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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NEM TUDO O QUE RELUZ / V. C. Andrews
NEM TUDO O QUE RELUZ / V. C. Andrews

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NEM TUDO O QUE RELUZ

 

Ao fim da tarde, pouco depois de o Sol se ter escondido atrás dos ciprestes na parte ocidental do bayou, sento‑me na velha cadeira de balouço de carvalho da grandmêre Catherine com Pearl nos braços e entoo uma melodia cajun. É uma canção de embalar que a grandmêre costumava cantar‑me antes de me pôr a dormir, mesmo quando eu já era uma rapariguinha de tranças até aos ombros e corria pelos campos, desde as margens do pântano até à nossa cabana apoiada sobre finas estacas de madeira. Quando fecho os olhos, ainda consigo ouvir‑lhe a voz.

‑ Ruby. É hora da ceia, menina. Ruby...

A voz dela desvanece‑se, contudo, da minha memória, como o fumo do fogão bojudo de alguém perdendo‑se no vento.

Agora, tenho perto de dezanove anos e passaram‑se quase três meses desde que Pearl nasceu durante um dos mais terriveis furacões que atingiram o bayou. árvores que a força do vento atirou para as estradas foram afastadas para o lado, mas ainda continuam sobre o alcatrão, idênticas a soldados feridos à espera de serem tratados e devolvidos à forma anterior.

Parece que também eu estou à espera de ser tratada e devolvida à forma anterior. Na realidade, foi este o verdadeiro motivo para o meu regresso de Nova Orleães ao bayou.

Depois de o meu pai, que se sentia muito culpado pelo que acontecera ao irmão, o meu tio Jean, ter morrido de um trágico ataque de coração, Daphne, a minha madrasta, tomou as rédeas da nossa vida com uma atitude vingativa. Daphne sempre mostrara ressentimento contra mim desde o dia em que eu me apresentara na casa deles, a filha gémea até então desconhecida, aquela que a grandmère Catherine mantivera em segredo para que não fosse vendida e afastada para longe pelo grandpère Jack, como fizera com Gisselle.

Até à minha chegada, Daphne e o meu pai, Pierre Dumas, haviam conseguido manter a verdade enterrada sob uma pilha de mentiras; depois do meu aparecimento, porém, viram‑se obrigados a criar um novo embuste: proclamar que eu fora roubada do meu berço no dia em que Gisselle e eu tínhamos nascido.

Na verdade, o meu pai apaixonara‑se pela minha mãe, Gabrielle, durante uma das frequentes caçadas que ele e o pai faziam pelos pântanos. O grandpère Jack servia‑lhes de guia e, mal o meu pai pousara o olhar na minha encantadora mãe, uma mulher que a grandmère Catherine descrevia como um espírito livre e inocente, caíra‑lhe aos pés. Ela também se apaixonara por ele. Daphne não podia ter filhos e, assim, quando a minha mãe engravidou de Gisselle e de mim, o grandpère Jack aceitou um acordo proposto pelo meu avô Dumas. Vendeu Gisselle, e Daphne fingiu que Gisselle era sua filha.

A grandmére Catherine nunca lhe perdoou e expulsou‑o da nossa casa. Vivia no pântano como um animal selvagem e sobrevivia a caçar ratos‑almiscarados e a apanhar ostras, bem como a guiar turistas, quando estava sóbrio bastante para o fazer. Antes de morrer, a grandmère Catherine, que era uma traiteur, uma curandeira espiritual, obrigou‑me a prometer que iria para Nova Orleães procurar o meu pai e a minha irmã.

 

No entanto, a vida mostrou‑se ainda mais insuportável para mim naquela terra. Gisselle não me aceitou desde início e fez‑me a vida num inferno em Nova Orleães e em Greenwood, o colégio particular onde nos puseram em Baton Rouge.

Ficou particularmente irritada pela rapidez com que o seu antigo namorado Beau Andreas se apaixonou por mim e eu por ele. Mais tarde, quando engravidei de Beau, Daphne ordenou‑me que fizesse um aborto numa qualquer clínica horrível, mas, em vez disso, fugi e regressei ao único lar que alguma vez conhecera: o bayou.

O grandpére Jack afogou‑se durante uma das suas excursões sob os vapores do álcool e teria ficado sozinha se não fosse o meu secreto meio‑irmão Paul. Antes de conhecermos os nossos verdadeiros laços, Paul e eu tínhamos sido namorados. Ficou com o coração despedaçado ao saber que o pai dele seduzira a minha mãe quando ela era muito nova e negou‑se a aceitar a realidade até hoje.

Desde que voltei ao bayou, nunca me abandonou um só instante e propõe‑me casamento todos os dias. O pai é dono de uma das maiores fábricas de conservas de camarão da zona; porém, devido a uma herança de terras, Paul tornou‑se um dos homens mais ricos da nossa terra, tendo‑se descoberto petróleo na sua propriedade.

Agora, Paul está a construir uma casa enorme onde espera que Pearl, ele, e eu vivamos algum dia. Sabe que a nossa relação terá de submeter‑se a certas condições, que não poderemos ser amantes, mas está disposto a sacrificar‑se para poder passar a vida ao meu lado.

Sinto‑me tentada pela sua oferta, na medida em que perdi Beau, o meu único e grande amor, e fiquei sozinha com a nossa filha, a tentar sobreviver levando o mesmo tipo de existência de quando a grandmère Catherine era viva: tecendo lençóis e entrançando cestos, cozinhando gumbo e vendendo a mercadoria aos turistas na nossa banca à beira da estrada. Não é uma vida satisfatória e não oferece grandes possibilidades à minha pequena filha, bela e encantadora.

Sento‑me todas as noites na cadeira de balouço, como é agora o caso, e embalo Pearl até ela adormecer, enquanto pondero o que deverei fazer. Observo, esperançada, o retrato da grandmère Catherine que pintara antes de ela morrer e que a representa sentada nesta mesma cadeira na varanda da frente. Atrás dela, na janela, pintei o rosto angelical da minha mãe. As duas devolvem‑me o olhar, como se esperassem que descubra a decisão certa.

Oh! Como desejava que estivessem vivas e ao meu lado e pudessem indicar‑me o caminho. Dentro de menos de um ano e meio, terei dinheiro, pois irei receber a minha herança como uma das filhas do meu pai; nutro, todavia, um grande desagrado por esse mundo em Nova Orleães, apesar da bonita casa no Garden District e de toda a riqueza implicada.

A mera ideia de voltar a encarar Daphne, uma mulher que outrora tentou encarcerar‑me numa instituição psiquiátrica, uma mulher cuja beleza dissimulava a sua verdadeira natureza fria, provoca‑me calafrios. Além disso, se algo aprendi enquanto vivi na casa Dumas, rodeada de criados e bens valiosos, é que esse dinheiro e riqueza não compram a felicidade quando não se tem amor.

 

Não existia amor naquela casa depois de o meu pai morrer e enquanto ele viveu, sofrendo sob a sombra obscura dos seus pecados do passado. Tentei dar‑lhe alegria e felicidade, mas Daphne e Gisselle eram excessivamente determinadas e egoístas para me permitirem que fosse bem sucedida. Agora estão ambas satisfeitas com a minha partida, por ter sido apanhada na minha paixão e engravidado, provando ser o que elas sempre me consideraram... uma cajun inútil. A família de Beau mandou‑o para a Europa e Gisselle mal cabe em si de contente por me escrever sobre as suas namoradas e toda a riqueza e felicidade da vida que ela leva.

Talvez devesse casar‑me com Paul. Só os pais dele sabem a verdade a nosso respeito e guardaram‑na como um profundo e obscuro segredo. De qualquer maneira, todos os antigos amigos da minha grandmère Catherine pensam que Pearl é filha de Paul. Ela tem o seu cabelo chatim, uma mistura de louro e castanho, e os olhos da cor de nós ambos: azul‑celeste. Tem uma pele macia e delicada, branca mas com um brilho que me faz recordar pérolas sempre que poiso os olhos nela.

Paul não perde uma oportunidade para me suplicar que case com ele; não tenho coragem de o contrariar, pois sempre esteve ao meu lado. Encontrava‑se presente quando Pearl nasceu, protegendo‑nos durante o furacão. Traz‑nos comida e presentes todos os dias e passa o tempo livre a arranjar‑me coisas na cabana.

Seria uma aliança pecaminosa, se não consumássemos a nossa ligação? O casamento é mais do que algo que apenas moraliza e legaliza o sexo. As pessoas casam‑se para amar e partilhar de formas mais altruístas. Casam para terem alguém ao lado durante a doença e dificuldades, para terem companhia e se protegerem uma à outra até à morte. E Paul seria um pai maravilhoso para Pearl. Ama‑a como se realmente fosse sua filha. Acho que acredita que o é, acredita mesmo.

Por outro lado, seria justo para Paul negar‑lhe o que qualquer homem espera e necessita de uma mulher? Ele afirma que está disposto a esse sacrifício por me amar tanto e salienta que os nossos padres católicos fazem esse sacrifício por um amor mais elevado. Porque não poderá fazer o mesmo? Já ameaçou tornar‑se monge, se o rejeitar.

Oh, grandmére, não podes dar‑me qualquer sinal? Tinhas poderes espirituais tão maravilhosos quando eras viva. Afastavas os espíritos maus, curavas pessoas que estavam doentes, davas esperança a toda a gente e levantavas‑lhe o moral. Onde hei‑de procurar respostas?

Como se compreendesse o meu tormento, Pearl mexe‑se e põe‑se a chorar. Beijo‑lhe as faces macias e, como faço muitas vezes sempre que contemplo o seu querido e pequeno rosto, penso em Beau e no seu maravilhoso sorriso, nos olhos ternos e nos lábios tentadores. Ele tem de ver a própria filha. Interrogo‑me sobre se isso alguma vez acontecerá.

Agora, Pearl encontra‑se sob a minha inteira responsabilidade. Optei por tê‑la, guardá‑la, amá‑la e acarinhá‑la. As decisões que tomei quando ela nasceu são decisões que nos afectarão às duas. Já não posso pensar apenas no que é bom para mim, no que está certo para mim. Tenho de pensar também no bem‑estar dela. As decisões que estou prestes a tomar podem causar‑me dor, mas serão as melhores para Pearl.

Ela volta a acalmar‑se. Fecha os olhos e retoma o sono tranquilo, confiante e confortável, ignorando a tempestade de problemas que nos rodeiam. O que nos reserva o destino?

 

”Se ao menos tudo isto tivesse acontecido anos mais tarde”, penso. ”O Beau e eu teriamos casado e tido uma casa fantástica no Garden District. A Pearl cresceria numa casa cheia de amor, num mundo tão precioso como os mundos imaginários dos nossos sonhos. Se tivéssemos sido mais cuidadosos e...”

Tomo consciência de que o ”se” nada significa num mundo real, um mundo onde os sonhos se transformam muitas vezes em sombras. ”Deixa-te de se, Ruby”, digo para mim própria.

Continuo a balouçar e a cantarolar em voz baixa. Lá fora, o Sol desaparece por completo e dá lugar a uma escuridão densa e profunda, onde apenas os olhos da coruja reflectem a luz das estrelas.

Levanto‑me e deito Pearl no berço, um berço que Paul lhe comprou, depois do que volto até junto da janela e observo a noite. Os aligatores deslizam junto às margens do canal. Ouço‑lhes as caudas a espadanar a água. Morcegos entrelaçam‑se no musgo e mergulham, a fim de apanhar insectos para a ceia, enquanto os guaxinins se põem a chorar.

Como o meu mundo se encheu de solidão e, todavia, nunca tive medo de estar só até agora; neste momento há mais alguém com que me preocupar e que devo proteger: a minha querida Pearl, adormecida, com sonhos de bebé, à espera de que a sua vida comece.

Cabe‑me zelar para que principie com sol e não com sombras, com esperança e não com medo. Como o farei? As respostas pairam nas trevas, à espera de serem descobertas. Foram ali deixadas pelos espíritos do bem ou do mal?

 

OPçõES

O ruído do motor do barco de Paul a aproximar‑se perturbou um casal de garças que se pavoneavam arrogantes no grosso ramo de um cipreste, e ambas abriram as asas e voaram ao sabor da brisa do golfo para mergulhar mais fundo, nos pântanos. Aves dos arrozais também bateram as asas, elevando‑se acima das águas e desaparecendo no matagal.

Era uma tarde muito quente e húmida de quinta‑feira nos finais de Março; Pearl mantinha‑se muito atenta e animada, contorcendo‑se e lutando por se libertar do meu abraço e gatinhar até às tocas cobertas de relva que serviam de abrigo aos ratos‑almiscarados e às lontras. O cabelo crescera‑lhe mais rapidamente no último mês e já lhe chegava abaixo das orelhas e ao fundo da nuca. Inclinava‑se agora mais para o louro do que para o castanho. Eu vestira‑a com um vestido cor de marfim com franjas rosa na gola e nas mangas. Tinha calçadas as botinhas de algodão amarelo que lhe fizera na semana anterior.

Á medida que o barco de Paul se aproximava, Pearl ergueu os olhos. Embora pouco mais tivesse do que oito meses, possuía a atenção e perspicácia de uma criança de um ano. Adorava Paul e ficava deliciada com todas as suas visitas, de olhos brilhantes, com os bracinhos e mãos a acenar, dando pontapés para se soltar de mim e correr até junto dele.

O barco de Paul descreveu a curva do canal e ele acenou, mal nos descobriu no embarcadouro. Eu concordara finalmente em que nos levasse a ver a sua grande casa nova, que estava quase pronta. Até então, evitara fazê‑lo, receosa de que, logo que pusesse os pés na mansão, me sentisse tentada a aceitar a proposta de Paul.

Talvez fosse apenas dos meus olhos, mas achava que Paul se tornara mais elegante e mais maduro, desde que eu regressara ao bayou. Mantinha ainda ocasionalmente aqueLe brilho juvenil nos olhos azuis, mas agora, na maior parte das vezes, mostrava‑se pensativo e sério. As suas novas responsabilidades profissionais bem como a supervisão da construção da casa, aliadas à preocupação com Pearl e comigo, obscureciam‑lhe as feições, vincando uma sombra que me perturbava, temendo estar a arrastá‑lo comigo na desgraça.

Paul não se poupava, obviamente, a esforços para me convencer de que me enganava. Sempre que sugeria tal coisa, ria‑se e dizia:

‑ Não sabes que, quando regressaste ao bayou, trouxeste o sol de volta à minha vida?

Nesse momento, o rosto abria‑se‑lhe num sorriso, enquanto trazia o barco até ao embarcadouro.

‑ Ei! Sabes uma coisa? ‑ replicou, excitado. ‑ Acabaram de pendurar e ligar os lustres. Espera só até os veres. São um espectáculo. Mandei‑os importar de França. A piscina está cheia e a funcionar. Sabes que os materiais das portas envidraçadas vieram de Espanha? Paguei uma fortuna por eles ‑ acrescentou de um jacto.

‑ Olá, Paul ‑ cumprimentei a rir.

- O quê? Oh, desculpa. ‑ Inclinou‑se para me beijar na face. ‑ Acho que pareço um tanto excitado com a nossa casa, hem?

Baixei os olhos. Não conseguia evitar aquele aperto no coração sempre que ele se referia à nossa casa.

‑Paul...

‑ Não digas nada ‑ apressou‑se a redarguir. ‑ Não chegues a conclusões, nem decisões. Deixa que a casa e o terreno círcundante falem por si.

Abanei a cabeça. Alguma vez ele aceitaria um ”não” como resposta? Imaginei que mesmo que me casasse com outra pessoa e vivesse até aos cem anos, ele continuaria a aparecer‑me à porta de casa, esperando que mudasse de opinião.

Entrámos todos no barco e Paul voltou a ligar o motor. Pearl riu quando demos meia‑volta e enfrentámos a brisa, enquanto a espuma nos salpicava os braços e o rosto. O início da Primavera arrancara os alígatores à híbernação. Dormitavam nos aterros e na água pantanosa, e os olhos sonolentos pouca curiosidade denotavam quando passámos, a toda a velocidade, ao lado deles.

Aqui e além, aglomerados de cobras verdes apartavam‑se para voltarem a unir‑se, semelhantes a fios que se teciam sob a água. Rãs‑touros saltavam por cima de nenúfares, e lontras acolhiam‑se à segurança de sombras e pequenas aberturas. O pântano, ele próprio semelhante a um animal gigantesco, parecia espreguiçar‑se, bocejar e tomar forma à medida que a Primavera chegava e caminhava, determinada, rumo ao calor do Verão.

‑ O poço número três deitou por fora esta manhã ‑ gritou Paul para se fazer ouvir acima do ruido do motor. ‑ Parece que ultrapassará quatro ou cinco vezes o que estava calculado.

‑ Que maravilha, Paul!

‑ O futuro não podia afigurar‑se mais brilhante, Ruby. Está ao nosso alcance ter tudo, fazer tudo, ir a qualquer lugar... A Pearl seria uma verdadeira princesa.

‑ Não quero que ela seja uma princesa, Paul. Quero que ela seja uma bonita e jovem mulherzinha, capaz de apreciar o valor de coisas importantes ‑ retorquí num tom áspero. ‑ Já vi demasiadas pessoas levadas enganosamente pela própria riqueza a acreditar que eram felizes.

‑ Não será assim connosco ‑ garantiu‑me Paul.

Os acres de riqueza da terra petrolífera de Paul e a casa situavam‑se a sudeste da minha cabana. Avançámos pelo meio de canais, por vezes tão estreitos que podíamos esticar o braço e tocar na margem de cada lado do barco. Cortámos caminho através de alguns lagos salobres e metemo‑nos por uma rede de canais, antes de virarmos a sul para entrar na sua propriedade.

Não fora até ali desde que partira para Nova Orleães e, por conseguinte, ao avistar o telhado da mansão erguendo‑se acima dos plátanos e ciprestes, que se estendiam na nossa frente, fiquei atordoada. Sentia‑me como se fosse Alice a ser levada para o seu País das Maravilhas.

Paul já mandara construir um cais e havia um relvado, que se estendia desde o pântano até ao começo dos terrenos da casa. Avistei os camiões e carros pertencentes aos operários, que ainda se esforçavam arduamente, pois Paul apressara os trabalhos e mostrara‑se disposto a pagar a todos a dobrar para que a casa ficasse pronta antes do prazo previsto. A leste, avistávamos as torres de petróleo a trabalhar.

‑ Aposto que nunca sonhaste que o rapaz cajun que andava por ai na sua scooter viesse a ser dono de tudo isto - comentou Paul, orgulhoso, de mãos nas ancas, com um sorriso de orelha a orelha. ‑ Imagina o que diria a tua grandmère Catherine.

‑ Provavelmente a grandmère já esperava que tal acontecesse ‑ retorqui.

‑ Provavelmente ‑ anuiu com uma gargalhada. ‑ Sempre que me olhava, sentia que ela conseguia ler‑me não só os pensamentos, mas também os sonhos.

Ajudou‑me, a mim e a Pearl, a sair do barco.

‑ Eu levo‑a ‑ ofereceu‑se. Pearl estava surpreendida com a vastidão da casa que se estendia diante de nós. ‑ Gostaria de chamar‑lhe Cypress Woods ‑ afirmou., ‑ O que achas?

‑ Sim, é um nome maravilhoso. É fantástico, Paul. Esta forma como surge do nada... é magia.

Esboçou um largo sorriso de orgulho.

‑ Disse ao arquitecto que pretendia uma casa que se assemelhasse a um templo grego. Faz com que a residência dos Dumas no Garden District pareça um bangaló.

‑ Era isso o que pretendias fazer, Paul... ofuscar a casa do meu pai? Disse‑te...

‑ Não me censures, Ruby. De que serve tudo o que tenho, se não puder usá‑lo para te agradar e impressionar? ‑ retorquiu, enquanto os olhos me fixavam com uma expressão grave.

‑ Oh, Paul! ‑ exclamei com um abanar de cabeça e respirando fundo. O que poderia eu contrapor ao seu entusiasmo e aos seus sonhos?

à medida que nos aproximávamos da casa, esta parecia ainda maior. A toda a volta da varanda do piso superior havia um corrimão de ferro com desenhos em forma de diamantes. Dos dois lados da casa, Paul mandara construir alas num prolongamento dos elementos predominantes da parte principal.

‑ É onde viverão os criados ‑ indicou. ‑ Acho que dá mais privacidade a toda a gente. A maioria das paredes deste lugar tem sessenta centímetros de espessura. Vais ver como o interior é fresco, mesmo sem ventoinhas nem ar condicionado.

Uma pequena escada de pedra levou‑nos à varanda e à entrada do primeiro piso. Caminhámos por entre as grandes colunas e entrámos no vestíbulo de ladrilhos espanhóis, um átrio destinado a cortar a respiração a qualquer visitante que pisasse aquela mansão, pois não era apenas amplo e comprido; o tecto, extremamente alto, fazia ecoar os nossos passos.

‑ Pensa em toda a arte maravilhosa que podias pendurar nessas vastas paredes, Ruby ‑ observou Paul.

Percorremos divisões espaçosas e arejadas umas atrás das outras, todas elas dando para o vestíbulo de entrada. Sobre as nossas cabeças, estavam pendurados os lustres a que Paul se referira com tanto orgulho. Eram ofuscantes, e as lâmpadas em formato de lágrimas assemelhavam‑se a uma chuva de diamantes. A escadaria circular tinha o dobro da largura e do requinte da que existia na casa dos Dumas.

‑ A cozinha fica nas traseiras ‑ disse Paul. ‑ Muni‑a de todo o equipamento mais moderno. Qualquer cozinheira sentir‑se‑ia no paraíso a trabalhar ali. Talvez consigas descobrir para onde foi a tua Nina Jackson e convencê‑la a vir viver aqui ‑ acrescentou.

 

Sabia quanto eu gostava de Nina, a cozinheira do meu pai. Era uma praticante vudu e afeiçoara‑se a mim desde o primeiro dia em que eu chegara de Nova Orleães. Ou seja, depois de se convencer que eu não era uma morta‑viva feita à imagem e semelhança de Gisselle.

‑ Acho que nada tentaria a Nina a deixar Nova Orleães - contrapus.

‑ Mal o dela ‑ apressou‑se Paul a redarguir. Denotava uma grande sensibilidade em relação ao facto de os crioulos ricos interpretarem qualquer comparação como uma critica ao nosso mundo cajun.

‑ O que quero dizer é que ela está demasiado ligada ao seu mundo vudu, Paul ‑ expliquei, e ele esboçou um aceno de concordância.

‑ Deixa‑me levar‑te ao andar de cima.

Subimos as escadas até quatro espaçosos quartos, cada um deles com roupeiro exterior e interior. Havia dois enormes quartos principais, algo que Paul imaginara sem dúvida com a proposta de casamento em mente. Ambos davam para os pântanos. Havia, contudo, uma porta de comunicação.

‑ Bom? ‑ quis saber ansioso, perscrutando‑me o rosto com o olhar.

‑ É uma casa magnífica, Paul.

‑ Guardei o melhor para o fim ‑ declarou com aquele brilho travesso no olhar. ‑ Segue‑me ‑ prosseguiu, levando‑nos através de uma porta que abria para uma escadaria exterior. Era nas traseiras da mansão e, por conseguinte, não a vira quando nos tínhamos aproximado.

A escadaria conduziu‑nos a um sótão enorme com vigas de cipreste talhadas à mão. Havia amplas janelas com vista para os campos e canais, mas nenhuma virada para o lado dos poços de petróleo. As enormes clarabóias providenciavam muita luz, tornando‑o alegre e arejado. .

‑ Sabes o que é isto? ‑ perguntou com um ligeiro sorriso divertido. ‑ Será o teu estúdio ‑ concluiu, erguendo os braços.

Abri muito os olhos, entusiasmada com as possibilidades.

‑ Como podes ver preocupei‑me com a melhor vista. Olha, Ruby, olha o que p’oderias pintar ‑ convidou, dirigindo‑se à janela. ‑ Olha o mundo que amamos, o nosso mundo, um mundo que decerto te levaria a voltares aos teus fantásticos talentos artísticos e a criares obras‑primas que os teus amigos crioulos lutariam por adquirir.

Manteve‑se junto da janela com Pearl ao colo. Ela sentia‑se intrigada e fascinada pela vista. Por baixo de nós, os operários da construção haviam iniciado o trabalho de limpeza. O vento trazia‑nos as suas vozes e risos. à distância, os canais que se entrelaçavam através dos pântanos na direcção de Houma e da minha cabana pareciam irreais, meros brinquedos.

Avistei os pássaros voando de árvore em árvore, e à direita um pescador de ostras regressando a casa depois de um dia de apanha. Havia todo um reduto de imagens e ideias á escolha de um artista que quisesse embelezar a imaginação.

- Não podes ser feliz aqui, Ruby? - inquiriu Paul, suplicando com o olhar.

‑ Quem não conseguiria ser feliz aqui, Paul? É algo que se situa para lá das palavras. Sabes, porém, o que me tem levado a hesitar ‑ repliquei quase num sussurro.

‑ E sabes que pensei em tudo com o máximo cuidado e arranjei uma forma de estarmos juntos sem pecar. Oh, Ruby. Não temos culpa que os nossos pais nos tivessem criado com esta mancha de impureza na mente. Apenas quero zelar por ti e pela Pearl e dar‑vos felicidade e segurança para sempre.

‑ Mas... Paul, há um lado da vida que eliminarias para ti - lembrei‑lhe. ‑ És um homem, um belo homem cheio de juventude e virilidade.

- Estou disposto a fazê‑lo ‑ apressou‑se a vincar.

Baixei os olhos. Tinha de confessar os meus verdadeiros sentimentos.

‑ Ignoro se estarei disposta a fazê‑lo, Paul. Sabes que estive apaixonada, loucamente apaixonada, e experimentei o êxtase resultante de tocar em alguém que amamos e alguém que nos ama.

‑ Sei ‑ anuiu tristemente. ‑ Mas não te peço que abdiques desse êxtase.

‑ O que pretendes implicar? ‑ redargui, erguendo bruscamente os olhos.

‑ Estabeleçamos um pacto: se um de nós encontrar alguém com quem possa viver esse êxtase, o outro não obstruirá o caminho, mesmo que tal implique... a separação.

”Entretanto, Ruby, volta a aplicar toda a tua paixão na arte. Pelo meu lado, dedicar‑me‑ei ao trabalho e á minha ambição para todos nós. Deixa‑me dar‑te o que, sem este senão, seria o mais perfeito dos mundos, um mundo em que sabes que terás amor e em que a Pearl gozará de segurança e conforto, longe da infelicidade que vemos atingir tanta gente nas famílias a que chamamos normais ‑ suplicou.

Pearl fitou‑me, como que unindo‑se àquela súplica, com uma expressão terna e tranquila nos olhos cor de safira.

‑ Não sei, Paul.

‑ Podemos amparar‑nos. Podemos dar calor um ao outro. Podemos ajudar‑nos mutuamente... para sempre. Passaste por mais tragédia e infelicidade do que alguém da tua idade deveria ter sofrido. Por esse motivo, és mais velha do que os anos que tens. Deixa que a sabedoria substitua a paixão. Deixa que a lealdade, a dedicação e a pura bondade sejam os alicerces das nossas vidas. Juntos, criaremos o nosso mosteiro especial.

Fitei‑o nos olhos e deparei com uma expressão sincera. Era tudo tão irresistível: a sua devoção, aquela casa maravilhosa, a promessa de uma vida segura e feliz depois de haver vivido toda a tristeza que ele mencionara.

‑ E os teus pais, Paul? ‑ perguntei, sentindo‑me arrastada para um ”sim”.

‑ O que têm eles? ‑ replicou bruscamente. ‑ Criaram‑me no embuste. O meu pai aceitará a minha decisão e, se não o fizer... o que tem? Agora, sou dono da minha fortuna - acrescentou, ao mesmo tempo que os olhos se estreitavam e escureciam.

Abanei a cabeça, confusa. Lembrava‑me do amargo aviso da grandmère Catherine quanto a separar um homem cajun da família. Paul pareceu escutar o meu pensamento e descontraiu‑se.

- Escuta ‑ pediu. ‑ Falarei com o meu pai e vou mostrar‑lhe por que razão se trata de uma boa decisão para nós os dois Quando ele perceber que a escolha é positiva, compreenderá.

Mordi o lábio inferior e ia a abanar a cabeça numa recusa.

‑ Não digas sim, nem não ‑ apressou‑se a replicar. - Diz que vais pensar, pensar seriamente no assunto. Perseguir‑te‑ei para sempre, Ruby Dumas, até te tornares Ruby Tate - afirmou, virando‑se em seguida a fim de mostrar a paisagem a Pearl.

Recuei e observei‑os. ”Ele daria um pai maravilhoso”, voltei a pensar. ”Talvez seja chegada a altura de tomar uma decisão em beneficio da Pearl e não apenas de mim.”

Percorri com o olhar o que seria um estúdio fantástico, imaginando onde colocaria as minhas mesas e prateleiras. Quando me virei para trás, ele e Pearl fitavam‑me.

‑ Pode finalmente ser ”sim”? ‑ inquiriu, ao deparar com a expressão do meu rosto.

Esbocei um aceno de cabeça e ele inundou de beijos a carinha de Pearl, fazendo‑a rir.

O crepúsculo baixara já sobre o bayou quando regressámos à minha casa. As barbas‑de‑velho que se estendiam sobre os ciprestes e salgueiros ofereciam uma visão agradável e perturbante. Atravessámos as sombras lançadas pelas árvores que pendiam sobre a água e o movimento suave do barco embalou Pearl até a adormecer. Tudo era realmente maravilhoso ali, pensei. Pertencíamos àquele lugar e se tal significava viver com Paul ao abrigo do nosso acordo especial, talvez fosse isso o que o destino me reservava, a mim e a Pearl.

‑ Tenho de ir jantar a casa - anunciou Paul, quando chegámos ao cais e nos ajudou a sair do barco. ‑ O tio John, o irmão da minha mãe, chegou de Clearvater, na Florida, e prometi que estaria presente ‑ declarou num tom de desculpa.

‑ Está bem. Sinto‑me cansada e esta noite quero deitar‑me cedo.

‑ Apareço assim que puder, amanhã. Esta noite, se conseguir uma hora com o meu pai a sós, falo‑lhe da nossa decisão - acrescentou firmemente.

O coração começou a bater‑me com força no peito. Uma coisa era conversar de tudo aquilo e outra era dar, de facto, início à série de acontecimentos que nos tornaria marido e mulher.

‑ Espero que seja a decisão certa, Paul ‑ retorqui.

‑ Claro que é. Deixa de te preocupares. Seremos muito felizes ‑ prometeu e inclinou‑se para me beijar na face. ‑ Além disso, Deus deve‑nos um pouco de felicidade e sucesso ‑ acrescentou com um sorriso.

Fiquei a acenar‑lhe, enquanto ele se afastava no barco. Depois, dei de comer a Pearl e deitei‑a, comi um pouco de gumbo, li á luz do candeeiro a petróleo e fui dormir, rezando para que a sabedoria se encarregasse das decisões certas.

As manhãs começavam para mim exactamente da mesma maneira como no tempo em que vivera ali com a grandmère Catherine. Depois de levar lá para fora as mantas, cestos e chapéus de palmito que tecera na sala do tear, punha Pearl no carrinho, à sombra, junto á banca à beira da estrada e bordava para passar o tempo e esperar por clientes.

 

Estava uma manhã calma; uma meia dúzia de carros já havia parado, e à hora do almoço já vendera a maior parte das mantas e cestos. Tivera apenas alguns clientes para o meu gumbo e, em seguida, a tarde tranquila e quente instalara‑se sobre o bayou. Quando os insectos começaram a incomodar Pearl, resolvi que chegara a altura de fazer um intervalo e levei‑a para a cabana, a fim de que dormisse a sesta. Esperara que Paul aparecesse durante o almoço; mas a meio da tarde continuava sem dar sinal.

Preparei um pouco de limonada fresca e sentei‑me na varanda da frente, a pensar no passado. No bolso, conservava amarrotada a carta mais recente da minha irmã gémea, Gisselle. Frequentava um luxuoso colégio privado de Nova Iorque, que mais parecia um abrigo para jovens ricas e mimadas do que um estabelecimento de ensino superior. As professoras, segundo o que escrevia, desculpavam‑na quando não lia, não apresentava os trabalhos de casa ou não prestava atenção nas aulas. Gabava‑se mesmo de como faltava frequentemente às aulas sem que a repreendessem.

No entanto, em todas as cartas, adorava incluir algumas notícias sobre Beau e, ainda que elas me fossem dolorosas, tinha de lê‑las repetidas vezes. Desdobrei a carta e dediquei‑me a essas passagens. ”Pode interessar‑te saber”, escrevia, consciente de quanto eu desejava saber... que o Beau está a levar mais a sério a sua ligação com esta rapariga, na Europa. Os pais dele disseram à Daphne que o Beau e a sua debutante francesa se encontram a pouca distância de anunciarem um noivado formal. Não se cansam de a elogiar, de como é bonita, de como é rica, de como é culta. Afirmaram que a melhor coisa que poderiam ter feito por ele fora mandá‑lo para a Europa e mantê‑lo lá.

Agora, deixa‑me falar‑te dos rapazes aqui em Gallier...

 

Fiz uma bola com a carta e voltei a metê‑la no bolso. As recordações de Beau pareciam ainda mais fortes, agora que estava a pensar casar com Paul e optar por uma vida confortável e segura. Afigurava‑se, contudo, uma vida sem paixão e, sempre que reflectia nisso, pensava em Beau. O seu terno sorriso desenhou‑se na minha frente e recordei a manhã em que Gisselle e eu estávamos de partida para Greenwood, o colégio particular em Baton Rouge. Ele chegara mesmo à hora e só tivéramos uns minutos para as despedidas, mas surpreendeu‑me ao dar‑me o medalhão que ainda conservo escondido debaixo da blusa.

Tirei‑o para fora e abri‑o, a fim de contemplar o rosto dele e o meu. ”Oh, Beau”, pensei. ”Decerto nunca amarei outro homem tão apaixonadamente como te amei, e, se não pude ter‑te, talvez uma vida feliz e segura com o Paul seja a escolha certa.” A sensação de lágrimas quentes nas faces surpreendeu‑me. Limpei‑as rapidamente e voltei a sentar‑me no preciso momento em que um enorme automóvel conhecido estacionava no pátio. Era Octavíous, o pai de Paul. Fechei o medalhão e enfiei‑o de novo a toda a pressa por baixo da blusa, onde ficou entre os seios.

 

Mr. Tate, um homem alto e de aspecto distinto que se apresentava sempre bem vestido e altivo, desceu do carro. Vi‑lhe os ombros descaídos, como os de um velho cansado; o olhar também era triste. Paul fora buscar a sua beleza ao pai, dono de uma boca e maxilar de traçado firme e um nariz aquilino, sem ser grande ou pequeno de mais. Há já algum tempo que não via Mr. Tate e fiquei um pouco surpreendida ao verificar como tinha envelhecido entretanto.

‑ Boa tarde, Ruby ‑ cumprimentou, quando chegou aos degraus. ‑ Queria saber se seria possível falar‑te em privado.

O coração ameaçava saltar‑me do peito. Não me lembrava de termos trocado mais de meia dúzia de palavras ao longo dos anos, na sua maioria saudações e despedidas junto à igreja.

‑ Com certeza ‑ acedi, levantando‑me. ‑ Vamos lá para dentro. Quer um copo de limonada? Acabei de preparar um jarro.

‑ Sim, obrigado ‑ agradeceu, seguindo‑me até ao interior da casa.

‑ Sente‑se, por favor ‑ convidei, esboçando um aceno de cabeça na direcção da minha única peça de mobiliário em bom estado: a cadeira de balouço.

Servi‑lhe o copo de limonada e regressei à sala de estar.

‑ Obrigado ‑ agradeceu, pegando no copo, enquanto me sentava diante dele no desbotado sofá castanho, tão desfiado nos braços que já deixava ver a esponja que o forrava. ‑ Muito boa ‑ elogiou, depois de beber um gole de limonada. Olhou nervosamente em volta por um momento e sorriu. ‑ Não tens muita coisa, Ruby, mas manténs tudo em ordem ‑ observou.

‑ Não tanto como a grandmère Catherine o fazia ‑ repliquei.

‑ A tua grandmère era uma mulher de fibra. Devo confessar que nunca fui muito dado à cura pela fé nem aos remédios de ervas que ela preparava, mas conheço muitas pessoas que confiavam muito nela. E se alguém conseguia enfrentar o teu grandpère era ela ‑ acrescentou.

‑ Sinto muito a falta dela ‑ admiti. Ele esboçou um aceno de cabeça e bebeu mais um gole de limonada, após o que respirou fundo.

‑Acho... acho que estou um pouco nervoso. O passado tem artes de voltar e dar‑nos um murro no estômago, por vezes quando menos se espera ‑ retorquiu. Inclinou‑se para a frente, fixando‑me com um olhar duro e penetrante.

”És a neta da Catherine Landry ‑ prosseguiu ‑, e tu própria sofreste muito. Consigo ver no teu rosto que és muito mais velha e experiente do que a bonita rapariguinha que eu costumava ver caminhar até à igreja ao lado da sua avó.

‑ O passado deu‑nos um murro no estômago a ambos - redargui e detectei‑lhe um brilho mais vivo no olhar.

‑ Sim. Bom, nesse caso compreenderás porque é que não quero usar de subterfugios. Conheces um pouco do que aconteceu no passado e tens provavelmente algumas ideias a meu respeito. Só a mim me critico por isso. Há vinte e um anos, eu era o que poderia chamar‑se um homem muito jovem e emproado. Não estou aqui para justificar nem arranjar desculpas ‑ apressou‑se a vincar. ‑ O que fiz foi errado e tenho‑o pago de uma forma ou outra toda a minha vida.

”Mas a tua mãe... a Gabrielle... era uma jovem mulher muito especial. ‑ Abanou a cabeça e sorriu ante a recordação. - Dado ser a filha da tua grandmère, costumava pensar que ela era uma das deusas do pântano sobre quem os velhos murmuravam e em quem metade dos cristãos acreditava, apesar de tudo. Dava a sensação de que era impossível chegar junto dela, surpreendê‑la... sem que se desse pela sua beleza... a sua beleza tão espiritual. Sei que te é difícil compreender algo sobre uma mulher que nunca conheceste, mas ela era assim.

 

No fundo do coração, senti que se formavam ondas de medo. Por que razão me dizia tudo aquilo agora!

‑ Sempre que a via ‑ continuou ‑, sentia um baque no coração e apetecia‑me andar nos bicos dos pés à volta dela. Quando ela me olhava... assemelhava‑se àquela criatura grega... sabes, aquele querubim de arco e flecha.

‑ O Cupido?

‑ Sim, o Cupido. Eu era casado, mas ainda não tínhamos filhos. Tentei amar a minha mulher. Tentei mesmo ‑ afirmou, erguendo a mão ‑, mas era como se a Gabrielle lançasse feitiços ou coisa assim. Um dia, eu avançava sozinho com o barco, varejando pelo meio do pântano quando, ao descrever uma curva, a avistei nadando completamente nua. Pensei que o tempo havia parado. Fiquei paralisado e sustive a respiração. Não conseguia desviar o olhar dela. Tinha uns olhos jovens e felizes e riu quando deu pela minha presença. Fui incapaz de me dominar. Desfiz‑me das roupas o mais depressa que consegui e mergulhei na água. Nadámos lado a lado, salpicando‑nos de água um ao outro e atormentando‑nos com um abraçar e largar dos corpos. Segui‑a para fora de água até à canoa dela e aí...

”Bom... O resto já sabes. Admiti francamente o que tinha feito, mal se revelou. O teu grandpère Jack veio no meu encalço

”A Gladys ficou, obviamente, arrasada. Sucumbi, chorei e implorei‑lhe que me perdoasse. Acabou por não o fazer, mas comportou‑se de uma forma mais digna do que alguma vez julguei possível. Resolveu que imaginariamos que a criança era dela e deu início a um elaborado embuste, fingindo‑se grávida.

”O teu grandpère não ficou satisfeito com o pagamento inicial. Continuou a vir procurar‑me de tempos a tempos, exigindo mais, até que coloquei ponto final no assunto. Nessa altura, o Paul era um rapazinho e apercebi‑me de que ninguém acreditaria numa história contada pelo Jack Landry. Deixou de me importunar e tudo acabou ali.

”Claro que, desde então, passei a maior parte da minha vida a tentar compensar a minha mulher. A Gladys nunca permitiu que o Paul pensasse que ela era outra coisa que não sua mãe e, até saber a verdade, o Paul apenas sentiu um amor filial por ela. Estou certo disso. De facto, vou ao ponto de dizer que ele ainda nutre esse sentimento pela Gladys. Só que às vezes é um jovem terrivelmente confuso. Já tivemos as nossas discussões a esse respeito e pensei que ele compreendia, aceitava e até perdoava.

Fez uma pausa e, ansiosamente, de olhos semicerrados, ficou à espera que eu digerisse o relato.

‑ É muito para se pedir a alguém que perdoe, sobretudo o Paul ‑ observei. Os lábios dele retesaram‑se por um instante e depois esboçou um aceno de cabeça, como que a confirmar uma ideia a meu respeito.

‑ Tenho de confessar que quando fugiste para Nova Orleães me senti feliz ‑ continuou. - Julguei que ele começasse a procurar uma bonita jovem para sua mulher e o turbilhão findasse, mas... voltaste e na noite passada... na noite passada, veio ter comigo e pôs‑me a par da vossa decisão. Durante todo o tempo em que se ocupou da construção dessa mansão, receei algo do género, mas esperava ter‑me enganado.

Recostou‑se, momentaneamente esgotado.

‑ O nosso plano reside em vivermos juntos, lado a lado - repliquei num tom suave. ‑ De qualquer maneira, há muita gente por aqui a pensar que a Pearl é filha do Paul.

‑ Eu sei. A própria Gladys o receou durante um tempo até o Paul explicar o que se passara. Agora ela encontra‑se em profunda depressão. Ambos desejamos o melhor para o Paul - prosseguiu, voltando a sentar‑se, direito. ‑ Queremos que tenha uma vida normal, que tenha as coisas que competem a

qualquer homem, sobretudo filhos dele. Não me parece que ele se aperceba do que está a propor-te.

”Em resumo, Ruby, vim aqui para interceder a favor do meu filho. Vim aqui para pedir que recuses casar com ele. Não

há necessidade de que ele pague pelos pecados do pai. Talvez, por esta única vez, o filho não seja obrigado a ter os erros e a dor do pai pendentes sobre a sua cabeça. Podemos mudar tudo isso, impedir que aconteça, se o afastares. Depois, ele assentará e casará com qualquer bonita rapariga e...

‑ A última coisa que quero neste mundo é magoar o Paul, Mister Tate ‑ garanti, com as lágrimas a caírem‑me pelo rosto. Não fiz qualquer esforço para as limpar e escorreram‑me pelo queixo.

‑ Também faço este pedido pela minha mulher. Não quero que ela sofra mais. Parece que este pecado que cometi não morre. Voltou a erguer a sua horrível cabeça para me atormentar, mesmo vinte e um anos depois. ‑ Endireitou‑se no assento. ‑ Estou disposto a oferecer‑te alguma segurança, Ruby. Posso dar‑te o que precisas, até encontrares outro jovem e...

‑ Não! ‑ gritei. ‑ Não me ofereça um suborno, Mister Tate. Dá a sensação de que todos querem comprar os seus problemas neste mundo, quer se trate de crioulos ricos ou cajuns ricos, que todos pensam que o dinheiro tem o poder de remediar todos os erros. Estou a aguentar‑me perfeitamente e em breve herdarei dinheiro da herança do meu pai.

‑ Desculpa ‑ pediu num sussurro. ‑ Apenas pensei que...

‑ Não o quero.

Virei costas, e um pesado silêncio caiu entre nós.

‑ Peço‑te pelo meu filho ‑ declarou em voz baixa. Fechei os olhos e tentei engolir, mas tinha um nó na garganta. Era como se já tivesse engolido uma pequena pedra que se entalasse no meu peito. Esbocei um aceno de cabeça.

‑ Direi ao Paul que não posso fazê‑lo ‑ prometi ‑, mas não sei se consegue entender quanto ele o deseja.

‑ Compreendo. Estou preparado para fazer tudo ao meu alcance que o ajude a ultrapassar a situação.

‑ Não se ofereça para lhe comprar nada ‑ avisei, de olhos chispantes e ele pareceu encolher‑se na cadeira de balouço. ‑ O Paul não é como o grandpère Jack.

‑ Eu sei ‑ disse e acrescentou, passado um momento: - Tenho mais um favor a pedir-te.

‑ O que é? ‑ quis saber, fervilhando de raiva como leite a ferver numa cafeteira.

‑ Por favor, não lhe contes que vim aqui, hoje. Tive de o mandar fazer um recado que o afastasse destas bandas para te poder visitar sem que ele o soubesse. Se descobrisse...

‑ Não lhe contarei ‑ retorquí.

‑ Obrigado ‑ agradeceu, levantando‑se. ‑ És uma jovem fantástica e muito bonita também. Tenho a certeza de que um dia encontrarás a felicidade, e se houver algo que precises, algo que possa fazer por ti...

‑ Não há nada ‑ interrompi, bruscamente. Ele detectou a fúria estampada nos meus olhos, e o sorriso desvaneceu‑se.

‑ Tenho de ir andando ‑ declarou.

Não me levantei. Deixei‑me ficar sentada, de olhos postos no chão, até o ouvir sair, ligar o motor do carro e afastar‑se. Depois atirei‑me para cima do sofá e chorei até me secarem as lágrimas.

 

UMA QUESTÃO POR RESOLVER

Quando Pearl acordou da sesta, dei‑lhe um biberão e levei‑a outra vez lá para fora. Sentei‑me junto à banca da estrada, atenta à possibilidade de negócio ao fim da tarde. Houve muita actividade durante cerca de uma hora e depois a estrada ficou calma e vazia, enquanto o poente estendia as suas longas sombras sobre o alcatrão, num correr do reposteiro sobre o dia.

Tinha o coração pesado. A visita de Mr. Tate lançara uma profunda tristeza sobre tudo. Era como se Pearl e eu não tivéssemos casa. Não pertencíamos ao bayou e não pertencíamos a Nova Orleães, mas achava que ainda seria pior viver aqui, depois de ter repelido Paul. Sempre que ele me visitasse, se é que desejaria fazê‑lo, existiria esta tempestade de tristeza pendente sobre as nossas cabeças.

”Talvez Mister Tate tenha razão”, pensei. Talvez depois de ter recusado Paul, ele encontrasse outra pessoa, mas mesmo que tal fosse uma fraca possibilidade, sabia que teria muito mais hipótese de se concretizar se Pearl e eu desaparecêssemos realmente da vida dele. Depois de se aperceber de que o nosso casamento e vida em comum era impossível, poderia procurar a felicidade noutro lado.

Mas para onde iríamos? O que faríamos?, interroguei‑me. Não tinha outros parentes a quem pudesse recorrer. Transportei Pearl para dentro de casa e levei o que restava na banca, tentando desesperadamente pensar em qualquer tipo de futuro para nós. Por fim, tive uma ideia. Resolvi engolir o orgulho, sentei‑me à mesa e escrevi uma carta a Daphne.

 

”Cara Daphne,

Estive sem lhe escrever durante todo este tempo, porque não me passou pela cabeça que lhe interessasse ter notícias minhas. Longe de mim afirmar que não tenha ficado perturbada por saber que eu estava grávida do Beau. Tenho idade suficiente para tomar consciência que devo ser responsável pelos meus actos, mas era incapaz de ir por diante com o aborto que me propusera e, agora que tenho a minha filha, a quem chamei Pearl, sinto‑me feliz por não o haver feito, embora saiba que as nossas vidas serão dificeis.

Julguei que se regressasse ao bayou, ao mundo onde crescera e fora feliz, tudo correria bem e não representaria um problema para ninguém e muito menos para a Daphne. Nunca nos entendemos enquanto o meu pai foi vivo e não prevejo que a situação venha a mudar.

No entanto, as circunstâncias aqui não se processam como imaginei e cheguei à conclusão de que não posso permanecer. Contudo, fique tranquila. Não estou a pedir‑lhe que me aceite de novo. Peço‑lhe apenas que me dê parte da minha herança agora, para que possa construir uma vida para mim e para a minha filha noutro lugar... não em Nova Orleães, nem tão‑pouco no bayou. Não irá dar‑me nada que não me pertença; apenas mo dará mais cedo. Estou certa de que concordará em que o meu pai desejaria que o fizesse.

 

Por favor; tome este assunto em consideração e informe‑me assim que puder. Garanto‑lhe que, mal o faça, pouco ou nenhum contacto teremos.

Cumprimentos,

Ruby”.

 

Enquanto endereçava a carta, ouvi um carro a parar junto da minha casa. Parei de escrever e apressei‑me a esconder a carta no bolso do vestido.

‑ Olá ‑ saudou Paul. ‑ Desculpa não ter chegado mais cedo, mas um recado levou‑me até Breaux Bridge. Que tal foi o teu dia? Agitado?

‑ Um pouco ‑ respondi, baixando o olhar, mas era tarde de mais.

‑ Passa‑se alguma coisa ‑ retorquiu. ‑ O que é?

‑ Paul ‑ comecei, depois de respirar fundo. ‑ Não podemos fazê‑lo. Não podemos casar e viver em Cypress Woods. Pensei e repensei no assunto e sei que é impossível.

‑ O que te levou a mudar de opinião? ‑ perguntou, com um esgar de surpresa e desapontamento. ‑ Ontem, estavas tão feliz, na casa. Era como se uma nuvem tivesse deixado de te ensombrar o rosto ‑ recordou‑me.

‑ Estavas certo quanto a Cypress Woods. A casa e a propriedade emanam magia. Foi como se tivéssemos entrado num mundo de fantasia e, por momentos, deixei‑me convencer. Ali foi fácil fingir e ignorar a realidade.

‑ E então? E o nosso mundo. Posso torná‑lo tão maravilhoso quanto um mundo de fantasia. E desde que não magoemos ninguém...

‑ Mas estamos a magoar alguém, Paul. Estamos a magoar‑nos um ao outro ‑ vinquei, num tom triste.

‑ Não ‑ retorquiu, mas sabia que tinha de falar depressa e bruscamente, ou romperia em lágrimas.

‑ Estamos, sim. Podemos fingir. Podemos fazer promessas. Podemos fazer acordos especiais, mas o resultado é o mesmo... estamos a condenar‑nos a uma vida contra a natureza.

‑ Contra a natureza... estar com alguém que se ama e se deseja proteger e...

‑ E que nunca se abraçará com paixão, de quem nunca se terá filhos, sem jamais revelar a verdade... Nunca poderemos contar à Pearl com medo das consequências. Sou incapaz.

‑ Claro que poderemos contar‑lhe quando tiver idade para entender ‑ corrigiu. ‑ E ela entenderá. Ouve, Ruby...

‑ Não, Paul. Eu... não acho que consiga fazer os sacrificios de que tu te julgas capaz ‑ concluí.

Fixou‑me por um momento de olhos semicerrados e com um brilho de suspeita.

‑ Não te acredito. Aconteceu qualquer coisa. Alguém te falou. Quem foi? Uma das amigas da tua grandmère Catherine? O padre? Quem?

‑ Não ‑ ripostei. ‑ Ninguém falou comigo, excepto se a minha própria consciência também contar. ‑ Tive de desviar o rosto. Não conseguia aguentar a dor que os olhos dele reflectiam.

‑Mas... Tive uma conversa com o meu pai na noite passada e, depois de lhe explicar tudo, ele concordou e deu‑me a sua aprovação. As minhas irmãs nada conhecem do passado; por isso, ficaram contentíssimas ao saber que serias minha mulher e a nova irmã delas. E até mesmo a minha mãe...

‑ O que há quanto à tua mãe, Paul? ‑ inquiri num tom áspero. Ele fechou e abriu novamente os olhos.

‑ Aceitará ‑ prometeu.

‑ Aceitar não é aprovar ‑ ripostei, abanando a cabeça e disparando as palavras como se fossem balas. ‑ Se aceitar, é porque não quer perder‑te ‑ salientei. ‑ De qualquer maneira, a decisão não é dela. É minha ‑ acrescentei um pouco mais rispidamente do que era minha intenção.

Paul empalideceu.

‑Ruby... a casa... tudo o que tenho... é apenas para ti. Nem sequer quero saber de mim... para ti e para a Pearl.

‑ Tens de preocupar‑te contigo, Paul. Devias fazê‑lo. E errado da minha parte ser egoísta ao ponto de te negar um casamento normal e uma família normal.

‑ Mas cabe‑me a mim decidir ‑ protestou.

‑ Estás demasiado... confuso para tomar a decisão certa - redargui, desviando o olhar.

‑ Reflecte melhor no assunto ‑ suplicou e esboçou um aceno de cabeça, convencendo‑se de que ainda havia esperança.

‑           Volto amanhã para falarmos outra vez no assunto.

‑ Não, Paul. Já decidi. Não vale a pena estarmos sempre a falar no mesmo. Sou incapaz de aguentar. Incapaz ‑ gritei, chorosa e virando‑lhe as costas. Pearl, sentindo a infelicidade que se gerara entre nós, pôs‑se também a chorar. ‑ É melhor ires embora ‑ disse. ‑ O bebé está a ficar perturbado.

‑Ruby...

‑ Por favor, Paul. Não tornes isto ainda mais difícil do que tem de ser.

Dirigiu‑se à porta, mas deixou‑se ficar na ombreira, a olhar lá para fora.

‑ Durante todo o dia andei como se estivesse nas nuvens - confessou. ‑ Nada podia fazer‑me infeliz.

Embora me sentisse muito mal, consegui recompor‑me.

‑ Voltarás a sentir‑te assim, Paul ‑ garanti. ‑ Tenho a certeza.

‑ Não, não voltarei ‑ retorquiu, virando‑se para mim com os olhos cheios de dor e raiva. Tinha as faces tão vermelhas que parecia um turista do Norte, queimado do sol. ‑ Juro que nunca mais olharei para outra mulher. Nunca mais beijarei outra mulher. Nunca mais abraçarei outra mulher. ‑ Ergueu o punho direito e agitou‑o na direcção do tecto. ‑ Farei os mesmos votos de castidade que o nosso padre e transformarei aquela mansão num santuário. Ali viverei sozinho para sempre e ali morrerei sem ninguém ao meu lado, ninguém exceptuando a tua recordação ‑ acrescentou, depois do que abriu a porta, atravessou a varanda a correr e transpôs os degraus.

‑ Paul! ‑ gritei.

Não conseguia vê‑lo tão irritado e magoado. Mas ele não voltou. Ouvi‑o ligar o motor, e os pneus chiaram quando partiu a toda a velocidade, de coração despedaçado.

Dava a sensação de que conseguia magoar todos em que tocava. Teria eu nascido para provocar dor aos que me amavam?

Engoli as lágrimas para que Pearl não ficasse triste, mas sentia‑me como uma ilha rodeada de um mar encapelado. Agora não tinha realmente ninguém.

 

Quando o coração acalmou, comecei a preparar o jantar. A minha filha pressentiu a minha infelicidade, apesar das minhas tentativas de a dispersar com o trabalho. Sempre que falava, ela ouvia‑a na minha voz e, ao fitá‑la, divisava a tristeza nos meus olhos.

Enquanto o caldo fervia, sentei‑me com ela na cadeira de balouço da grandmére Catherine, observando o retrato. Os rostos da grandmére Catherine e da minha mãe pareciam ambos tristes e compreensivos. A recordação muito viva da perturbação de Paul pairava à minha volta, semelhante a tempestade. Sempre que olhava para a porta, via‑o de pé, olhando para trás e proferindo as suas juras e ameaças. Por que razão estava a magoar a única pessoa que queria amar‑me e dar ternura a mim e à minha filha? Onde é que voltaria a encontrar tal afecto?

‑ Estou a agir devidamente, grandmère? ‑ sussurrei, mas apenas me respondeu o silêncio e Pearl estalou os lábios.

Dei‑lhe de comer, mas o apetite dela era tão reduzido quanto o meu. Chupou apenas um pouco do biberão e, enquanto o fazia, fechava os olhos inúmeras vezes. Era como se estivesse tão emocionalmente exausta quanto eu, como se cada sentimento, cada emoção passasse de mim para ela através dos fios invisíveis que ligavam mãe e filha.

Resolvi levá‑la para cima e metê‑la na cama; acabara de me levantar para o fazer, quando ouvi o ruído de um carro a aproximar‑se. Os faróis varreram a casa, depois parou e ouvi o abrir e fechar de uma porta. Paul teria voltado com novos argumentos? Mesmo que assim fosse, não vacilaria na minha decisão, pensei.

Os pesados passos no chão, lá fora, indicaram‑me, todavia, que se tratava de outra pessoa. Soaram fortes pancadas na porta que fizeram com que toda a cabana abanasse nas suas finas estacas de madeira. Avancei devagar da cozinha e o coração pôs‑se a bater‑me no peito com quase tanta força como aquelas pancadas.

‑ Quem é? ‑ perguntei.

Pearl também olhou, curiosa, na direcção da porta. Em vez de responder, o visitante empurrou tão bruscamente a porta que quase a arrancou dos gonzos. Vi entrar um homem enorme, com o cabelo castanho e hirsuto chegando‑lhe ao pescoço sujo e volumoso. As mãos eram imensas, com dedos cobertos de gordura e fuligem. Quando ficou sob a luz do candeeiro a petróleo, soltei uma exclamação abafada.

Embora o houvesse encontrado uma única vez depois de apenas o ter visto umas escassas vezes antes, o rosto de Buster Trahaw ficara‑me na memória ao lado dos meus piores pesadelos. Estava ainda mais feio do que no dia em que viera lá a casa com o grandpère Jack para firmarem o acordo de que nos casaríamos, se ele desse mil dólares ao meu avô. Pior ainda, este permitiria que ele dormisse comigo antes, para me testar, como se eu fosse qualquer peça de mercadoria.

Recordava‑me dele como um homem de trinta e tal anos, alto e robusto, com uma faixa de gordura à volta do estômago e dos lados, que fazia com que parecesse usar um tubo por baixo da camisa. Agora estava ainda mais gordo, e os traços faciais, distorcidos pelo peso, davam‑lhe ares do cruzamento entre um porco e um homem. E usava além disso uma barba encaracolada e por aparar à roda do queixo com pêlos esparsos e unidos no pescoço, tornando‑o igualmente semelhante a um macaco.

 

Quando sorria, os lábios grossos quase desapareciam sob o bigode e pêlos do queixo, revelando a falta da maioria dos dentes da frente. Os que restavam estavam manchados de tabaco de mascar, fazendo com que a boca se assemelhasse a um forno imundo. A pele na parte visível das faces era escamosa, assemelhando‑se à de uma cobra. Das narinas enormes saíam pêlos finos, e as sobrancelhas uniam‑se numa linha grossa e escura sobre os olhos castanhos e desorbitados.

‑ É verdade! ‑ exclamou. ‑ Voltaste. Os Síater informaram‑me quando trouxe o meu camião para reparar.

Inclinou‑se para trás, abriu um pouco a porta e cuspiu um bocado de tabaco de mascar. Depois continuou a mirar‑me com um enorme sorriso.

‑ O que deseja? ‑ inquiri, apertando Pearl com força nos braços. Ela pôs‑se a choramingar baixinho, como um cachorrinho, ao vê‑lo.

‑ O que desejo? ‑ replicou, ao mesmo tempo que o sorriso desaparecia. ‑ Não sabes quem sou? Sou o Buster Trahaw

e desejo o que me pertence, é isso ‑ vincou, avançando uns

passos. Recuei outros tantos. ‑ É essa a tua criança? É um

doce. Com que então andaste a fazer bebés sem mim? ‑ acrescentou e soltou uma risada. ‑ Pois isso acabou.

Senti‑me sem pinga de sangue quando deixou bem claras as suas intenções.

‑ Do que está para aí a falar? Saia. Não o convidei para a minha casa. Saia ou...

‑ Eh! Esqueces‑te do que me pertence?

‑ Ignoro do que está a falar.

‑ Estou a falar do acordo que fiz com o teu grandpère Jack, do dinheiro que lhe dei na noite antes de fugires. Deixei que o guardasse, porque ele disse que voltarias. Sabia, claro, que ele era um velho mentiroso, mas calculei que o dinheiro estava gasto e bem gasto. Disse com os meus botões: ”A tua altura chegará, Buster.” E chegou mesmo, hem?

‑ Não ‑ ripostei. ‑ Não fiz acordos consigo. Agora, saia.

‑ Não saírei sem ter o que me pertence. O que tem de tão estranho? Fazes bebés sem um marido ao teu lado, não é verdade? ‑ replicou com aquele sorriso desdentado.

‑Saia! ‑ gritei.

Pearl pôs‑se a chorar. Ia a virar as costas, mas Buster agiu rapidamente e agarrou‑me o pulso.

‑ Cuidado. Não deixes cair o bebé ‑ avisou num tom de ameaça.

Tentei manter o rosto afastado do dele. O hálito e o cheiro provenientes da roupa e do corpo bastavam para me dar a volta ao estômago. Começou a desprender‑me os braços de Pearl.

‑ Não! ‑ opus‑me, mas não queria que o bebé se magoasse. Pearl gritou histericamente quando ele lhe rodeou a cintura com aquelas mãos grandes e sujas.

‑ Deixa‑me pegar‑lhe um instante, está bem? Também tenho filhos. Sei como se faz.

De preferência a lutar e a puxar Pearl entre nós, tive de soltá‑la.

‑ Não a magoe ‑ supliquei. Ela chorava e estendia os braços na minha direcção.

‑ Ei, então... é... o teu tio Buster ‑ disse. ‑ Bonita menina. Aposto que também vai dar cabo do coração de alguém.

‑ Por favor, devolva‑ma ‑ implorei.

‑ Claro. O Buster Trahaw não faz mal a bebés. O Buster Trahaw faz bebés ‑ replicou e riu da própria piada.

 

Voltei a pegar em Pearl e recuei.

‑ Mete‑a na cama ‑ ordenou. ‑ Temos negócios a tratar.

‑ Por favor, deixe‑nos sós... por favor...

‑ Não me vou embora sem ter o que vim procurar ‑ insistiu. ‑ Agora, vai ser difícíl ou fácil? Para mim, pode ser das duas maneiras. Mas a verdade é que prefiro à bruta ‑ redarguiu, voltando a sorrir. ‑ É como lutar com um aligátor. - Avançou na minha direcção, e eu soltei uma exclamação abafada. ‑ Mete‑a na cama, ou vai começar a ser já educada, ouviste?

Engoli em seco. Era díficíl respirar e não morrer asfixiada por tudo o que estava a acontecer.

‑ Põe‑na naquele sofá ‑ ordenou. ‑ Vai chorar até adormecer, como a maioria dos bebés. Vai lá.

Fixei o sofá e a porta; embora fosse estúpido, teve senso bastante para prever a minha intenção e recuou para me impedir a fuga. Levei relutantemente Pearl até ao sofá e deitei‑a. Ela não parava de gritar.

Buster agarrou‑me no pulso e atraiu‑me a si. Tentei resistir, mas assemelhava‑se a suster a maré. Envolveu‑me nos braços gigantescos, esmagando‑me de encontro ao estômago e ao peito. Depois, beliscou‑me o queixo com os dedos grossos e forçou‑me a erguer o rosto, de forma a poder pousar os lábios moles na minha boca. Sufocava sob aquela pressão húmida, sustendo a respiração e tentando manter a consciência. Temia que, se desmaiasse, ele me arrancasse a roupa e levasse a melhor.

Fez descer a mão direita até abaixo da minha cintura; agarrou‑me pelo traseiro, em concha, e ergueu‑me, balançando‑me nas mãos, como se o meu peso fosse igual ao de Pearl.

‑ Mas que bela peça de mercadoria temos aqui. O teu grandpère Jack tinha razão. Oh, se tinha...

‑ Por favor ‑ supliquei. ‑ Perto da criança, não! Por favor.

‑ Claro, querida. De qualquer maneira quero uma cama a sério para nós. Vai à frente e mostra o caminho até lá acima.

Virou‑me bruscamente e empurrou‑me para a cozinha e depois em direcção à escada. Virei a cabeça e fitei Pearl. Ela chorava a plenos pulmões e todo o corpinho lhe tremia.

‑ Vá ‑ ordenou Buster.

Obedeci, enquanto procurava forma de me escapar. Pousei os olhos no caldo que deixara a ferver no fogão.

‑ Espere ‑ disse. ‑ Tenho de desligar isto.

‑ Ora aí está uma boa mulher cajun ‑ elogiou Buster. Sempre a pensar nos seus cozinhados. Depois, poderei provar um bocado do teu gumbo. Quando vou para a cama, fico sempre com uma fome de urso.

Recuou para trás de mim. Sabia que dispunha apenas de uns segundos e que, se não os aproveitasse, estaria condenada a subir aquelas escadas. Uma vez lá, estaria encurralada e à sua mercê. Mesmo que pudesse atirar‑me de uma janela não o faria, pois estaria a deixá‑lo a sós com Pearl. Fechei os olhos, rezei e agarrei com força nas pegas da panela. Depois, virei‑me o mais rapidamente que consegui e atirei o conteúdo a ferver à cara de Buster.

 

Ele gritou e, encolhendo‑me por baixo dos seus braços, disparei como uma seta para fora da cozinha. Agarrei em Pearl e precipitei‑me pela porta da cabana, ao longo da varanda e pelos degraus. Corri pela noite sem olhar para trás. Escutei os seus gritos e pragas e ouvi‑o aos tropeções lá dentro, derrubando cadeiras, partindo pratos e estilhaçando o vidro de uma janela com raiva. Mas não parei. Continuei a correr através da escuridão.

Pearl ficou tão chocada com a minha atitude que deixou de chorar. Contudo, tremia de medo, sentindo o palpitar do meu próprio corpo. Receei que Buster viesse atrás de nós, mas, ao ver que não o fazia, temi que se metesse no carro e nos perseguisse. Mantive‑me, portanto, nas valas junto à berma da estrada, disposta a mergulhar nos arbustos e a esconder‑me, mal avistasse faróis de carro.

Ignoro como consegui equilibrar‑me e não cair com Pearl nos braços, mas tive a sorte de haver algum luar, espreitando para lá das nuvens. Proporcionava‑me luz suficiente para ver o caminho na minha frente. Por sorte, nunca avistei o carro. Cheguei a casa de Mrs. Thibodeau e bati com força à porta da frente.

‑ Ruby! ‑ exclamou, mal me avistou com Pearl ao colo.

‑           O que aconteceu?

‑ Oh, Mistress Thibodeau. Ajude‑nos, por favor. O Buster Trahaw acabou de tentar violar‑me na minha casa ‑ gritei. Ela abriu a porta e deixou‑nos entrar de imediato, fechando‑a à chave.

‑ Senta‑te ali na sala de estar ‑ disse, pálida ante o choque. ‑ Vou buscar-te água e depois telefono à Polícia. Graças a Deus que mandei instalar telefone no ano passado.

Trouxe‑me um copo de água da cozinha e pegou em Pearl ao colo. Bebi o líquido fresco e recostei‑me, de olhos fechados, com o coração a bater‑me com tanta força que julguei que Mrs. Thibodeau pudesse vê‑lo a subir e descer sob a blusa.

‑ Pobre rapariga, pobre criança. Oh, meu Deus... O Buster Trahaw, disseste. Oh, meu Deus...

Pearl deixou de chorar. Gemeu um pouco e depois fechou os olhos e adormeceu. Peguei‑lhe novamente, enquanto Mrs. Thibodeau regressava à cozinha para chamar a Polícia. Pouco depois chegou um carro‑patrulha e, quando os dois agentes entraram, descrevi o que me acontecera.

‑ Temos mais do que uma queixa contra esse inútil ‑ declarou um dos polícias. ‑ Deixe‑se ficar aqui até voltarmos.

Não estava em condições de me mexer um centímetro que fosse. Cerca de uma hora depois, vieram informar‑nos de que ainda o tinham encontrado na minha cabana. Causara alguns prejuízos e depois fora buscar uma garrafa de uísque ao carro e sentara‑se à espera do meu regresso. Pelo que contaram, fora necessário chamarem mais dois colegas para os ajudar a dominar Buster.

‑ Metemo‑lo na cadeia, onde ele pertence ‑ informou‑me o polícia. ‑ Mas terá de acompanhar‑nos ao posto, a fim de apresentar queixa. Pode fazê‑lo agora ou de manhã.

‑ Ela está exausta ‑ observou Mrs. Thibodeau.

‑ Amanhã, então ‑ anuiu o polícia. ‑ De qualquer maneira, não deve querer voltar à sua casa, por agora ‑ acrescentou, olhando para Mrs. Thibodeau. ‑ Precisará de uns arranjos.

‑ Oh, Mistress Thibodeau! ‑ gemi. ‑ Ele deu cabo da única casa que tenho.

‑ Então, então. Sabes que todos te ajudaremos a repará‑la. Não te preocupes. Agora, dorme um pouco para que a Pearl te veja fresca e alegre de manhã.

Esbocei um aceno de concordância. Ela trouxe‑me um cobertor e deitei‑me no sofá com Pearl nos meus braços. Julguei que seria incapaz de dormir, mas, mal fechei os olhos, o cansaço apoderou‑se de mim; depois do que me pareceram uns instantes, o sol da manhã aquecia‑me o rosto. Pearl gemeu, quando me mexi. Acordou totalmente, pestanejou e fitou‑me. Ao compreender pelos meus olhos que estava a salvo, sorriu. Beijei‑a e agradeci a Deus por termos escapado.

Depois de Mrs. Thibodeau nos ter preparado o pequeno‑almoço, deixei Pearl na sua companhia e fui a pé à cidade, a fim de apresentar queixa no comissariado. Não podiam ter sido mais simpáticos. Arranjaram‑me de imediato uma cadeira e certificaram‑se de que estava bem instalada. Uma secretária trouxe‑me café.

‑ Não tem de preocupar‑se a provar o que quer que seja - declarou o polícia que estava sentado à secretária. ‑ O Buster não nega o que fez. Continua a queixar‑se de que não obteve a recompensa pelo dinheiro que pagou. O que quer dizer com isso?

Tive de contar‑lhe o que o grandpère Jack fizera. Sentia‑me envergonhada, mas era a minha única saída. Todos os polícias que ouviram a história esboçaram um aceno de compreensão e repugnância pelo sucedido. Infelizmente, alguns deles ainda se recordavam muito bem do grandpère Jack.

‑ Ele e o Buster são feitos da mesma fibra ‑ afirmou o polícia que estava sentado à secretária. Em seguida, recolheu o meu depoimento e disse‑me que não me preocupasse. Buster Trahaw não voltaria a incomodar‑me. Zelariam para que fosse

metido em algum lugar de que perderiam a chave. Agradeci‑lhes e voltei para casa de Mrs. Thibodeau.

 

Acho que o motivo por que algumas das pessoas do bayou ainda não tinham telefones nem televisores nas cabanas se devia a que as notícias viajavam quase tão depressa como se eles existissem. Quando peguei em Pearl e me dirigi à nossa casa, havia cerca de uma dúzia de vizinhos ocupados com ela. Tomado de raiva, Buster deitara abaixo a porta da frente e partira quase todas as janelas.

Por milagre, a velha cadeira de balouço da grandmère Catherine sobrevivera, embora aparentemente ele lhe tivesse dado uns pontapés. O mesmo não aconteceu a duas das cadeiras da cozinha, que ficaram com as pernas partidas. Por sorte, começara a beber antes de resolver subir ao andar de cima e, assim, não quebrara nada. Destruíra, contudo, uma boa parte da minha cozinha. Depois de conhecidos os pormenores, os meus vizinhos providenciaram os arranjos.

Ao chegar a casa, avistei Mr. Rodrigues a reparar a porta de entrada. Recordei‑me de uma noite em que a grandmére Catherine fora chamada à casa dele para se ocupar de um couchemal, um espírito do mal que fica a pairar sempre que uma criança não batizada morre. Mostrou‑se muito grato e, depois dessa noite, nunca se poupava a esforços para nos ajudar.

 

Lá dentro, Mrs. Rodrigues e as outras mulheres andavam a limpar tudo. Já haviam feito uma colecta para substituir os pratos e copos partidos. Antes da tarde, tudo se assemelhava a uma grande romaria, como aquelas em que um grupo de vizinhos ajuda a reparar um telhado, sucedendo‑se depois uma festa em que todos trazem qualquer coisa. A bondade dos meus vizinhos fez com que as lágrimas começassem a correr‑me pelo rosto.

‑ Não, não chores, Ruby ‑ pediu Mrs. Livaudis. ‑ Estas pessoas recordam as coisas boas que a tua grandmére Catherine fez por elas e sentem‑se felizes por poderem ajudar‑te.

‑ Obrigada, Mistress Livaudis ‑ agradeci, e ela abraçou‑me, como as restantes mulheres, antes de se ir embora.

‑ Não me agrada deixar‑te sozinha ‑ declarou Mrs. Thibodeau. ‑ Podem voltar para a minha casa, se quiseres.

‑ Ficaremos bem agora, Místress Thibodeau. Obrigada pela sua ajuda ‑ repliquei.

‑ A gente cajun não se magoa entre si ‑ salientou Mrs. Thibodeau. ‑ Esse Buster foi sempre um ovo podre, desde o dia em que o conceberam.

‑ Eu sei, Mistress Thibodeau.

‑ Mesmo assim, querida, não está certo que uma jovem como tu fique aqui sozinha nos pântanos com uma criança para criar. ‑ Abanou a cabeça e premiu os lábios. - Aquele que partilhou o prazer de a conceber devia igualmente partilhar as responsabilidades ‑ acrescentou.

‑ Eu fico bem, Mistress Thibodeau. A sério.

‑ Espero que não te importes que diga o que penso, Ruby, mas sei que a tua grandmère iria querer que me preocupasse, e preocupo‑me.

Esbocei um aceno de cabeça.

‑ Bom, é tudo. Já falei. Agora é contigo. Os tempos mudaram ‑ continuou, abanando a cabeça. ‑ Os tempos e as pessoas. Boa noite, querida. ‑ Abraçámo‑nos e ela foi‑se embora.

Ao princípio da noite todos se haviam afastado e o ambiente voltou a acalmar‑se. Deitei Pearl cantando‑lhe baixinho, e depois desci para tomar um café e sentar‑me cá fora. As palavras de Mrs. Thibodeau ecoaram novamente: sabia que se tratava de palavras não só pensadas por outras vizinhas, mas também ditas por elas nas minhas costas. O incidente com Buster Trahaw apenas contribuíra para que o assunto fosse muito mais verbalizado.

Quando mudei de roupa, encontrei no bolso a carta que tinha escrito a Daphne. Agora, mais do que nunca, sentia que devia deitá‑la no correio. Voltei a casa, acabei de escrever a morada e saí novamente para a pôr na caixa do correio, a fim de que o carteiro a recolhesse de manhã. Sentei‑me outra vez na varanda e senti‑me finalmente descontraída.

Contudo, momentos depois, um arrepio na nuca levou‑me a tomar consciência de que alguém se encontrava por perto a observar. Senti um aperto no coração. Sustive a respiração e, ao virar‑me, avistei a silhueta de alguém recortada nas sombras. Soltei uma exclamação abafada, mas a pessoa deu rapidamente um passo em frente. Era Paul. Regressara de barco e viera a pé do embarcadouro.

‑ Não era minha intenção assustar-te ‑ replicou. ‑ Queria esperar até todos se terem ido embora. Estás bem?

‑ Sim. Agora.

‑ Quanto tempo passou depois de me ter ido embora, antes de o Buster ter vindo atacar‑te? ‑ inquiriu, colocando‑se mais sob o brilho da luz da varanda.

‑ Oh, bastante ‑ respondi. ‑ Foi quase à hora do jantar.

‑ Se estivesse aqui...

‑ Podias ter‑te ferido, Paul. Foi uma sorte ter conseguido escapar.

‑ Podia ter‑me ferido ou tê‑lo ferido ‑ redarguiu, orgulhoso. ‑ Ou... ele podia nem sequer aparecer ‑ acrescentou. Sentou‑se no degrau da varanda e encostou‑se à coluna. Um momento depois, comentou: ‑ Uma jovem e uma criança não deviam estar sós. ‑ Era como se tivesse ouvido as palavras de Mrs. Thibodeau.

‑Paul...

‑ Não, Ruby ‑ replicou, voltando‑se na minha direcção. Mesmo sob aquela luz escassa, conseguia detectar o brilho de determinação transmitido pelo olhar. ‑ Quero proteger‑te, a ti e à Pearl. No mundo que consideras pura magia, não terias de defrontar os tipos da laia do Buster Trahaw. Posso prometer‑to. Nem tão‑pouco a Pearl ‑ assinalou.

‑ Mas não é justo para ti, Paul ‑ ripostei num fio de voz cansado. Toda a minha resistência se esvaía.

Fitou‑me um momento e depois esboçou um vagaroso aceno de cabeça.

‑ O meu pai veio falar contigo, não foi? Não precisas de responder. Sei que o fez. Li‑lhe a verdade nos olhos, na noite passada ao jantar. Apenas se preocupa com o peso da própria consciência. Por que razão tenho de pagar pelos seus pecados? ‑     gritou, sem aguardar a minha resposta.

‑ Mas é exactamente o que ele não quer que faças, Paul. Se casares comigo...

‑ Serei feliz. Não tenho poder de decisão sobre o meu futuro? ‑ replicou. ‑ E não venhas dizer‑me que é o destino, Ruby. Quando se chega a uma bifurcação de canais, escolhe‑se um ou outro. Só depois de se ter feito a escolha é que o destino assume o controlo e talvez nem mesmo então. Quero fazer essa primeira escolha e não receio o canal por onde dirigir a nossa piroga, desde que tu e a Pearl estejam ao meu lado.

Suspirei e recostei a cabeça na cadeira.

‑ Não podes ser feliz comigo, Ruby? Mesmo sob as condições que definimos? Não podes? Achaste que sim. Sei‑o. Porque não tentamos pelo menos? Porque não me deixas tentar? Esquece‑te de ti, esquece‑te de mim. Façamo‑lo apenas pela Pearl ‑ sugeriu.

‑ Golpe sujo, Paul Marcus Tate ‑ sorri, abanando a cabeça.

‑ No amor e na guerra vale tudo ‑ asseverou, sorrindo também.

Respirei fundo. Do escuro podiam surgir todos os demónios dos nossos medos infantis. à noite, sempre que pousávamos a cabeça na almofada, interrogávamo‑nos sobre o que as sombras à volta das cabanas ocultavam. Não era ingénua ao ponto de pensar que não haveria mais Buster Trahaws à espera ao longo dos dias seguintes e foi o que me levou a deitar a carta para Daphne no correio.

 

Mas que mundo era esse em que queria que Pearl crescesse... o rico mundo crioulo, o mundo cajun dos pântanos... ou o mundo mágico que Paul estava a construir para nós? Viver naquela espécie de castelo onde poderia passar o tempo a pintar no grande estúdio das águas‑furtadas, sentindo‑me e estando na realidade acima de tudo o que era duro, sujo e dificíl, parecia‑me como que a concretização de uma promessa dourada de há muito.

Deveria fugir para o meu próprio País das Maravilhas? Talvez Paul tivesse razão, talvez o pai dele apenas se preocupasse em apaziguar a sua consciência pesada. Talvez fosse chegada a altura de pensar em nós e de pensar em Pearl.

‑ Está bem ‑ pronunciei num fio de voz.

‑ O quê? O que disseste?

‑Disse... está bem. Casarei contigo e viveremos no nosso paraíso privado, acima e para lá dos problemas e turbilhão dos nossos passados. Obedeceremos ao nosso acordo e faremos os nossos votos. Avançaremos juntos por esse canal.

‑ Oh, Ruby. Estou tão feliz! ‑ exclamou, ao mesmo tempo que se punha de pé e se aproximava, agarrando‑me nas mãos. ‑ Tens razão ‑ disse subitamente, com um novo entusiasmo no olhar. ‑ Antes do mais e acima de tudo precisamos de ter a nossa cerimónia privada. Levanta‑te ‑ pediu.

‑O quê?

‑ Anda. Não há melhor igreja do que o terreiro da frente da casa de Catherine Landry ‑ declarou.

‑ O que faremos? ‑ quis saber, rindo.

‑ Pega‑me na mão. ‑ Agarrou na minha e levantou‑me.

‑           Isso mesmo. Agora... vira‑te para esse pedaço de Lua. Vá. Pronta? Repete comigo. Eu, Ruby Dumas... Vá lá. Faz o que te digo ‑ insistiu.

‑ Eu, Ruby Dumas...

‑ Prometo ser a melhor amiga e companheira que Paul Marcus Tate poderia ter ou desejar.

Repeti as palavras e abanei a cabeça.

‑ E prometo dedicar‑me à minha arte e tornar‑me o mais famosa possível.

Isso era fácil de repetir.

‑ É tudo o que te peço, Ruby ‑ sussurrou. ‑ Mas tenho

algo mais que pedir a mim próprio - acrescentou e ergueu os

olhos na direcção da Lua. ‑ Eu, Paul Marcus Tate, prometo amar e proteger Ruby e Pearl Dumas, levá‑las para o meu mundo especial e torná‑las tão felizes quanto é possível ser neste planeta. E prometo trabalhar mais e afastar da nossa casa tudo o que é feio e desagradável e prometo ser honesto, verdadeiro e compreensivo em relação a qualquer e todas as necessidades de Ruby, independentemente do que possa sentir.

Deu‑me um beijo de fugida na face.

‑ Bem‑vinda à terra da magia - disse. Rimos ambos, mas

o coração batia‑me com força no peito, como se tivesse, de facto, participado em qualquer cerimónia sagrada e importante. - Devíamos ter algo... para brindar à nossa felicidade.

‑ Descobri um pouco da aguardente de amora da grandmère Catherine numa garrafa, no fundo de um armário ‑ repliquei.

Fomos até dentro de casa e derramei algumas preciosas gotas em dois copos. Brindámos, a rir, e engolimos a aguardente de uma só vez. Parecia adequado que firmássemos o compromisso com algo que a minha grandmère fizera.

‑ Nenhuma cerimónia, nada que um padre ou juiz pudessem dizer iria superar isto ‑ declarou Paul ‑, pois vem do fundo dos nossos corações.

Sorri. Nunca imaginei que pudesse sentir‑me tão bem passado tão pouco tempo depois do meu suplício com Buster Trahaw.

‑ Como poderíamos casar‑nos? ‑ indaguei, voltando a pensar nos pais dele.

‑ Uma cerimónia simples... Basta‑nos fugir daqui - decidiu. ‑ Venho amanhã e iremos no carro até Breaux Bridge. Há lá um padre reformado que nos casará, com documentos assinados e tudo. É um velho amigo da família.

‑ Mas vai querer saber porque é que os teus pais não estão connosco, não é verdade, Paul?

‑ Deixa o assunto comigo ‑ replicou. - Vou começar a cuidar de ti, desde o momento em que acordar amanhã até ao dia em que morrer ‑ prometeu. ‑ Ou até quando me permitires estar perto de ti, a fim de o fazer ‑ corrigiu. ‑ Está pronta ás sete. E pensa apenas ‑ acrescentou ainda ‑ que todas as velhas alcoviteiras que têm andado a falar sobre nós vão finalmente calar‑se.

Paul ficou comigo a conversar sobre a casa, as coisas que tínhamos de comprar e fazer depois de nos mudarmos. Estava tão excitado que mal entendi uma palavra. Continuou a falar até me sentir tão cansada que não conseguia manter os olhos abertos.

- É melhor ir‑me embora e deixar‑te dormir um pouco.

Amanhã, espera‑nos um dia em cheio. - Beijou‑me na face e

fiquei a observá‑lo a afastar‑se rumo ao canal, a fim de levar o barco para casa.

No entanto, antes de regressar à minha cabana, dirigi‑me à caixa do correio, de onde tirei a carta que escrevera a Daphne. Não a enviaria, mas também fui incapaz de a rasgar. Se aprendera algo na minha vida era que nada tem selo de eternidade, nem certeza. Não conseguia fechar todas as portas. Por enquanto.

No entanto, pelo menos nessa noite, pensei, adormeceria facilmente, sonhando com aquele grande sótão e o meu maravilhoso estúdio e todos os fantásticos quadros que pintaria nos dias vindouros. Que lugar maravilhoso para Pearl crescer. Fitei‑a, aconcheguei‑lhe a roupa e fui‑me deitar, ansiando pelos meus sonhos.

 

O MEU VERDADEIRO PAÍS DAS MARAVILHAS

O palrar de Pearl acordou‑me. Estava um dia muito nublado, os raios de sol não conseguindo infiltrar‑se através das cortinas para me acariciar as pálpebras até que as abrisse. Mal acordei, voltou‑me todo o significado do que me dispunha a fazer. ”Vou fugir”, pensei. As perguntas surgiam de todos os lados. Quando é que, de facto, me mudaria com Pearl para Cypress Woods? Como iríamos anunciar o nosso casamento à comunidade? Já teria informado a família nesta altura? O que é que pretendia levar da cabana, se é que queria alguma coisa? Que género de casamento teríamos?

Levantei‑me; invadiu‑me, porém, a estranha sensação de estar a viver um sonho. Até mesmo Pearl denotava um olhar calmo e peculiar, mostrando‑se mais paciente do que normalmente, sem chorar para pedir o pequeno‑almoço, nem exigir que a tirassem do berço e lhe pegassem ao colo.

‑ Também é um grande dia para ti, minha querida ‑ disse‑lhe. - Hoje, vou oferecer‑te uma nova vida, um novo nome e um futuro inteiramente diferente, que espero pleno de promessas e de felicidade.

”Temos de escolher‑te um bonito vestido. Primeiro, vou dar‑te de comer e depois ajudarás a mamã a escolher também o seu vestido de casamento.

”O meu vestido de casamento ‑ murmurei, ao mesmo tempo que os olhos se me enchiam de lágrimas.

Fora nessa cabana, nessa mesma sala que a grandmére Catherine e eu faláramos do meu futuro casamento.

‑ Sempre sonhei ‑ dissera‑me, vindo sentar‑se ao meu lado e passando‑me a mão pelo cabelo ‑ que terias um casamento mágico, como o da lenda cajun das aranhas. Lembras‑te? O francês rico importou essas aranhas da França para o casamento da filha e soltou‑as junto aos carvalhos e pinheiros, onde elas teceram as teias. Salpicou estas teias de pó de ouro e prata e depois fizeram a procissão de casamento à luz das velas. A noite brilhava à volta deles, prometendo‑lhes uma vida de amor e esperança.

”Um dia, casarás com um belo homem que poderá ser um príncipe e também tu terás um casamento sob as estrelas - prometera a grandmére.

Como ela se teria sentido triste por minha causa, agora. Quanta pena sentia de mim própria. O coração de uma jovem deveria estar tão cheio de alegria na manhã do casamento que chegaria a ter medo que ele explodisse, disse de mim para mim. Todas as cores se apresentariam mais luminosas e todos os sons mais suaves. Também pareceria que todas as criaturas em seu redor estariam deliciadas. Haveria vozes felizes e excitadas à sua volta e, para onde quer que olhasse, depararia com qualquer preparativo relacionado e totalmente dedicado à maravilhosa cerimónia que estava prestes a partilhar com o homem amado.

 

E o amor... inundá‑la‑ia. Pararia uns momentos, interrogando‑se sobre se voltaria a sentir‑se tão feliz e contente como nesse instante. Algum outro evento poderia trazer‑lhe tanta alegria? Estaria rodeada por dúzias de amigos, todos entusiasmados, comovidos e falando sem prestar atenção especial às palavras uns dos outros, numa cacofonia de gargalhadas, risos, gritos e exclamações.

A cozinha estaria cheia dos sons de tachos retinindo, cozinheiras nervosas, cheiros a peixe deliciosos e pratos de galinha, bolos e tartes. Ordens soariam pelas salas e os carros andariam numa roda‑viva, estacionando e arrancando ao sabor das ordens dadas aos motoristas.

As crianças seriam tocadas também por esse tipo de electricidade, fazendo maldades e sendo enxotadas de um sítio para outro. As mulheres mais velhas fingiriam estar aborrecidas e preocupadas, mas de vez em quando parariam um pouco a recordar o seu próprio dia especial, a excitação, bebendo lembranças como a abelha o pólen de uma flor e transformando‑as numa memória plena de mel e de momentos do passado. Deveria detectar tudo isto no rosto de cada mulher, quando, por fim, a vissem com o vestido de casamento.

Continuei a imaginar o meu casamento de sonho. A limusina estaria à espera lá fora, com o motor a trabalhar, semelhante a um cavalo ansioso por iniciar o galope. A porta estaria escancarada. As pessoas começariam a dar vivas e palmas, enquanto eu transpunha os degraus até ao carro. E depois toda a roda de amigos e parentes nos seguiria até à igreja, onde, no interior, o meu maravilhoso e futuro marido se encontrava... transferindo o peso do corpo de uma perna para a outra e sorrindo para os pais e parentes, mas sem tirar os olhos da porta à espera de indícios da minha chegada.

E depois começaria a música e todos se sentariam com solenidade, mas ansiosos por me verem percorrer a coxia até ao altar, onde me esperava a Santa Eucaristia. Os meus pés nunca tocariam no chão. Caminharia como que pelo ar, deslizando devagar em direcção aos votos.

Ao fechar os olhos, pensando em tudo isto, as imagens tinham a realidade de quadros, mas surpreendi‑me quando, ao ver‑me na sequência imaginada, ergui o rosto e avistei à minha espera... não Paul, mas Beau... o meu adorado amor... finalmente, Beau.

Emiti um profundo suspiro. Não era Beau quem viria buscar‑me dentro em pouco, disse de mim para mim. Surgiu‑me outra ideia terrível: provavelmente nem sequer pensaria em mim nesse dia, o dia em que eu faria os votos que o afastariam da minha vida para sempre. O choro de Pearl recordou‑me, porém, que não estava a fazer isto por mim. Fazia‑o por ela e pelo futuro promissor e a segurança que lhe traria.

Optei por um simples e leve vestido de Verão com um decote rectangular e uma saia que descia até cerca de dois centímetros acima dos tornozelos. Continuava a usar o medalhão que Beau me dera há mais de um ano, antes de eu ter partido para Greenwood School em Baton Rouge, mas agora seria errado fazê‑lo. Tirei‑o e enterrei‑o debaixo de alguns dos meus outros tesouros na velha arca de carvalho da grandmère Catherine.

 

Tinha um conjunto cor‑de-rosa para Pearl, com um laço branco na gola. Depois de lhe ter dado de comer e vestido, pu‑la no berço, vesti‑me também, sentei‑me e escovei o cabelo, resolvendo que me limitaria a prendê‑lo com uma fita, soltando‑o o mais suavemente possível sobre os ombros e as costas. Deixara‑o crescer e, quando o escovava, chegava‑me às omoplatas. Coloquei um pouco de báton, descobri um chapéu que outrora pertencera á grandmére Catherine, sentindo assim que a teria junto de mim, e depois saí lá para fora com Pearl, a fim de aguardar Paul.

Ouvi‑o buzinar, antes de estacionar no terreiro diante da cabana. O carro estava lavado e reluzente; Paul vestia um fato novo azul, a gravata frouxa à volta do pescoço. O cabelo brilhava quando desceu do carro, com as madeixas ainda molhadas.

‑ Bom dia - saudou. Estávamos ambos tão nervosos, que se assemelhava a um primeiro encontro. - Vamos. O padre Antoine, de Breaux Bridge, está à nossa espera. Estás muito bonita ‑ acrescentou, abrindo‑nos a porta do carro.

‑Obrigada, mas não me sinto bonita. Sinto‑me... nervosa.

 - É o normal ‑ comentou. Respirou fundo, ligou o motor

e arrancou.

Começou a pingar e os limpa pára‑brisas moviam‑se de um lado para o outro, idênticos a dois compridos dedos indicadores acenando avisos e profetizando infâmia. Ouvia a palavra ao seu ritmo... infâmia, infâmia, infâmia.

‑ Bom. A casa está pronta para nos mudarmos. Claro que de momento apenas tenho o mobiliário básico. Pensei que, passado um dia ou dois, poderíamos fazer uma viagem a Nova Orleães.

‑ Nova Orleães! Porquê?

‑ Para poderes fazer compras nas melhores lojas e teres maior escolha. Também não quero que te preocupes com os preços. A tua missão consiste em transformar Cypress Woods em algo muito especial, uma casa e propriedade que até mesmo os ricos Crioulos de Nova Orleães invejarão.

”Tens de montar o teu estúdio o mais rapidamente possível - prosseguiu com um sorriso. Mal regressemos de Nova Orleães, entrevistaremos algumas amas para te ajudarem a cuidar da Pearl, a fim de poderes dispor de tempo que necessitas para o teu trabalho.

‑ Uma ama? Acho que não vou precisar, Paul.

‑ Claro que sim. A dona de Cypress Woods terá todo o tipo de criados. Já contratei o nosso mordomo. É um mulato de nome James Humble. Tem cerca de cinquenta anos e trabalhou nas melhores casas.

‑ Um mordomo? ‑ Ainda não passara assim tanto tempo, desde que ele e eu seguíamos na sua piroga através dos pântanos, fantasiando sobre todas estas coisas que estávamos prestes a realizar.

‑ E a nossa criada. Chama‑se Molly Mixon. É meio‑haitiniana, meio‑índia txotó e anda na casa dos vinte e tal. Também a contratei por agência. Mas sei que é a nossa cozinheira quem mais vai agradar‑te ‑ concluiu com um brilho nos olhos travessos.

‑E porquê?

‑ Chama‑se Letitia Brown, mas quer que a tratem por Letty. Vai recordar‑te a tua Nina Jackson. Não revela a sua verdadeira idade, mas penso que anda pelos sessenta. Pratica

vuda ‑ confessou, baixando a voz para lhe dar um tom de presságio.

- Já fizeste tudo isso? ‑ perguntei surpreendida, e ele corou como se tivesse sido apanhado nu.

‑ Planeei este dia desde que regressaste ao bayou, Ruby. Sabia que iria acontecer.

‑ E a tua família, Paul? Contaste aos teus pais? ‑ indaguei.

‑ Não ‑ confessou, após uns instantes de hesitação. - Achei melhor falar‑lhes mais tarde. Depois de ser uma realidade, aceitarão tudo mais facilmente. Tudo correrá bem ‑ garantia, o que não me acalmou as batidas do coração.

Embora tivesse deixado de chover quando chegámos a Breaux Bridge, o céu mantinha‑se escuro e agoirento. O padre Antoine vivia numa casa ao lado da igreja com a governante, Míss Mulrooney. Era um homem com cerca de sessenta e cinco anos e o cabelo fino e grisalho cortado tão curto que as madeixas espetavam de lado, quais pêlos de um pincel. Tinha, contudo, uns ternos olhos azuis e o tipo de sorriso que fazia com que as pessoas se sentissem à vontade na sua presença. Miss Malrooney, uma mulher alta e magra de cabelo grisalho, ostentava um ar duro e crítico. Eu conhecia o motivo.

Paul dissera ao padre Antoine que Pearl era filha dele e queria casar‑se comigo para tomar a atitude certa, só que desejava que o casamento fosse tranquilo e longe dos olhares de censura dos vizinhos e dos amigos da família. O padre Antoine mostrou‑se compreensivo e satisfeito por Paul ter resolvido ir por diante com o casamento e assumir as suas responsabilidades morais.

A nossa cerimónia de casamento foi o mais rápida que a religião permite. Quando chegou a minha altura de pronunciar os votos, fiz o que poderia ter sido pecado: invoquei Beau e disse intímamente que lhe entregava a alma e coração.

Casar fora muito mais fácil e rápido do que imaginara. Não sentia que alguma coisa tivesse mudado, mas, pelo sorriso resplandecente no rosto de Paul todas as vezes que me olhava, sabia que tudo mudara. Para melhor ou pior, tínhamos ido em frente e unido os nossos destinos.

‑ Bom, já está ‑ replicou. ‑ Como se sente, Mistress Tate?

‑ Aterrorizada ‑ respondi e ele riu.

‑ Não há nenhum motivo para que te sintas aterrorizada. Sobretudo, enquanto estiver perto de ti ‑ salientou. ‑ Portanto, o que queres levar da cabana, se é que queres alguma coisa?

- Tenho a minha roupa e a da Pearl, o retrato da grandmère Catherine e a cadeira de balouço ‑ disse. ‑ Talvez também a velha arca e o armário que o pai lhe fez. Tinha tanto orgulho nele.

‑ óptimo. Mandarei alguns dos meus homens com um camião esta tarde e eles transportarão o mobiliário. Parece que deixou de chover por algum tempo. Podes seguir no teu carro - acrescentou num tom despreocupado.

‑ O meu carro? Que carro?

‑ Oh, não te disse? Comprei-te um pequeno descapotável para andares por aí... As tuas voltas e coisas assim ‑ respondeu.

Deduzi da forma como se comportava que era mais do que um pequeno descapotável e, na verdade, ao chegarmos a Cypress Woods deparei com um Mercedes vermelho com uma fita branca em redor da capota e parado em frente da entrada.

‑ É meu? ‑ exclamei.

‑ O teu primeiro presente de casamento. Goza‑o ‑ convídou.

‑ Oh, Paul. É demasiado! ‑ retorqui, começando a chorar de felicidade.

Ali estava a mansão com os criados à nossa espera, a bela propriedade, os nossos campos petrolíferos lá atrás e o meu novo estúdio. Teríamos desafiado o destino, soprado fumo para a sua cara? A recente fortuna de Paul bastaria para manter os ventos uivantes e as frias chuvas da miséria bem longe da nossa porta? Pelo menos de momento, era‑me impossível deixar de me sentir tão optimista e feliz quanto ele.

”Talvez eu seja a Alice no País das Maravilhas”, pensei. Talvez essa fosse a intenção desde o primeiro momento e eu nada tivesse a ver com o rico mundo crioulo de Nova Orleães, e, talvez por esse motivo, todas aquelas coisas estavam a acontecer ali, coisas para me trazerem de novo para o bayou, onde eu pertencia. Paul pegou em Pearl ao colo.

‑ Em vez de te transportar, levo a Pearl ‑ explicou. - Afinal, será ela a princesa.

Reparei na farinha espalhada nos degraus da frente. Paul também a notou.

‑ Coisas da Letty, suponho ‑ comentou.

A porta alta e larga foi aberta pelo nosso mordomo, James Humble. Tinha, pelo menos, um metro e noventa de altura e era um homem elegante de cabelo castanho e encaracolado, pele achocolatada e uns olhos castanho‑claros. Possuía o aspecto e a postura perfeita de mordomo, à espera das nossas ordens.

‑ Este é o James ‑ indicou Paul. ‑ James, Madame Tate.

‑ Bem‑vinda, madame - cumprimentou com um leve aceno de cabeça e uma vénia. Tinha uma voz profunda e um sotaque francês de homem culto.

‑ Obrigada, James.

Quando entrei no vestíbulo, avistei Molly Mixon, de lado, à nossa espera. Era uma mulher de larga estrutura óssea e braços e ombros robustos.

‑ E esta é a Molly ‑ prosseguiu Paul. Molly, Madame Tate.

Fez uma vénia.

‑ Olá, Molly.

‑ Como está, madame? - saudou.

‑ Onde está a Letty? ‑ inquiriu Paul.

‑ Está na cozinha, monsieur, a preparar o jantar de hoje. Não quer nenhum de nós no seu local de trabalho ‑ acrescentou.

‑ Percebo ‑ anuiu Paul, piscando‑me o olho. ‑ Porque não levas, então, a Pearl primeiro ao seu quarto, Ruby? Quero ir a casa dos meus pais e informá‑los. É provavelmente o melhor. Se concordares, é óbvio.

‑ Claro, Paul - retorqui, ao mesmo tempo que a ideia da forma como eles iriam reagir me provocava um peso no peito.

‑ Quando voltar, trataremos de ir buscar as tuas coisas, sim?

‑ Sim ‑ anui, pegando em Pearl.

Paul inclinou‑se, beijou‑me ao de leve na face e saiu apressado.

‑ Agora ‑ redargui, virando‑me para Molly. - Indica‑me o caminho para o quarto da minha filha e veremos o que há a fazer.

‑ Sim, madame - disse.

 

Se não tivesse vivido na casa dos Dumas, rodeada de criados, não me sentiria bem com uma criada, um mordomo e uma cozinheira junto de mim. Nunca pretendera dar‑me ares de grande senhora, mas Paul construíra, de facto, uma mansão que precisava de criadagem. Apenas me restava tomar a minha posição e tornar‑me a dona de Cypress Woods.

 

Letty fazia‑me recordar Nina Jackson. Usava o mesmo tipo de lenço vermelho com sete nós de pontas reviradas, um tignon; mas era muito mais alta e mais magra, surpreendentemente magra para uma cozinheira, com mãos compridas de veias salientes que ressaltavam na pele cor de chocolate. Tinha um rosto esguio, uma boca e um nariz finos. Contou‑me que os olhos estavam demasiado juntos porque a mãe fora surpreendida por uma cobra no dia em que engravidara. Vi que usava um colar de cânfora à volta do pescoço, que sabia destinar‑se a afastar os espíritos malignos.

letty era uma cozinheira do tipo normal, que aprendera com chefes de cozinha. A prová‑lo havia a primeira refeição que nos preparou. Começaria com ostras à Bienville como entrada, seguidas de sopa de tartaruga. O prato principal era filet de hoeuf aux champignons com puré de ervilhas. Para sobremesa fizera um pudim de laranja.

‑ Notei que deitou farinha nos degraus da frente ‑ retorqui, depois de termos sido apresentadas e trocarmos algumas impressões. Os olhinhos escuros estreitaram‑se mais.

‑ Não trabalharia em nenhuma casa sem isso ‑ observou num tom firme.

‑ Não me importo, Letty. A minha grandmére Catherine era uma mulher traiteur ‑ retorqui, e os olhos denotaram um brilho de reconhecimento.

‑ Então, é uma rapariga santa.

‑ Não. Apenas a neta dela ‑ corrigi. Nada havia de santo em mim, pensei.

Apercebi‑me de que Paul voltara e apressei‑me a ir ao seu encontro. Sorriu, mas detectei‑lhe a tristeza no olhar.

‑ Ficaram muito desgostosos, não foi? ‑ indaguei.

‑ Sim ‑ admitiu. ‑ A minha mãe chorou e o meu pai amuou, mas, daqui a um tempo, vão acabar por aceitar, tal como te disse ‑ prometeu. ‑ As minhas irmãs acham, obviamente, que é maravilhoso ‑ apressou‑se a acrescentar. ‑ Virão todos amanhã jantar. Achei que deveríamos ter a primeira noite para nós. Há dois dos meus homens lá fora com o camião, à espera de irem à cabana buscar as tuas coisas.

‑ A Pearl ainda está a dormir ‑ argui. O relato de Paul extinguira rapidamente toda a excitação e felicidade.

‑ Vá lá. Mostra‑lhes o caminho no teu carro novo. Estarei aqui, quando ela acordar. Vai. Tenho a Molly para me ajudar - tranquilizou‑me.

‑ Ela ficará com medo ao acordar num lugar estranho.

‑ Mas não estará com um estranho ‑ ripostou, confiante. ‑ Tem‑me a mim. ‑ Apercebi‑me de como desejava impor‑se como pai, mal lhe fosse possível.

‑ Está bem. Não vou demorar ‑ prometi.

Ao chegar à cabana, indiquei as peças de mobiliário que desejava. Comuniquei aos homens de Paul que eu própria levaria

o retrato. Depois de o guardar em segurança no carro, regressei ao interior da casa e percorri tudo com o olhar. Como a casa parecia vazia e triste sem as poucas peças de mobiliário.

 

Era como se estivesse a perder novamente a grandmère Catherine, cortando quaisquer elos espirituais que ainda pudessem ligar‑nos. O espírito dela não podia acompanhar‑me. Pertencia ali, àquelas sombras e cantos, à pequena cabana assente nas finas estacas que havia sido a sua mansão, palácio, casa e igualmente a minha durante tanto tempo. Nem todos os dias tinham sido felizes, mas também nem todos haviam sido tristes.

Ali, ela confortara‑me durante os meus momentos de medo e ansiedade. Ali, ela tecera histórias e fizera nascer as minhas esperanças. Ali, trabalháramos lado a lado para sobreviver. Tínhamos rido, chorado e tombado de fadiga juntas no velho sofá que o grandpére Jack quase destruíra quando se embebedava. Aquelas paredes haviam sugado o riso e a dor e absorvido os odores maravilhosos dos cozinhados da minha avó. Fora daquelas janelas que, à noite, eu contemplara a Lua e as estrelas, sonhara com príncipes e princesas e engendrara os meus próprios contos de fadas.

”Adeus”, pensei. Finalmente, adeus á infância e a toda a preciosa inocência que me impedira de ver e acreditar que havia crueldade real no mundo. Parecia‑me que me mudava para o País das Maravilhas em Cypress Woods. Tudo era demasiado belo para ser verdade. Era ali, porém, o meu verdadeiro País das Maravilhas. Ali sentira a verdadeira magia e ali produzira alguma da minha melhor arte.

Lágrimas rolaram‑me pelas faces. Apressei‑me a limpá‑las, respirei fundo, saí rapidamente da casa, desci os degraus e entrei no carro. Sem olhar para trás, abandonei o passado uma segunda e talvez derradeira vez.

Paul detectou a tristeza que eu tinha espelhada no rosto. Deu ordem a Molly e James para que transportassem as minhas coisas para o meu quarto e para o de Pearl; em seguida, levou‑me a dar um pequeno passeio.

Falou dos planos que fizera para os terrenos que rodeavam a casa, as árvores, flores, caminhos e repuxos que imaginara. Falou das festas que daríamos, da música e comida. Sabia que ele falava pelos cotovelos só para não me dar tempo a meditar sobre o passado e sentir‑me triste.

‑ Há tanta coisa a fazer aqui ‑ concluiu. ‑ Não temos tempo para sentirmos pena de nós próprios.

‑ Oh, Paul. Espero que tenhas razão.

‑ Claro que tenho ‑ insistiu. Ouvimos alguém a chamar e, quando nos virámos, vimos que as irmãs tinham chegado.

Jeanne andara na minha turma, quando vivera no bayou. Sempre tínhamos sido boas amigas. Ela era uns três centímetros mais alta do que eu, com cabelo castanho‑escuro e olhos amendoados. Parecia‑se mais com a mãe e herdara a sua pele escura, o queixo marcado e o nariz quase perfeito. Sempre a recordei como uma jovem alegre e feliz.

Toby era dois anos mais nova e, embora não se parecesse tanto com a mãe, tinha a sua expressão séria. Era um pouco mais baixa, mas com ancas mais largas e mais peito. Usava o cabelo castanho cortado curto. Os olhos eram mais argutos, observadores e inquiridores. Tinha o hábito de descair o lábio inferior sempre que duvidava ou desaprovava qualquer coisa que alguém dissera ou fizera.

‑ Recomendei‑lhes que esperassem até amanhã ‑ comentou Paul num tom irritado.

‑ Deixa lá. Ainda bem que vieram ‑ redargui, indo ter com elas. As duas abraçaram‑me e beijaram‑me, depois do que me seguiram até ao quarto do bebé, com Jeanne a tagarelar, enquanto eu mudava a fralda a Pearl.

‑ Claro que tudo isto é um choque ‑ replicou, e as palavras saíam‑lhe de enxurrada. ‑ Tem tão pouco a ver com o Paul, o chamado ”homenzinho perfeito”...

‑ Porque é que o fizeram agora? ‑ quis saber Toby. - Porque não o fizeram mal soubeste que estavas grávida?

Desviei os olhos ao responder, temendo que detectasse as mentiras no meu rosto.

‑ Era esse o desejo do Paul, mas não quis arruinar‑lhe a carreira ‑ repliquei.

‑ E a tua vida? ‑ contrapôs Toby.

‑ Corria bem.

‑ A viveres sozinha com uma criança naquela cabana?

‑ Oh, Toby. Para quê ir buscar o passado? Tudo isso acabou e vê só onde eles estão agora ‑ exclamou Jeanne, de braços abertos. ‑ Todos sentem ciúmes desta casa e da felicidade do Paul.

Toby aproximou‑se de mim e baixou os olhos para Pearl.

‑ Quando é que vocês dois... a fizeram? ‑ quis saber.

‑ Toby! ‑ insurgiu‑se Jeanne.

‑ Só estou a perguntar. Ela não é obrigada a responder se não quiser, mas agora somos irmãs. Em principio, não deveríamos ter segredos entre nós, pois não? Bom, pois não? - insistiu.

‑ Segredos não, mas cada um tem algo de privado no coração, algo que mantém resguardado. Talvez ainda sejas demasiado jovem para o perceberes, Toby, mas a seu tempo entenderás ‑ garanti.

Era o comentário mais duro que alguma vez lhe fizera. Ela pestanejou e os lábios uniram‑se num esgar momentâneo, mas depois esboçou um aceno de cabeça face à minha observação.

‑ Tens razão. Desculpa, Ruby

‑ Não tem importância. ‑ Sorri. ‑ Devemos ser irmãs em todos os aspectos.

‑ E seremos! ‑ garantiu Jeanne. ‑ Daremos uma ajuda com o bebé, não é verdade, Toby? Seremos tias de verdade.

‑ Claro ‑ anuiu Toby, fitando Pearl. ‑ Fui baby‑sitter o tempo suficiente para saber cuidar de um bebé.

‑ A Pearl irá receber muitíssimo amor e atenção ‑ prometeu Jeanne.

‑ É tudo o que quero ‑ retorqui. ‑ É tudo o que realmente quero. E que todos nos tornemos uma família.

‑ A mãe ainda não se recompôs, pois não, Toby? - comentou Jeanne.

‑ O pai também não está propriamente a rebentar de orgulho e felicidade ‑ respondeu ela.

‑ Talvez o pai não queira enfrentar o facto de ser avô tão depressa ‑ gracejou Jeanne. ‑ Não achas que é isso, Ruby?

‑           interpelou.

Fitei‑a por momentos.

‑ Sim, provavelmente ‑ anui com um sorriso. Era desconfortável estar ligada a enganos e semiverdades, mas agora não havia outra saída, pensei.

Jeanne tentou arrancar a Paul um convite para jantar, mas ele insistiu para que se fossem embora e voltassem com os pais no dia seguinte.

‑ Ocasião em que teremos uma celebração a sério ‑ garantiu. ‑ A Ruby e eu estamos muito cansados e precisamos de estar sós, de descansar ‑ explicou.

Toby esboçou um trejeito afectado; Jeanne, tentando contrariar a sua expressão de desapontamento, sorriu e exclamou:

‑ Claro que precisam. É a vossa lua‑de‑mel!

Paul virou rapidamente a cabeça na minha direcção e corou.

‑ A Jeanne e as suas inconveniências habituais! ‑ redarguiu Toby. ‑ Anda lá, minha querida irmã. Vamos para casa.

‑ O que é que eu disse?

‑ Não ligues, Jeanne ‑ sosseguei‑a.

Voltámos todos a abraçar‑nos e elas foram‑se embora.

‑ Desculpa ‑ pediu Paul, seguindo‑as com o olhar. - Devia ter-te avisado sobre as minhas irmãs. Foram mimadas e acham que podem ter tudo o que quiserem. Não pactues com as extravagâncias delas. Limíta-te a pó‑las no lugar e tudo correrá bem ‑ garantiu‑me. ‑ De acordo?

‑ Sim ‑ anui, mas era mais uma oração do que uma resposta.

Nessa noite serviram‑nos um jantar maravilhoso. Paul falou das suas jazidas petrolíferas e expôs algumas outras ideias para negócios. Contou‑me que fizera reservas para nós em Nova Orleães e que partiríamos dentro de dois dias.

‑ Tão depressa?

‑ Não vale a pena adiar o que tem de ser feito aqui. E lembra‑te que quero que te dediques à tua arte ‑ salientou.

”Sim”, pensei. Era altura de voltar ao meu segundo grande amor ‑ a pintura. Depois do jantar, Paul e eu vagueámos pela mansão e discutimos o que faríamos para completar o mobiliário e as decorações. Apercebi‑me, finalmente, de como a tarefa era monumental e interroguei‑me em voz alta sobre se seria capaz de executá‑la.

‑ Claro que és ‑ garantiu‑me ele. ‑ Mas talvez eu consiga que a minha mãe te ajude. Ela adora desempenhar esse tipo de incumbências; Podes aprender muito com a minha mãe - acrescentou. ‑ É uma mulher de gosto requintado. Tu também

‑ apressou‑se a vincar ‑, só que ela há mais tempo que compra coisas caras. ‑ Sorriu.

‑ Até que ponto somos ricos, Paul? ‑ inquiri. Não haveria limite para as possibilidades?

‑ Com o preço do petróleo a subir e os poços a produzirem de quatrocentos a quinhentos por cento mais do que o previsto... somos multimilionários, Ruby. A tua madrasta rica e a tua irmã gémea são pobres em comparação connosco.

‑ Não deixes que elas saibam ‑ pedi ‑, ou ficam com o coração despedaçado.

Paul riu. Confessei que me sentia cansada. Exausta era uma palavra mais adequada. Emocionalmente, vivera o dia como numa montanha‑russa, num momento cheia de depressão e tristeza para no momento seguinte erguer‑me aos píncaros da felicidade.

Subi ao andar de cima e preparei‑me para a primeira noite na minha bela e nova casa. Paul surpreendeu‑me uma vez mais. Encontrei uma bonita camisa de noite, roupão e chinelos em cima da cama. Molly fora cúmplice da surpresa. Quando agradeci a Paul, ele fingiu nada saber.

‑ Deve ter sido a tua fada madrinha ‑ disse.

 

Fui ver como estava Pearl. Dormia, satisfeita, no seu berço novo e bonito. Inclinei‑me e beijei‑a na testa. Depois, voltei ao meu quarto e meti‑me na minha cama enorme de almofadas de penas e colchão macio.

A tempestade e a chuva tinham avançado para sudeste e as nuvens dissiparam‑se, permitindo que um pouco de luar se reflectisse sobre a nossa mansão e entrasse pelas janelas. Mantinha‑me no meio daquele conforto mas extremamente ansiosa quanto ao nosso futuro. Depois, ouvi uma leve pancada na porta de comunicação.

‑ Sim?

Paul abriu‑a e espreitou para o interior.

‑ Estás bem?

- Estou, Paul. óptima.

‑ Confortável? ‑ insistiu, permanecendo na ombreira da porta, onde se recortava a sua silhueta.

‑ Muito.

‑ Posso dar‑te um beijo de boas‑noites? ‑ perguntou num fio de voz.

Fiquei um momento calada.

‑ Podes ‑ respondi.

Ele aproximou‑se, inclinou‑se e premiu os lábios de encontro à minha face. Pensei que seria tudo, mas avançou para os meus lábios e virei a cara. Senti como ficou desapontado. Afastou‑se uns centímetros e depois endireitou‑se.

‑ Boa noite, Ruby. Amo‑te ‑ declarou. ‑ Tanto como qualquer outro homem ‑ acrescentou.

‑ Eu sei, Paul. Boa noite.

‑ Boa noite ‑ respondeu, num leve e terno sussurro, de novo semelhante à voz de um rapazinho.

Fechou a porta que nos separava e uma nuvem tapou o buraco que permitira ao luar uma janela no meu novo mundo. Durante algum tempo, a escuridão voltou a ser espessa e profunda.

Contudo e embora se situassem do outro lado da casa e a alguma distância, ouviam‑se as bombas de petróleo a escavarem as entranhas da terra para arrancar o líquido negro que nos garantiria o futuro e construiria muros de riqueza à nossa volta, afastando os demónios. Paul criara um fosso de petróleo entre nós e os problemas que atormentavam o resto do mundo.

Podia enroscar‑me no meu luxuoso conforto, fechar os olhos, afastar todos os meus medos e pensar apenas nas coisas maravilhosas que tinha a fazer. Podia sonhar com Pearl como uma rapariguinha montada no seu pónei. Podia sonhar com recepções nos jardins, festas de aniversário e jantares faustosos. Podia sonhar com o meu estúdio cheio de obras novas.

”O que mais posso desejar”?, pensei.

”O amor”, sussurrou uma vozinha. ”Desejar o amor.”

 

OUTRA NOVA FAMÍLIA

Muito cedo, na manhã seguinte, ouvi a porta de comunicação a abrir‑se e vi que Paul enfiava a cabeça e olhava em volta para verificar se eu estava acordada. Dispunha‑se a ir embora quando o chamei.

‑ Oh! Não queria despertar‑te ‑ apressou‑se a replicar.

‑ Que horas são?

‑ É muito cedo, mas queria dar uma vista de olhos nos poços, antes de ir à fábrica de conservas esta manhã. Venho almoçar. Dormiste bem?

‑ Sim. É uma cama muito confortável ‑ garanti. ‑ E estas almofadas... é como dormir num barril de manteiga.

‑ óptimo ‑ congratulou‑se, sorrindo. ‑ Até logo, então. Fechou a porta; levantei‑me e vesti‑me, antes de Pearl acordar. Pela forma como ela rira e brincara no berço, apercebi‑me que também ela gostara da sua primeira noite na nova casa. Depois do pequeno‑almoço, levei Pearl até ao sótão a fim de planear o meu estúdio e fazer uma lista do que compraria quando estivéssemos em Nova Orleães. Pearl dormiu o costumado sono do fim da manhã e saí até ao pátio lateral para observar os homens que Paul contratara para arranjarem os terrenos à volta da mansão.

O cheiro a bambu novo pairava no ar e, à distância, um casal de garças brancas de neve cortou o céu azul a grande altura. Suspirei de prazer e deslumbramento. Estava tão absorta na imaginação dos relvados, caminhos empedrados, canteiros e arbustos, que não ouvi um carro subir pelo relvado nem tão‑pouco o tinir da campainha da porta.

James veio ao pátio informar‑me que tinha uma visita. Sem me dar tempo a regressar a casa, o pai de Paul apareceu. Mal James se retirou, Octavious aproximou‑se de mim, e um calafrio percorreu‑me a espinha.

‑ Disse ao Paul que viria almoçar com vocês e depois o acompanharia aos poços, mas saí cedo para poder ter uma oportunidade de falar contigo a sós ‑ explicou.

‑ Mister Tate...

‑ Podes começar a tratar‑me por Octavious ou por... pai - sugeriu sem muita amargura mas também sem muito agrado.

‑ Octavious. Sei que saiu da minha casa pensando que não iria com isto por diante, mas o Paul ficou tão triste... e depois de eu ter sido atacada pelo Buster Trahaw...

‑ Não expliques ‑ pediu, soltando um profundo suspiro e olhando na direcção do pântano. ‑ O que está feito não tem remédio. Há muito tempo que deixei de acreditar que o destino me deve alguma coisa. A sorte que tenho e as bênçãos que recebo, não as mereço. Vivo somente para zelar pela felicidade e segurança dos meus filhos e da minha mulher.

‑ O Paul é muito feliz ‑ argumentei.

‑ Eu sei. Mas a minha mulher... ‑ Baixou momentaneamente os olhos negros e tristes que logo ergueu na minha direcção. ‑ Antes do mais, tem horror a que, por causa deste casamento, a verdade erga a sua feia cabeça na nossa pequena comunidade e destrua todo o embuste que construiu em redor do Paul e dela própria. As pessoas acham que, por sermos uma família rica e bem sucedida, somos duros como rochas, mas por detrás de portas fechadas... as nossas lágrimas têm o mesmo sabor a sal.

‑ Compreendo ‑ retorqui.

‑ A sério? ‑ disse e o rosto iluminou‑se‑lhe. ‑ Na verdade, vim cedo para te implorar um favor.

‑ Claro ‑ anui, sem mesmo ter ouvido o pedido.

‑ Quero que mantenhas a... na falta de melhor palavra... a ilusão viva sempre que estiveres com ela. Embora saibas a verdade e a Gladys saiba que sabes.

‑ Não era necessário pedir ‑ redargui. ‑ Fá‑lo‑ia pelo Paul e também por Mistress Tate.

‑ Obrigado ‑ agradeceu, aliviado, e depois olhou em volta. ‑ Bom. O Paul está realmente a construir uma casa fantástica. É um jovem maravilhoso. Merece ser feliz. Orgulho‑me muito dele, sempre me orgulhei e sei que a tua mãe também se orgulharia. ‑ Recuou. ‑ Bom... eu... vou falar com um dos operários, lá na frente ‑ balbuciou. ‑ Ficarei à espera do Paul. Obrigado ‑ acrescentou e virou rapidamente as costas, desaparecendo no interior da casa.

O meu coração abrandou, mas o vazio no estômago, que me fazia sentir como se tivesse engolido uma dúzia de borboletas vivas, continuou. ”Levará o seu tempo”, pensei ”e talvez

nem mesmo o tempo consiga limar as arestas entre mim e os pais do Paul, mas tentarei, pelo Paul.” Cada dia desse casamento especial seria um dia cheio de experiências e questões. Pelo menos, no início. Apesar de tudo o que tínhamos e tudo o que viríamos a ter, interrogava‑me sobre se conseguiria ou não aguentar.

James voltou e interrompeu‑me aqueles tristes pensamentos.

‑ Mister Tate ao telefone, madame ‑ anunciou.

‑ Oh! Obrigada, James ‑ agradeci e dirigi‑me á casa, tomando consciência de que não fazia ideia de onde se situava o telefone mais próximo.

‑ Pode atender aqui no pátio ‑ indicou James com um aceno de cabeça para a mesa e cadeiras. Fora colocado um telefone num pequeno banco de bambu ao lado de uma das cadeiras.

‑ Obrigada, James. ‑ Ri intimamente. Os criados estavam mais familiarizados com a minha nova casa do que eu. ‑ Olá, Paul.

‑ Ruby. Não demoro a chegar a casa, mas tinha de telefonar‑te a contar este golpe de sorte. Pelo menos, assim o penso ‑ disse num tom excitado.

‑ O que é?

‑ O nosso capataz aqui na fábrica conhecia uma simpática senhora de idade que acabou de perder o emprego como ama, pois a família vai mudar‑se. Chama‑se Mistress Flemming. Acabei de contactá‑la por telefone e pode ir a Cypress Woods esta tarde para uma entrevista pessoal. Falei com a família, que ficou contentíssima por ela.

‑ Que idade tem?

‑ Sessenta e poucos. Enviuvou há algum tempo. Tem uma filha casada que vive em Inglaterra. Sente a falta da família e procura um emprego que lhe permita estar com crianças. Se tudo correr bem, talvez possamos contratá‑la imediatamente e deixá‑la com a Pearl, enquanto vamos a Nova Orleães.

‑ Oh! Não sei se vou conseguir fazer isso tão cedo, Paul.

‑ Bom. Verás depois de lhe falares. Posso dizer‑lhe que apareça por volta das duas?

‑ Está bem ‑ acedi.

‑ O que se passa? Não estás feliz? ‑ perguntou. Mesmo do outro lado de um telefone, Paul sabia quando eu estava nervosa, ansiosa, triste ou feliz.

‑ Estou, só que te movimentas tão depressa que mal tenho tempo de tomar fôlego para enfrentar uma coisa surpreendente e logo tu me apresentas outra.

‑ É esse o meu plano. ‑ Riu. ‑ Inundar‑te de coisas boas, afogar‑te em felicidade para que nunca lamentes o que fizemos e por que razão o fizemos ‑ prosseguiu. ‑ Oh, o meu pai vai almoçar connosco. Pode chegar antes de mim, por isso...

‑ Não te preocupes ‑ interrompi.

‑ Depois de telefonar a Mistress Flemming, sigo para casa. O que é que a Letty está a preparar?

‑ Receei perguntar‑lhe ‑ respondi, dando‑me conta do facto nesse momento. Ele riu.

‑ Diz‑lhe que lhe rogas uma praga, se não se portar bem - redarguiu.

Desliguei e recostei‑me. Sentia‑me como se estivesse numa piroga que transpunha cascatas umas atrás das outras, sem tempo para tomar fôlego.

‑ A pequenina acordou, Mistress Tate. ‑ gritou Molly de uma das janelas do andar de cima.

‑ Vou já ‑ respondi.

Agora não tinha tempo para pensar em nada, mas talvez Paul tivesse razão. Talvez fosse melhor assim.

Ao almoço, nem eu nem o pai de Paul dissemos ou fizemos algo que revelasse que havíamos falado antes, mas estávamos todos nervosos. Paul tomou a seu cargo a maior parte da conversa. Mostrava‑se tão excitado que seria necessário um furacão para o acalmar. O diálogo com o pai centrou‑se por fim nos problemas de negócios.

Mrs. Flemming chegou num táxi às duas em ponto. O pai de Paul fora‑se embora, mas Paul ficara para a receber na minha companhia. A primeira coisa que me chamou a atenção nela foi a semelhança de estatura com a grandmère Catherine. De pé, Mrs. Flemming não media mais do que um metro e sessenta, ou sessenta e dois, e possuía os mesmos traços de boneca: um nariz pequeno e achatado, uma boca suave e olhos brilhantes de um azul‑acinzentado. O cabelo ligeiramente prata era percorrido por alguns fios de um louro cor de palha. Usava‑o preso na nuca, sem madeixas caídas para a testa.

Mostrou as referências e fomos todos conversar para a sala de estar. Porém, nenhuma da experiência anterior nem um monte de referências teria importância, se Pearl não simpatizasse com ela. ”Uma criança actua com base no instinto”, pensei.

No preciso momento em que Mrs. Flemming viu a minha filha e Pearl pousou os olhos nela, tomei a minha decisão. Pearl esboçou um largo sorriso e não se opôs quando Mrs. Flemming lhe pegou ao colo. Era como se já se conhecessem, desde o dia em que Pearl nascera.

‑ Oh, que menina tão linda! ‑ exclamou Mrs. Fleming. ‑ És preciosa, sabes, tão preciosa como uma pérola. És mesmo.

Pearl riu, virou os olhos na minha direcção, como se quisesse ver se eu estava ou não com ciúmes, e depois fitou o rosto afectuoso de Mrs. Flemming.

‑ Não tive muita oportunidade de estar com a minha neta quando ela era desta idade ‑ confessou. ‑ A minha filha vive em Inglaterra, sabe? Trocamos muita correspondência e vou lá uma vez por ano, mas...

‑ Porque não se mudou para lá com ela? ‑ indaguei.

Era uma pergunta muito pessoal e talvez não a devesse ter feito de forma tão directa, mas sentia que tinha de saber o máximo possível sobre a mulher que estaria com Pearl quase tanto tempo, se não mais, do que eu.

O olhar de Mrs. Flemming ensombrou‑se.

‑ Oh, ela agora tem a sua vida ‑ respondeu. ‑ Não quis interferir. - Depois acrescentou: ‑ A mãe do marido vive com eles.

Não precisava de explicar mais nada. Como diria a grandmère Catherine: ”Manter duas grandmères sem problemas debaixo do mesmo tecto é como tentar conservar um aligátor na banheira.”

‑ Onde está a viver agora? ‑ inquiriu Paul.

‑ Numa pensão.

Paul fitou‑me, enquanto Mrs. Flemming brincava com os dedinhos de Pearl.

‑ Bom. Nesse caso, não vejo motivo que impeça a sua mudança para aqui ‑ repliquei. ‑ Se as condições a satisfizerem ‑ acrescentei.

Ela ergueu os olhos, que se iluminaram subitamente.

‑ Oh, sim, querida. Sim, obrigada.

‑ Vou mandar um dos meus homens levá‑la de volta à pensão e esperar que reúna as suas coisas ‑ decidiu Paul.

‑ Primeiro, deixe‑me mostrar‑lhe onde vai dormir, Mistress Flemming ‑ disse eu, fitando intencionalmente Paul. Ele estava de novo a mover‑se com tanta rapidez que mal conseguia tomar fôlego. ‑ O seu quarto é contíguo ao quarto do bebé.

Pearl não se queixou quando Mrs. Flemming a levou ao colo até ao quarto. Continuava a sentir que havia algo quase espiritual na forma como as duas se tinham sentido mutuamente atraidas e descobri que Mrs. Flemming era canhota. Para os Cajuns significava que podia ter poderes espirituais. Talvez os dela fossem mais subtis, os poderes do amor em vez dos poderes de cura.

‑ Bom? ‑ quis saber Paul, depois de Mrs. Flemming ter saído com um dos homens dele para ir buscar as suas coisas.

‑ Parece perfeita, Paul.

‑ Então, não terás problema em deixá‑la aqui com a Pearl? ‑ prosseguiu. ‑ Só nos ausentaremos um ou dois dias. ‑ Hesitei e ele riu. ‑ Está bem. Já encontrei a solução. De vez em quando, preciso lembrar‑me de quanto sou realmente rico. Quanto somos, devo vincar.

‑ O que queres dizer?

‑ Levaremos a Pearl e reservamos um quarto contíguo com um berço ‑ elucidou. ‑ Porque hei‑de preocupar‑me com as despesas, desde que te sintas feliz?

‑ Oh, Paul! ‑ exclamei.

 

Parecia que a sua recente riqueza conseguia solucionar todos os problemas. Lancei‑lhe os braços à volta do pescoço e beijei‑o na face. Os olhos arregalaram‑se de uma agradável surpresa. Recuei, como se tivesse transposto uma fronteira proibida. Por um momento, deixara‑me arrebatar pela felicidade e excitação. Um estranho brilho de reflexão surgiu‑lhe nos olhos azuis.

‑ Tudo bem, Ruby ‑ apressou‑se a declarar. ‑ Podemos amar‑nos de uma forma pura e honesta. Só somos meios‑irmãos. Há a outra metade.

‑ É a outra metade que me preocupa ‑ confessei num fio de voz.

‑ Só quero que saibas ‑ retorquiu, agarrando‑me nas mãos ‑ que a tua felicidade é a única razão da minha existência. ‑ O rosto adquiriu uma expressão grave e sombria, enquanto nos fitávamos sem desviar o olhar.

‑ Eu sei, Paul ‑ redargui, por fim. ‑ E isso por vezes assusta‑me.

‑ Porquê? ‑ inquiriu, surpreendido.

‑Preocupa‑me... é tudo ‑ respondi.

‑ De acordo. Deixemo‑nos de conversas tristes. Temos de fazer as malas e planear. Preciso tomar umas disposições com o capataz dos poços de petróleo e depois voltar à fábrica durante umas horas. Vai fazendo a tua lista de compras e não te esqueças de nada ‑ sugeriu. ‑ A minha família estará aqui por volta das seis e meia ‑ acrescentou e foi‑se embora.

Esquecera‑me desse facto. Enfrentar a mãe de Paul era algo que temia. As batidas do coração aceleraram‑se de ansiedade. Apesar da promessa que fizera ao pai de Paul, não era boa a olhar alguém no rosto e ignorar a verdade. A minha irmã gémea, Gisselle, era perita nessas coisas, não eu. Mas tinha de conseguir fazê‑lo.

Mudei de vestido cinco vezes, antes de resolver qual usaria Ir ao jantar com a minha nova família. Não conseguia decidir se iria levar o cabelo apanhado ao alto ou solto. Cada pequeno pormenor assumia de repente uma enorme importância. Queria causar a melhor impressão que pudesse. Por fim, decidi que apanharia o cabelo e desci para jantar no momento exacto em que os Tate chegaram. Paul já estava vestido e à espera na entrada.

Toby e Jeanne entraram primeiro, com Jeanne fervilhante de excitação e ansiosa por descrever como a comunidade estava a reagir ao nosso enlace. Octavious e Gladys Tate vinham atrás; ela agarrava‑lhe o braço como se receasse não conseguir aguentar‑se de pé ou desmaiar se estivesse sem apoio. Beijou Paul na face e depois olhou‑me quando eu descia a escada.

Uma mulher alta, apenas uns dois centímetros e meio mais baixa do que o marido, Gladys Tate assumia habitualmente uma postura aristocrata. Sabia que provinha de uma abastada família em Beaumont, no Texas. Frequentara o liceu e a universidade, onde conhecera Octavious Tate. Surpreendia‑me muitas vezes que mais gente não suspeitasse que Paul não era, de facto, seu filho. Ela tinha uns traços muito mais duros e angulosos. Havia uma dureza no rosto, uma superioridade, arrogância e indiferença que a distanciava da maioria das mulheres da nossa comunidade cajun, mesmo das que também eram ricas.

 

Costumava usar o cabelo elegante curto e seguia os ditames da moda, mas nessa noite parecia tão sombria e deprimida que nem mesmo as roupas mais modernas ou o melhor cabeleireiro conseguiriam mudar o seu aspecto triste. Dava‑me a sensação de que viera para um velório e não para um jantar de família. Os olhos perscrutaram‑me o rosto ansiosamente quando me aproximei.

 ‑ Olá ‑ cumprimentei com um sorriso nervoso. Fitei Paul depois acrescentei: ‑ Acho que devo começar a tratá‑los

por... mãe e pai...

Octavious sorriu nervosamente e fitou Gladys, que, apenas devido à presença das irmãs de Paul, permitiu que os lábios desenhassem um breve esgar. Voltou a compor de imediato a sua expressão mais formal.

‑ Onde está o bebé? ‑ inquiriu num tom frio e duro, dirigindo‑se mais a Paul do que a mim.

‑ Oh, acabámos de contratar uma ama hoje, mãe. Chama‑se Mistress Flemming. Ela e a Pearl estão lá em cima, no quarto. Já deu de comer à Pearl, mas vai trazê‑la cá abaixo depois de jantarmos.

‑ Uma ama? ‑ retorquíu Gladys, com um aceno de cabeça impressionado.

‑ É muito simpática ‑ interferi.

Os lábios de Gladys Tate suavizaram‑se um pouco quando me fitou. Sentia que o clima entre nós era tão denso que podia cortar‑se à faca.

‑ Vou ver como está o jantar ‑ anunciei. ‑ Porque não levas todos até à casa de jantar?

‑ Ainda não vi realmente a tua casa, Paul ‑ queixou‑se Gladys.

‑ Oh, é verdade. Vou dar primeiro uma volta pela casa com a minha mãe, Ruby.

‑ óptimo ‑ concordei, feliz pela oportunidade de me escapar. Ia ser mais dificíl do que imaginara, pensei.

Letty, como se, conhecesse os mais profundos e obscuros segredos, preparou uma refeição que era ainda mais especial do que a primeira que fizera para nós. Octavíous insistia sem parar em como sentia ciúmes que o filho tivesse uma cozinheira melhor do que a dele. Pelo seu lado, Gladys elogiou tudo devidamente, mas, sempre que falava, pressenti um controlo tão tenso que a qualquer instante poderia soltar‑se e transformar‑se em histeria. Era como se fosse explodir em gritos agudos ante a mínima coisa. Mantinha Paul, o pai e eu em suspenso. Fiquei aliviada quando chegámos à sobremesa, que era um soufflé de chocolate com rum e o pai de Paul declarou que superava todos os que alguma vez provara.

No preciso momento em que Molly voltava a encher a chávena de café de todos, Mrs. Flemming apareceu com Pearl ao colo.

‑ Não é uma maravilha, mamã? ‑ exclamou Jeanne. Acho que ela tem os olhos do Paul, não achas?

Gladys Tate fitou‑me um instante e depois olhou para Pearl.

‑ É uma bonita criança ‑ declarou num tom muito evasivo.

‑ Quer pegar‑lhe, madame? ‑ sugeriu Mrs. Flemming. Sustíve a respiração. Mrs. Flemming era uma grandmère que sabia quanto uma avó desejaria pegar e beijar a sua neta.

‑ Claro ‑ anuiu Gladys com um sorriso forçado.

 

Mrs. Flemming levou‑lhe Pearl, que se contorceu pouco à vontade nos braços dela, mas não chorou. Gladys Tate examinou‑lhe o rosto um momento e depois deu‑lhe um beijo rápido na testa. Sorriu a Mrs. Flemming e esboçou um aceno de cabeça indicativo de que queria que ela voltasse a pegar‑lhe. Mrs. Flemming semicerrou momentaneamente os olhos e aproximou‑se.

‑ Que tal ser uma grandmére, mamã? ‑ perguntou Jeanne.

‑ Se queres saber se me sinto mais velha por esse motivo,

a resposta é não, Jeanne ‑ replicou Gladys Tate com um sorriso frio. Virou‑se, olhou‑me do outro lado da mesa e depois

Paul sugeriu que fôssemos todos até à biblioteca.

‑ Ainda não está muito composta. Nada está, mas depois de a Ruby e eu voltarmos de Nova Orleães, este lugar vai transformar‑se num mostruário.

‑ Porque é que não contam à tua mãe os vossos planos para a decoração da casa? ‑ propôs Octavious e acrescentou, virando‑se para mim: ‑ Foi a Gladys quem se encarregou da maior parte da nossa decoração.

‑ Oh! Adoraria algumas sugestões ‑ repliquei, fitando‑a.

‑ Não sou decoradora ‑ ripostou Gladys.

‑ Ora. Não sejas modesta ‑ contrapôs ousadamente Octavious e esboçou‑me um aceno de cabeça. ‑ A tua sogra é perita quando se trata de mobilar e decorar casas luxuosas. Aposto que seria capaz de te acompanhar numa volta pela casa e fazer sugestões.

‑ Octavious!

‑ Serias, sim, Gladys ‑ insistiu.

‑ Vão as duas e eu encarrego‑me de fazer companhia aos restantes na biblioteca ‑ disse Paul.

Por momentos, Gladys pareceu irritada. Mas depois pousou o olhar nas duas filhas, que se mostravam surpreendidas ante a sua relutância.

‑ Claro, se a Ruby quiser realmente ‑ acedeu, contrariada.

‑ Por favor ‑ pedi, com os lábios a tremer.

‑ óptimo ‑ aprovou Paul, levantando‑se.

‑ O que devemos ver primeiro? ‑ perguntei a Gladys Tate.

‑ Devem começar pelo vosso quarto ‑ sugeriu Jeanne. - Eles têm quartos separados com uma porta de comunicação. Não é como um casal real, mamã?

Seguiu‑se um profundo momento de silêncio. Depois, Gladys sorriu e pronunciou‑se:

‑ Sim, minha querida. é verdade.

Quando subimos ao andar superior e percorremos o vestíbulo, Gladys manteve‑se uns centímetros atrás de mim. Não disse palavra. O coração ameaçava saltar‑me do peito, enquanto rebuscava na mente à procura de um tipo de conversa banal que não me fizesse parecer estúpida ou nervosa. Pus‑me a falar das cores que estava a imaginar, tagarelando sobre a sua combinação e o desenho do mobiliário. Ao pararmos na ombreira da porta, ela olhou‑me finalmente.

‑ Por que razão o fizeste? ‑ perguntou num sussurro rouco. ‑ Porquê, se sabias a verdade?

‑ O Paul e eu sempre fomos muito chegados, mãe. No passado, fui forçada a despedaçar o coração do Paul por causa da verdade. Sabe como reagiu quando descobriu ‑ repliquei.

‑ E como achas que me senti? ‑ indagou asperamente. - Ainda não estávamos casados há muito tempo quando o Octavious... foi infiel. A tua mãe deitou‑lhe obviamente um feitiço. A filha da Catherine Landry tinha, sem dúvida, poderes sobrenaturais ‑ salientou.

 

Engoli em seco. Queria defender a mãe que nunca conhecera, mas apercebia‑me de que a mãe de Paul desenvolvera aquela teoria para mais facilmente aceitar a infidelidade do marido e eu não tinha a intenção de destrui‑la.

‑Mas... o que fiz eu? ‑ prosseguiu. ‑ Aceitei, disfarcei os factos e possibilitei que mantivéssemos o respeito e o Paul crescesse protegido. Agora vocês os dois... decidem casar e... É pecaminoso ‑ retorquíu, abanando a cabeça. ‑ Pecaminoso.

‑ Não vivemos juntos dessa maneira, madame. É por isso que temos quartos separados.

Gladys abanou a cabeça com um brilho cruel e crítico nos olhos duros. Depois, respirou fundo e optou por uma expressão de autopiedade.

‑ Agora, tenho de voltar a fingir, voltar a engolir o orgulho e fazer o que tem de ser feito para não desgraçar os meus filhos. Não é justo ‑ declarou, abanando a cabeça. ‑ Não é justo.

‑ Ninguém saberá nada pela minha boca ‑ prometi, e ela soltou uma breve e aguda gargalhada.

‑ Porque havias de dizer fosse o que fosse? Olha só para o que tens agora ‑ acrescentou num tom duro, erguendo os braços. ‑ Esta casa, estes terrenos, esta imensa riqueza... e um pai para a tua filha. ‑ Não despregava os olhos de mim.

‑Madame... mãe, garanto‑lhe...

‑ Garantes‑me! Ora! Tenho a certeza de que fizeste o mesmo feitiço ao Paul que a tua mãe lançou a Octavious. De mãe para filha, só que sou eu que pago por tudo isso... não o meu querido marido, nem o meu querido filho adoptado. Curioso - acrescentou, depois de uma pausa. ‑ Nunca tinha usado esta expressão antes, nunca, mas agora, contigo aqui, apenas posso dizer a verdade: o meu filho adoptado.

‑ Não é verdade ‑ ripostei. ‑ No seu coração, ama o Paul como se o tivesse dado à luz e ele também a ama dessa maneira. Vou fazer‑lhe uma promessa, mãe, que é a de jamais interferir nesse amor. Nunca ‑ insisti, de olhos semicerrados e fixando‑a com uma expressão determinada.

Ela sorriu friamente como que implicando que eu não poderia levar isso a cabo, mesmo que quisesse.

‑ Mas deve saber que o Paul ama tanto a Pearl como se ela fosse sua ‑ avisei. ‑ Espero que aceite isso e a ame como uma grandmère o faria.

‑ Amor ‑ redarguiu. ‑ Toda a gente precisa tanto dele que não admira que estejamos todos esgotados. ‑ Voltou a suspirar e depois percorreu o meu quarto com os olhos, ao mesmo tempo que o rosto adquiria uma expressão crítica. - Devias pôr uns reposteiros bonitos nestas janelas. O Sol irá pôr‑se deste lado. É essas cores em que estavas a pensar... julguei que supostamente eras uma artista. Usarás bege com um pouco de rosa aqui ‑ ordenou. ‑ Quando chegares a Nova Orleães ‑ prosseguiu, completando a visita ‑, há uma loja que conheço em Canal Street...

Segui‑a, agradecida pelas tréguas que tinham descido entre nós, embora fossem umas tréguas à maneira dela.

 

Na manhã seguinte, levantámo‑nos cedo para a nossa viagem a Nova Orleães. Por sorte, a névoa matutina dissipou‑se e as manchas azuis atravessadas pelo brilho do sol tornaram a viagem mais agradável. Detestava percorrer longas distâncias à chuva. Porém, enquanto viajávamos pela estrada familiar, era impossível deixar de me sentir alguém que revivia um velho pesadelo. Lembrei‑me da minha primeira viagem, quando fugira do grandpère Jack. Chegara a Nova Orleães na terça‑feira de Carnaval, e quase fora violada por um homem com uma máscara carnavalesca, que fingiu ajudar‑me a orientar‑me na cidade.

Foi, contudo, esse o dia em que conhecera Beau, recordei. No preciso momento em que me dispunha a desistir e a afastar‑me da casa do meu pai, Beau chegara como se saído de um barco de sonho numa tela de cinema.

Mal pus os olhos nele, percebi de imediato que era especial e, pela forma como me fitou ao inteirar‑se que eu não era a minha irmã gémea, soube que ele pensava o mesmo a meu respeito. Quando o lago Pontchartrain se recortou na paisagem com a sua água de um verde‑escuro semeada de pequenas ondas, recordei vivamente o meu primeiro encontro com Beau e como estivéramos apaixonados desde então.

Perdera‑me a tal ponto nestas recordações, que nem me dei conta de que Paul nos conduzira até à cidade; chegáramos ao Hotel Faírmont. Pearl dormira durante a maior parte da viagem, mas, quando descemos, ficou fascinada com os sons do trânsito, as pessoas e toda a actividade à nossa volta. Dirigimo‑nos para os nossos aposentos. Paul reservara um quarto com duas camas que dava para um outro, onde dormiriam Mrs. Flemíng e Pearl.

Depois de comermos uma refeição ligeira no hotel, Mrs. Flemming levou Pearl a fim de dormir uma sesta, e Paul e eu demos início às compras. Esquecera‑me do quanto gostava da cidade. Tinha os seus próprios ritmos especiais que mudavam à medida que o dia se transformava em noite. De manhã, apresentava‑se muito calma. A maioria das lojas não estava aberta e as persianas e portas das varandas apresentavam‑se fechadas, sobretudo no famoso French Quarter, o Vieux Carré. As sombras ainda reinavam e as ruas estavam relativamente frescas.

Ao fim da manhã, abriram as lojas e as ruas pululavam de gente. As varandas de arabescos sobre as nossas cabeças extravasavam de flores. O Hawkers publícitava as suas mercadorias; a música começava a atrair os turistas até às portas de restaurantes e bares. Depois, à medida que avançou a tarde, o ritmo acelerou. Os artistas de rua ocuparam as devidas posições nas esquinas, fazendo sapateado, malabarismos e tocando guitarras.

Paul tinha uma lista de lugares onde ir, uma lista que revelou haver sido elaborada pela mãe.

‑ Ela sabe bastante mais sobre tudo isto do que nós ‑ declarou e mostrou‑me uma lista de artigos que nos mandara comprar. ‑ O que achas? ‑ quis saber.

‑ óptimo ‑ respondi, embora muitas coisas não fossem especialmente da minha preferência.

Paul e eu fomos de loja em loja, comprando mobílias, acessórios de iluminação, candeeiros e mesas, bem como objectos sugeridos pela mãe. Começava a sentir‑me como se estivesse meramente a ser arrastada.

‑ A minha mãe é uma mulher de muito bom gosto, não é? ‑ declarou, antes de eu ter tido muita oportunidade de comentar.

‑ Sim ‑ anui. Era como se ela se encontrasse ali ao nosso lado.

 

A tarde ia avançada quando Paul e eu fizemos um intervalo e fomos ao Café du Monde beber um café e comer os famosos beignets. Podíamos observar os artistas diante dos cavaletes e os turistas desfilando, de olhos muito abertos e as máquinas fotográficas penduradas ao pescoço. Uma brisa fria soprava do rio e as flores de magnólia que se levantavam e baixavam conferiam um brilho particularmente atraente à atmosfera.

‑ Fiz uma reserva de jantar para nós no Amaud’s ‑ disse Paul.

‑O Arnaud’s?

‑ Sim. A minha mãe sugeriu. Não te parece uma boa escolha?

‑ Oh, sim, claro ‑ respondi, apressando‑me a sorrir. Como é que Paul poderia saber que Beau me levara ao Arnaud’s no nosso primeiro encontro formal? Todavia, aos meus olhos, era como se a cidade estivesse a conspirar para acordar cada uma das recordações da minha vida passada ali, quer fossem boas ou más.

Tivemos um jantar maravilhoso e Pearl portou‑se bem. Depois, Paul quis sentar‑se no salão do hotel a ouvirjazz. Fizemo‑lo durante algum tempo, mas a viagem e as compras com todas as suas implicações emocionais haviam sido mais cansativas do que pensava. Não conseguia manter os olhos abertos. Paul riu e subimos ao nosso quarto.

Esta era a primeira noite que dormíamos juntos no mesmo aposento, e, embora não partilhássemos a cama, havia uma intimidade que, de começo, me provocou um certo desconforto. Quando me encontrava de pé diante do lavatório e do espelho, vestida apenas em combinação e a tirar a maquilhagem, vi Paul reflectido no espelho, de pé, atrás de mim, fitando‑me com o azul dos olhos tão fundo que me senti despida. Logo que percebeu que o observava, afastou‑se rapidamente.

Dirigi‑me à casa de banho e vesti‑me para me deitar. Paul já estava na cama quando apaguei a luz e me enfiei debaixo da roupa.

‑ Boa noite, Ruby ‑ pronunciou suavemente.

‑Boa noite.

O silêncio e a escuridão pareciam adensar‑se entre nós. Partilharíamos tudo o que um homem e uma mulher que casavam

e se tornavam um só podiam partilhar, excepto uma coisa: um

ao outro. Esse pensamento pairava no escuro sobre mim, aguilhoante e doloroso. Virei‑me de lado e, quando fechei os olhos, a minha mente evadiu‑se até à recordação de Beau e da paixão com que nos amávamos. Por agora, essas lembranças eram tudo o que tinha.

No dia seguinte, continuámos a nossa ronda de compras, de acordo com o rol que Mrs. Tate escrevera. Fui a uma loja de artigos de arte e apresentei‑lhes a minha lista. Tudo seria entregue. Depois do almoço, Paul e eu passeámos pelo French Quarter, procurando agora presentes para as irmãs e os pais dele.

‑ Ainda não falaste no assunto, mas tencionas ver a tua madrasta? ‑ perguntou Paul. ‑ Ela tem de saber do nosso casamento.

‑ Estava a pensar fazê‑lo, sim ‑ respondi. ‑ Embora não esteja muito ansiosa.

‑ Acompanho‑te.

‑ Não. De momento, prefiro ir sozinha ‑ retorqui.

‑ Está bem ‑ anuiu com um sorriso. ‑ Queres que te chame um táxi ou...

‑ Não. Acho que quero ir de eléctrico ‑ ripostei.

Fizera‑o tantas vezes quando morava na grande casa do meu pai no Garden District. Continuava a ser um passeio delicioso para mim; porém, no momento em que desci e comecei a encaminhar‑me para a mansão, senti o coração a bater‑me com força no peito.

Conseguiria voltar àquela casa e enfrentar a minha madrasta depois de ter fugido? Sabia que Gisselle estava nas aulas e, portanto, não discutiria com ela, mas entrar naquela grande casa, sabendo que o meu pai tinha desaparecido, Nina também e Beau se encontrava na Europa envolvido com outra jovem mulher, parecia uma tortura imposta a mim própria.

Fiz uma pausa do outro lado da rua e contemplei a mansão de mármore branco. Parecia imutável, congelada no tempo. Talvez se atravessasse aquela rua, tudo o que acontecera desde o dia em que chegara desaparecesse e começasse tudo de novo, pensei. O meu pai ainda estaria vivo, robusto e elegante. Nina Jackson encontrar‑se‑ia na cozinha, dobrada e a resmungar em voz baixa sobre alguns ingredientes, queixando‑se de alguns espíritos maus que se haviam alojado nos armários, e Otis ainda estaria à porta, à espera de me cumprimentar. Ouviria Gisselle a gritar qualquer protesto lá de cima.

Ia a atravessar quando o familiar Rolls‑Royce subiu o acesso. Vi‑o parar em frente da casa e Daphne saiu. Se algo ou alguém parecia imutável era ela. Constante imagem de gelo, adoptou logo a sua postura de estátua e ditou qualquer ordem ao motorista. O carro afastou‑se e ela subiu as escadas. Um novo mordomo, um homem mais baixo, de cabelo grisalho, abriu de imediato a porta. Era como se nada mais fizesse do que esperar que a dona da casa chegasse. Sem o saudar, entrou em casa. O mordomo fez uma ligeira vénia e, em seguida, olhou para fora, como se olhasse para a liberdade. Um momento depois, a porta estava fechada; recuei para o passeio.

De súbito, nada se afigurava mais assustador e desagradável do que a ideia de enfrentar Daphne. Girei sobre os calcanhares e afastei‑me, caminhando tão rapidamente como se estivesse a fugir. No entanto, a verdade é que fugia. Fugia das terriveis lembranças dos modos desdenhosos de Daphne, da sua tentativa de me internar, dos ciúmes do amor do meu pai por mim, da sua ânsia por dar uma terrível imagem minha aos olhos dos pais de Beau. Fugia do vazio daquela grande casa quando o meu pai morrera, das sombras e da escuridão que pairavam nos cantos.

Caminhei ao longo de quarteirões a fio antes de voltar a apanhar o eléctrico e, quando cheguei ao hotel e Paul me abriu a porta, parecia enlouquecida, de cabelo desgrenhado e a tristeza estampada no rosto.

‑ O que aconteceu? ‑ inquiriu. ‑ O que é que ela te fez?

‑ Nada ‑ respondi, atirando‑me para cima da cama. ‑ Nem lhe falei. Fui incapaz. Vou escrever‑lhe ‑ acrescentei. ‑ E fiquemos por aqui. Vamos para casa... agora!

‑ Mas ainda temos de fazer umas coisas ‑ protestou, abanando a cabeça. ‑ A minha mãe acha que devíamos...

‑ Oh, Paul ‑ interrompi, pegando‑lhe na mão. ‑ Leva‑me para casa. Por favor... leva‑me para casa. Tu próprio podes comprar o resto, não podes?

‑ Claro ‑ acedeu. ‑ Partiremos imediatamente.

 

Só quando chegámos ao bayou e iniciámos a subida para Cypress Woods é que voltou a invadir‑me uma profunda sensação de alívio. A nossa mansão erguia‑se na minha frente e apercebi‑me de que era esta a minha casa, mesmo que fosse a minha sogra quem a decorava e não eu. Agora, mais do que nunca, senti a‑me feliz por ter tomado a decisão de casar com Paul e ir para ali. Ficava suficientemente distante e isolada para afastar os fantasmas do meu passado tenebroso.

Ansiava por começar a montar o meu estúdio e voltar a pintar. Os pântanos, os nossos acres de terra e os nossos poços de petróleo estariam dentro dos muros que afastariam os demónios. Ali estava segura, pensei. Segura...

 

NOTÍCIAS TRISTES

Cada dia dos meus primeiros seis meses como dona de Cypress Woods revelou‑se tão cheio de responsabilidades e actividades que mal tive tempo de reflectir na vida que tinha escolhido para mim e para a minha filha.

Acho que só dei pelo Inverno quando me apercebi da partida dos gansos‑das‑neves e vi que a estação terminara. Os primeiros botões primaveris abriam‑se numa explosão deslumbrante de cor como nunca me fora dado observar. O mobiliário e os apetrechos decorativos para a nova casa tinham começado a chegar pouco depois da nossa viagem a Nova Orleães. Pintores e decoradores, ladrilhadores e pessoal das alcatifas, reposteiros e espelhos, uma parada de artesãos, desfilavam todos os dias pela casa.

A mãe de Paul aparecia quase todas as manhãs para supervisionar. Sempre que comentava o assunto, Paul interpretava erradamente ou ignorava os meus propósitos.

‑ Não é maravilhosa a forma como se interessa por nós? - replicava. ‑ E o facto de ela estar aqui, movendo‑se por todas as divisões, subindo e descendo as escadas, respondendo a perguntas, liberta‑te para poderes trabalhar no teu estúdio.

Prestei toda a atenção àquele lugar, pois era o único onde Gladys se recusava a entrar. Paul foi igualmente apanhado por um frenesim de actividade. Os seus dias eram divididos entre o trabalho na fábrica e a supervisão dos poços de petróleo. Duas semanas depois do nosso regresso de Nova Orleães, foi escavado um novo poço. Deu‑lhe o nome de ”Poço de Pearl” e decidiu que todos os proventos do mesmo seriam depositados numa conta a favor dela. Antes de ter um ano, era mais rica do que a maioria das pessoas no final das suas vidas produtivas.

Nos fins‑de‑semana, dávamos grandes jantares para os maridos e mulheres das pessoas com quem Paul lidava no seu negócio petrolífero. Todos ficavam impressionados com a nossa casa e propriedade, sobretudo os que vinham de Baton Rouge, ou Houston e Dalías. Sabia que todos esperavam muito menos do bayou cajun. Paul tagarelava em permanência a meu respeito, vangloriando‑se sem pejo dos meus talentos e sucessos artísticos.

Escrevi finalmente a minha carta a Daphne, mas só depois de haver passado um mês desde a minha tentativa para a contactar em Nova Orleães. De vez em quando, Paul perguntava‑me se o fizera e eu respondia: ”Dentro em pouco. Estou a organizar ideias.>) Ele sabia que eu estava a adiar, mas não me espicaçava. Por fim, numa tarde em que dispus de tempo para tomar fôlego, sentei‑me no jardim, munida de caneta e papel e comecei a escrever.

 

”Cara Daphne,

Há quase um ano que não nos escrevemos nem falamos.

Sei que pouco lhe interessa o que me aconteceu e onde estou agora, mas, em prol e memória do meu pai, resolvi escrever esta carta.

 

Depois da minha horrível experiência naquela repugnante clínica onde me mandou para fazer um aborto, fugi e regressei às minhas raízes, ao bayou. Vivi, durante meses, na velha cabana da minha grandmère, fazendo tudo o que as duas tínhamos feito para sobrevivermos. Dei à luz uma bonita filha a quem chamei Pearl e lutei durante meses para providenciar o nosso sustento.

Apercebi‑me de que a minha primeira responsabilidade agora é a minha filha e o seu bem‑estar e foi com este objectivo em mente que me casei com o Paul Tate. Não espero que compreenda, mas temos uma vida em comum muito especial. Mais parecemos sócios, empenhados em construir uma felicidade mútua e em oferecer um futuro seguro a Pearl, do que marido e mulher. A terra que o Paul herdou revelou‑se rica em petróleo. Temos uma bela casa chamada Cypress Woods.

Nada lhe peço, e muito menos de forma alguma o seu perdão. Não deve interpretar esta carta como o meu perdão pelo que tentou fazer‑me no passado. Na verdade, sinto mais pena do que raiva por si. Espero, porém, que aquilo que o meu pai decidiu dar‑me, me seja dado. O meu amor por ele em nada diminuiu. Sinto terrivelmente a sua falta.

Zele, por favor, para que o advogado encarregado da minha custódia seja informado da minha nova morada.

Ruby”

 

Não obtive resposta, o que não me surpreendeu. Pelo menos, dera notícias e ela não poderia invocar o argumento de que eu desaparecera e repudiara todo o contacto e ligação com a propriedade do meu pai. De facto, nunca a aceitara como uma mãe ou membro da família. Fora uma estranha para mim enquanto vivera na casa dos Dumas e continuava a sê‑lo ainda mais agora.

Jeanne aparecia com mais frequência do que Toby para nos visitar e brincar com Pearl. Depois do meu casamento com Paul, abraçava‑me ternamente como sua nova irmã e, por vezes, confiava mais em mim do que na sua própria irmã de sangue, Toby, e, sem dúvida, mais do que na mãe. Uma tarde, estávamos sentadas no pátio a beber limonada fresca e observando Mrs. Flemming a levar Pearl para um passeio através dos jardins.

Jeanne viera de propósito a Cypress Woods para falar comigo sobre o seu namorado, James Pitot, um jovem advogado. Tratava‑se de um homem alto, moreno e elegante com uma delicadeza e encanto que me recordavam um pouco o meu pai.

‑ Acho que vamos ficar noivos ‑ revelou Jeanne e pela forma como se expressou apercebi‑me de que era eu a primeira a sabê‑lo.

‑ Achas?

‑ A ideia de um grande ”sim” aterroriza‑me! ‑ exclamou, o que me obrigou a rir. ‑ Não tem graça, Ruby. Mantenho‑me acordada noites a fio, atormentada com isso.

‑ Não, não tem graça. Não devia rir. Tens razão.

‑ O que te levou, finalmente, a decidir casar com o Paul? - indagou.

”Se ela soubesse a verdade, não se mostraria tão calorosa”, pensei, receosa.

‑ Quero dizer, não sei o que é o amor, o que é realmente. Senti‑me atraída por vários rapazes e sabes que costumava sair com o Danny Morgan...

‑ Lembro‑me.

 Mas ele tornou‑se um... um idiota chapado. O James é diferente. O James é...

‑ O quê? Conta‑me ‑ pedi.

‑ Atencioso, delicado, terno e suave. Ainda não fizemos amor... sabes? ‑ confessou, corando. ‑ Claro que ele queria, mas não consegui, sem ser casada. Disse‑lho e ele compreendeu. Não se erritou.

‑ Porque se importa realmente contigo e pelo que te torna feliz ‑ concluí. ‑ É isso o amor ou, pelo menos, a parte mais importante. O resto também é obviamente importante, mas não tem de haver um toque de sinos sempre que beijas. O que aprendi é que a confiança é o solo onde se planta um longo e duradouro amor, Jeanne.

‑ Mas claro que houve um toque de sinos para ti e para o Paul. Há muito que vocês os dois estavam apaixonados. Lembro‑me de quando ele mal conseguia acabar de jantar para pegar na secoter e ir ver‑te, mesmo que fossem só dez minutos. Era como... como se o Sol nascesse e se pusesse no teu rosto.

”Não tenho sentimentos tão fortes pelo James ‑ admitiu. ‑       Portanto, receio cometer um erro crasso se responder sim.

‑ Algumas pessoas amam demasiado ‑ contrapus num tom suave.

‑ Como Adão amou Eva ‑ retorquiu com um aceno de cabeça. ‑ Ele comeu o fruto proibido depois de Eva o ter provado só para não a perder. Foi o que o padre Rush me contou uma vez.

‑ Sim, como Adão ‑ assenti com um sorriso.

‑ Mas achei a história tão romântica. Quero que o meu casamento seja romântico, tão romântico como o teu ‑ declarou. ‑         E o teu é, não é, Ruby?

Fitei‑a. Seria apenas a sua juventude que a impedia de divisar a verdade nos meus olhos, ou estava em causa a minha capacidade de mascarar a realidade? Sorri.

‑ É, Jeanne, mas isso não acontece de um dia para o outro e, pela forma como falas do James e pelo que me contas dele, tudo indica que serão felizes juntos.

‑ Oh, ainda bem que dizes isso! ‑ exclamou. ‑ De facto, valorizo mais a tua opinião do que a de qualquer outra pessoa, mais do que a da mamã e sem dúvida mais do que a da Toby.

‑ Gostaria que primeiro falasses com a tua mãe ‑ retorqui ‑ Não quero convencer‑te a fazer o que quer que seja. Tens de te convencer a ti própria.

Bem no fundo de mim, imaginava Gladys Tate a odiar‑me por dar conselhos íntimos à filha dela.

‑ Não te preocupes, tontinha ‑ redarguíu. ‑ Estou convencida. Apenas precisava de ter a certeza. Dantes, também te sentias insegura, não?

‑ Também ‑ confessei.

‑ Nunca falas da tua vida em Nova Orleães. Tiveste muitos namorados lá, ou quando foste para o colégio?

‑ Não, muitos não ‑ retorqui, logo desviando os olhos, o que não lhe passou despercebido.

‑ Mas houve um?

‑ Não houve... nenhum, realmente ‑ ripostei, voltando costas com um sorriso. ‑ Sabes como podem ser esses rapazes ricos crioulos... Fazem promessas apenas para conseguir ir para a cama e depois partem para outra conquista.

‑E foste?

‑Fui o quê?

‑ Para a cama com algum deles?

‑ Jeanne!

‑ Desculpa. Julgava que podia perguntar. Julgava que podíamos ser irmãs, melhores irmãs do que o foram tu e a tua irmã gémea.

‑ Não seria difícil ‑ comentei com uma gargalhada. Fitei‑a uns momentos e depois respondi: ‑ Não, não fui. ‑ Sabia que, se lhe contasse a verdade, eu própria romperia em lágrimas e todo este mundo maravilhoso que Paul criara para Pearl e para mim ruiria à nossa volta.

‑ Nesse caso, estou certa em esperar até sermos casados? - inquiriu, aliviada.

‑ Se é o que sentes, estás ‑ disse‑lhe.

De momento, pareceu satisfeita, mas incomodava‑me aconselhar alguém a nível de romance e casamento. Quem era eu para o fazer?

No dia seguinte, Jeanne veio anunciar o seu noivado com James Pitot. Tinham marcado uma data. Quando Paul soube a notícia, anunciou que o casamento seria em Cypress Woods, se ela o quisesse. Jeanne fitou‑me com uma expressão cúmplice e mostrou‑se encantada.

‑ A Ruby ajudar‑me‑á a planear o casamento. Não é verdade, Ruby?

‑ Claro ‑ acedi.

‑ Oh, Paul! ‑ exclamou. ‑ Fizeste mais do que casar com a mulher que sempre amaste e dar‑nos uma bela e adorável sobrinha. Deste‑me uma irmã maravilhosa.

Abraçámo‑nos e beijámo‑nos e esperei ter dito o que se impunha e que Jeanne estivesse destinada a um óptimo e feliz casamento. De qualquer maneira, havia um grande acontecimento de família a planear. Parecia que Paul tinha razão: as nossas vidas seriam plenas de excitação e nunca monótonas.

Nessa noite, Paul bateu na porta de comunicação e entrou no meu quarto quando eu estava em frente do espelho do toucador, escovando o cabelo. Já vestira a camisa de noite. Ele optara por um leve pijama de seda azul, um dos presentes de aniversário que lhe comprara.

‑ Acabei de falar ao telefone com o meu pai. Ele acha que a casa dele agora se assemelha a um posto de comando militar. Já elaboraram longas listas de convidados e começaram a planear os preliminares. Jura que parecem os preparativos para uma batalha.

Sorri.

‑ Gostava que tivéssemos tido um casamento de arromba - declarou. ‑ Merecias nada mais nada menos do que ser tratada como algumas das princesas cajuns.

‑ É assim que sou tratada, Paul.

‑ Sim, mas... ‑ Os olhos fixaram‑se nos meus através do espelho. ‑ Como tem sido para ti? Quero dizer... És realmente feliz, Ruby?

‑ Sim, Paul. Sou.

Esboçou um aceno de cabeça e depois trocou uma expressão profunda e meditativa por um sorriso terno e suave.

‑ De qualquer forma, agradeço‑te teres aceite as minhas irmãs tão rapidamente no teu coração, tornando‑as tua família também. Elas adoram‑te e a minha mãe... Bom, ela aprendeu a fazer mais do que simplesmente aceitar. Sei que agora te respeita.

 

Interroguei‑me sobre como podia atrever‑se a uma tal afirmação. Estaria cego em relação à expressão fria e sombria dos olhos da mãe sempre que os pousava em mim, ou tão decidido a ser feliz que ignorava o facto e ele próprio vivia na ilusão?

‑ Assim espero, Paul ‑ retorqui sem muita convicção.

‑ É verdade ‑ insistiu. ‑ Bem. Boa noite.

Avançou e beijou‑me ao de leve no pescoço. Ainda nunca me beijara assim, desde que casáramos. O calor dos seus lábios emitiu ondas de calor para os meus ombros e ao longo dos seios. Fechei os olhos e, quando voltei a abri‑los, vi‑o de pé com os lábios a escassos centímetros do meu rosto.

‑ Boa noite ‑ pronunciei num murmúrio rouco.

‑ Boa noite. ‑ Voltou‑se rapidamente e saiu do meu quarto.

Durante um momento, não desviei o olhar. Depois, respirei fundo e preparei‑me para me deitar.

Nessa noite, dei voltas e mais voltas na cama durante horas a fio, antes de ceder finalmente ao cansaço e adormecer.

 

Três dias mais tarde, a felicidade que pairava sobre Cypress Woods foi destruida pela chegada de Gisselle. Ela e dois dos seus amigos da sua elegante escola preparatória apareceram no acesso da casa, buzinando furiosamente, num Cadillac descapotável. Fez com que todos os criados e eu acorrêssemos à janela da frente. Julgámos tratar‑se de qualquer emergência. James fitou-me surPreendido.

‑ a minha irmã gémea ‑ informei. ‑ Não se preocupe, James. Eu vou cumprimentá‑la e recebê‑la.

‑ Muito bem, madame ‑ anuiu, feliz por ser dispensado. Saí para a varanda, a fim de os receber.

Passara algum tempo desde que eu e Gisselle nos tinhamos visto pela última vez. Os dois rapazes que a acompanhavam eram bonitos e elegantes, um deles de cabelo castanho‑escuro e o outro louro de olhos azuis e tez muito clara. Era ele quem viera a conduzir.

Os dois vestiam blazers azul‑escuros com os emblemas da instituição gravados a ouro nos bolsos do peito. O jovem moreno foi o primeiro a sair e segurou a porta para dar passagem a Gisselle, esboçando uma vénia à europeia, como se ela fosse um membro da realeza. O riso dos lábios sugeria que tinham estado a beber ou talvez a fumar erva. Não havia nenhum motivo para esperar que Gisselle tivesse mudado ou amadurecido desde que nos víramos pela última vez, mas aguardara qualquer milagrosa metamorfose.

‑ Aqui está ela ‑ exclamou, mal me pôs a vista em cima.

‑           A minha querida e adorada gémea, a dona de Cypress Woods. Tenho de confessar, querida irmã ‑ acrescentou com um aceno de cabeça enquanto olhava em volta ‑, que não te saíste nada mal para uma cajun.

Os dois homens riram e o motorista saiu e juntou‑se‑lhes.

‑ Então? Não me cumprimentas? ‑ impacientou‑se Gisselle, de mãos nas ancas. ‑ Há muito tempo que não nos vemos. Podias pelo menos fingir que estás satisfeita.

‑ Olá, Gisselle ‑ saudei num tom seco.

‑ O quê? Nem um beijo e abraço fraterno? ‑ Avançou ao meu encontro. Abanei a cabeça e beijei‑a. ‑ Assim é melhor. Devias ficar impressionada. Percorremos toda esta distância para te visitar e é uma viagem terrivelmente monótona. Nada para ver,

à excepção destas cabanas apoiadas em estacas, velhos barcos de pesca ao camarão a apodrecerem nos canais e crianças pobres e sujas brincando com ferramentas velhas e enferrujadas nos sórdidos pátios da frente. Não é verdade, Darby? ‑ indagou, voltando‑se para o jovem moreno. Ele concordou com um aceno e sem me desfitar.

‑ Porque é que não fazes as devidas apresentações, Gisselle? ‑ incitei.

Ela esboçou um esgar.

‑ Claro. Tal como nos ensinaram em Greenwood, hem? - e imitou a nossa professora de etiqueta em Greenwood, falando pelo nariz. ‑ Este é o Darby Hennessey, dos corruptos e ricos Hennessey do Banco de Nova Orleães. ‑ Darby soltou uma gargalhada e curvou‑se numa vénia. ‑ E este timido e louro jovem à minha esquerda é o Henry Howard. O pai é um dos mais famosos e importantes arquitectos da Luisiana. Nenhum destes jovens hesitaria em gastar a sua herança comigo, pois não, cavalheiros?

‑ Pelo meu lado, guardaria um pouco para me manter com champanhe ‑ gracejou Darby, e todos riram.

‑ Esta casa... Devo confessar, Ruby ‑ comentou Gisselle, recuando. ‑ Não fazia ideia. És rica antes mesmo de herdares a tua parte. Consegues imaginar como a minha irmã gémea vai ser rica?

O interpelado esboçou um aceno, olhando em volta.

‑ Rica mesmo ‑ admitiu.

‑ Brilhante. O Henry vai formar‑se em neurocirurgia - redarguiu, e Darby riu. ‑ Então? Vais levar‑nos a dar uma volta ou deixar‑nos aqui de pé o dia inteiro sob este calor dos pântanos? ‑ inquiriu.

‑ Claro que vou mostrar‑vos a casa.

‑ Não faz mal que o carro fique aqui? ‑ perguntou‑me Henry.

‑ Porque havia de fazer? ‑ ripostou Gisselle, sem me dar tempo a responder. ‑ Achas que ela tem um criado para o estacionar? ‑ Riu e enfiou o braço no de Darby. ‑ A visita, madame ‑ insistiu.

‑ Não mudaste em nada, Gisselle ‑ comentei, abanando a cabeça.

‑ Para quê? Sempre fui perfeita. Certo, Darby?

‑ Certo ‑ respondeu ele, obediente.

Abri a porta e introduzi‑os na casa.

‑ A Daphne teria um fanico se visse como te saiste bem, querida irmã ‑ garantiu Gisselle, enquanto observava o enorme átrio de entrada, os meus quadros e estatuetas, o chão de mármore e a escadaria.

Soltou um assobio frente ao elegante mobiliário da sala de estar e do escritório, mas a atitude sarcástica deu lugar a uma expressão de respeito quando os levei a visitar o resto do andar de baixo e depararam com os enormes quadros, os luxuosos candeeiros e lustres, a imensa cozinha e a sala de jantar com uma mesa que podia acomodar facilmente vinte pessoas.

‑ Isto supera tudo o que vi no Garden District ‑ confessou Henry.

‑ Não viste tudo no Garden District ‑ cuspiu Gisselle, e ele calou‑se. ‑ E os quartos? ‑ perguntou.

‑ Por aqui.

 

Mostrei‑lhes primeiro os quartos de hóspedes e depois o quarto de Paul e o meu, furtando‑me apenas ao quarto de Pearl, pois esta encontrava‑se a dormir a sesta.

‑ Quartos separados com porta de comunicação ‑ observou Gisselle com um sorriso lascivo. ‑ Quantas vezes se usa esta porta? ‑ sussurrou. Embora tivesse empalidecido, não respondi. Ela riu e olhou em volta. ‑ Já não tens um estúdio - replicou, satisfeita.

‑ É no sótão ‑ expliquei, despreocupada.

‑O sótão?

‑ Vou mostrar‑vos ‑ propus, levando‑os até lá acima.

‑ É inacreditável ‑ exclamou Darby, genuinamente impressionado. ‑ Esta casa é um palácio. Olha só a vista desta janela ‑ convidou, virando‑se para Gisselle, que esboçou um trejeito de amuo.

‑ É apenas uma vista dos pântanos ‑ retorquiu.

‑ Sim, mas... é uma beleza. Há um lago enorme e aquelas flores.

‑ De acordo ‑ anuiu Gisselle num tom de frustração. - Tens alguma coisa que se beba? Estou ressequida.

‑ Claro. Vamos até ao jardim e a Molly traz‑nos limonadas.

‑ Limonadas? ‑ troçou ela. ‑ Não tens nada mais forte? ‑ perguntou asperamente.

‑ O que quiseres, Gisselle. Basta dizeres à minha criada.

‑ A criada dela. Estão a ver como a minha irmã cajun fala? ”Basta dizeres à minha criada.”

Saímos com os rapazes atrás de nós e Gisselle agarrou‑me pelo braço.

‑ Onde está a filha do Beau? ‑ inquiriu.

‑ A Pearl está a dormir e aqui ninguém a conhece como filha do Beau ‑ respondi.

‑ Claro. ‑ Sorriu, satisfeita. ‑ E o nosso irmão, o teu marido? ‑ sussurrou.

‑ Neste momento está a trabalhar nos campos petrolíferos - disse, enquanto o coração me batia com mais força. - Se vieste para nos causares problemas...

‑ Por que razão o faria? Não me interessa o que fizeste, embora saiba que o fizeste apenas para te vingares do Beau.

‑ Não é verdade, Gisselle.

‑ Não queres saber notícias dele? ‑ espicaçou e eu mantive‑me em silêncio. ‑ Rompeu com a noiva na Europa. Portanto, se não te apressasses a encetar esta ligação pecaminosa, ainda podias conquistá‑lo ‑ prosseguiu com um enorme contentamento.

O sangue afluiu‑me ao rosto e senti‑me como se ficasse sem força nas pernas e fosse cair pelas escadas. Depois, ela soltou uma gargalhada e enfiou o braço no meu.

‑ Mas não falemos de velhos romances. Falemos primeiro de outras notícias. Tenho muito para te contar, boas notícias e... más notícias ‑ informou com um sorriso cruel.

Descemos as escadas com a respeitosa corte atrás, pronta a obedecer‑lhe ao mínimo gesto.

‑ O casamento da Daphne ‑ começou Gisselle, depois de ter um uísque com menta na mão ‑ foi algo inesquecível. Ela e o Bruce não se pouparam a despesas. Houve centenas de convidados. A igreja estava a rebentar pelas costuras. A maioria das pessoas apareceu por uma questão de curiosidade e por quererem participar no evento social da época. Na verdade, ela nunca teve amigos. Tinha apenas os conhecimentos de negócios, mas nunca lhe interessaram, nem lhe interessam.

‑ São felizes juntos?

‑ Felizes? Dificilmente ‑ respondeu com uma gargalhada.

‑ O que pretendes dizer?

‑ O Bruce continua a ser o empregado dela. Lembras‑te de como costumava meter‑me com ele? ”Bruce vai buscar isto, Bruce vai buscar aquilo.” Sabes o que descobri uma noite ao ouvir as conversas de negócios deles? Ela obrigou‑o a assinar um acordo pré‑nupcial. Ele nada herda se ela sofrer algum acidente. Nada. E não pode divorciar‑se para depois lhe exigir qualquer bem.

‑ Porque é que ela se casou com ele?

- Porquê? ‑ Gisselle ergueu os olhos para o céu e depois esboçou um trejeito. ‑ O que te parece?... Para o calar. Andavam a desviar o dinheiro do pobre e querido papá. Mas a Daphne foi esperta. Manteve o controlo de tudo e tornou o

Bruce dependente dela. Precisava de uma companhia, é tudo. Não dormem juntos, como no vosso caso ‑ prosseguiu, com um aceno de cabeça na direcção das janelas do andar superior ‑, quartos separados. Só que não têm porta de comunicação. ‑ Riu e fitou depois Darby e Henry que se mantinham sentados, bebendo devagar, fitando‑a e sorrindo‑lhe estupidamente como dois periquitos enfatuados. ‑ Porque é que vocês não vão até aos poços de petróleo ou algo do género? A Ruby e eu temos de conversar ‑ afirmou.

Os dois levantaram‑se, obedientes, e afastaram‑se.

- Eles adoram‑me ‑ replicou Gisselle, seguindo‑os com o olhar ‑, mas falta‑lhes imaginação e são aborrecidos.

‑ Então porque deixas que te acompanhem?

‑ Só para me divertir ‑ respondeu, aproximando‑se mais. - Portanto, o Bruce apareceu um dia na minha casa de banho

quando eu estava a tomar banho.

‑ O que aconteceu? ‑ perguntei, boquiaberta.

‑ O que achas?

Ignorava se havia ou não de acreditar nela, mas lembrei‑me da forma como Bruce costumava fixar‑me, despindo‑me com o olhar e recordei o modo como me encolhia ante o toque dele.

Ergueu a cabeça e endireitou os ombros, vangloriando‑se com um ar petulante:

‑ Estive com muitos homens mais velhos. Cheguei a ir para a cama com um dos meus professores.

‑ Gisselle!

‑ E daí? Há algo pior do que o que tu fazes... dormindo com o teu meio irmão? ‑ ripostou.

‑ Não é verdade. Não dormimos juntos. Casámos, mas não somos marido e mulher dessa maneira. Ambos concordámos.

‑ Porquê? ‑ inquiriu, com um trejeito. ‑ Porquê, então, o casamento?

‑ O Paul sempre me amou e, antes de sabermos qual era a nossa verdadeira relação, gostava muito dele. Ele ama tanto a Pearl como o faria se fosse sua própria filha. Agora, temos uma relação muito especial ‑ esclareci.

 É mesmo especial. E aborrecida. Suponho, então, que tens um amante, qualquer homem dos pântanos, um homem cajun atraente, alto, moreno, que se esgueira até ao teu quarto durante a noite?

‑ Não, claro que não.

‑ Claro que não, tu... menina bem‑comportada! ‑ Recostou‑se com um dos braços pendentes da cadeira. - Escrevi ao Beau a contar‑lhe o teu casamento e como és rica - disse.

‑ Aposto que não podias esperar.

‑ Bom. Tu fúgiste. Devias ter feito o aborto e ficado em Nova Orleães. Mesmo com tudo isto, ainda vives nos pântanos.

‑ Os pântanos são belos. A natureza por vezes pode ser feia ‑ repliquei.

Gisselle sorveu um gole enorme da sua bebida.

‑ Falei‑te do tio Jean? ‑ indagou subitamente.

‑ O tio Jean? Não. O que há com ele?

‑ Não sabes mesmo nada?

‑ O que é, Gisselle?

‑ Matou‑se ‑ respondeu, despreocupada.

‑ O quê? ‑ ofeguei, sentindo o sangue a fúgir‑me do rosto e os pés pregados ao chão.

‑ Um dia, roubou uma dessas facas que usam para cortar o barro na sala de recreio deles e cortou os pulsos. Sangrou até à morte, antes que alguém descobrisse o que ele fizera. A Daphne fez obviamente uma grande cena, ameaçando processar a instituição. Tanto quanto sei, conseguiu qualquer acordo. Se há uma forma de fazer dinheiro com qualquer coisa, seja o que for, ela descobre‑a.

‑ O tio Jean... matou‑se? Quando?

‑ Há meses ‑ respondeu com um encolher de ombros.

Recostei‑me, boquiaberta. A última vez que o vira fora aquando da visita que fizera com Beau para lhe falar da morte do meu pai.

‑ Porque é que ninguém escreveu a dizer‑me? Porque não o fizeste?

‑ A Daphne insistiu no facto de que romperas os laços com a família quando fugiste ‑ replicou. ‑ E sabes bem como detesto escrever cartas, sobretudo quando se trata de más notícias. Excepto quando são más notícias de outras pessoas ‑ acrescentou com uma leve gargalhada.

‑ Pobre tio Jean. Nunca devia ter‑lhe falado da morte do nosso pai. Devia deixá‑lo pensar que ele não o visitava.

‑ Talvez a culpa seja tua ‑ redarguiu Gisselle, satisfeita com o meu desgosto. Depois encolheu os ombros e sorveu mais um gole da bebida. ‑ Ou talvez mereças ser felicitada. Afinal, está melhor.

‑ Como podes dizer uma coisa dessas? Ninguém que morra está melhor, nem mesmo o tio Jean ‑ retorqui num tom chocado.

‑ Só sei que preferia estar morta do que viver para sempre naquela instituição abafada ‑ proclamou.

Os meus olhos encheram‑se de lágrimas quando pensei no tio Jean, perdido e sozinho.

‑ Ora, quem é que temos aqui? ‑ ouvimos uma voz dizer; virámo‑nos, deparando com Paul a sair de casa.

‑ Será que é o meu irmão abastado ou... será cunhado? - troçou Gisselle.

Paul ficou rubro e fixou‑me.

‑ O que se passa, Ruby? ‑ perguntou de imediato.

‑ Acabei de saber que o meu tio Jean se suicidou na clínica psiquiátrica.

‑ Oh, lamento!

‑ Não há nenhum beijo de saudação? ‑ perguntou Gisselle.

‑ Claro.

Paul inclinou‑se para a beijar na face, só que ela virou o rosto tão rapidamente que os lábios se encontraram. Surpreendido, ele recuou. Gisselle riu.

‑ Quando aconteceu esse suicídio? ‑ indagou Paul.

‑ Esquece isso. Não quero deter‑me em más notícias ripostou Gisselle. ‑ A Ruby estava mesmo agora a explicar‑me o vosso acordo especial de casamento. ‑ O seu ar trocista e o sorriso lascivo fez com que Paul e eu nos sentíssemos culpados.

‑ Pára, Gisselle.

‑ Oh, não sejas tão sensível. Além disso, o que me interessa o que vocês fazem? ‑ Olhou lá para fora. ‑ Viste dois jovens e ricos crioulos a passearem junto aos teus poços de petróleo?

‑ Quem?

‑ Os namorados da Gisselle ‑ esclareci secamente.

‑Não...

‑ Talvez tivessem caído nalgum pântano ‑ sugeriu com uma gargalhada. Depois, levantou‑se e enfiou o braço no de Paul. ‑ Por que é que não me mostras os teus terrenos e os teus campos petrolíferos? ‑ perguntou.

‑ Claro.

‑ Ficas para jantar, Gisselle? ‑ inquiri.

‑ Como hei‑de saber? Se estiver aborrecida, vou‑me embora. Se não, fico ‑ replicou, piscando o olho. ‑ Vamos lá, senhor barão do petróleo.

‑ Sei do que irias realmente gostar, Gisselle. De um passeio pelos pântanos ‑ pronunciou‑se Paul, fitando‑me, atrapalhado. ‑ Assim, podes ter uma ideia melhor das coisas, não achas, Ruby?

‑ O quê? Oh, sim ‑ anui num tom inexpressivo, pois ainda não deixara de pensar no pobre tio Jean.

‑ Não contes comigo. Não vou até aos pântanos. Onde estão esses idiotas? ‑ indagou, vagueando o olhar pelos terrenos. Avistámo‑los a regressar do lago. ‑ Darby, Henry ‑ gritou. ‑ Venham cá.

Os dois aproximaram‑se rapidamente, como se ela os mantivesse presos a uma trela comprida e invisível. Quando chegaram, Gisselle apresentou‑os a Paul, e os três começaram a falar dos poços de petróleo. Gisselle aborreceu‑se rapidamente com as explicações de Paul.

‑ Não há aqui lugares onde se possa ir... dançar ou coisa assim, sabes?

‑ Há um bar perto que tem uma grande banda de música afro‑americana ‑ indicou Paul. ‑ Vou lá muitas vezes com a Ruby.

‑ Não me parece que seja o nosso estilo ‑ queixou‑se Gisselle. ‑ Que tal um bom restaurante?

‑ Temos uma cozinheira maravilhosa. São todos bem‑vindos para jantar ‑ convidou Paul.

‑ Não me importo ‑ aceitou Henry.

‑ Nem eu ‑ retorquiu Darby.

‑ Pois eu, sim. Quero regressar a Nova Orleães para podermos ir a umas discotecas ‑ decidiu Gisselle. ‑ Por aqui é demasiado calmo e não consigo tirar este cheiro azedo do nariz.

‑ Cheiro azedo? ‑ repetiu Paul, fitando‑me; limitei‑me a fechar e a abrir os olhos.

‑ O cheiro dos pântanos ‑ esclareceu Gisselle.

‑ Não o sinto ‑ declarou Darby

‑ Tu serias incapaz de dar por uma doninha, nem que ela se metesse contigo na cama ‑ ripostou ela. Henry começou arir.

‑ Oh, dava sim. Já dormiu com algumas ‑ declarou ele.

Foi a vez de Gisselle rir, ao mesmo tempo que largava o braço de Paul para agarrar no de Henry.

‑ Para o carro, James. Já visitei a minha irmã e tomei conhecimento da sua riqueza. Não te preocupes ‑ garantiu. ‑ Vou duplicar tudo quando descrever a tua propriedade à Daphne.

‑ Pouco me importa o que lhe disseres, Gisselle. Ela deixou de me interessar ‑ redargui.

Desapontada, Gisselle conduziu os rapazes de volta à casa, comigo e Paul no encalço. à porta, Gisselle virou‑se subitamente para mim.

‑ Gostaria de ver a... Como é que lhe chamas? A Pearl... antes de me ir embora.

‑ Podemos dar uma espreitadela. Ela está a fazer a sesta - respondi.

Levei Gisselle lá acima, ao quarto de Pearl. Mrs. Flemming passava pelas brasas na cadeira de balouço, junto ao berço. Abriu os olhos, surpreendida, ao deparar com as nossas caras em duplicado.

‑ É a minha irmã gémea, a Gisselle ‑ sussurrei. ‑ Gisselle, Mistress Flemming.

‑ Como está, querida? ‑ cumprimentou Mrs. Flemming, levantando‑se. ‑ Meu Deus. As duas parecem a mesma imagem de um espelho. Aposto que já vos confúndiram muitas vezes.

‑ Não tantas como possa pensar ‑ retorquiu Gisselle asperamente.

Mrs. Flemming limitou‑se a esboçar um aceno de cabeça e depois saiu para ir à casa de banho. Gisselle aproximou‑se do berço e baixou os olhos para Pearl, que dormia com a mãozinha debaixo do queixo.

‑ Tem o nariz e a boca do Beau ‑ comentou. ‑ E, obviamente, o cabelo do Beau. Estou a pensar passar o resto do Verão na Europa, sabes? Vou ver o Beau e estar algum tempo com ele. Agora, já posso descrever‑lhe a filha ‑ acrescentou com uma risada maldosa.

O seu enorme sorriso de contentamento despedaçou‑me o coração. Engoli a tristeza e virei‑lhe as costas quando ela saiu do quarto. Por momentos, deixei‑me ficar ali a olhar para Pearl, pensando em Beau e sentindo o coração como um tambor esvaziado. Cada pancada ecoava na minha mente.

Pouco depois, foi como se uma fria brisa de alivio tivesse soprado vinda do bayou, quando Gisselle e os dois amigos voltaram a meter‑se no carro e se afastaram a toda a velocidade. Ainda lhe ouvi o riso agudo por um momento, ao descreverem uma curva.

 

Subi as escadas rapidamente, entrei no quarto e atirei‑me para cima da cama, onde solucei durante uns momentos sem conseguir controlar‑me. Sentia‑me tão deprimida com as notícias da trágica morte de Jean e sobre Beau, que não consegui impedir que as lágrimas me corressem pelas faces, ensopando a almofada. Paul bateu ao de leve na porta e entrou apressadamente quando me viu a chorar. Senti a mão dele no meu ombro.

‑ Ruby ‑ chamou num tom terno. Virei‑me, acolhendo‑me nos seus braços.

Desde o dia em que nos casáramos que tínhamos receio de nos tocarmos, receio daquilo que qualquer beijo, qualquer abraço, o mero agarrar da mão, significariam à luz de quem éramos e do que éramos; porém, quando trocámos promessas, esquecemo‑nos de que, de vez em quando, necessitaríamos do contacto íntimo um do outro.

Precisava de sentir os braços dele a rodear‑me; precisava de senti‑lo próximo, que me agarrasse e consolasse, acariciando‑me o cabelo, beijando‑me a testa e as faces, limpando as lágrimas e sussurrando palavras de consolo. Solucei ainda mais, e os ombros tremiam‑me, enquanto ele me fazia festas na cabeça e me embalava suavemente nos braços.

‑ Está tudo bem ‑ tranquilizou‑me. ‑ Tudo bem.

‑ Oh, Paul. Porque é que ela tinha de aparecer e trazer‑me todas estas más notícias? Odeio‑a. De verdade. Odeio‑a - asseverei.

‑ Ela tem tantos ciúmes de ti. Por mais que desdenhe o bayou e o mundo cajun, continua verde de inveja. Ali está uma mulher que nunca conhecerá a felicidade ‑ replicou Paul. - Não devias odiá‑la, mas ter pena dela.

Sentei‑me e engoli algumas lágrimas.

‑ Tens razão, Paul. Ela é digna de pena e nunca será feliz. Independentemente do que tem. Senti‑me, porém, tão mal relativamente ao tio Jean. Fazia tenção de ir vê‑lo em breve, levar a Pearl e talvez... talvez descobrir maneira de o tirar daquela clínica e trazê‑lo para aqui.

‑ Lamento. Teria sido óptimo, mas não podes culpar‑te. O destino foi resolvido mediante acontecimentos e escolhas feitas antes do teu tempo, Ruby. ‑ Estendeu a mão do outro lado da cama e tocou‑me na face. ‑ Odeio ver‑te infeliz, por uns minutos que seja. Não consigo evitar a forma como te amo.

Fechei os olhos e mantive‑os fechados, sabendo, pressentindo o que ele se dispunha a fazer. Quando os lábios tocaram os meus, não fiquei surpreendida. Deixei que me beijasse, sentindo o meu corpo deslizar para cima da almofada.

‑ Estou exausta ‑ sussurrei com o coração ameaçando saltar‑me do peito.

‑ Descansa um pouco e deixa que pense em formas de te alegrar ‑ propôs. Senti‑o levantar‑se da cama e ouvi‑o afastar‑se. Depois, virei‑me e abracei a almofada.

Beau quebrara o noivado. Gisselle ia visitá‑lo e contar‑lhe tudo a meu respeito. O que é que ele pensaria? Como se sentiria? Muito longe, do outro lado do oceano, fixaria o olhar na direcção dos Estados Unidos e da oportunidade de um grande e duradouro amor que tinha perdido... que eu tinha perdido.

O meu coração assemelhava‑se a um elástico torcido, prestes a rebentar. Engoli a tristeza como uma colher de óleo de ricino. ”Sou uma mulher”, pensei, ”uma mulher jovem e palpitante de vida, e as minhas necessidades excedem o que previ.”

 

Pela primeira vez desde que trocara juras com Paul, lamentei o que fizera, interrogando‑me sobre se não me teria limitado a amontoar várias decisões trágicas umas sobre as outras. Apesar da beleza e esplendor da nossa mansão e propriedades, sentia as paredes a fecharem‑se à minha volta, afastando o sol e envolvendo‑me num profundo lençol de desgosto, escuro e deprimente, de onde receava jamais conseguir escapar.

 

FANTASIA

Depois de Paul ter saído, fiquei deitada na cama, cheia de autopiedade. O Sol do fim de tarde começara a descer por detrás dos plátanos e ciprestes e as sombras do quarto tornaram‑se mais escuras e densas. Ao olhar lá para fora através das janelas, vi que o céu adquirira o tom de um escuro azul‑turquesa e as nuvens dispersas tinham a cor de moedas de prata antigas.

Na casa reinava uma grande calma. Fora tão bem construída que os sons do andar de baixo ou mesmo dos quartos do outro lado do corredor ficavam isolados quando as portas se fechavam. Como era diferente de viver na cabana da minha grandmêre Catherine no bayou, onde mesmo dos nossos quartos, no andar de cima, ouvíamos as patas de um rato‑do‑campo no chão da sala de estar.

No entanto, ouvi subitamente o som inconfundível de botas percorrendo o corredor do lado de fora das portas do meu quarto. Ouvi também o que me pareceu o tilintar de um sabre. Tornaram‑se mais distintos e mais próximos. Curiosa, sentei‑me na cama, no preciso momento em que a porta se abriu para dar passagem a Paul, vestido com o uniforme de um oficial da Confederação, de espada à cinta. Pusera igualmente uma barba falsa e ruiva tipo Vandyke e trazia um embrulho sob o braço direito. O uniforme e a barba assentavam‑lhe tão bem que, por instantes, não soube de quem se tratava. Depois, sorri.

‑ Paul! Onde arranjaste tudo isso?

‑ Perdão, madame ‑ respondeu, tirando o chapéu e fazendo uma elegante e graciosa vénia. ‑ Coronel William Henry Tate ao seu serviço. ‑ Esboçou um esgar ‑ Acabaram de me informar que uns ianques tinham invadido a sua privacidade e provocado alguma perturbação. Precisarei de um relatório completo antes de mandar as minhas tropas atrás dos patifes que, garanto‑lhe, estarão pendurados ao vento, sob o velho carvalho, antes do nascer do Sol.

”Agora ‑ prosseguiu, assumindo uma postura militar formal e alisando o bigode com o indicador esquerdo ‑, se quiser ter a bondade de fazer a sua descrição ao meu adjunto...

Bati palmas e soltei uma gargalhada.

‑ Oh, Paul. Mas que divertido.

Avançou na minha direcção, sem se desmanchar.

‑ Madame, sou William Henry Tate e encontro‑me ao seu serviço. Não há tarefa mais honrosa para um cavalheiro sulista do que aquela que executa em prol de uma senhora, uma verdadeira filha do Sul, bonita e elegante.

Com estas palavras, pegou‑me na mão e beijou‑a suavemente.

‑ Bom, sulista ‑ pronunciei, acentuando o meu sotaque e entrando naquela fantasia ‑, sinto‑me lisonjeada. Nunca houve um oficial mais elegante que tivesse acorrido tão rapidamente em meu auxílio.

‑ Madame, considere‑me o seu dedicado servo. ‑ Voltou a beijar‑me a mão. ‑ Poderei permitir‑me a ousadia de convidá‑la para jantar esta noite na minha tenda? O serviço e a comida não estarão obviamente à altura de uma mulher da sua classe, mas encontramo‑nos a meio de uma luta desesperada para não abdicar da nossa forma de vida e estou certo de que compreenderá.

‑ O sacrificio será o meu contributo para esse esforço. Tem, contudo, guardanapos de linho, não? ‑ retorqui, com um bater de pestanas.

‑ Claro. Não era minha intenção dar a entender que jantaria como qualquer sujo mercador ianque. E, falando nisso, importa‑se que lhe ofereça este vestido para a ocasião? Pertencia à minha querida e falecida mãe.

Estendeu‑me o embrulho que trazia debaixo do braço. Pousei‑o no regaço e abri‑o. Lá dentro, havia um vestido de tafetá de um rosa‑acastanhado. Peguei‑lhe. Tinha mangas tufadas nos punhos e bordados maravilhosos. Das mesmas, pendiam outras mangas, interiores, de tule e também bordadas. O motivo da gola era igual.

‑ Mas que vestido maravilhoso! Sentir‑me‑ia honrada em usar esta peça de vestuário.

‑ A honra é toda minha, madame ‑ declarou, recuando com uma outra vénia. ‑ Posso passar... digamos, dentro de vinte minutos e acompanhá‑la à área do jantar?

‑ Vinte e cinco minutos, sulista. Quero fazer preparativos especiais.

‑ Por si, o relógio pára, madame. ‑ Levantou‑se e tirou

do bolso das calças um belo e antigo relógio de ouro, abrindo a tampa. Ouviu‑se de imediato uma suave melodia. ‑ Voltarei à

hora que exigiu.

‑ Paul! ‑ exclamei. ‑ Onde arranjaste tudo isto?

‑ Paul? Madame, o meu nome é William Henry Tate - retorquiu, após o que girou sobre os calcanhares e saiu. Fiquei a segui‑lo com o olhar, de sorriso nos lábios. Depois, fixei novamente o vestido e interroguei‑me sobre como me assentaria.

O vestido ficava‑me como uma luva. Ajustei‑o um pouco na cintura com alfinetes, mas o corpete e mangas estavam perfeitos. Depois de me vestir, a magia da ilusão tomou as rédeas e pensei no meu cabelo. Escovei‑o e prendi‑o, apartando‑o ao meio, tal como as mulheres sulistas que vira em retratos históricos o usavam. Fiquei ali, mirando‑me no espelho de corpo inteiro, desejando que aquela nossa fantasia correspondesse à realidade e eu fosse um membro da aristocracia sulista prestes a jantar com um oficial.

Soou uma pancada leve na minha porta. Quando a abri, Paul, de uniforme, recuou com um largo sorriso estampado no rosto e um brilho de prazer nos olhos. Trazia um pequeno bouquet de rosas brancas nas mãos.

‑ Supera as minhas ambiciosas esperanças, madame. A beleza não pode escolher melhor lugar do que no seu rosto e elegante figura.

- Onde foste buscar essas palavras? ‑ perguntei eu a rir.

‑ Por favor, madame. Estas são as palavras de um cavalheiro sulista, e as palavras de um cavalheiro sulista nunca são supérfluas.

‑ Desculpe, sulista ‑ pedi.

‑ Permite‑me? ‑ perguntou, aproximando‑se com o bouquet. Não me mexi, enquanto o pregava no meu corpete. Quando lhe observei o rosto e ele fixou o meu, era como se olhasse para o rosto de um belo estranho. Sorriu, depois recuou e ofereceu‑me o braço. ‑ Madame.

 

Aceitei‑o. Acompanhou‑me pelo corredor e descemos as escadas como os donos de um solar. Paul preparara os nossos criados para esta fantasia, pois nem Molly ou James pareciam surpreendidos. Molly sorriu e mordeu o lábio inferior, mas todos reagiram como se esta fosse uma noite perfeitamente normal.

Paul apagara as luzes da sala de jantar, e velas ardiam nos candelabros de prata. Pusera uma música suave. Depois de me acompanhar ao meu lugar, ocupou o dele e ofereceu‑me uma taça de vinho.

‑ Pôs uma bela mesa de jantar no campo, sulista ‑ observei.

‑ Fazemos o que podemos, madame. Vivemos uma época que testa os espíritos dos homens e mulheres galantes. Longe de mim menosprezar o sacrificio feito pelas mulheres sulistas. No entanto, a classe social tem os seus privilégios e consegui arranjar este belo chablis francês. ‑ Inclinou‑se, fingindo não querer que os criados ouvissem. ‑ Comprei‑o a uns contrabandistas ‑ disse.

‑ Oh, céus! Bom, sulista, dizem que quanto mais alta a latada, mais doce é o vinho.

‑ Palavras certas, madame. Brindamos? ‑ perguntou, erguendo o copo na minha direcção. ‑ Ao regresso de melhores tempos, em que a coisa mais importante para um homem será conseguir a felicidade da mulher eleita.

Brindámos e bebemos de olhos abertos e fixos um no outro, depois de o fazermos. Em seguida, Paul passou o guardanapo pelos lábios, tendo o cuidado de não estragar a sua falsa barba à Vandyke e esboçou um aceno de cabeça a Molly e James para que começassem a servir‑nos o jantar.

Esperara ter pouco ou nenhum apetite nessa noite, mas o elaborado plano de Paul para criar estas ilusões e agradáveis divertimentos era tão delicioso e romântico que deitei para trás das costas os meus obscuros e depressivos pensamentos. Parecia‑me que ele esquematizara tudo isto antes e tinha tudo pronto para qualquer eventualidade.

Letty cozinhara pato selvagem como primeiro prato. E para sobremesa, a acompanhar o nosso belo café cajun, havia morangos com natas. Durante o jantar, Paul mostrou‑se encantador e divertido. Dava a sensação de que estudara as batalhas da guerra civil, em que o seu antepassado William Henry Tate combatera. Semelhante a um actor que ensaiara o papel durante meses a fio, mantinha‑se fiel à personagem. Cantou pequenos poemas da guerra civil, falou da ocupação de Nova Orleães pelo Exército ianque e o odiado general Butler de quem havia um retrato no interior de bacios de quarto que ficaram conhecidos pelo nome de bacios Butler.

Conseguiu manter‑me tão divertida que pouco tempo me restou para recordar a visita de Gisselle e as coisas horríveis que me contara. Quando Paul e eu acabámos de jantar, sentia‑me risonha, feliz e muito satisfeita. Ofereceu‑me o braço e acompanhou‑me ao pátio onde iríamos tomar um digestivo e contemplar as estrelas.

 

”Há mais de uma centena de anos”, pensei, ”um oficial do Exército da Confederação e a sua companheira olharam este mesmo céu nocturno enfeitado pelas mesmas estrelas. Cem anos não é muito tempo para as estrelas, até menos do que um segundo o é para nós. Como somos pequenos e insignificantes sob o firmamento. Todos os nossos grandes problemas são mínimos.”

‑ Um dixie pelos seus pensamentos ‑ disse Paul.

‑ Os meus pensamentos são assim tão valiosos?

‑ Tão valiosos, que é insensato fazer qualquer oferta financeira. Por isso, propus simbolicamente os dixie.

‑ Estava apenas a pensar como somos pequenos sob as estrelas.

‑ Permita‑me que a contrarie, madame. Está a ver aquela estrela lá no alto, a que cintila mais do que as outras?

‑Sim.

‑ Bom. Cintila assim porque tem ciúmes do esplendor que o seu rosto emana esta noite. Algures, num outro planeta como o nosso, duas pessoas contemplam o céu nocturno, observam o brilho dos seus olhos, o fulgor dos seus lábios e pensam como o mundo deles é pequeno.

‑ Oh, Paul! ‑ exclamei, comovida pelas suas palavras.

‑ William Henry Tate ‑ corrigiu, inclinando‑se para me roçar os lábios com um beijo. Foi tão suave e rápido que podia ter sido beijada pela brisa vinda do golfo e julgar que fora o beijo de Paul, mas, quando abri os olhos, o rosto dele continuava junto ao meu.

‑ Não posso sentir‑me feliz quando estás infeliz, Ruby - sussurrou. ‑ Estás agora um pouco mais satisfeita?

‑ Estou, sim ‑ respondi.

Ouvi a forma como soaram as minhas palavras; senti o tremor no corpo. O licor, o vinho, a maravilhosa refeição, tinham‑me enchido de um quente arrebatamento. A noite, as estrelas, o próprio ar que respirávamos, tudo conspirava contra aquela parte de mim que se esforçava por me recordar quão perto estava de me render.

‑ óptimo ‑ congratulou‑se Paul, pousando os lábios na minha testa.

Beijou‑me os olhos fechados e o nariz e colou os lábios quentes aos meus. O formigueiro desperto no meu peito estendeu‑se ao pescoço, por onde os lábios dele continuaram. Soltei um gemido e depois afastei‑me.

‑ Estou cansada ‑ declarei. ‑ Acho que vou subir.

‑ Claro. ‑ Levantou‑se, quando o fiz.

‑ Obrigada, sulista, por esta noite maravilhosa ‑ agradeci com um sorriso.

‑ Talvez voltemos a repeti‑la quando a guerra acabar - replicou‑, num cenário mais adequado à sua beleza e porte.

‑ Foi óptimo, maravilhoso ‑ redargui.

Ele esboçou um aceno de cabeça e eu dirigi‑me para casa, com a pulsação acelerada. Era como se estivesse, de facto, a despedir‑me de um cavalheiro que estivera a cortejar‑me e por quem me apaixonara perdidamente.

Molly tinha apagado todas as luzes da casa. Mrs. Flemming dera de comer a Pearl e deitara‑a. Subi apressadamente as escadas até ao meu quarto, ofegante e encostando‑me depois à porta fechada para tomar fôlego, de olhos cerrados e com o sangue a ferver‑me loucamente nas veias.

Decorridos uns momentos, afastei‑me da porta e dirigi‑me ao toucador. Despi o vestido antigo com gestos lentos, mas mantive‑me de pé, contemplando a minha imagem em soutien e cuecas. Soltei o cabelo e deixei‑o tombar sobre o meu pescoço ainda afogueado e sobre os ombros.

 

Não conseguia impedir que o meu corpo tremesse de um desejo que achara ingenuamente ser capaz de dominar à minha vontade. A respiração acelerou‑se, enquanto continuei a despir‑me, tirando as cuecas e desapertando o soutien. Nua, fitei‑me no espelho, imaginando um galante oficial da Confederação aparecendo por’ detrás de mim e pousando a mão no meu ombro, até que me voltasse para erguer os lábios ao encontro dos dele.

Por fim, apaguei as luzes e enfiei‑me por baixo da colcha, deleitando‑me com o toque frio do linho na minha pele quente. As palavras românticas de Paul continuavam a soar‑me ao ouvido. Mantive‑me deitada, pensando nas estrelas e sonhando. Não ouvi a porta de comunicação a abrir‑se, nem tão‑pouco quando ele se aproximou da cama. Só me apercebi de que estava ao meu lado, quando o colchão acusou o peso do seu corpo e senti depois o calor dos lábios no meu pescoço.

‑Paul.

‑ É o William ‑ sussurrou com voz terna.

‑ Por favor, não... ‑ comecei, mas as palavras morreram na garganta.

- Madame, a guerra torna o tempo um luxo. Se nos tivéssemos conhecido e apaixonado antes ou depois, passaria semanas e meses a cortejá‑la, mas, de manhã, vou liderar as minhas tropas para uma batalha desesperada, de onde muitos não regressarão.

Virei‑me e ao fazê‑lo as mãos dele agarraram‑me os ombros, aproximando os lábios dos meus. Foi um beijo quente e prolongado. O peito premiu‑se de encontro aos meus seios nus e as pernas moveram‑se entre as minhas até sentir a sua virilidade num suave explorar.

Ia a abanar a cabeça, mas os lábios afloraram‑me o pescoço e aquele toque afastou a minha resistência. Recostei a cabeça na almofada, enquanto os lábios desciam pelo pescoço e tocavam nos bicos dos meus seios já erectos. Do lado de fora da janela, pareceu‑me ouvir o resfolegar de cavalos, batendo impacientemente com os cascos na pedra.

‑ Também eu posso não regressar, madame. Mas se a morte está à espera de me reclamar, ficará desapontada, pois nos meus lábios estará o seu nome e nos meus olhos o seu rosto.

‑ Não ‑ recusei debilmente e depois pronunciei: ‑ William...

Quando me penetrou, arquejei, e o grito prestes a soltar‑se foi afogado pelos seus lábios de novo premidos contra os meus. Movemo‑nos a um ritmo suave que aumentou de intensidade até entrarmos num galopar rumo a uma explosão de êxtase, concluída em gemidos de gozo.

Ficámos deitados lado a lado, à espera que a respiração abrandasse. Depois, Paul levantou‑se da cama, virando‑se para dizer: ”Deus a abençoe, madame”, antes de se esgueirar pela escuridão até à porta e desaparecer.

Fechei os olhos. Havia uma parte de mim muito agitada, histérica, clamando sobre o pecado e o mal, esbravejando contra os pecados e castigos que cairiam sobre mim com a força de um vendaval. Repeli, contudo, essas vozes e limitei‑me a escutar o bater acelerado do coração. Adormeci ao som do sangue a bombear no meu corpo e só acordei quando a luz ilusória do alvorecer desenhou sombras nas paredes.

 

Julguei ouvir o som de canhões à distância e sentei‑me na cama. Parecia‑me que o tropel de cavalos atravessava o pátio. Levantei‑me da cama e dirigi‑me à janela. Afastei a cortina e olhei lá para fora. O gás dos pântanos a rolar pela superfície dos canais assemelhava‑se ao disparo de canhões. à distância, a silhueta dos plátanos parecia engolir um esquadrão de homens a cavalo. E depois o Sol ergueu mesmo os seus primeiros raios acima da linha do escuro e os sonhos regressaram ao embarcadouro na espera de uma outra noite.

Voltei para a cama e fiquei acordada até ouvir os primeiros gritos de Pearl e o som dos passos de Mrs. Flemming, dirigindo‑se apressada ao berço. Depois, levantei‑me e vesti‑me para enfrentar a realidade de outro dia.

 

Paul estava sentado à mesa a tomar café e a ler o jornal quando desci com Mrs. Flemming e Pearl. Dobrou rapidamente o jornal e sorriu.

‑ Bom dia. Dormiram bem?

‑ A menina dormiu a noite toda ‑ respondeu Mrs. Flemming. ‑ Nunca vi uma criança tão satisfeita. Sinto‑me como se estivesse a roubar‑lhes dinheiro, tomando conta de um bebé tão perfeito.

Paul riu e fitou‑me. Parecia fresco e desperto e absolutamente cheio de energia. A expressão não denotava o mínimo indício de remorso.

‑ Julguei que na noite passada iria chover. Ouviste a tempestade aproximando‑se do golfo? ‑ perguntou‑me.

‑ Sim ‑ disse.

Pela forma como sorria e falava, era como se eu tivesse sonhado o nosso encontro. ”Teria?”, pensei.

‑ Dormi como uma pedra ‑ garantiu a Mrs. Flemming. - Julgo que foi do vinho. Mas sinto‑me repousado. Então,

quais são os teus planos para hoje, Ruby? ‑ perguntou‑me.

‑ A tua irmã vai aparecer mais tarde para me mostrar fotografias de vestidos de casamento e de noivas. Vou passar a maior parte do dia a trabalhar no meu estúdio.

‑ óptimo. Tenho de ir a Baton Rouge e só voltarei à hora do jantar. Ah! ‑ exclamou, quando Molly trouxe os ovos e cereais. ‑ Esta manhã estou a morrer de fome ‑ acrescentou com um sorriso, e tomámos o pequeno‑almoço.

Depois, subi ao meu estúdio e, pouco antes de se ir embora, Paul veio despedir‑se.

‑ Desculpa ter de me ausentar durante a maior parte do dia ‑ disse ‑, mas trata‑se de negócios inadiáveis relativos ao petróleo. Fazes alguma ideia de quanto dinheiro depositei nas nossas várias contas?

Abanei a cabeça e fixei o cavalete, em vez de o olhar.

‑ Somos multimilionários, Ruby. Não há nada que não possas ter ou para a Pearl e...

‑ Paul ‑ interrompi, virando‑me bruscamente. ‑ O dinheiro, por mais que seja, não me acalma a consciência. Sei o que estás a tentar fazer e dizer, mas a verdade é que na noite passada violámos as nossas promessas. Trocámos juras, recordas‑te?

‑ O que queres dizer? ‑ inquiriu, sorrindo. ‑ Fui deitar‑me e dormi a noite toda como descrevi. Se sonhaste...

‑ Oh, Paul...

‑ Não ‑ interrompeu. Lançou‑me um olhar suplicante e compreendi que, enquanto aderisse à fantasia, ele poderia viver com o que acontecera. Depois, sorriu: ‑ Quem sabe o que é real e o que não é? Na noite passada, alguém cavalgou pela nossa propriedade, mesmo por cima do relvado recentemente plantado. Vai ver com os teus próprios olhos, se quiseres. Ainda se divisam as marcas ‑ replicou, inclinando‑se e beijando‑me na face. ‑ Pinta algo... do teu sonho ‑ sugeriu; em seguida, saiu.

Poderia fazer o que ele me pedia... imaginar que tudo não passara de um sonho? Se assim não fosse, seria incapaz de viver com a minha consciência e Pearl e eu teríamos de ir embora... Paul tornara‑se tão chegado a ela, e o contrário também... Independentemente dos pecados que pudesse ter cometido e pudesse cometer, dera um pai afectuoso e atento a Pearl.

Abafei as vozes que me perseguiam e dediquei‑me a fazer exactamente o que Paul sugerira... pintar com base no que havia no meu intimo. Trabalhei com frenesim, construindo e criando uma etérea paisagem da região pantanosa. Dos ciprestes cobertos de musgo surgiam as sombras e fantasmagóricas figuras do calvário dos confederados, de cabeças baixas. Regressavam de uma qualquer batalha, com as fileiras destroçadas. O nevoeiro adensava‑se em redor das patas dos cavalos e, nos ramos das árvores próximas, as corujas piavam tristemente. Ao fundo, pairava o brilho de fogueiras ainda acesas que coloriam o céu nocturno de um vermelho incandescente.

Cheia de inspiração, decidi que criaria uma série de quadros à volta desse tema. No meu próximo quadro, pintaria a dama do oficial, à espera na varanda da casa da plantação, procurando‑o desesperadamente com o olhar, enquanto os homens emergiam da noite de morte e destruição. Estava tão embrenhada no meu trabalho que não ouvi Jeanne a subir as escadas e fui incapaz de dominar a contrariedade por ser interrompida.

No entanto, ela mostrava‑se tão excitada com o casamento iminente que me senti terrivelmente incomodada por a desapontar.

‑ Não ligues ‑ disse ante a sua expressão de tristeza pela minha reacção ao vê‑la. ‑ Deixo‑me envolver a tal ponto pela pintura que me esqueço do tempo e do lugar. Esta casa podia pegar fogo que não me aperceberia.

Jeanne riu.

‑ Mostra‑me, então, os desenhos dos vestidos ‑ incitei, e passámos toda a tarde a falar de modelos e cores.

Ela tinha meia dúzia de amigas para damas de companhia. Discutimos os pequenos presentes que escolheria para cada uma delas e seus acompanhantes, após o que me pôs a par dos planos da mãe quanto à recepção.

Enquanto conversávamos e a ouvia, intensificou‑se o meu desgosto por não ter tido um maravilhoso casamento a sério. A própria Jeanne observou como toda a gente lamentava que Paul e eu nos tivéssemos escapado, sem lhes dar a mesma oportunidade de planear um acontecimento em grande.

‑ Vocês deviam voltar a casar ‑ sugeriu, excitada. ‑ Já ouvi falar de casais que o fizeram. Organizam uma cerimónia privada e depois uma mais elaborada para todos os amigos e parentes. Não seria divertido?

‑ Sim, mas de momento já chega uma festa elaborada - retorqui.

 

Os planos prosseguiram, como se se tratasse de uma campanha importante. Houve jantares em casa, depois dos quais a família se reunia na sala de estar para debater as ementas, a lista de convidados, os arranjos de flores e o lugar de todas as partes da cerimónia e da recepção. Verificaram‑se discussões acaloradas sobre a música, querendo as raparigas uma banda mais moderna e Gladys e Octavious uma orquestra imponente. Sempre que não se chegava a uma conclusão, Paul forçava‑me a dar a minha opinião.

‑ Não vejo razão para não ter as duas ‑ sugeri. ‑ Podemos optar pela orquestra para a recepção do jantar e depois contratar uma banda de música afro‑americana ou um desses grupos de rock e deixar que também os mais jovens se divirtam.

‑ É um desperdício ridículo de dinheiro ‑ retorquiu Gladys.

‑ O dinheiro é a menor das nossas preocupações, mãe - lembrou Paul num tom suave. Ela fixou‑me por momentos com um olhar chispante e percorreu‑a um leve arrepio de desdém.

‑ Se tu e o teu pai se importam de atirar dinheiro para o pântano, problema vosso ‑ proferiu ela em tom amuado.

‑ Não custará muito mais - redarguiu Octavious sem erguer a voz, mas Gladys premiu ainda mais os lábios e fitou‑me, enraivecida. Fiquei satisfeita quando estas reuniões chegaram finalmente a um termo.

O tempo passava mais depressa, agora que me encontrava muito ocupada com a minha série de quadros. Mal conseguia

esperar que o dia começasse; havia alturas em que me embrenhava a tal ponto no trabalho que o Sol começava a pôr‑se, antes de tomar consciência de que não tinha almoçado e já chegara a hora de me preparar para o jantar. Lamentava negligenciar Pearl, mas Mrs. Flemming era uma belíssima ama. Na verdade, fazia parte da família e tomava conta dela de uma forma maravilhosa e atenta.

Quanto a Paul, nunca mais voltou ao meu quarto à noite e nenhum de nós mencionou a noite que tivera. Em breve, começou a parecer algo que eu apenas sonhara. Com os planos da cerimónia do casamento e o meu contentamento em pintar, a vida em Cypress Woods continuou a ser compensadora e excitante. Dava a sensação de que não passava um único dia sem que Paul anunciasse qualquer importante e nova aquisição ou desenvolvimento.

Uma noite, depois de um dos nossos jantares de família, vi‑me a sós no pátio com Gladys a beber um licor. Paul e o pai continuavam dentro de casa a falar, e as irmãs dele tinham ido sair com umas amigas. Ao jantar, Octavious revelou que ele e Gladys nutriam ambições políticas para Paul. Quando levantei objecções, Gladys arregalou os olhos de surpresa.

‑ As pessoas das esferas mais elevadas têm de ouvir falar dos Tate ‑ replicou. ‑ Os legisladores já começam a andar à volta do Paul. Tem todas as qualidades que podem torná‑lo governador, se um dia o quiser.

‑ Acha que ele quer? ‑ indaguei, admirada.

‑ Porque não? ‑ ripostou Glayds. ‑ Claro que não fará nada, se não quiseres que o faça ‑ expressou‑se, desdenhosa.

‑ Nunca levantaria obstáculos ao Paul se ele realmente desejasse algo ‑ redargui. ‑ Apenas me interrogo se é o que ele quer ou o que vocês querem.

 Claro que é o que ele quer ‑ arguiu e esboçou um sorriso frio. ‑ O que se passa? Não te vês como primeira dama da Luisiana? Não temos motivo para nos sentirmos inferiores a quem quer que seja. Nunca te esqueças ‑ acrescentou.

Antes de poder responder, Paul e o pai saíram para o jardim e Gladys queixou‑se de dor de cabeça, pedindo a Octavious que a levasse para casa. Não consegui, todavia, reprimir um sorriso ao imaginar como a minha irmã reagiria a tal possibilidade: eu, primeira dama da Luisiana? Gisselle rebentaria de inveja.

Passara algum tempo desde a visita de Gisselle e nunca deixei de sentir que um segundo golpe estava prestes a abater‑se. Chegou sob a forma de um postal que me enviou de França. Tinha uma fotografia da Torre Eiffel na parte da frente. Ainda não o sabia nessa altura, mas iria receber um, mesmo dois, por semana, da minha querida irmã gémea, cada um semelhante a uma agulha espetada numa boneca de vudu, cada um descrevendo como se divertia com Beau, em Paris. ”Chêre Ruby”, começava o primeiro...

 

”Cheguei finalmente aqui e adivinha quem estava à minha espera no aeroporto... O Beau! Não o reconhecerias. Tem um fino bigode e parece o Rhett Butler em E Tudo o Vento Levou. Fala um francês fluente. Ficou tão feliz ao ver‑me. Até me levou flores! Vai mostrar‑me Paris, e a primeira visita começa pelo seu apartamento nos Campos Elisios.

Dá saudades e um beijo por mim ao Paul. Estou quase a contar tudo ao Beau sobre a Pearl.

Ãmour,

Gisselle”

 

As lágrimas que me inundavam os olhos depois de ter lido um dos postais de Gisselle proveniente de França mantinham‑se durante horas, ensombrando‑me a vista e dificultando, se não impossibilitando, o desenho e a pintura. Ficava tão desgostosa quando, ao examinar o correio, descobria um desses postais. Descrevia as discotecas que frequentavam, os cafés, os belos restaurantes. A cada postal, a implicação de que havia algo mais entre ela e Beau do que o mero encontro de amigos de estudos tornava‑se cada vez mais forte.

”Hoje, o Beau disse‑me que amadureci realmente”, escrevia. ”Afirmou que quaisquer diferenças que pudessem ter havido entre nós diminuíram. Não é uma ternura?”

Descrevia a jóia que ele lhe comprara e a forma como passeavam de mãos dadas e conversavam amenamente nas margens do Sena à noite, depois de um dos maravilhosos jantares em qualquer café romântico. Havia sempre outros enamorados que passavam perto e os contemplavam, invejosos.

”Sei que o Beau pensa que pode ter-te tendo‑me e devia ficar aborrecida, mas depois penso: porque não usar o seu amor por ti para o reconquistar? É divertido.”

Contudo, no postal seguinte, escrevia:

”Julgo que agora posso afirmar com alguma certeza que o Beau está a apaixonar‑se por mim, não só porque me pareço contigo, mas porque... sou eu! Não é fantástico?”

Uma semana mais tarde escreveu especificamente para me comunicar que Beau deixara de fazer perguntas a meu respeito.

 

”Aceitou finalmente que estás casada e desapareceste da sua vida. Mas claro que isso nada significa agora. Tem muito mais por que ansiar comigo novamente ao lado dele.

 

Toujours amour, A tua irmã Gisselle”

 

Nunca mostrei nenhum destes postais a Paul. Depois de os ler, apesar da minha relutância em lê‑los, rasgava‑os e deitava‑os fora. Levava sempre horas a recompor‑me.

No entanto, à medida que a data do casamento de Jeanne se aproximava, tinha mais com que ocupar o espírito. Trezentas pessoas tinham sido convidadas. Vinham de tão longe como Nova Iorque e Califórnia. Obviamente, todos os que eram importantes para a fábrica e o negócio do petróleo bem como amigos e parentes tinham recebido convite.

Fomos presenteados com um belo dia para o casamento. Estava calor com um grau de humidade suportável e um céu muito azul e limpo de nuvens. Desde o amanhecer que Cypress Woods fervilhava de actividade. Sentia‑me a rainha do formigueiro; havia um exército de gente ocupado com milhares de coisas.

O padre Rush e o coro chegaram cedo. A maioria das pessoas ainda não conhecia Cypress Woods e ficaram muito impressionadas. Paul impava de orgulho e felicidade. Vestimo‑nos todos e começámos a receber os convidados, muitos dos quais chegaram em limusinas.

Passado pouco tempo, o nosso longo acesso à casa estava a abarrotar de automóveis e motoristas. Os homens vinham de smoking e as mulheres ostentavam vestidos de todos os estilistas em voga. Pensei que poderiamos cegar com o brilho dos diamantes e ouro sob o sol do meio‑dia.

Propus a Jeanrie que se servisse do meu quarto de dormir e Paul ofereceu o dele a James. A tradição foi evidentemente seguida, e James só viu a noiva quando ela surgiu através das portas envidraçadas que davam para o jardim ao som da marcha nupcial. Antes da cerimónia, o padre Rush celebrou um serviço religioso, e o coro entoou hinos. Jeanne e James trocaram votos sob um palanque todo florido.

”Como a cerimónia é diferente da minha”, pensei. Eles podiam trocar votos à luz do dia diante de centenas de pessoas sem vergonha, sem medo, sem culpa. Quando se viraram e foram atingidos por uma chuva de arroz, os rostos denotavam sorrisos de expectativa, felicidade e satisfação. Se existiam medos no coração, estavam submersos, enterrados sob o peso de um grande amor.

Senti‑me inundada por uma enorme tristeza e baixei os olhos. Seria que essa parte maravilhosa da vida de uma mulher me fora negada ou negara‑a eu a mim própria? Que tramas diabólicas se haviam entrelaçado no bayou, influenciando o meu destino?

Não era, porém, esta a altura para estar melancólica. A música começou, os criados e criadas circulavam com as suas travessas de aperitivos e deu‑se início ao baile. Tivemos de nos reunir para retratos de familia e impunha‑se que o meu rosto sorrisse. Só Paul, que possuía um segundo sentido no que me dizia respeito, se apercebeu, ao fitar‑me, da onda de tristeza que existia sob o meu riso e sorrisos. Mais tarde, quando a festa começou e a música continuou, dançámos os dois e ele encostou os lábios ao meu ouvido e sussurrou:

‑ Sei no que estás a pensar ‑ replicou. ‑ Desejavas ter tido um casamento como este. Desculpa.

‑ A culpa não é tua. Não tens que te desculpar.

‑ Faremos um belo casamento para a Pearl ‑ prometeu.

Beijou‑me na face, depois a música tornou‑se mais animada e todos nos pusemos a dançar o two‑step cajun.

Os festejos e celebrações prolongaram‑se noite fora, muito depois de Jeanne e James terem partido em lua‑de‑mel. Pouco antes de se dirigirem ao carro, coberto de cartazes de RECÉM‑CASADOS e com latas atadas ao pára‑choques traseiro, Jeanne puxou‑me de lado.

‑ Não sei cOmo te agradecer tudo o que fizeste, Ruby. As tuas sugestões e trabalho tornaram o meu casamento maravilhoso. Mas mais importantes ainda foram os teus conselhos e preocupação. Agora, és realmente minha irmã ‑ declarou, abraçando‑me.

‑ Sê feliz ‑ retorqui, sorrindo por entre as lágrimas de alegria, e ela apressou‑se a ir juntar‑se ao seu marido, jovem e impaciente.

Por fim, às primeiras horas da manhã, os últimos convidados foram‑se embora, e as equipas de trabalhadores completaram a limpeza. Exausta, subi à minha suíte e despi‑me, caindo na cama. Pouco depois de ter apagado as luzes, ouvi Paul abrir a porta de comunicação. Abri os olhos o suficiente para o ver ali de pé, com a silhueta recortada à luz do candeeiro.

‑ Ruby? ‑ sussurrou. ‑ Estás a dormir?

Ante o meu silêncio, suspirou fundo.

‑ Desejava que também tivéssemos tido uma lua‑de‑mel observou. ‑ Desejava poder amar‑te livre e totalmente.

Ficou ali de pé mais um momento e depois fechou a porta suavemente. Cerrei os olhos, antes que uma lágrima encontrasse caminho até às pálpebras. O sono, o melhor consolador de todos, surgiu rápida e piedosamente, afastando as vozes e as penas.

 

Dois dias mais tarde, recebi o que seria o último postal ilustrado de Gisselle. Chegara, de facto, depois de ela e de Beau terem regressado de Paris. Falou‑me nos planos de ambos. Beau voltaria a Nova Iorque para frequentar a faculdade de Medicina e ela iria para a universidade. Embora tivesse tido notas horríveis, Daphne dera um jeito. Prometeu ou, diria antes, ameaçou, visitar‑me de novo. Talvez... com Beau.

A mera ideia dessa visita fazia‑me tremer. Não conseguia imaginar que palavras lhe dirigiria se ele alguma vez aparecesse em Cypress Woods. Claro que lhe apresentaria Pearl de imediato. Ela começara a dar os primeiros passos e dizia algumas palavras. Adorava sentar‑se ao piano ao colo de Mrs. Flemming e tocar nas teclas. Todos os que a ouviam afirmavam que tinha tendência para a música.

Acabara quatro dos quadros da minha série intitulada Romance do Confederado. Paul queria que os expusesse numa galeria de Nova Orleães, mas ainda não estava preparada para me separar deles e receava, na verdade, que alguém os comprasse. Continuei, entretanto, a pintar paisagens do bayou, que eram enviadas com regularidade para a galeria de Dominique, a primeira galeria que exibira e vendera as minhas obras iniciais.

 

Soubemos que se vendiam rapidamente. Mal acabava uma, era, de imediato, adquirida. Paul estava satisfeitissimo e encarregara‑se de que um crítico de arte me visitasse para discutir o meu trabalho e tirar fotografias do estúdio e de mim. Uns meses depois, a fotografia apareceu publicada numa revista de arte e depois no New Orleans Times. Essa publicidade valeu‑me uma nova carta de Gisselle.

 

”...A Daphne quase deixou cair a chávena de café no colo quando abriu o jornal e viu a tua fotografia. O Bruce ficou muito impressionado. Ignoro o que o Beau pensou. Não lhe fiz referência e ele também nada me disse. Vemo‑nos quase todos os dias. Acho que está prestes a oferecer‑me um anel. Serás a primeira a saber. Pode acontecer dentro de uma semana, pois vamos todos ao rancho e a Daphne também convidou o Beau.

De qualquer maneira, só faltam seis meses para herdarmos as nossas fortunas. Não significa muito para ti agora que ficaste podre de rica com o casamento, eu sei, mas, para mim, controlar o meu próprio dinheiro será muito importante. E para o Beau.

Mesmo assim, acho que devo felicitar‑te. Portanto... parabéns. Porque é que nasceste com talento e eu não, se somos gémeas?

Gisselle”

 

Não lhe respondi, pois não tinha resposta. Nascera sem talento, mas também nenhuma maldição pairava sobre ela. Seria por acaso que ela nascera primeiro e fora entregue aos Dumas, enquanto eu ficara para trás, sendo a que soubera tudo sobre o nosso tumultuoso passado? Apetecia‑me lançar‑lhe isso em rosto, mas depois pensei na grandmère Catherine e no valor que ela representara para mim. E se tivesse sido eu a primeira a nascer? Nunca a conheceria.

”Tudo o que é bom tem necessariamente de se interligar a algo mau?”, interroguei‑me. ”O mundo é o equilíbrio entre o bem e o mal? Porque não há mais anjos do que demónios?” Nina Jackson costumava dizer‑me que havia muito mais demónios; por isso, necessitávamos de todos os pós e feitiços, ossos e amuletos. A própria grandmère Catherine fitava a escuridão com a crença de que o mal se escondia em todas as sombras e tinha de estar vigilante e preparada para o combater. Seria também esse o meu destino... batalhar sempre?

Detestava entregar‑me a esta disposição melancólica, mas era o que as cartas e postais de Gisselle sempre me provocavam. Todavia, nada do que ela escrevera ou escreveria poderia comparar‑se ao telefonema que dela recebi uma semana mais tarde.

Paul e eu estávamos a acabar de jantar. Mrs. Flemming tinha dado de comer a Pearl e levara‑a para brincarem. Molly serviu‑nos café e foi à cozinha buscar o bolo de morangos que Letty preparara. Ambos nos queixávamos do peso que ganháramos desde que nos tínhamos mudado para Cypress Woods; era Letty quem preparava as refeições, mas nenhum dos dois se dispunha a pôr‑lhe restrições quanto aos cozinhados. Riamos frente à nossa auto‑indulgência.

Paul começou a falar‑me de alguns legisladores que estavam a tentar que ele se candidatasse e nos fariam uma visita dali a cerca de uma semana, quando James apareceu subitamente e anunciou que havia um telefonema para mim. Nem Paul nem eu ouvíramos o telefone tocar.

‑ Eu estava mesmo ao lado e levantei logo o auscultador - explicou James.

‑Quem é?

‑ A sua irmã. Parece muito excitada e exigiu que a chamasse imediatamente ao telefone ‑ respondeu.

Esbocei um trejeito. Tinha a certeza que ia comunicar‑me que ela e Beau tinham ficado oficialmente noivos. Tratava‑se do tipo de notícia que queria dar pessoalmente para poder ouvir a minha reacção.

‑ Desculpa‑me ‑ pedi a Paul e levantei‑me.

‑ Atende no meu escritório ‑ sugeriu.

Dirigi‑me rapidamente até lá, preparando‑me para a notícia.

‑ Olá, Gisselle ‑ disse. ‑ O que é assim tão urgente?

Manteve‑se silenciosa durante um momento.

‑ Gisselle?

‑ Houve um acidente ‑ respondeu, ofegante.

”Oh, não”, pensei. ”Beau.”

‑ O quê? Quem?

‑ A Daphne ‑ arquejou. ‑ Caiu do cavalo ao fim da tarde e bateu com a cabeça numa pedra.

‑ O que aconteceu? ‑ inquiri, com o coração batendo, acelerado.

‑Morreu... há pouco ‑ respondeu Gisselle. ‑ Não tenho pai... não tenho mãe. Só te tenho a ti.

 

OS ELOS QUE UNEM

Paul ergueu os olhos da chávena de café quando voltei à casa de jantar. Um olhar para o meu rosto indicou‑lhe que eu recebera más notícias.

‑ O que aconteceu? ‑ perguntou.

‑ A Daphne... caiu do cavalo e bateu com a cabeça. Morreu ‑ relatei num tom inexpressivo. As notícias haviam‑me deixado atordoada.

‑ Mon Dieu. Quem telefonou?

‑ A Gisselle.

‑ Como está a reagir?

‑ Pelo tom de voz e as coisas que disse ao telefone, não muito bem, mas acho que está sobretudo assustada. Terei de ir a Nova Orleães ‑ declarei.

‑ Claro. Vou cancelar as minhas reuniões em Baton Rouge e acompanho‑te ‑ propôs.

‑ Não, não é preciso ires já. O funeral só se realiza na quarta‑feira. Não faz sentido esperares naquela casa horrível durante o dia inteiro.

‑ Tens a certeza? ‑ retorquiu, e esbocei um aceno de cabeça. ‑ De acordo. Encontro‑me lá contigo ‑ disse. ‑ E a Pearl?

‑ Penso que é melhor para mim deixá‑la aqui com Mistress Flemming.

‑ Está bem. Que coisa trágica! ‑ exclamou Paul com um aceno lento de cabeça.

‑ Sim. Não consigo deixar de pensar como o meu pai ficaria destruído se estivesse vivo quando isto lhe aconteceu. Idolatrava‑a. Percebi logo no primeiro momento em que os vi.

‑ Pobre Ruby! ‑ lamentou Paul, levantando‑se para me abraçar. ‑ Construi este Shangri‑La longe de todos e mesmo assim a tristeza descobre maneira de se infiltrar pela nossa porta.

‑ Não há esse paraíso na Terra, Paul. Podes fingir e ignorar as coisas, mas as nuvens escuras não desaparecem. Acho que é algo que devemos entender ‑ avisei eu, e ele concordou com mais um aceno de cabeça.

‑ Quando partes?

‑ De manhã ‑ respondi, confúsa enquanto pela minha mente desfilava todo o tipo de pensamentos sombrios.

‑ Detesto ver a tristeza no teu rosto, Ruby. ‑ Beijou‑me na testa e apertou‑me de encontro ao peito, premindo os lábios nos meus cabelos.

‑ Vou tratar da mala ‑ sussurrei e afastei‑me com a sensação de um tal aperto no coração que só o deixava palpitar um pouco.

Na manhã seguinte, depois de dar um beijo de despedida a Pearl e garantir a Mrs. Flemming que telefonaria frequentemente, dirigi‑me ao meu carro. Paul levara as minhas coisas lá para fora e arrumara‑as no porta‑bagagens. Esperava‑me junto ao carro com uma expressão abatida e preocupada. Nenhum de nós dormira bem na noite anterior. Ouvi‑o e vi‑o chegar‑se à minha porta por várias vezes, mas não lhe dei a entender que estava acordada. Temia que os seus beijos e abraços de conforto levassem novamente a algo mais.

‑ Odeio deixar‑te ir sozinha ‑ declarou. ‑ Devia acompanhar‑te.

‑ E depois fazeres o quê? Agarrares‑me na mão? Andar de um lado para o outro a pensares em tudo o que podias e devias estar a fazer? Só me porias nervosa ‑ garanti‑lhe, e ele sorriu.

- É mesmo teu pensares sempre nos sentimentos dos outros.

mesmo em alturas como estas. ‑ Beijou‑me na face, abraçou‑me, e entrei no carro. ‑ Guia com cuidado ‑ pediu. Telefono‑te esta noite.

‑ Adeus.

Tomei o rumo de Nova Orleães.

Descera a capota e pusera na cabeça um lenço de seda branca. Quantas coisas haviam mudado, pensei. Todas as dificuldades e preocupações do ano anterior tinham‑me amadurecido e endurecido em aspectos que começava a entender. Há um ano, o facto de conduzir um carro até Nova Orleães ter‑me‑ia parecido viajar até à Lua. Algures ao longo desta breve mas difícil viagem por que passara, deixara a rapariguinha para trás de mim. Tinha uma tarefa pela frente e herdara a firmeza, a força e a confiança da grandmère Catherine para a realizar.

Apesar de todos os meus receios de que isso pudesse acontecer, não me perdi pelas ruas de Nova Orleães. Quando estacionei no relvado circular e avistei o velho Rolls‑Royce do meu pai estacionado junto à garagem, fitei a porta da frente e hesitei. Tinham passado muitos anos desde que entrara naquela casa. Respirei fundo e sai do carro. O novo mordomo apareceu rapidamente à porta. Quando me avistou, pestanejou, confuso.

‑ Oh! ‑ exclamou. ‑ Deve ser a irmã gémea de mademoiselle.

‑ Exacto. Sou a Ruby.

‑ Chamo‑me Stevens, madame ‑ apresentou‑se com um leve inclinar de cabeça. ‑ Lamento o sucedido.

‑ Obrigada, Stevens.

‑ Posso levar‑lhe a bagagem? ‑ propôs.

‑ Obrigada ‑ agradeci. Esperava ver muitos carros no acesso quando estacionei e dúzias de amigos de Daphne reunidos para consolar Gisselle e Bruce; a casa, porém, apresentava‑se calma, vazia. ‑ Onde está a minha irmã?

‑ Mademoiselle está lá em cima, na suíte dela ‑ respondeu, recuando.

Entrei no enorme salão e, por um momento, foi como se nunca me tivesse ido embora, como se tudo o que acontecera desde então não passasse de um sonho. Quase esperei ver Daphne a sair do escritório, esboçando um trejeito à guisa de cumprimento e questionando a minha roupa ou perguntando‑me onde estivera. Todas as luzes estavam diminuídas ou apagadas. Os lustres pendiam como gotas de gelo. A escadaria apresentava‑se envolta em sombras, como se a própria morte tivesse vagueado pela casa e deixado marcas nas carpetes e soalhos.

‑ Ficarei no quarto, junto ao da minha irmã, Stevens ‑ indiquei ao mordomo.

‑ Muito bem, madame.

 

Apressou‑se a ir buscar as minhas coisas e comecei a subir as escadas. Antes de chegar ao patamar, ouvi gargalhadas vindas do quarto de Gisselle, que deixara a porta aberta. Estava ao telefone. Quando se virou e me viu ali de pé, o sorriso desapareceu de imediato e assumiu a expressão triste de uma filha órfã.

‑ Não posso falar mais, Pauline. A minha irmã acabou de chegar e temos de discutir os preparativos do funeral e outras coisas. Sim, é horrível ‑ replicou com um fundo suspiro. - Obrigada por seres tão compreensiva. Adeus. ‑ Pousou o auscultador vagarosamente e depois levantou‑se para me saudar. - Sinto‑me tão contente por teres vindo, Ruby ‑ disse e abraçou‑me, beijando‑me nas duas faces. ‑ Foi terrível. Fiquei emocionalmente esgotada. Ignoro o que ainda me mantém de pé.

‑ Olá, Gisselle ‑ correspondi secamente e percorri o quarto com o olhar. Havia roupas espalhadas por todo o lado e uma bandeja de pratos vazios do pequeno‑almoço em cima de uma mesa‑de‑cabeceira e com uma revista de cinema ao lado.

‑ Não consegui ver ninguém nem fazer nada ‑ queixou‑se de imediato. ‑ O mundo desabou‑me em cima.

‑ E o Bruce? ‑ indaguei.

‑ O Bruce? ‑ Atirou a cabeça para trás com uma breve risada. ‑ Revelou‑se um idiota chapado. E será que conheço o motivo? ‑ acrescentou com um olhar mau e arguto. ‑ Ainda não fez mais do que examinar documentos à espera de encontrar uma saída, mas já lhe disse que esquecesse.

‑ Mas era marido dela.

‑ Só de nome e apenas como criado. A Daphne excluiu‑o de tudo. Vai sair daqui com pouco mais do que entrou. Veremos. O Beau falou com os nossos advogados e...

‑O Beau?

Sim, o Beau. Tem sido a única coisa capaz de me dar alento. Mostrou‑se um verdadeiro super‑homem. Logo desde o início. Não te passa pela cabeça o horror de tudo isto. Não estavas aqui ‑ ripostou, como se a culpa me coubesse por esse facto. ‑ Ela foi andar a cavalo com o Bruce e o animal estacou de repente e atirou‑a ao chão. O Bruce regressou logo a casa, a gritar. O Beau e eu ainda estávamos deitados ‑ intercalou com um sorriso malicioso. ‑ Ouvimos o Bruce aos gritos e vestimos uma roupa. Encontrámo‑la estiraçada no chão, com uma ferida na fonte. O Beau, que tem alguns conhecimentos médicos, ordenou ao Bruce que não lhe tocasse e mandasse chamar uma ambulância. Examinou‑lhe os olhos, tomou‑lhe o pulso, olhou para mim e abanou a cabeça. ”Parece grave”, informou‑me.

”Voltei a casa para vestir uma roupa mais quente. A ambulância chegou, puseram‑na na maca e levaram‑na para o hospital, mas foi uma perda de tempo. Estava morta quando lá chegaram.

”O Bruce ficou frenético, culpando‑se por se ter deixado convencer por ela a montar o cavalo mais manso. Pelo menos, foi o que disse. Na minha opinião, nunca se deve ter oferecido para montar o Fury. Não era homem bastante para isso. ‑ Esboçou uma careta.

‑ Onde está o Bruce agora?

‑ Lá em baixo no escritório, a apanhar uma bebedeira, suponho. Disse‑lhe que podia ficar até depois do funeral.

‑ Mas ele não tem qualquer direito à casa?

‑ Não. É tudo muito complicado relativamente ao que é agora a nossa herança. Segundo o Beau, os nossos advogados acham que podem acelerar o nosso controlo mais directo. Foi essa a palavra que ele usou: ”acelerar”. Há muito dinheiro em jogo, sabes? Lembras‑te de como a Daphne era avarenta connosco, depois de o papá morrer? Bom, agora já não pode sê‑lo, não é verdade? Reparaste como o meu cabelo cresceu? ‑ perguntou, mudando de assunto sem uma pausa para tomar fôlego. ‑ O Beau gosta dele assim. ‑ Estava quase do mesmo comprimento que o meu.

‑ Como está... o Beau?

‑Maravilhoso... e feliz ‑ apressou‑se a acrescentar. - Portanto, não digas nem faças nada que arruine as coisas para nós ou... ou o mundo pode vir a saber a pecadora que és ‑ declarou, brindando‑me com um olhar hostil.

‑ Como podes ameaçar‑me num momento destes? ‑ inquiri, surpreendida.

‑ Não estou a fazer ameaças. Estou somente a avisar‑te

que não estragues a minha felicidade. Tomaste as tuas decisões

e és feliz com as tuas escolhas. óptimo. Agora, também tenho o direito de ser feliz. E o Beau também.

‑ Não vim aqui estragar a felicidade de ninguém.

‑ É óptimo ouvir isso. ‑ Sorriu, inclinando a cabeça na direcção da porta. ‑ O Paul não veio contigo?

‑ Estará aqui para o funeral.

‑ E a criança... Como é que ela se chama?

‑ Pearl ‑ respondi em tom áspero, certa de que ela sabia o nome perfeitamente. ‑ Achei melhor deixá‑la em casa com Mistress Flemming.

‑ Muito bem. Nesse caso, tu e eu podemos ir direitas ao negócio.

‑ Onde está...

‑ O corpo da Daphne? Na casa mortuária. Não achas por acaso que iria querê‑lo cá? Já foi mau termos tido o do papá. A única coisa que faremos aqui será o velório e um belo velório. Já chamei o pessoal de fornecimento de comida. Teremos, obviamente, toneladas de flores. Estão a mandá‑las aos montes, mas vou enviá‑las directamente para a casa mortuária. E preparei uma lista de pessoas a quem convidar.

‑ De que estás a falar? Uma lista de pessoas? Isto não é uma festa ‑ observei.

‑ Claro que é ‑ contrapôs. ‑ É uma festa para nos ajudar a esquecer a tragédia. Agora, não andes por aí com um ar pendurado, fingindo que estás destroçada. Odiava‑la e ela também o sabia. Não posso afirmar que gostava dela, mas tenho

provavelmente mais motivos para estar triste do que tu. Foi minha madrasta durante muito mais tempo do que tua.

Fitei‑a um momento. Talvez Daphne merecesse uma filha daquelas. Lançara decerto as sementes à terra e ensinara com o seu exemplo Gisselle a ser tão egocêntrica. Suspirei, ansiosa por que o funeral terminasse, outras disposições se resolvessem e pudesse voltar a Cypress Woods onde a vida, pelo menos para mim, era muito menos complicada.

Stevens trouxe‑me a bagagem para o quarto.

‑ Oh, que simpático ‑ exclamou Gisselle, quando o viu a transportar a minha mala. ‑ Voltaremos a ficar uma ao lado da outra. É em alturas como estas que aprecio, na verdade, ter uma irmã ‑ afirmou num tom de voz suficientemente elevado para que Stevens ouvisse.

‑ Mistress Gidot pediu‑me que a informasse que preparou algo para o almoço, mademoiselle. Quer que traga ou...

‑ Oh, não. Diga‑lhe que a minha irmã chegou e comeremos na sala de jantar, tout de suite ‑ retorquiu Gisselle, depois do que me esboçou um sorriso de orgulho. ‑ Aprendi um pouco de francês, enquanto estive em Paris com o Beau ‑ acrescentou.

‑ Três bien mademoiseile ‑ redarguiu Stevens e saiu.

‑ O que é que ele disse?

‑ Muito bem. Quem é Mistress Gidot?

‑ A francesa que a Daphne contratou para substituir a Nina Jackson.

‑ Onde está a Nina?

‑ Como hei‑de saber onde está alguém como ela? Por favor, Ruby. De qualquer maneira, espero que tenhas fome. Mistress Gidot cozinha muito bem e tenho a certeza que vai preparar‑nos algo delicioso.

‑ Vou refrescar‑me ‑ repliquei.

‑ Também eu. Tenho chorado e já andei tanto por aí que devo estar com um aspecto horroroso. E o Beau não tardará a chegar ‑ acrescentou.

O coração ameaçou saltar‑me do peito. A mera ideia de me encontrar frente a frente com Beau fazia‑me tremer. Tentei que Gisselle não se desse conta da minha apreensão.

‑ óptimo ‑ comentei com um sorriso.

Saí apressadamente do quarto que outrora havia considerado tão novo e maravilhoso, um quarto em que Beau me beijara pela primeira vez e em que me abraçara e confortara durante o velório do meu pai. Sorri ao deparar com o retrato da rapariguinha e do cachorro ainda na parede e depois fui até à janela e contemplei os courtis de ténis e as flores, recordando‑me do facto de me ter sentido uma princesa na primeira vez que ali dormira. Tudo se me afigurara tão mágico e fantástico que jamais imaginaria a tristeza e os problemas que pairavam sobre a grande casa, prestes a atingir‑nos.

 

Parei a fim de dar uma espreitadela ao escritório antes de me ir juntar a Gisselle na sala de jantar. Tal como ela me dissera, Bruce estava lá a folhear uma pilha de papéis com uma garrafa de uísque aberta ao lado. Vestia casaco e gravata, mas com o nó da gravata alargado. Tinha o cabelo emaranhado e dava a sensação de que não se barbeava há uma semana. Quando ergueu o rosto para mim, julgou tratar‑se de Gisselle. Depois de um segundo olhar, verificou que era eu.

‑ Ruby! ‑ exclamou, levantando‑se rapidamente. Embateu na esquina da secretária, tal a ânsia de me abraçar. O cheiro a uisque chegou‑me antes dele. Deu‑me um abraço rápido e recuou. ‑ É horrível, horrível. Não consigo acreditar que aconteceu.

‑ Porquê? ‑ ripostei num tom áspero. ‑ Aconteceu ao meu pai; aconteceu ao meu tio Jean.

Pestanejou e depois abanou a cabeça.

‑ Claro que também foram tragédias horríveis, mas a Daphne... A Daphne estava no apogeu da vida. Estava mais bonita do que nunca. Ela...

‑ Sei como a achava maravilhosa, Bruce. Lamento que isto tenha acontecido. Não o desejaria a ninguém. Já há tristeza bastante no mundo, sem que prestemos o nosso contributo.

‑ Sabia que pensarias assim ‑ redarguiu, sorrindo. - A tua irmã... ‑ abanou a cabeça ‑ está completamente tresloucada... É com aquele seu namorado... Andam a conspirar contra mim. Preciso da tua ajuda, Ruby.

‑ Da minha ajuda? ‑ repeti, quase soltando uma gargalhada.

‑ Sempre foste a mais sensata ‑ arguiu. ‑ E agora que estás bem na vida, compreenderás. A Daphne e eu tínhamos alguns acordos ‑ prosseguiu. ‑ Oh, nunca os passámos ao papel, mas tínhamos. Discutíamos o que faríamos se algo sucedesse a um de nós e concordámos que ao outro seria concedida procuração. Se fizeres com que os advogados estatais redijam os documentos...

‑ Durante anos, foram vocês dois os conspiradores, Bruce ‑ repliquei num tom gelado. ‑ Ambos conspiraram contra o meu pai. Fizeram desfalques e armaram embustes. Só que aparentemente foram sócios no crime, mas uma das metades era

muito mais esperta, levando‑o a si ao estado em que se encontra: sem nada ‑ acrescentei, fitando a pilha de documentos. Tenho pena de si, mas não levantarei um dedo para o ajudar - garanti. ‑ Leve o que conseguiu roubar e vá‑se embora - aconselhei, e ele abriu a boca de espanto.

‑Mas... La Ruby, sabes que sempre simpatizei contigo e me pus do teu lado, quando a Daphne era demasiado severa.

‑ Quando? ‑ redargui. ‑ Nunca teve coragem para lhe fazer frente, mesmo quando a viu ser mesquinha contra mim, contra o meu tio Jean e mesmo contra a Gisselle. Não me peça favores, Bruce.

‑ Vocês as duas não vão safar‑se ‑ ameaçou, semicerrando os olhos. ‑ Também tenho advogados, sabes, advogados bem pagos e importantes e sócios de negócios.

‑ Sinceramente, é‑me indiferente, Bruce. Vou deixar essas batalhas para a Gisselle.

‑ Ela roubou‑te o namorado, sabes? ‑ retorquiu com um sorriso astuto.

Senti o sangue afluir‑me ao rosto e apercebi‑me de que ficara vermelha.

‑ Sou casada, Bruce.

Esboçou um sorriso ainda maior.

‑ Veremos quem ri por último ‑ ameaçou, voltando a concentrar‑se nos papéis da secretária.

Dirigi‑me à sala de jantar e coloquei Gisselle a par daquela conversa. Ela encolheu os ombros.

‑ Vou deixar todo esse assunto para o Beau e para os nossos advogados ‑ declarou. ‑ Contudo, estava a pensar comprar‑te a tua parte desta casa e das propriedades de Nova Orleães. Tens tanto, porque havias de importar‑te? ‑ acrescentou, antes que eu pudesse oferecer qualquer resistência.

‑ Por mim, está tudo bem ‑ acedi.

‑ Sabia que nos entenderíamos durante esta altura difícil. Temos de fazer o que pudermos para nos consolarmos uma à outra, não é? O que vais usar no funeral? Trouxeste algo apropriado? Tenho um armário cheio de roupa nova. Podes tirar o que quiseres. Procura nos meus armários. És um pouco mais larga de anca que eu desde que deste à luz, mas a maioria serve‑te ‑ disse.

‑ Trouxe roupa comigo, obrigada ‑ agradeci.

Virámo‑nos as duas quando Bruce apareceu na ombreira da porta. Trazia um maço de papéis nos braços.

‑ Vou sair por um bocado ‑ anunciou. ‑ Até aos escritórios dos meus advogados.

‑ Não vale a pena pensares em destruir documentos, Bruce ‑ avisou Gisselle. ‑ Sei que a mãe mantinha cópias de tudo com a Simons & Beauregard, que são agora os nossos advogados.

Ele girou, irritado, sobre os calcanhares e, ao fazê‑lo, deixou cair alguns documentos. Gisselle riu enquanto Bruce se atrapalhava e punha de joelhos para os reunir. Depois, percorreu furioso o corredor com passo pesado e saiu.

‑ Boa viagem! ‑ gritou Gisselle atrás dele e sorriu‑me. - Estava a pensar fechar a casa durante um mês e viajar.

Talvez a Londres. Ah... Estas ostras e alcachofras são deliciosas, não achas? Esta enorme empada chama‑se vol‑au‑vent - declarou, pedante.

A comida era boa, mas não me encontrava com disposição para apreciar o que quer que fosse. Depois do almoço, Gisselle foi visitar uns amigos e eu vagueei pela casa. Pouco tinha sido mudado ou acrescentado. Suspirei fundo e continuei a andar até chegar ao que fora outrora o meu estúdio. Nada havia sido retirado de lá, mas a divisão mantivera‑se fechada desde então. Notavam‑se camadas e camadas de pó em tudo e até mesmo teias de aranha nas janelas e nos cantos. As tintas estavam secas e os pincéis endurecidos. Observei vários dos meus desenhos não acabados e parei junto ao cavalete.

Voltou a recordação daquele dia com Beau, o dia em que me provocara, incitando‑me a desenhá‑lo nu. Olhei para o sofá e imaginei‑o de novo ali, com aquele terno e travesso sorriso nos lábios e nos olhos. O meu coração batia loucamente mas conseguira embrenhar‑me na arte e desenhar um retrato tão parecido e realista que, mais tarde, quando Daphne o descobrira, não tivera dificuldade em perceber quem era e o que acontecera.

Fora nesse mesmo dia, depois de ter trabalhado no seu retrato, que Beau e eu fizéramos amor pela primeira vez. A recordação do seu beijo, do seu toque, dos nossos abraços apaixonados, invadiram‑me e tiraram‑me o fôlego. Arrebatada pelas minhas recordações, aproximei‑me devagar do sofá e fitei‑o, como se pudesse ver‑nos de novo juntos, um rememorar daqueles momentos de êxtase, os dois unidos num acto de paixão tão completo, em que nos perdíamos um no outro, jurando um amor eterno.

Sentei‑me rapidamente, sentindo que as pernas enfraqueciam e ameaçavam ceder sob o meu corpo. Durante algum tempo, permaneci ali, de olhos fechados e com o coração ameaçando saltar‑me do peito. Depois, respirei fundo e virei‑me a fim de olhar lá para fora através da janela na direcção dos carvalhos e jardins, recordando a excitação que experimentara ao começar a desenhar e a pintar no meu próprio estúdio.

‑ Uma moeda pelos teus pensamentos ‑ ouvi uma voz suave nas minhas costas; ao voltar‑me, deparei com Beau na ombreira da porta.

O cabelo louro e brilhante continuava a tombar despenteado sobre a testa, e a tez morena ressaltava ainda mais o brilho dos olhos azuis. Vestia um blazer azul‑escuro e calças de caqui com a camisa aberta no colarinho. O rosto bonito era‑me tão familiar: a boca perfeita e sensual, o nariz romano aquilino e o queixo firme e bem delineado.

 

Fiquei momentaneamente sem fala, incapaz de me mexer sob o esplendor do seu caloroso e atraente sorriso, o qual se transformou rapidamente numa ligeira gargalhada.

‑ Parece que estás a olhar para um fantasma ‑ comentou. Aproximou‑se rapidamente de mim e agarrou‑me nas mãos, pondo‑me de pé. Abraçámo‑nos e depois ele recuou e mirou‑me sem me largar as mãos.

‑ Não mudaste nada... excepto que pareces mais bonita - replicou. ‑ Então? Diz alguma coisa.

‑ Olá, Beau.

Rimos e depois ele compôs uma atitude mais séria, endireitando os ombros e premindo os lábios.

‑ Ainda bem que te encontrei sozinha. Queria explicar o que aconteceu, porque é que parti tão rapidamente, quando se descobriu a tua gravidez ‑ começou.

‑ Não exijo explicações ‑ redargui, virando as costas.

‑ Não foi um acto digno de um cavalheiro do Sul... abandonar a mulher que amava, estando ela em apuros. Fui pura e simplesmente um cobarde. Os meus pais estavam devastados. A minha mãe ficou à beira de um ataque de nervos. Pensava que todos em Nova Orleães iriam saber do escândalo e que as suas vidas seriam arruinadas. Nunca vi o meu pai naquele estado.

”Depois, avistaram‑se com a Daphne e ela garantiu‑lhes que trataria do problema se me mandassem embora imediatamente. Tentei telefonar‑te antes de partir, mas não consegui. Quase me levaram acorrentado. No espaço de horas, arranjaram os bilhetes de avião, a escola, o meu apartamento em Paris.

”Nessa altura, nada tinha de meu. Dependia por completo dos meus pais. Se os tivesse desafiado, deserdar‑me-iam sem dúvida... e o que podia fazer por ti, por nós e um bebé?

”Confesso que tive medo. Antes de ter consciência do que estava a fazer e do que me acontecia, sobrevoava já o oceano Atlântico. Os meus pais proibiram‑me de ter o que quer que fosse a ver contigo, mas de início escrevi‑te cartas. Recebeste algumas?

‑ Não ‑ respondi, brindando‑o com um breve olhar. ‑ Já não estava aqui e a Daphne não fez decerto qualquer esforço para as guardar ou mandar‑mas.

‑ Nunca havia fugido às minhas responsabilidades até então ‑ prosseguiu. ‑ Todos, os meus pais, a Daphne, todos me garantiram que tudo correria bem para ti.

Fitei‑o.

‑Tudo... correria bem? ‑ Quase me ri, ao recordar.

A dor reflectiu‑se‑lhe no olhar.

‑ O que aconteceu? ‑ inquiriu num sussurro.

‑ A Daphne mandou‑me fazer um aborto numa qualquer clínica de segunda. Mal vi o lugar, apercebi‑me do que estava a fazer e fugi, regressando ao bayou.

‑ Onde deste à luz...

‑ A Pearl. É uma bonita criança, Beau.

‑ E onde te casaste?

‑ Sim.

Baixou os olhos.

‑ Quando ouvi dizer que tinhas casado, resolvi continuar na Europa. A verdade era que não queria regressar nunca mais. Mas ‑ acrescentou com um suspiro ‑ não era realista. Depois, apareceu a Gisselle. Mudou, não achas? ‑ perguntou, esperando que concordasse. ‑ Acho que está finalmente a crescer, a amadurecer. Acontecimentos terríveis como este arrancam‑nos com gritos e pontapés à infância. Agora, sabe que tem de ser responsável. Tem de orientar uma fortuna, interesses de negócios...

‑ Consta que tens sido uma grande ajuda ‑ comentei.

‑ Faço o que posso. Viste o Bruce? ‑ indagou.

‑ Sim. O que quer que lhe aconteça é pura justiça ‑ retorqui.

‑ Não te preocupes. Zelarei para que não receba um cêntimo a mais do que lhe é devido ‑ prometeu.

‑ O dinheiro deixou de ser assim tão importante para mim, Beau. Na verdade, nunca foi tão importante como para a Gisselle.

‑ Eu sei. Li as notícias a teu respeito no jornal. Tens um estúdio como este?

‑ Sim, mas com uma vista maravilhosa dos canais. É no sótão da nossa casa ‑ respondi.

‑ Parece maravilhoso. A Gisselle tem‑me mantido ao corrente de tudo e pela forma como ela descreve... como lhe chamas, Cypress Woods? ‑ Esbocei um aceno de concordância.

‑           Pela forma como o descreve, parece pura utopia.

‑ Sempre fui mais feliz no bayou, rodeada pela Natureza. Tudo aquilo fazia demasiado parte de mim, de quem eu era, para que pudesse desistir.

‑ Mesmo por mim? ‑ inquiriu ternamente. Os olhos brilhavam com lágrimas, pouco vulgares nele.

‑Beau...

‑ De acordo. Estou a ser injusto. Não tenho o direito de pedir ou exigir nada de ti, Tu é que tens o direito de me desprezar por te ter abandonado. Nada do que me aconteceu ou acon tecerá é imerecido - redarguiu

‑ Ambos estávamos em falta, Beau, e ambos fomos viti mas de um destino cruel - comentei num tom suave. Fitamo‑nos bem nos olhos e aproximamo -nos.

‑ Ruby ‑ sussurrou ia a estender me os braços quando Gisselle irrompeu pelo estúdio.

‑ Ah, aqui estão vocês ‑ exclamou num tom agudo. - Devia ter calculado que a descobririas. O Stevens disse‑me que tinhas chegado e, quando não te encontrei no escritório nem na sala de estar, perguntei a mim própria para onde irias.

‑ Olá, Gisselle ‑ saudou.

Ela atirou‑se‑lhe para os braços e beijou‑o na boca, de olhos abertos e virados para mim quando o fez.

‑ Tive tantas saudades tuas esta manhã ‑ afirmou, ao descolar os lábios dos dele. ‑ Quando saíste?

Beau corou.

‑ Cedo. Sabias que tinha um encontro com os teus advogados...

‑ Oh, claro. Hoje, tenho a cabeça em água. Bom. Podes contar‑nos o que discutiram e o que temos de fazer ‑ propôs.

‑           Vamos todos até ao escritório falar. ‑ Pegou na mão de Beau e sorriu‑me, muito segura de si. ‑ De acordo, Ruby?

‑ Claro ‑ anui, seguindo‑os.

De volta ao escritório, ficámos a ouvir Beau passar em revista o que os nossos advogados consideravam em relação ao assunto. A maneira como Daphne levara Bruce, antes de se casarem, a assinar documentos que o excluiam da sua fortuna e da nossa, era um mistério, mas ele assinara‑os de facto e os advogados sentiam‑se protegidos.

‑ Qualquer manobra legal que ele tente será inútil ‑ garantiu Beau. ‑ Agora, falta pouco tempo para que vocês assumam o controlo total de tudo, mas com os advogados no papel de executores testamentários esse controlo será imediato.

‑ Então, podemos gastar o que quisermos? Comprar o que nos apetecer? ‑ indagou Gisselle, excitada.

‑ Sim.

‑ Acabaram as restrições! A primeira coisa que quero é um carro desportivo. A Daphne não me deixava tê‑lo ‑ lamentou‑se virando‑se depois para mim. ‑ Deves dar uma volta à casa e resolver o que queres levar para os pântanos contigo. É possível que mande chamar alguém e faça um leilão ‑ anunciou. ‑ E há ainda a questão do rancho, dos prédios de apartamentos...

‑ Temos de discutir isso agora, Gisselle?

‑ Pouco me interessa que o discutamos agora ou nunca. Se quiseres, manda o teu advogado um destes dias para falar com os nossos. Não achas, Beau?

Beau fitou‑me.

‑ Se for essa a vontade dela ‑ ripostou.

‑ Deixemos isso de lado por agora ‑ declarei. O peso emocional de regressar àquela casa, o reavivar de lembranças e o facto de voltar a encontrar Beau aturdiam‑me. Tinha a sensação de que poderia dormir uma semana inteira. ‑ Gostaria de descansar um pouco ‑ acrescentei. ‑ Acho que vou subir até ao meu quarto. Tenho de telefonar para casa e saber como está a Pearl.

Beau desviou os olhos de mim para Gisselle, baixando‑os depois para os documentos.

‑ Vai então descansar ‑ anuiu ela. ‑ Eu não estou minimamente cansada. Na verdade, quero mesmo afastar‑me daqui por umas horas. Sinto‑me asfixiar sob toda esta trristeza. Beau, leva‑me a Jackson Square para tomar um café e comer uns beignets ‑ ordenou.

- Se é o que queres ‑ replicou ele.

‑ É mesmo. Obrigada, Beau. ‑ Dirigiu‑me um enorme sorriso de satisfação.

Beau parecia relutante em sair dali, mas fê‑lo. Telefonei a Mrs. Flemming e ela informou‑me que tudo estava em ordem. Subi depois ao que outrora fora o meu quarto e deitei‑me na cama onde muitas vezes sonhara com Beau e comigo juntos e felizes. Fechei os olhos e, dali a momentos, adormeci.

Acordei ao som de risos que me chegavam do fundo da escada e escutei.

‑ Aparece dentro de uma hora para nos levares ao velório ‑ ouvi dizer Gisselle; em seguida subiu a escada. Parou na ombreira da minha porta, e eu sentei‑me na cama, esfregando os olhos.

‑ Olá ‑ saudou. ‑ Divertimo‑nos imenso. Corria uma brisa fantástica junto ao rio e sentámo‑nos a observar os turistas e os artistas. Devias ter vindo. Repousaste bem? Temos de ir até à capela mortuária para o velório. As pessoas só virão depois do funeral ‑ informou.

‑Sim...

‑ Então, veste‑te ‑ incitou. ‑ O Beau vem buscar‑nos dentro de uma hora.

 

Saiu apressadamente e perguntei a mim própria como conseguia ela estar de tão bom humor numa ocasião tão horrível. Contudo, no velório portou‑se à altura, derramando algumas lágrimas sempre que o desejava. Apesar do papel que desempenhara nas pequenas conspirações contra o meu pai, não pude evitar uma certa pena de Bruce, o qual se manteve a um canto a maior parte do tempo. Aparentemente, a verdade sobre a sua relação com Daphne não era segredo e, agora que Daphne morrera, todos se apercebiam de que Bruce possuía pouco poder e relativamente poucos bens.

Todos os amigos das relações sociais de Daphne e muitos dos seus associados de negócios apareceram para nos dar os pêsames. Os nossos advogados estavam presentes para os apresentar. Pressenti que Gisselle se impacientava e começava a ficar cansada do ambiente lúgubre. Decorrida cerca de uma hora, dispôs‑se a ir embora. Beau, contudo, mantinha‑se ao lado dela, implorando‑lhe que se aguentasse um pouco mais. Continuava a chegar gente. Quando ela acedeu, tomei consciência de como Beau representava uma forte e boa influência sobre ela e sorri intimamente.

De vez em quando, desviava o olhar na direcção dele. Fitávamo‑nos e sentia como o meu coração se punha a bater aceleradamente. Receava que alguém mais me detectasse no rosto as quentes emoções que ainda dominavam o meu corpo, sempre que ele estava próximo de mim ou me falava; por isso tentei evitá‑lo. Era, todavia, como se tentasse fugir a um copo de água fresca depois de passar dias no deserto. Sentia‑me incapaz de deixar de olhar para ele e, sempre que lhe ouvia a voz, parava de falar e de escutar as outras pessoas. A voz dele continuava a soar como música aos meus ouvidos, mas era difícil passarmos algum tempo sozinhos.

Na manhã seguinte, Paul chegou cedo a fim de me acompanhar ao funeral. Sabíamos que representávamos um motivo de grande curiosidade para muitas pessoas que tinham ouvido falar do meu casamento e da nova vida no bayou.

Quando o caixão de Daphne foi empurrado para o jazigo da família Dumas, pensei no meu pai. No intimo, achava que ele preferia ter descansado ao lado da minha verdadeira mãe. Esperava que, espiritualmente, onde quer que as almas passassem a eternidade, voltassem a encontrar‑se e Daphne fosse mandada para um outro lugar.

Depois do funeral, a maioria dos velhos amigos de Gisselle regressou connosco até casa. A primeira hora foi calma, mas notei que Bruce bebia descontroladamente e murmurava irritado para os poucos amigos, enquanto fixava Gisselle e eu com uma fúria crescente. Expliquei o motivo a Paul.

De súbito, Bruce deixou cair o copo que tinha na mão, o qual se estilhaçou no soalho. Os presentes pararam de falar, e ele sorriu e avançou a cambalear.

‑ Para o que estão todos a olhar? ‑ inquiriu. ‑ Já não precisam de sussurrar atrás das minhas costas. Sei no que estão a pensar. Cumpri os meus objectivos e agora sou dispensável, não é?

‑ Bruce ‑ exclamei, dando um passo em frente. ‑ Não é o momento apropriado.

‑ Não, La Ruby, não é o momento. Mas se tu e a tua irmã levarem a vossa avante, nunca será o momento, pois não? Bom, de acordo. Gozem o que têm agora, pois não o terão eternamente. Possuo os meus direitos. Sei‑o, independentemente das afirmações dos vossos advogados bem pagos ‑ gritou.

Todos ficaram sem fala. Depois, sorriu e esboçou uma vénia.

‑ Vou despedir‑me desta reunião das altas esferas sociais, pois fui informado de que sou pessoa non grata. Numa palavra, a minha presença não é apreciada. Se é que alguma vez o foi... Portanto, é tudo por agora ‑ declarou.

Girou tão bruscamente sobre os calcanhares que quase caiu; depois, dirigiu‑se à porta, seguido por dois dos associados, que lhe agarraram nos braços.

As conversas retomaram o seu curso. Fitei Gisselle.

‑ Ainda bem que nos livrámos dele! ‑ disparou, com o rosto corado e furiosa. ‑ Ignoro do que se queixa. Tem mais do que merece. Beau ‑ chamou subitamente num tom fraco e ele acorreu de imediato. ‑ Não foi horrível?

‑ Sim ‑ concordou. ‑ Ele está embriagado.

‑ Agora, ainda isto por cima de tudo o resto. Não aguento nem mais um instante. Por favor, Beau. Ajuda‑me a ir até ao meu quarto ‑ suplicou e ele guiou‑a, enquanto Gisselle apoiava a cabeça no seu ombro e murmurava desculpas às pessoas que tinham aparecido. Depois, todos começaram a dispersar.

‑ Quero ir esta noite para casa, Paul ‑ disse num impulso.

‑ A sério? Mas pensei...

‑ Não quero saber das disposições financeiras para nada. Só quero ir para casa.

Paul esboçou um aceno de concordância. Apanhara o avião de Baton Rouge para Nova Orleães, a fim de que pudéssemos voltar no meu carro. Subi ao meu quarto para fazer as malas. Foi então que ouvi uma leve pancada na porta parcialmente aberta.

‑ Sim?

Beau entrou.

‑ Vais esta noite para casa?

‑ Sim, Beau. Não posso ficar mais. Nunca passei tanto tempo longe da Pearl ‑ acrescentei.

‑ Lamento não te ter perguntado mais sobre ela. Senti que... não tinha o direito de perguntar ‑ salientou.

‑ Ela é tua filha ‑ recordei‑lhe.

‑ Eu sei ‑ ripostou com um aceno de cabeça. ‑ O Paul parece ter aceite tudo sem problemas. Pelo menos, a julgar pela breve conversa que tivemos, assim o acho.

‑ Ele ama a Pearl, é verdade.

‑ E a ti ‑ rematou Beau.

Baixei os olhos para a minha mala, conservando‑me silenciosa um momento.

‑ A Gisselle tenta ser diferente quando está contigo. Tenho visto ‑ repliquei. ‑ Talvez sejas bom para ela.

‑ Ruby! ‑ exclamou, aproximando‑se mais. ‑ O único motivo que me levou a recomeçar com ela foi porque ao olhá-la podia fingir, imaginar que estava a olhar para ti. Tenho este sonho de que, serei capaz de transformá‑la em ti, mas é um sonho idiota. É impossível substituir-te e não consigo suportar a ideia de que te perdi, nem a ideia da vida que poderíamos ter tido juntos.

Os olhos encheram‑se‑me de lágrimas, mas não me virei de forma a que as visse. Engoli‑as e continuei a fazer a mala.

‑ Não, Beau. Por favor ‑ murmurei.

‑ Não consigo evitá‑lo, Ruby. Jamais deixarei de te amar e, mesmo que signifique viver eternamente com uma ilusão, é o que farei.

‑ As ilusões morrem rapidamente, Beau, e deixam‑nos muito pior do que se tivéssemos enfrentado a realidade ‑ avisei.

‑ Sou incapaz de enfrentar a realidade sem ti, Ruby. Sei isso agora.

Ouvimos passos na escada. Fechei a mala no preciso instante em que Paul apareceu à porta.

‑ O carro está pronto ‑ anunciou, desviando os olhos, desconfiado, de Beau para mim.

‑ óptimo. Adeus, Beau. Tenta aparecer em breve no bayou.

 ‑Assim farei.

‑ Vou só despedir‑me da Gisselle, Paul.

‑ óptimo ‑ concordou, pegando na minha mala.

‑ Também vou descer, Paul ‑ disse Beau.

Quando os dois se dirigiram à escada, fui até ao quarto de Gisselle. Ela estava deitada na cama com uma toalha húmida em cima da testa.

‑ Vou‑me embora agora, Gisselle ‑ disse.

Bateu as pálpebras, como se não tivesse bem a certeza de estar a ouvir uma voz real.

‑O quê? és tu, Ruby?

‑ Sim. Parto esta noite para Cypress Woods.

‑ Porquê? ‑ inquiriu, sentando‑se e repentinamente desperta. ‑ Teremos um lauto pequeno‑almoço amanhã e depois talvez os quatro possamos fazer algo divertido para variar.

‑ Preciso de voltar para junto da Pearl, e o Paul tem muitos negócios a tratar ‑ repliquei.

‑ Oh, deixa-te de idiotices. Apenas queres fugir de toda esta tristeza e problemas com o Bruce ‑ acusou.

‑ Sim, também ‑ admiti.

A expressão suavizou‑se e depois os lábios tremeram‑lhe.

‑ O que será de mim? ‑ lamentou‑se.

‑ Agora tens o Beau ‑ afirmei. ‑ Ficarás lindamente.

‑ Sim ‑ anuiu com um enorme e alegre sorriso. ‑ Acho que sim.

Virei‑me e afastei‑me rapidamente com a pulsação acelerada. Como lhe agradava deixar bem claro que eu voltara a perder Beau.

 

DE MAL A PIOR

Durante a viagem de regresso, Paul tentou falar de banalidades e depois entusiasmar‑me com algumas novidades que estavam a acontecer, não só a nível de negócios, mas igualmente na política. Ouvi por alto, preenchendo todo o silêncio entre nós com o som da voz de Beau e ocupando cada quilómetro escuro do caminho com as imagens de Beau sorrindo, conversando, fitando‑me com aquele olhar de angústia nos olhos e... sim, aquele olhar de amor.

Tentei manter‑me ocupada e não pensar nele durante os dias que se seguiram imediatamente á nossa viagem a Nova Orleães, mas nesse espaço de tempo foi‑me impossível desenhar uma linha. Limitava‑me a olhar para o papel em branco, a pensar no meu estúdio em Nova Orleães e em Beau. Tentei fazer esboços e pintar animais, flores, árvores, tudo menos pessoas, pois sabia que qualquer homem que imaginasse teria o cabelo de Beau, os olhos de Beau, a boca de Beau.

O pior de tudo era observar Pearl que adquirira traços mais marcados e começara a parecer‑se cada vez mais com o pai. Talvez eu andasse a vê‑lo por todo o lado desde o funeral; porém, quando Pearl ria e sorria, ouvia o riso de Beau e via‑o sorrir.

Numa tarde, algumas semanas depois de termos voltado do funeral de Daphne, estava sentada no jardim a tentar ler um livro enquanto Mrs. Flemming brincava com Pearl na relva.

Estava um desses raros dias no bayou, em que mal corria uma brisa e as nuvens pareciam coladas ao céu azul. Um tempo que fazia com que todos se sentissem preguiçosos. Os próprios pássaros mal esvoaçavam de árvore em árvore. Deixavam‑se ficar tranquilamente pousados nos ramos, idênticos a animais empalhados. à distância, ouvia o barulho monótono de uma das nossas sondas petrolíferas e de vez em quando as vozes dos homens que gritavam entre eles. Para além disso. tudo se mantinha tão calmo que o riso de Pearl saltitava pela relva até aos canais, um riso cristalino que me fazia sentir como se estivéssemos todos num mundo de fantasia.

James apareceu subitamente vindo da casa com um enorme sobrescrito.

‑ Acabaram de fazer esta entrega especial para si, madame ‑            anunciou, excitado, e estendeu‑mo.

‑ Obrigada, James.

Ele esboçou um aceno de cabeça e retirou‑se enquanto eu abria o sobrescrito, de onde tirei um jornal. Mrs. Flemming fitou‑me com curiosidade e encolhi os ombros.

‑ É apenas um jornal de Nova Orleães de há dois dias - elucidei. Fitei‑o, interrogando‑me sobre a razão por que fora enviado como entrega especial, quando notei que uma das páginas interiores estava assinalada com uma marca vermelha. Abri‑o nesse sítio e deparei com uma notícia envolta num círculo. Era um anúncio de boda nupcial, descrevendo o casamento de Beau Andreas com Gisselle Dumas. Tinham fugido para casar.

 

Reli a história para confirmar que as palavras correspondiam, de facto, ao que estava a pensar e, por momentos, senti como se o ar à minha volta tivesse sido sugado. Não conseguia respirar; não conseguia engolir e receava que, se me esforçasse demasiado, sufocaria e ficaria roxa. Pareceu‑me que o coração se afundava no peito, tornando‑me oca e fria por dentro.

‑ Nada de desagradável, espero ‑ desejou Miss. Flemming.

Fitei‑a por momentos e depois consegui recuperar a fala.

‑ A minha irmã... fugiu para casar ‑ retorqui.

‑ Oh! Com um bonito e elegante jovem?

‑ Sim. Muito bonito e elegante ‑ afirmei. ‑ Preciso de ir um pouco até lá acima ‑ acrescentei e levantei‑me rapidamente antes que as lágrimas começassem a correr‑me pelas faces.

Atravessei a casa como uma seta, subi as escadas e atirei‑me para cima da cama, onde enterrei o rosto na almofada. Sabia, evidentemente, que uma coisa daquelas poderia acontecer, mas vivera com o desejo de que Beau se mantivesse firme e não cedesse. Agora, lembrava‑me de algumas das palavras que me dirigira, palavras que haviam sugerido o contrário.

Não consigo evitá‑lo, Ruby. Jamais deixarei de te amar e, mesmo que signifique viver eternamente com uma ilusão, é o que farei.

Segundo parecia, decidira fazê‑lo. Poderia ele sentir‑se feliz, sabendo que, de todas as vezes que beijava a minha irmã, fechava os olhos e convencia‑se de que me beijava? Que sempre que acordava de manhã e lhe fitava o rosto, imaginava que me fitava? Estava apaixonado por mim; estaria sempre apaixonado por mim. Sabia que Gisselle pensava que atingira uma vitória recuperando‑o novamente e levando‑o a casar‑se com ela, embora, no íntimo, devesse saber que era uma fraca vitória e que ele a usava como qualquer espelho mágico, onde podia mirar a imagem da mulher que amava.

Todavia, Gisselle não se importava. Apenas lhe interessava tornar‑me infeliz, mesmo que tal significasse casar‑se com alguém que não amava realmente. Para além de que ela não amava ninguém senão ela própria, pensei. Tentei sentir‑me mais írritada do que triste, mas o meu coração devastado não o permitia. Chorei tanto que me ficou a doer o peito, e as minhas lágrimas ensoparam a almofada. Quando ouvi um ligeiro bater na porta, reprimi os soluços e, ao virar‑me, deparei com Paul, de pé, com uma expressão triste e preocupada.

‑ O que se passa? ‑ inquiriu.

‑ Nada. Ficarei bem ‑ respondi, apressando‑me a limpar as lágrimas com as costas da mão. Ele manteve‑se parado, observando‑me.

‑ Foi isto, não foi? ‑ indagou, exibindo o jornal que tinha atrás das costas. ‑ Encontrei‑o onde o deixaste cair, no vestíbulo. Não és obrigada a responder‑me ‑ acrescentou de imediato, com o rosto vermelho de frustração e raiva. ‑ Sei quanto ainda o amas.

‑Paul...

‑ Não. Tenho consciência de que não é algo que possa fazer desaparecer com o meu dinheiro. Posso construir‑te uma casa com o dobro do tamanho desta, com o dobro dos acres e enchê‑la de coisas dez vezes mais caras, e... continuarás abatida, sonhando com o Beau Andreas. ‑ Suspirou, erguendo e baixando os ombros. ‑ Julguei que poderia fazer com que a dedicação e segurança ocupassem o lugar de um amor romântico, mas fui um idiota em pensá‑lo. Afinal, a minha mãe tinha razão ‑ gemeu.

‑ Superei o problema, Paul ‑ afirmei, determinada. - Ele casou com a minha irmã e ponto final.

O rosto iluminou‑se‑lhe.

‑ Era isso o que devias sentir ‑ redarguiu, com um aceno de cabeça. ‑ Não veio buscar‑te, nem a ti nem à criança quando estavas a viver aqui na cabana da tua grandmére, pois não?

‑ Não ‑ anui tristemente.

‑ E depois nunca se interessou pelo teu bem‑estar. É tão egoista como a tua irmã. Estão certos um para o outro. Tenho razão, não?

Concordei com um relutante aceno de cabeça.

Paul esboçou um trejeito.

‑ Mas isso não significa que deixes de o amar, não é verdade? ‑ concluiu com um tom cansado e derrotado.

‑ O amor é qualquer coisa... que às vezes não podes dominar ‑ contrapus.

‑ Eu sei ‑ replicou. ‑ Ainda bem que também és dessa opinião.

Entreolhámo‑nos por um momento. Depois, ele pousou o jornal em cima do toucador e foi‑se embora.

Sentei‑me junto à janela, chegando à conclusão de que Paul e eu tínhamos agora mais em comum do que anteriormente. Os dois estávamos apaixonados por pessoas que não podíamos amar como desejávamos, como devíamos amar. Soltei um suspiro tão fundo como o dele e depois peguei no jornal e atirei‑o para o cesto dos papéis mais próximo.

Nos dias seguintes, pairou uma nuvem sobre Cypress Woods, apesar das tentativas de Paul e das minhas para nos alegrarmos mutuamente. As sombras pareciam mais escuras e duradouras e a chuva mais persistente, mais pesada, mais sombria do que nunca. Refugiei‑me no trabalho. Queria deixar o mundo real e viver no mundo que estava a criar com a minha arte.

Continuei a pintar a série de quadros sobre o tema do soldado do Exército da confederação e da amante, mas o meu trabalho seguinte revelou‑se muito melancólico. Nele retratei o soldado a ser transportado numa maca para fora do campo de batalha. Parecia‑se, obviamente, com Beau e nos lábios quase se podia ler um apelo por mim... Ruby. Tinha aquele olhar distante e sonhador, o olhar de um homem que se fixara na mulher amada com todas as forças, sabendo que dali a momentos a luz iria desaparecer e ele lhe perderia o rosto, a voz, o cheiro do cabelo e o toque dos lábios numas trevas eternas.

Na verdade, soluçava enquanto pintava, as lágrimas escorriam‑me pelas faces e, quando acabei, sentei‑me no assento da janela com o olhar perdido nos canais, abraçando‑me e chorando como uma criança.

O meu próximo quadro mostrava a amante a receber a terrível notícia. O rosto dela era um esgar de agonia, com as mãos torcendo um lenço e, pendendo dos dedos, um relógio de bolso que ele lhe dera. O mensageiro tinha um ar tão triste como o dela, de cabeça baixa e ombros descaídos.

Pintei os dois quadros com tons ainda mais sombrios e

sempre com o cipreste coberto de musgo em fundo ou de lado. Resolvi pintar os contornos da morte na teia entrelaçada de canais.

 

Quando Paul observou os quadros pela primeira vez, manteve‑se silencioso. Estreitou os olhos e depois aproximou‑se da janela. Observava os nossos belos jardins e sebes na direcção dos canais, aqueles por onde passeáramos outrora de piroga, falando do tipo de homem e de mulher que queriamos ser quando fôssemos adultos a viver por conta própria.

‑ Encerrei‑te num outro tipo de prisão ‑ comentou tristemente. ‑ Fiz uma coisa horrível.

‑ Não, não fizeste, Paul. Apenas tentaste fazer o melhor para a Pearl e para mim. Não te culpabilizes. Não quero ouvir falar disso.

Ele virou‑se com a expressão mais sombria e desalentada que alguma vez lhe vira.

‑ Só queria que fosses feliz, Ruby.

‑ Eu sei ‑ redarguí, sorrindo.

‑ Sinto‑me, porém, como o homem que capturou o belo tordo e o meteu numa gaiola em casa, dando‑lhe a melhor comida e toda a atenção possível. Mesmo assim, ao acordar uma manhã encontrou‑o morto de tristeza, com os olhos virados para a janela,, na direcção da liberdade que conhecera e de que precisava. É verdade. É possível amar‑se de mais.

‑ Não me importo de ser amada de mais ‑ retorqui. - Por favor, Paul. Não quero que estejas triste por nada que eu diga ou faça. Vou deitar fora estes quadros.

‑ Oh, não. São bons... dos teus melhores trabalhos. Não te atrevas! ‑ exclamou. ‑ Vais tornar‑te famosa por causa desta série.

‑ É quase mais importante para ti do que para mim o facto de me tornar uma artista conhecida, não é? ‑ indaguei.

‑ Claro. ”Rebelde artista cajun capta as mentes e fantasias do sofisticado mundo da arte”, - anunciou, traçando títulos no ar.

Ri.

‑ Esta noite podemos oferecer‑nos um belo jantar, um jantar especial e depois ir ouvir um pouco de música afro‑americana. Há uns tempos que não o fazemos ‑ sugeriu.

‑ óptimo.

‑ Oh. Não te contei? ‑ exclamou quando ia a sair. - Comprei mais terreno esta manhã.

‑ Que terreno?

‑ Toda a terra a sul até aos canais. Somos agora os maiores proprietários de Terrebone Párish. Nada mau para dois ratos oriundos dos pântanos, hem? ‑ retorquiu, orgulhoso.

Riu e desceu para dizer a Letty que nos preparasse algo de especial para o jantar. Contudo, antes de descer, recebi um telefonema de Gisselle.

‑ Tenho estado à espera que me telefones para me felicitares pelo meu casamento! ‑ Foi assim que iniciou a conversa.

‑ Parabéns ‑ disse.

‑ Que tom amargo!

‑ Não é. Se o Beau quis casar contigo e tu quiseste casar com ele, desejo‑vos bem‑estar e felicidade.

‑ Voltámos a ser o par mais animado de Nova Orleães, sabes? Toda a gente nos convida para recepções e, sempre que entramos nos restaurantes, todos param de comer e ficam a ver‑nos ocupar o lugar. Somos um casal muito elegante e bastante famoso. Os nossos nomes e retratos aparecem sempre nas páginas sociais. O Beau acha que devemos assistir ao máximo de festas de beneficência. Parece bem e sente‑se a fazer algo importante. Não me importo, só que nem dos nomes das obras me lembro, portanto não me perguntes.

‑ O que faz o Beau? ‑ inquiri, o mais despreocupadamente possível.

‑ Faz? O que queres dizer?

‑ Com a vida dele. Antigamente queria ser médico, lembras‑te?

‑ Oh, agora anda demasiado ocupado a tratar dos meus assuntos. É um homem de negócios e, de qualquer maneira, ganhará mais dinheiro do que se fosse médico. E não me digas que é demasiado novo. Vê como o Paul se saiu bem ‑ apressou‑se a concluir.

‑ Ele costumava falar sobre ajudar pessoas, curar pessoas e de como achava que isso poderia ser compensador ‑ observei tristemente.

‑ E daí? Agora, está a ajudar‑me a mim e a curar‑me, o que também é compensador para ele ‑ ripostou Gisselle. Bom. Vou desligar. Temos tantos sítios onde ir que começo a ficar sem roupa. Marquei um encontro com um estilista. Acho que devo usar modelos originais, não? Tu tens muita sorte, sabes? Os únicos sítios que frequentas são bares e restaurantes vulgares e não precisas de preocupar‑te com a imagem. Dá saudades ao Paul. Adeus. ‑ Despediu‑se e desligou.

Apetecia‑me atirar o auscultador contra a parede, mas engoli em seco o nó de frustração na garganta e pousei‑o devagar. Depois, respirei fundo e fui juntar‑me a Paul, enterrando a voz e as palavras de Gisselle no mais recôndito dos meus pensamentos.

Contudo, uma semana mais tarde, Paul subiu ao meu estúdio para me informar que Beau acabara de telefonar.

‑ Diz que os vossos advogados completaram o trabalho na propriedade e gostaria de se encontrar connosco para examinarmos tudo. Achei que seria conveniente que viessem aqui.

‑ Aqui? Convidaste‑os para Cypress Woods?

‑ Sim. Porquê? Ficaste irritada?

‑ Não, não estou irritada. Eu... Espera até ele falar com a Gisselle ‑ retorqui. ‑ Voltará a telefonar ‑ garanti‑lhe.

Todavia, Beau não voltou a telefonar. Ele e Gisselle estavam a caminho e Beau veria finalmente a sua própria filha.

 

Apareceram no Rolls‑Royce do papá. Estava a podar o jardim das roseiras, fazendo tudo o que podia para me manter ocupada e não pensar. Mrs. Flemming encontrava‑se do outro lado da casa com Pearl. Certificara‑me de que Pearl vestira um dos seus mais bonitos conjuntos e tinha o cabelo escovado e preso com uma fitinha rosa. Mrs. Flemming ignorava, obviamente, quem era de facto Beau, mas pela minha excitação e nervosismo percebeu que se tratava de um visitante especial.

Paul deslocara‑se à fábrica para o que prometera ser apenas uma curta ausência, mas ainda não tinha voltado quando ouvi a buzina do carro e, ao virar‑me, deparei com o luxuoso e familiar automóvel a subir o longo acesso à nossa mansão. Descalcei as luvas e fui cumprimentá‑los.

‑ Onde estão os teus criados? ‑ perguntou Gisselle, arrogante. ‑ Deviam estar presentes quando chegam convidados.

‑ As coisas não são assim tão formais aqui no bayou, Gisselle ‑ contrapus, virando‑me para Beau: ‑ Olá, Beau. Como estás?

‑ óptimo ‑ respondeu. ‑ Isto é... magnífico. As descrições da Gisselle não lhe fizeram justiça ‑ acrescentou, olhando em volta e esboçando um aceno de cabeça. ‑ É um daqueles lugares que tem de se ver pessoalmente para de facto o apreciar. Percebo porque és feliz aqui, Ruby ‑ acrescentou.

‑ Claro que é feliz. Tem uma casa moderna e vive, contudo, no seu adorado pântano ‑ ripostou Gisselle. James apareceu na ombreira da porta. ‑ É o teu mordomo, não é? Como se chama?

‑ James ‑ elucidei.

James ‑ chamou de imediato. ‑ Pode tirar as nossas malas da bagageira? Preciso refrescar‑me assim que possível. A longa viagem e o calor do pântano transformou‑me o cabelo em palha de aço.

James fitou‑me e esbocei um aceno de concordância.

‑ Muito bem, madame ‑ respondeu. Já lhe indicara qual seria o quarto de hóspedes que lhes estava destinado.

‑ Estou ansioso por dar uma volta ‑ pronunciou‑se Beau, de olhos fixos em mim.

‑ Eu já conheço ‑ redarguiu Gisselle. ‑ Portanto, vou já para a nossa suíte. Temos uma suíte, não é verdade?

‑ Claro ‑ repliquei. ‑ Por aqui.

‑ Só vamos ficar uma noite. O Beau trouxe toda a papelada e documentos para assinares, não é, Beau?

‑ Sim ‑ respondeu, sem desviar os olhos de mim.

‑ Quero finalizar o assunto o mais depressa possível para não ter de fazer mais viagens até aos pântanos ‑ prosseguiu Gisselle, censurando Beau com um olhar severo.

‑ Tenho a certeza de que faremos tudo para resolver a questão a contento de todos ‑ comentei.

‑ Pareces mesmo a Daphne. Não parece, Beau? Não te transformes numa mulher rica e snobe, querida irmã ‑ avisou, atirando a cabeça para trás com uma gargalhada. Fitei Beau, que se limitou a esboçar um leve sorriso e a abanar a cabeça.

‑ Muito bem, James. Indique o caminho ‑ ordenou Gisselle, e entrámos todos em casa.

Beau mostrou‑se agradavelmente surpreendido ante o tamanho do átrio da entrada, o trabalho em madeira e os lustres. Quanto mais elogios me tecia sobre a casa, maior se tomava a irritação de Gisselle.

‑ Já estiveste em casas mais bonitas no Garden District, Beau. Não sei porque finges estar tão impressionado.

‑ Não estou a fingir, chérie ‑ protestou num tom meigo. - Há que dar o merecido crédito à Ruby e ao Paul por terem

construído uma casa tão imponente junto ao canal.

‑ Não adoras quando ele fala francês? ‑ inquiriu Gisselle num tom agudo. ‑ De acordo. Admito que é realmente um... barracão ‑ gracejou com uma risada. ‑ James? Onde está ele?

‑ à tua espera com a bagagem no cimo da escada, Gisselle ‑ retorqui com um aceno de cabeça nessa direcção.

‑ Oh! Não tens também uma criada?

‑ Todo o meu pessoal estará á tua disposição ‑ garanti‑lhe. Ela esboçou um trejeito e começou a subir a escada.

‑ É uma bela casa num belo lugar ‑ declarou Beau.

 

Fitámo‑nos durante um momento, com um silêncio mais denso do que nevoeiro tomando forma entre nós.

‑ Vou levar‑te até junto da... Pearl ‑ proferi suavemente.

Os olhos dele brilharam de expectativa. Conduzi‑o até ao jardim onde Mrs. Flemming pusera Pearl a brincar dentro do parque.

‑ Mistress Flemming, este é o meu cunhado Beau Andreas

‑           apresentei.

‑ Como está? ‑ Beau estendeu a mão, de olhos fixos em Pearl.

‑ Prazer em conhecê‑lo ‑ respondeu Mrs. Flemming.

‑ E esta é a Pearl ‑ murmurei.

Beau já avançara até junto dela. Ajoelhou‑se ao lado do parque e ela deixou de andar às voltas com o brinquedo para o observar. Será que alguém tão pequeno e novinho conseguiria reconhecer o verdadeiro pai? Veria algo nos olhos dele, algo de si própria? Contrariamente á análise curiosa de outras pessoas e que logo terminava, estudou Beau, e um pequeno sorriso desenhou‑se‑lhe nos pequenos lábios. Quando ele estendeu os braços para a tirar de dentro do parque, não chorou. Beau beijou‑lhe a face e o cabelo, e Pearl estendeu a mão para lhe tocar no rosto, como se quisesse certificar‑se de que ele não era um sonho.

Não consegui impedir que as lágrimas me subissem aos olhos, mas retive‑as, antes que caíssem. Beau virou‑se para mim com uma expressão radiante.

‑ Ela é bonita ‑ sussurrou. Mordi o lábio inferior e esbocei um aceno de concordância~

Fitei depois Mrs. Flemming que observava a cena com grande interesse e um leve sorriso no rosto. Tive a certeza de que a idade e experiência lhe davam indícios que a confundiam e intrigavam.

‑ Ela gosta muito de si, monsieur ‑ comentou Mrs. Flemming.

‑ Sou perito a lidar com jovens ‑ gracejou Beau, voltando a colocar Pearl no parque. A menina começou imediatamente a chorar, o que provocou uma expressão surpreendida em Miss Flemming.

‑ Então, Pearl ‑ ralhei suavemente. ‑ Quero mostrar a casa ao tio Beau.

Sem mais uma palavra, conduzi‑o na direcção da piscina.

‑ Ruby ‑ exclamou, quando estávamos a uma distância suficiente. ‑ Fizeste uma coisa maravilhosa. Ela é mais bonita do que alguma vez imaginei. Não admira que o Paul goste tanto dela. Parece‑se mesmo contigo.

‑ Não. Tem os teus traços ‑ insisti. ‑ Aqui é a nossa piscina. No próximo mês, o Paul quer construir um court de ténis. Temos um cais junto ao canal, ali ‑ indiquei, apontando. Estava consciente de que apenas conseguiria .reprimir as lágrimas, falando e concentrando‑me noutras coisas. Beau, porém, não me escutava.

‑ Por que razão não batalhei com os meus pais? Porque não fugi também? Devia ter fugido para o bayou contigo e iniciado uma nova vida.

‑ Não digas disparates, Beau. O que irias fazer? Sentar‑te à beira da estrada a vender artesanato comigo?

‑ Teria arranjado um trabalho honesto. Talvez acabasse por trabalhar para a família de Paul ou como pescador de camarão ou...

‑ Quando existe um bebé, uma criança a sustentar, é impossível viver num mundo de fantasia ‑ interrompi, talvez num tom excessivamente duro e cruel. Beau engoliu as palavras sonhadoras e esboçou um aceno de concordância.

‑ Sim, tens razão. Claro.

‑ Queres ver o meu estúdio? ‑ apressei‑me a perguntar.

‑ Claro que quero. Por favor.

Levei‑o até à escada. Enquanto subíamos, tagarelei sobre o negócio de Paul, a forma como alguns políticos tinham andado a cortejá‑lo, não só a nível de contributos, mas para um cargo oficial um dia.

‑ Tens muito orgulho no Paul, não é verdade? ‑ inquiriu Beau junto à entrada do meu estúdio.

‑ Sim, Beau. Ele sempre foi um jovem muito sensato, com um avanço de anos em relação aos outros da sua idade, e é um homem de negócios perspicaz. Mais importante ainda, é dedicado à Pearl e a mim e faria tudo para nos tornar felizes ‑ retorqui, abrindo a porta para o meu estúdio.

‑ Tenho comprado alguns dos teus quadros, sabes? Pu‑los no que é agora o meu escritório ‑ declarou. ‑ Começo todos os dias a olhar algo que é teu.

‑ Como podes ver ‑ disse, ignorando as palavras dele ‑, daqui tenho uma vista maravilhosa dos canais e da propriedade.

Beau olhou através da janela e esboçou um aceno de cabeça.

‑ Agora que vejo para onde olhas diariamente, serei capaz de te imaginar com mais nitidez todas as manhãs.

‑ Esta é a minha série de quadros mais recente ‑ indiquei, fingindo que também não ouvira aquelas palavras. A minha série do soldado da Confederação.

Beau observou os quadros.

‑ São magníficos ‑ elogiou. ‑ Preciso de tê‑los comigo. Toda a série. Quanto?

‑ Ainda não acabei, Beau ‑ disse a rir ‑, e não faço ideia de quanto vão valer. Talvez bastante menos do que imaginamos.

‑ Talvez bastante mais. Quando vais levá‑los a Nova Orleães?

‑ Dentro de um mês ‑ respondi.

‑ Ruby! ‑ exclamou, com tal força e emoção que dessa vez tive de me virar e fixá‑lo. Agarrou‑me nas mãos, que conservou entre as dele. ‑ Preciso de explicar‑te porque me casei com a Gisselle. Tinha de encontrar uma forma de ficar próximo de ti, embora te tivesse perdido. Apesar da forma como se comporta, há momentos calmos, e íntimos em que se parece contigo mais do que imaginas. É uma jovem muito assustada e só, que tenta disfarçar tudo isso com snobismo e egoísmo. No entanto, apenas é egoísta por ter medo de ficar sem nada, sem ninguém que a ame.

”Quando se mostra assim, penso em ti. Sinto que te agarro nos meus braços, confortando‑te, aparando as lágrimas que te correm pelas faces, beijando as tuas pálpebras fechadas. Convenci‑a mesmo a usar os teus perfumes favoritos para que, quando fecho os olhos, te veja somente a ti no meu espírito.

‑ Isso não está certo, Beau.

‑ Eu sei. Agora sei ‑ concordou. ‑ Ela não é estúpida. Também o pressente, mas tem‑se mostrado disposta a entrar no jogo. Até há pouco, quer dizer. Está a... voltar rapidamente ao seu antigo eu, desprendendo‑se das coisas boas que aprendeu e dos hábitos e comportamentos em que melhorara, como se se tratasse de lastro de um navio. Começou novamente a beber de mais, convidando os amigos antigos e devassos para festas pela noite fora..., ‑ Abanou a cabeça. ‑ Não é o que eu pensava que seria. É impossível transformá‑la em ti ‑ confessou, erguendo em seguida os olhos na minha direcção. ‑ Porém, talvez já não tenha de o fazer.

‑ O que pretendes dizer, Beau?

‑ Adquiri um apartamento na Dumaine Street, no French Quarter. A Gisselle desconhece a sua existência. Quero que te encontres comigo lá, quando fores a Nova Orleães.

‑ Beau! ‑ exclamei, desprendendo as mãos das dele e recuando, surpreendida.

‑ Não estou a sugerir nada de terrível, nem sequer de peCaminoso, Ruby. Amamo‑nos. Sei que é verdade e de uma forma total. Sei o tipo de acordo que manténs com o Paul. É um meio‑casamento e estou a contar‑te a verdade sobre a minha vida com a Gisselle. Não podemos deixar esta parte da nossa existência tão vazia. Não podemos viver com esta ansiedade insatisfeita. Por favor, Ruby, por favor, vem para mim ‑ suplicou.

Fiquei silenciosa por momentos. As imagens que a proposta acordavam na minha imaginação aturdiam‑me. Ir até ele e lançar‑me nos seus braços, encostar‑me ao seu corpo e sentir os lábios sobre os meus, ouvir as ternas palavras de amor e escutar o bater do coração, atingir novamente o êxtase que tínhamos conhecido... parecia‑me para lá de todas as possibilidades, mesmo para lá do sonho.

‑ Não posso ‑ sussurrei. ‑ O Paul ficaria...

‑ Ele não precisa de saber. Tomaremos as medidas perfeitas. Ninguém saírá magoado, Ruby. Há dias que ando a planear tudo. Tem‑me ocupado o pensamento. Ontem, quando fiquei com o apartamento no French Quarter, sabia que podíamos, sabia que tínhamos de o fazer. Virás? Virás?

‑ Não ‑ recusei, avançando para a porta. ‑ Não podemos. ‑ Sacudi a cabeça. ‑ Vamos descer. O Paul já deve ter chegado ‑ salientei.

‑Ruby!

Saí do estúdio e comecei a descer as escadas, fugindo das minhas próprias tentações. Por fim, Beau seguiu‑me. Esperei por ele ao fundo da escada.

‑ Ruby! ‑ voltou a pronunciar num tom calmo e sensato.

‑           Se...

‑ Ora, aqui estão! ‑ ouvimos dizer, ao mesmo tempo que avistávamos Paul e Gisselle, vindos do pátio.

‑ Fui mostrar o meu estúdio ao Beau ‑ apressei‑me a justificar.

‑ Oh! ‑ retorquiu Paul, semicerrando os olhos ao fitar Beau. Beijou‑me na face. ‑ Viste a nova série dela? ‑ quis saber, observando‑me com uma expressão sombria.

‑ É fantástica! ‑ admitiu Beau. ‑ Já me ofereci para comprar tudo, mas ela respondeu astutamente que ainda é demasiado cedo para indicar um preço ‑ acrescentou com uma gargalhada.

‑ Pagaste demasiado pelos que tens ‑ censurou Gisselle.

‑           Ela não é uma artista famosa.

‑ Oh, mas será ‑ garantiu‑lhe Paul. ‑ E vais ficar muito orgulhosa dela, tanto como eu estou ‑ acrescentou, fitando‑me.

‑ Passemos ao negócio ‑ impacientou‑se Gisselle. - Longe de mim querer mais uma volta pelos pântanos.

‑ Ah! Mas nunca deste verdadeiramente uma volta pelos

pântanos, Gisselle ‑ contrapôs Paul. ‑ Por favor, deixa que te leve no barco a motor e te mostre a beleza dos canais.

‑ O quê? Referes‑te a ir para ali? ‑ retorquiu com um aceno de cabeça na direcção do pântano. ‑ Seria comida viva.

‑ Temos uma coisa para pôr no rosto e braços que afastará todos os insectos ‑ prometeu Paul. ‑ Tens de ser uma turista, apenas por algum tempo. Insisto em impressionar‑te.

‑ Gostaria realmente de o fazer ‑ pronunciou‑se Beau.

‑ Então, está combinado. Logo a seguir ao almoço, iremos dar uma volta pelos canais. Entretanto, vamos até ao meu escritório para resolver os assuntos legais.

‑ óptimo ‑ concordou Beau, avançando e dando o braço a Gisselle. Agradada, ela pôs‑se a andar para casa e Paul fitou‑me.

‑ Estás bem? ‑ perguntou num tom terno.

‑ Sim. Está tudo bem ‑ respondi.

‑ Perfeito. ‑ Deu‑me o braço, e seguimo‑los.

Gisselle iniciou a reunião declarando que achava que tudo o que estava em Nova Orleães devia ficar para ela.

‑ O Beau e eu estamos dispostos a negociar outras propriedades e bens que são de... qual é a palavra, Beau?

‑ Valor comparável ‑ ajudou.

‑ Sim, valor comparável.

‑ Ruby? ‑ inquiriu Paul.

‑ Para mim não é problema. Neste momento, não tenho interesse de ser proprietária de nada em Nova Orleães.

‑ A Daphne, ou melhor, o papá tinha comprado blocos de apartamentos noutros sítios. Somos grandes proprietários, não é verdade, Beau?

‑ O conjunto é bastante imponente ‑ concordou, apresentando as primeiras páginas dos documentos. ‑ Estão aí citados todos os bens com os valores calculados. Esta terra do lago Pontchatrain é verdadeiro ouro.

Paul inclinou‑se e estudou a lista. A conversa não tardou a processar‑se apenas entre os dois. Gisselle tirou uma lima da mala e começou a tratar das unhas, enquanto falávamos. Não tinha o mínimo interesse em tornar‑me proprietária e estava totalmente disposta a vender as acções.

‑ E o Bruce? ‑ indaguei, passado algum tempo.

‑ Não tivemos notícias dele nem do advogado, desde que este falou com os nossos. Acho que ele percebeu que somente desperdiçaria o que quer que tenha conseguido se se metesse em processos legais.

‑ Continua em Nova Orleães?

‑ Sim. Tem um bloco de apartamentos e mais uns bens, mas nada que se assemelhe à fortuna que podia ter herdado, se a Daphne não tivesse previsto essa possibilidade, que anulou por intermédio dos advogados.

‑ Mas porquê? ‑ interroguei‑me em voz alta. ‑ Ela não queria certamente que o dinheiro e as propriedades fossem parar‑nos às mãos ‑ retorqui, olhando para Gisselle num pedido de concordância.

‑ Disso não duvido ‑ redarguiu.

‑ Talvez... tivesse medo do Bruce ‑ sugeriu Beau.

‑ Medo? De quê? ‑ interferiu Paul.

‑ Medo de que, se ele pudesse lucrar com a morte dela, pudesse... como direi, acelerar‑lhe a morte?

Todos ficaram silenciosos por momentos, até mesmo Gisselle, enquanto ponderávamos as palavras de Beau.

‑ Ela sabia com que tipo de homem casara e as coisas que ele era capaz de fazer ‑ prosseguiu Beau. ‑ Descobrimos algumas das trapaças deles antes da morte do Pierre. Havia documentos forjados, papéis falsos... uma série de embustes...

‑ Portanto, o Bruce não tem nada que não mereça ‑ rematou Paul.

Beau e ele continuaram a examinar os pormenores dos bens. Gisselle, que exigira que a reunião se efectuasse de imediato, começou a ficar mais nervosa. Por fim, decidimos fazer uma pausa para almoço.

Comemos no pátio. Paul manteve Beau interessado com a sua conversa relativa a política e petróleo, e Gisselle tagarelou sobre várias das antigas amizades, as coisas que compravam, os lugares onde tinham ido. Quando Mrs. Flemming trouxe Pearl à nossa presença, sustive a respiração, esperando que Gisselle fizesse algum comentário embaraçoso; no entanto, controlou‑se e foi perfeita no seu papel de tia, deliciando‑se com a sobrinha.

‑ Vou esperar para ter filhos ‑ declarou. ‑ Sei o que pode fazer‑nos ao corpo e ainda não estou preparada. O Beau e eu estamos completamente de acordo a esse respeito, não estamos, Beau?

‑ O quê? Oh, claro, chérie.

‑ Diz qualquer frase romântica em francês, Beau. Como costumavas fazer, quando passeávamos junto às margens do Sena. Por favor.

Ele fitou‑me e em seguida obedeceu.

‑ Sempre que entravas numa sala, mon couer battait la chamade.

‑ Oh, que maravilha! Oque significa isso, Beau?

Os olhos dele voltaram afixar‑me por um instante e depois sorriu a Gisselle e traduziu:

‑ Sempre que entravas numa sala, o meu coração começava a bater loucamente.

‑ Vocês, os Cajuns, têm algumas expressões francesas de amor? ‑ indagou ela.

‑ Algumas ‑ retorquiu Paul. ‑ Mas o nosso sotaque é tão diferente que provavelmente não compreenderias. Bom. E quanto à nossa volta pelo pântano? Pronta?

‑ Nunca estarei pronta para uma coisa dessas ‑ queixou-se Gisselle.

‑ Vais ficar fascinada, mesmo que não queiras ‑ garantiu Paul.

‑ Não tenho nada que vestir. Não quero ficar com as minhas roupas manchadas de lama e lodo dos pântanos.

‑ Tenho umas calças velhas que te servem, Gisselle - ofereci. ‑ E umas velhas camisas. Anda. Vamos aprontar‑nos.

Lamentou‑se durante todo o tempo em que subimos a escada, mudámos de roupa no quarto e voltámos a descer. Paul tinha um repelente de insectos para que ela espalhasse no rosto e nas partes expostas dos braços e pescoço.

‑ E se ficar com uma alergia por causa disto? ‑ choramingou.

‑ Nem pensar. É uma velha receita cajun.

‑ O que contém? ‑ exigiu saber.

‑ É melhor ignorares ‑ retorquiu Paul sabiamente.

‑ Este cheiro é horrível!

‑ Por isso afastará os insectos ‑ replicou Beau.

‑ E os demais.

Rimos e, depois de Gisselle se ter besuntado devidamente, fomos até ao barco. Beau sentou‑se entre mim e Gisselle.

‑ Laissez les bons temps rouler! ‑ disse Paul. ‑ Deixai rolar os bons tempos!

Gisselle gritou quando nos afastámos do cais; porém, minutos depois, mostrou‑se calma e interessada. Paul chamou a atenção para as cobras‑verdes, o movimento dos aligatores, as lontras, as aves e as belas madressilvas que cobriam as margens dos canais. Era um guia maravilhoso e a voz revelava o amor que sentia pela vida que habitava o bayou. Desligou o motor e passámos sobre águas salobres, observando os ratos‑almiscarados a construir as suas casas de erva seca. Apontou para uma cobra‑boca‑de‑algodão que apanhava sol numa rocha, com a cabeça triangular da cor de uma moeda antiga.

O esvoaçar dos patos selvagens à tona de água prendeu‑nos a atenção e, momentos depois, um grande e velho aligátor levantou a cabeça e observou‑nos, libélulas esvoaçando em círculo por cima dele. Flutuámos através de ilhas de nenúfares e sob os ciprestes. Beau interrogava permanentemente Paul sobre a vegetação, os animais, a forma de interpretar os canais e saber o que esperar.

Gisselle viu‑se forçada a admitir que apreciara o passeio.

‑ Foi como andar de barco através de um jardim zoológico ou coisa assim ‑ retorquiu. ‑ Mas, de qualquer maneira, anseio por tomar banho e livrar‑me deste cheiro estranho.

Depois, vestimo‑nos para jantar. Bebemos cocktails na biblioteca, onde Paul e Beau discutiram a política de Nova Orleães e Gisselle descreveu as novas modas e os modelos originais que encomendara para si. Letty preparou uma das suas refeições especiais e Beau expressou o seu apreço. Todos bebemos bastante vinho e falámos sem cessar, Paul, Beau e eu própria preenchendo todos os silêncios mais por nervosismo do que outra coisa, segundo me apercebi. Apenas Gisselle parecia descontraída e à vontade.

Depois do jantar, tomámos licores na sala de estar. O vinho, a boa comida, o interminável fluxo de conversa e a tensão emocional esgotaram‑nos. Até mesmo Gisselle começou a bocejar.

‑ Devíamos ir dormir e levantarmo‑nos cedo ‑ sugeriu.

‑ Cedo? ‑ surpreendeu‑se Beau. ‑ Tu?

‑ Bom, o mais cedo possível para podermos terminar a papelada e voltar a Nova Orleães. Temos esse baile de beneficência amanhã à noite. De smoking ‑ acentuou. ‑ Vais alguma vez a recepções de smoking, Paul?

Paul corou.

‑ Bom, só em Baton Rouge, na mansão do governador - respondeu.

‑ Oh! ‑ exclamou Gisselle com uma expressão sombria. - Sinto‑me cansada, Beau. Comi de mais.

‑ Vamos subir já. Obrigado por um dia maravilhoso e uma noite inesquecível ‑ agradeceu, dando o braço a Gisselle, que cambaleou um pouco.

‑ Boa noite ‑ entoou, deixando que Beau a guiasse até à escada. Paul abanou a cabeça e riu. Depois voltou a sentar‑se.

‑ Concordas com estas decisões? Não quis interferir nos teus assuntos ‑ retorquiu.

‑ Os meus assuntos são os teus, Paul. Dependo por completo de ti neste tipo de coisas. Tenho a certeza de que fizeste as opções certas.

Sorriu.

‑ Se o Beau pensava que viria aqui para lidar com um estúpido cajun, teve uma grande surpresa. Acredita‑me que nos saímos melhor do que eles ‑ acrescentou com uma invulgar arrogância. ‑ Esperava que ele fosse um... um... ‑ sorriu - um desafio maior! Portanto ‑ concluiu, recostando‑se ‑, como estão as coisas para vocês os dois, agora?

‑ Paul, por favor.

‑ Um acidente de nascimento ‑ murmurou. ‑ Uma praga. Se o meu pai não tivesse vagueado pelo pântano, se não tivesse atraiçoado a minha mãe...

‑Paul...

‑ Eu sei. Desculpa, só que me parece tão injusto. Devíamos ter uma palavra em tudo isto, não? Como espíritos, antes de nascermos, devíamos ter tido uma palavra. E não rias, Ruby ‑ avisou. ‑ A tua grandmére Catherine acreditava que o espírito estava aqui antes do corpo.

‑ Não estou a rir, Paul. Só que não quero ver‑te nessa agonia. Estou bem. Bebemos de mais. Vamos dormir também.

Ele concordou com um aceno de cabeça.

‑ Vai subindo ‑ disse. ‑ Quero acabar umas coisas no escritório.

‑Paul...

‑ Vou daqui a pouco. Prometo. ‑ Beijou‑me na face e agarrou‑me durante um longo momento. Depois, suspirou, virou costas e afastou‑se rapidamente.

Subi com um peso no coração. Fui ver como estava Pearl e depois dirigi‑me para o meu quarto com o intuito de dormir, sabendo que nos quartos ao meu lado havia dois homens que ansiavam por estar ao meu lado. Sentia‑me qual fruto proibido, interditado pela lei ética, religiosa e escrita. Há anos atrás, os meus pais apenas tinham escutado os ditames do coração. Apesar das proibições e do peso dos pecados que cometeriam, avançaram ao encontro um do outro, pensando no mútuo toque dos dedos e suavidade dos lábios.

Seria feita de uma fibra moral mais forte? E, mais importante, quereria eu que assim fosse? Ou desejaria lançar‑me nos braços do meu amante e embriagar‑me a tal ponto de amor que nada teria importância, nem a manhã seguinte, os dias seguintes e as noites cheias de vozes fantasmagóricas?

A culpa não era nossa; não podia ser nossa a culpa de estarmos apaixonados e de os acontecimentos terem tomado esse amor pecaminoso. ”Os acontecimentos é que foram pecaminosos”, disse de mim para mim. Só que esse pensamento não facilitava o alvorecer do dia nem a angústia que inevitavelmente se seguiria.

 

FRUTO PROIBIDO

Embora Gisselle tivesse expressado o desejo de acordar cedo para concluir os nossos negócios e regressar a Nova Orleães, Paul, Beau e eu já estávamos sentados à mesa a tomar café quando ela apareceu finalmente, gemendo e lamentando‑se sobre a noite agitada.

‑ Passei a noite com pesadelos em que essas criaturas que vimos nos pântanos entravam na nossa casa e se esgueiravam pelas escadas até ao meu quarto e à minha cama! Sabia que não devia ter ido nessa viagem de barco pelos canais. Agora, levarei meses a tirar essas imagens da minha cabeça. Ui! - exclamou, ao mesmo tempo que um calafrio lhe percorria o corpo.

Paul riu.

‑ Francamente, Gisselle! Julguei que seria mais preocupante para ti viveres numa cidade com toda essa criminalidade nas ruas. Pelo menos, as nossas criaturas são previsíveis. Se tentares domesticar uma boca‑de‑algodão, ela dá‑te a resposta imediata.

Beau também riu.

‑ Pode ser divertido para vocês, homens, mas as mulheres são mais delicadas, mais frágeis. Pelo menos as mulheres de Nova Orleães ‑ redarguiu, olhando‑me ao ver que não acorria em sua defesa. Em seguida declarou que estava demasiado cansada para comer muito. ‑ Vou só beber café ‑ disse.

Pela nossa parte, comemos um belo pequeno‑almoço, depois do que nos dirigimos ao escritório e acabámos o trabalho da papelada. Assinei os documentos que tinham de ser assinados e Beau prometeu que nos manteria a par de todos os procedimentos.

Beau quis ver Pearl antes de se ir embora e levei‑o até ao quarto dela. Mrs. Flemming acabara de a mudar, escovara‑lhe o cabelo e prendera‑o com uma fitinha cor‑de-rosa. Sem uma palavra, Beau pegou em Pearl e beijou‑lhe os caracóis. A menina mostrou‑se intrigada com o cabelo dele e quis passar‑lhe os dedos por cima.

‑ Ela é muito inteligente ‑ declarou Beau, sem deixar de a fitar enquanto falava. ‑ Pode ver‑se pela forma como observa as coisas... como lhe prendem a atenção.

‑ Concordo ‑ replicou Mrs. Flemming.

‑ Leva‑a connosco para baixo, Beau. Ela vai despedir‑se com o Paul e comigo ‑ indiquei. Ele esboçou um aceno de concordância; saímos do quarto e descemos as escadas. Gisselle já atravessara a porta da frente e avisava James que tivesse cuidado com a mala dela.

No terraço, Beau estendeu‑me Pearl e apertou a mão a Paul.

‑ Obrigado por nos convidarem. Foi um dia muito interessante. Devo confessar que aprendi muito sobre os canais e passei a respeitá‑los ainda mais.

‑ São sempre bem‑vindos ‑ redarguiu Paul, com um rápido olhar na minha direcção e um leve sorriso nos lábios.

- Beau! Vamos ficar eternamente aqui a despedir‑nos? Está a ficar nevoeiro e calor, e os insectos voam do pântano para a casa ‑ gritou Gisselle do carro.

‑ É melhor ir andando ‑ afirmou.

Paul esboçou um aceno de cabeça e baixou‑se para dar um beijo de despedida a Gisselle.

‑ Obrigado por uma visita maravilhosa ‑ agradeceu‑me Beau.

Agarrou‑me na mão e inclinou‑se para me beijar na face, mas em vez disso roçou os lábios pelos meus. Quando retirou a mão, deixara um pequeno pedaço de papel na minha. Ia a perguntar‑lhe do que se tratava quando os olhos dele me transmitiram a mensagem. Por momentos, senti‑me como se tivesse um fósforo aceso na mão. Olhei de relance para Paul e Gisselle e depois enfiei o pedacinho de papel no bolso da blusa. Beau beijou Pearl na face, desceu apressadamente as escadas e meteu‑se no carro.

- Mais uma vez obrigado ‑ agradeceu.

‑ Adeus. Venham fazer‑nos uma visita à civilização quando tiverem oportunidade ‑ disse Gisselle. ‑ Para casa, James - acrescentou com um aceno para a auto‑estrada e riu. Beau abanou a cabeça, sorriu‑nos de novo e ligou o motor.

‑ A tua irmã é terrível... ‑ declarou Paul. ‑ Não invejo nada o Beau pelo facto de viver com ela. Noutras coisas, invejo‑o mais do que alguma vez virá a saber. ‑ Fitou‑me um momento, mas desviei os olhos com uma expressão culpada.  - Bom. Tenho de ir trabalhar ‑ disse. Beijou‑me, a mim e a Pearl. e depois dirigiu‑se ao seu carro com passo rápido.

Mrs. Flemming retirou Pearl dos meus braços quando entrei em casa. Não me apetecia muito pintar, mas a calma solidão que encontrava no estúdio acenava‑me simpaticamente. Subi as escadas com passo lesto e fechei a porta. Fiquei um momento encostada à porta, de olhos fechados, relembrando o instante lá em baixo em que Beau encostara os lábios aos meus para um rápido beijo de despedida. Observara‑lhe os olhos e vislumbrara o amor.

O coração batia‑me com força no peito quando retirei o bilhete do bolso e o desdobrei. Havia simplesmente uma morada, uma data e uma hora. O dia era terça‑feira da semana seguinte. Amarrotei o bilhete e ia lançá‑lo no cesto dos papéis por baixo do cavalete; tal como se tivesse cola, sentia‑o grudado na minha mão.

Devolvi‑o ao bolso da minha blusa e tentei esquecê‑lo quando comecei a trabalhar, porém, decorridos alguns minutos, era como se o papel aquecesse e emitisse um frêmito de antecipação para um seio e depois para o outro. Como se os dedos de Beau e os seus lábios se encontrassem ali. A pulsação acelerou e fiquei sem fôlego. Sentia‑me incapaz de trabalhar; não conseguia concentrar‑me noutra coisa.

Por fim, desisti e fui até ao assento junto à janela. Deixei‑me ficar perto de uma hora de olhar perdido nos canais, observando o voo das garças. Com dedos trémulos, voltei a tirar do bolso o bilhete de Beau e examinei a morada, memorizando‑a juntamente com a data. Depois meti o papel numa gaveta do meu armário de material. Fui incapaz de o deitar fora.

Paul não veio almoçar a casa. Trabalhei um pouco, mas, na maior parte do tempo ouvi vozes contraditórias na minha mente. Uma delas era mais suave, suplicante, tentadora, procurando convencer‑me de que merecia o afecto de Beau e que o nosso amor era demasiado bom e puro para poder ser sujo ou culposo.

 

No entanto, a segunda voz era mais dura, amarga, cortante, lembrando‑me a dor que poderia causar a Paul, que nutria uma inabalável e total dedicação por Pearl e por mim. ”Pensa nos sacrificios que tem feito pela tua felicidade”, dizia a voz.

”Mas isso é mais um motivo para manter secreto o meu encontro com Beau”, retorquia a minha voz mais suave.

Enganar!

”Não, não é enganar, quando se trata de proteger alguém que nos ama e impedir que sofra.”

”Estás, contudo, a ser ardilosa, a mentir e a esconder. O Paul seria capaz de fazer o mesmo?”

”Não, mas tu e o Paul concordaram que nenhum se interporia no caminho do outro, se um de vocês encontrasse alguém a quem amar. O Paul está perturbado e frustrado, mas é compreensivo e não quer fazer nada que te torne infeliz ou te impeça de seres feliz.”

”Mas...”

”Oh! Pára com os ”mas” e os ”ses””, disse de mim para mim.

Pus o pincel de lado e saí do estúdio, onde a solidão apenas encorajava a luta entre os dois ”eu”. Dei uma volta pela casa e terrenos e depois, impulsivamente, entrei de novo, fui à procura de Pearl e Mrs. Flemming, comunicando a esta que ia levar Pearl a dar um passeio.

Coloquei‑a na cadeirinha no assento do carro ao meu lado e conduzi até á velha cabana da grandmére Catherine. Estava um dia bastante encoberto e a brisa do Sudoeste ameaçava trazer nuvens de chuva.

‑ Lembras‑te deste sítio, Pearl? ‑ perguntei, tirando‑a para fora e levando‑a na direcção da varanda.

As ervas daninhas haviam crescido e a minha banca á beira da estrada estava cheia de teias de aranha. Ouvi ratos‑do‑campo a correrem pela casa à procura de esconderijos quando pressentiram a minha aproximação e se aperceberam dos meus passos nas tábuas da varanda. A porta rangeu nos gonzos quando a abri e entrei no que agora me parecia uma divisão muito pequena. ”Curioso”, pensei. ”Quando cresci aqui, era este o meu mundo e aos meus olhos parecia‑me imenso. Agora, tenho roupeiros maiores do que a sala de estar e a Letty tem uma copa maior do que esta cozinha.”

Percorri a casa, esperando que o meu regresso chamasse o espírito da grandmère Catherine e recebesse algum conselho dela. ”Se, ao menos, me chegasse um sinal, um presságio”, pensei. Mas a cabana estava vazia e deserta e os meus passos ecoavam. Era um Sítio de onde os corpos há muito se tinham ausentado. As minhas próprias memórias pareciam desenquadradas, pois deixara de haver calor, música, o cheiro a gumbo e vozes; reinava o vazio à excepção do som do vento que fazia embater as tábuas soltas umas nas outras e soprava no telhado de zinco, dando a sensação de que era percorrido por um bando de tordos ou gaios nervosos.

Saí pelas traseiras e observei o canal.

A mamã costumava brincar aqui, Pearl. A mamã costumava passear ao longo dessa margem e olhar os animais e os peixes, até mesmo os aligatores e tartarugas. às vezes, os veados vinham comer a relva aqui nas traseiras, levantavam a cabeça e fitavam‑me com olhos tristes.

 

Pearl observava tudo com uma expressão maravilhada. Parecia dar‑se conta dos meus sentimentos meditativos e estava mais sossegada que o habitual. Depois e como se tivesse ouvido as minhas palavras, uma pequena corça surgiu de trás de uns arbustos e ergueu a cabeça para nos fitar. Pearl arregalou os olhos, interessadíssima. A bonita corça mantinha‑se quieta como uma estátua e só as longas orelhas se agitavam de vez em quando. Mesmo quando Pearl soltou uma expressão entusiasmada, limitou‑se a observar‑nos com mais curiosidade e sem medo. Decorridos uns momentos e tão casualmente como tinha surgido, virou‑se e desapareceu, qual aparição.

Era um mundo que continha coisas puras e inocentes e assim permaneceriam se as deixassem em paz, reflecti. No entanto, raramente as deixavam em paz. Ainda andei um bocado pela cabana, mas fui‑me embora, concluindo que havia um único lugar onde procurar a resposta para o meu dilema e esse lugar era o meu próprio coração.

Uns dias mais tarde, ao jantar, Paul disse‑me que precisava de deslocar‑se a Dalías, no Texas.

‑ Terei de ausentar‑me durante três dias ‑ explicou.

Gostaria que a Pearl e tu viessem comigo. Também podes obviamente trazer mistress Flemming. Excepto se tiveres outros planos, claro ‑ acrescentou.

‑ Bom. Estava a planear levar esta ultima série de quadros, a do soldado, a Nova Orleães. Já falei com o Dominique sobre ela e os meus outros trabalhos e ele acha que chegou a altura de organizar uma exposição. Quer convidar alguns dos seus melhores clientes e fazer montes de publicidade.

‑ Isso é maravilhoso, Ruby.

‑ Não me parece que esteja preparada para uma exposição do género, mas...

‑ Nunca vais considerar‑te preparada, mas se o Dominique considera, por que não?

Esbocei um aceno de concordância e brinquei por momentos com o guardanapo.

‑ Portanto, acho que irei a Nova Orleães enquanto estás em Dalías ‑ repliquei. ‑ Fico apenas uma noite.

‑ Ficas com a Giselle? ‑ inquiriu.

‑ Prefiro não o fazer ‑ redargui. ‑ Provavelmente decido‑me pelo Fairmont.

‑ óptimo.

Entreolhámo‑nos. Paul saberia o que me ia no coração? Sempre fora difícil ocultar‑lhe os meus verdadeiros sentimentos e pensamentos. Se sabia, optou por nada dizer. Sorriu e virou‑se para Pearl. Odiava fazer algo que considerava uma traição, mas a minha voz mais suave ganhara ao dizer que estava a impedir que Paul fosse magoado.

Teve de partir cedo no dia em que viajou até Dalías. Depois de me levantar, fiz as malas e desci para tomar o pequeno‑almoço. James ajudou‑me a arrumar os quadros cuidadosamente na mala do carro e depois Mrs. Flemming trouxe Pearl até cá fora para ficar a dizer‑me adeus, quando me afastei.

 

Olhei pelo retrovisor e vi‑as ali de pé... Mrs. Flemming e a minha bela filha. Um amor que a havia gerado não podia de forma alguma ser mau, reflecti, e esse pensamento deu‑me coragem. Momentos depois, tomei pela auto‑estrada e acelerei, tirei a fita do cabelo e deixei que o vento agitasse as madeixas, fazendo‑me sentir livre, viva e cheia de entusiasmo.

‑ Vou a caminho, Beau ‑ sussurrei. ‑ Que se dane tudo o mais. Vou ter contigo.

 

Estava um dia maravilhoso em Nova Orleães. As nuvens e a chuva que haviam varrido a noite anterior há muito que tinham desaparecido para dar lugar a um enorme céu azul‑claro semeado de pequenos farrapos macios de grande brancura.

Mal estacionei em frente do hotel e o porteiro saiu apressadamente ao meu encontro, senti o aumento de ritmo, o que sempre me acontecia na cidade. Tal facto, juntamente com o meu nervosismo acrescido, tornava‑me sensivel a todos os sons e a todos os novos cheiros.

Quando entrei no hotel, pareceu‑me que todos me olhavam e que os saltos dos meus sapatos soavam demasiado alto no chão de mármore. Dera ordens para que me levassem tudo para o quarto e depois sentei‑me diante do toucador e escovei o cabelo. Acentuei o báton dos lábios e resolvi escovar os dentes.

Vi‑me forçada a rir de mim própria. Comportava‑me como uma adolescente prestes a ir ao seu primeiro encontro, mas O ritmo do meu coração não minorou e o rubor das faces manteve‑se. Detectei a expressão frenética e assustada dos meus olhos e interroguei‑me sobre se mais alguém me fitara e adivinhara que eu era uma mulher a caminhar sobre uma corda bamba de emoções, uma mulher casada prestes a encontrar‑se com o ex‑amante.

Consultava incessantemente o relógio. Mudei três vezes de fato, antes de decidir que a roupa que escolhera primeiro era a melhor. Chegou por fim a hora de sair. Os meus dedos tremeram ao rodar a maçaneta da porta. Respirei fundo e depois caminhei a toda a pressa na direcção do elevador.

Resolvera que faria a pé o percurso até ao lugar do nosso encontro. Canal Street apresentava a agitação e o bulício de sempre, mas o facto de me dissolver no meio da multidão que a atravessava e caminhar rapidamente para o French Quarter ajudava‑me. Era como se me mantivessem em movimento, me mantivessem de pé. Virei na Burbom Street e avancei para Dumaine.

Os pregoeiros já se encontravam em plena actividade e anunciavam as mercadorias, incitando os turistas a entrar nos seus restaurantes ou bares. Chegaram‑me cheiros a lagostins cozidos, pão cozido de fresco e café forte. Os vendedores exibiam os frutos e legumes nos passeios. Numa esquina em que o restaurante dava para a rua, entrou‑me pelas narinas o cheiro a camarão salteado e o meu estômago deu sinal. Não comera um lauto pequeno‑almoço e sentira‑me demasiado nervosa para almoçar. De um café vinha o som de uma banda de jazz e, ao olhar através da porta aberto de outro, avistei quatro homens de chapéu de palha que tocavam guitarra, bandolim, violino e acordeão.

 

Pairava sempre ali um clima de excitação. Era como se se realizasse uma grande e permanente festa. As pessoas tinham uma sensação de lassidão. Comiam demasiado, bebiam demasiado, dançavam e cantavam demasiado e até demasiado tarde. Era como se tivesse passado de um mundo de responsabilidade e obrigações para um mundo sem restrições, leis ou normas. Tudo se processava desde que fosse agradável. ”Não admira que o Beau tivesse escolhido o French Quarter”, pensei.

Cheguei finalmente à morada que ele escrevera no bilhete. O apartamento situava‑se num prédio de estuque de dois andares com um pátio empedrado. Todos os apartamentos tinham pequenas varandas de ferro forjado com vista para a rua. Senti o aroma da hortelã que crescia pelas paredes. Era um prédio tranquilo, distante das outras ruas e, contudo, apenas a alguns passos, caso os locatários quisessem participar na agitação citadina. Hesitei.

Talvez ele não estivesse. Talvez também tivesse pensado duas vezes sobre o assunto. Não vi indícios de ninguém nas janelas. As cortinas não se mexiam. Respirei fundo e olhei para trás. Se me fosse embora, seria mais feliz ou ficaria a interrogar‑me para sempre sobre o que teria acontecido se entrasse no prédio de apartamentos e me encontrasse com Beau? Talvez apenas conversássemos, pensei. Talvez fôssemos ambos sensatos.

Fechei os olhos, à semelhança de alguém prestes a mergulhar numa piscina, e entrei no pátio. Depois abri‑os e transpus a porta da frente. Verifiquei os números na entrada e subi as pequenas escadas até um estreito patamar. Quando encontrei a porta fiz uma pausa, respirei fundo outra vez e bati.

Durante uns momentos não ouvi nada e comecei a pensar que ele não estava. Mudara talvez de opinião. Senti um misto de alívio e de desilusão. Aquela parte de mim que tentara afastar‑me incitava‑me a virar costas e fugir, a regressar a correr ao hotel; mas a outra parte de mim, a parte que ansiava por um amor total, enchia‑me de um tal desalento que julguei que o coração ia transformar‑se em pedra e desfazer‑se no meu peito.

Dispunha‑me a virar as costas quando a porta se abriu e avistei Beau ali, de pé. Vestia uma macia camisa de algodão branco e calças azul‑escuras da mais fina lã. Pestanejou como que a tentar focar o olhar e convencer‑se de que eu me encontrava de facto ali.

‑ Ruby! ‑ exclamou ternamente. ‑ Desculpa. Devo ter adormecido na cadeira, a sonhar contigo. Julguei que não vinhas.

‑ E quase não vim, mesmo depois de ter descoberto a morada ‑ retorqui.

‑ Mas estás aqui. Vieste. Entra, por favor.

Recuou e entrei no pequeno apartamento. Tinha um único quarto, uma cozinha mínima e uma sala de estar com portas que davam para a varanda. O mobiliário e a decoração eram muito simples e modernos, com aquele ar pouco usado que se vê nos hotéis. As paredes estavam praticamente nuas, à excepção de pequenas gravuras com frutos e flores a espaços.

- Não é muita coisa ‑ observou, acompanhando o meu olhar. ‑ Apenas um refúgio tranquilo.

‑ É diferente. Só precisa de um pouco de calor.

Beau nu.

- Sabia que o verias de imediato com os teus olhos de artista. Senta‑te ‑ convidou, indicando o pequeno sofá. - Fizeste boa viagem até à cidade?

‑ Sim. Estou a tornar‑me uma viajante sofisticada ‑ redargui.

 

Estávamos curiosamente a portar‑nos como se aquele fosse o nosso primeiro encontro; no entanto, ele... ele era o pai da minha filha. Todavia, o tempo, a distância e os acontecimentos tinham‑nos tornado estranhos um para o outro.

‑ Estás só? ‑ inquiriu, cauteloso.

‑ Sim. Instalei‑me no Fairmont. Vou levar a minha nova série de quadros ao Dominique. Ele tem andado a falar na exposição que quer fazer com as minhas obras.

‑ óptimo. Mas aviso‑te que não vou permitir que outra pessoa compre esses quadros. Tenciono adquiri‑los, independentemente do preço ‑ jurou, e eu ri‑me. ‑ Queres beber alguma coisa fresca? Tenho vinho branco gelado.

‑ Por favor ‑ acedi, e ele dirigiu‑se à cozinha.

‑ O Paul sabe, portanto, que vieste a Nova Orleães? - perguntou, enquanto servia o vinho.

‑ Oh, claro. Foi a Dalías por causa de umas reuniões de negócios.

‑ E o bebé? ‑ quis saber Beau, quando voltou.

‑ Ficou com Mistress Flemmiing. Ela é fantástica para a Pearl.

‑ Eu vi. Tiveste sorte em arranjar alguém como ela hoje em dia. ‑ Estendeu‑me o meu copo de vinho e sorvi um gole enquanto ele também bebia e nos fitávamos por cima da borda dos copos. ‑ Nunca estiveste tão bonita, Ruby ‑ elogiou meigamente. ‑ A maternidade fez‑te desabrochar.

‑ Tive sorte, Beau. Podia ter‑me tornado uma mulher a lutar por uma magra sobrevivência no bayou... até a minha herança chegar, quer dizer.

‑ Eu sei ‑ redarguiu ele. ‑ Ruby, há alguma forma de compor as coisas aos teus olhos? Alguma desculpa que te pareça aceitável?

‑ Já te disse antes, Beau. Não te censuro por nada.

‑ Bom, mas devias. Quase destrui as nossas vidas ‑ redarguiu, bebendo mais um gole de vinho e sentando‑se depois ao meu lado.

‑ Onde está a Gisselle? ‑ perguntei.

‑ Em qualquer festa com os velhos amigos, tenho a certeza. Mostrou‑se diferente por uns tempos, sobretudo quando foi para França. Convenceu‑me que amadurecera devido a todos os problemas e dificuldades familiares. Era vulnerável, meiga e, quer acredites ou não, atenta. Na verdade, enganou‑me, ou talvez eu... eu o tivesse permitido. Fiquei muito só e deprimido depois de te casares. Apercebi‑me de que deixara escapar por entre os dedos o amor da única pessoa que me podia fazer sentir completo. Sentia‑me como um rapazinho que

deixara fugir o fio do papagaio de papel e debalde o perseguia. via‑o pairar, só que era o teu rosto a afastar‑se de mim, levado pelo vento.

”Bebi muito, andei em mais farras, tentei esquecer. E depois a Gisselle apareceu em cena, e havia o teu bonito rosto na minha frente... o teu cabelo, os teus olhos, o teu nariz, embora ainda hoje a Gisselle ache que tem o nariz mais pequeno e os olhos mais brilhantes.

 

”Na verdade ‑ acrescentou, baixando os olhos para o copo‑, um amigo meu na Universidade em Paris, que andava a estudar psicologia, disse‑me que a maioria dos homens se apaixona por alguém que lhes recorda o seu verdadeiro amor, o seu primeiro amor, alguém que os impressionou na adolescênçia, alguém que não podiam ter, mas alguém que passaram uma vida a tentar conquistar. Fazia sentido que me aproximasse novamente da Gisselle.

”Esta é a minha história ‑ concluiu, sorrindo. ‑ Qual é atua?

‑ A minha é mais simples, Beau. Estava sozinha com uma criança, receosa. O Paul estava sempre presente, ajudando. Todos nas redondezas sabiam que outrora gostáramos muito um do outro. Todos pensavam que a Pearl era filha dele. O Paul é‑me dedicado e, apesar dos meus protestos, está disposto a sacrificar‑se por mim. Não quero magoá‑lo, se puder evitar.

‑ Claro ‑ concordou Beau. ‑ É um homem muito simpático. Gostei de estar com ele. Apenas o invejo.

Sorri.

‑O que é?

‑ Ele disse o mesmo de ti.

‑Porquê?

Fitei‑o bem nos olhos e recuei no tempo.

‑ Porque sabe o quanto te amo, o quanto te amei e o quanto sempre te amarei ‑ redargui.

Foi o bastante para destruir o muro de nervosismo e tensão que nos separava. Os olhos brilharam‑lhe e pousou o copo, a fim de poder beijar‑me. O nosso primeiro beijo apaixonado depois de tanto tempo assemelhou‑se a um primeiro beijo, pleno de nova excitação.

‑ Oh, Ruby, minha Ruby. Julguei que te tinha perdido para sempre. ‑ Pousou os lábios no meu cabelo, nos olhos, no nariz. Beijou‑me o pescoço e a ponta do queixo, com beijos que se sucediam como se estivesse sedento de amor, tão sedento quanto eu, e como se receasse que eu fosse uma ilusão e lhe desaparecesse da mente a qualquer instante.

‑ Beau ‑ sussurrei.

O nome dele era tudo o que me apetecia dizer. O som pronunciado pelos meus lábios reanimava‑me, enchia‑me de prazer, garantindo‑me também que estava de facto ali nos braços dele.

Levantou‑se, agarrando‑me na mão; levantei‑me também, seguindo‑o até ao quarto, pequeno e confortável. O sol da tarde infiltrava‑se através das finas cortinas de algodão, enchendo o quarto de brilho e calor. Conservei os olhos fechados enquanto me despia. Momentos depois, estávamos um ao lado do outro na cama, num atrair de corpos magnético. Gemíamos, sussurrávamos palavras de amor e promessas que se estendiam desde agora, à eternidade.

De início, as nossas carícias processaram‑se num frenesim mas, a pouco e pouco, tornaram‑se mais calmas e suaves. Premiu os lábios de encontro aos meus seios, traçando em seguida um percurso de beijos até ao ventre. Deixei cair a cabeça na almofada e senti o corpo afundar‑se no macio colchão, enquanto Beau me cobria com o peito, oferecendo‑me a sua virilidade. Gritei quando me penetrou e acalmou‑me com palavras meigas e sussurradas.

Depois, os nossos corpos iniciaram uma dança ritmada, extraindo amor um ao outro, subindo aos píncaros do prazer até explodirmos num crescendo de êxtase que fez com que tudo o mais desaparecesse à excepção dos lábios, das vozes e dos corpos. Sentia‑me como se flutuássemos no espaço.

‑ Ruby ‑ chamou. ‑ Ruby. Estás bem?

 

Onde quer que o nosso acto de amor nos levara, não queria abandonar o local. Agarrava‑me a ele como alguém num sonho maravilhoso e que nega voltar à realidade. No entanto, aquele meu estado assustou‑o, fazendo‑o erguer a voz:

‑Ruby!

Abri os olhos e fitei o seu rosto preocupado.

‑ Estou bem. Beau. Apenas sonhava.

Ele sorriu.

‑ Amo‑te ‑ declarou. ‑ E não vou deixar de te amar.

‑ Eu sei, Beau. Também não deixarei.

‑ Este será o nosso ninho de amor, o nosso paraíso ‑ retorquiu, virando‑se e ficando estendido ao meu lado. Agarrou‑me na mão e fitámos o tecto. ‑ Podes decorá‑lo como quiseres. Hoje vamos às compras à procura de coisas, está bem? E vou comprar alguns dos teus quadros para as paredes. Precisamos de roupa de cama nova, de uma carpete e...

Fui incapaz de conter o riso.

‑ O quê? ‑ indignou‑se. ‑ Achas‑me louco?

‑ Não, querido. Rio‑me da tua exuberância. Estás a arrastar‑me a uma tal velocidade para os teus sonhos que mal consigo tomar fólego.

‑ E daí? Não me interessa. Não me interessa mais nada. ‑ Virou‑se, apoiando‑se num dos cotovelos para me fixar. Talvez da próxima vez também possas trazer a Pearl até Nova Orleães para nos divertirmos os três.

‑ Talvez ‑ concordei sem muita certeza.

‑ O que se passa?

‑ Não quero gerar‑lhe contusão no espírito. Neste momento, ela acredita que o Paul é o pai.

O alegre sorriso de Beau desapareceu e o rosto adquiriu uma expressão sombria. Esboçou um aceno de concordância e deixou‑se cair para trás, na almofada. Manteve‑se silencioso durante um minuto.

‑ Tens razão ‑ anuiu por fim. ‑ Avancemos devagar. Preciso de aprender a refrear o entusiasmo.

‑ Desculpa, Beau. Não pretendi...

‑ Não. Estás certa. Tudo bem. Não devia ser ambicioso. Não tenho direito de pedir mais. ‑ Virou‑se para me beijar ternamente e entreolhámo‑nos de novo com um sorriso. ‑ E tens fome?

‑ De lobo. Esqueci‑me de almoçar.

‑ óptimo. Conheço um cafezinho fantástico aqui próximo onde fazem as melhores sanduíches de Nova Orleães.

‑ Depois, tenho de ir falar com o Dominique ‑ lembrei‑me.

‑ Claro. Acompanho‑te, se quiseres.

‑ Acho que prefiro ir só. O Dominique conheceu o Paul e...

‑ Compreendo ‑ apressou‑se Beau a interromper. ‑ Vamos vestir‑nos e comer qualquer coisa.

 

Beau tinha razão quanto às sanduíches. Comi uma de camarão, queijo, ostras fritas, fatias de tomate e cebola. Sentámo‑nos num pátio onde comemos e observámos os turistas a Vaguear, de máquinas fotográficas a tiracolo, e admirando a arquitectura, lojas de novidades e restaurantes. Depois, fomos dar um passeio e regressei ao hotel a fim de telefonar para casa e saber como estava Pearl. Mrs. Flemming informou‑me que tudo corria bem. Pedi que me trouxessem o carro e levei a série de quadros sobre o soldado a Dominique, que os achou maravilhosos.

‑ Não há dúvida de que estás preparada para seres formalmente apresentada ao mundo artístico de Nova Orleães ‑ asseverou, e começámos a planear a minha exposição de arte.

Depois voltei ao hotel para tomar um duche, mudar de roupa e encontrar‑me com Beau para jantar. Tinha á espera uma mensagem de Paul, indicando como contactá‑lo.

‑ Que tal correu? ‑ inquiriu quando telefonei.

- Optimamente. Tinhas razão. O Dominique acha que devo fazer uma exposição. Estamos a montá‑la ‑ declarei, como se fosse apenas essa a minha ocupação em Nova Orleães.

‑ Que fantástico!

‑ E as tuas reuniões?

- Estão a correr melhor do que esperava, mas lamento não estar contigo ‑ respondeu.

‑ Não te preocupes. Vou para casa amanhã ao fim da manhã. Tomo o pequeno‑almoço com o Dominique‑afirmei... e a mentira quase me mordeu a língua.

- óptimo ‑ redarguiu Paul após um breve silêncio. - Faz uma boa viagem de volta.

‑ Também tu, Paul.

‑ Até breve. Adeus.

‑ Adeus.

O auscultador assemelhava‑se a uma pedra na minha mão. Tinha os olhos marejados de lágrimas e doía‑me o peito. A grandmère Catherine costumava dizer que o embuste era um jardim onde somente cresciam as ervas mais daninhas, e os que nele semeavam recolheriam desgraça. Esperava que não fosse algo que tivesse plantado no futuro de Paul. Não havia ninguém a quem quisesse poupar mais na vida.

Beau conhecia um agradável restaurantezinho francês próximo de Jackson Square. Apanhei um táxi para o nosso ninho de amor e de lá fomos a pé. A refeição foi maravilhosa e acompanhada de um óptimo vinho, seguida de café e pudim. Depois, insisti para que déssemos um longo passeio.

‑ Estou cheissima ‑ queixei‑me.

Demos as mãos e caminhámos devagar pelo French Quarter, que borbulhava de vida nocturna. Havia um tipo diferente de agitação no bairro depois do pôr do Sol. As mulheres que se encontravam nas ombreiras das portas e nos becos apresentavam‑se com roupas mais berrantes e uma pesada maquilhagem. A música era mais profunda, e as vozes dos cantores tinham um som mais melancólico.

Noutros lugares onde pululavam jovens turistas, ouvia‑se um jazz de batida mais forte e os guinchos, gritos e risos de pessoas que soltavam o cabelo e procuravam o auge da excitação, qualquer que ele pudesse ser. Todas as lojas de novidades e recordações estavam iluminadas. Vagabundos e músicos pobres enchiam os passeios. Havia sempre alguém a cada esquina a pedir, mas eram aceites, como se fizessem parte do local, no que tornava o bairro único. Artistas de segunda pairavam à procura de presas fáceis.

‑ Desculpe, sír, mas aposto que sei exactamente de onde vem. Se não acertar, dou‑lhe dez dólares; se acertar, dá‑me vinte. Aqui estão os meus dez. Então?

‑ Não, obrigado. Sabemos perfeitamente de onde vimos - replicou Beau com um sorriso.

 

Era excitante passear por ali com ele e... sim, podia ter uma outra vida secreta ao lado dele, reflecti. Tornaríamos o nosso ninho de amor confortável e gozaríamos a cidade, a comida, os habitantes e... enganaríamos o destino.

Andámos em círculo até regressarmos ao pequeno apartamento, onde decidi impulsivamente passar a noite com ele. Voltámos a fazer amor, desta vez enlaçando‑nos um ao outro mal fechámos a porta atrás de nós. Antes de chegarmos ao quarto, estávamos ambos despidos. Ele ergueu‑me nos braços e pousou‑me suavemente na cama; depois, ajoelhou‑se ao lado e começou a beijar‑me desde a ponta dos pés. Fechei os olhos e esperei que chegasse aos lábios que, nessa altura, ardiam de desejo.

Enquanto fazíamos amor, ouvíamos a música e os murmúrios das pessoas que falavam lá fora, na rua, um constante fluxo de vozes e risos. Era inebriante; apertei Beau de encontro ao meu corpo, sussurrando o seu nome, sussurrando o meu amor eterno, chegando mesmo às lágrimas quando atingimos o climax e ficámos um ao lado do outro, agradavelmente exaustos.

De manhã, levantámo‑nos cedo e fomos ao Café du Monde. Depois, ele acompanhou‑me de volta ao meu hotel. Tínhamos planeado encontrar‑nos de novo dali a uma semana, quando eu voltasse para findar os preparativos da exposição e trazer mais algum do meu trabalho a Dominique. Dei‑lhe um beijo de despedida e apressei‑me a entrar no hotel para ir buscar as minhas coisas.

Receava encontrar uma mensagem a indicar que Paul tentara contactar‑me na noite anterior, mas não havia nada. Entrei e saí rapidamente do hotel e, minutos depois, encontrava‑me na estrada que me levaria a casa. Sentia‑me cheia de vida, renovada, desabrochada, como Beau dissera. No entanto, a minha alegria seria breve. Findou no momento em que subi o acesso à casa.

A expressão sombria no rosto de James quando desceu os degraus da frente para me ajudar a levar a bagagem indicou‑me que algo de terrível se passara. O meu primeiro pensamento foi para Pearl.

‑ O que é, James! O que aconteceu?

‑ Oh, é Mistress Flemming, madame. Recebeu más notícias.

‑ Onde está ela?

‑ Lá em cima, à sua espera, no quarto da Pearl.

Apressei‑me a entrar em casa, subi as escadas a correr e fui encontrar Mrs. Flemming sentada na cadeira de balouço, com o rosto muito pálido e os lábios brancos. Pearl dormia no berço.

‑ O que aconteceu, Mistress Flemming?

Ela ergueu as mãos, parecendo afastar invisíveis teias de aranha e premiu os lábios. Depois, esboçou um aceno de cabeça na direcção de Pearl e levantou‑se devagar para se me juntar no corredor.

‑ A minha filha que está em Inglaterra ‑ balbuciou, quando conseguiu falar ‑ teve um acidente de automóvel e está gravemente ferida. Tenho de ir.

‑ Claro ‑ anui. ‑ Que coisa horrível. Ajudo‑a a preparar as coisas.

‑ Já tratei da maior parte, madame. Só estava á espera que voltasse.

‑ Oh, Mistress Flemming. Lamento tanto! ‑ exclamei.

‑ Obrigada, querida. Detesto ir‑me embora, sabe? Fez‑me sentir como se fosse um membro da família. Sei que está muito

entusiasmada com a sua carreira artística e precisa de mim para a ajudar com a Pearl.

‑ Que disparate! Tem de ir. Rezarei por si e pela sua filha - redargui.

Ela premiu os lábios e esboçou um aceno de cabeça, com as lágrimas a correrem‑lhe pelas faces.

‑ É triste que sejam as coisas más a aproximar os que nos são queridos ‑ observou.

Abracei‑a e beijei‑a na face.

Quando James trouxe as minhas coisas para cima, levou as dela para baixo. Mandara chamar um táxi.

‑ Dê um beijo à pequenina por mim todas as manhãs - pediu.

‑ Sei que ela vai sentir imenso a sua falta. Por favor, mantenha‑nos ao corrente de tudo e do que podemos fazer por si, Mistress Flemming.

Ela prometeu e depois foi‑se embora. Era como se um furacão tivesse desabado sobre o meu feliz lar, destruindo‑o. Não conseguia deixar de me interrogar sobre se o caprichoso destino resolvera castigar os que me eram chegados por quaisquer pecados que pudesse cometer.

Nina Jackson, a cozinheira da casa Dumas, costumava dizer‑me que era provável que há muito tempo alguém tivesse queimado uma vela preta contra nós. A grandmère Catherine, sendo uma traiteur, mantinha o mal à distância; todavia, depois de ela morrer, o mal, Papa La Bas, começara a rondar de novo, vigiando a minha vida, á espera de uma oportunidade.

Ter‑lhe‑ia eu dado essa oportunidade?

 

QUADRO PERFEITO

Nessa noite, Paul telefonou de Baton Rouge e contei‑lhe o que se passara com Mrs. Flemming.

- Vou já para casa - decidiu.

‑ Não é preciso, Paul. Estamos bem. Apenas me sinto muito triste por ela e pela filha

‑ Gosto de estar ao teu lado quando te sentes triste, Ruby. Não me agrada que estejas sozinha nessas ocasiões ‑ declarou.

‑ Não podes proteger‑me de todas as pequenas tempestades que me atingem, Paul. Além de que não tinha ama quando vivia na cabana e as coisas eram duramente dificeis, lembras‑te? ‑ ripostei num tom mais duro do que pretendera.

‑ Desculpa. Longe de mim insinuar que tu própria não poderias fazer tudo pela Pearl ‑ replicou num fio de voz.

‑ Não tens de pedir desculpa, Paul. Não estou irritada. Apenas me sinto desgostosa por causa de Mistress Flemming.

‑ Pelo que eu deveria estar em casa ‑ insistiu.

‑ Faz o que tens a fazer e depois volta para casa, Paul. Ficarei bem. A sério ‑ repliquei.

‑ Está bem. De qualquer maneira, devo conseguir sair daqui amanhã, antes do almoço ‑ garantiu. Seguiu‑se uma breve pausa e depois perguntou como tinham corrido as coisas em Nova Orleães.

‑ Muito bem. O Dominique e eu fizemos todos os preparativos, mas acho que vou adiar até tudo ficar mais calmo por aqui.

‑ Começaremos a procurar outra ama, mal chegue a casa - prometeu. ‑ Não há necessidade de adiares a tua exposição Ruby.

‑ Não falemos agora desse assunto, Paul. Subitamente. deixou de ser importante para mim. E neste momento não quero ir arranjar uma nova ama. Esperemos para ver o que acontece com Mistress Flemming e a filha.

‑ Como quiseres.

‑ Acho, além disso, que posso ser uma mãe e também uma artista a tempo inteiro.

‑ Tudo bem - concordou. ‑ Estarei em casa, mal me seja possível.

‑ Não te apresses, Paul ‑ avisei. - Não precisamos de mais um acidente de carro.

‑ Prometido. Até breve. Adeus.

‑ Adeus, Paul.

A viagem daquele dia numa espécie de montanha‑russa emocional esgotara‑me. Depois de ter deitado Pearl, meti‑me na cama. Deixei‑me ficar assim algum tempo, de olhos abertos, questionando‑me sobre se deveria telefonar a Beau. Temia, por que Gisselle descobrisse que o fazia e resolvi abster‑me. Esperaria que ele me telefonasse.

 

Fechei os olhos, mas, apesar do cansaço, dei voltas e mais voltas, entrando e saindo de pesadelos, alguns dos quais me mostravam coisas horríveis desabando sobre Paul e outros sobre Beau. ”Como as nossas vidas são frágeis”, pensei. Em segundos, tudo o que tínhamos, tudo o que aprendíamos, tudo o que construíamos, podia ficar reduzido a pó. Acabei por me interrogar sobre quais eram, de facto, as coisas mais importantes e as que não eram.

Sabia que Paul devia ter conduzido depressa, apesar das promessas feitas, pois chegou a Cypress Woods ao começo da tarde do dia seguinte. Quando o acusei disso, jurou que conseguira terminar as reuniões mais cedo do que o previsto. Eu acabara de almoçar e tomava café no pátio.

Pearl encontrava‑se ao meu lado no parque, sentada confortavelmente e entretida com os lápis de cor. Não conseguia manter‑se dentro dos riscos, mas contentava‑se em espalhar as cores pelos rostos e figuras, fingindo estar a fazer o mesmo que a mãe. De vez em quando parava e erguia os olhos para se certificar de que eu observava e apreciava o seu trabalho.

‑ Mais uma artista na família ‑ comentou Paul quando se Sentou.

‑ Ela assim o acha. As tuas reuniões correram bem, então?

‑ Assinei outro contrato. Nem vou falar‑te de números. Irias observar que são obscenos, como o fizeste da ultima vez.

‑ E são. Sou incapaz de deixar de me sentir culpada quanto a ganhar tanto dinheiro, havendo tantas pessoas a precisar de Coisas simples e básicas.

‑ É verdade, mas o nosso trabalho industrial e as medidas perspicazes vão criar centenas de novos postos e providenciar emprego, oportunidades e dinheiro para muitas pessoas, Ruby.

‑ Começas a falar como um importante homem de negócios, não há dúvida ‑ comentei, e ele riu.

‑ Suponho que, no íntimo, sempre o fui. Lembras‑te de quando apenas com dez anos tinha a minha banca na estrada e vendia os meus amendoins cajuns e o camarão seco do negócio do meu pai?

‑ Sim. Ficavas tão engraçado, impecavelmente vestido de camisa e gravata e com os trocos dentro da caixa de charutos.

Ele sorriu ante aquelas recordações.

‑ Nunca queria levar-te dinheiro a ti e á tua grandmére Catherine quando passavam por lá e paravam, mas ela não aceitava. ”Não podes ser assim no negócio”, dizia‑me.

Esbocei um aceno de cabeça, lembrando‑me.

Paul fitou Pearl durante uns momentos e depois virou‑se para mim. Havia uma sombra profunda nos olhos azuis. E detectei também hesitação.

‑O que é, Paul?

‑ Não quero que penses que estava a vigiar‑te. Só telefonei para saberes como estavas.

‑ Telefonaste? Quando? Onde?

 ‑ Anteontem, quando estavas no hotel em Nova Orleães - respondeu.

O coração ameaçou saltar‑me do peito e sustive a respiração.

‑ A que horas? ‑ murmurei.

‑ Depois das onze. Não queria telefonar demasiado tarde com receio de te acordar, mas...

Virei as costas

‑ Como te disse ‑ prosseguiu ‑, não penses que estava a vigiar‑te. Não me deves explicações, Ruby ‑ apressou‑se a acrescentar.

 

Sobre os ciprestes que rodeavam os pântanos avistei um falcão que levantou voo e em seguida desceu, provavelmente para apanhar uma presa desprevenida. Fez com que meia dúzia de pássaros dispersasse. Para lá das árvores, um tecto de nuvens prosseguia a sua vagarosa mas firme caminhada na nossa direcção, anunciando torrentes de chuva antes do final do dia. Senti que uma nuvem explodia no meu intimo, soltando gotas de gelo no meu coração. Percorreram‑me todo o corpo, enchendo‑me de um frio torpor.

‑ Não estava no hotel, Paul ‑ declarei, pronunciando bem as palavras. ‑ Estava com o Beau.

Virei‑me rapidamente para lhe detectar no rosto os efeitos da confirmação. Ele viu‑se preso numa luta de emoções. Soubera, mas sabia que não queria saber; e, no entanto, sabia.

Queria enfrentar a realidade, mas esperava que não fosse a realidade que temia. Os olhos reflectiam um brilho de dor. Encolhi‑me como se fosse uma bola.

‑ Como pudeste fazê‑lo? Como pudeste estar com esse homem depois da forma como ele te abandonou?

‑Paul...

‑ Não. Gostaria de saber. Não tens auto‑estima? Ele deixou‑te grávida, enquanto se ia embora e apreciava Paris e sabe‑se lá quantas francesas. Depois, casou com a tua irmã e herdou metade da tua fortuna. Agora, corres de volta para ele, esgueirando‑te a coberto da noite.

‑ Paul. Não pretendi enganar‑te. Na verdade...

‑ Era esse o verdadeiro objectivo da tua ida a Nova Orleães, não era? ‑ retorquiu, virando‑se para mim. ‑ Não se tratava dos quadros, nem da tua carreira artística. Tratava‑se de fugires de novo para os braços dele. Planeaste outro encontro furtivo?

‑ Ia contar‑te ‑ ripostei. ‑ Fazia tenções de o fazer...

‑ Claro ‑ redarguiu, sentando‑se e endireitando os ombros. ‑ O que é que vocês decidiram fazer?

‑ Decidimos fazer?

‑ Ele vai divorciar‑se da Gisselle?

‑ Essa hipótese não foi discutida ‑ repliquei. ‑ A excepção de que ambos sabemos quais são as nossas crenças religiosas e que o divórcio não é uma escolha aceitável, sobretudo para a família dele. Além de que não imagino qualquer colaboração por parte da Gisselle. E tu?

‑ Dificilmente ‑ respondeu Paul.

‑ Aconteceria exactamente o oposto. Ela regalar‑se‑ia com o escândalo. Ajudaria a compor os cabeçalhos: ”Gémea Rouba o Marido da Outra”. Podes imaginar as consequências para o

Beau e para a família, em Nova Orleães e... seria injusto para

ti, Paul. As pessoas daqui...

‑ A sério? ‑ ironizou.

‑ Por favor, Paul. Sinto‑me terrivelmente. És tu a última pessoa do mundo a quem desejo provocar sofrimento.

Desviou os olhos para disfarçar as lágrimas e a raiva que lhe marcavam o rosto.

‑ Não é nada que não tenha causado a mim próprio - murmurou. ‑ A minha mãe avisou que algum dia aconteceria. ‑            Ficou silencioso.

‑ Não fiques para aí sentado, Paul. Grita comigo. Põe‑me fora.

LeVantou‑se devagar, e a dor que tinha estampada no rosto assemelhava‑se a uma espada que me enterravam no coração.

‑ Sabes que não o farei, Ruby. Não consigo deixar de te amar.

‑ Eu sei ‑ redargui num tom triste. ‑ Desejava que pudesses repudiar‑me ‑ disse.

‑ É como se desejasses que a Terra deixasse de girar, e o Sol deixasse de nascer de manhã e pôr‑se à noite.

Fitámo‑nos; pensei como era cruel o Destino, ditando‑lhe aquela paixão não correspondida por mim. O destino transformara‑o num homem eternamente sedento, pairando sobre a água límpida e fria, mas sem poder beber. Se ao menos houvesse uma forma de fazer com que me odiasse, reflecti com ironia. Seria doloroso para mim, mas muito melhor para ele. Entre nós, qual ferida em carne viva que recusava cicatrizar, existiam as nossas penas e tristezas.

‑ Bom ‑ pronunciou por fim. ‑ Não falemos, agora, de coisas tristes. Temos outros problemas mais preocupantes de momento. Tens a certeza de que não queres que procuremos outra ama?

‑ Por agora, tenho.

‑ Está bem. No entanto, detesto ver‑te protelar a tua carreira. Segundo parece, estou casado com uma famosa artista cajun. Vangloriei‑me sem cessar em Baton Rouge. Há pelo menos uma dúzia de ricos industriais do petróleo ansiosos por comprar um dos teus quadros.

‑ Oh, Paul. Não devias ter feito isso. Não tenho tanta qualidade assim.

‑ Tens sim ‑ insistiu e levantou‑se. ‑ Preciso de passar pela fábrica e falar com o meu pai, mas estarei cedo em casa.

‑ óptimo, porque convidei a Jeanne e o James para jantar. Ela telefonou e pareceu‑me com muita vontade de nos ver repliquei.

‑ Ah, é? Muito bem.

Inclinou‑se para me beijar, mas fê‑lo de uma forma muito mais mecânica do que habitualmente: um breve roçar dos lábios na minha face, tal como beijaria a irmã ou a mãe. Um novo muro se erguera entre nós, e era impossível prever quão denso se tornaria nos próximos dias e meses.

Depois de ele sair, permaneci sentada, à beira das lágrimas. Embora tivesse a certeza de que não era essa a intenção dele, quanto mais demonstrava o seu amor por mim, mais culpada me sentia por amar e estar com Beau.

Dizia de mim para mim que avisara Paul e que nunca fizera o mesmo tipo de promessas que ele, casando‑me com a ideia pura e religiosa de uma ligação idêntica ao casamento de um

padre ou de uma freira com a igreja. Dizia ainda intimamente que era uma mulher com a paixão a correr‑me nas veias, com a mesma intensidade da de qualquer outra mulher, não podendo acalmá‑la e muito menos negá‑la.

E além disso não o desejava. Até mesmo naquele momento, ansiava por me ver novamente nos braços de Beau, ansiava pelos seus lábios colados aos meus. Frustrada, respirei fundo, engolindo as lágrimas. Não era a melhor altura para fraquejar e pôr‑me a soluçar nas almofadas. Era a altura de me mostrar forte e enfrentar quaisquer desafios que o malicioso destino colocasse no meu caminho.

 

”Bem me conviriam alguns amuletos”, pensei. Podia usar os pós de felicidade de Nina Jackson ou os paus de incenso. Há algum tempo, ela dera‑me uma pequena moeda para colocar no tornozelo e dar‑me sorte. Tirara‑a e pusera‑a de lado, mas lembrava‑me de onde estava; quando levei Pearl para fazer a sesta, descobri‑a e voltei a prendê‑la à volta do tornozelo.

Conhecia muita gente que se riria de mim; porém, nunca tinham visto a grandmère Catherine colocar as mãos numa criança febril e fazer com que a febre descesse. Nunca haviam sentido um espírito maligno a voar na noite, escapando às palavras e elixires da grandmère Catherine. E nunca tinham escutado um mumbo jumbo de uma praticante de vudu e assistido aos resultados. Era um mundo pleno de mistérios, povoado por muitos espíritos, bons e maus; fosse qual fosse o ritual que se fizesse para conseguir saúde e felicidade, tinha o meu aval, independentemente de quem risse ou troçasse. A maioria das pessoas era como a minha irmã, que só acreditava na sua própria felicidade. E eu, melhor do que a maior parte da gente da minha vida, sabia quão vulnerável e passageira pode ser a felicidade.

 

Nessa noite, verifiquei como Paul estava ansioso para que tivéssemos um jantar agradável com a irmã e o marido dela. Queria fazer tudo o que pudesse para afastar as sombras que se tinham instalado entre nós e pairavam nos cantos secretos dos nossos corações. Parou na cozinha, pediu a Letty que fizesse algo especial e serviu os nossos melhores vinhos, tendo bebido bastante na companhia de James.

Ao jantar a nossa conversa foi superficial e assinalada por muitos momentos de alegria, mas apercebi‑me de que Jeanne estava preocupada e queria falar‑me a sós. Portanto, mal o jantar terminou e Paul sugeriu que fôssemos todos para a sala de estar, declarei que queria mostrar a Jeanne um vestido novo que comprara em Nova Orleães.

- Descemos daqui a pouco ‑ prometi.

‑ Querem furtar‑se à nossa conversa política, é só ‑ acusou Paul num tom de brincadeira. Mas quando me olhou mais atentamente, percebeu porque é que eu queria levar a Jeanne lá para cima e pôs o braço à volta dos ombros de James, afastando‑o.

Jeanne rompeu em lágrimas, assim que ficámos sós.

- O que se passa? ‑ quis saber, abraçando‑a. Levei‑a até ao sofá e estendi‑lhe um lenço.

‑ Oh, Ruby! Sinto‑me tão infeliz. Julguei que teria um casamento tão maravilhoso como o teu, mas foi uma desilusão. Não nas duas primeiras semanas, claro - acrescentou por entre soluços ‑, mas quando nos instalámos, pareceu que o romance morreu. Ele apenas se interessa pela carreira e o trabalho. As vezes só regressa a casa às dez ou onze horas e tenho de jantar sozinha. E quando chega, vem habitualmente tão exausto que quer ir dormir logo.

‑ Já o puseste a par do que sentes? ‑ inquiri, sentando‑me ao lado dela.

‑ Já. ‑ Respirou fundo e deixou de soluçar. - Contudo. respondeu que está a começar a carreira e que eu tenho de ser compreensiva. Uma noite, virou‑se contra mim e disse: ”Não tenho a sorte do teu irmão. Não nasci com uma colher de prata na boca para poder herdar terra rica em petróleo. Tenho de trabalhar para ganhar a vida.”

Fiquei surpreendida. Ela prosseguiu:

‑ Respondi‑lhe que o Paul trabalha para ganhar a vida. Não conheço ninguém que trabalhe mais. Ele não toma nada como certo, não é verdade, Ruby?

- O Paul acha que o dia tem vinte e cinco e não vinte e quatro horas ‑ comentei, sorrindo.

‑ E, no entanto, consegue manter o romance no vosso casamento, não é? Basta olhar para vocês os dois para ver como são dedicados um ao outro e quanta importância dão ao que sentem. Por mais que o Paul trabalhe tem sempre tempo para ti, não é? E não te importas que ele tenha de se ausentar tanto, pois não?

Desviei rapidamente os olhos para que ela não lesse a verdade que eles reflectiam; depois, cruzei os braços no peito à maneira da grandmère Catherine e fiz uma expressão de quem está imersa em profundos pensamentos. Esperava, ansiosa pela minha resposta, torcendo as mãos no regaço.

‑ Não - respondi finalmente. - Mas talvez se deva a estar tão absorta pela minha arte.

Jeanne esboçou um aceno de concordância e suspirou.

‑ Foi o que o James disse. Declarou que eu devia descobrir algo que fazer para não me debruçar tanto sobre ele, mas eu quero debruçar‑me sobre ele e o nosso casamento. Foi por isso que me casei! -exclamou. - A verdade - continuou, limpando as faces com o lenço ‑, a verdade é que a paixão desapareceu.

‑ Oh, Jeanne! Estou certa que não.

‑ Há duas semanas que não fazemos amor - revelou. - É muito tempo para marido e mulher, não te parece? - perguntou, fixando‑me, à espera da minha reacção.

....... Baixei os olhos e alisei a saia para que não me visse de novo a expressão. A grandmère Catherine costumava dizer que os meus pensamentos eram tão óbvios como um segredo escrito num livro com uma capa de vidro.

- Não me parece que haja um tempo ou escala determinada para fazer amor mesmo para as pessoas casadas - respondi, pensando agora em Beau. ‑ É algo que ambos têm de fazer espontaneamente e por impulso.

‑ O James ‑ confessou, de olhos pousados nos dedos entrelaçados - acredita no chamado método do ritmo, por ser um católico de alma e coração. Tenho de medir a temperatura, antes de fazermos amor. Não fazes isso, pois não?

Abanei a cabeça. Sabia que a temperatura do corpo de uma mulher indicava supostamente quando ela estava mais apta a engravidar, o que era considerado um método aceitável de contracepção, mas tinha de confessar que medir a temperatura antes de dormir com alguém diminuía o aspecto romântico.

‑ Percebes, então, porque me sinto tão infeliz? - rematou.

‑ Ele sabe o quanto te sentes profundamente infeliz?

- inquiri, e ela encolheu os ombros. - Devias falar‑lhe mais desse assunto, Jeanne. Ninguém mais pode ajudar‑vos do que vocês mesmos.

‑ Mas se não há paixão...

‑ Sim, concordo. Tem de haver paixão, mas tem de haver compromisso também. É isso o casamento ‑ prossegui, consciente de como tal facto era verdade para Paul e para mim. - Um compromisso... duas pessoas sacrificando‑se voluntariamente para o bem uma da outra. Cada um tem de se importar tanto com o outro como consigo próprio. Todavia, só funciona se ambos o fizerem ‑ rematei, pensando no meu pai e na sua dedicação a Daphne.

‑ Não me parece que o James queira ser assim ‑ comentou Jeanne.

‑ Tenho a certeza que sim, mas isso não acontece de um dia para o outro. leva tempo a cimentar uma relação.

Jeanne esboçou um aceno, pouco entusiasmada.

- O Paul e tu passaram muito tempo juntos. É por isso que o vosso casamento é tão perfeito? - indagou.

Senti uma estranha dor no coração. Detestava a forma como uma mentira levava a outra, acumulando‑se até nos vermos soterrados sob uma montanha de falsidades.

‑ Nada é perfeito, Jeanne.

‑. O Paul e tu estão o mais próximo um do outro que é possível. lembra‑te como vocês se comportaram a partir do dia

em que se conheceram. Na verdade - prosseguiu num tom

triste ‑, esperava que o James me adorasse tanto quanto o Paul te adora. Suponho que não devo compará‑lo ao meu irmão.

‑ Ninguém deve adorar ninguém  - contrapus num tom

suave, mas a forma como ela me encarava a mim e a Paul, e como todos os outros nos viam, fazia como que me sentisse culpada por amar Beau na clandestinidade. Que choque teriam se a verdade viesse a ser conhecida e como seria devastador para Paul, reflecti.

Falar assim com Jeanne levou‑me a tomar consciência de que a minha relação com Beau a nada conduziria. Poderia mesmo destruir gradualmente Paul. Fizera a minha escolha, aceitara a sua bondade e dedicação e agora tinha de viver com essa opção. Não podia ter a atitude egoísta de seguir outro caminho.

‑ Talvez tenha outra longa conversa com o James - decidiu Jeanne. ‑ Talvez tenhas razão... Talvez leve o seu tempo.

‑ Tudo o que vale a pena, leva ‑ redargui calmamente. Estava tão absorta nos seus problemas que lhe escapou a ansiedade que os meus olhos reflectiam. Agarrou‑me nas mãos.

‑ Obrigada, Ruby. Obrigada por escutares e te preocupares. - Abraçámo‑nos e ela sorriu. Por que razão era tão fácil ajudar os outros a sentirem‑se felizes, mas tão difícil ajudar‑me a mim própria, interroguei‑me.

‑ Há, de facto, um novo vestido para te mostrar ‑ retorqui e levei‑a até ao meu roupeiro.

Depois, fomos juntar‑nos a Paul e James na sala de estar e tomámos licor. Jeanne sorriu‑me quando James lhe pôs o braço á volta dos ombros, beijando‑a na face. Sussurrou‑lhe algo ao ouvido que a fez corar. Depois, anunciaram que estavam cansados e tinham de ir para casa. à porta, Jeanne encostou‑se a mim para me agradecer novamente. Pela expressão dos olhos vi que estava excitada e feliz. Paul e eu ficámos na varanda a observá‑los a caminhar até ao carro e afastarem‑se.

Estava uma noite bastante clara, o que nos permitia contemplar o céu carregado de estrelas e avistar as constelações de um extremo ao outro do horizonte. Paul agarrou‑me na mão.

‑ Queres sentar‑te cá fora um bocado? ‑ inquiriu.

Esbocei um aceno de cabeça e dirigimo‑nos ao banco. A noite estava cheia da sinfonia monótona das cigarras, interrompida pelo pio ocasional de um mocho.

‑ Esta noite, a Jeanne queria um conselho de irmã mais velha, não queria? ‑ interessou‑se ele.

‑ Sim, mas não estou certa se era a mim que devia tê‑lo pedido.

‑ Claro que sim. ‑ Depois de uma pausa, acrescentou: - O James também me pediu conselhos. Fez com que me sentisse mais velho. ‑ Virou‑se para mim no escuro com o rosto mergulhado na sombra. ‑ Eles acham que somos o casal perfeito.

‑Eu sei.

‑ Quem me dera que fosse verdade. ‑ Agarrou‑me de novo na mão. ‑ Portanto, o que vamos fazer?

‑ Não tentemos encontrar todas as respostas esta noite, Paul. Eu própria sinto‑me cansada e confusa.

‑ Como quiseres. ‑ Inclinou‑se para me beijar na face. - Não me odeies por te amar tanto ‑ sussurrou.

Queria apertá‑lo de encontro ao corpo, beijá‑lo, acalmar‑lhe a alma perturbada, mas apenas consegui derramar umas lágrimas e fitar a noite com o coração apertado.

Por fim, subimos ambos aos nossos quartos separados. Depois de apagar a luz, deixei‑me ficar junto à janela, contemplando o céu nocturno. Pensei em Jeanne e James, apressando‑se a regressar a casa depois de uma refeição maravilhosa, vinho e conversa, excitados e ansiosos por se agarrarem e terminarem a noite a fazer amor.

No seu quarto, Paul agarrava‑se a uma almofada e, no meu, agarrava‑me às minhas recordações de Beau.

 

Pouco depois de Paul ter saído para o trabalho na manhã seguinte, Beau telefonou. Estava tão excitado com o nosso próximo encontro que mal tomava fôlego enquanto descrevia os planos para o nosso dia e noite e, de início, quase não percebia uma palavra.

‑ Não podes saber como isto mudou a minha vida ‑ disse. ‑ Deste‑me algo que desejar, algo para me alegrar durante os dias e as noites mais terríveis.

‑ Beau. Tenho más notícias... ‑ Consegui, por fim, interromper o seu discurso e falei‑lhe da filha de Mrs. Flemming. - Receio ver‑me obrigada a adiar as coisas.

‑ Porquê? Vem com a Pearl ‑ suplicou.

‑ Não. Não posso ‑ recusei.

‑ Há mais alguma coisa, não é? ‑ perguntou, depois de uma pausa.

‑ Sim ‑ admiti, contando‑lhe o que se passara com Paul.

‑ Então, ele sabe de nós?

‑ Sim, Beau.

‑ A Gisselle também tem andado muito desconfiada - confessou. ‑ Tem até pronunciado algumas ameaças veladas e outras não tão veladas assim.

‑ Então, talvez seja melhor deixarmos arrefecer as coisas - sugeri. ‑ Temos de pensar em todas as pessoas que podíamos ferir, Beau.

‑ Sim ‑ admitiu num tom rouco.

Se as palavras tivessem peso, as linhas telefónicas entre Nova Orleães e Cypress Woods teriam caído em pedaços, reflecti.

‑ Lamento, Beau.

Ouvi‑o emitir um fundo suspiro.

‑ Bom. A Gisselle pede insistentemente para irmos passar uns dias ao rancho. Acho que vou levá‑la para a semana. A verdade é que odeio viver nesta casa sem ti, Ruby. Há demasiadas recordações do tempo em que estivemos juntos. Sempre que passo junto ao teu quarto, paro, olho para a porta e lembro‑me.

‑ Fala á Gisselle em vender a casa, Beau. Começa de novo num outro lugar ‑ sugeri.

‑ Ela não quer saber. Nada lhe interessa. O que fizemos um ao outro, Ruby? ‑ indagou.

Engoli em seco, mas algumas lágrimas furtivas correram‑me pelas faces. Durante um momento, fui incapaz de falar.

‑ Apaixonámo‑nos, Beau. É tudo. Apaixonámo‑nos.

‑ Ruby...

‑ Tenho de ir, Beau. Por favor.

‑ Não te despeças. Desliga apenas ‑ pediu.

Obedeci, mas permaneci sentada junto ao telefone e solucei até ouvir Pearl, que acordara da sesta, a chamar‑me. Enxuguei os olhos, respirei fundo e dispus‑me a preencher os meus dias e as minhas noites com o máximo de trabalho que pudesse, a fim de não pensar nem lamentar nada.

Invadiu‑me uma calma resignação. Comecei a sentir‑me uma freira e passava muito tempo numa tranquila meditação, pintando, lendo e ouvindo música. Tratar de Pearl era agora uma ocupação a tempo inteiro. Ela era uma criança muito activa e curiosa sobre tudo. Tive de tornar a casa mais segura,

colocando os objectos valiosos fora do seu alcance e certificando‑me de que não conseguiria chegar a nada perigoso. De vez em quando, Molly tomava conta dela umas horas, enquanto eu ia ás compras ou ficava com algum tempo tranquilo a sós.

Paul andava mais ocupado do que nunca; deliberadamente, segundo achava. levantava‑se ao alvorecer e desaparecia antes de eu descer para tomar o pequeno‑almoço. Algumas vezes, não regressava a tempo do jantar. Disse‑me que o pai trabalhava cada vez menos e falava em reformar‑se.

‑ Então, talvez devesses contratar um gerente ‑ sugeri. ‑          Não podes encarregar‑te de tudo.

‑ Verei ‑ prometeu.

No entanto, apercebia‑me de que gostava de andar ocupado. Tal como eu, odiava os tempos livres, vendo‑se forçado nessas alturas a reflectir naquilo em que a sua vida consistia na realidade.

Cheguei a pensar que seria assim para sempre, até ficarmos ambos grisalhos e velhos, balouçando‑nos lado a lado no terraço e contemplando o bayou, interrogando‑nos sobre como teria sido a vida, caso não tivéssemos tomado alguma das decisões que tomáramos quando éramos jovens e impulsivos.

Contudo, uma noite, por volta do final do mês, o telefone tocou. Paul instalara‑se no seu sofá favorito e tinha o jornal aberto na página de economia. Pearl estava a dormir e eu lia um romance. James apareceu na ombreira da porta.

‑ É para a madame ‑ anunciou.

Paul ergueu os olhos, curioso. Encolhi os ombros e levantei‑me.

‑ Talvez seja a Jeanne ‑ sugeri. Ele esboçou um aceno de cabeça. Era, todavia, Beau, que parecia uma voz sem corpo... um farrapo de si próprio, tão apagado que me interroguei sobre se seria ele realmente.

‑Beau? O que se passa?

‑ É a Gisselle. Estamos no rancho. Há mais de uma semana que cá estamos.

‑ Oh! ‑ exclamei. ‑ Ela sabe de nós, então?

‑ Não, não é isso ‑ contrapôs.

Sustive a respiração.

‑ O que é, afinal, Beau?

‑ Foi mordida por mosquitos. Não atribuímos importância. Ela queixou‑se imenso, claro, mas esfreguei‑a com álcool e esqueci o assunto. Depois...

‑ Sim? ‑ Sentia as pernas como se pudessem transformar‑se em ar e evaporar‑se debaixo de mim.

‑ Começou a ter enormes dores de cabeça. Nada do que lhe dei a acalmava. Tomou praticamente um frasco de aspirinas e teve febre também. Na noite passada, a febre subiu e pôs‑se a delirar. Tive de chamar o médico da aldeia. Quando chegou, ela estava paralisada.

‑ Paralisada!

‑ E balbuciava sem nexo. Não conseguia lembrar‑se de nada, nem mesmo de quem eu era ‑ acrescentou, confuso.

‑ O que disse o médico?

‑ Fez imediatamente o diagnóstico. A Gisselle contraiu a chamada encefalite de St. Louis, uma inflamação cerebral provocada por um vírus que os mosquitos transmitem às pessoas.

‑ Mon Dieu! ‑ exclamei com o coração a bater‑me com força no peito. ‑ Está no hospital?

‑ Não ‑ respondeu.

‑ Não? Porque não, Beau?

‑ O médico afirma que as previsões não são famosas. Não se conhece tratamento para a doença quando é transmitida por outras infecções virais que não o vírus do herpes simplex. São estas as palavras exactas.

‑ O que é que isso significa? O que vai acontecer‑lhe?

‑ Pode permanecer nestas condições por algum tempo - elucidou numa voz vazia de emoção, uma voz perdida. E depois acrescentou: ‑ Mas ninguém em Nova Orleães sabe o que aconteceu. Na verdade, apenas este médico e alguns criados daqui estão a par da situação e podem ser persuadidos a calarem‑se.

‑ O que estás a sugerir, Beau? ‑ indaguei, sustendo a respiração.

‑ Ocorreu‑me há pouco, quando estava à cabeceira da cama a vê‑la dormir. Quando está a dormir parece‑se tanto contigo, Ruby. Ninguém duvidaria.

O meu coração parou e depois iniciou uma corrida tão acelerada que julguei que perderia os sentidos. Mudei o auscultador para o outro ouvido e respirei fundo. Sabia o que ele estava a sugerir.

‑Beau... Queres que assuma a identidade dela?

‑ E te tornes minha mulher agora e para sempre ‑ respondeu. ‑ Não tens consciência desta oportunidade? ‑ perguntou. ‑ Nenhum dos segredos do passado precisa de ser revelado e ninguém tem de ser magoado.

‑ à excepção do Paul ‑ ripostei.

‑ E de que servirá se formos todos infelizes?

Poderíamos fazer tal coisa?, interroguei‑me com um entusiasmo crescente. Seria errado?

‑ O que acontecerá à Gisselle?

‑ Teremos de a internar secretamente num estabelecimento, claro. Mas será fácil consegui‑lo.

‑ Isso é terrível. lembra‑te quando a Daphne tentou fazer‑me o mesmo ‑ observei.

‑ Era diferente, Ruby. Estavas viva e de boa saúde e tinhas toda a vida pela frente. Que importância terá para a Gisselle? Ela fez‑nos acidentalmente uma dádiva, reparou tanto erros que cometeu. O destino não nos daria esta oportunidade, se não quisesse igualmente reparar os danos. Vem ter comigo ‑ suplicou. ‑ Ao teu lado poderei acalmar o meu espírito perturbado e tornar‑me alguém que consiga voltar a respeitar. Por favor, Ruby. Não podemos desperdiçar um único momento desta oportunidade.

‑ Não sei. Tenho de pensar. ‑ Virei‑me e olhei na direcção do escritório. ‑ Preciso de discutir o assunto com o Paul.

‑ Claro. Mas fá‑lo de imediato e telefona‑me depois ‑ pediu, dando‑me o número. ‑ Amo‑te, Ruby, tu amas‑me e devíamos estar juntos. O destino também acabou por compreender que assim é. Quem sabe? Talvez a tua grandmère Catherine esteja a trabalhar para nós no outro mundo ou talvez a Nina Jackson tenha feito qualquer feitiço a nosso favor.

‑ Não sei, Beau. Está tudo a acontecer tão depressa. É complicado.

‑ Conversa com o Paul. Está certo e é, afinal, o que estava predestinado ‑ insistiu.

Depois de desligarmos, mantive‑me de pé com o coração ameaçando saltar‑me do peito. Na minha frente, desfiavam as possibilidades juntamente com os perigos. Teria de assumir a personalidade da minha irmã, tornar‑me Gisselle, mas nós éramos, de facto, tão diferentes. Conseguiria fazê‑lo com perfeição bastante para enganar as pessoas e ficar com Beau eternamente? Se o amor tiver força bastante, reflecti, pode dar poder para fazer coisas para lá do que se imagina. Talvez este princípio se nos aplicasse.

Respirei fundo e depois regressei ao escritório e contei a Paul o que acontecera e o que Beau havia proposto. Ele deixou‑se ficar sentado com uma calma surpreendente e escutou, enquanto eu despejava a história e a fantástica sugestão. Em seguida, levantou‑se e dirigiu‑se à janela, mantendo‑se ali durante um espaço de tempo prolongado.

‑ Nunca deixarás de o amar ‑ murmurou amargamente. Fui um idiota em pensar que poderia não ser assim. Se ao

menos tivesse dado ouvidos à minha mãe... ‑ Suspirou fundo e virou‑se.

‑ Não consigo controlar o que sinto por ele, Paul.

Esboçou um aceno de cabeça e ficou muito pensativo por momentos.

‑ Talvez tenhas de viver com ele para perceberes que tipo de homem é na verdade. Talvez depois compreendas as diferenças que há entre mim e ele.

‑ Paul, amo‑te pelo que fizeste pela Pearl e por mim e pela tua dedicação, mas apenas vivemos meio casamento. Além disso, concordámos que se algum de nós pudesse ter outra pessoa, alguém que amasse e com quem fosse possível uma relação em pleno, o outro não o impediria.

Paul acenou com a cabeça.

‑ Que sonhador fui quando fiz essas promessas ao teu lado na varanda da grandmère Catherine. Bom ‑ prosseguiu, com um sorriso seco ‑, conseguirei por fim fazer algo que te tornará realmente feliz. ‑ Os olhos brilharam‑lhe de súbito com mais um pensamento. ‑ Mesmo mais do que tu e o Beau esperavam. ‑ Deteve‑se com uma expressão determinada no rosto.

‑ O quê? ‑ inquiri, ofegante.

‑ Quando telefonares ao Beau, diz‑lhe que traremos a Gisselle para aqui ‑ explicou.

‑O quê?

‑ Ele tem razão. O que pode interessar‑lhe agora? Tu e eu iremos ao rancho amanhã depois do almoço. Tenho de tratar de um negócio importante. Fingiremos que vamos passar umas curtas férias e depois regressarei com a Gisselle e farei constar que foste tu quem sofreu a encefalite. Preparo‑lhe acomodações confortáveis lá em cima e teremos enfermeiras vinte e quatro horas por dia. Dado ela ter lapsos de memória e passar a maior parte do tempo confusa e semi‑inconsciente, não será difícil.

‑ Farias isso por mim? ‑ perguntei, incrédula.

‑ Amo‑te a esse ponto, Ruby. ‑ Sorriu. ‑ Talvez agora compreendas realmente.

‑ Mas não posso permitir, Paul. Seria demasiado cruel e injusto.

‑ Não é nada. Nesta casa tão grande, nem darei pelos aposentos dela ‑ replicou.

‑ Não me refiro apenas a isso. Também tens uma vida pela frente ‑ insisti.

‑ E tenciono vivê‑la. Á minha maneira. Vá lá, telefona ao Beau.

Tinha um reflexo tão estranho no olhar. Pressenti que imaginava que aquela atitude acabaria um dia por me trazer de volta para ele. Quaisquer que fossem os motivos, facilitavam a nossa troca de identidade.

Dei meia‑volta para telefonar a Beau e depois estaquei, tomando consciência do maior problema de todos.

‑ Não podemos fazê‑lo, Paul. É impossível.

‑ Porquê?

‑ A Pearl! ‑ exclamei. ‑ Se eu for a Gisselle, o que lhe acontece?

Paul pensou uns momentos e depois pronunciou‑se:

‑ Contigo gravemente doente e a ausência da ama para ir tratar da família dela, levá‑la‑ei para viver com a tia e o tio até se desvanecer o sofrimento em Cypress Woods. De momento, será um bom disfarce.

Fiquei aturdida com a sua rapidez de raciocínio.

‑ Oh, Paul. Não mereço esta bondade e sacrifício. A sério que não ‑ redargui.

Paul esboçou um sorriso frio.

‑ Virás visitar a tua irmã doente de vez em quando, não? - perguntou e apercebi‑me de que, mediante este estranho comportamento, esperava manter‑me ligada a ele.

‑ Claro, embora a Gisselle pouco se importasse com isso.

‑ Cuidado ‑ avisou com outro sorriso. ‑ Não te mostres demasiado simpática ou as pessoas dirão: ”O que lhe deu? Não parece dela.”

‑ Sim ‑ concordei, tomando consciência do desafio que tinha pela frente.

Não confiava muito em mim. De momento, teria de me contentar apenas com o desejo, o desejo de estar ao lado do Beau como sua mulher para sempre. Talvez fosse suficiente. Pelo bem de Pearl e pelo meu, rezei para que assim acontecesse.

 

NADA AO ACASO

Beau ficou muito excitado e contente com a proposta de Paul, mas eu sentia‑me perturbada ante a sua disponibilidade de participar em tudo aquilo. O que lhe iria no pensamento? O que esperava que acontecesse? Dei voltas e mais voltas na cama durante toda a noite, atormentada pelas coisas que podiam correr mal e pôr a nu o nosso embuste.

Se isso acontecesse, as pessoas quereriam saber mais e, nesse caso, a verdade sobre Paul e mim com todos os pecados do passado seria revelada. Tal significaria não só a minha ruína e a de Paul, como a destruição da família Tate. Os riscos eram enormes. Tinha a certeza que Paul os conhecia tão bem como eu, mas estava decidido a manter‑se ligado a mim, mesmo desta forma bizarra.

Quando acordei de manhã, pensei que tudo não passara de um sonho, até Paul bater à porta do quarto e enfiar a cabeça para me informar que partiriamos para a casa de campo dos Dumas um pouco depois das duas. Calculava que a viagem até ao rancho nos levaria umas três horas. Um calafrio de apreensão percorreu‑me a espinha. Todo o corpo me tremia, enquanto andava de um lado para o outro, a pensar no que levaria ou não.

Dado eu e Gisselle termos gostos diferentes na maneira de vestir, apercebi‑me de que teria de deixar ficar a maior parte das coisas; no entanto, resolvi levar as jóias e as recordações que me eram mais preciosas. Empacotei o maior número das coisas de Pearl que podia sem levantar suspeitas. Supostamente, só iríamos ausentar‑nos uns dias.

Enquanto metia os pertences de Pearl na sua mala, pensei em como teria dificuldade em fingir que era apenas tia dela e não mãe. Por sorte, Pearl ainda era muito pequenina e, assim, quando me chamasse mãe, as pessoas julgariam que estava Confusa. Diria que era mais fácil para ela deixar que o fizesse de momento. Os meus temores reportavam‑se a mais tarde quando atingisse a idade suficiente para compreender tudo; nessa altura, teria de contar‑lhe a verdade quanto aos motivos por que o pai e eu agíramos desta forma e porque assumira o nome da minha irmã. Era incapaz de deixar de pensar em como isso poderia mudar a sua opinião a nosso respeito.

Passei a manhã a vaguear por Cypress Woods com Pearl, absorvendo tudo como se nunca mais voltasse a pousar os olhos nesse lugar. Sabia que sempre que voltasse, tudo me pareceria diferente, pois teria de deixar de pensar naquela propriedade como a minha casa, mas como a casa da minha irmã, um sítio de visita e que supostamente me desagradava. Teria de comportar‑me como se o bayou me fosse tão estranho como a China, pois era assim que Gisselle reagia.

Pensei que seria isso o mais difícil: fingir que odiava o bayou. Por mais que me exercitasse, tinha a certeza que nunca seria muito convincente. O meu coração decerto não me permitiria que troçasse e me queixasse do mundo onde crescera e que amara durante toda a minha vida.

 

Enquanto Pearl dormia a sesta, subi ao meu estúdio para arrumar as coisas que desejava proteger do tempo e descuido. Na pele da minha irmã Gisselle, teria de desenhar e pintar em segredo. Mal se espalhasse a notícia de que Ruby estava inválida, semíconsciente e mentalmente perturbada, os novos quadros não poderiam continuar a chegar à galeria de arte, mas consolava‑me a realidade de que pintava mais para minha satisfação pessoal do que por uma questão de fama e dinheiro.

Paul veio almoçar a casa, o que foi difícil para os dois. Nenhum de nós o expressou directamente, mas sabíamos que era a ultima refeição em que nos sentaríamos como marido e mulher. Era importante que não agíssemos de forma muito diferente diante do pessoal. No entanto, parecia que, a cada momento, nos olhávamos, um em frente do outro, como se tivéssemos acabado de nos conhecer e não soubéssemos como estabelecer conversa. A tensão provocava um excesso de delicadeza. Por duas vezes, começámos a falar ao mesmo tempo.

‑ Continua ‑ incitou ele.

‑ Não. Fala tu desta vez ‑ insisti.

‑ Queria garantir‑te que zelarei para que o estúdio esteja em ordem. Talvez tu e o Beau venham passar férias e possas esgueirar‑te até lá e trabalhares um pouco, se te apetecer. Direi que a obra estava acabada antes de a Ruby ficar assim tão doente.

Esbocei um aceno de concordância, embora não me parecesse que tal pudesse acontecer. Embora tivesse sido Gisselle que contraíra encefalite e não eu, provocava‑me uma sensação estranha falar de mim como se estivesse gravemente doente.

Imaginei as primeiras reacções de todos, reacções a que não assistiria, porque já me teria ido embora. Esperava que as irmãs de Paul ficassem muito tristes. A mãe dele sentir‑se‑ia com toda a probabilidade contentissíma, mas achava que o pai ficaria triste, pois tínhamo‑nos dado bastante bem, apesar da posição de Gladys Tate contra mim. Reinaria o desgosto entre a criadagem e por certo haveria algumas lágrimas.

Mal se espalhasse a notícia pelo bayou, todas as pessoas que me conheciam ficariam tristes. Muitas das amigas da grandmère Catherine iriam à igreja acender uma vela por mim. Enquanto imaginava esta sequência de cenas, invadia‑me uma sensação de culpa por causar todo esse desgosto baseado numa grande falsidade; comecei a mexer‑me, incomodada, na cadeira.

‑ Estás bem? ‑ perguntou Paul, depois de terem levado Os pratos.

‑ Sim ‑ respondi, mas as lágrimas ardiam‑me sob as pálpebras e ondas de calor afluiam‑me ao rosto. A sala pareceu‑me subitamente um forno. ‑ Volto já ‑ anunciei, levantando‑me bruscamente.

‑Ruby!

Saí a correr da sala de jantar e dirigi‑me a uma das casas de banho para refrescar as faces e a testa com água fria. Quando me contemplei ao espelho, vi como o sangue me desaparecera do rosto, dando lugar a uma enorme palidez.

‑ Vais ser punida por fazeres isto ‑ avisei a minha imagem. ‑ Talvez um dia venhas a ficar também gravemente doente.

Sentia a cabeça desfeita. Deveria colocar um ponto final no assunto, antes que fosse demasiado tarde?

Ouviu‑se uma leve pancada na porta.

‑ Ruby. É o Beau ao telefone ‑ anunciou Paul. ‑ Sentes‑te bem?

‑ Sim. Vou já, Paul. Obrigada.

 

Salpiquei a cara com mais água fria, sequei‑a rapidamente e dirigi‑me depois ao escritório para ter uma maior privacidade.

‑ Está?

‑ O Paul disse que não te sentes bem. É verdade?

‑É.

‑ Mas queres ir por diante com o plano, não? ‑ indagou num tom de voz hesitante, com medo de ficar desapontado. Respirei fundo. ‑ Está tudo em ordem ‑ acrescentou, antes de me dar tempo a responder. ‑ Tenho a furgoneta preparada como se fosse uma ambulância, de forma a podermos levá‑la de volta a Cypress Woods, fingindo seres tu. Seguirei o carro do Paul e ajudá‑la‑ei a entrar em casa. Ele ainda continua a querer cooperar, não?

‑ Sim, mas... Beau... e se eu não conseguir?

‑ Vais e deves conseguir. Amo‑te, Ruby, e tu amas‑me e temos uma filha para criar juntos. Era assim que estava destinado. Temos uma oportunidade de vencer o destino. Não a desperdicemos. Prometo que estarei constantemente ao teu lado. Zelarei para que tudo dê certo.

Encorajada pelas palavras dele, voltei a ganhar coragem. O sangue regressou‑me às faces, e o coração deixou de bater com tanta força.

‑ De acordo, Beau. Iremos.

‑ óptimo. Amo‑te ‑ disse e desligou.

Ouvi outro estalido e percebi que Paul estivera a escutar a nossa conversa, mas não tencionava embaraçá‑lo, dando‑lhe a entender que sabia. Saiu para completar qualquer coisa de ultima hora e, quando Pearl terminou a sesta, dei‑lhe o almoço. Depois, levei‑a para o meu quarto e pus‑me à espera. A minha pequena mala e a agenda pareciam patéticas ao lado do toucador. levava tão pouco comigo; porém, quando regressara pela primeira vez ao bayou, ainda trouxera menos, recordei.

Comecei a ficar muito nervosa. Os minutos mais pareciam horas. Quando olhei através da janela, avistei nuvens avançando do sudoeste. Tornavam‑se mais densas e alongadas. O vento soprava agora com mais força e apercebi‑me do início de uma tempestade.

”Um mau presságio”, pensei. Tremia e envolvia o corpo com os braços. Estaria a Natureza, o bayou, a conspirar a fim de me impedir que fizesse aquilo? Sabia que a grandmère Catherine poderia dizer qualquer coisa do género, se se encontrasse ao meu lado nesse momento. Os relâmpagos riscaram o céu e ouviram‑se trovões que deram a sensação de abalar a casa.

Um pouco depois das duas, Paul apareceu à porta do meu quarto e espreitou.

‑ Pronta?

Olhei à minha volta pela ultima vez e esbocei um aceno de cabeça. Os meus joelhos batiam um de encontro ao outro e sentia uma espécie de buraco no estômago; agarrei em Pearl ao colo e inclinei‑me para pegar no saco.

‑ Eu levo ‑ ofereceu‑se Paul, agarrando‑o antes que eu pudesse fazê‑lo. Fitou‑me em busca das minhas mais fundas e reais emoções, mas apressei‑me a desviar os olhos. ‑ Vais sentir a falta de tudo isto, Ruby ‑ declarou, perscrutando‑me com o seu olhar, semelhante, em luminosidade e dureza, ao diamante. ‑ Por mais que digas a ti própria que não, sentirás. Esta região do bayou constitui uma parte tão importante de ti como de mim. Esse o motivo por que voltaste quando te surgiram problemas ‑ rematou.

‑ Poderei sempre voltar, Paul...

‑ Depois de fazermos a troca e procedermos aos trâmites necessários, ser‑te‑á impossível voltares como Ruby ‑ recordou‑me asperamente.

‑ Eu sei ‑ retorqui.

‑ Deves realmente amá‑lo muito para fazeres tudo isto só para estar com ele ‑ redarguiu com uma voz que denotava inveja.

Ao ver que não respondia, suspirou e olhou através da janela, fixando momentaneamente os canais. ”Pobre Paul”, pensei. Uma parte dele ansiava por despejar fúria e raiva sobre Beau e sobre mim, mas outra parte impedia‑o e deixava‑o totalmente frustrado.

‑ Esquece o que acabei de dizer ‑ murmurou. ‑ No entanto, se ele te maltratar ou atraiçoar ou se algo de inesperado acontecer, encontrarei uma forma de voltares ‑ prometeu e virou‑se, olhando‑me bem de frente. ‑ Seria capaz de virar o mundo de pernas para o ar para conseguir ter‑te de novo ao meu lado ‑ acrescentou.

Seria por isso que se mostrava tão cooperante?, interroguei‑me. Porque queria estar ali para me ajudar, se algo corresse mal? No mais fundo da minha alma, sabia que, independentemente do que dissesse ou fizesse, Paul jamais desistiria de mim.

Dirigiu‑se ao quarto de Pearl para ir buscar a mala com as coisas que eu preparara para ela e, em seguida, descemos as escadas rapidamente.

Começara a chover; teríamos de fazer toda a viagem ao som monótono dos limpa‑pára‑brisas a trabalhar. Ao sairmos do enorme acesso, virei‑me uma vez para olhar a enorme casa.

nossas vidas estão cheias de vários tipos de despedidas”, pensei. Podemos dizer adeus às pessoas que amamos, ou às Pessoas que conhecemos durante a maior parte da vida, mas também podemos despedir‑nos de lugares, sobretudo os lugares que se tornam uma parte daquilo que somos.

Já antes dissera adeus ao bayou, pensando que nunca voltaria, mas sempre acreditei que, se o fizesse, ele continuaria a ser o que sempre fora para mim. Desta vez, tinha uma estranha sensação de estar a atraiçoá‑lo, e interroguei‑me sobre se um lugar poderia mostrar‑se tão relutante em perdoar quanto as pessoas.

A chuva abateu‑se como um pesado lençol. Apesar do calor e da humidade, sentia‑me penetrada por um frio invernoso e estremeci. Observei Pearl, mas ela parecia bastante confortável e satisfeita.

‑ Não é curioso até que ponto somos capazes de ir para estarmos com alguém que julgamos amar? ‑ pronunciou Paul subitamente, quase num sussurro. ‑ Um adulto comportar‑se‑á como um miudo, um miudo fará o impossível para parecer adulto. Arriscaremos as reputações, sacrificaremos os bens materiais, desafiaremos os pais, até mesmo as nossas crenças religiosas. Faremos coisas ilógicas e disparatadas, coisas impraticáveis e inúteis apenas por um momento do que pensamos ser o paraíso na Terra.

‑ É verdade ‑ concordei. ‑ Tudo o que afirmas é verdade, mas a consciência dessa verdade não nos impede de fazermos essas coisas.

‑ Eu sei ‑ redarguiu com amargura. ‑ Percebo melhor do que julgas. Sei que nunca conseguiste compreender‑me totalmente... nunca soubeste por que razão queria tanto estar contigo... Agora, tenho a impressão de que começas a entender o que sinto por ti.

‑ Entendo, sim ‑ anui.

‑ óptimo. Sabes uma coisa, Ruby? ‑ Fitou‑me com um olhar gelado. ‑ Um dia, vais voltar. ‑ Pronunciou a frase com uma tal segurança que senti um aperto no coração. Depois virámos para a auto‑estrada e acelerámos, disparando para o meu novo destino, a uma tal velocidade que me cortou a respiração.

Pearl adormeceu durante a viagem. Costumava dormir no carro. Duas horas depois de termos partido, a chuva começou a desaparecer e alguns raios de sol atravessaram a camada de nuvens mais leves. Paul estudou as directrizes que Beau lhe tinha dado e, menos de uma hora depois, descobrimos a estrada para o rancho.

O edificio principal daquilo a que Daphne costumava referir‑se como o seu rancho assemelhava‑se a um castelo. Tinha um telhado ingreme com espiras, pináculo, torreões, empenas e duas chaminés. Os ornamentos metálicos ao longo dos beirais do telhado eram elaborados. As janelas e a ombreira da porta eram em arco.

Á direita, havia duas pequenas casas para os criados e cageiros e, à direita das mesmas, a cerca de mil metros, erguiam‑se estábulos com cavalos e um celeiro. A propriedade tinha campos abertos polvilhados de áreas bosqueadas e um rio atravessando o extremo norte.

Semelhante a um qualquer cháteau da paisagem campestre francesa, possuia belos jardins e dois terraços no relvado da frente, bem como bancos, cadeiras e fontes de pedra. Quando chegámos, os caseiros andavam muito ocupados a aparar sebes e a arrancar ervas daninhas. Era um casal idoso e ergueram os olhos por um mero minuto de curiosidade antes de regressarem ao trabalho, tão rapidamente como se alguém tivesse feito estalar um chicote.

Beau estava na ombreira, ainda antes de termos estacionado o carro. Acenou‑nos para que entrássemos depressa. Pearl ainda estava a dormir e mal pestanejou quando lhe peguei ao colo para seguir Paul até à casa. Beau recuou e sorriu‑me meigamente.

‑ Estás bem? ‑ perguntou.

‑ Sim ‑ respondi, embora me sentisse invadida por um torpor paralisante.

Paul e Beau entreolharam‑se por um momento e depois Beau ficou muito sério e os olhos estreitaram‑se e escureceram.

‑ É melhor apressarmo‑nos ‑ ordenou.

‑ Mostra o caminho ‑ retorquiu Paul num tom áspero.

Entrámos no cháteau. Tinha um pequeno átrio, decorado com reposteiros e grandes quadros paisagisticos. O mobiliário era um misto de moderno com alguns elementos em estilo rústico, semelhantes aos que existiam na casa de Nova Orleães. As luzes eram discretas e as janelas cobertas pelos reposteiros. As sombras dominavam tudo, especialmente as escadas. Subimos apressadamente.

‑ Instalemos primeiro a Pearl ‑ sugeriu Beau e levou‑nos de imediato a um quarto de criança. ‑ Era o antigo berço da Gisselle ‑ disse. ‑ Parece que a Daphne recebia ocasionalmente visitas com filhos. Adorava ser a anfitriã perfeita ‑ declarou.

Pearl gemeu quando a deitei no berço. Esperei um momento para ver se acordava, mas ela limitou‑se a suspirar e pôs‑se de lado. Depois Beau virou‑se para Paul.

‑ Consegui arranjar uma cama de rodas articulada. Ninguém sabe nem suspeita de nada ‑ tranquilizou‑me. ‑ O dinheiro elimina a curiosidade.

‑ Mas não resolve todos os problemas ‑ salientou Paul, desviando o rosto na minha direcção.

Baixei os olhos, e Beau acenou com a cabeça sem dar resposta, conduzindo‑nos para fora do quarto. Seguimo‑lo até ao quarto principal. Gisselle parecia minúscula na enorme cama de dossel com a manta puxada até ao queixo. Tinha o cabelo espalhado pela almofada e estava pálida de morte.

‑ Agora, ela entra e sai de coma ‑ explicou Beau.

‑ Oh, Beau. Ela devia estar num hospital ‑ gemi.

‑ O Paul pode interná‑la, se o médico dele for dessa opinião. O meu achou que não faria muita diferença, desde que recebesse os devidos cuidados.

‑ Encarrego‑me do assunto ‑ prometeu Paul, de olhos fixos em Gisselle. ‑ Receberá a máxima atenção.

‑ Então, comecemos ‑ replicou Beau, obviamente ansioso por dar início ao processo, antes que um de nós mudasse de ideias.

Paul deu a volta à cama, a fim de ajudar a passar Gisselle para a cama articulada que a esperava. Beau inclinou‑se e colocou as mãos por baixo dos braços dela. Gisselle pestanejou mas não abriu os olhos, enquanto ele a erguia e a fazia deslizar para a beira da cama. Esboçou depois um aceno de cabeça a Paul, que lhe agarrou nas pernas. Colocaram‑na na cama articulada. Ela estava vestida com uma camisa de noite de algodão branco e mangas tufadas, com um padrão de flores azuis na parte de cima. Tive a certeza de que Beau a escolhera, sabendo que se tratava de algo que eu usaria.

Tapou‑a com um lençol e depois fitou‑me.

‑ Temos de trocar as alianças ‑ declarou. ‑ Já tirei a dela.

Estendeu‑ma. Queimava‑me os dedos. Fixei Paul, que observava a cena com uma expressão de curiosidade. Era como se estivesse a estudar todos os meus movimentos para se inteirar do que eu faria e de como me sentia em relação às minhas atitudes. Dei meia‑volta e rodei a aliança. Tinha o dedo um pouco inchado e não saiu logo.

‑ Deita‑lhe um pouco de água fria ‑ aconselhou Beau com um aceno de cabeça na direcção da casa de banho.

Voltei a fixar Paul, que parecia feliz com a dificuldade que simbolicamente eu tinha em separar‑me dele.

A água deu uma ajuda e a aliança saiu. Beau apressou‑se a enfiá‑la no dedo de Gisselle.

‑ Mais alguns anéis? ‑ perguntou‑me.

‑ Não. Nenhum que use sempre.

‑ Ela mudava de jóias tão frequentemente que ninguém se lembrará de nada do que usava, à excepção da aliança de casamento. ‑ Começou a empurrar a cama articulada na direcção da porta e depois parou.

‑ Vou trazer a carrinha para diante da casa. Recuarei até aos degraus da frente. Esperem aqui. ‑ Saiu rapidamente e desceu a escada.

Paul observou Gisselle durante um momento; em seguida, emitiu um fundo suspiro e olhou para mim.

‑ Bom, cá estamos metidos em tudo isto ‑ comentou.

O meu coração batia com tanta força que nem conseguia tomar fôlego.

‑ Faz o que o médico te indicar, Paul ‑ pedi.

‑ Não precisas de mo dizer. Claro que farei tudo. ‑ Hesitou um momento e depois acrescentou: ‑ Já falei com um médico sobre o estado dela.

‑ Falaste?

‑ Sim. Esta manhã. Com alguém de Baton Rouge.

‑E?

‑ Há hipótese de que ela recupere ‑ respondeu, de olhos fixos em mim. Era, então, esta a sua esperança: que Gisselle recuperasse a saúde, forçando‑me a regressar a Cypress Woods.

Estive quase a decidir‑me a pôr cobro à nossa troca de identidades.

‑ Fica um momento com ela ‑ sugeriu Paul, sem me dar tempo a qualquer observação; depois, desceu para falar com Beau.

A sós com a minha irmã gémea, aproximei‑me da cama articulada e agarrei‑lhe na mão fria.

‑ Gisselle ‑ sussurrei. ‑ Não sei se consegues ouvir‑me, se são apenas os teus olhos que se encontram fechados e não a tua mente, mas quero que saibas que nunca fiz nada para te magoar e que, agora, também não estou a fazer nada contra ti. Até mesmo tu, na doença, deves entender que o destino tomou as rédeas e resolveu a nossa sorte. Lamento que estejas tão doente. Nada fiz para te provocar esse mal, excepto se quiseres dizer que o meu amor pelo Beau é tão grande que devo ter levado os espíritos a decidirem que fomos feitos um para o outro. No mais recôndito do teu coração, sei que também acreditas que pertencemos um ao outro.

Inclinei‑me e beijei‑a na testa. Um momento depois ouvi Biau e Paul a subirem as escadas.

- Empurra‑a até ao cimo dos degraus ‑ instruiu Beau. - Depois, dobro as pernas da cama articulada e transportamo‑la para baixo.

- Vão com cuidado ‑ avisei.

Os dois tiveram algumas dificuldades nos degraus, mas conseguiram levá‑la rapidamente. Beau voltou a soltar as pernas e as rodas da cama articulada e empurraram‑na até à ombreira da porta. Segui‑os até lá fora e fiquei a vê‑los colocar a cama nas traseiras da carrinha. Beau fechou a porta e os dois viraram‑se para trás e fitaram‑me. Decorrido um momento, Paul subiu a escada.

‑ Acho que chegou a hora da despedida... por agora - disse, inclinando‑se para me beijar. Fiquei a vê‑lo percorrer o caminho de regresso à carrinha.

‑ Voltarei assim que puder ‑ prometeu Beau.

‑ Beau. ‑ Agarrei‑lhe na mão. ‑ Ele acha que um dia a Gisselle vai recuperar e teremos de voltar às nossas verdadeiras identidades.

Beau abanou a cabeça.

‑ O médico garantiu‑me que isso não acontecerá.

‑ Mas...

‑ É demasiado tarde para retroceder, Ruby ‑ interrompeu. ‑ Mas não te preocupes. É assim que devia ser. ‑ Também me beijou e depois dirigiu‑se ao carro de Paul. No entanto regressou apressadamente até junto de mim, o que me levou a suster a respiração, esperando que tivesse decidido não prosseguir com o plano; no entanto, não era isso.

‑ Quase me esquecia. Só para saberes ‑ declarou. ‑ Os caseiros chamam‑se Gerhart e Anna lenggenhager. Ambos têm um sotaque alemão tão pronunciado que não perceberás metade do que dizem, mas não te preocupes. A Gisselle nunca lhes falava, excepto para gritar qualquer ordem. Não tinha paciência quando se tratava de os compreender. Mas são pessoas muito simpáticas. O nome da criada é Jill e o da cozinheira Dorothea. Deixei instruções para que te levassem o jantar à suíte. Ninguém achará estranho. A Gisselle comia muitas vezes no quarto.

‑ E a Pearl?

‑ Limita‑te a indicar à Jill o que queres que lhe arranjem. Eles sabem que a nossa sobrinha viria. E não te preocupes. Ninguém fará perguntas. Foi tudo pensado ao pormenor ‑ garantiu‑me, depois do que voltou a beijar‑me e regressou à carrinha.

Deixei‑me ficar a observá‑los afastarem‑se. Quando olhei para a esquerda, dei‑me conta de que Gerhart e Anna me observavam. Viraram costas rapidamente e dirigiram‑se à casa deles. Entrei novamente no edificio com o coração a bater descontroladamente. Pensei em explorar o local, mas resolvi em vez disso subir até junto de Pearl e verificar se ela acordara e não tinha estranhado o sitio. Sabia que poderia assustá‑la. A minha inquietação aumentava, à medida que ia tomando plena consciência do sítio onde me encontrava.

A expressão dos olhos de Jill quando veio receber ordens, um pouco mais tarde, indicou‑me que temia Gisselle. Pearl acordara e tinha‑a comigo na suíte. Jill bateu tão ao de leve à porta que da primeira vez não a ouvi.

‑ Sim? ‑ disse. Ela abriu a porta devagar e avançou somente uns centímetros. Era uma rapariga alta e magra com rosto de pássaro, a boca pequena, o nariz afilado e os olhos pretos afitodados. Usava o cabelo castanho‑escuro muito curto.

‑ A Dorothea quer saber se a madame deseja alguma coisa especial esta noite.

Hesitei um momento, consciente de que esta seria a primeira vez em que falaria com alguém na pele da minha irmã, Gisselle. Primeiro, imaginei‑a, lembrando‑me da forma como sempre esboçava um trejeito aborrecido quando um criado formulava uma pergunta ou um pedido.

‑ Apetece‑me uma refeição ligeira. Apenas um pouco de frango e arroz com salada e água gelada ‑ respondi no tom mais indiferente que consegui e desviando os olhos rapidamente.

‑ E a menina?

Dei‑lhe instruções para a refeição de Pearl com a mesma

firmeza, e ela esboçou um aceno de cabeça, retirando‑se a toda

a pressa e aparentemente feliz por não ouvir mais nenhum recado. ”A Gisselle era uma megera”, pensei. Seria incapaz de agir exactamente como ela.

 

Mais tarde, quando nos trouxe a comida e pôs a mesa, Jill arriscou um sorriso em direcção a Pearl, que a mirava com muito interesse. Contudo e logo a seguir, deitou‑me um olhar receoso, esperando ser repreendida por levar demasiado tempo ou distrair‑se. Optei pelo silêncio em vez de tentar mostrar‑me arrogante.

‑ Mais alguma coisa, madame? ‑ perguntou.

‑ De momento, não. ‑ Ia a agradecer, mas dominei‑me, lembrando‑me que era uma expressão que Gisselle raramente usava, excepto de forma sarcástica. Jill também não estava à espera que o fizesse. Já se virara, encaminhando‑se para a saída.

Não pensei que tivesse muito apetite, mas estava tão nervosa que era como se um pássaro se tivesse alojado no meu estômago e batesse as asas. Achei que seria melhor comer qualquer CoIsa. Embora tudo estivesse delicioso, comi mecanicamente, incapaz de fazer algo excepto interrogar‑me sobre o que estava a acontecer, como Paul e Beau se encarregariam de Gisselle.

Pensei no choque estampado no rosto de todos quando Paul informasse que algo sucedera e que tinham decidido trazer‑me rapidamente de volta. Fiquei em ânsias até ouvir passos na escada muitas horas mais tarde e abri a porta, avistando Beau, que subia os degraus a dois e dois. Sorriu ao ver‑me.

‑ Correu tudo bem ‑ informou‑me logo, tomando fôlego. - Os teus criados engoliram o isco e o anzol. ‑ Agarrou‑me

nas mãos. ‑ Bem‑vinda à sua nova vida, Mistress Andreas, à vida que lhe estava destinada.

Fitei‑o e pensei: ”Sim... Sou Mistress Andreas, Mistress Beau Andreas.”

Abraçou‑me e apertou‑me com força por um momento, antes de me beijar na testa, para depois percorrer o rosto e premir firmemente os lábios contra os meus.

 

A nossa primeira noite juntos como marido e mulher não foi tão romântica como ambos tínhamos previsto. Apesar do rasgo de coragem, Beau estava tão emocionalmente esgotado pela provação quanto eu. Depois de nos mantermos deitados na cama algum tempo, abraçando‑nos e beijando‑nos, revelou como se sentira tenso e nervoso com a mudança.

‑ Não sabia muito bem o que o Paul iria fazer ‑ declarou. ‑ Para ser honesto, quase esperava que ele fosse sabotar tudo deliberadamente. Sobretudo depois do que me disseras na escada da frente. Comecei a aperceber‑me do quanto ele detestava a ideia de perder‑te ‑ rematou.

‑ Antes de levares a Gisselle para o carro, ele foi até lá abaixo falar contigo. O que te disse? ‑ inquiri.

‑ Foi mais do género de me avisar e ameaçar.

‑ Porquê? O que te disse?

‑ Disse que só acedia porque estava convencido de que era o que desejavas e o que pensavas que te faria feliz, mas se ouvisse uma única coisa negativa sobre a nossa relação, se fizesse algo que te tornasse infeliz, revelaria a troca e poria a nu o nosso embuste. Garantiu‑me que não lhe importava a sua reputação nem as consequências que isso pudesse acarretar‑lhe. Acredito nele, por isso, nunca lhe contes nada de mau ‑ retorquiu Beau com um semi‑sorriso.

‑ Não haverá nada de mau para lhe contar, Beau.

‑ Não. Não haverá ‑ prometeu. Beijou‑me de novo e começou a acariciar‑me, mas eu estava exausta e ainda demasiado nervosa.

‑ Guardemos as nossas noites de lua‑de‑mel para Nova Orleães ‑ decidiu.

Esbocei um aceno de concordância e adormecemos nos braços um do outro.

O nosso plano era o de regressarmos imediatamente a Nova Orleães, explicando que algo de terrível acontecera à minha irmã Ruby, tendo nós de cuidar da filha dela entretanto. Ninguém pareceu especialmente perturbado por deixarmos o cháteau tão depressa. Julguei, pelo contrário, detectar uma expressão de alívio nos rostos de Gerhart e de Anna e uma genuína felicidade no de Jill.

No caminho de regresso a Nova Orleães, Beau revelou que se libertara de toda a criadagem da casa dos Dumas.

‑ Oh, não! ‑ exclamei, sentindo pena de todos eles.

‑ Não te preocupes ‑ tranquilizou‑me. ‑ Não morriam propriamente de amores por servirem a Gisselle e dei seis meses de salário como compensação a todos. É melhor começarmos com outras pessoas. Será muito mais fácil para ti ‑ retorquiu, e vi‑me forçada a concordar.

Para mim, o facto de voltar à casa dos Dumas foi talvez a parte mais difícil do nosso embuste. Estava um dia bastante nublado em Nova Orleães, com o Sol apenas brindando ocasionalmente o mundo com uns raios de luz. As sombras lançadas pelas pesadas nuvens tornavam mais escuras as longas áleas ladeadas de carvalhos, e o próprio Garden District, com as suas ricas e bonitas casas e os luxuriantes jardins, parecia‑me triste e deprimente.

Todas as janelas tinham as persianas corridas naquela mansão de mármore que havia sido outrora o lar feliz do meu pai. Privada de actividade no interior e nas redondezas, a propriedade parecia tão deserta e solitária que o coração me pesava dentro do peito como um bocado de chumbo.

Quando avançámos até à varanda da frente, quase esperei que a minha madrasta, Daphne, surgisse na ombreira da porta e exigisse saber o que estávamos a fazer ali. Contudo, ninguém apareceu; nada se mexeu, à excepção de um ocasional esquilo cinzento cuja curiosidade fora desperta pela nossa chegada.

‑ Chegámos a casa ‑ declarou Beau.

Esbocei um aceno de cabeça, de olhos fixos na escada de mosaico e na porta da frente.

‑ Descontrai-te ‑ pediu, agarrando‑me na mão e sacudindo-a como se pudesse assim afastar o nervosismo do meu corPo. ‑ Vai correr tudo bem.

Obriguei‑me a sorrir e fitei esperançada os seus olhos azuis, brilhantes de excitação. Como estávamos longe daquele primeiro dia em que eu chegara em segredo do bayou e ele me conhecera diante da mansão, boquiaberta e cheia de expectativa por ante ver‑me pela primeira vez em frente do meu verdadeiro pai. Agora, parecia ainda mais irónico e talvez mais profético que, nessa altura, Beau me tivesse confundido com Gisselle, julgando que ela se disfarçara de rapariga pobre para o baile de máscaras de terça‑feira de Carnaval.

Beau encarregou‑se da bagagem e peguei em Pearl ao colo. Ela observava tudo curiosamente. Dei‑lhe um beijo na face.

‑ Esta vai ser a tua nova casa, querida. Espero que te traga melhor sorte do que a mim.

‑ Trará ‑ prometeu Beau.

 

Caminhou na nossa frente até à porta principal e destrancou‑a. Acendeu de imediato os lustres, pois o céu sombrio tornava o átrio frio e escuro. As luzes fizeram com que o chão de mármore cor de pêssego brilhasse, indo iluminar o mural do tecto, os quadros e a enorme tapeçaria, onde se desenhava um grande palácio francês com jardins. Pearl tinha os olhos arregalados de espanto. Apreendeu tudo rapidamente com o olhar, mas abraçou‑me com força.

‑ Por aqui, madame ‑ chamou Beau, e a voz ecoou pela mansão vazia.

Enquanto avançava na nossa frente, acendia todas as luzes que podia. Segui‑o rapidamente até à bonita escadaria em caracol, com os degraus forrados de uma macia alcatifa e a balaustrada de mogno reluzente.

Apesar do mobiliário antigo, dos quadros luxuosos e das amplas divisões, aquela grande casa nunca havia sido um lar para mim. Eu era uma estranha de uma terra estranha quando aqui viera viver e, nesse momento, ainda me sentia mais distante.

Quando pousara os olhos pela primeira vez no interior da mansão, parecera‑me mais um museu do que uma casa. Agora, com as amargas e tristes recordações ainda bem presentes na memória, sabia que seria um esforço enorme torná‑la confortável e calorosa, bem como sentir‑me bem‑vinda e segura ali

‑ Pensei que talvez quisesses que a Pearl ficasse no teu antigo quarto ‑ sugeriu Beau.

Abriu a porta do que havia sido o meu quarto e recuou, sorrindo, como um gato satisfeito.

‑O que é?

Espreitei para o interior. Havia um berço semelhante ao que Pearl tinha em Cypress Woods, com um armário a condizer e ainda uma pequena secretária e cadeira. Abri a boca de espanto.

‑ Mas como...

‑ Regressei a Nova Orleães logo depois da nossa conversa e paguei a um negociante de móveis o dobro do preço para arranjar tudo para ela ‑ explicou. ‑ Depois, voltei rapidamente para o rancho.

Abanei a cabeça, surpreendida.

‑ Quero que resulte ‑ declarou num tom suave mas determinado. ‑ Para todos.

‑ Oh, Beau. ‑ Os olhos encheram‑se‑me de lágrimas. Pearl parecia feliz e estava ansiosa por explorar o seu novo mundo.

- Vou fazer uns telefonemas e pôr a bola a rolar para conseguirmos novos criados. A agência enviará candidatos para mordomo, criada e cozinheira.

‑ O que vão dizer as pessoas quando ouvirem falar no despedimento da criadagem? ‑ perguntei.

‑ Nada. Não será uma surpresa. De qualquer maneira, tenho a certeza de que todos se queixavam da Gisselle. Depois da morte da Daphne e do afastamento do Bruce desta casa, tornou‑se tão tirana e exigente que tive pena deles. Na verdade, vi‑me até obrigado a suplicar‑lhes que não se fossem embora. ‑ Fez uma pausa. ‑ A Gisselle e eu ficámos com a suíte da Daphne e do Pierre ‑ disse. ‑ Podes pôr‑te à vontade ‑ sugeriu.

 

Peguei novamente em Pearl e segui‑o ao longo do corredor. Muito pouco mudara na suíte. Continuava a ter a grande cama de dossel e elaborados reposteiros de veludo nas janelas. Contudo, o toucador encontrava‑se em grande desordem e havia alguma roupa atirada para o sofá.

‑ A Gisselle não era um exemplo de arrumação. Não respeitava os seus bens porque estava constantemente a substitui‑los. Passávamos o tempo a discutir por causa disso ‑ replicou Beau.

A porta do roupeiro estava aberta, revelando‑me uma ampla exposição de saias, blusas e vestidos, alguns precariamente penduradas dos cabides e outros caídos no chão do roupeiro.

‑ A Gisselle vai sofrer algumas notórias mudanças de personalidade ‑ comentei.

Beau riu‑se.

‑ Não com demasiada rapidez ‑ avisou.

O telefone tocou e ambos olhámos para ele.

‑ Não temos de responder ‑ disse Beau.

‑ Talvez seja o Paul. Temos de começar algum dia e podemos fazê‑lo de imediato, Beau. Se não conseguir enganar desta vez, ficaremos logo a saber.

Ele esboçou um aceno de cabeça e pareceu apreensivo quando me dirigi ao telefone.

‑ Espera ‑ chamou. ‑ Se for uma das amigas dela, saberei qual. ‑ Pegou, no auscultador. ‑ Está? ‑ Escutou. - Sim. Ela está aqui. É a Pauline ‑ indicou e estendeu‑me o auscultador. ‑ Pode ser perversa ‑ sussurrou.

Agarrei no auscultador com mãos trémulas.

‑ Sim?

‑ Gisselle? Telefonei para o rancho e disseram‑me que tinhas viajado para Nova Orleães. Julguei que ias ficar mais uma semana. Convenci o Peter a ir até lá. Pensei que teríamos uma festa, afinal... É uma sorte ter decidido telefonar antes. Poderia ter feito toda a viagem para nada. O que aconteceu? Porque não me telefonaste? ‑ acrescentou, irritada.

Respirei fundo, lembrei‑me de como a minha irmã falava ao telefone e respondi:

‑ O que aconteceu? ‑ disse. ‑ Ora, foi só uma desgraça.

‑ O quê? ‑ exclamou Pauline.

‑ A minha irmã apareceu de visita e foi mordida por mosquitos ‑ expliquei, como se a culpa fosse da minha irmã.

‑ Isso é uma desgraça?

‑Apanhou... Beau, como é que se chama aquela estúpida doença?

Ele sorriu‑me.

‑Encefa... qualquer coisa ‑ proferi, depois de ter fingido escutar. ‑ Está em coma e tive de trazer a criança comigo.

‑ A criança?

‑ A filha da minha irmã.

‑ Estás a tomar conta de uma criança? ‑ indagou, surpreendida.

‑ Até contratar alguém ‑ redargui, petulante. ‑ Porquê?

‑ Nada. Como sei o que pensas das crianças...

‑ Não sabes nada sobre mim, Pauline ‑ ripostei na minha melhor imitação da voz de Gisselle.

‑ Desculpa!

‑ Estás desculpada.

‑ Só queria dizer...

‑ Sei o que querias dizer. Olha, neste momento não tenho tempo para perder ao telefone com conversas estúpidas. Tenho responsabilidades mais importantes.

‑ Desculpa. Não te incomodarei.

‑ óptimo. Adeus ‑ despedi‑me e pousei o auscultador.

‑ Incrível! ‑ exclamou Beau. ‑ Por um momento, julguei que eras a Gisselle e que tinha realmente levado a Ruby de volta a Cypress Woods.

A própria Pearl fitava‑me com uma expressão admirada.

Respirei aliviada. Talvez não fosse tão difícil como imaginara, pensei. Na verdade, Beau ficou tão impressionado com a minha actuação que decidiu que devíamos ir a um dos luxuosos restaurantes frequentados por ele e Gisselle e deixar que a sociedade de Nova Orleães ficasse o mais depressa possível ao corrente da história.

Senti um aperto de pânico no estômago.

‑ Achas, Beau? Talvez seja demasiado cedo.

‑ Que disparate! ‑ ripostou, confiante. ‑ Instala‑te, escolhe qualquer roupa, algo do género da Gisselle ‑ salientou ‑, e eu vou tratar de uns negócios. Bem‑vinda a casa, querida ‑ disse, beijando‑me ternamente nos lábios.

Sentia‑me receosa quando ele saiu apressadamente e me voltei para examinar o roupeiro da minha irmã.

 

DUPLA IDENTIDADE

A nossa primeira noite como Beau e Gisselle Andreas foi um grande sucesso. Pus um dos vestidos sem alças de Gisselle com um corpete justo. Beau riu ante a forma como reagi à minha imagem no espelho. Quase todos os vestidos dela tinham decotes cavados que revelavam mais dos seios do que eu desejaria.

‑ A tua irmã ia sempre até aos limites quando se tratava do que era ou não aceite pela sociedade ‑ declarou Beau. - Julgo que lhe agradava irritar a alta sociedade.

‑ Bom, não é o meu caso.

‑ Mesmo assim, estás encantadora ‑ elogiou, recuando com um sorriso sensual estampado no rosto. Riu. ‑ Nada havia que a Gisselle mais gostasse do que entrar num elegante e luxuoso restaurante e fazer com que as cabeças se virassem à sua passagem.

‑ Corarei tanto que todos vão saber quem sou realmente!

‑ Pensarão que é uma forma de sedução por parte da Gisselle ‑ comentou Beau.

Cabeças viraram‑se quando entrámos no restaurante. Beau levava ao colo Pearl, que parecia adorável com o conjunto de marinheiro que lhe tínhamos comprado. Tentei imaginar a arrogância e insolência de Gisselle, mas, quando as pessoas me fitavam, os rostos transformavam‑se numa mancha gigantesca e baixava instintivamente os olhos.

Todavia, nenhum dos conhecidos de Beau e Gisselle deu mostras de qualquer suspeita. Atribuíam à actual situação trágica qualquer nervosismo ou comportamento invulgar detectados. Gisselle nunca perdia uma oportunidade de exibir o seu sofrimento perante os outros. Reparei, porém, que a maioria das pessoas denotava mais compaixão por Beau do que por mim e apercebi‑me rapidamente de que aquelas amizades de Beau e Gisselle se deviam sobretudo a ele.

Ao cumprimentar, Beau anunciava argutamente o nome das pessoas, antes que eu tivesse de dizer algo.

‑ Marcus, Lorraine, como estão? ‑ perguntou, quando eles se aproximaram da mesa.

‑ De quem é esta encantadora criança? ‑ inquiriam quase todos.

‑ Da minha irmã ‑ respondia com um trejeito. ‑ Mas por agora e talvez para sempre encontra‑se à minha responsabilidade.

‑Oh!

A surpresa dava o mote para que Beau explicasse. Sempre que alguém denotava simpatia por mim, tal devia‑se apenas ao fardo que tinha de suportar.

‑ Como podes ver ‑ comentou Beau no regresso a casa ‑, na sua maioria, as amizades da Gisselle são artificiais. Costumava reparar que nem sequer se ouviam ou se interessavam muito pelo que diziam entre si.

‑ As cobras da mesma cor atraem‑se, costumava dizer a Grandmère - respondi‑lhe.

 

Ficámos ambos tão encorajados pelas minhas primeiras actuações no papel da minha irmã, que o coração nos batia leve e alegremente quando voltámos a casa. Beau marcara entrevistas para o dia seguinte, esperando contratar novos criados assim que possível.

Deitei Pearl no seu novo berço no meu antigo quarto, pensando como era maravilhoso que tal acontecesse. O meu pai orgulhara‑se tanto das minhas reacções perante a casa, os jardins da propriedade. Para mim, fora uma porta para o País das Magias. Quem me dera que também o fosse para Pearl.

Beau veio por trás de mim e pousou as mãos nos meus ombros e os lábios no pescoço.

‑ Sentes‑te melhor? ‑ inquiriu meigamente.

‑ Sim.

‑ Um bocadinho feliz?

‑ Um bocadinho ‑ anui.

Riu‑se e virou‑me para ele, beijando‑me longa e apaixonadamente. Em seguida, um pequeno sorriso desenhou‑se‑lhe nos lábios bem modelados.

‑ Sabes que esta noite estavas muito sexy?

‑ Em frente da Pearl, não ‑ repreendi suavemente quando Os dedos começaram a baixar a parte da frente do vestido. Riu e pegou‑me ao colo para me levar para a nossa suíte. Depois de me ter pousado cuidadosamente na cama, recuou e esboçou um estranho sorriso.

‑ O que foi? ‑ indaguei.

‑ Vamos fingir que é esta realmente a nossa primeira noite juntos como marido e mulher, a nossa noite de lua‑de‑mel. Nunca fizemos amor um com o outro. Acariciámo‑nos, beijámo‑nos longamente, mas sempre te respeitei quando te fiz a corte e sempre me disseste que esperasse. Bom. Agora somos casados; agora, chegou a altura ‑ declarou.

‑ Oh, Beau...

Ajoelhou‑se e pôs‑me os dedos nos lábios.

‑ Não fales ‑ pediu. ‑ As palavras são despropositadas agora.

Sentei‑me calmamente, enquanto ele me fazia deslizar o vestido pelos braços. Beijou‑me os ombros, agora reluzentes à luz suave do luar que entrava pela janela do nosso quarto. Desapertou‑me o soutien e tirou‑mo.

Por momentos, limitou‑se a contemplar‑me. O coração batia‑me com tanta força que julguei que ele pudesse ver o palpitar. Começou a acariciar‑me devagar. Gemi e deitei‑me para trás nas macias e fofas almofadas. Fechei os olhos e fiquei a ouvir o som da roupa dele a cair. Permaneci muito quieta, enquanto ele acabava de me despir e, momentos depois, fazia deslizar o corpo nu sobre o meu.

”Curioso o poder que a ilusão tem sobre nós”, pensei, porque fizemos amor como se fosse a primeira vez. Cada beijo era um beijo novo, cada caricia uma caricia nova. Fizemos descobertas mútuas, escutámos os gemidos e respiração ofegante de ambos, como se se tratasse de coisas nunca ouvidas. A nossa paixão era tão grande e tão profunda que me provocou lágrimas de prazer. Se dantes declaráramos o nosso amor, declarámo‑lo, agora, centenas de vezes enquanto acariciávamos repetidamente o mais fundo de nós.

 

Foi exaustivo mas levou‑nos ao êxtase, deixando‑nos cansados mas satisfeitos. Todos os problemas e dificuldades que tínhamos pela frente perderam significado. O amor ofereceu‑nos uma sensação de invulnerabilidade, pois uma paixão como a nossa decerto seria abençoada e protegida. Era imortal, indestrutível, invencível. Adormecemos nos braços um do outro, cheios de confiança, e os meus sonhos ganharam as asas da fantasia.

O toque do telefone de manhã cedo, ainda antes de Pearl acordar, sobressaltou‑nos. Beau resmungou. Por uns momentos esqueci‑me onde estava. Pestanejei, confusa, e esperei que a minha memória acertasse o passo com os sentidos. Beau pegou no auscultador e sentou‑se na cama com esforço.

‑ Está? ‑ perguntou num tom rouco. Escutou durante tanto tempo sem falar que fiquei curiosa; afastei o sono dos olhos e sentei‑me ao lado dele.

‑ Quem é? ‑ sussurrei.

Tapou o auscultador com a mão.

‑ O Paul ‑ respondeu e voltou a escutar. ‑ óptimo. Fizeste o que devias. Mantém‑nos ao corrente. Não. Ela ainda está a dormir ‑ acrescentou, fazendo‑me sinal com os olhos.

‑           Eu digo‑lhe. Certo. Obrigado. ‑ Desligou o telefone.

‑O que foi?

‑ Disse que o médico aconselhou a que se internasse a Gisselle num hospital para fazer testes. O médico fez um diagnóstico inicial semelhante ao do meu, mas não se mostrou tão pessimista quanto ao resultado.

‑ Como é que ela passou a noite? ‑ inquiri.

‑ O Paul disse que teve alguns períodos de consciência, mas balbuciava coisas tão incoerentes que ninguém suspeitou de nada.

‑ O que vai acontecer, Beau?

‑ Não sei. O meu médico mostrou‑se tão peremptório a respeito da sua condição. ‑ Pensou um momento e abanou a cabeça. ‑ Não me parece que algo se modifique.

‑ Não quero ver‑me a desejar que ela fique doente e morra, Beau. Seria infelicissima, sabendo que a minha felicidade se baseava nesse desejo.

‑ Eu sei. Não interessa o que desejares, acredita ‑ declarou num tom seguro. ‑ Tudo isto se situa para lá do que qualquer de nós deseja, até mesmo o Paul ‑ acrescentou. ‑ Bem. Podes sair da cama e começar o dia. ‑ levantou‑se, mas eu deixei‑me ficar sentada.

As manhãs tinham sempre uma forma de nos acordar para a realidade, reflecti. A realidade cavalgava na cauda do sol, apagando a magia que experimentávamos sob as estrelas e ao luar. Ouvi o choro de Pearl e levantei‑me, ao mesmo tempo que a sensação de recomeçar se instalava.

Há algum tempo que não entrava numa cozinha, mas cozinhar para mim assemelhava‑se a andar de bicicleta. Mal deitei mãos ao trabalho, lembrei‑me de tudo e não só preparei o nosso pequeno‑almoço, como comecei igualmente a fazer gumbo para a nossa refeição posterior. Beau ignorava se conseguiria regressar para o almoço.

‑ Desde que o Bruce se foi embora que tenho dirigido as empresas da família Dumas ‑ explicou. ‑ A Gisselle pouco mais fazia, obviamente, do que levantar cheques e gastar dinheiro. Os negócios aborreciam‑na.

‑ Era o Paul quem se encarregava sempre dos nossos assuntos ‑ repliquei ‑, mas não me importaria de participar e tornar‑me uma verdadeira mulher de negócios.

Ele abanou a cabeça.

‑ Porque não? ‑ inquiri.

‑ Todos os que trabalham para nós sabem como é a Gisselle.

‑ Diz‑lhes que sofri uma súbita mudança de temperamento devido ao que aconteceu à minha irmã. Diz‑lhes que... me tornei religiosa.

‑ Religiosa? A Gisselle? Ninguém acreditaria nisso, mon chére.

‑ Bom. Então, diz‑lhes que me lançaram um feitiço vudu ‑ sugeri meio a sério.

‑ De acordo ‑ anuiu, a rir. ‑ Arranjaremos maneira de explicar os teus novos interesses. Teremos de avançar com cautela, a fim de não levantar suspeitas. Farei o que tem de ser feito. Tenho três entrevistas marcadas com início às duas da tarde: candidatos a mordomo, criada e cozinheira.

‑ Podia encarregar‑me da cozinha ‑ sugeri.

‑ A Gisselle era incapaz de ferver água sem a deixar queimar ‑ lembrou‑me.

Sentia‑me uma graciosa bailarina que se via repentinamente obrigada a parecer desajeitada. Todos os meus talentos tinham de permanecer ocultos. Beau beijou‑me na face, beijou Pearl e saiu apressadamente para o escritório.

Depois de se ter ido embora, levei Pearl a conhecer a nossa nova casa. Ela adorou os nossos terraços, repuxos e jardins, mas mostrou‑se especialmente entusiasmada quando entrou no meu antigo estúdio. Soltou uma gargalhada ante a descoberta familiar de cavaletes, molduras, tintas, óleos e argila. Bateu palmas, pousei‑a no chão e dei‑lhe lápis de cor e algum papel para se entreter, enquanto eu começava a reorganizar o meu estúdio.

Embrenhei‑me a tal ponto no trabalho e na recordação do quadro que pintara ali que só ouvi as pancadas no caixilho da janela momentos depois de terem começado. Tornaram‑se mais intensas e, ao virar‑me, avistei um homem jovem, de cabelo encaracolado, que me sorria. Estava vestido com uma camisa azul de manga curta e calças de ganga; a camisa aberta no peito revelava uma corrente de ouro com um medalhão. Era um homem elegante, com mais de um metro e oitenta, rosto moreno. olhos castanho‑claros, cabelo muito claro e não me parecia ter mais de vinte e quatro ou vinte e cinco anos.

‑ Abre a janela ‑ gritou.

Caminhei devagar na sua direcção e abri o fecho.

‑ A Pauline disse‑me que tinhas voltado. Porque não telefonaste? ‑ perguntou, ao mesmo tempo que se punha a trepar pela janela.

Recuei, surpreendida, mas demasiado chocada e confusa para falar. Mal se viu lá dentro, estendeu as mãos para me agarrar pelos ombros, beijando‑me apaixonadamente nos lábios, rodando a cabeça e enfiando a língua na minha boca. Soltei uma exclamação abafada e furtei‑me ao abraço.

‑ O que há? ‑ retorquiu, com um trejeito. ‑ A Pauline contou-te alguma coisa? Se assim foi, não é verdade. A Helaine Delmarco só esteve aqui uns dias e os pais dela e os meus são como família. Penso nela como tu pensarias na tua irmã.

‑ A Pauline não me contou nada ‑ garanti.

‑ Oh! ‑ Ouviu Pearl com o seu balbuciar de criança e, ao espreitar pelo canto do sofá, avistou‑a sentada no chão. - Quem é?

‑ A filha da minha irmã. É esse o motivo por que regressámos tão depressa. A minha irmã ficou muito doente. Está no hospital e eu estou a cuidar da criança.

‑ A sério? Tu? Ofereceste‑te como voluntária?

‑ Não propriamente.

‑ Calculo ‑ comentou, a rir. ‑ Acho que não o farias. Nesse caso, tudo bem. Perdoo‑te. ‑ Avançou novamente na minha direcção. ‑ O que se passa? ‑ indagou quando recuei um passo e depois sorriu. ‑ Estive à espreita até ter a certeza de que o Beau se demoraria um bocado. Onde foi ele? Ao escritório?

‑ Não. Volta daqui a pouco ‑ repliquei.

‑ Oh! Que pena ‑ murmurou, desapontado. ‑ Julguei que iríamos recuperar o tempo perdido. Sobretudo aqui. Vivemos uns bons bocados aqui, não? ‑ replicou, com um sorriso lascivo estampado no rosto. ‑ Neste mesmo sofá ‑ acrescentou. ‑ Continuo sem saber porque é que era tão importante que o fizéssemos aqui ‑ continuou. ‑ Na verdade, tanto quanto me lembro, era um pouco desconfortável. Não que esteja a queixar‑me ‑ rematou.

Aquela revelação surpreendeu‑me tanto que a expressão do meu rosto o intrigou.

‑ O que se passa? Não te recordas? Fazes amor tantas veZes e em tantos lugares que te esqueceste?

‑ Não me esqueci de nada ‑ retorqui, com ar enfatuado.

Esboçou um aceno de cabeça e voltou a fitar Pearl.

‑ Então, quando é que te vejo? Podes ir ao meu apartamento mais tarde?

‑ Não ‑ recusei, talvez com demasiada rapidez. Ele semicerrou os olhos e continuou a examinar‑me, curioso. O bater acelerado do coração ruborizou‑me as faces. Sabia que estava coradíssima.

‑ Por qualquer motivo, não és tu...

‑ E serias, se a tua irmã gémea tivesse apanhado uma doença fatal e te deixassem a cuidar da filha dela porque o marido estava demasiado perturbado?

‑ Fatal? Lamento. Não tinha percebido que era assim tão sério.

‑ Mas é ‑ ripostei.

‑ Porque é que não contratas alguém para tratar dela por ti? ‑ indagou, passado um momento.

‑ Tenciono fazê‑lo, mas não já. Pelo menos, tenho de fingir que me importo ‑ redargui.

‑ Ela é uma bonita rapariguinha ‑ observou, fitando novamente Pearl. ‑ Mas todas as crianças são assim. ‑ Avançou novamente na minha direcção, com um olhar meigo e suplicante e os lábios rasgados num sorriso lascivo. ‑ Senti a tua falta. Não sentiste a minha?

‑ Sinto a falta da minha liberdade ‑ ripostei.

Pareceu não apreciar a resposta e fez um trejeito.

‑ Não te mostraste tão indiferente na noite antes de te ires embora. Gemeste tão alto que julguei que teria problemas com os vizinhos.

‑ Ah, sim? ‑ redargui, indignada. ‑ Pois não terás mais problemas com os vizinhos. Soltarei os meus gemidos em casa ‑ acrescentei, com as mãos nas ancas, bem à maneira de Gisselle, e meneando a cabeça.

‑O quê?

‑ Foi isso o que ouviste. ‑ A minha voz adquirira o tom cortante da navalha. ‑ Agora, vai‑te embora antes que o Beau regresse e tenhas de justificar as mossas à família.

Abanou a cabeça.

‑ Até parece que és tu quem tem a doença fatal e não a tua irmã.

‑ Queres sair daqui? ‑ protestei, impaciente, apontando para a janela.

‑ Mudarás de opinião ‑ garantiu. ‑ Vais aborrecer‑te e telefonar. Sei que o farás.

‑ Não contes muito com isso.

A minha reacção confundiu‑o. Percebi que se esforçava por compreender e construiu uma teoria.

‑ Encontraste outra pessoa, é? ‑ acusou. ‑ Quem? O Kurt Peters? Não, não irias para a cama com o Kurt. Não tem pedalada para ti. Ah, já sei. O Henry Martin, não é?

‑Não.

‑ É o Henry, não é? ‑ Esboçou um aceno de cabeça a convencer‑se. ‑ Devia ter percebido que viria a acontecer quando me disseste que o achavas giro. Como é ele? Tão excitante na cama como eu?

‑ Só ando a dormir com o Beau ‑ respondi; ele atirou a cabeça para trás, soltando uma gargalhada.

‑ Tu? A dormires com um único homem? Não me faças rir. Ora ‑ rematou, encolhendo os ombros com um ar indiferente. ‑ Passámos uns bons bocados. O Carey Littlefield avisou‑me que não esperasse demasiado por muito tempo. Portanto, como vês, querida Giselle, a tua reputação precede‑te. O único que parece distraído é o teu querido Beau Andreas. Ou talvez... não seja tão distraído como pensas. Talvez também ele tenha encontrado outras diversões.

‑ Fora! ‑ gritei e apontei para a janela.

‑ Eu vou. Não te preocupes. ‑ Fitou novamente Pearl que observava a cena, surpreendida e um tanto receosa, pois eu levantara a voz. ‑ É melhor que arranjes rapidamente alguém para cuidar dessa criança, antes que dês cabo dela ‑ acrescentou, dirigindo‑se à janela. ‑ Au revoir, Gisselle. Nunca me esquecerei da maneira como gritaste quando te beijei esse pequeno sinalinho por baixo do teu seio ‑ acrescentou, enquanto ria e se içava para fora da janela.

Acenou e desapareceu tão rapidamente como aparecera. Só então deixei sair o ar que tinha preso nos pulmões. Estendi a mão para trás em busca do sofá, onde me afundei.

A minha irmã mantivera ligações com outros homens depois de ter casado com Beau. Aparentemente ele ignorava, pois não me dissera nada. Quantos mais homens iriam surgir furtivamente na casa ou telefonariam? Desta vez tivera sorte, mas o próximo poderia ser mais perspicaz.

Devia ter calculado que Gisselle estaria envolvida com outros homens, reflecti. Ela só se casara com ele para me espicaçar e para o exibir. Já quando andava com ela no liceu, tinha sempre outros rapazes... Fosse quem fosse o homem que estivera ali, tinha razão. Um único homem nunca chegara para Gisselle. Sempre a pensar no que estaria a perder...

”Eu jamais poderia ser assim”, conclui. As amigas não tardariam a passar palavra de como se tornara subitamente diferente, mas esperava que não tivessem a esperteza suficiente de imaginar porquê.

 

Recompus‑me e continuei a trabalhar no meu estúdio. Uma hora e pouco depois, Beau telefonou a dizer que, afinal, viria almoçar.

‑ óptimo ‑ repliquei, e ele apercebeu‑se da tensão na minha voz.

‑ Algo de errado?

‑ Tive uma visita.

‑ Oh? Quem?

‑ Um dos amantes secretos da Gisselle ‑ revelei, e ele ficou silencioso uns momentos.

‑ Devia ter‑te preparado para isso ‑ redarguiu.

‑ Sabias?

‑ Digamos que tinha fortes suspeitas.

- Então, porque não me contaste, porque não me preparaste? ‑ ripostei. O silêncio dele confirmou a minha teoria. - Receavas que não me dispusesse a passar por tudo isto, não é’?

‑ Sim, um pouco.

‑ Devias ter‑me contado, Beau. Poderia ter sido um grave problema.

‑ Eu sei e lamento. O que fizeste? Como correu? Não...

‑ Claro que não. Mostrei‑me irritada com tudo e corri com ele. Acusou‑me de dormir com outro. Nem sequer me lembro do nome.

‑ Como era ele?

Descrevi‑o rapidamente, e Beau soltou uma gargalhada.

‑ O George Denning. Não admira que se mostrasse sempre tão simpático comigo. ‑ Soltou mais uma gargalhada. - Julguei que pudesse ter escolhido alguém mais bem‑parecido.

‑ Não te importas de saber isto agora e confirmar as tuas suspeitas, Beau?

‑ Não ‑ respondeu. ‑ Agora que te tenho, deixou de haver passado. Só existe o presente e o futuro ‑ rematou.

‑ Beau ‑ interrompi, antes de permitir que ele acabasse a conversa. ‑ Também te encontravas com outras mulheres?

‑ Também ‑ confessou. ‑ Contigo. Recordas‑te?

‑ Refiro‑me a... outras mulheres.

‑ Não. A minha mente, os meus olhos, a minha alma estavam somente presos a ti, Ruby.

‑ Vem para casa, Beau. Sinto‑me um pouco abalada.

‑ Está bem. Vou despachar‑me ‑ prometeu e desligou.

Até agora, conseguíramos resistir a todos os desafios e testes. Tinha, porém, a certeza de que eles continuariam numa sequência dura e difícil. Voltei a atirar‑me ao trabalho e mantive‑me ocupada para não me preocupar; no entanto, ao almoço, Beau revelou que tínhamos de nos preparar para o maior desafio de todos.

‑ Os meus pais ‑ anunciou. ‑ Regressam das férias na Europa dentro de dois dias. Teremos de ir jantar lá a casa.

‑ Oh, Beau. Não tardarão a perceber as diferenças... e lembra‑te de como me detestavam, graças a Daphne ‑ recordei‑lhe.

‑ Não serão mais perspicazes do que os outros ‑ garantiu‑me. ‑ A verdade é que não nos viram com muita frequência depois de casarmos. A Gisselle não gostava muito da minha mãe, e o meu pai era demasiado sério e impecável para o gosto dela. Podia contar pelos dedos as vezes que estivemos juntos. Sempre que isso aconteceu a Gisselle mostrava‑se, por regra, sossegada e calma. E não teremos de conviver muito ‑ acrescentou; de qualquer maneira, sentia‑me nervosa pelo facto de ir encontrá‑los na pele de Gisselle.

Nessa tarde, entrevistámos os candidatos a mordomo, criada e cozinheira. O mordomo era um altivo inglês, com cerca de um metro e oitenta, cabelo grisalho e olhos cor de avelã. Usava óculos de aros grossos, que passavam o tempo a descair até à ponta do nariz, mas era um homem simpático que trabalhara, sem dúvida, para óptimas famílias. Chamava‑se Aubrey Renner e tinha um sorriso amável e caloroso.

A criada chamava‑se Sally Petersen. Era uma mulher alta e magra, na casa dos quarenta e tal, com um rosto comprido, olhos grandes e um nariz afilado pendente sobre a boca de lábios muito finos. Percebi que para ela ser criada era uma profissão e não um emprego. Pareceu‑me uma pessoa muito responsável, um pouco dura, mas eficiente.

A nossa cozinheira era uma mestiça de pele clara que dizia ter sessenta, mas avaliei mais próxima dos setenta. Intitulava‑se Mrs. Swann e acrescentou que nos tempos que corriam raramente se incomodava a dizer o seu nome próprio às pessoas, Delphinia, pois a faria parecer demasiado rica.

Era uma mulher baixa, que não teria mais do que um metro e cinquenta e cinco, braços roliços e um rosto gorducho. No entanto, devia ter sido uma jovem bonita nos seus tempos. Possuia olhos pretos, lábios de coral e dentes cor de pérola. Trabalhara durante a maior parte da sua vida na casa de duas abastadas famílias crioulas. Fiquei com a sensação de que se tinha reformado e depois se aborrecera.

Após o pessoal ter sido contratado, Beau achou que deviamos procurar a ama para Pearl. Mostrei‑me, contudo, relutante em colocar tão depressa outra pessoa a cuidar da nossa filha.

‑ É algo que a Gisselle faria imediatamente ‑ recordou‑me Beau.

Como se a sorte decidisse tomar as rédeas, um amigo dele conhecia uma francesa que tinha trabalhado como preceptora e ama e estava actualmente desempregada. Chamava‑se Edith Ferrier. Beau mandou‑a apresentar‑se no dia seguinte. Durante a entrevista, descobri que fora casada mas apenas por pouco tempo. O marido morrera num desastre de comboio e o trauma deixara‑a aterrorizada quanto a firmar outra ligação amorosa.

Era uma mulher suave de cinquenta e quatro anos, com cabelo curto e preto permeado de fios brancos, uma boca de traço agradável e caloroso, uns olhos quase tristes e castanhos que se iluminaram ao ver Pearl. Tratar e cuidar dos filhos dos outros tornara‑se toda a sua vida, todos eles substituindo os filhos que nunca tivera. De inicio, Pearl mostrou‑se um pouco desconfiada, mas a voz calma e amistosa de Mrs. Ferrier suscitou‑lhe o interesse, e dentro em breve deixava que Mrs. Ferrier lhe mostrasse como fazer um novo puzzle.

Beau entrevistara todos os candidatos antes de mim e explicara‑lhes a situação: que estávamos a ocupar‑nos da filha da minha irmã. Poucas perguntas foram feitas e, como nenhum deles conhecera a minha irmã, não tinha de fingir. Beau vincou que o secretismo sobre a família e assuntos privados era de primeira importância. Quem fosse indiscreto, seria imediatamente despedido.

 

Estávamos os dois felizes com as pessoas que havíamos contratado. A reconstrução das nossas vidas parecia estar no bom caminho; porém, antes de conseguir tomar fôlego e descontrair, Beau recordou‑me que os pais dele já se encontravam em Nova Orleães e o nosso jantar estava combinado para a noite seguinte.

Nunca chegara, de facto, a conhecer bem os pais de Beau quando vivera ali, na cidade. Logo de início, e por causa da minha madrasta, Daphne, tratavam‑me como um pedaço de lixo. Eram pessoas que adoravam o seu lugar na alta sociedade, que viam o nome mencionado repetidamente nas colunas sociais e a fotografia nos jornais por frequentarem ou apadrinharem bailes de caridade e acontecimentos do género.

‑ Podes vestir algo que esteja mais de acordo com a tua personalidade, se quiseres ‑ sugeriu Beau. ‑ A Gisselle sabia como eram os meus pais e, pelo menos, fazia um esforço para não os antagonizar pondo um dos seus conjuntos provocantes. Costumava usar também algumas das jóias da Daphne. E a maquilhagem era igualmente um pouco menos pesada.

‑ Prefiro usar as minhas jóias. Os teus pais não notarão a diferença. ‑ Não queria tocar em nada que tivesse pertencido á minha terrivel madrasta, embora as coisas dela fossem caras e bastante requintadas.

Resolvemos que seria mais fácil para nós se deixássemos pearl em casa. Os meus joelhos batiam um de encontro ao outro quando subimos o acesso à mansão dos Andreas na Chcstnut Street, que era uma das famosas casas antigas datando de 1850. Tratava‑se de um exemplo clássico da arquitectura revivalista grega com varandas da frente duplas, colunas jónicas por baixo e corintias por cima. Beau vincou quanto o pai se orgulhava da casa, nunca perdendo uma oportunidade de descrever o seu significado histórico para o Garden District.

‑ A Gisselle mostrava‑se pouco interessada nas prelecções dele e houve uma vez em que chegou a bocejar quando ele falou sobre as janelas dep da casa.

‑ E como são? Se não me recordar...

‑ Se fosse a ti, não me preocupava. A Gisselle pouca atenção prestava às nossas conversas e os meus pais sabiam. As janelas dep servem de portas, quando se abre um painel de madeira por baixo delas. Não ligues. O meu pai não vai fazer uma visita guiada. Tentou uma vez com a Gisselle e ficou desapontado com as reacções dela.

‑ Então não gostaram mais da Gisselle do que de mim?

‑ Não muito ‑ acedeu, sorrindo.

Parecia divertido, mas tudo aquilo ainda me enervava mais. Como devia comportar‑me, sabendo que os pais não se sentiam felizes por ele ter casado comigo?

O mordomo abriu‑nos a porta e percorremos o longo corredor até à sala de estar onde os pais dele esperavam. O pai, com quem Beau tinha mais parecenças, embranquecera consideravelmente nas têmporas desde a ultima vez que o vira. Beau herdara o nariz aquilino do pai e o maxilar vincado. Era apenas alguns centímetros mais alto que o pai, que mantinha uma figura bastante elegante para um homem da sua idade. Naquela noite, vestira um smoking branco com um laço preto. O rosto tinha cor, acentuando os olhos muito azuis.

 

A mãe de Beau, uma mulher quase tão alta como o pai dele, ganhara algum peso desde o nosso ultimo encontro. O cabelo mantinha o tom castanho‑claro e usava‑o muito penteado e com laca. Nunca se bronzeava, pois pertencia àquela geração da classe alta que achava que o bronzeado fazia com que uma pessoa parecesse vulgar, como um trabalhador de rua que passa a maior parte do tempo exposto ao sol. O traço mais agradável das feições residia nos olhos cor de esmeralda, que emprestavam algum brilho ao rosto grave e firme.

‑ Vêm atrasados ‑ observou o pai, dobrando o jornal e levantando‑se.

‑ Desculpa. Olá, mãe ‑ cumprimentou Beau e foi beijá‑la. Ela virou o rosto, oferecendo‑lhe a face. ‑ Pai ‑ disse e apertou‑lhe a mão.

‑ Foi o bebé ‑ repliquei subitamente. ‑ Senão teríamos chegado a tempo.

‑ Não disseste que tinhas contratado uma ama? ‑ dirigiu‑se a mãe a Beau.

‑ Sim, mas...

‑ Ela é uma menina mimada e tive de ajudar a acalmá‑la - interferi.

Tratava‑se de uma desculpa mal arquitectada, mas era algo que se esperaria que Gisselle dissesse.

‑ Ah, sim? ‑ replicou o pai de Beau, erguendo as sobrancelhas. ‑ Bom. Talvez agora vocês os dois comecem a pensar em ter filhos brevemente. Estou à espera de um neto.

‑ Se todas as crianças forem como a da minha irmã, acho que vou procurar num convento ‑ repliquei.

Era quase como se Gisselle se tivesse metido no meu corpo fazendo aquele tipo de comentário. Beau sorriu, e os seus olhos brilharam, deliciados.

‑ Acho que podemos passar à sala de jantar. O jantar está pronto ‑ declarou o pai.

‑ O que aconteceu exactamente a essa rapariga cajun? - perguntou a mãe de Beau, enquanto nos dirigíamos à sala de jantar. Beau forneceu as explicações possíveis.

‑ E não esperam que recupere? ‑ interessou‑se o pai

Beau deitou‑me um rápido olhar antes de responder.

‑ Não parece muito viável ‑ disse.

‑ Bom. O que tencionas fazer com a criança? Porque é que não a mandas para o pai? ‑ sugeriu a mãe. ‑ Já foi uma experiência bastante má quando a Daphne e o Pierre tentaram manter aquela rapariga cajun lá em casa.

‑ Ele está emocionalmente muito em baixo, mãe.

‑ Não há nenhuma família cajun que possa cuidar dela? A verdade, Beau, é que tu e a Gisselle terão um dia a vossa família e...

‑ De momento, está tudo em ordem. Não está, Gisselle.?

‑ De momento ‑ anui, o que pareceu agradar à mãe de Beau.

‑ Contem‑nos a vossa viagem à Europa ‑ pediu Beau, e a

maior parte da noite foi preenchida com as descrições da visita. Antes do fim do serão, Beau e o pai embrenharam‑se numa discussão de negócios e a mãe perguntou se me interessaria ver algumas das coisas que comprara na Europa.

‑ Está bem ‑ acedi, pouco entusiasmada.

Se não fossem coisas compradas para Gisselle, ela não se interessaria. Segui a mãe até à suíte principal, onde ela me mostrou os novos e elegantes vestidos que comprara em Paris, bem como os chapéus e os sapatos. Contou‑me, orgulhosa, que comprara coisas que apenas estariam na moda em Nova Orleães no próximo ano e depois deu‑me um presente.

‑ Pareceu‑me que irias gostar ‑ disse. ‑ Comprámos‑te isto em Amesterdão. É o melhor lugar para compras deste género

Havia uma pulseira de diamantes na caixa. Era original e sabia que devia ter sido cara, mas lembrei‑me que Gisselle nunca ligava ao preço e aceitava tudo com indiferença.

‑ É gira ‑ comentei, pondo‑a no pulso.

‑ Gira?

‑ Quero dizer... bonita. Obrigada, mãe ‑ agradeci; ela arregalou os olhos. Segundo parecia, Gisselle nunca a tratara por mãe. Fitou‑me com uma expressão curiosa. Engoli em seco, com os nervos à flor da pele.

‑ Ainda bem que aprovas ‑ pronunciou, finalmente.

‑ Vamos mostrá‑la ao Beau ‑ repliquei, ansiosa por não estar tempo de mais ao lado dela. Estava a ficar com pele de galinha;

‑ É muito bonita! ‑ exclamou Beau com o entusiasmo que se impunha. O pai esboçou um aceno de cabeça e a mãe pareceu mais satisfeita.

Senti‑me aliviada quando a noite chegou ao fim e saímos para regressar a casa.

‑ Acho que dei um passo em falso lá em cima ‑ comuniquei de imediato a Beau. ‑ Tratei a tua mãe por ”mãe”, depois de ela me ter dado a pulseira.

‑Sim... A Gisselle só lhe chamava Madame Andreas ou Edith. A minha mãe não é o tipo de mulher que se aproxime facilmente das outras mulheres, e a Gisselle nunca fez qualquer esforço para ser uma verdadeira nora. Mas acho que te saíste muito bem.

‑ Mal disse uma palavra ao jantar.

‑ Tal como a Gisselle se comportava. O meu pai é muito antiquado. Não lhe desagradam as mulheres calmas... só abria excepção com a Daphne, porque era uma mulher muito astuta no negócio. Na verdade, gostava bastante dela e acho que a minha mãe tinha mesmo alguns ciumes.

Não queria dizê‑lo, mas achava que Daphne e o pai de Beau teriam feito um bom par.

‑ De qualquer maneira ‑ prosseguiu Beau ‑, mais um teste passado. ‑ Apertou‑me a mão, com um brilho feliz no olhar.

Ele tinha razão: estávamos a sair‑nos bem. Todavia, quando chegámos a casa, tínhamos uma mensagem para telefonar a Paul.

‑ Ele disse que era urgente, madame ‑ indicou Aubrey.

‑ Obrigada, Aubrey. Primeiro, deixa‑me ver como está a Pearl, Beau. ‑ Subi as escadas rapidamente e encontrei‑a quase a dormir. Mrs. Ferrier apareceu do quarto contíguo e informou‑me que tudo estava em ordem. Desci em seguida ao escritório e telefonei a Paul, enquanto Beau se conservava sentado no sofá.

‑ É pior do que julgávamos ‑ anunciou num tom de voz tão baixo e desalentado que julguei estar a ouvir um estranho. As palavras também me chegavam um tanto distorcidas, sugerindo que estivera a beber. ‑ O meu médico afirma que é o caso mais grave que alguma vez diagnosticou. Teve graves convulsões epilépticas e agora está num coma profundo.

‑ Oh, não, Paul. O que é que o médico diz, agora?

‑ Disse‑me que, se ela vivesse, estava quase certo de que ficaria com distúrbios cerebrais permanentes e muito provavelmente epilepsia.

‑ Que horror! O que queres fazer?

‑ O que posso fazer? O que podemos fazer? É o que tu e o Beau esperavam, não? ‑ retorquiu com um invulgar tom de amargura.

‑ Não ‑ protestei num sussurro.

‑ O que significa esse ”não”? Não me contaste que um dia foste a uma mãe vudu para que lhe lançasse um feitiço? ‑ retorquiu. ”Porque havia de me lembrar aquele facto?”

‑ Foi há muito tempo, Paul, e arrependi‑me logo a seguir.

‑ Bom, aparentemente o feitiço continua a dar resultado. Sinto‑me feliz por vocês os dois ‑ redarguiu.

‑Paul...

‑ Preciso de desligar. Tenho coisas a fazer ‑ disse e desligou, sem me dar tempo a pronunciar nem mais uma palavra.

‑ O que se passa? ‑ perguntou Beau, ao ver‑me agarrada ao auscultador, sem afastar os olhos. O coração ameaçava saltar‑me do peito e todo o sangue parecia ter‑me fugido do rosto.

Contei‑lhe o que Paul me dissera sobre o estado de Gisselle.

‑ Não compreendo. É em tudo semelhante ao que comecei por lhe descrever.

- Ele não acreditou. Sei que esperava conseguir curá‑la e dessa forma recuperar‑me ‑ retorqui.

‑ O que tenciona fazer? ‑ indagou.

‑ Não sei. Pareceu‑me tão estranho, Beau. Tão diferente do Paul que conheço. Acho que tinha estado a beber.

‑ Ele estabeleceu um acordo connosco ‑ declarou Beau num tom firme. ‑ Zelarei para que o cumpra.

levantou‑se rapidamente para me abraçar e pousei a cabeça no seu ombro. Beijou‑me o cabelo e acariciou‑o ao de leve, enquanto voltava a beijar‑me, sussurrando‑me palavras ao ouvido para me acalmar.

‑ Não te preocupes. Tudo correrá bem. É o destino ‑ insistiu; no entanto, as palavras de Paul tinham‑me gelado o sangue nas veias.

‑ Não consigo livrar‑me desta sensação de nó no estômago, Beau. Amo‑te, quero estar ao teu lado e quero que a Pearl esteja contigo, mas é como se uma nuvem escura pairasse constantemente sobre nós por mais azul que o céu esteja.

‑ Essa sensação vai passar ‑ prometeu. ‑ Basta que concedas uma oportunidade a ti própria.

‑ Acho que será melhor fazermos uma visita ao Paul na próxima semana, Beau. De qualquer maneira, tencionávamos levar a Pearl para o ver, não?

‑ Suponho que sim ‑ concordou, mas percebi que a ideia lhe desagradava.

Durante os dias seguintes, telefonei sempre a Paul para me inteirar da evolução dos acontecimentos. Na maior parte das vezes não estava em casa. Os criados informaram‑me que se encontrava no hospital, de vigília. De inicio, não correspondeu a nenhum dos meus telefonemas e depois, quando o fez, pareceu‑me cada vez mais estranho. Na ultima vez em que falámos, quase não lhe reconheci a voz.

‑ Ela permanece em coma profundo. Fala‑se de a colocarem ligada a uma máquina para que possa respirar ‑ informou numa voz que parecia isenta de sentimento, a voz de alguém a quem haviam arrancado todas as emoções, até ter restado apenas o invólucro do seu antigo eu.

‑ Estás a dar cabo de ti, Paul. O James informou‑me que raramente vais a casa. Passas o dia e a noite no hospital.

‑ Em momentos como este, um marido tem de estar ao lado da mulher, não achas? ‑ retorquiu, soltando uma pequena risada. ‑ Deve estar à cabeceira dela, agarrando‑lhe na mão, falando‑lhe com ternura, implorando, suplicando, encorajando‑a a sair do coma, se não por ele, então pela filha de ambos. Toda a gente no hospital compreende. Sentem tanta pena de mim... Hoje, a enfermeira até chorou. Vi‑a a limpar as lágrimas - acrescentou.

Por um momento, foi como se não conseguisse respirar. Senti o peito a transformar‑se em pedra e o coração a gelar por dentro. Tentei engolir em seco e falar, mas sem resultado. Ouvi‑o suspirar.

‑ Nunca compreendeste, pois não? A sério, quero dizer. És casada, mas o que significa o casamento para ti? Uma união de conveniência para satisfazer os teus propósitos egoístas? ‑ replicou, e a voz chegava‑me semelhante ao silvo de uma serpente.

‑ Paul, por favor.

‑ Devias ver como ela está a ficar pequena, Gisselle. Murcha como uma flor naquela cama, e a sua beleza fenece diante dos meus olhos.

‑ O quê? O que me chamaste?

‑ Sabes o que digo a toda a gente? Digo‑lhes que os anjos tiveram ciumes. Olharam para baixo e viram como o nosso amor era perfeito. Nem mesmo o céu era tão perfeito, e assim conspiraram por inveja e provocaram esta tragédia. Romântico de mais para ti, Gisselle? Nunca foste muito romântica, pois não? O que era um homem para ti... um parceiro na cama, alguém para espicaçares e atormentares. Tinhas ciumes da tua irmã porque ela tinha a capacidade de amar e tu não, não é verdade?

”Oh, que coisa terrível é o ciume. Apodrece‑te por dentro. Verás, Gisselle. Verás. Sinto pena de ti e de todas as mulheres do mundo que não têm a mesma capacidade de amar que tinha a Ruby.

Um estranho torpor no meu peito fazia com que me sentisse irreal.

‑ Porque estás a falar dessa maneira, Paul? Há alguém junto de ti? Porque dizes essas coisas?

‑ Porquê? Porque... estou farto de que os bons sofram e os maus gozem todo o prazer e felicidade deste mundo. É esse o motivo. De qualquer maneira, obrigado por telefonares. Fizeste o teu dever. Podes acalmar a consciência e dedicar‑te à tua busca do prazer.

‑Paul!

‑ Estou cansado. Preciso de tomar uma bebida e depois tentar dormir um pouco. Boa noite, Gisselle. Oh, os meus cumprimentos ao teu elegante e jovial marido. Estou certo de que se sente feliz por não ser a mulher dele quem está às portas da morte.

‑ Paul! ‑ gritei no momento em que a linha ficou silenciosa.

Deixei‑me ficar pregada ao chão, sem largar o auscultador, como se ele fosse uma ave morta. Depois, precipitei‑me à procura de Beau. Estava no escritório a examinar uns documentos e ergueu os olhos, surpreendido.

‑ O que se passa? ‑ inquiriu logo.

 

Contei‑lhe o que Paul andara a fazer toda a semana.

Beau reflectiu um momento e depois encolheu os ombros.

‑ Parece que assumiu a responsabilidade do seu papel em tudo isto seriamente e está a fazer uma boa actuação. Devíamos estar gratos.

‑ Não, Beau. Não compreendes. Não conheces o Paul. Ele jamais diria o que me disse. Não está bem. Quero ir a Cypress Woods amanhã. Temos de ir, Beau. E não tentes dissuadir‑me!

‑ De acordo. Iremos ‑ concordou. ‑ Acalma‑te. Tens a certeza de que ele não está apenas a jogar com os teus sentimentos, aproveitando‑se deles?

‑ Não me parece. Nem sabes como me pareceu estranho, Beau ‑ retorqui, erguendo o rosto com os olhos muito abertos e espelhando ansiedade. ‑ Chamou‑me Gisselle e falou dela como sendo a Ruby.

‑ E daí? Era essa a ideia.

‑ Mas não acho que alguém estivesse a ouvir. Não tinha nenhum motivo para me chamar Gisselle.

Beau reflectiu um momento.

‑ Talvez estivesse apenas embriagado ‑ sugeriu. ‑ Confuso.

‑ Causou‑me arrepios ‑ confessei, rodeando o corpo com as mãos. ‑ O que fizemos? Beau, o que fizemos?

‑ Pára com isso ‑ ordenou Beau, levantando‑se de um salto. Agarrou‑me pelos ombros com as mãos, e os dedos assemelhavam‑se a aço através do tecido fino da blusa. ‑ Deixa‑te dessas coisas, Ruby. Vais ficar arrasada por nada. Ele sente‑se Perturbado por estares comigo e não aceita bem. Acabará por se habituar à ideia e tudo terminará como esperámos. Não somos culpados pela tragédia da Gisselle. Aconteceu, e apenas aproveitámos a oportunidade. O Paul concordou e ajudou a realizar a ideia. Agora, invadiu‑o um sentimento de autopiedade. Bom, lamento, mas é tarde de mais para voltar atrás e ele vai ter de perceber isso e controlar‑se. Tal como tu ‑ acrescentou num tom firme.

Sustive as lágrimas e esbocei um aceno de concordância.

‑ Sim, Beau. Tenho a certeza de que estás certo. Desculpa ter ficado um pouco histérica.

‑ Ei! Tens‑te portado de uma forma fantástica. Compreendo a pressão a que tens estado sujeita e dou‑te o devido valor. mas agora não podes ir abaixo.

Voltei a acenar.

‑ De acordo, Beau. Estou bem.

‑ De certeza?

‑ Sim.

Beijou‑me na testa e abraçou‑me com força, afagando o meu cabelo. Quando me fitou, os olhos meigos acariciavam‑me.

‑ Não deixarei que aconteça nada e de certeza que nunca mais te perderei, Ruby. Amo‑te mais do que tudo no mundo. ‑      Beijámo‑nos e depois rodeou‑me os ombros com o braço e acompanhou‑me até à saída do escritório. Voltámos a beijar‑nos ao fundo da escada. Comecei a subi‑la, fazendo uma pausa para

o olhar. Dirigiu‑me um largo sorriso. Respirei fundo e disse para mim própria que ele estava certo. No dia seguinte, iríamos visitar Paul e também o tranquilizaríamos.

‑ Assim estava escrito ‑ murmurei, continuando a subir as escadas. ‑ Assim estava escrito.

 

QUASE APANHADA

No final da manhã seguinte e depois de Beau ter voltado do escritório, partimos rumo a Cypress Woods. Mantive‑me imersa em profundos pensamentos e silenciosa durante a maior parte da viagem. Beau tentou distrair‑me, falando sobre alguns negócios das empresas da família Dumas e, depois, pouco antes de chegarmos, revelou que Bruce Bristow telefonara e fizera novas ameaças relativas ao que diria sobre certas transacções obscenas que Daphne fizera no passado, caso não conseguisse um melhor acordo.

‑ O que lhe respondeste? ‑ quis saber.

‑ Disse‑lhe que fizesse o que quisesse. Consta por aí que ele não está muito bem. Tem andado a jogar e perdeu quase tudo o que conseguira ganhar. Agora, o banco ameaça penhorar‑lhe o prédio de apartamentos ‑ esclareceu Beau.

‑ Ele vai arranjar‑nos sarilhos, Beau, como se fosse uma pedra no sapato. Pensa‑se que se deitou fora, mas quando se volta a andar ela ainda lá está.

Beau riu‑se.

‑ Não te preocupes que eu livro‑me dele ‑ garantiu. - É um fraco desafio.

Fiquei um pouco surpreendida frente à arrogância de Beau. Receava que tivesse permanecido tempo de mais ao lado de Gisselle.

O céu escurecera por completo quando chegámos a Cypress Woods. A horrível sensação que me provocou foi adensada pela falta de actividade na grande casa. Onde estavam os jardineiros, os operários? Cypress Woods parecia sempre uma colmeia, barulhenta e afadigada. Paul orgulhava‑se tanto da nossa propriedade que não tolerava uma única erva daninha no jardim. Tanto Beau como eu reparámos que alguns dos poços de petróleo não estavam a funcionar de forma eficiente. A atmosfera opressiva que se abatera sobre a mansão do bayou e os seus deslumbrantes arredores era tão pesada como a humidade e quase tão sufocante.

- Parece deserta - murmurou Beau.

O meu coração ameaçou parar e depois começou a bater em ritmo acelerado quando chegámos diante da casa. Pearl adormecera no assento.

‑ Eu levo‑a ‑ ofereceu‑se Beau.

O medo que eu tivera de regressar a Cypress Woods como Gisselle revelou‑se justificado. Era subitamente uma estranha no que tinha sido a minha preciosa casa. Teria de tocar à campainha e aguardar, e os que me recebessem fá‑lo‑iam como a uma forasteira. O meu coração estalaria de desejo de gritar a verdade. Beau pressentiu a minha ansiedade e, com Pearl adormecida no seu ombro, apertou‑me a mão e dirigiu‑me um sorriso confiante.

‑ Calma. Vais sair-te bem ‑ garantiu, mas a inquietação apoderara‑se de todo o meu ser.

Avançámos até à porta da frente e tocámos. Momentos mais tarde, James cumprimentou‑nos.

 

Percebi pela expressão do rosto, pela forma como os olhos haviam escurecido e as rugas se tinham acentuado, que estava muito desanimado e triste. Os nossos criados estavam sempre tão próximos de nós e tão envolvidos em tudo que os nossos humores os afectavam.

‑ Olá, James ‑ saudei, incapaz de usar o tom condescendente com que Gisselle habitualmente se dirigia aos criados, quer fossem dela ou de outra pessoa.

James fitou‑me com olhos inexpressivos e vazios. Não pareceu aperceber‑se do meu verdadeiro eu na minha voz, dado não ter motivo para pensar que eu era outra que não a minha irmã Gisselle, com quem não simpatizava especialmente.

‑ Boa tarde, madame. Alonsieur ‑ cumprimentou com um leve aceno de cabeça. Depois, avistou Pearl e os olhos brilharam um pouco. ‑ E como está a pequenina?

‑ óptima ‑ respondi.

‑ Monsieur Tate está em casa? ‑ inquiriu Beau.

‑ Voltou do hospital ainda há pouco ‑ replicou James, recuando. ‑ Mademoiselle Tate e Madame Pitot estão com ele no escritório ‑ acrescentou.

Fitei Beau. Seria a primeira vez que as irmãs de Paul me veriam como Gisselle.

James conduziu‑nos ao longo do corredor. Como me parecia estranho caminhar agora pela casa e observar as coisas que me tinham pertencido. Olhei para o cimo das escadas na direcção do que fora a minha suíte. Beau e eu trocámos mais um olhar e percebi que, agora que eu estava, de facto, na casa, ele se sentia profundamente preocupado comigo. Sentia o sangue a afluir‑me ao rosto. O coração batia acelerado, mas respirei fundo e esbocei um aceno de cabeça.

‑ Estou bem ‑ sussurrei.

James fez uma pausa na ombreira do escritório.

‑ Monsieur e Madame Andreas ‑ anunciou e recuou.

Paul estava no sofá, afundado a um canto, com um copo de uísque na mão. Tinha o cabelo desgrenhado e parecia ter dormido com a roupa que trazia vestida. Jeanne sentava‑se na frente dele, com os olhos injectados devido ao choro e Toby ocupava o outro canto do sofá, com um ar triste e as mãos cruzadas no regaço.

Contudo, os olhos de Jeanne brilharam ao avistar‑nos e, por um momento, senti um aperto no coração. Saberia que era eu e não a minha irmã? Quase desejei que sim. Não era, porém, esse o motivo que lhe afastara a melancolia do olhar, mas sim Pearl.

‑ O bebé!        ‑ gritou, levantando‑se.        - Como está?

‑ Bem - respondeu Beau.

Pearl, apercebendo‑se de que tínhamos deixado de caminhar, ergueu a cabeça, piscou os olhos e torceu o nariz como um coelho.

‑ Oh, minha querida e doce Pearl! - exclamou Jeanne. - Deixe‑me pegar‑lhe.

Beau estendeu‑a a Jeanne, que Pearl reconheceu de imediato. Sorriu e Jeanne inundou‑lhe a cara de beijos, apertando‑a com carinho.

‑ Bom, mas que honra inesperada! ‑ pronunciou Paul. - Monsieur e Madame Andreas em carne e osso. - Os lábios esboçaram um sorriso trocista.

‑ Alguma novidade, Paul? ‑ apressei‑me a perguntar, ignorando o sarcasmo.

‑ Novidade? - Fitou Toby, fingindo que havíamos feito a mais simples e despreocupada das perguntas. ‑ Alguma novidade, Toby?

‑ Nenhuma mudança para melhor ‑ elucidou Toby tristemente. ‑ Na verdade, esta manhã decidiram ligá‑la a um ventilador.

‑ Queres uma bebida, Beau? ‑ ofereceu Paul, erguendo o copo.

‑ Não, obrigado.

‑ Demasiado cedo para vocês, crioulos? ‑ troçou.

‑ Paul. Porque é que não beijas a tua filha? ralhou Jeanne.

Paul fitou Pearl por um momento e depois esboçou um aceno de cabeça.

Trá‑la até aqui ‑ pediu, e Jeanne obedeceu.

Paul não a tirou dos braços de Jeanne, mas soergueu‑se e acariciou o cabelo de Pearl, antes de a beijar na face. Depois voltou a sentar‑se e emitiu um suspiro tão fundo que julguei que o coração se lhe despedaçara no peito.

- Vou levar a menina para um pequeno passeio e dar‑lhe alguma coisa de comer - interveio Jeanne rapidamente.

‑ Boa ideia - aprovou Toby. - Falarei com a letty para que também vos prepare qualquer coisa de comer.

‑ Não incomode ninguém - disse Beau.

‑ Incomodar? - ironizou Paul, erguendo os olhos. - Alguém aqui se sente incomodado?

Toby parou na nossa frente e esboçou um trejeito.

‑ Ele tem andado a beber exageradamente, desde que levaram a Ruby para o hospital ‑ explicou. ‑ Deixou de tratar dos negócios e limita‑se a ficar sentado por aí, cheio de pena de si próprio. Os meus pais estão completamente desnorteados, sobretudo a minha mãe. Não come e não dorme, de tão preocupada com ele. Vejam se conseguem fazer qualquer coisa pelo Paul ‑ sussurrou. ‑ Lamento.

‑ Tudo bem ‑ redarguiu Beau.

‑ O que é? ‑ exclamou Paul. ‑ Alguém disse que está tudo bem?

Depois de Toby sair, atravessei a sala, fiquei diante de Paul e cruzei os braços, olhando‑o com uma expressão severa.

‑ O que estás a tentar provar, Paul? O que estás a fazer a ti próprio?

‑ Nada. Não estou a provar nada. ‑ Ergueu os braços e encolheu os ombros. ‑ Apenas a aceitar o que o destino decidiu que será a minha sorte. Desde o início que corri atrás de um sonho. Sempre que pensava que o transformara em realidade, o destino interferia e destruia o sonho sobre o bayou como se fosse lama pantanosa. ‑ Fez uma pausa para me perscrutar e semicerrou os olhos de uma forma estranha e sombria. Depois prosseguiu: ‑ Não a conheceste, mas a grandmére Catherine da Ruby costumava dizer que se se nadar contra a maré nos afogamos ‑ declarou. Senti‑me como se tivesse enfiado uma estaca no meu peito.

‑ Deixa‑te disso, Paul. Deixa de representar. Os três sabemos a verdade. Não há necessidade de fingires assim na nossa frente.

‑ Verdade? Mencionaste a verdade? Palavra curiosa vinda dos teus lábios ou, de facto, dos lábios de alguém ‑ acrescentou e voltou a erguer os olhos. ‑ O que é a verdade? Será que o amor não passa de uma espada cruel que viramos contra nós próprios, um bizarro tormento? Ou será que apenas os eleitos, os poucos afortunados ‑ prosseguiu, fitando Beau ‑ estão destinados a serem felizes na terra? Sob que estrela nasceu para que pudesse realizar uma tal felicidade, Monsieur Beau Andreas?

‑ Ignoro a resposta a essa pergunta, Paul ‑ respondeu Beau em voz baixa. ‑ Sei, contudo, que o que prometeste à Ruby tem de ser cumprido.

‑ Oh, cumpro sempre as minhas promessas ‑ vincou, agora de olhos pregados em mim. ‑ Não sou daqueles que se esquecem.

‑ Paul, por favor...

‑ Está bem ‑ murmurou. Acabou a bebida de um só gole. - Tenho de me deitar um pouco. ‑ Esforçou‑se para se pôr

de pé, voltou a cair e depois conseguiu. ‑ Vocês os dois sintam‑se em casa. A minha irmã tratará de tudo.

Olhei desesperada para Beau.

‑ Ouve, Paul. Escuta ‑ pediu Beau num tom sensato. - Deixa‑nos ajudar‑te com este fardo. Temos consciência de que é de mais para ti. Mudemos a Gisselle para um hospital de Nova Orleães e...

‑ Mudá‑la para um hospital em Nova Orleães só para me aliviar o fardo? ‑ Agitou o polegar direito em frente do rosto de Beau. ‑ Estás a falar da mulher que amo ‑ declarou Paul, cambaleando. Sorriu. ‑ Jurei estar ao lado dela na doença e na saúde, até que a morte nos separe.

‑Paul...

Empurrou‑me.

‑ Tenho de me deitar ‑ disse e saiu aos tropeções.

‑ Deixa‑o dormir um pouco ‑ aconselhou Beau. - Depois, ficará mais sóbrio e mais sensível.

Acenei com a cabeça, mas um momento depois ouvimos Paul a cair nas escadas. Fomos a correr e verificámos que rolara alguns degraus e se estatelara no fundo. James já estava ao lado dele, tentando levantá‑lo.

‑Paul! ‑ gritei.

Beau ajudou James a erguê‑lo. Puseram‑lhe os braços à volta dos ombros dos dois e levaram‑no pela escada, de cabeça pendente. Sentei‑me num banco do corredor e escondi o rosto nas mãos.

‑ Ele está bem ‑ anunciou Beau quando regressou. - O James e eu metemo‑lo na cama.

‑ Isto é uma coisa horrível, Beau. Nunca devíamos ter permitido que se tornasse uma parte tão intrincada do problema. Nem sei no que estava a pensar.

‑ Ele quis fazê‑lo; tornava tudo mais fácil. Não podemos censurar‑nos pelo comportamento dele. De qualquer maneira, poderia perfeitamente ficar assim, depois de o deixares, Ruby. Daqui a um tempo, cairá em si. Verás.

- Não sei, Beau ‑ gemi, prestes a erguer os braços e a revelar o nosso elaborado embuste.

‑ Agora, só nos resta ir até ao final. Sê forte ‑ incitou Beau num tom firme.

Depois endireitou‑se e sorriu ao ver Jeanne e Pearl que se aproximavam.

‑ Ela tem estado a chamar pela mãe. É tão triste que não aguento ‑ disse Jeanne.

Deixe‑me pegar‑lhe ‑ pedi.

‑ Sabe - disse Jeanne, enquanto me entregava Pearl de volta ‑, acho que ela pensa que é a Ruby. Não consigo imaginar porquê ou como uma criança faria uma tal confusão.

Beau e eu fitámo‑nos por um momento e depois Beau sorriu.

- Ela está apenas confusa devido à rápida evolução dos acontecimentos, da viagem, da casa nova ‑ esclareceu.

‑ É esse o motivo por que ia sugerir que a deixassem comigo. Sei que fardo é um bebé, mas...

‑ Oh, não - interrompi, bruscamente. ‑ Ela não é um fardo. Já contratámos uma ama para ajudar.

‑           A sério? ‑ retorquiu ela com um arremedo de sorriso. - A Toby disse que o fariam.

‑           Bom. Porquê? Não devíamos? - intrometeu‑se Beau.

- Oh! Não queria dizer que não deviam. Provavelmente

também o faria, se...

‑ Está tudo pronto. Podemos comer lá fora no terraço, se estiverem de acordo ‑ propôs Toby, aparecendo por detrás de Jeanne.

‑ óptimo! ‑ aprovou Beau. ‑ Gisselle? Fitou‑me e emiti um suspiro. A tensão e o peso emocional de ver Paul naquele estado eram o verdadeiro motivo para tal, mas as irmãs de Paul julgaram que eu estava apenas a ser petulante, como o seria Gisselle. Entreolharam‑se e tentaram dissimular um trejeito.

‑ Está bem ‑ respondi com um grande esforço. - Não que me apeteça muito. As grandes viagens tiram‑me sempre o apetite - queixei‑me.

Ironicamente, foi um alívio voltar a meter‑me na pele de Gisselle. Ficava sem o peso da consciência no coração.

Ocorreu‑me pela primeira vez que era esse o motivo que levava Gisselle a ser como era; e, pelo menos de momento, compreendi e cheguei a invejá‑la por ser tão egoísta. Nunca se compadecia com a tristeza de ninguém. Para Gisselle, o mundo fora um enorme pátio de recreio, uma terra de magia e prazer e todo o que ameaçasse esse mundo era ignorado ou evitado. Afinal, talvez ela não fosse assim tão estúpida.

Só que me lembrei de algo que ouvira uma vez à grandmère Catherine: ”As pessoas mais solitárias eram as que possuíam um egoísmo tal que não tinham ninguém para as acompanhar no Outono da vida.”

Interroguei‑me sobre se Gisselle, ao cair naquele túnel escuro da inconsciência, vogando para longe, percebia isso, agora, se percebia alguma coisa.

 

Depois do almoço, pusemos Pearl a dormir a sesta. Beau e eu sentámo‑nos lá fora com as irmãs de Paul a beber café com leite e ouvindo‑as queixarem‑se do comportamento dele. Acrescentam que esse facto desnorteara de tal modo a mãe que já não visitava ninguém, nem saía de casa.

‑           Ela foi ao hospital ver a Ruby? ‑ perguntei, curiosa.

- A mãe odeia hospitais ‑ respondeu Toby. ‑ Teve o

Paul em casa, porque odiava ver‑se rodeada de gente doente e foi um parto difícil. O papá teve de suplicar‑lhe que fosse para o hospital para nos dar à luz.

Beau e eu trocámos olhares cúmplices, cientes de que esta era uma parte da fantasia que os pais de Paul tinham inventado para disfarçar a identidade da verdadeira mãe de Paul.

‑ Vão ao hospital visitar a Ruby? ‑ indagou Jeanne.

Antes de responder, pensei em como Gisselle reagiria a esta pergunta.

‑ Para quê? Ela está sempre a dormir, não está?

 

Toby e Jeanne entreolharam‑se.

- Mesmo assim, é sua irmã... e está a morrer ‑ redarguiu Jeanne, após o que rompeu em lágrimas. ‑ Desculpe. Não consigo dominar‑me. Gostava mesmo da Ruby.

Toby rodeou‑a com os braços, embalando‑a e confortando-a, ao mesmo tempo que lançava olhares de censura na minha direcção.

‑ Talvez devêssemos ir ao hospital, Beau ‑ retorqui, levantando‑me da cadeira. Era incapaz de continuar ali sentada com elas a fingir que era insensível; também não conseguia aguentar o desgosto de ambas sobre o que julgavam tratar‑se do meu desaparecimento.

Beau seguiu‑me até casa. Foi apanhar‑me no estúdio, onde também eu rompera em lágrimas, que me caíam, escaldantes, pelas faces.

Oh, Beau! Não devíamos ter vindo aqui. Sou incapaz de suportar toda esta tristeza. Sinto que a culpa é minha.

- Isso é ridículo. Como podes ter culpa? Não fizeste com que a Gisselle adoecesse, pois não? Bom... pois não?

Sequei as lágrimas e respirei fundo.

‑ O Paul recordou‑me uma altura em que fui com a Nina Jackson ver uma praticante de vudu, que lançou um feitiço sobre a Gisselle. Talvez o feitiço nunca deixasse de surtir efeito.

- Por favor, Ruby, por acaso não acreditas seriamente...

‑ Acredito, Beau. Sempre acreditei nos poderes espirituais de algumas pessoas. A minha grandmère Catherine tinha‑os. Vi‑a curar pessoas, confortá‑las, dar‑lhes esperança, com um mero toque das mãos.

Beau esboçou um sorriso céptico.

- Então, o que queres fazer? Queres ir ao hospital?

- Sim. Tenho de ir.

- De acordo. Iremos. Queres esperar que a Pearl acorde ou...

‑ Não. Pediremos à Jeanne e à Toby que cuidem dela até regressarmos.

‑ óptimo - anuiu Beau.

- Desço já. Tenho de ir buscar uma coisa ‑ retorqui.

‑O quê?

- Uma coisa - repeti num tom firme.

Subi apressadamente as escadas até aos meus antigos aposentos e esgueirei‑me para o interior, sem que ninguém me visse ou ouvisse. Dirigi‑me à cómoda e abri a gaveta do fundo onde tinha a bolsinha com uma erva chamada cinco‑em‑ramo que Nina Jackson me dera outrora para afastar o mal juntamente com a pequena moeda com um fio para usar à volta do tornozelo como amuleto.

Dirigi‑me depois à porta de comunicação e entreabri‑a, a fim de espreitar Paul. Encontrava‑se profundamente adormecido na cama, agarrado à almofada. Por cima da cabeceira da cama, pendurada como um icone religioso, estava a minha fotografia numa moldura de prata. A visão patética voltou a inundar‑me os olhos de lágrimas e fez‑me doer o peito de tal forma com o peso de tanta tristeza, que não conseguia respirar. Sentia‑me como se me tivesse atirado para o caldeirão e só eu fosse capaz de escapar a morrer queimada.

Fechei a porta devagar, saí do meu antigo quarto e voltei para baixo. Beau esperava‑me ao fundo das escadas.

‑ Já falei com a Jeanne e a Toby - declarou. - Cuidarão da Pearl até voltarmos.

‑ óptimo ‑ comentei.

Beau não me perguntou o que eu fora buscar lá acima. Seguimos no carro para o hospital e perguntámos na recepção onde ficava o quarto particular de Gisselle. A enfermeira que Paul contratara estava sentada numa cadeira próximo da cama, a fazer renda. Ergueu os olhos surpreendida e boquiaberta.

‑ Mister Tate disse‑me que a mulher tinha uma irmã gémea, mas nunca vi duas gémeas tão parecidas ‑ exclamou, recompondo‑se.

‑ Não somos assim tão parecidas ‑ rectifiquei severamente.

Gisselle teria pronunciado um comentário do género e feito com que ela se sentisse pouco à vontade. A enfermeira ficou satisfeita por poder ausentar‑se, enquanto efectuávamos a visita. De qualquer maneira, queria‑a fora do quarto.

Mal ela se foi embora, dirigi‑me à cabeceira de Gisselle. Tinha os tubos de oxigénio no nariz e a conduta intravenosa ligada ao braço. Mantinha os olhos fechados e parecia ainda mais pequena e pálida do que quando a vira da ultima vez. O próprio cabelo tornara‑se baço. A pele tinha a cor da barriga de um peixe morto.

Beau recuou, enquanto agarrei na mão de Gisselle e baixei os olhos para a fitar. Ignoro o que esperava, mas não deu qualquer indício de tomada de consciência. Por fim, depois de um suspiro, peguei no saco com a erva‑cinco‑em‑ramo e meti‑o por baixo da almofada dela.

‑ O que é isso? ‑ perguntou Beau.

‑ Algo que a Nina Jackson me deu uma vez. No interior do saco há uma planta que está dividida em cinco segmentos. Proporciona um sono calmo e afasta o mal.

- O quê? Não estás a falar a sério.

‑ Cada segmento tem um significado: sorte, dinheiro, sabedoria, poder e amor.

‑ Acreditas realmente nessa coisa? ‑ indagou.

‑ Sim ‑ respondi. Depois, ergui a colcha e atei rapidamente a minha moeda da sorte ao tornozelo de Gisselle.

‑ O que estás a fazer?

‑ Também isto traz sorte e afasta o mal ‑ elucidei‑o.

‑ O que achas que vão dizer quando descobrirem isto, Ruby?

- Pensarão provavelmente que uma das amigas da minha grandmére apareceu aqui e o fez ‑ repliquei.

‑ Assim espero. A Gisselle nunca traria isso. Troçava desse tipo de coisas ‑ recordou‑me.

‑ De qualquer maneira, tinha de fazê‑lo, Beau.

‑ Tudo bem. Não fiquemos tempo demasiado, Ruby ‑ incitou, nervoso. ‑ Devemos voltar a Nova Orleães antes que se faça muito tarde.

Agarrei um momento na mão de Gisselle, pronunciei uma prece silenciosa e toquei‑lhe na testa. Pareceu‑me que as pálpebras pestanejavam, mas talvez fosse a minha esperança ou a minha imaginação.

‑ Adeus, Gisselle. Lamento que nunca fôssemos verdadeiras irmãs.

 

Senti uma lágrima na face e toquei‑lhe com a ponta do polegar direito. Depois levei‑o até à face dela, onde o pousei ainda molhado. ”Talvez agora, talvez finalmente agora, também ela no íntimo chore por mim”, pensei e virei‑me a toda a pressa, saindo a correr do quarto e fugindo da visão da minha irmã moribunda.

Paul ainda não se tinha levantado quando voltámos, mas Pearl estava a pé e a brincar com Jeanne e Toby no estúdio. Os olhos brilharam‑lhe de alegria ao ver‑me. Apeteceu‑me correr para ela e agarrá‑la ternamente nos braços, mas disse para mim mesmo que Gisselle não o teria feito e controlei as emoções.

‑ Temos de regressar a Nova Orleães ‑ declarei bruscamente.

Como foi no hospital? ‑ inquiriu Toby.

‑ Como se falasse comigo própria ‑ redargui, e ironicamente era essa a verdade.

As duas irmãs esboçaram um aceno com rostos igualmente tristes.

‑ Podem deixar o bebé comigo - sugeriu Jeanne. ‑ Não me importo.

‑ Oh, não. Não é possível ‑ recusei. - Prometi à minha irmã que cuidaria dela.

- O quê? Prometeu à Ruby?

‑ Num momento de fraqueza ‑ admiti ‑, mas tenho de manter a promessa.

- Porquê? Não me parece que seja doida por crianças, não é verdade? ‑ ripostou Toby, desdenhosamente.

Pedi ajuda a Beau com o olhar.

‑ Já contratámos uma ama ‑ insistiu ele. ‑ Está tudo combinado e em ordem.

‑ Uma tia está mais qualificada para tratar dela do que uma ama, não? ‑ contrapôs Jeanne.

‑ E acha que eu sou o quê? ‑ ripostei. Quando era Pearl que estava em causa, podia ser tão firme e arrogante como Gisselle.

‑ Bom, só queria dizer que... não é problema para mim.

‑ E não é problema para mim ‑ repliquei. ‑ Pearl. - Estendi os braços e ela correu para mim. ‑ Diga ao Paul que lhe telefonamos mais tarde.

Saí apressadamente com Pearl nos braços e Beau ao meu lado, antes que pudesse haver mais discussão. Tinha o rosto afogueado e os olhos muito abertos, próximos da histeria.

‑ Calma ‑ aconselhou Beau, quando estávamos todos no carro. ‑ Portaste‑te muito bem. Está tudo em ordem.

Só me acalmei quando íamos a caminho. A chuva que pairara nas nuvens durante todo o dia manteve a promessa e transformou‑se em aguaceiro durante toda a viagem de regresso a Nova Orleães. Relâmpagos riscavam o céu, e a trovoada rebentou com tanta força que nos sacudia até mesmo no carro. Fiquei aliviada quando por fim chegámos a casa. Aubrey recebeu‑nos com uma lista de telefonemas e verificámos que Bruce Bristow telefonara várias vezes.

‑ Vejo que terei de tratá‑lo com dureza para o afastar de vez ‑ declarou Beau, amarrotando a mensagem na mão com um gesto irritado.

 

Nesse momento, não podia ligar menos importância àqueles problemas. Pearl estava demasiado enjoada com a viagem para comer alguma coisa, e eu sentia‑me emocionalmente esgotada. Deitei‑a e depois tomei um banho quente e também me enfiei na cama. Horas depois, ouvi que Beau subia as escadas, mas mal dei por ele quando se estendeu ao meu lado e, minutos depois, também ele adormecia.

Nos dias seguintes, invadiu‑me o nervosismo e uma grande ansiedade. Para mim, as horas assemelhavam‑se a dias e os dias a meses. Havia alturas em que parava e consultava o relógio, surpreendendo‑me por só terem passado uns minutos. Sempre que o telefone tocava, dava um salto, o coração falhava uma batida e depois disparava, mas era por regra uma ou outra amiga de Gisselle. Mostrei‑me brusca com todos e em breve a maioria deixou de telefonar. Uma tarde, Pauline ligou‑me para me dizer que eu estava a perder todas as amigas, afastando‑as uma a uma.

‑ Toda a gente diz que te tornaste mais convencida do que

nUnca ‑ informou‑me. ‑ Dizem que te achas demasiado superior para lhes falares ao telefone e não convidaste ninguém a visitar‑te.

- Neste momento tenho coisas mais importantes com que me preocupar - ripostei.

- Não te interessa perderes todas as amigas?

- Não eram, na realidade, verdadeiras. Apenas lhes importa o que podem conseguir de mim ‑ redargui.

- Também estou incluída? ‑ inquiriu, petulante.

‑ Se a carapuça te serve, enfia‑a ‑ respondi.

- Adeus, Gisselle. Espero que sejas feliz no teu mundo - despediu‑se, desdenhosa.

No espaço de semanas, afastara a maioria das amigas de Gisselle, pessoas que de qualquer forma nunca me tinham agradado e fizera‑o intempestivamente, pelo que ninguém achou estranho. Beau ficou divertido e feliz. Foi praticamente o único ponto luminoso nos dias sombrios que se seguiram à nossa visita a Cypress Woods.

Sempre que telefonava para lá, era Toby ou Jeanne que atendiam. Paul estava sempre indisponível. Também elas se mostravam muito bruscas comigo. O estado de Gisselle não sofrera alteração. Certa vez, Toby, que conseguia ser mais cáustica do que Jeanne, disse:

- É apenas uma questão de tempo. Espero que a morte da sua irmã não interfira com nada que tenha programado. Sei a importância que dá à sua agenda social.

Pensei intimamente que Gisselle merecia estas reprimendas e recebi‑as em silêncio, mas de qualquer maneira doíam. No fim do ultimo telefonema, declarou:

- Não sei porque é que o meu irmão não insiste em que traga a Pearl para casa, onde ela pertence, mas acho que devia fazê‑lo, Gisselle.

Como dizer‑lhe que Paul não podia pedir‑me que levasse para casa uma filha que não era dele?

- Preocupe‑se consigo, Toby. Parece‑me que há aí bastante com que se ocupar ‑ ripostei e coloquei um ponto final na conversa.

Senti‑me terrivelmente mal com esta atitude e, quando contei a Beau, ele esboçou um aceno de cabeça triste.

‑ É assim que as coisas têm de ser por agora - confortou‑me, mas não chegava.

- às vezes, sinto‑me como se tivesse sido apanhada numa teia de aranha. Quanto mais me torço e luto, mais presa fico.

 

Tudo acabará em breve e prosseguiremos as nossas VIdas. Verás ‑ garantiu‑me, mas eu não tinha assim tanta confiança. A vida mostrara‑me claramente que podia dar voltas e reviravoltas quando menos o esperávamos.

Dois dias depois, ocorreu uma delas. Saíra‑me bem no meu papel na pele da minha irmã, sobretudo porque afastara as suas amigas e namorados e me conservava bem longe dos locais que ela costumava frequentar. Poucos, se é que alguns, eram suficientemente perspicazes para notarem as diferenças. Ninguém esperava, obviamente, essa troca de identidades. No íntimo, era bem provável que pensassem: ”Quem quereria ser Gisselle?”

A minha esperança era que, decorrido algum tempo, conseguisse transformar a personalidade da minha irmã até se parecer com a minha, e Beau e eu nos mudássemos para outra localidade, talvez outra cidade, e começássemos a vida com muito menos falsidade.

Estava no meu estúdio às voltas com um quadro quando Aubrey me bateu à porta, comunicando‑me que tinha uma visita. Antes de poder perguntar quem era, Bruce Bristow surgiu por trás dele. O marido da minha madrasta dava a sensação de que envelhecera décadas, desde que o vira pela ultima vez. O cabelo castanho‑escuro exibia fios grisalhos, as têmporas estavam completamente brancas e tinha umas olheiras enormes. Perdera também bastante peso, o rosto estava macilento e os olhos mortiços.

Cambaleava um pouco e vestia um casaco e calças amarrotadas, com uma gravata manchada e a camisa aberta no colarinho puido. Havia ainda uma arranhadela qualquer na face esquerda. Exibiu um sorriso astuto e entrou. Nesse momento, a atmosfera encheu‑se de um fedor a gim.

‑ O que estás a fazer aqui? A tentar ser a tua irmã? - Riu com voz entaramelada.

Agora que estava mais próximo, verifiquei que tinha os olhos injectados e percebi porque arrastava as palavras.

‑ Estás embriagado, Bruce. Sai daqui imediatamente - ordenei.

‑ Calma ‑ retorquiu. Fechou e abriu os olhos, vacilando. - Tu e o teu marido podem achar‑se muito espertos, mas é

melhor ouvirem o que tenho a dizer, antes de tomarem uma decisão que lamentem.

‑ Expulsar‑te da nossa vida é uma decisão que nunca lamentarei ‑ retorqui e, porque o sentia, as palavras saíram no mesmo tom maldoso em que Gisselle as teria pronunciado.

Atirou a cabeça para trás, mas soltou nova risada.

‑ Portanto, o que estás a fazer aqui? ‑ insistiu e fitou a tela. ‑ Não sabes desenhar, nem pintar. És a irmã sem talento, recordas‑te? - acrescentou com a mesma voz entaramelada e agarrando‑se ao espaldar de uma cadeira para recuperar o equilíbrio.

‑ lembro‑me de como te desprezava ‑ vinquei. ‑ Parecias uma sanguessuga, andando por aqui quando o meu pai morreu, colando‑te à família para extrair o que pudesses. Tudo isso acabou agora e nada do que digas, por mais insultuoso, poderá trazer-te de volta. Agora, vai‑te embora antes que o Beau regresse.

O sorriso alargou‑se, e um pouco de saliva escorreu‑lhe pelos cantos da boca.

‑ Nem sempre te mostraste tão ansiosa por me mandares embora ‑ replicou, aproximando‑se mais.

 

Desviei‑me, sem largar o pincel. Empunhava‑o como se fosse uma espada entre nós. Observou‑me um momento, enquanto abria e fechava os olhos numa tentativa de os focar. E depois, fixou novamente a tela.

‑ Não pareces muito perturbada por ”a tua irmã estar mal” ‑    comentou.

‑ E porque havia de estar? Ela estaria, se fosse eu que estivesse no hospital?

‑ Sabes bem que sim ‑ redarguiu num sussurro e fechou os olhos por momentos. Em seguida abriu‑os como que obedecendo a qualquer pensamento que lhe tivesse iluminado a mente turva. ‑ Nem pareces tu. ‑ Voltou a observar a tela. ‑ É bom de mais para que tenhas sido tu a pintá‑lo. Já estava aqui.

‑ Já.

‑ Foi o que pensei. ‑ Esboçou mais um sorriso e tentou compor a expressão mais séria de que foi capaz, tentando endireitar a gravata, enquanto corrigia a postura. ‑ Quero que me ajudes a convencer o Beau de que ele devia ser um pouco mais sensato quanto à fortuna da família. Conheço alguns dos esquemas de impostos da Daphne e estou disposto a revelá‑los a fontes oficiais ‑ ameaçou.

‑ Então, vai. Também não tens as mãos limpas, pois não’? Só exporias o que foste e muito provavelmente ainda és.

Esboçou um sorriso confiante e mais sóbrio.

‑ Sim, mas sabes como é quando alguém apresenta provas ao Estado. Obtém indulto. Posso fazer com que esta propriedade seja pesadamente multada. O que é que tu e o teu marido da alta sociedade fariam, hem?

‑ Tudo correrá bem. Sai, Bruce, antes que mande o Aubrey chamar a Polícia.

Brindou‑me com um olhar desdenhoso.

‑ E se contasse ao teu marido sobre aquela vez em que vim visitar‑te enquanto tomavas o teu banho de espuma? lembras‑te de como te lavei as costas, te dei aquela massagem e...

‑ Já lhe contei ‑ explodi.

Fitou‑me por momentos.

‑ Não acredito!

‑ Então, não acredites. Pouco me importa. Sai.

A minha determinação e audácia aborreceram‑no e confundiram‑no.

‑ Levei uns papéis daqui. Estou a avisar‑vos. Posso provar as minhas acusações.

‑ Então, prova.

‑ Estás doida. Estão ambos doidos. ‑ Examinou‑me durante mais um momento e depois observou novamente a tela. Ergueu uma das sobrancelhas interrogativamente. A minha resistência tornara‑o sóbrio e levara‑o a reflectir.

‑ Este não é um quadro antigo. A tinta ainda está húmida. Como o fizeste? Não és capaz de pintar. ‑ Os olhos estreitaram‑se, recordando‑me olhos de cobra. ‑ Há qualquer coisa de estranho nesta história. ‑ Aquelas palavras tinham o impacte de balas.

‑Sai! ‑ gritei. ‑ Sai!

Os olhos brilharam‑lhe ante uma possibilidade.

‑ La Ruby! ‑ exclamou. ‑ Tu és La Ruby. O que se passa?

‑ Sai! ‑ repeti, avançando para ele; Bruce ergueu os braços.

 

Nessa altura, Beau surgiu na ombreira da porta. Precipitou‑se para dentro do estúdio, agarrou Bruce pelo pescoço e virou‑se bruscamente na direcção da porta.

‑ O que estás a fazer na nossa casa? Disse‑te que não aparecesses, não disse? ‑ Empurrou‑o para a porta. Bruce recuperou o equilíbrio e voltou‑se para nos fitar com um olhar raivoso.

‑ O que é que vocês estão a armar, hem? Esta não é a Gisselle. Conheço a Gisselle. Tem uma expressão mais dura.

‑ És ridículo ‑ acusou Beau, mas não com segurança bastante.

Bruce estava entusiasmadíssimo e sorriu.

‑ É qualquer esquema para arranjarem mais dinheiro, não. Vou contar a toda a gente.

‑ Vai ‑ incitou Beau. ‑ Todos acreditarão nas palavras de um jogador bêbedo e patético. A cidade inteira fala a teu respeito e na forma como te degradaste. Tens tanta credibilidade como um criminoso já condenado.

‑ Muito bem - retorquiu Bruce com um aceno de cabeça.  - arranjarei provas, é o que farei. Excepto se vocês os dois

recuperarem a sensatez e me derem o que, afinal, me cabe por direito. Telefonarei daqui a uns dias para saber se querem ser espertos ou ambiciosos ‑ rematou.

- Sai daqui, antes que te parta o pescoço ‑ ordenou Beau. avançando para ele.

Bruce recuou e pôs‑se a percorrer o corredor. Beau seguiu‑o todo o caminho até à entrada principal, abriu a porta e empurrou‑o para fora. Bruce fez uma ultima ameaça, antes de as portas se fecharem.

‑ Toda a cidade vai ficar a par do vosso esquema! - gritou, erguendo o punho.

Beau fechou‑lhe a porta na cara.

- Está tudo bem, Aubrey - proferiu. - Está tudo sob controlo.

- Muito bem, sir. - Aubrey retirou‑se e Beau seguiu‑me até à sala de estar.

- Não te preocupes com ele - tranquilizou‑me, depois de se sentar. O coração ameaçava saltar‑me do peito e o sangue afluira‑me ao rosto. - Garanto‑te que ninguém dará crédito a uma só palavra dele. Devias ouvir algumas das coisas que correm a seu respeito.

‑ Como é que a Daphne se meteu com uma pessoa deste calibre depois de ter sido casada com o meu pai? - indaguei em voz alta.

- Tu própria afirmaste que ela usava as pessoas para depois se livrar delas como se fossem lastro - retorquiu Beau. Aproximou‑se e sentou‑se ao meu lado, agarrando‑me na mão.

- Não podes deixar que te apanhe, Ruby.

‑ Mas como é que ele soube? No meio de todas as outras pessoas, olhar para mim e saber... um bêbedo? - Perscrutei Beau e respondi à minha própria pergunta. - Era íntimo de Gisselle. Ela divertia‑se com ele, tenho a certeza.

‑ Provavelmente - anuiu Beau.

- Ele estava sempre a... atirar‑se a mim. Aproximava‑se pegava‑me na mão e olhava‑me bem de frente. Eu odiava que o fizesse; tinha sempre um hálito a cheirar a cebola ou algo no género e tinha de mostrar‑me delicada, mas firme. E foi a minha pintura... não devia ter permitido que a visse. Foi ela, mais do que tudo o resto, que denunciou...

 

- Que diferença faz que ele saiba ou não saiba, o que fez e o que não fez? É um homem que perdeu o respeito e, nesta cidade, quando não se tem respeito, não se tem voz. Acredita que serei capaz de entender‑me com ele - prometeu Beau.

‑ Não serve de nada, Beau. - repliquei, abanando a cabeça ‑ Se uma casa é construída sobre bases fracas, a primeira cheia arrastá‑la‑á. Vai voltar e atormentar‑nos.

‑ Apenas se deixarmos ‑ insistiu, envolvendo‑me com o braço. ‑ Anda. Vamos descansar. Mais tarde, sentir‑te‑ás melhor. Sairemos para um jantar fantástico num desses restaurantes maravilhosos. De acordo?

‑ Não sei,, Beau ‑ respondi, com um fundo suspiro.

‑ Sei eu. É o médico que receita - redarguiu, suspirando também e ajudando‑me a levantar.

Sobre a cornija em mármore da lareira, o retrato de Daphne continuava pendurado, e o belo rosto semelhante a mármore fitava‑me com uma expressão de arrogância e satisfação. O meu pai adorava aquela beleza e gostava de ter réplicas dela por todos os sítios da mansão.

Lembra‑te, filha, o diabo fascina‑nos de todas as formas, avisara a grandmère Catherine. Somos atraídos para ele como uma criança o é para a maravilha da chama de uma vela, sendo tentada a pôr o dedo na chama e queimando‑se.

Como esperava e rezava para que Beau e eu não tivéssemos posto os dedos na chama da vela.

 

SOMBRAS DO PASSADO

Beau parecia ter acertado no que aconteceria relativamente a Bruce e a algo que pudesse fazer ou dizer. Bruce perdera toda a sua credibilidade no mundo dos negócios, e o banco penhorara a sua forma mais importante de ganhar dinheiro, o bloco de apartamentos.

Continuou sabe‑se lá como a arranjar dinheiro para a bebida, mas tudo o que dizia a quem quer que fosse era considerado uma patética tentativa de estabelecer de novo contacto com a família Dumas. Os que o conheciam quando era casado com Daphne recordavam‑se do desdém com que ela o tratava. Referiam‑se‑lhe como mais um enfeite no braço dela, outra peça de joalharia.

Finalmente, um dia Beau telefonou a contar‑me que ouvira dizer que Bruce se mudara para Baton Rouge, onde arranjara um emprego, através de um dos seus poucos amigos, como gerente de um pequeno hotel.

‑ Portanto, livrámo‑nos dele ‑ declarou Beau, mas eu achava que Bruce Bristow se assemelhava a um bando de mosquitos do pântano: um dia desapareciam mas sabia‑se que em qualquer altura voltariam para atormentar novamente.

Entretanto, a situação em Cypress Woods mantinha‑se estacionária. Gisselle permanecia em coma; Paul tinha os seus dias bons quando trabalhava um pouco, mas, segundo Toby e Jeanne, continuava a passar a maior parte do tempo imerso em autopiedade. Jeanne contou‑me que chegara a ir visitar a velha cabana da grandmére Catherine.

‑ A cabana! Porque é que ele foi lá? ‑ indaguei, sentindo‑me resvalar para o abismo do passado.

‑ Tornou‑se uma espécie de santuário para ele ‑ replicou com a sua voz triste, uma tarde, ao telefone.

‑ O que quer dizer, Jeanne?

‑ Pouco lhe interessa que o jardim e os campos estejam sem serem cuidados aqui em Cypress Woods, mas levou alguns homens até à cabana e mandou‑os cortar a relva, plantar outra nova e todo o conjunto. ‑ Fez uma pausa. ‑ Tem mesmo passado noites lá.

‑ Noites? ‑ redargui, sentindo que a minha ansiedade formava um nó na garganta.

‑ Dormiu na cabana ‑ revelou.

O meu coração quase parou para, em seguida, começar a bater rapidamente.

‑ Dormiu?

Jeanne confundiu a surpresa na minha voz com desdém.

‑ Sei como isso pode parecer‑lhe revoltante, Gisselle. Ele não o confessa. É quase como se se esquecesse realmente do que faz ‑ prosseguiu ‑, mas o meu marido e eu fomos no carro até lá uma noite destas e avistámos a chama de um candeeiro de petróleo. Espiámo‑lo ‑ admitiu.

‑ O que viram?

‑ Estava enroscado no chão, aos pés daquele velho sofá, a dor’mir como um bebé. Não tivemos coragem de acordá‑lo. É tão triste.

 

Não falei. Não consegui falar. Chorava por dentro. Enrosquei‑me na cadeira como um trapo. A dor de Paul era muito mais profunda do que imaginara. Não estava, como Beau calculara, a aceitar as coisas como eram e seriam. Recuava no tempo, agarrando‑se a recordações mais felizes, destruindo‑se com o seu retorno ao passado.

‑ Sei que isto não lhe interessa, mas a verdade é que está cada vez pior e, se não conseguir controlar‑se dentro em breve, como poderá voltar a ser um pai para a filha? ‑ indagou Jeanne, pois achava que era essa a única coisa que incomodaria e preocuparia Gisselle.

‑ Ele vai recuperar o bom senso. Um dia acordará e tomarà consciência novamente de tudo... ‑ repliquei no tom mais frio de que fui capaz, mas saiu‑me numa voz sem qualquer confiança nas minhas palavras, e Jeanne apercebeu‑se.

‑ Acredito tanto como a Gisselle. ‑ Depois de uma pausa, inquiriu: ‑ Tenciona voltar a visitar a sua irmã?

‑ Perturba‑me demasiado ‑ respondi. ”A Gisselle diria isto”, pensei, embora pessoalmente também me perturbasse. Só que, como Ruby, não pensaria tanto em mim e iria vê‑la.

‑ Também não ficamos propriamente doidos de alegria, m’as vamos ‑ comentou Jeanne num tom seco.

‑ Para vocês é mais fácil. Não têm de fazer a viagem até ao bayou ‑ queixei‑me.

- Claro, essa enorme viagem. Como está a menina?

‑ óptima.

- Não passa o tempo a perguntar pelo pai e pela mãe? Nem sequer fala dela.

- Ela está bem - insisti. ‑ Limite‑se a fazer o que puder pelo seu irmão.

- Acho que, se ele tivesse a Pearl aqui, recuperaria melhor - afirmou. - A Toby é da mesma opinião.

- Temos de pensar no que é melhor para o bebé - insisti, talvez demasiado para Gisselle.

- Estar com o pai é o melhor - retorquiu Jeanne, e uma onda de pânico subiu‑me do estômago até ao coração, gelando‑o. - Contudo, a mamã parece concordar consigo de momento, e o Paul... o Paul não discute o assunto.

‑           Então, deixem cair - avisei.

- Quem iria pensar que uma pessoa como a Gisselle quereria uma criança a vaguear pela casa, embora seja grande - comentou Jeanne.

- Talvez não me conheça tão bem como pensa, Jeanne.

- Talvez não ‑ suspirou. Talvez exista em si um pouco da bondade da sua irmã. Só sei que estou desgostosissima com tudo isto. É tão injusto. Eram o casal mais perfeito do mundo, duas pessoas que viviam o romance maravilhoso que todos desejamos viver.

‑           Talvez fosse uma fantasia ‑ repliquei num tom suave.

- Isso é mesmo seu.

‑ Esta conversa não leva a nada de importante - ripostei na minha melhor imitação de Gisselle. - Telefono‑vos amanhã.

‑           Porque telefona tantas vezes? É o Beau que a obriga?

- Não há nenhum motivo para ser insolente, Jeanne.

Ficou um momento silenciosa.

- Desculpe - pediu. ‑ Tem razão. Tenho andado esgotada. Falo‑lhe amanhã.

 

Agora que as minhas conversas com Jeanne se processavam num clima de tensão, tornava‑se cada vez mais difícil manter o contacto com Cypress Woods e saber o que estava a acontecer por lá. Beau aconselhou‑me a que me afastasse durante uns tempos.

‑ De qualquer maneira, está mais de acordo com a personalidade da Gisselle, Ruby. No ponto em que as coisas se encontram, nenhuma delas tem vontade de se mostrar especialmente simpática para contigo.

Esbocei um aceno de concordância, mas era muito difícil

deixar de telefonar para saber como estava Paul e inteirar‑me das novidades sobre Gisselle. Não tinha assim tanto com que me distrair, agora que tínhamos criados a cuidar da casa.

Desde o meu confronto com Bruce no estúdio que hesitava em voltar até lá e começar um quadro. Manter o meu talento em segredo abafava o impulso criativo, mas não queria passar o dia a vigiar Mrs. Ferrier, dando a impressão de que não confiava na forma como se relacionava com Pearl. Assim, gastava horas sentada no estúdio, fitando uma tela vazia, à espera da inspiração, que parecia nublada pelos meus sombrios pensamentos.

Uma manhã, depois do pequeno‑almoço, precisamente quando me dispunha a ir até ao estúdio, a campainha da porta soou e Aubrey veio comunicar‑me que tinha uma visita masculina.

‑ Um tal Monsieur Tumbuíl - anunciou, estendendo‑me o cartão de um indivíduo. Por momentos, o nome não n’e disse nada, só que depois olhei melhor para o cartão e vi que tinha escrito ”Louis Tumbuíl”.

‑ Louis - pronunciei em voz alta, invadida por uma onda de alegria.

Tratava‑se de Louis, o neto de Mrs. Clairborne, o jovem cego que conhecera e de quem me tornara amiga em Greenwood, o colégio em Baton Rouge para onde Daphne me mandara e à Gisselle.

A principal benfeitora do colégio era uma viuva, Mrs. Clairborne, que vivia numa mansão próxima da instituição com o seu neto Louis. Louis, um jovem na casa dos vinte anos, cegara quando ainda era um rapazinho, após ter sofrido o trauma de ver o pai matar a mãe, sufocando‑a com uma almofada. A cegueira manteve‑se e incapacitou‑o, mesmo depois de dúzias e dúzias de sessões com um psiquiatra.

Contudo, ele era um talentoso pianista e compositor que punha todos os sentimentos na música. Conheci‑o acidentalmente quando fora a um chá na mansão com outras estudantes do nosso dormitório. Atraída pelo som da música, entrara no estúdio, e Louis e eu tornáramos amigos íntimos.

Louis afirmava que a minha amizade o ajudara a recuperar a vista. Acorreu em minha defesa quando quase fui expulsa de Greenwood por causa de algo que Gisselle fizera. O seu testemunho forneceu‑me um álibi e pôs fim ao incidente.

Louis viajara até à Europa para se tratar e estudar no conservatório de música. Tínhamos perdido o contacto e agora, entemente surgido do nada, ali estava à minha porta.

- Mostre‑lhe o caminho - pedi a Aubrey e esperei ansiosamente pelo nosso encontro, quando, ’de súbito, me lembrei: Não podia saudá‑lo como se fosse Ruby. Eu era Gisselle! Estaquei, com o sangue a gelar‑me nas veias.

 

Aubrey conduziu‑o até ao estúdio. Louis engordara um pouco desde que o vira pela ultima vez, mas o rosto amadurecera e as faces e o queixo estavam um pouco mais finos. Usava o cabelo castanho‑escuro mais comprido e puxado para trás nos lados. Ainda era um homem bastante elegante, com uma boca forte e sensual e um nariz aquilino. A única verdadeira mudança era a de que usava uns óculos com as lentes mais grossas que me fora dado ver.

‑ Obrigado por me receber, Madame Andreas - agradeceu. Aproximei‑me e estendi‑lhe a mão. ‑ Ignoro se se lembra ou não de mim. Era muito amigo da sua irmã Ruby ‑ acrescentou e apercebi‑me de que ouvira as notícias e julgava que eu era Gisselle.

‑ Sim, eu sei. Sente‑se, por favor, Mister Tumbuíl.

‑ Trate‑me por Louís - pediu e dirigiu‑se ao sofá em frente da minha cadeira.

Sentei‑me e fitei‑o por um momento, interrogando‑me sobre se poderia deixar escapar a verdade. Sentia um nó de frustração no estômago. Era como se centenas de bolhas de sabão estivessem prestes a rebentar no interior.

‑ Acabei de regressar da Europa ‑ explicou ‑, onde estudei música e toquei.

‑ Tocou?

‑ Sim, em algumas das mais importantes salas de concertos ‑ respondeu. ‑ Mal cheguei a Nova Orleães, fiz algumas indagações e contaram‑me essa história horrível sobre a sua irmã. Na verdade, vou tocar aqui em Nova Orleães no próximo Sábado, no auditório do Parque Louis Armstrong, em St. Arin Street. Esperara que a sua irmã estivesse entre a audiência. - Fez uma pausa.

‑ Lamento ‑ desculpei‑me. ‑ Sei quanto ela desejaria estar aqui.

‑ Sabe? ‑ Observou‑me e depois acrescentou: ‑ Trouxe uns bilhetes para si e Monsieur Andreas, no caso de quererem assistir. ‑ Tirou‑os do bolso e pousou‑os na mesa.

- Obrigada.

‑ Agora, quer fazer o favor de me dar notícias sobre a sua irmã? ‑ pediu, ao mesmo tempo que o rosto se lhe ensombrava. ‑ Que coisa horrível aconteceu, afinal?

‑ Foi infectada por um vírus que provoca um tipo muito

grave de encefalite - informei. ‑ Está em coma num hospital e temo que as perspectivas sejam sombrias.

Louis esboçou um aceno de concordância. Eu confirmara o que ele sabia e receava.

‑ Vejo que recuperou completamente a vista. A minha irm~ contou‑me ‑ apressei‑me a acrescentar.

‑ A minha vista é agora tão boa como teria sido se não fossem os problemas sofridos, mas pode ver por estas lentes que, de qualquer maneira, não nasci para ter uma óptima visão. Desde que possa ver as páginas e escrever as notas, estou bem ‑ acrescentou, a sorrir. ‑ É o que venho fazer aqui no sábado, à noite, sabe? Tocar composições originais. Penso que uma delas pode interessar‑lhe muito. Escrevi‑a para a sua írmã. chama‑se Sinfonia de Ruby.

‑ Claro ‑ anui, ao mesmo tempo que sentia um nó na garganta e uma lagrimazinha me escorria do olho direito e depois mais uma, do esquerdo. Interroguei‑me sobre se os olhos dele veriam algo tão pequeno. Fixou‑me por um instante, sem pronunciar palavra.

‑ Perdão, madame. Não pretendo faltar ao respeito, mas Monsieur Andreas não era o namorado da sua irmã? ‑ perguntou.

‑ Noutros tempos ‑ redargui num sussurro.

‑ Sabia que ela o amava bastante... Apaixonei‑me por ela, sabe, mas encarregou‑se de deixar bem claro perante mim que o seu coração já pertencia a outro e nada do que eu pudesse dizer ou fazer mudaria isso. Um amor tão forte é raro, mas suponho que ela casou com outro, não foi?

‑ Sim ‑ assenti, desviando os olhos com uma sensação de culpa. A minha história ansiava por brotar‑me dos lábios, qual rio enraivecido contra um dique.

‑ E tinha uma criança, uma filha? ‑ prosseguiu.

‑ Sim. Chama‑se Pearl. Vive agora comigo.

‑ Suponho que o marido da Ruby esteja bastante perturbado ‑ replicou.

Esbocei um aceno de concordância.

‑ Como está a sua avó, Madame Clairborne? ‑ interessei‑me.

‑ A minha avó faleceu há três meses.

‑ Oh! Lamento.

‑ Sim. Sofreu mais do que as pessoas sabiam. A vida dela, embora fosse uma pessoa rica, não transbordava de felicidade. Viveu, contudo, o suficiente para me ver recuperar a vista e tocar em grandes salas de concertos.

‑ Isso deve tê‑la feito muito feliz. E a sua prima, a ”dama de ferro” que dirigia Greenwood? Ainda contínua a soberana de todas essas jovens?

‑ Não ‑ sorriu. ‑ A minha prima reformou‑se pouco depois do falecimento da minha avó e foi substituida por uma mulher muito mais bondosa e compreensiva, Mistress Waverly.

‑           Sorriu. ‑ Já não há motivo para a sua família ter receio de enviar a Pearl para lá, um dia.

‑ Ainda bem ‑ congratulei‑me.

Tirou do bolso uma caneta e um bloco.

‑ Quer ter a bondade de me informar do nome e morada do hospital onde a sua irmã está a ser tratada? Gostaria de lhe enviar flores.

Indiquei‑lhos e ele anotou.

‑ Bom. Não quero tomar‑lhe mais tempo. Este é um período difícil para si e para a sua família. ‑ levantou‑se e imitei‑o devagar. Pegou nos bilhetes e trouxe‑os até mim, deixando‑mos na mão. ‑ Espero que possa assistir ao concerto com o seu marido ‑ desejou. ‑ Agarrou‑me nos dedos e fixou‑me com tal intensidade que fui forçada a baixar os olhos. Quando os ergui de novo, ele sorria. ‑ Vai reconhecer a peça, estou certo ‑   sussurrou.

‑Louis...

‑ Não faço perguntas, madame. Só espero que esteja na assistência.

‑ Estarei.

‑ Muito bem, então.

Acompanhei‑o até à porta da frente, onde Aubrey lhe entregou o chapéu. Depois, Louis virou‑se para mim.

‑ Quero que saiba que a sua irmã teve uma extraordinária importância na minha vida. Tocou‑me profundamente e devolveu‑me o desejo não só de viver, mas de continuar com a minha música. A sua personalidade doce e inocente, a pureza com que encarava as coisas, devolveram‑me a minha fé na vida e deram‑me a inspiração para escrever o que espero que as pessoas considerem música importante. Devia orgulhar‑se muito dela.

‑ E orgulho‑me ‑ acentuei.

‑ Todos rezaremos por ela, então.

‑ Sim, rezaremos ‑ anui, enquanto as lágrimas me corriam pelas faces, sem que fizesse qualquer esforço para as limpar. ‑ Deus o abençoe ‑ sussurrei; Louis esboçou um aceno de cabeça e foi‑se embora.

O meu coração assemelhava‑se a uma pedra afundada no canal pantanoso. Limpei, finalmente, as lágrimas.

Uma mentira arrasta outra, costumava dizer a grandmére Catherine. E depois as mentiras alimentam‑se umas das outras, como cobras deleitando‑se com os rebentos.

Quantas mais mentiras seria obrigada a dizer? Até onde teria de ir o meu embuste, antes de poder viver em paz com o homem que amava? Louis sabia a verdade, descobrira quem eu era. Fazia todo o sentido. Conhecera‑me sobretudo pela voz, pelo toque. Aprofundara para lá da superficie, pois a superficie para ele era escura e, assim, reconhecera‑me de imediato. E, no entanto, compreendia que havia motivos para a troca de identidades e não contestou nem fez nada para desmascarar o intrincado esquema que Beau e eu havíamos concebido e executado. Louis gostava demasiado de mim para fazer perguntas embaraçosas.

Nesse dia, quando Beau regressou a casa, falei‑lhe da visita de Louis.

‑ Lembro‑me dele, lembro‑me de falares constantemente dele. Achas que guardará o que sabe para si próprio?

‑ Oh, sim, Beau. Sem dúvida.

‑ Talvez não devêssemos assistir a esse concerto ‑ sugeriu Beau.

‑ Tenho de ir. Ele espera que eu vá e é esse o meu desejo. - Expressei‑me num tom tão firme que Beau ergueu as sobrancelhas. Reflectiu um momento.

‑ Não é o tipo de coisa a que a Gisselle assistiria - avisou.

‑ Estou cansada de cingir‑me apenas ao que a Gisselle faria; cansada de pensar apenas como ela pensaria e dizer apenas o que ela diria. Sinto‑me como uma prisioneira caída na armadilha da identidade da minha irmã! ‑ explodi.

‑ Compreendo, Ruby.

‑ Mantenho‑me encerrada nesta casa a maior parte do tempo com receio de sair e poder dizer a frase errada ou ter a atitude errada sem ti ao meu lado ‑ prossegui, num tom de voz agudo.

‑ Compreendo.

‑ Não, não compreendes. É uma tortura ‑ insisti.

‑ Iremos ao concerto. Se alguém perguntar, estás a fazê‑lo por mim. É tudo ‑ rematou Beau.

‑ Claro. Eu sou a estúpida, insensível, um monte... de carne e ossos corruptos da alta sociedade ‑ gemi. Beau riu‑se. - O que foi?

‑ Tens razão. Acabaste de descrever o que era a Gisselle.

‑ Então, como te convenceste a casar com ela? ‑ exigi saber, num tom mais brusco do que tencionara.

Ele fez um trejeito.

‑ Expliquei-te tudo isso uma vez, Ruby. Os motivos permanecem os mesmos. Amo‑te; sempre te amei, só a ti ‑ respondeu e baixou a cabeça, antes de dar meia‑volta e afastar‑se.

 

Fiquei ali de pé, sentindo‑me terrivelmente perturbada. Parecia que com aquele meu estado de espírito acabaria por magoar toda a gente. Os que amava também estavam a passar por um problema emocional. Como é que nos colocara a todos naquela sinuosa e dolorosa situação? Estava a afogar‑me, a afogar‑me naquele velho charco familiar de um imenso desespero.

Apercebia‑me, sem dúvida, de que a culpa não me cabia inteiramente. Beau não devia ter‑me abandonado nem impelido ao ponto de acreditar que não havia esperança para mim e para a minha filha se não casasse com Paul, e Paul não devia ter suplicado, tentando convencer‑me, nem vencido com as suas tentações de uma vida rica e confortável.

E acima de tudo Gisselle não devia ter‑se aproveitado e casado com Beau apenas para me magoar. Já verificara que ela na verdade não o amava; fora‑lhe infiel, sabe‑se lá quantas vezes... ”Somos todos culpados de algo que nos trouxe até este ponto”, reflecti. Porém, esse pensamento não fazia com que me sentisse melhor, nem diminuía o meu sentimento de culpa.

De qualquer maneira, de que servia atormentarmo‑nos um ao outro? De que servia agravar todo aquele turbilhão que já existia e talvez nunca terminasse? Fui atrás de Beau e encontrei‑o no estúdio a olhar através da janela.

‑ Desculpa, Beau ‑ pedi. ‑ Não era minha intenção explodir daquela maneira.

Virou‑se devagar e sorriu.

‑ Tudo bem. Cabe‑te todo o direito de explodires de vez em quando. Estás sob uma grande pressão. É muito mais fácil para mim. Apenas tenho de ser eu e poder ocupar‑me dos meus negócios. Devia ser mais compreensivo e mais sensível às tuas necessidades. Desculpa.

‑ Não discutamos esse assunto, então ‑ redargui.

Aproximou‑se de mim e agarrou‑me pelos ombros.

‑ Não consigo imaginar sequer zangar‑me contigo, Ruby. Se o fizer, iria odiar‑me ainda mais por isso depois. Prometo‑te.

Beijámo‑nos, abraçámo‑nos e saimos juntos até ao terraço para ver o que estava Pearl a fazer com Mrs. Ferrier.

 

Chegara à conclusão de que nada do que Gisselle tinha no roupeiro servia para o concerto de Louis; portanto, saí e comprei um elegante vestido comprido de veludo preto à altura do tornozelo. Quando Beau me viu com ele, ficou parado um longo momento. Depois, abanou a cabeça.

‑ O que foi? ‑ perguntei.

‑ Só o idiota mais insensível não veria a diferença entre ti e a tua irmã e não se aperceberia de quem és realmente ‑ replicou.

‑ Dizes isso por me conheceres tão bem, Beau. à primeira vista, a Gisselle não parecia assim tão diferente, se usasse uma coisa destas. Só que não lhe interessava ter o aspecto de uma mulher madura. Achava que não era sexy.

‑ Talvez tenhas razão ‑ concordou. ‑ De qualquer maneira, estava errada, se achava que a sofisticação não era sexy. Tíras‑me o fôlego. ‑ Pensou um momento e depois esboçou um aceno de cabeça. ‑ Acho que esta noite devias pôr um dos colares de diamantes da Daphne. Era o que a Gisselle faria - acrescentou, vincando as palavras.

Suspirei, contemplei‑me no espelho e concordei que deveria usar algo para compor o decote.

‑ Além disso ‑ continuou Beau, varrendo a minha hesitação ‑, porquê ter ressentimentos contra as jóias? Os diamantes não puderam escolher o proprietário, não é verdade?

Ri e dirigi‑me ao guarda‑jóias de Daphne.

‑ Tenho a certeza de que nunca brilharam tanto nela - declarou Beau de olhos brilhantes, quando pus o colar que me lembrava ter sido comprado pelo meu pai.

‑ Brilharam, sim, Beau. Embora fosse má e o mais cruel possível para connosco, era uma mulher bonita, uma feiticeira que se apoderou do coração e amor do meu pai e depois o atormentou por isso mesmo.

‑ E ao irmão também ‑ lembrou‑me Beau.

‑ Sim, e ao irmão também ‑ anui, pensando no pobre tio Jean.

Sabia‑me bem escapar‑me aos meus sombrios e pesados pensamentos e arranjar‑me para uma noite elegante. A gente mais rica e famosa de Nova Orleães iria assistir ao concerto de Louis. O meu coração transbordava de alegria ao ver o seu nome com letras luminosas e a fotografia nos cartazes.

Seguimos o cortejo de luxuosos automóveis e limusinas até à frente do teatro, onde motoristas e porteiros se apressavam a abrir as portas a mulheres com modelos exclusivos de estilistas e homens de smoking. Quando surgimos sob as luzes, senti‑me como se todos os olhos se fixassem em mim, observando‑me os movimentos, escutando cada palavra minha. lembrando‑me do que Beau dissera quanto à presença de Gisselle num acontecimento semelhante, tentei compor um ar infeliz e incomodado. Esta segunda parte não era difícil, pois sentia‑me muito nervosa.

Todos os que vieram falar‑nos manifestaram o seu interesse pelo estado de Ruby. ”Na mesma”, era a resposta esteriotipada de Beau. Por um instante, pareciam apiedados e depois passavam rapidamente a outros assuntos. A maioria das pessoas que iam assistir tinha bilhetes para a época e seguia todos os concertos. Fiquei surpreendida por tantas delas conhecerem Louis, saberem que compusera música enquanto estava cego e que, depois, ao recuperar a vista, começara a tocar pela Europa inteira.

Uma vez que nenhuma das amizades de Gisselle assistiria a um concerto daqueles, não seria obrigada a encarar a surpresa delas ao verem‑me vestida assim. Contudo, senti‑me feliz quando, por fim, nos sentámos, e a audiência se aquietou. O maestro surgiu ao som de aplausos e, quando Louis entrou, a ovação ainda foi maior. Sentou‑se ao piano, na sala reinou o mais absoluto silêncio e a música começou.

Enquanto Louis tocava, fechei os olhos e lembrei‑me daquelas noites na mansão da sua avó. As recordações invadiram‑me. Vi‑o sentado ao piano, com os olhos mergulhados na escuridão, mas os dedos provocando uma luz que se lhe reflectia no rosto. lembrei‑me de como nos sentávamos juntos no banco enquanto ele tocava e lembrei‑me de que me acariciava e beijava. Recordei a grande explosão de lágrimas e emoção no quarto dele, quando, por fim, me contou a história dos pais, a obsessão que a mãe lhe dedicava e a raiva do pai.

 

Idêntico ao arco‑íris depois da tempestade, Louis saíra desse turbilhão de dor e tornara‑se um pianista de fama mundial. Invadia‑me uma sensação não só de calor e alegria, mas de esperança para Beau, Pearl e para mim própria. ”A nossa tempestade não tardará a findar”, pensei ”e teremos uma calma e doce bonança.”

Antes do final do concerto, Louis levantou‑se e dirigiu‑se à audiência.

‑ Esta ultima peça, segundo indica o programa, chama‑se Sinfonia de Ruby. Trata‑se de uma peça inspirada por uma jovem maravilhosa que fez uma breve aparição na minha vida e me ajudou a reencontrar a esperança e autoconfiança. Pode afirmar‑se que me mostrou a luz ao fundo do túnel. É, portanto, com especial prazer que toco isto para todos vós esta noite - salientou.

Poucas pessoas da audiência suspeitavam que era de facto

eu, Ruby Dumas, para quem a música fora escrita e a quem era dedicada.

Beau agarrou‑me na mão, mas não pronunciou uma palavra. Tentei reter as lágrimas, receosa de que as pessoas notassem, mas tratava‑se de um feito quase impossível. Tinha o rosto molhado de lágrimas, quando a música terminou; contudo, a audiência ficara arrebatada e aplaudiu de pé. Louis esboçou vénias de agradecimento e abandonou o palco, ao som do sucesso obtido.

‑ Tenho de ir aos bastidores vê‑lo e felicitá‑lo, Beau - disse.

‑ Claro ‑ anuiu ele.

O camarim de Louis estava a transbordar de pessoas que tinham vindo cumprimentá‑lo. Abriam‑se garrafas de champanhe por todo o lado. Julguei que não conseguiríamos chegar perto dele, mas Louis descobriu‑me lá atrás e fez‑nos um sinal de cabeça, pedindo às pessoas que abrissem alas. Todos os olhos se fixaram obviamente em nós, com as pessoas a interrogarem‑se sobre quem eram aqueles convidados especiais.

‑ Foi maravilhoso, Louis - elogiei. ‑ Sinto‑me tão contente por termos conseguido vir.

‑ Sim, espectacular - acrescentou Beau.

‑ Obrigado. Fico felicíssimo por ter trazido um pouco de alegria ás vossas vidas nesta altura especialmente crítica, Madame Andreas. ‑ Beijou‑me a mão.

‑ Desejaria que a irmã da Gisselle pudesse ter estado aqui - acentuou Beau rapidamente e num tom suficientemente alto para que todos ouvissem. O meu coração quase parou no silêncio que se seguiu. O sorriso de Louis alargou‑se.

‑ Não é o que todos desejaríamos? ‑ retorquiu. ‑ Mas no fundo, acabou por estar ‑ acrescentou com um sorriso suave.

Entreolhámo‑nos por um momento e depois foi aberta outra garrafa de champanhe e a atenção de Louis desviou‑se o tempo bastante para permitir que Beau e eu nos retirássemos delicadamente.

Sentia um enorme aperto no coração. Mesmo com a janela do carro aberta e o rosto praticamente do lado de fora, tinha dificuldade em respirar.

‑ Ainda bem que me convenceste a assistir a este concerto - comentou Beau. ‑ Ele foi realmente espectacular. Não estou apenas a falar por falar. Quando tocava, a música adquiria vida própria e melodias que eu já tinha ouvido antes tornaram‑se bonitas como imaginei que deveriam ser.

‑ Sim. Ele tem um talento invulgar.

- Devias sentir‑te orgulhosa por o teres ajudado a recuperar o seu objectivo na vida ‑ replicou Beau.

‑ Ignoro até que ponto tive a ver com isso.

- A expressão do rosto dele indicou‑me que tiveste tudo a ver ‑ redarguiu Beau. ‑ Contudo, não sinto ciumes ‑ apressou‑se a acrescentar com um sorriso. ‑ Passaste pela vida dele como um anjo‑da‑guarda, tocaste‑lhe e prosseguiste. Mas tu és a minha vida.

Atraiu‑me de encontro ao corpo e beijou‑me. Enrosquei‑me nele e foi a primeira vez que me senti de facto segura e feliz, desde a nossa chegada a Nova Orleães como marido e mulher. Nessa noite, fizemos amor suave e meigamente, acabando por adormecer nos braços um do outro. Ambos dormimos mais tempo do que o habitual. Nem mesmo o sol que se infiltrava pelas janelas nos acordou, e Beau desligara o telefone junto à cama para que não nos incomodassem.

Fui a primeira a ouvir os passos e a leve pancada na porta de Aubrey. De início, julguei que estava a sonhar. Depois abri os olhos e voltei a escutar. Beau gemeu, quando me mexi.

‑ Um momento ‑ pedi e levantei‑me para vestir o roupão. Beau virou‑se na cama e fechou novamente os olhos.

‑ Desculpe incomodar, madame, mas Madame Pitot está ao telefone e parece muito agitada. Insistiu em que a chamasse imediatamente.

‑ Obrigada, Aubrey ‑ agradeci.

Dirigi‑me à mesa‑de‑cabeceira e liguei o nosso telefone, as mãos tremendo com a antecipação de más notícias.

‑ O que é? ‑ perguntou Beau, esfregando os olhos com as palmas das mãos.

‑ É a Jeanne ‑ respondi, levantando o auscultador. - Olá, Jeanne.

‑ Ela morreu ‑ informou num tom de voz que mais parecia sepulcral. ‑ Morreu ao começo da manhã. O Paul estava lá, agarrando‑lhe na mão.

‑O quê?

‑ A Ruby morreu. Disseram‑me que lhe telefonasse. Ninguém mais queria fazê‑lo. Desculpe se a acordei. Pode voltar a dormir ‑ acrescentou.

‑ Jeanne, quando? Como?

‑ O que quer dizer com quando, como? Não foi exactamente uma surpresa, pois não? Mas tem uma maneira muito própria de evitar as coisas desagradáveis, de as ignorar, não é, Gisselle? Só que a criatura da foice não tolera ser ignorada, até mesmo por ricos crioulos da alta sociedade de Nova Orleães.

‑ Como está o Paul? ‑ apressei‑me a perguntar, ignorando aquele amargo sarcasmo.

‑ Não sai do lado dela. Vai seguir o corpo passo a passo, até à agência funerária. Nem sequer escuta os meus pais. Apenas pronunciou uma frase com sentido, e para mim, porque sabia que iria telefonar‑lhe.

‑Qual foi?

‑ Disse‑me para a avisar que não trouxesse a menina ao funeral. Não quer que ela veja nada disto. Quer dizer, se é que Vem ao funeral.

‑ Claro que iremos ao funeral ‑ ripostei. ‑ Ela era minha irmã.

‑ Sim, era sua irmã ‑ redarguiu Jeanne secamente. Desculpe. Não posso falar mais. Se quiser, telefone mais tarde e peça ao James pormenores sobre o funeral.

Depois de pousar o auscultador, recostei‑me na almofada. Sentia‑me como se tivesse ficado sem pinga de sangue. Engoli um soluço.

Beau já sabia, mas mesmo assim perguntou:

‑ O que aconteceu?

‑ Ela morreu esta manhã.

Ele abanou a cabeça e soltou um profundo suspiro. Senti‑lhe a mão no meu ombro. Ficámos ambos silenciosos por um momento, digerindo aquela realidade.

‑ Pelo menos, acabou ‑ retorquiu. ‑ Finalmente.

Virei‑me para ele.

‑ Oh, Beau! É tão estranho.

‑ O quê?

‑ Pensarem que fui eu que morri. A tristeza e raiva da voz da Jeanne foram‑me insuportáveis.

‑ Sim, mas encerra o assunto para sempre. Tu e eu, tal como te disse, como prometi. Derrotámos o destino.

Abanei a cabeça. Eram estas as palavras que deveriam tornar‑me feliz, mas apenas me encheram o coração de um terrivel pavor. Já antes sentira as picadas surpreendentes e inesperadas do destino. Não tinha e provavelmente nunca teria a confiança de Beau.

Apesar de todas as coisas horríveis que Gisselle me fizera no passado e não obstante os ciumes dela e a sua forma de me olhar de cima porque fora criada no bayou, era uma cajun, não conseguindo deixar de me recordar dos momentos mais ternos em que, ao fitá‑la, detectava o seu desejo de ser amada e de se comportar como uma verdadeira irmã. Sabia que Beau me diria que o meu coração era tão mole como gelatina, mas não consegui deixar de verter lágrimas por Gisselle, aquela Gisselle que eu via ansiar por ser amada.

à tarde, telefonei e falei com James. Ele mostrou‑se muito delicado, mas igualmente frio. Nada podia parecer‑me mais estranho do que assistir às minhas próprias exéquias e funeral. Quando chegámos a Cypress Woods no dia do enterro, verificámos que a lividez e tristeza da morte se haviam abatido sobre a mansão e os seus terrenos. O céu apresentava‑se carregado e cor de chumbo e as densas nuvens estendiam‑se de uma ponta à outra do horizonte. A escuridão roubava a cor às pétalas das flores e colocava sombras para onde quer que eu olhasse. Todos pareciam tocados pela tragédia. As pessoas sussurravam, deslizavam e abraçavam‑se umas às outras, como que unindo‑se num círculo destinado a conservar a melancolia. Achei que os criados pareciam Os mais tristes de todos, com os olhos injectados de sangue e os ombros descaídos.

Era‑me difícil, se não impossível, receber expressões de condolência. Sentia‑me horrível a enganar pessoas tão desgostosas e, assim, virei costas e afastei‑me o mais rapidamente possível. No entanto e mais uma vez, as pessoas tomaram a minha reacção pela indiferença e egoísmo de Gisselle.

 

Os pais de Paul, as irmãs dele, Toby e Jeanne, e o marido de Jeanne ficaram na sala de estar a receber os pêsames das pessoas. Senti os olhos de Gladys Tate a fixarem‑se em mim com frieza mal entrei, e pareceu‑me ver um arremesso de sorriso nos lábios finos quando a cumprimentei. Fez com que me sentisse tão pouco à vontade que abandonei a sala o mais depressa que pude.

Paul conservou‑se isolado a maior parte do tempo. Percebemos que bebia muito. As únicas pessoas que quis ver foram os parentes mais chegados, sobretudo a mãe. Foi mesmo ao ponto de me fechar a porta, a mim e a Beau. Toby, que fora informá‑lo da minha presença, voltou com a notícia de que Paul achava demasiado doloroso ver‑me, dado parecer‑me tanto com Ruby. Beau e eu entreolhámo‑nos, surpreendidos.

‑ Agora, ele está realmente a exagerar - admitiu Beau num sussurro.

Fiquei muito preocupada e subi ao seu quarto. Bati à porta e esperei, mas não obtive resposta. Experimentei rodar a maçaneta, mas a porta estava fechada à chave.

‑ Sou eu, Paul. Abre a porta. Temos de falar. Por favor - supliquei.

Beau ficara para trás, a fim de se certificar que ninguém ouvia as minhas súplicas.

‑ Não vale a pena ‑ redarguiu. ‑ Ele não quer ver‑te. Espera até mais tarde.

No entanto, só o vi quando chegou a hora das exéquias. o desespero tirara‑lhe toda a cor ao rosto, que agora se assemelhava a uma máscara de morte. Fitou‑me com um olhar inexpressivo e caminhava como alguém em transe. Apertei a mão de Beau, fitei‑o preocupada e ele esboçou um aceno de cabeça. Tentou aproximar‑se de Paul antes de mim e falar‑lhe, mas Paul não o reconheceu. Mal reconhecia os próprios pais e, com tanta gente a rodeá‑lo, era‑me difícil dizer tudo o que queria dizer‑lhe.

A igreja estava a transbordar, não só por causa das pessoas que os Tate conheciam e com quem negociavam, mas por causa das pessoas que conheciam e se lembravam da minha grandmére Catherine. O coração quase me explodiu de desgosto ao ver‑lhes os rostos.

Beau e eu sentámo‑nos na frente, no banco atrás de Paul e da família e escutámos a elegia pronunciada pelo padre. Sempre que ouvia o meu nome, fazia uma careta e olhava em volta. Não havia um único rosto sem lágrimas na igreja. As irmãs de Paul choravam abertamente, mas Paul assemelhava‑se a um morto‑vivo, com o corpo rígido e os olhos tão inexpressivos que me provocavam calafrios. Quem é que, no seu perfeito juízo, olharia para ele e duvidaria que era, de facto, Ruby quem se encontrava naquele caixão?, reflecti, sentindo um nó no estômago.

”Estou a ver esta gente a chorar por mim, a ouvir um padre falar a meu respeito e a fitar um caixão, onde supostamente se encontra o meu corpo”, pensei, sentindo‑me um espírito demoníaco.

No cemitério ainda foi pior. Era eu quem, segundo o que todos acreditavam, estava a ser descida até à cova; era sobre o meu caixão que o padre pronunciava as ultimas palavras e executava os ultimos rituais. O meu nome, a minha identidade, estavam prestes a ser enterrados. Pensei intimamente que era esta a derradeira oportunidade, a ultima vez em que poderia gritar: ”Não, não é a Ruby que está no caixão. É a Gisselle. Eu estou aqui. Não estou morta!”

 

Por um momento, julguei que tinha falado, mas as palavras morreram‑me nos lábios. Os meus actos haviam‑nas tornado proibidas. Apercebi‑me de que a verdade tinha de ser enterrada aqui e agora.

A chuva desabou e prolongou‑se, impiedosa, mais fria do que o habitual. Abriram‑se guarda‑chuvas. Paul parecia não dar por ela. O pai e o marido de Jeanne, James, tiveram de agarrá‑lo pelos braços para impedir que caísse’. Quando o caixão foi descido e o padre lançou a água benta, as pernas de Paul cederam. Tiveram de o levar para a limusina e darem‑lhe água fria a beber. A mãe trespassou‑me com o olhar e seguiu‑o rapidamente.

‑ Ele vai ganhar um prémio com esta representação... se é que se trata de representação... ‑ comentou Beau, abanando a cabeça. Até ele estava mais do que surpreendido. Pela expressão do rosto, parecia tão atemorizado quanto eu com o bizarro comportamento de Paul.

Suspirei.

‑ Tens razão ‑ sussurrou‑me, quando regressámos ao nosso carro. ‑ O Paul sentiu‑se tão perturbado com a ideia de perder‑te, que ficou um pouco alucinado e tornou a ilusão como realidade. A única forma de poder aceitar que o deixaras foi acreditar que eras tu quem estava doente e agora morreste - declarou Beau, abanando a cabeça.

‑ Eu sei, Beau. Foi isso que aconteceu. Sinto‑me tão preocupada.

‑ Talvez agora que tudo terminou e ela desapareceu, consiga recompor‑se ‑ sugeriu Beau, mas nenhum de nós estava confiante que assim fosse.

Regressámos a Cypress Woods, sobretudo para ver como se encontrava Paul. O médico subiu ao quarto para o examinar e, quando desceu, informou‑nos que dera algo a Paul para o ajudar a dormir.

‑ levará tempo ‑ retorquiu. ‑ Estas coisas levam tempo. Infelizmente, não temos qualquer droga, medicamento ou tratamento que cure o desgosto. - Apertou a mão de Gladys entre as dele, beijou‑a na face e saiu. Ela virou‑se e fitou‑me de uma forma estranhíssima, de olhos chispantes. Depois subiu as escadas para ir ter com o filho.

Toby e Jeanne foram para um canto, a fim de se consolarem uma à outra. As pessoas começaram a ir embora, ansiosas por deitarem aquela horrível tristeza para trás das costas. A mãe de Paul permaneceu no quarto ao lado dele. Assim, eu não podia vê‑lo, mesmo que quisesse. Octavíous desceu para nos falar. Dirigiu‑se a Beau, como se também ele não conseguisse encarar‑me.

‑,AGladys está tão em baixo quanto o Paul ‑ murmurou. ‑ É sempre assim. Quando ele estava doente, mesmo em

criança, ela também ficava. Se ele estava infeliz, também ela

o estava. Que coisa tão horrível esta! ‑ acrescentou, abanando

a cabeça e afastando‑se. ‑ Horrível!

‑ Chegou a altura de nos irmos embora ‑ replicou Beau num tom suave. ‑ Dá‑lhe um dia ou dois e depois telefona. Quando se tiver recomposto um pouco, convidamo‑lo a ir a Nova Orleães e falaremos de tudo sensatamente.

Esbocei um aceno de concordância. Queria despedir‑me de jeanne e Toby, mas elas assemelhavam‑se a dois moluscos que tinham fechado a concha de tristeza à sua volta. Não olhavam nem falavam com ninguém.

Beau e eu dispusemo‑nos, assim, a ir embora. Fiz uma pausa junto à porta. James mantinha‑a aberta, esperando, impaciente; no entanto, eu queria percorrer o olhar pela mansão antes de sair. Invadia‑me uma sensação de fim. Aquilo era o termo de tantas coisas. Contudo, só no final da tarde do dia seguinte descobriria quantas.

 

ADEUS AO MEU PRIMEIRO AMOR

Ao princípio da noite do dia seguinte, exactamente quando Beau e eu nos preparávamos para nos sentarmos à mesa, Aubrey apareceu à porta da sala de jantar, muito pálido, para me informar de que tinha um telefonema.

Desde o regresso do funeral e de Cypress Woods que Beau e eu nos movíamos como dois sonâmbulos, comendo pouco, fazendo pouco, falando em voz baixa. As nuvens de tristeza que pairavam sobre o bayou tinham‑nos seguido de volta a Nova Orleães e agora estendiam‑se sobre as nossas cabeças qual tecto opressivo, escurecendo todas as salas e enchendo‑nos a própria alma de sombras.

Chovera durante todo o caminho de regresso de Cypress Woods. Adormecera ao som monótono dos limpa‑vidros no pára‑brisas e despertara com um frio que nem um monte de cobertores e uma dúzia de camisolas conseguiriam eliminar dos meus ossos.

- Quem é?     - perguntei.

Não me apetecia falar com nenhuma das amigas de Gisselle, que, segundo os meus cálculos, teriam ouvido falar da minha morte e desejariam entrar em coscovilhices. Dera instruções a Aubrey para informar todas as que telefonassem que eu não estava disponível.

‑ Não disse, madame. Mas fala com uma voz baixa e rouca e mostra‑se muito insistente ‑ explicou.

Pela forma como Aubrey pronunciava as palavras e revirava os olhos, percebi que quem quer que fosse lhe falara com rudeza. Tinha a certeza agora de que se tratava de uma das mal‑educadas e mimadas amigas de Gisselle, que não aceitariam ”não” como resposta de um criado.

‑ Queres que atenda? ‑ propôs Beau.

‑ Não. Eu trato do assunto ‑ repliquei. ‑ Obrigada, Aubrey. Lamento ‑ acrescentei, pedindo desculpa pela experiência por que ele tivera de passar.

Dirigi‑me ao estúdio e peguei no auscultador com o coração a bater‑me com força e o rosto corado de raiva.

‑ Quem é? ‑ inquiri e, por um momento, não obtive resposta. ‑ Está?

‑ Ele desapareceu ‑ proferiu uma voz rouca. - Desapareceu, não conseguimos encontrá‑lo e tudo por tua culpa.

‑ O quê? Quem fala? Quem desapareceu? ‑ indaguei a uma velocidade de metralhadora. A voz provocara‑me um calafrio pela espinha e pregara‑me ao chão.

 ‑ Foi para os canais. Foi para lá na noite passada, não regressou e ninguém conseguiu encontrá‑lo. O meu Paul ‑ soluçou. Soube, nesse momento, que se tratava de Gladys Tate.

‑ O Paul... foi para os canais na noite passada?

‑ Sim, sim, sim - gritou ela. - Fizeste‑lhe isto. Fizeste‑lhe tudo isto.

‑ Madame Tate...

‑ Pára! - ordenou. ‑ Deixa de fingir - acrescentou, baixando a voz novamente para aquele tom áspero de velha bruxa. ‑ Sei quem és realmente e sei o que tu e o teu... amante fizeram. Sei como despedaçaste o coração do meu Paul, o destruíste até já não lhe restarem sentimentos. Sei como o obrigaste a fingir e a participar no teu horrível esquema.

Senti‑me como se tivesse entrado em água gelada e ficado afitodada até aos joelhos. Por um momento, fui incapaz de falar. A minha garganta fechou‑se e todas as palavras emperraram no meu peito, dando‑me a impressão de que rebentaria.

‑ A senhora não compreende... ‑ articulei finalmente num tom vacilante.

‑ Oh, compreendo muito bem. Compreendo melhor do que julgas. O meu filho ‑ prosseguiu numa voz agora cheia de arrogância ‑ confiava mais em mim do que alguma vez saberías. Nunca houve segredos entre nós, nunca. Sabia da primeira visita que te fez e à tua grandmère. Sabia o que pensava de ti, como estava a apaixonar‑se por ti. Sabia como ficou triste e perturbado quando foste viver com os teus pais crioulos de Nova Orleães e soube como ficou feliz com o teu regresso.

”Mas eu avisei‑o. Avisei‑o de que lhe despedaçarias o coração. Tentei. Tentei tudo o que estava ao meu alcance ‑ acrescentou, soluçando. ‑ Enfeitiçaste‑o. Tal como te disse no outro dia, tu e a bruxa da tua mãe lançaram um feitiço ao meu marido e depois ao meu filho, o Paul. Ele desapareceu, desapareceu ‑ replicou, enquanto a voz lhe faltava, movida pelo ódio.

‑ Madame Tate... Gladys... lamento pelo Paul. Eu... Vamos já e ajudaremos a encontrá‑lo.

‑ Ajudar a encontrá‑lo! ‑ exclamou com uma gargalhada gelada. ‑ Mais depressa pediria ajuda ao diabo. Só quero dizer‑te que sei por que razão o meu filho tem o coração despedaçado e não ficarei aqui sentada a vê‑lo sofrer, sem que tu sofras o dobro.

‑ Mas...

O telefone emudeceu. Deixei‑me ficar sentada com o coração ameaçando saltar‑me do peito e a cabeça a andar à roda. Senti‑me como se estivesse numa piroga que havia sido apanhada pela corrente e revoluteava perigosamente. A sala girava à minha volta. Fechei os olhos, gemi e o auscultador caiu‑me e rolou pelo chão. Beau surgiu ao meu lado e amparou‑me quando resvalei.

‑ O que é isto? Ruby! ‑ Virou‑se e gritou por Sally. - Depressa. Traz‑me um pano frio e molhado ‑ ordenou, pondo o braço à minha volta e ajoelhando‑se. Abri os olhos. ‑ O que aconteceu? Quem estava ao telefone, Ruby?

‑ Era a mãe do Paul, a Gladys - ofeguei.

‑ O que disse ela?

- Que o Paul desapareceu. Foi para os pântanos na noite passada e ainda não voltou. Oh, Beau - gemi.

Sally apareceu com o pano. Beau tirou‑lho da mão e pousou‑o na minha cabeça.

‑ Descontrai‑te. Ela ficará bem, Sally. Merci - agradeceu Beau, mandando‑a embora.

Respirei fundo algumas vezes e senti o sangue a voltar‑me às faces.

‑ O Paul desapareceu? Foi o que ela disse?

- Sim, Beau. Mas disse mais. Disse que sabia de nós, sabia o que tínhamos feito. O Paul contou‑lhe tudo. Ignorava que o fizera, mas agora que penso na maneira como me fitou no funeral... - Sentei‑me. ‑ Ela nunca gostou de mim. Beau...

- Solucei. ‑ Oh, Beau. Ela ameaçou‑me.

- O quê? Ameaçou? Como?

‑ Garantiu que eu sofreria o dobro do que o Paul sofreu.

Beau abanou a cabeça.

‑ Neste momento ela está histérica. O Paul pô‑los a todos num frenesim.

‑ Ele foi para os pântanos, Beau, e não regressou. Quero ir até lá e ajudar a encontrá‑lo. Temos de ir, Beau.

‑ Não sei o que podemos fazer. Devem ter todo o pessoal à procura.

‑ Beau, por favor. Se alguma coisa lhe acontecer...

‑ De acordo ‑ assentiu. ‑ Mudemos de roupa. Tinhas

razão ‑ acrescentou com um tom amargo na voz. ‑ Não devíamos tê‑lo envolvido tanto como o fizemos. Agarrei a oportunidade para nos facilitar as coisas, mas devia ter pensado melhor.

As pernas tremiam‑me, mas segui‑o pelas escadas a fim de mudar de roupa e informar Mrs. Ferrier que íamos sair e talvez só voltássemos muito tarde ou mesmo no dia seguinte. Metemo‑nos no carro e guiámos através da noite, fazendo a viagem num tempo recorde.

Havia dúzias de carros e furgonetas ao longo do acesso de Cypress Woods. Quando estacionámos junto à casa, olhei para o cais e vi tochas nas mãos de homens que saíam em pirogas e barcos a motor para procurar Paul. Ouvimos os seus gritos ecoando pelo bayou.

No interior da casa, as irmãs de Paul estavam sentadas no estúdio. Toby parecia uma estátua, com a pele cor de alabastro; Jeanne torcia um lenço de seda nas mãos e rangia os dentes. Ambas ergueram os olhos, surpreendidas, quando entrámos.

‑ O que está a fazer aqui? ‑ perguntou Toby.

Pelas expressões dos rostos e a admiração demonstrada, presumi que Gladys Tate ainda não contara a verdade às filhas. Continuavam a julgar que eu era Gisselle.

‑ Ouvimos as notícias sobre o Paul e viemos ver o que podíamos fazer para ajudar ‑ apressou‑se Beau a responder.

‑ Podem ir até lá abaixo e juntarem‑se ao grupo de busca, suponho ‑ disse Toby.

‑ Onde está a vossa mãe? ‑ perguntei.

‑ Está lá em cima na suíte do Paul, deitada ‑ comunicou Jeanne. ‑ O médico veio cá, mas ela recusou‑se a tomar medicamentos. Não quer estar a dormir se... quando... ‑ Os lábios tremeram‑lhe e as lágrimas saltaram‑lhe dos olhos.

‑ Controla‑te ‑ repreendeu Toby. ‑ A mãe precisa que sejamos fortes.

‑ Como sabem de certeza que ele foi para os pântanos? Talvez esteja em qualquer bar ‑ sugeriu Beau.

‑ Antes do mais, o meu irmão não iria até um bar um dia depois de ter enterrado a mulher e, em segundo lugar, alguns dos operári’os viram‑no dirigir‑se para o cais ‑ redarguiu Toby.

‑ E levando uma garrafa de uísque na mão ‑ acrescentou Jeanne tristemente.

Fez‑se um silêncio mortal.

‑ Estou certo de que o encontrarão ‑ pronunciou‑se finalmente Beau.

Toby virou‑se lentamente para ele e deitou‑lhe um olhar gelado.

‑ Algum de vocês esteve alguma vez nos pântanos? Algum de vocês sabe como pode ser? Dá‑se uma volta e fica‑se a flutuar no meio de um emaranhado de plantas e ramos de ciprestes e em breve deixa de se saber como se entrou e não se faz ideia de como sair. Além disso, é um local cheio de cobras venenosas, aligatores e crocodilos, para já nem falar dos insectos e parasitas.

‑ Não é assim tão mau ‑ arrisquei.

‑ Ah, sim? Então caminhe daqui para fora com o seu marido e junte‑se ao grupo de busca ‑ retorquiu Toby com uma amargura que se infiltrou no meu cérebro semelhante a um raio.

‑ É o que tenciono fazer. Anda, Beau ‑ incitei, dando meia‑volta e afastando‑me. Beau caminhava ao meu lado, mas sem entusiasmo.

‑ Achas mesmo que devemos meter‑nos nos pântanos, Ruby? Quero dizer, se toda esta gente que vive aqui não consegue encontrá‑lo...

‑ Eu encontrá‑lo‑ei ‑ garanti com firmeza. ‑ Sei onde procurar.

O marido de Jeanne, James, estava no cais, quando lá chegámos. Abanou a cabeça e ergueu os braços, num gesto de desalento.

‑ É impossível! ‑ retorquiu. ‑ Se o Paul não quer ser encontrado, não o será. Conhece melhor estes pântanos do que a palma da mão. Cresceu neles. Por esta noite, desistimos.

‑ Não, não desistimos ‑ ripostei num tom áspero.

Ergueu os olhos, surpreendido.

‑ Não desistimos?

‑ É este o seu barco? ‑ perguntei, com um movimento de cabeça na direcção de um pequeno bote com um motor fora de borda.

‑ Sim, mas...

‑ Por favor. Leve‑nos só pelos pântanos.

‑ Acabei de regressar e garanto que...

‑ Sei o que estou a fazer, James. Se não quer ir, empreste‑nos o barco ‑ insisti.

‑ Vocês os dois? Nos pântanos? ‑ Sorriu, suspirou e depois abanou a cabeça. ‑ De acordo. Vou dar mais uma vista de olhos. Entrem ‑ concordou.

Beau, parecendo muito pouco á vontade, meteu‑se no barco depois de mim e sentou‑se. James estendeu‑nos tochas. Depois. avistámos Octavious que vinha a chegar com um outro grupo. A cabeça pendia‑lhe, qual bandeira de derrota.

‑ O pai do Paul está muito desgostoso ‑ comentou James, abanando a cabeça.

‑ Ligue o motor, por favor ‑ pedi. ‑ Por favor...

‑ O que espera poder fazer para além do que todas estas pessoas... algumas das quais pescam e caçam aqui... não pudessem ter feito?

Fitei-o.

‑ Acho que sei onde ele pode estar ‑ assegurei quase num sussurro. ‑ Um dia a Ruby falou‑me num esconderijo que ela e o Paul partilhavam. Descreveu‑o tão bem que estou çerta de conseguir descobri‑lo.

James abanou a cabeça com uma expressão céptica, mas ligou o motor.

‑ Muito bem, mas temo que estejamos somente a perder tempo. Devíamos esperar pela luz do dia.

Afastámo‑nos do cais e tomámos a direcção do canal. Os pântanos podiam tornar‑se assustadores de noite, mesmo para os homens que ali tinham vivido e trabalhado toda uma existência. O luar não era suficiente e a vegetação parecia adensar‑se e escurecer, formando muros e bloqueando o acesso a outros canais. Os ramos distorcidos de ciprestes assemelhavam‑se a velhas bruxas de unhas curvas, e a água assumia uma espessura de tinta, escondendo raízes de árvores, troncos à deriva e, obviamente, aligatores. Os nossos movimentos e as tochas mantinham os mosquitos á distância, mas Beau parecia muito pouco à vontade e mesmo assustado. Quase saltou do barco quando uma coruja voou a rasar.

‑ Para a direita, James, e depois, quando der a curva, vire bruscamente à esquerda.

‑ Não posso acreditar que a Ruby lhe tenha dado instruções tão explícitas ‑ resmungou entre dentes.

‑ Ela adorava este local porque ela e o Paul passaram muito tempo aqui ‑ retorqui, defendendo‑me. ‑ É como um outro mundo. Dizia ela ‑ apressei‑me a acrescentar.

James seguiu as minhas indicações. Atrás de nós, as tochas do grupo de busca diminuiram de brilho e perderam‑se. Um silêncio escuro desceu entre nós e a casa. Em breve deixámos de ouvir as vozes dos homens do grupo de busca.

‑ Mais devagar, James ‑ pedi. ‑ Há algo que tenho de procurar e não é fácil à noite.

‑ Sobretudo quando nunca se esteve aqui antes ‑ comentou James. ‑ Isto é inútil. Se esperarmos até de manhã...

‑ Ali ‑ indiquei, apontando. ‑ Vê onde aquele cipreste curva, como uma velha senhora colhendo um trevo‑de-quatro-folhas?

‑ Velha senhora? Trevo‑de‑quatro‑folhas? ‑ surpreendeu‑se

James.

‑ Era o que o Paul dizia sempre à Ruby. ‑ Nem James ou Beau podiam ver o triste sorriso no meu rosto. ‑ Vire à direita sob o ramo mais baixo.

‑ Talvez não caibamos por baixo ‑ avisou.

‑ Cabemos, se nos dobrarmos ‑ ripostei. ‑ Devagar.

‑ De certeza? Acabaremos pendurados numa rocha ou num monte de raízes ou...

‑ Tenho a certeza. Faça‑o. Por favor.

James descreveu a volta, relutante. Baixámos as cabeças e passámos sob o ramo.

‑ Com mil diabos! ‑ exclamou James. ‑ Para onde, agora?

‑ Vê aquela densa parede de musgo que chega à água?

‑Sim.

‑ Atravesse‑a. É a porta secreta.

‑ Porta secreta! Raios! Ninguém iria pensar numa coisa dessas!

‑ Era ao que me referia quando falei em estar num outro mundo ‑ repliquei. ‑ Pode desligar o motor. Flutuaremos e chegaremos lá.

Obedeceu. Sustive a respiração, enquanto o barco atravessava o musgo, que se afastou como um reposteiro, permitindo‑nos entrar no pequeno lago. Quando estávamos completamente no interior, ergui a tocha e Beau imitou‑me.

‑ Reme devagar em círculo ‑ indiquei.

O brilho das nossas tochas rasgaram a escuridão, desvendando o lago. Cobras ou tartarugas mergulharam, criando círculos na água. Avistámos uma brema que se alimentava de mosquitos. Um aligátor levantou a cabeça, de dentes reluzindo à nossa luz e depois mergulhou. Ouvi Beau engolir em seco. Algures à direita, um falcão soltou o seu grito. Na margem do lago, uma meia dúzia de lontras procuraram abrigo.

‑ O que é isto? ‑ perguntou subitamente James, ao mesmo tempo que se levantava no barco e se servia do remo para puxar o que parecia uma garrafa. Depois, inclinou‑se para a agarrar. Era uma garrafa de rum vazia. ‑ Ele esteve aqui! - exclamou James, perscrutando mais atentamente o que o rodeava. ‑ Paul! ‑ gritou.

‑ Paul! ‑ chamou igualmente Beau.

Por momentos, os meus lábios recusaram formular o nome. mas depois também eu chamei:

‑ Paul, por favor Se estás aí, responde‑nos.

Nada se ouvia, exceptuando o som dos animais do pântano.

Á direita, um veado atravessou pelos arbustos. O terror assaltou‑me o coração e encheu‑me os olhos.

‑ Continue a remar à volta do lago, James ‑ disse, sentando‑me, mas conservando a tocha incidida bem alto para a direita, enquanto Beau iluminava a esquerda com a dele.

A água embatia no pequeno bote. Mal corria uma brisa, e os insectos começaram a pressentir a nossa presença, deliciados. De súbito, recortou‑se o fundo redondo de uma piroga. De início, parecia um crocodilo, mas, quando nos aproximámos, tornou‑se óbvio tratar‑se da canoa de Paul. Ninguém falou. James tocou‑lhe com o remo.

‑ É dele ‑ certificou. ‑ Paul!

‑ Ali. É alguma coisa? ‑ perguntou Beau, inclinando‑se no barco, com a tocha.

James virou o bote na direcção indicada por Beau e apontei igualmente a minha tocha. Paul jazia de cara para baixo, prostrado em cima de uma grande rocha, com o cabelo desmaselado e enlameado. Dava a sensação de que se tinha içado e depois desmaiara. James virou o barco de forma a que ele e Beau pudessem pór‑se de pé e chegar ao corpo de Paul. Ia também a levantar‑me quando Beau se virou bruscamente.

‑ Não! ‑ ordenou, agarrando‑me pelos cotovelos e forçando‑me a sentar. ‑ Não olhes! Ele está morto ‑ exclamou.

Tapei o rosto com as mãos e gritei. O meu grito agudo trespassou os cantos mais escuros e as sombras do pântano, fazendo com que as aves levantassem voo, os animais corressem e os peixes mergulhassem. Ecoou sobre a água e foi finalmente detido pelo muro de negro silêncio que nos espera a todos.

 

O médico declarou que os pulmões de Paul estavam tão cheios de água que não fazia ideia como conseguira subir sequer alguns centímetros para a rocha, quanto mais içar o corpo todo. Foi ali que exalara o ultimo suspiro. Por milagre, nenhum aligátor o atacara, mas a morte por afogamento distorcera‑lhe as feições, e Beau tivera razão ao impedir‑me de olhar.

 

Cypress Woods já era uma casa de luto e, portanto, assim continuou, sob a nuvem escura de uma maior tristeza. Os criados, que tanto tinham chorado a minha suposta morte, precisavam agora de encontrar outra fonte de onde pudessem extrair mais lágrimas. As irmãs de Paul, sobretudo Toby, haviam presSentido más notícias, mas ficaram mesmo assim devastadas e retiraram‑se na companhia de James para a privacidade do escritório, enquanto Octavious subia as escadas para estar com Gladys.

Sentia‑me tão fraca e o meu corpo tão leve que julguei que seria apanhada pelo vento e transportada pela noite. Beau apertou‑me a mão e rodeou‑me os ombros com o braço. Encostei‑me a ele e fiquei a vê‑los trazerem o corpo de Paul.

Beau queria que regressássemos imediatamente a Nova Orleães. Insistia em que não tinha força bastante para resistir nem palavras para argumentar. Deixei que me conduzisse até ao nosso carro e afundei‑me no assento, enquanto ele nos levava para longe dali. As minhas lágrimas haviam secado.

Quando fechei os olhos, imaginei Paul em miudo, dirigindo‑se até à varanda da frente da casa da grandmère Catherine, Vi‑lhe o brilho dos olhos quando os pousava em mim. As nossas vozes soavam muito entusiasmadas na altura. O mundo parecia tão inocente e precioso. Todas as cores, todas as formas. todos os cheiros eram mais ricos.

Sempre que estávamos juntos, explorando os nossos jovens sentimentos, era como se fôssemos o primeiro casal da terra descobrindo coisas que não podíamos imaginar que outros descobrissem antes de nós. Ninguém consegue explicar a maravilha que nos nasce no coração quando expomos novos sentimentos em frente de alguém que faz o mesmo.

Essa confiança, essa fé de infância é tão pura e boa que não se conseguem imaginar traições. Todos os problemas e tristeza que se conhecem e observam no mundo à nossa volta serão afastados por fortes e novas emoções tecidas de forma impenetrável. Podem fazer‑se promessas, expor sonhos e sonhar novas coisas juntos. Nada parece impossível, e a ultima coisa que se imagina é que algum destino malicioso brinque connosco e nos conduza por uma estrada levando a trágicos e escuros momentos.

Queria sentir raiva e amargura e culpar alguém ou alguma coisa, mas não consegui pensar em ninguém que pudesse culpar, à excepção de mim própria. O peso dessa culpa era tão grande que se tornava insuportável. Sentia‑me esmagada, derrotada e tão cansada que só voltei a abrir os olhos quando Beau disse que tínhamos chegado a casa. Deixei que me ajudasse a sair do carro, mas as pernas não aguentavam o peso do meu corpo. Levou‑me ao colo até casa e pelas escadas e deitou‑me na nossa cama, onde me enrosquei, rodeando os braços com o corpo e perdendo a consciência.

Ao acordar, Beau já estava vestido. Virei‑me, mas tinha uma dor tão profunda nos ossos que mal consegui esticar as pernas e levantar‑me. Tinha a sensação de que a minha cabeça se transformara em pedra.

‑ Estou tão cansada - repliquei. ‑ Tão fraca.

‑ Fica na cama hoje - aconselhou. ‑ Vou mandar a

sally trazer‑te o pequeno‑almoço ao quarto. Preciso de tratar de vários assuntos no escritório e depois regressarei a casa para te fazer companhia.

‑ Beau - gemi. ‑ A culpa é minha. A Gladys Tate tem razão em odiar‑me.

‑ Claro que não tens culpa. Não quebraste nenhuma promessa, e tudo o que ele fez, fé‑lo consciente, sabendo as consequências que poderiam resultar. Se alguém tem culpa, sou eu. NãO devia ter permitido que se envolvesse tanto. Devia ter‑te obrigado a romperes claramente com ele para que compreendesse que devia continuar com sua própria vida, enquanto nós seguiríamos a nossa e a Gisselle a sua.

”Contudo, Ruby - prosseguiu Beau, aproximando‑se de mim e pegando‑me na mão ‑, nós estamos predestinados. Não há duas pessoas, que se amem tanto como nós e não estejam predestinadas. É essa a fé que tens de ter, a fé a que deves agarrar‑te quando te sentires de luto pelo Paul. Se agora falharmos um ao outro, tudo o que ele fez terá sido ainda mais em vão.

”Lá bem no íntimo, também ele deve ter tomado consciência de que me pertencias. Talvez não tivesse conseguido enfrentar essa realidade e ela o superasse... mas ele sabia... ele sabia a verdade.

”Cumpre‑nos agarrar‑nos ao que agora temos. Amo‑te - rematou, beijando‑me suavemente nos lábios. Baixou a cabeça

ao meu peito e abracei‑o por um longo momento antes de ele se levantar, respirar fundo e sorrir. ‑ Vou mandar a Sally e depois dizer a Mistress Ferrier que te traga a Pearl mais tarde, está bem?

‑ Está bem, Beau. Como quiseres. Sou incapaz de pensar por mim própria.

‑ Pensarei por nós os dois ‑ replicou, atirando‑me um beijo e saindo.

Olhei através da janela. O céu estava toldado, mas as nuvens pareciam leves. O Sol conseguiria romper e o dia estaria quente e abafado. Depois do pequeno‑almoço tomaria banho e ficaria de pé. A perspectiva de assistir ao funeral de Paul pareCia‑me esmagadora. Não sabia onde arranjaria forças, mas os acontecimentos provaram que esse seria o menor dos meus problemas.

Ao fim da manhã, depois de ter comido alguma coisa e tomado banho, escovei o cabelo e vesti‑me. Mrs. Ferrier trouxe‑me Pearl e deixei‑a brincar com os meus pentes e escovas. Sentou‑se ao meu lado, imitando‑me os movimentos. O cabelo tinha‑lhe crescido até aos ombros e tornava‑se mais louro de dia para dia. Os olhos azuis eram um mundo de curiosidade. Mal aprendia uma coisa, perguntava mais alguma, tocava noutra.

A sua energia e entusiasmo trouxeram alguma alegria e alívio ao meu coração entristecido. ”Que felicidade tê‑la”, pensei. Estava resolvida a dedicar‑me a ela, a certificar‑me de que a sua vida seria mais tranquila, mais feliz e mais preenchida do que a minha. Iria protegê‑la, aconselhá‑la, guiá‑la para que evitasse as armadilhas e reviravoltas traiçoeiras que a minha existência sofrera. Apercebia‑me de que todas as nossas esperanças e objectivos residiam nos nossos filhos. Eram eles a promessa e o único antídoto para a tristeza.

Beau telefonou a dizer que regressaria a casa dali a pouco. Mrs. Ferrier levou Pearl a brincar no jardim e resolvi descer para que Beau e eu almoçássemos no terraço quando ele voltasse. Acabara de dar a volta à escada, quando os telefones tocaram. Aubrey anunciou que era Toby Tate e apressei‑me a pegar num dos auscultadores.

‑ Toby ‑ exclamei. ‑ Lamento termos partido tão rapidamente, mas...

‑ Ninguém aqui está muito preocupado com isso ‑ interrompeu friamente. ‑ Não estou de forma alguma a telefonar para me queixar do seu comportamento. Muito francamente, não consigo imaginar nenhum de nós preocupado com isso. - O tom duro e formal com que se expressava acelerou‑me o coração. ‑ Na verdade, a mamã pediu‑me que telefonasse a dizer que preferia que não assistisse ao funeral do Paul.

‑ Não assistir? Mas...

‑ Vamos mandar um carro com uma ama que contratámos para ir buscar a Pearl e trazê‑la para casa ‑ acrescentou com firmeza.

‑O quê?

‑ A mamã afirma que a filha do Paul e da Ruby pertence ao grandpère e à grandmère e não à tia egoísta. Portanto, todas as suas promessas e obrigações terminaram. Pode regressar Á sua vida de prazer e deixar de preocupar‑se. Foram estas as palavras exactas da mamã. Por favor, tenha a Pearl pronta ás três horas.

O nó que se formara na minha garganta impedia‑me de pronunciar palavras. Não conseguia engolir. Dava‑me a sensação de que o coração escorregara para o estômago e uma onda de calor subiu‑me da base da espinha à cabeça, onde circulou à volta do meu pescoço, semelhante aos dedos compridos e finos de uma bruxa, sufocando‑me.

‑ Compreende? ‑ impacientou‑se Toby.

- Vocês...

‑Sim?

‑ Não podem... levar... a Pearl ‑ retorqui, lutando por abrir os pulmões e sugar algum ar. ‑ A sua mãe sabe que não.

- Que disparate é esse? Claro que podemos. Não acha que uma grandmère tem mais direito a uma neta do que uma tia?

‑           Não! ‑ gritei. ‑ Não deixarei que levem a Pearl.

‑ Não vejo como possa ter muito a dizer sobre esse assunto, Gisselle. Espero que não acrescente mais problemas e tristeza à nossa tragédia. Se ainda existe alguém que não a despreze, em breve o fará.

- A sua mãe sabe que não pode fazer isto! Ela sabe. Diga‑lhe. Diga‑lhe! ‑ gritei.

‑ Bom. Vou transmitir‑lhe, mas o carro estará aí às três horas. ‑ Adeus ‑ despediu‑se Toby num tom áspero, e o telefone emudeceu.

‑ Não! ‑ gritei, mesmo assim, para o auscultador.

Desliguei rapidamente e apressei‑me a telefonar a Beau.

‑ Vou já para casa ‑ respondeu depois de eu despejar, ofegante, o que Toby dissera ser uma exigência de Gladys Tate.

‑ Foi o que ela insinuou ao ameaçar que eu iria sofrer o dobro do Paul, Beau. É a forma de ela se vingar.

‑ Acalma‑te. Vou já para aí ‑ prometeu. Desliguei, mas não consegui ficar calma. Dirigi‑me ao estúdio e pus‑me a andar de um lado para o outro, enquanto calculava mentalmente as hipóteses. Pareceram‑me horas até Beau chegar, embora apenas tivessem decorrido uns minutos. Foi ter comigo imediatamente ao estúdio, abraçou‑me e forçou‑me a sentar. Não conseguia parar de tremer, os meus dentes entrechocavam‑se.

‑ Tudo correrá bem ‑ garantiu‑me. ‑ Ela está a fazer blUf. Apenas a tentar atormentar‑te devido ao desgosto que sentiu. Tomará consciência do que está a fazer e não irá por diante.

‑ Mas, Beau... toda a gente pensa que eu sou a Gisselle. Enterraram‑me!

‑ Tudo correrá bem ‑ repetiu, embora não com a mesma confiança.

‑ Nós nascemos nos pântanos, numa cabana. Não é como aqi em Nova Orleães, num hospital, onde se tiram as impressões digitais dos bebés para que possam ser facilmente identificados mais tarde. O Paul era meu marido e disse ao mundo que eu estava doente e moribunda. Assistiu ao meu funeral e suicidou‑se, quer propositada ou acidentalmente, por causa da minha morte ‑ ripostei, ao mesmo tempo que cada tomada de consciência correspondia a mais um prego no caixão da verdade.

Agarrei nas mãos de Beau e olhei‑o fixamente.

‑ Tu próprio afirmaste que eu tinha feito um bom trabalho ao fingir ser a Gisselle. Toda a gente julga que sou ela. Até mesmo os teus pais!

‑ Se chegarmos ao ponto de ficar ou não com a Pearl, confessaremos a verdade e contaremos o que fizemos às autoridades. Prometo ‑ disse ele. ‑ Ninguém nos tirará a nossa filha. Ninguém, e muito menos a Gladys Tate - garantiu‑me, ao mesmo tempo que me apertava as mãos com uma expressão determinada, o que abrandou o meu coração e cessou um pouco os tremores.

‑ A Toby disse que às três horas estará aqui um carro com uma ama.

‑ Tratarei do assunto ‑ retorquiu. - Não quero que te aproximes sequer da porta da frente.

Esbocei um aceno de concordância.

‑ Pearl! - exclamei subitamente. ‑ Onde está ela?

- Calma. Onde poderia estar senão com Mistress Ferrier? Não a assustes ‑ avisou, agarrando‑me no pulso. ‑ Ruby.

‑ Sim, tens razão. Não devo assustar a menina. No entanto, agora quero‑a lá em cima. Não a quero lá fora, quando eles vierem.

‑ De acordo, mas fá‑lo com calma, suavemente - ordenou. ‑ Está bem?

- Sim. ‑ Respirei fundo e saí ao encontro de Mrs. Ferrier e de Pearl.

Sem entrar em explicações pormenorizadas, pedi‑lhe que trouxesse o bebé para dentro e o conservasse no quarto. Depois fui juntar‑me a Beau na sala de jantar, mas não só fui incapaz de almoçar, como de levar qualquer pedaço de comida à boca. Mal consegui beber água. O meu estômago acusava o nervosismo. Um pouco depois das duas, Beau disse‑me que subisse as escadas e ficasse com Pearl e Mrs. Ferrier. O coração ameaçava saltar‑me do peito. Julguei que poderia morrer facilmente de medo, mas lutei contra o pânico e ocupei‑me de Pearl.

Pouco antes das três horas, ouvi a campainha da porta e senti um baque no peito. Não consegui deixar de ir até ao cimo

das escadas e ficar à escuta. Beau já informara Aubrey de que seria ele a atender a porta. Não queria que Beau soubesse que eu estava a espreitar e à escuta; por isso, refugiei‑me na sombra quando ele se virou e olhou para o cimo das escadas, antes de abrir a porta.

Na ombreira recortou‑se a figura de um homem de fato completo e uma ama de farda.

‑ Sim? ‑ perguntou Beau no tom mais despreocupado que conseguiu.

‑ Chamo‑me Martin Bell ‑ apresentou‑se o homem. - Sou advogado e represento a família Tate. Monsieur e Madame Tate mandaram‑nos vir buscar a neta deles ‑ declarou.

‑ A neta não vai a lado nenhum hoje nem em nenhum outro dia ‑ replicou Beau com firmeza. ‑ Está na casa a que pertence e onde ficará.

‑ Recusa‑se a entregar‑lhes a neta? ‑ perguntou Martin Bell com alguma surpresa.

Tudo indicava que o tinham informado tratar‑se de uma simples incumbência. Provavelmente julgara que estaria a ganhar dinheiro fácil.

‑ Recuso‑me a entregar‑lhes a nossa filha, sim, senhor - vincou Beau.

‑ Desculpe. A vossa filha? Sinto‑me confuso ‑ declarou Martin Bell, olhando para a ama que também parecia aturdida.

‑ A menina não é filha de Paul e Ruby Tate?

‑ Não ‑ respondeu Beau ‑, Madame Gladys Tate está a par. Receio que tenha desperdiçado o seu tempo, mas pode cobrar‑lhe bem ‑ acrescentou Beau. ‑ Bom dia ‑ despediu‑Se  e fechou‑lhes a porta na cara.

Por um instante, permaneceu à espera. Depois, foi até à janela e aguardou até ter a certeza de que o carro se afastara. Quando se voltou, avistou‑me no cimo da escada.

‑ Estiveste sempre aí? ‑ indagou.

‑ Estive, Beau.

- Então, ouviste. Fiz o que prometi. Disse a verdade e mandei‑os embora. Quando a Gladys souber da minha resposta, recuará e irá deixar‑nos em paz ‑ garantiu‑me. ‑ Descontrai‑te. Acabou. Acabou tudo.

Esbocei um aceno de cabeça e sorri, esperançada. Beau subiu as escadas para me abraçar. Depois, fomos os dois até junto de Pearl. Ela estava sentada e muito satisfeita no chão do que Outrora fora o meu quarto a colorir animais num livro que se chamava Uma Visita ao Jardim Zoológico.

‑ Olha, mamã. ‑ Apontou e depois rugiu como um tigre, arrancando uma gargalhada a Mrs. Ferrier.

‑ Ela imita todos os animais ‑ disse. - Nunca vi uma imitadorazinha tão perfeita.

Beau apertou‑me ainda mais os ombros e encostei‑me a ele. Sabia‑me bem estar rodeada da força dele e sentir aquela firmeza. Agora, ele era o meu rochedo, o meu pilar de aço, o que intensificava o amor que lhe dedicava e me enchia de confiança. à medida que o dia foi avançando, o meu nervosismo diminuiu e o nó no estômago desfez‑se. Apercebi‑me de que tinha uma fome de lobo quando nos sentámos para jantar.

Nessa noite, na cama, falámos durante quase uma hora, antes de adormecermos.

‑ Lamento não poder ir ao funeral de Paul ‑ disse.

‑ Eu sei. No entanto, dadas as circunstâncias, é melhor não assistirmos. A Gladys Tate só contribuiria para piorar uma situação já desagradável. Faria uma cena terrível.

‑ Mesmo assim, depois de ter passado tempo bastante, gostaria de visitar o túmulo, Beau.

‑ Claro.

Continuámos a falar, e Beau sugeriu planos para o futuro.

‑ Se quisermos, podemos construir uma nova casa num pedaço de terreno que possuímos nos arredores da cidade.

‑ Talvez devêssemos ‑ concordei.

‑ Claro que há coisas que podíamos fazer nesta casa para a mudar. De qualquer maneira, vamos querer novas recordações ‑            explicou.

Não podia estar mais de acordo. As descrições dele do que agora nos era possível enchia‑me de novas esperanças; consegui fechar as pálpebras e adormecer, emocionalmente exausta e esgotada até ao mais fundo da alma.

Não me sentia aliviada quando acordei de manhã, mas tinha recuperado força bastante para principiar um novo dia. Fiz planos para recomeçar a pintar e pensei adquirir um novo guarda‑roupa, de modo a que se adequasse melhor à minha personalidade. Agora que afastara todas as amigas de Gisselle e falávamos de um novo começo, achava que tinha liberdade de regressar ao meu verdadeiro eu e eventualmente dar repouso a Gisselle. Estas perspectivas enchiam‑me de alegria.

Tomámos um bom pequeno‑almoço e conversámos animadamente. Beau tinha tantos planos para negócios e para as nossas mudanças que a minha mente estava a transbordar. Imaginava que em breve estariamos ambos tão ocupados que não haveria muito tempo para nos entregarmos a tristezas. A grandmère Catherine sempre dissera que o único antídoto para o desgosto e a tristeza era mantermo‑nos ocupados.

Depois do pequeno‑almoço, Beau subiu até à casa de banho e eu dirigi‑me à cozinha para combinar o jantar com Mrs. Swarin. Sentei‑me a ouvi‑la descrever a receita de frango à Rochambeau.

‑ Começa‑se por preparar o molho ‑ disse e passou a numerar os ingredientes. Só de ouvi‑la, cresceu‑me água na boca. ”Que sorte termos uma cozinheira com tanta experiência”, pensei.

Mrs. Swarin remexia nos tachos e panelas enquanto falava e se movimentava na cozinha e por isso não ouvi a campainha da porta, ficando surpreendida quando Aubrey veio comunicar‑me que estavam dois cavalheiros à porta.

‑ E está um polícia também ‑ acrescentou.

‑ O quê? Um polícia?

‑ Sim, madame.

Senti o peito quente e pesado, ao ritmo da minha respiração ofegante.

‑ Onde está a Pearl? ‑ perguntei de imediato.

‑ No seu quarto com Mistress Ferrier, madame. Acabaram de subir as escadas.

‑ E Monsieur Andreas?

‑ Julgo que ainda está lá em cima, madame.

‑ Por favor, vá chamá‑lo, Aubrey. Depressa ‑ pedi.

‑ Muito bem, madame ‑ anuiu, saindo rapidamente.

Olhei para Mrs. Swarin, que me fitou com uma expressão curiosa.

‑ Problemas? ‑ indagou.

‑ Não sei. Não sei ‑ murmurei e deixei que os meus pés me transportassem devagar até ao vestíbulo. Beau apareceu nas escadas no preciso instante em que cheguei à entrada da nossa casa e avistei o advogado Martin Bell e um outro homem à porta.

‑ O que é isto? ‑ exclamou Beau, transpondo a toda a pressa os ultimos degraus.

‑ Monsieur e Madame Andreas? ‑ perguntou o mais alto dos dois homens de fato completo. Beau avançou rapidamente de forma a chegar à porta antes de mim. Vi que a ama que Viera no dia anterior estava atrás deles e senti um aperto no coração.

‑Sim?

‑ Sou William Rogers, o sócio mais velho da firma de Rogers, Bell e Stanley. Como sabe, devido à anterior visita de Mister Bell, representamos Monsieur e Madame Octavious Tate de Terrebone Parish. Estamos aqui com uma ordem do tribunal para levarmos Miss Pearl Tate de volta aos avós ‑ informou, estendendo um documento a Beau. ‑ Foi assinada pelo Juiz e deve ser cumprida.

‑ Beau ‑ chamei, mas ele esboçou um gesto para que aguardasse, enquanto lia.

‑ Isto não é verdade ‑ declarou, erguendo os olhos e tentando devolver o documento. ‑ Madame Tate não é a grandmère da criança.

‑ Receio que isso caiba ao tribunal decidir, sir. Entretanto, esta acção do tribunal ‑ declarou com um aceno de cabeça para o documento ‑ será executada. Ela tem direitos legais primários à custódia.

‑ Mas nós não somos o tio e a tia. Somos a mãe e o pai - redarguiu Beau.

‑ O tribunal possui outras informações. Os pais da criança estão ambos mortos e os avós são, portanto, os tutores legais primários ‑ insistiu Mr. Rogers. ‑ Espero que a situação não se torne desagradável ‑ acrescentou. ‑ Para bem da criança.

Mal tinha pronunciado estas palavras, o polícia colocou‑se ao lado dele. Beau perscrutou os dois rostos e depois olhou‑me.

‑Ruby...

‑ Não! ‑ gritei, recuando. ‑ Não podem levá‑la. Não podem!

‑ Têm uma ordem do tribunal, mas será apenas temporária - replicou Beau. ‑ Prometo. Vou telefonar já aos nossos

advogados. Temos os melhores e mais bem pagos advogados de Nova Orleães.

‑ Esta acção será conduzida em Terrebone Parish ‑ informou William Rogers. ‑ A residência legal da criança. Mas, se tem os melhores e mais bem pagos advogados, eles estarão a par ‑ acrescentou, usufruindo do sarcasmo.

‑ Beau ‑ pronunciei de lábios trémulos e rosto crispado. Ele ia a abraçar‑me, mas recuei. ‑ Não ‑ recusei, abanando a cabeça. ‑ Não.

‑ Madame, garanto‑lhe que esta ordem do tribunal será cumprida ‑ declarou Mr. Rogers. ‑ Se se preocupa deveras com a criança, fará melhor em aceitar a ordem calmamente.

‑Ruby...

‑ Tu prometeste, Beau! Não! ‑ gritei, pondo‑me a martelar‑lhe o peito com os meus pequenos punhos. Ele agarrou‑me nas mãos e abraçou‑me com força.

‑ Nós vamos recuperá‑la. Vamos mesmo ‑ replicou.

‑ Não posso ‑ retorqui, abanando a cabeça. ‑ Não posso. ‑ As minhas pernas cederam e Beau pegou‑me ao colo.

‑ Por favor. Dêem‑nos dez minutos para preparar a criança ‑  pediu, virando‑se para os advogados, o polícia e a ama. Mr. Rogers esboçou um aceno de conc’ordância e Beau levou‑me literalmente ao colo pelas escadas sussurrando-me palavras tranquilizadoras ao ouvido.

‑ Será horrível, se oferecermos resistência física ‑ disse. ‑       Depois de explicarmos quem somos, tudo acabará rapidamente. Verás!

- Mas tu prometeste que isto não aconteceria, Beau

‑ Como podia adivinhar que ela era tão malévola? Deve Ser louca. Com que género de homem está casada que lhe permite fazer uma coisa destas?

‑ Um homem culPado - respondi, no meio das lágrimas. Olhei para a porta do quarto de Pearl.‑Oh, Beau! Ela vai ficar aterrorizada.

‑ Só até chegar a Cypress Woods. Conhece todos os criados e...

‑ Mas eles não vão levá‑la para Cypress Woods. Vão levá‑la para casa dos Tate. .

Beau esboçou um aceno de concordância, ao mesmo tempo que a tomada de consciência também o invadia. Suspirou fundo e abanou a cabeça.

‑ Tenho vontade de matá‑la ‑ disse. ‑ Apetecia‑me deitar‑lhe as mãos ao pescoço e tirar‑lhe a vida.

‑ Já lha tiraram ‑ repliquei. ‑ Quando o Paul morreu Estamos a lidar com uma mulher que perdeu todos os sentimentos menos um, o desejo de vingança. E a minha filha tem de ir para aquela casa.

‑ Queres que seja eu a fazer isto? ‑ perguntou olhando para o quarto de Pearl.

‑ Não. Vou fazê‑lo contigo para que possamos confortá‑la o máximo que é possível.

Entrámos e expliquei a Mrs. Ferrier que a menina tinha de ir para casa dos avós. Beau achava que, de momento era preferível. Pearl conhecia os Tate como avós e, portanto dissimulei o desgosto e engoli as lágrimas. Sorrindo, disse‑lhe que ela tinha de ir visitar a grandmère Gladys e o grandpère Octavious

‑ Há uma senhora muito simpática que vai levar‑te, Pearl com cuidado. - Continuei. fitou‑me. Era quase como se tivesse esperteza suficiente para detectar o embuste. Não ofereceu resistência até a levarmos lá para baixo e a colocarmos no banco de trás da limusina com a ama. Quando me afastei da porta percebeu que eu não ia e pôs‑se a gritar por mim. A ama tentou confortá‑la.

‑ Vamos lá ‑ ordenou Mr. Rogers ao motorista. Os dois advogados meteram‑se no carro, fecharam as portas, mas mesmo assim continuei a ouvir os gritos de Pearl.

Quando a limusina começou a afastar‑se da casa, o bebé soltou‑se dos braços da ama e encostou o pequeno rosto á janela de trás. Via todo o receio e tormento que a invadiam e ouvi‑a gritar o meu nome. No momento em que o carro desapareceu as minhas pernas cederam e dobraram‑se demasiado rapidamente, sem dar tempo a que Beau me impedisse de cair no lajedo e no conforto da escuridão.

 

TUDO ESTÁ PERDIDO

‑ Bom ‑ pronunciou‑se Monsieur Polk depois de ouvir Beau contar a nossa história ‑, trata‑se de um assunto bastante complicado. Muito mesmo ‑ acrescentou e esboçou um aceno de cabeça enfático, fazendo tremer as bochechas e o farto duplo queixo.

Recostou‑se na imensa cadeira de cabedal preto e premiu as mãos contra o peito de tamanho descomunal, com os dedos cruzados e o enorme anel de ouro com uma pedra preta oval de ónix brilhando ao sol da tarde, que entrava através dos finos estores brancos.

Beau sentava‑se ao meu lado, pegando‑me na mão. Com a mão que tinha livre, agarrava o braço da cadeira, como se achasse que ele pudesse soltar‑se e cair na alcatifa castanho‑escura

do escritório de Mr. Polk. O escritório situava‑se no sétimo andar do edificio, e as enormes janelas por detrás da secretária de Mr. Polk davam para o rio, oferecendo uma paisagem de barcos e navios que entravam e saíam do porto de Nova Orleães.

Mordi o lábio inferior e sustive a respiração, enquanto o nosso advogado reflectia. Baixara os seus olhos enormes e cor de avelã e mantinha‑se tão quieto que temi que tivesse adormecido. O único som no escritório era o tiquetaque do relógio de pêndulo em miniatura pousado na prateleira à nossa esquerda.

‑ Não há certidões de nascimento? ‑ inquiriu finalmente, erguendo os olhos. O resto do corpo, os cento e vinte quilos, permaneceram instalados na cadeira, com o casaco do fato amarrotado e enrugado nos ombros. Usava uma gravata castanha-escura com bolinhas.

‑ Não. Como lhe disse, as gémeas nasceram na região do Pântano, sem médico, nem hospital.

‑ A minha grandmère era uma traiteur, melhor do que qualquer médico ‑ repliquei.

‑ Traiteur?

‑ Curandeira cajun ‑ explicou Beau.

Mr. Polk esboçou um aceno de cabeça, desviou os olhos na minha direcção e fixou‑me um momento. Depois, inclinou‑se para diante e pousou as mãos na secretária.

‑ Vamos tratar de uma audiência para custódia. Nesta situação será conduzida como um julgamento. O primeiro ponto residirá em conseguir achar uma maneira legal de a apresentar como Ruby. Depois disso, testemunhará como sendo o pai da sua filha ‑ dirigiu‑se a Beau.

‑ Claro. ‑ Beau agarrou‑me na mão e sorriu.

‑ Agora, analisemos tudo de frente ‑ replicou Mr. Polk ao mesmo tempo que estendia a mão para uma caixa de charutos de madeira escura de cerejeira e retirava um grosso charuto havano. ‑ Você ‑ prosseguiu, apontando‑me com o charuto

‑           e a sua irmã gémea, Gisselle, eram aparentemente tão idênticas que puderam fazer esta troca de identidade, não é verdade?

‑ Até às sardas nas faces ‑ respondeu Beau.

‑ Cor dos olhos, cor do cabelo, pele, altura, peso? ‑ indagou Mr. Polk.

Beau e eu fomos concordando com um sinal de cabeça a cada enumeração.

‑ Talvez houvesse uma diferença de quilos entre elas, mas nada de relevante ‑ pronunciou‑se Beau.

‑ Cicatrizes? ‑ inquiriu Mr. Polk, erguendo as sobrancelhas, esperançado.

Abanei a cabeça.

‑ Não tenho nenhuma e a minha irmã também não, embora ela tivesse tido um grave acidente de automóvel, ficando incapacitada por algum tempo ‑ elucidei.

‑ Um grave acidente de automóvel? ‑ Esbocei um aceno de concordância. ‑ Aqui, em Nova Orleães?

‑Sim.

‑ Então, esteve algum tempo no hospital. óptimo. Haverá um historial médico com registo do tipo de sangue. Talvez vocês tivessem tipos de sangue diferentes. Se assim for, o caso ficará imediatamente resolvido. Um amigo meu ‑ prosseguiu, tirando o isqueiro do bolso ‑ disse‑me que, no futuro, a partir de análises ao sangue e mediante o ADN, poder‑se‑á identificar quem é o pai de uma criança. Mas ainda estamos a uns anos de distância.

‑ E nessa altura seria demasiado tarde! ‑ queixei‑me. Esboçou um aceno de cabeça e acendeu o charuto, recostando‑se na cadeira e soprando as nuvens de fumo para o tecto.

‑ Talvez tivessem feito algumas radiografias. Ela partiu algum osso no acidente?

‑ Não ‑ retorqui. ‑ Ficou magoada, e o choque provocou‑lhe algo na espinha, afectando os nervos, mas recuperou e conseguiu voltar a andar.

‑ Hum! ‑ exclamou Mr. Polk. ‑ Ignoro se poderá descobrir‑se algo através das radiografias. Teríamos de lhe fazer também radiografias e depois encontrar um perito capaz de testemunhar que havia provas residuais do trauma.

‑ Vou já ao hospital para as radiografias ‑ declarei, de olhos brilhantes.

Mr. Polk abanou a cabeça.

‑ Podem muito bem arranjar um perito que afirme que as radiografias não acusariam danos, se o problema foi curado - declarou. ‑ Deixem‑me investigar as fichas médicas do hospital e obter primeiro a opinião de um dos meus amigos médicos.

‑ A Ruby teve uma filha e a Gisselle não ‑ lembrou Beau. ‑ Decerto que um exame...

‑ Pode fazer essa afirmação sem sombra de dúvida? ‑ interrompeu Mr. Polk.

‑ Desculpe?

‑ A Gisselle está morta e enterrada. Como podemos examiná‑la? Seria necessário mandar exumar o corpo... E se a Gisselle tivesse estado alguma vez grávida e feito um aborto?

‑ Ele tem razão, Beau. Não poderia jurar uma coisa dessas - retorqui.

‑ Isto é muito estranho. Muito estranho ‑ murmurou Mr. Polk. ‑ Lutou para convencer as pessoas de que era a sua irmã gémea, e fê‑lo tão bem que todos os que a conheciam acreditaram, não foi?

‑ Tanto quanto sabemos.

‑ E a família, a família do Paul Tate, acreditou na história e acreditou que enterraram a Ruby Tate?

‑ Sim ‑ confirmei.

‑ Houve mesmo uma certidão de óbito passada em seu nome?

- Sim ‑ retorqui, engolindo com dificuldade. As memórias ainda muito vivas de assistir ao meu funeral regressaram a toda a pressa.

Mr. Polk abanou a cabeça e pensou um momento.

‑ E o médico que tratou primeiro a Gisselle pela encefalite? ‑ perguntou com visível excitação. ‑ Sabia que estava a tratar a Gisselle e não a Ruby, não é verdade?

‑ Receio não podermos pedir a sua ajuda ‑ afirmou Beau, rebentando o nosso balão de esperança. ‑ Fiz um acordo com ele e, de qualquer maneira, iria arruiná‑lo, não? O facto de ter participado nisto?

‑ Temo que seja verdade ‑ anuiu Mr. Polk. ‑ Colaborou numa fraude. Há algum dos criados que possa ser convocado?

‑Bom... da forma como actuámos, o médico e eu...

‑ Não sabiam exactamente o que estava a acontecer, não é verdade?

‑ Sim. De qualquer maneira, não seriam as melhores testemunhas. O casal alemão não fala inglês muito bem e a minha cozinheira não viu nada. A criada é uma mulher tímida que seria incapaz de jurar.

‑ Não é, então, um caminho a seguir ‑ redarguiu Mr. Polk com um aceno de cabeça. ‑ Deixe‑me pensar. Estranho. Muito estranho. Registos dentais ‑ exclamou. ‑ Como são os seus dentes?

‑ Perfeitos. Nunca tive uma cárie, nem arranjei um dente.

‑ E a Gisselle?

‑ Tanto quanto sei, também não ‑ informou Beau. - Tinha uma saúde invejável para alguém que levava uma vida como a dela.

‑ Bons genes ‑ redarguiu Mr. Polk. ‑ Mas ambas tiveram o beneficio das mesmas vantagens genéticas.

Haveria maneira de determinar as nossas identidades a contento de um juiz?, interrogava‑me ansiosamente.

‑ E as nossas assinaturas? ‑ sugeri.

‑ Sim ‑ concordou Beau. ‑ A Ruby sempre teve uma caligrafia mais bonita.

‑ A caligrafia é um material de prova a utilizar ‑ retorquiu Mr. Polk num tom nasalado e um tanto oficial ‑, mas não é determinante. Teremos de apoiar‑nos nas opiniões de peritos e eles podem apresentar o seu próprio perito, que desenvolveria a existência da falsificação. Não seria a primeira vez. Além disso ‑ acrescentou, puxando mais uma fumaça do charuto ‑, as

pessoas tendem a acreditar que as gémeas conseguem imitar‑se

melhor. Gostaria de ter algo mais.

‑ E o Louis? ‑ dirigiu‑se‑me Beau. ‑ Disseste que ele te reconheceu.

‑ O Louis? ‑ quis saber Monsieur Polk.

‑ O Louis foi alguém que conheci quando a Gisselle e eu frequentámos um colégio de raparigas em Baton Rouge. É um pianista que deu recentemente um concerto aqui em Nova Orleães.

‑ Percebo.

‑ Quando o conheci, ele era cego. No entanto, recuperou a viSta ‑ acrescentei, esperançada.

‑ O quê? Cego, disse? Realmente, monsieur ‑ exclamou, virando‑se para Beau. ‑ Quer que leve a tribunal um homem que foi cego para testemunhar que consegue estabelecer a diferença!

‑ Mas ele consegue! ‑ ripostei.

‑ Talvez na sua opinião, mas frente à de um juiz?

Outro balão rebentou. Sentia o coração a bater descompassadamente. Lágrimas de frustração picavam‑me os olhos. Parecia‑me cercada pela derrota.

- Ouça ‑ insistiu Beau, apertando‑me novamente a mão. - Que motivo poderiamos ter para que a Ruby fingisse ser a

Ruby? Primeiro, estaremos a revelar o nosso esquema ao mundo e, além disso, todos os que conheceram a Gisselle sabiam como ela era egoísta. Jamais desejaria conseguir a custódia de uma criança e ficar responsável pela sua educação.

Mr. Polk reflectiu um momento. Virou a cadeira e olhou através da janela.

‑ Farei de advogado do diabo ‑ retorquiu, continuando

de olhos fixos no rio. Depois, voltou‑se bruscamente para nós e apontou de novo o charuto na minha direcção. ‑ Disse que o

seu marido, o Paul, herdou terras ricas em petróleo no bayou?

‑ Sim.

‑ E construiu‑lhe uma mansão com belos terrenos, uma propriedade?

‑ Sim, mas...

‑ E era dono de poços que extraem petróleo, proporcionando uma enorme fortuna?

Não conseguia engolir, nem sequer esboçar um aceno de cabeça. Beau e eu entreolhámo‑nos.

- Mas nós também estamos longe de ser pobres, monsieur. A Ruby herdou uma grande quantia em dinheiro e um negócio lucrativo e...

‑ Monsieur Andreas, têm à disposição a possibilidade de herdar uma enorme fortuna, uma fortuna cada vez maior. Não estamos a falar do seu bem‑estar actual.

‑ E a criança? ‑ indagou Beau, desesperado. ‑ Ela conhece a mãe.

 ‑ É muito pequena. Nunca me passaria pela cabeça levá‑la a depor no banco das testemunhas. Estou certo de que ficaria

aterrorizada.

‑ Não, não podemos fazer isso, Beau ‑ ripostei. - Nunca.

Mr. Polk voltou a recostar‑se.

‑ Deixem‑me consultar as fichas do hospital e falar com alguns médicos. Voltarei a contactá‑los.

‑ Quanto tempo irá demorar?

‑ Não pode ser feito de um dia para o outro, madame - redarguiu francamente.

‑ Mas a minha filha... Oh, Beau.

‑ Já tomou em consideração ir falar com Madame Tate?

Talvez tudo isto não passe de um acto impulsivo de raiva e

tenha tido algum tempo para reflectir ‑ sugeriu Mr. Polk. - Simplificaria a questão.

”Não digo que seja esta a razão da sua atitude ‑ acrescentou, inclinando‑se para a frente. ‑ Mas pode propor desistir de direitos ao petróleo, etc.

‑ Sim ‑ anui com um renascer da esperança.

Beau esboçou um aceno de cabeça.

‑ Pode estar furiosa pelo facto de a Ruby herdar Cypress Woods e todo o petróleo da propriedade ‑ concordou Beau. - Vamos até lá tentar que nos receba. Mas entretanto...

‑ Darei andamento à minha pesquisa sobre o assunto - rematou Mr. Polk, levantando‑se e colocando o charuto no cinzeiro, antes de se inclinar para apertar a mão a Beau. ‑ Têm obviamente consciência da matéria que os nossos colunistas sociais ganharão com tudo isto?

‑ Temos ‑ anuiu Beau, fitando‑me. ‑ Estamos preparados, desde que recuperemos a Pearl.

‑ Muito bem. Boa sorte com Madame Tate ‑ desejou Mr. Polk, e saímos.

‑ Sinto‑me tão fraca, Beau, tão fraca e receosa ‑ confessei, quando abandonámos o edificio na direcção do carro.

‑ Não podes enfrentar essa mulher, enquanto estiveres nesse estado de espírito, Ruby. Vamos parar para comer alguma coisa e ganhares forças. Sejamos optimistas e fortes. Apoia‑te em mim, sempre que for necessário ‑ declarou com uma expressão sombria e de olhos baixos. ‑ Na realidade, a culpa é toda minha ‑ murmurou. ‑ Foi minha a ideia e a concretização.

‑ Não podes culpar‑te só a ti, Beau. Sabia o que estava a fazer e desejei‑o. Devia ter pensado, antes de tentar deitar areia para os olhos do destino.

Apertou‑me de encontro a ele, metemo‑nos no carro e dirigimo‑nos para o bayou. Durante a viagem, ensaiei o que iria dizer‑lhe. Não tinha apetite quando parámos para comer, mas Beau insistiu em que pusesse algo no estômago.

O final da tarde escureceu cada vez mais, à medida que o Sol se escondia por detrás de algumas enormes nuvens de tempestade. O céu azul pareceu ficar nas nossas costas, enquanto nos aproximávamos do bayou e do confronto que nos esperava. Quando os sítios e paisagens familiares começaram a tomar forma, a minha apreensão aumentou. Respirei fundo várias vezes e esperei ser capaz de falar sem romper em lágrimas.

Dei as indicações necessárias a Beau até à residência dos Tate. Era uma das maiores casas da região de Houma, um edificio grego de dois andares e meio com seis colunas jónicas que formavam um terraço saliente. Tinha catorze quartos e uma enorme sala de estar. Gladys Tate orgulhava‑se da decoração da casa e, até ao momento em que Paul construíra a mansão para mim, ela possuía a casa mais bonita do local.

Quando chegámos, o céu tornara‑se cinzento e o ar estava tão denso de humidade que julguei poder ver pequenas gotas formando‑se diante dos meus olhos. O bayou estava calmo, tão calmo quanto era possível no meio de uma tempestade. Folhas pendiam dos ramos das árvores e os próprios pássaros pareciam deprimidos, abrigando‑se em cantos sombrios.

As janelas tinham um aspecto triste com as cortinas fechadas ou as persianas descidas. Os vidros reflectiam a escuridão Opressiva que pairava sobre os pântanos. Nada se mexia. Era uma casa envolta em luto, com os habitantes enclausurados na sua tristeza pessoal. Sentia um peso enorme no coração, e os dedos tremiam‑me quando abri a porta do carro. Beau estendeu a mão para me apertar o braço e transmitir confiança.

‑ Tenhamos calma ‑ aconselhou.

 

Esbocei um aceno de concordância e tentei engolir, mas formou‑se‑me um nó na garganta, idêntico a um pedaço de lama do pântano num sapato. Subimos as escadas, e Beau deixou pender a aldraba de encontro ao bronze. O som cavo parecia dirigir‑se mais ao meu peito do que à casa. Momentos depois, a porta escancarou‑se com força, como que soprada por uma rajada de vento. Toby surgiu na nossa frente. Estava vestida de negro e apanhara o cabelo atrás. Exibia uma expressão pálida e triste.

- O que querem? ‑ impacientou‑se.

Viemos falar com os teus pais ‑ respondeu Beau.

‑ Eles não estão propriamente com disposição de conversar ‑ ripostou num tom desdenhoso. ‑ Vocês tinham de cauSar‑nos problemas, no meio do nosso luto.

‑ Há alguns terríveis mal‑entendidos que temos de tentar exclarecer ‑ insistiu Beau e depois acrescentou: ‑ Mais pelo bebé do que por qualquer outra pessoa.

Toby fitou‑me. Houve algo no meu rosto que a confundiu e levou a relaxar a postura.

‑ Como está a Pearl? ‑ apressei‑me a inquirir.

‑ óptima. Muito bem. Está com a Jeanne ‑ acrescentou.

‑ Ela não está aqui?

‑ Não, mas estará ‑ declarou num tom firme.

‑ Por favor ‑ suplicou Beau. ‑ Precisamos de uns minutos com os teus pais.

Toby ponderou um instante e depois recuou.

‑ Vou saber se eles querem falar com vocês. Esperem no escritório ‑ ordenou e percorreu o átrio na direcção das escadas.

Beau e eu entrámos no escritório. Havia um único candeeiro aceso a um canto e, com aquele céu cinzento, a divisão transbordava de tristeza. Acendi mais um candeeiro ao lado do sofá e sentei‑me rapidamente, receosa de que as pernas cedessem.

‑ Deixa‑me ser eu a iniciar a conversa com Madame Tate - replicou Beau.

Conservava‑se um pouco de lado, com as mãos atrás das costas e ambos ficámos a aguardar e à escuta, de olhos grudados na entrada. A calma reinou durante tanto tempo que os meus olhos vaguearam, acabando por pousar no retrato por cima da lareira. Era um retrato que eu pintara de Paul há algum tempo. Gladys Tate pendurara‑o em substituição do seu retrato e do de Octavious. Fizera um bom trabalho, pensei. Paul parecia tão cheio de vida, com um brilho nos olhos azuis e um suave sorriso desenhado nos lábios. Agora dava a sensação de que o sorriso transmitia uma cruel satisfação, desafio e vingança. Era incapaz de fitar o retrato sem que o coração começasse a bater aceleradamente.

Ouvimos passos e um instante depois apareceu Toby sozinha. A minha esperança morreu. Gladys não iria receber‑nos.

‑ A minha mãe vai descer ‑ declarou ‑, mas o meu pai não se encontra em condições de receber ninguém de momento. Podem sentar‑se ‑ dirigiu‑se a Beau. ‑ Ainda vai demorar. Ela não está propriamente preparada para receber visitas nesta altura ‑ acrescentou num tom amargo, e Beau sentou‑se obedientemente ao meu lado. Toby fitou‑nos por um instante.

”Porque se mostraram tão obstinados? Se houve uma altura em que a minha mãe precisou da menina ao lado dela, era agora. Que crueldade a vossa de dificultarem tudo e forçarem‑nos

a ir a tribunal. ‑ Perscrutou‑me e depois virou‑se directamente para Beau: ‑ Esperaria algo assim dela, mas julguei que tu fosses mais compreensivo, mais maduro.

‑ Toby ‑ interferi. ‑ Não sou quem tu pensas.

Ela esboçou um trejeito.

‑ Sei exactamente quem é. Não acha que temos pessoas .como você aqui, pessoas egoístas e ocas que não poderiam interessar‑se menos pelos outros?

‑Mas...

Beau pôs‑me a mão no braço. Fitei‑o e verifiquei que implorava silêncio com o olhar. Engoli as palavras e fechei os olhos. Toby virou costas e deixou‑nos.

‑ Ela compreenderá mais tarde ‑ replicou Beau num tom meigo.

Uns bons dez minutos depois, ouvimos os saltos de Gladys a descerem as escadas, e cada ruído assemelhava‑se a um tiro de pistola apontado ao meu coração. Os nossos olhos fixaram‑se com antecipação na ombreira da porta, até ela aparecer. Surgiu na nossa frente, mais alta e mais lúgubre no vestido preto, com o cabelo apanhado severamente na nuca, como o de Toby. Tinha os lábios pálidos, mas os olhos brilhavam, febris.

‑ O que querem? ‑ perguntou, brindando‑me com uma expressão chispante.

Beau levantou‑se.

‑ Madame Tate, viemos tentar uma conversa sensata consigo, levá‑la a compreender porque é que agimos desta maneira.

‑ Compreender? ‑ Sorriu friamente. ‑ É simples de compreender. São o género de pessoas que só se importam convosco e, se infligirem uma horrível dor e sofrimento a alguém na vossa busca de felicidade, o que interessa? ‑ Dirigiu‑me um olhar cheio de ódio, antes de se virar e sentar‑se na cadeira de espaldar como uma rainha, de mãos cruzadas no regaço e o pescoço e ombros rígidos.

‑ Muito do que aconteceu é culpa minha, não da Ruby - prosseguiu Beau. ‑ Sabe ‑ disse, virando‑se na minha direcção ‑ há alguns anos nós... engravidei a Ruby da Pearl, mas era cobarde e deixei que os meus pais me mandassem para a Europa. A madrasta da Ruby tentou que ela fizesse um aborto numa clinica para que tudo ficasse em segredo, mas a Ruby fugiu e voltou ao bayou.

‑ Como desejava que não o tivesse feito ‑ cuspiu Gladys Tate, de olhos odiosos e com o desejo de me fulminar.

‑ Sim, mas fê‑lo ‑ prosseguiu Beau, sem atender a todo aquele veneno. ‑ Para o melhor ou o pior, o seu filho ofereceu‑se para dar um lar à Ruby e à Pearl.

‑ Para o pior. Veja onde ele está agora ‑ retorquiu, e senti um arrepio gelado a percorrer‑me a espinha.

‑ Como sabe ‑ continuou Beau suave e pacientemente ‑, eles não tiveram um casamento verdadeiro. O tempo passou. Cresci e apercebi‑me dos meus erros, mas era tarde de mais. Entretanto, reatei a minha relação com a irmã gémea da Ruby, que também julguei que amadurecera. Estava errado nesse aspecto, mas isso é outra história.

Gladys esboçou um trejeito.

‑ O seu filho sabia quanto eu e a Ruby gostávamos um do outro e sabia que a Pearl era a nossa filha, a minha filha. Era um bom homem e queria que a Ruby fosse feliz.

‑ E ela aproveitou‑se dessa bondade ‑ acusou Gladys, com o longo polegar erguido.

‑ Não, Gladys, eu...

‑ Não fiques para aí sentada a tentar negar o que fizeste ao meu filho ‑ declarou, de lábios trémulos. ‑ O meu filho ‑ gemeu. ‑ Dantes eu era a menina dos seus olhos. O Sol erguia‑se e baixava ao ritmo da minha felicidade e não da tua. Mesmo quando o enfeitiçavas aqui no bayou, ele adorava sentar‑se a falar comigo, gostava da minha companhia. Tínhamos uma relação fantástica e um amor profundo ‑ prosseguiu. - Mas foste cruel e afastaste‑o de mim com o teu feitiço ‑ disparou e apercebi‑me de que não havia ódio tão grande como o nascido do amor atraiçoado. Esse o motivo por que a sua mente reclamava vingança.

‑ Não fiz essas coisas, Gladys ‑ declarei tranquilamente. ‑      Tentei desencorajar a nossa relação. Cheguei a contar‑lhe a verdade a nosso respeito ‑ rematei.

‑ Contaste, sim, e ergueste viciosamente uma sebe entre nós. Ele ficou a saber que eu não era a sua verdadeira mãe. Não achas que isso mudou as coisas?

‑ Não queria dizer‑lhe. Não me cabia ‑ gritei, lembrando‑me dos avisos da grandmère Catherine quanto a provocar qualquer tipo de separação entre uma mãe cajun e o filho. ‑ Mas não se pode construir uma casa de amor sobre alicerces de mentira. A verdade devia ter sido contada por si e o seu marido.

‑ Que verdade? ‑ redarguiu com um esgar. ‑ Eu era a mãe dele até tu apareceres. Ele amava‑me ‑ gemeu. ‑ Era essa a verdade de que precisávamos... amor.

Uma nuvem pairou momentaneamente sobre nós. Gladys engoliu a raiva e fechou os olhos.

Beau decidiu prosseguir.

‑ O seu filho, consciente do amor que existia entre mim e a Ruby, concordou em ajudar‑nos. Quando a Gisselle adoeceu gravemente, prestou‑se a recebê‑la e a fingir que ela era a Ruby. para que a Ruby pudesse tornar‑se a Gisselle, e nós marido e mulher.

Gladys abriu os olhos e soltou uma gargalhada que me fez gelar o sangue.

‑ Sei tudo isso, mas sei também que ele pouca opção tinha. Ela ameaçou provavelmente contar ao mundo que ele não era meu filho ‑ retorquiu, de olhos vidrados em mim.

‑ Eu jamais...

‑ Dirias o que quer que fosse agora, portanto não tentes - avisou.

‑ Madame ‑ replicou Beau, dando um passo em frente.

‑ O que está feito não tem remédio. O Paul ajudou. Era sua

intenção que vivêssemos com a nossa filha e fôssemos felizes.

O que está a fazer agora resume‑se a deitar por terra o que o

Paul tentou concretizar.

Ela fitou Beau por um momento, e os poucos resquícios de sanidade pareceram desvanecer‑se no seu olhar.

‑ A minha pobre neta agora não tem pais. A mãe foi enterrada e o pai será colocado ao lado dela.

‑ Porquê forçar‑nos a ir a tribunal e fazer com que todos passem novamente por esta tristeza, Madame Tate? Nesta altura deseja certamente paz e tranquilidade, e a sua família...

Ela virou os olhos pretos e chispantes na direcção do retrato de Paul e a expressão suavizou‑se.

‑ Faço tudo isto pelo meu filho ‑ declarou, fitando‑o com algo mais do que um amor de mãe. ‑ Vê como ele sorri e está feliz. A Pearl crescerá aqui, sob este retrato. Pelo menos, terá isso. Tu ‑ acrescentou, com o fino e longo dedo apontado novamente na minha direcção ‑ tu, tiraste‑lhe tudo, até a vida.

Beau fitou‑me, desesperado, e depois pousou o olhar nela uma vez mais.

‑ Se for uma questão de herança, Madame Tate ‑ redarguiu ‑, estamos dispostos a assinar qualquer documento.

‑ O quê? ‑ replicou, levantando‑se de um salto. ‑ Julgam que tudo isto é uma questão de dinheiro? Dinheiro? O meu filho está morto. ‑ Endireitou os ombros e premiu os lábios. - Esta discussão acabou. Quero que saiam da minha casa e das nossas vidas.

‑ Não conseguirá levar a melhor. O juiz...

‑ Tenho advogados. Falem com eles. ‑ Sorriu‑me tão friamente que o sangue me gelou nas veias. ‑ Assumiste o rosto e o corpo da tua irmã e rastejaste até ao coração dela. Agora, vive lá ‑ proferiu, saindo da sala.

O corpo doía‑me da cabeça aos pés e o coração não passava de uma bola vazia que me enchia o peito de tristeza.

‑Beau!

‑ Vamos ‑ disse, abanando a cabeça. ‑ Ela enlouqueceu e o juiz perceberá. Anda, Ruby. ‑ Estendeu‑me a mão e senti‑me

como se flutuasse.

Antes de abandonarmos a sala, voltei a fixar o retrato de Paul. A sua expressão de contentamento enchia‑me o coração de uma tristeza que nem mil dias de sol poderiam dissipar.

 

Depois da triste viagem de regresso a Nova Orleães, cedi á fadiga emocional e dormi toda a manhã. Beau acordou‑me para me informar que Mr. Polk acabara de telefonar.

‑ E...? ‑ perguntei, sentando‑me de imediato na cama com o coração aos saltos.

‑ Temo que não sejam boas notícias. Os peritos dizem‑lhe que tudo é idêntico a nível de gémeos, desde o tipo de sangue até ao tamanho dos órgãos. O médico que tratou da Gisselle acha que uma radiografia nada revelará. Não podemos apoiar‑nos

em dados clínicos para estabelecer identidades sem sombra de dúvida.

”Quanto a eu ser o pai da Pearl... uma análise ao sangue só confirmaria se eu não o fosse... e não o contrário. Como Monsieur Polk esclareceu, esse tipo de testes ainda não está aperfeiçoado.

‑ O que faremos? ‑ gemi.

‑ Ele já solicitou uma audiência e temos uma data de tribunal ‑ disse Beau. ‑ Contaremos a nossa história e usaremos as amostras de caligrafia. Ele quer igualmente servir‑se do teu talento artístico. Monsieur Polk preparou uns documentos para assinarmos de forma a abdicarmos voluntariamente de qualquer reivindicação aos bens de Paul, eliminando assim um motivo. Talvez seja suficiente.

‑ E se não for, Beau?

‑ Não pensemos no pior ‑ incitou.

 

O pior era a espera. Beau tentou mergulhar no trabalho. mas eu apenas conseguia dormir e vaguear de sala em sala. passando por vezes horas sentada nos aposentos de Pearl, de olhos fixos nos seus animais e bonecas de peluche. Ainda não tinham passado quarenta e oito horas depois de Mr. Polk ter assinado a nossa petição junto do tribunal quando começámos a receber telefonemas de jornalistas. Nenhum revelava as fontes. mas parecia‑me óbvio, a mim e a Beau, que a sede de vingança de Gladys Tate era insaciável e ela comunicara deliberadament a história à imprensa. Fora matéria de títulos.

GÉMEA AFIRMA SER A GÉMEA ENTERRADA!

TRAVA‑SE BATALHA PELA CUSTÓDIA

 

Aubrey recebera instruções para comunicar que não estávamos disponíveis para quem quer que telefonasse. Não receberíamos visitas nem responderiamos a perguntas. Até à audiência do tribunal, eu era uma prisioneira virtual na minha própria casa.

Nesse dia, de pernas a tremer, agarrei‑me ao braço de Beau, enquanto descíamos as escadas para entrar no carro e seguir para o tribunal de Terrebone Parish. Estava um desses dias nublados em que o Sol se dispõe a brincar, oferecendo‑nos uns escassos raios para de seguida desaparecer por detrás de um muro de nuvens, deixando o mundo escuro e horrível. Reflectia a minha disposição que passava de esperançada e optimista a deprimida e pessimista.

Mr. Polk já estava no tribunal à espera, quando chegámos. A história despertara os curiosos do bayou e também de Nova Orleães. Passeei rapidamente o olhar por uma multidão de espectadores e avistei algumas das amigas da grandmére Catherine. Sorri‑lhes, mas elas sentiam‑se confusas, inseguras e receosas de corresponderem ao sorriso. Sentia‑me uma estranha. Como iria explicar‑lhes porque é que trocara de identidade com Gisselle? Como é que iriam compreender?

Ocupámos os nossos lugares e depois, com óbvio espaveneio e tirando o máximo partido da situação, Gladys Tate fez a entrada. Continuava vestida de luto. Agarrava‑se ao braço de Octavious, caminhando com grande dificuldade para mostrar ao mundo que a tínhamos arrastado para aquela horrível audiência na pior das alturas. Não pusera maquilhagem, o que a fazia parecer pálida e doentia, a mais frágil de nós frente ao juiz. Octavious mantinha‑se de cabeça baixa e não olhou uma ÚnIca vez para nós.

Toby, Jeanne e o seu marido James caminhavam atrás de

Gladys e Octavious Tate, com esgares que nos eram dirigidos.

Os advogados deles, William Rogers e Martin Bell, conduziam‑nOs aos respectivos lugares. Tinham um aspecto imponente

Com as pesadas pastas e os fatos escuros. O juiz entrou e todos se Sentaram.

O juiz chamava‑se Hilliard Barrow e Mr. Polk descobrira que ele era famoso pela sua reputação de homem cáustico, impaciente e determinado. Era alto e magro com traços duros:

Olhos pretos e encovados, sobrancelhas grossas, um nariz comprido e ossudo e uma boca fina que se assemelhava a um traço quando unia os lábios. Tinha cabelo castanho já grisalho e começando a rarear, fazendo com que o cimo do crânio reluzisse sob as luzes do tribunal. Duas mãos compridas e ossudas ressaltavam das mangas da toga negra.

‑ Por norma ‑ começou ‑, este tribunal está relativamente vazio durante este tipo de processo. Quero avisar a assistência de que não permitirei conversas ou sons de aprovação ou desaprovação. Está em jogo o bem‑estar de uma criança e não a venda de jornais e revistas cor‑de‑rosa para as classes altas de Nova Orleães. ‑ Fez uma pausa e perscrutou a multidão para verificar se havia o mínimo vestígio de insubordinação nos olhos de alguém. Senti um aperto no coração. Parecia um homem vazio de emoções, à excepção de preconceitos contra os ricos de Nova Orleães.

O escrivão leu a nossa petição e depois o juiz Barrow pousou o olhar duro e arguto em Mr. Polk.

‑ Tem um caso a apresentar ‑ declarou.

‑ Sim, Meritíssimo. Gostaria de começar por chamar Monsieur Beau Andreas a depor.

O juiz assentiu com um sinal de cabeça e Beau apertou‑me a mão e levantou‑se. Todos os olhos se fixaram nele quando avançou em passo confiante até ao banco das testemunhas. Procedeu ao juramento e sentou‑se rapidamente.

‑ Monsieur Andreas, como preâmbulo da nossa apresentação, importa‑se de explicar ao tribunal nas suas próprias palavras porquê, como e quando o senhor e Ruby Tate efectuaram a troca de identidades entre Ruby e Gisselle Andreas, que era sua mulher nessa altura?

‑ Protesto, Meritíssimo ‑ ripostou Mr. Williams. ‑ Cabe ao tribunal decidir se esta mulher é ou não Ruby Tate.

O juiz esboçou um esgar.

‑ Monsieur Williams. Não há um juri a impressionar. Acho que sou capaz de compreender a pergunta feita sem ser influenciado por qualquer insinuação. Por favor, sir. Actuemos com a máxima rapidez.

‑ Sim, Meritíssimo ‑ acedeu Mr. Williams e sentou‑se Arregalei os olhos. Talvez, afinal, tudo se resolvesse a nosso favor, pensei.

Beau deu início à nossa história. Não se ouviu um único som na sala durante todo o relato. Ninguém sequer tossiu ou aclarou a garganta e, quando acabou, gerou‑se um silêncio ainda mais profundo entre a assistência. Era como se todos tivessem ficado pregados aos assentos. Quando me virei e prescrutei o que me rodeava, verifiquei que todos os olhares se fixavam em mim. Beau saíra‑se tão bem a contar a nossa história que muitos começaram a interrogar‑se sobre se não poderia ser assim. Senti as minhas esperanças aflorarem à superficie dos meus pensamentos conturbados.

Mr. Williams levantou‑se.

‑ Gostaria de fazer algumas perguntas, Meritíssimo.

‑ Prossiga ‑ consentiu o juiz.

‑ Monsieur Andreas. Afirmou que diagnosticaram a chamada encefalite de St. Louis à sua mulher, enquanto estavam na vossa propriedade. O diagnóstico foi feito por um médico?

‑Sim.

‑ Esse médico não sabia que estava a fazer o diagnóstico à sua mulher, Gisselle? ‑ Beau olhou na direcção de Mr. Polk. ‑ Se assim foi, porque não o trouxe aqui para testemunhar que

se tratava de Gisselle e não de Ruby? ‑ insistiu Mr. Williams,

e Beau não respondeu.

‑ Monsieur Andreas? ‑ incitou o juiz.

‑ Meritíssimo ‑ interveio Mr. Polk. ‑ Dado as gémeas serem tão idênticas, não achámos que o médico fosse capaz de testemunhar para além de todas as dúvidas quanto à gémea que examinou. Investiguei o historial clínico das gémeas até onde podia ser investigado e estamos preparados para declarar que as gémeas idênticas partilham tantas características fisiológicas que é praticamente impossível utilizar dados médicos para as identificar.

‑ Não têm dados clínicos que entrem no processo? ‑ perguntou o juiz Barrow.

‑ Não, sir.

‑ Nesse caso, que provas jurídicas tenciona apresentar para apoiar esta história incrível, sir? ‑ inquiriu o juiz, indo directo ao assunto.

‑ Nesta altura, estamos preparados ‑ replicou Mr. Polk, aproximando‑se do juiz ‑ para apresentar amostras das caligrafias que lhe permitirão distinguir rapidamente uma gémea da Outra. As mesmas foram retiradas de dossiers escolares e documentos legais ‑ acrescentou Mr. Polk, apresentando as provas.

O juiz Barrow examinou‑as.

‑ Precisaria evidentemente de mandar analisá‑las por um perito.

‑ Gostaríamos de reservar‑nos o direito de mostrá‑las aos nossos peritos, Meritíssimo ‑ interferiu Mr. Williams.

‑ Claro ‑ anuiu o juiz e colocou as provas de lado. - Há m’ais algumas perguntas para Monsieur Andreas?

‑ Sim ‑ respondeu Mr. Williams, sorrindo cepticamente. - Sir, mantém que Paul Tate, depois de ficar ao corrente deste

inacreditável esquema, se prestou a levar a irmã doente para casa dele e fingir que era a sua mulher?

‑ Correcto ‑ replicou Beau.

‑ Pode dizer ao tribunal porque é que ele faria tal coisa?

‑ O Paul Tate era dedicado à Ruby e queria vê‑la feliz. Sabia que a Pearl era minha filha e queria ver‑nos com a nossa filha ‑ acrescentou Beau.

Gladys Tate gemeu tão alto que todos fizeram uma pausa. Fechara os olhos e deixara cair‑se para trás de encontro ao ombro de Octavious.

‑ Monsieur? ‑ perguntou o juiz.

Octavious sussurrou algo ao ouvido de Gladys e ela bateu as pálpebras. Voltou a endireitar‑se com um grande esforço. Depois esboçou um aceno de cabeça, indicativo de que estava bem.

‑ Está, assim, a declarar perante este tribunal ‑ prosseguiu Mr. William ‑ que Paul Tate se prestou de sua livre vontade a aceitar a cunhada e a fingir que ela era mulher dele ao ponto de quando ela morreu ter caído numa profunda depressão que causou a sua própria morte? Fez tudo isto para se assegurar de que Ruby Tate era feliz a viver com outro homem? É o que pretende que este tribunal acredite?

‑ É a verdade ‑ confirmou Beau.

Mr. William alargou o sorriso.

‑ Não tenho mais perguntas, Meritíssimo ‑ declarou.

O juiz indicou a Beau que estava dispensado. Ele parecia muito triste e aturdido quando voltou a sentar‑se ao meu lado.

‑ Ruby ‑ disse Mr. Polk.

Esbocei um aceno afirmativo e ele chamou‑me a depor. Respirei fundo e, com os olhos quase fechados, avancei até ao banco das testemunhas. Depois de ter jurado, voltei a respirar fundo e incitei‑me a ser forte para bem de Pearl.

‑ Diga, por favor, o seu verdadeiro nome ‑ pediu Mr. Polk.

‑ O meu nome legal é Ruby Tate.

‑ Ouviu a história de Monsieur Andreas. Há algo com que esteja em desacordo?

‑ Não. É tudo verdade.

‑ Discutiu esta troca de identidades com o seu marido Paul e ele concordou, realmente, com o plano?

‑ Sim. Não queria que ele se envolvesse tanto ‑ acrescentei ‑, mas ele insistiu.

‑ Descreva o nascimento dessa criança ‑ disse, afastando‑se.

Contei a história e de como Paul estivera presente durante a tempestade e ajudara Pearl a nascer. Mr. Polk fez‑me depois reviver muitos dos pontos mais importantes da minha vida, acontecimentos no colégio de Greenwood, as pessoas que conhecera e coisas que realizara. Quando acabei, fez um aceno de cabeça para a retaguarda e um ajudante trouxe um cavalete, alguns lápis de desenho e um bloco.

Mr. Williams levantou‑se de um salto, mal se tornou óbvio o que Mr. Polk pretendia demonstrar.

‑ Protesto, Meritíssimo ‑ exclamou Mr. Williams.

‑ O que planeia que entre nas actas, Monsieur Polk? - perguntou o juiz.

‑ Há muitas diferenças entre as gémeas, Meritíssimo, muitas que reconhecemos serem dificeis de provar, mas uma delas é possível e resume‑se à capacidade de Ruby de desenhar e pintar. Ela teve quadros em galerias de Nova Orleães e...

‑ Meritíssimo ‑ interrompeu Mr. Williams ‑, É irrelevante se esta mulher consegue ou não traçar uma linha. Nunca ficou provado que Gisselle Andreas não conseguisse.

‑ Temo que ele tenha razão, Monsieur Polk. Tudo o que provará aqui é que esta mulher tem talento artístico.

Mr. Polk emitiu um suspiro de frustração.

‑ Mas, Meritíssimo, nunca na história de Gisselle Andreas existiu qualquer prova...

O juiz abanou a cabeça.

‑ É um desperdício do tempo do tribunal, monsieur. Prossiga, por favor, com a testemunha ou apresente novas provas ou chame outras testemunhas. ‑ Mr. Polk abanou a cabeça. ­­- Acabou, então?

‑ Sim, Meritíssimo ‑ respondeu Mr. Polk com profundo desalento.

‑ Monsieur Williams?

‑ Só algumas pequenas perguntas ‑ replicou ele, pleno de sarcasmo. ‑ Madame Andreas. Declara que se casou com Paul Tate, embora ainda estivesse apaixonada por Beau Andreas. Por que casou, então, com Monsieur Tate?

- estava só e ele queria dar‑me um lar, a mim e à minha filha.

‑ A maioria dos maridos quer dar um lar às mulheres e filhos. Ele amava‑a?

‑Oh, sim.

- Amava‑o?

‑Eu...

- Bom, amava‑o?

‑ Sim, mas...

‑ Mas o quê, madame?

‑ Mas era um tipo diferente de amor, uma amizade... ‑ Ia a dizer ”fraterna”, mas, quando fitei Gladys e Octavious, fui incapaz de pronunciar a palavra. ‑ Um tipo diferente de amor.

‑ Eram marido e mulher, não eram? Segundo me disse, casaram numa igreja.

‑ Sim.

Ele semicerrou os olhos.

‑ Teve encontros amorosos com Monsieur Andreas, enquanto estava casada com Monsieur Tate?

‑ Sim ‑ confirmei, e algumas pessoas da assistência soltaram uma exclamação abafada e abanaram a cabeça.

‑ E segundo o que nos contou, o seu marido sabia?

‑ Sim.

‑ Sabia e tolerava? Não só tolerava, como estava disposto a aceitar em casa a sua irmã moribunda e a fingir que era a senhora, para fazer a sua felicidade. ‑ Deu meia volta enquanto continuava a falar e dirigiu‑se tanto à audiência como ao juiz. ‑ E depois ficou tão deprimido com a morte dela que se afogou no pântano? É esta a história que Madame e Monsieur Andreas querem que todos aceitem?

‑ Sim! ‑ exclamei. ‑ é verdade. É tudo verdade.

Mr. Williams perscrutou o rosto do juiz e retorceu o canto da boca num trejeito.

‑ Não tenho mais perguntas, Meritíssimo.

O juiz assentiu com a cabeça.

‑ Pode descer, madame ‑ disse. Eu, porém, não conseguia pôr‑me de pé. As minhas pernas pareciam de palha e as costas como se se tivessem transformado em geleia. Fechei os olhos.

‑ Ruby! ‑ chamou Beau.

‑ Sente‑se bem, madame? ‑ perguntou o juiz.

Abanei a cabeça. O coração batia‑me com tanta força que me faltava a respiração. Senti o sangue a fugir‑me do rosto. Quando abri os olhos, Beau agarrava‑me na mão. Alguém colocara um pano molhado em cima da minha testa e apercebi‑me de que desmaiara.

‑ Consegues andar, Ruby? ‑ indagou Beau.

Esbocei um aceno afirmativo.

‑ Faremos um curto intervalo ‑ decidiu o juiz, batendo com o martelo.

Tive a sensação de que me martelara o coração.

 

MAIS ESPESSO DO QUE ÁGUA

Durante o intervalo, Beau e eu fomos levados até uma sala de espera onde havia um pequeno sofá. Beau obrigou‑me a deitar e aplicou o pano molhado na minha testa, enquanto Mr. Polk ia fazer um telefonema para o escritório. Parecia taciturno e enervado. Na verdade, achei que parecia irritado connosco por o termos metido naquela situação.

‑ Beau, fizemos figura de idiotas, não foi? ‑ perguntei, tristemente. ‑ Depois de contarmos a nossa história, o advogado dos Tate levou‑nos a passar por idiotas.

‑ Não ‑ encorajou Beau. ‑ As pessoas acreditaram em nós. Li‑lhes nos rostos. E, além disso, depois da tua caligrafia ser comparada com a da Gisselle e analisada...

‑ Descobrirão um perito para a desacreditar. Sabes que sim. Ela está tão decidida a magoar‑nos, Beau. Não olhará a custos. Se fosse preciso, utilizaria toda a fortuna do Paul para nos derrotar!

‑ Calma, Ruby. Por favor. Temos de voltar e...

Ambos nos virámos quando a porta se abriu e Jeanne entrou. Por um momento, ninguém falou. Jeanne manteve a porta parcialmente aberta atrás dela, como se pudesse mudar de opinião e escapulir‑se da sala a qualquer instante.

‑ Jeanne! ‑ exclamei, sentando‑me. ‑ Entra, por favor.

Ela fitou‑me, de lágrimas nos olhos.

‑ Já não sei em quem acreditar ‑ replicou, abanando a cabeça. ‑ A mãe jura que... tu e o Beau não passam de dois bons mentirosos.

‑ Não, Jeanne. Não estamos a mentir. Lembras‑te de quando vieste ter comigo e tivemos aquela agradável conversa antes de te casares? Lembras‑te de que não estavas certa quanto a caSares‑te com o James?

Arregalou os olhos e depois estreitou‑os.

‑ A Ruby podia ter‑te contado.

Abanei a cabeça.

‑Não. Escuta...

‑ Mas, mesmo que sejas a Ruby, não sei como podias ter magoado o meu irmão daquela maneira.

‑ Não há que compreender tudo, Jeanne. Nunca foi minha intenção magoar o Paul. Eu amava‑o.

‑ Como podes dizer isso com ele aqui? ‑ indagou com um aceno de cabeça na direcção de Beau.

‑ O Paul e eu tínhamos um tipo diferente de amor, Jeanne.

Ela fitou‑me com uma tal intensidade que era como se me trespassasse com o olhar.

‑ Não sei. Não sei mesmo no que acreditar ‑ vincou e depois os olhos adquiriram a dureza do cristal. ‑ No entanto, vim aqui dizer‑te que se és a Ruby e fizeste tudo isto, lamento por ti.

‑ Jeanne!

Ela virou‑se e saiu rapidamente.

‑ Estás a ver? ‑ redarguiu Beau, sorrindo. ‑ Agora, ela tem dúvidas. No íntimo, sabe que és a Ruby.

‑ Assim o espero ‑ desejei. ‑ Contudo, sinto‑me tão mal. Devia ter percebido quantas pessoas iria magoar.

 

Beau agarrou‑me com força e respirei fundo. Ele foi buscar‑me um copo de água e, enquanto o bebia, Mr. Polk regressou, parecendo ainda mais desalentado.

‑ O que se passa? ‑ quis saber Beau.

‑ Acabei de receber más notícias ‑ elucidou. ‑ Eles têm uma testemunha surpresa.

‑ O quê? Quem? ‑ perguntei, ao mesmo tempo que a minha mente perscrutava as possibilidades.

‑ Ainda não sei quem é ‑ respondeu. ‑ Informaram‑me, porém, que pode resolver tudo a favor deles. Há mais alguma coisa que não me contaram?

‑ Não, monsieur ‑ retorquiu Beau. ‑ Nada foi deliberadamente oculto. E tudo o que contámos é verdade.

Ele esboçou um aceno de cabeça céptico.

‑ É altura de voltar ‑ disse.

Foi ainda mais difícil regressar à sala de tribunal do que havia sido entrar pela primeira vez. Sentia‑me um qualquer espécime sob um microscópio. Os olhares de todos seguiram‑me até à frente da sala do tribunal e as pessoas ao meu lado sussurravam com as mãos à frente da boca. Provocou‑me uma onda de calor que me subiu das pernas até ao rosto. Todas as velhas amigas da grandmère Catherine estudavam cada um dos meus movimentos, numa procura de gestos que confirmassem a minha identidade. O ar estava denso com as perguntas de todas elas. Seria que Beau e eu estávamos a tentar engendrar algum esquema? Ou o nosso relato era verdadeiro?

Ocupámos os nossos lugares. Gladys Tate já estava sentada com uma expressão de aço. Octavious conservava o olhar perdido no vazio. Jeanne sussurrou algo a Toby, e as irmãs de Paul fitaram‑me irritadas. Uns momentos depois, o juiz Barrow voltou e reinou o silêncio na sala de audiências.

‑ Monsieur Polk ‑ declarou. ‑ Está pronto para continuar?

‑ Sim, Meritíssimo. ‑ O nosso advogado levantou‑se com os documentos que tinha preparado para assinarmos referentes á herança.

‑ Meritíssimo. Os meus clientes reconhecem que os seus motivos para tentarem ganhar a custódia da Pearl poderiam ser mal interpretados. Para afastar essas interpretações erradas, estamos dispostos a prescindir de todos e quaisquer direitos à herança conjugal relativa aos bens de Paul Tate. ‑ Deu um passo em frente e apresentou os documentos ao juiz, que os examinou, fazendo depois um aceno de cabeça a Mr. Williams para que se aproximasse também. Ele observou os documentos.

‑ Teremos obviamente de estudá‑los, Meritíssimo, mas ‑ declarou com a confiança de alguém que antecipara a nossa reacção ‑, mesmo que eles estejam em ordem, tal não elimina a possibilidade de que estes dois impostores deitem as garras à fortuna dos Tate. A criança, de que estão a tentar ganhar a custódia, herdaria, e eles seriam naturalmente os tutores dessa enorme herança.

O juiz virou‑se para Mr. Polk.

‑ Meritíssimo, os meus clientes alegam que o pai natural de Pearl Tate é Beau Andreas. Ela não poderia reivindicar o direito à fortuna de Monsieur Tate.

O juiz esboçou um aceno de concordância. Assemelhava‑se a observar um jogo de xadrez com pessoas a sério no tabuleiro, em vez das figuras de cavaleiros e rainhas, peões e reis. Nós éramos os peões e a minha querida Pearl dirigia‑se para a vitória.

‑ Têm quaisquer outras provas, Monsieur Polk, ou mais testemunhas?

‑ Não, Meritíssimo.

‑ Monsieur Williams?

‑ Temos sim, Meritíssimo.

O juiz recostou‑se. Mr. Polk regressou ao seu lugar ao nosso lado e Mr. Williams dirigiu‑se à secretária para conferenciar Um momento com o sócio, antes de se virar e pronunciar o nome da testemunha.

‑ Gostaríamos de chamar Monsieur Bruce Bristow a depor.

‑ O Bruce! ‑ exclamei. Beau abanou a cabeça com uma expressão surpreendida.

‑ Este não é o marido da sua madrasta? ‑ indagou Mr. Polk.

‑ É, mas... já não temos nada a ver com ele ‑ explicou Beau.

As portas lá atrás abriram‑se e Bruce avançou pela coxia, com um sorriso malicioso nos lábios quando olhou na nossa direcção.

‑ Ela deve ter‑lhe feito uma oferta, comprado o testemunho dele ‑ disse a Mr. Polk.

‑ Que tipo de testemunho pode dar este homem? ‑ interrogou‑se em voz alta.

‑ Ele dirá o que for preciso, mesmo sob juramento ‑ replicou Beau, brindando Bruce com um olhar irritado.

Bruce jurou e sentou‑se na cadeira das testemunhas. Mr. Williams aproximou‑se dele.

‑ Diga o seu nome, por favor, sir.

‑ Bruce Bristow.

‑ E foi casado com a falecida madrasta de Ruby e Gisselle Dumas?

‑Fui.

‑ Há quanto tempo conhece as gémeas?

‑ Há bastante ‑ declarou, fitando‑me com um sorriso. Anos. ‑ Fui empregado de Monsieur e Madame Dumas cerca de oito anos antes da morte de Monsieur Dumas.

‑ Depois do que casou com Daphne Dumas e se tornou para todos os efeitos práticos o padrasto das gémeas Ruby e Gisselle?

‑ Sim, é verdade.

‑ Conhecia‑as, portanto, bem?

‑ Muito bem. Intimamente ‑ acrescentou.

‑ Na qualidade de único parente vivo das gémeas, pode garantir ao tribunal que é capaz de as distinguir?

‑ Claro. A Gisselle ‑ retorquiu, voltando a fitar‑me - tem uma personalidade completamente diferente, uma perspicácia digamos mais sofisticada. A Ruby era mais inocente, tímida, suave.

‑ Está agora e esteve recentemente implicado em alguns problemas legais com os actuais proprietários das empresas da família Dumas, Beau e Gisselle Andreas? ‑ inquiriu Mr. Williams.

‑ Sim, sir. Eles expulsaram‑me do negócio ‑ declarou, fixando‑nos. ‑ Depois de anos dos meus dedicados préstimos, resolveram reforçar um idiota acordo pré‑nupcial entre mim e a minha falecida esposa. Afastaram‑me da posição que me cabia por direito e mandaram‑me para a rua, tornando‑me uma pessoa sem meios de subsistência.

‑ Ele está a mentir ‑ sussurrou Beau a Mr. Polk.

‑ Devia ter‑me falado dele ‑ replicou. ‑ Perguntei‑lhe se havia mais alguém.

‑ Quem sabia que a Gladys Tate o descobriria?

‑ Muito provavelmente foi ele que a descobriu, Beau - interferi. ‑ Por vingança. Ajustam‑se como uma mão numa luva.

‑ Esta mulher que vê sentada na sua frente, sir ‑ declarou Mr. Williams, virando‑se para mim ‑, participou directamente em tudo isto?

‑ Sim. Regressei há pouco para lhe suplicar compreensão e expulsou‑me literalmente do que tinha sido a minha própria casa ‑ respondeu.

‑ Portanto, não se trata de uma mulher tímida e inocente ‑      concluiu Mr. Williams com um sorriso de satisfação.

‑ Dificilmente ‑ concordou Bruce, alargando o seu próprio sorriso e fixando o juiz, que me fitou com um olhar perscrutador.

‑ Mesmo assim, sir, é possível que uma gémea idêntica engane alguém, levando‑o a acreditar que é a irmã ‑ retorquiu Mr. Williams. ‑ Ela pode ter seguido um argumento bem preparado e dito as coisas exactas para o convencer de que era a irmã.

‑ Suponho que sim ‑ anuiu Bruce.

Por que razão Monsieur Williams estaria a dar‑nos o benefício da dúvida?, interroguei‑me, mas sem descobrir a resposta. Apertei as mãos com tanta força que fiquei com os dedos dormentes.

‑ Então, como pode ter a certeza de que recentemente teve uma discussão com a Gisselle e não com a Ruby?

‑ Tenho vergonha de responder ‑ replicou Bruce, baixando os olhos.

‑ Mesmo assim receio ter de perguntar‑lhe, sir. Está em jogo o futuro de uma criança para já nem falar de uma imensa fortuna.

Bruce esboçou um aceno de cabeça e ergueu os olhos, como se estivesse a concentrar‑se num anjo no tecto.

‑ Uma vez deixei‑me seduzir pela minha enteada Gisselle.

A audiência emitiu um suspiro em uníssono.

‑ Ela era, como mencionei, muito sofisticada e mundana - acrescentou.

‑ Alguém mais sabia disto, monsieur?

‑ Não ‑ negou Bruce. ‑ Não era coisa de que me orgulhasse muito.

‑ Mas esta mulher deu‑lhe a entender que sabia? ‑ perguntou Mr. Williams, apontando para mim.

‑ Sim. Referiu o assunto durante a nossa discussão e ameaçou usá‑lo contra mim, se me opusesse ao seu esforço e do marido para me afastar da posição que me cabia por direito. Dadas as circunstâncias, achei melhor retirar‑me rapidamente e recomeçar a minha vida.

”No entanto ‑ acrescentou, olhando para Madame Tate ‑. quando ouvi dizer o que se propunham fazer agora, tive de avançar e cumprir o meu dever, independentemente dos possiveis danos à minha reputação.

‑ Está, portanto, a afirmar ao tribunal, sob juramento, que esta mulher que se apresentou como Ruby Tate conhecia pormenores íntimos entre si e Gisselle, pormenores que apenas Gisselle teria sabido?

‑ Correcto ‑ assentiu Bruce e recostou‑se, satisfeito.

‑ O único motivo que o leva a fazer isto ‑ sussurrou Beau a Mr. Polk ‑ é porque o forçámos a abandonar os negócios. Ele e a Daphne fizeram acordos financeiros muito obscuros.

‑ Estão preparados para divulgar tudo isso? ‑ inquiriu Mr. Polk.

Beau fitou‑me.

‑ Sim. Faremos tudo. ‑ Beau começou a elaborar rapidamente algumas perguntas para Mr. Polk.

‑ Não tenho mais perguntas para a testemunha, Meritíssimo ‑ declarou Mr. Williams, regressando à sua mesa, junto à qual Gladys Tate se sentava, parecendo mais forte. Olhou na minha direcção e sorriu friamente, provocando‑me calafrios na espinha.

‑ Monsieur Polk. Quer interrogar esta testemunha?

‑ Quero, Meritíssimo. Se me conceder um momento - acrescentou, enquanto Beau completava os seus apontamentos. Mr. Polk pegou‑lhes e depois levantou‑se.

‑ Monsieur Bristow, porque não contestou as acções que lhe foram levantadas pelas empresas da família Dumas?

‑ Já disse... existia um infeliz acordo pré‑nupcial e fui submetido a chantagem pela minha enteada Gisselle.

‑ Tem a certeza de que a sua relutância em recorrer nada teve a ver com as actividades financeiras levadas a efeito por si e Daphne Dumas?

‑Tenho.

‑ Está disposto a deixar que esses negócios sejam examinados por este tribunal?

Bruce vacilou um pouco.

‑ Nada fiz de errado.

‑ Não está aqui para se vingar de ter sido afastado do negócio?

‑ Não. Estou aqui para contar a verdade ‑ declarou Bruce num tom firme.

‑ Perdeu recentemente um bem comercial em Nova Orleães que estava hipotecado?

‑ Sim.

‑ Deixou de ter um rendimento e um estilo de vida confortáveis, não?

‑ Agora tenho um bom emprego ‑ insistiu Bruce.

‑ Que não lhe paga um quarto do que ganhava quando lhe pediram que abandonasse as empresas da família Dumas, não é verdade?

‑ O dinheiro não é tudo ‑ gracejou Bruce.

‑ Já ultrapassou o seu problema com o álcool? ‑ prosseguiu Mr. Polk.

‑ Protesto, Meritíssimo ‑ objectou Mr. Williams, levantando‑se. ‑ Os problemas pessoais de Monsieur Bristow nada têm a ver com este testemunho.

‑ Têm tudo a ver, se ele esperar obter lucros financeiros e for um alcoólico que precisa de dinheiro para a sua dependência ‑ arguiu Mr. Polk.

‑ Está a acusar os meus clientes de subornarem este homem? ‑ replicou Mr. Williams, apontando para Bruce.

‑ Basta ‑ interrompeu o juiz. ‑ Protesto aceite. Tem mais algumas perguntas pertinentes para o assunto em causa, Monsieur Polk?

Mr. Polk pensou um momento e depois abanou a cabeça.

‑ Não, Meritíssimo.

‑ óptimo. Obrigado, Monsieur Bristow. Pode descer. Monsieur Williams?

- Gostaria de chamar Madame Tate a depor, Meritíssimo.

Gladys Tate levantou‑se devagar, como se lutasse contra um enorme peso nos ombros. Limpou os olhos com um lenço de seda bege e depois soltou um profundo suspiro antes de dar a volta à mesa e avançar até ao banco das testemunhas. Examinei Octavious. Durante a maior parte do tempo, mantivera a cabeça baixa e assim continuava agora.

Depois de ter prestado juramento, Gladys sentou‑se na cadeira, como alguém a deslizar para um banho quente. Fechou os olhos e premiu a mão direita contra o coração. Mr. Williams ficou de pé, esperando que ela acalmasse o suficiente para falar. Quando examinei as pessoas da audiência, vi como a maioria sentia pena dela. Tinham os olhos cheios de compaixão e simpatia.

- A senhora é Gladys Tate, mãe do recentemente falecido Paul Marcus Tate? ‑ perguntou Mr. Williams, e ela voltou a fechar os olhos. ‑ Lamento, Madame Tate. Sei como o seu desgosto ainda é recente, mas tenho de perguntar.

‑ Sim ‑ respondeu. ‑ Sou a mãe de Paul Tate. ‑ Não me olhou.

- Era muito chegada ao seu filho, madame?

‑ Muito ‑ anuiu. ‑ Antes de o Paul casar, acho que não passou um só dia sem que nos víssemos ou falássemos. Existia entre nós mais do que uma relação de mãe e filho. Éramos bons amigos ‑ acrescentou.

‑ Portanto, ele confiava em si?

‑ Oh, totalmente. Nunca tivemos segredos um para o outro - declarou.

‑ É mentira ‑ sussurrei.

Mr. Polk ergueu as sobrancelhas. Beau virou‑se para mim. Os olhos indicavam‑me que queria que eu contasse toda a verdade a Mr. Polk. Esperara não ter de o fazer. Parecia‑me uma tão grande traição a Paul.

‑ Alguma vez discutiu consigo este elaborado plano para trocar a mulher com a mulher de Monsieur Andreas, depois de ela ter sido atingida pela encefalite?

‑ Não. O Paul amava muito a Ruby e era um jovem muito orgulhoso, bem como religioso. Não desistiria da mulher que amava só para que outro homem pudesse ser feliz a viver em pecado ‑ respondeu num tom desdenhoso. ‑ Casou com a Ruby na igreja depois de ter percebido que era o que havia a fazer. Lembro‑me de quando me falou da sua decisão. Sentia‑me

obviamente infeliz por ele ter tido uma filha fora do casamento, mas também feliz por ele querer fazer o que era moralmente correcto.

‑ Ela não ficou feliz ‑ murmurei. ‑ Ela fê‑lo infeliz. Ela...

‑ Chiu ‑ ordenou Mr. Polk, que parecia tão fascinado como os demais pela história dela e não queria perder um pormenor.

‑ E, na verdade, depois de eles terem casado, a senhora, o seu marido e as suas filhas aceitaram a Ruby e a Pearl como se fossem família, certo?

‑ Sim. Tínhamos jantares de família. Cheguei mesmo a ajudá‑la a decorar a casa. Faria tudo para manter o meu filho feliz e próximo de mim ‑ replicou. ‑ O que ele queria para si próprio, era o que eu queria para ele. E ele era louco pela criança. Oh, como ele adorava a nossa querida neta. Ela tem o rosto, os olhos, o cabelo dele. Vê‑los passear juntos no jardim ou’ vê‑lo levá‑la para um passeio de piroga no canal enchia‑me o coração de alegria.

‑ Não existe assim qualquer dúvida no seu espírito de que a Pearl seja filha dele?

‑ Nenhuma.

‑ E ele nunca lhe disse nada em contrário?

‑ Não. Porquê casar com uma mulher com um filho de outro homem? ‑ retorquiu.

Cabeças esboçaram acenos de concordância.

‑ Durante a doença da Ruby, teve muitas oportunidades de visitar a casa deles?

‑ Sim.

‑ E ele alguma vez lhe deu mostras de que estava preocupado com a irmã da mulher e não com a mulher? ‑ prosseguiu Mr. Williams.

‑ Não. Pelo contrário e, como todos aqui presentes que viram o meu filho durante este período difícil podem testemunhar, ele andava tão desgostoso que se fechou sobre si próprio. Negligenciou o trabalho e começou a beber. Estava constantemente deprimido. Despedaçava-me o coração.

‑ Por que razão não internou pura e simplesmente a mulher num hospital?

‑ Não podia suportar estar longe dela. Passava o tempo ao seu lado ‑ replicou Gladys Tate. ‑ Dificilmente o faria, se não se tratasse da Ruby ‑ acrescentou, fitando‑me com desprezo.

‑ Porque pediu ao tribunal que lhe concedesse uma ordem para reaver a sua neta?

- Esta gente ‑ declarou Gladys Tate, cuspindo as palavras na nossa direcção ‑ recusou dar‑me a Pearl de volta. Mandaram embora o meu advogado e uma ama. E tudo isto - gemeu ‑, enquanto eu chorava a morte do meu filho, do meu menino.

Rompeu em lágrimas. Mr. Williams aproximou‑se rapidamente com o seu lenço.

- Lamento ‑ desculpou‑se num tom choroso.

- Não faz mal. Leve o tempo que quiser, madame.

Gladys limpou as faces e depois fungou e respirou fundo.

‑ Sente‑se bem, Madame Tate? - indagou o juiz Barrow.

‑ Sim ‑ respondeu num fio de voz.

O juiz Barrow esboçou um sinal de cabeça a Mr. Williams, que deu um passo em frente e continuou.

‑ Foi recentemente visitada por Monsieur e Madame Andreas, não é verdade? ‑ perguntou.

‑ Sim ‑ confirmou, fitando‑nos.

‑ E o que é que eles queriam?

‑ Queriam fazer um acordo ‑ respondeu. ‑ Ofereceram‑me

cinquenta por cento da fortuna do meu filho, se não forçasse esta audiência do tribunal e me limitasse a entregar‑lhes a Pearl.

‑ O quê? ‑ balbuciou Beau.

‑ Ela está a mentir! ‑ gritei.

O juiz bateu com o martelo na mesa.

‑ Eu avisei. Nada de interrupções ‑ censurou.

‑Mas...

‑ Fique calma ‑ ordenou Mr. Polk.

Acobardei‑me, afundando‑me na cadeira com a raiva a queimar‑me as faces. Não haveria limite? Até onde iria ela, para satisfazer a sua sede de vingança?

‑ O que aconteceu então, madame? ‑ inquiriu Mr. Williams.

‑ Recusei, como é óbvio, e ameaçaram levar‑me a tribunal, o que fizeram.

‑ Não tenho mais perguntas, Meritíssimo ‑ declarou Mr. Williams.

O juiz fitou Mr. Polk com uma expressão dura.

‑ Tem mais algumas perguntas para esta testemunha?

‑ Não, Meritíssimo.

‑ O quê? Obrigue‑a a retirar essas mentiras ‑ incitei.

‑ Não. É melhor livrar‑me dela. Possui a simpatia de todos. Até mesmo do juiz ‑ aconselhou Mr. Polk.

Mr. Williams ajudou Gladys Tate a levantar‑se e acompanhou‑a de volta à cadeira. Algumas pessoas na audiência choravam abertamente por ela.

‑ Hoje, não conseguirão a criança, se é que isso acontecerá alguma vez ‑ murmurou Mr. Polk, arquejante.

‑ Oh, Beau ‑ gemi. ‑ Ela está a ganhar. Será uma avó terrível. Não ama a Pearl. Sabe que a Pearl não é filha do Paul.

‑ Monsieur Williams? ‑ chamou o juiz.

‑ Não há mais testemunhas nem provas, Meritíssimo - declarou num tom confiante.

Mr. Polk recostou‑se, de mãos cruzadas no estômago e uma

expressão sombria. Olhei do outro lado da sala para Gladys, que se preparava para sair vitoriosa. Octavious continuava de olhos fixos na mesa.

‑ Chame mais uma testemunha, Monsieur Polk ‑ disse‑lhe,

desesperada.

‑O que é isso?

Beau agarrou‑me na mão. Fitámo‑nos bem nos olhos e ele esboçou um aceno de concordância. Virei‑me para o nosso advogado.

‑ Chame mais uma testemunha. Dir‑lhe‑ei o que perguntar - retorqui. ‑ Chame Octavious Tate a depor.

‑ Faça‑o! ‑ ordenou Beau num tom firme.

Mr. Polk levantou‑se devagar, inseguro e relutante.

‑ Monsieur Polk? ‑ interrogou o juiz.

‑ Temos mais uma testemunha, Meritíssimo ‑ respondeu ele.

O juiz pareceu desagradado.

‑ Muito bem ‑ anuiu. ‑ Vamos pôr termo a este assunto. Chame a sua ultima testemunha ‑ acrescentou, vincando a palavra ”última”.

‑ Chamamos Monsieur Tate a depor.

Uma onda de surpresa varreu a audiência. Escrevi febrilmente num pedaço de papel. O juiz bateu com o martelo na mesa e fitou a multidão, que se acalmou de imediato. Neste momento, ninguém queria ser convidado a abandonar a sala.

Octavious, surpreendido ante o som do seu nome, ergueu lentamente a cabeça e olhou em volta, como se apenas nesse momento compreendesse onde estava. Mr. Williams inclinou‑se para lhe sussurrar qualquer estratégia, antes de ele se levantar. Entreguei as minhas perguntas a Mr. Polk, que as leu rapidamente, fitando‑me depois com uma expressão severa.

‑ Madame ‑ avisou. ‑ Pode perder toda a simpatia, se isto se revelar falso.

‑ É verdade ‑ declarei num sussurro.

Octavious encaminhou‑se devagar até ao banco das testemunhas, de cabeça baixa. Quando jurou, repetiu as palavras muito lentamente. Vi que lhe pesavam na língua e no coração. Sentou‑se rapidamente, afundando‑se no assento como um homem que, se assim não fosse, teria caído no chão. Mr. Polk hesitou e depois encolheu os ombros, avançando em nossa defesa.

‑ Monsieur Tate, depois de o seu filho ter apresentado Uma primeira proposta de casamento a Ruby Dumas, visitou Ruby Dumas e pediu‑lhe que recusasse?

Octavious desviou o olhar na direcção de Gladys e depois baixou o rosto.

‑ Sir? ‑ insistiu Mr. Polk.

‑ Sim, pedi.

‑ Porquê?

‑ Não achei que o Paul estivesse preparado para casar - respondeu. ‑ Estava apenas a começar o seu negócio no petróleo e acabara de construir a casa.

‑ Parece‑me uma boa altura para pensar em casamento retorquiu Mr. Polk. ‑ Não havia outro motivo que o levasse a pedir a Ruby Dumas para recusar a proposta do seu filho?

Octavious voltou a pousar o olhar em Gladys.

‑ Sabia que a minha mulher ficaria infeliz ‑ redarguiu.

‑ Mas a sua mulher acabou de testemunhar que ficou feliz pelo facto de o filho Paul estar a fazer o que era certo e testemunhou que aceitou totalmente Ruby Dumas na sua família. Não foi verdade, monsieur?

‑ Ela aceitou, sim.

‑ Mas não de bom grado? ‑ Antes que Octavious pudesse responder, Mr. Polk acrescentou rapidamente: ‑ Acreditava que a criança era filha do seu filho?

‑ Eu... achei que era possível, sim.

‑ No entanto, foi ter com Ruby Dumas para lhe pedir que não casasse com o seu filho?

Octavious não deu resposta.

- O seu filho disse‑lhe que a Pearl era filha dele?

‑ Ele.. disse que queria zelar pela vida da Ruby e da Pearl.

‑ Mas nunca disse que a Pearl era filha dele? Sir?

‑ Não, a mim, não.

Mas à sua mulher, que depois lho comunicou? Foi assim?

‑Sim. Sim.

‑ Então, porque é que não achou que ele estava a tomar a atitude correcta?

‑ Não fiz essa afirmação.

‑ Contudo, admitiu que não queria que esse casamento se realizasse. Na verdade, monsieur, isto é muito confuso. Não havia outro motivo, um motivo mais Sério?

Octavious virou lentamente a cabeça na minha direcção e fixámo‑nos. Supliquei‑lhe a verdade com o olhar, embora soubesse quanto essa verdade era devastadora.

‑ Ignoro o que pretende dizer ‑ retorquiu.

‑ Por favor ‑ gritei. ‑ Por favor, faça o que está certo.

O juiz baixou o martelo.

‑ Pelo Paul ‑ acrescentei.

Octavious esboçou um trejeito e os lábios tremeram‑lhe

‑ Basta, madame. Avisei‑a e...

‑ Sim ‑ anuiu Octavious em voz baixa. ‑ Havia um outro motivo.

‑ Octavious! ‑ gritou Gladys Tate.

O juiz recostou‑se na cadeira, chocado ante aquelas explosões, uma de cada lado.

‑ Não acha que já. é altura de falar desse outro motivo, Monsieur Tate? ‑ inquiriu o nosso advogado num tom solene.

Octavious assentiu com a cabeça e fitou novamente Gladys.

‑ Lamento ‑ pronunciou. ‑ Não consigo ir por diante com isto. Devo‑te muito, mas o que estás a fazer não é justo minha querida mulher. Estou cansado de me esconder atrás de’ uma mentira e sou incapaz de tirar a mãe a uma filha

Gladys gemeu de dor. Vários pescoços se esticaram para ver as filhas a confortarem‑na.

‑ Pode fazer o favor de informar o tribunal sobre esse tal motivo adicional? ‑ pediu Mr. Polk.

‑ Há muito tempo atrás, sucumbi à tentação e cometi um acto adúltero.

Toda a audiência emitiu um suspiro abafado.

‑ E?

‑ Como resultado, nasceu o meu filho. ‑ Octavious ergueu a cabeça e fitou‑me. ‑ O meu filho e a Ruby Dumas...

‑ Monsieur?

‑ Eram meios‑irmãos ‑ confessou.

Gerou‑se o pandemónio. O martelo do juiz mal se ouviu acima de toda a confusão. Gladys Tate desmaiou e Octavious Ocultou o rosto entre as mãos.

‑ Meritíssimo ‑ interpelou Mr. Polk, avançando. ‑ Acho que seria do melhor interesse do tribunal e de todos os interessados se pudéssemos terminar esta sessão no seu gabinete.

O juiz reconsiderou e depois esboçou um aceno de concordância.

‑ Falarei com os advogados das duas partes no meu gabinete ‑ declarou, erguendo‑se.

Octavious não se mexera do banco das testemunhas. Levantei‑me rapidamente e transpus a distância que nos separava. Quando ergueu a cabeça, tinha as faces molhadas de lágrimas.

‑ Obrigada ‑ agradeci.

‑ Lamento o que fiz ‑ disse.

- Eu sei e acho que agora encontrará paz interior.

Beau aproximou‑se e beijou‑me. Depois levou‑me dali, e as Pessoas afastaram‑se para nos abrir caminho. Dei cabo de todas as unhas, enquanto Beau e eu esperávamos do lado de fora do gabinete do juiz. O coração ameaçava saltar‑me do peito e tinha o estômago em brasa. Os advogados dos Tate foram os primeiros a sair; mas os rostos empedernidos nada revelavam. Nem sequer olharam na nossa direcção. Por fim, Mr. Polk veio ter connosco e informou‑nos que o juiz desejava avistar‑se connosco a sós.

‑ O que é que ele decidiu? ‑ indaguei, ansiosa.

‑ Tenho apenas por missão pedir‑lhe que entre, madame. Por favor.

Agarrei com força no braço de Beau e as minhas pernas ameaçavam ceder a qualquer momento. Se tivéssemos de sair dali sem a minha filha...

 

No gabinete e sem a toga vestida, o juiz Barrow mais parecia um simpático e velho grandpère. Fez‑nos sinal para que nos sentássemos diante dele no sofá, após o que tirou os óculos para ler e se inclinou para a frente.

‑ Desnecessário será dizer que esta foi a audiência mais invulgar de toda a minha carreira. Penso que agora desvendámos a verdade. Não estou aqui para imputar culpabilidades. Uma parte de tudo isto deveu‑se a acontecimentos para lá do vosso controlo, mas verificaram‑se todo o tipo de fraudes, fraudes éticas e morais também, e sabem como muitas delas vos cabem.

‑ Sim ‑ anui num tom transbordante de remorso.

O juiz Barrow fitou‑me um momento e esboçou um aceno de cabeça.

‑ Os meus instintos segredam‑me que os motivos para os vossos actos foram bons, motivos de amor, e o facto de se terem mostrado dispostos a arriscar as vossas fortunas e reputação, contando a verdade em tribunal, pende a vosso favor.

”No entanto, o Estado pede‑me que julgue se devem ou não ficar com a custódia desta criança e a tutoria do seu bem‑estar e educação moral ou se é ou não melhor para ela ser confiada a uma organização estatal até se encontrar um lar apropriado.

‑ Meritíssimo ‑ comecei, disposta a enumerar uma dúzia de promessas.

Ele levantou a mão.

‑ Tomei a minha decisão e nada do que disser irá modificá‑la ‑ declarou num tom firme. Depois, sorriu e acrescentou:

‑ Espero ser convidado para um casamento.

Soltei uma exclamação de alegria abafada, mas o juiz Barrow voltou a ficar sério.

‑ Pode e deve voltar a ser novamente a senhora.

Lágrimas de felicidade inundaram‑me o rosto. Beau e eu beijámo‑nos.

‑ Dei ordens para que lhes devolvessem a vossa filha. Vão trazê‑la aqui por uns momentos. Quanto às ramificações legais resultantes do vosso anterior casamento e à recuperação de identidade... deixo tudo isso ao cuidado dos vossos caríssimos advogados.

‑ Obrigada, Meritíssimo ‑ agradeci por entre as lágrimas.

Beau apertou‑lhe a mão e saímos do gabinete.

Mr. Polk esperava‑nos no corredor.

‑ Devo confessar ‑ admitiu ‑ que tinha as minhas dúvidas quanto à veracidade da vossa história. Sinto‑me feliz pelos dois. Boa sorte.

Saímos e ficámos lá fora á espera do carro que nos traria Pearl de volta. Ainda havia por perto pessoas que se tinham demorado na sala do tribunal a discutir os chocantes acontecimentos. Reconheci Mrs Thibodeau, uma das velhas amigas da grandmère Catherine Estava agora com problemas em andar mas conseguiu chegar até Junto de nós e pegou-me na mão

‑ Sabia que eras tu - declarou - Disse de mim para mim que a neta da Catherine Landry podia ter uma gémea mas ela vivera a maior parte dos seus dias com ela e herdara‑lhe o espírito. Fitei o teu rosto naquela sala e vi a tua grandmére a olhar para mim e soube que tudo se resolveria em bem.

‑ Obrigada, Mistress Thibodeau.

‑ Deus te abençoe, filha, e não te esqueças de nós.

‑ Não esquecerei. Voltaremos ‑ prometi.

Ela abraçou‑me e fiquei a vê‑la afastar‑se, sentindo uma tristeza no coração ao lembrar‑me da minha grandmère a caminhar ao lado das amigas para a igreja.

O Sol surgiu por detrás do aglomerado de nuvens e inundou‑nos de uma luz quente quando o carro com Pearl se aproximou. A ama que vinha no banco da frente abriu a porta e ajudou‑a a sair. Mal me viu, os olhos de Pearl brilharam.

‑ Mamã! ‑ gritou.

Era a melhor palavra do mundo. Nada me enchia o coração de tanta alegria. Estendi‑lhe os braços para que corresse para mim e depois enchi‑lhe a cara de beijos e, apertei‑a com força. Beau rodeou‑me os ombros com o braço. à nossa volta, as pessoas observavam a cena com sorrisos nos rostos.

Quando nos afastámos do edificio do tribunal, avistei a limusina dos Tates a arrancar. Os vidros das janelas eram escuros, mas o Sol brilhou com mais força e a silhueta de Gladys Tate recortou‑se nitidamente. Parecia que se tinha transformado em pedra.

Senti pena dela, embora tivesse feito uma coisa muito mesquinha. Nesse dia perdera tudo, muito mais do que a vingança. A sua vida fictícia despedaçara‑se à sua volta como porcelana chinesa. Regressava a uma vivência cada vez mais sombria e conturbada. Rezei para que ela e Octavious conseguissem começar de novo e obter paz, agora que as mentiras estavam postas a nu.

‑ Vamos para casa ‑ sugeriu Beau.

Estas palavras nunca tiveram tanto significado para mim como nesse momento.

‑ Primeiro quero fazer uma paragem, Beau ‑ repliquei.

Ele não precisou de indagar onde.

Um pouco mais tarde, encontrava‑me diante da sepultura da grandmére Catherine.

”Uma verdadeira traiteur tem um espírito sagrado”, pensei. ”Paira durante muito mais tempo, a fim de zelar pelos entes amados que deixou atrás de si.” O espírito da grandmère Catherine continuava ali. Sentia‑o, sentia‑a a pairar muito próximo. A brisa transformava‑se no seu sussurro, na sua carícia, no seu beijo.

Sorri e ergui os olhos para o céu azul agora pejado de pequenas nuvens. Mrs. Thibodeau tinha razão, reflecti. A grandmère estivera comigo durante todo aquele dia. Beijei os dedos, toquei na pedra e depois regressei ao carro, a Beau e à minha querida Pearl.

Enquanto nos afastávamos, olhei pela janela e avistei um falcão‑dos‑pântanos pousado num ramo de cipreste. Observou‑nos

e depois levantou voo através do vento e manteve‑se ao nosso lado e à nossa volta até que se virou e desapareceu no bayou.

‑ Adeus, Paul ‑ disse num sussurro. ”Mas voltarei”, pensei.

”Voltarei.”

 

Os meus sonhos quanto a ter um casamento pomposo ainda não iriam concretizar‑se. A publicidade e toda a agitação à vol ta da audiência sobre a custódia continuaram a pairar sobre nós.

regressámos a Nova Orleães. Beau achou que seria preferível uma pequena cerimónia bem longe da confusão e, uma vez que de qualquer maneira os pais dele não estavam a aceitar tudo muito bem, era‑me impossível discordar

Debatemos dias a fio se devíamos ou não ’vender a casa no Garden District e construir uma casa nova mesmo à saída de Nova Orleães. Por fim, chegámos ambos à mesma conclusão: estávamos felizes com o nosso pessoal e não conseguiriamos encontrar uma localização mais bonita. De preferênciaamudar optei por uma nova decoração, do chão ao tecto, substituindo’ reposteiros, quadros e mesmo alguns dos acessórios. Era como se vivêssemos um louco frenesim de purificar a casa e expurgá‑la de quaisquer indícios da minha madrasta, Daphne.

Conservei, obviamente, todas as coisas que sabia terem sido preciosas para o meu pai e não alterei um só pormenor do quarto que fora outrora do tio Jean. Permaneceu como um santuário à sua memória, algo que sabia que o m’eu pai desejara. Guardei todas as coisas que tinham a ver com Daphne metendo roupas, jóias, fotografias e recordações em baús ’Depois reuni os pertences de Gisselle e ofereci muitos deles a lojas de bijutarias e vendas de caridade.

Com as divisões pintadas de novo, reposteiros novos nas janelas e mudanças na decoração, a casa assumiu a minha identidade e a de Beau. Restavam, obviamente, memórias pairando como teias de aranha.

Depois de ter feito o que queria com a casa, voltei a aplicar energias na minha obra artística. Um dos primeiros quadros que desenhei e em seguida pintei foi o de uma jovem mulher sentada num terraço com um bebé recém‑nascido nos braços. O cenário situava‑a numa casa e numa propriedade como a nossa no Garden District.

Quando Beau examinou o quadro, opinou que achava que eu fizera um auto‑retrato e, depois, umas semanas mais tarde, acordei com sintomas de gravidez e apercebi‑me de que a inspiração para o quadro viera de uma consciencialização mais profunda do meu íntimo.

Beau jurou que significava que eu tinha algo dos poderes de traiteur da grandmère Catherine.

‑ Porque é que não pode ser? Vocês acreditam que se trata de um poder herdado, não é? ‑ replicou.

‑ Nunca senti nada do género, Beau, e nunca sonhei sequer em curar pessoas. Não possuo esse tipo de visão mística.

Ele esboçou um aceno de concordância, pensou uns momentos e depois fez uma revelação surpreendente.

‑ às vezes, quando estou com a Pearl e ela se põe a balbuciar na linguagem dela, vejo‑a fixar o olhar atentamente e o rosto parece de súbito muito mais velho do que o de uma criança de quatro anos. Há uma percepção no seu olhar. Nunca sentiste isso quando estás com ela?

‑ Sim ‑ anui ‑, mas receava mencionar algo do género com medo que te risses de mim.

‑ Não estou a rir‑me. Apenas me interrogo. Sabes ‑ prosseguiu ‑, ela conseguiu mesmo atrair os meus pais. A minha mãe tenta não o demonstrar, mas não consegue disfarçar, e o meu pai... quando está com ela, parece novamente um rapazinho.

‑ Ela sabe levá‑los.

‑ A toda a gente ‑ afirmou Beau. ‑ Acho que tem magia. Pronto. Já admiti. Mas não o digas a nenhum dos meus amigos ‑ apressou‑se a acrescentar; eu ri. ‑ Ainda me verás a acreditar num desses rituais de vudu que tu e a Nina Jackson costumavam praticar.

‑ Nunca digas nunca ‑ avisei.

Riu‑se. Ia eu nas duas semanas do meu nono mês quando conseguiu surpreender-me com um presente maravilhoso. Localizara Nina e trouxe‑a até nossa casa a fazer‑me uma visita.

‑ Tenho uma visita surpresa ‑ anunciou Beau, entrando antes dela na sala de estar.

‑ Quem?

Depois, afastou‑se da porta e Nina avançou. Não parecia muito mais velha, embora tivesse o cabelo totalmente grisalho.

‑ Nina! ‑ exclamei, pondo‑me de pé. O meu corpo estava tão avantajado, que me senti um hipopótamo, surgindo de um pântano. Beijámo‑nos.

‑ Estás mesmo grande ‑ comentou Nina. ‑ E próximo. Vejo‑to nos olhos.

‑ Oh, Nina, onde estiveste?

‑ A viajar um pouco para cima e para baixo do rio. Agora, a Nina reformou‑se. Vivo com a minha irmã.

Sentou‑se e falou comigo durante uma hora. Apresentei‑lhe Pearl e ela mostrou‑se encantada, fartando‑se de a elogiar e de afirmar como estava bonita. Confessou‑me que achava que ela era igualmente uma criança especial. E depois anunciou que ia acender uma vela azul para o meu novo bebé, a fim de que a criança tivesse sucesso e protecção.

‑ Não falta muito ‑ profetizou, metendo a mão no bolso, de onde tirou um pedaço de cânfora para eu usar à volta do pescoço. Afasta os germes de ti e do bebé ‑ declarou, e eu disse‑lhe que o usaria mesmo no hospital.

‑ Por favor, não te comportes como uma estranha. Vem visitar‑nos outra vez, Nina.

- Podes ter a certeza ‑ replicou.

‑ Nina ‑ pedi, agarrando‑lhe na mão ‑, achas que a raiva que atirei ao vento, quando fui ver a mãe vudu contigo por causa da Gisselle, se afastou?

- Afastou‑se do teu coração, filha. Isso é o mais importante.

Abraçámo‑nos, e Beau levou‑a a casa.

‑ Foi um presente maravilhoso, Beau ‑ agradeci‑lhe, quando ele voltou. ‑ Obrigada.

‑ Vejo que ela deixou qualquer coisa ‑ observou, fixando o pedaço de cânfora à volta do meu pescoço. ‑ Já imaginava. Para te falar verdade ‑ confessou ‑, esperava que o fizesse.

- Não posso correr riscos.

Rimos a este respeito.

 

Quatro dias depois, iniciou‑se o meu trabalho de parto. Foi intenso, ainda mais do que tinha sido com Pearl. Beau não me abandonou um só instante e acompanhou‑me mesmo até à sala de partos. Agarrou‑me na mão e ajudou‑me a controlar a respiração. Acho que sentiu todas as minhas dores, pois via‑o a fazer trejeitos. Por fim, as águas rebentaram e o bebé começou a entrar neste mundo.

- É um rapaz! ‑exclamou o médico e, depois, gritou: - Um momento!

Beau arregalou os olhos.

- É outro rapaz! Gémeos! ‑ acrescentou o médico. Tinha admitido essa possibilidade. Um estava a esconder o outro, tapando o pulsar do coração com o dele.

‑ Parabéns! ‑ felicitou, e as enfermeiras ergueram dois meninos louros e de olhos azuis nos braços.

‑ Não vamos livrar‑nos de nenhum deles ‑ gracejou Beau. ‑ Não te preocupes.

”Gémeos”, pensei. ”Vão amar‑se desde o primeiro dia”, prometi a mim própria. ”Desde o primeiro dia.”

Pearl ficou contentíssima com a notícia de que não teria apenas um irmão, mas dois. A nossa primeira grande tarefa seria encontrar nomes para ambos. Já tínhamos discutido a hipótese de uma rapariga e depois a de um rapaz, concordando em que o rapaz se chamaria Pierre, o nome do meu pai. Sabia o que queria fazer, mas sentia‑me insegura em relação a Beau. Mais tarde, ele surpreendeu‑me no hospital ao fazer ele próprio a sugestão.

‑ Devíamos chamar Jean ao nosso segundo filho ‑ declarou.

‑ Oh, Beau, pensei nisso, mas...

‑ Mas o quê? ‑ redarguiu com um sorriso. ‑ Já te disse que agora sou crente. Estava predestinado.

”Talvez”, pensei. ”Talvez.”

Beau tinha um fotógrafo à espera no dia em que levámos os gémeos para casa. Tirámos fotografias os cinco. Agora, éramos uma pequena família. Contratámos uma ama para ajudar a tratar dos gémeos, no início, mas Beau achou que poderiamos mantê‑la mais tempo.

‑ Não quero que descures a tua arte ‑ insistiu.

‑ Nada é mais importante do que os meus filhos, Beau. A minha arte irá ficar em segundo plano ‑ declarei.

Queria estar próxima dos meus meninos e certificar‑me de que eram ensinados a amar e a zelar um pelo outro. Beau compreendeu.

Uma semana depois de ter voltado do hospital com os nossos gémeos, sentei‑me nos jardins, a descontrair‑me com a leitura de um livro. Pearl estava lá em cima com a nova ama, intrigada e fascinada com os dois irmãos bebés.

‑ Desculpe, madame ‑ pediu Aubrey, aproximando‑se - mas acabou de chegar uma entrega especial para si.

‑ Obrigada, Aubrey ‑ agradeci, pegando no sobrescrito.

Quando vi que fora enviado por Jeanne, recostei‑me, de dedos trémulos, enquanto o abria. Continha uma fotografia e um bilhete.

 

”Querida Ruby,

A minha mãe insistiu para que deitássemos fora tudo o que nos recorde de ti. Não consegui ter coragem para me desfazer disto. Acho que o Paul gostaria que fosse parar às tuas mãos.

Jeanne”

 

Examinei a fotografia. Não conseguia lembrar‑me de quem a tirara. ”Um dos colegas de estudos de Paul!”, pensei. Era uma fotografia de nós dois tirada no salão de fais do do, quando Paul me levara ao baile. Tinha sido o meu primeiro encontro a sério e antes de saber a verdade a nosso respeito. Ambos parecíamos tão jovens, inocentes e cheios de esperança. Nada mais tínhamos pela frente do que felicidade e amor.

Só me apercebi de que estava a chorar quando uma lágrima caiu na fotografia.

‑ Mamã! ‑ ouvi Pearl a gritar do terraço. Virei‑me e avistei‑a correndo na minha direcção, com Beau atrás dela. - Eles olharam para mim! O Pierre e o Jean! Eles olharam os dois para mim e sorriram!

Apressei‑me a limpar os vestígios de lágrimas e meti a fotografia e o bilhete entre as páginas do meu livro.

‑ É verdade! ‑ confirmou Beau. ‑ Também vi.

‑ Que bom, minha querida. Os teus irmãos vão amar‑te para sempre.

‑ Anda, mamã. Vamos vê‑los. Anda ‑ incitou, puxando‑me

pela mão.

‑ Já vou, querida. Só um instante.

Beau fitou‑me.

‑ Sentes‑te bem? ‑ perguntou.

‑ Sim ‑ sorri. ‑ Sinto.

‑ Vou levá‑la. Anda, princesa. Deixa a mamã descansar um pouco mais, sim? E depois ela virá.

‑ Vens mesmo, mamã?

‑ Vou, querida, prometo.

Beau pronunciou Amo‑te com os lábios e levou Pearl de novo para casa.

Sentei‑me. à distância, uma nuvem assumiu a forma de uma piroga flutuando pelo céu, e pareceu‑me ouvir a grandmère Catherine sussurrando novamente na brisa, enchendo‑me de esperança.

 

                                                                                            V. C. Andrews

 

 

                      

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