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Quando acordei, achei-me num leito muito alvo e muito macio e vi que, em torno de mim, havia no quarto fofos tapetes e magníficos móveis. A ténue claridade que se coava pelas cortinas semicerradas da imensa janela punha em todas as coisas uns tons fantásticos e misteriosos.
Estaria eu a sonhar?
Não; era com efeito a realidade, tal como a morte ma criara, e aquela habitação principesca ainda aumentava o meu desespero.
Eu era realmente órfã, estava desde então sem ninguém e em casa de gente estranha.
Pela primeira vez chorei saudades da nossa triste água-furtada; a mobília com incrustações de tartaruga da casa do príncipe não podia fazer-me esquecer o velho divã e a cómoda coxa, tão familiares à minha primeira infância.
Restabelecendo-me dentro em pouco, pude travar conhecimento com a casa e com os seus moradores, por isso que as minhas primeiras recordações, quando me levantaram da rua, tinham-se dissipado como um terrível pesadelo e apenas tornava a ver distintamente a fisionomia serena e grave do príncipe.
Logo nos primeiros dias observei as novas caras e procurei familiarizar-me com elas.
Tudo naquela casa me parecia extraordinário; ainda estou a ver aqueles aposentos enormes e sumptuosos, aquelas salas tão compridas, que chegava a ter medo de atravessá-las, receando perder-me nelas.
Ainda me não sentia curada de todo e o meu estado de espírito era, como aquela habitação, solenemente triste. Uma angústia desconhecida enchia o meu coração de criança. Às vezes parava admirada diante de um quadro, de um espelho, de um fogão trabalhado caprichosamente, onde uma estátua, que parecia espreitar-me lá do seu profundo nicho, me seguia com os olhos e me causava medo.
Poucas pessoas tinha visto durante a minha doença. Apenas um sujeito já idoso, de olhos azuis e meigos, vinha às vezes fazer-me companhia.
O meu desejo seria falar-lhe; detinha-me, porém, sempre um sentimento que era um misto de receio e de medo. Via-o sempre triste, e só acidentalmente conversava comigo. Era o príncipe, o meu benfeitor, o próprio que me recolhera na rua.
Trazia-me bolos finos, alguns doces, livros com estampas e esforçava-se por tornar-me mais alegre.
Um dia anunciou-me que eu teria dentro em pouco uma amiga da minha idade, a sua filha Katia, que estava então em Moscovo.
Foi para mim uma grande alegria, porque, a não ser o príncipe, ninguém até então parecera interessar-se por mim. De resto, o príncipe vivia muito retirado e a princesa estava às vezes semanas inteiras sem o ver.
Dir-se-ia que ele não habitava na sua casa.
Contudo, uma manhã vestiram-me e pentearam-me com mais cuidado do que habitualmente, puseram-me um vestido novo com galões brancos e que me causou bastante admiração. Terminados estes preparativos, fui levada aos aposentos da princesa. Bastou-me olhar para ela para ficar atónita; deslumbraram-me, a um tempo, o luxo da mobília e as maneiras da sumptuosa dama.
É certo que, ao vestir-me, contava já com uma situação para mim embaraçosa; não supunha, porém, que havia de impressionar-me tanto.
A desgraça tornara-me excessivamente desconfiada e receosa. Tremia, ao beijar a mão da minha benfeitora e senti-me incapaz de responder uma palavra que fosse às suas perguntas.
Era uma senhora muito formosa, mas que me parecia tão acima de mim, que nem sequer me atrevia a olhar para ela.
Mandou-me sentar num tamborete, junto dela, e quis travar conhecimento com esta selvagenzinha, de quem queria ser mãe. Não consegui mostrar-me senão esquiva e reservada, o que a surpreendeu e desanimou talvez, porque me deu um livro com estampas e começou a escrever várias cartas.
Eu ia folheando o livro, mas não me sentia à vontade. Via que uma pessoa estranha me estava a examinar e o meu desejo era estar muito longe dali.
Quando ela me falava, eu apenas podia responder-lhe com monossílabos, chegando o meu acanhamento a parecer toleima.
Certamente esperavam encontrar em mim uma criança extraordinária e viam que não passava de uma rapariguinha sem inteligência.
Compreendi logo que tinha desagradado e com isso ainda mais aumentou o meu acanhamento.
Naquele momento daria muita coisa para poder ser amável, mas as minhas mágoas subiam-me à garganta e eu, afinal, não era mais do que uma criança de dez anos.
Às três horas começaram as visitas; julguei que o meu suplício ia ter fim e que poderia largar aquele malfadado livro para refugiar-me num canto: enganei-me.
Umas após outras vieram muitas pessoas, a quem a princesa me apresentou como se eu fosse um fenomenozinho. Tinha ela então para comigo toda a casta de atenções, que cada vez me tornavam mais acanhada. Lembro-me de um sujeito baixo, velho e magro, que começou a mirar-me com um monóculo e que vinha todo perfumado! Outro quis beijar-me.
Quando na sala já estava reunida muita gente, a princesa entendeu que era ocasião oportuna para contar a minha história.
Fiquei deveras confusa; nem sabia se estava pálida, se estava corada, mas sentia o coração transformado.
Era para mim muito triste ouvir contar a pessoas indiferentes que esse pai que eu tanto amara era um músico qualquer, meio doido, um homem extraordinário, incompreendido até morrer; que a chegada do músico Schurmann a Petersburgo acabara por desarranjar-lhe o juízo e fora causa da sua morte trágica; que, finalmente, minha mãe era uma pobre mulher a quem a miséria matara e que, até ao último instante acreditara no talento genial do marido.
De tudo isto me recordava eu com cruciante desespero e ocultava as lágrimas, ao passo que aqueles sujeitos, calçando todos magníficas luvas, faziam círculo à roda da minha benfeitora, soltando pequeninas exclamações e dirigindo-me de quando em quando uns olhares repassados de desprezadora compaixão.
Como foi cruel aquela apresentação! Supunham por certo que eu não sabia nada, que não sentia nada, que aos dez anos nem o amor-próprio nem o coração nos fazem sofrer.
Era orgulhosa, nem eu sei por quê. Tinha orgulho de ser filha de meu pai, daquele pobre louco que me deixara um dia na neve para ir a caminho da morte. Reportava-me ao passado, à nossa vida num sótão, àquelas longas noites silenciosas e soluçava dolorosamente... Quisera fugir para qualquer parte e ocultar-me debaixo da terra. Não conhecia a vida e já desejava estar morta.
Acabaram finalmente as visitas.
A princesa não estava satisfeita com a sua protegida, por isso mandou-me retirar com ar aborrecido, pouco lisonjeada com a minha apresentação na sociedade.
Capítulo 2
Fiquei deveras contente quando novamente me levaram para os aposentos do andar superior, onde estava o meu quarto.
Quando adormeci, tinha febre; como me atormentara tudo quanto vira naquele dia, foram maus os sonhos que tive.
Bem depressa percebi que tinha desagradado à princesa; o certo é que não tornou a mandar chamar-me para junto de si.
Ultimamente sentia-me bastante feliz com a minha solidão. Comprazia-me em correr pelas salas, em esconder-me pelos cantos e por trás dos móveis para observar as pessoas de casa sem receio de as fazer zangar.
Esta nova existência tinha para mim muitos atrativos, a ponto de chegar a esquecer a terrível catástrofe que a precedera.
Só os acontecimentos antigos me voltavam à memória, e principalmente o violino de meu pai e a ideia de que ele era um grande génio.
Eu tinha liberdade e contudo via que era muito vigiada pelos criados, o que me dava um certo cuidado. Não compreendia por que motivo assim procediam para comigo. Parecia-me que havia qualquer propósito a meu respeito, que tencionavam empregar-me em qualquer coisa.
Procurei penetrar nos sítios mais recônditos da casa, para, se fosse preciso, ter onde esconder-me.
Um dia fui ter a uma escadaria de mármore, larga, forrada de tapetes, ornada de flores e de magníficos vasos. Em cada patim, estavam de pé, silenciosos, dois criados de elevada estatura, com fardas escarlates, gravatas e luvas brancas. Olhei para eles, admirada, sem poder compreender a razão por que ali estavam imóveis e mudos.
Agradavam-me sobremaneira aqueles passeios solitários. No andar superior habitava uma velha tia do príncipe, que quase nunca saía do quarto. Depois do príncipe, era ela a personagem mais importante da casa. Nas suas relações para com ela, toda a gente observava a mais rigorosa etiqueta.
A princesa, tão orgulhosa e tão altiva, ia visitá-la duas vezes por semana.
Aquelas visitas eram curtas e solenes.
A alta sociedade tomara havia muito tempo como um dever apresentar os seus respeitos àquela velha dama, considerada como uma das mantenedoras das derradeiras tradições aristocráticas, uma relíquia viva dos boiardos de puro sangue.
Usando invariavelmente um vestido de lã preta, a velha tia apresentava-se com umas golas pregueadas que a faziam parecer uma freira. Ordinariamente ia à missa de carruagem, nunca largava o rosário, recebia eclesiásticos, lia livros devotos, comia de magro todos os dias e levava em suma uma vida extremamente austera.
Não se ouvia nenhum ruído no andar que ela habitava e a menor bulha tomava-se-lhe insuportável.
Quinze dias depois da minha chegada àquela casa, a velha tia deu pela minha presença e quis informar-se.
Contaram-lhe a minha história e queixou-se de que ainda não me tivessem apresentado.
No dia seguinte, os criados que tratavam de mim lavaram-me, pentearam-me e cuidaram de apurar-me o mais possível; depois de me ensinarem a andar e a cumprimentar, pediram para mim uma audiência.
A resposta foi que a visita ficava para o dia seguinte depois da missa.
Dormi mal essa noite e contaram-me depois que tinha levado toda a noite a sonhar com a velha senhora. Aproximava-me dela e pedia que me perdoasse o que quer que fosse.
Realizou-se finalmente a apresentação.
Sentada numa grande poltrona, deparou-se-me uma velhinha magra. Fez-me vários sinais com a cabeça e, para me ver melhor, pôs os óculos.
Vi que não lhe tinha agradado nada. Para ela eu era uma criatura completamente selvagem, sem saber fazer uma reverência, sem saber beijar a mão. A tia interrogou-me, mas eu mal lhe respondi. E quando me interrogou a respeito de meu pai e de minha mãe, comecei a chorar. Descontente com a minha grande sensibilidade, procurou no entretanto consolar-me, dizendo que tivesse confiança em Deus. Perguntou-me quando é que tinha ido à igreja pela última vez. E, como eu não compreendia muito bem por isso que a minha educação religiosa tinha sido muito descurada, ficou admiradíssima. Mandou-se chamar a princesa, discutindo-se o caso em conselho, resolvendo-se que me levariam à missa no domingo seguinte. A tia prometeu rezar por mim até então; entretanto deu ordem para que me levassem, porque, dizia ela, eu deixava após mim uma impressão dolorosa. Não era isto para admirar.
Nesse mesmo dia, mandou dizer que eu fazia muita bulha e que de toda a parte me ouvia; ora, em todo o dia, eu nem me tinha mexido. Era claro que a velha não gostava de mim. No dia seguinte, fizeram-me a mesma observação. Depois aconteceu-me deixar cair uma chávena e quebrá-la. A governanta francesa e os criados ficaram muito pesarosos. Levaram-me então, para brincar, para o quarto mais afastado.
Eis a razão por que eu me sentia mais feliz, vagueando pelas salas de baixo; ao menos sabia que ali não incomodava ninguém.
Um dia achando-me só numa das salas, ocultei o rosto nas mãos e comecei a pensar.
Pensava, pensava sempre. O meu espírito, ainda pouco desenvolvido, não atinava com aquela mágoa, que se me tornava cada vez mais insuportável. De repente, uma voz meiga perguntou-me:
— Que tens, pobre pequena?
Levantei a cabeça: era o príncipe que estava diante de mim. O seu rosto traduzia uma grande comiseração. Olhei para ele com um ar dolorosamente afetado e os olhos encheram-se-me de lágrimas.
— Pobre órfã! — disse ele, afagando-me os cabelos.
— Não! Não! Órfã, não! — exclamei, gemendo.
Levantei-me, peguei-lhe na mão, beijando-lha e molhando-lha com as minhas lágrimas e continuei com voz suplicante:
— Não! Não! Órfã, não!
— Minha filha, que tens tu? Minha lindinha, minha pobre Netotchka, mas que tens tu?
— Onde está a minha mamã? Onde está a minha mamã? — exclamei, soluçando sem poder conter-me e caí de joelhos.
— Onde está a minha mamã? Diz-me onde está a minha mamã?
— Perdoa-me, minha filha! E eu que lha fui lembrar. Que fiz eu? Anda comigo, Netotchka.
Pegou-me na mão e saímos.
O príncipe estava muito comovido. Entrámos numa grande sala, como ainda não tinha visto outra igual. Era uma capela. Estava escuro. A luz das lâmpadas refletia-se nos ornatos dourados e nas pedras preciosas das imagens santas. Os santos desenhavam-se a negro sobre um fundo de ouro deslumbrante. Aquela sala não se parecia nada com os outros aposentos da casa; tudo ali era misterioso e solene.
O príncipe mandou-me pôr de joelhos diante da imagem da santíssima Virgem, ajoelhou-se ao pé de mim e disse-me baixinho:
— Reza, minha filha! Rezaremos juntos!
Mas eu não podia rezar, tanto era o medo que tinha.
O príncipe acabava de repetir-me as mesmas palavras que meu pai me dissera diante do corpo inanimado de minha mãe. Tive uma crise nervosa e foi preciso levarem-me para a cama.
Capítulo 3
Estava eu outra vez doente, quando uma manhã me soou aos ouvidos um nome conhecido. Era o nome de Schurmann. Alguém da casa o pronunciava junto do meu leito. Estremeci, ao ouvir aquele nome e tanto cismei nele, que cheguei a delirar.
Acordei muito tarde. Em volta de mim estava tudo escuro. A lamparina apagara-se e a criada que estivera a fazer-me companhia havia-se ausentado. De súbito ouvi os sons melodiosos de uma música, ao longe. For vezes, essa música cessava de todo tornando depois a começar e parecendo aproximar-se. Apoderou-se de mim uma extraordinária comoção. Levantei-me, vesti-me à pressa (nem sei como tive forças para isso) e saí do quarto às apalpadelas.
Atravessei dois aposentos desertos. Cheguei ao corredor. Ouvia-se então já a música mais distintamente. Uma escada muito iluminada conduziu-me às salas do rés do chão. Ouvi passos e escondi-me num canto; depois o ruído cessou e penetrei noutro corredor. A música vinha dum aposento contíguo, onde se ouvia um sussurro de conversação, como se ali estivessem milhares de pessoas. Uma das portas daquela sala estava encoberta por um duplo reposteiro de veludo vermelho. Levantei uma das pontas desse reposteiro e escondi-me por trás dele. O meu coração pulsava com tanta violência, que mal podia ter-me em pé. Decorreram alguns momentos. Consegui dominar a minha agitação e levantei uma ponta do segundo reposteiro. Meus Deus! Era o vasto e lúgubre salão, onde dantes tanto medo tinha de entrar; estava então iluminado por milhares de luzes. Parecia-me que estava mergulhada num mar de claridade! Os meus olhos habituados ao escuro não podiam suportar uma luz tão intensa.
Banhavam-me o rosto um ar quente e um ambiente perfumado. Moviam-se em todas as direções um grande número de pessoas. Todos me pareciam muito alegres; as senhoras ostentavam trajos esplêndidos; via todos os olhos a brilharem de satisfação. Sentia-me maravilhada. Parecia-me ter já visto aquilo em sonhos. Lembrei-me ao mesmo tempo do sótão, ao cair da noite; a alta janela donde se avistava a rua, lá em baixo, com os candeeiros acesos, depois as janelas da casa com cortinas vermelhas, as carruagens paradas diante da escadaria, o relinchar dos cavalos, os gritos, as sombras passando por trás dos vidros e a música ao longe... Eis onde estava esse paraíso! Eis onde eu queria ir com meu pobre pai... Não era um sonho... Não! Mas fora assim que eu o vira nos meus sonhos!... A minha imaginação, sobre-excitada pela doença, estava em fogo, e, num transporte inexplicável, comecei a chorar. Com a vista procurei meu pai e pensei, de mim para mim:
— Deve estar aqui! Está aqui!...
Com esta esperança, o meu coração começou a pulsar mais agitadamente. Senti que me faltava a respiração. No entretanto, a música cessa e no enorme salão ouço como que um murmúrio de admiração.
Com os olhos muito abertos, miro todos aqueles rostos que passam diante de mim, mas sem conhecer ninguém. Produz-se então um movimento extraordinário.
Um velho alto e magro sobe a um estrado magnificamente ornamentado. O seu rosto é pálido, mas sorridente. Cumprimenta com acanhamento para todos os lados. Tem na mão um violino. Faz-se logo um silêncio profundo, religioso, parecendo até que todos sustêm a respiração.
Todos os olhos se fitam no velho.
De repente, as cordas estremecem e vibram sob o arco.
Apodera-se de mim uma angústia terrível. Ouço com todas as forças da minha alma. Parece-me ter ouvido já uma vez os sons que me impressionam os ouvidos. A voz do instrumento avigora-se, multiplica-se, sobe, confunde-se em desesperados gemidos.
Dir-se-ia que se dirige suplicante à multidão e que também se me dirige, a mim... As minhas recordações despertam pungentes e dolorosas. Aperto os dentes para não gritar, agarro-me ao reposteiro para não cair. Torno a ver aquela noite em que meu pai...
Não me resta dúvida, ele tocou aquela mesma música. Não está morto, é ele que está ali, é o seu violino, cuja voz acaba de rasgar-me a alma...
— Pai! Pai!
Senti no meu cérebro como que um relâmpago.
— Ele está aqui! É ele! Está a chamar por mim! É o seu violino!...
Então, na sala estrugiram ruidosos aplausos; solto um grito agudo. Não posso conter-me... Levanto o reposteiro e entro correndo na sala.
— Papá! Papá! És tu? Onde estás? — exclamei.
Não sei como foi que cheguei até ao pé do velho. Todos se tinham afastado para me deixarem passar. Cheguei-me a ele com um grito frenético. Julgava ter tornado a encontrar meu pai!... De repente senti que me erguiam umas mãos compridas e magras. Fitavam-me uns olhos muito negros, parecendo que me queria queimar a chama desses olhos. Olhei para o velho.
— Não! Não era meu pai! Era o seu assassino!...
Capítulo 4
Que fatalidade fizera com que eu fosse encontrar Schurmann exatamente naquela casa, onde me tinham recolhido depois da pavorosa morte dos meus?
Perseguia-me acaso o destino, a mim, pobre criança, que apenas pedia que me deixassem viver e a quem o infortúnio tão cruelmente havia ferido já? Tanto havia sofrido já e tão poucas alegrias tinha conhecido, que me era lícito acreditá-lo.
Meu pai, pobre músico sem sorte e sem fortuna, não me pudera dar nenhuma dessas coisas que tornam aprazível a existência, mas ao menos tivera por mim bastante carinho.
De resto, toda a minha primeira infância fora angustiosa. Em vão tentaria lembrar-me de um único dia de felicidade. Daquela existência limitada às paredes de um quarto acanhado e baixo ficara-me na alma uma tristeza pungente.
Lembro-me do nosso quarto, de lamparina acesa num desvão diante das imagens dos santos, do leito onde dormia com minha mãe, do frio da noite e dos meus pesadelos de criança. É como se estivesse a ver a janelinha, lá em cima, que devia dar-nos sol e diante da qual o céu pardacento, cortado pelas linhas dos telhados, se estendia até ao infinito.
A nossa mobília compunha-se de um velho canapé forrado de oleado, estalado e sebento, de uma mesa de madeira ordinária, de duas cadeiras de palha e ainda de uma cómoda, com um pé de menos, do leito de minha mãe e de um biombo rasgado.
Que contraste com os esplendores do palácio que eu então habitava! Lembro-me do aspeto da nossa mísera habitação, à tarde, ao cair da noite. Pelo chão, trapos, garrafas partidas, utensílios de madeira. E, no meio de tudo aquilo, meu pai bêbedo, e minha mãe chorando.
Singular temperamento o de meu pai, daquele pelo menos que me serviu de pai, porque o meu não cheguei a conhecê-lo, e meu padrasto tinha casado com minha mãe, tinha eu apenas três anos.
Músico por vocação, foi um violinista de grande talento, mas a miséria e o álcool tinham-no feito resvalar pouco a pouco por esse declive fatal que tem por termo a loucura.
Foram a ambição e a consciência do seu valor artístico que o levaram a Petersburgo. Ali, não pudera renunciar ao hábito de beber, sentira que ia declinando e não pudera sobreviver à ruína do seu talento.
Casara com minha mãe, resignada, mártir, na esperança de que os mil rublos, que ela tinha de dote e que lhe vinham do primeiro marido, bastariam para dar-lhe, a ele, a independência necessária para continuar a sua carreira artística. E no entretanto, durante os oito anos que viveu com ela, mal chegou a pesar no violino. O seu talento, por falta de prática e de estudo, não lhe permitia já a aspirar senão a colocar-se como segundo violino em qualquer teatro. Mas não lhe estava no génio aceitar nada que fosse secundário.
Era em minha mãe que ele se vingava da sua decadência. Atribuía-lhe, a ela, a causa da nossa pobreza e de tal maneira se deixou dominar pelo vício, que por fim perdeu a razão.
Jurara não tornar a pegar no violino antes da morte de sua mulher. E cumpriu a sua palavra. Não tornou a pegar no violino senão no dia em que minha mãe morreu; e pegou-lhe, porque esse Schurmann, esse velho que eu acabava de ouvir tinha ido a Petersburgo, e ele tinha ciúmes da glória desse músico.
E foi quando quis tocar aquele trecho, triunfo de mestre, que, ao sentir-se vencido, enlouqueceu, e eu fiquei órfã.
Capítulo 5
Um dia, no segundo e último período da minha doença, ao abrir os olhos, vi a cabeça de uma criança debruçada sobre mim. Era uma menina da minha idade: o seu primeiro impulso foi estender para mim a mão. Quando olhei para ela, a minha alma teve um grato pressentimento de felicidade. Imagine-se um pequenino rosto, idealmente belo, de uma beleza deslumbrante, uma dessas criaturas diante das quais paramos enternecidos, confusos, em êxtase, e a quem ficamos gratos por existirem, porque o seu olhar se pousou em nós ou simplesmente porque essa criatura passou perto de nós. Era Katia, a filha do príncipe, que chegara de Moscovo. Sorria, contemplando todos os meus movimentos, e os meus nervos enfraquecidos sentiam-se com isso deliciosamente impressionados.
A princesinha chamou o pai que, a dois passos, estava falando com o médico.
— Ah, finalmente! Graças a Deus! Graças a Deus! — disse o príncipe, pegando-me na mão com um ar satisfeito.
E prosseguiu, falando rapidamente, como tinha por costume:
— Estou contente! Estou contente! Estou muito contente! E aqui está a Katia, minha queridinha! Quero que fiquem conhecendo-se! Tens agora uma amiga! Põe-te boa depressa, Netotchka! Sempre és muito má! Que susto tive por tua causa!
O meu restabelecimento foi muito rápido. Passados alguns dias, já passeava no meu quarto. Todas as manhãs, Katia aproximava-se da minha cama, sorrindo; a sua vinda era para mim uma felicidade. Desejava imenso beijá-la. Mas a travessa criança tinha tanta vida, que não podia estar quieta um só instante.
Correr, saltar, fazer bulha, e toda a casa, tudo isto parecia tornar-se-lhe absolutamente indispensável. Assim, declarou-me logo ao primeiro dia que se aborrecia no meu quarto, que raras vezes lá iria e que só o faria por ter dó de mim e isso mesmo porque não podia deixar de ser. Mas, quando eu estivesse restabelecida, a nossa situação havia de melhorar. E, todas as manhãs, a sua primeira pergunta era:
— Então, já estás boa?
E, ao ver o meu rosto pálido e afinado, o meu sorriso acanhado, a princesinha carregava o sobrolho, meneava a cabeça e, despeitada, batia com o pezinho no chão.
— Então não te recomendei ontem que estivesses melhor? O quê? Não te dão bastante de comer?
— Sim, dão-me pouco! — respondi, intimidada, porque já me sentia envergonhada diante dela. Desejava ardentemente ser-lhe agradável; media todas as palavras que lhe dirigia. Todos os dias mais e mais me regozijava ao vê-la aparecer. Seguia-a constantemente com os olhas. E, quando ela se retirava, continuava a olhar, maravilhada, para a porta por onde ela tinha saído. Figurava nos meus sonhos. E, durante o dia, quando ela estava ausente, fantasiava conversações, com ela, tornava-me amiga dela, brincava, fazia travessuras, chorava com ela quando ralhavam connosco, numa palavra pensava nela continuamente, como se estivesse namorada dela. Desejava ardentemente curar-me e engordar o mais depressa possível, como ela queria.
Quando Katia me aparecia pela manhã e me dizia logo: — Então que é isso? Ainda não estás boa! Ainda estás magra! — tremia, como uma criminosa. E contudo, era sincero o espanto de Katia, ao verificar que vinte horas não tinham sido o suficiente para a minha cura e acabava por mostrar-se seriamente agastada contra mim.
— Olha lá, queres que te traga logo um bolo? — disse-me um dia. — O que precisas é comer para engordares mais depressa!
— Pois traz! — respondi muito satisfeita, lembrando-me de que tornaria a vê-la.
Depois de informar-se da minha saúde, a princesinha sentava-se habitualmente numa cadeira diante de mim e fitava-me com os seus olhos muito negros. Até, ao princípio, quando estávamos a travar conhecimento uma com a outra, olhava muito para mim com um espanto cheio de ingenuidade. A conversação não prosseguia. Os repentes de Katia intimidavam-me, embora eu morresse de desejos de falar-lhe.
— Mas porque é que não dizes nada? — começara Katia depois de estar calada alguns instantes.
— Que faz o teu papá? — perguntei satisfeita por ter achado alguma coisa que dizer.
— Nada! O papá vai bem! Hoje bebi duas chávenas de chá em vez duma. E tu, quantas bebeste?
— Eu bebi só uma.
Novo silêncio.
— O Fallstaff quis morder-me.
— É algum cão?
— É um cão, é. Ainda não o viste?
— Já vi, já.
E, como eu já não soubesse o que havia de responder, a princesinha pôs-se a olhar para mim muito admirada.
— Diz-me, gostas quando estou a conversar contigo?
— Gosto muito. Vem ver-me mais a miúdo.
— A verdade é que me disseram que havias de gostar de ver-me. Mas é preciso que te levantes daqui a pouco tempo. Deixa estar que ainda hoje te hei de trazer um bolo... Mas por que motivo não dizes nada?
— Não é por coisa nenhuma.
— Naturalmente, estás sempre a pensar.
— É verdade, penso muito.
— Pois a mim dizem-me que falo muito e que penso pouco. É então mau nós falarmos?
— Não! Eu gosto quando tu falas.
— Hum! Hum! hei de perguntar à senhora Leotardo. Ela sabe tudo... E em que é que tu pensas?
— É em ti que penso! — respondi, passado um momento de silêncio.
— E divertes-te com isso?
— Divirto, sim.
— Então és minha amiga?
— Sou.
— Pois eu ainda não gosto de ti, és tão magra! Espera. Logo te trago um bolo! Olha, adeus.
E a princesinha, abraçando-me quase de fugida, desapareceu.
Depois do jantar, chegou o bolo. A princesinha entrou muito depressa, a rir, muito satisfeita por me trazer o alimento que me proibiam.
— Come bem, come muito! É o meu bolo! Nem lhe toquei. Olha, adeus.
Quase que nem tive tempo de vê-la. Um outro dia entrou também muito depressa.
Os seus cabelos pretos, em anéis, estavam revoltos, como se o vento os tivesse sacudido. Tinha as faces muito vermelhas e os olhos a brilharem-lhe muito. Parecia que tinha andado a correr uma hora ou duas.
— Sabes saltar a corda? — perguntou ela, ofegante, com precipitação.
— Não — respondi eu, bastante pesarosa por não poder dizer que sim.
— Ah, tanto pior! Então eu te ensinarei quando estiveres melhor. Vim cá só para te fazer esta pergunta. Agora, estou a brincar com a senhora Leotardo. Até depois, que estão à minha espera.
Capítulo 6
Por fim levantei-me da cama, ainda que muito combalida. A minha primeira ideia foi nunca me separar de Katia. Qualquer coisa me atraía para ela, invencível; não cansava de olhá-la com grande espanto seu. A minha simpatia por ela tornava-se tão calorosa, este sentimento dominava-me de tal maneira, que ela não podia deixar de reparar nele, o que lhe parecia caso estranho. Recordo-me de que uma vez, enquanto brincávamos, não podendo resistir a esse movimento, lhe saltei ao pescoço e beijei-a. Desligou-se do meu braço, tomou-me as mãos e, encrespando a testa, como que envergonhada, perguntou-me:
— Que fazes? Porque me beijas?
Retive-me, confusa como uma criminosa. Estremeci àquela pergunta feita de chofre e não respondi. A princesinha encolheu os ombros, em sinal de perplexidade profunda (gesto que nela era um hábito). Cerrou com ar grave os pequeninos e grossos lábios, deixou de brincar e sentou-se num ângulo do divã, reflexiva e como tentando resolver-se a uma nova pergunta que se esboçava no seu espírito. Era costume seu quando alguma coisa a embaraçava. Custou-me a habituar a essas bruscas manifestações do seu caráter.
A princípio acusava-me, temia que houvesse uma grande singularidade nos meus hábitos e, simultaneamente, caía num grande pesar e numa grande admiração. Porque não agradaria imediatamente a Katia e me tornaria sua amiga. Este insucesso desgostava-me deveras e estava pronta a chorar a cada palavra dela, & cada olhadela desconfiada que me lançava. O meu desgosto aumentava de dia para dia, de hora para hora, até porque com Katia as coisas caminhavam muito depressa. Alguns dias depois, notei que não me estimava, sentindo até uma espécie de repulsão. Tudo naquela criaturinha era repentino; outrem diria brutal, se os movimentos do seu caráter reto, espontâneo como o raio e ingenuamente sincero, não tivessem uma espécie de graça nobre. Comigo, principiou pela dúvida e acabou pelo desprezo, porque, suponho, não sabia brincar com o que ela brincava. A princesinha gostava de divertir-se, de correr; era forte, viva, esperta, enquanto eu era exatamente o contrário. Combalida ainda em consequência da doença, calma e pensativa, a brincadeira não me distraía. Numa palavra: tudo me faltava para agradar a Katia. Demais eu não podia suportar a ideia de que alguém estivesse descontente comigo: tornava-me logo triste; desanimava e nem sequer me restavam forças para reparar a minha falta e para modificar em meu favor a má impressão que causara. Sentia-me completamente perdida. Katia não devia compreender isto. Depois de uma hora de esforço para me ensinar a saltar a corda, nada conseguia. E como me tornava tão triste, que as lágrimas me rebentavam, Katia observava-me por duas ou três vezes, sem chegar a concluir as suas reflexões a meu respeito; abandonava-me e punha-se a brincar sozinha, não me chamando e não me falando durante dias inteiros. Este desprezo tornava-se-me insuportável. Esta nova solidão era-me mais custosa ainda do que a outra; recaía em profunda tristeza e em grande meditação, e de novo negros pensamentos me entenebreceram a coração.
Capítulo 7
A senhora Leotardo, a quem cumpria a tarefa de nos observar, depressa notou essa mudança nas nossas relações e como eu estava sempre abandonada, a minha forçada solidão atraiu-lhe a atenção. Dirigiu-se à princesinha e ralhou-lhe por não saber ser amável para comigo. A pequena desencrespou a fronte, encolheu os ombros e declarou que não sabia como proceder para comigo, porque eu não sabia coisa alguma e estava sempre com o pensamento noutra parte. Preferia esperar por seu irmãozinho Sacha que devia chegar de Moscovo a fim de brincar com ele. A senhora Leotardo não se conformou com aquela resposta; fez-lhe notar que ainda estava convalescente, que não podia estar esperta e alegre como ela, que eu o era até demais; lembrou-se que cometera tal e tal falta; que deis dias antes o bulldog estivera para dar cabo dela. Finalmente, a senhora Leotardo ralhou-lhe sem piedade e acabou por mandá-la para junto de mim, com ordem expressa de fazermos as pazes.
Katia escutara a francesa com a máxima atenção, como se de facto reconhecesse alguma coisa de novo e de justo neste raciocínio. Deixando o arco com que b inçava na sala, acercou-se de mim e, séria e admirada, perguntou:
— Quer brincar?
— Não! — respondi, receando por mim e por Katia as censuras da senhora Leotardo.
— Que quer então?
— Descansar! Não posso correr. Não esteja zangada comigo, Katia, porque eu gosto muito de si.
— Então vou brincar sozinha! — disse ela com meiguice e lentamente surpreendida de não se ver culpada. — Então adeus! Eu não estou zangada consigo!
— Adeus!... — repliquei eu, erguendo-me e apertando-lhe a mão.
— Talvez queira que nos beijemos! — fez ela, após curta reflexão, lembrando-se provavelmente da cena anterior e desejosa para acabar mais depressa com aquilo de me agradar.
— Como quiser — retorqui eu, com tímida esperança.
Ela aproximou-se e, muito gravemente, sem um sorriso, beijou-me.
Tendo assim cumprido o que esperava dela e tendo até feito mais para se tornar agradável a uma pobre pequena para quem a mandavam, fugiu do meu quarto, alegre e satisfeita e depressa toda a casa ficou cheia com os seus cristalinos risos e gritos. Fatigada por fim e ofegante, deitou-se sobre um divã para descansar e recuperar novas forças. Olhou para mim toda a noite com uma espécie de desconfiança. Via-se que queria dizer-me qualquer coisa para tentar decifrar este enigma. Mas ainda desta vez se reprimiu.
Em geral, as lições de Katia principiavam de manhã. A senhora Leotardo ensinava-lhe francês; este estudo consistia apenas num pouco de gramática, seguida de uma leitura nas fábulas de La Fontaine.
Não a forçavam, porque não conseguiam retê-la duas horas seguidas, tranquila no trabalho. Consentia nesta combinação, a pedido do príncipe seu pai, e por ordem de sua mãe submetia-se a isso conscienciosamente, tendo mesmo empenhado a sua palavra. Muito inteligente, compreendia com grande facilidade e retinha tudo quanto lhe ensinavam. Mas isto tinha também as suas extravagâncias; quando não aprendia uma coisa, refletia seriamente, sem perguntar coisa alguma, o que a faria envergonhar. Passava dias inteiros sozinha, entregue a uma questão sem que que pudesse resolvê-la, irritando-se por não a poder discernir sozinha.
Em caso extremo, quando já estava exausta, ia ter com a senhora Leotardo pedir-lhe a solução que procurava.
Era assim para tudo. Tinha já refletido muito, se bem que ninguém tivesse dado por isso. Mas era ao mesmo tempo, mais ingénua do que devia ser na sua idade. Acontecia-lhe por vezes dizer tolices; outras, porém, as suas respostas revelavam uma astúcia e uma finura extremas.
Capítulo 8
Quando, por fim, eu podia começar a ocupar-me em alguma coisa, a senhora Leotardo fez-me um exame para ver que tal iam os meus estudos; achou que lia muito bem, mas que escrevia pessimamente. Julgou de extrema necessidade que eu aprendesse francês. Não fui contrária a isso e uma bela manhã encontrei-me sentada ao pé de Katia, na mesa das lições.
Nesse dia — parecia propositado — Katia estava estúpida e distraída; a senhora Leotardo estranhava-a. Por meu lado, numa única lição, aprendera todo o alfabeto francês, aplicando-me o mais possível para dar prazer à governante. No fim da lição, a senhora Leotardo zangou-se seriamente com Katia.
— Ponha ali os olhos — dizia ela, indicando-me. — Uma criança que dá a sua primeira lição e que está mais adiantada do que a menina. Não se envergonha?
— Está mais adiantada do que eu? — perguntou a princesinha, estupefacta. — Mas ela ainda agora está no alfabeto!
— Muito bem: e quanto tempo levou a menina para aprendê-lo?
— Três lições!
— Pois bem: Netotchka aprendeu-o numa única lição. Por conseguinte, estuda três vezes mais do que a menina e há de passar-lhe adiante. Não é assim?
Katia refletiu e corou ao compreender que a observação da senhora Leotardo era justa.
Corar, tornar-se vermelha de vergonha, era a sua maneira de manifestar o despeito que sentia em todos os seus insucessos. Desta vez, saltaram-lhe as lágrimas. Calou-se, limitando-se a olhar-me como que querendo fulminar-me. Calculei logo do que se tratava. A pobre criança tinha um orgulho e um amor-próprio extraordinários. Ao deixar a senhora Leotardo, quis falar a Katia para lhe dissipar o seu despeito ou, pelo menos, mostrar-lhe que eu não era responsável pelos ralhos da francesa. Katia, porém, fingiu não me ouvir e nada respondeu. Uma hora depois entrou no quarto onde, com o livro aberto diante de mim, pensava nela; sentia-me desgostosa por se haver recusado a falar-me. Ao entrar, a princesinha olhou-me de soslaio e, como de costume, sentou-se no divã e observou-me durante meia hora seguramente. Não me podendo conter por mais tempo, interroguei-a com a vista.
— Sabe dançar? — perguntou Katia.
— Não, não sei.
— Eu sei!
Pausa.
— Sabe tocar piano?
— Também não!
— Pois eu sei, e é muito difícil de aprender.
Não respondi.
— A senhora Leotardo pretende que a menina é mais inteligente do que eu.
— A senhora Leotardo está zangada consigo! — repliquei eu.
— E o papá também se zangará comigo?
— Não sei.
Nova pausa.
A princesinha bateu com o seu pequenino pé no sobrado, com impaciência.
— Ainda em cima troça de mim, por compreender mais facilmente do que eu! — retorquiu ela, não podendo, por mais tempo, conter o seu despeito.
— Oh! Não, não! Isso não! — exclamei eu, levantando-me para a tomar nos meus braços.
— Pois quê? Não se envergonha de pensar assim e de confessá-lo, princesa? — disse a senhora Leotardo.
A boa criatura havia cinco minutos que estava ali a ouvir a nossa conversa.
— Devia ter vergonha! Tem ciúmes desta criança e gaba-se na sua presença de saber dançar e tocar piano. Que vergonha! Eu contarei isto ao príncipe.
A pequena corou.
— É um mau sentimento. As suas perguntas ofenderam Netotchka, cujos pais eram de gente pobre e não tinham meios para pagar os seus professores. Aprendia sozinha porque era inteligente e tinha bom coração. Devia estimá-la e não melindrá-la! É vergonhoso! É vergonhoso! Bem sabe que ela é órfã. Não tem ninguém. Demais a menina é princesa e Netotchka não o é. Deixo-a só. Pense no que lhe acabo de dizer e trate de emendar-se.
Capítulo 9
Katia refletiu durante dois dias. Durante dois diais deixou de rir e de brincar. Quando eu acordava de noite, ouvi-a continuar em sonhos a sua conversa com a senhora Leotardo. Chegou a emagrecer e as faces perderam aquelas cores vivas. Por fim, ao terceiro dia, encontrámo-nos na sala grande. Katia saía do quarto da mãe. Ao avistar-me, deteve-se e sentou-se defronte de mim. Eu esperava, trémula e apavorada, o que ia passar-se.
— Netotchka, porque é que me ralharam por sua causa? — perguntou ela por fim.
— Não foi por minha causa, Katenka — retorqui eu, apressando-me a desculpar-me.
— A senhora Leotardo disse que eu a ofendi.
— Não, Katenka, não; não me ofendeu.
A princesa encolheu os ombros em sinal de perplexidade.
— Nesse caso porque chora? — acrescentou, após uma pausa.
— Não chorarei, visto que assim o quer — disse eu entre lágrimas.
Tornou a encolher os ombros.
— Doravante chorará?
Calei-me.
— Porque vive em nossa casa? — perguntou de repente, após um silêncio.
Olhei-a estupefacta, como se qualquer coisa me tivesse dilacerado o coração.
— Porque sou órfã — respondi, chamando a mim todas as forças.
— Não tinha um papá e uma mamã?
— Tinha.
— Estimavam-na?
— Não... sim — balbuciei.
— Eram pobres?
— Eram.
— Muito pobres?
— Sim.
— Não lhe ensinaram coisa alguma?
— Ensinaram-me a ler.
— Tinha brinquedos?
— Não.
— Bolos?
— Não.
— Quantos quartos tinha?
— Um só.
— Um quarto só?
— Um quarto só.
— E criados, tinha?
— Não, não tínhamos criados.
— Quem os servia?
— Era eu mesma quem ia aos recados.
As perguntas da princesinha esfacelavam-me o coração. As recordações que despertava em mim, o seu espanto, tudo isso me magoava, me ofendia, me fazia mal. Estava trémula; os soluços sufocavam-me.
— Ficou contente por vir morar connosco?
Não respondi.
— Tem algum vestido bonito?
— Não.
— E feio?
— Tenho.
— Vi o seu vestido; mostraram-mo.
— Então porque me fez essa pergunta? — arrisquei eu, presa de uma sensação nova de indignação, e levantando-me. — Porque me pergunta isso? — repeti, vermelha de cólera. — Porque troça de mim?
Katia corou e levantou-se também. Depressa, porém, dominou a sua perturbação.
— Não... não troço de si. Queria apenas saber se seus pais eram pobres.
— Porque me interroga a respeito de meu papá e de minha mamã? — fiz eu, chorando. — E porque me interroga de tal modo? Que tem com o que fossem meus pais, Katia?
Ela ficou confusa, não sabendo que resposta dar-me.
Nesse momento entrou o príncipe.
— Que tens tu, Netotchka — me perguntou, vendo-me lacrimosa. — Que tens tu? — insistiu olhando para Katia, cujas faces estavam afogueadas. — De que falavam? Porque se zangaram? Porque se zangaram, Netotchka?
Eu não podia responder. Tomei a mão do príncipe, beijei-a e cobri-a de lágrimas.
— Katia, conta-me a verdade. Que se passou?
Katia era incapaz de mentir.
— Disse que tinha visto o feio vestido que ela antigamente usava em casa dos pais.
— Quem to mostrou? Quem se atreveu a mostrar-to?
— Fui eu mesma que o vi! — respondeu Katia com firmeza.
— Está bem! Sei, conheço-te, tu não denunciarás ninguém. E depois?
— Começou a chorar, dizendo que eu troçava do seu papá e da sua mamã.
— Nesse caso é porque realmente troçaste!
Apesar de Katia não ter troçado, eu compreendi logo que era essa a sua intenção. Nada respondeu, sinal que confirmava.
— Vai já ter com ela e pede-lhe perdão! — ordenou o príncipe, apontando para mim.
A princesinha, branca como cal, não se mexeu.
— Então! — insistiu o príncipe.
— Não, não quero! — respondeu Katia em voz baixa, mas com tom resoluto.
— Katia!
— Não, não quero! Não quero! — retorquiu ela de repente, com os olhos brilhantes e batendo o pé. — Não quero pedir perdão, papá. Não gosto dela. Não quero viver com ela! A culpa não é minha. Está sempre a chorar. Não quero! Não quero!
— Anda daí! — Tomou-a por um braço e levou-a para o escritório. — Netotchka, vai para o teu quarto.
O meu desejo era ajoelhar-me diante do príncipe, pedir-lhe perdão para Katia; mas a ordem do príncipe foi repetida tão perentória e serenamente, que me fui embora gelada de terror, como morta.
Capítulo 10
Voltando para o meu quarto, deixei-me cair sobre o divã e ocultei a cabeça nas mãos. Contava os minutos esperando Katia com impaciência.
Queria lançar-me a seus pés. Por fim, apareceu sem proferir palavra, passou perto de mim e sentou-se a um canto. Tinha os olhos vermelhos, as faces cheias de lágrimas. As minhas resoluções desapareceram. Espantada, olhava para ela sem me mexer.
Acusava-me com todas as minhas forças, tentava persuadir-me de que era a culpada de tudo. Umas poucas de vezes tentei aproximar-me de Katia, mas detive-me não sabendo como seria recebida. Assim se passou o dia todo e depois outro. No fim do segundo dia, Katia tornou-se mais comunicativa e fez rolar o arco em volta do quarto, mas depressa deixou de brincar e meteu-se a um canto. Antes de se deitar, voltou-se de repente para mim, deu dois passos para o lugar em que eu estava e os seus pequeninos lábios moveram-se como que para falar, mas deteve-se e deitou-se. Decorreu novo dia e a senhora Leotardo, admirada, lembrou-se de perguntar-lhe porque andava assim. Aquele súbito sossego podia muito bem ser a manifestação de alguma doença. Katia respondeu evasivamente e tomou as suas cordas, mas assim que a senhora Leotardo virou costas, corou e desatou a chorar. Fugiu do quarto para que não a visse. Por fim, três dias depois desta zanga, veio ter comigo e disse-me timidamente:
— O papá ordenou-me que viesse pedir-lhe perdão; está disposta a perdoar-me?
Agarrei-lhe vivamente as mãos e sufocada pela comoção disse-lhe:
— Sim, sim!
— O papá ordenou-me que a beijasse; quer que nos beijemos?
Sem dizer palavra, pus-me a beijar-lhe as mãos, molhando-as de lágrimas.
Erguendo os olhos para a princesinha, notei nela estranhos movimentos. Os seus pequeninos lábios agitavam-se numa ligeira tremura, o seu queixo mexia-se, os seus olhos negros humedeciam-se, mas, um momento depois, tornava-se senhora da sua comoção e um sorriso lhe aflorou os lábios.
— Vou dizer ao papá que a beijei e lhe pedi perdão — disse ela em voz baixa como se pensasse alto.
— Há três dias que não lhe ponho a vista em cima; proibiu-me que fosse ter com ele enquanto não lhe tivesse obedecido.
Dizendo isto, desceu, trémula, pensativa, não sabendo que acolhimento lhe faria o pai.
Mas, uma hora depois, ouviu-se em cima um grande ruído, gritos, risadas ou latidos de Falstaff; quebrou-se qualquer coisa, espalharam-se alguns livros pelo chão, o arco rolou pelo sobrado e compreendi que Katia se reconciliara com o príncipe.
O meu coração estremeceu de contentamento.
Contudo não se acercava de mim, parecia evitar as ocasiões de me falar. Em compensação eu tinha a honra de excitar a sua curiosidade ao mais alto grau. Muitas vezes sentava-se defronte de mim para me examinar. Estes exames à minha pessoa tornaram-se cada vez mais ingénuos. Numa palavra, menina-bonita que toda a gente amimava e acariciava como um tesouro, não podia compreender a razão porque me encontrava a cada passo no seu caminho, quando ela tanto tentava afastar-me. Mas tinha um coração meigo e bom que devia sempre tomar pelo melhor caminho, pelo simples instinto da sua generosa índole. A única pessoa que tinha influência sobre ela era o pai, a quem adorava. A mãe amava-a loucamente, mas era muito severa para com ela e fora com a mãe que aprendera o orgulho, a teimosia, a obstinação. Contudo suportava todos os caprichos e até a tirania da princesa; esta tinha uma estranha compreensão da educação, e a de Katia oferecia as mais singulares alternativas de absoluto desmazelo e excessivo rigor. O que ontem era permitido, era proibido hoje, sem motivo justificado. A criança sentia-se irritada nos sentimentos de justiça... Mas depois voltarei a este assunto. Notarei aqui simplesmente que Katia sabia variar a sua atitude conforme tratava com o pai ou com a mãe. Com ele mostrava-se natural, franca, expansiva e sincera; com ela, exatamente o contrário, reservada, desconfiada, obediente à força, não por intenção. De resto, devo dizer para honra da minha Katia, que ela chegou a compreender a princesa, que se lhe submetia assim que se compenetrava na grandeza do amor maternal, que, por vezes, ia até ao desvaira mento. A criança descontava generosamente aquele excesso.
No entanto, eu não compreendia o que se passava em mim. Todo um mundo de inexplicáveis sensações me agitavam o íntimo. Por fim, à custa de sofrimentos e de reflexões, fui obrigada a reconhecer que estava enamorada da minha Katia.
Sim, era amor que eu sentia por ela, verdadeiro amor, com lágrimas de alegria e de desespero, um apaixonado amor. O que me atraía para ela? O que me fazia nascer semelhante sentimento? Ignoro-o. Sei que a amei de repente, que fiquei deliciosamente impressionada com o aspeto dessa criança, linda como um anjo. Os seus próprios defeitos não a depreciavam a meus olhos, pois que não dimanavam duma imperfeição da sua alma, mas sim da sua má educação.
Todos a admiravam e louvavam. E talvez que esta admiração lhe tivesse viciado o caráter.
Quando íamos passear juntas, os transeuntes paravam para melhor a ver.
Parecia que tinha nascido para ser feliz, assim como eu o parecia para a aflição.
O principal defeito, ou antes a grande qualidade da minha princesinha, era o seu orgulho. Tinha um amor-próprio muito especial. A contradição não a irritava, mas surpreendia-a, de tal modo se julgava superior a tudo.
Era-lhe difícil admitir que não pudesse ter sempre razão. Contudo, se lhe provava que o que ela queria fazer era injusto, submetia-se imediatamente.
Se logo de princípio não foi para mim a amiga que eu desejava, eu explico o facto por uma natural antipatia que estava fora de todo o raciocínio.
Capítulo 11
As nossas lições continuaram como antigamente e daí por diante ela não me ligou grande importância.
Os louvores que teciam à minha docilidade e à minha inteligência já não tinham o dom de melindrar o seu amor-próprio.
É verdade que buscava compensações, e se afeiçoava cada vez mais ao seu bulldog.
Falstaff era um cão sereno e fleumático, o que não o impediria de ser mau como um tigre, se o deixassem fazer tudo quanto quisesse.
Falstaff não gostava de festas e toda a gente parecia ser-lhe indiferente.
Em casa, tratavam-no com uma espécie de temor respeitoso. Tinha também a sua história.
Um dia, o príncipe trouxera consigo, depois de um passeio, um cão ordinário, feio e que causava dó. Todavia, era um cão de raça.
Ora, como a família vivia em casa de campo, aconteceu que o irmão de Katia, o pequeno Sacha, estando a brincar, caiu ao rio. A princesa estava lá e, louca de dor, quis salvar o filho. Foi com dificuldade que a retiveram. No entanto, Sacha, arrastado pela corrente, mantinha-se à tona de água, graças ao fato que envergava.
Apressaram-se a desarmar um bote. Tudo isto, porém, levava tempo. De repente, um grande bulldog lança-se à água, nada com vigor através da corrente e alcança o corpo da criança, que deposita triunfante na margem.
A princesa cobriu de beijos o animal ainda encharcado e cheio de lodo. Falstaff, que nessa época usava o prosaico e plebeu nome de Friksa, não suportava, como já disse, carícia alguma; respondeu a esses beijos enterrando os caninos agudos no ombro da juvenil senhora.
A princesa conservou, toda a sua vida, os sinais desta ferida, mas nem por isso deixou de consagrar ao cão uma afeição sem limites.
O cão, desde esse momento, foi o hóspede querido da casa. O príncipe, em atenção à sua voracidade e glutonaria fenomenal, batizou-o de Falstaff.
Lavaram-no, alimentaram-no o melhor que podiam, chegaram mesmo a dar-lhe uma pele de urso para se deitar e descansar.
Em resumo: Falstaff tornara-se o cão mais feliz do mundo. A sua índole naturalmente taciturna, porém, não se modificou com o seu novo estado.
Ficou indiferente a tudo e dava pouco apreço à sua rica coleira de prata.
Depressa se habituou à preguiça e gostava pouco de ter de desacomodar-se por causa dos importunos.
Katia às vezes fazia-o zangar para se divertir quando não tinha ninguém sobre quem pudesse fazer cair o seu mau humor. Além disso, a indiferença do cão encolerizava-a; não podia levar à paciência que houvesse em casa um ente que não se curvasse diante dela, que não reconhecesse a sua autoridade, que não a estimasse. Falstaff pouco se importava com isso e permanecia inflexível na sua arrogância.
Um dia, depois de jantar, como estivéssemos ambas juntas na sala, o bulldog deitou-se no meio da casa para digerir preguiçosamente a sua abundante refeição. Foi esse o momento que a princesa escolheu para o obrigar a obedecer. Cessou de brincar e foi, pé-ante-pé, prodigalizar a Falstaff os mais ternos nomes; atraiu-o a si com sinais e caminhou para ele com a máxima cautela. Falstaff, ainda longe, arreganhou os dentes. A princesa parou. A sua ideia era acercar-se do cão e de acariciá-lo um pouco, o que não permitia a qualquer outra pessoa além da princesa. Esta tentativa apresentava um sério perigo, porque Falstaff era incapaz de se deixar dominar e podia muito bem morder-lhe a mão ou rasgá-la, se fosse do seu agrado; era forte como um tigre.
Eu, muito inquieta e aterrorizada, seguia de longe todos os movimentos de Katia. Foi inutilmente que lhe supliquei que deixasse o cão sossegado; os próprios caninos do animal não a desviaram da sua ideia.
Calculando que não podia abordar de frente o cão, deu uma volta à roda dele. Falstaff não fez um movimento.
Katia deu segunda volta, apertando mais o círculo; e a seguir outra, ainda mais apertada. Quando chegou à distância que Falstaff julgava respeitável e sagrada, tornou a arreganhar os dentes.
A princesinha, despeitada, bateu o pé e afastou-se: veio sentar-se no divã para refletir. Dez minutos depois inventou uma nova sedução. Saiu e voltou com uma provisão de pãezinhos e pastéis. Mudara de tática. Falstaff permaneceu indiferente; naturalmente não tinha fome. Nem mesmo se deu ao trabalho de voltar o focinho para a gulodice que lhe haviam deitado, e quando Katia chegou novamente ao sítio que ele julgava inacessível, o cão manifestou uma oposição mais viva do que da primeira vez. Levantou a cabeça, arreganhou os caninos, rosnou surdamente e fez um leve movimento como que para saltar. A princesa corou de cólera, atirou o pastel e tornou a sentar-se. Estava deveras agitada; o seu pequenino pé batia nervosamente no tapete; as faces purpureavam-se-lhe e lágrimas de despeito saltavam-lhe dos olhos. Por fatalidade olhou para mim e o sangue mais lhe acudiu às faces. Deixou o divã e, com passo firme, encaminhou-se para o cão.
Decerto o espanto produziu um extraordinário efeito em Falstaff. Deixou que o inimigo franqueasse a terrível linha e, mal tinha dado dois passos, quando uma rosnadela surda acolheu a louca Katia. Parou um instante, um simples instante, para continuar, com decisão, a caminhar. Eu estava gelada de terror. A princesinha estava altamente excitada; o triunfo brilhava-lhe nos olhos. Desta cena ter-se-ia feito um lindo quadro. Afrontou corajosamente o furioso olhar do bulldog. Falstaff levantou-se: dos seus flancos peludos saiu uma rosnadela surda; um movimento mais e tê-la-ia despedaçado. Mas a princesinha passou orgulhosamente a mão pelo dorso e três vezes a seguir o acariciou. Durante alguns segundos, o bulldog ficou indeciso. Foi este o momento mais palpitante do drama; em seguida levantou-se, espreguiçou-se; e, desdenhando decerto vingar-se de uma criança, saiu tranquilamente da sala.
A princesa ficara senhora do campo de batalha. Lançou-me um olhar inexplicável, saturado e cheio de glória; eu estava lívida; ela notou-o e sorriu-se. Entretanto, uma palidez mortal lhe cobriu também as faces e, mal chegou ao divã, caiu sem sentidos.
Capítulo 12
A minha simpatia por Katia já não tinha limites. Mas a partir do dia em que, por causa dela, apanhei um grande susto, não me pude conter mais. Consumia-me de pesar. Bastantes vezes estive para a abraçar, mas o receio detinha-me. Fugia dela para que não notasse a minha perturbação.
Certo dia entrou no aposento em que eu me encontrava. A espigada criança notou a minha perturbação e ficou enleada, mas não se moveu.
Sofri assim durante um mês. Não trocámos uma palavra. Descobri que o pertinaz silêncio de Katia não era devido a esquecimento ou indiferença, mas simplesmente a uma afetada e bem determinada reserva. No entanto, não podia dormir e a própria senhora Leotardo dava pelo meu desgosto. O meu amor por Katia era ao mesmo tempo estranho e tomava agora o feitio de uma ofendida paixão.
Estava de tal maneira preocupada com estes acontecimentos e esta transformação, que esqueci o meu passado, completamente absorvida pela minha afeição e pela minha dor.
Levantava-me da cama, várias vezes, de noite e, aos calmos clarões da lamparina contemplava Katia entregue a um profundo sono. Pondo-me em bicos de pés e fazendo-me atrevida, depunha, trémula, um beijo na sua mão pequenina ou sobre os seus cabelos, e fugia apressadamente com receio de ser surpreendida.
Contudo Katia tornava-se mais irritável e mais inconstante do que nunca. Permanecia calada um dia inteiro e no dia seguinte estava alegre, ruidosa, parecendo querer deitar a casa abaixo.
Algum tempo depois, Katia, que nunca estivera doente, queixou-se de febre e foi instalada no quarto da mãe.
A princesa ficou muito inquieta com essa indisposição e, suponho, tornou-me responsável pelas desgraçadas mudanças, que se operavam na filha.
Havia já muito tempo que tinha ideia de me separar dela e já o teria feito, se não temesse a oposição do príncipe que bastantes vezes se mostrava inabalável nas suas resoluções.
Capítulo 13
Fiquei muito apoquentada por me ver tão de repente separada da minha princesinha e dei tratos à imaginação para perceber o motivo do seu desdém.
Certa manhã, à hora da lição, veio surpreender-me.
Nunca a vira tão alegre e esperta.
O dia passou-se em discussões, em loucas correrias, mas, ao anoitecer, a tristeza tornou-lhe.
Quando a mãe veio ter com ela, em vão se esforçou para parecer alegre. Assim que a princesa voltou costas, desatou a chorar.
A princesa, inquieta com estas bruscas mudanças, fez-nos vigiar atentamente pela senhora Leotardo, mas só eu compreendia o que se passava dentro de Katia.
Era o desfecho do nosso romance. Era, consoante eu esperava, uma reconciliação.
Via tudo isso nos mínimos pormenores e, contudo, não me atrevia a dar o meu primeiro passo.
Alguns dias depois, uma quinta-feira, a senhora Leotardo mandou que nos vestíssemos para passear.
Havia já muito tempo que não saíamos juntas.
Descemos com gravidade a escada da casa quando, num tom mais meigo do que o habitual, Katia se aproximou de mim e me disse:
— A fita do seu sapato está desatada. Deixe ver que eu lha arranjo.
Inclinei-me, corada que nem uma cereja, contente por ver que Katia acabara por me dirigir a palavra.
— Vamos, deixa ver! — acrescentou, meio impaciente, meio risonha.
Baixou-se, agarrou-me no pé, colocou-o sobre o joelho e deu o laço na fita do meu sapato.
Eu sufocava, sacudida por violenta comoção e perguntava a mim própria o que iria acontecer.
Levantando-se, examinou-me dos pés à cabeça, e disse:
— O seu pescoço está também descoberto — e tocou-me com o dedo mínimo a pele nua do meu pescoço. — Vou tapá-lo.
Não me recusei. Desatou-me o lenço e pô-lo a seu modo.
— Pode apanhar-se um resfriamento assim — continuou, sorrindo maliciosamente, e fixando em mim os seus olhos negros e brilhantes.
A alegria desvairava-me. Não sabia o que se passava em mim, nem em Katia. Felizmente o nosso passeio foi pouco demorado, pois de contrário tê-la-ia tomado nos braços e beijado, em plena rua.
Assim que anoiteceu, foi obrigada a descer para as casas de baixo porque a princesa recebia. Aí, de repente e sem causa aparente, Katia desmaiou.
Toda a casa ficou sobressaltada. O médico, chamado a toda a pressa, confessou que não percebia nada e atribuiu este acidente a um capricho de criança, como é de uso em casos idênticos.
Eu depressa soube o que tinha a pensar sobre o caso.
Durante o dia, Katia, impelida por um capricho qualquer, subiu a casa da velha tia. Esta, que de ordinário, recusava receber a sobrinha, a quem aborrecia cordialmente, consentira em recebê-la desta vez, e contra o seu costume, tornara-se amável para com ela.
A princípio tudo decorrera bem. Katia pedira perdão para todas as suas faltas e misericórdia para todos os seus pecados, acusando-se da sua turbulência, da sua leviandade, com uma gravidade tal, que comovera a velha até às lágrimas. A velha princesa, lisonjeada por esse facto, ia solenemente conceder-lhe a absolvição quando, através dos óculos, julgou que a pecadora troçava dela com o maior sangue-frio. Katia não chegou, na sua confissão, até declarar que tivera em mente, mas apenas em mente, é verdade, esconder Falstaff debaixo da cama da tia e pregar-lhe várias peças do mesmo género e também de mau gosto.
A velha corou de cólera. A pequenita dera uma gargalhada e fugiu o mais depressa possível. Isto, porém, não acabou assim. Cinco minutos depois, a princesa foi chamada pela tia e, durante três horas, houve uma terrível cena entre as duas mulheres com respeito ao recente escândalo de Katia.
Capítulo 14
A idosa senhora, não tendo conseguido a reparação que exigia, decidiu-se a deixar a casa no dia seguinte e infalivelmente.
Era preciso, de boa ou má vontade, apresentar desculpas à tia e prometer que Katia seria severamente castigada, logo que a sua saúde o permitisse.
Katia não pudera suportar esta ofensa e, como já disse, adoeceu.
No dia seguinte, depois de jantar, encontrei-a na escada, exatamente no momento em que abria a porta, chamando Falstaff.
Compreendi que projetava alguma vingança terrível à qual queria associar o bulldog, o inimigo natural da velha princesa.
Se Falstaff embirrava com a tia não era sem motivo. Desde que a velha princesa viera morar para casa do príncipe, Falstaff tivera que ceder-lhe o lugar e nunca mais transpor a escada que levava aos andares superiores: isto foi para ele uma insuportável proibição. Durante uma semana ficou junto da escada a esgatanhar as portas. A ordem, porém, era muito severa e o cão debalde se queixaria. Depressa compreendeu o motivo por que o expulsavam do seu lugar predileto.
Um domingo em que a velha descia para ir à igreja, segundo costumava, Falstaff atirou-se a ela, fê-la cair e tê-la-ia dilacerado se não lhe acodem tão depressa.
A velha adoeceu de terror. Katia e Falstaff eram de mais!
Ela apresentou o seu ultimato. Ou o cão ou ela sairia de casa. Foi necessária a intervenção do príncipe para sanar o caso. Fez compreender à tia que não podia expulsar o salvador do filho, mas deu ordens terminantes para que a velha princesa não corresse o risco de encontrar o cão à sua passagem.
Capítulo 15
— Falstaff! Falstaff! — chamava meigamente, da escada, Katia.
O cão acudiu ao chamamento e, vendo a porta aberta, ia precipitar-se, transpor o Rubicão, mas deteve-se, perplexo.
A ação era tão grave, o chamamento tão inverosímil, que não podia acreditar no que ouvia. Contudo passou, mas vagarosamente, como um animal que reflete e sabe o que vai fazer. Entretanto, Katia excitava-o, apontava-lhe a escada, convidava-o...
Não foi preciso mais. Falstaff mostrou os dentes, soltou uma rosnadela de cólera e correu como uma flecha. Chegou mesmo a deitar cadeiras ao chão na presteza em que ia.
A senhora Leotardo notou isso e clamou por socorro, mas já era tarde, porque o cão chegara ao quarto da velha como uma bala.
Um criado correu logo ao quarto da princesa que, desta vez, não estava disposta a perdoar. Mas a quem castigar? Compreendera imediatamente. As suas vistas caíram sobre Katia... De facto, Katia, muito pálida, tremia de terror. A pobre criança percebia então quais poderiam ter sido as consequências da sua imprudência. As suspeitas podiam recair sobre os criados, sobre inocentes, e a pequenita estava já resolvida a declarar toda a verdade.
— Foste a autora desta maldade? — perguntou-lhe severamente a mãe.
Ao ver a palidez mortal de Katia, adiantei-me e disse com voz firme:
— Fui eu que deixei passar Falstaff... por descuido... — acrescentei, porque a minha coragem desapareceu ante o olhar encrespado da princesa.
— Senhora Leotardo, castigue-a de uma forma exemplar! — disse a princesa, saindo.
Levantei os olhos para Katia; as suas mãos inertes pendiam-lhe do corpo; o seu rostozinho pálido caía sobre o peito. O único castigo usado para os filhos do príncipe era o encerramento num quarto escuro. Ficar duas horas num quarto, nada tinha de cruel, mas quando se metia uma criança injustamente, o castigo tornava-se duro.
Em geral, Katia ou o irmão eram aí encerrados durante duas horas. Condenaram-me a quatro horas de prisão, visto a monstruosidade do meu crime. Saltitante de felicidade, entrei na prisão.
Pensava na minha princesinha. Sabia tê-la vencido. Mas em vez de permanecer quatro horas, fiquei encarcerada até às quatro da manhã. E a explicação é simples.
Duas horas depois de estar enclausurada, a senhora Leotardo soube que a filha, chegada de Moscovo, estava doente e desejava vê-la. A senhora Leotardo saiu, esquecendo-se de mim. A criada que nos servia supôs naturalmente que eu já estivesse liberta. Katia, chamada para baixo, ficou perto da mãe até às onze horas da noite. A criada despiu-a, meteu-a na cama, e a princesinha tinha razões para não se informar de mim. Deitou-se, sabendo perfeitamente que eu tinha sido encarcerada durante quatro horas e supunha que a criada depressa me levaria até junto dela. Nastia, porém, esqueceu-se completamente, tanto mais que sabia que eu me despia sozinha ordinariamente, de maneira que passei a noite encerrada.
Capítulo 16
Às quatro horas da manhã senti bater à porta da minha prisão. Dormia estendida como podia no sobrado. Acordei, soltei um grito de surpresa, mas logo reconheci a voz de Katia que dominava as outras, depois a da senhora Leotardo, a de Nastia, e, finalmente, a da governante. A porta abriu-se e a senhora Leotardo, com os olhos arrasados, beijou-me, pedindo perdão por me haver esquecido. Saltei-lhe ao pescoço, chorando. Estava tiritante de frio e todos os ossos me doíam, pela posição incómoda em que estivera no sobrado nu.
Procurei Katia com a vista; tinha regressado vivamente ao nosso quarto de dormir, tinha saltado para a cama e, quando voltei, dormia ou fingia dormir. Esperando-me, deixara-se adormecer contra sua vontade e só acordou às quatro horas da manhã. Notando que eu ainda não tinha aparecido, despertara toda a gente, pusera a pé a senhora Leotardo que acabara de entrar, a criada e todos os demais criados, dizendo-lhes que eu ainda não aparecera e foi assim que me deram a liberdade.
De manhã, todos os locatários sabiam da minha aventura. A própria princesa declarou que tinha procedido muito severamente para comigo. Quanto ao príncipe, nunca o vira tão irritado.
— Vamos! — dizia ele à senhora Leotardo. — Que faz? Como é que procede com essa pobre criança? É bárbaro! É uma grande barbaridade! É puro cinismo! Uma criança doente, fraca, sonhadora, medrosa, cheia de imaginações, encerrá-la num quarto escuro uma noite inteira! Isso é querer matá-la! A senhora não conhece a vida dela? É bárbara! É desumana! Sou eu que lho digo, minha senhora! E como é possível puni-la tão duramente? Quem inventou este castigo?
A pobre senhora Leotardo, com os olhos banhados em lágrimas, explicou-lhe os factos, declarou-lhe que se esquecera, que a filha tinha chegado, que o castigo era muito bom e que Jean-Jacques Rousseau aconselha qualquer coisa naquele género.
— Jean-Jacques Rousseau, minha senhora! Jean-Jacques Rousseau não podia aconselhar semelhante coisa. Além disso, Jean-Jacques Rousseau não tinha o direito de falar da educação. Jean-Jacques Rousseau não reconheceu seus próprios filhos, minha senhora! Jean-Jacques, minha senhora, era um mau homem!
— Jean-Jacques! Jean-Jacques, um mau homem! Não diga isso, príncipe, não diga isso!
A senhora Leotardo era uma boa criatura, que dificilmente se zangava; mas tocar nos seus prediletos, incomodar a sombra clássica de Corneille, de Racine, ofender Voltaire, dizer que Jean-Jacques Rousseau era um mau homem, qualificá-lo de bárbaro, isso não. As lágrimas rebentaram-lhe dos olhos. A velha senhora tremia de indignação.
— O senhor esquece-se, príncipe — exclamou ela, fora de si.
O príncipe reteve-se logo e desculpou-se. Aproximou-se de mim, beijou-me efusivamente, abençoou-me com a mão e saiu do quarto.
— Pobre príncipe! — exclamou a senhora Leotardo, sentidamente.
E fomos para a lição. A princesa estudava distraidamente. Antes de jantar, acercou-se de mim, com um sorriso a brincar-lhe nos lábios, pôs-me a mão sobre o ombro e disse vivamente como que para dissimular a sua vergonha:
— Então, sofreste muito por minha causa? Depois de jantar iremos brincar para a sala.
Alguém passava por perto de nós; a princesa afastou-se logo. Ao anoitecer, descemos ambas de mãos dadas para a sala. Katia, profundamente comovida, respirava a custo. Eu senti-me feliz e alegre, como nunca estivera.
— Queres brincar com a bola? — me perguntou. — Deixa-te estar aí.
Sentou-me a um canto da sala; em vez, porém, de se afastar para me tirar a bola, passou a três passos, olhou-me, corou e caiu sobre o divã, escondendo o rosto nas mãos. Dei um passo para ela; julgou que eu ia a sair e disse-me:
— Não te vás embora, Netotchka. Deixa-te estar aqui ao pé de mim. Isto já passa.
De seguida levantou-se vivamente e lançou-se-me ao pescoço. Tinha as faces húmidas. Os lábios estavam rubros que nem cerejas. As tranças do seu cabelo estavam em desordem.
Abraçou-me loucamente, beijando-me a cara, os olhos, a boca, o pescoço, as mãos. Apertou-me muito a si e estreitámo-nos meigamente, alegremente, semelhando amigas ou namorados que se encontram após uma longa ausência.
O coração de Katia palpitava de tal maneira, que o ouvia distintamente.
Do quarto próximo chamavam Katia para ir para junto da mãe.
— Oh! Netotchka, então até logo, até à noite. Sobe e espera por mim.
Beijou-me mais uma vez sem fazer ruído e acudiu ao chamamento de Nastia.
Capítulo 17
Entrei no nosso quarto, ressuscitada; deitei-me sobre o divã, ocultei a cabeça nas almofadas e desatei a chorar de felicidade. O meu coração batia descompassadamente. Não sei como vivi até à noite. Deram onze horas e deitei-me. Katia entrou suavemente no quarto à meia noite.
Saudou-me de longe sem proferir palavra. Nastia despia-a lentamente como de propósito.
— Depressa, Nastia, depressa! — murmurou Katia.
— Que tem, princesa? Foi porque correu muito hoje que tem o coração tão agitado?... — perguntou Nastia.
— Ai, meu Deus! Que maçadora estás, Nastia!... — Depressa! anda depressa!
E a princesa batia o pé.
— Que impaciência a sua, princesa — disse Nastia, beijando o pé que Katia descalçava.
Despida por fim a princesinha, deitou-se e a criada saiu.
Em seguida, Katia saltou da cama e veio ter comigo.
— Anda para a minha cama! — murmurou ela, levantando-me daquela em que eu estava.
Um minuto depois estávamos nos braços uma da outra. A princesinha abraçou-me.
— Eu recordo-me da maneira por que me abraçavas durante a noite! — exclamou, tornando-se vermelha como uma papoila.
Eu soluçava.
— Netotchka — murmurou ela através das lágrimas — meu anjo, há muito tempo já que te estimo, sabes?
— Desde quando?...
— Desde que o papá me ordenou que te pedisse perdão e quando tu defendias teu pai, Netotchka, minha órfã! — acentuou ela, beijando-me o rosto.
Eu chorava e ria simultaneamente.
— Ah! Katia!
— Que é? Que é?
— Porque estivemos tanto tempo... tanto tempo.
Não acabei; abraçámo-nos de novo sem proferir palavra.
— Ouve: que pensavas tu de mim? — perguntou por fim a princesinha.
— Oh! Como eu pensava em ti, Katia! Pensava dia e noite!
— E tu falavas de mim durante a noite; eu ouvia-te!
— Sério?
— E choraste muitas vezes.
— Ora vê! Então porque eras tão orgulhosa?
— Porque era tola, Netotchka! São coisas que passam pela cabeça, aqui tens! Estava sempre zangada contigo.
— E porquê?
— Porque eu era má. Primeiro, porque vales mais do que eu. Depois, porque o papá tem predileção por ti. E o papá é bom não é verdade? Netotchka?
— Se é! — respondi entre lágrimas, a recordar-me do príncipe.
— Oh! Um excelente coração! — tornou seriamente Katia. — E que devo eu fazer para com ele? É sempre assim... E porque fui obrigada a pedir-te perdão é que me zanguei outra vez contigo.
— E eu via que tu ias chorar!
— Então, cala-te, choramingas!... — disse Katia fechando-lhe a boca com a mão. Ouve: umas vezes gostava muito de ti; de repente, odiava-te e odiava-te tanto, tanto!...
— Mas porquê?
— Porque estava muito zangada contigo. Não sei porquê! E depois eu compreendi que não podias viver sem mim. Então pensava: Ele é isso? Pois vou torturar-te!
— Má!
— Minha amiguinha! — continuou, beijando-me a mão. — E depois não queria falar-te. E lembras-te de quando acariciei Falstaff?
— Oh, como foste animosa!
— E como eu tinha medo! — acentuou a princesinha. — Sabes porque quis a todo o transe aproximar-me dele?
— Não; porquê?
— Porque tu me olhavas. Quando vi que me olhavas, então... acontecesse o que acontecesse... caminhei para a frente. Fiz-te medo, hein? Receavas por mim?
— Terrivelmente!
— Eu bem via. E como me senti feliz quando Falstaff se foi embora. Meus Deus! Como eu tive depois medo de vê-lo longe, ao monstro!
E Katia ria nervosamente. Ergueu de repente o rosto afogueado e olhou bem para mim. Pequeninas lágrimas, semelhantes a brilhantes, lhe bailavam nos olhos.
— Que tens tu então contigo para que te estime tanto? Ora vejam! Uma descorada, com cabelos de um louro baço, olhos azul-claro, uma tolinha, uma choramingas, uma órfã!
E Katia inclinou-se ainda para chorar sobre mim beijos e lágrimas. Estava profundamente enternecida.
— E como eu te amava! Mas pensava: «Não! Não! Nada lhe direi.» E como eu era teimosa! Porque tinhas medo de mim? Porque te envergonhavas com a minha presença? Ora vê lá como somos agora!
— Katia, sinto-me mal! — dizia eu num arrobo de felicidade. — Como a minha alma sofre!
— Sim, Netotchka. Ouve ainda... Ouve-me sempre. Quem te pôs o nome de Netotchka?
— A mamã.
— hás de falar-me acerca da tua mamã.
— Tudo, tudo — respondi efusivamente.
— E que fizeste tu dos meus lenços de renda? E porque levaste a fita? Ah, minha descarada! Eu sei tudo!
Pus-me a rir, corando.
— Não, pensava eu. Vou atormentá-la. Ela esperará! E outras vezes pensava: mas eu não gosto dela. Não posso aturá-la. E tu continuavas a ser tão amiga, tão terna! E como eu tinha medo que me julgasses estúpida! Tu és inteligente, muito inteligente, não achas, Netotchka?
— Vamos, que estás tu aí a dizer, Katia? — respondi, quase ofendida.
— Sim, és muito inteligente! — declarou Katia, seriamente. — Certa manhã levantei-me e, de repente, comecei a amar-te tanto, quanto fora terrível. Sonhava contigo todas as noites. Pensava: vou pedir à mamã que me deixe viver lá em baixo. Vou lá ficar. Queria amar-te e depois não queria. E, na noite imediata, ao adormecer, dizia comigo: Ah, se ela aparecesse como ontem! E tu aparecias! Ah! Como eu fingia dormir! Que desaforadas somos, Netotchka!
— Mas porque não querias gostar de mim?
— Porque... Mas que digo eu! Eu amava-te! Amei-te sempre. Mais tarde é que te aborreci. Vou beijá-la, pensava eu, e beliscá-la até que ela morra. Olha, toma, tolinha!
E Katia beliscava-me!
— Lembras-te de quando te atei a fita do sapato?
— Lembro-me, sim!
— Também eu me lembro! Sentias-te feliz? Tu olhavas. «É tão bonita!», dizia eu comigo. «Vou atar-lhe as fitas dos sapatos! Que pensaria ela?» E eu estava tão contente... E, palavra, quis beijar-te... Mas não o fiz. Depois tinha vontade de rir. Era estúpida, realmente, e, durante o tempo em que andámos de passeio, acudiam-me ideias insensatas. Não podia olhar-te, que não tivesse vontade de rir. E como eu fiquei contente quando te meteram na prisão em meu lugar!
(O quarto escuro chamava-se prisão).
— Tinhas medo?
— Se tinha!
— Eu estava contente, não porque te tivesse denunciado, mas porque ias para a prisão em meu lugar. Ela agora chora, dizia eu, e como gosto dela, amanhã beijá-la-ei muito!... E, meu Deus! Não te lastimava, mas chorava!
— Pois bem! Eu não chorei... Sentia-me feliz, tão feliz!...
— Não choraste, má? — exclamou Katia, abraçando-me mais estreitamente.
— Katia! Katia! Que bonita és!
— Não é verdade? Pois bem: agora faze de mim o que te aprouver. Tiraniza-me, belisca-me, peço-te, belisca-me ao menos uma vez. Minha querida Netotchka, belisca-me!...
— Má!
— E que mais?
— Tonta!
— Mais ainda!
— Mais ainda? Beija-me.
Beijávamo-nos, chorávamos, riamos. As nossas faces inchavam, com tanto beijo.
— Netotchka! Era primeiro lugar, hás de ir dormir comigo todas as noites. Gostas de me beijar. Pois bem! Beijar-nos-emos. Eu não quero que estejas sempre triste. Porque te aborrecias tanto? Tu mo explicarás depois, não é assim?
— Explicar-te-ei tudo. Agora já não me aborreço; sinto-me bem feliz.
— Quero que tenhas as faces tão coradas como as minhas. Ah! Quem me dera ser já amanhã. Tens vontade de dormir, Netotchka?
— Não.
— Então conversemos.
E nós tagarelamos ainda durante duas longas horas. Só Deus sabe o que dissemos. A princípio a princesinha contou-me que amava mais o pai do que todos, quase tanto como a mim. Concordámos em que a senhora Leotardo era muito boa senhora, mas severa demais. Fizemos projetos para o dia imediato e dias seguintes; chegámos mesmo a regular a nossa vida durante vinte anos. Aqui está como Katia organizava a nossa vida: um dia mandava ela e eu obedecia. No dia seguinte seria eu quem mandaria e ela submeter-se-ia sem fazer objeções. Mais tarde dividiríamos a direção. Uma de nós mais tarde ainda fingiria desobedecer. Então, zangar-nos-íamos, por brincadeira é claro. E faríamos as pazes o mais breve possível. Numa palavra, uma felicidade eterna que nos aguardava. Por fim, como já estava cansada de falar, os olhos cerraram-se-me; Katia mangou comigo, acusou-me de dorminhoca e adormeceu antes de mim. De manhã acordámos ao mesmo tempo. Beijámo-nos à pressa, porque alguém se aproximava. E tive apenas o tempo necessário para me meter na minha cama. Durante o dia, estivemos enleadas com a nossa própria felicidade. Escondíamo-nos de toda a gente de tal modo temíamos olhares estranhos. Assim que entrava alguém, todas nós tremíamos. Receávamos que nos surpreendessem aos beijos.
À tarde, deixaram-nos sós durante uma hora; aproveitei-me dela para contar uma história a Katia. Decerto não é necessário reproduzi-la na íntegra. Demais é um assunto que merece ser tratado à parte, o que farei um dia. Resumo, pois, o mais possível as minhas memórias.
— Meu pai, Efimov, era músico. A princípio foi clarinete em casa de um ricaço melómano, que tinha uma orquestra completa. Efimov tinha, infelizmente, o costume de embriagar-se, o que o tornava detestável e de que nunca pôde corrigir-se. Um dia encontrou-se com um italiano que tocava muito bem violino e que lhe ensinou a sua arte. Ligaram-se numa grande amizade que durou até à trágica morte do italiano a quem certa manhã encontrou num fosso onde caiu devido à embriaguez, vítima de uma congestão cerebral. Após este acidente, Efimov mudou de repente para o seu senhor que o tratava muito bem; tornou-se insolente pretensioso, exigente; chegou mesmo a caluniá-lo. Seguiu-se uma violenta discussão e o amo soube com espanto que Efimov tocava violino; depois de o ter ouvido ficou maravilhado com o seu talento e ofereceu-lhe para ficar na orquestra com um ordenado mais elevado e na qualidade de primeiro violino. Efimov, cheio de orgulho, recusou, pretextando o desejo de ir a Petersburgo aperfeiçoar-se na sua arte. Recebeu trezentos rublos e partiu.
»Em vez, porém, de ir para Petersburgo, andou pela província e, em menos de um mês, dissipou todo o dinheiro. Foi então obrigado a contratar-se numa orquestra ambulante, deixou-a para entrar noutra e assim levou, durante sete anos, uma vida de músico ambulante. Farto por fim da sua vida nómada, e, imaginando que era um grande artista destinado à celebridade, foi a pé para Petersburgo, onde chegou num estado lastimável. Travou então conhecimento com Bouvarov, um dos maiores músicos de então, cuja reputação mal começava, e que vivia de dar lições. Bouvarov trabalhou sem descanso com a tenacidade e a perseverança de um alemão; depressa saiu da sua obscuridade mercê da intervenção do príncipe X... Efimov, preguiçoso e bêbedo, raramente tocava violino apesar dos conselhos do seu amigo e cada vez se internava mais na miséria. Iludindo-se acerca do seu verdadeiro talento ainda que imperfeito, julgava inútil trabalhar e atribuía o seu desânimo à pobreza que nem sequer tentava combater.
»Foi então que encontrou minha mãe. Tinha ela 300 rublos amealhados ao canto da arca, como é costume dizer-se, produto das suas economias, durante a sua permanência numa importante casa, como governanta. Efimov julgou que os 300 rublos lhe permitiriam atingir a situação e a glória que sonhava. Esposou a pobre senhora que o amava apaixonadamente; não tardou, porém, a deplorar esta fraqueza.
»Tinha eu então três anos, mas já compreendia muitas coisas. Não conhecera nunca o meu verdadeiro pai que morrera pouco depois do meu nascimento. Gostava muito de Efimov chegando até a gostar mais dele do que de minha mãe. Qual era a causa desta singular preferência? Decerto notava que Efimov era tão criança como eu. Ele continuava a vida desordenada e inútil anterior ao seu casamento; assim que se esgotaram os 300 rublos cruzou nobremente os braços. Comecei a sofrer as consequências da miséria e do desacordo que havia constantemente entre os dois. Instalámo-nos numa água-furtada quase sem ar nem luz. Minha mãe trabalhava por três e consumia-se, o que não evitou que houvesse alguns dias de passar fome. Durante as contínuas discussões que se davam entre meus pais, eu refugiava-me aterrorizada num canto da nossa pobre casinha, donde via a louça voar em pedaços; minha mãe gritava e chorava; ficava aí trémula durante horas.
»Um dia, meu pai tornou a encontrar Bouvarov que veio visitar-nos e arranjou-lhe um lugar numa orquestra de ópera. Minha mãe, que acreditava no génio de Efimov e que o amava apesar de tudo, julgou que a nossa miserável vida ia modificar-se e ficou bem contente. Este bem estar durou apenas alguns meses. Efimov bolsou contra Bouvarov as maiores calúnias; foi arrogante, insolente e intrigou-o com o chefe da orquestra: acabaram por expulsá-lo do teatro.
»Continuámos a viver durante muito tempo à custa do trabalho de minha mãe. Para satisfazer o seu vício da embriaguez, Efimov pedia-me várias vezes o dinheiro das compras e tomara sobre mim um tão estranho ascendente, que nunca me recusava a dar-lho, apesar das consequências que isso podia trazer a minha mãe. Para me compensar, mostrava-me o violino, dizia-me que era um grande artista e que mais tarde seriamos felizes; iríamos habitar uma bela casa e a nossa vida decorreria alegre e encantadora. Eu dava ouvidos a todas essas mentiras que ele me impingia de boa fé porque a sua loucura era incurável: morreu exatamente no dia em que podia curar-se.
»Entretanto ia-me ensinando a ler e contava-me histórias, o que abriu a minha imaginação até aí comprimida pela dolorosa realidade, às douradas e consoladoras quimeras. Meditava profundamente na idade em que as crianças só riem e brincam, e esta reflexão prematura desenvolvia em mim uma sensibilidade doentia e exagerada.
»Contudo o desfecho aproximava-se. Schurmann, o violinista universalmente conhecido e aclamado, veio a Petersburgo para se fazer ouvir numa série de concertos. Efimov, já muito antes de ele aparecer, andava deveras agitado. É preciso dizer que ele nunca falhava a uma audição deste género donde saía sempre com a convicção de ser muitíssimo superior a todos os outros artistas. Alguns dias antes do primeiro concerto, de Schurmann, encontrou o príncipe e Bouvarov que resolveram enviar-lhe um bilhete, porque as entradas eram caríssimas. Efimov, não compreendendo esta generosa intenção, e, querendo à força ouvir o grande músico, decidiu-me, à custa de reiteradas instâncias e de súplicas, a ceder-lhe quinze rublos do troco do dinheiro que minha mãe me havia entregado para fazer compras; e não obstante espantosos remorsos, pratiquei essa vil ação. Alguns minutos depois era presa de um violento ataque de nervos. Nessa ocasião um criado do príncipe apareceu com o bilhete. Minha mãe, iludindo-se mais uma vez com o génio do marido, por quem o príncipe parecia interessar-se, perdoou-lhe ainda porque o adivinhou culpado do desaparecimento dos quinze rublos que nunca mais restituiu; mas não lhe perdoou o ter pervertido a criança.
»Meu pai vestiu-se à pressa porque o concerto começava às oito horas e já eram sete. Quando saiu, minha mãe chamou-me para junto dela, acariciou-me durante muito tempo e por fim disse-me, com voz fraca:
»— Minha pobre filha, que será de ti sem mim? Que te acontecerá, minha Netotchka?
»E chorava. Eu também chorei e sentei-me muito triste junto dela.
»Havia já anos que ela andava doente e ainda agora se consumia com trabalho por nossa causa.
»Não podendo mais, caiu sobre a cama e disse que me fosse deitar. Obedeci-lhe; mas uma longa insónia não me largou durante algumas horas. Sofria muito; minha mãe deixara o candeeiro aceso e a chave na porta, como fazia sempre que meu pai devia voltar tarde.
»A meio da noite um horroroso pesadelo fez-me acordar. Meu pai estava na minha frente, de violino na mão. la começar a tocar, mas uma outra ideia lhe acudiu ao espírito. Pôs o violino em cima da mesa e aproximou-se da cama da minha mãe; inclinou-se para ela e esteve assim durante alguns minutos que foram angustiosos para mim, porque não compreendia o que isso queria dizer; depois, colocou as mãos em cima do lençol, tateando com hesitação. Quando se levantou ficou aterrorizado com a palidez do seu semblante. Olhei para minha mãe; dormia profundamente; o corpo desenhava-se em linhas rígidas sob a fraca cobertura; sem saber porquê, fiquei estupefacta com a sua imobilidade e velei-a pacientemente na esperança de a ver mover-se. Não se moveu.
»Meu pai encaminhou-se para o armário e deitou vinho num copo que bebeu de um trago. Voltou depois para junto da mesa e, como fosse dar os primeiros acordes, mudou de posição e voltou-se para a porta afim de não ver a cama. De repente, principiou a tocar e eu fiquei trémula de comoção. Não eram os sons ordinários que o instrumento exalava, mas suspiros, soluços, lamentos dilacerantes que rebentavam em catadupa sobre o arco que tremia. Não pude suportar por muito tempo esta desesperada música que me confrangia o coração. Soltei um grito, saltei da cama e vim cair nos braços de meu pai. Meteu o violino na caixa e disse-me:
»— São horas de partir; anda, Netotchka!
»Arranjei à pressa a trouxa da minha pobre roupa. Ele meteu nas algibeiras o que lhe veio parar às mãos. Parecia um doido e não podia olhar para ele sem estremecer. Quando tudo estava na ordem, perguntei:
»— E a mamã, papazinho? Porque não levamos a mamã?
»— Vem despedir-te dela; morreu!
»Esta revelação gelou-me de terror, se bem que eu tivesse como que um surdo pressentimento.
»Acerquei-me de minha mãe; já estava inteiriçada e com o rosto lívido. O espanto inibia-me de dar uma palavra, no entanto desejaria gritar:
»— Vamos embora, papazinho, vamos embora!
»Tomou-me pela mão e saímos a porta; mas aí parou.
»— Vem rezar por alma de tua mãe! — disse-me com voz grave.
»Tornei a entrar no quarto e ajoelhei-me junto do oratório; mas não podia orar. Estava transida de medo.
»— É tempo — tornou ele por fim. — Vamos.
»De repente, lembrou-se ainda de qualquer coisa; esfregava a testa incessantemente. Abriu a gaveta da cómoda que não tinha um pé, guardou o último dinheiro que lá havia e meteu-o no meu corpete, mesmo sobre a pele; a frialdade do metal fez-me estremecer.
»Descemos aquela escada que nunca mais tornaríamos a subir. Ao passar pelo cubículo da porteira, meu pai quase que corria, com receio de ser interrogado acerca da sua saída noturna. Uma vez fora dali, caminhou tão depressa, que não podia acompanhá-lo; agarrei-me ao casaco para não ficar para trás. Após uma meia hora desta «fatigante marcha parámos no cais do canal e meu pai sentou-se sobre o parapeito.
»— Papazinho — lhe disse eu — não me parece que se devesse ter deixado assim a mamã sozinha. É melhor voltar lá para velar junto dela.
»— Tens razão, Netotchka; vai depressa, que eu espero-te aqui. Há luz pelas ruas e não deves ter medo. Tornarás aqui.
»— Sim, papazinho, espere-me.
»Nevava e eu espantava-me de caminhar sozinha de noite, sobretudo encontrando-me junto da pobre morta. Mas era preciso, não a podia abandonar assim, era um sacrilégio.
»E fazia tanto frio, tanto! Apesar da precipitação da nossa fuga, eu sentira-o bem. Lancei sobre meu pai um derradeiro olhar suplicante e atravessei a rua. Quando pus o pé sobre o passeio defronte, voltei me para ver meu pai... Já ali não estava. Soltei um grito e lancei-me em sua perseguição. Chorava, chamava-o desvairadas ente, sem que se detivesse e me respondesse.
»— Papazinho — gritava eu — papazinho, se não me queres, eu volto para o pé da mamã, mas dá-me um último beijo... Prometeste-me tanto levar me contigo para uma bonita casa... papazinho!...
»Eu estava ofegante, sufocava, e as minhas pernas dobravam-se. Ia longe, tão longe, que desesperava de agarrá-lo. Dobrou a esquina de uma rua. Fiz um derradeiro esforço e prossegui na corrida. A meio da rua, o meu pé cansado tropeçou numa pedra; escorreguei e caí na neve. Um suor frio gelou-me completamente; senti uma horrorosa dor do lado esquerdo da cabeça e um líquido quente correu-me pelo rosto. Falta de forças e cheia de sofrimento, desmaiei... Quando abri os olhos, tinha na minha frente o príncipe, teu pai, que me trouxe até à porta do palácio onde me cuidou. Depois, tão depressa te conheci, Katia, quanto te amei, e aqui tens tu a minha história.
— Pobre e querida pequena, pobre órfã — me disse Katia, abraçando-me e enchendo-me de lágrimas e de beijos.
— E que foi feito de Efimov?
— Dois dias depois encontraram-no louco a vaguear pelos campos. Internaram-no numa casa de doidos, onde pouco tempo durou vivo.
Katia estava violentamente comovida.
— Má! Como tu és má! Por que é que me não contaste isso há mais tempo? Amar-te-ia tanto! Amar-te-ia tanto, minha pobre Netotchka. Então, fazias recados?
— Sim, e algumas vezes os gaiatos batiam-me para me tirarem o dinheiro.
— Oh, que maus! Se alguma vez encontro algum tomo o chicote de Falstaff e bato-lhe com ele.
Os seus olhos cintilavam de indignação.
Assim decorreu esse dia e o imediato. Eu pensava morrer de alegria. Sufocava de felicidade. Mas esta felicidade não tinha que durar.
A senhora Leotardo tinha ordem da princesa para nos vigiar todos os movimentos. Observou-nos durante três dias e esse tempo foi-lhe suficiente para juntar provas.
Dirigiu-se aos aposentos da princesa, contou-lhe que nós vivíamos numa espécie de febre, que nunca nos separávamos, que nos beijávamos amiudadamente, que chorávamos e ríamos como loucas, que tagarelávamos de contínuo, o que não acontecia antigamente. A senhora Leotardo não sabia a que atribuir tal mudança, mas parecia-lhe que a princesinha estava numa situação de crise e que não seria mau que estivéssemos juntas o menos possível.
— Já há algum tempo que penso nisso — respondeu a princesa — já calculava que essa órfã nos havia de dar cuidados. Tem uma evidente ascendência sobre Katia. Diz que a minha filha a estima muito?
— Doidamente.
A princesa, despeitada e já com ciúmes de mim, corou.
— Não é natural — prosseguiu. — A princípio eram tão indiferentes uma para a outra! E, confesso, estava mais à vontade. Apesar da sua mocidade, nada posso garantir a respeito dessa criança. Pode ter, com o leite materno, sugado maus princípios. Já propus umas poucas de vezes ao príncipe que a afastasse daqui, metendo-a num colégio. Agora, já não espero mais tempo; é preciso que ela saia daqui; é forçoso.
Capítulo 18
A separação foi resolvida.
Em vão a senhora Leotardo quis tomar a minha defesa.
Katia foi avisada de que daí a oito dias não me tornaria a ver. Soube esta nova à noite e fiquei aniquilada. Parecia que, depois do que se passara entre nós, Katia não poderia suportar esta separação.
O príncipe, que veio ver-me na manhã seguinte, buscou dar-me esperança com palavras consoladoras, mas tudo estava bem acabado entre nós. A princesa estava inabalável na sua resolução.
Fiquei assim amarfanhada na minha dor, quando, três dias depois, recebi um bilhete de Katia trazido pela criada grave, em que me dizia:
Amo-te muito e só penso no modo por que hei de encontrar-me junto de ti. Não chores, minha querida, e escreve a dizer me quanto me amas. Sonhei contigo, Netotchka; envio-te bombons e um grande abraço. Adeus!...
Respondi a Katia no mesmo tom, e chorei todo o dia sobre o bilhete que lhe destinara.
A senhora Leotardo estava junto de mim e bastante arrependida do que fizera. Nada podia consolar-me e volta e meia interrogava a nossa criada Nastia, acerca de todos os atos e gestos da minha amiga.
Certa manhã soube que o príncipe me aguardava no seu escritório.
Corri trémula de alegria e comoção. O príncipe não estava só. Katia saltou ao meu pescoço logo que abri a porta. Em seguida, cavalgando nos joelhos do pai, cobriu-o de beijos e tão loucamente, que ambos caíram sobre o divã.
— Tonta! — exclamou o príncipe.
— Como tu és bom, papá! — retorquiu Katia.
— Mas de onde procede, minha pequenita, uma tão louca e súbita amizade?
— Ah! Cala-te, papá, que tu não conheces os nossos negócios!
Proferida que foi esta frase, lançámo-nos nos braços uma da outra, chorando.
Katia tinha abatido muito em três dias. Eu observava-a ansiosa; tinha perdido as cores; estava mesmo tão pálida, que eu não pude suster os soluços.
De repente Nastia bateu à porta. Vinha buscar Katia por ordem de sua mãe.
Katia tornou-se lívida com a ideia de deixar-me.
O príncipe parecia também muito apoquentado.
— Até depois, minhas filhas; encontrar-nos-emos aqui todos os dias; que Deus as abençoe. — E saiu.
Ah, nós já não podíamos conservar a mesma alegria.
O príncipe teve que partir subitamente chamado a Moscovo para ir ver seu filho Sacha, perigosamente enfermo.
O dia seguinte, o da despedida, foi um dia de lágrimas.
A partida da família era inevitável; deixaram, portanto, que Katia e eu nos despedíssemos.
O carro de viagem esperava ao fundo da escada.
Eu estava louca de dor e Katia muito abatida.
Sentia que era alguma coisa que eu amava que desaparecia, um pouco do meu coração que se afastava, que a minha vida continuaria assim, sem esperança, sem amizade, e as lágrimas sufocavam-me. Katia compreendia isto tão bem como eu, mas, talvez mais nervosa, não podia chorar. Levaram-na desfalecida.
Eu caminhava junto dela, sem saber se pensava, cobrindo-a de beijos e de lágrimas.
De repente abriu os olhos e, vendo-me, exclamou:
— Não chores, Netotchka; não te apoquentes por minha causa; dentro de um mês estarei de volta e então nunca mais nos separaremos!... Adeus!...
E ria de um modo estranho ao pronunciar estas palavras. A princesa estava junto de nós; esta cena incomodava-a e irritava-a.
— Basta! — exclamou por fim. — Vamos embora.
E arrastou a filha.
Katia, fugindo-lhe dos braços, tornou para mim, exclamando toda palpitante:
— Tu és a minha vida! Tu és a minha vida! Não te digo adeus, Netotchka, mas até breve!...
Abraçámo-nos pela última vez, e ela partiu.
E partiu por muito tempo. Arrebatou com ela todo o belo sonho da minha desgraçada infância, arrebatou metade da minha alma, sem que nunca talvez o soubesse!...
Capítulo 19
Katia tinha, pois, partido. Ficava eu agora mais só e mais órfã do que nunca.
Entrava contra vontade numa outra existência, e, como um barco ao sabor das ondas, seguia a vaga que me quis levar.
Foi para mim um grande acontecimento a partida da família do príncipe de Moscovo.
Fiquei só com a senhora Leotardo. Quinze dias depois recebemos notícia de que o regresso da família ficara adiado para uma data indeterminada. A governanta não podia, por especiais razões, voltar para Moscovo. O príncipe, que a estimava, escreveu à sua filha mais velha, Alexandra Mikailovna, para que nos tomasse para sua casa; não falei ainda de Alexandra Mikailovna porque só tive ocasião de vê-la uma única vez até agora. Era uma filha do primeiro casamento da princesa com um alto empresário. Antes de se ligar com o príncipe quis tentar casá-la, mas o caso era difícil, visto o dote ser pequeno. Por fim, após quatro anos de impacientes tentativas, encontrou para a filha um marido mais velho do que ela, mas rico e titular.
Nos primeiros tempos deste enlace, a princesa visitava a filha duas vezes por ano; o príncipe ia vê-la, com Katia, todas as semanas. Mas depressa se desgostou a princesa com as frequentes idas de Katia a casa da irmã, o que obrigou o príncipe a levá-la a ocultas. Katia adorava a irmã, se bem que as suas índoles fossem bastante diferentes. Alexandra Mikailovna tinha vinte e dois anos por esta época; era meiga, terna e amorável; adivinhava-se logo nela uma tristeza oculta; as suas feições encantadoras tinham uma expressão grave e emocionante que traía um sofrimento íntimo. A seriedade não condizia com o seu rosto de anjo, assim como o luto não fica bem a uma criança. Não se podia fitar, sem que se ficasse tendo uma grande simpatia por ela. Estava sempre pálida e era propensa à tísica. Tendo vivido durante muito tempo na solidão, não gostava de ter muita gente ao pé de si.
Lembro-me muito bem do bom acolhimento que me fez quando cheguei a sua casa com a senhora Leotardo. Dirigiu-se logo a mim e beijou-me com muita ternura; em seguida tomou-me nos braços e perguntou-me se eu queria ficar ali como se fosse sua filha — Vi imediatamente nela a irmã da minha Katia; o meu coração confrangeu-se de comoção e beijei-a dolorosamente. Parecia-me ainda ouvir daquela vez esta palavra: órfã!
Alexandra Mikailovna mostrou-me a carta do príncipe que nos recomendava a ela. O meu protetor desejava-me uma vida feliz e convidava-me a amar a sua filha mais velha que seria muito boa para mim. Katia escrevia-me também algumas linhas para me prevenir de que já não deixava a mãe.
Aqui está como eu entrava numa nova família, numa nova casa, arrancando-me pela segunda vez a tudo quanto tão querido me era, a tudo que se tornara meu. Chegava ali com a alma dilacerada e já cansada da vida.
Esta nova existência desenrolou-se calma e sem incidente como se estivesse num convento. Vivi durante oito anos em casa dos meus protetores e não me recordo, durante esse tempo, de um único sarau, de um jantar, de uma reunião de parentes ou de amigos. Umas três pessoas apareciam algumas vezes e entre elas o músico Bouvarov, e pessoas que tinham, em geral, negócios a tratar com o marido de Alexandra Mikailovna; este vivia muito absorvido com as suas empresas e pouco tempo consagrava à família; muitas relações que não podia desprezar forçavam-no a aparecer frequentemente na sociedade. Falava-se muito da sua ambição, mas, no entanto, gozava fama de muito sério; ocupava uma elevada posição; o êxito e a fortuna não lhe eram adversos, de maneira que a opinião pública tornara-se-lhe favorável. Ocupavam-se muito dele e muito pouco da mulher, que vivia num grande isolamento que a satisfazia.
Amava-me como se eu fosse sua filha; e eu, ainda entristecida, com o coração ferido pelo meu afastamento de Katia, lançava-me ardentemente nos seus braços que se abriam para me consolar. Depois amei-a sempre como mãe, como irmã e como amiga.
Depressa notei, apesar das aparências, que não era feliz. O tranquilo deslizar da sua existência era como uma camada de neve que cobre um vulcão quase extinto. O seu próprio sorriso meigo não dissimulava bem o desgosto cruciante que lhe roía a alma.
Adivinhei este pesar profundamente arreigado e dissimulado e amei-a ainda mais.
Além disso, parecia desconfiar de si mesma e vigiar atentamente o seu coração. Muitas vezes, no próprio momento em que parecia completamente calma e serena, grossas lágrimas lhe saltavam dos olhos, Dir-se-ia que a consciência de alguma coisa despertava nela para a torturar.
O marido parecia adorá-la e era muito atencioso para com ela; ela também lhe testemunhava afeição; contudo, uma criança como eu podia compreender que havia um gelo entre aqueles dois corações, gelo que sol algum conseguiria derreter.
A princípio, não gostava do marido de Alexandra Mikailovna. Era um homem alto, magro, frio, com os olhos sempre ocultos com lunetas azuis, e como que propositadamente.
Era pouco comunicativo e mesmo para com a mulher tinha sempre o aspeto glacial e brusco de um inglês. Era reservado e raramente encontrava assunto para conversar. A sociedade tornava-se-lhe muita vez insuportável.
Não ligava a mínima importância à minha pessoa, e, se acontecia encontrarmo-nos todos três na sala, eu perdia a coragem e procurava ocultar-me.
Se lançava, às furtadelas, um olhar a Alexandra Mikailovna, via-a observar ansiosamente os gestos e as atitudes do marido, temendo sempre desagradar-lhe e receando das suas palavras alusões que eu não podia compreender.
Ela empregava toda a sua graça e toda a sua boa vontade para agradar a esse homem e desesperava de o conseguir. Procurava menos lisonjeá-lo do que mendigar a sua aprovação. Regozijava-se ao menor sorriso que podia arrancar àquela natureza apática e fria, mas esta mesma alegria não era completa e não chegava a expulsar o constrangimento e a tristeza que existiam entre eles. Só quando o marido a deixava é que se tornava boa e alegre. Então conversava comigo em todos os assumptos como se fora uma amiga. Falávamos bastas vezes acerca dele, mas a nossa conversa limitava-se a interrogações que ela queria fazer a seu respeito. — Falou-me nisto ou naquilo? Parecia satisfeito? — e nada mais.
Interpelava ainda os criados, perguntando-lhes onde é que ele passara o dia, se não se tinha queixado de coisa alguma!
Semelhante afeição admirava-me profundamente. Eu não passava de uma criança, mas compreendia claramente que isto não devia ser assim entre marido e mulher. Perdia-me em conjeturas e, acabando por não encontrar coisa alguma, deixara decorrer os dias e habituava-me a essa solene tristeza que pairava por toda a casa.
Só de vez em quando é que alguns raios alegres penetravam nesta monótona vida.
Às vezes, Peter Alexandrovitch mostrava-se mais amável do que de costume para com Alexandra Mikailovna; correspondia às suas amabilidades por um sorriso ou uma palavra agradável e pedia-lhe que tocasse um pouco de piano; então ela tocava-nos qualquer música que alegrava a noite de inverno.
Isto, porém, acontecia rarissimamente; a nossa vida quase conventual, decorria uniforme, sem um único acontecimento.
Eu crescia e desenvolvia-me; novas sensações acordaram em mim e que me distraíam das minhas preocupações. Da resto, eu estimava muito a juvenil senhora e, por discrição, não ousava profundar o motivo do seu eterno desgosto. Ela adivinhava a minha afeição e mostrava-se-me reconhecida. Quando lia no meu semblante uma viva inquietação, sorria-se, através das lágrimas, e chegava a rir-se da sua própria tristeza, ou então queria persuadir-me de que vivia contente e feliz, que achava uma grande satisfação na bondade e na amizade que eu mostrava ter-lhe, e que só a desgostavam os tormentos de Peter Alexandrovitch; à parte isso, era feliz, muito feliz...
No entanto, ao pronunciar estas derradeiras palavras, não podia evitar que as lágrimas lhe assomassem aos olhos.
Capítulo 20
Alexandra Mikailovna tinha, pois, por mim, uma afeição muito especial e gostava de partilhar comigo a sua solidão. Consagrava-me todos os ócios que o filhinho, uma criança de um ano, lhe deixava.
Imaginou, talvez para distrair-se, educar-me sem recear a concorrência da senhora Leotardo, que sorria um pouco dos seus esforços.
Ela queria, efetivamente, ensinar-me todas as ciências de uma vez, de modo que eu não compreendia coisa alguma e ela mesma se perdia nas suas explicações. A senhora Leotardo achava o método insuficiente e que o ensino deixava a desejar; mas a tudo supria a boa vontade, e também a muita afeição mútua.
A minha protetora inquietava-se pouco com a pedagogia; notara já que para instruir-me bastava apenas compreender o meu género de espírito e solicitar a minha atenção: tinha razão e os factos não tardaram a demonstrá-lo.
Desde o começo que as relações hierárquicas entre discípula e professora desapareceram. Aprendíamos como duas amigas; muitas vezes era como se eu própria ensinasse a Alexandra Mikailovna, e eu nem sequer suspeitava do estratagema. Por exemplo: levantava-se uma discussão entre nós; era-me preciso provar a veracidade da minha asserção, o que eu me esforçava por fazer, guiada, sem dar por isso, por Alexandra Mikailovna. E quando por fim tinha compreendido, adivinhava a esperteza da minha professora. Apreciava também o sacrifício que ela me fazia de uma grande parte do dia. Lançava-me ao pescoço dela ao cabo das lições. A minha excessiva sensibilidade admirava-a e comovia-a. Interrogava-me curiosamente acerca do meu passado, desejosa de ouvi-lo contado por mim e, todas as vezes que eu acabava de referi-lo, tornava-se mais terna e mais séria — porque a minha infância inspirava-lhe piedade e, ao mesmo tempo, uma espécie de respeito. Longas conversas se seguiam a estas confidências que eu via então sob um outro aspeto e de que tirava um ensinamento para o futuro.
A senhora Leotardo julgava estas conversas graves de mais e, vendo que as lágrimas bastas vezes me assomavam aos olhos, achava-as deslocadas. Eu não era dessa opinião.
Depois de cada lição, sentia-me leve e enternecida como se a minha existência tivesse sido sempre perfeitamente feliz. Além disso era reconhecida para com Alexandra Mikailovna a quem eu amava cada vez mais.
Logo de manhã nos encontrávamos no quarto do filho, vestíamo-lo, divertíamo-nos em ensiná-lo a falar, e achava um extremo prazer em fazê-lo comer e em fingir que era mãe dele.
O estudo, o passeio, as palestras, a música repartiam-se pelo resto do dia e os meses decorriam sem um acontecimento.
Capítulo 21
Certo dia, o músico Bouvarov, que era um amigo da casa, veio passar uma noite connosco. Falou-se de música, de arte, de artistas, de todas as coisas que me traziam à memória a lembrança de meu pai e tinham, por isso mesmo, um duplo interesse para mim.
Eu já era, nessa época, bastante crescida: recebia lições de professores conhecidos, porque queriam fazer de mim uma mulher muito instruída. Aplicava-me tanto a essas lições quanto me era possível, mas eu preferia antes as de Alexandra Mikailovna.
Lembro-me também de que me tinham dado um professor de história, mas logo que ele voltava costas, nós recomeçávamos juntas a história à nossa maneira. Líamos muito e muitas vezes até tarde, ou antes, Alexandra Mikailovna lia, pois que era simultaneamente leitora e censora. Todas essas narrações me entusiasmavam. Animávamo-nos mutuamente como se fossemos as heroínas. Verdade é que líamos mais nas entrelinhas do que no próprio texto, e demais, Alexandra Mikailovna lia com tal convicção que parecia ter assistido aos próprios acontecimentos.
Achar-se-á talvez ridícula esta paixão de leitura que nos mantinha a pé até tão tarde. Mas eu não passava de uma criança e ela era um coração martirizado que dificilmente suportava o pesado fardo da vida. Sabia que achava na minha companhia uma espécie de acalmia. Muitas vezes olhava para ela com ar pensativo. Adivinhava a vida, antes mesmo de ter principiado a viver.
Cheguei assim aos treze anos.
Alexandra Mikailovna piorava de dia para dia. Irritava-se com mais facilidade; as suas crises de desespero cada vez se tornavam mais violentas; as visitas do marido multiplicavam-se, e permanecia junto dela mais taciturno e mais calado do que nunca. O futuro da juvenil senhora inquietava-me deveras.
Eu já não era uma criança; observava e adivinhava muita coisa; no entanto, o mistério que pairava nesta casa preocupava-me sem que pudesse descobri-lo. Em certas ocasiões julgava compreendê-lo. Outras vezes, indiferente, apática, irritante até, esquecia a minha curiosidade, não podendo achar solução aos problemas que me havia proposto. Acontecia principalmente com muita frequência, sentir uma estranha necessidade de estar só a fim de pensar — de pensar sempre!
Estas ocasiões lembravam-me o tempo em que, na casa da minha família, antes de me afeiçoar a meu pai, meditara durante todo um ano sem quase pronunciar palavra, de tal modo, que me tornara quase bicho do mato no meio dos fantasmas saídos da minha imaginação. A diferença do meu estado atual manifestava-se nas minhas impaciências, nas minhas angústias, nos meus inconscientes transportes, na minha sede de movimento que me tornavam mais difícil do que dantes a concentração de ideias.
Por seu lado, a juvenil senhora parecia evitar-me. Nesta idade eu já não podia ser para ela uma criança. Interrogava-a muito, e olhava-a às vezes de tal maneira, que a obrigava a baixar os olhos. Havia então entre nós momentos singulares. Sentia que lhe era pesada. Outras vezes — e então era bem triste e bem penoso isto — num transporte de desespero tomava-me nos braços e tentava interessar-me na sua sorte. Não podia suportar por mais tempo o seu isolamento e parecia crer que eu a compreenderia e que ambas sofreríamos.
Já não subsistia o mistério entre nós! Sentia-o e afastava-me dela. Por vezes a sua presença tornava-se-me intolerável. Depois, aparte a música, poucos assuntos nos juntavam. O médico proibia-lhe agora que tocasse piano. Ler? Cada vez se lhe tornava mais difícil escolher leitura própria para mim. Ficávamos na primeira página; cada palavra era uma alusão, cada frase insignificante um problema. Ambas nós fugíamos dessas conversas ardentes.
Por essa época o meu estado moral sofreu um rude abalo e tomou uma direção um pouco mais determinada.
Eis como foi.
Capítulo 22
A casa de jantar tinha três portas. Uma dava para a sala; outra para o meu quarto e para o do filho, e a terceira para a biblioteca. Esta tinha, por sua vez, uma porta pela qual se penetrava no gabinete de trabalho contíguo ao meu quarto. Um secretário de Peter Alexandrovitch, que era simultaneamente seu copista, ocupava ordinariamente esse aposento onde se guardavam as chaves das estantes e da biblioteca.
Um dia, depois de jantar, encontrei no chão a chave da biblioteca; a curiosidade apossou-se de mim, abri e entrei.
Era uma vasta quadra, muito clara, guarnecida de grandes estantes envidraçadas, cheias de livros. A maioria deles tinha sido herança legada a Peter Alexandrovitch. A outra parte compunha-se de livros comprados por Alexandra Mikailovna. Até então só tivera na minha mão livros escolhidos com o máximo cuidado. Fácil era de supor que me ocultassem muita coisa. Este o motivo por que, tomada de uma irresistível curiosidade, tremendo de alegria e de susto, abri uma das estantes e tirei o primeiro livro que me caiu sob a mão: era um romance.
Voltando para o meu quarto, fechei a porta, mas nada consegui ler; estava com outro receio: primeiro faltava-me o meio de dispor da biblioteca sem que pessoa alguma desse por isso. Guardei a leitura para momento mais oportuno, tornei a pôr o livro no seu lugar e guardei a chave.
Guardei-a! Foi a primeira ação má da minha vida. Aguardei os acontecimentos. Tudo correu pelo melhor. o secretário, depois de procurar a chave por toda a parte, resolveu mandar chamar no dia seguinte um serralheiro que lhe arranjou outra. O incidente não teve outras consequências, e depressa foi esquecido completamente.
Tive o cuidado de só entrar na biblioteca oito dias depois de me haver assegurado de que não havia suspeita alguma, e durante a ausência do secretário.
Desde então, dediquei-me à leitura com furor, era uma paixão. Todas as minhas aspirações, todos os arroubos da minha adolescência, que muito cedo haviam desenvolvido o meu espírito, tomavam um rumo novo que supus por muito tempo a verdadeira saída da minha situação.
Depressa fiquei tão fascinada, a minha fantasia estendeu-se tão largamente, que me pareceu esquecer o mundo exterior.
A sorte parecia deter-me no limiar da nova vida que eu tão fortemente desejava penetrar e com a qual sonhava dia e noite. Mas, antes de me deixar tomar este caminho desconhecido, o destino impelia-me até uma altura donde me mostrava num mágico panorama, numa atraente e luminosa perspetiva, todo o meu futuro. Devia viver esse futuro depois de o ter apreendido nos livros e avistado nos meus sonhos, nas minhas esperanças, nos meus apaixonados entusiasmos, nas doces emoções da minha alma juvenil.
Li ao acaso. O acaso serviu-me bem para os dois primeiros volumes; depois, a minha existência fora tão nobre, tão austera, que eu não podia ser solicitada por leituras maliciosas. O meu instinto de criança, a minha mocidade e todo o meu passado guardavam-me. A consciência tinha como que iluminado de uma só vez toda a minha vida. De facto, lendo uma página, parecia ter lido todas. E como não ir até ao esquecimento do presente, isolada como estava da realidade, quando, defronte de mim, em cada livro se incarnavam as leis do mesmo destino — o mesmo espírito de aventuras que paira sobre a vida dos homens? Esta lei de que eu suspeitava, tratei, com todas as forças e com todas as faculdades sobre-excitadas da minha imaginação, de adivinhá-la.
Dia a dia se fortalecia cada vez mais na minha alma a esperança, e os meus entusiasmos pelo futuro se tornavam mais violentos. Queria viver esta vida que descortinava nas minhas leituras e que me aparecia revestida de todos os esplendores da arte, de todas as seduções da poesia. Mas, como já disse, a minha imaginação tinha grande ascendente sobre a minha impaciência; só era animosa em sonhos, pois que, na realidade, o futuro aterrorizava-me. Num tácito acordo com a consciência, resolvi que era preciso contentar-me com a descrição destas belas quimeras até ao dia em que pudesse realizá-las no mundo mentiroso e romanesco onde só entrevia alegria e sublimidade; a fatalidade, quando a admitia, representava apenas um papel passivo, passageiro e necessário para fazer suaves contrastes, para originar súbitas mudanças de destinos, evoluindo para os desenlaces felizes, porque invariavelmente acabavam todas essas histórias.
E esta vida de sonho, que me isolava completamente de tudo quanto me cercava, pôde durar três anos!
E esta vida era o meu mistério. Quando ela findou, ignorava ainda se devia ou não revelá-la. A minha existência durante esses três anos foi tão íntima, tão pessoal!
O meu eu refletia-se tão exclusivamente em todos esses sonhos, que estava confusa e aterrada com a ideia de que um olhar estranho tivesse penetrado na minha alma. Além disso toda a gente da casa vivia isolada, num recolhimento monacal.
Durante esses três anos nada se dera, nada, nada se modificou em volta de mim. Uma triste uniformidade pairava sobre nós como dantes. Presumo que, se não tivesse podido escapar a este círculo de lassidão e de desgosto pela minha atividade intelectual, o desgosto e o desespero me teriam lançado talvez num caminho fatal.
A senhora Leotardo envelhecia; não abandonava o quarto. Os filhos eram muito pequenos para que me interessassem. O marido de Alexandra Mikailovna, sempre o mesmo, severo e reservado, gelava-me de terror. O misterioso abismo que o separava da mulher cada vez se tornava mais terrível, mais insuperável. Alexandra Mikailovna estiolava-se como uma planta partida; definhava sem causa aparente como num remorso terrível, cujo motivo eu me torturava por adivinhar.
Havia principalmente uma coisa que me dava muito que pensar: quando mais eu caminhava em idade, mais ela se afastava de mim e a sua dissimulação traía-se por impaciências nervosas que me faziam sofrer. Tinha certos dias, certas ocasiões em que parecia não gostar nada de mim e que a minha presença a importunava.
Já disse que eu própria começava a afastar-me dela; assim que o fiz completamente, tornei-me sombria e taciturna como todos os moradores da casa. Eis porque de tudo o que vivi durante esses três anos, de tudo o que se desenrolou em mim dos meus sonhos, dos meus estudos, das minhas esperanças, dos meus apaixonados entusiasmos, nada confiei a pessoa alguma.
Os sofrimentos de Alexandra Mikailovna faziam-me amá-la cada vez mais e contudo nunca nos aproximávamos a valer. Não posso agora recordar-me sem lágrimas quanto ela me amava também e quantos esforços lhe não eram necessários para manter até ao fim o papel de mãe que se impusera pela pobre órfã.
É verdade que a sua própria infelicidade a arrebatava muitas vezes para bem longe de mim; parecia esquecer-me tanto mais quanto eu mais queria fugir da sua lembrança. Assim cheguei aos dezasseis anos sem que ninguém desse por isso. Nos seus momentos conscientes e lúcidos, Alexandra Mikailovna preocupava-se repentinamente comigo. Arrancava-me bruscamente às minhas lições, às minhas ocupações, assediava-me com perguntas como querendo confessar-me, não me largava mais durante dias inteiros, buscando adivinhar todas as minhas inclinações, todos os meus desejos. Mas ela já estava desabituada de mim e, como era muito ingénua em tudo quanto fazia, notava logo que aquele excesso se tornara anormal e inconstante. Por exemplo (e isto aconteceu quando eu tinha dezasseis anos) folheando certo dia um dos meus livros para ver o que é que eu lia, ficou aterrada ao notar que eu ainda não saíra das leituras infantis. Adivinhei o que ela pensava e observei-a atentamente. Durante quinze dias me crivou de perguntas, sondou-me para ver o grau do meu desenvolvimento e das minhas necessidades intelectuais. Por fim resolveu-se e encontrei sobre a minha mesa o Ivanhoé, de Walter Scott, que eu lera já há muito tempo por duas vezes. A princípio, numa ansiosa espectativa, seguiu as minhas impressões; dir-se-ia que lhe pesavam, como se as temesse. Houve enfim uma expansão nas nossas relações. Ligámo-nos novamente com grande entusiasmo e fiquei tão contente, tão contente, que não tive coragem para me esconder dela. Quando acabei a leitura do romance estava encantada comigo. Todas as minhas observações lhe pareceram justas, todas as minhas opiniões sensatas. No meu entender, estava muito adiantada para a idade. Encantada pôs-se a vigiar a minha educação; por sua vontade nunca me deixaria, mas isso, porém, não estava na sua mão. Uma recaída da doença tornou a separar-nos; depois seguiu-se uma crise de desespero que fez reviver a sua desconfiança e, talvez, endurecer-lhe o coração.
Contudo, mesmo durante esse período, tivemos ainda alguns bons momentos: as leituras, algumas palavras afetuosas, a música aproximavam-nos ainda e muitas vezes faziam-nos esquecer; confessávamo-nos mutuamente, com o coração nas mãos, mas, a súbitas, sentíamo-nos, tanto uma como outra, frias, depois das mais íntimas expansões.
Uma tarde, um pouco antes de anoitecer, eu lia distraidamente no gabinete de Alexandra Mikailovna. Ela estava ao piano, e improvisava alguns motivos sobre um dos seus favoritos temas italianos. Quando chegou a um motivo melódico que eu conhecia, arrastada pelo canto que me arrebatava a alma, pus-me a trauteá-lo timidamente. Depressa, ousada, levantei-me e acerquei-me do piano. Alexandra Mikailovna, como se me adivinhasse, deixe u de tocar para si e aplicou-se, com afetuosa atenção, a seguir todas as notas que eu dava. Parecia admirada com a extensão da minha voz. Até então nunca eu cantara na sua presença nem sabia se possuía o que se chama voz; por isso, animei-me, afinando cada vez mais o som; a minha energia, a minha paixão estavam sobre-excitadas pela feliz surpresa de Alexandra Mikailovna, surpresa que eu percebi pela maneira por que ela tocava. Por fim acabei o trecho com tanto entusiasmo e vigor que, de repente, me tomou nos braços e olhou-me cheia de transporte.
— Anneta, tu tens uma voz maravilhosa! — exclamou. — Meu Deus, como é que ainda o não tinha notado?
— Se eu mesma só agora é que dei por isso! — respondi toda contente.
— Então, minha querida e única filha, agradece a Deus esse dom... Quem sabe... Ah, meu Deus, meu Deus!
Estava tão comovida com esta descoberta e num tal arrebatamento de alegria, que não sabia o que dizer-me nem como acariciar-me. Foi um destes momentos quase inebriados de completa franqueza e de ardente simpatia, como não tínhamos havia já muito tempo. Esta grande alegria tomou mesmo as proporções de uma espécie de festa. Mandou-se chamar Bouvarov. Enquanto esperávamos, abrimos, ao acaso, uma outra música que eu sabia melhor e pus-me a cantar uma ária. Desta vez a timidez fazia-me tremer, temia destruir, por um insucesso, a primeira impressão produzida. Mas depressa a minha voz se animou e me manteve. Eu própria fiquei admirada com a sua força e a sua extensão. Em segunda experiência dissipou todas as dúvidas. Na sua exaltação e na sua impaciência, Alexandra Mikailovna mandou chamar os filhos e as criadas; chegou até a ir buscar o marido fazendo-o sair mesmo do escritório, coisa de que noutra ocasião ela não tinha ousado conceber a possibilidade. Peter Alexandrovitch recebeu a notícia benevolamente, felicitou-me e declarou que era preciso fazer-me trabalhar. Alexandra Mikailovna, cheia de reconhecimento, como se o marido tivesse feito um grande sacrifício, beijou-lhe as mãos.
Por fim apareceu Bouvarov. O velho artista mostrou-se muito satisfeito. Amava-me muito. Lembrava-se de meu pai, do meu passado; assim que eu cantei umas três vezes na sua presença, declarou com ar sério, preocupado, mentiroso mesmo, que eu estava admiravelmente dotada e que já tinha talento; na sua opinião era necessário fazer-me trabalhar. Depois, supondo decerto que podia ser perigoso elogiar-me muito a princípio, ambos pareceram ter-se arrependido do que haviam dito, trocaram sinais de inteligência e toda a conversa que se seguiu, dirigida contra o meu amor-próprio, foi singularmente desastrada e ingénua. Eu ria à socapa ao vê-los, depois de cada nova melodia, esforçarem-se por dissimular as suas impressões e encontrar-me defeitos que exageravam propositadamente. Contudo, não puderam manter por muito tempo o seu papel. Bouvarov foi o primeiro a trair-se, e o seu prazer humanizou-o sem querer. Nunca suspeitara que me amasse tanto. Durante toda a noite a conversa se manteve amigável e afetuosa. Bouvarov contou várias anedotas acerca de cantores e atores célebres; as suas narrativas tinham a veemência peculiar dos artistas, quando se referem a mestres venerados.
Depois de ter recordado meu pai, falou de mim, da minha infância, do príncipe, de toda a sua família, de quem eu nunca recebera notícia alguma desde a nossa separação; Alexandra Mikailovna ainda menos. Bouvarov foi várias vezes a Moscovo e podia dar-nos informações. Aqui a conversa tomou um rumo misterioso e duas ou três circunstâncias que se referiam ao príncipe, foram letra morta para mim. A juvenil senhora perguntou ao grande músico por Katia, mas, ou ele não sabia coisa alguma, ou não quis falar. Isto surpreendeu-me. Não esquecera Katia, a minha afeição por ela não enfraquecera e nem uma só vez pensei em que pudesse haver qualquer mudança nela. Eu não contava com a nossa separação nem com os longos anos que vivíamos afastadas uma da outra, sem nos correspondermos, nem a diferença dos nossos carateres e da nossa educação; amava-a como antigamente. Nos meus fantasiosos sonhos, passeávamos juntas, de braço dado; eu imaginava ser a heroína de todos os meus romances, e punha sempre ao pé de mim a princesinha minha amiga.
O conselho de família decidiu que se me daria um professor de canto. O melhor e o roais conhecido foi-nos recomendado por Bouvarov. No dia seguinte, o italiano D... apresentou-se, examinou-me e mostrou-se tão entusiasmado como o ilustre músico. Depois de ter refletido, disse que me seria mais proveitoso tomar as lições em casa dele juntamente com os outros discípulos, porque o sentimento de emulação me faria progredir mais rapidamente e que lá encontraria tudo quanto era indispensável para os meus estudos. Alexandra Mikailovna consentiu e, três vezes por semana, de manhã, acompanhada por uma criada, me dirigia para o Conservatório.
Pela mesma época deu-se um pequeno acontecimento que me produziu uma violenta impressão e que marca a minha entrada na adolescência.
Por esse tempo tinha dezasseis anos completos. Uma indefinível apatia me invadia; era a reação natural dos impulsos fogosos que tinham precedido este período. Estava constantemente tomada de uma espécie de calma angustiada, absolutamente insuportável.
As minhas ilusões caíam uma a uma, não precipitadas pelas circunstâncias, mas porque eu perdi a força de exaltação capaz de as sustar. Uma fria indiferença substituíra os meus antigos arrebatamentos de criança inexperiente. A minha própria arte, que eu tanto amava, e a que toda a gente fizera um magnífico acolhimento, já não tinha para mim os mesmos atrativos.
Nada me interessava já, a tal ponto, que a própria Alexandra Mikailovna me inspirava aborrecimento e eu sofria com isso. Desesperos súbitos, crises de lágrimas quebravam por vezes a monotonia deste intolerável estado. Buscava a solidão. Neste estranho momento, um acaso desencadeou sobre a minha alma uma tempestade e fez resolver uma vaga inquietação num verdadeiro temporal. O meu coração ficou desnorteado.
Capítulo 23
Um dia entrei na biblioteca (e nunca em toda a rainha vida esquecerei os pormenores desta aventura); tomei um romance de Walter Scott: Os votos de S. Ronan, a única obra deste autor que eu nunca lera. Recordo-me de que tinha o coração confrangido; estava como que atormentada por um pressentimento.
A sala estava iluminada pelos oblíquos raios do sol poente, cujas ondas luminosas corriam através das altas janelas e se alastravam pelo pavimento luzidio. O silêncio era completo. Não se via vivalma nos aposentos contíguos. Peter Alexandrovitch saíra e Alexandra Mikailovna estava de cama, doente. Desatei a chorar, não podendo resistir à minha agitação interior. Abrindo a segunda parte do livro, folheei-o distraidamente, tentando dar um sentido às frases que me passavam pelos olhos. Parecia procurar uma predição de sorte, como se faz ao abrir um livro ao acaso. Em certos momentos, todas as forças, intelectuais e morais se distendem morbidamente como se uma luz viva iluminasse de repente a consciência, como se alguma visão profética se impusesse à perturbada alma; sofre e enlanguesce na espectativa de uma coisa misteriosa... animada duma cálida esperança, quer aspirar à vida.
Estava nesta particular disposição.
Fechava propositadamente o livro para o abrir ao acaso e buscar aí o meu horoscopo, e lia a página que se me apresentava.
Mas eis que, folheando-o, achei um papel escrito, dobrado em quatro e comprimido como se já ali estivesse há muitos anos. Examinei curiosamente o meu achado. Era uma carta sem direção, assinada com as iniciais S. O.; abri-a. As páginas quási coladas umas às outras, haviam deixado, nas folhas amareladas do livro, o seu traço branco; a margem estava muito gasta. Adivinhava que aquela carta fora lida muitas vezes e cuidadosamente guardada; a tinta, descolorida, alastrava-se; parecia datar de muito tempo. Algumas palavras atraíram a minha atenção. O coração pulsava-me violentamente.
Voltava embaraçadamente este papel nas minhas mãos como que hesitando em lê-lo. Acerquei-me da janela. Sim, havia vestígios de lágrimas naquelas palavras meio apagadas. De quem eram essas lágrimas?
Ansiosa li metade da primeira página. Soltei inadvertidamente um grito de pasmo. Tornei a fechar a estante, depois de ter arrumado o livro e, escondendo a carta no seio, corri para o meu quarto e pus-me a lê-la. O coração, porém, pulsava-me tão violentamente, que os carateres saltavam e fugiam ante os meus olhos. Estive muito tempo sem compreender coisa alguma. Mas por fim descobri o princípio do mistério, sabendo a quem era dirigida a carta. Sabia que era um crime ler aquelas linhas, mas a tentação era mais forte do que a minha vontade. A carta fora escrita a Alexandra Mikailovna.
Eram algumas palavras de despedida, duma despedida para sempre. Depois de ter lido a carta, senti-me sofrer, como se fosse eu própria que acabasse de perder tudo, como se me arrancassem para sempre os meus olhos e as minhas esperanças, como se apenas me ficasse a vida, de que não precisava de então para o futuro. Quem seria o autor desta carta? Qual fora a existência daquela mulher? Estas linhas encerravam alusões e factos com os quais não podia haver dúvidas. Ao mesmo tempo, porém, havia problemas cuja solução me não era fácil. Contudo, compreendi pouco mais ou menos. Além disso, o estilo sugeria muitas ideias e revelava a índole desta ligação cujo rompimento ferira dois corações. Finalmente, li com clareza nas entrelinhas os pensamentos e os sentimentos do epistológrafo. Transcrevo a carta textualmente:
Tu nunca me esquecerás! Disseste: acredito em ti! E é desde então que a minha vida se encerra nestas palavras. É forçoso separarmo-nos; chegou o momento! Já o sabia há tempo, minha doce, minha triste beleza! Mas só hoje é que o compreendi. Durante todo o nosso tempo, o tempo em que tu me amaste, o meu coração confrangia-se e sangrava ao pensar no nosso amor. Acreditarás em mim? Sinto menos sofrimento agora! Tudo devia concluir assim; era o nosso destino, sabia-o! Alexandra, não éramos iguais; senti-o sempre, sempre! Não era digno de ti! Eu só deverei suportar o castigo da minha felicidade! Diz-me: o que era eu para ti até ao dia em que me compreendeste? Meu Deus! Já vão passados dois anos e eu não compreendo ainda agora porque tu, tu me amaste, a mim! Lembra-te do que eu era em relação a ti: eu merecia-te? Podia, ao menos, ser-te comparado? O que é que havia em mim para que tu me notasses, pois que nada me distinguia dos outros? Antes que o teu olhar e o teu sorriso tivessem iluminado a minha vida, era simples e vulgar, tinha o aspeto triste e taciturno; só desejava outra existência além da minha, se bem que mesquinha; não pensava nisso nem queria pensar. Tudo me oprimia e me subjugava; considerava o meu labor quotidiano como a coisa mais importante do mundo. Não podia ter outro cuidado que não fosse o dia de amanhã! E ainda isso me deixava indiferente! Antes, há muito tempo, aspirava à felicidade e sonhava com ela como um imbecil! Mas decorreram muitos dias e pus-me a viver solitário, grave, reservado, não sentindo mesmo o frio que gelara o meu coração entorpecido.
Sabia, e com isso me resignava, que nunca um bom sol me aqueceria.
Estava antecipadamente convencido disso e não me lastimava, porque devia ser assim. Quando me apareceste, não suspeitava de que eu tivesse a ousadia de levantar os olhos para ti. Estava diante de ti, como se fora um escravo. No entanto, o meu coração não tremia, não enlanguescia, não te pressentia, dormia ainda. Ainda que a minha alma encontrasse a serenidade junto da sua radiosa irmã, não adivinhava a tua.
E quando tu me apareceste, recordas-te? Depois daquela noite, depois daquelas palavras que me transtornaram, fiquei perdido, aniquilado, tudo se confundiu em mim e, acreditá-los-á? Em vez de ficar entusiasmado, tão pouca confiança tinha em mim, não compreendi! Nunca te disse isto.
Se tivesse podido, se tivesse ousado, tê-lo-ia confessado há muito tempo. Mas calei-me. Hoje confesso-te tudo porque não coras com a minha recordação, porque não sabes de que homem tu te separas. — Sabes como te vi a princípio? A paixão invadira-me como uma chama, entrara no meu sangue como se fora um veneno; confundira todos os meus sentimentos e todos os meus pensamentos; estava inebriado e correspondia ao teu amor de piedade não como de igual para igual, não como ente merecedor do teu amor, mas como um desejo desenfreado e inconsciente. Não te compreendera. Respondia-te como a uma mulher caída até mim? Não como uma mulher que queria elevar-me até ela. Sabes de que te suspeitava? Sabes tu o que significa: caída até mim? Não! Não te ofenderei explicando-to. Dir-te-ei apenas que te iludiste a meu respeito! Nunca, nunca, nunca poderia erguer-me até a ti! Podia contemplar-te de longe, com uma infinita adoração quando penetrasse os teus nobres sentimentos, mas esse sacrifício não teria ainda apagado as faltas que cometi para contigo. A minha paixão educada por ti não era um verdadeiro amor. No amor há mutualidade, igualdade, e eu não era digno... E ignorava o que se passava dentro em mim. Oh, como hei de dizer isso para que me compreendas!... Oh, se tu te recordas, a minha primeira agitação serenou, a minha situação esclareceu-se, não ficando em mim mais do que um sentimento puro, quais não foram o meu espanto, a minha confusão, e o meu receio! Recordas-te também de que me lancei, debulhado em lágrimas, a teus pés e que me perguntaste com terror o motivo desse grande desespero... não podendo responder-te, calei-me. A minha alma esfacelava-se, a minha felicidade esmagava-me como se fora um pesadíssimo fardo, e os soluços gritavam-me: Como mereci esta ventura! Oh, minha irmã, minha irmã! Quanta vez — ignorá-los-ás sempre — quanta vez não beijei o teu vestido, furtivamente, porque estava convencido da minha indignidade. Faltava-me a respiração; o meu coração pulsava vagarosamente e fortemente como se quisesse parar, morrer no meu peito em chamas. Quando tomava a tua mão, empalidecia e tremia. A pureza da tua alma embaraçava-me. Oh, não me é possível contar-te tudo quanto se amontoava em mim e desejava tanto dizê-lo! Sabes que a tua ternura e a tua piedade foram, por vezes, dolorosas para mim? Quando me beijaste (e isso aconteceu uma única vez e recordá-lo-ei até à eternidade) passou como que um nevoeiro ante os meus olhos e senti desfalecer-se-me a alma. Porque é que nesse instante não morri a teus pés? Trato-te por tu, pela primeira vez, embora me tenhas permitido esse tratamento há muito tempo. Compreenderás o que quero dizer? Quero dizer-te tudo! Dir-te-ei que tu amaste-me muito, que me amaste como uma irmã ama o irmão, que me amaste como a tua própria criação, porque tu ressuscitaste o meu coração, despertaste o meu espírito, derramaste em todo o meu ser um bálsamo de esperança. Mas então não podia falar-te assim, não ousava! Não te chamei irmã, porque até agora não era teu irmão. Não éramos iguais. Enganavas-te a meu respeito!
Tu, mesmo agora, nesta hora terrível, vês que só falo de mim, embora tu penses em mim e te atormentes por minha causa. Oh! Não te inquietes, minha querida amiga! Se tu soubesses como me sinto aviltado a meus próprios olhos!
E que barulho não fez esta descoberta! Repelir-te-ão, desprezar-te-ão, rir-se-ão de ti, porque eu sou vil aos olhos do mundo. Oh, como me sinto culpado de ter sido indigno de ti. Se, ao menos, tivesse mostrado algum mérito, se me fizesse estimar, ter-te-iam perdoado! Mas sou vil, nulo, ridículo e depois de ridículo não há mais nada! E para quê tanto escândalo? Desataram a gritar e senti-me desanimado. Fui sempre fraco! Sabes qual a minha situação atual? Escarneço de mim mesmo, suponho que dizem a verdade que sou ridículo! Sim, odeio o meu rosto, o meu ser, os meus hábitos, os meus modos vulgares, e odiei-os sempre! Oh! Perdoa-me o meu indelicado desespero, não foste tu mesma que me ensinaste a ser franco? Perdi-te! Atraí sobre a tua cabeça a animosidade e hilaridade gerais, porque era indigno de ti! E é este pensamento que me tortura; fere, dilacera, tortura-me o coração. Tu não amaste, segundo presumo, o homem que realmente existe em mim; enganas-te. Eis o que eu sofro. Aqui está o que me há de perseguir até à morte ou até à loucura.
Portanto, adeus, adeus! Agora que tudo se descobriu, que o mundo fez ouvir os seus clamores e as suas maledicências (e eu conheço-as) agora que me aviltei a meus próprios olhos, envergonhado de mim próprio, envergonhado por ti, pela escolha que fizeste, agora que sou amaldiçoado, preciso de fugir, sob o teu anátema, para teu descanso e tua tranquilidade... Exigem-no e nunca mais me verás. É preciso. Exigem-no e não me tornarás a ver! Assim é necessário. Era demasiadamente feliz, o meu destino tinha-me enganado; repara agora o seu erro, tirando o que me dera! Aproximámo-nos tendo-nos compreendido e separámo-nos ainda... Mas encontrar-nos-emos mais alguma vez? Onde e quando? Oh, diz-me, querida! Onde te tomarei a ver? E como havia eu de reconhecer-te? Tu própria reconhecer-me-ias? Toda a minha alma está cheia de ti. Porque, porque cairia esta fatalidade sobre nós? Porque nos separamos? Explica-mo que eu não o compreendo, não o compreenderia nunca, pois que não posso compreendê-lo! Crês tu que possa fazer-se de uma vida duas existências; arrancar o coração sem se morrer?... Quando penso que nunca mais te verei, nunca mais, nunca mais!...
Meu Deus! Que gritos não soltou a sociedade. Como eu agora temo por ti!... Encontrei o teu marido. Ambos somos indignos dele, ainda que não sejamos culpados. Sabe tudo e há muito tempo. Colocou-se heroicamente a teu lado; salvar-te-á, defender-te-á contra os juízos e contra os clamores da turba. Ama-te, estima-te, é o teu salvador, enquanto eu... fujo!...
Precipitei-me para ele; quis beijar-lhe as mãos... Disse-me que partisse imediatamente. Está decidido? Assegura-se que se indispôs com toda a gente por tua causa!
Todos o censuram. Censuram-lhe a sua fraqueza e a sua cumplicidade. Meu Deus! Que mais dirão? Ignoram, não podem saber, são incapazes de compreender. Perdoa-lhes, perdoa-lhes, minha santa, como eu lhes perdoo. E eles tiraram-me mais do que a ti.
Não sei o que escrevo. De que falei eu ontem à hora da nossa despedida? Tudo se me varreu. Estou fora de mim. Tu, tu choravas... Perdoa-me essas lágrimas, pois sou tão fraco e tão cobarde...!
Queria dizer-te algumas coisas ainda. Oh, ainda uma vez apenas banhar com as minhas lágrimas as tuas mãos, com que eu rego estas linhas. Mais uma vez me vou ajoelhar a teus pés!... Se eles soubessem como o teu sentimento era puro! Mas são cegos.
O coração deles é orgulhoso e altivo.
Não te veriam e não te compreenderiam.
Não te julgariam inocente, embora tudo o que vive sobre a terra jurasse que não és culpada! E depois, foram eles feitos para compreenderem? Mas quem ousará atirar a primeira pedra? Qual será o primeiro braço que se erguerá contra ti? Oh! Eles não se embaraçarão para apanhar milhares de pedras e ousarão atirá-las, porque sabem como é preciso fazê-lo! Executar-te-ão todos juntos e afirmarão ao mesmo tempo que estão isentos de pecado e, piedosamente, tomarão à sua conta o nosso! Oh, se eles soubessem o que fazem!
Se pudéssemos confiar-lhes tudo, não ocultando coisa alguma, para que eles vissem, ouvissem, compreendessem e se convencessem da nossa sinceridade...
Mas não! São tão maus!... Sinto-me desesperado neste momento, e talvez os calunie! Assusto-te com os meus terrores! Nada receies, nada receies, querida. Compreender-ta-ão. Já te compreendem... teu marido... quero crê-lo!
Adeus! Adeus! Não te agradeço! Adeus para sempre!
S. O.
Fiquei aturdida, sem compreender o que se passava em mim. Esmagava-me um terror. A realidade acabava de assombrar-me como se um raio caísse no meio da sonhadora existência que eu levava havia três anos. O mistério que tinha entre mãos acorrentava-me por toda a vida. Como? Ainda não podia explicá-lo. Sentia, porém, que nesse momento começava para mim uma nova existência. Desde esse dia entrava para uma sociedade que aqueles que me cercavam tinham cuidadosamente dissimulado, ocultado... Que perturbações iria levar à vida dos meus benfeitores, eu, uma estranha, a quem ninguém perguntava coisa alguma? A quem me conduziria o acaso que me havia feito possuidora daquele segredo? Que sabia eu? Talvez que o meu novo papel se tornasse insuportável a eles como a mim. Era impossível calar-me e guardar para sempre no meu coração o que acabava de descobrir. Mas como dizer-lho? O que aconteceria depois de o haver dito? Que soubera eu, afinal de contas? Milhares de perguntas, confusas ainda, surgiam ante mime me confrangiam dolorosamente a alma. Sentia-me desvairada.
Depois, experimentava outras impressões que nunca experimentara. Parecia que sofria uma transformação. Que as minhas angústias tinham desaparecido para dar lugar a um não sei quê de que não podia regozijar-me nem afligir-me. A minha atual situação semelhava a de uma pessoa deixando para sempre uma casa onde passara uma vida serena e calma; vai afastar-se, e, antes de partir, diz um longo adeus a todo o seu passado, enquanto um sentimento triste a aperta num futuro desconhecido árido e quiçá perigoso.
Por fim os soluços sacudiram-me e tive um ataque de nervos. Experimentava a necessidade de ver, de ouvir alguém, de beijá-lo demoradamente. Não me era possível, não queria estar só. Precipitei-me logo para o quarto de Alexandra Mikailovna e passei toda a noite junto dela. Estávamos sós. Pedi-lhe que não tocasse piano e recusei cantar, apesar de todas as suas reiteradas instâncias. Tudo me parecia custoso e difícil. Não podia fixar a minha atenção em coisa alguma. Parece que chorámos ambas. Mas só me recordo de a ter assustado. Tentou tranquilizar-me. Observava-me receosa, assegurava-me que eu estava doente e que não tratava como devia a minha saúde. Por fim deixei-a, cansada e atormentada. Meti-me na cama com uma febre violenta.
Passaram-se muitos dias sem que eu sossegasse e sem que desse conta da minha situação. Por esta época vivíamos, Alexandra Mikailovna e eu, num completo isolamento. Peter Alexandrovitch deixara S. Petersburgo e devia permanecer três semanas em Moscovo por causa dos seus negócios. Ainda que essa separação fosse de curta demora, a juvenil senhora entristecia-se deveras. Nos momentos em que estava menos atormentada fechava-se: decerto a minha presença era-lhe importuna. Eu procurava também a solidão. O meu cérebro trabalhava numa tensão doentia, enquanto eu permanecia inerte, tomada por uma espécie de torpor. Às vezes decorriam as horas em longas e inquietas meditações. Sonhava que alguém me observava ironicamente, que alguma coisa espionava em mim todos os meus pensamentos, e me censurava. Não podia livrar-me das obsessões que me torturavam sem descanso. Fazia uma ideia horrível dessa interminável vida de sofrimento e de sacrifício que tão resignadamente Alexandra Mikailovna aceitava e de que tão pouco merecedora era. Parecia-me que o ente a quem se dedicara a desprezava e zombava dela. Parecia-me que era o criminoso que perdoava ao justo e o meu coração sangrava! Quisera libertar-me destas suspeitas. Anatematizava o desconhecido da luta e detestava-me a mim mesma por experimentar semelhante sentimento a respeito de um homem que não devia julgar pelas primeiras impressões.
Analisava essas frases, esses derradeiros gritos de supremo adeus. Punha na imaginação aquele homem — Aquele ser inferior — e tentava adivinhar o sentido inquietador daquelas palavras: Não sou teu igual! — e estas, principalmente surpreenderam-me: Sou ridículo e tenho vergonha de mim mesmo pela escolha que fizeste! O que é que isto significava então? Quais eram as pessoas a quem ele aludia? Porque se lastimava ele? Que é que eles, ela e ele, perdiam? E fazendo um violento esforço, pus-me a ler novamente aquela carta que me transtornava a alma, mas cujo sentido íntimo era tão estranho e tão enigmático para mim. A carta caiu-me das mãos e fiquei numa agitação febril.
Tudo isto tinha que ter um desenlace certo, de uma maneira ou de outra, mas quando encontrei uma solução, mostrava-se-me temível.
Estava quase doente quando, certo dia, ouvi o rodar da carruagem de Peter Alexandrovitch que voltava de Moscovo. Alexandra Mikailovna foi ao encontro do marido com um grito de alegria. Eu ficara pregada no mesmo sítio. Recordo-me de ter ficado desagradavelmente surpreendida com a minha súbita agitação. Não me podendo conservar ali, fugi para o meu quarto. Não compreendia este súbito terror, mas o que é certo é que estava aterrada. Um quarto de hora depois, chamavam-me para me entregarem uma carta do príncipe.
Encontrei na sala um estranho que viera de Moscovo com Peter Alexandrovitch, e, depois de algumas palavras trocadas, soube que o recém-chegado vinha com tenção de se demorar algum tempo como hóspede da casa. Era um homem de confiança enviado pelo príncipe a S. Petersburgo para tratar de alguns importantes negócios da família de que Peter Alexandrovitch também já se encarregara. Entregando-me a carta do príncipe, esse homem acrescentou que a princesinha também me quisera escrever. Afirmara até ao último momento que a carta estaria pronta, sem falta, à hora marcada. Mas ela deixara partir a carruagem, dizendo que não tinha coisa alguma a escrever, que não podia exprimir-se suficientemente numa carta, que tinha rabiscado e rasgado cinco folhas de papel e que, de resto, era necessário tornarem-se amigas para manterem uma correspondência aturada. A princesinha encarregara ainda o mensageiro de anunciar a sua próxima visita. Esperei-a largo tempo e... nunca mais a vi.
Às minhas impacientes perguntas, o mensageiro respondeu-me que de facto toda a família vinha a S. Petersburgo. Essa notícia tornou-me contentíssima. Dei-me pressa em voltar para o meu quarto e, uma vez sozinha, abri a carta do príncipe, debulhada em lágrimas. Prometia-me uma próxima entrevista e felicitava-me, com grande bondade, pela minha nova aptidão. Abençoava os meus êxitos futuros, prestando-se a facilitarmos. As minhas lágrimas redobraram com a leitura daquela excelente carta, ao mesmo tempo que me sentia invadida por uma pungente tristeza. Porquê? Ignorava-o, mas assustava-me como se tivesse um funesto pressentimento.
Decorreram muitos dias. No quarto contíguo ao meu, onde morava o secretário de Peter Alexandrovitch, trabalhava agora de manhã e algumas vezes à tarde até à meia noite, o hóspede. Muitas vezes fechava-se com Peter Alexandrovitch no gabinete e aí se conservavam juntos durante longas horas.
Um dia, depois de jantar, Alexandra Mikailovna pediu-me que fosse ter com o marido a perguntar-lhe se queria tomar chá. Não encontrando ninguém no gabinete, e supondo que Peter Alexandrovitch não tardaria, sentei-me e esperei. O retrato do dono da casa estava pendente duma parede. Estremeci de repente ao ver aquele retrato e, incompreensivelmente perturbada, pus-me a olhá-lo com fixidez. Estava colocado muito alto, quase ao pé do teto. Além disso, o aposento era tão escuro, que, para o ver melhor, puxei uma cadeira e trepei-me a ela. Queria achar ali como que uma solução das rainhas dúvidas. Recordo-me de que os olhos do retrato me deram logo nas vistas. Acudiu-me inesperadamente a ideia de que, como os olhos de Peter Alexandrovitch estavam sempre escondidos pelas lunetas, eu nunca os tinha visto.
Esse olhar velado sempre me fora antipático e insuportável; era como que uma prevenção que neste momento se justificava. A minha imaginação estava extraordinariamente excitada.
Pareceu-me de repente que os seu olhos se desviavam dos meus procurando evitá-los; furtavam-se para não deixar adivinhar a sua mentira e a sua falsidade. Supus ter adivinhado qualquer coisa. Uma alegria íntima me percorreu todo o corpo. Um grito fraco me saiu do peito. Ao mesmo tempo senti um ruído por detrás de mim. Voltei-me e achei-me cara a cara com Peter Alexandrovitch. Pareceu-me que corara. o meu rosto purpureou-se e saltei para o chão.
— Que faz aqui? — perguntou-me severamente. — Porque está aqui?
Não soube que responder-lhe. Animando-me, transmiti-lhe a custo o pedido de Alexandra Mikailovna. Não me recordo o que me respondeu nem como saí do gabinete. Ao chegar, porém, junto de Alexandra Mikailovna, tinha esquecido completamente a resposta do marido e declarei ao acaso que ele vinha.
— Mas que tens, Netotchka? — perguntou. — Estás tão afogueada! Vê-te ao espelho! Que tens tu?
— Não sei... Vim depressa... — respondi.
— Mas que te disse Peter Alexandrovitch? — prosseguiu ela visivelmente embaraçada.
Calei-me.
Neste momento sentiram-se os passos de Peter Alexandrovitch e depressa deixei o quarto. Esperei duas horas, presa de uma profunda angústia. Por fim vieram dizer-me que Alexandra Mikailovna perguntara por mim. Achei-a silenciosa, com ar inquieto. Ao entrar, olhou-me vivamente e com fixidez, mas logo baixou as pálpebras. Parecia confusa. Notei que se encontrava em má disposição de espírito; falou pouco, evitou olhar-me e, para não responder às incessantes perguntas de Bouvarov, desculpou-se com dores de cabeça. Peter Alexandrovitch conversava animadamente, mas só com Bouvarov. Alexandra Mikailovna aproximou-se distraidamente.
— Cante-nos alguma coisa! — me pediu o grande músico.
— Sim, Anneta! Canta a tua nova ária — secundou Alexandra Mikailovna, feliz por aquela ocasião propícia.
Olhei para ela; fixava-me numa ansiosa espectativa.
Não pude resolver-me; em vez de me aproximar do piano, de cantar mesmo qualquer coisa, permaneci imóvel, enleada comigo mesmo e recusei terminantemente.
— Porque é que tu não queres cantar? — me perguntou Alexandra Mikailovna, olhando ora para mim, ora para o marido.
Estes olhares esgotaram-me a paciência. Levantei-me da mesa, muito agitada, sem mesmo tentar ocultá-lo, e, toda trémula, repeti com arrebatamento que não queria, que não podia, que me sentia doente! Falando assim, olhava com ar de desafio para todos os que me rodeavam. Mas só Deus sabe quanto eu daria para me encontrar sozinha no meu quarto!
Bouvarov pareceu admirado. Alexandra Mikailovna, visivelmente contrariada, não deu palavra. Peter Alexandrovitch levantou-se da cadeira num repente, pretextando ter que fazer e, descontente por ter perdido o seu tempo, retirou-se apressadamente, prometendo voltar. Apertou, pois, a mão a Bouvarov como que despedindo-se a todo a transe.
— Mas o que é que tem? — me perguntou Bouvarov. — Parece realmente doente.
— Sim, estou doente, muito doente! — respondi quase bruscamente.
— De facto estás pálida e ainda há pouco estavas corada!... — observou Alexandra Mikailovna, sem concluir a frase.
— Vejamos! — disse eu olhando-a bem nos olhos.
A pobre senhora não pôde suportar aquele olhar; baixou os olhos como uma criminosa e um ligeiro rubor lhe atingiu as faces pálidas. Tomei-lhe a mão e beijei-a. Pareceu-me ficar toda contente.
— Perdoe-me o ter sido hoje uma criança malcriada! — exclamei eu, profundamente comovida. — Mas, palavra, sinto-me doente. Permite que me retire...
— Todos nós somos crianças! — declarou com um tímido sorriso. — Sim! Eu também sou uma criança, e pior, bem pior do que tu — acrescentou em voz baixa, ao meu ouvido. — Adeus! Estimo as tuas melhoras! Só te peço uma coisa: não fiques zangada comigo.
— Porquê? — perguntei eu, admirada por esta ingénua confissão que lhe fugiu.
— Porquê? — repetiu ela embaraçada e receosa. — Porquê?... Ora vê lá tu como a minha cabeça anda, Netotchka. Que disse eu?... Adeus! Tu tens mais juízo do que eu!... És mais inteligente do que eu... Eu sou pior do que uma criança.
— Está bem, basta! — exclamei eu, comovida. — Já não sei o que hei de dizer.
Beijei-a mais uma vez e saí apressadamente da sala.
Estava simultaneamente muito irritada e muito triste. Tinha zanga a mim própria por estar tão impaciente e de tão mal me saber dominar: por fim, adormeci descontente comigo mesma e cheia de inquietação.
Ao acordar, na manhã seguinte, a noite da véspera apareceu-me como uma visão; tínhamo-nos mistificado mutuamente, havíamos construído uma história sobre um nada. Tudo isto devia ser metido em conta da nossa inexperiência em analisar as nossas íntimas impressões. Sentia que aquela carta me preocupava, excitava deveras a minha imaginação e resolvi não pensar mais nela. Em face de uma solução aparentemente fácil, e convencida de que sem custo cumpriria a promessa que a mim própria fizera, parti para a minha lição mais bem disposta. O ar da manhã refrescava-me as ideias. Adorava aquele passeio matinal. Pelas nove horas, a cidade começava a animar-se e a tomar o seu aspeto quotidiano. Em geral atravessávamos as ruas mais concorridas e ruidosas. O cenário em que iniciava a minha vida artística, encantava-me. Por entre os transeuntes de rostos preocupados e severos, eu ia com uma pasta debaixo do braço, com a velha Natália a meu lado, e perguntando a mim própria quais poderiam ser as reflexões da minha companheira. Por fim chegava a casa do meu professor que era meio italiano, meio francês; não se conhecia ao certo a sua nacionalidade. De vez em quando mostrava-se entusiasta, mas a maior parte das vezes era pedante e cúpido. Tudo me distraía e me fazia rir ou refletir. Ainda que tímida, a vida de artista agradava-me. O contraste da vida quotidiana, cheia de variados cuidados, e a arte a que me consagrava apraziam-me, chegavam mesmo a encantar-me.
Com a apaixonada esperança de conseguir o meu fim, fazia castelos no ar, talhava-me um magnífico futuro e muitas vezes, lembrando-me da lição, ficava toda inflamada com as minhas fantasias. Numa palavra: sentia-me quase feliz.
Nessa manhã, achava-me precisamente nesta disposição de espírito, ao tornar para casa, por volta das dez horas. Tudo esquecera, sonhando magníficos projetos. De repente, ao subir a escada, estremeci como se qualquer coisa me tivesse queimado. Ouvi a voz de Alexandrovitch que descia. A desagradável sensação que me tomou foi tão forte, a lembrança do que se dera na véspera representou-se-me tão vivamente, que não pude ocultar o meu embaraço. Saudei-o com um ligeiro aceno de cabeça, mas o meu rosto estava decerto expressivo; parou defronte de mim, espantado. Ao ver esse movimento, corei e subi apressadamente. Murmurou qualquer coisa que não percebi e continuou o seu caminho.
Não podia compreender o que sentia em mim. Lágrimas de despeito me arrasavam os olhos de instante. Sentia que odiava o marido de Alexandra Mikailovna, mas ao mesmo tempo desesperava-me comigo mesma. Esta contínua agitação tornava-me seriamente doente. Não era senhora de mim. Irritava-me com toda a gente. Fechei-me no quarto.
Alexandra Mikailovna veio visitar-me. Deu um grito de terror quando me viu. Estava tão pálida, que o meu rosto refletido no espelho me assustava. Alexandra Mikailovna demorou-se uma hora a cuidar de mim como se fosse sua filha.
Os seus cuidados, porém, entristeciam-me; as carícias tornavam-se-me penosas; daí a pouco pedi-lhe que me deixasse só. Saiu muito admirada. Por fim, o meu pesar dissipou-se após uma torrente de lágrimas. A tarde já estava melhor.
Achava-me melhor porque me resolvera ir para junto de Alexandra Mikailovna, a lançar-me a seus pés, a entregar-lhe a carta perdida e a confessar-lhe tudo: as minhas torturas, as minhas dúvidas; queria estreitá-la nos braços com infinita paixão; repetir à pobre mártir que era sua filha, sua amiga, que o coração se me abria para ela, que era nele que devia olhar e ver tudo o que continha de amor ardente e inquebrantável para ela. Meu Deus! Sabia, sentia que era eu o único ente em que ela podia confiar abertamente o seu coração. Compreendia o seu desgosto. Mas o meu coração enchia-me de indignação à ideia de que podia corar na minha presença... Minha querida... minha querida... serás tu uma pecadora?
Era isto o que queria dizer-lhe, chorando a seus pés. Uma grande necessidade de justiça se apossava de mim e uma espécie de delírio guiava as minhas resoluções. Um acaso inesperado impediu esta explicação.
Aqui está o que aconteceu:
Quando me dirigia para o quarto de Alexandra Mikailovna, encontrei Peter Alexandrovitch que passou junto de mim sem fazer reparo. Também se encaminhava para o quarto da mulher. Era a última pessoa que eu teria pensado encontrar em tal ocasião. Parei, ficando como que pregada ao chão. Ia para me afastar, mas a curiosidade deteve-me.
Parou alguns momentos defronte do espelho, alisou o cabelo e, com grande espanto meu, ouvi-o trautear uma canção. Nesse mesmo momento acudiu-me ao espírito uma obscura recordação da minha infância.
Para se compreender a estranha sensação que experimentei, forçoso é referir essa recordação.
No primeiro ano da minha permanência nesta casa, um acontecimento sem importância causara-me uma profunda impressão. E era justamente esse acontecimento que se repetia agora nas mesmas circunstâncias.
Já disse que o ar preocupado e taciturno de Peter Alexandrovitch me havia espantado logo à primeira vista e sempre. Quanto não sofria eu durante as horas passadas à mesa do chá de Alexandra Mikailovna! E que desgosto não sentira ao ser testemunha, por várias vezes, de cenas muito frequentes entre ambos os esposos! Recordei-me de que tinha acontecido encontrá-lo uma vez como hoje, no mesmo quarto, à mesma hora. Ambos nos dirigíamos para o quarto de Alexandra Mikailovna. Sentira-me intimidada com a sua presença e ocultara-me a um canto, como se fora criminosa. Do mesmo modo que hoje, parara defronte do espelho e uma indefinível sensação me fizera estremecer.
Parecera-me que mudara de feições; pelo menos tinha-lhe visto um sorriso no momento em que se acercara do espelho. Desconhecia-lhe aquele sorriso porque nunca o vira desenrugar a fronte junto da mulher. O rosto transformara-se bruscamente assim que se viu ao espelho. O sorriso, como que encomendado, cedera lugar a um ar pesaroso que reaparecia invencível e naturalmente. Os lábios tinham mudado de cor. Carregara o sobrecenho; tornou-se o homem desagradável de sempre. Por fim, após um rápido exame à sua pessoa, baixara a cabeça com aspeto acabrunhado.
A espinha arqueara-se-lhe. Depois desta segunda transformação, encaminhara-se em bicos de pés para o quarto da mulher.
Hoje, como naquele longínquo dia, julgava-se só ao parar defronte do espelho. Quando o ouvi cantarolar (ele, cantar!) fiquei estupefacta, com o coração trespassado. Os meus nervos estremeceram e soltei tal gargalhada, que o infeliz cantor deu um grito, recuou vivamente e muito pálido, semelhante a um criminoso apanhado em flagrante delito, olhou-me desvairado e colérico. Esse olhar fez-me perder a cabeça. Continuei a rir nervosamente. Passei assim por defronte dele e entrei no quarto da mulher. Ficou por detrás do reposteiro, irresoluto. Teria apostado em como não entraria. De facto, não entrou.
Alexandra Mikailovna, assim que me viu entrar, olhou-me demoradamente com ar de profundo espanto e perguntou o que me acontecera. Não soube que responder-lhe. Percebeu enfim que eu estava doente e examinou-me com a máxima atenção.
Eu tomei-lhe as mãos e cobri-as de beijos. Compreendi neste momento todo o mal que teriam feito as minhas confissões felizmente impedidas pelo meu encontro com o marido.
Peter Alexandrovitch entrou.
Eu olhava-o. Estava grave e taciturno como sempre, e parecia não se recordar do que acabara de passar-se. Mas a sua palidez e um ligeiro tremor dos lábios fizeram-me ver que era a custo que dissimulava a sua perturbação.
Cumprimentou silenciosamente a mulher, com ar frio, e depois sentou-se. Quando estendeu a mão para pegar na xícara de chá, notei que tremia. Esperava uma explosão.
Lembrei-me de sair, mas não pude resolver-me a isso, ao notar a palidez e o terror de Alexandra Mikailovna. Ela esperava naturalmente qualquer coisa de anormal e de terrível. A tempestade que eu esperava desencadeou-se.
No meio de um profundo silêncio, os meus olhos encontraram por acaso as lunetas de Peter Alexandrovitch fitadas em mim. Estremeci e baixei a cabeça. Alexandra Mikailovna notou o meu espanto.
— Que tem? Porque cora? — perguntou Peter Alexandrovitch em tom rápido e brutal.
Calei-me; o coração pulsava-me tão violentamente que não podia proferir palavra.
— Porque corou? Porque cora ela sempre? — continuou, dirigindo-se à mulher e designando-me com um olhar insolente.
A indignação sufocou-me. Lancei um olhar suplicante a Alexandra Mikailovna, cujas faces pálidas se coloriram.
— Anneta — me disse ela com voz firme. — Recolhe ao teu quarto. Daqui a momentos, irei ter contigo. Passaremos a noite juntas...
— Pergunto-lhe... compreendeu-me ou não? — exclamou Peter Alexandrovitch como se não tivesse ouvido a mulher. — Porque é que cora quando me encontra? Responda.
— Porque o senhor a força a corar e a mim também... — retorquiu Alexandra Mikailovna com a voz entrecortada pela comoção.
— Sou eu quem a faz corar? Sou eu?... — respondeu Peter Alexandrovitch, estupefacto e acentuando fortemente a palavra eu. — Foi por minha causa que a senhora corou? E em que posso eu fazê-la corar? A senhora é que devia corar e não eu, não lhe parece?
Esta frase era tão clara para mim! Fora acompanhada de um sorriso tão irónico, dita de uma forma tão rude, que soltei um grito e precipitei-me para Alexandra Mikailovna.
O espanto, a estupefação, a censura, o terro, pintaram-se alternadamente no rosto mortalmente pálido da pobre senhora. Olhei para Peter Alexandrovitch, pondo as mãos em atitude suplicante. Pareceu compreender que se excedera. Mas a raiva que lhe ditara a frase não se acalmara ainda. No entanto, a minha súplica muda tomou-o confuso.
O meu gesto indicou-lhe claramente que eu não ignorava o sentido das suas palavras.
— Anneta, volta para o teu quarto! — disse Alexandra Mikailovna com voz fraca, mas firme. — Tenho grande necessidade de ficar só com Peter Alexandrovitch.
Parecia calma, mas eu temia mais aquela aparente tranquilidade do que uma violenta agitação. Fingi não ouvir e deixei-me ficar.
Esforcei-me por ler no rosto da pobre senhora o que se passava no seu íntimo. Pareceu-me não ter compreendido nem a minha exclamação, nem o meu movimento.
— Aqui tem o que fez, menina! — disse Peter Alexandrovitch, tomando-me as mãos e indicando-me a mulher.
Meu Deus! Nunca vira semelhante desespero como o que lia naquele rosto macerado. Tomou-me pela mão e pôs-me fora do quarto. Olhei-os uma última vez. Alexandra Mikailovna encostava-se ao fogão e apertava a cabeça nas mãos. A torsão do seu corpo denotava um sofrimento atroz. Apertei fortemente a mão de Peter Alexandrovitch.
— Por amor de Deus! Por amor de Deus! — exclamei eu numa voz sacudida. — Perdão!
— Nada receie! Nada receie! — respondeu ele de um modo estranho. — É uma crise! Vá-se embora! Vá!
Atirei-me para cima do divã do meu quarto e ocultei o rosto para ficar na escuridão. Permaneci assim durante três horas, sofrendo todas as torturas do inferno. Por fim, não podendo estar ali mais tempo, mandei perguntar se podia ver Alexandra Mikailovna. Foi a senhora Leotardo quem me trouxe a resposta:
Peter Alexandrovitch fazia saber que a crise passara, que já não havia perigo, mas que o estado de Alexandra Mikailovna exigia um completo sossego.
Fiquei a pé até às três horas da manhã, passeando no meu quarto. A minha situação tornava-se mais problemática do que nunca. Contudo, sentia-me mais tranquila talvez por ser a mais culpada. Meti-me na cama, esperando impacientemente o dia seguinte.
No dia imediato, notei com espanto que Alexandra Mikailovna me recebia com uma inexplicável frieza. A princípio supus que esse puro e nobre coração sentia acanhamento em tornar a ver-me depois da cena de que fora testemunha involuntária. Sabia aquela criança capaz de corar diante de mim e de desculpar-se do escândalo da véspera. Não tardei, porém a reconhecer nela vestígios de um outro cuidado e de um despeito que manifestava com uma grande falta de tato. Ou me respondia secamente, ou as suas palavras tinham um duplo sentido ofensivo para mim, ou ainda se mostrava terna e parecia arrepender-se do mal que acabava de fazer-me. Por fim perguntei-lhe em que pensava e se nada tinha a confiar-me. Esta inopinada pergunta embaraçou-a, mas, depois, erguendo sobre mim os seus grandes olhos serenos, respondeu-me com um sorriso meigo:
— Nada, Netotchka! Mas sabes? A tua inesperada pergunta perturbou-me porque ma dirigiste muito bruscamente, afianço-te! Ouve-me: diz-me a verdade, minha filha... Tens alguma coisa no teu íntimo que, se te pedissem que a explicasses, te visses de algum modo perturbada para o fazer?
— Não! — respondi, olhando para ela com olhar límpido.
— Ainda bem! Se soubesses, minha amiga, como te amo por essa boa resposta! Não é porque te suspeite de qualquer coisa má. Nunca! Nunca me perdoaria de me haver passado isso pela mente. Mas, ouve, eu tomei-te para minha casa muito pequenina. Tens agora dezassete anos. Tu viste como eu estava doente, que eu era como uma criança. Careço de ser tratada. Não pude em tudo, substituir tua mãe, embora te ame deveras para que o desejasse fazer. Se agora alguma coisa me inquieta, não é tua culpa certamente, mas, sim, minha. Perdoa-me a minha pergunta e não ter, com bastante mágoa minha, cumprido todas as promessas que te fiz, assim como a teu pai ao trazer-te para casa. Isto atormenta-me ainda e sempre me atormentou.
Apertei-a nos meus braços, chorando e dizendo:
— Oh! Agradeço-lhe, agradeço-lhe tudo! Não me fale assim! Tem sido para mim mais do que mãe. Que Deus a abençoe, a si e ao príncipe, pelo que têm feito por mim, pobre abandonada! Minha pobre mãe, minha querida mãe!
— Então, Netotchka, então! Beija-me muito, muito, muito! Sabes? Parece-me que te beijo assim pela última vez.
— Não! Não! — exclamei soluçando. — Não! Não! Não há de ser assim!... Será feliz!... Ainda há de ter dias alegres. Acredite-me... Ainda havemos de ser muito felizes!
— Obrigada! Obrigada pelo amor que me consagras. Há tão pouco coração em volta de mim! Todos me abandonaram.
— Quem a abandonou? Quem?
— Noutra época fui muito visitada. Tu não sabes Netotchka. Todos me abandonaram! Desvaneceram-se como fantasmas. E eu esperei sempre que voltassem, esperei toda a vida. Que Deus lhes perdoe! Olha, Netotchka! O outono já vai muito adiantado! Não tarda a cair a neve e então morrerei! Sim, mas eu não me lastimo. Adeus!
O seu rosto estava horrivelmente pálido e distendido; nas faces luziam umas rosetas de sangue, de mau agoiro; os lábios, desbotados e secos por uma febre abrasadora, tremiam constantemente como que agitados pela derradeira tremura.
Aproximou-se do piano e tirou alguns sons. Justamente nesta ocasião partiu-se uma corda e o som extinguiu-se como um desesperado suspiro.
— Ouves, Netotchka, ouves? — disse de repente Alexandra Mikailovna em tom inspirado, mostrando o piano. — Esta corda estava muito tensa e por isso morreu. Repara como a sua voz expira lamentosamente.
Falava com dificuldade. As suas dores íntimas refletiam-se-lhe no semblante e os olhos velavam-se-lhe de lágrimas.
— Mas acabemos com isto, Netotchka, acabemos com isto! Vai buscar meus filhos.
Fui buscá-los. Pareceu sossegar, olhando para eles. Passado uma hora, deixou-os partir.
— Quando eu morrer, nunca os abandonarás, não é assim, Netotchka? — me perguntou ela, baixinho, como se receasse que alguém a ouvisse.
— Não diga isso, que me faz mal — respondi, mal tendo força para articular aquelas poucas palavras.
— Estou a brincar — disse ela, sorrindo após um silêncio — e tu estás a tomar isto a sério. Não sabes que às vezes falo sabe Deus como? Sou como uma criança; é preciso desculpar-me tudo!
Olhava-me intimidada. Dir-se-ia que tinha alguma penosa confidência a fazer-me. Esperei.
— Toma cuidado, não o faças alterar — prosseguiu ela, de olhos baixos, com o rubor nas faces e numa voz tão débil que mal se ouvia.
— A quem? — perguntei com espanto.
— A meu marido. Tu naturalmente vais repetir-lhe tudo isto às escondidas.
— Porquê? Mas porquê? — tornei eu, no auge do assombro.
— E depois, talvez não digas, não é verdade? — respondeu ela procurando olhar-me o mais maliciosamente possível, embora o ingénuo sorriso lhe errasse nos lábios e o rubor lhe subisse cada vez mais ao rosto. — Não falemos mais em tal. Gracejava.
O coração confrangia-se-me dolorosamente de minuto a minuto.
— Mas escuta — acrescentou ela, e o rosto tornou-se-lhe sério e misterioso. — Tu amá-lo-ás, quando eu morrer, não é verdade? Amá-lo-ás como se fossem teus próprios filhos, não é assim? Lembra-te de que eu sempre te amei como uma parenta, que nunca te afastei dos meus.
— Sim! Sim! — respondi, sufocada pelo esforço que fazia para represar as minhas lágrimas e sem saber o que dizia.
Um ardente beijo me escaldou a mão, antes que eu tivesse tempo de retirá-la. A estupefação cortou-me a palavra.
«Que tem ela», pensava eu. «Em que pensa ela? Que se daria ontem entre ambos?...»
Um instante depois queixou-se de um grande cansaço.
— Há muito tempo que estou doente — me disse ela — mas não queria assustá-los. Amo-te tanto... Vamos, deixa-me. Até depois, Netotchka. Não te esqueças de voltar esta noite. Vens?
Dei a minha palavra. Tinha pressa de sair; não poderia conter por mais tempo as lágrimas.
«Pobre, ó pobre mulher!», exclamei eu intimamente, soluçando. «Que suspeitas te não acompanham à cova! Que novo desgosto te não tortura e dilacera o coração! Nem sequer te atreves a falar nele!... Meu Deus! Quem poderá explicar este longo sofrimento que há tão pouco tempo me confessou essa vida sem luz e esse tímido amor que nunca ousaria pedir-lhe! Mesmo agora, agora, quase no seu leito de morte, com o coração esfacelado pela angústia, ela está ali, como uma culpada, evitando o mais pequeno ruído, contendo os queixumes e imaginando, inventando uma nova dor para se submeter, para se resignar a ela!...»
Ao anoitecer, aproveitando a ausência de Ovrov (o enviado de Moscovo) entrei na biblioteca, abri uma estante e pus-me a procurar por entre os livros um que pudesse ler em voz alta a Alexandra Mikailovna. Queria, para a desviar das suas tenebrosas ideias, qualquer coisa de leve... Procurei por muito tempo, distraidamente. A medida que a sombra ia aumentando, a minha tristeza tornava-se mais pesada... Veio-me parar às mãos o mesmo livro, aberto na mesma página onde estava colocada aquela carta que me não saía da memória, aquela misteriosa carta que dividira a minha vida em duas partes, acabando com uma e principiando com outra. Como ela me esfriara o coração! Que mundo de estranha desolação me não revelaria! Que será de nós! — perguntava eu. — O canto onde vivia feliz vai ser-me desconhecido. O espírito puro e sereno, que protegia a minha mocidade abandonou-me. Que me espera o futuro?... E esqueci-me a sonhar, ora nessa passado que tão querido me era, ora nesse terrível futuro que tentava adivinhar... Recordo esse instante como se agora mesmo o invocasse de tal modo se gravou na minha memória.
Tinha o livro aberto sobre a carta e o rosto banhado em lágrimas. De repente estremeci de terror. Ouvi por detrás de mim a voz demasiado conhecida e, ao mesmo tempo, senti que me arrebatavam a carta. Soltei um grito e voltei-me, dando de rosto com Peter Alexandrovitch que estava ao pé de mim. Pegou-me no braço e apertou-o com força para me obrigar a ficar sentada. Com a mão direita aproximou a carta da luz e diligenciava decifrar as primeiras linhas ... Desatei a gritar. Preferia morrer a deixar-lhe ler aquela carta. Tudo isto fora tão rápido, que não posso explicar como é que me achei novamente possuidora da carta fatal. Vendo que ele queria readquiri-la, ocultei-a no seio e recuei três passos. Meio minuto decorreu a encarar-me sem dar palavra. Por fim, pálido, com os olhos trémulos e azuis de cólera, foi o primeiro a quebrar o silêncio, dizendo com a voz abafada pela cólera e pela comoção:
— Vamos! Penso que não quer que empregue a força! Dê-me de livre vontade essa carta.
Voltei a mim. A revolta contra esta violência, a indignação, a vergonha estrangulavam-me.
Sentia lágrimas quentes caírem-me pelas faces ruborescidas. A minha agitação era tão violenta, que não tive logo a faculdade de falar.
— Ouviu?... — prosseguiu, dando um passo para mim.
— Deixe-me, deixe-me! — gritei, desviando-me. — O senhor procedeu vilmente, ignobilmente. O senhor faltou ao seu dever!... Deixe-me passar!...
— O quê? Que significa isto! E ainda se atreve a falar-me nesse tom quando... Dê-ma cá, já lhe disse!
Avançou mais um passo. Mas, olhando para mim, leu nos meus olhos uma resolução tão firme, que se deteve e permaneceu alguns minutos a refletir.
— Está bem! — disse ele, por fim, como se tivesse tomado uma resolução. Via-se, porém, que era a custo que se dominava. — Lá chegaremos! — continuou. — Mas primeiro... — olhou em volta de si. — Quem a deixou entrar na biblioteca? Porque é que está a estante aberta? Onde foi buscar a chave?
— Nada lhe responderei, porque nada tenho que responder nem lhe quero falar. Deixe-me!
E dirigi-me para a porta.
— Desculpe — disse ele, retendo-me pela mão — mas não sairá assim.
Desprendi mudamente a mão e dei um novo passo para a porta.
— Tudo estará muito bem, mas o que eu não posso é consentir que receba em minha casa as cartas dos seus amantes.
Soltei um grito de terror.
— Por conseguinte... — continuou ele.
— Basta! — exclamei eu. — Como pode dizer-me?... Meu Deus! Meu Deus!...
— O quê? Que é? Pois torna a ameaçar-me!?
Olhei para ele, pálida, com a morte no coração. Não explicava a mim própria como é que aquela cena horrível pudera tão rapidamente atingir semelhante grau de intensidade.
Supliquei-lhe com o olhar que se detivesse. Estava disposta a perdoar-lhe a ofensa, contanto que ele se calasse. Olhou-me fixamente e pareceu hesitar.
— Não me faça ir ao extremo! — disse-lhe eu baixinho.
— Não; é preciso acabar com isto de uma vez — pronunciou ele em tom resoluto, acrescentando, com um estranho sorriso: — Confesso que hesitei a princípio ante o seu olhar. Pude ler o princípio da carta de amor, não tente fazer-me duvidar, não expulse essa ideia do seu espirito. Se hesitei, isso prova simplesmente que às suas faculdades há a acrescentar a de saber representar bem uma comédia. Por conseguinte repito-lhe...
À medida que falava, o furor transtornava-lhe o rosto. Cada vez empalidecia mais; os lábios torciam-se e tremiam-lhe. Mal pode proferir as últimas palavras.
E a noite avizinhava-se. Estava indefesa, sozinha, ante um homem capaz de ultrajar uma mulher. Demais, todas as provas eram contra mim. Morria de vergonha, sentia-me perdida; e, contudo não podia compreender o furor desse homem. Sem lhe responder, louca de terror, saí do quarto e arrastei-me, sem saber como viera, até à entrada do gabinete de Alexandra Mikailovna. Nesse momento, senti os passos de Peter Alexandrovitch e quis fugir-lhe, entrando, quando, bruscamente, me detive como que fulminada por um raio.
«Que irá acontecer?», pensava. «Esta carta!... Não; vale mais tudo no mundo do que este golpe no seu coração...» E recuei, mas já era tarde.
— Vamos para onde quiser, mas para aqui não, para aqui não! — lhe disse baixinho, agarrando-lhe a mão. — Poupe-a. Venha para a biblioteca, ou para onde quiser... O senhor mata-a...
— És tu que a matas — respondeu, repelindo-me.
Todas as minhas esperanças desapareceram. Compreendi que queria continuar precisamente aquele escândalo no gabinete de Alexandra Mikailovna.
— Por piedade! — lhe disse eu ainda, detendo-o com todas as minhas forças.
O reposteiro, porém abriu-se e apareceu Alexandra Mikailovna. Olhou para nós com espanto. O seu rosto estava mais pálido de que era costume. Era com custo que se mantinha de pé. Via-se que devia ter feito um grande esforço para se aproximar de nós assim que nos ouviu falar.
— Que aconteceu? De que estão a falar? — perguntou ela, examinando-nos com uma espécie de terror.
Fez-se um silêncio durante alguns minutos. Empalideceu mais ainda. Lancei-me a ela e, estreitando-a com força, arrastei-a para o fundo do gabinete.
Peter Alexandrovitch seguiu-nos. Ocultei o rosto no seio de Alexandra e abracei-a fortemente, mais fortemente ainda, cheia de apreensão.
— Que tens? Que queres? — perguntou ela pela segunda vez.
— Pede-lhe que te elucide... ontem tê-la-ias proibido... — disse Peter Alexandrovitch, deixando-se cair pesadamente sobre uma cadeira.
Apertei-a mais estreitamente nos meus braços.
— Mas que aconteceu? — perguntou Alexandra Mikailovna desorientada. — Estás irritado, ela aterrorizada, ela chora... Anneta, diz-me tudo o que se passou.
— Não; permite em primeiro lugar... — atalhou Peter Alexandrovitch, avançando e, desviando-me de Alexandra Mikailovna, acrescentou, indicando-me o meio da casa — fica aqui. Quero que aquela que te serviu de mãe te julgue. E tu tranquiliza-te, senta-te — continuou, conduzindo Alexandra Mikailovna para junto de uma cadeira. — Custa-me bastante não poder dispensar-te de uma desagradável, mas necessária explicação.
— Meu Deus. Que irá dar-se! — exclamou Alexandra Mikailovna, olhando ora para o marido, ora para mim.
Eu torcia as mãos na espectativa do fatal momento. Sabia que ele não me perdoaria.
— Numa palavra — prosseguiu Peter Alexandrovitch — irás julgar comigo. Foste sempre (e não sei porquê, entre outras, tiveste esta fantasia), foste sempre, ontem ainda, por exemplo, a primeira a dizer... Mas, não sei como expressar-me, as tuas suposições fazem-me corar. Numa palavra, defendia-la, eras contra mim, repreendias-me pela minha desmarcada severidade; fazias mesmo alusão a um outro sentimento que parecia a causa dessa desmarcada severidade. Tu... mas não compreendo porque não posso expulsar o meu embaraço. Sobe-me o rubor ao rosto só com o pensar nas tuas suposições. Porque não hei de dizê-lo abertamente na tua presença...? Em suma, tu...
— Oh, não lhe dirás isso, não, tu não o dirás — interrompeu Alexandra Mikailovna no auge da inquietação e corada de vergonha. — Poupa-lhe isso. Fui eu que inventei tudo isso, mas não tenho suspeitas agora, nem uma única. Perdoa-me isso ainda, perdoa, eu sinto-me doente. É preciso perdoar-me e não dizer isso... Anneta — prosseguiu, virando-se para mim — Anneta, vai-te, vai-te embora depressa; ele estava a gracejar e eu sou a única culpada. Era um gracejo de mau gosto...
— Enfim, tinhas ciúmes dela por minha causa — disse Peter Alexandrovitch, lançando impiedosamente esta frase à ansiosa espectativa da pobre senhora.
Ela soltou um grito, empalideceu e caiu quase desfalecida na cadeira.
— Deus te perdoe! — murmurou ela por fim. — Perdoa-me por ele, Netotchka, perdoa-nos. Eu sou a principal culpada. Estava doente e...
— Mas isso é uma tirania muito vergonhosa, muito vil! — exclamei eu fora de mim e compreendendo finalmente o motivo por que ele tanto queria que me humilhasse aos olhos da mulher. — É ignóbil, senhor...
— Anneta — implorou Alexandra Mikailovna admirada, retendo-me pela mão.
— Comédia, comédia e nada mais! — tornou Peter Alexandrovitch, dirigindo-se para nós, numa inexplicável agitação. — Comédia! — continuou, olhando fixamente para a mulher e com um sorriso cruel. — E a ludibriada nesta comédia és tu, acredita — prosseguiu vibrante de raiva e designando-me com um olhar. — Não somos nós quem mais deve temer tais promessas. Acredita: não estamos inocentes ao ponto de ofender-nos, corar e tapar os ouvidos quando diante de nós se fala em semelhantes coisas. Desculpa a minha maneira franca e simples e talvez brutal de expressar-me, mas era preciso; a senhora está certa do bom comportamento desta... menina?
— Meu Deus! Que tem? Esquece-se... — disse Alexandra Mikailovna, como que petrificada de espanto.
— Nada de frases, peço-lhe! — tornou Peter Alexandrovitch com desdém. — Não gosto disso. O assunto de que se trata é banalíssimo. Peço-lhe informações acerca do comportamento dela. Sabe?...
Eu não o deixei acabar. Tomei-lhe a mão e puxei-o vivamente para um lado. Mais um segundo, e tudo estava perdido.
— Não lhe fale da carta — disse-lhe rapidamente e em voz baixa. — Matá-la-ia instantaneamente. As repreensões que me dê repercutem-se nela mesma. Ela não pode julgar-me porque eu sei tudo... Compreende? Sei tudo!
Olhou-me fixamente, com uma ardente curiosidade e pareceu enleado. O sangue aflui-lhe às faces.
— Sei tudo, tudo! — repetia eu.
Ele hesitava ainda, tinha uma pergunta prestes a sair-lhe dos lábios; adiantei-me e disse em voz alta, dirigindo-me a Alexandra Mikailovna, que nos examinava com uma inquietação crescente:
— Fui eu a culpada. Há quatro anos que os iludo. Apanhei a chave da biblioteca e há quatro anos que leio livros às escondidas. Peter Alexandrovitch surpreendeu-me com um livro que não devia ter nas minhas mãos. Tremendo por mim, exagerou o mal perante a senhora... Mas não me defendo — apressei-me a declará-lo, ao ver um malévolo sorriso errar pelos lábios de Peter Alexandrovitch. — Mais uma vez confesso que sou culpada. A tentação era muito forte, e, como já fora repreendida pela mesma falta, tive vergonha em confessá-la... Aqui está pouco mais ou menos o que se passou.
— Oh! Oh! Como caminha depressa! — disse-me Peter Alexandrovitch em voz baixa.
Alexandra Mikailovna ouvia-me com uma profunda atenção. O seu rosto traía uma evidente desconfiança Olhava alternadamente para mim e para o marido. Houve uma pausa. Custava-me a respirar. Pendeu a cabeça para o peito, cobriu os olhos com a mão para melhor se concentrar, para melhor pesar cada uma das palavras que eu pronunciara. Por fim, ergueu a cabeça e olhou-me demoradamente.
— Netotchka, minha filha — disse ela — sei que és incapaz de mentir. Tudo isso é verdadeiro? Absolutamente verdadeiro?
— Em absoluto — respondi.
— É realmente assim? — perguntou ao marido.
— Sim, é — respondeu com esforço.
Respirei.
— Dás-me a tua palavra, Netotchka?
— Dou — respondi sem pestanejar. Contudo não pude deixar de olhar para Peter Alexandrovitch. Tinha rido ao ouvir-me dar a minha palavra; corei e o meu embaraço foi notado pela pobre Alexandra Mikailovna. Um profundo desgosto lhe vincou as faces.
— Vamos — disse ela tristemente — Creio e não te posso crer.
— Eu espero que tais testemunhas bastem — ripostou Peter Alexandrovitch. — Ouviu? Que mais quer?
Alexandra Mikailovna não deu palavra. A cena tornava-se cada vez mais penosa.
— Amanhã mesmo examinarei esses livros — prosseguiu Peter Alexandrovitch. — Não sei o que ainda lá haverá, mas...
— E que livro lia ela? — perguntou Alexandra Mikailovna.
— Que livro? Ah?... Responda, ande — me disse ele. — Sabe melhor do que eu explicar essa questão — acrescentou, pondo uma intenção irónica em cada uma das frases.
Não tive palavras para responder.
Alexandra Mikailovna tornou a corar e baixou os olhos.
Houve um grande silêncio.
Peter Alexandrovitch passeava pelo aposento.
— Não sei o que há entre ambos — disse por fim Alexandra Mikailovna falando com visível timidez — mas se não há senão isso — continuou, esforçando-se por dar um sentido particular às suas palavras e evitando o olhar do marido — se não há senão isso não sei porque assim nos escondemos todos três. Fui eu a mais culpada. Descuidei-me com a sua educação e devo responder por ela. É preciso que me perdoe, que eu possa julgá-la. Julgá-la, não o ousaria! Mas, ainda uma vez, porque desolarem-se? O perigo já passou. Olhe para ela, Peter Alexandrovitch — e cada vez se animou mais — olhe para ela e diga-me quais foram as consequências da sua imprudência. Ah! conheço esta criança, esta pobre pequena, e sei que o seu coração é puro e nobre, sei que nesta bonita cabecinha — e acariciava-me, atraindo-me a si — há uma inteligência lúcida e justa, uma consciência adversa à mentira... Vamos! Acabemos com isto meus bons amigos, há qualquer outra coisa que ocultam no fundo da sua tristeza. É uma nuvem, uma tempestade perigosa. Desviemo-la pelo amor, pelo bom entendimento, e nada de suspeitas, não é melhor? Talvez entre nós houvesse desconfianças e sou eu a primeira a confessá-lo porque foi em mim que elas começaram a nascer. Dissimulei convosco e só Deus sabe quais os pensamentos que me acudiram ao espírito doente. Mas... mas, visto que já dissipámos os maiores embaraços deste mal-entendido, perdoem-me ambos porque... porque enfim, as minhas suspeitas, no fundo, não eram de grande gravidade.
Olhou timidamente para o marido, esperando com ansiedade uma resposta. Sorria, escutando-a, e, quando ela acabou de falar, deixou de passear e deteve-se hirto na sua frente, com as mãos cruzadas atrás das costas. Parecia espionar a confusão da mulher, estudá-la e regozijar-se. Sentindo pesar sobre si aquele olhar fixo, ela perturbou-se. Ele calou-se por momentos como que esperando que ela continuasse. O seu enleio redobrava. Por fim, ele interrompeu aquela insuportável situação por um longo, silencioso e insolente frouxo de riso.
— Lamento-a, pobre senhora — disse, afetando um tom de amarga gravidade e deixando de rir. — Assumiu um papel superior às suas forças. Que quer? Uma resposta? As suas palavras, porém, escondem mal as novas suspeitas que concebeu, ou antes, essa antiga desconfiança que nunca permitirá compreender a minha resposta. Não é verdade que não há ponto pelo qual possa irritar-se contra ela, que é perfeita mesmo depois de ter lido livros imorais cuja imoralidade me parece ter dado já os seus frutos? Em conclusão, responde por ela, não é assim? No entanto, reserva as suas suspeitas e eu sei a que secreto motivo atribui as minhas perseguições. Ontem, ainda observava (peço-lhe que me não interrompa, pois gosto das situações claras) ainda ontem observava, repito, que em casa de certas pessoas (e lembro-me de que, segundo sua opinião, essas pessoas são vulgarmente corretas, severas, retas, inteligentes, fortes, e não sei quantos qualificativos lhes deu ainda no seu acesso de generosidade) que em certas pessoas, repito, o amor (e Deus sabe porque a senhora imaginou falar do amor) não pode ser senão profundo, violento, arrebatado, mesclado de desconfiança e traduzindo-se por importunidades. Não me recordo bem se foram estes precisamente os termos empregados... Peço-lhe, pois, que me não interrompa, conheço bem a sua discípula, que tudo pode ouvir, tudo, pela centésima vez lho repito, tudo. A senhora está enganada. Mas porque quer que seja eu precisamente o indivíduo em questão? Para que quer meter-me ridiculamente dentro do gibão de um bobo? Amar esta menina? Vamos, que não é próprio da minha idade. E depois, finalmente, minha senhora, conheço os meus deveres; qualquer que possa ser a sua generosidade de perdão que me ofereça, mantenho a opinião de que os crimes são sempre crimes, que um pecado é sempre um pecado vergonhoso, detestável, ignóbil, por muito alto que se queira elevar. Mas deixemos isso para não falarmos em vilanias!
Alexandra Mikailovna chorava.
— Pois bem: torture-me, que tudo isso recaia sobre mim! — disse ela, continuando a abraçar-me. — Despreze-me pelas minhas suspeitas, muito bem, e o senhor bem cruelmente se tem rido delas! Mas tu, minha pobre pequena, porque estás condenada a ouvir tais ofensas sem que eu possa defender-te delas? Faltam-me as forças, meu Deus!... Não posso calar-me, senhor! É superior à minha vontade... O seu comportamento é de louco!...
— Cale-se, cale-se — lhe disse eu baixinho, esforçando-me por lhe acalmar a indignação. Temia que exasperasse o marido com as suas reprimendas, tremia por «la,
— Mas, mulher cega — exclamou ele — a senhora não sabe nada, não vê nada... — Deteve-se por momentos e, de repente, disse-me, arrancando-me as mãos das mãos de Alexandra Mikailovna. — Para trás! Para trás! Proíbo-lhe que se aproxime da minha mulher. Enxovalha-a! Ultraja-a com a sua presença!... Mas... o que é que me obriga a calar quando é indispensável que eu fale? — exclamou ele, batendo o pé. — Falarei, direi tudo. Ignoro o que sabe, menina, e do que me quis ameaçar, nem quero sabê-lo. Escute — continuou, dirigindo-se à mulher — ouça...
— Cale-se! — supliquei eu, dando um passo para ele. — Cale-se! Nem uma palavra!
— Escute...
— Nem uma palavra em nome de...
— Em nome de quem, menina? — interrompeu ele vivamente, olhando até ao fundo de meus olhos — Em nome de quem?... Fique sabendo que a encontrei, que a surpreendi com uma carta de amor na mão. Aqui tem o que se passa em nossa casa. Aqui está o que se passa perto de nós! Aqui tem o que não soube ver!
Era com custo que me mantinha de pé. Alexandra Mikailovna fez-se pálida como a morte.
— Isso não pode ser — balbuciou ela.
— Vi a carta, minha senhora, tive-a nas mãos, li as primeiras linhas e não me enganei. Era a carta de um amante. Arrebatou-ma das mãos. Tem-na ela. Esta é que é a verdade nítida, clara, indiscutível. Hesita ainda? Olhe para ela.
— Netotchka — exclamou ela, precipitando-se para mim. — Mas não; não fale, não fale. Sei o que é, sei do que se trata... Meu Deus! Meu Deus!
E debulhou-se em lágrimas, ocultando o rosto nas mãos.
— Não; isso não pode ser assim! — volveu ela. — Enganou-se. Isto... Eu sei o que significa! — E olhou de frente para o marido. — O senhor... eu... não poderia... Vejamos, tu não me mentirás, não me podes mentir, confessa-me tudo, nada ocultes. Enganou-se, não é verdade! Viu mal, estava cego!... É isso, não é assim? Não é assim? Ouve-me: porque não me confessas toda a verdade, Anneta, minha filha, minha querida filha?...
Ouvi por cima da minha cabeça a voz de Peter Alexandrovitch:
— Responda, responda depressa: vi ou não vi a carta que tinha entre as mãos?
— Viu — respondi, sufocada pela comoção.
— Era a carta do seu amante?
— Era.
— Com quem mantinha relações?
— Sim, sim, sim! — respondi, sem saber o que dizia, resolvida a responder afirmativamente a todas as perguntas para acabar de vez com aquele estado de coisas.
— Ouviu-a? Pois bem: que lhe dizia eu? Acredite, boa alma, coração sempre crédulo — disse Peter Alexandrovitch, tomando a mão da mulher. — Acredite em mim e renuncie às ilusões da sua imaginação enferma. Veja agora o que é esta... menina. Quis simplesmente mostrar-lhe quanto as suas suspeitas eram infundadas. Sabia tudo isto havia já muito tempo e sinto-me à vontade por havê-la desmascarado na sua presença. Custava-me vê-la junto de si, nos seus braços, à nossa mesa, em minha casa, enfim. A sua cegueira revoltou-me. Foi por isto, e por isto unicamente, que a estudei, que a espionei. Deus sabe as suspeitas que lhe sugeriu o interesse que eu parecia tomar em seguir-lhe os passos! Deus sabe tudo o que a senhora bordou sobre este motivo! Agora, porém, a situação está esclarecida, não há equívoco possível e de amanhã em diante, menina — concluiu dirigindo-se a mim — de amanhã em diante não a quero em minha casa.
— Detenha-se! — disse Alexandra Mikailovna, levantando-se. — Não acredito em coisa alguma. Não me olhe tão ferozmente, não zombe de mim. O senhor mesmo é que eu quero julgar. Anneta, minha filha, anda cá, dá-me assim a tua mão. Ambas somos culpadas... — As lágrimas faziam-lhe tremer a voz e olhava para o marido com uma estranha expressão de submissão. — Qual de nós tem o direito de repelir qualquer mão que seja? Dá-me a tua mão, filha; tenho menos mérito do que tu, sou menos virtuosa. A tua presença não pode ofender-me: não sou eu também uma pecadora?
— Minha senhora! — exclamou Peter Alexandrovitch espantado e colérico. — Cale-se... Esquece-se...
— Nada esqueço. Não me interrompa; deixe-me falar. O senhor teve nas suas mãos uma carta, chegou mesmo a lê-la. O senhor disse e ela... confessou que essa carta era daquele que ela ama... Mas isso prova qua seja culpada? Isto dá lhe o direito de tratá-la assim, de ultrajá-la aos olhos de sua mulher, sim, senhor, aos olhos de sua mulher? Considerou bem isso? Sabe bem o que fez?
— Naturalmente ainda tenho-que pedir-lhe perdão, não é assim? É o que a senhora quer, não é verdade?... Eu perco a paciência! Sabe de quem fala? Sabe o que diz? Sabe quem e o que defende? Pois é bem claro e contudo...
— O senhor não viu tudo, porque o orgulho e a cólera o cegam... Não sabe o que defendo nem de que falo. Não é o vício que defendo. Mas se o senhor estivesse capaz de raciocinar, seria mais claro e refletiria. Pensou que ela pode ainda ser uma criança ingénua? Não; não defendo o vício e apresso-me a dizê-lo visto que isto lhe pode ser agradável. Se fosse esposa e mãe e tivesse esquecido os seus deveres, estaria do seu lado, senhor... Repare bem em que eu não perdi a cabeça: constate-o e não me dê mais reprimendas. E se ela recebeu esta carta, desconhecendo o perigo? Se foi arrastada por um sentimento inexperiente, sem ter ninguém que a retivesse? A única culpada sou eu, visto que não soube vigiar-lhe bem o coração! E se essa carta fosse a primeira? Se tivesse ultrajado com as suas grosseiras suspeitas a sua delicadeza virginal, se lhe manchasse a consciência com os seus comentários cínicos! Se o senhor não soube ver, como eu vejo neste momento o pudor brilhar-lhe no rosto puro como a inocência, quando, desvairada, arrebatada, não sabendo o que dizia, enervada de dor, respondeu por uma confissão a todas as suas desumanas perguntas... Sim, é desumano, é cruel, não o conheço. Nunca, nunca lhe perdoarei...
— Sim, poupe-me, poupe-me — exclamava eu, estreitando-a nos meus braços — poupe-me, não me expulse...
Caí de joelhos aos pés dela.
— Se, finalmente — continuou ela com voz sufocada — se não estivesse junto dela, se a tivesse assustado com as suas palavras e que a pobre criança se convencesse de que era culpada! Se lhe tivesse perturbado a consciência, destruído a paz do seu coração!... Meu Deus! Meu Deus! Queria expulsá-la de casa! Fique sabendo que se ela sair, sairemos ambas, porque eu também saio, compreende-me, senhor?
Os olhos faiscavam-lhe, o peito arfava-lhe convulsivamente, a sua exaltação chegara ao auge.
— Já ouvi demais, minha senhora! — disse Peter Alexandrovitch. — Já estou farto. Sim, sim, eu sei que há paixões platónicas, e sei-o em meu prejuízo, minha senhora, em meu prejuízo! Mas não me é possível viver na sociedade onde os vícios se douram. Renego esses dourados. E se a senhora se sente culpada, se se sabe alguma coisa a seu respeito (eu não devia ter necessidade de lembrar-lho, minha senhora) e se lhe agrada deixar a casa... só tenho simplesmente a dizer-lhe, a recordar-lhe que é lastimável que não tenha levado a cabo esse projeto quando era tempo, há já alguns anos... Se o esqueceu, recordo-lho...
Olhei para Alexandra Mikailovna que desfalecia e se agarrava a mim, esmagada. Se o marido pronunciasse mais alguma palavra, matá-la-ia instantaneamente.
— Por piedade! poupe-a, não diga a última palavra! — suplicava eu, lançando-me de joelhos aos pés de Peter Alexandrovitch, esquecendo que me traía. Dei por isso muito tarde. Um grito fraco respondeu a estas palavras e a desgraçada caiu inerte no chão. — Está acabado! — disse eu — o senhor matou-a. Chame os criados, salve-a! Vou esperá-lo no seu escritório: necessito falar-lhe; contar-lhe ei tudo...
— Tudo o quê?... Tudo o quê?...
— Depois.
Os cuidados mais enérgicos não produziram efeito algum sobre Alexandra Mikailovna. Foram em busca do médico... que declarou estar tudo acabado.
Duas horas depois, Peter Alexandrovitch entrava no escritório. Vinha do quarto da mulher. Estava pálido, desfigurado e passeava de um lado para o outro, mordendo os lábios até fazer sangue. Nunca o vira assim.
— Então? — perguntou ele com voz rude e brutal. — O que é que tem a dizer-me? Tem que me falar?
— Aqui tem a carta. Reconhece-a?
— Reconheço.
— Guarde-a.
Ele levou-a à luz. Observava-a com atenção. Depressa voltou a quarta lauda e leu a assinatura. Vi que o sangue lhe subia às faces.
— O que significa isto? — murmurou estupefacto.
— Há três anos que encontrei essa carta dentro de um livro. Pensei que ela a tivesse esquecido, lia-a e fiquei ciente de tudo. Depois guardei-a não sabendo a quem entrega-la. A ela? Não podia. A si? Mas o senhor estava bem ao facto de toda esta triste história... Porque dissimulava? Não sei; é para mim um segredo. Não posso penetrar a sua obscura alma... Quis decerto conservar um meio de tiranizá-la e conseguiu-o. Mas com que fim? Para triunfar dum fantasma? Para enlouquecer a fraca imaginação duma doente? Para provar que ela se enganava e que o senhor era mais puro do que ela? E ainda o conseguiu. As suas derradeiras suspeitas, essa ideia fixa de um espírito que se apagava, eram o supremo queixume de um coração dilacerado pelo juízo único de uma sociedade com quem o senhor se ligara contra ela, homem orgulhoso, egoísta, ciumento, implacável! Adeus, e basta de explicações. Mas tome sentido: olhe que eu soube de tudo e vi tudo.
Proferidas estas palavras, tornei para o meu quarto sem saber o que fazia.
***
Dois anos depois, graças a um trabalho insano e à proteção do príncipe X..., cheguei a entrar para a grande ópera de S. Petersburgo e obtive aí o êxito mais lisonjeiro desde o início da minha carreira.
Nunca mais tornei a ver Katia. Passados seis meses após os terríveis acontecimentos que acabei de referir, ela tinha casado com um cônsul e agora vive constantemente no estrangeiro.
Fiódor Dostoiévski
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