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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NERO / Alexandre Dumas
NERO / Alexandre Dumas

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

No DIA 7 de Maio, mês a que os gregos chamam thar-gelion, do ano 57 de Cristo e 810 da fundação de Roma, saía de Corinto pela porta ocidental, em direcção à praia, uma jovem de quinze a dezasseis anos, alta, bela e ágil como a Diana caçadora; chegando a um pequeno prado, orlado, dum lado, por um bosque de oliveiras e, do outro, por um regato assombreado por laranjeiras e loureiros, parou e pôs-se a procurar flores.
Durante um instante hesitou entre as violetas e os lírios abrigados sob as árvores de Minerva, e os narcisos e nenúfares que cresciam nas margens do riacho ou flutuavam na superfície. Decidiu-se por fim e, saltando como uma corça, correu para o veio de água.
Parou ao chegar à margem; a rapidez da corrida desatara-lhe os louros cabelos; ajoelhou-se à borda de água, inclinou-se para a superfície e sorriu vendo-se tão bela.
Era, com efeito, uma das mais encantadoras filhas da Acaia, de olhos negros e voluptuosos, nariz jónico e lábios de coral; o corpo, que possuía, simultaneamente, a firmeza marmórea e a flexibilidade do caniço, parecia o duma estátua de Fídias animada por Prometeu; só os pés, aparentemente pequenos em demasia para lhe sustentar o peso do corpo, se diriam desproporcionados e seriam um defeito se pudesse censurar-se numa jovem semelhante imperfeição.
A ninfa Pirene, que lhe emprestava o espelho das suas lágrimas, apesar de mulher, não se negou a reproduzir-lhe a imagem em toda a sua graça e pureza. Após um instante de muda contemplação, dividiu o cabelo em três partes, fez duas tranças dos que caíam ao longo das fontes, uniu-os bem no alto da cabeça e prendeu-os com uma coroa de louro e flores de laranjeira, que ali mesmo teceu, deixando flutuar os que se espargiam pelas costas, como o penacho do capacete de Palas. Inclinou-se mais para a água a mitigar a sede, razão por que correra para aquele lado do prado, mas que cedera o lugar à necessidade, mais urgente ainda, de verificar que continuava a ser a mais bela de Corinto.

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Então, aproximaram-se insensivelmente uma da outra a realidade e a imagem; dir-se-ia duas irmãs, uma ninfa e uma náiade, que um doce beijo ia unir: os lábios tocaram-se num banho húmido, a água como que estremeceu, e uma ligeira brisa, passando no ar como um sopro de volúpia, fez cair sobre o ribeiro uma neve rósea e perfumada que a corrente arrastou para o mar.
Levantando-se, quedou-se imóvel de curiosidade, olhando para as águas do golfo. Uma galera com duas ordens de remos, de casco dourado e velas de púrpura, singrava para a praia impelida pelo vento que soprava de Delos; apesar de ainda afastada um quarto de milha, ouviam-se os marinheiros cantando um coro a Neptuno.
A jovem reconheceu o modo frígio, consagrado aos hinos religiosos; mas não eram das rudes vozes dos marinheiros de Cálidon ou de Cefalénia as notas que chegavam até ela, as quais, embora dispersas e enfraquecidas pela brisa,vibravam suaves e bem moduladas, como se fossem cantadas pelas sacerdotisas de Apolo.
Atraída por aquela melodia, a linda coríntia partiu alguns ramos de laranjeira e de louro destinados à factura de uma segunda coroa, que contava depor no templo de Flora, à qual era consagrado o mês de Maio, e com passos lentos, curiosos e ao mesmo tempo tímidos, dirigiu-se para a praia entrançando os perfumados ramos.
Entretanto aproximara-se a birreme e a rapariga podia agora não só ouvir as vozes, mas distinguir os rostos dos músicos. O canto era uma invocação a Neptuno, cantada por um único corifeu e repetida pelo coro, em compasso tão suave e cadenciado que imitava o movimento regular dos marinheiros curvando-se sobre os remos e os remos caindo no mar. O que cantava só e parecia dono do barco estava, de pé, à proa e acompanhava-se com uma cítara de três cordas, semelhante à que os estatuários põem nas mãos de Euterpe, a musa da harmonia; a seus pés estava deitado um escravo cuja longa toga asiática pertencia igualmente aos dois sexos, o que não permitiu à jovem reconhecer se era homem ou mulher. Ao lado das bancadas, os melodiosos remeiros, de pé, batiam as mãos em cadência, agradecendo a Neptuno o vento favorável que lhes dava aquele descanso.
Este espectáculo que, dois séculos antes, não teria atraído, em demasia, a atenção da criança procurando conchinhas entre as areias do mar, excitou no mais alto grau o espanto da rapariga.
Corinto já não era o que fora, no tempo de Sila: a rival, a irmã de Atenas. Tomada de assalto, no ano 608 de Roma, pelo cônsul Múmio, vira os cidadãos passados a fio de espada, as mulheres e crianças vendidas como escravas, as casas queimadas, as muralhas destruídas, as estátuas enviadas para Roma, e os quadros, por um dos quais Átalo tinha oferecido um milhão de sestércios, servindo de tapete aos soldados romanos que Políbio encontrou jogando aos dados sobre a obra-prima de Aristides.
Reedificada oitenta anos depois por Júlio César, que levantou as muralhas e enviou uma colónia romana, renascera, mas estava longe ainda do seu antigo esplendor.
O Procônsul romano, para lhe dar alguma importância, anunciara, para o dia 10 de Maio e seguintes, jogos nemeus, ístmicos e florais, onde coroaria o mais forte atleta, o condutor de carros mais destro e o cantor mais hábil. Resultara que, havia alguns dias, se dirigia para a capital da Acaia uma turba de estrangeiros, atraídos pela curiosidade ou pelo desejo de disputar os prémios; e a cidade, fraca ainda pelo sangue e riquezas perdidas, tomava, momentaneamente, o brilho e o ruído de outrora. Uns tinham chegado em carros, outros em cavalos, outros, enfim, em embarcações que tinham alugado ou feito construir. Mas nenhum destes últimos entrara no porto num tão rico navio como o que, naquele momento, tocava essa praia cujo amor fora disputado por Apolo e Neptuno.
Apenas a birreme foi alada e posta em seco, os marinheiros colocaram à proa uma escada de madeira de limoeiro, incrustada de prata e bronze. O cantor, pondo a cítara ao ombro, desceu encostando-se ao escravo que vimos deitado a seus pés. O primeiro, um belo rapaz de vinte e sete a vinte e oito anos, de cabelos louros, olhos azuis e barba de oiro, vestia uma túnica de púrpura, uma clâmide azul com estrelas de oiro, e tinha, enrolada ao pescoço, atada por diante, uma faixa da qual as extremidades flutuantes caíam até à cintura.
O segundo parecia mais novo, pouco mais ou menos uns dez anos; era uma criança apenas no começo da adolescência, de andar lento e aparência triste e paciente; a frescura da sua cútis causaria inveja a qualquer mulher; a epiderme rosada e transparente podia rivalizar em finura com as das mais voluptuosas filhas da indolente Atenas, e as suas mãos brancas e carnudas, julgar-se-iam, pela sua forma e delicadeza, mais capazes de voltear um fuso ou puxar uma agulha do que de manejar a espada ou o dardo, atributos do homem e do guerreiro.
Como já dissemos, vestia uma toga branca, que lhe descia até aos joelhos e trazia polainas bordadas a oiro; os cabelos soltos caíam-lhe nos ombros nus. Do pescoço, preso numa cadeia de oiro, pendia um espelhinho circundado de pérolas.
No momento em que ia pôr pé em terra, o seu companheiro deteve-o vivamente; o adolescente estremeceu.
- O que há, senhor? - perguntou em voz doce e tímida.
- Há que ias a entrar na praia com o pé esquerdo, e que, por essa imprudência, nos expunhas a perder todo o fruto dos meus cálculos, graças aos quais chegamos no dia das nonas, o que é de bom augúrio.
- Tens razão, senhor - disse o adolescente. E entrou com o pé direito; o companheiro fez o mesmo.
- Estrangeiro - disse, dirigindo-se ao mais velho dos viajantes, a pequena, que ouvira estas palavras pronunciadas em dialecto jónico - a Grécia, seja qual for o pé com que se desembarque, é sempre propícia para quem a ela vem com intenções amigáveis; é a terra dos amores, da poesia e dos combates; tem coroas para os amantes, para os poetas e para os guerreiros. Quem quer que sejas, estrangeiro, aceita esta, enquanto não chega a que sem dúvida vens procurar.
O rapaz tomou vivamente e pôs na cabeça a coroa que lhe estendia a bela coríntia.
- São-nos propícios os deuses! - exclamou. - Repara, Esporo, a laranjeira das Hespérides, cujos pomos de oiro deram a vitória a Hipómenes, demorando a carreira de Atalante, e o loureiro, a árvore querida de Apolo. Como te chamas, profetisa da felicidade?
- Chamo-me Acteia - respondeu ela, corando.
- Acteia! Ouves, Esporo? Novo presságio. Acteia, isto é, riba. A terra de Corinto esperava-me para me coroar.
- O que há nisso de admiração? Não és tu um predestinado, Lúcio? - respondeu o garoto.
- Se me não engano - perguntou timidamente a rapariga - vens disputar os prémios oferecidos aos vencedores pelo Procônsul romano?
- Ao mesmo tempo que o dom da beleza, recebeste o talento de adivinhar - disse Lúcio.
- Tens, decerto, algum parente na cidade?
- Todos os meus estão em Roma.
- Então, algum amigo?
- O meu único amigo é este que vês, e, como eu, um estrangeiro em Corinto.
- Então, algum conhecimento?
- Nenhum.
- A nossa casa é grande e meu pai é hospitaleiro - continuou a jovem. - Dignar-se-á Lúcio dar-nos a preferência? Rogaremos a Castor e a Pólux que lhe sejam propícios.
- Serás tu, por acaso, a sua irmã Helena?
- interrompeu Lúcio, sorrindo. - Dizem que ela gostava de banhar-se numa fonte que não deve ficar longe daqui. Essa fonte tinha, sem dúvida, o dom de prolongar a vida e conservar a beleza. É um segredo que Vénus revelaria a Paris e que Paris te confiou. Se assim é, conduze-me a essa fonte, bela Acteia, porque, agora que te vi, quero viver eternamente para te ver sempre.
- Ai, não sou uma deusa - replicou Acteia - nem a fonte de Helena tem esse privilégio maravilhoso! Enganaste-te na sua situação; ei-la aí, a alguns passos de nós, precipitando-se no mar do alto dum rochedo.
- Aquele templo que se eleva ao pé, é então o de Neptuno?
- Sim, e aquela álea orlada de pinheiros conduz ao estádio. Noutro tempo, dizem, diante de cada árvore erguia-se uma estátua; mas, Múmio tirou-as e deixaram para sempre a minha pátria pela tua. Queres vir pela álea, Lúcio? - continuou sorrindo. - Conduzir-nos-á a casa de meu pai.
- O que pensas desta oferta, Esporo? - inquiriu o rapaz mudando de dialecto e falando a língua latina.
- Que a tua fortuna não te deu o direito de duvidar da sua constância.
- Pois bem! Fiemo-nos pois nela mais uma vez, porque nunca se apresentou sob forma mais atraente e encantadora.
- Então, mudando de idioma, e voltando ao dialecto jónico, que falava correctamente, disse:
- Conduze-nos, porque estamos prontos a seguir-te; e tu, Esporo, recomenda a Líbico que vele por Febe.
Acteia caminhou adiante, enquanto a criança, para obedecer à ordem do seu senhor, subia para o navio. Chegados ao estádio, a rapariga parou.
- Aqui está o ginásio - disse para Lúcio. - Está pronto e areado porque os jogos começam depois de amanhã, pela luta. Ali, à direita, do outro lado do ribeiro, na extremidade desta rua de pinheiros, está o hipódromo; como sabes, o segundo dia será destinado às corridas de carros. E, enfim, a metade do caminho da colina, na direcção da cidadela, o teatro onde se disputará o prémio do canto. Qual das três coroas contas disputar, Lúcio?
- Todas as três, Acteia.
- És ambicioso.
- O número três agrada aos deuses - disse Esporo,
que viera juntar-se-lhes.
E os viajantes, guiados pela bela rapariga, continuaram o caminho.
Ao chegar perto da cidade, Lúcio parou.
- Como se chama esta fonte - inquiriu - cujos baixos-relevos estão partidos? Parece-me ser dos mais belos tempos da Grécia.
- Esta fonte é a de Pirene - retorquiu Acteia. - A filha foi morta por Diana, neste mesmo sítio, e a deusa, vendo a dor da mãe, transformou-a em fonte sobre o próprio corpo da filha que pranteava. Quanto aos baixos-relevos são de Lisipo, discípulo de Fídias.
- Repara, Esporo - disse Lúcio, com entusiasmo - repara. Que modelo! Que expressão! É o combate de Ulisses contra os enamorados de Penélope, pois não é? Vê como morre bem este homem ferido, como sofre, como se contorce! O dardo entrou por baixo do coração; algumas linhas mais acima e não haveria agonia. Oh, o escultor era hábil e sabia do seu ofício! Farei transportar este mármore para Roma ou Nápoles; quero tê-lo no meu átrio. Nunca vi um homem vivo morrer com maior dor!
- É um dos restos do nosso antigo esplendor - disse Acteia. - A cidade tem orgulho neles e, como a mãe que perdeu os mais belos filhos, concentra o seu amor nos que lhe ficaram. Duvido, Lúcio, de que sejas bastante rico para o comprar.
- Comprar! - exclamou Lúcio, com indefinível expressão de desdém. - Comprar, quando posso levá-lo? Se quiser este mármore, tê-lo-ei, ainda que Corinto inteira se oponha.
Esporo apertou a mão do seu senhor.
- A não ser - prosseguiu - que a bela Acteia deseje que este mármore se conserve na sua pátria.
- Compreendo tão pouco o teu poder como o meu, Lúcio, mas agradeço-te como se assim acontecesse. Deixa-nos as nossas ruínas, Romano, não acabes a obra de teus pais. Eles vinham como vencedores; tu vens como amigo. O que, da sua parte, foi bárbaro, da tua seria sacrílego.
- Descansa - tornou Lúcio - começo a descobrir em Corinto coisas mais preciosas do que o baixo-relevo de Lisipo, que, afinal, não passa dum mármore. Quando Paris veio à Lacedemónia, não levou a estátua de Minerva ou a de Diana, mas Helena, a mais bela das espartanas.
Acteia baixou os olhos sob o olhar ardente de Lúcio e, continuando a andar, seguida dos dois romanos, entrou na cidade.
Corinto retomara a actividade dos antigos dias. O anúncio dos jogos que se deviam celebrar, tinha atraído concorrentes, não só de todas as partes da Grécia, mas, ainda, da Sicília, do Egipto e da Ásia.
Cada casa tinha um hóspede e os recém-chegados com grande custo encontrariam alojamento, se Mercúrio, o deus dos viajantes, não os houvesse posto em presença da hospitaleira rapariga.
Passaram pelo mercado onde, expostos de mistura, estavam o papiro e o linho do Egipto, o marfim da Líbia, os couros de Cirene, o incenso e a mirra da Síria, os tapetes de Cartago, as tâmaras da Fenícia, os cavalos de Selinunte, as espadas da Frígia, as espadas dos celtiberos e o coral e o carbúnculo dos gauleses. Depois, atravessaram a praça onde, em tempos se erguia uma estátua a Minerva, obra-prima de Fídias, a qual, por veneração ao mestre, não tinham substituído; tomaram, por uma das ruas que nela desembocavam e, alguns passos mais longe, pararam diante dum velho que estava de pé no limiar da sua casa.
- Pai - disse Acteia - eis um hóspede que Júpiter nos envia; encontrei-o quando desembarcava e ofereci-lhe hospitalidade.
- Sê benvindo, jovem de barbas de oiro - replicou
Amiclas.
E, abrindo com uma das mãos a porta da habitação,
estendeu a outra a Lúcio.
II.
No DIA seguinte, Lúcio, o jovem romano, Acteia e Amiclas, reunidos no triclínio, em volta duma mesa pronta a ser servida, preparavam-se para saber, pelos dados, a quem caberia a realeza do festim. O velho e a rapariga ofereceram outorgá-la ao estrangeiro, que, ou por superstição, ou por deferência, recusara a coroa. Trouxeram então os tali, e o ancião, empunhando o copo, tirou o lanço de Hércules. Por seu turno, Acteia deitou os dados e saiu do carro. O romano, pegando no copo com visível hesitação, agitou-o durante muito tempo, e, tremendo, voltou-o sobre a mesa. Deu um grito de alegria ao ver o resultado obtido: o lanço de Vénus, que é superior a todos.
- Vês, Esporo? - disse em latim. - Decididamente, os deuses são por nós e Júpiter não se esquece de que é o chefe da minha raça. O lanço de Hércules, o do carro e o de Vénus! Pode haver mais feliz combinação para quem vem disputar o prémio da luta, da corrida e do canto e, em rigor, não me promete ele um triunfo completo?
- Nasceste num dia feliz - respondeu a criança - e o Sol tocou-te antes que tocasses a Terra. Agora, como sempre, triunfarás de todos os concorrentes.
- Ai de mim! Houve uma época - declarou, suspirando o ancião, na mesma língua - em que a Grécia ofereceria adversários dignos de te disputar a vitória, mas já vão passados os tempos que Mílon, o crotoniata, foi coroado seis vezes nos jogos píticos e em que o ateniense Alcibíades enviava sete carros aos jogos olímpicos, ganhando quatro prémios. A Grécia perdeu, com a sua liberdade, as artes e a força, e Roma, a contar de Cícero, tem-nos enviado os seus filhos para nos arrebatar as palmas. Que Júpiter, de quem te gabas de descender, te proteja, mancebo! Depois da honra de pertencer a vitória aos meus concidadãos, o maior prazer que posso experimentar é vê-la favorecer o meu hóspede. Minha filha, traze coroas de flores, enquanto não vêm as de louros.
Acteia saiu; quase imediatamente, voltou com uma coroa de mirto e açafrão, para Lúcio, outra, de aipo e hera, para o pai e, ainda outra, de lírios e rosas, para si. Além destas, trouxe um escravo outras maiores, que os convivas puseram ao pescoço. Acteia sentou-se no leito da direita, Lúcio no consular; o ancião, de pé, entre a filha e o hóspede, fez uma libação com vinho e uma súplica aos deuses e, por seu turno, deitou-se, dizendo ao jovem romano:
- Como vês, meu filho, estamos nas condições prescritas, pois que o número dos convivas, a acreditar um dos nossos poetas, não deve ser inferior ao das Graças nem superior ao das Musas. Escravos, sirvam a primeira mesa.
Trouxeram um prato bem guarnecido; os servidores, atentos, obedeciam ao menor gesto. Esporo deitou-se aos pés do seu senhor, oferecendo os longos cabelos para ele limpar as mãos. O scissor (trinchador) começou o desempenho das suas funções.
No começo do segundo serviço, quando o apetite dos
convivas ia diminuindo, o ancião fixou o hóspede e, depois de ter examinado, com a benevolente expressão da velhice, o belo rosto de Lúcio, a quem os cabelos loiros e a barba doirada davam uma expressão estranha, disse:
- Vens de Roma?
- Sim, pai - respondeu.
- Directamente?
- Embarquei em Óstia.
- Os deuses velam sempre pelo divino imperador e por sua mãe?
- Sempre.
- E César prepara alguma expedição guerreira?
- Neste momento não está revoltado povo algum. César, senhor do mundo, deu-lhe a paz durante a qual florescem as Artes. Fechou o templo de Jano e, depois, pegou na lira para dar graças aos deuses.
- E não teme que, enquanto canta, outros reinem?
- Ah! - exclamou Lúcio, contraindo o cenho. - Também na Grécia dizem que César é uma criança?
- Não; mas teme-se que leve muito tempo a tornar-se homem.
- Julgava que ele tivesse tomado a toga viril nos funerais de Britânico!
- Havia muito tempo que Britânico fora condenado por Agripina.
- Sim, mas foi César quem o matou, assevero-te; não é verdade, Esporo?
A criança levantou a cabeça e sorriu.
- Assassinou seu irmão! - exclamou Acteia.
- Deu ao filho a morte que a mãe lhe quisera dar a ele, César. Não o sabias tu, Acteia? Então, pergunta a teu pai, que julgo versado nestes assuntos, se Messalina não enviou um soldado para matar Nero no berço?
Se quando o soldado ia ferir, não saíram do leito da criança duas serpentes, que puseram em fuga o centurião? Não. não, sossega, meu pai, Nero não é um imbecil como Cláudio, um louco como Calígula, ou um histrião como Augusto.
- Meu filho - retorquiu o velho, amedrontado - não reparas em que insultas os deuses?
- Ridículos deuses, por Hércules! - exclamou Lúcio. - Ridículo deus, esse Octávio, que tinha medo do calor, do frio, do trovão; que, chegado de Apolónia, se apresenta às velhas legiões de César coxeando como Vulcano; ridículo deus, cuja mão era tão fraca que, por vezes, não podia suportar o peso da pena; que viveu sem se atrever a ser uma única vez imperador e que morreu perguntando se desempenhara bem o seu papel! Ridículo deus, aquele Tibério, com o seu olimpo de Capri, donde não ousava sair, e onde se conservava como um pirata num barco ancorado, tendo, à direita, Trasilo, que lhe dirigia a alma, e, à esquerda, Caricio, que lhe governava o corpo; que, possuindo o mundo, sobre o qual podia estender as suas asas como uma águia, se retirou para a concavidade dum rochedo, como um mocho! Ridículo deus, esse Calígula, a quem uma beberagem endoidecera e que se julgou tão grande como Xerxes, porque fizera lançar uma ponte de Putéolos a Baias, e tão poderoso como Júpiter, porque imitava o trovão, fazendo rolar um carro de bronze sobre uma ponte metálica; que se dizia noivo da Lua, e a quem Quéreas e Sabino, com vinte golpes de gládio, enviaram para o céu a fim de efectuar o seu casamento ! Belo deus, esse Cláudio, a quem foram encontrar atrás duma tapeçaria quando o procuravam no trono; escravo e joguete das quatro esposas, que assinava o contrato de casamento de Messalina, sua mulher, com o liberto Sílio! Ridículo deus, cujos joelhos se dobravam a cada passo, cuja boca se enchia de espuma a cada palavra, cuja cabeça tremia, e que gaguejava! Ridículo deus, que viveu desprezado, sem saber fazer-se temer, e que morreu por ter comido cogumelos colhidos por Haloto, limpos por Agripina e temperados por Locusta! Ah, que belos deuses e que nobre figura devem fazer no Olimpo, junto de Hércules, o atleta, de Castor, o condutor de carros, e de Apolo, o mestre da lira!
Sucederam alguns instantes de silêncio a esta brusca e sacrílega saída.
Amiclas e Acteia olhavam para o hóspede com espanto, e a conversação interrompida não fora ainda reatada, quando entrou um escravo anunciando um mensageiro de Cneu Lêntulo, o Procônsul. O velho inquiriu se o mensageiro vinha para si ou para o hóspede. O escravo declarou ignorá-lo; o lictor foi introduzido.
Vinha procurar o estrangeiro. O Procônsul, sabendo da chegada de um navio ao porto, e de que o dono do navio tinha a intenção de disputar os prémios, ordenava que fosse inscrever-se ao palácio prefectorial e declarar a qual das três coroas aspirava. O ancião e Acteia levantaram-se para ouvir as ordens do Procônsul; Lúcio escutou-as deitado.
Quando o lictor acabou, Lúcio tirou do peito algumas folhas de marfim cobertas de cera, escreveu breves linhas em uma delas com um estilete, aplicou, por baixo, o engaste do anel e entregou-a ao lictor, ordenando-lhe que a fosse levar a Lêntulo. O lictor, espantado, hesitou; Lúcio fez um gesto imperativo; o soldado inclinou-se e saiu. Então, Lúcio fez estalar os dedos para chamar o escravo, estendeu a taça, que o escanção encheu de vinho, bebeu uma parte à prosperidade do seu hóspede e da filha e deu o resto a Esporo.
- Mancebo - disse o velho, quebrando o silêncio. - Dizes-te romano e, contudo, custa-me a acreditar-te. Se tivesses vivido na cidade imperial, terias aprendido a obedecer melhor às ordens dos representantes de César. O Procônsul é aqui senhor tão absoluto e respeitado como Cláudio Nero em Roma.
- Esqueceste que os deuses, no princípio do repasto, me fizeram, momentaneamente, o igual do Imperador, elegendo-me rei do festim? E quando viste tu um rei descer do trono para obedecer às ordens dum Procônsul?
- Recusaste, pois, ir? - perguntou Acteia, apavorada.
- Não, mas escrevi a Lêntulo que, se tinha curiosidade de saber o meu nome e para que me dirigi a Corinto, viesse perguntar-mo pessoalmente.
- E crês que virá? - indagou o velho.
- Sem dúvida - declarou Lúcio.
- Aqui, a minha casa?
- Escuta - disse o romano.
- O quê?
- Ei-lo que bate à porta; reconheço o ruído das varas. Manda abrir, pai, e deixa-nos sós.
O velho e a filha ergueram-se, estupefactos, e foram, eles próprios, à porta. Lúcio conservou-se deitado. Este não se enganara; era Lêntulo em pessoa. A fronte húmida de suor patenteava a prontidão com que obedecera ao convite do estrangeiro. Indagou, em voz rápida e alterada, onde estava o nobre Lúcio e, apenas lhe indicaram o aposento, baixou a toga e entrou no triclínio, que se fechou sobre ele, postando-se à porta os lictores.
Ninguém soube o que se passou naquela entrevista. Decorrido um quarto de hora, o cônsul saiu e Lúcio veio ter com Amiclas e Acteia ao peristilo, onde passeavam. Tinha o rosto tranquilo e sorridente.
- Pai - disse ele - a tarde está bela. Não queres acompanhar o teu hóspede até à cidadela, de onde, dizem, se goza uma vista magnífica? Ao mesmo tempo, estou com curiosidade de saber se executaram as ordens de César, que, ao saber da celebração dos jogos em Corinto, enviou para aqui a antiga estátua de Vénus, para a tornar propícia aos romanos vindos a disputar as coroas.
- Ai, meu filho - respondeu Amiclas - estou já muito velho para servir-te de guia na montanha! Mas tens aqui Acteia, que te acompanhará.
- Obrigado, meu pai. Não pedia tal favor, com medo de que Vénus tivesse zelos e se vingasse em mim da beleza da tua filha; mas tu oferece-la; terei a coragem de aceitar.
Acteia sorriu, corando; a um sinal do pai, correu a buscar um véu e voltou, tão castamente velada como uma matrona romana.
- Fez minha irmã algum voto - interrogou Lúcio - ou, antes, sem que eu saiba, é ela alguma das sacerdotisas de Minerva, de Diana ou de Vesta?
- Não, meu filho - esclareceu o ancião, tomando o romano por um braço e afastando-se um pouco - mas, tu bem o sabes, Corinto é a cidade das cortesãs. Para comemorar a sua intercessão, que salvou a cidade da invasão de Xerxes, mandámos pintá-las num quadro, como fizeram os atenienses aos seus capitães depois da batalha de Maratona. Desde então, temendo que desapareçam, mandamos comprá-las em Bizâncio, nas ilhas do Arquipélago e até na Sicília. São reconhecíveis por trazerem o rosto e seio nus. Acteia não é uma sacerdotisa de Minerva, de Diana ou de Vesta, mas receia ser tomada por uma adoradora de Vénus.
Depois, elevando a voz:
- Vão, meus filhos - prosseguiu - e tu, minha filha, do alto da colina, lembra ao novo hóspede, mostrando os lugares que as guardam, as velhas recordações da Grécia. O único bem deixado ao escravo, e que os seus senhores não podem arrancar-lhe, é a memória do tempo em que viveu livre.
Lúcio e Acteia saíram, chegando em poucos instantes à porta do norte, e tomaram pelo caminho que conduzia à cidadela. Embora se afigurasse à distância de quinhentos passos apenas da cidade, a estrada dava tantas voltas que gastaram uma hora em percorrê-la.
Duas vezes parou Acteia: a primeira, para mostrar a Lúcio o túmulo dos filhos de Medeia; a segunda, para indicar o local onde Belerofonte recebeu o cavalo Pégaso das mãos de Minerva.
Achavam-se, finalmente, na cidadela. À entrada dum templo contíguo, reconheceu Lúcio a estátua de Vénus, coberta de brilhantes armas, tendo à direita a do Amor e, à esquerda, a do Sol, primeiro deus adorado em Corinto. Lúcio ajoelhou-se e orou. Cumprido este acto religioso, os dois jovens seguiram por um atalho que através do bosque sagrado, levava ao cimo da colina. A tarde estava soberba, o céu puro e o mar tranquilo. Na frente seguia a coríntia, semelhante a Vénus conduzindo Eneias na estrada de Cartago, e Lúcio, que ia atrás, aspirava o ar embalsamado pelos perfumes dos seus cabelos.
De tempos a tempos, ela voltava-se, e como, ao sair da cidade, deixara cair o véu sobre os ombros, o romano devorava com os olhos ardentes aquela cabeça encantadora, à qual o andar dava uma animação nova, e aquele seio que via arfar por baixo da ligeira túnica que o cobria.
À medida que subiam, o panorama alargava-se.
Enfim, Acteia parou sob uma amoreira, no ponto mais elevado da colina, e, apoiando-se nela, como para tomar a respiração, disse:
- Chegámos. O que dizes a esta vista? Não vale a de Nápoles?
O romano aproximou-se sem responder, encostou, também, um dos braços num ramo da árvore, e, em lugar de admirar a paisagem, fixou em Acteia os olhos tão brilhantes de amor, que ela, sentindo subir o rubor às faces, apressou-se em retomar a palavra para disfarçar a perturbação.
- Vê do lado do oriente - disse. - Apesar do crepúsculo que começa a cair, ali tens a cidadela de Atenas, semelhante a um ponto branco, e o promontório de Súnio, que se recorta no azul das ondas como o ferro duma lança. Mais perto de nós, em pleno mar Sarónico, aquela ilha que vês em forma de ferradura: é Salamina, onde combateu Esquilo e foi batido Xerxes; mais abaixo, para o meio-dia, na direcção de Corinto, a pouco mais ou menos duzentos estádios, podes aperceber Nemeia e a floresta na qual Hércules matou o leão, cuja pele sempre usou como troféu da vitória. Além, junto daquela cidade de montanhas que corre no horizonte, é Epidauro, a querida de Esculápio, e, por trás dela, Argos, a pátria do rei dos reis. No ocidente, mergulhadas nas ondas douradas do sol poente, no extremo das ricas planícies de Sícion além daquela linha azul formada pelo mar, como vapores flutuantes sobre o céu, não distingues Samos e ítaca? E, agora, volta as costas a Corinto, e olha para o norte. Ali tens, à direita, o Citéron, onde Édipo foi exposto, à esquerda, Leuctros, onde Epaminondas bateu os lacedemónios e, na nossa frente, Plateias, onde Aristides e Pausânias venceram os persas. Depois, na extremidade daquela cadeia de montanhas que corre de Ática para a Etólia, o Hélicon, coberto de pinheiros, mirtos e loureiros, e o Parnaso, com os seus dois cumes brancos pela neve, entre os quais corre a fonte Castália, que recebeu das Musas o dom de conceder espírito poético a quem lhe bebe as águas.
- Sim - disse Lúcio - o teu país é a terra das grandes recordações; é para lastimar que nem todos os seus filhos as conservem com veneração igual à tua. Mas consola-te, porque se a Grécia já não é a rainha pela força, é-o, sempre, pela beleza, e esta realeza é mais suave e mais poderosa.
Acteia levou a mão ao véu, mas Lúcio deteve-a. A rapariga estremeceu e, contudo, não teve a coragem de retirá-la; alguma coisa, como uma nuvem, passou-lhe pelos olhos, e, sentindo os joelhos fraquejarem, agarrou-se ao tronco da amoreira. Estava-se nesse encantador momento em que já não é dia e ainda não é noite. O crepúsculo, estendendo-se por toda a parte oriental do horizonte, cobria o Arquipélago e a Ática. Do lado oposto, o mar Jónio agitava as vagas de fogo, parecendo apenas separadas das nuvens de oiro do céu pelo Sol que, semelhante a um grande escudo ao sair rubro da forja, já mergulhava na água o seu bordo inferior.
Ouvia-se ainda o murmúrio da cidade, como o zumbido duma colmeia. Todos os ruídos da montanha e da planície cessavam uns após outros. Somente, de tempos a tempos, retinia, do lado do Citéron, o canto agudo de algum castor, ou subia do mar Sarónico o grito do marinheiro puxando a sua barca para a praia. Os insectos nocturnos iniciavam o canto na erva, e os pirilampos, espalhados aos milhares no ar morno da noite, brilhavam como faúlhas de fogueira invisível. Sentia-se que a natureza, fatigada dos trabalhos diurnos, adormecia pouco a pouco e que em breves instantes, tudo se calaria para não lhe perturbar o repousar voluptuoso.
Também os dois jovens, cedendo àquela impressão mística, conservavam-se silenciosos. De súbito, ouviu-se do lado do porto de Lequeu um rugido tão estranho que fez tremer Acteia.
O romano voltou vivamente a cabeça e olhou para a birreme que se avistava na praia, semelhando uma concha de oiro. Por instintivo medo, Acteia fez um movimento para voltar para a cidade, mas Lúcio deteve-a. Cedeu sem nada dizer, e, como vencida por um poder superior, encostou-se, de novo, à árvore ou, antes, ao braço que Lúcio, sem ela fazer reparo, lhe passava pela cintura. Deixando descair a cabeça para trás, voltou para o céu os olhos semicerrados e a boca entreaberta.
Lúcio contemplava-a, amorosamente, naquela posição encantadora.
Acteia, apesar de se sentir envolvida pelos raios ardentes dos olhos do romano, não tinha forças para reagir.
Um segundo rugido, mais próximo e mais terrível, ecoou nos ares e veio despertar Acteia do seu êxtase.
- Fujamos, Lúcio! - exclamou ela com ternura. - Fujamos! Anda alguma fera pela montanha. Fujamos! Só temos de atravessar o bosque sagrado para chegar ao templo de Vénus ou à cidadela. Vem Lúcio, vem!
Lúcio sorriu.
- Teme Acteia alguma coisa - perguntou - quando está a meu lado? Quanto a mim, nada receio; sinto que, por Acteia, afrontaria todos os monstros vencidos por Teseu, Hércules e Cadmo.
- Não foi um rugido o que ouvimos? - indagou Acteia, toda trémula.
- Sim - respondeu, sorrindo, Lúcio - o rugido de um tigre.
- Júpiter! - gritou Acteia, lançando-se nos braços do romano - Júpiter, protege-nos!
Um terceiro rugido, mais próximo e mais ameaçador do que os outros, atravessou o espaço. Lúcio respondeu-lhe com outro quase igual.
No mesmo instante, saltou um tigre do bosque sagrado; parou, levantando-se um pouco sobre as patas traseiras, como para se orientar, Lúcio fez ouvir um assobio particular; o tigre, saltando por cima das murtas, azinheiros e loureiros, correu para ele, dando rugidinhos de alegria.
O romano sentiu a rapariga escorregar-lhe dos braços: estava desmaiada e semimorta de medo.
Quando Acteia recuperou os sentidos, achou-se nos braços de Lúcio, e o tigre fêmea, deitado a seus pés, estendia meigamente, sobre os joelhos do dono, a terrível cabeça, cujos olhos brilhavam como carbúnculos.
Ao vê-la, Acteia chegou-se mais para o companheiro; semi-aterrorizada e cheia de vergonha, estendeu a mão para o cinto que jazia por terra, a alguns passos.
Lúcio viu aquela última tentativa do pudor, e, tirando a coleira de oiro maciço do pescoço do animal, da qual ainda pendia um pedaço de corrente que quebrara, prendeu-a em torno da delgada e flexível cintura da sua amiga. Depois, apanhando o cinto, atou-o, por uma das extremidades, ao pescoço do bicho, pondo a outra entre os trémulos dedos de Acteia.
Desceram, silenciosamente, para a cidade. Acteia apoiava uma das mãos no ombro de Lúcio, e com a outra retinha, preso pelo cinto, o dócil tigre, que tanto medo lhe causara.
À entrada da cidade encontraram o escravo núbio encarregado de tomar conta de Febe, o tigre fêmea; seguira-a pelos campos e perdera-lhe a pista na ocasião em que o animal, encontrando o rasto do dono, deitara a correr para os lados da cidadela. Ao ver Lúcio, ajoelhou, baixando a cabeça e esperando o castigo que julgava merecer; mas Lúcio sentia-se feliz em demasia, naquele momento, para ser cruel, tanto mais que Acteia o olhava juntando as mãos.
- Levanta-te, Líbico - ordenou o romano. - Perdoo-te por esta vez, mas para o futuro, vela melhor por Febe. Causaste, pelo teu desleixo, a esta bela ninfa, um tal terror, que julgou morrer. Vamos, minha Ariadne, entrega o teu tigre ao seu guarda. Atrelarei uma parelha a um carro de oiro e marfim e far-te-ei passar pelo meio dum povo que te amará como a uma deusa... Bem, Febe, bem... Adeus...
Mas o tigre entendeu não dever ir-se embora assim. Ergueu-se defronte de Lúcio e, pondo-lhe as patas dianteiras nos ombros, acariciou-o com a língua, dando pequenos rugidos de amizade.
- Sim, sim - proferiu Lúcio, a meia voz. - És um nobre animal; quando estivermos em Roma dar-te-ei para devorares uma bela escrava cristã com os filhos. Vai-te, Febe, vai-te.
O bicho obedeceu, como se compreendera a sanguinária promessa, e seguiu Líbico, não sem voltar-se mais de vinte vezes para olhar o dono; só quando este desapareceu com Acteia, pálida e trémula, pela porta da cidade, se decidiu a tornar para a dourada jaula, a bordo do navio.
No vestíbulo encontrou Lúcio o escravo camareiro, que o esperava para conduzi-lo ao seu aposento.
O romano apertou a mão de Acteia e seguiu o escravo, que o precedeu segurando uma lâmpada.
A bela coríntia, como de costume, beijou a fronte do ancião que, vendo-a tão pálida e agitada, perguntou se algum receio a atormentava.
Contou ela, então, o terror que sentira ao ver Febe, e como aquele terrível animal obedecia ao menor gesto de Lúcio.
O velho ficou um bocado pensativo; depois disse com inquietação:
- Quem é pois esse homem que brinca com tigres, que manda nos Procônsules e que blasfema dos deuses?
Acteia aproximou os lábios, frios e descorados, da fronte do pai, mas mal ousou pousá-los nos cabelos brancos do velho.
Retirou-se para o seu quarto e ali, semilouca, não sabendo precisar se as cenas em que fora espectadora e actriz correspondiam a um sonho ou à realidade, tocou em si própria com as mãos, para adquirir a certeza de que estava bem acordada. Neste momento, sentiu entre os dedos o círculo de oiro que substituíra o cinto de castidade e, aproximando-se da lâmpada, leu na coleira as seguintes palavras, resposta categórica às suas dúvidas:
Pertenço a Lúcio.
III.
A NOITE foi empregada em sacrifícios.
Os templos foram ornados com festões como, no passado, para as grandes festas da pátria. Quando as cerimónias sagradas finalizaram, cerca de uma hora da manhã, a turba precipitou-se, logo, no ginásio, tal era a pressa de tornar a ver os jogos que recordavam os belos e velhos dias da Grécia.
Amiclas era um dos oito juízes eleitos; nesta qualidade, tinha lugar reservado, em face do Procônsul romano. Só chegou quando iam principiar os jogos.
Encontrou à porta Esporo, que vinha juntar-se ao seu senhor, e a quem os guardas recusavam a entrada porque à vista da sua tez branca, das suas mãos delicadas e do seu indolente andar, o tomavam por mulher.
Ora uma antiga lei, reposta em vigor, condenava a ser precipitada do alto dum rochedo toda a mulher que assistisse aos exercícios da corrida e da luta, onde os campeões se apresentavam nus. O velho afiançou Esporo e a criança pôde entrar.
O ginásio parecia uma colmeia. Não havia um único lugar devoluto. Os vomitórios pareciam fechados por uma muralha de cabeças. O cimo do edifício desaparecia sob uma fileira de espectadores, de pé, agarrando-se uns aos outros, tendo, como pontos de apoio, de dez em dez pés, os postes dourados que sustentavam o velário. E, contudo, lá fora, às portas daquele imenso recinto, zumbiam, como abelhas, as turbas! E, por aquelas portas tinha entrada, não só a população de Corinto, como também os contingentes do mundo inteiro que acorreram às festas! As mulheres, ao longe, às portas ou nas muralhas da cidade, esperavam ouvir proclamar o nome do vencedor. Logo que ficou completo o número de juízes, o Procônsul, levantando-se, anunciou, em nome de César Nero, imperador de Roma e senhor do mundo, o começo dos jogos.
Gritos e aplausos acolheram as suas palavras e todos os olhos se fixaram no pórtico por onde entravam os lutadores.
Apareceram sete mancebos e avançaram até defronte da tribuna do Procônsul. Só dois deles eram de Corinto e, entre os cinco restantes, havia um tebano, um siracusano, um sibarita e dois romanos.
Os dois coríntios eram gémeos. Apresentaram-se de mãos dadas, vestidos igualmente, e tão parecidos um com o outro, na estatura e no rosto que todo o circo bateu palmas em honra daqueles dois Meneemos.
O tebano era um pastor muito moço. Um dia, guardando o seu rebanho perto do monte de Citéron, viu um urso encaminhar-se para o gado. Pôs-se-lhe na frente e, sem armas, contra aquele terrível antagonista, lutou corpo-a-corpo, conseguindo estrangulá-lo.
Como recordação desta vitória, cobria-se com a pele do animal, cuja cabeça, servindo de capacete, emoldurava com os seus brancos dentes aquele rosto queimado do Sol.
O siracusano dera também uma prova não menos extraordinária da sua força. Um dia, num sacrifício a Júpiter, o touro, levemente ferido pelo sacrificador, atirou-se ao meio da multidão, todo coroado de flores e ornado de fitas, e começava a esmagar as pessoas que encontrava ao seu alcance, quando o siracusano, agarrando-o pelas pontas, o fez cair de lado e o sujeitou, qual atleta vencido, até que um soldado lhe enterrou um gládio no pescoço.
O jovem sibarita que, por muito tempo, desconhecera a sua força, descobrira-a duma maneira também fortuita. Deitados, ele e alguns amigos, em leitos de púrpura, em torno duma mesa sumptuosa, ouvira de repente gritos: um carro, arrebatado por dois cavalos fogosos, ia quebrar-se no primeiro ângulo da rua; aquele carro conduzia a sua amante. Saltou pela janela e susteve-o; os cavalos pararam de súbito e encabritaram-se. Um deles caiu e o rapaz recebeu nos braços a amante desmaiada, mas sã e salva.
Dos dois romanos, um era atleta de profissão, conhecido pelos seus grandes triunfos, e o outro era Lúcio.
Os juízes meteram na urna sete bilhetes. Dois marcados com a letra A, dois com a B, dois com a C e o último com a D.
Havia três pares de combatentes e o último lutaria com os vencedores.
O Procônsul misturou os bilhetes; depois avançaram os sete campeões, tomando cada um o seu, e depondo-o, em seguida, nas mãos do presidente dos jogos. Este abriu-os e emparelhou-os.
O acaso quis que os dois coríntios tivessem os AA; o tebano e o siracusano os BB; o sibarita e o atleta romano os CC; Lúcio o D.
Os atletas, ignorando ainda com quem iam combater, despiram-se com excepção de Lúcio, que, sendo o último a entrar, continuou envolvido no manto.
O Procônsul chamou os dois AA; os dois irmãos entraram pelo pórtico e, ao verem-se em frente um do outro, deram um grito de surpresa, ao qual a assembleia correspondeu com um murmúrio de espanto. Ficaram por um momento imóveis e hesitantes, mas esse momento foi rápido como o relâmpago: caíram nos braços um do outro. Um aplauso unânime ecoou em todo o edifício. Ouvindo aquela homenagem prestada ao amor fraternal, os jovens recuaram sorrindo, para deixar o campo livre aos seus rivais, e, semelhando Castor e Pólux, de mãos dadas, de actores que tinham julgado ser, passaram a espectadores.
Competia assim a vez ao tebano e ao siracusano. O vencedor do urso e o domador do touro mediram-se com os olhos e com as mãos. Por um instante, aqueles dois corpos reunidos, enlaçados, apresentaram o aspecto dum tronco nodoso e informe, caprichosamente modelado pela natureza. De súbito, tombou como desraizado por um raio. Durante alguns segundos, revolvendo-se numa nuvem de pó, os dois atletas conservaram as mesmas vantagens, mas o tebano acabou por premir com o joelho o peito do siracusano, e, com tal violência lhe apertou a garganta com o círculo das suas mãos de ferro, que este viu-se obrigado a erguer o braço em sinal de que se confessava vencido.
O desenlace do combate foi saudado com inúmeros aplausos, com tal frenesi, que provava o entusiasmo com que os gregos assistiam ao espectáculo. Por três vezes veio o vencedor colocar-se diante da tribuna do Procônsul, chamado pelos aplausos, enquanto o seu antagonista, humilhado, saía pelo pórtico.
Entrou em cena o último par de combatentes:
o sibarita e o romano. Despojados das vestes e enquanto os escravos os untavam com óleo, os espectadores observaram neles o contraste de duas naturezas o mais opostas possível e oferecendo, facto curioso, os dois mais belos tipos da antiguidade: o de Hércules e o de Antinoo; o romano com os cabelos curtos e membros trigueiros e musculosos, o sibarita com os cabelos em longos anéis ondeantes e o corpo branco e arredondado nas formas.
Os gregos, esses grandes adoradores da beleza física, esses religiosos sectários da forma, esses mestres de toda a perfeição, deixaram escapar um murmúrio admirativo, o qual fez levantar simultaneamente a cabeça dos dois adversários. Os seus olhares, repletos de orgulho, cruzaram-se como duas lâminas e, não esperando pelo fim da operação preparatória, repeliram os escravos e avançaram um para o outro. À distância de três ou quatro passos pararam. Examinaram-se com maior atenção e decerto reconheceram serem dignos rivais, porque os olhos de um tomaram a expressão de desconfiança e os do outro a da astúcia. Enfim, com um movimento espontâneo e igual, agarraram-se pelos braços, apoiaram a cabeça contra cabeça e, semelhantes a dois touros que lutam, fizeram o primeiro ensaio da sua força, tentando obrigar o contrário a recuar. Mas continuaram de pé, imóveis como estátuas, cuja vida fosse indicada pelo avolumar progressivo dos músculos, que pareciam prestes a rebentar. Após um minuto de imobilidade, deram um salto para trás, sacudindo as cabeças inundadas de suor e respirando ruidosamente, quais mergulhadores ao surgirem ao cimo de água.
Este intervalo foi curto. Os dois inimigos vieram de novo às mãos e, desta vez, arcaram corpo-a-corpo. Quer por ignorância deste género de combate, quer por confiança na sua força, o sibarita deixou-se agarrar por debaixo dos braços. O atleta levantou-o logo do chão, mas, curvado sob aquele peso, deu, cambaleando, três passos à rectaguarda e tendo o sibarita, durante esse movimento, conseguido tocar no solo com um pé, tal impulso deu, que o atleta, já vacilante, caiu de costas para baixo dele. Porém, apenas tocou o solo, com uma força e agilidade pasmosas, pôs-se de pé tão rapidamente que o sibarita foi o último a erguer-se. Não havia vencedor nem vencido; os dois adversários recomeçaram a luta com encarniçamento novo, no meio dum silêncio profundo. Dir-se-ia que os trinta mil espectadores eram de pedra, como os degraus em que se assentavam. Só de tempos a tempos, quando a fortuna favorecia um dos lutadores, passava nos ares um murmúrio surdo e rápido, e um ligeiro movimento fazia ondular aquelas turbas como espigas agitadas pelo vento. Rolaram novamente os lutadores por terra. Desta vez ficou o atleta por cima, o que de pouco lhe teria servido se não juntasse à própria força todos os recursos de destreza da sua arte e, graças a eles, manteve o sibarita na posição de que tão prontamente se tirara. Como uma serpente que abafa e esmaga a presa, antes de devorá-la, entrelaçou com tal habilidade os membros do adversário, com as pernas e braços, que conseguiu suspender-lhe os movimentos; então, fronte contra fronte, obrigou-o a tocar o solo com a nuca, o que equivalia a uma derrota.
Retiniram grandes gritos, acompanhados de aplausos, dos quais uma parte se destinava ao sibarita, ainda que vencido. A sua derrota estivera tão perto da vitória, que não devia envergonhá-lo; por isso saiu pelo pórtico sem embaraço, sem corar, e tendo, no fim de contas, perdido uma coroa.
Dois vencedores deviam lutar contra Lúcio. Os olhos dos espectadores fixaram-se no romano que, tranquilo e impassível durante os precedentes combates, os seguira com o olhar, encostado a uma coluna e envolvido no manto. Só então notaram a sua fronte suave e efeminada, os seus longos cabelos loiros e a fina barba doirada, que apenas lhe cobria a parte inferior do rosto. Sorriram vendo aquele fraco adversário, que vinha, com tanta imprudência, disputar a palma ao vigoroso tebano e ao hábil atleta.
Lúcio percebeu este sentimento geral pelo murmúrio que corria por toda a assembleia; sem se inquietar, avançou alguns passos e despojou-se do manto. Apareceu, então, suportando aquela cabeça apolónica, um pescoço vigoroso e ombros potentes, e, coisa mais extraordinária ainda, todo aquele corpo branco, cuja epiderme faria inveja a uma filha de Circássia, mosqueado de manchas trigueiras idênticas às da fulva pele da pantera. O tebano olhou descuidadamente aquele novo inimigo, mas o atleta, visivelmente espantado, recuou uns passos.
Chegou Esporo trazendo um frasco de óleo perfumado, que despejou nos ombros do seu senhor e seguidamente lhe espalhou por todo o corpo com o auxílio dum pedaço de púrpura.
Cabia ao tebano encetar a luta; fez um passo para Lúcio, mostrando impaciência pela demora daqueles preparativos.
Lúcio estendeu a mão com ar de autoridade para indicar que não estava pronto, e a voz do Procônsul fez-se ouvir logo, proferindo a palavra: Espera! Ao jovem romano, coberto de óleo, só faltava rolar-se na areia do circo, mas em vez de assim proceder, assentou um joelho na arena e Esporo esvaziou-lhe sobre os ombros um saco de areia de Crisórroas misturada de palhetas de oiro.
Terminada esta operação, Lúcio levantou-se, abrindo os braços em sinal de estar pronto para a luta.
O tebano, cheio de confiança, avançou para Lúcio, que o esperava tranquilo. Mas, ao sentir as rudes mãos do adversário tocar-lhe os ombros, passou nos seus olhos um relâmpago terrível, dando um grito semelhante a um rugido. Ao mesmo tempo, deixou-se cair sobre um joelho e rodeou com os braços robustos o tronco do pastor, abaixo das costelas e acima dos quadris; depois, ligando as mãos sobre as costas do adversário, apertou-lhe o ventre contra o peito e levantou-se sustendo o colosso entre os braços. Foi tão rápida e destramente executada esta acção, que o tebano não teve tempo nem força para resistir; levantado do chão acima da cabeça do adversário, agitava no ar os braços, que não encontravam a que se agarrar.
Os gregos viram então renovar-se a luta de Hércules e de Anteu.
O tebano apoiou as mãos nos ombros de Lúcio e, empregando toda a força dos braços, tentou partir aquela terrível cadeia que o sufocava; mas foram inúteis todos os esforços.
Em vão, por seu turno, rodeou os rins do adversário com as pernas, como dupla serpente; desta vez Laocoonte vencia o réptil. Quanto mais o tebano redobrava os esforços, mais Lúcio apertava o laço que o garrotava, e, imóvel, no mesmo lugar, sem um único movimento perceptível, com a cabeça entre os peitos do inimigo como para lhe escutar a respiração sufocada, apertando cada vez mais, como se a sua crescente força devesse atingir um grau sobre-humano, assim se conservou por alguns minutos, durante os quais se mostraram no tebano vísíveis e sucessivos sinais de agonia.
Primeiramente, escorreu-lhe da fronte um suor mortal, lavando-o do pó que lhe cobria o busto; depois, o rosto tornou-se purpúreo, o peito arquejou num estertor, as pernas soltaram-se do corpo do adversário, os braços e a cabeça descaíram para trás e uma golfada de sangue irrompeu impetuosa do nariz e da boca.
Lúcio abriu então os braços e o tebano, desmaiado, tombou a seus pés como massa inerte.
Nem um grito de alegria nem um aplauso acolheram aquela vitória; a multidão opressa, ficou muda e silenciosa. Todavia, nada havia a exprobrar; tudo se passara segundo as regras da luta; Lúcio vencera franca e lealmente o adversário. Apesar de não se manifestar por aclamações, o interesse que prendia os assistentes àquela cena não deixava de ser grande.
Logo que os escravos levaram o vencido, sempre desmaiado, os olhares que o seguiram fixaram-se no atleta que, pela força e habilidade patenteadas no precedente combate, prometia a Lúcio um adversário terrível. Mas a expectativa geral foi enganada dum modo extraordinário.
Quando Lúcio se preparava para uma segunda luta, o atleta encaminhou-se para ele com ar respeitoso, ajoelhou e, levantando a mão, confessou-se vencido. Lúcio não manifestou surpresa ante aquela acção e aquela homenagem. Sem estender a mão ao atleta, sem o levantar, olhou circularmente pelo ginásio, como para perguntar à turba estupefacta se, entre ela, haveria um homem que ousasse contestar-lhe a vitória.
Nem um gesto nem uma palavra responderam à muda interrogação; no meio do silêncio mais profundo, Lúcio avançou para o estrado do Procônsul, que lhe entregou a coroa. Só nesta ocasião se ouviram alguns aplausos; mas facilmente se reconhecia, nos que davam aquele sinal de aprovação, os marinheiros do barco que transportava Lúcio. Contudo, o sentimento que dominava a turba não era desfavorável ao jovem romano, mas uma espécie de terror supersticioso se apossara da assembleia. Aquela força sobrenatural, a par de tanta juventude, lembrava os prodígios das idades heróicas; em todos os lábios fremiam os nomes de Teseu e Pirítoo; sem que comunicassem os pensamentos, inclinavam-se a acreditar na presença dum semideus. E dera consistência a esta crença aquela homenagem pública, aquela confissão antecipada de derrota, aquela humilhação do escravo ante o senhor!
Quando o vencedor saiu do circo dando o braço a Amiclas e deixando cair a outra mão no ombro de Esporo, toda a multidão o seguiu até à porta do seu hóspede, curiosa, e, ao mesmo tempo, tão muda e tímida, que dir-se-ia uma pompa fúnebre e não uma pompa triunfal.
As raparigas e mulheres esperavam o vencedor empunhando ramos de louro. Lúcio procurou com o olhar Acteia, mas, por vergonha ou timidez, ela estava ausente. Apressou o passo, na esperança de ser aguardado pela jovem coríntia no limiar da porta que lhe abrira na véspera; transpôs a praça que, com a amante, atravessara e tomou pela rua por onde ela o guiara; nenhuma coroa, nenhum festão ornavam a hospitaleira portada. Lúcio entrou rapidamente e meteu-se pelo vestíbulo, deixando atrás de si o ancião; o vestíbulo estava deserto, mas, pela porta que abria para o jardim, avistou a jovem ajoelhada diante duma estátua de Diana, branca e imóvel como o mármore a que se abraçava. Aproximou-se com lentidão por detrás dela e assentou-lhe na cabeça a coroa que acabava de ganhar. Acteia deu um grito, voltou-se vivamente e, nos olhos ardentes e altivos do romano, leu, melhor ainda do que na coroa que lhe rolou aos pés, ter o seu hóspede conquistado a primeira das três coroas que viera disputar à Grécia.
IV.
No DIA seguinte, logo ao amanhecer, Corinto inteira envergou os seus vestidos de festa.
As corridas de carros, ainda que não figurassem entre os jogos mais antigos, eram, contudo, os mais solenes; celebravam-se em presença das imagens dos deuses, reunidas durante a noite no templo de Júpiter, que se elevava próximo da porta de Lequeu, isto é, na parte oriental da cidade; as estátuas sagradas deviam atravessar a cidade em todo o comprimento, para chegarem ao circo, que ficava do lado oposto, defronte do porto de Crisa. Às dez horas da manhã, ou seja, pela quarta hora do dia, segundo a divisão romana, pôs-se em marcha o cortejo. O Procônsul Lêntulo marchava na frente, no seu carro, vestindo o trajo de triunfador; atrás seguia um magote de jovens de catorze a quinze anos, todos filhos de nobres, montados em magníficos cavalos cobertos de gualdrapas de escarlate e oiro, precedendo os concorrentes ao prémio do dia.
Na frente destes, como vencedor da véspera, vestindo uma túnica verde, Lúcio, num carro de oiro e marfim, guiava, com rédeas de púrpura, uma magnífica quadriga branca. Na cabeça, substituindo a coroa da luta, brilhava um círculo resplandecente, semelhante àquele que os pintores cingem na fronte do Sol; e, para firmar mais a semelhança com este deus, trazia a barba polvilhada de oiro. Logo atrás, um jovem grego da Tessália, altivo e belo como Aquiles, vestindo túnica amarela, conduzia um carro de bronze tirado a quatro cavalos pretos.
Os dois últimos eram um ateniense, que pretendia descender de Alcibíades, e um sírio, de tez queimada pelo Sol. O primeiro cobria-se com uma túnica azul e o vento fazia flutuar os seus longos cabelos negros e perfumados; o segundo vestia uma espécie de toga branca, apertada na cintura por um cinto persa, e, como os filhos de Ismael, cobria a cabeça com um turbante tão branco como a neve que brilha no cume do Sinai. Seguia-se, precedendo as estátuas dos deuses, um bando de harpistas e tocadores de flauta, disfarçados em sátiros e silenos e, de mistura, os ministros subalternos do culto dos doze grandes deuses, levando cofres e vasos cheios de perfumes, e incensadores de oiro e prata em que fumegavam os mais preciosos aromas; finalmente, vinham deitadas ou em pé as imagens divinas, em liteiras fechadas, tiradas por magníficos cavalos e escoltadas por nobres e patrícios.
Aquele cortejo, que atravessava a cidade em todo o seu comprimento, desfilava entre dupla linha de casas cobertas de quadros, decoradas com estátuas ou ornadas de tapeçarias. Ao chegar diante da porta de Amiclas, Lúcio voltou-se procurando Acteia, e, sob os panos de púrpura que cobriam a fachada, divisou, corado e tímido, o rosto da jovem com a coroa que na véspera lhe ofertara.
Acteia baixou rapidamente a tapeçaria, mas ouviu a voz do romano, exclamando:
- Vem ao meu encontro quando voltar, ó minha bela hospedeira! E trocarei a coroa de oliveira por outra de oiro.
Pelo meio-dia, o cortejo chegou à entrada do circo, um imenso edifício de dois mil pés de comprido por oitocentos de largo. Dividia-o uma muralha de seis pés de altura, que se estendia em todo o comprimento, excepto nas duas extremidades por onde podiam passar quatro carros a par, e esta spina era encimada por altares, templos e pedestais vazios, onde se depunham as estátuas dos deuses.
Uma das extremidades do circo era ocupada pelos cárceres ou cavalariças, e a outra pelas bancadas. Em cada extremo da muralha havia três marcos, dispostos em triângulo, que era preciso transpor sete vezes para completar o percurso exigido. Como se disse, os cocheiros haviam adoptado as librés das diferentes facções que naquela ocasião dividiam Roma, e os apostadores, os quais, com antecedência, efectuaram grandes apostas, trajavam as cores dos agitadores que, pelo seu rosto, raça dos cavalos, ou pelos triunfos passados, lhes inspiravam mais confiança. Quase todas as bancadas do circo estavam já cheias de espectadores que, ao entusiasmo inspirado habitualmente por aquela espécie de jogos, juntavam o interesse pessoal pelos seus escolhidos.
As próprias mulheres adoptavam partidos, cujas cores se divisavam nos cintos e nos véus. Ao perceber-se a aproximação do cortejo, um movimento estranho, agitando num estremecimento repentino a multidão, fez redemoinhar todo aquele mar humano, cujas cabeças lembravam animadas e ruidosas vagas.
Abertas as portas, o pouco espaço livre encheu-se logo com ondas de novos espectadores, que, qual maré, vieram desfazer-se nos muros do colosso de pedra. Apenas a quarta parte dos curiosos que acompanhavam o cortejo pôde entrar. O resto, repelido pela guarda do Procônsul, correu para os pontos elevados que permitiam dominar o circo.
Via-se aqueles homens subir às árvores, suspender-se das ameias dos baluartes, e coroar, como florões vivos, os terraços das casas mais próximas. Ocupados os lugares,-abriu-se a porta principal e Lêntulo, aparecendo à entrada do circo, fez, de repente, suceder o profundo silêncio da curiosidade à ruidosa agitação da expectativa. Quer por confiança em Lúcio, já vencedor na véspera, quer por adulação ao divino imperador Cláudio Nero, que, em Roma, protegia a facção verde à qual dava a honra de pertencer, o Procônsul, em vez de toga purpurina, trazia túnica daquela cor. Fez lentamente a volta do circo, levando após ele as imagens dos deuses, sempre precedidas dos músicos, que só cessaram de tocar quando todas foram depostas nas pulvinaria ou nos pedestais. Lêntulo deu então o sinal, deitando para o circo um pedaço de lã branca.
Um arauto, vestido de Mercúrio, montando um cavalo em pêlo e sem freio, apareceu na arena e, sem se apear, apanhou a toalha com uma das asas do caduceu; depois, fez a galope a volta do gradeado interior, agitando-a como um estandarte; chegado aos cárceres, atirou o caduceu e a toalha por cima do muro, atrás do qual esperavam as equipagens. A este sinal, as portas dos cárceres abriram-se, dando entrada aos quatro concorrentes. Os seus nomes foram logo metidos num cestinho, porque a sorte devia designar os lugares, a fim de que os mais afastados da spina só tivessem de queixar-se do acaso que lhes destinava um percurso maior. A ordem por que os nomes saíssem marcaria o lugar de cada um.
O Procônsul misturou os nomes, e, tirando-os, abriu uns após outros. Saiu primeiro o do sírio de turbante branco; colocou-se logo junto à muralha, de modo que o eixo do carro ficasse paralelo a uma linha traçada a giz na areia. Em segundo lugar saiu o do ateniense da túnica azul; pôs-se ao lado do seu competidor; em terceiro o do tessálio de vestimenta amarela; enfim, em último, o de Lúcio, a quem a fortuna concedera o mais desvantajoso dos lugares, como se invejasse a sua vitória da véspera.
Alguns escravos meteram-se entre os carros, entrançando as crinas dos cavalos com fitas da cor preferida pelo seu senhor e, agitando, para despertar-lhes a coragem, pequenos estandartes, diante dos olhos dos nobres animais.
Os alinhadores, estendendo uma cadeia, meteram as quatro quadrigas em rigorosa linha recta. Houve um instante de espera tumultuosa; as paradas foram dobradas; fizeram-se novas apostas; cruzavam-se pelos ares palavras confusas. De súbito, ouviu-se uma trombeta e tudo se calou. Os espectadores que estavam de pé, sentaram-se e aquele mar, há pouco tão tumultuoso, tão agitado, aplanou a superfície e tomou o aspecto dum prado em declive, salpicado de mil cores. À última nota do instrumento, a cadeia caiu e os quatro carros partiram arrebatados pelos cavalos.
Durante duas voltas, os adversários guardaram, com pequena diferença, os respectivos lugares. Contudo, bastou aquele tempo para os espectadores já práticos notarem a qualidade dos cavalos. O sírio sustinha, com êxito, os seus corcéis de cabeça forte e membros delgados, habituados às corridas vagabundas dos desertos e que, sendo selvagens, à força de paciência e de arte, domara e habituara ao jugo; percebia-se que, se lhes desse liberdade completa, o arrebatariam tão rápidos como o simum tantas vezes por eles distanciado naquelas vastas planícies de areia que se estendem desde o sopé dos montes de Judá até às margens do lago Asfaltite. O ateniense adquirira os seus na Trácia; mas, voluptuoso e altivo como o herói de quem se gabava de descender, deixava aos escravos o cuidado da sua educação; notava-se que o tiro, guiado e excitado por mão e voz desconhecidas, o auxiliaria mal em momento perigoso. Ao contrário, o tessálio parecia a alma dos corcéis da Élida, sustentados por suas próprias mãos e cem vezes experimentados nos mesmos lugares onde Aquiles ensinara os seus, entre o Peneu e o Enipeu. Lúcio decerto encontrara a raça desses cavalos de Mísia de que fala Virgílio, cujas mães eram fecundadas pelo vento, porque, apesar de percorrer maior espaço sem esforço algum, sem os reter ou apressar, abandonando-os a um galope que parecia a sua marcha habitual, mantinha-se na linha e antes ganhara do que perdera terreno.
À terceira volta, destacaram-se mais claramente as vantagens reais ou fictícias.
O ateniense ganhara sobre o tessálio, o mais avançado dos concorrentes, o comprimento de duas lanças; o sírio, retendo com todas as forças os cavalos árabes, ficara para trás, certo de retomar a dianteira; enfim, Lúcio, tranquilo como o deus que representava, parecia assistir a uma luta em que não tomava parte, de rosto risonho e gesto desenhado segundo as mais exactas regras da elegância mímica.
À quarta volta, um incidente atraiu sobre Lúcio toda a atenção. O chicote, uma correia de pele de rinoceronte incrustada de oiro, escapou-se-lhe da mão e caiu. Lúcio parou a quadriga, apeou-se sossegadamente, apanhou o chicote, subiu para o carro e continuou a corrida. Os adversários levavam um avanço de uns trinta passos. Embora curta, aquela paragem dera um golpe terrível nas esperanças da facção verde; mas os temores desapareceram qual clarão de relâmpago. Lúcio inclinou-se para os cavalos e, sem se servir do chicote nem os animar com o gesto, limitou-se a modular um silvo especial. Partiram como se dispusessem de asas de Pégaso e, antes de terminarem a quarta volta, Lúcio, no meio de gritos e aplausos, ocupava o seu lugar.
À quinta volta, o ateniense já não podia subjugar os cavalos lançados a toda a velocidade; distanciara-se dos seus adversários, mas essa fictícia vantagem a ninguém enganava, nem a ele próprio; a cada momento voltava-se com inquietação e, tentando tirar partido da sua posição, em vez de cuidar em reter os cavalos, excitava-os com o chicote tríplice, chamando-os pelos seus nomes na esperança de que, antes de se fatigarem de todo, ganharia terreno de forma a deixar de temer os adversários; de resto, sentia tão bem o pouco domínio exercido sobre o tiro, que embora pudesse aproximar-se da spina diminuindo o espaço a percorrer, não o fazia com medo de se despedaçar contra o marco e conservava-se à distância que a sorte lhe marcara na ocasião da partida. Faltavam duas voltas; pela agitação dos espectadores e dos antagonistas, percebia-se a aproximação do desenlace.
Os apostadores azuis, os do ateniense, mostravam-se visivelmente inquietos com aquela momentânea vitória e gritavam-lhe que sopeasse os cavalos, mas estes, tomando aqueles gritos por sinais de incitamento, redobravam de velocidade e, escorrendo suor patenteavam que não tardaria a esgotar-se-lhes o resto das forças.
Neste momento o sírio largou as rédeas; os filhos do deserto, abandonados a si mesmos, devoravam o espaço.
O tessálio, por instantes espantado com aquela rapidez, falou aos seus fiéis companheiros e, por seu turno, foi arrebatado como por um turbilhão. Lúcio contentou-se em repetir o tal silvo com que já os excitara; sem parecer que empregavam ainda toda a força, mantiveram-se na sua altura.
O ateniense viu aproximar-se-lhe, como uma tempestade, os dois rivais que a sorte lhe colocara à direita e à esquerda: compreendeu que estava perdido se deixasse entre a spina e ele o intervalo dum carro; por consequência, abeirou-se da muralha ainda a tempo de impedir a passagem do sírio. Este obliquou os cavalos à direita, tentando passar entre o ateniense e o tessálio; porém, não havia espaço. Em rápido golpe de vista observou que o carro do tessálio era mais ligeiro e menos sólido do que o seu; tomando uma resolução, dirigiu-se obliquamente para ele; os carros chocaram-se pelas rodas; o eixo do carro do tessálio partiu-se e o carro e condutor rolaram na arena.
Por mais habilmente que executasse esta manobra, por mais rápido que fosse o choque e a queda assim ocasionada, o sírio atrasou-se por momentos; mas depressa ganhou o espaço perdido e o ateniense viu chegar, quase simultaneamente, os dois rivais há tanto tempo deixados à retaguarda. Antes de completa a sexta volta, corriam-lhe a par e daí a pouco passavam adiante. A vitória ficou desde então pendente entre o condutor branco e o condutor verde, entre o árabe e o romano.
Foi um espectáculo esplêndido. A corrida daqueles oito cavalos era tão rápida, tão igual, que dir-se-ia pertencerem ao mesmo carro; envolvia-os uma nuvem, como uma tempestade e, qual se ouve o ribombar do trovão, qual se vê o relâmpago cortar a nuvem, assim se ouvia o rangido das rodas e se julgava, no meio do turbilhão, distinguir as chamas cintilando nas narinas dos cavalos. Toda a gente estava de pé; os apostadores agitavam os mantos verdes e brancos, e os que haviam perdido adoptando as cores azul e amarela, as do tessálio e do filho de Atenas, esquecendo a sua recente derrota, excitavam os dois adversários com gritos e aplausos.
Houve um momento em que o sírio alcançou vantagem, porque os seus cavalos excederam o comprimento de uma cabeça os do adversário. Lúcio, com uma única chicotada, traçou uma linha sanguinolenta nas garupas da sua quadriga; os nobres animais relincharam de espanto e dor e, como águias, como a flecha, como o raio, passaram adiante do sírio vencido, completando a volta exigida, deixaram-no a mais de cinquenta passos à retaguarda, indo parar na meta, terminadas as sete voltas do estilo.
Os gritos retiniam, num entusiasmo que chegava ao frenesi. Aquele romano desconhecido, vencedor na luta da véspera, vencedor na corrida de hoje, era Teseu, era Castor, talvez Apolo mais uma vez descido à terra. Não oferecia dúvida que era um favorecido dos deuses.
E ele, como acostumado a tais triunfos, saltou com ligeireza do carro para a spina, subiu alguns degraus que conduziam a um pedestal, onde se expôs aos olhares dos espectadores, enquanto um arauto proclamava o nome vitorioso.
O Procônsul Lêntulo, descendo da tribuna, veio pôr-lhe na mão uma palma de Idumeia e cingir-lhe a fronte com uma coroa de folhas de oiro e prata entrelaçadas de fitas purpúreas. O prémio em dinheiro, que lhe apresentaram em ouro, entregou-o ao Procônsul para, em seu nome, ser distribuído pelos velhos pobres e pelos órfãos.
Depois fez um sinal a Esporo, que correu trazendo uma pomba apanhada de manhã no pombal de Acteia. Lúcio passou em torno do pescoço da ave de Vénus uma das fitas de púrpura, à qual ligou duas folhas da coroa, e largou o mensageiro da vitória, que voou rapidamente na direcção da casa de Amiclas.
V.
As DUAS sucessivas vitórias de Lúcio e as circunstâncias um pouco extraordinárias que as revestiram causaram, como dissemos, uma profunda impressão no espírito dos espectadores. A Grécia fora outrora a terra amada dos deuses; Apolo, exilado do céu, fizera-se pastor e guardara os rebanhos de Admeto, rei da Tessália; Vénus, nascida das ondas e impelida pelos Tritões para a praia mais próxima, saíra das águas, perto de Helo, e, livre na escolha dos lugares do seu culto, preferira Cnido, Pago, Idale e Cítera a todos os outros países do mundo.
Os árcades, disputando aos cretenses a honra de serem os compatriotas do rei dos deuses, faziam nascer Júpiter no monte Liceu e esta pretensão, falsa que fosse, não excluía a plena certeza de que Júpiter, quando teve de escolher um império, colocou o seu trono no cume do Olimpo.
Todas estas recordações das idades fabulosas, graças a Lúcio, se representaram na imaginação poética daquele povo, a quem os romanos, tirando o futuro, não puderam despojar do passado; e os candidatos que se tinham apresentado para disputar o prémio do canto, vendo o mau êxito dos que lhe disputaram a palma da luta e da corrida, retiraram-se. Acudiam-lhes à mente a sorte de Mársias lutando com Apoio e de Piérides desafiando as Musas.
Dos concorrentes inscritos só restava Lúcio, mas, assim mesmo, o Procônsul decidiu que a festa teria lugar no dia e hora anunciados.
O assunto escolhido por Lúcio interessava vivamente os coríntios: era um poema sobre Medeia, atribuído ao próprio César Nero. Sabe-se que esta feiticeira, conduzida a Corinto por Jasão, que a raptara, e abandonada nesta cidade, depusera ao pé dos altares os dois filhos, colocando-os sob a protecção dos deuses, e envenenara a rival com uma túnica como a de Nesso.
Os coríntios, atemorizados pelo crime da mãe, arrancaram os filhos do templo e lapidaram-nos. Este sacrilégio não ficou impune. Os deuses vingaram a sua majestade ultrajada e uma epidemia vitimou todas as crianças de Corinto.
Como decorressem já mais de quinze séculos, os descendentes dos assassinos negavam o crime dos pais. Mas uma festa efectuada todos os anos no dia do massacre das duas vítimas, o hábito de vestir as crianças de preto e rapar-lhes a cabeça até à idade de cinco anos, em sinal de expiação, provava, evidentemente, que a terrível verdade sobrevivia a todas as negativas. Compreende-se, pois, facilmente, como o assunto escolhido despertava, no mais alto grau, a curiosidade dos assistentes.
Não podendo toda a multidão afluída a Corinto entrar no teatro, que, muito inferior em dimensões ao estádio e ao hipódromo, só podia conter vinte mil espectadores, distribuíram-se aos mais nobres de Corinto e aos estrangeiros de maior consideração tabuinhas de marfim onde se gravaram números correspondentes aos marcados nas bancadas. Arrumadores, encarregados de guiar aos seus lugares os espectadores, vigiavam que tais lugares não fossem ocupados por outras pessoas. Não obstante a multidão que fora se esmagava, o serviço correu com a maior regularidade.
Para amortecer os raios do sol de Maio, cobria o teatro um imenso velário de seda azul, semeado de estrelas de oiro, no centro do qual, pintado em círculo radioso, se via Nero, em trajo de triunfador, num carro tirado a quatro cavalos.
Apesar da sombra, o calor era tão intenso no teatro que grande número de escravos agitavam leques colossais de penas de pavão, com que refrescavam as mulheres, mais deitadas que sentadas nos coxins de púrpura ou nos tapetes da Pérsia colocados, pelos seus serviçais, com antecedência, nas bancadas para elas reservadas.
Entre essas mulheres notava-se Acteia que, não ousando trazer as coroas que lhe votara o vencedor, se penteara misturando nos cabelos as duas folhas de oiro trazidas pela pomba. Em lugar da corte de mancebos que gracejavam, em torno da maior parte das mulheres, tinha ao lado o pai cujo belo rosto grave e ao mesmo tempo sorridente mostrava o interesse e orgulho que sentia pelos triunfos do seu hóspede. Fora ele que, confiado na fortuna de Lúcio, ordenara à filha para assistir à sua vitória naquele dia.
A hora anunciada para o espectáculo aproximava-se, e cada qual se achava na maior e mais curiosa expectativa, quando um ribombar como o do trovão correu pelo teatro, ao passo que uma ligeira chuva caía sobre os espectadores, refrescando e embalsamando a atmosfera.
Ouviram-se logo palmas. Aquele trovão, imitado por dois homens que sacudiam, por detrás da cena, um vaso de bronze com seixos, invenção devida a Cláudio Pulcher, de quem conservou o nome, assinalava o começo do espectáculo. A chuva era um orvalho perfumado, composto de uma infusão de açafrão da Cilícia, saindo em jactos das estátuas que coroavam o contorno do teatro. Momentos depois correu o pano, e Lúcio apareceu com a lira na mão, tendo à esquerda o histrião Paris, encarregado de executar os gestos durante o canto, e, na retaguarda, o coro com o seu corego, dirigido por um tocador de flauta e regulado, nos movimentos, por outro histrião.
Bastaram as primeiras notas para se reconhecer no jovem romano um hábil e exercitado cantor porque, em vez de atacar logo o assunto, precedeu-o duma espécie de escala composta de duas oitavas e uma quinta, quer dizer, abrangendo a maior extensão de notas jamais ouvida desde Timóteo. Acabado o prelúdio, executado com tanta agilidade como exactidão, entrou no assunto.
Como dissemos, consistia nas aventuras de Medeia, a mulher de arrebatadora beleza, a mágica de terríveis encantamentos. Mestre hábil na arte cénica, o imperador Cláudio César Nero iniciara o poema pela passagem em que Jasão, no seu belo navio Argos, chega às margens da Cólquida e encontra Medeia, a filha do rei Eeta, colhendo flores na praia.
Acteia estremeceu ao ouvir esta primeira parte do canto; assim chegara Lúcio; também colhia flores quando a birreme de casco de oiro tocou a praia de Corinto; e julgou reconhecer, nas perguntas de Jasão e nas respostas de Medeia, as próprias palavras trocadas com o romano.
Nesta altura, como se a reprodução de tão doces sentimentos exigisse uma harmonia especial, Esporo, aproveitando uma suspensão do coro, entregou ao seu senhor uma lira jónia, isto é, de onze cordas.
Ao som de igual lira cantara Timóteo perante os lacedemónios. Os éforos julgaram tão perigosamente efeminado aquele instrumento, que declararam ter o cantor ferido a majestade da antiga música e tentado corromper os jovens espartanos; e a sua proibição foi decretada pelos lacedemónios, ao tempo da batalha de Egos-Pótamos, que os tornou senhores de Atenas.
Quatro séculos decorreram depois desta época. Esparta estava em ruínas; Atenas escrava de Roma; a Grécia reduzida a província. Cumpria-se a predição de Eurípides. Em lugar de reclamar do executor dos decretos públicos a supressão das quatro cordas da lira corruptora, a multidão aplaudiu Lúcio com entusiasmo delirante.
Acteia escutava sem respirar; sentia que era a sua história que ele ali contava.
Como Jasão, Lúcio vinha conquistar um prémio maravilhoso; como Jasão, já era duas vezes vencedor.
Para celebrar a vitória, devia dedilhar uma lira diferente da que acompanhava o canto de amor. Assim, no momento em que, depois de ter encontrado Medeia no templo de Hécate, Jasão obtém da bela amante o auxílio da sua arte mágica e os três talismãs destinados a ajudá-lo a vencer os terríveis obstáculos que se opõem à conquista do Tosão, Lúcio tomou uma lira lídia, de tons ora graves, ora agudos.
Acteia treme; o seu espírito não pode separar Jasão de Lúcio. Segue, em pensamento, o herói, ungido de sucos mágicos que o tornam invulnerável, ao primeiro recinto, guardado por dois touros de Vulcano, de estatura colossal, pés e pontas de bronze vomitando chamas; apenas Jasão os toca com o chicote encantado, amansam e deixam-se jungir a uma charrua de diamante; e o heróico lavrador arroteia as quatro jeiras consagradas a Marte.
Passa ao segundo recinto; Acteia acompanha-o em pensamento. Uma gigantesca serpente ergue a cabeça no meio dum bosque de oliveiras e loureiros que lhe serve de toca; avança, silvando, para o herói. Trava-se luta terrível; Jasão é invulnerável e a serpente quebra os dentes em baldadas mordeduras; fatiga-se inutilmente a apertá-lo nas suas espirais; a espada de Jasão rasga-lhe profundas feridas; o monstro começa a recuar; agora é Jasão quem ataca; o réptil foge e o homem ganha terreno. Refugia-se numa caverna estreita e escura, onde Jasão, rastejando, penetrou após e donde sai em breve, apertando na mão a cabeça do adversário.
Volta ao campo que lavrara e semeia os dentes do monstro nos profundos sulcos traçados pela relha. Deles sai logo uma multidão de homens que se precipitam sobre o herói. Jasão atira-lhes com o seixo que lhe deu Medeia, e aqueles homens entram a trucidar-se uns aos outros; ocupados com a luta, deixam-no transpor o terceiro recinto, no meio do qual se eleva a árvore de tronco de prata, de folhas de esmeralda e frutos de rubis, de cujos ramos pende o Tosão de Oiro, despojo do carneiro Frixo.
Ali depara-se-lhe um inimigo mais terrível do que os já combatidos: um gigantesco dragão de desmesuradas asas, coberto de escamas de diamante que o tornam tão invulnerável como o herói. Com este inimigo emprega armas diferentes; coloca no chão uma taça de oiro cheia de leite, onde o monstro vem beber um soporífero que o sepulta em profundo sono, durante o qual Jasão se apodera do Tosão de Oiro.
Lúcio retoma a lira jónia, porque Medeia espera o vencedor; é forçoso que Jasão encontre palavras de amor, tão poderosas que decidam a amante a abandonar pai e pátria e a segui-lo.
A luta é longa e dolorosa, mas o amor vence. Medeia, trémula, seminua, deixa o velho pai adormecido; chega às portas do palácio, quer tornar a ver aquele que lhe deu o ser; retrocede com passos cautelosos, com a respiração comprimida; entra no quarto do ancião, abeira-se do leito, inclina-se-lhe sobre a fronte, depõe um beijo de adeus eterno nos seus cabelos brancos, solta um grito soluçante que o velho toma pela voz dum sonho e vem lançar-se nos braços do amante, que a espera no porto e a leva, desmaiada, para o barco maravilhoso, construído pela própria Minerva nos estaleiros de Iolco e debaixo do qual as ondas se curvam obedientes.
Voltando a si, Medeia vê as praias da pátria sumindo-se no horizonte. Deixa a Ásia pela Europa, o pai pelo esposo, o passado pelo futuro.
Esta segunda parte do poema foi cantada por Lúcio com tanta paixão e arrebatamento, que todas as mulheres escutavam com emoção profunda. Acteia, principalmente, como Medeia, presa da ardente febre do amor, de olhar fixo, muda, sem respirar, julgava estar a ouvir a sua própria história, assistindo à sua vida, de que, como por magia, presenciava o passado e o futuro.
Quando Medeia toca com os lábios os cabelos brancos de Eeta e deixa escapar do coração despedaçado o último soluço de amor filial agonizante, Acteia aconchegou-se a Amiclas e, pálida, desmaiada, encostou a cabeça no ombro do ancião.
O triunfo de Lúcio era completo; na primeira interrupção do poema, aplaudiram-no com delírio; desta vez, ouviam-se gritos, pateada, brados de entusiasmo, que cessaram ao preludiar a terceira parte do drama.
Uma vez ainda mudou de lira; não se tratava agora de representar o amor virginal ou voluptuoso, a glória do amante ou do guerreiro, mas a ingratidão do homem, os transportes de ciúme da mulher, o amor furioso, delirante, frenético, vingador, homicida. Só a lira dória podia cantar estes sofrimentos e furores.
Medeia navega no barco mágico; aporta na Feácia, toca em Iolco para pagar uma dívida filial ao pai de Jasão, rejuvenescendo-o; desembarca em Corinto, onde o amante a abandona para desposar Creúsa, filha do rei do Epiro.
A mulher ciumenta substitui a amante dedicada. Impregna uma túnica de veneno devorador e envia-a à noiva, que a veste sem desconfiança. Enquanto esta expira no meio de torturas, a fim de que a mãe não conserve recordação alguma do amante, Medeia, diante de Jasão, frenético e desesperado, degola os dois filhos e desaparece num carro puxado por dois dragões.
Neste ponto do poema, que lisonjeava o orgulho dos coríntios, atribuindo à mãe o assassínio dos filhos, como já o fizera Eurípides, estrondearam os aplausos, os gritos de entusiasmo, a pateada, sobressaindo a esta tempestade o bater ruidoso das matracas, que exprimiam, no teatro, o último grau da ovação. Não foi só a coroa de oliveira do Procônsul que "o maravilhoso cantor recebeu; uma chuva de flores e grinaldas, que as mulheres arrancavam da cabeça e atiravam febrilmente, juncava o teatro.
Lúcio ia sendo esmagado pelas coroas como Tarpeia pelos escudos sabinos. Mas, imóvel e, na aparência, insensível àquele inaudito triunfo, procurava com o olhar, entre as mulheres, aquela cujo aplauso só lhe importava. Avistou-a, semimorta, nos braços do ancião, sendo a única que conservava na cabeça a grinalda de flores. Olhou-a com olhos tão ternos, estendeu para ela as mãos tão suplicantes, que Acteia tirou a coroa da fronte, mas faltando-lhe a força de a atirar ao amante, deixou-a tombar no meio da orquestra, caindo, chorosa, nos braços do velho.
Ao alvorecer do dia seguinte, a birreme de oiro flutuava nas águas azuis do golfo de Corinto, ligeira e mágica como o navio Argo.
Como este, levava nova Medeia, a infiel ao pai e à pátria. Acteia, sustida por Lúcio, pálida, junto à popa, via, através de um véu, abaixarem-se gradualmente as montanhas de Citéron, a cuja base se apoia Corinto. Imóvel, o olhar fixo, a boca entreaberta, assim ficou enquanto pôde distinguir a cidade coroando a colina e a cidadela dominando a cidade.
Depois, quando a cidade se ocultou por detrás das vagas, quando a cidadela, ponto branco perdido no espaço, como que se balançou, por algum tempo, no cume das ondas e desapareceu como um maçarico mergulhando no mar, escapou-se-lhe do peito um suspiro em que iam todas as forças da alma; os joelhos vergaram, caindo exânime nos braços de Lúcio.
VI.
QUANDO Acteia abriu os olhos, achou-se na câmara principal do navio. Lúcio, sentado junto ao leito amparava-lhe a cabeça pálida e desgrenhada; a um canto, tranquilo e manso qual gazela, dormia o tigre fêmea enroscado sobre um tapete de púrpura bordado a oiro.
Era noite; através da clarabóia entremostrava-se o belo azul do céu da Jónia, semeado de estrelas. A birreme flutuava tão docemente que dir-se-ia um grande berço que o mar complacente baloiçava, como a mãe a camilha do filho.
A natureza adormecida estava tão tranquila, tão pura, que Acteia por um instante julgou sonhar e repousar ainda sob o véu virginal da sua juventude.
Lúcio, atento ao menor movimento, ao vê-la despertar, fez estalar os dedos; entrou imediatamente uma jovem e bela escrava, empunhando um rolo de cera com o qual acendeu a lâmpada de oiro do candelabro de bronze suspenso junto ao leito.
Desde que Acteia viu entrar esta rapariga não mais desviou dela os olhos, seguindo-lhe os movimentos com atenção crescente. Aquela escrava, que se apresentava pela primeira vez, não lhe parecia desconhecida; o rosto melancólico despertava-lhe recordações recentes, sem que pudesse precisar onde o encontrara.
Tentou despertar a memória, mas, cansada, fechou os olhos e de novo reclinou a cabeça sobre os coxins.
Lúcio, julgando que ela queria dormir, fez sinal à escrava para velar-lhe o sono e saiu.
A escrava, ficando só com Acteia, mirou-a por instantes com expressão de indefinível tristeza; depois, deitando-se no tapete de púrpura onde estava Febe, fez do corpo do animal almofada onde descansou a cabeça.
Perturbada no sono, a fera entreabriu os olhos cintilantes e ferozes, mas, reconhecendo uma amiga, lambeu por duas ou três vezes a delicada mão e voltou a estender-se com indolência, dando um pequeno rugido à maneira de suspiro.
Neste momento, elevou-se do navio uma deliciosa harmonia. Era o coro já ouvido por Acteia, quando a birreme aportara a Corinto; mas, agora, a solidão e o silêncio da noite prestavam-lhe ainda maior encanto e mistério. Daí a pouco sucedeu ao coro uma única voz. Lúcio entoava uma prece a Neptuno.
Acteia reconheceu a voz insinuante que, no teatro, lhe fizera vibrar as mais secretas cordas da alma. Eram umas notas tão sonoras, tão melodiosas, como as cantariam as sereias do cabo Palinuro, se assistissem à recepção do barco do novo Ulisses.
Acteia, inteiramente fascinada pela atracção daquela encantada música, reabriu as pálpebras fatigadas e, fitos os olhos nas estrelas, esqueceu pouco a pouco os remorsos e as dores, para só pensar no seu amor.
Decorrera muito tempo desde que as últimas vibrações da lira e os sons das vozes se extinguiram lentamente e ainda Acteia, extasiada por aquela melodia, escutava. Baixou, enfim, os olhos, que encontraram os da rapariga.
Como a sua senhora, a escrava parecia dominada por um encantamento. De novo, Acteia pensou que não era a primeira vez que aquele olhar triste a fixava. Passou-se um instante, em silêncio.
- Como te chamas? - perguntou Acteia.
- Sabina - respondeu a escrava.
Esta única palavra fez estremecer a coríntia; como o rosto, a voz não lhe era estranha; contudo, o nome não lhe despertou recordação alguma.
- Qual é a tua pátria? - continuou Acteia.
- Deixei-a tão nova que não lhe sei o nome.
- Quem é o teu senhor?
- Ontem, era Lúcio; hoje, pertenço a Acteia.
- Pertences-lhe há muito tempo?
- Desde que me conheço.
- Decerto lhe és dedicada?
- Como uma filha ao pai.
- Então, vem sentar-te ao pé de mim, para falarmos dele.
Sabina obedeceu com visível repugnância; Acteia, atribuindo aquela hesitação a temor, tomou-lhe a mão para a sossegar. Aquela mão estava fria como o mármore. Cedendo ao movimento da sua sombra, mais se deixou cair do que se sentou na cadeira designada.
- Já te veria eu? - indagou Acteia.
- Não creio - balbuciou a escrava.
- Nem no estádio? Talvez no circo ou no teatro?
- Nunca deixei a birreme.
- Não assististe aos triunfos de Lúcio?
- Estou habituada a vê-los.
Novo silêncio sucedeu a estas frases trocadas, duma parte com crescente curiosidade, da outra com tão visível repugnância que Acteia compreendeu não provir do embaraço da timidez.
- Escuta, Sabina - disse. - Vejo quanto te custa mudar de senhor. Direi a Lúcio que não queres deixá-lo.
- Não faças isso! - exclamou a escrava, tremendo. - Quando Lúcio ordena, é forçoso obedecer.
- É, pois, tão temível a sua cólera? - prosseguiu Acteia, sorrindo.
- Terrível! - articulou a escrava, com tal expressão de terror que a própria Acteia sentiu um calafrio.
- Mas - insistiu esta - os que o cercam parecem amá-lo. Por exemplo, Esporo.
- Esporo! - murmurou a escrava.
Ao pronunciar aquele nome, Acteia recordou-se; era a Esporo que Sabina se assemelhava, e a parecença era tão perfeita, que se admirou de não lhe ter ocorrido mais cedo.
Pegou em ambas as mãos da rapariga e, encarando-a, perguntou:
- Conheces Esporo?
- É meu irmão - balbuciou a escrava.
- Onde está?
- Ficou em Corinto.
Naquele momento a porta abriu-se e o romano entrou.
Acteia, que conservava nas suas as mãos de Sabina, sentiu um estremecimento percorrer o corpo da escrava.
Lúcio fixou o olhar azul e perscrutador no estranho grupo e depois, após um instante de silêncio, convidou:
- Bem amada Acteia, não queres aproveitar o romper da aurora para aspirar o ar puro da manhã?
Havia no fundo daquela voz, tão tranquila e suave na aparência, alguma coisa de vibrante, de metálico. Ao notá-lo pela primeira vez, Acteia sentiu penetrar na alma uma sensação instintiva, como de medo e, tomando o pedido por uma ordem, obedeceu em lugar de responder. Mas as forças não secundaram a vontade e cairia se Lúcio, correndo para ela, não a sustivesse. Sentiu-se levar nos braços do amante com a facilidade da águia levando a pomba e, trémula, sem saber explicar o motivo daquele receio, deixou-se transportar, muda, com os olhos fechados, como se no caminho devesse encontrar um precipício.
Chegando à coberta, sentiu-se reanimada, tão pura e perfumada era a brisa, tanto mais que não a enlaçavam já os braços de Lúcio. Abriu os olhos. Achava-se à ré, deitada numa rede de malhas de oiro, presa dum lado, ao mastro, e, do outro, a uma pequena coluna, esculpida, parecendo um suporte. Lúcio, encostado ao mastro, estava de pé, a seu lado.
Durante a noite a birreme, favorecida pelo vento, saíra do golfo de Corinto e, dobrando o cabo de Elice, passava entre Zacinto e Cefalénia.
O Sol erguia-se por trás destas duas ilhas e os seus primeiros raios iluminavam a crista das montanhas que as dividem ao meio; a vertente ocidental estava ainda coberta de sombra.
- É ainda a Grécia? - perguntou, voltando-se para Lúcio.
- Sim, e este perfume que chega até nós, como um último adeus, é o das rosas de Same e das laranjeiras de Zacinto. Não há Inverno naquelas duas gémeas que o Sol ilumina, tornando-as um açafate de flores. Queres, minha bela Acteia, que faça construir um palácio em cada uma?
- Lúcio - disse Acteia - por vezes espantas-me com promessas que só um deus pode cumprir. Quem és tu, pois, e que me ocultas? És Júpiter Tonante? Temes que, aparecendo-me em todo o teu esplendor, o raio me devore como aconteceu a Semeie?
- Enganas-te - respondeu Lúcio, sorrindo. - Não passo dum pobre cantor a quem um tio deixou toda a sua fortuna, com a condição de usar o seu nome. O meu único poder reside no meu amor e sinto que, animado por ele, empreenderia os doze trabalhos de Hércules.
- Amas-me, pois? - perguntou a coríntia.
- Sim, alma da minha alma! - disse Lúcio.
O romano pronunciou estas palavras com um acento tão cheio de verdade, que a amante ergueu as mãos ao céu, como para lhe agradecer a sua felicidade. Naquele momento esquecia tudo: pesares, remorsos e a pátria que desaparecia no horizonte.
Vogaram durante dez dias, sob um céu azul e sobre um mar azul. No sétimo, avistaram, pela proa do navio, a cidade de Lecri, edificada pelos soldados de Ajax. Dobrando o promontório, entraram no estreito de Sicília, deixando, à esquerda, Messina, a antiga Zancle, enseada recurvada como uma foice, e à direita, Régio, à qual Dionísio, o Tirano, mandou pedir uma mulher e que lhe ofereceu a filha do carrasco.
Navegando entre a revolta Caríbdes e a rugidora Cila, saudaram com último adeus as ondas da Jónia, alumiada pelo vulcão Estrôngile, o eterno farol do Mediterrâneo. Mais cinco dias vogaram, umas vezes à vela, outras a remos, avistando, sucessivamente, Eleia, perto da qual ainda se distinguiram as ruínas do túmulo de Palinuro, Pesto, com os seus três templos, Capri, com os seus doze palácios.
Entraram, enfim, no golfo magnífico, no fundo do qual se eleva Nápoles, essa bela filha da Grécia, escrava liberta de Roma, indolentemente recostada no sopé do seu fumegante Vesúvio, tendo, à direita, Herculano, Pompeia e Estábias que, vinte anos passados, deviam submergir-se no seu túmulo de lava, e, à esquerda, Baias, tão temida por Propércio e Baulos, dentro em pouco tornada célebre pelo parricídio de Nero.
Chegado à vista da cidade, Lúcio mandou trocar as velas brancas da birreme por outras de púrpura e encimar o mastro com um ramo de louro. Era, decerto, um sinal convencionado para anunciar a vitória porque, apenas colocado, efectuou-se nas praias um grande movimento de povo, correndo a admirar o barco olímpico, que entrou no ancoradouro ao som do canto dos marinheiros e dos aplausos da turba. Um carro, tirado a quatro cavalos brancos, esperava Lúcio, que para ele subiu, envolto numa toga de púrpura e numa clâmide azul estrelada de oiro, tendo na cabeça a coroa olímpica de oliveira e, na mão, a coroa pítica de louro.
Abriram uma brecha nas muralhas da cidade, por onde o triunfador entrou como conquistador.
Continuou a viagem sempre rodeado de festas e honrarias.
Em Fundos, um velho de sessenta e cinco anos, cuja família era tão antiga como Roma e que, após a guerra de África, obtivera a ovação e três sacerdócios, preparara jogos esplêndidos e veio ele próprio oferecê-los.
Esta conduta da parte dum homem tão considerado pareceu fazer grande sensação na comitiva de Lúcio, que aumentava a todos os momentos, decerto porque se contavam coisas estranhas deste velho.
Quando um dos seus antepassados sacrificava, veio uma águia lançar-se sobre as entranhas da vítima e levou-as para o cimo dum carvalho. Predisseram-lhe, então, que um dos seus descendentes seria imperador. Esse descendente, dizia-se, era Galba, porque, tendo ido um dia com muitos mancebos da sua idade saudar Octávio, este, iluminado por uma espécie de antevisão momentânea, lhe passara a mão pelo rosto, dizendo:
- E tu, também, meu filho, partilharás o nosso poder. Lívia amava-o a tal ponto que, ao morrer, legou-lhe cinquenta milhões de sestércios. Mas Tibério reduzira-os a quinhentos mil, e talvez o ódio do velho Imperador, que conhecia a predição do oráculo, se não limitasse à redução se Trasilo, o seu astrólogo, não lhe dissesse que, só na velhice, Galba devia reinar.
- Pois que viva! - respondeu, então. - Não me importa.
De facto, Tibério morrera; Calígula e Cláudio tinham ocupado o trono; César Nero era agora imperador; Galba tinha sessenta e cinco anos e nada mostrava que estivesse para tomar o poder supremo.
Como aos sucessores de Tibério, mais próximos do momento marcado na predição, podia acudir a lembrança de desmentir o oráculo, Galba, mesmo durante o sono, trazia um punhal suspenso por uma cadeia ao pescoço, e não saía sem levar consigo um milhão de sestércios, em oiro, prevendo o caso de ser forçado a fugir dos lictores, ou a comprar os assassinos.
O vencedor passou dois dias em casa de Galba, no meio de festas e triunfos. Acteia reparou, então, numa precaução de Lúcio, a qual, até ali, lhe passara despercebida e que não sabia explicar. Os soldados, chegados para lhe servir de escolta, velavam toda a noite nos aposentos contíguos ao seu quarto e, estranho cuidado, o seu amante, ao deitar-se, punha a espada à cabeceira do leito. Ao terceiro dia deixou Fundos, e, prosseguindo o seu caminho triunfal pelas cidades, cujas muralhas se abriam para a sua passagem, chegou, com um cortejo mais semelhante ao exército dum sátrapa do que ao séquito dum simples vencedor, à montanha de Albano. Ao chegar ao cume, Acteia deu um grito de surpresa e admiração: na extremidade da via Ápia avistava-se Roma em toda a sua extensão e esplendor.
Com efeito, Roma apresentava-se aos olhos da grega sob o seu aspecto mais grandioso. A via Ápia era cognominada a rainha das estradas, como sendo a mais bela e mais importante porque, partindo do mar Tirreno, transpunha os Apeninos, atravessava a Calábria e ia terminar no Adriático.
Desde Albano até Roma, servia de passeio público, e, respeitando o hábito dos antigos, que só consideravam a morte como repouso e procuravam, para as suas cinzas, os sítios mais frequentados, era ladeada de magníficos túmulos, entre os quais se apontavam, pela sua antiguidade: o de Ascânio, o dos Horácios, como recordação heróica, e, pela sua magnificência imperial, o de Cecília Metela.
Ora, naquele dia, a magnífica via regurgitava de curiosos que esperavam Lúcio. Uns, em brilhantes equipagens, tiradas por mulas da Ibéria com arneses de púrpura, outros, recostados em octóforos, liteiras levadas por oito escravos vestidos de esplêndidas pénulas, rodeadas dos pedisequis, estes precedidos de cavaleiros númidas que levantavam nuvens de pó e afastavam o povo, aqueles, levando na frente uma matilha de molossos, com coleiras de bicos de prata.
Quando os mais próximos avistaram o vencedor, romperam em aclamações que, como um rastilho, passaram de boca em boca, até às muralhas da cidade.
Um cavaleiro, partindo a galope, transmitiu ordens e os passeantes dispuseram-se em duas alas; a via, larga de trinta e seis pés, ofereceu, então, passagem à quadriga do triunfador, que se dirigiu para a cidade.
Pouco mais ou menos a vinte estádios da porta, uns quinhentos cavaleiros esperavam o cortejo, à frente do qual se colocaram.
Acteia viu, então, que as ferraduras dos cavalos eram de prata e que, mal seguras, soltavam-se rolando pelo solo, de modo que o povo, para as apanhar, atirava-se avidamente, para o meio da soldadesca em risco de ser atropelado.
O carro entrou na cidade entre entusiásticas aclamações da turba.
Acteia ouvia o nome de César substituído, indiferentemente, ao de Lúcio; nada compreendendo, deixava-se arrastar pela embriaguez que, parecia, se apoderara de toda a gente.
Passaram sob arcos de triunfo, em ruas juncadas de flores e embalsamadas com incenso.
Em cada encruzilhada, sacrificadores imolavam vítimas nos altares dos lares da pátria. Atravessaram os mais ricos bairros, o grande circo, do qual tinham derrubado três arcadas, o Velabro e o Fórum; enfim, pela Via Sacra, o cortejo encaminhou-se para o Capitólio e só parou defronte do templo de Júpiter. Lúcio apeou-se e subiu a escadaria. Os flâmines esperavam às portas e acompanharam-no até junto da estátua. Chegado ali, Lúcio depôs sobre os joelhos do deus os troféus da vitória e, pegando num estilete, escreveu numa placa de oiro maciço, que lhe apresentou o grão-sacerdote, a seguinte inscrição:
Lúcio-Domício-Cláudio Nero, vencedor na luta, nas corridas e no canto, consagrou ao muito grande e muito bom Júpiter estas três coroas.
No meio das aclamações que se elevaram de todos os lados ouviu-se um grito de terror. Acteia acabava de compreender que o pobre cantor, que seguia como amante, era o próprio César.
VII.
Na embriaguez do triunfo, o Imperador não esquecera Acteia. Desta, ainda mal refeita da surpresa, entremeada de espanto, que lhe causara o nome e o título do amante, se acercaram dois escravos liburnos que, da parte de Nero, a convidaram respeitosamente a segui-los. Acteia obedeceu maquinalmente, ignorando onde a conduziam e não pensando em perguntá-lo, tão grande perturbação lhe causara a ideia de ser a amante daquele homem cujo nome sempre ouvira pronunciar com terror.
Abaixo do Capitólio, entre o Tabularium e o templo da Concórdia, estavam uma liteira e seis escravos egípcios, com os peitos ornados de placas de prata polida, em forma de crescente, os braços e pernas com anéis do mesmo metal, e, ao pé da liteira, Sabina, que perdera de vista no meio do tumulto e que, dir-se-ia, se achava ali para reavivar todas as suas recordações.
Acteia subiu; reclinou-se nos coxins de seda e a liteira dirigiu-se para o Palatino. Sabina seguia a pé ao lado da sua senhora, cobrindo-a com a sombra dum grande leque de penas de pavão, encabado numa cana da índia. Percorreram durante uns trezentos passos a Via Sacra, por onde Acteia já passara com o séquito de César; voltaram à direita, entre o templo de Febe e o de Júpiter-Stator, subiram alguns degraus que levavam ao Palatino e costearam pelo lado que dominava a Suburana e a Via-Nova, o magnífico planalto que coroava o monte.
Chegados, enfim, em frente da fonte Juturna, pararam no limiar duma casinha isolada. Dois liburnos colocaram de cada lado da liteira umas banquetas cobertas de tapete purpurino, a fim de aquela que o Imperador lhes dava por senhora poder apear-se pelo lado que mais lhe agradasse.
Acteia era esperada, porque a porta abriu-se à sua aproximação e fechou-se logo que a transpôs, sem ter apercebido a pessoa que exercia as funções de janitor (porteiro).
Acompanhava-a unicamente Sabina, a qual, pensando que, após uma caminhada longa e fatigante, o primeiro desejo da senhora seria banhar-se, a conduziu ao apodyterium (1).
Chegando ali, Acteia, comovida e preocupada com a estranha fatalidade que a ligara ao senhor do Mundo, sentou-se numa bancada que contornava o aposento, fazendo sinal a Sabina para esperar um instante. Mal se entregara aos seus pensamentos, como se o seu poderoso senhor temesse que a jovem reflexionasse, ouviu-se uma música suave e sonora, saída de local que não era fácil precisar; os músicos estavam dispostos de forma que o aposento parecia envolto num círculo de harmonia.
Decerto Nero, que notara a influência exercida sobre a jovem grega por aqueles sons misteriosos, ordenara com antecedência esta distracção, para combater recordações
(1) Sala dos banhos onde se despiam.
que queria apagar. Pensando assim, não se enganara. Ouvindo aqueles acordes, Àcteia levantou a cabeça; as lágrimas que lhe corriam pelo rosto secaram, ficando uma a tremular na extremidade das longas pestanas, qual gota de orvalho nos pistilos duma flor; os lábios descorados tornaram-se purpurinos e entreabriram-se como para um sorriso ou um beijo.
Sabina aproximou-se da sua senhora que, ajudada por ela, começou a despir-se. Os vestidos caíram-lhe aos pés, deixando-a nua e ruborizada como a Vénus pudica. Era tão perfeita e virginal aquela beleza desnudada, que a própria escrava ficou extasiada; quando Acteia, ao passar ao segundo aposento, apoiou a mão no ombro nu de Sabina, sentiu-a tremer e reparou que as suas pálidas faces se coloriam, como ao contacto duma chama.
Acteia deteve-se temendo ter magoado a jovem, mas esta, adivinhando o motivo da hesitação, agarrou na mão que Acteia retirara e, repondo-a no ombro, entrou no tepidarium.
Era uma vasta sala quadrada, ao centro da qual se abria um tanque com água morna. Algumas escravas com a cabeça coroada de folhas de caniço, de narcisos e nenúfares brancos, brincavam na água, como um grupo de náiades; ao verem Acteia, colocaram, junto da borda mais próxima dela, uma concha de marfim, incrustada de coral e madre-pérola. Os encantos sucediam-se tão rápidos que Acteia deixava-se levar como num sonho. Sentou-se no frágil barquinho e, qual Vénus rodeada da sua corte marinha, achou-se no centro do tanque.
A música deliciosa, que tanto a arrebatara, soou de novo; as vozes das náiades acompanhavam; cantavam a fábula de Hilas, indo buscar água às praias de Tróade, e como as ninfas do rio Ascânio chamavam o favorito de Hércules com o gesto e a voz, assim as escravas estendiam os braços para Acteia e convidavam-na a descer para junto delas. Os brinquedos na água eram familiares à jovem grega; mil vezes, com as suas companheiras, atravessara a nado o golfo de Corinto; portanto, atirou-se sem hesitação para aquela água tépida e perfumada, onde as escravas a receberam como sua rainha.
Eram todas jovens, escolhidas entre as mais belas; umas vindas do Cáucaso, outras da Gália, estas da índia, aquelas da Ibéria; e, contudo, naquele grupo de elite, escolhido pelo amor para a voluptuosidade, Acteia parecia uma deusa. Só depois de ter deslizado à superfície da água como uma sereia, depois de ter mergulhado como uma náiade, percorrendo aquele lago em miniatura com a flexibilidade e graça da serpente, reparou em que Sabina não fazia parte da sua corte marinha.
Procurando-a com o olhar, viu-a sentada e escondendo a cabeça no véu. Familiar e risonha como uma criança, chamou-a. Sabina estremeceu e descobriu-se; então, com risos de misteriosa expressão, que Acteia não pôde compreender, com vozes zombeteiras, as escravas repetiram o chamamento, convidando-a a juntar-se-lhes. Durante rápido momento, a jovem escrava pareceu prestes a obedecer ao apelo; qualquer coisa extraordinária se passava na sua alma; tinha os olhos ardentes e o rosto afogueado, e as lágrimas corriam-lhe das pálpebras, secando-se sobre as faces; mas, em vez de ceder, como, aliás, era seu bem visível desejo, Sabina correu para a porta, fugindo àquela magia voluptuosa; o movimento, porém, não fora tão rápido que Acteia, saindo da água, não chegasse a tempo de impedir-lhe a passagem, entre as risadas das escravas. Sabina quase desmaiou; tremeram-lhe as pernas, correu-lhe da fronte um suor frio, empalidecendo tão visivelmente que Acteia, temendo a sua queda, estendeu os braços e recebeu-a sobre o peito nu; mas, repeliu-a logo dando um grito de dor. No paroxismo inexplicável que se apoderara da escrava a boca tocara o ombro da sua senhora e mordera-a. Em seguida, amedrontada pelo acto praticado, correu para fora do quarto.
Ao grito de Acteia, as escravas acudiram, agrupando-se em torno dela, mas esta, receando que Sabina sofresse algum castigo, sufocara a dor e limpava, esforçando-se por sorrir, uma ou duas gotas de sangue que, semelhantes a coral líquido, lhe corriam pelo peito. De resto, o acidente era tão ligeiro que a única impressão causada em Acteia foi a do espanto. Passou, então, à sala próxima, ao caldarium.
Consistia num pequeno aposento circular, guarnecido de nichos estreitos contendo bancos; um reservatório de água fervente ocupava o meio da sala, expelindo um vapor tão espesso como os que, de manhã, correm na superfície dos lagos. Aquele nevoeiro aquecia-se ainda com um forno exterior, cujas chamas, circulando em tubos, envolviam o caldarium com os seus braços vermelhos e corriam ao longo das paredes externas como a hera dos muros. Acteia, que não adquirira o hábito destes banhos, só conhecidos e praticados em Roma, entrou naquela sala e de tal modo se sentiu incomodada por aquelas ondas vaporosas movendo-se como nuvens, que, arquejante, estendeu os braços, tentando chamar por socorro, mas só pôde soltar gritos inarticulados e começou a soluçar; tentou dirigir-se para a porta, mas, retida pelas escravas, deitou-se para trás, fazendo sinal de que sufocava.
Logo uma das mulheres puxou uma corrente, e um escudo de oiro que fechava o tecto abriu-se como uma válvula, deixando penetrar uma corrente de ar exterior naquela atmosfera prestes a tornar-se irrespirável.
Voltou à vida; Acteia sentiu o peito dilatar-se; apossou-se dela uma languidez suave. Deixando-se conduzir para um dos assentos, habituando-se já a suportar melhor aquela temperatura elevadíssima que, em vez de sangue, fazia circular nas veias chamas líquidas.
O vapor tornou-se outra vez tão espesso e quente que, de novo, se viram obrigadas a recorrer ao escudo de oiro.
Com o ar exterior, experimentaram as banhistas um tal sentimento de bem-estar que a jovem grega começou a compreender o fanatismo das damas romanas por aquela espécie de banho que lhe era desconhecido e chegara a supor um suplício.
Volvidos instantes, o vapor retomou a primeira intensidade; sem abrir-lhe passagem, as escravas deixaram condensá-lo tanto, que Acteia esteve ainda quase a desfalecer. Duas envolveram-na inteiramente num manto de lã escarlate e transportaram-na para um leito de repouso numa sala aquecida à temperatura normal.
Ali, começou uma nova operação, também desconhecida de Acteia, mas já menos inesperada e menos dolorosa do que a do caldarium.
Era a massagem, esse hábito voluptuoso que os orientais tomaram dos romanos e conservaram até aos nossos dias.
Duas novas escravas, hábeis neste exercício, principiaram a premi-la até os membros adquirirem flexibilidade; depois fizeram estalar as articulações, sem dor, sem esforço. Então, tirando de pequenos vasos, feitos de pontas de rinoceronte, óleos e essências perfumadas, esfregaram-lhe todo o corpo, enxugando-o, primeiro, com uma lã fina, e, em seguida, com peles de cisne despojadas das penas, conservando só a penugem.
Enquanto durou este complemento dos banhos, Acteia permanecera com os olhos semicerrados, mergulhada em langoroso êxtase, sem voz e sem pensamentos, presa duma sonolência suave e invencível que apenas lhe permitia sentir uma plenitude de vida até então desconhecida. Não só o peito se dilatara, mas, a cada aspiração, parecia entrar-lhe a vida pelos pulmões. Experimentava uma impressão física tão poderosa, tão absoluta, que não somente apagava as recordações do passado, mas dominava os pesares do presente.
Em semelhante estado era impossível crer na infelicidade; a vida apresentava-se ao espírito da jovem qual série de emoções doces e encantadoras, dispostas, sem forma palpável, num horizonte vago e maravilhoso.
Entregue àquele sono magnético, àquele devaneio sem pensamentos, Acteia sentiu abrir-se uma porta; mas, no estranho estado em que se achava qualquer movimento se lhe afigurava uma fadiga; nem se voltou pensando ser alguma das escravas que entrava.
Conservou os olhos meio fechados, escutando, na direcção do leito, o ruído de uns passos lentos, cadenciados, que, coisa extraordinária, ressoavam dentro de si própria.
Executou, a custo, um movimento com a cabeça e, olhando para o lado donde partia o ruído, apercebeu, majestosa e grave, uma mulher vestida como as matronas romanas, coberta por uma longa estola, a insista, franjada de púrpura.
Chegada junto do leito, aquela espécie de aparição parou; a jovem sentiu cravar-se nela um olhar profundo e investigador, ao qual, como o de uma adivinha, seria impossível ocultar alguma coisa. A desconhecida contemplou-a assim um instante, silenciosa; depois, em voz baixa mas sonora, cujos sons penetravam como geladas lâminas de punhais no coração daquela a quem se dirigiam, proferiu:
- Tu és a jovem coríntia que deixou a pátria e o pai para seguir o imperador, não é verdade?
Toda a vida de Acteia, felicidade, desespero, passado e futuro, se encerrava naquelas palavras, de modo que sentiu inundar-lhe a alma um fluxo de recordações. A sua existência de rapariga, colhendo flores junto à fonte Pirene, o desespero de seu velho pai quando, no dia imediato aos jogos, a chamara inutilmente, a sua chegada a Roma, onde lhe fora revelado o terrível segredo, até ali oculto pelo imperial amante, tudo surgiu de sob o véu encantado, desvendado pelo braço gélido daquela mulher. Acteia soltou um grito e, cobrindo o rosto com as mãos, exclamou soluçando:
- Oh, sim, sim! Sim, sou essa desgraçada!
Seguiu-se um momento de silêncio àquelas pergunta e resposta; durante ele, Acteia nem ousou abrir os olhos, porque adivinhava o olhar dominador daquela mulher, fixo sobre si. Sentiu a desconhecida pegar-lhe na mão descobrindo-lhe o rosto e, crendo achar naquele contacto, por frio e indeciso que fosse, mais piedade do que ameaça, ousou descerrar as pálpebras molhadas de lágrimas. A desconhecida contemplava-a sempre.
- Escuta - continuou esta com o mesmo acento sonoro, porém, adoçado - o destino encerra mistérios extraordinários. Por vezes, confia das mãos duma criança a felicidade ou a perda dum império. Quem sabe se foste enviada pela cólera dos deuses ou, talvez, pela sua clemência?
- Oh! - exclamou Acteia. - Sou culpada, mas culpada de amor e só de amor! Não possuo no coração um mau sentimento! Não podendo ser feliz, queria ver todos felizes! Mas estou isolada, e sou fraca e impotente! Indica-me o que posso fazer e fá-lo-ei!
- Primeiro, dize-me se conheces aquele a quem confiaste a tua sorte.
- Só desde esta manhã sei que Lúcio e Nero são o mesmo homem e que o meu amante é o imperador. Filha da Grécia antiga, fui atraída pela sua beleza, pela sua destreza e pelo seu canto. Segui o vencedor dos jogos ignorando que fosse o senhor do Mundo!
- E agora - tornou a desconhecida, com voz ainda mais vibrante e olhar mais firme - sabes que o teu amante é Nero. Bem. Mas sabes quem é Nero?
- Fui habituada a considerá-lo um deus - replicou Acteia.
- Pois bem - continuou a matrona, sentando-se - vou dizer-te quem é; convém que a amante conheça o amante e a escrava o seu senhor.
- O que irei ouvir? - murmurou a rapariga.
- Lúcio nasceu longe do trono; aproximou-se-lhe por uma aliança; subiu a ele por um crime.
- Não o cometeu ele! - exclamou Acteia.
- Foi a ele que aproveitou - retorquiu friamente a desconhecida. - Demais, o vendaval que abatera a árvore, poupara o rebento. Mas o filho em breve se reuniu ao pai. Britânico foi acompanhar Cláudio e, desta vez, cometeu o assassínio o próprio Nero.
- Oh, quem pode afirmá-lo?! - protestou Acteia. - Quem pode formular essa terrível acusação?
- Duvidas, rapariga? - interpelou a desconhecida, sem mudar de expressão. - Queres saber como as coisas se passaram? Vou dizer-to. Um dia em que, num aposento contíguo àquele em que estava a corte de Agripina, Nero brincava com algumas crianças, entre as quais Britânico, ordenou-lhe que entrasse no triclinium (1) e cantasse versos aos convivas; tinha em vista intimidá-lo e atrair sobre ele os risos e as vaias dos cortesãos. Britânico obedeceu; transpôs, vestido de branco, o triclinium e, adiantando-se, pálido e triste, no meio da orgia, em voz comovida e com lágrimas nos olhos, cantou os versos que Énio, o nosso velho poeta, põe na boca de Astianax: - "Ó pai! Ó pátria! Ó casa de Príamo! Palácio soberbo! Templo de gonzos retumbantes, tectos resplandecentes de oiro e de marfim! Vi-vos cair sob as mãos dum bárbaro, vi-vos presa das chamas!..." Por mais louca que fosse a orgia, o riso parou, substituído pelas lágrimas, ante a inocência e a dor. Tudo estava acabado para Britânico. Jazia nas prisões de Roma uma envenenadora célebre e afamada pelos seus crimes. Nero mandou chamar o tribuno Pólio Júlio, encarregado de a guardar, porque hesitava em falar a essa mulher. No dia seguinte, Pólio Júlio trouxe o veneno, que os próprios preceptores deitaram no copo de Britânico. Mas, quer por medo, quer por piedade, os assassinos recuaram ante aquele crime. A beberagem não produziu a morte. Então, Nero, ouves bem? Nero, o deus, como lhe chamaste há pouco, fez comparecer no seu palácio os envenenadores, e ali fez compor o veneno. Experimentaram-no num bode, que sobreviveu cinco horas; durante elas, fervendo-a, apuraram a poção que, ministrada a um javali, deu-lhe morte súbita! Nero dirigiu-se, então, para o banho, perfumou-se e vestiu uma toga branca. Depois, sentou-se, com o sorriso nos lábios, a uma mesa vizinha daquela em que comia Britânico...
- Mas - interrompeu Acteia, com voz trémula - se
(1) Sala das refeições.
Britânico foi na verdade envenenado, como sucedeu que o escravo provador não sentisse os efeitos do veneno? Dizem que Britânico desde muito criança padecia de ataques epilépticos e talvez um desses acessos...
- Sim, sim, é isso o que diz Nero! É nisso que se conhece a sua hipocrisia infernal. Sim, todas as bebidas, todas as iguarias destinadas a Britânico, provava-as o escravo. Mas apresentaram-lhe uma beberagem tão quente que, embora o escravo a provasse, a criança não a pôde beber. Para a resfriar, deitaram água fria no copo, e nessa água fria estava o veneno. Veneno rápido e habilmente preparado, porque Britânico, sem um grito, sem exalar uma queixa, fechou os olhos e caiu para trás. Alguns, imprudentes, fugiram; os mais hábeis ficaram, trémulos, pálidos, adivinhando tudo! Nero, naquele momento cantava; inclinou-se sobre a camilha, e, examinando Britânico, disse: "Não é nada, num instante voltará a si". E continuou a cantar. Contudo, ordenara com antecedência os preparativos fúnebres; uma fogueira fora preparada no Campo de Marte. Naquela mesma noite o cadáver, tatuado de manchas violáceas, foi para ali conduzido. Mas como se os deuses recusassem a cumplicidade no fratricídio, três vezes a chuva, caindo em torrentes, apagou a fogueira! Nero fez cobrir o corpo de pez e resina e, assim, o fogo, consumindo o cadáver, pareceu elevar ao céu, numa coluna ardente, o espírito irritado de Britânico.
- Mas Burro! Mas Séneca! - exclamou Acteia.
- Burro! Séneca! - repetiu, com amargura, a mulher desconhecida. - Encheram-lhes as mãos de dinheiro e a boca de oiro... Calaram-se!
- Ai de mim! - murmurou Acteia.
- Desde esse dia - reatou a matrona, a quem aqueles terríveis segredos pareciam familiares - Nero tornou-se o nobre filho dos Aenobarbo, o descendente dessa raça de barbas acobreadas, de rosto de ferro e coração de chumbo. Repudiou Octávia, a quem devia o império, exilando-a para a Campânia, onde a fez guardar à vista. Entregando-se, então, inteiramente, aos cocheiros, aos histriões e aos cortesãos, iniciou a vida de deboches e orgias que, há dois anos, atemoriza Roma. O teu amante, rapariga, o teu belo vencedor olímpico, aquele a quem todos chamam Imperador, e a quem as cortesãs adoram como um deus, chegada a noite, sai do palácio disfarçado de escravo, com a cabeça coberta com um gorro de liberto, e corre, ou à ponte Mílvia, ou a alguma taberna de Suburra; ali, entre libertinos, prostitutas, carregadores e barqueiros, ao som dos címbalos dum sacerdote de Cibele ou da flauta dalguma cortesã, o divino César canta as suas façanhas guerreiras e amorosas. Depois, à testa daquela turba excitada pelo vinho e pela luxúria, percorre as ruas da cidade, insultando as mulheres, batendo nos transeuntes, pilhando as casas, até entrar, por fim, no seu palácio de oiro, marcados no rosto vergonhosos sinais nele impressos pelo pau infame dalgum vingador incógnito.
- Impossível! Impossível! - gritou Acteia. - Tu calunia-lo!
- Enganas-te, rapariga, digo a verdade.
- Mas por que não te castiga ele, por revelares tais segredos?
- Talvez um dia aconteça; já o espero.
- Para que te expões, então, à sua vingança?
- Porque sou, provavelmente, a única pessoa que não pode fugir-lhe.
- Quem és, pois?
- Sua mãe.
- Agripina! - exclamou Acteia, atirando-se do leito e caindo de joelhos. - Agripina, de pé, diante de mim, pobre filha da Grécia! Agripina! A irmã, viúva e mãe de imperadores!... Oh, que me queres?! Fala, manda, obedecerei... Mas não ordenes que não o ame! Apesar de tudo que disseste, amo-o sempre!.. Se não posso obedecer nesta parte, posso morrer.
- Pelo contrário, criança - tornou Agripina - continua a amar César com esse amor imenso que sentias por Lúcio, porque nesse amor reside toda a minha esperança, porque é preciso a pureza de uma para combater a corrupção da outra...
- Da outra! - exclamou a jovem, aterrorizada. - César ama outra?
- Ignorava-lo, criança?
- Sei eu alguma coisa? Quando segui Lúcio, informei-me porventura de César? Que me importava o imperador? Julgava um simples artista quem eu amava, a quem oferecia a vida, pensando que podia pertencer-me a sua! Mas quem é essa outra mulher?
- Uma filha que renegou o pai, uma esposa que traiu o marido! Uma mulher fatalmente bela a quem os deuses tudo concederam, excepto coração: Sabina Popeia.
- Oh, sim, sim, ouvi pronunciar esse nome! Ouvi contar a sua história. Meu pai, julgando-me ausente, narrava-a, em voz baixa, a um outro velho e coravam ambos! Não deixou essa mulher Crispino, o seu esposo, para seguir Otão, o seu amante? E o seu amante, após um banquete, não a vendeu a César em troca do governo da Lusitânia?
- Isso mesmo! Isso mesmo - apoiou Agripina.
- E ele ama-a! Ama-a ainda! - suspirou dolorosamente a jovem.
- Sim - retrucou Agripina, em tom de ódio - sim, ama-a ainda e amá-la-á sempre, porque existe um mistério qualquer, qualquer filtro, como o ministrado por Cesônia a Calígula!
- Justos deuses! - bradou Acteia. - Como sou castigada! Como sou desgraçada!
- Menos castigada e menos desgraçada do que eu - replicou Agripina - porque tu eras livre de o tomar ou não por amante, e, a mim, os deuses impuseram-no como filho. Compreendes agora o que te cabe fazer?
- Fugir dele, não mais vê-lo.
- Não, criança, não fujas. Dizem que ele te ama.
- Dizem-no? É verdade? Crês?
- Sim.
- Oh, sê bendita!
- É forçoso, então, encaminhar este amor a um fim, uma esperança, uma orientação. É necessário afastar dele esse génio infernal que o perde, e salvarás Roma, o Imperador, e a mim própria, talvez.
- A ti própria? Julgas que ele a tanto ousaria?...
- Nero tudo ousa!...
- Mas... sou insuficiente para tal projecto!
- És a única mulher bastante pura para o levares a cabo.
- Oh! Não, não! Mais vale que eu parta, que nunca mais o veja!...
- O divino Imperador manda chamar Acteia - pronunciou a voz dum jovem escravo que acabava de abrir a porta.
- Esporo! - exclamou com espanto Acteia.
- Esporo! - repetiu Agripina, cobrindo a cabeça com a insista.
- César espera - disse o escravo, após um momento de silêncio.
- Vai, pois - acudiu Agripina.
- Sigo-te - assentiu Acteia, dirigindo-se a Esporo.
VII.
ACTEIA, cobrindo-se com um véu e um manto, seguiu Esporo. Depois de algumas voltas no palácio ainda não visitado por aquela que o habitava, Esporo abriu uma porta com uma chave de oiro, que em seguida entregou à jovem grega para poder regressar sem guia, e entraram nos jardins da casa doirada.
O horizonte era tão amplo e magnífico que Acteia julgou-se fora da cidade. Por entre as árvores, divisava uma toalha de água, grande como um lago.
Na margem oposta, por cima dos tufos vegetais, num longe azulado, prateado pelo luar, destacava-se a colunata dum palácio. A atmosfera estava pura; nem uma nuvem manchava o azul límpido do firmamento; o lago semelhava um enorme espelho; os últimos ruídos de Roma adormecida extinguiam-se no espaço.
Esporo e a rapariga, ambos de branco, passando no meio daquela paisagem esplêndida, pareciam dois fantasmas.
Nas praias do lago, como nas solidões da África, rebanhos de gazelas selvagens tosavam a relva que orlava as florestas; em ruínas fictícias, que recordavam as da sua pátria, empoleiravam-se grandes aves brancas de asas de fogo, gravemente imóveis como sentinelas e, como estas, fazendo ouvir de espaço a espaço, em intervalos iguais, um grito rouco e monótono.
Chegados à margem do lago, Esporo entrou num barco e fez sinal a Acteia para o seguir; depois, desdobrada uma pequena vela de púrpura, entraram a deslizar, como por magia, sobre aquela água em cuja superfície cintilavam as escamas doiradas dos mais raros peixes do mar da índia.
Esta digressão nocturna recordou a Acteia a viagem pelo mar da Jónia e, fitando o escravo, de novo se admirava da pasmosa semelhança entre os dois irmãos, que a impressionara já em Sabina e, agora, a impressionava em Esporo.
O rapaz, de olhos baixos e tímidos, parecia recear o olhar de Acteia e, piloto silencioso, dirigia a barca sem articular uma palavra.
Acteia rompeu, enfim, o silêncio e em voz que, apesar de suave, fez tremer o jovem, proferiu:
- Sabina disse-me que ficaras em Corinto, Esporo. Enganou-me, pois?
- Sabina disse-te a verdade, senhora - redarguiu o escravo. - Mas não podendo por mais tempo permanecer longe de Lúcio e como um barco se aprestava a dar à vela para a Calábria, embarquei nele. Em lugar de seguir pelo estreito de Messina, aportou, directamente, a Brindes. Tomei a via Ápia e, apesar de ter partido dois dias depois do imperador, cheguei ao mesmo tempo a Roma.
- Sabina decerto se mostrou feliz em tornar a ver-te, porque devem amar-se muito!...
- Sim, sem dúvida - disse Esporo - porque não só somos irmãos, mas também gémeos.
- Bem. Dize a Sabina que quero falar-lhe e que me procure amanhã de manhã.
- Sabina já não está em Roma - tornou Esporo.
- E por que partiu?
- Tal era a vontade do divino César.
- Para onde foi?
- Ignoro-o.
Havia na voz respeitosa do escravo um acento de hesitação e embaraço que impediu Acteia de prosseguir nas perguntas; demais, a barca tocava na margem do lago e Esporo, depois de a ter varado na praia, fez desembarcar Acteia.
A jovem seguiu-o, de novo silenciosa, apressando o passo, porque acabavam de entrar num bosque de pinheiros e sicômoros, cujas densas ramadas tornavam a noite mais espessa. Apesar de saber perfeitamente que auxílio algum devia esperar do seu condutor, aproximou-se dele por instintivo movimento de medo.
Havia alguns instantes que lhe chegava aos ouvidos uma melopeia plangente, que, a curtos intervalos, parecia subir das entranhas da terra.
De súbito, retiniu um grito humano, distintamente articulado.
A jovem estremeceu e, amedrontada, colocou a mão no ombro de Esporo.
- O que é isto? - indagou.
- Nada - contestou o escravo.
- Mas... pareceu-me ouvir... - obtemperou Acteia.
- Um gemido? Sim, passamos pelas prisões.
- E quem são os presos?
- Cristãos destinados ao circo.
Acteia continuou a andar, apressando-se ainda mais porque, ao passar por um respiradouro, reconheceu as notas mais lancinantes, mais dolorosas, da voz humana. Apesar dos cristãos terem sido sempre tratados na sua presença como associados duma seita culposa e ímpia, entregando-se a toda a espécie de deboches e de ciúmes, experimentava, embora julgando-os culpados, esse dó simpático que se sente pelos destinados a morte afrontosa. Não se demorou a sair do bosque fatal e, ao desembocar dele, viu o palácio iluminado, ouviu o som dos instrumentos; a luz e a melodia sucederam às trevas e aos lamentos.
Acteia entrou com passo mais seguro, mas menos rápido, no vestíbulo.
Parou um instante deslumbrada. Nunca, mesmo em sonhos, a feérica imaginação duma criança poderia criar tal magnificência. Aquele vestíbulo, resplandecente de bronze, marfim e oiro, era tão vasto, que o rodeava uma tríplice fila de colunas compondo pórticos de mil passos de comprido, e tão elevado que, ao centro, se erguia uma estátua de cento e vinte pés, esculturada por Zenodoro, representando o divino Imperador de pé, na atitude dum deus.
Acteia passou, tremendo, junto da estátua. Que poder temível era, pois, o daquele homem, que fazia esculturar imagens três vezes maiores do que as de Júpiter Olímpico; que possuía, como passeios, jardins e lagos que pareciam florestas e mares; que, para os seus entretenimentos e prazeres, dispunha de cativos que lançava aos tigres e leões?
Naquele palácio, todas as leis da vida humana estavam suspensas. Um gesto, um sinal, um olhar daquele homem, e pronto: um indivíduo, uma família, um povo desaparecia da superfície da terra sem que um sopro se opusesse à execução daquela vontade, sem outra queixa além dos gritos dos que morriam, sem que nada fosse abalado na ordem da natureza, sem que o Sol se velasse, sem que o raio anunciasse um céu acima dos homens, deuses acima dos imperadores...
Acteia subiu, pois, com um sentimento de temor profundo, a escadaria de acesso aos aposentos de Lúcio, e esta impressão tomou tal intensidade que, à porta, quando Esporo dava volta à chave, deteve-o tocando-lhe no ombro, com a mão sobre o coração, cujas palpitações a sufocavam.
Depois de um instante de hesitação, fez sinal para abrir. O escravo obedeceu; no fim da sala, Acteia avistou Lúcio vestido com uma simples túnica branca, coroado com um ramo de oliveira e meio deitado numa camilha de repouso. Então, desapareceram os pensamentos tristes. Julgara que aquele homem, o senhor do Mundo, devia ter mudado; mas ali estava Lúcio, o belo mancebo de barbas de oiro que guiara até casa de seu pai; tornava a encontrar o seu vencedor olímpico: César desaparecera. Quis correr para ele, mas a meio caminho faltaram-lhe as forças; caiu de joelhos, estendendo as mãos para o amante e murmurando a custo:
- Lúcio... sempre Lúcio... não é verdade?
- Sim, sim, minha bela coríntia, sossega! - retorquiu César, com voz suave, fazendo sinal de que se aproximasse. - Sempre Lúcio! Não foi com este nome que me amaste? Não me amaste, por mim próprio, e não pelo meu império, pela minha coroa, como todos os que me cercam? Vem, minha Acteia, levanta-te! O mundo a meus pés, mas tu nos meus braços.
- Oh! Eu bem o sabia! - exclamou Acteia, lançando-se ao pescoço do amante. - Eu bem sabia não ser verdade que Lúcio fosse mau!...
- Mau? - inquiriu Lúcio - Quem te disse já isso?
- Não, não - interrompeu Acteia - perdão! Julga-se o leão, que é nobre e corajoso como tudo, e que é rei entre os animais como tu imperador entre os homens, por vezes cruel porque, desconhecendo a sua força, mata com uma carícia. Ó meu leão, tem cuidado com a tua gazela!
- Nada temas, Acteia - redarguiu César, sorrindo. - O leão só se lembra das garras e dos dentes quando querem lutar com ele. Olha, vês, deita-se a teus pés como um cordeiro.
- Não é Lúcio que eu temo. Oh, para mim, Lúcio é o amante, é aquele que me arrebatou à pátria e a meu pai e que deve conceder-me em amor o que me tirou em pureza! Mas quem eu temo...
E hesitou; Lúcio animou com um gesto.
- É César que exilou Octávia... É Nero, o futuro marido de Popeia!
- Tu viste minha mãe! - exclamou Lúcio, erguendo-se dum pulo e encarando Acteia. - Tu viste minha mãe!
- Sim - murmurou, tremendo, a jovem.
- Foi ela quem te disse que eu era cruel, não é verdade? - continuou Nero, com amargura. - Que asfixiava abraçando, não é verdade? Que de Júpiter só tinha o raio que fulmina? Foi ela quem te falou dessa Octávia que protege e que eu odeio, que conseguiu, contra minha vontade, lançar nos meus braços e que tanto me custou a repelir, cujo estéril amor apenas me concedia carícias hipócritas e forçadas! Ah, enganam-se e fazem mal se imaginam obter de mim alguma coisa fatigando-me com súplicas ou ameaças! Eu bem quero esquecer essa mulher, a última duma raça maldita! Que não ma façam lembrada!...
Lúcio ficou espantado com a impressão produzida por estas palavras.
Acteia, com os lábios descorados, a cabeça descaída para trás, os olhos rasos de lágrimas, encostara-se ao espaldar do leito, toda trémula, ao sentir a primeira explosão daquela cólera. De facto, a voz tão doce que lhe fizera vibrar as mais secretas fibras do coração, tomara de súbito uma expressão terrível e fatal, e aqueles olhos, nos quais até ali só lera o amor, lançaram esses formidáveis relâmpagos que faziam velar a fronte a Roma.
- Meu pai! Meu pai! - gemeu Acteia, soluçando. -ó meu pai, perdoa-me!
- Sim, porque Agripina te disse que bastante castigada serias, no teu amor, pelo meu amor. Descobriu-te que espécie de besta-fera tu amavas. Contou-te a morte de Britânico! A de Júlio Montano! Que sei eu? Mas, decerto, não te disse que me queria roubar o trono e o outro me batera no rosto com um pau. E que vida tão pura a de minha mãe!
- Lúcio! Lúcio! - suplicou Acteia. - Cala-te, em nome dos deuses, cala-te!
- Oh - insistiu Nero - insinuou-te nos segredos da família?! Pois bem! Ouve o resto. Essa mulher que me censura pela morte duma criança e dum miserável foi, por Calígula, exilada por causa das desordens, por seu irmão, que não obstante, em matéria de costumes, era muito benévolo! Chamada do exílio quando Cláudio ascendeu ao trono, tornou-se mulher de Crispo Passieno, patrício, de ilustre família, que cometeu a imprudência de lhe legar as suas imensas riquezas e que ela mandou assassinar vendo que se demorava a morrer. Começou, então, a luta entre ela e Messalina. Messalina sucumbiu. Foi Cláudio o prémio da vitória. Agripina tornou-se amante do tio; data daí o projecto de reinar em meu nome. Octávia, a filha do Imperador, era a noiva de Silano. Arrancou Silano dos altares; falsas testemunhas acusaram-no de incesto. Silano matou-se e Octávia ficou viúva. Atirou com ela a meus braços, toda chorosa, e fui obrigado a aceitá-la, com o coração repleto doutro amor! Daí a pouco, uma mulher tentou arrebatar-lhe o seu imbecil amante. As testemunhas que acusaram Silano de incesto, acusaram Lólia Paulina de magia, e Lólia Paulina, que passava pela mais bela mulher do seu tempo, a quem Calígula desposara à maneira de Rómulo e de Augusto, mostrando-a aos romanos trazendo, num único adorno de esmeraldas e pérolas, quarenta milhões de sestércios, morreu lentamente na tortura. Nada havia que a separasse do trono. A sobrinha esposou o tio. Fui adoptado por Cláudio e o Senado outorgou a Agripina o título de Augusta. Espera, ainda não é tudo - continuou Nero, afastando as mãos de Acteia, que tentava tapar os ouvidos para não escutar aquele filho acusando a mãe. - Um dia, Cláudio condenou à morte uma adúltera. Esta sentença fez tremer Agripina e Palas. No dia seguinte, o Imperador jantava no Capitólio com os sacerdotes. O seu provador, Haloto, serviu-lhe um prato de cogumelos, preparado por Locusta. Como a dose não fosse bastante forte e o imperador se deitasse sobre o leito do festim, debatendo-se contra a agonia, Xenofonte, o seu médico, a pretexto de o fazer vomitar o fatal manjar, introduziu-lhe na garganta uma pena envenenada e, pela terceira vez, Agripina ficou viúva. Contando-te a sua história, olvidou esta parte, não é assim? E começou no momento em que me colocou no trono julgando poder reinar em meu nome, querendo ser o corpo tornando-me sombra, a realidade, tornando-me fantasma. E, efectivamente, assim sucedeu por algum tempo. Teve a sua guarda pretoriana, presidiu ao Senado, deu sentenças, fez condenar à morte o liberto Narciso e envenenar o Procônsul Júlio Silano. Um dia em que, sabedor de tantos suplícios, me queixava da inutilidade a que me votavam, alegou que favor demais me concediam, sendo um estranho, um filho adoptivo, e acrescentou que, felizmente, ela e os deuses velavam pela vida de Britânico! Juro-te que, antes de me dizer o que acabo de referir, tanto pensava nessa criança como hoje em Octávia. Aquela ameaça, e não o veneno, produziu a sua morte! Assim não foi o de assassínio o meu crime; foi o de querer ser imperador! Foi então (tem paciência, escuta, que vou terminar), foi então, ouves, jovem pura e casta mesmo no meio do teu amor! foi então que ela tentou reaver, como amante, o ascendente que perdera como mãe!
- Oh, cala-te! - gritou Acteia, espantada.
- Falavas-me de Octávia e de Popeia, sem pressentires uma terceira rival!
- Cala-te! Cala-te!...
- E não procurou o silêncio da noite, a solitária sombra dum misterioso e afastado aposento, para me patentear a sua intenção! Não! Escolheu um festim, a animação duma orgia, a presença duma corte! Ali estavam Séneca, Burro, Páris e Fáon... todos! Apareceu coroada de flores, seminua, no meio de canções e das luzes! Então, atemorizados pelos seus projectos e pela sua beleza - porque ela é bela! - os seus inimigos antepuseram-lhe Popeia. Agora, o que pensas da minha mãe, Acteia?
- Infâmia! Infâmia! -murmurou a jovem, cobrindo com as mãos o rosto vermelho de vergonha.
- Não é uma raça singular, esta nossa? Não nos julgando dignos de ser homens, fazem-nos deuses! Meu tio asfixia o tutor com um travesseiro e o sogro num banho. Meu pai, em pleno Fórum, tira, com uma chibata, um olho a um cavaleiro; na Via Ápia esmaga com o seu carro um jovem romano que não se afasta depressa; à mesa, um dia, perto do jovem César, a quem acompanhara ao Oriente, apunhala, com a faca de mesa, o seu liberto que recusava beber. Minha mãe, já te contei o que fez: mata Passieno, mata Silano, mata Lólia Paulina, mata Cláudio. E eu, o último da família, em quem se extinguirá o seu nome, se fosse imperador justo em vez de filho piedoso, mataria minha mãe!...
Acteia soltou um terrível grito e caiu de joelhos, estendendo os braços para César.
- Então? O que fazes? - prosseguiu Nero, sorrindo com estranha expressão. - Tomas a sério o que não passa de gracejo: alguns versos, retidos na memória, de Orestes, que há pouco cantei, e que se misturaram com a minha prosa. Vamos, sossega, louca criança que és! Demais, vieste para suplicar e ter medo? Mandei-te buscar para martirizares os joelhos e torceres os braços? Vamos, levanta-te. Sou por acaso César? Sonhas, minha bela coríntia. Sou Lúcio, o atleta, o condutor do carro, o cantor da lira doirada, de voz terna; eis tudo.
- Oh! - acudiu Acteia, apoiando a fronte no ombro de Lúcio. - É facto que há momentos em que me julgaria sob o império dum sonho e que vou despertar sob o tecto paternal, se não sentisse, no fundo do meu coração, a realidade do meu amor. Oh, Lúcio! Lúcio! Não gracejes assim. Não atendes a que estou suspensa dum fio sobre os abismos do inferno? Tem piedade da minha fraqueza; não me tornes louca.
- E de onde provêm esses temores e essas angústias? A minha bela Helena tem queixas do seu Páris? O palácio que habita não é suficientemente grandioso? Far-lhe-emos edificar um outro, com colunas de prata e capitéis de ouro. Faltaram-lhe ao respeito os escravos que a servem? Tem sobre eles o direito de vida e morte. O que quer ela? O que deseja? Tudo o que um homem, tudo o que um imperador, tudo o que um deus pode conceder, peça-o e obtê-lo-á!
- Sim, sei que és todo poderoso. Acredito que me amas; espero me darás quanto pedir. Tudo, excepto o repouso da alma, a convicção íntima de que Lúcio me pertence como eu lhe pertenço! Há um lado da tua pessoa, uma parte da tua vida, que me escapam envoltos em sombras, perdidos na noite. É Roma, é o império, é o mundo que te reclama! E tu só és meu quando estou junto de ti! Tens segredos, tens ódios que não posso partilhar, amores que não devo conhecer. Em meio das nossas mais ternas expansões, das nossas mais doces conversas, das nossas horas mais íntimas, abrir-se-á uma porta, como se abre neste momento, e um liberto, de rosto impassível, far-te-á um sinal misterioso, que não poderei, que não deverei compreender. Olha, eis a minha aprendizagem que começa.
- O que queres, Aniceto? - perguntou Nero.
- Aquela a quem o divino César mandou chamar, espera-o.
O liberto saiu.
- Bem vês! - exclamou Acteia, olhando-o tristemente.
- Explica-te - exigiu Nero.
- Está ali uma mulher?
- Sem dúvida.
- Senti-te estremecer quando a anunciaram.
- Só se estremece de amor?
- Aquela mulher, Lúcio...
- Fala... escuto...
- Aquela mulher...
- Bem, aquela mulher chama-se Popeia!
- Enganas-te - explicou Nero. - Aquela mulher chama-se Locusta!
VIII.
Nero levantou-se e saiu. Algumas voltas por corredores secretos só conhecidos do imperador e dos seus mais fiéis escravos, e Nero e o liberto entraram num pequeno aposento, sem janelas, no qual o dia e o ar entravam por uma abertura do tecto, abertura que menos iluminava o âmbito do que deixava sair o vapor que, em dados momentos, se exalava dos rescaldos de bronze, agora frios, mas em que o combustível só esperava o fogo e o ar, esses dois grandes motores da vida e da luz. Em volta do quarto estavam arrumados instrumentos de grés e de vidro, de formas alongadas e estranhas, modeladas por algum artista caprichoso, representando aves bizarras ou desconhecidos peixes. Vasos de tamanhos diferentes, hermeticamente fechados com tampas, nas quais o olhar espantado em vão procurava decifrar caracteres de convenção que não pertenciam a língua alguma, alinhavam-se em prateleiras circulares e cingiam o laboratório mágico como essas faixas misteriosas que apertam a cintura das múmias.
Por cima, pendiam de pregos de oiro plantas secas ou verdes, segundo deviam ser empregadas em folhas ou em pó. A maior parte daquelas plantas haviam sido colhidas nas épocas recomendadas pelos mágicos: no começo da canícula, nesse período preciso e rápido em que o feiticeiro não podia ver nem lua nem sol. Havia naqueles vasos as mais preciosas e raras preparações. Uns continham pomadas que tornavam invencível quem delas usava, manipuladas, à custa de grandes despesas e trabalho, com a cabeça e a cauda de uma serpente alada, pêlos arrancados do focinho dum tigre, tutano de leão e espuma dum cavalo vencedor. Outros encerravam sangue de basilisco, chamado sangue de Saturno, amuleto precioso para o cumprimento de todos os votos. Havia, enfim, alguns que não podiam pagar-se nem pelo seu peso em diamantes e nos quais se misturavam algumas parcelas desse perfume tão raro que, dizem, só Júlio César o possuiu e que se encontrava no oiro apiro, isto é, não submetido à acção do fogo. Entre aquelas plantas existiam coroas de henocrysos, a flor que faz obter o favor e a glória, e molhos de verbenas arrancadas com a mão esquerda, cujas folhas, hastes e raízes foram secas à sombra, separadamente. A verbena proporcionava a alegria e o prazer; regado o triclinium com a água em que fossem postas de infusão algumas folhas, nenhum conviva, por mais taciturno, filósofo ou severo que fosse, deixava de ser presa da mais louca alegria.
Uma mulher vestida de preto, a túnica arregaçada de um lado até ao joelho, onde um carbúnculo a prendia, a mão esquerda segurando a vara de aveleira, árvore que servia para descobrir tesouros, esperava Nero naquele quarto; sentada, embrenhada em lucubrações, não reparou na entrada do imperador.
Nero adiantou-se para ela e, à medida que se aproximava, o seu rosto tomava uma singular expressão de temor, de repugnância e de desprezo. Fazendo sinal a Aniceto, este tocou ao de leve no ombro da mulher, que ergueu lentamente a cabeça e sacudiu, para os afastar, os cabelos, os quais, livres, sem pentes ou faixas, lhe cobriam como um véu as faces, todas as vezes que baixava a fronte. Pôde, então, ver-se o rosto da mágica; era o duma mulher de trinta e cinco a trinta e sete anos, outrora bela, agora fanada pela insónia, pelo deboche e, talvez, pelos remorsos.
Dirigiu a palavra a Nero sem se levantar e movendo apenas os lábios.
- O que me queres ainda? - disse-lhe ela.
- Primeiramente - retorquiu Nero - lembras-te do passado?
- Pergunta a Teseu se se lembra do inferno.
- Como sabes, fui buscar-te a uma prisão infecta onde agonizavas lentamente no meio da lama que te servia de leito e dos répteis que te subiam pelas mãos e pelo rosto.
- O frio era tão intenso que não os sentia.
- Sabes que te fiz entrar numa casa construída para ti i ornamentada como a duma amante. Chamavam à tua indústria um crime, eu chamei-lhe arte. Perseguiam os teus cúmplices, dei-te discípulos.
- E eu, em troca, concedi-te metade do poder de Júpiter. Pus às tuas ordens a Morte, essa filha surda e cega do Sono e da Noite.
- Bem; vejo que te recordas. Mandei-te chamar...
- Quem deve morrer?
- Oh, quanto a isso, precisas adivinhá-lo, porque eu não posso dizer-to! É um inimigo poderoso demais, perigoso demais para que eu confie o seu nome à própria estátua do Silêncio. Mas toma sentido! É forçoso que o veneno opere rápido e não como sucedeu com Cláudio; que seja eficaz ao primeiro ensaio, e não como aconteceu com Britânico; é indispensável que mate logo, sem permitir ao paciente articular uma palavra, fazer um gesto. Enfim, necessito dum veneno semelhante ao que preparámos neste mesmo lugar e que experimentámos num javali.
- Oh - advertiu Locusta - se só se trata de propinar esse veneno ou outro mais terrível ainda, nada mais fácil! Mas quando compus aquele de que falas sabia que era destinado a uma criança ingénua e podia assegurar o resultado; porém, há pessoas sobre quem o veneno, como acontece com Mitridates, não tem poder algum porque habituaram o estômago, pouco a pouco, a suportar os mais venenosos sucos, os mais mortíferos pós. Se por desgraça à minha arte se deparasse uma dessas criaturas, dirias que te enganei.
- E - continuou Nero - tornaria a arremessar-te para a masmorra onde, de novo seria Pólio Júlio o teu carcereiro; eis o que faria. Reflecte bem.
- Dize-me o nome da vítima e responder-te-ei.
- Mais uma vez repito que não posso nem quero dizê-lo. Não tens combinações para achar o desconhecido? Sortilégios que fazem aparecer fantasmas velados que interrogas e que te respondem? Procura, indaga. Nada te quero dizer, mas não impeço que adivinhes.
- Nada posso fazer aqui.
- Não estás presa.
- Voltarei dentro de duas horas.
- Prefiro seguir-te.
- Mesmo ao monte Esquilino?
- A toda a parte.
- E virás só?
- Sim, se é preciso.
- Então, vem.
Nero fez sinal a Aniceto, que se retirou, e seguiu
Locusta saiu da casa dourada levando o gládio por única arma aparente. Verdade é, dizia-se, que, noite e dia, trazia sobre a pele uma couraça de escamas que lhe defendia o peito; era tão habilmente tecida que não impedia movimento algum, apesar de estar à prova das armas melhor temperadas e dos mais vigorosos braços.
Percorreram as ruas sombrias de Roma sem escravo algum que lhes alumiasse o caminho, até ao Velabro, onde era situada a casa de Locusta. A feiticeira bateu três pancadas; uma velha que, por vezes, a ajudava nas suas práticas, veio abrir e afastou-se, sorrindo, para permitir a passagem do belo moço que vinha, sem dúvida, buscar algum filtro. Locusta empurrou a porta do seu laboratório e, entrando primeiro, fez sinal a César para a seguir. Deparou-se-lhe uma mistura singular dos mais diferentes e hediondos objectos: múmias egípcias e esqueletos etruscos encostavam-se ao longo das paredes; crocodilos e peixes de formas extraordinárias pendiam do tecto, presos por fios de ferro invisíveis; figuras de cera, de diversas grandezas e modelos, erguiam-se sobre pedestais, com agulhas ou punhais cravados no coração.
Por entre estes objectos voava sem ruído um mocho espantado que, ao pousar, dava estalos com o bico, em sinal de medo, luzindo-lhe os olhos como carvões ardentes; a um canto, uma ovelha preta balava tristemente, adivinhando, talvez, a sorte que a esperava. Passados instantes, de entre todos aqueles ruídos diversos, Nero distinguiu gemidos; olhando com atenção em torno de si, deparou-se-lhe, no chão, no meio do aposento, um objecto que, a princípio, não pôde bem distinguir: uma cabeça humana, sem corpo, apesar de parecerem viver os olhos, tendo enrolada ao pescoço uma serpente, cuja língua negra e móvel se dirigia, de espaço a espaço, com inquietação, para o lado do imperador, mergulhando-a depois numa escudela com leite.
Em torno daquela cabeça, como em volta de Tântalo, estavam dispostas iguarias e frutos; assistia, pois, a um suplício, a um sacrilégio ou a uma irrisão. Não restava dúvida, os gemidos provinham daquela cabeça!
Entretanto, Locusta começara a operação mágica. Depois de ter regado toda a casa com água do lago Averno, acendeu ramos de cipreste e de sicômoro, arrancados de sobre os túmulos, e deitou neles penas de coruja molhadas em sangue de sapo e ervas colhidas em Iolco e na Ibéria. Acocorou-se diante da fogueira, murmurando palavras ininteligíveis; quando começou a apagar-se a chama, olhou em volta como procurando alguma coisa que o seu olhar não encontrou de pronto; então, soltou um assobio especial que fez erguer a cabeça à serpente; passado um instante, assobiou segunda vez e o réptil desenrolou-se lentamente; enfim, um terceiro assobio, e como forçado a obedecer a este chamamento, o animal encaminhou-se até ela, a medo, rastejando vagarosamente. A feiticeira tomou-o pelo pescoço e aproximou-lhe a cabeça da chama; a serpente enrolou-se no braço de Locusta e silvou de dor; esta aproximou-a cada vez mais do lume até a boca se cobrir de baba; três ou quatro gotas daquela espuma caíram nas cinzas; era o que provavelmente Locusta esperava, porque largou o réptil, que fugiu com rapidez, enroscando-se, como uma trepadeira, em torno da perna dum esqueleto e refugiou-se nas cavidades do peito onde, durante algum tempo, se agitou no interior das costelas que o rodeavam, quais grades duma gaiola.
Locusta recolheu as cinzas e as brasas num pedaço de amianto, pegou na corda que prendia a ovelha pelo pescoço e, tendo terminado o que tinha a fazer em casa, voltou-se para Nero, que assistira a tudo com a impassibilidade duma estátua, e perguntou-lhe se insistia em a acompanhar ao monte Esquilino. Nero aquiesceu com um sinal de cabeça. Locusta saiu e o imperador seguiu-a; no momento de fechar a porta, ouviu uma voz implorando piedade com acento tão doloroso que o imperador comovido quis deter Locusta; esta objectou que a menor demora faria abortar a conjuração e que, se o imperador não a acompanhasse no mesmo instante, seria forçada a ir só ou adiar para o dia seguinte a empresa. Nero empurrou a porta e apressou-se a segui-la; de resto, como não era estranho aos mistérios da adivinhação, compreendera, pouco mais ou menos, de que se tratava. Aquela cabeça pertencia a uma criança, enterrada até ao pescoço, a quem Locusta fazia morrer de fome, à vista da comida colocada longe do seu alcance, a fim de confeccionar, com o tutano dos ossos do cadáver e com o coração ressequido pela cólera, um desses filtros amorosos que os ricos libertinos de Roma ou as amantes dos imperadores pagavam, algumas vezes, por quantias suficientes para comprar uma província.
Nero e Locusta, semelhantes a duas sombras, seguiram, por algum tempo, as tortuosas ruas do Velabro; depois, meteram-se, silenciosos e rápidos, por detrás dos muros do grande circo e ganharam o sopé do monte Esquilino. A Lua, no primeiro quarto, surgia do cume do monte; no azul prateado do céu destacavam-se as numerosas cruzes em que estavam pregados corpos de ladrões e de cristãos, confundidos no mesmo suplício. Ao princípio, o imperador julgou que Locusta precisava de algum daqueles cadáveres, mas a envenenadora passou por eles sem se deter e, fazendo sinal a Nero para a esperar, foi ajoelhar sobre um pequeno montículo onde, como uma hiena.
escavou com as unhas um buraco, em que deitou as cinzas ardentes que trouxera e em que a brisa fez brilhar algumas faúlhas. Pegando na ovelha, abriu-lhe, com os dentes, a artéria do pescoço e apagou o lume com aquele sangue. Súbito, a Lua velou-se, como para não assistir a tais sacrilégios; não obstante a obscuridade cobrir a montanha, Nero viu levantar-se, em frente da envenenadora, uma sombra, com que ela conversou durante instantes; recordou-se de que, por aqueles sítios, fora enterrada a mágica Canídia, de quem falam Horácio e Ovídio, que fora estrangulada em punição dos seus crimes, e não lhe restou a menor dúvida de que Locusta interrogava o seu espírito. Passados momentos, a sombra pareceu sumir-se na terra, a Lua emergiu da nuvem que a toldava e Nero viu Locusta pálida e trémula.
- Então? - indagou o imperador.
- Toda a minha arte seria inútil.
- Já não possuis venenos mortais?
- Tenho; porém, ela conhece antídotos infalíveis.
- Sabes, pois, quem é aquela que condenei? - continuou Nero.
- É a tua mãe - explicou Locusta.
- Está bem - redarguiu friamente o imperador; - acharei outro meio.
E ambos desceram da montanha maldita e perderam-se nas sombrias e desertas ruas que levam ao Velabro e ao Palatino.
No dia seguinte, Acteia recebeu do seu amante uma carta convidando-a a partir para Baias, e esperar ali o imperador, que ia celebrar, com Agripina, as festas de Minerva.
X.
Oito dias tinham decorrido após a cena referida no capítulo precedente.
Eram dez horas da noite. A Lua, acabando de nascer, elevava-se lentamente por detrás do Vesúvio, projectando os seus raios sobre toda a costa napolitana. À sua claridade pura e brilhante, resplandecia o golfo de Putéolos, atravessado pela linha sombria da ponte que, insensatamente, para cumprir a predição do astrólogo Trasilo, o terceiro César, Caio Calígula, fez lançar de uma à outra das suas margens. Nas praias e em toda a extensão do crescente imenso que vai desde o cabo Miseno até à ponta Pausílipo, viam-se desaparecer, umas após outras, como estrelas que se apagam no firmamento, as luzes das cidades, das aldeias e dos palácios nelas dispersos, mirando-se nas ondas rivais das águas azuis da Cirenaica. Por algum tempo ainda, no meio daquele silêncio, viram-se deslizar, levando um facho à proa, algumas barcas retardadas, que ganhavam, com a ajuda de velas triangulares ou dos remos, os portos de Enária, de Procita ou de Baias. Depois, a última destas barcas desapareceu e o golfo ficaria inteiramente deserto e silencioso se não embalasse alguns navios amarrados à praia, em frente dos jardins de Hortênsio, entre a vila de Júlio César e o palácio de Baulos.
Passada uma hora, a noite tornou-se ainda mais calma e mais serena com a ausência de todo o ruído e de todo o vapor terrestre. Nem uma nuvem manchava o céu puríssimo como o mar; nem a menor ondulação encrespava o mar, espelho do firmamento. A Lua, continuando a sua marcha no límpido azul, parecia ter parado um instante por cima do golfo, mirando-se nele. Extinguiram-se as últimas luzes de Putéolos, e só o farol do cabo Miseno cintilava na extremidade do promontório qual facho na mão dum gigante.
Era uma dessas noites em que Nápoles, a bela filha da Grécia, abandona aos ventos a sua cabeleira de laranjeiras e às vagas o seu seio de mármore.
De tempos a tempos, passava nos ares um desses misteriosos suspiros que a terra adormecida envia aos céus e, no horizonte oriental, o fumo branco do Vesúvio subia na atmosfera tão sereno que semelhava uma coluna alabastrina, resto imenso de alguma desaparecida Babel.
De repente, no meio daquele silêncio, daquela tranquilidade, os marinheiros estirados nas barcas da praia viram brilhar fachos por entre as árvores que ocultavam metade do palácio de Baulos. Ouviram aproximar-se vozes alegres; em breve desembocou dum bosque de laranjeiras e loureiros, dirigindo-se para eles, um cortejo, brilhante de luzes e repleto de ruído. O marinheiro que parecia comandar o maior dos barcos, uma trirreme magnificamente dourada e coroada de flores, fez estender sobre as pranchas que uniam o navio à praia um tapete de púrpura e, saltando em terra, esperou numa atitude de respeitoso temor. Abria o cortejo César Nero. Acompanhava-o Agripina e, coisa extraordinária, não presenciada desde a morte de Britânico, a mãe apoiava-se no braço do filho e ambos, de rosto risonho, trocando palavras amigáveis, aparentavam a mais perfeita inteligência.
Perto da trirreme, o cortejo parou. Diante de toda a corte, Nero, com os olhos inundados de lágrimas, apertou a mãe contra o coração, cobrindo-lhe de beijos o rosto e o pescoço, como se sentisse pesar da separação; depois, deixando-a por assim dizer escapar dos braços, voltando-se para o comandante do navio, disse:
- Aniceto, respondes por minha mãe com a tua cabeça!
Agripina atravessou a prancha e embarcou na trirreme, que se afastou lentamente da praia, metendo a proa entre Baias e Putéolos. Nero não abandonou a praia; algum tempo ali permaneceu de pé, saudando a mãe com a voz e o gesto, enquanto Agripina, pelo seu lado, correspondia aos adeuses. Logo que o barco passou além do alcance da voz, Nero voltou para Baulos e Agripina desceu à câmara para ela preparada.
Apenas se reclinara no leito de púrpura, ergueu-se um reposteiro e uma jovem, pálida e trémula, foi cair-lhe aos pés, gritando:
- Oh, minha mãe! Minha mãe! Salva-me!
Agripina estremeceu de surpresa e temor; depois, reconhecendo a grega:
- Acteia! - disse com espanto. - Tu aqui? No meu navio, pedindo-me protecção?... E contra quem? Tu! Tão poderosa que me restituíste a amizade de meu filho!
- Oh! Contra ele, contra mim, contra o meu amor.. contra esta corte que me espanta, contra este mundo tão novo e tão estranho para mim!
- Com efeito - lembrou Agripina - desapareceste no meio do jantar. Nero perguntou por ti, mandou procurar-te. Por que fugiste?
- Porquê? Pergunta-lo? Era possível a uma mulher... perdão!... permanecer no meio de tal orgia, que faria corar as sacerdotisas de Vénus? Oh, minha mãe! Não ouviste aquelas canções? Não vistes aquelas cortesãs nuas... aqueles arlequins cujos gestos eram uma vergonha, menos para eles do que para quem os via? Oh, não pude suportar aquele espectáculo e fugi para os jardins! Aí, pior ainda! Os jardins estavam povoados como os bosques antigos; cada fonte habitada por uma ninfa impudica, cada bosque abrigando um sátiro lúbrico... e queres crer, minha mãe? Entre aqueles homens e aquelas mulheres, reconheci matronas e cavaleiros... Fugi, então, dos jardins, como fugira da mesa. Vi aberta uma porta que dava sobre o mar e corri para a praia. Reconheci o trirreme, gritei que pertencia ao teu séquito e vinha esperar-te... Receberam-me, e entre estes marinheiros, estes soldados, estes homens grosseiros, respirei mais à vontade, mais tranquilamente, do que à mesa de Nero, rodeada de toda a nobreza de Roma.
- Pobre criança! E que esperas de mim?
- Um asilo na tua casa do lago Lucrino, um lugar entre os teus escravos, um véu bastante espesso para ocultar a vermelhidão do rosto!
- Não queres, pois, tornar a ver o imperador?
- Oh, minha mãe!
- Queres, então, deixá-lo errar, ao acaso, como um barco perdido, nesse mar de deboches?
- Oh, minha mãe! Se o amasse menos, talvez pudesse ficar a seu lado; mas ver ali, diante de mim, outras mulheres amadas como eu sou amada ou, antes, como julgava sê-lo, impossível! Receber tão pouco em troca de tanto que dei... não! Perder-me-ia, entre este mundo perdido. O convívio dessas mulheres tornar-me-ia como elas. Possuiria, também, um punhal no cinto, veneno num anel... depois... um dia...
- O que há, Acerrónia? - interrompeu Agripina, dirigindo-se a uma jovem escrava que entrava.
- Posso falar, divina? - implorou esta, em voz alterada.
- Fala.
- Para onde julgas ir?
- Para a minha vila do lago Lucrino, parece-me.
- Sim, a princípio, dirigimo-nos para esse lado, mas, depois, o barco mudou de rumo e vogamos na direcção do mar alto.
- Do mar alto! - exclamou Agripina.
- Olha - disse a escrava, correndo a cortina que cobria uma janela. - olha. O farol do cabo devia ficar muito longe, para trás de nós, e ei-lo, à nossa direita; em lugar de nos aproximarmos de Putéolos, afastamo-nos à força da vela.
- Com efeito - gritou Agripina - o que significa isto? Galo! Galo!
Um moço cavaleiro romano apareceu à porta.
- Galo - ordenou Agripina - dize a Aniceto que quero falar-lhe.
Galo saiu, seguido de Acerrónia.
- Justos deuses! O farol apagou-se, como por encanto - prosseguiu ela. - Acteia, Acteia, prepara-se, decerto, alguma infâmia. Oh, avisaram-me de que não viesse a Baulos e eu não quis crer... insensata! Então, Galo?
- Aniceto não pode obedecer às tuas ordens. Está tratando de arrear as chalupas na água.
- Vou, então, eu... Ah, que ruído é este, por baixo de nós?! Por Júpiter! Estamos condenados... o barco parte-se!
Com efeito, mal Agripina pronunciara estas palavras, abraçando-se a Acteia, a coberta estalou e abriu-se com um ruído horroroso.
As duas mulheres julgaram-se perdidas, mas, por estranho acaso, o dossel que cobria o leito estava tão profunda e solidamente seguro ao costado que susteve o peso da coberta, cuja extremidade oposta foi esmagar o jovem romano que se achava de pé, à entrada da câmara.
Agripina e Acteia ficaram no espaço vazio formado pelas pranchas sustidas pelo dossel.
Em seguida ressoaram grandes gritos por todo o navio; ouviu-se um ruído surdo nas profundezas do porão e as duas mulheres sentiram o barco tremer e como que gemer sob os pés; a quilha abria-se e o mar, invadindo-o pela brecha hiante, arremessava-se já contra a porta da câmara. Agripina adivinhou tudo num relance. A morte, mas a morte ordenada por alguém, cercava-a por todos os lados. A coberta ameaçava esmagá-las; a água engoli-las. A janela, por onde olharam quando se extinguira o farol de Miseno, estava aberta: era a única via de salvação. Agripina impeliu Acteia para aquela janela, fazendo sinal de guardar silêncio com esse gesto rápido e imperioso indicativo de que a conservação da vida depende da obediência e, ambas, sem olhar para trás, sem hesitação, sem demora, precipitaram-se na água, mutuamente abraçadas. No mesmo instante julgaram-se atraídas para os mais profundos abismos do mar por algum poder infernal; o barco submergia-se, volteando, e elas afundavam-se com ele, arrastadas pelo redemoinho que cavava. Alguns segundos, longos séculos, durou aquela descida; cessou.
enfim, o movimento de atracção; sentiram que, parada a descida, começavam a subir; pouco depois, meio desmaiadas, estavam à tona da água. Nesse momento, viram, como através dum véu, uma terceira cabeça, movendo-se perto das barcas; ouviram, como num sonho, uma voz gritando:
- Sou Agripina, sou a mãe de César, salvem-me!
Por seu turno Acteia quis pedir socorro, mas Agripina agarrou a rapariga e a sua voz, apenas articulada, soou confusamente.
Pouco depois estavam longe das barcas e Agripina indicou-lhe com a mão, enquanto nadava com a outra, um remo que se erguia e despedaçava, caindo, a cabeça de Acerrónia bastante insensata para ter julgado salvar-se gritando aos assassinos que era a mãe de César.
As duas fugitivas continuaram a fender a água em silêncio, dirigindo-se para a costa, enquanto Aniceto, supondo cumprida a sua missão de morte, remava em direcção a Baulos, onde o esperava o imperador.
O céu conservava-se puro e o mar acalmara; contudo, o local onde Agripina e Acteia voltaram à tona de água distava tanto da costa que buscavam atingir, que, depois de nadarem durante mais de meia hora, ainda ficavam a meia légua de terra.
Para maior fatalidade, Agripina, ao cair, ferira-se no ombro, sentindo entorpecer o braço direito; escapara a um primeiro perigo, para afrontar um outro ainda mais terrível e mais certo.
Acteia percebeu que Agripina nadava a custo e, apesar de não ouvir uma única queixa, adivinhou que a mãe de Nero precisava de socorro. Passando para o lado oposto, agarrou-a pelo braço, oferecendo o pescoço como ponto de apoio, e continuou a avançar, sustendo Agripina que, em vão, suplicava que se salvasse sozinha e a deixasse morrer.
Depois de ter acompanhado a mãe ao barco, Nero reentrara no palácio de Baulos e, retomando, à mesa, o lugar por instantes abandonado, mandara vir mais cortesãos, mais pelotiqueiros, ordenara a continuação do festim e, acompanhando-se com a lira, cantava o cerco de Tróia. Porém, de espaço a espaço, estremecia; passava-lhe nas veias um arrepio e um suor frio gelava-lhe a fronte; algumas vezes julgava ouvir o último grito da mãe; outras, parecia-lhe que o génio da morte, atravessando-lhe aquela atmosfera quente e embalsamada, lhe roçava a fronte com a ponta da asa.
Após duas horas de febril ansiedade, entrou um escravo que, dirigindo-se a Nero, lhe proferiu ao ouvido algumas palavras que ninguém percebeu, mas que o fizeram empalidecer. Deixando cair a lira e arrancando a coroa saiu, correndo, da sala do festim, sem explicar a causa de tão súbito terror e abandonando aos convivas a escolha de se retirarem ou continuarem a orgia.
Mas a perturbação do imperador fora tão visível e a saída tão brusca que os cortesãos pressentiram que acabava de passar-se alguma coisa de terrível e todos se apressaram a seguir o exemplo do seu senhor; alguns minutos depois, aquela sala, pouco antes tão repleta, tão ruidosa e animada, estava deserta e silenciosa como um túmulo profanado.
Nero retirara-se para o seu quarto e chamara Aniceto. Este, logo que entrara no porto, fora dar conta da sua missão ao imperador, que, seguro da sua fidelidade, dúvida alguma concebera sobre a veracidade da narrativa.
O espanto de Aniceto foi, pois, enorme quando Nero, vendo-o entrar, correu para ele gritando:
- Porque me disseste há pouco que ela morrera? Está lá em baixo um mensageiro, vindo da sua parte!
- Então, vem ele do inferno! - retorquiu Aniceto. - Porque vi a coberta abater e o barco soçobrar; porque ouvi uma voz gritar: "Sou Agripina, a mãe de César", e vi levantar-se o remo que esmagou a cabeça daquela que, tão imprudentemente, pedira socorro!
- Pois, enganaste-te! Foi Acerrónia quem morreu; minha mãe salvou-se.
- Quem disse isso?
- O liberto Agerino.
- Viste-lo?
- Ainda não!
- Que tenciona fazer o divino Imperador?
- Posso contar contigo?
- A minha vida pertence a César.
- Então, penetra neste gabinete; quando chamar por socorro, entra rapidamente; prende Agerino e diz que o viste levantar o punhal contra mim.
- São ordens os teus desejos - terminou Aniceto, inclinando-se e entrando no gabinete.
Nero ficou só; pegou num espelho e, vendo o rosto transtornado, cobriu a palidez com vermelhão; depois, arranjando os cabelos e as dobras do manto, como se fosse entrar em cena, deitou-se em posição calculada, esperando o mensageiro de Agripina.
Vinha dizer a Nero que a mãe estava salva; contou o duplo acidente da trirreme, que César escutou como se o ignorasse; depois, ajuntou que a Augusta Agripina fora recolhida por uma barca no momento em que, exausta de forças, só esperava socorro dos deuses... Essa barca conduzira-a do golfo de Putéolos ao lago Lucrino, pelo canal que Cláudio mandara abrir; das margens do lago fizera-se conduzir, em liteira, para a sua vila, donde, apenas chegada, mandava dizer ao filho que os deuses a tinham tomado sob a sua guarda, conjurando-o, por maior que fosse o seu desejo de a ver, a adiar a visita, porque tinha precisão de repouso.
Nero escutou até ao fim fingindo terror, surpresa ou alegria, segundo o que expunha o narrador; depois, inteirado do que desejava saber, isto é, do lugar onde estava a mãe, obedecendo ao projecto tão rapidamente concebido, atirou com um gládio ao mensageiro, gritando por socorro.
Aniceto acudiu logo, agarrou o enviado de Agripina e, apanhando o gládio, caído a seus pés, sem lhe dar tempo de negar o atentado, entregou o liberto ao chefe dos pretorianos, acorrido ao chamamento do imperador, e precipitou-se pelos corredores do palácio, gritando que Nero estivera prestes a ser assassinado por ordem da mãe.
Ao tempo em que isto se passava, em Baulos, Agripina, como dissera o mensageiro, fora salva por uma barca de pescador que entrava tardiamente no porto.
No momento de se aproximar a barca, ignorando se a cólera de Nero iria persegui-la na sua vila do lago Lucrino e não querendo arrastar na sua queda a jovem a quem devia a vida, perguntara a Acteia se se sentia com as forças precisas para ganhar a praia, que começava a avistar-se na linha sombria das colinas que a encimavam, separando o céu do mar.
Acteia, adivinhando o motivo a que obedecia a mãe do imperador, insistia em segui-la. Agripina, porém, ordenou-lhe positivamente que a deixasse, prometendo-lhe chamá-la para junto de si quando nada houvesse a temer.
Acteia obedecera; Agripina, então, com um grito de socorro, chamara a atenção da barca, que até aí não a avistara, enquanto Acteia se afastava, invisível, branca e ligeira, à superfície do golfo, semelhando o cisne quando oculta a cabeça na água.
À medida que Agripina se aproximava da praia, via luzes correndo sobre a água; o vento trazia-lhe clamores de que, na sua inquietação, buscava o sentido. Sucedia que Aniceto, entrando no porto de Baulos, espalhara o boato do naufrágio e da morte da mãe do imperador. Os seus escravos, clientes e amigos espalharam-se pela praia na esperança de que ela alcançasse a terra ou de que, ao menos, o mar ali arrojasse o cadáver. Ao diferenciar, através da obscuridade, a vela branca do barco, a multidão correra para o porto aonde ele ia abordar; reconhecendo, porém, que a barca trazia Agripina, aqueles clamores fúnebres mudaram-se em gritos de alegria. Resultou que a mãe de César, condenada num lado do golfo, no outro saltava em terra com as aclamações e honras dum triunfo, levada em braços pelos servidores e escoltada por uma população inteira, comovida por aquele acontecimento e acordada em meio do sono.
Finalmente deu entrada na vila imperial, cujas portas se fecharam sobre ela. Porém, nem todos os habitantes da margem de Putéolos até Baias se retiraram; a curiosidade dos que chegavam, misturada à agitação dos que acompanhavam Agripina, explodiu em gritos de alegria e de amor, pedindo para ver aquela a quem o Senado, por ordem do imperador, outorgara o título de Augusta. Entretanto, Agripina, retirada aos seus mais recônditos aposentos, longe de se satisfazer com aqueles transportes, experimentava um terror maior, porque toda a popularidade era um crime na corte de Nero, e com mais forte razão quando essa popularidade tinha por alvo uma cabeça proscrita.
Logo que se recolhera, chamara pelo liberto Agerino, o único homem com quem podia contar, e encarregara-o de levar a Nero a mensagem de que já falámos. Depois de atender a este primeiro cuidado, tratou as feridas e, afastando as escravas, deitara-se com a cabeça envolvida no manto que cobria o leito e entregara-se a reflexões terríveis, escutando os clamores externos, de momento a momento mais ruidosos. De súbito, calaram-se aqueles milhares de vozes e os clamores extinguiram-se como por encanto; o clarão externo que tremeluzia nas janelas, qual reflexo dum incêndio, apagou-se; a noite conquistou a sua obscuridade e o silêncio o seu mistério.
Agripina sentiu uma tremura mortal percorrer-lhe o corpo e um suor frio inundou-lhe a fronte: pressentia que uma causa qualquer fizera calar aquela multidão e apagara aquelas luzes. Passado um instante, ouviu-se o ruído de gente armada que entrava num pátio exterior; passos, cada vez mais distintos, aproximaram-se, ressoando de corredor em corredor, de aposento em aposento.
Agripina escutava aquele ameaçador ruído apoiada no cotovelo, arquejante, mas imóvel, pois, sem esperança de fuga, não a tentava, sequer.
Abriu-se a porta do compartimento. Então, chamando em seu auxílio toda a sua coragem, voltou-se, pálida e resoluta; no limiar viu o liberto Aniceto e, por trás dele, o tetrarca Hérculio e Olarito, centurião da marinha; reconhecendo Aniceto, que ela sabia o confidente e, por vezes, o executor das sentenças de Nero, compreendendo que estava perdida, renunciando a qualquer queixume ou súplica, disse:
- Se vens como mensageiro, anuncia a meu filho o meu restabelecimento; se vens como carrasco, faze o teu dever.
Por única resposta, Aniceto desembainhou o gládio, aproximando-se do leito. Agripina, levantando, com um impudor sublime, o manto que a cobria, só disse ao assassino estas palavras:
- Feri ventrem!
O algoz obedeceu; a mãe de César morreu sem pronunciar outras palavras além daquelas que eram como a maldição lançada sobre as entranhas que tinham gerado tal filho.
Entretanto, Acteia, ao deixar Agripina, continuara nadando para a praia; ao aproximar-se, vira luzir archotes e ouvira gritos. Ignorando a significação daqueles clamores e daquelas luzes, resolvera sair da água, do outro lado de Putéolos. Portanto, para se esconder mais ainda, seguira a ponte de Calígula, nadando na linha sombria projectada no mar e agarrando-se de tempos a tempos à escadaria, a fim de conseguir algum descanso. Chegada a uns trezentos passos da extremidade, vira brilhar o capacete duma sentinela e fizera-se de novo ao largo, apesar de o seu peito arquejante e os seus braços fatigados lhe indicarem a instante necessidade de chegar, depressa, à praia. Avistou-a, enfim, tal como a desejava, baixa, escura e solitária. Chegavam até ela os clarões dos fachos e os gritos de alegria que partiam de Baias; afinal, aquelas luzes e aqueles gritos começavam a tornar-se menos distintos, a própria praia que, um instante antes, enxergara, desaparecia, agora, na nuvem que lhe cobria os olhos e através da qual passavam relâmpagos sanguinolentos; um zumbido ressoava-lhe aos ouvidos, aumentando incessantemente, como se monstros marinhos a acompanhassem, batendo as águas com as barbatanas; quis gritar, a boca encheu-se-lhe de água e uma vaga passou-lhe sobre a cabeça. Acteia sentiu-se perdida; chamou em seu auxílio todas as forças que lhe restavam; por um movimento convulsivo ergueu metade do corpo fora do elemento que a asfixiava e, nesse movimento, por mais rápido que foi, teve tempo de encher os pulmões de ar.
A terra que entrevira parecia sensivelmente próxima; continuou a nadar; depressa todos os sintomas do entorpecimento se apoderaram dela novamente e pensamentos confusos e inauditos perturbaram-lhe o espírito. Em alguns minutos reviu confusamente tudo o que lhe era querido e a sua vida inteira; julgava distinguir um velho, estendendo os braços e chamando-a da praia, enquanto uma força desconhecida lhe paralisava os movimentos e parecia atraí-la para as profundezas do golfo; depois, a orgia brilhando com todas as suas luzes, ecoando com todos os seus cantos; Nero, sentado, dedilhando a lira; os seus favoritos aplaudindo os seus cantos obscenos; cortesãs, atemorizando o pudor da jovem com as suas lascivas danças. Diligenciava fugir, como já fizera, mas sentia os pés amarrados com grinaldas de flores; no fundo do corredor de acesso à sala do festim via o ancião chamando-a com o gesto. Aquele velho tinha, em volta da fronte, um raio brilhante que iluminava o rosto destacando-o da sombra. Repetia o sinal de que se aproximasse e ela compreendia que estava salva se obedecesse. Por fim, as luzes apagaram-se, o ruído extinguiu-se; sentiu que se submergia e deu um grito. Outro grito pareceu responder-lhe, mas a água passou-lhe sobre a cabeça, como uma mortalha, e tudo se tornou nebuloso, até o sentimento da existência. Julgou que a chamavam, durante o sono, e a faziam descer, rolando, o declive dum monte; chegando abaixo, bateu contra uma pedra; sentiu uma dor surda como se experimenta num desmaio e depois uma impressão de gelo que, lentamente, lhe subia ao coração e que, ao atingi-lo, aniquilou tudo, até a consciência da vida.
Quando voltou a si, ainda não raiava o dia; estava na praia, envolvida em largo manto; um homem de joelhos amparava-lhe a cabeça desgrenhada; levantou os olhos para quem a socorria e, coisa estranha, julgou reconhecer o velho do seu sonho de agonia. Era o mesmo rosto suave, venerável e tranquilo; julgou assim que o sonho continuava.
- Ó meu pai - murmurou ela - chamaste-me e vim; eis-me aqui; salvaste-me a vida. Qual é o teu nome? Quero abençoá-lo!
- Chamo-me Paulo - disse o velho.
- E quem és? - continuou a jovem.
- Apóstolo de Cristo - respondeu ele.
- Não te compreendo - redarguiu docemente Acteia. - Mas não importa. Tenho tanta confiança em ti como se foras meu pai. Conduze-me aonde quiseres; estou pronta a seguir-te.
O velho ergueu-se e caminhou precedendo-a.
XI.
nero passou o resto da noite preso da insónia e do terror. Temia que Aniceto não alcançasse a mãe porque, pensava, ela só se detivera um instante na vila e o que lhe mandara dizer a respeito de sofrimentos e fraqueza era, apenas, um meio de ganhar tempo e partir a salvo para Roma.
Via-a entrar resoluta e altiva na capital, invocando o povo, armando os escravos, revoltando o exército, fazendo abrir as portas do Senado para pedir justiça pelo seu naufrágio, pelas suas feridas e pelos seus amigos assassinados.
A cada ruído, tremia como uma criança, porque, apesar de tudo, nunca deixara de temer a mãe; sabia de quanto ela era capaz e o que podia fazer contra ele, pelo que por ele fizera.
Só às sete horas da manhã chegou ao palácio de Baulos um escravo de Aniceto e, tendo pedido para o introduzirem junto do imperador, ajoelhou aos pés deste e entregou o anel que Nero dera ao assassino para prova de poder discricionário, e este lhe enviara, em sinal de que o assassínio fora cometido.
Nero levantou-se cheio de alegria, exclamando que só nesse instante começava a reinar e que devia o império a Aniceto.
Contudo, julgou conveniente prevenir os boatos que iam correr explicando, como entendeu, a morte da mãe.
Fez logo escrever para Roma que fora surpreendido no seu aposento, armado com um punhal, para o assassinar, Agerino, liberto e confidente de Agripina, e que esta, sabendo que a sua conspiração abortara e temendo a vingança do Senado, castigara, em si própria, o crime que planeara; ajuntava que, desde muito tempo, a mãe formara o desígnio de usurpar o poder e se gabara de, morto o imperador, fazer jurar ao povo, aos pretorianos e ao Senado, obediência a uma mulher.
Dizia mais que os exílios das pessoas mais distintas era obra sua e, como prova, ele, Nero, chamava à corte Valério Capito e Licínio Gábolo, antigos pretores, assim como Calpúrnia e Júnia Calvina, irmã de Silano, o antigo noivo de Octávia.
Acrescentava que o naufrágio fora vingança dos deuses, caluniando, assim, o Céu e mentindo à Terra.
Foi Séneca quem escreveu esta epístola, porque Nero tremia de tal modo que só pôde assiná-la.
Passados os primeiros momentos, fingiu-se presa da dor, como comediante hábil que era. Limpou as faces ainda cobertas de carmim, desatou os cabelos, que caíram dispersos sobre os ombros, e, substituindo por um hábito de cor sombria a túnica branca do festim, desceu e mostrou-se aos pretorianos, aos cortesãos e aos escravos, acabrunhado pelo golpe que acabava de feri-lo.
Disse que queria ver, pela última vez, a mãe.
Embarcou no mesmo sítio onde na véspera se despedira com demonstrações tão ternas; atravessou o golfo no qual tentara afogá-la; desceu à praia onde ela chegara ferida, moribunda, e dirigia-se para a vila onde terminara aquele grande drama. Alguns cortesãos, Burro, Séneca e Esporo acompanharam-no silenciosos, tentando ler no seu rosto a expressão que deviam dar aos seus.
Nero adoptara a duma profunda tristeza; entrando todos, em seu seguimento, no pátio onde os soldados tinham primeiro parado, pareciam, como ele, haver perdido uma mãe.
Nero subiu a escada, grave e lento, como convém ao filho piedoso que se aproxima do cadáver daquela que lhe deu a vida.
Chegado ao corredor que conduzia ao quarto, fez sinal com a mão para os que o acompanhavam se deterem, com excepção de Esporo, como se temesse abandonar-se à dor diante dos homens.
À porta, parou um instante, apoiou-se contra a parede e cobriu o rosto com o manto, fingindo esconder as lágrimas, mas, na realidade, para limpar o suor que lhe corria da fronte; após um momento de hesitação, abriu a porta com um movimento rápido e resoluto e entrou no aposento.
Agripina permanecia ainda no leito. Decerto, o assassino tinha disfarçado os vestígios da agonia, porque dir-se-ia que estava dormindo; cobria-a o manto, deixando descoberta apenas a cabeça, uma parte do peito e os braços, aos quais a palidez da morte dava a aparência fria e azulada do mármore.
Nero, sempre seguido de Esporo, parou junto do leito.
Os olhos de Esporo, mais impassível do que o seu senhor, pareciam estar a examinar, com indiferente curiosidade, uma estátua tombada do pedestal.
Passado um instante, animou-se o rosto do parricida. Já não tinha dúvidas; acabavam os seus temores. O trono, o mundo, o futuro pertenciam-lhe só a ele; ia reinar, livre e sem obstáculos. Agripina estava bem morta.
Sucedeu a estes sentimentos uma impressão estranha: os seus olhos, fixos sobre aqueles braços que o tinham apertado contra o coração e sobre aquele seio que o alimentara, inflamaram-se com um desejo secreto. Pegou no manto que cobria a mãe e levantou-o lentamente, de modo a descobrir o cadáver, que se mostrou nu.
Percorreu-o com olhar cínico e, manifestando um pesar infame e incestuoso, disse:
- Esporo, não sabia que fosse tão bela!
Entretanto, rompera o dia, restituindo ao golfo a vida habitual; tinham começado os trabalhos do costume.
Espalhara-se o boato da morte de Agripina e uma surda inquietação reinava ao longo das margens, cobertas, como sempre, de negociantes, pescadores e ociosos. Falavam alto do perigo a que escapara o imperador; rendiam graças aos deuses quando supunham ser ouvidos.
Passavam, sem voltar a cabeça, junto a uma fogueira que um liberto chamado Munster, ajudado por alguns escravos, activava, no caminho de Miseno, perto da vila do ditador Júlio César.
Todo aquele ruído, aquela inquietação e aquele rumor não chegavam ao local para onde Paulo levara Acteia.
Era uma casita isolada, erguida na ponta do promontório, em face de Nisida, e habitada por uma família de pescadores.
Apesar do ancião parecer estranho à família, exercia nela visível autoridade; contudo, a obediência com que cumpriam os seus menores desejos não era servil, mas respeitosa, dir-se-ia a dos filhos pelo pai, dos servidores pelo patriarca (1), dos discípulos pelo apóstolo.
(1) Chefe de família.
A primeira necessidade de Acteia era o repouso; cheia de confiança no seu protector, sentindo que de futuro alguém velava por ela, cedera às instâncias do velho e adormecera. Este sentara-se junto dela, como um pai ao pé do leito do filho, e, com o olhar fito no céu, absorvera-se, pouco a pouco, numa profunda contemplação. Quando a jovem abriu os olhos, não teve necessidade de procurar o seu protector. Apesar de sentir o coração esmagado por mil recordações, sorriu, tristemente, estendendo-lhe a mão.
- Sofres? - perguntou o velho.
- Amo - respondeu ela.
Houve um instante de silêncio. Paulo continuou:
- O que desejas?
- Um sítio onde possa pensar nele e chorar.
- Sentes-te com forças de seguir-me?
- Partamos - tornou Acteia, fazendo um movimento para se levantar.
- Neste momento é impossível, minha filha. Tu és fugitiva, eu um proscrito. Só podemos viajar durante a noite. Estás decidida a partir hoje?
- Sim, meu pai.
-Não te amedronta uma marcha longa e fatigante, a ti, tão fraca e delicada?
- As filhas do meu país estão habituadas a seguir, na carreira, a corça, através das mais espessas florestas e as mais alcantiladas montanhas.
- Timóteo - disse o velho, voltando-se - chama Silas.
O pescador pegou no manto pardo de Paulo, prendeu-o no extremo dum pau, saiu da cabana e enterrou-o na terra.
Não tardou a ser avistado este sinal, porque, passados instantes, um homem descendo da montanha de Nisida para a praia, meteu-se num barco e, desamarrando-o, começou, à força de remos, a transpor o espaço que separa a ilha do promontório. A travessia não foi longa; decorrido um quarto de hora, abicava à praia a uma centena de passos da casa onde era esperado e, cinco minutos depois, aparecia no limiar da porta.
Aquela aparição fez estremecer Acteia; não reparara no que se tinha passado, entretida a olhar para Baulos.
O recém-chegado, em quem pela tez acobreada, pelo turbante que lhe cingia a cabeça e pela finura das formas, se reconhecia um filho da Arábia, adiantou-se respeitosamente e saudou Paulo em língua desconhecida. Paulo proferiu, na mesma língua, algumas palavras em que a benevolência se aliava à autoridade de senhor. Silas, por única resposta, ajustou mais solidamente as sandálias, apertou os rins com uma corda, pegou num bordão, ajoelhou aos pés de Paulo, que lhe deu a bênção, e saiu.
Acteia olhava Paulo com espanto. Quem era aquele ancião que usava duma autoridade tão suave e firme ao mesmo tempo, que era obedecido como um rei e respeitado como um pai? O pouco tempo de permanência na corte de Nero mostrara-lhe a servidão sob todas as formas, mas servidão baixa e medrosa, filha do terror, e não a solicitude filha do respeito. Havia, pois, dois imperadores no mundo, e o que se escondia era mais poderoso sem tesouros, sem escravos e sem exército do que o outro, com as riquezas terrestres, com os seus cento e vinte milhões de vassalos e duzentos mil soldados?
Sucederam-se estas ideias, com tão grande rapidez, no espírito de Acteia, e nele se fixaram com tal convicção, que se voltou para Paulo, pondo as mãos com o mesmo temor e o mesmo respeito que vira manifestarem todos os que se acercavam daquele santo velho, e disse-lhe:
- Oh, senhor! Quem és tu, a quem todos obedecem sem mostrar temer-te?
- Já to disse, minha filha, chamo-me Paulo e sou apóstolo.
- Mas o que é um apóstolo? - tornou Acteia. - É um orador como Demóstenes? Um filósofo como Séneca? Entre nós a eloquência é representada com cadeias de oiro saindo-lhe da boca. Prenderás tu os homens com as tuas palavras?
- A minha palavra liberta e não prende - respondeu Paulo, sorrindo. - Longe de dizer aos homens que são escravos, vim dizer aos escravos que são livres.
- Eis o que não compreendo, embora fales a minha língua materna como se fosses grego.
- Estive seis meses em Atenas e ano e meio em Corinto.
- Em Corinto? - murmurou Acteia, escondendo o rosto entre as mãos. - Há muito tempo?
- Há cinco anos.
- E o que fazias em Corinto?
- Durante a semana, trabalhava a fazer tendas para os soldados, marinheiros e viajantes, porque não queria sobrecarregar o generoso hospedeiro que me recebera. Aos sábados, pregava na sinagoga, recomendando modéstia às mulheres, tolerância aos homens e virtudes evangélicas a todos.
- Sim, sim - disse Acteia - lembro-me agora de ouvir falar de ti. Não te alojavas perto da sinagoga judaica, na casa dum nobre velho chamado Tito Justo?
- Conheceste-lo? - perguntou Paulo com visível alegria.
- Era amigo de meu pai - respondeu Acteia. - Sim, sim, lembro-me. Os judeus denunciaram-te e levaram-te a Galião, que era Procônsul da Acaia e irmão de Séneca. Meu pai levou-me à porta, quando passavas, e disse-me: "Olha, minha filha, vai ali um justo".
- E como se chama teu pai? Como te chamas tu?
- Meu pai chama-se Amiclas. Eu chamo-me Acteia.
- Sim, sim, por meu turno, recordo-me. Esse nome não me é desconhecido. Mas como deixaste teu pai? Porque abandonaste a tua pátria? Como fui encontrar-te, só e moribunda, numa praia? Dize-me tudo, minha filha: se já não tens pátria, oferecer-te-ei uma; se não tens pai, dar-te-ei outro.
- Oh, nunca, nunca! Não ousarei contar-te!...
- É, pois, terrível essa confissão?
- Oh, morreria de vergonha!...
- Bem! Nesse caso vou humilhar-me para que te eleves; vou dizer-te quem sou para que me digas quem és; vou confessar-te os meus crimes para que me confesses as tuas faltas.
- Os teus crimes!...
- Sim, os meus crimes. Expiei-os, graças ao céu, e o Senhor perdoou-me, espero-o! Escuta, minha filha, porque vou dizer-te coisas que não fazes a menor ideia, que compreenderás um dia e que adorarás, depois de ter compreendido. Nasci em Tarso, na Cilícia. A dedicação da minha cidade natal por Augusto valera aos seus habitantes o título de cidadãos romanos, de sorte que meus pais, já ricos, gozavam, além das suas riquezas, das vantagens resultantes da posição que lhes concedera o imperador. Foi ali que estudei as letras gregas, que floresciam, entre nós, como em Atenas. Depois, meu pai, judeu da seita farisaica, mandou-me estudar em Jerusalém com Gamaliel, sábio e severo doutor da lei de Moisés. Então, não me chamava Paulo; o meu nome era Saul. Havia, por esse tempo, em Jerusalém, um mancebo mais velho do que eu dois anos. Chamavam-lhe Jesus, isto é, Salvador, e contavam coisas maravilhosas sobre o seu nascimento. Aparecera um anjo, à mãe, saudara-a em nome de Deus e anunciara-lhe que fora escolhida entre todas as mulheres para gerar o Messias. Algum tempo depois, esta jovem desposou um velho chamado José, que, descobrindo estar ela grávida e não querendo desonrá-la, resolveu enviá-la, secretamente à família. Quando se entregava a estes pensamentos, o mesmo anjo do Senhor, que tinha aparecido a Maria, apareceu-lhe, por sua vez, e disse: "José, filho de Daniel, não temas conservar contigo Maria, a tua mulher, porque o ser que traz no ventre foi gerado pelo Espírito Santo". Por esta ocasião publicou-se um édito de César Augusto para se fazer o censo de todos os habitantes da Terra. Foi o primeiro recenseamento feito por Cirênio, governador da Síria. Como cada pessoa ia registar-se na terra da sua naturalidade, José partiu da cidade de Nazaré, na Galileia, e veio à Judeia, à cidade de David chamada Belém, para ser inscrito com Maria, sua mulher. Durante a sua permanência ali, aconteceu que o tempo da gravidez tocou o termo; deu à luz um filho; tendo-o enfaixado, deitou-o numa manjedoura, por não haver lugar para eles nas hospedarias. Ora, nos arredores, os pastores passavam a noite nos campos, velando, cada um por sua vez, pela segurança dos rebanhos. De súbito, apareceu-lhes um anjo do Senhor, rodeando-os uma luz divina que os encheu de extremo temor. O anjo disse-lhes: "Não temam coisa alguma porque venho trazer-lhes uma nova que será, para o povo, motivo de grande alegria: hoje, na cidade de David, nasceu um Salvador, que é o Cristo..."
"Deus olhara para a terra e pensara que os tempos preparados pela sua sabedoria tinham chegado. O mundo inteiro ou, pelo menos, tudo o que a ciência pagã conhecia do mundo, obedecia a um único poder. Tiro e Sídon tinham-se desmoronado às palavras do profeta; Cartago estava arrasada até ao nível das areias, a Grécia conquistada, as Gálias vencidas, Alexandria queimada. Um único homem mandava em cem províncias, pela voz dos seus Procônsules, e por toda a parte se sentia a ponta do gládio empunhado em Roma. Apesar do seu poder aparente, o edifício pagão rangia sobre os alicerces de areia; um mal-estar desconhecido e universal anunciava que o velho mundo estava ferido no coração, que estava iminente uma crise e que coisas novas e desconhecidas iam brilhar.
"Não havia já justiça porque havia excesso do poder; não havia já homens porque havia demasiados escravos; não havia já religião porque havia deuses demais. Ora, como já te disse, pela ocasião em que chegava a Jerusalém, um homem dizia aos poderosos: "Não façais senão o que vos tiver sido ordenado e nada mais". Aos ricos: "Aquele que possuir dois vestidos dê um àquele que não tiver nenhum". Aos senhores: "Não há nem primeiro nem último; o reino da terra é dos fortes, mas o dos céus é dos fracos". E a todos: "Os deuses que adorais são falsos deuses; só há um Deus, único e todo poderoso, que criou o mundo; esse Deus é meu pai, porque sou eu o Messias que vos foi prometido pelas Escrituras". Cego e surdo como era, fechei os olhos e os ouvidos, ou, antes, a inveja cegou-me. Veio depois o ódio que me perdeu. Eis como me tornei o perseguidor ardente do homem-Deus, do qual sou hoje o indigno mas fiel apóstolo. Um dia em que Pedro e eu tínhamos, inutilmente, lançado as redes no antigo lago do Genesaré, hoje chamado de Tiberíade, Jesus veio até à margem do lago, seguido pela multidão que queria ouvir a sua palavra. Como a barca de Pedro estivesse mais próxima da praia, ou porque Pedro fosse melhor do que eu, Jesus subiu para a sua barca e, tendo-se sentado, continuou a falar à multidão que o escutava em terra. Ao cessar, disse a Pedro: "Faze-te ao largo e lança as redes". Pedro respondeu: "Mestre, trabalhámos toda a noite sem nada conseguir; como seremos, agora, mais felizes?" "Faze o que te digo", prosseguiu Jesus.
"Pedro, tendo deitado as redes, recolheu uma quantidade tal de peixe, que pouco faltou para que a rede se rompesse, e encheu tanto o barco, que quase soçobrou. Pedro, Tiago e João, filhos de Zebedeu, que estavam na barca com ele, caíram de joelhos, reconhecendo ter-se dado um milagre, mas Jesus disse-lhes: "Tranquilizai-vos, a vossa tarefa de pescadores de peixes acabou; para o futuro pescareis homens". E descendo para a praia, levou-os consigo. Ficando só, disse comigo: "Porque não pescarei eu, também, onde os outros pescaram?" Fui para o mesmo sítio, deitei dez vezes a rede e dez vezes a recolhi vazia. Então, em vez de dizer: "Aquele homem é verdadeiramente o que diz ser, isto é, o enviado do Senhor", disse: "Este homem é, sem dúvida, um feiticeiro que conhece os encantamentos". E senti invadir-me o coração grande inveja contra ele. Mas, por este tempo, tendo Jesus abandonado Jerusalém para ir pregar pela Judeia, este sentimento desvaneceu-se pouco a pouco, e tinha já esquecido aquele que mo inspirara, quando um dia em que, como de costume, vendíamos no templo, ouvimos dizer que Jesus tinha voltado, mais glorificado do que nunca. Curara um paralítico no deserto, dera a vista a um cego em Jericó e ressuscitara um mancebo em Naim. Por toda a parte onde passava, o povo estendia os mantos no seu caminho e os discípulos acompanhavam-no, transportados de alegria, trazendo palmas e louvando o Senhor em altas vozes,"por todas as maravilhas que tinham presenciado. No meio deste cortejo, dirigiu-se para o templo; vendo que estava repleto de vendedores e de compradores, expulsou-os dizendo: "Está escrito que a minha casa é destinada à oração e vós fizestes dela uma caverna de ladrões". Ao princípio quisemos resistir, mas reconhecemos que seria inútil e que nada se podia tentar contra aquele homem, porque o povo inteiro estava suspenso de seus lábios, admirando as suas palavras. Despertou a minha antiga inimizade contra Jesus. Com a cólera de ser assim tratado, a inveja tornou-se ódio. Tempos depois, soube que na noite de Páscoa que passou com os seus discípulos, Jesus tinha sido preso à ordem do grão-sacerdote, por uma multidão de gente armada, guiada por Judas, seu discípulo; levado à presença de Pilatos, este, sabendo que era de Nazaré, o enviara a Herodes, sob cuja jurisdição estava a Galileia. Mas Herodes, nada apurando contra ele, a não ser que se dizia rei dos judeus, reenviou-o a Pilatos, que, fazendo reunir os príncipes dos sacerdotes, os senadores e o povo, disse-lhes: "Apresentastes-me este homem como excitador do povo à revolta, mas nem Herodes nem eu o achamos culpado do crime de que o acusais; como, portanto, não merece a pena de morte, vou castigá-lo e mandá-lo em liberdade". Mas o povo pôs-se a gritar: "É hoje a festa da Páscoa, e deveis libertar um criminoso. Fazei morrer este e dai-nos Barrabás". Pilatos falou, de novo, à multidão, pedindo a vida de Jesus, mas a turba respondeu: "Crucificai-o! Crucificai-o!".
E eu - continuou o ancião, batendo no peito - era uma das vozes dessa multidão e gritava com todas as forças: "Crucificai-o! Crucificai-o!" Afinal, Pilatos ordenou que Barrabás fosse solto e abandonou Jesus aos seus algozes! Ai de mim! Ai de mim! - gemeu o velho, ajoelhando, com a face no chão. - Senhor, perdoai-me; Senhor, segui-te ao Calvário; Senhor, vi pregar-te os pés e as mãos; Senhor, vi trespassar-te o lado; Senhor, vi beberes o fel; Senhor, vi o céu cobrir-se de trevas, o Sol obscurecer-se, o pano do templo rasgar-se ao meio; Senhor, ouvi soltares um grande grito, dizendo: "Meu pai, ponho a minha alma entre as tuas mãos"; a tua voz fez tremer a Terra até aos seus fundamentos!... Ou, antes, nada vi, nada ouvi, porque já disse, Senhor, eu estava cego e surdo... Senhor, Senhor, perdoa-me. Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa!
E o velho conservou-se, por algum tempo, com a fronte no pó, orando e gemendo baixinho, enquanto Acteia olhava para ele, muda, de mãos postas, surpreendida com a humildade daquele homem que supunha tão poderoso!
Paulo levantou-se e continuou:
- Ainda não é tudo, minha filha. O meu ódio pelos discípulos sucedeu ao ódio pelo profeta. Os apóstolos, ocupados com o ministério da palavra, tinham escolhido sete diáconos para a distribuição das esmolas. O povo amotinou-se contra um desses diáconos, chamado Estevão, e forçou-o a comparecer no tribunal, onde falsas testemunhas o acusaram de ter proferido blasfémias contra Deus, Moisés e a sua lei. Estêvão foi condenado; os seus inimigos agarraram-no e arrastaram-no para fora de Jerusalém, para o lapidar, conforme a lei contra os blasfemos. Estava entre os que tinham pedido a morte do primeiro mártir. Não atirei com pedras, mas tomei cuidado nos mantos daqueles que lhas atiravam. Sem dúvida foram ouvidas, em meu favor, as preces do santo condenado, quando exclamou, nessa sublime imprecação, desconhecida até Jesus Cristo: "Senhor, Senhor, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem!" Contudo, se o momento da graça ainda não chegara, aproximava-se a passos largos. Os chefes da sinagoga, conhecendo o meu ardor em perseguir a Nova Igreja, enviaram-me à Síria para procurar os cristãos novos e trazê-los a Jerusalém. Segui as margens do Jordão desde o Jaer até Cafarnaum. Tornei a ver as praias do lago Genesaré, onde tivera lugar a pesca milagrosa; enfim, alcancei a cadeia de Hermo, perseverando, sempre, na minha vingança, até que, chegado ao alto duma montanha de onde se avista a planície de Damasco e os vinte e sete rios que a banham, fui, de súbito, rodeado e deslumbrado por uma luz do céu. Caí, como um homem que morre, e ouvi uma voz que me dizia: "Saul! Saul! Porque me persegues?" "Senhor!" perguntei tremendo: "Quem és e que me queres?" "Sou Jesus", declarou a voz, "que tu persegues, e quero empregar-te na propagação da minha doutrina, a ti, que, até hoje, só tens procurado abafá-la". "Senhor!" continuei, tremendo cada vez mais, e cada vez mais amedrontado: "Senhor, o que é preciso que faça?!" "Levanta-te e entra na cidade; lá dir-te-ão o que deves fazer".
A gente que me acompanhava, estava quase tão assombrada como eu, porque uma voz potente ecoava a seus ouvidos, sem ver quem a proferia. Enfim, calando-se a voz, ergui-me e abri os olhos. Pareceu-me que àquela luz resplandecente, sucedera a noite mais profunda. Estava cego. Estendi os braços, pedindo: "Conduzam-me, porque já não vejo". Um dos meus servos pegou-me na mão e levou-me a Damasco, onde estive três dias sem ver, sem comer e sem beber. Ao terceiro dia, percebi que se dirigia para mim um homem que não conhecia e que, contudo, sabia chamar-se Ananias. Senti que me tocavam mãos e uma voz dizia: "Saul, meu irmão, o Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vieste, mandou-me aqui para que recuperes a vista e fiques na graça do Espírito Santo". Caiu-me dos olhos qualquer coisa semelhante a escamas e vi. Logo ajoelhei e pedi o baptismo. Desde esse momento, tão ardente na minha fé como o fora no meu ódio, atravessei a Judeia, de Sídon a Arados, e do monte Seir à torrente de Besor; percorri a Ásia, a Bitínia, a Macedónia. Vi Atenas e Corinto, toquei em Malta, entrei no porto de Putéolos, onde estou há quinze dias, esperando cartas de Roma, chegadas ontem. Estas cartas são de meus irmãos, que me chamam para junto deles. Chegou o dia do triunfo e Deus prepara-nos o caminho, porque ao passo que envia a esperança ao povo, envia a loucura aos imperadores, a fim de minar o velho mundo pela base e pelo topo. Não foi o acaso mas a Providência que destinou o terror a Tibério, a imbecilidade a Cláudio e a loucura a Nero. Tais imperadores fazem duvidar dos deuses que adoram. Assim, deuses e imperadores cairão juntos, uns desprezados, outros malditos.
- Oh, meu pai! - exclamou Acteia. - Detém-te, tem piedade de mim!
- O que te liga a esses homens sanguinários? - inquiriu Paulo, admirado.
- Meu pai - continuou a jovem, ocultando o rosto nas mãos - contaste-me a tua história e pedes a minha. É breve, terrível, criminosa: Sou a amante de César!
- Só vejo uma falta, minha filha - tornou Paulo, aproximando-se com interesse e curiosidade.
- Mas eu amo-o! - exclamou Acteia. - Amo-o como nunca amarei homem algum sobre a terra, nem Deus no céu!
- Ai de mim! Ai de mim! - murmurou o velho. - Eis onde está o crime. - E, ajoelhando-se a um canto da cabana, orou.
XII.
chegada a noite, Paulo apertou, por seu turno, os rins, ajustou as sandálias, pegou no bordão e voltou-se para Acteia. Esta estava pronta e resolvida a fugir. Para onde ia? Pouco lhe importava, contanto que se afastasse de Nero. Naquele momento, o horror e o medo sofridos na véspera impeliam-na a executar aquele projecto, mas sentia que, se ficasse mais um dia, se tornasse a ver aquele que no seu coração adquirira uma influência tão poderosa, tudo estaria acabado. Só teria coragem e forças para o amar, apesar de tudo, contra tudo e todos, e a sua vida desamparada iria ainda perder-se naquela vida potente agitada como um regato no Oceano.
Porque, coisa estranha, via no seu amante sempre Lúcio e jamais Nero. O vencedor dos jogos olímpicos era um homem diferente do imperador e a sua existência dividia-se em duas fases bem distintas: uma, o seu amor por Lúcio, que sentia a realidade; a outra, o amor de Nero por ela, que julgava um sonho.
Saindo da cabana, os seus olhos voltaram-se para o golfo, testemunha, na véspera, da terrível tragédia ocorrida. A água estava tranquila, o ar puro; a Lua iluminava o céu e o farol de Miseno a terra, de modo que se distinguia o lado oposto do golfo como se fora dia. Acteia apercebeu a sombria massa das árvores que cercavam Baulos e, pensando em que ali estava Lúcio, parou suspirando. Paulo esperou um instante; depois, dando alguns passos na sua direcção, disse em voz compadecida:
- Não vens, minha filha?
- Oh, meu pai! - exclamou Acteia, não ousando confessar ao velho os sentimentos que a retinham. - Ontem deixei Nero, acompanhada de Agripina, sua mãe; o barco em que íamos, naufragou; salvámo-nos, nadando, as duas, e apartei-me no momento em que uma barca a recolhia. Bem desejo não abandonar estas praias sem saber o que lhe aconteceu.
Paulo estendeu a mão na direcção da vila de Júlio César e, mostrando a Acteia um grande clarão que se elevava entre a habitação e o caminho de Miseno, perguntou-lhe:
- Vês aquela chama?
- Vejo - respondeu Acteia.
- Pois bem, aquela chama é a da sua fogueira.
E, como se compreendesse que aquelas poucas palavras esclareciam todos os pensamentos da jovem, retomou o caminho. Com efeito, Acteia seguiu-o sem pronunciar uma palavra, sem soltar um suspiro.
Costearam o mar durante algum tempo, atravessaram Putéolos e tomaram a estrada de Nápoles. Chegados a uma meia légua da cidade, deixaram-na à direita e, por um atalho, chegaram à estrada de Cápua.
Pela uma hora da madrugada avistaram Atela e daí a pouco, no meio do caminho, um homem de pé, que parecia esperá-los: era Silas, o enviado de Paulo. O ancião trocou com ele algumas palavras. Silas meteu pelos campos; Paulo e Acteia seguiram-no e chegaram a uma casinha isolada, onde eram esperados, porque, à primeira pancada que Silas deu na porta, esta abriu-se.
Toda a família, incluídos os servidores, estava reunida num átrio elegante, parecendo esperar. Apenas o velho transpôs o limiar, ajoelharam todos. Paulo estendeu as mãos e abençoou-os. Depois, a dona da casa conduziu-o ao triclinium e, antes da ceia, que o esperava servida, quis ela própria lavar os pés ao viajante.
Pela sua parte, Acteia, estranha àquela nova religião, inteiramente mergulhada em mil pensamentos que lhe dilaceravam o coração, pediu para retirar-se. Logo, uma bela rapariga de quinze a dezasseis anos, velada como uma vestal, caminhou na sua frente e conduziu-a ao seu próprio quarto, onde, um instante depois, voltou trazendo-lhe a sua parte no repasto da família.
Tudo, para Acteia, era motivo de admiração. Só ouvira falar dos cristãos em casa do pai, como duma seita de insensatos ideólogos que vinham aumentar o número dessas pequenas escolas sistemáticas onde se discutiam o dogma de Pitágoras, a moral de Sócrates, a filosofia de Epicuro ou as teorias de Platão.
Na corte de César, eram os cristãos considerados como uma raça ímpia, entregue às mais horrorosas superstições e aos mais infames deboches, boa para entregar ao povo quando este pedia uma expiação, boa para lançar aos leões quando os grandes pediam uma festa. Só se passara um dia desde que Paulo a socorrera; só havia um dia que conhecera cristãos e, contudo, aquelas poucas horas haviam bastado para destruir toda a falsa crença que a filosofia grega e o ódio imperial tinham incutido no seu espírito. O que, principalmente, percebera naquela nova seita era a dedicação, porque a dedicação é quase sempre, quaisquer que sejam a crença e fé, a virtude da mulher que ama, donde resultara sentir-se presa duma doce simpatia instintiva por aquela religião que ordenara aos poderosos protecção aos fracos, aos ricos caridade para os pobres, e aos mártires preces pelos seus carrascos.
À noite, à mesma hora da partida na véspera, prosseguiu o caminho. Daquela vez foi mais longo; os viajantes deixaram à direita Cápua, que uma falta de Aníbal ilustrou como uma vitória; depois pararam nas margens do Vulturno. Chegados aí, um barco saiu de uma pequena enseada, conduzido por um barqueiro, e aproximou-se. Ao tocar na praia, o desconhecido trocou com Paulo um sinal de reconhecimento. O velho e Acteia embarcaram. Chegados à outra margem, Paulo ofereceu uma moeda ao barqueiro, mas este, caindo de joelhos, beijou, em silêncio, a fímbria do manto do apóstolo e permaneceu humilhado e orando naquela postura, ainda depois daquele a quem manifestara o seu respeito se ter afastado.
Pelas três horas, um homem sentado numa dessas pedras que os romanos colocavam nas bordas das estradas para ajudar os viajantes a montar nos seus cavalos, levantou-se à sua aproximação. Era o silencioso e vigilante correio, que os esperava, como na véspera, para os guiar ao asilo de repouso. Agora não era uma casa elegante como a da véspera: esperava-os uma pobre choupana; não era uma ceia esplêndida, servida num triclinium de mármore, mas o necessário do pobre, metade dum pão regado com lágrimas, oferecido com o mesmo respeito que o supérfluo do rico. Recebeu-os um homem. Tinha na fronte a marca dos escravos; presa ao pescoço, uma coleira de ferro; nas pernas, dois círculos de ferro; era o pastor duma rica vila; levava ao pasto milhares de ovelhas pertencentes a um senhor duro e avaro e não possuía uma pele de carneiro para cobrir os ombros! Colocara sobre a mesa um pão e, ao lado, um desses vasos feito de barro ordinário, mas de formas encantadoras. Depois, estendera a um canto um leito de fetos e de caniços. Procedendo assim, aquele homem, sem dúvida, merecera mais aos olhos do Senhor do que poderia merecer um rico, com a mais sumptuosa hospitalidade.
Paulo sentou-se à mesa e Acteia junto dele. O seu hospedeiro, tendo-lhes dado o que pudera, entrou num quarto ao lado, e daí a pouco ouviam-se, através da porta mal fechada, queixumes e soluços.
Acteia pôs a mão no braço de Paulo:
- Não ouves, meu pai? - perguntou-lhe.
- Sim, minha filha - respondeu o velho - aqui choram-se lágrimas amargas, mas Aquele que aflige pode consolar.
Um instante depois entrou o pastor e foi sentar-se, sem dizer uma palavra, a um canto; depois, apoiados os cotovelos nos joelhos, deixou descer a cabeça, conservando-a entre as mãos.
Acteia, vendo-o tão triste e acabrunhado, foi ajoelhar-se junto dele.
- Escravo - segredou-lhe - porque não te diriges àquele homem? Talvez dê algum remédio para a tua aflição, alguma consolação para a tua dor.
- Obrigado - respondeu o escravo - mas a nossa aflição e a nossa dor não são das que se curam com palavras.
- Homem de pouca fé - disse Paulo levantando-se - por que duvidas? Não conheces os milagres de Cristo?
- Sim, mas Cristo morreu - respondeu o escravo abanando a cabeça. - Os judeus pregaram-no numa cruz e está agora no céu, à direita de seu Pai. Bendito seja o seu nome!
- Não sabes - continuou Paulo - que legou o seu poder aos apóstolos?
- Meu filho, meu pobre filho! - disse o pai, afogado em soluços, sem responder ao velho.
Um gemido surdo, partido do quarto ao lado, sucedeu, como um eco, àquela explosão de dor.
- Oh, meu pai! - pediu Acteia, voltando para junto de Paulo. - Se podes alguma coisa em favor destes desgraçados, faze o que for possível, peço-te, porque, sem conhecer a causa do seu desespero, dilacera-me a alma. Pergunta-lhe o que o aflige, talvez to diga.
- O que ele tem sei-o eu - retorquiu o velho. - Tem falta de fé.
- E como queres tu que eu creia? - redarguiu o desgraçado. - Como queres tu que eu tenha esperança? Toda a minha vida, até hoje, só tem sido uma dor. Escravo e filho de escravo, nunca tive uma hora de alegria. Criança, nem no seio de minha mãe fui livre; rapaz, trabalhei incessantemente sob a chibata e o chicote; pai e esposo, tiram-me todos os dias metade do pão necessário a minha mulher e a meu filho!, a meu filho, atingido no ventre da mãe pelas pancadas que sofreu durante a gravidez e vindo ao mundo maldito, estropiado, mudo!, a meu filho, que amamos, ferido pela cólera celeste e que esperávamos ver escapar à sua sorte pela própria desgraça! Pois não! Era felicidade demasiada! O seu senhor vendeu-o, ontem, a um desses homens que traficam com a carne; que sabem avaliar bem o que pode valer uma deformidade; que se enriquecem fazendo mendigar, para si, nas praças de Roma, infelizes a quem todas as noites reabrem as chagas ou quebram os membros! E amanhã, amanhã!
Arrancá-lo-ão daqui para o entregar a essa tortura, a ele, pobre inocente que nem sequer tem voz para se queixar, para nos chamar em seu socorro e para amaldiçoar os seus algozes!
- E se Deus curasse o teu filho? - interrogou o velho.
- Oh, então, deixá-lo-iam ficar! - exclamou o pai. - Porque o que eles vendem e compram, esses miseráveis, é a miséria e o infortúnio, as suas pernas quebradas, a sua língua muda. Se andasse, se falasse, era uma criança como as outras e só teria valor quando fosse homem.
- Abre aquela porta - ordenou Paulo.
O escravo ergueu-se com o olhar fixo e o rosto admirado, cheio de dúvida e, ao mesmo tempo, de esperança, e aproximou-se da porta obedecendo à ordem que acabava de receber.
O olhar de Acteia, velado pelas lágrimas, pôde, então, penetrar no outro quarto. Havia também ali um leito de palha e, sobre aquela palha, uma criança de quatro a cinco anos, sentada, sorrindo descuidada e brincando com algumas flores. Perto dela, com o rosto no chão, inteiriçada e imóvel, estava deitada uma mulher com as mãos metidas nos cabelos, semelhando a estátua do desespero.
O rosto do apóstolo tomou, ante este espectáculo, uma expressão sublime de confiança e de fé, os seus olhos ergueram-se para o céu, fixos e ardentes, como se ascendessem até ao trono do santo dos santos; um raio de luz brilhou nos seus cabelos brancos, rodeando-os como uma auréola e, sem sair do seu lugar, sem fazer um passo, estendeu lentamente, gravemente, a mão para a criança e proferiu estas únicas palavras:
- Em nome de Deus vivo que criou o céu e a terra, levanta-te e fala.
A criança ergueu-se e disse:
- Senhor! Senhor! Bendito seja o teu nome!
A mãe pôs-se em pé bruscamente dando um grito, o pai ajoelhou-se rápido: a criança estava salva! Paulo fechou a porta sobre eles, dizendo:
- Eis uma família de escravos cuja felicidade faria inveja a uma família de imperador.
Na noite seguinte continuaram o caminho e chegaram a Fundos; durante aquela viagem nocturna e misteriosa, Acteia revia, uns após outros, os sítios que percorrera em companhia de Nero por ocasião do seu triunfo. Fora ali que tão esplendidamente os recebera Galba, esse velho a quem os oráculos vaticinavam a coroa. Ao vê-lo, o imperador lembrara-se da predição, que esquecera graças à obscuridade em que o futuro César afectava viver, de sorte que, apenas chegado a Roma, o seu primeiro cuidado fora afastá-lo de Itália, mandando-o governar a Ibéria. Antes de partir libertara os seus escravos mais fiéis e foi em casa de um destes libertos convertido à fé cristã que Silas preparou o refúgio do velho e de Acteia. Este liberto fora jardineiro do pomar de Galba e recebera como dom, no dia da sua libertação, a casinha que habitava nos jardins do seu senhor. Das janelas daquele humilde tugúrio, Acteia via, à claridade da Lua, a magnífica vila em que se alojara com Lúcio. Uma destas duas viagens era para ela um sonho. Que de coisas extraordinárias soubera! Que de ilusões tocara com o dedo e se tinham evolado! Que de dores ela não imaginava que existissem e havia sofrido depois daquela época! Como tudo mudara para ela! Como aqueles jardins floridos, onde ainda julgava andar, estavam murchos e secos! Como na sua vida árida e solitária só ficara vivo o amor, sempre novo, sempre o mesmo, sempre de pé e inabalável, como uma pirâmide em pleno deserto!
Continuaram a caminhar durante três dias, ou antes, três noites, escondendo-se quando aparecia a luz e viajando logo que a sombra descia do céu, sempre precedidos de Silas e parando sempre em casa de adeptos, porque a fé já começava a contar, entre os escravos e o povo principalmente, um grande número de neófitos. Enfim, na terceira noite, partiram de Velitras, essa antiga capital dos voluscos que dera a morte a Coriolano e a vida de Augusto, e, como a Lua se erguia no horizonte, deitaram até ao cume do monte Albano.
Desta vez Silas não os deixara; caminhava na sua frente, à distância de três a quatro passos; chegado ao túmulo de Ascânio, parou, esperando por Paulo e Acteia e, estendendo a mão para o horizonte, onde brilhava um amontoado de luzes e donde partia um grande murmúrio, só pronunciou uma palavra que anunciava ao ancião e à rapariga o termo da viagem:
- Roma!...
Paulo, ajoelhando-se, agradeceu ao Senhor tê-lo conduzido, através de tantos perigos, ao termo da sua viagem e ao fim da sua peregrinação.
Acteia encostou-se ao túmulo para não cair; tantas recordações suaves e cruéis se encerravam no nome daquela cidade entrevista, a primeira vez, daquele mesmo sítio.
- Oh, meu pai! - disse a jovem. - Segui-te sem perguntar para onde íamos... Se soubesse que era para Roma... Oh!... Creio que me faltaria a coragem!
- Não é a Roma que vamos - respondeu o velho, erguendo-se.
Como se aproximava um grupo de cavaleiros seguindo pela Via Ápia, Silas saiu do caminho e tomou à direita, pela planície. Paulo e Acteia seguiram-no.
Começaram a andar entre a Via Latina e a Via Ápia, evitando mesmo os caminhos que partiam da primeira e iam, um a Marina, perto do lago Albano, e o outro ao templo de Neptuno, perto de Âncio.
No fim de duas horas, depois de deixarem à direita o templo da Fortuna feminina, e à esquerda o de Mercúrio, entraram no vale de Egéria e seguiram por algum tempo as margens do riacho Álmon; voltando à direita e avançando entre os aglomerados de rochas, destacados do alto da montanha por algum terramoto, acharam-se, de súbito, à entrada duma caverna.
Silas entrou logo, convidando em voz baixa os viajantes a segui-lo, mas Acteia, mau grado seu, estremeceu ante o inesperado aspecto daquela abertura sombria, que semelhava a goela dum monstro prestes a devorá-la. Paulo sentiu o braço pousar-lhe no seu como para o deter; compreendeu o seu terror.
- Nada temas, minha filha - tranquilizou-a - o Senhor é connosco.
Acteia suspirou, deitou um último olhar para aquele céu recamado de estrelas que ia perder de vista e meteu-se com o velho por baixo daquelas abóbadas.
No fim de alguns passos, tacteados numa tão completa obscuridade que só a voz de Silas os guiava, parou este ao pé duma das pilastras maciças que sustinham a abóbada, e, batendo com duas pedras uma na outra, tirou algumas faíscas, que inflamaram um trapo enxofrado com que acendeu um archote escondido na escavação dum rochedo, dizendo:
- Agora já não há perigo. Nem todos os soldados de Nero, se nos perseguissem, eram capazes de nos descobrir.
Acteia olhou em torno. A princípio nada pôde distinguir; o archote, ainda com a luz trémula, por efeito do ar exterior, cujas correntes se cruzavam, apenas produzia clarões rápidos e mortiços como pálidos relâmpagos, de maneira que os objectos, feridos momentaneamente pela luz, voltavam à obscuridade sem dar tempo a perceber a sua forma e cor; contudo, pouco a pouco, os olhos habituaram-se àquela reverberação, a chama do facho tornou-se menos movediça, o círculo de luz alargou-se e os viajantes puderam estender a vista até o cimo sombrio daquelas imensas abóbadas. Umas vezes marchavam apertados entre duas muralhas, outras entravam em enormes encruzilhadas pedregosas, com cavidades profundas, nas quais ia morrer o clarão do archote, que iluminava com reflexo decrescente os ângulos dos pilares, brancos e imóveis como espectros. Havia naquela marcha nocturna, no ruído dos passos, por mais ligeiro que fosse, repetido por um eco fúnebre, naquela falta de ar, a que o peito não se habituara ainda, alguma coisa de triste e surpreendente que, como uma dor, oprimia o coração de Acteia. De repente, parou toda trémula, agarrando-se ao braço de Paulo e mostrando-lhe uma fiada de caixões que guarneciam uma das muralhas. Ao mesmo tempo, no extremo daquelas avenidas tenebrosas, viu passar mulheres vestidas de branco, semelhando fantasmas, levando archotes e dirigindo-se para o mesmo ponto. Caminhando sempre, em breve ouviram uma harmonia pura, qual coro de anjos, que ressoava melodiosamente sob aquelas sonoras arcadas. Aqui e ali, lâmpadas suspensas dos pilares começavam a mostrar o caminho; os caixões tornaram-se mais frequentes, os fantasmas mais numerosos, os cantos mais distintos; aproximavam-se da cidade subterrânea e os seus arrabaldes principiavam a povoar-se de mortos e de vivos. De tempos a tempos, encontravam, .dispersas no solo, folhas e rosas caídas de alguma coroa e que se fanavam tristemente longe do ar livre e do Sol. Acteia apanhava aquelas pobres flores, filhas do dia e da luz, como ela espantadas de se encontrarem enterradas vivas num túmulo, e, reunindo-as, fazia um ramalhete, pálido e inodoro, como dos restos de uma passada felicidade se faz uma esperança para o futuro. Enfim, dobrando uma das mil veredas daquele labirinto, descobriram uma larga escavação, talhada pelo modelo de uma basílica subterrânea, alumiada por lâmpadas e fachos e repleta duma população inteira de homens, mulheres e crianças. Um grupo de raparigas cobertas de longos véus brancos fazia ressoar as abóbadas com os cantos que Acteia ouvira; um sacerdote vinha através da turba inclinada e preparava-se para pregar; parou de repente, voltou-se para o auditório surpreendido, e disse com uma respeitosa inspiração:
- Há aqui um mais digno do que eu de repetir-vos a palavra de Deus, porque a ouviu da boca do seu filho. Paulo, aproxima-te e abençoa teus irmãos.
E toda aquela gente, a que, havia muito tempo, tinha sido prometido o apóstolo, caiu de joelhos. Acteia, apesar de pagã, fez como a turba, e o futuro mártir subiu ao altar.
Estavam nas Catacumbas!
XIII.
Era uma cidade inteira sob outra cidade.
A terra, os povos e os homens têm uma existência idêntica. A terra tem os seus cataclismos, os povos as suas revoluções, os homens as suas doenças.
Todos têm uma infância, uma virilidade e uma velhice. A sua idade difere na duração, eis tudo; uma conta-a por mil anos, os outros por séculos e os últimos por dias.
Nesse período que lhes é concedido, há, para cada um, épocas de transição, durante as quais sucedem coisas inauditas que, prendendo-se ao passado e preparando o futuro, se revelam à investigação da ciência sob o título de acidentes da natureza, enquanto brilham, ao olhar da fé, como desígnios da Providência. Ora, Roma chegara a uma dessas misteriosas épocas e começava a sentir os frémitos estranhos que acompanham o nascimento ou a queda dos impérios.
Sentia estremecer dentro de si o filho desconhecido que devia dar à luz e que já surdamente se agitava nas suas vastas entranhas. Atormentava-a um mal-estar moral e, como um febricitante que não pode encontrar sono nem repouso, consumia os últimos anos da sua vida pagã ora em acessos de delírio, ora em intervalos de abatimento. É que, como dissemos, por baixo da civilização superficial e exterior que se agitava sobre a terra, se introduzira um princípio novo subtérreo e invisível, consubstanciando a destruição e a reconstrução, a morte e a vida, as trevas e a luz. Assim, todos os dias passavam-se em cima, por baixo, em torno dela, acontecimentos inexplicáveis para a sua cegueira, que os poetas cantam como prodígios.
Eram ruídos subterrâneos e anormais que se atribuíam às divindades do inferno; eram súbitas desaparições de homens, de mulheres, de crianças, de famílias inteiras; eram aparições de pessoas que se julgavam mortas e que saíam, de repente, do reino das sombras para ameaçarem, para predizerem.
O fogo subterrâneo que aquecia aquele imenso cadinho, fazia borbulhar, como o oiro e o chumbo, todas as boas e más paixões; o oiro precipitava-se e o chumbo ficava à superfície. As catacumbas eram o cadinho misterioso onde se amalgamava, gota a gota, o tesouro do futuro.
Eram, como se sabe, vastas pedreiras abandonadas. Roma inteira, com as suas casas, palácios, teatros, banhos, circos, aquedutos, saíra delas, pedra a pedra; era o ventre que tinha gerado a cidade de Rómulo e de Cipião. Mas, a contar de Octávio, e desde o dia em que o mármore sucedera à pedra, os ecos daquelas vastas galerias cessaram de repetir o som dos passos dos trabalhadores. A pedra tornara-se muito vulgar e os imperadores tinham pedido a Babilónia o seu porfírio, a Tebas o seu granito e a Corinto o seu bronze. As imensas cavernas que se estendiam por baixo de Roma foram abandonadas e ficaram desertas e esquecidas até que o Cristianismo, lentamente, misteriosamente, as repovoou; foram, primeiro, um templo, depois, um asilo, mais tarde, uma cidade.
Na época em que o ancião e Acteia ali desceram, não eram mais do que um asilo. Tudo o que era escravo, infeliz, proscrito, estava certo de ali encontrar um refúgio, consolações e um túmulo. Nelas se tinham abrigado famílias inteiras e os da fé nova já se contavam por milhares. Mas, da multidão imensa que cobria a superfície de Roma, ninguém notava aquela infiltração subterrânea, que não era bastante considerável para fazer baixar sensivelmente o nível da população.
Não se julgue, porém, que os primeiros cristãos só cuidavam de fugir às perseguições que começavam; ligavam-se pela simpatia, pela piedade, pela coragem a todos os acontecimentos que ameaçavam os irmãos retidos por uma necessidade qualquer no solo da cidade pagã.
Muitas vezes, quando sobrevinha um perigo, o neófito da cidade superior via subir até ele um socorro inesperado; um alçapão invisível abria-se-lhe debaixo dos pés e fechava-se-lhe sobre a cabeça; a porta da sua masmorra girava misteriosamente nos gonzos e o carcereiro fugia com a vítima.
Quando a cólera, de pronto, semelhante ao raio, feria como ele, ao fuzilar o relâmpago, quando o neófito se tornara mártir, quer estrangulado na prisão de Tulo, quer decapitado na praça pública, quer precipitado no alto da rocha Tarpeia, quer, enfim, crucificado no monte Esquilino, aproveitando as trevas da noite, alguns velhos prudentes, alguns rapazes aventurosos e, por vezes, mesmo tímidas mulheres trepando pelos atalhos da montanha maldita onde deitavam os cadáveres dos condenados a fim de serem devorados pelos animais ferozes e pelas aves de rapina, iam buscar os corpos mutilados e levavam-nos, religiosamente, para as catacumbas, onde, de objectos de ódio e execração que tinham sido para os seus perseguidores, se tornavam objectos de adoração, de respeito, para seus irmãos, que se exortavam a viver e a morrer como o eleito que os precedera no céu vivera e morrera na terra.
Às vezes, acontecia que a morte, cansada de ferir à luz do sol, vinha escolher alguma vítima nas catacumbas; neste caso, não era uma mãe, um filho, uma esposa que perdia um filho, um pai, um marido; era uma família inteira que chorava um dos seus; envolviam-no, então, na mortalha; se era uma rapariga, cercavam-na de rosas; se um homem ou um velho, punham-lhe uma palma na mão; o sacerdote recitava, então, a oração dos mortos e deitavam-no novamente no túmulo de pedra, aberto com antecedência, onde ia dormir e esperar pela ressurreição eterna. Eis o motivo de existirem ali os caixões que Acteia vira ao entrar, pela primeira vez, sob aquelas abóbadas desconhecidas que lhe inspiraram um profundo terror, depressa mudado em melancolia.
Acteia, ainda pagã pelo coração, mas já cristã pela alma, parava algumas vezes horas inteiras diante daqueles féretros onde uma mãe, uma esposa, uma filha, desoladas, tinham gravado, com a ponta duma faca, o nome da pessoa amada e algum símbolo religioso, alguma santa inscrição, imagem da sua dor ou da sua esperança. Em quase todos havia uma cruz, imagem da resignação dos homens, aos quais ela contava os sofrimentos dum Deus; numas, o candelabro de sete braços que ardia no templo de Jerusalém, noutras, a pomba da arca, doce mensageira da misericórdia, trazendo à terra o ramo de oliveira que foi colher nos jardins celestes.
Muitas vezes, as suas recordações de felicidade acordavam mais vivas, mais poderosas, no coração de Acteia.
Então, espiava os raios do dia, escutava os ruídos da terra e ia sentar-se, só, isolada, encostada a qualquer maciço pilar, e, com as mãos cruzadas, a fronte apoiada nos joelhos, coberta com um ligeiro véu, pareceria, a quem junto dela passasse, uma estátua sentada num túmulo, se, por vezes, não se ouvisse sair-lhe do peito um suspiro, não se visse percorrer-lhe o corpo um frémito de dor.
Paulo, o único que sabia o que naquela alma se passava, Paulo, que vira o Cristo perdoar à impura Madalena, pedia ao tempo e a Deus que fechassem aquela ferida e, vendo-a assim muda e imóvel, dizia às mais puras virgens:
- Orai por aquela mulher, para que o Senhor lhe perdoe, para que seja um dia uma das vossas e para que, a seu turno, ore convosco.
Elas obedeciam; e quer as suas preces subissem ao céu, quer o pranto suavizasse a amargura da dor, via-se, então, a jovem grega a ir reunir-se às companheiras, com o sorriso nos lábios e lágrimas nos olhos.
Entretanto, ao passo que os cristãos, escondidos nas catacumbas, viviam naquela vida de piedade, de proselitismo e de esperança, precipitavam-se os acontecimentos por cima das suas cabeças.
O mundo pagão cambaleava como um ébrio, e Nero, príncipe do festim e rei da orgia, afogava-se em prazeres, em vinho e em sangue. A morte de Agripina partira o último freio que o podia ainda conter, por esse receio de criança que o rapaz sente pela mãe; com a chama da sua fogueira extinguira-se, por completo, o pudor, a consciência e o remorso. Quis ficar em Baulos porque aos sentimentos generosos desaparecidos sucedera o medo, e Nero, por maior desprezo que tivesse pelos homens, por maior impiedade que professasse pelos deuses, não podia deixar de pensar que tal crime levantaria contra si o ódio dos seus e a cólera dos outros.
Deixou-se, pois, ficar longe de Nápoles e de Roma, esperando as notícias que lhe traziam os correios.
Mas fizera mal em duvidar da baixeza do Senado; uma deputação de patrícios e cavaleiros veio felicitá-lo por ter escapado àquele perigo novo e imprevisto e anunciar-lhe que não só Roma mas todas as cidades do império entulhavam os templos com os seus enviados e testemunhavam, com sacrifícios, a sua alegria.
Quanto aos deuses, a crer em Tácito, que poderia bem ter-lhes emprestado o seu rigorismo, foram menos fáceis.
Na falta de remorsos, enviaram ao parricida a insónia, durante a qual ouvia o toque duma trombeta no cume das colinas vizinhas, e gritos lamentáveis, desconhecidos e sem causa chegavam até ele, vindos do lado do túmulo da mãe.
Decidiu, portanto, partir para Nápoles.
Ali encontrara Popeia, e com ela o ódio contra Octávia, essa irmã de Britânico, essa pobre criança que, arrancada àquele a quem amava com pureza virginal, fora atirada por Agripina aos braços de Nero; pobre esposa cujo luto começara no dia do noivado, que só entrou na habitação conjugal para ver morrer, envenenados, o pai e o irmão, para em vão lutar contra uma amante mais poderosa e que, longe de Roma, estava, na idade de vinte anos, exilada na ilha de Pandatária, já separada da vida pelo pressentimento da morte, tendo centuriões e soldados por única corte, corte terrível de olhares incessantemente voltados para Roma, que só esperavam uma ordem, um gesto, um sinal para se transformarem de aduladores em carrascos.
Era esta vida, tão isolada, tão infeliz, tão ignorada, que atormentava ainda Popeia no meio dos seus esplendores adúlteros e do seu poder sem limites, porque a beleza, a juventude e as desgraças de Octávia haviam-na popularizado. Os romanos lastimavam-na instintivamente, por esse sentimento natural do homem que se apieda da fraqueza que sofre. Mas este interesse podia contribuir para a perder, não para a salvar, porque era mais terno do que forte, e idêntico ao que se experimenta por uma gazela ferida ou por uma flor quebrada na haste.
Nero, apesar da sua indiferença por Octávia e das instâncias de Popeia, hesitava em ferir. Há crimes tão inúteis que o homem, o mais cruel, hesita em cometê-los. O que o criminoso coroado temia não eram os remorsos, mas a falta de pretexto.
A cortesã compreendeu o que retinha o imperador; sabendo que não era amor nem piedade, buscou a verdadeira causa, e não tardou a adivinhá-la. Assim, um dia, estalou uma sedição e o nome de Octávia foi pronunciado entre gritos que pediam a sua vinda; as estátuas de Popeia foram derrubadas e arrastadas pela lama; depois, um magote de homens armados de chicotes dispersou os rebeldes e repôs as efígies de Popeia nos seus pedestais.
Aquele levantamento durara uma hora e custara um milhão; não era pagar muito caro a cabeça duma rival.
A Popeia bastava esta demonstração.
Estando em Roma, correu a Nápoles; fugia dos assassínios assalariados por Octávia, dizia ela; o medo tornava-a encantadora; deitou-se aos pés de Nero.
Nero enviou a Octávia ordem de se matar. Em vão, a pobre exilada ofereceu ficar reduzida aos títulos de viúva e de irmã; em vão invocou os nomes dos Germânicos, seus avós comuns, o de Agripina, que, enquanto viva, velara pelos seus dias; tudo foi inútil; como hesitava em obedecer e não ousava ferir-se a si própria, ligaram-lhe os braços e abriram-lhe as quatro veias; depois, cortaram-lhe todas as artérias porque o sangue, gelado pelo terror, tardava em correr e como, mesmo assim, não saía, asfixiaram-na com o vapor dum banho a ferver.
Para que a favorita não duvidasse do assassínio, nem julgasse que tinham substituído por uma vítima vulgar a vítima imperial, deceparam a cabeça e trouxeram-na a Popeia, que a colocou sobre os joelhos, abriu-lhe as pálpebras e crendo, talvez, ver uma ameaça naquele olhar átono e gelado, cravou-lhe nos olhos os alfinetes de oiro com que segurava os cabelos.
Nero voltou, enfim, a Roma, e a sua loucura e dissolução chegaram ao auge. Houve jogos em que os senadores combateram como gladiadores; combates de canto, onde eram punidos de morte os que não aplaudiam; um incêndio que devorou metade de Roma e que Nero presenciou batendo as palmas e dançando ao som da lira. Popeia compreendeu que era chegada a ocasião de sofrear aquele que excitara; que aqueles inauditos prazeres, tão monstruosos, prejudicavam a sua influência, toda baseada nos gozos. A pretexto da sua gravidez, recusou ir ao teatro num dia em que Nero devia cantar. Esta recusa feriu o artista; falou como imperador; Popeia resistiu como favorita e Nero, impacientado, matou-a com um pontapé.
Nero pronunciou o seu elogio da tribuna e, não podendo louvá-la pelas suas virtudes, louvou-a pela sua beleza. Dirigiu, ele próprio, as exéquias e não quis que o corpo fosse queimado, mas embalsamado à maneira dos reis do Oriente.
Plínio, o naturalista, assevera que a Arábia não produz, num ano, tanto incenso e mirra como os consumidos pelo imperador nos divinos funerais daquela que fazia ferrar as suas mulas a oiro e tomava, todos os dias, um banho com o leite de quinhentas burras.
As lágrimas dos maus reis recaem sobre os povos, em chuva de sangue. Nero acusou os cristãos dos seus próprios crimes e começou uma nova perseguição, mais terrível ainda do que as precedentes. O zelo dos catecúmenos redobrou com o perigo; todos os dias havia novas viúvas e novos órfãos a consolar; todas as noites novos corpos a subtrair às feras e às aves de rapina.
Nero descobriu, enfim, que roubavam os cadáveres; colocou uma guarda em volta do monte Esquilino e, numa noite em que alguns cristãos, conduzidos por Paulo, vinham, como de costume, desempenhar a sua santa missão, um magote de soldados, escondidos numa ravina da montanha, caiu de improviso sobre eles e prendeu-os, com excepção dum só, Silas.
Correu este às catacumbas, onde chegou quando os fiéis se reuniam para a oração. Deu-lhes a infausta nova e todos caíram de joelhos para implorar o Senhor.
Só Acteia ficou de pé, porque o Deus dos cristãos não era ainda o seu. Alguns acoimaram-na de ímpia e de ingrata, mas Acteia estendeu o braço para a multidão e declarou:
- Amanhã irei a Roma e tratarei de o salvar.
- E eu - disse Silas - volto para lá esta noite para morrer com ele, se não fores bem sucedida.
XIV.
No dia seguinte, de manhã, Acteia, conforme a sua promessa, saiu das catacumbas e tomou o caminho de Roma; ia só e a pé, vestida com uma longa estola que lhe caía do pescoço aos pés e coberta com um véu que lhe tapava o rosto.
Entalara no cinto um punhal curto e agudo, porque temia ser insultada por algum cavaleiro embriagado ou por algum soldado brutal e porque se a sua empresa não fosse coroada de êxito, se não obtivesse o perdão de Paulo que ia solicitar, pediria para o ver e dar-lhe-ia aquela arma a fim de poder escapar a um suplício cruel e vergonhoso. Era, como se vê, a rapariga da Acaia, nascida para sacerdotisa de Diana e de Minerva, alimentada de ideais e exemplos pagãos, lembrando-se sempre de Aníbal bebendo o veneno, de Catão rasgando as entranhas e de Bruto atravessando-se com a espada; ignorava que a nova religião proibia o suicídio e glorificava o martírio e que o que era vergonhoso aos olhos dos gentios, simbolizava uma apoteose aos dos fiéis.
A alguns passos da porta Metroni, para além da qual continuava, na própria Roma, o vale de Egéria, que seguira desde as catacumbas, sentiu dobrar os joelhos e o coração bater com tal violência que, para não cair, foi obrigada a encostar-se a uma árvore. Ia tornar a avistar o que deixara de ver desde a terrível noite das festas de Minerva.
Iria encontrar Lúcio ou Nero, o vencedor dos jogos olímpicos ou o imperador, um amante ou um juiz? Ela porém sentia que essa espécie de torpor em que lhe caíra o coração, durante a longa permanência nas Catacumbas, provinha do frio, do silêncio, das trevas daqueles antros; que se reanimava com o dia, com a luz, e que a sua alma se reabria para o amor como uma flor ao sol.
De resto, como dissemos, tudo que se passara na superfície da terra repercutira-se nas Catacumbas, mas como eco fugitivo, afastado, enganador.
Acteia tinha sabido do assassínio de Octávia e da morte de Popeia, mas todos esses infames detalhes, que os historiadores nos legaram, estavam ainda encerrados num círculo de carrascos e cortesãos, para fora do qual transpiraram surdos rumores e narrações truncadas; só a morte dos reis deixa arrancar o véu que lhes cobre as vidas; só quando Deus faz da sua majestade um cadáver impotente, a verdade, exilada dos seus palácios, vem assentar-se-lhes no túmulo.
Tudo o que Acteia sabia era que o imperador já não tinha esposa nem amante, e que uma surda esperança lhe dizia que ele guardava talvez, num canto do seu coração, a recordação daquele amor que, para ela, era toda a sua alma.
Reanimou-se, pois, depressa e transpôs a porta da cidade; era uma bela e quente manhã de Julho, o XV das calendas, dia marcado entre os dias felizes. Decorria a segunda hora da manhã, correspondente, entre nós, às sete horas, marcada também entre as horas felizes. Quer a coincidência de datas propícias conduzisse cada pessoa ao cumprimento dos seus negócios ou prazeres, quer uma festa prometida atraísse a turba, quer um espectáculo extraordinário distraísse o povo das suas ocupações diárias e matinais, as ruas achavam-se repletas de passeantes, caminhando, quase todos, para o Fórum.
Acteia seguiu-os. Era o caminho do Palatino, e, no Palatino, esperava encontrar Nero. Toda entregue ao sentimento que lhe inspirava aquela próxima entrevista, ia andando, sem ver e sem ouvir, seguindo pela comprida rua que se estendia entre o Célio e o Aventino e estava atapetada de estofos preciosos e juncada de flores, como nas solenidades públicas; ao chegar à esquina do Palatino, viu os deuses da pátria com os seus vestidos de festa e a fronte cingida por coroas de relva, de carvalho e de loureiros. Tomou, então, pela direita e, em breve, se encontrou na Via Sacra, por onde passara em triunfo na sua primeira entrada em Roma. A multidão tornava-se cada vez mais densa e apressada, dirigindo-se para o Capitólio, onde parecia preparar-se qualquer festa grandiosa.
Mas o que importava a Acteia o que se passava no Capitólio? Era Lúcio que procurava. Lúcio habitava a casa dourada; chegando à altura do templo de Remo e Rómulo, voltou à esquerda, passou rapidamente entre os templos de Febe e de Júpiter Stator, subiu a escadaria que conduzia ao Palatino e entrou no vestíbulo da casa dourada.
Ali encontrou a primeira revelação da cena que ia passar-se a seus olhos. Um leito magnífico erguia-se em frente da porta do átrio; estava coberto de púrpura tíria com lavores de oiro, colocado sobre um pedestal de marfim incrustado de tartaruga e guarnecido de estofos atálicos que o abrigavam como uma tenda.
Acteia tremeu toda, borbulhou-lhe na fronte um suor frio e uma nuvem toldou-lhe o olhar. Aquele leito, exposto às vistas da multidão, era um leito nupcial. Contudo, quis duvidar; aproximou-se de um escravo e perguntou a quem pertencia aquele leito e o escravo respondeu que era de Nero, que, àquela hora, se casava no templo de Júpiter Capitolino.
Operou-se na alma de Acteia um temível e repentino regresso à insensata paixão que a perdera. Esqueceu tudo: as catacumbas onde encontrara asilo, os cristãos que concentravam nela as suas esperanças e o perigo que corria Paulo, que a salvara e a quem, por seu turno, viera salvar. Levou a mão ao punhal que tomara como defesa do seu pudor ou recurso contra a vergonha e, com o coração cheio de ciúmes, desceu a escadaria e correu para o Capitólio para ver a nova rival que, no momento em que ia, talvez, retomar a sua posse, lhe roubava o coração do amante.
A multidão era imensa; não obstante, com essa força que dá uma paixão real, abriu passagem. Adivinhava-se facilmente, apesar do véu lhe esconder o rosto, que aquela mulher, de passo firme e rápido, caminhava com um fito importante e que impossível seria tolher-lhe o passo.
Percorreu, assim, a Via Sacra até onde se bifurcava sob o arco de Cipião e, tomando pelo caminho mais curto, isto é, pelo que passava entre as prisões públicas e o templo da Concórdia, entrou resolutamente no templo de Júpiter Capitolino.
Ali, junto da estátua do deus, rodeados pelas dez testemunhas exigidas pela lei, escolhidas entre os mais nobres patrícios, sentados, ambos, em cadeiras cobertas com o tosão duma ovelha que servira de vítima, viu os noivos, com os rostos velados, de modo que não pôde logo reconhecer a mulher. Mas, no mesmo instante, o supremo pontífice, acolitado pelo flâmine de Júpiter, após uma libação de leite e vinho com mel, avançou para o imperador e disse:
- Lúcio Domício Cláudio Nero, dou-te Sabina. Sê seu esposo, seu amigo, seu tutor e seu pai. Faço-te senhor de todos os seus bens e confio-os à tua boa fé.
Ao mesmo tempo, colocou a mão da mulher na do esposo e levantou-lhe o véu para que todos pudessem saudar a nova imperatriz.
Acteia, que duvidava, apesar de ter ouvido o nome, foi forçada a acreditar quando lhe viu o rosto. Era bem a rapariga do barco e do banho; era bem Sabina, a irmã de Esporo. À face dos deuses e dos homens, o imperador desposara uma escrava!
Acteia avaliou o inexplicável sentimento que sempre tivera por aquele ser misterioso; era uma repulsão inata, um ódio instintivo que as mulheres sentem pelas destinadas a tornarem-se, um dia, suas rivais.
Nero desposara aquela rapariga que lhe dera, que a havia servido, que fora sua escrava, que a esse tempo, talvez, já partilhasse com ela o amor do amante, sobre a qual já tivera direito de vida e de morte e que não esmagara nas mãos, como uma serpente que devia, no futuro, devorar-lhe o coração.
Oh, era impossível! Volveu ainda sobre ela o olhar repleto de dúvida, mas o sacerdote não se enganara, era bem Sabina; Sabina com o trajo de noiva, com a túnica branca unida e ornada de fitinhas com a cintura apertada pelo cinto de lã de ovelha cuja ruptura era reservada ao esposo, com os cabelos atravessados pelo dardo de oiro, recordação do rapto das Sabinas, e com os ombros cobertos com um véu cor de fogo, ornamento nupcial que a noiva só traz um dia e que sempre foi escolhido como feliz presságio, porque é o adorno habitual da mulher do flâmine, a quem, as leis interdizem o divórcio.
Os esposos levantaram-se e saíram do templo. Esperavam-nos à porta cavaleiros romanos conduzindo as quatro divindades protectoras dos casamentos e quatro mulheres da primeira nobreza de Roma trazendo fachos.
Esperava-os também Tigelino, com o dote da esposa. Nero recebeu-o, pôs a coroa na cabeça de Sabina e, pelos ombros, o manto das imperatrizes; subiu com ela para uma liteira esplêndida, descoberta, beijando-a à vista de todos com grandes aplausos do povo, entre os quais se distinguiam as vozes cortesanescas dos gregos que, na linguagem feita para a lisonja, ousavam emitir votos pela fecundidade daquela estranha união.
Acteia seguiu-os, julgando que iam entrar na casa dourada, mas, chegando abaixo do Capitólio, voltaram para o bairro etrusco, atravessaram o Velabro, ganharam o bairro de Argileto, e entraram no Campo de Marte pela porta triunfal. Foi assim que nas festas sigilárias de Roma, Nero quis mostrar ao povo a nova imperatriz.
Conduziu-a à Praça das Hortaliças, ao teatro de Pompeia, aos pórticos de Octávia. Acteia seguiu-os por toda a parte, aos mercados, aos templos, aos passeios, sem, por um instante, os perder de vista. Fora oferecido um jantar na colina dos jardins. Acteia conservou-se de pé, encostada a uma árvore, enquanto durou o festim.
Voltaram pelo Fórum de César, onde o Senado esperava para os cumprimentar. Escutou a arenga, apoiada contra a estátua do ditador. Todo o dia se passou assim; só à noitinha tomaram o caminho do palácio e, todo o dia, Acteia se conservou de pé, sem comer, sem dar atenção à fadiga nem à fome, sustida pelo fogo do ciúme que lhe queimava o coração, correndo-lhe pelas veias.
Os esposos entraram, finalmente, na casa dourada. Acteia entrou também; coisa fácil, porque as portas estavam abertas, pois Nero, ao contrário de Tibério, não temia o povo. Melhor ainda: as suas prodigalidades, os seus jogos, os seus espectáculos, a sua própria crueldade, que só feria cabeças elevadas ou inimigos das crenças pagãs, faziam-no amar pela turba e, hoje ainda, é talvez, em Roma, o imperador cujo nome ficou mais popular.
Acteia conhecia o interior do palácio por tê-lo percorrido com Lúcio; os seus fatos, o seu véu branco davam-lhe a aparência duma das jovens companheiras de Sabina; ninguém lhe prestou atenção e, enquanto o imperador e a imperatriz entravam no triclinium para cear, introduziu-se na câmara nupcial, para onde voltara o leito, e escondeu-se com um cortinado.
Ali esteve duas horas, imóvel, muda, sem que a sua respiração fizesse ondular o flutuante estofo que pendia na sua frente. Para que viera não o sabia; durante aquelas horas a sua mão não largou o cabo do punhal. Enfim, ouviu um ligeiro ruído; pelo corredor aproximavam-se passos de mulheres; a porta abriu-se e Sabina, acompanhada por uma matrona romana, duma das primeiras e mais antigas famílias, chamada Cálvia Crispinela, que lhe servira de mãe como Tigelino lhe servira de pai, entrou no aposento com o seu vestido de noivado, exceptuando o cinto de lã, que Nero despedaçara, antes de terminar o festim, para que Cálvia pudesse despir o fato à noiva. Começou por desatar-lhe as tranças falsas enroladas no alto da cabeça em forma de torre e os cabelos caíram sobre os ombros; depois tirou o véu; enfim, desprendeu o vestido, de modo que a rapariga ficou com uma simples túnica, e, coisa extraordinária, ao passo que aqueles adornos eram retirados, uma inaudita metamorfose parecia operar-se à vista de Acteia. Sabina desaparecera para dar lugar a Esporo tal como Acteia o vira desembarcar do navio e caminhar atrás de Lúcio, com a sua túnica flutuante, os braços nus e os compridos cabelos. Era um sonho ou realidade? O irmão e a irmã eram uma só pessoa? Tornar-se-ia Acteia insensata?
Terminadas as suas funções, Cálvia inclinou-se ante a sua extraordinária imperatriz. Aquele ente andrógino agradeceu e a jovem grega reconheceu que aquela voz tanto podia ser de Esporo como de Sabina. Cálvia saiu.
A recém-casada ficou só, olhou para todos os lados e, julgando não ser vista nem ouvida por pessoa alguma, deixou pender os braços com abatimento e suspirou; duas lágrimas lhe corriam pelas faces; depois, com uma expressão de profundo desgosto, encaminhou-se para o leito, mas no momento em que punha o pé no primeiro degrau, recuou espantada, soltando um grande grito; apercebera, emoldurado nos cortinados de púrpura, o rosto pálido da jovem coríntia que, vendo-se descoberta e sentindo que a rival ia escapar-lhe, saltou sobre ela qual tigre; aquele ente era muito fraco para fugir ou defender-se; caiu de joelhos estendendo os braços para ela, tremendo ao aspecto da lâmina do punhal que lhe brilhava na mão. De súbito, passou-lhe pelos olhos um raio de esperança.
- És tu, Acteia? És tu? - interrogou.
- Sim, sim, sou eu - respondeu ela. - Sou eu, sou Acteia. Mas tu, quem és? És Sabina? És Esporo? És homem ou mulher? Responde... fala... fala, anda!...
- Ai de mim! Ai de mim! - exclamou o eunuco caindo desmaiado aos pés de Acteia. - Ai de mim! Não sou nem um nem outra!...
Acteia, estupefacta, deixou cair o punhal.
A porta abriu-se e muitos homens entraram precipitadamente. Eram escravos que vinham colocar em volta do leito as estátuas dos deuses protectores do casamento. Viram Esporo desmaiado, uma mulher desgrenhada, pálida, de olhar alucinado, inclinada sobre ele, e um punhal no chão. Adivinharam tudo; agarraram Acteia e conduziram-na para as prisões do palácio, perto das quais passara naquela doce noite em que Lúcio a chamara e de onde ouvira sair tão lastimosos gemidos. Encontrou ali Paulo e Silas.
- Esperava-te - disse Paulo.
- Oh, meu pai! - exclamou a jovem coríntia. - Tinha vindo a Roma para te salvar...
- E não podendo salvar-me, queres morrer comigo.
- Oh, não, não! - gritou a jovem, envergonhada. - Não. Eu esqueci-te. Não. Sou indigna de que me chames filha. Sou uma desgraçada insensata que não merece piedade nem perdão.
- Ama-lo, pois, sempre?
- Não, já não o amo, meu pai, porque é impossível amá-lo ainda. O que eu estou é louca! Oh! Quem me tira esta loucura?! Não há homem na terra, não há Deus no céu, bastante poderosos para o fazer!
- Lembra-te do filho do escravo. Aquele que cura o corpo, pode curar a alma.
- Sim, mas o filho do escravo, à falta de fé, tinha a inocência. Eu não tenho ainda fé e não tenho já inocência!
- E todavia - redarguiu o apóstolo - não está tudo perdido; resta-te o arrependimento.
- Ai de mim! Ai de mim! - murmurou Acteia, com acento de dúvida.
- Bem. Anda cá - disse Paulo, sentando-se num ângulo da masmorra. - Quero falar-te de teu pai.
Acteia caiu de joelhos, encostou a cabeça ao ombro do velho e toda a noite o apóstolo a exortou. Acteia só respondia com soluços, mas de manhã estava pronta a receber o baptismo.
Quase todos os cativos, com Paulo e Silas, eram cristãos refugiados nas catacumbas. Havia dois anos que Acteia com eles habitava; neste tempo apreciaram as virtudes daquela cujas faltas ignoravam. Fizeram-se preces, toda a noite, a Deus, para que deixasse cair um raio de fé sobre a pobre pagã. Foi, portanto, uma declaração solene a do apóstolo quando anunciou, em voz alta, que o Senhor ia contar mais uma serva.
Paulo não deixara ignorar a Acteia a extensão dos sacrifícios que o novo título lhe ia impor. O primeiro era o do seu amor, o segundo, talvez a sua vida. Todos os dias vinham buscar ao acaso, àquela prisão, qualquer vítima para as expiações ou festas. Apresentavam-se muitos, tendo pressa do martírio, e, deles, separavam as vítimas sem escolha, cegamente. Qualquer corpo que pudesse sofrer era bom para pregar na cruz ou ser atirado para o anfiteatro.
Uma abjuração em tais circunstâncias não era somente uma cerimónia religiosa senão também a abnegação na morte. Acteia pensava que o perigo resgataria a sua pouca ciência da fé nova. Das duas religiões vira o suficiente para abençoar uma e maldizer outra. Todos os criminosos exemplos vinham dos gentios; todos os de virtude procediam dos cristãos. Mas, acima disto, a certeza de que Nero não podia viver com ela fazia-lhe desejar a morte com Paulo.
Foi, pois, com entusiasmo, que aos olhos do Senhor foi aceite como fé, que, no meio do círculo dos presos ajoelhados, ela se ajoelhou sob um raio de sol, descido por um respiradouro através do qual se entrevia o céu. Paulo, de pé, atrás dela, com as mãos erguidas, orava, e Silas, inclinado, segurava o vaso da água benta em que molhava o buxo abençoado.
Quando Acteia finalizava o acto dos apóstolos, esse credo antigo, ainda, em nossos dias, sem alteração, o símbolo da fé, a porta abriu-se com grande ruído. Apareceram soldados, guiados por Aniceto, que, ferido pelo espectáculo estranho que se lhe deparava, porque todos tinham ficado de joelhos orando, parou silencioso no limiar.
- O que queres? - indagou Paulo, interrogando aquele que umas vezes vinha como juiz e outras como algoz.
- Quero aquela rapariga - respondeu Aniceto, designando Acteia.
- Não te seguirá - tornou Paulo - porque não tens direito algum sobre ela.
- Aquela rapariga pertence a César! - exclamou Aniceto.
- Enganas-te - contrariou Paulo, pronunciando as palavras consagradas e deitando a água benta na cabeça da neófita. - Esta rapariga pertence a Deus!
Acteia soltou um grito e desmaiou; sentiu que Paulo dissera a verdade e que as palavras pronunciadas acabavam de a separar, para sempre, de Nero.
- Então é a ti que conduzirei ao imperador em seu lugar - retorquiu Aniceto, fazendo sinal aos soldados para se apoderarem de Paulo.
- Faze o que quiseres - assentiu o apóstolo - estou pronto a seguir-te. Bem sei que já é tempo de ir ao céu prestar contas da minha missão na terra.
Paulo, levado à presença de César, foi condenado ao crucifixo, mas apelou da sentença como cidadão romano; tendo os seus direitos sido reconhecidos como habitante de Tarso, na Cilícia, foi-lhe cortada a cabeça no Fórum.
César assistiu à execução; como o povo, que contava com um suplício mais demorado, fizesse ouvir alguns murmúrios, o imperador prometeu-lhe um combate de gladiadores para os próximos idos de Março, a fim de celebrar o terceiro aniversário da morte do ditador Júlio César.
XV.
NERO acertara; aquela promessa acalmou os murmúrios; entre todos os espectáculos que amiudadas vezes lhes proporcionavam os seus edis, os seus pretores e os seus Césares, os de que o povo se mostrara mais ávido eram as caçadas de animais e as lutas de gladiadores.
Outrora, estes dois espectáculos eram distintos, mas Pompeu tivera a ideia de os reunir fazendo, pela primeira vez, combater, no tempo do seu segundo consulado, por ocasião da consagração do templo de Vénus vitoriosa, vinte elefantes selvagens contra gétulos armados de dardos.
É verdade que muito anteriormente, a crer em Tito Lívio, encontraram a morte no circo, num só dia, cento e quarenta e dois elefantes, mas estes elefantes, tomados numa batalha contra os cartagineses e que Roma, pobre e prudente, então, não queria sustentar nem dar aos aliados, sucumbiram massacrados pelos dardos e flechas arremessados pelos espectadores das galerias.
Oitenta anos mais tarde, pelo ano 523 de Roma, Cipião Nasica e P. Lêntulo apresentaram no circo sessenta e três panteras de África e já os Romanos se tornavam indiferentes a este género de festas, quando Seguro, transferindo o espectáculo para um outro elemento, encheu de água o anfiteatro e naquele mar fictício meteu quinze hipopótamos e vinte e três crocodilos; Sila, pretor, organizara uma caçada de cem leões de juba; o grande Pompeu, uma de trezentos e quinze; e Júlio César uma de quatrocentos; enfim, Augusto, que herdara de Octávio um ante-gosto de sangue, fizera matar, nas festas realizadas em seu nome e no do neto, cerca de três mil e quinhentos leões, tigres e panteras.
Estas festas estiveram suspensas até um certo P. Ser-vílio, de cuja vida apenas resta a recordação duma festa onde foram mortos trezentos ursos e outras tantas panteras e leões trazidos dos desertos de África.
Mais tarde este luxo não teve freio; Tito fez, numa só caçada, matar quase cinco mil animais ferozes de todas as espécies.
Mas, superior a todos, Nero deu as festas mais ricas e variadas.
Além dos impostos em dinheiro sobre as províncias conquistadas, taxara o Nilo e o deserto; a água e as areias forneciam o seu dízimo de leões, tigres, panteras e crocodilos. Os gladiadores tinham sido vantajosa e economicamente substituídos pelos prisioneiros de guerra e pelos cristãos; não possuíam estes a destreza que dava, aos primeiros, o estudo da sua arte; mas, em compensação, tinham a coragem e a exaltação que juntavam poesia e forma nova à sua agonia; nem mais se tornava preciso para despertar a curiosidade.
Roma inteira precipitou-se no circo. Desta vez, o deserto e as prisões tinham dado um enorme contingente.
Havia suficientes animais ferozes e vítimas para que a festa durasse todo o dia e toda a noite, durante a qual, como prometera o imperador, o circo seria iluminado duma maneira nova.
Por isso, César foi recebido com aclamações unânimes. Vinha vestido de Apolo e trazia, como o deus pítico, um arco e flechas, porque, no intervalo dos combates, devia dar provas da sua destreza; arrancadas algumas árvores das florestas de Albano, plantaram-nas no circo, com os seus ramos e folhas; sobre aquelas árvores, pavões e faisões domesticados ostentavam as suas penas de azul e oiro e ofereciam alvo às flechas do imperador.
Acontecia, também, que, por vezes, César se apiedava dalgum bestiário ferido, ou se zangava com algum animal que não desempenhava bem o seu papel de algoz; então, pegava no arco ou nos dardos e, do seu lugar, do seu trono, enviava a morte ao outro extremo do circo, qual Júpiter Fulminante.
Os que deviam começar os combates eram, como de costume, comprados a seus amos, mas, em atenção à grandeza da solenidade, alguns mancebos patrícios misturaram-se com os gladiadores de profissão para lisonjear o imperador. Dizia-se mesmo, que entre eles havia dois nobres, arruinados pelos seus deboches, que se alugaram, um pela soma de duzentos e cinquenta, outro por trezentos mil sestércios. Quando Nero entrou, os gladiadores estavam na arena esperando o sinal e exercitando-se entre si, como se os combates que iam seguir-se fossem simples jogos de esgrima. Apenas as palavras: "O Imperador! O Imperador!" retiniram no circo e se viu César-Apolo sentar-se no trono diante das vestais, entraram na arena os mestres dos jogos, trazendo armas aguçadas que entregaram aos combatentes em troca das embotadas com que se exercitavam. Depois desfilaram em frente de Nero, erguendo para ele os gládios para que se certificasse de estarem acerados e cortantes, o que podia fazer abaixando-se, por a sua tribuna se elevar da arena simplesmente uns nove ou dez pés. Apresentaram a César a lista dos combatentes, a fim de designar a ordem por que deviam combater. Decidiu que se começasse pelo reciário e pelo mirmilhão; seguir-se-iam dois dimaqueros e depois dois andabatas; para fechar esta primeira parte, que devia acabar ao meio-dia, dois cristãos, um homem e uma mulher, seriam devorados por animais ferozes.
O povo pareceu bastante satisfeito com este primeiro programa, e no meio de gritos de "Viva Nero! Glória a César! Fortuna ao Imperador!" entraram na arena os dois primeiros gladiadores, por portas opostas: um mirmilhão e um reciário.
O primeiro, a quem se chamava também secutor, porque mais vezes perseguia do que era perseguido, vestia uma túnica verde-claro, com bandas transversais de prata, apertada ao corpo por um cinto de cobre cinzelado em que brilhavam incrustações de coral; a perna direita era defendida por uma ocrea, ou botina de bronze; um capacete de viseira, semelhante aos dos cavaleiros do século XIV, coroado por uma cimeira representando uma cabeça de búfalo de longos chifres, escondia-lhe o rosto; trazia no braço esquerdo um grande escudo redondo e na mão direita um dardo e uma maça de chumbo: a armadura e o trajo gauleses.
O reciário segurava na mão direita a rede a que devia o nome, pouco mais ou menos semelhante à que os pescadores actuais chamam de tarrafa, e na esquerda, defendida por um pequeno escudo chamado de parma, um longo tridente de cabo de bordo e pontas de aço. A túnica era azul, como os coturnos de coiro, com a botina de bronze dourado. O rosto, ao contrário do inimigo, estava descoberto e a cabeça unicamente protegida por um barrete de lã azul, de que pendia uma rede de oiro.
Os dois adversários aproximaram-se, não em linha recta, mas circularmente, o reciário com a rede preparada, o mirmilhão balouçando o dardo. Quando se julgou ao alcance, o reciário deu um salto rápido para a frente, ao mesmo tempo que, desdobrando-a, atirava a rede; nenhum dos seus movimentos escapara ao mirmilhão, que deu um salto igual para trás; a rede caiu-lhe aos pés. Ao mesmo tempo, o dardo partiu da mão do mirmilhão, antes que o reciário tivesse tempo de cobrir-se com o escudo; o seu inimigo viu expedir a arma e baixou-se, porém, não com tal rapidez que o dardo, em lugar de o atingir no peito, não levasse o seu elegante barrete.
O reciário, apesar de armado com o tridente, começou a fugir arrastando a rede, porque só podia servir-se da sua arma para matar o inimigo quando envolvido nas malhas.
O mirmilhão perseguiu-o; mas essa perseguição, retardada pela pesada maça e pela dificuldade de ver bem através dos orifícios que formavam a viseira do capacete, permitiu ao reciário preparar, de novo, a rede e pôr-se em guarda; o mirmilhão parou logo e colocou-se na defensiva.
Durante a perseguição, o secutor apanhara o dardo e prendera no cinto, como um troféu, o barrete do adversário. Desta vez foi o mirmilhão que tomou a ofensiva. O dardo, lançado uma segunda vez com toda a força do seu braço, bateu em cheio no escudo do reciário, atravessou a placa de bronze e roçou-lhe o peito. O povo julgou-o ferido de morte e de todos os lados se ouviu o grito: Peractum est! Peractum est!
Mas o reciário, afastando do peito o escudo do qual pendia o dardo, mostrou só estar ligeiramente ferido; retiniram nos ares os gritos de alegria, porque o que, antes de tudo, temiam os espectadores eram os combates demasiadamente curtos; por esta razão, davam mostras de desprezar o gladiador que feria na cabeça, apesar de se permitirem tais golpes.
Ao mirmilhão coube a vez de recuar; a maça, arma terrível quando perseguia o reciário desarmado da sua rede, tornava-se-lhe quase inútil quando este a tinha preparada, porque, aproximando-se bastante do adversário para com ela o poder ferir, ficava exposto a ser envolvido pelas mortais malhas. Principiou, então, o espectáculo duma fuga com todas as regras, porque a fuga era também uma arte. Mas o mirmilhão era incomodado pelo capacete e, em breve, o reciário se achou tão perto dele, que se ouviram gritos advertindo o gaulês; este avaliou que estava perdido se, prontamente, não se desembaraçasse do capacete, agora inútil; abriu, mesmo correndo, o fecho de ferro que o mantinha fechado e, tirando-o da cabeça, arremessou-o para longe.
Reconheceu-se, com espanto, no mirmilhão um mancebo duma das mais nobres famílias de Roma, chamado Festo, que se servira daquele capacete de viseira mais para se ocultar do que para se defender; esta descoberta redobrou o interesse que os espectadores tomavam pelo combate.
Desde aquele momento o jovem patrício ganhando terreno sobre o outro que, por seu turno, era embaraçado pelo escudo atravessado pelo dardo, que não quisera arrancar, com receio de dar uma arma ao inimigo; excitado pelos gritos dos espectadores e pela fuga continuada do adversário, deitou para longe o escudo e o dardo e adquiriu maior liberdade de movimentos; mas quer o mirmilhão visse naquela acção uma imprudência que igualava, de novo, o combate, quer se sentisse cansado, parou de repente, volteando em torno da cabeça a maça de chumbo.
O reciário, pelo seu lado, preparou a arma, mas, antes de chegar ao alcance do inimigo, a maça, assobiando como o projéctil duma catapulta, foi bater-lhe em cheio no peito. Cambaleou um instante, depois caiu, coberto pelas malhas da própria rede. Festo correu para o vencido, arrancou o dardo e, dum pulo, saltou sobre o inimigo, na garganta do qual apoiou a arma, interrogando o povo para saber se devia matar ou perdoar. Ergueram-se muitas mãos com o polegar para baixo; mas tornando-se impossível avaliar a que lado pertencia a maioria, no meio daquela multidão, fez-se ouvir o grito:
- As vestais! As vestais!
Era o apelo, em caso de dúvida.
Festo voltou-se para o podium. as doze vestais levantaram-se; oito tinham o polegar voltado para o chão: era a maioria pela morte.
O reciário pegou, ele mesmo, na ponta do ferro, apoiou-o na garganta e gritou pela última vez:
- César é Deus!
E, com o dardo de Festo, sem se lhe ouvir um queixume, abriu a artéria do pescoço e trespassou o peito.
O povo bateu palmas ao vencedor e ao vencido, porque se um matara com destreza, o outro morrera graciosamente. Festo deu volta ao anfiteatro para recolher os aplausos e saiu por uma porta, enquanto levavam por outra o cadáver do seu inimigo.
Entrou um escravo e com um ancinho revolveu a areia para apagar os vestígios do sangue; dois novos combatentes apareceram na liça: eram dois dimaqueros.
Os dimaqueros eram os requintados do século de Nero; não usavam capacetes, couraça, escudos ou ocreas.
Combatiam com uma espada em cada mão, como os cavaleiros da Fronda nos seus duelos. Estes combates consideravam-se o triunfo da arte e, algumas vezes, os campeões eram os próprios mestres de esgrima. Agora apresentavam-se um professor e um seu discípulo, que tão bem aproveitara as lições que vinha atacar o mestre com os seus próprios golpes. Alguns maus tratos recebidos fizeram germinar um vivo ódio no mais profundo do seu coração; dissimulara e, com a intenção de se vingar mais tarde, prosseguira os seus exercícios quotidianamente e acabara por surpreender todos os segredos da profissão.
A curiosidade dos espectadores, grande parte entendedores, convergia para aqueles dois homens que iam substituir os seus jogos fictícios por um combate verdadeiro, mudando as lâminas embotadas por gládios acerados e cortantes. Por este motivo a sua aparição foi saudada com uma tríplice salva de aplausos, que cessaram quando o director dos jogos deu o sinal a um gesto do imperador, sendo substituídos pelo mais completo silêncio.
Os adversários avançaram um para o outro, animados pelo ódio profundo que qualquer rivalidade inspira. Aquele ódio que, em relâmpagos, faiscava nos seus olhos obrigava-os a uma certa circunspecção no ataque e na defesa, porque não jogavam somente as vidas, mas a reputação que um adquirira há muito e o outro vinha procurar.
Enfim, os gládios tocaram-se. Duas serpentes que brincam, dois relâmpagos que se cruzam são mais fáceis de seguir na sua rapidez flamejante do que os movimentos dos gládios da mão direita com que atacavam e dos da esquerda com que paravam à maneira de escudos.
Passando sucessivamente do ataque à defesa e com uma regularidade maravilhosa, o discípulo forçou o mestre a recuar até debaixo do trono do imperador e o mestre, por seu turno, obrigou o discípulo a retroceder até ao podium onde se sentavam as vestais; depois voltaram ao centro do circo, ambos sãos e salvos, apesar de, vinte vezes, as pontas dos gládios dilacerarem as túnicas procurando os corações; de repente, o mancebo deu um pulo para trás; os espectadores gritaram:
- Peractum est!
Apesar de lhe correr o sangue sob a túnica, ao longo duma das coxas, voltou logo ao combate, mais encarniçado do que antes, e no fim de dois passes foi o mestre quem indicou, por um movimento imperceptível para os olhos menos exercitados, que acabava de lhe correr nas veias a fria sensação do ferro; não se ouviu grito algum dos espectadores; a curiosidade extrema é muda; apenas não se percebia, quando um golpe era vibrado ou parado com perícia, esse frémito surdo que indica ao actor que, se o público deixa de aplaudir, não é por falta de apreço, mas receio de interrompê-lo.
Os combatentes redobraram de ardor e os gládios continuaram a voltear com a mesma velocidade, e de tal modo que aquela luta ameaçava só dever finalizar pelo esgotamento de forças. De súbito, o mestre, que recuava na frente do discípulo, escorregou e caiu; resvalara-lhe um pé na terra molhada em sangue; o discípulo, aproveitando-se desta vantagem que o acaso lhe proporcionava, precipitou-se sobre ele. Mas, com grande espanto dos espectadores, nem um nem outro se levantaram.
Toda a multidão se ergueu juntando as mãos e gritando:
- Perdão! Liberdade!
Mas nenhum dos combatentes respondeu.
O director dos jogos entrou na arena, trazendo da parte do imperador as palmas da vitória e as varinhas da liberdade. Era tarde. Os campeões estavam já, senão vitoriosos, ao menos livres. Tinham-se trespassado e morto ao mesmo tempo.
Aos dimaqueros deviam suceder, como dissemos, os andabatas. Estavam, decerto, inscritos logo após os dimaqueros para oferecer um contraste ao povo.
A arte e a destreza eram inúteis para estes gladiadores; tinham a cabeça inteiramente metida num capacete com uma abertura à altura da boca para permitir a respiração e duas em face dos ouvidos para poderem ouvir; combatiam, portanto, como cegos. O povo achava imensa graça àquela terrível cabra-cega, em que cada golpe abria uma ferida porque os gladiadores não tinham armadura alguma.
No momento em que aquelas vítimas - tais desgraçados não mereciam os nomes de combatentes - eram introduzidas na arena, entre as gargalhadas da turba, Aniceto aproximou-se do imperador e entregou-lhe algumas cartas. Nero leu-as com grande inquietação e a última produziu-lhe profunda alteração do rosto. Ficou um instante pensativo; depois, erguendo-se rápido, correu para fora do circo fazendo sinal para que os jogos continuassem. Aquela circunstância, que não era nova, porque, por vezes, casos imperiosos chamavam inesperadamente, no meio duma festa, os Césares ao Fórum, ao Senado, ou ao Palatino, longe de perturbar os prazeres dos espectadores, deu-lhes, ao contrário, mais ampla liberdade; ausente o imperador, o povo tornava-se rei. Os jogos, como ordenara César, não foram interrompidos.
Os dois contendores começaram a andar para se encontrarem, atravessando o circo em toda a largura; à medida que se aproximavam, viam-nos substituindo o sentido da vista pelo do ouvido, tentar aperceber o perigo que não viam. Compreende-se quanto era enganosa tal apreciação. Assim, ainda bem longe um do outro, já moviam as espadas, que só feriam o ar. Excitados pelos gritos: "Para diante! Para trás! À direita! À esquerda!" avançaram com mais ânimo; mas, passando um pelo outro, acabaram por se voltar mutuamente as costas, continuando a esgrimir. Os risos e os apupos dos espectadores indicaram-lhes o que se passava; virando-se ao mesmo tempo, acharam-se em frente e ao alcance um do outro; as espadas tocaram-se; um recebeu uma estocada na coxa direita e outro no braço esquerdo. Os feridos, com um salto, de novo se separaram, não sabendo como tornar a encontrar-se. Um deles deitou-se no chão para escutar o ruído dos passos e surpreender o inimigo; como este se aproximasse, semelhante a uma serpente oculta que dardeja a sua língua, o gladiador que se deitara feriu o adversário pela segunda vez. Este, sentindo-se perigosamente ferido, fez rapidamente um passo em frente, tropeçou no corpo do inimigo e foi cair a dois ou três palmos, mas, levantando-se logo, descreveu com o gládio um círculo horizontal tão rápido e vigoroso que a arma, encontrando o pescoço do adversário no sítio onde deixava de ser protegido pelo capacete, fez voar a cabeça tão habilmente como o teria feito o carrasco. O tronco conservou-se um instante de pé, enquanto a cabeça, metida no seu estojo de ferro, rolava pelo solo e, dando alguns passos incertos e insensatos, como se a procurasse, rolou por terra, inundando a areia de sangue. Os gritos do povo mostraram ao vencedor que o golpe fora mortal, mas continuou em guarda contra a agonia do adversário. Um dos directores entrou e abriu-lhe o capacete, dizendo: - És livre e vencedor.
Saiu pela porta que se chamava sana vivaria, porque por ela saíam os combatentes escapados à morte, enquanto levavam os cadáveres para o espoliário, espécie de caverna sob as bancadas do anfiteatro, onde estavam os médicos esperando os feridos e dois homens, um vestido de Mercúrio e outro de Plutão.
Mercúrio indagava se algum resto de vida ficava nos corpos, na aparência imóveis, tocando-os com um caduceu em brasa; Plutão matava a malho os que os médicos julgavam incapazes de cura.
Apenas saíram os andabatas, fez-se um grande barulho no circo. Aos gladiadores sucediam-se os bestiários e estes eram cristãos; o ódio daquela turba pronunciava-se, então, contra os homens e reservava a simpatia para os animais. Apesar de impaciente, a multidão teve de esperar que os escravos nivelassem o solo com os ancinhos; esta operação concluiu-se o mais depressa possível porque gritos furiosos elevavam-se de todos os lados; os escravos retiraram-se.
A arena ficou por momentos deserta e a multidão na expectativa; enfim, abriu-se uma porta; todos os olhares convergiam para ela; iam entrar novas vítimas.
Veio primeiro uma mulher de túnica e véu brancos. Conduziram-na a uma das árvores, onde a amarraram pelo meio do corpo. Um dos escravos tirou-lhe o véu e os espectadores puderam ver um rosto duma beleza perfeita, pálido, mas resignado; fez-se ouvir um longo murmúrio. Apesar do seu título de cristã, a jovem, à primeira vista, comovera a alma daquela turba tão impressionável e tão inconstante. Enquanto todos os olhares se fixavam nela, abriu-se uma outra porta e entrou um mancebo; era costume expor, assim, às feras um cristão e uma cristã, dando ao homem todos os meios de defesa, a fim de que o desejo de retardar a sua morte e a da companheira, sempre uma irmã, amante ou mãe, prestando ao filho, amante ou irmão uma nova coragem, prolongasse um combate que os cristãos, quase sempre, recusavam pelo martírio, embora soubessem que, triunfando dos três primeiros animais contra ele lançados, salvavam a vida.
O homem em cujo aspecto se reconhecia vigor e ligeireza, embora seguido de dois escravos trazendo um, um gládio e dois dardos e o outro um corcel númida, não pareceu disposto a mostrar ao povo o espectáculo da luta aguardada.
Avançou lentamente, passeou em torno um olhar tranquilo e seguro e, com um gesto, recusou o cavalo e as armas, caiu de joelhos e rezou, fitos os olhos no céu. O povo, enganado na sua expectativa, principiou a ameaçar e a rugir. Era um combate e não um martírio que viera ver, e os gritos: À cruz! À cruz! ressoaram na arena, porque, suplício por suplício, preferia aquele cuja agonia durasse mais tempo. Brilhou um raio de alegria inefável nos olhos do rapaz e estendeu os braços em sinal de agradecimento, feliz por morrer da mesma morte que o Salvador tornara em apoteose. Nesse momento ouviu um suspiro tão profundo que se voltou.
- Silas! Silas! - murmurou a jovem.
- Acteia! - exclamou o rapaz, levantando-se e correndo para ela.
- Silas, tem piedade de mim - suplicou Acteia - vi-te e a esperança entrou-me no coração. És bravo e forte, Silas, habituado a lutar com os habitantes das florestas e do deserto. Combatendo, talvez nos salves a ambos.
- E o martírio? - interrompeu Silas, mostrando o céu.
- E a dor? - gemeu Acteia, deixando cair a cabeça sobre o peito. - Ai de mim! Não nasci como tu numa cidade santa, não ouvi a palavra de Aquele por quem vamos morrer. Sou uma rapariga de Corinto, educada na religião de meus avós; a minha fé e a minha crença são novas e só desde ontem conheço a palavra martírio. Talvez, só, tivesse coragem, mas Silas, ver-te morrer dessa morte tão lenta e tão cruel...
- Pois bem, combaterei - aquiesceu Silas - porque terei sempre ocasião de achar a alegria que hoje me roubas.
- O meu cavalo, a minha espada, os meus dardos - disse para os escravos em voz alta e com gesto de imperador.
E a multidão bateu palmas, porque percebeu, ouvindo aquela voz, vendo aquele gesto, que ia presenciar uma dessas lutas titânicas de que necessitava para reanimar as sensações já fatigadas de combates vulgares.
Silas chegou-se para o cavalo. Era como ele um filho da Arábia; os dois compatriotas reconheceram-se; o homem disse ao animal algumas palavras em língua estranha e, como se o nobre animal as compreendesse, correspondeu com um relincho. O homem tirou a sela e o freio que os romanos tinham posto em sinal de escravidão e o filho do deserto pulou em liberdade em volta de quem acabava de lha conceder.
Silas desembaraçou-se do que o seu trajo tinha de incómodo e, enrolando no braço o manto vermelho, ficou só com a túnica e o turbante.
Cingiu, então, a espada, pegou nos dardos, chamou o cavalo, que obedeceu dócil como uma gazela, e, saltando-lhe sobre o dorso, fez três vezes, guiando-o unicamente com os joelhos, a volta da árvore a que estava presa Acteia, semelhante a Perseu preparando-se para defender Andrómeda:
o orgulho de árabe sobrepujava a humildade de cristão.
Naquele momento, por baixo do podium, abriu-se uma porta de dois batentes e um touro de Córdova, excitado por dois escravos, entrou, mugindo, no circo; após uns dez passos, deslumbrado pela luz e espantado com o aspecto e os gritos da multidão, abaixou a cabeça até ao chão e dirigindo para Silas os olhos estúpidos e ferozes; entrou depois a escarvar o solo, deitando, com as patas dianteiras, a areia para o lombo, ao mesmo tempo que o hálito ardente lhe saía pelas narinas.
Um dos directores atirou-lhe um boneco de palha figurando um homem; o touro lançou-se sobre ele e calcou-o com as patas, mas quando mais encarniçado estava contra o boneco, um dardo partiu da mão de Silas e foi cravar-se-lhe na espádua.
O touro soltou um rugido de dor; depois, abandonando o inimigo fictício pelo adversário verdadeiro, correu sobre o sírio, rápido, de cabeça baixa, traçando na areia o rasto em sangue.
Deixou-o tranquilamente aproximar-se e, quando o animal apenas distava alguns passos, com a ajuda da voze dos joelhos fez saltar o ligeiro corcel para o lado; enquanto o touro passava levado pelo impulso da carreira, segundo dardo cravou-lhe nas ilhargas seis polegadas de ferro. O animal parou tremendo sobre as quatro patas como se fosse cair, depois, voltando-se quase imediatamente, precipitou-se sobre o cavalo e o cavaleiro, mas estes escaparam-se como levados num turbilhão. Fizeram assim três vezes a volta da arena; o touro enfraquecia a cada passo e perdia terreno; na terceira volta caiu sobre os joelhos, mas levantou-se imediatamente, soltando um terrível mugido. Como se perdesse a esperança de alcançar Silas, olhou em torno de si, procurando uma outra vítima em que cevasse a cólera; viu, então, Acteia. Pareceu duvidar um instante de que fosse um ser animado, tão grande era a imobilidade e a palidez que lhe davam a aparência duma estátua e, estendendo o pescoço e as narinas, farejou as emanações. Em seguida, reunindo todas as suas forças, correu para ela; a rapariga, à sua aproximação, expeliu um grito de terror, mas Silas velava e por seu turno correu para o touro; coube a este a vez de fugir. Em alguns galões do fiel númida foi alcançado; Silas saltou do lombo do cavalo para o da fera; enquanto com a mão esquerda o agarrava por uma haste e lhe torcia o pescoço, com a direita mergulhava-lhe, até ao cabo, a espada na garganta. O touro, degolado, tombou expirante junto a Acteia, que fechara os olhos esperando a morte. Os aplausos anunciaram-lhe a primeira vitória de Silas.
Entraram na arena três escravos; dois conduziam dois cavalos, que atrelaram ao touro para o arrastar para fora do circo, e o terceiro trazia uma taça e uma ânfora. Encheu a taça e apresentou-a ao sírio, que apenas lhe tocou com os lábios e pediu novas armas. Trouxeram-lhe um arco, flechas e um venábulo.
Toda a gente se apressou a sair porque, abaixo do trono vazio do imperador, levantava-se uma grade e um leão do Atlas, saindo da jaula, entrava majestosamente no circo.
Era bem o rei dos animais, pois, ao rugido com que saudou a luz, todos os espectadores estremeceram e o próprio corcel, desconfiado pela primeira vez da ligeireza das suas patas, respondeu com um relincho de terror. Só Silas, habituado àquela voz potente, por tê-la, mais de uma vez, ouvido ribombar nos desertos que se estendem do lago Asfaltite às nascentes de Moisés, preparou-se para a defesa ou para o ataque, abrigando-se com uma das árvores mais próxima de Acteia, pondo no arco a melhor e mais acerada das flechas.
Durante este tempo, o seu nobre e potente inimigo avançava com lentidão e confiança, não sabendo o que esperavam dele, encrespando as rugas do enorme focinho e varrendo o solo com a cauda. Os directores atiraram-lhe para o excitar dardos sem ponta armados de bandeirolas de diferentes cores, mas, impassível e grave, continuava a adiantar-se sem se inquietar com tais provocações quando, de repente, por entre aqueles dardos inofensivos uma seta acerada passou, silvando, como um relâmpago e foi cravar-se-lhe numa das espáduas. Parou com mais espanto do que dor e como não pudesse admitir que um ser humano fosse bastante atrevido para atacá-lo, duvidava ainda da sua ferida. Mas, em breve, os olhos tornaram-se-lhe sangrentos, as fauces abriram-se e um rugido grave e prolongado como o ribombar do trovão escapou-se-lhe como duma caverna das profundezas do peito. Agarrou com os dentes a seta metida na ferida e esmagou-a; depois, deitando em torno um olhar, que, apesar da grade de resguardo, fez recuar alguns espectadores, procurou alguma coisa em que fizesse cair a sua cólera. Avistou o corcel, tremendo como se saísse de água gelada, ainda que coberto de suor e de espuma; cessando de rugir para dar um grito curto, agudo e estrídulo, num salto aproximou-se vinte passos da primeira vítima que escolhera.
Começou então uma cena mais maravilhosa ainda do que a primeira; ali já não havia a ciência do homem enganando o instinto do animal; estavam em frente a força e a ligeireza em toda a sua energia selvagem; os olhos dos duzentos mil espectadores arredaram-se dos dois cristãos para seguir aquela caçada fantástica, tanto mais agradável quanto menos esperada. Um segundo salto encurtou a distância entre o leão e o cavalo que, chegado ao fundo do circo, não ousando fugir nem pela direita nem pela esquerda, pulou por cima da cabeça do seu inimigo, que continuou a persegui-lo com saltos desiguais, eriçando a juba, soltando de espaço a espaço rugidos agudos, a que o fugitivo respondia com relinchos de medo. Três vezes passou como uma sombra, como uma aparição, como um corcel infernal fugido do carro de Plutão, o rápido filho da Numídia, e de cada vez, sem que o leão parecesse fazer esforço em segui-lo, viram-no aproximar-se do perseguido, até que, apertando sempre o círculo, se achou correndo ao lado dele.
O cavalo, sentindo que já não podia escapar ao inimigo, empinou-se junto do gradeamento, batendo convulsivamente nele com as patas dianteiras; o leão adiantou-se então lentamente, como um vencedor certo da vitória, parando de quando em quando para rugir, sacudir a juba e cravar na areia as garras, alternadamente.
O desgraçado corcel, fascinado como o são, dizem, os gamos e gazelas pelas serpentes, caiu debatendo-se e rolando pelo solo na agonia do terror.
Naquele momento uma segunda seta partiu do arco de Silas e foi enterrar-se profundamente entre as costelas do leão. O homem vinha em socorro do corcel e atraía a si a cólera do animal.
O leão voltou-se, começando a compreender que havia ali um inimigo mais terrível do que aquele que caíra sob o influxo do seu olhar; foi então que viu Silas, que acabava de tirar do cinto uma terceira seta e a colocava na corda do arco. Parou um instante em face do homem, esse outro rei da criação; aquele instante bastou ao sírio para enviar ao inimigo um terceiro mensageiro de dor, que foi cravar-se-lhe profundamente no pescoço. O que então se passou teve a rapidez duma visão; o leão atirou-se ao homem, que o recebeu com o venábulo em riste; homem e leão rolaram juntos no solo, viram-se voar pedaços de carne, e os espectadores mais próximos foram molhados por uma chuva de sangue. Acteia soltou um grito, última despedida àquele irmão, ao seu defensor; o salvador já não existia, mas já não existia também o inimigo. O leão apenas resistira à morte o tempo necessário para se vingar: a agonia do algoz começara ao terminar a da vítima. O cavalo morrera sem que o leão lhe tocasse. Os escravos entraram e levaram, entre os gritos e os frenéticos aplausos da turba, os cadáveres do homem e dos animais.
Todos os olhos se fixaram sobre Acteia, a quem a sorte de Silas deixara sem defesa. Enquanto vivo, tivera esperança, mas vendo-o cair, compreendera que tudo acabara e tentara murmurar, por ele que morrera e por ela que ia morrer, preces que se desvaneciam em sons inarticulados nos seus lábios pálidos.
Contra o costume, aquela multidão mostrava-lhe simpatia, reconhecendo nela, nos seus traços, uma grega, quando, primeiro, a tomara por judia.
As mulheres e os rapazes, que eram quem mais murmurava, e outros espectadores levantavam-se para pedir o seu perdão, quando os gritos "Sentem-se! Sentem-se" fizeram ouvir-se das bancadas superiores: correra-se uma grade e um tigre-fêmea entrou na arena.
Ao sair da jaula, deitou-se olhando em volta com ferocidade, mas sem inquietação e sem espanto: aspirou o ar e rastejou, como uma serpente, para o sítio onde o cavalo caíra; chegado ali, ergueu-se, como ele fizera, contra o gradeamento, cheirando e mordendo os varões; depois rugiu docemente, interrogando o ferro, a areia e o ar, sobre a presa ausente. Sentiu, então, as emanações do sangue, morno ainda, e da carne palpitante, porque os escravos não se tinham dado ao trabalho de revolver a terra, caminhou direito à árvore junto da qual se passara o combate de Silas com o leão, afastando-se à direita e à esquerda para apanhar os pedaços da carne que o nobre animal fizera voar com as suas garras, chegou a uma poça de sangue que a areia ainda não absorvera e pôs-se a beber como um cão sedento, rugindo e animando-se à medida que bebia. Quando acabou, passeou de novo, em torno, o seu olhar cintilante e só então reparou em Acteia que, presa à árvore, com os olhos fechados, esperava a morte, sem ousar abri-los. A fera deitou-se e arrastou-se obliquamente para a vítima, sem a perder de vista; a dez passos dela, levantou-se, aspirou, com o pescoço estendido e as narinas dilatadas, o ar que vinha daquele lado; dum só salto transpôs o espaço que a separava da cristã e foi cair junto dela.
Quando a turba, esperando vê-la despedaçar, soltava um grito de terror, em que vibrava todo o interesse inspirado pela rapariga, o tigre-fêmea deitou-se manso e acariciador como uma gazela, dando pequenos gritos de alegria e lambendo os pés da sua antiga dona. Aquelas inesperadas carícias fizeram abrir os olhos a Acteia, que reconheceu Febe, a favorita de Nero.
Os gritos "Perdão! Perdão!" retiniram de todos os lados, porque a multidão vira naquele acontecimento um prodígio. Demais, Acteia passara pelas três provas exigidas e, pois que escapara a salvo, estava livre. O espírito variável dos espectadores sofreu uma dessas transições tão usuais na multidão; mudou da extrema crueza para a extrema clemência. Os rapazes atiravam com as suas cadeias de oiro e as mulheres com as suas coroas de flores.
Todos se ergueram chamando os escravos para que soltassem a vítima. Líbico, o negro guarda de Febe, entrou e cortou com um punhal as cordas que prendiam Acteia, que caiu de joelhos; os laços eram o único apoio que sustinha de pé aquele corpo quebrado pelo terror. Líbico levantou-a e, amparando-a, conduziu-a, acompanhada de Febe, que a seguia como um cão, à porta sana vivaria, pois, como já dissemos, por aquela porta saíam os gladiadores, os bestiários e os condenados que escapavam à carnificina. No limiar esperava-a uma multidão imensa, porque os pregoeiros, descendo à arena, acabavam de anunciar a suspensão do espectáculo, que só devia continuar às cinco horas da tarde. Vendo-a, explodiram os aplausos da turba, que quis levá-la em triunfo, mas Acteia juntou as mãos suplicante e o povo abriu-se na sua frente, deixando a passagem livre. Acteia alcançou o templo de Diana e sentou-se por trás duma coluna; ali ficou, chorando desesperada, porque lastimava não ter morrido, encontrando-se só no mundo, sem pai, sem amante, sem protector e sem amigo: o pai estava perdido para ela, o amante esquecera-a, Paulo e Silas tinham morrido como mártires. Quando veio a noite recordou-se de que lhe restava uma família e tomou só e silenciosa o caminho das Catacumbas.
À tarde, à hora marcada, o anfiteatro abriu-se de novo. O imperador retomou o seu lugar no trono que estivera vazio durante uma parte do dia e as festas recomeçaram.
Quando as sombras principiaram a reinar, Nero lembrou-se da promessa que fizera ao povo, dum espectáculo à luz dos archotes. Prenderam a doze postes de ferro doze cristãos embebidos de enxofre e resina e largaram-lhes fogo. Depois entraram na arena novos leões e novos gladiadores.
No dia seguinte espalhou-se um boato em Roma. As cartas que César recebera durante o espectáculo, e que pareceram fazer-lhe uma grande impressão, anunciavam a revolta das legiões da Ibéria e das Gálias, comandadas por Galba e por Víndice.
XV.
Três meses após os acontecimentos que acabamos de narrar, no fim de um dia chuvoso e no começo duma noite de tempestade, cinco homens saindo da porta Nomentana avançavam a cavalo, pela via que tem o mesmo nome. O que ia na frente, e, portanto, se podia considerar como chefe do pequeno grupo, estava descalço, vestia uma túnica azul e sobre ela um grande manto de cor sombria.
O rosto, quer para o defender da chuva, que caía com violência, quer para o furtar aos olhares dos curiosos, estava inteiramente coberto com um véu.
Não obstante, como dissemos, a noite ser horrorosa, os relâmpagos rasgarem a sombra e o trovão ressoar sem interrupção, a terra parecia de tal modo ocupada com as suas revoluções que esquecia o céu. Com efeito, grandes gritos se elevavam da cidade imperial, semelhantes aos dos rumores do oceano durante uma tempestade; de cem em cem passos encontravam-se no caminho ora grupos no género daquele a que vimos de nos referir, ora indívíduos isolados; de ambos os lados das Vias Alária e Nomentana elevavam-se as numerosas tendas dos soldados pretorianos, que haviam abandonado as casernas situadas no recinto de Roma e tinham vindo procurar fora dos muros da cidade um acampamento mais livre e difícil de surpreender. Era, como dissemos, uma dessas noites em que todas as coisas da criação parecem ter voz para se lastimar, enquanto os homens só usam da voz para a blasfémia.
Notando-se o terror do chefe da cavalgada, sobre o qual chamámos a atenção dos leitores, dir-se-ia ser ele o alvo sobre que convergia a dupla cólera dos homens e dos deuses. De facto, na ocasião em que saíra de Roma, passara pelo ar um sopro estranho e, ao mesmo tempo que as árvores eram agitadas, a terra tremera e os cavalos caíram relinchando, enquanto as casas dispersas pela campina oscilaram visivelmente na base. Esta comoção só durara alguns segundos, mas correra da extremidade dos Apeninos à base dos Alpes, fazendo tremer a Itália inteira. Um instante depois, atravessando a ponte lançada sobre o Tibre, um dos cavaleiros fez notar aos companheiros que a água, em vez de correr para o mar, subia, borbulhando, para a nascente, o que só se vira no dia em que Júlio César fora assassinado.
Chegados ao cimo duma colina donde se descobria Roma toda inteira e no qual se via um cipreste tão velho como a cidade, venerável e respeitado, estalara um trovão, o céu parecera abrir-se, e o raio, envolvendo os viajantes numa nuvem sulfurosa, fora despedaçar a árvore secular que, até ali, tinha sido respeitada pelo tempo e pelas revoluções.
A cada um destes sinistros presságios, o homem velado gemera surdamente e, sem atender às observações dum dos companheiros, meteu o cavalo em passo mais rápido, de modo que o pequeno grupo seguia então, a trote, pelo caminho.
A uma meia légua da cidade, pouco mais ou menos, encontraram um magote de aldeãos que, apesar do tempo péssimo, iam alegremente para Roma. Vestiam os seus trajos de festa e traziam na cabeça os barretes dos libertos, para indicar que, desde aquele dia, o povo era livre.
O homem velado quis deixar a estrada e tomar pelos terrenos adjacentes; um dos companheiros deteve-lhe o cavalo pela rédea e forçou-o a continuar na via.
Quando chegaram junto dos camponeses, um deles levantou um pau como sinal para paragem. Os cavaleiros obedeceram.
- Vindes de Roma? - interrogou o aldeão.
- Sim - respondeu um dos companheiros do homem velado.
- O que se dizia de Aenobarbo?
O homem velado estremeceu.
- Que fugira - retorquiu um dos cavaleiros.
- Para que lado?
- Para o de Nápoles. Diz-se que foi visto na Via Ápia.
- Obrigado - disseram os camponeses.
E continuaram o seu caminho, gritando:
- Viva Galba! Morra Nero!
Aqueles gritos acordaram outros na planície e, dos dois lados da estrada, as vozes dos pretorianos carregavam César de furiosas imprecações.
A pequena cavalgada continuou o caminho. Um quarto de légua mais longe encontrou um magote de soldados.
- Quem sois? - indagou um dos hastatos, atravessando a lança.
- Partidários de Galba que procuram Nero - respondeu um dos cavaleiros.
- Então que tenham mais sorte do que nós - disse o decurião - porque não o descobrimos.
- Como assim?
- Sim. Disseram-nos que devia passar por esta estrada e, vendo um homem que corria a galope, julgámos ser ele.
- E?... - inquiriu, com voz trémula, o cavaleiro velado.
- Matámo-lo - declarou o decurião. - E só em presença do cadáver reconhecemos o engano. Sede mais felizes do que nós e que Júpiter nos proteja.
O homem velado quis, de novo, meter o cavalo a galope, mas os companheiros opuseram-se. Andados uns quinhentos passos, o animal tropeçou num cadáver e desviou-se tão violentamente que o véu que lhe cobria o rosto abriu-se. Naquele momento passava um soldado pretoriano que recolhia de licença.
- Salve, César! - saudou.
Reconhecera César ao clarão dum relâmpago.
Fora Nero em pessoa que tropeçara no cadáver
daquele por quem o haviam tomado; Nero, para quem a esta hora tudo era motivo de receio, até a saudação respeitosa dum veterano; Nero, que, precipitado do alto do seu poder por uma dessas reviravoltas inauditas da fortuna de que a história daquela época tantos exemplos fornece, se achava fugitivo e proscrito, salvando-se da morte que não tinha a coragem de dar-se nem de receber.
Lancemos, agora, um olhar retrospectivo e examinemos por que série de acontecimentos o senhor do mundo fora reduzido àqueles extremos.
Ao tempo em que o imperador entrava no circo, saudado com os gritos: "Viva Nero, o Olímpico! Viva Nero Hércules! Viva Nero Apolo! Viva Augusto, vencedor de todos os rivais! Glória à sua voz divina! Felizes aqueles a quem foi dado ouvir os seus acordes celestes!", um correio vindo das Gálias transpunha ao galope do seu cavalo, branco de espuma, a porta Flamínia, atravessava o Campo de Marte, passava pelo Arco de Cláudio, seguia pelo Capitólio, entrava no circo e entregava à guarda que velava à porta da tribuna as cartas trazidas de muito longe e com muita pressa.
Estas cartas, como dissemos, tinham forçado César a deixar o circo e, com efeito, eram de uma importância tal que explicava a sua súbita saída.
Anunciavam a revolta das Gálias.
Há épocas na história do mundo nas quais se vê um império, que parecia adormecido num sono de morte, estremecer de repente, como se, pela primeira vez, o génio da liberdade descesse do céu para lhe iluminar os sonhos. Então, qualquer que seja a sua extensão, a comoção eléctrica que o faz tremer estende-se do norte ao sul, do oriente ao ocidente, e corre distâncias incríveis a acordar os povos que nenhuma ligação têm entre si, mas que, chegados ao mesmo grau de servidão, experimentam a mesma necessidade de liberdade; como se um relâmpago lhes trouxesse a sanha da tempestade, ouvem-se os mesmos gritos partir de vinte pontos opostos, todos pedindo a mesma coisa em línguas diferentes, isto é, que aquilo que é não seja mais.
Será o futuro melhor do que o presente ? Ninguém o sabe e pouco importa, mas o presente é tão pesado que forçoso se torna livrar-se dele; depois se transigirá com o futuro.
O império romano, até aos seus mais afastados limites, chegara a esse período. Na Germânia inferior, Fonteio Capitão; nas Gálias, Víndice; na Ibéria, Galba; na Lusitânia, Otão; na África, Cláudio Macro, e na Síria, Vespasiano, formavam com as suas legiões um círculo ameaçador que só esperava um sinal para apertar a capital.
Só Virgínio, na Germânia superior, estava decidido, acontecesse o que acontecesse, a ficar fiel, não a Nero, mas à pátria.
Bastava uma faúlha para atear o incêndio. Foi Júlio Víndice quem a fez saltar.
Este pretor, originário da Aquitânia, de raça real, homem de coração e de talento, compreendeu que chegara a hora da extinção da família dos Césares. Sem ambição pessoal, lançou os olhos em torno, procurando o homem eleito pela simpatia geral.
À sua direita e do outro lado dos Pirenéus, havia Sulpício Galba, a quem as suas vitórias em África e na Germânia tinham tornado ao mesmo tempo poderoso sobre o povo e sobre o exército. Sulpício Galba odiava o imperador, cujo medo o arrancara da sua vila de Fundos para o enviar à Ibéria mais como exilado do que como pretor.
Sulpício Galba era apontado, desde há muito, pelas tradições populares e pelos oráculos divinos, como devendo ascender ao trono e, portanto, o homem que convinha, por todos os motivos, pôr à testa duma revolta. Víndice enviou-lhe, secretamente, cartas que continham o plano inteiro da empresa, prometiam, na falta do concurso das legiões, o apoio de cem mil gauleses, e suplicavam, se não quisesse empenhar-se na queda de Nero, que, ao menos, não recusasse a dignidade suprema, que não procurara mas que lhe era oferecida.
O carácter sombrio e irresoluto de Galba não se desmentiu nesta circunstância; recebeu as cartas, queimou-as, mas conservou-as na memória. Víndice percebeu que precisava de impelir Galba; não aceitara a aliança, porém, não traíra quem lha oferecera: o silêncio representava o consentimento.
O momento era favorável. Duas vezes por ano, os gauleses reuniam-se em assembleia geral em Clermont.
Víndice entrou na sala das deliberações. No meio da civilização, do luxo e da corrupção romana, Víndice conservara-se o gaulês dos antigos dias; juntava à resolução fria e decidida da gente do Norte a palavra atrevida e colorida dos homens do Meio-dia.
- Deliberais sobre os negócios da Gália - disse ele - procurais aqui a causa dos nossos males; a causa está em Roma; o culpado é o Aenobarbo; foi ele quem aniquilou, uns após outros, os nossos direitos, que reduziu à miséria as nossas ricas províncias, que cobriu de luto as casas mais nobres. É o último da sua raça, o derradeiro da família dos Césares; não tem rivais nem vingadores. Solta as rédeas aos seus furores como aos seus corcéis; deixa-se levar pela suas paixões, esmagando a cabeça de Roma e os membros das províncias com as rodas dos seus carros. Vi-o eu, eu próprio, esse atleta, esse cantor imperial e coroado, embriagado e indigno até da glória dum gladiador ou dum histrião. Para que dar-lhe, pois, os títulos de César, de Príncipe, de Augusto, título que o divino Augusto mereceu pelas suas virtudes, o divino Tibério pelo seu génio, o divino Cláudio pelos seus benefícios ? A ele, a esse infame Aenobarbo, é Édipo, é Orestes que é preciso chamar-lhe, porque faz gala em usar os nomes do incestuoso e do parricida! Antigamente, os nossos avós, guiados unicamente pela necessidade de movimento e pelo desejo do ganho, tomaram Roma de assalto. Desta vez guiar-nos-á um motivo mais nobre e mais digno no caminho dos nossos antepassados; desta vez, no prato da balança, em substituição da espada do velho Breno, poremos a liberdade do mundo; desta vez não será a desgraça mas a felicidade que levaremos aos vencidos!
Víndice era bravo; sabia-se que as palavras saídas da sua boca não eram palavras vãs. Por esse motivo, grandes gritos, vivas e ruidosos aplausos acolheram aquele discurso.
Cada chefe gaulês puxou da espada, jurou, sobre ela, estar de volta antes de um mês, com um séquito proporcionado à sua fortuna e à sua classe, e saiu da cidade.
Desta vez caíra a máscara e a bainha foi atirada para longe da espada. Víndice escreveu, segunda vez, a Galba.
Desde a sua chegada a Espanha, fizera um estudo sobre a sua popularidade. Nunca se prestou às violências dos procônsules e, não podendo impedir as exacções, lastimava, bem alto, as vítimas. Nunca dizia mal de Nero, mas deixava circular, livremente, versos satíricos, epigramas ultrajosos contra o imperador.
Quem o rodeava adivinhou-lhe os projectos, sem que ele os confiasse a pessoa alguma. No dia em que recebeu a mensagem de Víndice, deu um grande jantar aos amigos e, à noite, depois de lhes ter anunciado a revolta das Gálias, comunicou-lhes o conteúdo das cartas sem fazer comentário algum, deixando-os livres, com o seu silêncio, para aprovarem ou desaprovarem o oferecimento que lhes era feito.
Os amigos ficaram mudos e irresolutos após a leitura; mas um deles, chamado T. Vénio, mais decidido do que os outros, voltou-se e, encarando-o, disse-lhe:
- Galba, deliberarmos se devemos, ou não, ficar fiéis a Nero, é já infidelidade; é necessário ou aceitar a amizade de Víndice, como se Nero fosse já nosso inimigo, ou acusá-lo imediatamente, ou combatê-lo. Quer ele que os romanos te possuam como Imperador, em vez de Nero por tirano.
- Reuniremos a assembleia se assim o quereis - respondeu Galba, fingindo não perceber a questão - no dia cinco do mês próximo, em Nova Cartago, a fim de dar liberdade a alguns escravos.
Os amigos de Galba aceitaram a convocação e, a todo o transe, espalharam o boato de que aquela reunião tinha por fito decidir dos destinos do império.
No dia marcado, tudo o que a Espanha contava de ilustre em estrangeiros e indígenas se reuniu em Nova Cartago; todos vinham com o mesmo fim, animados do mesmo desejo, da mesma vingança. Galba subiu ao tribunal e logo, num impulso unânime, todas as vozes o proclamaram Imperador.
XVI.
Eis o que anunciavam as cartas que Nero recebera e tais eram as novas que soubera; ao mesmo tempo disseram-lhe que Víndice distribuíra proclamações e que algumas já haviam chegado a Roma; pouco depois veio-lhe uma delas às mãos. Nela não lhe poupavam os epítetos de incestuoso, parricida e tirano.
Contudo, não foi o que mais o irritou e feriu; chamavam-no de Aenobarbo e apodavam-no de mau cantor. Eram ultrajes que o Senado devia vingar; escreveu ao Senado. Para repelir a censura da inabilidade na sua arte, vingar o nome dos seus avós, prometeu um milhão de sestércios a quem matasse Víndice e recaiu no seu descuido e -na sua apatia.
Durante este tempo, a revolta fazia progressos em Espanha e nas Gálias; Galba criara uma guarda equestre e estabelecera uma espécie de senado. Enquanto Víndice, à pessoa que lhe comunicara estar a sua cabeça a prémio, respondeu que a daria a quem lhe trouxesse a de Nero.
Todavia, entre todos aqueles generais, todos aqueles prefeitos, todos aqueles pretores, partidários da nova fortuna, um só ficara fiel, não por amor de Nero, vendo em Víndice um estrangeiro e conhecendo Galba como um espírito fraco e irresoluto, mas por temer que Roma, por mais infeliz que fosse, viesse a sofrer com a mudança; marchou, pois, sobre as Gálias com as suas legiões, para salvar o império da vergonha de obedecer a um dos seus vencidos.
Os chefes gauleses tinham cumprido os juramentos e, comandando os três povos mais ilustres e poderosos da Gália, os séquanos, os éduos e os arvernos reuniram-se em torno de Víndice.
Por seu turno, os vienenses acorreram também, mas estes não se tinham reunido, como os outros, por amor da pátria ou pelo desejo de liberdade; vinham por ódio aos lioneses, que se conservavam fiéis a Nero. Por seu lado, Virgínio tinha em volta dele as legiões da Germânia, os auxiliares belgas e a cavalaria batava; os dois exércitos avançaram um contra o outro. E este último, tendo chegado a Besanção, que era por Galba, pôs-lhe cerco, mas apenas as disposições obsidionais tinham sido tomadas, apareceu um novo exército no horizonte: era o de Víndice.
Os gauleses continuaram a avançar contra os romanos, que os esperavam, e, achando-se a três alcances de flecha destes, pararam para tomar disposição de batalha. Um arauto saiu das fileiras de Víndice e dirigiu-se para as de Virgínio; um quarto de hora depois, a guarda dos dois chefes avançou até ao espaço entre os exércitos e ali foi levantada uma tenda.
Ninguém assistiu àquela entrevista; contudo, é opinião dos historiadores que Víndice declarou a sua política ao inimigo e, tendo provado que não trabalhava para ele, mas para Galba, Virgínio, que sentiu nessa revolução a felicidade da pátria, reuniu-se àquele que viera combater.
Os dois chefes iam separar-se para em breve se reunirem e marcharem contra Roma, quando ressoaram grandes gritos partindo da ala direita do exército.
Tendo saído de Besanção uma centúria para comunicar com os gauleses e tendo estes últimos feito um movimento para ir ao seu encontro, os soldados de Virgínio julgaram-se atacados e, cedendo ao primeiro arrebatamento, marcharam contra eles. Era esta a causa dos gritos que os dois chefes ouviram. Precipitaram-se, cada um do seu lado, suplicando aos soldados que se detivessem; mas as suas súplicas foram cobertas pelos clamores dos gauleses apoiando os escudos contra os lábios; os seus sinais foram tomados por gestos de incitamento. Uma dessas estranhas vertigens que atacam, por vezes, um exército como se fosse um só homem, apoderara-se de toda aquela turba. Presenciou-se então um atroz espectáculo: os soldados, sem ordem, sem campo para batalha, impelidos pelo instinto de matar, animados por esse velho ódio dos vencidos contra os vencedores e dos conquistadores contra os conquistados, atiraram-se uns aos outros, corpo a corpo, como leões e tigres num circo. Em duas horas de combate, os gauleses tinham perdido vinte mil homens e as legiões germânicas e batavas dezasseis mil: era o tempo preciso para tal mortandade. Enfim, os gauleses recuaram; viera a noite e os dois exércitos conservaram-se em presença um do outro. Esta primeira derrota abatera a coragem dos rebeldes; aproveitaram as sombras da noite para retirar. No local onde as legiões germânicas julgavam ir encontrá-los na manhã seguinte, apenas havia uma tenda e nessa tenda o corpo de Víndice, o qual, desesperado por ter o acaso feito perder à liberdade tão altas esperanças, se atirara sobre a espada, que considerara inútil, e atravessara o coração.
Os primeiros que entraram na tenda golpearam o cadáver e dissseram tê-lo morto mas, na ocasião da distribuição da recompensa concedida por Virgínio em prémio daquela acção, um deles, tendo razão de queixa da partilha, denunciou tudo e soube-se a verdade.
Pelo mesmo tempo davam-se em Espanha acontecimentos não menos favoráveis ao imperador. Um dos esquadrões revoltados, arrependido de quebrar o juramento de fidelidade, quisera abandonar a causa de Galba e só a grande custo ficara sob a suas ordens, de modo que este, no próprio dia em que Víndice se matara, estivera em risco de ser assassinado numa rua estreita, quando se dirigia para o banho, por escravos que lhe doara, outrora, um liberto de Nero.
Estava ainda emocionado pelo duplo perigo, quando soube da derrota dos gauleses e da morte de Víndice. Julgou tudo perdido e em lugar de, audacioso, se entregar à sorte, escutou os conselhos do seu carácter tímido e retirou-se para Clúnia, cidade fortificada, cuja defesa tratou de aumentar.
Pouco depois, presságios que não podiam enganar vieram restituir a Galba a perdida coragem. Ao primeiro golpe de picareta para traçar uma nova linha em volta da cidade, um soldado achou um anel dum trabalho antigo e precioso, cuja pedra representava uma vitória e um troféu. Esta promessa do destino proporcionou-lhe um sono mais tranquilo do que esperava e, durante esse sono, viu em sonhos uma pequena estátua da Fortuna, dum côvado de altura, e à qual rendia um culto particular na sua vila de Fundos; votara-lhe um sacrifício por mês e uma vigília anual.
Pareceu-lhe que ela abria a porta do quarto e lhe dizia que, fatigada de esperar no limiar, seguiria um outro se ele não se apressasse a recebê-la. Depois, ao levantar-se, já abalado por estes dois augúrios, anunciaram-lhe que um barco carregado de armas, sem passageiros, marinheiros, nem pilotos, acabava de aportar a Dertosa, cidade situada sobre o Ebro. Desde então considerou a sua causa justa e ganha porque, era bem visível, aprazia aos deuses.
Nero, ao princípio, considerara estas novas de pouca importância e regozijara-se mesmo com elas, porque descobrira, sob o pretexto do direito de guerra, o meio de lançar um novo imposto.
Contentara-se, como já dissemos, em enviar ao Senado as proclamações de Víndice, pedindo justiça contra o homem que o acoimava de mau tocador de cítara.
Para a noite convocara os principais cidadãos a reunir-se no seu palácio. Estes apressaram-se a comparecer, pensando que aquela reunião tinha por fim constituir-se em conselho, mas Nero contentou-se em mostrar-lhes, um a um, discutindo o emprego e o mérito de cada peça, instrumentos de música, hidráulicos, duma espécie nova, e da revolta gaulesa só disse que ia mandar todos aqueles instrumentos para o teatro, se Víndice lho não impedisse.
No dia seguinte chegaram novas cartas dando notícia de que o número de gauleses revoltados se elevava a cem mil. Nero pensou que era preciso, enfim, fazer alguns preparativos de guerra. Ordenou-os, então, estranhos e insensatos.
Mandou vir carros ao teatro e ao palácio, carregou-os com instrumentos de música em lugar de instrumentos de guerra, e citou as tribos urbanas para receber os juramentos militares.
Vendo que nenhum dos que estava em estado de pegar em armas lhe respondia, exigiu dos senhores um certo número de escravos e foi ele próprio escolher os mais fortes e os mais robustos, tomando até os mordomos e os secretários.
Reuniu quatrocentos cortesãos, aos quais fez cortar os cabelos, armou-os com o machado e o escudo das amazonas e destinou-os à substituição da guarda cesariana.
Depois de jantar, saindo do triclinium apoiado nos ombros de Esporo e de Fáon, disse àqueles que esperavam para o ver e pareciam inquietos que se tranquilizassem porque, apenas fosse às províncias e se mostrasse sem armas aos olhos dos gauleses, só necessitaria de derramar algumas lágrimas para os sediciosos se arrependerem e que, no dia seguinte, vê-lo-iam, alegre entre os alegres, entoar o hino de vitória que ia compor imediatamente.
Alguns dias depois um novo correio chegou das Gálias. Este, ao menos, trazia novas favoráveis: o encontro das legiões romanas e gaulesas, a derrota dos rebeldes e a morte de Víndice. Nero deu gritos de alegria, correndo como um louco pelos quartos e pelos jardins da casa dourada, ordenando festas e regozijos, anunciando que cantaria, à noite, no teatro, e mandando convidar os principais da cidade para uma grande ceia no dia seguinte.
Efectivamente, à noite, Nero foi ao Ginásio, porém, uma extraordinária fermentação reinava em Roma; passando diante de uma das suas estátuas, viu que a tinham coberto com um saco. Ora, era num saco que metiam os parricidas, juntamente com um macaco, um gato e uma víbora, para serem lançados ao Tibre.
Um pouco mais longe, uma coluna tinha estas palavras escritas na base: "Nero tanto cantou que acordou os galos"(1). Um rico patrício, proprietário, que se encontrava
(1) Galli, galos, gauleses.
no caminho do imperador, disputava, ou fingia disputar, tão alto com os seus escravos, que Nero se informou do que ocorria. Trouxeram em resposta que, tendo os escravos merecido uma correcção, reclamava um Víndice (1).
O espectáculo começou por uma atelana em que entrava o actor Eato; o papel que lhe cabia começava por estas palavras: "Salve, meu pai! Salve, minha mãe!" No momento de as pronunciar, voltou-se para Nero e imitou ao dizer: "Salve, meu pai" a acção de beber e, ao dizer: "Salve, minha mãe", a acção de nadar.
Esta saída foi acolhida com grande algazarra, porque todos reconheceram uma alusão à morte de Cláudio e de Agripina. Nero riu-se e aplaudiu como os outros, quer fosse insensível a toda a espécie de vergonha, quer receasse que a sua cólera excitasse mais a zombaria ou indispusesse o público contra si.
Quando lhe chegou a vez, deixou a tribuna e entrou no palco. Enquanto se vestia para aparecer, espalhou-se pela sala e circulou entre os espectadores uma singular nova: os loureiros de Lívia tinham secado e todas as galinhas estavam mortas.
Eis como esses loureiros foram plantados e como as galinhas se tinham tornado sagradas:
No tempo em que Lívia Drusila, que, por seu casamento com Octávio, recebeu o nome de Augusta, era a prometida de César, um dia, estando sentada na sua vila de Veios, uma águia deixou cair das alturas, sobre os seus joelhos, uma galinha branca que não estava ferida nem sequer parecia assustada. Lívia, admirada, olhava e acariciava
(1) Vingador.
a ave, quando reparou que a galinha tinha no bico um ramo de louro.
Consultou os arúspices; mandaram que plantasse o louro para obter rebentos e sustentasse a galinha para lhe conservar a raça. Lívia obedeceu.
Uma casa de recreio dos Césares, situada na Via Flamínia, perto do Tibre, a nove milhas de Roma, foi escolhida para a experiência, cujo bom resultado excedeu todas as esperanças.
Nasceu uma tão grande quantidade de pintos que a terra tomou o nome de ad Gallinas, e os rebentos foram tão numerosos que o loureiro depressa formou um bosque. Agora a floresta secara até às raízes e as galinhas e pintos morreram.
O imperador apareceu então em cena, mas em vão se adiantou humildemente até à orquestra, conforme o seu costume, e dirigiu uma respeitosa alocução aos espectadores, dizendo-lhes que faria quanto pudesse para se exceder; nem um aplauso se fez ouvir. Contudo, começou, intimidado e trémulo.
O seu papel foi executado em profundo silêncio, sem um incitamento. Quando chegou ao verso: "Minha mulher, minha mãe e meu pai pedem a minha morte!", estalaram, pela primeira vez, os gritos e os aplausos. Desta vez não podia existir dúvida sobre a sua expressão. Nero compreendeu o verdadeiro sentido e deixou rapidamente o teatro, mas, ao descer a escada, os pés embaraçaram-se na túnica demasiadamente comprida, do que resultou cair, ferindo-se no rosto. Ergueram-no desmaiado.
Tendo entrado no Palatino e voltado a si, encerrou-se no seu gabinete cheio de terror e de cólera. Pegou nas tabuinhas e nelas traçou projectos estranhos, que só precisavam duma assinatura para constituírem ordens mortais.
Estes projectos eram: abandonar as Gálias à pilhagem dos exércitos, envenenar o Senado convidando-o para um festim, queimar a cidade, restituindo, ao mesmo tempo a liberdade a todas as feras, a fim daquele povo ingrato, que só o aplaudira para lhe pressagiar a morte, não poder defender-se do fogo. Depois, certo do seu poder, pela certeza do mal que ainda podia fazer, atirou-se sobre o leito; como se os deuses quisessem enviar-lhe novos presságios, permitiram que adormecesse.
Então, ele, que nunca sonhava, sonhou que estava perdido durante uma tempestade num mar furioso e lhe arrancavam da mão o leme do navio que dirigia; depois, por uma dessas incoerentes transições do sonho, achou-se de súbito perto do teatro Pompeia; as catorze estátuas executadas por Copónio e representando as nações desceram dos seus pedestais e, enquanto uma lhe impedia a passagem, as outras formavam um círculo que se apertava gradualmente, até que se achou metido entre os seus braços de mármore.
Com grande custo escapou àqueles fantasmas de pedra e corria, pálido, arquejante, saindo pelo Campo de Marte quando, passando defronte do mausoléu de Augusto, abriram-se as portas do túmulo e uma voz dele se elevou, chamando-o por três vezes.
Este último sonho fê-lo acordar todo trémulo, com os cabelos eriçados e a fronte borbulhando suor. Chamou, mandou buscar Esporo, e o rapaz ficou no quarto o resto da noite.
Com o dia, o excesso dos terrores nocturnos dissipou-se, mas restou um temor vago, que o fazia estremecer a cada instante.
Mandou vir à sua presença o correio que trouxera a nova da morte de Víndice. Era um cavaleiro batavo, vindo da Germânia com Virginio e que assistira à batalha. Nero fez-lhe repetir muitas vezes todos os detalhes do combate e sobretudo os da morte de Víndice; só ficou tranquilo quando o soldado jurou por Júpiter que vira, com os seus olhos, o cadáver crivado de golpes e prestes a ser enterrado. Mandou, então, entregar-lhe cem mil sestércios e presenteou-o com o próprio anel de oiro.
Chegou a hora de jantar; os convivas imperiais reuniram-se no Palatino; antes do repasto, Nero, como de costume, fê-los passar à sala dos banhos e, ao saírem, os escravos ofereceram togas brancas e coroas de flores.
Nero esperava-os no triclinium, vestido de branco como eles, com a cabeça coroada; deitaram-se nos leitos ao som duma deliciosa música.
Aquele jantar era servido não só com requintadas iguarias, mas com todo o luxo dos festins romanos; cada conviva tinha um escravo deitado aos pés para acudir os seus menores caprichos.
Um parasita comia a uma pequena mesa isolada. Ao fundo, numa espécie de teatro, dançarinas gaditanas pareciam, pela sua graça e ligeireza, essas divindades primaveris que no mês de Maio acompanham Flora e Zéfiro na visita aos seus reinos.
À medida que o jantar se prolongava e os convivas aqueciam, o espectáculo mudou de carácter e de voluptuoso tornou-se lascivo.
Os funâmbulos sucederam às dançarinas e executaram esses jogos inauditos que, dizem, a Regência renovou e que foram inventados para despertar os sentidos embotados do velho Tibério.
Nero pegou numa cítara e recitou uns versos em que Víndice era coberto de ridículo; acompanhava-os com gestos de palhaço.
Gestos e versos eram freneticamente aplaudidos pelos convivas, quando chegou um novo mensageiro com cartas de Espanha.
Essas cartas anunciavam a revolta e a proclamação de Galba.
Nero leu muitas vezes as cartas, empalidecendo mais a cada nova leitura. Depois, pegando em dois vasos de que muito gostava e a que chamava homéricos, porque representavam nos ornatos assuntos extraídos da Ilíada, quebrou-os como se fossem vasos vulgares. Em seguida deixou-se cair, rasgou os vestidos, bateu com a cabeça violentamente contra as camilhas, dizendo que sofria desgraças incríveis e desconhecidas, pois perdia o império estando com vida.
Ouvindo os seus gritos, entrou a sua ama Eulogia, pegou-lhe como se fosse uma criança e tentou consolá-lo, mas, como acontece com as crianças, a dor aumentou com as consolações.
Daí a pouco surgiu a cólera. Mandou trazer um caniço e papiros para escrever ao chefe dos pretorianos; depois, quando a ordem já estava assinada, procurou o anel para o selar; como dissemos, dera-o de manhã ao cavaleiro batavo.
Pediu o sinete a Esporo, que lhe deu o seu. Apoiou-o contra a cera sem olhar para ele, mas, levantando-o, reparou que o anel representava a descida de Prosérpina aos infernos.
Este último presságio, em tal momento, pareceu-lhe o mais terrível de todos, e quer ele pensasse que Esporo lhe tinha dado aquele anel intencionalmente, quer, na loucura que dele se apoderara, não reconhecesse já os amigos mais caros, quando Esporo se lhe aproximou, a informar-se da causa daquele novo acesso, deu-lhe um soco na cara e o rapaz, ensanguentado e desmaiado, foi cair no meio dos restos do festim.
Então, o imperador, sem se despedir dos convivas, meteu-se na câmara e mandou chamar Locusta.
XVII.
DESTA vez era para si próprio que o imperador reclamava a ciência daquela velha amiga. Passaram juntos a noite inteira e diante dele a feiticeira compôs um veneno subtil que inventara três dias antes e experimentara na véspera. Nero meteu-o numa caixa de oiro e escondeu esta num móvel, presente de Esporo, cujo segredo só era conhecido de ambos.
Entretanto, o boato da revolta de Galba espalhou-se com espantosa rapidez. Desta vez já não constituía ameaça longínqua, uma empresa desesperada como a de Víndice.
Era o ataque potente e directo dum patrício cuja raça, sempre popular em Roma, era ao mesmo tempo ilustre e antiga e cujas estátuas lhe davam o título de neto de Quinto Catulo Capitolino, isto é, do magistrado considerado o primeiro do seu tempo, pela coragem e pelas virtudes.
A estas boas disposições a favor de Galba, juntavam-se novos agravos contra Nero. Preocupado com os jogos, corridas e cantos, negligenciara as ordens habituais que devia dar como prefeito da anona, resultando que a frota destinada a trazer o trigo da Sicília e de Alexandria só partira quando já deveria estar de volta. Resultou que em poucos dias a carestia daquele género se tornou excessiva e Roma inteira, sucumbindo à fome como um só homem, com os olhos voltados para o Sul, corria às margens do Tibre apenas qualquer barco subia do porto de Óstia.
Ora, na manhã que se seguiu à noite passada por Nero com Locusta e no dia imediato àquele em que as novas da revolta de Galba tinham chegado, o povo descontente e faminto reunira-se no Fórum quando foi assinalado um barco.
Toda a gente correu ao porto, julgando aquele navio a vanguarda da frota esperada, e precipitou-se a bordo com gritos de alegria. O navio trazia areia de Alexandria para os lutadores da corte; então os murmúrios e as imprecações explodiram.
Notava-se, entre os descontentes, um homem, um liberto de Galba, chamado ícelo. Na véspera, ao anoitecer, fora preso, mas, durante a noite, uma centena de homens armados forçou a prisão e libertou-o. Reaparecia entre o povo, forte com a sua momentânea perseguição, e, aproveitando-se desta vantagem, chamava os assistentes, abertamente, à revolta.
Estes hesitavam ainda, por esse resto de inata obediência ao existente que os espíritos vulgares tão dificilmente quebram.
Nessa ocasião, um mancebo com o rosto oculto pelo manto passou junto dele e deu-lhe uma tabuinha. ícelo pegou na folha de marfim coberta de cera que lhe estendiam e pensou, com alegria, que o acaso vinha em seu socorro, fornecendo-lhe uma prova contra Nero. Aquela tabuinha continha o projecto que o imperador escrevera, na noite passada com Esporo, de queimar, uma segunda vez, Roma, cansada de aplaudir os seus cantos, e de soltar as feras durante o incêndio, para que os romanos não pudessem combater o fogo.
ícelo leu em voz alta as linhas escritas na cera; contudo, hesitavam em acreditar, tão insensata parecia tal vingança. Algumas pessoas chegaram a gritar que aquela ordem era falsa, mas Ninfldio Sabino tirou a tabuinha das mãos do liberto e declarou que reconhecia perfeitamente, não só a letra do imperador, como a sua maneira de riscar, de fazer rasuras e de intercalar.
Nada havia a responder, porque Ninfldio, como prefeito do pretório, muitas vezes recebera cartas autografadas de Nero.
Naquele momento passavam muitos senadores em desordem e sem manto; dirigiam-se ao Capitólio, para onde tinham sido convocados. O chefe do Senado vira, de manhã, uma tabuinha semelhante à que o desconhecido dera a ícelo e na qual estava escrito o projecto detalhado de convidar todos os senadores para um festim e envenená-los dum só golpe. O povo seguiu-os e veio inundar o Fórum, numeroso e agitado como as vagas dum porto sob a acção da maré; depois, enquanto esperava a reunião do Senado, atacou as estátuas de Nero, não ousando ainda atacá-lo em pessoa.
Do alto dos terraços do Palatino, o imperador presenciou os ultrajes às suas efígies; vestiu-se de preto para ir juntar-se com o povo, apresentar-se-lhe suplicante, mas, quando se dispunha a sair, os gritos da turba haviam tomado uma tal expressão de ameaça e de raiva que reentrou precipitadamente, abriu uma porta traseira e fugiu para os jardins de Servílio.
Uma vez ao abrigo daquele retiro, que só os seus mais íntimos confidentes sabiam ter escolhido, enviou Fáon ao chefe dos pretorianos. Mas o agente de Galba precedera o agente de César. Ninfldio Sabino acabava de prometer, em nome do novo imperador, sete mil dracmas por cabeça e a cada soldado do exército das províncias mil duzentas e cinquenta dracmas.
O chefe dos pretorianos respondeu, pois, a Fáon que tudo o que podia fazer era preferir Nero por igual soma. Fáon transmitiu esta resposta ao imperador, mas a soma pedida era enorme e o tesouro estava esgotado por insensatas prodigalidades, de modo que o Imperador não possuía nem a vigésima parte daquela soma.
Contudo, Nero não desesperou. A noite aproximava-se e, com a ajuda dos seus antigos amigos, de quem, graças às trevas, podia ir implorar o concurso sem ser visto, chegaria talvez a reunir a aludida soma.
A noite envolveu a cidade, repleta de tumulto e de clarões. Por toda a parte onde existia um fórum, uma praça, uma encruzilhada, havia grupos alumiados por archotes. No meio de toda aquela multidão animada de tão diversos sentimentos, as mais estranhas e contraditórias novas circulavam, como se uma águia as sacudisse lá das alturas, e todas obtinham crédito, por mais insensatas e incoerentes que fossem.
Subiam aos ares claridades e rumores que, de longe, podiam tomar-se por erupções vulcânicas e rugidos de feras. No meio de todo aquele tumulto, os pretorianos abandonaram as casernas e foram acampar fora de Roma; por onde passaram restabeleceu-se o silêncio, porque ainda se não sabia por quem eram; mas apenas se perderam de vista, a turba continuou a agitar os archotes, a uivar, desordenada, ameaçadora.
Apesar da agitação da cidade, Nero atreveu-se a sair, disfarçado em homem do povo, dos jardins de Servílio, onde se ocultara de dia. Aquele passo ousado inspirara-lho a esperança de achar uma ajuda, senão nos braços, ao menos na bolsa dos seus antigos companheiros de deboche. Em vão se arrastou de casa em casa, se ajoelhou a todas as portas, implorando como um mendigo a única esmola que podia comprar-lhe a vida; em vão suplicou, gemeu; os corações mostraram-se insensíveis e as portas continuaram fechadas.
Como a turba, fatigada com as delongas do Senado, começava a agitar-se, Nero compreendeu que não havia um momento a perder. Em lugar de voltar aos jardins de Servílio, dirigiu-se ao Palatino para ir buscar oiro e algumas jóias. Chegado à fonte de Júpiter, deslizou por trás do templo de Vesta, alcançou a sombra projectada pelos muros do palácio de Tibério e de Calígula, ganhou a porta, aberta à sua chegada de Corinto, e atravessou esses jardins magníficos que era forçado a abandonar pelos areais desertos da proscrição; depois, entrando na casa dourada, alcançou a sua câmara por corredores desertos e escuros; ao entrar deu um grito de surpresa. Na sua ausência, os guardas do Palatino tinham fugido, levando consigo tudo o que lhes caíra sob as mãos: cobertas atálicas, vasos de prata, móveis preciosos
Nero correu ao cofrezinho em que metera o veneno de Locusta e abriu a gaveta; a caixa de oiro tinha desaparecido e com ela o último recurso contra a vergonha duma morte pública e infame.
Sentindo-se fraco contra o perigo, abandonado e traído por todos, aquele, ainda na véspera, senhor da Terra prostrou-se com a face contra o chão, onde se rolou, chamando por socorro em gritos de doido. Acudiram três pessoas: Esporo, Epafrodito, seu secretário, e Fáon, seu liberto.
Vendo-os, Nero ergueu-se sobre um joelho e encarou-os com ansiedade; depois, descobrindo nos seus rostos tristes e abatidos que esperança alguma restava, ordenou a Epafrodito que fosse buscar o gladiador Espicilo ou qualquer outro que quisesse matá-lo.
Depois, mandou que Esporo e Fáon permanecessem junto dele para entoarem as lamentações que as carpideiras alugadas cantam acompanhando os féretros; ainda não tinham acabado, chegou Epafrodito. Nem Espicilo nem pessoa alguma quisera vir.
Nero, que reunira todas as suas forças, sentindo escapar-lhe este último meio de morrer de morte rápida, deixou cair os braços, exclamando:
- Ai de mim! Ai de mim! Nem amigos nem inimigos...
Quis sair do Palatino, correr ao Tibre e afogar-se; Fáon deteve-o oferecendo-lhe a sua casa de campo, situada a quatro milhas, pouco mais ou menos, de Roma, entre as vias Solária e Nomentana.
Nero, agarrando-se a esta última esperança, aceitou.
Prepararam-se cinco cavalos; Nero montou um deles, ocultou o rosto, e, seguido de Esporo, que se tornara a sua sombra, enquanto Fáon ficava no Palatino para saber notícias, atravessou a cidade inteira, saiu pela porta Nomentanà e seguiu a via na qual fomos encontrá-lo, no momento em que a saudação do soldado que o reconhecera levara ao cúmulo o seu terror.
O pequeno grupo chegou à altura da vila de Fáon, situada onde está hoje a Serpentara.
Aquela casa de campo, escondida pelo monte sagrado, podia permitir a Nero um retiro momentâneo, bastante isolado para que tivesse, ao menos, tempo para se decidir a morrer, se todas as probabilidades de salvação se perdessem.
Epafrodito que conhecia o caminho, colocou-se à frente da cavalgada e, voltando sobre a esquerda, tomou por um caminho transversal. Nero seguiu-o; dois libertos e Esporo formaram a retaguarda.
Chegados a meio do caminho, ouviram um ruído que partia da estrada, sem que pudessem aperceber quem o causava, por motivo da escuridão, obscuridade que era um grande auxílio.
Nero e Epafrodito meteram pelos campos, enquanto Esporo e os libertos continuaram costeando o monte sagrado.
Aquele ruído era produzido por uma patrulha enviada em busca do imperador e comandada por um centurião. Deteve os três viajantes; não encontrando Nero entre eles, deixou-os continuar o seu caminho, depois de ter trocado algumas palavras com Esporo.
Entretanto, o imperador e Epafrodito foram obrigados a apear-se, tão semeada era a planície de pedras e restos de desabamentos produzidos pelo terramoto havido no momento em que os viajantes saíam de Roma. Avançaram através dos juncos e dos espinhos, que ensanguentavam os pés de Nero e lhe rasgavam o manto.
Enfim, na sombra, avistaram uma massa negra. Ladrou um cão de guarda, que os seguiu ao longo do muro que eles percorriam exteriormente.
Chegaram à entrada duma pedreira pertencente à vila, de onde Fáon tirava areia. A abertura era baixa e estreita. Nero, apressado pelo medo, deitou-se e rastejou até entrar.
Da estrada, Epafrodito disse-lhe que ia dar a volta ao muro, penetrar na vila e saber se o imperador podia entrar sem perigo.
Apenas Epafrodito se afastou, Nero, achando-se só naquela caverna, foi presa de extremo terror; parecia-lhe um sepulcro cuja porta o entaipara vivo; apressou-se a sair para contemplar o céu e respirar o ar livre. A pouca distância, lobrigou um charco. Apesar da água ser estagnada, a sede era tanta que não pôde resistir à vontade de beber. Enrolando o manto nos pés para os livrar algum tanto dos calhaus e dos espinhos, arrastou-se até aquela água, bebeu algumas gotas no côncavo da mão; olhando o céu, em tom de censura, disse:
- Eis o último refresco de Nero!
Havia instantes que, sentado, taciturno e pensativo na borda do charco, se ocupava em arrancar os espinhos que se agarravam ao manto, quando ouviu chamar.
Aquela voz, apesar da sua benevolente expressão, atravessando o silêncio da noite, fê-lo estremecer. Voltando-se deparou-se-lhe Epafrodito com um facho na mão. O secretário cumprira o prometimento. Depois de ter entrado pela porta principal da vila e de ter indicado aos libertos o local onde o imperador os esperava, havia, com o concurso dos escravos, furado um velho muro e praticado uma abertura que permitia a passagem da pedreira para a vila.
Nero apressou-se a seguir o seu guia com tanta precipitação que esqueceu o manto na borda do charco. Tornou a entrar na caverna e da caverna passou a um pequeno aposento de escravo, tendo por únicos móveis uma enxerga e uma cobertura velha, alumiado por uma péssima lâmpada de barro, que produzia, naquele antro sepulcral e infecto, mais fumo do que luz.
Nero sentou-se na enxerga, com as costas contra a parede; tinha fome e sede; pediu de comer e de beber; trouxeram-lhe um pedaço de pão de rala e um jarro com água.
Ficando só, deixou pender a cabeça sobre os joelhos e ficou alguns instantes imóvel e mudo como a estátua da Dor.
Daí a pouco a porta abriu-se. Nero ergueu a cabeça e viu, diante de si, Esporo com uma carta na mão.
Percebia-se no pálido rosto do romano, habitualmente exprimindo tristeza e abatimento, uma expressão tão estranha de alegria cruel, que Nero o encarou por instantes, não reconhecendo já o escravo dócil a todos os seus caprichos naquele mancebo que tinha diante dele.
Chegado a dois passos da enxerga, estendeu o braço e apresentou o pergaminho.
Nero, sem ainda compreender o sorriso de Esporo, adivinhou que pressagiava alguma nova fatal.
- De quem é esta carta? - perguntou, sem fazer movimento algum para lhe pegar.
- De Fáon - respóndeu o mancebo.
- E o que diz? - continuou Nero, empalidecendo.
- Que o Senado te declarou inimigo do Estado e que te procuram para te supliciarem.
- Supliciarem! - exclamou Nero, levantando-se sobre um joelho. - A mim! A mim! Cláudio César!
- Já não és Cláudio César - volveu friamente o escravo. - Tu és Domício Aenobarbo mais nada, declarado traidor à pátria e condenado à morte!
- E qual é o suplício dos traidores à pátria? - inquiriu Nero.
- Tiram-lhes os fatos, metem-lhes o pescoço numa forquilha, passeiam-nos pelos Forums, pelos mercados e pelo Campo de Marte; depois são chibatados até morrerem.
- Oh! - exclamou Nero, pondo-se em pé. - Posso talvez fugir, tenho tempo ainda; alcançarei a floresta de Larice e os lagos de Minturnes; qualquer barco me acolherá e esconder-me-ei na Sicília ou no Egipto.
- Fugir! - obtemperou Esporo, sempre pálido e frio como um mármore. - Fugir! E por onde ?
- Por aqui - gritou Nero, abrindo a porta e correndo para a pedreira; - visto que entrei, posso sair.
- Sim, mas depois de teres entrado - tornou Esporo - taparam a abertura e, por bom atleta que sejas, duvido de que possas, sozinho, remover a rocha que a fecha.
- Por Júpiter! É verdade! - exclamou Nero, esgotando, em vão, as forças na tentativa de deslocar o rochedo. Quem fez isto? Quem pôs aqui esta pedra?
- Eu e os libertos - afirmou Esporo.
- E para que o fizeram, para que me encerraram, como Caco no seu antro?
- Para que morras como ele - disse Esporo com uma explosão de ódio que a sua voz parecia incapaz de atingir.
- Morrer! Morrer! - exclamou Nero, batendo na cabeça e correndo de um lado para o outro como uma fera fechada que procura saída. - Morrer! Toda a gente quer, pois, que eu morra? Toda a gente me abandona?
- Sim - respondeu Esporo - toda a gente quer que morras, mas nem toda a gente te abandona, pois que eu aqui estou, pois que venho morrer contigo.
- Sim, sim - murmurou Nero, deixando-se de novo cair na enxerga. - Sim, és fiel!
- Enganas-te, César - replicou Esporo cruzando os braços e encarando Nero, que mordia a enxerga - enganas-te; isto não é fidelidade, é melhor ainda, é vingança!
- Vingança! - gritou Nero, voltando-se vivamente.
- Vingança! O que te fiz eu, Esporo?
- Júpiter! Ainda o pergunta? - proferiu o eunuco levantando os braços para o céu. - O que fizeste?
- Sim, sim - murmurou Nero, amedrontado e recuando até à parede.
- O que me fizeste ? - prosseguiu Esporo dando um passo em frente e deixando cair as mãos como se as forças lhe faltassem. - Duma criança, nascida para se tornar homem, para ter a sua parte dos sentimentos terrestres e das alegrias do céu, fizeste um pobre ser, que nada é, que a nada tem direito, que em nada pode ter esperança ! Todos os prazeres e todas as felicidades vi-as passar como Tântalo vê os frutos e a água, sem poder chegar-lhes, encadeado pela minha impotência, pela minha nulidade. E isto não é tudo. Se pudesse sofrer e chorar, com vestes de luto,, no silêncio, na solidão, talvez te perdoasse; mas fui obrigado a vestir a púrpura como os poderosos, a sorrir como os felizes, a viver no meio do mundo como os que existem, eu, pobre fantasma, pobre espectro, pobre sombra!
- O que querias mais ? - articulou César, tremendo.
- Partilhei contigo o meu oiro, os meus prazeres, o meu poder. A todas as minhas festas assististe; tiveste, como eu, cortesãos e aduladores e, quando já não sabia o que te dar, dei-te o meu nome.
- Eis, justamente, o que faz com que te odeie. Se me tivesses envenenado como a Britânico, se me tivesses mandado assassinar como a Agripina, se me tivesses mandado abrir as veias como a Séneca, poderia perdoar-te no momento de morrer. Mas tu não me trataste nem como homem, nem como mulher. Trataste-me como um brinquedo frívolo, de que podias fazer o que bem te apetecesse; uma estátua de mármore, cega, surda, muda, sem coração.
Esses favores de que falas eram humilhações douradas, nada mais. Quanto mais me elevavas, mais me cobrias de vergonha; todos podiam medir a minha infâmia! E não é tudo. Anteontem, quando te dei o anel, podendo responder-me com uma punhalada, o que, ao menos, teria feito crer a todos aqueles homens, a todas aquelas mulheres que lá estavam, que eu valia a pena ser morto, bateste-me com a mão, como num escravo, como num cão!
- Sim, sim - concordou Nero - sim, fiz mal. Perdoa-me, meu bom Esporo!
- E, contudo - continuou Esporo, como se não ouvisse a interrupção de César - esse ser sem nome, sem sexo, sem amigos e sem coração, esse ser, fosse o que fosse, se não podia fazer o bem, podia ao menos fazer o mal. Podia de noite entrar na tua câmara, tirar-te as tabuinhas que condenavam à morte o Senado e o povo e espalhá-las, como teria feito o vento da tempestade, pelo Fórum ou pelo Capitólio, de maneira a não poderes esperar perdão, nem do povo nem do Senado. Podia roubar-te a caixa onde tinhas metido o veneno de Locusta, a fim de entregar-te, sem defesa e sem armas, aos que te procuram para dar-te uma morte infame !...
- Enganas-te - exclamou Nero, sacando um punhal de sob a enxerga. - Enganas-te! Resta-me este ferro!
-Sim - tornou Esporo - mas nem ousarás servir-te dele contra os outros ou contra ti. E o exemplo dum imperador expirando às chibatadas, depois de ter sido passeado nu e de forquilha ao pescoço pelo Fórum e pelos mercados, será dado ao mundo, graças a um eunuco!
- Mas eu estou bem oculto aqui; não me encontrarão - replicou Nero.
- Sim, sim, talvez conseguisses escapar se eu não tivesse dito a um centurião onde estás. A esta hora bate à porta da vila; César, ele vai chegar, ele vem aí...
- Oh! Não o esperarei - afirmou Nero, encostando a ponta do punhal sobre o coração. - Ferir-me-ei... matar-me-ei...
- Não te atreverás - replicou Esporo.
- E, contudo - murmurou Nero em grego, procurando com a ponta da lâmina o sítio para se matar - e contudo, não fica bem a Nero não saber morrer... sim, sim, vivi vergonhosamente e morro na vergonha!... Oh, universo, universo, que grande artista vais perder, perdendo-me...
De súbito calou-se com o pescoço estendido, os cabelos em pé, a fronte coberta de suor, escutando um ruído que se fazia ouvir e balbuciou este verso de Homero:
É o ruído dos cavalos de rápida carreira...
Naquele momento Epafrodito precipitou-se no aposento. Nero não se enganara; aquele ruído era o dos cavaleiros que o perseguiam e que vinham em direcção à vila, guiados pelas indicações de Esporo.
Não havia um instante a perder se o imperador não quisesse cair vivo nas mãos dos algozes.
Nero, porém, tomara uma resolução decisiva. Chamou Epafrodito de parte e fez-lhe jurar pelo Estige de não lhe deixar a cabeça em poder de pessoa alguma ou, antes, de queimar-lhe o corpo. Depois, empunhando o punhal, apoiou a ponta no pescoço.
O barulho fez-se ouvir mais próximo; distinguiam-se vozes ameaçadoras. Epafrodito viu que chegara a hora suprema; agarrou na mão de Nero e, empurrando-a, embebeu-lhe na garganta a lâmina toda inteira; depois, seguido de Esporo, correu para a pedreira, fechando a porta.
Nero deu um grito terrível; arrancando e atirando para longe a arma mortífera, cambaleou um instante, com os olhos fixos e o peito arquejante, caiu sobre um joelho, depois sobre o outro, tentou suster-se, ainda, com um braço, enquanto o sangue lhe jorrava por entre os dedos da outra mão com que tentava fechar a ferida. Olhou uma última vez à sua volta com uma expressão de mortal desprezo e, achando-se só, deixou-se cair por terra soltando um gemido.
Naquele momento, abriu-se a porta e apareceu o centurião. Vendo o imperador naquele estado, correu para ele e quis estancar o sangue com o manto; Nero, reunindo o resto das forças, repeliu-o, dizendo em tom de censura:
- É esta a fé que me juraste?
E deu o último suspiro; coisa extraordinária: os seus olhos ficaram abertos!... Tudo acabara.
Os soldados que o centurião acompanhara, entraram para se certificarem de que o imperador cessara de viver e, desfeitas as dúvidas, voltaram para Roma a anunciar a sua morte, de modo que o cadáver daquele que na véspera ainda era o senhor do mundo ficou só, estendido na lama sangrenta, sem um escravo para lhe prestar a derradeira homenagem.
Passou-se assim um dia inteiro. À noite, entrou uma mulher pálida, lenta e grave. Obtivera de ícelo, esse liberto de Galba que vimos excitando o povo e que se tornara poderoso em Roma, onde se esperava o seu senhor, licença para prestar a Nero os últimos deveres. Despiu-o, lavou-lhe o corpo manchado de sangue e envolveu-o num manto branco bordado a oiro, que ele trazia a última vez que o vira e que lhe tinha dado; depois, fê-lo transportar para Roma num carro que trouxera consigo. Ali, fez-lhe uns modestos funerais, que não excederam os de um simples cidadão; e depôs o cadáver no monumento de Domiciano que, do Campo de Marte, se avistava sobre a colina dos Jardins e onde Nero tinha feito edificar um túmulo de pórfiro encimado por um altar de mármore de Luna e rodeado por uma balaustrada de mármore de Tasos.
Cumprido este último dever, ficou, um dia inteiro, imóvel e muda como a estátua da Dor, ajoelhada e orando sobre aquele túmulo.
Quando chegou a noite, desceu lentamente a colina dos Jardins, tomou, sem olhar para trás, o caminho do vale de Egéria e entrou, pela última vez, nas Catacumbas.
Epafrodito e Esporo foram encontrados mortos e deitados, um ao lado do outro, na pedreira. Entre eles estava a caixa de oiro: tinham, como irmãos, partilhado o veneno preparado para Nero.
Assim morreu Nero com trinta e dois anos de idade e no mesmo dia em que fizera matar Octávia.
Aquela morte estranha e ignorada, aqueles funerais feitos por uma mulher, sem que o corpo, como era costume, tivesse sido exposto, deixaram grandes dúvidas no povo romano, o mais supersticioso de todos os povos.
Muitos disseram que o Imperador alcançara o porto de Óstia, donde um barco o transportara à Síria, de forma que esperavam vê-lo reaparecer, mais dia menos dia. E, enquanto uma mão desconhecida, durante quinze anos ainda, ornou religiosamente o seu túmulo com flores da Primavera e do Estio, alguns cidadãos houve que, várias vezes, trouxeram à tribuna imagens de Nero com toga pretexta, outras ali vinham ler proclamações como se ele existisse, como se devesse voltar poderoso e armado, para mal dos seus inimigos.
Enfim, vinte anos depois da sua morte, na mocidade de Suetónio, que conta este facto, um homem de condição obscura, que dizia ser Nero, apareceu entre os Partas e foi por muito tempo sustentado por aquele povo que, particularmente, honrara a memória do último César. Ainda não é tudo. Estas tradições passaram dos pagãos aos cristãos e, apoiando-se em algumas passagens de S. Paulo, S. Jerónimo apresentou Nero como o Anticristo ou, pelo menos, como seu precursor.
Sulpício Severo faz dizer a S. Martinho nos seus diálogos que, antes do fim do mundo, Nero e o Anticristo devem aparecer, o primeiro no Ocidente, onde restabelecerá o culto dos ídolos, e o segundo no Oriente, onde levantará o templo e a cidade de Jerusalém, para ali fixar a sede do seu império até que se faça reconhecer como o Messias, declare guerra a Nero e o faça morrer.
Enfim, Santo Agostinho assevera, na sua Cidade de Deus, que no seu tempo, isto é, no começo do século V, muita gente não acreditava na morte de Nero, julgando-o cheio de vida e de cólera, escondido num lugar inacessível e conservando todo o seu vigor e crueza para reaparecer algum dia e subir outra vez ao trono do império.
Hoje, ainda, dentre essa longa série de imperadores, que uns após outros vieram juntar um monumento aos monumentos de Roma, o mais popular é Nero.
Em Baulos, um vinhateiro mostrou-me, sem hesitar, o local onde fora situada a vila de Nero.
No meio do golfo de Baias, os meus marinheiros pararam justamente no sítio onde se abrira a trirreme preparada por Nero e, de volta a Roma, um camponês conduziu-me, seguindo a mesma Via Nomentana que Nero seguira na fuga, a Serpentara; e, em algumas ruínas dispersas por essa magnífica planície de Roma, toda juncada de ruínas, forçou-me a reconhecer o local da vila onde o imperador se apunhalara. Até o cocheiro da carruagem, que tomara em Florença, me disse, na sua ignorante devoção pela memória do último César, mostrando-me uma ruína colocada à direita da Estora, em Roma: - Eis o túmulo de Nero.
Que explique, quem puder, o olvido em que caíram, nos mesmos lugares, os nomes de Tito e Marco-Aurélio!

 

 

                                                                  Alexandre Dumas

 

 

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