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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NEVE - P.2 / Ornan Pamuk
NEVE - P.2 / Ornan Pamuk

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NEVE

Segunda Parte

 

  1. Eu, Ka

O floco de neve hexagonal

       Seguido de perto pelo cachorro preto, Ka voltou a pé para o hotel, desfrutando a beleza vazia das ruas cobertas de neve. Ele escreveu rapidamente um bilhete para Ipek — Venha agora mesmo! — e pediu a Cavit, o recepcionista, que o levasse imediatamente a ela. Então subiu para o seu quarto e se jogou na cama. Enquanto esperava, ficou pensando em sua mãe, mas logo seus pensamentos se voltaram para Ipek, que ainda não chegara. Não demorou muito para ele sentir o aguilhão de uma dor tão forte que o fez achar ter sido uma loucura se apaixonar — ou ter vindo para Kars. Já fazia algum tempo que estava esperando, e ainda nem sinal dela.

       Trinta e oito minutos depois que Ka chegou ao hotel, Ipek entrou no quarto dele. “Tive que ir comprar carvão”, disse ela. “Eu sabia que ia ter fila ao fim do toque de recolher, por isso saí pelo quintal dez para o meio-dia. E depois passei algum tempo andando no mercado. Se eu soubesse que você estava aqui, teria voltado direto.”

       Ipek trouxe tanta vida ao quarto que a disposição de ânimo de Ka melhorou de tal maneira que ele receou fazer alguma coisa capaz de destruir aquele momento mágico. Contemplou os belos cabelos longos e brilhantes de Ipek. As mãos dela nunca ficavam quietas. Num piscar de olhos sua mão esquerda ia dos cabelos ao nariz, ao cinto, à quina da porta, ao longo e belo pescoço, e logo voltava aos cabelos, passando imediatamente a apalpar o colar de jade. (Ela devia ter acabado de colocar no pescoço. Só então Ka o notou.)

       “Estou terrivelmente apaixonado por você, e estou sofrendo”, disse Ka.

       “Não se preocupe. O amor que desabrocha tão rapidamente esvai-se com a mesma rapidez.”

       Ka envolveu-a num abraço e tentou beijá-la. Ipek lhe devolveu o beijo — ela estava calma e ele, arrebatado. Ele sentiu as pequenas mãos de Ipek em seus ombros, e a doçura de seu beijo deixou-o tonto. Pela desenvoltura dos movimentos do corpo dela, percebeu que ela estava pronta para fazer amor, então isso o fez tão feliz que seus olhos, sua mente e sua memória abriram-se totalmente para aquele momento e para o mundo.

       “Também quero fazer amor”, disse Ipek. Por um instante ela olhou para a frente, depois ergueu os olhos com rápida determinação e encontrou o olhar de Ka. “Mas, como já disse, isso não pode acontecer debaixo do nariz de meu pai.”

       “E quando seu pai sai de casa?”

       “Ele nunca sai”, disse Ipek. “Preciso ir agora”, acrescentou ela, começando a se afastar.

       Ka ficou no vão da porta olhando Ipek até ela desaparecer na escada, no final do corredor mal iluminado. Então fechou a porta, sentou-se à beira da cama, tirou o caderno do bolso e, abrindo uma página em branco, começou a escrever o poema a que daria o título de “Privações e dificuldades”.

       Depois de escrever o poema, Ka continuou sentado à beira da cama. Ele se deu conta, pela primeira vez desde sua chegada a Kars, que afora ficar no pé de Ipek e escrever poemas, não tinha mais nada a fazer na cidade. Essa percepção o fez sentir-se despojado de alguma coisa e livre em igual medida. Tinha certeza de que, se pudesse convencer Ipek a ir embora de Kars com ele, haveria de ser muito feliz com ela pelo resto da vida. Sabia que o momento de convencê-la estava se aproximando rapidamente, mas agora que já tinha um plano — sentiu-se grato pela neve.

       Ele jogou o casaco de lado e saiu do hotel, sem que ninguém, à exceção de Saffet, percebesse. Em vez de tomar a direção da prefeitura, dobrou à esquerda na avenida da Independência Nacional e desceu a ladeira. Entrou na Farmácia da Sabedoria, comprou alguns comprimidos de vitamina C, dobrou à esquerda na avenida Faikbey, andando sempre em linha reta e parando de vez em quando para olhar pelas janelas dos restaurantes, entrando em seguida na avenida Kâzim Karabekir. As bandeirolas da campanha eleitoral que ele vira tremulando acima da avenida no dia anterior tinham sido retiradas, e todas as lojas estavam abertas. Numa papelaria que também vendia fitas cassete ouvia-se música a todo o volume. As calçadas estavam cheias de gente que saíra de casa apenas para marcar o fim do toque de recolher; as pessoas andavam até o mercado, subiam depois a colina, parando de vez em quando para tiritar de frio diante da vitrine de uma loja. Os que normalmente vinham de microônibus de bairros afastados para ficar no centro da cidade cochilando nas casas de chá ou para dar uma passada no barbeiro não vieram aquele dia, e Ka ficou contente em ver tantas casas de chá e barbearias vazias. As crianças que estavam nas ruas fizeram-no esquecer o medo que havia dentro das casas. Ficou olhando as crianças andando de trenó nas pontes, jogando bolas de neve, brincando, brigando e xingando nos terrenos baldios, nas praças cobertas de neve, nos playgrounds das escolas e nos jardins em volta dos edifícios públicos. Apenas algumas usavam casacos; a maioria estava com os uniformes da escola, cachecóis e gorros. Elas estavam contentes com o golpe, porque não tiveram aula. Toda vez que o frio apertava, Ka ia ao encontro de Saffet na casa de chá mais próxima. Ia direto à mesa do detetive, tomava um copo de chá e tornava a sair.

       Àquela altura já estava acostumado a ser seguido por Saffet, e já não tinha medo dele. Se eles quisessem realmente saber tudo o que ele fazia, usariam um homem que não se deixasse ver. A única função de detetive agindo de forma ostensiva era servir de cortina de fumaça para esconder um colega invisível. Foi por isso que Ka entrou em pânico quando, a certa altura de sua caminhada, perdeu Saffet de vista e saiu à sua procura. Encontrou Saffet ofegante, com um saco plástico na mão, na esquina da avenida Faikbey — o lugar onde o tanque estava na noite anterior.

       “As laranjas estavam muito baratas e não resisti”, disse o detetive. Ele agradeceu a Ka por ter esperado, acrescentando que ele tinha mostrado suas boas intenções ao não tentar escapulir. “Por que você não me informa aonde vai daqui pra frente? Isso nos pouparia muito esforço.”

       Ka não sabia aonde estava indo. Mas depois de mais dois copos de raki em outra casa de chá vazia, ele se deu conta de que queria fazer outra visita a sua excelência o sheik Saadettin. Não havia muita chance de ver Ipek nas próximas horas, e ele temia o tormento de se deixar ficar pensando nela, preferindo desnudar a alma para o sheik. Começaria por lhe falar do amor de Deus que tinha no coração, e então os dois poderiam ter uma conversa civilizada sobre os desígnios de Deus e o significado da vida. Mas aí se lembrou de que a residência do sheik estava sob escuta: quando a polícia ouvisse o que ele pretendia falar ia morrer de rir.

       Mesmo assim, ao passar pela modesta residência de sua excelência na rua Baytarhane, Ka parou por um instante para olhar as janelas.

       Mais adiante, em seu passeio, Ka notou que as portas da biblioteca municipal estavam abertas, então entrou e galgou a escadaria enlameada. No patamar havia um quadro de avisos em que alguém afixara com todo o cuidado os sete jornais da cidade. Como todos tinham sido impressos no dia anterior, a exemplo da Gazeta da Cidade Fronteiriça, não havia nenhuma referência à revolução, mas muita coisa sobre o esplêndido espetáculo do Teatro Nacional e sobre a nevasca interminável.

       Embora as escolas da cidade estivessem fechadas, ele viu cinco ou seis estudantes na sala de leitura da biblioteca; havia também um punhado de funcionários públicos aposentados; como os estudantes, certamente eles também tinham vindo ali para escapar ao frio de suas casas. A um canto, entre dicionários de folhas amarfanhadas e enciclopédias infantis rasgadas, Ka encontrou vários volumes antigos de A enciclopédia da vida, que lhe tinham proporcionado tantas horas de prazer quando criança. No final de cada volume havia uma série de transparências coloridas que, ao serem folheadas, revelavam as partes internas de um carro, de um navio ou a anatomia de um homem. Ka foi direto ao quarto volume, esperando encontrar a série que mostrava o bebê aninhado como um pintinho num ovo no ventre aumentado de sua mãe, mas viu que as ilustrações tinham sido arrancadas; restavam apenas as margens das folhas, coladas no lado interno da contracapa.

       À página 324 do mesmo volume, encontrou um verbete que leu com toda a atenção:

NEVE. A forma sólida que a água assume quando cai, cruza ou se eleva pela atmosfera. Cada cristal de floco de neve forma seu próprio hexágono, cuja forma é única. Desde os tempos antigos, a humanidade se espantou e se admirou com os segredos da neve. Em 1555, Olaus Magnus, um sacerdote de Uppsala, Suécia, descobriu que cada floco de neve, como mostra o diagrama, tem seis ângulos...

       Não saberia dizer quantas vezes Ka leu esse verbete e em que medida internalizou a ilustração do floco de neve durante sua permanência em Kars. Anos mais tarde, quando fui visitar sua família em Nisantas, para passar longas horas conversando sobre Ka com seu lacrimoso e — como sempre — perturbado e desconfiado pai, perguntei se podia dar uma olhada na biblioteca do velho homem. Pelo que me lembrava, o que eu procurava não estaria no quarto de Ka, junto com todos os outros livros de sua infância e juventude, mas num canto escuro da sala de estar, nas prateleiras onde seu pai guardava as próprias coleções. Ali, entre as belas lombadas dos livros de direito do pai, a coleção de romances da década de 40 — alguns em turco, outros traduzidos — e a fila de catálogos telefônicos, encontrei os volumes lindamente encadernados de A enciclopédia da vida. A primeira coisa que fiz foi ir ao final do quarto volume para olhar a ilustração anatômica da mulher grávida. Em seguida dirigi minha atenção ao livro enquanto objeto. Eu ainda estava admirando seu perfeito estado quando vi, diante de meus olhos, a página 324. Foi quase como se o livro se tivesse aberto por vontade própria naquela página. Junto ao verbete sobre neve, encontrei um pedaço de papel mata-borrão de trinta e dois anos.

       Depois de ter olhado a enciclopédia, Ka enfiou a mão no bolso e, como um estudante que se senta para fazer a lição de casa, sacou o caderno. Começou a escrever um poema, o décimo que lhe viera à mente desde que chegara a Kars. Nos primeiros versos, ele exaltava a singularidade dos flocos de neve, e em seguida falava de suas lembranças de infância daquela figura de mãe com o filho, que agora ele não encontrara no final do quarto volume da enciclopédia. Nos últimos versos do poema, traçou um diagrama que representava a si mesmo e seu lugar no mundo, seus medos particulares, os atributos que o distinguiam, sua singularidade. O título que deu ao poema foi “Eu, Ka”.

       Ka ainda estava escrevendo o poema quando notou que havia outra pessoa sentada à mesma mesa. Ao levantar os olhos da página, quase perdeu o fôlego: era Necip. Ele não sentiu nenhum terror nem espanto com aquela aparição; em vez disso, sentiu vergonha — ali estava alguém que não tinha morrido tão facilmente, e contudo Ka queria acreditar que ele estava morto.

       “Necip”, disse ele. Ele quis abraçar o jovem e beijá-lo.

       “Eu sou Fazil”, disse o jovem. “Vi você na rua e o segui.” Ele olhou para a mesa onde Saffet estava. “Responda depressa: é verdade que Necip morreu?”

       “É verdade. Eu o vi com meus próprios olhos.”

       “Então por que me chamou de Necip? Você ainda não tem certeza, não e?”

       “Não, não tenho.”

       Por um instante, o rosto de Fazil se crispou, mas logo ele se recompôs.

       “Ele quer que eu me vingue. E por isso que tenho certeza de que está morto. Mas quando a escola abrir, a única coisa que vou querer é estudar; não quero vingança; não quero me envolver com política.”

       “A vingança é uma coisa terrível.”

       “Mesmo assim, eu me vingaria se achasse que devia fazê-lo”, disse Fazil. “Disseram-me que você conversou com ele. Você entregou as cartas para Hicran... quer dizer, Kadife?”

       “Entreguei.” O olhar de Fazil o incomodou. Devo corrigir isso?, perguntou-se Ka. Dizer eu estava pensando em entregar? Mas era tarde demais. Sem saber por quê, aquela mentira o fez sentir-se mais seguro. A dor estampada no rosto de Fazil era difícil de suportar.

       Fazil cobriu o rosto com as mãos e chorou um pouco. Mas ele estava tão furioso que as lágrimas não saíam. “Se Necip morreu, de quem eu teria de me vingar?” Como Ka não disse nada, Fazil olhou-o nos olhos. “Você sabe quem é”, disse ele rispidamente.

       “Eu soube que vocês pensavam a mesma coisa ao mesmo tempo”, disse Ka. “Se você ainda consegue fazer isso, você sabe quem é.”

       “Mas o que ele pensa, a coisa que ele quer que eu pense, é terrivelmente dolorosa para mim”, disse Fazil. Pela primeira vez, Ka viu nos olhos dele a mesma luz que vira nos de Necip. Era como estar diante de um fantasma.

       “E em que ele está forçando você a pensar?”

       “Em vingança”, disse Fazil chorando mais um pouco.

       Ka teve certeza de que os pensamentos de Fazil estavam em outra coisa que não em vingança. E o próprio Fazil disse isso quando viu o detetive Saffet levantar-se de sua mesa e ir até eles.

      “Por favor, posso ver sua carteira de identidade?”, disse o detetive Saffet, lançando-lhe um olhar ameaçador.

       “Minha carteira de estudante está no balcão da seção circulante.”

       Ka viu o medo tomar conta de Fazil ao perceber que estava falando com um policial à paisana. Os três se dirigiram ao balcão da seção circulante. O detetive arrancou a carteira de estudante da mão da funcionária, e, vendo que Fazil estudava na escola secundária religiosa, lançou um olhar a Ka como se dissesse eu devia saber e, como um velho tomando o brinquedo de uma criança, colocou a carteira de estudante no bolso.

       “Se você quiser esta carteira de volta, tem de ir buscar no quartel da polícia.”

       “Com todo o respeito”, disse Ka, “esse rapaz tem feito o maior esforço para evitar envolver-se em problemas, e ele acaba de ouvir que seu melhor amigo morreu. Você não pode lhe devolver a carteira de estudante agora?”

       Depois de ter procurado conquistar as boas graças de Ka para que interviesse em seu favor, Saffet agora se mostrava irredutível.

       Contando poder persuadir Saffet a lhe dar a carteira mais tarde, quando ninguém estivesse olhando, Ka marcou um encontro com Fazil às cinco horas na Ponte de Ferro. Fazil saiu da biblioteca imediatamente. Aquela altura, as outras pessoas que se encontravam na sala de leitura estavam muito apreensivas, achando que também lhes pediriam a carteira de identidade. Mas Saffet nem notou — foi direto à sua mesa, de onde voltou com um exemplar da década de 6o da revista Life, para ler sobre a triste princesa Soraia, que fora rejeitada por seu marido, o xá, por não ter sido capaz de lhe dar um filho, e para olhar a última fotografia de Adnan Menderes, o ex-primeiro-ministro, antes de ser enforcado.

       Calculando então que não conseguiria que Saffet lhe entregasse a carteira de estudante de Fazil, Ka também saiu da biblioteca. Quando ele voltou à maravilhosa rua branca e deu com bandos de alegres crianças jogando bolas de neve, esqueceu-se de todos os seus medos. Teve vontade de correr. Na praça do Governo ele viu uma triste fila de homens tiritando de frio segurando sacos de aniagem e pacotes embrulhados em jornal, amarrados com barbante. Aqueles cautelosos cidadãos de Kars tinham resolvido levar o golpe a sério e estavam entregando todas as armas de suas casas ao Estado. As autoridades não confiavam neles e se recusaram a deixá-los entrar na prefeitura, mas eles continuavam enfileirados como carneirinhos diante da entrada principal. Logo que se anunciou que todas as armas deviam ser entregues, a maioria dos habitantes de Kars saiu sob a nevasca, na calada da noite, para esconder suas armas na terra gelada, em lugares que ninguém poderia imaginar.

       Enquanto andava na avenida Faikbey, Ka esbarrou em Kadife e sentiu o rosto se afoguear. Ele estava pensando em Ipek, e como associava uma irmã à outra, naquele momento achou Kadife extraordinariamente bela. Ka teve de fazer um esforço para conter o impulso de abraçá-la.

       “Preciso falar um instantinho com você”, disse Kadife. “Mas tem um homem que o está seguindo, então não dá para falar nada enquanto ele estiver olhando. Você poderia voltar para o hotel e ir ao quarto 217 às duas horas? É o último quarto no fim do seu corredor.”

       “Você tem certeza de que lá poderemos falar abertamente?”

       “Se você não contar a ninguém que conversamos” — e nesse ponto Kadife arregalou os olhos —, “nem mesmo a Ipek, ninguém jamais vai saber,” Ela lhe deu um aperto de mão vigoroso e formal. “Agora olhe para trás da forma mais natural possível e diga-me se estou sendo seguida por um ou mesmo dois detetives.”

       Ka balançou a cabeça, esboçando um sorriso. Ele estava surpreso com o próprio sangue-frio. Embora a idéia de encontrar-se com Kadife secretamente num quarto o confundisse, não teve dificuldade em tirar aquilo da cabeça.

       Ele logo se deu conta de que não desejava rever Ipek antes do encontro com Kadife, nem mesmo por acaso, então resolveu continuar o passeio para matar o tempo. Ninguém parecia queixar-se do golpe. Em vez disso, o estado de ânimo geral lembrava muito o dos golpes de Estado de sua infância: havia uma sensação de recomeço e de mudança do ramerrão do dia-a-dia. As mulheres pegaram suas bolsas e seus filhos e foram comprar frutas nas barracas e procurar alguma pechincha nas mercearias; os homens, com seus grossos bigodes, ficavam nas esquinas, fumando cigarros sem filtro, tagarelando e olhando a multidão passar; o mendigo que ele vira por duas vezes se fingindo de cego no dia anterior não estava mais em seu ponto sob os beirais de um edifício vazio entre as oficinas e o mercado. Os homens que estavam vendendo laranjas e maçãs em caminhonetes estacionadas bem no meio da rua já tinham ido embora. O trânsito, normalmente tranqüilo, estava ainda mais tranqüilo, mas era difícil dizer se por causa do golpe ou da neve. Havia mais policiais à paisana nas ruas (um deles estava fazendo as vezes de goleiro a pedido dos meninos que jogavam bola no final da avenida HalitPasa). Vizinhos das oficinas, os dois hotéis que funcionavam como bordéis (o Hotel Pan e o Hotel Liberdade), assim como as rinhas de galo e os açougues sem alvará de funcionamento, estavam proibidos de continuar suas atividades malsãs “por tempo indefinido”. Quanto às explosões que se ouviam, principalmente à noite, vindas dos bairros da periferia, o povo de Kars já estava acostumado a isso, portanto continuou a reinar a paz. Ka achou essa falta de interesse geral uma coisa libertadora. Foi por isso que entrou no snack-bar da esquina da avenida Pequeno Kâzimbey com a Kâzim Karabekir, pediu um sharbat de cravo-da-índia e tomou com todo o gosto.

 

  1. Esta é a única vez que teremos sido livres em Kars

Ka com Kadife no quarto do hotel

       Dezesseis minutos depois, quando entrou no quarto 217, Ka estava tão preocupado com a possibilidade de ter sido visto que tentou brincar com Kadife a propósito do sharbat de cravo-da-índia, ainda com o gosto acre da bebida na boca.

       “Durante algum tempo correram boatos de que curdos revoltados estavam envenenando esse sharbat para matar militares”, disse Kadife. “Chegaram a dizer que mandaram agentes secretos para solucionar o mistério.”

       “Você acredita nesses boatos?”, perguntou Ka.

       “Quando gente de fora instruída e ocidentalizada vem a Kars e ouve essas teorias conspiratórias”, disse Kadife, “logo procura refutá-las indo ao snack-bar e pedindo um salep, e aí os tontos terminam se envenenando, porque as histórias são verdadeiras. Alguns turcos são tão infelizes que não conhecem Deus.”

       “Por que então, depois de tanto tempo, o Estado não interveio?”

       “Como todos os intelectuais ocidentalizados, você tem toda a confiança no Estado, sem nem ao menos se dar conta disso. O MIT sabe de tudo o que acontece em Kars e sabe também do sharbat, mas não o proíbe.”

       “Quer dizer então que o MIT sabe que estamos juntos neste quarto?”

       “Não se preocupe, neste exato momento eles não sabem”, disse Kadife com um sorriso. “Um dia eles vão descobrir, mas até lá estamos livres aqui. Esta é única vez que teremos sido livres em Kars. Trate de apreciar este momento e tire o casaco.”

       “Este casaco me protege do mal”, disse Ka. Vendo medo no rosto de Kadife, acrescentou: “E aqui está frio”.

       O quarto em que eles estavam era a metade de uma peça que outrora servira de depósito. Uma janela estreita dava para o pátio interno, e só havia espaço para a cama de solteiro na qual eles estavam sentados, Ka meio inseguro numa extremidade, Kadife na outra. O quarto tinha aquele cheiro sufocante de poeira que se encontra em quartos de hotel não arejados. Kadife inclinou-se para a frente para tentar ligar o aquecedor, mas como ele não funcionou, ela desistiu. Quando viu que Ka se pusera de pé em um salto, tentou sorrir.

       Por um instante pareceu a Ka que Kadife estava gostando muito daquele encontro. Depois de tantos anos de solidão, ele também estava contente de estar sozinho com uma jovem bonita num quarto, mas sentia que ela não estava com tempo para esses pensamentos amenos — o leve brilho nos olhos dela sugeriam algo mais sombrio e mais destrutivo.

       “Não se preocupe: neste momento o único agente que o está seguindo é o infeliz com a sacola de laranjas. Daí você pode deduzir que o Estado não tem medo de você, apenas quer assustá-lo um pouquinho. Quem estava me seguindo?”

       “Esqueci de olhar”, disse Ka, embaraçado.

       “O quê?”, disse Kadife lançando-lhe um olhar venenoso. “Você está apaixonado, não é? Você está loucamente apaixonado.” Mas ela logo se recompôs. “Desculpe-me, é que nós estamos muito assustados”, disse ela, e novamente a expressão do rosto mudou abruptamente. “Você tem de fazer minha irmã feliz. Ela é uma pessoa muito boa.”

       “Você acha que ela vai corresponder ao meu amor?”, perguntou Ka quase num sussurro.

       “Claro que vai — não pode ser diferente; você é um homem encantador”, disse Kadife. Quando ela viu o quanto ele se espantara, acrescentou: “E além do mais você é geminiano como Ipek”. Então ela explicou que enquanto os homens de Gêmeos se dão melhor com mulheres de Virgem, a dupla personalidade dos geminianos, que os faz levianos e superficiais, tanto pode agradar como desagradar a uma mulher geminiana. “Mas vocês dois merecem ser felizes”, acrescentou a título de consolo.

       “Quando você conversou sobre mim com sua irmã, vocês tocaram na possibilidade de ela ir comigo para a Alemanha?”

       “Ela acha você muito bonito”, disse Kadife. “Mas não confia em você. A confiança requer tempo. Homens impacientes como você não se apaixonam por uma mulher, apossam-se dela.”

       “Foi isso que ela disse para você?”, disse Ka, erguendo as sobrancelhas. “Tempo é um produto muito escasso nesta cidade.”

       Kadife consultou o relógio. “Primeiro queria agradecer a você por ter vindo. Eu o chamei para discutir uma coisa muito importante. Azul quer lhe passar uma mensagem.”

       “Se nos encontrarmos novamente, eles vão me seguir e prendê-lo imediatamente”, disse Ka. “E aí vão torturar todos nós. Estiveram na casa dele. A polícia ouve tudo o que ele diz.”

       “Azul sabia que estava sob escuta”, disse Kadife. “Ele lhe passou uma mensagem antes do golpe, e agora quer lhe passar outra, para que a transmita ao Ocidente. Tratava-se de marcar uma posição filosófica. Parem de meter o nariz nessa história de suicídio — era isso o que Azul queria dizer a eles. Mas agora tudo mudou; há algo mais importante. Ele quer anular essa mensagem e lhe passar uma nova.”

       Quanto mais Kadife insistia, mais Ka hesitava. “Não é possível ir de um ponto a outro desta cidade sem ser visto por alguém”, disse ele finalmente.

       “Tem uma carroça puxada a cavalo. Duas vezes por dia ela pára na porta da cozinha para entregar botijões de gás, carvão e garrafas de água. Depois ela sai fazendo entregas em toda a cidade. E coberta por uma lona para proteger os produtos da chuva e da neve. O homem da carroça é de confiança.”

       “E eu teria de me esconder sob a lona como um ladrão?”

       “Eu mesma já fiz isso muitas vezes”, disse Kadife. “É muito divertido atravessar a cidade sem que ninguém saiba. Se você concordar em ir encontrar-se com ele, prometo fazer o possível para ajudá-lo em relação a Ipek. Quero que você se case com ela.”

       “Por quê?”

       “O que uma mulher não seria capaz de fazer pela felicidade de sua irmã mais velha?”

       Durante toda a sua vida, Ka nunca conhecera uma dupla de irmãos que não sentissem um profundo ódio um pelo outro: embora parecessem se dar bem, havia alguma coisa de opressivo em sua solidariedade, algo que indicava estarem apenas fingindo. Todavia não foi por isso que Ka duvidou da afirmação de Kadife, mas antes pela maneira forçada como ergueu a sobrancelha e entreabriu os lábios como uma criança prestes a chorar — ou antes como uma atriz de cinema turca simulando inocência. Não obstante, quando Kadife consultou novamente o relógio e disse que a carroça chegaria dentro de dezessete minutos e que se ele se dispusesse a acompanhá-la para encontrar-se com Azul ela lhe contaria tudo, Ka concordou sem hesitação. “Mas primeiro você tem de me dizer por que tem tanta confiança em mim.”

       “Você é um dervixe, é o que Azul diz. Ele acredita que Deus o dotou de uma eterna inocência.”

       “Está bem, então”, disse Ka apressadamente. “Ipek também tem conhecimento desse dom especial que recebi de Deus?”

       “Por que teria? Essa é a opinião de Azul.”

       “Por favor, diga-me tudo o que Ipek pensa de mim.”

       “Na verdade, eu já lhe disse tudo.” Vendo que estava machucando o coração de Ka, Kadife pensou por alguns instantes, ou fingiu pensar — agora Ka estava agitado demais para perceber a diferença — e disse: “Ela acha você engraçado. Você acaba de chegar da Alemanha e tem muita coisa para lhe contar”.

       “O que tenho de fazer para convencê-la a confiar em mim?”

       “Pode não acontecer no primeiro momento, mas dez minutos depois de conhecer um homem uma mulher tem uma idéia clara de quem ele é, ou pelo menos de quem ele pode ser para ela, e, em seu íntimo, já sabe se vai ou não se apaixonar por ele. Mas sua cabeça precisa de tempo para entender o que seu coração decidiu. Se você quer saber, não há quase nada que um homem possa fazer nessa situação, exceto dar tempo ao tempo. Se você a ama de verdade, tudo que tem a fazer é lhe dizer todas as coisas bonitas que sente por ela: por que você a ama, por que quer se casar com ela.”

       Ka não falou nada. Quando Kadife o viu olhando pela janela como uma criança desanimada, ela lhe disse que já imaginava Ka e Ipek vivendo felizes em Frankfurt — e como sua irmã estava feliz em ir embora de Kars! Ela já podia até ver os dois sorrindo em alguma rua de Frankfurt, indo ao cinema à noite. “Diga-me apenas o nome de um cinema ao qual você iria se estivesse em Frankfurt”, disse ela. “Qualquer nome.”

       “Filmforum Hochts”, disse Ka.

       “Eles não têm cinemas com nomes como Alhambra, Casa dos Sonhos ou Majestic na Alemanha?”

       “Sim. O Eldorado!”

       Enquanto observavam os flocos de neve redemoinhando sem direção acima do pátio interno, Kadife lhe falou sobre um papel que lhe ofereceram quando participava de um grupo de teatro da universidade; tratava-se de uma produção germano-turca, com a qual o primo de uma colega tinha alguma ligação. Eles queriam alguém que fizesse o papel de uma jovem que cobrisse a cabeça, mas ela recusou; agora ela esperava que Ipek encontrasse a felicidade com Ka naquele mesmo mundo germano-turco, porque sua irmã estava fadada a ser feliz; o problema era que ela não sabia disso, e por isso até agora fora infeliz. O fato de não poder ter tido um filho também a atormentava, mas o que mais a angustiava era não entender por que — sendo tão bonita, refinada, ponderada e franca — se sentia tão infeliz. Às vezes ela chegava a se perguntar se sua infelicidade não se devia precisamente ao fato de ter tantas qualidades (aqui a voz de Kadife começou a falhar). Disse também que durante toda a sua infância e adolescência se espelhara na irmã, tentando ser tão boa e bonita quanto ela (aqui sua voz falhou novamente), mas, quando ela se comparava com Ipek, sentia-se má e feia; a irmã sabia disso e tentara esconder a própria beleza, esperando facilitar as coisas para Kadife.

       Aquela altura, ela estava aos prantos. Entre lágrimas e soluços, contou a Ka sobre a época em que fazia o curso secundário. (“Nessa época morávamos em Istambul, e não éramos tão pobres”, disse Kadife, quando então Ka aproveitou a oportunidade para observar que agora também eles não eram tão pobres assim, mas Kadife prontamente fechou o parêntese, exclamando: ‘Mas nós moramos em Kars!”.) De todo modo, certa manhã em que ela chegara atrasada para a primeira aula, Mesrure Hanim, a professora de biologia, perguntou: “Sua brilhante irmã também está atrasada?”, acrescentando em seguida: “Por esta vez vou deixar passar, porque gosto muito de sua irmã”. Mas, naturalmente, Ipek não tinha se atrasado.

       A carroça entrou no pátio. Era uma típica carroça antiga, com rosas vermelhas, margaridas brancas e folhas verdes pintadas nas laterais de madeira. O velho cavalo exausto, as narinas cobertas de gelo, escondia-se atrás de uma nuvem de respiração condensada. O carroceiro tinha ombros largos e era ligeiramente corcunda; uma fina camada de neve cobria-lhe o chapéu e o casaco. Quando Ka viu outra camada de neve sobre o encerado, seu coração disparou.

       “Por favor, não tenha medo”, disse Kadife. “Não vou matar você!”

       Ka viu um revólver na mão de Kadife, mas parecia não notar que estava apontado para ele.

       “Não estou tendo um ataque de nervos, se é o que você está pensando”, disse Kadife. “Mas se tentar fazer alguma gracinha, pode acreditar, eu atiro em você... Nós não confiamos em jornalistas que vêm entrevistar Azul. Aliás, desconfiamos de todo mundo.”

       “Mas foi você quem me convidou”, disse Ka.

       “Tem razão, mas ainda que você não ache, o pessoal do MIT pode ter desconfiado que estávamos planejando essa visita e ter ficado na escuta. Fiquei desconfiada porque você não quis tirar seu querido casaco ainda há pouco. Agora tire-o e deixe-o em cima da cama... depressa!”

       Ka fez o que ela ordenou.

       Kadife passou suas mãos pequenas, que eram tão pequenas como as de sua irmã, por todo o casaco. Como não achou nada, disse: “Por favor, não interprete mal, mas agora você vai ter de tirar o paletó, a camisa e a camiseta. Essa gente coloca microfones nas costas e no peito das pessoas. Deve haver uma centena de pessoas circulando por Kars com esses microfones no corpo a qualquer hora do dia ou da noite.”

       Ka tirou o paletó e levantou a camisa e a camiseta, como uma criança mostrando a barriga para um médico.

       Kadife o examinou. “Agora dê uma volta”, disse ela. Houve um silêncio. “Bem, está ótimo. Desculpe-me pelo revólver... Mas quando uma pessoa está com um aparelho de escuta, não nos deixa revistar; não pára quieta de jeito nenhum.” Ela ainda empunhava o revólver. “Agora me escute”, disse ela em tom ameaçador. “Você não deve dizer nada a Azul sobre a nossa conversa ou sobre nossa amizade.” Ela parecia um médico recriminando um paciente depois de examiná-lo. “Você não deve mencionar Ipek nem deixar transparecer que está apaixonado por ela. Azul não reage bem a esse tipo de sujeira. Se você insistir em falar sobre isso, e ele não acabar com você por causa disso, pode ter certeza de que eu o farei. Ele lê mentes melhor que um gênio; provavelmente vai tentar coagir você a dizer alguma coisa. Se ele o fizer, você tem de agir como se tivesse visto Ipek uma ou duas vezes e só, entendeu?”

       “Entendi.”

       “Trate de demonstrar respeito por Azul. Faça o que fizer, não tente se mostrar superior bancando o sofisticado que estudou no exterior. E se por acaso você deixar escapar esse tipo de bobagem, nem pense em sorrir. Não se esqueça: os europeus que você admira e imita tão servilmente não estão ligando a mínima para você... e eles morrem de medo de gente como Azul.”

       “Eu sei.”

       “Sou sua amiga, seja franco comigo”, disse Kadife, assumindo uma pose de filme turco de segunda categoria.

       “O carroceiro tirou o encerado”, disse Ka olhando pela janela.

       “Pode confiar no carroceiro. O filho dele morreu no ano passado num confronto com a polícia. Curta a viagem.”

       Kadife desceu as escadas primeiro. Quando ela chegou à cozinha, Ka viu a carroça entrando sob a arcada que separava o velho pátio russo da rua e também desceu, como combinado. Como não viu ninguém na cozinha, teve um momento de pânico, mas então viu o carroceiro de pé no vão da porta que dava para o pátio. Sem dizer uma palavra, ele se deitou ao lado de Kadife entre os botijões de gás vazios.

       A viagem, que ele logo percebeu nunca haveria de esquecer, durou apenas oito minutos, mas para Ka pareceu muito mais longa. Enquanto se perguntava em que parte da cidade estava, ele ouvia as pessoas de Kars fazendo comentários sobre a carroça rangente que passava por eles e ouvia a calma respiração de Kadife, deitada em silêncio ao seu lado. Um bando de meninos se agarrou à traseira da carroça e se deixou arrastar por ela por algum tempo. Ele gostou do sorriso doce que Kadife lhe deu: ele o deixou tão feliz como aqueles meninos.

 

  1. Não é a pobreza que nos aproxima tanto de Deus

Manifesto de Azul para o Ocidente

       Enquanto as rodas da carroça avançavam pela neve embalando Ka como um bebê, os primeiros versos de um poema vieram-lhe à mente. Eles pararam com um rangido, e então se seguiu um silêncio, longo o bastante para que Ka recebesse mais alguns versos do poema. Então o carroceiro levantou o encerado e Ka viu que eles estavam num pátio vazio, coberto de neve, rodeado de oficinas de automóveis e de soldagem, onde havia um trator avariado. Havia um cachorro acorrentado num canto; quando ambos saíram de sob o encerado, o cachorro os saudou com alguns latidos.

       Eles entraram por uma porta de nogueira. Quando passaram por uma segunda porta, Ka viu Azul fitando o pátio coberto de neve. Uma vez mais, Ka ficou impressionado com os reflexos avermelhados de seus cabelos castanhos, as sardas do rosto e os olhos de um azul profundo. Ao entrarem em mais uma sala de aspecto decadente (em que se viam o mesmo secador de cabelo do dia anterior, a mesma valise meio aberta e o mesmo cinzeiro de plástico com figuras otomanas nas bordas com o logotipo da ELÉTRICA ERSIN), Ka logo deduziu que Azul se mudara na noite anterior. Seu sorriso frio indicou a Ka que Azul já se adaptara à nova situação e estava satisfeito consigo mesmo por ter escapado das autoridades.

       “Uma coisa é certa”, disse Azul. “Você não pode escrever nada sobre as jovens suicidas agora.”

       “Por que não?”

       “Porque os militares também não querem que se escreva nada sobre elas.”

       “Não sou o porta-voz dos militares”, disse Ka com cautela.

       “Sei disso.”

       Houve um longo momento de tensão, em que os dois ficaram se medindo.

       “Ontem você me disse que estava decidido a escrever sobre as jovens suicidas para a imprensa do Ocidente”, disse Azul.

       Lembrando-se de sua pequena mentira, Ka se sentiu embaraçado.

       “Que jornal do Ocidente você tinha em mente?”, perguntou Azul. “Em que jornal da Alemanha você tem um contato?”

       “No Frankfurter Rundschau, um jornal alemão liberal”, disse Ka.

       “Qual o nome da pessoa?”

       “Hans Hansen”, disse Ka passando a mão no casaco.

       “Tenho um manifesto para Hans Hansen. Pretendo me pronunciar contra o golpe”, disse Azul. “Não temos muito tempo. Quero que você comece a anotá-lo agora mesmo.”

       Ka abriu o caderno de poesia na última página e se pôs a tomar nota. Azul começou dizendo que pelo menos oitenta pessoas tinham sido mortas (o número real, incluindo os que foram mortos no teatro, era de dezessete), que tinha havido batidas em muitas escolas e casas, e os tanques destruíram nove barracos (na verdade foram quatro); depois de afirmar que alguns estudantes foram torturados até a morte, mencionou confrontos na rua de que Ka não tinha ouvido mais ninguém falar. Falou rapidamente sobre o sofrimento dos curdos e exagerou um pouco o dos islamitas. Foi para criar um pretexto para o golpe, continuou ele, que o Estado tramou o assassinato do prefeito e do diretor do Instituto de Educação. O objetivo disso tudo, disse, era evitar que os islamitas ganhassem as eleições. A proibição de todos os partidos políticos e associações era uma prova disso.

       Enquanto ele dava mais detalhes, Ka olhou Kadife diretamente nos olhos: ela bebia cada palavra de Azul. Nas margens daquelas páginas que mais tarde arrancaria do caderno de poesia, Ka fez vários desenhos e rabiscos que traíam sua obsessão por Ipek: um colo delicado, uma cabeleira de mulher, uma casinha com uma chaminé soltando fumaça, desenhada com simplicidade pueril... Muitos anos antes, Ka me explicara que quando um bom poeta se depara com fatos penosos que sabe serem reais mas inimigos da poesia, não lhe resta senão refugiar-se nas margens; era essa retirada estratégica, dizia ele, que lhe permitia ouvir a música misteriosa que é a fonte de toda arte.

       Ka apreciou algumas observações de Azul a ponto de anotá-las, palavra por palavra, em seu caderno.

Ao contrário do que parecem pensar os ocidentais, não é a pobreza que nos aproxima tanto de Deus; é o fato de que ninguém é mais curioso que nós para descobrir por que estamos aqui na terra e o que nos acontecerá no outro mundo.

       Em vez de explicar a origem dessa curiosidade e revelar por que estamos na terra, as palavras finais de Azul lançavam um desafio ao Ocidente:

Irá o Ocidente — que dá mais importância à democracia, sua grande invenção, que à palavra de Deus — contrapor-se a esse golpe que destruiu a democracia em Kars? [Nesse ponto ele parou para fazer um gesto largo.] Ou seremos obrigados a concluir que a democracia, a liberdade e os direitos humanos não importam, que tudo o que o Ocidente deseja é que o resto do mundo o imite como macacos? Pode o Ocidente tolerar qualquer democracia estabelecida por inimigos que em nada se parecem com eles? Tenho uma coisa a dizer para todas as nações que o Ocidente deixou para trás: irmãos, vocês não estão sós.

Ele fez uma pausa. “Você tem certeza de que seu amigo do Frankfurter Rundschau vai publicar tudo isso?”

       “Ele se sente ofendido quando as pessoas falam do Ocidente como de uma única pessoa, com um único ponto de vista”, disse Ka, de modo cauteloso.

       “Mas é isso mesmo”, disse Azul, depois de outra pausa. “Afinal de contas, existe apenas um Ocidente e apenas um ponto de vista ocidental. E o nosso ponto de vista é o oposto.”

       “Mas permanece o fato de que no Ocidente eles não vivem assim”, disse Ka. “Não é como aqui: eles não querem que todo mundo pense igual. Todos, mesmo o merceeiro mais medíocre, se sentem obrigados a se gabarem de ter seus próprios pontos de vista. Se nós usarmos a expressão os democratas do Ocidente em vez de o Ocidente, você terá mais chance de tocar a consciência das pessoas.”

       “Ótimo, faça como achar melhor. E preciso fazer outras correções para conseguir que seja publicado?”

       “Embora o texto tenha começado como uma notícia, foi ficando mais interessante, mais parecido com um manifesto”, disse Ka. “Talvez eles queiram colocar seu nome nele... e talvez até alguns dados biográficos...”

       “Esses eu já preparei”, disse Azul. “Basta eles dizerem que eu sou um dos mais destacados islamitas da Turquia e talvez de todo o Oriente Médio.”

       “Hans Hansen não vai publicar o texto tal como está.”

       “Como?”

       “Se o jornal socialdemocrata Frankfurter Rundschau publicasse o manifesto de um único islamita turco, ia parecer que eles estavam tomando partido”, disse Ka.

       “Entendo. Quando alguma coisa não serve aos interesses do senhor Hans Hansen, ele dá um jeito de descartar”, disse Azul. “Que temos de fazer para convencê-lo?”

       “Ainda que os democratas alemães se oponham ao golpe militar na Turquia — e tem de ser um golpe de verdade, não uma mera encenação —, vão se sentir incomodados de estar defendendo islamitas.”

       “Sim, essa gente morre de medo de nós.”

       Ka não saberia dizer se ele estava se vangloriando ou simplesmente sentindo-se incompreendido. “Bem”, disse ele, “se você colocar no documento as assinaturas de um ex-comunista liberal e de um nacionalista curdo, não terá nenhum problema em publicá-lo no Frankfurter Rundschau.”

       “Como assim?”

       “Se você encontrasse mais duas pessoas nesta cidade dispostas a participar disso, poderíamos iniciar a elaboração de um pronunciamento conjunto imediatamente”, disse Ka.

       “Eu não sou homem de tomar vinho só para que os ocidentais gostem de mim”, disse Azul. “Não vou sair por aí imitando-os só para que parem de ter medo de mim por tempo suficiente para entender o que estou fazendo. E não vou me rebaixar diante desse ocidental, esse tal de Hans Hansen, só para fazer que os ateus ímpios do mundo tenham pena de nós. E além do mais, quem é esse tal de Hans Hansen? Por que ele fica impondo tantas condições? Ele é judeu?”

       Houve um silêncio. Sentindo a reprovação de Ka, Azul lhe lançou um olhar cheio de ódio. “Os judeus são o povo mais oprimido deste século”, disse ele, à guisa de reparação. “Antes de mudar uma palavra de meu manifesto, quero saber mais sobre esse tal de Hans Hansen. Como você o conheceu?”

       “Através de um amigo turco que me disse que o Frankfurter Rundschau ia publicar uma matéria sobre a Turquia, e o autor queria conversar com alguém que conhecesse o assunto a fundo.”

       “Então por que Hans Hansen não fez as perguntas ao seu amigo? Por que precisou falar com você também?”

       “Esse meu amigo turco não conhecia o assunto como eu.”

       “Deixe-me adivinhar que assunto seria esse”, disse Azul. “Tortura, brutalidade, péssimas condições carcerárias e várias outras coisas que nos fazem parecer ainda piores.”

       “Se não me engano, tratava-se de um ateu morto por estudantes secundaristas em Malátia”, disse Ka.

       “Não me lembro de ter ouvido falar dessa história”, disse Azul. Ele observava Ka atentamente. “E lamentável que islamitas vão à televisão gabar-se de terem matado um pobre ateu, mas é igualmente horrível ver orientalistas procurarem difamar os islamitas multiplicando o número de mortos por dez ou quinze. Se o senhor Hans Hansen é um desses, é melhor esquecê-lo.”

       “Hans Hansen apenas me fez algumas perguntas sobre a União Européia e a Turquia. Eu as respondi. Uma semana depois, ele me ligou, convidando-me a ir jantar em sua casa.”

       “Convidou por convidar — sem dar um motivo?”

       “Sim.”

       “Isso é muito suspeito. O que você viu enquanto esteve na casa dele? Ele lhe apresentou a esposa?”

     Ka olhou para Kadife, que estava sentada junto às cortinas totalmente fechadas, olhando-o intensamente.

       “Hans Hansen tem uma família feliz e encantadora”, disse Ka. “Certa noite, depois do fechamento do jornal, o senhor Hansen me pegou na Bahn-hof. Cerca de meia hora depois, chegamos a uma bela casa, bem iluminada, no meio de um jardim. Eles foram muito gentis comigo. Comemos frango frito com batatas. A esposa dele primeiro cozinhou as batatas e depois as levou ao forno.”

       “Como era a esposa dele?”

       Ka evocou a imagem de Hans Hansen, o vendedor da Kaufhof que tinha lhe vendido seu precioso casaco. “Hans Hansen é loiro, elegante, de ombros largos; sua mulher, Ingeborg, e seus filhos têm a mesma beleza loira.”

       “Você viu algum crucifixo na parede?”

       “Não me lembro. Acho que não.”

       “Tinha um crucifixo, sim, mas provavelmente você não notou”, disse Azul. “Ao contrário do que imaginam os nossos ateus que admiram a Europa, todos os intelectuais europeus dão muita importância a seus crucifixos. Mas quando nossos jovens voltam para a Turquia nunca falam disso, porque tudo o que querem é usar a supremacia tecnológica do Ocidente para provar a superioridade do ateísmo... Fale-me sobre o que você viu, sobre o que vocês conversaram.”

       “Embora trabalhe na seção internacional do Frankfurter Rundschau, Hans Hansen é apaixonado por literatura. Logo passamos a conversar sobre poesia. Falamos sobre poemas, países, histórias. Perdi a noção do tempo.”

       “Eles tiveram pena de você? Será que eles se interessaram por você apenas por ser um pobre turco, um exilado político solitário e desamparado, a espécie de turco joão-ninguém que os jovens alemães bêbados espancam só para se divertir?”

       “Não sei. Não percebi nenhuma demonstração disso.”

       “Mesmo que eles tivessem dado mostras disso e lhe dito o quanto tinham pena de você, é da natureza dos homens buscar a compaixão do outro. Existem milhares de intelectuais curdo-turcos na Alemanha que fizeram disso um meio de vida.”

       “A família de Hans Hansen — seus filhos — é gente boa. Eles são refinados, bondosos. É possível que fossem refinados demais para deixar trans-parecer o quanto tinham pena de mim. Eu gostei muito deles. Mesmo que tivessem pena de mim, eu não ia lhes querer mal por isso.”

       “Em outras palavras, essa situação não feriu seu orgulho.”

       “É possível que tenha ferido o meu orgulho, mas de qualquer modo foi uma noite encantadora. As lâmpadas ao lado da mesa irradiavam uma luz alaranjada que achei muito agradável. As facas e garfos tinham uma forma diferente de todos os que eu conhecia, mas não o bastante para dificultar o uso. A televisão ficou ligada a noite inteira, e de vez em quando eles olhavam em sua direção, e isso também fez que me sentisse em casa. As vezes, quando notavam que eu estava tendo dificuldade em entender o seu alemão, passavam a falar inglês. Quando terminamos de comer, as crianças pediram ao pai que as ajudasse a fazer a lição de casa; os pais beijaram as crianças quando elas foram dormir. Terminada a refeição, eles fizeram que me sentisse tão à vontade que me servi de uma segunda fatia de bolo e ninguém notou — e, se notaram, agiram como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Fiquei pensando sobre tudo isso por muito tempo.”

       “Que tipo de bolo era?”, perguntou Kadife.

       “Era uma torta vienense com figos e chocolate.”

       Houve um silêncio.

       “Qual a cor das cortinas?”, perguntou Kadife. “Como eram as estampas?”

       “Elas eram brancas ou creme”, disse Ka. Ele fingiu se esforçar para evocar uma lembrança antiga. “Parece-me que tinham estampas de peixinhos, flores, luas e frutas de todas as cores.”

       “Em outras palavras, uma coisa bem infantil?”

       “Na verdade, não. A atmosfera da casa era muito sóbria. Deixem-me dizer uma coisa: eles eram uma família feliz, mas isso não quer dizer que viviam sorrindo o tempo todo como fazemos aqui, mesmo quando não há motivo para sorrir. Talvez por isso eles fossem felizes. Para eles a vida era uma coisa séria, que devia ser encarada com responsabilidade. Não era uma luta desesperada ou uma dolorosa provação como aqui. Mas a seriedade de seus propósitos permeava todos os aspectos de suas vidas. Da mesma forma como as luas, peixes e coisas assim ajudavam a elevar-lhes o ânimo.”

       “Qual a cor da toalha de mesa?”, perguntou Kadife.

       “Não me lembro”, disse Ka fingindo vasculhar a memória em busca de mais detalhes.

       “E quantas vezes você foi lá?”, perguntou Azul com certa impaciência.

       “Aquela noite foi tão agradável que fiquei esperando por uma segunda visita. Mas Hans Hansen nunca mais me convidou.”

       O cachorro acorrentado no pátio agora latia mais alto. Ka viu melancolia no semblante de Kadife, enquanto Azul lhe lançava um olhar de raiva e desprezo.

       “Muitas vezes achei que devia ligar para eles”, continuou Ka obstinadamente. “Às vezes me perguntava se Hans Hansen não tinha telefonado numa hora em que eu não estava em casa, para me convidar a jantar novamente, e toda vez que acontecia isso era difícil controlar o impulso de sair da biblioteca e correr para casa. Eu queria tanto olhar de novo aquelas estantes, o belo espelho, as cadeiras — não me lembro de que cor eram, talvez amarelo-limão. Sonhava em me sentar novamente à mesa deles, vê-los cortar pão numa tábua e perguntarem ‘E assim que você gosta?’ voltando-se para mim. Como você sabe, os europeus não comem tanto pão como nós. Não havia nenhuma cruz nas paredes, apenas belas paisagens dos Alpes. Daria qualquer coisa para ver tudo aquilo novamente.”

       Ka então viu que Azul o estava olhando com franca repugnância.

       “Três meses depois, um amigo trouxe notícias da Turquia”, disse Ka. “Era sobre mais uma terrível onda de tortura, brutalidade e destruição, e usei isso como pretexto para ligar para Hans Hansen. Ele me ouviu com toda a atenção e se mostrou fino e amável como sempre. Apareceu uma pequena nota no jornal. Eu não me importava com a tortura e a morte que o jornal tinha noticiado. Queria apenas que Hans Hansen me convidasse. Mas nunca mais me convidou. De vez em quando, eu brincava com a idéia de lhe escrever uma carta para tentar descobrir o que eu fizera de errado, para lhe perguntar por que nunca mais me convidara à sua casa.”

       Ka se permitiu um sorriso, ainda que Azul se mostrasse cada vez mais tenso.

       “Bem, agora você tem uma nova desculpa para procurá-lo”, disse Azul em tom de desprezo.

       “Mas se você quiser que seu manifesto seja publicado no jornal dele, vai ter de se adequar aos padrões alemães e preparar um documento conjunto”, disse Ka.

       “Quem é esse nacionalista curdo que vai me ajudar nesse documento conjunto, e onde vou encontrar um liberal ex-comunista?”

       “Se receia que eles trabalhem para a polícia, pode sugerir os nomes você mesmo”, disse Ka.

       “Sem dúvida, um nacionalista curdo ateu tem mais importância para um jornalista ocidental que um nacionalista curdo islâmico. Há muitos jovens curdos em pé de guerra por causa do que aconteceu com os meninos da escola secundária religiosa. Um jovem estudante pode muito bem representar os curdos em nosso manifesto.”

       “Ótimo. Se você tratar de arranjar o jovem estudante”, disse Ka, “posso garantir que o Frankfurter Rundschau vai aceitá-lo.”

       “Sim, claro”, disse Azul com sarcasmo. “Você é nosso porta-voz no Ocidente.”

       Ka não mordeu a isca. “Quanto ao seu comunista que virou democrata, o homem ideal é Turgut bei.”

       “Meu pai?”, perguntou Kadife, assustada.

       Quando Ka confirmou, Kadife advertiu-o de que o pai nunca saía do hotel. Os três se puseram a falar ao mesmo tempo. Azul insistia em que, como todos os ex-comunistas, Turgut bei não era um verdadeiro democrata; muito provavelmente ele estava bastante satisfeito com o golpe porque este perseguia os islamitas, mas como não queria ficar mal com a esquerda, fingia repudiar o golpe.

       “Meu pai não é o único a fingir!”, disse Kadife.

       Pelo tremor da voz de Kadife e o olhar raivoso de Azul, Ka teve certeza de que eles estavam à beira de uma discussão que já tinham tido muitas vezes antes, como tantos casais desgastados pelas brigas constantes, mal podendo conter-se diante de estranhos. Kadife exibia o olhar resoluto de uma mulher maltratada decidida a rebater, custasse o que custasse, e a expressão de Azul era uma mistura de orgulho e extraordinária ternura. Mas então, em questão de segundos, tudo mudou. O que ele via agora nos olhos de Azul era decisão.

       “Como todos os ateus pedantes e intelectuais de esquerda que caem de amores pela Europa, seu pai é um impostor que despreza o povo.”

       Kadife pegou o cinzeiro da ELÉTRICA ERSIN e atirou-o em Azul. Ela deve ter errado de propósito. O cinzeiro atingiu uma foto de Veneza que estava pendurada na parede atrás dele antes de cair no chão sem fazer barulho.

       “E além do mais”, disse Azul, “seu pai gosta de fingir não saber que sua filha é amante de um islamita radical.”

       Kadife bateu de leve com as duas mãos no peito de Azul e debulhou-se em lágrimas. Azul a fez sentar-se na cadeira do canto. Estavam agindo de forma tão deliberada que Ka não pôde deixar de sentir que naquilo havia muito de teatro encenado expressamente para ele.

       “Retire o que disse”, falou Kadife.

       “Retiro o que eu disse”, disse Azul naquele tom que se usa para consolar uma criança em prantos. “E para lhe provar isso, estou disposto a ignorar as piadas infames que seu pai faz de manhã à noite e assinar um manifesto junto com ele. Mas como é bem possível que este representante de Hans Hansen que temos aqui” — ele parou e sorriu para Ka — “...como é possível que ele esteja tentando nos atrair para uma armadilha, eu não vou ao seu hotel. Está entendendo, querida?”

       “Mas meu pai nunca sai do hotel”, disse Kadife. Para consternação de Ka, ela estava falando como uma menininha mimada. “A pobreza de Kars estraga seu humor.”

       “Então você tem de convencer seu pai a sair desta vez, Kadife”, disse Ka num tom imperioso que nunca usara com ela antes. “A cidade não vai deprimi-lo agora, pois está toda coberta de neve.” Ele a olhou diretamente nos olhos.

       Desta vez ela entendeu. “Está bem”, disse ela. “Mas antes de ele sair do hotel, alguém tem de convencê-lo a pôr seu nome num documento junto com um islamita e um nacionalista curdo. Quem vai fazer isso?”

       “Eu”, disse Ka. “E você pode me ajudar.”

       “Onde eles vão se reunir?”, perguntou Kadife. “E se essa bobagem terminar com a prisão de meu pai? E se ele tiver de passar o resto da vida na cadeia?”

       “Não é nenhuma bobagem”, disse Azul. “Se sair uma ou duas notas na imprensa européia, Ancara vai tomar providências para fazê-los parar.”

       “Não se trata de plantar uma notícia na imprensa européia, mas de ver seu nome no jornal, não é?”, perguntou Kadife.

       Quando Azul reagiu a essa pergunta com um sorriso tolerante, Ka sentiu um certo respeito por ele. Só então compreendeu que os pequenos jornais islamitas de Istambul iriam pegar qualquer referência do Frankfurter Rundschau, exagerando-a orgulhosamente. Isso tornaria Azul famoso em toda a Turquia. Houve um longo silêncio. Kadife pegou um lenço e enxugou as lágrimas. Ka imaginou que, tão logo ele fosse embora, os amantes iriam discutir e fazer amor. Será que queriam que ele fosse embora? Passou um avião lá no alto. Todos levantaram os olhos para a parte superior da janela, olharam para o céu e ficaram escutando.

       “Na verdade, os aviões nunca passam por estas bandas”, disse Kadife.

       “Está acontecendo alguma coisa muito estranha, uma coisa extraordinária”, disse Azul, rindo-se da própria paranóia. Ele se ofendeu quando Ka também riu. “Dizem que mesmo que a temperatura esteja abaixo de vinte graus negativos, o governo nunca vai admitir que está tão frio.” Ele lançou um olhar de desafio a Ka.

       “Tudo que eu sempre quis foi uma vida normal”, disse Kadife.

       “Você jogou fora sua chance de vida normal”, disse Azul. “Isso é que a faz uma pessoa tão excepcional.”

       “Mas eu não quero ser excepcional. Quero ser como todo mundo. Se não fosse pelo golpe, quem sabe? Eu podia até resolver ser como todo mundo e descobrir minha cabeça.”

       “Todas as mulheres aqui cobrem a cabeça”, disse Azul.

       “Não é verdade. A maioria das mulheres instruídas de meu meio não cobre a cabeça. Se é uma questão de ser uma pessoa comum e ajustada, com certeza me distanciei de minhas semelhantes quando cobri minha cabeça. Há um quê de arrogância nesse gesto que me desgosta.”

       “Então vá em frente e descubra a cabeça amanhã”, disse Azul. “As pessoas vão ver nisso uma vitória dos militares.”

       “Todos sabem que, ao contrário de você, não vivo me perguntando o que as pessoas pensam do meu modo de viver”, disse Kadife. Seu rosto estava afogueado de excitação.

       Azul respondeu com outro sorriso manso, mas dessa vez Ka percebeu que aquele gesto lhe custou extremo esforço. E Azul viu que Ka o percebera, o que criava uma incômoda intimidade entre eles, fazendo que Ka sentisse como se estivesse invadindo a privacidade do casal. Ouvindo Kadife discutir com o amante, e percebendo as inflexões do desejo, parecia-lhe que ela estava lavando a roupa-suja de propósito — não apenas para acusar Azul, mas também para constranger Ka por tê-lo testemunhado. E — alguém poderia muito bem perguntar — por que ele escolheu aquele momento para se lembrar das cartas de amor de Necip para Kadife, que trazia no bolso desde a noite anterior?

       “Quanto às jovens que foram maltratadas e expulsas da escola por cobrirem a cabeça, com toda a certeza não se falará delas nesses artigos.” O tom de voz estava em plena sintonia com o olhar cheio de fúria. “Eles vão ignorar solenemente as mulheres cuja vida foi destruída. Em seu lugar teremos fotos de simplórios e prudentes islamitas provincianos que pretendem falar em seu nome. Sempre que se vê a foto de uma muçulmana, é porque o marido é um político e ela estava ao seu lado numa festa religiosa. Por esse motivo, me perturbaria mais aparecer nesses jornais do que não aparecer. Tenho pena dos homens que fazem tanto esforço para aparecer, enquanto nós sofremos tanto para proteger nossa privacidade. É por isso que acho importante que se fale das jovens que se suicidaram. De minha parte, acho que também tenho o direito de dizer uma ou duas coisas a Hans Hansen.”

       “Isso seria ótimo”, disse Ka sem refletir. “Você poderia assinar em nome das feministas muçulmanas.”

       “Não quero representar ninguém”, disse Kadife. “Se eu tiver de enfrentar os europeus, eu o farei em meu próprio nome, para contar-lhes minha história — toda a minha história, com todos os meus pecados e minhas fraquezas. Às vezes não encontramos alguém que nunca vimos antes, alguém que certamente nunca veremos novamente, e nos sentimos tentados a lhe contar tudo, a história de toda a nossa vida? Do modo como parecia que os heróis contavam suas histórias aos autores dos romances europeus que li quando menina. Eu não me importaria de contar minha história dessa maneira para quatro ou cinco europeus.”

       Ouviu-se uma explosão bem perto dali; toda a casa tremeu e as janelas vibraram. Um ou dois segundos depois, Azul e Ka se puseram de pé.

       “Deixe-me dar uma olhada”, disse Kadife finalmente, demonstrando mais sangue-frio que os dois homens.

       Ka espiou timidamente entre as cortinas. “A carroça não está aí”, disse ele.

       “É perigoso para ele ficar muito tempo neste pátio”, disse Azul. “Quando você for embora, saia pela entrada lateral.”

       Ka traduziu aquilo como Por que não vai embora agora?, mas continuou imóvel na cadeira e esperou, trocando olhares raivosos com Azul. Ka lembrou-se do medo que sentira na universidade toda vez que cruzava em corredores escuros com estudantes de tendência nacionalista radical armados, mas pelo menos naquela época o ambiente não estava carregado de tensão sexual.

       “Às vezes fico um pouco paranóico”, disse Azul. “Mas isso não significa que você não espiona para o Ocidente. Você pode não se considerar um espião e pode não querer ser, mas isso não muda a situação. Você é o estranho em nosso meio. Você plantou a dúvida nessa jovem amável e piedosa, e as estranhas coisas que andam acontecendo à volta dela são uma prova disso. E agora você expôs todas essas suas pretensiosas opiniões ocidentais, com certeza até rindo, lá no fundo, à nossa custa. Eu não me importo, e Kadife tampouco, mas ao nos impingir suas idéias ingênuas, ao discorrer sobre a busca da felicidade e da justiça no Ocidente, você anuviou nosso pensamento. Não estou com raiva de você porque, como todas as pessoas boas, você não sabe do mal que tem dentro de si. Mas como ouviu isso de mim, de agora em diante não pode mais alegar inocência.”

 

  1. Seja forte, minha jovem; está a caminho ajuda de Kars

Ka incita Turgut bei a assinar o manifesto

       Ka deixou a casa sem ser visto por ninguém no pátio das oficinas e seguiu direto para o mercado. Dirigiu-se à mesma lojinha de meias, artigos de papelaria e fitas cassete onde ouvira Pepino di Capri cantando “Roberta” na véspera. Tomou as cartas de Necip para Kadife e foi passando as páginas, uma a uma, para o rapaz pálido, de sobrancelhas grossas e escuras, o encarregado de fazer as cópias xerox. Mas para isso Ka teve de abrir os envelopes. Tiradas as cópias, pôs os originais num novo envelope — do mesmo papel barato e desbotado das cartas — e, imitando o melhor que pôde a caligrafia de Necip, endereçou-o a Kadife Yildiz.

       Sempre disposto a lutar por sua felicidade, contar qualquer mentira, fazer qualquer trapaça para realizar seu sonho, apressou-se em voltar para o hotel, cismando sobre uma imagem de Ipek que evocara em sua mente. Estava nevando novamente, os mesmos enormes flocos de neve. Todos nas ruas exibiam os sinais de cansaço e tensão que teriam ao entardecer de um dia comum. Na esquina da rua Caminho do Palácio com a avenida HalitPasa, uma carroça de carvão salpicada de lama, puxada por um cavalo extenuado, estava presa entre dois bancos de neve. Os limpadores do caminhão atrás dela mal conseguiam manter o pára-brisa limpo. Ka olhava os passantes carregando seus sacos plásticos e imaginava-os correndo para a doce segurança do lar. Embora sentisse no ar uma melancolia que lembrava as cinzentas noites de inverno da sua infância, ele continuava determinado, firmemente decidido a começar uma nova vida.

       Foi direto para o seu quarto. Escondeu as cópias das cartas de Necip no fundo da valise, antes mesmo de tirar e pendurar o casaco. Lavou as mãos com um cuidado exagerado. Então, sem saber por quê, escovou os dentes (coisa que ele costumava fazer à noite). Sentindo que um novo poema estava a caminho, passou um bom tempo olhando pela janela, aproveitando o calor que vinha do aquecedor. Em vez de poema, veio uma onda de recordações de infância: a bela manhã primaveril em que acompanhou sua mãe a Beyoglu para comprar botões e um “homem sujo” os seguira; o dia em que seus pais viajaram para a Europa e o táxi que os levou de Nisantas ao aeroporto desapareceu na esquina; as horas que passara dançando com uma jovem alta, de cabelos longos e olhos verdes, numa festa em Büyükada, e que resultaram numa tal rigidez em seu pescoço, durante dias, que ele mal conseguia mexê-lo (ele se apaixonara por ela mas não tinha idéia de como voltar a encontrá-la). Essas lembranças não tinham relação umas com as outras, exceto pelo denominador comum do amor; Ka sabia muito bem que a vida era uma sucessão sem sentido de incidentes aleatórios.

       Desceu as escadas com a impaciência de um homem que acabasse de chegar a um lugar que planejava visitar havia anos. Com uma calma que o surpreendeu, bateu à porta branca que separava o saguão das dependências do proprietário. A criada curda atendeu, e sua expressão, meio conspiratória, meio respeitosa, parecia diretamente saída dos livros de Turgueniev. Ele entrou na peça onde jantaram na véspera e encontrou Turgut bei e Ipek sentados, lado a lado, no comprido divã próximo à porta de trás, vendo televisão.

       “Kadife, onde você estava? Já vai começar”, disse Turgut bei.

      A luz mortiça da neve que jorrava pelas janelas da casa russa conferia à sala espaçosa, com pé-direito alto, um aspecto muito diferente da noite anterior.

       Quando pai e filha viram que era Ka que acabava de entrar, ficaram desconcertados por um instante, como um casal cuja privacidade tivesse acabado de ser invadida por um estranho. Mas, então, Ka ficou alegre ao ver um lampejo brilhar nos olhos de Ipek. Ele tomou lugar numa cadeira voltada para ambos e para a televisão e se permitiu, uma vez mais, reparar em quanto Ipek era muito mais bonita na realidade do que na sua memória. Isso fez seu medo aumentar, mas logo conseguiu se convencer de que eles estavam destinados a viver felizes para sempre.

       “Todo dia, às quatro da tarde, minhas filhas e eu nos sentamos neste divã, para assistir a Marianna”, disse Turgut bei. Havia na voz um certo constrangimento, mas também algo que parecia dizer: não devo satisfações a ninguém.

       Marianna era uma novela mexicana transmitida cinco vezes por semana por um dos grandes canais de televisão de Istambul, para grande satisfação de todo o país. A heroína, que emprestava o nome à série, era uma garota pequena, esfuziante e encantadora, de grandes olhos verdes e pele clara o bastante para sugerir uma origem abastada. Não obstante, ela provinha de uma classe bem humilde. A inocente Marianna, de longos cabelos, ficara órfã ainda muito criança e passara a maior parte da vida pobre e solitária (raramente se passava um dia sem um novo revés) e, sempre que ela se apaixonava por alguém que não correspondia ao seu amor ou era vítima de algum mal-entendido ou de alguma calúnia, Turgut bei e as filhas se aconchegavam como gatos; as jovens encostavam a cabeça contra o peito e o ombro do pai, e os três derramavam algumas lágrimas.

       Talvez pelo constrangimento de ser pego assistindo a uma novela boba, Turgut bei passou a discorrer com fluência sobre as razões subjacentes à pobreza crônica de Marianna e do México. Ele aplaudia Marianna por sua luta contra os capitalistas, e, ao começar o programa, chegara a dizer para a tela: “Seja forte, minha jovem; está a caminho ajuda de Kars”. Quando ele disse isso, sua filha, com os olhos rasos d’água, esboçou um leve sorriso.

       Os lábios de Ka também se abriram num sorriso, mas então ele surpreendeu o olhar de Ipek e, notando que ela não gostava daquele sorriso, assumiu uma expressão mais séria.

       Durante o primeiro intervalo comercial, Ka, confiante, abordou o assunto da declaração conjunta e logo despertou o interesse de Turgut bei. O velho ficou lisonjeado de ser levado tão a sério. Perguntou de quem fora a idéia e como o nome dele viera à baila.

       Ka disse que fora uma decisão que ele tomara depois de consultar a imprensa liberal da Alemanha. Turgut bei perguntou sobre a tiragem do Frankfurter Rundschau e se Hans Hansen se considerava um humanista. Para preparar Turgut bei para Azul, Ka o descreveu como um perigoso fanático religioso, que entretanto findara por entender a importância da democracia. Mas Turgut bei parecia impassível — as pessoas aderiam a uma religião por serem pobres, disse ele, e prosseguiu lembrando Ka de que mesmo sem acreditar no que sua filha e as amigas estavam fazendo, ele as respeitava. Era dentro do mesmo espírito que ele respeitava o nacionalista curdo, fosse lá quem fosse — fosse ele um jovem curdo vivendo em Kars, também seria um feroz nacionalista turco. Turgut bei disse tudo isso no mesmo tom jocoso com que ofereceu apoio a Marianna. “Não se deve dizer isso em público, mas sou contra golpes militares”, declarou ele. Ka o tranqüilizou, lembrando que, de qualquer modo, a declaração não ia ser publicada na Turquia, e acrescentou que o lugar mais seguro para o encontro era numa pequena sala no terraço do Hotel Ásia. Ele podia chegar lá passando pela porta dos fundos de uma loja vizinha, que dava para o mesmo pátio, sem que ninguém percebesse.

       “Temos de mostrar ao mundo que existem verdadeiros democratas na Turquia”, disse Turgut bei. Ele falava depressa porque a novela já ia recomeçar. Pouco antes de Marianna reaparecer, ele olhou o relógio e disse: “Onde está Kadife?”.

       Em silêncio, Ka ficou assistindo à novela com o pai e a filha.

       A certa altura, Marianna subiu um lance de escadas com seu amante. Quando teve certeza de que ninguém os via, enlaçou-o. Eles não se beijaram, mas o que fizeram pareceu a Ka muito mais comovente: eles se abraçaram com todas as suas forças. Durante o longo silêncio que se seguiu, ocorreu a Ka que toda a cidade estava assistindo àquela mesma cena. Em toda a Kars, donas-de-casa recém-chegadas do mercado estavam assistindo, junto com seus maridos; moças da escola secundária assistiam com seus parentes mais velhos, já aposentados. Com todo mundo assistindo, pensou Ka, não eram apenas as ruas pobres de Kars que estavam vazias, mas todas as ruas do país inteiro. No mesmo instante, ele também se deu conta de que suas pretensões intelectuais, atividades políticas e esnobismos culturais o tinham levado a uma existência estéril que o afastava dos sentimentos que aquela novela agora lhe despertava — e, pior que tudo, por sua culpa. Ka tinha certeza de que, depois de fazerem amor, Azul e Kadife tinham se abraçado a um canto para assistir à novela também.

       Quando Marianna se voltou para o amante e disse “Esperei por este dia durante toda a minha vida”, Ka viu que não era coincidência o fato de ela estar ecoando os seus próprios pensamentos. Tentou capturar o olhar de Ipek. Ela descansava a cabeça no peito do pai, e seus grandes olhos tristes e enamorados estavam colados à tela, perdidos nos desejos que a novela despertara.

       “Mas ainda estou muito preocupado”, disse o elegante e bem barbeado amante de Marianna. “Minha família não vai permitir nossa união.”

       “Desde que nos amemos, nada temos a temer”, disse a gentil Marianna.

       “Cuidado, menina, esse sujeito é seu pior inimigo!”, gritou Turgut bei para a tela.

       “Quero que você me ame sem medo”, disse Marianna.

       Olhando fundo nos olhos misteriosos de Ipek, Ka conseguiu que ela prestasse atenção nele, mas ela logo desviou o olhar.

       No intervalo comercial, Ipek voltou-se para o pai e disse: “Paizinho, se você quer saber, acho perigoso o senhor ir ao Hotel Ásia”.

       “Não se preocupe”, disse Turgut bei.

       “O senhor vivia dizendo que andar nas ruas de Kars traz má sorte.”

       “Sim, mas se eu não participar desse encontro, será por uma questão de princípio, e não por medo”, disse Turgut bei, voltando-se para Ka. “A questão c a seguinte: falando como o patriota democrata secularista e progressista que agora sou, a que devo dar prioridade, à filosofia das luzes ou à vontade do povo? Se acredito antes de mais nada no iluminismo europeu, sou obrigado a considerar os islamitas como inimigos e a apoiar o golpe militar. Se, porém, meu compromisso for com a vontade do povo — se, em outras palavras, eu tiver me tornado um autêntico democrata —, não tenho escolha senão ir em frente e assinar o manifesto. Qual das alternativas é certa?”

       “Fique do lado dos oprimidos e vá assinar o manifesto”, disse Ka.

       “Não basta ser oprimido, é preciso estar com a razão. A maioria dos oprimidos está ridiculamente errada. Em que devo acreditar?”

       “Ka não acredita em nada”, disse Ipek.

       “Todo mundo acredita em alguma coisa”, disse Turgut bei. “Por favor, diga o que você acha.”

       Ka fez o que pôde para convencer Turgut bei de que assinar o manifesto era a melhor forma de ajudar Kars a conquistar a democracia. Percebendo a possibilidade de Ipek não querer ir para Frankfurt com ele, Ka começou a temer não conseguir convencer Turgut bei a sair do hotel. Exprimir certezas sem convicção tinha um efeito libertador. Enquanto tagarelava sobre o manifesto, democracia, direitos humanos e muitas outras coisas que não eram novidade para nenhum deles, viu brilhar nos olhos de Ipek uma luz a indicar que ela não acreditava em nada do que ele estava dizendo. Mas não foi uma luz fingida nem moralista que ele viu: pelo contrário, era o brilho de uma provocação sexual. Seus olhos diziam: eu sei que você está despejando todas essas mentiras porque me deseja.

       E então foi assim que, apenas minutos depois de descobrir a importância das sensibilidades melodramáticas, Ka pensou ter descoberto uma outra grande verdade que lhe escapara durante toda a sua vida: há mulheres que não resistem a um homem que só acredita no amor. Dominado pela excitação dessa nova descoberta, ele se entregou a um monólogo sobre direitos humanos, liberdade de pensamento, democracia e temas afins. Enquanto desfiava as bárbaras simplificações de tantos intelectuais ocidentais bem-intencionados, mas cínicos e um tanto confusos, e os chavões repetidos ipsis litteris por seus imitadores turcos, estremecia ao lembrar que logo estaria fazendo amor com Ipek e olhava diretamente nos olhos dela para ver o reflexo de sua própria excitação.

       “Você tem razão”, disse Turgut bei, quando o intervalo comercial acabou. “Onde está Kadife?”

      Quando a neve recomeçou, Turgut bei ficou nervoso — uma parte dele queria ir ao Hotel Ásia, a outra não queria. Como um velho melancólico perdido num mar de sonhos e de fantasmas, ele falava sobre as lembranças políticas que lhe ocorriam enquanto assistia à novela, sobre o medo de ser jogado novamente na prisão e sobre as responsabilidades de um homem. Ka percebia claramente que Ipek estava aborrecida com ele por provocar tanta ansiedade no pai, mas que ela também admirava a rapidez com que ele convencera o velho a sair do hotel. Ka não se preocupava com os olhares de reprovação que ela lhe lançava, e quando, no final da novela, ela se voltou para o pai e disse “Não vá, se não quiser ir; o senhor já sofreu bastante para ajudar os outros, pai”, ele não se sentiu ofendido.

       Ka viu o rosto de Ipek anuviar-se, mas agora um novo e jubiloso poema lhe vinha à cabeça. Na cadeira próxima à cozinha, onde apenas alguns instantes antes Zahide Hanim estava sentada com lágrimas a lhe escorrer pelas faces enquanto via Marianna, Ka se sentou radiante de otimismo e começou a escrever.                                                            

       Só muito depois ele resolveu dar o título de “Vou ser feliz” ao poema, talvez para atormentar a si mesmo. Ka mal terminara de escrevê-lo, sem que faltasse nenhuma palavra, quando Kadife entrou apressada na sala. Turgut bei levantou-se de um salto, abraçou-a, beijou-a, perguntou-lhe onde estava e por que suas mãos estavam tão frias. Uma única lágrima rolou-lhe pelo rosto. Kadife disse que fora ver Hande. Ela se demorou mais do que previra, e como não queria perder nada da novela, resolveu assistir na casa de Hande até o fim. “E como vai indo a nossa menina?”, perguntou Turgut bei (referindo-se a Marianna). Não esperou, porém, pela resposta de Kadife e mudou de assunto. Uma grande nuvem de apreensão desceu sobre ele enquanto resumia o que Ka lhe dissera.

       Kadife não se contentou em fingir estar ouvindo tudo aquilo pela primeira vez — quando viu Ka do outro lado da sala, fingiu estar surpresa. “Estou tão contente que você esteja aqui”, exclamou ela, enquanto se apressava em cobrir os cabelos. Mas seu manto ainda não estava no lugar quando se sentou diante da televisão para aconselhar o pai. Kadife foi tão convincente fingindo surpresa ao vê-lo que, quando encorajou o pai a participar do encontro e assinar o manifesto conjunto, Ka achou que também aquilo era uma encenação. Como a intenção de Azul era elaborar um manifesto que a imprensa estrangeira se dispusesse a publicar, sua desconfiança devia ter fundamento. Mas pelo medo que viu no rosto de Ipek, Ka teve certeza de que ali estava acontecendo uma outra coisa também.

       “Deixe-me acompanhá-lo ao Hotel Ásia”, disse Kadife.

       “Não quero que você se meta em confusão por minha causa”, disse Turgut bei, assumindo um ar heróico inspirado nas novelas a que eles assistiam e nos romances que liam outrora.

       “Por favor, pai, se o senhor se envolver nessa história, poderá se expor a riscos desnecessários”, disse Ipek.

       Enquanto falava com o pai, Ka considerava: parecia que — como todos os demais na sala — tudo o que ela dizia tinha um duplo significado. O mesmo se podia dizer do jogo que ela jogava com os olhos — ora lançando-lhe um olhar de reprovação, ora fitando-o intensamente: ele só podia supor que se tratava de mais uma forma de transmitir a mesma mensagem de duplo sentido. Só muito depois ele iria se dar conta de que — à exceção de Necip todas as pessoas que conhecera em Kars falavam no mesmo código e, de forma tão harmoniosa, que pareciam um único coro. E então ele se perguntaria se o que os levava a isso era a pobreza, ou medo e solidão, ou ainda a própria simplicidade da vida deles. Mesmo ao dizer “Pai, por favor, não vá”, Ipek estava provocando Ka; da mesma maneira Kadife, Ka o percebia, ao falar do manifesto e dos laços que a ligavam ao pai, estava revelando os laços que a ligavam a Azul.

       Foi com tudo isso em mente que Ka entrou no que mais tarde haveria de chamar “a conversa mais profundamente ambígua de toda a minha vida”. Ka tinha a forte impressão de que se não conseguisse fazer que Turgut bei saísse do hotel naquele momento, ele nunca haveria de ter a chance de dormir com Ipek, e como o desafio que via no olhar de Ipek apenas confirmava essa idéia, disse a si mesmo que aquela era a última chance de felicidade de sua vida. Quando ele começou a falar, usou as mesmas palavras e idéias que tinham arruinado a sua vida. Mas enquanto tentava convencer Turgut bei a sair do hotel — porque era importante agir pelo bem comum, assumir a responsabilidade pela pobreza do país e participar de suas lutas, porque ele estava do lado dos que tinham uma missão civilizadora e portanto obrigado a lutar contra as forças obscurantistas ainda que o próprio gesto parecesse insignificante —, Ka chegou a acreditar um pouco no que estava dizendo. Ele se lembrou de como tinha se sentido quando era um jovem esquerdista, de sua decisão de não se integrar à burguesia turca, quando tudo o que queria era ficar sentado numa sala lendo grandes livros e ocupando a mente com grandes pensamentos. Assim, foi com o entusiasmo de um jovem de vinte e quatro anos que ele repetiu aqueles pensamentos e idéias que tanto perturbavam sua mãe — que tinha razão em desejar que ele nunca se tornasse poeta — e o condenaram ao exílio num buraco de rato em Frankfurt. Ao mesmo tempo, sabia muito bem o que a paixão de suas palavras dizia a Ipek: veja quanto estou louco para fazer amor com você. Ele estava pensando que finalmente aquelas belas palavras da juventude que tinham arruinado a sua vida iriam servir para alguma coisa; graças a elas, ele iria fazer amor com o objeto de seus desejos, sabendo, ao mesmo tempo, que perdera a fé nelas; agora ele sabia que a maior felicidade na vida era enlaçar uma bela jovem inteligente e ficar sentado a um canto, escrevendo poesia.

       Turgut bei anunciou que iria imediatamente para o Hotel Ásia. Ele foi trocar de roupa no quarto, acompanhado de Kadife.

       Ka aproximou-se de Ipek, que estava no mesmo lugar onde estivera assistindo à televisão com o pai. Era quase como se ela ainda estivesse recostada no velho. “Vou esperar por você no quarto”, sussurrou Ka.

       “Você me ama?”, perguntou Ipek.

      “Eu a amo muito.”

       “É verdade?”

       “E a pura verdade.”

       Por um instante, os dois ficaram calados. Ipek voltou os olhos para a janela, e Ka fez o mesmo. Começara a nevar novamente. As lâmpadas dos postes de iluminação da frente do hotel estavam acesas, mas ainda não escurecera. Por isso, ainda que iluminassem a agitação dos flocos de neve gigantes, elas pareciam supérfluas.

       “Vá para seu quarto”, disse Ipek. “Quando eles saírem, eu subo.”

 

  1. A diferença entre o amor e a agonia da espera

Ka com Ipek no quarto do hotel

       Ipek não veio imediatamente, e a espera foi uma tortura, a pior que Ka conheceu em toda a sua vida. Foi aquela dor, aquela espera insuportável, agora ele se lembrava, que o fizeram ter medo de se apaixonar. Chegando ao quarto, jogou-se na cama, apenas para se levantar em seguida e dar uma arrumada em suas roupas. Lavou as mãos e sentiu o sangue fluir pelos seus braços, dedos, lábios. Penteou o cabelo com as mãos trêmulas e, então, vendo o próprio reflexo na vidraça, tornou a despenteá-los. Como tudo aquilo levou muito pouco tempo, concentrou sua atenção na cena que via através da janela.

       Ele esperou ver Turgut bei saindo do hotel com Kadife. Talvez tivessem saído quando ele estava no banheiro. Mas se assim fosse, Ipek já teria vindo. Talvez ela estivesse no quarto que ele vira na noite anterior, pintando o rosto e perfumando-se com ligeiras palmadinhas no pescoço. Que desperdício do pouco tempo em que ficariam juntos! Será que ela não entendia o quanto a amava? O que quer que ela estivesse fazendo não justificava a dor que ele sentia naquele instante. Ele iria lhe dizer isso quando ela viesse, mas será que viria mesmo? A cada instante que escoava, ficava mais convencido de que Ipek mudara de idéia.

       Ele viu uma charrete puxada por cavalos chegar ao hotel. Ajudados por Zahide Hanim e por Cavit, o recepcionista, Turgut bei e Kadife subiram na charrete e o toldo encerado se fechou sobre eles. Mas a charrete continuou parada, e Ka viu o lençol de neve sobre o toldo se tornar cada vez mais espesso. As luzes dos postes faziam cada novo floco de neve parecer maior que o anterior. É como se o tempo tivesse parado, pensou Ka. Aquilo o estava enlouquecendo. Naquele mesmo instante Zahide saiu correndo do hotel e passou alguma coisa para dentro da charrete. Quando o veículo se pôs em marcha, o coração de Ka disparou.

       Mas Ipek não vinha.

       Qual era a diferença entre o amor e a agonia da espera? Como o amor, a agonia da espera começava nos músculos em algum ponto da região superior do abdômen, mas logo se espalhava pelo peito, pelas coxas, pela testa, dominando em seguida todo o corpo com uma força entorpecedora. Enquanto ouvia os sons de outras partes do hotel, ele tentava adivinhar o que Ipek estaria fazendo. Viu uma mulher passando na rua, e embora ela não se parecesse nem um pouco com Ipek, achou que devia ser ela. Como era bela a neve caindo do céu! Quando criança, os alunos foram mandados para o refeitório da escola para tomar vacina. Enquanto ele esperava apertando os braços em meio ao vapor das panelas e ao cheiro de iodo, sua barriga doeu tanto como naquele momento e ele teve vontade de morrer. Ele queria estar em casa, em seu quarto. Agora, gostaria de estar em seu pobre quarto em Frankfurt. Que grande erro fora vir para Kars! Até os poemas pararam de vir. Doía tanto que ele nem podia olhar a neve caindo na rua deserta. Não obstante, ele se sentia bem, de pé, junto à janela aquecida — aquilo era ainda melhor que morrer, e ele iria morrer de qualquer maneira se Ipek não viesse logo.

       As luzes se apagaram.

       Aquilo fora um sinal, pensou Ka, enviado especialmente para ele. Talvez Ipek não tivesse vindo porque sabia que ia faltar luz. Ele olhou para a rua escura procurando um sinal de vida, algo que pudesse explicar a ausência de Ipek. Ele avistou um caminhão — era um caminhão do exército? Não, era apenas sua mente lhe pregando peças. Da mesma maneira que com os passos que pensou ouvir nas escadas. Não estava vindo ninguém. Afastou-se da janela e deitou-se de costas na cama. A dor que começara na barriga agora tinha alcançado a sua alma: ele estava sozinho no mundo e não podia culpar senão a si mesmo. Sua vida dera em nada e ele iria morrer ali, morrer de dor e solidão. Desta vez ele não iria nem encontrar forças para correr feito um rato para o buraco em Frankfurt.

       O que mais o afligia e angustiava não era sua terrível infelicidade: era saber que, se tivesse agido com um pouco mais de inteligência, toda a sua vida teria sido muito mais feliz. O pior era saber que ninguém nem sequer notava seu medo, sua dor, sua solidão. Se Ipek tivesse alguma noção disso, iria encontrá-lo imediatamente! Se a sua mãe o visse naquele estado... ela era a única pessoa no mundo que teria sentido por ele — ela passaria os dedos em seus cabelos e o consolaria.

       O gelo das janelas dava um brilho alaranjado à luz dos postes e às casas vizinhas. Que a neve continue a cair, pensou ele, que caia sem parar durante dias e meses, que cubra a cidade de Kars tão completamente que ninguém mais consiga encontrá-la. Queria adormecer naquela cama e só acordar numa bela manhã de sol, ele sendo menino novamente, com sua mãe ao seu lado.

       Bateram à porta. Aquela altura, disse Ka a si mesmo, só podia ser alguém da cozinha. Mas ele correu até a porta e, no momento em que abriu, sentiu a presença de Ipek.

       “Onde você estava?”

       “Eu me atrasei?”

       Mas foi como se Ka nem a tivesse ouvido. Ele já a abraçava com toda a força. Encostou a cabeça no pescoço dela, escondeu o rosto em seus cabelos e lá ficou sem mover um músculo. Sentiu uma tal alegria que a agonia da espera agora lhe parecia absurda. Não obstante, a agonia da espera o extenuara. Era por isso, pensou ele, que não podia sentir plenamente o prazer com a presença dela. E por isso pedira a Ipek que explicasse o atraso: mesmo sabendo que não tinha o direito de fazer isso, continuava se queixando. Mas Ipek insistia que viera tão logo seu pai saíra — sim, era verdade que tinha parado na cozinha para dar uma ou outra orientação a Zahide sobre o jantar, mas aquilo não devia ter tomado mais de um minuto. Assim, Ka se revelava o mais ardente e frágil dos dois: já de saída, no começo do relacionamento, deixara que Ipek assumisse o controle. E mesmo que o medo de parecer fraco o tivesse levado a esconder a agonia em que ela o lançara, ainda tinha de lutar contra sentimentos de insegurança. Além disso, amar não significava partilhar tudo? Que era o amor senão o desejo de partilhar cada um dos pensamentos? Ele expôs essa linha de pensamento a Ipek como se estivesse revelando um terrível segredo.

       “Agora tire tudo isso da cabeça”, disse Ipek. “Eu vim aqui para fazer amor com você.”

       Eles se beijaram e, com uma suavidade que confortou Ka, caíram na cama. Para Ka, que não fazia amor havia quatro anos, aquilo parecia um milagre. Assim, mesmo quando se rendia aos prazeres da carne, sua mente, alerta, o lembrava de como aquele momento era belo. Da mesma maneira que em suas primeiras experiências sexuais, não era tanto o ato, mas a idéia de fazer amor, que o absorvia. Por um instante, aquilo o protegeu de uma excitação exagerada. Detalhes dos filmes pornográficos em que se viciara em Frankfurt passavam pela sua cabeça, criando uma aura poética que parecia além de toda lógica. Mas ele não estava buscando excitação nessas cenas pornográficas — ele estava celebrando o fato de que finalmente podia pôr em prática aquelas fantasias que lhe povoavam a mente. Assim, não era Ipek que excitava Ka, mas uma imagem pornográfica, e o milagre era menos a presença dela que o fato de que podia imaginar sua fantasia ali na cama com ela. E só quando começou a lhe arrancar as roupas com uma falta de jeito quase selvagem é que ele começou a olhar para a verdadeira Ipek. Seus seios eram enormes, a pele do seu colo e ombros era maravilhosamente macia, com um aroma estranho e exótico. Ele observava a luz da neve brincando no corpo dela. Vez por outra alguma coisa brilhava em seus olhos, enchendo-o de medo. Os olhos dela eram muito seguros de si: Ka temia que Ipek não fosse tão frágil como gostaria que ela fosse. Foi por isso que puxou seu cabelo para lhe causar dor; e porque sentiu tanto prazer com a dor de Ipek é que puxou seu cabelo mais uma vez, submetendo-a a outros atos também inspirados nos filmes pornográficos que ainda estavam passando em sua mente, e a tratou de forma tão brutal — embalado por uma música interior tão profunda quanto primitiva. Quando viu que ela gostava do tratamento rude que lhe dispensava, sua exultação deu lugar a uma afeição fraternal. Ele a enlaçou: já não queria apenas se salvar das aflições de Kars, queria salvar Ipek também. Mas quando julgou que a reação dela foi proporcional ao seu ardor, ele se retraiu. Num canto de sua cabeça, ele conseguia controlar e coordenar aquelas acrobacias sexuais com surpreendente habilidade. Mas quando sua cabeça estava em algum lugar distante, ele podia agarrar a mulher com uma paixão que beirava a violência. Nesses momentos, desejava machucá-la.

       De acordo com as anotações feitas por Ka sobre a relação sexual — notas que, sinto, devo compartilhar com meus leitores —, sua paixão finalmente se consumou, e os dois entregaram-se um ao outro com tal intensidade que se esqueceram do mundo. As mesmas anotações revelam também que Ipek soltou um gemido triste quando tudo acabou. A paranóia inata de Ka voltou imediatamente quando ele se perguntou se aquele era o motivo por que lhe tinham dado um quarto no canto mais remoto do hotel. O prazer que tiveram causando dor um ao outro cedia lugar agora ao velho sentimento de solidão. Parecia-lhe que aquele quarto afastado naquele corredor afastado tinha se separado do hotel — voara para o mais distante canto daquela cidade deserta. E o silêncio daquela cidade deserta dava a impressão de que o mundo acabara, e estava nevando.

       Ficaram por muito tempo deitados lado a lado na cama, contemplando a neve em silêncio. De vez em quando, Ka voltava a cabeça para olhar, nos olhos de Ipek, a neve que caía.

 

  1. Não perdi apenas você

Em Frankfurt

       Quatro anos depois da visita de Ka a Kars e quarenta e dois dias depois de sua morte, fui visitar o pequeno apartamento em Frankfurt no qual ele passara os oito últimos anos de sua vida. Era um nevoento, chuvoso e ventoso dia de fevereiro. Quando cheguei a Frankfurt no vôo matinal procedente de Istambul, a cidade parecia ainda mais sombria que nos postais que Ka me enviara durante dezesseis anos. Exceto pelos carros pretos que passavam pelas ruas, pelos bondes que surgiam do nada como fantasmas para logo desaparecer, e pelas donas-de-casa de sombrinha em punho andando apressadas pelas calçadas, as ruas estavam desertas. Era meio-dia, mas perscrutando a névoa densa e escura eu conseguia apenas vislumbrar a luz mortiça e amarela das lâmpadas dos postes.

       Não obstante, alegrou-me ver — nas ruas em volta da estação ferroviária central e nas calçadas ladeadas por restaurantes, agências de viagens, sorveterias e sex shops — sinais da energia imortal que mantém vivas todas as grandes metrópoles. Depois de me instalar em meu hotel e de telefonar para o jovem turco-alemão entusiasta de literatura que, a pedido meu, conseguira que eu fosse convidado a dar uma palestra no centro de cultura popular, fui ao café italiano da estação encontrar-me com Tarkut Ölçün. Em Istambul, a irmã de Ka me dera o número dele. Aquele homem fatigado e bem-intencionado, já na casa dos sessenta, fora a pessoa mais próxima de Ka em seus anos de Frankfurt. Durante a investigação, ele dera um depoimento à polícia sobre a morte de Ka; foi ele quem entrou em contato com a família de Ka em Istambul e ajudou a acertar o envio do corpo para a Turquia. Na ocasião, eu ainda tinha a esperança de encontrar o texto datilografado da coletânea de poesias em que, segundo o próprio Ka, ele estivera trabalhando desde que voltara de Kars, quatro anos antes, e que acabara de concluir. Assim, perguntei ao seu pai e à irmã o que tinha acontecido com seus pertences. Eles não tiveram coragem de fazer a viagem à Alemanha, então me pediram que recolhesse as coisas de Ka e desocupasse o apartamento.

       Tarkut Ölçün chegara à Alemanha na primeira onda de imigração no começo da década de 6o. Durante anos, ele trabalhara como professor e assistente social para muitas instituições de caridade e associações turcas. Quando ele mostrou fotografias de seu filho e de sua filha nascidos na Alemanha, disse-me com orgulho que os dois tinham ido estudar na universidade. Embora Tarkut fosse uma figura de certo relevo na comunidade turca de Frankfurt, pude perceber em seu rosto a expressão de solidão e malogro tão comum nos imigrantes de primeira geração e nos exilados políticos.

       A primeira coisa que Tarkut Ölçün me deu foi uma pequena valise que estava com Ka quando ele foi morto. A polícia o fez assinar um recibo antes de entregá-la a ele. Eu a abri imediatamente e comecei a vasculhá-la feito um desesperado. Nela encontrei o pijama que Ka comprara em Nisantas, dezoito anos antes, um pulôver verde, o barbeador, uma escova de dentes, um par de meias, uma cueca e várias revistas literárias que eu lhe enviara de Istambul. Não havia nem sinal de seu caderno verde de poesia.

       Mais tarde, enquanto tomávamos nosso café olhando a estação apinhada de gente onde dois turcos idosos riam e conversavam enquanto limpavam o chão, Tarkut disse: “Orhan bei, seu amigo Ka bei era um homem solitário. Ninguém em Frankfurt, exceto eu, tinha muita noção do que ele estava fazendo.” Mas ainda assim ele prometeu me contar tudo o que sabia.

       Atravessamos a estação, passamos por um velho quartel do exército e pelos edifícios centenários das fábricas e chegamos ao edifício próximo da Goethestrasse, onde Ka passara os últimos oito anos de sua vida. O apartamento dava para uma pracinha com um playground, mas o proprietário não estava lá para abrir a porta da frente e nos conduzir ao apartamento de Ka. A pintura da velha porta estava descascando, e, enquanto ficamos lá esperando na neve úmida, reconheci muitas das coisas que Ka me descrevera em suas cartas e em seus raros telefonemas (propenso como era à paranóia, Ka suspeitava que alguém monitorava todos os seus telefonemas para a Turquia, por isso não gostava de usar o telefone). Olhei o parquinho malconservado e a mercearia do outro lado, e, enquanto meus olhos vagavam para além deles, olhando as vitrines escuras das lojas que vendiam bebidas alcoólicas e jornais, senti que estava contemplando minhas próprias lembranças. Os balanços e as gangorras do playground, assim como os bancos onde Ka passava as noites de verão tomando cerveja com o operário italiano e o iugoslavo que eram seus vizinhos, agora estavam cobertos por uma fina camada de neve.

       Voltamos para a praça da estação, fazendo o mesmo caminho que Ka fazia toda manhã para ir à biblioteca municipal em seus últimos anos. Ele gostava de andar por entre a multidão apressada a caminho do trabalho. Seguimos seus passos até a estação, atravessamos uma galeria comercial subterrânea, voltamos à superfície novamente e, fazendo o trajeto do bonde, passamos pelos sex shops, lojas de suvenires, confeitarias e farmácias da Kaiserstrasse, até a altura da praça Hauptwache. Tarkut Ölçün viu muitos turcos e curdos conhecidos seus em casas de döner, de kebab, de frutas e verduras, e enquanto os saudava contou-me que quando aquelas mesmas pessoas viam Ka a caminho da biblioteca pública toda manhã, exatamente à mesma hora, exclamavam “Bom dia, professor!”. Quando chegamos à praça Hauptwache, ele apontou uma grande loja no lado oposto — a Kaufhof. Eu lhe disse que fora ali que Ka tinha comprado o casaco que usou em Kars, mas não aceitei o convite para entrar na loja com ele.

       O destino final de Ka, a biblioteca municipal de Frankfurt, era um edifício moderno e anônimo. Lá dentro se viam os tipos que normalmente encontramos nessas bibliotecas: donas-de-casa, velhos com tempo de sobra, desempregados, um ou dois turcos e árabes, estudantes rindo diante de seus cadernos, e a valorosa legião dos obesos, mancos, dementes e deficientes mentais. Um jovem que estava babando levantou a vista do seu livro ilustrado e me mostrou a língua. Meu guia não se interessava por livros, por isso o deixei no café do térreo e me dirigi às estantes de poesia inglesa. Ali examinei as fichas de empréstimo na parte interna da contracapa dos livros, procurando o nome de meu amigo; toda vez que eu abria um exemplar de Auden, Browning ou Coleridge e encontrava sua assinatura, derramava lágrimas por ele e pelos anos que ele passara naquela biblioteca.

       Abreviei minha busca, que me enchera de tristeza, e voltei pelas mesmas avenidas com meu amistoso guia, sem dizer uma palavra. Dobramos à esquerda a certa altura da Kaiserstrasse, pouco antes de um lugar chamado World Sex Center, ou alguma coisa igualmente absurda, e andamos por uma rua até Münchnerstrasse, onde vi restaurantes e quitandas de turcos e um cabeleireiro vazio. Aquela altura eu já desconfiava do que me ia ser mostrado, então meu coração disparou, e quando meu olhar ia saltando dos alhos-porós frescos e laranjas expostos à porta das quitandas para um perneta que mendigava ali perto, e para o reflexo dos faróis nas janelas sufocantes do Hotel Éden, enxerguei, brilhando num esplendor róseo solitário no lusco-fusco, a letra K em néon.

       “Foi aqui que encontraram o corpo de Ka”, disse Tarkut Ölçün.

       Olhei desamparado para a calçada molhada. Dois meninos saíram correndo de uma quitanda, empurrando-se e esbarrando um no outro. Em sua correria, um deles pisou na área da calçada onde Ka ficou agonizante, com três balas no corpo. A luz vermelha dos faróis de um caminhão estacionado mais adiante refletia-se no asfalto. Ka ficou vários minutos contorcendo-se naquela calçada e morreu antes de a ambulância chegar.

       Levantei a cabeça por um instante para encontrar o retalho de céu que ele vira enquanto agonizava: entre os velhos edifícios negros, as lâmpadas dos postes e os fios elétricos, se via uma nesga de céu. Ka deve ter sido baleado por volta da meia-noite. Tarkut Ölçün me disse que àquela hora devia haver uma ou outra prostituta fazendo trottoir. A rigor, a área dos prostíbulos era uma rua adiante, na Kaiserstrasse, mas nas noites movimentadas e nos fins de semana, ou durante as feiras comerciais, as mulheres se espalhavam também naquela rua. “Eles não encontraram nada”, disse ele quando me viu olhando para a esquerda e para a direita em busca de uma pista. “E a polícia alemã é diferente de nossa polícia turca. Eles trabalham direito.”

       Mas quando comecei a fazer pequenas diligências entre os ocupantes das lojas das cercanias, o bom homem resolveu ajudar. As moças do cabeleireiro o reconheceram; depois de trocarem gentilezas, ele lhes perguntou se tinham visto alguma coisa, mas naturalmente elas não estavam no estabelecimento na hora do crime e nada sabiam do acontecido. “A única coisa que as famílias turcas ensinam a suas filhas aqui é a profissão de cabeleireira”, disse-me ele quando saímos. “Existem centenas de cabeleireiras turcas em Frankfurt.”

     Os curdos da quitanda, ao contrário, estavam muito bem informados sobre o assassinato e as investigações que se seguiram. Isso talvez explique a má vontade com que nos receberam.

       Com o mesmo pano sujo que tinha na mão quando entramos, o garçom da Casa do Kebab estava limpando as mesas de fórmica na meia-noite fatídica, quando ouviu os disparos. Ele esperou um pouco antes de sair, sendo assim a última pessoa que Ka tinha visto em sua vida.

       Depois de deixar o restaurante de kebab, entramos depressa na primeira galeria e saímos no pátio dos fundos de um edifício escuro. Seguido de perto por mim, Tarkut bei desceu dois lances de escada, passou por uma porta e entrou num lugar horroroso, semelhante a um hangar, que outrora servira de depósito. Aquela área de submundo era tão ampla quanto a rua lá em cima. Agora ela funcionava como mesquita — entre cinqüenta e sessenta fiéis estavam fazendo suas orações noturnas na área acarpetada do centro — e estava forrada de lojas tão escuras e sujas como as que a gente encontra em qualquer galeria subterrânea de Istambul. Vi uma joalheria com a vitrine às escuras e uma quitanda diminuta, que se poderia chamar de anã; a casa de carnes ao lado estava cheia de gente, mas o homem da mercearia, sentado em meio a rolos de lingüiça, olhava ociosamente para o aparelho de televisão do café. A um canto se viam caixas de sucos de frutas turcos, macarrão turco, enlatados turcos e literatura religiosa, e notei que o café era ainda mais concorrido do que a mesquita. O ar estava pesado de fumaça de cigarro. Os homens que estavam às mesas pareciam cansados — a maioria com os olhos grudados no filme turco da televisão, mas de vez em quando alguém ia a passos arrastados até o chafariz improvisado; depois de encher um balde de plástico com água, fazia suas abluções antes de ir juntar-se aos fiéis.

       “As sextas-feiras e feriados, a gente vê duas mil pessoas aqui”, disse-me Tarkut bei. “A multidão ocupa até as escadas e o pátio de trás.” Fui à banca de livros e revistas e — sem nenhum motivo especial — comprei um exemplar da revista Comunicação.

       Depois nos dirigimos à velha cervejaria à moda de Munique que ficava logo em cima. “Essa mesquita é dos Suleimanci”, disse Tarkut Ölçün, apontando o chão em que pisávamos. “Eles são teocratas mas nada têm a ver com terrorismo; não são como os Guardiães da Nação ou os seguidores de Cemalettin. Eles tampouco querem levantar-se em armas contra o Estado turco.” Incomodado, talvez, com a expressão de desconfiança que via em meu rosto e com a atenção com que eu lia a revista, como se procurando pistas, ele me contou tudo o que sabia sobre o assassinato de Ka e o que ele veio a saber mais tarde, da polícia e da imprensa.

       Às onze e meia, exatamente quarenta e dois dias antes de minha visita, Ka voltara de Hamburgo, onde participara de uma noite de poesia. O sarau durara seis horas, mas, quando ele entrou na estação, não pegou a saída sul para ir ao seu apartamento na Goethestrasse. Em vez disso, pegou a saída norte para a Kaiserstrasse e passou os vinte e cinco minutos seguintes vagando entre turistas, bêbados, homens solitários e as prostitutas que esperavam clientes. Ele já tinha andado por cerca de meia hora quando dobrou à direita no World Sex Center; foi alvejado quando cruzava a Münchnerstrasse. Provavelmente estava a caminho da quitanda Antália para comprar algumas tangerinas para levar para casa. Aquela era a única loja de frutas ainda aberta àquela hora, e o vendedor lembrava-se de que Ka muitas vezes parava para comprar laranjas. Diante de sua afirmação de nada saber do assassinato de Ka, a polícia desconfiou dele a ponto de levá-lo para ser interrogado, mas soltou-o no dia seguinte, já que nada descobriram.

       A polícia não conseguiu encontrar ninguém que tivesse visto o agressor de Ka. O garçom do restaurante de kebab ouviu os disparos, mas com a televisão ligada e o barulho dos fregueses, ele não soube nem dizer quantos tiros ouvira. E era impossível enxergar através das vidraças embaçadas da cervejaria que ficava acima da mesquita. Uma prostituta que estava fumando um cigarro numa rua mais abaixo disse ter visto um homem baixo, de pele morena, “parecendo turco”, trajando um casaco preto, correr em direção à Kaiserstrasse por volta da meia-noite, mas não foi capaz de dar uma boa descrição à polícia. Um alemão que por acaso estava na sacada de seu apartamento quando Ka caiu no chão, chamou a ambulância, mas ele também não viu ninguém. A primeira bala entrou na parte posterior da cabeça de Ka e saiu pelo olho esquerdo. As outras duas atingiram vasos sangüíneos perto do coração e do fígado, perfurando a parte da frente e a de trás de seu casaco cor de carvão, que ficou encharcado de sangue.

       “Ele foi alvejado pelas costas, portanto deve ter havido premeditação”, concluiu o velho detetive encarregado do caso. O assassino talvez tenha até seguido Ka desde Hamburgo. A polícia considerava uma série de motivos diferentes, desde ciúme de natureza sexual até a vingança política, tão freqüente na comunidade turca. Ka não tinha tido nenhuma relação com o submundo das cercanias da estação. Quando a polícia mostrou sua foto às pessoas que trabalhavam nas imediações, umas se lembraram de tê-lo visto entrar algumas vezes nos sex shops, outras, nas pequenas cabines para assistir a filmes pornôs. Mas não havia nenhuma testemunha ocular, veraz ou não, e não havia pressão de instâncias superiores para que se achasse o assassino. Tampouco a imprensa pressionava, por isso a polícia terminou por encerrar as investigações.

       Ao conversar com os conhecidos de Ka, o loquaz detetive às vezes parecia ter perdido de vista o objetivo da investigação e terminava por falar mais que todo mundo. Foi por esse policial gentil e loquaz, simpático aos turcos, que Tarkut Ölçün ficou sabendo das duas mulheres que entraram na vida de Ka oito anos antes de sua visita a Kars. Uma era alemã e a outra turca; anotei seus nomes em meu caderno, com todo o cuidado. Quatro anos depois de sua volta de Kars, Ka não tivera relações com nenhuma mulher.

       Tarkut e eu tornamos a enfrentar a neve; enquanto voltávamos para a casa de Ka, ambos permanecemos calados. Dessa vez conseguimos encontrar o proprietário, um homem corpulento e afável, que parecia, porém, meio desgostoso. Ele nos deu acesso ao edifício, que era frio e cheirava a fuligem, e nos levou ao apartamento de cobertura que, disse-nos em tom de queixa, já ia ser alugado novamente: o que não levássemos de toda aquela tralha, ele ia jogar fora. Dito isso, nos deixou. Lágrimas me vieram aos olhos no momento em que entrei nos aposentos pequenos, escuros, de teto baixo, em que Ka passara seus últimos oito anos de vida. O cheiro forte me levou de volta à nossa infância: era o cheiro que eu associava à sua mochila escolar, ao seu quarto em sua casa e aos pulôveres que sua mãe tricotara. Acho que devia ser de um sabão de marca turca cujo nome nunca soube nem pensei em perguntar.

       Em seus primeiros anos de Alemanha, Ka trabalhou como porteiro, carregador, pintor de paredes, além de dar aulas de inglês para turcos; quando foi oficialmente declarado exilado político e passou a receber o auxílio correspondente, afastou-se dos comunistas turcos dos centros de cultura popular, que até então lhe tinham conseguido trabalhos vantajosos. Seus companheiros de exílio o achavam muito arredio e muito burguês. Em seus últimos doze anos de vida, Ka complementava sua renda fazendo leituras públicas de poesia em bibliotecas municipais, fundações culturais e associações turcas. Só turcos compareciam, e o público raramente passava de vinte pessoas; ainda assim, quando ele conseguia fazer três num mês, ganhava quinhentos marcos extras que, somados à quantia que recebia como exilado, lhe permitiam viver confortavelmente. Mas agora estava claro que meses como esses tinham sido poucos e muito espaçados. As cadeiras de seu apartamento estavam quebradas, os cinzeiros rachados, e o fogão elétrico coberto de ferrugem. Sentindo-me ainda ofendido pela ameaça que o proprietário fez quando entramos, tive vontade de enfiar todos os pertences de Ka numa velha mala e em algumas bolsas de plástico e ir embora. Eu queria levar tudo: o travesseiro, ainda com o cheiro de seus cabelos, o cinto e a gravata que lembro tê-lo visto usar no curso secundário, os sapatos Bally que (segundo suas cartas) ele continuara a usar em casa como chinelos quando os dedos do pé furaram o couro, os copos sujos nos quais ele guardava a escova e a pasta de dentes, sua biblioteca de cerca de trezentos e cinqüenta livros, a televisão, o aparelho de vídeo de que ele nunca me falara, a jaqueta puída, as camisas surradas e o pijama que ele trouxera da Turquia dezesseis anos antes. Mas quando eu olhei a mesa de trabalho e não encontrei o que mais desejava — aquilo que, só agora eu me dava conta, me fizera voar para Frankfurt para resgatar —, enchi-me de desânimo.

       Em sua última carta de Frankfurt, Ka anunciara alegremente que após quatro anos de trabalho duro finalmente terminara um novo livro de poesia. O título era Neve. A maioria dos poemas baseava-se nas recordações de infância que lhe vieram em flashes durante sua estada em Kars, e ele havia anotado cuidadosamente aquelas inspirações num caderno verde. Numa carta anterior, escrita quase imediatamente depois de deixar Kars, Ka me disse ter descoberto que o livro tinha uma estrutura subjacente “profunda e misteriosa” — ele passara seus últimos quatro anos em Frankfurt preenchendo as lacunas daquele desenho oculto. Para aquela exaustiva tarefa, teve de se afastar do mundo, privando-se de seus prazeres como um dervixe. Em Kars ele se sentira como um médium, como se alguém estivesse sussurrando os poemas em seu ouvido; de volta a Frankfurt, a voz sussurrante se calara.

       Não obstante, ele se esforçou para descobrir a lógica que — ele não tinha dúvidas — havia por trás daquelas visões e inspirações vivenciadas em Kars. Em sua última carta ele disse que, agora que a árdua tarefa estava terminada, ia tentar testar os poemas em leituras públicas em várias cidades da Alemanha. Afora a versão manuscrita do caderno verde, ele não tinha nenhuma outra cópia, segundo me disse, mas ia datilografar o manuscrito e tirar cópias, quando julgasse que tudo estava no devido lugar. Ele ia mandar uma cópia para mim e outra para seu editor de Istambul. Será que eu poderia fazer o favor de escrever algumas palavras para a quarta capa e enviá-las ao editor, nosso amigo comum Fahir?

       O panorama que se via da escrivaninha de Ka — os telhados de Frankfurt cobertos de neve — começava a escurecer agora que caía a noite sobre a cidade. A escrivaninha de Ka era surpreendentemente bem-arrumada, considerando-se o seu ofício de poeta. A direita estavam os diários em que ele relatava sua visita a Kars e os poemas que lhe vieram naquela cidade; à esquerda, uma pilha de livros e revistas que ele estava lendo. Eqüidistantes do centro da mesa, havia uma luminária de bronze e um telefone.

       Vasculhei as gavetas da escrivaninha em busca do caderno; revirei os livros, os diários e a coleção de recortes de jornais que não podem faltar na casa de um exilado; com um medo cada vez maior, procurei nos guarda-roupas, na cama, nos armários da cozinha e do banheiro, na geladeira, na cestinha de roupas sujas e em todos os cantos da casa onde se poderia esconder um caderno. Recusando-me a admitir que se perdera, procurei novamente nos mesmos lugares, enquanto Tarkut Ölçün fumava um cigarro e contemplava a neve caindo sobre Frankfurt. Se o caderno não estivesse na valise que levara consigo para Hamburgo, tinha de estar naquele apartamento. Ka sempre se recusara a fazer cópias de sua poesia antes que a última palavra estivesse no devido lugar, pois achava que dava azar. Mas ele me dissera que o livro estava pronto. Onde estava ele, então?

       Duas horas depois, ainda me recusando a aceitar a perda do caderno verde em que Ka escrevera seus poemas de Kars, convenci-me de que estava ali, em algum lugar, bem debaixo do meu nariz, e que eu só não encontrara porque ficara nervoso demais. Quando o proprietário mais uma vez bateu na porta impaciente, tirei todos os cadernos de Ka das gavetas e joguei-os num saco plástico, junto com todas as anotações que encontrei. Recolhi as fitas pornôs empilhadas caoticamente em volta do aparelho de vídeo — prova de que ele nunca recebia visitas — e as joguei num saco plástico da Kaufhof. Como um homem que vai fazer uma longa viagem e quer levar consigo uma lembrança qualquer da vida que está deixando para trás, procurei na sala alguma coisa que me lembrasse o meu amigo. Mas não conseguia me decidir; antes que me desse conta, estava colocando na sacola o cinzeiro e os cigarros da escrivaninha, a faca que ele usava para abrir cartas, o relógio da mesa-de-cabeceira, o colete que ele usara sobre o pijama por vinte anos, e que ainda tinha o seu cheiro, uma fotografia sua e de sua irmã no cais de Dolmabahçe. Dominado por uma paixão de museólogo, e, vendo que aquela era minha última chance, fui recolhendo quase todo o resto: e quase tudo tinha o seu valor, das meias sujas aos lenços (nunca usados), das Colheres da cozinha aos maços de cigarro vazios do cesto de lixo. Em nossos últimos encontros em Istambul, Ka perguntara-me sobre meus planos de escrever um novo romance, e eu lhe falei de O museu da inocência, sobre o qual não falara com ninguém.

       Quando voltei ao quarto do hotel, depois de me despedir de meu guia, retomei o exame dos pertences de Ka. Aquela altura eu decidira agir friamente e deixar de lado as lembranças de meu amigo por aquela noite, antes que o desespero me destruísse. A primeira coisa que fiz foi dar uma olhada nas fitas pornôs. Não havia aparelho de vídeo em meu quarto, mas pelas anotações de Ka nas caixas das fitas, era evidente que ele tinha uma afeição especial por uma atriz americana chamada Melinda.

       Em seguida li os cadernos em que Ka escrevera sobre os poemas que lhe vieram em Kars. Por que ele nunca mencionava o caso de amor, os terrores que ele testemunhara? Eu encontraria a resposta num arquivo que tirei de uma das gavetas de Ka: quando abri a pasta, quase quarenta cartas de amor caíram em meu colo; eram todas dirigidas a Ipek, e nenhuma delas fora enviada. Todas começavam exatamente da mesma forma — Minha querida, pensei muito se deveria escrever-lhe para dizer o seguinte — mas, então, cada uma continuava com a descrição de uma experiência diferente em Kars, a cada vez acrescentando mais um detalhe doloroso sobre seu caso com Ipek; havia também alguns flashes de seu dia-a-dia em Frankfurt (o cachorro manco que ele vira no parque Von Bethmann e as mesas de zinco que vira no Museu Judaico, visões angustiantes de que ele falara também nas cartas que me enviou). Ele não colocara em envelope nenhuma daquelas cartas de amor, e isso me revelou o grau de indecisão quanto a enviá-las, que não admitia nem o compromisso de um envelope.

       Basta uma palavra tua para que eu volte para ti, ele escreveu numa das cartas, embora em outra ele afirme que nunca voltaria a Kars, porque eu nunca permitiria que você me entendesse mal novamente. Uma carta menciona um poema, não anexado, e outra nos faz imaginar uma carta anterior de Ipek: sinto muitíssimo que você tenha entendido mal a minha carta. Naquela noite eu espalhei todos os pertences de Ka na cama e em todas as superfícies do quarto, examinando os objetos um a um, e assim posso dizer com certeza que Ka não recebeu nenhuma carta de Ipek. Por que Ka fingiu responder a Ipek, mesmo sabendo que, de sua parte, ele nunca lhe enviaria uma única carta?

       Nesse ponto, talvez, chegamos ao coração de nossa história. Até que ponto podemos saber sobre o amor e a dor do coração de outra pessoa? Até que ponto podemos esperar entender aqueles que viveram uma angústia mais profunda, uma perda maior e desilusões mais esmagadoras que aquelas sofridas por nós próprios? Ainda que os ricos e poderosos do mundo se colocassem no lugar dos outros, o quanto poderiam eles entender de fato os milhões de miseráveis e sofredores à sua volta? E o mesmo acontece quando o romancista Orhan examina os cantos escuros da vida difícil e dolorosa de seu amigo poeta: o quanto ele pode ver de fato?

Durante toda a minha vida me senti perdido e só como um animal ferido [escreveu Ka]. Talvez se eu não a tivesse abraçado com tal violência, não a teria irritado tanto, e talvez não tivesse destruído um trabalho de doze anos, terminando exatamente onde comecei. Mas cá estou eu, abandonado e definhando; trago comigo as cicatrizes de um sofrimento insuportável em cada centímetro de meu corpo. As vezes eu acho que não perdi apenas você, mas tudo no mundo.

       O simples fato de eu ler estas palavras me garante que eu as entendi? Mais tarde, naquela mesma noite, um tanto embriagado pelos uísques que tinha pegado no frigobar, voltei à Kaiserstrasse para investigar Melinda. Ela tinha grandes olhos cor de oliva, ligeiramente estrábicos. Tinha a pele clara, pernas longas, e os lábios, que um poeta da corte otomana teria comparado a cerejas, eram pequenos mas carnudos. Ela era muito conhecida. A seção de vídeo do World Sex Center ficava aberta vinte e quatro horas por dia, e levei apenas vinte minutos para encontrar seis filmes com o seu nome. Carreguei aquelas fitas para Istambul, e, depois que as vi, comecei a ter uma idéia dos sentimentos de Ka. Fosse qual fosse a espécie de homem diante do qual Melinda estivesse ajoelhada — ainda que fosse o sujeito mais grosseiro e feio do mundo —, ela sempre correspondia aos seus gemidos de êxtase da mesma maneira: com o rosto pálido suavizado por uma expressão de compaixão de que só as mães são capazes. Fosse qual fosse a roupa provocante que estivesse usando (travestida de mulher de negócios fogosa, de aeromoça dada a pândegas ou de dona-de-casa cansada do marido impotente), ela era sempre frágil e vulnerável quando nua. Mais tarde eu haveria de constatar em minha visita a Kars que havia alguma coisa de Ipek nos seus modos, nos seus olhos grandes e no corpo curvilíneo.

       Sei que corro o risco de ofender as pobres almas que insistem em ver os poetas sob uma aura de santidade ou metafísica quando digo que meu amigo passou os quatro últimos anos de sua vida mergulhado nesse entretenimento “adulto”. Mas quando andei pelo World Sex Center procurando vídeos de Melinda, pareceu-me que Ka tinha apenas uma coisa em comum com aquelas hordas de homens infelizes, solitários como fantasmas. Era o hábito de reagir à própria culpa, refugiando-se nas trevas quando assistiam àqueles filmes. Nos cinemas das cercanias da rua 42, em Nova York, da Kaiserstrasse de Frankfurt e nas ruas afastadas de Beyoglu, os homens solitários e perdidos e desarvorados que assistem aos seus filmes com um sentimento de vergonha e de asco de si mesmos, lutando para evitar os olhares dos outros nos intervalos — esses homens, desafiando todos os estereótipos nacionais e distinções antropológicas, na verdade parecem exatamente iguais. Saí do World Sex Center com minha sacola de plástico preta cheia de vídeos de Melinda e voltei para o hotel em meio aos flocos de neve gigantes, andando pelas ruas desertas.

       Tomei mais dois uísques no precário bar do saguão, e, enquanto esperava que fizessem efeito, fiquei contemplando a neve que caía lá fora. Achei que se conseguisse ficar um pouco embriagado novamente ia descansar um pouco de Melinda e dos cadernos de Ka. Mas quando cheguei ao quarto, peguei um dos cadernos de Ka ao acaso, deitei-me na cama sem parar para me trocar, e comecei a ler. Na terceira (ou terá sido na quarta?) página encontrei o floco de neve abaixo.

 

 

  1. Quando podemos nos encontrar novamente?

Uma felicidade efêmera

       Depois que Ka e Ipek fizeram amor, ficaram na cama abraçados; por algum tempo, nenhum dos dois se mexeu. O mundo estava envolto em silêncio.

       A felicidade de Ka era tão grande que o abraço parecia durar um tempo muito longo. Só isso pode explicar por que ele foi tomado de súbita impaciência e pulou da cama para ir olhar pela janela. Mais tarde, iria considerar aquele demorado momento de silêncio compartilhado como sua mais feliz recordação e se perguntaria por que interrompera tão bruscamente aquela felicidade inigualável, saindo dos braços de Ipek. A resposta é que ele se deixou dominar pelo pânico. Era como se alguma coisa estivesse prestes a acontecer do outro lado da janela, na rua coberta de neve, e ele precisasse estar lá antes que acontecesse.

       Mas não havia nada do outro lado da janela, exceto a neve que continuava a cair. A luz ainda não voltara, mas havia uma vela acesa no térreo, na janela coberta de gelo da cozinha, projetando uma luz alaranjada na espessa neve lá fora. Muito depois, ocorreu a Ka que ele interrompera o momento mais feliz de sua vida porque não suportava ser tão feliz. Mas no princípio, quando estava deitado na cama com os braços de Ipek à sua volta, ele nem se dera conta do quanto estava feliz. Sentia-se em paz com o mundo, e essa sensação de paz parecia tão natural, que ele teve dificuldade em se lembrar de por que boa parte de sua vida até aquele ponto fora tão cheia de tristeza e agitação. A paz que ele sentia era como o silêncio que pressagiava um poema, mas nos momentos que antecediam a vinda de um poema ele via se desvelar o sentido da vida, uma visão que também o enchia de júbilo. Não havia esse momento de iluminação naquela alegre rememoração de Ipek; havia apenas uma simples pureza infantil, como a de uma criança que tivesse a explicação do sentido do mundo na ponta da língua.

       Um a um, ele foi recordando os dados sobre a neve que lera na biblioteca aquela tarde; ele fora se preparar para o caso de lhe surgir um poema sobre esse tema. Mas sua cabeça estava vazia de poesia. Embora seus poemas tivessem lhe ocorrido um a um, ele agora via que se encaixavam nitidamente, como o floco de neve de seis pontas da enciclopédia. Foi nesse instante que ele percebeu que todos os seus poemas faziam parte de um grande plano.

       “O que você está fazendo aí?”, perguntou Ipek.

       “Estou olhando a neve, querida.”

       Pareceu-lhe que de certa forma Ipek sabia ser ele capaz de ver mais do que simples beleza na geometria dos flocos de neve, mas ao mesmo tempo ele sabia que podia não ser assim. Uma parte dele sabia que ela não estava muito feliz em ver sua atenção concentrada em outra coisa. Até então coubera a ele a iniciativa de procurá-la, e seu evidente desejo o fazia sentir-se incomoda-mente vulnerável, e agora Ka estava satisfeito em ver que o jogo tinha virado: então ele concluiu que fazer amor lhe valera uma pequena vantagem.

       “Em que você está pensando?”, perguntou Ipek.

       “Estou pensando em minha mãe”, disse Ka, sem saber a princípio por que dissera aquilo, pois, embora sua mãe tivesse morrido havia pouco tempo, na verdade seus pensamentos estavam muito longe dela. Mais tarde, evocando aquele momento, ele explicaria aquilo dizendo “Minha mãe estava em minha mente durante toda a minha permanência em Kars”.

       “E que lembranças você está tendo de sua mãe?”

       “Estou me lembrando de uma noite de inverno em que estávamos à janela, olhando a neve, e ela passou as mãos em meus cabelos.”

       “Você era feliz quando criança?”

       “As pessoas não sabem quando são felizes, pelo menos não no momento em que o são. Anos depois eu me dei conta de que tinha sido uma criança feliz, mas a verdade é que não era. Por outro lado, eu não era infeliz do modo como fui nos anos que se seguiram. Simplesmente eu não me interessava pela felicidade a princípio.”

       “Quando você começou a se interessar?”

       Ka teve vontade de dizer nunca, mas não disse, em parte porque não era verdade, em parte porque soaria muito agressivo. Mas ainda assim ele se sentiu tentado a dizer, nem que fosse para impressionar Ipek, mas sua mente agora estava cheia de coisas mais graves que o desejo de impressionar.

       “Houve um tempo em que me senti tão infeliz que mal conseguia me mexer, e foi então que comecei a pensar sobre a felicidade”, disse Ka. Teria sido certo dizer aquilo? O silêncio o inquietou. Se lhe contasse quanto se sentira infeliz em Frankfurt, como poderia conseguir convencê-la a ir com ele? No momento em que um vento selvagem e nervoso dispersava os flocos de neve lá fora, o pânico que tirara Ka da cama voltou vingativo, e seu estômago começou a doer mais ferozmente do que doera com o amor e a agonia da espera. A felicidade que sentira apenas alguns instantes antes agora dava lugar a uma terrível certeza de que a iria perder. Em lugar de felicidade, as dúvidas se avolumavam. Ka queria perguntar a Ipek: “Você vai comigo para Frankfurt?”, mas agora ele já temia não receber a resposta desejada.

       Voltou para a cama, apertou o corpo contra as costas de Ipek e abraçou-a com toda a força. “Tinha uma loja no mercado”, disse ele, “onde estavam tocando ‘Roberta’, de Pepino di Capri. Onde você acha que eles a encontraram?”

       “Ainda há algumas famílias antigas em Kars”, disse Ipek. “Os pais terminam morrendo e os filhos vendem seus pertences e vão embora, e então se vê no mercado grande variedade de coisas que parecem deslocadas na cidade pobre que temos hoje. Tinha um comerciante de velharias que vinha toda primavera de Istambul, comprava tudo barato e levava embora. Mas agora até ele parou de vir.”

       Por um instante Ka pensou ter recuperado sua felicidade inigualável de poucos momentos antes. Mais uma vez, deixou-se dominar pelo medo de que ela estivesse perdida para sempre. Tudo o que tinha diante dos olhos lhe aumentava o pânico. Nunca convenceria Ipek a ir para Frankfurt com ele, não havia dúvida quanto a isso.

       “Então, querido, acho que tenho de me levantar.”

       Ainda que ela tivesse usado a palavra querido, beijando-o ternamente, Ka não conseguia ficar em paz.

       “Quando podemos nos encontrar novamente?”

       “Estou preocupada com meu pai. A polícia pode tê-lo seguido.”

      “Também estou preocupado com isso”, disse Ka. “Mas primeiro quero saber quando poderemos nos ver novamente.”

       “Não virei ao seu quarto se meu pai estiver no hotel.”

       “Oh, agora tudo mudou”, disse Ka. Mas enquanto observava a calma naturalidade com que Ipek se vestia no escuro, ele receou que afinal de contas nada tivesse mudado. “Eu poderia mudar para outro hotel, não acha? Então poderíamos nos encontrar sem problemas”, disse ele.

       Houve um silêncio devastador. Ka sentiu-se dominar por uma onda de pânico e um ciúme irremediável. Ele se perguntou se Ipek tinha um outro amante. Parte dele ainda estava lúcida o bastante para se lembrar de que esse tipo de ciúme era comum nas preliminares de um caso de amor ainda não posto à prova, mas uma voz mais forte dentro dele disse-lhe que a abraçasse com toda a força e empregasse toda a sua energia para superar os obstáculos que ainda os separavam. Ele sabia que tinha pouco tempo, mas sabia também que se agisse depressa demais as coisas se complicariam ainda mais. Indeciso, ele permaneceu em silêncio.

 

  1. Não somos estúpidos, somos apenas pobres

A reunião secreta no Hotel Ásia

       Quando Zahide correu em direção à charrete puxada por cavalos que levaria Turgut bei e Kadife à reunião secreta no Hotel Ásia, estava faltando luz, por isso Ka, que olhava da janela, não conseguira ver o que a leal criada tinha nas mãos. Na verdade, era um velho par de luvas de lã.

       Sem saber ao certo o que devia usar na reunião, Turgut bei pegou duas jaquetas de seus tempos de professor — uma preta e uma cinza — e as estendeu na cama, junto com o chapéu de feltro reservado para os feriados nacionais e as ocasiões em que recebia algum inspetor, e a gravata xadrez que não usava fazia anos, exceto quando queria divertir o neto de Zahide. Ele seria capaz de levar muito mais tempo examinando as outras peças de seu guarda-roupa e o conteúdo de suas gavetas, mas, vendo-o agir feito uma mocinha sonhadora que se perguntava o que o pai a deixaria usar no baile, Kadife interferiu para fazer a seleção final. Depois de lhe abotoar a camisa, ajudou-o a vestir a jaqueta e o casaco; em seguida, foi a vez das luvas brancas de pele de cachorro, que ela lutou para colocar nas mãos pequenas do pai.

       Naquele momento Turgut bei lembrou-se das velhas luvas de lã. Insistindo teimosamente que eram aquelas as que queria usar, fez Ipek e Kadife revirarem a casa, desesperadas, vasculhando cada guarda-roupa e cada arca de alto a baixo; quando finalmente as encontraram, viram que estavam cheias de buracos de traças, e deixaram-nas de lado. Mas uma vez escondido na charrete, Turgut bei insistiu novamente que não sairia de casa sem elas; anos antes, explicou ele, quando fora jogado na prisão por sua militância na esquerda, sua querida e saudosa esposa lhe trouxera aquelas luvas, feitas especialmente para ele. Kadife, que conhecia mais o pai do que ele próprio, entendeu o que estava acontecendo: se ele insistia em usar aquelas luvas como se fossem um talismã, é porque devia estar realmente muito assustado.

       Depois que as luvas vieram e o carro se pôs a caminho, Kadife pediu ao pai que lhe falasse mais da época em que estivera preso; ela ouvia o que ele contava (que chorava quando recebia cartas da esposa, que aprendera francês sozinho e que, nas noites de inverno, usava aquelas mesmas luvas para dormir) atentamente, como se pela primeira vez, interrompendo-o de vez em quando para dizer “Que homem corajoso você é, pai!”. E então ele fez o que costumava fazer ao ouvir das filhas aquelas palavras (que nos últimos tempos ele praticamente não ouvira): reprimindo as lágrimas, Turgut bei abraçou Kadife e, trêmulo, beijou-lhe as faces.

       Quando o carro chegou ao Hotel Ásia, eles viram que ali não estava faltando luz.

       Ao descerem do carro, Turgut bei disse: “Olhe todas essas lojas novas. Vamos ver o que há nas vitrines”. Kadife sabia que ele estava fazendo hora por medo, por isso teve o cuidado de não apressá-lo. Turgut bei sugeriu que parassem para tomar um chá de tília — se um detetive os estivesse seguindo, disse ele, iriam despistá-lo —, assim se dirigiram à casa de chá, onde ficaram em silêncio olhando uma corrida na televisão. Quando já estavam saindo, Turgut bei avistou seu velho barbeiro, então deram meia-volta e entraram novamente, para não serem vistos a caminho da reunião.

       “Você acha que já estamos atrasados? Você acha que eles ficarão ofendidos se não formos?” O barbeiro gordo na mesa ao lado parecia estar tentando ouvir o que diziam, por isso Turgut bei falava com Kadife aos sussurros. Ele tomou o seu braço, mas em vez de ir direto ao pátio dos fundos, entrou numa papelaria, onde comprou uma caneta azul-marinho. Quando finalmente chegaram ao pátio dos fundos da Elétrica e Encanamentos Ersin e se dirigiram à porta escura que era a entrada dos fundos do Hotel Ásia, Kadife viu o pai empalidecer.

       Estava tudo absolutamente quieto na entrada dos fundos do hotel. Eles ficaram bem juntos; ninguém os seguia. Avançaram alguns passos, mas no escuro Kadife precisou tatear para encontrar as escadas que conduziam ao saguão. “Não solte meu braço”, disse Turgut bei.

       O saguão estava na penumbra e as janelas altas, fechadas com pesadas cortinas. Havia uma lâmpada fraca e suja na mesa da recepção, que mal iluminava o funcionário barbudo e despenteado sentado atrás dela. Na escuridão por trás da mesa eles enxergavam outras sombras que andavam pelo saguão, subiam e desciam as escadas. Tratava-se de policiais à paisana ou gente do mercado negro que negociava com gado, madeira, ou trabalhadores ilegais que atravessavam as fronteiras clandestinamente. Oitenta anos antes, aquele hotel fora muito apreciado pelos homens de negócio russos. Depois da revolução, a maior parte de sua clientela compunha-se de turcos de Istambul e agentes duplos ingleses a caminho da Armênia para fazer espionagem na União Soviética. Agora ele se encontrava cheio de mulheres vindas da Geórgia e da Ucrânia para trabalhar como prostitutas e contrabandistas. Em geral, quem alugava os quartos para essas mulheres eram homens das aldeias próximas de Kars: eles viviam juntos durante o dia, quase como marido e mulher, e depois que os homens voltavam para suas aldeias no último microônibus do dia, as mulheres desciam para tomar café e conhaque na escuridão do bar.

       Quando Turgut bei e Kadife galgavam as escadas de madeira, outrora forradas com tapete vermelho, viram-se diante de uma daquelas loiras já meio passadas. Turgut bei voltou-se para Kadife e sussurrou: “O Grande Hotel, onde o paxá Ismet se hospedou quando estava negociando o Tratado de Lausanne, era tão cosmopolita quanto este”. Dito isso, ele tirou do bolso a caneta azul. “Vou fazer o mesmo que o paxá Ismet fez em Lausanne: vou assinar o manifesto com uma caneta nova.” Por longo tempo, ele ficou imóvel: não estava claro para Kadife se ele estava remanchando ou ouvindo o barulho na escadaria. Quando eles finalmente chegaram ao quarto 307, Turgut bei falou: “A gente assina esse troço e vai embora”.

       Tinha tanta gente ali que a princípio Kadife pensou estarem no quarto errado. Ao ver Azul taciturno, postado junto à janela com mais dois militantes islamitas, ela atravessou o recinto conduzindo o pai e sentou ao lado deles. Uma lâmpada nua pendia do teto, e na mesa havia um lampião em forma de peixe, mas ainda assim a sala estava mal iluminada. O peixe era de baquelite: apoiado nas barbatanas da cauda, ele segurava a lâmpada na boca, e em um de seus olhos estava escondido um microfone da polícia.

     Fazil também estava presente. Ao ver Kadife, levantou-se de um salto, e quando os demais se levantaram para cumprimentar Turgut bei, ele permaneceu de pé. Parecia pasmo, como se alguém o tivesse enfeitiçado. Alguns na sala pensaram que ele ia falar, mas Kadife nem ao menos o viu. Seus olhos fitavam Azul e Turgut bei, que olhavam um para o outro, e a atmosfera estava tensa.

       Azul chegou à conclusão de que o Ocidente levaria o manifesto mais a sério se o nacionalista curdo que o assinasse fosse ateu. Mas o adolescente pálido e magro que concordara relutantemente em assinar discordava de seus companheiros nacionalistas curdos quanto à redação do manifesto. Agora os três esperavam calados sua vez de falar. Visto que as associações de jovens revoltados, desesperados e desempregados, conhecidas por sua admiração pelos guerrilheiros curdos das montanhas, costumavam se reunir nas casas de membros, e visto que os diretores dessas associações muitas vezes eram presos, espancados e torturados depois das freqüentes batidas que a polícia fazia durante as reuniões, era difícil encontrar aqueles jovens depois do golpe. Mas os três jovens curdos tinham um problema ainda mais preemente: aos olhos dos guerreiros das montanhas, a mera presença deles naquela reunião pareceria suspeita. Eles deviam achar que aqueles jovens se sentiam à vontade demais nas salas aquecidas da cidade e que contemporizavam com a República Turca. Com efeito, a acusação de que as associações não estavam mandando sua cota de guerrilheiros para as montanhas desmoralizara um punhado de membros que ainda não tinham sido presos.

       Estavam presentes também dois socialistas da velha-guarda, ambos na casa dos trinta anos. A possibilidade de um manifesto conjunto para a imprensa alemã lhes fora comunicada pelos jovens curdos, que procuraram os socialistas para se vangloriar um pouco e para consultá-los. A militância socialista lançara uma longa sombra sobre Kars, mas tinha se exaurido; nenhum socialista agora ousaria armar uma emboscada, matar um policial, ou começar uma campanha de cartas-bombas sem antes pedir apoio aos guerrilheiros curdos, e o resultado era uma epidemia de decrepitude prematura e depressão generalizada em suas outrora formidáveis fileiras. Agora lá estavam os velhos militantes que vieram para a reunião sem ter sido convidados, pois ouviram falar que ainda havia muitos marxistas na Europa. No fundo da sala, ao lado do socialista mais velho, que parecia aborrecido, estava um camarada de expressão franca e descontraída, parecendo muito animado, sabendo que iria dar os detalhes da reunião à agência local do MIT. Suas intenções não eram más: ele fazia isso para ajudar as associações a prevenir o assédio da polícia. Ele informaria o Estado sobre quaisquer atividades de que não gostasse — a maioria das quais, em retrospecto, de todo modo parecia desnecessária —, mas no fundo, no fundo ele estava orgulhoso de que ali houvesse rebeldes lutando pela causa, tão orgulhoso, na verdade, que seria capaz de se vangloriar dos tiros, dos seqüestros, dos espancamentos, das bombas e dos assassinatos para quem quer que se dispusesse a ouvir.

       A princípio ninguém falou, tão certos estavam de que a sala tinha escuta e de que vários informantes estavam presentes. E se falavam, era com um movimento de cabeça em direção à janela para indicar que ainda nevava ou para censurar alguém por apagar cigarros no assoalho. O silêncio continuou até que uma velha senhora curda, cuja presença não fora notada até o momento, levantou-se e narrou a história do desaparecimento de seu neto (eles vieram no meio da noite e o levaram embora). Mesmo sem ouvir direito a história do desaparecimento, Turgut bei sentiu-se incomodado. Ele ficou tão assustado ao ouvir falar de seqüestro e assassinato de adolescentes curdos quanto furioso com a alegação de que eram inocentes. Tomando a mão do pai, Kadife tentou entender a expressão no rosto de Azul, de asco e desprezo. Azul sentia que tinha caído numa armadilha, mas temendo os comentários que se fariam se ele fosse embora, decidiu ficar, contra o que seu bom senso lhe aconselhava. E então aconteceu o seguinte: 1. O jovem islamita sentado perto de Fazil, e cujo envolvimento na morte do diretor do Instituto de Educação ficaria provado meses mais tarde, começou a afirmar que o diretor fora assassinado por um agente do governo; 2. Os revolucionários presentes deram um longo informe sobre uma greve de fome iniciada por seus amigos na prisão; 3. Os três jovens da associação curda leram um comunicado ainda mais longo, no qual ameaçavam retirar suas assinaturas do manifesto conjunto, a menos que o Frankfurter Rundschau o publicasse, recolocando assim a cultura e a literatura curdas no lugar que lhe era de direito na história mundial.

       Quando a velha senhora, que viera fazer uma petição em favor do adolescente seqüestrado, perguntou onde estava o tal jornalista alemão, Kadife levantou-se para explicar: Ka estava mesmo em Kars, disse ela em tom firme, mas resolveu não participar da reunião para que não pairasse nenhuma dúvida sobre a imparcialidade do manifesto. Como os demais não estavam acostumados a ver uma mulher se pronunciar com tanta segurança numa reunião política, ela logo conquistou o respeito deles. Ao ouvir que Kadife iria fazer todo o possível para que sua história fosse publicada nos jornais alemães, a velha senhora abraçou-a aos prantos e lhe deu um pedaço de papel em que alguém escrevera o nome de seu neto.

       O informante de esquerda bem-intencionado escolheu aquele momento para apresentar o primeiro rascunho do documento, que ele escrevera à mão num caderno; enquanto lia, procurava dar a impressão de impassibilidade.

       Quase todos gostaram do título: “Comunicado ao povo da Europa sobre os acontecimentos de Kars”. Ao lembrar-se de como se sentiu naquele momento, Fazil mais tarde iria sorrir e dizer a Ka: “Aquela foi a primeira vez que me ocorreu que nossa pequena cidade um dia poderia ter um papel a desempenhar no cenário mundial”. (Mais tarde Ka usaria aquelas mesmas palavras em seu poema “Toda a humanidade e as estrelas”.)

       Somente Azul se opôs terminantemente ao título. “Nós não estamos falando para a Europa”, disse ele. “Estamos falando para toda a humanidade. Não se espantem, meus amigos, se o documento deixar de ser publicado — não apenas em Kars e Istambul, mas também em Frankfurt. Os europeus não são nossos amigos, mas sim nossos inimigos. E não por sermos inimigos deles, mas sim porque eles nos desprezam.”

       O esquerdista que estava com o primeiro esboço do documento interrompeu para esclarecer que não era toda a humanidade que os desprezava, só a burguesia européia. Ele lembrou que os pobres e desempregados eram seus irmãos, mas ninguém se deixou convencer, exceto seu companheiro socialista.

       “Ninguém na Europa é tão pobre como nós”, disse um dos três jovens curdos.

       “Meu filho, você já esteve na Europa?”, perguntou Turgut bei.

       “Ainda não tive essa oportunidade, mas o irmão de minha mãe trabalha na Alemanha.”

       Isso provocou alguns risos. Turgut bei ajeitou sua cadeira. “Embora a palavra signifique muito para mim, eu também nunca estive na Europa”, disse ele. “Isso não é motivo para risos. Por favor, que as pessoas aqui presentes que estiveram na Europa levantem a mão.”

       Afora Azul, que passara muitos anos na Alemanha, ninguém levantou a mão.

       “Mas todos sabemos o que a Europa significa”, continuou Turgut bei. “A Europa é nosso futuro e o futuro de toda a humanidade. Então se esse cavalheiro”, disse ele apontando para Azul, “acha que devemos dizer toda a humanidade em vez de Europa, podemos mudar o título como ele deseja.”

       “A Europa não é meu futuro”, disse Azul com um sorriso. “Enquanto eu viver, nunca vou imitá-los nem me odiar por não ser como eles.”

       “Não são apenas os islamitas que se orgulham deste país, os republicanos também sentem o mesmo”, disse Turgut bei. “Se dissermos toda a humanidade em vez de Europa, como vai ficar o título?”

       “Comunicado a toda a humanidade sobre os acontecimentos de Kars”, disse o homem que estava com o manifesto. “Seria muita ousadia.”

       Seguiu-se uma discussão em que se pensou em substituir humanidade por Ocidente, mas o homem sardento ao lado de Azul se opôs a isso também. O jovem curdo de voz fina então sugeriu o título mais modesto, Um comunicado, que recebeu a aprovação de todos.

       Ao contrário do que todos esperavam, o rascunho era na verdade muito curto. E embora ninguém tenha discordado das linhas iniciais — no sentido de que se “encenara” um golpe no momento exato em que se tornou evidente a tendência de vitória dos candidatos curdos e islâmicos nas eleições que se aproximavam —, Turgut bei objetou que as pessoas do lugar eram conhecidas por mudar de opinião por mero capricho, votando no partido que defendia posições repudiadas por elas até o dia anterior, que por isso seria melhor não tirar nenhuma conclusão apressada sobre que político com certeza iria ganhar.

       Em resposta, o informante militante de esquerda encarregado do rascunho disse: “Todo mundo sabe que esse golpe aconteceu antes das eleições para evitar que determinadas pessoas ganhassem”.

       “Não se esqueça de que estamos falando de uma trupe”, disse Turgut bei. “Eles só tiveram sucesso porque as estradas estão bloqueadas. Tudo voltará ao normal em questão de dias.”

       “Se você não se opõe ao golpe, por que está aqui?”, perguntou um rapaz de cara vermelha, sentado ao lado de Azul.

       É difícil dizer se Turgut bei sequer ouviu esse comentário desrespeitoso. De qualquer modo, Kadife se pôs de pé no mesmo instante (ela era a única pessoa da sala a se levantar para falar, embora ninguém, e com certeza nem ela própria, notasse como aquilo era estranho). Com os olhos cheios de ódio, disse que seu pai, depois de passar anos na prisão por causa de suas convicções políticas, continuava um ferrenho opositor de todas as formas de opressão exercida pelo Estado.

       Turgut bei tirou o paletó e a fez sentar-se, dizendo: “Vim a esta reunião porque quero provar aos europeus que também na Turquia existem pessoas que acreditam no bom senso e na democracia”.

       “Se um grande jornal alemão me desse duas linhas de espaço, essa não seria a primeira coisa que eu desejaria provar”, disse o jovem de rosto vermelho em tom de desprezo, e teria dito mais, se Azul não o tivesse contido, tocando em seu braço.

       Aquilo foi o bastante para fazer Turgut bei arrepender-se de ter ido à reunião. Ele dominou o seu desapontamento, convencendo-se de ter ido lá só de passagem, quando estava a caminho de outro lugar. Assumindo a expressão de alguém preocupado com questões muito distantes daquela sala, levantou-se e deu alguns passos em direção à porta, mas, então, notando a neve que se acumulava na avenida Karadag, dirigiu-se à janela. Kadife tomou seu braço como a sugerir que seu pai não conseguiria dar mais um passo sem ajuda. Por um bom tempo, pai e filha deixaram-se ficar ali como crianças tristonhas tentando esquecer seus problemas, enquanto uma charrete avançava pela rua.

       Um dos três rapazes da associação curda — o que tinha a voz aguda — não conteve a curiosidade e também se encaminhou para a janela. Os demais os observavam com um misto de respeito e apreensão. Enquanto se perguntavam se ia haver uma batida policial, a sala ficou tensa. As várias facções logo ficaram tão preocupadas que, num piscar de olhos, chegaram a um consenso quanto ao resto do manifesto.

       O manifesto declarava que o golpe fora dado por um bando de aventureiros. Foi Azul quem o sugeriu, rejeitando uma definição mais genérica que poderia dar aos ocidentais a impressão de que o golpe militar assumira o controle de toda a Turquia. Por fim, concordaram em defini-lo como “um golpe local, apoiado por Ancara”. Faziam-se breves referências aos curdos mortos a tiros ou arrancados de seus lares, um a um, e assassinados e às torturas e intimidações sofridas pelos rapazes da escola secundária religiosa. “Um ataque indiscriminado contra o povo” foi corrigido para “um ataque ao povo, ao espírito e à religião”. E eles mudaram a última linha, terminando por convocar não apenas o povo da Europa mas de todo o mundo a se unir num protesto contra a República Turca. Enquanto esse trecho era lido, Turgut bei olhou para Azul por um instante e notou um brilho de contentamento nos olhos dele. Mais uma vez, o velho lamentou ter vindo.

       “Agora, se não houver outras objeções, vamos assinar o manifesto imediatamente”, disse Azul. “Porque pode haver uma batida a qualquer momento.”

       Aquela altura o manifesto era uma confusão de palavras riscadas, setas e correções inscritas em círculos, mas isso não impediu ninguém de se precipitar para o meio da sala, acotovelando-se para assinar logo o documento e sair. Alguns já se dirigiam para a porta quando Kadife gritou: “Parem! Meu pai tem algo a dizer!”.

       Isso só aumentou o pânico. Azul ordenou ao jovem de rosto vermelho que vigiasse a porta. “Ninguém deve sair”, disse ele. “Que Turgut bei apresente sua objeção.”

       “Não tenho nenhuma objeção”, disse o velho. “Mas antes de apor meu nome ao manifesto, há alguma coisa que desejo daquele jovem ali.” Ele apontou para o rapaz de rosto vermelho, que vigiava a porta naquele momento. “E não apenas dele, mas de todos aqui na sala. Vou fazer uma pergunta, e desejo uma resposta primeiro dele, depois dos demais, e se não a tiver, não assinarei o manifesto.” Ele se voltou para Azul para avaliar a força de sua observação.

       “Por favor, esteja à vontade, faça sua pergunta”, disse Azul. “Se tivermos condições de responder, teremos todo o prazer em fazê-lo.”

       “Há pouco, riram de mim. Então, agora quero que me respondam o seguinte: se um grande jornal alemão desse a cada um de vocês duas linhas de espaço, o que vocês diriam ao Ocidente? Quero primeiro ouvir a resposta daquele rapaz.”

       O rapaz de rosto vermelho era forte e vigoroso, com opinião formada sobre tudo, mas a pergunta o pegou de surpresa. Segurando a maçaneta da porta ainda com mais força, olhou para Azul como a pedir ajuda.

       “É só você dizer o que pensa que teria dito, assim todos podemos ir embora”, disse Azul, com um sorriso forçado. “Se não fizer isso, a polícia pode chegar.”

       O jovem de rosto vermelho olhou para o teto como a procurar a resposta do exame que ainda ontem sabia.

       Em vista desse silêncio, Azul disse: “Bem, então deixe-me responder primeiro. Não ligo a mínima para os seus patrões europeus. A única coisa que quero é sair de sua sombra. Mas a verdade é que todos vivemos sob uma sombra”.

       “Não tente ajudá-lo, deixe que ele fale o que lhe vai no coração”, disse Turgut bei. “Você pode ficar por último.” E sorriu para o jovem de rosto vermelho que, incapaz de responder, ainda se contorcia. “É uma decisão difícil. E uma coisa complicada. Não é o tipo de dilema que se pode resolver de uma hora para outra.”

       “Ele está procurando desculpas!”, alguém gritou do fundo da sala. “Ele não quer assinar o manifesto!”

       Todos se entregaram aos seus próprios pensamentos. Alguns se dirigiram à janela e observaram outra charrete oscilando para a frente e para trás enquanto avançava pela rua. Mais tarde, naquela mesma noite, ao descrever o “silêncio mágico” que caíra sobre a sala, Fazil diria a Ka: “Era como se de repente todos nos tivéssemos tornado irmãos, como se estivéssemos mais próximos uns dos outros do que nunca antes”.

       Um avião passando distante, muito alto, no céu noturno quebrou o silêncio. Todos o ouviram. “É o segundo avião hoje”, sussurrou Azul.

       “Eu vou embora!”, gritou alguém. Quem gritou foi um homem de rosto pálido, na casa dos trinta anos, trajando uma jaqueta clara, e até então não notado por ninguém. Era um dos três trabalhadores presentes na sala. Cozinheiro no Hospital da Previdência Social, viera com as famílias dos desaparecidos e não parava de olhar o relógio. Segundo se soube depois, seu irmão mais velho, ativista político, fora levado à força para a delegacia para ser interrogado e nunca mais tinha voltado. Disseram que o cozinheiro de rosto pálido queria conseguir um atestado de óbito para poder casar-se com a bela viúva de seu irmão. Ele entrara com o pedido um ano depois do desaparecimento do irmão, mas a polícia, o serviço secreto, a promotoria e a guarnição do exército não o quiseram ouvir; ele se juntara às famílias dos desaparecidos dois meses antes, não por desejo de vingança, mas simplesmente porque eram as únicas pessoas que se dispunham a ouvi-lo.

       “Vocês vão me chamar de covarde pelas costas, mas os covardes são vocês. Esses seus europeus são os maiores covardes de todos. Podem escrever isso.” Ele abriu a porta com um pontapé e foi embora.

       Alguém então perguntou quem era aquele tal de “Hans Hansen bei”. Kadife entrou em pânico, mas, para sua grande surpresa, Azul explicou delicadamente que era um jornalista alemão bem-intencionado que tinha profundo interesse pelos problemas da Turquia.

       “Cuidado com os alemães cheios de boas intenções”, exclamou alguém no fundo da sala.

       “Meus amigos, não vamos nos encolher como meninos de escola esperando que o coleguinha fale primeiro”, disse um outro.

       “Eu estou no liceu”, falou um dos rapazes da associação curda. “Antes de vir aqui eu já sabia o que ia dizer.”

       Sua voz estava muito calma, mas seu rosto ardia de ódio. “Sempre sonhei com o dia em que teria a chance de expor minhas idéias ao mundo — da mesma forma que os demais nesta sala. O que eu diria é muito simples. O que quero que se publique no jornal de Frankfurt é: Não somos estúpidos, somos apenas pobres! E temos o direito de insistir nesta distinção”.

      “Que palavras humildes!”

       “O que você quer dizer com nós, meu filho?”, perguntou um homem que estava no fundo. “Você quer dizer os turcos? Os curdos? Os circassianos? O povo de Kars? A quem exatamente você se refere?”

       “O maior erro da humanidade”, continuou o jovem curdo, “a maior ilusão dos últimos mil anos é a seguinte: confundir pobreza com estupidez.”

       “E o que ele quer dizer exatamente com estupidez? Ele devia explicar esses termos.”

       “Através da história, os líderes religiosos e outros ilustres homens de consciência sempre alertaram contra essa confusão vergonhosa. Eles nos lembram que, como todo mundo, os pobres têm coração, mente, humanidade e sabedoria. Quando Hans Hansen vê um homem pobre, sente piedade dele. Não necessariamente ele iria supor que o homem é um imbecil que jogou fora todas as suas chances ou um bêbado destituído de vontade.”

       “Não posso falar por Hans Hansen, mas é o que todos pensam quando vêem um homem pobre.”

       “Por favor, ouçam o que tenho a dizer”, disse o veemente jovem curdo. “Não quero me estender muito. As pessoas podem lastimar a sorte de um homem que passa por dificuldades, mas quando toda uma nação é pobre, o resto do mundo imagina que todo o seu povo deve ser desmiolado, preguiçoso, sujo, um bando de imbecis grosseiros. Em vez de inspirar piedade, esse povo provoca gargalhadas. Tudo é uma piada: sua cultura, seus costumes, seus usos. A certa altura, no resto do mundo, algumas pessoas podem começar a sentir vergonha por terem pensado assim, e quando olham em volta e vêem imigrantes daquele país pobre limpando o chão e fazendo outros trabalhos mal remunerados, naturalmente começam a se preocupar com o que pode acontecer se um dia esses trabalhadores se levantarem contra elas. Então, para evitar que as coisas degringolem, começam a mostrar interesse pela cultura dos imigrantes e às vezes chegam a fingir que os consideram como iguais.”

       “Já é tempo de ele nos dizer de que nação está falando.”

      “Deixem-me acrescentar uma coisa”, disse outro jovem curdo. “A humanidade já se recusa a rir daqueles que matam e oprimem. Foi isso o que aprendi do irmão de minha mãe quando ele voltou da Alemanha para Kars no verão passado. A humanidade já não tolera mais os países que matam e oprimem.”

       “Você está nos ameaçando em nome dos ocidentais?”

       “Como eu estava dizendo”, continuou o primeiro jovem curdo, “quando um ocidental encontra alguém de um país pobre, ele sente profundo desprezo. Ele imagina que a cabeça do pobre está cheia de todas as tolices que mergulharam seu país na pobreza e no desespero.”

       “E fazendo isso ele não estaria muito longe da verdade, não é?”

       “Se você é como aquele poeta presunçoso e acha que somos todos estúpidos, levante-se e defenda suas opiniões. Aquele ateu vai terminar no inferno, mas pelo menos demonstrou alguma coragem. Ele foi à televisão e, num programa ao vivo, olhou nos olhos de todo o país e disse na nossa cara que somos todos estúpidos.”

       “Desculpe-me, mas as pessoas num programa ao vivo não vêem os telespectadores.”

       “O cavalheiro não disse ‘viu’, disse ‘olhou’.”

       “Amigos, por favor! Não vamos nos tornar um grupo de debates”, pediu o esquerdista que estava tomando notas. “E procurem também falar mais devagar.”

       “Se ele não tem coragem de dizer de que nação está falando, recuso-me a ficar calado. Vamos deixar bem claro que é traição passar para um jornal alemão um texto que condena nossa nação.”

       “Não sou traidor. Concordo com você”, disse o exaltado jovem curdo, pondo-se de pé. “É por isso que quero dizer a esse jornal alemão que, mesmo tendo a chance de ir para a Alemanha algum dia, ainda que me dessem um visto, eu não iria.”

       “Eles nunca dariam um visto europeu a um pobre desempregado insignificante como você.”

       “Esqueça o visto. Nosso próprio país não lhe daria um passaporte.”

       “Você tem razão, não daria mesmo”, disse o exaltado mas humilde jovem. “Mas digamos que eu fosse, e o primeiro ocidental que eu encontrasse na rua se revelasse uma boa pessoa que não me desprezasse, ainda assim eu desconfiaria dele, pelo simples fato de ser um ocidental, e teria a impressão de que ele me menosprezava. Porque na Alemanha eles reconhecem um turco logo de cara. Não há como escapar da humilhação, exceto mostrando, na primeira oportunidade, que você pensa exatamente como eles. Mas isso é impossível, e tentar fazer isso é um grande golpe no amor-próprio.”

       “Você começou mal, meu filho, mas terminou muito bem”, disse um velho jornalista azerbaijano. “Mas ainda acho que não devíamos dizer isso à imprensa alemã, porque isso nos cobrirá de ridículo.” Ele fez uma pausa e então perguntou espertamente: “E de que nação você estava falando?”.

       Como o adolescente da associação curda sentou-se sem dizer mais nada, o filho do velho jornalista exclamou: “Ele está com medo!”.

       “Ele tem razão em ter medo. Ele não está a soldo do governo como você.”

       Nem o jornalista nem o filho se sentiram ofendidos. De tanto falarem ao mesmo tempo, de tanto zombar e importunar uns aos outros, criara-se uma atmosfera festiva e íntima. Mais tarde, ouvindo o relato de Fazil sobre a ata, Ka observaria em seu caderno que esse tipo de reunião política podia se prolongar por horas, e os homens carrancudos, bigodudos e fumantes que participavam delas faziam isso justamente para curtir a turma, ainda que não se dessem conta de que estavam se divertindo.

       “Nunca seremos europeus!”, exclamou um orgulhoso jovem islamita. “Eles podem passar por cima de nós com seus tanques, podem nos crivar de balas e nos matar a todos, mas não podem mudar nossa alma.”

       “Você pode se apoderar de meu corpo, mas não de minha alma!”, disse um jovem curdo. Ele exprimiu seu desprezo recitando o verso no estilo de um melodrama turco.

       Todos riram. E para mostrar que não se importava, o rapaz também se pôs a rir.

       “Agora vou dizer uma coisa”, disse um dos jovens que estavam sentados perto de Azul. “Por mais que nossos amigos aqui procurem traçar uma linha de separação entre eles próprios e os infelizes que macaqueiam o estilo de vida ocidental, eu ainda percebo um certo tom de desculpa. É como se dissessem: ‘Que pena que eu não seja um ocidental’.” Ele se voltou para o homem de casaco de couro que tomava notas. “Por favor, meu caro senhor, ignore essas observações preliminares!” Ele falava como um tugue cortês. “Eis o que eu gostaria que você escrevesse: ‘Tenho orgulho do meu lado não europeu. Tenho orgulho das coisas em mim que os europeus acham pueris, cruéis e primitivas. Se os europeus são bonitos, quero ser feio; se são inteligentes, prefiro ser estúpido; se eles são modernos, deixem-me continuar puro.”

       A declaração não contou com a aprovação de ninguém. O riso que se seguiu manteve o novo espírito do encontro, em que tudo o que se dizia servia de pretexto para gracejos. Mas então alguém foi longe demais... “Mas você já é estúpido!” No mesmo instante o esquerdista mais velho e seu amigo de jaqueta preta tiveram um acesso de tosse, e felizmente ninguém soube ao certo quem fora o autor do insulto.

       O adolescente de rosto vermelho que vigiava a porta se pôs a recitar um poema. “Europa, ó Europa,/ Fique quieta em seu canto,/ Quando estamos imersos em nossos sonhos/ não se aproveite para introduzir em nós o demônio.” Fazil não pôde ouvir bem a continuação por causa das tosses, dos insultos, dos risinhos, mas pôde contar em detalhes as objeções que se fizeram a ele. Rabiscados na mesma folha de papel em que anotara as várias declarações de duas linhas dirigidas à Europa, estavam estes fragmentos que terminaram por figurar em “Toda a humanidade e as estrelas”, o poema que Ka escreveria pouco depois.

  1. “Não tenhamos medo deles, não há nada o que temer!” Um dos militantes de esquerda da velha-guarda, agora beirando a meia-idade.
  2. O velho jornalista azerbaijano que perguntava o tempo todo “A que nação você está se referindo?” disse: “Não vamos sacrificar nossa etnia turca nem abandonar nossa religião”.
  3. Um derrotista na multidão perguntou astutamente: “E o que terá acontecido com os milhões de armênios que outrora viviam por toda a Anatólia, inclusive em Kars?”, no curso de um longo discurso sobre as cruzadas, o holocausto, o massacre dos peles-vermelhas pelos americanos, e dos muçulmanos argelinos pelos franceses. Mas o secretário-informante sentiu pena desse homem e não anotou seu nome.
  4. “Ninguém em sã consciência desejaria traduzir um poema tão longo e idiota, e Hans Hansen nunca permitiria que fosse publicado em seu jornal.” Essa frase foi de um dos três poetas da sala. Foi sua chance de lamentar o desafortunado isolamento dos poetas turcos no cenário internacional.

       Ao terminar de recitar o poema que todos consideraram idiota e primitivo, o jovem de rosto vermelho estava encharcado de suor; ouviram-se uns poucos aplausos desdenhosos. A maioria parecia concordar que seria insensato mandar publicar o poema na Alemanha, pois seria motivo de riso. O jovem curdo cujo tio materno morava na Alemanha foi quem se exprimiu em termos mais francos quanto a essa questão.

       “Quando eles escrevem poemas ou cantam canções no Ocidente, falam em nome de toda a humanidade. Eles são seres humanos — mas somos apenas muçulmanos. De nossa parte, quando escrevemos alguma coisa, trata-se apenas de poesia étnica.”

       “Minha mensagem é a seguinte: pode escrever”, disse o homem de jaqueta preta. “Se os europeus tiverem razão e nosso único futuro e única esperança é ser mais parecidos com eles, é bobagem gastar tempo falando sobre o que faz que sejamos o que somos.”

       “Ah, de tudo o que foi dito até agora, isso é o que tem mais possibilidades de convencer os europeus de que somos uns idiotas.”

       “Por favor, diga de uma vez por todas que nação vai parecer idiota.”

       “E cá estamos nós agindo como se fôssemos muito mais espertos e dignos que os ocidentais, mas, senhores, digo-lhes que se a Alemanha abrisse um consulado em Kars hoje e começasse a distribuir vistos, numa semana a cidade ficaria deserta.”

       “Mentira. Afinal de contas, nosso amigo ali acabou de dizer que não iria, ainda que lhe dessem essa chance. Eu também não iria. Eu faria o que é digno: continuaria aqui.”

       “E não se enganem, senhores: muitos outros também ficariam. Todos os que se recusariam a partir levantem a mão para que possamos vê-los.”

       Uns poucos levantaram a mão solenemente. Vários jovens os viram mas ficaram indecisos. “E por que os que se dispusessem a partir seriam indignos?”, perguntou o homem de jaqueta preta.

       “É difícil explicar a quem ainda não entendeu”, disse um sujeito em tom enigmático.

       Fazil notou que Kadife se voltara, e agora olhava pesarosa pela janela, e o coração dele começou a bater descompassado. Meu Deus, por favor, pensou ele, ajude-me a preservar minha pureza, proteja minha mente da confusão. Ocorreu-lhe que Kadife podia apreciar aquelas palavras. Ele pensou em fazer disso sua citação para o jornal alemão, mas, com tanta gente falando, não havia a menor chance de ser ouvido.

       A única pessoa que conseguiu se fazer ouvir foi o jovem curdo de voz aguda. Ele propôs contar ao jornal alemão sobre um sonho que tivera. Parando de vez em quando com um estremecimento, ele explicou que em seu sonho estava sozinho no Teatro Nacional assistindo a um filme. Era um filme ocidental, e todos falavam uma língua estrangeira, mas isso não o incomodava: ele entendia tudo o que diziam. E então, num piscar de olhos, ele entrou no próprio filme; viu então que não estava sentado no Teatro Nacional mas na sala de estar de uma família cristã. Ali, diante de seus olhos, estava uma mesa cheia de comida; ele queria muito encher a barriga, mas o medo de fazer alguma coisa errada o manteve à distância. O coração se acelerou: ali, diante dele, estava uma bela mulher loira, e no instante em que a viu ele se lembrou de que estava apaixonado por ela havia anos. A mulher era mais calorosa e mais gentil do que ele poderia imaginar. Ela o cumprimentou por suas roupas e por seus modos, beijou-lhe as faces e passou os dedos em seu cabelo. Ele se sentiu muito feliz. Antes que se desse conta, ela o fez sentar em seu colo e apontou para a comida na mesa. Só então ele percebeu que ainda era criança, disse o jovem curdo, olhos marejados de lágrimas. Era por ele ainda ser criança que ela o achou tão encantador.

       O velho jornalista quebrou o silêncio. “Ninguém pode sonhar um sonho como esse”, disse ele. “Esse menino curdo inventou tudo isso para nos ridicularizar diante dos alemães.”

       Para provar a autenticidade de seu sonho, o adolescente da associação curda deu um detalhe que antes omitira: desde que tivera aquele sonho, toda vez que acordava lembrava-se da mesma mulher loira. Ele a vira pela primeira vez havia cinco anos; ela estava saindo de um ônibus, em meio a um grupo de turistas que tinham vindo ver as igrejas armênias. Ela estava com um vestido azul listrado, que usava também nos sonhos dele.

       Isso provocou mais risos. “Todos vimos mulheres européias como essa”, disse alguém, “e todos fomos tentados pelo diabo.” Aquilo serviu de pretexto para algumas tiradas maliciosas, piadas de mau gosto e furiosas diatribes contras as mulheres ocidentais. Um jovem alto, esbelto e bonito, que se mantivera reservado até então, se pôs a contar uma história de um ocidental e um muçulmano que se conheceram numa estação de trem. Infelizmente, o trem não chegou. No outro extremo da mesma plataforma, eles viram uma bela francesa esperando o mesmo trem...

       Todos os que algum dia freqüentaram uma escola masculina ou fizeram o serviço militar viram naquilo uma história que traçava um paralelo entre o vigor sexual e a cultura nacional. Ela não continha palavras grosseiras: sua rudeza escondia-se sob um véu de insinuações. Mas num abrir e fechar de olhos a sala se viu dominada por um clima que faria Fazil exclamar depois: “Meu coração pesava de vergonha!”.

       Turgut bei se pôs de pé. “Tudo bem, meu rapaz, basta”, disse ele. “Traga-me esse documento para que eu o assine.”

       Ele sacou sua caneta nova e assinou. O barulho e a fumaça de cigarro o esgotaram, e Kadife teve de ajudá-lo a se manter de pé.

       “Agora me dêem um minuto de atenção”, disse ela. “Vocês parecem não sentir vergonha, mas meu rosto está vermelho com o que acabei de ouvir. Eu cubro meu rosto com este manto para que vocês não vejam meus cabelos, e talvez vocês achem que isso me é penoso, mas...”

       “Você não faz isso por nós!”, disse alguém num sussurro respeitoso. “Você faz isso por Deus, para demonstrar a sua espiritualidade!”

       “Eu também tenho algumas coisas a dizer ao jornal alemão. Por favor, anote.” Ela tinha bastante de atriz para saber que seus ouvintes a odiavam e a admiravam em igual medida. “Uma jovem de Kars — não, não escreva isso; escreva: uma jovem muçulmana que vive em Kars — cobriu sua cabeça por motivos religiosos pessoais, mas também usa o manto como símbolo de sua fé. Certo dia essa jovem se toma de revolta e arranca o manto da cabeça. (Os ocidentais achariam isso ótimo. Se o fizéssemos, Hans Hansen com certeza gostaria de publicar nossas opiniões.) Ao tirar o manto, a jovem disse: ‘Meu Deus, por favor, perdoe-me, porque eu tenho de estar só. Este mundo é tão asqueroso, e me sinto tão impotente e tão angustiada que seu...”

       “Kadife”, sussurrou Fazil. “Por favor, eu lhe peço, não descubra a cabeça. Veja que estamos todos presentes aqui, agora, inclusive eu e Necip. Isso seria a morte para nós, para todos nós.”

       Todos na sala pareciam perplexos com aquelas palavras. “Pare de falar bobagem”, disse alguém, e então um outro comentou: “Mas claro que ela não deve descobrir a cabeça”. Mas a maioria olhava para ela expectante, esperando que fizesse alguma coisa chocante e notável e ao mesmo tempo se perguntando quem encenara aquele melodrama e quem estava pregando peças em quem.

       “As duas linhas que desejo mandar ao jornal alemão são as seguintes”, disse Fazil. O burburinho na sala aumentava. “Não falo só por mim, mas por meu amigo Necip, que foi tão cruelmente martirizado na noite da revolução: Kadife, nós a amamos muito. Se você descobrir a cabeça, eu me mato. Então, por favor, não faça isso.”

       Segundo alguns relatos, Fazil não disse nós a amamos mas eu a amo, embora seja bem possível que essas testemunhas tenham adaptado suas lembranças para explicar o que Fazil veio a fazer mais tarde.

       “Ninguém nesta cidade deve falar em suicídio!”, berrou Azul, e saiu precipitadamente do salão do hotel sem nem ao menos lançar um olhar a Kadife; com isso a reunião acabou imediatamente e, embora as pessoas não tivessem saído em boa ordem, a sala ficou vazia em questão de segundos.

 

  1. Duas almas dentro de meu corpo

Sobre o amor, a insignificância e o desaparecimento de Azul

       Quando faltavam quinze para as cinco, Ka saiu do Hotel Palácio de Neve. Turgut bei e Kadife ainda não tinham voltado da reunião no Hotel Ásia, e Ka ainda tinha um quarto de hora até seu encontro com Fazil, mas ele estava feliz demais para ficar parado. Dobrou à esquerda na avenida Atatürk e andou até o rio Kars, diminuindo a marcha de quando em quando para olhar as vitrines das lojas, estúdios fotográficos e casas de chá cheias de homens vendo televisão. Quando chegou à ponte de Ferro, fumou dois Marlboros de enfiada. Com a cabeça cheia de imagens de uma vida feliz com Ipek em Frankfurt, Ka não sentia frio. Do outro lado do rio se via o parque aonde famílias ricas de Kars costumavam ir para olhar os patinadores. Agora ele estava mergulhado numa escuridão angustiante.

       Fazil se atrasou para o encontro na ponte de Ferro, e quando surgiu das sombras, por um instante Ka o tomou por Necip. Os dois foram para a Casa de Chá Irmãos Felizes, onde Fazil contou tudo o que conseguiu lembrar da reunião no Hotel Ásia. Quando chegou à parte em que ele declarou sentir que a história de sua pequena cidade se tornara parte da história do mundo, Ka o fez calar como normalmente se faz, quando se quer ouvir uma notícia importante que está sendo transmitida pelo rádio, interrompendo o interlocutor no meio de uma frase. Então ele começou a escrever o poema intitulado “Toda a humanidade e as estrelas”.

       Nas anotações que fez depois, Ka deixou registrado que o assunto do poema era uma cidade esquecida do mundo e alijada da história; os primeiros versos evocavam, em seqüência, as cenas de abertura dos filmes hollywoodianos de que tanto gostara na infância. Enquanto os títulos iam passando, havia uma imagem distante da Terra girando devagar; à medida que a câmera se aproximava, a esfera ia aumentando, aumentando, até que, de repente, só se podia ver um país, e naturalmente — exatamente como nos filmes imaginários que Ka passava em sua cabeça desde a infância —, esse país era a Turquia; agora já se podiam ver as águas azuis do mar de Mármara, o Bósforo e o mar Negro; à medida que a câmera avançava, podia-se ver Istambul e a Nisantas da infância de Ka, com os guardas de trânsito da avenida Tesvikiye, a rua Poetisa Nigar, árvores e telhados (como eram belos vistos do alto!); então vinha numa tomada lenta a roupa no varal, o cartaz com o anúncio de conservas Tamek, as calhas enferrujadas e as paredes laterais cobertas de piche antes da pausa diante da janela do quarto de Ka. Em seguida, um travelling através da janela mostrando salas abarrotadas de livros, móveis empoeirados e tapetes, até chegar a Ka numa escrivaninha de frente para a outra janela; movimentando-se por cima de seu ombro, a câmera mostrava uma folha de papel na escrivaninha e, seguindo a caneta-tinteiro, terminava por se deter nas últimas letras da mensagem que ele estava escrevendo, convidando-nos, assim, a ler:

       ENDEREÇO NO DIA EM QUE ENTREI

       NA HISTÓRIA DA POESIA: POETA KA,

       RUA POETISA NIGAR, 16/8,

       NISANTAS, ISTAMBUL, TURQUIA

       Como os leitores atilados já devem ter notado, esse endereço, que suponho vá figurar no próprio poema, situa-se no eixo da Razão, mas numa posição que sugere o poder da imaginação.

       A principal preocupação de Fazil estava bastante clara no final de sua história: agora ele se sentia bastante incomodado por ter ameaçado se matar caso Kadife descobrisse a cabeça. “Não é só porque se suicidar é o mesmo que perder a fé, é também porque eu não tinha a intenção de fazer isso. Por que eu disse aquilo se não tinha a intenção de fazer?” Fazil declarou que logo depois daquele juramento, ele dissera: “Deus, me perdoe, nunca mais vou dizer isso!”. Mas então, ao se ver olhos nos olhos com Kadife à porta, tremeu como varas verdes.

       “Você acha que Kadife pensou que estou apaixonado por ela?”, perguntou ele a Ka.

       “Você está mesmo apaixonado por Kadife?”

       “Você já sabe a verdade; eu estava apaixonado por Teslime — que ela descanse em paz. Meu amigo Necip — possa ele descansar em paz — era quem estava apaixonado por Kadife. Sinto vergonha de estar apaixonado pela mesma moça, um dia depois da morte dele. E eu sei que só pode haver uma explicação. Isso também me dá medo. Diga-me por que tem certeza de que Necip morreu!”

       “Eu olhei o lugar onde a bala lhe perfurou a testa, antes de segurá-lo pelos ombros e beijá-lo.”

       “É possível que a alma de Necip agora esteja vivendo dentro de meu corpo”, disse Fazil. “Ouça. Mantive distância da festa na noite passada; nem ao menos olhei pela televisão. Fui para a cama cedo e caí no sono imediatamente. Enquanto dormia senti que coisas terríveis aconteciam com Necip. Então os soldados invadiram nosso alojamento, e tive a confirmação de meus pressentimentos. Quando vi você na biblioteca, tive certeza de que Necip estava morto, porque sua alma estava em meu corpo desde o começo da manhã. Os soldados que invadiram o alojamento vazio passaram por mim sem me tocar, por isso passei a noite na rua Domingo, na casa de um amigo de meu pai do tempo do exército — ele é de Varto. Deitado em seu quarto de hóspedes, minha cabeça de repente começou a girar e então fui tomado por um sentimento profundo e intenso. Meu amigo estava ao meu lado novamente; ele estava dentro de mim. Ê exatamente como dizem nos livros antigos: a alma deixa o corpo seis horas depois da morte. Segundo Suyuti, nesse momento a alma é uma coisa instável feito mercúrio, e tem de ficar em Berzah até o Dia do Juízo Final. Mas, em vez disso, a alma de Necip resolveu entrar em meu corpo. Tenho certeza. Estou com muito medo também, porque o Corão não fala disso em lugar nenhum. Mas só isso pode explicar por que me apaixonei tão depressa por Kadife. Então, a idéia de me suicidar por causa dela tampouco era minha. Você acha que a alma de Necip entrou mesmo em meu corpo?”

       “Se é isso o que você acha”, disse Ka, prudentemente.

       “Você é a única pessoa a quem eu contei. Necip lhe contou segredos que nunca contou a ninguém. Por favor, diga-me a verdade: Necip nunca me disse que a dúvida do ateísmo tinha calado no fundo de sua alma, mas pode tê-lo dito a você. Necip alguma vez lhe disse que ele — Deus nos defenda — duvidava da existência de Deus?”

       “Não era o tipo de dúvida que você supõe; o que ele me disse era diferente. E como imaginar que seus pais vão morrer algum dia e comprazer-se com essa tristeza. Eram pensamentos que lhe vinham, sem que ele o desejasse, sobre o que aconteceria se seu amado Deus não existisse.”

       “Agora a mesma coisa está acontecendo comigo”, disse Fazil. “Não tenho mais dúvidas de que a alma de Necip pôs esses pensamentos em mim.”

       “Esse tipo de dúvida não é ateísmo.”

       “Mas agora já estou me igualando às jovens suicidas”, disse Fazil com tristeza. “Poucos minutos atrás, eu disse estar disposto a me suicidar. Não quero acreditar que meu querido falecido amigo era um ateu. Mas agora eu ouço a voz de um ateu dentro de mim, e isso me deixa apavorado. Não sei se lhe acontece o mesmo, mas você esteve na Europa; conheceu todos os intelectuais e todos aqueles viciados em álcool e em pílulas que vivem lá. Então, por favor, diga-me novamente, como é ser ateu?”

       “Bem, com certeza eles não ficam fantasiando interminavelmente sobre suicídio.”

       “Eu não fantasio interminavelmente, mas às vezes penso sobre isso.”

       “Por quê?”

       “Por causa de Kadife. Não consigo tirá-la de minha mente! Fecho os olhos e lá está ela, lucilando diante de mim. Quando estou estudando, vendo televisão, esperando o entardecer, tudo me lembra Kadife, mesmo que não tenha nada a ver com ela, o que é muito doloroso para mim. Isso começou a acontecer antes de Necip morrer. Para dizer a verdade, não era bem Teslime que eu amava. Sempre amei mesmo Kadife. Mas como meu amigo a amava, escondi meus sentimentos. E na verdade foi Necip quem os despertou, falando sem parar sobre Kadife. Quando os soldados invadiram nosso alojamento, eu sabia que eles já podiam tê-lo matado e, sim, esse pensamento me alegrou. E não foi apenas porque eu via uma chance de expressar meus sentimentos; foi porque pensei ser bem feito para ele, por ter provocado esse amor em mim. Agora Necip está morto, e eu estou livre, mas isso significa apenas que eu amo Kadife mais do que nunca. Estou pensando nela desde que acordei hoje de manhã; ela domina todos os meus pensamentos; não consigo pensar em mais nada e — santo Deus — não sei o que fazer!”

       Fazil cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar. Ka acendeu um Marlboro, sentindo uma onda de indiferença. Ainda assim ele estendeu a mão para consolar o rapaz e, por um bom tempo, afagou sua cabeça.

       Saffet, o detetive encarregado de segui-lo, estava sentado no outro lado do salão da casa de chá, com um olho neles e outro na televisão. Naquele instante se levantou e aproximou-se da mesa deles.

       “Diga a esse rapaz que pare de chorar. Eu não levei a carteira de estudante dele para o quartel; ela ainda está comigo.” Como Fazil não parava de chorar, ele tirou do bolso a carteira de estudante; Ka estendeu a mão e pegou-a. “Por que ele está chorando?”, perguntou Saffet, em parte por curiosidade profissional, em parte por um sentimento de solidariedade.

       “Ele está apaixonado”, disse Ka. O detetive se descontraiu imediatamente. Ka ficou observando-o sair da casa de chá e desaparecer na escuridão da noite.

       Mais tarde, Fazil perguntou o que devia fazer para chamar a atenção de Kadife, acrescentando que todos em Kars sabiam que Ka estava apaixonado pela irmã de Kadife. A paixão de Fazil parecia tão desesperada e impossível que Ka se perguntou se seu amor por Ipek não estaria na mesma condição. Os soluços de Fazil foram se abrandando, enquanto Ka repetia com tristeza o conselho que Ipek lhe dera: “Seja você mesmo, só isso”.

       “Isso não vai ser possível enquanto eu tiver duas almas dentro de meu corpo”, disse Fazil. “Principalmente com a alma atéia de Necip assumindo o controle pouco a pouco. Durante anos e anos, achei que meus amigos e colegas estavam errados em se meter em política, e agora de repente quero me juntar aos islamitas e fazer alguma coisa para protestar contra esse golpe militar. Mas mesmo aí temo que minha motivação seja fazer que Kadife preste atenção em mim. Assusta-me não ter nada em minha cabeça além de Kadife. E não é só porque eu não a conheço. E porque isso prova que não passo mesmo de um ateu. Para mim só importam o amor e a felicidade.”

       Quando Fazil prorrompeu em soluços novamente, Ka pensou em lhe dizer que não devia ficar falando de sua paixão por Kadife em público; isso lhe traria sérios problemas se Azul viesse a saber. Se todos sabiam de sua própria relação com Ipek, pensou Ka, logicamente todos sabiam também do relacionamento de Kadife com Azul. Assim sendo, o amor declarado de Fazil era um franco desafio à hierarquia islâmica de Kars.

       “Nós somos pobres e insignificantes”, disse Fazil, num estranho tom de fúria. “Nossas vidas desgraçadas não têm lugar na história humana. Um dia, todos nós que agora vivemos em Kars estaremos mortos, acabados. Ninguém se lembrará de nós; ninguém vai se preocupar com o que aconteceu conosco. Vamos passar o resto da vida discutindo sobre que tipo de manto as mulheres deviam usar na cabeça, e ninguém vai dar a mínima porque nos deixamos consumir por nossas disputas mesquinhas e idiotas. Quando vejo tanta gente à minha volta levando vidas tão estúpidas e desaparecendo sem deixar traços, fico com raiva porque, então, tenho consciência de que nada é mais importante na vida do que o amor. E quando penso isso, meus sentimentos por Kadife ficam mais insuportáveis — dói-me saber que meu único consolo seria passar o resto da vida com ela em meus braços.”

       “Sim”, disse Ka implacavelmente. “É esse tipo de pensamento que a gente tem quando é ateu.”

       Fazil começou chorar novamente. Ka não conseguiu lembrar o que conversaram depois disso ou não quis registrar por escrito: suas anotações nada dizem sobre o final dessa conversa. Na tela da televisão, um bando de crianças americanas fazia palhaçadas para a câmera. Derrubavam cadeiras, quebravam aquários, e então de repente todos estavam chapinhando na água — tudo isso ao som de risos pré-gravados. Como todos os demais na casa de chá, Fazil e Ka esqueceram seus problemas e ficaram rindo das palhaçadas das crianças americanas.

       Quando Zahide entrou na casa de chá, Ka e Fazil estavam olhando um caminhão avançar furtivamente pela floresta. Ela entregou a Ka um envelope amarelo pelo qual Fazil não mostrou nenhum interesse. Ka o abriu e leu o bilhete que havia nele; era de Ipek. Ela e Kadife propunham encontrá-lo em vinte minutos, na Confeitaria Vida Nova. Felizmente, Zahide ficara sabendo onde ele estava por Saffet, que se encontrava na Casa de Chá Irmãos Felizes.

       Quando Zahide ia saindo, Fazil disse: “O neto dela é da nossa turma. Ele é louco por apostas. Quando tem briga de galo ou de cachorro, ele sempre aposta”.

       Ka lhe entregou a carteira de estudante. “Eles querem que eu volte ao hotel para jantar”, disse ele levantando-se.

       “Você vai se encontrar com Kadife?”, perguntou Fazil em tom de desespero. A piedade e o enfado que ele viu no rosto de Ka fizeram-no corar de vergonha. Quando Ka saiu da casa de chá, Fazil gritou: “Eu quero me matar! Se você a vir, diga-lhe que se ela descobrir a cabeça eu vou me matar! Não por ela descobrir a cabeça, mas sim pelo prazer de me matar em sua honra”.

       Como tinha tempo de sobra para ir à Confeitaria Vida Nova, Ka resolveu tomar as ruas secundárias. Seguindo pela rua do Canal, ele viu a casa de chá onde escrevera “Ruas de sonho” naquela manhã. Só quando entrou é que percebeu que não estava destinado a escrever seu próximo poema naquela casa de chá enfumaçada e meio vazia; o que ele queria era atravessar o salão e sair pela porta dos fundos. Cruzou o pátio coberto de neve, andou até o muro baixo que ele mal conseguia ver, agora que estava escuro, e desceu os três degraus que levavam ao porão, ouvindo os latidos do mesmo cachorro.

       Uma fraca lâmpada iluminava o interior. Agora o odor de carvão e de roupas sujas misturava-se ao de raki. Ele via várias silhuetas aglomeradas em volta da estufa, que zumbia continuamente. Quando ele viu que era o agente do MIT de nariz adunco bebendo raki com a georgiana tuberculosa e o marido, não se surpreendeu nem um pouco. Eles tampouco pareceram surpresos com sua presença. Ka observou que a mulher estava usando um elegante chapéu vermelho. Ela lhe ofereceu ovos cozidos com pão sírio, e o marido lhe serviu um copo de raki. Enquanto Ka ainda descascava o ovo cozido, o agente do MIT lhe disse que aquela sala da caldeira não era só o lugar mais aquecido de Kars, era um verdadeiro paraíso.

       O poema que Ka escreveu durante o silêncio que se seguiu, sem a menor dificuldade e sem que faltasse uma só palavra, foi o que ele haveria de intitular depois “Paraíso”. O fato de tê-lo colocado exatamente no eixo da Imaginação do floco de neve, longe do centro, não significava que o paraíso era um futuro puramente onírico; para Ka, o paraíso era o lugar onde guardamos nossas lembranças. Lembrando esse poema depois, ele conseguiu evocar uma fieira de lembranças: as férias de verão de sua infância, os dias em que matara aula, as ocasiões em que ele e sua irmã foram para a cama dos pais, vários desenhos que ele fizera por essa época, e o dia em que teve um encontro com uma menina que conhecera numa festa na escola e ousou beijá-la.

       Enquanto andava em direção à Confeitaria Vida Nova, seus pensamentos estavam em Ipek. Ao chegar, as irmãs já estavam lá. Ipek estava tão linda, e Ka sentiu tamanha felicidade ao vê-la, que lhe vieram lágrimas aos olhos — ainda que fosse possível que aquela reação se devesse ao raki que acabara de beber com o estômago vazio. Sentar-se à mesa com duas jovens encantadoras o fazia sentir-se não apenas feliz, mas também orgulhoso. Ele pensou naqueles lojistas turcos abatidos de Frankfurt que sorriam e acenavam para ele toda manhã e toda noite e se perguntou o que eles iriam pensar se o vissem ali agora com aquelas duas mulheres. Naquele dia ele não tinha nenhuma platéia; não havia mais ninguém na sala, exceto o velho garçom que estivera presente quando do assassinato do diretor do Instituto de Educação. Mas no instante mesmo em que se sentou na Confeitaria Vida Nova com Ipek e Kadife, teve certeza de que sempre haveria de lembrar aquela cena: como uma fotografia tirada de fora da loja, ela o mostrava sentado à mesa com duas belas mulheres — pouco importava se uma delas escondia a cabeça com um manto.

       Ao contrário de Ka, as duas mulheres não estavam nem um pouco calmas. Depois que Ka contou que Fazil lhe dera um relato completo da reunião no Hotel Ásia, Ipek foi direto ao assunto.

       “Azul saiu da reunião furioso. E Kadife agora se arrepende do que disse lá. Mandamos Zahide ao seu esconderijo, mas ele não estava lá. Não conseguimos encontrá-lo em lugar nenhum.” Quando ela começou a falar, foi no tom de uma irmã mais velha tentando ajudar a mais nova em situação difícil, mas logo ficou evidente que ela também estava aflita.

       “E o que acontece se vocês o encontrarem?”

       “Nós queremos ter certeza de que não o pegaram. E acima de tudo, queremos ter certeza de que ainda está vivo”, disse Ipek. Ela lançou um olhar a Kadife, que parecia prestes a debulhar-se em lágrimas. “Por favor, encontre-o e pergunte-lhe se tem alguma coisa a nos dizer. Diga-lhe que Kadife está disposta a fazer tudo o que ele pedir.”

       “Vocês conhecem Kars melhor do que eu.”

       “Está escuro, e somos mulheres”, disse Ipek. “A esta altura você já aprendeu a andar pela cidade. Vá ver o que consegue descobrir nas casas de chá Homem na Lua e Divina Luz, que são freqüentadas pelos estudantes islamitas da escola secundária religiosa. Ambas estão cheias de policiais à paisana, que vivem aos mexericos. Se aconteceu algo de ruim a Azul, com certeza eles vão estar comentando.”

       Kadife pegara um lenço e estava assoando o nariz. Ka teve a impressão de que ela mal continha as lágrimas.

       “Traga-nos notícias de Azul”, disse Ipek. “Se continuarmos aqui, nosso pai vai começar a se preocupar. Ele o espera para o jantar.”

       “Não se esqueça de verificar nas casas de chá da avenida Bayrampasa!”, disse Kadife, levantando-se da cadeira.

       Sua voz estava quase fraquejando; Ka notou que as jovens estavam apavoradas e perdendo as esperanças muito depressa. Não queria deixá-las naquele estado, por isso as acompanhou até metade do caminho do Hotel Palácio de Neve. Ka temia perder Ipek, e ao mesmo tempo ligava-se às duas jovens por um sentimento de cumplicidade, visto que faziam juntos algo que elas escondiam do pai. Enquanto andavam, ele imaginou um dia em que ele e Ipek estariam morando em Frankfurt, receberiam a visita de Kadife e os três haveriam de perambular pelos cafés da avenida Berliner, parando de vez em quando para olhar a vitrine de uma loja.

       Depois de refletir um pouco sobre a missão que elas lhe confiaram, ele começou a duvidar de que pudesse ter sucesso. Não teve nenhuma dificuldade em encontrar a Casa de Chá Homem na Lua, um lugar tão vulgar e desinteressante que Ka logo se esqueceu de por que estava ali. Ficou um bom tempo sentado sozinho assistindo à televisão. Havia uns poucos homens que pareciam jovens o bastante para ser estudantes, e embora ele tivesse tentado ganhar sua simpatia fazendo alguns comentários sobre o jogo de futebol que se via na tela, ninguém respondeu. O passo seguinte foi tirar do bolso o maço de cigarros, para poder oferecê-los a quem quer que se aproximasse; ele chegou até a colocar o isqueiro em cima da mesa. Quando percebeu que ninguém, nem mesmo o homem vesgo do balcão, ia falar com ele, dirigiu-se à Divina Luz, que ficava ao lado, onde encontrou um bando de jovens assistindo ao mesmo jogo de futebol em preto-e-branco. Se não tivesse se aproximado da parede para olhar os recortes de jornal e a tabela de todos os jogos do Karsspor da temporada, ele não teria se lembrado de que aquela era a casa de chá onde, ainda no dia anterior, ele e Necip tinham discutido a existência de Deus e o sentido da vida. Olhando mais uma vez a versalhada que alguém rabiscara no pôster do Karsspor, e vendo que outro poeta acrescentara mais alguns versos desde o dia anterior, ele pegou o caderno e começou a copiá-los:

       Então, é assim: nossa mãe não vai voltar do paraíso,

       Nunca mais vamos sentir o seu abraço,

       Porém não importa quantas surras ela leve de nosso pai,

       Continuará aquecendo nossos corações e insuflando vida em nossas almas,

       Porque esse é o destino,

       E a merda em que vamos nos afundar fede tanto

       Que faz a cidade de Kars parecer um paraíso.

       “Você está escrevendo um poema?”, perguntou o menino do balcão.

       “Muito bem”, disse Ka. “Diga-me uma coisa: você sabe ler um escrito de cabeça para baixo?”

       “Não, irmão, não sei ler nem na posição certa. Fugi da escola, por isso não aprendi a decifrar o código. Mas agora isso é tudo coisa do passado.”

       “Quem escreveu o novo poema ali na parede?”

       “Metade dos rapazes que costumavam vir aqui são poetas.”

       “Por que eles não estão aqui hoje?”

       “Ontem os soldados levaram eles todos. Alguns agora estão na cadeia, e os outros estão escondidos. Se quiser, pergunte àqueles homens ali; eles são policiais à paisana, então devem saber.”

       O rapaz apontou para dois jovens que, no canto, discutiam exaltados sobre a partida de futebol, mas em vez de aproximar-se deles para perguntar sobre os poetas desaparecidos, Ka dirigiu-se à porta.

       Ficou contente em ver que a neve começara a cair novamente. Tinha certeza de que não conseguiria descobrir pistas sobre o paradeiro de Azul nas casas de chá da avenida Bayrampasa. Mergulhado como estava na turva melancolia que começava a descer sobre a cidade, ainda se sentia feliz. Uma longa procissão de imagens desfilou diante dos seus olhos enquanto ele esperava pelo seu próximo poema — um sonho acordado de feios edifícios de concreto nu, estacionamentos cobertos de neve, casas de chá, barbearias e mercearias, todos ocultos por trás de suas vitrines cobertas de gelo, pátios nos quais cães latiam em uníssono desde o tempo dos russos, lojas onde se vendiam peças de trator, equipamentos para carroças e queijo. Ele foi tomado pela certeza de que tudo o que via — as bandeirolas do Partido da Pátria, a janelinha escondida por trás de cortinas cerradas, a folha de papel pregada na vitrine coberta de gelo da Farmácia do Conhecimento anunciando que finalmente chegara a vacina japonesa contra a gripe, o cartaz amarelo contra o suicídio — cada um desses pequenos detalhes permaneceria com ele pelo resto da vida. Então, daquelas pequenas coisas brotou uma visão de uma força extraordinária: tão convicto estava ele de que “tudo na terra está interconectado e também eu estou inextricavelmente ligado a esse mundo belo e profundo”, que não pôde deixar de concluir que outro poema estava a caminho, por isso entrou numa das casas de chá da avenida Atatürk. O poema, porém, não veio.

 

  1. Um homem sem Deus em Kars

O medo de ser morto a tiros

       Apenas saiu da casa de chá para a calçada coberta de neve, Ka se viu frente a frente com Muhtar. Muhtar exibia o olhar ausente de um homem em pleno cumprimento de uma missão. Quando avistou Ka em meio ao enxame de enormes flocos de neve, pareceu não reconhecê-lo, e por um instante Ka se sentiu tentado a evitá-lo. Então os dois se lançaram nos braços um do outro como amigos que havia muito não se viam.

       “Você deu o meu recado a Ipek?”

       “Sim.”

       “O que ela disse? Venha, vamos sentar naquela casa de chá e aí você me conta.”

       Apesar do golpe militar, do espancamento no quartel da polícia, da eleição suspensa, Muhtar não parecia nem um pouco abatido.

       Uma vez sentados, ele disse: “Em sua opinião, por que eles não me prenderam? Porque quando a neve derreter, as estradas se abrirem e os soldados voltarem aos quartéis, eles vão marcar uma nova data para as eleições, é por isso! Não deixe de dizer isso a Ipek!”.

       Ka lhe garantiu que iria transmitir o recado e então perguntou se ele tinha notícias de Azul.

       “Quem o chamou a Kars fui eu. No começo ele sempre se hospedava em minha casa”, disse Muhtar com orgulho. “Mas depois que a imprensa de Istambul começou a tachá-lo de terrorista, ele não quis colocar o partido numa situação difícil, por isso quando vem a Kars nunca me procura. Sou sempre o último a saber o que ele anda fazendo. O que Ipek disse quando você lhe deu o meu recado?”

       Ka disse a Muhtar que Ipek não pareceu muito interessada em sua proposta de tornar a se casar com ela. Muhtar contou a Ka quanto sua ex-esposa era sensível, refinada e compreensiva; ele o fez como se lhe desse uma informação valiosa. Em seguida, lamentou tê-la tratado tão mal à época em que ele estava passando por um período difícil em sua vida.

       “Quando você voltar para Istambul, tome os poemas que lhe dei e entregue-os pessoalmente a Fahir, está bem?”, pediu ele em seguida.

       Quando Ka deu sua palavra de que o faria, Muhtar alterou a expressão de seu rosto, assumindo o ar de um tio triste e bondoso. O embaraço de Ka já ia rapidamente cedendo lugar a um misto de piedade e repulsa, quando Muhtar tirou um papel do bolso.

       “Se eu fosse você, não ficaria perambulando pelas ruas”, disse Muhtar em tom cordial.

       Ka pegou a edição do dia seguinte da Gazeta da Cidade Fronteiriça, mal saída da impressora. Ele examinou as manchetes — SUCESSO DA REVOLUÇÃO DA GENTE DO TEATRO; DIAS FELIZES EM KARS; ELEIÇÕES ADIADAS; CIDADÃOS APÓIAM A REVOLUÇÃO — e voltou a atenção para o artigo de primeira página que Muhtar lhe apontou:

UM HOMEM SEM DEUS EM KARS.

POR QUE TERIA O PRETENSO POETA KA RESOLVIDO VISITAR KARS NUM PERÍODO TÃO CONTURBADO?

ONTEM APRESENTAMOS O PRETENSO POETA AO POVO DE KARS.

HOJE FALAMOS DA DESCONFIANÇA QUE ELE DESPERTOU

EM NOSSOS LEITORES

   Temos ouvido muitos boatos sobre o pretenso poeta que por pouco não estragou a alegre performance da trupe de Sunay Zaim ao subir ao palco em meio às homenagens a Atatürk e à República, roubando a alegria e a paz de espírito do público, bombardeando-lhe os ouvidos com um poema triste e sem sentido.

   Embora o povo de Kars tenha vivido outrora em feliz harmonia, nos últimos tempos forças externas lançaram irmãos contra irmãos. Disputas. entre islamitas, secularistas, curdos, turcos e azerbaijanos nos dividem por razões enganosas e despertam velhas acusações sobre o massacre dos armênios que há muito deviam estar sepultadas.

   Nada mais natural, pois, que o povo de Kars se pergunte se essa figura suspeita que fugiu da Turquia muitos anos atrás e agora vive na Alemanha resolveu nos brindar com a sua presença por ser uma espécie de espião. Dá para acreditar que seu desejo de provocar um incidente em nossa escola secundária religiosa o levou a fazer a seguinte afirmação aos jovens que com ele conversavam dois dias atrás? “Sou ateu. Não acredito em Deus, mas isso não significa que eu me suicidaria, porque afinal de contas Deus — Deus nos defenda — não existe.” É possível que tenham sido essas as suas palavras? E ao dizer “A tarefa do intelectual é falar contra a santidade”, estaria ele negando a existência de Deus e — em sendo assim — expressando o ponto de vista europeu sobre a liberdade de pensamento?

   O fato de estar a soldo da Alemanha não significa que se tem o direito de tripudiar sobre nossas crenças! É por ter vergonha de ser turco que esconde seu verdadeiro nome sob esse falso nome estrangeiro de Ka?

   Muitos leitores telefonaram a nossa redação para exprimir seu pesar quanto a essa decisão de inspiração atéia, que macaqueia a Europa, de espalhar a discórdia em nossa cidade nesta época tão conturbada. Eles manifestaram sua preocupação principalmente pela maneira como ele tem perambulado pelos bairros pobres, batendo à porta das habitações mais miseráveis para pregar a rebelião contra o Estado e, mesmo em nossa presença, tentar em vão menosprezar o grande Atatürk, pai de nossa República. A juventude de Kars sabe como lidar com blasfemos que negam Deus e o profeta Maomé (que sejam venerados)!

       “Quando passei pela redação vinte minutos atrás, os dois filhos de Serdar estavam começando a imprimir esta edição”, disse Muhtar. Longe de solidarizar-se com os temores do amigo, ele parecia contente, como se tivesse passado a falar de um assunto agradável.

       Ka releu o artigo com mais atenção e se sentiu muito sozinho. Muito tempo antes, quando sonhou com um brilhante futuro literário, ele previu que as inovações modernistas que haveria de trazer para a poesia turca (o próprio conceito agora lhe parecia nacionalista demais) o iriam expor a duras críticas e ataques pessoais; ainda assim, ele imaginava que a notoriedade lhe conferiria um certo fascínio. Embora ele gozasse de uma modesta fama nos anos que se seguiram, e nunca tivesse sofrido duras críticas, doía-lhe ser chamado de “pretenso” poeta.

       Depois de aconselhá-lo a não vagar pelas ruas como um alvo móvel, Muhtar deixou-o sozinho na casa de chá. Ka foi dominado pelo medo de ser morto a tiros a qualquer momento. Ele saiu da casa de chá e ficou vagando pela neve, imerso em seus pensamentos. Os flocos de neve gigantes que desciam do céu moviam-se com uma velocidade que parecia enfeitiçada.

       Quando muito jovem, Ka acreditava piamente que não poderia haver mais alta honra que morrer por uma causa política intelectual ou por seus escritos. Quando chegou à casa dos trinta, viu muitos amigos e colegas serem torturados por causa de princípios tolos e até mesmo nocivos; houve também quem morresse tentando roubar bancos ou fazendo bombas que terminavam por explodir em suas mãos. Vendo a devastação produzida por suas elevadas idéias postas em prática, Ka decidiu se afastar delas. Finalmente, o fato de ter passado anos e anos exilado na Alemanha por convicções políticas em que já não acreditava terminara por romper o elo entre política e auto-imolação. Toda vez que ele pegava um jornal turco na Alemanha e lia que este ou aquele colunista tinha sido alvejado por razões políticas, “muito provavelmente por militantes islâmicos”, sentia um certo respeito pela vítima enquanto ser humano morto mas nenhuma admiração especial por ele enquanto escritor assassinado.

       Na esquina das avenidas HalitPasa e Kâzim Karabekir, ao ver um tubo saindo de um buraco no gelo de uma parede sem janela, Ka imaginou que se tratava do cano de uma arma apontada diretamente para ele e se imaginou morrendo na calçada coberta de neve. O que iriam dizer dele os jornais de Istambul? O mais provável é que a prefeitura e a polícia secreta local procurassem minimizar o aspecto político, e se a imprensa de Istambul não tomasse conhecimento de que ele era poeta, o episódio nem seria noticiado. Mesmo que seus amigos no mundo da poesia e do Republicano fizessem todo o possível para destacar o caráter político do episódio (e quem iria escrever esse artigo? Fahir? Orhan?), aquilo só serviria para diminuir sua importância literária. Da mesma forma, se alguém conseguisse publicar uma matéria que o mostrasse como um poeta importante, sua morte seria noticiada nas páginas de arte, onde ninguém leria sobre o caso. Se houvesse mesmo um jornalista alemão chamado Hans Hansen, e de fato Ka fosse seu amigo, o Frankfurter Rundschau publicaria uma matéria sobre seu assassinato, mas seria o único jornal ocidental a fazê-lo. Ka consolou-se um pouco imaginando que seus poemas seriam traduzidos para o alemão e publicados na revista Akzent, mas de todo modo estava perfeitamente claro para ele que se o artigo da Gazeta da Cidade Fronteiriça causasse a sua morte, a publicação das traduções nada significaria. Finalmente, o que mais o assustava era a idéia de morrer justamente quando tinha diante de si a perspectiva de viver feliz em Frankfurt com Ipek.

       Os muitos escritores assassinados nos últimos anos pelas balas islamitas desfilaram diante de seus olhos: primeiro o velho pregador que se tornou ateu e tentou apontar “contradições” no Corão (eles lhe alvejaram a cabeça, por trás); depois dele veio o colunista arrogante cuja paixão pelo positivismo o levou a se referir, em muitas de suas colunas, às jovens que usavam manto como “baratas” (eles o metralharam, e ao seu motorista, quando estavam a caminho do trabalho); em seguida foi a vez de um jornalista que procurava descobrir as relações entre o movimento islâmico turco e o Irã (quando ligou a ignição, ele e o carro foram pelos ares). Ainda que se lembrasse dessas vítimas com tristeza, ele sabia que elas tinhas sido ingênuas. Como de praxe, a imprensa de Istambul, assim como a ocidental, tinha pouco interesse nesses colunistas ardorosos e menos ainda em jornalistas capazes de levar tiros na cabeça pelas mesmas razões numa rua afastada de alguma remota cidade da Anatólia. Mas Ka reservara sua bílis para uma sociedade que tão facilmente esquecia seus escritores e poetas: por esse motivo ele achou que a coisa mais inteligente a fazer era se recolher a um canto e tentar encontrar um pouco de felicidade.

       Ao chegar à redação da Gazeta da Cidade Fronteiriça, na avenida Faikbey, Ka levantou os olhos para ver a edição do dia seguinte presa com fita adesiva num canto da vidraça da qual se acabara de remover o gelo. Leu novamente o artigo que falava dele próprio e entrou. O mais velho dos dois atarefados filhos de Serdar bei estava amarrando uma pilha de jornais recém-impressos com um fio de náilon. Ka tirou o chapéu para que os dois o reconhecessem e limpou a neve dos ombros do casaco.

       “Meu pai não está”, disse o filho mais novo, vindo da outra sala com o pano que estava usando para polir a impressora. “Quer um pouco de chá?”

       “Quem escreveu o artigo sobre mim na edição de amanhã?”

       “Tem um artigo sobre você lá?”, disse o filho mais novo erguendo as sobrancelhas.

       “Tem, sim”, disse o filho mais velho, dando-lhe um sorriso feliz e caloroso. Ele tinha os mesmos lábios grossos do irmão. “Meu pai escreveu toda a edição hoje.”

       “Se vocês distribuírem esse jornal amanhã de manhã...”, principiou Ka, fazendo uma pausa para pensar, “...vai ser ruim para mim.”

       “Por quê?”, perguntou o filho mais velho. Ele tinha uma expressão mansa e amável, e os olhos puros e inocentes.

       Ka percebeu que se conversasse num tom amigável e fizesse perguntas simples, como se faz a crianças, poderia extrair muito deles. Os irmãos logo o informaram de que apenas três pessoas tinham comprado o jornal até aquele momento: Muhtar bei, um menino que fora mandado da sede do Partido da Pátria, e o professor de literatura aposentado Nuriye Hanim, que costumava dar uma passada lá toda noite. Normalmente eles teriam despachado exemplares para Istambul e Ancara, mas com as estradas bloqueadas a edição teria de esperar que a neve começasse a derreter. Os filhos iam distribuir o resto dos jornais na manhã seguinte, e se o pai o quisesse, claro que poderiam imprimir uma nova edição para o dia seguinte; seu pai, disseram eles a Ka, acabara de sair da redação dizendo-lhes que não o esperassem para o jantar. Ka disse a eles que não esperaria pelo chá; ele comprou um exemplar do jornal e mergulhou na noite assassina de Kars.

       A tranqüila inocência dos rapazes o acalmou um pouco. Enquanto andava por entre os flocos de neve que caíam devagar, ele começou a se sentir culpado — não teria sido uma bobagem ficar tão assustado? Mas em outro canto da mente tinha certeza de que sofreria o mesmo destino de outros escritores desafortunados que tinham morrido crivados de balas depois de enfrentar dilemas semelhantes e resolvido, por orgulho ou por coragem, não fazer nada, ou os muitos outros que, achando que qualquer encomenda vinda de um estranho só podia ser uma caixa de confeitos mandada por um fã, morreram abrindo sofregamente o pacote que continha uma bomba.

       Houve o caso, por exemplo, de Nurettin, que admirava tudo o que era europeu, mas pouco se interessava por política até o dia em que um jornal islamita radical desencavou um texto que ele escrevera anos antes — um ensaio sobre arte e religião — e distorceu-o para acusá-lo de “insultar a nossa fé”. Temendo parecer assustado, Nurettin sacudiu a poeira das velhas idéias e passou a defendê-las novamente; a imprensa secular, apoiada pelo exército, entusiasmou-se com seu belo discurso kemalista e aumentou sua importância para fazê-lo parecer um grande herói. Certa manhã, um dispositivo numa sacola de plástico amarrada ao pneu dianteiro de seu carro o explodiu em tantos pedaços que o cortejo fúnebre, imponente e faustoso, teve de acompanhar um caixão vazio.

       Houve também versões provincianas, os médicos materialistas e os velhos jornalistas de esquerda dos jornais regionais que, quando diante de acusações semelhantes, reagiram com uma inflamada retórica anti-religiosa, só para não serem tachados de covardes. Alguns, quem sabe, alimentavam vãs esperanças de atrair a atenção do mundo “como Salman Rushdie”, mas os únicos que os ouviam eram os raivosos jovens fanáticos de suas vizinhanças, e eles não tinham tempo para as fantásticas conspirações com bombas de seus colegas das cidades, nem mesmo para armas de fogo. Ka estava cansado de saber, pelas notinhas que examinava atentamente nas últimas páginas dos jornais turcos na biblioteca municipal de Frankfurt, que eles preferiam esfaquear os infiéis nos becos escuros ou estrangulá-los com as mãos.

       Ka ainda estava tentando imaginar como poderia salvar a própria pele e seu orgulho se a Gazeta da Cidade Fronteiriça lhe desse uma chance de responder — Sou ateu, mas nunca insultei o Profeta? Não sou um crente mas nunca sonhei em desrespeitar a fé? —, quando de repente ouviu os passos de alguém às suas costas; sentiu um frio na espinha quando se voltou e viu que era o gerente da empresa de ônibus que ele conhecera no dia anterior, naquela mesma hora, na residência temporária de sua excelência o sheik Saadettin. Ocorreu-lhe que aquele homem podia testemunhar que ele não era ateu, mas logo aquele pensamento o incomodou.

       Ele continuou arrastando os pés na avenida Atatürk, diminuindo a marcha ao passar pelas esquinas cobertas de gelo e parando de vez em quando para admirar os enormes flocos de neve, a interminável repetição de um milagre banal. Mais tarde ele iria rememorar as belas cenas que presenciara em suas andanças pela cidade coberta de neve (três crianças puxando um trenó numa rua estreita, as vitrines do estúdio fotográfico Palácio de Luz refletindo a luz verde do único semáforo de Kars), perguntando-se por que levava consigo, aonde quer que fosse, aqueles tristes cartões-postais da memória.

       Ele viu um caminhão de patrulha do exército e dois soldados vigiando a porta da velha oficina que Sunay Zaim estava usando como base de operações. Ka disse aos soldados aglomerados na entrada, tentando evitar a neve, que queria conversar com Sunay, mas eles o trataram como a um pobre camponês chegado de uma aldeia distante para fazer um pedido ao chefe do estado-maior. Ka esperava que Sunay pudesse impedir a circulação do jornal.

       Se quisermos compreender a fúria que logo haveria de dominá-lo, é preciso entender a dor dessa rejeição. Seu primeiro pensamento foi voltar correndo pela neve e refugiar-se no hotel, mas antes mesmo de chegar à esquina, deu uma guinada para a esquerda e entrou no Café União. Lá se sentou a uma mesa entre a parede e a estufa e escreveu o poema a que mais tarde daria o título de “Ser morto a tiros”.

       Como depois explicou em suas anotações, esse poema era uma expressão de puro medo, por isso ele o colocou entre os eixos da Memória e da Imaginação, no floco de neve de seis pontas, ignorando humildemente o conteúdo de sua profecia.

       Tão logo terminou o poema, Ka saiu do Café União. Eram sete e vinte quando ele chegou ao Hotel Palácio de Neve. Estirado na cama, ficou a contemplar os flocos de neve flutuando no halo de luz do poste e a letra K cor-de-rosa que pulsava do outro lado da rua, tentando controlar o pânico crescente pela imaginação de cenas felizes de sua vida com Ipek em Frankfurt. Dez minutos depois, sentiu-se dominar pelo desejo de vê-la. Desceu ao térreo e encontrou toda a família reunida à mesa do jantar com o convidado daquela noite, e seu coração disparou ao ver os cabelos de Ipek brilhando por trás de uma tigela de sopa que Zahide acabara de colocar diante dela. Quando Ipek fez um sinal para que ele se sentasse ao seu lado, Ka sentiu orgulho, muito orgulho, pelo fato de todos à mesa saberem que os dois estavam apaixonados; então ele viu, do outro lado da mesa, Serdar bei, o proprietário da Gazeta da Cidade Fronteiriça.

       Quando Serdar bei estendeu a mão, seu sorriso era tão amigável que Ka começou a duvidar do que lera, com seus próprios olhos, no jornal que trazia dobrado no bolso. Depois de se servir de sopa, estendeu a mão por baixo da mesa e pousou-a no colo de Ipek; aproximou a cabeça da dela, aspirando seu perfume e deleitando-se com sua presença, e então sussurrou-lhe que sentia não ter notícias de Azul. Mal terminou de dizer isso, seu olhar cruzou com o de Kadife, que estava sentada ao lado de Serdar bei; ficou espantado e furioso ao perceber que Ipek, num átimo, já tinha passado a mensagem à irmã.

       Embora só conseguisse pensar em Serdar bei, conseguiu conter-se e dar atenção a Turgut bei, que se queixou de que a reunião no Hotel Ásia só servira como provocação, acrescentando que a polícia já estava a par de tudo. “Mas não me arrependo nem um pouco de ter participado desse acontecimento histórico”, disse ele. “Fico contente de ter visto, com meus próprios olhos, quão baixo o nível de compreensão política caiu. E isso entre jovens e velhos. Compareci à reunião para protestar contra o golpe, mas agora acho que o exército tem razão em querer mantê-los longe da política — eles são a escória da sociedade, a gente mais desgraçada, mais desnorteada e mais desmiolada desta cidade. Ainda bem que o exército não ficou de parte, deixando nosso futuro à mercê desses saqueadores sem-vergonha. Vou repetir para você, Kadife: antes de se envolver na política nacional, reflita muito bem. E reflita também sobre aquela velha cantora maquiada que você viu girando a roda da fortuna”, acrescentou ele enigmaticamente. “Há trinta e cinco anos, todos em Ancara sabiam ser ela amante de Fatin Rustu Zorlu, ex-ministro das Relações Exteriores, que terminou sendo executado.”

       Quando Ka tirou o exemplar da Gazeta da Cidade Fronteiriça do bolso, já estava sentado à mesa havia vinte minutos, e mesmo com o barulho da televisão ao fundo, a sala parecia estar mergulhada em silêncio.

       “Eu mesmo ia tocar no assunto”, disse Serdar bei. “Mas não conseguia me resolver a fazê-lo, temendo que você entendesse mal.”

       “Serdar, Serdar, quem é que lhe deu a ordem desta vez?”, disse Turgut bei quando viu a manchete. “Ka, você não está sendo justo com nosso convidado. Dê o jornal a ele, para que possa ler e ver o mal que fez.”

       “Primeiro, deixe-me esclarecer que não acredito em nenhuma palavra do que escrevi”, disse Serdar bei, pegando o jornal de Ka. “Se você achar mesmo que acredito, vou ficar muito magoado. Por favor, entenda que não é nada pessoal e, por favor, Turgut bei, ajude-me a explicar por que um jornalista em Kars é obrigado a escrever coisas como essa, recebendo ordens de cima.”

       “Serdar está sempre sob ordens de jogar lama em alguém”, explicou Turgut bei. “Vamos ouvir esse artigo.”

       “Não acredito numa só palavra”, disse Serdar bei com orgulho. “Nossos leitores tampouco acreditarão. Por isso você não tem nada a temer.”

       Serdar bei leu o artigo num tom sarcástico, fazendo uma pausa de vez em quando para conseguir um efeito dramático. “Como você vê, não há nada a temer”, disse ele com um sorriso.

       “Você é ateu?”, perguntou Turgut bei a Ka.

       “A questão não é essa, pai”, disse Ipek, aborrecida. “Se esse jornal for distribuído, vão matá-lo a tiros na rua amanhã.”

       “Bobagem”, disse Serdar bei. “Senhora, eu lhe garanto que não tem nada a temer. Os soldados prenderam todos os islamitas radicais e reacionários desta cidade.” E, voltando-se para Ka: “Posso ver pelo seu olhar que não me levou a mal. Você sabe o quanto respeito seu trabalho e o quanto o estimo como ser humano. Por favor, não me faça a injustiça de julgar-me por padrões europeus que nada têm a ver com nossa realidade! Deixe-me dizer-lhe o que acontece com loucos que ficam vagando por esta cidade se fingindo de europeus — e Turgut bei sabe disto tanto quanto eu: três dias, três dias e eles estarão mortos. Alvejados, mortos, esquecidos”.

       Serdar bei continuou: “A imprensa da Anatólia Oriental está numa situação desesperada. Os cidadãos de Kars em geral não se dão ao trabalho de ler o jornal. Quase todos os nossos assinantes são órgãos do governo. E naturalmente que vamos publicar as notícias que os nossos assinantes desejam ler. Em todo o mundo — mesmo na América — os jornais adaptam as notícias ao gosto do freguês. Se os leitores só esperam mentiras, quem diabos iria vender jornais que dizem a verdade? Se a verdade pudesse aumentar a circulação de meu jornal, por que eu não escreveria a verdade? De qualquer forma, tampouco a polícia me permite publicar a verdade. Em Istambul e em Ancara temos cento e cinqüenta leitores que têm alguma ligação com Kars. E para lhes agradar estamos sempre dizendo quão ricos e poderosos eles se tornaram; nós exageramos tudo, porque, senão, eles não renovam a assinatura. E sabe de uma coisa? Eles chegam a acreditar nas mentiras que publicamos sobre eles. Mas isso é outra história”, completou com um riso.

       “E quem o mandou publicar esse artigo? Vamos, conte-lhe”, disse Turgut bei.

       “Meu caro senhor! Você está cansado de saber que o primeiro princípio do jornalismo ocidental é resguardar nossas fontes.”

       “Minhas filhas se afeiçoaram muito ao nosso convidado aqui”, disse Turgut bei. “Se você distribuir esse jornal amanhã, elas nunca irão perdoá-lo. Se algum fundamentalista maluco o matar a tiros, você não se sentirá responsável?”

       “Você está com tanto medo assim?”, disse Serdar sorrindo e voltando-se para Ka. “Se você está com tanto medo, não saia às ruas amanhã.”

       “O que não deve ser visto é o jornal, e não Ka”, disse Turgut bei. “Não distribua essa edição.”

     “Isso iria ofender nossos assinantes.”

       “Tudo bem, então”, disse Turgut bei. “Quem já encomendou um exemplar, que o receba. Quanto aos outros, sugiro que tire o artigo difamatório e imprima uma nova edição.”

       Ipek e Kadife concordaram que aquela era a melhor solução. “Estou emocionado em ver meu jornal levado tão a sério”, disse Serdar bei. “Mas quem vai pagar as despesas da nova edição? E isso o que quero ouvir de vocês.”

       “Meu pai levará você e seus filhos para um jantar no Café Campos Verdejantes”, disse Ipek.

       “Eu aceito se você também for”, disse Serdar bei. “Mas vamos esperar que as estradas fiquem desimpedidas e a gente possa se ver livre desse bando de atores! Kadife pode ir também. Kadife Hanim, estou me perguntando se você pode me ajudar na substituição da matéria que vai ser eliminada do jornal. Se você fizer uma declaração sobre o golpe, o golpe do teatro, tenho certeza de que nossos leitores vão apreciar.”

       “Não, ela não pode. Está fora de questão”, disse Turgut bei. “Você não conhece minha filha?”

       “Kadife Hanim, pode me dizer se, ao seu ver, a taxa de suicídios vai diminuir em conseqüência do golpe do teatro? Tenho certeza de que nossos leitores iriam gostar de ouvir sua opinião sobre o assunto, principalmente porque sabem que você era contra o suicídio das jovens muçulmanas.”

       “Não sou mais contra os suicídios.”

       “Mas isso não a torna uma atéia?”, perguntou Serdar bei. Embora ele esperasse que aquilo mudasse o rumo da conversa, estava sóbrio o bastante para ver que todos à mesa o encaravam, de forma que cedeu.

       “Tudo bem, então, eu prometo. Não vou distribuir essa edição.”

       “Você vai imprimir uma nova edição?”

       “Tão logo eu saia desta mesa, e antes de ir para casa.”

       “Aceite nossos agradecimentos, então”, disse Ipek.

       Seguiu-se um longo e estranho silêncio. Ka o achou muito tranqüilizador. Pela primeira vez em anos, ele se sentia parte de uma família; apesar dos sofrimentos e responsabilidades daquilo que se chama família, ele percebia agora que ela estava ancorada nas alegrias da firme determinação de permanecer juntos, sentimento que ele lamentava ter conhecido tão pouco em sua vida. Poderia ele encontrar uma felicidade duradoura com Ipek? O que ele buscava não era felicidade — isso era muito claro para ele, depois do terceiro copo de raki; ele seria capaz de ir ainda mais longe e dizer que preferia ser infeliz. O importante mesmo era partilhar a desesperança, criar um pequeno ninho em que duas pessoas pudessem viver juntas, mantendo o resto do mundo à parte. Então pensou que ele e Ipek poderiam criar um espaço como esse, simplesmente fazendo amor por meses e meses, interminavelmente. Estar sentado à mesa com aquelas duas jovens, sabendo que fizera amor com uma delas naquela mesma tarde, sentir a suavidade de sua tez, saber que quando fosse dormir naquela noite não estaria sozinho — embalado pela ventura sexual, ele se permitiu acreditar que o jornal não iria ser distribuído e recobrou novo ânimo.

       Sua desmedida felicidade abrandava as arestas das histórias e boatos que então ouviu: faltava-lhes o tom agourento das más notícias. Era antes como ouvir os versos assustadores de um poema épico antigo. Uma das crianças que trabalhavam na cozinha contou a Zahide que um grande número de presos fora levado ao estádio de futebol. Com as traves cobertas de neve até a metade, a maioria fora deixada ao ar livre durante todo o dia, na esperança de que ficassem doentes ou até morressem; diziam também que alguns foram levados aos vestiários e crivados de balas para servir de exemplo aos outros.

       Havia também relatos de testemunhas oculares, talvez exagerados, sobre o terror que Z Demirkol e seus amigos andaram espalhando na cidade durante todo o dia: eles invadiram a Associação Mesopotâmia, fundada por jovens nacionalistas curdos para promover “o folclore e a literatura”, mas como na ocasião nenhum deles estava lá, pegaram o velho que preparava o chá no escritório — que não tinha nenhum interesse por política — e o espancaram brutalmente.

       Houve também o caso de três homens — dois barbeiros e um desempregado — envolvidos num delito, seis meses antes, em que desconhecidos tinham derramado água de esgoto misturada com tinta na estátua de Atatürk que ficava na frente da Fábrica Atatürk; embora tenham sido submetidos à investigação, nunca foram para a cadeia; mas depois dos espancamentos que duraram a noite inteira, eles assumiram a responsabilidade por muitos outros atos anti-Atatürk na cidade (quebrar com um martelo o nariz da estátua de Atatürk situada no jardim da Escola de Comércio e Indústria, escrever obscenidades no pôster de Atatürk na parede do Café Grupo dos Quinze, conspirar para destruir, a machado, a estátua de Atatürk em frente à prefeitura).

       Logo depois do golpe, eles mataram a tiros um dos dois rapazes curdos surpreendidos escrevendo slogans nos muros da avenida HalitPasa; depois eles prenderam outro rapaz e espancaram-no até ele desmaiar. Houve também o caso do jovem desempregado que, levado à escola secundária religiosa para que apagasse as pichações das paredes, tentou fugir e foi metralhado nas pernas. Graças aos vários informantes, todos os que andaram falando mal dos soldados e dos atores e espalhando boatos sobre eles nas casas de chá da cidade tinham sido presos, mas — como sempre acontecia em períodos sangüinários como aquele — circulavam ainda muitos boatos e exageros: desde a história de jovens curdos que morreram quando bombas explodiram em suas mãos, passando pela das jovens de cabeça coberta que se mataram em protesto contra o golpe, até a do caminhão carregado de dinamite que foi interceptado quando se aproximava do posto policial de Inönü.

       Embora Ka tivesse ficado atento quando mencionaram o caminhão carregado de explosivos — ele ouvira outra pessoa comentando esse ataque suicida antes —, ele nada mais fez aquela noite que desfrutar cada instante que passou sentado tranqüilamente ao lado de Ipek.

       Muito tempo depois, quando Serdar bei levantou-se para ir embora e Turgut bei e as filhas puseram-se de pé para despedir-se dele antes de ir para seus quartos, Ka pensou em pedir a Ipek que fosse ao seu quarto. Mas ele teve medo da sombra que uma eventual recusa pudesse lançar sobre sua felicidade, por isso saiu da sala sem dar a menor indicação daquilo que desejava

  1. Kadife nunca irá concordar com isso

O mediador

       Ka ficou à janela fumando um cigarro. Tinha parado de nevar e finalmente, quando as pálidas lâmpadas dos postes lançaram seu brilho espectral no pátio vazio e coberto de neve, a tranqüilidade da cena lhe trouxe paz. A paz que sentia, porém, tinha mais a ver com o amor que com a beleza da neve. Mas ele estava feliz também por reconhecer que sua paz se devia, em parte, ao fato de se sentir superior por se saber de Istambul e de Frankfurt.

       Bateram à porta. Ka espantou-se ao ver que era Ipek.

       “Não consigo parar de pensar em você, não consigo dormir”, disse ela, entrando no quarto.

       Ka logo sentiu que eles iriam fazer amor até de manhã, ainda que Turgut bei estivesse sob o mesmo teto. Foi a mais sublime surpresa tomá-la nos braços sem antes sofrer a agonia da espera. Sua longa noite de amor levou Ka a um lugar para além dos limites da felicidade, ou pelo menos de seu conceito de felicidade; ele estava fora do tempo, fora do alcance de toda aflição; lamentava apenas ter levado a vida inteira para descobrir aquele paraíso. Sentia uma paz que nunca sentira antes. Esqueceu as fantasias sexuais guardadas no fundo da mente, as imagens pornográficas das revistas. Enquanto fazia amor com Ipek, ouvia uma música dentro de si, uma música que nunca ouvira antes, nem sequer imaginara, e deixando-se levar por suas harmonias conseguia achar o seu caminho.

       De tempos em tempos ele adormecia e sonhava com férias de verão banhadas numa luz celestial; ele corria livre, ele era imortal; seu avião estava prestes a cair do céu, mas ele comia uma maçã, uma maçã que nunca iria se acabar, uma maçã que duraria para sempre. Então acordava para o cálido aroma de maçã da pele de Ipek. Guiado pela luminosidade da neve e pelo brilho pálido das lâmpadas dos postes, aproximava os olhos dos dela e tentava ver dentro deles; ao vê-la acordada e observando-o em silêncio, teve a sensação de que eles eram duas baleias aquecendo-se lado a lado na água rasa; só então percebeu que estavam de mãos dadas.

       Num daqueles momentos em que acordavam e se perdiam nos olhos um do outro, Ipek disse: “Vou falar com meu pai. Vou com você para a Alemanha”.

       Depois disso Ka passou um bom tempo sem voltar a dormir, vendo sua vida passar diante dele como um filme feliz.

       Em algum ponto da cidade, houve uma explosão. Foi tão forte que fez estremecer a cama, o quarto e o hotel. Eles ouviram ao longe o som de uma metralhadora, abafado pela neve que ainda cobria Kars. Abraçaram-se e esperaram em silêncio.

       Quando acordaram novamente, os tiros tinham cessado. Por duas vezes Ka se levantou do calor da cama e fumou um cigarro, com o ar entrando pela janela e esfriando seu corpo coberto de suor. Nenhum poema lhe veio à mente. Ele nunca se sentira tão feliz.

       Ao ser acordado de manhã por uma batida na porta, Ipek já não estava ao seu lado na cama. Ka não fazia idéia de que horas eram, nem do que ele e Ipek conversaram, nem de quando os tiros tinham cessado.

       Era Cavit, o recepcionista. Viera dizer a Ka que um oficial fora à recepção do hotel com um convite de Sunay Zaim: Ka deveria apresentar-se no quartel central da polícia imediatamente; o oficial estava no térreo, esperando para acompanhá-lo. Não obstante, Ka se barbeou sem a menor pressa.

       As ruas desertas de Kars pareciam mais bonitas, mais encantadoras que na manhã do dia anterior. A certa altura da avenida Atatürk ele viu uma casa de janelas arrebentadas, uma porta danificada e a parede da frente crivada de balas.

       Na oficina de confecções Sunay lhe contou que o estrago se deveu a um ataque suicida. “O coitado confundiu as casas, e em vez de vir aqui ele atacou um edifício bem mais acima”, explicou ele. “O homem explodiu a si mesmo em tantos pedacinhos que nem ao menos chegamos a descobrir se morreu pelo islã ou pelo PKK.”

       Ka ficou espantado com a gravidade infantil de um ator famoso levando-se tão a sério. Recém-barbeado, ele parecia limpo, de coração puro, cheio de energia.

       “Nós capturamos Azul”, disse ele olhando nos olhos de Ka.

       Ka fez um enorme esforço para dissimular a alegria que sentia com a notícia.

       Sua alegria, porém, não escapou à observação de Sunay. “Ele era um homem mau”, disse Sunay. “Não há dúvida de que foi o mentor do assassinato do diretor do Instituto de Educação. Ele sai por aí dizendo ser contra o suicídio, enquanto se empenha em transformar adolescentes cabeças-de-vento em homens-bomba. O Departamento de Segurança não tem dúvida de que ele chegou aqui com bombas suficientes para mandar toda a cidade pelos ares! Na noite da revolução, ele conseguiu despistar os homens que encarregamos de segui-lo. Ninguém tinha a menor idéia de onde estava escondido. Naturalmente você está muito bem informado sobre a ridícula reunião de ontem à noite no Hotel Ásia.”

       Era como se os dois estivessem num palco, interpretando uma cena; Ka aquiesceu fingidamente, com um gesto de cabeça teatral.

       “Meu objetivo na vida não é punir essas criaturas perversas, esses reacionários e terroristas de nosso meio”, disse Sunay. “Na realidade, há uma peça que sempre sonhei encenar, e é por isso que estou aqui. Há um escritor inglês chamado Thomas Kyd. Dizem que Shakespeare roubou dele o Hamlet. Descobri outra injustiça, uma peça esquecida de Kyd intitulada A tragédia espanhola. Trata-se de luta sangrenta, uma tragédia que termina em suicídio e, como no Hamlet, há uma peça dentro da peça. Durante quinze anos Funda e eu esperamos uma oportunidade para encenar essa peça.”

       Quando Funda Eser entrou na sala exibindo uma longa piteira elegante, Ka a cumprimentou com uma mesura exagerada, que naturalmente lhe agradou. Sem que Ka os encorajasse, os dois se puseram a falar sobre A tragédia espanhola.

       “Queremos que nossa peça agrade às pessoas, que as anime, que as exalte, e para isso simplifiquei a trama”, disse Sunay. “Pretendemos apresentá-la hoje à noite ao público no Teatro Nacional, e ao mesmo tempo transmiti-la pela televisão, para que toda a cidade possa assistir.”

       “Eu também gostaria muito de assistir”, disse Ka.

       “Queremos que Kadife participe da peça. Funda fará o papel de sua inimiga figadal. Kadife entrará em cena usando um manto. Então, desafiando as convenções ridículas que deram origem à disputa, ela vai descobrir a cabeça diante de todos.” Com um largo gesto teatral, Sunay tirou o manto imaginário da cabeça e simulou rasgá-lo.

       “Isso vai causar ainda mais problemas!”, disse Ka.

       “Não se preocupe, agora não vai haver problema nenhum. Lembre-se de que agora o exército assumiu o controle.”

       “De todo modo, Kadife nunca irá concordar com isso”, disse Ka.

       “Kadife está apaixonada por Azul”, disse Sunay. “Se Kadife descobrir a cabeça, posso mandar soltar Azul imediatamente. Eles podem fugir juntos para algum outro país e viver felizes para sempre.”

       O rosto de Funda Eser irradiava a ternura de uma tia bondosa de um belo melodrama turco vendo os dois amantes partindo em busca da felicidade na imensidão além do horizonte. Por um instante, Ka imaginou seu caso de amor com Ipek inspirando-lhe o mesmo sorriso.

       “Ainda tenho cá as minhas dúvidas de que Kadife vá concordar em descobrir a cabeça num programa de televisão ao vivo”, disse Ka.

       “Para nós, você é o único capaz de convencê-la a fazer isso”, disse Sunay. “Negociar conosco é negociar com as forças do mal. Ela sabe que você está preocupado com as jovens que usam manto. E que está apaixonado pela irmã dela.”

       “Não se trata apenas de Kadife, vocês terão de convencer Azul também. Mas é preciso falar com Kadife primeiro”, disse Ka, ainda sentindo o impacto da brutal franqueza do último comentário de Sunay.

       “Você pode fazer isso da forma que quiser”, disse Sunay. “Eu lhe dou a autorização que julgar necessária e nosso caminhão militar. E tem permissão para negociar em meu nome.”

       Houve um momento de silêncio. Sunay percebeu a hesitação de Ka.

       “Não quero me envolver”, disse Ka.

       “Por que não?”

       “Bem, talvez porque eu esteja com medo. Estou me sentindo muito feliz agora. Não quero me tornar um alvo dos islamitas. Quando virem a cabeça de Kadife descoberta, os estudantes vão pensar que sou o ateu que tramou o espetáculo. E mesmo que consiga fugir para a Alemanha, eles conseguirão me localizar. Alguém vai me matar a tiros, quando estiver andando tarde da noite na rua.”

       “Eles vão me matar primeiro”, disse Sunay com orgulho. “Mas admiro sua coragem de admitir que está com medo. Sou o maior de todos os covardes, pode acreditar. Os únicos que hão de sobreviver neste país são os covardes. Mas não existe um covarde no mundo que não sonhe com o dia em que se sinta capaz de grande coragem, você não acha?”

       “Como já disse, estou me sentindo muito feliz agora. Não pretendo bancar o herói. Os sonhos heróicos são o consolo dos infelizes. Afinal de contas, quando pessoas como nós dizem que estão sendo heróicas, isso normalmente significa que estamos prestes a matar uns aos outros ou a matar a nós mesmos.”

       “Sim”, insistiu Sunay. “Mas não há uma vozinha em algum ponto dentro de você lembrando-o de que essa felicidade não vai durar muito?”

       “Por que você quer assustar nosso convidado?”, disse Funda Eser.

       “Nenhuma felicidade dura muito”, disse Ka cautelosamente. “Mas não tenho nenhum desejo de fazer algo heróico que me faça ser assassinado só porque sei que futuramente voltarei a ser infeliz.”

       “Se você não se envolver, como diz, eles não vão esperar que volte para a Alemanha para matá-lo. Eles vão matá-lo aqui mesmo. Você viu o jornal de hoje?”

       “Ele diz que vou morrer hoje?”, perguntou Ka com um sorriso.

       Sunay pegou a Gazeta da Cidade Fronteiriça e mostrou, na primeira página, o artigo que Ka lera na noite anterior.

       “Um homem ateu em Kars!”, leu Funda Eser em tom enfático.

       “Isso é do primeiro clichê de ontem. Depois disso, Serdar bei resolveu corrigir as imprecisões desse artigo e imprimir uma nova edição.”

       “Mas ele terminou não conseguindo fazer isso. Esta é a edição que saiu esta manhã. Nunca acredite na promessa de um jornalista. Mas nós vamos proteger você. Como os fundamentalistas nada podem fazer contra os militares, vão querer descarregar a raiva atirando contra um espião ocidental.”

     “Foi você quem mandou Serdar escrever esse artigo?”, perguntou Ka.

       Erguendo as sobrancelhas e crispando os lábios, Sunay lançou-lhe um olhar furioso, fingindo-se ferido em sua honra, mas nem por isso Ka deixou de ver naquilo o jogo enganador de um político.

       “Se você concordar em me proteger até o fim, me disponho a atuar como mediador”, disse Ka.

       Sunay deu sua palavra e, ainda bancando o jacobino, abraçou Ka, parabenizou-o e garantiu-lhe que seus dois homens não sairiam de perto dele.

       “Se necessário eles vão protegê-lo até de você mesmo!”, exclamou ele com voz sonora.

       A fim de acertar os detalhes da missão, eles se sentaram para beber um aromático chá matinal. Funda Eser era toda sorrisos, como se uma atriz famosa e brilhante acabasse de entrar na companhia. Ela falou por algum tempo sobre a força de A tragédia espanhola, mas a mente de Ka estava em outro lugar: ele contemplava a espantosa luz branca que atravessava as janelas altas da oficina de confecções.

       Seu sonho acabou abruptamente quando, ao sair da oficina, encontrou os dois guardas corpulentos e armados, encarregados de protegê-lo. Ele torcera para que ao menos um deles fosse um oficial ou detetive à paisana com certo bom gosto no trajar. Certa vez um escritor foi à televisão dizer que os turcos eram bobos e que não acreditava no islã. Ka o viu, em certa ocasião, acompanhado de dois guarda-costas, encarregados pelo Estado de protegê-lo pelo resto de sua vida: eles eram muito educados e se vestiam com elegância. Eles insistiam naquela espécie de subserviência exagerada que Ka julgava merecida por escritores famosos da Oposição; eles não apenas carregavam a mala do homem, mas chegavam a abrir a porta para ele, seguravam-no pelo braço nas escadas para protegê-lo de algum fã ou inimigo que estivesse por ali.

       Os soldados sentados ao lado de Ka no caminhão do exército não podiam se comportar de modo mais diverso. Agiam mais como carcereiros que como protetores.

       Quando Ka entrou no hotel, sentiu-se feliz como se sentira nas primeiras horas da manhã. Embora ansiasse por ver Ipek, temia ter de lhe falar sobre sua missão; temia que ela a considerasse uma traição. Por mais insignificante que a missão parecesse no contexto geral, ele ainda assim temia que pudesse fazer diminuir o que sentiam um pelo outro. Seria muito melhor, pensou ele, se conseguisse dar um jeito de primeiro falar com Kadife a sós. Mas ele deu de cara com Ipek no saguão.

       “Você é ainda mais bonita do que eu me lembrava”, disse ele a Ipek, olhando-a embevecido. “Sunay Zaim convocou-me para uma reunião. Ele quer que eu seja seu mediador.”

     “Mediador em quê?”

       “Eles pegaram Azul. Foi ontem à noite”, disse Ka. “Por que essa expressão de medo? Não estamos em perigo. Claro que Kadife vai ficar transtornada. Mas acho que isso é um verdadeiro alívio, pode acreditar.” Ele contou rapidamente o que Sunay lhe dissera: sobre o barulho que eles tinham ouvido durante a noite, os tiros, tudo. “Você saiu hoje de manhã e não me acordou. Não se preocupe, vou cuidar de tudo isso; todos vamos sair dessa história sem um arranhão. Vamos para Frankfurt e seremos felizes. Você já falou com seu pai?” Ele lhe contou que fora encarregado de tentar um acordo, e para isso Sunay lhe pediu que fosse conversar com Azul, mas antes teria de falar com Kadife. Ele viu na extrema preocupação do olhar de Ipek um sinal de que temia por ele, Ka, e isso o alegrou.

       “Vou dizer a Kadife que vá ao seu quarto daqui a alguns minutos”, disse ela afastando-se.

       Quando ele chegou ao quarto, viu que alguém arrumara a cama. O quarto onde ele passara a noite mais feliz de sua vida tinha mudado; a luminosidade da neve lá fora dera um novo aspecto à cama, à mesa e às cortinas claras — até o silêncio do quarto parecia diferente. Mas ainda pairava no ar — e ele podia aspirar — o perfume de sua noite de amor. Deitou-se na cama e, fitando o teto, pensou em todos os problemas que teria de enfrentar se não conseguisse convencer Kadife e Azul a cooperarem.

       Kadife precipitou-se quarto adentro. “Conte-me tudo sobre a prisão de Azul”, disse ela. “Eles o maltrataram?”

       “Se o tivessem maltratado não deixariam que eu o visse”, disse Ka. “Dentro de alguns minutos eles vêm me buscar. Eu só sei que o prenderam depois da reunião no hotel.”

       Kadife olhou pela janela a avenida coberta de neve. “Quer dizer então que agora você é quem está feliz, e eu infeliz. Como as coisas mudaram desde nosso encontro na sala que servia de depósito.”

       Ka rememorou o encontro do dia anterior no quarto 217, onde Kadife apontou um revólver para ele e o fez tirar a roupa, antes de irem ao encontro de Azul; a doce e distante lembrança ligava-os um ao outro.

       “Mas isso não é tudo, Kadife”, disse Ka. “Os comparsas de Sunay acreditam que Azul está envolvido no assassinato do diretor do Instituto de Educação. E, o que é pior, parece ter chegado a Kars o dossiê que o implica na morte do apresentador de televisão de Esmirna.”

       “Quem são esses comparsas?”

       “Um bocado de gente do MIT de Kars, mais um ou dois soldados ligados a ele. Mas não pense que Sunay está totalmente nas mãos deles. Ele também tem ambições artísticas. Ele me pediu que lhe propusesse o seguinte: esta noite ele pretende apresentar uma peça no Teatro Nacional e quer que você participe. Não faça essa cara, ouça. O espetáculo também vai ser transmitido ao vivo, e mais uma vez toda a cidade assistirá. Se você se dispuser a desempenhar o seu papel, e se Azul conseguir convencer os rapazes da escola secundária religiosa a virem assistir à peça em silêncio, educadamente e batendo palmas nas horas certas, Sunay liberta Azul. Então poderemos esquecer toda essa história, e todos sairemos dessa sem ao menos um arranhão. Eles me pediram que fizesse a intermediação.”

       “Que peça é essa?”

       Ka lhe contou tudo o que sabia sobre Thomas Kyd, explicando também que Sunay mudara a peça, adaptando-a à situação atual. “Da mesma forma que, em sua longa peregrinação pela Anatólia, atualizavam Corneille, Shakespeare e Brecht, acrescentando danças do ventre e canções obscenas.”

       “Imagino que vá ser eu a pessoa a provocar a disputa sendo seqüestrada ao vivo, na televisão.”

       “Não. Você é uma respeitável dama espanhola de cabeça coberta, mas aí você se cansa da luta sangrenta e, num acesso de raiva, arranca o manto e se torna uma heroína rebelde.”

       “Para ser a heroína rebelde na Turquia você não tira o manto, você o põe.”

       “É só uma peça, Kadife. E como é só uma peça, não vejo problema em tirar o manto.”

       “Agora sei o que eles querem de mim. Mas mesmo sendo só uma peça, mesmo sendo uma peça dentro de uma peça, de qualquer modo não vou descobrir a cabeça.”

       “Ouça, Kadife: daqui a dois dias a neve terá derretido, as estradas estarão desimpedidas e as pessoas que estão na cadeia serão entregues a homens implacáveis. Se isso acontecer, você nunca mais verá Azul. Já pensou bem sobre isso?”

       “Meu receio é o de terminar aceitando, se pensar sobre o assunto.”

       “Você podia usar uma peruca sob o manto. Aí ninguém veria seus cabelos.”

       “Se eu quisesse usar uma peruca, teria feito isso há muito tempo, como muitas mulheres que conheço, e teria voltado à universidade.”

       “Não se trata aqui de ficar fora da universidade e tentar salvar a sua honra. Você vai fazer isso para salvar Azul.”

       “Bem, vamos ver se Azul vai querer que eu o salve descobrindo minha cabeça.”

       “Claro que vai”, disse Ka. “Você não vai ferir a honra dele descobrindo a cabeça. Afinal de contas, ninguém sabe da relação de vocês.”

      Pelo olhar furioso que ela lhe lançou, Ka percebeu ter descoberto seu ponto fraco, mas então ela abriu um sorriso estranho que o encheu de medo. Um medo mesclado com ciúmes. Ele temia que Kadife fosse lhe dizer alguma coisa destrutiva relacionada a Ipek.

       “Não temos muito tempo, Kadife”, disse ele, percebendo a estranha inflexão de medo na própria voz. “Sei que você é inteligente e sensível o bastante para enfrentar isso com toda a desenvoltura. Falo isso como alguém calejado por longos anos de exílio político. Ouça: a vida não é uma questão de princípios, mas de felicidade.”

       “Mas se não se tem princípios nem fé, não se pode ser feliz”, disse Kadife.

       “É verdade. Mas num país brutal como o nosso, onde a vida humana pouco vale, é tolice se deixar destruir por causa das próprias crenças. Crenças, grandes ideais... só quem vive nos países ricos pode se dar a esses luxos.”

       “Na verdade, é exatamente o contrário. Num país pobre, o único consolo que o povo pode ter é o de suas crenças.”

       Ka quis responder que as coisas em que o povo crê são falsas. Em vez disso falou: “Mas você não é um desses pobres, Kadife. Você é de Istambul”.

       “É por isso que faço as coisas em que acredito. Eu não simulo nada. Se eu resolver descobrir a cabeça, descubro mesmo: não faço as coisas pela metade.”

       “Tudo bem, então. E o que me diz disso: digamos que eles abram mão da platéia no teatro. Se a única coisa a ser vista pelo povo de Kars for a transmissão pela televisão. Aí, quando chegar a parte em que você se enfurece, eles só mostram a sua mão tirando o manto. Eles podem cortar para outra mulher, parecida com você, e mostrar apenas seus cabelos soltos, mas de costas.”

       “Isso é ainda mais desonesto que usar uma peruca”, disse Kadife. “E no final, quando o golpe acabar, todos vão pensar que descobri mesmo a cabeça.”

       “O que é mais importante, cumprir a lei de Deus ou se preocupar com o que os outros dizem? O importante, no caso, se fizermos como lhe falei, é que na verdade você não terá descoberto a cabeça. Se você se preocupa tanto com o que o povo pensa, isso também não é problema: quando essa loucura acabar, podemos providenciar para que todos sejam informados dessa alteração na última hora. Quando se souber que você se dispôs a fazer tudo isso para salvar Azul, os rapazes da escola religiosa vão admirá-la ainda mais do que já admiram.”

       “Nunca lhe passou pela cabeça”, disse Kadife num tom de voz subitamente diferente, “que quando se procura, por todos os meios, convencer alguém de alguma coisa, termina-se por dizer coisas em que não se acredita?”

       “Pode ser. Mas agora não se trata disso.”

       “Mas, fosse esse o caso, e você terminasse por convencer essa pessoa, não sentiria remorso por tê-la enganado? Quer dizer, por tê-la deixado numa espécie de limbo?”

       “Não se trata de deixar você num limbo, Kadife. Trata-se de usar a cabeça e ver que não há outra saída. Os homens de Sunay são implacáveis. Se eles resolverem enforcar Azul, não hesitarão. Você não está disposta a deixar que façam isso, está?”

       “Digamos que eu descobrisse a cabeça diante de todos. Isso seria admitir a derrota. E que garantia tenho de que eles libertariam Azul? Por que eu acreditaria em alguma promessa da parte do Estado turco?”

       “Tem razão. Vou ter de discutir isso com eles.”

       “Com quem você vai conversar, e quando?”

       “Primeiro vou me encontrar com Azul, depois volto a falar com Sunay.”

       Os dois ficaram em silêncio. Agora não havia dúvida de que Kadife estava propensa a aceitar a proposta. Mas Ka precisava ter certeza, então consultou o relógio de forma ostensiva.

       “Azul está nas mãos do MIT ou do exército?”

       “Não sei, mas com certeza isso não faz muita diferença.”

       “Se ele estiver nas mãos do exército, pode não ter sido torturado”, disse Kadife. Ela fez uma pausa. “Queria que você lhe desse isto”, disse ela entregando a Ka um isqueiro antigo revestido de madrepérola e um maço de Marlboro vermelho. “O isqueiro é de meu pai. Azul vai gostar de acender cigarros com ele.”

       Ka pegou os cigarros, mas não o isqueiro. “Se eu lhe der o isqueiro, Azul saberá que vim falar com você primeiro.”

       “E por que ele não deveria saber?”

       “Porque aí ele vai saber que conversei com você e vai perguntar qual foi a sua decisão. Pensei em não contar a ele que me encontrei com você antes, nem que você se dispõe a descobrir a cabeça, por assim dizer, para salvá-lo.”

       “Isso porque você sabe que ele nunca aceitaria?”

       “Não. Ele é um homem inteligente e racional, e certamente concordaria em que você fizesse alguma coisa como descobrir a cabeça, se isso o salvasse da forca; você sabe disso tanto quanto eu. O que ele nunca aceitaria é que eu tenha procurado você antes, em vez de ir diretamente a ele.”

       “Mas aqui não se trata apenas de política; é também algo pessoal, uma coisa entre mim e ele. Azul entenderia isso.”

       “Pode ser, Kadife, mas você sabe tanto quanto eu que ele quer ter a primeira palavra. Ele é turco, um militante islamita. Não posso ir até ele e dizer: ‘Ouça, Kadife resolveu descobrir a cabeça para libertar você’. Azul tem de achar que a decisão é dele. Vou perguntar a ele o que acha das várias opções — se você deve usar uma peruca ou é melhor a montagem com os cabelos de outra mulher. É preciso que ele esteja convencido de que isso salvará sua honra e resolverá o problema. Pode acreditar, ele nunca vai se aventurar nessas zonas obscuras em que suas idéias intransigentes a respeito de honra não se podem conciliar com sua compreensão mais pragmática. Se você tiver de descobrir a cabeça, com certeza ele preferirá que você o faça abertamente, sem truques.”

       “Você tem ciúmes de Azul, você o odeia”, disse Kadife. “Você nem ao menos o vê como um ser humano. Você é como todos os secularistas republicanos: quando vê alguém não ocidentalizado, relega-o à condição de um réprobo primitivo de baixa classe. Você diz a si mesmo que ele precisa de umas boas pancadas para se tornar um homem. Você gosta de me ver abaixar a cabeça diante do exército para salvar a pele de Azul? E imoral comprazer-se numa coisa dessas, mas você nem ao menos tenta escondê-lo.” Seus olhos chamejavam de ódio. “De todo modo, se a decisão deve partir de Azul, e você é um turco esclarecido, por que não foi diretamente a ele depois da conversa com Sunay? Vou lhe dizer por quê: você queria me ver tomando a decisão de abaixar a cabeça. Isso o faria sentir-se superior a Azul, um homem que o assusta.”

       “Numa coisa você tem razão: ele me assusta mesmo. Mas tudo o mais que você disse é injusto, Kadife. Se eu falasse primeiro com Azul e depois viesse aqui com a decisão dele de que você descobrisse a cabeça, você tomaria isso por uma ordem e teria recusado.”

       “Você não é um mediador, você está colaborando com os tiranos.”

       “Meu único desejo é sair inteiro desta cidade. Você deve levar esse golpe mais a sério do que eu. Você já fez mais do que o bastante para provar ao povo de Kars quão corajosa, inteligente e honrada você é. Depois que nos livrarmos disso, sua irmã e eu iremos para Frankfurt. Esperamos ser felizes lá. Eu a aconselharia a fazer o mesmo — fazer o que for preciso para encontrar a felicidade. Se você e Azul conseguirem sair daqui, poderão viver felizes como exilados políticos em uma cidade da Europa, e não tenho dúvida de que o pai de vocês haveria de querer acompanhá-la. Mas para isso você tem de confiar em mim.”

       Todo aquele discurso sobre felicidade fez que uma grande lágrima rolasse no rosto de Kadife. Sorrindo de um modo estranho que assustou Ka, ela logo se apressou em enxugá-la com a palma da mão. “Você tem certeza de que minha irmã está disposta a deixar Kars?”

       “Tenho”, disse Ka, embora o tom de voz não demonstrasse tanta segurança.

       “Não vou insistir para que você dê o isqueiro a Azul nem para que lhe diga que falou comigo antes”, disse Kadife. Agora ela falava como uma princesa altiva, mas benevolente. “Mas antes de descobrir a cabeça diante de todo mundo preciso ter certeza absoluta de que ele vai ser solto. Não me basta a palavra de Sunay nem de um de seus capangas. Todos sabemos o que vale a palavra do Estado turco.”

       “Você é uma mulher inteligente, Kadife. Ninguém era Kars merece ser feliz como você”, disse Ka. Ele ficou tentado a acrescentar: “A exceção de Necip”, mas logo o pensamento lhe fugiu. “Se você me der o isqueiro agora, posso levá-lo a Azul. Mas, por favor, procure confiar em mim.”

       Kadife curvou-se para a frente para lhe dar o isqueiro, e eles se abraçaram com uma efusão que surpreendeu a ambos. Por um instante fugaz, Ka desfrutou o prazer de tocar o corpo de Kadife, muito mais leve e mais fino que o de sua irmã, mas evitou beijá-la. Um instante depois, quando se ouviu uma forte batida na porta, ele não pôde deixar de pensar que tinha sido uma boa decisão.

       Era Ipek, que viera dizer-lhe que um caminhão do exército o esperava. Ela ficou a fitá-los com olhos mansos e perscrutadores, como a tentar descobrir o que se passara ali. Ka saiu do quarto sem beijá-la. No final do corredor, com uma sensação de vitória mesclada à de culpa, ele olhou para trás e viu as duas irmãs unidas num abraço silencioso.

 

  1. Não sou agente de ninguém

Ka com Azul em sua cela

       A imagem de Kadife e Ipek abraçando-se no corredor permaneceu na mente de Ka. Sentado ao lado do motorista no caminhão do exército, na esquina das avenidas Atatürk e HalitPasa, esperando que o único semáforo da cidade lhes desse sinal verde, ele estava a uma altura que lhe permitia olhar pela janela sem pintura do primeiro andar de uma velha casa armênia. Alguém a abrira para ventilar um pouco e, quando um vento leve sacudiu as cortinas, Ka olhou para dentro e pôde perceber imediatamente que estava testemunhando uma reunião política secreta — na verdade, ele teve uma percepção tão clara do que estava se passando lá dentro que era como se fosse um médico examinando um raio X. E então, embora uma mulher pálida e assustada logo tivesse corrido a fechar as cortinas, ele pôde perceber com extraordinária clareza o que se passava na sala iluminada: dois calejados militantes curdos de Kars estavam falando com um aprendiz de funcionário de casas de chá cujo irmão mais velho fora morto na batida da noite anterior; o aprendiz, todo enfaixado e banhado de suor por estar perto da estufa, ouvia os militantes lhe dizerem como seria fácil entrar no quartel central da polícia na avenida Faikbey e explodir uma bomba.

       Ka não imaginava, todavia, para onde estava indo. Em vez de levá-lo para o quartel central da polícia ou entrar na grande praça antiga dos primeiros anos da República onde ficava o quartel-general do MIT, o caminhão do exército passou direto pelo cruzamento com a avenida Faikbey e continuou avançando pela avenida Atatürk, terminando por entrar no complexo militar no centro da cidade. Na década de 60 planejava-se transformar o espaço num parque, mas depois do golpe militar no começo da década seguinte, construíram um muro em toda a sua volta, e logo começou a funcionar como uma guarnição, que compreendia alojamentos militares, um novo quartel-general, campos de treinamento e crianças entediadas andando de bicicleta entre choupos raquíticos. Segundo o Nação Livre, o jornal militarista, foi graças aos novos ocupantes que a casa na qual Pushkin se hospedara em sua visita a Kars, assim como os estábulos dos cossacos construídos pelo czar quarenta anos depois da visita do poeta, foram salvos da demolição.

       A cela na qual eles mantinham Azul ficava logo adiante dos estábulos. O caminhão do exército deixou Ka diante de um agradável edifício de pedra que ficava sob um oleandro; ele notou que seus galhos vergavam sob o peso da neve. Dentro havia dois homens afáveis que Ka, acertadamente, achou que fossem agentes do MIT; eles pegaram um rolo de ataduras e um gravador, mais que obsoleto considerando-se que se estava na década de 90. Depois de prenderem o gravador no peito de Ka com as ataduras, eles lhe mostraram como ligar e desligar. Ao falarem sobre o prisioneiro que estava no andar de baixo, era como se lamentassem que tivesse sido preso e quisessem ajudá-lo. Ao mesmo tempo, deixaram claro que Ka deveria obter a confissão do prisioneiro, principalmente quanto aos assassinatos de que fora autor ou mandante: não passou pela cabeça de Ka que eles pudessem ignorar o verdadeiro motivo que o levara ali.

       A época do czar, quando a cavalaria russa usava o pequeno edifício de pedra como quartel-general, descia-se uma fria escadaria de pedra e chegava-se a uma grande sala sem janelas, onde soldados eram punidos por indisciplina. Depois da fundação da República Turca, a cela servira de depósito por algum tempo, e então, à época do terror atômico da Guerra Fria, fora transformada em perfeito abrigo antinuclear; ela se revelou muito mais limpa e confortável do que Ka imaginara.

       A sala era bem aquecida por um aquecedor Arçelik (doado vários anos antes por Muhtar, o maior distribuidor da região, na tentativa de conquistar a simpatia dos militares), mas Azul, que estava na cama lendo um livro, ainda achou necessário cobrir-se com um cobertor do exército limpo. Ele se levantou ao ver Ka e colocou os sapatos, cujos cadarços tinham sido retirados; assumindo uma atitude formal, mas ao mesmo tempo tentando sorrir, ele apertou a mão de Ka e, com um ar decidido de alguém pronto para tratar de negócios, apontou uma mesa de fórmica encostada à parede. Depois de se sentarem em lados opostos da mesa, Ka viu um cinzeiro cheio de pontas de cigarro. Então, tirou o maço de Marlboro do bolso e passou-o a Azul, comentando que ele estava muito bem instalado. Azul lhe disse que não fora torturado, depois riscou um fósforo e acendeu o cigarro de Ka antes de acender o seu.

       “Bem, diga-me uma coisa, para quem você está espionando hoje?”

       “Parei de espionar”, disse Ka. “Agora estou atuando como mediador.”

       “Isso é pior ainda. Os espiões traficam fragmentos de informação em geral inúteis, e quase sempre por dinheiro. Quanto aos mediadores... não passam de pretensos sabichões que pensam poder meter o bedelho nos assuntos particulares dos outros, a pretexto de serem “imparciais”. Qual é o seu jogo aqui? O que você está tentando conseguir com tudo isso?”

       “Sair desta cidade terrível são e salvo.”

       “Do jeito que as coisas vão, só uma pessoa nesta cidade tem condições de proteger um ateu vindo do Ocidente para nos espionar, e essa pessoa é Sunay.”

       Então Azul vira a primeira página da Gazeta da Cidade Fronteiriça. Como Ka odiava aquele sorriso que se esboçava sob o bigode de Azul! Como era possível aquele militante islamita que passara a vida criticando o implacável Estado turco, e que agora se encontrava numa cela envolvido na investigação de dois assassinatos diferentes, estar tão calmo e satisfeito? Agora mais que nunca ele conseguia entender por que Kadife estava tão louca por ele. Azul nunca lhe pareceu tão bonito.

       “O que você veio mediar aqui?”

       “Vim tentar negociar a sua libertação”, disse Ka, e num tom bastante calmo expôs a proposta de Sunay. Ele não falou da possibilidade de Kadife usar uma peruca nem do truque de montagem no caso de uma transmissão ao vivo; ele reservou essas fichas para barganhar mais tarde, caso fosse necessário. Enquanto explicava a gravidade da situação e a pressão de certas facções impiedosas sobre Sunay para enforcar Azul na primeira oportunidade, sentia uma certa satisfação. Como, porém, essa alegria logo se fez acompanhar de uma certa culpa, ele acrescentou que Sunay era um grandessíssimo maluco e garantiu a Azul que tão logo a neve se fundisse tudo voltaria ao normal. Mais tarde, ele iria se perguntar se dissera aquilo para agradar aos agentes do MIT que estavam lá em cima.

       “Tudo isso quer dizer que minha única chance de liberdade é tomar parte em mais uma maluquice de Sunay, por assim dizer”, disse Azul.

       “Sim, é isso mesmo.”

       “Bem, diga-lhe o seguinte: rejeito a proposta dele. E agradeço a você por ter se dado ao trabalho de vir até aqui.”

       Ka achou que Azul iria levantar-se, apertar a mão dele e levá-lo até a porta. Em vez disso, fez-se silêncio.

       Tendo inclinado a cadeira, que ficou apoiada nas pernas de trás, Azul agora balançava alegremente para a frente e para trás. “Mas se sua tentativa de fazer a mediação não levar a nada, e você não conseguir escapar desta terrível cidade são e salvo, não haverá de ser por minha causa, mas por causa de seu ateísmo jactancioso e indiscreto. As pessoas deste país só se gabam de ateísmo quando têm o apoio do exército.”

       “Não sou do tipo que se orgulha de ser ateu.”

       “Que bom ouvir isso.”

       Os dois ficaram calados, fumando seus cigarros. Ka sentiu que não tinha escolha senão levantar-se e ir embora. Em vez disso, ele perguntou: “Você não está com medo de morrer?”.

       “Se isso for uma ameaça, a resposta é não, não estou com medo de morrer. Se você me pergunta como um amigo preocupado, a resposta é sim, estou com muito medo. Mas, independentemente do que eu faça agora, esses tiranos continuarão querendo me enforcar. Nada posso fazer para mudar essa situação.”

       Azul dirigiu a Ka um sorriso diabolicamente doce. O recado que Ka recebeu foi: “Escute, eu estou numa situação muito pior do que a sua, mas estou reagindo muito melhor do que você!”.

       A vergonha obrigou Ka a admitir para si mesmo que seu pânico derivava da doce e dolorosa esperança de felicidade que vinha acalentando desde que se apaixonara por Ipek. Seria Azul imune a esse tipo de esperança? Vou contar até nove e então me levanto e vou embora, disse ele consigo mesmo. Um, dois... Quando chegou ao cinco, ele concluiu que, se não conseguisse dobrar Azul, nunca conseguiria voltar para a Alemanha com Ipek.

       Subitamente inspirado, ele começou a falar tudo o que lhe vinha à cabeça. Começou descrevendo um mediador desafortunado de um filme em preto-e-branco americano que vira quando criança; então ele lembrou a Azul que — quando as coisas voltassem ao normal — ele tinha certeza de que conseguiria fazer publicar o manifesto do Hotel Ásia na Alemanha; então ele observou que as pessoas que saem pela vida tomando decisões erradas por conta de paixões intelectuais inflexíveis terminam por se arrepender. Ele contou como exemplo a ocasião em que, num acesso de raiva, deixou um time de basquete para nunca mais voltar; ele resolveu passar o tempo que passaria nas quadras vagando ao longo do Bósforo, contemplando o mar durante horas e horas; e, tendo dito isso, não conseguiu deixar de dizer a Azul o quanto amava Istambul, e quão bela era a pequena cidade litorânea de Bebek num agradável anoitecer de primavera. Durante todo o tempo ele lutava para evitar que o olhar gélido de Azul o reduzisse ao silêncio. Era como a última visita antes de uma execução.

       “Mesmo que cedêssemos a todas às suas exigências, eles nunca manteriam sua palavra”, disse Azul. Ele apontou para os papéis e a caneta em cima da mesa. “Eles querem que eu escreva a história de minha vida, que eu conte todos os crimes que cometi. Se eu o fizer, e eles acharem que fui sincero, eles poderiam me perdoar, com base na lei sobre o arrependimento. Sempre tive pena dos idiotas que caem nesse tipo de mentira, para passar o resto da vida martirizando-se por terem traído a si mesmos. Mas como de qualquer jeito eu vou morrer, quero que os que vierem depois saibam de algumas coisas verdadeiras sobre mim.” Na mesa havia várias folhas de papel já escritas, e ele pegou uma delas. Com a mesma expressão grave e um tanto ridícula que assumira ao dizer sua mensagem para Hans Hansen e para a imprensa alemã, ele começou a ler:

   “MINHA EXECUÇÃO

   No que tange à minha execução, gostaria de deixar claro que não me arrependo de nada do que fiz por motivos políticos em qualquer período da minha vida, inclusive hoje, quinta-feira, vinte de fevereiro. Meu pai é um funcionário aposentado do Departamento Regional do Tesouro de Istambul, e sou seu segundo filho. Durante a minha infância e nos primeiros anos de minha juventude, meu pai manteve ligações secretas com uma comunidade de dervixes cerrahi, e eu cresci nesse mundo humilde e silencioso. Em minha juventude rebelei-me contra ele tornando-me um esquerdista ateu, e, ao entrar na universidade, juntei-me a outros jovens militantes para atirar pedras nos marinheiros que saíam dos porta-aviões americanos. Por essa época me casei, mas aí nos separamos e consegui sobreviver à crise.

   Durante muitos anos ninguém notou a minha existência. Eu era engenheiro eletrônico. Como odiava o Ocidente, admirei a revolução do Irã. Voltei ao islã. Quando o aiatolá Khomeini disse “A coisa mais importante atualmente não é orar ou jejuar, mas proteger a fé islâmica”, eu acreditei nele. Inspirei-me na obra de Frantz Fanon sobre a violência, nas peregrinações que Seyyid Kutub fez em protesto contra a opressão, em suas idéias sobre a hégira, e em Ali Sheriyat.

   Fugi para a Alemanha depois do golpe militar. Então voltei para a Turquia. Fui ferido quando lutava em Grozni contra os russos, ao lado dos chechenos, e em conseqüência do ferimento fiquei puxando da perna direita. Quando eu estava na Bósnia, durante o cerco sérvio, casei-me com uma jovem bósnia chamada Mezurka e trouxe-a comigo para Istambul. Devido aos meus compromissos políticos e à minha crença na hégira, dificilmente eu passava mais de duas semanas em alguma cidade, e minha segunda mulher e eu terminamos por nos separar.

   Depois de cortar relações com os grupos islamitas que me mandaram para a Chechênia e a Bósnia, parti para conhecer os quatro cantos da Turquia. Embora acredite que às vezes é preciso matar os inimigos do islã, eu nunca matei ninguém, nem nunca ordenei a morte de ninguém. O homem que assassinou o ex-prefeito de Kars era um carroceiro curdo perturbado que estava furioso porque o prefeito estava ameaçando tirar das ruas todas as carroças puxadas por cavalos. Vim para Kars por causa das jovens que estavam se suicidando. O suicídio é o maior de todos os pecados. Deixo como legado os meus poemas e meu testamento, e gostaria que fossem publicados. Eles estão com Mezurka. É só o que tenho a dizer.”

       Seguiu-se um silêncio.

       “Você não precisa morrer”, disse Ka. “É por isso que estou aqui.”

       “Então deixe-me dizer outra coisa”, disse Azul. Quando se certificou de que Ka lhe dava toda a atenção, ele acendeu outro cigarro. Será que ele sabia do gravador girando silenciosamente em seu peito, trabalhando discretamente como uma zelosa dona-de-casa?

       “Quando eu vivia em Munique, freqüentava muito um cinema. Depois da meia-noite eles faziam sessões duplas com ingressos mais baratos”, disse Azul. “E você conhece aquele italiano que fez A batalha de Argel, sobre a dominação francesa na Argélia — um dia eles passaram seu último filme, Queimada!. Passa-se numa ilha do Caribe onde se cultiva cana-de-açúcar e é sobre as trapaças dos colonialistas e das revoluções que eles fomentaram. Primeiro eles encontraram um líder negro e o incitaram a rebelar-se contra os portugueses. Depois eles entraram em cena e tomaram o poder. Após essa primeira derrota, os negros sublevam-se novamente, dessa vez contra os ingleses, mas os ingleses os derrotam tocando fogo em toda a ilha. O líder das duas rebeliões é preso, e logo chega a manhã de sua execução. E quem o procuraria naquele momento senão o homem que o descobriu, o homem que o incitou à primeira rebelião e que conduziu o esmagamento da segunda para os ingleses? Antes que a gente possa se dar conta do que está acontecendo, Marlon Brando entra na barraca em que o negro está preso; ele corta as cordas e o liberta.”

       “Por quê?”

       Azul levantou a cabeça com desdém. “O que você acha? Assim ele não seria enforcado, claro! Marlon sabia muito bem que se enforcassem aquele homem, ele se tornaria uma lenda, e a população da ilha iria usar o seu nome como uma bandeira da revolta durante anos e anos. Mas o líder negro, sabendo exatamente por que Marlon cortara as cordas, ignora aquela chance de libertar-se e recusa-se a fugir.”

       “E eles o enforcaram?”, perguntou Ka.

       “Sim, mas o filme não mostra o enforcamento”, disse Azul. “Em vez disso, ele mostra o que aconteceu com Marlon Brando, o agente que, como você, tentou seduzir o condenado oferecendo-lhe a liberdade. Quando ele se preparava para deixar a ilha, um dos nativos o matou a facadas.”

       “Eu não sou um agente!”, disse Ka, sem conseguir conter a irritação.

       “Não se melindre tanto com a palavra agente: afinal de contas eu próprio me considero um agente do islã.”

       “Eu não sou agente de ninguém”, insistiu Ka, ainda perturbado.

       “Será que não colocaram alguma droga neste cigarro para me deixar atordoado e dobrar minha vontade? Ah, a melhor coisa que a América deu ao mundo foram esses Marlboros vermelhos. Eu seria capaz de fumar esses cigarros pelo resto de minha vida.”

       “Se você usar a cabeça, pode continuar fumando seus Marlboros por mais quarenta anos.”

       “É exatamente isso que quero dizer com a palavra agente”, disse Azul. “A principal tarefa de um agente é fazer as pessoas mudarem de idéia.”

       “O que quero dizer é que é estúpido deixar-se matar por esses fascistas loucos e sangüinários. E tampouco espere tornar-se um símbolo da revolução; isso não vai acontecer. Quanto aos carneirinhos desta cidade, eles podem ter fortes convicções religiosas, mas no frigir dos ovos obedecem mesmo é às determinações do Estado. De todos aqueles sheiks que se insurgiram temendo um recuo da religião, de todos os militantes treinados no Irã, e mesmo de gente como Saidi Nursi, que gozou de grande fama — não restam nem os túmulos. Quanto a todos os líderes religiosos deste país, que sonham que um dia seus nomes se tornem emblemas da fé, os soldados enchem os aviões com seus corpos e os jogam no mar. Mas você sabe de tudo isso. Os cemitérios do Hezbollah, em Batman, que recebiam tantos peregrinos... certa noite foram todos demolidos. Onde estão esses cemitérios agora?”

       “No coração do povo.”

       “Palavras sem sentido. Apenas vinte por cento da população vota nos islamitas. E num partido islamita moderado, por sinal.”

       “Se é tão moderado, por que eles entram em pânico e dão um golpe de Estado? Por favor, explique-me isso! Basta dessa sua mediação imparcial.”

       “Eu sou um mediador imparcial”, disse Ka elevando a voz.

       “Não, não é. Você é um agente do Ocidente. Você é um escravo dos cruéis europeus, e como todos os escravos de verdade você nem ao menos sabe que é. Você não passa de um típico europeuzinho de Nisantas. Você não apenas foi educado para desprezar suas próprias tradições, mas também imagina viver num plano acima da gente comum. Para gente de sua laia, o caminho para uma boa vida moral não passa por Deus nem pela religião, nem por participar da vida das pessoas comuns — não, é só uma questão de macaquear o Ocidente. Talvez uma vez ou outra você faça uma ou outra crítica às tiranias impostas aos islamitas e curdos, mas no íntimo não se importa nem um pouco quando os militares tomam o poder.”

       “E se eu lhe fizesse a seguinte proposta: Kadife podia usar uma peruca sob o manto, e assim, quando ela descobrisse a cabeça, ninguém veria seu cabelo de verdade.”

       “Você não me fará tomar vinho!”, disse Azul. Ele também levantou a voz. “Recuso-me a ser um europeu, e não vou imitá-los feito macaco. Vou viver minha própria história, e não ser senão quem eu sou. Eu acredito que é possível ser feliz sem macaquear os europeus nem se tornar escravo deles. Há uma coisa que está sempre na boca dos admiradores da Europa quando querem denegrir o nosso povo: para ser um verdadeiro ocidental, a pessoa deve primeiro tornar-se um indivíduo, e aí eles completam dizendo que na Turquia não há indivíduos! Bem, é assim que agora encaro minha execução. Estou enfrentando os ocidentais como um indivíduo, e é por ser um indivíduo que me recuso a imitá-los.”

       “Sunay acredita tanto na força da peça que posso fazer o seguinte para você. O Teatro Nacional vai estar vazio. A câmera de televisão mostrará primeiro Kadife tirando o manto. Então podemos fazer um truque de edição e mostrar os cabelos de outra pessoa.”

       “Acho muito suspeito ver você fazer tantos malabarismos para me salvar.”

       “Eu estou muito feliz agora”, disse Ka, e, ao dizer isso, sentiu-se culpado como se estivesse mentindo. “Nunca fui tão feliz em toda a minha vida. Quero preservar essa felicidade.”

       “E o que é que o faz tão feliz?”

       Ka não lhe deu a resposta que mais tarde lhe pareceu ser a mais sensata: “Porque estou escrevendo poemas novamente”. Tampouco ele disse: “Porque acredito em Deus”. Em vez disso, ele deixou escapar: “Porque estou apaixonado!”. E acrescentou: “E vou levar meu amor comigo para Frankfurt”. Por um instante ele ficou contente em poder falar tão abertamente sobre seu amor com uma pessoa praticamente estranha.

       “E quem é esse seu amor?”

       “A irmã de Kadife, Ipek.”

       Ka percebeu a perplexidade de Azul, lamentou sua explosão de alegria e se calou.

       Azul acendeu outro Marlboro. “Quando um homem se sente tão feliz que deseja confessar sua felicidade a alguém prestes a ser executado, é uma dádiva de Deus. Suponhamos que eu aceite suas propostas de ir embora da cidade para salvar sua felicidade. Suponhamos que Kadife dê um jeito de participar da peça usando algum truque que salve sua honra, dando também à irmã a esperança de ser feliz. Que garantia tenho eu de que essa gente vai cumprir a palavra e me libertar?”

       “Eu sabia que você ia perguntar isso!”, exclamou Ka. Ele fez uma pausa, levou o dedo aos lábios e, com um gesto, pediu que Azul ficasse calado e olhasse. Ele desabotoou a jaqueta e desligou de forma ostensiva o gravador que estava em seu peito. “Vou responder por você e eles podem libertá-lo antes”, disse ele. “Kadife só entra em cena depois de ter a confirmação de que você foi solto e voltou para o esconderijo. Mas para conseguir que Kadife concorde, você tem de escrever uma carta dizendo que concordou com o plano — preciso entregar a carta a ela pessoalmente.” Ele ia concebendo aquilo tudo à medida que falava. “E se você me disser como deve ser libertado e onde eles devem deixá-lo”, sussurrou ele, “eu consigo que eles façam como você deseja. E aí você vai poder ficar escondido até as estradas se abrirem novamente. Pode confiar em mim. Você tem a minha palavra.”

       Azul entregou a Ka uma folha de papel. “Escreva aí que você, Ka, é ao mesmo tempo mediador e avalista de minha libertação e de minha saída, são e salvo, de Kars, em troca da participação de Kadife numa peça em que ela vai tirar o manto, sem que isso atinja a sua honra. Se você não cumprir o prometido, se tudo não passar de uma armadilha, que punição deve receber o mediador?”

       “O que fizerem com você, farão comigo também!”, disse Ka.

       “O.k., escreva isso então.”

       Ka deu a Azul uma folha de papel. “Quero que você escreva que concordou com meu plano, que me autoriza a expô-lo a Kadife, e que cabe a ela a decisão final. Se Kadife concordar, ela deve declarar isso por escrito e assinar, com o pressuposto de que só deve descobrir a cabeça quando você estiver livre, nas condições desejadas. Escreva tudo isso. Mas quanto à hora e ao lugar em que você deve ser libertado, é melhor que eu fique de fora. É melhor você escolher alguém de sua confiança. Eu sugeriria Fazil, irmão de sangue de Necip, o rapaz que morreu.”

       “É o rapaz que andou escrevendo cartas de amor para Kadife?”

       “Quem fez isso foi Necip, o rapaz que morreu. Ele era uma pessoa muito especial, uma dádiva de Deus”, disse Ka. “Mas Fazil é tão bondoso quanto ele.”

       “Se você o diz, eu acredito”, disse Azul, voltando-se para a folha de papel e começando a escrever.

       Azul terminou primeiro. Quando Ka terminou de escrever sua própria declaração, percebeu um risinho de desprezo no rosto de Azul, mas não se incomodou. As coisas estavam andando, todos os obstáculos tinham sido removidos, ele e Ipek agora estavam livres para deixar a cidade, e ele mal conseguia conter a alegria. Eles trocaram as folhas de papel em silêncio. Quando Azul dobrou a declaração de Ka e colocou-a no bolso sem se dar ao trabalho de lê-la, Ka seguiu-lhe o exemplo; e então, tendo o cuidado para que Azul visse o que ele estava fazendo, ligou o gravador novamente.

       Houve um silêncio. Ka repetiu a última coisa que tinha dito antes de desligar o gravador. “Eu sabia que você ia perguntar isso”, disse ele. “Mas a menos que possa haver uma certa confiança de ambos os lados, não será possível fazer nenhum acordo. Você vai ter de confiar que o Estado cumprirá a palavra.”

       Eles se olharam nos olhos e sorriram. Depois, ele haveria de rememorar aquele momento muitas vezes, e a cada vez sentiria mais remorso; a felicidade o impedira de ver a fúria no olhar de Azul; ao relembrar a cena, Ka sempre pensava que se tivesse notado a fúria do outro, nunca teria feito a pergunta:

       “Será que Kadife vai concordar com o plano?”

       “Vai, sim”, sussurrou Azul, os olhos brilhando de fúria.

       Houve outro pequeno silêncio.

       “Como você quer fazer um acordo comigo que me salve a vida, você poderia me contar um pouco mais sobre sua grande felicidade.”

       “Nunca amei ninguém assim em toda a minha vida”, disse Ka. Suas palavras soaram ingênuas e meio canhestras, mas mesmo assim ele as tinha dito. “Para mim, só existe uma chance de felicidade, e essa chance é Ipek.”

       “E como você define a felicidade?”

       “Felicidade é encontrar um outro mundo onde se possa viver, um mundo onde seja possível esquecer toda essa pobreza e tirania. Felicidade é tomar alguém nos braços e saber que está enlaçando o mundo inteiro.” Ele ia dizer mais alguma coisa, mas Azul levantou-se de um salto.

       Naquele instante o poema a que mais tarde Ka daria o título de “Xadrez” começou a surgir em sua mente. Ele lançou um rápido olhar a Azul e então, deixando-o parado onde estava, tirou o caderno do bolso e começou a escrever. Enquanto ele rabiscava os versos do poema, que era sobre felicidade e poder, sabedoria e ganância, Azul olhava por sobre o ombro dele, curioso de saber o que estava acontecendo. Ka sentia que Azul o estava observando, e essa imagem também foi incorporada ao poema. Foi como se a mão que estava escrevendo pertencesse a outra pessoa. Ka sabia que Azul não poderia perceber isso, o que não o impediu de desejar que o outro soubesse que sua mão era guiada por uma força maior. Mas não foi isso o que aconteceu: Azul sentou-se à beira da cama, e ficou fumando melancolicamente, como o fazem os condenados em todo o mundo.

       Num impulso que mais tarde ele passou muito tempo tentando (em vão) entender, Ka se pegou abrindo novamente o coração para Azul.

       “Antes de vir para cá, fazia anos que eu não escrevia um poema”, disse ele. “Mas desde que cheguei a Kars, todas as estradas que levam à poesia tornaram a se abrir. Atribuo isso ao amor a Deus que senti aqui.”

       “Não quero destruir suas ilusões, mas seu amor a Deus é inspirado em romances ocidentais”, disse Azul. “Num lugar como este, se você venera a Deus como um europeu, fatalmente cai no ridículo. Então, você nem ao menos pode acreditar que acredita. Você não pertence a este país; você não é mais turco. Primeiro procure ser como todo mundo. Depois procure acreditar em Deus.”

       Ka sentia o ódio de Azul. Ele pegou algumas folhas de papel da mesa e, dizendo que precisava encontrar Sunay e Kadife imediatamente, bateu na porta da cela. Quando ela se abriu, ele se voltou para Azul e lhe perguntou se tinha alguma mensagem especial para Kadife.

       Azul sorriu. “Tenha cuidado”, disse ele. “Não deixe ninguém matar você.”

 

  1. O senhor não vai morrer de verdade, vai?

Barganha em que a vida rivaliza com o teatro, e a arte, com a retórica

       Já no pavimento superior, enquanto os agentes do MIT lhe tiravam as faixas com que tinham prendido o gravador ao peito, Ka tentava agradar imitando seu ar de eficiência desdenhosa e ridicularizando Azul. Isso pode explicar por que ele não estava preocupado com a agressividade de Azul lá embaixo.

       Ele mandou o motorista do caminhão do exército de volta ao hotel, com ordens para esperar. Ladeado por guardas militares, ele atravessou a guarnição de ponta a ponta. O alojamento dos oficiais dava para um grande pátio coberto de neve onde bandos de meninos, entre os choupos, atiravam bolas de neve uns nos outros. Uma menina de casaco de lã vermelho e branco, que lembrou a Ka um que ele usava no terceiro ano primário, estava à parte, esperando; um pouco mais adiante, duas coleguinhas suas faziam um boneco de neve. O ar estava cristalino. A forte tempestade cessara, e começava a esquentar um pouco.

       De volta ao hotel, ele foi imediatamente ver Ipek. Ela estava na cozinha, usando uma bata, do tipo que as meninas de todos os liceus da Turquia usavam outrora, e sobre ela um avental. Enquanto a olhava com os olhos cheios de alegria, morria de vontade de abraçá-la, mas havia outras pessoas na sala, por isso ele se conteve e contou o que se passara naquela manhã. As coisas estão indo bem, disse ele, não apenas para eles, mas também para Kadife. Falou que embora o jornal tivesse sido distribuído sem a correção, ele já não temia ser morto a tiros. Havia muito mais a dizer, mas então Zahide entrou na cozinha para fazer um pedido em favor dos dois soldados que vigiavam a porta; ela perguntou a Ipek se podia convidá-los a entrar e oferecer-lhes um pouco de chá. Nos poucos instantes que ficaram a sós, Ipek propôs que continuassem a conversa lá em cima.

       Em seu quarto, Ka pendurou o casaco e se pôs a fitar o teto enquanto esperava Ipek. Com tanta coisa a discutir, Ka sabia que logo ela estaria ali, sem se fazer de rogada, mas não demorou muito e ele se viu presa de um negro pessimismo. Primeiro imaginou que Ipek se atrasara porque cruzara com o pai; depois começou a temer que, por causa da confusão toda, ela não queria estar com ele. A velha dor voltou, irradiando-se de seu estômago como um veneno. Se aquilo era o que os outros chamavam de dor de amor, não pressagiava nenhuma felicidade. Ele percebia que, quanto mais se aprofundava o seu amor por Ipek, mais rápido aqueles pavores sombrios se apossavam dele. Mas será que ele estava certo em supor que aqueles acessos, aquelas terríveis fantasias de ilusão e sofrimento, tinham alguma coisa a ver com o que os outros chamam de amor? Ele parecia ser o único a descrever a experiência como angústia e frustração; incapaz até de se imaginar gabando-se, como todos o faziam, a respeito do amor, ele só podia supor que seus sentimentos eram anormais, e era isso o que mais o incomodava. Mesmo quando presa de hipóteses paranóides (Ipek não viria; Ipek na verdade não queria vir; eles três — Kadife, Turgut bei e Ipek — estavam tendo uma reunião secreta, considerando-o um inimigo e planejando livrar-se dele), uma parte dele sabia que essas fantasias eram patológicas; assim, por exemplo, quando seu estômago começava a doer com as terríveis visões de Ipek apaixonada por outro homem, outra região de seu cérebro repetia que estas não passavam de um sintoma de sua doença. Às vezes, para aliviar a dor e apagar as cenas nocivas que invadiam seus pensamentos (na pior delas, Ipek recusava-se até a ver Ka, quanto mais ir com ele para Frankfurt), ele procurava, só com a força de vontade, refugiar-se na razão, a única parte de sua mente que o amor não conseguira abalar. Claro que ela me ama, repetia para si mesmo; se não amasse, por que parecia tão enlevada? Concentrado nesses pensamentos, suas ansiedades desapareciam, mas logo uma outra preocupação vinha rapidamente desfazer sua precária paz interior.

       Ele ouviu passos no corredor. Não podia ser Ipek, disse ele para si mesmo: era alguma outra pessoa vindo lhe dizer que Ipek não viria. E então, quando abriu a porta e a viu, sentiu alegria e hostilidade ao mesmo tempo. Ele havia esperado por doze longos minutos. Seu consolo foi ver que Ipek se arrumara e passara batom.

       “Falei com meu pai e lhe disse que vou para a Alemanha”, disse ela.

       Ka ainda estava tão dominado pelas sombrias imagens de sua cabeça que sua primeira reação foi de desapontamento; ele não podia dar toda a sua atenção a Ipek. O fato de não ter conseguido demonstrar nenhum prazer com a notícia deixou Ipek com algumas dúvidas — ou, mais precisamente, com uma desilusão que a fez pensar em recuar. Ela sabia que Ka estava loucamente apaixonado e dependente dela como uma criança de cinco anos infeliz, que não pode ficar afastada da mãe. Sabia também que ele queria levá-la para a Alemanha não apenas para partilhar com ela as alegrias de seu lar em Frankfurt. Sua maior esperança era a de que, quando estivessem bem longe de todos aqueles olhares de Kars, ele a possuísse de forma absoluta.

       “Querido, você está preocupado com alguma coisa?”

      Nos anos que se seguiram, quando sofria os tormentos do amor, Ka haveria de lembrar-se mil vezes com que doçura e delicadeza Ipek fizera aquela pergunta. Ele lhe falou dos terríveis pensamentos que ficaram lhe passando pela cabeça. Narrou-os um a um: a terrível sensação de desamparo, as piores cenas de terror que vira desfilar diante dos olhos.

       “Se os sofrimentos do amor lhe causam tanto medo, não posso deixar de imaginar que você já teve uma mulher que o feriu profundamente.”

       “Já sofri um pouco na minha vida, mas agora já estou apavorado em imaginar quanto você pode me fazer sofrer.”

       “Não vou fazê-lo sofrer de modo algum”, disse Ipek. “Estou apaixonada por você. Vou para a Alemanha com você. Tudo vai dar certo.”

     Ipek o abraçou com todas as suas forças, e eles fizeram amor com tal facilidade que Ka mal conseguia acreditar. Agora ele não sentiu nenhuma necessidade de tratá-la com rudeza: ao contrário, sentiu prazer no abraço forte mas terno, exultando com a brancura de sua pele delicada, mas ambos tinham a mesma percepção de que não estavam se amando com a mesma intensidade da noite anterior.

       Os pensamentos de Ka estavam nos planos de mediação. Ele raciocinava que, se por uma vez na vida ele conseguira ser feliz, e se, usando a cabeça, conseguisse não apenas sair de Kars são e salvo mas também acompanhado de seu amor, essa felicidade duraria para sempre. Ele ficou pensando nisso por algum tempo, sorriu, olhou pela janela e, para sua grande surpresa, sentiu a chegada de um novo poema. Ele o escreveu bem depressa, da forma como lhe vinha à cabeça, enquanto Ipek o olhava com amorosa admiração. Mais tarde ele haveria de recitar aquele poema, intitulado “Amor”, em seis apresentações na Alemanha. Os que o ouviram me disseram que, embora tematizasse a conhecida tensão entre paz e isolamento, ou segurança e medo, e relações especiais com uma mulher (se bem que apenas um ouvinte pensou em lhe perguntar depois quem era aquela mulher), o poema na verdade brotava da parte mais sombria e incompreensível de Ka. As anotações feitas por Ka posteriormente eram lembranças mais explícitas de Ipek, falavam da falta que ela lhe fazia e demoravam-se em pequenos detalhes sobre sua maneira de vestir e seus movimentos. (A forte impressão que Ipek me causou quando a conheci talvez se deva ao fato de eu ter lido e relido tantas vezes essas anotações.)

       Ipek vestiu-se rapidamente e se foi; ela tinha de se despedir da irmã. Mas um instante depois Kadife estava à sua porta. Vendo seus olhos mais abertos do que nunca, e sua evidente ansiedade, Ka garantiu-lhe que nada tinha a temer, e muito menos que alguém pusesse a mão em Azul. Então lhe disse que pudera ver a dimensão da coragem de Azul pela dificuldade que tivera em convencê-lo a fazer o acordo.

       Então uma mentira que ele esboçara antes lhe veio à mente, já com todos os detalhes. Ele começou dizendo que a parte mais difícil fora convencer Azul de que Kadife concordaria com o plano. Ele disse que Azul temia muito que Kadife se ofendesse, e que só podia concordar depois de discutir o assunto com ela; nesse ponto Kadife ergueu uma sobrancelha, então Ka recuou um pouco, dando à sua mentira um aspecto mais convincente ao dizer que duvidava da sinceridade de Azul ao dizer essas palavras. Então, não apenas para reforçar sua mentira mas também para ajudar Kadife a salvar as aparências, ele acrescentou que a relutância de Azul (em outras palavras, o respeito que tinha para com os sentimentos de uma mulher) era uma coisa positiva — principalmente para ele.

       Ka alegrava-se em inventar doces mentiras para aquela gente infeliz que se deixava envolver pelas disputas políticas estúpidas daquela cidade estúpida, cidade que tão tarde lhe ensinara que a única coisa importante na vida era a felicidade. Mas uma parte dele sabia ser preciso inventá-las porque Kadife era muito mais corajosa que ele, muito mais disposta a fazer sacrifícios, e quando sentiu quanto de infelicidade a jovem tinha pela frente, ele se entristeceu. Foi por isso que, antes de encerrar sua história, contou mais uma pequena mentira inócua: a de que Azul, quando ele, Ka, estava indo embora, pediu-lhe num sussurro que desse lembranças a Kadife.

       Ka então começou a expor o plano, e quando terminou perguntou o que ela tinha achado.

       “Eu vou descobrir minha cabeça, mas a forma como o farei quem decide sou eu”, disse Kadife.

       Ka tentou convencê-la de que Azul não se importaria se ela usasse uma peruca ou alguma coisa do tipo, mas parou ao ver que aquilo a enfurecera. Ficou combinado então o seguinte: primeiro eles libertariam Azul, que então se esconderia em algum lugar em que se sentisse seguro; só então Kadife descobriria a cabeça (da forma como bem entendesse). Kadife poderia descrever por escrito o plano e assiná-lo imediatamente? Ka lhe passou a declaração que lhe fora dada por Azul, esperando que ela usasse como modelo para a sua. Mas vendo a emoção que Kadife sentia à mera visão da caligrafia de Azul, Ka sentiu uma onda de afeição por ela. Enquanto lia, Kadife fazia o possível para impedir que Ka também lesse, e a certa altura ela chegou a cheirar o papel.

       Notando uma certa hesitação, Ka lhe disse que iria usar a declaração para convencer Sunay e seus comparsas de que deviam libertar Azul. Com certeza o exército estava furioso com Kadife, e certamente a história do manto não a deixara bem com o pessoal da alta-roda, mas todos em Kars respeitavam sua coragem e sua honestidade. Ka lhe passou outra folha de papel e, enquanto ela escrevia, observou-a por alguns instantes. Ele pensou na Kadife com quem conversara sobre signos astrológicos enquanto andavam pela rua dos Açougues em sua primeira manhã em Kars; a Kadife que tinha agora à sua frente parecia ter envelhecido.

       Enquanto punha a declaração no bolso, ele disse que, supondo que Sunay concordasse, a próxima tarefa seria encontrar um esconderijo para Azul, depois que fosse libertado. Kadife estaria disposta a encontrar um esconderijo para Azul?

       Ela assentiu com um grave gesto de cabeça.

       “Não se preocupe”, disse Ka. “No final todos seremos felizes.”

       “Nem sempre fazer tudo certo garante a felicidade”, disse Kadife.

       “Fazer tudo certo é fazer o que nos traz felicidade”, disse Ka. Ele imaginou um dia não muito distante em que Kadife iria a Frankfurt e testemunharia a felicidade conquistada por ele e sua irmã mais velha. Ipek levaria Kadife à Kaufhof e lhe compraria uma elegante capa de chuva; os três iriam juntos ao cinema; na saída, parariam num restaurante da Kaiserstrasse para tomar cerveja com salsicha.

       Eles vestiram os casacos, e Kadife desceu as escadas com Ka, indo com ele até o caminhão do exército que os esperava no pátio. Os dois guarda-costas sentaram-se no banco de trás. Ka se perguntou se havia razão para temer ser atacado ao andar sozinho pelas ruas. Do banco da frente de um caminhão do exército, as ruas de Kars não pareciam nem um pouco assustadoras. Ele via mulheres com sacolas de compras a caminho do mercado, crianças atirando bolas de neve, um homem e uma mulher idosos agarrando-se um ao outro para não escorregar no gelo, e se imaginou com Ipek num cinema em Frankfurt, de mãos dadas.

       Sunay estava com o coronel Osman Nuri Çolak, o outro responsável pelo golpe. O que Ka lhes contou estava banhado no otimismo gerado por seus felizes devaneios. Ele disse que tudo estava acertado: Kadife tomaria parte no espetáculo e descobriria a cabeça no momento combinado, e Azul estava ansioso para satisfazer essa condição para a sua soltura. Ele percebeu um tranqüilo entendimento entre os dois homens, do tipo que só se encontra entre pessoas que passaram a juventude lendo os mesmos livros. Num tom cauteloso mas confiante, Ka explicou quão delicado fora o trabalho de mediação. “Primeiro tive de lisonjear Kadife, depois tive de lisonjear Azul”, disse ele presenteando Sunay com as declarações dos dois. Enquanto Sunay as lia, Ka percebeu que o ator andara bebendo, embora ainda não fosse meio-dia. Ele se aproximou mais um pouco de Sunay e teve certeza de que bebera mesmo.

       “Esse sujeito quer que nós o soltemos antes que Kadife vá ao palco descobrir a cabeça”, disse Sunay. “Esse aí é esperto. Não é nenhum tonto.”

       “E Kadife quer a mesma coisa”, disse Ka. “Eu realmente fiz o possível, mas esse acordo foi o melhor que consegui fazer.”

       “Nós representamos o Estado. Por que iríamos acreditar em qualquer dos dois?”, disse o coronel Osman Nuri Çolak.

       “Eles não acreditam no Estado mais que acreditamos neles”, disse Ka. “Se não aceitarmos certas garantias recíprocas, não iremos a lugar nenhum.”

       “Ele poderia ser enforcado para servir de exemplo e então, quando as autoridades descobrissem o que um ator bêbado e um coronel decrépito fizeram em nome de um golpe militar, poderiam usar isso para nos destruir. Azul não pensou em nada disso?”, perguntou o coronel.

       “Ele é muito convincente quando finge não ter medo de morrer. Não saberia dizer o que lhe vai na cabeça, mas ele parece achar que enforcá-lo faria dele um santo, um ícone.”

       “O.k., digamos que primeiro a gente liberte Azul”, disse Sunay. “Como podemos ter certeza de que Kadife cumprirá a promessa de participar da peça?”

       “Se você considerar que Turgut bei enfrentou provações ainda maiores para preservar sua honra, e que Kadife é filha dele, não resta dúvida de que podemos confiar que ela cumpra a palavra — muito mais do que poderíamos confiar em Azul. Contudo, se você disser agora que Azul com certeza vai ser libertado, é possível que ela mesma não saiba se deve ou não subir ao palco esta noite. Ela é dada a decisões inesperadas.”

       “O que você sugere?”

       “Eu sei que vocês deram esse golpe não apenas por motivos políticos, mas também por uma questão de beleza e em nome da arte”, disse Ka. “Basta considerar a carreira de Sunay bei para ver que todo o seu envolvimento político foi motivado pela arte. Se o que se quer agora é ver isso como uma questão política trivial, não será preciso libertar Azul e se expor a um grande perigo. Mas ao mesmo tempo você sabe muito bem que uma peça na qual Kadife descobre a cabeça aos olhos de toda a Kars não será um mero triunfo artístico; terá também profundas conseqüências políticas.”

       “Se ela está mesmo disposta a descobrir a cabeça, vamos soltar Azul , decidiu Çolak. “Mas temos de dar um jeito para que toda a cidade veja a peça.”

       Sunay abraçou seu velho companheiro do exército e beijou-o. Depois que o coronel saiu da sala, ele tomou Ka pela mão e levou-o para outro aposento da casa. “Quero contar isso a minha mulher!” Eles entraram numa sala sem nenhuma mobília, ainda fria apesar do aquecedor elétrico ligado a um canto, e lá estava Funda Eser numa pose dramática, lendo o script. Ela viu Sunay e Ka olhando-a através da porta aberta mas continuou a ler com a mesma tranqüilidade. Espantado com o pó cosmético que lhe enegrecia as pálpebras, os grossos lábios pintados de batom vermelho, os grandes seios que por pouco não saltavam do decote, Ka não conseguiu entender o que ela estava dizendo.

       “É o trágico monólogo da mulher violentada, cheia de rancor, de A tragédia espanhola, de Thomas Kyd”, disse Sunay com orgulho, “com algumas alterações inspiradas em A alma boa de Setsuan, de Brecht, embora a maioria das mudanças seja fruto de minha própria imaginação. Quando Funda disser essa fala esta noite, Kadife ainda não terá criado coragem para descobrir a cabeça, mas vai usar a ponta do manto para enxugar as lágrimas dos olhos.”

       “Se Kadife Hanim estiver pronta, podemos começar os ensaios imediatamente.”

       O desejo que transparecia no seu tom de voz não apenas deixava claro para Ka quanto Eser amava o teatro, mas também o fazia lembrar do argumento sempre usado pelos que queriam negar a Sunay a oportunidade de interpretar Atatürk — o de que Funda era lésbica. Parecendo menos o soldado da revolução que o orgulhoso produtor de teatro, Sunay estava explicando à sua mulher que Kadife ainda não resolvera todas as questões referentes à decisão de “aceitar o papel”, quando um ordenança veio avisar que Serdar bei acabara de chegar.

       Quando se viu frente a frente com o proprietário da Gazeta da Cidade Fronteiriça, Ka sentiu um impulso que lhe era desconhecido desde a época em que ainda vivia na Turquia: por um instante se sentiu tentado a dar um soco na cara de Serdar bei. Mas agora que eles davam as boas-vindas àquele homem, oferecendo-lhe uma bela refeição com queijo e raki, ficou claro para Ka que esses ímpetos não tinham lugar na mesa de líderes revolucionários que se acomodavam com a tranqüila confiança daqueles para os quais já se tornou uma segunda natureza decidir o destino de outras pessoas.

       Enquanto comiam e bebiam, discutiam os negócios do mundo com implacável impudência. A pedido de Sunay, Ka repetiu para Funda Eser o que havia dito sobre arte e política. Quando viu o quanto aquelas palavras a instigavam, o jornalista disse que gostaria de escrevê-las para usá-las em um artigo futuro, mas Sunay, com dureza, colocou-o novamente em seu lugar. Primeiro ele tinha de corrigir as mentiras que publicara sobre Ka na edição daquele dia. E logo Serdar bei prometeu editar um novo artigo de primeira página que teria o efeito, assim ele esperava, de fazer os desmemoriados leitores de Kars esquecerem que foram estimulados a pensar mal de Ka.

       “E a manchete deve mencionar a peça que vamos apresentar esta noite”, disse Funda Eser.

       Serdar bei prometeu publicar o artigo que eles queriam; eles podiam ditar cada detalhe, e até indicar as dimensões da manchete. Mas como ele não entendia muito de teatro clássico e moderno, seria melhor se Sunay descrevesse a peça da noite com suas próprias palavras — isto é, se o próprio Sunay escrevesse o artigo, só para garantir que a primeira página do dia seguinte seria cem por cento correta. Ele lembrou a todos que, durante quase toda a sua carreira, escrevera sobre eventos ainda por acontecer: podia-se dizer que aquele era seu forte. Mas eles ainda dispunham de quatro horas. Eles estavam agindo de acordo com um horário especial, regulado pela lei marcial, por isso a edição não seria fechada até as quatro horas daquela tarde.

       “Não precisarei de muito tempo para lhe dar detalhes da performance”, disse Sunay. Não fazia muito tempo que eles estavam à mesa, e ele já bebera um copo de raki, como notou Ka. Quando ele bebeu de um trago o segundo copo, Ka viu o brilho da dor e da paixão em seus olhos.

       “Escreva o seguinte, senhor Jornalista!” Sunay gritava, lançando a Serdar bei um olhar feroz, como se fizesse uma ameaça. “A manchete deve ser a seguinte: MORTE NO PALCO.” Ele parou para pensar. “E então vem outra manchete logo abaixo, em tipo menor: O ILUSTRE ATOR SUNAY ZAIM MORTO A TIROS DURANTE A PERFORMANCE DE ONTEM.”

       Ele falava com uma intensidade que Ka não pôde deixar de admirar. Ka ouvia sem sorrir e com absoluto respeito, e só falava quando Serdar precisava de ajuda para entender as palavras de Sunay.

       De vez em quando Sunay parava para refletir sobre o que acabava de dizer e arejar as idéias com outro raki, por isso levou uma hora para terminar o artigo. Em minha visita a Kars, quatro anos depois, consegui a versão final do texto.

MORTE NO PALCO

O ILUSTRE ATOR SUNAY ZAIM MORTO A TIROS DURANTE A PERFORMANCE DE ONTEM

ONTEM, QUANDO ATUAVA NUMA PEÇA HISTÓRICA NO

TEATRO NACIONAL, KADIFE, A JOVEM DO MANTO, CHOCOU O PÚBLICO PRIMEIRO AO DESCOBRIR A CABEÇA NUM MOMENTO DE EXALTAÇÃO ILUMINISTA, DEPOIS AO APONTAR UMA ARMA PARA SUNAY ZAIM, O ATOR QUE FAZIA O PAPEL DE VILÃO, E ATIRAR NELE. SUA ATUAÇÃO, TRANSMITIDA AO VIVO, DEIXOU O POVO DE KARS

TRÊMULO, HORRORIZADO.

   Na noite de terça-feira, a companhia de teatro de Sunay Zaim surpreendeu o povo de Kars com uma noitada de peças revolucionárias originais que deram lugar a uma ação revolucionária real diante de seus olhos. Na noite passada, durante sua segunda apresentação, os atores de Sunay Zaim chocaram-nos mais uma vez. Desta vez o instrumento foi a adaptação de uma peça escrita por Thomas Kyd, um teatrólogo inglês subestimado do século XVI, que não obstante se diz ter influenciado a obra de Shakespeare. Sunay Zaim — que passou os últimos vinte anos fazendo turnês pelas cidadezinhas remotas da Anatólia, ocupando seus palcos vazios e levando cultura para suas casas de chá — levou seu amor ao teatro ao clímax na cena final. Num momento de excitação despertada por essa ousada peça moderna que presta um tributo ao teatro jacobino francês e ao teatro jacobita inglês, Kadife, a resoluta líder das jovens que usam manto, descobriu a cabeça diante de todos e, enquanto o povo de Kars olhava espantado, ela sacou uma arma e descarregou-a em Sunay Zaim, o ilustre ator que representava o vilão e cujo nome, como o de Kyd, ficou esquecido por muito tempo. O drama real fez lembrar os espectadores da performance de dois dias antes, em que as balas que cruzavam o palco se revelaram verdadeiras, e foi então com a terrível consciência de que aquelas também eram balas verdadeiras que o povo de Kars viu Sunay cair. Para o público, a morte do grande ator turco foi mais perturbadora que a própria vida. Embora o povo de Kars não ignorasse que a peça era sobre uma pessoa que se libertava da tradição e da opressão religiosa, não conseguia aceitar que Sunay Zaim estava morrendo de fato, mesmo quando as balas entravam em seu corpo e o sangue esguichava dos ferimentos. Mas não lhes foi difícil entender as últimas palavras do ator, e nunca haverão de esquecer que ele sacrificou a vida pela Arte.

       Quando Sunay fez os últimos ajustes, Serdar leu o texto final para os presentes. “Se vocês o aprovaram, vou publicá-lo palavra por palavra na edição de amanhã”, disse ele. “Mas em todos esses anos em que venho redigindo notícias antes que elas aconteçam, é a primeira vez que torço para que uma não se concretize! O senhor não vai morrer de verdade, vai?”

       “O que estou tentando fazer é levar as verdades da arte ao seu mais extremo limite, para me confundir com o Mito”, disse Sunay. “De qualquer forma, quando a neve se fundir amanhã e as estradas reabrirem, minha morte já não terá a mínima importância.”

       Por um instante o olhar de Sunay cruzou com o de Funda. Vendo quão profundamente os dois se entendiam, Ka sentiu uma pontada de inveja. Será que algum dia ele e Ipek aprenderiam a partilhar suas almas daquela maneira ou atingir uma felicidade tão profunda?

       “Caro senhor Jornalista, chegou a sua hora de ir embora; nosso trabalho está feito, então, por favor, prepare as máquinas impressoras”, disse Sunay. “Dada a importância histórica dessa edição, vou providenciar para que meu ordenança lhe forneça um negativo de minha fotografia.” Tão logo Serdar bei saiu, Sunay abandonou o tom zombeteiro que Ka atribuíra ao excesso de raki. “Eu aceito as condições de Azul e de Kadife”, disse ele. Então voltou-se para Funda, cujas sobrancelhas se ergueram quando ele explicou que Kadife só descobriria a cabeça no palco depois que Azul fosse solto.

       “Kadife Hanim é uma mulher muito corajosa. Tenho certeza de que nos entenderemos quando começarmos os ensaios”, disse Funda Eser.

       “Vocês podem ir ao encontro dela juntos”, disse Sunay. “Mas primeiro Kadife deve estar convicta de que Azul foi libertado e de que ninguém o seguiu até o esconderijo. E isso leva tempo.”

       Então, ignorando o desejo de Funda Eser de começar os ensaios com Kadife imediatamente, Sunay voltou-se para Ka e passou a discutir a melhor forma de libertar Azul. Pelo que pude sentir examinando suas anotações sobre essa reunião, Ka ainda estava acreditando nas promessas de Sunay. Em outras palavras, Ka não achava que Sunay iria mandar seguir Azul até o esconderijo depois de tê-lo solto, para depois recapturá-lo logo que Kadife descobrisse a cabeça no palco. E provável que esse plano secreto tenha aflorado lentamente, e que na verdade tenha sido concebido pela polícia secreta, que continuava colocando microfones por toda parte e esforçando-se para decifrar as informações fornecidas por seus agentes duplos, na esperança de estar sempre um passo à frente de todo mundo.

       Talvez eles estivessem manipulando até o coronel Osman Nuri Çolak em seu próprio proveito. A polícia secreta sabia que estavam em menor número — enquanto Sunay, o coronel mal-humorado e o pequeno grupo de oficiais de mesma mentalidade estivessem à frente do exército, não havia a menor chance de o MIT assumir o controle da revolução — não obstante, eles tinham homens por toda parte, fazendo todo o possível para manter as maluquices “artísticas” de Sunay dentro de certos limites. Antes que o artigo inspirado pelo raki fosse para a composição, Serdar bei o lera no walkie-talkie para seus amigos do MIT de Kars, causando grande consternação e não pouca preocupação com o equilíbrio e a saúde mental de seu autor. Quanto ao plano de Sunay de libertar Azul, até o último instante não se sabia ao certo em que medida o MIT estava informado.

       Hoje eu diria que esses detalhes não vêm ao caso para o final de nossa história, por isso não vou me demorar em pormenores do plano de libertação de Azul. Basta dizer que Sunay e Ka resolveram deixar a tarefa a cargo de Fazil e do ordenança de Sunay, natural da cidade de Sivas. Quando obteve da polícia secreta o endereço de Fazil, Sunay lá mandou um caminhão do exército. Dez minutos depois eles o trouxeram. Agora seu rosto estava transtornado pelo medo, e Ka já não podia confundi-lo com Necip. Logo ficou decidido que ele e o ordenança deveriam dirigir-se à guarnição do exército no centro da cidade; eles saíram imediatamente da oficina pela porta dos fundos, despistando os detetives que os seguiam. Isso foi possível porque, embora os agentes do MIT desconfiassem seriamente de Sunay e quisessem a todo custo evitar que ele fizesse algum mal irreparável, deixaram-se surpreender de tal forma pela marcha precipitada dos acontecimentos que ainda não tinham postado um guarda em cada saída.

       Assim, o plano prosseguiu, e a garantia dada por Sunay de que não haveria traição se manteve: Azul foi retirado de sua cela e colocado num caminhão do exército, e o ordenança de Sivas dirigiu o veículo diretamente à ponte de Ferro, sobre o rio Kars; com o caminhão estacionado na margem próxima, Azul seguiu confiantemente as instruções que recebera; foi direto a uma mercearia com vitrines cobertas de cartazes anunciando ofertas de embutidos temperados com alho; ele saiu pelos fundos, onde uma carroça o esperava. Cobrindo-se com a lona e acomodando-se entre os bujões de gás, ele foi levado para uma casa segura. Ka só seria informado disso depois. A única pessoa a saber o destino da carroça era Fazil.

       Essa operação levou uma hora e meia. Lá pelas três e meia, quando as negras silhuetas dos oleandros e das nogueiras se apagavam, desaparecendo como fantasmas, e a escuridão começava a descer sobre as ruas desertas de Kars, Fazil veio dizer a Kadife que Azul já estava em seu esconderijo. Da porta da cozinha ele olhou para Kadife como se tivesse acabado de chegar do espaço sideral; Kadife, porém, como sempre fizera com Necip, não tomou conhecimento dele: correu escada acima, não cabendo em si de contente. Ipek estava saindo do quarto de Ka, onde ficara durante uma hora. Fora uma hora de gozo absoluto, e o coração do meu amigo exultava como nunca ante a perspectiva da felicidade que o esperava — como tentarei mostrar nas primeiras páginas do próximo capítulo.

 

  1. O único script que temos esta noite são os cabelos de Kadife

Preparativos para a peça que deve pôr fim a todas as peças

       Como já disse, Ka sempre se furtara à felicidade, temendo o sofrimento que dela poderia advir, portanto já sabemos que suas emoções intensas não eram as que sentia quando estava feliz mas quando dominado pela certeza de que essa felicidade estava prestes a se acabar. Quando se levantou da mesa de raki de Sunay e voltou para o Hotel Palácio de Neve acompanhado dos dois guarda-costas do exército, Ka ainda acreditava que tudo corria como previsto, e a perspectiva de ver Ipek o enchia de alegria, ainda que o medo rapidamente invadisse sua alma.

       Quando meu amigo, tempos depois, fez referência ao poema que escreveu por volta das três da tarde de terça-feira, deixou claro que sua alma vacilava entre esses dois antípodas, por isso acho ser meu dever transmitir o que ele contou. O poema, ao qual Ka deu o título de “Cão”, parece ter sido inspirado por outro encontro casual com o cão preto sem dono, desta vez quando voltava da oficina. Quatro minutos depois, ele estava no quarto escrevendo o poema, e por maior que fosse sua esperança de felicidade àquela ocasião, o medo da perda espalhava-se rapidamente pelo seu corpo como um veneno: o amor e o medo se equivaliam. O poema fala do grande medo que sentia quando, aos seis anos de idade, os cães sem dono latiam para ele no parque Maçka, e de um vizinho cruel que vivia soltando o cachorro para acossar os transeuntes. Já adulto, Ka veio a considerar esse medo de cães uma espécie de punição pelas muitas horas de felicidade que conhecera em criança. Mas não lhe passava despercebido um paradoxo subjacente a tudo aquilo: o céu e o inferno estavam no mesmo lugar. Nas mesmas ruas em que jogava futebol, colhia amoras e colecionava as figurinhas de jogadores de futebol que vinham com as gomas de mascar. Era justamente porque os cães transformavam o ambiente desses folguedos infantis num verdadeiro inferno que ele sentia as alegrias tão intensamente.

       Sete ou oito minutos depois de saber da chegada de Ka ao hotel, Ipek foi ao seu quarto. Levando-se em conta que ela talvez não tivesse certeza da chegada de Ka, e que ele não lhe enviara nenhum recado, era um atraso muito pequeno; pela primeira vez, eles se encontraram sem que Ka tivesse imaginado motivos sombrios para seu atraso, e tampouco chegara à conclusão de que ela o abandonara. Aquilo aumentou ainda mais a felicidade de Ka. E o que era melhor: o rosto de Ipek também irradiava felicidade. Ka lhe contou que seus planos corriam às mil maravilhas, e Ipek lhe disse que o mesmo acontecia com ela. Ela perguntou por Azul, e Ka lhe disse que estava prestes a ser libertado. Ipek exultou com a notícia, da mesma forma como se alegrara quando ele lhe contou todas as outras coisas. Não lhes bastava a certeza de que tudo estava indo bem para eles; tinham de acreditar também que todo o sofrimento à sua volta tinha sido eliminado, para evitar que lançasse uma sombra sobre sua própria felicidade.

       Apesar dos intermináveis abraços e beijos impacientes, eles evitaram voltar para a cama e fazer amor. Ka disse a Ipek que, uma vez em Istambul, eles conseguiriam um visto para a Alemanha em um dia; ele tinha um amigo no consulado. Precisavam casar-se imediatamente para se habilitar, mas podiam fazer a cerimônia e a celebração mais tarde, caso o desejassem. Eles discutiram a possibilidade de Kadife e Turgut bei se reunirem a eles em Frankfurt, quando tivessem resolvido sua situação em Kars, e Ka chegou a dizer os nomes de alguns hotéis onde poderiam se hospedar; suas mentes fervilhavam com tantos sonhos que eles se sentiram um pouco envergonhados. Ipek mudou o tom de voz para falar dos temores do pai, principalmente o medo de homens-bomba, e contou também que recomendara a ele que evitasse a todo custo sair à rua novamente. Então, depois de combinar que iriam pegar o primeiro ônibus logo que a neve derretesse, passaram um bom tempo à janela, de mãos dadas, olhando as estradas das montanhas cobertas de gelo.

       Ipek disse que já começara a fazer a malas. Ka recomendou-lhe que não levasse nada, mas Ipek tinha muitos tesouros que trazia consigo desde a infância, coisas tão queridas que ela não conseguia imaginar a vida sem elas. Ainda diante da janela, avistaram o cão que inspirara o poema de Ka, entrando e saindo de seu campo de visão. A pedido de Ka, Ipek enumerou as coisas que não podia deixar de levar: um relógio de pulso que em criança ganhara da mãe em Istambul, agora ainda mais precioso, visto que Kadife perdera o que ganhara na mesma ocasião; um suéter angorá azul-gelo que seu falecido tio lhe trouxera da Alemanha, uma peça de alta qualidade mas tão justa no corpo que ela nunca pôde usá-la em Kars; uma toalha de mesa de seu enxoval, trabalhada por sua mãe com fios de prata, que Muhtar sujara de marmelada na primeira vez em que ela usou — o que explica por que não houve uma segunda vez; dezessete frascos de perfume e de álcool que ela começara a colecionar sem nenhum propósito especial e que agora achava que traziam sorte; fotografias dela própria quando criança, no colo dos pais (quando ela as mencionou, Ka quis vê-las); o belo vestido de noite de veludo preto que Muhtar comprara para ela em Istambul, com um decote nas costas tão profundo que ele só lhe permitia vesti-lo em casa; o xale bordado de cetim sedoso que ela comprara para cobrir o decote, na esperança de um dia fazer Muhtar mudar de idéia; os sapatos de camurça que nunca foram usados por receio de que a lama de Kars os estragasse; o colar com um jade que ela pôde lhe mostrar porque estava à mão.

       Espero que meus leitores não me acusem de fugir ao assunto se lhes disser que, exatamente quatro anos depois, Ipek estava sentada bem à minha frente, num jantar oferecido pelo prefeito de Kars, usando ao pescoço, suspenso num cordão de seda preto, o mesmo jade imponente. Bem ao contrário, estamos nos aproximando do cerne da questão: Ipek era de uma tal beleza que nem eu nem vocês que acompanham esta história por meu intermédio poderíamos imaginar. Naquele jantar, em que a vi pela primeira vez, devo confessar ter ficado atordoado, deslumbrado e com profundo ciúme. E quando aquela paixão me dominou, os poemas perdidos de meu querido amigo, cujo mistério tentara elucidar, assumiram um caráter totalmente diferente. Foi naquele momento assombroso que devo ter resolvido escrever o livro que você tem em mãos agora, mas na ocasião minha alma não se deu conta dessa decisão. Eu estava totalmente entregue àqueles sentimentos que as mulheres de uma beleza excepcional nunca deixam de inspirar; contemplando aquela perfeição à minha frente, sentia-me esmagado, sentia-me possesso. Agora, quando me lembro das manobras evidentes das outras pessoas de Kars que estavam à mesa — manobras que eu, tolamente, supus terem o objetivo de trocar algumas palavras com aquele romancista que viera à cidade, ou de conseguir assunto para as fofocas do dia seguinte —, fica claro para mim que todo o seu palavreado tinha apenas um objetivo: colocar um véu sobre a beleza de Ipek, escondendo-a não apenas de mim, mas deles próprios. Um terrível ciúme me corroia, e eu temia que se transformasse em amor: por um instante, exatamente como meu amigo Ka, também sonhei em conquistar a simpatia de uma mulher tão bonita. Por um instante me permiti esquecer a minha tristeza com o fato de a vida de Ka ter resultado em nada, e terminei por me pegar pensando: só um homem com uma alma profunda como a sua poderia conquistar o coração de uma mulher como esta! Teria eu uma mínima chance de seduzir Ipek e levá-la comigo para Istambul? Eu lhe teria proposto casamento imediatamente ou, se ela preferisse, a tornaria minha amante secreta até o dia em que a situação ficasse insustentável, mas de qualquer modo eu queria morrer ao seu lado! Ela tinha uma fronte ampla e imperiosa, olhos úmidos, lábios graciosos tão parecidos com os da atriz de cinema Melinda que eu mal ousava olhar para eles. O que, me perguntava eu, ela pensava de mim? Será que algum dia meu nome fora citado numa conversa entre ela e Ka? Mesmo sem outro golinho de raki, minha cabeça girava, meu coração batia descompassado. Então eu vi Kadife sentada um pouco mais adiante e lançando-me olhares furiosos. Tenho de voltar à minha história.

       Enquanto estavam diante da janela, Ka pegou o colar de jade, colocou-o no pescoço de Ipek e, dando-lhe um terno beijo, recitou tranqüilamente as palavras que logo se tornavam uma fórmula encantatória: eles iriam ser felizes na Alemanha. No mesmo instante Ipek viu Fazil entrar no pátio; ela esperou um momento e desceu para o térreo, onde encontrou Kadife sozinha, no vão da porta da cozinha; deve ter sido ali que ela recebeu a notícia da libertação de Azul. As duas jovens subiram para seu quarto. Não tenho idéia do que elas conversaram ou fizeram. Ka ainda estava em seu quarto, o coração tão pleno de seus poemas e de sua nova fé no amor que, pela primeira vez, a parte de sua mente que se mantinha atenta às idas e vindas das irmãs pelo hotel — às vezes de modo acurado, às vezes de forma fantasiosa — relaxou e deixou-as entregues a si mesmas.

       Como mais tarde eu haveria de descobrir, foi àquela altura que o serviço meteorológico anunciou os primeiros sinais claros de degelo. O sol brilhara o dia inteiro, e agora os pingentes de gelo que pendiam das árvores e dos beirais começavam a gotejar e depois a cair. E antes de qualquer boletim meteorológico começaram os boatos que corriam a cidade inteira: as estradas se abririam naquela noite, e o golpe chegaria ao fim. As pessoas que se lembravam bem dos acontecimentos daquela noite me disseram que foi logo depois do boletim meteorológico que a televisão de Kars transmitiu o primeiro anúncio da nova peça que a companhia teatral de Sunay Zaim iria apresentar à noite no Teatro Nacional. Foi Hakan Özge, o jovem apresentador de televisão mais popular de Kars, quem garantiu ao povo da cidade que os episódios sangrentos de dois dias antes não deviam atemorizar ninguém nem servir de pretexto para o não-comparecimento; as forças de segurança estariam a postos de ambos os lados do palco, e como o teatro estaria aberto ao público em geral, o povo de Kars seria muito bem-vindo e poderia trazer toda a família. O efeito dessas garantias foi atiçar o medo das pessoas e esvaziar as ruas mais cedo do que de costume. Todos estavam certos de mais uma noite de violência e loucura no Teatro Nacional, por isso — à exceção da eterna legião de vagabundos de olhar alucinado, dispostos a assistir a qualquer coisa só para dizer que assistiram (cujas hostes compreendiam jovens desempregados sem objetivo na vida, esquerdistas entediados propensos à violência, velhos de dentadura tão desesperados por um pouco de diversão que pouco lhes importava se dali resultasse alguma morte e leais seguidores de Kemal que tinham visto Sunay na televisão e admiravam seus pontos de vista republicanos) — a maioria dos habitantes de Kars resolveu ficar em casa e assistir à transmissão ao vivo pela televisão. Nesse meio-tempo, Sunay e o coronel Osman Nuri Çolak reuniram-se novamente; temendo que o Teatro Nacional ficasse vazio, eles ordenaram que se enviassem caminhões do exército para recolher os rapazes da escola secundária religiosa; deram ordens também para que todos os estudantes de todos os liceus, todos os professores e funcionários do governo da cidade fossem informados de que estavam obrigados a comparecer ao teatro de terno e gravata.

       Depois da reunião, muitos viram Sunay deitado nos fundos da oficina numa pequena esteira empoeirada, rodeado de retalhos de tecido, papéis de embrulho e caixas vazias. Aquilo não era resultado de uma bebedeira. Havia anos Sunay se convencera de que colchões macios lhe deixariam o corpo flácido, por isso adquirira o hábito de tirar uma soneca num colchão duro antes de qualquer atuação que julgasse importante. Antes de se deitar, porém, teve uma briga com a mulher por causa do script, que ainda estava por finalizar, por isso ele a colocou num caminhão do exército e mandou-a ao encontro de Kadife no Hotel Palácio de Neve para começar os ensaios.

       Funda Eser entrou saracoteando no Hotel Palácio de Neve como uma mulher para a qual todas as portas estão abertas; ela foi direto ao quarto das irmãs, e posso lhes dizer que o tom caloroso e delicado com que, sem o menor esforço, ela criou uma atmosfera de intimidade feminina deu mais provas de sua grandeza do que a apresentação daquela noite lhe daria a chance de demonstrar. Certamente seus olhos deveriam estar fitos na beleza cristalina de Ipek, mas sua mente estava no papel que Kadife iria desempenhar naquela noite.

       Parece-me que a alta conta em que tinha aquele papel derivava da importância que o marido lhe atribuía, porque durante os vinte anos que ela passara percorrendo a Anatólia interpretando mulheres maltratadas e violentadas, ela nunca tivera outro objetivo ao interpretar a vítima senão o de excitar os homens da platéia. Casamentos, divórcios, cobrir cabeças ou deixá-las descobertas — não passavam de pretextos para apresentá-la na posição de vítima para excitar os homens da platéia — e embora seja impossível dizer se ela entendia plenamente seus papéis nos dramas que celebravam a ilustração republicana, temos de admitir que os dramaturgos homens que criaram aqueles estereótipos não tinham uma compreensão mais sutil e mais profunda do que a dela, no que tange ao erotismo das personagens femininas e às funções sociais da mulher. E ela usava aqueles papéis em sua vida fora do palco, e num grau de refinamento de que os dramaturgos não tinham a menor noção.

       Pouco depois de entrar no quarto das irmãs, Funda já pôde sugerir a Kadife que elas ensaiassem a cena na qual ela descobriria a cabeça, mostrando seus belos cabelos. Kadife se fez de rogada, mas não por muito tempo; quando ela soltou os cabelos fartos, Funda soltou um grito de admiração, comentando quão saudáveis e brilhantes eram e que não conseguia tirar os olhos deles. Fazendo que Kadife se sentasse diante do espelho, ela pegou um pente que imitava marfim e, passando-o devagar nos cabelos da jovem, explicou que o essencial do teatro não estava nas palavras mas nas imagens. “Deixe que seus cabelos falem por si sós, e os homens vão enlouquecer!”, disse ela.

       Aquela altura a cabeça de Kadife já estava a mil, por isso Funda beijou os cabelos da jovem para acalmá-la. Ela era inteligente o bastante para perceber que aquele beijo despertou o mal adormecido que Kadife trazia dentro de si, e experiente o bastante para fazer que Ipek também entrasse no jogo. Tirando uma garrafinha da bolsa, começou a colocar conhaque nas xícaras de chá que Zahide lhes trouxera. Quando Kadife esboçou uma reação contrária, Funda troçou dela dizendo: “Mas hoje à noite você vai descobrir a cabeça!”. Kadife debulhou-se em lágrimas, e Funda lhe deu vários beijinhos nas faces, no pescoço, nas mãos. Então, para distrair as jovens, recitou o que ela chamou de obra-prima desconhecida de Sunay: “A declaração da Aeromoça Inocente”. Isso, porém, longe de diverti-las, afligiu-as ainda mais. Quando Kadife disse que queria estudar o script, Funda declarou: “O único script que temos esta noite são os cabelos de Kadife”, o momento em que todos os homens de Kars contemplassem, aturdidos, sua longa, bela e radiante cabeleira. As mulheres da platéia ficariam tão cheias de amor e de inveja que teriam vontade de tocá-la.

       Enquanto dizia essas palavras, Funda enchia e tornava a encher as xícaras com conhaque. Ela disse que quando olhava o rosto de Ipek via felicidade, e quando olhava o de Kadife via coragem e impetuosidade. Mas ela não saberia dizer qual das duas era mais bonita.

       Funda Eser continuou nesse humor divertido até o momento em que Turgut bei, rosto rubicundo, precipitou-se na sala. “Acabaram de anunciar na televisão que Kadife, a líder das jovens do manto, vai descobrir a cabeça no espetáculo desta noite”, disse ele. “Responda-me por favor: é verdade?”

       “Vamos ver televisão”, disse Ipek.

       “Por favor, permita-me apresentar-me, senhor”, disse Funda Eser. “Sou a parceira de toda a vida do ilustre ator e recém-empossado estadista Sunay Zaim, e meu nome é Funda Eser. Gostaria de parabenizá-lo por ter educado essas duas jovens tão maravilhosas e distintas. Graças à heróica decisão de Kadife, devo informá-lo de que nada tem a temer.”

       “Se minha filha fizer isso, os fanáticos religiosos desta cidade nunca a perdoarão!”, exclamou Turgut bei.

       Todos passaram à sala de jantar, para assistirem à televisão. Funda Eser tomou Turgut bei pela mão e disse-lhe alguma coisa que encerrava a promessa, em nome de seu marido, a autoridade máxima da cidade, de que tudo se daria de acordo com o plano. Ouvindo vozes na sala de jantar, Ka veio juntar-se a eles, quando então Kadife, radiante, informou-o da libertação de Azul. Sem esperar que Ka perguntasse, declarou pretender manter a promessa que lhe fizera de manhã, e que ela e Funda estavam se preparando para ensaiar a peça. Como todos estavam de olhos, fixos na televisão e falando ao mesmo tempo, Funda Eser empenhou-se em seduzir Turgut bei, para evitar que ele se opusesse à participação de Kadife na peça.

       Ka sempre haveria de rememorar aquele interlúdio de dez minutos como um dos mais felizes de sua vida. Agora ele estava absolutamente livre de quaisquer dúvidas sobre a felicidade que teria até o fim da vida, e se pôs a se imaginar romanticamente como parte daquela alegre família. Ainda não eram quatro horas, mas, como se uma apaziguadora recordação de infância tivesse descido sobre a sala de jantar de pé-direito alto, com paredes revestidas de papel de cores outrora vivas, Ka sorria, o olhar perdido no fundo dos olhos de Ipek.

       Ao ver Fazil de pé à porta, Ka apressou-se em empurrá-lo de volta à cozinha e, antes que o rapaz pudesse estragar a alegria geral, tentou arrancar-lhe algumas informações. Mas Fazil resistiu: ele insistiu em ficar no vão da porta, fingindo olhar a imagem na tela da televisão, mas na verdade lançando um olhar furioso ao grupo animado diante do aparelho. Vendo que Ka estava tentando levar o rapaz para a cozinha, Ipek foi até eles.

       “Azul quer falar com você mais uma vez”, disse Fazil, e seu tom de voz não deixava dúvidas de que ele estava feliz em poder estragar a festa. “Ele mudou de idéia sobre uma coisa.”

       “Sobre o quê?”

       “Ele mesmo vai lhe dizer. A carroça vem pegar você no pátio dentro de dez minutos”, disse ele, saindo da cozinha e dirigindo-se ao pátio.

       O coração de Ka disparou. Não era apenas relutância em pôr os pés fora do hotel mais uma vez naquele mesmo dia; ele temia também que sua covardia o traísse.

       “Por favor, em nenhuma hipótese, não vá!”, exclamou Ipek, dando voz aos pensamentos de Ka. “Afinal de contas, agora eles sabem sobre a carroça. Nada de bom pode sair daí.”

       “Não, eu vou”, disse Ka.

       Por que, dada a sua relutância, ele decidiu ir? Era um velho hábito. Na escola, toda vez que um professor fazia uma pergunta a que ele não sabia responder, ele sempre levantava a mão. Ele entrava numa loja e, ao encontrar o suéter perfeito, perversamente comprava algo nem de longe tão bonito e pelo mesmo preço, tendo plena consciência de que aquilo não fazia o menor sentido. Devia ser uma espécie de ansiedade que o fazia agir daquela maneira, ou talvez fosse o medo da felicidade. Eles subiram ao seu quarto, tomando cuidado para que Kadife não notasse. Ka desejou intensamente que Ipek se mostrasse imaginosa e inventasse alguma coisa que lhe permitisse demorar-se tranqüilamente no quarto. Enquanto, porém, eles ficaram olhando pela janela, Ipek só conseguia dizer as mesmas frases impotentes: “Não vá, meu amor; não saia de modo algum do hotel hoje; não ponha nossa felicidade em risco”.

       Ka a ouvia um tanto ausente, como um cordeiro no altar do sacrifício. Logo a carroça entrou no pátio: ele ficou chocado em ver quão rapidamente sua sorte mudara, e aquilo o encheu de dor. Sem parar para beijar Ipek, mas não se esquecendo de abraçá-la e de despedir-se, ele desceu ao térreo; seus dois guarda-costas estavam no saguão lendo os jornais, mas ele conseguiu passar por eles, entrar na cozinha, sair pela porta dos fundos, entrar na odiosa carroça e deitar-se novamente sob a lona.

       O leitor se sentirá tentado a superestimar esse momento — afinal de contas estamos nos aproximando rapidamente do ponto em que não será mais possível voltar, e aquela missão haveria de mudar a sua vida para sempre —, por isso me vejo na obrigação de adverti-lo contra a idéia de que a decisão de Ka de aceitar o convite de Azul foi o momento decisivo desta história. Com certeza não sou dessa opinião: Ka ainda não jogara todas as suas cartas. Ele ainda tinha tempo para fazer de sua visita a Azul uma manobra bem-sucedida, e teria outras oportunidades para corrigir os rumos e encontrar a “felicidade” — ou fosse lá o que ele entendesse por esse termo. Mas quando os acontecimentos desta história chegaram à sua conclusão, e todas as suas fichas já estavam perdidas, era para esse momento que Ka haveria de voltar os olhos, com um doloroso pesar e eterna curiosidade de saber como as coisas se teriam encaminhado se Ipek tivesse conseguido impedi-lo de sair. Ela devia ter dito alguma coisa para dissuadi-lo de seu propósito de ir ao encontro de Azul, mas mesmo tendo vasculhado o cérebro nos quatro anos seguintes, ele ainda não tinha idéia de que palavras teriam tido força para tanto.

       Quando voltamos à imagem de Ka escondido sob a lona, temos razão em considerá-lo um homem que se resignou ao seu destino. Ele lamentava estar ali; estava furioso consigo mesmo e com o mundo. Estava gelado, com medo de cair doente, e sabia que daquele encontro não podia resultar nada de bom. Ele prestava toda a atenção aos sons da rua e às coisas que as pessoas falavam à passagem da carroça, exatamente como na primeira viagem que fizera naquele veículo, mas dessa vez ele não estava nem um pouco interessado em saber para que parte de Kars a carroça o levava.

       Quando a carroça parou, o carroceiro o cutucou e Ka saiu de sob a lona; antes que tivesse tempo de ver onde estava, ele viu à sua frente um edifício decadente, como tantos outros em Kars, que pendia para um lado e cuja pintura descascava. No interior, ele subiu uma escada estreita e tortuosa até um patamar dois andares acima. (Num momento mais alegre, ele lembraria ter visto sapatos enfileirados ao lado de uma porta e os olhos brilhantes de uma criança olhando pela abertura.) A porta do apartamento se abriu, e ele se viu cara a cara com Hande.

       “Tomei minha decisão”, disse Hande com um sorriso. “Recuso-me a deixar de ser a jovem que realmente sou.”

       “Isso é importante para a sua felicidade.”

       “O que me faz feliz é estar aqui e fazer o que eu quero”, disse Hande. Já não me assusta sonhar que sou outra pessoa.”

       “Não é perigoso para você estar aqui?”

       “Sim, mas só nos momentos de perigo uma pessoa pode concentrar-se de verdade na vida”, disse Hande. “O que eu compreendo agora é que nunca vou conseguir concentrar-me em coisas em que não acredito, coisas como descobrir minha cabeça. Agora estou feliz em partilhar uma causa com Azul. Você poderia escrever poemas aqui?”

       Embora só se tivessem passado dois dias desde seu primeiro encontro, as lembranças de Ka da conversa que tiveram à mesa do jantar agora estavam tão distantes que por um momento ele se deixou ficar ali boquiaberto feito alguém desmemoriado. Até que ponto Hande queria chamar atenção para sua intimidade com Azul? A jovem abriu a porta da sala contígua, e Ka deu com Azul diante de uma televisão em preto-e-branco.

       “Eu sabia que você viria”, disse Azul. Ele parecia satisfeito.

       “Não tenho a menor idéia de por que estou aqui”, disse Ka.

       “Você está aqui por causa da agitação que há dentro de você”, disse Azul. Ele dava a impressão de saber tudo.

       Eles se encararam cheios de ódio. Nenhum dos dois ignorava que Azul estava muito satisfeito, ao passo que Ka sentia-se muito triste. Hande saiu da sala e fechou a porta.

       “Quero que você diga a Kadife que não se envolva no desastre que eles planejam encenar esta noite”, disse Azul.

       “Você não podia ter mandado um recado por Fazil?”, disse Ka. Pela expressão de Azul, Ka seria capaz de jurar que o outro não tinha a menor idéia de quem era Fazil, por isso acrescentou: “Fazil é o rapaz da escola secundária religiosa que me mandou aqui”.

       “Ah!”, exclamou Azul. “Kadife não o levaria a sério. Você é o único que ela leva a sério. E só quando ouvir isso de você ela vai entender a seriedade de minha decisão. E ela vai entender o porquê depois que vir a forma asquerosa como estão promovendo o evento na televisão.”

       “Quando saí do hotel, Kadife já estava começando a ensaiar”, disse Ka, satisfeito.

       “Então você pode lhe dizer que não podia me opor de forma mais terminante a essa performance! Kadife não decidiu por vontade própria descobrir a cabeça, ela o fez para me libertar. Ela foi obrigada a isso por um Estado que toma prisioneiros políticos como reféns, por isso não está obrigada a cumprir a palavra.”

       “Posso dizer-lhe tudo isso”, disse Ka, “mas não posso prever o que ela vai fazer.”

       “Em outras palavras, se Kadife resolver agir nesse caso à sua maneira, você não é responsável; é isso o que você está tentando me dizer, não é?” Ka não disse nada. “Então deixe-me esclarecer o seguinte: se Kadife subir ao palco esta noite e descobrir a cabeça, você também será responsabilizado. Você está envolvido nesta história em cada uma das etapas.”

       Pela primeira vez desde sua chegada a Kars, Ka sentiu a paz da retidão: finalmente o vilão estava falando como um vilão, dizendo todas as vilezas próprias dos vilões, e isso clareou a sua mente. “Você tem razão em se considerar um refém!”, disse ele esperando acalmar Azul, enquanto imaginava como poderia sair daquele lugar sem enfurecê-lo ainda mais.

       “Entregue-lhe esta carta”, disse Azul passando-lhe um envelope. “Kadife pode não acreditar num recado não escrito. E um dia, quando você encontrar o seu caminho de volta para Frankfurt, espero que encontre também uma forma de fazer com que Hans Hansen publique o manifesto que fez tantas pessoas se arriscarem para assinar.”

       “Claro.”

       Havia alguma coisa na expressão de Azul que traía frustração. Ele se mostrara muito mais descontraído naquela manhã, em sua cela, esperando a execução. Agora que conseguira se salvar, já pensava no futuro com raiva, angustiado em saber que nunca conseguira fazer nada na vida a não ser gerar mais raiva. Ka demorou a perceber que Azul via o que Ka era capaz de ver.

       “Não importa onde você viva, aqui ou em sua querida Europa, você sempre os imitará, você estará sempre se rebaixando.”

       “Se isso me fizer feliz, é a única coisa que me importa.”

       “Agora vá embora!”, gritou Azul. “E fique sabendo de uma coisa: quem busca apenas a felicidade nunca a encontra.”

 

  1. Eu não trouxe você aqui para assustá-lo

Uma visita forçada

       Ka ficou satisfeito em afastar-se de Azul, mas ao mesmo tempo se dava conta de que entre eles agora havia um vínculo, ainda que nocivo. Não era um vínculo simples — nele havia muito mais do que medo e ódio —, pois ao fechar a porta atrás de si Ka percebeu que sentiria falta daquele homem. Então apareceu Hande, cheia de boas intenções e de idéias profundas, e embora Ka tentasse descartá-la como uma pessoa ingênua e mesmo simplória, ele logo se viu cedendo terreno a ela na conversa. Olhos bem abertos, Hande lhe pediu que mandasse lembranças a Kadife e lhe dissesse que pouco importava o que ela decidisse sobre a questão de descobrir a cabeça na televisão (ela não disse no palco; ela disse televisão); o coração de Hande estaria com Kadife, independentemente do que ela fizesse. Depois de dizer isso, Hande explicou a Ka como sair do edifício sem chamar a atenção dos policiais à paisana.

       Ka saiu do edifício em pânico; no patamar do primeiro andar sentiu que lhe vinha um poema, então sentou-se no primeiro degrau, diante dos sapatos enfileirados de ambos os lados da entrada e, tirando o caderno do bolso, começou a escrever.

       Era o décimo oitavo poema que Ka escrevera desde sua chegada a Kars; o assunto do poema era a relação entre amor e ódio, mas se ele não tivesse explicado a alusão nas notas que escreveria mais tarde, ninguém conseguiria atinar com aquilo. De acordo com suas anotações, quando ele freqüentava o colégio Sisli, conheceu um menino cuja família era dona de uma próspera construtora. O menino, que vencera um torneio de equitação balcânico, era muito mimado, mas Ka ficou fascinado com seu ar de independência. Havia um outro — cuja mãe, uma bielo-russa, fora colega de liceu da mãe de Ka — que cresceu sem pai, irmãs ou irmãos e que começou a usar drogas ainda quando estudante. Embora aquele garoto enigmático, de rosto pálido, parecesse não se importar com ninguém, a certa altura ficou evidente que sabia tudo sobre as pessoas à sua volta. Finalmente, à época em que Ka fazia treinamento militar em Tuzla, conheceu um rapaz bonito, de poucas palavras e muito instruído que o aborrecia incansavelmente com pequenos atos de crueldade (como esconder seu quepe, por exemplo). Ka estabelecera um vínculo com cada um deles, que se traduzia num desprezo ostensivo e uma admiração secreta. O título do poema, “Inveja”, aludia ao sentimento que aproximava e mantinha juntas essas duas emoções contraditórias e que obrigava Ka a tentar resolver a contradição em sua mente, mas o próprio poema revelava um problema ainda mais profundo: depois de um certo tempo, a alma e a voz dessas pessoas passaram a viver no corpo do próprio Ka.

       Ao sair do edifício de apartamentos, Ka ainda não tinha idéia de onde se encontrava, mas depois de passar por uma travessa estreita, viu que chegara à avenida HalitPasa. Sem saber bem por quê, ele se voltou e lançou um último olhar ao esconderijo de Azul, antes de ir embora.

       Enquanto fazia o caminho de volta ao hotel, Ka sentiu falta de seus guarda-costas; sentia-se inseguro sem eles. Ao passar pela prefeitura, um carro sem o distintivo da polícia parou ao seu lado; ao ver que a porta se abrira, Ka parou.

       “Ka bei, por favor, não tenha medo, somos do quartel central da polícia. Por favor, entre, que nós o levamos para o hotel.”

       Enquanto ele tentava avaliar que opção era mais perigosa — voltar para o hotel sem guarda-costas, entrar num carro da polícia ou ser visto entrando num carro da polícia no centro da cidade —, um homem alto e musculoso, num gesto brutal que nada tinha a ver com o delicado convite que lhe tinham feito, puxou Ka para dentro do carro. O galalau parecia-lhe familiar, mas quem seria? Sim, alguém de Istambul, um tio distante, tio Mahmut. Dentro do carro estava muito escuro. Logo que o carro partiu, ele desferiu dois socos na cabeça de Ka. Ou ele o teria socado quando o empurrava para dentro do carro? Ka estava apavorado. Um dos homens que estavam na frente — não o tio Mahmut — praguejava o tempo todo. Quando Ka era criança, havia um homem na rua Poetisa Nigar que praguejava daquele jeito toda vez que caía uma bola em seu jardim.

       Ka tentou se acalmar convencendo-se de que ainda era criança. E o carro o ajudava a criar essa ilusão (agora ele se lembrava: os carros que a polícia de Kars usava sem o emblema de identificação eram pequenos Renault, e não os pouco discretos Chevrolets 1956 como aquele). O veículo fez um longo e tortuoso trajeto na escuridão, percorrendo ruas pobres de Kars, como para amedrontar um menino desobediente; ele teve a impressão de ter passado muito tempo antes de adentrarem um pátio. “Olhe para a frente”, disseram. Eles o pegaram pelo braço e o fizeram subir dois degraus. Ka tinha certeza de que aqueles homens — três, contando com o motorista — não eram islamitas (onde islamitas podiam conseguir um carro como aquele?). E tampouco podiam ser do MIT, porque alguns deles estavam alinhados com Sunay. Uma porta se abriu, uma porta se fechou, e Ka se viu numa outra velha casa armênia com pé-direito muito alto; a janela ao seu lado dava para a avenida Atatürk. Olhando à sua volta ele viu a um canto um aparelho de televisão fazendo barulho e uma mesa cheia de pratos sujos, cascas de laranja e jornais; viu também um gerador de eletricidade que depois ele concluiu ser usado em torturas; junto a este havia alguns walkie-talkies, alguns revólveres, um vaso e um espelho em que ele viu sua própria imagem emoldurada. Ele pensou ter caído nas mãos da divisão da equipe de operações especiais e que estava perdido, mas relaxou quando se viu frente a frente com Z Demirkol: um assassino, claro, mas pelo menos um rosto que lhe era familiar.

       Z Demirkol fazia o papel do policial bonzinho. Ele disse a Ka que lamentava o fato de ele ter sido levado daquele jeito. Ka imaginou que o tio Mahmut estava no papel de policial malvado, por isso resolveu dar toda a atenção a Z Demirkol e às perguntas dele.

       “O que Sunay está planejando?”

       Ka informou-o prontamente de tudo o que sabia, inclusive sobre a Tragédia espanhola de Kyd.

       “Por que eles libertaram o maluco do Azul?”

       Ka explicou que eles o libertaram em troca da promessa de Kadife de descobrir a cabeça numa transmissão ao vivo, pela televisão. Num momento de inspiração, ele usou um esnobe termo de xadrez: talvez se tratasse de um audacioso “sacrifício”, digno de admiração. Mas a verdade é que os islamitas políticos iriam considerar aquilo uma manobra com o objetivo de desmoralizá-los.

       “Qual a probabilidade de que a jovem cumpra a palavra?”

       Ka disse que Kadife concordara em entrar em cena, mas ninguém sabia ao certo se ela iria descobrir a cabeça.

       “Onde fica o novo esconderijo de Azul?”, perguntou Z Demirkol.

       Ka disse que não tinha a menor idéia.

       Eles perguntaram por que Ka estava sem guarda-costas quando eles o pegaram. De onde ele estava voltando?

       “Eu estava dando um passeio”, disse Ka. Quando ele insistiu nessa resposta, Z Demirkol fez exatamente o que Ka previra: saiu da sala, deixando que o tio Mahmut se sentasse diante dele, lançando-lhe um olhar feroz. Tal como o homem do banco dianteiro do carro, ele tinha um grande repertório de imprecações que usava para adornar cada um de seus pensamentos. Pouco importava o que estava dizendo; ele podia estar fazendo uma ameaça, pontificando sobre os interesses do país ou expondo suas concepções políticas nada originais. Como uma criança que só sabe comer depois de encharcar a comida com ketchup, ele derramava seus impropérios a torto e a direito.

       “O que você acha que vai ganhar negando-se a nos dizer onde se encontra um terrorista islamita de mãos manchadas de sangue, a soldo do Irã?”, perguntou tio Mahmut. “Você sabe o que essa gente vai fazer quando tomar o poder, não sabe? Você sabe o que eles planejam para liberais metidos a europeus de coração mole como você?” Ka se apressou em dizer que sabia, mas tio Mahmut não deixou de descrever vivida e demoradamente o que os mulás iranianos fizeram com os democratas e comunistas, antigos aliados deles; eles enfiaram dinamite no rabo deles e mandaram-nos para os ares, enfileiraram todas as prostitutas e homossexuais e os fuzilaram, proibiram todos os livros não religiosos. Quando eles punham as mãos em intelectuais afetados como Ka, raspavam-lhes a cabeça imediatamente, e quanto aos seus ridículos livros de poesia... Quando ele começou a desfiar mais um bem-ensaiado rosário de epítetos insípidos, àquela altura já parecendo muito entediado, parou para perguntar novamente onde Azul estava escondido e onde Ka estivera naquela noite antes de ser pego. Como Ka deu as mesmíssimas respostas, tio Mahmut, com a mesma expressão de fastio, o algemou. “Veja o que vou fazer com você agora”, disse ele, se pondo a espancá-lo sem muito empenho: alguns tapas na cabeça, alguns murros meio ao acaso.

      Relendo as anotações feitas por Ka depois do episódio, consegui cinco motivos pelos quais ele não considerou aquela surra insuportável; espero que os leitores não se aborreçam com o fato de enumerá-los a seguir:

  1. Ka acreditava que a felicidade era composta de bem e de mal em igual medida, por isso pôde considerar o espancamento como o sofrimento a que fazia jus pelo direito de levar Ipek para Frankfurt.
  2. Ka pertencia à elite dominante, e isso, achava ele, lhe garantia um certo grau de imunidade; com certeza aquela equipe de operações especiais tinha um procedimento-padrão para gente como ele, e um outro para a horda miserável de Kars; assim sendo, querendo evitar deixar muitas marcas em seu corpo, eles teriam o cuidado de espancá-lo com certa moderação, e com certeza não o submeteriam a torturas graves.
  3. Ele supôs, com razão, que o espancamento só poderia aumentar o amor de Ipek por ele.
  4. Durante sua visita ao quartel central da polícia dois dias antes, vendo o rosto ensangüentado de Muhtar ele imaginou, estupidamente, que os golpes infligidos pela polícia aliviariam o pobre homem do sentimento de culpa que sentia diante da miséria de seu país. Inspirado por essa idéia, Ka agora esperava que uma boa surra também aliviasse sua culpa.
  5. Fossem quais fossem os sofrimentos do espancamento, eles dificilmente igualariam o orgulho de ser um verdadeiro preso político, resistindo aos seus algozes e recusando-se a informar sobre o esconderijo de um homem.

       Esta última satisfação seria muito maior vinte anos antes, mas agora aquilo lhe parecia um pouco datado, e Ka não conseguia deixar de se sentir um tanto embaraçado. O gosto salgado do sangue que lhe escorria do nariz levou-o de volta à infância. Quando fora a última vez que seu nariz sangrara? Quando tio Mahmut e os outros voltaram a atenção para a televisão, largando-o num canto mal iluminado da sala, Ka começou a pensar na janela que bateu contra seu rosto na infância, nas bolas de futebol que lhe atingiram o nariz, e então se lembrou dos golpes no nariz que recebera numa briga, à época em que prestava o serviço militar. Quando Z Demirkol e seus companheiros sintonizaram no capítulo de Marianna daquela noite, Ka, afagando o nariz ensangüentado e a cabeça inchada, sentia-se absolutamente contente por estar ali largado num canto feito uma criança. Ocorreu-lhe que eles podiam revistá-lo e encontrar o bilhete de Azul. Uma nova onda de culpa o invadiu enquanto ele assistia, em silêncio, com seus seqüestradores, à novela Marianna, refletindo que Turgut bei e suas filhas àquela hora estavam no hotel assistindo ao mesmo programa.

       Durante um intervalo comercial, Z Demirkol se pôs de pé, pegou o gerador na mesa e perguntou a Ka se ele sabia para que servia aquilo; como Ka ficou calado, ele mesmo respondeu à pergunta e, como um pai brandindo um cinturão ameaçadoramente, esperou em silêncio.

       “Você quer que eu lhe diga por que gosto de Marianna?”, disse ele quando a novela recomeçou. “Porque ela sabe o que quer. Mas intelectuais como você nunca têm a menor idéia, e isso me aborrece. Vocês dizem que querem a democracia e aí fazem aliança com fundamentalistas islâmicos. Vocês dizem que querem direitos humanos, e aí fazem acordos com assassinos terroristas. Vocês dizem que a resposta é a Europa, mas ficam por aí bajulando islamitas que odeiam tudo o que a Europa representa. Vocês falam em feminismo, e aí estimulam essas mulheres a cobrir a cabeça. Vocês não seguem a própria consciência; vocês simplesmente imaginam o que um europeu faria na mesma situação e vão na esteira dele. Mas você nem ao menos consegue agir como um verdadeiro europeu! Sabe o que um europeu faria neste caso? Vamos imaginar que esse seu Hans Hansen publicasse essa declaração idiota e que a Europa a levasse a sério e mandasse uma delegação para Kars; a primeira coisa que a delegação iria fazer era parabenizar o exército por recusar-se a entregar o poder aos islamitas políticos. E evidente, porém, que quando essas bichas voltassem para sua Europa logo começariam a se queixar da falta de democracia em Kars. Quanto às pessoas de sua laia, vocês adoram atacar o exército, ainda que dependam dele para evitar que os islamitas os façam em pedacinhos. Mas você não ignora nada disso. É por isso que não vou torturar você.”

       Ka viu naquilo uma indicação de que o “policial bonzinho” assumira novamente o posto. Sua esperança era a de que logo seria solto e chegaria a tempo de assistir ao final de Marianna com Turgut bei e suas filhas.

       “Antes de deixarmos você voltar para os braços de sua amante no hotel, gostaríamos de fazê-lo abandonar algumas ilusões; gostaríamos de lhe dizer umas coisinhas sobre esse terrorista com quem você andou negociando, esse assassino cuja vida você acabou de salvar”, disse Z Demirkol. “Mas primeiro ponha isso na cabeça: você nunca esteve aqui. Dentro de uma hora estaremos fora daqui. Nosso novo centro de operações é o último andar da escola secundária religiosa. Vamos esperar por você lá. Então, se você de repente se lembrar de onde Azul está escondido ou aonde você foi em seu ‘passeio noturno’, sabe onde nos encontrar.”

       Z Demirkol continuou: “Você já sabe que esse belo herói de olhos azuis está sendo procurado pelo bárbaro assassinato de um apresentador de televisão estúpido que mostrou a língua para o profeta Maomé, e também está por trás do assassinato do diretor do Instituto de Educação. Como todos sabemos, você teve o prazer de testemunhar, em primeiríssima mão, esse brutal assassinato, e sabe também o que veio em seguida; você ouviu tudo da boca de Sunay Zaim, quando ele ainda estava são da cabeça. Mas há outra coisa que os dedicados agentes do MIT conseguiram provar de forma cabal. Talvez ninguém quisesse magoá-lo dando-lhe a informação, mas achamos que seria bom para você tomar conhecimento”.

       Agora chegamos ao ponto que Ka haveria de evocar muitas e muitas vezes nos quatro anos que lhe restavam de vida, como um operador sentimental que espera em vão um fim diferente toda vez que projeta na tela o mesmo filme triste.

       “Essa Ipek Hanim com quem você espera voltar para Frankfurt para viver feliz para sempre — já foi amante de Azul”, disse Z Demirkol, em tom suave. “Segundo a ficha que tenho aqui, essa história aconteceu há quatro anos. Nessa época, Ipek Hanim ainda estava casada com Muhtar bei — que, como você sabe, retirou sua candidatura a prefeito anteontem, de livre e espontânea vontade. Ao que parece, esse velho poeta esquerdista paspalhão — desculpe-me a expressão — acolheu Azul em sua casa como um convidado de honra; naturalmente ele contava que Azul o ajudasse a organizar a juventude islamita da cidade, mas você não acha que é uma vergonha o fato de ninguém ter contado a ele da tórrida relação que esse agitador estava mantendo com sua mulher enquanto o coitado mourejava em sua loja tentando vender fogões elétricos?”

       Essa história é inventada. Ele está mentindo, pensou Ka.

       “A primeira pessoa a notar o affaire ilícito — sem contar o pessoal do serviço de informação, naturalmente — foi Kadife Hanim. Aquela altura as relações conjugais de Ipek Hanim já estavam com problemas, e então, quando sua irmã mudou-se para a sua casa para freqüentar a universidade, ela usou isso como pretexto para mudar-se. Azul continuava a visitar Kars, sempre que podia, para ‘organizar a juventude islamita’, e naturalmente ele sempre se hospedava em casa de seu grande admirador, Muhtar. Assim, sempre que Kadife ia à universidade, os dois alucinados amantes faziam seus encontros na nova casa. Isso continuou até Turgut bei voltar para Kars, quando ele e as duas filhas passaram a residir no Hotel Palácio de Neve. Foi então que Kadife, a líder das jovens que insistiam em usar o manto, passou a fazer o mesmo jogo que sua irmã mais velha. Nosso Casanova de olho azul conseguiu ter as duas mulheres à sua mão ainda por algum tempo. Temos provas disso.”

       Num esforço sobre-humano, Ka se esquivou do olhar de Z Demirkol, voltando os olhos agora marejados para as lâmpadas dos postes da avenida Atatürk, tremeluzentes e cobertas de neve — só então se dando conta de que elas eram visíveis do lugar onde se encontrava.

       “Só estou lhe contando isso para que você entenda que esse seu coração de manteiga não o leva a lugar nenhum, e que você não tem nenhum motivo para nos sonegar o paradeiro desse monstro assassino”, disse Z Demirkol, que, como todos os agentes de operações especiais, quanto mais falava mais se excedia no tom insultuoso. “Eu não trouxe você aqui para assustá-lo. Imagino que quando você sair desta sala ficará tentado a duvidar de que o que acabei de dizer foi de fato perfeitamente documentado pelo pessoal da vigilância que há quarenta anos vem submetendo toda esta cidade a um competente serviço de escuta; talvez eu tenha falado um monte de bobagens. Talvez Ipek Hanim, em sua decisão de evitar empanar sua felicidade em Frankfurt, consiga convencê-lo de que tudo isso é mentira. Seu coração é mole demais e talvez não seja forte o bastante para aceitar o que estou lhe dizendo, mas permita-me que lhe tire todas as dúvidas que por acaso ainda tenha quanto à verdade do que lhe digo. Se me permite, vou ler alguns trechos de algumas conversas telefônicas. Enquanto eu estiver lendo, por favor tenha em mente o esforço que se fez nessa prolongada operação de escuta de longa duração e o tempo que as pobres secretárias devem ter levado para datilografar a transcrição.

       “‘Meu amor, meu querido, os dias que passo sem você é quase como se morresse!’ Isso, por exemplo, foi o que Ipek Hanim disse num quente dia de verão quatro anos atrás — r6 de agosto, para ser exato — e com certeza referia se a uma das primeiras vezes em que se separaram. Dois meses depois, quando Azul estava em Kars para falar numa conferência sobre o ‘Islã e a vida privada das mulheres’, ele lhe telefonou de mercearias e casas de chá de toda a cidade, num total de oito vezes — e não falaram senão do quanto se amavam. Dois meses depois, quando Ipek Hanim ainda pensava em fugir com ele, ela disse ‘Todo mundo tem apenas um verdadeiro amor, e você é o amor de minha vida’. Em outra ocasião, por ciúmes de Merzuka, a mulher que ele tinha em Istambul, ela disse a Azul que não faria amor com ele enquanto seu pai estivesse sob o mesmo teto. E aqui está o pior: só nos dois últimos dias, ela ligou para ele três vezes; ela pode ter feito outras ligações hoje. Ainda não temos as transcrições dessas últimas conversas, mas isso não importa; quando se encontrar com ela, você mesmo pode lhe perguntar.

       “Sinto muito afligir você”, continuou Z Demirkol. “Por favor, pare de chorar. Vou pedir aos meus companheiros que tirem essas algemas para que você possa lavar o rosto. E então, se você quiser, meus companheiros o levarão para o hotel.”

 

  1. Por um instante eles choraram juntos

Ka e Ipek encontram-se no hotel

       Ka recusou a escolta. Depois de limpar o sangue do nariz e da boca, ele jogou água no rosto e, voltando-se para os miseráveis assassinos que o mantinham prisioneiro, deu-lhes um boa-noite tímido, semelhante ao de alguém que, sem ter sido convidado, ficasse para o jantar. Como um bêbado comum, avançou cambaleante pela avenida Atatürk e, sem saber por que, entrou na avenida HalitPasa. E foi quando passou pela lojinha em que, em suas primeiras andanças pela cidade, ouvira Pepino di Capri cantando “Roberta”, que começou a chorar. Foi ali também que ele tinha topado com o esguio e gentil aldeão que fora seu companheiro de viagem três dias antes, no percurso de Erzurum a Kars, e que se mostrara tão cortês e compreensivo quando Ka caiu no sono e descansou a cabeça em seu ombro. Parecia que toda a cidade de Kars estava em casa assistindo a Marianna. Mais adiante, porém, ele cruzou com o advogado Muzaffer bei e, um pouco depois, ao entrar na avenida Kâsim Karabekir, com o gerente da empresa de ônibus e seu amigo idoso, que ele tinha conhecido em sua visita à sua excelência o sheik Saadettin. Pela forma como eles o olharam, Ka percebeu que ainda trazia lágrimas nos olhos. Durante todo o tempo em que andava para cima e para baixo naquelas ruas, passando por vitrines cobertas de gelo, casas de chá lotadas, lojas de artigos fotográficos que exibiam fotos de Kars em épocas mais douradas, lâmpadas de postes tremeluzentes, os grandes queijos redondos nas mercearias, ele não tinha dúvidas — ainda que não os tivesse visto na esquina da avenida Kâsim Karabekir com a Karadag — de que suas sombras à paisana o acompanhavam.

       Antes de entrar no hotel, ele parou para garantir aos guarda-costas que tudo estava em ordem e fez o possível para subir ao seu quarto sem ser notado. Lá chegando, jogou-se na cama imediatamente e sucumbiu ao desespero. Quando conseguiu se acalmar, pôs-se a esperar, e os dois minutos que se passaram antes que batessem à porta lhe pareceram mais longos que todos os momentos de espera que, em criança, passara na cama ouvindo os sons que vinham das ruas.

       Era Ipek. Ela ouvira do rapaz da recepção que devia ter acontecido alguma coisa estranha a Ka bei e por isso veio imediatamente. Ao ver o rosto de Ka, ela prendeu a respiração e ficou em silêncio. Os dois ficaram calados por algum tempo.

       “Fiquei sabendo de sua relação com Azul”, disse finalmente Ka, num sussurro.

       “Foi ele mesmo quem contou?”

       Ka apagou a luz. “Z Demirkol e seus comparsas me seqüestraram”, disse, ainda sussurrando. “Há quatro anos que eles escutam suas conversas telefônicas.” Deitou-se novamente, chorando em silêncio. “Eu quero morrer”, disse ele.

       Quando Ipek estendeu a mão para afagar os seus cabelos, ele chorou ainda mais. Apesar da dor que estavam sentindo, os dois se descontraíram — como as pessoas fazem quando percebem ter perdido as chances de felicidade. Ipek estendeu-se na cama e o abraçou. Por um instante eles choraram juntos, e isso os aproximou.

       Enquanto estavam deitados na cama no escuro, Ipek contou sua história. Ela disse que tudo fora por culpa de Muhtar; seu marido não apenas convidara Azul para ficar em sua casa, mas também queria que seu herói islamita visse que maravilhosa esposa ele tinha. Àquela época Muhtar a estava tratando muito mal e censurando-a por eles não terem filhos. E como Ka não ignorava, Azul tinha perfeito domínio das palavras e sabia muito bem como virar a cabeça de uma mulher infeliz. Tão logo ela cedeu, viu-se ansiosa por evitar uma tragédia. Sua maior preocupação era esconder tudo de Muhtar; ela ainda se preocupava com ele e não queria magoá-lo. Mas quando aquela história começou a ficar mais séria, sua principal preocupação foi arranjar uma forma de se livrar daquilo.

       No começo, o que tornava Azul tão atraente era sua superioridade em relação a Muhtar: Muhtar fazia papel de bobo quando falava de política sem entender nada do assunto, de modo que ela se sentia envergonhada. E mesmo depois que ela e Azul começaram a ter um caso, o pobre Muhtar continuava a elogiá-lo, sempre convidando-o a visitar Kars mais vezes e sempre admoestando Ipek por não tratá-lo com mais hospitalidade e tolerância. Mesmo quando ela se mudou para a nova casa para morar com Kadife, Muhtar não desconfiou nem um pouco; se Z Demirkol e seus companheiros não o advertissem, ele nunca haveria de saber.

       A esperta Kadife, de sua parte, percebeu tudo ao final do primeiro dia que passou na cidade. Sua única motivação real para juntar-se às jovens que usavam o manto era o desejo de aproximar-se mais de Azul. Ipek, que desde criança tivera de conviver com o ciúme de Kadife, não deixou de notar o interesse da irmã por Azul; e seu amor por ele só esfriou quando percebeu que o volúvel Azul correspondia à afeição de Kadife. E Ipek viu naquilo uma oportunidade de livrar-se de Azul: se Kadife se envolvesse com ele, Ipek ficaria livre; e quando seu pai também se mudou para Kars, ela conseguiu manter à distância o amante infiel.

       O relato na verdade reduzia o caso com Azul a um erro já enterrado no passado, e Ka certamente aceitaria a história, não tivesse ela sucumbido a um impulso infantil, deixando escapar o comentário: “A verdade é que Azul não ama Kadife, é a mim que ele ama!”.

       Não era bem aquilo que Ka queria ouvir, por isso lhe perguntou o que ela pensava agora daquele “homem nojento”. Recusando-se a entrar naquele assunto, ela insistiu que aquilo era coisa do passado, e seu único desejo agora era ir para Frankfurt com Ka. Foi então que Ka falou da última informação de Z Demirkol, de que Ipek falara com Azul pelo telefone nos últimos dois dias. Ipek insistiu que não houve conversa nenhuma e de qualquer modo Azul era esperto demais para fazer uma ligação que poderia dar aos seus perseguidores uma pista de seu paradeiro.

       “Nós nunca seremos felizes!”, disse Ka.

       “Não, nós vamos para Frankfurt e vamos ser felizes, sim!”, disse Ipek abraçando-o. Segundo Ipek, Ka acreditou nela por um instante, e então as lágrimas lhe voltaram aos olhos.

       Ela apertou-o contra si com muita força, e eles choraram novamente.

       Como Ka escreveria mais tarde, foi naquele momento em que os dois estavam abraçados e aos prantos que Ipek descobriu o seguinte: viver na indecisão, suspensa entre o fracasso e uma nova vida, propiciava tanto prazer como dor. A facilidade com que podiam se abraçar e chorar fazia que ele a amasse ainda mais, mas mesmo no amargo contentamento daquele abraço lacrimoso uma parte dele já estava calculando seu próximo movimento e se mantinha alerta aos sons que vinham da rua.

       Eram quase seis horas. A edição do dia seguinte da Gazeta da Cidade Fronteiriça estava pronta para ser distribuída. Os limpa-neves trabalhavam a todo o vapor para desobstruir a estrada para Sankamis. Depois de exercer o seu fascínio e de fazer Kadife entrar no caminhão do exército, Funda Eser estava no Teatro Nacional, ensaiando a peça com Kadife e Sunay.

       Passou-se meia hora antes de Ka decidir-se a contar a Ipek sobre o bilhete que trazia de Azul para Kadife. Durante todo o tempo em que ficaram abraçados chorando, eles por pouco não fizeram amor, mas o medo, a indecisão e o ciúme fizeram que ele se contivesse. Em vez disso, Ka perguntou a Ipek sobre a última vez que se encontrara com Azul; ele insistia em acusá-la de falar com ele todos os dias. Dominado pela compulsão, acusou-a também de encontrar-se com ele todos os dias e de ainda ser sua amante.

       Mais tarde Ka haveria de se lembrar de que a princípio Ipek resistia a suas perguntas e acusações, furiosa por ele não acreditar em suas palavras; em seguida, quando percebeu que a dimensão afetiva da situação importava mais do que as palavras, começou a tratá-lo de forma mais afetuosa; uma parte dela chegou a se comprazer na dor que as perguntas e acusações de Ka lhe causavam. Em seus quatro últimos anos de vida, em que se entregara ao remorso e ao desapontamento, Ka reconheceu que aqueles que se entregam a agressões verbais quase sempre desejam a confirmação de que são amados — isso fora uma constante nele, durante toda a sua vida. Mesmo no momento em que, com voz embargada, a acusava de gostar de Azul, de amá-lo mais que a ele, Ka, sua preocupação era não tanto ver o que Ipek lhe responderia, mas o quanto de paciência teria para com ele.

       “Você está apenas querendo me punir por ter tido uma relação com ele!”, disse Ipek.

       “Você só se interessou por mim porque está tentando esquecê-lo!”, disse Ka. Olhando-a bem no rosto, ele viu, horrorizado, que falara a verdade, mas dessa vez não se descontrolou. O acesso de raiva renovara as suas forças. “Do lugar em que está escondido, Azul mandou uma mensagem a Kadife”, disse ele. “Ele agora diz que Kadife deve manter-se firme e recusar-se a entrar em cena e descobrir a cabeça. Está inflexível quanto a isso.”

       “Não vamos dizer isso a Kadife”, disse Ipek. “Por que não?”

       “Porque com isso continuaremos a gozar da proteção de Sunay. E é melhor para Kadife também. Quero que haja uma boa distância entre Azul e minha irmã.”

       Ka disse: “Quer dizer então que você deseja separá-los”. Pelo olhar de Ipek ele percebeu que ela, ferida em seu amor-próprio, parara de tolerar seu acesso de ciúmes. Mas ele não conseguia se conter.

       “Eu rompi com Azul há muito tempo.”

       Ainda sem acreditar no que Ipek dizia, Ka dessa vez se conteve e decidiu não dizer o que estava pensando. No instante seguinte, porém, ele se pegou olhando pela janela fixamente e dizendo-lhe exatamente o que estava pensando. Novamente se deixou dominar pela raiva e pelo ciúme, percebendo que aquilo o fazia sofrer ainda mais. Com lágrimas nos olhos, ele esperava a resposta de Ipek.

       “Eu estava muito apaixonada por ele”, disse Ipek. “Mas agora tudo já passou, e acho que já superei isso. Quero ir com você para Frankfurt.”

       “O quanto você o amou?”

       “Muito”, disse Ipek, e mergulhou num obstinado silêncio.

       “Quero que você me diga o quanto.” Embora tivesse perdido a pose, Ka percebia que Ipek estava indecisa. Ela queria dizer a verdade, mas também queria abrandar a dor dele compartilhando-a; ela queria dar a Ka a punição merecida, mas ao mesmo tempo entristecia-se em vê-lo sofrer.

       “Eu o amei mais do que a qualquer outra pessoa antes”, disse Ipek finalmente, desviando o olhar.

       “Talvez porque o único homem que você tivera até então tinha sido seu marido, Muhtar.”

       Ele lamentou ter dito essas palavras ainda no momento em que o fazia, não apenas porque elas eram ofensivas, mas também porque ele sabia que Ipek iria dar uma resposta ainda mais ofensiva.

       “É verdade”, disse ela. “Como a maioria das jovens turcas, não tive a oportunidade de conhecer muitos homens. Você com certeza conheceu muitas mulheres independentes na Europa. Não vou indagar sobre elas, mas certamente elas lhe ensinaram que os novos amantes fazem esquecer os antigos.”

       “Eu sou turco”, disse Ka.

       “Na maioria das vezes, ser turco é uma desculpa ou um pretexto para praticar o mal.”

       “É por isso que vou voltar para Frankfurt”, disse Ka em tom de desatenção.

       “Eu vou com você, e lá seremos felizes.”

       “Você quer ir para Frankfurt para esquecê-lo.”

       “Se formos para Frankfurt, tenho certeza de que logo amarei você. Não sou como você. Preciso de mais de dois dias para me apaixonar por alguém. Se você tiver paciência, se você não me magoar com seu ciúme turco, eu o amarei profundamente.”

       “Mas neste momento você não me ama”, disse Ka. “Você ainda está apaixonada por Azul. O que esse homem tem de tão especial?”

       “Alegra-me que tenha perguntado, e acho que você quer mesmo saber, mas temo pela forma como vai reagir à minha resposta.”

       “Não precisa ter medo”, disse Ka sem muita convicção. “Eu a amo de todo o coração.”

       “Primeiro, quero lhe dizer que eu só poderia viver com um homem capaz de ouvir o que vou dizer e, ainda assim, tivesse forças para me amar.” Ipek fez uma pausa, desviou os olhos de Ka e fitou-os na rua coberta de neve. “Azul é muito compassivo, muito atencioso e generoso.” A voz dela era calorosa, cheia de amor. “Ele não quer que ninguém sofra. Certa vez ele chorou uma noite inteira, só porque dois cachorrinhos perderam a mãe. Acredite-me, ele não é como todo mundo.”

       “Ele não é um assassino?”, perguntou Ka, desesperado.

       “Mesmo alguém que soubesse apenas um décimo do que sei dele poderia lhe garantir o quanto essa suposição é estúpida. Ele não é capaz de matar ninguém. Ele é uma criança. Como uma criança, ele gosta de brincar, de devanear e imitar as pessoas; ele gosta de contar histórias do Shehnam e do Mesnevi. Por trás da máscara, ele é uma pessoa muito interessante. É resoluto e decidido; na verdade, ele é tão forte e tão divertido... Oh, desculpe, querido, não chore, por favor. Você já chorou demais.”

       Ka parou de chorar por um momento, tempo bastante para dizer a Ipek que achava que não poderiam ir juntos para Frankfurt. Seguiu-se um longo e lúgubre silêncio, interrompido apenas pelos soluços de Ka. Ele se deitou na cama, de costas para a janela, e se encolheu como uma criança. Depois de algum tempo, Ipek deitou-se ao seu lado, abraçando-o pelas costas.

       Ele queria dizer que o deixasse em paz. Em vez disso, sussurrou: “Abrace-me mais forte”.

       Suas lágrimas umedeceram o travesseiro: gostava de senti-las nas faces, gostava dos braços de Ipek cingindo seu corpo. Ele adormeceu.

       Quando eles acordaram eram sete horas. Naquele instante sentiram que a felicidade ainda estava ao seu alcance, mas, como não conseguiam se olhar no rosto, ambos buscavam um pretexto para se afastar.

       Ka começou a falar, mas Ipek disse: “Esqueça isso, querido, esqueça isso”.

       Por um instante ele não entendeu o que ela queria dizer com aquilo. Estava tudo perdido, ou ela sabia que lhes seria possível esquecer tudo?

      Ele pensou que Ipek ia sair. Ele sabia muito bem que se voltasse sozinho para Frankfurt não encontraria conforto nem em sua melancólica rotina diária.

       “Não vá ainda. Vamos ficar aqui mais um pouco.”

       Depois de um silêncio estranho e incômodo, eles se abraçaram mais uma vez.

       “Oh, meu Deus!”, exclamou Ka. “Meu Deus, que será de nós?”

       “Tudo vai se ajeitar”, disse Ipek. “Por favor, acredite em mim. Confie em mim. Vamos, deixe-me mostrar-lhe as coisas que vou levar para Frankfurt.”

       Só em sair do quarto, Ka se sentiu aliviado. Ele tomou a mão de Ipek enquanto desciam as escadas. Ao chegarem ao escritório de Turgut bei, ele a soltou, mas mesmo assim notou que as pessoas do saguão os viam como um casal, e aquilo lhe agradou. Em seu quarto, Ipek abriu uma gaveta e dela tirou o suéter azul-gelo que nunca pudera usar em Kars; depois de estendê-lo e tirar as bolinhas de naftalina, pôs-se diante do espelho, segurando-o na altura do peito.

       “Vista-o”, disse Ka.

       Ipek tirou o grosso pulôver de lã e colocou o suéter. Ficava muito justo, e enquanto ela o ajeitava sobre a blusa, mais uma vez Ka ficou encantado com sua beleza.

       “Você vai me amar pelo resto da vida?”, perguntou Ka.

       “Sim.”

       “Agora ponha o vestido que Muhtar só lhe permitia usar em casa.”

       Ipek abriu o guarda-roupa, pegou o vestido de veludo preto do cabide, desdobrou-o com todo o cuidado e preparou-se para colocá-lo.

       “Gosto quando você me olha desse jeito”, disse ela, quando seus olhares se encontraram no espelho.

       Ele contemplou suas belas costas, a área delicada logo abaixo da linha dos cabelos e, mais embaixo, a sombra da espinha dorsal e as covinhas formadas nos ombros quando ela pegou os cabelos para posar para ele. Ele se sentia dominado pelo prazer e também pelo ciúme. Sentia-se feliz... e muito infeliz.

       “Oh, o que há com o vestido?”, disse Turgut bei entrando no quarto. “Diga-me, onde vai ser o baile?” Mas em seu rosto não havia alegria. Ka interpretou aquilo como ciúmes de pai, o que o fez sentir-se bem.

       “Desde que Kadife saiu para ir ao teatro, os anúncios da televisão se tornaram muito mais agressivos”, disse Turgut bei. “Se ela aparecer nessa peça, vai estar cometendo um grande erro.”

       “Querido pai, você pode me explicar por que Kadife não deveria descobrir a cabeça?”

       Eles foram para a sala e se puseram diante da televisão, que estivera ligada durante todo o tempo. Logo apareceu um anúncio proclamando que, com o espetáculo que seria transmitido ao vivo naquela noite, chegaria ao fim a tragédia que impusera uma paralisia social e espiritual a toda a nação, e que o povo de Kars finalmente ficaria livre dos preconceitos religiosos que por muito tempo o excluíram da vida moderna, impedindo que as mulheres gozassem dos mesmos direitos que os homens. Mais uma vez, a Vida e a Arte se uniriam numa fascinante narrativa histórica de beleza inigualável. Mas desta vez o povo de Kars não tinha motivos para temer por sua segurança, porque a central de polícia e o comando revolucionário tomaram todas as providências para evitar qualquer problema. A entrada era franca. Então Kasim bei, o subchefe de segurança, apareceu na tela; percebeu-se imediatamente que sua participação fora gravada com antecedência. Seus cabelos, tão desgrenhados na noite da revolução, agora estavam penteados, a camisa passada a ferro, e a gravata no devido lugar. Depois de garantir ao povo de Kars que não tivesse receio de ir assistir àquele grande acontecimento artístico, ele anunciou que muitos estudantes da escola secundária religiosa se dirigiram à central de polícia, prometeram assistir ao espetáculo discretamente e aplaudir com entusiasmo nos momentos certos, como se costuma fazer na Europa e em outras partes do mundo civilizado. Além disso, advertiu ele, desta vez não seria tolerado nenhum tipo de violência; não se admitiriam gritos, assobios nem comentários grosseiros, pois a população de Kars, que vinha de uma civilização milenar, sabia muito bem como se comportar no teatro — e com isso ele desapareceu da telinha.

       O apresentador voltou à tela para falar do programa da noite, explicando que o ator principal, Sunay Zaim, havia anos esperava a oportunidade de fazer essa peça. Seguiu-se uma montagem com cartazes amassados das peças jacobinas nas quais, muitos anos antes, Sunay interpretara Napoleão, Robespierre e Lênin; várias fotografias em preto-e-branco do elenco (como Funda Eser era magra naquela época!); e uma infinidade de lembranças de teatro que Ka imaginou tratar-se apenas do tipo de traste que um casal de atores itinerantes carrega consigo numa mala (velhos ingressos e programas, recortes de jornal da época em que Sunay pretendia interpretar Atatürk, cenas trágicas apresentadas em diversas casas de chá da Anatólia). Por mais aborrecida que fosse a montagem promocional, era tranqüilizador ver Sunay na tela de vez em quando, e numa das fotos, que parecia bastante recente, ele tinha um ar tão resoluto que lhe dava o aspecto de um perfeito ditador, fosse da África, do Oriente Médio ou do bloco soviético. Depois de ter visto durante o dia inteiro aquelas cenas, o povo de Kars começava a acreditar que Sunay de fato trouxera a paz à sua cidade; agora ele era um deles, um cidadão de bem, e em seu íntimo as pessoas estavam começando a alimentar esperanças quanto ao futuro. Oitenta anos antes, quando os exércitos Otomano e russo abandonaram a cidade, deixando que os turcos e os armênios se massacrassem, os turcos de certa forma idearam uma nova bandeira para anunciar o nascimento de uma nação: vendo o mesmo estandarte naquele momento, agora manchado e roído pelas traças, mas exposto desafiadoramente na tela, Turgut bei concluiu que alguma coisa terrível estava prestes a acontecer.

       “Esse homem é louco. Caminha para o desastre e quer nos arrastar com ele. Kadife não devia subir ao palco de jeito nenhum.”

       “Tem razão, ela não devia”, disse Ipek. “Mas se dissermos a ela que você é quem quer impedir — bem, você sabe como Kadife é, pai. Ela vai insistir em descobrir a cabeça só para mostrar decisão.”

       “Que devemos fazer, então?”

       “Por que não deixar que Ka vá imediatamente ao teatro tentar dissuadi-la?”, disse Ipek, voltando-se para olhar para ele esperançosa, sobrancelhas arqueadas.

       Ka, que por muito tempo estivera observando não a televisão, mas a própria Ipek, não conseguia atinar com o que levara àquela abrupta mudança de disposição em relação aos planos, e sua perplexidade o deixou muito nervoso.

       “Se ela quer descobrir a cabeça, é melhor que descubra em casa, depois que tudo isso acabar”, disse Turgut bei voltando-se para Ka. “É claro que Sunay preparou outra violência inominável para o espetáculo de hoje à noite. Sinto-me um perfeito idiota por ter caído na conversa de Funda Eser e deixado minha filha sair com esses lunáticos.”

       “Ka pode dissuadi-la, pai.”

       “Sim”, disse Turgut bei a Ka. “Neste momento você é a única pessoa que pode tentar convencê-la, e Sunay confia em você. O que aconteceu com seu nariz, meu filho?”

       “Eu caí no gelo”, disse Ka sentindo-se culpado.

       “Você machucou a cabeça também?”

     “Ka passou o dia inteiro andando pela cidade”, disse Ipek.

       “Chame Kadife de lado, quando Sunay não estiver vendo”, disse Turgut bei. “Não deixe que ela pense que a idéia foi nossa, e cuide para que ela não diga nada que faça Sunay pensar que foi sua. Ela não deve nem conversar com ele sobre isso. O melhor é dar uma desculpa bem plausível, como ‘Estou me sentindo mal’, e talvez acrescentar ‘Vou descobrir a cabeça amanhã, em minha casa’. Sim, ela deve prometer fazer isso. E, por favor, diga a Kadife o quanto a amamos. Minha filhinha!” Os olhos de Turgut bei se encheram de lágrimas.

       “Pai, posso falar um instante a sós com Ka?”, disse Ipek. Ela levou Ka à mesa de jantar e o fez sentar. Zahide pusera a mesa, mas ainda não servira a comida.

      “Diga a Kadife que Azul está num dilema. Diga-lhe que ele está muito perturbado, senão não a deixaria fazer uma coisa dessas.”

       “Primeiro me diga por que mudou de idéia”, disse Ka.

       “Ah, querido, não há por que ter ciúmes, por favor, acredite em mim. É que percebi que meu pai tem razão, só isso. Agora o mais importante é salvar Kadife dessa catástrofe.”

       “Não”, disse Ka, escolhendo as palavras com todo o cuidado. “Alguma coisa a fez mudar de idéia.”

       “Não é verdade. Se Kadife quiser descobrir a cabeça, pode fazer isso depois, em casa.”

       “Se Kadife não descobrir a cabeça esta noite”, disse Ka cautelosamente, “ela nunca o fará diante do pai. Você sabe disso tanto quanto eu. O que você está escondendo de mim?”

       “Querido, não há nada disso. Amo você muito. Se você me quiser, vou para Frankfurt com você. E depois de algum tempo que estivermos lá e você vir o quanto me sinto ligada a você e o quanto o amo, você esquecerá esses poucos dias e me amará e confiará em mim.”

     Ela colocou a mão quente e úmida na mão dele. No espelho acima do aparador ele viu a bela imagem de Ipek; ele estava mudo diante da beleza de suas costas sob as alças do vestido de veludo preto; ele mal podia acreditar em quão perto estava daqueles grandes olhos.

       “Tenho quase certeza de que está para acontecer uma coisa terrível.”

       “Por quê?”

       “Porque estou muito feliz. Não sei de que maneira nem de onde vieram, mas desde que cheguei a Kars eu escrevi dezoito poemas. Se vier mais um, eu terei escrito um livro inteiro, ou talvez eu deva dizer que ele se escreveu por si mesmo. Acredito na sua disposição de ir para Frankfurt comigo, e antevejo uma felicidade ainda maior diante de nós. Só que me parece perigoso ser tão feliz. Por isso sei que alguma coisa terrível está para acontecer.”

       “Que tipo de coisa?”

       “Por exemplo: eu saio para ir falar com Kadife, e você sai para encontrar-se com Azul.”

       “Oh, isso é ridículo”, disse Ipek. “Eu nem ao menos sei onde ele está.”

       “Fui espancado desse jeito porque não quis dizer onde ele está.”

       “E é melhor você não dizer a ninguém mesmo! Estou falando sério!”, exclamou Ipek franzindo o cenho. “Logo você vai ver que não tem nada a temer.”

       “O que está acontecendo? Pensei que você ia sair para falar com Kadife”, disse Turgut bei. “A peça começa dentro de uma hora e quinze minutos. Acabaram de anunciar na televisão que as estradas já vão reabrir.”

       “Eu não quero ir. Não quero sair do hotel”, sussurrou Ka timidamente.

       “Por favor, entenda que não poderemos sair desta cidade deixando Kadife em dificuldade”, disse Ipek. “Se o fizermos, nós também não seremos felizes. O mínimo que você tem de fazer é ir procurá-la: assim nos sentiremos melhor.”

       “Uma hora e meia atrás, quando Fazil me trouxe o recado de Azul”, disse Ka, “você não queria que eu saísse do hotel.”

       “Certo. Diga-me então que garantia quer de que não sairei do hotel enquanto você estiver no teatro — mas depressa. Estamos nos atrasando”, disse Ipek.

       Ka sorriu. “Venha ao meu quarto. Vou prender você lá, e enquanto estiver no quarto, a chave fica comigo.”

       “Ótimo”, disse Ipek animadamente. Ela se levantou. “Paizinho, vou ficar uma meia hora em meu quarto. Não se preocupe porque Ka vai direto ao teatro conversar com Kadife. Por favor, não se levante. Temos uma coisa a tratar lá em cima primeiro, e estamos com pressa.”

       “Sou-lhe muito grato”, disse Turgut bei a Ka, embora ainda se mostrasse apreensivo.

       Ipek tomou Ka pela mão, conduziu-o pelo saguão e subiu as escadas com ele.

       “Cavit nos viu”, disse Ka. “O que você acha que ele pensou?”

       “Quem se importa?”, disse Ipek alegremente. O quarto dele ainda guardava um ligeiro perfume de sua noite de amor. “Vou esperar por você aqui. Tenha cuidado. Não vá discutir com Sunay.”

       “Quando eu pedir a Kadife que não participe da peça, devo dizer que é porque você e seu pai não querem ou porque Azul não aprova?”

       “Porque Azul não quer que ela o faça.”

       “Por quê?”, perguntou Ka.

       “Porque Kadife está apaixonada por Azul. É por isso. Você está indo ao teatro para proteger minha irmã do perigo. Você precisa esquecer que tem ciúmes de Azul.”

       “Como se eu pudesse.”

       “Quando estivermos na Alemanha, vamos ser felizes”, disse Ipek, enlaçando o pescoço de Ka. “Fale-me do cinema ao qual você vai me levar.”

       “Há um cinema no Museu do Filme que mostra filmes de arte americanos não dublados nas noites de sábado”, disse Ka. “E lá que iremos. No caminho, vamos parar num dos restaurantes perto da estação para comer um döner e picles. Quando chegarmos em casa vamos relaxar em frente da televisão. Depois a gente faz amor. Podemos viver da minha subvenção enquanto exilado político e das leituras desse meu novo livro de poesia — e nenhum dos dois terá mais nada a fazer a não ser isto: fazer amor.”

       Ipek perguntou qual era o título do livro, e ele lhe disse.

       “E lindo”, disse ela. “Agora vá, querido. Se você não for, papai vai ficar tão preocupado que é capaz de ir em seu lugar.”

       “Agora já não tenho medo”, disse ele. O que era mentira. “Mas aconteça o que acontecer, se alguma coisa der errado, estarei esperando por você no primeiro trem que partir da cidade.”

       “Isso se eu conseguir sair deste quarto”, disse Ipek com um sorriso.

       “Você pode ficar nesta janela e ficar me olhando até eu dobrar a esquina?”

       “Claro.”

       “Temo não tornar a vê-la nunca mais”, disse Ka.

       Ele fechou a porta, trancou-a e guardou a chave no bolso do casaco. Ele quis ter certeza de que iria se voltar e lançar um último e demorado olhar a Ipek na janela, por isso ao chegar à rua adiantou vários passos em relação aos seus guarda-costas. Quando ele se voltou, lá estava ela, qual uma estátua, à janela do quarto 203 do Hotel Palácio de Neve, ainda com o vestido de veludo negro de noite, os doces ombros agora arrepiados por causa do frio. Banhada na luz cor de laranja da mesinha-de-cabeceira, ela era sua imagem de felicidade, uma imagem que Ka manteria junto a si nos quatro últimos anos que lhe restaram de vida.

       Ele nunca mais a viu.

 

  1. Deve ser duro ser agente duplo

Capítulo que ficou pela metade

       As ruas que Ka tomou para ir ao Teatro Nacional estavam praticamente desertas — aqui e ali um restaurante aberto, mas todos os outros comerciantes da cidade tinham fechado as suas portas. As poucas pessoas nas ruas eram as que saíam das casas de chá, esgotadas pela longa jornada em que tomaram chá e fumaram cigarros, mas mesmo de saída não desgrudavam os olhos da televisão. Ao aproximar-se do Teatro Nacional, Ka viu três veículos do exército, todos de faróis acesos, e numa rua transversal, sob os oleandros, a silhueta negra de um tanque de guerra. O degelo começara naquela noite, e os pingentes de gelo dos beirais estavam gotejando nas calçadas. Andando sob os cabos da transmissão ao vivo que se estendiam pela avenida Atatürk, ele entrou no teatro e, tirando a chave do bolso, apertou-a com força na palma da mão.

       O teatro estava vazio exceto pelos soldados e policiais enfileirados nos corredores da platéia, ouvindo os ecos do ensaio dos atores. Ka sentou-se numa das cadeiras para apreciar a voz grave e melodiosa de Sunay e sua dicção perfeita, as falas vacilantes e frouxas de Kadife, a vigorosa direção de Funda Eser (“Diga isso com emoção, querida Kadife!”) enquanto corria de um lado para outro no palco, deslocando os acessórios de cena, uma árvore e uma penteadeira.

       Quando Funda Eser estava ensaiando a cena com Kadife, Sunay viu a brasa do cigarro de Ka e foi sentar-se junto dele. “Estes são os momentos mais felizes de minha vida”, disse ele. Ele cheirava a raki, mas não parecia nem um pouco embriagado. “Por mais que ensaiemos, tudo depende de como nos sentimos quando entramos em cena. Mas já dá para perceber que Kadife tem talento para o improviso.”

       “Eu trouxe para ela um talismã e um recado do pai”, disse Ka. “Eu poderia ter uma conversa com ela em particular?”

       “Nós sabemos que você andou despistando os guarda-costas. Ouvi dizer que a neve está derretendo e que os trens logo voltarão à atividade. Mas antes que tudo isso aconteça, estamos resolvidos a apresentar nossa peça”, disse Sunay. “Azul se escondeu direitinho desta vez?”, acrescentou ele com um sorriso.

       “Eu não sei.”

       Sunay levantou-se, chamou Kadife e recomeçou o ensaio. Os refletores se acenderam e, observando aqueles três no palco, Ka se deu conta da grande afinidade que havia entre eles. Olhando Kadife, de manto ainda na cabeça, assustou-se com a rapidez com que ela se adaptava ao universo peculiar do palco. E visto que ela iria descobrir a cabeça, pensou Ka, era uma pena que ainda usasse uma daquelas horríveis capas de chuva que as mulheres de cabeça coberta costumavam usar. Ele se sentiria bem mais próximo de Kadife se, como sua irmã, estivesse usando uma saia, deixando à mostra suas longas pernas. Mas quando ela desceu do palco para sentar-se ao seu lado, houve um momento em que ele entendeu por que Azul deixara Ipek e se apaixonara por Kadife.

       “Kadife, eu me encontrei com Azul. Eles o soltaram e agora ele está escondido. Mas ele não quer que você descubra a cabeça no palco esta noite. Ele lhe mandou um bilhete.”

       Antes que Sunay pudesse ver, ele passou o bilhete por baixo do braço, como quem passa cola para um colega, mas Kadife não se preocupou nem um pouco em disfarçar. Ela leu o bilhete abertamente e sorriu, por isso Ka levou algum tempo para ver as lágrimas em seus olhos cheios de fúria.

       “Seu pai acha a mesma coisa, Kadife. Você tem razão em querer descobrir a cabeça, mas seria uma loucura fazê-lo aqui no teatro esta noite, diante de todos esse raivosos estudantes da escola religiosa. Você não precisa ficar. Você pode dizer a eles que está se sentindo mal.”

       “Não preciso de desculpas. Sunay já me disse que estou livre para ir embora se quiser.”

       Ka logo sentiu que não estava tratando com uma menininha transtornada porque, na última hora, não conseguira permissão para participar da peça da escola. A raiva e a dor que ele lia em seu semblante eram por demais profundas.

       “Quer dizer que você pretende ficar aqui, Kadife?”

       “Sim. Vou ficar aqui e participar da peça.”

       “Você sabe o quanto isso vai perturbar seu pai?”

       “Dê-me o talismã que ele me mandou.”

       “Eu só falei de um talismã para que eles me deixassem falar com você a sós.”

       “Deve ser duro ser agente duplo.”

       Ka notou que Kadife estava arrasada, e com um pouco de dor percebeu que os pensamentos dela estavam bem longe. Teve vontade de abraçá-la, mas não o fez.

       “Ipek me contou do caso que teve com Azul”, disse Ka.

       Kadife pegou um maço de cigarros e, devagar, levou um aos lábios e o acendeu.

       “Eu entreguei o maço de cigarros e o isqueiro que você mandou para ele”, disse Ka, meio embaraçado. Por alguns instantes, os dois ficaram calados. “Você vai fazer isso porque está apaixonada por Azul? Diga-me uma coisa, Kadife. O que ele tem que a faz amá-lo tanto?”

       Quando Ka viu que estava cavando um buraco para si próprio, calou-se.

       Funda Eser falou do palco que chegara a hora da próxima cena de Kadife.

       Ela lançou a Ka um olhar cheio de lágrimas e se levantou. No último instante, eles se abraçaram. Ainda sentindo sua presença, sentindo-lhe o perfume, Ka se demorou um pouco assistindo ao ensaio, mas seus pensamentos estavam longe. Ele não entendia uma coisa: já não podia confiar nos próprios instintos. Ele sentia falta de alguma coisa. O ciúme e o remorso anulavam até o seu esforço para pensar logicamente. Mal conseguia identificar a causa daquela dor e não tinha a menor idéia de por que era tão destrutiva, tão violenta.

       Pensando nos anos que esperava passar com Ipek em Frankfurt — supondo que conseguisse levá-la consigo —, ele já antevia a dor avassaladora e destrutiva que iria minar sua felicidade. E enquanto cismava nisso ele acendeu um cigarro, a mente recusando-se teimosamente a organizar as idéias. Ele foi ao banheiro onde encontrara Necip dois dias antes e entrou no mesmo compartimento. Abrindo a janela que ficava no alto, contemplou a noite negra e se demorou ali, fumando, cheio de desespero.

       Ao primeiro sinal de que um novo poema estava a caminho, ele mal pôde acreditar. Prendendo a respiração, sacou o caderno para anotá-lo depressa. Achou que o poema lhe tinha sido enviado para o consolar, para lhe dar esperança. Mas, uma vez escrito, ele ainda sentia a dor esmagadora perpassando-lhe o corpo, e saiu do Teatro Nacional angustiado.

       Quando chegou à calçada coberta de neve, achou que o ar frio lhe faria bem. Seus dois guarda-costas do exército ainda o acompanhavam, e sua mente estava em completa confusão. A esta altura, para tornar minha história mais interessante e mais fácil de entender, deixo este capítulo pelo meio e começo outro. Isso não significa que Ka nada fez que merecesse ser narrado: é que primeiro preciso situar “O lugar onde o mundo acaba”, o poema que Ka anotou com tanta facilidade e que seria o último do livro a que ele daria o título de Neve.

 

  1. Todo mundo tem o seu floco de neve

O caderno verde perdido

“O lugar onde o mundo acaba”, o décimo nono poema que Ka escreveu em Kars, foi também o último. Como já sabemos, ele anotou dezoito poemas no caderno verde que levava aonde quer que fosse; ele os escreveu exatamente como os “ouvira”, ainda que aqui e ali ficassem faltando algumas palavras. O único poema que Ka não anotou foi o que ele leu no palco na noite da revolução. Ka fez referência a isso em duas cartas escritas em Frankfurt, que ele nunca enviou a Ipek. Nas duas cartas Ka o chamou de “O lugar onde Deus não existe”, e como não conseguiu tirá-lo de sua mente, ele disse que só daria por encerrada a nova série de poemas quando o encontrasse. Ele agradeceria muito se Ipek consultasse os arquivos da Televisão da Cidade Fronteiriça para ver se o encontrava. Quando li a carta pela primeira vez em meu quarto de hotel em Frankfurt, senti uma certa inquietação nas entrelinhas. Era quase como se tivesse receio de que Ipek imaginasse ser a história do poema um pretexto dele para escrever-lhe cartas de amor.

       No capítulo 29 eu contei que, ao voltar ao quarto de hotel em Frankfurt em certa noite, sentindo-me leve e agradavelmente embriagado e ainda com as fitas de Melinda na mão, dei com o diagrama de Ka de um floco de neve num caderno pego ao acaso. Embora certamente eu não possa saber a exata intenção dele, posso dizer que passei alguns dias lendo todos os cadernos de anotações, e achei que estava começando a perceber a intenção de Ka ao dar a cada um dos dezenove poemas uma posição no floco de neve.

       Depois de partir de Kars, ao que parece Ka leu muitos livros sobre neve, e uma de suas descobertas foi a seguinte: quando um floco de neve de seis pontas cristaliza, ele leva entre oito e dez minutos caindo do céu, perde sua forma original e desaparece. Quando, numa outra pesquisa, ele descobriu que a forma de cada floco de neve é determinada pela temperatura, pela direção e força do vento, pela altitude da nuvem e um sem-número de outras forças misteriosas, concluiu que as pessoas têm muito em comum com os flocos de neve. Foi um floco de neve que inspirou “Eu, Ka”, o poema que ele escreveu na biblioteca pública de Kars. Mais tarde, quando organizou os dezenove títulos para sua nova compilação, Neve, ele situou “Eu, Ka” no centro do mesmo floco de neve.

       Aplicando a mesma lógica a “Paraíso”, “Xadrez” e “A caixa de chocolate”, ele pôde ver que cada um desses poemas tinha, também, sua posição natural e única no floco de neve imaginário. Logo ele teve certeza de que cada poema em sua nova compilação — e na verdade, tudo o que fizera o homem que ele era — podia ser indicado no mesmo conjunto de eixos cristalinos. Tratava-se, em suma, de um floco de neve que dava um quadro do curso espiritual de todas as pessoas do mundo. Os três eixos nos quais ele dispusera seus poemas — Memória, Imaginação e Razão — inspiravam-se, segundo Ka, nas classificações da árvore do conhecimento de Bacon, mas ele escreveu extensamente sobre seus próprios esforços no sentido de elucidar o significado dos dezenove pontos do floco de neve de seis pontas.

       Os três cadernos de Ka com anotações sobre os poemas escritos em Kars constituem, em grande medida, tentativas de descobrir o sentido dessa geometria, mas a esta altura já deve ter ficado claro que ele estava tentando também descobrir o sentido de sua própria vida, e devemos procurar ver esses objetivos dessa mesma perspectiva. Por exemplo, ler suas reflexões sobre onde devia situar o poema “Ser morto a tiros” é espantar-se com a precedência que ele dá ao medo que inspirou o poema. Ele explica por que um poema inspirado pelo medo se situa próximo ao eixo chamado Imaginação, no alto do eixo denominado Memória, e próximo o bastante do poema “O lugar onde o mundo acaba” para sofrer sua influência. Permeando todos esses comentários, sua convicção de que todo o seu material poético foi moldado por misteriosas forças externas. E quando anotava esses pensamentos em seus cadernos, Ka estava convencido de que todo mundo tem o seu floco de neve; as existências individuais podem parecer idênticas vistas à distância, mas para entender a própria singularidade, sempre misteriosa, basta traçar um mapa dos mistérios do próprio floco de neve.

       A exegese de seus poemas e de seu floco de neve era muito vasta (Por que “A caixa de chocolate” se situa no eixo da Imaginação? Como o poema “Toda a humanidade e as estrelas” configurara o floco de neve de Ka?), mas não nos debruçaremos sobre essas notas mais do que nosso romance o requer. Quando jovem poeta, Ka tinha muitas críticas aos poetas mais velhos que se levavam a sério demais, principalmente os poetas que passavam os últimos anos de vida convencidos de que todas as bobagens por eles escritas um dia animariam o debate literário sério e que esculpiam as próprias estátuas, esquecendo-se de que ninguém queria olhar para elas.

       Se levamos em conta os muitos anos que passou criticando poetas de versos obscuros, reféns dos mitos do modernismo, só podemos imaginar uma ou duas desculpas para o extenso autocomentário de Ka. Uma leitura cuidadosa revela que Ka não se considerava o verdadeiro autor de nenhum dos poemas que lhe vieram à mente em Kars. Considerava-se antes um médium, o copista, de um modo bem exemplificado por precursores de suas bêtes noires modernistas. Mas, como ele escreveu em vários lugares, tendo escrito os poemas, agora estava resolvido a abandonar a passividade, e pretendia fazer isso procurando entendê-los e revelar sua secreta simetria. Mas havia também um objetivo mais imediato: se não entendesse o significado dos poemas de Kars, não teria esperança de preencher suas lacunas, completar os versos inacabados, nem recuperar o poema perdido — “O lugar onde Deus não existe” —, e não poderia, portanto, completar o livro. Porque depois que voltou para Frankfurt, não lhe veio à mente nenhum poema.

       É evidente, por suas anotações e cartas, que no final do quarto ano de sua volta a Frankfurt, Ka conseguira descobrir a lógica secreta de seus poemas e dar ao livro sua forma final. Foi por isso que, quando voltei ao meu quarto de hotel em Frankfurt com os papéis e anotações e outros pertences recolhidos em seu apartamento, passei toda a noite tomando raki e vasculhando aqueles despojos: eu repetia para mim mesmo que os poemas deviam estar entre suas coisas. Fiquei acordado a noite inteira, examinando suas anotações e vasculhando seus velhos pijamas, suas fitas de Melinda, suas gravatas, seus livros, seus isqueiros (me dei conta de que um deles era o que Kadife lhe pedira que desse a Azul), até finalmente cair no sono, mergulhando num mar de pesadelos e anelos, sonhos e visões. (Ka me apareceu num sonho terrível e me disse: “Você está velho”.)

       Acordei ao meio-dia e passei o resto do dia perambulando pelas ruas úmidas e cobertas de neve de Frankfurt, e embora eu agora não tivesse Tarkut Ölçun ao meu lado, fiz o possível para reunir o máximo de informações sobre Ka. As duas mulheres com as quais ele mantivera relações durante os oito anos anteriores a sua visita a Kars ficaram contentes em falar comigo. Eu lhes disse que estava escrevendo a biografia de meu amigo. Sua primeira amante, Nalan, nem ao menos sabia que ele era poeta, por isso não foi de surpreender que nada soubesse de seu novo livro. Ela agora estava casada e, junto com o marido, administrava duas lojas de döner e uma agência de viagens. Depois de me dizer grosseiramente que Ka era um homem briguento e mal-humorado, que se ofendia por qualquer coisa, ela derramou algumas lágrimas. (O que mais a atormentava era ter sacrificado a juventude pelos próprios ideais.)

       A segunda amante, Hildegard, ainda era solteira, e logo imaginei que ela nada devia saber do conteúdo de seus últimos poemas e tampouco que ele escrevera uma série intitulada Neve. Com um ar entre brincalhão e sedutor que atenuava meu sentimento de culpa por ter apresentado Ka como um poeta mais célebre do que de fato era na Turquia, ela me disse que Ka era uma criança cumpridora de seus deveres, inteligente e solitária, cuja vida era dominada por um desejo insaciável de carinho materno — ele sabia que nunca haveria de encontrar, mas mesmo que o encontrasse, trataria de evitá-lo. Por isso, embora inspirasse muito amor, era impossível viver com ele. Ka nunca falara de mim a ela. (Não tenho idéia de por que lhe fiz essa pergunta, e tampouco, aliás, por que a menciono aqui novamente.) Depois de uma conversa que durou uma hora e quinze minutos, Hildegard mostrou-me uma coisa que não notara: faltava-lhe a ponta do indicador de sua bela e delicada mão direita. Ela logo acrescentou, com um sorriso, que certa vez Ka, num momento de raiva, zombou dela por causa desse defeito.

       Ka terminara de escrever seu livro à mão e, como costumava fazer, não o mandou datilografar ou copiar; em vez disso, como fizera com os livros anteriores, saiu com o manuscrito em mãos para fazer uma rodada de leituras nas cidades de Kassel, Braunschweig, Hannover, Osnabrück, Bremen e Hamburgo. A convite das várias prefeituras, e com a ajuda de Tarkut Ölçün, iniciei minha própria rodada de saraus literários nessas mesmas cidades. Como Ka, que sempre foi grande admirador da eficiência germânica e de seus trens imaculados, viajei de cidade em cidade desfrutando dos mesmos confortos protestantes que Ka descrevera em um de seus poemas; como ele certamente o fez, sentei-me junto à janela e me pus a contemplar tranqüilamente as planícies cobertas de relva, as aldeias com as graciosas igrejinhas aninhadas ao pé das colinas e as pequenas estações cheias de crianças com suas lustrosas mochilas e capas de chuva. Os dois turcos enviados pela associação para me receber ouviram impassíveis, cigarro pendente da boca, quando expliquei meu desejo de fazer exatamente o que Ka fizera em seu próprio tour sete semanas antes; e então, assim como Ka, em cada cidade hospedei-me num hotelzinho barato e fui com meus anfitriões a um restaurante turco onde, enquanto comíamos börek de espinafre e döner, discutíamos política e lamentávamos que os turcos tivessem tão pouco interesse pela cultura; depois da refeição, eu saía a perambular pela cidade deserta e fria fingindo ser o próprio Ka a vagar pelas mesmas ruas tentando esquecer as dolorosas lembranças de Ipek. A noite, diante de um pequeno grupo de quinze ou vinte pessoas que tinham interesse em política, literatura e coisas turcas, eu lia sem muito entusiasmo uma ou duas páginas de meu último romance e então, passando a falar de poesia, dizia-lhes que eu era amigo íntimo do grande poeta Ka, que recentemente fora morto a tiros numa rua de Frankfurt. Por acaso alguém se lembrava de seus últimos poemas, “que ele lera ali havia pouco tempo?”.

       A maioria dos que freqüentavam os saraus não tinha comparecido à leitura de Ka, e os que compareceram o fizeram por motivos políticos ou simplesmente por acaso, a julgar pelo pouco que souberam me dizer sobre seus poemas, se comparado às muitas observações que fizeram sobre o casaco carvão que ele não tirou em nenhum momento, a palidez de seu rosto, o cabelo despenteado e os gestos nervosos. Mas mesmo aqueles que não se interessavam pela vida e pela poesia de Ka logo se mostraram interessados em sua morte. Ouvi muitas teorias conspiratórias: ele fora assassinado por islamitas, pelo serviço secreto turco, pelos armênios, skinheads alemães, curdos e nacionalistas turcos. Mas ficou claro também que em cada uma de suas leituras sempre houvera uma ou outra alma sensível que dera toda a atenção a Ka. Os que se interessavam muito por literatura confirmaram que ele de fato acabara de escrever uma nova série de poemas e que lera vários deles — “Ruas de sonho”, “Cão”, “Caixa de chocolate” e “Amor”—, mas não conseguiram lembrar nada de aproveitável sobre as composições em separado, exceto que eram bastante herméticas. Em muitas de suas leituras, Ka informou ter escrito os poemas em Kars, às vezes sugerindo que se tratava de elegias, principalmente para os nostálgicos das cidades e aldeias que tinham deixado para trás. Ao final de uma de minhas leituras de poemas, uma mulher de cabelos pretos, na casa dos trinta anos, que se apresentou dizendo ser viúva, mãe de um filho, disse-me que tinha se aproximado de Ka da mesma forma, depois de sua leitura, e que os dois conversaram sobre um poema chamado “O lugar onde Deus não existe”; ela achava que ele tinha lido apenas quatro versos do longo poema, porque não queria ofender ninguém. Por mais que tentasse, não consegui fazer que aquela amante de poesia se lembrasse de nenhuma palavra do poema, apenas que descrevia uma “paisagem terrível”. Mas tendo sentado na primeira fila durante a leitura de Ka em Hamburgo, ela pelo menos confirmou que ele lera os poemas num caderno verde.

       Naquela noite tomei o mesmo trem que Ka tomara de Hamburgo para Frankfurt. Quando cheguei à estação, fiz o mesmo caminho — avancei pela Kaiserstrasse, parando aqui e ali para dar uma olhada num sex shop. (Embora eu estivesse na Alemanha fazia apenas uma semana, já havia um novo vídeo de Melinda.) Quando cheguei ao lugar em que meu amigo tinha sido morto, parei, e dessa vez admiti o que inconscientemente já tinha aceitado: que o assassino fugira com o caderno verde. Agora só me restava uma única esperança depois daquela inútil semana de buscas pela Alemanha e das muitas horas que passara examinando as anotações de Ka: talvez eu conseguisse recuperar um poema nos arquivos de vídeo da emissora de televisão de Kars.

       De volta a Istambul, me peguei sintonizando os últimos noticiários da noite da televisão estatal e ouvindo os boletins meteorológicos relativos a Kars, para saber como estaria o clima quando lá chegasse. Como Ka, cheguei a Kars à noite, depois de uma viagem de ônibus de um dia e meio. De mala na mão, timidamente reservei um quarto no Hotel Palácio de Neve (onde não vi nenhum sinal do pai nem de suas duas misteriosas filhas). Saí então para explorar a cidade, percorrendo as mesmas calçadas cobertas de neve que Ka disse ter percorrido quatro anos antes, e embora eu não possa dizer que o ritmo de meus passos era igual ao dele, avancei o bastante para descobrir que o estabelecimento que ele conhecera como Café Campos Verdejantes agora era uma cervejaria de quinta categoria. De qualquer modo, não quero que meus leitores imaginem que eu estava tentando me tornar sua sombra póstuma. Como o próprio Ka tantas vezes me dissera, eu simplesmente não entendia o suficiente de poesia, tampouco da grande tristeza de onde ela nasce, de forma que sempre houvera uma muralha a nos separar, uma muralha que agora me separava não apenas da cidade melancólica descrita em suas anotações, mas também do lugar empobrecido que eu estava vendo com meus próprios olhos. Houve, naturalmente, uma pessoa que apesar disso observou uma semelhança entre nós; é essa pessoa que agora nos mantém juntos. Mas por enquanto não vamos falar disso.

       Sempre que me lembro da surpresa que senti quando vi Ipek pela primeira vez no jantar que o prefeito ofereceu em minha honra, só tenho vontade de atribuir minha perturbação ao excesso de raki, de poder dizer que a bebida me fez perder a cabeça, fazendo-me crer que eu tinha uma chance, e que não era outro o motivo para a inveja que comecei a sentir de meu falecido amigo. Mais tarde, no Hotel Palácio de Neve, enquanto eu estava à janela contemplando uma nevada muito menos poética — uma neve úmida que derretia em contato com o calçamento enlameado da cidade — que a descrita por Ka, não pude deixar de me perguntar por que razão, tendo lido as anotações de meu amigo tão atenta e tão longamente, eu não conseguira entender a dimensão da beleza de Ipek. Sem saber por quê, saquei um caderno — exatamente como Ka, vocês podiam dizer, e, de fato, me peguei usando essa expressão cada vez mais — e anotei os pensamentos que se poderiam considerar o germe do livro que vocês estão lendo. Lembro-me de tentar contar a história de Ka, de seu amor por Ipek, como ele próprio teria contado. Num canto nebuloso de minha mente, aflorou a lembrança de uma verdade alcançada à custa de uma experiência amarga: envolver-se com os problemas de compor um livro é uma boa maneira de evitar ficar pensando no amor.

       Ao contrário do que popularmente se acredita, um homem pode se furtar ao amor, se assim o desejar. Mas para isso ele deve se livrar não apenas da mulher que o seduziu, mas também da terceira pessoa da história, o fantasma que pôs a tentação em seu caminho. Eu, porém, já tinha marcado um encontro com Ipek para a tarde seguinte na Confeitaria Vida Nova, com o objetivo de conversar sobre Ka.

       Ou talvez o meu desejo de conversar sobre Ka me permitisse ter acesso a ela. Nós éramos os únicos clientes na confeitaria. Na mesma televisão preto-e-branco, dois amantes abraçavam-se na ponte Bósforo. Ipek confessou logo de início que lhe era muito difícil falar sobre Ka. Ela só conseguia falar sobre sua dor e sua desilusão com alguém que a ouvisse pacientemente, portanto era um alívio saber que eu era um amigo íntimo que valorizava a poesia de Ka a ponto de se dar ao trabalho de viajar até Kars. E se conseguisse me convencer de que não fora injusta com ele, ela se sentiria aliviada de sua aflição pelo menos por algum tempo. Mas me advertiu também que sofreria muito se eu não acreditasse em sua história ou não a entendesse. Ela estava com a mesma saia comprida marrom com que servira o café-da-manhã de Ka na “manhã da revolução”; e na cintura o mesmo cinto fora de moda (ambos reconhecíveis para alguém que tivesse lido as anotações de Ka). Havia lampejos de ódio em seus olhos, mas sua expressão era de grande tristeza, e me fez lembrar Melinda.

       Ela falou durante muito tempo, e eu bebi cada uma de suas palavras.

 

  1. Vou arrumar as malas

Do ponto de vista de Ipek

       Quando, a caminho do Teatro Nacional, seguido de seus dois guarda-costas, Ka parou para lançar um último olhar a Ipek, ela ainda estava esperançosa, ainda convicta de que aprenderia a amá-lo ternamente. Saber que podia aprender a amar um homem sempre significou muito mais para ela do que o amar sem esforço, mais ainda do que se apaixonar, e era por isso que agora se sentia no limiar de uma nova vida, uma felicidade que devia ser muito duradoura.

       Assim, durante os primeiros vinte minutos que se seguiram à partida de Ka, ela não se sentia especialmente perturbada por se achar trancada num quarto por um amante ciumento. Seus pensamentos se voltavam para a mala: se ela conseguisse concentrar-se agora nas coisas que queria manter junto de si durante toda a sua vida, ser-lhe-ia mais fácil, pensava ela, separar-se do pai e da irmã. E se ela conseguisse resolver o que deveria levar durante aquele breve cativeiro, eles teriam uma chance maior de deixar Kars sãos e salvos na primeira oportunidade.

       Depois de passada meia hora sem o menor sinal de Ka, Ipek acendeu um cigarro. Aquela altura ela já se perguntava se não fora tola em acreditar que tudo correria de acordo com o planejado. O fato de estar presa no quarto só aumentava sua ansiedade, e ela ficava cada vez mais furiosa consigo mesma e com Ka. Vendo Cavit atravessar às pressas o pátio, sentiu-se tentada a abrir a janela e chamá-lo, mas antes que se resolvesse a fazer isso o rapaz já sumira de sua vista. Ela ainda estava cheia de dúvidas, mas ainda esperava que Ka voltasse a qualquer momento.

       Quarenta e cinco minutos depois da saída de Ka, Ipek conseguiu forçar a janela coberta de gelo. Ela chamou um jovem que estava passando na rua — um jovem desorientado da escola religiosa que dera um jeito de não ser carregado para o Teatro Nacional — e pediu-lhe que fosse à recepção do hotel dizer que ela estava trancada no quarto 203. O rapaz estava muito desconfiado, mas entrou no hotel. Momentos depois, o telefone do quarto tocou.

       “Que diabos você está fazendo no quarto de Ka?”, disse Turgut bei. “Se estava presa no quarto, por que não pegou o telefone?”

       Um minuto depois, seu pai abriu a porta com uma chave mestra. Ipek disse a Turgut bei que queria acompanhar Ka ao Teatro Nacional, mas ele a trancara no quarto para protegê-la do perigo, e como os telefones de Kars não estavam funcionando, ela achou que também os do hotel não estavam.

       “Acontece que os telefones estão funcionando, e não só os daqui mas os de toda a cidade”, disse Turgut bei.

       “Já faz muito tempo que Ka saiu, e estou começando a ficar preocupada”, disse Ipek. “Vamos ao teatro ver o que aconteceu.”

       Apesar da pressa, Turgut bei levou um bom tempo preparando-se para sair. Primeiro não conseguia achar as luvas, depois disse ter certeza de que Sunay ficaria ofendido se não fosse de gravata. Ele insistiu em não andar depressa, em parte porque não tinha energia para isso, em parte porque tinha muitos conselhos a dar a Ipek e queria que ela os ouvisse com atenção.

       “Faça o que fizer, não discuta com Sunay”, disse Ipek. “Não se esqueça de que ele é um herói jacobino que acaba de ser investido de poderes especiais.”

       Vendo os curiosos agitando-se próximo à entrada do Teatro Nacional, estudantes da escola secundária religiosa que tinham sido levados em ônibus, vendedores ambulantes, soldados e policiais que havia muito ansiavam por aquele tipo de ajuntamento, Turgut bei lembrou-se de seu próprio alvoroço, quando jovem, ao participar de reuniões políticas. Ele segurou o braço de Ipek com mais força, entre alegre e temeroso, buscando uma oportunidade, a de uma discussão, por exemplo, para participar da agitação à sua volta. Quando ele viu que não conhecia a maioria dos presentes, empurrou para o lado um dos jovens que estavam na entrada, mas logo se sentiu envergonhado.

       O auditório ainda não estava cheio, mas já havia uma atmosfera familiar no vasto teatro. Aquilo fez Ipek se lembrar daquele tipo de sonho no qual você encontra todos os seus conhecidos reunidos numa multidão à sua frente. Mas não havia nem sinal de Ka nem de Kadife, e isso a preocupou. Um sargento os puxou para o corredor.

       “Sou o pai da atriz principal, Kadife Yildiz”, reclamou Turgut bei. “Preciso vê-la imediatamente.”

       Turgut bei parecia um pouco um pai que viera na última hora impedir que a filha interpretasse o papel principal em alguma peça escolar censurável, e o sargento, assustado, reagiu como um professor que deixa o trabalho de lado para ajudar o pai — cuja preocupação ele sabia ser plenamente justificada. Eles esperaram um pouco numa sala cheia de fotos de Atatürk e Sunay, e então Kadife apareceu sozinha à porta. Vendo-a, Ipek percebeu imediatamente que, independentemente do que dissessem à irmã, ela participaria da peça naquela noite.

       Ipek perguntou por Ka, e Kadife disse que eles tinham conversado um pouco, mas ele já voltara para o hotel. Ipek se perguntou por que não cruzaram com ele no caminho, mas logo esqueceu o assunto: Turgut bei, às lágrimas, implorava à filha que não participasse da peça.

       “A esta altura, depois toda a divulgação que se fez da peça, seria mais perigoso não participar, querido pai”, disse Kadife.

       “Quando você descobrir a cabeça, Kadife, você tem idéia do quanto enfurecerá os rapazes da escola religiosa, para não falar em todos os demais?”

       “Francamente, pai, depois de todos esses anos você não acha irônico me pedir que cubra a cabeça?”

       “Não vejo nenhuma graça nisso, minha pequena Kadife”, disse Turgut bei. “Diga-lhes que está se sentindo mal.”

       “Não me sinto mal.”

       Turgut bei choramingou. Ipek percebeu que o pai fingia aquele choro como sempre fazia quando queria explorar o lado sentimental de um problema. Havia na angústia do velho algo tão fácil e superficial que muitas vezes fazia Ipek desconfiar que no fundo ele chorava pelo motivo oposto ao que anunciava. Houve um tempo em que ela e a irmã consideravam aquilo cativante, mas agora, diante de um problema que era urgente resolver, elas acharam aquele comportamento de uma banalidade embaraçosa.

       “A que horas Ka saiu daqui?”, sussurrou Ipek.

       “Ele já devia ter chegado no hotel há algum tempo”, disse Kadife, no mesmo tom de preocupação.

       O olhar das duas irmãs traía o seu pavor.

       Quando me encontrei com Ipek na Confeitaria Vida Nova quatro anos depois, ela me disse que naquele momento elas estavam preocupadas não com Ka, mas com Azul, e enquanto se comunicavam tacitamente com o olhar, não prestavam a menor atenção no pai. Aquela altura não pude deixar de ver naquela franqueza uma prova de que se sentia próxima de mim, e imaginei que não seria capaz de interpretar o final desta história de outro ponto de vista que não o dela.

       Por um instante, as duas irmãs ficaram caladas.

       “Ele lhe disse que Azul não queria que você subisse ao palco, não disse?”, falou Ipek.

       Kadife lançou-lhe um olhar advertindo-a de que o pai podia ouvi-la. As duas olharam para o pai e notaram que, apesar das lágrimas, ele estava muito atento.

       “Pai, você não se importa que a gente tenha uma palavrinha a sós?”

       “Quando vocês duas se põem a pensar juntas, têm muito mais discernimento do que eu”, disse Turgut bei. Ele saiu da sala, deixando a porta aberta.

       “Você pensou bem sobre o que está fazendo, Kadife?”, disse Ipek.

       “Pensei, sim.”

       “Não tenho dúvidas quanto a isso”, disse Ipek. “Mas você se dá conta de que talvez nunca mais o veja?”

       “Talvez não”, disse Kadife em tom cauteloso. “Mas estou furiosa com ele.”

       A história de Kadife com Azul fora cheia de altos e baixos, discussões seguidas de propostas de paz que levaram a acessos de ciúmes, e Ipek rememorava a longa história secreta do casal com um pouco de desespero. Fazia quantos anos mesmo? Ela não tinha bem certeza, principalmente porque ela não queria computar o tempo em que Azul mantinha relações com elas duas. Ela pensou em Ka com ternura. Graças a ele, ela conseguira esquecer Azul.

       “Ka tem muito ciúme de Azul”, disse Kadife. “E está loucamente apaixonado por você.”

       “Achei difícil acreditar que ele se apaixonasse tão intensamente em tão pouco tempo”, disse Ipek, “mas agora eu acredito.”

       “Vá para a Alemanha com ele.”

       “Assim que chegar em casa vou arrumar as malas”, disse Ipek. “Você acha mesmo que Ka e eu poderemos ser felizes na Alemanha?”

       “Sim, acredito”, disse Kadife. “Mas pare de contar a ele sobre seu passado. Ele já sabe demais, e pode imaginar muito mais.”

       Ipek odiava quando sua irmã mais nova falava com ela em tom tão condescendente, como uma mulher muito vivida. Por isso respondeu: “Você fala como se não fosse voltar para casa depois que a peça acabar”.

       “Claro que vou voltar para casa”, disse Kadife, “mas pensei que você ia embora imediatamente.”

       “Você tem idéia de aonde Ka pode ter ido?”

       Quando seus olhares se cruzaram, Ipek sentiu que as duas temiam a mesma coisa.

       “Deixe-me ir”, disse Kadife. “Já é hora de fazer a maquiagem.”

       “Uma coisa que me alegra mais do que ver você descobrir a cabeça é nunca mais pôr os olhos nessa sua capa roxa”, disse Ipek.

       A capa descia até o chão, e naquele momento Kadife fez uma pirueta desafiadora que fez a sua barra erguer-se no ar. Quando elas viram que Turgut bei, que as olhava da porta, finalmente sorria, as irmãs lançaram-se nos braços uma da outra e beijaram-se.

     Turgut bei deve ter se conformado com o fato de Kadife participar da peça, porque dessa vez não chorou nem deu conselhos. Ele já tinha feito seu papel. Abraçou a filha caçula, beijou-lhe as faces e começou a abrir caminho no auditório superlotado, acompanhado por Ipek.

       Ao passarem pela agitação da entrada e também a caminho do hotel, Ipek manteve os olhos atentos, à procura de Ka. Não tendo visto nem sinal dele, começou a procurar alguém que pudesse saber de seu paradeiro, mas nas ruas não havia ninguém que pudesse ajudá-la. Como ela haveria de me dizer muito depois: “Assim como Ka conseguia inventar razões para o pessimismo, passei os quarenta e cinco minutos seguintes inventando razões idiotas para o otimismo”.

       Ao chegar em casa, Turgut bei foi direto à televisão. Enquanto ele assistia, fascinado, aos intermináveis anúncios sobre a transmissão ao vivo, Ipek arrumava as malas. Toda vez que começava a se perguntar onde estaria Ka, tentava concentrar-se na felicidade que os esperava na Alemanha e em escolher as roupas que levaria consigo. Em seguida começou a arrumar outra mala com as coisas que já tinha excluído, na suposição de que havia “coisas de muito melhor qualidade na Alemanha”, e enquanto revolvia meias e peças íntimas, perguntando-se se, para sua decepção, não encontraria nada do mesmo tipo no lugar para onde ia, algo lhe disse que olhasse pela janela. Ele viu então o caminhão do exército que levara Ka pela cidade adentrando o pátio.

       Ela desceu ao térreo e viu que seu pai estava na porta. Um funcionário bem barbeado, de nariz adunco, que ela nunca vira antes, disse: “Turgut Yildiz”, e enfiou um envelope selado em suas mãos.

       Com o rosto pálido e mãos trêmulas Turgut bei abriu o envelope e encontrou uma chave. Vendo que a carta que estava dentro era endereçada a sua filha, passou-a a Ipek.

       A título de autodefesa, mas também para garantir que tudo o que se escrevesse sobre Ka devia registrar todos os dados disponíveis, Ipek resolveu me mostrar a carta, no encontro que tivemos quatro anos depois.

Quinta-feira, às 8 da noite

Turgut bei:

Peço-lhe que com essa chave abra meu quarto para que Ipek possa sair e que entregue esta carta a ela. Assim será melhor para todos. Com as minhas desculpas.

Respeitosamente,

Ka

       Minha querida, não consegui dissuadir Kadife. Os soldados me trouxeram para o quartel-general, para garantir minha segurança. A estrada para Erzurum já reabriu, e eles querem que eu tome o primeiro trem, que parte às nove e meia. Você deve arrumar sua mala e também a minha, e vir imediatamente. O caminhão do exército vai pegá-la às nove e quinze. Não saia às ruas de modo algum. Venha para mim! Eu a amo muito. Vamos ser muito felizes.

       O homem de nariz adunco disse que voltaria depois das nove e foi embora.

       “Você vai?”, perguntou Turgut bei.

       “Ainda estou preocupada com o que possa ter acontecido com ele”, disse Ipek.

       “Os soldados o estão protegendo, não há o que temer. Você vai nos deixar e partir?”

       “Acho que posso ser feliz com ele”, disse Ipek. “Até Kadife disse isso.”

       Em sua mão estava o documento que lhe garantia a felicidade futura, e agora, quando o tornava a ler, começou a chorar, sem saber ao certo por quê.

       “Talvez porque eu temesse deixar meu pai e minha irmã”, me diria ela quatro anos depois. Na ocasião, eu achava que meu grande interesse em cada detalhe dos sentimentos de Ipek se devia a minha necessidade de ouvir sua história. Então ela disse: “E talvez eu estivesse preocupada com as outras coisas que me passavam pela cabeça”.

       Quando Ipek conseguiu parar de chorar, foi ao seu quarto com o pai para terminar de arrumar as malas, depois ao quarto de Ka para colocar todos os pertences dele em sua grande mala cor de cereja. Pai e filha agora estavam muito esperançosos. Dedos cruzados, diziam um ao outro que logo Kadife terminaria seu curso, e então iria, junto com Turgut bei, visitar Ipek em Frankfurt.

       Arrumadas as malas, desceram ao térreo e se sentaram juntos diante da televisão para ver Kadife.

       “Espero que a peça seja curta para que você saiba que essa história está liquidada antes de pegar o trem!”, disse Turgut bei.

       Eles pararam de falar e aconchegaram-se um ao outro como costumavam fazer quando assistiam à novela, mas Ipek não conseguia concentrar-se no que estava vendo. Anos depois, tudo o que ela conseguia lembrar dos primeiros vinte e cinco minutos era a visão de Kadife entrando no palco com a cabeça coberta, trajando um vestido vermelho-brilhante longo, e sua fala: “Tudo o que quiser, querido pai”. Percebendo o quanto eu estava curioso para saber o que ela pensava naquele momento, ela acrescentou: “Claro que meus pensamentos estavam em outro lugar”. Perguntei muitas vezes onde eles poderiam estar, mas ela só se permitiu dizer que eles estavam na viagem que iria fazer com Ka.

       Mais tarde sua mente foi avassalada por medos que ela nunca poderia reconhecer para si mesma, e muito menos enunciá-los para mim. Com as janelas de sua mente escancaradas, todas as coisas, exceto o aparelho de televisão, pareciam muito distantes. Ela se sentia como um viajante que, de volta de uma longa viagem, descobre que enquanto estava fora sua casa sofrera mudanças misteriosas: todas as peças estavam menores que as de sua lembrança, e todos os móveis muito mais deteriorados. Olhando à sua volta, tudo — as almofadas, a mesa, e mesmo as dobras das cortinas — a surpreendia. Ante a oportunidade de ir para um lugar completamente estranho, agora ela conseguia ver seu próprio lar pelos olhos de um estrangeiro. Era assim que se sentia, disse-me ela. E, ao seu ver, o cuidadoso relato que me fez na Confeitaria Vida Nova constituía uma prova irrefutável de que ainda pretendia partir para Frankfurt com Ka naquela noite.

       Quando a campainha tocou, Ipek correu para a entrada do hotel. O caminhão do exército que deveria levá-la à estação chegara adiantado. Procurando controlar o medo, disse ao funcionário que se encontrava à porta que num instante estaria pronta. Ela correu para junto do pai, sentou-se ao seu lado e o abraçou com todas as suas forças.

       “O caminhão já chegou?”, perguntou Turgut bei. “Se suas malas estão prontas, ainda temos algum tempo.”

       Ipek passou os minutos seguintes olhando vagamente para Sunay na tela. Sem conseguir parar quieta, correu para seu quarto e, depois de embalar as sandálias, o pequeno estojo de costura e o espelho que ficara junto à janela, sentou-se à beira da cama e se pôs a chorar.

       Pelo que se lembra, quando ela desceu ao térreo já não tinha dúvidas quanto a sua decisão de partir da cidade com Ka. Livre das hesitações que lhe envenenavam a mente, estava novamente em paz, decidida a passar os últimos minutos em casa, assistindo à televisão com o pai.

       Quando Cavit, o moço da recepção, lhe disse que havia uma pessoa à porta, Ipek não se preocupou nem um pouco. Turgut bei lhe pediu que pegasse uma Coca-Cola na geladeira, e ela a trouxe com dois copos, para dividir a bebida com ele.

       Ipek disse que nunca iria esquecer o rosto de Fazil, quando ela o viu esperando na porta da cozinha. Era claro por sua expressão que acontecera alguma coisa terrível, e foi então que Ipek percebeu que Fazil era um membro de sua família, alguém que lhe era muito próximo.

       “Eles mataram Azul e Hande!”, disse Fazil. Ofegante, ele bebeu de um só gole metade da água que Zahide lhe trouxera num copo. “Só Azul poderia dissuadi-la.”

       Fazil se pôs a chorar e Ipek ficou olhando para ele, sem ação. Numa voz entorpecida que parecia vir do mais fundo de si, ele contou que Azul se escondera com Hande e que um grupo de soldados dera uma batida no local e os matou. Ele tinha certeza de que alguém os entregara: caso contrário, não teriam mandado tantos soldados. E não havia possibilidade de ele, Fazil, ter sido seguido: quando chegou lá, tudo já estava acabado, e ele presenciou, junto com muitas crianças das casas vizinhas, o holofote da polícia iluminando o corpo de Azul.

       “Posso ficar aqui?”, perguntou Fazil. “Não quero ir a nenhum outro lugar.”

       Ipek trouxe outro copo para que ele também tomasse o refrigerante. Em seu desespero, não conseguia achar o abridor. Ela ficou procurando nas gavetas erradas e em armários em que ele não poderia estar. De repente ela se lembrou da blusa florida que estava usando no dia em que conheceu Azul e se lembrou de que a colocara na mala. Ela fez Fazil entrar e sentar na cadeira próxima à cozinha em que Ka, depois de embriagar-se na noite de quarta-feira, se sentou para escrever seu poema. Então, como um doente que sacudiu toda a dor que lhe varava o corpo, ela relaxou. Deixando o rapaz vendo Kadife na tela e bebericando sua Coca-Cola, foi para o outro extremo da sala e serviu um segundo copo ao pai.

       Ela subiu para o seu quarto e lá ficou no escuro por um momento. Parou no quarto de Ka para pegar a mala cor de cereja, foi para a rua, andou no frio em direção ao oficial ao lado do caminhão do exército e disse-lhe que resolvera ficar na cidade.

       “Ainda dá para pegar o trem”, disse o oficial querendo ajudar.

       “Mudei de idéia. Eu não vou, mas muito obrigado. Por favor, entregue esta mala a Ka bei.”

       Ela voltou para o hotel, e quando se sentou ao lado do pai, eles ouviram o motor do caminhão acelerar.

       “Eu os dispensei”, disse Ipek ao pai. “Eu não vou.”

       Turgut bei a abraçou. Por um instante, ficaram olhando a peça na televisão, mas sem ver nada. Quando o primeiro ato chegava ao fim, Ipek disse: “Vamos ver Kadife! Tenho uma coisa a lhe dizer”.

 

  1. O principal motivo do suicídio das mulheres é o desejo de salvar o amor-próprio

O último ato

       O dia já ia bem avançado quando Sunay resolveu mudar o título da peça inspirada em A tragédia espanhola, de Thomas Kyd, mas cujo final mostrava muitas outras influências. Na verdade, foi somente na última meia hora da inexorável campanha promocional que os anúncios da televisão começaram a falar de A tragédia em Kars. A mudança veio tarde demais para os que já estavam no teatro. Muitos tinham sido trazidos em ônibus militares; outros tinham visto o anúncio da peça e vieram para mostrar sua fé num exército forte; muitos não se importavam com a possibilidade de um desfecho catastrófico, contanto que tivessem a oportunidade de testemunhá-lo com seus próprios olhos (já corriam boatos de que a “transmissão ao vivo” na verdade era uma fita enviada da América); estavam presentes também os funcionários públicos municipais, que receberam ordens de comparecer (desta vez eles resolveram deixar suas famílias em casa). Poucos dos presentes estavam informados do novo título, mas mesmo estes pouco atinavam do conteúdo e, como o resto da cidade, tinham muita dificuldade em acompanhar a peça.

       Quatro anos depois de sua primeira e última apresentação, encontrei o videoteipe de A tragédia em Kars nos arquivos da Televisão da Cidade Fronteiriça. A primeira parte é praticamente impossível de ser resumida. Entendi que se tratava de uma disputa sangrenta numa cidade “atrasada, empobrecida e ignorante”, mas quando seus habitantes começaram a se matar, eu não entendi o motivo daquilo tudo, e tampouco os assassinos e suas vítimas deram nenhuma pista que ajudasse a esclarecer a razão daquela carnificina. Apenas Sunay esbravejava contra o atraso daquelas disputas sangrentas e das pessoas que se deixavam arrastar por elas; ele discutia o assunto com sua esposa e com uma jovem que parecia entendê-lo melhor (esta última era Kadife). Embora o personagem de Sunay fosse um rico e esclarecido membro da elite dominante, gostava de dançar e pilheriar com os aldeões mais pobres e envolvê-los em discussões eruditas sobre o sentido da vida, além de brindá-los com cenas de Shakespeare, Victor Hugo e Brecht, nem que fosse para apresentar a prometida “peça dentro da peça”. Ele declarava também uma série de curtos solilóquios sobre temas como o trânsito na cidade, maneiras à mesa, as peculiaridades que os turcos e os muçulmanos nunca haverão de abandonar, as glórias da Revolução Francesa, as virtudes da culinária, dos preservativos e do raki, a dança do ventre das prostitutas ricas. Nem essas discussões nem as subseqüentes explanações sobre marcas de xampu e de cosméticos adulterados contribuíam um mínimo que fosse para esclarecer as cenas sangrentas em que se inseriam, e à medida que se sucediam as explosões de violência, ia ficando mais difícil imaginar que elas tinham um mínimo de lógica.

       Mas a desvairada série de improvisos merecia uma certa atenção, quanto mais não fosse pela apaixonada performance de Sunay. Quando sentia que a ação começava a se arrastar, que a platéia estava perdendo o interesse, Sunay sempre encontrava uma forma de pô-la novamente sob seu fascínio; ele se tomava de grande exaltação e, assumindo uma bela pose teatral dos mais ilustres papéis de sua carreira, investia contra os que tinham reduzido o povo àquela situação deplorável; com trágica naturalidade, ele se punha a andar pelo palco falando de lembranças da juventude e citava Montaigne a propósito da amizade, enquanto cismava sobre a solidão absoluta de Atatürk. Seu rosto estava coberto de suor. Durante minha estada em Kars pude conhecer Nuriye Hanim, a professora que amava literatura e história e que se deixou arrebatar pela performance de Sunay na noite da revolução; ela me disse que todos os que estavam na primeira fila sentiam o cheiro do raki. Apesar disso, ela insistiu que Sunay não estava embriagado; ela preferia o termo entusiasmado. Mas outros que estavam na mesma fila confirmaram esse chamado arrebatamento. Era um grupo muito heterogêneo: muitos eram funcionários de meia-idade que tinham arriscado a vida para chegar tão perto daquele homem quanto o decoro o permitia. Havia viúvas e outros que talvez pudessem ser classificados como jovens kemalistas — e eles já tinham visto centenas de imagens dele na televisão. Havia também uns poucos sedentos de aventura, por assim dizer, ou pelo menos interessados no poder. Mas todos eles falaram do brilho nos olhos de Sunay, que se irradiava em todas as direções. Era perigoso, disseram eles, olhar naqueles olhos por mais de alguns segundos.

       Um dia eu haveria de ouvir o testemunho de um dos rapazes da escola secundária religiosa que tinham sido colocados à força num veículo militar e levados para o Teatro Nacional. Seu nome era Mesut (era um dos que se opunham a que se enterrassem ateus e crentes no mesmo cemitério). Ele confirmou que Sunay os manteve fascinados. Talvez tenha me confessado isso porque, depois de quatro anos com um pequeno grupo islamita de Erzurum, ele perdera a fé na luta armada e voltara para Kars para trabalhar numa casa de chá. Ele me disse ser muito difícil para os outros rapazes da escola religiosa falar abertamente sobre o poder absoluto de Sunay, coisa que eles próprios desejavam. Talvez eles se sentissem aliviados pelas muitas restrições que Sunay impusera aos seus movimentos, que tornaram impossível correr riscos estúpidos como incitar uma sublevação. “Toda vez que o exército entra em cena, a maioria das pessoas se sente secretamente agradecida”, disse-me o rapaz, e então confessou que seus colegas ficaram muito impressionados com a coragem de Sunay. Lá estava ele, o homem mais poderoso da cidade, sem medo de andar a passos largos no palco e desnudar sua alma para as multidões.

       Olhando o videoteipe do espetáculo daquela noite nos arquivos da Televisão da Cidade Fronteiriça, fiquei espantado com o silêncio que se fazia no salão. Era como se as multidões tivessem deixado para trás as lutas que as caracterizavam — as brigas entre pais e filhos, as escaramuças entre acusadores e acusados — para mergulhar num terror coletivo. E eu próprio não estava imune ao poder daquela agonizante ficção que todo cidadão de um país despótico e agressivamente nacionalista entende muito bem: a mágica sensação de unidade conjurada pela palavra nós. Na visão de Sunay, era como se não existisse um único estranho no salão: todos estavam inextricavelmente unidos pela mesma história sem esperança.

       Mas Kadife ameaçava quebrar esse transe, o que talvez explique a resistência do povo de Kars em aceitar sua presença no palco. O operador de câmera que captava as imagens no palco parecia ter consciência dessa ambivalência: nas cenas mais animadas, ele focalizava Sunay, excluindo totalmente Kadife; assim, os telespectadores só podiam vê-la como mera coadjuvante, como uma criada de peça de bulevar. Ainda assim, todos tinham ouvido os anúncios que a televisão transmitira a partir do meio-dia, e agora estavam curiosos para ver se ela ia descobrir a cabeça. E houve a costumeira avalanche de boatos contraditórios — segundo uns, Kadife apenas cumpria ordens do exército; segundo outros, ela não entraria em cena de modo algum —, mas depois de meio dia de um verdadeiro bombardeio publicitário, mesmo aqueles que tinham apenas vagas notícias do caso do manto agora sabiam tudo sobre Kadife. Foi por isso que, num primeiro momento, sua entrada em cena com o manto, cujo destino ainda estava incerto, e sua presença mais que discreta, apesar do vestido longo vermelho, decepcionaram tanto.

       Vinte minutos depois de começada a peça, um breve diálogo entre Kadife e Sunay deu uma primeira pista sobre o que estava por vir. Eles estavam sozinhos no palco, e Sunay perguntou-lhe se ela se decidira, acrescentando achar “imperdoável uma pessoa se suicidar só por raiva dos outros”.

       Kadife deu a seguinte resposta: “Numa cidade em que os homens se matam feito animais para torná-la um lugar mais feliz, quem tem o direito de impedir que eu me suicide?”. Então, vendo Funda Eser andando a passos largos em sua direção, ela tratou de sair depressa — deixando no ar a dúvida se aquilo fazia parte da peça ou era uma fuga improvisada de afogadilho.

       Depois de ter conversado com todas as pessoas que se dispuseram a isso, tentei reconstruir, minuto por minuto, a evolução dos acontecimentos, sincronizando o espetáculo com a ação fora do palco; e foi assim que cheguei à conclusão de que a última vez que Azul viu Kadife foi no momento em que ela dizia essa fala. Porque segundo os vizinhos que testemunharam a batida no esconderijo de Azul, e também os vários agentes da polícia que ainda trabalhavam em Kars à época da minha visita, Azul e Hande estavam assistindo à televisão quando a campainha tocou. Segundo o relatório oficial, Azul lançou um olhar aos soldados e aos oficiais da polícia aglomerados lá fora e correu a buscar sua arma; ele não hesitou em abrir fogo; segundo vários vizinhos, porém, e segundo os jovens islamitas, que fariam dele uma lenda quase da noite para o dia, ele teria tentado salvar Hande gritando “Não atirem!”; a equipe de operações especiais de Z Demirkol já tinha cercado o local, e em menos de um minuto não apenas Azul e Hande mas também toda a casa estavam crivados de balas. O barulho foi terrível, mas só umas poucas crianças curiosas da vizinhança prestaram alguma atenção. Não só porque os habitantes de Kars já estavam acostumados àquelas batidas noturnas: eles simplesmente não queriam desviar a atenção da transmissão do programa ao vivo, diretamente do Teatro Nacional. Todas as ruas da cidade estavam desertas, todas as janelas fechadas, e afora uma única casa de chá com uma televisão, não havia nenhum estabelecimento comercial aberto.

       Sunay tinha plena consciência de que todos os olhos da cidade estavam voltados para ele, o que o fazia se sentir não apenas seguro mas extraordinariamente poderoso. Sabendo que sua própria presença no palco dependia da permissão de Sunay, Kadife buscava sua aprovação mais que o faria em outras circunstâncias. Ela tinha de aproveitar ao máximo as oportunidades que Sunay lhe oferecera, se quisesse ter alguma chance de concretizar seus próprios planos. (Ao contrário de Ipek, ela se recusou a dar sua própria versão dos acontecimentos, por isso não posso saber o que mais ela estava pensando.) Nos quarenta minutos seguintes, quando o público começou a entender que Kadife se via diante de duas importantes decisões — uma em relação a descobrir a cabeça, outra em relação a suicidar-se —, sua admiração por ela crescia mais e mais. E à medida que sua estatura crescia, a peça transformava-se num drama mais sério que o pretendido pelo ímpeto meio didático meio burlesco de Sunay e de Funda. Embora não pudessem esquecer totalmente Kadife, a jovem do manto, muitos que ficaram angustiados com sua história durante anos me disseram que Sua nova persona conquistara o coração do povo de Kars. Aí pelo meio da peça, o público mergulhava em profundo silêncio toda vez que ela entrava em cena; toda vez que ela falava, as pessoas que assistiam ao programa em casa, rodeadas de crianças barulhentas, perguntavam impacientes umas às outras: “O que foi que ela disse? O que foi que ela disse?”.

       Foi com o Teatro Nacional mergulhado naquele momento de silêncio que se pôde ouvir o apito do primeiro trem a partir de Kars em quatro dias. Ka estava numa cabine em que o exército o colocara à força. Ao ver que o caminhão do exército voltara sem Ipek, apenas com sua mala, meu querido amigo implorou aos guardas, desesperado, que o deixassem vê-la ou pelo menos falar com ela; como eles recusaram, ele os persuadiu a mandar o caminhão do exército de volta ao hotel; pela segunda vez o veículo voltou vazio, e ele implorou aos oficiais que segurassem o trem por mais cinco minutos. Quando o apito tocou, ainda não havia sinal de Ipek, e mesmo quando o trem começou a se movimentar os olhos marejados de Ka ainda varriam a multidão da plataforma; dirigindo-os à entrada da estação, que dava para a estátua de Kâzim Karabekir, ele continuou tentando conjurar uma mulher alta, de mala na mão, andando em sua direção.

       Quando o trem ganhou velocidade, tocou o apito novamente. Ipek e Turgut bei tinham saído do Hotel Palácio de Neve e estavam a caminho do Teatro Nacional quando o ouviram.

       “É o trem que já está indo embora”, disse Turgut bei.

       “Sim”, disse Ipek. “E a qualquer momento as estradas serão reabertas. O prefeito e o chefe do estado-maior logo estarão de volta à cidade.” Eles comentaram que aquele ridículo golpe militar se encerraria, e tudo voltaria ao normal, mas Ipek confessaria mais tarde que não tinha interesse nesse tipo de assunto; ela queria falar para que seu pai não concluísse que ela estava pensando em Ka. Mas será que seus pensamentos estavam mesmo em Ka? Ela não estaria pensando na morte de Azul? Mesmo quatro anos depois, ela não estava bem certa quanto a isso e, achando minhas perguntas e minha desconfiança desagradáveis, tentou fugir delas. Mas ela disse que muito mais forte que qualquer pesar por perder a chance de ser feliz era sua raiva de Ka. Depois daquela noite, ela o sabia, não havia a menor esperança de voltar a amá-lo. Quando ela ouviu o trem de Ka partindo da estação, a única coisa que sentiu foi aflição, e talvez aquilo tenha vindo com um pouco de surpresa. De qualquer modo, tudo o que queria naquele momento era partilhar sua dor com Kadife.

       “E tão triste pensar que todo mundo deixou a cidade”, disse Turgut bei.

       “É uma cidade-fantasma”, disse Ipek, só para não ficar calada.

       Um comboio de três jipes do exército dobrou a esquina e passou na frente deles. Turgut bei viu naquilo uma prova de que as estradas tinham sido reabertas. Eles ficaram olhando os veículos mergulhar na noite até seus faróis desaparecerem. Pelo que fiquei sabendo em minhas últimas investigações — embora naquela ocasião Turgut e Ipek não o soubessem —, o jipe do meio levava os corpos de Azul e de Hande.

       Um pouco antes os faróis do último jipe incidiram sobre a redação da Gazeta da Cidade Fronteiriça o tempo bastante para que Turgut visse que a edição do dia seguinte já estava afixada à janela. Ele parou para ler as manchetes MORTE NO PALCO; O ILUSTRE ATOR SUNAY ZAIM MORTO A TIROS DURANTE O ESPETÁCULO DE ONTEM.

      Eles leram duas vezes e apressaram o passo em direção ao Teatro Nacional. Os mesmos carros de polícia estavam parados à porta, e bem mais adiante o mesmo tanque aguardava na sombra.

       Quando eles foram revistados na entrada, Turgut bei anunciou que era o pai da atriz principal. O segundo ato já começara, mas eles encontraram dois lugares vazios na última fileira e se sentaram.

       O ato também tinha uma série de gags batidas que Sunay vinha repetindo havia anos, inclusive uma paródia de dança do ventre, apresentada por Funda Eser. Mas a atmosfera ficara mais pesada, e o silêncio mais profundo, pelo efeito cumulativo da presença de Kadife no palco e das longas cenas de Sunay sozinho no palco.

       “Você não se importa se eu insistir em saber por que você quer se matar?”, disse Sunay.

       “Essa não é uma pergunta a que se possa responder”, disse Kadife.

       “Que quer dizer com isso?”

       “Se uma pessoa soubesse exatamente por que quer se suicidar e pudesse expor suas razões abertamente, não precisaria se matar”, disse Kadife.

       “Não, não é assim! De modo algum”, disse Sunay. “Algumas pessoas se matam por amor; outras se matam porque já não suportam os maus-tratos que sofrem do marido ou porque a pobreza as penetra, como uma faca, até os ossos.”

       “Você tem uma maneira muito simplista de ver a vida”, disse Kadife. “Uma mulher que quer se matar por amor sabe que se esperar um pouco seu amor acaba. Tampouco a pobreza é um motivo real para o suicídio. E uma mulher não tem de se matar para fugir ao marido. Ela só precisa roubar um pouco do dinheiro dele e deixá-lo.”

       “Muito bem, então. E qual é o motivo real?”

       “O principal motivo do suicídio das mulheres é o desejo de salvar o amor-próprio. Pelo menos para a maioria das mulheres que se matam.”

       “Você quer dizer que elas foram humilhadas pelo amor?”

       “Você não entende nada!”, disse Kadife. “Uma mulher não se mata porque perdeu o amor-próprio, ela se mata para mostrar seu amor-próprio.”

       “Foi por isso que suas amigas se suicidaram?”

       “Não posso falar por elas. Cada um tem as suas razões. Mas toda vez que penso em me matar, não posso deixar de imaginar que elas estavam pensando da mesma forma que eu. O momento do suicídio é aquele em que se sente melhor como é solitário ser mulher e o que significa realmente ser uma mulher.”

       “Você usa esses argumentos para incitar suas amigas ao suicídio?”

       “A decisão foi só delas. A opção pelo suicídio foi delas.”

       “Mas todos sabem que aqui em Kars não existe essa história de livre opção; as pessoas só querem se livrar do próximo espancamento, refugiar-se na comunidade mais próxima. Confesse, Kadife, você se encontrou às escondidas com essas mulheres e as incitou ao suicídio.”

       “Mas como isso seria possível?”, disse Kadife. “A única coisa que elas conseguiram com o suicídio foi uma solidão ainda maior. Muitas foram repudiadas pelas próprias famílias, que em alguns casos lhes recusaram até as cerimônias fúnebres.”

       “Você quer dizer então que pretende se matar só para provar que elas não estão sozinhas, só para mostrar que vocês todas estão juntas nessa história? De repente você ficou muda, Kadife. Mas se você se matar antes de explicar seus motivos, não corre o risco de que sua mensagem seja mal interpretada?”

       “Não vou me matar para mandar nenhuma mensagem”, disse Kadife.

       “Mas tem muita gente observando você, e todos estão curiosos. O mínimo que você pode dizer é a primeira coisa que lhe vier à mente.”

       “As mulheres se matam porque esperam ganhar alguma coisa”, disse Kadife. “Os homens se matam por terem perdido a esperança de ganhar alguma coisa.”

       “Isso é verdade”, disse Sunay tirando sua pistola Kinkkale do bolso. Todos no salão viram seu brilho. “Quando tiver certeza de que estou derrotado, você pode me fazer o favor de usar isto para atirar em mim?”

       “Não quero ir parar na cadeia.”

       “Por que se preocupar com isso, se está pretendendo se matar também?”, disse Sunay. “Afinal de contas, se você se suicidar vai para o inferno, portanto não faz sentido preocupar-se com a punição que venha a receber por qualquer outro crime — neste mundo ou no outro.”

       “Mas é exatamente por isso que as mulheres se suicidam”, disse Kadife. “Para se furtarem a todas as formas de punição.”

       “Quando eu chegar ao momento de minha derrota, só quero que minha morte venha das mãos desta mulher!”, exclamou Sunay, agora estendendo os braços teatralmente e encarando o público. Ele fez uma pausa para conseguir um efeito dramático, em seguida se pôs a contar uma história das aventuras amorosas de Atatürk, abreviando o relato quando sentia o interesse do público diminuir.

       Terminado o segundo ato, Turgut bei e Ipek correram aos bastidores para encontrar Kadife. Seu camarim — outrora usado por acrobatas de São Petersburgo e de Moscou, armênios que encenavam Molière e por bailarinos e músicos que faziam turnês pela Rússia — estava gelado.

       “Pensei que você já estava viajando”, disse Kadife a Ipek.

       “Estou tão orgulhosa de você, querida. Você estava ótima!”, disse Turgut bei abraçando a filha. “Mas se ele lhe tivesse dado a pistola e dissesse ‘Atire em mim’, receio que não pudesse me impedir de saltar e interromper a peça gritando: ‘Kadife, faça o que fizer, não atire!’”

       “Por que você faria isso?”

       “Porque a pistola podia estar carregada!”, disse Turgut bei. Ele lhe falou do relato que lera na edição do dia seguinte da Gazeta da Cidade Fronteiriça. “Eu sei que Serdar bei espera fazer que as coisas aconteçam escrevendo sobre elas com antecedência, mas no mais das vezes suas histórias terminam por se revelarem equivocadas. De qualquer modo, eu não me importaria que essa história se concretizasse”, disse ele. “Mas eu sei que Serdar nem sequer sonharia em anunciar um assassinato como esse, a menos que Sunay não desse ordens para isso — essa história é de muito mau agouro. Pode ser apenas um pouco mais de autopromoção, mas quem sabe? Ele pode estar planejando que você o mate no palco. Minha filhinha, por favor, não puxe o gatilho a menos que tenha certeza de que a pistola não está carregada! E não descubra a cabeça só porque esse homem quer que você o faça. Ipek não vai embora. Vamos continuar vivendo nesta cidade por mais um tempo, então, por favor, não enfureça os islamitas sem nenhum motivo.”

       “Por que Ipek resolveu ficar?”

       “Porque ela ama mais ao pai, a você e à família”, disse Turgut bei tomando a mão de Kadife.

       “Querido pai, você nos deixa conversar a sós novamente?”, disse Ipek, e no mesmo instante viu o rosto da irmã empalidecer de susto. Turgut bei foi para o outro extremo da sala empoeirada, de pé-direito alto, indo ao encontro de Sunay e Funda Eser, e Ipek abraçou a irmã com força e a fez sentar em seu colo. Vendo que aquele gesto aumentava ainda mais o medo da irmã, Ipek tomou-a pela mão e a levou a um canto separado do resto da sala por uma cortina. Nesse exato momento, Funda Eser apareceu com uma bandeja com copos e uma garrafa de conhaque.

       “Você esteve ótima, Kadife”, disse ela. “Vocês dois ficaram totalmente à vontade.”

       Como a ansiedade de Kadife aumentava a cada segundo, Ipek fitou-a nos olhos de modo a dizer, de forma inequívoca, ter péssimas notícias. Então ela falou: “Hande e Azul foram mortos durante uma batida”.

      Kadife se encolheu. “Eles estavam na mesma casa? Quem lhe contou?”, perguntou ela. Mas vendo o ar severo da outra, calou-se.

       “Foi Fazil, o rapaz da escola secundária religiosa, quem nos contou, e eu acredito porque ele viu com os próprios olhos.” Ela fez uma pausa para dar tempo a Kadife de assimilar os fatos. Kadife ficou mais pálida, mas Ipek foi em frente. “Ka sabia onde ele estava escondido, e depois de ter vindo aqui conversar com você, não voltou mais para o hotel. Acho que Ka os entregou para a equipe de operações especiais. Foi por isso que não fui para a Alemanha com ele.”

       “Como você pode ter certeza?”, disse Kadife. “Talvez não tenha sido ele. Talvez tenha sido outra pessoa.”

       “É possível. Também pensei nessa hipótese. Mas estou tão convicta de que foi Ka que isso quase não importa: sei que nunca vou conseguir convencer o meu eu racional de que não foi ele. Por isso não fui para a Alemanha, porque nunca poderia amá-lo.”

       Kadife estava exausta, tentando assimilar as notícias. E só ao ver Kadife fraquejar, Ipek teve certeza de que a irmã começava a aceitar a verdade da morte de Azul.

       Kadife cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar. Ipek abraçou a irmã e elas choraram juntas, embora Ipek soubesse que choravam por motivos diferentes. Elas tinham chorado assim antes, uma ou duas vezes durante o vergonhoso período em que não conseguiam abrir mão de Azul e disputavam acirradamente o afeto dele. Agora Ipek sentia que a terrível disputa estava encerrada de uma vez por todas. Ela não partiria de Kars. Sentiu-se envelhecer de repente. Resignar-se e envelhecer em paz, e ter a sabedoria de nada querer do mundo — eis o que desejava agora.

       Ela observava que a dor de sua irmã era mais profunda e mais destrutiva que a sua própria. Por um instante ela se sentiu feliz por não estar no lugar de Kadife — seria aquilo a doçura da vingança? —, mas logo se sentiu culpada. Ao fundo se ouvia a mesma miscelânea de gravações que a administração do Teatro Nacional costumava tocar nos intervalos dos espetáculos para estimular as vendas de refrigerante e de grão-de-bico torrado. Naquele momento tocavam uma canção que fez Ipek lembrar-se de quando elas eram bem jovens em Istambul: Baby, come closer, closer to me. Naquela época ambas queriam aprender a falar inglês bem. Nenhuma das duas conseguiu. Ipek teve a impressão de que, ao ouvir aquela música, o choro de Kadife redobrou. Espiando através das cortinas, ela viu seu pai e Sunay em animada conversa do outro lado da sala, enquanto Funda enchia seus copos de conhaque.

       “Kadife Hanim, eu sou o coronel Osman Nuri Çolak.” Um militar de meia-idade tinha aberto a cortina. Com um gesto certamente aprendido num filme, ele fez uma mesura tão exagerada que por pouco não raspou a cabeça no soalho. “Com o devido respeito, senhorita, que posso fazer para aliviar sua dor? Se quiser entrar em cena, tenho boas notícias para você: as estradas já reabriram e a qualquer momento as forças armadas vão entrar na cidade.”

       Mais tarde, diante da corte marcial, Osman Nuri Çolak repetiria essas palavras, apresentando-as como uma prova de que estava fazendo o possível para salvar a cidade dos ridículos oficiais que deram o golpe.

       “Muito obrigada pela atenção, mas estou ótima”, disse Kadife.

       Ipek teve a impressão de que as maneiras afetadas de Funda já tinham contagiado Kadife. Ao mesmo tempo, tinha de admirar a determinação com que a irmã procurava se recompor. Kadife obrigou-se a se manter de pé: ela tomou um copo de água e começou a andar silenciosamente de um lado para outro nos amplos bastidores, como um fantasma de peça de teatro.

       Ipek estava querendo ir embora antes que seu pai pudesse falar com Kadife, mas Turgut bei correu-lhes ao encontro no momento em que começava o terceiro ato. “Não tenha medo”, disse Sunay acenando com a cabeça para os amigos. “Essas pessoas são modernas.”

       O terceiro ato começou com Funda Eser cantando uma canção sobre uma mulher que fora violentada, um número atraente para compensar o público pelo drama que lhe parecera intelectual demais ou obscuro. Era o procedimento normal de Funda: num momento ela estava chorando e praguejando contra os homens da platéia, no momento seguinte ela os cumulava de todos os cumprimentos que lhe vinham à cabeça. Depois de duas canções e uma pequena paródia de um comercial que só as crianças acharam engraçada (ela tentou insinuar que Aygaz enchia os botijões não com gás propano, mas com peidos), o palco escureceu, e — numa agourenta repetição do finale de dois dias antes — dois soldados armados entraram no palco. Sob o olhar da platéia tensa e silenciosa, eles levantaram uma forca no meio do palco. Sunay manquejou confiante pelo palco com Kadife, e se pôs exatamente sob o laço.

       “Nunca esperei que as coisas acontecessem tão depressa”, disse ele.

       “Isto é uma forma de reconhecer que fracassou naquilo a que se propôs ou simplesmente você está velho e cansado agora e buscando uma retirada em grande estilo?”, disse Kadife.

       Ipek viu que Kadife fazia das tripas coração para desempenhar o seu papel.

       “Você é muito inteligente, Kadife”, disse Sunay.

       “Isso o assusta?”, disse Kadife numa voz tensa e furiosa.

       “Sim”, disse Sunay num tom lânguido e lascivo.

       “Não é minha inteligência que o assusta. Você tem medo de mim porque eu sou eu mesma”, disse Kadife. “Porque aqui em nossa cidade os homens não temem a inteligência das mulheres, eles temem sua independência.”

       “Pelo contrário”, disse Sunay. “Eu armei essa revolução justamente para que vocês, mulheres, possam ser independentes como as mulheres da Europa. É por isso que lhe peço que tire o manto.”

       “Vou descobrir minha cabeça agora”, disse Kadife, “e então, para provar que não o faço obrigada por você nem pelo desejo de ser uma européia, vou me enforcar.”

       “Você percebe, Kadife, que se você agir como um indivíduo e se suicidar, os europeus vão aplaudi-la? Não pense que já não virou algumas cabeças com sua animada performance na chamada reunião secreta no Hotel Ásia. Correm até boatos de que você organizou as jovens suicidas, da mesma forma como organizou as jovens que insistiam em usar o manto.”

       “Só uma suicida foi motivada pelo problema do manto: Teslime.”

       “E agora você quer ser a segunda.”

       “Não, porque antes de me matar vou descobrir a cabeça.”

       “Você pensou bem no que vai fazer?”

       “Sim”, disse Kadife. “Pensei.”

       “Então você devia ter pensado também no seguinte: os suicidas vão para o inferno. E como de todo modo eu vou para o inferno, você pode me matar primeiro com a consciência tranqüila.”

       “Não”, disse Kadife. “Porque eu não acredito que vou para o inferno depois de me matar. Vou matar você para livrar este país de um verme, um inimigo de nossa nação, de nossa religião e de nossas mulheres!”

       “Você é uma mulher corajosa, Kadife, e fala com muita franqueza. Mas nossa religião proíbe o suicídio.”

       “Sim, é verdade que a quarta sura do glorioso Corão afirma que não devemos nos matar. Mas afinal de contas isso não impede que Deus, em sua infinita grandeza, possa perdoar as jovens suicidas, livrando-as das penas do inferno.”

       “Em outras palavras, você encontrou uma forma de torcer as palavras do Corão para adequá-las aos seus objetivos.”

       “Na verdade, é exatamente o contrário”, disse Kadife. “Acontece que algumas jovens de Kars se mataram porque foram proibidas de cobrir a cabeça, como desejavam. E tão certo como o mundo é uma criação de Deus, Ele não ignora o sofrimento delas. E enquanto eu sentir o amor de Deus em meu coração, não há lugar para mim em Kars, por isso vou fazer o mesmo que elas e dar fim à minha vida.”

       “Você vai enfurecer todos os líderes religiosos que tiveram de enfrentar a neve e o gelo para chegar a Kars, na esperança de poder livrar as infelizes mulheres desta cidade de seus desejos suicidas — você sabe muito bem disso, Kadife, não sabe? E por falar nisso, o Corão...”

       “Não estou disposta a discutir minha religião com ateus e tampouco, aliás, com gente que afirma acreditar em Deus porque tem medo.”

       “Claro que você tem razão. Escute, não tenho intenção de me imiscuir em sua vida espiritual; é que eu achei que o medo do inferno poderia impedi-la de me matar de consciência tranqüila.”

       “Não precisa se preocupar. Vou matar você com a consciência tranqüila.”

       “Que maravilha”, disse Sunay, parecendo um pouco magoado com o entusiasmo da resposta. “Agora deixe-me dizer a coisa mais importante que aprendi em meus vinte e cinco anos de teatro profissional: quando um diálogo vai tão longe quanto este, o público não consegue acompanhá-lo sem se aborrecer. Então, com a sua permissão, vamos parar nossa conversa por aqui e passar das palavras aos atos.”

       “Ótimo.”

       Sunay sacou a pistola Kinkkale que brandira no último ato e mostrou-a a Kadife e ao público. “Agora você vai descobrir a cabeça. Então eu lhe entrego a pistola e você atira em mim. E como esta vai ser a primeira vez que uma coisa dessas acontece numa transmissão televisiva ao vivo, deixe-me aproveitar esta última oportunidade para explicar ao público como interpretar...”

       “Vamos logo com isso”, disse Kadife. “Não agüento mais ouvir homens explicando por que as jovens se suicidam.”

       “Tem razão”, disse Sunay, brincando com a pistola. “Mas eu queria dizer ainda uma ou duas coisas. Só para que nossos espectadores de Kars não fiquem assustados sem motivo — afinal de contas, alguns podem ter acreditado nos boatos divulgados pelos jornais —, por favor olhe para o carregador da arma.” Ele retirou o carregador, mostrou-o a Kadife e, para impressionar, também ao público e encaixou-o novamente. “Você viu que ele estava vazio”, perguntou ele com a segurança de um ilusionista.

       “Sim.”

       “Vamos ter absoluta certeza disso!”, disse Sunay. Ele tirou o carregador novamente e, como um mágico prestes a serrar uma mulher no meio, mostrou-o ao público e o recolocou. “Agora, finalmente, deixe-me dizer uma coisa em minha defesa. Há pouco você prometeu que iria me matar com a consciência tranqüila. Com certeza você me detesta por ter executado esse golpe e por abrir fogo contra a platéia, só porque as pessoas não estavam vivendo como ocidentais. Mas quero que você saiba que tudo o que fiz foi pela pátria.”

       “Ótimo”, disse Kadife. “Agora vou descobrir a cabeça. E, por favor, quero que todo mundo olhe.”

       Seu rosto era a imagem da dor. Num gesto brusco, ela levantou a mão e arrancou o manto da cabeça.

       Não se ouvia um som no salão. Por um instante Sunay fitou Kadife estupefato, como se ela tivesse feito algo absolutamente inesperado. Ambos se voltaram para a platéia, boquiabertos, como estudantes que tivessem esquecido as suas falas.

       Toda a cidade de Kars estava de olhos nos longos e belos cabelos castanhos de Kadife, que o cameraman finalmente criou coragem para focalizar. Quando finalmente ousou mostrar seu rosto em primeiro plano, ficou evidente que Kadife estava profundamente embaraçada, como uma mulher cujo vestido se soltou num lugar público cheio de gente. Cada um de seus movimentos traía uma dor terrível.

       “Por favor, me passe a arma!”, disse ela, impaciente.

       “Aqui está”, disse Sunay segurando-a pelo cano, e sorriu quando Kadife a empunhou. “E aqui que você aperta o gatilho.”

       Toda a Kars esperava a continuação do diálogo. E talvez o próprio Sunay também, porque ele disse: “Seu cabelo é tão bonito, Kadife. Até eu com certeza a guardaria zelosamente, para evitar que outros homens vissem...”.

       Ela puxou o gatilho.

       Um tiro soou no salão. Toda a Kars, abismada, viu Sunay tremer violentamente — como se tivesse sido alvejado — e cair no chão.

       “Quanta estupidez há nisto tudo!”, disse Sunay. “Eles nada entendem de arte moderna, eles nunca serão modernos!”

       O público esperava que Sunay se pusesse a fazer um longo monólogo de agonizante; em vez disso, Kadife avançou em sua direção e atirou uma, duas, quatro vezes em rápida sucessão. A cada disparo, o corpo de Sunay tremia e erguia-se num movimento brusco, caindo em seguida no chão, parecendo cada vez mais pesado.

       Muita gente ainda pensou que Sunay estava apenas interpretando. Eles esperavam que ele se sentasse a qualquer momento e fizesse uma longa arenga sobre a morte, mas o aspecto extraordinariamente real de seu rosto ensangüentado lhes tirou toda a esperança. Nuriye Hanim, cuja admiração por efeitos teatrais era ainda maior que sua reverência pelo próprio script, se pôs de pé. Ela estava prestes a aplaudir Sunay quando viu seu rosto ensangüentado e se deixou cair na cadeira cheia de pavor.

       “Acho que o matei!”, disse Kadife voltando-se para o público.

       “Fez muito bem!”, gritou um estudante da escola secundária religiosa do fundo do salão.

       As forças de segurança estavam tão preocupadas com o que acabavam de presenciar no palco que não conseguiram identificar o estudante agitador que quebrara o silêncio. E quando Nuriye Hanim, que tinha passado os dois últimos dias assistindo ao impressionante Sunay na televisão e que resolvera, antes do anúncio de que a entrada seria franca, sentar-se na primeira fila custasse o que custasse, contanto que tivesse a chance de vê-lo de perto — quando Nuriye Hanim prorrompeu em lágrimas, todos os que estavam no teatro, e todos os demais em Kars, foram forçados a aceitar a realidade do que tinham acabado de ver.

       Dois soldados, correndo em direção um ao outro com passos de palhaço, fecharam as cortinas.

 

  1. Hoje em dia ninguém mais aqui gosta de Ka

Quatro anos depois, em Kars

       Logo que a cortina se fechou, Z Demirkol e seus companheiros prenderam Kadife “para sua própria segurança”, levando-a para a avenida Pequeno Kâzimbey. Depois de passar pela entrada do palco, eles a colocaram num jipe do exército e foram direto à guarnição central, onde a deixaram no velho abrigo antinuclear onde Azul fora mantido em seu último dia na terra. Algumas horas depois, todas as estradas de Kars estavam reabertas. Muitas unidades militares entraram na cidade para eliminar o “pequeno golpe” e não encontraram nenhuma resistência. O prefeito, o chefe do estado-maior e muitos outros oficiais foram demitidos por negligência no cumprimento do dever. O pequeno grupo que executara o golpe foi preso, juntamente com muitos soldados e agentes do MIT que alegaram ter feito aquilo pelo bem do povo e do Estado. Turgut bei e Ipek só puderam visitar Kadife três dias depois.

       Turgut bei não tinha dúvidas de que Sunay morrera em cena, e esperava que nada acontecesse a Kadife; ele só queria encontrar uma forma de levar sua filha para casa, mas quando a meia-noite chegou e se foi, ele desistiu e foi andando para casa, pelas ruas desertas, de braço com a filha mais velha. Ipek foi direto para seu quarto. Enquanto desfazia a mala, recolocando tudo nas gavetas, seu pai chorava, sentado à beira da cama.

       A maioria dos habitantes de Kars que testemunharam os acontecimentos no palco só se certificou da morte de Sunay, depois dos estertores teatrais, ao ler a Gazeta da Cidade Fronteiriça na manhã seguinte. Depois que as cortinas se fecharam, o público do Teatro Nacional saiu em silêncio, e a emissora de televisão não fez mais nenhuma referência aos acontecimentos dos últimos três dias. Mas como Kars estava bastante acostumada à tutela militar e à visão da polícia e das equipes de operações especiais caçando “terroristas” nas ruas, logo aqueles dias deixaram de parecer excepcionais. E quando o estado-maior geral ordenou que se fizesse uma investigação completa na manhã seguinte, determinando também que a inspetoria ligada ao primeiro-ministro entrasse em ação, todos em Kars entenderam a sabedoria de considerar o golpe de Estado como um evento mais teatral do que político. Sua curiosidade concentrava-se em torno de questões como a seguinte: Se Sunay mostrou à platéia que o carregador estava vazio, como pôde Kadife matá-lo a tiros com a mesma arma?

       Como já falei várias vezes do coronel que veio de Ancara em missão de inspeção depois que as coisas se normalizaram, meus leitores já devem saber o quanto eu devo a esse homem e ao minucioso relatório sobre os bastidores desse golpe. Sua análise da cena dos disparos confirma que se tratou menos de um caso de prestidigitação do que de verdadeira mágica. Visto que Kadife se recusou a falar com o pai, com a irmã e até com seu advogado — quanto mais com o promotor — sobre o que aconteceu naquela noite, o coronel foi obrigado a fazer o mesmo trabalho de detetive que eu faria quatro anos depois. Depois de conversar com o maior número de pessoas possível (se bem que seria mais exato dizer que ele tomou seus depoimentos), ele finalmente se convenceu de ter se inteirado de todos os boatos e teorias a respeito do caso.

       Naturalmente, corriam muitas versões de que Kadife matou Sunay Zaim de propósito, com pleno conhecimento de causa e sem sua real permissão. Para refutar essas afirmações, o coronel mostrou que não havia a menor possibilidade de a jovem ter trocado a arma ou substituído o carregador com tanta rapidez. E então, apesar da expressão de espanto que se viu no rosto de Sunay a cada disparo, o fato é que as investigações feitas pelas forças armadas, o exame dos objetos de uso pessoal de Kadife quando ela foi presa, e mesmo a gravação de sua performance no vídeo, confirmam que em cena havia apenas uma arma e um único carregador. Outra teoria bastante popular na cidade é a de que Sunay Zaim foi morto por outro atirador, que fez os disparos de outro ângulo, mas esta foi logo descartada quando chegaram de Ancara os resultados do exame balístico, confirmando que todas as balas encontradas no corpo do ator provinham da pistola Kinkkale que estava na mão de Kadife.

       As últimas palavras de Kadife (“Acho que o matei!”) transformaram-na numa espécie de mito urbano. O coronel viu nelas uma prova de que não se tratou de homicídio premeditado. Talvez por consideração ao promotor que iria abrir o processo, o relatório do coronel fez uma digressão para discutir extensamente sobre a premeditação, crime com dolo e outros conceitos jurídicos e filosóficos afins. Não obstante, ele concluiu afirmando que o verdadeiro idealizador — aquele que ajudou Kadife a decorar suas falas e lhe ensinou as várias manobras que ela haveria de executar à perfeição — foi ninguém menos que o próprio morto. Ao mostrar por duas vezes ao público que o carregador estava vazio, Sunay Zaim enganara Kadife e toda a cidade de Kars. E neste ponto talvez eu deva citar as palavras do próprio coronel, que se reformou antes do prazo normal, pouco depois da publicação de seu relatório. Quando o visitei em sua casa em Ancara e apontei para as fileiras de livros de Agatha Christie em sua estante, ele me disse que o que mais apreciava neles eram os títulos. Quando passamos a falar da arma do ator, ele disse simplesmente: “O carregador estava cheio!”. E fazer o público acreditar que um carregador cheio está vazio não é algo que exija habilidades excepcionais a um homem de teatro. Na verdade, depois de três dias de violência implacável exercida sobre eles por Sunay e suas hostes em nome do republicanismo e da ocidentalização (o total de mortes, incluindo a de Sunay, foi de vinte e nove), o povo de Kars ficou tão aterrorizado que seria capaz de olhar um copo vazio e ver um copo cheio.

       Se adotamos essa linha de raciocínio, fica claro que Kadife não foi a única cúmplice de Sunay; este, afinal de contas, chegou até a anunciar sua morte com antecedência, e se o povo de Kars estava tão ansioso por vê-lo matar-se no palco, se estava disposto a apreciar o drama, dizendo a si mesmo tratar-se apenas de uma peça de teatro — ele também foi cúmplice. Um outro boato, de que Kadife matara Sunay para vingar a morte de Azul, foi refutado sob a alegação de que qualquer pessoa que receba uma arma de que se diz estar completamente descarregada não pode ser acusada de usá-la com a intenção de matar. Entre os admiradores islamitas de Kadife e seus acusadores secularistas havia alguns que ainda sustentavam que a grande esperteza de Kadife foi a forma como matou Sunay, recusando-se em seguida a matar-se, mas o coronel encarregado da investigação, cuja paciência com essa gente imaginosa tinha limites, afirmou que aquilo era confundir arte com realidade.

       O promotor militar de Kars deu grande importância ao meticuloso relatório do coronel, da mesma forma que os juizes, e estes consideraram que Kadife não matara por motivos políticos; eles a julgaram responsável por homicídio culposo e sentenciaram-na a três anos e um mês de prisão. Ela haveria de ser libertada ao cabo de vinte meses na cadeia. Enquadrado nos artigos 313 e 463 do código penal turco, o coronel Osman Nuri Çolak foi acusado de organizar um grupo de vigilância que se envolveu em assassinatos atribuídos a desconhecidos, recebeu por isso uma pena muito longa, mas seis meses depois o governo deu uma anistia geral e ele foi solto. Embora ele tivesse sido advertido de que sua libertação se dava sob a condição de não comentar o golpe com ninguém, isso não o impedia de ir à noite ao clube dos oficiais rever seus velhos amigos do exército, e depois de muito beber afirmar que, independentemente do que tivesse se passado, ele pelo menos tivera coragem de viver o sonho de todo soldado que admira Atatürk; de uma forma não muito áspera, ele acusava os amigos de se curvarem diante dos fanáticos religiosos por falta de coragem.

       Muitos outros soldados que tiveram participação no golpe tentaram apresentar a si mesmos como patriotas bem-intencionados e elos impotentes na cadeia de comando, mas o tribunal militar foi inflexível. Também eles foram acusados de conspiração, assassinato e uso da propriedade do Estado sem autorização, ficando detidos até a anistia geral a que nos referimos. Um deles, um jovem mas magnânimo oficial que se converteu ao islã depois de solto, publicou sua história (Também fui um jacobino) no jornal islamita Aliança, mas suas memórias foram censuradas por insultarem o exército. Aquela altura todos já sabiam que o goleiro Vural começara a trabalhar para a agência do MIT local à época em que a revolução começou. O tribunal considerou que os outros atores da trupe de Sunay eram simples artistas.

       Funda Eser ficou possessa na noite em que o marido morreu, levantando acusações contra quem quer que lhe cruzasse o caminho, ameaçando denunciar todos eles. Quando se constatou que sofrera um colapso nervoso, ela foi internada na ala psiquiátrica do hospital militar de Ancara, onde ficou sob observação durante quatro meses. Anos depois de ter tido alta, ela haveria de se tornar famosa em todo o país como dubladora da bruxa de um célebre desenho animado da televisão. Ela me disse ainda estar magoada com os caluniadores que impediram seu marido (cuja morte ela agora atribuía a um “acidente de trabalho”) de conseguir o papel de Atatürk. Seu único consolo era o de ver que muitas das novas estátuas do grande homem o representavam em notáveis poses criadas por seu marido. Visto que o relatório do coronel implicava Ka no golpe, o tribunal militar intimou-o a depor. Como deixou de comparecer a duas audiências, acusaram-no de obstrução da justiça e emitiram um mandado de prisão contra ele.

       Todos os sábados Turgut bei e Ipek visitavam Kadife, que cumpria pena em Kars. Durante a primavera e o verão, quando o tempo estava bom, o generoso diretor lhes permitia estender uma toalha de mesa branca sob a amoreira que havia no espaçoso pátio da prisão, e eles passavam a tarde comendo os pimentões recheados de Zahide com azeite, oferecendo bolinhos de carne com arroz aos outros detentos, quebrando e descascando ovos cozidos e ouvindo prelúdios de Chopin no toca-fitas Philips que Turgut bei conseguira consertar. Para evitar que a filha visse em sua sentença um motivo de vergonha, Turgut bei insistia em tratar a prisão como um colégio interno, um lugar onde todas as pessoas de boa família têm de ficar durante algum tempo. Vez por outra ele convidava amigos para acompanhá-los, como o jornalista Serdar bei.

       Certo dia, Fazil acompanhou-os em sua visita, e Kadife disse que gostaria de vê-lo novamente. Dois meses depois que ela foi solta, Fazil, que era quatro anos mais novo que ela, tornou-se seu marido. Nos primeiros seis meses, eles viveram num quarto do Hotel Palácio de Neve, onde Fazil passou a trabalhar como recepcionista, mas à época em que visitei Kars eles tinham se mudado para um apartamento deles. Toda manhã, às seis horas, Kadife levava seu filho Ömercan, de seis meses de idade, ao Hotel Palácio de Neve. Zahide e Ipek davam comida ao bebê, depois Turgut bei brincava com o neto enquanto Kadife se ocupava das coisas do hotel. Aquela altura Fazil concluíra que era melhor não ficar tão dependente do sogro, por isso ele tinha dois outros empregos. O primeiro era no Estúdio Fotográfico Palácio da Luz, o segundo na Televisão Fronteiriça de Kars: ele me disse com um sorriso que o nome de sua função era assistente de produção, mas que na verdade não passava de um moço de recados.

       Como já contei, no dia em que cheguei, o prefeito ofereceu um jantar em minha homenagem. Conheci Fazil ao meio-dia do dia seguinte em sua nova casa, na avenida Hulusi Aytekin. Quando eu estava contemplando os enormes flocos de neve que batiam de leve nas muralhas do castelo e mergulhavam nas águas escuras do rio, Fazil me perguntou inocentemente por que eu viera a Kars. Achando que ele podia fazer algum comentário sobre o fato de Ipek ter virado minha cabeça no jantar do prefeito, entrei em pânico e comecei a dar um relato longo e um pouco exagerado do meu interesse pelos poemas que Ka escrevera quando estava em Kars e sobre meu projeto de escrever um livro sobre eles.

       “Se os poemas desapareceram, como você pode escrever um livro sobre eles?”, perguntou Fazil, num tom franco e amigável.

       “Disso eu sei tão pouco quanto você”, disse eu. “Mas deve haver um poema nos arquivos da emissora de televisão.”

       “Podemos encontrá-lo esta noite. Mas você passou a manhã inteira percorrendo todas as ruas de Kars. Talvez esteja pensando em escrever um romance sobre nós também.”

       “Eu só estava visitando os lugares que Ka mencionou em seus poemas”, eu disse, um tanto incomodado.

       “Mas pela expressão de seu rosto vejo que você quer dizer aos seus leitores que somos muito pobres e muito diferentes deles. Não quero que me ponha num romance como esse.”

       “Por que não?”

       “Porque você nem ao menos me conhece, é por isso! Mesmo que venha a me conhecer e me descreva tal como sou, seus leitores ocidentais ficariam com tanta pena de mim que não seriam capazes de ver a minha vida. Por exemplo, se você contasse que estou escrevendo um romance de ficção científica islâmico, eles iam rir. Não quero ser descrito como alguém de quem se ri de pena e de solidariedade complacente.”

       “Tudo bem.”

       “Eu sei que o desconcertei”, disse Fazil. “Por favor, não se ofenda, eu sei que você é uma pessoa boa. Mas seu amigo também era uma pessoa boa. Talvez ele até quisesse gostar de nós, mas no final ele cometeu a pior de todas as maldades.”

       Não me foi fácil ouvir Fazil atribuir a Ka a traição cometida contra Azul, e não pude deixar de pensar que só a morte de Azul tornou possível seu casamento com Kadife. Mas consegui conter a minha língua.

       “Como pode ter certeza de que essa afirmação é verdadeira?”, perguntei finalmente.

       “Todo mundo em Kars sabe disso.” Ele falou numa voz doce, quase afetuosa, tendo o cuidado de não censurar nem a mim nem a Ka.

       Em seus olhos eu vi Necip. Eu lhe disse que estava contente de poder ver o romance de ficção científica que ele queria me mostrar, mas ele disse que queria estar ao meu lado quando eu fosse ler. Então sentamos à mesa onde ele e Kadife faziam a primeira refeição do dia na frente da televisão e lemos as primeiras cinqüenta páginas do romance de ficção científica que Necip concebera quatro anos antes, e que agora Fazil estava escrevendo no nome do amigo.

      “O que você acha, é bom?”, perguntou Fazil, mas apenas uma vez, acrescentando à guisa de desculpa: “Se você está se cansando, pode parar”.

       “Não, é bom”, respondi, continuando a ler com interesse.

       Mais tarde, quando caminhávamos pela avenida Kâzim Karabekir, eu lhe disse com toda a sinceridade o quanto gostara do romance.

       “Talvez você diga isso só para me animar”, disse Fazil alegremente, “mas mesmo assim me fez um grande favor, e eu gostaria de retribuir. Por isso, se você resolver escrever sobre Ka, pode falar de mim. Mas só se me deixar falar diretamente aos seus leitores.”

       “O que você deseja dizer a eles?”

       “Não sei. Se eu conseguir pensar no que dizer enquanto você ainda estiver em Kars, eu lhe digo.”

       Despedimo-nos, depois de combinar nos encontrarmos na emissora de televisão de manhã cedo. Fiquei olhando Fazil correr pela rua em direção ao Estúdio Fotográfico Palácio da Luz. Quanto de Necip eu vejo nele? Será que ele ainda sente Necip dentro dele, da forma como contou a Ka? Até que ponto um homem ouve a voz de outro homem dentro de si?

       Naquela manhã, enquanto eu andava nas ruas de Kars, falando com as mesmas pessoas com quem Ka falou, demorando-me nas mesmas casas de chá, houve muitos momentos em que quase me senti como se fosse Ka. No início de minhas andanças, quando estava na Casa de Chá Irmãos Felizes, onde Ka escrevera “Toda a humanidade e as estrelas”, também devaneei sobre meu lugar no universo, exatamente como meu querido amigo fizera. De volta ao Hotel Palácio de Neve, quando fui pegar a chave do quarto, Cavit, o recepcionista, me disse que eu andava apressado, “igualzinho a Ka”. Quando eu andava numa rua secundária, um merceeiro saiu à porta e me perguntou: “Você é o escritor de Istambul?”. Ele me convidou a entrar e me pediu que escrevesse que todas as informações que os jornais publicaram quatro anos antes sobre a morte de sua filha Teslime eram falsas. Ele falava comigo da mesma forma que devia ter falado com Ka e me ofereceu uma Coca-Cola, da mesma forma como oferecera a ele. Até que ponto aquilo era uma coincidência, até que ponto era pura imaginação minha? A certa altura, dando-me conta de que estava na rua Baytarhane, parei e levantei os olhos para as janelas do sheik Saadettin e então, para entender como Ka se sentira quando o visitou, subi um a um os degraus que Muhtar descreveu em seu poema.

       Encontrei os poemas de Muhtar entre os papéis de Ka em Frankfurt, e concluí que Ka não os enviara a Fahir. Mas uns cinco minutos depois de ser apresentado a Muhtar, ele disse que Ka se comportara como um “verdadeiro gentleman”, contou que Ka ficara tão impressionado com os seus poemas que se prontificara a enviá-los a um conceituado editor de Istambul, com uma carta que punha seus poemas nas alturas. Muhtar estava feliz com os rumos que sua vida tinha tomado. Embora o Partido da Prosperidade tivesse sido extinto, ele estava certo de que, quando houvesse novas eleições, seria o candidato do novo partido islamita, e se mostrava confiante de que chegaria um dia em que seria prefeito. Graças aos modos calorosos e simpáticos de Muhtar, pudemos visitar o quartel central da polícia (embora não nos tenham permitido ver o porão) e o hospital público onde Ka beijara a cabeça sem vida de Necip. Quando Muhtar me levou para ver o que restava do Teatro Nacional e as salas que ele transformara num depósito de eletrodomésticos, admitiu ser co-responsável pela destruição daquele edifício de duzentos anos. E então, à guisa de consolo, acrescentou: “Pelo menos era um edifício armênio, e não turco”. Ele me mostrou todos os lugares de que Ka se lembrava quando sentia desejo de voltar. Não parei de pensar em Ka enquanto andávamos na neve e passávamos pelo mercado de frutas. Quando andávamos na avenida Kâzim Karabekir, Muhtar apontou cada uma das lojas de ferragens. Então ele me levou à galeria Halil Pasa, e se despediu, depois de me ter apresentado o seu adversário político, o advogado Muzaffer bei. O ex-prefeito rememorou longamente os dias gloriosos da cidade nos primeiros anos da República, da mesma forma como o fizera com Ka, e enquanto eu avançava pelos sombrios corredores da galeria, um rico comerciante de laticínios que estava à porta da Associação dos Amigos dos Animais gritou: “Orhan bei!”. Ele me convidou para entrar e deu uma demonstração de sua notável memória contando a visita de Ka à associação, mais ou menos na hora em que o diretor do Instituto de Educação fora assassinado, e que ele se recolhera a um canto e ficara a cismar.

       Não era fácil para mim ouvir seu relato do momento em que Ka se deu conta de estar apaixonado por Ipek, pouco antes do encontro que eu marcara com ela na Confeitaria Vida Nova. Acho que foi para acalmar os nervos, para controlar o medo, que entrei no Café Campos Verdejantes e tomei um raki. Mas no momento em que me sentei diante de Ipek na Confeitaria Vida Nova, percebi que minha precaução me tornara ainda mais vulnerável. Como eu tomara o raki de estômago vazio, em vez de me acalmar, minha cabeça começou a rodar. Os olhos dela eram muito grandes, e o tipo de rosto comprido de que tanto gosto. Enquanto me esforçava para decifrar o mistério de sua beleza — embora eu não tivesse parado de pensar nisso desde que a conhecera na noite anterior, sentia necessidade de sondar suas profundezas —, aumentei ainda mais minha confusão e meu desespero refletindo que conhecia em detalhes o tempo que passara com Ka e o amor que sentiram um pelo outro. Era como se estivesse descobrindo em mim mais uma fraqueza. Era como se aquilo me servisse de lembrete de que Ka vivera sua vida naturalmente, da forma como ela lhe vinha, como verdadeiro poeta que era, ao passo que eu era um ser mais apagado, um romancista de alma simples que, como um funcionário público, sentava para trabalhar à mesma hora todos os dias. Foi por isso, talvez, que passei a dar a Ipek um relato tão vivo e compassivo da rotina diária de Ka em Frankfurt, contando que ele se levantava toda manhã no mesmo horário, percorria as mesmas ruas a caminho da mesma biblioteca e sentava-se para trabalhar à mesma mesa de leitura.

       “Eu estava mesmo resolvida a ir para Frankfurt com ele”, disse Ipek, mencionando vários fatos que comprovavam isso, inclusive a mala que já estava pronta. “Mas agora já não consigo lembrar por que achei Ka tão encantador. Dito isso, gostaria de ajudá-lo para que possa escrever o seu livro, em respeito pela amizade que lhe dedicava.”

       “Você já ajudou muitíssimo. Ka escreveu de forma brilhante sobre o tempo que passou aqui, e isso graças a você”, disse eu, tentando provocá-la. “Ele encheu vários cadernos com um relato minucioso de cada minuto de sua visita de três dias. A única lacuna são as poucas horas antes de sua partida.”

       Com surpreendente franqueza, ela começou a contar o que acontecera nesse intervalo de tempo, ao que parece sem nada esconder, embora deva ter sido muito difícil revelar sua intimidade. Não pude deixar de admirar sua honestidade quando ela me deu seu próprio relato, minuto a minuto, das últimas horas de Ka na cidade: o que ela vira com seus próprios olhos e o que ela imaginara do que não vira.

       “Você não tinha nenhuma prova cabal, mas resolveu não ir para Frankfurt?”, disse eu, tentando novamente provocá-la.

       “Às vezes a gente sente uma coisa no coração e tem certeza de que é verdade.”

       “Você é a primeira pessoa a falar em coração”, disse eu, e, como que para consolá-la por isso, contei-lhe o que tinha concluído das cartas que Ka escrevera para ela em Frankfurt e nunca enviara. Eu disse a ela que Ka não conseguiu esquecê-la. Ele ficou muito perturbado, e durante todo o ano que se seguiu à sua volta para a Alemanha só conseguia dormir à base de soníferos. Ele bebia até ficar atordoado. Quando vagava pelas ruas de Frankfurt, não se passavam quinze minutos sem que confundisse alguma mulher vista à distância com Ipek. Até o fim da sua vida passava várias horas por dia lembrando-se dos momentos felizes que viveram juntos — o mesmo filme passando e tornando a passar em câmera lenta em sua cabeça — e alegrava-se muito toda vez que conseguia ficar ao menos quinze minutos sem pensar nela. Ele nunca mais tivera relações com nenhuma mulher, e depois de tê-la perdido ficou com a sensação de não ser uma pessoa real, mas um fantasma. Quando vi a expressão de dor em seu rosto, como se exclamasse muda-mente “Por favor, basta!”, quando suas sobrancelhas se arquearam como se diante de um enigma, percebi horrorizado que eu não estava defendendo a causa de meu amigo, mas a minha própria.

       “Seu amigo pode ter me amado muito”, disse ela. “Mas não o bastante para voltar a Kars para me ver.”

       “Havia uma ordem de prisão contra ele.”

       “Isso não deveria impedi-lo de vir. Ele poderia comparecer ao tribunal, como ordenado, e o caso seria encerrado. Por favor, não me entenda mal — ele fez bem em não vir —, mas o fato é que Azul conseguiu entrar clandestinamente em Kars muitas vezes, para vir me visitar, ainda que havia muito tempo houvesse ordens de matá-lo.”

       Doía-me o coração ver que quando ela falava em Azul seus olhos castanhos se iluminavam e seu semblante toldava-se com uma melancolia que só podia ser absolutamente verdadeira.

       “Mas o maior medo de seu amigo não era o da justiça”, disse ela, como para me consolar. “Ele sabia muito bem qual fora seu verdadeiro crime, e foi por causa dele que não fui à estação.”

       “Você não apresentou a mínima prova de que ele de fato foi o culpado”, disse eu.

       “Para isso, só preciso olhar no seu rosto. Você carrega a culpa por ele.” Satisfeita com sua resposta inteligente, ela recolocou o isqueiro e os cigarros na bolsa para indicar que a conversa terminara. A resposta fora mesmo inteligente: ela me obrigou a me olhar no espelho e ver o que ela via, isto é, que eu estava com ciúmes não de Ka, mas de Azul. E uma vez reconhecida essa verdade, eu sabia ter sido derrotado. Mais tarde eu iria chegar à conclusão de que a interpretara mal: ela só queria me aconselhar a não me deixar vencer pelo sentimento de culpa. Ela se levantou e vestiu o casaco. Como era alta e distinta!

       Senti-me perturbado. “Vamos nos encontrar novamente esta noite, não é?”, disse eu. Eu não precisava ter dito isso.

       “Claro. Meu pai conta com a sua presença”, disse ela, e se afastou com seu passo gracioso.

       Fiz um esforço para lamentar o fato de que ela considerava Ka culpado, mas sabia que estava enganando a mim mesmo. Na verdade, quando eu estava ali sentado evocando meu “querido amigo falecido”, o que eu queria mesmo era falar dele com uma voz cheia de melancolia e então, pouco a pouco, expor suas fraquezas, suas obsessões, seu “crime”, e finalmente apagar sua nobre lembrança enquanto eu subia a bordo do mesmo navio que ela, para fazermos nossa primeira viagem juntos. Os sonhos que eu acalentara durante minha primeira noite em Kars — levar Ipek comigo para Istambul — agora pareciam muito distantes: diante da vergonhosa verdade, tudo o que eu queria agora era provar a inocência de meu amigo. Podemos supor então que, no que dizia respeito aos dois mortos, fora Azul que me despertara ciúmes, e não Ka?

       Percorrer as ruas cheias de neve de Kars depois do anoitecer só serviu para piorar meu estado de ânimo. A Televisão Fronteiriça de Kars mudara-se para um novo prédio na avenida Karadag, em frente ao posto de gasolina. Era um edifício de concreto de quatro andares que fora anunciado, em sua inauguração, como um claro sinal de que Kars estava se destacando no cenário mundial. Não obstante, dois anos depois seus corredores estavam tão enlameados, escuros e sujos como todos os outros da cidade.

       Fazil estava esperando por mim no estúdio, que ficava no terceiro andar. Depois de me apresentar aos oito funcionários que trabalhavam com ele na emissora, sorriu afavelmente e disse: “Meus colegas querem saber se você não gostaria de dizer algumas palavras no programa da noite”. Meu primeiro pensamento foi o de que aquilo poderia me ajudar em minha pesquisa. Durante minha entrevista de cinco minutos, o jovem apresentador dos programas, Hakan Özge, disse inesperadamente (embora, talvez, por sugestão de Fazil): “Ouvi dizer que você está escrevendo um romance ambientado em Kars!”. A pergunta me perturbou, mas consegui responder sem me comprometer. Não se fez menção a Ka.

       Entramos então na sala do diretor para examinar as estantes cheias de videocassetes. Como todas tinham a indicação de data, como é de praxe, logo localizamos as fitas das duas primeiras transmissões ao vivo do Teatro Nacional. Nós as levamos a uma salinha abafada e nos sentamos, com dois copos de chá, diante do velho aparelho de televisão. A primeira coisa que vi foi a performance de Kadife em A tragédia de Kars. Devo confessar que fiquei impressionado com as “vinhetas críticas” de Sunay Zaim e Funda Eser, para não falar das paródias de vários comerciais de televisão bastante populares à época. Na cena na qual Kadife descobriu a cabeça mostrando a bela cabeleira, antes de matar Sunay, eu parei a fita, voltei e repeti, tentando ver o que acontecera exatamente. A morte de Sunay parecia mesmo uma cena de teatro. Achei que só as pessoas da primeira fila teriam alguma chance de ver se o carregador estava cheio ou vazio.

       Quando coloquei a fita de Minha pátria ou meu manto, logo percebi que os vários elementos da peça — as imitações, as confissões do goleiro Vural, as danças do ventre de Funda Eser — não passavam de pequenos shows paralelos que a trupe inseria em todas as peças que fazia. A barulheira, a gritaria e os slogans que se ouviam no salão, para não falar das más condições da fita, tornavam impossível entender o que se dizia. Mas eu repassei a fita várias vezes, tentando ouvir Ka recitando o poema a que ele mais tarde daria o título de “O lugar onde Deus não existe”. Quase por um milagre, consegui anotar a maior parte dele. Quando Fazil me perguntou o que teria feito Necip levantar-se de um salto enquanto Ka recitava o poema, passei-lhe a folha de papel em que eu anotara às pressas tudo o que eu conseguira ouvir dele.

       Quando chegamos à parte em que os soldados abriram fogo contra a platéia, assistimos à cena duas vezes.

       “Agora você já andou por toda a Kars”, disse Fazil. “Mas há outro lugar que eu gostaria de lhe mostrar.” Um tanto embaraçado, mas também com certo ar de mistério, ele me disse que o lugar que ele tinha em mente era a escola secundária religiosa. A escola mesmo estava fechada, mas como certamente eu poria Necip no livro também, era importante ver o alojamento onde ele passara os últimos anos de sua vida.

       Quando avançávamos na neve pela avenida Conquistador Ahmet Muhtar, vi um cão cor de carvão com uma mancha branca no meio da testa, e ao me dar conta de que bem poderia ser o cão sobre o qual Ka escrevera um poema, entrei numa mercearia para comprar pão e um ovo cozido: o animal ficou abanando alegremente a cauda espiralada, enquanto eu descascava o ovo para ele.

       Quando Fazil viu que o cão estava nos seguindo, disse: “Esse é o cachorro da estação. Eu não lhe contei tudo lá, talvez por temer que você não quisesse vir. O velho alojamento agora está vazio. Depois do golpe, ele foi fechado. Desde então ninguém mais mora lá, e foi por isso que eu trouxe esta lanterna da estação”. Dito isso, apontou a lanterna para os olhos ansiosos do cão negro, que continuava a abanar a cauda. O alojamento, uma velha mansão armênia, já sediara o consulado russo, onde o cônsul morava sozinho com seu cão. A porta que dava para o jardim estava trancada. Fazil me tomou pela mão e me ajudou a pular o muro baixo. “Era assim que a gente fugia de noite”, disse ele. Ele apontou para uma grande janela lá no alto. Passando pela janela sem vidraça com a facilidade de quem já estava habituado a fazer isso, ele se voltou para iluminar o meu caminho com a lanterna. “Não tenha medo”, disse ele. “Aqui só tem pássaros, mais nada.” Lá dentro estava escuro feito breu. Muitas janelas estavam fechadas com tábuas, e as vidraças das outras estavam tão sujas e cobertas de gelo que a luz não as atravessava, mas Fazil achou sem dificuldade o caminho que levava às escadas. Ele avançou sem hesitação, mas voltando-se o tempo todo como um lanterninha de cinema para me mostrar o caminho. Tudo cheirava a poeira e a mofo. Passamos por portas que tinham sido arrombadas a pontapés na noite da invasão e por paredes crivadas de balas; acima de nossa cabeça, pombos voavam assustados dos ninhos que tinham construído nos ângulos dos tubos de água quente e nos cantos do teto alto.

       No último andar, andamos por entre beliches vazios e enferrujados. “Esta era a minha cama, e esta a de Necip”, disse Fazil. “Havia noites em que, para não acordar ninguém com os nossos sussurros, dormíamos na mesma cama, contemplávamos as estrelas e conversávamos.”

       Pelas frestas de uma das janelas altas, víamos flocos de neve movendo-se devagar no halo da lâmpada do poste de iluminação. Deixei-me ficar ali olhando com toda a atenção, imbuído da mais profunda reverência.

       “Necip costumava olhá-las da cama”, disse Fazil. Ele apontou para a estreita abertura entre dois edifícios: à esquerda — logo depois do jardim — via-se a parede sem janelas do Banco Rural; à direita, outra parede sem janelas, os fundos de um alto edifício de apartamentos; o espaço de dois metros entre elas, estreito demais, é antes um corredor que uma rua. Uma lâmpada fluorescente no primeiro andar projetava uma luz violácea no chão enlameado lá embaixo. Para evitar que as pessoas confundissem o corredor com uma rua, colocara-se no meio da parede um cartaz em que se lia ENTRADA PROIBIDA. No fim do corredor, que segundo Fazil inspirara a visão de Necip do “fim do mundo”, havia uma árvore escura e sem folhas, e no exato instante em que a observávamos, ela ficou vermelha como se estivesse em chamas.

       “Faz sete anos que a luz vermelha do letreiro do Estúdio Fotográfico Palácio de Luz tem esse defeito”, sussurrou Fazil. “Ela fica acendendo e apagando, e toda vez que a víamos piscando da cama de Necip, aquele oleandro parecia estar em chamas. Muitas vezes Necip sonhava com essa visão a noite inteira. Ele chamava a visão de ‘aquele mundo’, e ao alvorecer das noites insones às vezes dizia ‘Fiquei vendo aquele mundo a noite inteira!’. Ele conversou com Ka sobre aquilo, e seu amigo o pôs num poema. Percebi isso ao assistir à gravação do programa, e foi por isso que eu o trouxe aqui. Mas seu amigo desonrou Necip ao intitular o poema ‘O lugar onde Deus não existe’.”

       “Foi seu amigo quem descreveu essa paisagem para Ka chamando-a de ‘o lugar onde Deus não existe’”, disse eu. “Tenho certeza”, acrescentei.

       “Não acredito que Necip tenha morrido ateu”, disse Fazil em tom cauteloso. “Exceto pelo fato, é claro, de que tinha dúvidas quanto a si próprio.”

       “Você não ouve mais Necip dentro de você?”, perguntei. “Essa história toda não o faz ter medo de ir se tornando ateu tão gradualmente que nem se dê conta disso, como o homem da história?”

       Fazil não gostou de ver que eu sabia das dúvidas que ele expusera a Ka quatro anos antes. “Agora sou um homem casado, tenho um filho”, disse ele. “Agora não tenho mais interesse por esse assunto.” Pode ser que estivesse me tratando como alguém que viera do Ocidente para aliciá-lo para o ateísmo, porque de repente ele assumiu uma atitude mais conciliadora. “Vamos deixar esse assunto para depois”, disse ele em tom amigável. “Estão nos esperando para jantar em casa de meu sogro, e não seria certo deixá-los esperar, não é?”

       Mas antes de descermos as escadas ele me levou ao grande salão onde outrora funcionara a principal seção do consulado russo. Apontando para a mesa, as cadeiras e as garrafas de raki quebradas a um canto, ele disse: “Quando as estradas se abriram, Z Demirkol e sua equipe de operações especiais ficaram aqui por alguns dias para poderem matar mais islamitas e nacionalistas curdos”.

       Até aquela altura, eu conseguira deixar aquela parte da história fora de minha mente, mas agora ela voltava para mim como por vingança. Eu não queria, de modo algum, pensar sobre as últimas horas de Ka na cidade.

       O cão cor de carvão ficara esperando por nós no portão do jardim e nos acompanhou até o hotel.

       “Você parece estar muito perturbado”, disse Fazil. “Qual é o problema?”

       “Antes de irmos jantar, você pode dar um pulinho em meu quarto? Eu queria lhe dar uma coisa.”

       Quando peguei minha chave com Cavit, olhei pela porta aberta do escritório de Turgut bei e vi a sala iluminada mais adiante, a comida disposta à mesa, ouvi os convidados conversando e senti a presença de Ipek. Eu trazia na mala as fotocópias que Ka fizera das cartas de amor escritas por Necip para Kadife quatro anos antes, e quando chegamos ao quarto eu as entreguei a Fazil. Só muito depois me ocorreu que eu queria que ele fosse atormentado pelo fantasma de seu amigo tanto quanto eu o era pelo de Ka.

       Fazil sentou-se à beira da cama para ler as cartas, e eu tornei à mala para pegar um dos cadernos de Ka. Abrindo-o no floco de neve que eu vira pela primeira vez em Frankfurt, vi uma coisa que uma parte de mim podia ter reconhecido havia muito tempo. Ka situara “O lugar onde Deus não existe” bem no alto do eixo da Memória. Isso me fez pensar que ele estivera no alojamento deserto que Z Demirkol e seus amigos usaram como base de operações no finalzinho do golpe, olhara pela janela de Necip e então descobrira, pouco antes de partir de Kars, a verdadeira origem da paisagem de Necip. Todos os outros poemas no eixo da Memória reportavam-se a sua infância ou a suas lembranças de Kars. Então, também eu me convenci da verdade da história em que toda a Kars acreditava: depois de fracassar na tentativa de convencer Kadife a desistir da peça, e enquanto Ipek estava presa no quarto dele, Ka procurara Z Demirkol, que o esperava em sua nova base de operações, para ouvir de Ka onde podia encontrar Azul.

       Tenho certeza de que, naquele momento, minha expressão de espanto nada ficava a dever à de Fazil. Lá de baixo vinham os ecos das conversas dos convidados, os ruídos da rua, os suspiros da triste cidade de Kars. Perdidos em nossas respectivas lembranças, Fazil e eu nos deixávamos vencer pela presença irresistível de nossos predecessores, mais complexos, mais apaixonados e mais autênticos.

       Olhando pela janela a neve cair, eu disse a Fazil que já estava na hora de descermos. Fazil desceu primeiro, saindo com a expressão culpada de quem acabara de cometer um crime. Deitei-me na cama e imaginei os pensamentos de Ka enquanto andava do Teatro Nacional em direção ao alojamento. Imaginei o esforço sobre-humano que tivera de fazer para olhar Z Demirkol nos olhos. E como ele certamente não soubera dar a exata localização das ruas, deve ter sido obrigado a entrar no carro dos que queriam caçar Azul, para mostrar-lhes o caminho. Que terrível tristeza senti ao imaginar meu amigo apontando o edifício à distância. Ou teria sido algo ainda pior? Será que o escritor burocrata comprazia-se secretamente com a queda do poeta sublime? O pensamento me trouxe um tal sentimento de culpa que me esforcei para pensar em outra coisa.

       Quando desci ao térreo para juntar-me a Turgut bei e aos seus convidados, novamente me senti avassalado pela beleza de Ipek. Recai bei, o refinado amante de livros que dirigia a companhia de eletricidade, fez o possível para melhorar meu estado de ânimo, da mesma forma que Serdar bei e Turgut bei. Mas não nos detenhamos nessa longa noite, ao longo da qual todos me trataram com a máxima solicitude e eu me excedi na bebida. Toda vez que eu olhava para Ipek do outro lado da mesa, sentia alguma coisa partir-se dentro de mim. Eu me vi dando entrevista na televisão. Ver os gestos nervosos que eu fazia com a mão era um tormento. Peguei o pequeno gravador que carregava comigo por toda a cidade para gravar as opiniões de meus anfitriões e de seus convidados sobre a história da cidade, a situação do jornalismo e a noite da revolução, mas fiz tudo isso com o ânimo abatido de quem já não acredita no trabalho que está fazendo. Enquanto tomava a sopa de lentilhas de Zahide, comecei a me imaginar como personagem de um romance da década de 40. Concluí que a prisão fizera bem a Kadife. Agora ela estava mais amadurecida, mais segura de si. Ninguém mencionou Ka — nem mesmo sua morte —, e isso me doeu. A certa altura Ipek e Kadife foram ao quarto contíguo, onde o pequeno Ömercan estava dormindo. Senti vontade de acompanhá-las, mas àquela altura o vosso autor já “tinha bebido demais, como é próprio dos artistas”. E na verdade eu estava tão bêbado que não conseguia ficar de pé.

       Mas ainda guardo uma lembrança bastante nítida daquela noite. Já bem tarde, eu disse a Ipek que queria ver o quarto de Ka, o de número 203. Todos à mesa se calaram e se voltaram para nos olhar.

       “Está bem”, disse Ipek. “Vamos.”

       Ela pegou a chave na recepção e eu a segui escada acima. O quarto. A janela, as cortinas, a neve. O cheiro de sono, o aroma de sabonete, o leve cheiro de poeira. O frio. Enquanto Ipek olhava, ainda desejosa de me conceder o benefício da dúvida, mas não totalmente confiante, sentei-me à beira da cama onde meu amigo passara os melhores momentos de sua vida fazendo amor com aquela mulher. E se eu morresse ali, se eu declarasse meu amor por Ipek, se eu ficasse ali olhando pela janela? Estavam todos embaixo esperando por nós, sim, todos esperavam por nós à mesa. Murmurei umas bobagens que fizeram Ipek sorrir. Lembro-me de que ela me brindou com um sorriso muito doce quando eu lhe disse as palavras vergonhosas que ensaiara previamente:

       “Nadadámaisfelicidadedoque o amor... nemoslivrosqueagente-escrevenemascidadesqueagentevê... Sintomemuitosozinho... seeulhe-dissesse quequeroficaraqumestacidadejuntodevocêaréofimdeminhavida-vocêacreditaria?”

       “Orhan bei”, disse Ipek, “fiz o possível para amar Muhtar, mas não adiantou. Eu amei Azul de todo o coração, mas de nada adiantou. Eu achei que podia aprender a amar Ka, mas isso também não deu em nada. Eu sonhava com um bebê que nunca veio. Acho que nunca mais vou amar ninguém, simplesmente não tenho coração para isso. A única coisa que desejo agora é cuidar do meu sobrinho Ömercan. Mas de qualquer forma eu lhe agradeço, ainda que não possa levar sua proposta a sério.”

       Pela primeira vez, em minha presença, ela não dissera “seu amigo”; ela disse Ka e eu lhe agradeci efusivamente por isso. Será que poderíamos nos encontrar no dia seguinte, ao meio-dia, na Confeitaria Vida Nova, só para falar um pouco mais de Ka?

       Ela sentia muito, mas estava muito ocupada. Mas querendo agir como uma perfeita anfitriã, prometeu ir na noite seguinte à estação, com o resto da família, para se despedir de mim.

       Eu agradeci e confessei que não teria forças para voltar à mesa do jantar (eu temia também começar a chorar), por isso me joguei na cama e apaguei.

       Na manhã seguinte consegui deixar o hotel sem que ninguém visse e passei o dia vagando pela cidade, primeiro com Muhtar, depois com Serdar bei e Fazil. Como eu esperava, o fato de aparecer no noticiário da noite da televisão predispôs a gente de Kars a conversar comigo, por isso consegui reunir muitas informações essenciais que esclareceram o final de minha história. Muhtar me apresentou ao proprietário do periódico Lança, o primeiro jornal militante islamita de Kars (tiragem de setenta e cinco exemplares); conheci também um farmacêutico aposentado que era o gerente editorial do jornal, embora ele tenha se atrasado muito para o encontro. Os dois homens disseram-me que as medidas antidemocráticas tomadas contra o jornal provocaram um recuo no movimento islâmico de Kars, e mesmo o anseio popular por uma escola secundária religiosa permanecia insatisfeito. Só depois que eles terminaram de falar me lembrei de que Fazil e Necip um dia tramaram matar aquele farmacêutico idoso por ter beijado Necip duas vezes de modo estranho.

       O proprietário do Hotel Ásia agora escrevia para o Lança, e quando passamos a discutir os fatos recentes, ele se lembrou do quanto ficara aliviado pelo fato de que o homem que matara o diretor do Instituto de Educação quatro anos antes não era de Kars, um detalhe que eu esquecera, sem saber por quê. Descobriu-se que o assassino, disse ele, tinha uma casa de chá em Tokat; mais tarde ficou provado que ele cometera outro assassinato mais ou menos à mesma época, usando a mesma arma. Quando os exames balísticos chegaram de Ancara, o homem de Tokat foi acusado do crime e confessou que fora a Kars a convite de Azul. Segundo um relatório médico apresentado ao tribunal, ele sofrera um colapso nervoso, por isso o juiz o encaminhou ao Hospital Psiquiátrico de Bakirköy. Libertado três anos depois, abriu a Casa de Chá Alegre Tokat em Istambul, onde resolveu se estabelecer, e agora escreve para o jornal Aliança, onde tem uma coluna sobre os direitos civis das jovens que usam manto.

       A causa das jovens de manto de Kars perdera muito de sua força quatro anos antes, quando Kadife descobriu a cabeça, e embora agora parecesse ressurgir, tantas jovens tinham sido expulsas e tantas outras transferidas para universidades em outras cidades que o movimento de Kars estava longe de ter o dinamismo do de Istambul. A família de Hande recusou-se a me receber.

       O bombeiro com forte voz de barítono que fora levado para a emissora de televisão na manhã seguinte à revolução para cantar canções populares turcas ganhara tantos fãs que agora tinha um programa semanal na Televisão Fronteiriça de Kars, Canções das regiões fronteiriças da Turquia. O programa era gravado às terças-feiras e levado ao ar na noite de sexta. O zelador do Hospital Geral de Kars, amante de música, amigo íntimo e um dos mais devotados seguidores de sua excelência o sheik Saadettin, acompanhava-o num saz rítmico.

       Serdar bei me apresentou também a Quatro-Olhos, o rapaz que subira ao palco na noite da revolução. Proibido pelo pai de subir ao palco novamente, ainda que numa peça escolar, agora estava adulto e ainda trabalhava na distribuição do jornal. Ele me informou sobre os socialistas de Kars que dependiam dos jornais de Istambul para se inteirarem das notícias: eles continuavam grandes admiradores dos islamitas e dos nacionalistas turcos dispostos a dar a vida em sua luta contra o Estado, e vez por outra publicavam manifestos que ninguém se dava ao trabalho de ler. Naquela época suas atividades não iam muito além de se gabarem dos atos heróicos do passado e dos sacrifícios que fizeram na juventude.

       Ao que parecia, todas as pessoas que conheci em minhas andanças pelas ruas de Kars esperavam um herói, um grande homem disposto a fazer grandes sacrifícios que as libertassem da pobreza, do desemprego, da desordem e das matanças. Talvez por eu ser um romancista de certa fama, toda a cidade, ao que parecia, esperava que eu fosse esse grande homem que eles esperavam. Infelizmente, eu os iria desapontar com meus maus modos de Istambul, meu desligamento e falta de organização, meu egoísmo, minha obsessão por meu projeto e minha pressa. E, o que é pior, eles não esconderam seu desapontamento.

       O alfaiate Maruf, por exemplo, depois de me contar a história de sua vida na Casa de Chá União, afirmou que eu deveria ter aceitado o seu convite para ir à sua casa conhecer seu sobrinho e beber com eles; deveria também me demorar mais dois dias em Kars, para assistir à conferência organizada pelos jovens seguidores de Atatürk, na noite de quinta-feira; devia ter fumado todos os cigarros e bebido todos os copos de chá que me ofereceram em sinal de amizade (eu cheguei perto disso).

       O pai de Fazil tinha um amigo do exército, natural de Varto, que me contou que nos últimos quatro anos quase todos os militantes curdos tinham sido mortos ou encarcerados; ninguém mais se juntava aos guerrilheiros. Quanto aos jovens curdos que participaram da reunião no hotel Ásia, tinham todos abandonado a cidade, embora na luta de galo da noite de domingo eu tenha visto o neto de Zahide, apaixonado por apostas. Ele me cumprimentou efusivamente e tomamos um pouco de raki disfarçadamente, em xícaras de chá.

       Como estava ficando tarde, comecei a andar de volta ao hotel, avançando penosamente pela neve como um viandante que estivesse sozinho no mundo, sem um amigo, a alma cheia de tristeza. Eu ainda tinha bastante tempo antes da partida, mas queria ir embora sem ser visto, por isso fui direto ao meu quarto para fazer as malas.

       Quando eu estava saindo pela porta da cozinha, dei com Saffet, o detetive. Agora estava aposentado, mas ainda vinha tomar a sopa de Zahide toda noite. Ele me reconheceu imediatamente da entrevista à televisão e disse que tinha algumas coisas a me contar. Na Casa de Chá União, ele me disse que, embora oficialmente aposentado, às vezes fazia trabalhos avulsos para o Estado. Afinal de contas, não existia aposentadoria para detetives em Kars. Ele me procurara porque os serviços de inteligência da cidade estavam ansiosos por saber o que eu fora desencavar ali (teria alguma coisa a ver com “o problema armênio”, as associações religiosas, os partidos políticos?). Sorrindo amavelmente, acrescentou que se lhe dissesse qual era meu verdadeiro objetivo, eu o ajudaria a ganhar um dinheirinho extra.

       Escolhendo as palavras com todo o cuidado, falei-lhe sobre Ka. Lembrei-o de que seguira os passos de meu amigo por toda a cidade durante sua visita, quatro anos atrás. Que recordações ele tinha de meu amigo?, perguntei.

       “Ele era um homem que se preocupava com as pessoas, e gostava de cachorros também — um homem bom”, disse ele. “Mas sua mente ainda estava na Alemanha, e era muito introvertido. Hoje em dia ninguém mais aqui gosta de Ka.”

       Ficamos em silêncio por um bom tempo. Ainda apreensivo, mas supondo que ele soubesse alguma coisa, finalmente lhe perguntei por Azul, e descobri que um ano antes, da mesma maneira como eu estava ali perguntando sobre Ka, vários jovens islamitas tinham vindo de Istambul para perguntar sobre Azul, aquele inimigo do Estado. Eles foram embora sem descobrir seu túmulo, provavelmente porque o corpo tinha sido jogado no mar de um avião, para evitar que seu túmulo se tornasse um lugar de peregrinação.

     Quando Fazil juntou-se a nós na mesa, ele disse ter ouvido histórias como essa. Disse também ter ouvido falar que os mesmos jovens islamitas, em sua peregrinação, faziam o mesmo caminho que Azul fizera em suas andanças. Eles fugiram para a Alemanha, onde fundaram um grupo de islamitas radicais que crescia rapidamente em Berlim. Segundo os ex-colegas de Fazil da escola secundária religiosa, eles escreveram um manifesto — publicado na primeira página de Peregrinação, um jornal sediado na Alemanha — no qual juravam se vingar dos responsáveis pela morte de Azul. Concluímos que a esse grupo se devia a morte de Ka. Talvez o único manuscrito de seu livro estivesse agora em Berlim, nas mãos dos Peregrinos de Azul — ou pelo menos foi isso que imaginei por um instante enquanto contemplava a neve lá fora.

       Aquela altura outro policial veio sentar-se a nossa mesa para me dizer que todas aquelas histórias não passavam de boatos. “Eu não tenho olhos cinza!”, disse ele. Eu não tinha idéia do que significava ter olhos cinza. Ele amara a finada Teslime de todo o coração, e se ela não tivesse se matado, eles teriam se casado. Foi então que me lembrei de ter lido nos cadernos de Ka que, quatro anos antes, Saffet confiscara a carteira de estudante de Fazil na biblioteca pública. Ocorreu-me que, havia muito tempo, tanto Saffet como Fazil tinham esquecido aquela história.

       Quando Fazil e eu saímos novamente para as ruas cobertas de neve, os dois policiais nos acompanharam — não sei se por amizade ou por curiosidade profissional —, e enquanto andávamos eles nos falaram livremente de suas vidas, do vazio da vida em geral, da dor do amor e do envelhecimento. Nenhum dos dois estava de chapéu, e quando os flocos de neve lhes caíam nos cabelos brancos, não se derretiam. Perguntei-lhes se hoje em dia a cidade estava ainda mais pobre e mais deserta que quatro anos antes. Fazil disse que nos últimos anos todo mundo passava mais tempo vendo televisão e que, em vez de passarem os dias nas casas de chá, os desempregados agora preferiam ficar em casa assistindo a filmes do mundo inteiro, que chegavam aos seus televisores via satélite. Todos na cidade tinham economizado para comprar aqueles pratos brancos mais ou menos do tamanho de tampas de panelas de pressão que agora se viam em todas as janelas. Segundo ele, aquela era a única novidade na cidade.

       Paramos na Confeitaria Vida Nova, onde ambos comemos um dos deliciosos rocamboles com recheio de nozes que custaram a vida ao diretor do Instituto de Educação: aquilo seria nossa refeição da noite. Quando os policiais viram que estávamos andando em direção à estação, despediram-se de nós, e enquanto Fazil e eu passávamos diante de lojas fechadas, casas de chá vazias, mansões armênias abandonadas e vitrines profusamente iluminadas, eu de vez em quando dava uma olhada nos galhos cobertos de neve das castanheiras e choupos, que se elevavam sobre as ruas iluminadas de forma irregular pelas fantasmagóricas luzes de neon. Como os policiais não nos seguiam mais, tomamos as ruas secundárias. A neve, que havia pouco dava sinais de que ia parar, começou a cair mais intensamente. Talvez pelo fato de as ruas se encontrarem vazias, talvez pela minha tristeza por estar prestes a deixar Kars, comecei a me sentir culpado, como se estivesse abandonando Fazil a uma vida solitária naquela cidade deserta. Eu observei que os pingentes de gelo dos galhos nus de dois oleandros se tinham entretecido formando uma cortina de tule; vi um pardal esvoaçar sobre um ninho de gelo, esgueirar-se por entre enormes flocos de neve e passar voando acima de nossa cabeça. O branco lençol de neve que acabara de cair fizera descer sobre as ruas um silêncio tão profundo que, afora o ruído de nossos passos, a única coisa que podíamos ouvir era nossa própria respiração. Quanto mais andávamos, mais difícil e ruidosa ficava nossa respiração, enquanto as casas e as lojas continuavam silenciosas como num sonho.

       Parei por um momento no meio de uma rua para acompanhar a queda silenciosa de um floco de neve até o chão. No mesmo instante, Fazil apontou para um cartaz que havia acima da entrada da Casa de Chá Divina Luz. Em letras desbotadas, pois estavam lá havia quatro anos, lemos a inscrição:

OS SERES HUMANOS SÃO OBRAS-PRIMAS DE DEUS

E

O SUICÍDIO É UMA BLASFÊMIA

       “Essa casa de chá é muito freqüentada por policiais, por isso ninguém ousou tocar no cartaz”, disse Fazil.

       “Você se sente como uma obra-prima de Deus?”, perguntei.

       “Não. Só Necip era uma obra-prima de Deus. Desde que Deus lhe tirou a vida, abandonei todas as minhas preocupações com o ateísmo e meu desejo de amar mais a Deus. Que Deus me perdoe.”

       Os flocos de neve, que agora caíam muito lentamente, pareciam suspensos no céu, e só voltamos a falar quando chegamos à estação de trem. O belo edifício de pedra, uma estrutura dos primeiros tempos da República que mencionei em O livro negro, desaparecera, tendo sido substituído por uma monstruosidade de concreto. Muhtar e o cão cor de carvão esperavam por nós.

       Dez minutos antes do horário de partida do trem, Serdar bei chegou com alguns números atrasados da Gazeta da Cidade Fronteiriça que falavam de Ka. Ao me entregar os jornais, pediu-me que, quando escrevesse meu livro, evitasse dizer coisas ruins sobre a cidade, sobre seus problemas e seu povo. Ao ver Serdar bei me trazendo um presente, um Muhtar bei nervoso, quase culpado, me entregou um saco de supermercado. Dentro havia uma água-de-colônia, uma pequena peça do famoso queijo redondo de Kars e um exemplar autografado de seu primeiro livro de poesias, impresso em Erzurum por sua conta.

       Comprei a passagem e um sanduíche para o cãozinho que meu amigo mencionara em seu poema. Aproximando-se de mim, o cão abanou a cauda alegremente. Eu ainda estava dando comida a ele quando vi Turgut bei e Kadife chegando apressados à estação. Tinham acabado de saber por Zahide que eu tinha saído. Fizemos alguns comentários jocosos sobre o vendedor de passagens, sobre a viagem e a neve. Turgut bei, um tanto envergonhado, tirou do bolso uma nova edição de Primeiro amor, o romance de Turgueniev que ele traduzira do francês quando estava na prisão. Ömercan estava no colo de Kadife, e eu afaguei-lhe a cabeça. A cabeça de sua mãe estava envolta num de seus elegantes mantos de Istambul, e a neve que nele se tinha acumulado caía pelas bordas. Temendo ficar olhando demais os belos olhos da mulher de Fazil, voltei-me para ele e perguntei-lhe se agora ele sabia o que queria dizer aos meus leitores, caso algum dia eu escrevesse um romance ambientado em Kars.

       “Nada”, disse ele em tom decidido.

       Ao ver meu desapontamento, ele voltou atrás. “Pensei numa coisa, mas talvez você não goste”, disse ele. “Se você escrever um livro ambientado em Kars e me colocar nele, gostaria que dissesse a seus leitores que não acreditem em nada do que disser sobre mim, em nada do que disser sobre qualquer um de nós. Ninguém poderia nos entender de tão longe.”

       “Mas ninguém acredita dessa forma naquilo que lê num romance”, disse eu.

       “Ah, sim, eles acreditam”, exclamou ele. “Nem que seja para verem a si mesmos como sábios, superiores e humanistas, eles precisam imaginar que somos doces e engraçados, e convencer-se de que simpatizam com nosso jeito de ser e até nos amam. Mas se você colocar exatamente como eu disse, isso dará aos seus leitores uma pequena margem para dúvidas.”

       Eu lhe prometi colocar o que ele disse em meu romance.

       Vendo que eu olhava a entrada da estação, Kadife aproximou-se de mim. “Ouvi dizer que você tem uma filhinha muito bonita chamada Rüya”, disse ela. “Minha irmã não vem, mas me pediu que mandasse recomendações a você e à sua filha. E eu lhe trouxe esta lembrança de minha breve carreira teatral.” Ela me deu uma fotografia sua com Sunay Zaim no palco do Teatro Nacional.

       O chefe da estação fez soar o apito. Acho que eu era o único passageiro do trem. Eu os abracei um a um. No último momento, Fazil me passou um saco plástico com as cópias que mandara fazer dos vídeos e uma caneta esferográfica que pertencera a Necip.

       Agora o trem já estava em movimento, e tive certa dificuldade de subir no vagão com as mãos tão cheias de presentes. Estavam todos de pé na plataforma acenando, e eu me debrucei na janela para responder aos acenos. Só no último minuto vi o cão cor de carvão, a língua cor-de-rosa pendendo da boca. Ele me acompanhou alegremente, correndo até o fim da plataforma, e todos desapareceram na densa neve que caía.

       Sentei-me e, por entre a neve, olhei as luzes alaranjadas das casas mais afastadas dos bairros periféricos, as salas miseráveis cheias de gente assistindo à televisão, e os últimos telhados cobertos de neve, até que finalmente as graciosas e trementes fitas de fumaça que se erguiam das chaminés arruinadas já não passavam de borrões aos meus olhos rasos d’água.

       Abril de 1999-dezembro de 2001

A ordem em que Ka escreveu os poemas

TítuloCapítuloPágina 1. Neve10118 2. Simetria oculta11126 3. As estrelas e seus amigos14154 4. A caixa de chocolate14154 5. O lugar onde Deus não existe16182 6. A noite da revolução19210 7. Ruas de sonho21229 8. Suicídio e poder22240 9. Privações e dificuldades24271 10. Eu, Ka24271 11. Vou ser feliz27303 12. Toda a humanidade e as estrelas32358 13. Paraíso32358 14. Ser morto a tiros33370 15. Xadrez35399 16. Amor36413 17. Cão37428 18. Inveja38442 19. O lugar onde o mundo acaba40467      

 

 

Glossário

Atatürk (Mustafá Kemal): fundador da Turquia moderna, foi eleito seu primeiro presidente, em 1923.

Cemalettin: líder religioso turco na Alemanha.

Döner: comida turca preparada com carne de vaca e de carneiro. Edward G. Robinson: ator americano, nascido na Romênia.

Fatiha: primeiro capítulo do Corão.

Firdusi: poeta épico persa.

Gazzali (1050-1111): pensador muçulmano.

Guardiães da Nação: organização fundada na Alemanha que defende ideais nacionalistas e religiosos.

Hamam: banho turco.

Ibn Arabi (1165-1240): filósofo árabe.

Kebab: prato oriental de carne (carneiro ou vaca) marinada, geralmente servida em forma de espetinhos em cubos, cozidos com legumes como cebola, tomate e pimentão.

MIT: serviço de inteligência da Turquia.

PKK: Partido dos Trabalhadores do Curdistão

Raki: bebida alcoólica destilada de trigo, uvas, ameixas etc.

Salep: bebida quente à base de pó de orquídea e polvilhada com canela, vendida nas ruas, principalmente no inverno.

Sharbat: popular suco indiano, feito de frutas ou pétalas de flores.

Suleimanci: comunidade religiosa muito influente na Europa, conhecida por sua extrema discrição e ação educadora.

Tesvikiye: bairro de Istambul.

Turan: cidade do Iraque.

 

 

                                                                                 Ornan Pamuk  

 

                      

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