar em surpresas...

Na noite anterior à sua partida de Munique, os três homens bebiam, tranqüilamente, um copo de vinho.

Eram sete horas e meia quando soou a campainha da porta. Bastian foi abrir. Voltou branco como cera.

- V... v... venha ver aqui - gaguejou ele. Thomas foi até o saguão e, quando viu quem era, segurou-se aos alizares da porta e fechou os olhos.

- Não - disse ele -, não!

- Sim - disse a loura esposa do coronel Melanine, de Zwickau -, sim, sim, sou eu.

Era realmente ela. Ali estava, diante dele. Com uma enorme mala de mão. Jovem e em perfeita saúde.

- Como... como fez... como a senhora conseguiu passar?

- Fugi. Com um grupo. Sou uma refugiada política. Concederam-me asilo. Quero ficar com você e ir com você para qualquer lugar.

- Não.

- Sim... Quero ficar ou então ficarei tão infeliz que irei diretamente à polícia para contar que você levou uns planos para meu marido... e muitas outras coisas que sei a seu respeito.

- Mas por que... por que quer me trair?

- Porque eu o amo - afirmou ela categoricamente.

O homem é um escravo dos seus hábitos. Dois meses mais tarde, em agosto de 1947, Thomas Lieven morava e trabalhava num imenso apartamento que alugara em Wiesbaden, juntamente com Bastian Fabre e Reuben Achazian.

- Eu não sei o que vocês têm contra Dunya. Ela é agradável. Ela cozinha para vocês. Faz tudo para ser útil. Eu a acho simplesmente deliciosa.

- Sim, mas ela exige um pouco demais de você. Olhe como os seus dedos estão trêmulos.

- Você está brincando - disse Thomas, sem convicção.

A verdade é que a sua amiga era um pouco cansativa. Ela morava num pequeno apartamento próximo e não vinha todas as noites, mas quando vinha...

Durante os raros minutos de liberdade de que dispunha, ele pensava, freqüentemente, no coronel Melanine.

Agora compreendia por que o coronel nunca chegara a general-de-brigada!

Em Wiesbaden, Thomas era conhecido como Ernst Heller. Evidentemente, tinha todos os documentos falsos de que necessitava. Tinha formado uma sociedade usando o nome do seu colaborador estrangeiro. A sociedade comprava quantidades consideráveis de mercadorias diversas e as guardava nos depósitos da zvg na periferia da cidade em ruínas.

Além de material da Wehrmacht, os imensos armazéns da zvg guardavam, também, jipes, caminhões e outros materiais do Exército americano. Tratava-se de material obsoleto ou outros cujo transporte de volta aos Estados Unidos seria demasiado oneroso.

- Em vista do nosso passado duvidoso - explicou Thomas aos seus sócios - não poderemos negociar com a América. Temos que nos dirigir a outros países, especialmente aos que estão em guerra, porque eles não podem comprar à zvg. É proibido.

- Estou em contato - disse Reuben Achazian - com um certo Aristóteles Pangalos, representante dos guerrilheiros gregos, e com um indochinês chamado Ho Irawadi.

- Vocês não pretendem realmente vender armamentos a esses tipos! - exclamou Bastian apavorado.

Nesse momento, Thomas Lieven fez uma declaração de princípios:

- Se nós não lhes vendermos armas, outros o farão. Por conseguinte, nós lhes venderemos, mas essas armas não lhes serão de qualquer utilidade.

- Não entendo patavina do que você está falando.

- Deixe-me concluir. Vamos esvaziar os cartuchos e substituir a pólvora por serragem. Quanto às metralhadoras, a sua embalagem normal é em caixas pregadas, chumbadas e marcadas a fogo. Já encontrei uma carpintaria que nos fabricará caixas com as mesmas marcas. Quanto aos selos de chumbo, será fácil imitá-los. Para lastrear as caixas usaremos sabão de lavar roupa...

- E que faremos da pólvora e das metralhadoras?

- A mercadoria será embarcada em Hamburgo - disse Thomas. - Fora da barra o mar é profundo. Vocês compreendem?

Nesse mês de agosto de 1947 o abastecimento da cidade de Wiesbaden chegou ao nível mais baixo. O número de calorias diárias chegou a oitocentos. A escassez de batatas era pior que nunca. Apenas os hospitais e os campos de refugiados recebiam alimento com alguma regularidade. Os alimentos disponíveis eram quase exclusivamente à base de milho e não eram apreciados por serem amargos. A ração de gorduras baixou de duzentos para cento e cinqüenta gramas. O açúcar era distribuído à razão de uma libra de açúcar branco e uma de açúcar mascavo por mês. Concedeu-se uma ração suplementar de quatro ovos em vista da ”péssima colheita de frutas e legumes, devido à seca”. O abastecimento de leite estava praticamente paralisado. Em Wiesbaden, dois adultos em cada três não recebiam mais.

Nota bem: uma guerra terrível não está terminada depois da derrota...

Para começar, a Sociedade Achazian vendeu a cada um dos senhores Pangalos e Ho Irawadi dois mil quilos de atebrina, um específico contra o impaludismo, e que fazia parte dos estoques da Wehrmacht. As embalagens tinham a águia alemã e a cruz gamada. Era indispensável fazer desaparecer tais emblemas. Thomas e seus associados levaram a atebrina para uma fábrica de produtos farmacêuticos, onde foi reembalada. O medicamento tornouse exportável.

Um problema parecido, mas aparentemente insolúvel, surgiu num outro caso. Os senhores Pangalos e Ho Irawadi desejavam adquirir, cada um, trinta mil capacetes coloniais. Capacetes havia, mas todos eles tinham marcada, de forma indelével, a cruz gamada. Os compradores foram forçados a desistir do negócio.

”Que poderemos fazer com essa porcaria de capacete?”, perguntava Thomas a si mesmo. Durante vários dias pensou no caso. Subitamente, teve uma idéia luminosa. Os capacetes tinham excelentes carneiras de couro, novas e de primeira qualidade. No momento, nenhuma fábrica de chapéus da Alemanha dispunha de uma só carneira de couro.

Thomas entrou em contato com os homens desse ramo de indústria e os capacetes coloniais vendiam-se como pães quentes.

A Sociedade Achazian lucrou com a venda das carneiras mais do que ganharia vendendo os capacetes inteiros. Dessa forma, Thomas deu novo alento à indústria chapeleira da Alemanha.

Thomas tinha preocupações que nada tinham a ver com negócios. Dunya tornava-se cada vez mais incômoda. Estava sempre fazendo cenas, por amor ou por ciúmes. Sob todos os pontos de vista, ela era muito fatigante. Havia brigas e reconciliações constantes. Para Thomas, esse período foi o mais amalucado de sua vida.

Bastian também estava preocupado.

- Não pode continuar assim, menino. Esta mulher está levando você direto ao cemitério.

- Que posso fazer? Não a posso jogar pela porta afora, ela não iria.

- Ela irá.

- Sim, direto à polícia.

- Merda! - disse Bastian. - É preciso que você pense no futuro, meu Deus!

- Não faço outra coisa senão pensar. De qualquer forma não poderemos ficar muito tempo aqui. Quando chegar o momento teremos que partir, e partir depressa, depressa demais para Dunya...

- Bolas! - disse Bastian.

Depois eles venderam rolamentos de esferas aos gregos e aos indochineses. E caminhões. E jipes. E arados.

- Com esses materiais eles não podem fazer besteiras - disse Thomas.

No outono de 1947 eles descobriram que cada saco de dormir americano tinha matéria-prima para um par de calças. Eles tinham quarenta mil desses sacos. As fábricas de confecções do sul da Alemanha ainda se recordam da avalancha de material e de encomendas que as atingiu, em novembro de 1947.

Na primavera de 1948 eles ultimavam os preparativos para o seu último negócio: as armas.

As munições, já convenientemente ”tratadas”, estavam prontas.

Foram embarcadas, juntamente com as caixas cheias de sabão de lavar roupa e que, supostamente, continham metralhadoras portáteis.

Os navios partiram com suas cargas destinadas à Grécia e à Indochina. ”A travessia é longa”, pensou Thomas. Tranqüilamente começou a tratar do fechamento do seu escritório em Wiesbaden. Nessa mesma época, várias companhias cinematográficas americanas começavam a abrir os seus escritórios.

Os temas e os títulos dos filmes feitos em Wiesbaden eram todos sem valor artístico e de uma alegria melancólica que caracterizava o período da reeducação alemã; por exemplo: O amor de uma mulher, Noite de núpcias no paraíso, Akhbar, o tigre e Os sonhos mortais...

- Muito breve teremos que partir, meu velho - disse Thomas a Bastian, no dia 14 de maio de 1948.

- Na sua opinião, que vão fazer esses gregos e esses indochineses quando descobrirem que foram tapeados?

- Se eles nos pegam, estamos liquidados.

Os compradores de armas não pegaram Thomas nem Bastian. Mas deve ser lembrado que agentes estrangeiros pegaram, na República Federal da Alemanha, alguns verdadeiros traficantes, entre os anos de 1948 e 1956. Colocaram bombas de retardamento em seus carros ou liquidaram-nos, em plena rua, a tiros de revólver.

Por ocasião de um desses terríveis episódios, Thomas Lieven declarou, filosoficamente:

- Quem vende a violência perece pela violência. Nós entregamos sabão de lavar roupa. Nós estamos vivos.

Mas, como já o indicamos, isso se passou mais tarde. Acontece que, no dia 14 de maio de 1948, Thomas, por alguns momentos, receou que sua vida fosse terminar de forma violenta.

Cerca do meio-dia bateram à porta. Bastian foi abrir e voltou pálido como um morto.

- Dois senhores da comissão militar soviética.

- Deus do céu! - disse Thomas.

Severos e erectos, os dois senhores entraram. Embora a primavera já tivesse chegado, ambos vestiam capas de couro. Thomas, subitamente, sentiu muito calor. Depois, subitamente, tiritou de frio.

Tudo acabado. Terminado. Eles me encontraram.

- Bom dia - disse um dos russos. - Herr Heler?

- Sim.

- Procuramos a camarada Dunya Melanine. Dizem que ela está em sua casa.

- Bem... hem... hum - Thomas recobrou o raciocínio. - Acontece que, por acaso, essa senhora está em minha casa.

- O senhor permite que lhe falemos? A sós?

- Mas certamente - disse Thomas.

Levou os dois homens à sala onde Dunya estava ocupada em tratar das unhas.

Dez minutos mais tarde, os dois cavalheiros de fisionomia impenetrável e casacos de couro despediram-se e saíram.

Bastian e Thomas correram para onde estava Dunya.

- Que queriam eles?

Com um grito de triunfo a beleza loura atirou-se ao pescoço de Thomas, com tal ímpeto que quase o derrubou.

- É o mais belo dia da minha vida! - Um beijo. - Meu coração. - Um beijo. - Meu único amor! - Um beijo. - Agora podemos nos casar.

- Podemos quê? - balbuciou Thomas.

- Nos casar!!!

- Mas você é casada, Dunya!

- Já não sou mais casada. Há dois minutos. Esses homens me intimaram a voltar imediatamente para casa, em nome do Tribunal Soviético de Divórcio, ao qual meu marido apresentou queixa. Recusei. Então eles disseram: ”Neste caso o seu casamento está anulado”. Aqui está o documento.

- Eu não sei ler russo - murmurou Thomas. Sentia vertigens. Olhou para Dunya e depois para o

rosto pálido de Bastian. ”Bonito”, disse a si próprio. ”Os navios com os carregamentos de sabão de lavar roupa e cartuchos com serragem estão em alto-mar.

”Socorro!

”O que eu poderia fazer de melhor”, pensava Thomas Lieven, melancolicamente, ”seria arranjar uma corda ou meter uma bala na cabeça. Como poderei sair dessa terrível encrenca?”

Dava pena vê-lo. Na noite de 18 de maio, ao regressar de uma visita a Dunya em seu apartamento, ele arrastou-se, gemendo, até o banheiro. Era tal o seu nervosismo que, com um gesto descontrolado, fez cair o pequeno armário de medicamentos preso à parede. O armário foi ao chão com estardalhaço.

Tonto de sono, Bastian saiu do seu quarto.

- Que diabo você está fazendo?

- Brometo - gemeu Thomas. - Preciso de brometo, preciso de um calmante.

- Você vem da casa de Dunya?

- Sim. Imagine que ela já fez publicar os proclamas. Você... você é uma das testemunhas. É para daqui a um mês. E ela quer filhos, cinco. O mais depressa possível... A não ser que aconteça um milagre, um milagre imediato, compreende, sou um homem desgraçado, Bastian.

- Já entendi. Beba esse troço. Tenho uma idéia. Talvez dê certo. Mas é preciso que eu tenha dois ou três dias livres.

- Quantos você quiser, meu velho - disse Thomas. Bastian desapareceu. Quando voltou, seis dias mais

tarde, ele estava anormalmente silencioso.

- E então? - perguntou augustiado o desalentado noivo. - Vai abrir a boca ou não? Conseguiu fazer alguma coisa?

- É o que veremos - respondeu Bastian.

Isto se passou no dia 25. Nesse dia Thomas não teve nenhuma notícia de Dunya. No outro dia também. Tentou vê-la, à noite, mas ela não estava em casa.

No dia 27, às oito e quinze, o telefone soou. Thomas pegou o fone. A princípio só ouviu um grande barulho de vozes e ruído de motores. Depois, ouviu a voz de Dunya, desesperada e soluçante:

- Meu tesouro! Meu querido!

- Dunya - gritou ele. - Onde você está?

- No aeroporto de Frankfurt, no posto da polícia militar...

- Polícia militar?

Em Frankfurt houve um soluço e depois:

- Parto para a América, meu bem... Thomas caiu numa cadeira.

- Quê? Como?

- Meu avião parte daqui a dez minutos... Ah! Se você soubesse como sou infeliz... Mas é uma questão de vida ou morte. Eles me matarão se eu ficar aqui...

- Eles a matarão - repetiu Thomas como um autômato.

Bastian entrou na sala, cantarolando. Dirigiu-se para o bar e preparou um uísque.

- Eles me escreveram cartas ameaçadoras - continuou a voz de Dunya. - Eles me atacaram e quase me estrangularam. Disseram que me matariam porque eu não quis voltar. Os americanos dizem a mesma coisa!

- Os americanos também?

- Não, você compreendeu mal - exclamou histericamente a voz de Frankfurt. - Estão me levando para os Estados Unidos por ordem do Departamento de Estado americano, para proteger a minha vida. É preciso não esquecer que o meu marido é um general soviético...

- Dunya, por que você não me contou toda essa história antes?

- Não queria que você corresse perigo. Proibiram que eu falasse com quem quer que fosse.

Dunya falava com tal rapidez que Thomas ficou tonto. Dunya falou de amor e de reencontro, de fidelidade e de laços eternos, além do oceano. E por fim:

- Preciso desligar, querido. O avião está à minha espera. Adeus.

- Adeus - disse Thomas Lieven.

A comunicação foi interrompida. Thomas pendurou o fone e olhou fixamente para Bastian.

- Dê-me algo para beber, também. Isso foi trabalho seu, não foi?

Bastian sacudiu a cabeça.

- Não foi muito difícil, garoto - disse ele. Realmente, não fora muito difícil, depois que Bastian

descobriu que havia, perto de Nuremberg, um enorme campo para estrangeiros, chamado Valka. Foi para lá que se dirigiu o amigo fiel...

Nas sinistras proximidades do sinistro campo havia muitos botecos.

Na terceira noite Bastian travou conhecimento com dois cavalheiros que se prontificaram, mediante um preço razoável, a escrever algumas cartas ameaçadoras em russo. Além disso, concordaram em ir a Wiesbaden e simular um assalto, estrangular ligeiramente uma certa senhora e causar-lhe o maior pavor de sua vida...

-...E a reação não demorou - disse Bastian a seu amigo, esfregando as mãos.

- Bastian! - exclamou Thomas, indignado.

- Era um estrangulamento garantido, sem perigo. Os dois Popoffs compreenderam perfeitamente que nada de sério deveria acontecer.

- Dê-me um outro uísque, puro - gemeu Thomas.

- Com prazer. Concordo que o método não é muito elegante...

- É bárbaro.

-...mas acontece que tudo que lhe diz respeito me interessa profundamente, meu velho. Todo o tempo estava pensando em você, cercado de cinco filhos... Espero que me perdoe.

Mais tarde, na mesma noite, conversaram sobre o futuro. E Thomas fez alusão a um novo negócio:

- Ganhamos muito dinheiro aqui. Precisamos empregar esse dinheiro o mais depressa possível.

- Por que tanta pressa?

- Ouvi certo boato... Acredite, precisamos agir sem demora. Vamos comprar carros americanos: Pontiacs, Cadillacs, etc.

Thomas passou, entusiasmado, a desenvolver o seu pensamento. Um dólar, explicou ele, valia no momento cerca de duzentos marcos. Não havia falta de dinheiro. É claro que um alemão não podia obter uma licença de importação para um carro americano. Mas isto podia ser contornado. Thomas conhecia um burocrata do governo militar americano que estava prestes a terminar o seu tempo de serviço. Chamava-se Jackson Taylor. Ele poderia obter uma licença.

- Esse Mr. Taylor, para manter as aparências, organizará um firma para vender automóveis em Hamburgo... por nossa conta.

- Vender a quem? Ninguém tem coisa alguma neste país.

- Isto vai mudar, breve.

- E quantos carros você vai importar?

- Uma centena.

- Santa Maria! E quer importar tudo de uma vez?

- Sim. Não. Quero dizer que pretendo comprar o love e importá-lo, mas talvez não o faça imediatamente.

- Mas então, quando?

- Isso depende da data da coisa que estão engendrando.

- Que coisa?

Thomas falou sobre a coisa que se preparava.

No dia 10 de junho de 1948, o Olivia deixou o porto de Nova York. No dia 17 o navio estava ao largo da costa francesa, a dez graus e quinze minutos de longitude oeste e quarenta e oito graus e trinta minutos de latitude norte. Sua carga era de cem automóveis. Nesse dia, o comandante recebeu a seguinte mensagem, em código:

Norddeichradio. 17 junho 1948. Quinze horas quarenta e três. Schwertmann armadores Hamburgo para comandante Hannes Drõge. Conforme instruções fretadores pedimos manter sua posição atual e não entrar águas territoriais alemãs até segunda ordem. Mantenha contato rádio. Novas instruções serão enviadas. Terminado.

Por conseguinte o Olivia permaneceu durante três dias e três noites no setor indicado. Foi estabelecido um rodízio de quartos bastante elástico e folgado, e a tripulação dedicou-se às delícias do pôquer e do álcool. Eram freqüentes as saudações ao fretador desconhecido.

No dia 20 de junho, o primeiro radioperador, ligeiramente bêbado, recebeu em código a seguinte mensagem:

Norddeichradio. 20 junho 1948. Onze horas vinte e três. Schwertmann armadores Hamburgo para comandante Hannes Drõge. Conforme instruções fretador pedimos rumar sem demora porto Hamburgo.

Terminado.

Enquanto o primeiro radioperador, ligeiramente bêbado, decifrava o telegrama para o comandante, o segundo radioperador, ligeiramente bêbado, ouvia o boletim de informações da bbc.

- Na Alemanha - disse ele retirando os fones dos ouvidos - acabam de fazer uma reforma radical da moeda. O velho marco não vale mais nada.

- Isto vai causar muitas complicações - disse o primeiro radioperador, com ar sombrio.

- Santo Deus! - exclamou o comandante. - Minhas economias.

- Os que têm mercadorias, agora, são ricos - disse o segundo radioperador.

- Escute aqui - exclamou o primeiro radioperador. - O nosso fretador tem cem automóveis.

- Uma sorte como essa não é para nós - disse o comandante, sacudindo melancolicamente a cabeça. - Ele é um sabidão. Gostaria de saber quem é.

Caro comandante Hannes Drõge, se por acaso estiver lendo estas linhas, agora sabe quem era.

Na primavera de 1949, Thomas e Bastian viviam agradavelmente em Zurique. A sua leitura favorita e cotidiana era a página de finanças da Neuen Zürcher Zeitung.

Com os lucros de suas últimas operações, Thomas comprara um grande número de ações alemãs de antes da reforma monetária. Depois da guerra a cotação dessas ações caíra muito, porque ninguém sabia até que ponto as potências vitoriosas pretendiam desmantelar os centros nevrálgicos da economia alemã.

As maiores instalações industriais foram desmontadas e dissolvidos os maiores consórcios. Em 1946-47 as ações da Vereinigte Stahlwerke eram vendidas a quinze por cento do seu valor nominal; as ações da aeg, a trinta por cento. Estava proibida a compra e venda de ações da I. G. Farben.

O otimismo das pessoas que, apesar de tudo, haviam comprado essas ações e outras similares foi fartamente compensado.

Uma vez que as ações em marcos RM1 foram transformadas em DM2 as cotações começaram a subir, de mês para mês. Num apartamento em Zurique havia um homem que não se queixava por causa de tais acontecimentos...

Assim correram as coisas até o dia 14 de abril de 1949, quando Thomas foi, com Bastian, ao Cinema Scala. Tiveram vontade de ver o célebre filme italiano O ladrão de bicicletas. Assistiram à publicidade e, a seguir, ao jornal que mostrava cenas do Grande Prêmio disputado no hipódromo de Hamburgo.

Viam-se os cavalos puros-sangues, homens de fraque e mulheres radiosamente belas. A câmara mostrava, em primeiro plano, personalidades conhecidas. Um homem gordo. Uma mulher encantadora. Mais uma linda mulher. Outra. O milagre econômico havia começado. Mais uma personagem conhecida...

- Marlock! - berrou um espectador, no camarote n.° 5.

Thomas sufocava. Na tela, ele via maior que em tamanho natural aquele sócio traidor, que ele julgava morto, aquele sócio criminoso que arruinara a sua calma existência para atirá-lo às garras dos serviços secretos. Ali estava ele, diante dos seus olhos, trajando impecável fraque e com o binóculo a tiracolo.

- É ele! - gritou Thomas. - Eu o matarei. Esse porco. Eu pensava que ele estava no inferno, mas ainda está vivo. Espere um pouco, agora vamos ajustar nossas contas.

- Receio, cavalheiro, não ter entendido bem o que deseja - disse o proprietário do Scala. - O que é exatamente que o senhor deseja?

- Ora, cavalheiro, o senhor compreendeu muito bem o que eu quero. Gostaria que, após a última sessão, o senhor me alugasse o filme de atualidades que foi exibido hoje.

 

1 Reichsmark, unidade monetária alemã de novembro de 1924 a 1948. (N. do E.)

2 DM, Deutschemark, unidade monetária alemã, a partir de 1948. (N. do E.)

 

- Alugar? Mas, por que motivo?

- Porque eu gostaria de projetá-lo, só para mim. Reconheci uma pessoa que perdi de vista desde o princípio da guerra.

Algumas horas mais tarde, Thomas voava com o rolo de filme em direção aos estúdios da Praesens-Film, onde já havia combinado utilizar uma sala de projeção e os serviços de um montador. O montador fez o filme recuar e avançar sobre a mesa de montagem, até que Thomas gritou: - Pare!

O pequeno écran do aparelho mostrava uma imagem fixa do Grande Prêmio da Primavera: uma arquibancada ocupada por alguns cavalheiros gordos e senhoras elegantes. E no primeiro plano, perfeitamente reconhecível, estava o banqueiro Robert E. Marlock. Meia hora mais tarde pôde ver a ficha pessoal que aquela organização possui de todas as pessoas que fazem negócios bancários na Alemanha.

- Aquele safado! - disse Thomas a seu amigo Bastian Fabre, na noite de 15 de abril de 1949. - Mora em Hamburgo. Usa o nome de Walter Pretorius. Ele já tem, novamente, um pequeno banco. A audácia! A enorme audácia daquele patife!

Bastian girou entre as mãos um copo de conhaque.

- Ele deve pensar que você está morto - disse ele. - A não ser que você queira ir vê-lo.

- Está maluco? Nem pense nisto. Quero que ele continue pensando que eu estou morto.

- Eu pensava que você queria se vingar...

- Quanto a isto não há a menor dúvida. Mas acontece que Marlock foi aceito como banqueiro. Está instalado em Hamburgo e todo mundo sabe disso. Você quer que eu compareça a um tribunal alemão para dizer: esse Pretorius chama-se realmente Marlock. Esse cavalheiro roubou-me em 1939. Como quer que eu vá dizer isso? Se eu apresentar uma acusação terá que ser sob o nome de Thomas Lieven, porque era Thomas Lieven quem exercia a profissão de banqueiro em Londres. O meu nome aparecerá em todos os jornais...

- Ai!

- Ai, sim! Você pensa que tenho vontade de ser liquidado? Um homem que tem um passado como o meu deve fazer tudo para evitar a publicidade.

- Então como é que você vai se arranjar neste caso?

- Tenho um plano. Preciso de um testa-de-ferro. Já o tenho, aliás: é o Reuben Achazian, com quem fizemos os negócios com a zvg. Já lhe escrevi e ele virá sem demora.

- E eu? Que deverei fazer?

- Você, meu velho - disse Thomas pousando a mão no ombro de Bastian -, terá que se separar de mim, durante alguns meses. Não fique com esse ar infeliz. É indispensável, estamos arriscando muita coisa... Fique com todo o dinheiro de que eu não precise e vá para a Alemanha. Penso que Düsseldorf seria o melhor lugar. Comprará uma casa no melhor bairro, um carro, etc. Se eu falhar neste negócio e perder tudo, terei necessidade de crédito. E de confiança. E de dinheiro para representação. Compreende?

- Compreendo.

- A Avenida Cecile - disse Thomas, com ar sonhador. - Aí está um bairro que nos convém. Você vai ver pessoalmente. É exatamente o que nos serve. Só gente importante mora por lá.

- Neste caso - disse Bastian -, é claro que não poderíamos morar em outro lugar.

Cabe-nos agora descrever o mais importante - e também o mais arriscado - dos planos financeiros de Thomas Lieven. Procuraremos explicar tudo, de maneira que todos possam compreender a extraordinária sutileza do seu projeto de vingança.

Lancemos, primeiramente, um olhar para a cidade de Stuttgart. Junto a essa bela cidade estavam os terrenos das Usinas Excelsior. Durante a guerra, essa fábrica tinha mais de cinco mil empregados trabalhando na produção de armamentos e instrumentos diversos, para a Luftwaffe de Goering. Em 1945 a galinha dos ovos de ouro já estava morta. Acontecia que - pelo menos durante algum tempo - não se construiriam aviões militares na Alemanha.

Conseqüentemente, as Usinas Excelsior reduziram o pessoal ao mínimo e limitavam-se a fabricar certos aparelhos técnicos. Mas, depois da reforma monetária do verão de 1948, a confissão de falência parecia uma necessidade inevitável. As ações da Excelsior estavam cotadas muito abaixo do seu valor nominal, variando o preço entre dezoito e vinte e cinco por cento.

Na primavera de 1949, os entendidos julgavam que o desmoronamento da sociedade era uma questão de semanas.

Nessa situação desesperadora, os diretores das Usinas Excelsior vieram a conhecer, no dia 8 de maio de 1949, um armênio, Reuben Achazian, que os procurou em Stuttgart.

Achazian, vestido com apuro e proprietário de um Cadillac modelo 1949, fez, perante o conselho de administração, a seguinte declaração:

- Senhores, eu represento uma sociedade suíça que deseja permanecer no anonimato. Essa sociedade tem muita vontade de transferir parte de sua produção para a Alemanha...

Os diretores quiseram saber por quê.

-... Porque o preço de custo das aparelhagens técnicas é bastante mais baixo, aqui. Senhores, os meus representantes suíços pensam em propor-lhes um contrato a longo prazo. Eles estariam dispostos, em condições favoráveis, a contribuir para o saneamento da sua situação financeira. Para provar que se trata de uma proposta séria, estou autorizado a dizer-lhes que o grupo suíço em questão tomará a seu cargo a liquidação de títulos vencidos desta sociedade, até um montante de um milhão de marcos.

Um milhão de marcos! Para uma sociedade à beira da falência era uma aurora de esperança que surgia no horizonte. É fácil de compreender que os diretores não pedissem muito tempo para refletir.

No dia 25 de maio as Usinas Excelsior recebiam a soma de novecentos mil marcos. Era a fortuna que Thomas Lieven empregava em sua vingança. Ele trabalhava com grande afinco, nessa época. Depois de suas entrevistas com redatores de assuntos econômicos e outros jornalistas, apareceram artigos dizendo que certos grupos industriais suíços estudavam a possibilidade de estabelecer sucursais na República Federal da Alemanha Ocidental.

Essas notícias e mais o fato de todos os títulos da Excelsior estarem sendo pagos pontualmente causaram sensação nos meios financeiros da Alemanha Ocidental. Começou uma acentuada procura das ações da Excelsior. As cotações subiram até quarenta e cinqüenta por cento.

Por instigação de Thomas Lieven, testas-de-ferro procuraram o Banco Pretorius, em Hamburgo, tentando saber o que estava ocorrendo com a Excelsior. Isto despertou a curiosidade e a extraordinária cupidez do pretenso Walter Pretorius.

Algum tempo depois, um certo Reuben Achazian procurou o diretor do Banco Pretorius, com quem conferenciou. (Para clareza da nossa narrativa, vamos chamá-lo, de agora em diante, pelo seu verdadeiro nome, Marlock.) Achazian viera em seu magnífico Cadillac.

- Em nome dos meus amigos suíços - disse ele -, desejaria perguntar se o senhor estaria disposto a participar de um saneamento, que exigirá fortes somas, da situação financeira das Usinas Excelsior.

Em vista da constante alta das ações, Marlock não hesitou. Prometeu, em princípio, sua participação. Logo a seguir, começou, dissimuladamente, a comprar grandes lotes de ações da Excelsior, o que fez subir ainda mais as cotações. Marlock continuou a comprar, mesmo aos preços aumentados, pois tinha a convicção de estar fazendo o melhor negócio de sua vida.

No dia 19 de setembro, em Zurique, Thomas teve um encontro com Reuben Achazian.

- Agora, aquele miserável está em minhas mãos. Ele já empregou todas as suas disponibilidades nesse negócio perdido das Usinas Excelsior. Preciso trabalhar para recuperar os novecentos mil marcos que gastei para pagar os títulos e, se possível, ter algum lucro.

- Como é que pretende conseguir isto? - perguntou o armênio de olhos úmidos e amendoados.

- Utilizando marcos bloqueados, meu caro - disse Thomas calmamente.

Naquela ocasião, para garantir a estabilidade monetária, os depósitos de estrangeiros na Alemanha não podiam ser livremente transferidos.

Para poder dispor do seu dinheiro, os proprietários dessas contas bloqueadas necessitavam de autorização especial.

A partir de 1951, esses marcos bloqueados só eram vendidos no estrangeiro, no mercado negro, e assim mesmo à taxa muito desfavorável de oito a dez dólares para cada cem marcos. Thomas descobriu, na Suíça, empresas industriais que tinham depósitos em marcos bloqueados, sendo que alguns deles eram dos anos 1931-1936. Essas empresas cederam-lhe seus haveres, sem dificuldade, às taxas acima mencionadas. Para elas era um meio de recuperar pelo menos uma parte do seu dinheiro.

Thomas era, portanto, agora, possuidor de marcos bloqueados. Uma vez mais, ele mandou Achazian a Hamburgo.

- A recuperação das Usinas Excelsior - explicou o pequeno armênio a Marlock - será financiada, principalmente, com marcos bloqueados das contas que possuem os meus representados suíços. Tal operação é possível, dentro dos regulamentos em vigor, desde que aprovada pelo Banco Federal. Estou autorizado a transferir tais contas, até um total de dois milhões e trezentos mil marcos, para o seu banco.

Marlock esfregou as mãos. Ele não se tinha enganado, quando farejara o melhor negócio de toda a sua vida. Foi a Frankfurt onde, durante várias dias, discutiu tenazmente com as autoridades do Banco Federal. Sob juramento solene, comprometeu-se a não utilizar o dinheiro senão com o objetivo de salvar a sociedade Excelsior. Diante disso, os marcos foram liberados.

- Volte a procurá-lo - disse, no mesmo dia, Thomas a Achazian. - Vou lhe entregar procurações das firmas suíças supostamente interessadas em salvar a Excelsior: trata-se de documentos falsos da melhor qualidade. Aquele sujo de Hamburgo entregará os milhões, sem dificuldade, porquanto não lhe pertencem. Retire tudo, em dinheiro, e traga para cá.

O pequeno armênio olhou para Thomas, com admiração.

- Ah, se eu tivesse o seu cérebro! - disse ele. - Quanto custaram esses marcos bloqueados?

- Mais ou menos cento e sessenta mil dólares. Thomas sorriu modestamente, mas, mentalmente, esfregou as mãos.

- E quando você tiver trazido o dinheiro para Zurique, meu caro, os marcos bloqueados estarão transformados em marcos de verdade. Serão necessárias várias viagens. Você esconderá o dinheiro no pneumático de reserva e no chassi. Depois, deixaremos a Excelsior ir à falência. Nada de salvar a sociedade. E aquele safado de Hamburgo estará falido.

Reuben Achazian partiu no dia 7 de dezembro de

1949, dizendo que estaria de volta no dia 16. No dia 16 de dezembro, a República Federal da Alemanha obtinha dos Estados Unidos um crédito de um bilhão de marcos.

Reuben Achazian não voltou nesse dia histórico do renascimento alemão. Reuben Achazian nunca mais voltou...

No dia 28 de dezembro, o banqueiro Walter Pretorius foi preso, em Hamburgo, pela polícia alemã. No mesmo momento, inspetores da polícia federal suíça prendiam Thomas Lieven em seu apartamento de Zurique. Estavam agindo baseados num mandado urgente da Interpol e da Agência Federal da Polícia Judiciária Alemã, em Wiesbaden. Os senhores Lieven e Pretorius eram acusados de ter organizado um enorme tráfico de marcos bloqueados.

- Quem me acusa? - perguntou Thomas Lieven aos inspetores suíços.

- Um tal Reuben Achazian denunciou-os às autoridades alemãs, fornecendo provas documentais. Depois disso, ele desapareceu.

”Os meus dois milhões e trezentos mil marcos evaporaram-se. Hum... Acabei cometendo um erro. Mas esse Reuben Achazian era um armênio tão simpático...”

Antes de ser julgado, Thomas Lieven ficou quase um ano na prisão. Foi um ano de grandes acontecimentos, com o verão mais quente desde um século, a abolição das restrições sobre alimentos e, no dia 28 de junho, o princípio da guerra da Coréia que causou, na Europa, uma verdadeira psicose de armazenar coisas.

No dia 19 de novembro de 1950, a segunda alta corte penal de Frankfurt condenou Thomas Lieven a uma pena de três anos e meio de prisão. O presidente da corte explicou, verbalmente, o seguinte: a franqueza e a sinceridade do acusado Lieven eram indubitáveis. A corte tinha chegado à conclusão de que somente motivos inexplicáveis e aparentemente de natureza psicológica tinham levado o acusado a praticar os atos que o levaram ao tribunal. ”Este homem culto e de inteligência superior”, declarou textualmente o presidente, ”não representa, de forma alguma, o tipo usual de criminoso...”

Com relação ao segundo acusado, o banqueiro Walter Pretorius, o presidente não teve tais expressões mitigantes. Ele foi condenado a quatro anos de prisão. Seu banco foi forçado a requerer falência. E a inspetoria de bancos riscou o seu nome da lista de banqueiros dignos de merecer fé, medida esta que o impediria, para sempre, de exercer a sua profissão.

Dois fatos interessantes caracterizaram o processo de Frankfurt. Sabemos que os dois acusados conheciam-se intimamente. Entretanto, nenhum deles pronunciou uma palavra, ou teve um gesto que pudesse revelar tal fato à corte.

Em seguida, o presidente foi levado a declarar, a partir do segundo dia do julgamento, que as sessões seriam secretas, visto que o acusado Thomas Lieven manifestara o desejo de explicar, com detalhes, como tinha conseguido a posse dos marcos bloqueados. Nessas condições, a imprensa ficou impossibilitada de publicar detalhes do processo Lieven-Pretorius e a publicidade, que Thomas tanto temia, foi evitada.

De certa forma, ele havia alcançado o seu objetivo: Walter Pretorius, aliás, Robert E. Marlock, estava arruinado, para sempre. Perante a corte, ele foi como uma trêmula carcaça.

Durante o processo os acusados não se dirigiram uma única palavra. Ouviram as sentenças sem fazer qualquer comentário. Depois, Thomas fixou, sorrindo, o seu ex-sócio. Para Robert E. Marlock, esse sorriso foi insuportável. Ele virou o rosto.

Thomas foi liberado no dia 14 de maio de 1954. Bastian o esperava diante da porta da prisão. Partiram imediatamente para a Cote d’Azur e Thomas fez uma longa cura de repouso em Saint-Jean-Cap-Ferrat.

Thomas Lieven só regressou à Alemanha no verão de

  1. Instalou-se em Düsseldorf, em sua bela casa da Avenida Cecile.

Quanto às suas novas aventuras, até o seu encontro com a bela Hélène de Couville, nós já as relatamos no princípio desta narrativa.

Thomas só tornou a ver a bela Hélène na hora do café. Ela estava pálida e agitada. Tinha grandes olheiras.

- Poderá perdoar-me? - perguntou ela.

- Farei todo o possível, querida menina - disse ele, com doçura.

- E... e... trabalhará para nós?

- Também farei o possível.

Ela soltou um brado de alegria, saltou-lhe ao pescoço e derrubou os ovos quentes.

- É claro que imporei minhas condições. Não quero ser engajado por você nem pelo seu superior, o coronel Herrick, mas somente pelo chefão do FBI.

- Por Edgar Hoover? - disse ela rindo. - É engraçado, porque ele quer mesmo falar com você. Temos ordens para levá-lo para Washington.

E assim é a vida!

No dia 23 de maio de 1957, Thomas Lieven estava sentado no restaurante do aeroporto de Reno-e-Meno. Estava um tanto inquieto. Seu relógio de repetição indicava seis horas e vinte. O Superconstelation que o levaria a Nova York decolaria às quinze para as sete. E aquele tal agente chamado Faber ainda não chegara.

Foi o coronel Herrick, por ocasião do embarque de Thomas, em Zurique, que mencionou esse tal agente Faber. ”Faber”, disse ele, ”o levará à presença de Edgar Hoover.”

E agora esse Faber não chegava. Thomas lançou um olhar raivoso para a entrada do restaurante.

Nesse instante, uma jovem mulher passava pela porta. Thomas deixou escapar um suspiro. Uma onda de calor e um formigueiro percorreram o seu corpo.

A mulher vinha em sua direção. Usava um casaco vermelho, sapatos vermelhos e uma boina vermelha, sobre a cabeleira negro-azulada. Sua boca era grande e vermelha, seus olhos grandes e negros, a pele muito clara. O coração de Thomas batia que parecia que ia estourar. ”Não, não”, pensou ele. ”Piedade. Isso não pode ser. É Chantal que se dirige para mim, minha querida Chantal, a única mulher que eu realmente amei. Mas ela está morta, meu Deus. Foi assassinada em Marselha...”

A jovem aproximou-se de sua mesa. Thomas levantou-se, sentindo o suor correr pelas costas. Ali estava ela, ao alcance de sua mão.

- Chantal... - gemeu ele.

- Então, Thomas Lieven - disse a jovem com a voz rouca de grande fumante -, tudo bem?

- Chantal... - balbuciou ele, novamente.

- Como?

Ele recobrou o fôlego. Não, não era ela. Evidentemente não era ela. Que tolice! Ela era menor, mais delicada e vários anos mais moça. Mas a semelhança, essa fantástica semelhança...

- Quem é a senhora? - perguntou com esforço.

- Meu nome é Pamela Faber. Vou viajar com o senhor. Peço que me desculpe o atraso: o meu carro teve um enguiço.

- A senhora é Faber? - Thomas ainda estava completamente tonto. - Mas... mas o coronel Herrick faloume de um homem.

- O coronel Herrick não me conhece. Falaram-lhe de um agente e por conseguinte ele pensou que fosse um homem. - Abriu um largo sorriso. - Venha, Herr Lieven. O nosso avião está pronto para partir.

Ele a olhou fixamente, como se ela fosse uma aparição. E Pamela Faber era bem isso: uma recordação doce e melancólica; algo que surgia do passado, do longínquo reino dos mortos.

A seis mil metros de altura, sobre o Atlântico, eles passaram a maior parte da noite conversando, em voz baixa, como se fossem velhos conhecidos.

A proximidade de Pamela fazia Thomas ficar sentimental. Por que razão esta mulher o emocionava tanto? Unicamente porque se parecia com Chantal? De onde lhe vinha essa impressão de a conhecer há muito tempo, de estar ligado a ela por uma eternidade?

Pamela contou que seus pais eram alemães mas que ela nascera nos Estados, Unidos. Desde 1950 trabalhava para o Serviço de Informações americano. Como tinha chegado a isso? Pamela ergueu os ombros.

- Suponho que tenha sido pelo gosto das aventuras - respondeu com sinceridade. - Meus pais já morreram. Tinha vontade de viajar, de ver outros países, de viver, enfim.

”Viver”, pensou Thomas. ”Ver países estrangeiros. Os pais já morreram. Se perguntassem a Chantal por que ela se tornara uma aventureira, ela teria respondido da mesma forma. Chantal, sempre Chantal. Mas, também, por que esta mulher se parece tanto com ela?”

- Mas agora, já estou farta, sabe. Essa vida não foi feita para mim, eu me enganei. A não ser que eu já esteja muito velha.

- Que idade tem?

- Trinta e dois anos.

- Então? - disse ele, pensando nos seus quarenta e oito anos.

- Gostaria de parar. De casar-me. Ter filhos, um lar e cozinhar para a família.

- A senhora... gosta de cozinhar? - perguntou Thomas, com voz rouca.

- É a minha paixão. Por que está me olhando desse modo, Herr Lieven?

- Hum... por nada... por nada!

- Mas os serviços secretos nos fecham numa ronda diabólica, da qual não se pode escapar. Parar? Qual de nós pode parar? O senhor pode? Ninguém. Ninguém consegue permissão para parar...

O encantamento que se apoderou de Thomas Lieven durante aquela noite não mais o deixou. A magia só fez aumentar e Thomas deixou-se envolver e mergulhar num mar de nuvens, de delícias e perfumes embriagadores.

Em Nova York tomaram outro avião para Washington. Ele agora observava Pamela com um olhar perscrutador, com interesse quase clínico. Ela tinha a honestidade de Chantal, seu bom caráter, sua coragem. Tinha, também, o lado felino de Chantal, a sua selvageria e sua força. Mas ela era mais educada e mais inteligente. ”Por que fico triste, cada vez que a olho?”, perguntou Thomas a si mesmo.

Edgar Hoover, o sexagenário chefe do FBI, recebeu Thomas em seu gabinete, em Washington. A primeira entrevista durou apenas alguns minutos. Era um homem forte, com olhar inteligente, mas sempre impregnado de certa melancolia. Hoover, muito cordialmente, disse que Thomas era bem-vindo.

- Aqui não se pode falar tranqüilamente - disse ele. - Mas tenho uma idéia. Miss Faber, o senhor e eu iremos passar um bom fim de semana. Tenho uma casa de campo, não muito longe daqui.

A casa de campo de Edgar Hoover era no Estado de Maryland e dominava uma cadeia de colinas harmoniosas e cobertas de árvores. Na região, havia várias outras casas confortáveis e do mesmo estilo. A casa de Hoover tinha belos móveis antigos.

No sábado, pela manhã, enquanto tomavam café, o chefe do FBI esfregou as mãos.

- Para o menu de hoje, proponho um belo peru. Ainda não estamos na melhor época, mas vi alguns bem novos, na aldeia. Daqui a pouco irei buscar um. Vou trazer, também, airelas.

- Airelas?

Thomas franziu a testa.

Nessa manhã, Pamela vestia uma camisa de lenhador e blue-jeans, o que lhe dava um aspecto ainda mais excitante.

 

               MENU

         CONSOMMÉ

         PERU RECHEADO COM TRUFAS

         LEMON SPONGE CAKE

 

Maryland, 25 de maio de 1957

Thomas Lieven cozinha para a América e toma a decisão de morrer.

Peru recheado com trufas - Use cento e cinqüenta gramas de porco magro, cem de carne de vitela, duzentos gramas de toucinho fresco, o fígado do peru e cento e vinte e cinco gramas de fígado de ganso cru. Passe tudo no moedor e prepare o recheio, acrescentando miolo de pão umedecido e duas gemas. Junte ao recheio a casca, bem picada, de duas trufas, as próprias trufas cortadas em pedaços, cento e vinte e cinco gramas de fígado de ganso ligeiramente frito na manteiga e depois cortado em pequenos pedaços, sal, outros temperos e um pouco de vinho madeira.

Recheie o peru, salgue e cubra-lhe o peito com fatias finas de toucinho, que se retiram meia hora antes de acabar de assar, a fim de que a pele adquira cor dourado-escura.

Coloque o peru, de lado, em um pouco de água a ferver. Vire e molhe freqüentemente. Somente durante os últimos trinta minutos coloque a ave de peito para cima.

O tempo para cozinhar depende do tamanho da ave.

Pode-se utilizar o recheio de trufas somente para o papo e nesse caso usa-se para rechear o corpo uma composição mais simples, substituindo o fígado de ganso por fígado de vitela.

Como guarnição use milho em conserva, passado na manteiga.

Pode-se servir juntamente um molho de airelas (airelles) ou de cranberry.

Sirva com a seguinte salada: Corte, em pequenos cubos, maçãs, laranjas, e céleri-raves (ou nabiças) cozidas. Misture com maionese e coco ralado.

Lemon sponge cake - Duas xícaras de açúcar, seis ovos, meia xícara de água quente, duas coIheres das de sopa de suco de limão, a casca de um limão raspada e duas xícaras de farinha de trigo.

Bata bem as gemas dos ovos, acrescente o açúcar, o suco e as cascas de limão, a farinha e por fim as claras batidas em neve.

Coloque numa forma, leve ao forno médio e deixe assar durante quarenta a cinqüenta minutos.

Pode-se servir quente ou frio, acompanhado de uma calda de frutas.

- É assim que nós comemos peru em nosso país, Herr Lieven - explicou ela, sorrindo.

- Que horror! Eu sempre preparo o peru...

-...Com um recheio, não é? - disse Pamela sacudindo a cabeça em sinal de aprovação. - Minha mãe fazia o mesmo. O recheio era feito com o fígado do peru e fígado de ganso, bem picado...

-...De vitela, de toucinho e gemas de ovos - interrompeu Thomas, agitado.

- Depois trufas - é preciso retirar a película e picar as trufas - e miolo de pão.

-...O toucinho deve ser magro.

Os dois calaram-se ao mesmo tempo e enrubesceram.

- Escutem aqui - disse Hoover às gargalhadas -, vocês dois se completam admiravelmente bem. Não acha, Herr Lieven?

- Sim - disse Thomas. - Estava justamente pensando nisso.

Duas horas depois, estavam os dois na cozinha. Pamela ajudou Thomas a limpar e preparar a ave e a confeccionar o recheio. Quando ele queria pimenta-do-reino, ela já estava com a pimenteira na mão. Quando ele verificava que o recheio estava muito mole, ela já tinha, à mão, o miolo de pão passado no moedor.

”É incrível”, pensava Thomas. ”É de embasbacar.”

- Vamos cobrir o peito com toucinho - disse Pamela -, era assim que minha mãe fazia sempre.

- A sua mãe cobria o peito com toucinho fresco? - perguntou Thomas radiante. - A minha também. E ela deixava ficar o toucinho até meia hora antes de o peru estar assado.

- Claro, é para que o peito não fique seco. Thomas levantou o uropígio da ave enquanto Pamela

cosia a abertura natural, pela qual haviam introduzido o recheio no interior da carcaça do peru. Hoover assistia à cena.

- O senhor deve imaginar, Herr Lieven - disse ele lentamente -, que nós não o trouxemos aos Estados Unidos unicamente porque é um bom cozinheiro.

- Mas? - perguntou Thomas fazendo girar o peru entre as mãos.

- Mas, porque o senhor conhece Dunya Melanine. Thomas deixou cair o peru sobre a mesa.

- Calma - disse Pamela.

- Desculpem - disse Thomas apanhando a ave. Onde... onde está essa senhora?

- Em Nova York. Ela era sua amante, não? Thomas sentia pesar sobre ele o olhar de Pamela.

Nervosamente ele fixava a ave.

- Sim... isto é... Ela julgava estar apaixonada por mim.

Hoover levantou-se. A sua expressão tornara-se séria.

- Sabemos - disse ele - que uma poderosa organização de espionagem russa trabalha em Nova York há bastante tempo. Não. conhecemos seus métodos de trabalho e ignoramos quem faz parte dela. Mas, há três meses, um dos membros dessa organização entrou em contato com a nossa embaixada em Paris: um tal Morris. É o último amante conhecido da Dunya Melanine.

Thomas colocou cuidadosamente o peru sobre a mesa.

- Continue, Mr. Hoover - disse ele em tom amável. - Prometo fazer o melhor que possa. Mas, sob uma condição.

- Qual é?

Thomas contemplou o melancólico chefe da contraespionagem. Contemplou o peru apetitoso. Contemplou Pamela, com suas mãos úmidas, e manchadas, seu rosto esfogueado, bela e desejável.

- A condição - disse Thomas - é que o senhor me permita morrer logo que eu cumpra a missão.

Na madrugada de 21 de novembro de 1957, crianças que brincavam na praia do porto de pesca de Cascais, perto de Lisboa, encontraram conchas multicores, estrelas-do-mar, peixes meio mortos e um homem completamente morto.

O homem estava deitado de costas. Seu rosto exprimia surpresa e seu corpo vestia uma roupa de lã cinzenta, excepcionalmete elegante, embora ensopada de água do mar.

O morto usava sapatos e meias pretas, camisa branca e gravata preta. Na região do coração a camisa tinha um buraco circular e uma grande mancha de sangue. Era evidente que uma bala de grosso calibre havia mandado o defunto dessa vida para a outra que alguns julgam melhor.

Tendo descoberto o cadáver, as crianças fugiram, aos berros. Cinco minutos mais tarde chegaram pescadores e suas mulheres. Nervosos e agitados, cercaram o corpo.

- José, vê se este senhor tem um passaporte - disse um velho a seu filho.

José ajoelhou-se perto do morto e revistou-lhe os bolsos. O senhor tinha quatro passaportes.

- Eu conheço esse sujeito! - disse outro velho. Contou, então, como tinha participado, em setembro

de 1940, havia dezessete anos, e mediante boa paga, do rapto de um homem elegante, efetuado por agentes alemães. Naquela época, o velho era o piloto de um barco de pesca.

- Os alemães o chamavam de Negociante Jonas - disse ele.

- Vê lá, José - disse o outro velho -, se o senhor tem um passaporte com o nome de Jonas. - O senhor tinha um passaporte com o nome de Emil Jonas, negociante em Rüdesheim.

- É preciso avisar a polícia, imediatamente - disse José.

- Escreva, senhorita - disse à sua secretária o comissário Manoel Vayda, da Delegacia Criminal de Lisboa. Ditou: - ”No que diz respeito ao cadáver encontrado na praia de Cascais, trata-se de um indivíduo do sexo masculino, entre quarenta e cinco e cinqüenta anos de idade. O laudo anexo do médico legista conclui que a morte foi causada pelo projétil de um revólver militar americano, calibre nove milímetros. Na roupa do morto”... está me seguindo, senhorita?... ”foram encontrados: oitocentos e noventa e um dólares e quarenta e cinco centavos, duas notas de despesas com cabeçalho de estabelecimentos americanos, uma conta do Hotel Waldorf Astoria, de Nova York, uma carteira de chofer alemã com o nome de Thomas Lieven, um velho relógio de ouro, de repetição, e quatro passaportes: dois passaportes alemães com os nomes de Thomas Lieven e Emil Jonas, e.dois passaportes franceses com os nomes de Maurice Hauser e Jean Leblanc. As fotografias de Jean Leblanc ou Emil Jonas dos arquivos da Polícia Judiciária correspondem exatamente às que aparecem nos quatro passaportes. De acordo com o que se lê acima deve-se concluir que se trata dos restos do agente secreto Thomas Lieven, de quem tanto se falou nos últimos anos. Não há dúvida de que o defunto foi vítima de represália organizada por uma rede rival. Os serviços competentes estão ativamente empenhados em esclarecer o caso”. Que asneira! Como se alguma vez a morte de um agente secreto tivesse sido esclarecida. O assassino já estará muito longe. Escute aqui, senhorita, não está um pouco tonta? Por que diabo está tomando nota do que acabo de dizer?

”A vida do homem, nascido da mulher, é breve e cheia de tropeços” - recitou o padre diante da sepultura aberta.

Era o dia 21 de março de 1957, às dezesseis e trinta. A autorização para o enterro chegara com certo atraso.

Nesse dia, chovia em Lisboa e a temperatura era fresca. As pessoas que acompanhavam o enterro sentiam frio. Havia uma única mulher entre os homens que assistiam à cerimônia. Os homens pareciam ser o que eram: da mesma profissão. O ex-major Fritz, da ex-Circunscrição Militar de Colônia, estava de cabeça baixa. A seu lado, o agente britânico Lovejoy, amarelo como um marmelo, espirrava constantemente. O espião tcheco, Marek, tinha uma atitude de recolhimento. Os coronéis Débras e Siméon, da contra-espionagem francesa, pareciam meditar. O coronel Erich Werthe e o pequeno major Brenner estavam tristes. Ao lado do padre estava Pamela Faber, a agente americana que tanto lembrara a Thomas a imagem de Chantal Tessier, seu falecido amor.

- Que a terra lhe seja leve, Thomas Lieven. Amém - disse o eclesiástico.

- Amém - disse a estranha assistência.

Todos eles tinham conhecido Thomas Lieven. Todos tinham sido embrulhados por ele.

Agora, os seus respectivos chefes tinham-nos encarregado de verificar se aquele patife estava realmente morto. Graças a Deus, ele estava, pensaram esses cavalheiros.

O túmulo foi fechado. Cada um dos antigos colegas de Thomas Lieven jogou um pouco de terra na cova. Depois, os operários colocaram, com esforço, a singela laje de mármore sobre a sepultura.

Os presentes separaram-se. Brenner e Werthe saíram juntos. Eles não conheciam o seu compatriota Fritz Loos, que, por sua vez, também não os conhecia. Isto porque Fritz Loos trabalhava para um Serviço de Informações alemão recentemente organizado, ao passo que Werthe e Brenner trabalhavam para outro Serviço de Informações alemão, também recentemente organizado.

Na porta do cemitério os diversos agentes tomaram táxis. Poderiam, mais simplesmente, ter tomado um pequeno ônibus, porque todos eles moravam no mesmo hotel: o melhor, naturalmente. As pátrias respectivas pagavam todas as despesas. De seus quartos, no Estoril Palace Hotel, eles telefonaram logo depois para a França, a Inglaterra, a Alemanha e mesmo para países atrás da cortina de ferro.

Quando conseguiram as ligações, pronunciaram frases absurdas, como, por exemplo: ”O tubarão amarelo foi servido esta tarde”.

O que significava: ”Examinei o corpo no necrotério. Trata-se realmente de Thomas Lieven”.

Foi assim que, na tarde de 24 de novembro de 1957, várias pastas, mais ou menos volumosas, foram arquivadas nos diversos quartéis-generais das redes de informação. Todas essas pastas tinham um título: Thomas Lieven. Agora acrescentavam-lhes uma cruz.

Enquanto os seus confrades estavam pendurados aos telefones, Pamela Faber descansava em seu quarto. Ela pedira uísque, gelo e soda. Tirara seus sapatos de salto alto e colocara suas pernas bem torneadas sobre um tamborete. Sentada, descontraidamente, numa poltrona, fumava um cigarro fazendo girar o copo de uísque entre as mãos.

Seus olhos negros brilhavam como duas estrelas e a sua boca parecia prestes a rir de alguma gigantesca e secreta brincadeira. Pamela Faber fumava, bebia e ria em silêncio, enquanto o crepúsculo de uma chuvosa tarde de outono descia, lentamente, sobre Lisboa. Subitamente ela ergueu o copo.

- A sua saúde, querido Thomas - disse ela em voz alta. - Que você possa ainda viver muito tempo para

mim.

A última vez que vimos Thomas Lieven ele estava na casa de campo do mais eminente criminalista americano. Foi no dia em que ele manifestou o surpreendente desejo de morrer uma vez terminada a sua missão.

- Ah! - disse Hoover friamente. - E como imagina que deve ser a sua morte?

Thomas explicou como imaginava.

- Para viver enfim, enfim, em paz é necessário que eu morra - concluiu ele.

Hoover e Pamela riram-se a bom rir, tanto pela frase quanto pelo projeto.

- Poderemos estudar os detalhes mais tarde - disse Thomas. - Digam-me alguma coisa sobre Dunya e esse Morris. Onde está ele?

- Em Paris - respondeu Edgar Hoover.

- Ora essa! Pensava que estivesse em Nova York.

- Ele estava em Nova York até algumas semanas atrás. Depois partiu para a Europa. Em Paris, hospedouse no Crillon. Foi nessa ocasião que ele perdeu a tramontana porque, na tarde de 4 de maio, deixou o hotel, atravessou a rua e entrou na embaixada americana. Pediu para falar com o embaixador e disse-lhe: ”Eu sou um espião soviético”.

- Eu sou um espião soviético. Posso dar informações sobre a mais importante rede de espionagem que existe nos Estados Unidos.

Eram dezessete e quarenta e cinco do dia 4 de maio de 1957.

- E quais são os seus motivos, Mr. Morris? - perguntou o embaixador americano.

- Preciso da sua ajuda - respondeu Morris.

Ele tinha um rosto grande e inchado, e usava grandes óculos com aro preto. - Recebi ordens para deixar os Estados Unidos e para voltar a Moscou via Paris. Sei o que isto significa. Eles vão me liquidar.

- Por que motivo?

- Porque... hum... acredito que falhei em minha missão - disse Morris num perfeito inglês americano. - Mulheres. Bebidas. Falar demais. E finalmente Dunya... para arremate final.

- Quem é Dunya?

- Dunya Melanine, ex-mulher de um oficial soviétivo. Em Nova York ela é, atualmente, recepcionista em um consultório médico. Eu estava ligado a ela mas brigávamos todo o tempo e todo mundo reparava. Então Mark me disse que eu deveria desaparecer imediatamente.

- Quem é Mark?

- Há dez anos ele é o chefe da maior rede de espionagem nos Estados Unidos.

Verificou-se que Victor Morris tinha várias identidades diferentes. Em realidade chamava-se Hayhanen e era tenente-coronel do Serviço de Informações soviético. De

1946 a 1952 esse homem tinha seguido, na Rússia, um treinamento que o capacitasse a ir para os Estados Unidos e trabalhar como espião sob as ordens do legendário, do fabuloso Mr. Mark.

Seis anos de treinamento! É preciso pensar no que isto representa: Hayhanen, aliás Morris, deveria esquecer totalmente sua antiga personalidade e constituir uma nova. Deveria aprender a ler, a falar, a comer, a andar e discutir como um homem nascido nos arredores de Nova York. Deveria dirigir um automóvel como um americano, dançar, escrever, fumar e embebedar-se como um americano.

O tenente-coronel Hayhanen transformou-se em um outro homem. É verdade que outro, antes dele, executara essa enorme tarefa: Mr. Mark, o melhor espião que o Kremlin jamais teve nos Estados Unidos e que, durante dez anos, escapou de ser descoberto.

Hayhanen, aliás Morris, passou em todas as provas. Munido de um notável passaporte falso, americano, apresentou-se no dia 14 de abril de 1952 a Mikhail Svirine, secretário da delegação soviética junto à onu, em Nova York.

Este último combinou um encontro clandestino e entregou-lhe dinheiro.

- Entre em contato com Mr. Mark - disse ele. - Nós não nos reveremos nunca mais. A partir deste instante o senhor não existe para mim da mesma forma que, oficialmente, Mr. Mark não existe.

- Como reconhecerei Mark?

- Ele telefonará para o seu hotel. Aqui está um cachimbo com esculturas. O senhor o usará quando Mark indicar um lugar para o encontro.

Três dias mais tarde, Mark, pelo telefone, combinou o encontro.

- Esteja às dezessete e trinta, precisamente, no lavatório do cinema rko, em Flussing.

O lavatório! Nenhum serviço de informações do mundo poderia prescindir de tal local. Morris lá estava, pontualmente, às dezessete e trinta. Um homem de aproximadamente quarenta e cinco anos saiu de uma cabina. Era alto, quase calvo, tinha um rosto cético e inteligente, orelhas grandes, lábios finos e usava óculos sem aro. Vestia roupa de flanela e uma camisa azul de artista, sem gravata. Examinou o cachimbo com estranhas esculturas que Morris fumava e sacudiu a cabeça, em sinal de aprovação.

- Bem na hora, Morris - disse ele...

-...e Mark lhe disse: ”Bem na hora, Morris” - contou Edgar Hoover a Thomas, que escutava com atenção.

Pamela Faber estava perto dele. Tinha um ar sério. Os três fumavam e bebiam café e conhaque francês. O jantar onde figurara o peru havia terminado.

Hoover acendeu um grande charuto e soprou uma nuvem de fumaça cheirosa.

- Deixem-me continuar - disse ele. - Morris e Mark não se entenderam bem. Desde o primeiro instante houve uma mútua antipatia. Mas eram obrigados a se arranjar de qualquer forma...

Realmente, tiveram que se aturar um ao outro.

Nessa tarde, no lavatório do cinema rko, Mark entregou dinheiro a Morris, a chave do código e instruções quanto à sua cobertura. Morris deveria abrir um estúdio fotográfico para evitar que as autoridades desconfiassem qual o seu modo de vida. Além disso, Mark indicou onde e de que maneira ele deveria colocar ou retirar mensagens secretas.

Essas mensagens - em microfilmes do tamanho de uma cabeça de alfinete - deveriam ser escondidas dentro de moedas, em velhos lenços de papel ou em cascas de laranja. Por meio de plaquetas magnéticas, era possível fixálas embaixo de bancos, em telefones públicos, latas de lixo ou caixas do correio.

- Tudo funcionava muito bem - contou Edgar Hoover. - Como eu já disse, Morris detestava Mark, mas isso não o impedia de executar, magistralmente, as suas missões.

- Que gênero de missões?

- Muito importantes, infelizmente - suspirou Hoover. - Depois das revelações de Morris, em Paris, não podemos ter ilusões. Graças à Organização Mark os russos têm informações de primeira ordem! Segundo suas próprias declarações, Morris foi, por exemplo, espionar no centro de mísseis, de New Hyde Park.

- E nunca houve um incidente, uma falha? - perguntou Thomas.

- Sim, uma vez. O que nos serviu, pelo menos, para comprovar que as confissões de Morris eram verídicas. Essa prova aqui está. - Hoover colocou uma moeda bastante usada, de cinco centavos, sobre a mesa. - Levante-a e deixe-a cair.

Thomas fez o que lhe pediam. A moeda partiu-se em dois. O seu interior era oco. Um minúsculo pedaço de filme estava colado no fundo de uma das metades.

- Este microfilme contém uma mensagem cifrada de Mark. Há quatro anos os melhores peritos do FBI procuram, em vão, decifrá-la.

- E como esta moeda chegou às suas mãos? - perguntou Thomas.

- Por mero acaso - respondeu Edgar Hoover. - Um garoto vendedor de jornais encontrou-a em 1953...

Numa noite quente de verão de 1953, James Bozart, um vendedor de jornais com o rosto cheio de sardas, descia, saltando quatro degraus de cada vez, as escadas de um grande prédio de apartamentos do Brooklin.

Subitamente - catrapus! - estatelou-se no chão. Seu dinheiro espalhou-se por toda parte. Praguejando entre dentes, James começou a catar suas moedas. Uma moeda de cinco centavos que apanhou pareceu-lhe estranha, ao toque; dava, realmente, uma impressão muito curiosa...

James virou a moeda entre os dedos. Ela se separou em dois pedaços. No interior de um dos pedaços James percebeu uma mancha escura. Ora essa! Poucos dias antes James vira uma fita de espionagem na qual mensagens em microfilme eram escondidas em cigarreiras. Seria um microfilme o que ele estava vendo?

James Bozart - hoje a nação americana lhe deve um favor enorme - apressou-se em levar a moeda à delegacia de polícia mais próxima. O comissário de serviço riu-se dele, mas o sargento Levon pensou de outra forma.

- Vamos agir, Joe - disse ele. - Mandaremos este negócio para o FBI. Quem sabe? Talvez falem de nós nos jornais.

Os jornais não falaram deles, pelo menos naquela época. Dois agentes do FBI foram visitar James em sua casa. Queriam saber onde e exatamente em que lugar ele caíra.

Fora no número 252 da Fulton Street, um enorme prédio de apartamentos. O andar térreo era ocupado por lojas, o primeiro e o segundo andares por escritórios comerciais. Daí para cima moravam celibatários, artistas e empregados modestos. Além disso, o próprio FBI tinha um escritório na enorme construção.

Os agentes do FBI investigaram, ao máximo, o modo de vida e as atividades de cada um dos locatários do 252 da Fulton Street. Os resultados foram negativos.

Os anos se passaram. A mensagem do microfilme continuou indecifrável e o seu autor permaneceu desconhecido. No decorrer dos anos de 1953 a 1957 os responsáveis pela segurança nacional estavam convictos de que o seu país estava cercado, atacado, por uma pavorosa rede de espionagem.

- Foi durante esses anos - informou Edgar Hoover, na sua pacata casa de campo - que Morris começou, pouco a pouco, a escorregar pela ladeira. Seu encontro com Dunya Melanine foi como um tiro de misericórdia. Ele batia nela, ela batia nele. Mark, sem dúvida, enviou um relatório a Moscou e ele foi subitamente chamado. Em Paris, procurou a embaixada americana para pedir ajuda e proteção e contou tudo que sabia.

- Não parece ser muita coisa, apesar de tudo - disse Thomas.

- Não é o bastante - disse Hoover -, mas já é alguma coisa. Acontece que, apesar de tudo que o misterioso Mark fez para que Morris não viesse a saber onde ele morava, Morris conseguiu segui-lo, uma vez. E sabe onde Mark mora, segundo Morris?

- Pela sua maneira de fazer a pergunta suponho que seja na Fulton Street, 252.

- Justamente - disse Hoover. - No edifício onde James Bozart quebrou a cara, há quatro anos, e onde achou a moeda.

Fez-se silêncio na sala. Thomas levantou-se e foi até a janela. Contemplou a vasta e harmoniosa paisagem.

- Um grupo de agentes meus, entre eles Miss Faber, examinou com o maior cuidado, mais uma vez, durante as últimas semanas, cada um dos moradores do prédio. O aspecto de Mark, tal como Morris o descreveu, corresponde exatamente ao do locatário mais popular do prédio. É um pintor que mora no último andar. Chama-se Goldfuss, Emil Robert Goldfuss. Cidadão americano. Reside no 252 da Fulton Street desde 1948. Continue, Miss Faber.

- Estamos seguindo Goldfuss há várias semanas - disse Pamela. - Utilizamos meia dúzia de carros do FBI equipados com radar, rádio e televisão. Goldfuss não pode dar um passo sem que o saibamos. Resultado: zero.

- Eu não compreendo - disse Thomas. - Se ele é tão suspeito de espionagem, por que não o prendem?

- Nós não estamos na Europa, Herr Lieven - disse Pamela, sacudindo a cabeça.

- Nos Estados Unidos - explicou Edgar Hoover só se pode prender um indivíduo se ele, indubitavelmente, cometeu um ato ilegal. De outra forma, nenhum juiz assinará o mandado de prisão. Suspeitamos que Goldfuss exerce espionagem. Mas não o podemos provar. E enquanto não tivermos as provas, nenhum juiz deste país consentirá em que o prendamos.

- Mas, Morris?

- Morris deu informações a título confidencial. Tendo família na Rússia, não concordará nunca em testemunhar publicamente contra Goldfuss.

- E uma busca clandestina?

- É claro que, na ausência de Goldfuss, poderíamos entrar no apartamento e revistá-lo. Estou certo de que encontraríamos um transmissor de ondas curtas e várias outras coisas provando que ele é um espião. Mas, nesse caso, nunca conseguiríamos uma condenação.

- Por quê?

- Porque os seus advogados inquiririam os nossos homens, testemunhas presas ao juramento prestado para incriminar o acusado. Supondo que tal material tenha sido conseguido sem uma ordem judicial de busca e apreensão, o juiz decidirá que tais provas são nulas e inexistentes.

- Então, como poderá ele ser apanhado?

- É justamente a pergunta que lhe estamos fazendo, Herr Lieven - disse Hoover sorrindo. - Foi para isso que o fizemos vir até aqui, o senhor, um velho amigo da senhora Dunya Melanine.

- Na Rússia se faz o chachlik com cebolas! - gritou o gordo Boris Roganoff.

- Na Rússia não se faz o chachlik com cebolas! - gritou Thomas.

Tremendo de raiva os dois homens se enfrentavam. Havia prenuncies de bofetadas, no ar. Era o dia 19 de junho de 1957 às treze e trinta. Fazia um calor terrível em Nova York. O drama do chachlik desenrolava-se na cozinha de um afamado restaurante russo da Rua 44. O gordo Roganoff era o proprietário do restaurante. Thomas começara a freqüentar a casa porque Dunya Melanine costumava almoçar no Chez Roganoff.

Ela trabalhava no bairro, no consultório de um tal dr. Mason.

O reencontro fora triste. Dunya, sempre cheia de paixão e de atrativos, estava desolada com o desaparecimento de Morris. Logo que falava nele, e ela sempre o fazia, seja espontaneamente, seja porque Thomas trazia constantemente o assunto à baila, desandava a chorar.

Thomas nada conseguia apurar. Por mais que Dunya falasse ele não adiantava um passo. Quando deixava Dunya, ia ver Pamela, que assegurava o contato com Hoover. Ela morava num pequeno apartamento em Manhattan. Thomas estava hospedado no Waldorf Astoria.

Os dias transcorriam e nada de novo acontecia. Goldfuss não cometia um só erro. Thomas constatou que Pamela manifestava uma irritação crescente, que não sabia explicar. Ele via Dunya constantemente e dava tratos à bola para descobrir o que quer que fosse para incriminar Goldfuss, uma pista qualquer que pudesse ser seguida. Mas a única coisa que Dunya fazia era chorar a ausência de Morris.

Na véspera, ela manifestara o desejo de comer chachlik. Thomas pusera, imediatamente, a carne de carneiro em vinha-d’alhos. Agora a carne estava no ponto e Thomas preparava-se para enfiá-la em espetos, com pedaços de toucinho, quando o gordo Boris Roganoff começou a cortar grandes pedaços de cebola. Estourou o escândalo e a discussão. Depois, os dois cavalheiros se reconciliaram. Mas esse dia parecia destinado às encrencas.

Quando Dunya finalmente chegou, atrasada, é claro, e sentou-se à mesa com Thomas Lieven, ela logo demonstrou estar de péssimo humor. Tinha dores de cabeça. Constantemente levava a mão à testa e fazia cenas a todo instante. Finalmente, não conseguiu dominar-se.

- Peço-lhe perdão. É uma loucura todo esse trabalho, eu já não agüento mais.

- Mas, que está acontecendo?

- Parece que pelo menos metade da cidade está se vacinando.

- Vacinando?

- É essa nova vacina Salk, contra a poliomielite. Você certamente já ouviu falar. Mas o pior não é a vacinação, e sim a papelada.

- Que papelada?

- Cada cliente tem que mostrar o registro de nascimento. Passaporte e carteira de identidade não servem, só o registro de nascimento.

- E por que isto?

- É a lei. Eu tenho que anotar o número do registro de nascimento e o nome do distrito ou município onde foi feito. São centenas e centenas. Vou ficar maluca. Vacinar, vacinar.

- Vacinar, vacinar - repetiu ele, com ar abobalhado, enquanto o coração dava saltos em seu peito.

Uma bela e jovem mulher, elegantemente trajada com um vestido amarelo, de verão, entrara no restaurante. Ele não acreditou no que via. Biruta. Ela ficou biruta. O FBI proibia terminantemente que dois agentes trabalhando no mesmo caso se encontrassem em público. Parecia, porém, que Pamela Faber não ligava para isso. Ela sentou-se de frente para Thomas, cruzou as pernas e começou a fixar Dunya.

Dunya percebeu logo o fato.

- Quem é?

- Co... como?

- Aquela mulher lá, que me olha todo o tempo. Você a conhece?

- Eu? Quem?

- Aquela de amarelo, com o rosto maquilado. Não tente enganar-me.

- Mas que diabo, eu nunca vi aquela mulher em toda a minha vida.

- Está mentindo! Você a conhece, e como!

A cena começou assim e durou toda a refeição. Quando chegou o café, a camisa de Thomas estava ensopada de suor. Quanto a Pamela Faber, continuava a fixá-los.

As coisas continuaram assim, durante todo o dia.

Quando Thomas voltou ao Waldorf Astoria, um tal Roger Ackroyd o esperava no hotel. Mr. Ackroyd era conhecido como um exportador que freqüentemente fazia negócios com negociantes europeus.

Herr Peter Scheuner - era o nome de Thomas - estava registrado como negociante. Os dois negociantes, que não eram nada disso, sentaram-se no bar deserto.

- Está cheirando a chamusco, Lieven - disse Ackroyd, em voz baixa. - Tem alguma novidade?

- Absolutamente nada.

- Merda! - disse Mr. Ackroyd. - Há vários indícios de que Goldfuss está prestes a arrumar as malas. Não sabemos para onde irá. Austrália? Ásia? África? Europa?

- Deveremos vigiar as fronteiras, os aeroportos, os portos...

- E como fazer isto? Não temos pessoal suficiente para fazer tudo isto. Para viajar, é claro que Goldfuss terá um verdadeiro falso passaporte.

Um ”verdadeiro” falso passaporte, Thomas bem o sabia, é um documento que passa por qualquer exame.

- Acredita que ele só tenha verdadeiros falsos passaportes?

- Isso não sei. Talvez não tenha tido tempo. Mas um passaporte ele certamente tem. E o passaporte é o suficiente. A não ser que aconteça um milagre, esse sujeito vai nos escapar.

Thomas suspirou profundamente. ”E para cúmulo do azar”, disse ele irritado a si próprio, ”ainda tenho essa colaboradora biruta, Pamela Faber. Espere um pouco, menina. Vou dar-lhe uma lição.”

- Você sabe o que merece? Uma boa surra! - gritou Thomas.

Ofegante, ele estava, nesta mesma noite, diante de Pamela, que vestia um peignoir preto e quase nada por baixo, no pequeno apartamento onde ela morava.

- Que raio de idéia foi essa de ir ao Roganoff?

- Tenho o direito de ir ao Roganoff quando quiser.

- Mas não quando eu estiver lá.

- Mas eu não sabia de nada - gritou ela.

- Você sabia muito bem.

- Pois então sabia.

- E por que foi lá assim mesmo?

- Porque queria ver essa sua Dunya, essa pombinha. Ele a olhou, com a boca aberta.

- E só por isso você arrisca estragar tudo? Toda a operação?

 

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         SALADA PRINTANIÈRE

         CHACHLIK COM ARROZ PILAF

         BANANAS FRITAS

 

Nova York, 19 de junho de 1957

Esta refeição contribuiu para a captura do maior espião soviético.

Salada printanière - Use um pequeno pepino descascado, rabanetes e ovos duros. Arrume numa saladeira. Polvilhe com sal, pimenta-do-reino, muito funcho picado, cebolinha e salsa. Misture tudo com uma generosa porção de creme azedo espesso.

Sirva sem perder tempo, a fim de evitar que o pepino solte o seu líquido.

Chachlik - Corte pedaços de filé de cordeiro de dois centímetros de espessura. Coloque-os para marinar, durante pelo menos doze horas, em azeite com um pouco de suco de limão, sal, cebola picada, grãos de genebra, um dente de alho esmagado e um pouco de vinho.

Enfie a carne, alternando com pedaços de toucinho, em espetos e grelhe de forma que fique rosada por dentro.

Arroz pilaf - Refogue a fogo brando uma grande cebola picada bem fino, em manteiga ou azeite de oliva. Junte o arroz seco e continue a refogar durante dez minutos, mexendo sempre e tendo o cuidado de não deixar tostar. Acrescente água fervendo (uma vez e meia o volume do arroz), salgue, cubra e deixe cozinhar, a fogo bem brando, durante trinta minutos. Se possível, coloque a panela sobre uma placa de amianto para evitar o fogo direto. Bananas fritas - Descasque bananas maduras, mas de consistência firme. Frite-as, rapidamente, em manteiga. Derrame na frigideira um pouco de mel e rum e vire as bananas diversas vezes e molhe-as com a calda. Sirva imediatamente em pratos aquecidos e polvilhados de amêndoas ou pistaches picados.

- Pare de gritar. Parece que você está terrivelmente caído por aquela mulher.

- Cale-se ou leva umas palmadas.

- Experimente, se for capaz.

- Espere só - disse ele, precipitando-se para ela. Com um hábil golpe de judô a agente o fez cair de

costas sobre o tapete. Ela fugiu às gargalhadas. Ele se levantou e foi em sua perseguição. Alcançou-a no quarto de dormir. Travou-se breve luta. Caíram ambos sobre a cama. Esperneando e gritando ela se viu, subitamente, deitada sob os joelhos de Thomas.

- Largue-me... largue-me... eu o mato.

O peignoir abriu-se. Realmente, Pamela tinha pouca coisa por baixo dele. Thomas não teve dó e aplicou-lhe fortes palmadas. Ela se virou e tentou mordê-lo.

”É como Chantal”, pensou ele, sentindo um enlanguescimento e o sangue pulsar nas têmporas, ”exatamente como Chantal.” Subitamente ele caiu sobre ela. Ela o mordeu. Depois seus lábios se abriram e tornaram-se acariciantes. Ela prendeu-o em seus braços e os dois mergulharam na embriagadora doçura do primeiro beijo. Os contornos do quarto tornaram-se fluidos para os olhos de Thomas Lieven, o tempo perdeu qualquer significação.

Quando voltou a si, ele viu dois olhos cheios de amor.

- Eu estava tão enciumada - sussurrou Pamela -, tão terrivelmente enciumada da sua russa...

Subitamente olhou com grande interesse o braço de Pamela. Ele viu duas marcas redondas e claras de uma vacina. Empalideceu.

- Vacina- balbuciou ele.

- Que foi? - perguntou Pamela, que se dispunha a abraçá-lo.

- Vacina... - repetiu ele transtornado.

- Está ficando maluco?

- Goldfuss - disse ele absorto - sabe que está em perigo. Vai tentar fugir da América e voltar para a Rússia. Todos que embarcam para a Europa são obrigados a receber diversas vacinas. É a lei. E para vacinar-se ele tem que apresentar a certidão de nascimento para que o médico anote o número. - Era tal a sua agitação que Thomas começou a gaguejar. - A certidão de nascimento, e não o passaporte.

Seu falso passaporte é um verdadeiro falso passaporte, mas a sua certidão de nascimento será, também, uma verdadeira falsificação?

- Ele ficou louco! - disse Pamela empalidecendo. - Completamente louco.

- Absolutamente não. Porque no caso de Goldfuss apresentar, queira Deus que assim seja, uma falsa certidão de nascimento, poderemos, enfim, acusá-lo de um crime, prendê-lo e revistar sua residência.

- Thomas!

- Não me interrompa agora. Quantos médicos há em Nova York?

- Como, diabo, quer que eu saiba? Pelo menos uns dez mil.

- Pouco importa - disse Thomas, dando um soco na cama. - Mesmo que tenhamos que chamar todos os agentes do FBI. Mesmo que todos eles fiquem giras! É preciso tentar.

Na noite de 19 de junho de 1957, duzentos e setenta colaboradores do FBI foram mobilizados em Nova York. Foram encarregados de visitar, o mais rapidamente possível, os treze mil oitocentos e dez médicos que exerciam a sua profissão naquela metrópole de dez milhões de habitantes.

Cada um dos duzentos e setenta e sete tinha uma fotografia de um homem de aproximadamente quarenta e cinco anos, que tinha um rosto cético e inteligente, grandes orelhas, lábios finos e usava óculos.

A partir dessa noite, duzentos e setenta e sete homens munidos de duzentas e setenta e sete fotografias fizeram as mesmas perguntas um número incalculável de vezes: ”Conhece este homem, doutor? É um dos seus clientes? O senhor o vacinou recentemente?”

As mesmas perguntas foram feitas, no dia 20 de junho.

No Waldorf Astoria, um tal Peter Scheuner, homem de negócios, alemão, estava sobre brasas. De tempo em tempo o telefone chamava. Eram os homens do FBI que informavam, em código, que a operação prosseguia sem resultado. Cada vez Thomas repunha o fone no gancho, suspirando.

As coisas se modificaram, completamente, no dia 21 de junho, às catorze e trinta e cinco.

A campainha do telefone soou novamente.

- Zero - disse uma voz de baixo. Thomas deu um salto.

- Onde?

- 3145 Riverside Drive - respondeu a voz. - Doutor Wilcox.

Vinte minutos mais tarde, Thomas estava no pequeno consultório do dr. Ted Wilcox, médico de certa idade, clinicando num dos bairros mais pobres de Nova York. O dr. Wilcox tinha uma fotografia na mão.

- Lembro-me perfeitamente deste homem, principalmente porque pessoas bem vestidas são muito raras entre os meus clientes.

”Então”, pensou Thomas, ”você acabou mesmo cometendo um erro, você, o superagente soviético. Escolheu um médico que residisse o mais longe possível do seu bairro. Eu compreendo por quê. Mas foi um raciocínio errado.”

- Este homem veio ao meu consultório na tarde de

16 de junho, para ser vacinado. Eu lhe forneci um passaporte epidêmico internacional que se deve apresentar quando se pretende, por exemplo, viajar para a Europa.

Coxeando, o velho médico dirigiu-se ao seu fichário e procurou a data de 16 de junho.

- Ele se chama Martin Collins. Segundo a sua certidão de nascimento é um cidadão americano, nascido a 7 de julho de 1910, em Manhattan. O número de certidão é 32027/7/71897.

Às dezessete e quinze Thomas Lieven e um atlético agente do FBI obrigaram dois empregados do registro civil de Manhattan a trabalhar umas horas suplementares. Depois de uma longa demora, um deles voltou, cansado. Soprou a poeira que cobria uma ficha amarelada.

- Martin Collins... - resmungou ele. - Collins, Martin, que significa esta história toda? Os senhores disseram mesmo: 32027/7/71897?

- Sim - disse Thomas. - O funcionário levantou a cabeça.

- Escutem, senhores, o registro de nascimento número 32027/7/71897 foi feito em 4 de janeiro de 1898 no nome de uma tal Emilie Woermann, morta de pneumonia em 6 de janeiro de 1902, com a idade de quatro anos.

Thomas olhou para o homem do FBI.

- O nosso amigo está frito - disse ele em voz baixa.

Sobre a porta havia uma placa de cobre onde se lia:

EMIL ROBERT GOLDFUSS

A porta estava no último andar do enorme prédio da Fulton Street número 252. No dia 21 de junho, às dezenove e seis, dois homens estavam diante dessa porta. Um deles sacou um revólver e soltou a trava de segurança. O outro tirou do bolso um velho relógio de repetição, de ouro.

- Estranho - disse Thomas Lieven -, são apenas sete horas e eu estou com uma fome canina.

O homem do FBI bateu na porta, deu um passo para o lado e apontou sua arma.

A porta se abriu. Um homem magro apareceu no umbral. Vestia uma blusa azul de pintor e tinha uma palheta na mão. Sorriu de forma amável e simpática. Olhou para o íevólver do agente do FBI.

- De que se trata? - perguntou ele. - Uma brincadeira? Publicidade? Um presente?

- Mr. Goldfuss, ou Mark, ou Collins - disse o agente do FBI -, ou qualquer que seja o seu nome, está preso.

- Quem é o senhor?

- FBI.

- O senhor não me pode prender, cavalheiro - disse o pintor amavelmente. - Eu nada fiz contra a lei e o senhor não tem uma ordem de prisão.

- Sim, sim, Mr. Goldfuss - disse Thomas -, nós temos um mandado.

Ele aproximou-se e também sorriu.

- E o senhor quem é?

- Um amigo da casa - respondeu Thomas. - Quero dizer, do FBI. Acontece, Mr. Goldfuss, que o seu mandado de prisão já está pronto há dias.

Só faltava encontrar um bom motivo e preencher os claros. E nós encontramos o bom motivo: uma falsa certidão de nascimento...

Dois homens subiram rapidamente do andar inferior; dois outros desceram do sótão.

- Trouxemos estes amigos porque sabemos, evidentemente, que o senhor não é apenas um simpático falsificador de certidões de nascimento.

- Mas?

- Mas, sem dúvida, o melhor agente que a União Soviética jamais teve - disse Thomas. - E eu não tenho por hábito fazer elogios exagerados.

Mr. Goldfuss sorriu para Thomas. Os dois homens se olharam, em silêncio. Os seus olhares não vacilaram...

Procedeu-se a uma busca no atelier. Os homens do FBI encontraram a certidão de nascimento com o nome de Collins, documentos com o nome de Goldfuss, três mil, quinhentos e quarenta e cinco dólares em dinheiro, uma passagem com o nome de Collins de um navio que partiria para a Europa no dia 1.° de julho e um poderoso transmissor de ondas curtas Hallicrafter que aparecia, abertamente, entre dois quadros.

Os homens do FBI ajudaram Goldfuss a preparar sua pequena mala de mão. Thomas reparou que Goldfuss jogava alguns lenços de papel, visivelmente usados, numa cesta de papel. Dirigiu-se para a cesta e apanhou os lenços amarrotados. Goldfuss ficou lívido como um morto. Thomas desdobrou, cuidadosamente, os lenços. Descobriu pequenas manchas escuras, que pareciam sujeira de mosca.

- Hum! - fez Thomas.

Vinte anos de perigos e de experiência nos serviços secretos de vários países haviam aguçado suas faculdades de percepção. Não se tratava de sujeira de moscas...

Dois dias depois os americanos acordaram para ter a notícia da captura do mais perigoso agente russo de todos os tempos. Os microfilmes, que ele dissimulara em lenços de papel amarrotados, revelaram o seu complicado código, seu verdadeiro nome e a sua história.

O homem que durante dez anos exercera, com toda a tranqüilidade, a espionagem nos Estados Unidos, sem despertar suspeitas, era um coronel do Serviço Secreto soviético. Chamava-se Rodolphe Ivanovitch Abel.

Na noite de 23 de junho de 1957, os teletipos espalharam a notícia de sua prisão, e de sua importância, para os jornais dos cinco continentes do mundo. Durante as semanas que se seguiram, as proezas do coronel Abel tiveram a honra de figurar na primeira página de todos os jornais. O mundo ficou sabendo muita coisa sobre ele, mas não tudo.

Não soube, por exemplo, nada sobre um almoço de um homem alegre com dois senhores muito austeros. Isso se passou no dia 17 de agosto de 1957, num luxuoso chalé, nas românticas colinas cobertas de árvores do Estado de Maryland.

- Por que motivo esses ares tão sérios, senhores? - perguntou Thomas, com ar jovial.

Ele olhou para Hoover, o chefe da polícia federal americana. Depois passou a olhar para James B. Donovan, um quadragenário com a pele queimada de sol e cabelos prematuramente encanecidos. No futuro julgamento de Abel, Donovan seria o defensor do mestre espião.

Thomas chegava da cozinha. Trazia uma bandeja com uma grande frigideira, fogareiro a álcool e outros utensílios. Depois de colocar a bandeja sobre uma pequena mesa e acender o fogareiro, ele respondeu à própria pergunta.

- Está bem claro. Presumo que toda essa sisudez seja provocada pela lembrança dos tempos de guerra, quando cada um dos senhores dirigia uma organização de espionagem concorrente e tinha o hábito de brigar constantemente, hein?

Aparentemente, ele acertara no alvo. Hoover deixou escapar uma espécie de grunhido e Donovan começou a tossir. Realmente, Donovan dirigira durante a guerra a famosa oss. Em várias ocasiões, elé e os seus homens tiveram desentendimentos com os homens dé Edgar Hoover.

Thomas colocou a frigideira sobre o fogareiro e continuou de bom humor.

- Queiram sentar-se, senhores. Prevendo o nosso estado de espírito, tomei a liberdade de inventar um prato que acalma os nervos, anima o espírito e estimula a alegria.

Thomas agitou a frigideira sobre a chama. Na frigideira estavam rins de vitela, cortados em cubos e já ligeiramente assados.

- Que este almoço nos aproxime de nosso objetivo!

- Que objetivo? - resmungou Donovan, desconfiado.

- Ajudar - disse Thomas com ar circunspecto, enquanto derramava conhaque sobre os rins - ao seu cliente e também aos Estados Unidos da América.

- Abel - disse Hoover olhando para Donovan - irá para a cadeira elétrica. Não pode haver nem uma sombra de dúvida. Temos mais provas contra ele do que seria necessário.

- Gostaria de saber - disse Donovan erguendo os ombros - como o senhor conseguirá provar que o meu cliente é um espião soviético.

- Que lástima! - disse Thomas sacudindo a cabeça.

- Perder um talento dessa qualidade. É pena. Verdadeiramente é uma pena.

- Pena por quê?

- Pensar que um homem como Abel vai ser torrado na cadeira elétrica.

- O senhor seria muito amável, se controlasse o seu vocabulário, Herr Scheuner. Pelo menos antes da refeição.

- Peço desculpas! Mas realmente fico desolado. Abel não tem apenas talento. É um gênio.

- Ora, vamos, vamos...

- Porque ”vamos, vamos”? Permita que eu o lembre, Mr. Donovan, de que, durante a guerra, o senhor tentou trabalhar na Suíça para a oss. Em seis meses, apenas, os suíços o desmascararam e mandaram embora. E Abel? Trabalhou dez anos nos Estados Unidos sem que o prendessem.

- Um momento! - disse Donovan vagueando o olhar de Thomas para Hoover, de Hoover para Thomas.

- Sinto que há mouro na costa. Aparentemente o senhor não está em condições de fazer-me uma proposta final. Por isso, está esvoaçando em torno do assunto. Vamos logo, de que se trata?

- E agora o champanha - disse Thomas Lieven, derramando o vinho borbulhante na frigideira quente.

Um delicioso e apetitoso perfume espalhou-se no ar.

- Ah, ah! - fez Hoover.

Ele recostou-se. Até a fisionomia tensa de Donovan acalmou-se. Ele sorriu, ligeiramente.

- Estão vendo? - disse Thomas. - O champanha já está agindo. - Continuando a trabalhar, ele prosseguiu em sua dissertação. - O FBI guardará em segredo as provas mais esmagadoras contra Abel. Abel não será condenado à morte.

- Mas?

- Perdão? - disse Thomas erguendo as sobrancelhas como que indicando reprovação. - O senhor me surpreende, Mr. Donovan. Por que ”mas”? O senhor prefere que o seu cliente seja executado?

- Não me atribua palavras que eu não proferi! Foi Hoover quem achou que Abel iria para a cadeira elétrica.

- De acordo com a justiça, sim-- disse Thomas, servindo os rins. - Mas, se admitirmos que o FBI tenha planos pessoais a respeito do seu cliente...

- Então?

- Então existiriam, evidentemente, outras possibilidades quanto à sentença. Prisão perpétua, por exemplo. Ou trinta anos de trabalhos forçados. Vinte anos, dez...

- E as provas a que se referia Hoover?

- As provas podem ser dissimuladas. Pelo menos uma parte delas, a pior. Mas coma, pelo amor de Deus, Mr. Donovan! O rim está esfriando.

O advogado de cabeleira branca começou a comer, maquinalmente. Olhava para Thomas com os olhos semicerrados.

- E que vantagem haveria para os senhores? - perguntou ele mastigando.

Engasgou-se com a comida e tossiu. Thomas, bom samaritano, bateu-lhe nas costas.

- O senhor está vendo! Eu queria dizer logo, mas não tive coragem. Parecia-me pouco delicado fazer uma observação a uma alta personalidade como o senhor.

- F.... fazer observar, quê? - disse Donovan sufocado e tossindo.

- Que não se deve falar quando se come - disse Thomas com simplicidade. - Mas creio que tudo vai bem agora.

James B. Donovan colocou o talher sobre a mesa. Seus lábios pareciam um simples traço.

A sua voz era a de uum bloco de gelo, se admitirmos que um bloco de gelo possa falar, o que não acontece.

- Vamos parar de brincar de gato e rato - disse ele. - Estou perguntando: qual seria a vantagem para o FBI em esconder as provas mais esmagadoras e assim salvar a vida de Abel?

- O senhor não prefere responder, pessoalmente, a esta pergunta? - perguntou Thomas a Hoover.

Hoover rosnou algo ininteligível e curvou-se sobre o seu prato.

- Mas que coisa! - disse Thomas. - Sou sempre eu que devo responder às perguntas embaraçosas. Muito obrigado. Muito bem, Mr. Donovan, eis aqui. A vantagem do FBI seria conservar uma chance de poder, mais cedo ou mais tarde, salvar a vida de um agente americano.

- Um agente americano?

- Mr. Donovan, lamento muito ter de me intrometer nos meandros dos serviços de informações americanos, mas, afinal de contas, o senhor também esteve metido no negócio, não é? Quase ao fim da guerra o senhor contribuiu para organizar o serviço de contra-espionagem para vigiar a União Soviética. É exato?

James B. Donovan ficou calado.

- Não se trata de uma censura - disse Thomas, piscando o olho. - Afinal de contas é a sua função. Muito bem... afinal de contas o fato de ser justamente o senhor quem hoje defende um espião soviético nada tem de paradoxal, não é?

- Fui indicado pelo próprio tribunal, que desejava, assim agindo, demonstrar a sua imparcialidade.

- Mas, por favor! Também não estava fazendo qualquer censura - disse Thomas com ar indulgente.

- Eu suponho - disse Donovan com ar ofendido - que todo país tem o seu serviço de informações.

- Mas é preciso não ser apanhado - murmurou Hoover, sempre inclinado sobre o prato.

- Exatamente - continuou Thomas. - É bem verdade que eu já antevejo o dia, é um simples problema de cálculo das probabilidades, em que os russos peguem um agente americano. Pode acontecer, não é? Um pouco mais de rim, cavalheiros? - Ele os serviu com gestos elegantes.

 

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             RINS DE VITELA AO CHAMPANHA

             SOLHA AO FORNO

             CREME CHANTILLY COM ABACAXI

 

Maryland, 17 de agosto de 1957

Os rins ao champanha de Thomas agem até sobre os big shots.

Rins ao champanha -- Limpe dois rins de vitela, retire-lhes a pele e a gordura. Corte-os em cubos e faça-os dourar, durante três minutos, em manteiga muito quente. Salgue e polvilhe com pimenta-do-reino.

Traga a frigideira para a mesa e coloque-a sobre um fogareiro de álcool. Molhe com um copo pequeno de conhaque e flambe.

Apague as chamas com champanha.

Acrescente cem gramas de cogumelos picados e fritos em manteiga e uma colher de salsa picada.

Aqueça novamente mas sem deixar ferver.

Reparta em porções sobre pedaços de paté brisé ou folhada. Solha ao forno - Uma vez o peixe limpo, esfregue-o com sal e pimenta-do-reino. Molhe com suco de limão e deixe repousar durante uma hora.

Enxugue bem e cubra, dos dois lados, com fatias bem finas de toucinho. Coloque o peixe em prato resistente ao calor, molhe com manteiga derretida e leve ao forno. Deixe cozinhar durante meia hora, sem virar, mas molhando constantemente com o líquido que escorre para o prato.

Acrescente, pouco a pouco, creme azedo adicionado de meia colher das de café de maisena. Sirva no prato em que foi assado.

Creme chantilly com abacaxi - Forre uma grande compoteira rasa com biscoitos (champanha ou palitos franceses) e molhe-os bem com suco de abacaxi. Cubra com uma espessa camada de creme chantilly pouco açucarado. Enfeite a superfície com muitos pedaços de abacaxi e cerejas em conserva. Sirva gelado.

- Eu imaginei, por exemplo, que certos aviões, especialmente equipados, voem sobre um certo país e que, durante seus vôos, fotografem algo mais, além de nuvens.

- Trata-se, é claro, de um boato absurdo - disse Hoover, sem erguer a cabeça.

Donovan, subitamente, redobrou a atenção.

- É claro que sim, evidentemente - respondeu Thomas, em tom claro. - E os protestos russos sobre a violação do seu espaço aéreo não têm o menor fundamento.

Hoover levantou a cabeça e piscou um olho.

- Em todos esses casos tratava-se de aviões meteorológicos que, acidentalmente, se desviaram da rota normal!

- Evidentemente -- disse Thomas. - Mas, que aconteceria se um desses... hum... pilotos meteorológicos fosse abatido?

- Eu conheço esses aparelhos - disse Donovan, lentamente. - A dca não os pode abater. Eles voam alto demais.

- O impossível pode tornar-se possível. Parece que já existem foguetes de extraordinária precisão. Supondo, portanto, que um tal foguete atinja, algum dia, nos céus soviéticos, um desses pilotos meteorológicos; que esse piloto sobreviva e seja levado a um tribunal; que se trate de um piloto que Mr. Hoover tenha prazer em rever... Não seria realmente uma pena que nessa ocasião Mr. Abel já tivesse deixado este mundo? Um cadáver não serve como base para trocas, cavalheiros.

- Realmente, Herr Scheuner - disse Edgar Hoover, com voz meio estrangulada -, o seu cinismo vai além de todos os limites.

- Queiram desculpar-me, senhores. Eu apenas fazia alusão a uma hipótese. Uma mera hipótese...

- E - perguntou Donovan, muito lentamente - se nenhum desses pilotos for abatido?

- Está vendo, Mr. Donovan - disse Thomas cordialmente -, estamos começando a nos entender. Nesse caso eu posso muito bem imaginar que Mr. Abel, por simples gratidão, se decida a mudar de lado e passar a trabalhar para os serviços americanos.

James B. Donovan fixou o olhar sobre Edgar Hoover.

- A sua opinião também é esta?

- O senhor ouviu o que Herr Scheuner disse. Nada tenho a acrescentar.

O rosto do advogado ficou cor de tijolo.

- Que pensa o senhor que eu sou, Herr Scheuner? Quem julga ser o meu cliente? Trata-se de uma proposta?

- Trata-se, unicamente, do produto da minha imaginação, Mr. Donovan - respondeu Thomas com ar modesto -, e nada mais.

- O meu cliente nunca aceitará uma proposta semelhante! - gritou James B. Donovan.

No dia 27 de agosto de 1957, um tal Peter Scheuner foi à prisão de Nova York. Estava autorizado, por altas esferas, a conversar a sós com Rodolphe Ivanovitch Abel. O diretor em pessoa acompanhou Scheuner, que aparentemente era uma pessoa muito importante, até o parlatório. A caminho, contou que o espião soviético já gozava da simpatia geral.

- Geralmente os vermelhos são maltratados pelos outros detentos, mas Abel não. - O diretor ergueu os olhos para o céu. - Posso dizer que ele é o predileto de todos. Tocou música para os presos, organizou um número de cabaré, estabeleceu um novo sistema de comunicações...

- Ele fez o quê?

O diretor sorriu, meio encabulado.

- O senhor não ignora que os detentos se comunicam entre si de cela para cela?

- Ah, sim - disse Thomas perdido nas lembranças sentimentais dos seus anos na prisão -, o velho e bom telégrafo pelas paredes.

- Abel explicou aos nossos detentos um novo sistema, infinitamente superior, que funciona cem vezes mais rápido.

- E como é isso?

- Prefiro não revelar. Direi apenas que o sistema utiliza circuitos elétricos.

- Com mil raios! - disse Thomas, erguendo as sobrancelhas.

”Durante a vida”, pensou ele, ”só se encontram os melhores associados quando já é tarde demais.”

Chegaram ao parlatório. Thomas entrou. Por trás de uma grade de finas malhas estava Rodolphe Ivanovitch Abel, elegantemente vestido. Com ar muito sério olhou para o visitante que se aproximava. O diretor fez um sinal aos guardas e saiu com eles. As pesadas portas de aço foram fechadas.

Separados pela grade, Thomas Lieven e o espião soviético Abel estavam frente a frente. Olharam-se longamente, em silêncio. Poder-se-ia ouvir uma mosca voar. Depois, Thomas Lieven começou a falar...

Não sabemos o que ele disse. Ignoramos, igualmente, o que respondeu Abel. Nem um nem outro jamais tocou no assunto. A entrevista durou quarenta e nove minutos.

O processo contra Rodolphe Ivanovitch Abel começou no dia 26 de setembro de 1957. O tribunal era presidido pelo MM juiz Mortimer Byers. As sessões eram, em sua maioria, públicas.

Astuciosamente, Abel soube assegurar-se da assistência de um dos melhores advogados americanos. Quando lhe disseram que escolhesse um defensor, ele declarou:

- Não tenho dinheiro. Os três mil, quinhentos e quarenta e cinco dólares que foram encontrados em minha casa não me pertencem. Por conseguinte, peço ao tribunal que me assegure um defensor.

É evidente que o tribunal escolheu um advogado que, ao mesmo tempo, além de não poder ser suspeito de qualquer simpatia pelo comunismo, fosse também um dos ases da profissão, isto é, um homem como James B. Donovan.

O processo adotou procedimentos especiais. O acusado tinha o direito de se locomover livremente no recinto do tribunal, de fazer suas refeições na cantina onde comiam os jurados e de conversar’com os jornalistas.

Por outro lado, o juiz Byers proibiu às trinta e oito testemunhas que entrassem na sala de julgamento antes de prestar suas declarações.

É preciso dizer que as testemunhas em questão não precisavam ter estado na sala de julgamento porque, desde a tarde do primeiro dia de debates, os jornais passaram a registrar, minuciosamente, tudo que se passava no tribunal.

Por motivos de segurança, os agentes do FBI e as pessoas expostas a qualquer perigo depuseram com os rostos cobertos. Usaram capuzes, com aberturas para os olhos e para a boca e pareciam representantes da Ku-Klux-Klan.

Thomas Lieven compareceu com o mesmo disfarce. Como todas as outras testemunhas mascaradas, ele tinha um número sobre o peito,

Eis aqui, segundo as minutas do processo, um extrato do seu interrogatório:

Byers - Número 17, o senhor assistiu à prisão de Abel. Queira descrever o seu comportamento.

Número 17 - Mr. Abel estava muito calmo. Foi durante a busca que ele deu sinais de histerismo.

Byers - Por quê?

Número 17 - Porque o rádio começou a funcionar no apartamento vizinho. Era Elvis Presley que cantava. Mr. Abel apertou os punhos sobre as orelhas. Ele gritou textualmente: ”É um veneno para os nervos. Esse tipo é um dos principais motivos por que desejo voltar para a Rússia”.

(Risos)

Byers - Silêncio na sala! Número 17, o senhor teve ocasião de falar com vários moradores do imóvel. Quais eram as suas impressões a respeito de Mr. Abel?

Número 17 - Excelentes, sob todos os pontos de vista. Todos o achavam extremamente simpático. No decorrer dos anos em que morou no edifício pintou retratos de muitos deles, inclusive de funcionários do FBI que lá trabalhavam.

(Rumores)

Byers - Ele pintou retratos de funcionários do FBI?

Número 17 - Uma meia dúzia. E com grande talento, meritíssimo.

Byers - Os autos demonstram que Abel tinha o aparelho emissor de ondas curtas que utilizava completamente a descoberto e visível em seu atelier.

Número 17 - É exato, meritíssimo.

Byers - E os agentes do FBI não o perceberam?

Número 17 - Sim. Alguns pediram explicações detalhadas sobre o funcionamento do aparelho. Eles tomaram Abel por um radioamador. Certa vez o aparelho começou a chamar quando Abel estava pintando um agente do FBI.

Abel transmitiu uma breve resposta. O agente do FBI perguntou: ”Quem era?” Abel respondeu: ”Quem pensa que poderia ser? Moscou, é claro”.

(Gargalhadas.)

Byers - Se tal coisa se repetir, farei evacuar a sala. Número 17, foi o senhor quem encontrou vários lenços de papel, velhos, nos quais Abel havia dissimulado minúsculos microfilmes. Um deles continha a chave de um código complexo. O senhor conseguiu decifrar a mensagem que o acusado redigiu pouco antes da sua prisão, sob a forma de numerosos grupos de quatro algarismos?

Número 17 - Sim, meritíssimo.

Byers - Qual era essa mensagem?

Número 17 (lendo) - ”Nossos melhores cumprimentos por seus esplêndidos coelhos. Não se esqueça de tratar da partitura de Beethoven. Fume o seu cachimbo mas segure o livro vermelho com a mão direita.”

Byers - Isto não é a mensagem em linguagem clara!

Número 17 - É verdade, meritíssimo. É o resultado da decifração. Aparentemente Abel teria codificado duas vezes as suas mensagens.

Byers - E a chave do segundo código?

Número 17 - Infelizmente, nunca foi descoberta, meritíssimo. (Gargalhadas. Movimentos e ruídos. O juiz fez evacuar a sala. A sessão foi interrompida às onze e trinta e quatro...)

O processo durou quase quatro semanas. Depois chegou o momento de o júri deliberar. Deliberou durante horas. Espectadores e jornalistas ficavam cada vez mais nervosos. Que havia para deliberar durante tanto tempo?

Era o dia 23 de outubro. Os jurados só voltaram à sala às dezenove e quarenta e cinco. Fez-se um silêncio mortal. Toda a assistência levantou-se.

- Senhor presidente do júri - perguntou o juiz -, chegaram a um veredicto?

- Sim, meritíssimo.

- Qual é ele?

- Segundo o nosso veredicto unânime, o acusado é culpado de todas as acusações imputadas.

Nem um só músculo se moveu no rosto de Rodolphe Ivanovitch Abel.

A sentença foi dada no dia 15 de novembro: trinta anos de trabalhos forçados e dois mil dólares de multa.

Trinta anos e dois mil dólares de multa para o maior espião russo de todos os tempos? Como era isso possível? Todo o país discutia a sentença benigna, mas isso durou pouco. Depois, como tudo na vida, o caso Abel caiu no esquecimento.

O acaso é caprichoso.

No dia 1.° de maio de 1960 um avião de reconhecimento americano, do tipo U2, foi derrubado pelos russos. ”Avião americano abatido por foguete russo...”, lia-se em todos os jornais. O piloto do aparelho chamava-se Francis G. Powers, tinha trinta anos, era casado e natural do Estado da Virgínia. O incidente ocorreu num feriado de grande tensão e pouco antes do início da conferência de cúpula, durante a qual Eisenhower, Kruschev, MacMillan e De Gaulle se preparavam para discutir a paz mundial. Os soviéticos usaram o pretexto para fazer fracassar a conferência, antes mesmo de seu início.

O piloto foi julgado por um tribunal militar, em Moscou. O procurador-geral Rudenko - o mesmo do processo de Nuremberg -- qualificou o crime de monstruoso, o que, entretanto, não o impediu de mostrar clemência em sua peroração: ”Levando em conta o arrependimento manifestado pelo acusado”, disse ele, ”não exigirei a pena de morte”. Rudenko pediu quinze anos de prisão. O tribunal mostrou-se ainda mais clemente: o piloto foi condenado a dez anos.

O pai do acusado, Oliver Powers, um honesto sapateiro, declarou aos jornalistas: ”Tenho esperança de que Kruschev agracie meu filho. Afinal de contas, ele próprio perdeu um filho na guerra contra os alemães, na qual os nossos soldados combateram, lado a lado, com os russos. Se ele não o puder agraciar, haverá talvez a possibilidade de trocá-lo por um espião russo que está preso nos Estados Unidos. Estou pensando no agente Abel...”

Na sua opinião, que irá acontecer?

Hein?

Após essa breve incursão pelo futuro, voltemos ao outono de 1957.

No dia 23 de outubro de 1957, o espião soviético Abel foi declarado culpado. No dia 25 de outubro, duas pessoas entraram no gabinete de Edgar Hoover, em Washington. Eram Thomas Lieven e Pamela Faber.

Hoover estava de bom humor e recebeu-os amavelmente.

- Que posso fazer por vocês?

- Cumprir a sua promessa - disse Thomas. - O senhor está lembrado de que pedi que me deixasse morrer, uma vez cumprida a minha missão?

- Lembro-me bem - disse Hoover lentamente.

- Ótimo - exclamou Pamela, entusiasmada. - Chegou o momento, porque, depois, nós queremos nos casar, o mais rapidamente possível.

Hoover mordeu os lábios.

- Manterei a minha palavra - disse ele. - Mas não pense que se trata de uma festa alegre, Lieven. É doloroso, muito doloroso.

- Para morrer, faz-se qualquer coisa - disse Thomas. - Além disso, ouvi dizer que há excelentes especialistas na Clínica Harper.

Evidentemente, a Clínica Harper tem outro nome. Mas sabemos que ela existe, sabemos onde está localizada e sabemos o seu verdadeiro nome.

- Muito bem. Tomarei as providências quanto à clínica. Desejo que você morra bem e que viva feliz, muito feliz, com Pamela. Mas fique sabendo que a sua morte pode exigir algumas semanas. Será preciso que encontremos um cadáver. E um cadáver parecido com você não se encontra todos os dias.

- Mr. Hoover, por favor - disse Thomas. - Num país tão grande como os Estados Unidos não será difícil encontrar a mercadoria adequada.

No dia 27 de outubro, Pamela Faber acompanhou Thomas à Clínica Harper, um estabelecimento isolado, cercado por altos muros, vigiado, noite e dia, por agentes do FBI, e que está situado em alguma parte dos Estados Unidos.

Deram a Thomas um quarto confortável, com janela abrindo para um grande parque.

Pamela ficou no quarto vizinho. Logo após a chegada ela foi visitá-lo. Levaram duas horas para dizer bom-dia.

- Ah! - suspirou Pamela, cansada e feliz. - Que felicidade estar, finalmente, a sós com você!

- Se nos deixarem em paz - disse ele, acariciando-a. - É uma sensação estranha, realmente. Pensar que terei um rosto novo, novos documentos de identidade, um novo nome e uma nova nacionalidade. Aos quarenta e oito anos isso não deve ser comum. - Abraçou-a. - Como você quer que eu fique, querida?

- Que quer dizer com isso?

- Ora! Já que vão me fuxicar a cara, espero ter o direito de manifestar certos desejos. Com relação às orelhas, talvez; ou o nariz.

- Quer saber? - disse Pamela rindo. - Quando eu era pequena tinha loucura pelos gregos da Antigüidade. Eu sempre me dizia: ”É preciso que o homem com quem você se casar tenha um perfil grego”. Você acha... você acha... - ela corou. - Oh, não, é uma tolice!

- Quer dizer: um nariz grego? - perguntou ele gentilmente. - Se é só isso! E as minhas orelhas? Gosta delas?

- Certamente, querido. Todo o resto é ótimo.

- Tem certeza? Ainda há tempo. É uma operação que se faz de uma só vez. Creio que os cirurgiões da clínica poderão melhorar muitas coisas: diminuir, aumentar, conforme o gosto do freguês...

- Não, não - exclamou ela. - Quanto ao resto não quero nenhuma alteração.

Durante os dias que se seguiram, Thomas Lieven deu muito trabalho a, pelo menos, três médicos. Eles o fotografaram, tomaram medidas cranianas com um grande compasso e o examinaram de todas as formas. Depois ele foi proibido de fumar. Em seguida, não podia mais beber. Depois, Pamela não teve mais o direito de... - enfim, Thomas foi proibido de tudo.

A operação foi no dia 7 de novembro.

Quando recobrou os sentidos estava no seu quarto. A cabeça estava dolorida, e toda enfaixada.

No quarto dia depois da operação ele começou, lentamente, a sentir-se melhor. Os médicos mudaram os curativos. Pamela ficava o dia inteiro sentada a seu lado, procurando distraí-lo, mas só falando em coisas sérias, porque, quando Thomas tentava sorrir, por baixo das ataduras, sentia dores.

Um belo dia chegou um telegrama que era ansiosamente esperado. Estava endereçado a Mr. Grey - era o pseudônimo de Thomas na clínica. O texto era o seguinte: ”Tia Vera chegou bem. Afetuosamente, Edgar”.

Pamela e Thomas leram o telegrama. Pamela gritou de alegria e apertou a mão de Thomas.

- Eles encontraram o cadáver, querido. Encontraram o cadáver certo.

- Agora, a coisa não pode mais falhar - disse Thomas, satisfeito.

Ele estava enganado; infelizmente, alguma coisa falhou. No dia 13 de novembro um senhor com ar preocupado, olhos melancólicos e um vasto resfriado, apareceu na clínica. Pediu para falar, a sós, com Mr. Grey. Quando ficou só com Thomas ele se apresentou como John Misaras, agente do FBI. Além do seu resfriado, Misaras era portador de más notícias.

- Tivemos complicações com o cadáver - disse ele espirrando terrivelmente. - Acredite, Mr. Grey, estamos desolados.

- Que aconteceu ao cadáver? - perguntou Thomas com o coração apertado.

- Não o temos mais.

- Onde está ele?

- Em Ancara.

- Ah! - fez Thomas, surpreso.

- Já o enterraram.

- Ah! - fez Thomas novamente.

- Devo esclarecer que havia, naquele dia, cinco cadáveres e houve troca entre dois: o nosso e um outro. O outro ainda está conosco. É um diplomata turco. Mas, infelizmente, ele não se parece com o senhor. É realmente uma pena.

- Ah! - fez Thomas, pela terceira vez.

- O senhor não está compreendendo?

- Nem uma palavra.

- Em Detroit, encontramos um morto, sem família. Poderia ser seu irmão gêmeo. Uma embolia. Nós o preparamos como seria necessário...

- Prepararam?

- Sim. Em seguida ele foi colocado num caixão especial para ser enviado, de avião, para a Europa. Meu patrão queria fazer tudo direito. Para não chamar a atenção de outros agentes ele embarcou o caixão num avião que transportava mais quatro cadáveres. Era um aparelho fretado pela embaixada da Turquia. Um diplomata turco morrera num acidente de automóveis, juntamente com a esposa e dois filhos rapazes. Todos os jornais noticiaram. Diziam também que um avião fora fretado para levar os ataúdes. Logicamente, ninguém se interessou por saber que havia mais um caixão a bordo.

- Agora compreendo.

- Infelizmente, houve uma confusão, em Paris. Deveriam desembarcar o nosso caixão. Os outros quatro seguiriam para Ancara. É claro que o nosso caixão tinha uma marca especial. Mas houve um erro de transmissão no telegrama cifrado e os nossos homens em Paris ficaram com o caixão errado.

- Meu Deus!

- Sim, é muito embaraçoso. Constatamos que era o diplomata turco que estava no caixão.

- E... e... o cadáver que parecia comigo?

- Foi enterrado em Ancara. Na sepultura da família. Estou desolado, Mr. Grey, mas nada mais podemos fazer. É preciso esperar até que encontremos outra coisa que lhe convenha...

Em vista disso, Thomas e Pamela esperaram. No dia

19 de novembro chegou outro telegrama para Mr. Grey: ”Tio Fred em segurança. Afetuosamente, Edgar”.

- Eles acharam um outro - sussurrou Pamela.

- Vamos bater na madeira e esperar que tudo corra bem, desta vez.

Tudo correu bem. No momento em que Thomas e Pamela batiam na madeira, o segundo cadáver adequado estava deitado na mesa de operações de um médico da confiança do FBI, em Chicago.

O morto parecia-se extraordinariamente com Thomas Lieven. Baseando-se em fotografias, o médico empenhava-se, usando água oxigenada, injeções de parafina e outros recursos, a acentuar, ainda mais, a semelhança. Enquanto isto, outros colaboradores tinham à mão roupas e acessórios que tinham pertencido a Thomas: o relógio de ouro de repetição e quatro passaportes expedidos com quatro nomes diferentes.

Um agente do FBI acompanhava, com interesse, o trabalho do cirurgião plástico, enquanto este injetava um pouco de parafina líquida no nariz do cadáver.

- Quem é ele? - perguntou o médico.

- Lucky Campanello - respondeu o agente. - Entorpecentes, chantagens e lenocínio. Há duas horas uns companheiros tiveram uma briga com ele. Eles tiveram sorte. Ele não teve.

- Estou vendo - disse o médico examinando o local por onde penetrara uma bala de revólver, no peito e pouco acima do coração de Lucky Campanello.

Durante os quarenta e sete anos que viveu sobre a terra, este Campanello só tinha praticado o mal e vivido à custa do mal. Nunca deu uma alegria a ninguém. Ninguém gostava dele e muitos o tinham odiado. Não tinha parentes. Dessa maneira, só agora, depois de morto, iria fazer algo de útil.

Depois que o médico de Chicago acabou o seu trabalho, Lucky foi enviado para Malta, dentro de um recipiente especial. Em Malta, o recipiente foi colocado num navio que zarpou minutos depois.

No dia 20 de novembro, cerca da meia-noite, o navio balançava suavemente, próximo a Lisboa, fora das águas territoriais portuguesas. Um escaler foi baixado ao mar e nele tomaram lugar três cavalheiros vivos e um cavalheiro defunto. O escaler rumou para terra.

Na madrugada do dia 21 de novembro de 1957, crianças que brincavam, na praia do porto de pesca de Cascais, perto de Lisboa, encontraram conchas multicores, estrelas-do-mar, peixes meio mortos e um homem completamente morto.

 

Muito bem! Como é a continuação da história? Como é que ela terminará? Que aconteceu a Thomas Lieven e a Pamela? Quem nos contou a história de todas essas extravagantes aventuras? Como é que tantos acontecimentos secretos, e ultra-secretos, da nossa época, chegaram ao nosso conhecimento?

São muitas perguntas. Temos resposta para todas elas, embora isso obrigue um homem a sair da obscuridade onde, pela sua profissão, ele deve e deveria sempre permanecer.

Este homem, sou eu. Eu, o autor, que coligi, para você, as aventuras e as receitas culinárias do agente secreto Thomas Lieven.

Em agosto de 1958, meus editores enviaram-me, por um mês, aos Estados Unidos. Fiquei quatro meses. Eu deveria colher a documentação para um romance. O romance nunca foi escrito. O que foi escrito foi a história que você está lendo, neste momento. Eu a descobri nos Estados Unidos. E foi uma mulher maravilhosamente bela - como poderia ser de outra maneira? - quem me forneceu a primeira pista.

Por motivos óbvios, eu não posso dizer o nome da cidade onde vi essa mulher pela primeira vez. Era uma quente tarde de setembro. Eu estava com fome. Um amigo, jornalista, recomendara-me um restaurante para gourmets. Fui lá. E foi então que eu a vi...

Saltos altos, um tailleur bege, bem justo, ela caminhava à minha frente. Seus cabelos escuros tinham reflexos azuis. De estatura média, era maravilhosamente bem feita. Suas linhas lembravam um iate de corrida.

Apertei o passo e passei pela senhora. Tinha uma boca grande e vermelha, grandes olhos negros e uma bela testa.

Subitamente, esqueci que tinha fome...

A minha doce Lulu que me perdoe! Ela conhece os homens e sabe que o melhor deles nada vale quando o deixam viajar só.

Durante mil metros de avenida eu continuei com o jogo infantil. Às vezes caminhava adiante dela e às vezes deixava que ela passasse por mim. Quanto mais a via mais ela me agradava. Perdão, doce Lulu, perdão! Bem sabe que só amo a você.

A senhora, é claro, percebeu as minhas manobras. Sorriu levemente. Não estava zangada. As mulheres amáveis nunca se zangam. Ela, simplesmente, andou um pouco mais depressa. Eu também.

Subitamente, apareceu o restaurante recomendado por meu amigo. Algo de imprevisto aconteceu. A senhora interessante não continuou a caminhar. Ao contrário: ela entrou.

”Avante”, disse a mim mesmo, seguindo-a sem ter a mínima idéia do que me esperava do outro lado da porta.

Alcancei a senhora no pequeno vestiário. Ela dava uns toques no penteado, diante de um espelho.

- Hello! - disse eu em inglês. Ela sorriu para o espelho.

- Hello! -- disse ela, também. Apresentei-me, inclinando o busto.

- Devo confessar - disse eu a seguir - que, desde que nasci, sou de uma timidez doentia. Nunca, nem mesmo em sonhos, teria a idéia de dirigir a palavra a uma pessoa desconhecida.

- Não diga - disse ela virando-se.

- É verdade. Mas hoje, logo que a vi, não pude resistir. Acredite, a senhora ajudou-me a vencer o meu complexo.

Estou muito grato. Um acontecimento seme’lhante deve ser festejado. Parece que aqui se come um peito de faisão que é notável.

- Sim - disse ela, olhando-me com ar sério. - O peito de faisão é excelente.

- Neste caso, permita que eu a preceda. Saí do vestiário. Ela seguiu-me.

A sala do restaurante era de dimensões médias e muito bem decorada com móveis antigos. Estava completamente cheia. Apenas uma mesa num ângulo estava vazia mas tinha um cartão ”Reservada”.

Um garçom aproximou-se. Disfarçadamente dei-lhe uma nota de cinco dólares.

- Obrigado - disse eu - por nos ter reservado a mesa.

Ajudei a excitante senhora a sentar-se.

- Dois peitos de faisão, Henry - disse a senhora.

- Antes uma bisque de camarões. Mas antes um aperitivo. Um martini seco.

”Felizmente o meu editor é generoso. A conta vai ser salgada.”

- Preferiria um uísque.

- Eu também - disse a senhora. - Dois duplos, então, Henry.

- Muito bem, patroa - disse Henry.

- Como? - perguntei. - Foi ”patroa” que ele disse?

- Ele disse ”patroa”.

- Mas, por quê?

- Porque eu sou a patroa aqui - disse ela rindo.

- O senhor poderia ter economizado os seus cinco dólares.

- Isto não tem importância. Quem paga é o meu editor.

- Seu editor? O senhor é escritor?

- Alguns são dessa opinião, outros não. Miss... hum... hum...

- Thompson - disse ela -, Pamela Thompson. Subitamente, ela olhava para mim com verdadeiro interesse. Por quê?

- De repente a senhora passou a olhar para mim com verdadeiro interesse, Miss Thompson. Por quê?

- Porque o senhor é escritor, Mr. Simmel, gosto muito de escritores.

- Que sorte, Miss Thompson.

Para resumir, senhoras e senhores, a bisque estava excelente, o peito de faisão uma maravilha. Eu falava sem parar. Com muito espírito, como é fácil de compreender. Quando chegou o café eu já controlava a situação. Ela aceitou o meu convite para ir ao cinema.

- De acordo, Mr. Simmel. Arranjarei os lugares. Conheço o proprietário do cinema. Quer ir buscar-me?

- Com enorme prazer, Miss Thompson.

- Digamos às sete e meia? Isso nos dará tempo para tomar um drinque em minha casa.

- Sete e meia, ótimo.

”Puxa, diabo!” disse a mim mesmo, ”devo causar um efeito formidável nas mulheres. Deveria ter sido galã, imbecil que sou.”

Nessa tarde fui ao barbeiro. Depois comprei duas belas orquídeas e vesti a minha melhor roupa: o terno azulmarinho. Às sete e meia em ponto toquei a campainha da porta de um apartamento. Uma placa de cobre tinha a inscrição:

 

         THOMPSON

 

Não esperei muito. A porta foi aberta e um homem de aproximadamente cinqüenta anos apareceu, no umbral. Esbelto e de estatura regular, tinha o rosto fino, olhos inteligentes, uma larga testa e têmporas grisalhas. Além disso, ele tinha um nariz grego de forma clássica e um pequeno bigode. Tudo que pode agradar às mulheres, afinal.

- Mr. Simmel, creio_eu - disse o homem. - Faça o favor de entrar. Estou muito contente, por conhecê-lo. Minha mulher falou do senhor!

- Sua... hum... sua mulher?

- Minha mulher, sim. Chamo-me Thompson. Roger Thompson.

Houve um movimento atrás dele. Pamela, a minha graciosa Pamela, entrou no pequeno saguão. Tinha um vestido para cocktail, verde, muito decotado e com arabescos cor de ouro. Seu sorriso era de uma inocência radiante.

- Ah, já chegou! Meu Deus, que lindas orquídeas! Não acha que ele é simpático, Roger? O senhor não se aborrece se o meu marido for ao cinema conosco?

Nessa noite, no cinema, eu tive muita pena de mim mesmo. Meus joelhos batiam, a todo instante, na divisão do camarote. Minha cadeira era desconfortável e dura. Fazia calor. Eu tinha dor de cabeça. E quando vi que Mr. e Mrs. Thompson seguravam as mãos, antes mesmo que a fita começasse, eu fiz a seguinte reflexão: ”Exemplo típico de uma noite gorada”.

Mas eu me enganava. Mas muito, mesmo.

Porque, depois do cinema, essa noite tornou-se uma das mais agradáveis de minha estada na América. Fomos jantar - no restaurante dos Thompson, é claro. Que jantar! Mr. Thompson fez o menu e foi pessoalmente à cozinha. Durante uns momentos fiquei só com Pamela.

- Zangado? - perguntou ela. -- Não, não.

- Durante o almoço eu o achei tão gentil e simpático... Tudo que dizia me agradava...

- Que disse eu?

- Que gostava de comer bem; que gostava da companhia de mulheres bonitas; que nunca mais queria vestir um uniforme; que se sentia em casa em qualquer parte do mundo, onde quer que tenha um amigo.

- Cara senhora, devo acrescentar algo ao que disse.

- Quê?

- Eu... eu... eu também acho o seu marido muito gentil e simpático.

- Não é verdade? - disse ela radiante. - É verdade que ele é mesmo. Mas o senhor não o conhece. Não sabe o que já passamos juntos. Não sabe o que ele pensa. Para mim, o amor sempre foi dirigido pela cabeça. Nunca amei verdadeiramente a um homem cuja forma de pensar e de se exprimir eu não admirasse. Mas com Roger foi amor à primeira vista. O grande amor de minha vida

- Mas... mas então por que me convidou, Mrs. Thompson?

- Pamela.

- Por que me convidou, Pamela?

- Porque o senhor é escritor. O senhor o compreenderá mais tarde, ou talvez não compreenda... Tudo depende dele.

- A senhora faz tudo que ele diz?

- Sim - respondeu-me ela, com um sorriso radioso. - E ele faz o mesmo. Sempre. Sempre pede a minha opinião. É claro que, de vez em quando, ele faz das suas, como todos os homens. Mas sempre volta para mim. Sei que sou a única mulher com quem ele quer viver. É uma grande força para uma mulher, não acha?

A vida é curiosa.

O que eu imaginara não se realizou. Não obtive o que pretendia pedir a Pamela. Mas ganhei coisa melhor: sua amizade e a amizade do seu marido.

Durante as três semanas seguintes víamo-nos quase diariamente. Divertimo-nos enormemente. E nossas opiniões pareciam verdadeiramente coincidir em todos os assuntos.

Percebi, várias vezes, que Thompson me observava com ar pensativo. Notei, também, que ele me fazia muitas perguntas. Sobre o meu passado. Sobre as minhas idéias. Mas nunca falava de si mesmo.

Como estava combinado, eu recolhia documentação para o meu próximo romance, o que me obrigava, às vezes, a sair da cidade. Era-me agradável voltar, porque sabia que os Thompson estariam à minha espera, na estação ou no aeroporto. Finalmente, julguei que já tinha colhido todo o material necessário. Tomei uma passagem para Frankfurt no avião do dia 29 de outubro às vinte e quarenta e cinco.

No dia 28 Roger Thompson chamou-me, em meu hotel.

- Soube que pretende deixar-nos - disse ele. - Gostaria de organizar um pequeno jantar para você.

- É uma idéia maravilhosa, Roger.

- Então, hoje às sete e meia?

- Perfeito.

- Ah, antes que me esqueça: telefone a sua companhia de aviação. Cancele sua reserva para amanhã à noite e peça para ficar na lista de espera.

- Mas, por que razão?

- Porque é muito possível que você fique aqui por algum tempo.

- Não compreendo. Ouvi o seu riso.

- Esta noite você compreenderá tudo e, pelo amor de Deus, não apareça outra vez com duas orquídeas.

Por conseguinte, eu apareci com três orquídeas. Pamela estava mais linda do que nunca. Roger, mais agradável que nunca, e o jantar que ele preparara estava melhor que nunca. O primeiro prato foi um linguado, guarnecido com ostras fritas e recoberto com um molho holandês ao caviar.

- Nunca comi coisa igual - tive que admitir. - Preciso anotar a receita para levar para minha mulher...

- Além das receitas - disse o dono da casa, com ar sonhador -, haverá muitas outras coisas a anotar.

Olhei para ele. Olhei para sua bela esposa. Ambos sorriam com amizade e simpatia.

- Meu caro - disse Roger Thompson -, tenho uma confiança ilimitada no julgamento de Pamela. Ela convenceu-me imediatamente da sua boa-fé. Mas eu sou um homem e preciso ser prudente.

- Prudente? Por quê?

- Aí está a questão: por quê?

Com o garfo, Thompson mexia no peixe. Depois, sua fisionomia se aclarou.

- Meu caro Mario - disse ele -, eu não fui sempre o dono de um restaurante para gourmets. O meu nome não foi sempre Roger Thompson. Tenho um passado de muitas aventuras. Mais um pouco de caviar?

- Deixe de bancar o imbecil - disse Pamela. Ela olhou para mim. - Meu marido - continuou ela - já viveu muito: acontecimentos engraçados, acontecimentos tristes, acontecimentos empolgantes.

Sempre achei que alguém deveria escrever tudo isso. É necessário que muita gente saiba o que lhe aconteceu. Poderia ser útil.

- Útil?

- Meu marido é um pacifista convicto.

- O único problema - disse o homem que se fazia chamar Roger Thompson - é o seguinte: se eu contar a minha história você pode me assegurar que ninguém saberá o meu verdadeiro nome nem o meu endereço?

- Sim - disse eu. - Posso.

Fiquei nos Estados Unidos até o dia 2 de janeiro de 1959. Quando parti havia em minha bagagem dezesseis rolos de fitas magnéticas de trilha dupla. Quando parti, levava para a Europa a história de uma vida única: as aventuras e as receitas do agente secreto Thomas Lieven.

Agora, poderei ser compreendido e desculpado se eu disser que o homem que me contou sua vida não se chama, é claro, nem Roger Thompson nem Thomas Lieven. Compreenderão, igualmente, que eu não mencione o nome da cidade onde ele vive e trabalha em companhia de sua bela esposa. Acrescentemos que ele comprou o restaurante com o dinheiro que ganhou naquela operação com as ações da desu que contamos no princípio dessa narrativa. O empréstimo do corretor suíço Pierre Muerrli tinha dado sorte a Thomas. Especulações felizes o tornaram rico. No verão de 1958, Pamela, munida da procuração necessária, tomou o avião para Zurique, levou a Muerrli os seus setecentos e dezessete mil, oitocentos e cinqüenta francos, retirou as falsas ações da conta anônima, rasgou-as em pedacinhos e as fez desaparecer na privada de seu quarto de hotel. Como Lieven tinha previsto, todo mundo ganhara dinheiro e ninguém fora prejudicado. Ainda mais: ninguém desconfiou das origens tenebrosas do negócio.

Enquanto o meu avião ganhava velocidade na pista, para voar para horizontes longínquos, o Atlântico e o Velho Mundo, Roger Thompson e sua esposa ficaram no terraço do aeroporto. Senti, subitamente, que a saudade me invadia. ”Adeus, Pamela, adeus, Roger; sejam sempre felizes os dois...”

 

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Algum lugar nos Estados Unidos da América

28 de outubro de 1958

Este livro nasceu durante esta refeição.

Rodovalho (ou linguado) - Cozinhe o peixe em água e sal (sem exagerar no sal) e coloque-o, com a parte mais clara para cima, em um prato aquecido. Cerque-o de ostras fritas. Ostras fritas - Retire as ostras das cascas, seque-as com um pano, cubra com farinha de rosca e frite, rapidamente, na manteiga.

Molho holandês com caviar - Numa pequena panela bata duas gemas com um pouquinho de vinagre e uma colher de sobremesa, de água quente. Leve a panela em fogo brando, a banho-maria e adicione, batendo sempre, cento e vinte e cinco gramas de manteiga. Bata até que o molho engrosse, salgue e junte suco de limão. Na hora de servir misture o molho quente com cinqüenta gramas de caviar.

Filé Wellington - Faça dourar, na manteiga, um pedaço de filé. Depois de deixá-lo esfriar, coloque-o sobre uma camada de cebolinha, cogumelos, salsa e estragão picados e refogados na manteiga e previamente espalhados sobre massa folhada crua. Guarneça a carne de fatias de fígado de ganso e de trufas estufadas em vinho madeira.

Dobre a massa sobre a carne e cole com gema de ovo. Leve ao forno para assar.

Prepare um molho com o suco que escorreu da carne e vinho madeira.

Gnocchi à moda de Salzburgo - Em um prato grande bata seis claras de ovo em ponto de neve, junte as gemas, duas coIheres de sopa de farinha de trigo, sessenta gramas de manteiga derretida, um quarto de xícara de leite quente com açúcar e algumas gotas de extrato de baunilha.

Derreta sessenta gramas de manteiga em uma frigideira funda, derrame nela a mistura preparada, cubra e leve ao fogo até que o fundo tome cor.

Corte, na própria frigideira, gnocchi de tamanho grande, vire-os e deixe cozinhar de novo. Em seguida, acrescente mais um quarto de xícara de leite com baunilha e deixe no fogo até que a massa tenha absorvido o leite e adquirido uma consistência leve.

Pulverize com açúcar e sirva imediatamente, antes que a massa murche.

”O que você me contou eu escrevi. Espero que você esteja satisfeito comigo.” Os últimos metros da fita sonora passam pelo gravador. É Thomas Lieven quem fala e eu concluo a minha história com as suas próprias palavras:

”Durante toda a minha vida desconfiei das grandes palavras e dos grandes heróis. Também não gosto muito de hinos nacionais, de uniformes e dos pretensos homens fortes.

”Meu velho amigo Bastian voltou para Marselha, onde nasceu. Seu trabalho consiste em supervisionar, no porto, o embarque de cargas.

”Ele trata com muita gente: chineses, alemães, franceses, corsos e árabes. Ele se entende bem com todos e todos se entendem com ele. Dizem, quando se referem a ele: ’É um tipo legal. Com ele é possível falar francamente’.

”Eu, também, no meu pequeno restaurante, tenho que tratar com muita gente: brancos, amarelos e negros. Alguns dos meus clientes são da religião judaica, outros são cristãos. Há também alguns muçulmanos e budistas.

”Dá-me prazer imaginar que dia virá em que todos os homens coabitarão nesta terra tão harmoniosamente quanto os amigos de Bastian e a clientela do meu restaurante. Por que razão o que funciona bem para algumas centenas é impossível quando se trata de muitos milhões? Os homens das docas dizem que o meu amigo Bastian é razoável. Parece-me que, com um pouco de juízo, nós todos poderíamos conseguir o mesmo. Cada um de nós recebeu do bom Deus a faculdade de pensar. Proponho que, durante algum tempo, nós nos dediquemos menos a acreditar do que a refletir. As conseqüências seriam miraculosas. Não haveria mais guerras. Porque, como são os homens que fazem as guerras, esses mesmos homens devem ser capazes de evitá-las.

”Por conseguinte, ergo a minha taça à razão humana. Que ela nos proteja a todos, negros, amarelos e brancos. Que ela nos tire do vale onde reina a angústia e nos leve a um paraíso de alegrias e de paz!”

 

                                                                                J. M. Simmel  

 

                      

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