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NÉVOA DE PROFESSIAS / Steven Saylor
NÉVOA DE PROFESSIAS / Steven Saylor

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

NÉVOA DE PROFESSIAS

 

A última vez que vi Cassandra...

 

Ia a dizer: a última vez que vi Cassandra foi no dia da sua morte. Mas não seria verdade. A última vez que a vi que olhei para o seu rosto, que passei os dedos pelo seu cabelo dourado, que me atrevi a tocar-lhe a face fria foi no dia do seu funeral.

 

Fui eu que tratei de tudo. Não havia mais ninguém. Ninguém se apresentou a reclamar o seu corpo.

 

Chamo-lhe Cassandra, mas não era esse o nome dela, evidentemente. Pais nenhuns dariam a uma filha nome tão amaldiçoado, da mesma maneira que ninguém chama a uma filha Medeia, Medusa ou Ciclope. Da mesma maneira que nenhum senhor daria nome tão agoirento a uma escrava. Eram os outros que lhe chamavam Cassandra, por causa do dom especial que estavam convencidos de que ela possuía. Tal como a Cassandra original, a princesa da Tróia antiga, de lamentável destino, a nossa Cassandra parecia capaz de prever o futuro. Quão poucas vantagens retiraram as duas mulheres que usaram esse nome do amaldiçoado dom.

 

Ela chamava a si própria aquilo que os outros lhe chamavam, Cassandra, afirmando que já não se lembrava do seu nome verdadeiro, nem de quem eram os seus pais, ou de onde tinha vindo. Havia quem pensasse que os deuses lhe concediam vislumbres do futuro para compensar o facto de lhe terem roubado o passado.

 

Houve outra pessoa que lhe roubou o presente. Alguém apagou a chama que brilhava dentro dela, iluminando-a com um brilho interior, como eu nunca vi em nenhum outro mortal. Alguém assassinou Cassandra.

 

Como já disse, foi a mim que competiu tratar do funeral. Não houve amigo ou amante ultrajado, pai ou irmão sofredor que se apresentasse a reclamá-la. O jovem que fora o seu único companheiro, o mudo a quem ela chamava Rupa guarda-costas, criado, parente, amante? desapareceu quando ela foi assassinada.

 

Durante três dias, o seu corpo repousou sobre uma padiola no vestíbulo de minha casa, no Monte Palatino. Os embalsamadores vestiram-na de branco e rodearam-na de ramos de pinheiro, que perfumavam o ambiente. O assassino nada tinha feito para destruir a beleza de Cassandra; ela fora morta com veneno. Desprovidas de cor, as faces suaves e os lábios macios de Cassandra tomaram uma aparência cerosa, opalescente, como se ela tivesse sido esculpida em mármore branco translúcido. O cabelo que lhe enquadrava o rosto parecia ouro martelado, frio e duro ao toque.

 

Durante o dia, iluminada pelos raios de sol que entravam pela clarabóia do átrio, não parecia mais viva que uma estátua de mármore. Mas à noite, enquanto os outros habitantes de minha casa dormiam, eu escapava-me do leito conjugal e dirigia-me de mansinho ao vestíbulo, para contemplar o corpo de Cassandra. Houve alturas estranhos momentos, que só têm lugar a meio da noite, quando a mente está cansada e a luz tremeluzente da lamparina prega partidas aos olhos de um velho em que quase me pareceu impossível que o corpo poisado na padiola estivesse realmente morto. A luz da lamparina conferia ao rosto de Cassandra um brilho quente. O cabelo luzia-lhe com reflexos de vermelho e amarelo. Parecia-me que, a qualquer momento, ela poderia abrir os olhos e entreabrir os lábios para inspirar uma golfada de ar vivificante. Certa vez, cheguei mesmo a atrever-me a tocar os seus lábios com os meus, mas recuei com um arrepio, ao senti-los frios e indiferentes como os lábios de uma estátua.

 

Pendurei uma grinalda preta à porta de casa. Estas grinaldas são uma advertência, alertam as outras pessoas para a presença da morte no interior; mas, noutro sentido, são também um convite: entrem, venham prestar uma última homenagem. Mas nenhum visitante veio contemplar o corpo de Cassandra. Não fomos sequer incomodados por um desses bisbilhoteiros compulsivos, do género que faz a ronda da cidade à procura de grinaldas, e bate à porta da casa de pessoas que nunca viu, só para poder olhar para o mais recente cadáver, a fim de dar a sua opinião sobre o trabalho dos embalsamadores. Eu fui o único a chorar Cassandra.

 

Talvez a morte e os funerais se tenham tornado excessivamente comuns em Roma, pensei, para que o falecimento de uma mulher solteira, de família desconhecida, geralmente considerada tão louca como bem, tão louca como Cassandrasuscite qualquer interesse. O mundo inteiro estava mergulhado numa guerra civil que reduzia à insignificância quaisquer outros acontecimentos da sua história. Os combatentes morriam às centenas, aos milhares, em terra e no mar. As viúvas, desesperadas, definhavam no esquecimento. Os homens, endividados e arruinados, enforcavam-se nas vigas de suas casas. Os especuladores gananciosos eram apunhalados durante o sono. Tudo era ruína, e o futuro apenas prometia mais morte e mais sofrimento, a uma escala jamais vista pela humanidade. A bela Cassandra, que assombrara as ruas de Roma com as suas profecias loucas e arrepiantes, tinha morrido e ninguém se incomodara o suficiente com o facto para vir contemplar o seu corpo.

 

E, no entanto, alguém se incomodara o suficiente para assassiná-la.

 

Quando terminou o período de luto, chamei os mais fortes de entre os meus escravos domésticos, e ordenei-lhes que pusessem a padiola aos ombros. Os membros de minha casa formaram o cortejo fúnebre, à excepção da minha mulher, Betesda, que estivera doente durante algum tempo, e naquele dia ainda não se sentia com forças para sair de casa. Em seu lugar, avançava a meu lado a minha filha Diana, e a seu lado seguia Davo, o marido dela. Atrás de nós seguiam o meu filho Eco e a mulher, Menénia, e os filhos de ambos, os gémeos de cabeças douradas, que, aos onze anos, já tinham idade suficiente para compreender o carácter sombrio desta ocasião. Jerónimo, o massiliano, que residia em minha casa desde a sua chegada a Roma, no ano anterior, também compareceu; tinha sofrido muito durante toda a sua vida, e conhecido a dor dos proscritos, por isso julgo que sentisse uma natural ligação e simpatia por Cassandra. Os poucos escravos de minha casa vinham atrás; entre eles contavam-se os irmãos Androcles e Mopso, que eram um pouco mais novos que os filhos de Eco. Por esta vez, pressentindo a gravidade da ocasião, portaram-se bem.

 

Para que tudo fosse feito como devia ser, contratei três músicos, que abriam a procissão tocando um hino fúnebre, um à trompa e outro à flauta, enquanto o terceiro agitava um chocalho de bronze. Os meus vizinhos que habitavam as imponentes casas do Palatino ouviram-nos aproximar e fecharam as portadas, irritados com o barulho, ou então abriram-nas para trás, olhando com curiosidade o funeral.

 

Depois dos músicos seguiam as carpideiras profissionais. Contratei quatro, que era o máximo que podia permitir-me, tendo em conta a minha situação financeira, embora elas fossem baratas. Calculo que não faltassem em Roma mulheres capazes de recorrer às próprias tragédias para conseguirem derramar lágrimas por uma mulher que não conheciam. Estas quatro já tinham trabalhado juntas noutras ocasiões, e comportaram-se com admirável profissionalismo. Estremeciam e choravam, cambaleavam e vacilavam sem nunca chocarem umas com as outras, arrepiavam os cabelos emaranhados e cantavam à vez o refrão do famoso epitáfio do dramaturgo Névio: "Se a morte de um mortal entristece os corações imortais, os deuses do alto devem chorar a morte desta mulher..."

 

Depois, vinha o mimo. Tinha hesitado em contratar um mimo, mas acabara por me parecer adequado. Disseram-me que ele era de Alexandria, e que era o melhor que havia em Roma para este género de coisa. Usava uma máscara com feições femininas, uma cabeleira loura, e uma túnica azul como a de Cassandra. Eu próprio o tinha treinado a imitar o porte e os maneirismos de Cassandra. Os seus gestos eram quase todos excessivamente amplos e genéricos, mas de vez em quando, fosse por acidente ou com intenção, acertava com uma atitude que condensava em grau inquietante o que Cassandra fora, arrepiando-me de alto a baixo.

 

De uma maneira geral, concede-se aos mimos dos funerais uma grande liberdade para caricaturarem e ridicularizarem suavemente o morto, mas eu tinha-o proibido de o fazer; uma coisa é encenar uma paródia afectuosa de um patriarca ou de uma figura pública, mas o que se sabia sobre a vida de Cassandra não era suficiente para alimentar o humor. Ainda assim, o mimo não poderia proporcionar-nos um retrato dela sem imitar a característica que todos recordavam: os seus paroxismos proféticos. De vez em quando, ele tinha uma súbita convulsão e começava a girar sobre si próprio; depois virava a cabeça para trás e lançava um uivo estranho e enervante. Não seria uma imitação exacta da realidade, era apenas uma sugestão nem de longe tão assustadora ou inquietante como os episódios de possessão divina da Cassandra real, mas era suficientemente parecida para fazer com que os transeuntes que tivessem visto Cassandra profetizar no Fórum ou nos mercados públicos acenassem com a cabeça, dizendo para si próprios: Então é essa que vai ali em cima daquela padiola funerária. Logo a seguir ao mimo, vinha a própria Cassandra, erguida ao alto e oculta debaixo das flores frescas e dos ramos de sempre-verdes, de braços cruzados sobre o peito e olhos fechados, como se estivesse a dormir. Depois de Cassandra, seguiam os membros de minha casa, marchando em procissão solene por uma mulher que nenhum deles, à excepção de mim próprio, tinha efectivamente conhecido.

 

Passámos lentamente diante das magníficas casas do Palatino, e depois descemos em direcção à zona da Subura, onde as ruas estreitas fremiam de vida. Mesmo nestes tempos de impiedade, em que os homens escarnecem dos deuses e os deuses escarnecem de nós, as pessoas mostram-se respeitosas quando vêem passar um funeral. Suspendem as brigas, as coscuvilhices ou os regateios, fecham a boca, e afastam-se do caminho para deixar passar o morto e os que o choram.

 

Muitas vezes, quando um cortejo funerário atravessa as ruas de Roma, há pessoas que se unem à comitiva, desejosas de prestar a sua homenagem ao morto seguindo a família e juntando-se à procissão. É o que acontece invariavelmente com os funerais dos famosos e dos poderosos e, muitas vezes, mesmo com os dos humildes, se tiverem sido conhecidos e amados na comunidade. Mas naquele dia ninguém se juntou a nós. Sempre que olhava por cima do ombro, apenas via um espaço vazio a seguir à última pessoa da nossa comitiva, e depois a multidão, que cerrava fileiras atrás de nós, desviando a atenção do espectáculo que passava e regressando aos seus afazeres.

 

E, contudo, fomos observados, e fomos seguidos como eu em breve descobriria.

 

Por fim, chegámos à Porta Esquilina. Atravessando os seus portais, passámos da cidade dos vivos para a cidade dos mortos. A necrópole pública de Roma estendia-se pelas encostas levemente inclinadas das colinas, até onde o olhar conseguia alcançar. Era aqui que se amontoavam os túmulos não assinalados dos escravos e os túmulos modestos dos cidadãos comuns. O nosso funeral não era o único a ter lugar naquele dia. Aqui e ali, erguiam-se no ar plumas de fumo provenientes de piras funerárias, que empestavam a necrópole com os odores da madeira e da carne queimada.

 

A pira destinada a Cassandra já tinha sido preparada no alto de um pequeno monte, ligeiramente distanciado da estrada. Enquanto a padiola era colocada sobre ela, e os vigias do fogo se preparavam para acender a fogueira, eu entrei no templo de Vénus Libitina, onde se guardam os registos dos mortos.

 

O funcionário que me atendeu manteve uma expressão oficial e sorumbática desde o momento em que poisou ruidosamente o livro de registos em cima do balcão que nos separava. Disse-lhe que queria registar uma morte. Ele abriu o díptico articulado de madeira, com as tabuinhas de cera embutidas, e pegou no estilete.

 

Cidadão, escravo ou estrangeiro? perguntou secamente.

 

Não tenho a certeza.

 

Não tens a certeza? Ele olhou para mim como se eu tivesse entrado no templo com o propósito específico de o fazer perder tempo.

 

Não a conhecia propriamente. Parece que ninguém a conhecia propriamente.

 

Não pertencia a tua casa?

 

Não. Só estou a tratar do funeral dela porque...

 

Quer dizer que era uma estrangeira, que estava de visita à cidade?

 

Não tenho a certeza.

 

Ele fechou o livro dos registos com toda a força, e brandiu o estilete diante da minha cara.

 

Nesse caso, desaparece, e não voltes cá enquanto não tiveres a certeza.

 

Eu estendi a mão por cima do balcão e agarrei-lhe a parte da frente da túnica, amarrotando-a dentro do meu punho cerrado.

 

Ela morreu há quatro dias, aqui em Roma, e tu vais registar a morte dela no livro dos registos.

 

O funcionário empalideceu.

 

Com certeza guinchou.

 

Só quando o fui gradualmente libertando é que me apercebi da força com que lhe tinha agarrado a túnica. Ele tinha a cara vermelha, e demorou uns momentos a recuperar a respiração. Endireitou a túnica e alisou o cabelo com grande pompa. Depois, abriu o livro de registos com a meticulosidade que o caracterizava e carregou com o estilete na cera.

 

Nome da falecida? perguntou, com a voz a tremer. Tossiu para limpar a garganta.

 

Não tenho a certeza. respondi eu.

 

Ele retorceu a boca e mordeu a língua, sem erguer os olhos do registo.

 

Mas eu tenho de escrever qualquer coisa no nome.

 

Então escreve Cassandra.

 

Muito bem. Ele inscreveu asperamente as letras na cera dura. Local de origem?

 

Já te disse que não sei.

 

Ele deu um estalido com a língua.

 

Mas eu tenho de escrever qualquer coisa. Se ela era cidadã romana, tenho de saber o seu nome de família; e, se era casada, o nome do marido. Se era estrangeira, tenho de saber de onde veio. Se era escrava...

 

Nesse caso, escreve: "Origem desconhecida".

 

Ele abriu a boca para falar, mas depois pensou melhor.

 

Isto é altamente irregular murmurou, enquanto escrevia o que eu lhe tinha dito. Presumo que não saibas a data do seu nascimento.

 

Olhei para ele com ar ameaçador.

 

Estou a ver. Nesse caso, "Data de nascimento desconhecida". E a data da morte? Foi há quatro dias, disseste tu?

 

Sim, ela morreu nos Nonos de Sextil.

 

E a causa da morte?

 

Veneno respondi eu, com os dentes semicerrados. Foi envenenada.

 

Estou a ver disse ele, não demonstrando qualquer emoção, e escrevinhando rapidamente. Com um nome como Cassandraprosseguiu num murmúrio, era de prever qualquer coisa desse género. E tu, como te chamas? Tens de me dar o teu nome, para completar o registo.

 

Senti de novo o impulso para o agredir, mas resisti.

 

Gordiano, chamado o Descobridor.

 

Muito bem. Aqui está, assentei a entrada como tu querias. "Nome do falecido: Cassandra. Família e estado civil desconhecidos. Data de nascimento desconhecida. Morte por envenenamento nos Nonos de Sextil, Ano de Roma 706. Registado por Gordiano, chamado o Descobridor. Estás satisfeito, cidadão?

 

Eu nada disse e afastei-me, em direcção aos pilares que flanqueiam a entrada. Atrás de mim, ouvi-o murmurar:

 

Descobridor, heim? Farias melhor em descobrir quem foi que a envenenou...

 

Desci os degraus do templo, regressando para junto da pira funerária, de olhar fixo no chão, mas sem nada ver. Ao aproximar-me, fui sentindo o calor do fogo; e, quando finalmente levantei os olhos, avistei Cassandra por entre as chamas. A padiola tinha sido erguida na vertical, por forma a que o cortejo funerário pudesse contemplar os derradeiros momentos da sua existência física. Os músicos aceleraram o ritmo, de canto fúnebre para lamento agudo. As carpideiras contratadas lançaram-se de joelhos, batendo com os punhos cerrados na terra, gritando e gemendo.

 

Subitamente, uma rajada de vento empurrou as chamas para o alto. O rugido do fogo era pontuado por estalidos ruidosos, esteiros e chiados. Eu fiquei a ver as chamas consumirem-na gradualmente, frisando-lhe o cabelo, secando-lhe e carbonizando-lhe a pele, tornando tudo preto, destruindo para sempre a sua beleza. O vento lançou-me fumo para os olhos, fazendo-mos arder, enchendo-mos de lágrimas. Tentei desviar a vista queria desviar a vista, mas não consegui. Apesar de horrível, este espectáculo era mais um momento, era a minha derradeira oportunidade de contemplar Cassandra.

 

Meti a mão dentro da toga e retirei um pequeno bastão de couro, que tinha pertencido a Cassandra; era o único dos seus haveres que ainda existia. Apertei-o no punho fechado por momentos, e depois lancei-o às chamas.

 

Senti a presença de Diana a meu lado, depois o toque da sua mão no meu braço.

 

Papá, olha.

 

Consegui finalmente desviar os olhos da pira funerária. Olhei inexpressivamente para a cara da minha filha. Os seus olhos tão amados, tão vibrantemente vivos encontraram-se com os meus, e depois desviaram-se. Eu segui a direcção do seu olhar. Já não estávamos sozinhos. Havia mais quem tivesse vindo assistir ao fim de Cassandra. Deviam ter chegado enquanto eu me encontrava no templo ou olhava fixamente as chamas. Formavam grupos distintos, a uma certa distância do fogo, organizados em semicírculo atrás de nós. Eram, ao todo, sete comitivas. Olhei à vez para todas elas, sentindo dificuldade em acreditar no que estava a ver.

 

Sete das mais ricas, mais poderosas e mais notáveis mulheres de Roma tinham vindo à necrópole assistir à cremação de Cassandra. Não se tinham juntado à procissão funerária pública, mas aqui estavam elas, sentadas nas respectivas liteiras, rodeadas por comitivas de familiares, guarda-costas e carregadores; nenhuma delas reconhecia a presença das outras, mantendo as distâncias, quer relativamente a nós, quer entre si; todas elas olhavam a pira funerária sem pestanejar.

 

Examinei-as cuidadosamente, da esquerda para a direita.

 

A primeira era Terência, a piedosa e sempre respeitável mulher de Cícero. Com o marido ausente na Grécia, onde fora juntar-se ao partido de Pompeu, dizia-se que Terência estava a passar por dificuldades económicas, e a verdade é que a sua liteira era a mais modesta de todas. Os tecidos que cobriam o compartimento já não eram brancos, mas de um cinzento-puído, com rasgões aqui e ali. Mas a sua liteira era também a maior de todas e, apurando a vista, distingui mais duas mulheres na sua companhia. Uma era a filha, Túlia, a menina dos olhos de Cícero. A outra estava mais recuada, oculta nas sombras, mas pelo fato e o toucado característicos percebi que se tratava de uma Virgem Vestal. Era certamente Fábia, a irmã de Terência, que na sua juventude estivera prestes a ser condenada à morte por ter quebrado o sagrado voto da castidade.

 

Na liteira seguinte, vi Antónia, a prima e mulher de Marco António, o braço direito de César. Enquanto César andara por Espanha a combater os seus inimigos, António ficara encarregado de governar Itália.

 

Agora, ambos estavam ausentes na Grécia, a combater Pompeu. Dizia-se que Antónia tinha sido uma mulher muito atraente. Eu nunca lhe fora formalmente apresentado, e é possível que a não tivesse reconhecido, se não fossem as cabeças de leão em bronze que coroavam os suportes verticais dos cantos da sua liteira. A cabeça do leão era o símbolo de António.

 

A sua presença era tanto mais extraordinária por causa da mulher cuja liteira se encontrava a seguir. Qualquer habitante de Roma teria reconhecido o verde-vivo daquele compartimento, decorado com borlas cor-de-rosa e douradas, porque Citéris, a actriz, nunca deixava de chamar a atenção para as suas idas e vindas. Tratava-se da amante de António, e ele não fizera segredo do facto enquanto governava Roma na ausência de César, tendo percorrido Itália inteira na sua companhia. As pessoas chamavam-lhe a mulher substituta de António. Citéris era famosa pela sua beleza, embora eu nunca me tivesse aproximado dela o suficiente para poder observá-la como deve ser. Aqueles que a tinham visto representar em espectáculos de mímica organizados pelo seu anterior proprietário, o banqueiro Volúmnio, diziam que também tinha talento, que era capaz de suscitar, por meio dos gestos e das expressões mais simples, toda uma gama de reacções no seu público a menor das quais não era a concupiscência. Ela e Antónia não lançaram um único olhar na direcção uma da outra, aparentemente ignorando as respectivas presenças.

 

Passei à liteira seguinte, envolvida em tecidos de tons de preto e azul-escuro, adequados ao luto, e reconheci Fúlvia, a duplamente viúva. Fora primeiramente casada com Clódio, um político radical incitador da ralé. Após o seu assassínio, quatro anos antes, na Via Ápia, e do caos que se lhe seguira parecia-me agora, em retrospectiva, que esses acontecimentos tinham marcado o princípio do fim da República, Fúlvia acabara por se casar de novo, juntando o seu destino ao do jovem e amado lugar-tenente de César, Gaio Curió. Poucos meses antes, chegara de África a notícia do desastroso fim de Curió: a sua cabeça transformara-se em trofeu do Rei Juba. Havia quem dissesse de Fúlvia que era a mulher menos afortunada de Roma mas, tendo-a conhecido, eu sabia que ela era senhora de um espírito indómito. A seu lado na liteira estava sentada a mãe, Semprónia, de quem Fúlvia herdara esse espírito.

 

Quando transferi o meu olhar para a ocupante da liteira seguinte, percebi que as incongruências se tinham multiplicado. Nesse compartimento, reclinada sobre um amontoado de almofadas em pose tipicamente voluptuosa, estava Fausta, a notoriamente promíscua filha de Sula. Trinta anos após a sua morte, o breve e sanguinário reinado do ditador ainda ensombrava Roma. (Havia que previsse que o triunfador da actual contenda, fosse ele César ou Pompeu, seguiria o exemplo implacável de Sula, alinhando no Fórum as cabeças dos seus inimigos.) Mas, se o fantasma de Sula assombrava o Fórum, dizia-se que a filha de Sula assombrava as mais dissolutas festas da cidade. Fausta continuava casada, embora apenas nominalmente, com Milo, o chefe de um bando de rua agora proscrito, o único exilado político que César excluíra intencionalmente dos generosos perdões que proclamara antes de partir de Roma. O imperdoável crime de Milo fora o assassínio, quatro anos antes, do seu rival Clódio, na Via Ápia. De acordo com o tribunal, fora o marido de Fausta quem fizera de Fúlvia viúva (pela primeira vez). Teriam as duas mulheres consciência da presença uma da outra? Se tinham, não deram qualquer indicação do facto, tal como acontecia com Antónia e Citéris. Neste momento, Milo estava muito presente no espírito de todos, porque tinha fugido do exílio e dizia-se que andava pelo campo a reunir insurrectos. O que saberia Fausta de tudo isso? Por que teria vindo ao funeral de Cassandra?

 

A seguir à liteira de Fausta, e rodeado pela maior de todas as comitivas de guarda-costas, estava um dossel esplendoroso, com postes de marfim e coberto com um tecido branco, brilhante devido aos fios de ouro que o entrelaçavam, e com uma tira cor de púrpura como bainha. Era a liteira da imponente mulher de César, Calpúrnia. Agora que Marco António partira de Roma para combater ao lado de César, muitos achavam que Calpúrnia funcionava como os olhos e os ouvidos do marido na sua ausência. César casara-se com ela dez anos antes, por razões puramente políticas, na opinião de alguns, porque encontrara em Calpúrnia uma mulher à altura das suas próprias ambições. Dizia-se que era uma mulher invulgarmente obstinada, que não tinha tempo a perder com superstições. Por que teria vindo assistir ao funeral de uma vidente louca?

 

Restava uma liteira, que estava um pouco distanciada das outras. Quando os meus olhos recaíram sobre ela, o coração deu-me um salto no peito. A sua ocupante não estava visível, à excepção do dedo que afastava os panos, apenas o suficiente para que ela pudesse ver o exterior. Mas eu conhecia muito bem o tecido de listas encarnadas e brancas daquela liteira. Oito anos antes, a sua ocupante fora umas das mulheres mais públicas de Roma, conhecida pelo seu ardor e a sua vivacidade. Quando o seu jovem amante se distanciara dela, arrastara-o para os tribunais, cometendo o grave erro de se atravessar no caminho de Cícero. O resultado fora uma desastrosa humilhação pública, da qual nunca tinha recuperado. Pouco depois, Clódio, o seu irmão (e, na voz de alguns, seu amante), fora ao encontro da morte na Via Ápia, e a sua vivacidade parecera esgotar-se em definitivo. Remetera-se a um isolamento tão completo, que havia quem pensasse que tinha morrido. Fora a única mulher de Roma antes de Cassandra que ameaçara partir-me o coração. O que estaria Clódia a bela e enigmática Clódia, que já fora a mulher mais perigosa de Roma e vivia agora pouco menos que esquecida a fazer aqui, ocultando-se incógnita por entre as liteiras das outras mulheres?

 

Passei os olhos de liteira para liteira, com a cabeça a andar à roda. Ver todas estas mulheres reunidas no mesmo sítio e ao mesmo tempo era mais do que extraordinário; era espantoso. E, contudo, aqui estavam elas, com as liteiras formando um semicírculo diante da pira funerária, como pavilhões de exércitos rivais dispostos num campo de batalha. Terência, Antónia, Citéris, Fúlvia, Fausta, Calpúrnia e Clódia o funeral de Cassandra unira-as a todas. O que teriam vindo fazer? Chorar por Cassandra? Amaldiçoá-la? Regozijar-se? A distância impedia-me de ler as expressões dos seus rostos.

 

A meu lado, Diana cruzou os braços e assumiu a expressão dura e astuta que eu e a mãe tão bem conhecemos.

 

Deve ter sido uma delas disse. Sabes bem que ela deve ter sido assassinada por uma destas mulheres.

 

Senti um arrepio, apesar do calor proveniente das chamas. Pestanejei ao sentir uma repentina espiral de fumo e cinzas, e voltei-me de novo para a pira funerária. O fogo continuara a consumir Cassandra, roubara-me outra parte dela, e eu não tinha assistido. Abri muito os olhos, apesar de sentir o fumo queimar-mos. Olhei fixamente para os restos enegrecidos que repousavam na padiola erguida na vertical, agora reduzida a um leito de carvões brilhantes. Os músicos tocavam um lamento agudo. As carpideiras ergueram aos céus os seus lamentos.

 

Não sei quanto tempo contemplei aquelas chamas. Mas, quando finalmente olhei de novo para trás, já as sete mulheres, com as respectivas liteiras e comitivas, tinham desaparecido, como se nunca ali tivessem estado.

 

A última vez que vi Cassandra que realmente a vi, que a olhei nos olhos e contemplei, não apenas o seu invólucro mortal, mas também o espírito que habitava o seu interior foi no dia da sua morte.

 

Foi pouco depois do meio-dia, nos Nonos de Sextil, num dia de mercado, ou daquilo que passava por mercado na Roma naqueles tempos de escassez e inflação disparada. Nesse dia, Betesda sentiu-se suficientemente bem para sair de casa. Eu também fui, juntamente com Diana. Davo, o meu genro, acompanhou-nos. Em dias de incerteza como os que vivíamos, era sensato andar acompanhado por um sujeito grande e possante como Davo, que servia de nosso guarda-costas.

 

íamos à procura de rabanetes. Betesda, que estava doente há algum tempo, tinha decidido que os rabanetes, e só os rabanetes, poderiam curá-la.

 

Saímos de minha casa, no Palatino, e descemos ao mercado, que ficava no outro extremo do Capitolino, não muito longe do Tibre. Andámos de vendedor em vendedor, procurando em vão um rabanete que satisfizesse o olhar exigente de Betesda. Este tinha pintinhas pretas. Aquele era excessivamente alongado e mole. Um terceiro tinha uma cara (as folhas eram os cabelos, as raízes soltas a barba) parecida com a de um sapateiro desonesto com quem Betesda tivera certa vez uma discussão. É certo que nenhum daqueles rabanetes me parecia particularmente apetitoso. Apesar dos esforços dos magistrados nomeados por César antes da sua partida, a economia estava em permanente tumulto, sem fim à vista. Eu não tinha qualquer pretensão de compreender as intrincâncias da economia romana a produção de alimentos, o transporte para os mercados, os empréstimos sobre colheitas futuras, o cuidado e a alimentação dos escravos e o custo de substituição dos fugitivos (um problema especialmente agudo nos tempos que corriam), o permanente e triturador esforço na guerra entre credores e devedores, mas uma coisa sabia: uma guerra que divide o mundo inteiro em dois resulta numa escassez de rabanetes comestíveis.

 

Sugeri a Betesda que optasse por cenouras tinha avistado uma ou duas que me tinham parecido com bom aspecto, mas ela insistia em que a sopa que tinha em mente não consentia substituições. Dado que se tratava de uma sopa medicinal, mais destinada à sua recuperação do que à minha subsistência, calei-me. Há meses que Betesda sofria de uma vaga e persistente doença. Embora eu duvidasse de que uma sopa a fizesse passar, fosse ela de que qualidade fosse, também não tinha melhor remédio a sugerir.

 

E assim, andámos os quatro de vendedor em vendedor, à procura de rabanetes. Ainda bem que não andávamos à procura de azeitonas, porque as únicas que vimos estavam à venda ao preço de pérolas. Era mais fácil encontrar pão bolorento, mas o preço era quase o mesmo.

 

Ouvi o estômago de Davo roncar atrás de mim. Ele era um sujeito grande. Precisava de mais quantidade de comida do que dois homens normais para sentir o estômago cheio, e ultimamente não conseguia obtê-la. Estava magro de cara, e tinha a cintura do tamanho da de um rapaz. Diana andava preocupada com ele, e atormentava-se dizendo que ele ia secar e desaparecer, mas eu afirmava que, enquanto as pernas de Davo parecessem troncos de árvores, e os seus ombros o arco de um aqueduto, não tínhamos motivos para nos preocuparmos.

 

Eureka! gritou Betesda subitamente, ecoando a famosa exclamação do matemático Arquimedes, embora eu duvidasse de que ela tivesse jamais ouvido falar dele. Apressei-me a juntar-me a ela. É verdade que tinha nas mãos um ramo verdadeiramente admirável de rabanetes rijos e encarnados, de folhas verdes e quebradiças e raízes compridas.

 

Quanto é? gritou ela, assustando o vendedor com a sua veemência. Ele recompôs-se rapidamente e abriu a cara num amplo sorriso, ao reconhecer um comprador motivado. O preço que referiu era astronómico.

 

Isso é um roubo! lancei eu.

 

Mas repara bem na qualidade insistiu ele, estendendo o braço para acariciar os rabanetes que Betesda tinha na mão, como se fossem de ouro puro. Ainda se vê a boa terra etrusca. E olha que bem cheiram! É o cheiro do quente sol etrusco.

 

Não passa de um molho de rabanetes protestei eu.

 

Não passa de um molho de rabanetes? Desafio-te, cidadão, a encontrares em todo o mercado outro molho de rabanetes que se comparem com estes. Vai, vai! Vai à procura. Eu fico à espera. E arrancou os rabanetes das mãos de Betesda.

 

Não tenho dinheiro para isso disse eu. Recuso-me a pagar.

 

Pois haverá quem pague replicou o vendedor, gozando da sua vantagem. Não altero o preço. São os melhores rabanetes que encontrarás em toda a cidade de Roma, e se não pagares o que eu te peço, terás de passar sem eles.

 

Talvez disse Betesda, com as sobrancelhas escuras muito juntas, talvez me baste um ou dois rabanetes. Talvez mesmo só um. Sim, um seria suficiente, tenho a certeza disso. Imagino que tenhamos dinheiro para comprar um rabanete, não, marido?

 

Olhei os seus olhos castanhos e tive um sobressalto de culpa. Betesda era minha mulher há mais de vinte anos. Antes disso, fora minha concubina; era praticamente uma criança quando a adquirira em Alexandria, nos remotos dias da minha juventude errante. A sua beleza e a sua reserva oh, sim, era muito reservada, não obstante a sua condição de escrava tinham suscitado em mim uma paixão violenta. Mais tarde, fora a mãe da minha filha Diana, o meu único rebento que era do meu sangue; nessa altura, alforriei-a e casei-me com ela, e Betesda assumiu o seu papel de matriarca romana. Nem sempre se lhe adaptou confortavelmente não era fácil a uma escrava nascida em Alexandria, de mãe egípcia e pai judeu, habituar-se aos modos romanos, mas nunca me embaraçou, nunca me traiu, nunca me deu motivos para me arrepender. Lado a lado, atravessámos muitos períodos difíceis e alguns perigos muito reais, bem como tempos de abundância e alegria. Se, nos últimos meses, nos tínhamos afastado um pouco, disse a mim próprio que isso se devia exclusivamente à tensão provocada pelos tempos que vivíamos.

 

O mundo estava a desfazer-se pelas costuras. Em certas famílias, os filhos tinham pegado em armas contra os próprios pais, a mulher deixara o marido para tomar o partido dos irmãos. Se, em nossa casa, os silêncios entre Betesda e eu se tinham tornado mais prolongados, e as pequenas querelas ocasionalmente mais cortantes, que importância tinha isso? Era natural que, num mundo em que um homem já não tinha dinheiro para comprar um rabanete, se fervesse em pouca água.

 

Claro que o facto de sermos constantemente confrontados com o exemplo da nossa filha e do seu musculoso marido não ajudava. Também eles tinham partido de situações desiguais Diana nascera livre, Davo era escravo, e a distância entre a inteligência aguçada de Diana e a simplicidade de Davo tinha-me parecido, inicialmente, intransponível. Mas eles tinham-se tornado inseparáveis, tocando-se permanentemente, sempre a arrulharem ternuras um ao outro, embora se aproximassem do quarto aniversário do seu casamento. E a atracção que sentiam não era puramente física. Era frequente encontrá-los mergulhados em conversas profundas. De que falariam? Provavelmente, do estado do casamento dos pais, pensei...

 

Mas a culpa que eu sentia não provinha apenas dos longos silêncios e das pequenas disputas. Não provinha apenas da violenta discussão que tínhamos tido aquando do meu regresso de Massília, no Outono do ano anterior, com mais uma boca para alimentar o meu amigo Jerónimo e a notícia de que tinha renegado o meu filho Meto. Esse anúncio por pouco não destruíra a minha família mas, com o passar do tempo, o choque e a dor foram diminuindo. Não, a culpa que eu sentia nada tinha a ver com questões domésticas ou relações familiares. Eu sentia-me culpado por causa de Cassandra, evidentemente.

 

E agora Betesda, que todos os dias se queixava dizendo que não se sentia bem, que parecia ser vítima de uma qualquer maleita que nenhum médico era capaz de diagnosticar, tinha metido na cabeça que precisava de comer rabanetes e o patife do marido fora colocado entre a espada de um vendedor ganancioso e a parede da sua própria consciência.

 

Vou comprar-te mais do que um rabanete, mulher disse baixinho. Vou comprar-te o molho todo. Davo, és tu que trazes a bolsa do dinheiro. Entrega-a a Diana, para ela pagar ao homem.

 

Diana recebeu a bolsa das

mãos de Davo, abriu os cordões, e meteu a mão lá dentro, de sobrolho franzido.

 

Papá, tens a certeza? É tanto dinheiro.

 

Claro que tenho a certeza. Paga a esse malandro!

 

Extasiado, o vendedor observou Diana a contar as moedas e a depositar-lhas na mão. Renunciou aos rabanetes. Apertando-os contra o peito, Betesda lançou-me um olhar capaz de me derreter o coração. O sorriso que ostentava, uma visão tão rara nos últimos tempos, fazia com que parecesse vinte anos mais nova não, mais nova ainda, como uma criança satisfeita e confiante. Depois, uma sombra atravessou-lhe o rosto, o sorriso desvaneceu-se, e eu percebi que de repente se sentira mal.

 

Toquei-lhe no braço e disse-lhe ao ouvido:

 

Vamos para casa, mulher?

 

Nesse momento, deu-se um tumulto no outro extremo do mercado o toque de metal no metal, o matraquear de objectos a embaterem nas pedras do pavimento, o choque de louças a partirem-se. Um homem gritou. Uma mulher guinchou:

 

É ela! A louca!

 

Voltei-me e vi Cassandra, que cambaleava na minha direcção. Tinha a túnica azul rasgada no pescoço e repuxada para o lado, o cabelo loiro todo emaranhado. Trazia uma expressão de loucura. Era uma expressão recorrente nela, em especial durante os ataques de profecia mas, quando os seus olhos se encontraram com os meus, vi neles um brilho de pânico, e senti o sangue gelar-se-me nas veias.

 

Ela correu para mim em passo irregular, com os braços estendidos.

 

Gordiano, ajuda-me! gritou. Tinha a voz enrouquecida e deformada. Caiu-me nos braços. A meu lado, Betesda teve um sobressalto e largou os rabanetes. Cassandra tombou de joelhos, arrastando-me consigo.

 

Cassandra! arquejei eu. Baixei a voz para um sussurro. Se isto é uma cena...

 

Ela apertou-me o braço e deu um grito. O seu corpo teve uma convulsão.

 

Diana ajoelhou-se a meu lado.

 

Papá, o que é que ela tem?

 

Não sei.

 

É o deus que habita nela disse Betesda, de cima e de trás de mim, com a voz marcada pelo terror. O mesmo deus que a obriga a profetizar está a dilacerá-la por dentro.

 

Uma multidão reuniu-se em nosso redor, empurrando-nos de todos os lados.

 

Afastem-se daqui! gritei eu. Cassandra voltou a agarrar-se a mim, mas a força da sua mão fechada estava a diminuir. As pálpebras estremeceram-lhe e baixaram. Moveu os lábios, mas não conseguiu emitir qualquer som.

 

Cassandra, o que se passa? O que foi? sussurrei eu.

 

Veneno disse ela. A voz estava a esvair-se-lhe. Eu mal conseguia ouvi-la, por causa do burburinho da multidão. Ela envenenou-me!

 

Quem? O que foi que ela te deu? Os nossos rostos estavam tão próximos, que eu sentia a sua respiração ofegante nos meus lábios. Os seus olhos pareciam enormes, com as íris eclipsadas pelo vasto negrume das pupilas.

 

Qualquer coisa na bebida... disse ela. Eu mal conseguia ouvi-la.

 

Teve nova convulsão, e depois ficou imóvel. Senti uma derradeira e prolongada exalação, estranhamente fria, de encontro aos lábios. Os dedos que me apertavam os braços soltaram-se. Os seus olhos continuavam abertos, mas a vida abandonara-os.

 

A multidão avançava. Diana foi empurrada contra mim e deu um grito. Davo bramiu aos curiosos que se afastassem, brandindo os punhos diante daqueles que não o faziam com suficiente rapidez. Enquanto eles dispersavam, fui ouvindo pedaços de conversas excitadas.

 

Viste aquilo? Morreu nos braços do velhote!

 

Cassandra era assim que lhe chamavam.

 

Ouvi dizer que era viúva de guerra. Que enlouqueceu com o desgosto.

 

Não, não, não! Era da Britânia, lá de cima, do norte. Eles são todos loucos. Pintam-se de azul.

 

Ela não me pareceu nada azul! Na realidade, era bastante bonita...

 

Ouvi dizer que era uma Vestal que quebrou os votos e foi enterrada viva. Conseguiu esgaravatar a terra e sair do túmulo, mas acabou por endoidecer.

 

Que disparate! Acreditas em tudo o que te dizem.

 

A única coisa que eu sei é que ela previa o futuro.

 

Previa? Pois gostava de saber se teria previsto aquilo.

 

Engoli em seco. Tinha vontade de encostar os meus lábios aos de Cassandra, mas sentia os olhos da minha filha e da minha mulher sobre mim. Voltei-me para Diana, que se ajoelhara a meu lado. Qual seria o aspecto da minha cara, para a minha filha olhar para mim com semelhante piedade e tão grande espanto? Espreitei na direcção de Betesda. Por longos momentos, ela não registou qualquer emoção depois, subitamente, ergueu as sobrancelhas numa expressão de alarme.

 

Os rabanetes! exclamou, levando as mãos abertas às faces. No meio da confusão, alguém tinha fugido com eles.

 

A primeira vez que vi Cassandra foi no Fórum, num dia de meados de Januarius. Quando conto os meses pelos dedos, apercebo-me de que não passaram sete meses completos desde o primeiro até ao último dia em que a vi. Foi um período tão breve! E, contudo, em certo sentido, parecia-me que a conhecia de toda a vida.

 

Sou capaz de localizar a data com precisão, porque foi nesse dia que chegou a Roma a notícia de que César tinha conseguido atravessar o Mar Adriático, desde Brundísio até à costa norte da Grécia. Durante dias, Roma inteira suspendera a respiração, ansiosa por conhecer o resultado daquela aposta audaciosa. Havia unanimidade entre as opiniões dos sábios de olhar altivo e barbas grisalhas que passavam os dias a coscuvilhar e a discutir no Fórum, quer estivessem do lado de César, ou do lado de Pompeu: era uma loucura César tentar proceder a uma travessia naval durante o Inverno, e uma loucura ainda maior ensaiar tal coisa quando toda a gente sabia que a frota de Pompeu era superior e dominava o Adriático. Uma tempestade súbita podia enviar César para o fundo do mar em poucos minutos, a ele e a todos os seus soldados. E, se o tempo estivesse bom, era muito provável que a frota de César fosse estrategicamente vencida pela de Pompeu, e destruída antes de conseguir chegar ao outro lado. Contudo, depois de ter resolvido os assuntos de Roma a seu contento, César estava decidido a confrontar-se com Pompeu, e para isso teria de transportar as suas tropas para o outro lado do mar.

 

Durante todo o ano anterior, desde que tinha atravessado o Rubicão e expulsado Pompeu de Itália, em pânico, César andara em campanha para garantir o seu controlo do Ocidente convocando as tropas estacionadas na Gália, o seu baluarte; destruindo as forças de Pompeu em Espanha; cercando o porto de mar de Massília, cujos habitantes se tinham colocado ao lado de Pompeu; e dispondo as coisas por forma a declarar-se temporariamente ditador, a fim de colocar em Roma magistrados por si escolhidos. Entretanto, expulso de Roma em confusão e desalinho, Pompeu esperara a sua hora do outro lado do mar, na Grécia, insistindo em afirmar que ele e os exilados que o acompanhavam constituíam o verdadeiro governo de Roma, obrigando os potentados orientais a enviar-lhe pesadas contribuições em dinheiro, e numerosas tropas, e construindo uma gigantesca armada, que estacionara no Adriático, com o objectivo expresso de impedir César de abandonar Itália enquanto Pompeu não estivesse preparado para o enfrentar.

 

No início daquele ano fatídico, qual dos dois rivais ocuparia a posição mais forte? A questão era interminavelmente discutida por todos quantos frequentavam o Fórum naqueles dias de incerteza, entre os quais eu me incluía. Sentávamo-nos ao suave sol do Inverno nos degraus do Tesouro (pilhado por César para sustentar as suas tropas), ou, como naquele dia específico, encontrávamos um local aprazível à entrada do Templo de Vesta, e discutíamos os assuntos do dia. É certo que falo de "nós", incluindo-me naquele grupo de conversadores incansáveis, mas a verdade é que eu abria a boca com menos frequência do que a maioria. Passava a maior parte do tempo a ouvir, e a pensar no inútil bando de ignorantes que constituíamos, demasiadamente velhos, ou frágeis, ou aleijados para termos sido obrigados a pegar em armas por qualquer dos lados, sem sermos suficientemente ricos para que qualquer dos lados nos exortasse a colocar o nosso ouro ou os nossos gladiadores à disposição da sua causa. Ignorados pelos senhores da guerra, passávamos dias de ociosidade no Fórum, expondo as nossas opiniões acerca dos boatos mais recentes, discutindo e insultando-nos uns aos outros, rangendo os dentes enquanto esperávamos, impotentes, que chegasse o fim deste mundo que conhecêramos toda a vida.

 

Que importa que César tenha conquistado o Ocidente, se toda a riqueza da Ásia e os cereais do Egipto estão à disposição de Pompeu? dizia um sujeito de maneiras suaves chamado Mânlio, que parecia igualmente perturbado (com a iminente destruição de ambos os lados do conflito. Mânlio tinha horror à violência. Não percebo por que motivo está César tão ansioso em fazer a travessia. Vai cair na armadilha que Pompeu lhe preparou. Vai ser uma carnificina horrenda!

 

Por que motivo está César ansioso por fazer a travessia? Não é difícil de perceber. Quando chegar o momento do confronto directo, espada contra espada, César estará claramente em vantagem dizia Caninino, um homem que só tinha um braço e que, se as suas histórias de batalhas fossem verdadeiras, tinha mais experiência de combate do que nós todos juntos; tinha perdido o braço direito a combater nas hostes de César, na Gália, e recebido uma recompensa generosa do seu Imperador agradecido. Os homens de César estão endurecidos pelas lutas constantes. Anos e anos passados na conquista da Gália, depois a marcha sobre Roma, depois a loucura da corrida para Brundísio Pompeu escapou por um triz! e, ultimamente, aquela razia a Espanha, para eliminar os inimigos de César.

 

E não te esqueças do cerco a Massília! Era o meu amigo Jerónimo, um massiliano de ascendência grega e o único membro do grupo que não era cidadão romano. Os outros aceitavam a sua presença, em parte, porque eu era o seu patrono, mas também porque tinham algum receio dele. Um cruel destino fizera com que fosse escolhido pelos sacerdotes de Massília para bode expiatório da cidade durante o cerco de César. Competira-lhe assumir os pecados de toda a cidade e, em determinado momento crítico, salvá-la da destruição por meio da sua morte. Massília fora efectivamente salva da destruição, mas uma estranha reviravolta da fortuna poupara Jerónimo ao seu destino, e ele acabara em Roma, a viver em minha casa. Jerónimo era alto, fisicamente impressionante e tinha uma atitude curiosa perante a vida. Tendo iniciado o seu percurso na posição de herdeiro de uma das famílias mais poderosas de Massília, e tendo depois passado a maior parte da sua vida como pedinte, combinava a altivez de um aristocrata caído em desgraça com o pragmatismo astucioso de um sobrevivente das ruas. Era frequente desempenhar o papel de árbitro do nosso pequeno grupo, uma vez que não estava do lado de César nem do lado de Pompeu.

 

Caninino fungou.

 

O cerco a Massília! Já me tinha esquecido dessa. Massília não passava de uma borbulha no traseiro da Gália! César limitou-se a mandar Trebónio lancetá-la antes que infectasse.

 

Jerónimo ergueu uma sobrancelha. Como ele desprezava a sua cidade natal enquanto lá vivera e quase morrera! Desde que partira de Massília, nunca o ouvira manifestar qualquer sentimento de saudade por ela. Mas irritava-o ouvir um romano expressar desprezo pela cidade dos seus antepassados gregos.

 

Se "espremer a borbulha" de Massília, como dizes, era uma coisa de tão-pouca importância observou secamente, num Latim ligeiramente afectado por que terá César recompensado Trebónio atribuindo-lhe o cargo de pretor da cidade durante o ano, com o encargo de aplicar o plano do próprio César para escorar a economia de Roma? Um homem como César só confia uma tarefa com semelhante importância a alguém que tenha demonstrado o seu real valor. Parece-me que César deve ter considerado a tomada de Massília um feito de bastante maior relevância do que tu pensas, meu amigo.

 

Em primeiro lugar replicou Caninino não foi César quem "atribuiu" a Trebónio o cargo de pretor, foram os eleitores.

 

Esta declaração foi recebida pelos adeptos de Pompeu com miados ruidosos.

 

Que disparate! disse o mais expansivo de todos eles, Volcácio, que tinha uma voz surpreendentemente potente para um homem tão velho. Os únicos eleitores que restam em Roma são a populaça, que escolherá aquilo que César lhe indicar que escolha. Pompeu e os Melhores tiveram de fugir para salvar a vida quando César atravessou o Rubicão, à excepção daqueles que não podiam suportar a viagem, como eu. Como pode uma eleição ocorrida em semelhantes circunstâncias expressar a efectiva vontade do povo? As últimas eleições foram uma farsa e um escândalo, um espectáculo de mimos organizado com a exclusiva finalidade de colocar nos cargos os homens escolhidos por César. Todo o processo foi ilegal e ilegítimo...

 

Oh, por favor, Volcácio, não vais voltar ao mesmo! gemeu Caninino. Ainda estarás a queixar-te das últimas eleições quando chegar a data das próximas.

 

Se as próximas forem tão corruptas e desprovidas de sentido como as anteriores, não me calarei!

 

Corruptas, talvez... Caninino encolheu os ombros e fez um sorriso de esguelha. Mas desprovidas de sentido é que elas não foram. O facto é que Roma tem um governo, e esse governo dirige a cidade, quer isso te agrade, quer não. Habitua-te à realidade e segue em frente! Caninino emitiu uma gargalhada de desprezo, em coro com os membros mais veementes da facção de César. Mas, voltando ao que eu estava a tentar dizer antes de sermos distraídos por questões políticas: César tem vantagem, em termos militares, porque os seus homens são de primeira qualidade e estão prontos para a guerra.

 

Mânlio, o homem de maneiras suaves, que tinha assistido à troca de palavras em silêncio, objectou:

 

Dizes que os homens de César estão endurecidos pelas batalhas, mas não estarão igualmente cansados da guerra? Alguns deles encenaram uma revolta quando César regressava de Espanha...

 

Pois foi, e César tratou imediatamente da saúde aos chefes, e atraiu os restantes para o seu lado replicou Caninino. Ele sabe lidar com os motins. Tu, Mânlio, nunca foste soldado, por isso não compreendes estas coisas.

 

Mas Pompeu teve quase um ano para recuperar a respiração e congregar as suas forças observou Mânlio, ignorando os insultos de Caninino. Eles estão frescos e ilesos. Isso deve conferir-lhes alguma vantagem.

 

Estão é moles, de terem estado tanto tempo à espera, se queres a minha opinião observou Caninino.

 

E quanto à superioridade numérica de Pompeu? prosseguiu Mânlio. Dizem que, para além das legiões romanas, Pompeu reuniu centenas de arqueiros de Creta e da Síria, fundibulários da Tessália, milhares de cavaleiros de Alexandria...

 

Só conhecemos as forças de Pompeu pelos boatos. As pessoas inflaccionam sempre os números reais disse Caninino.

 

Mas a frota de Pompeu não é um boato observou Jerónimo. Essa é bem real. Há meses que se vêem galeras a vogar na direcção do Mar Adriático, centenas delas, provenientes de todo o Mediterrâneo oriental. Estejam cansados ou endurecidos, pouca diferença fará, se César não conseguir que os seus homens atravessem para o outro lado.

 

O momento escolhido dificilmente poderia ser pior observou Volcácio, o adepto de Pompeu, sorrindo com ar sinistro. Chegou o Inverno. Bóreas pode perfeitamente soprar do norte e trazer consigo uma tempestade, que açoitará o Adriático transformando-o num caldeirão a ferver antes que o capitão do navio tenha tempo para rezar uma prece a Neptuno. Dizem que César consultou os augures antes de partir de Roma, e que todos os sinais estavam contra ele. Viram-se pássaros a voar para norte, em vez de voarem para sul, e um pardal atacou um abutre maus presságios! Mas César mandou embora os augures antes que as tropas ouvissem falar deles e organizassem outro motim.

 

Isso é mentira replicou Caninino uma mentira blasfema! Avançou na direcção de Volcácio, mas alguns dos outros detiveram-no. Jerónimo ergueu uma sobrancelha perante aquele espectáculo de um romano truculento e só com um braço tentando atacar fisicamente o homem mais velho e mais grisalho do grupo.

 

Eu nada disse. Entre Pompeu e César, conseguira até agora manter-me neutral mais ou menos. À semelhança de virtualmente todos os cidadãos de Roma, especialmente aqueles que tinham desempenhado algum papel na vida pública da cidade, eu tinha ligações estreitas com ambos os lados. Se era diferente deles em alguma coisa, era no facto de as minhas lealdades e animosidades serem mais conflituais e mais tortuosamente entrelaçadas que as da maioria, por causa do género de trabalho que fizera durante toda a vida fora cão de caça para advogados como Cícero, desenterrando a verdade acerca de homens poderosos, e outros menos poderosos, acusados de tudo e mais alguma coisa, desde desflorar uma Virgem Vestal até assassinar o próprio pai. Conhecera e tratara, quer com Pompeu, quer com César, bem como com muitos dos seus aliados. Vira-os no seu melhor e no seu pior. A ideia de que o destino de Roma tinha inevitavelmente de cair nas mãos de um ou de outro de que César ou Pompeu acabariam por recuperar o cargo de Rei, ou qualquer coisa muito parecida com isso enchia-me de temor. Não tinha qualquer sentimentalismo quanto à maneira antiga de fazer as coisas, às manobras trémulas, mesquinhas, gananciosas e frequentemente estúpidas do Senado de Roma, e à república rebelde à qual presidia. Mas de uma coisa estava certo: os cidadãos romanos não tinham nascido para servir um Rei pelo menos os cidadãos romanos da minha geração. Os homens das gerações mais jovens pareciam ter outras ideias...

 

Os meus pensamentos tinham-me conduzido, como acontecia com frequência naqueles tempos, até Meto.

 

Fora por causa de Meto que eu partira para Massília no ano anterior, em busca de notícias do meu filho adoptivo; um mensageiro anónimo informara-me da sua morte naquela cidade, enquanto espião de César. Meto amava profundamente César, a quem servira durante muitos anos na Gália! Tendo nascido escravo, Meto nunca poderia ser oficial, como os restantes lugares-tenentes de César, mas nem por isso deixara de se tornar indispensável ao Imperador, servindo-o como seu secretário privado, transcrevendo as suas memórias, partilhando os seus aposentos partilhando a sua cama, no dizer de alguns. Em Massília, descobrira que, afinal, Meto estava vivo; mas o jogo dos acontecimentos tinha-me desgostado de tal maneira, que voltara as costas a Meto e a César. Dissera palavras que nunca poderiam ser retiradas. Tinha renegado Meto publicamente, e declarado que ele deixava de ser meu filho.

 

Onde estaria Meto neste momento? Desde aquela fatídica despedida em Massília, nunca mais tivera notícias dele. Presumia que permanecesse ao lado de César, que tivesse regressado a Roma com ele, e o tivesse seguido até Brundísio, de onde tentariam atravessar o Adriático. Onde estaria Meto naquele preciso momento? Tanto quanto eu sabia, podia estar no fundo do mar, na companhia do próprio César. Quando era rapaz, altura em que eu o conhecera, na cidade costeira de Baias, Meto não sabia nadar. A certa altura, devia ter aprendido para agradar a César? porque fora a nadar que salvara a vida, em Massília. Mas nem o nadador mais resistente podia ter esperança de sobreviver se o seu navio se afundasse no meio do Adriático. Eu imaginava Meto dentro de água, ferido, assustado, tentando permanecer à tona enquanto as ondas se fechavam sobre a sua cabeça e a água fria e salgada lhe enchia os pulmões...

 

Jerónimo deu-me uma pequena cotovelada. Olhei para além da escaramuça entre Caninino e Volcácio, para a extremidade do Fórum, e vi dois dos meus escravos, que se dirigiam a nós. O pequeno Androcles vinha à frente, mas o seu irmão mais velho, Mopso, vinha a correr para o apanhar. Pela acesa competição entre ambos, percebi que a missão devia ser de alguma importância. Senti um tremor de intuição. Um deus deve ter-me soprado qualquer coisa ao ouvido, porque eu soube que eles me traziam notícias daquele que dominava os meus pensamentos.

 

Caninino e Volcácio, abruptamente separados, trataram de recuperar a sua dignidade. Parecendo imagens um do outro, endireitaram as túnicas e ergueram o queixo. A distância que os separava permitiu que Mopso, que vinha agora à frente, penetrasse no círculo, seguido de Androcles. Todos conheciam os rapazes, porque era frequente acompanharem-me quando eu visitava o Fórum. E todos gostavam deles. Volcácio deu uma palmadinha na cabeça de Androcles. Caninino fez uma saudação militar fingida a Mopso. Ligeiramente ofegantes da corrida, Mopso bateu no peito e respondeu à saudação.

 

O que vêm aqui fazer, rapazes? perguntei eu, tentando ignorar a súbita agitação que sentia no peito.

 

Trazer notícias de César! respondeu Mopso. Os seus olhos iluminaram-se quando pronunciou o nome do Imperador. Recentemente, Mopso tinha decidido que César era o seu herói. O irmão mais novo, para contrariar, tinha-se tornado um fervoroso adepto de Pompeu. Caninino e Volcácio alinhavam com eles de acordo com estas preferências, tratando cada um dos rapazes como aliados ou inimigos.

 

E que notícias são essas? perguntei.

 

Ele conseguiu atravessar! Chegou a salvo ao outro lado, juntamente com quase todos os seus homens! disse Mopso.

 

Mas não todos. Houve um problema observou Androcles em tom sombrio.

 

Eu inspirei profundamente.

 

Mopso, onde ouviste essa notícia?

 

Chegou um mensageiro à Porta Capena há uma hora. Eu detectei-o imediatamente, e lembrei-me de que se tratava de um dos escravos de Calpúrnia.

 

E Calpúrnia é a mulher de César acrescentou Androcles desnecessariamente.

 

Então decidi segui-lo...

 

Decidimos os dois! corrigiu Ândrocles.

 

E, como seria de esperar, ele encaminhou-se para casa de César. Nós escondemo-nos e vimo-lo bater à porta. A escrava que veio abrir fez um grande alarido, levando a mão ao peito e fingindo que desmaiava, e depois disse: "Diz-me já, antes de irmos incomodar a senhora, trazes boas ou más notícias?" E o mensageiro disse: "Boas notícias! César conseguiu fazer a travessia, e encontra-se a salvo do outro lado!"

 

Eu soltei um suspiro de alívio, e pestanejei para afastar as lágrimas que me tinham enchido os olhos. O acesso de emoção apanhou-me de surpresa. Tossi e, apesar de sentir a garganta apertada, consegui dizer:

 

Ândrocles, tu disseste que tinha havido um problema?

 

E houve mesmo! Dirigia-se tanto a Volcácio como a mim, atraído pelo brilho de esperança que lia nos olhos remelosos do seu aliado, partidário de Pompeu. César chegou ao outro lado a meio da noite; imediatamente descarregou as tropas e mandou os barcos regressar a Brundísio, para irem buscar o resto dos homens, incluindo a cavalaria. Mas alguns desses navios foram desviados e separados dos restantes por alguns barcos da frota de Pompeu, e os homens de Pompeu incendiaram-nos ali mesmo, no meio do mar, com os capitães e as tripulações ainda a bordo! Foram queimados vivos, e aqueles que conseguiram saltar foram mortos pelos homens de Pompeu, que os espetaram como se fossem peixes.

 

Queimados vivos no meio do mar! arquejou Mânlio. Que destino horrível!

 

Quantos? perguntou Volcácio ansiosamente. Era visível que a notícia da travessia de César o tinha abalado, mas voltava a animar-se com a perspectiva de um fracasso de César.

 

Trinta! Foram trinta os navios capturados e queimados por Pompeu! respondeu Ândrocles orgulhosamente.

 

Foram só trinta! troçou o irmão mais velho. Um número desprezível, considerando a dimensão da frota de César. A cavalaria conseguiu atravessar. Só tiveram de transportar mais homens e cavalos em cada barco, e alguns dos homens tiveram de seguir nas garupas todo o caminho. Ainda bem que apanharam bom tempo foi o que disse o mensageiro.

 

Trinta navios perdidos murmurei eu, imaginando a agonia daqueles trinta capitães e respectivas tripulações. Estaria Meto entre eles? Com certeza que não. Ele era soldado e não marinheiro. Estaria ao lado de César, a salvo na outra margem. Fosse como fosse, o destino de Meto não me dizia respeito.

 

De repente, o Fórum encheu-se de movimento. Avistei mensageiros que atravessavam a correr as praças vizinhas. Ao longe, vi um grupo de homens juntar-se diante dos degraus que vão dar ao Templo de Castor e Pólux, para ouvirem um senador idoso, de toga, que tinha qualquer coisa para lhes comunicar. Àquela distância, apenas me chegava um eco vago da sua voz. Ouviu-se uma aclamação ruidosa e o bater de címbalos, proveniente de uma casa algures no Palatino provavelmente perto da minha própria casa, a avaliar pelo som. Momentos depois, aproximou-se um cidadão, a correr e a gritar: Ouviram a notícia? César desembarcou! Conseguiu fazer a travessia! Pompeu ficou para trás! A notícia espalhava-se por toda a cidade, com tanta rapidez quanta conseguiam transportá-la as vozes das pessoas.

 

Depois ouvi outro som, chocantemente deslocado no meio do crescente burburinho de excitadas vozes masculinas que enchiam o Fórum. Provinha de um local próximo, da pequena praça que ficava diante do Templo de Vesta. Era uma mulher, que gemia e guinchava.

 

Pelos ruídos que fazia, pensei que estivesse a ser atacada. Afastei-me do grupo e contornei o templo até que a vi, ajoelhada nas pedras do pavimento, ao fundo das escadas do templo. Os outros seguiram-me.

 

Quando a viu, Caninino resfolegou.

 

Oh, é ela!

 

Eu olhei espantado para a mulher. Havia qualquer coisa de estranho na forma como ela revolvia os ombros, e fazia girar a cabeça em círculos. Tinha os braços levantados, com as palmas das mãos voltadas para o céu, e os olhos revirados para cima. Os gemidos que eu tinha ouvido eram, na realidade, uma espécie de encantamento. Enquanto escutava, comecei a entrever palavras por entre os resmungos e os guinchos.

 

César, Pompeu a isto chegou! gritava ela. E depois, na sequência de um gemido intenso e prolongado: - São como abutres, voando em círculo sobre a carcaça de Roma ansiosos por lhe limpar os ossos girando e girando até colidirem!

 

Quem é ela, Caninino? perguntei.

 

Em nome do Hades, como queres que eu saiba? lançou ele. Só sei que tem assombrado o Fórum nos últimos dias, pedindo esmolas. Parece bastante normal, mas de vez em quando acontece isto, entra numa espécie de transe e diz uns disparates.

 

Mas quem é ela? De onde veio?

 

Olhei para os outros. Mânlio encolheu os ombros. Volcácio ergueu uma sobrancelha hirsuta.

 

Não faço a menor ideia mas não há dúvida de que é um pedaço agradável à vista!

 

Olhei de novo para a mulher. Tinha-se posto de pé, mas a túnica azul ficara-lhe presa nos joelhos, puxando o decote para baixo, de tal maneira que o princípio dos seios tinha ficado à vista. Nenhuma mulher no seu juízo perfeito se exibiria de forma tão imodesta no Fórum, e certamente que nunca o faria diante do Templo de Vesta. Ela abanou a cabeça para um lado e para o outro, açoitando o ar com as tranças louras, que usava soltas.

 

Chama-se Cassandra disse Mopso.

 

Por que me teria incomodado a fazer perguntas aos outros homens da minha idade, quando Mopso estava ali?

 

Passar-se-á alguma coisa em Roma de que tu não tenhas conhecimento, jovem?

 

Ele cruzou os braços e sorriu.

 

Poucas. Cassandra, chamam-lhe assim porque ela é capaz de prever o futuro. Ainda esta manhã ouvi uns escravos no mercado de carne a falarem sobre ela.

 

E que mais sabes sobre a mulher?

 

Bem... Ele ficou silencioso por momentos, mas depois disse: É muito bonita.

 

E, se for romana, não deve ser casada, senão usava uma estola, e não uma túnica observou Ândrocles. O irmão mais velho mostrou-se desgostoso por não ter sido ele a fazer esta dedução.

 

Continuámos a observá-la e, subitamente, a mulher ficou flácida e deixou-se cair. Eu estava prestes a ir ajudá-la, quando vi uma figura descer os degraus do templo. Era uma das Vestais, pois envergava o fato tradicional da irmandade que cuida do fogo sagrado do Estado romano. Usava uma estola branca simples, e um manto branco de linho sobre os ombros. Tinha o cabelo curto e usava uma tira branca adornada com fitas à volta da testa. Consegui ver-lhe a cara de relance e percebi que se tratava de Fábia, a cunhada de Cícero. Atrás dela, acorriam outras duas Vestais mais jovens.

 

Reuniram-se as três em redor da forma prostrada da mulher chamada Cassandra. Juntaram as cabeças e conferenciaram em voz baixa. Cassandra agitou-se e pôs-se de joelhos, apoiando-se nos braços para se equilibrar. Parecia tonta. Aparentemente, quase nem dava conta da presença das três Vestais, que a ajudavam a pôr-se de pé. Percebi que Fábia falava com ela, devia estar a fazer-lhe perguntas, mas Cassandra não respondia. Pestanejava como quem estivesse a acordar de um sono profundo, e pareceu registar finalmente a presença das três mulheres que a rodeavam. Endireitou a túnica e o cabelo em desalinho com gestos hesitantes e desastrados.

 

Tomando-a pelo cotovelo, e conduzindo-a suavemente, enquanto falavam com ela em voz baixa, as três Vestais levaram-na pela escada acima, para o interior do Templo de Vesta.

 

Bem! disse Caninino. O que te pareceu?

 

Talvez a virgem velha queira perguntar à jovem louca como é ter um homem disse Volcácio com uma expressão lúbrica. Aposto que aquela já teve mais do que a sua conta de homens entre as pernas!

 

Quem sabe de que falam as mulheres quando não estão na presença dos homens comentou Mânlio.

 

E que interessa isso? replicou Caninino. Agora que César está prestes a dar uma bela tareia a Pompeu...

 

E com isso a conversa desviou-se da louca, porque a recém-chegada notícia da travessia de César dera-nos finalmente, a nós, os homens, um motivo de conversa.

 

Durante a refeição da noite desse mesmo dia, mencionei o incidente da louca. A família estava reunida na sala de jantar. As portadas estavam fechadas, para evitar a entrada do ar frio proveniente do jardim, que ficava a um canto da casa, e tinha-se acendido uma braseira para aquecer a sala. Betesda e eu partilhávamos um canapé. Davo e Diana partilhavam o outro, à nossa esquerda. Jerónimo estava reclinado, sozinho, no canapé colocado à nossa direita.

 

Sim, sim, a mulher chamada Cassandra disse Betesda, poisando a taça de sopa de grão-de-bico e acenando com a cabeça. Fora antes de a sua doença se manifestar, numa altura em que ela ainda tinha apetite. A sopa cheirava intensamente a pimenta preta. Já a vi lá em baixo, no mercado.

 

Viste? Há quanto tempo é que ela anda por aí? Betesda encolheu os ombros.

 

Não anda há muito tempo. Talvez há um mês.

 

E já assististe a algum daqueles acessos que ela tem?

 

Já, já. É um pouco enervante da primeira vez. Depois de passarem, parece que ela não sabe o que lhe aconteceu. Volta gradualmente a si e continua o que estava a fazer. Em geral, a pedir esmola.

 

Ninguém a ajuda?

 

A fazer o quê? Algumas pessoas ficam assustadas, e afastam-se dela. Outras querem ouvir o que ela tem para dizer e aproximam-se. Dizem que faz profecias quando se encontra naquele estado, mas eu não consigo perceber aqueles ruídos.

 

Por que foi que. nunca falaste nisso?

 

Marido, que interesse poderias ter por aquela desgraçada? perguntou Betesda, erguendo a taça para beber outro gole.

 

Mas de onde é que ela veio? Não tem família? Há quanto tempo tem aqueles ataques?

 

Se andássemos a investigar todas as personagens que actualmente circulam pelos mercados a tentar apanhar os restos, não fazíamos outra coisa, marido. Vivemos tempos difíceis. Soldados mutilados, viúvas, agricultores e lojistas que tudo perderam, entregando-se nas mãos de credores gananciosos há pedintes e vagabundos que nunca mais acabam. Cassandra é apenas mais um deles.

 

A mãe tem razão interveio Diana. Às vezes vêem-se famílias inteiras circulando por ali, sem terem para onde ir em especial, junto ao rio. Temos pena deles, claro, mas o que pode uma pessoa fazer? E alguns deles são perigosos. Pelo menos, parecem perigosos. É por isso que eu nunca vou ao mercado sem levar Davo comigo.

 

Vítimas da guerra disse eu, abanando a cabeça. Foi a mesma coisa quando eu tinha a tua idade, Diana, durante a primeira guerra civil. Refugiados das zonas rurais, escravos fugidos, órfãos abandonados nas ruas. Claro que, depois da guerra, as coisas ainda pioraram. Estava a recordar-me da sangrenta ditadura de Sula, e das cabeças dos seus inimigos espetadas em estacas e exibidas no Fórum. Mas quem é que deu o nome de Cassandra a essa mulher? perguntei, para mudar de assunto.

 

Calculo que tenha sido um brincalhão qualquer, no mercado disse Betesda.

 

As pessoas atribuem alcunhas às personagens mais vistosas observou Davo. Há um sujeito a quem chamam Cérbero, porque ladra como um cão; outro a quem chamam Ciclope porque só tem um olho; e há uma mulher a quem chamam Górgona, porque é muito feia.

 

Ela não é assim tão feia objectou Diana.

 

É sim insistia Davo. É tão feia como Cassandra é bonita.

 

E até há pessoas disse Diana, erguendo uma sobrancelha, mas enroscando-se de encontro a ele que chamam a um certo sujeito Hércules Possante quando ele não está a ouvir.

 

Não! disse Davo.

 

Oh, sim, marido. Ouvi-os eu: as mulheres em tom de admiração, os homens com inveja. Sorriu e estendeu a mão para lhe apertar um dos volumosos bícepes. Davo corou e assumiu uma expressão particularmente estúpida.

 

Eu pigarreei.

 

A Cassandra original era uma princesa troiana, se bem me lembro.

 

Era pois interveio Jerónimo, disposto a afirmar a sua autoridade no assunto. Em jovem, tinha recebido uma excelente educação grega, numa das mais ilustres academias que tornavam Massília famosa. Era capaz de recitar longas passagens da Ilíada, e sabia de cor muitas tragédias gregas.

 

Cassandra era a bela filha do Rei Príamo e da Rainha Hécuba prosseguiu, irmã de Paris, o príncipe que deu início a todo o problema, ao raptar Helena, levando-a consigo para Tróia. Cassandra tinha o poder de prever o futuro. Era a sua terrível maldição.

 

Mas por que motivo era uma maldição? perguntou Diana. Eu acho que ser capaz de prever o futuro era bastante útil. Poderia prever se encontraria, ou não, alguma coisa decente nos mercados, em vez de ir até lá e regressar de mãos vazias.

 

Ah, mas sabes, o problema é mesmo esse respondeu Jerónimo.

 

Conhecer o futuro não significa ser capaz de o alterar. Supõe que, de manhã, tinhas uma visão de ti própria nos mercados, nessa tarde, sem encontrares nada que comprar. Continuavas a ter de fazer essa ida ao mercado, com a única diferença de saberes antecipadamente que estavas condenada a fazer a viagem em vão.

 

O que seria duplamente frustrante reconheceu Diana. Jerónimo acenou com a cabeça.

 

O conhecimento prévio é uma maldição. Imagina o que seria conheceres as circunstâncias da tua morte, como aconteceu com Cassandra, e nada poderes fazer para as alterar.

 

Davo franziu o sobrolho.

 

Imagina conheceres antecipadamente as tuas maiores alegrias. Não achas que isso as estragava? Toda a gente adora uma boa surpresa, mesmo que seja uma surpresa pequena. Quando alguém nos conta uma história, não gostamos de saber antecipadamente o fim. Gostamos de ser surpreendidos. De vez em quando, Davo dizia coisas que me faziam duvidar seriamente de que ele fosse tão simples como aparentava. Mas como é que essa Cassandra troiana adquiriu esse dom, ou essa maldição?

 

perguntou. Já nasceu com ele?

 

Não, mas adquiriu-o muito cedo respondeu Jerónimo. Não passava de uma criança, quando os pais a deixaram sozinha no santuário de Apoio, num sítio chamado Timbra, perto de Tróia. Quando Príamo e Hécuba lá voltaram, encontraram Cassandra entrelaçada por duas serpentes, que metiam as línguas nos ouvidos da criança. Depois disso, Cassandra passou a compreender os sons divinos da natureza, em especial as vozes das aves, que lhe contavam o futuro. Mas a criança guardou segredo deste dom, porque não se sentia segura dele, nem da forma como devia usá-lo. Mais tarde, regressou a Timbra e passou uma noite sozinha no santuário, na esperança de receber alguma orientação de Apolo.

 

"O deus apareceu-lhe sob a forma humana. Cassandra era muito bonita. Apolo desejou-a, e fez um contrato com ela: em troca da instrução que lhe desse, Cassandra deixá-lo-ia fazer amor com ela, e dar-lhe-ia um filho. Cassandra concordou. Apolo cumpriu a sua palavra. Nessa noite, iniciou-a nas artes da profecia. Mas depois, quando tentou tocar-lhe, ela resistiu. Quando ele a abraçou, Cassandra repeliu-o. Quem sabe por quê? Talvez se sentisse atemorizada. Talvez receasse a agonia que seria dar à luz um semideus. Apolo sentiu-se insultado. Ficou furioso. Cassandra receou que ele lhe retirasse o dom da profecia, mas ele fez uma coisa muito pior: ordenou que nunca ninguém acreditasse nas suas profecias.

 

"Pobre Cassandra! Tróia era atingida por sucessivas calamidades, ela previa a sua chegada e tentava advertir aqueles que amava, mas ninguém a ouvia. O Rei Príamo achou que ela tinha enlouquecido, e mandou fechá-la. Talvez tivesse acabado por enlouquecer mesmo, atormentada a ponto da desorientação pela maldição que Apolo lhe tinha imposto.

 

"Todos conhecemos o fim de Tróia usando o estratagema de se esconderem dentro de um cavalo gigantesco, os gregos entraram na cidade, incendiaram-na, matando os homens e reduzindo as mulheres à escravatura. Durante o saque da cidade, Cassandra fugiu para o santuário de Atena, abraçando-se à estátua da deusa como uma suplicante. Não lhe serviu de nada; Atena não tinha qualquer simpatia pelos Troianos, por nenhum deles. Ájax entrou de rompante no templo e afastou Cassandra da estátua, à força, puxando-lhe violentamente os dedos do mármore frio. Depois violou-a, ali mesmo no santuário.

 

"Mas foi Agamémnori quem, afirmando o seu privilégio de chefe dos Gregos, reclamou Cassandra como sua presa. Louca ou não, era a mais bela das filhas de Príamo, e Agamémnon desejava-a. Teve a audácia de a levar para sua casa, e de a exibir diante de sua mulher, Clitemnestra, que ficou indignada. Enquanto Agamémnon e Cassandra dormiam, Clitemnestra esfaqueou-os a ambos.

 

"Cassandra previu a sua própria morte, evidentemente, mas nada pôde fazer para evitá-la. Ou talvez tivesse chegado a um ponto da sua miserável vida em que recebia o fim com agrado, e nada fez para deter Clitemnestra. Em última análise, era ao deus que atribuía a responsabilidade pelas suas aflições. Na sua peça sobre Agamémnon, Esquilo apresenta-nos o lamento de Cassandra: "Apolo! Apolo! Senhor dos caminhos, ruína minha."

 

Pobre Cassandra, pensei eu, primeiro castigada por ter querido preservar a sua castidade, opondo-se a um deus, depois feita concubina do homem que lhe assassinara a família. Seria a Cassandra que eu conhecera naquele dia outra mulher vitimizada pela guerra dos homens e pela crueldade dos deuses? Que infelicidade a teria enlouquecido? Ou não seria ela louca, mas amaldiçoada, tal como a Cassandra original, e realmente capaz de prever o futuro?

 

Se lhe perguntasse, o que me diria ela acerca do meu destino e do destino daqueles que eu amava? E, se eu ouvisse as suas respostas, lamentaria ter perguntado?

 

No dia a seguir ao funeral de Cassandra, passei a manhã sozinho no jardim. Estava um dia quente, de céu limpo. Sentei-me numa cadeira dobrável, com um chapéu de abas largas na cabeça, vendo recuar a minha sombra até o Sol se encontrar mesmo por cima da minha cabeça.

 

Betesda não se sentia bem, e passou a manhã na cama. De vez em quando, chegava-me aos ouvidos o ruído de um suave ressonar, proveniente da janela sem portadas que dava para o jardim. Diana e Davo tinham ido ao mercado fazer as compras do dia. Tinham desistido dos rabanetes, e andavam agora à procura de funcho, que Betesda tinha a certeza de que havia de a curar. Jerónimo fora pescar para o Tibre, levando consigo Mopso e Androcles. Ninguém me perguntara se eu queria ir com eles; todos tinham percebido que eu preferia estar sozinho.

 

Por fim, ouvi a voz de Diana. Ela e Davo tinham regressado a casa. Vi-a atravessar apressadamente o pórtico, dirigindo-se à parte de trás da moradia, para ir ao quarto ver como estava a mãe. Pouco depois, veio até ao jardim e sentou-se ao meu lado.

 

A mãe está a dormir. Convém falarmos baixo. Não consegui encontrar funcho, mas não vais acreditar havia rabanetes por toda a parte! De tal maneira, que eram quase dados. Por Juno, está um calor! Papá, não devias estar sentado ao sol.

 

Por quê? Tenho um chapéu.

 

E ele impediu que esse teu cérebro aquecesse em demasia?

 

O que queres dizer com isso?

 

Ela fez uma pausa e assumiu uma expressão que tinha herdado da mãe, um olhar simultaneamente compadecido e presunçoso. Era como se estivesse a dizer-me: Sei perfeitamente como funcionam os teus indolentes e tortuosos processos mentais, querido papá. Vou muito à tua frente, mas decidi ser paciente. Vou esperar que tomes a decisão que inevitavelmente tomarás. Mas disse:

 

Passaste a manhã inteira a pensar nela, não passaste?

 

Eu suspirei e reajustei o traseiro no assento da cadeira, que de repente me pareceu desconfortável.

 

A tua mãe não está bem. Claro que penso muito nela...

 

Não sejas fingido, papá. A voz da minha filha assumiu um tom severo. Sabes bem o que eu queria dizer. Estiveste a pensar nela. Naquela mulher, em Cassandra.

 

Inspirei profundamente, contemplando um girassol que ficava do outro lado do jardim.

 

Talvez.

 

Estás melancólico.

 

Estou.

 

Tens de parar com isso. Nós precisamos de ti, papá. Está-se a tornar cada vez mais difícil sobreviver, a mãe está doente, e Davo faz o que pode, mas ainda assim às vezes não sei bem o que vamos fazer... A sua voz tornou-se grave, mas não havia nela qualquer vestígio de autopiedade. Sempre teimosa, sempre pragmática, contemplando o futuro, cheia de recursos, sem nunca desesperar, eis Diana. Era verdadeiramente nossa filha, herdeira do que Betesda e eu tínhamos de melhor.

 

O que queres tu dizer-me, filha?

 

Quero dizer-te que tens de a deixar. Ela morreu. Tens de parar de pensar nela. Neste momento, a tua família precisa de ti. O seu tom de voz não era de censura, era simplesmente declarativo. O que saberia ela exactamente acerca de Cassandra e de mim? O que saberia de facto, e quanto teria adivinhado, bem ou mal?

 

Deixá-la, dizes tu. Supondo que tens razão, que eu me sinto melancólico por causa... daquela mulher... o que sugeres que faça para deixar de me sentir melancólico, filha?

 

Tu sabes a resposta a essa pergunta, papá! Só há uma maneira. Tens de descobrir quem a matou.

 

Eu olhei fixa e prolongadamente para o girassol.

 

Para quê?

 

Oh, papá, pareces tão impotente. Detesto ver-te assim. Já é suficientemente mau a mãe estar doente, mas tu estares também doente do coração, quero eu dizer, e estás assim desde que regressaste de Massília. Todos sabemos por quê. Foi por causa do que se passou entre ti e...

 

Ergui a mão, mandando-a calar. Em geral, desempenhava o meu papel depater famílias romano, com poder legal de vida e de morte sobre todos os membros de minha casa, de forma muito pouco rígida, permitindo que todos exprimissem a sua opinião e fizessem o que entendessem. Mas, no que dizia respeito a este assunto, o meu distanciamento de Meto, não permitiria conversas.

 

Muito bem, papá, não falarei disso. Mas continuo a detestar ver-te assim. Pareces um homem que pensa que os deuses se voltaram contra ele.

 

E não voltaram?, tive vontade de dizer, mas semelhante expressão de autopiedade teria contrastado de forma excessivamente notória com o estoicismo da minha filha, e eu não sairia beneficiado da comparação. Além disso, não tinha qualquer motivo para acreditar que os deuses me tivessem escolhido como objecto de desabafo dos seus agravos. Ultimamente, parecia-me que os deuses se tinham voltado contra toda a humanidade. Ou talvez nos tivessem simplesmente virado as costas, permitindo que os mais impiedosos de entre nós, homens como César e Pompeu, espalhassem a desgraça entre os restantes.

 

Centenas, milhares, dezenas de milhares de homens e mulheres morrerão antes de esta guerra terminar, Diana. Não é provável que qualquer dos seus lémures inquietos receba alguma coisa que se assemelhe a justiça, neste mundo ou no próximo. Se Cassandra foi assassinada...

 

Bem sabes que foi, papá. Foi envenenada. Ela disse-te que tinha sido. Se ela foi assassinada, que vantagem haverá em descobrir quem o fez? Nenhum tribunal romano presumindo que a normalidade alguma vez regresse aos tribunais estará interessado em fazer a acusação de semelhante crime, perpetrado sobre uma mulher que ninguém conhecia e por quem ninguém se interessava.

 

Tu interessavas-te o suficiente para lhe dares um funeral decente.

 

Isso não vem ao caso.

 

E algumas das mulheres mais poderosas de Roma interessaram-se o suficiente para irem ao funeral. Bem as viste, ocultas na periferia, mantendo-se afastadas da pira como se tivessem receio de que o fogo as chamuscasse ou que tornasse manifesta a culpa que havia no seu rosto. Foi uma delas que a matou, não foi?

 

Pode ter sido. Antes de morrer, Cassandra fora cortejada pelos mais altos círculos da sociedade romana, convidada para as casas dos ricos e poderosos que tinham sido informados do seu dom. Ter-se-ia apercebido do risco que corria ao relacionar-se com semelhantes mulheres? Que segredos ocultos do passado ou do futuro teriam levado uma dessas mulheres a silenciar Cassandra para sempre?

 

Queres que o faça por ti, papá?

 

Quero que faças o quê?

 

Queres que eu tome o teu lugar e descubra a verdade sobre a sua morte?

 

Que ideia absurda!

 

Não é assim tão absurda. Sei como tu trabalhas. Observo-te desde criança. Ouvi todas as tuas histórias, como andaste a investigar contratado por Cícero, a descobrir corridas viciadas, em viagem por Espanha e por Siracusa, atrás de assassinos a mando de homens ricos. Achas que eu não seria capaz de fazer a mesma coisa?

 

Falas de uma maneira que parece que é o mesmo que cozer pão, Diana. Mistura-se uma lista de ingredientes, deixa-se cozer durante um certo tempo...

 

Cozer pão é mais difícil do que parece, papá. É preciso saber e ter experiência.

 

Exactamente. E tu não tens uma coisa nem outra relativamente a bem, ao género de trabalho de que estás a falar.

 

É por eu ser mulher, não é? Achas que eu não era capaz porque sou mulher. Achas mesmo que sou menos inteligente que os homens?

 

A inteligência não tem nada a ver com isto. Há sítios onde uma mulher não pode ir. Há perguntas que uma mulher não pode fazer. E não te esqueças dos perigos que se correm, Diana.

 

Mas para isso tudo, tenho o Davo! Ele é grande e forte. Pode ir a toda a parte. Pode torcer braços e arrombar portas...

 

Diana, não sejas absurda! Tirei o chapéu e abanei-me com ele, semicerrando os olhos por causa do brilho da luz do Sol. Tens andado a pensar nisso, não tens?

 

Talvez.

 

Bem, pára imediatamente com isso, e abandona quaisquer ambições que possas ter nesse sentido Diana, a Descobridora, que bonito que era!

 

Não Diana e Davo, os Descobridores, no plural.

 

Duplamente absurdo! Proíbo-te em absoluto. Segue o exemplo da tua mãe. Ela partiu de uma posição de total desvantagem, e olha para ela transformou-se num modelo de matrona romana: modesta, respeitável, responsável, governa a casa, trata da família...

 

Achas que essa descrição se aplica àquelas matronas romanas modelares que foram ao funeral de Cassandra?

 

Pensei em algumas daquelas mulheres e nos escândalos em que tinham estado envolvidas, e tive de conceder esse ponto a Diana. Em tempos como os que estávamos a viver, ainda haveria um padrão de feminilidade romana? Era o mesmo, quer para homens, quer para mulheres as virtudes tinham-se transformado em vícios e os vícios em virtudes.

 

Pus o chapéu na cabeça e levantei-me, sentindo os joelhos a estalar quando se endireitaram.

 

Se a tua intenção era incitar-me à acção, Diana, conseguiste. Vai-me chamar o Davo, por favor. Vou levá-lo comigo para o caso de ter de arrombar alguma porta ou torcer algum braço. Entretanto, tu ficas em casa a tomar conta da tua mãe, que está doente. Espero sentir o cheiro da sopa de rabanetes a ferver, quando regressar a casa!

 

O sítio mais fácil para começar era também o mais próximo em casa de Cícero, que ficava mesmo ao fundo da minha rua.

 

Com o auxílio de Mopso e Androcles, Davo e eu vestimos as nossas melhores togas. Saímos juntos de casa e percorremos a rua circular que contorna a crista do Monte Palatino, com vista para o Fórum, em baixo, e para o Monte Capitolino, coroado pelo Templo de Júpiter, ao longe. Estava um lindo dia de Verão.

 

Em casa de Cícero, Davo bateu polidamente à porta com o pé. Um olho espreitou pelo orifício de segurança da porta. Disse o meu nome e pedi para falar com a senhora da casa. A abertura do orifício de segurança fechou-se. Momentos depois, a porta abriu-se.

 

Ao longo dos anos, eu tinha estado muitas vezes em casa de Cícero. No zénite da sua grandeza, no ano em que fora Cônsul e esmagara a chamada conspiração de Catilina, pode-se dizer que esta casa era o próprio centro do mundo romano, o local onde se faziam as mais importantes reuniões políticas, e onde tinham lugar os mais estonteantes eventos culturais. Homens de letras e homens de negócios atravessavam estes portais; beberricavam vinho, ouvindo os poemas e as monografias uns dos outros nos seus jardins; davam forma ao curso futuro da República no escritório de Cícero.

 

No nadir do destino de Cícero, a casa fora destruída por um incêndio ateado por Clódio e pelo seu bando, e o proprietário mandado para o exílio. Mas Cícero acabara por regressar a Roma, recuperar os seus direitos de cidadania e o seu lugar no Senado, e reconstruir a sua casa no Palatino.

 

Agora, o senhor desta casa estava de novo numa espécie de exílio, na Grécia, com Pompeu. Durante meses, após César ter atravessado o Rubicão, Cícero tinha adiado e vacilado, agonizando perante as alternativas. Fora cortejado por ambos os lados, não por causa das suas competências militares, mas devido ao seu peso político; a opção de Cícero por um dos lados faria oscilar os sentimentos de muitos daqueles que se consideravam inabaláveis defensores da República. Por razões de princípio, Cícero tomara desde o início o partido de Pompeu, vendo nele o único defensor possível do status quo; mas evitara comprometer-se enquanto lhe fora possível, enviando e recebendo cartas, quer de Pompeu, quer de César, tentando desesperadamente encontrar uma via intermédia. Mas a via intermédia estava fechada, e por fim, quando no mês dejunius do ano anterior haviam chegado a Roma notícias exageradas de um revés temporário de César em Espanha, Cícero dera o grande salto e, na companhia de seu filho Marco, que mal tinha atingido a idade de usar a toga da masculinidade, partira de Itália para se juntar a Pompeu. Tinha passado um ano desde essa altura, e eu não podia evitar perguntar a mim próprio se Cícero não estaria arrependido dessa decisão.

 

Eu conhecia Cícero há mais de trinta anos. A minha participação no julgamento por assassínio que também o lançara contribuíra em muito para melhorar a minha vida. Ele casara-se pouco depois de eu o ter conhecido. A mulher, Terência, dez anos mais nova que ele, pertencia a uma família de considerável posição social e trouxera consigo um dote substancial. Dizia-se que era uma excelente dona de casa e devotamente religiosa. Ao contrário das mulheres de muitos homens poderosos, não se interessava por questões legais nem por assuntos de Estado. Enquanto os destinos da República fluíam e refluíam dentro dos muros da casa de Cícero, e os destinos dos homens acusados que ele representava se mantinham no fio da espada, ela ocupava-se da homenagem aos antepassados da família, fazendo sacrifícios aos deuses domésticos, e cuidava do progresso social dos dois filhos de ambos.

 

Em todas as vezes que eu fora a casa de Cícero, poucas palavras tinha trocado com Terência. Nas raras ocasiões em que as circunstâncias a haviam obrigado a falar comigo, ela fora polida mas altiva, projectando inequivocamente a mensagem de que a minha posição social era excessivamente insignificante para lhe merecer mais do que um mínimo de conversa. Julgo que considerava uma infelicidade que o marido tivesse de lidar com uma personagem tão duvidosa como eu.

 

A última vez que estivera nesta casa, César acabava de atravessar o Rubicão, e Cícero e Terência faziam preparativos frenéticos para sair de Roma, ordenando aos secretários que empacotassem os rolos de pergaminho da biblioteca, e dando instruções de última hora aos escravos que ficariam a tomar conta da casa durante a sua ausência. Neste dia, a casa estava quase ominosamente calma e silenciosa.

 

Davo e eu esperámos muito pouco tempo no vestíbulo, antes de Terência vir pessoalmente ter connosco. Vestia uma estola amarela simples, e não usava jóias. Tinha o cabelo grisalho puxado para trás num rolo apertado, um estilo severo que condizia com o seu rosto severamente belo.

 

Gordiano disse, fazendo uma breve inclinação de cabeça na minha direcção, num gesto de reconhecimento. Este não é o teu genro?

 

Sim, é Davo respondi eu.

 

Terência avaliou-o friamente. Até ao momento, fora nitidamente infeliz no que a genros dizia respeito. A filha, Túlia, que ainda estava na casa dos vinte, já enviuvara uma vez, tendo-se divorciando também uma vez; ia agora no terceiro casamento, com um jovem aristocrata, dissoluto mas fogoso, chamado Dolabela. Os esponsais tinham tido lugar na ausência de Cícero, que na altura era governador de uma província, e sem a sua aprovação. Aparentemente, Dolabela encantara mãe e filha. Ao ver que os olhos de Terência se detinham no meu musculoso genro um pouco mais tempo do que o necessário, percebi que ela não era imune aos encantos masculinos. Dizia-se que o casamento deixara Cícero devastado, já que, tendo defendido Dolabela numa acusação de homicídio, sabia bem de que género de personagem viciosa se tratava. Para aumentar o embaraço de Cícero, Dolabela juntara-se a César, que o colocara à frente da sua frota no Adriático, onde ele fora consistentemente suplantado pela marinha de Pompeu. Como acontecia com muitas famílias da classe governante, também a de Cícero fora dividida ao meio pela guerra civil. E, como se isso não bastasse, corria que Dolabela fora totalmente infiel enquanto marido, mantendo uma relação com a mulher de Marco António, Antónia.

 

Espero que não tenhas vindo falar-me da questão de Milo e Célio? Referia-se ao boato de uma insurreição que estaria a ser preparada a sul de Roma, chefiada por dois antigos aliados de Cícero, Marco Célio e Tito Ardo Milo.

 

Na verdade, não.

 

Óptimo! Porque toda a gente acha que eu devia ter opinião formada sobre ela, e eu recuso-me a tê-la. Nenhum desses sujeitos fez senão trazer sofrimentos ao meu marido ao longo dos anos, mas ao mesmo tempo não se pode censurá-los por terem chegado ao limite da sua paciência. Claro que vão ser ambos mortos, pobres tolos... Abanou a cabeça. Nesse caso, presumo que vieste falar-me de Cassandra disse, antecipando-se a quaisquer apreensões que eu pudesse ter de entrar directamente no assunto. Ao contrário do marido, que era capaz de falar durante horas sem nada dizer, Terência não era mulher que gastasse palavras em vão.

 

Eu acenei com a cabeça, e ela indicou-nos com um gesto que a seguíssemos. Levou-nos para a mesma sala para onde Cícero me conduzira na minha última visita, uma saleta recolhida que dava para o jardim central. Mas a sala parecia diferente e estranhamente vazia. O que era que Cícero me tinha dito? Este foi um dos primeiros compartimentos que Terência decorou quando regressámos e reconstruímos a casa, depois de Clódio e o seu bando a terem incendiado e me terem mandado para o exílio...

 

Cícero mostrara-se bastante orgulhoso desta sala e da sua decoração requintada, mas onde estavam esses objectos? Recordei vagamente uma carpete sumptuosa com um desenho geométrico grego; agora, assentávamos os pés na pedra fria. Tinha havido diversas cadeiras elegantes, esculpidas em terebinto e com embutidos em marfim; agora, havia apenas umas quantas cadeiras dobráveis, o mais simples possível. Tinha havido uma braseira de bronze finamente trabalhada com cabeças de grifos, que também desaparecera. As únicas decorações que permaneciam eram as que não podiam ser retiradas, as paisagens campestres pintadas nas paredes, com pastores dormitando no meio das ovelhas e sátiros espreitando de trás de pequenos santuários de beira da estrada.

 

Terência suspirou.

 

Ah, Marco adorava esta sala! Era aqui que ele recebia as visitas mais importantes os senadores e os magistrados, e os pretendentes à mão de Túlia. O meu marido trouxe-a, a esta sala da última vez que aqui estiveste, não foi? Tinha o escritório cheio de gente, segundo me recordo secretários a correr de um lado para o outro, em pânico, empacotando os papéis confidenciais. Havia na sua voz uma nota de desaprovação, que implicava que, na realidade, a sala era boa demais para gente como eu, mas misturada com uma nota de resignação. Agora que a sala tinha sido despida dos elegantes objectos decorativos que nela haviam figurado, e reduzida a uma sombra do luxo anterior, nada a impedia de me receber aqui.

 

O mobiliário transportável tinha desaparecido, e Terência não usava jóias. Estaria realmente em tão má situação, que tivesse sido forçada a vender bens pessoais? Eu próprio tivera de me endividar devido às dificuldades dos últimos meses, mas era um choque pensar que uma mulher como Terência fora confrontada com decisões semelhantes.

 

Ela era tua parente? perguntou.

 

Perdão?

 

A mulher chamada Cassandra. Era tua parente?

 

Não.

 

Mas foste tu que te encarregaste do funeral. Deve ter havido alguma... relação... entre os dois.

 

Não respondi. Ela encolheu os ombros com ar conhecedor. O gesto presunçoso recordou-me o marido, e eu senti um baque de ressentimento pelo facto de ela presumir que compreendia a minha relação com Cassandra, mesmo que tivesse razão.

 

Tu também deves tê-la conhecido disse eu. De outra maneira, não terias motivos para ir ver a sua pira funerária.

 

Sim, conheci-a ligeiramente. Só perguntei qual era a tua relação com ela porque queria agradecer-te por teres organizado o funeral. Ainda bem que alguém empenhou uma parte do seu tempo e fez as despesas necessárias a uma cerimónia adequada. E tiveste bom gosto. Os músicos e as carpideiras não eram em número excessivo. Torna-se impróprio quando eles são mais do que a família e os amigos.

 

Mal consegui pagar os poucos que contratei.

 

Ah, o dinheiro... Ela acenou com a cabeça com ar compreensivo. E não houve longos discursos diante da pira funerária. Sempre achei que isso era pretensioso quando se tratava de uma mulher, não concordas? É adequado listar as realizações de um homem do mundo, mas se uma mulher viveu a vida que lhe convinha, no final, pouca coisa há que dizer sobre ela. E, se a sua vida foi inconveniente, quanto menos se disser, melhor.

 

Eu pigarreei.

 

Se foste ao funeral, Cassandra deve ter sido mais do que um conhecimento passageiro. Como foi que entraste em contacto com ela?

 

Terência endireitou os ombros e espetou o queixo. Não estava habituada a ser interrogada. O seu marido tinha-se tornado famoso pela forma penetrante como questionava as testemunhas no tribunal; até os mais fortes vacilavam diante da feroz investida de um interrogatório de Cícero. Mas, na vida de todos os dias, quando Cícero tinha motivos para questionar a mulher, e ela razões para se manter em silêncio quando o ariete se encontrava com a porta de ferro, qual dos dois venceria o teste das vontades? Olhando para aquele maxilar inamovível, desconfiei de que fosse Terência.

 

A sua atitude foi-se alterando gradualmente. Descontraiu os ombros. Baixou a cabeça. Tinha decidido responder-me.

 

Se sabes alguma coisa acerca de Cassandra, deves saber que, nos últimos meses, ela se tornou uma espécie de celebridade nesta sociedade. Usei o termo "sociedade" num sentido abrangente, uma vez que, neste momento, sociedade é coisa que não existe andamos todos à deriva, na expectativa do dia de amanhã. Foi a minha irmã Fábia quem à falta de melhor palavra a "descobriu". Cassandra apareceu certo dia diante do Templo de Vesta. Fábia era a Vestal mais velha que estava de serviço nesse dia, a cuidar da chama divina. Ouviu uma mulher a gemer lá fora. Foi ver o que se passava. Nestes tempos, quem sabe? Uma mulher pode ser violada e assassinada em pleno dia, nas escadas do templo. Foi assim que Fábia deparou com Cassandra, que estava a ter um dos seus acessos proféticos.

 

Sim, eu sei.

 

Terência lançou-me um olhar de curiosidade.

 

Por pura coincidência expliquei, nesse dia, eu estava nas proximidades do Templo de Vesta. Também eu ouvi Cassandra. Nunca a tinha visto. Não sabia bem como havia de reagir. Enquanto eu hesitava, Fábia emergiu do templo com outras duas Vestais. Vi-as levarem Cassandra para dentro. O que se passou a seguir?

 

Terência lançou-me um olhar duro e prolongado.

 

O meu marido diz que tu és um homem honesto, Gordiano, na verdade o que ele diz é que és "o último homem honesto de Roma".

 

Cícero honra-me.

 

E não penses que, só porque nunca tive oportunidade de te agradecer formalmente, me esqueci do grande favor que fizeste à minha irmã, há já tantos anos, ao descobrires a verdade quando algumas Vestais foram acusadas de quebrar os seus votos. Fábia teria sido enterrada viva se os seus acusadores tivessem conseguido convencer o tribunal de que ela mantinha uma ligação pouco própria com Catilina. Enterrada viva! Ainda se me aperta o coração, só de pensar nisso. Nessa altura, a minha querida meia-irmã era tão jovem. Tão bela. Havia quem estivesse realmente convencido de que ela teria sido capaz de cometer crime tão absurdo, mas tu salvaste-lhe a vida. Cícero pediu-te que investigasses o assunto e tu provaste que Fábia estava inocente.

 

Não era bem assim que eu me lembrava do caso. Na altura, tinha-me parecido que Catilina um arrivista dissoluto e encantador, não muito diferente de Dolabela, o genro de Terência podia, ou não, ter conseguido seduzir a trémula virgem Fábia, dentro dos confins da própria Casa das Vestais. Mas isso tinha sido há vinte e cinco anos, e desde então tinha-se passado muitas coisas; e, se Terência recordava uma realidade, e eu outra, só os deuses ou a própria Fábia poderiam saber qual de nós se recordava da verdade.

 

Terência lançou-me um prolongado olhar de avaliação, e depois pareceu tomar uma decisão. Bateu as palmas. Chegou uma escrava, a correr. Terência deu à jovem instruções sussurradas, e a escrava saiu, também a correr. Momentos depois, ouvi o ruído feito pelas pregas de uma volumosa estola, e em seguida a própria Fábia surgiu à porta da sala.

 

Estava magnificamente vestida, com o traje completo das Vestais. Usava o cabelo, agora completamente grisalho, muito curto. À volta da testa, trazia uma larga faixa branca, à laia de diadema, decorada com fitas. A estola era branca e simples, mas cortada de tal maneira, que ficava suspensa do seu corpo numa série de pregas. À volta dos ombros, usava o manto de linho branco das Vestais.

 

Irmã, calculo que te recordes de Gordiano disse Terência. Fábia estava mais velha, mas continuava a ser uma mulher notável. Aquilo que tinha mudado era sobretudo a sua atitude. Eu conhecera-a em tempos de crise, quando era jovem, se sentia confusa e corria um risco terrível e era, muito possivelmente, culpada do inqualificável crime do qual fora acusada. Tinha sobrevivido a esse episódio, e o sofrimento tornara-a mais forte. Presumivelmente, mantivera o seu voto de castidade, quer o tivesse interrompido no breve episódio com Catilina, quer não; dizia-se que esse género de disciplina, ano após ano, e o facto concomitante de as privar de filhos, dava às mulheres um género especial de força. Não há dúvida de que Fábia tinha uma aparência imponente, parada ali à porta, avaliando as duas visitas da irmã. Os seus olhos passaram por Davo quase sem se deterem, e poisaram sobre mim. Naquele olhar firme, eu pouco vi que me recordasse a frágil rapariga que ajudara a pedido de Cícero.

 

Lembro-me de ti, Gordiano disse, sem emoção.

 

Gordiano veio fazer perguntas sobre Cassandra informou Terência.

 

Por quê? perguntou Fábia.

 

Estou convencido de que foi assassinada respondi eu. Fábia susteve a respiração.

 

Pensámos, como ela tinha uma mente frágil, que o seu corpo também fosse frágil. Pensámos que talvez tivesse morrido... de causas naturais.

 

Foi envenenada disse eu, tentando dar ao rosto a mesma rigidez que tinha o de Fábia, a fim de ocultar a dor que aquelas palavras me provocavam.

 

Envenenada sussurrou Fábia. Estou a ver. Mas o que vieste aqui fazer? O que pretendes de mim?

 

Foste uma das primeiras mulheres de Roma a tornar-se sua amiga observei eu.

 

A tornar-me sua amiga? Não foi bem isso. Vi uma mulher perturbada. Quando me aproximei dela, quando ouvi a natureza das suas arengas, apercebi-me da verdade de que se tratava de uma mulher possuída pelo dom da profecia. Levei-a para o Templo de Vesta, onde estaria resguardada pela deusa quando o dom a possuísse. Agi como sacerdotisa, e não como amiga. Agi por piedade, e não por compaixão.

 

Quem era ela? De onde vinha?

 

Acerca das suas origens terrenas, nada sei. Ela própria tinha-as esquecido.

 

Mas como é que percebeste que ela possuía esse dom de que falas? Como é que percebeste que não era pura e simplesmente louca? Fábia sorriu ao de leve.

 

Tu podes ser um sábio nas coisas do mundo, Gordiano, em especial nas coisas dos homens. Mas isto era um assunto divino e um assunto de mulheres.

 

Queres dizer que os homens não têm acesso ao conhecimento divino? Os augures...

 

Sim, o Colégio dos Augures é constituído por homens, e há séculos que eles transmitem uns aos outros os seus métodos de leitura dos presságios o estudo do voo das aves, do ruído dos trovões, a observação dos contornos de um relâmpago nos céus. Os céus são o domínio de Júpiter, e esses sinais provêm directamente do próprio Rei dos Deuses. E os homens eleitos para o Colégio dos Quinze também procuram sinais do futuro, consultando para isso os oráculos dos antigos Livros Sibilinos. Mas há outras formas, mais subtis, de os deuses nos darem a conhecer a sua vontade, e através das quais nos mostram os caminhos do futuro. Muitos desses métodos estão fora do alcance dos homens. Só as mulheres os conhecem. Só as mulheres os compreendem.

 

Estás então convencida de que Cassandra possuía realmente o dom da profecia?

 

Quando estava possuída, via para além deste mundo.

 

A Cassandra troiana ouvia mensagens do outro mundo.

 

O dom da nossa Cassandra chegava-lhe principalmente sob a forma de visões. Ela nem sempre compreendia aquilo que via, e nem sempre era capaz de o verbalizar. Não era ela quem interpretava as suas visões; limitava-se a relatá-las, quando ocorriam. Muitas vezes, nem se recordava delas.

 

Parece-me que semelhante dom devia ser pouco fiável, gerando mais perguntas do que respostas.

 

As suas visões tinham de ser interpretadas, se é isso que pretendes dizer. Não era uma tarefa adequada ao vosso Colégio dos Augures! Mas, se uma pessoa a ouvisse com atenção, e já possuísse uma simpatia genuína pelo mundo divino...

 

Se fosse uma pessoa como tu observei eu.

 

Sim, eu conseguia compreender as visões de Cassandra. Foi por isso que a trouxe aqui, a casa de Terência, em mais do que uma ocasião.

 

E ela profetizou em todas elas?

 

Em quase todas. Havia um método que ajudava a induzir as visões.

 

Que método era esse?

 

Se estivesse sentada numa sala escura e silenciosa, a olhar para uma chama, era quase certo ter visões.

 

E, antes ou depois disso, davam-lhe de comer e de beber?

 

Claro que dávamos replicou Terência. Era tratada em minha casa com a mesma cortesia com que são tratados os restantes convidados.

 

Embora não soubesses quem ela era ou de onde vinha?

 

Era o dom que ela possuía que nos interessava disse Fábia, e não a sua história de família, ou o nome com que havia nascido.

 

E, quando Cassandra enunciava essas profecias, o que vos pareciam elas?

 

As duas irmãs consultaram-se com o olhar, discutindo em silêncio até que ponto deviam informar-me. Finalmente, Fábia disse:

 

Cassandra tinha muitas visões, mas havia uma em particular uma visão recorrente de dois leões lutando um com o outro sobre a carcaça de uma loba.

 

E como interpretaste essa visão?

 

A loba era Roma, evidentemente. E os leões eram Pompeu e César.

 

E qual deles matava o outro e comia a carcaça?

 

Nenhum.

 

Não compreendo. Dividiam a loba entre si? Imaginei o mundo romano permanentemente dividido entre duas facções, com César a governar o Ocidente e Pompeu o Oriente. Um mundo dividido em dois Impérios Romanos poderia semelhante disposição prolongar-se por muito tempo?

 

Não, não, não! exclamou Terência. Compreendeste mal. Conta-lhe, Fábia!

 

A visão terminava com um milagre disse Fábia. A loba renascia e crescia de tal maneira, que se tornava maior do que os leões, que desistiam da luta e se deitavam lado a lado, mansamente, lambendo as feridas um do outro.

 

O que significava essa visão?

 

Fábia ia começar a falar, mas Terência estava excessivamente excitada para permanecer em silêncio.

 

Não estás a perceber? É o melhor resultado possível! Toda a gente presume que César e Pompeu têm de se defrontar e que um deles terá de destruir o outro, sendo Roma o prémio do vencedor. Mas há outra possibilidade que ambos os lados recuperem o bom senso antes que seja tarde de mais. Uma coisa é os Romanos derramarem sangue de Gauleses ou de Partos, outra coisa é os Romanos matarem outros Romanos isso é impensável. Semelhante loucura ofende os próprios deuses. Cícero bem sabe que assim é. É isso que anda a tentar dizer a ambos os lados. Eles têm de arranjar maneira de resolver as suas divergências e fazer a paz! Era isso que a visão de Cassandra previa. Neste momento, Roma parece estar paralisada e impotente; mas a loba está apenas a dormir e, quando acordar, mostrará que é mais grandiosa que César ou Pompeu. Eles ficarão atemorizados pela sua sombra, e haverá reconciliação entre as duas facções. Terência sorriu. E é minha convicção que será o próprio Cícero a intermediar a reconciliação. Essa foi a verdadeira razão pela qual os deuses conduziram os seus passos ao campo de Pompeu. Não foi para lutar todos sabemos que o meu marido não é um soldado, mas para estar disponível quando os dois lados finalmente se encontrarem, e para os fazer ver a loucura do seu comportamento. Haverá paz, e não guerra. Todos os dias espero a chegada de um mensageiro que me traga uma carta do meu marido com esta gloriosa notícia.

 

Fábia aproximou-se dela e poisou a mão no ombro de Terência. A expressão do rosto de ambas era transcendente. Eu inspirei profundamente.

 

Como foi que souberam da morte de Cassandra?

 

Ela morreu no mercado, não foi? respondeu Fábia. As pessoas viram-na, reconheceram-na. As novidades circulam rapidamente nesta cidade.

 

E, contudo, nenhuma de vós foi a minha casa prestar-lhe homenagem.

 

Ambas desviaram os olhos.

 

Bem disse Terência, ela não era propriamente do nosso... quero eu dizer, como tu próprio salientaste, nem sequer sabíamos o seu nome verdadeiro, e muito menos a que família pertencia.

 

Mas foram assistir à cremação.

 

Tratou-se de um acto de piedade disse Fábia. A cremação do corpo é um rito sagrado. Foi a isso que fomos assistir.

 

Baixei os olhos, e depois voltei a erguê-los ao ouvir uma voz proveniente da porta.

 

Tia Fábia! Começava a perguntar a mim própria onde te terias metido. Oh, não me tinha apercebido de que tinhas visitas, mãe.

 

A filha de Cícero, Túlia, tivera a infelicidade de herdar as feições do pai, em vez de herdar as da mãe, e passara de rapariga magrizela a jovem mulher desinteressante. A última vez que a tinha visto fora no ano anterior, na casa que os pais tinham em Fórmias, quando Cícero tentava decidir por que lado optar. Nessa altura, estava grávida, e a gravidez começava a notar-se. A criança fora prematura e vivera muito pouco tempo. Um ano mais tarde, Túlia parecia de boa saúde, apesar dos braços magros e da compleição doentia.

 

Ao contrário da mãe, Túlia usava diversas jóias de aspecto dispendioso, incluindo pulseiras de ouro e um colar de prata de filigrana, decorado com pedras de lápis-lazúli. Apesar da economia drástica que a guerra impusera à família, desconfio de que a jovem Túlia seria a última a quem se pediria que fizesse sacrifícios pessoais. Cícero e Terência tinham mimado imenso os dois filhos, mas especialmente Túlia.

 

Na verdade respondeu Terência, as minhas visitas estavam mesmo a ir-se embora. Por que não vais com a tia para a sala de costura, Túlia, enquanto eu os acompanho à porta?

 

Com certeza, mãe. Túlia deu a mão à tia, e levou-a consigo. Fábia voltou a cabeça e lançou-me um prolongado olhar de despedida. O olhar de despedida de Túlia foi lançado a Davo, que reagiu remexendo os pés e pigarreando.

 

Eu fiz menção de me dirigir à porta, mas Terência deteve-me poisando-me a mão no braço.

 

Diz ao teu genro que vá andando para o vestíbulo disse em voz baixa, mas espera aqui uns momentos, Gordiano. Queria mostrar-te uma coisa, em privado.

 

Fiz o que ela me pediu e esperei sozinho na sala, contemplando as cenas campestres pintadas na parede. Momentos depois, ela voltou, trazendo um fragmento de pergaminho que me colocou na mão.

 

Lê isso disse. E diz-me o que achas.

 

Tratava-se de uma carta de Cícero, datada do mês dejunius e com um cabeçalho onde se lia:

 

Do Acampamento de Pompeu, em Epiro:

 

Se estás bem, fico satisfeito. Eu estou bem. Faz o possível por recuperar. Na medida em que o tempo e as circunstâncias to permitirem, trata de todos os assuntos necessários, e escreve-me sempre que puderes, mencionando todos os pontos. Adeus.

 

Virei o pergaminho ao contrário, mas não havia mais nada. Encolhi os ombros, sem perceber bem o que ela queria de mim. Aconselha-te a que recuperes. Presumo que não tenhas estado bem?

 

Não foi nada, uma febre que já passou respondeu ela. Terás reparado que ele não me deseja uma rápida recuperação ou o favor dos deuses. Limita-se a dizer "Faz o possível por recuperar". Como se estivesse a recordar-me um dever!

 

E encarrega-te de tratar de todos os assuntos necessários...

 

Ah! Espera que eu governe uma casa, duas casas, a minha e a de Túlia com um orçamento de ar! Para poder sobreviver, tenho andado a vender a mobília e as melhores jóias, que herdei da minha mãe...

 

Não compreendo por que me mostraste esta carta, Terência.

 

Porque tu conheces o meu marido, Gordiano. Conhece-lo por dentro e por fora. Não tens quaisquer ilusões acerca dele. Não estou certa de que gostes dele nem sequer estou certa de que o respeites, mas conhece-lo. Detectas nesta carta o menor vestígio de amor, de afecto, ou mesmo de boa vontade?

 

Apeteceu-me dizer: Talvez esteja escrita em código, sabendo por experiência que Cícero tinha tendência para esse género de truques de correspondência. Mas Terência não estava com disposição para graças. Se tinha conseguido reunir coragem suficiente para desnudar a sua alma na minha presença, a sua perturbação devia ser genuína.

 

Não me parece que me compita dizer o que Cícero sentia quando escreveu esta carta.

 

Ela arrancou-me a carta das mãos e voltou-se, escondendo o rosto.

 

As tensões que se viveram nesta casa, nem podes imaginar! Durante meses a fio; durante anos. Discutíamos o que fazer com o jovem Marco, o pai insiste em que ele seja um erudito, apesar de todos os seus tutores dizerem que ele não tem qualquer talento. E agora o rapaz partiu para a guerra, embora mal tenha idade para usar a toga. E Dolabela, que optou por César e continua a manter uma relação com Antónia nas nossas costas. O meu marido mal conseguia suportar que o seu nome fosse mencionado, mesmo antes de terem começado estes problemas. Odiou o casamento! E, quando Túlia perdeu o filho, a dor que todos sentimos foi insuportável. Mas eu seria capaz de tolerar fosse o que fosse, de aceitar o meu destino, se soubesse que Marco ainda... A voz ficou-lhe presa na garganta, e ela abanou a cabeça. A realidade, nua e crua, é que Marco já não me ama. Não me amava quando nos casámos, nenhuma mulher espera que isso aconteça no início de um casamento combinado, mas acabou por me amar, e esse amor cresceu e durou vários anos. Mas agora... agora não sei o que lhe aconteceu. Não sei para onde foi nem o que fazer para recuperá-lo. Foram demasiadas discussões sobre dinheiro, demasiadas disputas sobre os filhos, a amargura dos tempos em que vivemos...

 

Terência, por que estás a contar-me tudo isso?

 

Porque tu também a conheceste, não foi? Melhor do que davas a entender. Deves tê-la conhecido bem, visto que trataste do funeral.

 

Sim, eu conhecia Cassandra.

 

A profecia a que Fábia fez referência, havia outras coisas... de natureza pessoal. Cassandra também teve aquela visão da loba e dos leões em miniatura, dizia ela, como que num espelho distante. Era a minha casa que ela via naquele espelho, um reflexo do mundo em geral. A loba era a nossa família, a coisa que nos alimentou e nos susteve durante os tempos mais difíceis. E os animais selvagens eram Marco e eu própria, lutando sobre a carcaça do nosso casamento. Mas, da mesma maneira que Roma é maior do que aqueles que a disputam, também esta família é maior do que os elementos que a constituem. Havemos de nos reconciliar. Marco... voltará a amar-me. Foi o que Cassandra disse!

 

Foi?

 

Foi essa a interpretação de Fábia.

 

Fábia sabe muito mais do que eu acerca dessas coisas

 

Sim, mas tu conhecias Cassandra Achas que ela era genuína, Gordiano? Achas que era o que parecia? Achas que posso confiar nas visões que ela tinha nos estertores do seu dom?

 

A entrevista tinha sido invertida. Agora era Terência que procurava conhecer Cassandra através de mim

 

Não sei respondi, e estava a dizer a verdade.

 

Da mesma maneira que consigo localizar a primeira vez que vi Cassandra, por ter sido no dia em que chegou a Roma a notícia de que César tinha atravessado o mar, também consigo localizar a primeira vez em que falei com ela, devido ao facto significativo que ocorreu no mesmo dia. Foi na manhã de final de Februarius em que Marco Célio erigiu um tribunal ao lado do de Trebónio, o pretor da cidade, e deu início à sua campanha destinada a escarnecer da vontade de César e a tornar-se o defensor radical dos desprezados de Roma.

 

Antes de partir de Roma, César vergara a vontade do Senado e proclamara éditos destinados a criar um programa de reforço da frágil economia romana. Os problemas eram muitos e assustadores. Com o começo da guerra, o dinheiro tornara-se cada vez mais escasso, enquanto os preços continuavam a subir. O tesouro de Roma fora esvaziado para sustentar as campanhas militares de César. Não se cobravam impostos. Pompeu cortara todas as entradas provenientes do Leste, bem como os vitais carregamentos de cereais do Egipto. O comércio estava paralisado; os navios, os cavalos, e até os carros de mão, tinham sido requisitados para o esforço da guerra. Os comerciantes andavam angustiados, porque não havia dinheiro em circulação. Os trabalhadores livres não conseguiam encontrar emprego. Os escravos, famintos, começavam a ficar irrequietos. Os lojistas e os inquilinos não conseguiam pagar as rendas. Famílias cujos chefes tinham fugido de Itália, ou se tinham juntado às legiões de César, eram enganadas pelos beleguins encarregados de cuidar das propriedades do seu senhor. Os banqueiros exigiam o pagamento dos antigos empréstimos, e recusavam-se a fazer novos.

 

Exploradores sem escrúpulos espremiam como podiam o povo angustiado de Roma.

 

Por mim, e pela primeira vez na minha vida, tinha pedido e continuava a pedir dinheiro emprestado. Parecia que só uma mão-cheia de pessoas tinha dinheiro, e essas tinham muito, e que os restantes tinham de pedir empréstimos, fossem quais fossem as exigências. Com o simples objectivo de pagar as despesas diárias da vida, dei por mim em dívida para com o riquíssimo banqueiro Volúmnio, a tal ponto que começava a desesperar de conseguir jamais pagar-lhe.

 

Para resolver estes problemas, César ordenara que os valores de propriedades e rendas recuassem para preços anteriores à guerra. Os devedores foram autorizados a deduzir os juros pagos das quantias que deviam. Foram nomeados árbitros para resolver disputas sobre avaliações e bancarrotas. Uma lei antiaçambarcamento determinava que ninguém podia manter fora de circulação mais de 60 mil sestércios, em ouro ou prata.

 

Os esforços de César tinham sido moderados e tiveram um êxito moderado. O dinheiro começou a circular. As lojas reabriram e os vendedores reapareceram nos mercados. O crescente sentimento de pânico que grassava entre a população foi sendo substituído pelo esforçado esgaravatar diário pelo sustento pessoal.

 

Havia quem, uns porque desprezavam efectivamente o status quo e queriam vê-lo derrubado, outros porque estavam desesperados com as dívidas e procuravam desesperadamente uma saída tivesse tido a esperança de que César promulgasse um programa bem mais radical. Queriam que ele abolisse por completo as dívidas, amortizasse as rendas, e talvez mesmo que confiscasse as propriedades aos ricos, a fim de as distribuir pelos pobres. Essas pessoas tinham ficado amargamente desapontadas.

 

Gaio Trebónio fora o homem nomeado por César para aplicar o seu programa económico. Eu conhecera Trebónio no ano anterior, no acampamento romano montado à entrada de Massília, onde ele era o oficial encarregado do cerco. Era um militar profundamente competente e cheio de recursos, com cabeça para os números e uma percepção intuitiva da forma como o mundo funciona. Trebónio era capaz de olhar para uma catapulta e dizer por que motivo não estava a funcionar, calcular o peso e a sua trajectória, ficando depois a observar os homens que a carregavam, e escolhendo o melhor de entre eles, que encarregaria de comandar os restantes. Conduzira um cerco eficaz e bem sucedido, e Massília cedera com custos muito reduzidos para as legiões de César. Em reconhecimento pela sua competência, Trebónio fora o homem que César colocara à frente do governo da cidade de Roma na sua ausência.

 

Havia quem dissesse que a magistratura de Trebónio fora uma recompensa por serviços prestados, mas não era um cargo que eu tivesse gostado de assumir. Certamente que Trebónio poderia lucrar imensamente aceitando os subornos dos litigantes que compareciam na sua presença, mas eu sentia-me estupidificado só de pensar nos intermináveis casos de avaliação de propriedades e negociação de bancarrotas a que ele teria de presidir.

 

Trebónio dirigia estas questões entediantes num tribunal, com assento numa plataforma elevada localizada no Fórum. Sentava-se num trono, um espécime particularmente ornamentado com a forma tradicional de uma banqueta de campo, mas ricamente decorada com marfim e ouro, tendo como pés quatro presas de elefante. Em seu redor, circulavam secretários e funcionários, que levavam e traziam documentos, consultavam registos e tiravam notas. Na maior parte dos dias, serpenteava pelo Fórum uma comprida fila de queixosos que esperavam a sua vez de falar com Trebónio. As disposições entre as partes litigantes não eram as melhores, e os riscos de conflito eram elevados. Não era raro surgirem contendas ao longo da fila. Os guardas armados acorriam a reprimir essas perturbações, antes que se transformassem num tumulto em larga escala.

 

Foi em certa manhã do final de Februarius que outro magistrado, Marco Célio, avançou na direcção do Fórum, levando consigo o seu próprio trono, e na companhia da sua própria comitiva de secretários e funcionários, que eregeram rapidamente uma plataforma elevada, a curta distância da de Trebónio. Célio subiu ao tribunal e, com um gesto floreado, abriu o trono, que era consideravelmente mais simples que o de Trebónio as decorações de marfim eram menos sumptuosas e desprovidas dos contornos a ouro, e as pernas não eram de marfim, mas apenas de madeira, com a forma de presas de elefante. Através do exemplo do trono escolhido, Célio estava já a proclamar-se porta-estandarte da austera virtude romana e defensor dos desprezados.

 

Ainda na casa dos trinta, esguio, belo e encantador como sempre fora, Marco Célio tinha atrás de si uma longa e notória carreira na vida pública. Eu lembrava-me dele principalmente de quando fora o jovem e rebelde protegido de Cícero, aprendendo as artes da retórica aos pés do seu empertigado e digno mestre durante o dia, e divertindo-se numa vida social dissoluta durante a noite para grande desgosto de todos os implicados, especialmente quando Célio foi arrastado para os tribunais por Clódia, a ex-amante, que o acusava de ser o assassino contratado de um filósofo alexandrino de visita à cidade. Cícero acorrera a defender o seu protegido. O julgamento degenerara numa sórdida troca de insultos, e Cícero acabara por conseguir voltar a acusação contra Clódia, retratando-a como uma prostituta incestuosa e lasciva, empenhada em arruinar um jovem inocente. Ilibado, Célio voltara as costas à sedutora Clódia, ao irmão desta, Clódio, que era um instigador da ralé, e aos restantes membros da clique radical que os acompanhava, e entregara-se de alma e coração à causa dos chamados Melhores, como Cícero e Pompeu, até optar finalmente por César depois de oscilar de um lado para o outro como todos os outros jovens brilhantes e ambiciosos de Roma. Nas vésperas de César ter decidido atravessar o Rubicão e envolver-se numa guerra civil, Célio partira de Roma para se juntar a ele dando outro desgosto profundo a Cícero.

 

Célio tornara-se um dos lugares-tenentes de César, e servira-o competentemente na campanha espanhola. Regressara a Roma sobrecarregado de dívidas, e na esperança de que lhe fosse atribuído o lucrativo cargo de pretor da cidade, pelo que não fizera segredo da sua amarga desilusão quando essa magistratura fora entregue a Gaio Trebónio. Célio recebera uma pretura inferior: competia-lhe tratar dos assuntos dos residentes estrangeiros na cidade. Talvez César tivesse achado mais sensato enfiar um sujeito como Célio, ambicioso e de lealdade mutável, num nicho seguro, atribuindo-lhe uma tarefa de menor importância e sem grande coisa que fazer mas César devia ter previsto que, quando desocupado, Célio era um homem perigoso.

 

Eu estava no Fórum, na companhia de Jerónimo e do nosso grupo habitual, quando Célio instalou o seu tribunal ao lado do de Trebónio. E também entrevi a expressão de consternação de Trebónio.

 

O que andaria Célio a tramar? Aproximei-me do seu tribunal. Os outros seguiram-me. Célio sentou-se no trono, voltou lentamente a cabeça para contemplar a longa fila de litigantes que esperavam a sua vez de serem atendidos por Trebónio, e a multidão de curiosos que tinha começado a juntar-se diante do seu tribunal. Por momentos, os seus olhos pousaram sobre mim. No passado, os nossos caminhos tinham-se cruzado muitas vezes. Fez-me uma inclinação de cabeça, um gesto de reconhecimento, e lançou-me um sorriso deslumbrante o sorriso que tinha derretido o coração de Clódia e que, ao longo dos anos, lhe permitira envolver-se em incontáveis trapalhadas. Os nossos olhos só se encontraram um momento, mas eu tive uma premonição dos sarilhos a que ele estava prestes a dar início, para si próprio e para tantos outros.

 

Célio ergueu-se do trono. O silêncio abateu-se sobre a fila de litigantes que esperavam por Trebónio e a multidão que se tinha formado.

 

Cidadãos de Roma! gritou Célio. Possuía uma das melhores vozes de orador de Roma, capaz de atingir grandes distâncias, sempre com muita clareza. Por que estais nessa fila, como ovelhas obedientes fechadas no curral, à espera de serem tosquiadas? O magistrado de quem esperais reparação não pode fazer absolutamente nada para vos ajudar. Tem as mãos atadas. A lei em vigor não lhe permite fazer seja o que for, para além de vos infligir maior sofrimento. O pretor da cidade apenas pode olhar para os números que lhe são apresentados, remexê-los ligeiramente, à semelhança daqueles embusteiros que infestam os mercados e estão sempre a mudar de sítio o copo que esconde a noz, e mandar-vos para casa com menos do que aqui chegastes. O governo de Roma devia poder fazer mais do que isso pelos seus cidadãos, que tanto trabalham e tantas privações têm sofrido! Não concordais?

 

Estas palavras foram recebidas com gritos esparsos por parte daqueles que se encontravam na fila uns a troçar e escarnecer de Célio, mas outros em tom de concordância. Alguns homens que se encontravam no final da fila e não conseguiam ouvir saíram dos seus lugares para irem ver o que se passava. A informação de que Célio se preparava para encenar uma espécie de manifestação política espalhou-se a grande velocidade, e a multidão engrossou rapidamente com os homens que se aproximavam de todos os pontos do Fórum. Entretanto, Trebónio prosseguia o que estava a fazer, fingindo ignorar Célio.

 

Cidadãos de Roma prosseguiu Célio, recordai a situação que vivemos há pouco mais de um ano, quando César atravessou o Rubicão e expulsou os canalhas presunçosos e enfatuados que geriam o estado para sua própria vantagem. Não sentistes, tal como eu, um ímpeto de excitação, um calafrio de antecipação quando subitamente nos confrontámos com as possibilidades gloriosas de um brilhante futuro possibilidades que tinham sido impensáveis um dia, uma hora antes de César dar o primeiro passo para a travessia do Rubicão? De repente, num piscar de olhos, tudo podia acontecer! Quantas vezes, no decurso da vida de um homem, se abre diante dos seus olhos semelhante perspectiva de esperança ilimitada? O mundo seria refeito! Roma renasceria! Os homens honestos iam finalmente triunfar, e os canalhas seriam expulsos, com o rabo entre as pernas.

 

"Em vez disso bem, vós conheceis a amarga verdade tão bem como eu, pois de outra forma não estaríeis aqui, suplicando migalhas ao magistrado encarregado da cidade. Nada mudou, a não ser para pior. Os canalhas triunfaram de novo! Foi por isto que os homens lutaram e morreram, pelo direito de os proprietários abastados e os homens que emprestam dinheiro nos esmagarem aos pés? Por que se recusa César a pôr fim a esta situação vergonhosa? Cidadãos, pensai nas vossas circunstâncias há exactamente um ano, e dizei-me: viveis melhor? Se a resposta for sim, é porque sois proprietários ou banqueiros, porque todos os outros vivem pior, muito pior! Retalharam-nos os pulsos e os bebedores de sangue estão a sugar-nos a vida e, embora me desagrade dizê-lo, foi o próprio César quem lhes deu os punhais!

 

Alguns dos homens que formavam a multidão, muitos dos quais eram conspicuamente abastados, apuparam e troçaram, eles e as respectivas comitivas de secretários e guarda-costas. Mas os seus assobios foram engolidos pelos irados gritos de concordância lançados pelos outros. É possível que alguns dos apoiantes de Célio fossem contratados espalhar apoiantes entre a multidão fora uma das primeiras lições que ele tinha aprendido com Cícero, mas o descontentamento a que ele apelava era profundo, e a maioria dos ouvintes estava do seu lado.

 

Trebónio continuava a ignorar a situação, tentando prosseguir a sua actividade, mas até os queixosos que ele estava atender o ouviam com a atenção repartida, igualmente interessados no discurso de Célio.

 

Cidadãos de Roma, César prestou-nos um grande serviço quando atravessou o Rubicão. Com essa acção ousada, pôs em movimento uma revolução que transformará o estado. Eu próprio aderi orgulhosamente à sua causa. Estive nos campos de batalha, lutei ao lado de César em Espanha. Neste momento, os combates militares prosseguem noutra arena, onde temos grandes expectativas de sucesso. Mas não podemos permanecer ociosos, à espera da notícia da vitória final. Na sua ausência, temos de realizar aquilo que César, fosse por que motivo fosse, não realizou enquanto cá estava. Temos de promulgar nova legislação, que alivie de forma genuína os verdadeiramente necessitados!

 

Ouviu-se nova explosão entre a multidão.

 

Já foi promulgada! Cala a boca e vai-te embora! gritou um dos críticos de Célio. Viva! Viva Célio! gritou um sujeito com ar grosseiro, que parecia mesmo um agitador contratado. A multidão tornou-se tão ruidosa, que até Célio tinha dificuldade em se fazer ouvir acima do burburinho. Trebónio desistiu de tentar aconselhar os dois litigantes que tinha diante de si, e recostou-se no seu trono ornamentado, de braços cruzados e sobrolho franzido.

 

Para isso gritava Célio, erguendo a voz a um agudo de clarim para conseguir fazer-se ouvir, para isso, começarei por propor uma lei que suspenda os pagamentos de dívidas por um período não inferior a seis anos. Repito, pedirei ao Senado que imponha uma moratória de seis anos a todas as dívidas, sem que os juros sejam aumentados nesse intervalo! Aqueles que foram esmagados pelas dívidas terão finalmente a oportunidade de voltar a erguer-se. E, se os ricos que emprestam dinheiro se queixarem de que vão morrer à fome, pois que comam as tabuinhas de cera onde esses empréstimos foram registados!

 

Ouviu-se uma sonora reacção por parte da multidão. Célio, de rosto corado pela excitação porque estou convencido de que a multidão era ainda maior e mais entusiasta do que ele estava à espera, conseguiu fazer-se ouvir acima do rugido:

 

Em previsão da aprovação dessa lei, instalei hoje aqui o meu tribunal. Assumirei o meu cargo sentado no meu trono, e os meus funcionários registarão o nome e as circunstâncias de todos os cidadãos actualmente em dívida, para que possam ser aliviados logo que a lei entre em vigor. Por favor, formem uma fila aqui à minha direita. E sentou-se no trono, muito satisfeito consigo mesmo.

 

A fila de litigantes que esperavam a sua vez para falar com Trebónio evaporou-se na pressa de se juntarem à fila de Célio. Por que haviam os devedores de perder tempo a regatear com o pretor da cidade, quando a legislação de Célio, a ser publicada, se sobreporia a quaisquer acordos decretados por Trebónio?

 

Que gente idiota! resmungou Caninino, o homem que só tinha um braço, ao meu ouvido. Nem aqui nem no Hades o Senado vai aprovar a legislação de Célio. Se César tivesse querido semelhante coisa, ele próprio a teria promulgado. E, se César não quer, o Senado nem sequer se vai debruçar sobre o assunto. Célio está apenas a tentar arranjar problemas.

 

Mas por quê? respondi eu. Que vantagem tem ele em instigar um tumulto? Porque, de facto, seguira-se um tumulto. O ar estava cheio de gritos e insultos irados, acompanhados de concursos de empurrões e de combates. Guarda-costas com ar ameaçador formavam cordões em redor dos seus senhores abastados, que fugiam da populaça. A um sinal de Trebónio, que contemplava o caos do alto do seu trono, guardas armados avançaram, numa tentativa de restabelecer a ordem, embora fosse difícil decidir por onde começar. A multidão parecia um caldeirão a ferver, transbordando por todos os lados ao mesmo tempo.

 

Qual seria o objectivo de Célio? Caninino tinha razão: enquanto o Senado estivesse nas mãos de César, Célio não tinha quaisquer possibilidades de ver promulgado o seu programa radical. Nem tinha, na sua qualidade de pretor encarregado dos residentes estrangeiros, o direito legal de se envolver na resolução de dívidas. Estaria, muito simplesmente, a tentar complicar a vida a Trebónio, por puro despeito? Ou teria Célio um plano em vista, e um objectivo em direcção ao qual se movia?

 

Jerónimo e eu, receosos da loucura da multidão, resolvemos afastar-nos. Eu ganhei uma ou duas nódoas negras, feitas por cotovelos no ar, mas à parte isso emergi ileso. Finalmente, encontrámos um sítio calmo, ao lado do Templo de Pólux e Castor, onde recuperámos o fôlego. Foi então que vi Cassandra pela segunda vez.

 

Estávamos mesmo por baixo da estreita plataforma que se projecta na perpendicular a partir do alpendre do templo, rodeando a escadaria. Ergui os olhos por acaso e vi-a, de pé em cima da plataforma. Observava a multidão que se agitava abaixo de nós e nem reparou na nossa presença.

 

Jerónimo viu a minha expressão e seguiu a direcção do meu olhar.

 

Que bonita! sussurrou. As palavras escaparam-se-lhe dos lábios tão involuntariamente como se estivesse a respkar.

 

E era de facto bonita, especialmente quando avistada daquele ângulo inferior do ponto de vista de um suplicante que ergue os olhos para uma deusa que habita no alto de um pedestal. Claro que nada havia de remotamente soberano ou divino na sua túnica azul puída, ou no seu cabelo em desalinho, mas a sua atitude tinha uma certa dignidade rara, que suscitaria imediatamente a atenção e o respeito de qualquer homem. Em mim, suscitou mais do que isso. Ergui os olhos para ela e o coração deu-me um salto dentro do peito. Fui atravessado por uma sensação que recordava vagamente da juventude, simultaneamente excitante e dolorosa, e de repente senti-me como se tivesse um terço da idade que tinha. Censurei-me por semelhante tolice. Eu era um homem velho e casado. Ela era uma pedinte, uma louca que se corre a pontapé.

 

Ela olhou para baixo e viu-nos de cabeças voltadas para cima, a contemplá-la. Foi a primeira vez que a olhei de frente e vi que tinha os olhos azuis. Tinha um rosto desprovido de expressão o rosto de Atena, moldada pelos escultores gregos, pensei e, em si mesmo, isso era estranho, considerando que estava a observar um tumulto. Pensei numa ave que observasse as actividades dos humanos lá muito do alto, indiferente aos seus actos de violência mútua.

 

Ela foi sacudida por um sobressalto. Eu pensei que a tínhamos assustado e que ela se preparava para fugir. Mas não: revirou os olhos para trás e os seus joelhos cederam. Vacilou, perdeu o equilíbrio e caiu para a frente.

 

Dizer que Cassandra me caiu literalmente nos braços seria verdade, mas seria uma verdade enganadora, que conferiria ao momento um ar romântico que de forma nenhuma foi evidente na altura. Na realidade, quando percebi que ela estava prestes a cair, tive um frémito de pânico não por ela, mas por mim. Quando um homem da minha idade vê uma mulher cair de uma altura considerável diante de si, não pensa em actos de heroísmo, mas na fragilidade dos seus ossos. Ainda assim, suspeito de que o instinto de apanhar uma mulher que vai a cair é forte em qualquer homem, por muito idoso que ele seja. Jerónimo reagiu da mesma maneira que eu, e foi nos braços de ambos que ela tombou.

 

Foi um momento dolorosamente incómodo. Jerónimo e eu colidimos um com o outro, no instante seguinte Cassandra caiu sobre nós, e quase fomos parar ao chão os três. Se fôssemos actores de uma comédia de Flauto, a cena não teria sido mais hilariante. Por um qualquer milagre de equilíbrio e contra-equilíbrio, Jerónimo e eu conseguimos aguentar-nos em pé. Juntos, poisámos a nossa carga aturdida, apoiando-a pelos braços para que se mantivesse direita.

 

Eu fiquei sem respiração. Uma dor aguda percorreu-me a espinha. Tinha manchas escuras nos olhos. Nada disso me importou quando Cassandra desfaleceu de encontro a mim, com uma mão sobre o rosto e a outra atravessando o peito.

 

Uma coisa é observar a forma de uma mulher bonita à distância. Outra coisa completamente diferente é sentir de repente nos braços um corpo quente e sólido. Fora precisamente para isto, para termos a experiência destes momentos de contacto humano, que os deuses nos tinham feito. Foi o que eu senti naquele instante, embora não tivesse tido consciência do facto.

 

Cassandra voltou gradualmente a si e afastou-se de mim, mas apenas um pouco, continuando nos meus braços. Por cima do ombro dela, vi que Jerónimo me olhava com inveja. Olhei Cassandra nos olhos e verifiquei que eram de facto azuis, mas não do tom que eu tinha pensado. Havia neles uma ponta de verde, ou teria sido apenas um reflexo momentâneo de luz? Os seus olhos fascinaram-me

 

Eu estava... eu... caí? perguntou ela. Pareceu-me que falava um Latim com uma ligeira pronúncia, mas não consegui localizá-la.

 

Caíste. Dali de cima. Acenei com a cabeça na direcção da plataforma.

 

E... tu apanhaste-me?

 

Nós apanhámos-te interveio Jerónimo, cruzando os braços com petulância. Cassandra olhou-o por cima do ombro. Suavemente, libertou-se do meu abraço.

 

Estás bem? perguntei eu. Consegues andar?

 

Claro que sim.

 

O que aconteceu? Desmaiaste?

 

Estou perfeitamente bem. É melhor ir andando. Voltou-se.

 

Ir andando para onde? Estendi a mão para lhe agarrar o braço, mas depois detive-me. Não tinha nada a ver com o sítio para onde ela ia. Talvez ela achasse o mesmo, porque não respondeu. Mas pareceu-me que tinha de dizer mais qualquer coisa. Como te chamas?

 

Chamam-me Cassandra. Voltou a olhar para mim. O seu rosto, brevemente animado quando recuperara da confusão, tinha-se tornado novamente distante como o de uma deusa, ou de uma ave, ou seria simplesmente o rosto sem expressão de uma louca?

 

Mas isso não pode ser o teu nome verdadeiro disse eu. Tens de ter outro nome.

 

Tenho? .Por momentos, mostrou-se confusa, depois voltou-se e afastou-se com passo lento e imperturbável, de cabeça e ombros erectos, sem prestar atenção aos homens que, de vez em quando, se atravessavam na sua frente, fugindo da agitação que continuava a viver-se diante dos tribunais dos magistrados rivais.

 

Que mulher extraordinária! comentou Jerónimo. Eu limitei-me a acenar com a cabeça.

 

A minha entrevista com Terência e a Vestal Fábia tinha-me fornecido algumas, embora não muitas, informações novas sobre Cassandra. Decidi ir em seguida consultar Fúlvia, a duplamente viúva; já tinha trabalhado para ela, investigando o assassínio do marido, Clódio como pagamento parcial do qual ela me dera Mopso e Androcles e podia esperar, pelo menos, ser cordialmente recebido. E assim, depois de abandonar a casa de Cícero e passar pela minha, para ingerir uma frugal refeição do meio-dia e fazer uma curta sesta durante o período mais quente do dia, parti para casa da viúva mais famosa de Roma, já o Sol baixava no horizonte.

 

Tal como anteriormente, levei Davo comigo, para me proteger. Enquanto percorríamos as familiares ruas do Palatino, recordei-me dos tempos em que Davo entrara em minha casa como escravo, pouco depois de eu ter conhecido Fúlvia, que era então uma belíssima e sofredora viúva. Parecia-me que se tratava de uma memória de outra era. Teria realmente sido apenas há quatro anos que Clódio fora assassinado na Via Ápia? Roma fora devastada por tumultos. Os apoiantes radicais de Clódio tinham incendiado o Senado. Pompeu fora chamado para restabelecer a ordem, para o que lhe haviam sido concedidos poderes quase ditatoriais; ele explorara a situação organizando uma série de julgamentos que lhe permitiram banir de Roma muitos dos seus inimigos, perturbando definitivamente o já precário equilíbrio constitucional entre os seus interesses e os interesses de César. Em retrospectiva, o assassínio de Clódio tinha sido o momento fulcral de passagem do período em que a guerra civil parecia impensável para o período em que ela se tornara inevitável. O assassínio do primeiro marido de Fúlvia fora o começo do fim da nossa destroçada República.

 

A sua dor pela morte de Clódio fora profunda e genuína. Os dois tinham sido amantes verdadeiros, julgo eu, para além de companheiros no sentido amplo; de facto, enquanto mulher de um político, Fúlvia fora sempre o oposto da Terência de Cícero. Era uma mulher que tinha opiniões, planos, projectos, aliados e inimigos. Conspirava e intrigava ao lado do marido, e era a sua mais fiel conselheira. A morte de Clódio não a privara apenas do marido e do pai dos dois filhos de ambos; tinha-lhe roubado igualmente o papel que ela desempenhava na esfera política. As mulheres não podem participar no Senado, nem nas magistraturas. As mulheres não podem votar. Por lei, nem sequer podem ter propriedades em seu nome, embora as mais inteligentes encontrem formas de contornar esses pormenores, da mesma maneira que as mulheres que se preocupam com o curso dos acontecimentos deste mundo encontram formas de os influenciar, em geral através dos maridos. Enquanto Clódio foi vivo, Fúlvia foi uma das pessoas mais poderosas de Roma. Quando ele morreu, ela passou a ser como um homem forte subitamente paralisado e emudecido.

 

Mas uma mulher inteligente, rica e ambiciosa como Fúlvia que era uma mulher notável, ainda que não fosse propriamente bela não teve de suportar a impotência da viuvez durante muito tempo. Para um certo tipo de homem, a combinação das suas qualidades devia ser quase exasperantemente atraente. Quando ela consentiu em se casar com Gaio Curió, muitas pessoas acharam que tinha encontrado um par à sua altura. Ele fizera parte do seu círculo durante muitos anos, era um dos elementos da roda de jovens brilhantes e ambiciosos, com apetites vorazes e permanentes conspirações destinadas a refazer o mundo à sua imagem, homens como Dolabela, Clódio, Célio e Marco António. Havia quem dissesse que Fúlvia teria preferido António, se ele estivesse disponível e não se tivesse já casado com sua prima Antónia, e que se tinha decidido por Curió, o amigo (ou amante, no dizer de alguns) de infância de António, como segunda melhor opção; mas muitos afirmavam que Curió era, na realidade, uma opção melhor, porque era mais maleável que António e menos dado ao deboche que ele.

 

Tal como António, Curió aliara-se a César desde muito cedo, e nunca vacilara na sua devoção nem abrandara no proselitismo a favor de César. Na verdade, fora em grande medida a influência de Curió que atraíra Marco Célio a este redil. Nas vésperas da guerra, Célio e Curió haviam partido juntos, para estarem ao lado de César quando ele atravessasse o Rubicão. Mas, enquanto Célio acabara por ser relegado para uma pretura menor em Roma, Curió recebera o comando de quatro legiões. Ao partir para Espanha, César encarregara Curió de tomar as forças de Pompeu na Sicília, chefiadas por Catão. Este, desorganizado e desprevenido como todos os outros apoiantes de Pompeu, abandonara a ilha sem luta. Curió, entusiasmado com a facilidade da conquista, deixara duas legiões na Sicília e partira para África com as outras duas foi então que os seus problemas começaram.

 

Há quem diga que a conquista da Sicília tinha sido fácil demais, que tinha gerado nele um excesso de confiança, que o levou a fazer juízos apressados. Há quem diga que foi a juventude e falta de experiência militar de Curió que o levaram a cair na armadilha do Rei Juba. Por fim, há quem diga que foi apenas azar.

 

A campanha africana de Cúno começou muito bem. Primeiro, decidiu conquistar o porto de mar de Útica, que estava nas mãos de Varo, um comandante de Pompeu. Um pequeno grupo de soldados númidas, enviados pelo Rei Juba, tentou acorrer em auxílio da cidade, mas Curió correu com eles. Atraiu Varo para fora da cidade, decidido a enfrentar-se com ele no campo de batalha. Nessa altura, Curió cometeu o seu primeiro erro, que só um golpe de sorte impediu que fosse fatal. Enviou a sua infantaria para uma ravina íngreme, onde podiam ter sido facilmente emboscados; entretanto, porém, a cavalaria conseguia devastar a ala esquerda do inimigo, e os homens de Varo que fugiram para o interior da cidade perderam uma oportunidade para destruir o inimigo sem grande esforço. A circunstância de ter escapado por tão pouco devia ter levado Curió a acalmar-se mas, pelo contrário, fez com que se tornasse ainda mais audacioso. Preparou-se para montar um cerco a Útica.

 

Entretanto, o Rei Juba tinha reunido o seu exército e marchava já em auxílio de Útica. Juba, que tinha sido patrono do pai de Pompeu, estava muito ligado ao filho. E tinha motivos para odiar Curió, que em anos recentes propusera que Roma anexasse a Numídia pela força.

 

Curió foi informado da chegada de Juba. Alarmado, mandou chamar as duas legiões que se encontravam na Sicília. Mas alguns desertores do exército de Juba disseram-lhe que se tratava apenas de um pequeno corpo de Númidas. Curió mandou a cavalaria ao seu encontro, e esta travou umas escaramuças com a vanguarda de Juba. As informações recebidas levaram Curió a pensar que esta vanguarda era toda a força númida. Com o objectivo de a destruir, a fim de poder prosseguir o cerco, partiu ao seu encontro com as suas legiões. O tempo estava insuportavelmente quente; a marcha fez-se sobre as areias escaldantes. Os romanos confrontaram-se com toda a força do exército númida. Foram cercados e chacinados.

 

Alguns dos homens de Curió conseguiram escapar. Curió também podia ter fugido e ter-se salvo, mas recusou-se a abandonar os seus homens. Um sobrevivente, que trouxe a César a notícia do desastre pouco depois do regresso de César de Espanha, relatou as últimas palavras de Curió:

 

Perdi o exército que César me confiou. Como poderia voltar a encará-lo?

 

Curió lutou até ser morto pelos Númidas. Eles cortaram-lhe a cabeça e enviaram-na, como troféu, ao Rei Juba. Fúlvia estava novamente viúva.

 

Ponderando na sua situação, imaginando o seu estado de espírito, senti alguma hesitação ao aproximar-me de sua casa. A própria estrutura tinha um aspecto assustador tratava-se da gigantesca monstruosidade, que mais parecia uma fortaleza, que Clódio havia erigido no Palatino, do opulento quartel-general a partir do qual ele dirigira os bandos de rua que tinha sob o seu comando. Duas colunas abruptas cobertas de rosas e formadas por brilhantes placas de mármore de várias cores flanqueavam o gigantesco pátio que tinha servido de local de reunião de multidões, e onde Clódio falava aos seus apoiantes. O portão de ferro estava aberto e, quando atravessei o pátio na companhia de Davo, com o cascalho a estalar-nos debaixo dos pés, ergui os olhos para a escadaria que ia dar ao largo alpendre, e vi uma grinalda preta sobre a maciça porta de bronze. Nove meses depois de se ter tornado viúva, Fúlvia continuava de luto por Curió.

 

Subimos as escadas. Um gigantesco anel de bronze, preso à porta, servia de batente. Davo ergueu-o e deixou-o cair, provocando um ruído metálico, grave e sonoro. Esperámos. Tanto quanto pude perceber, não se abriu na porta qualquer orifício de segurança, mas tive a desconfortável sensação de estar a ser observado. A paixão de Clódio por passagens secretas, portas ocultas e orifícios escondidos fora conhecida.

 

Por fim, ouvi o som de uma barra a ser puxada para trás do outro lado da porta, e ela abriu-se lentamente, rangendo um pouco junto às dobradiças. Um escravo de aparência atlética mandou-nos entrar, após o que fechou rapidamente a porta, voltando a pôr no lugar a pesada viga de madeira.

 

Eu já tinha estado neste vestíbulo, nas horas e nos dias que se haviam seguido à morte de Clódio. Aparentemente, ao tornar-se o novo senhor desta casa, Curió não fizera quaisquer alterações. O chão e as paredes eram de mármore muito polido. Tapeçarias vermelhas entrelaçadas com fios de ouro decoravam o corredor que ia dar ao átrio, cujo tecto, suportado por colunas de mármore preto, se elevava a uma altura de três andares. No centro do átrio, havia um tanque pouco profundo, decorado com mosaicos brilhantes azul-preto e cor de prata, onde estavam representados o céu nocturno e as constelações. O verdadeiro céu, visível através da abertura do alto, começava agora a adquirir o azul-forte do crepúsculo.

 

Voltei-me para o escravo que nos tinha aberto a porta:

 

Diz à tua senhora que Gordiano...

 

A senhora sabe quem tu és e o que vieste fazer respondeu ele, com um sorriso sardónico. Vem comigo.

 

Conduziu-nos por corredores e galerias decorados com murais e estátuas. Os escravos moviam-se silenciosamente, acendendo braseiras e lamparinas instaladas em esconsos nas paredes. Eu estava convencido de que já tinha percorrido estes corredores, mas a casa era tão grande, que não podia ter a certeza. Por fim, subimos um lanço de escadas e fomos conduzidos a uma sala com grandes janelas, cujas portadas estavam abertas, deixando entrar a luz do fim do dia. As paredes estavam tingidas de verde, decoradas com remates em azul e branco, num desenho geométrico grego. Olhando pela janela, vi a luz dourada do Sol que descia no horizonte reluzir sobre os telhados do Palatino, emprestando um brilho quente aos templos voltados a leste do alto do longínquo Monte Capitolino. O brilho reflectido inundou a sala, conferindo-lhe um ambiente acolhedor, apesar do tecto majestoso e da vista espectacular.

 

Fúlvia e a mãe, Semprónia, estavam sentadas diante de uma das compridas janelas, vestindo estolas azuis-escuras. Uma criança minúscula o filho de Curió tentava andar em cima de um cobertor, aos pés das duas mulheres. Os outros filhos de Fúlvia, um rapaz e uma rapariga que eram filhos de Clódio, não estavam presentes.

 

As tuas visitas, senhora disse o escravo.

 

Obrigada, Traso. Podes ir-te embora. Quando voltou o olhar para mim, Fúlvia ergueu o estilete da tabuinha de cera onde tinha estado a escrever e poisou o estilete e a tabuinha. Havia um dito popular a respeito de Fúlvia e da sua ambição: "Não nasceu para fiar." Na realidade, era difícil imaginá-la dedicada a qualquer ocupação feminina comum. Pelo contrário, qual homem de negócios que tivesse necessidade de não se esquecer de numerosas ideias e vários projectos, o que ela tinha sempre perto de si era um estilete e uma tabuinha de cera.

 

Apesar da dureza das suas feições, sua mãe, Semprónia, parecia a mais maternal das duas. Ignorou-me, e a Davo, enquanto arrulhava e estendia os braços para o rapazinho do cobertor, encorajando-o a pôr-se de pé e tentar dar mais um passo.

 

Obrigado por me teres recebido, Fúlvia. Mas sinto-me curioso como sabias que era eu, se não cheguei a anunciar-me?

 

Ela olhou rapidamente para o filho, que conseguira pôr-se em pé por momentos, antes de voltar a cair de joelhos, e depois voltou a mirar-me.

 

Há um orifício de segurança oculto numa das extremidades do alpendre, Traso observou-te com atenção, e veio a correr fazer-me uma descrição da tua pessoa. Só podias ser tu, Gordiano. "Nariz como o de um lutador; cabelo abundante, cor de ferro, com fios de prata, mas olhos que brilham como os de um homem com metade da sua idade; barba aparada pela mulher, como lhe agrada a ela."

 

Na realidade, ultimamente é a minha filha Diana quem me apara a barba. Mas receei que te tivesses esquecido de mim, Fúlvia.

 

Nunca me esqueço de um homem que possa vir a ser-me útil. Voltou o seu olhar para Davo. Mas não me parece que conheça o teu companheiro. "Ombros como os de um Titã", disse Traso, "mas uma cara de Narciso."

 

Este é Davo, o meu genro. Traso também me disse que tu sabias ao que vimos. O que me surpreende, visto que nem eu próprio tenho a certeza.

 

Ela sorriu.

 

Não tens? Vi-te no funeral; tu também deves ter-me visto. Tenho estado, de certa maneira, à espera de que viesses visitar-me. Presumo que venhas por causa de Cassandra?

 

De repente, Semprónia bateu as palmas. Uma escrava entrou a correr. Semprónia depositou um beijo na testa do neto, e depois disse à rapariga que o levasse consigo. Pelo caminho, o rapaz começou a chorar. Os seus gritos ecoaram pelo corredor, mas foram-se desvanecendo gradualmente. Semprónia mordeu a unha do indicador, agitada, mas Fúlvia não exibiu qualquer reacção.

 

Espero que não tenhas mandado embora o miúdo por minha causa disse eu.

 

Claro que não replicou Semprónia, olhando finalmente para mim e erguendo uma sobrancelha perante a ideia de que eu pudesse considerar-me suficientemente importante para merecer qualquer acção relacionada com o neto dela. Desde a última vez que eu a vira, um dos seus olhos tinha adquirido um branco leitoso; mas, se havia nele alguma alteração, era por parecer fixar-me de forma mais penetrante que o outro. Sob a rigidez do seu olhar, encolhi-me um pouco. Era estranho que uma mulher que sabia ser tão terna com uma criança pudesse intimidar desta maneira um homem adulto. Se vamos falar acerca da bruxa, não convém que o rapaz esteja presente.

 

Era isso que Cassandra era? Uma bruxa?

 

Claro replicou Semprónia. Achavas que se tratava de uma simples mortal?

 

Mortal era, sem qualquer dúvida respondi eu, baixinho.

 

Ela foi assassinada, não foi? perguntou Fúlvia. Estando ambas a olhar para mim, apercebi-me de que o olhar da filha não era menos penetrante que o da mãe, mas por qualquer razão não me desagradava ser olhado de forma tão directa por Fúlvia. O olhar de Semprónia era cáustico; despia um homem. O olhar de Fúlvia parecia ser purificador, como se o seu objectivo fosse afastar quaisquer véus de confusão ou incompreensão que pudessem colocar-se entre nós. Os seus olhos eram inteligentes, vivos, convidativos. Não era de espantar que tivesse prendido dois dos melhores e mais brilhantes, ainda que mais infelizes, filhos de Roma.

 

Por que pensas que Cassandra foi assassinada? perguntei eu.

 

Porque conheço as curiosas circunstâncias da sua morte. Que ela morreu de repente... no mercado... nos teus braços. Foi veneno, Gordiano? Dizem que foi sacudida por convulsões.

 

Dizem?

 

Os meus olhos e os meus ouvidos.

 

Os teus espiões? Fúlvia encolheu os ombros.

 

São muito poucas as coisas que se passam em Roma e que não chegam ao meu conhecimento.

 

E que mais sabes acerca do assassínio?

 

Se estás a perguntar-me quem terá feito semelhante coisa, ou como, ou por quê, não posso dizer-te. Não sei. Mas uma mulher como Cassandra podia ser perigosa para muitas pessoas. Ela não se limitava a prever o futuro; tinha visões de acontecimentos distantes.

 

Mas ela previa mesmo o futuro?

 

Era uma bruxa replicou Semprónia, interrompendo-nos. O seu tom dava a entender que já me tinham respondido àquela pergunta, e que eu faria melhor em prestar atenção.

 

Era uma bruxa, dizes tu? Lançava conjuros, fazia maldições, curava os doentes?

 

Não fez nenhuma dessas coisas dentro desta casadisse Semprónia mas quem sabe que poderes possuía? O certo é que era capaz de ver para além do momento presente e das quatro paredes que a rodeavam.

 

Como é que sabes?

 

Semprónia abriu a boca para me responder, mas Fúlvia ergueu a mão, silenciando-a.

 

Deixa-me ser eu a contar, mãe.

 

Semprónia bufou.

 

Por que hás-de contar seja o que for a este sujeito?

 

Já te esqueceste, mãe? Quando Clódio foi assassinado, Gordiano foi um dos primeiros a vir a esta casa prestar-nos homenagem. Preocupou-se o suficiente para investigar a verdade.

 

Mas é um velho lacaio de Cícero! Semprónia cuspiu o nome. Os olhos de Fúlvia estreitaram-se. Ela e Cícero eram velhos e amargos inimigos.

 

É verdade que consolidaste a tua reputação trabalhando para Cícero, não é, Gordiano?

 

Não foi bem assim. Eu diria antes que foi Cícero quem consolidou a sua reputação enquanto eu trabalhava para ele. E nunca fui seu lacaio. Ao longo de muitos anos, tivemos os nossos altos e baixos. Ultimamente, perdi por completo o contacto com ele. Há meses que não tenho notícias suas.

 

Mas ainda hoje foste a sua casa observou Fúlvia. Eu ergui uma sobrancelha. Já te disse, Gordiano, que poucas coisas se passam em Roma de que eu não tenha conhecimento.

 

Sim, os teus olhos e os teus ouvidos. Mas não sabes quem matou Cassandra!

 

Fúlvia sorriu com ar pesaroso.

 

Não sou omnisciente. Tenho... zonas de ignorância. Eu acenei com a cabeça.

 

Sim, fui a casa de Cícero esta manhã, para falar com Terência, pela mesma razão por que vim falar contigo. Foste ao funeral de Cassandra, o que sugere que deves tê-la conhecido, e não apenas de maneira casual. Quem era ela? De onde veio?

 

Eu dirigira-me a Fúlvia, mas foi a mãe que respondeu.

 

Era uma bruxa egípcia! Parece razoável. Hoje em dia, as bruxas mais poderosas são todas egípcias. Têm sangue grego nas veias o que explica o cabelo loiro e os olhos azuis de Cassandra mas, ao contrário dos Gregos modernos, não se esqueceram da magia antiga. As tradições continuam vivas no Egipto a produção de amuletos, a memorização de maldições, as artes da previsão do futuro. Cassandra era uma bruxa egípcia.

 

Não sabemos se era, mãe objectou Fúlvia. Trata-se apenas de uma suposição.

 

Os teus olhos e os teus ouvidos nunca te disseram de onde veio Cassandra? perguntei.

 

No que lhe dizia respeito, eu era estranhamente cega e surda admitiu Fúlvia. Era como se Cassandra tivesse caído sobre a Terra num cometa e, tanto quanto sei, foi exactamente isso que aconteceu.

 

Quando a viste pela primeira vez?

 

Há muitos meses.

 

Quantos?

 

Foi em Novembro do ano passado.

 

Se assim era, Fúlvia conhecera Cassandra antes daquele dia dejanuarius em que eu vira a Vestal Fábia levá-la para dentro do templo.

 

Tens a certeza?

 

Claro que tenho! Como poderia esquecer aquele dia horrível? O seu rosto encheu-se de sombras. O que hei-de contar-te, Gordiano? Tudo? Sim, por que não? Ergueu uma mão a fim de silenciar a mãe, que parecia decidida a objectar. César ainda se encontrava aqui em Roma, entusiasmado com os êxitos que obtivera em Espanha e Massília. As notícias provenientes do Mar Adriático não eram tão boas; Dolabela mostrava-se impotente contra a frota de Pompeu. Mas da Sicília... Suspirou e fechou os olhos por momentos. Da Sicília, chegara-nos a excelente notícia de que o meu marido tinha conquistado a ilha, a que se seguiu outra notícia, ainda mais prometedora: de que Gaio seguira para... África. Baixou os olhos e pigarreou.

 

Nesta casa, todos os dias esperávamos por notícias dos seus progressos. Chegou um mensageiro com a informação de que ele tinha tomado Útica. Ficámos muito contentes. Depois, chegou um segundo relato que contradizia o primeiro, afirmando que Útica continuava cercada, mas cairia nas mãos de Gaio a qualquer momento. O estado de espírito desta casa era de alegria contida. Vivíamos na previsão de uma grande e gloriosa notícia. A minha mãe dizia, a brincar, que dentro em breve... A voz quebrou-se-lhe. Dentro em breve Gaio teria novo título honorífico a juntar ao seu nome, e que nós seríamos a família de Gaio Escribónio Curió Africanaso conquistador de África! Fúlvia abanou a cabeça. É horrível ficar em casa. As mulheres deviam ser autorizadas a ir com os maridos para o campo de batalha. Eu ergui uma sobrancelha.

 

A mulher de Pompeu acompanhou-o quando ele partiu de Roma. Tanto quanto sei, continua a seu lado.

 

Não é a isso que eu me refiro a ir com eles como se fosse bagagem! Num mundo melhor, ter-me-ia sido permitido partir com Gaio, não na simples qualidade de esposa, mas como sua co-comandante! Sim, bem sei que é uma ideia absurda; nenhum centurião receberia jamais ordens de uma mulher. Mas eu devia ter lá estado para aconselhar Gaio, para o ajudar a sopesar os conselhos dos seus subordinados, para avaliar as informações provenientes do campo, para organizar uma estratégia. Se eu lá tivesse estado...

 

Semprónia tocou-lhe no braço a fim de a reconfortar. Fúlvia apertou a mão da mãe e prosseguiu.

 

Em vez de ir com ele, fiquei à espera. Haverá tortura pior do que esperar sem saber? Havia dias em que me sentia como se estivesse ao leme de um navio assolado por uma tempestade, que ora me elevava aos cumes da esperança, ora aos do desespero, até me parecer que enlouquecia. Noutros dias, estava tudo tão calmo e silencioso, que era como estar fechada dentro de um navio em águas calmas horas seguidas sem uma palavra, sem um sinal, só a espera interminável, a vigília e a imaginação. Até que...

 

Inspirou audivelmente.

 

Como já te disse, foi num dia de Novembro passado. Eu tinha ido a casa de uns parentes de Gaio, ver se tinham recebido notícias, mas eles não sabiam mais do que eu. De regresso a casa, atravessava o Fórum dentro da liteira. Trazia as cortinas corridas. Não se via de fora para dentro mas, dado que o dia estava muito luminoso, e que as cortinas não são completamente opacas, eu conseguia ver para o exterior, pelo menos o suficiente para perceber que íamos a passar pelo Templo de Castor e Pólux. Ia a pensar em Gaio, evidentemente. Depois, ouvi uma voz.

 

"Era uma voz de mulher. Provinha da rua. Mas era uma voz tão estranha... e por causa das palavras que dizia... quase parecia que vinha de dentro da minha cabeça. A voz dizia: Ele morreu. Morreu em combate. Foi uma morte corajosa.

 

"Aquelas palavras fizeram-me arrepiar de tal maneira, que eu pensei que desmaiava. De repente, pareceu-me que o interior da liteira tinha escurecido, como se uma nuvem tivesse engolido o Sol. Mandei parar os carregadores. A minha voz deve ter sido quase um grito. A liteira parou tão abruptamente, que eu fui cuspida para diante. Traso meteu a cabeça por entre as cortinas, com ar alarmado, e perguntou-me o que se passava.

 

Não ouviste?", perguntei eu. Ele olhou para mim com um rosto desprovido de expressão. "Uma voz de mulher", disse eu. "Falou comigo quando passámos pelo templo."

 

"Traso olhou para trás, na direcção de onde tínhamos vindo. "Não está ali ninguém", disse ele, "à excepção de uma louca que murmura sozinha, percorrendo os degraus do templo de um lado para o outro."

 

Vai buscá-la!" disse-lhe eu. Ele foi. Momentos depois, voltou a afastar as cortinas da liteira, e foi então que eu vi Cassandra pela primeira vez.

 

"Trazia uma túnica nojenta. Parecia assustada e confusa. Traso tinha de a segurar com firmeza, porque de outra maneira ela teria fugido. "Falaste comigo agora mesmo", disse eu, "quando a minha liteira passou diante das escadas." Ela abanou a cabeça e olhou para mim como se a louca fosse eu. "Falaste sim!" insisti eu. "Diz outra vez o que disseste. Diz o que disseste agora mesmo!"

 

"A voz que emergiu de dentro dela era tão estranha, que até Traso vacilou ligeiramente. Não combinava com o corpo dela, compreendes? Era uma voz velha demais para uma mulher tão nova. Não parecia provir propriamente dos lábios abertos dela, mas também não podia provir de mais sítio nenhum. Era inquietante, enervante. "Ele morreu", disse ela. "Morreu em combate. Foi uma morte corajosa."

 

"As palavras foram ainda mais perturbadoras da segunda vez que as ouvi. Abalaram-me profundamente. Comecei a tremer e a chorar. Ordenei a Traso que me levasse a casa o mais depressa possível. "E esta?" perguntou ele. Percebi claramente que não queria ter nada a ver com a mulher, mas disse-lhe que a trouxesse. Ele fez uma careta, mas apertou-lhe o braço com mais força. Deixou cair as cortinas e ordenou aos carregadores que se despachassem a regressar a casa.

 

"Quando chegámos, eu disse a Traso que trouxesse a mulher a esta sala. Ela ainda estava mais suja do que me tinha parecido. Tinha a roupa rasgada e gasta. Cheirava mal, como se não passasse pelos banhos públicos há vários dias. Numa voz igual à de qualquer pessoa, disse-me que tinha fome. Não tinha nada de ameaçador, ou de sinistro, ou sequer de estranho. Parecia intimidada por se encontrar numa casa tão imponente, c um tanto patética. Eu disse a Traso que lhe fosse buscar de comer e de beber. Depois perguntei-lhe o que tinha querido dizer com aquelas palavras.

 

E o que foi que ela te respondeu?

 

Disse-me que não se recordava de ter dito fosse o que fosse. Eu já me sentia abalada. Comecei a ficar irritada... confusa... Insisti com ela. Ela encolheu-se e começou a chorar. De repente, começou a tremer e a ter convulsões. Os olhos reviraram-se-lhe. Voltou a falar naquele tom de voz estranho e profundo, que parecia provir do éter. Descreveu-me uma planície no deserto, o Sol que cegava, um vento quente. Ouvia os gritos dos homens, via o brilho das espadas, ouvia o crepitar do sangue derramado na areia quente. Viu Gaio só podia ser Gaio, porque ela descreveu-mo perfeitamente: o cabelo preto encaracolado, os brilhantes olhos azuis, o maxilar desafiador, o meio sorriso que lhe iluminava a cara quando as perspectivas se tornavam negras para ele. Viu-o vestido com a armadura refulgente, embora tivesse a cabeça descoberta, porque tinha perdido o elmo. Estava sozinho, separado dos seus homens, rodeado de inimigos, e brandia a espada no ar, até que finalmente... caiu. Todos correram para ele. E então...

 

Fúlvia, não! A mãe apertou-lhe o braço até ficar com os nós dos dedos brancos, mas Fúlvia insistiu.

 

E então... viu a cara de Gaio voltar a erguer-se, como se, pela força de um qualquer milagre, ele se tivesse posto novamente em pé, apesar de se encontrar no meio daquele enxame de assassinos. E não era apenas isso... ele estava a sorrir. Sorria como um miúdo, disse ela. Mas depois... depois percebeu melhor a visão, e compreendeu... que ele não tinha corpo abaixo do pescoço, que estava cortado e pingava sangue. A sua cabeça tinha sido erguida pelo númida que o tinha decapitado. Se parecia sorrir era porque... era porque o punho que lhe segurava os caracóis pretos lhe repuxava os músculos da cara, abrindo-lhe a boca, desnudando-lhe os dentes...

 

Durante esta longa recitação, Fúlvia manteve os olhos fixos nos meus, como se estivesse a desafiar-me a ceder. Por fim, cedi mesmo, incapaz de suportar o sofrimento que neles via. Não era o brilho de uns olhos cheios de lágrimas quentes, era uma dor seca e dura, fria e desprovida de lágrimas.

 

Fúlvia respirou fundo.

 

Tão abruptamente como tinha começado, o encantamento terminou. Ela voltou a ser uma pedinte humilde, estonteada, faminta, que não se lembrava do que acabara de dizer. Eu estava espantada, chocada, sem fala. Trouxeram-lhe de comer. Eu fiquei a observá-la. Parecia um animal, não tinha maneiras nenhumas. O cheiro dela incomodava-me, por isso ordenei que lhe preparassem um banho, que lhe queimassem os velhos andrajos, e disse a um dos meus escravos que fosse à procura de uma túnica que lhe servisse. O escravo descobriu uma velha túnica azul que lhe ficava bem ao tamanho. Quando voltei a vê-la, limpa e bem-vestida, percebi como era bonita. Disse a Traso que lhe arranjasse um sítio onde dormir e a vigiasse.

 

"De madrugada, Traso veio ter comigo e disse-me que a mulher tinha dormido profundamente a noite toda. Eu não tinha dormido nada. Disse a Traso que não deixasse a mulher sair, que lhe oferecesse de comer e de beber, e que, se fosse preciso, a trancasse num quarto. Mas fui eu que comecei a comportar-me como uma prisioneira. Fechei-me nesta sala. Não recebia ninguém, não falava com ninguém, nem sequer com a minha mãe. Estava simplesmente à espera, doente de pavor. Destas janelas, vi o Sol nascer e subir nos céus, e cair sobre a cidade. Passei outra noite sem dormir.

 

"No dia seguinte dois dias depois de a mulher me ter relatado a sua visão, César reuniu o seu círculo íntimo, e disse-lhes que tinha acabado de receber informações de África. Marco António veio imediatamente comunicar-me a má notícia. Recebi-o nesta sala, com o coração a bater de tal maneira, que quase não conseguia ouvi-lo. Ele sabia que eu havia de querer conhecer todos os pormenores. Recitou-me cuidadosamente tudo aquilo que o mensageiro tinha contado a César. A batalha no deserto, o calor sufocante, a derradeira posição de Gaio, e até o facto de ter perdido o elmo antes de o inimigo o ter cercado todos os pormenores coincidiam com aquilo que a mulher me tinha dito. O mais estranho de tudo era o facto de o mensageiro ter comunicado igualmente o boato de que o Rei Juba tinha dado uma gargalhada ao receber a cabeça de Gaio, não por despeito, mas porque Gaio parecia estar a rir-se para ele. Compreendes, Gordiano? A mulher tinha visto tudo tudo, com tanta clareza como se lá tivesse estado.

 

"Contive as emoções o melhor que pude afinal, estava preparada para o pior, mesmo antes de ele ter chegado, mas não consegui deixar de chorar. António fez o possível para me reconfortar. No final, acho que fui eu que o reconfortei; ele e Gaio eram amigos desde crianças, tão íntimos como dois homens podem ser, talvez ainda mais íntimos, em certos aspectos, do que Gaio e eu própria.

 

"Acabei por falar a António da mulher que estava em minha casa, e do facto de ela já me ter dado a notícia, dois dias antes. António disse que era impossível que a notícia acabava de ser comunicada a César, e que ele próprio fora o primeiro a quem César a transmitira. Eu tentei dizer-lhe com que precisão a mulher vira os pormenores da morte de Gaio, mas António recusou-se a ouvir-me. Por essa altura, já tínhamos bebido algum vinho, e tínhamos os sentidos um pouco toldados. Ele não estava com disposição para me atender. Deitei-o nos aposentos dos hóspedes, e fui à procura da mulher.

 

"Mas ela tinha desaparecido. Tinha-se ido embora, não sei como, apesar de Traso estar a vigiá-la. Percebi que nada sabia acerca dela, nem sequer o seu nome ou onde vivia, se é que tinha residência fixa. Pensei em mandar Traso à procura dela, mas naquele momento não me pareceu que valesse a pena. Ela tinha-me dito o que eu queria saber, e essa informação só me tinha servido para me tornar infeliz durante duas noites de vigília, antes de a notícia chegar, proveniente de fonte mais fiável. Além disso... além disso, ela assustava-me um bocadinho. Era uma espécie de bruxa. Se era capaz de ver acontecimentos ocorridos em África, quem sabe que outros poderes possuiria? Ela própria parecia não compreender os seus dons nem a forma de os usar. Podia ser perigosa. Eu não a queria em minha casa.

 

Acenei com a cabeça, interiorizando tudo aquilo que Fúlvia me tinha contado.

 

Quer dizer que foi essa a última vez que a viste?

 

Qualquer coisa tinha mudado nos seus olhos, como se uma porta que estivera aberta se tivesse fechado abruptamente. Ela pareceu-me evasiva.

 

Mais tarde, Traso contou-me que ela se tinha tornado uma espécie de atracção no Fórum e nos mercados, e que as pessoas lhe tinham dado o nome de Cassandra. Pedi-lhe que tentasse investigar mais alguma coisa sobre ela, mas não havia grande coisa a saber, excepto o facto de haver outras, para além de mim, que estavam a aproveitar-se dos dons de Cassandra.

 

Outras?

 

Tu viste-as as mulheres que apareceram no funeral. Se estás interessado no que elas sabiam acerca de Cassandra, pergunta-lho. Se descobrires alguma coisa interessante sobre ela, se descobrires quem a matou, vem contar-me, Gordiano. Estou disposta a pagar-te bem por essa informação. Gostaria de saber, por simples curiosidade. Afinal, fui totalmente sincera contigo. Como que para contradizer as suas palavras, o débil sorriso que estivera ausente do seu rosto desde que ela iniciara a história do seu encontro com Cassandra regressara agora, e eu tive a sensação de que ela estava a esconder-me qualquer coisa.

 

Nunca mais voltaste a vê-la, cara-a-cara? Ela encolheu os ombros.

 

Talvez, de forma breve. Mas esse encontro não teve especiais consequências. Nada mais posso contar-te que valha a pena saberes. Suspirou. Estou cansada. Acho que vou descansar um pouco antes do jantar. Receio ter de me despedir, Gordiano, de ti e do teu taciturno, mas quão decorativo, jovem genro. Traso leva-vos à porta. Desviou o olhar de mim para a janela. Momentos depois, a mãe fez o mesmo. Ficaram a olhar para a imagem emoldurada de uma nuvem distante iluminada pelo último rubor cor-de-rosa lúrido do entardecer, contra um pano de fundo lápis-lazúli. As primeiras estrelas luziam já, com brilho incerto, no firmamento que escurecia.

 

O escravo desceu connosco os lanços de escadas e acompanhou-nos ao longo dos compridos corredores. Tínhamos chegado ao altaneiro átrio, quando outro escravo, que se aproximara em trote rápido, nos disse que esperássemos. Traso ergueu uma sobrancelha, e depois percebeu a razão por que fôramos retidos. Na extremidade do corredor que acabávamos de percorrer, dirigindo-se a nós com passo surpreendentemente veloz, para uma mulher da sua idade, estava Semprónia. Enquanto se aproximava, o seu olhar fixou-se em mim, como se eu fosse um coelho, e ela um falcão em ataque vertical.

 

Despediu os escravos com um seco gesto de mão. Estávamos junto à base de uma das imensas colunas de mármore preto que sustentavam a clarabóia, muito acima das nossas cabeças. Semprónia aproximou-se de mim, falando num murmúrio rouco. O vasto espaço engolia a sua voz, sem devolver nenhum eco.

 

A minha filha não foi totalmente sincera contigo, Gordiano.

 

Eu ergui uma sobrancelha, receoso de que um comentário meu pudesse afastá-la. Por qualquer razão, e apesar das suspeitas iniciais, ela tinha decidido confiar em mim. O que quereria dizer-me?

 

Semprónia franziu o sobrolho.

 

A minha filha suportou muitos sofrimentos ao longo da sua vida. É por ser tão ambiciosa, evidentemente; ainda mais ambiciosa do que eu era, com a idade dela. Lançou-me um sorriso fino, sem qualquer vestígio de calor. Penso muitas vezes: Se ao menos tivesse nascido rapaz. Mas claro que, nesse caso, o mais provável é que, por esta altura, já estivesse morta como Clódio e Curió, ou talvez não. Fúlvia é mais inteligente do que qualquer deles. Para uma mulher, é uma maldição ser mais inteligente do que o marido. Fúlvia suportou essa maldição duas vezes seguidas. Clódio e Curió pelo menos as ambições e os sonhos deles harmonizavam-se com os dela, ainda que a esperteza ficasse aquém. Abanou a cabeça. Agora, está outra vez viúva, com filhos dos dois casamentos, crianças essas a quem terão de ser dadas as melhores oportunidades num mundo que está a ser gerado num campo de batalha longe de Roma.

 

E se Pompeu vencer a batalha? perguntei eu. Ela inspirou audivelmente pelo nariz.

 

Nem vale a pena considerar semelhante desastre. Não, César vencerá. Tenho a certeza disso.

 

Foi Cassandra quem to disse? Semprónia lançou-me outro sorriso gelado.

 

Talvez.

 

E se César triunfar?

 

A minha filha vai precisar de outro marido, evidentemente. E, desta vez, tem de escolher o mais adequado, um homem tão astuto e impiedoso como ela, um homem que saiba aproveitar as oportunidades, um sobrevivente! Um homem que possa dar aos meus netos o lugar que lhes pertence no novo mundo que está prestes a nascer.

 

Eu acenei com a cabeça.

 

Fúlvia esteve com Cassandra uma segunda vez, não esteve?

 

Esteve.

 

Porque Cassandra podia dar-lhe um vislumbre do futuro?

 

Exactamente! A bruxa via para além do tempo, como via para além do espaço. Mas não foi Fúlvia que foi buscar Cassandra pela segunda vez. Fui eu que fui procurá-la. Fúlvia não a queria cá em casa. Tinha medo de conhecer o seu futuro, medo de que fosse semelhante ao seu miserável passado. Mas eu disse-lhe que uma mulher tem de usar todos os instrumentos que tem ao seu alcance para obter o que quer neste mundo. Se a bruxa pudesse dar-nos, nem que fosse um vislumbre impreciso, daquilo que nos esperava, devíamos apoderar-nos dessa informação, e usá-la!

 

Quando foi que a trouxeste cá a casa?

 

Há pouco menos de um mês.

 

E o que foi que Cassandra previu para Fúlvia?

 

Glória! Poder! Riquezas! A minha filha ascenderá ao primeiro lugar entre todas as mulheres de Roma!

 

Vai passar adiante de Calpúrnia?

 

César triunfará, mas não pode viver para sempre. Terá de ter um sucessor.

 

Eu franzi o sobrolho.

 

Queres dizer que César será Rei e legará a sua coroa a outro? Foi isso que Cassandra previu?

 

Não foi assim tão específica. Quando ela tinha visões, nem sempre as via claramente, nem compreendia aquilo que via. Nem sequer se lembrava delas, depois de terminarem; limitava-se a descrever aquilo que lhe acontecia.

 

E, quando a trouxeste cá a casa pela segunda vez, o que foi que ela viu?

 

O rosto de Semprónia foi possuído por uma expressão de arrebatamento que, mais do que suavizar-lhe as feições, as tornou ainda mais severas e assustadoras.

 

Viu Fúlvia vestindo uma estola da mais pura púrpura, com tiras de ouro, e um diadema de ouro na cabeça. Ao lado de Fúlvia, mas à sua sombra, estava um homem um homem gigantesco e musculoso, que vestia uma armadura de batalha pingada de sangue e empunhava uma espada ensanguentada. Também ele tinha um diadema na cabeça. A bruxa não conseguiu ver-lhe claramente o rosto, mas viu a imagem que tinha na couraça e no escudo a cabeça de um leão.

 

Marco António sussurrei eu.

 

Quem mais poderia ser? É destino de ambos que se casem. Eu podia ter dito o mesmo a Fúlvia, não precisava da bruxa para nada. O facto de António já ser casado não parecia ter grande importância para ela.

 

E que mais viu Cassandra?

 

A expressão do olhar de Semprónia gelou-me o sangue nas veias.

 

Tal como António, também Fúlvia tinha uma espada ensanguentada numa mão.

 

E na outra? Semprónia cerrou os dentes.

 

Uma cabeça, cortada pelo pescoço!

 

Como a cabeça de Curió foi cortada? perguntei eu.

 

Sim, mas esta cabeça era de outro homem, era a cabeça do homem que a minha filha mais odeia neste mundo.

 

Estaria a falar de Milo, que fora exilado pelo assassínio de Clódio, e que, segundo se dizia, andava a suscitar uma revolta no Sul, com o apoio de Marco Célio? Ou seria o Rei Juba, que tinha dado uma gargalhada ao receber a cabeça de Curió? Murmurei os nomes de ambos, mas Semprónia abanou a cabeça, olhando-me com desprezo.

 

A bruxa descreveu-o com grande clareza. Não o fez como o fana um pintor ou um escultor, mas com símbolos. Os lábios a pingar mel, disse; a língua como a de uma víbora, os olhos como os de um furão, o nariz com uma fenda como um grão-de-bico...

 

Cícero sussurrei eu. O seu nome derivava da palavra que significa grão-de-bico.

 

Sim! Era a cabeça de Cícero que Fúlvia erguia no ar!

 

César triunfante, mas morto, Marco António Rei, com Fúlvia como rainha, e Cícero decapitado seria esse o futuro de Roma? Senti o coração afundar-se-me no peito. De repente, percebi por que motivo Semprónia viera fazer-me esta confidência. Não era que eu tivesse conquistado a sua confiança. Ela continuava a suspeitar de que eu era um lacaio de Cícero, talvez seu espião. Logo a seguir, tornou explícito o seu desejo.

 

Vai, pois, Gordiano! Vai a casa dessa cadela da Terência, e conta-lhe o que eu acabei de te contar. Não tarda muito que a minha filha arrume o fato de luto, para vestir uma estola matrimonial. Nessa altura, será Terência a vestir-se de luto! Há muito tempo, Cícero tornou-se inimigo desta família. Não perdeu uma única oportunidade de caluniar Clódio enquanto era vivo, e ainda o caluniou mais quando ele morreu. Também difamou Curió, embora fingisse ser seu amigo lançando sombras sobre o amor que ele tinha por Marco António, dizendo a Pompeu que Curió tinha tomado o partido de César porque era um cobarde e um oportunista quando a verdade é que Curió morreu como um herói, leal à sua causa até ao fim. Mas Cícero em breve lamentará o sofrimento que as suas palavras geraram nesta casa. A minha filha tratará de que assim seja!

 

Realizado o seu objectivo, Semprónia mandou chamar Traso e ordenou-lhe que nos conduzisse à porta.

 

Enquanto descíamos os degraus, a monumental porta de bronze fechou-se com estrondo atrás de nós. Davo voltou-se para mim de olhos muito abertos, e perguntou:

 

Sogro, é verdade que Cassandra era uma bruxa?

 

Não sei, Davo. Mas, se as bruxas realmente existirem, creio que acabas de conhecer uma delas.

 

A terceira vez que vi Cassandra foi de novo no Fórum. Foi no dia em que o Cônsul Isáurico partiu o trono de Marco Célio.

 

Alguns dias antes, chegara a Roma a notícia de que Marco António, tendo partido quase três meses depois de César, conseguira fazer a mesma travessia marítima e estava prestes a juntar as suas forças às de César. Podia ser apenas uma questão de tempo, até César e Pompeu se confrontarem. Roma inteira zumbia de especulações.

 

Entretanto, há mais de um mês que Marco Célio montava o seu tribunal ao lado do de Trebónio. O tumulto que tivera lugar na sua primeira sessão não se tinha repetido, dado que Célio, em vez de fazer discursos e incitar a multidão, se entregara discretamente à tarefa de anotar os nomes e fazer o registo das situações dos cidadãos que todos os dias formavam fila para serem recebidos por ele. Estes cidadãos eram, na sua maioria, pessoas endividadas, que esperavam retirar vantagens da legislação que Célio prometera apresentar ao Senado, impondo uma moratória de seis anos à colecta de todas as dívidas. O facto de semelhante proposta não ter a menor possibilidade de vir a ser transformada em lei enquanto César controlasse o Senado e o facto de Célio não ter autoridade legal para estabelecer um tribunal, e muito menos fazer um registo dos devedores em nada contribuía para deter a longa fila de homens desesperados que todos os dias iam falar com ele. Os tempos eram difíceis. Aqueles que se aproximavam de Célio estavam a agarrar-se a qualquer esperança de alívio.

 

Entretanto, ali ao pé, Trebónio prosseguia a sua actividade legal de litigar entre os credores e os devedores que todos os dias faziam fila para serem recebidos por ele. Alguns dos devedores, uma vez concluída a audiência com Trebónio, punham-se na fila dos que queriam ser recebidos por Célio. Em tempos incertos como os que vivíamos, quem poderia afirmar que os acordos avalizados por Trebónio se manteriam? E que devedor se atreveria a deixar passar a oportunidade de recorrer ao alívio que Célio prometia, por muito reduzida que fosse a possibilidade de que ele viesse a ser promulgado?

 

Desde o tumulto inicial que as coisas estavam sossegadas no Fórum, e os restantes magistrados, incluindo Trebónio, tinham achado que era preferível permitir que Célio se dedicasse à actividade fictícia que era a sua. Imagino que a atitude oficial fosse mais ou menos a seguinte: Célio estava, essencialmente, a encenar um espectáculo de mimos, uma espécie de teatro de rua político; enquanto não houvesse novas manifestações de violência, era preferível, muito simplesmente, ignorá-lo.

 

Naquele dia, Célio chegou mais tarde do que o habitual, de tal maneira que, quando apareceu, escoltado por uma comitiva mais numerosa do que a habitual, e transportando orgulhosamente o seu trono, já tinha uma grande multidão à sua espera, havendo igualmente uma grande fila no tribunal de Trebónio, ali ao lado. Eu também andava pelo Fórum, a matar o tempo de forma ociosa, na companhia de Davo e de Jerónimo, e do nosso grupo do costume. Célio passou muito perto de mim, e os nossos olhares cruzaram-se por acaso. Ele reconheceu-me e fez um aceno de cabeça. Depois, ergueu uma sobrancelha e lançou-me um vago sorriso, e eu percebi que se preparava para organizar nova malfeitoria.

 

O tribunal portátil foi erigido. A multidão começou a formar uma fila. Célio subiu ao tribunal e, com um gesto floreado, poisou o trono. Mas, em vez de se sentar, permaneceu de pé e voltou-se para a multidão. Um arrepio percorreu a assembleia, um arrepio sentido por todos ao mesmo tempo, da mesma maneira que um relâmpago é percepcionado por todos os olhos no mesmo instante. Mais adiante, os homens que esperavam a sua vez de conferenciar com Trebónio voltaram a cabeça para olhar para Célio. O próprio Trebónio, ouvindo o súbito murmúrio de expectativa, ergueu os olhos do registo que tinha diante de si e espreitou na direcção de Célio. Uma expressão de irritação e receio atravessou-lhe o rosto. Chamou um dos seus funcionários e murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. O funcionário acenou com a cabeça e desapareceu.

 

Célio começou a andar de um lado para o outro no reduzido espaço do tribunal, de mãos nos quadris, examinando a multidão. Mas continuava em silêncio, o que perturbou ainda mais os espectadores. Os que estavam mais longe começaram a empurrar os que estavam mais perto. Acima do murmúrio geral, alguns homens espalhados por entre a multidão muito provavelmente, contratados por Célio começaram a gritar.

 

Fala, Marco Célio! berravam. E: O que foi que vieste dizer-nos, Marco Célio? E: Silêncio! Silêncio! Calem-se todos! Marco Célio vai falar!

 

Célio continuava a percorrer o tribunal em silêncio. Levou um punho cerrado à boca e franziu o sobrolho, como se estivesse a tentar decidir se devia falar ou não. A multidão aproximou-se ainda mais. Eram cada vez mais numerosos os homens que gritavam, até que os seus gritos se juntaram em uníssono, transformando-se num canto:

 

Fala, Célio, fala! Fala, Célio, fala! Fala, Célio, fala!

 

Por fim, Célio parou de andar de um lado para o outro, olhou a multidão e ergueu os braços pedindo silêncio. Alguns dos membros mais desordeiros da multidão continuaram a cantar, pelo simples prazer de se fazerem ouvir, mas foram rapidamente silenciados com cotoveladas nas costelas e palmadas nas orelhas.

 

Cidadãos! disse Célio. Há não muito tempo, ouvistes-me falar desta plataforma acerca da legislação que apresentei ao Senado, exigindo uma moratória de seis anos sobre o pagamento de empréstimos. Lamento dizer-vos que, até hoje, o Senado ainda não reagiu à minha proposta.

 

Esta declaração foi recebida com um coro de assobios e apupos. Célio ergueu as mãos para silenciar a multidão.

 

Entretanto, o meu estimado colega, o magistrado encarregado da cidade apontou para Trebónio com um largo gesto de mão, continuou a fazer acordos benéficos aos proprietários e aos banqueiros que emprestam dinheiro, cujos interesses persistentemente representa.

 

Isto suscitou um clamor considerável. Anteriormente, Célio evitara fazer um ataque directo a Trebónio. Agora, tinha posto a descoberto as garras retóricas, e a multidão queria ver sangue. Recomeçou a andar de um lado para o outro, não com o ar meditativo e indeciso com que o fizera momentos antes, mas de queixo erguido e com passo insolente. Olhava de lado na direcção de Trebónio, com um sorriso afectado no rosto e um brilho nos olhos.

 

Na realidade, o magistrado encarregado da cidade fez todo o possível para garantir que a legislação por mim proposta não fosse, sequer, considerada pelo Senado, e muito menos ratificada por aquele corpo obsequioso de sicofantas. Não há entre eles um único homem que pareça ter vontade própria. São todos, do primeiro ao último, instrumentos da mesma inteligência incluindo o magistrado encarregado da cidade. Afinal, ele é, em primeiro lugar, soldado, e só depois funcionário público. Presumo que tenha recebido ordens antes de aquele que dá ordens ter partido de Roma, e agora limita-se a cumpri-las, sem ter em consideração o sofrimento e as dificuldades que o rodeiam. Será cego? Será surdo?

 

Célio olhou na direcção de Trebónio, franziu o sobrolho e examinou-o intensamente, como se Trebónio estivesse a milhas de distância, em vez de estar, como estava, mesmo a seu lado.

 

Bem, tenho quase a certeza de que não é cego, porque está a olhar para cá. É certo que franziu um pouco os olhos. Calculo que a escrita de somas gigantescas a favor dos banqueiros lhe tenha dado cabo da vista. Isto suscitou um coro de gargalhadas por parte de uma multidão ansiosa por qualquer motivo para se rir de Trebónio. No seu tribunal, este estreitou ainda mais os olhos. A multidão que se encontrava diante do tribunal de Célio rebolava-se de riso.

 

Quer dizer que não é completamente cego mas talvez seja surdo sugeriu Célio. Vamos tentar descobrir se é? Ajudem-me, cidadãos! Chamem-no comigo. Assim: "Trebónio, abre os olhos! Trebónio, abre os olhos!"

 

A multidão aderiu entusiasticamente ao canto, erguendo a voz até as palavras ressoarem por todo o Fórum, criando um ruído que parecia um trovão ao ecoar nas paredes de pedra de templos e santuários. Semelhante ruído devia chegar a minha casa, no alto do Monte Palatino. Imaginei Betesda e Diana, entretidas com os seus afazeres na cozinha e no jardim, perguntando a si próprias o que seria aquilo: "Trebónio, abre os olhos! Trebónio, abre os olhos!"

 

Olhei para o objecto deste refrão, e vi-o remexer-se nervosamente no trono, como se as camadas de marfim onde apoiava as nádegas se tivessem tornado excessivamente quentes. Embora, em si mesmas, as palavras não fossem ameaçadoras, devia ser enervante para Trebónio ouvir tantas vozes hostis gritarem o seu nome em uníssono. Tal como Célio tinha dito, ele tinha mais experiência como militar do que como político, estava mais habituado a cadeias ordenadas de comando do que à dinâmica volátil das multidões de Roma.

 

Por fim, Célio ergueu os braços. O canto foi diminuindo gradualmente, até se fazer silêncio.

 

Cidadãos creio que ele vos ouviu! gritou Célio. A resposta foi um tremendo rugido, de gritos e aplausos. Olhei em volta, e percebi que a multidão era agora consideravelmente mais numerosa. O canto não servira apenas para enviar uma mensagem a Trebónio, funcionara também como uma espécie de clarim, atraindo outros, de todo o Fórum e das colinas em redor.

 

Célio ergueu as mãos, pedindo silêncio. A multidão calou-se imediatamente.

 

Trebónio! Trebónio! Trebónio! disse ele, revirando os olhos e fingindo-se totalmente exasperado. Em ti percebemos que três bens formam um mal! A multidão, que adorava trocadilhos, especialmente à custa do nome de um homem, desatou à gargalhada. Célio elevara a voz, a fim de a fazer chegar tão longe quanto possível, e o objecto da graça, ouvindo-a claramente, corou da cabeça aos pés, apertando as mãos em dois punhos cerrados.

 

Mas, cidadãos prosseguiu Célio, não vim aqui falar-vos mal do meu colega magistrado. Ele não passa de um soldado obediente, que cumpre as ordens que lhe deram. Nem vim incitar-vos contra os sicofantas do Senado, que estão demasiadamente ocupados a agradar ao seu senhor ausente e a enriquecer para pensarem no vosso sofrimento. Não, vim hoje aqui trazer-vos uma boa notícia! Sim, uma boa notícia, imaginem, porque no meio da tristeza que pesa sobre nós, um raio de esperança. Tenho andado a pensar na moratória de seis anos à colecta das dívidas que propus ao Senado e que, até agora, o Senado ignorou olimpicamente, e decidi que não é suficiente. Não, de facto não é suficiente! O bom povo de Roma merece ser ainda mais aliviado do esmagador fardo que lhe foi imposto, não apenas pelos banqueiros que emprestam dinheiro, mas também pelos senhorios, esses abastados proprietários de habitações a quem um homem tem de entregar o sangue e a vida, só para poder ter um tecto onde se abrigar.

 

"Hoje, cidadãos, vou apresentar outra proposta. Com aplicação retroactiva a partir do mês de Januarius, todos os senhorios perdoarão um ano de renda a todos os inquilinos! O que significa isto? Significa que todas as rendas pagas desde Januarius vos serão devolvidas, e que as rendas devidas pelo resto do ano vos serão perdoadas. Significa que os arrendatários de Roma terão finalmente algum dinheiro nos bolsos que lhes terá sido devolvido pelos proprietários ricos, que não sentirão a sua falta! Significa que tereis a segurança de saber que não podereis ser despejados, que tereis um tecto debaixo do qual podereis cobrir-vos nos meses de incerteza que se aproximam.

 

"Os banqueiros, os proprietários e os seus representantes lançou um olhar a Trebónio dir-vos-ão que semelhante medida destruirá por completo a economia de Roma. Nem pensem nisso! Eles estão apenas a zelar pelos seus interesses. Uma economia saudável baseia-se na confiança mútua, e esta proposta, por muito radical que pareça, é a única forma de o povo de Roma recuperar a fé no futuro e restabelecer os seus laços de confiança com a classe dos proprietários. Vós, os cidadãos comuns de Roma, já suportastes muitas coisas devido às perturbações do ano passado. Carregastes o peso do sofrimento. Já sofrestes o suficiente! Todos temos de fazer sacrifícios o povo comum de Roma, mas também os ricos, que nos olham do alto dos seus majestosos poleiros, e só pensam na maneira de enriquecer ainda mais. Que sejam eles a sentir os apertos, para variar!

 

Seguiu-se um bramido de aprovação por parte da multidão. Alguns recomeçaram a cantar "Trebónio, abre os olhos!" O estado de espírito geral parecia mais ruidosamente alegre do que propriamente irado. Pelo mero facto de ter verbalizado proposta tão radical, por muito improvável que fosse a sua concretização, Célio tinha-lhes dado esperança e alegria.

 

De repente, tudo mudou. O bramido morreu. O canto foi suspenso. Ouviram-se gritos de indignação, silvos e assobios provenientes da periferia da multidão. Eu pus-me em bicos de pés, tentando ver por cima das cabeças que me bloqueavam a visão. De repente, fui erguido do chão; Davo tinha-me agarrado por trás e levantado no ar como se eu fosse uma criança. São as vantagens de ter um genro com a força de um boi.

 

Vi um cordão de guarda-costas flanquear uma personagem importante aparentemente, tratava-se de um dos magistrados principais, porque a comitiva era encabeçada por lictores, que constituem a escolta cerimonial dos magistrados superiores. Cada lictor trazia ao ombro um feixe de varas de vidoeiro que serviam de revestimento a um machado profusamente decorado. Considerava-se que a utilização dos lictores e das respectivas armas cerimoniais remontava ao período em que Roma era governada por reis. Normalmente, dentro dos limites da cidade, os lictores transportavam os fasces sem os machados mas os tempos que vivíamos não eram normais, e eu entrevi claramente o brilho das lâminas de ferro muito bem polidas dos machados, erguidas acima dos feixes de varas.

 

Também vislumbrei o homem que seguia no meio dos lictores, e vi que a sua toga tinha uma larga faixa cor de púrpura. Contei doze lictores, e percebi que o recém-chegado só podia ser Públio Servflio Isáurico, o cônsul que fazia par com César. Na ausência de César, Isáurico era o chefe de estado. Deste modo, César respeitara a tradição de eleger dois cônsules, um dos quais governava Roma, enquanto o outro conduzia as operações militares no campo de batalha, embora toda a gente soubesse que era César, e apenas César, quem tomava as decisões políticas. Isáurico não passava de uma figura decorativa, encarregada de levar à prática a vontade de César na ausência de César. Ele e César eram velhos amigos, e o facto de César ter disposto as coisas por forma a que ele fosse eleito como co-cônsul para aquele ano era um sinal da total confiança que nele depositava.

 

Lembrava-me de ter visto Trebónio, antes de Célio dar início à sua arenga, mandar um dos seus funcionários levar uma mensagem; era evidente que Isáurico acorrera em resposta ao alarme lançado por Trebónio. Célio ameaçava uma vez mais instigar a multidão a um tumulto, e era preciso fazer qualquer coisa.

 

Os lictores empurravam a multidão, para abrir caminho em direcção ao tribunal de Célio. A populaça agitada e tumultuosa poderia perfeitamente tê-los dominado mas, ao ver a disciplina dos lictores, a multidão tornou-se confusa e desorganizada. Os lictores tinham outra vantagem, porque o primeiro impulso de qualquer cidadão romano, por muito enervado que esteja, é respeitar qualquer pessoa que transporte os fasces e dar passagem a qualquer magistrado acompanhado por lictores. Havia um profundo respeito patriótico pela autoridade romana, mesmo entre esta multidão descontente.

 

Os lictores chegaram ao tribunal, onde Célio estava à sua espera de mãos nos quadris. Isáurico emergiu do cordão de homens armados e subiu ao tribunal, colocando-se diante de Célio. Tinha o rosto quase da mesma cor que a tira de púrpura que lhe ornava a toga. Ao lado de Célio um homem belo na casa dos trinta, cujo discurso o elevara ao mais alto cume do resplendor carismático, Isáurico parecia um velho avô de uma comédia de Flauto: deitava perdigotos ao falar e mostrava-se inapelavelmente deslocado. A estranha teatralidade do momento foi reforçada pelo facto de se encontrarem ambos em cima de uma plataforma que não era muito diferente de um palco portátil. Só lhes faltavam as máscaras grotescas e um pouco de música de fundo para se tornarem actores cómicos.

 

Isáurico agitou o dedo diante de Célio, falando com ar irritado, mas mantendo o tom de voz baixo demais para a multidão o ouvir. Aparentemente, eu não era o único a imaginá-los como actores, porque houve um espertalhão que gritou:

 

Fala mais alto! Não conseguimos ouvir! Estás a mastigar as deixas! As gargalhadas percorreram a multidão, e alguém deu início a um novo canto: Isáurico, fala mais alto! Isáurico, fala mais alto!

 

Subitamente, o cônsul baixou os olhos para a multidão, furioso por ter ouvido o seu nome gritado de forma tão rude. Célio, que até então mantivera um sorriso sardónico, pareceu perder as estribeiras nesse preciso momento. Começaram os dois a gritar um com o outro. O que quer que estivessem a dizer foi afogado pelo rugido arrasador de gritos e gargalhadas da multidão, mas era fácil de imaginar. Isáurico dizia a Célio que, para começar, ele não tinha autoridade legal para instaurar um tribunal, e que interferir com o cumprimento dos deveres de outro magistrado não estava muito longe de um acto de traição. Célio começara, provavelmente, a recorrer a insultos mais pessoais; eu não tinha qualquer dificuldade em o imaginar a chamar a Isáurico marioneta, com a mão de César no seu interior.

 

O que quer que Célio tenha dito a Isáurico, foi necessariamente breve. O cônsul, tomado por um ataque de fúria, pegou abruptamente no trono de Célio e ergueu-o acima da cabeça. Parecia que se preparava para o atirar a Célio, e até o obstinado Célio vacilou, recuando e erguendo os braços para se proteger. Em vez disso, Isáurico bateu com o trono no chão com toda a força, atingindo o lictor mais próximo. Depois extraiu o machado do interior do feixe de varas, e ergueu-o acima da cabeça.

 

A multidão teve um sobressalto colectivo. Davo, impossibilitado de ver o que se passava por continuar a segurar-me ao alto, gritou:

 

O que foi, sogro? O que se passa?

 

Por Hércules respondi eu, penso que estamos prestes a assistir a um assassínio.

 

O Sol incidiu sobre o machado erguido. A multidão calou-se, à excepção de um ou outro grito isolado. O sangue gelou-se-me nas veias. Após o assassínio de Clódio na Via Ápia, a ralé agitara-se durante dias, e pegara fogo ao Senado. Agora, Célio transferira para os seus ombros o manto de defensor dos desprezados. O que fariam eles se vissem o cônsul de Roma assassiná-lo a sangue-frio, mesmo diante dos seus olhos?

 

Célio recuou um pouco mais, de boca aberta e com ar chocado, branco como a estola de uma Vestal.

 

Isáurico baixou o machado não sobre Célio, mas sobre o trono de Célio. Um golpe violento destruiu o assento. Isáurico ergueu o machado e voltou a baixá-lo. Ouviu-se outro golpe, e os fragmentos de madeira espalharam-se em todas as direcções.

 

Por breves instantes, uma expressão de alívio percorreu o rosto de Célio. Momentos antes, ele contemplara a entrada do Hades. Mas, logo a seguir, o alívio foi substituído por uma afronta profunda, o seu rosto passou de branco a vermelho carregado. Ele deu um grito e correu na direcção de Isáurico, esquecendo o machado que o cônsul tinha na mão.

 

Os lictores subiram imediatamente ao tribunal, desembainhando os machados e interpondo-se entre os dois magistrados. Momentos depois, alguns elementos da multidão saltaram igualmente para o tribunal, para defenderem Célio. Isáurico e Célio foram separados, e Célio foi empurrado do tribunal para o meio da multidão. Os seus apoiantes queriam protegê-lo, mas pareceu-me que estavam a sujeitá-lo ao risco de ser esmagado aos pés da multidão.

 

Já chega, Davo! disse eu. Já vi o suficiente. Põe-me no chão! Quase fomos apanhados no tumulto anterior, e eu não quero voltar a correr o mesmo risco.

 

Mas era tarde de mais. Um vórtice de humanidade rodopiava em nosso redor. Os homens gritavam, berravam, riam. Uma sucessão de rostos passava diante de mim: uns jubilantes, outros irritados, outros ainda aterrorizados. A multidão fez-me girar até me sentir tonto. Procurei Davo, mas não consegui vê-lo em lado nenhum. Também Jerónimo tinha desaparecido, juntamente com todos os amigos que faziam parte do nosso grupo. Olhei em volta, desorientado e confuso, incapaz de detectar qualquer elemento conhecido. Apenas via uma névoa de caras estranhas e, para além delas, uma confusão de paredes e edifícios. O choque dos corpos tirou-me o fôlego, ergueu-me ao ar, transportando-me contra a minha vontade. Comecei a ver manchas diante dos olhos...

 

Foi então que, vindo de lado nenhum, incongruente no meio de todo aquele caos horrível, vi o rosto da mulher chamada Cassandra. Nos seus olhos, não entrevi pânico, mas o contrário uma serenidade profunda, que ignorava a loucura que nos rodeava. Seria um sinal de loucura, permanecer tão calma no meio de toda aquela insanidade?

 

Perdi a consciência.

 

Quando voltei a mim, era outro o rosto que me olhava. Por momentos, senti-me confuso, porque era muito parecido com Cassandra o mesmo cabelo loiro, os mesmos olhos azuis, a mesma incongruência de uma cara jovem e bela queimada pelo sol, suja de lama e rodeada por uma juba de cabelo em desalinho.

 

Tive um sobressalto e dei um grito. O jovem que estava debruçado sobre mim reagiu com outro sobressalto e emitiu um resmungo. Uma figura que estava atrás dele tornou-se visível. Era Cassandra.

 

Não o assustes, Rupa. Ele sofreu um choque.

 

Ergui-me apoiado nos cotovelos. Estava deitado numa enxerga surrada, num quartinho minúsculo com chão de terra. A única luz que nele entrava provinha de uma janela estreita, aberta no alto de uma parede, e da porta, onde o tecido esfarrapado que servia de cortina estava puxado para o lado, dando a ver o sombrio corredor que ficava para além dele. Do corredor, provinha um cheiro composto por uma mistura de couve cozida, urina e humanidade por lavar. Pela janela, entravam os sons de um casal a discutir, de um bebé a chorar e de um cão a ladrar. De longe, chegava igualmente um som peculiar, persistente, e não totalmente desagradável de metal embatendo em metal.

 

Eu já tinha entrado em suficientes edifícios semelhantes ao longo dos anos, para saber exactamente em que género de sítio me encontrava. Tratava-se de um dos mais toscos prédios da cidade, provavelmente localizado algures na Subura, onde vivem os mais desgraçados de todos os habitantes de Roma, amontoados em alojamentos sem luz, à mercê de senhorios sem escrúpulos e uns dos outros.

 

O jovem chamado Rupa olhou-me sem rudeza, depois levantou-se da enxerga. Era um sujeito grande tão grande como Davo, o que significava que tinha tamanho suficiente para me ter trazido às costas do Fórum para a Subura. Devia ter sido assim, porque nem a minha túnica nem o meu corpo tinham qualquer ferimento que indicasse que eu fora arrastado.

 

Cassandra aproximou-se.

 

Presumo que queiras saber onde estás disse ela.

 

Na Subura, não? Não devemos estar longe da Rua dos Potes de Cobre.

 

Ela ergueu uma sobrancelha.

 

Pensei que estavas inconsciente quando Rupa te trouxe para aqui.

 

E estava. Não me lembro de nada desde o momento em que desmaiei no Fórum. Mas conheço o cheiro dos prédios da Subura, e suspeito de que aquele persistente ruído metálico que vem lá de fora são os potes de cobre pendurados nas lojas a bater uns contra os outros. É um som ligeiramente diferente do som dos recipientes de ferro, de latão e de bronze. Dado o ângulo da luz que entra por aquela janela e a distância do som, eu diria que estamos a cerca de dois quarteirões para norte da Rua dos Potes de Cobre. E, dado que nos encontramos no rés-do-chão do prédio...

 

Como é que sabes?

 

Porque o chão é de terra batida. Mas vê-se uma pontinha de céu azul daquela janela, por cima do telhado do edifício amarelo que fica aqui ao lado; portanto, o edifício amarelo não pode ter mais de dois andares. Bastante baixo, para um prédio da Subura. Acho que sei qual é. E nós estamos no edifício vermelho que fica ao lado, onde há sempre um cão à porta, preso e a ladrar?

 

Exactamente! Ela sorriu. E eu que pensava que ias acordar completamente desorientado, como...

 

Como um velhote que desmaiou pelo simples facto de o terem feito andar um bocadinho à roda? Não, já recuperei as minhas faculdades, ou pelo menos aquelas que me restam.

 

Ela sorriu.

 

Gosto de ti observou, sem evidenciar a mais leve consciência de que aquele sorriso e aquelas palavras, provenientes de uma mulher tão bela, podiam acender subitamente o mundo inteiro de um homem.

 

Rupa franziu a testa e fez-lhe um sinal com a mão.

 

Rupa está a dizer que também gosta de ti. O sorriso dela vacilou. E que Rupa é...

 

Mudo? Sim, já tinha percebido. Durante muitos anos, Eco, o meu filho mais velho, não foi capaz de falar... Calei-me. Tendo renegado Meto em Massília, deixara de ter um filho mais velho e outro mais novo. Eco era o meu único filho. E Meto para mim, Meto deixara de existir...

 

Cassandra detectou a expressão do meu rosto e franziu o sobrolho.

 

Perdeste um filho disse ela.

 

Eu ergui uma sobrancelha, surpreendido. Ela encolheu os ombros.

 

Desculpa. Não devia ter dito isto. Mas é verdade, não é? Eu pigarreei.

 

Sim, de certa maneira. Perdi um filho. Ou então orientei-o mal... Ela percebeu que eu não tinha vontade de continuar a falar sobre aquilo e mudou de assunto.

 

Tens fome?

 

Na realidade, tinha, mas não tencionava aceitar comida de pessoas a quem obviamente sobrava tão pouco como sobrava a Cassandra e ao seu companheiro. Abanei a cabeça.

 

Tenho de ir andando. A minha família deve estar preocupada comigo. Levantei-me, sentindo-me trémulo.

 

Tens a certeza de que estás bem?

 

Quando um homem chega à minha idade, aprende a integrar pequenas queixas, da mesma maneira que um homem rico aprende a integrar parentes indesejados. Sinto-me apenas ligeiramente tonto. Eu diria que não é nada que se compare com os ataques que tu sofres.

 

Ela baixou os olhos.

 

Estás a referir-te àquele dia em que caí nos teus braços. Não sabia se te recordarias.

 

Não é todos os dias que uma bela mulher cai nos meus braços. Nem é provável que me esqueça da vez anterior em que te vi.

 

A vez anterior?

 

Estavas diante do Templo de Vesta. Nessa ocasião, não te limitaste a desmaiar.

 

Não? Ela franziu um sobrolho. Acho que não. Depois contaram-me o que tinha acontecido. Eu não me lembrava de nada.

 

Sempre tiveste esse género de episódios? Ela desviou os olhos.

 

Preferia não falar sobre isso.

 

Perdoa-me. Não tinha o direito de fazer perguntas. É só que...

 

O quê? Encolhi os ombros.

 

Caíste nos meus braços. E agora fui eu que caí nos teus braços... por assim dizer. É natural que pense que os deuses querem que nos conheçamos.

 

Ela ergueu as sobrancelhas.

 

Estou a brincar! Não podes censurar um velhote por namoriscar um pouco. Lancei um olhar a Rupa, que parecia divertido. Naquele momento, desconfiei de que não fosse amante dela. O que seria então? Um criado, um parente, um amigo? Ela sorriu.

 

Naquele dia, tiveste a gentileza de me apanhar. Hoje, no Fórum, quando te vi em dificuldades, quis pagar-te o favor.

 

Óptimo. Nesse caso, estamos quites. Mas ainda não me apresentei, pois não? Chamo-me Gordiano.

 

Ela acenou com a cabeça.

 

A mim chamam-me Cassandra.

 

Sim, eu sei. Não fiques admirada. Não és totalmente desconhecida no Fórum. As pessoas têm tendência para reparar em alguém... como tu. Presumo que Cassandra não seja o teu nome verdadeiro?

 

É tão verdadeiro como outro qualquer.

 

Estou a ser presumido. Perdoa-me. É melhor ir andando.

 

Ela virou-me as costas. Tê-la-ia ofendido? Embaraçado? Esperei que pudéssemos voltar a olhar-nos antes de eu me ir embora, que aqueles perturbados olhos azuis voltassem a poisar-se sobre mim, mas ela manteve o rosto desviado.

 

Rupa acompanhou-me ao corredor, e eu passei do mundo iluminado pela presença de Cassandra para o mundo da couve cozida e dos cães que ladravam. À porta do prédio, onde um mastim molosso estava preso a um poste, Rupa voltou-me abruptamente as costas sem me dirigir qualquer gesto, nem sequer um aceno de cabeça, e regressou para junto de Cassandra.

 

Eu voltei sozinho para casa, sentindo-me ligeiramente tonto, mas imbuído de uma nova leveza; era uma sensação parecida com a tontura, mas curiosamente agradável. Ao descer a Rua dos Potes de Cobre, o ruído de todas aquelas peças de metal pareceu-me ecoar a confusão que havia dentro da minha cabeça. Um encontro inesperado com a beleza faz com que um homem se sinta feliz, tolo, sem cuidados.

 

Não voltas a passar as tuas horas de ócio no Fórum. É muito perigoso! declarou Betesda nessa noite, na sala de jantar que dava para o jardim. Ao ver-me regressar, são e salvo, ela tinha-me recebido com um olhar gelado, e mal me dirigira a palavra, mas essas manifestações de ira eram apenas exteriores. Jerónimo chamou-me à parte e informou-me num sussurro que ela tinha ficado frenética e à beira das lágrimas quando o vira regressar a casa na companhia de Davo, mas sem mim.

 

Confrontado com o decreto de Betesda, eu suspirei e, incapaz de pensar numa réplica adequada, peguei na taça do vinho. Se argumentasse que nunca saía sem levar Davo para me proteger, ela limitar-se-ia a salientar que, nessa mesma tarde, Davo não fora capaz de o fazer.

 

Depois de dominado em termos estratégicos, fui igualmente vencido em termos numéricos.

 

A mãe tem razão disse Diana. Davo faz o possível por cuidar de ti, papá... Lançou ao marido um olhar derretido e deu-lhe uma palmadinha na mão. Ele parou de mastigar por momentos e corou. Em seguida, ela voltou a olhar para mim. Mas nem Davo pode ser responsável por ti se te pões a desmaiar e a desaparecer, confuso...

 

Eu não desapareci! Fui levado para lugar seguro por um casal de desconhecidos simpáticos.

 

Mas, papá, podias perfeitamente ter sido levado por desconhecidos que não fossem simpáticos. Esses dois podiam ter-te roubado e assassinado, e lançado o teu corpo ao Tibre, e nós nunca saberíamos o que te tinha acontecido.

 

Filha, estás a tentar as Parcas! Betesda partiu um pedaço de pão ázimo e lançou-o por cima do ombro para distrair quaisquer espíritos maliciosos (e, presumivelmente, famintos) que pudessem estar a ouvir a conversa.

 

Jerónimo pigarreou e veio em meu auxílio, mudando de assunto

 

Fiquei bastante chocado com aquela arenga de Marco Célio que ouvimos hoje. E não só com aquilo que ele disse que me pareceu bastante radical, mas com a forma como o disse, espicaçando Trebónio e o Senado daquela maneira declarada.

 

Sim, desde que Marco António partiu de Itália para ir juntar-se a César, Célio tornou-se consideravelmente mais atrevido. Lancei um olhar a Betesda, que parecia mais interessada no pão ázimo que tinha na mão. A política entediava-a.

 

Ele quase criticou o próprio César insistiu Jerónimo.

 

Nunca disse o nome de César salientei eu.

 

É certo que não admitiu Jerónimo, mas a insinuação era clara. César já foi o defensor do povo, mas agora é o seu inimigo. A certa altura, opôs-se a Pompeu e aos chamados Melhores, mas agora está a mostrar que não passa de mais um político ao serviço dos ricos.

 

O que significa que o povo precisa de um novo defensor disse eu.

 

E Marco Célio está a oferecer-se para desempenhar esse papel. Eu acenei com a cabeça.

 

Para um recém-chegado à cidade, Jerónimo, avalias muito bem a situação política.

 

Em Massília não se faz política como aqui em Roma. Estes incitamentos e estes tumultos nunca seriam tolerados na minha cidade. Mas os políticos são iguais em toda a parte. Têm faro para o poder. Detectam o seu cheiro como um homem faminto detecta o cheiro do pão. Quando vêem um naco que ninguém quer, correm a apoderar-se dele e a chamá-lo seu. É isso que Célio está a fazer. Olha em volta, vê muitas pessoas que se sentem muito infelizes, e avança para se tornar o seu defensor.

 

Já houve quem fizesse o mesmo salientei eu. Catilina, Clódio, o próprio César. Mas não vejo como poderá Célio conseguir seja o que for, para além de ser morto como aconteceu a Catilina e a Clódio. O problema dele é muito simples: não dispõe de um exército.

 

Talvez tencione congregá-lo.

 

Eu preparava-me para tomar um gole de vinho, mas estaquei.

 

Que ideia, Jerónimo! Um terceiro exército, em luta pelo controlo do mundo? Abanei a cabeça. É ridículo, evidentemente. Célio tem alguma experiência militar, mas nem de longe a suficiente para desafiar César ou Pompeu.

 

A não ser que eles dêem cabo um do outro interveio Diana. Quem sabe se algum deles regressará vivo da Grécia? Amanhã mesmo, pode chegar a Roma a notícia de que tanto César como Pompeu morreram. Nessa altura, quem assumiria o controlo da cidade?

 

Eu poisei a taça do vinho.

 

Por Hércules! Às vezes, filha, tu vês coisas que eu não consigo ver, embora estejam mesmo diante dos meus olhos. Tens razão. Um jogador como Célio não vive a pensar em todas as suas possibilidades de fracasso. Orienta as suas ideias até conseguir entrever o único caminho no qual poderá ter êxito, e depois canaliza toda a sua vontade para esse caminho, ignorando o carácter diminuto das probabilidades. Se perder, perde tudo. Mas, se ganhar...

 

Ganha o mundo completou Jerónimo.

 

No dia a seguir à visita a Terência e Fúlvia, levantei-me cedo, tendo o cuidado de não incomodar Betesda, tomei um pequeno-almoço ligeiro, e chamei Mopso e Ândrocles para virem novamente ajudar-me a vestir a toga. A lã tinha algum pó, que apanhara durante a saída do dia anterior. Depois de me ter envolvido nela, deixei-me estar muito quieto, enquanto Mopso lhe dava uma boa escovadela.

 

Ândrocles observava-o.

 

Não escovaste ali! disse ele.

 

Escovei sim!

 

Não escovaste nada. Ali, ao pé da bainha.

 

Não estou a ver nada.

 

É porque és cego.

 

Não sou nada!

 

Eu disse que eras cego? Queria dizer que eras estúpido. Eu bati as palmas.

 

Meninos, parem com a discussão! Mopso, acaba o que estavas a fazer.

 

Mopso recomeçou a escovar-me.

 

Também não escovaste ali disse Ândrocles.

 

És surdo? O senhor disse-te para te calares. Não ouviste?

 

Não disse nada! Disse-te para acabares o que estavas a fazer. Eu tirei a escova de marfim das mãos de Mopso e dei uma sonora palmada na cabeça de Ândrocles. Ele soltou um grito e levou a mão à cabeça. Mopso pôs as mãos nas ancas, zurrando como um burro. Também levou uma palmada.

 

Parecendo-me que estava apresentável, disse aos rapazes que fossem acordar Davo, se ele ainda não estivesse levantado, e o vestissem. Entretanto, fui ver como estava Betesda. Ainda dormia, mas estava agitada, remexendo-se e murmurando como se tivesse febre. Pus-lhe a mão na testa, mas estava fresca. Estaria a sofrer algum desconforto físico, ou seria apenas um pesadelo? Decidi não a acordar. O sono era o seu único alívio daquela doença.

 

Davo estava à minha espera no jardim, metido dentro da toga com ar constrangido. Saímos de casa e tomámos a rua circular que contorna a crista do Monte Palatino.

 

A manhã estava linda; já tinha começado a aquecer, mas ainda não estava muito calor. Perto de minha casa, o brilho dourado do Sol atravessava na oblíqua um enorme teixo. Por entre os ramos, os passarinhos cantavam e namoriscavam. Um pouco mais adiante, parei para contemplar o Fórum, lá em baixo, e as colinas, ao fundo. À minha direita, ficava o vale da Subura, onde se apinhavam prédios horríveis. Mais para o centro e ao longe, no alto do Monte Pinciano, os raios de sol incidiam no telhado da majestosa casa de Pompeu, actualmente deserta, à espera do regresso do seu proprietário. Para a esquerda, por cima do Monte Capitolino, uma águia solitária voava em círculos sobre o Templo de Júpiter. Para além do Capitolino, vislumbrei o Tibre, uma tira dourada iluminada pelo sol, com molhes e mercados ao longo das margens. Olhando em redor, avistei de uma só vez um microcosmo do mundo inteiro palácios e casebres, as habitações das prostitutas e das Virgens Vestais, templos onde se adoravam os deuses e mercados onde se vendiam escravos.

 

Que cidade extraordinária! disse em voz alta. Davo respondeu-me com um aceno de cabeça. Para o bem ou para o mal, Roma era o centro do mundo. Apesar de todos os problemas do mundo e dos meus próprios, dívidas esmagadoras, a ruptura com Meto, a misteriosa doença de Betesda, o assassínio de Cassandra, semelhante panorama numa manhã como esta ainda era capaz de inspirar em mim aquele curioso sentimento de esperança que os jovens têm quando se levantam e cumprimentam o mundo numa manhã soalheira de Verão, em que tudo lhes parece possível.

 

Onde vamos, sogro?

 

Hoje, Davo, tenciono ir visitar a mulher de Marco António e talvez também a sua amante.

 

Nunca me tinha encontrado com Antónia; só a conhecia de reputação. Era prima direita de António e a sua segunda mulher; a primeira mulher de António fora Fádia, a filha de um liberto abastado. Esse casamento por amor, no dizer das pessoas tinha escandalizado a família de António; embora Fádia tivesse levado consigo um dote generoso, era sua inferior, socialmente. Mas Fádia morrera jovem, e o segundo casamento de António contribuíra em muito para restaurar a sua reputação entre a aristocracia romana. Antónia era bela, rica e estava exactamente ao mesmo nível social que António. Mas também partilhava a sua fraqueza pelo adultério. No ano anterior, enquanto António escandalizava Itália inteira viajando na companhia da amante, a actriz Citéris, Antónia andava com Dolabela, o dissoluto genro de Cícero. De acordo com o meu grupo do Fórum, o único elo que ainda mantinha o casamento de António e Antónia era a filha de ambos, agora com seis anos.

 

Foram os guinchos desta criança que eu ouvi no interior quando um escravo musculoso abriu a porta de casa de Antónia. Momentos depois, uma figura minúscula e nua apareceu de trás do escravo, seguida por uma ama curvada e a coxear, que não conseguia mantê-la na ordem.

 

Não quero! Não quero! gritava a miúda, e depois voltou a guinchar. Haverá coisa que pior faça aos ouvidos do que os guinchos de uma criança de seis anos? Eu tapei as orelhas. A miúda desapareceu.

 

Antes que o escravo da porta tivesse tempo de nos perguntar o nome e ao que vínhamos, apareceu a própria Antónia, que vinha atrás da filha e da ama. Era de manhã cedo, por isso não me surpreendeu ver que trajava apenas uma simples estola amarela, não trazia jóias, e tinha o cabelo por arranjar, solto quase até à cintura. Com ou sem adornos, era uma bela mulher. Pensei na pobre e desengraçada Túlia, e perguntei a mim própria se os boatos acerca de Dolabela e Antónia seriam verdadeiros.

 

Ela olhou para Davo e para mim, pôs as mãos nos quadris, e ergueu as sobrancelhas.

 

Vêm da parte do meu marido?

 

Não. O meu nome... Ela estreitou os olhos.

 

Da parte de Dolabela?

 

Não.

 

Então a que propósito vêm bater à minha porta a esta hora da manhã? Não, espera eu conheço-te de qualquer lado, não conheço? Ah, sim, és aquele que tratou do funeral de Cassandra.

 

Sou, de facto.

 

Gordiano, não é? O chamado Descobridor? Ouvi falar de ti ao meu marido. Tens um filho que anda com César, a escrever o que ele dita. Ditados do ditador! Deu uma gargalhada seca. Eu estremeci ao ouvir esta referência a Meto.

 

Antes que eu pudesse responder, a criança nua entrou a correr proveniente do lado oposto. Antónia inclinou-se, apanhou-a e segurou-a bem até chegar a ama, embora a criança se contorcesse toda. Quando ela se foi embora, a gritar, Antónia abanou a cabeça.

 

Voluntariosa como o pai. O monstrozinho herdou o temperamento dele. Mas é parecida comigo, não achas? Juno ajude o homem que se casar com ela! Viu o meu ar atrapalhado e deu uma gargalhada. Depois, o sorriso desvaneceu-se. Calculo que tenhas vindo falar comigo sobre Cassandra. Entra. Vamos para o jardim, estás ao sol, e podemos distrair-nos com os pavões.

 

Havia de facto pavões no jardim, três, que andavam pomposamente de um lado para o outro, exibindo os leques. Trouxeram-nos cadeiras, e jarros de água e de vinho. Antónia ainda não tinha tomado o pequeno-almoço; disse ao escravo que estava a servir-nos que trouxesse que chegasse para os três. Quando vi o prato de iguarias que ele nos serviu, ia-me engasgando. Há meses que não via uma tâmara recheada com pasta de amêndoas; o prato estava cheio delas. Aparentemente, a escassez que afligia os cidadãos comuns não tinha afectado a casa do braço direito de César.

 

Davo meteu uma tâmara na boca com avidez. Lambeu as pontas dos dedos e ia servir-se de outra, quando eu o detive com um olhar.

 

Antónia riu-se.

 

Deixa o grandalhão comer o que lhe apetecer. Não sei o que fazer a tantas tâmaras e figos e azeitonas que há nesta casa. Antes de ter ido juntar-se a César, o meu marido passou vários meses a viajar por toda a Itália, com aquela prostituta dele, deixando o mundo inteiro de boca aberta, e reuniu bastantes provisões. Parecia um esquilo a acumular bolotas para o Inverno. Ostensivamente, a sua missão era intimidar os agentes locais, impondo a vontade do grande César, mas na realidade andava apenas a roubar toda a gente. No fundo, é um pirata, sabes? Um pirata mentiroso e beberrão, que adora prostitutas. Estalou os dedos e apontou para a taça vazia. O escravo serviu-a de vinho. Antónia levou-o aos lábios antes que ele tivesse tempo de lhe juntar igual quantidade de água.

 

O meu marido não vai durar muito, sabes? Tem os dias contados. Não me parece que César tivesse ficado especialmente agradado com a forma como António governou Itália na sua ausência, passeando-se na companhia daquela prostituta, sangrando o país, embebedando-se até cair e dando muito fraca conta de si. Depois de tratar de Pompeu, César vai regressar, e há-de ser ele a dirigir as coisas. Se o assunto não estivesse já resolvido, ele próprio trataria dessa insurreição que Milo e Marco Célio estão a planear. Não precisava da ajuda de um fanfarrão embriagado. Não tardará que António se torne um embaraço para ele. Estreitou os olhos. Devia ter-me divorciado antes de ele sair de Itália. Era a decisão mais inteligente. Mas talvez tenha a sorte de os deuses fazerem de mim viúva dentro de pouco tempo, poupando-me à maçada. Tudo pode acontecer num campo de batalha, segundo se diz.

 

Fez uma pausa na tirada para esvaziar a taça, e depois prosseguiu.

 

Casei-me com ele para fazer a vontade à minha mãe. "Que grande sorte!", dizia ela. "Fádia, aquela criatura horrível com quem ele se casou, morreu; temos agora a oportunidade de reabilitar o nosso querido primo, e és tu quem vai fazê-lo. Toda a família conta contigo. Vocês sempre se deram bem quando eram erianças." Ah! Lembro-me muito bem de ele me puxar o cabelo. E lembro-me de lhe dar pontapés nas canelas. Se lhos tivesse dado um pouco mais acima, e com força suficiente para lhe partir os ovos, teria feito um favor a toda a gente. O que se passa, grandalhão? Não gostas de figos em calda?

 

Apanhado com a boca cheia, Davo acabou de mastigar e engoliu. Prefiro as tâmaras disse.

 

Como queiras. Mais tâmaras! ordenou ao escravo. E mais um pouco de vinho para mim. Enche! Isso mesmo. Onde ia eu? Olhou para mim com ar irritado. Vocês, os homens, são todos iguais. Não valem nada. Eu divorciava-me do meu primo e casava-me com Dolabela, mas ele é a mesma coisa. Só servia para estragar a brincadeira. "Os bons amantes são maus maridos", diz o ditado. Pobre Túlia! Aquela estúpida adora-o. Não faz a menor ideia; deve ser cega e surda. Dolabela trata-a com o maior desprezo. Eu diria que ela merece, a tolinha, mas a verdade é que os deuses já a amaldiçoaram o suficiente, dando-lhe como pai aquele rústico que é Cícero. E, a longo prazo, Dolabela não é mais promissor do que António. Só fez asneira com o comando naval que César lhe confiou. Muito provavelmente, vai acabar como o desgraçado do Curió, com a cabeça espetada num pau e, se isso acontecer, deixará de ter utilidade para mim. Ah, bom... mas não foi para falar sobre mim que vieste visitar-me, pois não?

 

Lançou-me um olhar de esguelha, de pálpebras semicerradas. Comecei a desconfiar de que teria tomado a primeira taça de vinho antes de nós chegarmos. A princípio, parecera-me bastante bonita, e de uma candura refrescante; mas cada palavra que dizia e cada gole de vinho que tomava iam-na tornando menos atraente, a ponto de a sua vivacidade me parecer simplesmente ordinária. A fraqueza pelo vinho era o vício do primo. Talvez fosse de família.

 

Vim falar-te sobre Cassandra disse eu, suavemente.

 

Ah, sim, Cassandra. Bem, essa nunca me enganou. Nem por um instante.

 

Eu senti uma picada na nuca, uma premonição de qualquer coisa desagradável. Mas tinha vindo em busca da verdade, ou pelo menos da versão da verdade de Antónia.

 

O que queres dizer com isso?

 

Aquele estribilho todo, os desfalecimentos, a linguagem atabalhoada, os olhos revirados para trás! Oh, ela era muito convincente, tenho de lho conceder.

 

Estás a referir-te aos acessos de profecia?

 

Antónia emitiu uma exalação grosseira.

 

Profecia! Isso era o que ela queria que as pessoas pensassem. Pois bem, a mim não me convenceu. Oh, talvez tenha convencido um pouco, a princípio. Admito que me sentia curiosa. Quem não sentia? Toda a gente falava dela, diziam que tinha sido convidada para as melhores casas de Roma por causa daquele "dom". Até o meu querido marido ficou convencido. Depois de César, foi o primeiro homem de Roma a saber da morte de Curió; no entanto, quando foi a casa de Fúlvia comunicar-lhe a notícia, Fúlvia já sabia porque Cassandra lho tinha dito. Confesso que isso foi um pouco estranho. De repente, tornou-se pensativa, como se estivesse a repensar a sua opinião. Depois abanou a cabeça. Mas não, a mulher era essencialmente uma fraude. Talvez não fosse totalmente. Talvez houvesse uma pontinha de verdade nessa ideia de que ela tinha o dom da profecia. Eu diria que era nove partes de fraude e uma parte genuína. O que te parece?

 

Não tenho a certeza.

 

Não sabias a verdade, Descobridor? Foste tu que a sepultaste. Acredita que, se já soubesse tudo sobre Cassandra, não estava aqui sentado.

 

Antónia percebeu o insulto e eriçou-se, mas depois sorriu.

 

Começo agora a recordar-me das coisas que o meu marido me contou sobre ti e sobre esse teu filho que gosta que lhe façam ditados. És terrivelmente impertinente, não és? O meu marido admira essa faceta nas pessoas comuns. Suspirou. É um vestígio da sua juventude, dos tempos em que foi casado com aquela filha de um liberto, Fádia. Ele pertence a uma das melhores famílias de Roma, mas sempre gostou de fossar na lama. Calculo que lhe dê uma certa vantagem quando tem de se tornar amado pelos soldados que comanda. Eles apreciam aquele toque de vulgaridade. E não há ninguém mais vulgar que o meu marido quando está com os copos, a arrotar e a peidar-se e a fazer festinhas àquela actriz. Citéris! Sabes onde foi que ele a viu pela primeira vez? A fazer um número lascivo de mímica em casa de Volúmnio, o banqueiro, certa noite após o jantar. A partir daquele momento, desataram os dois a fazer figura de parvos de uma ponta à outra de Itália. Até queria levá-la consigo quando foi juntar-se a César. Consegues imaginar semelhante coisa? Eu disse-lhe que não fosse idiota. "César envolvido numa luta de vida ou de morte para se tornar senhor do mundo, e tu apareces-lhe no quartel-general com o brinquedo atrás, ambos a feder a vinho e a perfume? Sabes o que César te dirá? "Por amor de Júpiter, António, poisa a espada uma vez na vida e livra-te dessa prostituta!""

 

Afastara-se demasiado do assunto de Cassandra. Eu pigarreei.

 

Ah, mas tu vieste falar acerca da outra actriz, não foi?

 

Actriz?

 

Refiro-me a Cassandra. Prefiro chamar-lhe actriz a chamar-lhe vidente. Se pensar bem nisso, talvez ela fosse uma actriz. Como Citéris, quero eu dizer. Uma profissional treinada. Isso explicaria...

 

Explicaria o quê?

 

Ela olhou-me com ar sombrio.

 

Muito bem, vou contar-te. Vou contar-te tudo. Pelo Hades, onde está o escravo? Ah, estás aí! Estou a ver-te, escondido por trás desse pilar. Vem cá imediatamente e serve-me mais vinho. Vê lá se os pavões não te mordem. E traz mais tâmaras recheadas para o grandalhão. Diverte-me vê-lo comer. Verteu outra taça de vinho pela garganta abaixo. Muito bem, assim está melhor. Voltemos a Cassandra. Cassandra, a fraude! Cassandra, a actriz? Talvez. Ouvia contar tantas coisas sobre ela, que finalmente decidi ir procurá-la...

 

Quando foi isso? Ela encolheu os ombros.

 

No final do mês de Martius, pouco depois de António ter partido de Itália. Ainda não sabia se ele tinha conseguido fazer a travessia ou não. Foi a minha desculpa para ir à procura dela, com essa pergunta específica em mente. Seja como for, encontrei-a perto do mercado, junto ao rio, sentada num molhe com as pernas suspensas sobre a borda, a resmungar sozinha. Era bonita, concedo, com um estilo um tanto vulgar, mas estava horrivelmente mal vestida. Antónia franziu o nariz. De uma maneira geral, não aguento estar perto dessa gente, mas neste caso obriguei-me a abrir uma excepção. Mandei um escravo pedir-lhe que viesse ter comigo à liteira, mas o escravo regressou a dizer que Cassandra não reagia. "Está numa espécie de transe", disse-me o estúpido do escravo. Por isso, desci da liteira e fui eu ter com ela. "Levanta-te", disse-lhe.

 

"Vem já comigo. Vou mandar-te lavar e dar-te de comer, e depois veremos se serves para alguma coisa." Cassandra ergueu os olhos para mim, mas não disse nada. Eu ia começar a falar-lhe com mais severidade, mas nessa altura ela levantou-se lentamente e veio atrás de mim até à liteira. Não disse uma palavra durante todo o caminho até minha casa; limitou-se a olhar para mim, deixando-me falar sem parar, como uma tola.

 

Imagina murmurei eu.

 

Como já te disse, fui procurá-la especialmente para lhe perguntar se António conseguiria fazer a travessia. Tinha resolvido submetê-la a um teste, compreendes? Quando chegasse o mensageiro com a notícia, verificaria se ela tinha tido razão, ou não. Mas ela foi mais escorregadia do que eu esperava.

 

Em que sentido?

 

O rosto de Antónia ensombrou-se.

 

Quando chegámos cá a casa, ofereci-lhe de comer. Ela nada aceitou. Aquilo surpreendeu-me; tinha ouvido dizer que era uma pedinte. Os pedintes não estão sempre esfomeados? Ela não gostava da minha comida? Ofereci-lhe roupas limpas. Ela ignorou-me. Ofereci-lhe dinheiro. Não quis aceitá-lo. Comecei a pensar que devia ser mesmo louca. Perguntei-lhe o que queria. Ela olhou para mim e disse: "Nada. Foste tu que me trouxeste aqui. Tu é que queres qualquer coisa."

 

"Estive quase a bater-lhe, a cabrinha impertinente! Mas decidi testá-la. "Ouvi dizer que tens visões", repliquei-lhe, "de maneira que não devo precisar de te dizer nada. Não és capaz de perceber o que eu quero recorrendo ao teu dom?" Ela disse-me: "Não é assim que as coisas funcionam." "Então como é que funcionam?" perguntei eu.

 

"Ela explicou-me que, com o passar do tempo, tinha descoberto uma maneira de induzir os acessos, contemplando uma chama. Por isso, mandei buscar uma lamparina. Ela sentou-se de um lado, e eu do outro. E foi então que fez o seu número.

 

O número?

 

Não tem outro nome. De repente, inclinou-se para diante, deitando a lamparina ao chão, e apertou-me o braço com as duas mãos. "Como te atreves a tocar-me?" disse eu. Mas ela não me largou. Limitou-se a apertar com mais força, até que eu dei um grito. Alguns dos escravos acorreram, mas mantiveram-se à distância. Tinham medo dela, estás a perceber? Tinham mais medo dela que de mim! Não podia censurá-los por isso. Ela tinha as costas arqueadas e a cabeça voltada para trás. Tinha os olhos muito abertos, mas só se via o branco. Tremia e agitava-se e movia a cabeça como se tivesse partido o pescoço, mas não me largava o braço.

 

Disse alguma coisa?

 

Oh, sim. Balbuciou uns disparates durante um certo tempo...

 

Que género de disparates? Antónia ergueu as sobrancelhas.

 

Por que estás tão interessado em saber, Descobridor? Como se explica que não saibas já? Foste tu que a sepultaste. Não estavas conluiado com ela?

 

Conluiado com ela? O que queres dizer com isso?

 

Certamente que sabes mais coisas sobre ela do que eu. Por que pensas que te abri a porta de minha casa? Porque pensei que tu pudesses dizer-me em que andava Cassandra realmente envolvida. Fazia aqueles números com o simples fito de captar as boas graças das pessoas, para conseguir que lhe dessem comida quando tinha fome, talvez umas moedas, ou roupa velha? Andaria à procura de um patrono permanente, de alguém que a sustentasse indefinidamente, enquanto ela enunciasse aqueles disparates absurdos? Ou seria algo mais sinistro? Andaria a tentar penetrar nesta ou naquela casa, à procura de coisas para roubar? Tem de se ter cuidado com esse tipo de gente; eu não a deixei sozinha nem por um momento! Ou talvez andasse em busca de informações, que pudesse usar em proveito próprio. Consigo imaginar as suas vítimas mais crédulas ocorre-me imediatamente a mulher de Cícero abrindo-se com ela e contando-lhe todo o género de segredos embaraçosos, que mais tarde poderiam ser usados contra outros. Era isso? Cassandra era uma chantagista?

 

Eu pensei naquela hipótese.

 

Não sei. Ela tentou fazer chantagem contigo?

 

Não. Mas eu também não caí na tolice de lhe contar fosse o que fosse que não quisesse que ela soubesse.

 

Como é que sabes que ela estava apenas a fazer um número? Antónia suspirou.

 

Não sabes mesmo? Então é melhor dizer-te. Depois de ela ter acabado de "profetizar" e de eu a pôr na rua, decidi mandar seguila. Tenho um sujeito que é muito bom nisso. Não pensei que ele descobrisse nada de útil. Pensei que ela se limitasse a voltar para o molhe onde eu a tinha encontrado, ou fosse meter-se numa cabana qualquer da Subura, ou lá de onde vêm essas criaturas. Mas ela dirigiu-se ao bairro que fica a seguir ao Circus Maximus. Conheces o género de canalha que vive nessa zona actores, mimos, corredores de carros, acrobatas. Quando Cassandra chegou ao seu destino, o meu homem reconheceu imediatamente o local. Quantas vezes tinha seguido o meu marido até à mesma casa!

 

Cassandra foi directamente de tua casa... para casa de Citéris?

 

Exactamente. Segundo me disseram, é uma casinha muito simpática. Foi Volúmnio, o antigo proprietário dela, quem lha comprou quando a libertou uma espécie de presente de despedida pelos muitos serviços prestados, sem dúvida nenhuma. Sabes por que motivo ele a libertou? Foi a pedido de António uma espécie de gesto de boa vontade, por meio do qual Volúmnio esperava cair nas boas graças do lugar-tenente de César. Para salvar a face, Volúmnio pôs a correr que estava farto da prostitutazinha, e que não se importava de a passar a António. Mas eu sei que ele ficou irritado. Bem, se não estava disposto a deixá-la partir, foi um imbecil em a exibir naquela festa em que António a conheceu. Dizem que foi em Alexandria, de onde é natural, que Citéris aprendeu todos os truques para seduzir um homem coisas que não ocorreria a uma mulher respeitável fazer. Foi em Alexandria que o seu primeiro proprietário, o que a vendeu a Volúmnio, a ensinou a ser actriz. Oh, eu chamo-lhe actriz, mas claro que as mulheres não estão autorizadas a representar nas peças a sério, só em espectáculos de mimos, e isso não é propriamente representar, pois não? É apenas uma série de palhaçadas, e danças seminuas, e declamações de poemas lúbricos. O género de disparates ordinários que António adora!

 

Estavas a dizer que Cassandra foi a casa de Citéris...

 

Exactamente! Que coincidência extraordinária, não achas? Imediatamente após ter estado com a mulher de António, Cassandra vai visitar a amante de António. Ou deveria dizer que vai "apresentar um relatório" à amante de António?

 

Talvez fosse visitar alguém que morasse em casa de Citéris.

 

Não, não foi. O meu homem conseguiu trepar ao telhado da casa ao lado, de onde podia espreitar para o jardim de Citéris. Já tinha feito o mesmo quando eu o mandava vigiar António. Viu Citéris receber Cassandra como se fossem velhas amigas. Depois, sentaram-se e beberam vinho juntas, e ficaram a conversar durante muito tempo.

 

Sobre quê?

 

O meu homem não conseguiu ouvir. Estavam muito longe, e falavam baixo. Mas, de vez em quando, ouvia-as rir de mim, com certeza! Bem, eu tinha mandado embora a cabra sem lhe pagar nem um sestércio, e não lhe contei nada que pudesse usar para me embaraçar, por isso receio ter estragado o esquema que elas tinham montado contra mim, fosse ele qual fosse.

 

Achas que Cassandra estava, de alguma maneira, conluiada com Citéris?

 

Claro que estava! Não estás a perceber? Eram ambas actrizes! Deve ter sido assim que se conheceram. Devem ter-se encontrado quando ambas participavam em algum espectáculo ordinário de mímica, algures entre Roma e Alexandria. Furonazinhas ambiciosas! Citéris conseguiu que a instalassem confortavelmente, graças a Volúmnio e ao meu marido. Entretanto, Cassandra era convidada para as melhores casas de Roma encenando o seu número, fingindo pronunciar profecias sob a influência de um deus qualquer, enquanto preparava quem sabe que género de malfeitorias. Quem quer que a tenha matado fez um grande favor às gentes decentes de Roma. Foi por isso que eu fui ao funeral para vê-la arder! Se ao menos alguém fizesse o mesmo a essa maldita Citéris, para eu poder ter o prazer de ver as chamas devorarem-lhe a carcaça!

 

Num ataque de fúria, atirou com a taça. Um infeliz pavão soltou um guincho e afastou-se apressadamente.

 

Compreendo por que motivo desprezas Citéris disse eu. Mas o que fez Cassandra para que a odeies tanto? Que profecia pronunciou ela?

 

Antónia olhou para mim.

 

De uma vez por todas, não se tratou de uma profecia; foi um número. Mas, se queres saber muito bem, vou contar-te. Durante algum tempo, revirou os olhos, agitando-se e murmurando uma série de ruídos ininteligíveis. Depois, gradualmente, fui começando a perceber algumas palavras. Oh, Cassandra era muito boa! Fazia com que tivéssemos de prestar atenção para conseguir ouvi-la, para melhor nos convencer de que devia estar a dizer uma coisa muito especial. Disse...

 

Antónia fixou o vazio, e hesitou durante tanto tempo, que eu pensei que tivesse decidido não me contar. Finalmente, pigarreou e prosseguiu.

 

Disse-me que via um leão, uma leoa e a jovem cria de ambos a viver numa caverna. Ouvia-se uma tempestade horrível, mas dentro da caverna tudo era calor e calma e segurança. Por fim, e apesar da tempestade, o leão foi caçar. Encontrou uma gazela, uma criatura tão bonita e tão graciosa que, em vez de a atacar, acasalou com ela. Para se vingar dele, a leoa convidou outro leão para a sua caverna, e acasalou com ele. Mas esse leão já tinha uma parceira, e não tardou a ir-se embora. E o seu parceiro inicial andava tão contente a passear pelo campo com a gazela, que nunca mais voltou. Por isso, a leoa acabou por ficar sozinha... para sempre. À excepção da cria, evidentemente...

 

Nesse momento, a criança voltou a aparecer, agora vestindo uma túnica, mas exibindo a mesma disposição mal-humorada. Atravessou o jardim a correr para ir ter com a mãe, lançando um guincho de ensurdecer, e lançou os braços em redor da cintura de Antónia. Todos os músculos de Antónia ficaram tensos. O seu rosto foi atravessado por uma tal combinação de fúria e desespero, que por momentos receei que batesse na criança. Mas ela inspirou profundamente e abraçou a filha, apertando-a com tanta força, que a rapariguinha se contorceu toda para se libertar, conseguindo finalmente o seu objectivo, e voltando a correr por onde tinha chegado, assustando os pavões à sua passagem e evitando a confusa ama que a esperava à porta.

 

Antónia ficou a olhar fixamente para a filha. O seu rosto endureceu.

 

Dado que estava a inventar tudo aquilo, para que havia de me contar histórias que só vinham confirmar os meus piores receios? Por que não inventou mentiras que me agradassem? Em troca de uma visão de um futuro feliz, talvez eu lhe tivesse dado umas moedas, e a tivesse mandado embora sem pensar mais nela. Mas não. Ela fez aquele número com o objectivo deliberado de me atormentar, e depois foi a correr ter com a sua amiga Citéris, com quem deu umas boas gargalhadas à minha custa. Ainda bem que ela morreu! Se outra pessoa não o tivesse feito, não me importava de ter sido eu a assassiná-la.

 

A quarta vez que vi Cassandra foi no dia em que Marco Célio fez a sua derradeira e mais ousada aparição no Fórum.

 

Obedecendo aos desejos de Betesda e receoso da violência que grassava, evitei ir ao Fórum durante quase um mês após o tumulto que irrompera na sequência do ataque do cônsul Isáurico ao trono de Célio. Vi passar o mês de Aprilis no jardim de minha casa, preocupado com a minha crescente dívida ao banqueiro Volúmnio, incapaz de discernir maneira de continuar a alimentar a minha família sem a aumentar ainda mais.

 

Toda a minha vida tinha evitado pedir dinheiro emprestado. Tinha mesmo conseguido fazer umas poupanças, que depositara, por razões de segurança, no banco de Volúmnio. Ele era um banqueiro com excelente reputação, em quem toda a gente, de Cícero a César, confiava. Mas, com a guerra tinha vindo a escassez, e com a escassez os preços incomportáveis, mesmo para os produtos mais básicos. Eu tinha visto as poupanças de toda uma vida serem devoradas em poucos meses por talhantes e padeiros. Volúmnio ou antes, os seus representantes, porque eu nunca lidava directamente com ele viu os meus depósitos serem reduzidos a nada, e depois ofereceu-se para me fazer um empréstimo. O que poderia eu fazer, senão aceitar? Caí na armadilha e aprendi aquilo que sabe qualquer pessoa que tenha pedido dinheiro emprestado: que uma dívida é como um bebé, começa por ser pequena, mas cresce rapidamente e, quanto maior se torna, mais alto grita por alimento.

 

Enquanto meditava no jardim, admiti com relutância para mim próprio que tinha saudades das discussões acesas do meu grupo do Fórum. Podiam ser velhos imbecis cheios de opiniões, mas pelo menos as suas queixas distraíam-me dos meus problemas; e, de vez em quando, um deles até dizia qualquer coisa inteligente. Tinha saudades de ler as Actas à Dia, que eram afixadas no Fórum com as mais recentes novidades dos movimentos de César, embora soubesse que não eram totalmente de fiar, dado que eram ditadas pelo cônsul Isáurico. Claro que Davo e Jerónimo continuavam a fazer viagens diárias ao Fórum, e vinham contar-me os mexericos mais recentes, mas estas informações em terceira mão tinham qualquer coisa de rançoso e pouco alimentício. Eu era um cidadão romano, e a vida pública do Fórum fazia parte do próprio tecido da minha existência.

 

Certa tarde, não consegui suportar mais o ócio e o isolamento. Betesda, Diana e Davo tinham ido aos mercados gastar o meu mais recente empréstimo a Volúmnio. Jerónimo estava no meu escritório a ler atentamente um volume muito antigo de As Guerras Púnicas, de Névio, que Cícero me tinha oferecido há muitos anos; era o meu rolo de pergaminho mais valioso e, até este momento, eu tinha resistido a vendê-lo, dado que não podia esperar conseguir nada que se aproximasse do seu verdadeiro valor. Entediado e inquieto, decidi fazer uma coisa que não fazia há muito tempo. Saí de minha casa sem companhia, nem sequer a de Mopso e Androcles.

 

Mais tarde, havia de me interrogar sobre o motivo que me levara a sair de casa sozinho naquele dia. Não saberia, num qualquer recanto do meu espírito, exactamente onde me conduziriam os meus passos? Decidi evitar o Fórum, pelo que atravessei o Monte Palatino e desci pela encosta leste, passando pelas Termas Senianas e percorrendo ruas cada vez mais estreitas, à medida que me entranhava no bairro da Subura.

 

Se alguém me tivesse perguntado onde me dirigia, não saberia o que responder. Tinha ido simplesmente dar uma volta, gozando o dia, tentando esquecer-me dos meus problemas durante algum tempo. E, contudo, cada passo que dava ia-me aproximando cada vez mais. Foi o ladrar do mastim molosso preso diante da porta que me sobressaltou.

 

Parei a olhar para o animal, sentindo-me entorpecido; depois, ergui os olhos para a fachada vermelho-vivo do decrépito edifício onde morava Cassandra.

 

Dirigi-me à porta. O cão parou de ladrar. Ter-me-ia reconhecido? Lembrar-se-ia de que eu tinha estado naquele prédio um mês antes, quando Rupa me transportara para o seu interior, inconsciente, e de que voltara a aparecer à porta, acompanhado por ele, um pouco mais tarde? O cão não fez qualquer objecção quando eu entrei. Olhou para mim e abanou a cauda.

 

Fui imediatamente cercado por uma mistura de odores que me era familiar a couve cozida, a urina e a humanidade por lavar. A minha memória não era tão boa como a do mastim; eu não tinha a certeza de qual era a porta que dava para o quarto de Cassandra. Todas as entradas estavam cobertas por cortinas esfarrapadas, que conferiam um certo grau de privacidade ao seu interior. Uma das cortinas, de um azul-desmaiado, pareceu-me vagamente familiar. Parei diante dela por longos momentos, à escuta, mas não consegui detectar nenhum ruído no interior. Podia tê-la chamado mas, por qualquer razão, percebi que o quarto estava vazio. Ergui a cortina e entrei.

 

Era exactamente como eu me recordava. O chão era de terra batida. Uma janela alta e estreita permitia ver o edifício amarelo que ficava ao lado, bem como um pouco de céu; da vizinhança chegava o som do metal contra o metal, proveniente da Rua dos Potes de Cobre. O único mobiliário era uma cadeira dobrável de fabrico muito deficiente e uma enxerga muito gasta, em cima da qual se via uma série de almofadas igualmente gastas. Sobre a enxerga estavam dobradas umas quantas cobertas finas. Ao lado das cobertas, avistei um curioso objecto: um pequeno bastão feito de couro. Peguei nele. Embutida à superfície, vi a marca de uns dentes humanos. Se quisesse dar-lhe nome, teria chamado àquilo um pau de morder. Voltei a pô-lo onde estava.

 

As paredes eram nuas. Não havia caixas nem bolsas onde guardar moedas ou quinquilharias. Nem sequer havia uma lamparina, para iluminar o quarto à noite. Cassandra não tinha que recear deixar o quarto sem ninguém. Não havia nada que roubar.

 

Ouvi um ruído e, quando me voltei, vi-a à entrada. Olhava-me com atenção, e deixou cair a cortina atrás de si.

 

Tinha o cabelo ligeiramente húmido e as faces vermelhas de terem sido esfregadas. Percebi que devia estar a regressar de uma visita aos banhos públicos. Em Roma, até os mendigos podem dar-se ao luxo de tomar um banho quente em troca de umas moedas.

 

Não havia surpresa no seu rosto. Era quase como se tivesse estado à minha espera. Talvez ela tenha uma espécie de segunda visão, pensei.

 

Andas a espreitar? perguntou. Não há grande coisa que ver. Se quiseres, posso prender a cortina para deixar entrar um pouco mais de luz.

 

Não, não é necessário. Afastei-me da enxerga, em direcção ao centro do quarto. Perdoa-me. Não queria bisbilhotar. Acho que foi a força do hábito.

 

Vieste a mando de alguém? Ela não parecia irritada, mas apenas curiosa.

 

Não.

 

Então, o que vieste fazer?

 

Não sei, preparava-me para responder, mas teria sido mentira.

 

Vim ver-te.

 

Ela acenou lentamente com a cabeça.

 

Nesse caso, vou deixar a entrada tapada pela cortina. Assim, teremos uma certa privacidade. De qualquer maneira, a esta hora a maior parte dos inquilinos anda lá por fora, a tentar arranjar alguma coisa que comer. Cruzou os braços. Tens a certeza de que não andavas a espiar-me? Não é para isso que as pessoas te contratam? Não é por isso que te chamam Descobridor?

 

Não me lembro de te ter dito isso.

 

Não? Nesse caso, foi outra pessoa qualquer que me disse.

 

Quem?

 

Ela encolheu os ombros.

 

O que foi que me disseste da última vez? "Não és totalmente desconhecida no Fórum." Tu também não, Gordiano. As pessoas conhecem-te de vista. Conhecem-te de fama. Talvez eu tenha sentido alguma curiosidade relativamente a ti, depois de teres estado no meu quarto. Talvez tenha feito umas perguntas, aqui e ali. Sei bastantes coisas sobre ti, Gordiano, o Descobridor. Acho que tu e eu somos bastante parecidos. Eu dei uma gargalhada.

 

Somos? Olhando para dentro daqueles olhos azuis, com uma consciência aguda da sua juventude e da sua beleza, era-me difícil imaginar uma pessoa com quem tivesse menos em comum.

 

Somos. Tu procuras a verdade; e a verdade procura-me. No fim, acabamos ambos por encontrá-la, só que de maneira diferente. Temos ambos um dom especial. Esse dom não foi escolhido por nós; escolheu-nos. O dom pertence-nos, quer queiramos, quer não, e temos de fazer o que pudermos com ele. Um dom também pode ser uma maldição.

 

Não sei se estou a compreender. As pessoas dizem que tu tens o dom da profecia, mas que dom é o meu?

 

Ela sorriu.

 

É algo muito mais valioso, em minha opinião. Disseram-me que as pessoas se sentem compelidas a fazer-te confidências, a contar-te segredos, mesmo quando não deviam. Há qualquer coisa em ti que lhes extrai a verdade. A meu ver, isso é um dom muitíssimo poderoso. Não foi graças a ele que obtiveste tudo aquilo que conquistaste nesta vida? A tua fortuna, a tua família, o respeito dos poderosos?

 

A minha fortuna, se assim lhe quiseres chamar, foi engolida por um certo banqueiro ganancioso. A minha família está desfeita. E, quanto ao respeito dos poderosos, não estou certo de que valha grande coisa. Se puderes ensinar-me uma maneira de se comer, eu preparo uma refeição com ele e tu serás a primeira a ser servida.

 

Pareces amargo, Gordiano.

 

Não. Estou apenas cansado.

 

Talvez precises de descansar. Aproximou-se de mim. O seu corpo acabado de lavar cheirava ligeiramente ao odor a jasmim que perfumava a piscina de água fria dos banhos das mulheres. Às vezes, Betesda voltava dos banhos a cheirar ao mesmo. A mão de Cassandra roçou na minha.

 

Onde está Rupa? Baixei a voz, porque ela estava muito perto de mim.

 

Ela respondeu num sussurro.

 

Anda a arranjar de comer, como toda a gente. Não deve voltar tão cedo.

 

Diversos pensamentos me cruzaram o espírito ao mesmo tempo. Pensei na loucura dos homens, especialmente dos homens da minha idade, quando se confrontam com uma mulher jovem e bela. Considerei as implicações de me aproveitar de uma mulher que tinha acessos de insanidade. Olhei Cassandra nos olhos, procurando neles algum sinal de loucura, mas apenas vi uma chama que me atraía como a uma borboleta.

 

Pus-lhe as mãos nos ombros. Aproximei a minha cara da sua. Encostei os meus lábios aos seus e fiz deslizar os braços pelo seu corpo. Apertei firmemente o seu corpo quente e esguio contra o meu. Senti uma alegria profunda, um frémito excitante de vida, como não sentia há muitos anos.

 

De repente, ela afastou-se e desligou-se de mim. Eu encolhi-me e senti-me corar. Afinal, tinha calculado mal o momento. Tinha feito figura de parvo ou teria sido ela a fazer de mim parvo?

 

Depois percebi, com um sobressalto, que Rupa tinha entrado no quarto.

 

Ele não tinha assistido ao beijo. Cassandra, cujos ouvidos estavam habituados ao som de passos no corredor, ouvira-o chegar e afastara-se de mim um momento antes de ele afastar a cortina. Mas ele estava agitado com qualquer coisa, e fazia gestos frenéticos com as mãos. Da mesma maneira que eu era capaz de interpretar os sinais que Eco usava quando era mudo, também Cassandra compreendeu o que Rupa tentava dizer-lhe.

 

Passou-se qualquer coisa no Fórum disse ela.

 

Não está sempre a passar-se? perguntei eu.

 

Não, isto é diferente. Foi uma coisa importante. Uma coisa em grande. Acho que tem a ver com aquele magistrado que tem andado a arranjar problemas.

 

Marco Célio? Olhei para Rupa, que me respondeu com um aceno exagerado de cabeça. Depois fez o sinal universal de uma mão passada pelo pescoço como se fosse uma lâmina.

 

Célio morreu? perguntei eu, alarmado.

 

Rupa acenou com a mão.

 

Ainda não interpretou Cassandra mas talvez isso aconteça muito em breve.

 

Rupa pegou-lhe na mão e levou-a consigo. Mesmo então, e apesar de confuso pela súbita reviravolta nos acontecimentos, perguntei a mim próprio por que motivo estaria uma humilde pedinte como Cassandra tão interessada no destino de um político como Célio. Nas duas ocasiões anteriores em que Célio causara problemas no Fórum, ela estivera presente. Seria apenas coincidência?

 

Não tive muito tempo para meditar no assunto, porque fui apanhado na corrida em direcção ao Fórum, atrás de Rupa e Cassandra.

 

Quanto mais nos aproximávamos do Fórum, mais gente havia nas ruas. Tal como Rupa dissera, passava-se qualquer coisa em grande, que provocava agitação e atraía pessoas de todos os pontos da cidade. Em Roma, as notícias espalham-se mais depressa que o fogo, de telhado em telhado, de janela em janela. As pessoas saíam a correr dos edifícios e das ruas transversais, para se juntarem à multidão, como afluentes correndo para um rio.

 

No ponto onde desembocava no Fórum, a rua estava completamente entupida. Atrás de nós, as pessoas continuavam a acorrer, tornando-se impossível avançar, mas também recuar. Senti um arrepio de medo. Se a violência irrompesse entre a multidão, podia haver pânico, seguido de uma debandada. Amaldiçoei o meu azar. Durante um mês, mantivera-me longe do Fórum, receando exactamente uma situação deste género. No dia em que decidira sair, via-me literalmente no meio dela.

 

Porém, a par do medo, senti um arrepio diferente, e muito mais agradável, que provinha em parte da simples excitação de me encontrar no meio de uma multidão, mas provinha sobretudo da proximidade com Cassandra. Ao ser empurrado, dei por mim encostado a ela, sentindo o calor do seu corpo, e o cheiro a jasmim da sua pele. Ela voltou-se para olhar para mim, e eu vi nos seus olhos o reflexo do mesmo medo e da mesma excitação que eu sentia.

 

Olhei em redor e avistei uma ruela estreita, uma transversal. Algumas pessoas emergiam dessa rua, tentando juntar-se à multidão, mas ninguém tentava subi-la. A zona a norte do Fórum é um labirinto de ruelas sinuosas, que fazem curvas imprevisíveis ou são becos sem saída. Eu franzi a testa, tentando recordar-me de onde ia dar aquela viela.

 

Venham! disse. Venham comigo.

 

Rupa hesitou, de sobrolho franzido, mas Cassandra pegou-lhe na mão e puxou-o. Abri caminho por entre a multidão, à força de cotoveladas e pisadelas, até chegarmos finalmente à viela, onde ficámos livres da multidão.

 

Sentes-te mal, Gordiano? perguntou Cassandra. Eu dei uma gargalhada.

 

Pensaste que era por isso que queria fugir do aperto? Não desmaio sempre que me encontro no meio de uma multidão. Embora valesse a pena, pensei, se pudesse ver o teu rosto diante de mim sempre que acordasse.

 

Conduzi-os pela viela, que dava voltas e mais voltas, como uma serpente, de tal maneira que era impossível ver para diante, em especial nos pontos em que os muros de ambos os lados se aproximavam de tal maneira que, se eu abrisse os braços, conseguia tocar num e noutro simultaneamente. A viela dividia-se em duas, e eu tive de fazer uma pausa para me recordar por qual delas seguir. Rupa mostrava-se cada vez mais desconfiado, abanando a cabeça e insistindo com Cassandra, por meio de sinais, para que voltássemos para trás. Percebi que ela hesitava, que já não tinha a certeza se devia confiar em mim, ou não.

 

Chegámos ao fim da viela, que não tinha saída. As paredes de ambos os lados eram de tijolo sólido. E, na parede que tínhamos diante de nós, havia uma porta estreita instalada na pedra. Rupa resfolegou e puxou Cassandra pelo braço.

 

Esperem! disse eu. Bati à porta. Não obtive resposta. Bati de novo, com mais força. Por fim, abriu-se um orifício de segurança, pelo qual espreitou um olho remeloso.

 

Gordiano! Ouvi o meu nome do outro lado da espessa porta de madeira. Momentos depois, ela abriu-se lentamente, com as dobradiças a ranger, e apareceu a figura curvada de um velho apoiado numa muleta. Tínhamos ido bater à porta das traseiras da loja de Dídio, um velho conhecido meu. A parte da frente da loja dava para a zona norte do Fórum. Dídio vendia produtos diversos, necessários ao exército de funcionários que trabalhavam nos templos e escritórios oficiais das redondezas cabos e cordel para ligar os rolos de pergaminho, pergaminhos e tintas egípcias, estiletes e tabuinhas de madeira, e outros objectos destinados à produção de livros e registos. Também se especializara na cópia de documentos; o trabalho era realizado por um pequeno grupo de escribas, que trabalhavam dia e noite. Alguns dos documentos que passavam pela sua loja continham informações sensíveis, e a profissão de Dídio permitia-lhe conhecer mais segredos do que a maioria dos seus clientes tinha consciência. Ao longo dos anos, fora um conhecimento útil.

 

Gordiano! exclamou ele. Há meses que não te via. Desde que aí vieste com aquela cópia de Píndaro que tinha apanhado água e precisava de ser reparada.

 

Foi assim há tanto tempo? Dídio, estes são... Hesitei, sem saber como designá-los. Dois amigos disse por fim, Cassandra e Rupa. Queríamos ver se podíamos passar pela tua loja para o Fórum.

 

Oh não respondeu Dídio. Está imensa gente lá fora. É uma loucura! Fechei as portadas e tranquei-as com barras. Mas, se quiseres assistir, podes vir até ao telhado, que é onde estamos todos.

 

Todos?

 

Todos os meus empregados. Não podem, de maneira nenhuma, continuar a trabalhar no meio de toda esta demência. E do telhado temse uma vista excelente de Célio e Trebónio, e dos respectivos tribunais, pelo menos foi o que me disseram. Eu já não vejo bem àquela distância. Venham, vou mostrar-vos. Despachem-se! Quem sabe o que pode acontecer nos próximos instantes?

 

Atravessámos o armazém e a loja, atrás dele. As portas e as janelas estavam trancadas, deixando o compartimento na escuridão. A um canto, havia uma escada que ia dar ao andar superior. Dídio poisou a muleta e foi à frente. Coxeava um pouco, mas era surpreendentemente ágil. Emergimos na sala onde trabalhavam os escribas; na sequência da obscuridade do andar de baixo, a luz brilhante proveniente das janelas altas feriu-me os olhos. Inspirei o odor de pergaminho e tinta frescos.

 

Dídio subiu outra escada. Eu seguia atrás dele, com Cassandra e Rupa atrás de mim. Pela abertura do alto, avistava-se um fragmento de céu.

 

Um dos escravos que se encontravam no telhado viu Dídio subir a escada a manquejar e estendeu a mão para baixo para o ajudar. Quando emergimos no telhado, os escribas, que estavam encostados ao parapeito baixo, abriram caminho para dar lugar ao seu senhor e aos respectivos convidados. Tal como Dídio nos tinha prometido, tínhamos uma excelente visão do Fórum e dos dois tribunais rivais.

 

Estou a ver Célio disse eu mas onde está Trebónio? O tribunal dele está completamente vazio sem lictores, sem funcionários... sem Trebónio.

 

Deve ter fugido observou Dídio com sarcasmo. Não me surpreende. A retórica de Célio contra ele era escaldante. Pouco lhe faltou para incitar a multidão a expulsar Trebónio do tribunal e a esquartejá-lo, membro a membro. Provavelmente, Trebónio teve o bom senso de bater rapidamente em retirada, enquanto podia.

 

Baixei os olhos para a multidão compacta e agitada que rodeava Célio, que discursava e gesticulava de forma extravagante. Devido ao barulho da multidão, não consegui perceber o que ele dizia.

 

O que está ele a dizer? perguntei a Dídio.

 

Foi o mais longe que podia.

 

O que queres dizer com isso?

 

Célio fez a sua jogada definitiva, pelo menos foi o que me pareceu. É difícil imaginar que possa ir mais longe do que isto nos seus esforços para agradar à multidão. A verdade é que ele está prestes a ser preso. Portanto, não tem vantagem nenhuma em se conter.

 

Preso? Como é que sabes?

 

Porque ontem o cônsul Isáurico veio pedir-me que fizesse várias cópias do Decreto Final. Normalmente, seriam feitas pelos escribas do Senado, mas presumo que Isáurico quisesse tantas cópias em tão pouco tempo, que teve de me entregar uma parte do trabalho.

 

Foi uma encomenda sensível.

 

Foi essa a advertência de Isáurico. Eu enunciei um preço e prometi-lhe que não dizia nada a ninguém.

 

Ao longo da minha vida, o Decreto Final apenas fora invocado pelo Senado uma mão-cheia de vezes. Declarava o estado de emergência e conferia aos cônsules o poder de utilizarem todos os meios necessários para protegerem o estado de um perigo iminente. Cícero convencera o Senado a invocá-lo contra Catilina e a seus alegados conspiradores, e utilizara-o para justificar a execução de prisioneiros armados (um dos quais fora o padrasto de António outro motivo para o ódio antigo que António tinha por Cícero). Mais recentemente, Pompeu e a sua facção tinham invocado o Decreto Final contra César, o que o incitara a atravessar o Rubicão. Por que haveria Isáurico de mandar fazer cópias do Decreto Final, a não ser que pretendesse invocá-lo? E contra quem haveria de querer fazê-lo, senão contra Marco Célio?

 

Olhei para Dídio.

 

E cumpriste?

 

Cumpri o quê?

 

Não disseste nada a ninguém?

 

Dídio lançou um olhar a Cassandra e a Rupa. Estavam ambos a olhar intensamente para o espectáculo que tinha lugar ao longe, mas apesar disso ele baixou a voz. Encolheu os ombros e apontou para Célio.

 

O que posso eu dizer? Sempre gostei de Célio. Ao longo dos anos, ele encomendou-me uma série de livros! Gosta de os dar aos amigos, como presente. Rolos finos de poesia erótica, esse género de coisas; tem um gosto impecável. As suas posições políticas nem sempre me agradam, mas gosto dele. Esta última campanha em que se envolveu, de ataque aos banqueiros e aos proprietários é um bocado balofa, se queres que te diga. Não vai resultar em nada, mas não posso deixar de lhe admirar o espírito. Por isso, decidi fazer-lhe um favor. Sussurrei uma palavra discreta a um ouvido adequado. Célio recebeu a mensagem. Pensei que, hoje de manhã, recebêssemos a notícia de que tinha fugido da cidade, mas ali está ele. Presumo que ache que poderá tirar partido do momento. Talvez esteja a ser inteligente mas, se queres saber a minha opinião, está a arriscar demasiado. Não se pode dizer que lhe falte coragem! Mas veremos se continua activo ao anoitecer.

 

Há bocado disseste que Célio tinha ido o mais longe que podia. O que querias dizer com isso?

 

Está outra vez a propor nova legislação. Acabaram-se as meias-tintas, diz ele. Chegou o momento da imediata e total abolição de todas as dívidas. De limpar os registos! De começar de novo! Imaginas o caos que semelhante medida provocaria? Mas não são poucas as pessoas a quem a ideia agrada. Olha para eles, circulando em redor de Célio e entoando o nome dele com força tal, que nem sequer se ouvem as suas palavras. A ralé adora-o como adorava Clódio e, antes dele, Catilina.

 

E César, ainda não há muito tempo observei eu. Dídio abanou a cabeça.

 

As pessoas têm medo de César. Mas alguém o amará de facto, à excepção dos seus soldados? Deixa-me dizer-te que não censuro César por se recusar a fazer a vontade à ralé. Um demagogo como Célio pode prometer a Lua, mas se de repente desse por si à frente do estado, com um tesouro para encher, uma guerra para travar e uma distribuição de trigo para fazer, mudava a música da noite para o dia.

 

Acenei com a cabeça na direcção da multidão.

 

O que estamos nós a ver ali em baixo, Dídio? Isáurico já anunciou o Decreto Final contra Célio?

 

Ainda não. Está a ser debatido no Senado. Pode ser anunciado a qualquer momento. Acho que Isáurico tinha esperança de que fosse uma surpresa, para poderem apanhar Célio sem problemas. Mas, agora que se tornou conhecido, é tarde de mais.

 

Por quê hoje? O que foi que levou Isáurico a tomar esta medida? Saberia que Célio tencionava anunciar este plano de abolição de todas as dívidas?

 

Quem sabe qual dos jogadores pestanejou primeiro, obrigando o outro a reagir? Tinha de acontecer qualquer coisa deste género; há meses que a luta entre Célio e os outros magistrados aumentava de tom. Se queres saber a minha opinião, acho que Isáurico avançou porque tem tropas à sua disposição. Chegaram à cidade há uns dias, destinadas a ir juntar-se a César. Isáurico convenceu-as a demorar-se uns dias. Com essas tropas à mão, dispõe de músculo para usar contra Célio, se for preciso, pelo que chegou o momento de Isáurico erguer o bastão e tocar a corneta. Se o Senado aprovar o Decreto Final e certamente que o fará, Célio apenas terá mais umas horas de liberdade, talvez mesmo uns minutos, de maneira que resolveu lançar os dados pela última vez. Esta promessa absurda de abolição das dívidas é o seu Lance de Vénus, a jogada que voltará o desafio a seu favor.

 

Ao ouvir Dídio, eu senti aquele calafrio que um homem sente quando se permite imaginar que o impossível podia realmente acontecer. E se Célio conseguisse efectivamente suscitar uma revolução contra Isáurico e Trebónio e os restantes magistrados nomeados por César? E se perturbasse as expectativas de todos, tornando-se ele, e não Pompeu, e não César o novo senhor de Roma? E se um homem sozinho, canalizando a fúria da ralé de Roma, fosse capaz de, abruptamente, virar o mundo ao contrário, expulsando os ricos de suas casas e melhorando a vida dos pobres? Para isso, Célio teria de conseguir conquistar o apoio de algumas legiões. Podia acontecer. Se César fosse morto e as suas tropas ficassem órfãs, poderiam ser atraídas por um chefe carismático com ideias ousadas, por um homem como Célio...

 

Era apenas uma fantasia, evidentemente, assustadora e fascinante de imaginar, mas em última análise impensável. Depois, recordei-me de que, há pouco mais de um ano, teria sido impensável que César se atrevesse a atravessar o Rubicão e a marchar sobre Roma como um bárbaro invasor.

 

Olha para aquilo! disse Dídio. Eu já não vejo bem, Gordiano, mas não estou a ver chegar uns homens provenientes do Senado?

 

Estás de facto, Dídio. Homens armados, uma tropa inteira, que abrem caminho por entre a multidão. E, mais atrás, parece-me avistar um cordão de lictores, com Isáurico no meio. Não percebi se tinha havido derramamento de sangue, mas os homens que a tropa dispersava ao passar estavam a gritar, num alarido tal, que se erguia acima dos cantos e aplausos roucos da multidão que rodeava Marco Célio. Também este pareceu ouvir esse barulho, porque ergueu as mãos a pedir silêncio. Momentos depois, todas as cabeças se voltaram na direcção do Senado. Os gritos da multidão em fuga ecoaram no Fórum, juntamente com outro ruído, porque nem todos os que fugiam o faziam passivamente; alguns lançavam pedras aos soldados, que reagiram formando em tartaruga e protegendo-se com os escudos, com que resguardavam o corpo e a cabeça.

 

As pedras voadoras atingiam os escudos com um ruído que parecia de granizo caindo com toda a força sobre um telhado. Este barulho animou a multidão que rodeava Célio, que começou a entoar: Abolição de todas as dívidas! Banqueiros para a bancarrota! Abolição de todas as dívidas! Banqueiros para a bancarrota!

 

Continuei a observar a cena, apavorado. Em Massília, durante o período mais agudo do cerco, tinha assistido a uma coisa parecida cidadãos lançando pedras aos próprios soldados. O facto de numa cidade se atingir semelhante nível de desordem era terrível. Mas, quando isso se passava em Roma, tornava-se aterrador.

 

De repente, ouviu-se um coro de gargalhadas proveniente da multidão que rodeava Célio, que se pavoneava sobre a plataforma elevada com o trono na mão. Franzi os olhos, para tentar perceber de que estariam a rir-se. Era o mesmo trono deliberadamente simples, modestamente ornamentado, que Célio usara até então, e que Isáurico tinha partido num acesso de raiva. Tinha sido reparado, não com madeira, mas com tiras de couro. De repente, percebi a gracinha de Célio, tipicamente retorcida, cruel e ordinária. A única anedota que corria sobre Isáurico tinha a ver com o temperamento do pai dele, e a circunstância de, em criança, Isáurico ser regularmente açoitado com uma tira de couro. Quando os outros o picavam com o facto, Isáurico tentava transformar em virtude a violência do pai, dizendo que a disciplina o tinha enrijecido. Fez-lhe o rabo duro, diziam as pessoas, nas costas de Isáurico. Quando este lhe partiu o trono, Célio vingou-se mandando-o arranjar com tiras de couro que recordariam a toda a gente a lendária violência do pai de Isáurico e o acesso temperamental do próprio cônsul. Agora que Isáurico se aproximava rapidamente, seguido por uma companhia de tropas armadas, Célio, provocador até ao fim, erguia o trono para divertimento da multidão era a sua maneira de fazer uma careta ao Decreto Final.

 

Por cima das gargalhadas e do ruído das pedras embatendo nos escudos ainda longínquo, mas aproximando-se a passos largos, ouvi as sonoras palavras de despedida de Célio:

 

A vergonha abateu-se sobre os lacaios de César, que se atrevem a chamar-se magistrados eleitos! Renuncio ao meu cargo! Renuncio ao meu trono! Mas hei-de voltar! E, com isso, atirou o trono, que foi parar ao meio da multidão. Os homens acorreram, tentando ficar com pedaços dele como recordação. Desfizeram o trono, lançando as tiras de couro por cima das suas cabeças.

 

Quando voltei a olhar para o tribunal, Célio tinha desaparecido.

 

Mas onde...? sussurrei.

 

No ar respondeu Dídio, como um feiticeiro! Momentos depois, as tropas armadas abriram caminho por entre a multidão que rodeava o tribunal. Chegou Isáurico, rodeado pelos seus lictores e com ar furioso.

 

Abolição de todas as dívidas! Banqueiros para a bancarrota! gritava a multidão.

 

Célio não se via em parte nenhuma.

 

Olhei para Cassandra, que assistia ao espectáculo com o mesmo entusiasmo com que todos nós o observávamos. Pareceu-me ter detectado um vago e esquivo sorriso nos seus lábios.

 

Foram lançadas mais algumas pedras mas, com o desaparecimento de Célio, nem a ralé, que viera adorá-lo, nem os soldados, que tinham vindo prendê-lo, tinham motivos para permanecer por ali. A multidão começou a dispersar.

 

Quando olhei de novo em redor, à procura de Cassandra, ela e Rupa tinham desaparecido com a mesma limpeza com que Marco Célio o fizera.

 

Fiquei a conversar com Dídio mais algum tempo, e depois fui-me embora. Senti um desejo intenso de regressar ao apartamento de Cassandra, mas para quê? Por esta altura, a minha família já devia ter-se apercebido da minha ausência, e teria tido conhecimento do que se passara no Fórum. Betesda devia estar preocupada.

 

Apressei-me a regressar a casa, preparando-me para a recepção que me esperava. Mas, quando cheguei, ligeiramente ofegante por ter subido à pressa o Monte Palatino, foi Diana quem me acolheu. Tinha a testa enrugada de preocupação, como a sua mãe a tivera tantas vezes.

 

Calculo que vos tenha incomodado um bocadinho disse eu, acanhadamente. A tua mãe...

 

A mãe foi-se deitar disse Diana baixinho.

 

A meio da tarde?

 

Começou a sentir-se tonta quando estávamos no mercado. Sentia-se tão mal, que teve de voltar imediatamente para casa. Diana franziu o sobrolho. Só espero que não seja nada de grave.

 

Foi a primeira manifestação da prolongada doença de Betesda, que nos meses seguintes lançaria sombras profundas sobre a minha casa.

 

Calculo que estejas cheio com as tâmaras recheadas que comeste em casa de Antónia, e que não precisemos de ir procurar que comer antes da nossa próxima etapa disse eu a Davo.

 

Eram muito boas observou ele.

 

Terei de acreditar em ti. Receio que a nossa anfitriã me tenha estragado o apetite.

 

Parecia ser uma mulher muito infeliz.

 

Tipicamente, Davo, ficas aquém da realidade. Calculo que devíamos tentar ser compreensivos com ela. Não deve ser fácil estar casado com um sujeito como António.

 

Infeliz repetiu ele, pensativo e amarga. Foi muito cruel quando falou de Cassandra. Disse que gostaria de tê-la matado, se outra pessoa não se tivesse encarregado já de o fazer.

 

Sim, Davo, eu ouvi o que ela disse.

 

Onde vamos agora, sogro?

 

Acho que chegou o momento de irmos visitar uma certa actriz famosa, que mora perto do Circus Maximus.

 

Davo acenou com a cabeça, e depois meteu a mão dentro da toga. Tirou uma tâmara recheada e meteu-a na boca. Viu-me olhar para ele.

 

Desculpa, sogro. Queres uma? Tenho muitas.

 

Davo! Meteste uma mão-cheia delas dentro da toga quando eu não estava a olhar?

 

Antónia disse-me que tirasse quantas quisesse replicou ele, na defensiva.

 

Pois disse. Devias ter sido advogado, Davo. Nem Cícero era capaz de finura comparável à tua!

 

Não tivemos dificuldade em encontrar a casa de que andávamos à procura. Todos os habitantes de Roma conheciam Citéris, e todos os habitantes do bairro do Circus Maximus sabiam onde ela morava. Uma velhota que vendia ameixas de um cesto deviam ser de ouro, a avaliar pelo preço que pedia por elas indicou-nos a direcção geral, ao fundo da larga avenida que contorna o muro sul do circus. Passámos por uma trupe de acrobatas que estavam a treinar na rua, para delícia de uma multidão de miúdos. Um grupo de corredores de carros vestidos de verde aproximava-se em sentido contrário. Estavam cobertos de pó, traziam os chicotes enrolados à volta do antebraço e barretes de couro na cabeça. Pedi ao chefe indicações mais específicas.

 

Foi muito directo na sua resposta mas, quando já íamos a afastar-nos, voltou-se para nos gritar:

 

Vejam lá se António vos apanha!

 

Ou ele ou o velho banqueiro gordo! acrescentou um dos companheiros, fazendo estalar o chicote no ar, no meio de um coro de gargalhadas roucas.

 

Tal como Antónia me tinha dito, tratava-se de uma casa com ar muito respeitável, arrumada numa transversal estreita e calma. Reparei na figueira pela qual o escravo dela teria subido ao telhado da casa vizinha, para espreitar para o jardim de Citéris, espiando a conversa da actriz com Cassandra.

 

Davo bateu à porta. Esperámos. Disse-lhe que voltasse a bater. O Sol estava na vertical. Aparentemente, as pessoas levantavam-se tarde em casa de Citéris. Não fiquei surpreendido.

 

Finalmente, uma jovem de olhos inchados veio abrir-nos a porta. Era espantosamente bela e estava espantosamente desarranjada, com o cabelo castanho solto e emaranhado e a túnica de dormir repuxada num dos ombros. A sua informalidade era muito reveladora do ambiente da casa. Mulheres como Citéris eram raras: tratava-se de uma escrava originária de uma terra estrangeira, que tinha conseguido, por artes da sua inteligência e da sua beleza, tornar-se uma liberta independente e bem sucedida. Vivendo em Roma sem parentes, era natural que se rodeasse de escravos que fossem quase tanto amigos como eram servos, companheiros em quem confiasse, e a quem proporcionaria uma liberdade que uma senhora altiva como Antónia (ou Fúlvia, ou Terência) jamais permitiria. Estes escravos partilhariam, de certa maneira, a vida notoriamente debochada da sua senhora; deitar-se-iam tarde como ela, levantando-se igualmente tarde, e pouco lhes importaria atender à porta de roupão.

 

A mulher que veio à porta olhou Davo de alto a baixo, apreciando-o mais ou menos como ele próprio tinha apreciado as tâmaras recheadas em casa de Antónia. Embora os seus olhos cor de avelã tivessem acabado por se fixar em mim, reconhecendo que era mais provável que o mais velho dos dois dirigisse as operações, pareceu nem me ver, e certamente que não me prestou a atenção que dedicou a Davo, como se eu não fosse um homem, mas apenas a sombra de um homem. De facto, à medida que vamos envelhecendo, vamo-nos tornando cada vez mais invisíveis, até que as pessoas deixam de nos ver, mesmo quando olham directamente para nós.

 

E, contudo... Cassandra tinha-me visto. Para ela, eu não fora invisível; para ela, eu continuava a ser uma presença viva, um homem de carne e osso, vigoroso, robusto, existindo naquele momento, cheio de vida e de sensações. Não era de espantar que eu me tivesse sentido tão vulnerável; não era de espantar que me tivesse deixado dominar tão completamente pelo seu feitiço...

 

Os meus pensamentos, que tinham começado a vaguear, foram de novo atraídos ao presente por uma gargalhada da mulher, que foi cortante, sem ser cruel.

 

Estás com ar de quem te fazia bem beber qualquer coisa! disse, provando que afinal eu era visível para ela: era um homem grisalho, com ar sombrio, metido dentro de uma toga.

 

Preferia que fosse a tua senhora a decidir se há-de oferecer-me de beber lancei eu.

 

A minha senhora? Ela ergueu uma sobrancelha. De repente, percebi que estava a falar com a própria Citéris. Ela viu no meu rosto o momento em que essa consciência tomou conta de mim e deu outra gargalhada.

 

Depois, a sua expressão tornou-se mais séria. És o Gordiano, não és? Vi-te no funeral. E também vi este aqui...

 

Este é Davo, o meu genro.

 

É casado, hein? Disse a palavra como se se tratasse de um desafio, e não de uma desilusão. É melhor entrarem os dois. Os meus vizinhos sentem-se sempre muito fascinados com todas as pessoas que vêm bater-me à porta; é provável que já vos tenham visto, e tenham ido a correr espalhar mais mexericos sobre mim. Devem ter uma vida horrivelmente entediante, não achas, para se deixarem fascinar desta maneira por uma simples rapariga de Alexandria?

 

Puxou-nos para dentro, bateu com a porta e acompanhou-nos até um pequeno átrio, e em seguida por um curto corredor. As salas por onde passámos eram pequenas, mas estavam elegantemente mobiladas. O pequeno jardim do centro da casa era dominado por uma estátua de Vénus, colocada num pedestal e ligeiramente mais pequena que o tamanho natural. Aos cantos do jardim, havia estátuas de sátiros em estados de exuberante excitação, parcialmente ocultos pelos arbustos, como se estivessem escondidos, a espreitar a deusa do amor. Seria assim que Citéris se via, a si própria e aos seus pretendentes?

 

Espanta-te que eu tenha ido pessoalmente abrir a porta de minha casa comentou alegremente. Vocês, os Romanos, são sempre tão rigorosos com esse género de coisas, tão preocupados com o decoro! É que não imaginas o que obriguei os pobres escravos a fazer nas duas últimas noites! É perfeitamente razoável que os deixe dormir um pouco mais esta manhã. Ainda é manhã? Deteve-se ao lado da estátua de Vénus e olhou para o Sol de olhos franzidos.

 

Eu contemplei o jardim, e registei as consequências de uma festa que acabara em embriaguez. Viam-se cadeiras e mesinhas de tripé dispersas, algumas deitadas de lado. Taças de vinho abandonadas aqui e além, com moscas sobrevoando as borras cor de carmesim. Instrumentos musicais diversos pandeiretas, chocalhos, flautas e liras confusamente empilhados de encontro a uma parede. Deitado no chão ao lado de um dos sátiros, semioculto por entre os arbustos, um jovem e belo escravo ressonava suavemente.

 

É ele que está encarregado de atender à porta disse Citéris, aproximando-se do escravo. Pensei que fosse dar-lhe um pontapé, mas ficou a olhá-lo com um sorriso enternecido. É um fauno tão querido. Até a ressonar é querido, não acham? Depois, deu-lhe de facto um pontapé, mas ao de leve, picando-o com a ponta do pé até ele se agitar, levantando-se com ar vacilante, a sacudir as folhas que lhe tinham ficado no cabelo preto e encaracolado. Viu que a sua senhora tinha visitas e, sem que lho ordenassem, endireitou três cadeiras e colocou-as à sombra, desaparecendo em seguida dentro de casa, a pestanejar e a esfregar os olhos.

 

Traz o melhor Falerniano, Crísipo! gritou Citéris. Não tragas a zurrapa barata que mandei servir àquele bando de actores e mimos turbulentos que cá estiveram ontem à noite.

 

Sorriu, convidou-me a sentar e finalmente observou-me com atenção. Senti-me pouco à-vontade ao ser sujeito ao seu escrutínio.

 

Sim disse ela, percebo agora o que foi que Cassandra viu em ti. "São os olhos, Citéris", disse-me certa vez. "Ele tem uns olhos extraordinários parece um rei velho e sábio, saído de uma lenda."

 

Ter-me-ei contraído? Terei corado? Citéris olhou para mim, depois para Davo, e novamente para mim, e apertou os lábios.

 

Oh, valham-me os deuses, fui indiscreta? perguntou. Tens de me dizer imediatamente se posso falar-te com toda a clareza ou não. Não sou do género de conter a língua, a não ser que me digam para o fazer. Talvez seja preferível pedires ao teu genro, que está a olhar para nós de sobrolho franzido, para se afastar um pouco enquanto nós conversamos embora fosse uma pena.

 

Não, deixa-o estar. Não vale a pena esconder seja o que for acerca de Cassandra... agora que ela morreu. Foi por isso que vim falar contigo. Deves tê-la conhecido muito bem, para ela te ter falado de si... e de mim.

 

Ela olhou-me de esguelha.

 

Como tu próprio disseste, agora que ela morreu, não vale a pena ocultar seja o que for, pois não? Com quem mais falaste acerca dela?

 

Tenho andado a visitar as mulheres que estiveram no seu funeral: Terência, Fúlvia, Antónia...

 

Ah! Não é provável que nenhuma dessas galinhas te diga o que quer que seja de importante acerca de Cassandra, a não ser que tenha sido uma delas a matá-la. Tremeram-lhe os lábios, mas voltou a animar-se ao ver regressar Crísipo com um jarro e três taças. Não me apetecia beber, mas só um louco recusaria uma oferta de um bom Falerniano, especialmente em tempos difíceis como os que corriam. O sabor forte brincou-me na língua e encheu-me a cabeça, como uma névoa quente e reconfortante.

 

Terência e Fúlvia acham que Cassandra era realmente vidente. Ambas tinham enorme respeito por ela observei eu.

 

Mas Antónia não?

 

Antónia tem uma opinião diferente. Acha que Cassandra era uma impostora.

 

E os acessos de profecia de Cassandra?

 

Eram encenados. Citéris sorriu.

 

Antónia não é parva nenhuma, seja qual for a opinião que o seu querido marido tem sobre ela.

 

Antónia tem razão?

 

Citéris meditou na resposta antes de dizer:

 

Até certo ponto.

 

Eu franzi o sobrolho. Citéris sorriu. Parecia divertida com o meu espanto. O sorriso aumentou para um bocejo, e ela esticou os braços acima da cabeça. O movimento fez com que o seu tronco se movesse de forma surpreendente, por baixo da túnica solta. Até os seus movimentos mais casuais eram marcados pela graciosidade de uma dançarina. Eu teria amaldiçoado aquele sorriso condescendente, se ele não a tornasse ainda mais bela. Olhei para os sátiros de pedra semiocultos nos cantos, contemplando com ar concupiscente a deusa em quem nunca tocariam, e senti uma estocada de simpatia por eles.

 

Queres que eu te explique? perguntou ela.

 

Ficava-te agradecido se o fizesses.

 

Por onde hei-de começar? Por Alexandria, talvez. Foi aí que a conheci, quando éramos ambas pouco mais que crianças. A minha mãe era escrava; mas desde muito cedo que alguém detectou em mim talento para a dança, e fui vendida ao dono de uma trupe de mimos e não era uma trupe qualquer, era a mais antiga e mais famosa de Alexandria. O homem gostava de afirmar que os seus antepassados tinham actuado diante de Alexandre, o Grande. Os habitantes de Alexandria andam sempre a dizer esse género de coisas. Mas a verdade é que a trupe remontava há várias gerações. Aprendi a dançar, a recitar e a fazer mímica com alguns dos melhores artistas de Alexandria, o que significa que eram os melhores do mundo.

 

E Cassandra?

 

O senhor adquiriu-a e levou-a para a trupe pouco depois de me ter comprado a mim. Eu tinha imensos ciúmes dela. Sabes uma coisa, acho que foi a primeira vez que confessei isto a alguém.

 

Ciúmes? Por quê?

 

Porque ela tinha muito mais talento do que eu em tudo! Tinha dotes extraordinários. Era capaz de recitar Homero e pôr os espectadores a chorar, ou de os fazer chorar a rir recitando uma fábula de Esopo. Dançava que parecia um véu flutuando na brisa. Cantava como um passarinho, e fazia-o em qualquer língua porque ela aprendia línguas com a mesma facilidade com que nós apanhávamos as jóias que os admiradores nos atiravam da plateia. E fazia tudo isto aparentemente sem qualquer esforço. Ao lado dela, eu sentia-me tola, desajeitada, suada, com voz de pato.

 

Tenho alguma dificuldade em acreditar nisso, Citéris.

 

Isso é porque nunca nos viste representar lado a lado.

 

Devias odiá-la.

 

Odiá-la? Citéris suspirou. Pelo contrário. Nessa altura, éramos muito, muito amigas, Cassandra e eu. Foram belos tempos, esses que passámos em Alexandria...

 

Chamas-lhe Cassandra, mas não é possível que fosse esse o seu verdadeiro nome.

 

Ela sorriu.

 

O mais curioso é que era mesmo assim que nós lhe chamávamos, mesmo nessa altura. Mas tens razão. Quando chegou, ela tinha outro nome. Mas, sabes uma coisa, esqueci-me completamente qual era. Era um nome sármata, totalmente impronunciável; ela era natural de um sítio qualquer, na outra extremidade do Mar Euxino. Mas logo a seguir reI presentou o papel de Cassandra num novo espectáculo de mimos que o senhor tinha escrito. Na realidade, era apenas uma sátira ordinária; consegues imaginar uma Cassandra cómica? Mas ela era hilariante, cambaf leava de um lado para o outro, importunava as outras personagens, fazia profecias insolentes e dizia frases com duplo sentido acerca dos funcionários da cidade e do Rei Ptolemeu. As pessoas gostaram tanto, que exigiam ver aquele número sempre que havia espectáculo. Ela causou semelhante impressão com aquela personagem, que o nome pegou, e passou a ser conhecida por Cassandra.

 

Citéris contemplava a taça do vinho com ar pensativo, fazendo rodopiar o Falerniano.

 

Nesta vida, como começamos assim continuamos. Isso aplica-se em especial aos actores. Se tivermos sorte, atribuem-nos um papel que se adapta bem a nós, e desempenhamo-lo impecavelmente. Eu especializei-me no papel da libertina, da sedutora... Já vês onde isso me levou! Cassandra representou... Cassandra. Calculo que o mesmo se passe contigo, Gordiano. Não é verdade que, até certo ponto, o papel do Descobridor foi um papel que assumiste quando eras jovem, que foste aperfeiçoando gradualmente, e que continuarás a desempenhar até ao fim?

 

Talvez. Mas, se eu represento um papel, quem é o dramaturgo? E, se há um dramaturgo, gostaria de me queixar das surpresas desagradáveis com que ele está constantemente a presentear-me.

 

Queixar-te? Devias sentir-te grato pelo facto de a vida continuar a presentear-te com surpresas! As surpresas mantêm-nos vivos. Não gostarias que a tua personagem ganhasse bolor, pois não? Deu uma gargalhada, depois suspirou. Mas estávamos a falar sobre Cassandra. É uma pena que as mulheres não possam ser actrizes a sério, que não possam representar tragédias gregas, ou mesmo essas tolas comédias romanas. Só os homens podem subir aos palcos legítimos. Seja o papel de um general arrogante ou de uma deusa virgem, é sempre um homem que o representa, escondido atrás de uma máscara. As mulheres só podem ser bailarinas ou representar em comédias de mimos, nas ruas. Na realidade, é um crime. Quando penso no êxito que Cassandra teria tido, se tivesse podido representar os grandes papéis femininos a Antígona de Sófocles ou a Medeia de Eurípides. Ou a Clitemnestra de Esquilo, imagina! Teria gelado o sangue dos espectadores. Teria obrigado homens feitos a saírem do teatro lavados em lágrimas! Talvez seja por isso que as mulheres não estão autorizadas a representar os papéis de mulheres o resultado poderia ser excessivamente perturbador para vocês, os homens que ocupam a plateia, e excessivamente inspirador para as mulheres.

 

Ainda assim, por vezes, conseguimos encontrar um papel que nos permite chegar onde queremos. Simplesmente, temos de ser nós a criá-lo e a vivê-lo no dia-a-dia, em vez de o representarmos no palco. Foi isso que eu fiz. E também foi isso que Cassandra fez.

 

Até ser morta por ele observei eu. Dizes que a conheceste em Alexandria. E depois?

 

Depois chegou o velho e querido Volúmnio. O gordo, amoroso, incrivelmente rico Volúmnio. Isso passou-se há cinco anos sim, faz quase exactamente cinco anos. Volúmnio fora a Alexandria em viagem de negócios. Certo dia, ia a passar pelo bairro de Rakotis com a sua comitiva no momento em que nós estávamos a representar diante do Templo de Serápis. Eu detectei-o imediatamente entre o público, a remexer nos anéis e nos colares de ouro, a mordiscar os lábios, vendo-me dançar como um gato observa um pardal que esvoaça por entre as árvores. Nesse dia, representei magnificamente. Estava a fazer a dança dos sete véus, e ia-os tirando um a um uma pequena travessura para animar o espectáculo no intervalo dos mimos. Em princípio, só tiramos seis véus, claro, a ideia é essa, arreliar o público, fazendo com que ele queira ver mais, mantendo a esperança de que a dançarina volte ao palco. Mas, nesse dia, não me fiquei pelo sexto; tirei o sétimo.

 

Citéris deu uma gargalhada.

 

Os olhos de Volúmnio iam-lhe saltando das órbitas! Quanto ao pobre senhor, pensei que ele tinha um ataque de coração. Nem em Alexandria é permitido às mulheres dançarem nuas no meio da rua, e as autoridades da cidade andam sempre a ver se arranjam uma desculpa para nos impedirem de representar. Mas tirar aquele véu foi uma aposta, e a aposta foi ganha. No dia seguinte, tinha um novo senhor. Quando Volúmnio regressou a Roma no seu navio privado, eu vinha com ele.

 

E nunca me arrependi.

 

E agora foste libertada.

 

Pois fui. Com a ajuda de António. Mantenho algumas... obrigações contratuais... para com Volúmnio, mas esta casa, juntamente com tudo e todos os que nela habitam, pertencem-me. Suspirou. Não é de espantar que uma mulher como Antónia me odeie tanto. Nunca fez nada pelos seus méritos. Tudo o que tem deve-o à família e ao nome que usa. Nem sequer conseguiu arranjar marido fora da família! Eu sentir-me-ia desesperadamente presa, se tivesse uma vidinha tão apertada como a dela. Eu fiz o meu próprio caminho no mundo, utilizando aquilo que os deuses me deram.

 

E Cassandra?

 

Foi o que mais me custou, ao deixar Alexandria despedir-me de Cassandra. Chorei. E ela também. Tinha a certeza de que nunca mais voltaria a vê-la. Quando somos novos, parece que o mundo é tão grande, que será fácil perdermo-nos nele. Mas afinal não é assim tão grande, pois não? Todos os caminhos vão dar a Roma. Eu vim por um caminho. Cassandra veio por outro. No princípio deste ano, comecei a ouvir uns boatos sobre uma louca que andava pelo Fórum e que tinha o dom da profecia. Diziam que se chamava Cassandra. E eu pensei: Será possível que seja a minha Cassandra? Meti-me naquela liteira berrante que António me deu e fui ver. Claro que era ela; estava diante do Templo de Vesta, metida dentro de uma túnica esfarrapada, a murmurar sozinha e a pedir esmola. Em nome do Hades, o que estará ela a preparar? Perguntei a mim própria. Depois comecei a ficar preocupada. E se ela tivesse realmente enlouquecido? E se tivesse metido na cabeça que era efectivamente a sua homónima? Talvez os deuses a tivessem castigado tivessem baixado os olhos para a Terra e, vendo-a troçar da princesa troiana que Apolo atormentou, a tivessem enlouquecido pela sua hubris. Metade dos lunáticos e fanáticos religiosos deste mundo vêm parar a Roma; por que não Cassandra, se de facto estivesse doida? É que...

 

Citéris hesitou. Eu olhei-a com ar interrogativo.

 

Mesmo agora, tantos anos depois, não é fácil falar nisto disse ela. Quando éramos novas, eu prometi-lhe que não dizia a ninguém.

 

Ela tinha tanto medo de que acontecesse enquanto estava em palco, de que a sua doença secreta fosse conhecida...

 

Já não precisas de guardar segredo disse eu.

 

Citéris acenou com a cabeça.

 

Tens razão; vou contar-te. Cassandra sofria acessos de uma doença que a fazia cair. Que eu soubesse, só aconteceu duas vezes durante todo o tempo em que estivemos juntas em Alexandria. Mas era assustador ver aquilo. Nunca me esquecerei da primeira vez. Estávamos sozinhas, no quarto que partilhávamos em casa do senhor. Estávamos a conversar, a rir e, de repente, ela foi atirada ao chão. Foi estranho, bizarro, como se uma mão gigantesca e invisível a tivesse derrubado e estivesse a impedi-la de se levantar, enquanto ela se agitava e contorcia. Os olhos reviraram-se-lhe. Começou a espumar. Murmurou qualquer coisa incompreensível. Eu tive a presença de espírito de lhe meter qualquer coisa na boca, para a impedir de morder a língua, e fiz o possível por segurá-la, para que ela não se magoasse.

 

"Quando aquilo acabou, ela voltou gradualmente a si. Não se lembrava de nada. Eu contei-lhe o que se tinha passado. Ela disse-me que já lhe tinha acontecido de outras vezes, e suplicou-me que não contasse a ninguém. Eu disse-lhe que o senhor teria de saber, que acabaria por descobrir, mais cedo ou mais tarde. Mas ela obrigou-me a prometer que não lhe contava. Disse-me que talvez não voltasse a acontecer. Mas voltou, pelo menos uma vez, antes de eu partir de Alexandria. Dessa vez, eu também estava no quarto, e fui a única a assistir.

 

Citéris estudou-me o rosto.

 

Já ouviste falar disto, não ouviste, Descobridor? Aconteceu alguma coisa parecida a Cassandra de alguma das vezes em que foste visitá-la? Ela falou-me das tuas visitas. Sei que foste a casa dela mais do que uma vez.

 

Eu inspirei profundamente e evitei a pergunta.

 

Estava a pensar numa coisa que o meu filho... Impedi-me de dizer o nome de Meto. Estava a pensar numa coisa que me contaram acerca de César. Durante um certo período, na sua juventude, ele sofreu uns ataques semelhantes. E também tentou guardar segredo sobre eles. Gradualmente, foram passando, e nunca mais se repetiram. Um sacerdote disse-lhe que esses ataques eram um sinal do favor dos deuses. César está convencido de que resultaram de uma pancada que apanhou na cabeça na sua juventude, certa vez em que foi raptado por piratas.

 

Citéris considerou o que eu lhe dissera.

 

Não sei como era que Cassandra explicava os acessos de que sofria. Mas, quando voltei a vê-la, aqui em Roma, lembrei-me deles e comecei a pensar. E se tudo aquilo que eu tinha ouvido acerca da louca do Fórum fosse verdade e se ela não estivesse a fingir que via o futuro nem a imaginar essas coisas, mas fosse efectivamente sujeita a visões divinas? Por que não? Talvez os seus acessos em Alexandria fossem meros precursores do dom completo da profecia, que ela teria adquirido depois.

 

"O que se passaria realmente? Estaria Cassandra a fazer um número? Teria enlouquecido, imaginando que era a princesa troiana que tinha representado nos espectáculos de mimos? Ou ter-se-ia realmente transformado numa vidente desde a última vez que eu a vira, vindo parar a Roma, como pedinte? Lembrei-me da Cassandra que tinha conhecido e amado em Alexandria, e decidi que tinha de saber a verdade.

 

"Disse aos carregadores da liteira que se aproximassem dela. Conseguia vê-la através das cortinas de gaze, estava suficientemente perto para poder tocar-lhe, mas julgava que ela não podia ver-me sabem como são esses tecidos. Contudo, no próprio momento em que eu estendia a mão para correr as cortinas, ela voltou-se para mim e chamou-me pelo nome. Apanhei um susto enorme! Fui percorrida por uma sensação tão estranha que, por momentos, hesitei em afastar a cortina. Quando finalmente o fiz, tinha a mão a tremer. Mas, quando a vi, a minha trepidação desapareceu por completo. Ela estava a sorrir, fazendo o possível por não se rir. Apesar do cabelo em desalinho e das manchas de terra nas faces, era a Cassandra que eu tinha conhecido em Alexandria.

 

"Desatei a rir e icei-a para a liteira. Fechei as cortinas e disse aos carregadores que me levassem a casa. Nessa noite, ficámos a beber Falerniano e a conversar até de madrugada.

 

E o que foi que ela te contou? perguntei eu. Qual das tuas esperanças ou preocupações por Cassandra era verdadeira? Estava louca? Iludida? Estava a fingir? Ou era outra coisa?

 

"Citéris sorriu, ao mesmo tempo que enrugava a testa. Depois abanou a cabeça.

 

Quem me dera saber!

 

Mas, se ela era a mesma Cassandra que tu tinhas conhecido... e se conversaram as duas durante horas...

 

Conversámos sobre os velhos tempos, no Egipto. Conversámos sobre o que me tinha acontecido desde que eu viera para Roma. Conversámos sobre António e Antónia, sobre César e Pompeu, sobre o estado do mundo. Mas, quando chegou o momento de falarmos sobre Cassandra de eu saber como é que ela tinha vindo parar a Roma, e

por quê, ela correu um véu de segredo.

 

E tu deixaste?

 

Respeitei a sua vontade. Era óbvio que ela não estava louca, pelo menos no sentido de ter perdido a antiga centelha da sua maneira de ser; percebi-o imediatamente. Mas teria sido tocada por um deus, ter-lhe-ia sido dado o dom da profecia? Estaria a representar um papel? Teria vindo para Roma por sua iniciativa? Ou teria sido trazida por alguém, com algum objectivo? Não posso responder-te a estas perguntas, porque não sei. Pelo menos não tenho a certeza. Perguntei a Cassandra adulei-a, arreliei-a, cheguei mesmo a suplicar-lhe um bocadinho, mas ela recusou-se a dizer-me. Só me disse que, quando chegasse o momento próprio, talvez me contasse tudo; e que, até essa altura, era melhor eu nada saber acerca das suas idas e vindas, nem falar a ninguém sobre o seu passado.

 

"Finalmente, concordei em deixar de a importunar. Uma mulher tem de poder ter segredos; eu própria tenho alguns, portanto Cassandra também podia ter os seus. Por vezes, os segredos são o único poder de uma mulher neste mundo.

 

Eu acenei lentamente com a cabeça.

 

E, depois dessa noite, depois dessa prolongada visita em que recordaram o passado, voltaste a vê-la?

 

Citéris hesitou.

 

Talvez...

 

Sei que estiveste com ela pelo menos mais uma vez, no final do mês de Martius. Ela veio visitar-te imediatamente após ter saído de casa de Antónia.

 

E como é que tu sabes, Descobridor? Não, não me digas. Antónia mandou seguir Cassandra, não foi? A harpia desconfiada!

 

Eu pigarreei.

 

Talvez fosse boa ideia pedires ao teu vizinho que apare os ramos daquela figueira que fica diante de sua casa. Um homem ágil não teria dificuldade em trepar ao telhado da casa aqui ao lado, e espreitar para este jardim. Ergui os olhos para a linha do telhado, e percebi que se avistava efectivamente uma pontinha mais elevada do telhado do vizinho acima da beira rendilhada de telhas vermelhas.

 

Citéris acenou com a cabeça.

 

Compreendo. E esse observador também conseguiria escutar todas as palavras que fossem aqui ditas?

 

Aparentemente não.

 

Graças a Vénus por isso, ao menos.

 

De que foif que falaram as duas nessa visita?

 

Citéris bateu com a unha comprida na taça de vinho, chamando por Crísipo, que estava na outra extremidade do jardim, para que viesse servir-lhe mais Falerniano. Bebeu um gole e, por longos momentos, nada disse. Finalmente, sorriu:

 

Muito bem, cá vai a história. Mas tens de me jurar por Vénus que nunca a contarás a Antónia. Olhem para a estátua e jurem, ambos!

 

Davo olhou para mim e ergueu as sobrancelhas.

 

Juro por Vénus disse eu baixinho, e Davo fez a mesma coisa.

 

Citéris riu-se.

 

Na realidade, tenho estado morta por contar a alguém. Já agora, podes ser tu, Descobridor. E que, embora Cassandra não me tivesse contado exactamente o que andava a fazer, eu suspeitava de que podia ser qualquer coisa bem, um nadinha tortuosa. Por isso, fiz um acordo com ela.

 

Um acordo?

 

Concordei em não lhe fazer mais perguntas e em não contar a ninguém de onde vinha ela, com a condição de ela me fazer um favor. Acho que devia antes dizer: de me representar um favor.

 

E o que era?

 

Antónia é do género de nunca admitir ser deixada de fora de qualquer actividade que presuma estar na moda entre os da sua laia, seja pentear o cabelo em rolo, seja venerar uma deusa oriental acabada de chegar. Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, ela iria à procura de Cassandra, pedindo-lhe que lhe lesse o futuro. E não pude resistir à oportunidade de fazer uma pequena malfeitoria. Eu acenei com a cabeça.

 

Subornaste Cassandra para fazer uma falsa profecia a Antónia?

 

Tenho de admitir que sim. Achas que fui horrível? Disse a Cassandra: conta-lhe uma coisa sombria. Diz-lhe que, não só António vai acabar por abandoná-la, como Dolabela também a deixará, e que ela ficará velha e desdentada tendo como única companhia a harpia daquela filha. Foi por isso que Cassandra veio cá a casa logo que deixou Antónia, para me contar que Antónia a tinha finalmente consultado, e que ela tinha feito o que eu lhe pedira. Demos umas boas gargalhadas à conta disso.

 

Estou a ver. Infelizmente, Antónia mandou seguir Cassandra, e relacionou-a contigo e com a tua formação como actriz de mímica. Antónia não é estúpida, Citéris. Receio que tenha descoberto o teu plano para a perturbares.

 

Que pena. Apesar disso, acho que conseguimos pregar-lhe uma bela partida, enquanto durou.

 

Talvez. Mas, logo que Antónia presumiu que Cassandra era uma actriz e uma fraude, tirou daí outra conclusão: que Cassandra era uma chantagista profissional.

 

Citéris apertou os lábios.

 

Talvez. Eu própria considerei essa possibilidade, mas não me parece. A Cassandra que eu conheci em Alexandria não tinha temperamento de chantagista. Não possuía esse género de crueldade.

 

As pessoas mudam.

 

Não, Gordiano, as pessoas nunca mudam; limitam-se a desempenhar outros papéis. E Cassandra ficaria inadequada no papel de chantagista. Apesar disso, não posso eliminar por completo essa possibilidade.

 

E, se Antónia achou que ela era uma chantagista, é possível que mais alguém tenha achado a mesma coisa. Fosse ou não verdade, isso poderia ser um motivo para alguém a matar. O que sabes tu acerca da sua morte, Citéris?

 

Sei apenas aquilo que, aparentemente, toda a gente sabe, que ela sucumbiu no mercado e morreu nos teus braços. Quando recebi a notícia, chorei. Pobre Cassandra! Os mexericos dizem que foi envenenada. Foi? Sabendo o que sabia sobre o seu passado, não pude deixar de perguntar a mim própria se um daqueles acessos não teria acabado por ser excessivo. Teria morrido daquela doença que a fazia cair?

 

Eu abanei a cabeça.

 

Não, foi envenenada. Alguém assassinou Cassandra. Fazes alguma ideia de quem poderia tê-lo feito Citéris?

 

Para além de Antónia? Não. Eu acenei com a cabeça.

 

E Rupa? O que sabes acerca de Rupa? Citéris sorriu.

 

O querido e doce Rupa. Esperava vê-lo no funeral de Cassandra, mas ele não esteve lá, pois não?

 

Não. Nem veio a minha casa ver o corpo dela. Parece ter desaparecido por completo desde que Cassandra morreu.

 

Eu também nunca mais o vi observou Citéris. Deve andar escondido, com receio de que lhe aconteça o mesmo que a Cassandra. Pobre querido. É difícil imaginar como poderá sobreviver sem ela. Eles gostavam tanto um do outro.

 

Eu franzi o sobrolho.

 

Que relação tinha ele com Cassandra?

 

Ela nunca te contou? Abanei a cabeça.

 

Rupa era o irmão mais novo dela, evidentemente! Não viste como eram parecidos? Veio com ela quando Cassandra se juntou à trupe de mimos, em Alexandria; o senhor achou preferível comprá-los aos dois. Foi uma decisão sensata, porque Cassandra teria ficado arrasada se a separassem do irmão. Rupa ganhava o que comia; até fazia pequenos papéis. Nada que exigisse particular talento, nem que o obrigasse a falar, evidentemente. Sempre foi grande, mesmo quando era novo, por isso desempenhava papéis de guardas silenciosos e de gladiadores possantes, e de monstros que resmungavam. Foi um Ciclope muito convincente numa paródia que fizemos acerca de Ulisses. Eu era Circe e Cassandra era Calipso... Eu suspirei.

 

Sempre achei que Rupa era o guarda-costas.

 

E era. Mas era sobretudo ela que o protegia a ele. Sempre foi assim. Rupa pode ser grande e forte, mas não lida bem com o funcionamento do mundo, e a mudez é uma grande desvantagem. Desde crianças que Cassandra tomava conta dele. Não fiquei nada surpreendida quando ela me disse que tinha trazido Rupa consigo para Roma. É difícil imaginar que ele tivesse conseguido sobreviver em Alexandria. Não achas...

 

O quê?

 

Se calhar Rupa também morreu disse ela baixinho. Alguém bateu à porta da rua. Crísipo foi ver quem era, e veio comunicar:

 

É Volúmnio, senhora.

 

Citéris deu um suspiro em que se combinavam a indulgência e a irritação.

 

Diz-lhe que deixe o exército de guarda-costas na rua, e trá-lo cá.

 

Momentos depois, uma figura corpulenta entrou no jardim a arrastar os pés. Famoso pelo facto de usar jóias vistosas, nesta ocasião o banqueiro Volúmnio vinha notoriamente despido de ornamentos nem pulseiras, nem colares, nem anéis, à excepção do anel simples de ferro da cidadania. Em períodos turbulentos como estes, até um homem conhecido pela sua ostentação como Volúmnio achava melhor não exibir a sua riqueza pelas ruas.

 

Citéris, meu botão de rosa! exclamou. Ela levantou-se para o cumprimentar e submeter-se a um beijo na face, dado por aqueles lábios carnudos.

 

Mas estou a ver que tens visitas. Volúmnio olhou de esguelha para Davo e para mim. Eu levantei-me e fiz um gesto a Davo para que me imitasse.

 

Gordiano e o genro iam mesmo a sair disse Citéris.

 

Gordiano? O nome é-me familiar. Não nos conhecemos?

 

Não respondi eu, mas eu tenho falado com os teus funcionários.

 

Ah, pois. És um daqueles excelentes cidadãos a quem estendi uma mão nos últimos meses. É uma satisfação, nos tempos difíceis que vivemos, verificar que posso ajudar tantos concidadãos de Roma.

 

Os empréstimos que Volúmnio me fizera, por muito esmagadores que fossem para mim, eram certamente insignificantes nos seus livros de contas, de maneira que eu fiquei admirado com o facto de ele me conhecer. Estaria a par de todos os empréstimos autorizados pelos seus funcionários, por muito reduzidos que fossem? Talvez. Dizia-se que cada sestércio que deixava a sua mão gananciosa vinha preso a um fio invisível.

 

Agradeço-te a tua ajuda, Volúmnio disse eu. E ainda mais a tua paciência. As coisas estão de tal maneira, que nem os homens de boa vontade conseguem cumprir todas as suas obrigações, pelo menos durante algum tempo.

 

É verdade, cidadão, que a paciência é uma virtude até certo ponto. E a minha durará exactamente enquanto este maldito assunto com Célio e Milo não estiver resolvido. Depois disso, quando as coisas voltarem à normalidade... Encolheu os ombros, cujas carnes se agitaram. Será necessário cumprir as obrigações. É preciso manter a ordem. Os direitos de propriedade têm de ser respeitados, e os empréstimos pagos. É César, o sábio, quem o afirma. Sorriu e pegou na mão de Citéris, que era muito mais pequena que a sua, beijando-a. Nesse instante, compreendi por que motivo acedera a alforriar Citéris a pedido do apaixonado António. Agradar ao lugar-tenente de César era agradar a César. A alforria não fora mais nem menos do que uma decisão profissional.

 

Como Citéris disse, Davo e eu íamos mesmo a sair. Adeus, Citéris. Bom dia, Volúmnio.

 

E um bom dia também para ti, cidadão. Sê sensato e prospera para poderes cumprir as tuas obrigações quando chegar o dia aprazado.

 

A quinta vez que vi Cassandra foi no final do mês de Maius. Tinha passado quase um mês desde a tentativa de prisão de Marco Célio e da sua fuga por um triz, mas Roma inteira continuava em rebuliço.

 

Abundavam os boatos. Havia quem dissesse que Célio fora juntar-se a César, mas era difícil imaginar que isso pudesse ter acontecido depois das insinuações que tinha feito nos seus discursos; seria tão temerário, que achasse que podia conquistar o perdão de César só pela força do seu encanto? Havia quem dissesse que Célio não tinha conseguido fugir, mas fora preso, e estava detido em local secreto, enquanto Isáurico decidia o que fazer com ele. Outros ainda diziam que Célio tinha efectivamente fugido, mas ainda se encontrava na cidade, escondido na companhia de um grupo de conspiradores, que planeavam assassinar todos os magistrados e a maioria dos membros do Senado.

 

Havia quem dissesse que Célio tinha partido para sul, onde fora libertar uma escola de gladiadores das proximidades do Monte Vesúvio, com a intenção de regressar a Roma e organizar um massacre. Outros diziam que Célio partira para norte, a fim de suscitar o apoio de diversas cidades para a sua causa, na esperança de as conquistar, uma a uma, até se sentir suficientemente confiante para marchar sobre Roma à frente de um exército de voluntários. Ao chegar do Fórum, Jerónimo relatou-me a observação feita por Volcácio, o principal apoiante de Pompeu do nosso grupo:

 

Se Célio conseguir o que quer, não tardará que a ralé de Roma ande pelas ruas ao pontapé às cabeças dos seus senhorios e banqueiros!

 

Ainda havia outro boato, de acordo com o qual Célio estaria a planear

reunir-se ao seu velho amigo Milo, com o fito de, juntos, varrerem Itália de ponta a ponta. A meu ver, esta era a especulação menos razoável de todas. Nos seus tempos de protegido de Cícero, Célio fora de facto amigo de Milo; mas, nos últimos anos, as respectivas posições políticas tinham-nos afastado de tal maneira, que parecia impossível que pudessem jamais voltar a fazer causa comum.

 

Antes da sua partida forçada de Roma, Tito Anio

Milo era o homem a quem os autoproclamados Melhores confiavam as tarefas sujas que queriam ver realizadas. Da mesma maneira que Clódio geria os bandos de rua da esquerda, assim Milo gerira os bandos de rua da direita. Quando um magistrado conservador queria interromper uma manifestação da oposição, ou precisava de manifestantes que se agitassem no Fórum em seu apoio, era Milo quem congregava as multidões iradas e os punhos ameaçadores capazes de partir umas quantas cabeças.

 

Pompeu, que gostava de se manter acima da degradante realidade política das rixas de rua, confiava em Milo como seu homem de mão. Cícero adorava Milo, considerando-o o seu alter ego brutal; Cícero tinha a inteligência, e Milo fornecia os músculos. Milo fora recompensado pelos Melhores, pelos seus esforços. Fora admitido no seu círculo íntimo; era um homem a quem estavam prometidas grandes coisas. O seu casamento com Fausta, a filha do falecido ditador Sula, parecera garantir a sua ascensão às fileiras superiores da classe governante de Roma.

 

Foi então que tudo se desmoronou. Na sequência de uma escaramuça com os homens de Milo na Via Ápia, a poucas milhas de Roma, Clódio fora assassinado. Milo e Fausta estavam no local e, quer tivesse ensanguentado as mãos, quer não, Milo foi responsabilizado pelo assassínio do seu inimigo. Desordeiros irados pegaram fogo ao Senado e exigiram a cabeça de Milo. Pompeu, chamado a impor a ordem, levou Milo a tribunal, e nada fez para o ajudar. Os Melhores lavaram dele as suas mãos. Leal até ao fim, Cícero assumiu a defesa de Milo, mas os seus esforços foram em vão; quando tentava fazer o seu discurso, foi silenciado pela ralé. Acompanhado por um numeroso grupo de gladiadores calejados, Milo fugiu de Roma antes do anúncio do veredicto de culpa, partindo para a cidade grega de Massília, destino de tantos exilados políticos romanos.

 

Deixara atrás de si uma fortuna em propriedades, que haviam sido confiscadas pelo estado, uma esposa amargamente desiludida que, segundo se dizia, ficara muito satisfeita por vê-lo pelas costas, e uma cidade desesperadamente dividida. Ao olhar para trás, parecia-me agora que o assassínio de Clódio e o julgamento de Milo tinham constituído o derradeiro suspiro da República moribunda e o começo do fim da Constituição Romana. Tinham certamente marcado o fim de Milo; mesmo no meio do turbilhão da guerra civil, ninguém duvidava de que a carreira de Milo estava definitivamente acabada. Ao conquistar Massília, César tinha proclamado uma amnistia para todos os exilados políticos romanos que viviam na cidade, com a notória exclusão de um único: Milo.

 

Abandonado por Pompeu, repelido por César, fora do alcance da ajuda de Cícero, Milo transformara-se no esquecido da política romana.

 

Mas tinham chegado à cidade boatos de que conseguira fugir de Massília, apesar da guarnição de soldados de César, que tinham instruções para impedir que ele abandonasse a cidade. E não tinha apenas fugido, como conseguira fazê-lo na companhia do numeroso grupo de gladiadores que o haviam acompanhado para o exílio.

 

Ainda mais bizarra do que estes boatos era a declaração seguinte, de que Milo estava, de alguma maneira, envolvido numa conspiração com Marco Célio. Toda a carreira de Milo assentara no favorecimento dos interesses da mais rigidamente conservadora clique da elite romana. A ideia de uma aliança com Célio, que se tornara o porta-estandarte da revolução, era ridícula. Ou não seria? Nos tempos que corriam, os velhos amigos e os laços de confiança podiam ser mais importantes do que as divergências políticas, e homens desesperados como Milo e Célio poderiam aliar-se a quem estivesse disponível para se aliar a eles. Afinal, o que devia Milo aos Melhores ou a Pompeu? Durante a crise que se seguira ao assassínio de Clódio, todos se tinham afastado dele como de um carvão em brasa.

 

Em minha casa, tudo o mais fora ofuscado pela doença de Betesda. O seu diagnóstico e a sua cura eram tão esquivos como o paradeiro e os planos futuros de Marco Célio. Para poder pagar aos médicos, eu pedi mais dinheiro emprestado a Volúmnio. Eles examinaram a língua de Betesda. Estudaram-lhe as fezes. Espetaram-lhe e picaram-lhe o corpo todo. Prescreveram-lhe este e aquele tratamento, todos dispendiosos. Eu endividei-me ainda mais. Nada parecia resultar. Betesda tinha dias bons e dias maus, e deixava-se ficar deitada com cada vez maior frequência.

 

Os sintomas eram obscuros. Não tinha dores agudas nem erupções visíveis, nem vómitos, nem excreções malcheirosas. Sentia-se fraca e desanimada "desconfortável dentro da minha pele", dizia. Umas vezes, sentia-se tonta, outras ofegante. Não tinha confiança nos médicos nem nos tratamentos que eles prescreviam. Quando mordeu num deles por lhe ter espetado a língua com demasiada força, eu disse ao charlatão que ele tinha muita sorte em sair de minha casa com os dedos todos, e decidi não chamar mais nenhum.

 

Uma casa não é muito diferente de um corpo humano, com a cabeça e o coração, e uma sensação de bem-estar que depende da harmonia das diversas partes. A disposição de minha casa mudava de dia para dia, dependendo de Betesda. Os seus dias maus eram dias maus para todos, cheios de melancolia e maus presságios. Quando ela estava bem-disposta, a casa era agitada por um cauteloso sentimento de esperança. À medida que o tempo ia passando, e que os dias maus se iam tornando mais numerosos que os bons, a esperança ia retrocedendo, de tal maneira que mesmo os melhores dias eram temperados por uma profunda ansiedade.

 

Para agradar a Betesda, eu saía o mínimo possível. Durante longas horas, pouco mais fazia do que deixar-me estar sentado no jardim, na sua companhia, de mão dada com ela, a recordar tempos idos. Fora em Alexandria que a conhecera. Eu era um jovem que andava a correr mundo. Ela era uma escrava, pouco mais que uma criança. Logo que a vi, senti-me inapelavelmente enfeitiçado, como só um jovem pode sentir-se. Decidi comprá-la e torná-la minha, e assim fiz. Ao regressar a Roma, trouxe Betesda comigo. Mas só quando ela engravidou de Diana é que a alforriei e me casei com ela, para que a minha filha pudesse nascer livre. Por que teria esperado tanto tempo? Em parte, porque receava que uma alteração tão drástica no estatuto de Betesda desequilibrasse a nossa relação; ela já tinha suficiente poder sobre mim, mesmo sendo escrava! Mas a verdade é que o nosso casamento e o nascimento da nossa filha tinham reforçado os laços que nos uniam, e a liberdade acentuara o carácter de Betesda em todos os sentidos. Se antes parecera caprichosa, tornou-se decidida; se antes parecera petulante, era agora ferozmente determinada. Estas alterações teriam ocorrido em Betesda, ou apenas na minha percepção dela? Não sabia, e Betesda era a última pessoa a quem podia perguntar. Ela não tinha o menor interesse por paradoxos e ironias.

 

Quando se recordava do passado, não era para relembrar subtis estados de espírito, ou a forma como as coisas mudavam, permanecendo no entanto idênticas. As nossas conversas serviam-nos para recordar um vasto catálogo partilhado de pessoas, lugares e coisas. A simples convocação destas memórias era um prazer para os dois.

 

Lembras-te da luz no alto do farol de Faros perguntava ela, e de termos ficado sentados no convés do navio, na noite em que partimos de Alexandria, a vê-la desaparecer?

 

Claro que me lembro. Estava uma noite quente. Apesar disso, tu tremias, por isso eu abracei-te.

 

Tremia porque estava com medo de deixar Alexandria. Achava que Roma ia engolir-me.

 

Eu dei uma gargalhada.

 

Lembras-te da comida horrível que comemos a bordo daquele navio? O pão parecia um tijolo, os figos secos estavam salgados...

 

Nada parecida com a nossa última refeição em Alexandria. Lembras-te...

 

... da lojinha da esquina, que vendia bolos de sésamo ensopados em vinho e mel? Só de pensar nisso, fico com água na boca.

 

E a mulherzinha que dirigia a loja? Tinha tantos gatos! Todos os gatos de Alexandria iam à loja dela!

 

Porque ela os encorajava disse eu. Dava-lhes taças de leite. Na véspera de nos virmos embora, mostrou-nos uns gatinhos, e tu insististe em levar um deles para bordo do navio, às escondidas, embora eu to tivesse proibido expressamente.

 

Tinha de trazer comigo alguma coisa que fosse de Alexandria. Os Romanos deviam estar-me agradecidos por lhes ter trazido uma nova divindade! Imagina a minha surpresa quando cá cheguei e não vi em toda a cidade uma única estátua de um deus a sério, nem Hórus de cabeça de falcão, nem Anúbis de cabeça de cão só imagens de homens e mulheres vulgares. Nessa altura, percebi que me tinhas trazido para um sítio muito, muito estranho...

 

A certa altura, ambos percebíamos que já tínhamos tido exactamente a mesma conversa, não uma, mas diversas vezes ao longo dos anos; era uma espécie de ritual que, uma vez iniciado, tinha de ser levado até ao fim; e, tal como acontece com a maioria dos rituais, a sua simples observância era curiosamente reconfortante. Uma memória conduzia a outra e a outra, como elos de uma cadeia que se enrolava à nossa volta, mantendo-nos muito juntos, no próprio centro do tempo e do espaço dentro do qual estavam contidas as nossas vidas.

 

E então... a sombra da sua doença voltava a cair sobre Betesda. Os cantos da sua boca franziam-se. Ela apertava a minha mão, soltando-a em seguida, e dizia que de repente se sentira cansada e tonta, e que precisava de ir deitar-se. Eu dava um grande suspiro, e parecia-me que o próprio ar se enchia de preocupações e queixumes.

 

Comecei a sentir-me prisioneiro dentro da minha própria casa. As pequenas contradições transformavam-se em tormentos insuportáveis.

 

As permanentes questiúnculas de Androcles e Mopso desorientavam-me. Certo dia, gritei com eles e fui tão desabrido, que o pequeno Androcles começou a chorar, o que levou Mopso a arreliá-lo, o que provocou em mim uma fúria tal, que só com muita dificuldade me contive para não lhe bater. Depois disso, senti-me tão maldisposto que tive de me deitar, e dei por mim a pensar se estaria a ser vítima do mal que afectava Betesda.

 

Jerónimo, cuja disposição mordaz sempre me tinha divertido, começou a parecer-me um bobo cheio de pretensões, que falava constantemente, e de modo sempre crítico, sobre a política romana, um assunto acerca do qual quase nada sabia. Certa noite, perdendo as estribeiras na sequência de uma observação particularmente sarcástica da sua parte, chamei-lhe a atenção para a espantosa quantidade de comida que ele ingeria a cada refeição, à minha custa. Ele empalideceu, poisou a taça, e disse que, a partir daquele momento, tomaria as suas refeições sozinho, depois de a família ter

jantado, e comeria o que sobrasse. Saiu da sala, e não consegui convencê-lo a regressar, por muito que tivesse tentado. Este era o homem que me tinha acolhido em sua casa em Massília, partilhando comigo tudo o que possuía.

 

Davo, que me tinha salvo a vida em Massília, foi certo dia objecto da minha ira, ao derrubar uma lamparina de tripé. Quando tentou apanhá-la, tropeçou nela e pisou-a, danificando-a ainda mais. As três cabeças de grifo em bronze ficaram amolgadas e a vara ficou torcida. Era, ou antes, tinha sido um dos objectos mais valiosos que ainda restavam nesta casa, algo que eu contava poder vender se tivesse necessidade disso. E eu observei-lhe que a sua falta de jeito tinha privado a família de um mês de refeições.

 

Até com Diana eu me tornei impaciente. Dei por mim a discutir com ela sobre a doença da mãe e as medidas a tomar relativamente a ela. As nossas discordâncias eram sobre coisas pequenas sobre se Betesda devia tomar as poções quentes ou frias, se devia manter-se acordada durante o dia (para poder dormir melhor à noite, argumentava eu), se devíamos ter em atenção o conselho de um dos médicos, que nos tinha dito que o sangue de pardal lhe seria benéfico mas as palavras que trocávamos eram ríspidas e amargas. Eu acusei Diana de ter herdado os piores traços de carácter de sua mãe, a teimosia e a obstinação. Num momento de crueldade, ela acusou-me de me preocupar menos com a mãe do que ela própria se preocupava. Eu fiquei tão chocado, que durante vários dias mal consegui dirigir-lhe a palavra.

 

Recorri então ao meu filho Eco. Tal como Meto, ele era meu filho adoptivo. Mas, ao contrário do que acontecera com Meto, nunca nos tínhamos zangado, apesar de, com o passar dos anos, nos termos afastado um do outro. Era natural; Eco tinha a sua própria família. E também tinha a sua profissão, na qual seguira as minhas pegadas; e, embora nos tivéssemos consultado mutuamente em assuntos profissionais ao longo dos anos, Eco tornara-se cada vez mais independente, não me falando muito dos seus casos nem da sua situação financeira. E também evitava misturar a sua família com a nossa. Eco ascendera socialmente com o casamento, entrando para uma família antiga mas emurchecida, ansiosa por sangue novo, os Menénios. A mulher dele e Betesda nunca se tinham dado muito bem.

 

A tarde em que convidei Eco e a sua ninhada para minha casa acabou por se transformar num desastre. Menénia disse qualquer coisa que ofendeu Betesda um disparate qualquer sobre o facto de as mulheres da sua família "olharem de alto" as doenças, em vez de se submeterem a elas, e Betesda foi imediatamente deitar-se. Os gémeos de Eco, um par de loirinhos de onze anos que saíam à mãe, aproveitaram-se vergonhosamente de Mopso e Androcles, ordenando-lhes que fossem buscar-lhes isto e aquilo. Quando Androcles murmurou uma observação que incluía a frase "um dia destes perdem a cabeça" um fragmento de retórica inflamada que tinha apanhado no Fórum, com toda a certeza, Eco ficou chocado e insistiu em que eu castigasse o rapaz, como escravo que efectivamente era; como eu me recusasse, ele pegou na família e foi-se embora. Incitado pelo irmão, Androcles gabou-se do sucedido, o que me levou a dar-lhe mesmo um par de palmadas bem dadas no traseiro. Nessa noite, toda a gente se foi deitar infelicíssima.

 

No passado, sempre tinha havido alguém a quem eu podia recorrer em momentos de turbulência, embora raramente estivesse presente. Quando me sentia confuso, infeliz e necessitado de consolo, fechava-me no escritório, pegava no estilete, desatava a capa de uma tabuinha de cera, limpava-a bem, e começava a escrever uma carta a Meto. Embora soubesse que, muito provavelmente, ele não leria as minhas palavras senão muitos dias depois e receando secretamente que as não lesse de todo, porque era soldado e corria muitos perigos, apesar disso, organizava os meus pensamentos e sentimentos, a fim de os partilhar como o meu filho amado; e, tendo-o feito, sentia um grande alívio e o espírito muito mais desanuviado. Mas agora, e por decisão minha, essa via fora-me fechada. Com que amargura senti a falta de consolo, naqueles dias sombrios.

 

Oprimido pela incerteza quanto ao estado do mundo, preocupado com as minhas dívidas, angustiado por causa da doença de Betesda e a discórdia que reinava em minha casa, sofrendo com a perda do filho que tinha renegado era esse o meu estado de espírito quando decidi, certo dia, escapar à estreiteza de minha casa para ir dar uma volta.

 

Tinha feito mais ou menos a mesma coisa um mês antes, no dia em que dera por mim no apartamento de Cassandra, assistindo depois ao número do desaparecimento de Célio no Fórum. Mas, embora nessa ocasião os meus passos me tivessem levado directamente a casa de Cassandra, voluntária ou involuntariamente, desta vez dei um passeio bastante mais longo, fazendo um percurso sinuoso por toda a cidade. Vivia em Roma há tanto tempo, e conhecia tão bem a cidade, que é provável que me fosse literalmente impossível perder-me. Apesar disso, deixei-me cair num certo estado de devaneio, esquecendo onde me encontrava e para onde me dirigia, e atento apenas ao ambiente circundante e às sensações por ele produzidas.

 

Estava um dia óptimo para um passeio deste género, um dia típico de final de Maius, soalheiro sem estar excessivamente quente. Roma exibia os seus encantos por toda a parte. Numa graciosa fonte de bairro, a água escorria da boca de uma górgona para uma tina profunda, de onde as mulheres retiravam baldes cheios. (Ao menos a água era abundante e gratuita, se nada mais o era em Roma.) Na esquina seguinte, um gigantesco falo de bronze projectado do lintel de uma porta proclamava a presença de um bordel de bairro. O Sol incidia no falo num ângulo tal, que ele lançava na rua uma sombra tão absurdamente enorme, que eu dei uma gargalhada. À porta, estava sentada uma prostituta invulgarmente gorda, a apanhar sol como se fosse um gato. Quando passei por ela, abriu uma frincha dos olhos, e estou mesmo convencido de que ronronou. Um pouco mais adiante, entrei num beco comprido, ladeado de ambos os lados por muros cobertos de jasmim em flor; o aroma era de tal maneira capitoso que, quando cheguei à extremidade da viela, fiz meia volta e percorri-a de novo, só para ver se o odor tinha a mesma doçura na direcção contrária.

 

Sempre que voltava uma esquina, era confrontado com memórias, umas doces, outras amargas. Vivia em Roma há tanto tempo, que às vezes tinha a sensação de que a cidade era um mapa da minha mente, e as suas ruas e os seus edifícios manifestações das minhas memórias mais profundas.

 

Nesta casinha austera, agora pintada de amarelo, mas que era azul-forte da última vez que entrei por aquela porta, tinha eu reconfortado uma viúva que me chamara para me pedir que investigasse o assassínio do marido e verificara-se que a assassina era ela...

 

Ao fundo desta rua, um bando de ladrões decididos a cortar-nos o pescoço tinha-nos certa vez perseguido, a mim e ao meu escravo Belbo as saudades que eu tinha daquele fiel guarda-costas! Tínhamos escapado mergulhando ambos numa fonte, e contendo a respiração debaixo de água...

 

Subi uma colina e avistei ao longe as varandas e alas da vasta mansão de Pompeu, no alto do Monte Pinciano, fora dos muros da cidade; a névoa de calor e poeira que a cobria conferia à casa um aspecto flutuante, ligeiramente irreal, como se fosse um palácio avistado ao longe em sonhos. Quando adormecia, tão longe de sua casa, seria assim que Pompeu via a mansão que abandonara? A última vez que eu tinha visto Pompeu que nessa altura fugia de Itália a bordo de um navio ele tinha tentado estrangular-me. A memória desse acontecimento provocou-me um aperto na garganta. Neste preciso momento, o Grande estaria vivo ou morto? Estaria postado ao lado do cadáver de César, ouvindo os seus soldados declará-lo Senhor do Mundo ou seria ele próprio mais um cadáver a ser transformado em cinzas, como tantos outros antes dele, cuja feroz ambição de nada lhes valera quando as mandíbulas do Hades se tinham aberto para os reclamar?

 

Na base escarpada no Monte Capitolino, passei diante do portão do cemitério privado onde anos antes me encontrara secretamente com Clódia, na véspera do julgamento de Marco Célio por assassínio. Aquela beleza misteriosa, superior e traiçoeira tinha-me enfeitiçado por completo! Em toda a minha vida, Clódia fora a única mulher que jamais me tentara a afastar-me de Betesda. Até agora...

 

Por muito sinuoso que fosse o percurso, por muito que as memórias convocadas por cada esquina me distraíssem, me divertissem, me excitassem ou me chocassem, a verdade é que os meus passos sabiam onde estavam a conduzir-me.

 

Terei ficado surpreendido quando cheguei à entrada do prédio dela, guardado pelo cão que não me ladrava? Um pouco. A parte de mim que a desejava totalmente, sem perguntas, para além da razão tinha silenciado a outra parte de mim que sabia que tal coisa era impossível, imprópria, absurda. O absurdo, mais do que qualquer outro elemento, devia ter-me contido. Um homem idoso ansiando ardentemente por uma mulher jovem e bela é sempre uma cena ridícula. Eu pensava em todos os velhos lúbricos e tolos que tinha visto no palco e encolhia-me perante a ideia de estar a dar um espectáculo cómico. Mesmo presumindo que os meus avanços eram bem recebidos e mutuamente desejados, havia complicações a menor das quais não era o facto de o objecto do meu desejo poder ser tão louca como toda a gente dizia que era, caso em que eu estaria a ser igualmente louco pelo facto de a procurar.

 

Quanto à maior complicação de todas a minha companheira e esposa de muitos anos, que ficara em casa, doente e sozinha, nem sequer conseguia pensar nisso. Por fim, já não pensava em nada; fui empurrado para diante por um qualquer mecanismo do corpo, muito distante do pensamento consciente.

 

Se ela não estivesse em casa, ou se Rupa lá estivesse também, é natural que as coisas se tivessem passado de outra maneira. Mas ela estava em casa, e estava sozinha. Afastei a cortina sem me fazer anunciar, esperando pregar-lhe um susto. Mas ela voltou lentamente o rosto na minha direcção, sentou-se na enxerga e pôs-se de pé. Enquanto se dirigia lentamente a mim, os seus olhos nunca se desviaram dos meus. Separou os lábios e abriu os braços. Eu soltei a cortina, que se fechou atrás de mim. Acho que dei um pequeno grito, como uma criança dominada por uma emoção que não reconhece, quando os seus lábios se encontraram com os meus e os cobriram.

 

Na manhã seguinte às minhas visitas a Antónia e Citéris, voltei a levantar-me cedo. Betesda agitou-se e disse qualquer coisa, mas continuou deitada. Tinha deixado quase completamente de comer, o que começava a preocupar-me ainda mais do que a sua letargia. Tinha a pele macilenta e os olhos desprovidos de expressão. A vontade firme que governara a minha casa durante tantos anos parecia estar a escapar-se dela a pouco e pouco, deixando apenas um invólucro.

 

O dia começava a aquecer, mas eu tive um arrepio. Pela primeira vez em toda a minha vida anteriormente, sempre conseguira evitar esse pensamento, tive uma breve percepção do que seria passar sem ela. Já tinha vivido sem Betesda, mas fora há tanto tempo, que mal conseguia lembrar-me. Imaginar uma vida após Betesda era-me quase impossível. Recordei a mim próprio que nós, os mortais, raramente tínhamos a possibilidade de intervir em semelhantes questões, por muitos médicos, sopas de rabanetes e orações aos deuses a que recorrêssemos.

 

Comi qualquer coisa. Chamei Ândrocles e Mopso, para que viessem ajudar-me a vestir a toga, e depois disse-lhes que fossem ajudar Davo a fazer o mesmo. O meu dia começou, pois, como tinham começado os dois anteriores, e eu percebi, com uma pontada de prazer misturado com culpa, que esta rotina começava a agradar-me. Permitia-me distrair de Betesda, das minhas dívidas, e da discórdia que reinava em minha casa. De certa maneira, e curiosamente, embora fosse por causa dela, até me distraía de Cassandra, ou pelo menos dava-me qualquer coisa em que pensar, para além da saudade obsessiva que ela me tinha deixado com a consequente culpa e da dor que tinha sentido quando ela me morrera nos braços.

 

Ao fazer planos e preparativos para o dia, percebi que estava novamente a trabalhar não era para ninguém, nem era por dinheiro (infelizmente), mas ainda assim estava a trabalhar na curiosa actividade que me tinha sustentado ao longo de toda a vida. Nos últimos anos, fora-me retirando gradualmente dessa actividade, passando-a a Eco. Tinha-me tornado Gordiano, o marido, Gordiano, o pai, Gordiano, o que conversava longas horas no Fórum, e mesmo, contra todas as expectativas, Gordiano, o amante ilícito mas tinha deixado de ser Gordiano, o Descobridor. Agora, dava por mim a fazer outra vez aquilo que sempre fizera melhor: procurar a verdade acerca de um assunto que já ninguém queria, ou se atrevia, a investigar. Tinha encontrado o meu rumo e fixara-me, qual roda de um vagão, num carril conhecido. Apesar de todos os motivos que tinha para me sentir infeliz, pelo menos podia dizer com segurança quem era e o que era. Era de novo Gordiano, o Descobridor, e seguia o curso que os deuses tinham estabelecido para mim.

 

Davo veio ter comigo ao jardim. Pela sua expressão satisfeita e ligeiramente estúpida, percebi que, algures durante a noite, ele e a minha filha tinham encontrado alívio para as pressões da vida. E por que não? Tentei reprimir um ferrão de inveja.

 

Como está...? A pergunta de Davo foi interrompida por um bocejo, que o levou a estender os braços por cima da cabeça, descompondo as pregas da toga.

 

Betesda não está melhor... nem pior respondi eu, esperando estar a dizer a verdade.

 

E onde vamos esta manhã, sogro?

 

No auge do seu poder, quando comandava um verdadeiro exército de bandos de rua em competição com Clódio, Milo e Fausta tinham vivido numa das casas mais imponentes da cidade, uma habitação digna da filha do ditador Sula e do marido de quem ela esperava grandes coisas.

 

Essa casa, e o respectivo recheio, haviam sido confiscados pelo estado e vendidos em leilão pouco depois de Milo se ter exilado de Roma. Embora tivesse continuado casada com Milo, Fausta recusara-se a acompanhá-lo para Massília. Sem casa e sem meios de subsistência, onde haveria ela de morar? Acontece que a lei continha uma cláusula que permitia à esposa abandonada reclamar a devolução do seu dote dos lucros da venda da propriedade confiscada. O dote de Fausta fora considerável e, depois do leilão, ela tinha conseguido recuperar a maior parte. Com esse dinheiro, mudara-se para uma casa mais pequena e mais humilde, na outra extremidade do Monte Palatino. Não era propriamente pobre, mas tinha decaído muito na escala mundana.

 

Como será esta? perguntou Davo, quando nos dirigíamos a sua casa.

 

O que queres dizer com isso?

 

Até agora, ainda não percebi que opinião havia de ter destas mulheres.

 

Eu dei uma gargalhada.

 

O que posso eu dizer-te sobre Fausta? Na única ocasião em que estive com ela, que foi pouco depois de Milo ter partido para o exílio, estava tomar banho com dois dos gladiadores dele e convidou-me a acompanhá-los. Foi esse género de comportamento que pôs fim ao seu primeiro casamento, antes de Milo. Andava com dois amantes era o que se dizia e não se coibia de chamar a atenção para o facto. Um deles era um tintureiro que possuía um estabelecimento de limpeza de lãs. O outro era um sujeito chamado Mácula, porque tinha na cara um sinal de nascença que parecia uma mancha. Fausto, o irmão gémeo de Fausta, dizia uma piada sobre o caso: "Tendo em conta que dispõe dos serviços pessoais de um tintureiro, não percebo como é que ela não se livra daquela Mácula! O comportamento da minha irmã não é propriamente imaculado."

 

Imaculado repetiu Davo lentamente, percebendo o trocadilho.

 

Exactamente. Mas o marido de Fausta não achava a mesma graça à situação. Divorciou-se dela por adultério. Foi então que Fausta se casou com Milo. Com isso, ele ascendeu diversos degraus na escala social. Para ela, Milo constituía uma boa perspectiva de futuro. Talvez se sentisse atraída pelo facto de ele ser implacável; talvez isso lhe recordasse o pai. Quem poderia prever que a sua carreira terminaria em assassínio e exílio poucos anos depois?

 

Os escândalos começaram logo no dia do casamento, quando Milo voltou a casa e a apanhou no acto com um sujeito chamado Salusto. Milo deu uma bela tareia a Salusto, como tinha todo o direito legal de fazer na realidade, podia tê-lo morto, sem que isso fosse considerado assassínio, e confiscou-lhe a bolsa à laia de multa.

 

"Mas Fausta era incorrigível. Pouco depois do incidente com Salusto, certa tarde convidou, não um, mas dois amantes para sua casa. Nessa altura, entra Milo. Um deles conseguiu esconder-se num armário, mas Milo apanhou o outro, arrastou-o para fora do quarto e deu-lhe uma tareia que lhe deixou a carne em papa. Entretanto, o primeiro sujeito metia-se na cama de Fausta, onde fizeram amor apaixonadamente, ao som dos gritos do outro sujeito, que suplicava a Milo que tivesse piedade dele. Antes de seres tu a apontar o óbvio, Davo, deixa-me fazê-lo: Fausta gosta de ser apanhada.

 

Ele franziu o sobrolho.

 

E talvez Milo gostasse de a apanhar. De outra maneira, por que não se divorciou dela?

 

As ligações de Fausta eram excessivamente valiosas para ele, quer política, quer socialmente. E o dote dela também era precioso. Nem todos os casamentos são como o teu com a minha filha, Davo, baseados no estive quase para dizer desejo cego, mas teria sido injusto baseados no amor, no desejo e no respeito mútuos. Há casamentos que se baseiam noutras considerações no poder, no dinheiro, no prestígio. Em especial os casamentos entre os Melhores, ou entre aqueles que aspiram a fazer parte das suas fileiras. O que não significa que Milo e Fausta não se sentissem atraídos um pelo outro. Acho que havia, sem dúvida alguma, uma chama entre eles ela toda cabelo ruivo e curvas voluptuosas; ele todo temperamento e pêlos no peito.

 

"As coisas acabaram por acalmar entre eles. Talvez Milo tivesse assustado definitivamente todos os amantes dela! Ele dedicou-se à sua carreira política. Ela aparecia a seu lado como esposa respeitadora. Ninguém duvidava de que, um dia, ele seria eleito cônsul e ela seria a esposa do cônsul. Nessa altura, deu-se o assassínio de Clódio e a carreira de Milo esfumou-se no ar.

 

Por que foi que Fausta não se divorciou dele? Especialmente tendo em conta que não queria partir com ele para o exílio, e que ele nunca regressaria.

 

Não sei, Davo. Vamos perguntar-lhe?

 

O escravo que nos abriu a porta tinha o aspecto anafado e abertamente sexual de um gladiador grisalho e fora de forma. O que fazia dele uma contradição ambulante; quantos gladiadores vivem tempo suficiente para ficarem fora de forma? Dois olhos apagados espreitavam-nos de baixo de uma sobrancelha contínua e hirsuta, mas é provável que ele fosse mais esperto do que parecia. De outra maneira, não teria conseguido sobreviver tempo suficiente para adquirir cabelos brancos, já para não falar do simpático emprego que era atender à porta de uma senhora bem-nascida que tinha um gosto especial por gladiadores. Perguntei a mim próprio quantos homens teria morto na sua vida antes de chegar a este poleiro. Olhou-me de braços cruzados enquanto eu lhe dizia o meu nome, solicitando alguns momentos do tempo da sua senhora. Os antebraços dele eram do tamanho das minhas coxas e estavam cobertos de feias cicatrizes.

 

De repente, reconheci-o: era Bírria, um dos gladiadores que Milo mais apreciava. Tinha estado directamente envolvido na escaramuça com Clódio, no dia do seu assassínio na Via Ápia. Também era um dos gladiadores que estavam a tomar banho com Fausta no dia em que eu a conhecera. Fiquei surpreendido por Milo não ter levado Bírria consigo, dada a reputação do escravo como assassino treinado. Talvez Bírria fizesse parte do legado devido a Fausta como seu dote, e por isso tivesse ficado em seu poder. Tinha aumentado muito de peso desde a última vez que eu o vira, e nem tudo era músculo.

 

Bírria deixou-nos no vestíbulo e foi anunciar-nos. A casa era ainda mais melancólica e desprovida de ornamentos do que eu estava à espera. Mas houve um objecto que me chamou a atenção, pregando-me um susto razoável.

 

É costume dos nobres romanos terem em exposição bustos dos seus antepassados ilustres, que colocam em nichos no vestíbulo de suas casas.

 

No vestíbulo da casa de Fausta, havia apenas um nicho e um busto. Eu dei uns passos em redor do pequeno compartimento e, ao voltar-me, deparei abruptamente com a imagem de Lúcio Cornélio Sula, o ditador.

 

Tinha estado com ele uma vez. À semelhança de tantos outros, sentira-me conquistado e um pouco aterrado. Irradiava dele, como o calor irradia do Sol a meio do Verão, um apetite pelo prazer e pela crueldade; os homens desviavam a face na presença de Sula, com medo de ficarem chamuscados. O seu exemplo a vitória numa sangrenta guerra civil, a conquista do poder absoluto, que utilizara para decapitar os seus inimigos, a reforma do estado à sua imagem, para depois lhe voltar as costas assombrara Roma durante duas gerações. Conforme o ponto de vista de cada um, o seu legado tinha destruído a Constituição, ou não conseguira reforçá-la suficientemente em qualquer dos casos, gerara uma sucessão de desastres que tinham conduzido directamente, várias décadas depois, ao momento presente, com a República paralisada e Roma aguardando, de respiração suspensa, a chegada de um segundo Sula. Ele já tinha morrido há trinta anos, mas os olhos que espreitavam da imagem de mármore que se encontrava no vestíbulo da casa de Fausta ainda conseguiam gelar-me o sangue nas veias.

 

De algures ao fundo da casa, chegaram-me aos ouvidos os gritos de um homem. Não consegui distinguir as palavras, mas o tom era irritado e aviltante. Quem estaria a gritar? E com quem?

 

Pouco depois, Bírria reapareceu. Viria mais carrancudo do que anteriormente? Com uma cara feia como a dele, era difícil perceber.

 

A senhora não pode receber-te disse-me.

 

Não? Talvez...

 

Eu disse-lhe como te chamavas. Ela sabe quem tu és. Mas não tem tempo para te receber.

 

Talvez possas voltar lá, e dizer-lhe outro nome. Ele franziu o sobrolho.

 

E que nome é esse?

 

Cassandra. Diz-lhe que eu vim falar-lhe sobre Cassandra.

 

É a mesma coisa. É melhor irem-se embora. Aproximou-se de mim, endireitando os maciços ombros para me impedir a passagem. Não se deteve; continuou a andar, obrigando-me a recuar com passo vacilante.

 

Atrás de mim, Davo emitiu um resmungo ameaçador. Eu olhei por cima do ombro, e vi na sua cara uma expressão parecida com a do gladiador. Senti-me como um homem apanhado no meio de dois touros enfurecidos. De trás de Bírria, chegou-me aos ouvidos uma voz guinchada de mulher.

 

Não! Bírria, pára com isso. Não quero lutas diante da imagem do papá! Decidi que afinal quero falar com o Descobridor. Eu... eu quero falar com ele. A sua voz tinha uma entoação estranhamente suplicante,

 

como se estivesse a pedir autorização.

 

Bírria deteve-se e olhou-me de cima, olhando em seguida para Davo. Chegou-me às narinas o cheiro a alho do seu hálito. Os gladiadores comem alho, para se fortalecerem, e franzi o nariz. Finalmente, ele recuou e desviou-se.

 

Como queiras, senhora disse, lançando-me um olhar feroz. Davo e eu passámos por ele e avançámos na direcção de Fausta. Em vez de esperar por nós, ela voltou-se quando ainda estávamos a uma certa distância, seguindo à nossa frente pelo corredor fora.

 

Por aqui. Venham comigo. Para onde havemos de...? Talvez seja melhor não irmos para o jardim. Não, realmente é melhor não irmos para o jardim. Vamos conversar... para a sala de Baias. Sim, é isso mesmo.

 

Seguia vários passos à minha frente. Dei por mim a contemplar a massa de cabelos ruivos, presa com ganchos no alto da cabeça, e o amplo traseiro, que se agitava por baixo da estola cor de laranja. Tive um sobressalto ao ver que trazia um braço ao peito até àquele momento, tinha conseguido ocultar o facto e que coxeava ligeiramente. Teria sofrido algum acidente?

 

O compartimento a que ela chamava a sala de Baias era uma alcova estreita que ficava ao fundo de um corredor. A única fonte de luz era a porta. Havia lamparinas suspensas do tecto, mas nenhuma delas estava acesa, de maneira que a sala estava mergulhada numa semiobscuridade. Apesar disso, percebi a que devia o nome. O chão era de mosaico, em vários tons de azul e verde, com brilhos dourados aqui e ali, desenhos de várias criaturas marinhas polvos, baleias, golfinhos, peixes e um rebordo com imagens de conchas. Nas paredes do compartimento estavam pintadas cenas de villas empoleiradas nos penhascos que davam para o mar de Baias. Aproximei-me mais, perdendo-me na pintura, até que a voz de Fausta me chamou à realidade.

 

Sentem-se aí nessas cadeiras, na extremidade da sala disse ela, que eu sento-me nesta aqui, ao pé da porta.

 

Esta sala deve ser muito bonita com luz observei eu, sentando-me e indicando a Davo que fizesse o mesmo.

 

Oh, sim. Esta casa era do meu irmão Fausto. Ele nunca viveu aqui; era uma espécie de casa de hóspedes, que ele emprestava às visitas e aos amigos. Nessa altura, Fausto estava cheio de dinheiro, e gastou uma parte dele em decorações, murais e coisas assim. Adorava esta salinha, era a sua preferida. Os mosaicos e os frescos foram concebidos para serem contemplados à noite, à luz das lamparinas. Vista dessa maneira, é um sítio mágico. De dia, isto é um bocado escuro, não é? E está a precisar de ser restaurada. Não me parece que os pintores soubessem muito bem o que estavam a fazer. Há zonas onde a tinta está toda a pelar e a lascar. Claro que eu não tenho dinheiro para um restauro como deve ser, e por esta altura Fausto também não. Mas, quando a guerra acabar, a sorte dele vai mudar para melhor. Os apoiantes ricos de César vão perder as cabeças, e com elas as propriedades, e homens como Fausto hão-de recuperar aquilo que lhes é devido. Era assim que o meu pai recompensava os seus apoiantes, dando-lhes o melhor do saque tomado aos inimigos. Pompeu fará a mesma coisa, se for sensato. Qual é a tua opinião, Gordiano? Será Pompeu metade que seja do que o meu pai era?

 

E o dobro como homem, e metade como monstro, tive eu vontade de responder, mas mordi a língua. Tive a impressão de que ela estava a arreliar-me, mas era difícil perceber a sua expressão. Estava sentada de costas para a porta, de maneira que a luz vinha de trás dela, deixando-lhe a cara na sombra.

 

Quer dizer que achas que é Pompeu que vai triunfar? perguntei. Era de presumir, tendo em conta os últimos acontecimentos...

 

Referes-te a essa história do meu marido e de Célio? Não conseguia ver-lhe a cara, mas consegui detectar-lhe o desagrado na voz. Logo que chegou a Roma a notícia de que Milo tinha fugido de Massília, Isáurico veio interrogar-me pessoalmente. Presumiu que, dado que ainda sou casada com Milo, pudesse dizer-lhe o que andava o meu marido a fazer, embora eu não veja Milo há anos, nem troque correspondência com ele há vários meses. "Achas que eu consigo ler os pensamentos de Milo à distância de várias centenas de milhas?" perguntei-lhe. "Achas que sou capaz de prever o que aquele louco vai fazer a seguir?" Corri com Isáurico de minha casa, e ele nunca mais cá voltou.

 

Eu acenei com a cabeça. Considerando o estado da casa de Fausta, é muito provável que o cônsul tenha achado que ela não constituía qualquer ameaça, e que não valia a pena vigiá-la. Remexi-me na cadeira, pouco à-vontade, frustrado com o facto de não conseguir ver-lhe bem a cara.

 

Fausta suspirou.

 

A Fortuna foi cruel para com Milo. Foi cruel para connosco. Para ser totalmente honesta e serei mais honesta contigo do que fui com Isáurico, não fiquei minimamente surpreendida quando soube que Milo tinha fugido de Massília e regressado a Itália. Nem fiquei admirada quando soube que se tinha aliado a Marco Célio. Cada um deles optou por um chefe diferente. Ambos os desiludiram cruelmente; Pompeu abandonou Milo, e César pôs Célio de lado. Milo e Célio eram como dois órfãos, que se juntaram um ao outro para não estarem sozinhos. Deve haver mais como eles, grandes e pequenos, todos com a sensação de terem sido abandonados pelo chefe que escolheram, sentindo-se irritados e enganados com a perspectiva da vitória de qualquer deles. Por isso, decidiram afastar-se, quer de César, quer de Pompeu, e encontrar um terceiro caminho para o futuro. Faz todo o sentido se conseguirem ser bem sucedidos.

 

E conseguirão?

 

Como queres que eu saiba? Achas que me pareço com Cassandra? Eu inspirei profundamente.

 

Conhecia-la bem?

 

Alguém conhecia realmente Cassandra? Foi por isso que vieste ver-me, naturalmente. Não foi para me falares de Milo, nem de mim, foi por eu ter ido ao funeral de Cassandra, e porque queres falar sobre ela. Não é assim?

 

É.

 

Ela acenou com a cabeça.

 

Certo dia, fui procurá-la ao mercado. Convidei-a a vir a minha casa. Ela olhou para uma chama e teve um ataque. Eu ouvi o que ela tinha a dizer, dei-lhe umas moedas, e mandei-a embora. Por que não? Todas as mulheres de Roma andavam desesperadas por ouvir o que Cassandra tinha para lhes dizer.

 

E o que foi que ela te disse? Fausta riu-se.

 

Uma data de tolices. Na verdade, não consegui perceber nada daquilo. Acho que tenho um espírito demasiadamente literal para aquele género de coisas. Por que têm os oráculos e os portentos de ser sempre tão obscuros? Chamar trufa a uma trufa, é essa a minha política! Nunca gostei muito de teatro, nem de poesia, pela mesma razão. Não tenho paciência para metáforas nem analogias.

 

Cassandra não previu o regresso de Milo e a sua aliança com Célio?

 

Fausta encolheu os ombros e estremeceu ligeiramente ouvi-a sibilar ao compor o braço.

 

Oh, acho que disse qualquer coisa sobre um urso e uma serpente. E duas águias. O urso seria Milo? E a serpente seria Célio? As águias seriam Pompeu e César? Ou seria ao contrário? Sei tanto como tu. Suspirou. Milo sempre se interessou muito mais por esse género de coisas do que eu.

 

Era mesmo?

 

Oh, sim. Levava os presságios muito a sério. E calculo que os leve mais a sério do que nunca.

 

Por que dizes isso?

 

Porque ela deu um grande suspiro naquele dia fatídico em que Clódio morreu, Milo avistou uma série de maus presságios antes de partirmos pela Via Ápia. Viu um abutre voar de pernas para o ar, e depois um ganso com três patas atravessou-se no nosso caminho, pelo menos ele afirmou que isso tinha acontecido. Mais tarde, quando começou tudo a correr mal, Milo não parava de resmungar: "Devia ter prestado atenção aos sinais; devia ter percebido que ia haver problemas; nunca devíamos ter saído; devíamos ter ficado em casa." É provável que não tenhas conhecido esse lado dele. Não falava muito de premonições e desse género de coisas, a não ser comigo, porque Cícero fazia imensa troça dele por ser supersticioso. Mas Milo andava sempre à espreita de portentos. Serviu-lhe de muito! Qual é a utilidade de avistar uma estrela cadente, se ela vem direitinha para cima de nós? Eu acenei com a cabeça.

 

Disseste que vim apenas falar de Cassandra, e não de ti nem de Milo, mas não é inteiramente verdade. Levavas a mal se eu te fizesse uma pergunta pessoal?

 

Fá-la e logo verás.

 

Por que continuas casada com Milo? Não foste com ele para Massília; ficaste cá, sem qualquer perspectiva de ele regressar para ti. Por que não te divorciaste dele, para poderes voltar a casar-te?

 

Ela resfolegou e, por momentos, pensei que a tivesse ofendido. Mas era com o seu destino que estava exasperada, e não comigo. À semelhança de muitas outras pessoas sobrecarregadas pelas consequências das suas decisões, não era avessa a proclamar a sua amargura a um quasedesconhecido.

 

Um divórcio tornou-se quase vulgar nos últimos tempos, não foi? Entre as classes altas, quero eu dizer. Mas dois divórcios bem, já começa a parecer um bocadinho exagerado, não achas? O meu primeiro marido divorciou-se de mim como uma espécie de castigo por tê-lo enganado. Milo não se importou nada com isso. Até acho que Milo gostava de ser enganado. Era uma boa desculpa para ele dar vazão às suas raivas. Era uma coisa que o... estimulava. Nunca foi tão tigre na cama, como era depois de me apanhar com outro homem. Tão forte. Tão... violento. E eu receio ter desenvolvido um gosto por esse género de coisas.

 

Compôs outra vez o braço e voltou a sibilar.

 

Mas estou a desviar-me do assunto. Continuei casada com Milo porque era a atitude mais respeitável. Acredites ou não, isso continua a ser importante para mim. Eu sou a filha de Sula. Não quero que as pessoas digam que abandonei o meu marido só porque ele se meteu num sarilho.

 

Uma condenação por assassínio e o exílio perpétuo não me pareciam propriamente aquilo a que se chama "um sarilho", mas os meus padrões diferiam dos de Fausta em muitos aspectos.

 

Não seria também sugeri eu porque, a longo prazo, tinhas confiança em Milo? Por seres capaz de prever que ele poderia regressar a Roma em triunfo, decapitando os seus inimigos como o teu pai decapitou os dele, tornando-se o primeiro homem de Roma, contigo como primeira dama? Era até possível que semelhante coisa viesse a acontecer, pensei com um arrepio. Quer César, quer Pompeu acabassem por regressar, entretanto Milo e Célio poderiam ser bem sucedidos no louco plano que tinham engendrado e tornar-se senhores de Roma. Tal coisa jamais sucederia sem o derramamento de muito sangue.

 

Ela fez um som de troça no fundo da garganta.

 

Não compares Milo com o meu pai! Ele sabia submeter uma cidade a seus pés, em vez de permitir que a loba lhe mordesse as canelas. Nunca mais veremos outro como ele nem em César, nem em Pompeu, e certamente que não em Milo. O melhor que posso esperar hesitou, mas teve um súbito acesso de emoção, que não conseguiu conter o melhor que posso esperar é tornar-me viúva de Milo. Nessa altura, as pessoas terão piedade de mim. E hão-de respeitar-me! Dirão: "Pobre Fausta! Sofreu muito com o segundo casamento. Mas manteve-se ao lado daquele idiota até ao fim! Provou que era uma mulher a sério. Era realmente filha de Sula!"

 

Pensei naquilo por longos momentos, desejando poder ver-lhe melhor o rosto. Mas a luz proveniente do exterior estava a tornar-se cada vez mais forte com o crescer da manhã, mergulhando as suas feições sempre mais na sombra.

 

Não compreendo muito bem confessei eu.

 

Nem eu esperava que compreendesses. Não fazes parte daqueles que contam não és como nós.

 

Não sou nobre, queres tu dizer? Ela abanou a cabeça.

 

Não, és mulher! Levantou-se, indicando que a entrevista tinha acabado.

 

No corredor, recolheu-se a um canto escuro. Reparei uma vez mais que coxeava. Bírria apareceu, para nos conduzir à porta. Enrolou o lábio e, de baixo das hirsutas sobrancelhas, lançou-lhe um olhar que parecia confinar com a loucura, até eu perceber que se tratava de lascívia.

 

Olhei para Fausta. Apesar da sombra, vi aquilo que ela tentara deliberadamente esconder, ao sentar-se contra a luz um crescente negro e pisado por baixo de um dos olhos.

 

Voltei a olhar para Bírria, sustentando-lhe o olhar.

 

Fausta disse, precisas da nossa ajuda?

 

O que queres dizer com isso?

 

Coxeias. Trazes um braço ao peito. Ela encolheu os ombros.

 

Oh, não foi nada. E certamente não é nada que te diga respeito. Foi um pequeno acidente. Às vezes sou um bocado desajeitada.

 

Tenho dificuldade em acreditar nisso, sendo tu a filha de Sula.

 

Aquilo em que acreditas ou deixas de acreditar não tem qualquer relevância, Descobridor. Vai-te embora. Bírria, depois de lhes teres fechado a porta... vem ter comigo.

 

Ele lançou-lhe um sorriso rosnado, mas foi o sorriso turvo com que ela lhe respondeu que me fez gelar o sangue nas veias. Voltei-me, e dirigi-me rapidamente à porta da rua, sem esperar por Bírria. À entrada, parei um momento a olhar o busto de mármore de Sula, perguntando a mim próprio a que curiosos acontecimentos teria assistido dentro daquela casa.

 

A sexta vez que vi Cassandra mistura-se na minha mente com a sétima, a oitava, a nona e todas as outras vezes que a vi antes da sua morte. Nem me lembro bem do número exacto de vezes que a vi. As minhas memórias desses encontros confundem-se, como os corpos quentes de dois amantes se confundem no acto do amor, de tal maneira que o amante não é capaz de dizer onde termina o seu corpo e começa o da amada.

 

Depois de termos feito amor pela primeira vez, combinámos encontrar-nos no seu quarto da Subura a uma hora específica, num dia específico. E foi assim que estabelecemos um padrão. Estas combinações eram decididas por Cassandra, em parte, penso eu, por forma a coincidirem com as manhãs que passava nas termas públicas, porque ela estava sempre fresca e limpa, mas também, presumo eu, por forma a que Rupa lá não estivesse. Quem era ele? Seria seu amante? Seu escravo? Um parente? Eu não sabia. Ela nunca me disse. E eu nunca perguntei.

 

De que falávamos, nos momentos em que não estávamos a fazer amor? De nada que estivesse remotamente relacionado com as nossas complicadas circunstâncias; de nada que pudesse invadir o mundo especial que criávamos dentro daquele quarto. Julgo que, de vez em quando, lhe falaria de Diana e Davo, de Jerónimo, de Ândrocles e de Mopso, especialmente se algum deles tivesse acabado de fazer alguma coisa que me tivesse frustrado ou feito rir. E falei-lhe de Meto e da dor que sentia por tê-lo perdido. Mas nunca lhe falei de Betesda, nem da doença de Betesda. E Cassandra nunca me falou de Rupa, nem das suas visitas às casas das mulheres bem-nascidas e abastadas de Roma, nem me contou de onde vinha.

 

Eu não me

importava; não queria conhecer a sua história, nem pensava no futuro. O que queria dela era aquilo que ela me dava naquele quarto, a união de dois corpos que enchiam o momento presente de uma perfeição milagrosa. Nada mais esperava dela. E ela nada mais parecia esperar de mim.

 

Ela despertava em mim sensações de juventude, de que eu quase me tinha esquecido. Em certos momentos luminosos, eu imaginava que era outra vez o jovem que vagabundeava por Alexandria. E era de facto o jovem que tinha sido, apaixonado pela força do seu corpo; apaixonado pela primeira vez pelo corpo de outrem; espantado com o prazer extraordinário que esses dois corpos podiam partilhar, e suficientemente ingénuo para pensar que nunca ninguém tivera sensações tão requintadas. No quarto de Cassandra, o tempo e o espaço perdiam por completo o sentido. Juntos, conjurávamos uma espécie de magia.

 

O que veria Cassandra em mim? Há muito que eu aceitara que as atracções das mulheres seriam sempre um mistério para mim; quando o inexplicável funcionava a meu favor, era preferível aceitá-lo sem mais perguntas. Ainda assim, olhando certa vez a minha cara num espelho de prata polida foi a última vez que me olhei nesse espelho, que tive de vender pouco depois para conseguir obter alguns sestércios com os quais alimentar a minha família, vi um homem de barba grisalha, com o rosto cheio de rugas de preocupação, e perguntei a mim próprio o que acharia Cassandra de atraente neste semblante gasto. Olhei-me durante muito tempo naquele espelho. Franzi os olhos, desfoquei-os, olhei-me de lado, mas não consegui detectar o menor vislumbre do homem em que me tornava quando estava com ela.

 

Havia algumas vantagens em parecer um amante tão-pouco provável. Em minha casa, ninguém desconfiava de nada. Quando eu voltava, depois de ter passado horas seguidas fora, Diana, se reparasse no facto, poderia censurar-me por ter saído sem Davo para me proteger. Jerónimo podia perguntar que novidades me tinham dado os amigos do Fórum. Betesda poderia chamar-me do quarto, para me perguntar por que motivo não tinha conseguido arranjar-lhe o mais recente produto impossível de descobrir que ela tinha decidido que seria capaz de a curar. Havia censuras, curiosidade ou queixas, mas nunca suspeita.

 

Apesar disso, todos se aperceberam da mudança que se operou em mim. Eu estava mais paciente, menos truculento. Já não respondia mal a Jerónimo; sentia-me novamente encantado com as suas graças, e acabei mesmo por conseguir convencê-lo a voltar a jantar na nossa companhia. As disputas de Mopso e Androcles divertiam-me mais do que me enervavam. Quando Davo parecia mais lento de entendimento, era quando eu o achava mais encantador, e pensava: Não é de espantar que a minha filha se tenha apaixonado; ele é um sujeito excelente! Diana estava mais bonita e inteligente do que nunca. E Betesda...

 

Betesda continuava mal. A doença tinha-se-lhe instalado no corpo como um vadio invejoso se esconde dentro duma casa, tendo o cuidado de nunca se deixar ver, mas deixando sinais enervantes da sua presença por toda a parte. A princípio, a doença tornara-a resmungona e exigente. Depois, fora ficando cada vez mais distante e silenciosa, o que era ainda pior, por ser tão pouco característico dela. O seu estado de espírito ia-se tornando mais carregado, à medida que o meu se aligeirava.

 

Na sua presença, eu sentia-me dilacerado de culpa, não tanto por ter estado com outra mulher o acto físico do sexo não suscitava em mim qualquer vergonha, mas porque tinha tropeçado em algo singular, maravilhoso e totalmente inesperado, no próprio momento em que Betesda era presa de uma coisa horrível, imprevisível e prolongada. Toda a nossa vida Betesda e eu tínhamos partilhado tudo, na medida em que duas pessoas podem partilhar tudo. Agora, cada um de nós escapara para um lugar para onde o outro não podia segui-lo e que ficavam em direcções opostas. A minha experiência era mágica, a dela miserável. Eu sentia a culpa de um homem saciado que observasse a sua amada engasgar-se com ossos e poeira.

 

Entretanto, continuavam a chegar da Grécia notícias da guerra. Ouvia-se todo o género de relatos contraditórios que César vencera Pompeu; que Pompeu vencera César. Durante algum tempo, entre Aprilis e meados de Quintil, ambos tinham montado os acampamentos e construído fortificações na região de Dirráquio, o principal porto de mar no lado oriental do Mar Adriático. Ambos os lados pareciam decididos a fazer das colinas e dos desfiladeiros rugosos e labirínticos que rodeavam Dirráquio a arena de uma batalha decisiva. Mas, depois de um recontro em que Pompeu quase derrotou as suas forças, César viu-se em desvantagem e deslocou-se para o interior, para a região da Tessália. Ainda não se tinha dado a batalha decisiva.

 

As minhas visitas a Cassandra confundem-se na minha memória, mas há dois incidentes de que me recordo.

 

Da mesma maneira que nunca me falava das suas visitas às mulheres da classe alta, também nunca me falou do motivo por que as fazia: os seus acessos de profecia. Certa vez, comecei a interrogá-la sobre isso, mas ela replicou colocando-me o indicador diante dos lábios, e depois distraindo-me de outras formas. Por que não terei insistido em pedir pormenores? Sou capaz de compreender por quê, mas só em retrospectiva. Se ela era genuína, e o facto de olhar para uma chama a induzia a pronunciar profecias, eu não queria ouvir nenhuma delas. Para quê procurar um vislumbre do futuro, se o futuro pode reservar-nos uma escuridão completa? Em Cassandra, eu tinha encontrado maneira de viver no presente.

 

No entanto, houve uma ocasião em que vi o deus passar por ela.

 

Estávamos deitados lado a lado na enxerga dela, nus, com o suor a lubrificar-nos a carne nos pontos em que os nossos corpos se tocavam. Eu observava o progresso de uma mosca na parede, cujas asas o Sol proveniente da janela alta tornara kidescentes. Cassandra cantarolava baixinho, de lábios semicerrados e olhos fechados. Por momentos, pareceu-me reconhecer a melodia era uma canção de embalar alexandrina, que Betesda cantava a Diana, mas depois decidi que devia estar enganado. A melodia era parecida, mas não era exactamente a mesma...

 

Cassandra calou-se. Apenas se ouvia o zumbido da mosca circulando pelo quarto.

 

Cassandra deu um solavanco, tão violento que eu quase caí da cama estreita. Bateu-me no nariz com o cotovelo.

 

Eu rolei para o lado, com a mão na cara. Pus-me de pé de um salto e olhei para trás. Cassandra continuava deitada, com a cabeça a rolar, o tronco a contorcer-se, e os braços a bater no colchão. O efeito era bizarro, como se uma parte dela se tivesse tornado um animal independente, com vontade própria. Os seus olhos reviraram-se para trás, deixando ver apenas o branco.

 

De repente, sentou-se muito direita. Eu pensei que o ataque tinha acabado. Então, voltou a deixar-se cair na cama, arqueando a coluna, com convulsões. Eu nunca tinha visto uma coisa assim. O acesso que sofrera à porta do Templo de Vesta não tinha sido nada que se parecesse com este.

 

Recordei-me de uma coisa que Meto me tinha dito certa vez: Ele tem medo de trincar a língua. Disse-me que devia estar preparado para lhe meter qualquer coisa na boca se alguma vez voltasse a ter um daqueles ataques...

 

Meto falava de César. Pareceu-me ouvir a sua voz dizer-me ao ouvido: "Mete-lhe qualquer coisa na boca!" Dei um salto e olhei por cima do ombro, pensando por um momento que Meto estava ali comigo. Tudo me parecia possível. Um deus passava por Cassandra. O próprio ar que me rodeava parecia estremecer e faiscar, com intimações do sobrenatural.

 

Lembrei-me do bastão de couro em que tinha reparado anteriormente, da primeira vez que viera vê-la. Meti a mão por baixo do colchão, e encontrei-o quase imediatamente, como se uma mão invisível estivesse a guiar-me.

 

Subi para cima de Cassandra, esmagando-a com o meu peso. Tentei prender-lhe os punhos com uma das mãos, para ver se conseguia meter-lhe o bastão entre os dentes, mas ela era forte demais. Logo que conseguia segurar uma parte do seu corpo, havia outra parte que se libertava. A própria cama parecia estar viva, saltando para cima e para baixo e batendo de encontro à parede. Ao fundo do corredor, alguém gritou:

 

Por amor de Vénus, vocês os dois, façam menos barulho!

 

Tão de repente como tinha começado, o ataque passou. O seu corpo tornou-se flácido. A mudança foi tão abrupta, que por momentos pensei que ela tivesse morrido. Obriguei-me a levantar e olhei para baixo, com o coração na boca. Depois, vi-lhe subir o peito, quando ela inspirou profundamente. Estremeceram-lhe as pálpebras. Pareceu-me que a passagem do deus lhe tinha expulsado o espírito de dentro e, por momentos, depois de o deus ter passado, não houve nela qualquer réstia de vida. Ao reentrar gradualmente no seu corpo, o espírito parecia confuso, como se não tivesse a certeza se teria regressado onde devia.

 

Ela pestanejou e abriu os olhos. Não pareceu reconhecer-me.

 

Cassandra sussurrei eu, estendendo a mão para lhe limpar uns salpicos de espuma dos lábios. Passei-lhe os dedos pela face. Ela ergueu o braço e cobriu a minha mão com a sua, num aperto frágil como o de uma criança.

 

Gordiano? disse.

 

Estou aqui, Cassandra. Estás bem? Precisas de alguma coisa?

 

Ela fechou os olhos. Eu senti uma punhalada de medo, mas ela estava apenas a descansar. Estendeu os braços e puxou-me para si, abraçando-me, murmurando a canção de embalar que estivera a cantarolar anteriormente, enquanto me embalava suavemente, como se fosse eu que precisasse de ser reconfortado.

 

Onde teria estado? O que teria visto? A partir desse dia, compreendi o fascínio que ela exercia sobre aquelas mulheres ricas e poderosas, convencidas de que podiam dominar o poder que circulava através de Cassandra, ordenando-o aos seus próprios fins.

 

Mais tarde, quando regressei a casa, toda a gente reparou no golpe que eu tinha no lábio, incluindo Betesda, que ao jantar se mostrava bem-disposta como há muito tempo não estava, e que até foi capaz de ralhar comigo.

 

Andaste a meter-te com algum rufia no Fórum, marido? perguntou.

 

Não, mulher.

 

Então foi algum rixa numa taberna manhosa?

 

Claro que não.

 

Ela ergueu as sobrancelhas.

 

Talvez tenha sido uma mulher bonita que te deu uma bofetada por lhe teres dito alguma graça que não devias? Eu corei.

 

Foi uma coisa desse género.

 

Betesda sorriu e disse a Mopso que lhe trouxesse mais alhos-porros guisados, o último remédio em que investira as suas esperanças. Não pareceu incomodada com o facto de a causa do meu lábio inchado permanecer um mistério, mas reparei que Diana, reclinada ao lado de Davo no canapé que ambos partilhavam, me olhou com uma expressão interrogadora e bem mais sombria.

 

Entre os encontros com Cassandra que se confundem na minha memória, há outro incidente de que me recordo, entre outras coisas por ter ocorrido na última vez que nos encontrámos no quarto dela, na Subura. Seria o último dia em que estaríamos juntos, o último dia em que faríamos amor.

 

Nessa altura, eu não podia saber que assim era. Se soubesse, tê-la-ia apertado com mais força, teria feito amor com ela com mais paixão? Não me parece possível. Receio que tivesse feito o contrário, que me tivesse tornado distante e me tivesse afastado dela como acontece com muitos homens, ao perceberem que têm de perder aquilo que amam, e procuram um atalho no meio do sofrimento. Afastam aquilo que amam antes que possa ser-lhes arrancado.

 

Eu não tive de me confrontar com esse dilema; não previ o que estava a preparar-se.

 

Era um início de tarde quente, na véspera dos Nonos de Sextil. Nem uma brisa corria em toda a cidade. Uma névoa abafada caíra sobre Roma. O quarto de Cassandra na Subura parecia um dos cubículos aquecidos das termas. O calor irradiava das paredes. Um raio de luz que entrava pela janela alta, embatendo na parede oposta, estava tão cheio de partículas de pó, que parecia uma coisa sólida, uma viga estranhamente iluminada suspensa por cima das nossas cabeças.

 

Eu tinha pensado que o calor nos reprimiria, mas teve o efeito contrário, funcionou como uma droga. As normais limitações do meu corpo dissolveram-se. Transcendi-me. Entrei num estado de êxtase tão completo, que já não sabia onde estava nem quem era. Depois, senti-me leve e insubstancial, como um daqueles grãos de poeira que circulavam na viga, por cima das nossas cabeças.

 

Fui tomado por uma deliciosa letargia. Sentia-me pesado, sólido, inerte. Os meus braços e as minhas pernas pareciam de chumbo. Nem um dedo conseguia erguer, de tão pesado que era. Parecia estar a sonhar, mas as imagens conjuradas por Sono deslizavam para longe antes que eu conseguisse agarrá-las, como sombras entrevistas pelo canto do olho. Não estava a dormir nem acordado. Lenta e gradualmente, comecei a ouvir vozes. Pareciam provir de algures acima de mim, abafadas pela distância. Eram dois homens a conversar. As palavras que trocavam eram indistintas, mas eu percebi que mantinham uma discussão acesa. Fala mais baixo! disse um deles, suficientemente alto para eu o ouvir.

 

Eu conhecia aquela voz.

 

Agitei-me. Parecia estar a acordar de um sonho. Por longos momentos, pensei que as vozes tinham feito parte desse sonho. Depois, voltei a ouvi-las. Vinham do quarto que ficava por cima. O som chegava-me, em parte, através do chão, mas sobretudo pela janela alta, que devia ficar imediatamente por baixo da janela do quarto do andar de cima.

 

Senti que Cassandra se tinha ido embora mesmo antes de estender a mão e encontrar o vazio a meu lado. O espaço ainda estava quente do seu corpo.

 

Os homens que falavam no andar de cima baixaram as vozes. Agora, só conseguia ouvir um murmúrio. Com certeza tinha imaginado que havia reconhecido uma daquelas vozes...

 

Levantei-me da cama, peguei na tanga e vesti-a, e por cima dela a túnica. Atravessei a cortina que cobria a entrada do quarto de Cassandra e saí para o corredor. A seguir a uma esquina, depois de passar por várias entradas tapadas com cortinas, cheguei a um lance de degraus de madeira. Subi-os lentamente, tentando não fazer barulho. Apesar disso, o último degrau antes do patamar deu um grande estalido. O murmúrio de vozes provenientes do quarto que ficava na extremidade do corredor cessou abruptamente.

 

Dei mais um passo. A tábua do chão estalou. Do quarto da extremidade do corredor chegava-me apenas o silêncio. Deixei-me estar imóvel durante muito tempo. Depois ouvi uma voz, aquela que tinha reconhecido anteriormente, dizer com toda a nitidez:

 

Achas que é ele?

 

Tem de ser disse o outro. Tive um sobressalto, ao reconhecer também esta segunda voz.

 

Tinha de estar enganado. A minha imaginação estava a pregar-me partidas. Para provar que assim era, desci pausadamente o corredor, sem me importar com os estalidos que faziam as tábuas do chão, até uma cortina muito semelhante àquela que cobria o quarto de Cassandra.

 

Fiquei a olhar fixamente para ela. Do outro lado, chegava-me apenas o silêncio ou melhor, não era propriamente o silêncio, era o som da respiração de dois homens. Seria apenas imaginação minha, ou eles também me ouviriam respirar?

 

Ergui uma mão para agarrar a ponta da cortina, e imaginei alguém a fazer o mesmo do outro lado. Teria um punhal na outra mão?

 

Puxei a cortina num gesto brusco, preparando-me para me confrontar com a cara que estaria a olhar para mim, mesmo na minha frente. Mas estava sozinho no limiar do quarto. Os seus ocupantes eram apenas os dois, sem guarda-costas à vista estavam sentados no meio do pequeno compartimento. Ao verem-me, levantaram-se. Na sequência do corredor mergulhado na obscuridade, a luz proveniente da janela ofuscou-me por momentos. Vi-os apenas como duas silhuetas diferentes, uma baixa e entroncada, a outra alta e elegantemente esguia. Gradualmente, fui focando o olhar nos seus rostos.

 

Estás a ver disse Marco Célio ao companheiro como é Gordiano? Eu bem te disse.

 

Pois érespondeu Milo, cruzando os braços musculosos.Bem, não fiques aí parado, Descobridor. Baixa a cortina e entra. E não fales alto!

 

A entrevista com Fausta deixou-me maldisposto. Estive prestes a decidir suspender o dia de trabalho e voltar para casa. Mas o que iria eu fazer, excepto matutar? Até tinha muito sobre que matutar Cassandra morrera, e as minhas investigações não estavam a permitir-me entrever minimamente o motivo; Betesda estava doente e cada vez mais fraca, sem cura à vista; Roma encaminhava-se para o precipício, com abismos de ambos os lados, um dos quais se chamava Pompeu e o outro César, e dois mastins, chamados Milo e Célio, a morder-lhe as canelas...

 

O dia estava em contraponto directo com o meu estado de espírito. O Sol brilhava, quente e luminoso, com uma intensidade afrouxada por uma sucessão de nuvens magníficas, que avançavam lentamente pelo céu azul, a distâncias tão homogéneas umas das outras, que parecia que tinham sido dispostas por um mestre de paradas, como elefantes na procissão triunfal de um imperador.

 

Aquela parece uma máscara de tragédia. Até se distinguem os buracos dos olhos e da boca observou Davo.

 

O quê?

 

Aquela nuvem ali. Não era para lá que estavas a olhar? Estávamos sentados num banco de pedra, numa pequena praça, não muito longe da casa de Fausta. Eu tinha dito a Davo que precisava de descansar um momento. Na realidade, era a minha mente que estava esgotada e precisava de repouso absoluto. Tinha estado a contemplar a parada de nuvens, esvaziando a cabeça de todos os pensamentos.

 

Sim, Davo, é uma máscara de tragédia.

 

Só que agora está a mudar. Estás a ver a boca a revirar-se? Quase se pode dizer que é uma máscara de comédia.

 

Percebo o que queres dizer. Mas é a forma inteira que está a mudar, não é? Já não é bem uma máscara. Parece mais nada, na verdade. É apenas uma nuvem... Parece a minha busca da verdade acerca de Cassandra, pensei. As minhas entrevistas tinham produzido uma série contínua de impressões que se interpenetravam, todas ligeiramente diferentes, todas de certa forma transversais, nenhuma delas totalmente identificável com a Cassandra que eu conhecera. A verdade sobre ela era esquiva como uma nuvem, mantendo a sua forma até que a entrevista seguinte a transformasse noutra coisa.

 

Só faltam duas disse eu.

 

Nuvens? perguntou Davo.

 

Não! Só falta falarmos com duas mulheres, de entre as que foram ver a pira funerária de Cassandra: Calpúrnia e Clódia.

 

Vamos agora visitar uma delas, sogro?

 

Por que não? Num dia bonito como o de hoje, acho que sei onde estará Clódia.

 

Atravessámos a ponte para a outra margem do Tibre e voltámos à direita, mantendo-nos o mais perto possível do rio. Nesta zona junto às margens do rio, longe do rebuliço do centro da cidade, as famílias mais abastadas de Roma tinham pequenas propriedades a que chamavam horti. O horto de Clódia pertencia à família há várias gerações. Fora aqui que eu a conhecera, oito anos antes, quando ela me tinha encarregado de investigar o assassínio de Díon, o filósofo egípcio. Marco Célio tinha sido seu amante, mas tinham-se separado, e Clódia estava decidida a exercer a sua vingança acusando-o da morte de Díon.

 

Fora também no seu horto que eu vira Clódia pela última vez, quando fora conversar com ela na sequência da morte do seu amado irmão na Via Ápia. Fúlvia tinha sido esposa de Clódio, mas havia quem dissesse que a verdadeira viúva era Clódia, apesar de ser a irmã do morto.

 

Enquanto Davo e eu percorríamos a estrada, íamos tendo vislumbres ocasionais do rio, à nossa direita. A maioria das vezes, a nossa visão era bloqueada por muros altos. Antigamente, o acesso aos hortí à beira do Tibre era relativamente livre, mas ultimamente os proprietários tinham construído vedações altas e muros destinados a impedir a entrada a estranhos. Quando passámos por uma propriedade que não tinha muros, avistei zonas de bosque e de ervas altas, intercaladas com jardins meticulosamente tratados. Por entre a folhagem, vislumbrei cabanas rústicas e casinhas encantadoras, viveiros de peixes sarapintados de sombras e fontes de água corrente, caminhos de pedras adornados com estátuas e rampas de barcos que iam dar ao cintilante Tibre.

 

O horto de Clódia era suficientemente distante do centro da cidade para se ter a sensação de retiro campestre, mas suficientemente próximo para se poder ir até lá a pé uma localização invejável para uma propriedade à beira-rio na capital do mundo. Cícero, que levara a cabo um magnífico trabalho de destruição da reputação de Clódia no processo de defesa de Célio, tivera a ousadia de tentar comprar-lhe o horto alguns anos depois. Clódia nem sequer tinha recebido o representante de Cícero. Ao contrário de muitos dos seus vizinhos, Clódia resistira à tendência de fechar o seu horto dentro de muros altos. Ao subir a viela estreita que ligava a estrada principal aos terrenos dela, tive a sensação de estar muito longe da cidade, com todos os seus crimes e tumultos. A viela era ladeada por arbustos de bagas, que se cruzavam por cima da nossa cabeça, sombreando a passagem. Este caminho em forma de túnel ia dar a um prado amplo de ervas altas. Recordei-me de que antigamente um par de cabrinhas mantinha este prado cuidadosamente aparado. As cabrinhas tinham desaparecido. Aquilo que outrora fora um relvado transformara-se num campo inculto.

 

De frente para o campo e na perpendicular do rio, que estava quase totalmente escondido por uma densa fileira de árvores, ficava uma casa comprida e estreita, com um pórtico que acompanhava toda a fachada. A casa estava diferente do que eu me recordava. Faltavam telhas no telhado. Algumas das portadas estavam descaídas, penduradas de dobradiças partidas. Os arbustos que contornavam o pórtico, perfeitamente aparados na minha memória, tinham crescido demais e estavam saturados de ervas daninhas.

 

Lembrava-me de o horto de Clódia ecoar de música e dos risos de banhistas nus. Mas hoje apenas conseguia ouvir o zumbido das cigarras por entre a erva alta. O local parecia-me completamente deserto, sem sequer um guarda a cuidar dele.

 

Dá-me a impressão de que não está cá ninguém observou Davo.

 

Talvez não. Num dia bonito como o de hoje, era difícil imaginar que ela não estivesse aqui. Ela adorava este sítio! Mas os tempos mudam. As pessoas mudam. O mundo envelhece. Suspirei. Apesar disso, vamos dar uma vista de olhos junto ao rio.

 

Evitando as ervas altas, andámos ao longo do pórtico fronteiro à casa. Aproveitando os espaços deixados pelas portadas caídas, espreitei para o seu interior. As salas estavam às escuras, mas eu percebi que tinham sido totalmente esvaziadas de mobiliário. A casa cheirava a pó e a bafio.

 

Chegámos à extremidade do pórtico, onde um pequeno caminho serpenteava por entre teixos e ciprestes magníficos até à beira da água. Eu já tinha desistido de encontrar Clódia, mas fui tomado por uma nostalgia que me deu vontade de estar por momentos no sítio onde a tinha conhecido. Nessa altura, ela estava recostada num canapé alto, dentro do seu pavilhão de listas brancas e encarnadas, envergando um vestido de gaze finíssima, e divertindo-se a observar um grupo de jovens, entre os quais se contava o seu irmão, Clódio, que brincavam na água, nus.

 

Avançámos por entre as árvores. Para minha surpresa, vi uma figura solitária sentada na margem, numa cadeira dobrável voltada para o rio. Era uma mulher que vestia uma estola mais adequada aos dias de Inverno: de lã cinzenta-escura e mangas compridas. O seu cabelo escuro era percorrido por fios cinzentos, e ela usava-o preso num rolo, no alto da cabeça. O que estaria aqui a fazer? Não parecia o género de mulher que fosse amiga de Clódia.

 

Deve ter-nos ouvido, porque se voltou na cadeira e pôs-se a observar-nos, protegendo a testa do sol com a mão, de tal maneira que ficou com a face encoberta.

 

Clódia sabe que estás aqui? perguntei eu.

 

A mulher deu uma gargalhada. Foi o riso que eu reconheci malicioso, indulgente, sugerindo segredos jamais ditos.

 

Mudei assim tanto, Gordiano? Tu não mudaste nada.

 

Clódia! sussurrei.

 

Ela baixou a mão e eu vi-lhe a cara. Tinha os mesmos olhos de um verde-esmeralda, brilhante como a luz do Sol no verde Tibre, mas o tempo transformara-lhe o resto das feições. Tinham passado apenas quatro anos desde a última vez que eu a vira. Como era possível que tivesse envelhecido desta maneira em tão pouco tempo?

 

Era certo que não se tinha preocupado em parecer o melhor possível. Só por si, isso já era uma mudança; Clódia sempre fora vaidosa quanto à sua aparência. Mas hoje não trazia maquilhagem que lhe acentuasse os olhos ou os lábios, nem jóias que lhe adornassem as orelhas ou o pescoço; e vestia uma estola pesada que em nada a favorecia. O seu cabelo, que costumava pentear de forma elaborada e colorir com hena, estava puxado para cima num rolo, e exibia uma abundância de zonas cinzentas. A mais subtil diferença, e no entanto mais reveladora, era o facto de não me parecer usar perfume. O perfume de Clódia, uma capitosa combinação de nardo indiano e óleo de açafrão, tinha-me assombrado durante anos. Era impossível pensar nela sem recordar aquele odor. Mas hoje, na sua presença, apenas sentia o cheiro viçoso da erva verde da margem do rio num dia de Verão.

 

Ela sorriu.

 

Quem esperavas encontrar aqui?

 

Ninguém. A casa parece deserta.

 

E está.

 

Não está cá mais ninguém? perguntei eu. Absolutamente ninguém? Clódia sempre se rodeara de admiradores sicofantas que esguichavam poesia, belos escravos de ambos os sexos, e um verdadeiro exército de amantes amantes rejeitados, amantes actuais, possíveis amantes à espera de vez.

 

Só cá estou eu respondeu ela. Vim de liteira de manhã cedo, e depois mandei os carregadores voltarem para casa, no Palatino. Tenho cá vindo pouco, nos últimos tempos, mas quando venho prefiro estar sozinha. Os escravos são muito cansativos, sempre à minha volta à espera de instruções. E não ficou em Roma ninguém que valha a pena convidar para um banho. Todos os jovens belos estão algures, a fazer-se matar. Ou então já morreram... Olhou para além de mim, para Davo. À excepção deste. Quem é ele, Gordiano?

 

Eu sorri, apesar de sentir uma picada de inveja.

 

Davo é o meu genro.

 

Será possível que a tua filha já tenha idade para se casar? E com semelhante montanha de músculos! Feliz Diana. Talvez ele queira dar um mergulho no rio. Olhou para Davo com os olhos de uma tigre faminta. Se calhar não tinha mudado assim tanto.

 

Eu ergui uma sobrancelha.

 

Não me parece.

 

Davo olhou para a água reluzente.

 

Na realidade, sogro, num dia quente como o de hoje...

 

Por favor, vai dar um mergulho disse Clódia. Insisto em que o faças! Despe essa toga maljeitosa... e o que trazes por baixo. Podes pendurar as tuas coisas no ramo daquela árvore, como os jovens costumavam fazer; lembro-me de ver aquele ramo cheio de roupas despidas...

 

Davo olhou para mim. Tinha a testa brilhante de suor.

 

Oh, pronto, está bem disse eu. Clódia riu baixinho.

 

Não faças essa cara zangada, Gordiano. A não ser que também queiras dar um mergulho, há outra cadeira dobrável ali naquele alpendre. Bem como uma caixa com alguma comida e um pouco de vinho.

 

Quando voltei, trazendo comigo a cadeira e a caixa, Davo caminhava em direcção ao rio, descalço e vestindo apenas a tanga. Jovem! chamou Clódia. Davo olhou por cima do ombro.

 

Vem cá, jovem.

 

Davo voltou atrás, com uma expressão interrogativa no rosto. Logo que ele ficou ao seu alcance, Clódia estendeu a mão, agarrou-lhe a tanga e puxou-lha habilmente. Recostou-se na cadeira, fez rodar a tanga sobre o indicador por momentos, e depois lançou-a, com um gesto perfeito, para cima da toga pendurada no ramo da árvore. Pronto, assim estás melhor. Um sujeito bonito como tu deve tomar banho no rio tal como os deuses o fizeram.

 

Eu esperava que Davo corasse e gaguejasse, mas ele limitou-se a sorrir com ar estúpido, lançando um grito e correndo a espanejar-se na água. Eu suspirei.

 

Vejo que continuas a ter o poder de transformar homens adultos em crianças.

 

Todos, à excepção de ti, Gordiano. Por Hércules, olha para as coxas daquele sujeito e para o que ele tem entre elas. É um verdadeiro garanhão! Tens a certeza de que não é demasiado para a pequena Diana?

 

Eu pigarreei.

 

Talvez possamos falar de outra coisa.

 

Temos mesmo? Num dia como este, que agradável seria falar apenas da juventude, da beleza e do amor. Mas conhecendo-te como te conheço, Gordiano, calculo que tenhas vindo falar sobre infelicidade, assassínios e morte.

 

De uma morte em particular.

 

A morte da vidente?

 

Chamava-se Cassandra.

 

Sim, eu sei.

 

E tu foste vê-la incinerar.

 

Clódia manteve o silêncio por momentos, enquanto observava Davo a espanejar-se na água.

 

Pensei que talvez viesses trazer-me... outras notícias.

 

Sobre quem?

 

Sobre aquele monstro, Milo... e sobre Marco Célio. Sobre esse disparate condenado ao fracasso que é a revolta que ambos organizaram.

 

Que te importa isso?

 

Eles vão matar-se os dois.

 

Provavelmente.

 

Célio... Ficou a olhar fixamente a água, perdida em pensamentos. Há muito tempo, quando nós éramos amantes, Célio costumava ir nadar para ali, enquanto eu ficava a vê-lo. Os dois sozinhos, neste fragmento do rio; não precisávamos de mais ninguém. Lembro-me de ele estar exactamente ali, onde está neste momento o teu genro, nu, de costas para mim Célio tinha um traseiro delicioso, e de se voltar lentamente para me sorrir... e me mostrar que estava impaciente, ansioso por fazer amor.

 

Desde então, deves ter visto muitos homens a nadar nus ali no rio.

 

Nenhum como Célio.

 

E, contudo, chegaste a odiá-lo.

 

Ele abandonou-me.

 

Tu tentaste destruí-lo.

 

Mas não consegui, pois não? Só fiz mal a mim própria. E agora, sem qualquer auxílio da minha parte, Célio parece decidido a destruir-se. Fechou os olhos. Mortos sussurrou, todos mortos: o meu querido, o meu doce irmão, Clódio, o amado de Fúlvia; tantos dos jovens belos que aqui vinham cabriolar na água, sem cuidados. Até aquela peste do Catulo, com os seus horríveis poemas. Quem será o próximo a ser tomado pelas Parcas? Marco Célio, presumo. Após ter passado tantos anos a rir-se delas, as Parcas vão apoderar-se dele e mandá-lo direitinho para o Hades.

 

E tu vingar-te-ás finalmente dele. Ela acenou com a cabeça.

 

É uma maneira de ver as coisas.

 

Vim falar contigo sobre Cassandra, e não sobre Célio.

 

Ah, sim. A vidente.

 

Dizes isso com ironia. Ela fez-te alguma profecia?

 

Por que perguntas, Gordiano?

 

Ela foi assassinada. Eu quero saber por que motivo morreu, e quem a matou.

 

Por quê? Isso não poderá trazê-la de volta. Inclinou ligeiramente a cabeça e olhou-me intensamente; depois fez uma careta. Oh, céus. Então é isso? Estou a perceber. Bem, bem, Cassandra foi bem sucedida onde Clódia fracassou.

 

Se queres dizer...

 

Estavas apaixonado por ela, não estavas?

 

Eu nunca tinha dito aquela palavra em voz alta, nem sequer à própria Cassandra.

 

Talvez.

 

Pelo menos, fizeste amor com ela.

 

Fiz.

 

Ela deu um suspiro entre o exasperado e o divertido.

 

A roda da Fortuna gira sem nunca parar! Agora é Clódia quem está celibatária e o sempre fiel Gordiano quem comete adultério! Quem havia de dizer? Os deuses devem estar a rir-se de nós.

 

Há muito que eu suspeito disso.

 

Ela olhou abstractamente para o brilho do Sol reflectido na água e mordeu a unha do polegar.

 

Foi desagradável da minha parte, falar com esta ligeireza. Deves estar completamente arrasado.

 

A morte de Cassandra foi um golpe para mim, é verdade, um entre muitos outros golpes que me têm sido infligidos ultimamente.

 

Gordiano, o estóico! Devias aprender a dar livre curso às tuas emoções. Bebe até ficares inconsciente. Destrói objectos insubstituíveis num acesso de raiva. Passa uma hora ou duas a torturar um escravo. Sentir-te-ás melhor.

 

Prefiro descobrir quem matou Cassandra, e porquê.

 

E depois? Vi as outras mulheres que foram observar a pira funerária de Cassandra. Se foi uma delas, que acção poderias empreender? Os tribunais estão de pantanas. Nenhum magistrado mostrará qualquer interesse pelo assassínio de um ser insignificante como Cassandra. E qualquer daquelas mulheres é suficientemente poderosa para tê-lo feito. Nunca conseguirás fazer justiça.

 

Nesse caso, contentar-me-ei em descobrir a verdade.

 

És mesmo estranho, Gordiano! Dizem que todos os mortais são guiados por uma paixão. Procurar o prazer parece-me infinitamente mais sensato, mas se a tua é descobrir a verdade, pois seja. Clódia encolheu os ombros. Embora o gesto tivesse sido quase engolido pela volumosa estola que trazia vestida, embora a idade e o sofrimento a tivessem mudado exteriormente, naquele eloquente erguer e baixar de ombros eu vislumbrei por instantes a essência de Clódia. Aquele encolher de ombros convocou momentaneamente tudo aquilo que ela era. Tinha vivido uma vida mais cheia do que aquela com que sonha a maioria dos homens, tinha devorado todas as sensações que a carne podia proporcionar, tinha prosseguido todas as emoções até ao extremo e agora, no final, Clódia encolhia os ombros.

 

Naquele momento, percebi por que razão tinha sucumbido ao meu desejo por Cassandra, embora nunca tivesse sucumbido ao desejo por Clódia. Era impossível imaginar Cassandra a encolher os ombros daquela maneira. A intensidade com que vivia cada momento tornava impensável semelhante gesto. Outrora, Clódia havia-me parecido a mulher mais cheia de vitalidade do mundo, mas isso fora apenas porque eu tinha confundido um apetite devorador com o amor à vida, e não tivera ninguém que me mostrasse a diferença antes de conhecer Cassandra.

 

Podes dizer-me alguma coisa que me seja útil? perguntei-lhe.

 

Sobre Cassandra? Diz-me o que já sabes sobre ela. Pareceu-me que Clódia estava evitar intencionalmente a minha pergunta.

 

Sei que ela foi convidada para casa de algumas das mulheres mais poderosas de Roma disse eu. Algumas dessas mulheres estão convencidas de que ela era realmente uma vidente. Outras acham que era uma fraude. Sei que ela veio de Alexandria, onde representava no teatro de mimos. Mas os seus ataques pelo menos alguns deles eram inteiramente reais.

 

E que mais sabes? Eu inspirei.

 

Acho que é possível que estivesse envolvida, de alguma maneira não sei bem como, nesta história de Milo e Célio.

 

Clódia ergueu uma sobrancelha.

 

Estou a ver. E por quê?

 

Tenho as minhas' razões.

 

Clódia voltou a sua atenção para Davo, que tinha subido a nado um considerável excerto do rio, e regressava agora pelo mesmo processo.

 

Que par de ombros murmurou. Espero que a tua filha saiba apreciá-los.

 

Julgo que sabe.

 

Ele vai ter fome quando sair da água. Ainda bem que o escravo da cozinha me encheu a caixa de comida. E que mais sabes acerca de Cassandra? Gordiano, acho que estás a omitir qualquer coisa.

 

Não percebo o que queres dizer com isso.

 

Não? A coisa mais importante de todas. Tu estavas apaixonado por ela. Desesperadamente apaixonado, a avaliar pela tua cara. Mas e ela, estava apaixonada por ti? Ah! Devias ir ver a tua expressão na água, Gordiano. Verias a cara de um homem que acaba de ser picado onde menos suporta que lhe toquem. No fundo, a tua investigação é sobre isso. Não se trata de saber quem matou Cassandra, mas quem era Cassandra. Em que estava ela metida. E, e isso é o mais importante de tudo, o que queria ela realmente não apenas daquelas pomposas matronas romanas, mas de um sujeito humilde chamado Descobridor. E, se não sabes a resposta a essa pergunta, também não é agora que vais descobri-la.

 

Davo emergiu da água com a pele molhada e cintilante, e agitou a cabeça para soltar a água do cabelo.

 

Braços magníficos sussurrou Clódia, rugindo como uma tigre. A guerra transformou Roma numa cidade de velhos e crianças. Pensei que Pompeu e César tinham arrebanhado todos os espécimes de valor para os oferecer em sacrifício a Marte, mas parece que deixaram escapar este.

 

Davo foi buscar a tanga e cobriu-se, movendo-se com uma graça natural e descontraída que eu admirei, dado que devia sentir o olhar de Clódia, que seguia todos os seus movimentos. Clódia mandou-o buscar uma terceira cadeira, e depois ofereceu-lhe o conteúdo da caixa, ficando a olhar para ele, cativada, como se não houvesse divertimento melhor do que observar um jovem faminto a devorar uma galinha assada e a lamber o molho dos dedos.

 

Eu percebi que ela nada mais me diria sobre Cassandra, pelo menos desta vez. Decidi não insistir. Só mais tarde me apercebi de quão habilidosamente evitara dizer-me fosse o que fosse de importante, e quão completamente me desarmara com o encanto que ainda exercia sobre mim.

 

Quer dizer observei que estás convencida de que Milo e Célio estão condenados ao fracasso.

 

Uma sombra atravessou-lhe o rosto.

 

Parece-me impossível que sejam bem sucedidos.

 

A velha Némesis do teu irmão e o homem que mais odeias neste mundo, ambos destruídos de uma vez para sempre. Era de esperar que essa perspectiva te alegrasse.

 

Clódia não respondeu. Continuou a ver Davo comer, mas o divertimento que eu tinha visto anteriormente na sua expressão tinha-se diluído, substituído por outra emoção que eu não consegui decifrar.

 

Estavam reunidos debaixo de uma rosa.

 

Eu olhei de um para o outro, sem querer acreditar naquilo que estava a ver: os dois homens mais perigosos de Itália, cujo paradeiro e cujas intenções eram objecto de todas as conversas, encontravam-se num quarto despido, num edifício quase em ruínas, no coração de Roma. Despido, à excepção das duas cadeiras em que estavam sentados, de um armário encostado a uma parede e do único ornamento que se via no quarto, um pequeno vaso de terracota suspenso do tecto acima da cabeça de ambos, dentro do qual se encontrava uma rosa vermelho-sangue.

 

Encontravam-se sub-rosa, invocando o antigo costume de que todos aqueles que se encontram debaixo da rosa estão obrigados ao silêncio. Seguindo a direcção do meu olhar, Marco Célio ergueu os olhos para a rosa.

 

Foi ideia de Milo disse. Ele leva este género de coisas muito a sério, compreendes sinais, portentos, votos, presságios. Daí a rosa, para garantir a discrição como se algum de nós pudesse beneficiar do facto de atraiçoar o outro. Claro que isto também te obriga a guardar segredo, Gordiano. O que se passa? Parece que viste Medusa. Entra! Receio que apenas tenhamos duas cadeiras, por isso talvez seja preferível ficarmos todos de pé.

 

Eu soltei a cortina atrás de mim e entrei no quarto, dominado pela estranheza do momento. O que estariam eles a fazer na Subura? Mais precisamente, o que estariam a fazer no quarto que ficava por cima do de Cassandra, e no dia em que Cassandra sabia que eu viria visitá-la?

 

Estavam vestidos de acordo com o quarto, e com o bairro: túnicas gastas e sapatos puídos. Eu nunca tinha visto Milo com o cabelo tão comprido, desgrenhado e afastado da cara; também tinha a barba por aparar. Célio tinha uma mancha de lama na face, como se fosse um simples operário. Não era a primeira vez que eu o via disfarçado. Durante um dos sangrentos tumultos que se tinham seguido à morte de Clódio, Milo e Célio tinham escapado juntos a uma multidão irada despindo as togas e tirando os anéis de cidadãos, e passando por escravos. Nesta ocasião, Célio tinha o anel posto, mas o anel de Milo estava vazio. Ele fora privado da cidadania e do direito de usar o anel de cidadão quando fora exilado de Roma.

 

Estes disfarces destinam-se a permitir-vos passear por Roma incógnitos? perguntei. Tu és o senhor pobre, Célio? E tu o escravo, Milo?

 

Célio sorriu.

 

Eu bem te disse que ele era esperto, Milo. Não há nada que escape ao Descobridor.

 

Milo resmungou e olhou para mim com hostilidade mal disfarçada. Já não estava gordo e dissipado como da última vez que eu o vira em Massília, suportando o exílio num estupor embriagado. Os perigos e as dificuldades por que passara ao fugir de Massília e regressar a Roma estavam-Ihe marcados nas feições cansadas. O poderoso físico de lutador tinha recuperado a forma. Havia nos seus olhos um brilho duro e desesperado.

 

Disseste que o Descobridor teria todo o prazer em nos ver, Célio observou Milo. Mas a mim não me parece nada satisfeito. Parece-me antes perturbado.

 

Isso é porque foi apanhado de surpresa replicou Célio. Mas não tínhamos outra maneira de te abordar, Gordiano. Não podíamos propriamente ir bater-te à porta de casa, pois não? Isso teria colocado a tua família em risco. Assim, foste tu que nos apanhaste um pouco de surpresa. Estávamos a pensar mandar alguém lá abaixo buscar-te daqui a nada, depois de teres feito a sesta. Mas tu tomaste a iniciativa de vir ter connosco.

 

Ouvi-vos falar disse eu. Reconheci a voz de Milo.

 

Ah! E ele que estava a dizer" para não falar tão alto observou Célio. Mas Milo é assim mesmo. Não tem consciência da sua própria força, seja para partir duas cabeças uma contra a outra, ou para me gritar que não fale tão alto. Eu abanei a cabeça.

 

Não compreendo. O que estás tu aqui a fazer? Célio ergueu as sobrancelhas.

 

A planear uma revolução, evidentemente.

 

Não, quero eu dizer, aqui em Roma. Toda a gente pensa que te foste embora há muito tempo.

 

E fui. E hei-de ir outra vez. Entro e saio como uma nuvem de fumo! Mas agora voltei a Roma. Planear uma revolução é uma coisa complicada, Gordiano. E entediante e tu bem sabes que eu nunca gostei de trabalhar. Nem imaginas a logística que é necessária. Eu tenho de estar em toda a parte ao mesmo tempo, encorajando os meus partidários, sussurrando palavras de conforto ao ouvido dos hesitantes, apertando as mãos daqueles que têm medo, metendo moedas no bolso dos gananciosos. E ainda, e essa não é a tarefa mais fácil de todas, abordando velhos amigos e conhecidos, para lhes pedir o seu apoio. Fixou-me com um olhar penetrante.

 

E tu, Milo? perguntei. Nem acredito que te tenhas atrevido a voltar a Roma. César foi clemente contigo quando permitiu que ficasses vivo e em Massília. Ele nunca te perdoará uma coisa destas. A tua mulher sabe que estás cá?

 

Não metas Fausta nisto! lançou Milo. Eu abanei a cabeça.

 

Vocês são ambos loucos, a encontrarem-se desta maneira, aqui na Subura. Não tarda a serem ouvidos ou reconhecidos. Se Isáurico e Trebónio vos descobrem...

 

Não descobrem disse Célio. Até agora, não descobriram. Eu entro e saio da cidade quando me apetece. Tenho muitos, muitos apoiantes, Gordiano. Mais do que supões, imagino eu.

 

Os suficientes para organizares uma revolta, aqui e agora? O sorriso dele vacilou.

 

Ainda não. Ainda preciso de cultivar os rebentos mais frágeis. Milo e eu decidimos que o melhor é reunirmos um exército nas zonas rurais, a fim de tomarmos a cidade pela força.

 

Reunir um exército? Como? A partir de onde? Todos os combatentes disponíveis já estão alistados nas forças de Pompeu ou nas forças de César.

 

Mas nem todos se sentem satisfeitos. Há por Itália inteira soldados que foram obrigados a colocar-se ao serviço de César. Sentem-se entediados, descontentes, e estão dispostos a revoltar-se. Têm inveja dos camaradas que atravessaram as águas com César e António, porque os despojos da vitória serão partilhados entre esses soldados, deixando de fora aqueles que ficaram para trás; a única coisa que lhes resta fazer é aterrorizar uns quantos cidadãos e plantar crianças na barriga das raparigas locais.

 

E tu podes prometer-lhes coisa melhor? Um ataque a Roma completado com pilhagens para os vencedores? Vais deixá-los saquear a cidade, Célio? É essa a tua vingança de Roma, Milo?

 

Célio abanou a cabeça.

 

Haverá recompensas suficientes para estes soldados, mas o saque não será retirado a cidadãos vulgares como tu, Gordiano. Provirá dos proprietários e banqueiros gananciosos, que se tornaram ricos como Creso no último ano. As riquezas que eles roubaram e acumularam ser-lhes-ão retiradas e distribuídas, a começar pelos soldados leais à revolução.

 

Leais a ti, queres tu dizer. Célio encolheu os ombros.

 

Alguém tem de dirigir a luta.

 

Estás a iludir-te, Célio. Se tomares Roma pela força, não conseguirás controlar os acontecimentos. Dizes que te limitarás a saquear os proprietários e os banqueiros, mas não podes garantir tal coisa. Até os homens de César escapam ao seu controlo de vez em quando, pilhando e queimando depois de ele lhes ter dado ordens expressas para não o fazerem e tu não és César, Célio.

 

Roma está doente, Gordiano. Exige um tratamento drástico.

 

Mesmo que morra dele?

 

Talvez que, para renascer, Roma tenha de morrer primeiro. Uma cidade melhor renascerá das cinzas, como a fénix.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Todo esse argumento nasce de uma falácia. Estás a presumir que consegues subverter suficientes guarnições de César para invadires a cidade. Não acredito nisso. Talvez alguns soldados se sintam descontentes mas os restantes permanecem leais a César. Juntar-se-ão e destruir-te-ão ainda antes de chegares a Roma.

 

Subestimas o descontentamento que grassa em Itália, Gordiano. Eu conheci-o de perto. António não fez nenhum favor a César quando percorreu Itália inteira antes de partir de Roma. Alienou uma cidade após outra com as suas fanfarronadas arrogantes viajando como um potentado oriental, na companhia daquela prostituta, Citéris. Os soldados gostaram tanto daquilo que os viram como os pais das cidades. A César, é possível que se tivessem mantido leais, mas se ele tenciona deixar pessoas como António encarregadas do governo quando se ausenta, as coisas já são um pouco diferentes.

 

Milo interveio.

 

E nem sequer precisamos de nos apoiar apenas nas guarnições. Há muitos outros combatentes treinados a quem podemos recorrer. Célio ergueu a mão e lançou-lhe um olhar de advertência, mas Milo prosseguiu. Refiro-me aos campos de treino de gladiadores, no Sul! Os maiores, os mais fortes e mais rancorosos escravos de toda a Itália vão parar a esses campos, e são treinados para matar sem piedade. Quando se trata de matar, um gladiador vale mais que cem soldados comuns. Os escravos que se encontram nesses campos estão desesperados a única coisa que têm diante de si é uma morte prematura e dolorosa, e nem Pompeu nem César lhes oferecem qualquer esperança para o futuro. Depois de os libertarmos, eles ser-nos-ão leais, a nós e a mais ninguém!

 

Durante anos, Milo fora acompanhado por um exército privado de gladiadores; partira de Roma com eles, fora protegido por eles em Massília, e eles tinham ajudado a defender a cidade contra o cerco de César; agora, tinham regressado a Itália com Milo. Ele habituara-se de tal maneira à companhia dos gladiadores, que não se apercebia como era chocante sugerir que tais homens fossem recrutados para derrubar o Senado e os magistrados de Roma. Claro que o próprio César estabelecera um precedente, ao libertar os gladiadores que possuía, transformando-os em soldados, mas tinha tido o cuidado de os dispersar por diferentes legiões, e de os usar fora de Itália. O que Milo sugeria era muito diferente: libertar bandos de gladiadores, e permitir-lhes montarem cerco a Roma. Esses homens eram os mais baixos de entre todos os homens

 

escravos maltratados e desesperados, treinados para matar, desprovidos de qualquer disciplina militar, sem família ou qualquer interesse no futuro de Roma ou das suas instituições. Se não era possível garantir que os soldados não pilhassem nem queimassem, o que aconteceria se Roma fosse tomada por gladiadores?

 

Consideras-te um segundo Espártaco, Milo? É esse o legado que tencionas deixar? Milo, que se tornou famoso como cão de guarda dos Melhores, lançando sobre Roma escravos sedentos de sangue? As Parcas conduziram-te para um estranho caminho, Milo.

 

Milo fala prematuramente disse Célio, contraindo-se. Os gladiadores só serão utilizados como último recurso.

 

Um remédio que com certeza matará o paciente! Os gladiadores são treinados para matar, e não para acatar ordens. Estás a brincar a Pandora se os libertares.

 

Nem Célio nem Milo responderam. Observaram-me com atenção por longos momentos, e depois trocaram um olhar. Milo como quem reivindica a razão, Célio como quem se mostra desiludido. Eu tinha reagido como Milo esperava que eu reagisse, mas Célio tivera esperança de que a minha reacção fosse diferente.

 

O que pretendem de mim? perguntei. Célio suspirou.

 

Simplesmente que ajas no teu interesse, Gordiano. Envenenaste a tua relação com Pompeu. Não sei exactamente o que se passou entre os dois, mas sei que ele tentou estrangular-te quando fugia de Brundísio a bordo de um navio. Só com dificuldade escapaste com vida! O que farás se Pompeu regressar a Roma triunfante? E a tua relação com César não me parece muito melhor. Meto, o teu filho adoptivo, continua a ser íntimo de Césarmas tu renegaste Meto, ofendendo César. Qual será a tua posição se César vencer e se tornar Rei de Roma? Eu fui leal a César

 

fugi de Roma com Curió para ir juntar-me a ele no Rubicão; combati a seu lado em Espanha e viste como ele me recompensou, com migalhas! Que recompensa podes tu esperar de César?

 

"Mas esquece Pompeu, esquece César, e a escuridão que se abaterá sobre esta cidade se qualquer deles triunfar. Presumo, Gordiano, que os discursos que fiz ultimamente no Fórum te tenham tocado em algum nervo sensível. Por acaso, estou informado do estado das tuas finanças. Estás afogado em dívidas àquele canibal do Volúmnio. E ele nunca perdoa uma dívida. É insaciável! Vai sugar-te a vida como um homem suga a medula a um osso. A tua família será reduzida à mendicidade, talvez mesmo à escravatura. Pompeu nada fará para o impedir. Nem César; a culpa de homens como Volúmnio estarem a engordar todos os dias, à custa da miséria de outros homens é justamente de César. Só eu posso salvar-te de Volúmnio, Gordiano. Só eu posso prometer-te justiça. Toma o meu partido. É a única alternativa que te resta.

 

Porquê eu, Célio? Não tenho poder. Não tenho dinheiro. Não tenho ligações familiares. Que te importa que eu adira à tua causa ou não?

 

Ah, mas tens uma coisa muito mais importante para nós do que qualquer dessas, Gordiano. Célio deu umas pancadinhas na testa. És esperto! Vês o mundo tal como ele é. Sabes como funcionam os homens. Homens grandiosos e homens pequenos, circulaste no meio de todos eles. Mas o mais importante é o facto de te importares com a verdade, c ansiares por justiça. "O último homem honesto de Roma", como te chamou Cícero. És exactamente o género de homem que fará a diferença depois de as coisas terem sido voltadas de pernas para o ar. O teu dia chegará finalmente; não há limite para as alturas a que poderás aspirar. Tu precisas de nós, Gordiano. Mas nós também precisamos de ti.

 

Ele falava tão sinceramente olhando-me de frente, não erguendo a voz para além do necessário, que eu me senti compelido a ouvi-lo. Reconheci um truque de orador que ele tinha aprendido com Cícero primeiro, suscitar o medo (de Pompeu, de César, de Volúmnio), depois prometer a esperança (a liberdade das dívidas, a justiça para todos, o reconhecimento e a recompensa das minhas virtudes). Ficou a olhar para mim, à espera de uma resposta.

 

Eu inspirei profundamente.

 

Não é possível que não corramos riscos, encontrando-nos desta maneira. A qualquer momento, Isáurico pode mandar os seus homens invadir este prédio. E vocês não tinham a menor hipótese de escapar.

 

Milo emitiu um ladrido rouco que passava por uma gargalhada.

 

Ah! E julgas que não tomámos as nossas precauções? Este prédio está completamente guardado. Não reparaste nos homens armados que estão lá fora e no cimo do telhado? Óptimo. Significa que eles estão a fazer o que lhes compete, e que não se deixam ver. Mas basta-me estalar os dedos e, num piscar de olhos, tu serás deitado ao chão, de garganta aberta. Acendeu-se-lhe um brilho nos olhos.

 

E os inquilinos? Se eu te ouvi, é natural que outros...

 

Este prédio é propriedade de um amigo de Célio. Gradualmente, ele tem mandado embora todos os inquilinos que não eram de confiança, substituindo-os por adeptos ferozes.

 

Todos os ocupantes deste prédio são adeptos de Célio? Pensei em Cassandra, tentando imaginar que papel desempenharia neste esquema.

 

Incluindo o ocupante que tenho diante de mim, espero eu. Célio sorriu. O que dizes, Gordiano? Estás connosco? O caminho será duro, mas as recompensas serão maiores do que possas imaginar.

 

O que pretendes de mim?

 

Por enquanto, nada. Mas chegará o momento em que apelarei à tua astúcia, à tua inteligência, à tua honestidade e sabedoria e, quando o fizer, quero poder confiar na tua lealdade sem hesitações.

 

Confiarás em mim pelo simples facto de eu te dar a minha palavra?

 

Não. Dirigiu-se ao armário que estava encostado à parede e voltou com um fragmento de pergaminho. Quero que assines isto.

 

Eu abri-o à distância de um braço, porque as letras eram pequenas, e li:

 

Nesta data, na véspera dos Nonos de Sextil do ano de Roma DCCVI, entrego a minha vida e a minha fortuna à causa de Marco Célio Rufo e Tito Ânio Milo. Aceito a sua autoridade, e obedecerei às suas ordens. Rejeito a legitimidade do Senado e dos magistrados de Roma eleitos por ordem de Gaio Júlio César. Rejeito igualmente a legitimidade daqueles Senadores e magistrados que fugiram de Roma e combatem sob o estandarte de Gneu Pompeu Magno. Todos eles são impostores cujas acções são uma recusa a qualquer pretensão de constituírem o governo legítimo de Roma. Sob a orientação de Marco Célio Rufo e Tito Anio Milo, o estado romano será reconstituído, de acordo com a vontade do povo romano. Só um governo estabelecido por eles, e nenhum outro, terá legitimidade para orientar os assuntos do estado. Pelo meu nome, assinado em baixo ao lado dos de Marco Célio Rufo e Tito Anio Milo, e pela impressão da imagem gravada no meu anel de cidadão no selo de cera que se encontra neste documento, entrego-me livremente a esta causa, renunciando a todas as outras.

 

Ergui os olhos.

 

Devem estar a brincar. Um contrato para conspirar contra o estado? Eu não sou Cícero, mas até eu sei que isto não produz qualquer obrigação legal.

 

No actual regime talvez não produza respondeu Célio.

 

A única utilização a dar a um documento incriminatório como este é a chantagem observei eu.

 

Tu chamas-lhe chantagem. Nós chamamos-lhe uma garantia replicou Milo secamente. Se queres sair deste quarto, assina.

 

E se eu recusar?

 

Célio suspirou.

 

Esperava que o assinasses prontamente, até mesmo ansiosamente. Pompeu quer ver-te morto. César corrompeu o teu filho. Volúmnio fará de ti um pedinte. Por que não hás-de assinar?

 

Eu olhei para o pergaminho. Matar-me-iam se me recusasse a assinar? Olhando para Milo, que me observava com ar sinistro, não tive dúvidas de que sim. Assinar significava escapar com vida. Mas o que aconteceria quando Célio e Milo fossem destruídos, e César ou Pompeu regressassem a Roma? O meu nome em semelhante declaração podia significar a destruição, não apenas de mim próprio, mas de todos aqueles que me estavam próximos. Claro que, nos acasos da guerra, o pergaminho podia ser destruído, ou perdido, e nunca mais ser encontrado. E se...?

 

Por breves momentos, permiti-me pensar o impensável. E se Célio e Milo acabassem por vencer? Em circunstâncias tão improváveis, o facto de assinar tal documento podia dar-me acesso a um estatuto que eu nunca sonhara ser possível. Depois de se terem mantido sempre de lado, assistindo ao grande jogo à distância, os Gordianos poderiam encontrar-se no centro da nova república. Senador Gordiano? Se isso nada significava para mim, que dizer da minha família e do seu futuro? Por que não haveria Diana de ser elevada, por um golpe de fortuna, ao nível de uma Fausta, de uma Clódia ou de uma Fúlvia? Por que não haveriam os filhos de Eco de ter a possibilidade de conformar o mundo a seu gosto, em vez de se submeterem aos esquemas de outros? Como se estabeleciam as grandes famílias e as grandes fortunas, senão por um acto de temerária ousadia, por uma aposta louca?

 

Célio e Milo prometiam uma revolução universal. A revolução inspirava homens sem esperança a pensarem o impensável.

 

Mas que importava que Volúmnio fosse obrigado a perdoar-me as dívidas, se Roma inteira, incluindo a minha casa, fosse destruída pelo fogo, numa conflagração universal? Que importava que o Senado fosse esvaziado, e os seus lugares prometidos a homens novos como eu, se fosse solto na cidade um bando de gladiadores excitados, autorizados a fazerem o que quisessem às nossas filhas? Célio prometia um mundo renascido na justiça, mas aquilo que realmente lhe interessava era o poder. A sua aliança com Milo e a sua disponibilidade para atacar Roma com gladiadores eram uma prova disso.

 

Enruguei o pergaminho no punho fechado e atirei-o para o outro lado do quarto.

 

Eu bem te disse! lançou Milo. Eu bem te disse que ele não assinava.

 

Célio suspirou. Bateu as palmas. Ouvi um ruído atrás de mim e, quando me voltei, vi dois homens musculosos entrarem no quarto. Deviam estar à espera do lado de fora. Tinham ar de assassinos contratados.

 

Um par de futuros colegas senadores? perguntei eu. Célio avançou para o armário. Momentos depois, voltou com uma

 

taça e estendeu-ma.

 

Bebe disse-me.

 

Eu olhei para a taça.

 

É vinho?

 

Vinho barato. Lamento que não seja uma colheita melhor, mas sujeitos como Volúmnio apoderaram-se de tudo o que era bom. Bebe, Gordiano. Engole-o todo.

 

Eu olhei fixamente a taça.

 

É vinho... e que mais?

 

Bebe! disse Milo.

 

Atrás de mim, os dois brutamontes aproximaram-se de tal maneira, que eu os ouvia respirar, um a cada ouvido. Ouvi o resvalar de punhais retirados das bainhas.

 

Faz o que ele te disse sussurrou um deles. Bebe!

 

Porque senão... disse o outro. Senti a ponta do punhal de encontro às costelas, seguida da ponta do gémeo dele, do lado oposto.

 

Para quê envenenarem-me? Porque um homem da minha idade que fosse encontrado morto sem marcas aparentes não suscitaria perguntas. Podiam abandonar o meu corpo nas ruas, e toda a gente pensaria que eu tinha morrido de morte natural.

 

Ou então levavam-me para o andar de baixo e deitavam-me na cama de Cassandra. Desempenharia ela algum papel neste esquema ou seria outra vítima, tal como eu? E se eles também a matassem, deixando os nossos corpos juntos, com o veneno ao lado? Imaginei a vergonha e a consternação da minha família. A taça tremeu-me nas mãos.

 

Cassandra... murmurei.

 

Cala-te e bebe! gritou Célio. Subitamente, como se ele tivesse tirado uma máscara, a sua expressão mudou por completo. Num momento era o orador decidido e sedutor, no momento seguinte era um fugitivo cruel e desesperado, perfeitamente capaz de cometer um assassínio ou crimes ainda piores. Eu tivera medo de Milo; mas era Célio quem devia recear.

 

Os punhais enterraram-se um pouco mais na minha carne. Célio e Milo aproximaram-se.

 

Não queres certamente morrer ao fio dos punhais rosnou Milo. Pensa nisso! O metal a retalhar-te a carne, a voltar a sair, a entrar de novo dentro de ti. O sangue a jorrar. O frio a penetrar-te nos membros. A longa e agonizante espera pela morte. Bebe, idiota!

 

Agarrou-me no pulso e obrigou-me a erguer a taça. O vinho tocou-me nos lábios, mas eu mantive a boca fechada.

 

Guardem os punhais. Prendam-lhe os braços! gritou Milo, tirando-me a taça da mão. Os homens torceram-me os braços atrás das costas. Célio apertou-me o maxilar e obrigou-me a abri-lo. O vinho foi-me despejado na boca e escorreu-me pela garganta. Tinha um sabor amargo. Engoli-o para impedir que me inundasse os pulmões.

 

Todo! sussurrou Milo. Até à última gota! Eu tossi e cuspi. Escorreu-me algum vinho pelo queixo e pelas faces, mas a maior parte foi-me parar ao estômago. Ele continuou a entornar a taça, até ficar vazia.

 

Célio e Milo recuaram. Os brutamontes largaram-me. Eu tropecei para diante, sentindo-me tonto. Depois caí de joelhos. Acima de mim, Célio e Milo começaram a girar, alternadamente focados e desfocados. O quarto começou a ficar às escuras, como se tivesse caído a noite.

 

As suas vozes tinham um eco estranho, e pareciam vir de muito longe.

 

Devíamos ter posto cicuta no vinho, em vez da outra coisa dizia Milo. Devíamos cortar-lhe a cabeça agora mesmo.

 

Não! disse Célio. Eu dei-lhe a minha palavra. Prometi-lhe, e tu concordaste...

 

Uma promessa feita a uma bruxa!

 

Chama-lhe o que quiseres, não és digno de pronunciar o seu nome! Eu dei-lhe a minha palavra, e a minha palavra ainda tem algum valor, Milo. A tua não tem valor nenhum?

 

Não me espicaces, Célio.

 

Então não fales em o matar!

 

Foste tu que tiveste a ideia imbecil de tentar conquistá-lo.

 

Por momentos, pensei que tinha conseguido. O idiota! Deixa lá. Quando ele acordar...

 

A voz de Célio diluiu-se. O chão correu em direcção a mim. O quarto ficou às escuras.

 

Como que num sonho, vi Cassandra num horizonte longínquo. Os seus lábios formavam palavras que eu não conseguia ouvir. Ela estendeu os braços, acenando-me, ao mesmo tempo que recuava cada vez mais, distanciando-se de mim, até desaparecer por completo.

 

Abri os olhos.

 

Sentia a cabeça a estalar e o corpo rígido. Qualquer movimento, por menor que fosse, fazia-me gemer. Tinha um sabor estranho e desagradável na boca e a bexiga desconfortavelmente cheia. O meu estômago roncava.

 

Estava deitado no chão duro. Agitei-me e consegui sentar-me. A avaliar pelo ângulo dos raios solares que entravam pela janela, não tinha passado tempo nenhum desde que eu caíra ao chão. Na realidade, a luz parecia indicar que o tempo tinha regredido uma ou duas horas. Pestanejei, espantado.

 

Uma das cadeiras fora empurrada contra a parede. A outra estava a seu lado, deitada ao chão. As portas do armário continuavam a abertas. De onde me encontrava, conseguia perceber que as prateleiras tinham sido esvaziadas.

 

Olhei para o vaso de terracota suspenso do tecto. A rosa tinha murchado. Metade das pétalas tinham caído no chão.

 

Estivera inconsciente quase vinte e quatro horas.

 

Consegui levantar-me. Por momentos, pensei que estava bem, depois senti-me tonto. Vacilei e agarrei-me ao armário, para me manter de pé. Tinha manchas oleosas diante dos olhos. A tontura foi-me passando lentamente.

 

Voltei-me para a porta e tive um sobressalto. Não estava sozinho.

 

Havia um homem deitado no chão, de cabeça para baixo, mesmo à entrada do quarto, do lado de dentro, diante da cortina, que estava corrida. Era um sujeito grande, de pernas e braços maciços, e um pescoço que parecia um tronco de árvore. Pela forma como estava deitado, e pela estranha inclinação do pescoço, tive quase a certeza de que estava morto.

 

Apesar disso, aproximei-me cautelosamente dele, com passo incerto. Estendi a mão e levantei-lhe a cabeça, pegando-lhe numa madeixa de cabelos. Ouvi um estalido nauseante. Tinha o pescoço partido.

 

Olhei para a cara dele. Não era nenhum dos homens que me tinham segurado enquanto Célio e Milo me entornavam a droga pela garganta abaixo.

 

Quem seria? Quem o teria morto, deixando-me vivo?

 

Passei por cima do corpo e puxei a cortina. O corredor estava vazio. Dirigi-me às escadas e descia-as cuidadosamente, em passos pouco firmes.

 

Ao chegar ao fundo, atravessei o corredor com dificuldade e cheguei à cortina que ocultava o quarto de Cassandra.

 

Sussurrei o nome dela. Tinha a voz rouca e enfraquecida. Voltei a dizer o nome dela, desta vez mais alto. Não obtive qualquer resposta.

 

Afastei a cortina. O quarto estava completamente vazio. Nem sequer a enxerga tinha ficado.

 

Deixei-me estar ali durante muito tempo, sem nada sentir, à espera de que a minha cabeça clareasse. De repente, tive uma sede desesperada. Aproximei-me da porta e os meus pés embateram em qualquer coisa, que estivera oculta entre as pregas da cortina. Parei e apanhei-a. Era o bastão de couro que Cassandra mordia durante as suas crises.

 

Teria partido à pressa? Ou teria sido outra pessoa a esvaziar o quarto? Cassandra tinha tão poucas coisas, que não me parecia possível que se tivesse esquecido de um objecto tão pessoal. E se, por qualquer motivo, o tivesse deixado ficar, certamente teria sentido a sua falta e voltado atrás para vir buscá-lo.

 

Onde estaria Cassandra?

 

Saí do prédio e desci a rua, protegendo os olhos contra o brilho do Sol. Tinha aquela sensação de irrealidade que se tem quando se dorme durante muito tempo e se acorda a uma hora pouco habitual. Desci a Rua dos Potes de Cobre, estremecendo ao ruído do metal a bater contra o metal. Encontrei um sanitário público e despejei a bexiga. Parei numa fonte pública e salpiquei a cara, e em seguida bebi até me saciar. Sentia-me faminto, mas isso podia esperar.

 

Tomei o caminho mais curto para minha casa, atalhando pelo Fórum. Aquelas praças formais e aqueles templos ornamentados só serviram para acentuar o meu sentimento de irrealidade. Parecia-me que andava num sonho.

 

Gordiano!

 

Voltei-me e vi Caninino, o meu amigo que só tem um braço. Os outros estavam em grupo, ali ao pé. Um por um, ergueram a cabeça da discussão acesa que mantinham para olharem para mim.

 

Quer dizer que estás vivo disse Caninino, embora pareças meio-morto.

 

Mânlio, o de maneiras suaves, aproximou-se, seguido pelos restantes. Gordiano! A tua família está preocupadíssima por tua causa. O teu genro e aquele massiliano doido têm andado a esquadrinhar a cidade à tua procura. Dizem que saíste sozinho, ontem, e não apareceste para jantar. Estiveram aqui ainda não há uma hora, juntamente com aqueles dois malandrins, a perguntar se alguém te tinha visto. Onde estiveste?

 

Volcácio, o velho adepto de Pompeu, lançou-me um sorriso lúbrico.

 

Aposto que sou capaz de adivinhar. Vocês conhecem o velho provérbio etrusco: quando um homem desaparece, procurem a mulher. Não tenho razão, Gordiano? E ela valia os problemas que vais ter quando chegares a casa? Deu uma gargalhada abafada.

 

Entretanto, perdeste os melhores mexericos desde há muito disse Caninino. Milo e Célio foram vistos aqui na cidade, juntos, ainda esta manhã.

 

É verdade! disse Mânlio. Viram-nos sair da Subura, e dirigirem-se à Porta Capena, com uma comitiva de sujeitos com ar bastante grosseiro muito provavelmente, eram os gladiadores de Milo. Passavam por senhor e escravo...

 

Célio era o senhor, claro, uma vez que é ele que pensa disse Caninino. Logo que se encontraram fora de portas, montaram nos cavalos que tinham à sua espera e desapareceram a grande velocidade em direcção ao sul. O que achas disto?

 

Eu encolhi os ombros.

 

Será outro boato louco? consegui dizer. Apesar da água que tinha bebido, a minha boca estava seca como a cal.

 

Deixem lá Célio e Milo disse Volcácio. Gordiano não respondeu à minha pergunta. Quem era ela, Gordiano? Alguma pega barata da Subura? Ou uma daquelas senhoras da alta que de vez em quando contactam contigo? Deve ter sido uma maratona e tanto, para só agora regressares a casa, e a vacilar dessa maneira.

 

Eu passei por ele apressadamente. Tropecei numa pedra irregular, e ouvi gargalhadas atrás de mim.

 

Ela deixou-o aleijado! gritou Volcácio. Quero conhecer essa Amazona.

 

Não precisas de ser mal-educado observou Mânlio nas minhas costas.

 

Gordiano acha que está acima de tipos como nós disse Caninino. Deixou de aparecer por cá. E quando o vemos, desaparece a correr como se...

 

Fui deixando de o ouvir. Andava o mais depressa que podia, dirigindo-me ao caminho íngreme, na extremidade do Fórum, que me levaria a casa. Dentro das pregas da túnica, apertava na mão o bastão de couro de Cassandra.

 

Onde estiveste tu, em nome do Hades?

 

O tom frenético, furioso, e simultaneamente aliviado, advertindo-me implicitamente de que não voltasse a fazer semelhante coisa recordou-me Betesda. Ao longo dos anos, quantas vezes eu tinha ouvido exactamente o mesmo tom quando regressava a casa de algum sarilho em que me tivesse metido? Mas não foi Betesda quem correu para mim quando entrei em casa, com ar de quem estava a precisar de ser agarrado. Foi Diana.

 

Contei à minha filha a verdade ou pelo menos parte dela. Que tinha deparado inesperadamente (para mim, mas não para eles) com Milo e Célio na Subura, no dia anterior, que eles me tinham feito uma proposta que eu tinha recusado, que me tinham obrigado a engolir um soporífero qualquer, e que eu tinha acabado de acordar e voltado imediatamente para casa.

 

E, já agora, o que andavas tu a fazer na Subura? perguntou Diana, franzindo o sobrolho. Como foi que Milo e Célio conseguiram descobrir-te? Mandaram-te seguir, ou encontraram-te por acaso? Que género de droga te deram? Diana tinha herdado a minha natureza inquisitiva, mas ainda não dominava as regras de um interrogatório bem sucedido. Fazer demasiadas perguntas simultaneamente é o mesmo que convidar a pessoa interrogada a encolher os ombros, impotente, sem responder a nenhuma delas. Foi exactamente o que eu fiz.

 

Anda tudo à tua procura disse ela. Davo foi ao mercado do peixe. Jerónimo às Termas Senianas. Até mandei Mopso e Androcles a casa de Eco, para ver se ele sabia alguma coisa. Ficámos todos loucos de preocupação.

 

E a tua mãe? Deve ter sido uma noite especialmente difícil para ela.

 

Diana suspirou.

 

Consegui esconder-lhe a verdade. Desde ontem que não sai do quarto, de maneira que não assistiu ao nosso pânico quando vimos que não regressavas para jantar. Mas perguntou por ti, mais tarde, e eu tive de inventar disse-lhe uma mentira, que tinhas passado a noite fora da cidade, porque um antigo cliente tinha precisado de te fazer umas perguntas sobre um julgamento. Não me parece que a tivesse enganado se ela não se sentisse tão mal. Assim, limitou-se a acenar com a cabeça, a voltar-se para o outro lado e a puxar a coberta até ao pescoço. Como é possível que ela tenha frio com o calor que está? Mas pelo menos não percebeu que não sabíamos de ti, de maneira que não ficou preocupada.

 

Como está ela hoje?

 

Está melhor, julgo eu, porque decidiu sair. Há bocadinho, chamou uma das escravas para ir ajudá-la a vestir-se. Disse que queria ir ao mercado. Disse que se lembrou de uma coisa que pode fazê-la melhorar, rabanetes. Afirma que tem de ir comprar rabanetes.

 

Momentos depois, Davo chegou a casa. Ficou tão satisfeito por me ver, que lançou um rugido e me ergueu ao ar, deixando-me sem respiração. Diana mandou-o calar e disse-lhe que me pusesse imediatamente no chão, porque Betesda estava a chegar e não podia vê-lo a fazer tanto alarido. Davo poisou-me no chão, obedientemente, mas não conseguiu impedir-se de continuar a sorrir, olhando para mim.

 

Betesda entrou na sala. Envergava uma estola lavada e tinha o cabelo arranjado; estava ligeiramente pálida, mas há muito tempo que eu não a via tão bem. Lançou um olhar de esguelha a Davo, mas não disse nada e abanou a cabeça pesarosamente, por certo perguntando a si própria, uma vez mais, o que teria dado à filha para se casar com um rústico risonho como aquele.

 

Rabanetes! anunciou. O seu tom de voz era rouco, mas surpreendentemente vigoroso.

 

Saímos, pois, e dirigimo-nos ao mercado lentamente, para nos adaptarmos ao passo de Betesda à procura do mais recente produto que ela imaginava que seria capaz de a curar.

 

Andámos de vendedor em vendedor, procurando em vão um rabanete que satisfizesse o olhar exigente de Betesda. Sugeri-lhe que procurasse cenouras. Mas ela insistia em que a sopa que tinha em mente não consentia substituições.

 

Por fim, Betesda gritou:

 

Eureka! E é verdade que tinha nas mãos um ramo verdadeiramente admirável de rabanetes rijos e encarnados, de folhas verdes e quebradiças e raízes compridas.

 

O preço que o vendedor referiu era exorbitante.

 

Talvez me baste um ou dois rabanetes disse Betesda. Talvez mesmo só um. Sim, um seria suficiente, tenho a certeza disso. Imagino que tenhamos dinheiro para comprar um, não, marido?

 

Olhei os seus olhos castanhos e senti um solavanco de culpa, pensando no sofrimento de Betesda, pensando em Cassandra...

 

Vou comprar-te mais do que um rabanete, mulher. Vou comprar-te o molho inteiro. Davo, és tu que trazes a bolsa do dinheiro. Entrega-a a Diana, para ela pagar ao homem.

 

Papá, tens a certeza? perguntou Diana. É tanto dinheiro.

 

Claro que tenho a certeza. Paga a esse malandro!

 

O vendedor estava extasiado. Apertando os rabanetes contra o peito, Betesda lançou-me um olhar capaz de me derreter o coração. Depois, uma sombra atravessou-lhe o rosto e eu percebi que de repente se sentira mal.

 

Vamos para casa, mulher?

 

Nesse momento, deu-se um tumulto no outro extremo do mercado. Um homem gritou. Uma mulher guinchou:

 

É ela! A louca!

 

Voltei-me e vi Cassandra, que cambaleava na minha direcção. Tinha a túnica azul rasgada no pescoço e repuxada para o lado, o cabelo loiro todo emaranhado. Trazia uma expressão de loucura, e nos olhos um brilho de pânico.

 

Correu para mim em passo irregular, com os braços estendidos.

 

Gordiano, ajuda-me! gritou. Caiu-me nos braços e tombou de joelhos, arrastando-me consigo.

 

Cassandra! arquejei eu. Baixei a voz para um sussurro. Se isto é uma cena...

 

Ela apertou-me o braço e deu um grito. O seu corpo teve uma convulsão.

 

Diana ajoelhou-se a meu lado.

 

Papá, o que é que ela tem?

 

Não sei.

 

É o deus que habita nela disse Betesda. O mesmo deus que a obriga a profetizar está a dilacerá-la por dentro.

 

Uma multidão reuniu-se em nosso redor.

 

Afastem-se todos! gritei eu. Cassandra voltou a agarrar-se a mim, mas a força do seu punho estava a diminuir. As pálpebras estremeceram-lhe e baixaram.

 

Cassandra, o que se passa? O que foi? sussurrei eu.

 

Veneno disse ela. Ela envenenou-me!

 

Quem? O que foi que ela te deu? Os nossos rostos estavam tão próximos, que eu sentia a sua respiração ofegante nos meus lábios. Os seus olhos pareciam enormes, com as íris eclipsadas pelo vasto negrume das pupilas.

 

Qualquer coisa na bebida... disse ela. Momentos depois, estava morta.

 

Davo e eu deixámos Clódia nas margens do Tibre, contemplando os reflexos da luz do Sol na água, a sós com as suas memórias. Voltámos pelo mesmo caminho, passando pelos jardins à beira-rio dos ricos, até chegarmos à cidade.

 

Davo tinha-se refrescado com o mergulho, mas eu sentia-me oprimido com o calor do dia. Estava cansado, de mente e de corpo. Enquanto subíamos o Palatino, em direcção a minha casa, só me apetecia descansar umas horas num recanto sombreado do meu jardim.

 

Já tinha falado com todas elas com todas as mulheres que tinham vindo ver Cassandra desfazer-se em chamas, à excepção de uma.

 

Dignar-se-ia a mulher de César receber-me? Quanto mais pensava nisso, menos provável me parecia. Calpúrnia devia estar rodeada por um exército de conselheiros, secretários e guarda-costas, que a protegeriam de todos aqueles que procuravam os favores do marido, e de todos aqueles que visavam a sua destruição. Para complicar as coisas, ainda havia a possibilidade de que me considerasse seu inimigo, uma vez que, ao voltar as costas a Meto, em Massília, eu tinha voltado igualmente as costas a César.

 

Pelo que conhecia de Calpúrnia, ela não era o género de mulher que obedecesse a fantasias repentinas, impulsos sentimentais ou interesses lascivos. Era sensata, discreta e totalmente respeitável tinham sido exactamente essas as qualidades que haviam convencido César a casar-se com ela. Toda a gente conhecia a famosa observação que ele fizera acerca da sua anterior mulher, de quem se tinha divorciado sumariamente quando ela se tornara objecto de mexericos: "A mulher de César tem de estar acima de qualquer suspeita". Dizia-se que Calpúrnia era de tal maneira desprovida, até dos mais pequenos vícios, que não seria capaz de atrair escândalos; não era o género de mulher que admitisse sujeitos como eu à sua presença, pensei, nem sequer em audiência formal. As pessoas podiam falar.

 

E, contudo, tinha vindo assistir à cremação de Cassandra.

 

Sentei-me na minha cadeira, à sombra, encostado a um pilar. Estreitei os olhos e fiquei a ver um colibri esvoaçar de flor em flor. Fechei os olhos e fiquei a ouvir o zumbido das suas asas, enquanto o passarito circulava pelo jardim, voando por cima da minha cabeça. Devo ter dormitado, porque só me lembro de Androcles me abanar o braço para me acordar.

 

Senhor, está um homem à porta a perguntar por ti, e uma grande liteira na rua, e guarda-costas, uma data de guarda-costas, e...

 

O quê? Mas que história é essa?

 

Uma visita para ti, senhor.

 

Pestanejei, pigarreei e passei os dedos pelo cabelo.

 

Muito bem, manda-o entrar.

 

Não, ele disse que tu é que tens de ir à porta.

 

Tive um súbito arrepio. Uma grande liteira, um exército de guarda-costas, uma convocatória despótica para acorrer à porta de minha casa quem poderia ser? Só uma pessoa seria tão presumida, pensei: o homem a quem esta casa pertenceria em breve, quando chegasse o momento de pagar as minhas dívidas sem que eu tivesse um tostão. Por que teria Volúmnio vindo incomodar-me, logo hoje?

 

Onde está Davo? perguntei.

 

Está com Diana, no quarto deles respondeu Androcles.

 

A fazer a sesta?

 

Não me parece. A porta está fechada, mas tenho a certeza de que eles não estão a dormir.

 

Como é que sabes?

 

Pelo barulho que estão a fazer! Espanta-me que não os oiças, aqui fora. Ele rosna e guincha como um javali com uma lança cravada no lado, e ela...

 

Chega, Mopso! Deixa lá o Davo. Certamente que nem Volúmnio se atreveria a mandar espancar um cidadão romano dentro de sua casa declarei; mas, enquanto me levantava, sem conseguir dobrar os joelhos, que sentia hirtos, tive as minhas dúvidas.

 

Atravessei o jardim e o átrio, com Androcles a correr a meu lado. O homem que se encontrava no vestíbulo não tinha aspecto de colector de dívidas; era velho demais e baixo de mais. Tinha aquele ar sofisticado e satisfeito consigo próprio que associamos aos escravos que são secretários pessoais de cidadãos de fortuna e bom-gosto. Aliviado, percebi que não era Volúmnio que tinha vindo bater-me à porta. Nesse caso, quem seria? Qualquer coisa na atitude do escravo sugeria que ele servia uma senhora e não um senhor. Uma mulher que se fazia transportar numa liteira sumptuosa, acompanhada por uma série de guarda-costas...

 

A minha experiência dizia-me que, por vezes, os deuses seguem os seus caprichos, organizando o mundo de tal maneira, que a coisa que parece mais improvável é justamente aquela que acontece. Soube imediatamente, e com absoluta certeza, quem o escravo representava.

 

A tua senhora quer dar-me a honra de entrar? perguntei. O escravo ergueu as sobrancelhas.

 

Infelizmente, por muito que lhe agradasse agraciar a tua casa com a sua presença, o seu horário de hoje não lho permite. Mas tem muita vontade de falar contigo. Se quiseres seguir-me, tens uma liteira à tua espera. Achamos preferível que venhas sozinho.

 

Claro. Androcles, quando Davo e Diana... saírem do quarto... diz-lhes que eu parti na companhia da mulher de César. E que regresso...? olhei para o escravo.

 

Não estarás ausente mais do que uma hora ou duas garantiu-me ele. A senhora não pode conceder-te mais do que isso. Dás-me licença? Estendeu as mãos abertas, quase a tocar-me, e eu percebi que tencionava revistar-me. Acenei com a cabeça e permiti-lhe passar-me as mãos pela túnica. Verificando que eu não estava armado, ele recuou, deixando-me sair à sua frente.

 

Havia duas liteiras idênticas na rua, ambas decoradas com um pavilhão esplendoroso, de postes de marfim e um tecido branco entrelaçado com fios de ouro que brilhavam ao sol, debruado com uma tira cor de púrpura. As cortinas da primeira liteira estavam corridas, ocultando a sua ocupante. Eu fui empurrado para o interior da liteira que seguia atrás dessa. O escravo juntou-se a mim, correu as cortinas, e instalou-se na pilha de almofadas colocadas à minha frente.

 

Com uma graciosidade e precisão que eram devidas à qualidade dos carregadores, a liteira ergueu-se e começou a avançar.

 

Onde vamos? perguntei eu. O escravo sorriu.

 

Não tardamos a chegar.

 

Eu sentia o movimento da liteira sempre que fazíamos uma curva apertada, mas não me pareceu que tivéssemos descido. O que significava que, quando a liteira parou, continuávamos algures no Monte Palatino. Ouvi o som de uma barra pesada a ser levantada, e dois portões a serem abertos. Entrámos num pátio de cascalho; as pedras rangiam por baixo dos pés dos carregadores. A liteira parou. Os portões foram fechados e a barra voltou a ser colocada no seu lugar. O escravo abriu ligeiramente a cortina com o indicador e espreitou para o exterior, aguardando um sinal. Por fim, correu a cortina, e indicou-me com um gesto que saísse da liteira.

 

Logo que os meus pés tocaram no cascalho, fui flanqueado por dois guarda-costas, que me acompanharam pelo pátio fora, ao longo de um curto lanço de escadas, e ao interior de um pequeno vestíbulo elegantemente decorado. As paredes brancas tinham vivos azuis e dourados. Uma pequena estátua de bronze de Vénus ocupava um nicho de parede. O chão estava decorado com um mosaico, de Vénus emergindo nua do mar. Recordei-me de que César afirmava ser descendente de Vénus. E de que era à protecção de Vénus que os seus soldados se acolhiam para suplicar vitória.

 

Os guardas escoltaram-me ao longo de um átrio, onde havia um tanque com peixes dourados. Mais adiante, tive um vislumbre de folhagem iluminada pelo sol, um jardim rodeado por um pórtico, mas os guardas conduziram-me para o outro lado; descemos um pequeno corredor e entrámos numa biblioteca. Encostada à parede mais distante, havia uma estante alta, cujos orifícios estavam cheios de rolos de pergaminho. As paredes de ambos os lados estavam cobertas por frescos, que retratavam um campo de batalha. Na parede do lado direito, o exército dos Gregos antigos, chefiado por Alexandre, o Grande, imediatamente reconhecível pelas feições cinzeladas e a juba de cabelo loiro. Na parede oposta, o exército de Dario, o Rei persa, que Alexandre derrotara, tornando-se assim senhor do mundo.

 

Sentada diante da estante, dominando o compartimento apesar dos dramáticos frescos, estava Calpúrnia. Era bela, embora não fosse de uma beleza de espantar. Parecia ignorar as modas mais recentes, com as respectivas influências orientais e egípcias; pela maneira como se vestia, como se penteava e pelas jóias que usava, podia perfeitamente ser uma austera matrona romana do século anterior. A sua expressão era tão severa como o traje; parecia uma senhora prestes a repreender um escravo desobediente e, quase num reflexo, eu preparei-me para a censura que ia receber. Mas, antes de falar, ela sorriu, apenas o suficiente para me pôr à-vontade ou para me fazer baixar as defesas? e eu percebi que possuía um certo encanto, que não era muito diferente do do marido. Tê-lo-ia já, quando César a conhecera, ou teria aprendido a desenvolvê-lo com ele?

 

Senta-te disse. Voltei a cabeça, e vi que tinham colocado uma cadeira atrás de mim. Os guardas haviam recuado discretamente para o lado de fora da porta.

 

Ela esperou que eu me sentasse, depois fez uma pausa antes de voltar a falar. Também isso era uma técnica de César: não se mostrar apressado.

 

Nunca fomos apresentados, Gordiano, mas eu conheço-te de reputação, e o meu marido tem-te em elevada conta. A tua carreira nesta cidade foi longa e interessante. Pensei que te tivesses retirado, mas soube que, nos últimos dias, tens andado ocupado, percorrendo Roma de uma ponta à outra na companhia do teu musculoso genro.

 

Tens-nos seguido?

 

A brusquidão da pergunta não a perturbou.

 

Digamos que tens sido observado. Uma a uma, visitaste todas as mulheres que compareceram ao funeral de Cassandra. Eu também lá estive. Deves ter visto a minha liteira. Mas ainda não vieste falar comigo.

 

Tencionava fazê-lo.

 

Por que não vieste ter comigo em primeiro lugar? Eu pigarreei.

 

Por deferência, suponho eu. A mulher do Grande César deve ser uma pessoa muito ocupada, com pouca disponibilidade para responder às perguntas de humildes cidadãos como eu. Pelo menos foi o que eu achei. Posso perguntar onde estamos?

 

Numa casa metida num pequeno beco-sem-saída, no Monte Palatino. Não há necessidade de conheceres a localização exacta. Há anos que esta casa pertence ao meu marido, mas são muito poucos os que a frequentam. Mesmo alguns dos seus conselheiros mais íntimos ignoram a sua existência. Pareceu-me o local mais adequado para tu e eu nos encontrarmos, dado que era aqui que Cassandra residia.

 

Eu franzi o sobrolho.

 

Aqui? Mas eu pensei...

 

Aquele quartinho da Subura? Essa residência era um disfarce, que condizia com o papel que ela desempenhava. Era aqui que ela tinha as suas coisas. Era para aqui que se retirava quando sentia que podia correr perigo, ou sempre que se cansava do seu papel de pobre e tinha necessidade de um certo luxo. Calculo que tivesse gostado de te trazer a esta casa, Gordiano, mas não era possível. O quarto dela era do outro lado do jardim. Era aqui que eu vinha encontrar-me com ela. Eu sentava-me aqui, e ela sentava-se aí, nessa mesma cadeira.

 

Tu vinhas conversar com Cassandra?

 

Regularmente, para poder dar-lhe instruções, e para que ela pudesse transmitir-me quaisquer informações que tivesse obtido desde o nosso encontro anterior.

 

Eu integrei aquilo.

 

Cassandra era tua espia?

 

Era espia do meu marido, para ser mais precisa. Foi César quem a recrutou, foi César quem lhe disse o que esperava dela, e foi César quem a formou como espia, quero eu dizer. Cassandra já era uma actriz perfeita, evidentemente, mas as artes exigidas a uma espia são, por assim dizer, mais especializadas. Olhou para mim intensamente. Estás a ranger os dentes, Descobridor?

 

É sempre César! disse eu, olhando a imagem de Alexandre, e depois a imagem de Dario. Com qual deles se assemelharia César mais, quando a história da sua vida chegasse ao fim? Com o conquistador amado pelos deuses e pelos contadores de histórias, ou com o imperador arrogante que possuiu o mundo, mas o perdeu? No seu caminho em direcção ao próprio destino, César varrera o mundo inteiro à sua passagem. Elevava-se acima de todas as coisas, lançando a sua sombra, não apenas sobre exércitos e reis, mas sobre todas as coisas e todas as pessoas que eu amava. Agora, percebia que a sua sombra também cobrira Cassandra.

 

Calpúrnia olhou-me friamente.

 

Sei que guardas um certo rancor ao meu marido, por ter suscitado a lealdade e o afecto do teu filho...

 

Meto deixou de ser meu filho! Ela acenou com a cabeça.

 

Apesar disso, César não tem qualquer ressentimento contra ti, Gordiano. E espera, com o tempo, poder voltar a contar-te no número dos seus amigos. Era o procedimento habitual de César: ultrapassar brechas, converter os inimigos, atrair toda a gente para o seu círculo, mesmo que depois houvesse necessidade de destruir as pessoas.

 

"Mas estávamos a falar de Cassandra disse ela. Sei que a sua morte te causou um grande desgosto. Penso que César gostaria que eu te revelasse quem era Cassandra, e o que veio fazer a Roma. O que sabes já acerca dela?

 

Que era bela, e trágica, e estava condenada, pensei. Que me apaixonei por ela, ou pensei ter-me apaixonado, sem nada saber sobre ela.

 

Que tinha vindo de Alexandria respondi, onde era actriz em espectáculos de mímica e onde conheceu Citéris. Que tinha ataques da doença que faz cair a não ser que estivesse a fingir. Que pôde, ou não, ter possuído o dom da profecia. Que usou a sua reputação de vidente para pregar uma partida cruel a Antónia, a pedido de Citéris. Que pode ter feito a mesma coisa a uma série de outras mulheres poderosas de Roma, que foram procurá-la a não ser que estivesse a fazer chantagem com elas. Ou a espiá-las.

 

Calpúrnia acenou com a cabeça.

 

Se eu te disser que o meu marido tem uma série de agentes, que recolhem informações e lhas transmitem, calculo que isso não seja surpresa para ti. Agentes de todos os géneros, em posições elevadas e menos elevadas desde miúdos da rua e donos de tabernas, até centuriões e senadores. Nunca se sabe quem poderá ouvir alguma coisa importante. É necessário ter habilidade, paciência e experiência para compreender todas as informações que nos chegam, analisar as fontes, ignorar as mentiras propositadas, decidir entre relatos conflituais. Essas informações são como mosaicos de um painel; separadamente, nada significam, mas juntas, e analisadas da perspectiva adequada, formam uma espécie de imagem.

 

"É um assunto intrincado, tanto mais complicado quanto se passa no meio das sombras. É assim que o meu marido lhe chama a guerra de sombras que trava com os seus inimigos. As batalhas que toda a gente conhece têm lugar à luz do dia, entre soldados que combatem com espadas e lanças. Mas há outras batalhas, que têm lugar nas sombras, que ninguém vê e sobre as quais nada se sabe mas nem por isso as pessoas deixam de morrer nessas batalhas. Acho que podemos considerar que Cassandra era uma espécie de Amazona, uma guerreira. É a única maneira de uma mulher ser guerreira, não é verdade, combater nesta guerra de sombras.

 

Por que combatia ela do lado de César?

 

Por que combatem os soldados por ele? Porque ele lhe pagava, evidentemente. Como parte do contrato, tornou-se livre, e era regularmente paga em prestações bastante simpáticas, que me confiou para que lhas guardasse. O trabalho de Cassandra era perigoso, mas ela era bem recompensada. Teria regressado rica a Alexandria... se tivesse sobrevivido.

 

Como foi que César a recrutou?

 

Logo que Pompeu foi expulso de Itália, César começou a reorganizar o Senado, aqui em Roma, e teve de decidir quem deixaria em seu lugar quando partisse acabou por optar por Marco António. Toda a gente passou a ser adepta de César da noite para o dia depois da partida de Pompeu mas em quem podia César confiar realmente, e que género de conspirações estariam a ser preparadas contra ele? Era imperativo que organizasse uma rede de agentes, para reunir informações. Alguns desses agentes já existiam. Outros foram recrutados. Fui eu quem lhe chamei a atenção para o facto de que a sua maior fraqueza seria a obtenção de informações entre as mulheres de Roma as esposas, mães, filhas e irmãs que tinham ficado na cidade, depois de aliados e inimigos terem partido. Essas mulheres sabem sempre mais do que se pensa, muitas vezes mais do que elas próprias pensam. Conhecem os anseios mais profundos e as mais fervorosas lealdades dos seus homens. Uma observação casual, feita numa carta escrita por um marido, pode conduzir a um esconderijo secreto, a uma reserva de armas, a uma reserva de ouro. Mas que género de pessoa poderia ter acesso a mulheres tão diversas, para extrair delas as informações valiosas que pudessem possuir?

 

"Foi César quem teve a ideia de recrutar uma actriz, que desempenhasse o papel de vidente louca. Eu disse-lhe que nenhuma matrona romana se deixaria iludir dessa maneira, e que não havia actriz com semelhante talento. Ele mostrou-me que eu estava enganada em ambas as coisas. Enviou um agente a Alexandria, à procura da actriz ideal. Porquê Alexandria? Porque os proprietários de mimos dessa cidade são famosos por treinarem os seus actores até estes alcançarem a perfeição, e por ser suficientemente longe de Roma para que o agente conseguisse encontrar uma actriz adequada, que não fosse conhecida dos Romanos. Passaram vários meses antes que ele regressasse de Alexandria, trazendo Cassandra consigo. Entraram na cidade numa liteira coberta, e o agente instalou-a nesta casa, em segredo.

 

"Poucos dias mais tarde, César regressava a Roma, depois de ter garantido o seu domínio sobre Espanha e Massília. Logo que conseguiu libertar-se um pouco da tarefa de controlar as eleições, veio encontrar-se com Cassandra. Foi nesta sala. Eu estava com ele. Ele disse que queria ouvir a minha opinião sobre ela, mas eu tenho a certeza de que tomou a sua decisão antes de que eu pudesse abrir a boca.

 

Ela fez uma audição para César, como uma actriz faz uma audição para um espectáculo de mimos?

 

Se quiseres ver as coisas assim. Não há dúvida de que era bela; eu percebi que César tinha ficado impressionado, mas não era de beleza que nós andávamos à procura. Falava um Latim excelente, apenas com uma ligeira pronúncia; era uma poliglota, sabias? Mas parecia bastante nervosa. Talvez isso fosse compreensível numa jovem que estava com César pela primeira vez, mas preocupou-me; esta era a pessoa que esperávamos que mantivesse a frieza no próprio momento em que estivesse a enganar algumas das mulheres mais astutas de Roma. César começou a explicar-lhe o que pretendia dela. Ela parecia distraída, e mostrava-se cada vez mais agitada. De repente, caiu no chão, contorcendo-se e espumando da boca. O agente tinha-nos avisado de que ela sofria da doença que faz cair. César acorreu imediatamente em seu auxílio. Ela tinha consigo um bastão de couro e ele meteu-lho entre os dentes, segurando-a até o acesso passar. Percebi que tinha ficado comovido com o sofrimento dela o próprio César teve ataques destes, no passado, mas perguntei a mim própria se tal circunstância a não privaria da sua perspicácia, levando-a a fracassar na sua missão. Ia dizer isso mesmo, quando de repente Cassandra se levantou e começou a rir-se.

 

"Tinha estado a representar, compreendes? Fora tudo uma representação o nervoso, a agitação, o ataque. A princípio, eu fiquei furiosa. César ficou deliciado. Ela conquistou-o imediatamente. Se era capaz de nos enganar aos dois, certamente conseguiria enganar fosse quem fosse.

 

Não estou a perceber. Afinal, ela sofria realmente da doença, ou não?

 

Oh, sim, ela tinha ataques. Sofreu mais do que um, enquanto viveu nesta casa. Mas também tinha aprendido a imitá-los de forma tão convincente, que ninguém percebia a diferença. Essa capacidade, a juntar às restantes a menor das quais não era a sua inteligência; julgo que nunca conheci ninguém mais inteligente que Cassandra, faziam dela a pessoa ideal para o papel que César tinha em mente.

 

"Antes de partir para a Grécia, César deu-lhe instruções muito precisas, passando mais tempo com ela do que com qualquer outro dos seus agentes. Ela aprendeu o nome e a história de família de todas as mulheres importantes de Roma. Mais do que isso, aprendeu tudo o que nós conseguimos respigar sobre os hábitos pessoais dessas mulheres, as suas excentricidades e superstições, os seus sonhos e os seus medos. Tirava notas abundantes em tabuinhas de cera, mas só as guardava o tempo suficiente para poder memorizar todos os pormenores. Depois, limpava as tabuinhas. Guardava tudo na cabeça.

 

"Quando César se sentiu satisfeito, ela deixou esta casa e fez a sua aparição na cidade. Não tardou muito que as pessoas começassem a falar da louca do Fórum. Lembro-me de estar num jantar, e de tentar não sorrir a primeira vez que ouvi falar dela. De um momento para o outro, toda a gente parecia conhecer a mulher misteriosa que era capaz de ver o futuro, embora ninguém fizesse a menor ideia de quem ela era ou de onde vinha. Dizia-se que era capaz de induzir aquelas visões olhando para uma chama.

 

"O seu método era simples. Esperava que uma mulher a convidasse para sua casa ou, em certos casos, quase a raptasse. Ofereciam-lhe estímulos, dinheiro, comida, abrigo. Depois, traziam-lhe uma lamparina. Cassandra fazia-lhes a vontade e olhava para a chama; tinha um ataque, entrava em transe, e pronunciava profecias crípticas, mas transparentes, baseadas naquilo que sabia acerca da sua anfitriã. Dizia a cada mulher aquilo que essa mulher queria ouvir. Não há melhor maneira de conquistar a confiança de alguém. Com Cassandra, elas deixavam cair as suas defesas. Desnudavam-se diante dela tornavam-se vulneráveis, assustadas, ambiciosas, gabarolas. Diziam coisas que não teriam dito a mais ninguém. Foram muitas mais as mulheres que a consultaram, para além do reduzido grupo que foi assistir à sua cremação. Metade das esposas dos senadores de Roma convidaram-na para sua casa.

 

Eu pensei nas mulheres com quem tinha falado. Terência, Túlia e a Vestal Fábia tinham aceitado os poderes proféticos de Cassandra sem os questionar. Que género de informações acerca de Cícero e Dolabela, já para não falar do funcionamento interno das Virgens Vestais, teriam inadvertidamente deixado escapar na presença de Cassandra?

 

E Fúlvia? perguntei eu. Cassandra forneceu a Fúlvia pormenores específicos acerca da morte de Curió a batalha no deserto, o facto de ele ter sido decapitado. E isso aconteceu antes de qualquer habitante de Roma saber, sequer, que Curió tinha morrido.

 

Excepto César.

 

O que queres dizer com isso?

 

Quando o mensageiro de África chegou a Roma, foi falar directamente com César, e com mais ninguém. César ficou perturbado, evidentemente. Curió era para ele como um filho. César tinha depositado grandes esperanças em Curió; fora por isso que lhe atribuíra o comando de África. Mas, como diz César, a informação é como o ouro: deve ser gasto com sabedoria. Reuniu-se secretamente com Cassandra, nesta mesma sala, e contou-lhe os pormenores. Na manhã seguinte, os informadores que temos em casa de Fúlvia contaram-nos que nesse dia Fúlvia tencionava ir visitar uns amigos, e nós determinámos o caminho que ela tomaria. Cassandra estava à sua espera. Quando Fúlvia passou de liteira, Cassandra deu à voz a entoação de um sussurro, mas suficientemente alto para chegar aos ouvidos de Fúlvia. Disse ela...

 

Eu lembrava-me das palavras que Fúlvia me tinha citado, e recitei-as a Calpúrnia:

 

"Ele morreu. Morreu em combate. Foi uma morte corajosa." Calpúrnia acenou com a cabeça.

 

Exactamente. Foi o próprio César que lhe recomendou que dissesse essas palavras. Fúlvia parou, evidentemente. Levou Cassandra para casa. E, quando Cassandra lhe revelou os pormenores específicos da morte de Curió, que foram posteriormente confirmados, pensou que tinha sido, de facto, uma visão dos deuses. Foi assim que Cassandra conquistou a total confiança de Fúlvia, juntamente com a da mãe desta, Semprónia.

 

E, entretanto, César guardava a notícia da morte de Curió?

 

Obrigou o mensageiro a jurar segredo, e não contou a ninguém, nem sequer a Marco António nem sequer a mim durante dois dias. A informação é ouro. Ao dispender aquele fragmento de informação com total disciplina, César comprou a confiança de Fúlvia em Cassandra.

 

Mas Curió morreu combatendo por César. Para quê mandar uma espia a casa da viúva?

 

E por que não? Queríamos conhecer o temperamento daquela família, e aquilo que as duas mulheres pudessem estar a planear em segredo. Não te deixes enganar pelo sofrimento dela, Gordiano. Fúlvia continua a ser loucamente ambiciosa. E Semprónia também. Eu disse muitas vezes a César: "Temos de as vigiar às duas, em especial a filha. Por muito que ela seja casada com Curió, por muito que Marco António seja casado com a prima ouve o que eu te digo, Fúlvia tem os olhos postos no nosso António, e se eles alguma vez juntarem forças... cautela!" Eu abanei a cabeça.

 

Mas, de momento, António continua casado com Antónia. E ela percebeu que Cassandra estava a fingir.

 

Pois foi. Com Antónia, Cassandra cometeu um grave erro. Agiu por iniciativa própria, à revelia da missão que César lhe tinha confiado.

 

Não foi inteiramente por sua iniciativa. Foi Citéris quem lhe pediu que fizesse uma profecia que perturbou Antónia.

 

Eu sei. Cassandra confessou-mo quando eu insisti com ela. Disse-me que Citéris a conhecera em Alexandria, e que ameaçara denunciá-la se ela não lhe fizesse um favor. Cassandra argumentava que a profecia que fizera a Antónia era um pormenor sem importância. Eu discordava, e censurei-a severamente por ter destruído qualquer possibilidade de criar um elo de confiança com Antónia. Foi uma atitude estúpida da parte de Cassandra, e não fazia obviamente parte do plano de César. Foi também a primeira indicação que eu tive de que Cassandra estava a ficar fora do meu controlo.

 

Foi mesmo a primeira indicação?

 

O caso que ela mantinha contigo foi outra. Nunca devia ter acontecido. Ela sabia, desde o princípio, que não poderia estabelecer esse género de ligação com nenhum homem enquanto estivesse ao serviço de César.

 

Quer dizer que o tempo que passou comigo não fazia parte dos planos de César?

 

Calpúrnia olhou-me com astúcia.

 

Preocupa-te que possa ter feito? Que talvez Cassandra te tenha procurado e te tenha seduzido com o simples fito de conquistar a tua confiança? Não. Não fazia parte do seu papel como agente de César. Ela agiu por sua iniciativa quando formou o elo que vos ligava, fosse ele qual fosse.

 

Nesse caso, como é que soubeste da sua existência? Ela sorriu.

 

Por simples conjectura. Se não fossem amantes, tu não terias qualquer motivo para te interessares desta maneira por Cassandra depois da sua morte.

 

Eu não respondi.

 

Ela encolheu os ombros.

 

Quem pode explicar os mistérios de Vénus? Cassandra conseguiu esconder o caso que tinha contigo, até de mim; era por isso que não podia trazer-te a esta casa, onde se teriam sentido ambos muito mais confortáveis do que naquele casebre da Subura. Tu eras o segredo dela, da mesma maneira que ela era o teu segredo. Calpúrnia olhou-me com ar pensativo. Claro que, mesmo antes de te conhecer, Cassandra sabia quem tu eras, pelas informações, aliás bastante completas, que César lhe deu. E claro que conhecia o teu filho Meto, quero eu dizer. Meto participou em algumas dessas reuniões. Aquele jovem tem uma inclinação por este género de coisas representações, códigos secretos, conspirações debaixo da rosa.

 

Cassandra conheceu Meto? Não me contou.

 

Como poderia tê-lo feito, sem revelar ao mesmo tempo que era agente de César? Ter-te dito equivaleria a expor-te aos mesmos perigos que ela própria corria. Podias ter partilhado o seu destino.

 

O seu destino. Saboreei a palavra como se tivesse um sabor amargo na boca. Sabes quem a matou? perguntei, começando a suspeitar de que talvez tivesse sido a própria Calpúrnia.

 

Ela conseguiu ler a minha expressão.

 

Eu não tive nada a ver com a morte dela. Não sei quem a matou, nem por quê. Pode ter sido qualquer das mulheres que foram assistir à incineração. Como pode ter sido outra pessoa qualquer. Mas...

 

Sim?

 

Ela levantou-se e aproximou-se do fresco que representava Alexandre, observando-o intensamente, embora já devesse tê-lo visto muitas vezes.

 

Quando informava Cassandra sobre diversas mulheres de Roma, o próprio César sugeria profecias ou visões específicas a que ela poderia recorrer para conquistar a confiança de determinada mulher, ou para assustá-la, ou para conseguir, fosse de que maneira fosse, que ela dissesse o que pensava. Fê-lo no caso de Fúlvia, como já te contei. Mas César não podia prever todas as eventualidades. Depois de ter partido de Roma, quando alguma mulher ia ter com Cassandra por causa do seu dom, em muitos casos Cassandra tinha de improvisar, utilizando os seus próprios talentos e aquilo que sabia acerca dessa mulher.

 

"Mas as circunstâncias mudam. Era necessário manter Cassandra a par dos desenvolvimentos. Competia-me fazê-lo, quando nos reuníamos nesta casa. Um desses desenvolvimentos foi esta história de Marco Célio com Milo. Nem César conseguiu prever que Célio se voltaria contra ele, ou que Milo se atreveria a regressar a Itália e ninguém imaginava que juntassem forças. Trebónio e Isáurico que belo par de trapalhões! Deviam ter detido Célio logo que ele montou aquele trono no Fórum, e começou a agitar a ralé. Agora, a situação está fora de controlo. Olhou-me de forma penetrante. Sabias que Célio e Milo estiveram ambos na cidade há muito pouco tempo? No próprio dia em que Cassandra morreu?

 

Eu respondi cuidadosamente.

 

Ouvi um boato no Fórum, de que teriam partido os dois a cavalo nessa manhã, em direcção ao Sul.

 

Esse boato era verdadeiro. Nesse dia, perdemos a nossa última oportunidade de impedir que Célio e Milo tentassem suscitar uma revolução no sul. Eu tive esperanças de o conseguir, através de Cassandra.

 

Como é que Cassandra poderia tê-los impedido?

 

Através do seu dom, evidentemente.

 

Por que haveria qualquer deles de dar atenção a Cassandra?

 

Célio poderia não a ter levado a sério mas, de acordo com as minhas fontes, Milo ter-lhe-ia prestado atenção. Disseram-me que ele se tornou cada vez mais supersticioso nos últimos anos. Procura augúrios e portentos em toda a parte. Se Cassandra tivesse conseguido convencer Milo a abandonar aquele empreendimento disparatado, é possível que Célio lhe tivesse seguido o exemplo.

 

Mas, mesmo que Célio e Milo tivessem estado secretamente na cidade durante algum tempo, como poderia Cassandra ter tido acesso a qualquer deles?

 

O prédio da Subura onde ela se alojava era um dos baluartes de Célio em Roma. Foi por isso que eu a coloquei ali, na esperança de que pudesse vir a espiar Célio. Não há dúvida de que a tornava acessível a ele, se porventura lhe ocorresse utilizá-la. E Cassandra também poderia ter tido acesso, quer a Milo, quer a Célio, através das duas mulheres que estão mais próximas de ambos: Fausta e Clódia.

 

Eu abanei a cabeça.

 

É verdade que Fausta continua casada com Milo, mas despreza-o. Deseja vê-lo morto. Disse-mo pessoalmente. Achas que Milo se incomodaria, sequer, a contactar com Fausta, se estivesse na cidade? Quanto a Clódia, não deve haver ninguém que ela mais odeie do que Célio a não ser Milo! Clódia e Célio podem ter sido amantes, mas eu não consigo imaginar que ela lhe tenha, sequer, dirigido a palavra desde a acusação que montou contra ele.

 

Podes pensar que assim é, Gordiano, mas estás enganado. De acordo com as minhas fontes, é quase certo que Milo entrou em contacto com Fausta enquanto esteve em Roma. Quanto a Clódia, há meses que recebe Célio em sua casa, no Palatino, e no horto junto ao Tibre; desde que ele regressou de Espanha com César.

 

Não acredito!

 

Acredita, Gordiano. As fontes que me informaram desse facto são fiáveis.

 

Estás a sugerir que Clódia e Célio retomaram a sua ligação amorosa, passados estes anos todos, e apesar da amargura que havia entre ambos? É impossível!

 

Será? Parece-me ser exactamente o que se esperava de uma mulher fraca como Clódia, que sempre se deixou dominar pelos seus caprichos e as suas emoções. Nós, os Romanos, achamos que um homem deve ser senhor dos seus apetites, ou não será verdadeiramente viril, mas perdoamos esse defeito numa mulher. Não era assim no tempo dos nossos antepassados. Uma mulher como Clódia, escravizada pelas suas necessidades, teria sido desprezada por toda a gente. Hoje em dia, as pessoas acham essas criaturas fascinantes, e homens tão fracos como elas fazem-lhes poemas. Fez uma careta de desagrado. Ocorreu-me que nunca ninguém faria um poema sobre Calpúrnia.

 

Quanto a Célio prosseguiu ela, talvez nunca tenha deixado de amar Clódia, apesar de se terem separado e de ela ter tentado destruí-lo. Ou talvez, pragmático como é, tenha muito simplesmente achado que podia utilizá-la no seu plano de conquista da ralé e tomada do poder. Quem sabe o que faz mover tal homem? Ele é como o mercúrio.

 

Abanei a cabeça, tentando compreender tudo aquilo.

 

Se Cassandra pretendia, por indicação tua, dissuadir Célio e Milo de organizarem uma insurreição armada, é óbvio que fracassou observei.

 

Não tenho a certeza do que aconteceu. A última vez que falei com Cassandra, vários dias antes da sua morte, ela disse-me que tinha conhecido Clódia e Fausta. Fausta tinha-lhe dito que Milo sabia da sua existência não era óbvio se, nessa altura, ele se encontrava ou não em Roma e queria que ela lhe fizesse uma profecia. Como te disse, Cassandra vivia num edifício que eu sabia ser um dos baluartes de Célio na cidade. Eu disse-lhe que se deixasse lá estar, para que Célio e Milo pudessem encontrá-la, se tivessem necessidade disso. Se tal acontecesse, ela tinha instruções para os evitar o mais que pudesse. "Tem cuidado com eles, impede-os de sair da cidade, e manda Rupa ter imediatamente comigo", disse-lhe. "Se tiveres de lhes fazer uma profecia, diz-lhes que os planos revolucionários que andam a fazer estão condenados ao fracasso, e que a única esperança de ambos é entregarem-se, colocando-se à mercê da indulgência misericordiosa de César." Foi a última vez que vi Cassandra. Alguns dias depois, soube que Célio e Milo tinham entrado e saído da cidade, e que Cassandra tinha morrido. Na medida em que consigo reconstruir o que se passou, ela morreu poucas horas depois de eles terem partido de Roma juntos.

 

E Rupa?

 

Estava aqui, com Cassandra, da última vez que falei com ela. Depois disso, não voltei a vê-lo. Não sei se está vivo ou morto.

 

Mas achas que houve alguma relação entre Célio e Milo, e a morte de Cassandra?

 

Parece-me muito provável. Que relação terá havido exactamente, não sei. Neste momento, todos os meus esforços se concentram em tentar conter a insurreição que Milo e Célio andam a tentar suscitar no sul, e em fazer com que, da próxima vez que eles entrem em Roma, seja com as cabeças espetadas em estacas. Cassandra morreu. Deixou de ter utilidade para mim. Não tenho tempo para investigar quem a matou, nem por quê. Deixo essa tarefa a teu cargo. Sei que tens faro para esse género de coisas. Se conseguires farejar a verdade, vem contar-ma. Se ela morreu ao serviço de César, quem quer a matou responderá perante a justiça de César.

 

Nessa noite, Betesda delirou de febre. Tremia por baixo da coberta de lã e murmurava coisas incoerentes. Diana preparou-lhe uma bebida de casca de salgueiro fermentada, e um soporífero suave, que pareceu ter algum efeito; a febre baixou, e Betesda caiu num sono agitado. Eu deixei-me estar a seu lado, segurando-lhe na mão, limpando-lhe a testa e mal conseguindo dormir.

 

A febre nunca tinha sido um dos sintomas da sua doença, e eu receei que marcasse uma nova fase. Sentia-me estúpido e impotente.

 

Nesse dia, Diana também se sentiu doente. Fui dar com ela no jardim, dobrada em duas, a vomitar o pequeno-almoço. Depois, insistiu em afirmar que se sentia perfeitamente, mas eu perguntei a mim próprio, com um arrepio, se a sua indisposição não estaria, de alguma maneira, relacionada com a da mãe. E se ambas fossem vítimas da mesma doença prolongada? Eu já não tinha mais dinheiro para médicos. E, de qualquer maneira, os médicos tinham sido inúteis.

 

O que seria de minha casa, se Betesda e Diana ficassem ambas acamadas? O que aconteceria se o banqueiro Volúmnio começasse a insistir comigo para pagar os empréstimos? A primeira prestação vencia dentro de dias.

 

Deixei-me afundar num estado de prostração que me impedia de sair de casa.

 

Os dias passavam. Depois daquela primeira noite horrível, a febre de Betesda foi cedendo e baixando. Diana parecia bem, mas havia algo de furtivo na sua atitude. Eu tinha a sensação de que ela estava a esconder-me qualquer coisa.

 

Poderia ter prosseguido a minha investigação da verdade acerca de Cassandra, mas poisara sobre mim uma espécie de êxtase da vontade. Até Roma parecia prisioneira de uma paralisia semelhante a um transe, à espera de novidades da Grécia, acerca de César e Pompeu, à espera de novidades do Sul, acerca da insurreição de Célio e Milo. Pairava sobre a cidade uma sensação de catástrofe iminente, a mesma que pairava sobre minha casa, e sobre o meu espírito, enublando cada momento, envenenando cada exalação.

 

Havia outra coisa que me impedia de dar novos passos na busca do assassino de Cassandra. Ao contar-me aquilo que sabia, ao encarregar-me de descobrir a verdade, e ao prometer-me a justiça de César, Calpúrnia tinha conseguido recrutar-me como seu informador. Eu tinha cortado deliberadamente todos os elos que me ligavam a César, chegara mesmo a renegar Meto. Contudo, se quisesse levar até ao fim a busca do assassino de Cassandra, teria mesmo de me tornar espião de César.

 

Foi Jerónimo quem trouxe a notícia.

 

Certa manhã, estava eu no jardim, ele entrou quase a correr, de olhos muito brilhantes e ligeiramente ofegante. Percebi imediatamente que tinha acontecido qualquer coisa terrível, terrível para alguém, mas não para Jerónimo. A dor e o sofrimento dos outros excitavam-no.

 

Acabou tudo! anunciou ele.

 

O que foi que acabou?

 

Eles morreram. Morreram ambos, eles e os respectivos adeptos. Por breves momentos, pensei que ele estivesse a referir-se a César

 

e a Pompeu, e tentei imaginar a dimensão do colapso que tinha conseguido varrê-los a ambos da face da terra, a eles e aos seus exércitos. Teria o próprio Júpiter enviado os seus raios de luz, teria Neptuno inundado as montanhas, teria Hades cavado abismos entre eles? Senti um frio no coração, no lugar onde residira o meu amor por Meto. Depois percebi o que ele queria dizer.

 

Onde? perguntei. E como?

 

Os pormenores são contraditórios mas, de acordo com as melhores fontes do Fórum...

 

Davo entrou a correr.

 

Milo e Célio morreram! exclamou. Morreram ambos! Uma grande multidão está a reunir-se no Fórum. Há quem esteja a celebrar. Outros choram e arrancam os cabelos. Dizem que acabou tudo. A insurreição acabou mesmo antes de ter começado.

 

Jerónimo lançou a Davo um olhar amargo.

 

Como eu ia dizendo... aparentemente, passou-se o seguinte: Milo e Célio partiram de Roma para o Sul, mas separaram-se para se encarregarem de tarefas diferentes. Milo começou a andar de cidade em cidade, afirmando que agia por mandato de Pompeu, fazendo promessas loucas, e tentando suscitar o apoio dos chefes locais. Mas nada conseguiu. Então resolveu ordenar aos seus gladiadores que libertassem um grande número de escravos dos campos, o género de homens que trabalham ao som do chicote e são fechados em galinheiros com os animais, ou em barracos que não se distinguem muito de currais os mais desesperados de entre os desesperados. Esse exército de maltrapilhos lançou-se numa actividade frenética, saqueando templos, santuários e quintas. Estavam a preparar-se para a guerra, dizia Milo. Deve ter reunido um grande número de escravos, centenas, ou mesmo milhares, porque se atreveu a cercar uma cidade chamada Compsa, que estava protegida por uma legião inteira. As coisas começaram a correr mal quando Milo foi atingido por uma pedra lançada das muralhas. A rocha bateu-lhe em cheio na testa, desfez-lhe o crânio e matou-o instantaneamente. Sem ninguém que os chefiasse, os escravos entraram em pânico e fugiram.

 

E Célio?

 

Célio começou por tentar organizar uma revolta entre os gladiadores de Neápolis. Mas os magistrados da cidade foram informados da conspiração e prenderam os cabecilhas dos gladiadores antes de eles poderem entusiasmar os restantes. Os magistrados também tentaram prender Célio, mas ele conseguiu escapar-lhes. A notícia de que se tornara um proscrito precedia-o. As cidades recusavam-se a abrir-lhe as portas.

 

Dirigiu-se a Compsa, para se juntar a Milo, e foi informado da morte de Milo pelos escravos que fugiam da batalha. Célio tentou reunir os escravos, mas eles recusaram-se a ouvi-lo e fugiram em todas as direcções. Como é que dizia Caninino, o sujeito que só tem um braço? "Tantos anos a vergarem-se ao som do chicote e a sodomizarem ovelhas tinham-nos tornado imunes à retórica de Célio." Célio prosseguiu para sul, praticamente sozinho dizem que apenas conservava uma mão-cheia de apoiantes, uns cinco ou seis homens. Prosseguiu até à costa. Aparentemente, há uma cidade chamada Túrio, que fica situada no peito do pé de Itália. Foi aí que Célio tomou posição pela última vez.

 

Pobre Célio, pensei eu. Vaidoso, ambicioso, inquieto, Célio de mercúrio! Com Milo morto, as cidades de portas fechadas para ele, e sem exército sem sequer um exército de escravos em fuga, deve ter percebido que já não havia esperança, que estava condenado. Túrio era o fim do caminho, o fim do mundo, o término da carreira de cometa do jovem orador que fora o brilhante protegido de Cícero, o fiel defensor de Milo, o ousado lugar-tenente de César, o amante infiel de Clódia, e a última esperança desesperada das massas descontentes e desapossadas de Roma.

 

O que foi que lhe aconteceu? perguntei.

 

Bem, o que eu ouvi... Jerónimo baixou a voz. Tinha os olhos brilhantes, com a excitação de poder contar todos os pormenores a um ouvido virgem, mas Davo, excessivamente agitado para conseguir conter-se, interrompeu-o.

 

Deram cabo dele! disse Davo. Quando Célio chegou a Túrio, entrou pelas portas da cidade, que estavam abertas ainda não tinham ouvido dizer que deviam proteger-se dele. Passou pelo mercado e dirigiu-se ao Fórum, subindo os degraus que vão dar ao pórtico do edifício do senado da cidade. Bateu as palmas e pediu a um grupo de soldados que fossem chamar os companheiros, porque queria fazer-lhes um discurso. Reuniu-se uma multidão. Célio começou a falar. Dizem que a voz dele era potente demais para o pequeno Fórum de Túrio. Ouvia-se o que ele dizia em toda a cidade, e até fora das muralhas, e nos barcos de pesca que andavam ao largo. Foram-se reunindo mais habitantes e soldados, até que o Fórum ficou cheio a abarrotar.

 

Aparentemente, os soldados estacionados em Túrio são, na sua maioria, Espanhóis e Gauleses, da cavalaria de César. Célio tentou agitá-los recordando-lhes a carnificina e destruição que César levara às suas terras. Mas os soldados não quiseram ouvi-lo. Recusaram-se a escutar uma palavra que fosse contra César. Ele disse-lhes que César tinha traído o povo de Roma, e que era apenas uma questão de tempo antes que os traísse também a eles. Os soldados começaram a apedrejá-lo, mas ele continuava a falar, mesmo com o sangue a escorrer-lhe pela cara. Por fim, correram pelos degraus acima, agarraram-no e dilaceraram-no todo. Ele gritava com eles, chamando-lhes loucos e vendidos. Só parou de falar quando o atiraram ao chão, esmagando-lhe a traqueia com os pontapés que lhe deram no pescoço.

 

O crânio de Milo fora esmagado, o corpo de Célio dilacerado. O que teria acontecido às cabeças de um de outro, que Calpúrnia tão fervorosamente desejara que lhe fossem trazidas? Só as cabeças lhe forneceriam a prova inegável de que a ameaça tinha terminado; só então poderia ela escrever a César a contar-lhe a notícia, sem receio de que os informadores se tivessem enganado. Regozijar-se-ia diante dessas cabeças, nem que fosse só um pouco, entregando-se às suas emoções de maneira indigna de uma matrona romana?

 

... foram crucificados dizia Davo, atraindo-me de novo para o presente.

 

O quê?

 

Os gladiadores de Neápolis e os escravos dos campos que combateram ao lado de Milo: foram crucificados. Os gladiadores já estavam presos. Quanto aos escravos dos campos, os soldados da guarnição de Compsa foram à caça deles. Uns morreram em combate, mas a maioria foi crucificada à beira das estradas. Dizem que não se viam tantos escravos crucificados ao mesmo tempo desde os tempos de Espártaco, quando Crasso esmagou a grande revolta e alinhou as cruzes a todo o comprimento da Via Ápia.

 

Caiu o silêncio sobre o jardim. Jerónimo, apercebendo-se desta aberta, compôs uma expressão sardónica e ia começar a dizer qualquer coisa, mas eu ergui a mão.

 

Já ouvi o suficiente observei. Gostava de ficar sozinho durante algum tempo. Davo, vai ter com Diana. Julgo que ela está com a mãe. Jerónimo, ouvi há bocado um certo rebuliço na cozinha. Deve ter sido causado por Androcles e Mopso. Não te importas de ir ver o que se passa?

 

Eles saíram do jardim em direcções contrárias, deixando-me a sós com os meus pensamentos.

 

Fiquei surpreendido com a força com que as notícias me afectaram. Milo tinha sido um bruto temperamental, e não era meu amigo. Célio fora, alternadamente, um visionário louco e um oportunista crasso. No fundo, tanto fazia. Juntos, tinham tentado obrigar-me a aderir à sua causa. Quando eu recusei, permitiram-me escapar com vida mas apenas, tanto quanto pude perceber, porque Cassandra os tinha, de alguma maneira, obrigado a isso. Qual teria sido a relação dela com os dois? Agora que Milo e Célio estavam ambos mortos, em retrospectiva, parecia mais impossível do que nunca que o louco plano em que se tinham metido pudesse jamais ter tido sucesso.

 

Cassandra fora assassinada. Por quê? Por quem?

 

Ocorreu-me uma ideia. Como era possível que não me tivesse ocorrido antes? Era óbvia mas, por qualquer razão, eu tinha-me enganado, forçando-me a ignorá-la. O instante da revelação foi de tal modo intenso, que chegou a ser palpável, quase doloroso, como se um rio tivesse começado a correr dentro de mim. Devo ter dado um grito, porque Davo reapareceu no jardim, rapidamente seguido por Jerónimo e pelos rapazes.

 

Sogro disse Davo, estás a chorar!

 

Não fazia ideia de que ele levasse a notícia tão a peito murmurou Jerónimo.

 

Androcles e Mopso olharam-me aterrados. Nunca me tinham visto tão abalado, nem mesmo no funeral de Cassandra.

 

Vão buscar-me a toga disse-lhes. Tenho de ir fazer uma visita formal.

 

Onde vais, sogro? Eu também vou vestir a toga...

 

Não, Davo, eu vou sozinho.

 

Num dia como o de hoje, é melhor não, insistia Davo. Não imaginas a confusão que vai no Fórum.

 

O jovem tem razão reforçou Jerónimo. Não é seguro andar na rua. Se os apoiantes de Célio se amotinarem, e Isáurico convocar os seus rufias para manter a ordem...

 

Vou sozinho insisti. Não irei longe.

 

Ela não devia estar no horto num dia como este, com tanta incerteza e tanto potencial de violência na cidade. Devia estar fechada na segurança de sua casa, no Palatino, a curta distância a pé da minha. Optei pelas ruas mais estreitas, e poucas pessoas encontrei pelo caminho. De vez em quando, chegavam-me aos ouvidos ecos do Fórum gritos de júbilo, tanto quanto podia perceber. Isáurico devia ter convocado todos os adeptos de que se lembrou, para irem celebrar as notícias chegadas do Sul.

 

A casa dela ficava situada na extremidade de uma viela sossegada. Nos últimos anos, fora tendência dos ricos e poderosos erigir casas maciças e ostentatórias, que proclamavam desavergonhadamente o estatuto dos respectivos proprietários, mas a dela era uma casa pequena, que pertencia à sua família há várias gerações, e respeitava o costume, agora ultrapassado, das casas das grandes famílias patrícias, apresentando uma fachada discreta. A frontaria não tinha janelas e estava pintada com uma aguada amarela. O pavimento dos degraus da entrada era de ladrilhos esmaltados, vermelhos e pretos. Reparei que a pintura precisava de ser retocada e que alguns dos ladrilhos estavam partidos, ou tinham mesmo desaparecido. A rústica porta de madeira era flanqueada por dois enormes ciprestes. Também eles tinham um ar desleixado: viam-se bolsas de folhas secas e acastanhadas por entre a folhagem, bem como aglomerados de teias de aranha. Estas árvores eram visíveis da varanda das traseiras de minha casa. Eu nunca conseguia olhar para elas sem pensar em Clódia.

 

Esperava que a porta fosse aberta por um jovem belo ou uma rapariga bonita Clódia sempre se rodeara de coisas bonitas, mas foi um velho criado quem me recebeu. Desapareceu por momentos para ir anunciar-me, depois regressou e acompanhou-me ao interior da casa. Esta já fora uma das casas mais sumptuosamente mobiladas de Roma, mas agora viam-se pedestais sem estátuas, espaços de parede onde tinha havido quadros, soalhos frios a que faltavam os tapetes. À semelhança de tantos outros romanos cujo lugar no mundo parecia inabalável, também Clódia se ressentira dos tempos difíceis.

 

Ela estava no jardim, reclinada num canapé ao lado de um pequeno tanque de peixes, lançando pedacinhos de comida à água e vendo os peixes circular de um lado para o outro com as escamas a brilhar na luz aquosa. Fora neste jardim que, anos antes, eu comparecera a uma das suas infames festas; Catulo tinha declamado um poema de paixão e dor, enquanto diversos pares faziam amor ocultos nas sombras. Agora, estava silencioso e vazio, à excepção de Clódia e dos seus peixes.

 

Ela ergueu os olhos do tanque. A luz do Sol que se reflectia da superfície da água tinha um efeito lisonjeiro sobre o seu rosto; tive um vislumbre de Clódia como ela era quando eu a conhecera, anos antes, numa altura em que a sua beleza já tinha desabrochado por completo.

 

Outra visita, tão cedo? disse ela. Esqueces-me durante anos, e depois vens visitar-me ao horto, e agora a minha casa. Vais estragar-me com tantas atenções, Gordiano. Parecia estar a dizer este gracejo por rotina; dera à voz a entoação adequada, mas não havia qualquer brilho nos seus olhos.

 

Ouviste as notícias? perguntei eu.

 

Claro que ouvi. Roma foi de novo salva, e todos os Romanos devem reunir-se no Fórum a gritar "Hurra!" O Senado vai aprovar uma resolução de felicitações ao cônsul. O cônsul vai promulgar uma proclamação de felicitações ao Senado. O comandante da guarnição de Compsa vai receber uma promoção. Os soldados de Túrio... Deteve-se abruptamente. Baixou os olhos para os peixes famintos, que se reuniram a olhar para ela.

 

Há meses que te encontras com Marco Célio disse eu, desde que ele regressou de Espanha com César. Durante toda a Primavera e todo o Verão, enquanto agitava as massas no Fórum, Célio também frequentava a tua casa.

 

Como sabes, Gordiano?

 

Foi Calpúrnia que me disse. Ela tem espiões em toda a cidade.

 

Ela está convencida de que eu era aliada de Célio?

 

Eras?

 

O rosto de Clódia tornou-se tenso. O momento lisonjeiro passou; ela recuperou a aparência da idade que tinha.

 

Para pessoas como Calpúrnia, o mundo parece ser um lugar tão simples. Os outros são aliados ou não são aliados; são amigos ou inimigos; são fiáveis ou não. Ela tem uma mente masculina. É bem possível que nem seja mulher.

 

É curioso observei eu.

 

O quê?

 

Calpúrnia tem uma opinião igualmente negativa de ti, mas pelas razões inversas. Diz ela que tu te deixas conduzir por caprichos e emoções. Afirma que és fraca e não tens qualquer controlo sobre ti própria.

 

Clódia riu-se, mas sem alegria.

 

Veremos durante quanto tempo uma mulher como Calpúrnia conserva o interesse de César, se e quando ele chegar a ser o senhor do mundo. Consegues imaginá-lo a fazer amor com semelhante bloco de madeira?

 

Mudaste de assunto. Eras aliada de Célio?

 

Era aliada dele? Não. Estava apaixonada por ele... A voz quebrou-se-lhe. Fechou os olhos. Sim.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Não acredito. Vocês foram amantes, mas isso foi há anos. Tu levaste-o a tribunal por assassínio. Fizeste o possível por destruí-lo, por que ele fosse expulso de Roma. Mas ele humilhou-te em tribunal. Apoiou Milo quando o teu irmão foi assassinado. Depois de tudo isso, como é que és capaz...

 

Como é que tu sabes aquilo de que eu sou ou não sou capaz, Gordiano?

 

Eu senti uma fúria súbita e fria encher-me o peito.

 

Receio que saiba exactamente aquilo de que tu és capaz.

 

O que queres dizer com isso?

 

Não me parece que tenhas voltado a apaixonar-te por Célio. Isso faria com que fosses tão volúvel e tola como Calpúrnia acha que és. E tu não és tola nenhuma. És dura e astuta e infinitamente calculista. Acho que odiaste Marco Célio mais do que nunca quando ele regressou a Roma com César. Ali estava ele, o homem que mais desprezavas no mundo, orgulhosamente ao lado de César, recompensado com uma magistratura, continuando a participar no grande jogo, apesar de todos os esforços que fizeste para o destruir enquanto tu definhavas na obscuridade, com a tua fortuna dissipada, a tua reputação a ser objecto de escárnio, o teu amado irmão morto e desaparecido. A vingança nunca devia estar longe do teu pensamento. Não tens mais nada em que pensar, agora que perdeste tudo aquilo que te dava prazer, incluindo a tua beleza. Ela olhou para mim sem expressão.

 

Não precisas de ser tão cruel, Gordiano.

 

Atreves-te a dizer que eu sou cruel, quando tu voltaste deliberadamente a enrolar Marco Célio na tua rede, ao mesmo tempo que conspiravas para destruí-lo de vez? Disse que tinhas perdido a beleza, e é verdade. Mas Célio conheceu-te quando ainda a possuías. Deixou-se seduzir por ela, e nunca a esqueceu. Lembrava-se de ti como tu eras como eu me lembro de ti. Tu foste procurá-lo. Seduziste-o pela segunda vez, conseguiste que ele voltasse a apaixonar-se por ti. Fizeste com que confiasse em ti. E depois? Como foi que plantaste no seu coração a semente do descontentamento? Muito subtilmente, presumo, com uma palavra oportuna aqui e ali. Lançaste calúnias sobre César suaves a princípio, depois cada vez mais cáusticas. Recordaste-lhe o poder da ralé romana e o facto de ninguém, depois do teu irmão, ter conseguido utilizá-lo. Estou mesmo a ver-te. "César não conhece o teu valor, Marco. Está a desperdiçar os teus talentos! Por que recompensará medíocres como Trebónio mais do que a ti? Porque tem inveja de ti! Porque, no fundo, tem medo de ti! Se o meu irmão fosse vivo! Ele saberia tirar partido desta situação! O povo sente-se miserável, perdeu a confiança em César, despreza-o só precisa de um homem que consiga congregar a sua ira, de um homem com o dom da palavra e a coragem necessária para se opor aos cãezinhos de salão e quem César confiou o governo da cidade. E esse homem poderia chegar a ser o senhor de Roma!"

 

Clódia olhou para mim com os olhos a dardejar, mas nada disse.

 

Queres que eu continue? Muito bem. Encorajaste-o a fazer promessas cada vez mais loucas à ralé, a engodar os outros magistrados, a insultar o Senado, a dizer palavras de sedição contra o próprio César.

 

Quando finalmente ele foi longe de mais, e Isáurico tentou prendê-lo, deves ter ficado deliciada! Mas Célio escapou. Escondeu-se. Depois, fez causa comum com Milo o assassino condenado pela morte do teu irmão e como isso deve ter-te exasperado! Entretanto, não cessavas de conspirar para a destruição de Célio. Julgo que continuavas a relacionar-te com ele, orientando-o, conduzindo-o para a sua própria ruína. Talvez ele tivesse hesitado, compreendendo que o caminho que tinha diante era impossível de trilhar. Como foi que o incitaste? Disseste-lhe que os deuses estavam do seu lado? Lançaste dúvidas sobre a sua masculinidade? Disseste-lhe que só um cobarde se detinha a meio do caminho? E quando Milo supersticioso e temente de oráculos procurou uma vidente, para que lhe contasse o futuro, o que fizeste tu, Clódia? Esperei que ela respondesse, queria ouvir a verdade dos seus lábios, mas ela limitou-se a continuar a fitar-me com uma expressão de loucura.

 

Cassandra era espia de Calpúrnia disse eu. Sabias disso? Ela franziu o sobrolho e resolveu finalmente falar.

 

Não. Mas não me surpreende.

 

Milo queria que ela lhe fizesse uma profecia. Sabias disso?

 

Sabia.

 

Quer dizer que continuavas em contacto com Célio, mesmo depois de ele estar fugido!

 

Continuava. Depois de ele ter escapado a Isáurico, veio visitar-me algumas vezes, sempre disfarçado. Barbas falsas. Peitos falsos! Um sorriso arrepiou-lhe os lábios, mas ela não o deixou instalar-se. Ele adorava aquele género de coisas, andar disfarçado. Era louco, completamente louco, foi-o sempre desde o primeiro até ao último dia. Parecia um adolescente a organizar uma partida, e não um homem a tentar derrubar o Estado. Contou-me que tinha estado em contacto com Milo, e que Milo estava quase disposto a aliar-se a ele. "Sei que o odeias", disse-me, "mas é a única maneira. Juntos, conseguiremos!" Havia apenas um pequeno problema. Milo tinha ouvido falar dessa, como ele dizia, "vidente semilouca, dessa mulher chamada Cassandra" tinha sido Fausta a falar-lhe dela e primeiro queria ouvir o que Cassandra teria para lhe dizer. Milo tinha-se agarrado à ideia de que Cassandra, e apenas Cassandra, poderia revelar-lhe o futuro. Estava totalmente convencido disso.

 

Recusava-se a dar mais um passo que fosse, enquanto não ouvisse a própria Cassandra dizer que o empreendimento seria bem sucedido. Eu abanei a cabeça.

 

Mas Cassandra tinha instruções específicas, fornecidas por Calpúrnia, para não dizer a Milo semelhante coisa. Devia prever a condenação da insurreição. Devia mandar Milo e Célio correrem a lançar-se aos pés de César, suplicando-lhe misericórdia. Pelo que acabas de me contar, se Cassandra tivesse conseguido cumprir as instruções de Calpúrnia, Milo nunca teria partido para Sul na companhia de Célio. Alguém deve ter evitado que ela pronunciasse tal profecia, alguém que queria que a insurreição prosseguisse, sabendo que apenas poderia terminar com a destruição de Milo e Célio. E isso era o que tu mais querias, não é verdade, Clódia? Abanei a cabeça. Compreendo o teu ódio por ambos. Não duvido de que quisesses vê-los humilhados e mortos, as suas memórias desgraçadas, as suas cabeças entregues a Calpúrnia como troféus. Mas por que tinha Cassandra de morrer? Não havia outra maneira?

 

Os olhos de Clódia encheram-se de lágrimas.

 

Pensas isso? Que eu queria que Célio morresse? Que eu assassinei Cassandra? Julgas que sabes tudo, Gordiano, mas não sabes nada!

 

Eu nunca a tinha visto tão completamente desprotegida, tão tomada pelas emoções. Nunca teria imaginado que fosse tão vulnerável. As lágrimas que lhe corriam pelas faces conferiam-lhe uma curiosa espécie de beleza, que transcendia qualquer outra que tivesse possuído anteriormente. Olhei-a espantado.

 

Diz-me, então. Diz-me tu aquilo que eu não sei pedi-lhe.

 

Ela recuperou o fôlego. Tapou a cara por momentos. Quando retirou a mão, as lágrimas tinham cessado. As suas feições haviam retomado a compostura. Contemplou os peixes do tanque enquanto falava.

 

Durante anos, odiei Marco Célio. Uma parte de mim vivia para esse ódio, da mesma maneira que se pode viver para o amor. Recorria a ele sempre que não encontrava outro motivo para continuar a existir num mundo em que tudo o que era de ouro se tinha transformado em chumbo. De certa maneira, uma maneira estranha, esse ódio alimentava-me. Que poema não teria Catulo feito disso! Catulo sabia que a paixão é a paixão; seja amor ou ódio, absorve o espírito. O ódio que eu tinha a Célio dava-me uma razão para continuar a respirar.

 

"Acontece que Célio também não me tinha esquecido. Os homens têm mais formas que as mulheres de se distraírem da paixão seja construindo uma carreira política, correndo mundo, travando batalhas. Mas, quando regressou de Espanha na companhia de César, houve qualquer coisa que o fez vir visitar-me. Acho que se tornou subitamente consciente da futilidade de todos os seus frenéticos esforços para conquistar dinheiro e poder. César tinha voltado o mundo ao contrário, e durante um certo período tudo pareceu possível. Célio deixou-se conduzir pela esperança, até se aperceber de que nada mudaria, a não ser talvez para pior. Deu por si em Roma, com uma magistratura sem significado nas mãos, entediado de morte. Sentia-se deprimido, irritado. Certa tarde, num capricho, veio visitar-me. Eu estava aqui no jardim. Quando o escravo o anunciou, por momentos, pensei que ele se tivesse enganado, ou então que alguém estava a pregar-me uma partida. "Manda-o entrar!", disse e, momentos depois, apareceu Célio. Um milhar de pensamentos se atravessaram na minha mente, o menos relevante dos quais não foi a minha vontade de o matar. Imaginei-me a esfaqueá-lo e empurrá-lo para dentro deste tanque. Esse pensamento encheu-me de um prazer enorme. Como é que ele voltou a sentar-se comigo neste canapé, é coisa que não sou capaz de te dizer. Nem consigo explicar-te como foi que os seus lábios se encostaram aos meus, ou que nos abraçámos, ambos a chorar.

 

"Tu julgas que eu montei uma conspiração insidiosa contra ele, Gordiano, que planeei seduzi-lo. Mas foi Célio que veio ter comigo e aquilo que aconteceu entre nós foi totalmente espontâneo e totalmente mútuo. Há anos a esta parte, antes de nos termos separado, eu pensava que estava apaixonada por ele. Mas o que então senti nada era, em comparação com o que senti quando ele veio a minha casa naquele dia. Ambos tínhamos recebido golpes muito duros. Tínhamos aprendido algumas lições, lições de humildade e sobrevivência, e acerca daquilo que realmente importa neste mundo. O Célio que veio ter comigo nesse dia não era, nem o Célio que eu tinha amado, nem o Célio que eu tinha odiado, era outro homem, maior do que qualquer deles e infinitamente mais capaz de me amar. E eu era uma mulher diferente daquela que tinha amado, e depois odiado, Célio, embora só tivesse tido consciência disso no momento em que nos reunimos.

 

E, contudo, eu nunca ouvi um murmúrio que fosse sobre ti e Célio observei eu. Semelhante história tinha todos os componentes para excitar os ociosos do Fórum.

 

Não chamámos a atenção para o que se tinha passado entre nós. Fomos discretos. Os outros podiam não compreender. E não dizia respeito a mais ninguém.

 

Mas Calpúrnia sabia que Célio vinha visitar-te observei eu.

 

Como tu próprio disseste, ela tem espiões em toda a parte. Talvez tivesse mandado seguir Célio propositadamente, ou talvez um dos seus informadores o tivesse visto entrar ou sair por acaso. O que se passava entre nós pode ter excitado a sua curiosidade, mas certamente que ela teria assuntos de estado mais prementes com que se preocupar.

 

Célio veio a dar-lhe muitas preocupações. Depois de César partir de Roma, quando Célio começou a propor a sua legislação radical e a agitar o Fórum, que papel desempenhaste em tudo isso?

 

Estás convencido de que fui eu que lhe dei a ideia, de que o encorajei, de que o espicacei. Nada poderia estar mais longe da verdade! Pensas que, depois de ter visto o que aconteceu ao meu irmão, eu queria que acontecesse a mesma coisa a Célio? "A turba romana é volúvel", dizia-lhe eu. "Agita-se com grande facilidade, mas quando começa a ver o sangue derramado, dispersa como o pó. Neste momento, os proprietários e os banqueiros que emprestam dinheiro têm César e o Senado na palma da mão. Volúmnio e os que são como ele agitaram os dedos e saiu-lhes o Lance de Vénus. Não podes batê-los no seu próprio jogo." Mas Célio não quis ouvir-me. Da mesma maneira que tinha acabado por me encontrar que tinha encontrado a paixão cuja falta sentira durante anos, e que buscava desesperadamente, assim também estava convencido de que chegara finalmente a sua hora como político. Tinha deixado de ser o moço de recados de Cícero. Tinha deixado de ser o defensor vibrante de Milo. Tinha deixado de ser o subalterno desaproveitado de César, metido no bolso com um lugarzinho inútil no governo. Célio tinha-se tornado senhor de si mesmo, e sonhava os seus próprios sonhos. Eu receei por ele. E disse-lho. Supliquei-lhe que parasse com aquilo, que fizesse as pazes com Isáurico e Trebónio, mas nada consegui. Ele tinha-se convencido de que havia descoberto o seu destino. Não era possível detê-lo.

 

"Por fim, foi longe demais. O Senado aprovou o Decreto Final contra ele. Fizeram de Célio um proscrito, e ele deixou de ter alternativa, senão ir até ao fim. Há algum tempo que se mantinha em contacto com Milo, encorajando-o a fugir de Massília e a regressar a Itália, na companhia da sua tropa de gladiadores. Acho que Célio tinha em mente, desde o princípio, suscitar uma revolta armada. Queria que ela se iniciasse em Roma, e se espalhasse por todo o país, mas nem o seu poder de persuasão conseguiu incitar a ralé a sacrificar-se a uma causa tão desprovida de futuro.

 

"Célio passou à clandestinidade, entrando e saindo de Roma como uma sombra, muitas vezes disfarçado, reunindo os seus apoiantes e tentando fazer alianças "colocando as bases de uma revolução", dizia, mas eu julgo que não conseguiu grande coisa. Por fim, combinou um encontro com Milo, em segredo, aqui em Roma. Teve a temeridade de me perguntar se podia convidar Milo para minha casa. De maneira nenhuma, respondi-lhe eu. Sugerir, sequer, semelhante coisa era um insulto à sombra do meu irmão. Por isso, encontraram-se naquele prédio de apartamentos da Subura, onde Cassandra tinha um quarto. Calculo que tenha sido Calpúrnia a arranjar esse quarto a Cassandra, como forma de manter sob vigilância Célio e os seus apoiantes que viviam no edifício?

 

Julgo que sim, que foi ela.

 

Clódia acenou com a cabeça.

 

Célio desconfiava de Cassandra, mas não tinha a certeza de coisa nenhuma se ela era genuína, se não, se era uma chantagista, ou uma espia, ou uma simples aldrabona de curto alcance. Julgo que estava satisfeito por ela viver naquele prédio, pela mesma razão, mas à inversa: para poder vigiá-la, a ela e àquele companheiro mudo que ela tinha, Rupa. Foi assim que eu descobri que tu tinhas uma ligação com Cassandra. Os agentes de Célio tinham-te visto entrar e sair de forma tal, que só podia sugerir uma coisa: que vocês eram amantes. Imagina a minha surpresa! Gordiano, o pilar da rectidão e da contenção, satisfazendo por fim os seus apetites animais! Divertiu-me ver que, logo tu, tinhas sido atingido pela seta de Cupido. Mas, no fundo, senti-me feliz por ti. Eu própria estava apaixonada. Desejava que todo o mundo estivesse apaixonado, incluindo tu. Por que não?

 

"Célio encontrou-se duas vezes com Milo, em dois dias seguidos. Eu estive com ele na noite a seguir ao primeiro encontro. Estava muito excitado, muito conversador. Eu percebi que podia ser a última vez que o via. Deixa-o falar até se cansar, pensei. Pode ser que nunca mais oiças a sua voz.

 

Ele descreveu-me o fascínio de Milo por Cassandra. Fausta tinha falado a Milo de Cassandra, e ele estava ansioso por conhecê-la e ouvir a sua profecia. Não tinha acontecido naquele dia aparentemente, Cassandra estava ausente, não se encontrava em lado nenhum. Célio esperava encontrá-la no dia seguinte, porque Milo parecia absolutamente decidido a ouvir o que ela tinha para lhe dizer antes de se comprometer por completo com a insurreição. Não é mesmo uma atitude típica de Milo? Teimosia, estupidez e superstição. Célio estava quase certo de que, no dia seguinte, encontraria Cassandra no seu quarto, porque os seus agentes tinham detectado um certo padrão na rotina que ela observava era nesse dia que tu ias visitá-la. Célio meteu na cabeça, não apenas consultar Cassandra, mas tentar conquistar-te para a sua causa. Eu disse-lhe que tu nunca concordarias com semelhante coisa. "E se abordares Gordiano e ele recusar?" perguntei-lhe. "Nesse caso, não teremos alternativa senão matá-lo", respondeu Célio. Eu proibi-o terminantemente de o fazer. Obriguei-o a dar-me a sua palavra de que tu não sofrerias qualquer mal, fosse qual fosse a tua reacção quando ele e Milo tentassem conquistar-te. Eu inspirei audivelmente.

 

Quer dizer que foi a ti que Célio fez essa promessa! Eu pensei... Tentei lembrar-me com exactidão da troca de palavras entre Milo e Célio que tinha ouvido antes de perder a consciência...

 

Devíamos ter posto cicuta no vinho, em vez da outra coisa dizia Milo. Devíamos cortar-lhe a cabeça agora mesmo.

 

Não! disse Célio. Eu dei-lhe a minha palavra. Prometi-lhe, e tu concordaste...

 

Uma promessa feita a uma bruxa! dissera Milo

 

Chama-lhe o que quiseres, não és digno de pronunciar o seu nome! Dei-lhe a minha palavra, e a minha palavra ainda tem algum valor, Milo. A tua não tem valor nenhum?

 

Eu tinha pensado que fora Cassandra quem, de alguma maneira, arrancara aquela promessa a Célio mas fora Clódia.

 

E Cassandra? perguntei. No dia seguinte, quando eu acordei, ela tinha desaparecido, e com ela Rupa; o seu quarto estava vazio, como se ela nunca o tivesse habitado.

 

Não sei bem o que aconteceu. Não voltei a ver Célio, mas recebi uma mensagem dele umas palavras escrevinhadas, obviamente à pressa. Acho que deve tê-la entregue a um mensageiro no momento em que partia de Roma. Falava de Cassandra, embora não mencionasse o seu nome; teve o cuidado de não usar nomes, presumo que com a intenção de me proteger, caso a mensagem fosse interceptada. Acabava aconselhando-me a queimar imediatamente o pergaminho.

 

E tu queimaste-o?

 

O seu sorriso parecia provir de um qualquer reflexo irónico, como única resposta possível a pergunta tão tola. Os dedos tremiam-lhe quando meteu a mão no seio da estola, retirando um pequeno fragmento de pergaminho enrolado. Estendeu-mo, ainda quente do contacto com a sua carne. Desenrolei-o e li-o, esforçando os olhos para conseguir perceber algumas palavras, escritas mais à pressa:

 

Pardalinho, vou-me embora. Deseja-me o favor dos deuses. Não digas que a causa é impossível. Há um ano, não terias dito o mesmo acerca da possibilidade de tu e eu redescobrirmos a alegria que tínhamos perdido? O meu volúvel companheiro está agora impante de confiança, graças às palavras da Princesa troiana. Ela prometeu-nos sucesso para além das nossas esperanças mais loucas! Acho que é realmente vidente, e que foi o próprio Apolo quem lhe mostrou o nosso futuro glorioso. Faz um sacrifício a Apolo, se queres ser-nos útil. Melhor ainda, começa a fazer a tua lista, e que seja longa. Espera boas notícias do Sul. Quando voltar a ver-te, tudo será diferente!

 

Devolvi-lhe a mensagem.

 

Ele fala de uma lista disse.

 

Era uma graça nossa. Ele costumava dizer-me: "Faz uma lista de pessoas que queres ver decapitadas, Pardalinho, e eu tratarei disso logo que tomar a cidade."

 

Senti um arrepio. O objecto da graça acabara por ser o próprio Célio.

 

Mas não compreendo o que ele diz sobre Cassandra. Dá a entender que ela fez a Milo a profecia encorajadora por que ele ansiava.

 

Presumo que sim. "Sucesso para além das nossas esperanças mais loucas", escreve ele.

 

Mas Calpúrnia deu-lhe instruções específicas para fazer exactamente o contrário. Cassandra devia fazer tudo o que pudesse para os desencorajar de suscitarem uma insurreição. Por que terá Cassandra desobedecido a Calpúrnia?

 

Talvez alguém a tenha subornado para o fazer. Se ela recebia dinheiro de Calpúrnia, por que não havia de o receber de outros, se lhe oferecessem mais do que Calpúrnia lhe oferecia?

 

Eu franzi o sobrolho. Cassandra tinha desobedecido a Calpúrnia para agradar à sua velha amiga Citéris. Tinha desobedecido a Calpúrnia quando decidira manter uma relação comigo. Mas essas infracções tinham sido menores. Teria ousado desobedecer a Calpúrnia numa matéria como esta, em que estavam em jogo tantas vidas? Quem a teria encorajado, ou subornado, para fazer semelhante coisa?

 

Quem sabia até que ponto Milo confiava nessa profecia? perguntei. Quem queria desesperadamente que Milo embarcasse na insurreição? Célio, é claro...

 

Clódia abanou a cabeça.

 

Célio não subornou Cassandra. Tu leste a nota, Gordiano. Ele também foi persuadido por ela. Acreditou que ela era uma vidente genuína.

 

Nesse caso, só pode ter sido uma pessoa.

 

Tinha pendurado uma grinalda preta na porta de sua casa. Pensei na grinalda que tão recentemente estivera pendurada na porta de minha casa em memória de Cassandra, e na grinalda que tinha visto pendurada na porta de casa de Fúlvia, assinalando o seu desgosto, apesar de terem passado vários meses desde a morte de Curió. Esta grinalda troçava de todas as outras. Certamente que ela estaria vestida de preto, e com o cabelo em desalinho. Ter-se-ia divertido a ornamentar-se como viúva enlutada? Tomaria a viuvez como uma honra que tinha conquistado?

 

Até o gladiador fora de forma que veio abrir-me a porta vestia de preto.

 

Olá, Bírria disse eu. Essa cor fica-te bem. Disfarça-te a gordura.

 

Ele franziu os olhos, mas depois percebeu que eu não estava sozinho. Não era Davo quem se encontrava atrás de mim, mas uma tropa de guarda-costas de Calpúrnia. Ao sair de casa de Clódia, eu tinha ido a casa de Calpúrnia. Depois de uma breve audiência com ela, dirigira-me a esta casa.

 

Vou dizer à senhora que estás aqui disse Bírria, e afastou-se furtivamente.

 

Voltou pouco depois, e convidou-me a segui-lo. Os guarda-costas ficaram do lado de fora; mas, quando Bírria tentou fechar a porta, um deles bloqueou-a com o pé. Era um sujeito tão grande como Bírria, e estava rodeado por mais dez como ele. Após um breve concurso de olhares fixos, Bírria cedeu e recuou. A porta ficou aberta, com os guarda-costas em posição de alerta, do lado de fora.

 

Bírria conduziu-me ao compartimento chamado sala de Baias, depois atravessou o corredor e saiu para o jardim, com ar nervoso. Fausta estava à porta da sala, vestida de preto. Tinha a juba de cabelo ruivo solta sobre os ombros. A seu lado, sobre uma pequena mesa de tripé, havia um jarro de vinho e uma única taça. Como acontecera na ocasião anterior, indicou-me que me sentasse numa cadeira colocada na outra extremidade da sala.

 

Prefiro ficar de pé disse eu. E prefiro deixar-me estar aqui, onde posso ver-te à luz. O preto fica-te bem, Fausta. Combina com essa nódoa negra que tens à roda do olho.

 

Ela encolheu-se perante a minha rudeza, e levou a mão à face, intimidada.

 

Não trouxeste o teu belo genro, Gordiano?

 

Não tive tempo de ir buscá-lo. Venho directamente de casa de Calpúrnia. Ela mostrou-se muito interessada naquilo que eu tinha para lhe dizer. E mandou alguns dos seus homens comigo.

 

Bírria já me disse. Ela está a tentar assustar-me? Não consigo imaginar porquê. O meu marido morreu. Pobre Milo! De qualquer maneira, nunca foi grande ameaça para o Estado.

 

Incitou uma série de escravos à revolta. Juntamente com os gladiadores de Milo, eles provocaram grandes distúrbios na região que circunda Compsa.

 

Sim, foi lamentável. Mas os gladiadores de Milo estão todos mortos, eles e esses escravos, não estão?

 

Estão. Uns morreram em combate, outros foram crucificados, graças a Milo e às falsas esperanças que ele lhes deu.

 

Foi um tremendo desperdício de mão-de-obra, com certeza..

 

Foi uma tremenda quantidade de sofrimento!

 

Os escravos sofrem como nós sofremos? Julgo que os filósofos não estão de acordo nessa matéria, Gordiano. Mas certamente que Milo teria muito por que responder: danos de propriedade, perda de vidas, desperdício de escravos, já para não falar no susto que pregou a toda a gente! Mas pagou por tudo isso, não pagou? Lançou os dados, e saíram-lhe cães, e agora o seu lémure circula pelo Hades sem cabeça. Mas o que tem tudo isso a ver comigo? Desde quando é que a lei romana responsabiliza uma esposa pelas acções do marido?

 

Tu conspiraste com Milo contra o Estado.

 

Que disparate!

 

Encorajaste-o a suscitar a insurreição. É bem possível que ele tivesse hesitado, se não fosse a tua intervenção.

 

Ela olhou-me friamente.

 

Não podes provar nada disso.

 

Calpúrnia não me exigiu que o fizesse. Tive apenas de a convencer. Expliquei-lhe aquilo que sabia, e ela insistiu em mandar aqueles homens comigo, para garantir que não tentavas escapar antes de Isáurico e os lictores virem buscar-te. Conspirar contra o Estado Romano é um crime punível com a pena de morte.

 

Fausta deu uma gargalhada estridente.

 

Quer dizer que tencionam levar-me a tribunal?

 

Não será necessário. O Decreto Final continua em vigor. O cônsul Isáurico tem autoridade para tomar todas as medidas necessárias à salvaguarda do Estado. Incluindo a execução sumária de traidores.

 

Ela olhou para mim com os olhos cheios de medo.

 

Maldito sejas, Gordiano! Por que estás a fazer-me isto?

 

Foste tu que o fizeste a ti própria, Fausta. Por que não deixaste que Milo seguisse o seu destino sem a tua interferência?

 

Porque ele era um trapalhão inútil, um idiota e um cobarde! gritou ela. Se estivesse entregue a si próprio, ainda estava escondido num buraco qualquer da Subura, à espera de um augúrio adequado. Precisava de um empurrão não, de um pontapé no traseiro! para se pôr em movimento.

 

E tu deste-lhe esse pontapé, combinando com Cassandra profetizar-lhe que a insurreição seria bem sucedida.

 

Exacto! E funcionou maravilhosamente. Ela era uma actriz espantosa! Fez um número tal, que convenceu o próprio Célio. Deve ter sido magnífico. Quem me dera ter assistido, mas de certeza que tinha desatado a rir, e estragava tudo.

 

Onde foi que isso aconteceu? E quando?

 

Foi naquele quartinho dela, na Subura. Reteve-os até anoitecer as visões que descrevia eram sempre mais convincentes à luz de uma lamparina, segundo me disse, e depois deu o último espectáculo da vida dela. Enquanto tu estavas no andar de cima, de ressaca da droga que eles te deram, Cassandra rebolava-se no chão de terra batida do quarto dela, espumando da boca e pronunciando as palavras que Milo mais queria ouvir. Tinha sido eu a dizer-lhas, claro. Eu sabia que imagens teriam maior efeito sobre a imaginação pouco evoluída de Milo. Faz a seguinte descrição, disse-lhe eu: "Uma procissão triunfal interminável, com Milo e Célio à cabeça, as aclamações do povo como trovões nos seus ouvidos, Trebónio e Isáurico, e todos os seus inimigos, acorrentados atrás deles, e estátuas de ambos, em ouro maciço, instaladas no Fórum, ao mesmo tempo que vês Pompeu e César, algures num vácuo desprovido de cor, reduzidos à dimensão de anões, arrancando as carnes um ao outro com os dentes, devorando as entranhas um do outro num círculo interminável, como o verme que come a própria cauda." Imagina os sonhos que essa visão não terá induzido na mente de Milo! Na manhã seguinte, ele estava ansioso por partir. E Célio estava igualmente impaciente. Reuniram-se com os apoiantes mais próximos, levaram alguns consigo, deixaram outros encarregados de tratar das coisas na sua ausência, e partiram, convencidos de que a Fortuna e as Parcas estavam decididamente do seu lado.

 

Enquanto eu dormia sussurrei, sozinho, no quarto do andar de cima.

 

Não estavas sozinho. Nessa manhã, antes de partir, Célio contou a Cassandra o que te tinha acontecido. Ela foi ver-te, e deixou Rupa a cuidar de ti.

 

E para onde foi?

 

Veio a esta casa, evidentemente, buscar o dinheiro.

 

O dinheiro disse eu pesadamente. Foi assim que a persuadiste a contrariar os desejos de Calpúrnia? Bastou-te algum ouro?

 

Não. Também foi necessária uma grande dose de persuasão. Quando eu lhe disse o que queria que ela fizesse encorajar Milo a prosseguir com aquela insurreição condenada ao fracasso, ela resistiu. Durante algum tempo, manteve a pretensão de ser uma vidente genuína. Eu disse-lhe que não valia a pena tentar enganar-me, que o que quer que Calpúrnia estivesse a pagar-lhe foi um tiro no escuro da minha parte, que ela seria agente de Calpúrnia, eu lhe pagaria mais. Continuei a insistir com ela, e a oferecer-lhe mais ouro, até que finalmente ela fraquejou. Põe-te no lugar dela, Gordiano. Aqui em Roma, graças a todo o oportunismo associado à guerra, Cassandra viu-se em posição de ganhar muito dinheiro dificilmente uma mulher como ela voltaria a ter a oportunidade de ganhar tanto dinheiro. Poderás censurá-la por ter aproveitado essa oportunidade para maximizar a sua fortuna? "Não corres risco nenhum", dizia-lhe eu. "Se Milo vencer, cumular-te-á de riquezas e de honras. Se ele morrer, ficará silenciado para sempre. Aconteça o que acontecer, ambas te pagaremos e Calpúrnia não saberá de nada."

 

Eu abanei a cabeça.

 

Quer dizer que foi exactamente como eu disse, bastou um pouco de ouro.

 

Não foi um pouco de ouro, Gordiano, foi muito! Pelo menos foi isso que eu lhe prometi. E não era todo para ela. Ela disse-me que precisava do dinheiro... para ti.

 

Para mim?

 

Foi o que ela disse. Quando veio receber o dinheiro, parecia achar que tinha de se justificar perante mim como se a honra dela me interessasse para alguma coisa. "Nunca teria feito semelhante coisa", disse-me, "se não precisasse de mais dinheiro. Preciso dele para o homem que amo. Ele está cheio de problemas. Acumulou dívidas enormes. Sente-se esmagado por elas. Se puder libertá-lo, fá-lo-ei." Não sabias, Gordiano? Cassandra estava a pensar em ti.

 

Eu senti uma fogueira no interior da cabeça.

 

Mas, em vez de lhe pagares, tu envenenaste-a. Porquê, Fausta?

 

Porque não tinha mais dinheiro! A prestação parcial que lhe dei antecipadamente era toda a minha fortuna. Ela veio pedir o resto, mas eu não tinha nada para lhe dar, nem sequer para um pagamento simbólico. Demorei-a o mais que pude; disse-lhe que ia mandar um escravo buscar o dinheiro. Na verdade, mandei-o à Subura dar cabo de Rupa. O escravo era um sujeito grande e forte, um antigo gladiador como Bírria. Pensei que ele não teria problemas, mas parece que Rupa chegou bem para ele.

 

Era o corpo morto que eu encontrei quando acordei! Rupa matou-o, ali mesmo, no quarto onde eu me encontrava inconsciente. Cassandra deixou Rupa a vigiar-me. Quando o teu homem chegou, deve ter havido uma luta, e Rupa partiu-lhe o pescoço. Depois, deve ter entrado em pânico. Levou tudo o que havia no quarto de Cassandra e fugiu dali para fora. Tudo, pensei, excepto o bastão de couro, que deve ter deixado cair, ou de que se terá esquecido.

 

Tanto quanto sei, o mudo continua escondido disse Fausta.

 

E, quando eu acordei, Cassandra estava aqui, nesta casa...

 

À espera comigo, no jardim. Ao meio-dia, um dos escravos trouxe-nos uma papa quente e serviu uma porção a cada uma de nós, mas Cassandra não suspeitou de nada.

 

Que veneno utilizaste?

 

Sei lá! Comprei-o a um sujeito que se dedica a esses negócios há muito tempo; de vez em quando, Milo recorria a ele. "Doloroso ou indolor", perguntou-me ele. Eu disse-lhe que tanto me fazia, desde que agisse depressa. Mas não agiu. O veneno agiu muito devagar. Acabámos as duas a papa e poisámos as taças. Não aconteceu nada. Eu comecei a pensar que se calhar me tinha enganado na dose, ou talvez não lhe tivesse dado a taça que continha o veneno. Teria sido eu a ingeri-lo? Comecei a imaginar que sentia as entranhas a arder, ao mesmo tempo que não conseguia desviar os olhos dela, na expectativa de ver os primeiros sinais de perturbação no seu rosto. Por fim, o veneno começou a actuar. A princípio, ela só se sentiu maldisposta. Disse-me que achava que a papa não lhe tinha caído bem. Depois, apercebeu-se do que tinha acontecido e fez uma expressão condizente de choque, de pânico. Deu um grito, atirou-me a taça vazia, e saiu a correr do jardim. Eu tentei retê-la. Lutámos uma com a outra, e eu rasguei-lhe a túnica. Ela conseguiu escapar-me e fugiu. Bírria correu para a rua, atrás dela, mas perdeu-a de vista. Não sabia para que lado tinha ido.

 

"Fiquei louca de preocupação. Com quem se encontraria antes de o veneno a matar? O que diria? Até que, no final desse dia, ouvi o relato da sua morte no mercado. Morreu nos teus braços, segundo me disseram. Ter-te-ia contado o que tinha acontecido? Certamente que não, porque passaram as horas, depois os dias, e tu nada fizeste. Apesar disso, sentia-me consumida pela dúvida. Foi por isso que me atrevi a ir vê-la incinerar. E lá estavas tu. Bem como Calpúrnia, e algumas das mulheres que tinham conhecido Cassandra. Toda a gente me viu, mas ninguém reagiu. Foi nessa altura que tive a certeza de que ninguém suspeitava de que tinha sido eu a matá-la. Fiquei a vê-la desaparecer, e percebi que tinha ficado impune. Podia agora voltar os meus pensamentos para Milo, na expectativa da deliciosa notícia da sua destruição.

 

Eu abanei a cabeça.

 

Pensei que tinha sido Clódia! Pensei que Clódia não se deixaria deter por nada para destruir Marco Célio, mas afinal ela estava desesperada por salvá-lo de si mesmo! E pensei que tu farias fosse o que fosse para impedir que Milo levasse a cabo plano tão louco, mas o teu único desejo era que ele se destruísse.

 

Os paradoxos divertem-te, não divertem, Descobridor? Eu bem te disse que não tenho paciência para os truques dos dramaturgos, para analogias, metáforas, e coisas assim. As ironias e os enigmas ainda me desagradam mais. Mas sei perceber quando acaba o último acto. Fausta estendeu a mão para o jarro que estava em cima da mesa, a seu lado, e encheu a taça até cima. Perdoas-me que não te ofereça uma taça disse, levando-a aos lábios.

 

Eu tive um sobressalto e estendi a mão, mas era tarde. Ela tinha engolido o conteúdo de um único trago.

 

Fausta poisou a taça. Tinha os olhos a brilhar. Pestanejou e vacilou ligeiramente.

 

O vendedor de venenos prometeu-me que este agiria mais depressa e sem... demasiado... sofrimento. Fez uma careta. Mentiroso!

 

Dói como o Hades! Apertou o estômago e cambaleou para fora da sala, em direcção ao pórtico que dava para o jardim. As pessoas hão-de dizer que foi por causa do desgosto. É uma atitude honrosa uma viúva suicidar-se... depois de o marido morrer no campo de batalha. A filha de Sula não envergonhará a memória de seu pai!

 

Fausta caiu ao chão. Bírria, que andava de um lado para o outro no jardim, deu um grito e correu para ela. Ajoelhou-se e ergueu-lhe o tronco. Ela tinha os olhos abertos, mas estava flácida como se ele tivesse nos braços uma saca de cereais. Estava morta. Ele virou a cabeça para trás e soltou um uivo. As lágrimas começaram a correr-lhe pela cara abaixo.

 

Não! gritou. Ergueu os olhos para mim. O que foi que lhe fizeste?

 

Foi ela que o fez a si própria disse eu, apontando para a porta e para a mesinha de tripé que se via do lado de dentro.

 

Bírria olhou para o jarro e para a taça. Durante longos momentos, contemplou os olhos sem vida de Fausta. Por fim, deixou-a cair. Ouvi o deslizar do metal, quando ele desembainhou a espada. Recuei, assustado, mas a lâmina não estava apontada para mim. Ajoelhando-se sobre Fausta, ele introduziu a espada no ventre. Passou-lhe pelas feições uma expressão semelhante àquela que se vê por vezes no rosto dos gladiadores que encontram o seu fim na arena uma expressão simultaneamente resignada e desafiadora, de desprezo pela própria vida.

 

Bírria deu um derradeiro suspiro e caiu sobre a espada. Os olhos reviraram-se-lhe, e ele emitiu um ruído gutural. O sangue começou a jorrar-lhe da ferida e a escorrer-lhe dos lábios. Ergueu-se e agitou-se por momentos, depois tornou-se rígido, sucumbindo sobre o corpo da sua senhora.

 

Egipto!

 

Betesda pronunciou esta declaração mais ou menos como anunciara as súbitas intuições anteriores quanto a uma cura para a sua doença. Como chegava ela a estas revelações, de onde provinha o conhecimento, e por que razão confiava nele, eram elementos acerca dos quais eu não fazia a menor ideia. Só sabia que, tal como certa vez dissera "Rabanetes!", e a família inteira partira em excursão em busca de rabanetes, assim também dizia agora "Egipto!"

 

Uma viagem ao Egipto curá-la-ia isso e nada mais.

 

Por quê o Egipto? perguntei eu.

 

Porque eu vim do Egipto. Todos vimos do Egipto. Foi no Egipto que a vida começou. Dizia isto como se se tratasse de um facto absolutamente indiscutível, como se dissesse: As coisas caem para baixo, e não para cima. Ou: O Sol brilha durante o dia, e não durante a noite.

 

Eu tinha pensado que ela poderia dizer: Porque foi no Egipto que nos conhecemos, marido. Porque foi no Egipto que me encontraste e te apaixonaste por mim, e é no Egipto que eu tenciono recuperar-te e purificar-te da transgressão que cometeste com outra mulher. Mas não foi isso que ela disse, evidentemente. Saberia do que se tinha passado com Cassandra? Não me parecia; andava excessivamente preocupada com a sua doença.

 

E Diana, saberia? Talvez não tivesse a certeza, mas era impossível que não desconfiasse de alguma coisa. Até agora, não me tinha defrontado, nem questionado. Se tinha desconfianças, guardava-as para simais por causa da mãe, suspeitava eu, do que por minha causa. O que estava feito estava feito, e o importante era manter a paz na família, pelo menos até a mãe melhorar.

 

Tenho de voltar a Alexandria anunciou Betesda certa manhã ao pequeno-almoço, e não foi a primeira vez que o disse. Tenho de voltar a banhar-me no Nilo, o rio da vida. No Egipto, hei-de encontrar o remédio para esta doença, ou então o repouso eterno.

 

Mãe, não digas isso! Diana poisou a taça de farinha com água e apertou o estômago com as mãos. As palavras da mãe ter-lhe-iam afectado a digestão, ou estaria Diana presa do mesmo mal? Dia sim, dia não, tinha náuseas de manhã. Parecia-me que todas as mulheres da minha família tinham sido amaldiçoadas.

 

Era a primeira vez que Betesda mencionava explicitamente a possibilidade de morrer no Egipto. Qual seria o verdadeiro objectivo da viagem que insistia em fazer? Toda aquela conversa sobre a cura que iria encontrar seria um mero pretexto para outra coisa? Saberia que estava a morrer, e quereria terminar os seus dias em Alexandria, onde tinha começado a sua vida?

 

Não temos dinheiro para isso disse eu bruscamente. Quem me dera que tivéssemos, mas...

 

Ouvi um ruído na porta da frente, que não eram umas pancadinhas amigas nem respeitáveis, mas um martelar sonoro e insistente. Davo franziu o sobrolho, trocou um olhar reservado comigo, e foi ver quem era.

 

Momentos depois, regressou e disse-me ao ouvido:

 

Problemas.

 

Não saiam daqui disse aos outros, e segui Davo até à entrada. Olhei pelo orifício de segurança. À porta de minha casa, estava um homenzinho com ar de furão, metido dentro de uma túnica e flanqueado por dois gigantes cheios de músculos. O homenzinho viu o meu olho no orifício de segurança e disse:

 

Não vale a pena esconderes-te atrás dessa porta, Gordiano, o Descobridor. Um homem não pode evitar para sempre o dia em que terá de prestar contas das suas dívidas.

 

Quem és tu, e o que estás fazer à porta de minha casa? perguntei, embora já soubesse. Desde a aniquilação de Célio e de Milo, os banqueiros e os proprietários de Roma reinavam como soberanos. Toda a resistência organizada às suas pretensões se tinha evaporado. Dizia-se que Trebónio favorecia descaradamente os credores em todas as negociações que arbitrava entre eles e os respectivos devedores; os que tinham procurado auxílio antes da insurreição nada-morta tinham obtido condições muito melhores do que os que o procuravam agora.

 

Represento Volúmnio disse o furão, a quem tu deves a soma de...

 

Sei exactamente quanto devo a Volúmnio interrompi eu.

 

Sabes? É que muitas pessoas têm dificuldade em calcular os juros que se acumulam. Quase sempre subestimam a quantia. Não compreendem que se deixarem passar nem que seja só uma prestação...

 

Eu não deixei passar nenhuma prestação. De acordo com o contrato que fiz com Volúmnio, a primeira prestação só vence...

 

... amanhã. Sim, isto é apenas uma visita de cortesia para to recordar. Presumo que terás a primeira prestação pronta para me entregar, logo de manhã?

 

Espreitei pelo orifício de segurança para a cara dos dois guarda-costas do furão. Ambos tinham as mãos do tamanho de pequenos presuntos e olhos minúsculos como contas. Pareciam lentos e estúpidos demais para serem gladiadores. Eram do género que só servia para uma coisa: dominar e intimidar vítimas mais pequenas e mais fracas do que eles. A soma das inteligências de ambos devia estar abaixo da de uma mula média, mas é provável que fossem capazes de cumprir ordens simples, dadas pelo furão:

 

Parte o dedo a este indivíduo. Ou: Parte-lhe o braço. Ou: Parte-lhe os dois braços.

 

Vai-te embora disse-lhe eu. Só tenho de pagar amanhã. Não tens o direito de vir incomodar-me hoje.

 

Incomodar-te? perguntou o furão, lançando-me um sorriso retorcido. Se achas que isto é um incómodo, cidadão, espera até...

 

Eu bati com a tampinha do orifício de segurança. O ruído que ela fez ao fechar-se foi tão débil como eu me sentia naquele momento.

 

Vai para o Hades! gritei do outro lado da porta.

 

Ouvi o furão dar uma gargalhada, depois ladrar aos guarda-costas que seguissem, e em seguida o ruído dos passos de todos eles, afastando-se. Davo franziu o sobrolho.

 

O que faremos se eles voltarem amanhã?

 

Se eles voltarem, Davo? Não me parece que haja qualquer dúvida acerca disso.

 

Regressámos à sala de jantar. Betesda olhou para mim com uma expressão expectante. Reparei que Diana olhou primeiro para Davo, para lhe analisar a expressão, e só depois para mim; era mais uma prova, se mais fossem necessárias, de que ela era já mais sua esposa do que minha filha. Era razoável, mas não deixava de me magoar. Jerónimo terminava a sua farinha muito lentamente, com ar sorumbático. Androcles e Mopso, que se tinham levantado e comido antes de toda a gente, estavam no jardim, a cumprir as tarefas que eu lhes tinha atribuído para gastarem as energias da manhã. Pela janela, via-os altercando um com o outro, e atirando-se ervas daninhas, na ignorância da crise que se vivia nesta casa.

 

Abri a boca para falar, mas o que podia eu dizer? Falsas palavras de reconforto? Uma mudança abrupta de assunto? Ou talvez uma recuperação do assunto anterior, a saber, a impossibilidade de satisfazer o desejo que Betesda tinha de fazer uma viagem ao Egipto? Naquele momento, nada me teria agradado mais do que a perspectiva de uma viagem a Alexandria, ou a qualquer outro sítio, desde que fosse o mais longe possível de Roma.

 

Fui poupado à necessidade de falar por uma pancada abrupta na porta.

 

Outra vez! resmunguei, voltando ao vestíbulo a passos largos. Não me incomodei a abrir o orifício de segurança; puxei a barra e abri a porta para trás. Nem o furão e respectivos guarda-costas se atreveriam a atacar um cidadão romano à porta de sua casa na véspera do prazo de pagamento de um empréstimo. Ou atreveriam? Perguntei a mim próprio se conseguiria arrancar os dois olhos ao furão antes de os guarda-costas terem tempo de me imobilizar...

 

O que queres outra vez? gritei. Já te disse...

 

O homem que estava à minha frente olhou-me sem expressão. Eu devolvi-lhe o olhar, igualmente sem expressão, até o reconhecer. Tratava-se do secretário pessoal de Calpúrnia, o que viera anteriormente bater à minha porta.

 

O que estás aqui a fazer? perguntei, já noutro tom de voz.

 

Foi a minha senhora que me enviou. Ela quer falar contigo.

 

Agora?

 

Logo que possível. Antes...

 

Antes de quê?

 

Por favor, vem comigo e não faças perguntas.

 

Eu baixei os olhos para a túnica velha que tinha vestida.

 

Vou ter de mudar de roupa.

 

Não é necessário. Por favor, vem imediatamente. E talvez queiras trazer contigo um guarda-costas, para depois.

 

Depois?

 

Para te trazer a casa sem problemas. É provável que haja... bem, verás. Sorriu, e eu tive um vislumbre do que ele estava a tentar dizer-me, ou melhor, do que estava a tentar não me dizer.

 

Vamos embora, Davo chamei olhando para trás por cima do ombro. Fomos convocados pela primeira dama de Roma.

 

O escravo conduziu-nos ao longo do Monte Palatino, até à majestosa casa onde Calpúrnia residia na ausência do marido. Mesmo antes de lá chegarmos, percebi que as ruas circundantes estavam mais movimentadas do que habitualmente. Vários mensageiros saíam da casa, enquanto homens de toga convergiam para ela. Reinava um sentimento de excitação, como se houvesse no ar uma carga que relampejaria a qualquer momento. O sentimento intensificava-se no pátio de entrada da casa, onde homens reunidos em pequenos grupos conversavam em quase murmúrios, enquanto os escravos corriam de um lado para o outro. Reconheci diversos senadores e magistrados. Trebónio e Isáurico estavam a um lado, rodeados pelos respectivos lictores. Tinha acontecido alguma coisa importante. Os olhos e os ouvidos de Roma inteira estavam concentrados nesta casa.

 

O escravo conduziu-nos através do pátio, pelos degraus acima, e para o interior da casa. Os guardas reconheceram-no e deixaram-no passar sem fazer perguntas.

 

Depois do burburinho de excitação que havia no exterior, eu estava à espera de que o interior fosse uma verdadeira colmeia, mas o corredor ao longo do qual o escravo nos acompanhou estava surpreendentemente vazio e silencioso. Emergimos num jardim cheio de sol, onde Calpúrnia, sentada numa cadeira sem costas, estava a ditar em voz baixa a um escriba. Ao sentir-nos chegar, ergueu os olhos e fez um sinal ao escriba para que se retirasse. A outro sinal seu, o escravo que nos tinha acompanhado desapareceu atrás do primeiro.

 

Gordiano, vieste muito depressa. Com uma sobrancelha erguida, reparou na minha túnica usada, e eu percebi que devia ter vestido a toga, dissesse o escravo o que dissesse.

 

O teu homem disse-me que a convocatória era urgente.

 

Só porque, dentro de momentos, Roma inteira terá conhecimento da notícia. E, quando ela estiver nas ruas, não se sabe como reagirão as pessoas. Presumo que muitas se sentirão tão felizes como eu me sinto ou fingirão sentir-se.

 

Recebeste boas notícias, Calpúrnia?

 

Ela inspirou profundamente, e fechou os olhos por momentos. Ainda não tinha repetido a notícia vezes suficientes para se ter habituado a ela. Quando abriu os olhos, tinha-os brilhantes de lágrimas, e a voz tremia-lhe.

 

César triunfou! Houve uma grande batalha na Tessália, perto de um local chamado Farsalo. A linha da frente de Pompeu cedeu; depois, a sua cavalaria dispersou e pôs-se em fuga. Foi a debandada geral. César dirigiu pessoalmente a carga destinada a arrasar o campo do inimigo. Alguns dos chefes escaparam, mas o recontro foi decisivo. Nesse dia, morreram quase quinze mil homens do inimigo, e renderam-se mais de vinte e quatro mil. As forças de César pouco mais perderam que duzentos homens. A vitória pertence-nos!

 

E Pompeu?

 

O seu rosto ensombrou-se.

 

No momento em que César conduzia os seus homens por sobre as muralhas do acampamento inimigo, Pompeu fugiu da sua tenda, despiu a capa escarlate para se tornar menos notório, montou no primeiro cavalo que lhe apareceu e escapou pelo portão das traseiras. Conseguiu chegar à costa e embarcou num navio, aparentemente a caminho do Egipto. César foi em sua perseguição. E a única má notícia: César não poderá regressar imediatamente a Roma. Mas era de esperar. César terá de resolver os assuntos de Roma no Egipto e noutras paragens antes de poder voltar finalmente para casa, para descansar.

 

Por longos momentos, eu contemplei a natureza momentosa daquilo que Calpúrnia acabava de me dizer. Passaram por mim várias ondas de emoção. Tal como ela, também eu experimentei um tremor na garganta, e vieram-me lágrimas aos olhos. Depois, as dúvidas e as perguntas intrometeram-se nos meus pensamentos.

 

Teria realmente acabado tudo? Teria a guerra efectivamente terminado com uma única batalha? E a frota naval de Pompeu, que sempre fora superior à de César, e que continuava, presumivelmente, intacta? Quem teria sobrevivido, para além de Pompeu, e até que ponto desistiriam dos combates? E quanto aos restantes inimigos de Roma, como o Rei Juba, que tinha aniquilado Curió e a sua expedição africana? E o Egipto, envolvido numa guerra civil dinástica? Calpúrnia falava da resolução dos problemas no Egipto como se fosse uma tarefa para a qual bastassem ferramentas simples, como uma vassoura e uma pá, mas desde quando é que os assuntos do Egipto eram simples? Seria realmente uma tarefa assim tão trivial perseguir Pompeu, como se ele fosse um escravo em fuga? Se e quando César conseguisse apanhá-lo, tencionaria matar Pompeu a sangue-frio? Ou trá-lo-ia para Roma como prisioneiro, obrigando-o a desfilar acorrentado atrás do seu próprio carro, em procissão triunfal, como fizera com Vercingetórix, o Gaulês? Estas dúvidas ensombraram a notícia que Calpúrnia acabava de me dar, mas eu não lhas comuniquei. Quantos dos homens presentes no pátio de sua casa estariam a debater-se com as mesmas perguntas, e quantos fingiriam júbilo, calando essas mesmas dúvidas pelo menos por agora?

 

São notícias extraordinárias consegui finalmente dizer.

 

Queres perguntar alguma coisa? Perguntar por alguém? Pensei por momentos.

 

E Domício Aenobarbo? Tratava-se de um dos mais ferozes inimigos de César. No começo da guerra, César conquistara a cidade italiana de Corflnio, que estava em seu poder; ele fizera uma tentativa fracassada de suicídio e fora capturado. Humilhado pelo perdão de César, partira para Massília onde o seu caminho se cruzara com o meu, e assumira o comando das forças resistentes a César. Quando César e Trebónio haviam tomado Massília, Domício Aenobarbo tinha voltado a fugir, para se juntar a Pompeu.

 

O Barba Ruiva deixou de existir respondeu Calpúrnia, com um brilho de satisfação nos olhos. Quando o acampamento foi arrasado, Domício fugiu a pé, dirigindo-se para uma montanha; a cavalaria de António perseguiu-o como a um veado no bosque. Ele sucumbiu de medo e exaustão. Ainda estava quente quando António o descobriu. Morreu sem um ferimento no corpo.

 

Fausto Sula?

 

Aparentemente, o irmão de Fausta escapou. Corria o boato de que poderia ter fugido para África.

 

Catão?

 

Também ele iludiu os captores. Também pode estar a caminho de África.

 

Cícero?

 

Cícero continua vivo. Não esteve presente na batalha, devido a problemas de estômago. Afirmam os boatos que terá regressado a Roma. O meu marido é famoso pela sua clemência. Quem sabe? Pode ser que perdoe a Cícero ter tomado o partido de Pompeu. Olhou para mim por longos momentos. Por que não me perguntas por quem mais desejas perguntar-me, Descobridor?

 

Por que não, de facto? Inclinei a cabeça e suspirei. Tentei controlar o tremor que havia na minha voz.

 

Que notícias há de Meto?

 

Ela acenou com a cabeça e sorriu, com um ar ligeiramente mais enfatuado do que lhe competiria.

 

Meto está bem. De acordo com o meu marido, distinguiu-se admiravelmente ao longo de toda a campanha, muito em especial na batalha de Farsalo. Continua ao lado de César, tendo partido com ele para o Egipto.

 

Eu fechei os olhos, e mantive-os fechados, para impedir que as lágrimas corressem.

 

Quando foi que essa batalha teve lugar?

 

Quatro dias depois dos Nonos de Sextil.

 

Eu contive a respiração.

 

No dia em que Cassandra foi sepultada!

 

Assim foi. Não me tinha apercebido.

 

No mesmo dia em que Cassandra se transformava em cinzas sobre a pira funerária, decidia-se o destino de Roma. Pensei em tudo quanto se tinha sabido, e em tudo o que eu tinha descoberto durante o período que as notícias de Farsalo tinham demorado a chegar a Roma. Pensei nas mulheres que tinham partilhado comigo os seus segredos, sem que nenhum de nós soubesse que, enquanto esquadrinhávamos o passado e agonizávamos quanto ao futuro, a batalha entre os titãs já tinha sido decidida.

 

Por que me chamaste a tua casa, Calpúrnia, e me pediste que viesse tão depressa? Eu diria que qualquer dos homens que se encontram lá fora, percorrendo nervosamente o pátio exterior, merece mais do que eu receber as últimas notícias de César.

 

Ela deu uma gargalhada.

 

Deixa os senadores e os magistrados rangerem os dentes, trocarem boatos e estarem sobre brasas mais algum tempo. Eu já tencionava chamar-te hoje, por causa de outro acontecimento. Rupa, avança.

 

Ele estivera a aguardar nas sombras. Quando se tornou visível, a sua expressão estava mais próxima do desgosto do que de outro sentimento qualquer. Pôs-me as mãos nos ombros e deu-me um abraço um tanto frio.

 

Quer dizer que afinal estás vivo disse eu. Por onde andaste este tempo todo?

 

Ele tapou uma mão com a outra. Estive escondido. Quem poderia censurá-lo? Fausta mandara um escravo matá-lo. Quando soube da morte de Cassandra, deve ter ficado tão confuso como eu próprio fiquei, sem saber quem responsabilizar e quem recear.

 

Podia ter vindo logo ter comigo, evidentemente disse Calpúrnia. Presumo que estivesse com medo de mim, pensando que eu poderia ter tido alguma coisa a ver com a morte de Cassandra. Mas, desde que Fausta morreu, têm circulado pela cidade rumores variados acerca da sua morte e do papel que desempenhou na insurreição, incluindo o boato de que foi ela que envenenou Cassandra. Rupa ouviu esse boato e decidiu correr o risco de vir ter comigo para saber a verdade. Eu falei-lhe dos esforços que tu tinhas feito para descobrir o assassino da irmã dele, já para não falar do teu cuidado em lhe dar uma cremação adequada.

 

Rupa olhou-me nos olhos e voltou a abraçar-me, já com menos frieza. Nesse momento, pareceu-se muito com Cassandra.

 

Também veio buscar os bens de Cassandra, que estavam à minha guarda. É uma soma considerável. Mas há um ligeiro problema, que tem a ver contigo, Descobridor.

 

Explica-te, por favor.

 

A certa altura, Cassandra entregou a Rupa uma carta dirigida a mim, para me ser entregue apenas no caso de ela desaparecer ou morrer. Rupa não sabe ler, e claro que não se atreveu a mostrar a carta a mais ninguém, por isso não fazia ideia do seu conteúdo até hoje, quando ma entregou. Eu li-lha e expliquei-lhe o significado do que nela se diz. Ele concordou com as condições, mas não tenho a certeza de que o mesmo aconteça contigo.

 

Não compreendo. A carta faz-me referência?

 

Faz. Queres que ta leia? Sem esperar a minha resposta, abriu um fragmento de pergaminho e começou a ler em voz alta:

 

Para Calpúrnia, mulher de Gaio Júlio César:

 

Nos últimos dias, tenho pensado muito na minha morte. Se de facto tivesse sido dotada com o poder de profetizar, quase poderia dizer que tenho tido premonições de morte. Talvez esteja apenas a ser vítima de uma normal ansiedade, dado o perigo inerente ao trabalho que faço para ti.

 

Mas, se estás a ler estas palavras, então eu estou efectivamente morta, porque direi a Rupa para só te entregar esta carta se eu morrer, ou desaparecer em circunstâncias tais, que seja de presumir, quase com absoluta certeza, que morri.

 

Em tal eventualidade, é o seguinte o meu desejo relativamente ao destino a dar ao dinheiro que me pagaste e que confiei à tua guarda. Dado que Rupa não estará nas melhores condições para gerir uma soma tão elevada, desejo que ela seja entregue a Gordiano, chamado o Descobridor, um homem que tanto tu como o teu marido conhecem, com a seguinte condição: que ele receba Rupa em sua casa, e o adopte como seu filho. Em troca da assunção das responsabilidades de pai de Rupa, Gordiano poderá dispor do dinheiro como achar mais adequado. Sei que tem uma grande necessidade dele. Espero que seja uma bênção para ele e para a sua família. É este o desejo da tua leal agente Cassandra

 

Calpúrnia poisou a carta.

 

Não estou bem certa relativamente a esta última parte refiro-me à sua lealdade. A verdade é que conspirou com Fausta para induzir Milo a pegar em armas contra o estado. Podemos afirmar que no final nos traiu, e que eu tinha todo o direito de confiscar todos os seus bens incluindo o dinheiro que ela confiou à minha guarda. Mas pergunto a mim mesma: O que faria César? E a resposta é óbvia, porque nenhum chefe do Estado Romano mostrou jamais tanta inclinação para a clemência como César. Cassandra não sofrerá mais pela sua aliança com Fausta; pagou por esse erro com a vida. Não vejo razão para que Rupa sofra igualmente, nem tenho qualquer desejo de te privar do dinheiro que Cassandra desejava que fosse teu, Gordiano. Fizeste-me um grande favor ao descobrir a perfídia de Fausta, embora eu desconfie de que não desejes ser pago por esse esforço isso faria de ti meu agente, não é verdade?, tenho esperança de que esta audiência e o seu resultado sejam o primeiro passo na direcção de uma total reconciliação entre ti e o meu marido, bem como aqueles que servem o meu marido... incluindo o jovem Meto.

 

Eu fiquei a olhar para ela, sem saber bem o que havia de responder.

 

Que soma de dinheiro confiou Cassandra à tua guarda?

 

Ela disse-me quanto era. A quantia surpreendeu-me de tal maneira, que lhe pedi que repetisse.

 

Olhei cautelosamente para Rupa.

 

Tens consciência da quantidade de dinheiro que a tua irmã ganhou?

 

Ele acenou com a cabeça.

 

E aceitas as condições que ela estabelece naquela carta? Não receberes esse dinheiro, mas tornares-te meu filho por adopção?

 

Ele voltou a acenar com a cabeça, e ter-me-ia abraçado uma terceira vez, se eu não tivesse recuado. Olhei para Calpúrnia.

 

Talvez fosse mais justo Rupa e eu dividirmos o dinheiro sugeri.

 

Ela encolheu os ombros.

 

Quando eu to entregar, tu farás com ele o que entenderes, Gordiano. Mas só o receberás se aceitares adoptar Rupa, como Cassandra pediu. Pareces um pouco surpreendido com a sua generosidade, mas eu acho que ela deu provas de grande sensatez ao tomar esta decisão. Rupa é um jovem forte, provavelmente será um excelente guarda-costas, capaz de se defender com facilidade numa rixa não há dúvida de que levou a melhor sobre o gladiador que Fausta encarregou de o matar. Mas, de muitos pontos de vista, não sabe cuidar de si. Cassandra sempre cuidou dele. Agora que ela partiu, é seu desejo que sejas tu a fazê-lo. E por que não? Não tens propensão para acolher em tua casa miúdos perdidos os dois filhos que adoptaste e aquele par de escravos turbulentos que Fúlvia te ofereceu? Também era desejo de Cassandra que o dinheiro que ganhou te permitisse sair do buraco em que te enterraste. Segundo sei, as tuas dívidas são consideráveis. Mesmo assim, e dada a quantia que ela te deixou, ainda deve sobrar uma soma razoável o suficiente para cuidares de Rupa e dos restantes membros da tua família durante um certo tempo.

 

Eu pensei naquilo e respirei fundo. Olhei por cima do ombro para Davo, que tinha seguido a conversa em silêncio. Ele devolveu-me o olhar, de sobrolho franzido, e eu percebi que não seria tarefa fácil explicar a Betesda e a Diana como é que semelhante fortuna tinha vindo parar-me às mãos, e por que motivo regressava a casa com mais uma boca para alimentar.

 

Mas por que havia de me preocupar com a necessidade de me explicar? Eu era um paterfamílias romano, o chefe supremo de minha casa, a quem a lei concedia poder de vida e de morte sobre todos os membros da minha família! Um paterfamílias não tinha necessidade de se justificar. Era isso que a tradição ditava, embora a vida real nunca parecesse conformar-se rigorosamente com esse modelo. Se a minha mulher e a minha filha me incomodassem com perguntas desconfortáveis sobre Cassandra ou sobre Rupa, ou sobre aquela herança inesperada e o súbito desaparecimento de todas as minhas dívidas, eu podia sempre invocar o privilégio à(r)pater famílias e recusar-me a responder... pelo menos durante algum tempo.

 

Aceitas as condições de Cassandra? perguntou Calpúrnia, subitamente impaciente por pôr fim à audiência.

 

Aceito.

 

Óptimo. Vou mandar entregar-te o dinheiro esta tarde. Leva Rupa contigo quando te fores embora. Deixa-te ficar no pátio mais algum tempo, se quiseres ouvir o anúncio formal. Despediu-me com um gesto de mão. Os guardas que estavam escondidos nas sombras tornaram-se visíveis e conduziram-nos à porta.

 

Esperámos muito pouco tempo no pátio, antes de Calpúrnia aparecer no alto das escadas. Todas as vozes se calaram e todos os olhos se fixaram nela.

 

Cidadãos, venho anunciar-vos uma notícia maravilhosa. César triunfou! Houve uma grande batalha na Tessália, perto de um local chamado Farsalo...

 

Repetiu a notícia tal como ma tinha dado, palavra por palavra. Quando terminou, caiu sobre o pátio um estranho silêncio, enquanto os presentes absorviam a grandiosidade da notícia. Isáurico e Trebónio foram os primeiros a aplaudir. Outros se lhes juntaram, até o pátio ressoar de aclamações a César e exclamações de "Vénus pela vitória!"

 

Eu regressei a casa, na companhia, não de um, mas de dois jovens e corpulentos guarda-costas e ainda bem que assim foi, porque as ruas do Palatino foram subitamente inundadas de gente, que aplaudia, chorava e se beijava mutuamente, saltando como loucos de um lado para o outro. Alguns pareciam bastante satisfeitos, outros genuinamente extáticos. Quantos estariam simplesmente a experienciar um impulso de emoção, pelo tremendo alívio da tensão que se fora acumulando em toda a gente durante meses? E quantos não estariam absolutamente nada felizes, embora fizessem o possível por se rirem e gritarem, e se misturarem com os restantes?

 

Enquanto avançávamos lentamente por entre a multidão, fiquei espantado ao ver a certa distância determinada cara, misturada com as restantes. Tratava-se do velho Volcácio, o mais acérrimo defensor de Pompeu entre os ociosos do Fórum. Tinha as mãos no ar, a cabeça voltada para trás e a boca aberta. Por entre o ruído, consegui distinguir a sua voz esganiçada, que gritava: "Hurra por César! Vénus pela vitória! Hurra por César!"

 

Agora somos todos partidários de César murmurei por entredentes.

 

E que tal esta? perguntou Diana, erguendo uma das minhas melhores peças de vestuário, uma túnica verde com um debrum de desenhos gregos a amarelo.

 

Não achas que já levo roupa suficiente? disse eu. O mestre do navio cobra por baú, de maneira que o melhor é levarmos só aquilo de que precisamos para a viagem. Fica mais barato comprarmos o resto quando lá chegarmos.

 

A mãe vai gostar disso. Uma viagem para fazer compras! Diana fez um sorriso forçado. Não estava nada satisfeita com esta viagem da mãe a Alexandria de que tinha feito todo o possível por dissuadi-la. Aquela parte do mundo já de si era instável e perigosa, salientara, e muito provavelmente ainda se tornara pior se Pompeu tinha fugido para lá, com César no seu encalço. Além de que uma viagem por mar era sempre perigosa, e que o Outono estava a chegar; se permanecêssemos no Egipto para além da estação, podíamos ser retidos durante meses, sem conseguirmos encontrar um navio disposto a arriscar-se nas águas tempestuosas. Mas Betesda não cedia: para se curar da sua doença, tinha de regressar ao Egipto e de banhar-se no Nilo.

 

A maior preocupação de Diana era outra, e a essa não fizera ela referência: não voltar a ver a mãe, se os rigores da viagem fossem excessivos para ela, ou se o verdadeiro objectivo deste regresso de Betesda ao Egipto fosse morrer.

 

Talvez... talvez eu devesse ir convosco disse.

 

De maneira nenhuma, Diana! Já discutimos este assunto.

 

Mas...

 

Não! É impensável uma jovem nas tuas circunstâncias partir numa viagem tão longa e imprevisível.

 

Não devia ter-te dito.

 

Que estás à espera de bebé? Não podias escondê-lo muito mais tempo. Não imaginas como fiquei aliviado ao perceber que as tuas indisposições matinais eram devidas à gravidez, e não a outra coisa qualquer. Não, ficarás em Roma a cuidar da casa, e Davo fica contigo. E não te preocupes a tua mãe e eu voltaremos muito a tempo de assistir ao nascimento do nosso neto. Achas que Betesda ia perder semelhante coisa?

 

Diana obrigou-se a sorrir de novo, e atarefou-se a verificar o conteúdo do meu baú.

 

O que é isto? perguntou, segurando uma urna funerária de bronze, selada.

 

Eu tirei-lha da mão e voltei a metê-la no baú.

 

São cinzas.

 

Ah. As cinzas dela.

 

Podes dizer o nome dela: Cassandra.

 

Mas por que vais levá-las para o Egipto?

 

A ideia foi de Rupa. Cassandra viveu a maior parte da sua vida em Alexandria. Ele quer espalhar as cinzas dela no Nilo.

 

Não percebo bem por que vais levá-las nesta viagem, juntamente com a mãe.

 

Não te esqueças de que é o legado dela que financia esta viagem.

 

É irónico, não é? perguntou Diana em tom sarcástico. Se a mãe voltar curada desta viagem, terá sido graças à mulher que... Viu a expressão do meu rosto e deixou a frase por completar. Sim,

acho que é boa ideia levarem Rupa convosco, dado que não terão Davo para vos proteger. Além disso, Rupa conhece a cidade.

 

Esqueces-te de que eu vivi em Alexandria durante algum tempo.

 

Mas, papá, isso foi há anos e anos. Com certeza que a cidade mudou desde essa altura.

 

A Alexandria da minha juventude estava fixa na minha memória, rodeada de nostalgia como uma cidade está rodeada de muralhas, para se manter segura. Parecia impensável que alguma coisa se tivesse alterado, mas por que não? O resto do mundo também tinha mudado, e raras vezes para melhor.

 

Diana deu um estalo com a língua.

 

Mas não sei se será aconselhável levarem Mopso e Androcles.

 

Sou um homem idoso, Diana. Preciso de pés mais velozes, que me façam os recados.

 

E eu também vou precisar, quando a barriga começar a crescer-me.

 

Se calhar, eu podia levar comigo um dos rapazes e deixar-te o outro...

 

Não, seria impensável separá-los. Mas o mais provável é serem lançados borda fora, se se portarem no navio como se têm portado cá em casa. São uma bela parelha, aqueles dois... De repente, ficou com a voz embargada. Pigarreou, fungou e recomeçou, num tom mais baixo. É uma pena não levares Jerónimo. Ele não pára de dar a entender que também gostaria de ir. Como viveu toda a vida em Massília, está ansioso por conhecer o mundo.

 

À minha custa! Não, Jerónimo fica. De certeza que ainda não exauriu todas as coisas que Roma tem para lhe oferecer.

 

Sentei-me na cama. Diana sentou-se a meu lado e pegou-me na mão.

 

Ainda não falámos de uma coisa disse.

 

Da tua mãe? Acho que ela está mesmo convencida de que esta viagem vai curá-la. Não te preocupes com...

 

Não, não é disso. Eu suspirei.

 

Se queres acabar o que estavas a dizer há bocado... sobre Cassandra... Diana abanou a cabeça.

 

Não. Acho que as Parcas conduziram o teu caminho, e o dela, para um fim que nenhum de vós previu.

 

Nesse caso, o que é? Ela hesitou.

 

Já falámos dos perigos que podem correr nessa parte do mundo...

 

Certamente não será mais perigosa que Roma!

 

Não? Desde a morte do velho Rei Ptolemeu, os Egípcios têm estado tão divididos como nós, os Romanos. O jovem Ptolemeu está em guerra com a irmã como se chama ela?

 

Julgo que se chama Cleópatra. Marco António disse-me certa vez que a tinha conhecido. Referiu uma coisa muito estranha...

 

O que foi?

 

Que ela o fazia recordar César. Imagina! Cleópatra não podia ter mais de catorze anos quando António a conheceu. Nesta altura, deve ter uns vinte e dois sim, é exactamente da mesma idade que tu, Diana.

 

Bonito! Estarás em Alexandria com Pompeu na sua fase de maior desespero, com uma guerra civil a decorrer, e uma jovem César com quem lidar se é possível imaginar semelhante criatura!

 

Eu dei uma gargalhada.

 

Pelo menos, não será uma maçada.

 

Mas não era disso que eu queria falar-te.

 

De que era, então? Ela suspirou.

 

César também lá estará, não é verdade?

 

É muito provável que sim.

 

E, se César lá estiver...

 

Ah, estou a ver onde queres chegar.

 

Já vais ter tantos problemas não me refiro a Pompeu e a Cleópatra e isso tudo. Refiro-me à mãe, às melhoras dela... ou não. E às cinzas que vão naquela urna, e àquilo que sentirás quando as espalhares no Nilo. E sei que vais andar preocupado comigo e com o filho que eu trago aqui dentro. Se, para além disso tudo, te encontrares com Meto...

 

Filha, filha! Imaginas que eu não pensei já em tudo isso? Tenho passado noites em claro, a ponderar nesta viagem e em todos os sítios onde ela poderá levar-me. Mas não serve de nada tentar prever o futuro. É como tu dizes: as Parcas conduzem-nos a fins imprevistos. Até agora, pensando bem, as Parcas foram amáveis comigo.

 

Ouviu-se um ruído à porta. Olhámos ambos para trás e vimos Betesda. Parecia pálida e delicada, mas vi nos seus olhos uma chama firme, que era um sinal de esperança. A viagem ao Egipto tornara-se o centro da sua vida.

 

Já fizeste as tuas malas, marido?

 

-Já.

 

Óptimo. Partimos de madrugada. Diana, se acabaste de ajudar o teu pai, vem ajudar-me a escolher as minhas coisas.

 

Claro. Diana levantou-se e seguiu a mãe. À porta, fez uma pausa e olhou para trás. Tinha os olhos brilhantes de lágrimas. É já amanhã que se vão embora, papá? De repente, senti o mesmo que Jerónimo; invejo-vos! Vão ver o Nilo, as pirâmides, a Esfinge gigantesca...

 

E a grande biblioteca disse eu, e o famoso farol de Faros...

 

E talvez até conheçam...

 

Rimo-nos ambos, sabendo que partilhávamos o mesmo pensamento, mesmo sem falar.

 

Cleópatra! disse eu, terminando a frase.

 

Cleópatra repetiu ela, como se aquele nome estrangeiro e bizarro fosse um código para tudo aquilo que ficara entendido entre nós, quer tivesse sido dito, quer não.

 

Depois de ela sair do quarto, levantei-me da cama e aproximei-me do baú. Baixei-me e peguei na urna funerária de bronze. Segurei-a na mão durante muito tempo, sentindo a rigidez fria do metal, tomando o peso ao seu conteúdo. Finalmente, voltei a metê-la no baú e, lenta e suavemente, baixei a tampa.

 

                                                                                Steven Saylor  

 

                      

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