Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
NICHOLAS NICKLEBY
Parte II
A conduta de Nicholas e alterações na companha de Mr. Vincent Crummles.
O inesperado sucesso e bom acolhimento que teve em Portsmouth levou Mr. Crumnles a prolongar a sua estadia por uma quinzena além do período estipulado durante o qual Nicholas desempenhou uma grande variedade de papéis atraindo tanta gente ao teatro, que se tornou necessário fazer‑lhe um beneficio, rendendo‑lhe o mesmo vinte libras. Possuidor desta inesperada riqueza, o seu primeiro acto foi devolver ao honesto John Browdie o seu amável empréstimo com muitas expressões de gratidão e felicidades no seu matrimónio. Para Newman Noggs enviou metade da importância realizada pedindo-lhe para a entregar secretamente a Kate quando tivesse ocasião, com os protestos mais cordiais do seu amor e da sua afeição. Não dizia em que se empregava, mas informava‑o que a correspondência que lhe fosse dirigida para o correio geral, Portsmouth, o encontraria facilmente, e pedia para lhe dar notícias das coisas que Ralph Nickleby tinha feito e a sua partida de Londres.
- O senhor está abatido ‑ disse Smike na noite depois da carta ter sido enviada.
‑Não estou ‑ protestou Nicholas com pretensa alegria, pois a confissão teria entristecido o rapaz por toda a noite. Estou pensando na minha irmã, Smike!
‑ Irmã?
‑ Sim.
‑ como o senhor? ‑ perguntou Smike.
‑Assim o dizem ‑ respondeu Nicholas, rindo ‑ com a diferença de ser muito mais bonita.
‑Então deve ser linda ‑ comentou Smike depois de ter pensado um bocado, com as mãos cruzadas e os olhos no seu amigo.
‑Qualquer pessoa que te não conhecesse tão bem como eu, diria que és um perfeito cortesão ‑ observou Nicholas.
‑Eu nem mesmo sei o que isso é ‑ replicou Smike, abanando a cabeça. ‑ Verei alguma vez a sua irmã?
‑Com certeza ‑ afirmou Nicholas. ‑ Estaremos juntos um destes dias. quando formos ricos, Smike.
‑Como é que o senhor sendo tão amável e bom para mim, não tem ninguém amável para si? ‑ inquiriu Smike. Não posso compreender!
‑ É uma história comprida ‑ explicou Nicholas ‑ e receio que tenhas dificuldade em a compreender. Tenho um inimigo... entendes o que isso é?
‑ Sim, compreendo ‑ respondeu Smike. ‑ Quem é o seu inimigo?
‑Bem, é por causa dele ‑ continuou Nicholas. - Ele é rico e não tão fácil de pôr de lado como o teu velho amigo, Mr. Squeers. É meu tio, mas é um vilão e prejudica‑me.
‑Ele é assim? ‑ interrompeu Smike inclinando-se vivamente para a frente. ‑ Qual é o seu nome? Diga‑me o seu nome!
‑ Ralph. Ralph Niekleby.
‑Ralph Nickleby ‑ repetiu Smike. ‑ Ralph. Vou decorá‑lo.
Murmurou‑o para si umas vinte vezes quando uma grande pancada soou na porta distraindo‑o da sua ocupação. Antes que a pudesse abrir, Mr. Folair, o pantomineiro, introduziu a cabeça.
A cabeça de Mr Folair costumava ser decorada com um chapéu redondo, alto, que ele trazia agora posto de lado não para a frente; em roda do pescoço tinha um lenço dum encarnado flamejante, cujas pontas caiam sobre um casaco Newmarket, todo abotoado. Na mão tinha uma luva suja e uma bengala barata com castão de vidro. Em resumo, toda a sua aparência era invulgar e demonstrava uma atenção muito mais escrupulosa com o seu vestuário do que era hábito.
‑Boa‑noite, sir ‑ cumprimentou Mr. Folair tirando o chapéu e passando a mão pela cabeça. ‑ Trago um recado.
‑De quem e sobre o quê? ‑ perguntou Nicholas. ‑ Você está muito misterioso esta noite.
‑Talvez o frio ‑ sugeriu Mr. Folair ‑ talvez o frio. É a culpa da minha posição. não minha Mr. Johnson. A minha posição é ditada por uma mútua amizade, sir.
Mr. Folair parou com o mais impressionante olhar e metendo a mão no chapéu, extraiu um bocado de papel cuidadosamente dobrado, donde tirou um bilhete que entregou a Nicholas, dizendo:
‑ Tenha a bondade de ler isto, sir.
Nicholas, muito espantado, agarrou no bilhete e quebrou o selo, olhando para Mr. Folair ao fazer isto, o qual franzindo o sobrolho e cerrando a boca com grande dignidade, pôs os olhos no tecto.
O bilhete era dirigido a reticências Johnson, por obséquio de Augustus Folair, e o espanto de Nicholas não diminuiu quando o encontrou redigido nos seguintes lacónicos termos:
Mr. Lenville apresenta os seus respeitosos cumprimentos a Mr. Johnson e ficaria muito agradecido se o informar a que horas amanhã de manhã lhe será mais conveniente encontrar‑se no teatro com Mr. Lenville para este lhe esborrachar o nariz na presença da companhia.
Mr. Lenville pede a Mr. Johnson para se não esquecer de indicar o encontro, visto ter convidado dois ou três amigos profissionais para testemunharem a cerimónia e não poder desapontá‑los por qualquer circunstância.
Portsmouth, terça‑feira à noite
Indignado por esta impertinência, dum desafio tão estupidamente absurdo, Nicholas teve de morder o lábio e ler o bilhete duas ou três vezes antes de se poder refrear e assumir a necessária gravidade para se dirigir ao hostil mensageiro que tinha baixado os olhos do teto, sem alterar a expressão da cara.
‑Conhece o conteúdo deste bilhete, sir? ‑ perguntou Nicholas por fim.
‑ Conheço ‑ respondeu Mr. Folair, olhando em redor por um instante e pondo imediatamente, outra vez, os olhos no tecto.
‑E como se atreve a trazer‑mo aqui, sir? ‑ interrogou Nicholas, rasgando‑o em pedacinhos e atirando-os ao mensageiro. ‑ Não teve medo que o corresse a pontapé pela escada abaixo, sir?
Mr. Folair voltou a cabeça, agora ornamentada com os vários fragmentos do bilhete, para Nicholas e, com a mesma imperturbável dignidade, respondeu sumariamente.
‑ Não.
‑Então ‑ disse Nicholas, agarrando no chapéu alto e atirando-o para a porta ‑ é melhor que siga esse artigo do seu vestuário, sir, ou apanha uma desagradável desilusão dentro de doze segundos.
‑ Ouça lá, Johnson ‑ ripostou Mr. Folair, perdendo subitamente toda a sua dignidade ‑ nada disso! Nada de paródias com o guarda‑roupa dum cavalheiro.
‑Saia do quarto ‑ mandou Nicholas. ‑ Como pôde atrever‑se a vir aqui com um tal recado, um patife?
‑Ora! ‑ exclamou Mr. Folair, desenrolando o lenço e tirando‑o gradualmente do pescoço. ‑ Já basta!
‑Basta! ‑ objectou Nicholas, avançando para ele. Ponha-se lá fora, sir.
‑Ora! Digo‑lhe eu ‑ retorquiu Mr. Folair, acenando com a mão para conjurar qualquer ira. ‑ Eu não estava a sério. Trouxe‑o apenas por brincadeira.
‑É melhor ter mais cuidado quando se meter de novo em brincadeiras como esta ‑ preveniu Nicholas ‑ se não é capaz de ouvir falar em esborrachamento de narizes na sua própria pessoa por causa da gracinha. Também foi escrito por brincadeira?
‑Não, não, foi a sério ‑ retorquiu o outro ‑ escrito com toda a atenção, ponto de honra.
Nicholas não pode suster um sorriso pela figura extravagante que tinha diante de si, mais capaz de despertar zombaria do que cólera, especialmente na ocasião em que, com um joelho no chão, Mr Folair rodava o velho chapéu alto na mão e afectava a maior aflição, com medo que alguns pêlos tivessem caído, pois era um ornamento que não se exibia há muitos meses.
‑ Vamos, sir ‑ disse Nicholas, rindo a despeito de si próprio ‑ tenha a bondade de se explicar.
‑Vou‑lhe contar como o caso se passou ‑ replicou Mr. Folair, sentando-se numa cadeira com grande indiferença. Desde que você veio, Lenville só tem feito segundos papéis e, em vez de ter uma recepção todas as noites como costumava, o público tem‑no deixado entrar como se não fosse ninguém.
‑ O que quer dizer por uma recepção? ‑ interrogou Nicholas.
‑Júpiter! ‑ exclamou Mr. Folair. ‑ Que anjinho você me saiu, Johnson! São os aplausos da casa quando se entra pela primeira vez no palco. Assim ele foi andando, noite após noite, nunca conseguindo uma só palma e você é chamado pelo menos duas vezes e às vezes três, até que por fim se tornou desesperado e teve quase vontade, a noite passada quando fez de Tybalt, de trazer uma espada verdadeira e picá-lo... não perigosamente, mas o bastante para o reter na cama um mês ou dois.
‑ Muito bem pensado! ‑ observou Nicholas.
‑Sim, julgo que foi, dadas as circunstâncias por a sua actuação profissional estar em perigo ‑ prosseguiú Mr. Folair muito seriamente. ‑ Mas o seu coração não teve ânimo e então pensou noutra maneira de o aborrecer e tornar‑se popular, ao mesmo tempo. aí é que bate o ponto. Notoriedade, notoriedade é a causa de tudo isto. Se ele o tivesse picado ‑ acrescentou Mr. Folair, parando para fazer um cálculo de cabeça ‑ isso valer‑lhe‑ia. valer‑lhe‑ia oito ou dez xelins por semana. Toda a cidade teria vindo ver o actor que estivera quase a matar um homem por engano e não sei mesmo se ele não conseguiria um contrato para Londres. No entanto foi obrigado a tentar outro modo de se tornar popular e foi éste o que lhe ocorreu. uma ideia inteligente, realmente. Se ele lhe esborrachasse o nariz, poria o caso no jornal; se você contemporizasse com ele a notícia apareceria da mesma forma no jornal e falar‑se‑ia muito a seu respeito. Está a ver?
‑Certamente ‑ retorquiu Nicholas ‑ mas suponha que as coisas saiam ao contrário e era eu quem lhe esborrachava o nariz? Como poderia fazer a sua popularidade?
‑Não me parece que fizesse ‑ respondeu Mr. Folair, coçando a cabeça ‑ por não haver aí nenhum romance. Para dizer a verdade, ele não contou muito com isso, por você ser sempre de falas brandas e muito popular entre as mulheres, por isso não suspeitámos que jogasse à pancada. Se vai jogar, ele, no entanto, tem uma maneira de sair disso facilmente.
‑Tem? ‑ retorquiu Nicholas. ‑ Experimentemos amanhã de manhã. Entretanto, pode fazer uso desta entrevista como melhor quiser. Boa‑ noite!
Como Mr. Folair era bem conhecido entre os actores por velhaco sem escrúpulos, Nicholas não duvidou acreditar ter sido ele quem levara o outro a fazer aquilo e se encarregara da missão, não contando com a inesperada recepção que lhe fora feita. Não valia a pena tomá‑lo a sério, por isso o pantonvneiro foi despedido com a advertência de que ficaria com a cabeça partida se recomeçasse outra vez, e Mr. Folair, to mando o aviso com excessiva boa vontade, foi conferenciar com o chefe para lhe dar conta do seu procedimento e levá‑lo a considerar isto uma brincadeira.
Sem dúvida informou que Nicholas estava cheio de medo, porque quando o jovem entrou no teatro, na manhã seguinte à hora habitual, encontrou toda a companhia reunida em evidente expectativa, e Mr. Lenville, com a mais trágica máscara teatral, sentado majestosamente à mesa e assobiando provocadoramente.
As senhoras estavam do lado de Nicholas e os cavalheiros, do lado do desapontado trágico, por isso os últimos formavam um pequeno grupo em volta do invencível Mr. Lenville, e as primeiras olhavam, a curta distância, com agitação e ansiedade. Quando Nicholas parou, para os cumprimentar, Mr. Lenville soltou uma gargalhada insolente e fez uma observação geral sobre a história natural dos cachorrinhos.
‑Oh! ‑ exclamou Nicholas, olhando tranquilamente em redor. ‑ Está, aí?
‑Escravo! ‑ retorquiu Lenville, floreando o braço direito e aproximando-se de Nicholas com umas passadas teatrais; porém nesse momento alguma coisa o perturbou, visto Nicholas não se mostrar amedrontado como ele esperava, obrigando‑o a fazer uma desairosa paragem, enquanto as senhoras sorriam.
‑Objecto do meu escárnio e aversão! ‑ disse Mr. Lenville. ‑ Sinto desprezo por si!
Nicholas riu com esta exclamação e as senhoras, com este encorajamento, riram ainda mais alto.
‑Mas elas não o protegem ‑ afirmou o trágico, olhando para Nicholas a começar nas botas e terminando na cabeça, depois a começar na cabeça e a terminar nas botas, olhares de desafio no palco. ‑ Elas não o protegem... garoto!
Falando desta maneira Mr. Lenville cruzou os braços e mostrou a Nicholas aquela expressão de rosto com a qual, nos papéis melodramáticos ele tinha por hábito contemplar os reis tiranos, quando estes diziam, Levem‑no daqui e atirem‑no para a mais profunda masmorra debaixo do fosso do castelo, o que, acompanhado com um pequeno ruído de grilhões, sabia que produzia grandes efeitos.
Se foi a ausência dos grilhões, ou não, isto não fez muita impressão ao adversário de Mr. Lenville, antes parecendo aumentar-lhe o bom humor. Neste estado da questão, um ou dois cavalheiros, que tinham vindo expressamente para testemunhar o esborrachamento do nariz de Nicholas, tornaram‑se impacientes, murmurando que, visto nada ainda ter sido feito, era melhor fazê‑lo já, mas se Mr. Lenville não tinha a intenção de o fazer, seria conveniente dizê‑lo, para não ficarem ali à espera. Metido entre a espada e a parede, o trágico ajustou o punho da manga direita do casaco para a execução da operação e caminhou duma maneira decidida para Nicholas, que o deixou aproximar‑se à distância necessária e depois, sem a mais leve perturbação, atirou‑o a terra.
Antes do derrotado trágico poder levantar a cabeça, Mrs. Lenville que, conforme dissémos, estava no seu estado interessante, correu da fila de trás e, soltando um grito agudo, atirou‑se para cima do corpo do marido.
‑Vê isto, monstro? Vê isto? ‑ exclamou Mr. Lenville, sentando‑se e apontando para a mulher agarrada à sua cintura.
‑Vamos! ‑ ordenou Nicholas, acenando com a cabeça. Peça perdão pelo bilhete insolente que me escreveu a noite passada e não perca tempo com conversas.
‑ Nunca! ‑ protestou Mr. Lenville.
‑ Sim. sim. sim! ‑ guinchou a esposa. ‑ Por amor de mim. Lenville. deixa essas maneiras idiotas a não ser que me queiras morta a teus pés!
‑Isto é aflitivo! ‑ exclamou Mr. Lenville, olhando em redor e levando as costas das mãos aos olhos. ‑ Os laços da natureza são fortes. O marido fraco e o pai, rende‑se. Peço perdão!
‑Humilde e submissamente? ‑ perguntou Nicholas.
‑ Humilde e submissamente ‑ respondeu o trágico. ‑ Mas apenas para a salvar, pois virá uma ocasião.
‑ Muito bem ‑ disse Nicholas. ‑ Espero que Mrs. Lenville tenha uma boa hora e quando ela vier e você for pai, pode retratar‑se, se tiver coragem. Agora tenha cuidado, sir, até que ponto o seu ciúme o pode levar outra vez; e tenha também cuidado em não se aventurar muito, antes de se assegurar do temperamento do rival.
Com este conselho de despedida, Nicholas agarrou na bengala de Mr. Lenville, que lhe caira das mãos, partiu‑a ao meio, atirou‑lhe os bocados e curvou‑se ligeiramente perante os espectadores quando desapareceu.
Nessa noite, foi prestada a Nicholas a mais profunda deferência e as pessoas que estavam desejosas de lhe verem o nariz esborrachado, felicitaram‑lhe pelo modo como tratara Lenville, esse insuportável tipo. E a julgar pela forma como terminavam todos estes apartes, ficava‑se convencido da caridade e da estima entre os membros masculinos da companhia de Mr. Crummles.
Nicholas gozou o seu triunfo e teve o seu sucesso no pequeno mundo do teatro com a maior moderação e bom humor. O humilhado Mr. Lenville fez um esforço desesperado para conseguir a desforra, mandando um garoto para a galeria a fim de o vaiar, mas encontrou a indignação popular e foi prontamente reprimido sem ter recebido o seu dinheiro.
‑ Bem, Smike ‑ disse Nicholas quando acabou a primeira peça e se tinha quase acabado de vestir para ir para casa. Há, então, uma carta?
‑Há ‑ respondeu Smike. ‑ Trouxe‑a do correio.
‑De Newman Noggs ‑ comentou Nicholas, deitando os olhos para a letra. ‑ Não é fácil fazê‑lo escrever. Deixa-ma ver.
O conteúdo da carta versava sobre o estado da saúde delas, da entrega das dez libras a Kate, que de momento não estava necessitada de dinheiro e Newman pensava ser necessária a presença de Nicholas para proteger a irmã de factos que podiam ocorrer, ou estavam ocorrendo, e pedia-lhe para lhe escrever o mais breve possível.
Nicholas leu esta passagem muitas vezes e quanto mais lia mais pensava tratar‑se duma velhacaria da parte de Ralph. Sentiu‑se tentado uma ou duas vezes em partir para Londres sem esperar mais uma hora, mas uma pequena reflexão disse‑lhe que se isso fosse necessário, Newman ter‑ lhe‑ia dito imediatamente.
‑Prevendo o pior, devo prepará‑los para a possibilidade da minha súbita partida ‑ disse Nicholas. ‑ Não perco tempo a fazer isso!
E tão depressa pensou nisto, agarrou no chapéu e correu para o quarto verde.
‑ Bem, Mr. Johnson ‑ cumprimentou Mrs. Crummles, que estava sentada, com o fenómeno nos braços, na próxina semana vamos para Ryde, depois para Winchester, depois para.
‑Tenho razões para crer ‑ interrompeu Nicholasque antes de sairem daqui a minha carreira tenha terminado.
‑Terminado! ‑ exclamou Mrs. Crummles, levantando as mãos, atónita.
‑Terminado! ‑ repetiu Miss Snevellicci, tremendo tanto que teve de se apoiar ao ombro da empresária para não cair.
‑ Ora, ele não quer dizer que se vai embora! ‑ sentenciou Mrs. Grudden, encaminhando-se para Mrs. Crummles. ‑ Isso são patetices!
O fenómeno, sendo de natureza afectuosa e excitável, desatou num grande berreiro, e Miss Belawney e Miss Bravassa choraram. Mesmo os actores pararam a conversa e repetiram Terminado!, ainda que alguns deles se felicitassem em ver pelas costas um rival favorecido. Nicholas, resumida mente, disse recear isso, não podendo, no entanto, dizê‑lo ainda com toda a certeza; e despedindo‑se o mais depressa que póde, foi para casa ler a carta de Newman mais uma vez e meditar sobre o seu conteúdo.
Festas em honra de Nicholas, que subitamente desaparece da sociedade de Mr. Vincent Crummles e da dos companheiros de cena.
Mr. Vincent Crummles, logo que teve conhecimento da provável saída de Nicholas, mostrou tristeza e consternação, chegando a fazer‑lhe promessas de aumento de ordenado e de participação como autor. Mas vendo a irredutibilidade de Nicholas ‑ que, sem outras notícias de Newman, estava determinado a aparecer em Londres para se certificar da exacta posição da irmã ‑ e contando com o seu regresso, tomou prontas e enérgicas medidas para tirar o maior proveito dele antes de se ir embora.
‑ Deixe-me ver ‑ disse Mr. Crummles, tirando o cenário dos bandidos para ver melhor friamente toda a casa.
‑ Deixe-me ver. Estamos hoje em quarta‑feira à noite. De manhã afixaremos cartazes anunciando positivamente a sua derradeira representação amanhã.
‑Mas talvez não seja a minha última representação, como sabe ‑ observou Nicholas ‑ a não ser que seja convocado. Sentiria muito a inconveniência de o deixar antes do fim de semana.
‑Tanto melhor ‑ retorquiu Mr. Crummles. ‑ Temos então, positivamente, a sua última representação na quinta‑feira. novo contrato para mais uma noite, na sexta‑feira. e acedendo ao pedido de numeroso público a última representação, no sábado. Isto deve dar três casas muito decentes.
‑Então tenho que dar três últimas representações, não tenho? ‑ perguntou Nicholas, sorrindo.
‑ Sim ‑ replicou o empresário, coçando a cabeça com um ar um tanto embaraçado ‑ três não é suficiente e é muito pouco próprio e irregular não dar mais, mas se nada pudermos fazer, nada faremos. Seria muito de desejar uma novidade. Não podia cantar uma canção cómica, sentado no dorso do pónei?
‑Não ‑ respondeu Nicholas. ‑ Decerto não posso.
‑Era dinheiro em caixa ‑ afirmou Mr. Crummles com um olhar desapontado. ‑ O que pensa duma brilhante exi bìção de fogo de artifício?
‑Isso seria bastante caro ‑ observou Nicholas.
‑Com dezoito pence fas-se isso ‑ retorquiu Mr. Crummles. ‑ O senhor no alto duma escada com o fenómeno por detrás e à transparência, a palavra Adeus, e nove pessoas nos bastidores com uma peça do fogo em cada mão, seria grandioso. extraordinário visto de frente, completamente extraordinário!
Como Nicholas não parecia entusiasmado com a solenidade, antes pelo contrário, Mr. Crummles abandonou o projecto à nascença e observou que eles teriam de fazer jús à receita, com combates e danças.
Com o fim de dar imediata execução a este objectivo, Mr. Crummles apareceu no vestiário, onde Mrs. Crummles se encontrava ocupada em mudar os vestidos duma imperatriz melodramática nos de matronas do século XIX com a ajuda de Mrs. Grudden.
‑Ah! ‑ suspirou Nicholas, quando se atirou para a cadeira do ponto, depois de telegrafar as precisas instruções a Smike, que tinha estado a representar um pobre alfaiate com uma saia por casaco e um lencinho com um grande buraco, um barrete de dormir, em lã, um nariz vermelho e outras marcas distintas, peculiares aos alfaiates no palco. ‑ Ah! Como desejo tudo isto acabado!
‑ Acabado, Mr. Johnson? ‑ repetiu uma voz feminina por detrás dele, numa espécie de dolorosa surpresa.
‑Não foi, certamente, uma frase galante ‑ desculpou‑se Nicholas, procurando ver quem falava e reconhecendo Miss Senevellicci. ‑ Não a teria dito se soubesse que estava a ouvir.
‑Mas como é querido, Mr. Digby! ‑ comentou Miss Sne vellici quando o alfaiate foi para o lado oposto no fim da peça, com grandes aplausos. (O nome teatral do Smike era Digby).
‑Vou‑lhe dizer imediatamente para lhe agradecer ‑ replicou Nicholas.
‑Oh, o senhor é mau! ‑ observou Miss Senevellicci. Não sei se ele se importa muito com a minha opinião a seu respeito.
Aqui Miss Snevellicci parou como se esperasse perguntas, mas estas não vieram por Nicholas estar a pensar em assuntos mais sérios.
‑ Como é gentil da sua parte ‑ continuou Miss Snevellicci depois dum curto silêncio ‑ estar aí sentado à espera dele, noite após noite por muito cansado que esteja, e tendo por ele tantas inquietações e fazendo tudo com tal prazer e prontidão como se ele valesse ouro!
‑Ele merece bem toda a amabilidade que lhe possa dispensar ‑ afirmou Nicholas. ‑ É a criatura mais agradecida, afectuosa e sincera que há.
‑Também bastante estranha, não é? ‑ notou Miss Snevellicci.
‑ Deus o ajude e aqueles que o fizeram assim ‑ concordou Nicholas, abanando a cabeça.
‑Ele é um diabo duma boca fechada ‑ disse Mr. Folair, que tinha chegado um pouco antes e se juntava agora à conversa. ‑ Ninguém pode tirar nada dele.
‑ E que queriam tirar dele? ‑ perguntou Nicholas, voltando-se.
‑Pelo cabelo dum careca! Que precipitado você é Johnson! ‑ exclamou Mr. Folair, puxando o tacão do sapáto de dança. ‑ Estava apenas falando da natural curiosidade da gente daqui em saber alguma coisa dele.
‑Pobre rapaz! É tão simples creio, que lhe não passa pela cabeça que alguém se importe com ele ‑ disse Nicholas.
‑Sim ‑ replicou o actor, contemplando o efeito da sua cara numa lâmpada reflector ‑ mas isso respeita toda a questão.
‑ Que questão? ‑ inquiriu Nicholas.
‑Quem é, o que é e, como os dois, sendo tão diferentes, vieram em tão íntima companhia ‑ respondeu Mr. Folair, deliciado com a oportunidade de dizer alguma coisa desagradável. ‑ Isto anda na boca de toda a gente.
‑Toda a gente do teatro, suponho eu? ‑ disse Nicholas, desdenhosamente.
‑Dentro e fora dele, também ‑ informou o actor. Você sabe que Lenville diz.
‑ Pensei que o tinha calado definitivamente ‑ interrompeu Nicholas corando.
‑ Talvez tenha ‑ retorquiu o obstinado Mr. Folair ‑ e se o calou ele disse isto antes de o ter calado. Lenville diz que você é um actor recruta e que foi só o mistério a seu respeito que o tornou favorito do público e que Crummles conserva isso para seu interesse; no entanto, Lenville diz não acreditar completamente nisso, excepto em você se ter metido numa embrulhada e ter fugido de qualquer parte, por ter feito alguma coisa.
‑Oh! ‑ exclamou Nicholas com um sorriso forçado.
‑Isto é uma parte do que ele diz ‑ acrescentou Mr. Folair. ‑ Eu menciono‑a coma amigo de ambos e em estrita confidência. Não concordo, bem sabe. Diz que Digby é mais velhaco do que simplório; e o velho Fluggers, que faz os trabalhos pesados, diz que quando entregava recados em Covent Garden na penúltima época, costumava estar um carteirista rondando a praça dos carros de aluguer com uma cara exactamente igual a de Digby; embora ele seja muito peremptório, o Digby pode não ser o mesmo, mas apenas um seu irmão, ou parente próximo.
‑ Oh! ‑ exclamou de novo Nicholas.
‑Sim ‑ prosseguiu Mr. Folair, com uma imperturbável calma ‑ é o que eles dizem. Pensei que lhe devia dizer porque realmente precisava saber. Oh, aqui está, por fim, o abençoado fenómeno. Completamente ao seu dispor, minha querida. Toque a campainha, e acorde os favoritos.
Proferindo em voz alta as últimas alusões como se fossem cumprimentos para o inconsciente fenómeno e dizendo o resto em confidencial aparte para Nicholas, Mr. Folair contemplou a subida do pano e, batendo os dentes, brandiu o machado de guerra como um índio selvagem.
‑São estas, então, algumas das histórias que eles inventam a meu respeito e que correm de boca em boca ‑ pensou Nicholas. ‑ Se um homem cometesse uma inexplicável ofensa contra qualquer sociedade, grande ou pequena, podia ser bem sucedido. Perdoar‑lhe‑iam qualquer crime. menos esse.
‑O senhor, certamente, não se incomoda com o que essa maldosa criatura diz, Mr. Johnson? ‑ observou Miss Snevellieci no seu tom mais convincente.
‑Eu não ‑ respondeu Nicholas. ‑ Se ficasse aqui pode ser que pensasse valer a pena incomodar‑me. Assim como as coisas estão, que falem até enrouquecerem. Mas ali vem o assunto de bom humor deles ‑ acrescentou Nicholas quando Smike se aproximou ‑ para dizermos juntos boa‑noite!
‑Não, não permito que qualquer dos senhores diga isso ‑ objectou Miss Snevellicci. ‑ Têm de ir a minha casa ver a minha mamã que chegou hoje a Portsmouth e está morta por os conhecer. Led, minha querida, persuade Mr. Johnson.
‑ Oh, tenho a certeza de que se tu não podes persuadi‑lo.
‑ replicou Miss Ledreek com considerável vivacidade, mas Miss Ledraok não disse mais, deixou perceber que se Miss Snevellicci o não podia persuadir, ninguém o faria.
‑ Mr. e Mrs. Lillyvick tomaram alojamento ‑na nossa casa e actualmente compartilham a nossa saleta ‑ informou Miss Snevellicci. ‑ Isto não o fará decidir.
‑ Seguramente que não preciso de outras persuasões além do seu convite ‑ retorquiu Nicholas.
‑Oh, não! Atrevo‑me a dizer ‑ replicou Miss Snevellicci, enquanto Miss Ledrook exclamava:
‑Sobre a minha palavra! ‑ depois disto Miss Snevellicci declarou que Miss Ledrook era uma estouvada, e Miss Ledrook que Miss Snevellicci não precisava de corar tanto, e Miss Snevellicci bateu em Miss Ledrook e Miss Ledrook bateu em Miss Snevellicci.
‑ Vamos ‑ disse Miss Ledrook ‑ é tempo bastante para estarmos lá, ou faremos crer à pobre Mrs. Snevellicci que lhe fugimos com a filha, Mr. Johnson, e então teríamos uma linda embrulhada.
Miss Ledrook não deu resposta, mas dando o braço a Smike, deixou a sua amiga e Nicholas segui‑lo a seu belo prazer; o que agradou a ambos, ou pouco a Nicholas, que não sentia grande interesse num tête‑à‑tête nestas circunstâncias.
Quando chegaram à rua, Nicholas insistiu em levar um cesto que Miss Snevellicci tinha com coisas do teatro, querendo esta, por sua vez, levá‑lo. Por fim Nicholas tirou‑lhe, levando mais uma caixinha de Miss Ledrook. Depois Nicholas quis ver o que o cesto e a caixa continham e ambas declararam que se ele o fizesse desmaiariam, e que não davam um passo mais sem ele prometer não satisfazer a sua curiosidade. Feita a promessa, as duas senhoras protestaram não terem nunca visto uma criatura tão perversa.
Aligeirado o caminho com graças como esta, chegaram a casa do alfaiate, onde estavam, além de Mr. e Mrs. Lillyvick, o papá e a mamã de Miss Snevellicci. Mr. Snevellicci tinha um nariz de papagaio, testa branca, cabelo preto encaracolado, malares salientes, um rosto bonito em conjunto, apenas um pouco vermelho, resultado da bebida. Possuía um peito largo e usava casaco azul com butões dourados. Logo que viu Nicholas meteu dois dedos da mão direita entre duas casas de botões e, curvando graciosamente o outro braço, parecia dizer, Aqui estou eu, meu rapaz; que tens a dizer‑me?.
O papá de Miss Snevellicci fizera de tudo um pouco; representara, dançara, cantara em todos os teatros de Londres, e exercera muitas missões. A mamã era ainda bailarina, com uma figurinha gentil e uns restos de boa aparência.
Nicholas foi apresentado a toda esta boa gente com as devidas formalidades. Tendo sido feita a apresentação, o papá de Miss Snevellicci declarou sentir‑se feliz em conhecer um cavalheiro de tão grande talento desde a primeira aparição do seu amigo Glavormelly no Coburg.
‑Viu‑o, sir? ‑ perguntou o papá de Miss Snevellicci.
‑Não, de facto nunca o vi ‑ respondeu Nicholas.
‑ Nunca viu o meu amigo Glavormelly, sir? ‑ inquiriu o papá de Miss Snevellicci. ‑ Então ainda não viu representar! Se ele vivesse.
‑Oh, então já morreu? ‑ interrompeu Nicholas.
‑ Já ‑ informou Mr. Snevellicci ‑ mas não está na Abadia de Westminster para maior vergonha. Estava. Bem, não importa. Foi para aquele país donde o viajante não volta!
Dizendo isto Mr. Snevellicci esfregou a ponta do nariz com um lenço amarelo e deu a perceber aos presentes que estas recordações o transtornavam.
‑Então, Mr. Lillyvick, como está? ‑ perguntou Nicholas.
‑Perfeitamente bem, sir ‑ respondeu Mr. Lillyvick. Não há nada como o estado de casado, sir.
‑De facto! ‑ replicou Nicholas, rindo.
‑Ah! não há nada como isso, sir ‑ afirmou Mr. Lillyvick com solenidade. ‑ O que pensa ‑ sussurrou o cobrador, puxando-o de parte ‑ o que pensa do semblante dela esta noite?
‑Tão bonito como sempre ‑ respondeu Nicholas, relanceando para a ex‑Miss Petowker.
‑Tem um ar, sir ‑ continuou o cobrador a segredar - como nunca vi em pessoa alguma. Olhe para ela, agora que vai pôr a chaleira ao lume. Não é fascinadora, sir?
‑ O senhor é um homem de sorte!
‑Pensa que sou, hein? Talvez seja, talvez seja. Não podia fazer muito melhor se fosse um jovem, não é verdade? O senhor próprio não podia fazer muito melhor. hein. podia?
Com perguntas como estas e muitas outras, Mr. Lillyvick meteu o cotovelo no lado do corpo de Nicholas e riu até a cara lhe ficar purpúrea, tentando manter a sua satisfação.
Por esta altura a toalha tinha sido posta por todas as senhoras, ficando dum lado curta e estreita, e do outro larga e comprida. Havia ostras, molhos, batatas cozidas e um par de espevitadores no meio da mesa. Miss Snevellicci sentou‑se à cabeceira e Mr. Lillyvick na outra extremidade; Nicholas não só teve a honra de se sentar ao lado de Miss Snevellicci como de ficar à direita da mamã, tendo o papá do outro lado. Em resumo, era o herói da festa e quando a mesa foi levantada, o papá de Miss Snevellicci ergueu‑se e propôs um brinde à sua saúde, num discurso com alusões afectuosas à sua próxima partida pelo que Miss Snevellicci chorou e foi obrigada a retirar‑se para o seu quarto.
‑Silêncio! Finjam que não perceberam nada ‑ recomendou Miss Ledrook, saindo do quarto de cama. ‑ Quando ela voltar digam que ela se esforça demasiado.
Miss Ledreok saiu com muitos misteriosos acenos e fechou de novo a porta do quarto, seguindo‑se um profundo silêncio, durante o qual o papá de Miss Snevellicci olhou para toda a gente e, em especial, para Nicholas, conservando sempre cheio o copo depois de o esvasiar, até que Miss Snevellicci regressou no meio das senhoras.
‑ Não precisa de se afligir, Mr. Snevellicci, ‑ preveniu Mrs. Lillyvick.
-Ela está um pouco fraca e nervosa; tem estado assim desde ésta manhã.
‑ Oh, ‑ respondeu Mr. Snevellicci, ‑ É só isso, não é?
‑ Sim, é tudo. Não faça ondas a este respeito ‑ recomendaram as senhoras em conjunto.
Esta não era exactamente o género de resposta que convinha à importância de Mr. Snevellicci como homem e como pai, por isso dirigiu‑ se à infeliz Mrs. Snevellicci e perguntou‑lhe o que diabo queria ela dizer, falando daquela maneira.
‑ Meu Deus; meu querido. ‑ replicou Mrs. Snevellicci.
‑ Não me chame seu querido, Ma'am, se faz favor, ‑ objectou Mr. Snevellicci.
‑ Peço‑lhe, papá, para não dizer isso, ‑ rogou Miss Snevellicci.
‑ Não dizer o quê, minha filha?
‑ Não fale desse modo.
‑ Por que não? ‑ ripostou Mr. Snevellicci. ‑ Espero que não suponhas haver qualquer pessoa aqui que me proiba de falar como quiser.
‑ Ninguém o impede, papá, ‑ retorquiu a filha.
‑ Ninguém o faria, mesmu que quisesse, ‑ respingou Snevellicci. ‑ Não me sinto envergonhado. Chamo‑me Snevellicci e posso ser encontrado em Broad Court, Bow Street, quando estou na cidade. Se não estou em casa, qualquer pessoa pode perguntar por mim à porta do palco. Raios, eles conhecem‑me na porta do palco, suponho eu. Muitos homens têm visto o meu retrato na tabacaria que faz esquina. Tenho sido mencionado nos jornais, não tenho? Falar. Digo‑vos o que é; se encontro qualquer homem a entrometer‑se nas afeições da minha filha, não conversarei. Ponho‑o atónito sem lhe falar. é este o meu modo.
Dizendo isto, Mr. Snevellicci bateu na palma da mão esquerda três boas vezes com o punho fechado, puxou o nariz imaginário com o polegar e o indicador direitos e bebeu outro copo cheio, duma só vez.
‑ Este é o meu método! ‑ repetiu Mr. Snevellicci.
A maioria dos homens públicos têm as suas falhas e a verdade é que Mr. Snevellieci se dedicava um pouco à bebida ou, se quisermos ser mais verdadeiros, raras vezes estava sóbrio. Na sua taça havia dois estados distintos de intoxicação: o honrado e o amoroso. Quando estava profissionalmente contratado nunca ia além do honrado; nos círculos particulares passava pelos dois, indo dum ao outro com uma rapidez de transição frequentemente bastante perplexa para aqueles que não tinham a honra de ser das suas relações. Portanto, logo que Mr. Snevellicci acabou de ingerir outro copo, sorriu‑se para todos os presentes, em feliz esquecimento de ter exibido sintomas de peleja, e saudou duma maneira muitíssimo vivaz:
‑ As senhoras. Deus abençoe os seus corações! Gosto de todas! ‑ afirmou, olhando em redor da mesa. ‑ Gosto de todas, uma por uma!
‑ Uma por uma, não! ‑ ripostou Mr. Lillyvick brandamente.
‑ Sim, uma por uma! ‑ repetiu Mr. Snevellicci. O cobrador olhou para as caras dos que o rodeavam com um aspecto de grave assombro, parecendo dizer, Mas que homem delicado e aparentando uma certa surpresa por Mrs. Lillyvick não manifestar nas suas maneiras qualquer sinal de indignação.
‑ Amor com amor se paga, ‑ disse Mr. Snevellieci. ‑ Eu gosto delas e elas gostam de mim. ‑ E como se esta confissão não fosse feita com suficiente desprezo e desafio de todas as obrigações morais, o que fez Mr. Snevellicci? Piscou o olho. piscou aberta e descaradamente, piscou o olho direito. a Henrietta Lillyvick.
O cobrador bateu com as costas na cadeira com a intensidade do seu assombro. Se alguém tivesse piscado o olho a Henrietta Petowker teria sido indecoroso no mais alto grau, mas na qualidade de Mrs. Lillyvick. Enquanto ele pensava nisto com suores frios, duvidando se estaria acordado, Mr Snevellicci repetiu a piscadela e, bebendo à saúde de Mrs. Lillyvick numa saudação muda, atirou‑lhe um beijo. Mr. Lillyvick deixou a cadeira, encaminhou‑se direito ao fim da mesa e caiu sobre ele
‑ literalmente, caiu sobre ele ‑ imediatamente. Mr. Lillyvick não pertencia aos pesos leves e, consequentemente quando caiu sobre Mr. Snevellicci, este deslizou para baixo da mesa. Mr. Lillyvick seguiu‑o e as senhoras começaram a gritar.
‑ O que aconteceu aos homens. estão doidos? ‑ exclamou Nicholas, mergulhando debaixo da mesa e rebocando o cobrador à força, atirando‑o todo dobrado sobre uma cadeira, como se fosse um boneco de palha.
‑ O que intenta fazer? O que quer fazer? O que aconteceu? Enquanto Nicholas levantava o cobrador, Smike fazia o mesmo a Snevellicci, que olhava o seu ex‑adversário com o assombro dum ébrio.
‑ Olhe, sir, ‑ disse Mr. Lillyvick, apontando para a sua atónita mulher, ‑ estão ali a pureza e a elegância conjugadas, cujos sentimentos foram ultrajados... violados, sir.
‑ Senhor, que parvoices ‑ exclamou Mrs. Lillyvick, em resposta a um olhar inquiridor de Nicholas. ‑ Ninguém me disse coisa alguma.
‑ Disse, Henrietta, ‑ afirmou o cobrador. ‑ Não o vi eu. ‑ Mr. Lillyvick não pôde proferir a palavra, mas imitou a pis cadela de olho.
‑ Oh! ‑ exclamou Mrs. Lillyvick: Supões que ninguém mais me olhará? Uma linda coisa o ser‑se casada, na verdade, se é esse o costume!
‑Tu não queres dizer isso, pois não? ‑ perguntou o cobrador.
‑ Querer dizer isso, ‑ repetiu Mrs. Lillyvick com desprezo. ‑ Que deves pôr‑te de joelhos e pedir perdão a toda a gente, é o que deves!
‑ Perdão, minha querida? ‑ inquiriu o cobrador, sobressaltado.
‑ Sim, e a mim primeiro, ‑ replicou Mrs. Lillyvick. ‑ Não supões que eu possa ser o melhor juiz do que é próprio e do que é impróprio?
‑ Com certeza, ‑ afirmaram todas as senhoras. ‑ Supõe que não seríamos as primeiras a falar, se houvesse alguma coisa que devesse ser indicada?
‑ Supõe que elas não sabem Sir? ‑ perguntou o papá de Miss Snevellicci, puxando o colárinho e murmurando sobre esmurrar cabeças e sendo apenas impedido por consideração pela idade. Com o que o papá de Miss Snevellicci olhou firme e truculento para Mr. Lillyvic durante alguns segundos e levantando-se, depois, deliberadamente da cadeira, beijou tódas as senhoras, começando por Mrs. Lillyvic.
O infeliz cobrador olhou dum modo lastimoso para a mulher e sentou‑se de monco caído, causava dó. O papá de Miss Snevellicci, excitado por este triunfo e incontestável prova da sua popularidade entre o belo sexo, começou a distrair o auditório com canções e histórias de esplêndidas mulheres que se supunha terem estado apaixonadas por ele. Estas reminiscências não precisavam produzir grande efeito no peito de Mrs. Snevellicci, que estava ocupada a relatar a Nicholas os muitos méritos da filha, secundada habilidosamente por Miss Ledrook. Estes elogios não aumentavam, contudo, as atenções de Nicholas, que tinha ainda no pensamento os artifícios de Miss Squeers, pondo-se, portanto, em guarda contra a sua conduta, o que lhe valeu, quando saiu, o apodo, por todas as senhoras de um monstro de insensibilidade.
No dia seguinte apareceram os cartazes, informando em todas as cores do arco‑iris e em caracteres de todas as deformações possíveis, a última representação de Mr. Johnson nessa noite e convidando os espectadores a marcarem os seus bilhetes em virtude da esperada afluência.
Nessa noite, ao entrar no teatro, Nicholas ficou perplexo pela invulgar perturbação e excitação nos rostos de todos o da companhia, mas não permaneceu muito tem a na dúvid quanto à causa pois antes de poder fazer qualquer pergunt a tal respeito Mr. Crummles aproximou‑se e com um tom agitado de voz, informou‑o que estava nos camarotes um empresário de Londres.
‑ Foi o fenómeno que o fez vir,sir ‑ afirmou Crummle arrastando Nicholas para o pequeno buraco do pano a fim de poder olhar através dele para o empresário de Londres. – Não tenho a mais pequena dúvida de que foi a fama da fenómeno. à.
O homem é aquele! De sobretudo e sem colarinho de camisa.
Ela terá dez libras por semana,Johnson e não aparecerá nos palcos de Londres por menos um centavo. Não a contratarão a não ser que contratem também Mrs. Crummles... vinte libras por semana para as duas. E eu atiro‑me com os dois rapazes e
ficam com a família por trinta libras. Ou nos levam a todos ou não vai nenhum. É o mesmo que alguns de Londres fazem e dá sempre resultado. Trinta libras por semana. É barato demais,Johnson. É estupidamente barato.
Nicholas respondeu que certamente era e Mr. Vincent Crummles foi ter com Mrs. Crummles para lhe dizer ter já redigida as únicas condições que podiam ser aceites,tendo resolvido não abater um cêntimo.
Quando o pano subiu todos os actores estavam excitados com a preocupação de que o empresário de Londres viera expressamente para ver a sua execução. Os que não entravam em cena estavam espalhados pelos bastidores,ou pelos dois camarotes de boca,espiando o homem que foi visto uma vez a rir quando o cómico pretendia esconder uma garrafa azul.
‑ Muito bem,meu lindo menino. ‑ disse Mr. Crummles ameaçando com o punho o cómico quando ele saiu – deixas a companhia no próximo sábado à noite.
Da mesma maneira todos os que estavam no palco representavam para o empresário de Londres, em vez de seguir as rubricas da peça. Por fim o homem adormecera e saira pouco depois de ter acordado.
Toda a companhia atribuiu este sucesso ao gracejos do infeliz cómico e Mr. Crummles declarou‑lhe que ele tinha de procurar outro emprego. Tudo isto deu motivo a que Nicholas se divertisse muito, sentindo sincera satisfação por não ter aparecido em cena antes do homem ter partido. Representou os seus papéis com ilimitados aplausos de Smike.
Na manhã seguinte, uma carta de Noggs apressou a sua partida. Não havia nenhum tempo a perder; era impossível ficar ali essa noite.
‑ Irei ‑ afirmou Nicholas ‑ Deus sabe que ficava com as melhores intenções e violentando a minha vontade,mas tenho perdido muito tempo. O que poderá ter acontecido? Smike meu bom amigo, vem cá. toma esta bolsa. Põe as nossas coisas juntas e paga as pequenas dívidas que temos. depressa para estarmos a tempo de apanhar a diligência da manhã. Vou dizer‑lhes que vamos embora imediatamente.
Ao dizer isto agarrou no chapéu e correu para casa de Mr. Crunmles, a cuja aldraba se agarrou com tão boa vontade, que acordou, não só este cavalheiro, que já estava na cama, como fez Mr. Bulph, o piloto, agarrar no cachimbo mais cedo. Aberta a porta, subiu as escadas a correr e entrou como um furacão na saleta, onde os dois Misters Crummles já estavam a enfiar as calças com a impressão de haver fogo na casa ao lado. Antes de os poder desenganar, apareceu Mr. Crummles em roupão e barrete de dormir, a quem Nicholas contou rapidamente a sua necessidade de ir a Londres.
‑ Adeus! ‑ despediu‑se Nicholas.
Chegou ao meio da escada antes de Mr. Crummles se ter recuperado inteiramente da surpresa e estar em condições de falar mais acerca dos cartazes.
‑ Nada posso fazer ‑ disse Nicholas. ‑ Deixo tudo o que pudesse ter ganho esta semana, mas se isto não o recompensar, diga imediatamente o que quiser. Depressa!
‑ Vamos ter sarilhos com eles ‑ comentou CrummlesMas não pode ficar mais uma noite?
‑ Nem uma hora. nem um minuto ‑ replicou Nicholas, impacientemente.
‑ Não quer dizer nada a Mrs. Crummles ‑ perguntou o empresário, acompanhando-o até à porta.
‑ Não me demorava, nem para prolongar a minha própria vida por máis vinte minutos ‑ retorquiu Nicholas ‑ Aceite os meus cordiais agradecimentos!
Apartou‑se do empresário e correu como uma seta pela rua fora, desaparecendo num instante.
‑ Meu Deus! meu Deus! ‑ exclamou Mr. Crummles, olhando pensativamente para a porta por onde ele acabara de se sumir ‑ Se representasse assim, que dinheirão ganharia! Devia ter continuado. teria sido muito útil para mim. Nem sabe o que é bom para ele, um moço impetuoso! Os jovens de hoje são muito arrebatados! ‑ depois fechando a porta abruptamente, subiu a escada com grande precipitação.
Smike despachara-se na ausência de Nicholas, de forma que este encontrou tudo pronto para a partida. Só tiveram tempo de comer o pequeno almoço e em meia hora chegaram ao escritório da diligência, quase sem respirar com medo de chegarem tarde demais. Como havia ainda uns minutos, Nicholas depois de reservar os lugares, foi num instante, a uma loja comprar um sobretudo para Smike.
Quando subiram para o carro e estando já tudo pronto para a partida, Nicholas ficou muito surpreendido ao sentir‑se violentamente abraçado; grande foi o seu assombro ao ouvir a voz de Mr. Crumnles exclamar:
‑ Ele aqui está, o meu amigo! O meu amigo!
‑ Jesus, meu Deus! ‑ exclamou Nicholas, apertado nos braços do empresário. ‑ Por que está aqui?
O empresário não deu resposta, mas apertou‑o outra vez de encontro ao peito e exclamou:
‑Adeus, meu nobre, meu valente coração!
Mr. Crummles não quis perder a ocasião para uma exibição profissional e para exprimir publicamente o propósito de se despedir de Nicholas infligindo‑lhe aqueles abraços em estilo melodramático, o que lhe causou um grande aborrecimento. O mais velho dos Misters Ces procedeu da mesma forma para com Smike, enquanto Mister Percy Crummles estava numa atitude de ajudante de carrasco, esperando as duas vítimas para as levar ao patibulo. Os espectadores riram com gosto e para não destoar, Nicholas riu também quando se desemba raçou das despedidas e subiu para a diligência, com Smike.
Acerca de Ralph Nickleby, de Newnan Noggs, e do resultado de prudentes precauções.
Na infeliz inconsciência de que o sobrinho vinha com a máxima velocidade para o seu campo de acção puxado por quatro potentes cavalos, Ralph Nickleby estava nessa manhã em frente do seu livro de contabilidade, mas sem ver os números, com a obsessão da entrevista com a sobrinha na noite anterior. Por fim, pôs a pena de lado e encostou‑se à cadeira.
‑Não sou homem para ser manobrado por uma cara bonita, ‑ murmurou ele desabridamente. ‑ Por baixo dessa máscara há uma cara de dentes arreganhados e homens como eu, que trabalham no escuro. No entanto quase gosto da rapariga, mas preferia que tivesse sido educáda com menos orgulho e melindre. Se o rapaz fosse enforcado ou morresse afogado, e a mãe morresse, esta casa seria dela. Desejo‑lhes a morte com toda a minha alma!
Apesar dos seus sentimentos assassinos a respeito do sobrinho e da cunhada, havia qualquer coisa de humano e de amável nos pensamentos que envolviam Kate. Porém uma pequena circunstância foi o bastante para o despertar dos seus pensamentos. Olhoú vagamente para a janela do outro escritório e viu Newman Noggs em atenta observação, fingindo aparar a pena com um bocado duma faca ferrugenta. Ralph mudou a sua atitude pela costumada carranca de homem de negócios, a cara de Newman desapareceu e o rio de pensamentos voltoú a correr tudo simultaneamente e num instante.
Depóis de alguns minutos, Ralph tocou a campainha. Newman respondeu à chamada e Ralph encarou‑o furtivamente, como se tivesse medo de lhe ler os pensamentos. Na expressão de Newman Noggs não havia, contudo, o mais pequeno sinal de ter observado. Sendo possível imaginar um homem com dois olhos, e ambos abertos, dirigidos para um sítio qualquer sem ver coisa alguma, esse homem parecia ser Newman, enquanto Ralph o contemplava.
‑ O que quer dizer isso? ‑ rosnou Ralph.
‑ Oh! ‑ exclamou Newman, a cujos olhos assomou um clarão de inteligência. ‑ Pensei que tivesse tocado ‑ e com esta lacómica observação, Newman voltou‑se para sair.
‑ Venha cá! ‑ rosnou Ralph.
Newman parou, sem mostrar surpresa.
‑ Eu toquei!
‑ E eu sabia que tinha tocado.
‑ Então por que se ia embora?
‑ Pensei que tocara para dizer que não tinha tocado - respondeu Newman ‑ Faz isso com frequência.
‑ Como se atreve a espreitar, a espiar, a fitar‑me, seu velhaco? ‑ perguntou Ralph.
‑ Fitá‑lo? ‑ ripostou Newman. ‑ A si! Ah! ah!
‑ Tenha cautela, sir, ‑ advertiu Ralph, olhando‑o firmemente. ‑ Não venha para aqui com ares de louco! Vê este embrulho?
‑ bastante grande ‑ comentou Newman.
‑ Leve-o à City, a Cross, em Broad Street, e deixe‑o lá. depressa. Ouviu?
Newman fez uma espécie de afirmativo aceno, impertinente com a cabeça e deixou o aposento durante alguns segundos, para voltar com o chapéu. Agarrou no embrulho, pô‑lo debaixo do braço e depois calçou os mitenes com grande precisão e escrúpulo, conservando os olhos em Mr. Ralp Nickleby. Ajustou o chapéu na cabeça com muito cuidado, real ou pretendido, e por fim, partiu para cumprir a missão.
Ececutou‑a com grande rapidez, só entrando por meio minuto numa taberna, mas quando chegou à Strand hesitou, não sabendo se deveria ir direito ao escritório, ou seguir em frente. Por fim prevaleceu a sua ideia e foi bater à porta da casa de Miss La Creevy; abriu uma rapariga. A pergunta feita por esta, Newman só respondeu, Noggs, como se fosse uma palavra cabalística e, com grande assombro da criada, chegou à saleta de Miss La Creevy antes dela lhe poder dizer alguma coisa.
‑ Entre, se faz favor! ‑ convidou Miss La Creevy, em resposta ao bater de Newman.
‑ Seja bem vindo! ‑ cumprimentou Miss La Creevy. ‑O que deseja, sir?
‑ A senhora esqueceu‑se de mim ‑ observou Newman com uma inclinação de cabeça. ‑ Maravilha‑me isso. Que ninguém se lembre de mim, tendo‑me conhecido noutros tempos, é bastante natural, mas há poucas pessoas que, tendo‑me visto uma vez, me esqueçam agora.
Deu uma vista de olhos pelo seu fato esfarrapado e para a perna paralítica e abanou levemente a cabeça.
‑ Confesso que o esquecera! ‑ disse Miss La Creevy, levantando‑se para receber Newman, que a encontrou a meio do caminho e sinto‑me envergonhada visto o senhor ser uma criatura amável e boa, Mr. Noggs. Sente‑se e dê‑me notícias de Miss Nickleby. Pobre e querida criança! Já não a vejo há uma semana!
‑ Será possível? ‑ perguntou Newman.
‑ A verdade é, Mr. Noggs, fui fazer uma visita. a primeira visita que faço há quinze anos.
‑ Isso é muito tempo! ‑ comentou Newman, tristemente.
‑ muito tempo para olhar para trás nos anos, mas agradeça ao Céu os meus dias solitários, que se desenrolam em paz e felicidade ‑ replicou a miniaturista ‑ Tenho um irmão, Mr. Noggs, o único parente que possuo, e durante todo este tempo não o tornara a ver. Não estávamos zangados mas ele trabalhava como aprendiz, noutra terra; casou‑se, contraiu novos laços e afeições, e esqueceu uma pobre mulher como eu o que é natural. Não suponha que me queixo pois sempre pensei: o pobre John encetou o seu caminho na vida, tem mulher a quem contar os seus cuidados e preocupações, filhos para o distrairem, e Deus os abençoe, mas que nos encontremos todos um dia, quando não nos pudermos separar mais. Porém que me diz, Mr. Noggs, se lhe contar que esse mesmo irmão veio por fim a Londres e não descansou até me encontrar? O que me diz da sua visita, sentado nessa mesma cadeira a chorar como uma criança pela alegria de me ver? O que me diz da sua insistência em me levar a sua casa, verdadeiramente sumptuosa Mr. Noggs, com um grande jardim e uma imensidade de terreno, com criado de libré a servir à mesa, senhor de vacas, cavalos, porcos, e não sei o que mais, obrigando‑me a passar ali um mês inteiro e fazendo pressão para ficar lá para sempre?! Sim, para sempre. e o mesmo fez a mulher e os filhos. ele tem quatro. à filha mais velha puseram‑lhe o meu nome há oito anos. Nunca me senti tão feliz em toda a minha vida!
E a pobre alma escondeu a cara num lenço e começou a soluçar; era a primeira oportunidade que tinha para descarregar a alegria e deixar falar o coração.
‑ Mas Deus me salve! ‑ continuou limpando os olhos depois duma curta pausa, e metendo o lenço na algibeira‑ que pateta lhe devo parecer Mr. Noggs! Não teria dito uma palavra disto se não quisesse explicar‑lhe a razão por que não tenho visto Miss Nickleby.
‑ Viu a senhora de idade? ‑ inquiriu Newman.
‑ Quer dizer Mrs. Nickleby? ‑ interrogou Miss La Creevy
‑Então devo dizer‑lhe, Mr. Noggs, se quer conservar boas relações por aquele lado, que nunca mais lhe chame senhora de idade, visto me parecer que ela não o ouviria com muito agrado. Sim, fui lá na noite de antes de antem, mas estava muito tola, não sei porquê e tão misteriosa, que não pude tirar coisa alguma dela. Assim resolvi tornar‑me também importante e saí. Pensava que ela viesse cá antes de o ver aqui, mas não veio.
‑ E sobre Miss Nickleby?. ‑ disse Newman.
‑ Essa veio aqui duas vezes enquanto estive fora ‑ informou Miss La Creevy ‑ Tive receio. Ela podia não gostar que a fosse visitar entre as grandes personagens que têm os nomes no livro de ouro e pensei em aguardar um dia ou dois. Depois, se ela não viesse, escrever‑lhe.
‑ Ah! ‑ exclamou Newman, fazendo estalar os dedos.
‑ Em todo o caso quero ouvir de si notícias deles ‑ dise Miss La Creevy. ‑ Como está o velho monstro grosseiro de Golden Square? Bem, decerto; gente como essa está sempre bem. Não quero dizer de saúde, mas como vai andando.
‑ Maldito! ‑ gritou Newman, atirando com o seu querido chapéu para o chão ‑ Como um falso sabujo.
‑ Misericórdia, Mr. Noggs, aterrou‑me completamente - confessou Miss La Creevy, empalidecendo.
‑Tinha‑lhe dado cabo da cara ontem à tarde, se pudesse!
‑ disse Newman, passeando sem descanso e agitando o punho para um retrato de Mr. Canning sobre a pedra da chaminé. Estava perto dele mas fui obrigado a meter as mãos nas algibeiras e conservá‑las muito apertadas. Algum dia, faço‑o! Sei que o faço! Já o devia ter feito se não tivesse medo de tornar o caso pior. Fecho‑me com ele à chave e arrumo o caso antes de morrer. Estou completamente certo disso!
‑Começo a gritar se o senhor não se acalma, Mr. Noggs! Tenho a certeza de que não poderei deixar de o fazer!
‑ Não faça caso ‑ replicou Newman, andando violentamente dum lado para o outro ‑ Ele vem esta noite; eu escrevi‑lhe. Eú sei que ele nem sonha! Grandíssimo patife! Ele nem sonha!
Não faz mal, eu hei‑de impedi‑lo. eu, Newman Noggs! O grande velhaco!
Atacado duma extravagante fúria, Newman Noggs pôs‑se a passear no aposento com os movimentos mais excêntricos, executados por um ser humano, fitando as pequenas miniaturas na parede, depois dando violentas pancadas na cabeça, até cair na primitiva cadeira, completamente exausto e sem fôlego.
‑ Isto faz‑me bem! ‑ confessou Newman, levantando o chapéu. ‑ Agora é melhor contar‑lhe tudo.
Levou algum tempo a acalmar Miss La Creevy, que estivera quase assustada com esta notável excitação, mas conseguido isto, Newman relatou fielmente o que se passou na entrevista entre Kate e o tio, prefaciando a narrativa com uma declaração da sua anterior suspeita e o motivo por que a tivera, concluindo com uma comunicação do passo que dera, escrevendo secretamente a Nicholas.
Embora a indignação de Miss La Creevy não se mostrasse dum modo tão singular como a de Newman, não foi inferior em violência e intensidade. Na verdade, se Ralph Nickleby, pur acaso aparecesse no aposento neste momento, encontraria em Miss La Creevy um adversário mais perigoso do que o próprio Newman Noggs.
‑ Deus me perdoe por dizer isto ‑ declarou Miss La Creevy como uma desculpa para toda a sua expressão de ódio - mas realmente sinto que lhe enterrava isto nele, com prazer, se pudesse.
Não era uma arma muito terrível a que Miss La Creevy tinha, pois não passava dum lápis, mas descobrindo o seu engano, a pequena retratista trocou‑o por uma faca com cabo de madrepérola, com a qual para prova dos seus desesperados pensamentos, deu uma estocada, que mal perturbaria a côdea dum pão de meio quilo.
‑ Depois desta noite ela não ficará onde está ‑ informou Newman ‑ é uma consolação.
‑ Ficar! ‑ exclamou Miss La Creevy ‑ Ela devia ter saido de lá há três semanas!
‑ Se tivéssemos sabido isto ‑ replicou Newman ‑ mas nós não sabíamos. Ninguém podia interferir a não ser a mãe ou o irmão.
A mãe é uma fraca... pobre criatura! O querido jovem estará aqui esta noite.
‑ um coração ardente ‑ comentou Miss La Creevy fará alguma coisa desesperada, Mr. Noggs, se lhe disser tudo duma vez.
Newman deixou de esfregar as mãos e assumiu uma aparência pensativa.
‑ Isso depende ‑ disse Miss La Creevy ‑ se o senhor não tiver muito cuidado em lhe contar a verdade pois de contrário exercerá alguma violência no tio, ou em qualquer desses homens, que lhe possa trazer uma terrível calamidade e, dor e tristeza para todos nós.
‑ Nunca pensei nisso ‑ confessou Newman, com a expressão cada vez mais abatida. ‑ Vim para lhe pedir para receber a irmã, no caso dele a trazer para aqui, mas.
‑ Mas isso é um assunto muito importante ‑ interrompeu Miss La Creevy ‑ do qual podia ter adquirido a certeza antes de ter vindo, mas o fim disto ninguém o pode prever, a não ser que o senhor seja muito cauteloso e reservado.
‑ O que posso eu fazer? ‑ exclamou Newman, coçando a cabeça com um ar de grande atribulação e perplexidade. ‑ Se ele falar de os correr todos a tiro, serei obrigado a dizer, Certamente. trate‑lhes da saúde.
Miss La Creevy não pôde conter um arrepio ao ouvir isto e imediatamente começou a suplicar a Newman para ele fazer todo o possível para apaziguar a ira de Nicholas. A seguir, consultaram‑se sobre a forma mais segura para lhe comunicarem as circunstâncias que tornaram necessária a sua presença.
‑ Ele precisa de ter tempo de esfriar antes de fazer alguma coisa ‑ disse Miss La Creevy. ‑ Isso é de grande importância. Não se lhe deve dizer nada antes de uma hora adiantada da noite.
‑ Mas ele chegará à cidade entre as seis e as sete da tarde
‑ informou Newman ‑ Eu não posso conservar‑me calado quando ele me interrogar.
‑ Então tem de sair, Mr. Noggs ‑ opinou Miss La Creevy.
‑ O senhor pode facilmente andar por fora por causa de negócios e não deve voltar senão cerca de meia-noite.
‑ Então ele virá direito aqui ‑ replicou Newman.
‑ Assim o suponho ‑ observou Miss La Creevy ‑ mas não me encontro em casa porque vou direita à City logo que o senhor saia, tratar de assuntos com Mrs. Nickleby, e levo‑a ao teatro, para ele não saber onde mora a irmã.
Depois de discutirem mais um bocado pareceu ser este o modo mais seguro e eficaz de procedimento a adoptar. Por isso foi determinado, finalmente, que as coisas se passariam assim e Newman, depois de ouvir muitas recomendações suplementares e rogos, despediu‑se de Miss La Creevy, voltou para Golden Square, ruminando sobre um vasto número de possibilidades e impossibilidades que se lhe amontoavam na cabeça e não tinham aparecido na conversa que tinha justamente terminado.
Algumas conversas e decisões notáveis
‑ Até que enfim, Londres! ‑ exclamou Nicholas atirando para trás o sobretudo e acordando Smike. ‑ Parecia que nunca mais chegávamos!
‑ E, contudo, o senhor veio em bom andamento ‑ observou o cocheiro, olhando por cima do ombro para Nicholas, com uma cara de poucos amigos.
‑ Sim, bem sei! ‑ foi a resposta ‑ mas estava ansioso para chegar ao fim da minha jornada e por isso o caminho me pareceu tão comprido.
‑ Bem ‑ respondeu o cocheiro ‑ se o caminho lhe pareceu comprido o senhor deve estar cheio de pressa! ‑ e dizendo isto, bateu com o chicote na barriga das pernas dum rapazinho, para dar mais ênfase à frase.
Meteram através das ruas barulhentas e apinhadas de Londres, onde as montras das lojas estavam iluminadas. Multidões seguiam dum lado para o outro, enquanto os veículos, de todos os tamanhos e feitios, pareciam um rio que acrescentasse o seu fragor aos ruídos daquele mar de gente.
Todos os objectos expostos para venda, os mais variados e atraentes, não lhes despertavam a atenção. Nicholas alugou duas camas para si e para Smike na estalagem onde a diligência parou, e encaminhou‑se imediatamente para os aposentos de Newman Noggs. Havia lume nas águas‑ furtadas de Newman e fora deixada uma vela acesa; o chão estava impecavelmente limpo, o quarto encontrava‑se arranjado e na mesa havia comida e bebida. Tudo falava da atenção e cuidado de Newman Noggs, mas ele não estava.
‑ Sabe a que horas estará em casa?‑ perguntou Nicholas batendo à porta do vizinho.
‑ Ah, Mr. Johnson! ‑ disse Crowl, aparecendo. ‑ Seja bem vindo, sir. Como a sua aparência é boa! Nunca julguei.
‑ Desculpe‑me ‑ interrompeu Nicholas. ‑ A minha pergunta. Estou extremamente ansioso por saber.
‑ Ele tem uma data de coisas a fazer ‑ respondeu Crowl
‑ e não estará em casa antes da meia noite. Posso dizer‑lhe que ele tinha pouca vontade de ir, mas não teve outro remédio. No entanto, deixou‑me dito que se pusesse à sua vontade até ele regressar e que eu o entretivesse, o que farei com muita satisfação!
E para provar o seu desejo de os entreter, Mr. Crowl puxou uma cadeira para a mesa e serviu‑se à vontade de carne fria, convidando Nicholas e Smike a seguirem‑lhe o exemplo. Desapontado e inquieto, Nicholas não pôde tocar na comida e depois de ver Smike confortavelmente instalado saiu, apesar dos muitos protestos de Mr. Crowl com a boca cheia, e deixou Smike para deter Newman, no caso de chegar primeiro.
Como Miss La Creevy previra, Nicholas dirigiu‑se imediatamente para casa dela. Encontrando‑a ausente, debateu consigo o problema de ir a casa da mãe, o que a podia comprometer para com Ralph Nickleby, mas absolutamente persuadido que Newman o não teria chamado sem uma forte razão, dirigiu‑se para lá a toda a velocidade. A rapariga informou‑o de que Mrs. Nickleby não estaria senão à meianoite e meia hora, ou mais tarde. Julgava que Miss Nickleby estava bem, mas não vivia agora em casa, nem ia lá senão excepcionalmente. Não sabia dizer onde estava, mas não era em casa de Madame Mantalini. disso tinha a certeza.
Com o coração a bater violentamente e suspeitando de algum desastre, Nicholas voltou para onde deixara Smike. Newman ainda não estava em casa. Não voltaria antes das doze horas. Não havia a possibilidade de o mandar chamar, ainda que só por um instante, nem mandar‑lhe uma linha para ele dar uma resposta verbal? Isso era completamente impraticável. Não estava em Golden Square e, provavelmente, fora mandado fazer algum recado, longe.
Nicholas tentou ficar sossegado onde estava, mas sentia-se tão nervoso e excitado que não podia estar parado. Assim, agarrou no chapéu e tornou a sair.
Desta vez dirigiu‑se para oeste, caminhando pelas ruas com passos apressados e agitado por milhares de dúvidas e apreensões que não podia dominar. Passou por Hyde Park, agora silencioso e deserto, na esperança de esquecer os pensamentos, e caminhou até se sentir cansado, saindo do parque um bocado mais confuso e perplexo.
De manhã, mal comera e bebera e sentia‑se fraco e exausto. Quando voltava lentamente para o ponto de partida, ao longo duma das ruas que ficam entre Park Lane e Bond Street, passou por um convidativo hotel, em frente do qual parou automaticamente. Um sítio caro, pensou mas um copo de vinho e um biscoito não pode ser uma grande despesa seja onde for.
Andou uns poucos de passos, mas olhando pensativamente para a longa fila de candeeiros à sua frente e pensando no tempo que levaria a chegar ao fim, Nicholas voltou‑se e entrou no café. Estava limdamente mobilado, com as paredes forradas de bom papel e o chão coberto com um tapete; por cima da chaminé havia dois espelhos e um outro no canto oposto. Perto do lume, quatro cavalheiros juntos e mais outros dois, já de idade e sós.
Observando tudo isto num relance, Nicholas sentou‑se numa mesa próxima dos quatro, de costas para eles, encomendou um copo de vinho de Bordéus, agarrou num jornal e começou a ler. Não tinha ainda lido vinte linhas quando ouviu o nome da irmã. A pequena Kate Nickleby, foram as palavras que lhe soaram. Levantou a cabeça espantado e aguardou até ouvir mais. Pelo espelho que tinha na frente, viu um dos quatro levantar‑se e ficar de costas para o lume, conversando com um homem mais novo, que estava defronte de si. Falavam muito baixo, de vez em quando riam, mas Nicholas não conseguiu apanhar a repetição das palavras, nem um som que se assemelhasse a elas. Por fim, os dois voltaram aos seus lugares e, tendo sido encomendado mais vinho, as vozes tornaram‑se mais altas, sem se fazer referência a qualquer pessoa do conhecimento de Nicholas, pelo que este começou a persuadir‑se ter sido imaginação da sua fantasia excitada. É muito notável, pensou Nicholas, se eu tivesse ouvido Kate Nickleby, não me surpreenderia tanto, mas a pequena Kate Nickleby!
O vinho, vindo neste momento, impediu‑o de acabar a frase. Bebeu um copo e agarrou outra vez no jornal. Nesse instante:
‑ A pequena Kate Nickleby! ‑ exclamou uma voz por detrás dele.
Eu tinha razão ‑ murmurou Nicholas, enquanto o jornal lhe caia da mão, e era o homem que supunha.
‑Como se objectou em beber, em sua intenção com os restos dos copos ‑ disse a voz ‑ faremos a saúde com o primeiro copo da nova mgnum (i). A pequena Kate Nickleby!
‑ A pequena Kate Nickleby! ‑ gritaram os outros trés, e os copos foram esvaziados.
Vivamente ferido pelo tom desta menção leviana e irónica do nome da irmã num lugar público, Nicholas começou imediatamente a ferver, mas conservou-se quieto com grande esforço sem sequer voltar a cabeça.
‑ A atrevida! ‑ exclamou a mesma voz que falara antes.
‑ É uma verdadeira Nickleby. digna imitadora do velho tio Ralph. resiste para ser mais desejada. como ele faz; nada se tira de Ralph a não ser que nunca mais o larguemos e, então o dinheiro é duplamente bem‑vindo e a transaeção duplamente forte, por estarmos impacientes e ele não. Oh! maldito velhaco!
‑ Maldito velhaco! ‑ ecoaram duas vozes.
Nicholas estava numa perfeita agonia com medo de perder uma palavra do que se estava a dizer, quando os dois cavalheiros,
1) ‑ Garrafa com a capacidade de cerca de 2,25 litros.
em frente, se levantaram, um após outro e se foram embora. Porém, a conversa foi suspensa quando se ergueram e continuou então com uma maior liberdade, logo que deixaram o aposento.
‑ Receio ‑ declarou o mais novo ‑ que a velha se torne ciumenta e a feche Á chave. Pela minha alma, parece isso mesmo!
‑ Se elas se zangarem e a pequena Nickleby for para casa da mãe, tanto melhor ‑ disse o primeiro ‑ Eu sei manobrar a velha senhora. Acredita em tudo quanto lhe digo.
‑ Pela minha fé, é verdade ‑ replicou outra voz. ‑ Pobre diabo!
O riso estendeu‑se aos outros dois, que se expandiam sempre juntos, e tornou‑se geral a expensas de Mrs. Nickleby. Nicholas voltou‑se, ardendo em raiva, mas ainda se conseguiu dominar, esperando ouvir mais. O que ouviu não precisa de ser repetido aqui. Basta dizer que quanto mais o vinho corria, mais ele tomava conhecimento dos caracteres e planos daqueles cuja conversa escutava, para lhe dar a ideia de toda a extensão da vilania de Ralph e da verdadeira razão da sua presença ser necessária em Londres. Ouviu tudo isto e mais. Ouviu o sofrimento da irmã, escarnecida e ridicularizada a sua virtuosa conduta brutalmente mal interpretada; ouviu seu nome discutido de boca em boca e ela o objecto de grosserias e insolências.
O homem que primeiro falara dirigia a conversa e, de facto quase a monopolizava sendo apenas estimulado, de vez em quando, por um ou outro dos companheiros para aparecer perante o grupo e forçar as palavras pela garganta ardente e escaldante.
‑ Permita‑me que lhe dê uma palavra, sir ‑ disse Nicholas.
‑ A mim, sir? ‑ perguntou Sir Mulberry Hawk, olhando‑o com desdenhosa surpresa.
‑ Eu dirigi‑me a si ‑ respondeu Nicholas, falando com grande dificuldade, chocado pelos seus próprios sentimentos.
‑ Um misterioso estranho, palavra de honra! ‑ comentou Sir Mulberry, levando o copo à boca e olhando para os amigos.
‑Quer falar comigo em particular, durante uns minutos, ou recusa-se?‑interrogou NicholaS com ar severo.
Sir Mulberry apenas parou a acção de beber e pediu‑lhe o nome e o assunto, ou que se afastasse.
Nicholas tirou um bilhete da algibeira e atirou‑lho para a frente.
‑ Aí tem, sir ‑ disse Nicholas. ‑ O assunto comigo já
o adivinha.
Na cara de Sir Mulberry apareceu uma momentânea expressão de assombro, misturada com certa confusão, ao ler a nome, mas dominou‑se e, dando o bilhete a Lorde Verisopht, que se sentava em frente, tirou um palito dum copo fronteiro e meteu‑o na boca muito despreocupado.
‑ O seu nome e morada? ‑ inquiriu Nicholas, tornando‑se mais pálido, excitado pela cólera.
‑ Não lhe darei nenhuma ‑ respondeu Sir Mulberry.
‑ Se há um cavalheiro neste grupo ‑ replicou Nicholas, olhando em redor e mal podendo emitir as palavras através dos lábios brancos ‑ vai dizer o nome e a residéncia deste homem.
Fez‑se um silêncio de morte.
‑ Sou o irmão da jovem que foi o assunto da conversa aqui
‑ declarou Nicholas. ‑ Acuso este homem de mentiroso e de cobarde. Se ele tem aqui um amigo, livrá‑lo‑á da vergonha da vil tentativa de esconder o seu nome, uma coisa totalmente desnecessária, pois não o largarei, enquanto não o souber.
Sir Mulberry olhou para ele com desprezo e, dirigindo‑se aos companheiros disse:
‑Deixem o rapaz falar; eu nada tenho de sério a dizer a garotos da sua classe, e a linda irmã livra‑o de ter a cabeça partida se ele falar até à meia noite.
‑ Você é um patife desprezível e baixo ‑ disse Nicholas
‑e assim será proclamado a toda a gente. Eu hei‑de conhecê‑lo; segui‑lo‑ ei até a casa, ainda que ande a vaguear pelas ruas até de manhã.
A mão de Sir Mulberry involuntariamente fechou‑se sobre a garrafa e pareceu, por momentos, que ia atirá‑la à cabeça do adversário, mas apenas encheu o copo e riu de escárnio.
Nicholas sentou‑se directamente em frente do grupo e, chamando o criado, pagou a sua despesa.
‑ Conhece o nome daquele homem? ‑ perguntou ao criado em voz audível, apontando para Sir Mulberry.
Sir Mulberry voltou a rir.
‑ Aquele cavalheiro, sir? ‑ inquiriu o criado, que, sem dúvida percebendo um sinal dele, respondeu com tão pouco respeito, como tanta impertinência, que pôde falar sem perigo. Não, sir, não conheço, sir.
‑ Venha cá agora, sir ‑ chamou Sir Mulberry, quando o homem se ia a retirar.
‑ Conhece o nome daquele rapazinho?
‑ O nome, sir? Não, sir.
‑ Então encontra‑o aí ‑ informou Sir Mulberry, atirando
‑lhe o bilhete de Nicholas ‑ e quando tiver aprendido ponha esse bocado de cartão no lume. Ouviu?
O homem sorriu, olhando com um ar duvidoso para Nicholas e cumpriu a ordem, pondo o bilhete no vidro da chaminé. Feito isto, retirou‑se. Nicholas cruzou os braços e, mordendo os lábios, ficou perfeitamente calmo, exprimindo com a sua maneira a firme determinação de levar a efeito a ameaça de seguir Sir Mulberry a casa. Pelo tom do membro mais novo do grupo era evidente que ele censurava o seu amigo e llhe pedia para satisfazer o desejo de Nicholas, mas Sir Mulberry, que não estava sóbrio e se encontrava num estado de teimosia, calou o seu jovem amigo e mandou‑os a todos embora. O jovem e os dois outros, que falavam sempre juntos, levantaram‑se, deixando o seu amigo só com Nicholas.
Para qualquer pessoa nas condições de Nicholas os minutos pareciam mover‑se lentamente, mas ele continuava sentado
em frente de Sir Mulberry Hawk que com as pernas estendidas e o guardanapo negligentemente atirado sobre os joelhos, acabava a garrafa de vinho com o maior sangue‑frio e indiferença.
Permaneceram assim,em perfeito silêncio, por mais duma hora. Nicholas, por duas ou três vezes, olhou impacientemente em redor, mas Sir Mulberry estava na mesma atitude, levando o copo à boca,de vez em quando,e olhando inexpressivamente para a parede como se não houvesse ali a presença dum ser vivo. Por fim bocejou,espreguiçou‑se e levantou‑se; encaminhou‑se friamente para o espelho e tendo‑se absorvido nele, voltou‑se e honrou Nicholas com um longo olhar de desprezo.
Nicholas devolveu‑lhe o olhar com o mesmo à vontade. Sir Mulberry encolheu os ombros,sorriu levemente,tocou a campainha e ordenou ao criado para o ajudar a vestir o sobretudo.
O homem assim fez e abriu a porta.
‑ Não espere ‑ disse Sir Mulberry e ficaram sós novamente.
Sir Mulberry deu várias voltas no aposento,sempre a assobiar descuidadamente; parou para acabar o último copo de vinho,voltou a passear, pôs o chapéu, compô‑lo ao espelho, calçou as luvas e,por fim,saiu lentamente. Nicholas,que parecia sobre brasas e a consumir‑se de raiva,até quase se tornar furioso,ergueu‑se da cadeira e seguiu‑o tão de perto,que antes da porta ter girado nos gonzos,depoís da passagem de Sir Mulberry,estavam ambos lado a lado,na rua. Estava à espera um cabriolé particular; o criado abriu a cobertura e pulou para a cabeça do cavalo.
‑ Quer dar-se a conhecer? ‑ perguntou Nicholas em tom impaciente.
‑ Não ‑ respondeu o outro furioso,confirmando a recusa com uma praga. ‑ Não.
‑ Se se fia na velocidade do cavalo,engana‑se ‑ disse Nicholas. ‑ Acompanhá‑lo-ei. Pelo Céu,que o hei‑de acompanhar, mesmo que vá pendurado no estribo!
‑ Será chicoteado se o fizer! ‑ avisou Sir Mulberry.
‑Autêntico vilão! ‑ declarou Nicholas.
‑Você é um moço de recados,segundo me parece ‑ replicou Sir Mulberry Hawk.
‑ Sou filho dum fidalgo da província ‑ retorquiu Nicholas ‑ seu igual no nascimento e educação,e seu superior em tudo o resto. Digo‑lhe de novo: Miss Nickleby é minha irmã.
Quer,ou não,responder pela sua conduta ignóbil e brutal?
‑ A um verdadeiro campeão,sim... A si... não – respondeu Sir Mulberry,tomando as rédeas. ‑ Afaste‑se do caminho, cão! William,larga‑lhe a cabeça.
‑ É melhor não ‑ gritou Nicholas,saltando para o estribo quando Sir Mulberry entrou no carro e segurando as rédeas.
‑ Cautela, ele não tem mão nas rédeas. Não irás... não irás, juro. até me dizeres quem és.
O criado hesitou largar o cavalo, que era um animal fogoso e de puro sangue e que escouceava tão violentamente que ele mal pôde segurá‑lo.
‑Deixa‑o, já te disse! ‑ trovejou o patrão.
O homem obedeceu. O animal recuou e escouceou o carro como se quisesse reduzi‑lo a pedaços, mas Nicholas, desprezando todo o sentido do perigo e sentindo apenas a sua fúria, manteve o lugar, com as rédeas nas mãos.
‑Quer dizer‑me quem é?
‑ Não!
Estas palavras foram trocadas em menos tempo do que levaram a escrever e Sir Mulberry, agarrando no chicote, aplicou‑o furiosamente à cabeça e ombros de Nicholas. O chicote quebrou‑se na luta; Nicholas ficou com a parte mais grossa e com ela, rasgou o lado da cara do seu antagonista do olho até à boca. Viu a profunda ferida, conheceu que o cavalo disparou como um louco, num galope furioso; centenas de luzes dançaram‑lhe nos olhos e sentiu‑se projectado violentamente no chão.
Estava com náuseas e vertigens, mas levantou‑se imediatamente, ouvindo gritos dos homens que estavam trabalhando na rua berrando para os que estavam à frente, fugirem do caminho. Teve consciência de muita gente a fugir e, olhando para mais longe, pôde ver o cabriolé a correr com espantosa rapidez. depois ouviu um grito mais alto, o esmagamento de qualquer corpo pesado e o quebrar de vidros. a seguir a multidão fechou‑se a distância e ele nada mais ouviu, nem viu.
A atenção geral foi desviada dele para a pessoa da carruagem e encontrou‑se inteiramente só. Viu ser pura loucura segui‑lo; nestas circunstâncias, por isso meteu por uma travessa à procura da mais próxima praça de carros de aluguer, achando que vacilava como um ébrio e reparando pela primeira vez, que um fio de sangue lhe corria da cara para o peito.
Mr. Ralph Nickleby é aliviado, por um processo Rápido, de todas as suas preocupações con os parentes Smike e Newman Noggs, o qual, na sua impaciência, regressara a casa muito tempo antes do prazo combinado, estavam sentados, à espera de Nicholas, em frente do lume, escutando ansiosamente todos os passos na escada. O tempo passava e fazia‑se tarde. Nicholas prometera regressar dentro duma hora e a sua prolongada ausência começava a alarmar consideravelmente ambos, como se verificava pelos olhares desesperados que trocavam a cada novo desapontamento. Por
fim, ouviu‑se parar um carro e Newman correu para fora, a fim de alumiar a escada.
‑Não se alarmem! ‑ disse Nicholas, apressando‑se a segui‑lo para o quarto. ‑ Não há mal que uma bacia de água não possa reparar.
‑Não há mal? ‑ interrogou Newman, passando as mãos rapidamente pelas costas e pelos braços de Nicholas para se assegurar se ele não teria os ossos quebrados. ‑ O que esteve a fazer?
‑Sei tudo ‑ interrompeu Nicholas. ‑ Ouvi uma parte e adivinhei o resto. Mas antes de tirar a mais pequena porção destas nódoas, quero ouvir tudo da sua boca. Estou calmo. A minha resolução está tomada. Agora, meu bom amigo, fale; não são precisos paliativos, nem considerações, e nada aproveitará agora a Ralph Nickleby.
‑ O seu fato está rasgado em vários sítios, o senhor coxeia. Tenho a certeza de que está a sofrer ‑ disse Newman. Deixe‑me primeiro ver os seus ferimentos.
‑Não tenho ferimentos senão uma pequena arranhadela e um entorpecimento que depressa passará ‑ declarou Nicholas. ‑ Mas se tivesse mesmo fracturado qualquer membro e estivesse nos meus sentidos, não me deixaria tratar enquanto não me disser o que tenho direito a saber. Vamos ‑ continuou Nicholas, dando a mão a Noggs. ‑ O senhor tinha uma irmã, como me disse uma vez, que morreu antes de ter caído em desgraça. Pense agora nela e diga‑me, Newman, o que se passa.
‑Sim, conto‑lhe, conto-lhe! ‑ prometeu Noggs. ‑ Dir‑lhe‑ei toda a verdade.
Newman assim fez. Nicholas acenava com a cabeça de vez em quando, por a história vir corroborar os pormenores que ele já adivinhara; fixou os olhos no lume e não os tirou dali. Acabada a narrativa, Newman insistiu para ele tirar o casaco, para lhe tratar dos ferimentos. Durante o tratamento, Nicholas relatou o que se passara com Sir Mulberry Hawk.
Acabado o tratamento, Nicholas combinou com Newman para a mãe deixar imediatamente a sua actual residência e falar também com Miss La Creevy para se pôr em comunicação com ela. Envolveu‑se, então, no sobretudo de Smike e foi para a estalajem, depois de escrever umas linhas a Ralph, cuja entrega confiou a Newman, para conseguir o repouso de que tinha necessidade.
As sete horas da manhã seguinte, Nicholas levantou‑se com algumas dificuldades por causa das dores, mas depois de entrar no quarto de Smike e preveni‑lo que Newman Noggs o procuraria dentro de muito pouco tempo, saíu para a rua e chamou um carro para se conduzir a casa de Mrs. Wititterly. Faltava um quarto de hora para as oito quando chegou a Cedogan Place e por uma criada, que limpava as escadas, foi chamado o pajem; este informou que Miss Nickleby dava o seu passeio matinal no jardim em frente da casa. Perguntando se podia chamá‑la, disse que não, mas, estimulado por um xelim, respondeu afirmativamente.
‑Diga a Miss Nickleby que é o irmão que está aqui e cheio de pressa para lhe falar ‑ recomendou Nicholas.
O rapaz desapareceu com uma satisfação muito pouco usual nele e Nicholas pôs‑se a passear no aposento, num estado de febril agitação até ouvir, por fim, uns passos muito seus conhecidos e, antes de poder avançar e ir ao seu encontro, Kate caiu‑lhe nos braços, lavada em lágrimas.
‑Minha querida filha! ‑ disse Nicholas ao abraçá‑la. Como estás pálida!
‑Tenho sido tão infeliz aqui, querido irmão ‑ soluçou a pobre Kate ‑ tão desgraçada! Não me deixes cá, querido Nicholas, eu morrerei de desgosto.
‑Não te deixarei aqui ‑ respondeu Nicholas ‑ nunca mais, Kate. Dize‑ me que procedi da melhor forma. Dize‑me que temos de partir, pois receio trazer‑te infelicidade; isto é uma experiência para mim, como para ti, e se eu andei erra damente foi na ignorância da vida.
‑O que te devo eu dizer que me conheces tão bem?
‑ replicou Kate, brandamente. ‑ Nicholas, querido Nicholas, como podes abrir caminho assim?
‑ uma desgraça só agora saber quanto tu tens suportado ‑ retorquiu‑lhe o irmão ‑ por ver como mudaste e, no entanto, conservando-te tão boa e paciente. Deus! ‑ exclamou ele, fechando o punho e mudando subitamente de tom e de maneiras ‑ isto faz-me ferver outra vez o sangue. Tens que partir comigo imediatamente; não devias ter dormido aqui a noite mas eu só soube de tudo demasiado tarde. A quem se pode falar antes de partires?
Esta pergunta foi feita muito oportunamente por que nesse instante entrou Mr. Wititterly, a quem Kate apresentou o irmão, o qual imediatamente anunciou o seu propósito e a impossibilidade de oprolongar.
‑O aviso de trimestre ‑ disse Mr. Wititterly com a gra vidade dum homem cheio de razão ‑ ainda não chegou a meio. Por isso.
‑Por isso ‑ interpôs Nicholas ‑ o salário do trimestre pode ficar, sir. Desculpará esta pressa, mas as circunstâncias ordenam‑me que leve imediatamente a minha irmã e não tenho um momento a perder. Mandarei buscar tudo quanto ela trouxe, se me permite, durante o dia.
Mr. Wititterly curvou‑se e não fez qualquer objecção à partida imediata de Kate, com o que, na verdade, se sentiu bastante satisfeito dada a opinião de Sir Snuffim de que ela desagradava à constituição de Mrs. Wititterly.
‑Com respeito à ninharia do salário ‑ declarou Mr. Wititterly ‑ eu. )aqui foi interrompido por um violento ataque de tosse), eu... fico‑ lhe a dever, Miss Nickleby.
Como se observa, Mr. Wititterly estava acostumado a ficar a dever as pequenas contas e deixava‑as envelhecer. Todos os homens têm os seus expedientes e este era um dos de Mr. Wititterly.
‑ Se faz favor ‑ disse Nicholas. E uma vez mais pedindo desculpa por uma tão súbita partida, meteu apressadamente Kate no carro, pedindo ao cocheiro para ir a toda a velocidade para a City. Foram de mútuo acordo e os cavalos seguiram em tão bom andamento que pareciam viver em Whitechapel e estarem acostumados a tomar lá o pequeno almoço.
Nicholas mandou subir primeiramente Kate para preparar a mãe e depois de alguns minutos, foi‑lhe então apresentar os seus cumprimentos e cumprir os seus deveres filiais. Newman não estivera, entretanto, inactivo, pois havia um pequeno bilhete na porta e os resultados já caminhavam a toda a velocidade.
Mrs. Nickleby não era o género de pessoa para pressas nem para coisas feitas a curto prazo, por isso não obstante ter sido preparada uma hora inteira pela pequena Miss La
Creevy e ter sido agora informada da mais lúcida forma por Nicholas e pela filha, ficou num estado de grande confusão e espanto, sem compreender a necessidade de tais pressas.
‑Por que não perguntas ao teu tio, meu querido Nicholas, qual é a ideia que ele faz disto? ‑ inquiriu Mrs. Nickleby.
‑Minha querida mãe ‑ respondeu o filho ‑ o tempo de conversa já pasou. Há só um passo a dar e este é pô‑lo à margem com o desprezo e a indignação que ele merece. A sua honra e bom nome pedem isso. depois da descoberta do vil procedimento dele a mãe não deve encará‑lo por uma hora só que seja, mesmo pelo agasalho destas paredes nuas.
‑Decerto ‑ afirmou Mrs. Nickleby, chorando amargamente ‑ ele é um bruto, um monstro, e ás paredes estão realmente nuas e precisando de pintura. Eu mandei caiar o tecto pagando por isso dezoito pence, o que é uma coisa muito triste, considerando que foi dinheiro que não saiu da algibeira do teu tio. Eu nunca teria acreditado nisto. nunca!
‑Nem eu, nem ninguém ‑ replicou Nicholas.
‑ O Senhor abençoe a minha vida! ‑ exclamou Mrs. Nickleby. ‑ Pensar que Sir Mulberry Hawk é uma criatura tão desprezível como Miss La Creevy informou, Nicholas, meu querido! E eu a felicitar‑me todos os dias por ele sér um admirador da nossa querida Kate, e pensar que bom seria para a família se se ligasse a nós e usasse da sua influência para te arranjar um bom emprego no Estado. Sei que há muito bons lugares na Corte, que podem ser apanhados, pois o irmão
duma nossa amiga ‑ Miss Cropley, de Exeter, minha querida Kate tu lembras‑te? ‑ teve um e sei que o seu principal dever era usar meias de seda e uma cabeleira e agora pensar que
aconteceria isto no fim de tudo. Oh, meu Deus, meu Deus, é duma pessoa morrer!
Com estas expressões de tristeza Mrs. Nickleby deu nova expansão à sua dor e chorou aflitivamente.
Como Nicholas e a irmã foram obrigados, nesta ocasião a superintender na remoção dos poucos artigos de mobília, Miss La Creevy dedicou‑se a consolar a senhora e observou com grande amabilidade que ela devia fazer um esforço para se alegrar.
‑ Oh! Miss La Creevy ‑ respondeu Mrs. Nickleby com uma petulância invulgar na sua infeliz circunstância ‑ isso é fácil de recomendar,mas se a senhora tivesse tido tantas ocasiões para se alegrar como eu... ‑ Aqui Mrs. Nickleby parou de súbito para depois recomeçar. ‑ E pensar em Mr. Pyke e Mr. Pluck,dois dos mais perfeitos cavalheiros que há... o que devo dizer‑lhes?. .
‑Se lhes dissesse, Informaram‑me que o vosso amigo Sir Mulberry é um sórdido patife, eles riam‑se de mim!
‑Eles não se hãode rir mais de nós; eu trato disso afirmou Nicholas,avançando. ‑ Vamos,mãe,está uma carruagem à porta e até segunda feira! Dê por onde der, voltamos aos nossos antigos alojamentos.
‑ Onde está tudo pronto e o desejo sincero de os receber ‑ acrescentou Miss La Creevy. ‑ Agora deixe‑me ir consigo pela escada abaixo.
Mas Mrs. Nickleby não ia assim tão facilmente; insistiu primeiro em ir ao andar superior para ver se se esquecia de alguma coisa,e depois ir ao andar de baixo para ver se se levava qualquer coisa e,por fim,quando já estava no corredor, teve a impressão de se ter esquecido duma cafeteira na cozinha e duma sombrinha verde atrás duma porta qualquer, quando a porta da rua já estava fechada. Por fim,Nicholas ordenou ao cocheiro para seguir,coincidindo isto com a perda dum xelim,por parte de Mrs. Nickleby.
Tendo visto tudo arranjado,despedida a criada e fechada a porta,Nicholas meteu-se num cabriolé e seguiu para um sítio próximo de Golden Square,onde marcara encontro a Noggs; e tão rapidamente fora tudo executado,que pouco passava das nove e meia quando chegou ao local de encontro.
‑ Aqui está a carta para Ralph ‑ disse Nicholas ‑ e aqui está a chave! Quando vier ter comigo esta tarde,nem uma palavra sobre a noite passada. As más novas sabem‑se depressa e eles sabê‑las‑ão depressa demais. Ouviu se ele ficou muito ferido?
Newman abanou a cabeça.
‑Eu averiguarei sem perda de tempo ‑ disse Nicholas.
‑ Fará melhor se for descansar ‑ aconselhou Newman. O senhor está doente e febril.
Nicholas fez um aceno descuidado com a mão e,escondendo a indisposição que realmente sentia ‑ agora que acabara a excitação que o sustivera ‑ despediu‑se rapidamente de Newman Noggs e deixou‑o.
Newman estava a três minutos de Golden Square,mas no decurso destes três minutos tirou a carta do chapéu e pô‑la lá novamente,repetindo o gesto pelo menos vinte vezes. Primeiro a frente,depois as costas,a seguir os lados e,por fim 289 a direcção e o selo, foram objectos da admiração de Newman, que se não conteve sem esfregar as mãos, perfeitamente extasiado com o seu encargo.
Chegou ao escritório, pendurou o chapéu na costumada escápula, pôs a carta e a chave em cima da secretária e esperou impacientemente por Ralph Nickleby. Depois de alguns minutos ouviu‑se o bem conhecido ranger das suas botas e a campainha tocou.
‑Veio o correio?
‑ Não.
‑Há algumas cartas?
‑ Uma. ‑ Newman fitou‑o de perto e levou‑o para a secretária.
‑O que é isto? ‑ perguntou Ralph, agarrando na chave.
‑ Deixaram com a carta. foi um rapaz que as trouxe. há um quarto de hora, ou menos.
Ralph deu uma vista de olhos à direcção, abriu a carta e leu o seguinte:
Agora já o conheço. Não há infâmia de que o não culpo, e bastava a milésima parte dessa vil vergonha para despertar uma consciência mesmo como a sua.
A viúva da seu irmão e a sua filha órfã, repudiam o abrigo do seu tecto e fogem de si com desgosto e aversão. Os seus parentes desprezam‑no pois só sentem vergonha dos laços de sangue que os ligam a si.
O senhor é um velho e eu abandono‑o ao túmulo. Possam todas as lembranças da sua vida fazer secar o seu falso coração e lançar a escuridão sobre o seu leito mortuário.
Ralph Nickleby leu esta carta duas vezes, contraíu fortemente as sobrancelhas e pôs-se a meditar. O papel voou‑lhe da mão e caiu no chão, mas ele apertou os dedos como se ainda o conservasse. Repentinamente levantou‑se da cadeira e, comprimindo as mãos, meteu‑as na algibeira, voltando‑se furioso para Newman Noggs, como se fosse para lhe perguntar a razão de estar parado. Mas Newman estava imóvel, com as costas voltadas para ele, seguindo com uma velha pena alguns números numa tabela de juros colada à parede e, aparentemente, alheio por completo a qualquer outro assunto.
Onde Ralph Nickleby é visitado por pessoas que já conhecemos
‑Há quanto tempo estou eu a bater a esta velha e maldita cafeteira de campainha, cujo som é suficiente para fazer convulsões a um homem forte, sob a minha palavra e a minha alma! Oh, diabo!. ‑ disse Mr. Mantalini a Newman Noggs, limpando as botas ao capacho de Ralph Nickleby.
‑Não ouvi a campainha senão uma vez ‑ replicou Newman.
‑ Então é imensamente. excessivamente surdo ‑ afirmou Mr. Mantalini. ‑ Tão surdo como o diabo duma porta!
Por esta altura entrara Mr, Mantalini no corredor e ia a caminho da porta do escritório de Ralph, com muito pouca cerimónia, quando Newman lhe interpôs o corpo e, insinuando que Mr. Nickleby não estava em maré de ser perturbado, perguntou se o assunto era de natureza urgente.
‑ muitíssimo particular ‑ informou Mr. Mantalini. É para converter alguns bocados de papel em metal brilhante sonante e tilintante.
Newman proferiu um sigmificativo grunhido e, agarrando no bilhete de Mr. Mantalini entrou no escritório do patrão. Quando meteu a cabeça pela porta viu que Ralph voltara à posição pensativa em que caíra depois de ler a carta do sobrinho e que parecia estar a lê‑la novamente, visto a ter ainda aberta, na mão. O relance de olhos foi momentâneo, por Ralph se voltar para perguntar a causa da interrupção. Quando Newman o informou a própria causa entrou no aposento e, apertando a mão calosa de Ralph com desacostumada afeição, afirmou nunca o ter visto com tão bom aspecto em toda a vida.
‑ A cara parece ter a cor dos frutos ‑ disse Mr. Mantalini sentando-se sem esperar convite e compondo o cabelo e a barba. ‑ O senhor parece jovem e alegre, diabo!
‑Estamos sós ‑ replicou Ralph secamente. ‑ O que deseja de mim?
‑ Bom! ‑ exclamou Mr. Mantalini, mostrando os dentes. O que devo eu querer! Sim, Ah! ah! Muito bem. O que quero eu? Oh! diabo!
‑ O que quer, homem? ‑ perguntou Ralph desabridamente.
‑ O demómio dum desconto ‑ informou Mr. Mantalini com um sorriso e abanando a cabeça.
‑ O dinheiro está difícil. - retorquiu Ralph.
‑Se não estivesse não o vinha pedir ‑ interrompeu Mr. Mantalini.
‑Os tempos estão maus e mal se sabe em quem confiar
‑ continuou Ralph. ‑ Agora não quero fazer negócios, prefiro não os fazer, mas como você é um amigo. Quantas letras tem aí?
‑Duas ‑ informou Mr. Mantalini.
‑ Qual é a importância bruta?
‑ Uma ninharia. setenta e cinco.
‑ E as datas?
‑Dois e quatro meses.
‑ Faço isto por si por isso. cuidado, pois não o faria a muita gente. por vinte e cinco libras ‑ informou Ralph em tom decidido.
‑ Oh diabo! ‑ exclamou Mr. Mantalini, cuja cara se alongou consideravelmente a esta proposta.
‑Então, fica com cinquenta ‑ replicou Ralph. ‑ O que é que queria? Deixe‑me ver os nomes.
‑Você é diabolicamente duro, Nickleby ‑ comentou Mr. Mantalini.
‑Deixe‑me ver os nomes ‑ repetiu Ralph impaciente, estendendo a mão para as letras. ‑ Bem! Não são seguros mas dão bastante garantia. Consente nas condições e leva o dinheiro? Não quero obrigá‑lo. Preferia que o não levasse.
‑ Diabo, Nickleby, não podia?. ‑ começou Mr. Mantalini.
‑ Não ‑ respondeu Ralph, interrompendo‑o. ‑ Não posso. Levará o dinheiro. já, lembre‑se; nada de demoras, não vá à City pretender negociar com qualquer outra pessoa que não tem nome e nunca teve. Está feito o negócio, ou não?
Ralph empurrou alguns papéis de pé de si, enquanto falava e, descuidadamente, tocou no cofre como se fosse por acaso. O som foi demasiado para Mr. Mantalini. Fechou o negócio logo que o som lhe chegou aos ouvidos e Ralph contou o dinheiro sobre a mesa. Mal tinha acabado de o fazer e Mr. Mantalini não tivera ainda ocasião de o recolher todo, quando se ouviu tocar a campainha e logo a seguir Newman introduziu nada menos da que Madame Mantalini, à vista de quem Mr. Mantalini mostrou considerável confusão, metendo o dinheiro na algibeira com notável rapidez.
‑Oh, o senhor está aqui! ‑ exclamou Madame Mantalini, agitando a cabeça.
‑ Sim, estou, minha vida e minha alma! ‑ respondeu-lhe o marido, caindo de joelhos, como um gatinho atrás duma bola.
‑ Estou aqui, delícia da minha alma, no chão de Tom Tiddler, apanhando o demónio da ouro e da prata.
‑ Estou envergonhada por sua causa! ‑ afirmou Madame Mantalini indignada.
‑Envergonhada? Por mim, minha querida? Sabe‑se que fala com muita meiguice e não diz mentiras ‑ retorquiu Mr. Mantalini. ‑ Sabe‑se que não está envergonhada com o seu gatinho!
Quaisquer que tivessem sido as circunstâncias que levaram a este resultado, parece que o gatinho decaira nas boas graças da senhora. Madame Mantalini apenas o olhou desdenhosamente como resposta e, voltando‑se para Ralph, pediu‑lhe para a desculpar da sua intromissão.
‑ Que é completamente devida ‑ esclareceu madame ‑ à conduta muitíssimo imprópria de Mr. Mantalini.
‑Meu suco natural de ananás!
‑Sua, já disse. Mas não o permitirei! Não estou para ser arruinada pelas extravagâncias e prodigalidades de qualquer homem. Tomo Mr. Nickleby como testemunha do procedimento que tenciono ter consigo.
‑Rogo‑lhe que não me tome por testemunha de coisa alguma, ma'am ‑ pediu Ralph. ‑ Liquidem esse assunto entre os dois.
‑Não, mas tenho um favor a pedir‑lhe ‑ disse Madame Mantalini ‑ ouvir‑me informá‑lo de que é minha firme intenção fazer. minha firme intenção, sir ‑ repetiu Madame Mantalini, dardejando um olhar irado ao marido.
‑ Ela a chamar‑me sir! ‑ exclamou Mantalini. ‑ Eu que a amo com o mais entranhado ardor! Ela que me enreda na sua fascinação como uma pura e angélica cobra cascavel! Brinca com os meus sentimentos e agora atira‑me para um estado levado do diabo.
‑Não fale de sentimentos, sir ‑ replicou Madame Mantalini, sentando‑se com as costas voltadas para ele. ‑ O senhor não tem consideração pelos meus.
‑ Não tenho consideração pelos seus, minha alma! ‑ exclamou Mr. Mantalini.
‑ Não ‑ respondeu a mulher.
E apesar das várias blandícias da parte de Mr. Mantalini, a mulher manteve‑se a dizer não, tão determinada e com tão mau humor, que o marido ficou entre talas.
‑As extravagâncias dele, Mr. Nickleby ‑ disse Madame Mantalini, dirigindo-se a Ralph, encostado à cadeira com as mãos por trás e olhando o par, com um sorriso de supremo e inexorável desprezo ‑ ultrapassam todos os limites!
‑Mal teria suposto ‑ respondeu Ralph sarcasticamente.
‑Asseguro‑lhe, Mr. Nickleby, que é assim ‑ garantiu Madame Mantalini. ‑ Isto faz‑me sofrer. Estou sob constantes apreensões e em constantes dificuldades. E mesmo isto não é o pior ‑ continuou ela, enxugando os olhos. ‑ Esta manhã, tirou certos documentos de valor da minha secretária sem a minha permissão.
Mr. Mantalini rosnou levemente e abotoou a algibeira das calças.
‑ Sou obrigada ‑ prosseguiu Madame Mantalini ‑ desde a minha última infelicidade, a pagar a Miss Knag uma quantidade de dinheiro para ter o seu nome na firma e, realmente, não posso encorajá‑lo em todas as suas prodigalidades. Como não tenho dúvida de que ele veio directamente aqui, Mr. Nickleby, para converter os documentos de que falei, em dinheiro, e como o senhor nos ajudou muitas vezes e está muito ligado a nós neste género de negócios, desejo que conheça a determinação que a sua conduta me fez tomar.
Mr. Mantalini rosnou mais uma vez por detrás do chapéu da mulher e, pondo uma libra em ouro num dos olhos, piscou o outro a Ralph. Tendo feito isto com grande destreza, meteu outra vez a moeda na algibeira e rosnou de novo com ar arrependido.
‑ Tenho pensado ‑ disse Madame Mantalini às manifestações de impaciência de Ralph ‑ dar‑lhe uma pensão.
‑ Dar o quê, minha alegria? ‑ inquiriu Mr. Mantalini, que parecia não ter apanhado as palavras todas.
‑ Outorgar‑lhe ‑ explicou Madame Mantalini, olhando para Ralph e abstendo‑se, prudentemente, da mais ligeira vista de olhos para o marido, apesar das suas muitas graças a induzirem a quebrar a sua resolução ‑ uma pensão fixa; e digo que se ele tiver cento e vinte libras por ano, para os seus fatos e gastos miudos, pode considerar‑se um homem muito afortunado.
Mr. Mantalini aguardou, com muito decoro, ouvir a quantia da estipêndio proposto, mas quando ela lhe chegou aos ouvidos, atirou o chapéu e a bengala para o chão e, tirando o lenço da algibeira, deu expansão aos seus sentimentos com um fraco gemido.
‑ Diabo! ‑ exclamou Mr. Mantalini, saltando da cadeira e deixando-se cair nela, outra vez, com grande perturbação dos nervos da senhora. ‑ Mas não! É um sonho horrível! Não é realidade. Não!
Confortando-se com esta certeza, Mr. Mantalini fechou os olhos e esperou pacientemente até à ocasião em que devesse acordar.
‑ Uma combinação muito judiciosa ‑ observou Ralph com ironia ‑ se o seu marido se mantiver dentro dela, ma'am. como sem dúvida se manterá.
‑ Diabos ‑ replicou Mr. Mantalini abrindo os olhos ao som da voz de Ralph. ‑ uma horrível realidade. Ela está sentada defronte de mim. o gracioso perfil da sua cara; não pode ser engano... não há outro igual! As duas condessas não tinham nenhuns perfis e a viúva tinha um perfil diabólico. Porque há-de ela ser tão dolorosamente bela, que mesmo agora não posso zangar‑me?
‑ Foste tu que causaste isto a ti próprio, Alfred ‑ replicou Madame Mantalini, ainda repreensiva, mas num tom mais brando.
‑ Eu sou um vilão! ‑ confessou Mr. Mantalini, dando pancadas na cabeça. ‑ Vou encher as algibeiras com o valor duma libra em meios pence e atirar‑me ao Tamisa; mas mesmo assim não me zangarei com ela e porei uma nota num postal para lhe dizer onde está o meu corpo. Há‑de ser uma encantadora viúva. Eu serei um morto. Algumas lindas mulheres chorarão; ela rirá diabolicamente.
‑Alfred, tu és cruel, és uma criatura cruel! ‑ disse Madame Mantalini, soluçando, com esta perspectiva terrível.
‑ Ela chama‑me cruel. a mim. a mim. que por amor dela me tornei num cadáver húmido, molhado, desagradável!declarou Mr. Mantalini.
‑ Sabes que quase me partes o coração mesmo de te ouvir falar numa tal coisa? ‑ declarou Madame Mantalini.
‑ Posso viver para ser desconsiderado?‑ perguntou‑lhe o marido. ‑ Cortei o coração num extraordinário número de pedacinhos e dei‑os todos, um após outro, à mesma pequena feiticeira, e posso viver para ser desconsiderado por ela? Não, não posso!
‑ Pergunta a Mr. Nickleby se a quantia que mencionei não é muito conveniente ‑ raciocinou Madame Mantalini.
‑ Não preciso de nenhuma quantia ‑ replicou o desconsolado marido. ‑ Não quero nenhuma pensão! Vou morrer!
Com a repetição da fatal ameaça Madame Mantalini torceu as mãos e implorou a interferência de Ralph Nickleby. Depois de muitas lágrimas, de conversa e de várias tentativas de Mr. Mantalini para atingir a porta a fim de cumprir a sua ameaça, prometeu, por fim e não sem dificuldade, que se não mataria. Atingido este ponto Madame Mantalini voltou à questão da pensão e Mr. Mantalini fez o mesmo, declarando poder viver a pão e água e andar roto, mas não suportar ser desconsiderado pelo objecto da sua afeição muitíssimo devotada e desinteressada. Isto trouxe novas lágrinas aos olhos de Madame Mantalini que, tendo-os aberto um pouco sobre o desmerecimento do marido, conseguiu facilmente fechá‑los outra vez. O resultado foi a pensão ter ficado para ser considerada mais tarde, tendo Mr. Mantalimi conseguido que a sua degradação e queda fosse prorrogada.
‑ Mas isto virá bastante cedo ‑ pensou Ralph. ‑ Tudo amor. Que se use a giria dos rapazes e raparigas é bastante tolo, embora isso tenha a sua única razão na admiração duma cara barbada como a daquele chimpazé, e que talvez dure muitíssimo, como também é originado por uma grande cegueira alimentada pela vaidade. Entretanto, os parvos trazem‑me grão para o moinho, por isso deixá‑los viver o seu dia, e quanto mais melhor.
Ocorreram estas agradáveis reflexões a Ralph Nickleby enquanto várias pequenas carícias e meiguices se trocavam entre os objectos dos seus pensamentos, supondo não serem vistos.
‑Meu querido, se nada mais tens a dizer a Mr. Nickleby ‑ advertiu Madame Mantalini ‑ vamo-nos embora! Tenho a certeza de já o termos empatado muito.
Mr. Mantalini respondeu, em primeiro lugar, dando várias pancadinhas no nariz de Madame Mantalini, e depois acrescentando por palavras, que nada mais tinha a dizer.
‑ Diabo! No entanto tenho! ‑ acrescentou ele quase imediatamente, levando Ralph para um canto. ‑ Há um assunto acerca do seu amigo Sir Mulberry. Uma coisa extraordinária como nunca se viu: galgou o passeio!
‑ O que quer dizer? ‑ perguntou Ralph.
‑ Não sabe? ‑ inquiriu Mr. Mantalini.
‑Vi pelo jornal que ele foi arrojado do cabriolé a noite passada, ficando ferido e em perigo de vida ‑ respondeu Ralph com grande tranquilidade ‑ mas não vi nada de extraordinário nisso! Os acidentes não são acontecimentos miraculosos quando os homens vivem dissolutamente e guiam depois do jantar.
‑ Oh! ‑ exclamou Mr. Mantalini, soltando um comprido assobio trinado: Então não sabe como isso foi?
‑ Não, a menos que fosse como suponho ‑ respondeu Ralph, encolhendo os ombros negligentemente, para dar a entender ao seu interlocutor que não sentia curiosidade no caso.
‑ Diabo, você espanta-me! ‑ disse Mantalini.
Ralph voltou a encolher os ombros e deitou uma vista de olhos à cara de Newman Noggs, que tinha aparecido várias vezes à porta. Era uma parte da obrigação de Newman, quando via serem horas das pessoas partirem, fingir que a campainha tinha tocado, para as conduzir à saída.
‑ Não sabe ‑ informou Mr. Mantalini, agarrando Ralph pelo botão do casaco ‑ que não houve acidente nenhum, mas um furioso ataque homicida do seu sobrinho?
‑ O quê? ‑ rosnou Ralph, apertando os punhos e tornando‑se lívido de morte.
‑ Diabos, Nickleby, você é um tigre como ele! ‑ disse Mantalini, alarmado por estas demonstrações.
‑ Continue ‑ gritou Ralph. ‑ Diga‑me o que quer dizer. Qual é a história?
‑ Quem lha contou? ‑ grunhiu Ralph. ‑ Ouve?
‑ Caramba, Nickleby ‑ exclamou Mr. Mantalini, recuando para o pé da mulher ‑ Que génio feroz você tem! Isso é suficiente para me assustar a alma e a vida aparte as pequenas brincadeiras deliciosas da minha esposa. voando todas numa tal paixão ardente, assoladora e raivosa, como nunca houve!
‑ Ora! ‑ retorquiu Ralph, forçando um sorriso ‑ não passa da maneira de ser.
‑ É um género irritante e de malucos ‑ observou Mantalini, apanhando a bengala.
Ralph afectou sorrir e mais uma vez perguntou de quem Mr. Mantalini recebera a informação.
‑ De Pyke, que é um cão fino, agradável e cavalheiresco - respondeu Mantalini: Diabolicamente agradável e uma sanguessuga de alto lá.
‑ Que disse ele? ‑ interrogou Ralph, franzindo as sobrancelhas.
‑Foi assim: o seu sobrinho encontrou‑o num café, caiu sobre ele com a mais terrível ferocidade, seguiu‑o até ao carro, jurou que iria no cabriolé até a casa dele, nem que fosse no dorso do cavalo ou agarrado à cauda do animal; quebrou‑lhe a cara‑ e que béla cara no seu estado natural‑ assustou o cavalo, atirou Sir Mulberry abaixo, caiu também e...
‑ Morreu? ‑ interrompeu Ralph com os olhos a brilharem. ‑ Matou‑se? Está morto?
Mantalini abanou a cabeça.
‑ Ora! ‑ exclamou Ralph voltando‑se. ‑ Não sofreu nada. Contenha‑se ‑ acrescentou, olhando em redor. ‑ Não partiu uma perna, um braço, não fracturou o ombro, nem a clavícula, nem esmagou uma costela ou duas? O pescoço salvou‑se para ser presente da corda da forca, mas teve algum ferimento, ou algum golpe que leve tempo a curar? Pelo menos, deve saber isso.
‑ Não ‑ replicou Mantalini, abanando outra vez a cabeça.
‑ A não ser que se desfizesse em pedacinhos tão pequenos que tivessem voado, de contrário não se feriu, pois foi‑se embora tão calmo e tão à vontade como. como. como o diabo!terminou Mr. Mantalini; bastante perplexo por não encontrar uma comparação.
‑E qual foi a causa da disputa? ‑ perguntou Ralph, hesitando um pouco.
‑ Você é um verdadeiro demónio ‑ retorquiu Mr. Mantalini num tom admirativo. ‑ Uma velha raposa, astuta e velhaca no superlativo. oh diabo!
‑Então não sábe que a sua sobrinha, a mais terna, doce, linda.
‑ Alfred! ‑ repreendeu Madame Mantalini.
‑ Ela tem sempre razão! ‑ admitiu Mr. Mantalini suavemente ‑ e quando diz que é tempo de ir, é porque é tempo, e temos de ir mas quando ela vai pela rua fora com a sua cara metade, as mulheres dizem, com inveja, que arranjou um marido todo catita; e os homens dirão, com entusiasmo, que é uma esposa como há poucas e todos têm razão, garanto pela minha vida e alma.
Com estas observações e muitas outras, não menos intelectuais e a propósito, Mr. Mantalini beijou os dedos das suas próprias luvas, despedindo‑se de Ralph Nickleby e, tomando o braço da esposa, conduziu‑a para fora, com afectação.
‑ Assim ‑ murmurou Ralph, caindo na cadeira ‑ este diabo está de novo perdido, atravessando-se‑me no caminho a cada passo, como se tivesse nascido propositadamente para isso. Disse‑me uma vez que mais tarde ou mais cedo chegaria o dia do ajuste de contas entre nós. Tenho-o por verdadeiro profeta, pois esse dia virá, com certeza!
‑ O senhor está em casa? ‑ perguntou Newman, metendo de repente a cabeça pela porta.
‑ Não ‑ respondeu Ralph com igual rapidez.
Newman retirou a cabeça, mas mostrou‑a de novo.
‑ Tem a certeza de que não está em casa, não tem? ‑ interrogou Newman.
‑ O que quer dizer este idiota? ‑ exclamou Ralph rudemente.
‑ É que este tem estado à espera quase desde que os primeiros entraram e ouviu a sua voz. mais nada ‑ disse Newman, esfregando as mãos.
‑ Quem é? ‑ inquiriu Ralph, atormentado pela ideia de ter sido ouvido e pela frieza provocante do seu empregado.
A resposta foi ultrapassada pela entrada da terceira visita, que olhou para Ralp Niekleby com o único olho que possuia, fez muitas reverências e se sentou numa cadeira de braços, com as mãos nos joelhos.
‑ Isto é uma surpresa! ‑ exclamou Ralph, olhando com atenção o visitante e meio sorrindo ao observá‑lo. ‑ Tinha que conhecer a sua cara, Mr. Squeers.
‑ Ah! ‑ replicou este ‑ e conhecia-a melhor, sár, se eu não tivesse passado pelo que passei. Quer fazer o favor de tirar aquele rapazinho de cima do banco do escritório e dizer‑lhe para cá vir? ‑ pediu Squeers, dirigindo‑se a Newman. ‑ Oh, ele já se tirou. O meu filho, sir, o pequeno Wackford. O que pensa dele, sir como um exemplo da alimentação de Dotheboys Hall? Não parece mesmo que está a rebentar dentro do fato, que vai descoser as costuras e arrancar os botões com a gordura? Isto aqui é carne! ‑exclamou Squeers, voltando o rapaz e identificando as partes do seu corpo com diversos socos e palmadas, com grande desagrado do seu filho herdeiro. ‑ Aqui há firmeza, aqui há solidez! O senhor mal o poderia apanhar entre o polegar e o indicador e dar‑lhe um beliscão!
E quando o pai ilustrou a observação, o rapaz deu um grito agudo e esfregou o sítio da maneira mais natural.
‑ Bem ‑ notou Squeers, um pouco desconcertado. ‑ Eu já o tinha agarrado, mas é por termos tomado o pequeno almoço esta manhã muito cedo e ainda não ter almoçado. Depois do jantar, o senhor não faz ideia! Olhe para as suas lágrimas, sir‑ acrescentou Squeers com um ar triunfante, enquanto Mister Squeers limpava os olhos com o punho da jaqueta ‑ São gotas de gordura!
‑ Na verdade tem boa aparência ‑ concordou Ralph, que por qualquer propósito parecia desejoso de agradar ao mestre‑ escola. ‑ Mas como está Mrs. Squeers e como está o senhor?
‑ Mrs. Squeers, sir ‑ informou o proprietário de Dotheboys Hall ‑ está sempre na mesma, uma mãe dos garotos, uma benção, um conforto, uma alegria para todos eles, como se sabe. Um dos nossos rapazes. enfartando‑se com a comida e adoecendo depois, o que é o costume, sobrevei-lhe um abcesso a semana passada. Era de ver como ela o operou com um cani vete! Oh! Senhor! ‑acrescentou Squeers, dando um suspiro e acenando com a cabeça um grande número de vezes ‑ Que mulher!
I Mr. Squeers concedeu um olhar retrospectivo durante um quarto de minuto, como se esta alusão às excelentes qualidades da sua senhora o levasse naturalmente à pacífica aldeia de Dotheboys, perto de Greta Bridge, no Yorkshire, e depois olhou para Ralph como se aguardasse que ele dissesse alguma coisa.
‑ Está completamente bom do ataque daquele maroto?perguntou Ralph.
‑ Estou completamente fino ‑ respondeu Squeers. ‑ Foi uma maldita amolgadela. ‑ Squeers tocou primeiro na cabeça e depois no tacão das botas ‑ daqui até aqui. Vinagre e papel pardo, vinagre e papel pardo desde manhã até à noite. Suponho que se amontoou ao pé de mim uma meia resma de papel pardo, desde o princípio até ao fim. Como o deixei numa pilha na cozinha, todo acamado, parecia um grande embrulho de papel cheio de lamentos. Gemia alto, ou baixo, Wackford?perguntou Mr. Squeers, apelando para o filho.
‑ Alto! ‑ respondeu Wackford.
‑Os rapazes estavam tristes ou alegres, Wackford, por me verem num tão terrível estado? ‑ interrogou Mr. Squeers com uma maneira sentimental.
‑ Alegres.
‑ O quê? ‑ exclamou Squeers, voltando‑se vivamente.
‑ Tristes ‑ emendou o filho.
‑ Oh ‑ disse Squeers, dando‑lhe um pequeno puxão de orelhas. ‑ Então tira as mãos das algibeiras e não te faças parvo quando te fizerem uma pergunta. Não se funga, sir, no escritório dum cavalheiro, ou eu fujo da família e nunca mais volto; e depois o que há‑de ser daqueles rapazes todos, desamparados, perdidos no mundo, sem o seu melhor amigo?
‑ Foi obrigado a ter assistência médica? ‑ inquiriu Ralph.
‑ Fui sim ‑ respondeu Squeers ‑ e uma linda conta de visitas médicas me foi também enviada. No entanto, paguei‑a.
Ralph ergueu as sobrancelhas duma maneira que tanto podia exprimir compaixão, como assombro... conforme se quisesse interpretar o gesto.
‑ Sim, paguei‑a até ao último ceitil ‑ replicou Squeers, que parecia conhecer muito bem o homem com quem lidava, para supor que lhe vinha pedir para pagar a despesa. ‑ Mas não fiquei arruinado, no fim de contas.
‑ Não ‑ exclamou Ralph.
‑ Nem num meio péni ‑ retorquiu Squeers. ‑ O facto é que eu levo um extraordinário aos meus rapazes e isso é para o médico quando é preciso, e não depois do mal acontecer a não ser que tenhamos confiança nos nossos clientes. Está a ver?
‑ Compreendo. ‑ respondeu Ralph.
‑ Muito bem ‑ disse Squeers. ‑ Então, depois da minha conta estar paga agarrámos em cinco rapazinhos, filhos de pequenos comerciantes, daqueles que pagam bem e que nunca tiveram escarlatina, mandámos um para uma casa onde havia e onde a apanhou, e depois pusémos os outros quatro a dormir com ele e eles apanharam‑na. Então, veio o médico que os visitou duma vez a todos e dividimos a minha importância por eles, acrescentando‑a às suas pequenas contas, que foram pagas pelos pais.
‑ Bom plano! ‑ comentoù Ralph, olhando o mestre‑escola furtivamente.
‑ Acredito em si ‑ retorquiu Squeers. ‑ Fazemos sempre isto. Quando Mrs. Squeers foi para a cama para ter o Wackford, fizemos com que meia dúzia de rapázes apanhassem a tosse convulsa e dividimos as despesas entre eles, incluindo a mensalidade da ama. Ah! ah! ah!
Ralph nunca ria, mas nesta ocasião produziu um som o mais parecido possível com isso e esperou até Mr. Squeers ter gozado a sua gracinha à vontade, para lhe perguntar o que o trouxera à cidade.
‑ Uns importunos assuntos de leis, ‑ informou Squeers, coçando a cabeça ‑ ligados a uma acção que eles chamam negligência com um rapaz. Não sei o que querem dizer. Esse rapaz teve uma boa pastagem quando estava connosco.
Ralph olhou, como se não entendesse completamente a observação.
‑ Pastagem ‑ repetiu Squeers, levantando a voz com a impressão de que Ralph o não compreendesse por ser surdo. Quando um rapaz enfraquece e adoece, não lhe sabendo bem a comida, damos‑lhe uma dieta. levâmo‑lo por uma hora, ou mais, todos os dias para um campo de nabos da vizinhança, ou às vezes, se é um caso delicado, um nabal e um bocado de cenouras, alternadamente, e deixámo‑lo comer tanto quanto quiser. Não há melhor terra no país onde esse maldito pastasse e, contudo, apanhou uma constipação e uma indigestão e então os seus amigos vieram com uma acção contra mim! Ó senhor mal supõe ‑ acrescentou Squeers, movendo‑se na cadeira com a impaciência dum homem acostumado ‑ a ingratidão dessa gente em levar o caso tão longe!
‑ Na verdade é um caso difícil ‑ comentou Ralph.
‑ Não diz mais que a verdade ‑ replicou Squeers. ‑ Não suponho que haja um homem tão louco por crianças como eu. Presentemente há em Datheboys Hall, jovens que contribuem com oitocentas libras por ano. Poderia até ter um rendimento de mil e seiscentas libras que não deixaria de ser tão doido por cada um dos rapazes como sou!
‑ Está alojado nos seus velhos aposentos?‑ perguntou Ralph.
‑ Sim, estamos no Saracen ‑ informou Squeers ‑ e como não falta muito para o fim do semestre, continuaremos alojados ali, até eu ter cobrado o dinheiro e arranjado, também, mais alguns rapazes, conforme espero. Trouxe o pequeno Wackford com o fim de o mostrar aos pais e tutores. Desta vez é ele o meu anúncio. Olhe para o rapaz, que é também aluno, e diga‑me se este rapaz não é um milagre de sobrealimentação:
‑ Gostaria de lhe dizer uma palavrinha ‑ disse Ralph, que falara e escutara mecanicamente, havia algum tempo e parecia ter estado a pensar.
‑ Tantas palavras quantas quiser sir, ‑ retorquiu Squeers.
‑ Wackford vai brincar para o escritório de trás e não te mexas muito para não emagreceres! Não tem por aí dois pence Mr. Nickleby? ‑ perguntou Squeers, sacudindo um molho de chaves na algibeira da casaco e murmurando só ter moedas de prata.
‑ Creio. que tenho ‑ respondeu Ralph muito vagarosamente e tirando, depois de muito remexer numa velha gaveta, um péni meio péni e dois farthàngs.
‑ Obrigado ‑ agradeceu Squeers, entregando-os ao filho.
‑Aqui tens! Vais comprar um pastel de fruta. O empregado de Mr. Nickleby diz‑te onde é, mas tem cautela, compra um bom. A pastelaria ‑ acrescentou Squeers, fechando a porta sobre Mister Wackford ‑ faz‑lhe a pele reluzente e os pais julgam que é sinal de saúde.
Com esta explicação e um olhar peculiarmente conhecido para a tornar mais vivida, Mr. Squeers pôs a cadeira em frente de Ralph Nickleby a curta distância, sentando-se nela com perfeita satisfação.
‑ Atenda‑me ‑ preveniu Ralph, inclinando‑se um pouco para a frente.
Squeers disse que sim com a cabeça.
‑ Não suponho ‑ continuou Ralph, que você seja tão tolo que perdoe ou esqueça facilmente a violência que lhe fizeram, ou a situação que a acompanhou.
‑ O diabo é que esqueci ‑ respondeu Squeers amargamente.
‑ Ou de perder uma oportunidade para a fazer pagar com juros, se puder ter uma?
‑ Mostre‑me uma e experimente ‑ replicou Squeers.
‑ Foi essa intenção que o levou a visitar‑me? ‑ interrogou Ralph, levantando os olhos para o mestre‑escola.
‑ N. n. não, não me passou isso pela cabeça ‑ respondeu Squers. ‑ Pensei que estava na sua mão, além da ninharia do dinheiro que me mandou, dar‑me qualquer compensação.
‑ Ah! ‑ exclamou Ralph, interrompendo‑o. ‑ Não precisa de dizer mais.
Depois duma grande pausa, durante a qual Ralph parecia estar absorvido em contemplação, quebrou de novo o silêncio perguntando:
‑Quem é o rapaz que ele trouxe consigo?
Squeers indicou o nome.
‑Era novo ou velho, saudável ou enfermiço, tratável ou rebelde? Fale, homem ‑ convidou Ralph rapidamente.
‑ Não era novo ‑ respondeu Squeers ‑ isto é, não era novo para rapaz.
‑Quer dizer, não era completamente um rapaz, suponho eu? ‑ interrompeu Ralph.
‑ Bem ‑ retorquiu Squeers, como se sentisse aliviado pela sugestão ‑ ele devia estar próxino dos vinte. Não parecia tão velho para aquéles que o não conheciam, por lhe faltar um pouco disto‑ e apontou para a testa‑ e ninguém lhe deixava de bater com frequência...
‑Então batiam‑lhe com muita frequência, atrevo‑me a dizer! ‑ murmurou Ralph.
‑ Menos mal ‑ replicou Squeers com um sorriso.
‑Quando me escreveu para dizer ter recebido essa ninha ria de dinheiro, como lhe chama e me informou que o amigo dele o abandonara há muito tempo e que você não tinha o mais ligeiro rasto para lhe dizer quem era, é verdade?
‑ e a pior das sortes! ‑ exclamou Squeers, tornando‑se cada vez mais familiar e desembaraçado nas suas maneiras, à medida que Ralph prosseguia nas suas perguntas com menos reserva ‑ Foi há catorze anos, pelo assento nos meus livros, que um desconhecido mo trouxe numa noite de outono, e o deixou, pagando antecipadamente cinco libras pelo primeiro trimestre. Ele podia ter por essa altura cinco ou seis anos, não mais.
‑ O que sabe mais a respeito dele? ‑ inquiriu Ralph.
‑ Muito pouco, sinto dizer ‑ informou Squeers ‑ O dinheiro foi pago durante seis ou oito anos e depois parou. O tipo tinhame dado uma morada em Londres, mas quando chegou à altura, ninguém sabia nada dele. Por isso conservei o rapaz por...
‑ Caridade? ‑ sugeriu Ralph secamente.
‑ Caridade, com certeza ‑ replicou Squeers, esfregando os joelhos ‑ e quando começava a ser útil numa certa espécie de trabalho, esse malvado do Nickleby vem e leva‑o. Mas a parte mais vexatória e grave de todo o negócio é ‑ continuou Squeers baixando a voz e chegando a cadeira para mais perto de Ralph
‑ é que ultimamente têm sido feitas algumas perguntas acerca dele; não a mim, mas duma maneira indirecta por gente da nossa aldeia. Por isso quando eu podia ter todas as dividas atrasadas pagas e talvez. quem sabe? recebido uma quantia razoável por o ter posto numa quinta, ou mandá‑lo para o mar, a fim de não poder voltar para afligir os pais. supondo que é um filho natural. como muitos dos nossos rapazes. se aquele maldito do Nickleby não mo tivesse levado em pleno dia e não cometesse aquele roubo na minha algibeira.
‑Daqui a pouco ambos nos livramos dele ‑ sossegou Ralph pondo a mão no braço do mestre‑escola de Yorkshire.
‑ Livrar! ‑ ecoou Squeers‑ Ah! eu gostaria de lhe pagar uma conta que tenho em aberto, para ser liquidada quando ele possa. Apenas desejava que Mrs. Squeers pudesse apanhá‑lo. Bendito seja o seu coração! Ela matava‑o, Mr. Nickleby. matava‑o, tão certo como eu me chamar Squeers.
‑ Havemos de falar disso outra vez ‑ prometeu Ralph. - Preciso de tempo para pensar nisso. Feri‑lo nas suas afeições ou fantasias. Se eu pudesse molestá‑lo através desse rapaz.
‑ Moleste‑o como quiser, sir ‑ interrompeu Squeers‑ apenas lhe deve chegar bastante forte... e com isto desejo‑lhe bom dia. Quer‑me tirar esse chapeuzinho do rapaz, da escápula do canto e pô‑lo no banco?
Gritando estes pedidos a Newman Noggs, Mr. Squeers entrou no escritório e compôs o chapéu do filho com paternal cuidado, enquanto Newman, com a pena atrás da orelha se sentava, direito e imóvel, no seu banco, olhando o pai e o fiÌho, alternadamente, fixamente, dum modo atrevido.
‑ Um belo rapaz, não é? ‑ perguntou Squeers, pondo a cabeça um pouco à banda e encostando‑se à secretária para melhor apreciar as proporções do seu pequeno Wackford.
‑ Muito! ‑ disse Newman.
‑ Muito gordinho, não está? ‑ prosseguiu Squeers ‑ Tem a gordura de vinte rapazes!
‑ Ah! ‑ exclamou Newman, chegando de repente a sua cara à de Squeers ‑ Ele tem. a gordura de vinte?. mais! Tem‑na de todos. Deus abençoe os outros.
Tendo proferido estas observações fragmentadas, Newman mergulhou na sua secretária e começou a escrever com uma rapidez maravilhosa.
‑ O que quer o homem dizer? ‑ perguntou Squeers, corando ‑ Ele está bêbado? Newman não deu resposta.
‑ Maluco? ‑ continuou Squeers.
Mas como Newman continuava a não acusar a presença do outro, Mr. Squeers confortou‑se chamando‑Lhe bêbado e maluco, e com esta observação de despedida conduziu o seu
esperançoso filho para fora.
Ralph Nickleby detestava Nicholas nas mesmas proporções que aumentava o seu interesse por Kate. Parecia que os seus sentimentos precisavam de ser assim contrabalançados. Mas sabendo que ela o detestava, que sentia nojo na sua companhia e que a causa de tudo isto era o rapaz, que o desafiara e o afrontara desde o princípio, imediatamente tratou de procurar represálias. Porém ‑ felizmente para Nicholas ‑ embora conservasse um canto do cérebro dedicado a procurar ansiosamente uma forma, não a encontrou, continuando, no entanto, nas suas improfícúas reflexões.
Quando o meu irmão era tal como ele pensava Nickleby as primeiras comparações levantaram‑se entre nós. sempre á meu desfavor. Ele era franco, liberal, valente, alegre; eu um astuto avarento por ouro e dum gémio brando, sem paixões, a não ser o amor pela poupança, e sem espírito, a não ser pela sede do lucro. Lembrei‑me bem disto quando vi pela primeira vez esse brejeiro, mas agora recordo‑me melhor.
Tinha estado ocupado a reduzir a átomos a carta de Nicholas e espalhou‑os numa chuva em volta de si.
Lembranças como esta, cantinuou Ralph com um amargo sorriso, flutuam em redor de mim, quando as deixo aparecer, às nuvens e de todos os lados. Como uma porção do mundo afecta desprezar o poder do dinheiro, tenho que lhes mostrar que ele é importante. Sentindo‑se nesta altura num agradável estado de espírito para dormitar, Ralph Nickleby foi para a cama.
Smike relaciona‑se com Mrs. Nickleby e Kate. Nicholas encontra novos conhecimentos e dias melhores parecem amanhecer
para a família
Tendo instalado a mãe e a irmã nos alojamentos da afectuosa miniaturista e sabendo que Sir Mulberry Hawk não estava em perigo de perder a vida, Nicholas voltou os pensamentos para o pobre Smike, o qual depois do pequeno almoço com Newman Noggs, ficou muito triste no quarto da digna criatura esperando com a maior ansiedade por futuras notícias do seu protector.
Como ele fará parte da nossa pequena família, onde quer que vivamos, ou seja qual for a fortuna que nos estiver rservada ‑ pensou Nicholas, tenho de apresentar o pobre rapaz na devida forma. Elas serão amáveis por amor dele e se não nessa qualidade somente aumentarão uma certa boa vontade á causa, tenho a certeza.
As dúvidas de Nicholas limitavam-se a uma pessoa. Estava certo de Kate, mas conhecia o feitio de sua mãe e nãp estava por isso tão certo de Smike cair nas boas graças de Mrs. Nickelby.
Contudo, pensou Nicholas, a caminho da sua caritativa missão, ela não pode deixar de o estimar quando souber como ele é dedicado e, quanto mais depressa fizer a descoberta, mais curta será a provação dele.
‑ Estava com medo ‑ disse Smike alegríssimo por ver outra vez o seu amigo ‑ que tivesse caídó de novo noutro aborrecimento; o tempo, por fim, parecia tão comprído que quase temi tê‑lo perdido.
‑ Perdido! ‑ replicou Nicholas alegremente ‑ Não te livras de mim tão facilmente, prometo‑te. Ainda hei‑de voltar à superfície muitos milhares de vezes, e com quanta mais força me puxarem para baixo, mais rapidamente regressarei a casa. Smike! Mas, vamos; a minha missão aqui é levar-te para casa.
‑ Para casa! ‑ gaguejou Smike, recuando timidamente.
‑ Sim ‑ respondeu Nicholas, agarrando‑lhe no braço. Por que não?
‑ Tive uma vez essas esperanças ‑ disse Smike ‑ dia e noite durante muitos anos. Suspirava por um lar até ficar cansado e desfalecido de dor, mas agora.
‑ Agora o quê? ‑ perguntou Nicholas, olhando‑o amavelmente ‑ Agora o quê, querido amigo?
‑ Não podia separar‑me de si para ir para qualquer lar no mundo ‑ replicou Smike, apertando‑lhe a mão. Nunca serei um homem de idade e se for esse o caso, espero que pelo menos vá visitar o meu túmulo.
‑Porque falas assim, pobre rapaz, se a tua vida é feliz comigo? ‑ inquiriu Nicholas.
‑Porque eu devo mudar; não aqueles que estão ao pé de mim. E se eles me esquecerem, eu nunca o devo saber ‑ retorquiu Smike ‑ No adro da igreja todos são iguais, mas aqui os outros não são iguais a mim. Eu sou uma pobre criatura, sei-o perfeitamente.
‑ és uma criatura pateta se é isso o que queres dizer, concordo contigo. Aqui estarás na companhia de senhoras. da minha linda irmã também, de quem me tens feito perguntas tantas vezes. É esta a tua galantaria de Yorkshire? Que vergonha! Que vergonha!
Smike aninou‑se e sorriu.
‑ Quando falo de lares ‑ prosseguiu Nicholas ‑ refiro‑me ao meu, que é teu, decerto. Se fosse definido por quaisquer especiais quatro paredes e um tecto, Deus sabe que me sentiria suficientemente embaraçado para dizer em que sitio está
mas não é isso o que quero dizer. Quando falo de lar, refiro‑me ao lugar ‑ à falta dum melhor ‑ onde estão reunidos aqueles que amo, e esse lugar seja uma tenda de ciganos, ou um celeiro, dou‑lhe, não obstante isso, o mesmo bom nome. E agora pelo que diz respeito ao meu presente lar, quaisquer que possam ser as tuas expectativas alarmantes, não te aterrorizará pela extensão, nem pela magnificência.
Falando assim, Nicholas agarrou no braço do companheiro e dizendo bastantes mais coisas sobre o mesmo assunto, e assinalando várias coisas para o divertir e interessar durante o caminho, conduziu‑o para casa de Miss La Creevy.
‑ E este, Kate ‑ disse Nicholas, entrando no aposento onde a irmã se encontrava só ‑ é o fiel amigo e afectuoso companheiro de viagem a quem te preparei para receberes.
O pobre Smike estava bastante envergonhado e amedrontado ao princípio, mas Kate avançou para ele tão amavelmente e disse, numa voz tão doce, da sua ansiedade em o ver depois de tudo o que o irmão lhe contara e quanto tinha a agradecer‑lhe por tanto ter confortado Nicholas nos seus revezes, que ele começou a não saber se devia esconder as lágrimas e ficou ainda mais confundido. Contudo, conseguiu dizer numa voz fraca que Nicholas era o seu único amigo e que daria a sua vida para o ajudar; e Kate, embora fosse tão amável, pareceu tão completamente inconsciente da sua aflição e embaraço, que ele se recobrou quase imediatamente e se sentiu quase à vontade.
Depois entrou Miss La Creevy foi também amável e maravilhosamente comunicativa, não para Smike, pois tê‑lo‑ia deixado de início muito atrapalhado, mas para Nicholas e para a irmã. Depois de algum tempo falou com Smike fazendo‑lhe perguntas sobre os quadros que via e sobre as senhoras, em retrato e ao natural, e com pequenas brincadeiras e alegres observações, feitas com tão bom humor e alegria, que Smike pensou para consigo ser ela a senhora mais terna que tinha visto; mesmo mais do que Mrs. Grudden, do teatro de Mr. Vincent Crummles, que era também uma senhora terna e faladora, talvez mais, mas falando mais alto do que Miss La Creevy.
Por fim a porta do aposento abriu‑se de novo e uma senhora de luto entrou, a quem Nicholas beijou afectuosamente, chamando‑lhe mãe, e levando‑a para a cadeira donde Smike se levantara quando a viu entrar.
‑A senhora é sempre afável e está ansiosa por ajudar os oprinidos, minha querida mãe ‑ disse Nicholas ‑ portanto, sei que lhe dispensará os seus favores e cuidados.
‑ Tenho a certeza, meu querido Nicholas ‑ respondeu Mrs. Nickleby, olhando para o seu novo amigo e inclinando‑se com muito mais majestade do que a ocasião parecia pedir‑ tenho a certeza de que qualquer dos teus amigos compreende o muito prazer que tenho em ser apresentada aqueles por quem te interessas. não pode haver dúvidas sobre isso, absolutamente nenhumas. Ao mesmo tempo devo dizer, meu querido Nicholas como costumava dizer ao teu pobre papá, quando ele trazia cavalheiros para jantarem e não havia nada em casa, que se ele tivesse vindo antes de ontem. não, não quero dizer antes de ontem, devia ter dito, talvez há dois anos. estaríamos em melhores condições para os receber.
Com estas observações voltou‑se para a filha e perguntou num audível segredo, se o cavalheiro ia ficar toda a noite.
‑ Porque se ele fica, Kate, minha querida ‑ continuou Mrs Nickleby‑não vejo possibilidade de arranjar lugar onde ele durma, esta é que é a verdade!
Kate adiantou‑se graciosamente e, sem mostrar aborrecimento ou irritação, disse umas palavras ao ouvido da mãe.
‑ Minha querida Kate! ‑ exclamou Mrs. Nickleby recuando ‑ Que cócegas me fizeste no ouvido! Decerto compreendo isso, meu amor, sem mo dizeres; e disse o mesmo ao Nicholas e estou muito satisfeita. Tu não me disseste, Nicholas, meu querido ‑ acrescentou Mrs. Nickleby, voltando‑se com um ar de menos reserva do que tivera antes ‑ qual é o nome do teu amigo.
‑ O seu nome, mãe, é Smike ‑ informou Nicholas. O efeito desta comunicação não fora, de forma alguma, previsto, mas tão depressa o nome foi pronunciado Mrs. Nickleby caiu numa cadeira com uma crise de choro.
‑O que se passa? ‑ perguntou Nicholas, correndo a ajudá‑la.
‑ tão parecido com Pyke ‑ explicou Mrs. Nickleby. Tão exactamente como Pyke! Oh! Não me falem... estarei melhor daqui a pouco.
E depois de exibir todos os sintomas duma lenta sufocação em todos os graus e de beber cerca duma colher de chá de água, dum copo cheio e de desperdiçar o resto, Mrs. Nickleby estava melhor e notou, com um fraco sorriso, que bem sabia que era pateta.
‑ uma fraqueza da nossa família ‑ confidenciou Mrs. Nickleby ‑ por isso, decerto, não posso queixar‑me. A tua avó, Kate, era exactamente o mesmo. A mais pequena excitação, a mais ligeira surpresa, desmaiava imediatamente. Ouvi‑lhe dizer com muita frequência que quando era nova e antes de casar, virava um dia uma esquine em Oxford Street quando correu contra ela o seu cabeleireiro, que parecia fugir dum urso. a simples surpresa do encontro fê‑la desmaiar imediatamente. Esperem ‑ acrescentou Mrs. Nickleby; parando para considerar ‑ deixa‑me ter a certeza se falo verdade. Foi o seu cabeleireiro que fugia dum urso, ou foi um urso que fugia do seu cabeleireiro? Confesso que não me lembro agora, mas o cabeleireiro era um homem muito bonito e um cavalheiro nas suas maneiras. Mas isso não tem nada com a história.
Mrs. Nickleby tendo caído, imperceptivelmente, nos seus modos retrospectivos, deslizou por uma fácil mudança de conversa em outras histórias não menos notáveis como estrita aplicação para o assunto tratado.
‑Mr. Smike é de Yorkshire, Nicholas, meu querido?perguntou Mrs. Nickleby depois do jantar.
‑ Certamente, mãe ‑ respondeu Nicholas. ‑ Vejo que não esqueceu a sua triste história.
‑ Oh, querido, não! ‑ exclamou Mrs Nickleby. ‑ Ah, triste de facto! Não lhe aconteceu, Mr. Smike, ter alguma vez jantado com os Grimbles, de Grimble Hall, num sítio qualquer no Norte Riding? ‑ interrompeu a boa senhora, dirigindo-se ao rapaz. ‑ Sir Thomas Grimble é um homem muito orgulhoso com as suas adoráveis filhas e tem o mais belo parque do condado.
‑Minha querida mãe ‑ replicou Nicholas ‑ supõe que os infelizes réprobos duma escola de Yorkshire estão em condições de receber cartões de convite da nobreza e da burguezia da vizinhança?
‑Realmente, meu querido, não vejo nisso nada de muito extraordinário ‑ disse Mrs. Nickleby. ‑ Sei que quando eu estava na escola fui sempre, pelo menos duas vezes cada semestre, a Hawkinses, em Taunton Vale, que são muito mais ricos que os Grimbles e ligados a eles por casamento; por isso não era nada impossível.
Tendo assim triunfantemente vencido Nicholas Mrs. Nickleby continuou a irresistivel tendência de trocar o nome de Smike por Slunons, facto que atribuía à circunstância de começarem ambos por um S e de serem ditos como um M. Assim contlnuou o círculo, no mais amigável e agradável pé até segunda-feira de manhã, quando Nicholas determinou poder sustentar aquele que considerava como um parente. Decidiu também não voltar ao palco, por considerar dever exercer uma profissão mais compatível com as suas habilitações. Havia ainda outras razões: além de ter a certeza de nunca chegar a ser um bom actor, mesmo na província, como podia ele andar com a irmã de terra em terra? Não o farei, disse Nicholas abanando a cabeça. Tenho de tentar qualquer outra coisa.
Mas era muito mais fácil de dizer do que pô-lo em execução. Com pouca experiência da vida, um pecúlio muito ma gro e quase sem amigos, o que podia fazer? Foi nesta altura que lhe lembrou experimentar, de novo, a agência de colocações. O escritório estava na mesma como o deixara, com a excepção de um ou dois cartazes na montra. Havia os mesmos impecáveis patrões e patroas à procura de virtuosos criados e criadas, e virtuosos criados e criadas à procura de impecáveis patrões e patroas. Quando Nicholas parou para olhar para a montra, um cavalheiro de idade parou também e Nicholas tirou os olhos da montra para o observar melhor. Era um robusto homem de idade, vestido com um largo casaco azul e calções de pano grosso de lã, com polainas altas e um cha péu branco na cabeça, tendo no pescoço um lenço branco. Mas o que principalmente atraiu a atenção de Nicholas foram os olhos do velho senhor, uns olhos claros cintilantes, francos, alegres, felizes. Ele estava de cabeça à banda, olhando com uma expressão bem humorada para os cartazes e brincando com uma velha corrente de ouro do relógio; e era tão agradável a sua expressão e irradiava tanta simpatia, que Nicholas era capaz de ficar a contemplá‑lo até à noite. Embora estivesse longe de se julgar objecto desta curiosidade, o senhor, casualmente, olhou para Nicholas, mas temendo ter ofendido voltou os olhos imediatamente para a montra; enquanto estava entretido a percorrer os cartazes, Nicholas não se pôde furtar a lançar os olhos mais uma vez, para ele, atraído pela sua figura. Não foi, portanto, maravilha que o velho senhor o apanhasse nesta contemplação mais duma vez, e de cada uma delas Nicholas corou e pareceu embaraçado, começando a suspeitar que o estranho podia ser tomado por um caixeiro ou secretário. Quando ele fez menção de se ir embora, Nicholas foi apanhado de novo a olhá‑lo e, na atrapalhação de momento, lançou um pedido de desculpa.
‑ Não faz mal!. Não faz mal! ‑ afirmou o senhor. Isto foi dito num tom tão cordial e a voz era exactamente a que devia ser duma tal pessoa, acompanhada duma maneira tão franca, que Nicholas foi levado a falar novamente.
‑Há aqui muitas oportunidades, sir ‑ disse ele meio a sorrir, apontando para a montra.
‑Muita gente ansiosa de se empregar, pensará seriamente assim, com frequência ‑ replicou o senhor. ‑ Pobres diabos, pobres diabos!
Ia‑se embora ao dizer isto, mas vendo que Nicholas ia a falar, de boa mente afrouxou o passo, como se fosse incapaz de interromper. Depois dessa pequena hesitação que algumas vezes se observa entre duas pessoas na rua, quando trocam um cumprimento de cabeça e não têm a certeza se a outra se volta para falar, Nicholas encontrou‑se ao lado do senhor.
‑Ia a falar, jovem... O que ia a dizer?
‑ Apenas que esperava, quero dizer, pensava que tinha alguns objectivos ao consultar estes anúncios ‑ declarou Nicholas.
‑O quê, o quê? Que objectivos? ‑ perguntou o senhor, olhando atentamente para Nicholas. ‑ Pensava que precisava dum lugar. hein? Pensou que eu precisava?
Nicholas disse que sim com a cabeça.
‑Ah! ah! ‑ riu o senhor, esfregando as mãos e os pulsos, como se os estivesse a lavar. ‑ Um pensamento muito natural, em todo o caso, depois de me ver a fixar os cartazes. Palavra, que ao princípio pensei o mesmo de si.
‑Se tivesse pensado assim, sir, não estaria longe da verdade ‑ retorquiu Nicholas.
‑O quê? ‑ exclamou o senhor, observando-o dos pés à cabeça. ‑ O quê! Meu Deus! Não. Um jovem com tão boa aparência reduzido a uma tal extremidade! Não!
Nicholas curvou‑se e desejando‑lhe bom‑dia, rodou sobre os calcanhares.
‑Fique! ‑ pediu o senhor, levando‑o para uma travessa, onde podiam conversar sem a mínima interrupção. ‑ O que quer dizer?
‑Apenas o que a sua cara e maneiras amáveis, ambas tão diferentes do que tenho visto, me levaram a confessar. o que eu, a qualquer outro estranho neste caos de Londres não teria sonhado em fazer ‑ confessou Nicholas.
‑Caos. Sim, é, é. Bem! um caos ‑ repetiu o senhor com muita animação. ‑ Foi um caos uma vez para mim. Vim para cá de pé descalço. nunca me esqueci. Graças a Deus!e ergueu o chapéu da cabeça com muita gravidade.
‑ De que se trata?. O que é? Como aconteceu tudo isso?
‑ inquiriu o senhor, pondo a mão no ombro de Nicholas e subindo a rua com ele. ‑ Está. hein? ‑ pondo o indicador na manga do casaco preto do rapaz. ‑ Por quem é?
‑Pelo meu pai ‑ respondeu Nicholas.
‑Ah! ‑ exclamou o cavalheiro muito depressa. ‑ Má coisa para um jovem perder o pai! Mãe viúva, talvez?
Nicholas suspirou.
‑ Irmãos e irmãs, também, hein?
‑ Uma irmã.
‑Pobre criatura, pobre criatura! também estudante?interrompeu o senhor olhando atentamente a cara do jovem.
‑ Foi toleravelmente bem educada ‑ informou Nichalas.
‑ Bela coisa ‑ disse o senhor ‑ a educação é uma grande coisa. Uma coisa muito grande. Eu nunca tive. Admiro‑a nos outros. Uma coisa muito boa. sim, sim. Conte‑me mais de sua história. Diga‑me tudo. Não é uma curiosidade impertinente. não!
Havia tanta sinceridade e ansiedade na forma como tudo isto foi dito, um desprezo tão completo de todas as restrições e friezas; que Nicholas não pôde resistir. Para os homens que possuem a faculdade de escutar e são sinceros, nada há tão contagioso como abrir francamente o coração. Nicholas percorreu os pontos principais da sua história, sem reserva, apenas suprimindo nomes e tocando o menos possível no tratamento do seu tio para com Kate. O senhor ouviu com grande atenção e quando ele concluiu deu‑lhe vivamente o braço.
‑Não diga mais uma palavra... uma só palavra! Venha comigo. Não podemos perder um minuto.
Dizendo isto o cavalheiro de idade arrastou‑o para Oxford Street e, chamando um ónibus a caminho da Cìty, empurrou Nicholas e seguiu‑o. Como parecia muitíssimo excitado, sempre que Nicholas tentava falar acudia imediatamente com, Não diga mais uma palavra, meu caro senhor, de forma nenhuma! de modo que o jovem achou melhor não tentar qualquer interrupção. Entraram na City sem trocar palavra e Nicholas perguntava a si próprio qual seria o fim da aventura.
Quando chegaram ao Bank o cavalheiro saiu com grande alacridade e, agarrando mais uma vez no braço de Nicholas, levou‑o para Threadneadle Street, saindo depois num pequeno largo, tendo passado por muitas travessas e ruas estreitas. Encaminharam‑se para a mais velha e limpa casa de negócios do largo, cuja única inscrição na porta dizia, Cheeryble Brothersv, mas por uma rápida vista de olhos aos endereços de alguns pacotes que lá havia, Nicholas supós tratar‑se duma firma de negociantes alemães.
Passando por um armazém, Mr. Cheeryble, que Nicholas supôs assim chamar‑se o senhor pelo respeito testemunhado por todos, levou‑o para a contabilidade, uma grande gaiola de vidro onde estava sentado um homem de idade, gordo, de cara comprida, com óculos de prata e uma cabeça com brancas.
‑ O meu irmão está no escritório, Tim? ‑ perguntou Mr. Cheeryble com não menos gentileza de maneiras do que tinha mostrado a Nicholas.
‑ Está sim, sir ‑ respondeu o empregado gordo, voltando os óculos para o patrão e os olhos para Nicholas ‑ mas Mr. Trimmers está com ele.
‑Ah! E porque é que ele veio, Tim? ‑ inquiriu Mr. Cheeryble.
‑Está fazendo uma subscrição para a viúva e família dum homem que morreu nas East India Docks esta manhã, sir
‑ respondeu Tim. ‑ Esmagado, sir, por uma barrica de açúcar.
‑ Ele é uma boa criatura ‑ comentou Mr. Cheeryble com grande convicção. ‑ uma boa alma. Estou muito obrigado a Trimmers. Trimmers é um dos melhores amigos que temos. Informa‑nos dum milhar de casos que não éramos capazes de descobrir por nós próprios. Estou muito obrigado a Trimmers.
‑ Com isto Mr. Cheeryble esfregou as mãos com infinito deleite e, acontecendo Mr. Trimmers sair a porta nesse instante, para se ir embora, gritou‑lhe e agarrou‑o pela mão.
‑ Devo‑lhe milhares de agradecimentos, Trimmers. dez mil agradecimentos.
- Isso é muito amigável da sua parte - disse Mr. Cheeryble, arrastando-o para um canto, para ficar fora do ouvido dos outros. ‑ Quantas crianças são, e quanto deu meu irmão Ned, Trimmers?
‑São seis crianças ‑ respondeu o cavalheiro ‑ e o seu irmão deu vinte libras.
O meu irmão é um bom rapaz e você é também, Trimmers ‑ retorquiu o senhor, apertando‑lhe ambas as mãos com grande ardor. ‑ Inscreva‑me com mais vinte. ou. pare um minuto, pare um minuto. Não devemos mostrar ostentações; inscreva‑me com dez libras e Tim Linkinwater com outras dez. Um cheque de vinte libras para Mr. Trimmers, Tim. Deus o abençoe, Trimmers e venha jantar connosco um dia desta semana; encontra sempre um garfo e uma faca e nós ficaremos contentes. Agora, meu caro senhor. o cheque para Mr. Trimmers, Tim. Esmagado por uma barrica de açúcar e seis pobres crianças... oh, meu Deus, meu Deus!
Conversando desta maneira, tão depressa quanto podia, para evitar qualquer demonstração de agradecimento do cobrador da subscrição da grande quantia do seu donativo, Mr. Cheeryble encaminhou Nicholas, igualmente espantado e impressionado pelo que vira e ouvira neste curto espaço de tempo, para a porta meio aberta dum outro aposento.
‑Irmão Ned ‑ chamou Mr. Cheeryble, batendo com os nós dos dedos e parando para ouvir. ‑ Está ocupado, meu querido irmão, ou pode dispor de tempo para uma palavra ou duas comigo?
‑Irmão Charles, meu querido rapaz ‑ respondeu uma voz do interior, tão igual no tom com a que acabara de falar, que Nicholas ficou surpreendido e pensou quase ser a mesma
‑ Não me faça tal pergunta e entre imediatamente! Entraram sem mais palavras e qual não foi o espanto de Nicholas quando o companheiro avançou e trocou calorosa saudação com um outro cavalheiro de idade, o seu preciso tipo e modelo ‑ a mesma cara, a mesma figura, o mesmo casaco e lenço do pescoço, os mesmos calções e polainas. não, havia precisamente o mesmo chapéu branco, mas pendurado na parede!
Enquanto eles se entregavam às suas expansões, muito tocantes em pessoas de idade, Nicholas observou que o último dos cavalheiros era um pouco mais forte do que o irmão e este ligeiramente mais desajeitado, sendo estas as únicas diferenças existentes entre eles. Ninguém duvidaria que fossem gémeos.
‑Irmão Ned ‑ disse o amigo de Nicholas, fechando a porta ‑ este é um jovem amigo meu a quem devemos ajudar. Devemos investigar as suas declarações, como é de justiça tanto para ele, como para nós, e se se confirmarem, como tenho a certeza que sim, devemos ajudá‑lo; devemos ajudá‑lo, irmão Ned!
‑ É suficiente, meu querido irmão, que diga que devemos ‑ replicou o outro. ‑ Uma vez que diz, não são precisas investigações. Ele será ajudado. Quais são as suas necessidades e o que precisa ele? Onde está Tim Linkinwater? Ele que venha cá!
‑Pare, pare pare! ‑ exclamou o irmão Charles levando o outro para o ládo. ‑ Tenho um plano, meu querido irmão, tenho um plano. Tim está‑se a tornar velho e Tim tem sido um fiel servidor, irmão Ned; não penso que dar uma pensão à mãe e à irmã de Tim e comprar um pequeno jazigo para a família quando o seu pobre irmão morrer, seja uma recompensa suficiente para os seus fiéis servidores.
‑Não ‑ replicou o outro. ‑ Certamente que não! Não é metade suficiente, não é metade.
‑Se pudéssemos aliviar os deveres de Tim ‑ continuou o idoso cavalheiro ‑ e conseguir que ele vá para o campo de vez em quando, dormir ao ar puro duas ou três vezes por semana, o que ele podia fazer se começasse o trabalho uma hora mais tarde de manhã, o querido Tim Linkinwater tornava‑se outra vez jovem com o tempo, e ele é três bons anos mais velho do que nós. O velho Tim Linkinwater outra vez novo! Hein, irmão Ned! Lembro-me do velho Tim Linkinwater ser um rapazinho, não se lembra? Pobre Tim, pobre Tim.
Os dois belos velhos riram agradavelmente, cada um com uma lágrima de lembrança pelo querido Tim Linkinwater.
‑ Mas ouça primeiro isto. irmão Ned ‑ pediu rapidamente o senhor, colocando duas cadeiras, cada uma ao lado de Nicholas. ‑ Dir‑lhe‑ei eu próprio isto, irmão Ned, porque o jovem é modesto e é um estudante, e não acho razão para ele nos contar a sua história constantemente, como se fosse um pedinte, ou como se duvidássemos dele. Não, não, não!
‑Não! ‑ repetiu o cavalheiro, acenando com a cabeça gravemente. ‑ Muita razão, meu querido irmão, muita razão.
‑Ele me dirá se estou enganado, ou se faço trapalhada ‑ disse o amigo de Nicholas. ‑ Mas quer me engane, ou não, o senhor terá muito prazer, irmão Ned, em recordar o tempo em que éramos dois garotos sem amigos, e ganhámos o nosso primeiro xelim nesta grande cidade.
Os gémeos apertaram as mãos em silêncio e o irmão Charles relatou os pormenores dados por Nicholas. Quando terminou a conversa, o irmão Ned foi conferenciar com Tim Linkinwater num outro aposento e não é vergonha dizer que Nicholas, perante estas provas de amabilidade e simpatia, soluçava como uma criança. Por fim Ned e Tim Linkinwater regressaram juntos, dirigindo-se Tim imediatamente a Nicholas a segredar‑lhe ao ouvido ter tomado nota da sua morada no Strand para o ir visitar nessa noite, às oito. Tendo dito isto, Tim limpou os óculos e preparou‑se para ouvir o que os írmãos Chereyble tinham mais para dizer.
‑Tim ‑ principiou o irmão Charles ‑ compreende que temos a intenção de tomar este jovem para a contabilidade?
O irmão Ned observou que Tim estava ao facto dessa intenção e a aprovava completamente; e Tim, tendo acenado afirmativamente com a cabeça e afirmado ter aprovado a ideia, levantou‑se e pareceu mais gordo e importante. Seguiu‑se um profundo silêncio.
‑ Não vou começar a vir uma hora mais tarde de manhã, já sabem ‑ avisou Tim, quebrando o silêncio e olhando muito resoluto. ‑ Não vou dormir ao ar puro e. também não vou para o campo. Uma bela coisa é esta hora do dia, certament.
‑Irra com a sua teimosia, Tim Linkinwater ‑ disse o irmão Charles, olhando para ele sem a mais pequena parcela de cólera e com uma expressão radiante pela dedicação do velho empregado. ‑ Irra com a sua teimosia! Tim Linkinwater; o que quer dizer, sir?
‑Faz quarenta e quatro anos ‑ disse Tim, calculando no ar com a pena e traçando uma linha imaginária antes de fazer a soma ‑ faz quarenta e quatro anos no próximo Maio desde que sou guarda‑livros de Cheeryble Brothers. Tenho aberto o cofre todas as manhãs, durante todo esse tempo, excepto aos domingos, quando o relógio bate as nove. e volto para casa todas as noites às dez e meia, excepto nas noites do correio para o estrangeiro, em que vou faltando vinte para as onze, depois de ver as portas fechadas e que não há perigo de fogo. Nunca dormi fora do sótão detrás, uma simples noite. Há a mesma caixa pequenina no meio da janela e os mesmos quatro vasos com flores, dois de cada lado, que trouxe comigo da primeira vez que vim para cá. Não há ‑ tenho dito constantemente e mantenho ‑ não há outro largo como este no mundo. Sei que não há ‑ afirmou Tim com súbita energia e olhando em redor com firmeza. ‑ Nem um. Para negócios ou divertimentos, no Verão ou no Inverno ‑ não importa qual ‑ não há nada como ele. Não há uma fonte em Inglaterra como a bomba sob o arco. Não há vista em Inglaterra como a que vejo da minha janela; vejo-a todas as manhâs antes de me barbear e devo conhecer alguma coisa a esse respeito. Durmo naquele quarto há quarenta e quatro anos e se não houver inconveniente e não prejudicar os negócios, peço licença para morrer lá.
‑ Irra consigo, Tim Linkinwater! Como ousa falar em morrer? ‑ rugiram os gémeos, movidos pelo mesmo impulso e abrindo as asas dos velhos narizes com violência.
‑ o que tenho a dizer, Mr. Edwin e Mr. Charles ‑ declarou Tim, atirando de novo os ombros para trás. ‑ Não é esta a primeira vez que me falam em me aposentar, mas, se fazem favor, que seja a última e deixem morrer o assunto para sempre.
Com estas palavras Tim Linkinwater saiu e fechou‑se na sua gaiola de vidro com o ar dum homem que disse o que tinha a dizer e estava absolutamente resolvido a não voltar com a palavra atrás. Os irmãos trocaram olhares e tossiram umas doze vezes sem falar.
‑Deve-se fazer alguma coisa por ele, irmão Ned ‑ disse o outro calorosamente ‑ temos de não fazer caso dos seus velhos escrúpulos; não podem ser tolerados ou permitidos. Temos de o associar, irmão Ned, e se ele não se submeter pacificamente, temos de recorrer à violência.
‑Perfeitamente de acordo ‑ replicou o irmão Ned, acenando com a cabeça como um homem profundamente determinado. ‑ Se ele não quiser escutar a razão temos de o fazer contra a sua vontade e mostrar‑lhe que estamos decididos a exercer a nossa autoridade. Temos de questionar com ele, irmão Charles.
‑ Vamos ter. certamente vamos ter uma questão com Tim Linkinwater ‑ disse o outro. ‑ Mas entretanto, ficamos com o nosso jovem amigo, e a pobre senhora e a irmã hão‑de estar ansiosas pelo seu regresso. Assim, despedimo-nos por agora e. ânimo, ânimo. Tome cautela com essa caixa, meu caro senhor. e. não, nem uma palavra agora, mas tenha cuidado ao atravessar e...
E com estas palavras desconexas, para evitarem os agradecimentos de Nicholas, os irmãos apressaram‑se a acompanhá‑lo à porta, apertando‑lhe as mãos durante todo o caminho e fingindo não perceberem os sentimentos que o dominavam. O coração de Nicholas estava por demais sensibilizado para ir para a rua sem primeiro se recompor. E quando por fim saiu do arco, onde parara, deitou uma vista de olhos para os gémeos e viu‑os ao canto da gaiola de vidro, evidentemente indecisos se haveriam de atacar sem demora o inflexível Tim Linkinwater, ou retardá‑lo.
Contar todas as delícias e maravilhas que tudo isto despertou em casa de Miss La Crevy e tudo quanto foi feito, dito e sonhado, está para além de narrativa destas aventuras. É suficiente informar que Mr. Tim Linkinwater chegou pontualmente à hora marcada e no dia seguinte Nicholas foi nomeado para o lugar vago na contabilidade com um ordenado de cento e vinte libras por ano.
‑E penso, meu querido irmão ‑ disse o primeiro amigo de Nicholas ‑ que se lhes alugássemos aquela pequena casa em Bow, que está vaga, um pouco abaixo da renda normal. hein, irmão Ned?
‑Por nada ‑ sugeriu o irmão Ned. ‑ Nós somos ricos e seria vergonhoso pedir‑lhes uma renda nestas circunstâncias. Onde está Tim Linkinwater?... Por nada, meu querido irmão, por nada!
‑Talvez seja melhor levar alguma coisa, irmão Ned - lembrou o outro suavemente ‑ seria incutir‑lhe hábitos de frugalidade e evitar‑lhe o penoso sentimento de o estarmos a sobrecarregar com obrigações. Digamos quinze, ou vinte libras, e se forem pontualmente pagas entregamos‑lhas sob qualquer outra forma. E eu podia fazer secretamente um pequeno empréstimo para um pouco de mobília e o senhor também, secretamente um pequeno empréstimo, irmão Ned; e se achássemos que eles se conduziam bem. podíamos transformar os empréstimos em presentes. cuidadosamente irmão Ned, e a pouco e pouco, e sem os apertar demais. O que diz a isto, irmão Ned?
O irmão Ned deu a sua adesão e não somente disse que a dava, como a deu de facto, e numa curta semana Nicholas tomou posse do lugar e Mrs. Nickleby e Kate tomaram posse da casa; e foi tudo esperança, alegria e bom humor.
A primeira semana na casa foi de descobertas e não se passava uma noite, quando Nicholas chegava, que não houvesse uma novidade para lhes dar. Depois foi a casa a pouco e pouco embelezada e Miss La Creevy vinha muitas vezes passar um dia ou dois para ajudar, passando a vida a esquecer‑se das coisas, assim como Mrs. Nickleby a falar incessantemente. Kate estava sempre ocupada, trabalhando silenciosamente em toda a parte e sempre satisfeita com tudo; Smike transformara o jardim numa maravilha e Nicholas, que ajudava e encorajava todos, comunicando um sabor tão novo a todos os prazeres frugais e um tal deleite a todas as horas de reunião, como só a desgraça e a separação podem inventar. Em resumo, os pobres Nicklebys eram sociáveis e felizes, enquanto o rico Nickleby estava só e era um miserável.
Particular e Confidencial; assuntos de família, mostrando como Mr. Kenwigs sofreu violenta agitação e Mrs. Kenwigs se portou tão bem como se esperava.
Deviam ser sete horas da tarde e estava a tornar‑se escuro nas ruas estreitas perto de Golden Square, quando Mr. Kenwigs desceu as escadas com um par das mais baratas luvas brancas de cabrito, aquelas de catorze pnce, e escolhendo as mais fortes, começou a abafar o som da aldraba da porta da rua, a qual atravessou para o outro lado para ver o efeito. Satisfeito com o resultado, Mr. Kenwigs voltou a casa e, cha mando Morleena para lhe abrir a porta, entrou e nunca mais se viu.
Considerando o facto, não havia uma causa clara ou razão para Mr. Kenwigs abafar o som de qualquer aldraba, pois, para conveniência dos numerosos moradores do prédio, a porta da rua estava sempre aberta e a aldraba nunca era usada. Os três primeiros andares tinham campainhas privativas e quanto às águas‑furtadas, ninguém as visitava, por isso era perfeitamente incompreensível o trabalho de abafar o som da aldraba. Mas os sons das aldrabas podem ser abafados por outros motivos do que por mero utilitarismo. Há certas formas polidas e cerimoniosas que devem ser observadas na vida civilizada, ou a humanidade cai no barbarismo original. Nenhuma senhora elegante esteve ainda de parto sem o acompanhamento simbólico de abafar o som da aldraba. Mrs. Kenwigs era uma senhora com algumas pretensões de elegância e Mrs. Kenwigs estava de parto, por isso Miss Kenwigs ensurdeceu a aldraba do prédio com uma luva branca de cabríto.
Não tenho a certeza, confessou Mr. Kenwigs, arranjando o colarinho e subindo a escada, se, como é um rapaz, tenho de pôr isto nos jornais.
Ponderando sobre se seria aconselhável esta precaução e a sensação que iria criar na vizinhança, Mr. Kenwigs entrou na saleta, onde estavam a arranjar vários artigos minúsculos de vestuário em cima dum cavalo em frente do lume e onde Mr. Lumbey, o médico, embalava a criança ‑ isto é, a criança velha e não a nova.
‑ um belo rapaz, Mr. Kenwigs ‑ declarou Mr. Lumbey, o médico.
‑ Considera‑o, então, um belo rapaz, sir? ‑ perguntou Mr. Kenwigs.
‑É o mais belo rapaz que tenho visto em toda a minha vida ‑ respondeu o médico. ‑ Nunca vi uma criança assim!
uma coisa agradável e dá uma resposta completa aqueles que proclamam a gradual degenerescência das espécies hu manas que todos os rapazes nascidos no mundo são mais belos do que os últimos.
‑ Nunca vi um bébé tão belo como este ‑ afirmou de novo Mr. Lumbey.
‑Morleena era um lindo bébé ‑ observou Mr. Kenwigs, como se se tratasse dum ataque por implicação contra a família.
‑Foram todos belos bébés ‑ disse Mr. Lumbey, devolvendo o bébé ao quarto das crianças com um olhar pensativo, considerando em que rubrica deveria pôr a sua assistência à criança, como ama seca.
Durante esta breve conversa Miss Morleena, como a mais velha da família e representante natural da mãe durante a sua indisposição, tinha estado a sovar as três Misses Kenwigses mais novas, sem interrupção, cuja conduta afectuosa e prudente trouxe lágrimas aos olhos de Mr. Kenwigs e o obrigou a declarar que, em compreensão e comportamento, aquela criança era uma mulher.
‑Será um tesouro para o homem que casar com ela, sir ‑ comentou Mr. Kenwigs meio aparte. ‑ Penso que casará acima da sua situação social, Mr. Lumbey.
‑Isso não me admiraria ‑ afirmou o médico.
‑Nunca a viu dançar, sir? ‑ perguntou Mr. Kenwigs.
O médico abanou a cabeça.
‑Ah! ‑ exclamou Mr. Kenwigs, como se se apiedasse dele do fundo do coração. ‑ Então não sabe do que ela é capaz.
Durante todo este tempo, a porta do outro quarto abrira-se e fechara‑se cerca de vinte vezes por minuto e o bébé fora exibido a uma deputação de amigas, reunidas no corredor. A excitação estendera-se a toda a rua, onde grupos de senhoras se mantinham às portas, narrando as suas próprias experiências em casos semelhantes. Todas declararam o que tinham profetizado, dito ou adivinhado sobre o acontecimento, concordando todas apenas em dois pontos: primeiro, que era muito meritório e digno o que Mrs. Kenwigs fizera; segundo, que não havia um médico tão habilidoso e competente como o Dr. Lumbey.
No meio desta confúsão o Dr. Lumbey estava a conversar com Mr. Kenwigs depois de ter largado o bébé. Era um homem forte, de aparência grosseira, sem colarinho e uma barba de dois dias, porque o Dr. Lumbey era muito popular, a vizinhança era prolífica, e houvera nada menos do que três outras aldrabas ensurdecidas, uma após outra, nas últimas quarenta e oito horas.
‑Bem, Mr. Kenwigs ‑ observou o Dr. Lumbey ‑ como este faz seis! Com o andar do tempo terá uma bela família, sir.
‑Julga que seis é bastante, sir ‑ lembrou Mr. Kenwigs.
‑Ora! ‑ exclamou o médico. ‑ Tolice! Nem metade!
Com isto o médico riu‑se mas não riu a metade do que riu uma amiga casada de Mrs. Kenwigs que veio do quarto da parturiente para tomar um golo de brande e água, e pareceu considerar o dito como uma das melhores piadas atiradas sobre a sociedade.
Não está inteiramente na expectativa de boa fortuna ‑ declarou Mr. Kenwigs, pondo a sua segunda filha nos joelhos. ‑ Têm esperanças.
‑ Na verdade! ‑ disse Mr. Lumbey.
‑E muito boas, creio eu, não têm? ‑ perguntou a senhora casada.
‑Não me compete exactamente ma'am, dizer se são ou não. Não me compete fazer alarde duma família com a qual tenho a honra de estar ligado; ao mesmo tempo Mrs. Kenwigs é. devo dizer ‑ acrescentou Mr. Kenwigs abruptamente e alteando a voz ‑ que os meus filhos podem vir a ter, talvez, uma questão de cem libras cada um. Talvez mais, mas com certeza isso.
‑ uma fortunazinha muito bonita! ‑ comentou a senhora casada.
‑Há alguns parentes de Mrs. Kenwigs ‑ continuou Mr. Kenwigs, tirando uma pitada de rapé da caixa do médico e fungando depois, muito forte, por não estar acostumado - que podem deixar‑lhes cem libras a cada e até a dez filhos, e contudo não ficam a pedir esmola depois de fazerem isto.
‑ Sei de quem se trata observou a senhora casada, acenando com a cabeça.
‑Não mencionei nomes e desejo não mencionar ‑ disse Mr. Kenwigs com um olhar maravilhado. ‑ Muitos dos meus amigos encontraram um parente de Mrs. Kenwigs neste mesmo aposento, que honraria o que digo.
‑Eu encontrei-o ‑ confessou a senhora casada, com um relance de olhos para o Dr. Lumbey.
‑É naturalmente muito campensador para os meus sentimentos de pai ver um homem assim, acariciador e protector dos meus filhos ‑ continuou Mr. Kenwigs. ‑ naturalmente muito compensador para os meus sentimentos de homem conhecer esse seu semelhante. Será naturalmente compensador para os meus sentimentos de marido tornar esse homem conhecedor deste acontecimento.
Tendo dado largas aos seus sentimentos com estas palavras, Mr. Kenwigs arranjou o laço do vestido da sua segunda filha e pediu‑lhe para ser uma boa rapariga, fazendo o que a sua irmã Morleena dissesse.
‑Essa rapariga vai‑se tornando cada vez mais parecida com a mãe ‑ afirmou Mr. Lumbey, atacado subitamente por uma admiração entusiástica de Morleena.
‑ É o que digo sempre. o que tenho dito sempre ‑ secundou a senhora casada. ‑ E o verdadeiro retrato dela.
Tendo dirigido, assim, a atenção geral para a rapariga, a senhora casada aproveitou a oportunidade para tomar um outro golo de brande e água. um golo bastante grande.
‑ Sim, há uma parecença ‑ concordou Mr. Kenwigs depois de reflectir. ‑ Mas uma mulher como Mrs. Kenwigs antes de ser casada. Deus abençoe uma tal mulher!
Mr. Lumbey abanou a cabeça com grande solenidade como para inferir a sua suposição de ter ela sido bastante fascinante.
‑ Por falar de fadas ‑ exclamou Mr. Kenwigs ‑ eu nunca vi ninguém tão leve como ser vivente... nunca! Também as suas maneiras; tão brincalhona e contudo tão severamente reservada! E a sua figura! Sabe‑se geralmente ‑ prosseguiu Mr. Kenwigs, baixando a voz ‑ que a sua figura nessa ocasíão era de tal forma que o signa da Britannia em Hollowy Park foi tirado dela.
‑Mas basta ver o que é agora ‑ insistiu a senhora casada. ‑ Parece a mãe de seis filhos?
‑Completamente ridículo ‑ concordou o médico.
‑ Parece muito mais uma irmã deles ‑ disse a senhora casada.
‑Assim é ‑ assentiu Mr. Lumbey. ‑ Muito mais. Mr. Kenwigs ia fazer mais observações, muito provavelmente confirmando esta opinião, quando outra senhora que esperava arrebanhar alguma coisa de comer e de beber, meteu a cabeça para anunciar que estava um cavalheiro à porta, pedindo para ver Mr. Kenwigs muito em particular. Uma sombra do seu distinto parente passou pela mente de Mr. Kenwigs quando ouviu este recado e sob esta influência despachou Morleena para mandar entrar imediatamente o cavalheiro.
‑ Oh, é Mr. Johnson! ‑ exclamou Mr. Kenwigs, que estava em frente da porta para ver o mais cedo possível a visita quando ela subisse a escada. ‑ Como está, sir?
Nicholas apertou a mão, beijou as antigas alunas em redor, confiou um grande embrulho de brinquedos à guarda de Morleena, inclinou‑se perante o médico e a senhora, e perguntou por Mrs. Kenwigs num tom de interesse, que entrou no coração e na alma da ama, que viera para aquecer ao lume um composto misterioso numa molheira.
‑ Tenho de pedir uma centena de desculpas por vir visitá‑lo numa tal ocasião ‑ disse Nicholas ‑ mas não sabia até tocar a campainha e como o meu tempo está agora completamente ocupado, temi que se passassem alguns dias antes de ter a possibilidade de voltar.
‑Não há ocasião como a presente, sir ‑ declarou Mr. Kenwigs. ‑ A situação de Mrs. Kenwigs não é um obstáculo para uma pequena conversa entre nós.
‑O senhor é muito bom ‑ replicou Nicholas. Neste instante outra senhora casada anunciou que o bébé começara a mamar e as duas senhoras casadas já indicadas apressaram‑se, tumultuosamente, a entrar no quarto para o observarem nesta função.
‑O facto é que antes de deixar a província, onde estive algum tempo, comprometi‑me a dar‑lhe um recado ‑ continuou Nicholas.
‑Ah! Sim? ‑ exclamou Mr. Kenwigs.
‑E estou na cidade já há alguns dias sem ter tido uma ocasião de lhe dar cumprimento.
‑ Não tem importância ‑ declarou Mr. Kenwigs. ‑ Aposto que não há nada para apanhar uma constipação. Um recado da provincia ‑ ruminou Mr. Kenwigs ‑ é curioso! Não conheço ninguém na província.
‑Miss Petowker ‑ sugeriu Nicholas.
‑Oh! dela? ‑ perguntou Mr. Kenwigs. ‑ Oh, Meu Deus, sim! Àh! Mrs. Kenwigs vai ficar contente por saber notícias dela. Henrietta Petowker, hein? Que coisas singulares se estão agora a dar! Então o senhor encontrou‑a na província, hein?
Ouvindo anunciar o nome da sua antiga amiga as quatro Misses Kenwigses agruparam‑se em volta de Nicholas, de olhos e bocas abertos, para ouvirem mais. Mr. Kenwigs parecia não ter muita curiosidade, mas estava completamente à vontade e sem de nada suspeitar.
‑ O recado diz respeito a assuntos de familia ‑ informou Nicholas, hesitando.
‑Oh, não faz mal ‑ declarou Kenwigs, relanceando para Mr. Lumbey que tendo temerariamente tomado conta do pequeno Lillyvic, não encontrou ninguém disposto a aliviá‑lo do fardo. ‑ Aqui são todos amigos!
Nicholas tossiu uma ou duas vezes e parecia ter certa dificuldade em continuar.
‑Henrietta Petowker está em Portsmouth ‑ observou Mr. Kenwigs.
‑Está ‑ respondeu Nicholas. ‑ Mr. Lillyvick está lá também.
Mr. Kenwigs tornou‑se pálido, mas recobrou‑se e disse que era também uma singular coincidência.
‑ O recado é dele ‑ continuou Nicholas.
Mr. Kenwigs pareceu reviver. O cobrador sabia que a sobrinha estava num estado delicado e sem dúvida pedia‑lhe para lhe mandar pormenores. Sim! Isso era muito amável da sua parte. tão dele, também!
‑Pediu‑me para ser o mensageiro da sua profundíssima amizade ‑ diss Nicholas.
‑Muito obrigado para ele. O vosso tio avô Lillyvick, minhas queridas! ‑ interrompeu Mr. Kenwigs, explicando condescendentemente às filhas.
‑A sua profundíssima amizade ‑ prosseguiu Nicholas - é para dizer que não teve tempo para escrever, mas que se casou com Miss Petowker.
Mr. Kenwigs levantou‑se do lugar com um olhar petrificado, agarrou a sua segunda filha pelo laço do vestido e cobriu a cara com o lenço. Morleena caiu, tesa e rígida, na cadeira do bébé, como se visse a mãe desmaiada, e as restantes pequenas Kenwigses guincharam assustadas.
‑As minhas filhas, as minhas crianças defraudadas, roubadas! ‑ gritou Mr. Kenwigs, puxando com tanta força, pelo laço do vestido da sua segunda filha, que a levantou na ponta dos pés e conservou‑a alguns segundos nessa atitude. ‑ Vilão, burro, traidor!
‑Apre com o homem! ‑ exclamou a ama, olhando zangada. ‑ Que ideia faz ele disto para estar aqui a fazer este barulho?
‑Cale‑se, mulher! ‑ retorquiu Kenwigs ferozmente.
‑Não me quero calar ‑ replicou a ama. ‑ Cale‑se, seu desastrado. Não tem respeito pelo seu bébé?
‑ Não! ‑ declarou Mr. Kenwigs.
‑Maior vergonha para si ‑ observou a ama. ‑ Ui! que monstro desnaturado!
‑ Deixe‑o morrer! ‑ gritou Mr. Kenwigs, levado pela raiva.
‑ Deixe-o morrer! Não tem nada a esperar, nem bens a receber. Não quero bébés aqui ‑ declarou Mr. Kenwigs. ‑ Levem‑nos daqui para a roda!
Com estas terríveis observações Mr. Kenwigs sentou‑se numa cadeira e desafiou a ama, que entrou no quarto do lado e voltou com um batalhão de matronas, declarando que Mr. Kenwigs blasfemara contra a família e devia estar maluco. As aparências não eram, certamente, a favor dele, mas Nicholas e o médico explicaram a causa do seu estado, mudando, assim, a indignação das matronas em piedade, implorando‑lhe, com muito sentimento, para se deitar.
‑A atenção ‑ declarou Mr. Kenwigs, olhando em volta com um ar plangente ‑ que eu prestei a esse homem! As ostras que ele comeu, os litros de cerveja que ele bebeu nesta casa.
‑É uma experiência muito dura de roer, bem sabemos ‑ confessou uma das senhoras casadas ‑ mas pense na sua querida e amada mulher.
‑Oh, sim, o que ela tem sofrido neste dia ‑ gritaram muitas vozes.
‑Os presentes que eu lhe dei ‑ lembrou Mr. Kenwigs, voltando à sua lamentação ‑ os cachimbos, as caixas de ra pé. um par de galochas de borracha, isso custou seis e seis.
‑Ah, não serve de nada pensar nisso, de facto! ‑ exclamaram as matronas em geral ‑ mas virá tudo para casa, para ele, não tenha medo.
Mr. Kenwigs olhou sombriamente para as senhoras, mas nada disse, e elas insistiram em levar o homem para a cama, observando que o dia seguinte seria melhor. Por fim Marleena anunciou que estava pronto um quarto para o seu aflito pai, a qual, amparado dum lado pelo médico e do outro por Nícholas, foi conduzido ao andar de cima, onde havia um quarto para estas ocasiões.
Tendo‑o visto a dormir profundamente e havendo presidido à distribuição dos brinquedos pelas pequenas Kenwigses, Nicholas foi‑se embora. As matronas saíram, uma a uma, com excepção de seis ou oito amigas particulares, que haviam determinado ficar toda a noite. As luzes da casa desapareceram gradualmente, o último boletim de Mrs. Kenwigs dizia que ela estava tão bem quanto se podia esperar. E toda a família foi deixada a repousar.
Nicholas encontra mais protecção nos irmãos Cheeryble e em sir Linkinwater. Os irmãos dão um banquete, Nicholas, vindo de lá ao regressar a casa, recebe uma comunicação misteriosa de Mrs. Nickleby.
O local onde a contabilidade dos irmãos Cheeryble estava situado era, sem dúvida, um canto suficientemente desejável no coração duma cidade activa como Londres, e ocupava um alto lugar na lembrança e afeição do entusiástico Tim. Mas se não havia muitos assuntos fora das portas dos Cheerybe Brothers para prender a atenção, ou distrair os pensamentos, o jovem empregado, como acontecia em Grosvenor Square, Hano ver Square, Fitzroy Square e nos Squares de Russel e Euton, não havia poucos dentro, para o entusiasmar e divertir. Todos os objectos, animados ou inanimados, partilhavam do escrupuloso e pontual método de Mr. Linkinwater, que era, por sua vez, preciso como o relógio da contabilidade. Fosse o que fosse, tudo ali tinha o seu espaço marcado. Excepto o relógio, não havia um instrumento tão correcto e irrepreensível na existência como o pequeno termómetro pendurado por detrás da porta. E não havia um pássaro tão metódico e com hábitos tão pontuais como o melro cego, que Tim trouxera há muitos anos para o livrar de morrer à fome.
Os empregados do armazém e carregadores eram tipos robustos e joviais, que dava gosto ver. Entre os anúncios de barcos e listas de paquetes que decoravam as paredes, estavam planos de casas de caridade, relatórios de obras pias e projectos de novos hospitais. Por cima da pedra da chamimé havia um bacamarte e duas espadas, mas como ele estava ferrugentu e quebrado, e as espadas sem fio e partidas, pareciam ser, em vez de armas ofensivas, emblemas de perdão e de misericórdia.
Estes pensamentos ocorreram a Nicholas na manhã em que tomou conta, pela primeira vez do seu lugar e pôde mais livremente, olhar tudo o que o cercava. Talvez eles o tivessem encorajado e estimulado, pois durante as duas semanas seguintes, em todas as horas vagas, de noite e de dia, dedicou‑se incessantemente aos mistérios da contabilidade e a algumas outras formas de contas mercantis. E aplicou‑se tão bem que aliados a uns conhecimentos adquiridos na escola, ao fim duma quinzena encontrava‑se em condições de mostrar a sua proficiência a Mr. Linkinwater e de lhe reclamar a promessa de o ajudar em trabalhos mais importantes. Tim Linkimwater tirou vagarosamente um Razão e um Diário, a que, afectuosanente, limpou da poeira, abriu as folhas aqui e ali, olhando com orgulho para os lançamentos claros e limpos.
‑ No próximo Maio faz quarenta e quatro anos! ‑ informou Tim. ‑ Desde então têm havido muitos Razões novos. Quarenta e quatro anos!
Tim fechou outra vez o livro.
‑ Vamos, vamos ‑ disse Nicholas. ‑ Estou impaciente por começar!
Tim Linkinwater abanou a cabeça com um ar de suave reprovação. Mr‑ Nickleby não tinha suficientemente gravada a natureza profunda e terrível da sua empresa. Supunhamos que havia qualquer engano. Os homens novos são aventureiros. Sem mesmo tomar a protecção de se sentar no banco, antes estando despreocupadamente à secretária com um sorriso na cara não havie enga no; Mr. Linkinwater havia de o mencionar muitas vezes mais tarde, Nicholas meteu a pena no tinteiro e mergulhou‑a nos livros de Cheeryble Brothers!
Tim Linkinwater tornou‑se pálido e, empinando-se sobre as duas pernas do seu banco, próximo de Nicholas olhou por cima do ombro com uma ansiedade que o não deixava respirar. O irmão Charles e o irmão Ned entraram juntos no escritório, mas Tim Linkinwater, sem olhar fez sinal impaciente com a mão recomendando silêncio e seguiu o aparo inexperiente com olhos aflitivos e preocupados. Os irmãos olharam com as caras sorridentes, mas Tim Linkinwater não sorriu, nem se moveu durante uns minutos. Por fim soltou um suspiro longo e de vagar, e, mantendo ainda o banco na mesma posição relanceou os olhos para o irmão Charles, apontando secretamente com a sua pena para Nicholas, acenou com a cabeça duma maneira grave e resoluta, significando claramente Vai longe.
O irmão Charles acenou também e trocou um olhar sorridente com o irmão Ned, mas quando Nicholas parou para seguir para outra página Tim Linkinwater, incapaz de conter por mais tempo a sua satisfação, desceu do banco e agarrou‑lhe arrebatadamente na mão.
‑ Foi ele quem fez isto! ‑ informou Tim, olhando para os patrões e abanando a cabeça triunfantemente. ‑ Os seus B e D maiúsculos são exactamente os meus; pontúa os i e corta os t à medida que os escreve. Não há um outro jovem como ele em toda a Londres ‑ afirmou Tim, batendo nas costas de Nicholas ‑ nem um! A City não produz um seu rival. Desafio a City para que o faça.
Tim Linkinwater deu um soco na secretária com o punho fechado e o velho melro estremeceu no seu poleiro, soltando um fraco grasnido de assombro.
‑ Bem dito, Tim. bem dito, Tim Linkinwater! ‑ exclamou o irmão Charles, pouco menos tão satisfeito do que o próprio Tim e batendo as palmas brandamente. ‑ Sabia que o nosso jovém amigo estava a empreender um grande trabalho e tinha a certeza absoluta de que seria bem sucedido em pouco tempo. Não disse isto, irmão Ned?
‑ Disse, meu querido irmão. certamente! E teve toda a razão ‑ replicou Ned. ‑ Toda a razão. Tim Linkinwater está. excitado, Tim é um bom rapaz, Tim Linkinwater, sir. você é um rapaz sagaz.
‑ Aqui está uma coisa agradável de pensar! ‑ disse ele sem fazer caso deste comentário a seu respeito e levantando os olhos do Razão para os irmãos. ‑ Aqui está uma coisa agradável. Supõem que não tenha pensado muitas vezes o que seria destes livros quando me fosse embora? Mas agora ‑ acerescentou Tim, estendendo o indicador para Nicholas ‑ agora, quando lhe ensinar um pouco mais, estou satisfeito. Os negócios continuarão quando morrer, tão bem como quando estou vivo. absolutamente o mesmo, e terei a satisfação de saber que nunca houve livros como estes! Não, nem nunca haverá livros... como os livros de Cheeryble Brothers.
Tendo exprimido assim os seus sentimentos, Mr. Linkinwater soltou uma breve gargalhada, indicadora do desafio às cidades de Londres e Westminster e, voltando‑se de novo para a sua secretária, tranquilamente transportou setenta e seis da última coluna que tinha somado e continuou no seu trabalho.
‑ Sir - disse o irmão Charles ‑ dê‑me a sua mão, sir. Este é o dia dos seus anos. Como se atreve a falar de outra coisa a não ser desejarmos-lhe muitas felicidades pelo dia de hoje, Tim Linkinwater? Deus o abençoe, Tim! Deus o abençoe!
‑ Meu querido irmão ‑ replicou o outro, agarrando no - Ele parece dez anos mais novo do que no seu último aniversário.
‑ Irmão Ned meu querido rapaz ‑ retorquiu o irmão Charles ‑ creio que Tim Linkinwater nasceu há cento e cinquenta anos e tem vindo gradualmente a diminuir vinte e cinco anos pois está mais novo todos os aniversários do que no ano anterior.
‑ Assim é, irmão Charles, assim é ‑ concordou o irmão Ned.
‑ Lembre‑se, Tim ‑ disse o irmão Charles ‑ que jantamos hoje às cinco e meia em vez das duas! Nós saímos sempre do nosso costume neste aniversário, como sabe muito bem, Tim Linkinwater. Mr. Nickleby, meu caro senhor, está convidado. Tim Linkinwater, dê‑me a sua caixa de rapé como uma lembrança para o irmão Charles, dum velhaco e fiel afeiçoado, e tome esta em troca como uma prova do nosso respeito e estima, e não a abra até ir para a cama, e nunca diga qualquer palavra sobre o assunto, ou eu mato o melro. Um cão! Ele já devia ter uma gaiola dourada há doze anos, se isso o tivesse feito ou ao seu dono, um pouco mais feliz. Agora, irmão Ned, meu caro rapaz, estou pronto. As cinco e meia, lembra-se Mr. Nickleby! Tim Linkinwater, sir, tome conta às cinco e meia. Vamo‑nos embora, irmão Ned!
Palrando assim, como de costume, para evitar a possibilidade de qualquer agradecimento, os gémeos trotaram de braço dado, tendo presenteado Tim Linkinwater com uma caixa de rapé em ouro, tendo dentro uma nota duma importância dez vezes superior ao seu valor.
A irmã de Tim Linkinwater chegou precisamente às cinco e um quarto, mas como o seu chapéu tinha sido mandado por um rapaz e ele não tinha vindo, teve de esperar, só se podendo apresentar cinco minutos depois da meia hora, pelo relógio infalível do irmão. A reunião consistia nos irmãos Cheeryble, Tim Linkinwater, um amigo de Tim e Nicholas, que foi apresentado à irmã de Tim Linkinwater com muita solenidade. Estando todos reunidos, o irmão Ned tocou para o jantar e este sendo dentro de pouco anunciado, o irmão Ned sentou‑se á cabeceira da mesa e o irmão Charles aos pés; a irmã de Tim Linkinwater sentou‑se à mão esquerda do irmão Ned e Tim Linkinwater à direita. Um antigo criado, de aparência apoplética e de pernas curtas, colocou‑se atrás da cadeira de braços do irmão Ned.
‑Por estas e todas as outras bençãos, irmão Charles!
‑O Senhor nos torne verdadeiramente agradecidos, irmão Ned!
A seguir, o apoplético criado tirou a tampa da terrina da sopa e começou a manifestar uma violenta actividade. Houve abundância de conversa e depois da primeira taça de champanhe a irmã de Tim Linkinwater contou a história circunstanciada da infância do irmão, tendo, contudo, o cuidado de prevenir que era mais nova e de a ter ouvido aos pais. Concluida a história, o irmão Ned relatou que, exactamente trinta e cinco anos antes, suspeitou‑se de Tim Linkinwater ter recebido uma carta de amor, tendo sido visto a passear em Cheapside com uma rapariga invulgarmente bonita. Tim Linkinwater, muito vermelho, chamado a explicar‑se, negou a acusação, mas que se fosse verdade não havia mal nenhum nisso.
Houve uma pequena cerimónia peculiar ao dia, que fez uma forte impressão em Nicholas. Tendo sido levantada a toalha e percorrendo, pela primeira vez, as garrafas a roda seguiu‑se um profundo silêncio, aparecendo nas caras alegres dos irmãos uma expressão, não de absoluta melancolia, mas de tranquila meditação profunda, muito pouco usual a uma mesa de festim. Como Nicholas, surpreendido por esta súbita alteração, perguntava a si próprio o que é que ela podia significar, os irmãos levantaram‑se ao mesmo tempo e, um à cabeceira da mesa, inclinando-se para o outro e falando em voz baixa, como se se lhe dirigisse individualmente, disse:
‑Irmão Charles, meu querido rapaz, há um outro facto ligado a este dia, que não deve ser esquecido por si nem por mim. Este dia, que trouxe ao mundo um companheiro excelente e escrupulosamente fiel, arrebatou dele a mais amável e melhor das mães. a melhor das mães para nós ambos. Desejava que nos tivesse visto na nossa prosperidade e partilhasse dela, e tivesse a felicidade de saber quanto a amamos, como quando éramos dois pobres rapazes. mas isso não pôde ser. Meu querido irmão, à memória da nossa Mãe!
Bom Deus! pensou Nicholas, e há dezenas de pessoas da mesma situação social sabendo tudo isto e vinte mil vezes mais que não pediriam a estes homens para jantar porque comem com os seus pares e nunca foram à escola.
Mas não havia tempo de moralizar por ter voltado, muito activa, a jovialidade, e estando próxima de acabar a garrafa de Porto, o irmão Ned puxou a campainha, a que respondeu instantaneamente o apoplético criado.
‑ David ‑ chamou o irmão Ned.
‑ Sir ‑ respondeu o criado.
‑ Uma magnum da Duplo Diamante, David, para se beber à saúde de Mr. Linkinwater.
Instantaneamente, como nos anos anteriores o que lhe valeu a admiração de todos, o criado levou a mão esquerda à parte detrás das costas e apresentou uma garrafa com o saca‑rolhas já metido; desrolhou‑a de repente e colocou a garrafa e a rolha perante o patrão, com a dignidade duma habilidade consciente.
‑ Ah! ‑ exclamou o irmão Ned, examinando primeiro a rolha e enchendo depois o copo, enquanto o velho criado olhava complacente e amavelmente, como se tudo fosse propriedade sua, estando os convidados perfeitamente livres de lhe fazerem as devidas honras. ‑ Este tem boa aparência, David.
Deve ter, sir ‑ respondeu David. O senhor ver‑se-à atrapalhado para encontrar um copo de vinho como o nosso Duplo Diamante, e isso Mr. Linkinwater sabe muito bem. Este vinho foi posto a assentar quando Mr. Linkinwater veio pela primeira vez, cavalheiros.
‑ Não, David, não ‑ contestou o irmão Charles.
‑Eu próprio escrevi o registo no livro da adega sir, se me dá licença ‑ declarou David no tom absolutamente confiante da verdade dos factos. ‑ Mr. Linkinwater estava aqui apenas há vinte anos quando essa pipa de Diamante Duplo foi posta a assentar.
‑ David tem muita razão. muita razão, irmão Charles - disse Ned. ‑ As pessoas estão aí, David?
‑ Fora da porta, sir ‑ respondeu o criado.
‑ Manda‑as entrar, David, manda‑as entrar.
A esta ordem o velho criado colocou em frente do patrão uma pequena bandeja com copos limpos e, abrindo a porta, deixou entrar os joviais carregadores e empregados do arma zém que Nicholas vira em baixo. Eram quatro ao todo e vinham a curvar‑se, a sorrir e a corar, formando a sua rectaguarda a governanta, a cozinheira e a criada de fora.
‑ Sete ‑ contou o irmão Ned, enchendo um correspondente número de copos com o Duplo Diamante ‑ e David oito. Agora vão todos beber à saúde do vosso melhor amigo, Mr. Timothy Linkinwater, e desejarem‑lhe saúde, uma longa vida e muitas felizes repetições deste dia, por amor dele e dos vossos velhos patrões que o consideram um tesouro inestimável. Tim Linkinwater, sir, à sua saúde! Diabos o leve, Tim Linkinwater, sir, Deus o abençoe!
Com esta singular contradição o irmão Ned deu a Tim Linkinwater uma palmada nas costas, o que o fez parecer, nesse momento, tão apoplético como o criado, e tragou o conteúdo do seu copo num abrir e fechar de olhos.
Mal o líquido tinha sido bebido quando um dos subordinados, em nome dos seus companheiros, avançou com uma cara corada e disse:
‑Permitimo-nos uma liberdade uma vez por ano, cavalheiros, e se nos dão licença tomâmo‑la agora; não havendo tempo como o presente e valendo mais um pássaro na mão do que dois a voar, como se sabe bem. O que queremos dizer é que nunca houve (olhando para o criado) uns tais olhando para a cozinheira) nobres, excelentes (olhando para toda a parte, sem ver ninguém), francos, generosos, animosos patrões como eles, que nos têm tratado tão lindamente neste dia. E aqui lhes agradecemos por todas as suas bondades, que constantemente se difundem por toda a parte, desejando‑lhe uma longa vida e uma morte feliz!
Quando o discurso acabou, todo o corpo de subalternos deu três suaves vivas sob o comando do apoplético criado, retirando‑se pouco depois. A irmã de Tim Linkinwater desapareceu e daí a algum tempo serviu‑se chá e café e jogaram as cartas.
As dez e meia, hora tardia, apareceu uma pequena bandeja com sanduiches e uma malga de bishop (1), o qual depois de todos os excitantes, fez um tal efeito em Tim Linkinwater, que levou Nicholas para o lado, confessando‑lhe, confidencialmente, que era verdade o que se tinha dito a respeito dele e da rapariga de Cheapside, a qual tinha pressa de mudar de condição e, enquanto Tim a cortejava, ela casou‑se.
‑ Devo dizer que a culpa foi minha ‑ confessou Tim. Num destes dias mostro-lhe uma gravura que tenho lá em cima. Custou‑me vinte e cinco xelins. Comprei‑a pouco depois de ter mos arrefecido um para o outro. Não diga nada, mas é a semelhança mais extraordinária e casual que se tem visto. o seu verdadeiro retrato, sir.
Por esta altura já passava das onze e a irmã de Tim Linkinwater foi metida num carro depois de ter declarado que já devia estar em casa há uma boa hora. Os irmãos acompanharam‑na até ao veículo, com a recomendação ao cocheiro, a quem pagaram, para ter muito cuidado com a senhora. Depois
(1) Bebida composta de vinho, suco e casca de limão e açúcar
da partida do carro, Nicholas e o amigo de Tim Linkinwater despediram‑se, deixando este e os irmãos irem repousar.
Como a distância para sua casa era muito grande, já passava da meia noite quando Nicholas chegou, encontrando a mãe e Smike a esperá‑lo muito agradavelmente entretidos, ela relatando a história genealógica da sua família pelo lado da mãe, e ele escutando‑a.
Nicholas não podia ir para a cama sem se expandir sobre as excelências e magnificências dos irmãos Cheeryble e do sucesso que tinha tido nesse dia. Mas antes de ter dito uma dúzia de palavras, Mrs. Nickleby observou, com muitas piscadelas de olhos e acenos, que Mr. Smike já se devia ter retirado e não consentia que esperasse um minuto mais.
‑ Uma criatura muitíssimo obediente ‑ comentou Mrs. Nickleby quando Smike desejou boa noite e deixou o aposento.
‑Sei que me desculparás, Nicholas, meu querido, mas não gosto de fazer isto em frente duma terceira pessoa; na verdade em frente dum jovem não seria muito próprio, embora realmente, no fim de contas, não sei que mal haja nisto, excepto que, com certeza, não é uma coisa muito conveniente, conquanto muita gente diga que é mesmo assim e, na verdade, não sei por que não deve ser, se for bem posto e os folhos estiveram pouco pregueados; decerto muita boa coisa depende disso.
Com este prefácio Mrs. Nickleby tirou a touca de dormir de entre as folhas dum grande livro de orações, onde estivera dobrada,e começou a atála, conversando na sua forma habitual durante todo o tempo.
‑ As pessoas podem dizer o que quiserem ‑ observou Mrs. Nickleby ‑ mas sente‑se muito conforto com uma touca de dormir, como tenho a certeza que tu confessarias, Nicholas, meu querido, se o teu barret tivesse fitas e o usasses como um cristão em vez de o enterrares na cabeça como um garoto de escola. Não precisas de pensar que o teu barrete de dormir, seja uma coisa estrambótica ou efeminada, pois muitas vezes ouvi o teu pobre querido papá e o reverendo Mr. não‑melembro‑ do nome, que costumava ler as orações naquela velha igreja com o curioso campanariozinho donde o catavento foi levado na noite antes de teres nascido, ouvi‑lhes frequentemente dizer que os rapazes no colégio são muito cuidadosos com os seus barretes de dormir e que os barretes de dormir de Oxford são muito conhecidos e apreciados pela sua fortaleza e beleza; assim deve ser, na verdade, para os jovens não pensarem ir para a cama sem eles, e creio que se admite em toda a parte que eles sabem o que é bom e não se tratam com mimo.
Nicholas riu e não dando resposta a este comprido aranzel, voltou ao agradável assunto da festa de anos. Imediatamente Mrs. Nickleby se tornou curiosa, fazendo um grande número de perguntas a esse respeito, a que Nicholas respondeu, descrevendo a festa e também as ocorrências da manhã.
‑ Tarde como é ‑ continuou Nicholas ‑ Tenho pena, devido ao meu egoísmo, que Kate não esteja ainda levantada para ouvir tudo isto. Vim muito impaciente para lhe contar.
‑ Kate já está na cama há um par de horas ‑ informou Mrs. Nickleby, pondo os pés no guarda‑fogo e chegando a cadeira como se se preparasse para uma grande conversa ‑ e estou muito contente, Nicholas, meu querido, por ela não estar aqui, pois desejava muitíssimo ter uma oportunidade de te dizer algumas palavras. Estou ansiosa a esse respeito e, por certo, é uma coisa muito deliciosa e consoladora ter um filho crescido em quem se possa confiar e com quem nos podemos aconse lhar. Na verdade, não sei para que servirá ter filhos se não tivermos confiança neles.
Nicholas parou no meio dum sonolento bocejo quando a mãe começou a falar e olhou para ela com atenção.
‑ Havia uma senhora na nossa vizinhança ‑ prosseguiu Mrs. Nickleby ‑ por falar de filhos lembrou‑me dela ‑ uma senhora da nossa vizinhança, quando vivíamos perto de Daw lish, creio que o seu nome era Rogers; na verdade tenho a certeza de que era, se não era Murphy sendo esta a única dúvida que tenho.
‑ a respeito dela, mãe, que desejava falar‑me? ‑ perguntou Nicholas tranquilamente.
‑ A respeito dela! ‑ exclamou Mrs. Nickleby. ‑ Deus do Céu! Nicholas, meu querido, como podes ser tão ridículo? Mas essa foi sempre a maneira do teu pobre querido papá... justamente a sua maneira, sempre distraido, nunca podendo fixar os pensamentos em qualquer assunto por dois minutos. Penso estar a vê‑lo ‑ acrescentou Mrs. Nickleby, enxugando os olhos ‑ a olhar para mim enquanto eu conversava com ele acerca dos seus negócios, tal como se as suas ideias tivessem parado! Qualquer pessoa que nos visse suporia que eu o confundia e o distraia em vez de tornar as coisas mais claras; palavra que haviam de supor!
‑Sinto muito, mãe, ter herdado essa infeliz preguiça de apreensão ‑ comentou Nicholas gentilmente ‑ mas farei o possível por a compreender, se for direita ao assunto.
‑ O teu pobre papá! ‑ ponderou Mrs. Nickleby. ‑ Ele nunca soube, até ser tarde de mais, o que eu lhe teria feito!
O caso foi sem dúvida assim, embora o falecido Mr. Niekleby não chegasse a percebê‑lo, quando morreu. Nem a própria Mrs. Nickleby, o que é de alguma forma, uma explicação da circunstância.
‑ Contudo ‑ continuou Mrs. Nickleby, secando as lágrimas ‑ isto não tem nada que ver. certamente nada tem que ver. com o cavalheiro da casa vizinha.
‑ Eu supunha que o cavalheiro da casa vizinha tinha pouco que ver connosco ‑ replicou Nicholas.
‑ Não pode haver dúvida ‑ afirmou Mrs. Nickleby ‑ que ele é um cavalheiro e tem as maneiras dum cavalheiro, e a aparência dum cavalheiro, embora use pequenas meias cinzentas de lã fiada. Isso pode ser excentricidade, ou orgulho nas pernas. Não vejo por que não deva ter. O Príncipe Regente tinha orgulho nas suas pernas, assim como Daniel Lambert, que era também um homem gordo; ele tinha orgulho nas pernas. Assim como Miss Biffin ela era. Não ‑ corrigiu‑se Mrs. NicklebyJulgo que ela tinha orgulho nos dedos dos pés, mas o princípio é o mesmo.
Nicholas olhou muito espantado com a introdução do novo assunto, que parecia ser a atitude que Mrs. Nickleby esperava dele.
‑Podes bem estar surpreendido, Nicholas meu querido. Eu tenho a certeza que estava. Veio sobre mim cómo um relâmpago e quase me gelou o sangue. O fim do seu quintal coincide com o fim do nosso e, de facto, tenho‑o visto várias vezes sentado entre os feijões de Espanha, no seu pequeno caramanchão, ou trabalhando nos seus pequenos alfobres. Comecei a pensar que ele contemplava muito mais, mas não dei importância, talvez por sermos vizinhos novos e ele sentisse curiosidade em ver como éramos. Mas quando ele principiou a atirar os pepinos por cima do muro.
‑ A atirar os pepinos por cima do muro. ‑ repetiu Nicholas com grande assombro.
‑ Sim Nicholas meu querido ‑ replicou Mrs. Nickleby num tom muito sério ‑ os pepinos por cima do nosso muro. E também os olhos das couves.
‑Que a sua imprudência seja confundida! ‑ exclamou Nicholas, excitando‑se imediatamente. ‑ O que quer ele dizer com isso?
‑ Não julgo que ele queira ser impertinente ‑ respondeu Mrs. Nickleby.
‑ O quê! ‑ disse Nicholas ‑ pepinos e olhos de couves voando para as cabeças duma familia quando anda a passear no seu quintal, não significa impertinência? Oh, minha mãe.
Nicholas parou de súbito por ver uma expressão indescritível de plácido triunfo misturado com uma modesta confusão aparecer entre as orelhas da touca de dormir de Mrs. Nickleby, o que despertou a sua imediata atenção.
‑Ele deve ser um homem muito fraco, pateta e inconsiderado ‑ observou Mrs. Nickleby ‑ repreensível, na verdade. Pelo menos suponho que os outros o devem considerar assim decerto não posso exprimir qualquer opinião nesse ponto, especialmente depois de ter defendido o teu pobre querido papá quando as outras pessoas o censuravam por me fazer a corte; e tenho a certeza de não haver dúvida dele ter usado uma maneira muito singular de a mostrar. Contudo, ao mesmo tempo, as suas atenções não. isto é, tal como vão e até a um certo limite, decerto... são uma coisa lisonjeira! e embora nunca pensasse em casar‑me outra vez, como uma rapariga adorável como é Kate, ainda que não conheça a vida.
‑ Com certeza, mãe que uma tal ideia nunca lhe entrou na cabeça por um só instante? ‑ perguntou Nicholas.
‑ Óh, meu Deus, Nicholas, meu querido ‑ retorquíu a mãe num tom enfadado ‑ não é precisamente isso o que estava a dizer. Se me deixasses falar? Decerto nunca lhe dei um segundo pensamento e estou surpreendida e espantada de tu me julgares capaz duma coisa dessas. Tudo o que digo é, qual é a melhor atitude a tomar para rejeitar estas demonstrações, delicada e civilmente, e sem ferir os seus sentimentos demasiadamente e levá-lo a perder o ânimo, ou qualquer coisa do género? Bondade divina! ‑ exclamou Mrs. Nickleby com um meio sorriso afectado - supunhamos que eu ia fazer alguma coisa apressadamente, podia alguma vez ser feliz de novo, Nicholas?
Apesar do seu desgosto e abalo, Nicholas mal pôde deixar de sorrir ao replicar:
‑ Julga, mãe, que seria provável seguir‑se esse resultado à mais cruel repulsa?
‑ Palavra, meu querido, que não sei ‑ respondeu Mrs. Nickleby ‑ realmente não sei. Tenho a certeza de que houve um caso no jornal de antes d ontem, tirado dum jornal francês, sobre um operário de sapataria que era cìumento por uma rapariga duma aldeia vizinha, e como ela não se quis fechar com ele num vão de escada, para morrerem os dois envenenados com carvão, ele foi esconder‑se numa mata com uma navalha afiada e saiu de lá quando ela passava com umas poucas de amigas; matou‑se primeiro, depois todas as raparigas e a seguir ela. não, matou todas as amigas primeiro, depois ela e a seguir a si. o que é bastante terrível de pensar. Duma maneira ou doutra ‑ acrescentou Mrs. Nickleby depois duma pausa momentânea ‑ são sempre os operários franceses de sapataria quem faz estas coisas em França, conforme os jornais. Não sei como isto é. alguma coisa relacionada com o couro, suponho eu.
‑ Mas esse homem, que não é sapateiro. o que tem feito, mãe, o que tem dito? ‑ inquiriu Nicholas, enfadado quase para além dos limites da paciência, mas aparentando tão resignado e paciente como a própria Mrs. Nickleby. ‑ Como sabe, não há linguagem nos vegetais que converta um pepino numa declaração formal de matrimónio.
‑ Meu querido! ‑ replicou Mrs. Niekleby, inclinando a cabeça e olhando para as cinzas do fogão ‑ ele fez e disse toda a espécie de coisas.
‑ Não há engano da sua parte, mãe? ‑ interrogou Nicholas.
‑ Engano! ‑ exclamou Mrs. Nickleby. ‑ Meu Deus Nicholas, meu querido, supões que não sei quando um homem está
apaixonado?
‑ Bem, bem! ‑ murmurou Nicholas.
‑ Todas as vezes que chego à janela ‑ continuou Mrs. Nickleby ‑ ele beija uma das mãos e põe a outra no coração; decerto é uma grande patetice da sua parte fazer isto e atrevo‑me a dizer que tu declararás que ele procede muito erradamente, mas fá‑lo com muito respeito, com muito respeito, na verdade, e muito ternamente, extremamente terno. Deste modo merece o maior crédito; não pode haver dúvida a esse respeito. Depois há os presentes que são atirados todos os dias por cima do muro, e que são muito finos. Tivemos ontem ao jantar um desses pepinos e penso fazer conserva do resto para o próximo Inverno. E a última noite ‑ acrescentou Mrs. Nickleby com um aumento de confusão ‑ chamou muito delicadamente por cima do muro quando eu passeava no quintal e propôs‑me casamento e um rapto. A sua voz era tão clara como uma campainha, ou uma harmónica de vidro. muito parecida com uma harmónica de vidro, de facto... mas eu não o escutei, decerto. A questão é esta, Nicholas, meu querido, o que devo fazer?
‑ A Kate sabe disto? ‑ perguntou Nicholas.
‑ Não lhe disse uma palavra a tal respeito ‑ respondeu a mãe.
‑Então, por amor de Deus ‑ retorquiu Nicholas, levantando‑se ‑ não lhe diga, se não a quiser fazer muito infeliz. E com respeito ao que deve fazer, minha querida mãe, proceda conforme o seu bom senso e sentimentos, e o respeito pela memória do meu pai. Há milhares de formas pelas quais possa mostrar o seu desgosto por estas atenções absurdas e tontas. Se a senhora agir tão decididamente como deve e isso continuar para seu aborrecimento, posso rapidamente pôr‑lhe um ponto final. Mas não devo interferir num assunto tão ridículo nem ligar‑lhe importância até a senhora se defender. Muitas mulheres sabem fazer isso, e especialmente aquelas da sua idade e condição, em circunstâncias como estas, que são indignas dum pensamento sério. Não a quero envergonhar por um instante, julgando que as toma com paixão, ou as trata com fervor. Velho idiota tanto!
Dizendo isto, Nicholas beijou a mãe e, desejando-lhe boa‑noite, retirou‑se para o seu quarto, o mesmo fazendo ela. Para fazer justiça a Mrs. Nickleby devemos dizer que a afeição sentida pelos filhos tinha evitado cair num segundo casamento, mas como era de cabeça oca, gostava de se sentir lisonjeada pelo desconhecido cavalheiro.
Não vejo que sejam atenções absurdas e tolas, dizia consigo Mrs. Nickleby no seu quarto. Certamente é sem esperança para ele, mas se ele é um velho idiota e tonto, também não vejo. Não suponho que ele saiba serem as suas ideias sem esperança. Pobre homem! É para se ter pena dele, julgo eu.
Tendo feito estas reflexões, Mrs. Nickleby olhou para o seu espelhinho do toucador e, recuando uns poucos de passos procurou lembrar‑se do que costumava dizer quando Nicholas tinha vinte e um anos e aparentava mais ser seu irmão do que seu filho. Não sendo capaz de se recordar, apagou a vela e subiu o estore da janela para deixar entrar a luz da manhã, que, nessa ocasião começava a despontar.
É uma má luz para distinguir objectos ‑ murmurou Mrs. Nickleby, entrando no jardim, ce os meus olhos não são muito bons; sou miope desde criança, mas, palavra, julgo haver outra grande couve pregada neste momento nos gargalos partidos das garrafas de cima do muro.
Pormenores surgidos numa visita de condolências que depois podem ter importância. Smike inesperadamente encontra um antigo amigo, que o convida para a sua casa e ele não recusa.
Absolutamente inconsçiente das demonstrações do seu aooroso vizinho e dos seus efeitos sobre o susceptível peito da mamã, Kate Nickleby, tendo junto de si o querido irmão, começava a gozar duma tranquilidade, a que por tanto tempo fora estranha. A sua antiga alegria reapareceu, o passo ganhou de novo elasticidade e leveza. E Kate Nickleby estava mais bela do que nunca. Foi a este resultado que chegou Miss La Creevy sempre que pensava nos habitantes da cottage.
‑Declaro que não descobri isso da primeira vez que cá vim ‑ disse Miss La Creevy ‑ então só pensava em martelos, pregos turqueses e verrumas, de manhã à tarde e à noite.
‑Creio que a senhora não gasta muito tempo a pensar em si ‑ replicou Kate a sorrir.
‑Palavra, minha querida, quando há tantas coisas mais agradáveis em que pensar, seria uma tola se o fizesse ‑ respondeu Miss La Creevy ‑ A propósito, pensei também em alguém. Sabe que eu observo uma grande mudança numa pessoa desta família, uma mudança muito extraordinária.
‑ Em quem? ‑ perguntou Kate ansiosamente. ‑ Não em.
‑ Não no seu irmão, minha querida ‑ retorquiu Miss La Creevy, antecipando o final da frase ‑ que é sempre o mesmo afectuoso, bem humorado, inteligente com uma espécie do não deva dizer quem ‑ quando se chega a ocasião que é o mesmo quando a primeira vez o conheci. Não, é o Smike como quer ser chamado pobre rapaz! ‑pois não desejava oúvir o Mr. antes do seu nome ‑ que está grandemente alterado, mesmo neste curto espaço de tempo.
‑ Como? ‑ interrogou Kate. ‑ Não na saúde.
‑ Não; talvez não seja exactamente na saúde ‑ replicou Miss La Creevy, parando para considerar ‑ embora seja uma criatura gasta e fraca, e tenha na cara o que torturaria o meu coração se o visse na vossa. Não, não na saúde.
‑ Então o quê?
‑ Mal sei ‑ declarou a miniaturista. ‑ Mas tenho‑o observado e ele tem‑me feito chorar lágrimas muitas vezes. Não é uma coisa muito difícil conseguir isso por eu ser facilmente enternecível; contudo, estas brotam por uma boa causa e razão. Tenho a certeza de que ele tem a consciência, desde que está aqui, do seu fraco intelecto, por alguma causa muito forte. Ele sente mais. Dá‑lhe muita tristeza saber que se distrai e não pode compreender muitas coisas simples. Tenho‑o observado quando a menina não está perto, minha querida e me ponho a examiná‑lo com muita atenção; o seu olhar de tristeza é difícil de suportar e tão abatido ele é, que não lhe posso dizer como me aflige. Ainda não há três semanas era uma criatura alegre, activa, gostando de estar ocupado e tão feliz como o dia tem de segundos. Agora é uma outra pessoa ‑ a mesma criatura condescendente, inofensiva, fiel, adorável. mas não é o mesmo no resto!
‑ Certamente que isso lhe háde passar ‑ observou Kate
‑ Pobre rapaz!
‑ Espero que sim ‑ retorquiu a sua pequena amiga com uma gravidade muito desacostumada nela. ‑ Espero, por amor desse pobre rapaz, que assim seja. Contudo ‑ acrescentou Miss La Creevy, caindo no seu tom alegre, palrador, tão habitual nela. ‑ Disse o que tinha a dizer e foi um discurso muito comprido e sem razão, desconfio. Vou alegrá‑lo esta noite de qualquer forma, porque se ele for o meu escudeiro durante todo o caminho para o Strand, conversarei constantemente e não paro até lhe ter arrancado uma gargalhada. Por isso, quanto mais depressa for, melhor será para ele, e quanto mais depressa eu for, melhor será, para mim, tenho a certeza, ou de outro modo tenho a minha criada a galantear com alguém que me pode roubar a casa. embora não saiba o que possa levar além de mesas e cadeiras, com excepção das miniaturas; e o ladrão há‑de ser inteligente para as colocar com qualquer vantagem, pois eu, honestamente, confesso que não posso.
Dizendo isto Miss La Creevy escondeu a cara num chapéu muito chato e enrolou‑se num chale muito largo, que prendeu com um alfinete, declarando que o ónibus podia vir quando quisesse porque ela estava completamente pronta. Mas não foi fácil despedir‑se de Mrs. Nickleby com todas as suas reminiscências e quando estas concluíram, o ónibus, entretanto, chegou. Miss La Creevy com a pressa e querendo gratificar, ocultamente, a criada, espalhou o dinheiro no corredor, o que levou algum tempo a apanhar. Por fim, depois de ter beijado Kate e Mrs. Nickleby, e de ter agarrado no cesto e num embrulho, Miss La Creevy disparou para o ónibus, que já tinha feito uma tentativa para se pôr em marcha. Enquanto procurava um lugar conveniente, o condutor puxou Smike e o pesado veículo, pôs‑se a andar com o barulho, pelo menos, de meia dúzia de carros de cerveja.
Deixando continuar o seu caminho à vontade do condutor, podemos aproveitar a ocasião para averiguar o estado de Sir Mulberry Hawk, se tinha melhorado nessa altura dos ferimentos consequentes de ter sido arrebatado violentamente do cabriolé naquelas circunstâncias.
Com uma perna danificada, o corpo muitíssimo pisado, a cara desfigurada pelas feridas meio curadas e pálido pelo choque do recente sofrimento e febre, Sir Mulberry Hawk tinha as costas apoiadas a uma almofada, onde devia ainda estar preso por algumas semanas. Mr. Pyke e Mr. Pluck bebiam copiosamente no aposento a seguir, variando de vez em quando, os monótonos murmúrios da sua conversa com um riso meio reprimido, enquanto o jovem lorde estava sentado em frente do seu mentor com um charuto na boca e lendo‑lhe algumas notícias do jornal do dia.
‑Malditos esses sabujos! ‑ exclamou o inválido, voltando a cabeça com impaciência para o aposento ao lado. ‑ Não há nada que páre as suas infernais gargalhadas!
Misters Pyke e Pluck ouviram a exclamação e pararam imediatamente; piscando os olhos um para o outro, encheram os copos até às bordas, como compensação para a privaçãoda fala.
‑Irra! ‑ murmurou o doente entre dentes e torcendo‑se impacientemente na cama ‑ Este colchão não é bastante duro, o quarto bastante enfadonho e a dor bastante aguda para me torturarem? Que horas são?
‑Oito e meia ‑ respondeu o amigo.
‑Puxa a mesa para mais perto e joguemos outra vez às cartas. Mais ráquet. Vamos.
Embora só podendo mover a cabeça dum lado para o outro, Sir Mulberry seguia todos os movimentos do seu companheiro, cuja habilidade era muito inferior à sua ainda mesmo favorecido com boas cartas, de modo que lhe ganhou todos os jogos. Enquanto o companheiro atirava as cartas e se recusava a jogar mais, ele estendeu o braço e apanhou o dinheiro das paradas, dando a mesma gargalhada que ressoara na casa de jantar de Ralph Nickleby meses antes.
O criado entrou, estando ele nesta ocupação, para anunciar que Mr. Ralph Nickleby estava em baixo e desejava saber como ele estava nessa noite.
‑Melhor ‑ respondeu Sir Mulberry impaciente.
‑ Mr. Nickleby deseja saber, sir.
‑Eu disse‑te melhor ‑ replicou Sir Mulberry, batendo com a mão na mesa.
O homem hesitou um momento ou dois e depois disse que Mr. Nickleby pedira licença para ver Sir Mulberry Hawk, se não houvesse inconveniência.
‑Há inconveniência. Não posso vê‑lo. Não posso ver ninguém ‑ retorquiu o patrão mais violentamente do que antes.
‑ Tu sabes isso, cabeça de granito.
‑ Sinto muito, sir ‑ insistiu o homem ‑ mas Mr. Nickleby ‑ teimou tanto, sir.
O facto era que Ralph Nickleby gratificara o homem, oqual, estando ansioso por fazer jus ao dinheiro, com vista a futuros favores, e aventurou‑se a ficar ali, segurando a porta.
‑Informou ele se tinha algum negócio para falar? ‑ interrogou Sir Mulberry depois duma pequena consideração impaciente.
‑Não, sir. Disse que desejava vê‑lo, sir. Particularmente, disse Mr. Nickleby, sr.
‑ Diz‑lhe para subir. Ouve ‑ gritou Sir Mulberry, fazendo regressar o homem e passando a mão pela cara desfigurada - tira aquela lâmpada e põe‑na no móvel por detrás de mim.
Roda com essa mesa daí. e coloca uma cadeira acolá. mais longe. Deixa-a assim.
O homem obedeceu a estas directivas como se compreendesse completamente o motivo que as ditava e deixou o quarto. Lorde Frederick Verisopht, observando que tinha uma visita a fazer, entrou no aposento do lado e fechou a porta sobre si. Depois uns passos cautelosos subiram a escada e Ralph Nickleby, de chapéu na mão, entrou suavemente no quarto, com o corpo para a frente e os olhos fixos no seu digno cliente.
‑Então, Nickleby ‑ disse Sir Mulberry, indicando‑lhe a cadeira ao lado da almofada e gesticulando com a mão com presumida indiferença. ‑ Tive um mau acidente, está a ver.
‑Vejo ‑ respondeu Ralph com o mesmo olhar fixo. Mau, na verdade! Eu não o reconheceria, Sir Mulberry. Meu Deus, meu Deus! Isto está mau.
As maneiras de Ralph eram de profunda humildade e respeito e o seu tom era o indicado para visitar um doente, mas a parte das feições que não ficavam na sombra davam a impressão dum sorriso sarcástico.
‑ Sente‑se ‑ convidou Sir Mulberry, voltando‑se para ele parecendo fazer um violento esforço. ‑ Sou uma caricatura para que você fique aí espantado?
Quando ele voltou a cara Ralph recuou um passo ou dois e, dando a impressão de ser violentamente impelido a exprimir o seu assombro, mas estando determinado a não fazer tal, sentou‑se com uma confusão bem representada.
‑Tenho sabido notícias suas à porta, Sir Mulberry, duas vezes por dia ‑ informou Ralph ‑ e esta noite, fiando‑me no velho conhecimento e passadas transacções que nos deram mútuo benefício num certo tempu, não pude resistir a solicitar a entrada no seu quarto. Tem. tem sofrido muito? ‑ perguntou Ralph, inclinando‑se para a frente com o mesmo impertinente sorriso, enquanto o outro fechava os olhos.
- Mais do que suficiente para me agradar e menos do que suficiente para ajudar alguns malandros, que você e eu conhecemos, a colocarem a sua ruína entre nós, devo dizer ‑ respondeu Sir Mulberry, atirando o braço desassossegadamente sobre o cobertor.
Ralph encolheu os ombros, deplorando a intensa irritação com que isto foi dito, motivada pela exagerada e fria distinção entre o discurso e as maneiras dele, que tanto importunaram o doente de modo a mal poder suportá‑las.
‑ E o que há nessas passadas transacções que o fez vir esta noite aqui? ‑ inquiriu Sir Mulberry.
‑Nada ‑ respondeu Nickleby ‑ Há algumas letras do meu lorde que precisam ser reformadas; mas deixêmo‑las assim até o senhor estar bom. Eu. eu. vim ‑ declarou Ralph, falando mais devagar e com uma ênfase muito impertinente - vim para dizer como estou pesaroso por um parente meu, embora repudiado por mim, lhe ter infligido esse castigo como.
‑ Castigo! ‑ interrompeu Sir Mulberry.
‑ Sei que foi severo ‑ comentou Ralph, enganando‑se, de caso pensado, no sentido da interpretação ‑ e isso tornou‑me mais ansioso para lhe dizer que repudio esse vagabundo, que o não reconheço como meu parente e, além disso, abandono‑o a si e a toda a gent. Pode torcer‑lhe o pescoço que eu não intervirei.
‑Esta história que me contaram aqui tem, então, andado lá por fora, não tem? ‑ perguntou Sir Mulberry, apertando as mãos e os dentes.
‑Badalada emn todos os sentidos ‑ informou Ralph. Todos os clubes e casas de jogo estão cheios. Disseram‑me que foi feita uma boa cantiga acerca dela ‑ acrescentou Ralph olhando fixamente para o seu interlocutor. ‑ Ainda a não ouvi, por não andar no meio dessas coisas, mas informaram‑me que já foi mesmo impressa... para distribuição particular, mas decerto já percorreu toda a cidade.
‑É uma mentira! ‑ exclamou Sir Mulberry. ‑ Digo‑lhe que é tudo uma mentira. O cavalo tomou medo.
‑Dizem que foi ele quem o amedrontou ‑ observou Ralph na mesma maneira calma. ‑ Alguns dizem que ele lhe meteu medo a si, mas isso eu sei que é uma mentira. Tenho dito isso resolutamente. oh, uma vintena de vezes! Sou um homem pacífico, mas não posso ouvir as pessoas dizerem isso de si. não!
Quando Sir Mulberry encontrou palavras concretas para proferir, Ralph inclinou‑se para a frente com a mão no ouvido e a cara tão calma como se todas as linhas do rosto tivessem sido fundidas em aço.
‑ Quando eu me livrar desta maldita cama ‑ declarou o inválido batendo na perna partida no auge da sua paixão - tomaréi tal vingança como nenhum homem ainda a teve. Por Deus. que o farei! Favorecido pelo acidente marcou‑me por uma semana ou duas, mas eu hei‑de marcá‑lo para sempre. Corto‑lhe o nariz e as orelhas. açoito‑o. Farei mais do que isso; arrastarei esse exemplo de castidade e de susceptibilidade, a sua delicada irmã, através.
Pode ser que o mesmo sangue‑frio de Ralph lhe latejasse nas faces. Pode ser que Sir Mulberry se lembrasse que, velhaco e usurário como era, tivesse em tempo remoto da sua infância, passado o braço em volta do pescoço do pai. Parou e, ameaçando com a mão, confirmou a silenciosa ameaça com uma tremenda praga.
‑ É uma coisa horrível pensar que o homem ávido de prazeres, o dissoluto, o trapaceiro das mil oportunidades fosse arrastado a esta situação por um garoto! ‑ comentou Ralph depois dum curto silêncio, durante o qual olhou para o doente.
Sir Mulberry dardejou‑lhe um olhar furioso, mas os olhos de Ralph estavam postos no chão e a sua cara só apresentava uma expressão pensativa.
‑ Uma pena, um adolescente ‑ continuou Ralph ‑ contra um homem cujo peso podia esmagá‑lo, já para não falar na sua habilidade em. Creio ter razão ‑ aqui Ralph levantou os olhos ‑ em dizer que foi um ás no ringue, não é verdade?
O doente fez um gesto impaciente, que Ralph achou por bem tomar como uma aquiescência.
‑Ah! ‑ exclamou. ‑ Assim o pensava. Foi antes de eu o conhecer, mas tinha a certeza de não me ter enganado. É leve e rápido. Mas essas são fracas vantagens comparadas com as suas. Sorte. sorte. foi o que teve esse renegado velhaco.
‑Precisará de muito mais quando eu estiver bom ‑ afirmou Sir Mulberry Hawk ‑ fuja ele para onde fugir.
‑Oh! ‑ replicou Ralph rapidamente ‑ ele não pensa nisso. Está aqui aguardando o seu prazer... aqui, em Londres, passeando pelas ruas ao meio‑dia, matando o tempo à sua procura, aposto ‑ insinuou Ralph, cuja cara se ensombrou e onde o ódio tomou a supremacia pela primeira vez por se lhe apresentar a imagem alegre de Nicholas. ‑ Se fôssemos cidadãos dum país onde isto se pudesse fazer impunemente, daria bom dinheiro para o apunhalarem no coração e o atirarem para um canil, onde os cães o despedaçassem.
Quando Ralph desabafou este pequeno exemplo de puro sentimento familiar com alguma surpresa do seu antigo cliente, e pegou no chapéu, preparando-se para partir, entrou Lorde Frederick Verisopht.
‑Em nome do diabo, Hawk, em que tens estado a falar com Nickleby? ‑ inquiriu o jovem. ‑ Nunca ouvi tanto banzé. Cróque! cróque! cróque! Bau! uau! uau! O que vem a ser isso?
‑ Sir Mulberry tem estado zangado, meu lorde ‑ explicou Ralph, olhando para o lado da almofaàa.
‑ Espero que não seja por causa de dinheiro. A respeito de negócios, nada tem corrido mal, pois não, Nickleby?
‑ Não, meu lorde, não ‑ respondeu Ràlph. ‑ Nesse ponto estamos sempre de acordo. Sir Mulberry esteve a recordar a causa de.
Não houve necessidade, nem oportunidade de Ralph continuar, por Sir Mulberry atacar o assunto e desafogar as suas ameaças e pragas contra Nicholas, quase tão ferozmente como antes. Ralph, que era um observador pouco comum, ficou surpreendido por ver que, à maneira que esta tirada prosseguia, as maneiras de Lorde Frederick Verisopht, que ao princípio estivera a retorcer os bigodes com o ar mais aperaltado é distraído, sofreram uma completa alteração. Ainda ficou mais surpreendido quando Sir Mulberry acabou de falar e o jovem lorde pediu, zangado, para nunca mais falar no assunto na sua presença.
‑Lembra‑te disto; Hawk! ‑ acrescentou ele com uma inullgar energia ‑ nunca serei partidário, nem permitirei, se me for possível, um cobarde ataque a esse rapaz.
‑ Cobarde! ‑ interrompeu o amigo.
‑ Sim ‑ disse o outro,voltando‑se todo para ele. Se lhe tivesses dito quem eras, se lhe tivesses dado o teu bilhete e achado depois que a sua posição social ou o seu carácter,te impediam de lutar com ele,teria sido bastante mau. Assim procedeste pessimamente e eu também por não ter intervido,o que lamento. O que te aconteceu depois foi mais a consequência do acidente que a intenção,e mais culpa tua do que dele. E,com o meu conhecimento,não lhe será feita nenhuma crueldade.
Com esta enfática repetição das suas últimas palavras o jovem lorde rodou nos calcanhares,mas antes de chegar ao aposento do lado voltou‑se de novo e declarou,com maior veemência do que antes:
‑Agora acredito,que a irmã é uma jovem tão virtuosa e modesta como bela e o irmão fez o que devia,e apenas desejo,de todo o meu coração,que qualquer de nós saísse
deste assunto como ele saiu.
Dizendo isto Lorde Frederick Verisopht retirou‑se,deixando Ralph Nickleby e Sir Mulberry no mais desagradável assombro.
‑Este é o seu pupilo, ou veio há pouco dum padre da província? ‑ inquiriu Ralph,suavemente.
‑Os malucos têm às vezes estes ataques ‑ replicou Sir Mulberry Hawk,mordendo os lábios e apontando para a porta. ‑ Deixe‑o comigo!
Ralph trocou um olhar familiar com o seu velho conhecido por terem restabelecido, subitamente,uma mútua confiança perante esta surpresa,e foi para casa devagar e pensativo.
Enquanto se passavam estas coisas e muito antes de estarem concluídas,o ónibus deixara Miss La Creevy à porta com o seu companheiro. A miniaturista não deixou partir Smike sem comer e beber alguma coisa para o seu passeio até casa e ele aceitou,de modo que já passava meia hora do anoitecer quando se meteu a caminho de Bow.
Não havia possibilidade de se enganar,não só por quase todos os dias ir à cidade com Nicholas e regressar só,como por o caminho ser sempre a direito. Ao pé de Ludgate Hill saiu um pouco fora da rua para dar uma olhadela a Newgate e durante o resto do caminho foi deitando os olhos para as lojas de maior interesse,até parar numa joalharia,cuja montrahe atraíu mais a atenção pelo prazer que teria em levar um presente. Estava nesta contemplação quando bateram as oito e três quartos; despertado pelo som,apressou‑se a andar num passo mais rápido e quando ia a atravessar a esquina duma rua lateral sentiu‑se agarrado tão subitamente que teve de se encostar a um candeeiro para não cair. Ao mesmo tempo ouviu um grito agudo dum rapazito que se segurara à sua perna:
‑ Ele aqui está,pai...
Smike conhecia esta voz bem demais e,olhando desesperadamente para a figura donde provinha,deu uma vista de olhos em torno. Mr. Squeers tinha‑o filado pela gola do casaco
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com o cabo do guarda‑chuva e o grito viera de Mister Wackford que se agarrara a ele como um buldogue. Um relance mostrou‑lhe isto e o terror impossibilitou‑o de proferir uma palavra.
‑Isto é que foi um êxito! ‑ exclamou Mr. Squeers, puxando o guarda-chuva, que tirou somente quando pôde agarrar com a mão a gola da vítima. ‑ Foi um bom êxito! Wockfard, meu rapaz, chama um trem de praça.
‑Um trem de praça, pai! ‑ repetiu o pequeno Wackford.
‑Sim um trem de praça, sir ‑ replicou Squeers, alegrando‑se‑lhe os olhos com a expressão da vítima. ‑ Que vá para o diabo a despesa! Ele merece um trem de praça.
‑O que fez ele? ‑ perguntou um trabalhador com um monte de tijolos, a quem Mr. Squeers dera um encontrão no primeiro lançamento do guarda‑ chuva.
‑Muita coisa ‑ respondeu Mr. Squeers, olhando fixamente para o seu antigo pupilo ‑ muita coisa! Fuga, partícipação em ataques sanguinários ao patrão. nada há de mau que ele não tenha feito. Foi uma deliciosa oportunidade!
O homem olhou de Squeers para Smike, mas as faculdades mentais do pobre rapaz tiraram‑lhe o uso da palavra. O trem de praça chegou; Mister Wackford entrou e Squeers, empurrando a sua presa, seguiu‑o, fechando as janelas. O cocheiro fez seguir o carro vagarosamente, deixando as testemunhas do caso a comentarem‑no a seu belo prazer.
Mr. Squeers sentou‑se no banco, em frente do infeliz Smike e, plantando firmemente as mãos nos joelhos, olhou durante alguns cinco minutos para ele e depois, quando pareceu recobrar‑se do seu transe, lançou uma formidável gargalhada e bateu ne cara do pupilo por várias vezes.
‑Não é um sonho! ‑ exclamou Squeers. ‑ É verdadeira carne e osso! Já conheço o seu contacto ‑ e adquirindo a completa certeza da sua boa fortuna por estas experiências, Mr. Squeers administrou‑lhe uns poucos de socos na orelha.
‑A tua mãe rebenta na pele, meu rapaz, quando ouvir isto ‑ disse Squeers para o filho.
‑Oh! mesmo assim ela não rebentará, pai! ‑ replicou Mister Wackford.
‑ Pensar ‑ observou Squeers ‑ que tu e eu devíamos ao voltar duma rua, vir ao encontro dele no momento oportuno e que o apanhava logo ao primeiro lançamento do guarda‑chuva, como se o enganchasse com um arpão!
‑E eu não o agarrei tão bem na perna, pai? ‑ interrogou o pequeno Wackford.
‑Agarraste como um cão meu filho ‑ afirmou Mr. Squeers, batendo na cabeça do filho ‑ por isso terás como recompensa do mérito, a melhor jaqueta e o melhor colete que o primeiro novo aluno traga. lembra‑te disso! Conserva‑te sempre assim e faze as coisas que vires o teu pai fazer, que quando morreres irás para o Céu sem te fazerem perguntas.
Com estas palavras Mr. Squeers aproveitou a ocasião para bater de novo na cabeça do filho e depois na de Smike com mais força e perguntou num tom de zombaria por que se encontrava ali.
‑ Devia ir para casa ‑ replicou Smike, olhando espantado em redor.
‑Com certeza que deves! Estás a caminho dela ‑ informou Squeers. ‑ Vais para casa muito em breve. Encontrar‑te‑ás na pacifica aldeia de Dotheboys, no Yorkshire, em menos duma semana, meu jovem amigo; e da próxima vez que te raspes dou‑te licença para te conservares afastado. Onde estão as roupas com que fugiste, ingrato ladrão? ‑ interrogou Mr. Squeers numa voz severa.
Smike deu uma vista de olhos pelo fato asseado fornecido pelo cuidado de Nicholas e torceu as mãos.
‑Sabes que te podia enforcar à porta de Old Bailey por teres desaparecido com artigos da minha propriedade? ‑ perguntou Squeers. ‑ Sabes que isto é caso de forca ‑ e não tenho a certeza completa se não é, além disso, um caso anatómico ‑ safar‑se duma casa de habitação com mais de cinco libras? Sabes isso? Quanto supões que valiam as tuas botas Wellington? Custaram vinte e oito xelins e os sapatos sete xelins e seis pence. Mas quando me foste entregue não trazias nada e agradece à tua estrela ser eu a servir‑te com o artigo!
Alguém que não estivesse na confidência de Mr. Squeers suporia que ele estava desprovido de tudo, em vez de ter uma grande provisão pronta para todos os que viessem. Depois atirou uma ponteirada do guarda‑chuva acompanhada com uma data de pancadas dirigidas à cabeça e ombros do pobre Smike. Este defendia‑se das pancadas o melhor que podia e meteu‑se a um canto do carro com a cabeça nas mãos e os cotovelos nos joelhos, vendo que nunca mais podia escapar a Squeers, por não ter um amigo a quem avisar, como nos tempos que antecederam a chegada de Nicholas a Yorkshire.
A viagem parecia infindável. Por último Mr. Squeers pôs a cabeça fora da janela em cada meio minuto para gritar ao cocheiro uma variedade de instruções, e depois de passarem algumas ruas em mau estado, berrou para parar.
‑ Para que está a puxar pelo braço do rapaz? ‑ perguntou o cocheiro com aparência de zangado.
‑ É esta a casa ‑ disse Squeers. ‑ A segunda das quatro pequenas casas, com um andar e portadas verdes. há uma chapa de latão na porta com o nome de Snawley.
‑ Não podia dizer isso sem torcer a perna do desgraçado? ‑interrogou o cocheiro.
‑ Não ‑ berrou Mr. Squeers. ‑ Diga uma palavra mais e eu cito‑o por ter uma janela partida. Páre!
Obedecendo a esta ordem, o cocheiro parou à porta de Mr. Snawley, que era aquele homem muito religioso, que confiara dois filhos, por afinidade, ao cuidado paternal de Mr. Squeers. A casa de Mr. Snawley ficava em Somers Town e Mr. Squeers alojara‑se lá perto no Saracen, devido ao apetite de Mister Wackford.
‑ Cá estamos! ‑ declarou Squeers fazendo entrar Smike apressadamente na pequena saleta onde Mr. Snawley e a esposa estavam a comer uma ceia de lagosta. ‑ Aqui está o vadio, o traidor, o rebelde, o monstro de ingratidão!
‑O quê! O rapaz que fugiu? ‑ inquiriu Snawley, com o garfo e a faca na mão e abrindo muito os olhos.
‑O mesmíssimo rapaz ‑ respondeu Squeers, pondo o punho cerrado no nariz de Smike e retirando-o, repetindo o processo várias vezes com um aspecto maldoso.
‑ Se não estivesse uma senhora presente aplicava‑lhe uma tal. Não faz mal, fico‑lhe a dever.
Mr. Squeers relatou como e de que maneira o apanhara.
‑ Está claro que houve uma Providência nisto, sir ‑ observou Mr. Snawley baixando os olhos com um ar de humildade e elevando o garfo com um bocado de lagosta na ponta em direcção ao tecto.
‑ Coração duro e mau procedimento nunca prosperaram sir ‑ sentenciou Mr. Snawly.
- Qual foi o resultado da minha brandura de humana benevolência? Cardos e espinhos.
‑Isso é fácil de acontecer, sir ‑ observou Mrs. Snawley.
‑ Oh, isso é fácil de acontecer.
‑Onde esteve ele todo este tempo?
Tem estado a viver com esse demónio do Nickleby, sir. Mas nem ameaças ou socos puderam arrancar uma palavra que comprometesse o seu primeiro e verdadeiro amigo, lembrando‑se da sua vida passada em que Nicholas o tirara da quela horrível prisão, julgou que o seu protector cometera com isso um grande crime, pelo qual sofreria um enorme castigo, se fosse detido. Tais eram os pensamentos de Smike que o tornavam mudo à intimidação e à persuasão. Achando os seus esforços inúteis Mr. Squeers conduziu‑o para um pequeno quarto das traseiras, no andar de cima, onde, por precaução, o fechou à chave pelo lado de fora, depois de lhe ter tirado os sapatos, o casaco e o colete. E, Smike, deitou‑se a mesma criatura apática, desamparada, inconsolável, que Nicholas encontrara na escola de Yorkshire.
Outro velho amigo encontra Smike, no momento oportuno
A noite, cheia de amargura para uma pobre alma, deu lugar a uma manhã de Verão, soalheira e sem núvens, quando uma mala‑posta do norte do país atravessou, com alegre ruído, as ainda silenciosas ruas de Islington e deu sinal da sua aproximação pela corneta do condutor, detendo‑se na sua paragem, junto ao correio.
O único passageiro era um corpulento camponês de aparência honesta, que, com os olhos fixos no zimbório de St. Paul's Cathedral parecia tão admirado, que estava completamente insensível à bulha da descarga dos sacos e embrulhos, até que uma janela do coche desceu com ligeireza e ele olhou em redor, encontrando uma bonita cara feminina a espreitar.
‑ Olha para ali, rapariga ‑ berrou o camponês, apontando para o objecto da sua admiração. ‑ Ali está St. Paul's Church. dum tamanho!
‑Bondade divina, John! Nunca poderia pensar que tivesse metade do tamanho. Mas que monstro!
‑Monstro! Calculo que estejas dentro da verdade, Mrs. Browdie ‑ disse o camponês bem humorado, caminhando vagarosamente, envolvido no seu enorme sobretudo. ‑ E o que me dizes tu daquele lugar ali? Não... aquele em frente? Nunca chegarias ao pé dele, mesmo que esperasses doze meses. Não é mais do que o correio. Eles precisam de franquear as cartas duplamente. Um correio! O que pensas disto? Se isto é um correio eu gostaria de ver onde vive o Lorde Mayor de Londres.
Dizendo isto, John Browdie ‑ pois era ele! ‑ abriu a porta do coche e dando uma pancadinha nas faces de Mrs. Browdie, ex‑Miss Price, teve um ataque de riso ao olhar para dentro.
‑Bem! ‑ comentou John. ‑ Aposto as minhas botas em como ela está outra vez a dormir.
‑ Ela esteve a dormir toda a noite e todo o dia de ontem, excepto um minuto ou dois, de vez em quando ‑ informou a escolhida de John Browdie ‑ e tenho medo quando ela acordar, por ter vindo muito zangada.
O objecto destas observações era uma figura tão envolvida num chale e numa capa, metida a um canto durante duzentas e cinquenta milhas, que era impossível dizer o sexo.
‑Olá! ‑ gritou John, puxando‑ lhe por uma ponta do véu.
‑ Vamos, acorde!
Depois de várias mexidelas no canto e de muitas exclamações de impaciência e fadiga, a figura sentou‑se e, sob um chapéu de castor amarrotado e circundado por um semi‑círculo de papelotes azuis, surgiram as delicadas feições de Miss Fanny Squeers.
‑Oh, Tilda! ‑ exclamou Miss Squeers ‑ que data de encontrões me deste durante toda a santa noite!
‑ Tive de o fazer ‑ replicou a sua amiga, rindo ‑ quando tomavas conta de toda a carruagem só para ti.
‑Não o negues, Tilda ‑ disse Miss Squeers dum modo eficaz ‑ pois não merece a pena tentar dizer que não. Talvez não desses por isso durante o sono, Tilda, mas é que eu não fechei os olhos um simples instante.
Com esta resposta Miss Squeers ajustou o chapéu e o véu e, querendo parecer invulgar mente asseada, sacudiu as migalhas de sanduiches e pedaços de bolacha que se lhe acumulavam no colo, aproveitando‑se depois do braço de John Browdie para descer do carro.
‑Agora ‑ disse John, quando chamaram um trem de praça e as senhoras e a bagagem foram içadas ‑ vamos para Sarah's Head, homem!
‑Para onde? ‑ perguntou o cocheiro.
‑ Oh, Mr. Browdie ‑ interrompeu Miss Squeers ‑ Mas que ideia! É Sarac;en's Head.
‑ Certamente ‑ concordou John. ‑ Sabia que era uma coisa relacionada com Sarah. para Sarah's Son's Head. Não conhece isso?
‑Oh! oh!... Conheço! ‑replicou o cocheiro grosseiramente atirando com a porta.
‑ Tilda, querida. realmente ‑ censurou Miss Squeers - seremos tomados não sei por quem.
‑ Deixe‑os tomarem pelo que eles quiserem ‑ disse John Browdie. ‑ Não viemos nós para Londres para nos divertir?
‑ Espero que não, Mr. Browdie ‑ replicou Miss Squeers, aparentando-se singularmente triste.
‑ Bem, não tem importância ‑ retorquiu John. ‑ Só fui um homem casado durante quatro dias por causa da morte do pobre pai. Isto aqui é um casamento. a noiva, a dama de honor e o noivo. se um homem não se diverte agora, quando é que há‑de ser? Arranjem lá isso!
A fim de começar imediatamente a divertir‑se, Mr. Browdie deu um beijo do fundo do coração à sua mulher e outro a Miss Squeers, depois duma virtuosa resistência e de luta de parte da rapariga.
Depois o grupo retirou‑se imediatamente para descansar, pedindo ao sono o repouso duma tão longa jornada, e aqui se juntaram de novo, cerca do meio dia, para um reconfortante almoço, encomendado por Mr. John Browdie para ser servido num pequeno quarto privado no andar de cima, onde havia uma visita ininterrupta das cavalariças.
Ao Ver agora Miss Squeers, sem o chapéu castanho e véu verde, bem como dos papelotes azuis, e investida no virginal esplendor, das suas graças, dos seus adornos, era o mesmo que atear dentro de si o fogo da juventude.
O criado foi atingido. O criado tinha paixões e sentimentos humanos e, por isso, olhou muito firmemente para Miss Squeers quando lhe passou os bolos.
‑ Sabe se o meu papá está aqui? ‑ perguntou Miss Squeers com dignidade.
‑ Desculpe‑me, miss?
‑ O meu papá ‑ repetiu Miss Squeers ‑ Está cá?
‑ Onde, miss?
‑ Aqui. na casa! ‑ respondeu Miss Squeers. ‑ O meu papá ‑ Mr. Wackford Squeers ‑ que está aqui alojado. Ele está?
‑ Não sabia que havia um cavalheiro desse nome aqui na casa, Miss ‑ replicou o criado. ‑ Talvez esteja no café!
Talvez. Muito lindo isto, na verdade! Aqui estava Miss Squeers, que durante todo o caminho dissera aos seus amigos que lhes ia mostrar que estava ali como em casa e como o seu nome e parentesco excitariam respeito, com a informação de que o seu pai talvez estivesse lá!
‑ Como se fosse um garoto ‑ observou Miss Squeers com enfática indignação.
‑ É melhor ir investigar, homem ‑ aconselhou John Browdie. ‑ E mande outro pastelão de pombos, sim? Raio do tipo
‑ murmurou John, olhando para o prato vazio ‑ não chama a isto pastelão?. Três pombitos, uma ridicularia dum picado e uma crosta tão leve que se não sabe quando está na boca, ou quando foi para baixo. Pergunto quantos pastelões são precisos para fazer um almoço.
Depois dum curto intervalo, empregado por John Browdie em comer presunto e um bocado de carne fria o criado voltou com outro pastelão e a informação de que Mr Squeers não estava alojado na casa, mas que ia lá todos os dias, e tão depressa chegasse imediatamente seria mandado lá acima. Com isto retirou‑se e não tinham passado ainda dois minutos quando regressou com Mr. Squeers e o seu esperançoso filho.
‑ Quem havia de pensar nisto? ‑ exclamou Mr. Squeers, quando cumprimentou o grupo e recebeu da filha notícias da família.
‑ Quem, na verdade, papá! ‑ replicou a jovem, acintosamente. ‑ Mas vê que a Tilda está, por fim, casada.
‑ E eu aqui estou para ver Londres, mestre‑escola ‑ disse John, atacando vigorosamente o pastelão.
‑É uma das coisas que os jovens fazem quando se casam
‑ informou Squeers ‑ e gastam dinheiro como se não fosse nada com eles. Quanto melhor não seria poupá‑lo para a educação dos filhos, por exemplo. Eles virão ‑ acrescentou Mr. Squeers duma forma moralista ‑ antes de se dar conta disso, foi o que sucedeu com os meus.
‑ Vai um bocado daqui? ‑ perguntou John.
‑Eu não quero ‑ respondeu Squeers ‑ mas se permite que o pequeno Wackford mastigue qualquer coisa, fico‑lhe muito obrigado. Dê‑lhe na mão para que o criado não ponha na conta, visto eles ganharem sem isso. Se ouvir o criado vir, meta tudo na algibeira e olhe para a janela, sir, está a ouvir?
‑ Estou acordado; pai ‑ replicou o obediente Wackfard.
‑Bem ‑ disse Squeers, voltando-se para a filha. ‑ É a tua vez de te casares. Deves fazê‑lo rapidamente.
‑ Oh, não estou apressada! ‑ retorquiu Miss Squeers asperamente.
‑ Não, Fanny? ‑ perguntou a sua velha amiga com certa ironia.
‑ Não, Tilda ‑ respondeu Miss Squeers, abanando a cabeça com veemência. ‑ Posso aguardar.
‑ Assim podem também os jovens, segundo parece, Fanny ‑ observou Mrs. Browdie.
‑ Eles não são arrastados a isso por mim, Tilda ‑ replicou Miss Squeers.
‑ Não ‑ concordou a sua amiga. ‑ Isso é muitíssimo verdadeiro.
O tom sarcástico desta resposta podia provocar bastantes réplicas acrimoniosas de Miss Squeers, que era de temperamento maldoso, agravado pela fadiga e pelas velhas lembranças dos seus projectos sobre Mr. Browdie, se Mr. Squeers não mudasse o sentido da conversa.
‑ A quem pensam ‑ intrrogou este cavalheiro; ‑, que deitámos as mãos, Wackford e eu?
‑ Papá! não é... Miss Squeers foi incapaz de terminar a frase, mas Mrs. Browdie acabou‑a por ela e acrescentou:
‑ Nickleby?
‑ Não ‑ negou Squeers ‑ mas muito ligado a ele.
‑ Não quer dizer Smike? ‑ exclamou Miss Squeers, batendo as palmas.
‑ Sim, é isso mesmo ‑ informou o papá. ‑ Apanhei‑o por fim!
‑ O quê! ‑ exclamou John Browdie, empurrando o prato.
‑ Tem. esse pobre danado velhaco. onde?
‑ No quarto das traseiras do último andar, nos meus alojamentos ‑ informou Squeers ‑ ele dum lado e a chave do outro!
‑No teu alojamento? Puseste‑o no teu alojamento? Oh! oh! O mestre‑ escola irritando toda a Inglaterra. Dá‑nos a tua morada, homem ‑ sou um maldizente, mas devo felicitar‑te pela tua proeza. Tem‑lo nos teus alojamentos?
‑ Sim ‑ replicou Squeers, cambaleando na cadeira sob a pancada congratulatória que lhe deu no peito o valentão de Yorkshire. ‑ Obrigado! Não faça isso outra vez. Sei que fez por amabilidade, mas magôa bastante. sim, está lá. Não muito mau, pois não?
‑ Mau! ‑ repetiu John Browdie. ‑ Ouvi‑lo contar não chega para espantar um homem!
‑ Pensava que isso o surpreendia um bocado – disse Squeers esfregando as mãos. ‑ Foi feito com muito asseio e muito depressa.
‑ Como foi? ‑ perguntou John, sentando‑se junto dele. Conte‑nos tudo, homem; vamos, depressa!
Embora não pudesse falar com a diligência suficiente para satisfazer a impaciência de John Browdie, Mr. Squeers relatou, sem parar, o feliz acaso que lhe pôs nas mãos o Smike, excepto quando foi interrompido pelas observações dos seus auditores.
‑ Com medo que ele me passasse o pé ‑ observou Squeers quando acabou, aparentando grande astúcia ‑ tomei três lugares cá fora na diligência de amanhã ‑ para Wackford, para ele e para mim ‑ e deixei as contas e os novos rapazes ao agente. Foi uma felicidade para vocês virem hoje, pois de contrário não nos viam; e é desnecessário convidá‑los para virem tomar chá comigo esta noite, pois não nos tornaremos a ver antes da partida.
‑ Não diga mais ‑ replicou o homem de Yorkshire apertando-lhe a mão ‑ Iríamos nem que fossem vinte mil tias.
‑ Vão, na verdade? ‑ perguntou Squeers, que não esperava uma aceitação tão pronta ao seu convite pois de contrário teria pensado duas vezes antes de o ter feito.
A única resposta de John Browdie foi outro aperto de mão e a certeza de que não começariam a ver Londres antes do dia seguinte, para poderem estar em casa de Mr. Snawley às seis horas em ponto. Depois de mais algumas palavras Mr. Squeers e o filho retiraram‑se.
Durante o resto do dia Mr. Browdie esteve num singular estado de excitação, andando dum lado para o outro, desatando a rir, tirando o chapéu, dando estalos com os dedos, dançando, em resumo, conduzindo‑se duma maneira tão extraordinária que Miss Squeers foi de opinião que ele estava a endoidecer e pedindo à sua querida Tilda para se não afligir, comunicou‑lhe as suas suspeitas em muitas palavras. Contudo Mrs. Browdie, sem mostrar as suas suspeitas em muitas palavras, sem mostrar grande alarme, observou que já o tinha visto assim uma vez e, embora fosse quase certo ele adoecer depois, não era nada de sério e por isso seria melhor deixá‑lo só.
O resultado provou que ela tinha inteira razão, pois enquanto estavam sentados na saleta de Mr. Snawley, nessa noite, John Browdie adoeceu e com tantas vertigens, que toda a gente ficou na maior consternação. Só a esposa teve o sangue‑frio suficiente para dizer que se pudesse deitá‑lo por uma hora ou mais na cama de Mr. Squeers, deixando‑o inteiramente só, melhoraria quase tão depressa como adoecera. Ninguém podia recusar‑lhe este favor e, deste modo, ajudaram o John a subir as escadas com alguma dificuldade, sendo deitado depois na cama, entregue ao cuidado da sua mulher, que reapareceu na saleta pouco depois, com a notícia de ter adormecido. A verdade, porém, era que John Browdie estava sentado na cama com um canto do travesseiro metido na boca, para evitar de ser ouvido o ruído das suas gargalhadas. Logo que reprimiu
esta emoção, calçou os sapatos e, dirigindo‑se para o quarto ao lado, onde o prisioneiro estava metido, deu volta à chave, entrou e pôs a mão na boca de Smike antes dele poder emitir qualquer som.
‑ Ora essa! Tu não me conheces, criatura? ‑ segredou o homem de Yorkshire ao maravilhado rapaz. ‑ Browdie. o tipo que te encontrou depois do mestre‑escola ter apanhado a sova.
‑ Sim, sim! ‑ exclamou Smike. ‑ Oh, ajude‑me!
‑ Ajudar‑te! ‑ replicou John, tapando-lhe outra vez a boca quando ele disse isto muito alto. ‑ Tu não precisavas de ajuda se não fosses um jovem palerma como nunca existiu. Então como vieste parar aqui?
‑ Oh, foi ele que me trouxe! ‑ informou Smike.
‑ Trouxe‑te! ‑ replicou John. ‑ Porque não lhe socaste a cabeça, ou lhe deste pontapés e chamaste a polícia? Eu bati‑me com dúzias como ele quando tinha a tua idade. Mas tu és um pobre diabo e Deus me perdoe se faço pouco dos Seus filhos - concluiu John tristemente.
Smike abriu a boca para falar, mas John Browdie impediu‑o.
‑ Está quieto ‑ aconselhou o homem de Yorkshire ‑‑e não digas uma palavra, enquanto eu não te falar!
Com esta prevenção John Browdie abanou a cabeça significativamente e, tirando uma chave de parafusos da algibeira, desaparafusou a fechadura com certa habilidade e pô‑la, juntamente com a ferramenta, no chão.
‑ Vês isto? ‑ perguntou John. ‑ Foste tu que o fizeste. Agora, põe-te a andar! ‑ repetiu John apressadamente. ‑ Não sabes onde moras? Sabes? Bem. Estas roupas são tuas, ou do mestre‑escola?
Minhas ‑respondeu Smike quando o homem de Yorkshire o levou num instante ao quarto anexo e lhe apontou um par de sapatos e um casaco, que estavam numa cadeira.
‑ Veste‑os ‑ ordenou John, forçando a entrada dum braço na manga contrária e passando as abas do casaco em volta do fugitivo ‑ Agora segue‑me e quando estiveres fora da porta volta à direita para eles te não verem passar.
‑ Mas. mas. ele ouve‑me fechar a porta! ‑ observou Smike tremendo dos pés à cabeça.
‑ Então não a feches ‑ retorquiu John Browdie. ‑ Espero que não tenhas medo que o mestre‑escola se constipe.
‑ não ‑ replicou Smike, batendo os dentes. ‑ Mas ele apanha‑ me outra vez e apanha-me sempre! Apanha, apanha!
‑ Apanha! Apanha! ‑ repetiu John impacientemente. Não apanha, não! Olha cá! Eu quero fazer‑lhes crer que foste tu que fugiste pelos teus meios e não ajudado por mim, mas se ele vier da saleta enquanto estiveres a preparar‑te para te raspar, ele que tenha pena dos seus ossos, porque não lhos poupo. Se ele aparecer cedo demais, garanto‑te que o ponho a dormir. Mas se conservares o coração ao alto, estarás em casa antes deles saberem que fugiste. Vamos!
Smike que compreendeu disto o suficiente para saber que era um encorajamento, seguiu‑o com passos vacilantes, quando John lhe sussurrou ao ouvido:
‑Dize ao teu jovem patrão que eu casei com Tilly Price e posso ser encontrado no Saracen e que não tenho ciumes dele quando me lembro daquela noite! Parece-me que o vejo agora a despachar aquelas fatias finas, de pão com manteiga!
Era uma lembrança bastante jocosa para o momento, pois estava a ponto de soltar uma enorme gargalhada. Mas recobrando‑se, deslizou pela escada abaixo com o Smike atrás de si, e pôs‑se junto da porta da saleta para enfrentar o primeiro que saísse. Smike não precisou de segundo estímulo. Abrindo a porta com cautela, lançou ao seu protector um olhar de gratidão e desapareceu com a velocidade do vento.
O homem de Yorkshire ficou no seu posto ainda um bocado, mas ouvindo que a conversa na saleta continuava manteve‑se agarrado ao corrimão ainda uma hora. Depois foi para a cama de Mr. Squeers, atirando a roupa para a cabeça para poder rir até ficar quase sufocado.
Nicholas apaixona‑se. Emprega um medianeiro com um inesperado sucesso, excepto num caso.
De novo, fora das garras do seu velho inimigo, Smike não precisou de novos incentivos para se afastar o mais depressa possível da sua prisão. Perseguido pela ideia de ouvir a voz de Squeers a gritar, apressou cada vez mais o passo, pondo uma grande distância entre ele e o seu perseguidor. Foi só ao escurecer que fatigado, parou para escutar e tomar algum descanso. Tudo estava sossegado e silencioso. Um clarão a distância, indicava a cidade. Era tarde e, devido à escuridão, não podiam seguir‑lhe os passos. De início, teve a ideia de fazer um grande circuito para entrar em casa, com medo de encontrar de novo Mr. Squeers nas ruas de Londres, mas achando que isto era uma tolice, dirigiu‑se directamente para a cidade, onde a maior parte das lojas estavam fechadas, e finalmente, chegou a casa de Newman Noggs, depois de ter perguntado muitas vezes o caminho.
Nessa noite, Newman estava melancolicamente sentado no quarto, depois de ter feito aturadas pesquisas para o encontrar, assim como Nicholas. Quando ouviu o tímido bater de Smike, correu pela escada abaixo e soltou um grito de alegria ao reconhecê‑lo. Fechando a porta, conduziu‑o para o sótão e não o deixou até lhe ter preparado uma mistura de aguardente e água recomendando‑lhe para a beber até à última gota. Mas ficou muito preocupado quando Smike mal chegou aos lábios a caneca e ia, ele próprio sorver o seu conteúdo, começou a contar a sua aventura.
Eram bastant singulares as várias mudanças por que Newman passava à medida que o conto de Smike prosseguia. A caneca, que ia levar à boca, passou para baixo do braço, depois foi para cima da mesa, e pôs‑se a passear agitadamente no quarto, parando só de vez em quando para escutar com mais atenção. Quando se falou de John Browdie, sentou‑se na cadeira, esfregou as mãos nos joelhos e largou uns Ah! ah!, quando a história atingiu o seu ponto culminante. Tendo dado largas à sua alegria pensou com muita ansiedade, se John Browdie e Squeers chegariam a vias de facto.
‑ Não! Penso que não! ‑ respondeu Smike. ‑ Não creio que ele desse pela minha falta até eu estar afastado.
Newman coçou a cabeça com mostras de grande desapontamento e mais uma vez levou a caneca à boca, sorrindo, entretanto, para Smike.
‑ Você fica aqui ‑ disse Newman. ‑ Está cansado. fatigado. Eu vou preveni‑los que voltou. Têm estado meios malucos por sua causa. Mr. Nicholas...
‑ Deus o abençoe! ‑ interrompeu Smike.
‑ Amen! ‑ secundou Newman. ‑ Não têm tido um minuto de paz, ou de descanso; nem a senhora nem Miss Nickleby.
‑ Ela tem pensado em mim? ‑ perguntou Smike. ‑ Tem? Não me diga nada se não tiver!
‑ Tem sim ‑ afirmou Newman. ‑ Tem tão nobre coração quanto é bonita.
‑ Bem dito! ‑ exclamou Smike.
‑ Muito terna e meiga ‑ continuou Newman.
‑ Sim, sim! ‑ repetiu Smike com dobrada energia.
‑ E, no entanto, com um espírito tão recto ‑ prosseguiu Newman.
E ia a continuar no seu entusiasmo quando, por acaso, olhou para o companheiro e o viu com a cara coberta pelas mãos e as lágrimas a correrem‑lhe pelos dedos. Um momento antes os olhos do rapaz brilhavam com um fogo incontido e todas as paixões estavam iluminadas por uma excitação que o faziam parecer diferente.
‑ Bem, bem! ‑ murmurou Newman, como se sentisse um pouco intrigado. ‑ Isto tocou‑me mais duma vez, pensando como uma natureza pode estar exposta a tais experiências; este pobre rapaz. sim. sim, também sente, isso intimida-o, fá‑lo pensar na sua anterior tristeza. Ah! Sim, isso é... hum!
Estas entrecortadas reflexões explicavam satisfatoriamente as suas emoções. Newman tomou uma atitude meditativa, olhando de vez em quando para Smike duma maneira que mostrava suficientemente não estar muito remotamente ligado aos pensamentos do rapaz.
Como repetisse a proposta para Smike passar ali a noite e ele, Newman, ir imediatamente prevenir a família, o rapaz não concordou, ao o querer ir ver os seus amigos. Assim, sairam os dois, só chegando ao seu destino com o sol posto havia uma hora, por Smike estar cansado de andar.
Ao primeiro som das suas vozes fora da porta, Nicholas, que passara a noite sem dormir levantou‑se imediatamente da cama e fê‑lo entrar com muita alegria. Como todos despertassem, seguiu‑se muito barulho, muita conversa, muitas felicitações e indignação quando Smike narrou a sua história, depois do acolhimento dispensado por Kate e pela própria Mrs. Nickleby.
Nicholas, ao princípio, atribuiu ao tio uma grande parte da tentativa, mas, por fim, inclinou‑se pensando que o mérito devia ser todo atribuído a Mr. Squeers. Determinado a saber por intermédio de John Browdie, em que pé ficaram as coisas, foi para as suas ocupações meditando em fazer pagar caro ao mestre‑ escola o seu ataque, mas teve de pôr todos os seus desígnios de lado, por impraticáveis.
‑ Uma bela manhã, Mr. Linkinwater! ‑ disse Nicholas, entrando no escritório.
‑ Ah! ‑ exclamou Tim ‑ falo do campo, na verdade! O que pensa agora dum dia destes. um dia de Londres. hein?
‑ Fora da cidade está um pouco mais limpido ‑ ripostou Nicholas.
‑ Mais límpido! ‑ repetiu Linkinwater. ‑ Devia vê‑la da janela do meu quarto.
‑ E o senhor devia vê‑la do meu ‑ replicou Nicholas com um sorriso.
‑ Ora adeus! ‑ exclamou Tim Linkinwater. ‑ Não me fale nisso. Campo! Tolice! O que pode arranjar no Leadenhall Market todas as manhãs antes do pequeno almoço; e quanto a flores, vale a pena ir lá acima cheirar a minha flora, ou ver os goivos amarelos na janela do sótão das traseiras no n.o 6 do pátio.
‑ Então há goivos amarelos no N ó 6 do pátio? ‑ perguntou Nicholas.
‑ Sim, há! ‑ respondeu Tim ‑ plantados num jarro partido, sem bico. Na última primavera floriram lá jacintos... Mas você com isso, decerto, vai troçar.
‑ Porquê?
‑ Por o terem florido em velhos frascos de graxa ‑ disse Tim.
‑ Eu troço, com certeza!
Tim olhou atentamente para ele durante um momento como se o todo da resposta a encorajasse a ser mais comuni cativo; e pondo a pena, que tinha estado a afiar por detrás da orelha e fechando o canivete com um alegre ruido, continuou:
‑Pertencem a um rapaz corcovado e doente, que está na cama e isto parece ser o único prazer da sua triste existência, Mr. Nickleby. Há quantos anos ‑ pôs‑se Tim a considerar - desde a primeira vez que o notei, era ele uma perfeita criancinha arrastando‑se com um par de muletas. Bem, bem não há muitos, mas embora esse tempo não parecesse nada se o atribuísse a qualquer outra coisa quando me lembro dele parece‑me muito. É uma tristeza ver uma criancinha deformada separada das outras crianças, que são activas e alegres, observando os jogos em que lhes é negado o poderem participar. Muitas vezes causam‑me profunda impressão.
‑ Tem um bom coração ‑ comentou Nicholas ‑ todo aquele que sai da rotina de todos os dias para se dedicar a essas coisas. O senhor estava a dizer.
‑ Que as flores pertenciam a esse pobre rapaz ‑ replicou Tim ‑ e nada mais.
‑ Quando está bom tempo e ele pode sair da cama, põe uma cadeira perto da janela e senta‑se a olhar para as flores e para as arranjar durante todo o dia. Ao princípio costumávamos baixar a cabeça e depois começámos a falar, ele sorria e dizia Melhor, mas agora abana a cabeça e apenas se inclina mais para as suas velhas plantas. Deve ser muito aborrecido ver durante muitos meses os escuros telhados das casas e as nuvens a correrem; mas ele é muito paciente!
‑Não há ninguém em casa para o divertir ou para o ajudar? ‑ inquiriu Nicholas.
‑ Creio que o pai mora lá ‑ informou Tim ‑ e também mais pessoas, mas parece que ninguém liga muita importância ao pobre aleijadinho. Tenho‑lhe perguntado com frequência se lhe posso ser útil, mas a sua resposta é sempre a mesma, Nada. Ultimamente a sua voz tem‑se tornado mais fraca, mas dá sempre a mesma resposta. Agora não pode abandonar a cama, por isso levam‑no para perto da janela e ali fica todo o dia, olhando, ora para o céu, ora para as flores, as quais arranja meio de tratar, regando-as com as mãos magrinhas. A noite, quando ve a minha vela, puxa a cortina e deixa‑a assim até eu me meter na cama. Pensa que é uma companhia para ele saber que estou ali, que com frequência me sento à janela durante uma hora ou mais, e ver que estou ainda acordado. As vezes levanto‑me de noite para olhar para a luz melancólica e desagradável do seu quartinho e pergunto a mim próprio se está acordado ou a dormir. Não virá longe a noite em que ele dormirá para nunca mais acordar na terra. Nunca mais apertamos as mãos e, contudo, sentirei a sua falta como se fosse um velho amigo. Julga que haja flores no campo que me possam interessar como estas? Ou supõe que o emurchecimento de centena de géneros de flores escolhidas, conhecidas por arrevezados nomes latinos como nunca foram inventados, me daria uma fracção da tristeza que sentirei quando aqueles velhos jarros e frascos forem varridos para o lixo? Campo! Não sabe que não podia ter um pátio assim sob a janela do meu quarto a não ser em Londres?
Com esta pergunta, Tim voltou as costas e, pretendendo estar absorvido nas contas, arranjou uma oportunidade para enxugar rapidamente os olhos, quando supós que Nicholas estava a olhar para o outro lado.
Se as contas de Tim estavam mais intrincadas nessa manhã do que o costume, ou se a sua habitual serenidade estava um pouco perturbada por estas recordações, o facto é que quando Nicholas,regressando da execução de qualquer recado, lhe perguntou se Mr. Charles Cheeryble estava só no escritório, Tim, prontamente e sem a mais pequena hesitação,respondeu‑lhe afirmativamente,embora alguém tivesse entrado no escritório dez minutos antes,e Tim sentisse um particular orgulho em evitar a intromissão de qualquer pessoa mesmo dum dos irmãos, quando o outro estava ocupado com visitas.
‑Se é assim, vou‑lhe entregar imediatamente esta carta – disse Nicholas, encaminhando‑se para o escritório e batendo à porta.
Não houve resposta. Bateu outra vez com o mesmo resultado.
‑Ele não deve estar ‑ pensou Nicholas. ‑ Vou deixá‑la sobre a sua mesa.
Nicholas abriu a porta,entrou e voltou‑se muito depress para sair,quando viu com grande espanto e confusão,um jovem ajoelhada aos pés de Mr. Cheeryble e este,tentand levantá‑la e pedindo a uma terceira pessoa,com a aparênci de criada, para o ajudar. Nicholas desfez‑se em atrapalhada desculpas e ia a retirar‑se quando a jovem voltou um pouc a cabeça,mostrando‑lhe as feições da encantadora rapariga vista na agência de colocações a quando da sua primeira visita.
Relanceando os olhos para a criada,reconheceu ser a mesma e,entre a sua admiração pela beleza da jovem e a surpresa do inesperado encontro,ficou como uma estátua,incapaz de se mover,ou de falar.
‑ Minha querida ma'am... minha querida senhora ‑ exclamou o irmão Charles em violenta agitação. ‑ Suplico‑lhe
que não... nem mais uma palavra, rogo‑lhe, peço-lhe! Imploro‑lhe... solicito‑lhe... que se levante. Nós... nós... não estamos sós.
Enquanto falava,ergueu a jovem,que vacilou até à cadeira e desmaiou.
‑Ela perdeu os sentidos,sir ‑ informou Nicholas,avançando vivamente.
‑ Pobre querida,pobre querida! ‑ exclamou o irmão Charles. ‑ Onde está o meu irmão Ned? Ned, meu querido irmão, vem cá, suplico‑te!
‑Irmão Charles,meu querido rapaz! ‑ respondeu o irmão apressando‑se a entrar no escritório. ‑ O que é que... ah! o que?. .
‑ Silêncio! Silêncio! Nem uma palavra, pela tua vida, meu querido irmão... ‑ retorquiu o outro. ‑ Toca para a governanta e chama o Tim Linkinwater,sir... Mr. Nickleby,meu caro senhor,rogo‑lhe para deixar o escritório.
‑Parece-me que ela agora está melhor ‑ avisou Nicholas, que tinha estado a observar a doente tão intensamente que não ouvira o pedido.
‑Pobre passarinho! ‑ exclamou o irmão Charles,tomando-lhe delicadamente a mão nas suas e encostando‑lhe a cabeça ao braço. ‑ Irmão Ned,meu querido rapaz,sei que vais ficar surpreendido, seres testemunha disso a horas do expediente, mas. ‑ Aqui lembrou‑se de novo da presença de Nicholas e pediu‑lhe com insistência para deixar o escritório e mandar entrar Tim Linkinwater sem demora.
Nicholas retirou‑se imediatamente e no caminho para a contabilidade, encontrou a governanta e Tim Linkimwater, que se dirigiam a toda a pressa para o local da cena. Sem esperar o recado, Tim Linkinwater entrou como uma seta no escritório e Nicholas ouviu a porta fechar‑se e a chave correr pelo lado de dentro. Teve muito tempo para pensar na jovem, na sua excessiva beleza, no que a poderia ter trazido aqm e no mistério que se fazia, por Tim Linkinwater ter estado ocupado durante uma hora. Quanto mais pensava mais ansioso se tornava para saber quem ela era. Conhecê‑la‑ia entre dez mil, pensava Nicholas. E recordando a sua cara e figura, andou dum lado para o outro no aposento, sem fazer caso dos outros assuntos.
Por fim, Tim Linkinwater voltou. provocantemente frio com uns papéis na mão e uma pena na boca, como se nada tivesse acontecido.
‑Está completamente restabelecida? ‑ perguntou Nicholas impetuosamente.
‑ Quem? ‑ inquiriu Tim Linkinwater.
‑Quem! ‑ repetiu Nicholas. ‑ A jovem!
‑Quantos são, Mr. Nickleby ‑ interrogou Tim, tirando a pena da boca ‑ quatrocentos e vinte e sete por três mil duzentos e trinta e oito?
‑Não ‑ replicou Nicholas ‑ o que me diz primeiro da minha pergunta? Eu perguntei‑lhe.
‑Pela jovem ‑ disse Linkinwater, pondo os óculos. Com certeza. Está muito bem!
‑Está muito bem? ‑ inquiriu Nicholas.
‑Muito bem ‑ retorquiu Mr. Linkinwater gravemente.
‑ Será capaz de ir para casa hoje? ‑ quis saber Nicholas.
‑Ela foi‑se embora.
‑ Embora?
‑ Sim.
‑Espero que não tenha ido para muito longe ‑ declarou Nicholas com ardor.
‑ Sim ‑ replicou Tim ‑ espero que não!
Nicholas arriscou mais uma ou duas observações a respeito da bela desconhecida, mas era evidente que Linkinwater tinha as suas razões para evitar o assunto.
No dia seguinte Mr. Linkinwater estava muito conversador e comunicativo e Nicholas aproveitou para fazer algumas perguntas sobre o caso da véspera, mas sobre esse assunto Tim voltou à sua taciturnidade, respondendo por monossílabos, ou não dando resposta, o que serviu para despertar o interesse de Nicholas ao mais alto grau.
Nicholas contentou‑se em aguardar a próxima visita da jovem, mas nisto também ficou desapontado. Passaram‑se os dias sem ela voltar e Nicholas começou a verificar as notas e a correspondência, não encontrando, contudo, nada que fosse escrito por ela. Em duas ou três ocasiões mandaram‑no sair em serviço, enquanto a jovem era admitida na sua ausência, mas nada transpirou a respeito destas visitas.
Enquanto os assuntos corriam desta forma, a falta de correspondência dos irmãos Cheeryble da Alemanha, impôs a Tim Linkinwater e a Nicholas a necessidade de ficarem no escritório até às dez horas da noite, por uma semana ou mais, e como nada diminuía o zelo de Nicholas pelos seus amáveis patrões, concordou alegremente. Na primeira destas noites, às nove horas precisas, não veio a jovem, mas a criada, que se fechou com o irmão Charles durante algum tempo e se foi embora, voltando na noite seguinte à mesma hora, e na outra e na outra.
Estas repetidas visitas inflamaram a curiosidade de Nicholas ao mais alto ponto e não podendo desvendar o mistério sem prejuízo do serviço, pediu a Newman Noggs para seguir a rapariga e procurar saber, sem suscitar suspeitas, a morada, o nome e a sua história. Orgulhoso da sua missão, Newman Noggs plantou‑se no largo ao pé da bomba, aguardando pacientemente a vinda da mensageira, que foi pontual à sua hora e partiu depois duma entrevista um pouco mais longa. Newman tinha marcado dois encontros com Nicholas, numa taberna a cerca de meio caminho entre a City e Golden Square. Na primeira noite não esteve lá, mas na segunda chegou primeiro que Nicholas e recebeu‑o de braços abertos.
‑ Está tudo bem ‑ sussurrou Newman. ‑ Sente‑se. sente‑se, meu querido amigo, e deixe‑me contar‑lhe tudo.
Nicholas não precisou de segundo convite e, ansiósamente, perguntou quais eram as novidades.
‑Há uma grande quantidade de notícias ‑ respondeu Newman, excitado pelo alvoroço da alegria. ‑ Está tudo bem. Não sei por onde começar. Não faça caso. Alegre‑se! Está tudo bem.
‑Bem? ‑ perguntou Nicholas vivamente. ‑ Sim?
‑Sim ‑ confirmou Newman. ‑ É isso mesmo!
‑ Mas o que é isso? ‑ inquiriu Nicholas. ‑ O nome. o nome, meu querido amigo.
‑ O nome é Bobster ‑ informou Newman.
‑ Bobster! ‑ repetiu Nicholas indignado.
‑É o nome ‑ disse Newman. ‑ Lembro‑me pela lembrança com lobster. lagosta!
‑Bobster ‑ repetiu Nicholas menos enfaticamente do que antes. ‑ Esse deve ser o nome da criada.
‑Não, não é ‑ replicou Newman, abanando a cabeça duma maneira muito positiva. ‑ Miss Cecília Bobster.
‑Cecilia? ‑ comentou Nicholas, murmurando os dois no mes juntos, muitas vezes e em muitos tons, para experimentar o efeito. ‑ Bem, Cecília é um bonito nome.
‑Muito. E também uma linda criatura ‑ disse Newman.
‑ Quem? ‑ perguntòu Nicholas.
‑ Miss Bobster.
‑Onde a viu? ‑ interrogou Nicholas.
‑Não se importe, meu querido rapaz ‑ replicou Newman batendo-lhe no ombro. ‑ V‑a. E o senhor vê‑laá. Eu manobrei tudo.
‑Meu querido Newman ‑ exclamou Nicholas, apertando
‑Lhe a mão. ‑ Está a falar a sério?
‑ Estou ‑ afirmou Newman. ‑ Queria dizer tudo. Todas as palavras. Vê‑la-á amanhã à noite. Ela consente que o senhor lhe fale. Persuadi‑a. É toda afabilidade, bondade, doçura e beleza.
‑Sei que é; sei que deve ser, Newman! ‑ disse Nicholas, apertando‑lhe a mão.
‑Tem razão! ‑ retorquiu Newman.
‑Onde mora? ‑ interrogou Nicholas. ‑ Como soube a sua história? Tem pai, mãe, quaisquer irmãos, irmãs? O que disse ela? Como conseguiu vê‑la? Ela não ficou muito surpreendida? Disse‑lhe como suspirava para lhe falar? Disse‑ lhe que a vi? Disse como, quando, onde por quanto tempo e quantas vezes tenho pensado nessa adorável face na minha amarga tristeza, como um instantâneo dum mundo melhor? Disse, Newman. disse?
O pobre Noggs perdeu literalmente o fôlego com todas estas perguntas e mexeu‑se espasmodicamente na cadeira a cada nova interrogação, olhando, muito atrapalhado para Nicholas, com uma expressão de cómica perplexidade.
‑Não ‑ respondeu Newman ‑ não lhe disse!
‑Não lhe disse o quê? ‑ perguntou Nicholas.
‑ Acerca dum instantâneo dum mundo melhor ‑ respondeu Newman. ‑ Não lhe disse quem o senhor era, nem onde a tinha visto? Disse‑lhe que o senhor a amava com loucura!
‑ É verdade Newman ‑ exclamou Nicholas com a sua característica veemência. ‑ Deus sabe que a amo!
‑Disse-lhe que o senhor a admirara durante muito tempo, em segredo.
‑Sim, sim! O que disse ela a isso? ‑ interrogou Nicholas.
‑ Corou.
‑Decerto. Decerto devia corar ‑ comentou Nicholas aprovadoramente.
Newman, continuando, relatou que a jovem perdera a mãe, vivia com o pai e consentira em dar uma entrevista ao seu admirador, por intercessão da criada, que tinha uma grande influência sobre ela. Quanto às visitas aos irmãos Cheeryble; continuavam misteriosas por Newman não ter tido ocasião de aludir a elas. Mas Newman desconfiava, pelo que a confidente deixara escapar que a jovem levava uma vida triste e infeliz sob a guarda do seu único parente cujo carácter era violento e brutal, por isso pedira a protecção e a amizade dos dois irmãos. Depois de muitas outras perguntas sobre o assunto, combinaram encontrar‑se na noite seguinte, às dez e meia, com o fim de irem à entrevista, que estava marcada para as onze horas.
As coisas acontecem dum modo muito estranho, pensava Nicholas, encaminhando‑se para casa, Nunca esperei nada disto; nunca sonhei com semelhante possibilidade. Saber alguma coisa da vida daquela por quem sinto interesse, vê‑la na rua, passar pela casa onde habita, encontrá‑la algumas vezes nos seus passeios, esperar que viesse um dia em que lhe pudesse confessar o meu amor. Isto era o máximo dos meus pensamentos. Contudo, agora... Mas, na verdade, devo ser maluco para me incomodar com a minha boa sorte!
No entanto, Nicholas não estava satisfeito e havia mais descontentamento do que irritação de sentimentos. Estava zangado com a jovem por ter sido tão facilmente conquistada. Porque ‑ raciocinava ele ‑ não é como se ela me conhecesse, pois podia ser outra pessoa, o que era, na verdade, pouco agradável. A seguir, zangou‑se consigo próprio por alimentar tais pensamentos, argumentando que nela só a bondade residia, ou não tivesse a estima dos irmãos. O facto é que ela é um mistério, concluiu Nicholas.
Vestiu‑se com grande cuidado e até o próprio Newman Noggs se esmerou. Atravessaram as ruas em profundo silêncio e depois de terem andado um bom bocado, chegaram a um sítio de aparência triste e muito pouco frequentado, perto de Edgware Road.
‑ Número doze ‑ informou Newman.
‑Olá! ‑ exclamou Nicholas, olhando em redor.
‑ Boa rua? ‑ perguntou Newman.
‑Sim, mas bastante melancólica ‑ replicou Nicholas. Newman não deu resposta a este comentário e parando subitamente, plantou Nicholas com as costas para uns terrenos gradeados e deu‑lhe a entender que tinha de esperar ali, sem mexer as mãos ou os pés, até ele ter verificado satisfatoriamente se a entrada estava livre. Feito isto, Noggs afastou‑se com grande alegria, olhando a todos os instantes por cima do ombro para ter a certeza se Nicholas estava a obedecer às suas instruções e, subindo os degraus duma casa, umas doze portas adiante, desapareceu. Depois duma curta demora reapareceu e, parando a meio caminho, fez sinal a Nicholas para o seguir.
‑Bem! ‑ exclamou Nicholas, avançando para ele na ponta dos pés.
‑Muito bem ‑ respondeu Newman muito contente. Muito bem; ninguém em casa. Não podia ser melhor.
Com esta animadora certeza, passou uma porta da rua, na qual Nicholas num relance viu uma chapa de latão com Bobster em caracteres muito grandes e, parando na área da cancela, que estava aberta, fez sinal ao jovem amigo para descer.
‑O que diabo temos nós que cheirar na cozinha? ‑ exclamou Nicholas, recuando.
‑ Silêncio ‑ recomendou Newman. ‑ O velho Bobster. é um turco feroz. Mata‑as a todas. esmurra as orelhas da jovem... fá‑lo muitas vezes.
‑O quê! ‑ gritou Nicholas com uma violenta raiva - quer‑me dizer que qualquer homem se atreve a esmurrar as orelhas duma tão.
Não teve tempo de recitar as prendas da sua adorada, por Newman lhe ter dado um ligeiro empurrão, que o ia quase precipitando para o fim dos degraus. Nicholas desceu as escadas seguido de Newman, que lhe agarrou na mão e o guiou por um corredor empedrado, profundamente escuro, para uma cozinha, ou adega, onde pararam.
‑ Bem ‑ disse Nicholas num sussurro descontente. ‑ Suponho que isto não é tudo, pois não?
‑Não! ‑ retorquiu Noggs. ‑ Elas vêem imediatamente. Está tudo bem.
‑Satisfaz‑me ouvir isso ‑ afirmou Nicholas. ‑ Confesso que não pensava assim.
Não trocaram mais palavras e Nicholas ficou a escutar a respiração de Newman Noggs e a imaginar que o seu nariz parecia brilhar como um carvão ao rubro, mesmo no meio da escuridão que os envolvia. De repente, ouviu passos cautelosos e logo a seguir, uma voz feminina perguntou se o cavalheiro estava ali.
‑ Sim ‑ respondeu Nicholas, voltando-se para o sítio donde vinha a voz. ‑ Quem está aí?
‑ Apenas eu, sir ‑ respondeu a voz. ‑ Agora se faz favor, ma'am.
Uma luz alumiou o lugar e apareceu imediatamente a criada trazendo uma vela, seguida pela sua jovem patroa, que parecia cheia de modéstia e de confusão.
A vista da jovem, Nicholas deu um salto e mudou de cor; o coração bateu com violência e ficou pregado ao chão. No mesmo instante e quase simultaneamente com a chegada de ambas, ouviu‑se um bater furioso na porta da rua, fazendo com que Newman Noggs descesse com grande agilidade dum barril de cerveja, onde se sentara, e exclamar com a cara da palidez da cinza:
‑Meu Deus, o Bobster!
A jovem tremeu e a criada torceu as mãos. Nicholas olhou duma para a outra com aparente satisfação, e Newman pôs-se a andar muito depressa dum lado para o outro, metendo, sucessivamente, as mãos nas algibeiras e puxando o forro para fora, no excesso da sua irresolução. Foi apenas um momento, mas esse instante foi de tal confusão que se não pode imaginar.
‑ Por amor de Deus, saiam! Fizemos mal. merecemos tudo ‑ pediu a jovem. ‑ Saiam ou fico para sempre desgraçada e mal vista.
‑Quer ouvir só uma palavra? ‑ perguntou Nicholas. Apenas uma. Não a demorarei. Quer ouvir uma palavra para explicar este infortúnio?
Mas Nicholas podia estar a falar da mesma forma para o vento, porque a jovem, com olhares inquietos, correu pela escada acima. Tê‑la-ia seguido se Newman não lhe agarrasse a gola do casaco e o arrastasse para o corredor por onde tinham entrado.
‑Deixe‑me ir, Newman, em nome do diabo! ‑ exclamou Nicholas. ‑ Preciso de lhe falar. Não saio daqui sem isso.
‑ Reputação. carácter. violência. considere! ‑ disse Newman, puxando‑o para sair. ‑ Deixe‑as abrirem a porta. Vamos como viemos. Venha! Por aqui!
Vencido pelas exortações de Newman, pelas lágrimas e súplicas da rapariga e pelo tremendo barulho lá em cima, Nicholas deixou‑se conduzir e, precisamente quando Mr. Bobster entrava pela porta da rua, ele e Noggs saiam pela cancela.
Andaram apressadamente através de várias ruas, sem falar, ou parar. Por fim, detiveram‑se e olharam um para o outro com ar perplexo e lúgubre.
‑ Não faz mal! ‑ disse Newman, tomando fôlego. ‑ Não se deixe abater. Está tudo bem. Da próxima vez seremos mais felizes. Não havia mais nada a fazer. Eu fiz o meu papel.
‑Exactamente ‑ replicou Nicholas, agarrando‑lhe na mão.
‑ Excelentemente e como um amigo zeloso e verdadeiro que é. Apenas. note, não estou desapontado, Newman, e sinto o mesmo reconhecimento por si. Apenas. não era a mesma senhora.
‑ O quê? ‑ exclamou Newman Noggs. ‑ Apresentada pela criada.
‑ Newman Noggs ‑ continuou Nicholas, pondo‑lhe a mão no ombro ‑ também não era a mesma criada.
O queixo de Newman descaiu e olhou espantado para Ni cholas, com o olho bom, imovelmente fixado na cabeça dele.
‑ Não tome isto a sério ‑ aconselhou Nicholas ‑ não tem importância. Como vê eu não faço caso. seguiu uma pessoa errada e nada mais.
E foi tudo. Se Newman Noggs tivesse olhado em volta da bomba numa direcção oblíqua, durante tanto tempo que a vista se tornou fraca, ou se, considerando que havia tempo suficiente, se confortou com umas gotas de alguma coisa mais forte do que a bomba podia fornecer, foi esse o seu engano. E Nicholas foi para casa a pensar no sucedido e meditar no encontro da jovem desconhecida, agora tão longe do seu alcance como nunca.
Algumas passagens românticas entre Mrs. Nickleby e o vizinho
Desde a sua última conversa importante com o filho, Mrs. Nickleby começou a ter um cuidado invulgar na sua pessoa, ornamentando‑se mais e vestindo‑se com mais esmero. Podia ter sido levada a este procedimento por um alto sentimento de dever e os impulsos de indiscutível distinção. Podia, neste momento, sentir‑se impressionada pela necessidade de ser um exemplo de cuidado e decoro para a filha. Postas de parte as considerações de dever e responsabilidade, a mudança podia ter tido a sua origem em sentimentos de caridade, a mais pura e desinteressada. O cavalheiro seu vizinho fora aviltado por Nicholas; rudemente estigmatizado como um velho tonto e um idiota, e estes ataques, de certa maneira, eram causados por ela. Como boa cristã podia querer mostrar que o cavalheiro não era, nem uma, nem outra coisa. E que melhores meios podia adoptar para provar que a paixão dele era a mais racional e razoável do mundo, se não exibir os seus maduros encantos, sem reserva?
Ah!u, exclamou para si, abanando gravemente a cabeça, se Nicholas soubesse como o seu pobre querido papá sofreu antes de estarmos comprometidos, quando eu costumava odiá‑lo, teria um pouco mais de sentimentos. Poderei alguma vez esquecer a manhã em que o olhei com desprezo quando ele se ofereceu para me levar a sombrinha? Aquela noite em que lhe franzi as sobrancelhas? Foi um bem que ele não tivesse emigrado. Eu quase o levei a isso.
Se o falecido pudesse ter feito bem em emigrar no seu tempo de solteiro foi uma questão que a viúva não considerou, por Kate ter entrado no aposento com a caixa de costura, nesta altura das suas reflexões, e em qualquer ocasião a mais ligeira interrupção, ou não interrupção, fazia convergir os seus pensanentos para outros caminhos.
‑ Kate, minha querida ‑ disse ela ‑ não sei como é, mas um dia de Verão, quente e agradável coma este, com os pássaros a cantarem de todos os lados, faz‑me sempre lembrar porco com cebolas e molho da carne.
‑ uma curiosa combinação de ideias, não é, mamã?
‑Palavra, minha querida, que não sei ‑ replicou Mrs. Nickleby. ‑ Porco assado. deixa‑me ver. No dia em que fez cinco semanas que foste baptizada tivemos um assado. não, não podia ter sido de porco porque havia duas coisas para trinchar e o teu pobre papá e eu nunca podíamos ter pensado em comer dois porcos. devem ter sido perdizes. Porco assado! Mal penso se alguma vez comi, agora me lembro, pois o teu papá nunca pôde suportar vê‑los nos talhos e costumava dizer que lhe recordavam sempre bébés muito pequenos, apenas por que os porcos tinham uma cor mais clara. Ele também tinha horror aos bébés por não poder permitir‑se num aumento de família, o que muito o desgostava. É esquisito, mas o que poderia ter‑me metido isto na cabeça? Recordo‑me de ter uma vez jantado em casa de Mr. Bevan, naquela rua larga ao voltar da esquina, perto do fabricante de carruagens, onde o bêbado caiu pelo alçapão duma adega quase uma semana antes do dia do vencimento e só o acharam quando o novo inquilino entrou e onde então comemos porco assado! Deve ser isso que me fez lembrar do porco, especialmente por haver um passarinho a cantar durante todo o jantar... Bem, não era um passarinho, era um papagaio e não cantava mas falava e praguejava horrivelmente. Deve ter sido isso. Não dirias o mesmo, minha querida?
‑Diria que não há dúvida ‑ retorquiu Kate com um alegre sorriso.
‑Não, mas não pensas assim, Kate? ‑ perguntou Mrs. Nickleby com uma tal gravidade como se fosse um assunto do mais vivo interesse. ‑ Se não dizes isso imediatamente, é porque precisa de ser corrigido por ser muito curioso e valer a pena pensar no caso.
Kate, a rir, disse que estava completamente convencida e propôs que levassem o trabalho para o caramanchão para gozarem a beleza da tarde. Mrs. Nickleby prontamente assentiu e lá foram sen mais comentários.
‑Direi que nunca houve uma criatura tão boa como Smike ‑ observou Mrs. Nickleby. ‑ Palavra, os trabalhos por que ele passou para pôr o pequeno caramanchão a direito e criar as mais lindas flores em volta dele estão para além de qualquer outra coisa. Só gostava que não tivesse posto todo o cascalho do teu lado, e só me tivesse deixado terra.
‑ Querida mamã ‑ retorquiu Kate rapidamente. ‑ Sente‑se aqui. sente‑se.
‑Não, minha querida, na verdade fico no meu lado -disse Mrs. Nickleby. ‑ Bem! Eu explico!
Kate olhou interrogativamente.
‑ Se ele não tivesse trazido de qualquer sítio umas poucas de raízes daquelas flores que eu disse na outra noite que era doida por elas, e te perguntou se tu não eras. tu disseste que sim e perguntou‑me se eu não era. palavra que tomo isto como uma coisa muito atenciosa! Porém, não vejo nenhuma do meu lado, mas suponho que se dão melhor perto do cascalho. Podes ter a certeza que sim e é essa a razão de estarem todas junto de ti.
‑Mamã ‑ disse Kate, inclinando‑se para o trabalho, para que a cara ficasse meio escondida ‑ antes de ter casado.
‑Meu Deus, Kate, o que te faz fugir para esse tempo, quando te estou a falar do cuidado e atenção de Smike para comigo? Parece não sentires o mais pequeno interesse pelo quintal.
‑Oh, mamã ‑ replicou Kate, levantando a cara ‑ bem sabe que sinto.
‑ Bem, então, minha querida, porque não elogias o primor e a elegância com que ele é conservado? ‑ inquiriu Mrs. Nickleby.
‑Mas eu elogio‑o, mamã! ‑ respondeu Kate docemente. Pobre rapaz!
‑ Mal te tenho ouvido nesses elogios, minha querida ‑ replicou Mrs. Nickleby ‑ é tudo quanto tenho a dizer.
Como a boa senhora estava há muito a tratar do mesmo assunto, por isso caiu imediatamente na pequena ratoeira da filha, se ratoeira era, e inquiriu o que ia ela dizer.
‑ Sobre o quê, mamã? ‑ interrogou Kat que, aparentemente, já esquecera.
‑Meu Deus Kate. Estás a dormir, ou és estúpida! Sobre o tempo antes de me casar!
‑Ia perguntar‑lhe, mamã: antes de casar tinha muitos apaixonados?
‑ Apaixonados, minha querida! ‑ respondeu Mrs Nickleby com um sorriso de maravilhosa complacência. ‑ Do primeiro ao último, Kate, deviam ser uma dúzia, pelo menos.
‑ Mamã! ‑ exclamou Kate num tom de censura.
‑Sim, minha querida, não incluindo o teu pobre papá, ou um jovem que costumava ir, nesse tempo, à mesma escola de dança e que queria mandar relógios de ouro e braceletes para a nossa casa em papel dourado nas margens, que foram sempre devolvidos, e que depois foi para Botany Bay num navio de cadetes ‑ quero dizer num navio de condenados ‑ e escapou‑se num matagal, e matou carneiros, não sei como lá foram parar, ia ser enforcado, mas afogou‑se, apenas acidentalmente, e o governo perdoou‑lhe. Houve depois o jovem Lukin ‑ continuou Mrs. Nickleby, começando a contar os nomes pelos dedos, a principiar no polegar da mão esquerda ‑ Mogley. Tiplark. Cabbery. Smifser.
Tendo chegado ao dedo mínimo, Mrs. Nickleby ia continuar a contagem na outra mão quando um audível Hum!, que parecia vir da própria fundação do muro do quintal, fez sobressaltar ambas com violência.
‑ Mamã, o que foi isto? ‑ perguntou Kate em voz baixa.
‑ Palavra, minha querida ‑ respondeu Mrs. Nickleby, completamente sobressaltada ‑ a menos que não seja o cavalheiro pertencente aqui ao lado, não sei o que possa ser.
A mesma voz gritou um novo Hum!, mas não no tom vulgar de aclarar a garganta, numa espécie de berro, que des pertou todos os ecos da vizinhança e se prolongou numa extensão que deve ter tornado a cara violácea de quem o soltara.
‑ Compreendo agora, minha querida ‑ disse Mrs. Nickleby pondo a sua mão na de Kate. ‑ Não te alarmes, meu amor; não te é dirigido e não é para assustar ninguém. Deixemos os outros terem os seus direitos, é o que me limito a dizer.
Dizendo isto, Mrs. Nickleby acenou com a cabeça e deu pancadinhas nas costas da mão da filha.
‑ O que quer dizer, mamã? ‑ perguntou Kate com evidente surpresa.
‑ Não te inquietes minha querida ‑ respondeu Mrs. Nickleby, olhando para o muro do quintal‑ pois eu não estou assustada como vês, eu não estou, Kate. absolutamente nada.
‑ Parece ter por objectivo atrair a nossa atenção, mamã ‑observou Kate.
‑É objectivamente para atrair a nossa atenção. Minha querida. pelo menos ‑ replicou Mrs. Nickleby, levantando‑se e dando pancadinhas na mão da filha ‑ é para atrair a atenção duma de nós. Não precisas de estar inquieta, minha querida!
Kate olhou muito perplexa e ia pedir mais explicações, quando se ouviu um berro e o barulho de pés a arrastarem‑se com muita violência no cascalho, tudo vindo da mesma direcção dos sons anteriores, e um grande pepino cortou o ar com a velocidade dum foguete, indo cair aos pés de Mrs. Nickleby. Esta notável aparição foi seguida por outra, precisamente igual e depois por uma bela couve de dimensões invulgares, vários pepinos juntos e, finalmente, o ar escureceu com uma núvem de cebolas, rábanos e outros vegetais pequenos.
Kate levantou‑se do lugar, um pouco assustada, e agarrou na mão da mãe para fugirem ambas para casa mas encontrou‑a mais resistente do que concordante e seguindo a direcção dos olhos de Mrs. Niekleby, ficou completamente aterrada vendo aparecer por cima do muro, a pouco e pouco, um velho boné de veludo preto, seguido por uma grande cabeça e uma cara de velho, onde havia um par dos mais extraordinários olhos cinzentos... sorrateiro e desagradável.
‑ Mamã! ‑ exclamou Kate, realmente aterrada ‑ Por que pára, e perde tempo? Mamã, suplico‑lhe, vamos para casa!
‑ Kate, minha querida ‑ retorquiu a mãe, detendo‑a ‑ como podes ser tão pateta? Tenho vergonha de ti. Como podes impor‑te, vencer alguma vez na vida, se és assim tão covarde? O que deseja, sir? ‑ perguntou Mrs. Nickleby dirigindo‑se ao intruso com uma espécie de afectado sorriso de desagrado. Como se atreve a olhar para este quintal?
‑ Rainha da minha alma ‑ replicou o estranho, cruzando as mãos. ‑ Sorva esta taça.
‑ Disparate, sir ‑ disse Mrs. Nickleby. ‑ Kate, meu amor, suplico‑te que te cales.
‑ Não quer sorver a taça? ‑ insistiu o estranho com a cabeça de lado, implorando, e a mão direita no peito. ‑ Oh, sorva a taça!
‑ Não farei nada desse género, sir ‑ respondeu Mrs. Nickleby. ‑ Peço‑lhe, vá-se embora!
‑ Porquê? ‑ disse o senhor de idade, subindo uns degraus e pondo os cotovelos no muro como se estivesse à janela ‑ porque é que a beleza é sempre pertinaz, mesmo quando a admiração é tão honrosa e respeitosa como a minha? ‑ Aqui sorriu, beijou a própria mão e fez várias reverências ‑ devido às abelhas que, quando a estação apícula acaba e se supõe que elas tenham morrido com o enxofre, na realidade voam para a Barbaria e embalam os muros cativos no sono, com as suas lânguidas cantigas? Ou é ‑ acrescentou, baixando a voz até um sussurro ‑ em consequência da estátua de Charing Cross ter sido ultimamente vista à meia noite em Stock Exchanse, passeando de braço dado com a bomba de Aldgate, em fato de montar?
‑ Mamã ‑ murmurou Kate ‑ ouve‑o?
‑ Silêncio, minha querida! ‑ replicou Mrs. Nickleby, no mesmo tom de voz ‑ Ele é muito delicado e creio que isto é uma citação poética. Peço-te, não me maltrates assim, beliscando‑me o braço e deixando-o com nódoas negras. Vá‑se embora, sir!
‑ Completamente embora? ‑ inquiriu o cavalheiro com um olhar terno. ‑ Oh, completamente embora?
‑ Sim ‑ retorquiu Mrs. Nickleby ‑ certamente. Não tem nada que fazer aqui. Isto é uma propriedade particular, sir; deve saber isso.
‑ Sei ‑ afirmou o senhor de idade, pondo o dedo no nariz com um ar de familiaridade muitíssimo repreensível‑ que isto é um lugar sagrado e encantado, onde os mais divinos encantos ‑ aqui beijou a mão e curvou‑se de novo ‑ vogam suavemente sobre os quintais da vizinhança, e forçam os frutos e os vegetais a uma existência prematura. Mas permitir‑me-à, lindíssima criatura, que lhe faça uma pergunta na ausência do planeta Vénus, que foi em negócios aos Horse Guards, caso contrário, ciumento dos seus superiores encantos, interpor‑se‑ia entre nós?
‑ Kate ‑ observou Mrs. Nickleby, voltando‑se para a filha ‑ isto é positivamente muito absurdo. Realmente não sei o que dizer a este cavalheiro. Uma pessoa deve ser educada, bem sabes.
‑ Querida mamã ‑ retorquiu Kate ‑ não lhe diga nada e vamos para casa o mais depressa que pudermos, fechando‑nos até que venha Nicholas.
A atitude de Mrs. Nickleby foi terrível para não dizer altiva, perante esta humilhante proposta, e, voltando-se para o velho senhor, que as estivera a observar durante estes murmúrios, com absorvente curiosidade, disse:
‑Se se conduzir, sir, como cavalheiro, que depreendo ser, pela sua linguagem e. e. aparência. é a cópia perfeita do teu avô, Kate, minha querida, nos seus melhores tempos e me fizer a pergunta em palavras claras, responderei.
Se o excelente papá de Mrs. Nickleby tivesse uma semelhança no seu melhor tempo, com o vizinho que espreitava por cima do muro, devia ter sido um velhote muito ridículo na Pri mavera da vida. Talvez Kate pensasse assim, pois aventurou‑se a dar uma vista de olhos para o retrato vivo do seu avô com alguma atenção, quando ele tirou o boné de veludo preto, mostrando uma cabeça perfeitamente careca e fez uma longa série de reverências, cada uma delas acompanhada com um novo beijo na mão. Depois de se cansar, segundo toda a aparência, com esta fatigante execução, cobriu a cabeça mais uma vez, puxou o boné muito cuidadosamente para as pontas das orelhas e, readquirindo a sua primitiva atitude, disse:
‑ A pergunta é.
Aqui parou para olhar para todos os lados, ficando satisfeito por não haver gente a escutar por ali perto. Certo de que não havia, bateu no nariz várias vezes, acompanhando o gesto com um olhar astuto, como se se congratulasse pela sua precaução e, estendendo o pescoço, perguntou num audível sussurro:
‑ A senhora é princesa?
‑ Está a fazer pouco de mim, sir? ‑ replicou Mrs. Nickleby, fazendo uma retirada fingida para casa.
‑ Não, mas é? ‑ insistiu o velho senhor.
‑ Sabe que eu não sou, sir ‑ respondeu Mrs. Nickleby.
‑ Então tem qualquer parentesco com o Arcebispo de Canterbury? ‑ inquiriu o senhor com grande ansiedade. ‑ Ou com o Papa de Roma, ou com o Presidente da Câmara dos Deputados? Perdoe-me se estou em erro, mas disseram‑me que a senhora era sobrinha do Comissário das Obras Públicas e nora do Presidente da Câmara e da Junta Municipal, o que explicaria o seu parentesco com todos três.
‑Quem quer que tenha espalhado essas informações, sir ‑ replicou Mrs. Nickleby com alguma veemência ‑ tomou grande liberdade em servir‑se do meu nome e tenha a certeza, se o meu filho Nicholas sabe disso, não o permitirá um instante. Que ideia ‑ continuou Mrs. Nickleby, levantando‑se ‑ sobrinha do Comissário das Obras Públicas!
‑ Suplico‑lhe, mamã, retiremo‑nos ‑ sussurrou Kate.
‑ Suplicolhe, mamã! ‑ repetiu Mrs. Nickleby zangada. Tolice, Kate, mas devia ser esse precisamente o procedimento. Se dissessem que eu era sobrinha dum débil pisco, quem se importaria? Mas não tenho simpatias ‑ choramingou Mrs. Nickleby ‑ e não as espero.
‑ Lágrimas! ‑ exclamou o senhor com um salto tão enér gico, que caiu dois ou três degraus e raspou o queixo no muro.
‑ Apanhem os gladíolos cristalinos. apanhem‑nos. rolhem‑nos bem. ponham lacre no cimo. selem‑nos com um Cupido. rotulem‑nos com a melhor qualidade.. e ponham‑nos no décimo quarto lote com uma grade de ferro no cimo, para afastar o trovão!
Dando estas ordens como se tivesse uma dúzia de aju dantes, todos activamente empenhados na sua execução, voltou o boné de veludo de dentro para fora, pô‑lo com grande dignidade, de forma a tapar o olho direito e três quartas partes do nariz e, fincando as mãos nas ilhargas, olhou ferozmente para um pardal que estava perto, até o pássaro voar, pondo, então, o boné na algibeira com um ar de grande satisfação, dirigiu‑se com modos muito respeitosos a Mrs. Nickleby:
‑ Bela madame, se me enganei com respeito à sua família, ou parentes, humildemente lhe suplico para me perdoar. Se supus que estava aparentada com Potências Estrangeiras e Juntas Nacionais é por a senhora ter umas maneiras, um porte, uma dignidade que, me desculpará dizer‑lhe, ninguém, a não ser a senhora, talvez com a única excepção da musa trágica, quando representa extemporaneamente ao som do realejo, em frente da East India Company, a pode igualar. Não sou um jovem, ma'am, como vê, e embora os senhoress como a senhora se possam tornar velhos, aventuro-me a presumir quee estamos talhados um para o outro.
‑ Realmente Kate, meu amor ‑ exclamou Mrs. Nickleby debilmente e olhándo para outro lado.
‑ Tenho propriedades, ma'am ‑ confessou o senhor, floreando o braço direito negligentemente, como se fizesse pouco caso destes assuntos e falando muito depressa ‑joias, faróis, viveiros de peixes, uma pescaria de baleias no Mar do Norte e várias ostreiras de grande rendimento no Oceano Pacífico. Se a senhora tiver a gentileza de descer a Royal Exchange e tirar o chapéu erguido da cabeça do possantíssimo bedel, encontrará o meu cartão de visita no forro, envolvido num bocado de papel azul. A minha bengala também se pode ver a instâncias do capelão da Câmara dos Comuns, a quem é proibido entregar qualquer quantia para a mostrar. Tenho inimigos em volta de mim, ma'am ‑ olhou para a casa e falou mais baixo ‑ que me atacam em todas as ocasiões e desejam apoderar‑se dos meus bens. Se a senhora me fizer feliz com a sua mão e o seu coração, pode apelar para o Ministro da Justiça, ou chamar o da Guerra, se for necessário. Depois disso, amor, delícia, êxtase; êxtase, amor e delícia. Seja minha, seja minha!
Repetindo estas últimas palavras com grande éxtase e entusiasmo, o senhor de idade pôs de novo o boné de veludo e, olhando para o céu duma maneira precipitada, disse qualquer coisa que não foi completamente inteligível, com respeito a um balão que esperava e que estava bastante atrazado.
‑ Seja minha, seja minha! ‑ repetiu.
‑ Kate, minha querida ‑ disse Mrs. Nickleby ‑ Mal posso falar, mas é necessário, para a felicidade de todos, que este assunto seja arrumado para sempre.
‑ É necessário, com certeza, dizer alguma coisa, mamã?raciocinou Kate.
‑Hás‑de permitir‑me, se fazes favor, minha querida, que eu julgue a minha própria conduta‑replicou Mrs. Nickleby.
‑ Seja minha, seja minha! - gritava o senhor.
‑ Mal se pode esperar, sir ‑ declarou Mrs. Nickleby, fixando os olhos modestamente no chão ‑ que eu diga a um estra nho se me sinto lisonjeada com propostas que, certamente, são feitas em circunstâncias muito singulares; contudo, ao mesmo tempo, tanto quanto significam e até a um certo limite, decerto são muito de agradecer e agradáveis aos sentimentos duma pessoa.
‑ Seja minha, seja minha! ‑ gritou o senhor.
‑ Para mim será suficiente dizer, sir ‑ continuou Mrs. Nickleby com perfeita seriedade ‑ e tenho a certeza que verá a decência de receber a resposta e de se ir embora, por ter posto na ideia conservar‑me viúva e devotar‑me aos meus filhos. Na verdade muita gente duvidou disso mas aqui estão os factos, ambos estão criados. Teremos muito prazer em o ter por vizinho, mas com outro aspecto é completamente impossível. Como sou nova bastante para me casar outra vez, não posso, no entanto, pensar nisso por um instante. Disse que nunca casaria e nunca me casarei. É uma coisa muito dolorosa rejeitar propostas e preferia que não fizessem nenhumas, mas ao mesmo tempo devo declarar que é esta a resposta que determinei dar, e que darei sempre.
Estas observações foram, em parte, dirigidas ao senhor de idade, em parte a Kate e em parte feitas em solilóquio. Para o fim do discurso, o apaixonado evidenciou um grau muito censurável de descuido e com grande terror da mãe e da filha, tirou subitamente o casaco e, saltando para cima do muro, pôs‑se numa atitude em que exibia os seus calções e as meias cinzentas, acabando por se segurar num só pé e repetindo o seu favorito berro com crescente veemência.
Enquanto ele estava dando a última nota, embelezando‑a com um prolongado floreado, viu‑se uma mão suja a deslizar firme e cautelosamente ao longo da parte superior do muro, como se perseguisse uma borboleta e depois agarrar com a máxima destreza um dos tornozelos do velho senhor. Feito isto, apareceu a outra mão e agarrou o outro tornozelo. Assim embaraçado o velho levantou as pernas, uma ou duas vezes, como se fossem grosseiras e imperfeitas peças de maquinaria e olhando para dentro do quintal, deu uma grande gargalhada.
‑ És tu, não és? ‑ perguntou ele.
‑ Sim, sou eu ‑ respondeu uma voz grosseira.
‑ Como está o Imperador da Tartária? ‑ inquiriu o senhor.
‑Oh, está absolutamente na mesma, como de costume. Nem melhor, nem pior.
‑ O Jovem Príncipe da China ‑ disse o senhor com muito interesse ‑ reconciliou‑se com o sogro, o grande vendedor de batatas?
‑ Não ‑ respondeu a voz grosseira ‑ e diz que nunca se reconciliará.
‑ Se é assim ‑ observou o senhor ‑ é talvez melhor descer.
‑ Bem ‑ replicou o homem do outro lado ‑ Julgo que seja, talvez, o que tem a fazer.
Tendo uma das mãos libertado cautelosamente o senhor, este sentou‑se e ficou a olhar em redor para sorrir para Mrs. Nickleby, quando desapareceu com alguma precipitação, como se lhe tivessem puxado as pernas para baixo.
Muitíssimo aliviada pelo seu desaparecimento, Kate ia‑se a voltar para falar à mamã, quando as mãos sujas se tornaram de novo visiveis, sendo imediatamente seguidas pela figura dum homem grosseiro, que subiu pela escada recentemente ocupada pelo singular vizinho.
‑ Peço desculpa, minhas senhoras ‑ disse o recém‑ vindo, sorrindo e tocando no chapéu. ‑ Ele estava a fazer declarações de amor para alguma das senhoras?
‑ Estava ‑ informou Kate.
‑ Ah! ‑ exclamou o homem, tirando o lenço do chapéu e limpando a cara ‑ fá‑lo‑á sempre. Não há nada a fazer!
‑ Não preciso de lhe perguntar se está doido, pobre criatura ‑ disse Kate.
‑ Isso é perfeitamente claro! ‑ replicou o homem, olhando para dentro do chapéu e atirando lá para dentro com o lenço com uma pancada e pondo‑o outra vez na cabeça.
‑ Ele está assim há muito tempo? ‑ perguntou Kate.
‑ Há muito.
‑E não há esperança? ‑ interrogou Kate compassivamente.
‑ Nem a mais pequena ‑ sentenciou o homem. ‑ É muito mais simpático sem juízo do que com ele. Foi a criatura mais cruel, perversa e de coração de pedra que jamais existiu.
‑ Sim? ‑ exclamou Kate.
‑ By George! ‑ replicou o homem, abanando a cabeça tão enfaticamente que foi obrigado a franzir a testa para segurar o chapéu. ‑ Nunca topei com tal vagabundo e a minha companheira diz o mesmo. Despedaçou o coração da pobre esposa, pôs as filhas fora de casa, atirou com os filhos para a rua. e foi uma benção ter endoidecido por fim, por mau génio, cobiça, egoísmo, comezaina e bebedeira. Esperança ele? Não há muita esperança por aí, mas aposto uma coroa em como a que há, ser para salvar tipos mais merecedores do que ele.
Com esta profissão de fé o homem voltou a abanar a cabeça tocou no chapéu, desceu a escada e foi‑se embora. Durante esta conversa Mrs. Nickleby contemplou o homem com um olhar severo e firme. Deu depois um profundo suspiro e, com primindo os lábios, abanou a cabeça vagarosa e dubitativamente.
‑ Pobre criatura! ‑ comentou Kate.
‑ Ah, pobre de facto! ‑ replicou Mrs. Nickleby. ‑ É vergonhoso que tais coisas sejam permitidas.
‑ Como se pode impedir isso, mamã? ‑ perguntou Kate melancolicamente. ‑ As enfermidades da natureza.
‑ Natureza! ‑ retorquiu Mrs. Nickleby. ‑ O quê! Supões que este pobre senhor está doido?
‑ Pode alguém que o veja ter outra opinião, mamã?
‑Então vou dizer‑te uma coisa, Kate. Ele não está nada disso e estou surpreendida como tu te enganaste. É algum estratagema desta gente para se apoderar dos seus bens... não disse ele isso? Pode ser um pouco excêntrico, fantástico, muitos de nós somos assim, mas completamente doido e exprimir‑se respeitosamente numa linguagem completamente poética, fazendo propostas com tanto tino, cuidado e prudência? Não, o Kate, há um grandíssimo método na sua maluqueira. Lembra‑te disto, minha querida!
Ilustrando o alegre sentimento que o melhor dos amigos algumas vezes distribui
O pavimento das ruas de Snow Hill estava escaldante com o calor que fazia. Numa das pequenas saletas da estalagem, com a janela aberta, estava uma mesa de chá guarnecida com uma perna de carneiro assada, batatas cozidas, uma língua, um pastelão de pombos, uma galinha fria, um cangirão de cerveja. Mr. John Browdie com as mãos nos bolsos, balançava‑se desassossegadamente em volta destes acepipes, parando ocasionalmente para enxutar as moscas do açucareiro com o lenço da esposa, ou para meter uma colher de chá na leiteira e levá‑la à boca, ou ainda para cortar alguma protuberância da crosta do pão e um pequeno canto de carne e engoli‑los em dois tragos como se fosse um par de pílulas.
Depois de todos estes entretenimentos, puxou do relógio e declarou, com uma veemência quase patética, que não podia comprometer‑se a esperar mais dois minutos.
‑ Tilly! ‑ chamou John à senhora, que estava reclinada num sofá, meio a dormir, meio acordada.
‑ O que há, John!
‑ O que há, John! ‑ repetiu o marido com impaciência. Não tens fome, rapariga?
‑ Não muita.
‑ Não muita ‑ repetiu John, erguendo os olhos para o tecto. ‑ Ouvi‑la dizer não muita, quando nós jantámos às trés e almoçámos pastéis, o que agrava a fome dum homem em vez de a acalmar! Não muita!
‑ Está aqui um cavalheiro para si, sir ‑ disse o criado, entrando.
‑ O quê, para mim? ‑ exclamou John, como se pensasse que devia ser uma carta ou um embrulho.
‑ Um cavalheiro, sir.
‑ Bolinhas e boletas, rapaz! ‑ disse John. ‑ Para que me vens dizer isso?
‑Está em casa, sir?
‑ Em casa! ‑ replicou John. ‑ Gostaria de estar, pois já tinha tomado chá há duas horas. Eu disse ao outro rapaz para ficar de vigilância fora da porta e dizer‑lhe imediatamente logo que ele chegasse, que estamos a morrer de fome. Ah! ah! Eis‑te, Mister Nickleby! Este é quase o dia mais feliz da minha vida, sir. Então como vais? Estou contente com isto!
Esquecendo completamente a fome na cordialidade dos seus cumprimentos, John Browdie apertou a mão de Nicholas muitas vezes, batendo‑llhe com a palma com grande violência, entre cada aperto, para significar o calor da sua recepção.
‑ Ah! Ei‑la ‑ disse John, observando o olhar que Nicholas dirigiu para a esposa. ‑ Ei‑la. agora não questionamos por causa dela. hein? Quando penso naquela. Mas tu precisavas de ter alguma coisa para comer! Senta‑te, homem, senta‑te e come tanto quanto aqueles que temos de receber.
Não havia dúvida que a mercê propriamente acabara, por isso nada mais se ouviu por John já se ter começado a ocupar do garfo e da faca, ficando os seus discursos para depois.
‑Vou tomar a habitual licença, Mr. Browdie ‑ declarou Nicholas, colocando uma cadeira para a desposada.
‑ Toma tudo o que quiseres ‑ respondeu John. Sem parar para explicar, Nicholas beijou a ruborizada Mrs. Browdie e conduziu‑a para a sua cadeira.
‑ Ouve ‑ disse John, bastante espantado ‑ põe‑te à vontade!
‑ Isso depende duma condição ‑ replicou Nicholas.
‑ E qual é? ‑ perguntou John.
‑De eu ser padrinho, da primeira vez que necessitarem um.
‑ Ouves isto? ‑ exclamou John, depondo o garfo e a faca.
‑Um padrinho! Ah! ah! ah! Tilly... ouve-o... um padrinho! Não digas mais uma palavra! Ah! ah! ah!
Nunca um homem sentiu tanta vontade de rir com uma respeitável brincadeira, como John Browdie com esta. Riu‑se, rugiu, ao mesmo tempo que entravam grandes bocados de carne na traqueia, rugiu de novo, persistiu em comer, tornou‑se vermelho, tossiu, gritou, melhorou, voltou a rir e ficou pior de modo a assustar a mulher e, por fim, recobrou-se, ficando num estado de fadiga, com os olhos lacrimosos, mas dizendo ainda:
‑ Um padrinho, um padrinho, Tilly!
‑ Lembras‑te da noite do nosso primeiro chá? ‑ perguntou Nicholas.
- Posso alguma vez esquecê-la; homem? ‑ replicou John Browdie.
‑Estava desesperado naquela noite, não estava, Mrs. Browdie? Era um completo monstro ‑ disse Nicholas.
‑E se o ouvisse quando fomos para casa, Mr. Nickleby, tinha razão para dizer isso. Nunca me senti tão assustada em toda a minha vida!
‑ Vamos, vamos ‑ retorquiu John com um sorriso ‑ tu sabias mais do que isso, Tilly.
‑ Sabia ‑ replicou Mrs. Browdie. ‑ Quase pus na ideia nunca mais te voltar a falar.
‑ Quase! ‑ disse John com um sorriso ainda maior. Quase pôs na sua ideia! E ia fazendo carícias e caricias e mais mimos e mimos. Porque deixaste aquele tipo estar a atirar‑se a ti?, perguntava eu, Eu não deixei, Johnn, dizia ela apertando-me o braço. Não deixaste?, retorqui eu: Não, respondia ela, apertando-me outra vez o braço.
‑ Meu Deus, John! ‑ interrompeu a sua linda esposaComo podes estar a dizer essas tolices? Como se eu pensasse nisso!
‑ Não sei se alguma vez pensaste, embora julgue que isto seja bastante parecido, mas que o fizeste, fizeste. Tu és um catavento inconstante, rapariga, acusava eu. Não sou inconstante, Johnv, protestava ela. És, persistia eu, inconstante, inconstante como o demónio. Não me digas que não te estivéste a atirar ao tipo do mestre‑escola, dizia eu. A ele! gritava ela. Sim, a ele, afirmava eu. Não penses, Johnn, declarava ela chegando‑se e apertando mais o braço, agora, que é natural que tenha um homem como tu para fazer companhia, eu nunca podia ligar importância a um garoto como ele! Ah! ah! ah! Ela disse garoto! Muito bem, conclui eu, se é assim, indica o dia e acabemos com isto! Ah! ah! ah!
Nicholas riu com muita vontade com esta história por ser contra ele e pelo desejo de evitar os rubores de Mrs. Browdie. O bom humor dele pô‑la à vontade e, embora continuasse a negar a acusação, ria tão prazenteiramente que Nicholas teve a certeza de que nos seus aspectos essenciais era verdade.
‑ Esta é a segunda vez que temos uma refeição em comum ‑ observou Nicholas ‑ e apenas a terceira que nos vemos e, contudo, parece‑me realmente que já somos amigos velhos.
‑ O mesmo digo eu ‑ replicou o homem de Yorkshire.
‑ E eu tenho a certeza disso ‑ acrescentou a sua jovem esposa ‑ E eu tenho a melhor razão para ter esse sentimento recordou Nicholas‑ pois se não fosse pela grandeza do teu coração, meu bom amigo, não sei o que podia ter sido de mim, ou em que circunstâncias eu ficaria naquela altura.
‑ Fala de outra coisa ‑ retorquiu John enfadado.
‑ Será então uma nova cantiga no mesmo diapasão ‑ avisou Nicholas, sorrindo. ‑Disse‑lhe na minha carta que sentia profundamente e admirei a sua simpatia por esse pobre rapaz, a quem livrou com riscos de se envolver em maçadas e dificuldades; mas não lhe posso dizer nunca quão gratos lhes estamos, ele, eu e outros que você não conhece, pela píedade que teve para com ele.
‑ Muito bem ‑ replicou Jahn Browdie afastando a cadeira ‑ e eu nunca lhe posso dizer como algumas pessoas que conhecemos ficariam da mesma forma agradecidas se soubessem que tive piedade dele!
‑ Ah! ‑ exclamou Mrs. Browdie ‑ em que estado eu estava nessa noite!
‑ Ficaram convencidos que você ajudou a fuga ‑ perguntou Nicholas a John Browdie.
‑ Nem um pedaço ‑ respondeu este, estendendo a boca de orelha a orelha. ‑ Fiquei a dormitar na cama do mestre‑escola um grande bocado depois de escurecer e ninguém apareceu por ali. Bem, pensei eu, ele teve uma bela saída e se não estiver agora em casa, nunca mais estará, por isso podes vir logo que queiras e encontras‑me preparado, isto é, o mestre‑escola podia vir.
‑ Compreendo ‑ disse Nicholas.
‑ Ele veio imediatamente ‑ continuou John. ‑ Ouvi fechar‑se a porta em baixo e ele a subir às escuras Devagar e firme -
disse eu para comigo não se apresse, sir... não corra. Ele chegou à porta, deu volta à chave... deu volta à chave quando não havia nada para segurar com a fechadura. Sim, pensei eu podes fazer isso outra vez que não acordas ninguém, sir. Olá aí de dentro, disse ele e depois parou. Será melhor não me irritares, continuou o mestrescola passado pouco tempo. Quebro todos os ossos do teu corpo, Smike, prometeu, depois de outro pouco tempo. A seguir foi a correr buscar uma luz e quando veio... ena, pai! Foi uma gritaria! De que se trata? perguntei eu: Ele fugiu, informou ele, quase maluco, a clamar por vingança. Não ouviu nada?, perguntou‑me ele. Ouvi a porta da rua a fechar‑se não há muito tempo, respondi eu. Ouvi uma pessoa a correr por ali ‑ apontei para o lado oposto ‑ Socorro!, gritou ele. Eu ajudo‑o, prometi eu, e saímos ambos para o lado errado!
‑ Foram muito longe? ‑ inquiriu Nicholas.
‑ Longe! ‑ replicou John. ‑ Fi‑lo correr durante um quarto de hora. Era de ver o velho mestre‑escola sem chapéu, enchendo‑se até aos joelhos de lama e água, aos encontrões às sebes e rolando nas valas, mugindo como um vitelo, com o único olho a procurar o rapaz e as abas do casaco a voarem, todo ele sujo de lama, a cara e o resto... eu pensei que me atirava para o chão morto de riso.
John riu com tão boa vontade à simples recordação, que contagiou os seus ouvintes, e todos três desataram a rir até não poderem mais.
Ele é mau ‑ comentou John, limpando os olhos ‑ é muito mau, o mestre-escola.
‑ Eu não posso olhar para ele, John ‑ confessou a esposa.
‑ Vamos ‑ retorquiu John ‑ isso é ideia tua, é o que é. Se não fosse por tua causa nunca conheceríamos nada dele. Não foste tu quem o conheceu primeiro, Tilly?
‑ Não podia deixar de andar com Fanny Squeers, John - replicou a esposa ‑ é uma antiga companheira de infância, bem sabes.
‑ Bem ‑ concordou John ‑ não disse isso, rapariga? melhor ser‑se bom vizinho e conservar‑se velhos conhecimen tos e o que eu digo é para se não questionar, se se puder evitar isso. Não pensa assim, Mr. Nickleby?
‑ Certamente ‑ respondeu Nicholas ‑ e você agiu de acordo com esse princípio quando eu o encontrei a cavalo, na estrada, depois da nossa memorável noite.
‑ Decerto ‑ disse John ‑ o que digo, cumpro.
‑ Isso é uma bela coisa e também varonil ‑ afirmou Nicholas ‑ embora não seja exactamente o que compreendo por vindo de Yorkshire connosco para Londres. Miss Squeers está convosco, como me diz na sua carta?
‑ Está ‑ respondeu John. ‑ a dama de honor de Tilly e esquisita dama de honor de Tilly e esquisita dama de honor ela. Calculo que não será noiva muito depressa.
‑ Que vergonha, John! ‑ exclamou Mrs. Browdie com uma subtil percepção da brincadeira, sendo ela uma recém‑casada.
‑ O noivo será um homem feliz ‑ continuou John com os olhos a piscarem com a ideia. ‑ Estará com sorte, estará.
‑ Bem vê, Mr. Nickleby ‑ disse a esposa ‑ que foi em consequência dela estar aqui, que John lhe escreveu a fixar a noite de hoje, por pensarmos que não seria agradável para si encontrarem‑se depois do que se passou.
‑ Sem dúvida nenhuma. Fizeram muito bem ‑ concordou Nicholas, interrompendo.
‑ Especialmente ‑ observou Mrs Browdie com uma aparência de ingénua ‑ depois do que sabemos de passados e findos assuntos amorosos.
‑ Sabemos, de facto! ‑ disse Nicholas, abanando a cabeça.
‑A senhora comportou‑se nisso com bastante maldade.
‑ Decerto ‑ afirmou John, passando o seu enorme indica dor por entre um dos bonitos caracóis da esposa e mostrando‑ se muito orgulhoso dela. ‑ Ela foi sempre inconstante e cheia de sarilhos como uma.
‑ Como uma quê? ‑ perguntou‑lhe a esposa.
‑ Como uma mulher ‑ respondeu John. ‑ Mas eu não sabia quem trazia comigo.
‑ Mas estava a falar de Miss Squeers ‑ lembrou Nicholas com o intento de pôr um ponto final nas ligeiras desavenças matrimoniais que tinham começado a surgir entre Mr. e Mrs. Browdie e tornavam a posição para uma terceira pessoa, embaraçosa.
‑ Ah, sim ‑ replicou Mrs. Browdie ‑ John fez. John fixou a noite de hoje por ela ter combinado ir tomar chá com o pai. E para se ter a certeza de não haver nada de mal e do senhor estar completamente só connosco, determinou sair para a ir buscar.
‑ Foi uma combinação muito acertada ‑ concordou Nicholas‑embora eu sinta ser o motivo de tanta perturbação.
‑ De maneira nenhuma ‑ retorquiu Mrs. Brawdie ‑ por termos planeado vê‑lo ‑ John e eu ‑ no meio do maior prazer possível. Sabe, Mr. Nickleby ‑ acrescentou Mrs. Browdie com o seu sorriso mais malicioso ‑ que penso realmente que Fanny Squers estava presa pelo beicinho por si?
‑ Estou‑lhe muitissimo agradecido ‑ replicou Nicholas mas palavra, nunca aspirei impressionar o seu virginal coração.
‑ De que maneira fala! ‑ exclamou Mrs. Browdie, abafando o riso. ‑ Não, mas fique sabendo que realmente a Fanny deu‑me a entender que o senhor lhe pediu namoro e que ambos se iam tornar noivos duma forma muito regular e solene.
‑ Foi a senhora, ma'an. foi a senhora! ‑ gritou uma chilreante voz fminina‑foi a senhora que deu a entender que eu. eu. ia comprometer‑me com um ladrão assassino, que derramou o sangue do meu papá! Pensa. pensa, ma'am. que estava pelo beicinho por um sabujo que está abaixo dos meus pés, a quem não podia descer a tocar com as mãos com receio de me sujar e me emporcalhar com o seu contacto? Pensa, ma'ame, pensa? Oh, infame e malvada Tilda!
Com estas censuras Miss Squeers abriu a porta com violênçia e apareceu aos olhos dos atómitos Browdies e de Nicholas, não somente a sua figura simétrica, arreada com os castos atavios brancos mas a figura do irmão e do pai.
‑ Isto é o fim, não é? ‑ continuou Miss Squeers, que quando se excitava dizia mais asneiras do que o costume ‑ isto é o fim de todo o meu perdão e amizade por essa coisa de duas caras. essa víbora,. essa. sereia. Isto é o fim, é de todo o meu sofrimento da sua felicidade, da sua baixeza, da sua inclinação para mentir, do seu modo de chamar a admiração dos espíritos wlgares de modo que me faz corar pelo meu. pelo meu.
‑ Sexo ‑ sugeriu Mr. Squeers, olhando os espectadores com um olhar malévolo. literalmente um olho malévolo.
‑ Sim ‑ concordou Miss Squeers ‑ mas agradeço às minhas estrelas que a minha mãe.
‑ Ouçam, ouçam! ‑ observou Mr. Squeers ‑ desejava que ela estivesse aqui para dar uma coça nesta companhia.
‑ Isto é o fim! ‑ continuou Miss Squeers, inclinando a cabeça e olhando desprezívelmente para o chão ‑ reparem nessa miserável criatura e no meu procedimento em patrociná‑la.
‑ Oh, vamos ‑ replicou Mrs. Browdie, não fazendo caso de todos os esforços do esposo para a fazer calar e indo para a fila da frente ‑ não diga disparates como esse.
‑ Não a patrocinei, ma'am? ‑ inquiriu Miss Squeers.
‑ Não ‑ respondeu Mrs. Browdie.
‑ Não espero ver rubores num lugar destes‑ observou Miss Squeers‑ porque essa expressão não pertence às caras avinhadas e atrevidas.
‑ Olha lá ‑ interpós John Browdie, irritado por estes sucessivos ataques à mulher ‑ fala mais suave, fala mais suave, sim?
‑ De si, Mr. Browdie ‑ disse Miss Squeers, dirigindo-se a ele muito depressa ‑ tenho piedade! Não sinto rancor mas um sentimento de piedade.
‑ Oh! ‑ exclamou John.
‑ Não ‑ prosseguiu Miss Squeers, olhando de esguelha para o pai ‑ embora eu seja uma ridícula dama de honor e não seja muito depressa noiva e embora o seu marido seja feliz não sinto outros sentimentos por si, sir, a não ser o da piedáde.
Aqui Miss Squeers voltou a olhar de esguelha para o pai, o qual olhava de esguelha para ela, como se quisesse dizer: Aí tens.
‑ Eu sei o que fez levar isto a cabo ‑ declarou Miss Squeers abanando os caracóis com violência. ‑ Eu sei qual a vida que tem pela frente e ainda que seja a minha mais mortal inimiga, não poderia desejar‑lhe nada pior.
‑Mesmo assim não deseja casar‑se com ele? ‑ perguntou Mrs. Browdie com grande suavidade de maneiras.
‑ Oh, ma'am, como é engraçadinha! ‑ replicou Miss Squeers com uma profunda cortesia. ‑ Quase tão engraçada como esperta. Escolher uma ocasião em que fui tomar chá com o meu papá e ter a certeza de não regressar sem me irem buscar! Que pena nunca pensar que as outras pessoas possam ser tão espertas como a senhora!
‑Esses ares, não me irritam, criança! ‑ afirmou a ex‑ Miss Price, assumindo a atitude duma matrona.
‑Não me trate por criança, ma'am, se faz favor ‑ retorquiu Miss Squeers. ‑ Não o permito. Isto é o fim.
‑Cala‑te lá ‑ exclamou John Browdie impacientemente.
‑ Digo-te, Fanny, e podes ter a certeza, de que é o fim e escusas de estar a perguntar a toda a gente se é ou não!
‑Agradecendo o seu conselho, que não foi pedido, Mr. Browdie ‑ replicou Miss Squeers com exagerada polidez - tenha a bondade de me não tratar pelo meu nome de baptismo. Apesar da minha piedade nunca me esqueço o que devo a min mesma, Mr. Browdie. Tilda ‑ acrescentou Miss Squeers com um tão súbito acesso de violência que John tremeu nas botas. ‑ Expulso-a para sempre, miss. Abandono-a. Não quero mais saber de si! Não queria ter uma filha chamada Tilda. nem para a salvar da morte.
‑A propósito disso ‑ observou John ‑ é já tempo de pensar no nome quando o bébé chegar!
‑Oh, John! ‑ interpôs Mrs. Browdie ‑ não a irrites!
‑Oh, irrita decerto! ‑ disse Miss Squeers com rosetas encarnadas na cara. ‑ Irrita de facto! Eh! eh! Irrita demais. Não, não a irrite. Suplico-lhe que tenha em consideração os seus sentimentos.
‑ bem certo que quem escuta de si ouve ‑ disse Mrs. Browdie. ‑ Não o posso remediar e tenho pena. Mas dir‑lheei, Fanny, que inúmeras vezes falei bem de si nas suas costas e que não pode encontrar maldade no que disse.
‑Oh, não me atrevo a negar, ma'am! ‑ exclamou Miss Squeers com outra cortezia. ‑ Os meus melhores agradecimentos pela sua bondade, pedindo e suplicando para não ser áspera para mim para a outra vez.
‑ Não sei ‑ prosseguiu Mrs. Browdie ‑ que tenha dito alguma coisa de mal a seu respeito, mesmo agora. em todo o caso o que disse era completamente verdade. A senhora disse muito pior de mim, vezes sem conto, Fanny, mas eu nunca lhe quis mal e espero que também me não queira.
Miss Squeers não deu resposta directa além de inspeccionar a sua ex‑amiga dos pés à cabeça e de erguer o nariz com grande desdém. Mas escaparam‑lhe algumas indistintas alusões a uma afectada, a uma descarada e a uma criatura desprezível, e isto juntamente com uma mordidela de lábios e com a respiração alterada.
Enquanto se desenrolava a cena anterior, Mister Wackford vendo que ninguém fazia caso dele e sentindo em si fortes inclinações de preponderância, aproximou‑se a pouco e pouco da mesa e atacou a comida, metendo os dedos nos pratos, apanhando o pão, arrebanhando grandes bocados de manteiga e metendo na algibeira quadrados de açúcar. Vendo que ninguém intervinha, tornou‑se mais ousado e serviu‑se moderada mente duma boa colação fria, estando nesta altura a contas com o pastelão.
Enquanto a atenção dos outros estava absorvida em assuntos muito diferentes, a Mr. Squeers não escaparam as tentativas do filho, entendendo que devia engordar à custa do inimigo. Mas dando‑se uma acalmia na discussão e podendo ser notado o procedimento do pequeno Wackford, fingiu notá‑lo pela primeira vez e deu uma bofetada na cara do jovem cavalheiro que fez ressoar as chávenas de chá.
‑A comer ‑ exclamou Mr. Squeers ‑ os restos dos inimigos do seu pai! Era bem feito que ficasses envenenado, filho desnaturado.
‑ Não o envenena ‑ disse John, aparentemente muito aliviado pela perspectiva de ter um homem na desavença - deixe‑o comer. Desejava que estivesse aqui toda a escola. Dava‑lhes com que reconfortarem os seus infelizes estômagos, ainda que tivesse de gastar o meu último péni!
Squeers fez‑lhe uma cara com a expressão mais maldosa de que era capaz ‑ e nesse género era uma cara de notável capacidade ‑ e agitou o punho ocultamente.
‑Vamos, vamos, mestre‑escola ‑ avisou John ‑ não te faças parvo, pois se agito o meu... sais daqui com a velocidade do vento.
‑Foi você, não foi ‑ retorquiu Squeers ‑ que ajudou a fuga do meu rapaz?
‑Fui eu! ‑ respondeu John em voz alta. ‑ Sim, fui eu. Vamos, o que tem isso? E então, agora?
‑Ouve o que ele diz, minha filha! ‑ exclamou Squeers. Ouve o que ele diz!
‑Fi‑lo! ‑ afirmou John ‑ e digo‑te mais; ouve isto também. Se apanhares outro rapaz fugitivo, eu auxilio‑o de novo. Se apanhares vinte rapazes fugitivos, auxiliá‑los‑ei outras tantas vezes e vinte vezes mais do que isso; e digo-te outra coisa, o meu sangue ferve porque tu és um velho malandro e é isso que te livrou, pois de contrário tinhas amachucado o chão com os costados quando sovaste aquele pobre rapaz.
‑Um homem honesto! ‑ exclamou Squeers, arreganhando os dentes.
‑Um homem honesto ‑ replicou John ‑ honesto no dever mas que nunca pôs as pernas debaixo da mesma mesa contigo.
‑Escândalo! ‑ disse Squeers, exultando. ‑ Duas testemunhas. Wackford sabe a responsabilidade dum juramento, ele sabe. apanhámo‑lo, sir Malandro, hein? ‑ Mr. Squeers tirou a sua agenda da algibeira e tomou uma nota. – Muito bem. Devo dizer que isto vale vinte libras no próximo tribunal, sem a honestidade, sir.
‑Tribunal! ‑ exclamou John. ‑ É melhor não me falares de tribunal. As escolas de Yorkshire foram chamadas aos tribunais há já tempo, homem, e este assunto faz‑me cócegas para o reviver, é o que te digo!
Mr. Squeers abanou a cabeça duma maneira ameaçadora, com uma cara muito branca de raiva; e, agarrando a filha pelo braço e arrastando o pequeno Wackford pela mão, retirou‑se em direcção à porta.
‑E quanto a si ‑ preveniu Squeers, voltando‑se e diri gindo-se a Nicholas, que, tendo-lhe chegado feio e forte numa ocasião antes, propositadamente se absteve de tomar parte na discussão ‑ verá que o hei-de fazer passar por um mau bocado dentro de pouco tempo. Vai raptar rapazes, não vai? Tome cuidado que os pais deles se não irritem. fixe isto. se não os virem e mos devolverem para eu fazer o que quiser, apesar da sua intervenção, a coisa sai‑lhe cara.
‑Não tenho medo ‑ respondeu Nicholas, encolhendo os ombros desdenhosamente e voltando‑lhe as costas.
‑Não tem? ‑ retorquiu Squeers com uma cara diabólica. ‑ Então, agora vamo-nos embora!
‑Abandono tua companhia, com o meu papá, para sempre ‑ anunciou Miss Squeers, olhando para todos com desprezo e soberba. ‑ Estou profanada por respirar o mesmo ar que estas criaturas. Pobre Mr. Browdie! Tenho piedade dele, está iludido! Arteira e insidiosa Tilda!
Com esta incidência na raiva, mais desabrida e majestosa, Miss Squeers saiu do aposento, mas, tendo mantido a sua dignidade até ao último momento, ouviu‑se no corredor a chorar e a soluçar.
John Browdie ficou em pé por detrás da mesa, olhando da mulher para Nicholas e vice‑versa, com a boca completamente aberta até a mão lhe cair, acidentalmente, sobre o jarro de cerveja, altura em que o agarrou e ocultou a cara por detrás dele durante algum tempo. Depois passou‑o a Nicholas e tocou a campainha.
‑Rapaz ‑ disse John, vigorosamente, a um criado. Aqui faz‑te esperto. Leva estas coisas e traz‑nos um grelhado para a ceia. muito abundante. às dez horas. Traz brande e água e um par de sapatos de quarto dos maiores que houver na casa, e anda ligeiro. Fruto do meu engenho! ‑ continuou John, esfregando as mãos. ‑ Não é preciso sair hoje à noite para ir buscar ninguém para casa e passaremos o serão ami gavelmente.
ENCONTROSINESPERADOS
A tempestade já dera há muito lugar à calma; a noite ia bastante avançada, a ceia acabara e a digestão fazia‑se tranquilamente sob a influência duma conversa alegre, acompanhada por brande e água, quando os três amigos ouviram um barulho no fim da escada, um vozear enorme, sanguínio e feroz. O tumulto crescia a cada momento e, embora parecesse feito por um par de pulmões, havia de se confessar que eram tão fortes que davam a ideia de se tratar duma dúzia.
‑O que é isto? ‑ perguntou Nicholas, correndo para a porta.
John Browdie ia a tomar a mesma direcção quando Mrs. Browdie se tornou pálida e lhe prometeu que cairia desmaiada se ele se fosse meter nalgum perigo. John ficou desconcertado com a noticia, mas sendo incapaz de se conservar fora da briga, seguiu Nicholas a toda a velocidade.
A cena do distúrbio era o corredor fora da porta do café, onde estavam congregados os clientes desta parte do estabelecimento, os criados, dois ou três cocheiros e os ajudantes das cavalariças. Esta assembleia rodeava um jovem, que podia ser um ou dois anos mais velho do que Nicholas, o qual tinha os pés apenas calçados com meias, enquanto um par de sapatos de quarto jaziam a pequena distância da cabeça duma figura prostrada no canto oposto, dando a ideia de ter levado um pontapé quando se retirava, sendo depois cumprimentado pelo par de sapatos nas orelhas.
Os espectadores pareciam fortemente dispostos, pelos acenos, murmúrios e exclamações, a tomar parte na contenda contra o jovem de meias. Observando isto, e por o jovem ser mais ou menos da sua idade e não ter a aparência dum desordeiro, Nicholas sentiu disposições para alinhar do lado mais fraco e meteu‑se imediatamente no meio do grupo, perguntando num tom mais enfático do que as circunstâncias aconselhavam, o que era aquilo.
‑Olá! ‑ disse um dos homens das cavalariças ‑ este é alguém disfarçado!
‑ Cavalheiros, dêem passagem ao filho mais velho do Imperador da Rússia ‑ exclamou um outro tipo.
Não fazendo caso destes ditinhos, Nicholas olhou em redor dirigindo‑se ao jovem, que nesta altura já tinha apanhado os sapatos e metido os pés neles, repetiu a pergunta com um modo cortês.
‑ Nada de importância ‑ respondeu o outro.
Isto provocou um murmúrio da parte dos espectadores e dois ou três tipos não pertencentes à casa, começaram a empurrar Nicholas e o jovem com os cotovelos. Mas sendo isto um jogo liso e não necessariamente limitado a trés ou quatro jogadores, John Browdie, desejando também participar nele, precipitou‑se no centro do pequeno ajuntamento, caindo em todas as direcções, rapidamente fazendo mudar o cariz do espectáculo, enquanto mais dum tipo forte era atirado a uma respeitável distância, com lágrimas nos olhos pelas fortes pisadelas dos poderosos pés do imponente homem de Yorkshire.
‑Deixem‑me fazer o mesmo outra vez ‑ desafiou aquele que levara o pontapé, levantando‑se, enquanto falava, aparentemente mais com medo de que John Browdie inadvertidamente o pisasse do que com o desejo de se colocar em condições iguais ao adversário. ‑ Deixem‑no fazer o mesmo outra vez.
‑ Ouça eu, outra vez, aquelas observações ‑ respondeu o jovem ‑ e atiro-lhe a cabeça contra os copos de vinho que estão por detrás de si.
Um criado, que estivera a esfregar as mãos na excessiva alegria da cena, quando ouviu isto, declarou que era melhor chamar a polícia, pois ia dar‑se um assassinato, e ele era o responsável por todos os vidros e porcelanas da casa.
‑Ninguém precisa de se mexer ‑ declarou o jovem. Vou ficar toda a noite na casa e posso ser encontrado de manhã se houver que responder por algum delito.
‑Porque é que lhe bateu? ‑ perguntou um dos espec tadores.
‑Ah, porque é que lhe bateu? ‑ repetiram os outros. O impopular jovem olhou friamente em redor e, dirigindo‑se a Nicholas, disse:
‑ O senhor perguntou há pouco o que era isto. O caso é simplesmente este: Além, aquela pessoa, estava a beber com um amigo no café quando me sentei por uma meia hora antes de ir para a cama. Eu acabei de chegar de viagem e preferi vir para aqui hoje à noite em vez de ir para casa a esta hora, onde não sou esperado senão amanhã. Então, ouvi‑o expressar‑se em termos muito desrespeitosos e familiarmente insolentes, quanto a uma senhora, que reconheci pela sua descrição e outras circunstâncias, e que eu tenho a honra de conhecer. Como ele falava bastante alto para ser ouvido pelos outros clientes que estavam presentes, informei‑o, muito delicadamente, que estava enganado nas suas conjecturas, as quais eram de natureza ofensiva, e pedi‑lhe para se retratar. Ele fez isso por pouco tempo, esperando, para renovar a sua conversa, que eu saisse da sala e continuou com insultos maiores do que os anteriores. Eu não resisti e facilitei‑lhe a saída com um pontapé, que o reduziu à atitude em que o viu há pouco. Sou o melhor juiz dos meus próprios assuntos, e se alguém pensa em tomar parte nesta questão, posso dar‑lhe a certeza de que não faço a mais pequena objecção ‑ acrescentou o jovem que, certamente, ainda não se tinha recuperado do seu recente ardor.
A atitude tomada por Nicholas foi a mais louvável. Tendo no pensamento a sua bela desconhecida, naturalmente ocorreu‑lhe que faria o mesmo num caso idêntico, por isso protestou, com grande calor, que o jovem procedera como devia, o que John Browdie aprovou igualmente, e não com menos veemência.
‑Ele que tenha cuidado ‑ ameaçou a parte contrária, que estava a ser escovada por um criado depois da sua recente queda no soalho empoeirado ‑ Ele não me bate em vão, posso‑ lhe dizer. Um lindo estado de coisas, o dum homem levar pancada por não admirar uma linda rapariga.
Esta reflexão pareceu ter um grande peso sobre uma jovem que estava no bar, a qual, ajustando o cabelo ao espelho, declarou que era na verdade um lindo estado de coises, e que se as pessoas eram punidas por acções tão inocentes e naturais, como esta havia mais gente para apanhar do que para dar, gostando de saber o que é que o cavalheiro queria dizer com isso.
‑ Minha querida ‑ disse o jovem em voz baixa, avançando para a janela de guilhotina.
‑ Tolice, sir! replicou a jovem asperamente, embora sorrindo e voltando-se de lado e mordendo os lábios, enquanto Mrs. Browdie que continuava nas escadas, olhava de relance para ela com desdém, chamando pelo marido para se ir embora.
‑ Não, escute‑me ‑ pediu o jovem. ‑ Se fosse um crime admirar uma linda cara, eu seria a pessoa mais criminosa do mundo, por não poder resistir a nenhuma. Exercem o mais extraordinário efeito sobre mim, reprimem‑me e guiam‑me nos meus actos. Está a ver o efeito que a sua palavra fez sobre mim?
‑ E muito linda ‑ retorquiu a jovem, baixando a cabeça, mas...
‑ Sim, sei que é muito linda ‑ afirmou o jovem, olhando com um ar de admiração para a cara do criado do bar. ‑ Assim o disse precisamente neste momento. Mas a beleza deve ser falada com respeito. com respeito e termos próprios, e com conveniente sentido de dignidade e excelência, coisa de que aquele tipo não tem nenhuma noção.
A jovem interrompeu a conversa neste ponto, metendo a cabeça pela vidraça do bar, para perguntar ao criado, numa voz guinchada, se o jovem que levara pancada ficava no corredor toda a noite, ou se deixava a entrada livre para os outros. Os criados, aproveitando a ideia e comunicando-a aos moços das cavalariças, não foram lestos em mudar também de tom, dando como resultado ser a infeliz vítima posta na rua num abrir e fechar de olhos.
‑ Tenho a certeza de ter visto aquele tipo antes ‑ declarou Nicholas.
‑ Na verdade? ‑ inquiriu o seu novo conhecimento.
‑ Estou certo disso! ‑ disse Nicholas, parando para reflectir. ‑ Onde posso ter?. Alto!. sim, tenho a certeza, pertence à agência de colocações que fica na parte ocidental da cidade. Sabia que me recordava da cara.
Era de facto, Tom. o empregado feio e antipático.
‑ bastante singular ‑ observou Nicholas, ruminando sobre a estranha maneira como o rapaz pareceu levantar‑se vivamente e olhar para ele de vez em quando.
‑ Estou‑lhe muito obrigado por ter amavelmente advogado a minha causa, quando ela mais necessitava dum advogado - declarou o jovem, rindo e tirando um bilhete de visita. ‑ Talvez queira fazer o favor de me dizer onde posso agaedecer‑ lhe.
Nicholas agarrou no bilhete e, olhando‑o involuntariamente enquanto devolvia o cumprimento, mostrou uma grande surpresa.
‑ Mr. Frank Cheeryble! ‑ exclamou Nicholas. ‑ Não me diga que é o sobrinho de Cheeryble Brothers, o qual é esperado amanhã.
‑ Não costumo dizer‑me sobrinho da firma ‑ disse Mr. Frank bem humorado ‑ mas, dos dois excelentes indivíduos que a compõem tenho orgulho em declarar que sou sobrinho. E o senhor é Mr. Nickleby, de quem tenho tanto ouvido falar. Este é um encontro muitíssimo inesperado, e não pouco bem‑vindo, asseguro‑lhe.
Nicholas respondeu a estes cumprimentos com outros do mesmo género e depois trocaram calorosos apertos de mão. A seguir foi apresentado John Brawdie, que tinha ficado num estado de grande admiração desde que a jovem do bar fora tão habilidosamente passada para o bom partido. Mrs. Browdie foi igualmente apresentada e, finalmente subiram a escada e passaram a seguinte meia hora com grande satisfação e mútuo entretenimento. Mr. Franck Cheeryble mostrou‑se uma pessoa agradável, bem disposta e alegre, quer no porte, quer na disposição, fazendo lembrar muito a Nicholas os dois adoráveis irmãos. E tal favarável impressão produziu em todos, que, quando se despediram por essa noite pareciam ser conhecidos de infância, especialmente Nicholas, que, revolvendo todas estas coisas na cabeça no seu caminho para casa; chegou à conclusão de ter feito o conhecimento mais agradável e desejado.
Mas é uma coisa muitíssimo extraardinária o que se passa com esse empregado da agência de colocações! ‑ pensava Nicholas. ‑ É crível que este sobrinho conheça alguma coisa sobre a linda rapariga? Quando Tim Linkinwater me deu a entender, no outro dia, que ele vinha para participar nos negócios aqui, disse‑me que ele tinha estado a superintendê‑los há quatro anos na Alemanha e que durante estes últimos seis meses tinha sido encarregado de instalar uma agência no norte de Inglaterra. Isto é, quatro anos e meio... quatro anos e meio. Ela não pode ter mais do que dezassete. digamos, dezoito, pela aparência. Nesse caso era uma perfeita criança quando ele se foi embora. Devo dizer que nada sabe acerca dela e nunca a viu,por isso não me pode dar informações. Em todo o caso ‑ pensou Nicholas, chegando ao verdadeiro ponto ‑ não há perigo dela ter uma afeição anterior por este lado; isto é perfeitamente claro.
Se bem que Nicholas tivesse chegado a este resultado animador, não deixou, contudo, de pensar na possibilidade do sobrinho dos irmãos Cheeryble ser seu rival, não só no seu caminho para casa, como ainda durante toda a noite; e admitiu, mais, ele próprio não tornar a ver a misteriosa jovem.
A manhã veio, com as suas horas de trabalho e, com elas, Mr. Frank Cheeryble, que foi recebido com muitos sorrisos e boas‑vindas da parte dos dignos irmãos, e uma recepção mais grave e formal, mas não menos cordial, de Mr. Timothy Linkinwater.
‑ Mr. Frank Cheeryble e Mr‑ Nickleby devem ter‑se encontrado a noite passada ‑ disse Tim Linkinwater, saindo lenta mente do banco e olhando todo o escritório com as costas apoiadas à secretária, como era seu costume quando tinha alguma coisa de muito especial para dizer ‑ esses dois jovens devem ter‑se encontrado a noite passada duma maneira que eu classifico de coincidência. uma notável coincidência. Agora não acredito ‑ acrescentou Tim tirando os óculos‑ que haja um lugar em todo o mundo para coincidências, como Londres.
‑ Nada sei a tal respeito ‑ replicou Mr. Frank Chryble ‑ mas...
‑ Não sabe nada a tal respeito, Mr. Francis ‑ exclamou Tim ‑ Então diga‑nos: se há um outro lugar melhor para essas coisas, onde é? Na Europa? Na Ásia? Na África. Na América? O senhor sabe, em todo o caso, mais do que isso. Então onde está ele?
‑ Não estou para discutir o caso, Tim ‑ afirmou o jovem Cheeryble rindo. ‑ Não sou tão herético como isso. Tudo o que ia a dizer era que estou grato à coincidência e nada mais.
‑ Se não discute é outro caso ‑ replicou Tim, completamente satisfeito. ‑ Contudo dir‑lhe‑ei. que desejava que discutisse. Desejava isso para atirar com esse homem a terra com o argumento. ‑ disse Tim, batendo com o indicador da mão esquerda nos óculos.
Era completamente impossível encontrar uma linguagem para exprimir o grau de prostração mental a que ficaria reduzido um tal aventureiro no subtil encontro com Tim Linkinwater.
‑ Podemos considerar‑nos, irmão Ned ‑ afirmou Charles ‑ uns tais jovens, como o nosso sobrinho e Mr. Niekleby. Deve ser uma fonte de grande satisfação e prazer para nós.
‑Certamente Charles, certamente!‑aprovou o outro‑De Tim não digo nada, porque Tim é uma simples criança. um bebé. um ninguém. em que nunca pensamos, ou temos em conta. Tim, seu vilão, o que diz disto, sir?
‑ Que estou com ciumes de ambos ‑ respondeu Tim ‑ e tenho a ideia de procurar uma outra colocação, por isso, cavalheiros, queiram fazer o favor de providenciar.
Tim pensou que esta brincadeira era muito extraordinária e não tinha outra semelhante, por isso pôs a pena no tinteiro e riu até mais não poder. Os irmãos também se riram com vontade da ideia de uma separação voluntária entre eles e Tim. Nicholas e Mr. Frank riram para esconder, talvez, qualquer emoção, levantada por este pequeno incidente.
‑ Mr Nickleby ‑ disse o irmão Charles, chamando‑o de parte. ‑ Eu. eu estou ansioso, meu caro senhor, por ver se estão devida e confortavelmente instalados na casa. Não podemos consentir que aqueles que nos servem bem, passem privações ou desconfortos, que estejam em nosso poder remediar. Desejo, também, ver a sua mãe e a sua irmã. conhecê‑las, Mr. Nickleby, e ter uma oportunidade para lhes aliviar os espíritos, assegurando-lhes que qualquer pequeno serviço que nós possamos fazer‑lhes está bem recompensado pelo zelo e ardor com que o senhor trabalha. Peço‑lhe que não diga nada, meu caro senhor. Amanhã é domingo. Atrevo‑me a ir à hora do chá e espero ter a sorte de o encontrar em casa. Se não estiver, ou as senhoras se sintam melindradas pela intromissão e prefiram não me conhecer agora, posso ir noutra ocasião. Ficamos assim entendidos. Irmão, Ned, meu querido rapaz, deixa‑me dar‑te uma palavra de caminho.
Os gémeos sairam do escritório e Nicholas, viu neste ato de amabilidade, e em muitos outros de que tinha sido alvo, motivo para reconhecimento e gratidão por tão extraordinária prova de consideração.
A notícia de que iam ter uma visita no dia seguinte, despertou no peito de Mrs. Nickleby sentimentos misturados de exultação e insegurança, pois se, por um lado estava desejosa de reentrar na boa sociedade, por outro lamentava a falta do seu qu rido serviço de chá em prata.
‑ Gostava de saber quem terá a lata das especiarias ‑ disse Mrs. Nickleby, abanando a cabeça ‑ Costumava estar no canto esquerdo, junto das cebolas de conserva. Lembras‑te dessa lata Kate?
‑ Perfeitamente, mamã.
‑ Não devia pensar que te lembrasses, Kate ‑ retorquíu Mrs. Nickleby com severas maneiras ‑ por responderes dessa forma fria e descuidada! Se há alguma coisa que me irrite nestas perdas, mais do que elas próprias, é ter gente à volta de mim que encara essas coisas com uma calma irritante.
‑ Minha querida mamã ‑ replicou Kate, passando o braço em volta do pescoço da mãe ‑ porque diz coisas que não sente ou está zangada comigo quando se sente feliz e contente? A senhora e Nicholas deixaram‑me só, estamos juntos mais uma vez. e que interesse posso ter por ninharias de que nunca sinto a falta? Quando vi toda a desgraça e desolação que a morte trouxe, e conheci o sentimento de ficar solitária e só na multidão, e todo o sofrimento da separação na dor e na pobreza, quando nós mais necessitávamos de conforto e ajuda, considero este sítio de tão deliciosa calma e descanso, que nada mais desejo. nem nada mais me penaliza. Houve um tempo, e não há muito, em que todos os confortos da minha antiga casa me vinham ao pensamento com mais frequência do que pode, talvez, pensar, mas fingia não fazer caso, na esperança de lhe não causar pena. Querida mamã ‑ acrescentou Kate com grande agitação ‑ não sinto diferença entre esta casa e aquela onde fomos tão felizes durante muitos anos, se não o coração amantíssimo que sofreu na terra, estar agora, em paz, no céu!
‑ Kate, minha querida Kate ‑ exclamou Mrs. Niekleby, abraçando-a.
‑ Tenho tantas vezes pensado em todas as suas palavras. da última vez que ele entrou no meu quartinho, quando se ia deitar no andar de cima, e disse: Deus te abençoe, querida. Tinha a cara pálida, o coração angustiado.
Veio uma torrente de lágrimas aliviá‑la e Kate pôs a cabeça no peito da mãe e chorou como uma criança. A pobre Mrs. Nickleby, acostumada a expandir tudo o que tinha na mente, nunca concebera a possibilidade da filha ter pensamentos guardados. Mas agora, com a felicidade de tudo quanto Nicholas lhes dissera e com a sua nova e pacífica vida, estas recordações vieram tão fortemente à memória de Kate que ela não as pôde reprimir. Mrs. Nickleby, que começara a pensar que a filha não sofria, não pôde deixar de se censurar enquanto a abraçava e abandonou‑se às emoções que a conversa, naturalmente, despertara.
Nessa noite houve um reboliço e muitas preparações para a esperada visita, tendo Kate guarnecido a pequena sala com muitas flores da maneira a torná‑la o mais bonita possível. Se a cottage alguma vez se apresentou linda, foi no dia seguinte, brilhante e soalheiro. Mas o orgulho de Smike no jardim, ou de Mrs. Nickleby nos arranjos interiores, ou ainda os de Kate em tudo, nada era comparado com o de Nicholas, na irmã, e seguramente a casa senhorial mais sumptuosa de Inglaterra não podia escolher melhor ornamento do que a sua linda cara e a sua grácil figura.
Cerca das seis da tarde Mrs. Nickleby encontrava-se num estado de grande inquietação de espírito, por ouvir à porta o tão esperado bater e perceber pelos passos no corredor, serem duas pessoas, os dois Mr. Cheerybleu. Mas não eram os dois irmãos e só Mr. Charles Cherryble com o sobrinho, que pediu desculpes pela sua intromissão, as quais Mrs. Nickleby por ter colheres de chá que chegassem recebeu muito graciosamente. A aparição desta inesperada visita não ocasionou o menor embaraço ‑ salvo em Kate, que corou uma ou duas vezes a princípio pois o cavalheiro era tão amável e cordial e o jovem imitava-o tanto, que a normal formalidade e rigidez dum primeiro encontro, não deu mostras de aparecer e a própria Kate, mais duma vez, se encontrou a perguntar a si mesma quando chegariam.
À mesa da chá conversou‑se muito sobre vários assuntos, alguns deles jocosos como este: tendo estado o jovem Mr. Cheeryble recentemente na Alemanha, o velho Cheeryble informou suspeitar que o sobrinho se enamorara da filha dum certo burgomestre alemão. O jovem Mr. Cheeryble repeliu a acusação com grande energia, pedindo, com grande ardor, ao velho Mr Cheeryble que a negasse, o que o tio fez, não sem que o sobrinho deixasse de corar, o que até foi notado por Mrs. Nickleby.
Depois do chá foram passear para o quintal, mas como a noite estava muito agradável, transpuseram a cancela e andaram por azinhagas e estradas, até se fazer escuro. O tempo parecia passar rapidamente. Kate, ia à frente pelo braço do irmão, conversando com ele e com Mr. Frank Cheeryble, e Mrs. Nickleby e o cavalheiro mais velho seguiam a certa distância. A amabilidade do senhor, o seu interesse pelo bem estar de Nicholas e a sua admiração por Kate operaram de tal maneira nos sentidos da boa senhora, que a usual torrente dos seus discursos foi circunscrita a uns limites muito estreitos. Smike, que nunca na sua vida tinha sido alvo de interesse, acompanhava-os nesse dia, juntandos-e, algumas vezes, a um grupo, outras vezes a outro, pois o irmão Charles, pondo‑lhe a mão no ombro, pedia‑lhe para ir com eles, enquanto Nicholas, olhando‑o sorridente, acenava‑lhe para ir ter com ele e conversar com o velho amigo, que o compreendia melhor que ninguém.
O orgulho é um dos sete pecados mortais, mas não pode ser o orgulho duma mãe pelos filhos, pois este é composto de duas virtudes: fé e esperança. Era esse o orgulho que enchia o coração de Mrs. Nickleby nessa noite, brilhando-lhe na cara, quando regressaram a casa e vestígios de lágrimas de muita gratidão brotaram‑lhe dos olhos.
Durante a ceia reinou uma alegria calma, que se harmonizava com os sentimentos e, por fim, os dois cavalheiros retiraram‑se. Houve uma circunstância na despedida, que ocasinou muita risota e brincadeira: foi quando Mr. Franc Cheeryble ofereceu duas vezes a mão a Kate, completamente esquecido de já lhe ter dito adeus. Isto foi evidenciado pelo mais velho Mr. Cheeryble, como prova convincente de estar a pensar na sua amada alemã, dando a brincadeira motivo a muita gargalhada.
Em resumo, foi um dia de serena e tranquila felicidade, marcando no calendário, um lugar notável, no meio de tantos outros sombrios e tristes.
Houve uma excepção, e essa, o que precisava para ser felicíssimo? Quem é aquele que, no silêncio do seu quarto, ora de joelhos junto do primeiro amigo que lhe fez sentir a amizade e, estendendo as mãos cruzadas desesperadamente para o ar, dobra a cabeça numa paixão de amarga dor?
Mr. Ralph Nickleby corta as relações com um velho conhecimento e uma brincadeira entre marido e mulher, algumas vezes pode levar as coisas longe demais.
Há alguns homens que, vivendo com o único objectivo ãe enriquecer não importa qual a maneira, e sendo perfeitamente conscientes da baixeza e velhacaria dos meios que usam para atingir este fim, afectam no entanto, mesmo para consigo, um tom de rectidão moral e abanam as cabeças em vista da depravação do mundo. Alguns destes velhos, que andam sempre neste mundo, ou antes ‑ porque o andar implica, uma posição vertical e o porte dum homem ‑ que se rojam pelo chão através da sua vida pelos processos sujíssimos e misérrimos, assentam gravemente nos seus diários os acontecimentos de todos os dias e mantêm uma conta regular de débito e crédito com o Céu, mostrando sempre um saldo flutuante a seu favor.
Ralph Nickleby não era um homem deste cunho. Áspero, inflexível, de má condição, impenetrável, Ralph de nada se importava na vida, ou para além dela, excepto a satisfação de duas paixões: avareza, o primeiro e predominante apetite da sua natureza o ódio o segundo. Afectava considerar‑se o tipo de toda a humanidade, não se incomodava em esconder o seu verdadeiro carácter e o seu coração exultava e acarinhava todos os maus projectos. A única coisa que preocupava Ralph Nickleby era conhecer‑se e ele conhecia‑se bem, mas imaginava que todo o género humano era fundido no mesmo molde, por isso odiava‑o.
E nesta ocasião, Ralph estava a olhar Newman Noggs com o sobrecenho carregado, enquanto este tirava os mitenes, os estendia cuidadosamente na palma da mão esquerda e os alisava com a direita, para lhes tirar as rugas, continuando depois a enrolá‑los com um ar ausente, como se nada mais contasse.
‑ Saiu da cidade? ‑ disse Ralph lentamente. ‑ É engano seu! Volte lá outra vez.
‑ Não há engano ‑ replicoú Newman. ‑ Nem mesmo está para sair. foi‑se embora!
‑ Ele tornou‑se rapariga ou bebé? ‑ murmurou Ralph com um gesto agastado.
‑ Não sei ‑ respondeu Newman ‑ foi‑se embora. A repetição da palavra embora parecia dar a Newman Noggs um inexprimível deleite na proporção que aborrecia Ralph Nickleby. Proferiu a palavra batendo muito bem as sílabas e por mais tempo da que devia.
‑ E para onde foi ele? ‑ perguntou Ralph.
‑ Para França ‑ retorquiu Newman ‑ Com medo de outro ataque de erisípela ‑ um ataque pior na cabeça. Por isso os médicos mandaram‑no sair. E ele foi‑se embora.
‑ E Lorde Frederick. ‑ começou Ralph.
‑ Também se foi embora ‑ atalhou Newman.
‑ E leva consigo a sova que apanhou ‑ comentou Ralph, voltando as costas.
‑ Estava muito doente ‑ observou Newman.
‑ Muito doente! ‑ repetiu Ralph. ‑ Pobre Sir Mulberry! Muito doente!
Proferindo estas palavras com um supremo desprezo e grande irritação, Ralph fez rapidamente sinal a Newman para abandonar o aposento e, atirando‑se para cima duma cadeira, bateu impacientemente com os pés no chão.
‑ Aquele rapaz está encantado ‑ disse Ralph rangendo os dentes. ‑ As circunstâncias conspiram para o ajudar. Fale‑se de favores da fortuna! O que é o dinheiro para uma sorte dos diabos como esta?
Meteu impacientemente as mãos nas algibeiras, mas, apesar da sua anterior reflexão havia alguma consolação porque a cara suavizou‑se um pouco e, não obstante as sobrancelhas se manterem profundamente contraídas, era de cálculo e não de desapontamento.
‑ Este Hawl, no entanto, deve voltar ‑ murmurou Ralph ‑ e se conheço o homem ‑ e devo conhecê‑lo ‑ a sua raiva não deve ter perdido nada de violência neste meio tempo. Obrigado a viver retirado. a monotonia dum quarto de doente... sem jogar... nada do que ele gosta e para o que vive. Ele não é do género de esquecer a sua obrigação ao causador de tudo isto. Poucos homens o fariam, mas ele dentre todos. não, não!
Sorriu, abanou a cabeça e, apoiando o queixo na mão, pareceu satisfeito e voltou a sorrir. Depois levantou‑se e tocou a campainha.
‑ Esse Mr. Squeers está cá? ‑ perguntou Ralph.
‑Esteve cá ontem à noite. Deixei‑o cá quando fui para casa ‑ informou Newman.
‑ Sei isso, seu palerma, não sei? ‑ replicou Ralph furioso
‑ mas esteve cá depois disso? Voltou esta manhã?
‑ Não! ‑ gritou Newman, em voz muito alta.
‑ Se ele vier enquanto eu estiver ausente‑ é quase certo ele estar cá às nove da noite! ‑deixe‑o esperar. E se vier um outro homem com ele, como deve vir. talvez ‑ disse Ralph, reprimindo‑se ‑ deixe‑o também esperar.
‑ Deixo esperar os dois ‑ interrogou Newman.
‑ Sim ‑ retorquiu Ralph, voltando-se para ele com um olhar zangado. ‑ Ajude‑me a vestir esta jaqueta e não repita o que eu digo com grasnidos de pardal.
‑ Desejava ser pardal ‑ observou Newman, carrancudo.
‑ E eu desejava que fosse ‑ replicou Ralph, abotoando a jaqueta. ‑ Já lhe tinha torcido o pescoço há muito tempo.
Newman não deu resposta a este cumprimento, mas olhou por um instante sobre o ombro de Ralph como se estivesse imensamente disposto a torcer‑lhe o nariz. Mas encontrando os olhos de Ralph, encolheu subitamente os dedos e pôs‑se a esfregar o nariz com uma veemência completamente espantosa. Não dando mais atenção ao seu excêntrico empregado do que um olhar ameaçador e um aviso para ter cuidado e não fazer erros, Ralph agarrou no chapéu e nas luvas, e saiu.
Parecia ter conhecimentos muito extraordinários e duma grande miscelánea, mas todos eles só tinham um objectivo: dinheiro. Nas casas ricas era cheio de amabilidade e delicadeza, andando com uns passos muito leves, para mal se ouvirem nos espessos tapetes. Nas casas pobres as suas botas ressoavam no chão e a sua voz era áspera quando pedia o dinheira em divida. Com aqueles que o ajudavam nos negócios, procuradores de reputação mais ou menos duvidosa, Ralph era ainda um outro homem; familiar e brincalhão, humorista a respeito dos acontecimentos do dia, e especialmente agradável quanda se tratava de quebras e de dificuldades pecuniárias. Em resumo, teria sido difícil reconhecer o homem sob estes variados aspectos, a não ser pelas letras e recibos que ele extraia da algibeira em cada casa, e pela repetição da queixa constante do mundo - o lugar rico.
Fez‑se noite antes duma longa série de visitas ‑ apenas interrompidas por um fraco jantar numa casa de pasto ‑ terminar em Pimlico e, Ralph, dirigir‑se ao longo de St. Jame's Park para casa. Na cabeça borbulhavam‑lhe profundos projectos, tornando‑o indiferente a tudo o que o cercava. Era tão completa a sua abstracção, que ele, que usualmente, notava tudo quanto se passava não deu por ser seguido por uma figura desengon çada a observá‑lo com um olhar atento e ardente. O céu anunciava tempestade e Ralph, escondendo-se debaixo duma árvore, ainda entregue aos seus pensamentos, ergueu subitamente os olhos encontrando os do homem que o contemplava com grande atenção. Houve qualquer coisa na expressão do usurário que fez luz na memória do homem, pois decidiu chegar‑se mais para perto de Nickleby, pronunciando-lhe o nome.
Atónito de momento, Ralph recuou uns passos e inspeecionou‑o dos pés à cabeça. Era um homem magro, tristonho, com cerca da sua idade, de corpo alquebrado e cara sinistra, realçada ainda mais pelas faces encovadas e esfaimadas, profundamente crestadas pelo sol com espessas e negras sobrancelhas, em contraste com a perfeita alvura do seu cabelo; vestido de andrajos, tinha umas maneiras indefinidas de depravação e degradação. Mas, voltando a olhá‑lo, a cara pareceu‑lhe, gradualmente menos estranha, com traços que lhe eram familiares; conheciam‑se de há muitos anos, mas tinham‑se perdido mutuamente de vista e esquecido. O homem percebeu o mútuo reconhecimento e, pedindo a Ralph para tomar o seu primitivo lugar debaixo da árvore e não estar à chuva, dirigiu‑se‑lhe numa voz fraca e grosseira.
‑ O senhor mal me poderia conhecer pela voz, suponho eu, Mr. Nickleby.
‑ Não ‑ respondeu Ralph, lançando‑lhe um olhar penetrante. ‑ Todavia há alguma coisa que me recordo agora.
‑Há pouco em mim que faça lembrar o que era há oito anos‑ observou o outro.
‑ Bastante ‑ disse Ralph negligentemente e desviando a cara. ‑ Mais do que suficiente.
‑ Se tivesse ficado em dúvida a seu respeito, Mr. Nickleby ‑ continuou o outro ‑ esta recepção e a sua maneira, esclarecer‑me-iam muito depressa.
‑ Esperava qualquer outra? ‑ perguntou Ralph vivamente.
‑ Não ‑ replicou o homem.
‑ Você teve razão ‑ retorquiu Ralph ‑ e como não sentiu surpresa, não precisava de exprimir nenhuma.
‑ Mr. Nickleby ‑ disse o homem grosseiramente depois duma breve pausa. Quer ouvir umas palavras que tenho para lhe dizer?
‑Sou obrigado a esperar até que a chuva abrande um pouco ‑ respondeu Ralph, olhando para longe. ‑ Se falar, sir eu não vou pôr os dedos nos ouvidos, embora a sua conversa tenha o mesmo efeito como se os pusesse.
‑ Já fui da sua confiança. ‑ começou o homem, enquanto Ralph olhou em redor e sorriu involuntariamente. ‑ Bem, tanto da sua confiança quanto o senhor permite a qualquer pessoa.
‑ Ah! ‑ replicou Ralph, cruzando os braços ‑ isso é outra coisa. completamente outra coisa.
‑Não brinquemos com palavras, Mr. Nickleby, em nome da humanidade.
‑ Do quê? ‑ inquiriu Ralph.
‑ Da humanidade. Tenho fome e necessidade. Se a mudança que em mim vê depois duma tão longa ausência o não move à piedade, permita que a consciência desse pão, não o pão diário da Padre Nosso que, como é oferecido em cidades como esta, comprende-se que inclua metade das luxúrias do mundo para os ricos, do que socorro para a vida dos pobres. Não esse, mas pão, uma crosta de pão seco e mole, que está hoje fora do meu alcance que tenha algum peso em si, se outra coisa não tiver.
‑ Se é esta a sua forma usual de pedir, sir ‑ observou Ralph ‑ estudou o seu papel bem; mas se quer receber o conselho dum homem que conhece o mundo e os seus processos, tenho a recomendar‑lhe um tom mais baixo se não, é capaz de ficar realmente com fome.
Dizendo isto Ralph agarrou firmemente o próprio pulso com a mão esquerda e, inclinando a cabeça de lado e mergulhando o queixo no peito, olhou para o seu interlocutor com uma cara carrancuda e franzida, o verdadeiro retrato do homem a quem nada pode mover ou abrandar.
‑ Ontem foi o meu primeiro dia em Londres ‑ informou o velho, relanceando para o fato enodado e para os sapatos gastos.
‑ Creia que seria melhor para si se fosse também o último ‑ replicou Ralph.
‑ Nestes dois dias tenho andado à sua procura, onde pensava que seria mais provável encontrá‑lo e, por fim, encontro‑o aqui, onde não tinha quase a esperança de o ver, Mr. Nickleby.
Pareceu aguardar uma resposta, mas como Rálph não desse nenhuma continuou:
‑Soú um miserável e desgraçado com cerca de sessenta anos e tão desamparado como uma criança de seis.
‑ Eu também tenho sessenta anos ‑ retorquiu Ralph ‑ e não sou um desamparado. Trabalhe! Não faça finos discursos dramáticos sobre o pão, ganhe‑o!
‑Como? ‑ perguntou o outro. ‑ Onde? Mostre‑me os meios. Dá-mos?
‑Já dei uma vez e não precisa de perguntar se os darei de novo.
‑Foi há vinte anos, ou mais, que o senhor e eu questionámos. Lembra‑se? Eu reclamei uma parte nos lucros de alguns negócios que lhe trouxe e, como persistisse, o senhor mandou‑me prender por causa duma antiga dívida de dez libras e alguns xelins... incluíndo juros a cinquenta por cento, ou coisa parecida.
‑Lembro‑me duma coisa dessas ‑ respondeu Ralph descuidadamente. ‑ E depois?
‑Isso não nos dividiu. Eu submeti‑me por estar do lado mau dos ferrolhos e das grades, e como o senhor não era então o homem que é agora, ficou satisfeito em receber outra vez um empregado, que se não era muito bom, conhecia pelo menos os negócios que o senhor fazia.
‑Você pediu, suplicou e eu consenti ‑ replicou Ralph. Foi amabilidade da minha parte. Talvez precisasse de si. e esqueci. Devo crer que esqueci, ou você teria pedido em vão. Você era útil ‑ não muito honesto, não muito delicado, não muito escrupuloso de mãos e de coração ‑ mas útil.
‑De facto útil! Vamos. O senhor oprimiu‑me e humilhou‑me durante anos antes disso, mas eu servi‑o fielmente até essa altura, embora tratado como um cão. não servi?
Ralph não deu resposta.
‑ Não servi? ‑ insistiu o homem.
‑Você teve o seu ordenado ‑ respondeu Ralph ‑ e fez o seu serviço. Ficámos em igual terreno e ambos nos podemos considerar quites.
‑ Mas não, depois ‑ disse o outro.
‑ Não depois, certamente, nem mesmo então, você devía‑me dinheiro e ainda deve ‑ observou Ralph.
‑ Isso não é tudo ‑ declarou o homem com ímpeto. Fixe isto. Não esqueci essa velha chaga, pode ter a certeza. Parte em lembrança dela, parte na esperança de arranjar dinheiro algum dia pelo seu sistema, aproveitei‑me da minha posição junto de si e possuir uma influência sobre o senhor a qual lhe daria metade de tudo, o que devia saber e que nunca poderá conhecer a não ser por mim. Deixei‑o muito depois disso, e por algumas pequenas trapaças fora da lei, mas que não eram, comparadas com o que os fabricantes de dinheiro praticam diariamente à margem dos seus limites. Fui condenado a sete anos. Voltei da forma que me vê. Agora, Mr. Nickleby ‑ acrescentou o homem com uma estranha mistura de humildade e força ‑ que ajuda e socorro me pode prestar? As minhas expectativas não são monstruosas, mas preciso de viver é, para viver, preciso de comer e de beber. Do seu lado está o dinheiro, do meu a fome e a sede. Pode fazer um negócio fácil.
‑ É tudo? ‑ perguntou Ralph, olhando ainda o companheiro com o mesmo olhar firme e movendo apenas os lábios.
‑ Depende de si, Mr. Nickleby ‑ se é tudo, ou não ‑ foi a resposta.
‑Então escute, Mr. Brooker ‑ disse Ralph com o seu mais duro tom ‑ e não espere tirar outra resposta de mim. Escute, sir. Conheço‑o há muito como um grandíssimo velhaco mas sem nunca ter tido um coração valente; e trabalho forçado com, talvez, correntes amarradas às suas pernas e menos comida do que quando eu o oprmia e humilhava, deram‑lhe cabo do juízo, se não, não teria vindo para mim com uma conta desses. Você tem uma influência sobre mim! Guarde‑a ou espalhe‑a pelo mundo, se quiser.
‑ Não posso fazer isso, não me serviria de nada.
‑Não serviria? ‑ inquiriu Ralph. ‑ Servirá tanto como sobre mim, prometo‑lhe. Para ser franco, declaro‑lhe que sou um homem cuidadoso e conheço os meus negócios perfeita mente. Conheço o mundo e o mundo conhece‑me. Qualquer coisa que respigou, ouviu, ou viu enquanto me serviu, o mundo sabe e já aumentou. Você nada pode dizer que me surpreenda. a não ser, na verdade, a meu favor, ou honra, e nesse caso você seria tido por mentiroso. Contudo não procuro negócios frouxos, nem clientes escrupulosos. Bem pelo contrário. Todos os dias sou injuriado ou ameaçado por um ou outro homem mas as coisas correm sempre na mesma e eu não fico mais pobre.
‑Eu não injuriei, nem ameacei ‑ retorquiu o homem. Apenas lhe digo o que o senhor perdeu pela nossa acção, o que eu somente possa reviver e o que, se morrer sem a reviver, morre comigo e nunca pode ser recuperado.
‑ Tenho o meu dinheiro muito em segurança e geralmente guardo‑o comigo ‑ informou Ralph. ‑ Olho incisivamente para a maioria dos homens com quem trabalho e mais do que tudo, olhei incisivamente para si. Você é bem‑vindo por tudo quanto afastou de mim.
‑ Os que usam o seu nome são‑lhe queridos? ‑ interrogou o homem enfaticamente. ‑ Se são.
‑ Não são ‑ interrompeu Nickleby exasperado com esta perseverança e com o pensamento de Nicholas, que a última pergunta despertou. ‑ Não são. Se você viesse como um vulgar pedinte, podia ter dado seis pence em lembrança do esperto velhaco que era, mas desde que pretende enganar com essas caducas tretas uma pessoa que tinha obrigação de conhecer melhor, não lhe dou meio péni... nem para o tirar da podridão. E lembre‑se disto, evadido da forca, ‑ avisou Ralph, ameaçando-o com a mão ‑ que se o encontrar de novo e se fizer notar por um simples gesto, verá mais uma vez o interior duma prisão.
Com ar desdenhoso para o objecto do seu ódio, que o olhou nos olhos, mas não proferiu palavra, Ralph foi‑se embora no seu passo habitual, sem manifestar a mais leve curiosidade do que faria o seu antigo companheiro. O homem permaneceu no mesmo sítio, com os olhos fixos na figura que se retirava até deixar de a ver e depois, passando os braços em volta do peito, como se a humidade e a falta de comida lhe fizesse frio, arrastou‑se com passos pesados e olhos baixos, para a beira do caminho, pedindo àqueles que passavam.
Ralph, de modo nenhum impressionado pelo que se passara, caminhou deliberadamente e, contornando o parque e deixando Golden Square à sua direita, encaminhou‑se por entre as ruas na parte ocidental da cidade, até chegar aquela onde era a residência de Madame Mantalimi. O nome desta senhora já não aparecia na flamejante chapa da porta, tendo sido substituído pelo de Miss Knag. Os chapéus e os vestidos eram ainda visiveis nas janelas do primeiro andar à luz poente duma tarde de Verão e excepto na extensiva alteração da propriedade, o estabelecimento mantinha a sua velha aparência.
‑Hum! ‑ murmurou Ralph, pondo a mão na boca com o ar dum conhecedor, e inspeccionando a casa de cima a baixo ‑ esta gente tem aparência. Não podem durar muito. Se eu soubesse, em bom tempo, como iam, estava pago e com um bom lucro. Preciso de os ter debaixo de olho. é o que é!
Acenando a cabeça com complacência, Ralph ia para sair donde estava, quando ouviu o som confuso de muitas vozes misturado com o barulho de subir e descer escadas, na casa que estivera a observar. E enquanto estava hesitante, se devia bater à porta, ou escutar mais tempo pelo buraco da fechadura, uma criada de Madame Mantalini abriu‑a abruptamente e saiu com precipitação, com as fitas do chapéu a flutuarem no ar.
‑Olá, páre! ‑ gritou Ralph. ‑ Do que se trata? Sou eu. Não me ouviu bater?
‑Oh, Mr. Nickleby, sir ‑ disse a rapariga. ‑ Suba, por amor de Deus. O patrão fê‑la outra vez.
‑Fez o quê? ‑ perguntou Ralph asperamente. ‑ O que quer dizer?
- Eu sabia que ele fazia sempre isso - disse a rapariga.
- Venha cá - disse Ralph, puxando-a pelo pulso. - Não ande a espalhar essas coisas, pois dará cabo dos créditos do estabelecimento. Venha cá!
Sem mais discussão ele levou, ou antes, puxou a amedrontada rapariga para dentro de casa e fechou a porta; depois ordenando‑lhe para subir a escada à sua frente, seguiu‑a sem mais cerimónias. Guiado pelo barulho de muitas vozes, todas a falarem ao mesmo tempo, e ultrapassando a rapariga na sua impaciência, Ralph depressa se encontrou na sala, onde ficou bastante atordoado pela confusa e inexplicável cena, na qual de repente, se encontrou.
Estavam todas as jovens empregadas, algumas de chapéu, outras sem ele, em várias atitudes, expressivas de susto e consternação. Umas rodeavam Madame Mantalini, que estava numa cadeira lavada em lágrimas; outras Miss Knag sentada noutra cadeira, mas não lacrimejante; e ainda outras Mr. Mantalini, que era a figura mais aparatosa do grupo. As pernas dele estavam todas estendidas no chão, os olhos fechados, os braços e os ombros suportados por um alto lacaio. Tinha a cara pálida, os dentes cerrados, com um pequeno frasco numa das mãos e uma colher de chá na outra. Contudo Madame Manta lini não chorava sobre o corpo, mas ralhava violentamente na cadeira, e tudo isto no meio dum clamor de vozes perfeitamente ensurdecedor.
‑O que se passa? ‑ perguntou Ralph, avançando. A esta pergunta o clamor aumentou quarenta vezes e numa atordoadora enfiada de agudas contradições como estas: Ele envenenou‑se, Não se envenenou; Chamem um médico, Não chamem, Está a morrer, Não está, está apenas a fingir, com outros gritos vozeados com desconcertante volubilidade, até Madame Mantalini se dirigir a Ralph. Sucedeu‑ se um silêncio de morte.
‑Mr. Nickleby ‑ disse Madame Mantalini ‑ não sei por que felicidade veio cá.
Ouviu‑se nesta altura o doente a dizer estas palavras no seu delírio, Diabólica doçura, mas ninguém lhe deu atenção, a não ser o lacaio, que deixou cair a cabeça do patrão no chão com um barulho bastante audível e sem se esforçar para a levantar, ficando pasmado para os circunstantes como se tivesse feito alguma coisa de inteligente.
‑Direi, contudo ‑ continuou Madame Mantalini, enxu gando os olhos e falando com grande indignação ‑ diante do senhor e de qualquer outra pessoa pela primeira vez e para sempre, que nunca mais voltarei a pagar as extravagâncias e os vícios deste homem. Durante muito tempo fui uma parva e uma tola. De futuro, que se mantenha a si próprio, se puder, e então pode gastar o dinheiro que quiser, com quem e da forma que lhe agradar, mas não será o meu e, por isso, é melhor o senhor parar antes de confiar mais nele.
Após este intróito, Madame Mantalini, insensível às patéticas lamentações do marido, a quem o farmacêutico não misturara o ácido prússico bastante forte e que para acabar a obra era preciso outro frasco, entrou na descrição das galantarias deste amável cavalheiro, extravagâncias e infidelidades, citando a circunstância de se ter envenenado não menos de seis vezes, na última quinzena, não tendo ela interferido uma só vez, por palavra ou por obra, para lhe salvar a vida.
‑E insisto em nos separarmos ‑ prosseguiu Madame Mantalini, soluçando. ‑ Se ele se atreve a recusar‑me a separação, terei uma defesa na lei. Posso... e espero que isto seja um aviso para todos quantos têm visto este triste espectáculo.
Miss Knag, que era inquestionavelmente a rapariga mais velha do grupo, disse com grande solenidade que seria um aviso para si, e o mesmo fizeram as outras raparígas em geral, com excepção de uma ou duas, que pareciam alimentar umas certas dúvidas.
‑Porque diz isto tudo perante tantos ouvintes? ‑ perguntou Ralph em voz baixa. ‑ Como sabe, não está em apuros.
‑Estou ‑ replicou Madame Mantalini em voz alta, retirando‑se para junto de Miss Knag.
‑Bem, mas considere ‑ raciocinou Ralph, que tinha um
grande interesse no assunto. ‑ Seria bom reflectir. Uma mulher casada não tem bens...
‑Nem um indivíduo solitário ‑ declarou Mr. Mantalinierguendo‑se no cotovelo.
‑ Estou perfeitamente ao facto disso ‑ respondeu Madame
Mantalini, inclinando a cabeça. ‑ Este negócio, as mercadorias, esta casa e tudo o que está nela, tudo pertence a Miss Knag.
‑ a verdade, Madame Mantalini ‑ declarou Miss Knag, que chegara a um secreto entendimento com a sua antiga patroa. ‑ Muito verdade. E nunca fui tão feliz na minha vida, se não quando resistia a propostas de casamento, e penso na minha presente situação comparada com a sua, muitíssimo infortunada e muitíssimo injusta,Madame Mantalini.
‑Diabo! ‑ exclamou Mr. Mantalini,voltando a cabeça para a esposa. ‑ Não metes na ordem essa invejosa rica,que se atreve a fazer reflexões sobre as delícias da sua riqueza?
Mas os dias das carícias de Mr. Mantalini tinham passado.
‑ Miss Knag,sir ‑ avisou a esposa ‑ é minha amiga particular.
Para fazer justiça à excelente Miss Knag devemos dizer ter sido ela a causa deste estado de coisas,por ter investigado a vida privada de Mr. Mantalini,abrindo os olhos de Madame Mantalini que os teve por tantos anos fechados. Para este fim contribuiu a descoberta acidental,por Miss Knag,duma terna correspondncia onde Madame Mantalini era descrita como velha e ordinária. Contudo,apesar da sua firmeza,Madame
Mantalini chorava e, encostando-se a Miss Knag,indicou‑lhe a porta,que ela e todas as jovens,com caras consternadas,transpuseram.
‑Nickleby ‑ disse Mr. Mantalini com lágrimas. – Tem sido testemunha desta diabólica crueldade da parte da mais diabólica feiticeira e encantadora como nunca houve! Perdoo a essa mulher!
‑ Perdoa? ‑ repetiu Madame Mantalini zangada.
‑Tenho de lhe perdoar,Nickleby ‑ continuou Mr. Mantalini. ‑ Deve censurar‑me,o mundo há‑de censurar‑me; toda a gente rirá e dirão: ela tinha uma felicidade e não a conhecia.
Ele era um fraco; era bom demais; amava‑a demasiado; não podia vê‑la zangada e chamar‑lhe nomes feios. Era um caso como nunca houve! Mas... eu perdoo-lhe.
Com este discurso afectuoso Mr. Mantalini deixou‑se cair outra vez e ficou,segundo toda a aparência,sem sentidos até todas as mulheres deixarem o aposento, altura em que se sentou cautelosamente e encarou Ralph com uma cara pálida, ainda com o frasco numa das mãos e a colher de chá na outra.
‑ Agora pode pôr de parte essas parvoices e continuar a viver com as suas habilidades ‑ disse Ralph friamente,pondo o chapéu.
‑Diabo,Nickleby! Está a falar a sério?
‑Raramente brinco. Boa‑noite!
‑ Não,. mas, Nickleby. ‑ chamou Mr. Mantalini.
‑ Talvez esteja enganado ‑ replicou Ralph. ‑ Espero que sim. Deve saber melhor. Boa‑noite!
Fingindo não ouvir as súplicas para ficar e aconselhá‑ lo, Ralph deixou Mr. Mantalini com as suas meditações e saiu tranquilamente de casa.
‑Oh, oh! ‑ exclamou ele ‑ o sol pôs‑se deste lado tão cedo?. Hum!. Julgo que os seus dias terminaram, sir.
Ao dizer isto tomou uma nota na agenda, onde figurava o nome de Mr. Mantalini, e vendo pelo relógio que eram entre as nove e as dez, encaminhou‑se para casa a toda a pressa.
‑Está cá? ‑ foi a primeira pergunta feita a Newman.
‑ Está cá há meia hora ‑ respondeu este.
‑ Os dois? Um deles gordo e nédio?
‑ Sim ‑ respondeu Newman. ‑ No escritório.
‑Bem ‑ retorquiu Ralph. ‑ Arranjme um trem.
‑ Um trem! O que. vai. hein? ‑ gaguejou Newman.
Ralph repetiu a ordem, zangado, e Noggs, cujo pasmo tinha desculpa, por nunca ter visto Ralph num trem em toda a sua vida, saiu para executar o recado e voltou a seguir com o carro. Entraram nele Mr. Squers, Ralph e o terceiro homem, que Newman Noggs nunca vira. Newman ficou à entrada da porta para os ver partir, não deixando de se interessar saber a onde iam e para o que iam, quando, por acaso, ouviu Ralph indicar a morada para onde o cocheiro devia seguir. Rápido como o relâmpago, e num estado da mais extrema surpresa, Newman entrou no seu pequeno escritório, foi búscar o chapéu e coxeou atrás do trem, como se tivesse a intenção de se instalar na rectaguarda; porém, não pôde levar‑lhe muita vantagem e ficou na rua vazia, de boca aberta.
‑Não sei que fazer para ir também ‑ disse Noggs, pa rando para respirar. ‑ Ele devia ver‑me se eu fosse! Siga para tal parte! O que pode vir disto? Se ao menos o soubesse ontem, podia ter dito... siga para tal parte! Aqui há velhacaria!
As suas reflexões foram interrompidas por um homem de cabelos brancos de aparência notável, que foi resolutamente direito a ele, pedindo‑lhe esmola. Newman, ainda a cogitar, voltou‑se, mas o homem seguiu‑o com um tal relato de miséria, que Newman, com pouco para dar, olhou para dentro do chapéu a ver se encontrava algum meio péni numa dobra do lenço. Enquanto se afadigava a desfazer o nó com os dentes, o homem disse‑lhe qualquer coisa que lhe atraiu a atenção; o que quer que fosse, chamou outra coisa qualquer à sua atenção e, finalmente, ele e Newman foram lado a lado, o estranho falando animadamente e Newman escutando.
ASSUNTOS SURPREENDENTES
Nicholas, Mrs. Nickleby, Mrs. Browdie Kate Nickleby e Smike encontravam-se nessa noite reunidos na cottage. Era uma alegre reumião. Mrs. Nickleby, sabendo das obrigações do filho para com o honesto homem de Yorkshire consentiu que Mr. e Mrs. Browdie fossem convidados a tomar chá, depois duma certa irresolução. Para a execução desta iniciativa houve a princípio várias dificuldades e obstáculos, levantados, primeiro, por não haver uma oportunidade para visitar Mrs, Browdie, pois embora Mrs. Nickleby observasse não ter um átomo de orgulho ou de delicadezas era, contudo, grande partidáría da dignidade e de cerimónias, e era manifesto que, até não ter sido feita a visita, não podia ser, polidamente falando e de acordo com as leis da sociedade conhecedora da existência de Mrs Browdie e por isso sentia a sua situação, de por delicadeza e dificuldade.
‑A visita deve partir de mim, meu querido, isso é indispensável ‑ disse Mrs. Nickleby. ‑ O facto é, meu querido, tem de haver uma espécie de condescendência da minha parte e mostrar a essa jovem que estou disposta a saber da sua existência. Há um jovem dum aparato respeitável, que é condutor dum dos ónibus ‑ acrescentou Mrs. Nickleby depois duma curta consideração ‑ e passou por aqui com um chapéu envernizado. A tua irmã e eu têmo-lo notado com muita frequência. Tem uma verruga no nariz, Ka, como sabes, é exactamente como o criado dum fidalgo.
- Os criados dos fidalgos têm todos verrugas no nariz, mãe ‑ perguntou Nicholas.
‑ É absurdo Nicholas, meu querido ‑ replicou a mãequis dizer, decerto, que o seu chapéu envernizado dá‑lhe o aspecto dum criado dum fidalgo e não a verruga no nariz. embora mesmo isso não seja tão ridículo como te parece, pois tivemos um mandarete uma vez, que tinha, não apenas uma verruga, mas também um lobinho muito grande. O rapaz pediu para Lhe aumentarmos o ordenado e vi que ele se tornava muito dispendioso, Deixem‑me ver o que eu. Oh, sim, já sei. A melhor forma seria mandar‑lhe um cartão com os meus cumprimentos por este tal jovem, não duvido que ele o leve por uma caneca de cerveja para o Saracen. se o criado de lá o tomar por um servo dum fidalgo, tanto melhor. Depois tudo o que Mrs. Browdie tem a fazer é mandar o seu cartão pelo portador e está tudo acabado.
‑Minha querida mãe ‑ observou Nicholas ‑ não creio que gente, livre de etiquetas como esta, tenha cartões seus, ou os venha a ter.
‑Oh, na verdade, Nicholas, meu querido, isso é outra coisa ‑ replicou Mrs Nickleby. ‑ Se pões as coisas nesse pé não tenho mais a dizer se não que não tenho dúvida em os considerar uma espécie de pobres diabos e não faço qualquer objecção a eles virem cá tomar chá.
Postas as coisas assim e Mrs. Nickleby ficando devidamente colocada numa posição de condescendência, Mr. e Mrs. Browdie foram convidados e vieram; e como foram muito obsequiosos para com Mrs. Nickleby e pareceram ter uma conveniente apreciação da sua grandeza, a boa senhora deu mais uma vez a entender a Kate, em segredo, julgar serem eles as pessoas mais sinceras que conhecia.
Por isso John Browdi declarou na sala, depois da ceia
‑ isto é vinte minutos antes das oito da noite ‑ nunca se ter sentido tão feliz em toda a vida. Nem Mrs. Browdie ficou atrás do narido a este respeito, porque Kate teve a arte de levar a conversa para assuntos em que a provinciana, tímida a princípio, por se ver numa companhia diferente, se sentisse à vontade. E se Mrs. Nickleby não foi completamente feliz, às vezes, na escolha dos tópicos dos seus discursos, não pôde, contudo, ser mais amável.
‑ O seu marido ‑ disse Kate, dirigindo‑se à jovem esposa ‑ é a criatura mais bem disposta, cordial e afável que conheço. Se me visse aflita por qualquer coisa, bastava olhar para ele para me sentir feliz.
‑ Parece ser, na verdade, uma excelente criatura, Kate ‑ confirmou Mrs. Nickleby. ‑ E tenho a certeza de que me dará sempre prazer, verdadeiro prazer, que me venha visitar, Mrs. Browdie. Não somos de cerimónia ‑ afirmou Mrs. Nickleby com um ar parecendo insinuar que podiam fazer muito se estivessem dispostos. ‑ Eu disse a Kate, Kate minha querida, se fizeres com que Mrs. Browdie não se sintá à vontade, é muito ridículo.
‑Estou‑Lhe muito grata ma'am, tenha a certeza ‑ retorquiu Mrs Browdie, agradecendo. ‑ São perto das onze horas, John. Tenho receio de a obrigar a estar acordada até tão tarde.
‑ Tarde ‑ exclamou Mrs. Niekleby com uma gargalhada aguda e fina e uma tossinha no fim, como a exprimir uma nota de admiração. ‑ Para nós é absolutamente cedo. Costumamos estar a pé a estas horas. Meia noite, uma duas, três horas não é nada para nós! Bailes, jantares, partidas de cartas... nunca constituiram extravagâncias para pessoas com quem costumamos conviver. Penso agora muitas vezes, como podemos viver tal vida. mas o mal é ter‑se muitos conhecimentos. Havia em especial uma família que vivia a uma milha de nós‑ não a direito, pela rua fora, mas voltando‑se à esquerda da barreira onde o correio de Plymonth passou por cima dum burroque era uma gente completamente extraordinária. Dava as mais extravagantes reuniões, em resumo, todas as guloseimas de comida e de bebida de que alguém se pudesse lembrar. Não creio que houvesse outra gente como os Peltiroguses. Lembras‑te dos Peltiroguses, Kate?
Kate viu ser mais que tempo, para pôr um dique a esta torrente de recordações Por isso respondeu ter dos Peltiro guses a mais viva e nítida recordação e depois lembrou ter Mr. Browdie prometido, ao começo da noite, que cantaria uma cantiga de Yorkshire, estando ela muito impaciente por ouvir o cumprinento da promessa, por ter a certeza de ir proporcionar à sua mamã muita alegria e prazer.
Mrs Nickleby confirmou a opimião da filha e John Browdie, depois de se mexer muitas vezes na cadeira e de pôr os olhos no tecto, começou a cantar com suave sentimento numa voz de trovão. No fim do primeiro verso ouviu‑se bater tão violentamente à porta da rua, que as senhoras estremeceram ao mesmo tempo e John Browdie parou.
‑ Deve ser engano ‑ disse Nicholas negligentemente. Não conhecemos ninguém que venha a esta hora.
Contudo Mrs. Nickleby aventou a hipótese do escritório estar a arder, ou talvez nos Misters Cheerybleii tivessem mandado procurar Nicholas para o meterem na sociedade o que certamente parecia altamente provável áquela hora da noite, ou talvez Mrs. Linkinwater tivesse fugido com o dinheiro, ou Miss La Creevy estivesse doente, ou.
Mas uma brusca exclamação de Kate, deteve‑a nas suas conjecturas e Ralph Nickleby entrou no aposento.
‑ Fique ‑ disse Ralph quando Nicholas se levantou, e Kate dirigindo‑se ao irmão, atirou‑se ao seu braço. ‑ Antes deste rapaz dizer uma palavra, ouçam‑me.
Nicholas mordeu os lábios e abanou a cabeça duma maneira ameaçadora, mas deu a entender não lhe ser possível articular uma palavra neste momento. Kate agarrou‑se mais ao seu braço, Smike retirou-se para trás deles e John Browdie, que já tinha ouvido falar em Ralph e pareceu não ter grande dificuldade em o reconhecer meteu‑se entre o velho e o seu jovem amigo, como se fosse intenção sua impedir que algum deles desse mais um passo.
‑ Ouçam‑me, repito! ‑ exclamou Ralph. ‑ E não a ele?
‑ Então dize o que tens para dizer, sir ‑ replicou John - mas toma cuidado, não faças ferver o sangue, porque nesse caso é melhor estares calado.
‑ Conheço‑o a si ‑ informou Ralph ‑ pela sua fala, e a ele ‑ apontando para Smike ‑ pela sua aparência.
‑ Não fale para ele‑ disse Nicholas, recuperando a fala. Não quero. Não o escutarei. Não conheço este homem. Não posso respirar o ar que ele corrompe. A sua presença é um insulto para a minha irmã. É uma vergonha olhar para ele. Não suportarei.
‑ Fique! ‑ exclamou John, pondo-Lhe a pesada mão no peito.
‑ Então ele que se retire imediatamente ‑ ordenou Nicholas, debatendo‑se. ‑ Não lhe ponho as mãos, mas ele que se retire. Não o quero aqui. John. John Browdie. esta casa é minha. sou por ventura uma criança? Se ele fica aqui ‑ gritou Nicholas, ardendo em fúria ‑ olhando tão calmamente para aqueles que conhecem o seu coração negro e vil, dou em maluco!
A todas estas exclamações John Browdie não respondeu uma palavra, mas reteve Nicholas seguro e quando ele se calou, falou de novo:
‑ Há mais a dizer e a ouvir do que tu julgas. Digo‑te que já me tinha dado o cheiro a isto. O que vem a ser aquela sombra fora da porta? Olha, é o mestreescola; mostra‑te, homem! Não estejas envergonhado. Cavalheiro, deixe entrar o mestre‑escola, vamos!
Ouvindo o pedido, Mr. Squeers, que ficara no corredor até à altura conveniente da sue entrada, para produzir efeito, foi constrangido a apresentar‑se duma maneira um tanto humilhada e ignóbil, com o que John Browdie riu, que mesmo Kate, com toda a sua aflição, ansiedade e surpresa da cena, e apesar das lágrimas nos olhos, sentiu disposição para o imitar.
‑ Está, então, a divertir‑se sir? ‑ perguntou Ralph, por fim.
‑ Presentemente assim, assim, sir ‑ respondeu John.
‑ Posso esperar ‑ avisou Ralph. ‑ Não se apresse, suplico‑Lhe.
Ralph auZzardou até se fazer um perfeito silêncio e depois, voltando‑se para Mrs. Nickleby, mas dirigindo um olhar ardente para Kate, como se estivesse mais ansioso em verificar o seu efeito nela, declarou:
‑Agora, ma'am, escute‑me. Não imagino que esteja interessada num belo fluxo de palavras dirigidas a mim pelo seu filho e que isso tenha a mais leve importância ou influência, ou seja, por um momento, tomado em conta.
Mrs. Nickleby abanou a cabeça e suspirou como se hou vesse nisso um bom bocado de verdade.
‑Por essa razão‑continuou Ralph‑dirijo‑me a si, ma'am. Em parte por essa razão e em parte porque não desejo ser desgraçado pelos actos dum depravado adolescente a quem fui obrigado a não reconhecer e que depois, na sua acriançada majestade, finge. ah ah!. não me reconhecer. Apresento‑me aqui esta noite. A minha vinda tem outro motivo. um motivo de humanidade. Venho aqui para restituir uma criança ao seu pai. Sim, sir ‑ continuou ele, inclinando‑se impetuosamente para a frente e dirigindo‑se a Nicholas, como se marcasse a mudança da sua expressão ‑ Para restituir uma criança ao seu pai. o seu filho, sir. enganado, escondido e conservado todas as vezes por si, com o baixo desígnio de lhe roubar algum dia qualquer coisa de que ele venha a ser possuidor.
‑ Nisso, sabe que mente! ‑ observou Nicholas altivamente.
‑ Sei que falo verdade. Tenho o pai dele aqui ‑ replicou Ralph.
‑ Aqui ‑ riu Squeers, escarninho, avançando. ‑ Ouviu isso? Aqui! Não lhe disse para ter cuidado que o pai dele não se ficava e que mo devolveria? O pai dele é meu amigo; veio directamente ter comigo. O que diz agora?. Vamos. o que diz a isto? Não tem pena de ter tido tanta maçada para nada? Não tem?
‑ Você tem no corpo certas marcas que lhe fiz ‑ recordou Nicholas, olhando tranquilamente para longe ‑ por isso pode falar tanto quanto lhe agradar. Há‑de falar durante muito tempo antes de as tirar, Mr. Squeers.
O estimável cavalheiro deu um rápido olhar para a mesa, como se se preparasse para responder a esta pergunta, atirando um jarro, ou uma garrafa, à cabeça de Nicholas, mas foi interrompido no seu intento ‑ se o tinha! ‑ por Ralph, que, tocando‑lhe no cotovelo, pediu‑lhe para dizer ao pai que podia aparecer e reclamar o filho.
Sendo isto puramente um trabalho de amor, Mr. Squeers gostosamente o cumpriu e, deixando o aposento voltou quase imediatamente, amparando uma nédia personagem de cara oleosa, com as formas de Mr. Snawley, o qual se encaminhou direito a Smike, tomou a cabeça do pobre rapaz debaixo do braço, elevou o chapéu ao ar numa espécie de acção de agradecimento, exclamando entretanto:
‑Nunca pensei neste alegre encontro quando o vi pela última vez!
‑Tranquilize-se, sir ‑ aconselhou Ralph com uma rude expressão de simpatia. ‑ Agora já o tem!
‑Tenho‑o de facto? ‑ exclamou Mr. Snawley, mal acreditando nos olhos. ‑ Sim, ei‑lo aqui, em carne e osso.
‑Muito pouca carne ‑ observou John Browdie. Mr. Snawley estava por demais ocupado com os seus sentimentos paternais para notar esta observação e, para adquirir mais a certeza da recuperação do filho, meteu‑lhe outra vez a cabeça debaixo do braço.
‑O que me fez tomar tão forte interesse nele quando esse digno instructor da mocidade o trouxe para minha casa? O que me fez sentir o mais ardente desejo de o castigar severamente por ter fugido dos seus melhores amigos. dos seus pastores e mestres?
‑Foi o instinto paternal, sir ‑ observou Squeers.
‑ Foi o elevado sentimento, sir ‑ replicou Snawley ‑ o sentimento dos antigos romanos e gregos, dos animais do campo e dos pássaros do ar, com excepção dos coelhos e dos gatos, que algumas vezes devoram os seus filhos. O meu coração pulava para ele. Eu podia... Não sei o que podia ter‑lhe feito na minha raiva de pai!.
‑ Isso apenas mostra o que é a Natureza, sir ‑ comentou Squeers. ‑ A Natureza é uma coisa forte.
‑ Uma coisa sagrada, sir ‑ retorquiu Snawley.
‑ Acredito ‑ acrescentou Mr. Squeers com um suspiro. Gostaria de saber como viveríamos sem ela. A Natureza é mais facilmente concebida do que descrita. Oh, que coisa abençoada, sir, é estar‑se em harmonia com ela!
Os espectadores tinham ficado estupefactos durante este discurso filosófico, enquanto Nicholas olhava dum modo penetrante de Snawley para Squeers e deste para Ralph, dividido entre os seus sentimentos de desgosto, dúvida e surpresa. Entretanto; Smike escapou‑se do pai e correu para Nicholas, implorando‑lhe, nos termos mais comoventes, para nunca o entregar, mas sim para o deixar viver e morrer com ele.
‑Se é pai deste rapaz ‑ disse Nicholas ‑ olhe para a ruína que ele é e diga‑me se é sua intenção mandá‑lo outra vez para aquela repugnante caverna donde eu o trouxe!
‑Escândalo de novo ‑ gritou Squeers. ‑ Recorde‑se de que já não tem setas na sua aljava, mas mesmo assim encontrar‑nos‑emos duma forme ou doutra.
‑ Páre ‑ interpôs Ralph quando Snawley ia para falar. Vamos acabar com este assunto e não desperdiçar palavras tolamente. Este é o seu filho, como pode provar... e o senhor, Mr. Squeers, conhece este rapaz como sendo o mesmo que lhe foi entregue há muitos anos sob o nome de Smike?
‑Conheço? Não conheço? ‑ replicou Squeers.
‑ Bem ‑ disse Ralph ‑ poucas mais palavras serão suficientes aqui. Teve um filho da sua primeira mulher, Mr. Snawley?
‑Tive ‑ respondeu o interpelado. ‑ E ele aqui está!
‑ Mostraremos isso agora ‑ continuou Ralph. ‑ O senhor e a sua esposa estavam separados, e o senhor deixou o rapaz a cargo dela, quando tinha um ano. Recebeu uma comunicação dela, quando viviam separados havia um ou dois anos, dizendo que o rapaz morrera e o senhor acreditou?
‑É certo, acreditei! ‑ retorquiu Snawley. ‑ Oh, a alegria de...
‑Seja razoável, sir ‑ admoestou Ralph. ‑ Isto é um negócio e os transportes prejudicam‑no. Esta sua esposa morreu, pouco mais ou menos, há um ano e meio, num lugar obscuro, onde era governanta duma familia. isso é assim?
‑ Absolutamente ‑ confirmou Snawley.
‑Tendo-lhe escrito no leito da morte uma carta, ou confissão, acerca deste rapaz, a qual estando dirigida só a si, apenas chegou ao seu poder, e isto por via indirecta, há poucos dias?!
‑Perfeitamente ‑ ratificou Snawley. ‑ Verdadeiro em todos os pormenores, sir.
‑E esta confissão ‑ prosseguiu Ralph ‑ era para dizer que a morte dele fora uma invenção para o ferir a si, fazendo parte dum sistema de aborrecimentos adoptados por ambos, e que o rapaz vivia, mas era fraco e de intelecto imperfeito, por isso ela mandara‑o para uma pessoa de confiança para uma escola barata em Yorkshire, a qual pagara durante alguns anos, mas que, sendo pobre e estando longe, foi gradualmente desamparando-o, pelo que pedia perdão?
Snawley acenou com a cabeça e limpou os olhos, primeiro levemente, por fim com violência:
‑A escola era de Mr. Squeers - continuou Ralph ‑ o rapaz foi deixado com o nome de Smike; todas as descrições foram inteiramente dadas, as datas condizem exactamente com os livros de Mr. Squeers. Mr. Squeers alojava‑se em sua casa nessa altura. O senhor tem outros dois rapazes na escola dele; o senhor comunicou‑lhe toda a descoberta, trouxe‑me como a pessoa que lhe recomendara o ladrão desta criança, e eu trouxe-o aqui. assim?
‑O senhor fala como um livro aberto, sár, e dentro dele só há a verdade ‑ confirmou Snawley.
‑Estes são os seus documentos ‑ disse Ralph, tirando‑os da sua algibeira. ‑ Os certificados do seu primeiro casamento e do nascimento do rapaz, assim como as duas cartas da sua esposa e todos os outros papéis que podem confirmar estas declarações, directamente ou por tácita interferência, estão aqui. não estão?
‑ Todos, sir.
‑E não se importa que sejam vistos aqui para que esta gente se convença do seu direito em fazer a reclamação imediatamente, à face da lei e da razão, e poder ter a ingerência sobre o seu filho sem mais demora? Estou dentro do seu pensamento?
‑ Eu não o diria melhor, sir.
‑ Então ‑ continuou Ralph, atirando com os documentos para cima da mesa. ‑ Deixe-os examinarem, se quiserem, e como eles são papéis originais, recomendolhe para ficar perto, enquanto os examinam, se não, corre o risco de perder alguns.
Com estas palavras Ralph sentou‑se e, comprimindo os lábios, que estavam divididos por um leve sorriso, cruzou os braços e olhou pela primeira vez para o sobrinho. Nicholas, aguilhoado pelo sarcasmo, dardejou‑lhe um olhar indignado, mas reprimindo‑se o melhor que pôde, começou a fazer um cuidadoso exame dos documentos, ajudado por John Browdie. Não havia dúvidas. Os certificados estavam assinados, as cartas pareciam verdadeiras e havia outros papéis corroborativos sobre os quais era igualmente difícil levantar uma questão.
‑Querido Nicholas ‑ sussurrou Kate que tinha estado a olhar ansiosamente por cima do ombro dele ‑ isto é realmente assim: esta declaração é verdadeira?
‑Receio que sim ‑ respondeu Nicholas. ‑ O que diz, John?
John coçou a cabeça e abanou‑a, mas não disse nada.
‑Há-de observar, ma'am ‑ disse Ralph, dirigindo-se a Mrs. Nickleby ‑ que sendo este rapaz menor e duma cabeça não muito forte, podíamos ter vindo esta noite armados com os poderes da lei e secundados por uma tropa dos seus sequazes.
Mas procedi assim, ma'am, por respeito pelos seus sentimentos. e de sua filha.
‑Você mostrou já bem o seu respeito pelos sentimentos dela ‑ comentou Nicholas, puxando a irmã para si.
‑Obrigado ‑ replicou Ralph. ‑ A sua observação é na verdade um elogio, sir.
‑ Bem ‑ disse Squeers. ‑ O que se faz agora? Os cavalos do trem constipam‑se se não pensamos em nos ir embora; há um deles que é capaz de abrir a porta com os espirros. Qual é a ordem do dia... hein? O Mister Snawley vai connosco?
‑Não! não! não! ‑ protestou Smike, agarrando-se a Nicholas. ‑ Não! Suplico que não! Não saio daqui! Não! não!
‑Isto é uma coisa cruel! ‑ observou Snawley, olhando para os amigos, pedindo ajuda. ‑ Deitam os pais um filho ao mundo para isto?
‑Põem os pais um filho no mundo para aquilo? ‑ perguntou John Browdie, apontando para Squeers.
‑ Não se importe ‑ retorquiu este cavalheiro, batendo no nariz com ar de zombaria.
‑ Não se importe! ‑ repetiu John. ‑ Não, nem tu te importas com nenhum rapaz, mestre‑escola. É por ninguém se importar, que andam por cá homens como tu. Para onde achas melhor ir? Não venhas atropelar‑me!
Juntando a acção à palavra, John Browdiy meteu o cotovelo ao peito de Mr. Squeers, que avançava para Smike com tanta destreza, que o mestre‑escola vacilou e caiu sobre Ralph Nickleby e, não podendo suster‑se, atirou com este para fora da cadeira e tropeçou nele. Este procedimento foi o sinal para alguns procedimentos muito decisivos. No meio de grande barulho, ocasionado pelas súplicas e rogos de Smike, os gritos e exclamações das mulheres e a veemência dos homens, tentaram levar o filho perdido, pela violência. Squeers começava já a puxá‑lo quando Nicholas, que até então estivera evidentemente indeciso sobre a forma de agir, o agarrou pela gola e o abanou de tal forma que os dentes bateram uns nos outros, escoltando-o delicadamente até à porta, que fechou sobre ele, depois de o atirar para o corredor.
‑ Agora ‑ ordenou Nicholas aos outros dois ‑ tenham a bondade de seguir o vosso amigo.
‑ Eu quero o meu filho! ‑ disse Snawley.
‑O seu filho ‑ replicou Nicholas ‑ escolhe por si. Es colhe ficar aqui e ficará.
‑ Não mo entrega? ‑ perguntou Snawley.
‑ Não o entrego contra a sua vontade, para ser vítima da brutalidade a que você o confiou, como se fosse um cão ou um rato ‑ respondeu Nicholas.
Venha com o castiçal Mister Nickleby ‑ gritou Squeers pela fechadura ‑ e tragam o meu chapéu, a não ser que ele queira roubá‑lo.
‑ Na verdad tenho muita pena ‑ declarou Mrs. Nickleby, que antes, enquanto Kate muito pálida, mas perfeitamente calma, se conservava o mais possível perto do irmão, estivera chorando e mordendo os dedos com Mrs. Browdie. ‑ Tenho na verdade muita pena de tudo isto e não sei o que há de melhor a fazer. Nicholas deve ser o melhor juiz e espero que seja. Decerto é crueldade reter os filhos dos outros, embora o jovem Mr. Snawley seja uma criatura tão útil e cheio de boa vontade quanto é possível, mas se se pudesse arrumar tudo duma maneira desejável. se Mr. Snawley mais velho, se comprometesse a pagar alguma coisa pela sua pensão, para podermos dar‑lhe peixe duas vezes por semana e um pudim outras duas vezes ou uns bolinhos de massa, ou qualquer outra coisa no généro, penso que era muito satisfatório e agradável para todas as pártes.
Este compromisso que foi proposto com abundância de lágrimas e de suspiros não fez o efeito desejado por ninguém o ter ouvido e a pobre Mrs. Nickleby começou, por isso; a esclarecer Mrs. Browdie das vantagens deste projecto.
‑Smike ‑ disse Snawley, dirigindo-se ao aterrado Smike - és um rapaz desnaturado e ingrato. Não me permites amar‑te quando quero. Não queres vir para casa. pois não?
‑Não! Não! Não! ‑ gritou Smike, recuando.
‑ Ele nunca amou pessoa alguma ‑ mugiu Squeers através do buraco da fechadura. ‑ Ele nunca gostou de mim, nunca amou Wachford, que é um querubim. Como se pode esperar que ame o pá? Ele nunca amará o pai. Não sabe o que é ter pai. Não compreende, não está na sua mão.
Mr. Snawley olhou com fríeza para o filho durante um bom minuto e depois, cobrindo os olhos com a mão e, levantando mais uma vez o chapéu ao ar, pareceu profundamente deplorar a sua negra infelicidade, quando tirou a mão dos olhos, agarrou o chapéu de Mr. Squeers e, pondo‑o debaixo dum braço e o dele debaixo do outro, saiu triste e vagarosamente.
‑O seu romance, sir ‑ disse Ralph, detendo‑se um momento ‑ está destruído. Já não é um desconhecido, não é um descendente perseguido dum homem de alta esfera mas o fraco e imbecil filho dum pobre e pequeno comerciante. Veremos como a sua simpatia se funde perante a crua realidade do facto.
‑ Verá ‑ respondeu Nicholas, apontando‑lhe a porta.
‑E acredite ‑ acrescentou Ralph ‑ que nunca supus que o entregasse esta noite. Altivez, teimosia, reputação de belos sentimentos eram todos contra isso. Há‑de ser humilhado, abatido, esmagado, sir! A ansiedade e as despesas da justiça na sua forma mais opressiva, e uma tortura de todas as horas, com os seus dias enfadonhos e as noites sem dormir. pôlo-ão à prova e quebrarei o seu altivo espírito. E quando fizer desta casa um inferno e sentir estas provas por causa desse miserável objecto como sei que sentirá, e aquelas que fazem agora de si um jóvem herói, ajustaremos velhas contas para ver quem é o devedor e aparecer o melhor perante o mundo.
Ralph Nickleby desapareceu, mas Mr. Squeers, que ouvira um bocado deste discurso de encerramento e estava impotente para desferir a sua maldade, não pôde deixar de voltar à porta da sala e de fazer uma dúzia de cabriolas com vários esgares e horriveis caretas, expressivas da sua triunfante confiança na queda e derrota de Nicholas. Tendo concluído esta dança de guerra, Mr. Squeers seguiu os amigos e a família ficou a meditar nas recentes ocorrências.
Esclarece-se o amor de Nicholas, mas se é para bem ou para mal, não se sabe
Depois da consideração da posição triste e embaraçosa em que ficou colocado, Nicholas decidiu não haver tempo a perder para a relatar francamente aos dois amáveis irmãos. Aproveitando a primeira ocasião de estar só, no dia seguinte, com Mr. Charles Cheeryble, contou‑lhe a pequena história de Smike e modesta, mas firmemente, exprimiu‑lhe a esperança de que ele o defenderia por ter interferido entre o filho e o pai.
‑Tão profundamente parecia ser o horror do homem - continuou Nicholas ‑ que me custa a crer que ele fosse realmente seu filho. A Natureza não parece ter‑lhe posto no peito sentimento de afeição por ele.
‑Meu caro senhor ‑ respondeu o irmão Charles ‑ cai no engano muito vulgar de imputar à Natureza tais assuntos, com os quais ela não tem a mais pequena ligação. Os homens falam da natureza como uma coisa abstracta e perdem de vista o que é natural. Aqui está um pobre rapaz, que nunca sentiu a carícia dum pai e mal conheceu em toda a sua vida outra coisa além de sofrimento e tristeza, apresentado a um homem que lhe declara ser seu pai e cujo primeiro acto é significar‑lhe a sua intenção de pôr fim ao seu curto termo de felicidade, afastando‑o do único amigo que teve: o senhor. Se a Natureza, num tal caso pusesse no peito do rapaz um secreto incitamento que o atirasse para o pai e o afastasse de si, seria mentirosa e idiota.
Nicholas escutava, por ver que o velho senhor falava tão calorosamente e, com a esperança dele dizer alguma coisa mais sobre este mesmo propósito.
‑O mesmo engano apresenta‑se‑me duma forma ou doutra, a cada passo ‑ prosseguiu o irmão Charles. ‑ Pais que nunca mostraram o seu amor, queixando‑se da falta da natural afeição dos filhos, filhos que nunca manifestaram os seus deveres, queixam‑se da falta do sentimento natural dos pais, os legisladores, que acham ambos tão miseráveis pelas suas afeições por nunca terem tido o suficiente sol da vida para
se desenvolverem, berram as suas moralidades para os pais e para os filhos, e gritam que os verdadeiros laços da Natureza foram desprezados. As afeições naturais e instintos, meu caro senhor, são as obras mais belas do Todo Poderoso, mas como outras belas obras suas, devem ser cultivadas e exaltadas. Desejava que pudéssemos considerar isto e lembrar as obrigações naturais um pouco mais na ocasião precisa, e falar delas um pouco menos na ocasião indevida.
Depois disto, o irmão Charles, que falara com grande calor, parou para arrefecer um pouco e continuou então:
‑Parece‑me que está surpreendido, meu caro senhor, por ter escutado a sua história com tão pouco espanto. Isto explica‑se facilmente. o seu tio esteve aqui esta manhã.
Nicholas corou e recuou um passo ou dois.
‑ Sim ‑ continuou o velho senhor, batendo enfaticamente na secretária ‑ aqui. neste aposento. Não quís escutar, nem a razão, nem os sentimentos ou justiça. O irmão Ned foi duro para com ele. o irmão Ned, sir, da maneira como estava era capaz de estilhaçar uma pedra da rua.
‑ Ele veio para. ‑ começou Nicholas.
‑ Para se queixar de si ‑ interrompeu o irmão Charles - envenenar‑nos os ouvidos com calúnias e falsidades, mas veio infrutiferamente e foi‑se embora com algumas verdades salutares. O irmão Ned, meu caro Mr. Nickleby, é um perfeito leão. Assim como Tim Linkinwater. Tim é um leão. Tim foi o primeiro a fazer‑lhe face.
‑Como posso alguma vez agradecer‑lhe todas as finezas com que me obriga todos os dias? ‑ perguntou Nicholas.
‑Guardando silêncio sobre o assunto, meu caro senhor ‑ replicou o irmão Charles. ‑ Far‑se‑á justiça, ou, pelo menos, não será lesado. Ninguém que lhe pertença, será prejudicado. Não tocarão num cabelo da sua cabeça, na do rapaz, na da sua mãe, nem da sua irmã. Eu disse isto, o irmão Ned disse isto a Tim Linkinwater disse isto! Todos nós o dissemos e todos nós cumpriremos. Vi o pai ‑ se ele é o pai! ‑ e suponho que seja É um bárbaro e um hipócrita, Mr. Nickleby. Disse-lhe, O senhor é um bárbaro, e estou contente por lhe ter dito que é um bárbaro... Na verdade muito contente!
Nesta altura o irmão Charles estava num tal estado de veemente indignação que Nicholas pensou poder aventurar‑se em dar uma palavra, mas na ocasião em que se preparava para o fazer, Mr. Cheeryble pôs‑lhe suavemente a mão no ombro e apontou para uma cadeira.
‑O assunto acabou por agora ‑ declarou, limpando a cara. ‑ Não se revive nem por uma simples palavra. Vou falar dum outro caso. um caso confidencial, Mr. Nickleby. Temos de ser frios outra vez, temos de ser frios.
Depois de duas ou três voltas em roda do aposento, recuperou o lugar e, puxando a cadeira para mais perto daquela onde Nicholas estava sentado, disse:
‑Vou empregá‑lo, meu caro senhor, numa missão confidencial e delicada.
‑O senhor podia empregar um mensageiro muito mais competente, sir ‑ declarou Nicholas ‑ mas mais fiel e zeloso, posso confiadamente dizê‑lo, não podia encontrar.
‑ Disso tenho eu a certeza ‑ replicou o irmão Charles. Tenho a consciência de que assim é, por isso vou‑lhe dizer que o objecto da sua missão é uma jovem senhora.
‑ Uma jovem senhora, sir! ‑ exclamou Nicholas, a tremer no seu ardor de ouvir mais.
‑Uma jovem senhora muito linda ‑ disse Mr. Cheeryble gravemente.
‑Suplico-lhe que continue, sir ‑ pediu Nicholas.
‑Estou a pensar como fazê‑lo ‑ disse o irmão Charles tristemente, como pareceu ao seu jovem amigo. ‑ O senhor, acidentalmente, viu a jovem senhora, numa manhã, neste aposento, num estado de desmaio. Lembra-se? Talvez se tenha esquecido.
‑Oh, não! ‑ respondeu Nicholas rapidamente. ‑ Lembro‑me muito bem.
‑Ela é a senhora de quem falo ‑ declarou o irmão Charles.
Como o famoso papagaio, Nicholas pensou um bom bocado, mas foi incapaz de proferir uma palavra.
‑ Ela é filha duma senhora ‑ continuou Mr. Cheeryble - que, quando era também uma linda rapariga e eu muitos anos mais novo. ‑ parece uma palavra estranha para se proferir agora ‑ a amava ternamente. Talvez se ria de ver um homem de cabelos brancos falar em coisas destas; não me ofende, pois quando era jovem como o senhor, ter‑me-ia atrevido a fazer o mesmo.
‑Na verdade não penso nisso ‑ protestou Nicholas.
‑O meu querido irmão Ned ‑ prosseguiu Mr. Cheeryble ‑ estava para casar com a irmã dela, mas morreu. Ela também morreu e há muitos anos. Casou à sua escolha; e desejava poder acrescentar que o resto da sua vida foi tão feliz como, Deus sabe, eu sempre orei para que fosse!
Fez‑se um curto silêncio, que Nicholas não se esforçou por quebrar.
‑Se as piores calamidades caíssem tão levemente sobre a cabeça dele como na profundíssima verdade do meu coração, como sempre esperei que acontecesse, por amor dela, a sua vida teria sido de paz e felicidade ‑ continuou o senhor calmamente. ‑ Bastará dizer que não foi este o caso, pois ela não foi feliz por terem caído em complicadas aflições e dificuldades, até ela vir, doze meses antes de morrer apelar para a minha velha amizade tristemente mudada, abatida pelo sofrimento e maus tratos, e doente do coração. O marido logo se aproveitou do dinheiro que, para lhe dar a ela uma hora de paz de espírito, eu faria correr tão livremente como a água, mas, pelo contrário, frequentemente mandava buscar mais e contudo, mesmo quando o prodigalizava, fez dos pedidos da esposa a base de insultos e escárnios, protestando saber que ela pensava com amargo remorso na escolha que tinha feito, tendo casado com ele por interesse e vaidade, por ser um jovem alegre, com grandes amigos à sua volta quando ela o escolheu para marido, e descarregando sobre a infeliz, pelos meios mais injustos e crueis, a amargura desse desapontamento. Nesse tempo esta jovem era uma criança. Nunca a tornei a ver se não naquela manhã em que o senhor a viu também, mas o meu sobrinho Frank.
Nicholas deu um pulo e, pedindo desculpa pela interrupção, pediu ao seu protector para continuar.
‑O meu sobrinho Frank, dizia eu, encontrou‑a por acaso e perdeu‑a de vista quase um minuto depois, nos dois dias seguintes ao seu regresso a Inglaterra. O pai está num lugar secreto, para evitar os credores, reduzido entre a pobreza e a doença, a morrer dum momento para o outro, e ela, uma criança ‑ podíamos quase pensar, se não conhecêssemos a sabedoria de todos os decretos do Céu ‑ que teria feito a felicidade dum homem melhor, afronta firmemente as privações, degradações e tudo muito mais terrível para uma criatura de coração jovem e delicado, com o fito de o amparar. Ela é ajudada, sir ‑ disse o irmão Charles ‑ nestes revezes por uma criatura fiel que foi em velhos tempos uma pobre cozinheira da família, sendo depois a sua única criada, mas que podia ter sido, pela verdade e fidelidade do seu coração, que podia ter sido, a esposa de Tim Linkinwater, sir!
Prosseguindo nos seus elogios sobre a pobre criada com tal energia e prazer que as palavras não podem descrever, o irmão Charles encostou‑se à cadeira e fez o resto da sua narração com grande tranquilidade. Em resumo: resistindo orgulhosamente a todas as ofertas de ajuda e socorro permanentes dos amigos da falecida mãe, por serem condicio nadas ao abandono do seu miserável pai, que não tinha amigos e a odiava, a jovem mantinha‑o com o trabalho das suas mãos.
‑Se fui pobre ‑ disse o irmão Charles com os olhos a cintilarem ‑ se fui pobre, Mr. Nickleby, meu caro senhor; o que graças a Deus já não sou, teria recusado a mim próprio
‑ decerto qualquer pessoa o faria em tais circunstâncias ‑ as mais comuns necessidades da vida para a ajudar. Mas assim a tarefa é difícil. Se o pai morresse nada seria mais fácil, porque então compartilharia e alegraria a casa que o irmão Ned e eu pudéssemos ter, como se fosse nossa filha, ou irmã. Mas ele ainda vive. Ninguém lhe pode valer, o que tem sido tentado milhares de vezes; ele não foi abandonado de todos sem uma boa causa, eu sei.
‑ Ela não pode ser persuadida a. ‑ Nicholas hesitou depois de ter ido longe demais.
‑ A deixá‑lo? ‑ perguntou o irmão Charles. ‑ Quem pode solicitar a um filho abandonar o pai? Foram feitas instâncias
junto dela para aceitar esta condição, limitada a vê‑lo ocasionalmente, não por mim, mas sempre com o mesmo resultado.
‑Ele é bom para ela? ‑ interrogou Nicholas. ‑ Retribui a sua afeição?
‑Verdadeira amabilidade, considerando que não está na sua natureza ‑ respondeu Mr. Cheeryble. ‑ Creio que ele a trata com a amabilidade que sabe. A mãe era uma criatura delicada, amorosa, confiante, e embora ele a magoasse desde o casamento até à morte, tão cruel e maldosamente como nenhum homem ainda fez, ela nunca deixou de o amar. Recomendou-o no leito de morte ao cuidado da filha, e a filha nunca o esqueceu, nem o esquecerá.
‑O senhor tem alguma influência sobre ele? ‑ inquiriu Nicholas.
‑Eu, meu caro senhor! Sou o último homem da terra a tê‑la. Tal é o ciúme e o ódio que me tem, que se soubesse a filha ter‑me aberto o coração, tornar‑lhe‑ia a vida miserável com censuras. Contudo ‑ esta é a inconstância e o egoísmo do seu carácter - se soubesse que todo o dinheiro procedia de mim, não renunciaria a um dos seus desejos.
‑Um autêntico malandro! ‑ comentou Nicholas, indignado.
‑Não devemos usar termos feios ‑ observou o irmão Charles numa voz doce ‑ mas acomodar‑nos às circunstâncias em que a jovem senhora está colocada. Tal ajuda, como a persuadi a aceitar, fui obrigado a dividi‑la a seu veemente pedído, em pequeníssimas porções para ele não achar que o dinheiro era facilmente adquirido e se não acostumar a desperdiçá‑lo mais. Ela veio cá várias vezes, secretamente e à noite, para receber este pouco e não posso suportar que as coisas caminhem assim, Mr. Nickleby. realmente não posso.
A pouco e pouco Nicholas soube então como os dois gémeos, depois de terem feito vários planos, chegaram à conclusão de que o melhor seria fingir haver um comprador para os trabalhos da jovem, pagando‑os por alto preço e mantendo constantes pedidos. Para isso, era necessário aparecer alguém e eles lembraram‑se de Nicholas, como representante do comprador.
‑Ele conhece‑me ‑ disse o irmão Charles ‑ e conhece o meu irmão Ned. Nenhum de nós poderia desempenhar o papel. Frank é um belo rapaz, mas receamos que ele possa ser um pouco volúvel e inconsiderado neste caso. em resumo, que possa ser susceptível demais, por ela ser uma linda cria tura, sir, tal como a sua pobre mãe foi, e enamorar‑se dela antes de conhecer bem as suas inclinações, e dar‑lhe pesar e tristeza quando a queremos tornar gradualmente feliz. Ele tomou um interesse extraordinário pela felicidade dela quando a encontrou pela primeira vez e colhemos, pelas informações tiradas dele, que foi ela quem concorreu para aquela zaragata em que o senhor e ele se encontraram pela primeira vez.
Nicholas tartamudeou que já suspeitava ser assim, explicando‑lhe a razão de lhe ter isto ocorrido e descreveu onde e quando vira a jovem senhora pela primeira vez.
‑Bem, então vê que ele não poderia fazê‑lo. Tim Linkinwater está fora da questão; é um rapaz tremendo, que nunca poderia conter‑se e altercaria com o pai antes de estar cinco minutos com ele. Não sabe quem é Tim, sir, quando os seus sentimentos são fortemente excitados. é terrível, sir. Em si podemos depositar a mais estrita confiança. Em si vimos ‑ ou, pelo menos, eu vi, e é o mesmo, pois não há diferença entre mim e o meu irmão, excepto ser ele a mais bela criatura que há no mundo ‑ em si, vimos virtudes e afeições e delicadeza de sentimentos, que o designam exactamente para uma tal missão.
‑A jovem, sir ‑ perguntou Nicholas, tão embaraçado que sentia a maior dificuldade em dizer alguma coisa ‑ é. é participante do inocente engano?
‑ Sim, sim ‑ retorquiu Mr. Cheeryble ‑ pelo menos sabe que o senhor vai da nossa parte, mas não sabe, que não ven demos estas pequenas produções compradas de vez em quando e talvez se o senhor manobrar isto muito bem, é possivel que ela venha a acreditar que nós. que nós temos lucro com elas. Hein?. hein?
Nesta sincera e afabilíssima felicidade, o irmão Charles era tão feliz com a possibilidade da jovem crer que não lhe devia nenhuma obrigação, que Nicholas não emitiu qualquer dúvida a tal respeito.
Durante todo este tempo Nicholas teve na ponta da língua uma confisssão que impedira o emprego do sobrinho nesta missão e o livraria, também, dela. Mas depois de lutar contra este impulso pensou em guardar o segredo no seu peito. Por que vou criar dificuldades na execução deste projecto caridoso e bem intencionado? Não tem este excelente homem direito aos meus melhores e mais cordiais serviços e de haver qualquer consideração para me deter no cumprimento deles? Fazendo a si próprio estas perguntas mentalmente, Nicholas respondeu com grande energia, Não!, e persuadindo‑se ser o mártir mais consciencioso e nobre, resolveu fazer o que, se tivesse examinado o seu coração um pouco mais cuidadosa mente, saberia que não poderia fazer.
Mr. Cheeryble não suspeitando, decerto, que estas reflexões passassem pela cabeça do seu jovem amigo, continuou a dar instruções para a sua primeira visita na manhã seguinte e ficando tudo combinado, Nicholas foi à noite para casa, muito pensativo.
O lugar para onde Mr. Cheeryble o mandara era uma fila de casas pobres e não muito asseadas, situadas dentro das Rules da King's Bench Prison e não muito longe do obelisco de St. George's Fields. Rules é um lugar junto à prisão, onde se goza uma certa liberdade, e compreendendo uma dúzia de ruas, nas quais os devedores podem levantar dinheiro, pagando grandes juros, dos quais os credores não logram qualquer lucro, permitindo-se‑lhes residir, pelas sábias provisões das mesmas leis que deixam no cárcere o devedor que não pode levantar dinheiro, sem alimento, alojamento, ou aquecimento. Nicholas dirigiu os passos ‑ sem se deixar perturbar com assuntos destes ‑ para a fila de casas indicada por Mr. Cheeryble. Depois de atravessar uns arredores muito porcos e poeirentos chegou, com o coração a palpitar, a outras com uns pequenos jardins à frente, a maior parte descuidados, servindo apenas para recolher a poeira até que o vento, vindo da esquina, varresse de novo a rua. Abrindo a descon juntada cancela, Nicholas bateu à porta da rua com mão hesitante.
Por fora era, na verdade, uma casa miserável, com as janelas da sala muito pequenas, uma fila de pequenas gelosias e cortinas muito sujas, nada fazendo prever o seu interior, onde havia uma gasta carpete na escada e um tapete gasto no corredor; um cavalheiro fumava na sala, enquanto a dona da casa estava atarefada a colar os fragmentos desconjuntados duma mesa de cabeceira. Nicholas teve muito tempo para fazer estas observações enquanto o rapaz, que fazia os recados, foi chamar a criada de Miss Bray, que apareceu, por fim, mandando-o subir, o que ele fez com grande nervosismo.
Subidas as escadas, entrou num aposento da frente, onde, sentada a uma pequena mesa da janela, sobre a qual se viam diversos materiais de desenho, estava a linda rapariga que tanto lhe ocupava os pensamentos, parecendo mais bonita do que nunca. Mas como as graças e elegâncias dispersas neste aposento pobremente mobilado tocaram no coração de Nicholas! Flores, plantas, pássaros, a harpa, o velho piano, cujas notas tinham soado em tempos passados! Sentiu como se o sorriso do bem estivesse naquela pequena câmara.
Não se suponha que ele tenha visto tudo num relance, pois só depois de lhe ter atraído a atenção pela impaciência com que se mexeu na cadeira, é que ele notou um homem doente, encostado a umas almofadas. Teria cinquenta anos, mas tão emaciado que parecia mais velho. As feições apresentavam uns restos de beleza, onde as paixões deixaram vincos. Os seus olhares indicavam mau génio, os seus membros e o tronco eram literalmente a pele e o osso, mas havia nos seus olhos a antiga viveza e, parecendo animar‑se de novo, bateu, impacientemente, no chão com uma delgada bengala por duas ou três vezes, chamando a filha pelo nome.
‑ Madeline, quem é este? O que querem os outros daqui? Quem disse a um estranho que queríamos ser vistos? O que é isto?.
‑ Creio. ‑ começou a jovem, inclinando a cabeça com uma certa confusão, em resposta ao cumprimento de Nicholas.
‑Tu estás sempre a crer ‑ retorquiu o pai. ‑ O que é isto?
Nesta ocasião Nicholas já recuperara a presença de es pírito suficiente para falar, por isso disse ter ido buscar um par de biombos feitos à mão e de veludo pintado, os quais era preciso serem do gosto mais apurado possível, não con tando, para isso, nem o tempo, nem a despesa. Vinha também pagar dois desenhos, com muitos agradecimentos e, avançando para a mesa, pôs em cima dela uma nota, metida num sobrescrito selado.
‑Vê se o dinheiro está certo, Madeline! ‑ recomendou o pai.
‑ Tenha a certeza que está, papá.
‑ Deixa‑me ver ‑ ordenou Mr. Bray, pondo a mão de fora e abrindo e fechando os ósseos dedos com impaciência. Como podes dizer isso Madeline. ter a certeza. Como se pode ter a certeza. cinco libras. bem, isto está certo?
Absolutamente ‑ respondeu Madeline, inclinando-se para ele. Estava tão atarefada a arranjar as almofadas, que Nicholas não lhe pôde ver a cara, mas quando ela se inclinou teve a impressão de lhe ver uma lágrima a cair.
‑Toca, toca a campainha ‑ disse o doente com a mesma nervosa veemência, apontando para ela com a mão trémula. ‑ Dize‑ lhe para trocar isto. para me comprar o jornal. trazer‑me uvas. outra garrafa de vinho como a da semana passada. e. e. esqueci‑me metado do que preciso, mas ela pode sair outra vez. Deixa-a ir buscar isso primeiro. Depressa, depressa, Madeline, meu amor! Bom Deus, como és vagarosa!
Ele não se lembra nada do que ela precisa!, pensou Nicholas.
Talvez alguma coisa do que pensava se traduzie nas feições por que viu o doente se voltar para ele com grande aspereza, perguntando‑lhe se esperava pelo recibo.
‑ Não é importante ‑ respondeu Nicholas.
‑Não é importante! O que quer dizer, sir? ‑ foi a ácida réplica. ‑ Não é importante! Traz o seu miserável dinheiro como um favor ou uma prenda ou como um meio de negócio e recompensa por um valor recebido, não apreciando o tempo e o gosto com que se trabalha e pensa desperdiçar o seu dinheiro. Sabe que está a falar com um cavalheiro. sir, que podia comprar duma só vez cinquenta homens como você e tudo quanto tem? O que quer dizer?.
‑Quis simplesmente dizer que, como hei‑de ter transacções com esta senhora, se ela mo permitir, não quero maçá‑la com tais formalidades ‑ respondeu Nicholas.
‑Então eu quero dizer, se dá licença, que teremos tantas formalidades quantas quisermos! ‑ replicou o pai. ‑ A minha filha, sir, não precisa das suas gentilezas, ou seja de quem for. Tenha a bondade de limitar as suas acções estritamente aos negócios e não ir mais além. Todos os comerciantes miseráveis começam agora a apiedar‑se dela? Muito lindo! Madeline, minha querida, dá‑lhe um recibo e lembra-te de fazer sempre isso!
Enquanto ela fingia escrevê‑lo e Nicholas ruminava sobre o extraordinário carácter, que assim se apresentava à sua observação, o inválido, que parecia às vezes sofrer grandes dores no corpo, caíu para trás na cadeira e deixou escapar uma fraca queixa por a rapariga ter saído havia uma hora e toda a gente conspirar para o irritar.
‑ Quando ‑ perguntou Nicholas, agarrando no bocado de papel ‑ quando. posso voltar?
Isto foi dirigido à filha, mas o pai respondeu imediatamente:
‑Quando lhe for pedido, sir, e não antes. Não se apresse, nem se incomode. Madeline, minha querida, quando pode voltar esta pessoa?
‑ Oh, não daqui a muito tempo. daqui a três ou quatro semanas. não é necessário. Posso governar‑me sem ele - retorquiu a jovem com grande veemência.
‑ O que vamos fazer sem ele? ‑ instou o pai, não falando em voz alta. ‑ Três ou quatro semanas, Madeline! Três ou quatro semanas!
‑ Então mais cedo. mais cedo, se faz favor ‑ disse a jovem, voltando‑se para Nicholas.
‑ Três ou quatro semanas! ‑ murmurou o pai. ‑ Made line, o que diabo. chega para três ou quatro semanas!
‑ É muito tempo, ma'am! ‑ lembrou Nicholas.
‑ Acha? ‑ replicou o pai, zangado. ‑ Se escolher o peditório, sir, e me baixar a pedir a ajuda de gente que desprezo, três ou quatro semanas não seriam muito tempo... Compreenda sir, que isso é se eu escolhesse a dependência, mas como não escolho, pode vir daqui a uma semana!
Nicholas curvou‑se reverentemente perante a jovem e retirou‑se, ponderando na ideia da independência de Mr. Bray e esperando que houvesse poucos espíritos com tal independência, amassados à argila mais baixa da humanidade. Quando descia as escadas ouviu uns passos ligeiros e voltando‑se viu a jovem olhá‑lo timidamente, parecendo hesitar se o devia chamar, ou não. A melhor forma de arrumar a questão era voltar imediatamente e foi o que Nicholas fez.
‑ Não sei se faço bem em lhe pedir, sir ‑ disse Madeline apressadamente ‑ mas suplico. para não contar aos queridos amigos da minha pobre mãe o que se passou aqui hoje. Ele tem sofrido muito e está pior esta manhã. Peço-lhe, sir, é um favor para mim!
‑ A senhora só tem que manifestar o seu desejo ‑ replicou Nicholas com fervor‑ e eu exponho a minha vida para o cumprir.
‑ Fala precipitadamente, sir.
‑ Verdadeira e sinceramente! ‑ confessou Nicholas com os lábios a tremerem ao formar as palavras. ‑ Como nenhum homem falou ainda. Não tenho habilidade para mascarar os meus sentimentos e, se tivesse,não podia esconder o meu coração. Querida ma'am, como conheço a sua história e sinto como os anjos que devem ouvir e ver tais coisas, peço-lhe para crer que morreria para a servir!
A jovem voltou a cabeça e desfez‑se em lágrimas.
‑ Perdoe‑me ‑ pediu Nicholas com respeitoso ardor ‑se por ter falado demasiado, ou se ultrapassei a confiança que em mim depositaram. Mas não posso deixá‑la como se o meu interesse e simpatia expirassem com a comissão. Sou seu fiel servidor, humildemente devotado a si, desde esta hora. Se quis dizer mais ou menos do que isto seria indigno da estima de quem me enviou e falso à natureza que sugerem as honestas palavras que profiro.
Ela fez um gesto com a mão, pedindo‑lhe para se ir embora, mas não respondeu uma palavra. Nicholas não pôde dizer mais, retirou‑se silenciosamente e assim terminou a sua primeira entrevista com Madeline Bray.
Mr. Ralp Nickleby tem confidência com um outro velho amigo; fazendo um projecto que promete ser bom para ambos.
‑ Passam três quartos ‑ resmungou Newman Noggs, escutando os sinos de uma igreja vizinha ‑ e o meu jantar é às duas. Ele não faz de propósito. Tem isso como regra. É tal qual ele!
Era no seu pequeno escritório, parecido com uma caverna, e no alto do banco que Newman tinha este solilóquio, o qual se referia a Ralph Nickleby.
Ele nunca tem fome, a não ser de dinheiro. Adoçando um tanto um tanto o seu bom humor pela visão de Rálph Nickleby a engolir à força uma moeda de cinco xelins, Newman tirou sossegadamente da secretária uma daquelas garrafas portáteis, correntemente designadas por pocket‑pistols, e chocalhando-a junto do ouvido, de modo a produzir um som agitado, muito fresco e agradável de escutar, suavizou as feições e tomou um golo. Colocando a rolha, lambeu os beiços duas ou três vezes com um ar de grande prazer, mas tend-os evaporado nesta altura o gosto do líquido, repetiu a operação.
‑ Cinco para as três ‑ rosnou Newman ‑ não se pode exigir mais; tive o meu pequeno almoço às oito, e que pequeno almoço! e a minha verdadeira hora de jantar é às duas. E se tivesse em casa, a perder‑se durante todo este tempo, um lindo bocado de carne assada quente. como sabia ele que eu não tinha? Não saia enquanto eu não vier, nnão saia enquanto eu não vier, todos os dias por que se vai embora à minha hora de jantar para depois. hein? Não sabe que isso não passa dum. agravo. hein?
Estas palavras,embora proferidas em voz alta,eram apenas,dirigidas ao ar. O relato dos seus males pareceu,contudoter tido o efeito de tornar Newman Noggs desesperado, pois achatou o velho chapéu na cabeça e, calçando as luvas, declarou com grande veemência,que sucedesse o que sucedesse, ia jantar e ia levar esta resolução a efeito e já. avançara até ao corredor, quando o som da chave do trinco da porta da rua o obrigou a uma retirada precipitada para o seu escritório.
‑ Cá está ele ‑ rosnou ‑ e alguém com ele! Agora vai dizer: Fique até este cavalheiro se ir embora. Mas não ficarei...
Dizendo isto, Newman meteu‑se num alto esconso vazio que se abria com duas meias portas e fechou‑se por dentro, pretendendo deslizar para fora logo que Ralph estivesse metido no escritório dele.
‑ Noggs! ‑ chamou Ralph. ‑ Onde está esse tipo?... Noggs.
Mas Newnan não disse uma palavra.
‑ O cão foi jantar, embora lhe dissesse para não ir ‑ murmurou Ralph,olhando para dentro do escritório e tirando o relógio. ‑ Hum! É melhor entrar para aqui,Gride. O meu empregado saiu e o sol aquece o meu escritório. Este é mais fresco e está à sombra,se não se importa de se arrastar até aqui.
‑Absolutamente nada,Mr. Nickleby,oh,absolutamente nada. Todos os sítios são iguais para mim,sir. Ah! muito lindo, na verdade!
A pessoa que dera esta resposta era um homenzinho com cerca de setenta,ou setenta e cinco anos,muito magro e muito curvado. Usava um casaco cinzento com gola estreita,um colete fora de moda agaloado a seda preta e umas calças muito pequenas. Os seus únicos ornamentos eram uma corrente de relógio em aço,a que estavam ligados alguns grandes penduricalhos em ouro e uma fita preta que lhe segurava atrás o cabelo grisalho. O nariz e o queixo eram muito afilados e proeminentes; tinha falta de dentes e as faces murchas e amarelas.
Todo o seu ar e atitude tinham a aparência dum gato e a enrugada expressão de patife,um composto de velhacaria,luxúriaastúcia e avareza. Tal era Arthur Gride,em cuja cara e vestimenta denotava a mais sórdida mesquinhez,indicando suficientnente pertencer à classe de que Ralph Nickleby era membro. Assim era o velho Arthur Gride,que se sentou numa cadeira baixa,olhando para a cara de Ralph Nickleby,o qual, instalado no banco da carteira, com as mãos nos joelhos, olhava para ele.
‑ E como tem passado? ‑ perguntou Gride,fingindo grande interesse pelo estado de saúde de Ralph. ‑ Não o tenho visto há... oh, não, há...
‑ Não há muito tempo ‑ interrompeu Ralph com um sorriso peculiar,significando saber muito bem que o amigo não viera por uma visita de cumprimentos. ‑ Foi apenas uma casualidade ver‑me agora,quando eu vinha para a porta e o senhor voltava a esquina.
‑ Estou com muita sorte! ‑ observou Gride.
‑ Assim dizem os homens ‑ replicou Ralph secamente. O velho usurário moveu o queixo e sorria, mas não fez observação e ficou calado durante algum tempo. Cada um deles observava o outro para o apanhar em desvantagem.
‑ Vamos, Gride ‑ disse Ralph por fim. ‑ O que anda hoje no ar?
‑ Ah! o senhor é um homem valente, Mr. Nickleby ‑ exclamou o outro, aparentemente satisfeito por o companheiro ter aberto o caminho para o negócio. ‑ Que homem valente o senhor é!
‑ O senhor usa uns métodos tão suaves que me bolem com os nervos ‑ retorquiu Ralph. ‑ Não sei se o seu corresponde melhor do que o meu, mas tenho falta de paciência para ele.
‑ O senhor é um génio nato, Mr. Nickleby ‑ disse o velho Arthur. ‑ Profundo!
‑ Bastante profundo ‑ respondeu Ralph ‑ para saber que não preciso de toda a profundidade quando homens como o senhor começam por cumprimentar. Sabe que eu estava perto quando bajulou e lisonjeou os outros e lembro‑me muito bem ao que isso sempre levou.
‑ Ah! ah! ah! ‑ riu‑se Arthur, esfregando as mãos. ‑ Assim foi, não há dúvida. Ninguém sabe isso melhor. Bem, é uma coisa agradá vel pensar que o senhor se recorda dos tempos antigos.
‑ Vamos lá, então ‑ convidou Ralph tranquilamente. ‑ O que anda no ar, pergunto-lhe de novo. o que é?
‑ Vejam lá isto! ‑ exclamou o outro. ‑ Não pode deixar de pensar em negócios enquanto estamos a conversar sobre os velhos tempos! Oh, meu Deus, que homem!
‑ Qual passado quer o senhor reviver? ‑ perguntou Ralph ‑ Um deles. Eu sei, ou o senhor não falaria deles.
‑ Ele até de mim suspeita! ‑ replicou o outro, levantando as mãos. ‑ Até de mim! Que homem é! Mr. Nickleby contra toda a gente. não há ninguém como ele. Um gigante contra pigmeus... um gigante!
Ralph olhava para o velho sabujo com um sorriso tranquilo, como se risse por dentro, e Newman Noggs, no seu escon so, sentia o coração a bater dentro de si pela perspectiva do jantar ser cada vez mais fraca.
‑ Tenho de lhe fazer a vontade ‑ disse o velho Arthur. Ele deve ter a sua fisgada. um homem teimoso, como dizem os escoceses. são um povo esperto, os escoceses. tem que falar de negócios e não perde tempo. Tem muita razão. O tempo é dinheiro.
‑ Foi um de nós que arranjou esse dito, penso eu ‑ replicou Ralph. ‑ O tempo é dinheiro e também bom dinheiro, para aqueles que calculam os juros! O tempo é dinheiro! Sim, e o tempo custa dinheiro. É um artigo bastante caro para algumas pessoas que podíamos nomear.
Em réplica a esta saída o velho Arthur levantou de novo as mãos riu‑se para dentro novamente e novamente,declarou:
‑ Que homem ele é! ‑ arrastando depois a cadeira para um pouco mais perto do banco de Ralph e, olhando-o, disse:
‑ O que diria se eu o informasse que estava... para me casar?
‑ Dir‑lhe-ia ‑ respondeu Ralph, olhando‑o friamente – que mente, o que já não é a primeira vez e não será a última. Não fiquei surpreendido e não era caso para isso.
‑ Mas falo-lhe seriamente ‑ insistiu o velho Arthur.
‑ E eu digo‑lhe seriamente ‑ retorquiu Ralph ‑ o que lhe declarei há momentos. Espere. Deixe‑me olhar para si. A sua cara registra uma fluente malandrice... o que é isso?
‑ Eu não posso enganá‑lo ‑ choramingou Arthur Gride.
‑ Não podia fazê‑lo; seria loucura tentar. Eu... eu... a enganar Mr. Nickleby! O pigmeu a impor‑se ao gigante. Pergunto novamente o que diria se o informasse de que estava para casar?
‑ Com alguma velha bruxa? ‑ inquiriu Ralph.
‑ Não,não ‑ protestou Arthur, interrompendo-o e esfregando as mãos em êxtase. ‑ Enganado,de novo. Mr. Nickleby...
errado,completamente errado! Com uma linda rapariga: fresca,adorável,feiticeira e com menos de dezanove anos. Olhos negros... pestanas compridas,lábios perfeitos e vermelhos,que de longe pedem beijos... lindo cabelo anelado,onde os dedos sentem desejos de brincar... cintura que a um homem apetece involuntariamente,abraçar o ar,... pés pequenos,pisando tão levemente que mal se sentem a andar no chão... casar com tudo isto,sir... hein!
‑ Isso é alguma coisa mais do que uma vulgar baboseira ‑ comentou Ralph depois de escutar,os entusiasmos do velho pecador. ‑ O nome da rapariga?
‑ Oh, profundo, que profundo isso é! ‑ exclamou o velho Arthur. ‑ Ele sabe que preciso da sua ajuda,sabe que ma pode dar,sabe que tudo isto deve tornar‑se em sua vantagem,já vê a coisa. O seu nome... Não há ninguém aqui dentro que nos ouça?
‑ Quem diabo pode haver? ‑ respondeu Ralph de mau modo.
‑ Não sabia,mas podia ser que alguém subisse a escada, ou a descesse ‑ observou Arthur Gride depois de olhar para fora da porta e fechá‑la cuidadosamente de novo ‑ ou que o seu empregado tivesse regressado e pudesse estar a escutar lá fora... empregados e criados têm uma astúcia para escutarem e eu ficava muito desconsolado se Mr. Noggs...
‑ Maldito Mr. Noggs ‑ disse Ralph asperamente. ‑ Continue com o que tem a dizer.
‑ Maldito Mr. Noggs,sem dúvida ‑ replicou o velho Arthur. ‑ Tenho a certeza de não ter que fazer a mínima objecção a isso. O nome dela é...
‑ Bem,qual é? ‑ perguntou Ralph,tornando-se muito irritado por o velho Arthur ter parado de novo.
‑ Madeline Bray.
Fossem quais fossem as razões que pudesse ter havido e Arthur Gride parecia ter previsto algumas ‑ para a menção deste nome produzir efeito em Ralph ou fossem quais fossem os efeitos produzidos, realmente, nele, o homem não se permitiu manifestá‑los, antes calmamente repetiu o nome várias vezes, como se estivesse a reflectir quando e onde o ouvira antes.
‑ Bray ‑ repetiu Ralph. ‑ Bray. houve um jovem Bray de. Não, ele nunca teve uma filha.
‑ Lembra-se de Bray? ‑ interrogou Arthur Gride.
‑Não ‑ respondeu Ralph, olhando vagamente para ele.
‑ Nem de Walter Bray? Aquele toleirão que tratou a linda mulher tão mal?
‑Se procurar recordar‑se de qualquer toleirão em especial por esses traços ‑ observou Ralph, encolhendo os ombros‑confundi‑lo‑ei com nove décimos de todos que tnho conhecido.
‑ Este Bray é o que está agora nas Rules da Bench ‑ esclareceu o velho Arthur. ‑ Não pode ter esquecido o Bray. Ambos tivemos negócios com ele. Ele deve‑lhe dinheiro.
‑ Oh, ele! ‑ exclamou Ralph. ‑ Sim, sim, agora que fala disso. É então a filha dele?
Evidentemente isto não foi dito tão naturalmente, mas um espírito como o do velho Arthur Gride devia ter discernido um desígnio da parte de Ralph para o levar a ser muito mais explícito nas declarações do que fizera voluntariamente, ou do que Ralph podia, com toda a probabilidade, obter por outros meios. Contudo o velho Arthur estava tão aferrado ao seu próprio projecto que se deixou enganar, não suspeitando que o seu bom amigo estava sobre brasas.
‑ Eu sabia que não podia esquecer‑se dele.
‑ Tinha razão ‑ respondeu Ralph. ‑ Mas o velho Arthur Gride e o matrimónio é uma conjunção muitíssimo anómala de palavras. O velho Arthur Gride e olhos pretos, pestanas compridas, lábios que de longe pedem beijos, cabelo anelado com que se sente desejos de brincar, cintura de vespa e pézinhos que não pisam coisa alguma. o velho Arthur Gride e tais perfeições é ainda mais monstruoso; mas o velho Arthur Gride casando com a filha dum arruiinado toleirão das Rules da Bench é o mais monstruoso e incrível. Francamente, amigo Arthur Gride, se precisa de qualquer ajuda minha neste negó cio, fale e exponha o seu propósito. E, acima de tudo, não me diga que isto é para minha vantagem, pois não sei se é também para sua e uma boa cantiga, de contrário não teria metido os dedos num prato como este.
Havia bastante acrimónia e sarcasmo, não apenas no assunto da réplica de Ralph, mas no tom da voz e nos olhares que dardejou, que inflamou, mesmo, o sangue‑frio do velho usurário e corou as suas emurchecidas faces. Mas ele não demonstrou ódio, contentando-se em exclamar como antes:
‑ Que homem! ‑ e rolando a cabeça dum lado para o outro, com uma alegria incontida da sua liberdade e gracejo.
Observando claramente pela expressão de Ralph que era melhor chegar ao ponto crucial o mais depressa possivel, entrou no âmago do negócio.
Primeiro, demorou‑se no facto de Madeline Bray estar sacrificada ao amparo e manutenção do pai, escrava de todos os seus desejos, tendo Ralph já ouvido antes alguma coisa no género. Segundo, alargou-se sobre o carácter do pai, o qual, embora tivesse pela filha uma grande afeição, gostava mais de si. E em terceiro lugar, o velho Arthur declarou que a rapariga era uma criatura linda e delicada e que ele sentia, realmente, um desejo ardente de a ter por mulher. A isto Ralph não se dignou replicar se não por um sorriso desdenhoso e uma vista de olhos suficientemente expressiva.
‑ Agora ‑ disse Gride ‑ para pôr em execução o meu plano porque nem sequer falei ainda com o pai, preciso de falar consigo. Mas o senhor já apanhou tudo! Meu Deus, que finório o senhor é!
‑ Então não brinque comigo ‑ preveniu Ralph impacientemente. ‑ Sabe o provérbio.
‑ A resposta sempre na ponta da língua! ‑ exclamou o velho Arthur, erguendo as mãos e os olhos, de admiração. Oh, meu Deus, que felicidade ter uma inteligência tão pronta e muito mais dinheiro pronto para a ajudar ‑ e mudando subitamente de tom, continuou. ‑ Nestes últimos seis meses tenho frequentado regularmente a casa de Bray e foi justamente há meio ano que eu vi este delicado acepipe. Mas o caso não é só esse. Eu sou seu credor por mil e setecentas libras.
‑ Você fala como se fosse o único credor ‑ disse Ralph, tirando a agenda. ‑ Eu também o sou por novecentos e setenta e cinco libras, quatro xelins e seis pence.
‑ O outro único credor, Mr. Nickleby! ‑ replicou o velho Arthur com ímpeto. ‑ O outro único credor. Ninguém mais entrou nas despesas de alojar um detido, confiando demais na sua influência, garanto-lhe. Ambos caímos na mesma armadilha. Oh, meu Deus, e que armadilha me arruinou! Emprestei‑lhe dinheiro sobre letras, apenas com um nome além do dele, o qual, decerto, toda a gente supunha ser bom e negociável como o próprio dinheiro, mas que acabou. e o senhor sabe como! Justamente quando iamos sobre ele, morreu insolvente. Ah! esta perda esteve quase a arruinar‑me.
‑ Continue com o seu plano ‑ convidou Ralph. ‑ Não vale a pena fazer agora exclamações sobre o negócio! Não há ninguém para nos ouvir!
‑ É sempre bom falar desta maneira ‑ quer haja alguém ou não para nos ouvir. A prática aperfeiçoa, como sabe. Se me ofereço ao Bray como seu genro, é com a simples condição, que desde o momento em que me casar, ele ficará completamente livre e terá permissão para viver do outro lado do fosso, como um cavalheiro. Ele não pode durar muito, pois eu perguntei ao seu médico e este declarou que o mal é do coração e é impossível curar‑se. Assim, se todas as vantagens desta condição foram declaradas e vistas com atenção, julga que ele pode resistir‑me? E se ele não me puder resistir, julga que a filha me resistia? Não a terei como Mrs. Arthur Gride, não a terei como Mrs. Arthur Gride numa semana, num mês, num dia. em qualquer altura que eu escolha?
‑ Continue ‑ replicou Ralph, acenando com a cabeça. Continue. Não veio aqui para me perguntar isso.
‑ Oh meu Deus, de que maneira fala! ‑ exclamou o velho Arthur, chegando-se ainda mais para Ralph. ‑ Decerto não vim. Vim para lhe perguntar quanto me levará, se for bem sucedido com o pai, por este seu crédito. cinco xelins por libra. seis e oito pence. dez xelins? Podia ir até aos dez xelins como seu amigo; têmo-nos dado sempre bem, mas não deve ser tão duro para mim. Quer?
‑ Há alguma coisa mais a dizer. ‑ declarou Ralph, tão insensível e imóvel como sempre.
‑ Sim, há, mas como não me deu tempo ‑ retorquiu Arthur Gride. ‑ Preciso dum ajudante neste assunto. uma pessoa que saiba falar, insista e force um ponto, o que o senhor pode fazer como ninguém. Eu não posso ‑ por ser uma criatura, tímida e nervosa. Se tiver agora uma boa solução para este débito, que há muito deu como perdido, ajudar‑me‑á? Quer?
‑ Há mais alguma coisa. ‑ afirmou Ralph.
‑ Não, não na verdade ‑ defendeu‑se Arthur Gride.
‑ Sim, há. Digo‑lhe que sim.
‑ Oh! ‑ replicou o velho Arthur, fingindo-se subitamente lembrado. ‑ Quer dizer mais alguma coisa quanto à. sua imtervenção? Sim, certamente. Quer que eu mencione isso?
‑ Julgo ser o melhor a fazer ‑ replicou Ralph secamente.
‑ Não queria maçá‑lo com isso, porque supunha que o seu interesse cessaria com a sua própria ligação no caso. É amabilidade sua perguntar. Oh, meu Deus, que amabilidade! Suponhamos que eu tinha conhecimento duma pequena propriedade. alguma pequena propriedade. muito pequena. destinada a esta linda menina, a qual ninguém conhece, mas a qual o marido podia meter na algibeira se souber tanto como eu, teria isso como justificação de...
‑ De todo o procedimento ‑ concluiu Ralph abruptamente
‑ Agora deixe‑me acabar este assunto e considerar o que devo ter, se eu o ajudar a triunfar.
‑ Não seja duro ‑ pediu o velho Arthur, erguendo as mãos num gesto implorativo ‑ uma propriedade muito pequena. Diga dez xelins e fechamos o negócio. É mais do que devo dar, mas o senhor é tão amável... ficamos nos dez? Diga que sim!
Ralph não notou estas súplicas e ficou durante três ou quatro minutos a estudar o caso. Depois duma cogitação suficiente quebrou o silêncio e decerto não teve necessidade de usar de circunlóquios, ou deixar de falar directamente no assunto.
‑ Se casar com esta rapariga sem a minha intervenção - disse Ralph ‑ tem de me pagar o crédito por inteiro, pois de outro modo não pode libertar o pai. portanto, claro que eu devo receber toda a importância, livre de qualquer dedução ou encargo, ou perderia por ter sido honrado com a sua confiança, em vez de ganhar com ela. Este é o primeiro artigo do tratado. Quanto ao segundo, estipularei pela minha maçada na negociação e na persuasão e ajudá‑lo nesta felicidade, quinhentas libras. o que é muito pouco por você ficar com os tais lábios perfeitos e o cabelo anelado, tudo para si. Sobre o terceiro e úlltimo artigo, quero que me dê hoje uma promessa escrita, comprometendo‑se ao pagamento destas duas quantias antes do meio‑dia do dia do seu casamento com Madeline Bray. Você disse‑me para insistir e forçar um ponto. Forço este e não aceitarei menos do que estas condições. Aceite‑as se quiser. E se não, case‑se com ela sem a minha interferência, se puder. Eu continuarei a reclamar o meu crédito.
A todas as súplicas, protestos e ofertas, Ralph, foi surdo como uma porta. O velho Arthur fez uma quantidade de pedidos para modificação das condições, mas vendo que o amigo estava irredutivel, a pouco e pouco, aproximou‑se do que ele queria, até concordar, com os termos do contrato, para o que, de resto estava preparado antes de vir. Entregue a promessa escrita passou‑se às condições exactas em que Mr. Nickleby o devia acompanhar a casa de Bray, nessa mesma hora, e encetar as negociações imediatamente, se as circunstâncias parecessem auspiciosas e favoráveis.
Para a execução deste último entendimento os dignos cavalheiros saíram juntos pouco depois e Newman Noggs emergiu, do armário de garrafa em punho.
‑ Agora não tenho apetite ‑ declarou Newman, metendo a garafa na algibeira. ‑ Já tenho o meu jantar.
Fazendo esta observação num tom muito lastimoso, New man chegou até à porta num grande passo e voltou para trás noutro.
‑Não sei quem possa ser, ou o que ela possa ser, mas compadeço‑me dela de todo o meu coração e não posso ajudá‑la, como não posso ajudar qualquer das pessoas contra quem, centenas de patifarias, mas nenhuma tão vil como esta, se projectam todos os dias. Isto aumenta a minha dor. A coisa não é pior por eu a conhecer e torturar‑me assim por causa deles. Gride e Nickleby! Boa parelha para um carro... Oh! Velhacaria!
Com estas reflexões e um soco bem dado na copa do infeliz chapéu, Newman Noggs, cuja inteligência estava um pouco toldada pelo conteúdo da garrafa, saiu à procura duma consolação advinda da carne com ervas de alguma casa de pasto barata. Entretanto, os dois conjurados dirigiam‑se para a mesma casa onde Nicholas aparecera pela primeira vez umas manhãs antes, obtiveram permissão para ver Mr. Bray e, encontrando a filha fora de casa, chegaram ao verdadeiro objectivo da sua visita por uma sequência de assuntos habilmente dirigidos por Ralph.
‑ É isto o que ele propõe, Mr. Bray ‑ disse Ralph ao inválido que, reclinado na cadeira e ainda não recuperado da sue surpresa, olhava alternadamente para ele e para Arthur Gride.
‑ Ponhamos o caso dele ter tido a má sorte de ser uma causa da sua detenção neste lugar. eu tinha sido a outra; os homens precisam de viver e o senhor foi demasiado homem do mundo para não ver isto à verdadeira luz. Oferecemos a melhor reparação que podemos. Reparação! Isto é uma proposta de casamento que muitos com este nome desejariam para as filhas. Mr. Arthur Gride com a fortuna dum príncipe. Pense no bem que isto é!
‑ A minha filha, sir ‑ replicou Bray altivamente ‑ como a eduquei, seria uma rica recompensa pela maior fortuna que um homem pudesse trazer em troca da sua mão.
‑ precisamente o que lhe disse ‑ comentou o astuto Ralph voltando-se para o seu amigo, o velho Arthur. ‑ Precisa mente, o que me fez considerar a coisa tão boa e fácil. Não há obrigação de qualquer dos lados. Você tem o dinheiro e Miss Bray tem a beleza. Ela é nova, você tem dinheiro. Ela não tem dinheiro, você não tem juventude. Ela por ela. quites. um casamento feito de encomenda.
‑ Dizem que o casamento é talhado no céu ‑ acrescentou Arthur Gride olhando dum modo sorrateiro o pretendido sogro.
‑ Se nos casássemos seria o destino que o escrevera lá.
‑ Pense, então, Mr. Bray ‑ insistiu Ralph, substituindo rapidamente por este argumento, considerações mais ligadas à terra. ‑ Pense na risco que envolve a aceitação ou rejeição das propostas do meu amigo.
‑ Como posso aceitar ou rejeitar? ‑ interrompeu Mr. Bray com a consciência de tocar realmente a ele decidir. ‑ É a minha filha que tem de aceitar ou rejeitar. O senhor sabe disso.
‑ É verdade ‑ respondeu Ralph enfaticamente ‑ mas o senhor tem o poder de aconselhàr; indicar as razões pró e contra; insinuar um desejo.
‑ Insinuar um desejo sir! ‑ replicou o devedor, orgulhoso, mas sempre egoista. ‑ Sóu seu pai, não sou? Porque deveria sugerir e falar com rodeios? Supõe, como os amigos da mãe e meus inimigos que há alguma coisa no que ela faz por mim, além do dever? Ou julga, por ter sido infeliz, ser razão suficiente para as nossas posições terem de mudar, ordenando ela e obedecendo eu? Sugerir um desejo também! Talvez pense, por me ver neste lugar, que eu sou uma criatura dependente, de ânimo quebrado, sem a coragem ou a força para fazer o que penso ser melhor para a minha filha! Ainda mesmo o poder sugerir um desejo! Espero que sim.
‑ Desculpe‑me ‑ pediu Ralph, que conhecia muito bem o homem e agiu de acordo ‑ mas não me ouviu. Eu ia a dizer que a sua sugestão dum desejo seria, certamente, equivalente a uma ordem.
‑ Aceito ‑ retorquiu Mr. Bray num tom exasperado. ‑ Se parece que não o ouviu outrora, sir, dir‑lhe‑ei que houve um tempo em que levei de vencida toda a família da mãe embora do seu lado tivessem poder e riqueza.
‑ Contudo ‑ continuou Ralph ‑ não ouviu tudo. O senhor é um homem ainda digno de brilhar na sociedade, com muitos anos de vida à sua frente... isto é, se viver ao ar livre, e escolhendo as suas companhias. A alegria é o seu elemento, como mostrou antes. Uma sociedade escolhida e liberdade para si. França e uma anuidade que lhe mantivesse o luxo, dava‑lhe uma nova vida. transferia-o para uma nova residência. A cidade ainda palpita com os seus antigos prazeres e o senhor podia brilhar em novas cenas, aproveitando a experiência e vivendo um pouco à custa dos outros, em lugar dos outros viverem à sua. O que há por trás do quadro? Não sei qual é o adro da igreja mais próximo, mas uma pedra tumular, seja onde for, e uma data. Talvez daqui a dois anos, talvez vinte.
Mr. Bray descansou o cotovelo no braço da cadeira e cobriu a cara com a mão.
‑ Falo assim ‑ prosseguiu Ralph, sentando‑se-lhe ao lado ‑ por pensar com impetuosidade. O meu interesse em que o meu amigo Gride case com a sua filha é por ele me prometer pagar. em parte. Não o escondo. Confesso‑o abertamente. Mas que interesse tem o senhor em ordenar‑lhe um tal passo? Ela pode pôr objecções, suplicar, chorar, falar dele ser demasiado velho e queixar‑se de que a sua vida se tornará infeliz. Mas o que é isso agora?
Vários pequenos gestos da parte do inválido mostravam que estes argumentos tinham tanta influência como a mais insignificante parcela da sua conduta sobre Ralph.
‑ O que é isto agora, pergunto? ‑ continuou o manhoso usurário. ‑ Se o senhor morre, de facto, a gente a quem odeia fá‑la‑ia feliz. Mas pode suportar este pensamento?
‑ Não! ‑ respondeu Bray, incitado por um irreprimível impulso vingativo.
‑ Na verdade imagino que não. Se ela aproveitar da morte de alguém ‑ isto foi dito num tam mais baixo ‑ que seja a do marido... não lhe permita que veja a sua como um acontecimento do qual parta uma vida mais feliz. Onde está a objecção? É ser o pretendente dela, um velho? Quantas vezes homens de família e de fortuna, que não têm a sua desculpa, possuindo todos os meios e superfluidade da vida ao seu alcance. quantas vezes casam as filhas com velhos, ou ainda pior, com jovens sem cabeça e coração, para lisonjear qualquer vaidade, estreitar interesse de família, ou segurar um lugar no Parlamento? Julgue por ela, sir. O senhor deve saber melhor e ela viverá para lhe agradecer.
‑ Silêncio! Silêncio! ‑exclamou Mr. Bray, sobressaltando‑se subitamente e tapando a boca de Ralph com a mão trémula.
‑ Ouço‑a à porta!
Houve um raio de consciência na vergonha e no terror deste rápido gesto, que num curto momento cobriu o plano cruel. O pai caiu na cadeira, pálido e a tremer; Arthur Gride puxou o chapéu com o qual começou a brincar e não levantou os olhos do chão; o próprio Ralph, por um momento, humilhou‑se como um sabujo espancado, curvado pela presença duma jovem rapariga inocente! O efeito foi quase tão breve como súbito. Ralph foi o primeiro a recompor‑se e, observando os olhares alarmados de Madleline, pediu à pobre rapariga para sossegar, afirmand-lhe não haver causa para susto.
‑ Um súbito espasmo ‑ informou Ralph, dando uma vista de olhos para Mr. Bray. ‑ Agora está completamente bem!
Teria comovido um coração muito empedernido e descuidado ver a jovem e linda criatura, cuja desgraça certa tinham estado tramando um minuto antes, envolver o pescoço do pai com os braços e proferir palavras de terna simpatia e amor, as mais suaves que ao ouvido dum pai podem soar, ou os lábios duma filha podem formar. Mas Ralph olhava friamente e Arthur Gride, cujos olhos remelosos só se arregalavam para as belezas exteriores, evidenciou uma fantástica espécie de entusiasmo, de sentimento que a contemplação da virtude geralmente inspira.
‑ Madeline ‑ disse o pai, desprendendo-se suavemente - não foi nada!
‑Mas teve esse espasmo ontem e é terrível vê‑lo com tal aflição. Não posso fazer nada a seu favor?
‑Nada por agora! Estão aqui dois cavalheiros, Madeline, um dos quais já tens visto. Ela costumava dizer ‑ acrescentou Mr. Bray, dirigindo-se a Arthur Gride ‑ que a sua presença me punha pior. Isso era natural, sabendo o que ela disse e apenas o que ela disse da nossa união e dos seus resultados. Bem, bem! Talvez ela possa mudar de parecer nesse ponto; as raparigas têm hábito de mudar de ideias, como sabe. Tu estás muito misteriosa, querida!
‑ Na verdade não estou.
‑ Na verdade estás. Trabalhaste muito!
‑ Desejava poder trabalhar mais.
‑Sei que sim mas ultrapassas as tuas forças. Esta vida desgraçada, meu amor, com trabalho e fadiga diários, é mais do que podes suportar. Pobre Madeline!
Com éstas e outras palavras mais amáveis, Mr. Bray puxou a filha para si e beijou‑lhe as faces afectuosamente. Ralph, observando-o com um olhar penetrante e atento, encaminhou‑se para a porta e fez sinal a Gride para o seguir.
‑ Comunicará connosco outra vez? ‑ perguntou Ralph.
‑ Sim, sim ‑ respondeu Mr. Bray apressadamente, afastando a filha. ‑ Dentro duma semana. Dêem‑me uma semana.
‑ Uma semana ‑ informou Ralph, voltando-se para o companheiro‑a partir de hoje. Bom dia, Miss Madleline! Beijo‑lhe as mãos!
‑ Apertemos as mãos, Gride ‑ disse Mr. Bray, estendendo a sua, enquanto o velho Arthur se curvava. ‑ Você pensa bem, não há dúvida. Sou obrigado a dizê‑lo agora. Se lhe devo dinheiro não foi por culpa sua. Madeline, meu amor. põe a tua mão aqui.
‑Oh, meu Deus! Se a jovem senhora quiser condescen der. apenas as pontas dos dedos ‑ replicou Arthur, hesitante e recuando um pouco.
Madeline encolheu‑se em frente daquela figura de diabo, mas colocou as pontas dos dedos na mão dele, retirando‑os imediatamente. Depois duma inútil tentativa para os agarrar e os levar aos lábios, o velho Arthur deu aos próprios dedos um beijo resmungado e, com muitas contracções da cara, foi em seguimento do amigo, que já estava na rua.
‑ O que diz ele. o que diz o gigante ao pigmeu? ‑ inquiriu Arthur Gride, manquejando direito a Ralph.
‑O que diz o pigmeu ao gigante? ‑ interrogou Ralph, levantando as sobrancelhas e olhando para o seu interlocutor.
‑ Ele não sabe o que há-de dizer ‑ replicou Arthur Gride.
‑ Espera e receia. Mas ela não é um bocado apetitoso?.
‑ Não tenho grande queda para a beleza ‑ rosnou Ralph.
‑Mas tenho eu ‑ afirmou Arthur, esfregando as mãos. Oh, meu Deus! Como os seus olhos eram lindos quando ela se inclinou sobre ele. Ela. ela. olhou para mim tão sua vemente.
‑Não supõe amorasamente, creio eu ‑ comentou Ralph.
‑ Ou olhou?
‑Julga que não? ‑ interrogou o velho Arthur. ‑ Mas não pensa. não pensa que possa?
Ralph olhou para ele com um desdenhoso franzir de sobrancelhas e replicou com desdém, entre dentes:
‑Notou o pai ter‑lhe dito que ela estava cansada, tra balhava demasiado e ultrapassava as suas forças?
‑ Sim, sim. O que tem isso?
‑Quando pensa que ele lhe tivesse dito isso antes? A vida é mais do que ela pode suportar.
‑Pensa que é coisa feita? ‑ inquiriu o velho Arthur, perscrutando a cara do companheiro com os olhos meio fechados.
‑ Tenho a certeza que é coisa feita! ‑ respondeu Ralph. Tentava enganar‑se mesmo perante os nossos olhos ‑ fazendo crer que pensa no bem dela e não no seu ‑ fazendo o papel de virtuoso e tão atencioso e afectuoso, sir, que a filha mal o conhecia. Vi uma lágrima de surpresa nos olhos dela. E haverá mais algumas lágrimas de surpresa antes de pouco tempo, embora de natureza diferente. Bem, podemos esperar, com confiança, para daqui a uma semana.
Acerca do beneficio de Mr. Vincent Crummles sobre o seu último aparecimento no palco
Foi com o coração triste e angustiado, oprimido por muitas ideias aflitivas que Nicholas se dirigiu para o escritório de Cheeryble Brothers. Era um pobre cumprimento para a boa natureza de Nicholas ‑ e que lhe não merecia ‑ insinuar que a solução do mistério que envolvia Madeline Bray havia esfriado, ou arrefecido o fervor da sua admiração. Mas a reverência pela verdade e pureza da seu coração, respeito pelo seu desamparo e a solidão da sua situação, simpatia para com as privações duma pessoa tão nova e tão bela, e admiração pelo seu grande e nobre espírito, tudo parecia pô‑lo fora do seu alcance e, embora dessem nova e profunda dignidad ao seu amor, suspirava sem esperança.
‑Manterei a minha palavra como se lha tivesse empenhado ‑ disse Nicholas resolutamente. ‑ Isto não é uma con fiança vulgar de que me tenha de descartar, por isso executarei o duplo dever que me foi imposto, o mais escrupulosa e estritamente possível. Os meus sentimentos secretos não merecem consideração num caso como este.
Havia contudo a existência de sentimentos secretos que ele juroú conservar para si e encorajá‑los como uma recompensa pelo seu heroismo. Todos estes pensamentos adicionados ao que vira nessa manhã, tornavam‑no um compa nheiro distraído e abstracto, de tal modo que se enganou num algarismo, fazendo com que Tim Linkinwater lhe pedisse para o raspar, ou teria toda a sua vida amargurada pela tortura do remorso. Mas apesar destas distracções e doutras, da parte de Tim e de Mr. Frank, Nicholas continuou assim todo o dia e toda a noite, pensando sempre no caso, mas chegando sempre à mesma conclusão. Neste estado de espírito, as pessoas costumam ler os cartazes sem saber o que estão fazendo. Foi o que aconteceu a Nicholas, dando de cara com um deles, muito grande, num pequeno teatro. Depois de ler os nomes dos actores e actrizes olhou para o alto do cartaz e preparava‑se para continuar a andar, quando viu anunciado em grandes caracteres, com um largo espaço entre cada um deles, Positivamente a última representação de Mr. Vincent Crummles, Célebre na Província!.
‑Patetice! ‑ disse Nicholas, voltando atrás. ‑ Não pode ser!
Mas era. Depois de anunciar em várias linhas de que se compunha o espectáculo e com quem, na sexta, lá vinha positivamente a última representação de Mr. Vincent Crummles, Célebre na Província!
Certamente deve tratar‑se do mesmo homem ‑ pensou Nicholas. ‑ Não pode haver dois Vincent Crummles.
O melhor, para o tirar de dúvidas, estava no próprio cartaz, onde se referia a um Mister Crummles e a um Mister Percy Crummles, suas últimas representações, e a danças a executar pela criança fenómeno, também em última representação. Não tendo mais dúvidas, foi à porta do palco e pediu para entregarem a Mr. Crummles um bocado de papel escrito com as palavras Mr. Johnson; imediatamente foi conduzido à presença daquele cavalheiro.
Mr. Crumles ficou muito satisfeito por o ver e abraçou‑o cordialmente, tendo Nicholas mostrado o desejo de dizer adeus a Mrs. Crummles antes deles se irem embora.
‑ Continua a ser sempre o favorito dela, Johnson ‑ disse Crummles ‑ sempre como no princípio. Ainda tenho vivo, no pensamento, aquele primeiro jantar que teve connosco. Um em que Mrs. Ces teve a fantasia de se despedir. Ah! Johnson, que mulher aquela!
‑Estou‑lhe sinceramente grato por todas as suas ama bilidades a este e outros respeitos ‑ replicou Nicholas. ‑ Mas para onde vão, uma vez que falam de despedida?
‑Não viu nos jornais? ‑ perguntou Crunnles com dignidade.
‑ Não ‑ respondeu Nicholas.
‑ Admir-me. ‑ retorquiu o empresário. ‑ Estava entre as variedades. Tinha a notícia aqui, em qualquer parte. mas não sei... ah! sim está aqui!
Dizendo isto Mr. Crummles tirou um quadrado de papel da algibeira das calças que usava na vida privada e deu‑o a Nicholas para ler.
O talentoso Vincent Crummles, há muito conhecido pela sua fama de empresário regional e actor de invulgares qualidades, vai proximamente atravessar o Atlântico numa expedição histriónica. Ouvimos que Crummles é acompanhado pela senhora e prendada família. Não conhecemos ninguém superior a Crummles nesta sua linha especial de actor, ou quem, como particular, se deva ao público, que pudesse atrair as saudações cordiais dum grande número de amigos. Tem a certeza de vencer.
‑Está aqui um outro bocado ‑ disse Crummles, entregando um fragmento ainda mais pequeno. ‑ Este é das notícias dos correspondentes.
Nicholas leu alto, Crummles, o em presário e actor regional, não pode ter mais de quarenta e dois anos, ou quarenta e três anos. Crummles não é prussiano, tendo nascido em Chelsea.
‑Hum! ‑ exclamou Nicholas. ‑ É um comunicado singular.
‑ Muito ‑ retorquiu Crummles, coçando o nariz e olhando para Nicholas, presumindo uma grande indiferença. ‑ Não penso quem publique essas coisas. Eu não.
Conservando os olhos em Nicholas, Mr. Crummles abanou a cabeça gravemente duas ou três vezes e, observando que não podia imaginar, pela sua vida, como os jornais descobriam essas coisas, dobrou os artigos e pô-los outra vez na algibeira.
‑Estou atónito ‑ disse Nicholas. ‑ Ir para a América! O senhor não tinha isso no pensamento quando eu estava consigo.
‑ Não ‑ respondeu Mr. Crummles. ‑ Não tinha. O facto é que Mrs. Crummles ‑ a mulher mais extraordinária, Johnson ‑ aqui interrompeu‑se e segredou‑lhe qualquer coisa ao ouvido. Oh! ‑ exclamou Nicholas, sorrindo. ‑ O projecto dum aumento de família!
‑O sétimo aumento, Johnson ‑ replicou Mr. Crummles solenemente. ‑ Pensava, quando foi do fenómeno, que este devia ser o ponto final, mas parece que vamos ter um outro, uma mulher muito notável.
‑Dou‑lhe os parabéns! ‑ disse Nicholas ‑ e espero que este seja também um fenómeno.
‑ É quase certo ser qualquer coisa de invulgar ‑ declarou Mr. Crummles ‑ O talento dos outros três está principal mente no combate e em pantomina. Preferia que este tivesse uma inclinação para a tragédia. Sei que eles a apreciam muito na América. Contudo devemos recebê‑lo tal como ele vier. Talvez seja um génio para a encenação. Em resumo, deve ter qualquer espécie de génio se sair à mãe, Johnson, que é um génio universal.
Exprimindo-se nestes termos, Mr. Crummles começou a vestir‑se e, entretanto, informava Nicholas que devia ser uma bela partida para a América sob os auspícios dum contrato toleravelmente bom, tendo a intenção de adquirir lá terras para o ajudar no fim da vida. Depois passou a dar notícias dos amigos comuns, informando que Miss Snevellicci se casara com um cereeiro, que fornecera o teatro com velas, e que Mr. Lillyvick não se atrevia a dizer que a alma lhe pertencia, tal era o tirânico império de Mrs. Lillyvick, que reinava com supremo e absoluto poder.
Nicholas correspondeu às confidências, confiando-lhe o nome, situação e projectos, e informando-o em poucas palavras da razão do seu primeiro encontro. Como na manhã seguinte tinham de partir para Liverpool, Mr. Crummles preveniu Nicholas que, se quisesse despedir‑se de Mrs. Crummles, teria de o fazer nessa noite, na ceia de despedida a realizar numa casa de pasto da vizinhança, prometendo voltar depois de acabar a representação. Aproveitou este intervalo para comprar uma caixa de rapé em prata, como lembrança para Mr. Crummles, um par de brincos para Mrs. Crummles, um colar para o fenómeno e uns flamantes alfinetes de gravata para cada um dos jovens. Regressando um pouco depois da hora marcada encontrou as luzes apagadas, o teatro vazio, o pano corrido e Mr. Crummles passeando no palco, dum lado para o outro, à sua espera.
‑Timberry não se deve demorar ‑ preveniu Mr. Crummles. ‑ Representou esta noite, fazendo de preto fiel na última peça e, por isso, leva um pouco mais tempo a lavar‑se.
‑Um papel muito desagradável, não é? ‑ perguntou Nicholas.
‑Não, não sei ‑ replicou Mr. Crummles ‑ sai muito facilmente, pois é só a cara e o pescoço. Tivemos uma vez na companhia um primeiro trágico que, quando representava o Otelo, costumava enegrecer‑se todo.
Por fim Mr. Snittle Timberry apareceu, de braço dado com o africano que engolia facas e, sendo apresentado a Nicholas, ergueu o chapéu e declarou ter muito orgulho em conhecê‑lo. O africano disse o mesmo e com linguagem de irlandês.
‑Vi pelos cartazes que tem estado doente, sir ‑ disse Nicholas a Mr. Timberry. ‑ Espero que não tenha nada que impeça os seus esforços desta noite.
Mr Timberry, em resposta, abanou a cabeça, bateu no peito várias vezes dum modo muito significativo e, envolvendo‑se melhor na capa, disse:
‑ Mas isso não tem importância. Vamos!
Há-de observar que quando a gente do palco está fraca, ou exausta, invariavelmente desempenha papéis de força, requerendo grande ingenuidade ou músculos. Era natural que igual sorte saísse a Mr. Snittle Timberry, o qual, no caminho para a casa de pasto, atestou a gravidade da sua recente indisposição e os seus efeitos destruidores no sistema nervoso por uma série de execuções de ginástica, que foram a admiração de todos os presentes.
‑Isto é, na verdade, um prazer que eu não esperava ‑ confessou Mrs. Crummles quando Nicholas se apresentou.
‑ Nem eu ‑ respondeu Nicholas. ‑ É por um mero acaso que tenho esta oportunidade de a ver, embora fizesse todo o possível para tal.
‑Aqui está uma pessoa que conhece ‑ disse Mr. Crum mles, empurrando o fenómeno para a frente ‑ e aqui está outra... e outra ‑ apresentando os Misters Crummles. ‑ E como está o seu amigo, o fiel Digby?
‑Digby! ‑ exclamou Nicholas, esquecendo‑se de ter sido o nome teatral de Smike. ‑ Oh, sim. Está absolutamente. o que estou a dizer? Está muito longe de estar bom.
‑Como! ‑ disse Mrs. Crummles com um trágico recuo.
‑Temo ‑ explicou Nicholas, abanando a cabeça e tentando sorrir ‑ que a sua esposa se espantasse agora dele como nunca.
‑O que quer dizer? ‑ perguntou Mrs. Crummles no seu modo muito popular. ‑ Desde quando veio essa alteração?
‑Quero dizer que um cobarde inimigo meu me feriu através dele e que enquanto pensa torturar‑me, inflinge nele tais sofrimentos de terror e de incerteza como. Tenho a certeza de que me desculparão ‑ disse Nicholas, reprimindo‑se mas eu nunca falo disto e nunca falarei a não ser aqueles que conhecem os factos, mas agora esqueci‑me.
Com esta rápida desculpa, Nicholas curvou‑se para cumprimentar o fenómeno e mudou de assunto, maldizendo intimamente a sua precipitação e perguntando a si próprio o que Mrs. Crummles devia pensar duma tão súbita explosão. A senhora pareceu dar muito pouca importância a isto, pois estando nesta altura a ceia na mesa, deu a mão a Nicholas e dirigiu‑se num passo firme para a esquerda de Mr. Snittle Timberry. Nicholas teve a honra de a servir e Mr. Crummles foi colocado à direita do presidente; o fenómeno e os Misters Crumles espalharam-se pela mesa.
A reunião aumentou com vinte e cinco ou trinta pessoas pertencentes ao teatro e consideradas os amigos mais íntimos de Mr. e Mrs. Crummles. A despesa sendo feita pelos cavalheiros, eles tinham por isso o direito a uma senhora como convidada. A direita de Nicholas sentava‑se um cavalheiro, que tinha dramatizado, em tempos, duzentas e quarenta e sete novelas, sendo apresentado a Nicholas como amigo do africano.
‑Tenho a felicidade de conhecer um cavalheiro de tão grande distinção ‑ cumprimentou Nicholas delicadamente.
‑ Sir ‑ replicou o intelectual ‑ tenho a certeza de que é muito bem‑vindo. A honra é recíproca, sir, como digo geralmente quando dramatizo um livro. Já alguma vez ouviu a definição da fama, sir?
‑Tenho ouvido várias ‑ respondeu Nicholas com um sorriso. ‑ Qual é a sua?
‑Quando dramatizo um livro, sir ‑ disse o cavalheiro literato ‑ a fama é para o seu autor.
‑Oh, de facto! ‑ retorquiu Nicholas ‑ a fama, sir ‑ replicou o literato.
‑Assim Richard Turpin, Tom King e Jeny Abersaw entregaram à fama aos nomes daqueles sobre quem cometeram os mais impudentes roubos? ‑ perguntou Nicholas.
‑ Não sei nada a esse respeito, sir ‑ respondeu o literato.
‑Shakespeare dramatizou histórias que previamente tinham aparecido impressas, é verdade? ‑ observou Nicholas.
‑ Quer dizer Bill sir? ‑ inquiriu o literato. ‑ Ele assim o fez Bill foi um adaptador, certamente, foi isso. e também adaptou muito bem. considerando.
‑ Ia quase a dizer ‑ retorquiu Nicholas ‑ que Shakespeare tirou os seus enredos de contos antigos e lendas de conhecimento de todos, mas parece‑me que alguns cavalheiros da sua profissão, ultrapassaram‑no hoje em dia.
‑Tem muita razão, sir ‑ interrompeu o literato, encostando-se na cadeira e palitando os dentes. ‑ O intelecto humano, sir, tem progredido desde o seu tempo. está progredindo. progredirá.
‑Ultrapassam‑no, quero dizer ‑ continuou Nicholas em outro aspecto, completamente diferente, pois enquanto ele trouxe ao mágico círculo do seu génio, tradições peculiarmente adaptadas e tornou coisas familiares em constelações que iluminarão o mundo por séculos, vocês arrastam para dentro do círculo mágico da vossa sonolência, assuntos não adaptados perfeitamente para fins cénicos. Por exemplo, tomam livros incompletos de autores vivos, frescos das suas mãos, e burilam‑nos para as forças e capacidades dos vossos actores, remendando à pressa, e cruamente, ideias ainda não rabiscadas pelos autores originais, mas que lhes custaram muitos dias a pensar e muitas noites sem dormir. Sem a sua permissão e vontade, fazem o mais possível por anticipar o enredo sobre uma coisa que eles escreveram uma quinzena antes, e depois coroam o procedimento, publicando em qualquer desprezível panfleto uma mistura sem pés nem cabeça, de extractos escolhidos da sua obra, na qual põem o vosso nome como autores, com a honrosa distinção anexa de terem perpetrado um cento de outros ultrajes do mesmo género. Agora mostre‑me a diferença entre um tal roubo e o de tirar a carteira dum homem na rua.
‑ Os homens precisam de viver, sir ‑ comentou o literato, encolhendo os ombros.
‑Isso devia ser igualmente jogo limpo para ambos os casos ‑ respondeu Nicholas ‑ mas se põe a coisa nesse campo, nada tenho mais a dizer de que se fosse um escritor e o senhor um sedento dramaturgo, preferia pagar na taberna uma sua dívida de seis meses do que ter um nicho no Templo da Fama durante seiscentas gerações.
A conversa começava a tornar‑se um tanto azeda, mas Mrs. Crummles interpôs‑se oportunamente, fazendo várias perguntas ao literato sobre os enredos de seis novas peças escritas por contrato para apresentar o africano engolidor de facas nos seus desempenhos. Isto rapidamente o atirou para uma conversa com a senhora, evaporando-se prontamente toda a lembrança da sua recente discussão com Nicholas.
Tendo sido levantados da mesa os mais substanciais artigos de comida, e começando a circular o ponche, o vinho e os licores, os convidados, pouco a pouco, cairam num silêncio de morte, embora a maioria relanceasse, de vez em quando, para Mr. Snittle Timberry, não hesitando mesmo, os espíritos mais atrevidos, em bater na mesa com os nós dos dedos e raramente intimarem os outros com encorajamentos como estes, agora, Timi, Acorde, Mr. Presidente, Está tudo pronto, sir, aguardamos o seu brinde.
A estas censuras Mr. Timberry não se dignou replicar se não dando indicações de ser ainda vítima da indisposição,enquanto Mr. Crummles estava muito graciosamente na cadeira bebendo um pouco de ponche com o mesmo ar com que costumava tomar longos tragos de coisa alguma nos banquetes do palco. Por fim, Mr. Snittle Timberry levantou‑se com uma mão no colete e outra na caixa do rapé, e fez um grande discurso com abundância de citações ao seu amigo Mr. Crummles e terminou estendendo a mão direita para um lado e a esquerda para o outro. Depois foram feitos vários brindes a alguns dos presentes. O literato emborrachara-se, dormindo na cadeira e, finalmente, depois de estar muito tempo sentado, Mr. Snittle Timberry vagou o assento e o grupo dispersou depois de muitos adeuses e abraços.
Nicholas ficou para o fim para dar os presentes e quando disse adeus a todos e chegou a vez de Mr. Crummles, notou a diferença entre a presente separação e a sua partida de Portsmouth.
‑Éramos uma pequena companhia muito feliz, Johnson ‑ disse o pobre Crummles. ‑ Você e eu nunca tivemos uma palavra. Amanhã de manhã ficarei contente por pensar que o vejo novamente, mas agora quase desejava que não tivesse vindo.
Nicholas ia para dar uma alegre resposta quando ficou desconcertado pela súbita aparição de Mrs. Grudden, que lhe deitou os braços ao pescoço com grande afeição.
‑O quê! Também vai? ‑ perguntou Nicholas com uma graça como se ela fosse a mais bela jovem do mundo.
‑Ir? ‑ replicou Mrs. Grudden. ‑ Deus seja connosco! O que pensa que eles fariam sem mim?
Nicholas deu um outro abraço apertado com uma graça maior do que antes e acenando o chapéu tão alegremente quanto lhe foi possível, despediu‑se de Vincent Crummles.
Os progressos da família Nickleby e a continuação da aventura do vizinho
Enquanto Nicholas ocupava nas horas vagas os pensamentos em Madeline Bray, que via de vez em quando, executando as missões que o irmão Charles lhe confiava, Mrs. Nickleby e Kate viviam em perfeita paz, apenas quebrada pelos processos adoptados por Mr. Snawley para reaver o filho, tornando-lhe com isso a saúde bastante precária pelos constantes sustos e sobressaltos que lhe dava. Da parte do pobre rapaz não havia queixa alguma e esforçava‑se sempre por executar alegremente os pequenos serviços de que o incumbiam, embora em muitas ocasiões se visse que estava realmente doente. Um médico de grande reputação, consultado por Nicholas, afirmou não haver causa para alarme, apesar de não encontrar sintomas para um diagnóstico definitivo. Nicholas confortava‑se com a esperança compartilhada pela mãe e irmã, e o objecto da sua solicitude respondia, sempre que o interrogavam, sentir-se melhor.
Muitas vezes, anos depois, recordava-se Nicholas daquele pequeno aposento ao luscofusco das tardes de Verão, onde ele e Kate se sentavam, e do canto escuro onde Smike costumava estar, ficando os três em silêncio apenas interrompido pela voz musical e alegres gargalhadas de Kate.
Se o irmão Charles, por ter achado Nicholas digno da sua confiança, lhe dava provas todos os dias da sua amabilidade, não se esquecia, daqueles que dele dependiam, enviando a Mrs. Nickleby pequenos presentes, tendentes a embelezar a cottage. Se, por acaso, o irmão Charles e o irmão Ned falhavam as suas visitas ao domingo, ou à noite durante a semana, lá estava Tim Linkinwater para compensar essas faltas, e ficando, muitas vezes, para descansar. Mr. Frank Cheeryble, da sua parte, por um estranho conjunto de circunstâncias, passava pela porta três noites por semana, a caminho dos seus negócios.
‑ O jovem mais atencioso que ainda vi, Kate ‑ afirmou Mrs. Nickleby à filha uma noite, quando este último cavalheiro tinha sido o assunto do merecido elogio da senhora durante algum tempo, enquanto Kate ficava silenciosa.
‑ É atencioso, mamã ‑ confirmou Kate.
‑Meu Deus, Kate! ‑ exclamou Mrs. Nickleby com o seu velho costume de fazer observações repentinas. ‑ Que cor tu tens! Estás vermelha.
‑Oh, mamã! Que estranhas coisas fantasia!
‑Não é fantasia, Kate, minha querida, tenho a certeza disso ‑ retorquiu a mãe. ‑ Mas agora desapareceu, por isso não é caso para discutir se estavas ou não. De que estávamos a falar? Oh! De Mr. Frank. Nunca vi uma tal atenção na minha vida, nunca.
‑Certamente não está a falar a sério! ‑ replicou Kate, corando de novo e desta vez sem discussão.
‑ Não falo a sério! ‑ estranhou Mrs. Nickleby. ‑ Tenho a certeza de nunca ter falado tão seriamente. Direi que a sua delicadeza e atenção para comigo é uma das coisas mais agradáveis que tenho visto em toda a minha longa vida. Não se encontra com frequência um tal procedimento nos jovens, por isso espanta mais quando deparamos com ele.
‑Oh! atenção, mamã ‑ retorquiu Kate apressadamente.
‑Meu Deus, Kate ‑ replicou Mrs. Nickleby. ‑ Que rapariga extraordinária tu és. Por acaso falei da sua atenção para qualquer outra pessoa? Declaro ter pena dele estar ena morado duma senhora alemã.
‑Ele negou, mamã ‑ lembrou Kate. ‑ Recorda‑se dele o dizer na primeira noite que veio cá? Além disso ‑ acrescentou num tom mais delicado ‑ porque devíamos ter pena se assim fosse? Que nos interessa?
‑Nada a nós, Kate ‑ respondeu Mrs. Nickleby ‑ mas alguma coisa a mim, confesso. Gosto que os ingleses se liguem às inglesas e não meio inglês e mais não sei o quê. Dir‑lhe-ei francamente da primeira vez que ele venha, que desejo vê‑lo casado com uma patriota, e veremos o que ele diz a isso.
‑Suplico-lhe que não pense numa tal coisa, mamã!pediu Kate. ‑ De forma nenhuma. Considere. . . como. . .
‑Bem minha querida, como o quê? ‑ perguntou Mrs. Nickleby, abrindo os olhos com assombro.
Antes de Kate poder responder, um duplo bater especial à porta, anunciou que Miss La Creevy as vinha visitar e quando Miss La Creevy se apresentou, Mrs. Nickleby, embora absolutamente disposta a argumentar o assunto anterior, esqueceu tudo na torrente de suposições sobre o carro em que ela viera, supondo que o cocheiro devia ter sido o homem em mangas de camisa, ou o dos olhos pretos, mas qualquer que fosse não tinha encontrado a sombrinha que ela deixara na semana passada; não havia dúvida de terem parado muito tempo a meio caminho de casa, no regresso, ou talvez por vir cheio, seguissem directamente; e, finalmente, deviam ter passado por Nicholas na rua.
‑ Não o vi ‑ afirmou Miss La Creevy. ‑ Mas vi aquela boa alma, Mr. Linkinwater.
‑ Dando o seu passeio nocturno e vindo descansar aqui antes de regressar à City, tenho a certeza ‑ disse Mrs. Nickleby.
‑ Não me parece ‑ retorquiu Miss La Creevy ‑ especialmente por o jovem Mr. Cheeryble estar com ele.
‑Decerto não é uma razão para Mr. Linkínwater não vir cá ‑ observou Kate.
‑Penso que é, minha querida ‑ replicou Miss La Creevy.
‑ Para um jovem Mr. Frank não é um grande passeante, e observo que se cansa e precisa de repousar muito quando vem cá. Mas onde está o meu amigo? ‑ perguntou olhando em redor, depois de ter dado uma dissimulada vista de olhos a Kate. ‑ Ele não foi outra vez raptado, pois não?
‑Ah! Onde está Mr. Smike? ‑ interrogou Mrs. Nickleby ‑ estava agora mesmo aqui.
Depois de feito um inquérito, verificou‑se, com grande espanto da boa senhora, que Smike tinha subido nesse momento a escada e tinha ido para a cama.
‑ uma criatura muito estranha ‑ observou Mrs. Nickleby. ‑ Na passada terça-feira. foi terça-feira? Sim, tenho a certeza que foi. Recordas‑te, Kate, da última vez que o jovem Mr. Cheeryble esteve cá. na última terça‑feira à noite ele fugiu da mesma maneira, no momento de baterem à porta. Não é por ele não gostar de companhia, pois é muito dedicado às pessoas que são dedicadas a Nicholas e tenho a certeza que o jovem Mr. Cheeryble o é. E o mais estranho é ele não ir para a cama, por isso não pode ser por estar cansado. Sei que não vai para a cama por que o meu quarto é pegado ao seu, e quando subi a escada na última terça-feira, muitas horas depois dele, percebi que nem sequer tinha tirado os sapatos e não tinha a vela acesa, por isso devia ter estado a pensar às escuras, durante todo aquele tempo. Palavra, quando penso nisso acho muito extraordinário!
Como os ouvintes não fizeram eco deste sentimento, antes ficaram silenciosos por não saberem o que dizer, ou por não quererem interromper, Mrs. Nickleby reatou o fio do discurso conforme o seu feitio.
Espero que esta inexplicável conduta não seja o começo da sua ida para a cama e viver lá toda a vida, como a Thirsty Woman of Tutbury, ou o Cock Lane Ghòst, ou quaisquer outras criaturas extraordinárias. Uma delas teve ligação com a nossa família. Sem ver algumas velhas cartas que tenho lá em cima não posso dizer se era o meu avô que ia para a escola com a Cock Lane Ghost, ou se era a Thirsty Woman of Tutbury que ia para a escola com a minha avó, Miss La Creevy, decerto. Qual foi o que o padre disse que me não importasse? O Cork Lane Ghost, ou a Thirsty Woman or Tutbury?
‑O Cork Lane Ghost, creio eu.
‑Então não tenho dúvida ‑ disse Mrs. Nickleby ‑ que foi com ele que o meu avô ia para a escola, porque sei que o professor dele era um não conformista e por isso deve ter influído muito na maneira como Cork Lane Ghost procedeu para com o clérigo quando cresceu. Ah! Eduquem um fantasma. uma criança, quero dizer.
Algumas reflexões mais sobre este frutuoso tema foram subitamente interrompidas pela chegada de Tim Linkinwater e de Mr. Frank Cheeryble. Na pressa de os receber, Mrs. Nickleby rapidamente perdeu de vista tudo o resto.
‑Tenho pena que o Nicholas não esteja em casa ‑ disse Mrs. Nickleby. ‑ Kate, minha querida, deves fazer as vezes de Nicholas e as tuas.
‑Basta que Miss Nickleby faça a sua vez ‑ aventurou Mr. Frank. ‑ Eu, se posso permitir‑me dizer isto, oponho‑me a qualquer mudança sua.
‑Por isso, de qualquer modo, ela insistirá para que fiquem ‑ replicou Mrs. Nickleby. ‑ Mr. Linkinwater falou em dez minutos, mas eu não os posso deixar sair tão depressa; Nicholas ficaria muito magoado, tenho a certeza. Kate, minha querida.
Em obediência a um grande número de acenos, sinais e franzimentos de sobrolho, de significação extra, Kate juntou os seus rogos para as visitas ficarem, mas era de observar serem exclusivamente dirigidos a Tim Linkinwater e haver, além disso, um certo embaraço da sua parte, que se comunicava às faces, tornando-a mais graciosa, visível mesmo para Mrs. Nickleby. A boa senhora, porém, atribuiu o facto da filha não estar com o seu melhor vestido, embora, na sua opinião, ela nunca ter tido aparência tão boa.
Nicholas não veio para casa, nem Smike reapareceu, mas estas circunstâncias não tiveram grande influência sobre a pequena reunião, a dizer a verdade, a qual estava na melhor disposição possível. Miss La Creevy e Tim Linkinwater começaram por dizer um ao outro várias graças, que pouco a pouco degeneraram em ternura. A miniaturista acusava-o dele se conservar ainda solteiro e como Tim afirmasse ainda poder casar se encontrasse uma mulher que lhe agradasse, Miss La Creevy informou‑o que conhecia uma senhora nas condições, tendo, tanto mais, uma boa propriedade. A isto redarguiu Tim que não procurava fortuna, pois ganhava suficiente para o viver moderado de duas pessoas, mas sim uma mulher de disposição alegre e digna, o que foi considerado pelas senhoras como ideias muito honrosas. Tim explanou‑se noutras manifes tações de desinteresse e numa grande devoção pelo belo sexo, o que foi recebido com não menos aprovação. Tudo isto com uma cómica mistura de ironia e de ardor, que despertou muitas gargalhadas e os tornou muito alegres.
Kate, que geralmente era a vida e a alma da conversa, estava mais calada do que o costume e olhava, pensativa, as sombras da noite, sem dar muita atenção a Frank, sentado perto dela. Quando vieram as velas, Kate não pôde suportar o brilho da luz, com grande surpresa de Mrs. Nickleby, tendo de sair do aposento. A surpreza da boa senhora não ficou por aqui. Aumentou quando descobriu a falta de apetite de Kate para a ceia e ia a expandir‑se num grande discurso se não fosse interrompida pela criada, afirmando ter ouvido alguém no aposento ao lado da cozinha.
O barulho continuou, procedente da chaminé, pelo que Frank Cheeryble agarrou numa vela e Tim Linkinwater nas tenazes do fogão e iam averiguar o seu motivo, se Mrs. Nickleby não desmaiasse na cadeira, Isto produziu uma curta pausa, mas por fim foram todos, exceptuando Miss La Creevy e a criada, que ficaram para pedir socorro, em caso de necessidade. Avançando para a porta do misterioso aposento, ouviram uma voz de homem a cantar uma área popular, mas o assombro foi maior ao verem umas pernas dançar por dentro da chaminé. À vista deste caso pouco usual, Tim Linkinwater bateu levemente nos tornozelos do desconhecido, sem produzir efeito algum.
‑Isto deve ser algum ébrio ‑ disse Frank. ‑ Nenhum ladrão anunciaria a sua presença assim.
Ao dizer isto com grande indignação, ‑acendeu a vela para ver melhor as pernas, quando Mrs. Nickleby se lhe agarrou às mãos, proferindo um som agudo, entre exclamação e guincho, e perguntou se as misteriosas pernas não estavam com calções e meias cinzentas.
‑Estão ‑ respondeu Frank, olhando mais de perto. - São calções e. meias grossas de lã cinzenta também. Conhece‑o, ma'am?
‑Kate, minha querida ‑ disse Mrs. Nickleby, sentando-se numa cadeira com uma espécie de desesperada resignação, parecendo indicar que o caso tinha chegado à sua crise e não valia a pena subterfúgios. ‑ Terás a bondade, minha querida, de explicar o assunto. Não o encorajei, de forma alguma, absolutamente nada. Tu sabes isso perfeitamente. Ele foi respeitoso, excessivamente respeitoso, quando se declarou, como tu foste testemunha. Contudo, ao mesmo tempo, se sou perseguida desta forma por este senhor, se todos os produtos hortícolas juncam o meu caminho fora de casa e os seus desvarios vêm obstruir as chaminés das nossas casas, realmente não sei o que vai ser de mim. É um caso dificil, tão difícil como antes de casar com o teu pobre e querido papá! Quando era quase da tua idade, minha querida, havia um jovem que se sentava junto de nós na igreja, o qual costumava, quase todos os do mingos, entalhar o seu nome em grandes letras na frente do assento, enquanto se dizia o sermão. Era agradável, decerto, mas era, contudo, um aborrecimento porque o assento estava num lugar muito conspícuo e ele foi várias vezes apanhado pelo sacristão a fazer isso. Porém, não é nada comparado com o presente caso. Este é muito pior e muitíssimo mais embaraçoso. Preferia, Kate, minha querida, ter uma cara horrorosa a estar exposta a uma vida assim.
Frank Cheeryble e Tim Lnkinwater olharam com assombro, primeiro entre si e depois para Kate, a qual sentindo ser necessário uma explicação, mas que ansiosa por tornar o assunto o menos ridículo possível, era incapaz de pronunciar uma palavra.
‑Ele causou‑me muita pena ‑ continuou Mrs. Nickleby, secando os olhos ‑ muita pena, mas peço para não lhe molestarem um cabelo. Nem um só cabelo.
Na presente circunstância não seria muito fácil molestar um cabelo da cabeça do cavalheiro, como Mrs. Nickleby parecia imaginar, visto o corpo estar acima da chaminé. Durante todo este tempo ele não tinha deixado de cantar sobre o amor e a quebra de palavra da linda rapariga, e agora começava, não só a grasnar mais fortemente, mas a agitar as pernas com mais violência, como se a respiração se lhe tornasse dificil. Frank Cheeryble, sem mais hesitações, puxou pelos calções e pelas meias com tão boa vontade que o homem caiu dentro do aposento com maior precipitação do que fora calculado.
‑Oh, sim, sim! ‑ disse Kate assim que todo o corpo do singular visitante apareceu. ‑ Sei quem é! Suplico que não sejam rudes para com ele. Está ferido? Espero que não... Vejam, sim?
‑Não está, asseguro‑lhe ‑ respondeu Frank, tratando o objecto da sua surpresa com ternura e respeito em vista deste apelo. ‑ Não tem o mínimo ferimento.
‑ Não o deixe aproximar‑se ‑ pediu Kate, afastando‑ se o mais que pôde.
‑Não, não se aproximará ‑ replicou Frank. ‑ Bem vê que o tenho seguro. Mas posso perguntar‑lhe o que significa isto e se esperava este cavalheiro de idade?
‑ Oh, não! ‑ retorquiu Kate ‑ decerto não; mas ele. a mamã não pensa assim, é um maluco que se escapou da casa vizinha e deve ter aproveitado uma oportunidade para se esconder aqui.
‑ Kate ‑ censurou Mrs. Nickleby com grande dignidade - estou completamente espantada de que te ponhas ao lado dos perseguidores deste infeliz cavalheiro quando sabes muito dos seus baixíssimos projectos sobre os bens dele, sendo esse o segredo do caso. Seria muito mais gentil da tua parte, Kate, pedires a Mr. Linkinwater, ou a Mr. Cheeryble, para intervir a seu favor, fazendo‑lhe justiça. Não deves permitir que os teus sentimentos te influenciem! Supões quais deveriam ser os meus sentimentos? Quem é que se devia sentir indignada? Eu, decerto, e muito justamente. Contudo, ao mesmo tempo, não cometeria essa injustiça. Não ‑ continuou Mrs. Nickleby, levantando-se e olhando para outro lado cam uma espécie de acanhamento. ‑ Este cavalheiro compreender‑me‑á quando lhe repetir a resposta que dei outro dia, a qual lhe repetirei sempre, embora o creia sincero quando o encontrei em tão terrível situação por minha causa. e quando lhe pedi para ter a bondade de se ir embora, ou ser‑me impossível esconder o seu procedimento do meu filho Nicholas. Estou‑lhe obrigada, muito obrigada, mas não posso escutar as suas súplicas. É completamente impossível.
Enquanto era feito este discurso o velho senhor, com o nariz e a cara empastados de fuligem, sentou‑se no chão com os braços cruzados, olhando para os espectadores em profundo silêncio e numa atitude verdadeiramente majestática. Parecia não ter ouvido nada de que Mrs. Nickleby dissera, mas quando ela acabou de falar honrou‑a com um longo olhar fixo e perguntou‑lhe se tinha terminado.
‑ Nada mais tenho a dizer ‑ respondeu a senhora modestamente.
‑ Muito bem ‑ disse o velho senhor, levantando a voz - então traga o raio engarrafado, um copo limpo e um saca‑ rolhas.
Como ninguém cumprisse a ordem, o senhor, depois duma curta pausa, levantou a voz e pediu uma sanduiche de trovão. Como nem este artigo fosse servido, encomendou um fricassé de canhões de botas de molho de carpa dourada e depois, rindo alegremente, recompensou os ouvintes com um berro muito prolongado, e muitíssimo melodioso. Mas Mrs. Nickleby, em resposta aos olhares significativos que lhe dirigiam, abanou a cabeça para lhes indicar que tudo isto era uma pequena excentricidade. Parece que Miss La Creevy sentindo a paciência esgotada e desejosa de ver o que se passava, entrou no aposento quando o senhor berrava. Parece, que quando o senhor a viu parou de berrar e começou a beijar a sua própria mão, fazendo com que a miniaturista se refugiasse atrás de Tim Linkinwater quase aterrada.
‑Ah! ah! ‑exclamou o velhote, cruzando as mãos e apertando‑as com força. ‑ Vi-a agora; vi‑a agora! Meu amor, minha esposa, minha pérola. Ela veio por fim. por fim. e tudo é gás e polainas!
Mrs. Nickleby pareceu ficar desconcertada por um momento, mas, recobrando‑se imediatamente, fez sinal com a cabeça várias vezes para Miss La Creevy e para os outros espectadores contraiu as sobrancelhas e sorriu gravemente, dando‑lhes a entender que via onde estava o engano e ir pôr as coisas no seu lugar.
‑ Ela veio! ‑ repetiu o velho senhor, pondo a mão no coração. ‑ Cormoran e Blunderbore! Toda a fortuna que tenho é para ela, se me tomar por escravo. Onde há graça, beleza e carinhos como os seus? Na Imperatriz de Madagascar? Não. Na Rainha dos Diazzantes? Não. Na Mrs. Rowland, que todas as manhãs se banha em Kalydor para nada? Não. Misturem‑se todas estas numa, com as três Graças, as nove Musas e catorze filhas dos fabricantes de bolos de Oxford Street e façam uma mulher com metade da sua amabilidade. Desafio-os.
Depois de proferir esta miscelânea, o velho deu estalos com os dedos e depois cessou as suas extáticas contemplações dos encantos de Miss La Creevy. Isto deu a Mrs. Nickleby uma favorável oportunidade de se explicar, e foi directamente a ela.
‑ Tenho a certeza ‑ disse a estimável senhora com uma tosse a servir de prelúdio ‑ de haver um grande alívio em tão crueis circunstâncias, para ninguém se enganar comigo. um grande alívio; e é uma circunstância que nunca aconteceu antes, embora eu me enganasse várias vezes com a minha filha Kate. Não tenho dúvida de que as pessoas estavam patetas e deviam, talvez, saber mais, mas ainda que me tomasse por ela seria, com certeza, muito duro se me tornasse responsável por isso. Contudo, neste caso, teria procedido excessivamente mal se fizesse sofrer alguém por se sentir incomodado por minha causa, por isso creio ser do meu dever dizer a este cavalheiro que está enganado. que sou eu a senhora por ele tomada como sobrinha do Comissário das Obras Públicas e que lhe peço e rogo para se retirar sossegadamente, quanto mais não seja por ‑ aqui Mrs. Nickleby sorriu‑se afectadamente e hesitou ‑. por minha causa!
Podia esperar‑se que o velhote se deixaria penetrar pela delicadeza e afabilidade deste apelo e replicaria, cortês e agradavelmente, mas qual não foi o choque de Mrs. Nickleby quando, encostando-se a ela duma maneira clara, gritou em voz sonora:
‑ Sai daqui. Gata!
‑ Sir! ‑ exclamou Mrs. Nickleby numa voz fraca.
‑ Gata! Gatinha, gatita, Tit Grimalkin, Tabby, Brindle - dizia o velhote em voz sibilante, por entre os dentes, agitando os braços e avançando e recuando para Mrs. Nickleby, à maneira duma dança selvagem, como nos dias de mercado os rapazes executam para meter medo aos porcos, carneirus e outros animais, quando eles se mostram teimosos para seguir o seu caminho. Mrs. Nickleby não perdeu palavras; soltou uma exclamação de horror e de surpresa, caindo imediatamente desmaiada.
‑ Eu socorro a mamã ‑ disse Kate rapidamente. ‑ Não estou muito assustada. Mas suplico-lhes que o levem daqui!
Frank não estava muito confiado no seu poder de cumprir éste pedido até pôr em prática o estratagema de mandar Miss La Creevy dar alguns passos e insistir para o senhor a seguir. Foi quase um milagre: ele continuou num entusiasmo de admiração, guardado por Tim Linkinwater dum lado e Frank do outro.
‑ Kate ‑ murmurou Mrs. Nickleby, voltando a si quando o caminho estava livre. ‑ Ele foi‑se embora?
A filha assegurou‑lhe que sim.
‑Nunca me perdoarei, Kate. Nunca! Este cavalheiro perdeu o juízo e eu sou a infeliz causa!
‑ A mamã a causa? ‑ exclamou Kate, atónita.
‑ Eu, meu amor! ‑ respondeu Mrs. Nickleby com desesperada calma. ‑ Viste o que ele foi outro dia; vês o que é hoje. Disse ao teu irmão, há muitas semanas, Kate, que esperava que um desapontamento não fosse grande coisa para ele. Vês a ruina que ele é. Tendo-se permitido ser um pouco distraido, sabes como falou com juizo, e polidez no jardim. Ouviste a quantidade de disparates que disse esta noite e a maneira como se comportou com essa infeliz solteirona. Pode alguém duvidar de como tudo isto nasceu?
‑ Custa-me a pensar como se pode ‑ disse Kate suavemente.
Eu também me custa ‑ retorquiu a mãe. ‑ Se eu fosse a infeliz causa disto tinha a satisfação de saber não ter de que me queixar. Disse a Nicholas. Nicholas, meu querido, devemos ter muita cautela na maneira de proceder. Ele mal me ouviu e se o assunto tivesse sido devidamente tratado ao princípio, como desejei. Mas ambos são tal qual como o vosso pobre papá. Contudo tenho a minha consolação e ela é suficiente para mim.
Lavando, assim, as mãos de toda a responsabilidade deste caso, passado, presente ou futuro, Mrs. Nickleby amavelmente, acresçentou poder esperar que os seus filhos nunca fossem causa de censura como ela e preparou‑se para receber a escolta que voltou a seguir, com a notícia do senhor ter chegado a casa e ter sido entregue nas mãos dos seus guardas, que estavam em alegre convívio com alguns amigos, ignorantes da sua ausência.
Restaurado o sossego passou‑se uma deliciosa meia hora, assim o confessou Frank quando foi para casa com Tim Linkinwater ‑ em conversa, notando Tim, por fim, ser mais do que tempo de regressar a penates; deixaram as senhoras, não sem Frank se oferecer muitas vezes para ficar até chegar Nicholas, até qualquer hora da noite, visto que depois da última erupção do vizinho elas podiam ter medo. Mas não manifestaram essa apreensão, não havia razão para insistir; portanto, teve de abandonar a cidadela e retirar‑se com Tim.
Passaram‑se perto de três horas em silêncio e Kate envergonhou-se por acabar de estar tanto tempo só, ocupada nos seus pensamentos, quando regressou Nicholas.
‑ Pensava, realmente, não ter sido mais de meia hora - confessou ela.
‑ Então devem ter sido alegres os pensamentos, Kate - observou Nicholas com satisfação ‑ Que fizeram para passar o tempo dessa maneira. foram?
Kate ficou confusa; brincou com qualquer coisa na mesa, olhou para cima e sorriu; olhou para baixo e caiu uma lágrima.
‑ O que é isso, Kate? ‑ perguntou Nicholas, puxando a irmã para si e beijando-a. ‑ Deixa-me ver a tua cara. Não? Ah! foi apenas súbito lampejo. Uma cara melhor do que essa, Kate! vamos... vou ler os teus pensamentos!
Houve qualquer coisa nesta proposta, apesar da maneira como foi dita, sem a mais leve consciência ou intenção, que alarmou tanto a irmã, que Nicholas, rindo, mudou de assunto para factos internos e assim, soube pouco a pouco, quando abandonaram o aposento e subiram as escadas juntos como Smike estivera só toda a noite, e foi muito a pouco e pouco, pois Kate parecia ter relutância em falar nisto.
‑Pobre rapaz!‑comentou Nicholas, batendo-lhe mansamente à porta. - Qual poderá ser a causa de tudo isto?
Kate pendurava‑se no braço do irmão e abrindo-se a porta rapidamente, ela não teve tempo de se libertar antes de Smike, muito pálido e completamente vestido, os encarar.
‑ Não estavas na cama? ‑ perguntou Nicholas.
‑ N. n. não ‑ foi a resposta.
Nicholas suavemente manteve a irmã, que se esforçava por se retirar, e perguntou:
‑Por que não?
‑ Não podia dormir ‑ respondeu Smike, apertando a mão que o amigo lhe estendia.
‑ Não estás bem? ‑ interrogou Nicholas.
‑ Na verdade estou melhor. muito melhor ‑ replicou Smike rapidamente.
‑ Então por que são esses ataques de melancolia ‑ inquiriu Nicholas à sua maneira mas amável ‑ ou porque não nos dizes a causa? Estás a tornar‑te diferente, Smike.
‑ Estou, sei que estou ‑ concordou ele. ‑ Um dia dir‑lhe‑ei a razão, mas não agora. Odeio-me por isso; são todos tão bons e amáveis. Mas não posso ter mão nisto. O meu coração está muito cheio. não sabe como ele está cheio!
Apertou com força a mão de Nicholas antes de a largar e, dando uma rápida vista de olhos pelo irmão e pela irmã, como se houvesse alguma coisa na forte afeição de ambos que o tocasse muito profundamente, desapareceu e, em breve, era a única pessoa acordada sob aqueles tectos sossegados.
Uma séria catástrofe
A corrida de cavalos em Hampton estava no seu máximo de formação com um dia cheio de sol num céu sem nuvens. Tudo brilhava, desde o esplendor das carruagens até às bandeiras, que pareciam novas. A grande corrida terminou e os grandes aglomerados de pessoas desfizeram‑se, emprestando uma nova animação à cena. Uns foram espreitar o cavalo vencedor, outros tomavam providências para regressar a suas casas. As ten das de jogos apresentavam uma cessão mais, apenas. Havia o clube dos Estrangeiros, o Athenaeum, o Hampton, o St. James e uma meia milha com clubes, onde se jogavam as cartas e a roleta. É numa destas tendas que a história se desenrola.
Mobilada com três mesas para o jogo, a casa estava coalhada de jogadores e curiosos. Exceptuando dois homens, o resto parecia não estar interessado em perder ou ganhar. Contudo, havia duas pessoas presentes que, como espécimes peculiares da classe merecem uma passageira descrição. Um deles era um homem de cinquenta e oito ou sessenta anos, sentado numa cadeira perto duma das entradas da tenda, com as mãos cruzadas no castão da bengala e o queixo apoiado neles. Era gordo, de tronco comprido, com um casaco verde abotoado até ao pescoço, calções de pano grosso de lã e polainas; um lenço branco de pescoço e um chapéu de abas largas. No meio do barulho dos jogos parecia propriamente calmo e abstracto, sem a mais ligeira partícula de excitação. As vezes, mas muito raramente, cumprimentava com a cabeça alguém que passava, ou fazia sinal a um parceiro de uma chamada duma das mesas. Parecia estar ali para descansar. No entanto, era o proprietário da tenda.
O outro presidia à mesa do rouge‑ct‑noir. Era provavelmente alguns dez anos mais novo; uma pessoa pançuda, forte com o lábio inferior um pouco saliente pelo hábito de contar dinheiro. Não usava casaca por a atmosfera estar quente e tinha à sua frente umas pilhas de coroas e meias coroas e uma caixa de ferro com notas. Este homem rolava a bola, observava Pazadas quando eram feitas, para apanhar aquelas que perdiam, ou pagar as que ganhavam, fazendo tudo isto com o máximo expediente, conservando o jogo, perpetuamente, em movimento. Fazia isto com uma rapidez maravilhosa, nunca hesitando, nunca se enganando, nunca parando e nunca cessando de repetir as mesmas frases sem ligação, com o mesmo tom monótono e aproximadamente na mesma ordem, durante todo o dia:
‑Rouge‑et‑noir de Paris! Cavalheiros, façam o vosso jogo e apostem conforme os vossos palpites. enquanto a bola gira. rouge‑et‑noir de Paris, cavalheiros, é um jogo francês, cavalheiros, trouxe‑o comigo! Rouge‑et‑noir de Paris. preto ganha. pára um minuto, sir, vou‑lhe pagar imediatamente. duas ali. meia coroa acolá, três mais além. e uma ali. cavalheiros, a bola está a girar. Enquanto quiserem, sir, enquanto a bola gira! A excelência deste jogo é de se poder dobrar as paradas, ou deixar o dinheiro, cavalheiros, sempre que queiram, enquanto a bola gira. o preto outra vez. o preto ganha. nunca vi uma tal coisa. nunca vi em toda a minha vida, palavra! Se qualquer cavalheiro tivesse apostado no preto nos últimos cinco minutos, devia ter ganho quarenta e cinco libras em quatro rotações da bola. Cavalheiros, temos vinho do Porto, Xerez, charutos e excelente champanhe. Criado, traga uma garrafa de champanhe e uma dúzia ou quinze de charutos para aqui. e ponham‑se à vontade, cavalheiros. e traga copos limpos. sempre que queiram, enquanto a bola gira! Perdi ontem cento e trinta e sete libras, cavalheiros, num giro da bola perdi, de facto. como está, sir? Bebe um cálice de Xerez, sir? Criado, traga um cálice limpo e leve o Xerez áquele senhor e passe‑o depois em roda, se faz favor. Este é o rouge‑ et‑noir de Paris, cavalheiros. sempre que queiram, enquanto a bola gira!. cavalheiros. Façam o vosso jogo.
Estava o homem nesta cegarrega quando entrou uma meia dúzia de pessoas, a quem se inclinou respeitosamente sem deixar de falar, e ao mesmo tempo fazia um sinal ao homem por detrás dele para a figura mais alta do grupo, a quem o proprietário tirou o chapéu. Era Sir Mulberry Hawk com o seu amigo e pupilo, e um pequeno séquito de homens bem trajados, mas de modos mais duvidosos do que obscuros. O proprietário, em voz alta, deu os bons‑dias a Sir Mulberry, o qual, no mesmo tom, mandou o proprietário ao diabo e voltou‑se para falar com os amigos.
Era evidente que estava irritado por ser objectivo de curiosidade depois do incidente que tivera, e era fácil perceber que aparecera na corrida de cavalos nesse dia, mais na esperança de se encontrar com muita gente sua conhecida para saber a sua opinião, da que para se divertir. Tinha ainda uma ligeira cicatriz na cara e sempre que se encontrava com um conhecido, esforçava‑se para a esconder com a luva.
‑ Ah! Hawk! ‑ disse um.
‑ Como vai, querido amigo?
Era um educador de jovens nobres e cavalheiros, pessoa a quem, sobre todas as outras, Sir Mulberry mais odiava e temia encontrar. Apertaram as mãos cordialmente.
‑ E como está agora, querido amigo?
‑ Perfeitamente bem! ‑ respondeu Sir Mulberry.
‑ Muito estimo ‑ replicou o outro. ‑ Como vai, Verisopht? Aqui o seu amigo, está um pouco abatido. bastante fora do seu estado normal, hein?
Deve‑se observar que o cavalheiro tinha dentes muito brancos, havendo desculpa para o riso com que geralmente acabava as frases.
‑Ele está em muito bom estado; nada há que o incomode! ‑ disse o jovem, negligentemente.
‑ Palavra! Sinto‑me satisfeito em ouvir isso ‑ retorquiu o outro. ‑ Acabaram de regressar de Bruxelas?
‑ Apenas chegamos à cidade ontem à noite ‑ informou Lorde Verisopht. Sir Mulberry voltou‑se para falar com um dos doseu séquito e fingiu não ouvir.
‑ Pela minha vida ‑ disse o amigo, fingindo falar em segredo ‑ é uma ousadia invulgar o Hawk mostrar‑se tão depressa. Digo isto como conselho; é preciso muita coragem. Bem vê ele esteve muito tempo desterrado para não excitar a curiosidade, mas não bastante para as pessoas terem esquecido aquele desagradável e endiabrado assunto. A propósito, conhece, decerto, o assunto? Porque nunca o desmentiram esses malditos jornais? Raras vezes leio os jornais, mas olhei para eles por causa disso e possa ser...
‑ Olhe para os jornais ‑ interrompeu Sir Mulberry, voltando-se subitamente ‑ amanhã. não, no dia seguinte, quer?
‑Pela minha vida, meu querido amigo, eu raramente, ou nunca, os leio ‑ afirmou o outro, encolhendo os ombros ‑ mas lêlos‑ei por recomendação sua. O que encontrarei lá?
‑ Bom‑dia ‑ despediu‑se Sir Mulberry, girando sobre os calcanhares e levando o pupilo consigo; caindo outra vez na paz descuidada e vadia, sairam de braço dado.
‑ Hei‑de‑lhe dar a ler o caso de assassinato ‑ murmurou Sir Mulberry com úma praga ‑ mas será uma coisa muito próxima se o chicote corta e o cacete moi.
O companheiro nada disse, mas houve qualquer coisa nas suas maneiras que levou Sir Mulberry a acrescentar irritadamente, muito próximo da ferocidade, como se visse o próprio Nicholas:
‑Mandei o Jenkins ao velho Niekleby esta manhã, antes das oito horas. Ele é fiel. Chegou antes do mensageiro. Em cinco minutos recebi todas as informações. Sei onde esse sabujo se pode encontrar com tempo e também o lugar. Mas não é preciso falar; amanhã estaremos aqui cedo.
‑ E o que. se vai fazer amanhã? ‑ inquiriu Lorde Verisopht.
Sir Mulberry Hawc honrou‑o com um olhar zangado, mas condescendeu em não dar resposta verbal a esta pergunta, e ambos caminharam enfadados como se os seus pensamentos estivessem muito ocupados, até se verem livres da multidão e quase sós, quando Sir Mulberry se voltou, para regressar.
Pára - disse ao companheiro. ‑ Quero falar contigo. seriamente. Não regresses. Passemos aqui alguns minutos.
‑O que tens para me dizer, que o não possas fazer tão bem ali adiante, como aqui? ‑ perguntou‑lhe o mentor, desembaraçando o braço.
‑ Hawk ‑ replicou o outro ‑ diz-me. quero saber.
‑ Queres saber! ‑ interrompeu o outro desdenhosamente.
‑ Continua. Se queres saber, decerto não há escapatória para mim.
‑ Quero perguntar, então ‑retorquiu Lorde Fredericke - devo insistir para que me dês uma resposta clara e fiel. O que disseste foi apenas uma bravata de momento, ocasionada pelo teu mau humor e irritação, ou é uma intenção séria em que tens estado a meditar?
‑O quê! Então não te lembras que tratámos o assunto uma noite, quando eu estava na cama com uma perna partida?
‑ perguntou Sir Mulberry com um riso escarninho.
‑ Perfeitamente.
‑Então toma isso como resposta, em nome do diabo!disse Sir Mulberry ‑ e não me peças outra!
Tál era a ascendência que ele adquirira sobre o seu crédulo amigo e o costumado hábito de submissão deste, que o jovem pareceu mais receoso em continuar com o assunto. Porém depressa venceu este sentimento, como se o desoprimisse completamente, e retorquiu zangado:
‑ Se me lembro do que se passou na ocasião em que falas, exprimi vincadamente a minha opinião sobre o assunto e disse que, com a minha aquiescência ou consentimento, nunca farias o que planeias agora.
‑Impedes-me? ‑ perguntou Sir Mulberry com uma fria gargalhada.
‑ Sim, se puder ‑ respondeu o outro prontamente.
‑ Uma decisão de socorro muito própria ‑ comentou Sir Mulberry ‑ de que uma pessoa deve precisar. Trata dos teus negócios e deixa‑me cá com os meus.
‑ Este assunto é meu ‑ replicou Lorde Frederick. ‑ Faço-o meu; fá‑loei meu. Já é meu. Estou mais comprometido do que devia.
‑ Faze o que quiseres e como quiseres ‑ disse Sir Mul berry, aparentando um fácil bom humor. ‑ Certamente isso deve contentar‑te. Nada faças por mim. Não aconselho ninguém em intervir nas atitudes que eu entendo tomar. Tenho a certeza de saber bem o que tenho a fazer. Vejo que me ofereces o teu conselho. E bem intencionado, não há dúvida, mas eu rejeito‑o. Agora, se dás licença, voltamos para a carruagem. Não encontro divertimento aqui; pelo contrário, e se prolongamos esta conversa podemos ter uma questão, o que não seria prova de siso de qualquer de nós.
Com esta réplica e sem esperar resposta, Sir Mulberry Hawk bocejou e muito vagarosamente, voltou‑se.
O domínio de Sir Mulberry sobre o jovem lorde tinha perdido muito da sua influência e quando o primeiro se tornava violento, o pupilo respondia da mesma maneira. Quando podia prendê‑lo, adoptara um estilo frio e lacónico, e agora tinha muito pouca esperança de o conseguir. Enquanto foi um instrumento passivo nas suas mãos, Sir Mulberry desprezava‑o, mas agora que emitia opiniões contrárias às suas e assumia um ar superior, odiava‑o quando o jovem tomava uma atitude honesta e varonil com respeito ao assunto Nicholas.
Foi neste estado de espírito que regressaram à cidade: Lorde Frederick pensando na forma de evitar a vingança e Sir Mulberry tomando o silêncio como um sinal de o ter dominado e aproveitando esta circunstância para mostrar aos outros amigos da mesma casta, que não tinha perdido a sua influência. Jantaram juntos. O vinho correu livremente, como correra todo o dia. Sir Mulberry bebeu para se recompensar da sua recente abstinência, o jovem lorde para afogar a sua indignação, e o resto do séquito por o vinho ser do melhor e eles não terem de o pagar. Era cerca da meianoite quando sairam, desenfreados, com o álcool a ferver, o sangue a escaldar e os miolos em fogo, indo para a mesa do jogo. Aqui encontraram outro grupo de doidos como eles. A excitação do jogo, o aquecimento dos aposentos e o brilho das luzes, foram os aliados para a febre do momento. Foi bebido mais vinho, cruzaram‑se pragas, alguns subiram para a mesa, agitando garrafas por cima das cabeças; outros dançavam e outros ainda cantavam. O tumulto e a loucura estavam no auge quando se levantou um barulho e, dois homens, agarrando‑se pelo pescoço, lutavam no meio do aposento. Uma dúzia de vozes gritou para os apartarem. Os que conservavam o sangue‑frio atiraram‑se para o meio dos antagonistas e arrastaram‑nos, cada um para o seu lado.
‑ Deixem‑me ‑ gritou Sir Mulberry numa voz roucaEle bateu‑me. Ouvem‑me? Digo que ele me bateu. Tenho aqui algum amigo? Quem é este? Westwood. Ouves‑me dizer que ele me bateu?
‑ Ouço, ouço! ‑ respondeu um dos que o segurava. ‑ Vamos, por hoje!
‑ Não vou, por Deus! ‑ retorquiu ele ferozmente. ‑ Uma dúzia de pessoas aqui, viu que ele me bateu.
‑ Amanhã há muito tempo ‑ disse o amigo.
‑ Não é amanhã! ‑ exclamou Sir Mulberry. ‑ esta noite. imediatamente. aqui.
A ira era tão grande que ele não podia articular, limitando -se a agarrar o pulso, arrancar os cabelos e bater com os pés no chão.
‑ O que é isto, meu lorde? ‑ perguntou um dos que o rodeava. ‑ Houve tareia?
‑ Houve ‑ foi a resposta, dada a arquejar. ‑ Bati‑lhe. proclamo‑o a todos aqui! Bati‑lhe e ele sabe porquê. Deixem agora ajustar esta questão com ele. Capitão Adams ‑ chamou o jovem lorde dirigindo-se a um dos que se tinha interposto. Peço‑lhe para ter uma conversa comigo.
A pessoa a quem este pedido foi dirigido avançou e, agarrando o braço do jovem, retirou‑se com ele, seguido de perto por Sir Mulberry e o amigo. E os espectadores desta cena dividiram‑se em dois partidos: um que ficou a discutir o caso e outro que se deitou nos sofás e adormeceu. Entretanto, as duas testemunhas encontraram‑se num outro aposento. Estes cavalheiros estavam desusadamente contentes por o assunto causar algum barulho e decerto lhes aumentar os créditos.
‑ É um negócio levado do diabo, Adams! ‑ disse Wes twood, levantando‑se.
‑ Muito ‑ concordou o capitão. ‑ Foi dada uma bofetada e não houve réplica.
‑ Nem desculpa? ‑ inquiriu Westwood.
‑Nem uma sílaba, sir, do meu constituinte, mesmo que conversemos até ao dia da juízo. A causa da questão, segundo percebi, foi qualquer rapariga, a quem o seu constituinte aplicava certos termos, o que Lorde Frederick, defendendo-a, repelia. Mas isto levou a uma série de recriminações sobre assuntos porcos, acusações e contra acusações. Sir Mulberry foi sarcástico; Lorde Frederick estava exaltado e bateu‑lhe no calor da provocação e em circunstâncias para o agravar. Essa bofetada, desde que haja uma completa retratação da parte de Sir Mulberry, Lorde Frederick está pronto a justificar‑se.
‑ Nada há mais a dizer se não combinar a hora e o local do encontro - replicou o outro. ‑ Éuma responsabilidade, mas é uma honra acabar com isto. Opõe-se a que seja ao nascer do sol?
‑ Belo trabalho ‑ disse o capitão, referindo-se ao relógio.
‑ No entanto, como isto parece levar muito tempo a considerar e a negociar e foi apenas uma troca de palavras. não.
‑Possivelmente pode dizer‑se alguma coisa fora daqui, depois de termos passado para o outro aposento, pois é de desejar sairmos sem demora para fora da cidade ‑ sugeriu Wes twood. ‑ O que diz a um dos prados em frente deItrickenham, ao lado do rio?
O capitão não viu inconveniente.
‑Encontrar‑nos-emos na avenida das árvores que vai de Petersham para Ham House e ajustaremos o local exacto quando lá chegarmos ‑ disse Mr. Westwood.
A isto também assentiu o capitão e depois de outros poucos preliminares igualmente breves, separaram‑se.
‑ Teremos muito tempo, meu lorde ‑ disse o capitão, quando lhe comunicou o combinado ‑ para passar pelo meu quarto para ir buscar a caixa das pistolas e depois abalarmos. Se me permite que dispense o seu criado, irá no meu carro, pois o seu, pode ser talvez reconhecido.
Quando chegaram à rua era quase o despontar do dia, tendo a luz amarela da casa sido substituída por uma manhã clara, luminosa, linda.
‑ Está a tremer? ‑ perguntou o capitão. ‑ Está com frio.
‑ Bastante.
‑ Sent-se frio quando se vem daqueles aposentos quentes. Embrulhe‑se nesta capa. Assim, assim; agora vamo‑nos embora!
Pararam na cancela da avenida e deixaram o carro ao cuidado do criado, acostumado a estes procedimentos do patrão. Sir Mulberry e o amigo já lá estavam. Todos os quatro se encaminharam em profundo silêncio para o lado dos enormes olmos.
Depois duma curta pausa e duma breve conferência entre as testemunhas, voltaram todos à direita, passaram Ham House e chegaram a uns campos, num dos quais pararam. O terreno foi medido e depois de cumprides algumas fórmulas usuais, os antagonistas foram colocados frente a frente. Os dois tiros foram dados no mesmo instante. E, nesse instante, o jovem lorde voltou vivamente a cabeça, fixou no adversário um olhar horrroroso e, sem um gemido, caiu redondamente no chão, morto.
‑ Morreu! ‑ exclamou Westwood, que com a outra testemunha, correu para o corpo e ajoelhou ao lado.
‑ O sangue dele que caia sobre a sua cabeça ‑ disse Sir Mulberry. ‑ Concebeu isto e forçou‑me a participar!
‑ Capitão Adams ‑ gritou Westwood apressadamente. Tomo-o como testemunha em como isto foi feito com correcção. Hawk, não temos um minuto a perder. Temos de deixar imediatamente este lugar, correr para Brigthon e atravessar para a França a toda a velocidade. Isto foi um mau negócio e pode ser pior se nos demorarmos um momento. Adams, trate da sua segurançça e não fique aqui; a vida primeiro do que a morte. Adeus!
Com estas palavras agarrou no braço de Sir Mulberry e levou‑o consigo. O capitão Adams depois de se convencer do resultado fatal, fugiu na mesma direcção para combinar com o criado a remoção do corpo e tratar da sua segurança.
Assim morreu Lorde Frederick Verisopht pela mão que apertou muitas vezes e que cumulara de presentes, podendo ter vivido como um homem feliz, expirando com os filhos a rodearem‑lhe o leito.
O projecto de Mr. Ralph Nickleby e do amigo, aproximando‑se do final, torna-se inesperadamente conhecido noutro grupo, não sendo admitido
Arthur Gride vivia numa velha casa, triste, sombria e suja, parecendo tão murcha como ele e ter amontoado as rugas como ele amontoara o dinheiro. A mobília era a mais precária, e estragada. Não havia lume para convidar ao descanso e ao conforto. Do mais mesquinho e miserável aposento de todos os desta miserável casa, saía o som trémulo da voz do velho Gride, trinando o final de alguma esquecida canção.
Ta... ram... tam... tu
Atira o sapato velho E possa a boda ser feliz!
que repetiu várias vezes as mesmas notas trémulas e ásperas até um violento ataque de tosse o obrigar a desistir e a continuar, em silêncio, o trabalho em que estava ocupado. Esta ocupação consistia em tirar das prateleiras dum guarda-roupa carunchoso uma quantidade de fatos fedorentos, um a um, examiná‑los cuidadosamente à luz e dobrá‑los para os pôr em dois montes ao lado dele. Nunca tirava mais de um fato e não se esquecia de dar volta à chave da porta do guardafato entre cada visita às prateleiras.
O fato cor de tabaco ‑ disse Arthur Gride, inspeccionando um casaco no fio. ‑ Ficar‑me-à bem a cor de tabaco? Deixa‑me pensar!
O resultado da cogitação pareceu ser desfavorável, pois tornou a dobrar o fato, pô‑lo de lado e subiu para uma cadeira a fim de agarrar noutro, chilreando, enquanto fazia isto:
Jovem, e linda, quanta beldade e amor A boda vai ser feliz!
‑ Eles dizem sempre jovem ‑ comentou o velho Arthur mas as canções são apenas escritas por causa da música e esta é uma cantiga tola que a gente do campo cantava quando eu era rapazinho. Mas espera. jovem também está muito bem. quer dizer a noiva... sim. Quer dizer a noiva). Oh, meu Deus, está muito bem. Está muito bem. Além disso, é verdadeiro. absolutamente verdadeiro!
Com a satisfação desta descoberta continuou a cantar os versos com maior expressão, imprimindo‑lhe um garganteio de vez em quando. Depois voltou ao trabalho.
‑ O verde garrafa ‑ disse o velho Arthur ‑ o verde garrafa foi um famoso fato quando se usou e comprei‑o muito barato numa casa de penhores, e havia um xelim na algibeira do colete. Pensar que o penhorista não sabia que havia lá um xelim! Eu sabia: Senti‑o quando examinava a qualidade. Oh, que estúpido! Foi também um fato feliz, este verde garrafa. No mesmo dia em que o vesti pela primeira vez, o velho Lorde Mallowford morreu na cama e terminaram todos os inquéritos depois da morte. Casar‑me‑ei com o verde garrafa. Peg. Peg Sliderskew. Usarei o verde garrafa!
A este chamamento, repetido duas ou três vezes em voz alta à porta do aposento, apareceu uma velha, baixa, magra, remelosa, atacada de paralisia e horrivelmente feia, que, limpando a cara engelhada ao avental sujo, perguntou, naquele tom mortificado em que vulgarmente os surdos falam:
‑ Foi o senhor a chamar, ou o relógio a dar horas? O meu ouvido está tão mau que nunca sei o que é, mas quando ouço um barulho, sei que deve ser o senhor porque nada mais se mexe nesta casa.
‑ Eu, Peg. eu ‑ disse Arthur Gride, batendo no peito para tornar a resposta mais inteligível.
‑ O senhor. hein? ‑ replicou Peg. ‑ E o que quer?
‑Casar‑me‑ei de verde garrafa ‑ gritou Arthur Gride.
‑E é muito bom para se casar, patrão ‑ retorquiu Peg depois duma curta inspecção ao fato. ‑ Não tem outro pior do que este?
‑ Não falei isso ‑ respondeu o velho Arthur.
‑ Porque não? ‑ perguntou Peg. ‑ Porque não usa os fatos de todos os dias como um homem. hein?
‑Não são suficientes, Peg ‑ retorquiu o patrão.
‑ Não são suficientes o quê? ‑ inquiriu Peg.
‑ São.
‑São o quê? ‑ imterrogou Peg vivamente. ‑ Não são velhos demais para usar?
Arthur Gride murmurou uma imprecação á surdez da governanta e rugiu‑lhe ao ouvido:
‑Não são suficientemente elegantes. Quero parecer o melhor que puder.
‑Parecer? ‑ exclamou Peg. ‑ Se ela é tão bonita como o senhor diz não olhará muito para si, patrão, acredite, e quanto à sua própria aparência. sal e pimenta, verde garrafa, azul celeste ou mistura de cores, não fazem diferença.
Com esta consoladora certeza Peg Siderskew agarrou no fato escolhido, meteu‑o debaixo do braço descarnado e ficou de boca aberta a sorrir, piscando os olhos como a horrorosa figura duma monstruosa peça de talha.
‑ Você está bem disposta, não está, Peg? ‑ interrogou Arthur com uma nota de humor.
‑ Então não basta fazer a sua vontade? ‑ replicou ela. - Bem depressa serei posta fora se alguém tentar dominar‑me, e já o previno, patrão: ninguém põe o pé no pescoço de Peg Sliderskew, o senhor sabe isso e é escusado dizê‑lo. Isso não! Não! Nem a si. Experimente uma vez e deita‑se a perder.
‑ Oh, meu Deus, nunca o tentarei ‑ afirmou Arthur Gride aterrorizado pela menção da palavra. ‑ Nunca na vida! Seria muito fácil perder‑me; devemos ter muita cautela; agora mais do que nunca com uma outra boca a alimentar. Apenas... não devemos deixá‑la perder a sua boa aparência, Peg, porque gosto de olhar para ela.
‑ Tome cuidado em não achar a boa aparência muito dispendiosa ‑ avisou Peg, agitando o polegar.
‑ Mas ela sabe ganhar dinheiro Peg ‑ disse Arthur Gride, observando ardentemente o efeito produzido pela sua comunicação na expressão da velhe. ‑ Ela sabe desenhar, pintar, fazer coisas lindas de todas as maneiras para ornamentar tamboretes e cadeiras, sapatos de quarto, porta‑relógios, e mil pequenas ninharias a que não poderia dar metade dos nomes. Além disso sabe tocar piano, tem um e canta como um passarinho. Ficará muito barata em vestuário e manutenção, Peg.
‑ Se não deixar que ela faça pouco de si, talvez.
‑ Pouco de mim! ‑ exclamou Arthur. ‑ Confie no seu velho patrão, para se não deixar enganar por caras lindas, Peg. Não, não, não, nem tão pouco por feias, Mrs. Sliderskew - acrescentou baixinho a modo de solilóquio.
‑Estava a dizer alguma coisa que não queria que eu ouvisse. Sei que estava ‑ observou Peg.
‑ Oh, meu Deus esta mulher tem o diabo ‑ murmurou Arthur, acrescentando ainda com um feio olhar sorrateiro. Disse que confiava tudo em si, Peg.
‑ Faça isso, patrão, e todos os cuidados acabam ‑ aprovou Peg.
‑ Quando fizer isso, Peg Sliderskew ‑ pensou Arthur Gride‑ eles acabarão!
Embora pensasse isto muito distintamente não se atreveu a mexer os lábios, pelo menos para que a velha pudesse percebê‑lo. Pareceu mésmo meio medroso de que ela tivesse lido os seus pensamentos, por isso foi a coxear e disse em voz alta:
‑ Cosa tudo o que estiver descosido no fato verde garrafa com a melhor linha de seda preta. Arranje um novelo da melhor e alguns botões novos para o casaco. ‑ esta é uma boa ideia, Peg, e uma que sei de que gosta ‑ como nunca lhe dei nada e as raparigas gostam de atenções, há‑de polir um colar brilhante que tenho lá em cima, para lhe pôr na manhã do casamento ‑ sou eu quem lho porá à roda do lindo pescocinho ‑ e no dia seguinte tiro‑lho. Eh! eh! eh!. feche-o para ela, Peg, extravie‑o. Para começar, quem será o escarnecido, pergunto eu. hein, Peg!
Mrs. Sliderskew pareceu aprovar altamente este engenhoso plano, exprimindo a sua satisfação por vários movimentos do corpo e da cabeça, que não lhe aumentavam os encantos. Estes prolongaram‑se até ela ter chegado à porta, mudando então para um olhar mau e azedo e, torcendo o queixo, murmurou maldições sobre o futuro de Mr. Gride enquanto descia vagarosamente as escadas, parando em cada degrau para respirar.
‑ Creio que ela é meio bruxa! ‑ comentou Arthur Gride, quando se viu de novo só. ‑ Mas é muito frugal e muito surda. A sua alimentação não me custa quase nada e de nada lhe serve escutar pelos buracos das fechaduras porque não pode ouvir. É uma mulher encantadora. para o efeito; a governanta discreta e valendo o seu peso em. cobre!
Tendo exaltado os méritos da sua criada nestes elevados termos, o velho Arthur voltou à sua canção e, tendo já escolhido o fato destinado a brilhar nas suas próximas núpcias, tornou a colocar os outros com não menos cuidado que tivera em tirá‑los dos cantos bolorentos onde repousavam, em silêncio, há tantos anos.
Sobressaltado por uma campainhada na porta, concluiu rapidamente o trabalho e fechou à chave o guarda‑roupa, mas não havia necessidade para uma tal pressa, por a discreta Peg só saber quando a campainha tocava quando olhava para o tecto da cozinha com os olhos turvados e o via abanar. Depois duma curta demora, Peg entrou, seguida por Newman Noggs.
‑ Ah! Mr. Noggs! ‑ exclamou Arthur Gride, esfregando as mãos. ‑ Meu bom amigo, Mr. Noggs, que notícias me traz?
Newman com um aspecto firme, e um olhar fixo, respondeu, seguindo a acção às palavras:
‑Uma carta. De Mr, Nickleby. O portador espera.
‑ Não quer tomar um. um.
Newman olhou e lambeu os beiços.
‑ Uma cadeira?
‑ Não ‑ replicou Newman. ‑ Obrigado.
Arthur abriu a carta com as mãos a tremerem e devorou o seu conteúdo com muitíssima sofreguidão, rindo‑se para den tro com enlevo, relendo‑a várias vezes antes de a poder apartar dos olhos. Tantas vezes a examinou e a tornou a examinar, que Newman achou por bem lembrar‑lhe a sua presença.
‑ É verdade ‑ replicou o velho Arthur ‑ Sim. sim. Quase me esqueci, devo declarar.
‑ Pensei que se esquecia ‑ retorquiu Newman.
‑Fez muito bem em lembrar‑me, Mr. Noggs. Muito bem, na verdade ‑ disse Arthur. ‑ Sim. Vou escrever uma linha. Estou. estou. bastante comovido, Mr. Noggs. A noticia é.
‑ Má? ‑ interrompeu Newman.
‑Não, Mr. Noggs, obrigada; boa, boa! A melhor das notícias. Sente‑se. Vou buscar a pena e o tinteiro e escrevo uma linha em resposta. Não o reterei muito tempo. Sei que é um tesouro para o seu patrão. Ele fala algumas vezes de si em tais termos que o senhor ficava admirado. Posso dizer que também o faço e sempre o fiz. Digo sempre o mesmo de si.
Esse maldito Mr Noggs com todo o meu coração! é o que tu dizes, pensou Newman quando Gride saiu.
A carta caiu no chão. Olhando cuidadosamente em volta, Newman, impelido pela curiosidade de saber o resultado do plano que ouvira no esconso do seu escritório, apanhou‑a e leu rapidamente o seguinte:
GrideTornei a ver o Bray esta manhã e propus‑lhe para depois de amanhã como você sugeriu, o dia do casamento. Não há objecção de parte dele e todos os dias são iguais para a filha. Iremos juntos e você deve estar comigo às sete da manhã. Não preciso de lhe recomendar para ser pontual. Entretanto, não faça mais visitas à rapariga. Ultimamente apareceu lá mais do que devia. Ela não está presa pelo beiço por si e isso podia ter sido perigoso. Reprima o seu juvenil ardor por quarenta e oito horas e deixe‑a com o pai. Você apenas desfaz o que ele faz e o que ele faz é bem feito.
Seu Ralph Nickleby
Ouviram‑se passos fora. Newman deitou a carta para o mesmo sítio, pôs‑lhe o pé em cima para impedir que ela voasse, voltou para a sua cadeira e olhou tão vaga e inconscientemente como nunca um mortal olhou. Gride, depois de examinar nervosamente à sua roda, viu a carta no chão, levantou‑a e sentou‑se para escrever relanceando para Newman Noggs, que olhava fixamente para a parede com uma intensidade tão notável, que Arthur ficou alarmado.
‑ Vê alguma coisa de especial, Mr. Noggs? ‑ perguntou, tentando seguir a direcção dos olhos de Newman, o que era uma impossibilidade e uma coisa que homem algum ainda fizera.
‑ Apenas uma teia de aranha ‑ respondeu Newman.
‑ Oh, é tudo?
‑ Não ‑ disse Newman. ‑ Há lá uma mosca.
‑ Há aqui muitas teias de aranha ‑ observou Arthur Gride.
‑ Também na nossa casa ‑ replicou Newman ‑ e moscas também.
Newman pareceu muito divertido com a resposta que dera e, com grande perturbação dos nervos de Arthur Gride, produziu uma série de estalos nas articulações dos dedos, fazendo lembrar o barulho distante duma descarga de artilharia. Arthur, no entanto, conseguiu acabar a resposta à mensagem de Ralph e, por fim, entregou‑a ao excêntrico portador.
‑ Aqui está, Mr. Noggs ‑ anunciou Gride.
Newman fez um sinal com a cabeça, pôs o chapéu e estava para se ir embora quando Gride, cujo êxtase não conhecia limites, lhe pediu para voltar atrás e lhe perguntou, num sussurro chiado e com um sorriso que lhe tomou a cara toda, a encobrir‑lhe os olhos:
‑ Quer. quer tomar uma gota de qualquer coisa. apenas uma prova?
Em boa camaradagem, se Arthur Gride fosse capaz dela, Newman nunca beberia com ele uma lágrima do melhor vinho do mundo, mas para ver como ele se comportava e para o punir o mais possível, aceitou imediatamente a oferta. Arthur Gride abriu outra vez o guarda-roupa e duma prateleira cheia de copos em vidro de Flandres e bonitas garrafas, algumas com gargalos com o pescoço das cegonhas, outras quadradas, bojudas como holandesas, curtas, com gargalos apopléticos, tirou uma garrafa empoeirada de prometedora aparência e dois copos dum tamanho curiosamente pequeno.
‑ O senhor nunca provou isto ‑ afirmou Arthur. ‑ É eau d'or. água de ouro. Gosto dele por causa do nome. um nome delicioso. Água de ouro, água dourada! Oh, meu Deus, é quase um crime bebê‑lo!
Como a coragem parecia faltar‑lhe e brincava com a rolha duma maneira que ameaçava colocar a garrafa no seu lugar, Newman agarrou num dos copinhos e bateu com ele duas ou três vezes contra a garrafa, como a lembrar‑lhe delicadamente não ter ainda sido servido. Com um profundo suspiro, Arthur Gride encheu‑lhe o copo vagarosamente, mas não até acima, e depois encheu o dele.
‑ Pare, pare; não beba ainda ‑ advertiu ele, pondo a mão sobre a de Newman. ‑ Foi‑me dado há vinte anos e quando tomo um golinho, o que é muito raro, gosto de pensar nisto antes. Vamos fazer um brinde.
‑Ah! exclamou Newman, olhando impacientemente para o copinho. ‑ O portador espera.
‑ Então vou‑lhe dizer por quem ‑ titubeou Gride ‑ Va mos beber. por uma senhora.
‑ Pelas senhoras? ‑ inquiriu Newman.
‑ Não, não, Mr. Noggs ‑ respondeu Gride, suspendendo‑lhe a mão ‑ por uma senhora. Espanta‑se por me ouvir dizer uma senhora... vejo que sim. O brinde é pela Madelinezinha, Mr. Noggs.
‑ Madeline! ‑ confirmou Newman, juntando interiormente: ‑ e Deus a ampare!
A rapidez e facilidade com que Newman engoliu a sua parte da água de ouro, fez um grande efeito no velho, que deu um pulo na cadeira e olhou espantado para ele, de boca aberta, como se isto lhe tivesse tirado a respiração. Newman, contudo, sem se comover, deixou‑o sorver o conteúdo à vontade ou deitá‑lo outra vez na garrafa, e partiu, depois de ultrapassar grandemente a dignidade de Peg Sliderskew por roçar por ela no corredor sem uma palavra de desculpa, ou de reconhecimento.
Mr. Gride e a governanta reuniram‑se em sessão para discutirem a forma de receber a jovem noiva, mas como a sessão devia ser aborrecida e prolixa, como tantas outras, vamos seguir os passos de Newman Noggs.
‑ Você demorou‑se muito ‑ censurou Ralph quando Newman voltou.
‑ Ele demorou‑se ‑ replicou Newman.
‑ Bah ‑ exclamou Ralph impaciente. ‑ Dê‑me a sua carta, se ele lhe deu alguma, ou o seu recado, se não escreveu. E não se retire. Quero dizer‑lhe uma coisa, sir.
Newman entregou‑lhe a carta e tomou uma atitude muito inocente, enquanto o patrão quebrava o selo e lhe dava uma vista de olhos.
‑ Será certo ele vir ‑ murmurou Ralph, rasgando‑a em bocados ‑ sei que virá. Que precisão em dizer isso? Noggs. Suplico‑lhe, sir, para me informar quem era o homem que eu vi na rua a noite passada?
‑ Não sei ‑ respondeu Newman.
‑ Será melhor refrescar a sua memória, sir ‑ disse Ralph com um olhar ameaçador.
‑ Digo-lhe que não sei quem ele é ‑ repetiu Newman descaradamente. ‑ Ele voltou. O senhor despediu‑o. Deu o nome de Brooker.
‑ Sei que deu ‑ disse Ralph. ‑ E depois?
‑E depois? Depois escondeu‑se e perseguiu‑me na rua. Segue‑me noite após noite e insiste para que o ponha cara a cara consigo, como disse que esteve uma vez e não há muito tempo. Deseja vê‑lo frente a frente e garante que em breve o senhor ouvirá falar dele.
‑ E o que disse você a isso? ‑ perguntou Ralph.
‑ Que não era negócio meu. Disse que o podia apanhar na rua, se era isso tudo o que ele queria, mas não, isso não faria.
Disse que lá fora o senhor não ouviria uma palavra Precisa estar só consigo, num aposento com a porta fechada, onde possa falar sem medo, e que o senhor depressa mudaria de atitude e escutá‑lo‑ia com paciência.
‑ Um audacioso malandro! ‑ murmurou Ralph.
‑ tudo o que sei ‑ continuou Newman. ‑ Digo de novo que não sei que homem é. Não acredito que ele o conheça. O senhor talvez o visse.
‑ Penso que sim! ‑ replicou Ralph.
‑ Bem ‑ retorquiu Newman, enfadado ‑ não espere que eu também o conheça. Vai a seguir perguntar‑me porque não disse isto antes. O que lhe diria se lhe fosse contar tudo quanto as pessoas me dizem a seu respeito? O que é que me chama, quando eu algumas vezes o faço? Bruto, burro! e arreganha‑ me os dentes como um dragão.
Isto era bastante verdadeiro, no entanto, a pergunta antecipada por Newman estava já nos lábios de Ralph.
‑ um célebre mandrião disse Ralph ‑ um vagabundo que veio das colónias, para onde foi pelos seus crimes; um malvado que escapou à forca por uma unha negra; um patife que tem a ousadia de tentar envolver‑me nos seus planos, a mim, que o conheço bem! A próxima vez que se meter consigo, entregue‑o à polícia por tentativa de extorquir dinheiro por meio de mentiras e ameaças. Ouviu? E deixe o resto comigo. Hão‑de‑lhe arrefecer os pés na cadeia durante algum tempo e obrigá‑lo‑ei a dirigir as vistas para outras pessoas, para as tosquiar quando sair. Ouviu bem?
‑ Ouvi ‑ respondeu Newman.
‑ Faça isso, então, e recompensá‑lo‑ei ‑ prometeu Ralph.
‑ Agora pode ir‑se embora.
Newman aproveitou prontamente a permissão e, fechando‑se no seu pequeno escritório, lá ficou todo o dia em séria cogitação. Quando à noite se libertou, dirigiu‑se à City com a maior velocidade que pôde e colocou‑se no velho posto por detrás da bomba, à espera de Nicholas, pois Newman Noggs era orgulhoso no seu comportamento e não queria aparecer ao seu amigo perante os irmãos Cheeryble naquele estado miserável. Não ocupava o posto havia muitos minutos quando se regozijou ao vèr Nicholas, que pelo seu lado, não estava menos contente por ver o amigo, a quem não via há algum tempo, por isso o seu cumprimento foi caloroso.
‑ Estava neste momento a pensar em si ‑ retorquiu Newman. ‑ Não pude deixar de vir esta noite. Creio que vou descobrir alguma coisa.
‑ E o que poderá ser? ‑ perguntou Nicholas, sorrindo a esta singular comunicação.
‑ Não sei o que possa ser, nem o que não possa ‑ respon deu Newman. ‑ um segredo em que o seu tio está metido, mas o qual ainda não fui capaz de descobrir, embora tenha uma forte suspeita. Não lhe faço insinuações para não ficar desapontado.
‑ Desapontado, eu! ‑ exclamou Nicholas. ‑ Estou interessado?
‑ Creio que está ‑ replicou Newman. ‑ Tenho cá uma ideia que sim. Descobri um homem que, com certeza, sabe mais do que diz e já fez tais confidências, que me intrigaram
‑ disse Newman, coçando o nariz vermelho num estado de violenta exaltação e fixando Nicholas com toda a veemência.
Admirado do que poderia ter excitado o amigo, Nicholas fez os possíveis, por uma série de perguntas, mas em vão. Newman não deu mais explicações do que a repetição das perplexiddades em que estava, mostrando ser necessário usar da máxima cautela, visto o olho de lince de Ralph o já ter visto em companhia do desconhecido informador e como deitara poeira nos olhos do dito Ralph pela sua reserva de maneiras para o que se preparara desde o princípio, na previsão de tal contingência.
Lembrando‑se da propensão do companheiro ‑ da qual o seu nariz, de facto,perpetuamente dava aviso como um farol, Nicholas levo-u para uma taberna retirada. Aqui relembraram a origem e o progresso do seu conhecimento, como os homens muitas vezes fazem, notando os pequenos acontecimentos que reputavam mais notáveis e chegando, por fim a Mliss Cecília Bobster.
‑ E isso recorda‑me que nunca me disse o nome da senhora ‑ lembrou Newman.
‑ Madeline ‑ informou Nicholas.
‑ Madeline! ‑ exclamou Newman. ‑ Que Madeline? Qual é o seu outro nome? Diga-me depressa!
‑ Bray ‑ disse Nicholas, com grande assombro.
‑ É a mesma! ‑ gritou Newman ‑ Triste história! Pode ficar de braços cruzados e permitir que esse casamento desigual se realize, sem uma tentativa para a salvar?
‑ O que quer dizer? ‑ perguntou Nicholas, levantando‑se.
‑ Casamento! Está maluco?
‑ O senhor está. ela está. o senhor está cego, surdo, insensível, morto? ‑ inquiriu Newman. ‑ Não sabe que dentro dum dia, por artificios do seu tio Ralph, ela casará com um homem tão mau como ele, mesmo pior, se é possível ser‑se pior? Não sabe que dentro dum dia ela será sacrificada, tão certo como o senhor estar vivo, a um miserável bolorento. um diabo vestido e calçado, e encanecido nas artimanhas do diabo?
‑ Tenha cuidado no que diz ‑ avisou Nicholas. ‑ Por amor do Céu tenha cuidado! Estou aqui só e aqueles que podiam estender um braço para a livrar, estão longe. O que quer isso dizer?
‑ Nunca ouvi o seu nome! ‑ disse Newman. ‑ Por que não mo disse? Como podia eu saber? Podíamos, pelo menos, ter tempo para pensar.
‑ O que quer isso dizer? - repetiu Nicholas.
Não era fácil chegar a esta informação, mas depois duma extraordinária pantomima, que nada ajudou, Nicholas, que estava quase tão agreste como o próprio Newman Noggs, forçou este a sentar‑se e prendeu‑o até começar a sua história.
Raiva, assombro, indignação e um tumulto de paixões, acometeram o coração do ouvinte quando o enredo foi posto a nu. Mal ouviu tudo, com uma cara duma palidez de cinza e todos os membros a tremerem, saíu como uma seta.
‑ Agarrem‑no! ‑ gritou Newman, arrancando em sua perseguição. ‑ Vai fazer alguma coisa desesperada. vai matar alguém... Agarrem‑no! Agarrem o ladrão! Agarrem o ladrão!
Nicholas desespera de salvar Madeleine Bray, mas cobra ânimo e determina tentá‑lo. Entendimento doméstico dos Kenwigses e Lillyvicks.
Achando que Newman estava na intenção de deter o seu avanço de qualquer forma, e apreensivo por qualquer transeunte bem intencionado, atraído pelo grito, Agarrem o ladrão! poder, realmente, deitar‑lhe a mão e colocá‑lo numa situação desagradável, da qual se visse embaraçado para se tirar, Nicholas depressa abrandou o passo e aguardou que Newman Noggs fosse ter consigo, o que este fez exausto de tal maneira que parecia impossível aguentar mais um minuto.
‑ Vou direito a casa de Bray ‑ informou Nicholas. ‑ Vau ver esse homem, e se restar um sentimento de humanidade no seu coração pela filha, sem mãe e sem amigos, despertá‑lo‑ ei.
‑ Não despertará ‑ replicou Newman. ‑ Não despertará nada!
‑ Então sigo o meu primeiro impulso e vou direito a Ralph Nickleby ‑ replicou Nicholas, apressando‑se a andar.
‑ Quando chegar a casa dele estará na cama ‑ informou Newman.
‑ Arranco‑o de lá ‑ prometeu Nicholas ferozmente.
‑ Devagar, devagar ‑ aconsellhou Newman. ‑ Proceda com dignidade.
‑ Você é o melhor dos meus amigos, Newman ‑ disse Ni cholas depois duma pausa e agarrando‑lhe na mão. ‑ Assisti a muitas tentativas, mas esta desgraça, declaro‑lhe que me tornou desesperado e não sei como proceder.
Na verdade parecia um caso sem esperança. Era impossí vel fazer qualquer uso da informação apanhada por Newman, escondido no esconso. A circunstância da união entre Ralph Nickleby e Gride não invalidaria o casamento, ou tornaria Bray adverso a ele, o qual, se não sabia presentemente da existência dum tal entendimento, sem dúvida, suspeitava. O que tinha sido ideado com referência a alguma traição a Madeline, fora feito com suficiente obscuridade por Artur Gride, mas vindo de Newman Noggs e obscurecido ainda mais pelos vapores da sua garrafa portátil tornava‑se inteiramente ininteligível e envolto em profunda escuridão.
‑ Parece não haver um raio de esperança! ‑ comentou Nicholas.
‑A maior necessidade é de sangue‑frio para raciocinar considerar, para pensar ‑ observou Newman, parando em todas as palavras, para olhar ansiosamente para a cara do amigo. Onde estão os irmãos?
‑ Estão ambos ausentes em negócios de urgência e levaria uma semana a regressarem.
‑ Não há meio de comunicação com eles. nenhum meio de ter um deles aqui amanhã à noite?
‑ Impossível ‑ replicou Nicholas. ‑ O mar está. entre nós e eles. Com os ventos mais prósperos, como nunca sopraram, seriam precisos trés dias e três noites.
‑ O sobrinho? O velho empregado? ‑ lembrou Newman.
‑ O que podem eles fazer que eu não possa? ‑ objectou Nicholas. ‑ Com referência a eles, especialmente, impõe‑se o silêncio. Que direito tenho eu a trair a sua confiança quando nada, a não ser um milagre, pode evitar este sacrifício?
‑ Pense ‑ insistiu Newman. ‑ Não há maneira?
‑ Não há nenhuma ‑ respondeu Nicholas, com profundo abatimento. ‑ Nenhuma. O pai insiste. a filha consente. Estes demónios têm‑na nas suas malhas; direito legal, poder, força, dinheiro e toda a influência estão do seu lado. Como posso ter esperança em salvá‑la?
‑ Esperança até ao fim ‑ aconselhou Newman, batendo‑lhe nas costas. ‑ Sempre esperança, meu querido rapaz. En tende‑me, Nick? Isso não satisfaz. Ainda que tenha feito o máximo, há sempre alguma coisa por fazer. Mas não perca a esperança. Esperança, esperança até ao fim!
Nicholas precisava de encorajamento. O repente com que lhe chegara ao conhecimento os planos dos dois usurários, e o pouco tempo para exercer a sua acção, a probabilidade de que em poucas horas Madeline Bray ficaria fora do seu alcance para sempre, tudo isto o oprimia e atordoava. Todas as esperanças postas nela pareciam cair‑lhe aos pés. Todos os encantos em que a envolvera serviam para aumentar a sua angústia e juntar nova amargura ao seu desespero. Todos os sentimentos de simpatia pela sua condição infeliz e de admiração pelo seu heroismo, agravavam a indignação que lhe sacudia os membros e enchia o coração quase a rebentar. Mas se o coração de Nicholas o embaraçava, o de Newman vinha em seu socorro. Havia tanto fervor nas suas exortações e tal sinceridade e calor nas suas maneiras singulares e ridículas que incutiram em Nicholas nova firmeza e permitiu‑lhe dizer, depois de ter andado um bocado em silêncio:
‑ Você deu‑me uma boa lição, Newman, e eu aproveitá‑la‑ei. Um passo, pelo menos, posso dar ‑ na verdade sou obrigado a dar ‑ e aplicar‑me‑ei a ele amanhã.
‑ O que vem a ser? ‑ perguntou Newman. ‑ Não é ameaçar Ralph? Nem ver o pai?
‑ Ver a filha, Newman ‑ respondeu Nicholas. ‑ No fim de contas era o máximo que os irmãos podiam fazer se cá estivessem. Conversar com ela sobre esta odiosa união, fazendo-lhe ver todos os horrores para os quais está a preparar‑se, precipitadamente. Suplicar‑lhe, pelo menos, para parar. Ela pode não ter tido um conselheiro. Talvez mesmo possa ainda movê‑la, embora à última hora e mesmo à beira do precipício.
‑ Muito bem dito! ‑ comentou Newman. ‑ Bem falado, bem falado. Muito bem!
‑ E devo declarar ‑ exclamou Nicholas com entusiasmo‑que neste esforço não sou influenciado por consideração egoísta ou pessoal, mas por piedeade por ela e por abominação e horror por este cruel plano e que faria o mesmo se houvesse vinte rivais em campo e eu o último e o menos favorecido de todos.
‑ Creio que o faria ‑ disse Newman. ‑ Mas para onde vai agora?
‑ Para casa ‑ respondeu Nicholas. ‑ Vem comigo, ou des peço‑me de si?
‑Vou um pouco mais adiante, mas se for a passo e não a correr ‑ replicou Newman.
‑ Esta noite não posso andar a passo, Newman ‑ retorquiu Nicholas. ‑ Tenho de me mover rapidamente. Contar‑lhe‑ei o que se disser e fizer.
Sem esperar pela resposta, mergulhou como uma seta no meio da multidão que se comprimia na rua e depressa se perdeu de vista.
‑ As vezes é um jovem violento! ‑ comentou Newman, vendo-o desaparecer. ‑ No entanto gosto dele por isso. Há bastante motivo agora, ou o diabo está metido nisto. Esperança! Disse esperança, julgo eu! Ralph Nickleby e Gride com as cabeças juntas... a esperança do lado oposto! ah! ah!
Foi com esta gargalhada melancólica que Newman concluiu, o solilóquio e foi com uma melancólica abanadela de cabeça e uma expressão muito lúgubre que seguiu o caminho. Em circunstâncias ordinárias este teria sido para qualquer taberna, mas Newman estava demasiado interessado para recorrer a esta fonte, e por isso foi direito a casa.
Quando Newman entrou, havia nos apartamentos dos Ken wigses um aturado trabalho por Miss Morleena ter recebido um convite para no dia seguinte participar numa competição de dança ao ar livre, com outras raparigas. O ponto de reunião era o cais de Westminster Bridge, onde tomavam o barco para Eel‑pie Island, em Twickenham, sendo‑lhes servido uma colação fria, com cereja, camarões e sumo de laranjas azedas com aguardente. No meio dos seus imensos preparatívos para a filha não fazer má figura, Mrs. Kenwigs descobriu que o ca belo dela precisava das mãos hábeis dum cabeleireiro, o qual morava três ruas adiante com oito perigosas passagens. Morleena não se atrevia a ir sózinha e Mr. Kenwigs ainda não viera, não havendo, portanto, ninguém para a acompanhar. Mrs. Kenwigs muito irritada, bateu na filha, mas depois chorou.
‑ És uma filha ingrata ‑ acusou Mrs. Kenwigs ‑ depois do que estive a fazer durante a noite para teu bem.
‑ Não tenho culpa, mãe ‑ replicou Morleena, também a chorar‑ o meu cabelo cresceu.
‑ Não me fale, sua impertinente! ‑ disse Mrs. Kenwigs. Mesmo se tivesse confiado em ti e te deixasse ir, sei que correrias para casa de Laura Chopkins, a fillha do vizinho ambicioso, para lhe dizer o que vais usar amanhã. Não tens orgulho e não se pode confiar em ti.
Estavam ambas a lamentar‑se quando Newman Nogs passou pela porta a caminho do seu quarto, fazendo ganhar novas esperanças a Mrs. Kenwigs, que rapidamente fez desaparecer do rosto os vestígios da sua emoção e se apresentou à frente dele pedindo‑lhe para acompanhar Morleena ao cabeleireiro depóis de lhe apresentar o problema.
‑ Não lhe pediria, Mr. Noggs ‑ disse Mrs. Kenwigs ‑ se não soubesse como o senhor é bom e amável. Sou de fraca constituição Mr. Noggs, mas o meu espírito deixa‑me tanto pedir um favor onde há a probabilidade de ser recusado como ver a minha filha desprezada por inveja e baixeza.
Newman era por demais uma boa pessoa para não consentir mesmo sem esta prova de confiança, portanto, muito poucos minutos depois, ele e Miss Merleena, estavam a caminho do cabeleireiro.
O estabelecimento era de primeira classe, e foi para lá que Newman Noggs levou Miss Kenwigs a salvamento. O proprietário, sabendo que Miss Kenwings tinha três irmãs, cada uma com duas tranças escorridas, podendo ir lá uma vez por mês, entregou um cavalheiro a quem ia fazer a barba, a um empregado e foi atender a rapariga. Quando esta mudança se efectuou apresentou‑se para fazer a barba, um descarregador de carvão, forte, corpulento, bem humorado, de cachimbo na boca que, passando a mão pelo queixo, perguntou quando lhe podiam rapar a barba. O empregado, a quem foi feita esta pergunta olhou duvidosamente para o jovem proprietário e este olhou desdenhosamente para o descarregador de carvão, observando ao mesmo tempo:
‑ Não pode ser barbeado aqui!
‑ Porque não?‑ perguntou o descarregador.
‑ Não fazemos a barba a pessoas da sua classe ‑ respondeu o jovem proprietário.
‑Mas eu vi estarem a fazer a barba a um padeiro, quando olhei pela montra a semana passada ‑ observou o descarregador de carvão.
‑ É necessário traçar um ponto final em qualquer parte, meu rapaz ‑ replicou o dono da casa ‑ e nós traçámos o nosso ali. Não podíamos ir além dos padeiros. Se fóssemos mais para baixo, os fregueses desertavam e tínhamos de fechar a casa. Experimente qualquer outro estabelecimento. Aqui não o podemos atender.
O homem ficou pasmado, sorriu para Newman Noggs, que parecia altamente divertido, olhou rapidamente em volta da loja, tirou o cachimbo da boca, deu um assobio estridente, tornou a meter o cachimbo na boca e saiu.
O cavalheiro que estava para se barbear pareceu não dar por este incidente, com a cara voltada para a parede, mergulhado num sonho melancólico. O proprietário começou a tosquiar Miss Kenwigs, o empregado a barbear o cavalheiro e Newman Noggs a ler o jornal do último dumingo, todos três em silêncio, quando Miss Kenwigs soltou um pequeno grito. Newman levantou os olhos e viu que o cavalheiro, quando voltou a cabeça, era Mr. Lillyvick, o cobrador.
Eram as feições de Mr. Lillyvick mas estranhamente alteradas. Ele que fazia gala em andar sempre bem barbeado e aprumado, tinha a barba duma semana, estava abatido, com uma camisa suja, com uma atitude tão envergonhada e triste, que as almas de quarenta governantas a quem ele cortara a água por falta de pagamento, reunidas num só corpo, mal poderiam exprimir a mortificação agora impressa na pessoa de Mr. Lillyvick, o cobrador.
Newman Noggs proferiu‑lhe o nome e Mr. Lillyvick gemeu, depois tossiu para esconder esta fraqueza, mas o gemido foi de grande tamanho e a tosse não passou dum assobio.
‑ Tem alguma coisa? ‑ perguntou Newman Noggs.
‑ Alguma coisa, sir! ‑ exclamou Mr. Lillyvick. ‑ O prazer da vida secou e só ficou a lama.
Esta frase, cujo estilo Newman atribuiu à recente ligação de Mr. Lillyvick com a cena, não era completamente explicativa. Newman olhou como se fosse fazer outra pergunta, quando Mr. Lillyvick o impediu, agitando a mão melancolicamente e dizendo:
‑Deixe‑me fazer a barba! Estarei pronto antes de Mor leena. É Morleena, não é?
- É ‑ respondeu Newman.
‑ Os Kenwigses tiveram um rapaz, não tiveram? ‑ perguntou de novo o cobrador.
‑ Tiveram ‑ respondeu outra vez Newman.
‑ É um belo rapaz? ‑ inquiriu o cobrador.
‑ Não é muito mau ‑ replicou Newman, embaraçado com a pergunta.
‑ Susan Kenwigs costumava dizer ‑ observou o cobrador ‑ que se alguma vez tivesse um rapaz esperava que ele se parecesse comigo. Ele parece‑se comigo, Mr. Noggs?
Era uma pergunta de deixar uma pessoa perplexa, mas Newman iludiu‑a, respondendo a Mr. Lillyvick julgar que o bebé podia vir possívelmente a parecer‑se com ele em devido tempo.
‑ Gostaria de ter alguém parecido comigo antes de morrer ‑ confessou Mr. Lillyvick.
‑Não quer, por um instante, dizer que ainda arranja isso? ‑ inquiriu Newman.
A isto Mr. Lillyvick replicou numa voz solene:
‑ Deixe-me fazer a barba! ‑ e de novo se entregou nas mãos do empregado, não dizendo mais nada.
Este procedimento era notável. Tão notável pareceu a Miss Morleena que a rapariga, no perigo eminente de ficar com a orelha em fatias não pôde furtar‑se a olhar em redor, durante o colóquio precedente. Dela, contudo, Mr. Lillyvick não fez caso, antes se encolheu sempre que atraía os seus olhares. Newman estava altamente intrigado com o que poderia ter ocasionado esta atitude do cobrador, mas reflectindo filosóficamente que mais cedo ou mais tarde, o saberia, ficou muito pouco perturbado pela singularidade do procedimento do velho senhor.
A cabeça de Miss Kenwigs tendo, por fim, ficado pronta, o cobrador que tinha estado à espera, levantou‑se para sair e, tomando o braço de Newman, andou um bocado sem fazer qualquer observação. Newman, cujo poder de taciturnidade era excedido por pouca gente não tentou quebrar o silêncio, e asssim foram até chegar próximo da casa dos Kenwigses, quando Mr. Lillyvick disse:
‑Os Kenwigses ficaram muito zangados com essas notícies, Mr. Noggs?
‑ Quais notícias? ‑ perguntou Newman.
‑ Essas acerca. do. meu.
‑ Casamento? ‑ concluiu Newman.
‑Ah! ‑ replicou Mr. Lillyvick com um outro gemido, desta vez nem mesmo disfarçado com um assobio.
‑ Fez a mamã chorar quando soube ‑ interrompeu Miss Morleena ‑ mas nós ocultámo‑lho durante muito tempo, e o papá estava de espírito muito abatido, mas agora está melhor; e eu estive muito doente, mas também estou melhor.
‑Darias um beijo ao teu tio avô Lillyvick se ele to pedisse Morleena ‑perguntou o cobrador com certa hesitação.
‑ Sim. tio Lillyvick, darie ‑ respondeu Miss Morleena com a energia combinada dos seus pais ‑ mas não à tia Lillyvick. Ela não é minha tia e nunca a tratarei assim.
Após proferidas estas palavras, Mr. Lillyvick abraçou Miss Morleena e beijou‑a. Estando, nesta ocasião, à porta de casa onde Mr. Kenwigs morava, entrou direito à sala de estar de Mrs. Kenwigs, pondo Miss Morleena no meio. Mr. e Mrs. Kenwigs estavam a cear. À vista do seu perjuro parente, Mrs. Kenwigs perdeu as forças e empalideceu, e Mr. Kenwigs levantou‑se majestosamente.
‑ Kenwigs ‑ disse o cobrador ‑ apertemos as mãos.
‑ Sir ‑ respondeu Mr. Kenwigs ‑ houve um tempo em que sentia orgulho em apertar a mão dum homem que me aparece agora. Houve um tempo, sir, em que uma visita desse homem excitava em mim e na minha família sensações naturais e amistosas. Mas agora, olho para esse homem com emoção, ultrapassando totalmente tudo e pergunto a mim próprio onde está a sua honra, a sua rectidão e a sua natureza humana?
‑ Susan Kenwigs, ‑ perguntou Mr. Lillyvick voltando‑se humildemente para a sobrinha ‑ não me dizes nada?
‑ Ela não é capaz, sir ‑ replicou Mr. Kenwigs, batendo na mesa com ênfase. ‑ Com a alimentação dum bebé saudável e as reflexões sobre a sua conduta cruel, foi preciso licor de malte, para a suster.
‑ Estou satisfeito ‑ confessou o pobre cobrador com sua vidade ‑ que o bebé seja saudável. Estou muito contente com isso.
Isto tocou no ponto sensível dos Kenwigses. Mrs. Kenwigs desfez‑se em lágrimas e Mr. Kenwigs mostrou grande emoçâo.
‑ O meu sentimento mais agradável durante todo o tempo em que se esperou esta criança ‑ confessou Mr. Kenwigs melancolicamente ‑ era um pensamento. Se for um rapaz, como espero ‑ pois tenho ouvido o tio Lillyvick dizer sempre que preferia que o nosso próximo filho fosse um rapaz ‑ se for um rapaz, o que dirá o tio Lillyvick? Como gostará ele que se chame? Será Peter, ou Alexander, ou Pompey, ou Diorgeenes, ou como será? E agora quando olho para ele, uma criança preciosa, inconsciente, inocente, quando o vejo deitado no colo da mãe sempre a arrulhar e quando vejo a criança que ele é e penso que o tio Lillyvick antigamente estava disposto a adorá‑lo e se afastou, chega‑me um sentimento de vingança como não há palavras para o descrever, e parece‑me mesmo que esse bebé me está a dizer para o odiar.
Este quadro afectuoso comoveu profundamente Mrs. Kenwigs. Depois de algumas palavras inarticuladas, que em vão se esforçou por proferir, mas que foram sempre afogadas pelas lágrimas, falou:
‑Tio, pensar que havia de voltar as costas, aos meus queridos filhos e ao Kenwigs. o senhor, que era tão amável e afectuoso; se alguém nos tivesse dito uma tal coisa de si, tê-lo-íamos votado a um profundo desprezo. O senhor, que deu ao pequeno Lillyvick, o nosso primeiro rapaz, o seu nome em frente do altar. Oh, misericórdia!
‑ Era o dinheiro que nos importava? era nos bens que pensávamos? ‑ perguntou Mr. Kenwigs.
‑ Não ‑ exclamou Mrs. Kenwigs ‑ abomino isso.
‑ Assim como eu ‑ concordou Mr. Kenwigs ‑ e sempre abominei!
‑ Os meus sentimentos de angústia, o meu inofensivo filho tornou‑se inconsolável e impertinente, Morleena tem‑se consumido para nada. Tudo isto esqueço e perdoo e consigo, tio, nunca me posso zangar. Mas nunca me peça para a receber. nunca faça isso, tio, pois não a receberei, não a receberei!
‑ Susan, minha querida ‑ admoestou Mr. Kenwigs ‑ tem cuidado com o teu filho.
‑ Sim ‑ guinchou Mrs. Kenwigs ‑ tomo cuidado com o meu filho! Tomo cuidado com o meu filho! O meu filho, de que nenhum tio me pode privar; o meu odiado, desprezado, abandonado e esquecido filhinho.
Aqui as emoções de Mrs. Kenwigs tornaram‑se tão violentas que Mr Kenwigs foi obrigado a administrar‑lhe todos os cuidados possíveis.
Newman tinha sido um espectador silencioso desta cena por Mr. Lillyvick lhe ter feito sinal para não sair e Mr. Kenwigs lhe ter depois solicitado a presença com um aceno de cabeça, quando Mrs. Kenwigs já estava um tanto recomposta e Newman, como uma pessoa possuindo alguma influência nela, a admoestou e pediu para se tranquilizar, Mr. Lllyvick disse numa voz hesitante:
‑ Nunca pedirei a ninguém daqui para receber a minha. não preciso de mencionar a palavra; sabem o que quero dizer. Kenwigs e Susan, ontem fez uma semana que ela fugiu com um capitão!
Mr. e Mrs. Kenwigs estremeceram ao mesmo tempo.
‑ Fugiu com um capitão ‑ repetiu Mr. Lillyvick ‑ fugiu baixa e falsamente com um capitão. com um capitão. com o bacio dum capitão, de quem qualquer homem se podia ter servido. Foi neste aposento ‑ acrescentou Mr Lillyvick, olhando duramente em redor ‑ que vi Henrietta Petowker pela primeira vez. É neste aposento que a renego para sempre!
Esta declaração mudou completamente a posição do assunto. Mrs. Kenwigs atirou‑se ao pescoço do velho senhor, censurando-se amargamente pela sua dureza e exclamando que se ela sofrera, quanto não devia ele ter sofrido! Mr. Kenwigs apertou‑lhe a mão e jurou eterna amizade e remorso. Mrs. Kenwigs sentiu remorsos de ter alimentado no seio uma tal víbora, como era Henrietta Petowker, e lembrou que Mr. Kenwigs dissera muitas vezes não estar perfeitamente satisfeito com a conduta de Miss Petowker. Mr. Kenwigs argumentou que ela devia ser muito má porque não seguia os exemplos virtuosos de Mrs. Kenwigs, tanto tempo por ela contemplados, e lembrou ter dito as suas suspeitas sobre a baixeza e falsidade de Henrietta. E ambos disseram, em conjunto, ao cobrador para se não deixar tomar pela tristeza e a procurar consolação junto dos afeiçoados parentes, cujos braços e corações estavam abertos para ele ‑ prova da afeição e estima por vocês, Susan e Kenwigsdeclarou Mr. Lillyvick, e não por vingança nem despeito, amanhã de manhã instituirei os vossos filhos como herdeiros do dinheiro que em tempos pensei deixar‑lhes em testamento e farei com que seja transmitido aos seus sobreviventes quando atingirem a maioridade, ou casarem. A escritura será lavrada amanhã e Mr. Noggs será uma das testemunhas. Ele ouve‑me prometer isto e verá o seu cumprimento!
Acalentadas por esta nobre e generosa oferta, Mr. Kenwigs e Mrs. Kenwigs e Miss Morleena Kenwigs começaram a soluçar e o barulho, tendo‑se comunicado ao quarto vizinho, as outras crianças começaram também a chorar. Mrs. Kenwigs foi buscá‑las e pô-las sobre os joelhos de Mr. Lillyvick, para lhe agradecerem e o abençoarem.
‑ E agora ‑ disse Mr. Lillyvick, quando acabou esta cena de cortar o coração e as crianças foram levadas de novo. Dêem‑me de comer. Isto teve lugar a vinte milhas da cidade. Vim para cá esta manhã e tenho andado todo o dia a vadiar, sem saber como havia de vos ver. Fiz‑lhe todas as vontades, tinha a sua carreira, fazia o que queria e agora isto! Havia doze colheres de chá e vinte e quatro libras em soberanos. primeiro vi que faltavam. era uma experiência. Sinto não ser já capaz de bater de novo duas vezes a uma porta quando for para o meu giro. por favor não digam nada a este respeito. as colheres eram valiosas. não importa. não importa!
O velho senhor deitou algumas lágrimas depois desta explosão, mas a família rodeou-o, fê‑lo sentar na cadeira de braços e preparou‑lhe a ceia, finda a qual e depois de meia dúzia de copos e duma tijela de ponche, encomendado por Mr. Kenwigs para celebrar o seu regresso ao seio da família, pareceu completamente resignado.
‑Quando vejo este homem ‑ disse Mr. Kenwigs, com uma das mãos em volta da cintura de Mrs. Kenwigs e outra segurando o cachimbo (que o fazia pestanejar e tossir muito por não ser fumador), e os olhos em Morleena, sentada nos joelhos do tio ‑ empunhando mais uma vez a lança e vejo as suas afeições desenvolverem‑se em legítimas situações, sinto que a sua natureza é tão elevada e expansiva como a sua posição na sociedade, é impecável, e parece‑me ouvir as vozes dos meus inocentes filhos sussurrarem‑me brandamente, isto é um acontecimento que até o próprio Céu abençoa!.
O desenvolvimento da conjura de Mr. Ralph Nickleby e Mr. Arthur Gride
Nicholas levantou‑se ao amanhecer do dia seguinte, tendo passado a noite sem descansar, e preparou‑se para entrar em acção. Ao sair de casa sabia que não poderia falar com Madeline por aquelas horas mais chegadas e nada mais podia desejar senão que o tempo passasse. Depois dum rápido pequeno almoço e de pôr em ordem alguns negócios que requeriam uma pronta atenção, dirigiu os passos para a residência de Madeline Bray. Subiu as escadas suavemente e bateu à porta do aposento para onde costumava entrar. Recebendo a devida permissão, abriu a porta e entrou.
Bray e a filha estavam sós. Já não a via há três semanas, mas a mudança operada na encantadora rapariga, dizia a Nicholas o sofrimento moral por que ela tinha passado neste curto tempo. Não há palavras que possam exprimir, nada com que se possa comparar, a completa palidez, a transparência da face, que se voltou para ele quando entrou. Era ainda, o mesmo olhar paciente, a mesma expressão de suave melancolia, sem o vestigio duma lágrima. Não estava apenas calma e sossegada, mas firme e rígida como se fizesse um grande esforço para conter os seus sentimentos perante o olhar do pai. Estavam em frente um do outro, mas o pai não olhava directamente para a cara, antes a relanceava, enquanto conversava com um ar alegre que mal escondia a ansiedade dos seus pensamentos. Os materiais de desenho não estavam na mesa costumada; os vasinhos que Nicholas via sempre cheios de frescas flores, estavam vazios, ou apenas com folhas murchas. O pássaro estava calado. A capa que cobria a gaiola de noite não tinha sido tirada. A dona esquecera‑o.
Há ocasiões em que o espírito estando tristemente desperto para receber impressões, múitas são notadas num relance. Era este o caso e quando Nicholas deu uma rápida vista de olhos, foi reconhecido por Mr. Bray, que disse impaciente:
‑O que quer, sir? Diga o seu recado depressa, se faz favor. A minha filha e eu estamos muito ocupados com outros assuntos mais importantes. Vamos, sir, diga qual é o seu caso.
Nicholas percebeu muito bem que a irritabilidade e impaciência deste discurso eram presumidas e Bray, no íntimo estava regozijado por ter uma imterrupção que prometesse prender a atenção da filha. Baixou involuntariamente os olhos sobre o pai e notou a sua inquietação. O estratagema contudo se de facto foi um estratagema para Madeline intervir deu bom resultado. Levantou‑se e, avançando para Nicholas, parou a meio caminho e estendeu a mão como se esperasse uma carícia.
‑ Madeline, meu amor ‑ disse o pai impacientemente - o que estás a fazer?
‑Miss Bray espera talvez uma carta ‑ disse Nicholas falando muito distintamente e com uma ênfase que ela não podia deixar de compreender. ‑ O meu patrão está fora de Inglaterra, de contrário teria trazido uma carta comigo. Espero apenas dela que me dê tempo ‑ pouco tempo ‑ peço muito pouco.
‑ Se é tudo isso o que o traz cá, sir ‑ replicou Mr. Bray - pode pôr‑se à vontade. Madeline, minha querida, não sei se este senhor está em débito.
‑ Uma ninharia, creio eu ‑ retorquiu Madeline.
‑ Suponho que pensa ‑ disse Bray fazendo girar a cadeira e enfrentando Nicholas ‑ que morriamos de fome se não fossem essas miseráveis quantias trazidas por si para pagar o trabalho de minha filha!
‑Não pensei nada isso ‑ disse Nicholas.
‑Não pensou! ‑ troçou o inválido. ‑ Sabe que não pensou mas pensou e pensa assim todas as vezes que vem cá. Supõe, que eu não sei o que são os pequenos comerciantes soberbos por dinheiro quando, através de algumas felizes circunstâncias, podem cantar de galo por um dia. ou pensam que podem cantar de galo?
‑O meu negócio ‑ disse Nicholas respeitosamente ‑ é com uma senhora!
‑ Com a filha dum cavalheiro, sir ‑ replicou o doente mas o espírito é o mesmo. Mas talvez traga encomendas, hein? Tem novas encomendas para a minha filha, sir?
Nicholas compreendeu o tom de triunfo em que este interrogatório era feito, mas lembrando‑se da necessidade de sustentar a sua aparência, tirou um papel, fingindo conter uma lista de alguns assuntos de desenhos que o patrão desejava fossem executados, e com que se preparara prevendo o caso de qualquer contingência.
‑ Oh! ‑ exclamou Mr. Bray. ‑ Estas são encomendas, não são?
‑ Desde que insiste no termo, sir, são ‑ respondeu Nicholas.
‑ Então pode dizer ao seu patrão ‑ informou Bray, de volvendo o papel com um sorriso exultante ‑ que a minha filha, Miss Madeline Bray, já não condescende em empregar‑se em trabalhos como estes; não está à sua disposição, como ele julga; não vivemos do seu dinheiro, como tolamente imagina que pode dar aquilo que nos deve ao primeiro pedinte que lhe passe pela porta, ou juntar aos seus lucros na primeira vez que o for calcular; e que pode ir para o diabo, mandado por mim! Este é o aviso de recepção das suas encomendas, sir!
E é esta a independência dum homem que vende a filha, como ele vendeu esta pobre rapariga, pensou Nicholas.
O pai estava por demais absorvido com a própria exultação para notar o olhar de desprezo que, por um momento, Nicholas não pôde reprimir.
‑Deu o seu recado e pode retirar‑se ‑ continuou ele depois dum curto silêncio ‑ a não ser que tenha quaisquer outras ordens.
‑Não tenho nenhumas ‑ respondeu Nicholas desabridamente ‑ nem por consideração da situação que já tive diria qualquer palavra, por qualquer que fosse, implicando autoridade da minha parte. Não tenho ordens, mas tenho receios que exprimir, por muito que isso o enfade, receios de que possa entregar esta jovem a alguma coisa pior do que sustentá‑lo pelo trabalho das suas mãos, mesmo morrendo ela de trabalho. São estes os meus receios e vejo‑os no seu próprio procedimento. A sua consciência dir‑lhe‑á, sir, quer eu exponha bem, ou não!
‑Pelo amor do Céu! ‑ exclamou Madeline, alarmada interpondo‑se entre eles. ‑ Lembre‑se, sir, de que meu pai é um doente.
‑Doente! ‑ gritou o inválido ofegante. ‑ Doente! Sou afrontado e ameaçado com fanforranices por um marçano e ela suplica piedade, lembrando‑lhe que sou doente!
O homem caiu num ataque tão violento que Nicholas receou, por minutos, pela sua vida; mas vendo que ele começava a recompor‑se saiu, depois de, por um gesto significativo à jovem, lhe dizer que tinha alguma coisa importante para lhe comunicar e que a esperava fora do aposento. Ouviu que o doente vinha gradual, ‑ vagarosamente, a si e que, sem qualquer referência à cena acabada de passar, como se não tivesse recordação dela, pediu para ficar só.
Oh!, pensou Nicholas, que esta insignificante oportunidade se não perca e que eu possa influenciar como se hou vesse uma semana para reconsiderar.
‑Está encarregado de alguma comissão para mim, sir?
‑ perguntou Madeline, apresentando-se com grande agitação. Não a apresse agora, peço‑lhe, suplico‑lhe. Depois de amanhã venha cá.
‑ Será tarde. para o que tenho a dizer ‑ replicou Nicholas ‑ e a senhora já não estará aqui. Se não tivesse só no pensamento aquele que me enviou, mas um derradeiro e pequeno cuidado pela sua paz de espírito e de coração, insisto pelo amor de Deus, para me ouvir.
Ela tentou deixá‑lo, mas Nicholas, delicadamente, deteve‑a.
‑ Por favor‑ ‑ pediu Nicholas. ‑ Rogo-lhe para me ouvir. não eu só, mas aquele em nome de quem falo, que está longe e ignora o seu perigo. Em nome do Céu escute‑me!
A pobre criada com os olhos pisados e vermelhos de chorar apareceu e Nicholas apelou para ela, em termos tão calorosos que ela abriu uma porta lateral e, amparando a sua senhóra, entrou no aposento anexo, fazendo sinal a Nicholas para as seguir.
‑ Deix-me, sir, suplico‑lhe ‑ disse a jovem.
‑ Não posso, não quero deixá‑la assim ‑ replicou Nicholas. ‑ Tenho um dever a cumprir e aqui, ou no aposento donde acabamos de vir, com qualquer risco ou perigo para Mr. Bray, suplico‑lhe para meditar de novo sobre o tremendo abismo para onde foi impelida.
‑ Qual é o abismo de que fala e impelida por quem, sir?
‑ perguntou a jovem, esforçando-se para falar altivamente.
-Falo do casamento ‑ retorquiu Nicholas ‑ fixado para amanhã, por uma pessoa que nunca fez nada de bom, ou emprestou o seu concurso a qualquer bom projecto; deste casamento cuja história é minha conhecida, sei a teia que se anda a tecer à sua roda. Sei quem são os homens donde nasceram estes planos. A senhora foi traída e vendida por dinheiro. por ouro, cujas moedas estão corroídas por lágrimas, se não poluídas com sangue de homens arruinados, tombados desesperadamente pelas suas próprias mãos.
‑O senhor disse ter um dever a cumprir e eu também tenho ‑ informou Madeline firmemente. ‑ E com a ajuda do Céu cumpri‑lo‑ei.
‑Diga antes com a ajuda dos diabos ‑ replicou Nicholas ‑ com a ajuda de homens, um dos quais é o seu destinado marido que são.
‑Não devo ouvir isso ‑ preveniu a jovem, procurando reprimir uma tremura ocasionada, como parecia, por esta alusão a Arthur Gride. ‑ Esse mal, se mal é, foi da minha es colha. Não fui impelida por ninguém. Vê que não sou constrangida ou forçada por ameaças e intimidações. Relate isto ao meu querido amigo e benfeitor, e com as minhas súplicas e agradecimentos para ele e para si, deixe‑me para sempre!
‑Não sem lhe suplicar com toda a veemência e fervor de que estou animado, para transferir este casamento para daqui a uma semana. Não sem lhe suplicar para pensar mais maduramente no que pode ter feito, influenciada como está sobre o passo que vai dar. Embora não esteja perfeitamente consciente da vilania do homem a quem está prestes a dar a sua mão. Tem‑no ouvido falar e tem‑lhe olhado para a cara. Reflicta, reflicta antes de ser demasiado tarde, do escárnio de lhe jurar fidelidade perante o altar, compromisso que o seu coração não pode partilhar, de proferir palavras solenes contra as quais a natureza e a razão se devem rebelar, da degradação na sua própria estima. Trema de horror da abominável companhia desse miserável, como faria da peste e da corrupção. Sofra fadigas e trabalhos, se quiser, mas fuja dele, e seja feliz. Acredite que lhe falo a verdade, a pobreza mais abjecta, a mais desgraçada condição de vida humana, com uma consciência pura seria felicidade em comparação da que vai suportar como esposa dum homem como aquele!
Muito antes de Nicholas acabar de falar a jovem tinha ocultado a cara nas mãos e dado livre curso às lágrimas. Numa voz, a princípio inarticulada, mas que foi a pouco e pouco firmando-se, respondeu‑lhe:
‑ Não lhe encubro, sir, embora talvez o devesse, que tenho padecido uma grande aflição e tenho estado quase doente do coração desde a última vez que o vi. Eu não amo esse cavalheiro. A diferença entre as nossas idades, gostos e hábitos, proibe‑o. Isto sabe ele, mas, sabendo‑o, oferece‑me contudo a sua mão. Aceitando‑a, e só por este passo, posso livrar o meu pai de morrer neste sítio; prolongar a sua vida, restituir‑lhe o conforto ‑ quase lhe posso chamar abundância ‑ e aliviar um homem generoso do fardo de socorrer uma pessoa, cujo nobre coração, aflige‑me dizer, é pouco compreendido. Não pense tão mal de mim para acreditar que finjo um amor que não sinto. Se não posso, por razão ou natureza, amar o homem que paga este preço pela minha pobre mão, posso desempenhar os deveres duma esposa; posso ser tudo o que ele procura em mim e serei. Ele contenta-se em tomar‑me tal qual sou. Dei a minha palavra. Pelo interesse que o senhor toma por uma abandonada e desprotegida como eu, pela delicadeza com que executou a missão, pela fé que depositou em mim, receba os meus mais calorosos agradecimentos e, enquanto rendo esta última e fraca gratidão, choro, como vê. Mas não me arrependo, nem sou infeliz. Sou feliz na perspectiva de tudo poder acabar, tão facilmente e serei mais, quando olhar para trás e para tudo o que está feito.
‑As suas lágrimas correm mais ainda quando fala da felicidade! ‑ observou Nicholas ‑ e foge de contemplar esse escuro futuro que deve ser carregado com muita desgraça para si. Adie ó casamento por uma semana. apenas por uma semana.
‑Quando o senhor chegou há pouco estava ele conversando com tais sorrisos, como há muito tempo me não lembra de ver devido à liberdade que chega amanhã, da abençoada mudança, do ar livre. todas as novas cenas e objectos que trariam vida nova ao seu corpo esgotado. O seu olhar tornou‑se brilhante e a sua cara iluminou‑se com este pensamento. Não o adiarei nem uma hora.
‑ Isso são artifícios e enganos para a incitar ‑ disse Nicholas.
‑Não ouvirei mais! ‑ exclamou Madeline precipitadamente. ‑ Já ouvi demais. mais do que devia. O que lhe disse, sir, confio que honradamente repetirá a esse querido amigo. Daqui a algum tempo, quando estiver mais conformada e reconciliada com o meu novo modo de vida, se viver tanto tempo, escrever‑lhe‑ei. Entretanto, que todos os anjos chovam de bençãos sobre a sua cabeça, o preservem e o façam prosperar.
Ela apressou‑se a deixar Nicholas, mas ele pôs‑se‑lhe na frente, implorando de novo para apenas pensar mais uma vez no seu destino.
‑Não há refúgio ‑ disse Nicholas no sofrimento da sua súplica ‑ não há retirada! Todo o pesar será inútil e deverá ser profundo e amargo. O que posso dizer para a induzir a parar no último momento? O que posso fazer para a salvar?
‑Nada! Esta é a provação mais árdua que tenho tido. Tenha piedade de mim, sir, suplico‑lhe, e não me despedace o coração com tais apelos. Eu. eu ouço‑o chamar! Eu. eu. não devo, não permanecerei aqui por mais tempo.
‑ Se isto fosse uma armadilha ‑ disse Nicholas com a mesma violenta rapidez com que falara ‑ numa armadilha ainda não posta a descoberto por mim mas que, com o tempo se pudesse desenrolar se tivesse direito a uma fortuna sua que, sendo recuperada, tornaria desnecessário este casamento, não se retrataria?
‑Não, não, não! É impossível; é um conto de fadas; o tempo traria a sua morte. Ele está outra vez a chamar!
‑Pode ser que seja a última vez que nos encontremos na terra ‑ disse Nicholas ‑ e talvez seja melhor para mim que não mais nos tornemos a ver.
‑ Para ambos. para ambos ‑ replicou Madeline, não atentando no que dizia. ‑ É possível que, com o tempo, a lembrança desta entrevista possa dar comigo em doida. Pode‑lhes assegurar que me deixou calma e feliz. Deus seja consigo, sir, com toda a gratidão do meu coração e os meus louvores.
Foi‑se embora e Nicholas, saindo de casa pensava na rápida cena que acabava de terminar, como se fosse a recordação dum sonho fantástico.
Essa noite, sendo a última de solteiro de Arthur Gride, encontrou‑o de espírito elevado e grande alegria. O fato verde garrafa tinha sido escovado, para o dia seguinte. Peg Sliderskew prestara as contas da sua passada gerência; os oito pence tinham sido rigidamente contabilizados (nunca lhe fora confiada uma quantia maior duma vez só e as contas não eram geralmente saldadaS mais do que duas vezes por dia), tinham sido feitos todos os preparativos para a sua festa. Arthur podia sentar‑se e contemplar a felicidade, que se aproximava, mas preferiu sentar‑se e contemplar os lançamentos dum livro em pergaminho, velho e sujo, com feehos enferrujados.
‑ Olá! ‑ cacarejou, caindo de joelhos em frente dum cofre forte, aparafusado ao chão; depois, escolheu este gordurento livro e lentamente tirou‑o para fora. ‑ Olá! temos aqui toda a minha livraria, mas este é um dos livros mais interessantes que jamais foram escritos. É um livro delicioso, cheio de verdade e de realidades, tão verdadeiro como o Bank of England, real como o ouro e a prata. Escrito por Arthur Gride... eh! eh! eh! Nenhum escritor escreveu alguma vez um tão bom nem tão interessante como este. Garanto! É composto para circulação privada. para minha leitura particular e para mais ninguém.
Murmurando este solilóquio, Arthur levou o seu precioso volume para a mesa e acomodando‑o numa empoeirada secretária, pôs os óculos e começou a olhar com atenção as páginas.
‑ É uma grande quantia para ler. Nickleby ‑ comentou ele nuxna voz dolorosa. ‑ Débito a pagar por inteiro, novecentas e setenta e cinco libras, quatro xelins e três pence. Importância adicional pela garantia, quinhentas libras. MilI quatrocentas e setenta e cinco libras, quatro xelins e três pence, amanhã, às doze horas. Embora por outro lado haja o contra por meio deste lindo ovo que está no choco. Mas põe‑se de novo a pergunta, se eu não podia ter feito tudo por mim próprio. Um tímido nunca conquista uma bonita mulher. Por que é o meu coração tão tímido? Porque não o abri eu ousadamente a Bray e poupei mil e quatrocentas e setenta e cinco libras, quatro e três?
Estas reflexões deprimiram tanto o velho usurário que se torceu com um ou dois roncos vindos do peito, obrigando‑o a declarar com as mãos levantadas que devia morrer numa casa de pobres. lembrando-se, contudo, depois de cogitar, que em quaisquer circunstâncias devia pagar o débito lindamente composto por Ralph, e não confiando, de forma alguma, no bom sucesso da empresa se a tivesse empreendido só, ganhou de novo a sua tranquilidade, até à entrada de Peg Sliderskew.
‑ Ah! ah! Peg! ‑ exclamou Arthur. ‑ O que é isso agora, Peg?
‑ a ave ‑ respondeu Peg, trazendo um prato com uma pequena, uma muito pequena ‑ um perfeito fenómeno duma ave ‑ tão pequena.
‑ Uma linda ave ‑ comentou Arthur depois de inquirir o preço e achando proporcionado ao tamanho. ‑ Com uma delgada talhada de toucinho, um ovo desfeito no molho, batatas, ervas e um pudim de maçãs, Peg, e um bocadinho de queijo, temos um jantar digno dum imperador. Haverá apenas ela, eue você, Peg. e mais ninguém.
‑ Não venha depois queixar‑se da despesa ‑ avisou Mrs. Sliderskew de mau humor.
‑Receio termos de viver dispendiosamente na primeira semana ‑ replicou Arthur com um gemido ‑ e devemos preparar‑nos para isso. Não devo comer mais do que aquilo que posso e sei que você gosta demasiado do seu velho patrão para comer mais do que pode, não é assim, Peg?
‑ Não é assim o quê? ‑ perguntou Peg.
‑ Gosta demasiado do seu velho patrão.
‑ Não, nem um bocado demasiado ‑ afirmou Peg.
‑Oh, meu Dleus! Gostava que o diabo levasse esta mulher!
‑exclamou Arthur. Gosta dele demasiado para comer mais do que você pode a expensas dele?
‑ A dele o quê? ‑ inquiriu Peg.
‑Oh, meu Deus! Ela nunca ouve a palavra mais importante e ouve todas as outras! ‑ lamentou‑se Gride. ‑ A expensas de. sua resmungona!
Contente com o atributo aos seus encantos dito em murmúrio, ouviu‑se um toque na porta da rua.
‑ É a Campainha ‑ informou Arthur.
‑ Sim, sim, sei isso! ‑ replicou Peg.
‑ Então por que não vai? ‑ berrou Arthur.
‑ Ir onde? ‑ perguntou Peg. ‑ Não faço nenhum mal aqui. Arthur Gride, em resposta, repetiu a palavra campainha com um rugido tão alto quanto pôde, acompanhado de expressiva pantomima para Mrs. Sliderskew compreender que tinham batido à porta. Peg saiu, a resmungar.
‑ Há uma mudança em si, Mrs. Peg ‑ disse Arthur, seguindo‑a com os olhos. ‑ O que significa isto não sei, mas se continuar, estou a ver que não poderemos viver em harmonia por muito tempo. Está‑se tornando parva, e se está, tem de se pôr a andar, Mrs. Peg. ou ponho-a eu. Para mim é o mesmo.
Voltando as folhas do livro enquanto falava, depressa encontrou qualquer coisa que lhe atraiu a atenção, esquecendo Peg Sliderskew e tudo o mais, no interesse despertado pelas págines.
O aposento era alumiado por um sujo candeeiro que o usurário puxara para junto de si, de modo que o resto do quarto ficava na escuridão. Levantando os olhos e olhando vagamente para esta obscuridade, a fazer algum calculo mental, Arthur Gride fixou subitamente os olhos espantados num homem.
‑ Ladrões, ladrões! ‑ guinchou o usurário, levantando‑se abraçado ao livro. ‑ Gatunos! Assassino!
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‑ O que se passa? ‑ perguntou o homem, avançando.
‑ Esteja quieto! ‑ pediu o miserável a tremer. ‑ É um homem, ou um. um.
‑ Por quem me toma, senão por um homem?
‑ Sim, sim ‑ exclamou Arthur Gride, pondo a mão em pala nos olhos. ‑ um homem e não um espírito. um homem. Ladrões, ladrões!
‑ Para que são esses gritos?. A não ser, na verdade, que me conheça e tenha algum propósito na cabeça‑ disse o estranho, aproximando-se. ‑ Não sou ladrão, homem.
‑ O que é então, e como veio parar aqui? ‑ perguntou Gride, um tanto mais sossegado, mas ainda receoso. ‑ Como se chama e o que quer?
‑ O meu nome não interessa ‑ foi a resposta. ‑ Vim até aqui porque a sua criada me indicou o caminho. Já me dirigi a si duas ou três vezes, mas o senhor estava profundamente entretido com o livro para me ouvir e, então, esperei silenciosamente até estar menos abstracto. O que quero, dir‑lhe‑ei quando arranjar coragem para me ouvir e me compreender.
Arthur Gride, aventurando-se a olhar o visitante com mais atenção, viu que era um jovem de bom aspecto. Voltou para o seu lugar e, murmurando acerca de más pessoas que andavam por ai e sobre vários atentados feitos à sua casa, o que o tornara nervoso, pediu à visita para se sentar. Esta, no entanto, não aceitou.
‑ Bom, bom,não fico em pé para ter uma vantagem ‑ disse Nicholas, pois era Nicholas, observando um gesto de inquietação da parte de Gride. ‑ Escute‑me. O senhor está para casar amanhã.
‑ N. n. não ‑ respondeu Gride. Quem disse que estava? Como sabe isso?
‑ Não importa como ‑ replicou Nicholas. ‑ Sei‑o. A jovem que está para lhe conceder a mão, odeia‑o e despreza‑o. O sangue dela gela ao ouvir o seu nome. O abutre e o cordeiro, o rato e a pomba não podem casar pior do que o senhor e ela. Como vê, eu conheço‑a!
Gride olhou para ele, petrificado pela surpresa, mas não falou, talvez por falta de possibilidade.
‑O senhor e um outro homem de nome Ralph Nickleby cozinharam entre os dois. O senhor pagalhe a comparticipação na venda de Madeline Bray. Estou a ver uma mentira a tremer‑ lhe na boca. ‑ e como Arthur Gride não deu resposta, continuou. ‑ O senhor paga para a defraudar. Como e por que meios ‑ pois envergonho‑me de sujar o nome dela com falsidade ou engano ‑ não sei. Não sei, mas neste assunto não estou só. Se a energia dum homem pode conseguir a descoberta da sua fraude e traição antes da sua morte, se o dinheiro, vingança e justa ira, pode persegui‑lo e farejar‑lhe os passos através dos seus rodeios, o senhor ainda será chamado a prestar contas. Já estamos na pista. julgue agora, o senhor que sabe o que nós não sabemos, quando estivermos na mó de baixo.
Tornou a parar e Arthur Gride continuou silencioso, pasmado para ele.
‑Se o senhor fosse um homem para quem eu pudesse apelar com qualquer esperança de tocar a sua compostura ou a sua humanidade, insistiria consigo, lembrando-lhe o desamparo a inocência e a juventude desta senhora, a sua digmidade, e beleza, e por último e mais da que tudo, respeitante mais intimamente a si, o apelo que ela fez à sua compaixão e aos seus sentimentos varonis. Mas eu tomo o único caminho que posso tomar com homens como o senhor e pergunto-lhe qual a quantia com que se pode comprá-lo para desistir. Lembre‑se do perigo a que está exposto. Vê como sei bastante para conhecer muito mais com uma ajuda muito pequena. Diminua algum esperado lucro pelo risco que deixa de correr e diga o seu preço.
O velho Arthur Gride moveu os lábios, mas apenas conseguiu um feio sorriso, continuando silencioso.
‑ Pensa que o preço não seria pago‑prosseguiu Nicholas. ‑ Miss Bray tem amigos ricos, capazes de transformar os corações em dinheiro para a salvar dum aperto como este. Indique o seu preço, adie o casamento para daqui a alguns dias e verá se aqueles de quem falo fogem ao pagamento. Ouve‑me?
Quando Nicholas começou, a impressão de Arthur Gride foi de que Ralph Nickleby o tinha traído, mas à medida que ele foi seguindo, convenceu‑se ter vindo pelo conhecimento que possuía. O papel desempenhado era genuino e não dizia respeito a Ralph Nickleby. Além o que ele parecia conhecer como certo era dele Gride ter de pagar o débito a Ralph, mas para aqueles que conheciám as circunstâncias da detenção de Bray, mesmo para o próprio Bray a respeito do extracto de conta de Ralph devia ser perfeitamente notório. Quanto à fraude sobre Madeline, a sua visita sabia tão pouco sobre a sua natureza ou valor que podia ser uma tentativa para adivinhar, ou uma acusação, feita ao acaso. Se era ou não, ele não tinha modo de descobrir o mistério e não podia prejudicar o que guardava fechado no peito. A alusão aos amigos e à oferta de dinheiro Gride achava que eram meras nuvens de fumo, com o propósito de retardar. E mesma se houvesse dinheiro, pensou Arthur Gride, relanceando para Nicholas e tremendo de medo pela sua audácia e atrevimento, preferia ter por mulher essa delicada pombinha e afastá‑la de ti, meu cara de alfenimn.
O longo hábito de pesar e notar o que os clientes diziam de computar as probabilidades e de calcular as vantagens pelas caras tornou Gride rápido em tirar conclusões e em chegar, muitas vezes a ideias contraditórias, a deduções muito ousadas. Aqui, enquanto Nicholas falava, seguia‑o estreitamente com as suas próprias interpretações de modo que, quando ele acabou de falar, estava tão bem preparado como se tivesse deliberado há quinze dias.
‑ Ouviu? ‑ gritou, erguendo‑se da cadeira, abrindo os ferrolhos da janela e levantando a vidraça. ‑ Socorro! Socorro! Socorro!
‑ O que está a fazer? ‑ perguntou Nicholas, agarrando‑lhe o braço. ‑ Grita por socorro contra os ladrões, os gatunos os assassinos. Alarmo a vizinhança, luto consigo, deixo perder algum sangue e juro que veio para me roubar se não sair daqui - respondeu Gride, voltando a cabeça pará dentro, com um sorriso medonho.
‑ Miserável! ‑ exclamou Nicholas.
‑ Veio ameaçar‑me, não veio? ‑ Continuou Gride, cujo ciúme de Nicholas e a percepção do seu triunfo o converteu num demónio. ‑ Você é o namorado desapontado. Oh, meu Deus! Mas não a terá, a minha esposa, a minha amada. Não julga que ela o esqueça? Julga que ela chorará. Hei‑ de gostar de a ver chorar. Não me importarei com isso. Ela é mais bonita quando chora!
‑ Vilão! ‑ disse Nicholas, tremendo de raiva.
‑ Mais um movimento ‑ avisou Arthur Gride ‑ e levantarei a rua com tais gritos que me fariam mesmo acordar nos braços de Madeline se fossem lançados por qualquer outra pessoa.
‑ Você é um sabujo! ‑ retorquiu Nicholas. ‑ Se fosse um homem mais novo.
‑ Oh, sim ‑ escarneceu Arthur Gride. ‑ Se fosse um homem mais novo não seria tão mau, mas para mim, tão velho e feio. lograr a pequena Madeline.
‑ Ouça‑me ‑ disse Nicholas ‑ e agradeça‑me ter a suficiente força em mim para o não atirar para a rua, que nenhuma ajuda podia evitar uma vez que o agarrasse bem. Não fui o namorado dessa senhora. Entre nós não se trocou qualquer palavra de amor. Ela nem sequer sabe o meu nome.
‑ Perguntarei tudo isso. Pedirei para mo dizer com beijos ‑ disse Arthur Gride. ‑ Sim e ela dir‑me‑à e devolver‑me‑à os beijos, e riremos juntos muito agarradinhos... e tornar‑nos‑emos muito alegres quando pensarmos no pobre jovem que a queria.
Este sarcasmo fez transparecer na cara de Nicholas uma expressão tal que Arthur Gride compreendeu claramente que a ameaça de o atirar à rua era de imediata execução. Assim, tratou de tirar a cabeça da janela e agarrar‑se firmemente com as duas mãos, lançando um vigoroso grito de alarme.
Não julgando necessário aguardar a consequência do grito, Nicholas, saiu do aposento e da casa. Arthur Gride observou‑o a atravessar a rua e depois, retirando a cabeça, fechou a janela e sentou‑se para respirar.
‑ Se alguma vez ela se tornar impertinente ou mal humorada, insulto‑a com esse palerma! ‑ disse ele quando recuperou a calma: Ela mal pensa que o conheço e se conduzir as coisas bem, quebro‑lhe a vontade por este meio e tenho-a na mão. Estou satisfeito por não ter aparecido ninguém. Não chamei alto demais. A audácia de entrar em minha casa e de me invectivar! Mas amanhã terei um bom triunfo e ele roerá as unhas ou cortará as goelas! Não me admiraria. Isso completaria perfeitamente o caso.
Quando voltou à sua condição normal com estes e outros comentários sobre o seu próximo triunfo, Arthur Gride pós o livro de lado e, tendo fechado o cofre à chave com grande cuidado, desceu à cozinha a fim de avisar Peg Sliderskew para se ir deitar e censurá‑la por ter permitido a entrada a um estra nho. Como, porém, a inconsciente Peg não foi capaz de com preender o crime de que era acusada mandou‑lhe segurar na luz enquanto ia dar uma volta para verificar os fechos e tornar mais firme a porta da rua com as suas próprias mãos.
‑ Ferro acima ‑ murmurou Arthur enquanto fechava o de baixo. corrente. tranca. duas voltas à chave e esta debaixo do meu travesseiro. E agora vou dormir até às cinco e meia, hora a que tenho de me levantar para ir casar, Peg!
Com isto bateu no queixo de Mrs. Sliderskew e pareceu, por um instante, tentado a celebrar o seu último dia de solteiro imprimindo um beijo nos engelhados lábios dela. No entanto, pensando melhor, bateu‑lhe outra vez no queixo e foi para a cama.
A crise do projecto e o seu resultado.
Não há muitos homens que fiquem muito tempo na cama na manhã do casamento. Arthur Gride tendo‑se enfarpelado com o fato verde garrafa uma hora antes de Mrs. Sliderskew, lhe bater à porta do quarto, desceu as escadas de grande uniforme e mergulhou os lábios numa pequena gota do seu cordial favorito, quando aquela delicada peça de antiguidade iluminou a cozinha com a sua presença.
‑ Fora! ‑ exclamou Peg, cavando, em cumprimento dos seus deveres domésticos, num pequeno monte de cinzas na grelha ferrugenta do fogão. ‑ Casamento! Um precioso casamento! Precisa de alguém melhor que a velha Peg para cuidar dele? E o que me disse ele, muitas vezes, para me ter contente com pouca comida e fraco ordenado? O meu testamento, Peg! O meu testamento! Sou solteiro. não tenho amigos. não tenho parentes, Peg. Mentiras! E agora vem trazer para casa uma patroa nova, uma rapariga com cara de bebé. Se precisa duma esposa, porque não arranjou uma a condizer com a sua idade? Ela não vem meter-se no meu serviço, diz ele. Não, isso não fará, mas tu mal pensas porquê, Arthur, meu menino!
Enquanto Mrs. Sliderskew, possívelmente influenciada por alguns sentimentos de desapontamento e de agravo pessoal, resmungava, Arthur Gride cogitava na saleta acerca do que se passara na noite anterior.
‑ Não sei como ele apanhou o que sabe a não ser que eu tivesse cometido. deixado perceber alguma coisa a Bray, por exemplo. Talvez tivesse. Não me surpreenderia se fosse isso. Mr. Nickleby estava muitas vezes zangado pela minha conversa con ele antes de saírmos a porta. Não podia dizer‑lhe essa parte do negócio, ou ele irritava-me por todo o dia.
Ralph era universalmente tido e reconhecido entre os colegas como um génio superior, mas para Arthur Gride o seu carácter firme e inflexível ‑ causava‑lhe funda impressão, mostrando ter medo dele. Intimamente mesureiro e cobarde por natureza, Arthur Gride humilhava-se servilxnente perante Ralph Nickleby, e mesmo que não tivesse este interesse em comum, era mais capaz de lhe lamber as botas do que atrever‑se a replicar‑lhe, ou de lhe retorquir com um espírito diferente da mais vil e abjecta lisonja.
Arthur Gride dirigiu‑se para Ralph Nickleby conforme o encontro marcado e relatou como um jovem marau, desconhe cido se introduzira em casa e tentara assustá-lo sobre o pro posto casamento. Contou‑lhe, em resumo, o que Nicholas dissera e fizera, com a ligeira reserva do que ele determinara fazer.
‑ Bem, e depois? ‑ perguntou Ralph.
‑ Nada mais ‑ respondeu Gride.
‑ Ele tentou assustá‑lo ‑ disse Ralph ‑ e você assustou‑ se, suponho. Não é assim?
‑ Eu assustei‑o, gritando por socorro ‑ replicou Gride. Estive atrapalhado a princípio, confesso, pois estava à espera que proferisse ameaças e pedisse a minha vida, ou o meu dinheiro.
‑ Oh! Oh! ‑ exclamou o outro, olhando‑o de soslaio. Também ciumento.
‑ Meu Deus, pondere o caso ‑ retorquiu o velho, esfre gando as mãos e fingindo rir.
‑ Porque faz essas caretas, homem? ‑ perguntou Ralph, duramente. ‑ Você tem ciumes. e com boa razão, penso eu.
‑ Não, não, não. não com boa razão. O senhor não pensa que seja com boa razão, pois não? ‑ inquiriu Arthur, hesitando. Pensa. hein?
‑ Como se apresenta o facto? ‑ retorquiu Ralph. ‑ Temos um velho quase forçado a casar‑se com uma rapariga e um rapaz bonito. vai ter com o velho. Você disse que ele era bonito, não disse?
‑ Não ‑ grunhiu Arthur Gride.
‑ Oh! pensava que sim! Bem, bonito ou não bonito, foi ter com o velho, um jovem que tem na boca toda a casta de ferozes desafios ‑ preferia dizer na ponta da língua ‑ e lhe diz em singelas palavras que a sua amada o detesta. Porque fez ele isto? Por filantropia?
‑ Mas não por amor ‑ respondeu Gride ‑ pois ele disse que nenhuma palavra de amor ‑ são as suas palavras textuais ‑ se trocou entre eles.
‑ Disse ele. ‑ continuou Ralph com desprezo. ‑ Mas gosto dele por uma coisa, é de lhe ter dado um belo aviso para conservar a sua. o quê? ‑ Gulodice ou franguinha?
. . fechada à chave. Tenha cautela, Gride! um triunfo afastá-la dum rival; um grande triunfo para um velho. Basta conservá-la segura quando a tiver. nada mais.
‑ Que homem! ‑ exclamou Arthur Gride, fingindo‑se altamente divertido e acrescentando depois ansiosamente: ‑Sim, conservá‑la segura, é tudo. E isso não é muito?
‑ Muito! ‑ escarneceu Ralph. ‑ Toda a gente sabe como são fáceis de compreender as coisas e de governar as mulheres. Mas vamos, é quase chegada a ocasião de você ser feliz. Liquide agora a promessa escrita para evitar maçadas depois.
‑ Que homem o senhor é! ‑ grasnou Arthur.
‑ Porque não? ‑ perguntou Ralph. ‑ Ninguém lhe vai pagar juros, suponho eu, entre agora e o meio‑ dia, pois não?
‑ Ninguém lho pagará também a si ‑ retorquiu Arthur, olhando velhacamente para Ralph com toda a astúcia e malícia que pôde.
‑ Mas se não tem o dinheiro consigo ‑ disse Ralph, forçando um sorriso ‑ ou se não estava preparado para isto, ou se o não trouxe, não há ninguém tão acomodatício como eu. Confiamos um no outro de igual maneira. Está pronto?
Gride que não fizera mais do que arreganhar os dentes, acenar com a cabeça e bater o queixo durante este último discurso de Ralph, respondeu afirmativamente, tirando do chapéu um par de compridas fitas brancas, as quais pregou, uma no peito, conseguindo com grande dificuddade levar o seu amigo a fazer o mesmo. Assim ornamentados, entraram no carro alu gado por Ràlph e rodaram para a residência da linda e muito desgraçada noiva.
Gride, cujo ânimo e coragem vinham a decair cada vez mais à medida que se aproximavam da casa, estava inteiramente acobardado, tendo-se remetido num fúnebre silêncio. A cara da criada, a única pessoa que viram, estava desfigurada pelas lágrimas e pela insónia. Não havia ninguém a recebê‑los, ou a desejar‑lhes as boasvindas, e eles viram‑se na contingência de subir as escadas, mais como dois ladrões do que como noivo com o seu amigo.
‑Alguém pensaria ‑ comentou Ralph, falando a pesar seu em voz baixa e reprimida ‑ que há aqui um funeral e não um casamento.
‑ Eh! he! ‑ riu silenciosamente o amigo. ‑ O senhor é tão. tão. engraçado!
‑ Preciso ser, pois isto está bastante frio e desagradável. Ponha-se mais alegre, homem, e não como uma pessoa que vai para a forca.
‑ Sim, sim, vou pôr‑me ‑ prometeu Gride. ‑ Mas. mas. não pensa que ela venha já?
‑ Suponho que ela não virá antes de ser obrigada ‑ réspondeu Ralph, olhando para o relógio ‑ e ainda tem uma boa meia‑hora à sua frente. Modere a sua impaciência.
‑ Eu. eu. não estou impaciente ‑ gaguejou Arthur. Não serei duro com ela. Oh, meu Deus, meu Deus de forma nenhuma. Deixêmo‑la levar o tempo que quiser. O tempo dela será absolutamente o meu.
Quando Ralph deitou ao seu trémulo amigo um olhar vivo, mostrando ter compreendido perfeitamente a razão desta grande consideração e respeito, ouviram‑se uns passos na escada e Bray entrou no aposento nas pontas dos pés, levantando uma das mãos num gesto de cautela, como se houvesse uma doente perto que não devesse ser perturbada.
‑ Silêncio! ‑ recomendou ele. ‑ Ela esteve a noite passada muito doente. Pensei que estivesse aflita do coração. Está vestida e a chorar amargamente, no quarto, mas está melhor e completamente sossegada. É tudo.
‑ Mas está pronta, não está? ‑ perguntou Ralph.
‑ Completamente ‑ respondeu o pai.
‑ E não é provável que qualquer fraqueza. desmaio. ou coisa parecida, nos demore? ‑ inquiriu Ralph.
‑ Agora pode‑se confiar nela ‑ retorquiu Bray. ‑ Esta ma nhã estive a falar com ela. Vamos um pouco para ali.
Levou Ralph Nickleby para o sítio mais afastado do aposento e apontou para Gride, que estava sentado como um saco a um canto, brincando nervosamente com os botões do casaco e mostrando uma cara, cuja expressão matreira era acentuada e agravada ao máximo pela ansiedade e agitação.
‑ Olhe para aquele homem! ‑ segredou Bray. ‑ No fim de contas isto parece uma coisa cruel!
‑ O que parece uma coisa cruel? ‑ interrogou Ralph, com uma cara tão ingénua como se realmente estivesse na completa ignorância do sentido do outro.
‑ Este casamento ‑ esclareceu Bray. ‑ Não me pergunte o quê. Você sabe tão bem como eu.
Ralph encolheu os ombros em silenciosa depreciação do comentário de Bray, mas esperou uma oportunidade mais favorável para dizer alguma coisa, ou achou não valer a pena responder.
‑ Olhe para ele! Isto não parece cruel? ‑ repetiu Bray.
‑ Não ‑ respondeu Ralph descaradamente.
‑ Eu digo que sim ‑ retorquiu Bray, com uma amostra de muita irritação. ‑ É uma coisa cruel por tudo isto ser mau e traiçoeiro!
Quando Bray se calou, finalmente, depois de ter afirmado, com grande veemência, que estavam em comum cometendo uma coisa muito cruel, Ralph falou então:
‑O senhor vê o cavaco velho e enrugado, e mudo que ele é. Se fosse mais novo seria cruel, mas assim. escute, Mr. Bray, ele morre cedo e deixa‑a uma jovem viúva e rica. Miss Madeline agora, segue o gosto do pai. para a próxima segue o dela.
‑ É verdade, é verdade! concordou Bray, mordendo as unhas e muito pouco à vontade. ‑ Não podia fazer nada melhor por ela do que aconselhá‑la a aceitar esta proposta, não é verdade? Agora pergunto-lhe, Nickleby, como um homem do mundo. podia?
‑ Evidentemente que não ‑ respondeu Ralph. ‑ Digo‑lhe, sir, que há centenas de pais dentro dum circuito de cinco mi lhas daqui, homens de bem, bons, ricos, com boas situações, que dariam contentes as filhas, e as suas orelhas com elas, àquele homem, que parece um macaco embalsamado.
‑ Pois há ‑ concordou Bray, agarrando-se com força a tudo o que parecesse justificá‑lo. ‑ E isso lhe disse eu, ontem à noite e hoje.
‑ Disse‑lhe a verdade ‑ continuou Ralph ‑ e fez bem em lho dizer. Ao mesmo tempo devo-lhe confessar que se tivesse uma filha e a minha liberdade, e os meus prazeres, não, mas se a minha verdadeira riqueza dependesse dela casar com um homem indicado por mim, esperaria não ser necessário apresentar outros argumentos para obedecer aos meus desejos.
Bray olhou para Ralph a ver se ele estava a falar com sinceridade e, tendo acenado duas ou trés vezes, num assentimento neutro, replicou:
‑ Tenho de ir lá acima por alguns minutos para acabar de me vestir. Quando vier para baixo trago a Madeline comigo. A noite passada tive um sonho estranho, de que só agora me lembro. Sonhei que estava já nesta manhã e o senhor falava como fez agora; que eu fui para cima para o mesmo fim que vou agora e quando estendia a mão para a Madeline, a fim de a trazer para baixo, o chão abateu comigo e depois de cair duma altura indescritível e tremenda, como a imaginação mal pode conceber, excepto nos sonhos, achei‑me num túmulo.
‑Acordou e viu‑se deitado de costas, com a cabeça pendurada fora da cama, ou sofrendo de má digestão? ‑ perguntou Ralph. ‑ Mr. Bray, faça como eu. Terá agora oportunidade para ter à sua frente um círculo de prazeres e de divertimentos, e ocupe‑se um pouco mais de dia para não ter tempo de pensar com o que sonha de noite.
Ralph seguiu‑o com um olhar firme até à porta e, voltando‑se para o noivo, disse, quando ficaram de novo sós:
‑Fixe as minhas palavras, Gride, não terá que pagar a anuidade dele por muito tempo. Você sempre teve sorte nos seus negócios. Macacos me mordam se ele não reservar lugar para a grande viagem antes de poucos meses.
A esta profecia, tão agradável aos seus ouvidos, Arthur não respondeu senão com um carcarejo de prazer. Ralph sentou‑se numa cadeira, pensando na mudança de Bray, como baixara o orgulho, quando o seu ouvido atento apanhou o rugido dum vestido de senhora a subir as escadas e os passos dum homem.
‑ Acorde ‑ disse ele, batendo impacientmente o pé no chão ‑ e dê uma aparência de vida, homem! Eles vêm aí. Desperte esses velhos ossos por aqui. depressa, homem, depressa!
Gride avançou e olhou, curvando-se ao lado de Ralph quando a porta se abriu e entraram de corrida... não Bray e a filha, mas Nicholas e sua irmã Kate.
Se se tivesse apresentado subitamente a Ralph uma tremenda aparição do mundo das sombras não o teria fulminado tanto como esta surpresa. As mãos descairam‑lhe, ficou de boca aberta e a cara cor de cinza,fixando-os numa raiva muda; os olhos estavam tão saidos e a cara tão convulsa e mudada pelos sentimentos que o arrebatavam,que teria dificuldade em reconhecer‑se como o mesmo homem dum minuto antes.
‑ O homem que foi ter comigo a noite passada – segredou Gride,puxando‑o pelo cotovelo. ‑ O homem que foi ter comigo a noite passada!
‑ Bem vejo ‑murmurou Ralph. ‑ Bem sei. Devia tê‑lo já adivinhado. Aparece sempre a atravessar‑se no meu caminho em todas as ocasiões,vá para onde for,faça o que fizer.
Nicholas,dominando as suas emoções e apertando suavemente o braço de Kate para lhe incutir confiança,ficou erecto frente a frente do seu indigno parente. A semelhança dos irmãos,agora que estavam lado a lado,era notória mesmo para quem a não tivesse já observado. Nunca eles pareceram tão belos e tão altivos,nem Ralph tão feio e tão baixo.
‑Fora daqui ‑ foram as primeiras palavras que ele pôde proferir,arreganhando,literalmente,os dentes. ‑ Fora daqui! O que o trás cá... mentiroso... velhaco,cobarde... ladrão?
‑ Venho aqui ‑ respondeu Nicholas numa voz baixa e profunda ‑ para salvar a sua vítima,se puder. Mentiroso e velhaco é você,em todas as acções da sua vida. Roubo é o seu comércio e duplo cobarde deve ser você,ou não estivesse aqui hoje. Os insultos não me movem,nem mesmo grande pancadaria. Aqui fico e ficarei até cumprir a minha missão.
‑ Rapariga,retire‑se! ‑ exclamou Ralph. ‑ Podemos ter de empregar a força,mas não quero magoá‑la. Retire‑se,sua parva e deixe este cão para ser tratado como merece.
‑ Não me retiro ‑ gritou Kate com os olhos chamejantes e o sangue a corar‑lhe as faces. ‑ Não lhe fará mal algum que não receba dele o troco. Pode úsar a força comigo por eu ser uma rapariga,e isso é próprio de si,mas se tenho a fraqueza duma rapariga possuo um coração de mulher e não será o senhor,numa ocasião como esta,quem poderá mudar o meu propósito.
‑ E qual é o seu propósito,soberaníssima senhora? ‑ perguntou Ralph.
‑ Oferecer neste último minuto um refúgio e uma casa ao infeliz objecto da sua perfidia ‑ replicou Nicholas. ‑ Se a próxima perspectiva dum tal marido fornecido por si a não influenciar, espero que ceda às súplicas e rogos duma pessoa do seu sexo. De todas as maneiras tentaremos. Direi ao pai, a quem venho dar um recado,que será da sua parte um acto de grande baixeza e crueldade atrever‑se a forçar este casamento.
Aqui a aguardo. Por esta razão vim e trouxe a minha irmã mesmo à sua vil presença. O nosso fim não é v‑lo ou falar consigo, por isso a si, não diremos mais palavra.
‑ Na verdade! ‑ exclamou Ralph. ‑ Persiste em ficar aqui, ma'am?
O peito da sobrinha alteou‑se com a excitação da indignação, mas não lhe deu resposta.
‑ Agora, Gride, veja isto ‑ disse Ralph. ‑ Este tipo. aflige‑me dizer. o filho do meu irmão, um malandro, manchado com todos os crimes, este tipo, vindo aqui hoje para perturbar uma solene cerimónia e sabendo qual a consequência da sua presença nesta casa numa ocasião destas, e persistindo em ficar, deve ser levado a pontapés para a rua e arrastado por ela como um vagabundo que é. Este tipo, fixe bem, traz com ele a irmã como protecção e mesmo depois de a ter avisado do que pode suceder, continua a tê‑la ao lado como vê, e agarra‑se a ela como um covarde se agarra às saias da mãe. É um belo tipo para falar de poleiro como você o ouviu agora.
‑ E como o ouvi a noite passada ‑ observou Arthur Gride ‑ quando se me introduziu em casa e. eh. . e depressa se raspou quando o assustei de morte. E queria também casar com Miss Madeline! Oh, meu Deus! Há alguma coisa que ele queira. alguma coisa que lhe possamos fazer, além de lhe dar a rapariga? Quererá ele os seus débitos pagos, a casa mobilada e algumas notas para comprar uma navalha de barba, caso já se barbeie?
‑ Fica, então, aqui rapariga? ‑ perguntou Ralph, voltando‑se outra vez para Kate. ‑ Para ser arrastada pela escada abaixo como qualquer mulher, se ficar aqui? Não responda. Agradeça ao seu irmão as consequências. Gride, chame o Braymas não a filha. Deixêmo-la lá em cima.
‑ Se tem amor à cabeça, fique onde está ‑ preveniu Nicholas, tomando posição em frente da porta e falando na mesma voz baixa como falara antes.
‑ Atenda‑me e não a ele, e chame o Bray ‑ ordenou Ralph.
‑ Tome atenção consigo e fique onde está ‑ aconselhou Nicholas.
‑ Não chama o Bray? ‑ inquiriu Ralph.
‑ Lembre‑se que se aproxima de mim por sua conta e risco ‑ advertiu Nicholas.
Gride hesitou. Ralph, estando nesta altura tão furioso como um tigre, encaminhou‑se para a porta e, tentando Kate, agarrou‑lhe rudemente no braço com a mão. Nicholas, com os olhos a dardejarem fogo agarrou‑o pelo colarinho. Nesse momento um corpo pesado caiu com grande violência no andar superior e, no instante a seguir, ouviu‑se um grito espavorido e aterrado. Ficaram todos quietos, olhando uns para os outros. Os gritos sucederam‑se; seguiu-se um pesado arrastar de pés e muitas vozes agudas gritando juntas: Ele está morto!
‑ Afastem‑se! ‑ ordenou Nicholas, deixando sair todos os sentimentos reprimidos até ali. ‑ Se isto é o que mal me atrevo a esperar, vocês, vilões, foram apanhados nas vossas próprias malhas.
Saiu do aposento como um furacão e subindo as escadas como uma seta para o alojamento donde procedia o barulho, afastou uma quantidade de pessoas que enchia completamente um pequeno quarto, e encontrou Bray no chão, morto, com a filha agarrada ao corpo.
‑ Como aconteceu isto? ‑ inquiriu, olhando rudemente em volta.
Várias pessoas responderam em conjunto terem‑no observado, por uma meia porta aberta, reclinado na cadeira numa posição estranha e incómoda que lhe falaram várias vezes, mas não obtendo resposta, julgaram‑no a dormir, até que alguém lhe sacudiu o braço, depois de ter entrado, caindo ele, então, pesadamente no chão e descobrindo-se que estava morto.
‑ Quem é o dono desta case?a‑ perguntou Nicholas apressadamente.
Foi‑lhe apontada uma velhota, a quem ele disse, enquanto se ajoelhava e desunia suavemente os braços de Madeline do corpo morto, a que estavam agarrados:
‑Represento os amigos mais chegados desta senhora e a criada sabe. Tenho de a tirar desta cena dolorosa. Esta é a minha irmã a cujo cargo a senhora a confia. O meu nome e a minha morada estão nesse bilhete e receberá as indicações necessárias para todas as disposições que seja preciso tomar. Por amor de Deus, ponham‑se de lado e dêem‑me lugar para respirar.
As pessoas recuaram, mais intrigades pela excitação e impetuosidade daquele que falava, do que pelo facto ocorrido. Nicholas, tomando a insensível rapariga nos braços, saiu do quarto e entrou no que tinha deixado, seguido pela irmã e pela fiel criada, a quem encarregou de arranjar um trem imediatamente, enquanto ele e Kate se inclinavam sobre o seu lindo fardo e faziam o possível, mas em vão, para a chamar a si. A criada executou o recado com tal brevidade que o trem estava à porta em poucos minutos.
Ralph Nickleby e Gride ficaram paralizados pelo acontecimento e pela extraordinária energia e precipitação de Nicholas. Foi só quando tudo estava preparado para levarem Madeline que Ralph quebrou o silêncio, declarando que ela não sairia dali.
‑Quem diz isso? ‑ perguntou Nicholas, levantando-se e encarando‑os, mas segurando nas suas as mãos inertes de Madeline.
‑ Eu ‑ respondeu Ralph grosseiramente.
‑ Silêncio ‑ exclamou o aterrado Gride, agarrando-o, outra vez, pelo braço. ‑ Ouça o que ele diz!
‑ Sim ‑ disse Nicholas, estendendo a mão livre no ar. Ouça o que ele diz. Os débitos de ambos estão pagos num grande débito da natureza. o compromisso escrito vencido hoje ao meio‑dia é agora papel para o lixo. a vossa fraude será descoberta... os vossos planos são desconhecidos dos homens e desfeitos pelo Céu. Seus miseráveis.
‑ Este homem ‑ advertiu Ralph numa voz apenas inteligível ‑ reclama a esposa e há‑de tê‑la.
‑ Este homem reclama o que não é seu e nunca será, mesmo que cinquenta homens o apoiem ‑ afirmou Nicholas.
‑ Quem impedirá?
‑Eu!
‑ Com que direito? ‑ disse Ralph. ‑ Pergunto, com que direito?
‑Com este direito: sabendo o que faço e não se atreva a tentar‑me mais. Com o direito daqueles a quem sirvo, com quem você tentou intrigar‑me miseravelmente, e são os seus melhores amigos. Em nome deles levo-a daqui! Abram caminho.
‑ Uma palavra! ‑ gritou Ralph, espumando pela boca.
‑ Nem uma ‑ retorquiu Nicholas. ‑ Não ouvirei mais nada. . excepto isto: olhe por si e meta na cabeça o aviso que lhe dou. O seu dia passou e a noite está a chegar!
‑A minha maldição, mais profunda chova sobre ti, rapaz.
‑Quando é que as maldições andam às suas ordens? Ou quem aproveita das maldições, ou das bençãos dadas por um homem como você? Aviso‑o que o infortúnio e a catástrofe lhe pairam sobre a cabeça. Os alicerces por si levantados através da sua vida miserável, estão a desfazer‑se em pó; os seus passos são seguidos por espias e neste mesmo dia, dez mil libras da sua amontoada riqueza, voaram numa grande quebra.
‑ falso ‑ exclamou Ralph, recuando.
‑ É verdade, verá! Não tenho mais palavras a perder. Retire‑se da porta. Kate, sai primeiro: Não ponha a mão nela, nem em ninguém, nem lhe toque nos vestidos quando passarem. Deixe‑as sair!
Aconteceu estar Gride entre portas, intencionalmente ou por confusão. Nicholas empurrou‑o com tal violência que ele deu a volta à casa até bater numa parede e cair. Então, tomando o seu lindo fardo nos braços, saiu apressadamente. Ninguém cuidou em detê‑lo. Passando por uma multidão, atraida pelo acontecimento e carregando com Madeline, chegou ao trem, onde Kate e a rapariga estava já à espera, confiou‑lhes a carga, saltou para o lado do cocheiro e mandou seguir.
Assuntos familiares, cuidados, esperanças, desapontamentos Embora Mrs. Nickleby tivesse sido posta ao facto da história de Madeline e prevenida da contingência de a receber, ficou num estado em que nem argumentos, nem explicações podiam levantar‑lhe ânimo.
‑ Jesus meu Deus, Kate ‑ exclamou ‑ Misters Cheeryble não querem que esta jovem se case, porque não fazem um requerimento ao Ministro da Justiça para a meterem na prisão de Fleet, como salvaguarda? Tenho lido coisas destas nos jornais centos de vezes; ou se eles lhe querem tanto, como Nicholas diz, porque se não casam com ela. um deles, quero dizer? E supondo mesmo que não queiram que ela case nem queiram casar com ela, porque há-de o Nicholas, em nome de não sei o quê, andar por ai a proibir que se proclamem os banhos?
‑ Não julgo que a mamã compreenda muito bem ‑ disse Kate suavemente.
‑ Tenho a certeza, Kate, de que és muito delicada ‑ replicou Mrs. Nickleby. ‑ Fui casada e vi outras pessoas casarem‑se, na verdade porque não hei‑de compreender?
‑Sei que tem uma grande experiência, querida mamã, mas quero dizer que talvez neste caso não compreenda muito bem as circunstâncias. Indicámo-las muito por alto, devo dizer.
‑Isso devo eu dizer. Isso é muito provável. Não sou responsável por isso, embora, ao mesmo tempo, como as circunstâncias falam por si, tomo a liberdade, meu amor, de dizer que as compreendo perfeitamente, ainda que tu e o Nicholas possam pensar o contrário. Porque é tanto barulho por essa Miss Madeline ir casar com alguém mais velho do que ela? O ceu pobre papá era mais velho do que eu... quatro anos e meio. Jane Dibabs‑ os Dibabses viviam numa linda casa branca, com um andar, coberta todo o ano com hera e plantas trepadeiras, com um delicioso alpendrezinho e madressilvas iguais e todas as espécies de coisas. Jane Dibabs casou‑se com um homem muito mais velho do que ela, e casar‑se‑ia apesar de tudo quanto se dissesse em contrário. Eu era muito amiga dela. Não houve barulho por causa de Jane Dibabs e, o marido, era um homem muito digno e toda a gente falava bem dele. Então porque havia de haver qualquer barulho por causa desta Madeline?
‑O marido dela era muito mais velho e não era da sua escolha. Além disso, o carácter dele é o reverso desse que acaba de descrever. Não vê uma grande distância entre os dois casos? ‑ perguntou Kate.
A isto Mrs. Nickleby apenas replicou que era muito estú pida, e não devia ter razão e na hora seguinte a boa senhora limitou as suas respostas a Oh, certamente. Porque lhe perguntou. A sua opinião não tinha consequência. Não tinha importância o que ela dizia e muitas outras coisas do mesmo género.
Neste estado de espírito permaneceu até ao regresso de Nicholas e de Kate com o objecto da sua solicitude, quando, enchendo‑se de importância, dispensou uma grande actividade e interesse pela jovem, recomendando a continuação do procedimento adoptado pelo filho. Sem precisamente se explicar, considerou feita a fortuna da família e teve tais visões de riqueza em perspectiva, que era quase tão feliz como se já tivesse tudo isso na mão.
O súbito e terrível choque sofrido com a grande aflição e ansiedade suportadas por muito tempo, tirou as forças a Madeline. Saindo do estado de estupefacção, caiu numa grande e perigosa doença, de que se libertou, contudo, concorrendo para isso as virtudes de Kate, sua enfermeira, com a sua delicadeza, o seu sorriso meigo, o seu passo leve, a sua mão suave a sua quietude e alegria. E de tal forma as faces dela lhe faziam lembrar as de Nicholas, que os não podia separar da mente, encontrando algumas vezes dificuldades em dedicar a um os sentimentos que lhe tinham inspirado e misturando, imperceptivelmente na sua gratidão para com o irmão alguns sentimentos dedicados a Kate.
‑ Minha querida ‑ disse Mrs. Nickleby, entrando no quarto com tal cautela que era mais para abalar os nervos dum doente do que um soldado de cavalaria a todo o galope. Como se encontra esta noite? Espero que esteja melhor.
‑ Quase boa mamã ‑ respondeu Kate, pondo o trabalho de lado e tomando a mão de Madeline na sua.
‑ Kate ‑ advertiu Mrs. Nickleby com reprovação ‑ não fales tão alto.
A digna senhora falara num sussurro que faria gelar nas veias o sangue do homem mais valente. Kate recebeu esta censura com muito sossego e Mrs. Nickleby, fazendo estalar todas as tábuas do soalho com o seu andar pesado, acrescentou:
‑ O meu filho Nicholas acaba de chegar e eu vim, conforme o costume, saber da sua boca exactamente como está, pois ele não se fia em mim.
‑ Ele hoje demorou‑se mais do que o habitual ‑ observou Madeline. ‑ Cerca de meia hora.
‑Nunca vi ninguém na minha vida para horas, como a menina! ‑ exclamou Mrs. Nickleby com grande assombro. Declaro que nunca fui assim. Nunca faço a mais pequena ideia de que Nicholas esteja fora de horas... não! Mr. Nickleby costumava dizer ‑ é do teu pobre papá de quem estou a falar, Kate ‑ que o apetite é o melhor relógio do mundo, minha querida Miss Bray. Desejava que tivesse e, palavra, creio que lhe daria aquilo que lhe apetecesse. Não sei de certeza, mas tenho ouvido que duas ou três dúzias de lagosta abrem o apetite, embora isso venha a dar na mesma, pois suponho que se deve ter apetite antes de as comer. Disse lagostas quando queria dizer ostras, mas decerto é o mesmo, embora realmente queira saber sobre Nicholas.
‑Acabamos justamente de falar nele mamã!
‑Tu nunca me pareces falar acerca de qualquer coisa, Kate e, palavra, estou absolutamente surpreendida de seres tão desmemoriada. Às vezes arranjas assuntos bastantes para conversares e quando sabes como é importante levantar o espírito de Miss Bray e interessá‑la, é‑me absolutamente estranho o que te pode levar a falar, sobre o mesmo tema. És uma enfermeira muito amável, Kate, e muito boa, e creio que compreendes muito bem, mas direi isto. se não foss eu, não sei o que seria do espírito de Miss Bray, e o mesmo diz o médico todos os dias, não saber como sustento os meus. Tenho a certeza de me maravilhar com frequência como consigo mantê‑los. E um esforço, mas quando vejo como tudo depende de mim nesta casa, sou obrigada a isso. É necessário, faço‑o.
Com isto Mrs. Nickleby sentou‑se numa cadeira e, durante três quartos de hora falou dos mais variados assuntos, acabando por fim, por ir divertir Nicholas durante a ceia. A este queixou‑se de que Kate não sabia levantar o espírito de Miss Bray, limitando-se a falar dele e dos assuntos da casa, e quando distraiu Nicholas com estas e outras inspiradas observações, acabou por discorrer sobre os árduos deveres por ela desempenhados durante o dia.
Outras vezes quando Nicholas vinha à noite para casa era acompanhado por Mr. Frank Cheeryble, encarregado pelos irmãos de saber como estava Madeline nessa noite. Em tais ocasiões, que eram muito frequentes, Mrs. Nickleby suspeitava que Mr. Frank vinha tanto para saber da doente como para ver Kate. De resto os próprios irmãos vinham também com frequência e recebiam informações todas as manhãs por Nicholas. Nestas ocasiões Mrs. Nickleby, para saber se as suas suspeitas eram infundadas ou não, desenvolvia uma artilharia de todos os calibres, mostrando‑se umas vezes cordial e amiga, outras vezes fria e distante. Noutras ocasiões, quando Nicholas não estava e Kate se encontrava ocupada junto da amiga doente, a digna senhora insinuava que ia mandar a filha para França, por três ou quatro anos, ou para a Escócia, para recobrar a saúde abalada pelas últimas fadigas, ou ainda para a América, de visita. Foi mesmo ao ponto de falar numa ligação com um Horatio Peltirogus ‑ um jovem cavalheiro que devia ter nessa ocasião quatro anos ‑ apenas esperando a decisão da filha.
Uma noite, estando só com Nicholas, sondou‑o sobre o assunto que lhe ocupava o espírito, não duvidando não serem da mesma opinião a respeito dele. Com este fim encaminhou a conversa com observações apropriadas e laudatórias da amabilidade geral de Mr. Frank Cheeryble.
‑Tem razão, mãe ‑ disse Nicholas. ‑ Toda a razão. É um belo rapaz.
‑Uma bela aparência também ‑ acrescentou Mrs. Nick leby.
‑Uma indiscutivel boa aparência ‑ concordou Nicholas.
‑Como se pode classificar o seu nariz, meu querido? continuou Mrs. Nickleby, desejando interessar o filho ao máximo, no assunto.
‑ Classificá‑lo? ‑ repetiu Nicholas.
‑ Sim, que estilo de nariz. qual a ordem de arquitectura, se assim se pode dizer. Não sou muito versada em narizes. Classificá‑lo de romano ou grego.
‑ Palavra, mãe ‑ disse Nicholas rindo ‑ tanto quanto me lembro diria um género composto, um nariz mixto. Mas não tenho uma forte lembrança do assunto e se isso lhe interessa muito, observá‑lo‑ei mais de perto e dir‑lhe‑ei.
‑Desejava‑o ‑ afirmou Mrs. Nickleby com um olhar ardente.
‑ Muito bem ‑ replicou Nicholas ‑ fá‑lo‑ei.
Nicholas voltou a atenção para o livro que estava a ler, quando o diálogo acabou. Mrs. Nickleby, depois de parar um bocado, por consideração, voltou a falar:
‑Ele é muito teu amigo, Nicholas!
Rindo, Nicholas afirmou ao fechar o livro, ter muito prazer em ouvir isso e observou que a mãe parecia já profunda mente metida nas confidências do seu novo amigo.
‑ Hein! ‑ exclamou Mrs. Nickleby ‑ Não sei nada disso mas julgo que seja necessário estar alguém nas suas confidências. altamente necessário.
Inchada por um olhar de curiosidade do filho e consciente de estar de posse dum segredo, Mrs. Nickleby continuou com grande animação:
‑ Tenho a certeza, querido Nicholas, que me parece muito extraordinário como deixaste de o notar, embora não saiba como o deva dizer por causa da forma como as coisas caminham, especialmente de princípio e que sendo claras para as mulheres, passam desapercebidas aos homens. Não digo que tenha ideias especiais em tais casos. Posso ter mas não exprimo opinião ‑ não me ficaria bem fazê‑lo ‑ e está absolutamente fora da questão. absolutamente.
Nicholas espevitou as velas, pôs as mãos nas algibeiras e, encostando‑se na cadeira, deitou um olhar de paciente sofrimento e de melancólica resignação.
‑ Creio ser o nosso dever, Nicholas, meu querido, dizer‑te o que sei, não só por teres direito a saber e conhecer tudo quanto acontece na família, mas porque te compete promover e ajudar muitíssimo o caso. Há muitas coisas que podias fazér, tal como dar um passeio pelo quintal, ou sentar‑te um bocado no teu quarto, ou fazeres acreditar que estás a dormir, ou pretender que te esqueceste de alguma coisa e saíres do aposento por uma hora ou mais, levando Mr. Smike contigo. Estas coisas parecem muito simples e estou certa de que te divertes ao dar‑lhes tanta importância. Ao mesmo tempo asseguro‑te, e acharás por ti quando um dia te enamorares, que muitas coisas dependem destas ninharias. Se o teu pobre papá fosse vivo ele to diria. Decerto não vais sair do aposento dando‑lhes á entender, mas sim como se fosse por acaso. Se tossires no corredor antes de abrires a porta, ou assobiares descuidadamente, ou trauteares uma canção, ou qualquer coisa da género para lhes dares a perceber que vais entrar, é sempre bom.
O profundo assombro com que o filho a contemplou durante este longo discurso serviu para elevar a opinião de Mrs. Nickleby da sua própria esperteza, por isso entrou numa grande quantidade de evidências circunstanciais, o final das quais serviu para demonstrar que Mr. Frank Cheeryble se enamorara desesperadamente de Kate.
‑De quem? ‑ exclamou Nicholas.
Mrs. Nickleby repetiu, de Kate.
‑ O quê! Da nossa Kate. minha irmã!
Jesus, Nicholas ‑ replicou Mrs. Nickleby ‑ que Kate devia ser, se não a nossa. Ou importar‑me‑ia com isso, ou tomaria qualquer interesse se fosse outra pessoa sem ser a tua irmã?
‑Querida mãe ‑ disse Nicholas ‑ com certeza não pode ser!
‑ Muito bem, meu querido ‑ retorquiu Mrs. Nickleby com grande confiança ‑ espera e vê!
A Nicholas nunca lhe passara pela cabeça semelhante coisa, se bem que ultimamente estivesse mais tempo fora de casa, mas, ligando pequenos factos que a mãe lhe indicou, era possivel acreditar‑se no que tão triunfantemente a mãe lhe expunha.
‑Estou muitíssimo perturbado pelo que me diz ‑ observou Nicholas depois duma pequena reflexão ‑ embora ainda espere que esteja engamada.
‑Não compreendo porque esperas isso, confesso; mas se estás fiado nisso, eu não estou.
‑ E quanto a Kate? ‑ perguntou Nicholas.
‑ Isso, meu querido ‑ replicou Mrs. Nickleby ‑ é justamente o ponto com que não estou satisfeita. Durante esta doença tem estado constantemente à cabeceira de Madeline
‑ nunca houve duas pessoas tão profundamente amigas uma da outra como elas se tornaram ‑ e para te dizer a verdade, Nicholas, eu tenho‑a conservado afastada de vez em quando, porque julgo ser um bom plano para excitar um jovem. Bèm sabes, assim ele não tem a absoluta certeza.
E disse isto com uma mistura de grande delícia e própria congratulação. Nicholas não quis cortar‑lhe as esperanças; mas sentiu que havia à sua frente apenas um caminho honroso e que estava resolvido a seguir.
‑Querida mãe ‑ disse ele gentilmente ‑ não vê que se houvesse realmente qualquer inclinação séria da parte de Mr. Frank para com Kate e nos permitissemos, encorajá‑la, desempenharíamos um papel desonroso e ingrato? Pergunto‑lhe se não vê isto; mas não precisa dizê‑lo pois sei que não teria sido mais cuidadosa na sua vigilância. Deixe‑me explicar‑lhe o meu pensamento. lembre‑se como somos pobres. Mrs. Nickleby abanou a cabeça e disse, através de lágrimas, que a pobreza não era um crime.
‑ Não ‑ retorquiu Nicholas ‑ e por essa razão a po breza deve manter uma honesta altivez que não leve a tentar acções indignas. Lembre‑se do que devemos a esses dois irmãos; lembre‑se do que eles têm feito e fazem por nós, com grande generosidade e uma delicadeza, pelas quais a devoção de todas as nossas vidas seria uma paga imperfeita e inadequada. Que espécie de paga seria essa, permitindo que o sobrinho, o seu único parente, que eles olham como filho e para quem formam planos adaptados à educação por ele recebida e à fortuna que tem a herdar, casasse com uma rapariga sem vintém, tão ligada a nós que a irresistível interferência devia ser tomada como uma armadilha; uma especulação concebida entre os três? Veja o assunto com clareza, mãe. Agora como se sentiria se eles se apaixonasssem e os irmãos, vindo aqui num dos seus amáveis propósitos, como cá os trazem com frequência, lhes tivesse de dizer a verdade? Julgaria ter feito um acto honesto e leal?
A pobre Mrs. Nickleby, chorando cada vez mais, murmurou que decerto Mr. Frank pediria primeiro o consentimento dos tios.
‑ Com certeza que o colocaria numa melhor situação para com eles ‑ argumentou Nicholas ‑ mas ainda assim ficáva mos sujeitos a suspeitas; a distância entre nós continuaria a ser muito grande. Tenho a confiança em Kate para saber que ela pensa como eu, e em si, querida mãe, para ter a certeza que após uma pequena reflexão, fará o mesmo.
Depois de muitos pedidos, Nicholas obteve a promessa de Mrs. Nickleby fazer como ele desejava, e se Mr. Frank con tinuasse com as suas atenções, procuraria desencorajá‑lo, ou, pelo menos, não ajudar. Ele determinou nada dizer a Kate enquanto não visse a necessidade de o fazer e resolveu, na medida do possível, observar pessoalmente a exacta posição do caso. mas foi impedido de a pôr em prática devido a nova fonte de ansiedade e inquietação.
Smike tornou‑se assustadoramente doente, tão consumido e exausto que mal podia ir dum aposento para outro sem ajuda, e tão fraco e emaciado que era um dó vê‑lo. Nicholas foi avisado pelo mesmo médico a quem a principio recorrera, que a última probabilidade e esperança da sua vida dependia de ser tirado imediatamente de Londres. Aquela parte do De vonshire onde Nicholas tinha sido criado foi indicada como c lugar mais favorável, mas este conselho foi cautelosamente acompanhado com a informação de estarem preparados para o pior.
Os amáveis irmãos, que estavam a par da história triste da pobre criatura, despacharam o velho Tim para assistir à consulta. Nessa mesma manhã Nicholas foi convidado pelo irmão Charles para ir ao seu escritório particular, dirigindo‑ se‑lhe assim:
‑Meu caro senhor, não há tempo a perder. Esse garoto não morrerá se os meios humanos que podemos usar lhe salvarem a vida. Nem morrerá abandonado num lugar estranho. Leve‑o amanhã de manhã; veja se ele tem todo o conforto e não o deixe. não o deixe, meu caro senhor, até ver que já não há um perigo imediato. Seria duro, na verdade, separá‑lo agora... visitá‑loá esta noite, sir; Tim visitá‑lo‑á esta noite com uma ou duas palavras de despedida. Irmão Ned, meu querido rapaz, Mr. Nickleby espera para te apertar a mão e dizer‑te adeus! Mr. Nickleby não se ausentará por muito tempo; esse pobre rapaz estará melhor dentro em pouco... e procurará alguns bons camponeses onde o deixar, indo lá algumas vezes vê‑lo, Ned, bem sabes ‑ e não há motivo para desfalecimentos, pois ele em breve estará melhor. não estará, Ned?
O que Tim Linkinwater disse, ou levou consigo nessa noite, não há necessidade de contar. Na manhã seguinte Nicholas e o seu companheiro iniciaram a viagem. Só aqueles que nunca encontraram um olhar amável, ou ouviram uma palavra de simpatia, podiam dizer quanto sofrimento moral, quantos pensamentos, quanta tristeza estavam envolvidos naquela pesarosa separação.
‑Vê ‑ gritou Nicholas com veemência, olhando pela janela do carro ‑ estão ainda à esquina da azinhaga. Agora é Kate ‑ pobre Kate, de quem disseste que te não podias despedir ‑ acenando com o lenço. Não deixes de fazer um gesto de adeus a Kate!
‑Não posso fazê‑lo ‑ exclamou o seu trémulo companheiro, encostando-se ao assento e cobrindo os olhos. ‑ Vê‑a agora? Ela ainda lá está?
‑Sim ‑ respondeu Nicholas. ‑ Está outra vez a acenar com a mão respondi‑lhe por ti... e agora estão fora de vista. Não dês curso a tanta amargura. Hás‑de encontrá‑los de novo.
O encorajado levantou as descarnadas mãos e juntou‑ as.
‑No Céu, como humildemente peço a Deus, no Céu! Soou como uma prece dum coração dilacerado.
Ralph Nikleby, derrotado pelo sobrinho no seu último projecto, inventa um plano de retaliação que o acidente lhe sugere e consegue um experimentado auxiliar.
Voltamos ao momento em que Ralph Nickleby e Arthur Gride ficaram juntos na casa onde a morte tão subitamente frustrou os seus escuros projectos.
Com as mãos enclavinhadas e os queixos compridos, Ralph permaneceu por alguns minutos na atitude ordenada pelo sobrinho, respirando com força, imóvel, como uma estátua de bronze. Depois de algum tempo começou a acalmar‑se e, agitando os punhos para a porta por onde o sobrinho desaparecera, voltou‑se e encarou o outro menos valente usurário, ainda estendido no chão. O miserável cobarde, cujos membros se agitavam ainda e cujos raros cabelos brancos tremiam na cabeça, levantou‑se quando encontrou o olhar de Ralph e, escondendo a cara nas mãos, protestou, enquanto coxeava para a porta, que a culpa não era dele.
‑ Quem disse isso, homem? ‑ perguntou Ralph numa voz reprimida. ‑ Quem disse isso?
‑O senhor olhou como se me fosse culpar ‑ respondeu Gride timidamente.
‑Pataratas! ‑ murmurou Ralph, forçando uma gargalhada.
‑ Culpo‑o a ele, desejando que não viva mais duma hora. mas não culpo mais ninguém.
‑ Mais nin. nin. guém? ‑ inquiriu Gride.
‑ Não por este infortúnio ‑ respondeu Ralph. ‑ Tenho uma conta a ajustar com esse... esse jovem que lhe levou a noiva, mas agora não há nada a fazer com esse valentão, porque em breve havemos de nos livrar dele sem ser por este maldito acidente.
A calma apresentada por Ralph Nickleby era tão pouco natural e sua expressão tão medonha, que o cobarde Gride teve mais medo dele do que teria se visse à frente o corpo morto.
‑A carruagem ‑ disse Ralph depois dum tempo, durante o qual esteve a lutar, como um homem forte, contra um acesso. ‑ Viemos de carruagem. Ela está. à espera?
Gride aproveitou, contente, o pretexto para ir ver à janela e Ralph, conservando a cara firmemente voltada para o outro lado, rasgou a camisa com a mão que metera no peito, murmurando num sussurrar medonho:
‑Dez mil libras. A soma exacta paga apenas ontem por duas hipotecas e que teriam sido outra vez amanhã emprestadas com um bom juro. Se essa casa faliu e ele foi o primeiro a trazer a notícia!. A carruagem está aí?
‑ Sim ‑ respondeu Gride, assustado pelo tom feroz da pergunta. ‑ Está ali, meu Deus, que homem colérico o senhor é!
‑Venha cá ‑ disse Ralph, acenando‑lhe. ‑ Não devemos mostrar que estamos perturbados. Vamos descer de braço dado.
‑ Mas o senhor faz-me nódoas negras ‑ queixou‑se Gride, torcendo-se com dores.
Ralph puxou-o com impaciência e desceu as escadas com passo firme e pesado, e entrou na carruagem. Arthur Gride seguiu‑ o. Depois de olhar duvidosamente para Ralph, quando o cocheiro perguntou para onde devia seguir, e vendo que ele ficava silencioso, Arthur indicou a sua casa e foi para lá que seguiram.
Durante o caminho, Ralph, de braços cruzados, com o queixo metido no peito e os olhos completamente ocultos pelas sobrancelhas, não disse uma palavra, parecendo dormir. Só quando a carruagem parou é que levantou os olhos e perguntou onde estavam.
‑ Na minha casa ‑ informou o desconsolado Gride, talvez impressionado pela solidão. ‑ Oh, meu Deus, é a minha casa!
‑ É verdade, confirmou Ralph. ‑ Não tinha observado o caminho por onde viemos. Gostava dum copo de água. Suponho que a tenha em casa!
‑ Terá um copo de. qualquer coisa que queira ‑ respondeu Gride com um gemido. ‑ Não serve de nada bater, cocheiro. Toque a campainha.
O homem tocou, tocou, tocou e fartou‑se de tocar; depois bateu até fazer eco na rua; em seguida escutou pelo buraco da fechadura. Não veio ninguém. A casa estava silenciosa como um túmulo.
‑ O que é isto? ‑ perguntou Ralph com impaciência.
‑ A Peg é muito surda ‑ informou Gride com um olhar de ansiedade e aflição. ‑ Oh, meu Deus! Torne a tocar, cocheiro. Ela v a campainha.
O homem tornou a tocar e a bater por diversas vezes. Alguns vizinhos abriram as janelas e disseram uns para os outros que a governanta do velho Gride devia ter morrido. Outros emitiram a opinião dela estar a dormir; outros de se ter embriagado, e um homem gordo afirmou que ela vira tanto para comer, que tivera um colapso. Esta última sugestão foi particularmente acolhida com prazer pelos circunstantes, que a aprovaram com gritos e houve dificuldades em afastá-los para deixarem o campo livre a fim de arrombarem a porta da cozinha e verificar o que havia. Isto não foi tudo. Tendo-se espalhado que Arthur ia casar nessa manhã, fizeram‑lhe perguntas sobre a noiva, o que a maioria julgava estar disfarçada na pessoa de Mr. Nickleby e levantou muita indignação jocosa no público a aparição duma noiva de botas e calças. Por fim os dois usurários obtiveram abrigo numa casa a seguir e tendo‑se‑lhe fornecido uma escada de mão, treparam para o muro do pátio, e desceram a salvo para o outro lado.
‑ Declaro que tenho medo de entrar ‑ confessou Arthur, voltando-se para Ralph, quando ficaram sós. ‑ Supunhamos que foi assassinada. e está com os miolos à vista. hein?
‑ Supunhamos que estava. Digolhe que desejava que essas coisas fossem mais comuns do que são, e feitas mais facilmente. Você pode abrir os olhos e tremer. Eu vou!
Depois de beber água tirada da bomba do pátio e de refrescar a cara e a cabeça, adquiriu a sua costumada maneira, entrando em casa seguido de Gride.
Os dois usurários percorreram a casa desde a cave até ao sótão, mas Peg não estava lá. Por fim, sentaram‑se no aposento onde Arthur Gride usualmente estava, para descansar depois desta busca.
‑ A bruxa saiu para preparar alguma coisa para a festa do casamento, disse Ralph, dispondo-se a partir. ‑ Veja aqui. Destruo o compromisso. Não temos necessidade dele agora.
Gride, que tinha andado a perscrutar todos os cantos do aposento, caiu de joelhos diante dum grande cofre e soltou um terrível grito.
‑ O que temos agora? ‑ perguntou Ralph, olhando em redor.
‑ Roubado! roubado! ‑ guinchou Arthur Gride.
‑ Roubado! Em dinheiro?
‑ Não, não, não. Pior! Muito pior!
‑ Então de quê? ‑ inquiriu Ralph.
‑ Pior do que dinheiro! ‑ gritou o velho, tirando os papéis do cofre. ‑ Era melhor que tivesse roubado dinheiro, não tenho muito! Era melhor, ter‑me reduzido a estender a mão à caridade do que ter feito isto!
‑ Feito o quê? ‑ inquiriu Ralph. ‑ Velho tonto? Gride não deu resposta, mas esgaravatou e arrebatou os papeis com violência e uivou como um demónio posto a tormentos.
‑ Falta qualquer coisa. O que é? ‑ interrogou Ralph, abanando‑o furiosamente pelo colarinho.
‑ Papeis. escrituras. Sou um homem arruinado. perdido. Estou roubado, estou arruinado. Ela viu‑me a lê‑lo. ultimamente. fazia-o frequentemente. Espreitou‑me, viu‑me metê-lo na caixa. a caixa foi‑se. ela roubou‑a. Maldição!
‑ Mas o quê? ‑ gritou Ralph, em quem parecia ter‑se feito uma súbita luz, pois os olhos dardejaram e o corpo tremeu de agitação ao ver o braço ossudo de Gride. ‑ Mas o quê?
‑ Ela não sabe o que é, não sabe ler ‑ gemeu Gride, não prestando atenção às perguntas. ‑ Era o único canal por onde o dinheiro podia vir e este foi roubado por ela. Alguém lhe lerá e lhe dirá o que tem a fazer. Ela e o seu cúmplice podem arranjar dinheiro e, além disso, perderem‑me. Farão disso um mérito. dizem que o encontraram. conheciam‑no. e a evidência é contra mim. A única pessoa sobre quem isto recairá sou eu... eu...
‑ Paciência ‑ aconselhou Ralph, apertando cada vez mais o braço e olhando‑o de esguelha, tão fixo e ardente que indicava ter algum propósito escondido. ‑ Ouça a razão. Ela não pode ter ido longe. Chamemos a polícia. Você dá informações do que ela lhe roubou e eles deitam‑lhe a mão; confie em mim. Aqui. socorro!
‑ Não! não não! ‑ gritou o velho, pondo a mão na boca de Ralph. ‑ Não posso, não me atrevo.
‑ Socorro! Socorro! ‑ continuou Ralph.
‑ Não! não! não! ‑ ganiu o outro. ‑ Digo‑lhe que não! Não me atrevo!
‑ Não se atreve a tornar público este roubo? ‑ perguntou Ralph com ímpeto.
‑ Não ‑ respondeu Gride, torcendo as mãos. ‑ Silêncio! Nem uma palavra sobre isto. Estou perdido. Para qualquer lado que me volte estou perdido. Fui traído. Estou desamparado. Morrerei em Newgate!
Com frenéticas exclamações como estas e muitas outras, o miserável foi diminuindo a sua primitiva veemência até che gar a um gemido, quando descobria alguma nova perda entre os papeis que estavam no cofre. Pedindo muito pouca desculpa por partir tão subitamente, Ralph deixou‑o, desapontando os curiosos, dizendo‑lhes que não havia nada e meteu‑se no carro para casa.
Na mesa estava uma carta. Deixou‑a lá durante algum tempo como se não tivesse coragem de a abrir, mas por fim abriu‑ a e tornou‑se pálido de morte.
‑ Aconteceu o pior ‑ disse ele. ‑ Faliu a casa. Estou a ver, o rumor andava pela City a noite passada e chegou aos ouvidos destes comerciantes. Bem. bem.
Pôs-se a andar com violência dum lado para o outro e parou de novo.
‑ Dez mil libras! E apenas estavam lá por um dia. por um dia! Quantos anos de ansiedade, quantos dias de aflição, quantas noites sem dormir, antes de juntar essas dez mil libras. Quantas dames orgulhosas teriam sorrido e adulado e quantos gastadores me lisonjeariam pela frente, amaldiçoando‑me pelas costas, enquanto essas dez mil libras me rendiam vinte! Que discursos suaves e olhares corteses e cartas delicadas! A giria do falso mundo é que os homens como eu abarcam com as riquezas por dissimulação e deslealdade. Quantas mentiras, quantos vis e abjectos subterfúgios, quanto humilde procedimento dos filhos da fortuna que, se não fosse o meu dinheiro, me escorraçariam, como fazem aos seus superiores todos os dies, me teriam dádo estas dez mil libras! Concedo que a tenha duplicado ‑ feito cem por cento, pois cada soberano chama outro; não haveria uma moeda nesse monte que não representasse dez mil mentiras vis e desprezíveis, ditas, não pelo emprestador, mas pelos que pedem dinheiro emprestado.
Esforçando‑se, como parecia, em perder parte da amargura das suas tristezas na amargura destes e outros pensamentos, Ràlph continuou a passear no aposento. Por fim sentou‑se na cadeira e passando-lhe as mãos pelos braços com tanta força, que rangeram, disse entre dentes:
‑Houve um tempo em que nada me teria irritado como a perda desta grande quantia... nada, como nascimentos, mortes, casamentos e qualquer acontecimento de interesse para a maioria dos homens, tinha interesse para mim. Mas agora, juro, junto à perda o triunfo de a anunciar. Se ele alcançou o seu intento ‑ quase sinto que sim ‑ não o posso odiar mais. Deixem‑me pagar‑lhe na mesma moeda, deixem‑me começar a levar a melhor sobre ele, deixem‑me voltar os pratos da balança e posso então medrar.
A sua meditação foi longa e profunda. Terminou mandando uma carta por Newman, dirigida a Mr. Squeers, em Saracen's Head, com instruções para ele perguntar se o senhor já tinha chegado à cidade e, no caso afirmativo, para esperar pela resposta. Newman trouxe a informação de que Mr. Squeers viera essa manhã na diligência e recebera a carta na cama, mas mandava os seus cumprimentos, informando que se ia levantar para ir ter imediatamente com Mr. Nickleby.
O intervalo entre a entrega deste recado e a chegada de Mr. Squeers foi muito curto, mas antes dele chegar, Ralph tinha feito desaparecer qualquer sinal de emoção e mais uma vez readquiriu a maneira dura, e inflexível que lhe era habitual.
‑ Então, Mr. Squeers ‑ disse ele dando as boas‑vindas a este benemérito com o seu costumado sorriso, de que um vivo olhar e um pensativo franzir de sobrancelhas eram parte int grante. ‑ Como está?
‑ Lindamente bem, sir ‑ respondeu Mr. Squeers. ‑ Assim como a família e os rapazes, excepto uma espécie de brotoeja que deu na escola e tirou o apetite a bastantes deles. Mas o mau vento que sopra não é bom para ninguém, é o que digo sempre quando os rapazes têm visitas. Uma visita, sir, é uma data de mortandades. A própria mortandade, sir, é uma visita. O mundo está completamente cheio de visitas e se um rapaz se comove com a visita e se se mostra inconsolável com o barulho, deve ter a cabeça furada. Isto está nas Escrituras.
‑ Mr. Squeers ‑ disse Ralph secamente.
‑ Sir.
‑Pomos de parte esses preciosos trechos de moralidade, e conversemos de negócios.
‑ Com todo o meu coração, sir ‑ replicou Squeers ‑ mas primeiro deixe‑me dizer.
‑ Primeiro deixe‑me dizer, se me dá licença. Noggs! Newman apresentou‑se quando o chamamento foi duas ou três vezes repetido, perguntando se o patrão chamava.
‑ Chamei. Vá ao seu jantar. imediatamente. Ouviu?
‑ Não são horas ‑ lembrou Newman, aborrecido.
‑ na altura em que eu quiser e sei que são horas ‑ retorquiu Ralph.
‑ O senhor altera isto todos os dias ‑ resmungou Newman. ‑ Não é bonito!
‑Você não ocupa muitos cozinheiros e pode facilmente desculpar‑se para com eles pelo transtorno. ‑ Vá‑se embora!
Ralph não só deu esta ordem da maneira mais terminante, mas, com o pretexto de ir procurar alguns papeis ao escritório, viu se ele obedecia, e quando Newman abandonou a casa, trancou a porta para evitar o seu possível regresso, secretamente, por meio da chave do trinco.
‑ Tenho razões para suspeitar deste tipo ‑ confessou Ralph quando voltou ao seu escritório. ‑ Por isso, até ter pensado na forma mais expedita e de menor trabalho para o perder, acho melhor conservá‑lo a distância.
‑ Não deve ter muito trabalho para o perder, penso eu - disse Squeers com um sorriso.
‑ Talvez não ‑ concordou Ralph. ‑ Nem para perder um grande número de pessoas do meu conhecimento. Você ia a dizer.
A forma sumária e natural de Ralph mostrar este exemplo e de emitir a insinuação que se lhe seguiu, teve, evidentemente, efeito em Mr Squeers o qual disse, depois duma pequena hesitação e num tom mais reprimido:
‑O que ia a dizer, sir, é que este negócio referente a esse ingrato e endurecido rapaz, Snawley, senior, põe‑me fora de mim e além disse ocasiona uma inconveniência completamente sem igual, fazendo de Mrs. Squeers uma perfeita viúva durante toda a semana. É um prazer para mim trabalhar consigo, decerto.
‑ Decerto ‑ repetiu Ralph, secamente.
‑ Sim continuou Mr. Squeers, esfregando os joelhos, mas ao mesmo tempo quando uma pessoa vem, como eu agora com mais de duzentas e cinquenta milhas para fazer um depoimento, isso põe um homem fora de si deixando só o risco.
‑ E onde pode estar o risco, Mr. Squeers? ‑ perguntou Ralph.
‑ Eu disse, deixando só o risco ‑ replicou Squeers evasivamente.
‑ E eu disse, onde estava o risco?
‑ Não me estava a queixar, Mr. Nickleby ‑ desculpou‑se Squeers. ‑ Palavra, nunca uma tal.
‑ Eu pergunto-lhe, onde está o risco? ‑ repetiu Ralph, enfaticamente.
‑ Onde está o risco? ‑ retorquiu Squeers, esfregando os joelhos ainda com mais força. ‑ Não é necessário mencionar. certos assuntos é melhor evitá-los. O senhor sabe o risco de que falo.
‑Quantas vezes já lhe tenho dito e quantas terei ainda que lhe dizer, que você não correu risco? O que você jurou, ou o que lhe foi pedido para jurar, foi apenas que, em tal tempo lhe foi entregue um rapaz com o nome de Smike; que ele esteve na sua escola por um certo número de anos, que desapareceu em tais circunstâncias e foi agora encontrado e identificado por si, em tal e tal guarda. Tudo isto é verdade. não é?
‑ Sim ‑respondeu Squeers‑tudo isso é verdade.
‑ Então bem ‑ disse Ralph. ‑ Que risco correu? Quem jurou uma mentira se não Snawley. um homem a quem paguei muito menos do que a si?
‑ Ele certamente fez isso barato, o Snawley ‑ observou Squeers.
‑ Ele fê‑lo barato! ‑ replicou Ralph de mau humor. ‑ Sim, e fê‑lo bem, representando com uma cara hipócrita e um ar de santarrão, mas você... risco! O que entendz por risco? Os certificados são todos genuínos; Snawley tinha outro filho, foi casado duas vezes, a sua primeira mulher está morta, ninguém, a não ser o seu fantasma, podia dizer que ela não tinha escrito a carta, nem mesmo o próprio Snawley pode dizer que ele não é seu filho e que o seu verdadeiro filho foi comido pelos vermes! O único perjúrio é de Snawley e imagino que está bem acostumado a ele. Onde está o seu risco?
‑ Ora, o senhor sabe ‑ respondeu Squeers mexendo‑se desassossegadamente na cadeira ‑ e se vamos a isso pergunto, onde está o seu?
‑ Podia dizer onde está o meu ‑ retorquiu Ralph ‑ pode dizer onde está o meu. Eu não apareço no negócio. nem você. Todo o interesse de Snawley é fazer finca pé na história que ele contou, e todo o risco está no mais pequeno desvio. Fale do seu risco na conspiração!
‑ Escute ‑ advertiu Squeers, olhando em volta, pouco à vontade ‑ não chamo a isso. um favor, não!
‑ Chame‑o como quiser ‑ disse Ralph irritado ‑ mas atenda‑me. Esta história foi originalmente fabricada como um meio de aborrecer aquele que feriu o seu comércio e quase o pôs às portas da morte, e permitir a si reapossar‑se dum escravo meio pateta que você desejava reaver, porque embora lhe satisfizesse vingar‑se nele pela parte que tomou no caso, você sabia que o melhor castigo que podia inflingir ao seu inimigo era ele saber que o rapaz estava de novo em seu poder. Não é assim, Mr. Squeers?
‑ Ora, sir ‑ replicou Squeers, quase vencido pela determinação de Ralph em voltar o assunto contra si ‑ duma maneira foi.
‑ O que quer isso dizer? ‑ perguntou Ralph sossegadamente.
‑ Ora, numa maneira de meios ‑ explicou Squeers ‑ pode ser assim, mas não foi tudo por minha causa, porque o senhor tinha também uma velha conta a ajustar.
‑Se não tivesse imagina que o ajudaria?
‑ Não, não supunha que o fizesse ‑ respondeu Squeers. Apenas queria esse ponto muito bem regulado e ajustado entre nós.
‑ Como podia ser de outra forma? Com excepção do caso ser contra mim por ter dispendido dinheiro para satisfazer o meu ódio e você embolsá‑lo para satisfazer o seu. Você é, pelo menos, tão avarento quanto vingativo. e eu também. Qual é o melhor dos dois? Você, que ganhou dinheiro e se vingou ao mesmo tempo e que está, certo do dinheiro, se não da vingança, ou eu, que tenho a certeza de ter gasto dinheiro em qualquer caso e não posso vingar‑me?
Como Mr. Squeers apenas pôde responder a este interrogatório por encolhidelas de ombros e sorrisos, Ralph pediu‑ lhe, desabridamente, para estar calado, agradecendo que se fosse embora se não estivesse; e depois, fixando os olhos duramente nele, continuou a explicar.
Primeiro, que Nicholas se atravessara num plano por ele formado para casamento de certa jovem e, na confusão da morte súbita do pai, se apossara da jovem e a levara em triunfo. Segundo, que por qualquer testamento ou contrato, certa mente qualquer documento escrito que devia conter o nome da jovem e podia, por isso, ser facilmente seleccionado de entre outros, se o acesso ao sítio onde foi depositado fosse conseguido, herdando-lhe bens ‑ e se a existência deste documento fosse conhecida dela ‑ faria o marido, e Ralph fez ver que Nicholas tinha a certeza de casar com ela) um homem rico e próspero, e um inimigo formidável. Terceiro, que este documento tinha sido roubado com outros, de quem o tinha obtido ou ocultado fraudulentamente e receava dar quaisquer passos para o recuperar, e que ele, Ralph, conhecia o ladrão. Tudo isto Mr. Squeers escutou com ouvidos atentos, devorando todas as sílabas e o seu único olho e a boca, abertos, maravilhado por que especial razão era honrado com esta tão grande confidência de Ralph.
‑ Agora ‑ continuou Ralph, inclinando‑se para a frente e pondo a mão no braço de Squeers‑ouça o plano que concebi e que devo, ouça, devo, se puder amadurecê‑lo, pô‑lo em execução. Não há nenhuma vantagem em tornar conhecida essa escritura, seja qual for, a não ser pela própria rapariga, ou pelo marido, e a posse deste documento, por um ou outro é indispensável para conseguirem o respectivo proveito. Quero que essa escritura seja trazida para aqui e dou ao homem que a trouxer cinquenta libras em ouro e reduzo‑a a cinzas em frente dele.
Mr. Squeers, depois de seguir com o único olho o gesto da mão de Ralph para o fogão, como se estivesse nesse momento a queimar o papel, deu um grande suspiro e disse:
‑ Sim, mas quem a trará?
‑Talvez ninguém por haver muito que fazer antes de o apanhar ‑ respondeu Ralph. ‑ Mas se for alguém. é você!
Os primeiros sinais de consternação de Mr. Squeers e a sua pura renúncia da tarefa teriam abalado muitos homens, se não ocasionasse até um completo abandono do projecto. Em Ralph, não produziram o menor efeito. Depois do mestre‑escola ter feito um discurso de perder o fôlego, Ralph continuou a apresentar as características do caso, como achou mais aconselhável para conseguir o ponto principal.
Estas eram a idade e a fraqueza de Mrs. Sliderskew e a improbabilidade de ter um cúmplice; a dificuldade dela fazer uso de documentos cuja natureza ignorava; a comparativa facilidade de alguém, que fosse ter com ela, em meter‑lhe medo, no caso de ser necessário,insinuar‑se na sua confiança e obter a posse da escritura. A isto havia a acrescentar o facto de residir Mr. Squeers muito distante de Londres, ninguém o poder reconhecer agora, nem depois; a impossibilidade de Ralph se ocupar do trabalho por ela o conhecer de vista. Em aditamento, Ralph pintou com muita habilidade o desapontamento de Nicholas casando com uma pedinte, julgando fazê‑lo com uma herdeira e, finalmente, deu a entender que as cinquenta libras podiam ser aumentadas para setenta e cinco, ou, no caso dum sucesso muito grande mesmo para cem.
Concluidos, por fim, estes argumentos, Mr. Squeers cruzou as pernas, coçou a cabeça esfregou o olho, examinou as palmas das mãos, mordeu as unhas e depois de exibir muitos outros sinais de desassossego e indecisão, perguntou se cem libras era o máximo até onde Mr. Nickleby poderia ir. Tendo‑lhe sido respondido afirmativamente, tornou‑se de novo inquieto e depois de pensar outra vez e de receber uma negativa à resposta, se não podia ir até mais cinquenta, disse supor poder tentar fazer o impossível por um amigo, o que tinha sido sempre a sua máxima, portanto, tomava conta do caso.
‑ Mas como alcança o senhor, a mulher? ‑ perguntou ele.
‑ Isso é o que me intriga.
‑ Posso não a alcançar ‑ respondeu Ralph ‑ mas tentarei. Tenho há muito tempo na cidade gente perseguida, que devia mais esconder‑se do que ela, e conheço sítios onde um guinéu ou dois, bem gastos, resolvem muitas vezes casos mais complicados do que este. e também os conservam fechados, se for necessário! Ouço o meu empregado a tocar à campainha. Temos de nos separar. É melhor você não andar para cá e para lá, e aguardar até receber notícias minhas.
‑ Bem ‑ retorquiu Squeers ‑ Ouça. Se o senhor a não encontrar paga as despesas em Saracen e alguma coisa pela perda de tempo.
‑ Bem, sim ‑ concordou Ralph com modo rabugento. Não tem mais nada a dizer?
Squeers abanou a cabeça e Ralph, acompanhando‑o à porta da rua, surpreendeu‑se, para conhecimento de Newman, de estar a porta trancada como se fosse noite; deixou entrar este e sair Squeers, voltando depois para o seu escritório.
‑ Agora ‑ murmurou aborrecido ‑ venha o que vier, estou firme e inabalável. Que consiga ao menos recuperar uma pequena porção da minha perda e da minha desgraça; que consiga ao menos desfeiteá‑lo nesta sua única esperança, querida para o seu coração, como sei que deve ser; que ao menos consiga isto e será o primeiro elo duma cadeia tal que eu passarei em volta dele e tão forte como nenhum homem ainda forjou.
Como o ajudante de Ralph Nickleby empreendeu a sua missão e a levou a cabo.
Numa noite escura, húmida e carregada de Outono, estava num quarto das águas‑furtadas duma casa miserável, situada numa rua obscura, ou antes num pátio junto de Lambeth, um homem, cego dum olho, sentado só e grotescamente vestido, por falta de melhores roupas ou por disfarce. Neste sítio tão fora das suas ocupações habituais e tão pobre e miseravelmente, vestido, Mrs. Squeers não obstante a sua sagacidade e ternura de esposa, teria dificuldade em reconhecer o seu senhor. Mas era o esposo de Mrs. Squeers, com ar bastante desconsolado, apesar da companhia duma garrafa preta, que se encontrava na mesa em frente dele. Não se notavam, certamente, atracções especiais no quarto miserável e nu onde se encontrava, nem na rua porca, lamacenta e deserta. Mr. Squeers continuava a olhar desconsoladamente em redor, a escutar os barulhos lá de fora e a levar o copo à boca de vez em quando, até que o aumento da escuridão o aconselhou a espevitar a vela. Erguendo os olhos para o tecto, proferiu o seguinte solilóquio:
‑ Bem, é uma linda animação!. Uma invulgar e linda animação! Aqui tenho estado, há tantas semanas, quase seis, seguindo essa bendita viúva, uma pobre ladra. ‑ Mr. Squeers saiu‑se deste epíteto com grande esforço e dificuldade ‑ e Dotheboys Hall desgovernado. Isto é o pior que me podia acontecer, com um tipo audacioso como esse velho Nickleby. Nunca se sabe o que ele faz com as pessoas e se se está a trabalhar por um péni, ou por uma libra.
Esta observação recordou, talvez, a Mr. Squeers que estava ali por cem libras; de qualquer forma a expressão suavizou‑se e levou o copo à boca com um ar de maior satisfação do que evidenciara antes.
‑ Nunca vi ‑ continuou Mr. Squeers no seu solilóquio para seguir o fio duma coisa como esse velho Nickleby. nunca. Está fora da compreensão de toda a gente. É o que se pode chamar um furão, este Nickleby. É ver como o velhaco finoriamente remexe tudo, dias após dias, dirigindo, furando e agitandw-se até descobrir onde essa preciosa Mrs. Sliderskew se escondeu e desbravou o chão para eu trabalhar... arrastando-se, deslizando, insinuando‑se como uma nojenta cobra. Ah! teria feito um bom lugar na nossa especialidade, mas seria limitado demais para ele; o seu génio teria ultrapassado todos os limites, derrubado todos os obstáculos, quebrado tudo à sua frente até se erguer num munumento de. Bem, pensarei no resto e digo‑o quando for conveniente!
Pon do um ponto final nesta altura às suas reflexões, Mr. Squeers levou de novo o copo à boca e tirando uma carta suja da algibeira, começou a estudar o seu conteúdo com o ar dum homem que a lia com frequência e refrescava agora a memória mais por falta de melhor divertimento do que por qualquer específica informação.
‑ Os porcos estão bons‑ disse Mr Squeers‑ as vacas estão boas e os rapazes são uns parvos. O jovem rebento tem estado com os olhos fechados, não tem? Eu fecho‑lhos de todo quando voltar. O Cobbey persiste em torcer o nariz quando está a jantar e disse que a carne era tão dura como quem a fez. Muito bem, Cobbey, veremos se torces o nariz um pouco, sem carne. O Pitcher apanhou outra febre, decerto apanhou e sendo procurado pelos amigos, morreu no dia seguinte ao de chegar a casa, decerto morreu e agora é enterrá‑lo. Não havia outro rapaz na escola, a não ser esse, para morrer exactamente no fim do trimestre, vivendo à minha custa até ao último dia e levando o seu rancor até à máxima extremidade O mais novo dos Palmers disse que desejava estar no céu. Realmente não sei o que se há‑de fazer com esse rapazinho; tem sempre o desejo de qualquer coisa horrível. Uma vez disse que desejava ser burro porque não teria um pai que não gostasse dele! Lindo, para uma criança de seis anos!
Mr. Squeers ficou tão comovido pela meditação sobre esta difícil natureza numa criança tão nova que, zangado, pôs a carta de lado e procurou num novo curso de ideias um assunto de consolação.
‑ Há muito tempo que estou detido em Londres ‑ comentou ele ‑ e este buraco é precioso para se vir viver, seja apenas por uma semana, ou mais. Contudo, cem libras são cinco rapazes, e cinco rapazes levam um ano inteiro para pagar cem libras e, além disso tem de se subtrair a sua manutenção. Por estar uma pessoa aqui nada se perde, porque os dinheiros dos rapazes vêm na mesma como se eu estivesse em casa, e Mrs. Squeers mantem‑nos na ordem. Há-de haver, decerto, algum tempo perdido para recuperar. haverá uns castigos em atrazo que se têm de pôr em dia; contudo, uns dois dias põem isso certo e uma pessoa não faz questão por um pequeno trabalho extraordinário, por cem libras. já uma bela ocasião de aguardar a velha. Pelo que ela me disse ontem à noite, suspeito ser completamente bem sucedido e será esta noite. Portanto, vamos a mais meio copo para desejar o meu sucesso e dar‑me inspiração. Mrs. Squeers, minha querida, à tua saúde.
Olhando sorrateiramente com o único olho, como se a senhora por quem bebera estivesse presente, Mr. Squeers, sem dúvida no seu entusiasmo encheu o copo até acima; e como o líquido não tinha misturas e recorrera já à mesma garrafa mais duma vez, não é de surprender que se encontrasse, nesta altura, num estado de extrema alegria e bastante excitado para o seu propósito. Qual fosse esse propósito depressa apareceu, por que depois dumas voltas em redor do quarto para se manter firme, meteu a garrafa debaixo do braço, com o copo na mão e, soprando a vela como se tencionasse estar ausente durante algum tempo saiu subitamente e dirigiu‑se devagar para uma porta em frente da sua, à qual bateu de mansinho.
‑ Mas para que serve estar a bater? ‑ observou ele. ‑ Ela nunca ouve. Suponho que não esteja a fazer nada de especial, mas se estiver não tem importância que eu veja.
Com este breve prefácio, Mr. Squeers deu a volta ao trinco da porta e, metendo a cabeça para dentro dum quarto de sótão muito mais deplorável do que aquele que acabara de deixar e vendo que não havia mais ninguém no quarto, além duma velha curvada sobre um miserável lume, pois embora o tempo estivesse ainda quente, as noites eram frias, entrou e bateu‑ lhe no ombro.
‑ Então, minha Slider ‑ disse Squeers jocosamente.
‑ você?‑ perguntou Peg.
‑ Sou eu, e eu é a primeira pessoa do singular, caso nominativo, concordando com o verbo ser ‑ respondeu Mr. Squeers. ‑ Pelo menos se não é, você não fica a saber mais, e se é, disse isto acidentalmente.
Dando esta resposta no seu costumado tom de voz, o qual, decerto, era inaudível para Peg, Mr. Squeers puxou um banco para o pé do lume e, colocando‑se em frente dela com a garrafa e o copo no chão entre eles, rugiu em voz muito alta:
‑Então, minha Slider!
‑ Eu ouço-o ‑ disse Peg, recebendo‑o muito graciosamente.
‑ Vim de acordo com a sua promessa.
‑Assim costumam eles dizer nessa parte do país donde venho ‑ observou Peg complacentemente ‑ mas julgo que o óleo é melhor.
‑ Melhor do que quê? ‑ rugiu de novo Squeers, acrescen tando uma palavra bastante forte, a meia voz.
‑ Não ‑ disse Peg ‑ decerto não.
‑ Nunca vi um monstro como este! ‑ murmurou Squeers, olhando tão amigavelmente quanto pôde, porque os olhos de Peg estavam cravados nele e gargalhava terrivelmente como se estivesse deliciada por ter dado uma resposta arguta. ‑ Vê isto? É uma garrafa!
‑ Vejo ‑ respondeu Peg.
‑Bem, e vê isto? ‑ berrou Squeers. ‑ Isto é um copo. -Peg também o via.
‑ Veja isto, então ‑ disse Squeers, acompanhando a palavra com a acção. ‑ Encho o copo com a garrafa e digo, à sua saúde, Slider, e esvaziou‑o. Depois lavo‑o delicadamente com uma pequena gota que sou forçado a deitar no lume. olá, temos o fogo de novo avivado... encho‑o outra vez e entrego‑lho.
‑ A sua saúde! ‑ replicou Peg.
‑ Ela compreend isto ‑ murmurou Squeers; observando Mrs. Sliderskew a despachar o líquido, sufocada e procurando respirar depois de beber ‑ Agora vamos conversar. Como vai o reumatismo?
Mrs. Sliderskew, com muitas pestanejadelas, gargalhadas e olhares expressivos da sua grande admiração por Mr. Squeers, da sua pessoa, das suas maneiras e da sua conversa, respondeu que o reumatismo estava melhor.
‑ Qual a razão do reumatismo? ‑ perguntou Mr. Squeers, buscando esta nova facécia na garrafa. ‑ Qual é a sua ideia? Para que é que as pessoas o têm?
Mrs. Sliderskew não sabia, mas sugeriu que talvez fosse por não poderem deixar de o ter.
‑ Sarampo, reumatismo, tosse convulsa, febres e lumbago ‑ disse Mr. Squeers ‑ é tudo filosofia, é o que é. Os corpos celestes são filosofia e os corpos terrestres são filosofia; e se houver um parafuso solto num corpo celeste, é filosofia também; ou pode ser que às vezes haja nisso alguma metafísica, mas não é com frequência. A filosofia é a minha companheira. Se um pai faz qualquer pergunta sobre matérias clássicas, comerciais ou matemáticas, digo gravemente, Ora, sir, em primeiro lugar, o senhor é filósofo?. Não, Mr. Squeers, responde ele, não sou. Então, sir, digo eu, sinto muito, mas não sou capaz de lhe explicar. Naturalmente o pai vai‑se embora, desejando ser filósofo e, da mesma maneira natural, pensa que eu sou.
Dizendo isto e bastante mais, com ébria profundeza e um ar sério‑cómico, conservando os olhos constantemente em Mrs. Sliderskew, incapaz de ouvir uma palavra, Mr. Squeers concluiu por se servir e passar a garrafa, à qual Peg olhava com respeito.
‑ Isto é da hora do dia, mas a sua aparência é vinte libras e dez melhor do que era ‑ afirmou Mr. Squeers.
Mrs. Sliderskew gargalhou de novo, mas a modéstia não lhe permitia concordar verbalmente com o cumprimento.
‑Vinte libras e dez ‑ repetiu Mr. Squeers ‑ melhor do que no dia em que pela primeira vez me apresentei. lembra-se?
‑Mas nesse dia assustou‑me ‑ retorquiu Peg, abanando a cabeça.
‑ Assustei? ‑ perguntou Mr. Squeers. ‑ Bem, era uma coisa bastante assustadora vir um estranho dizendo que sabia tudo a seu respeito, o seu nome e por que estava vivendo tão tranquila aqui, o que tinha furtado e de quem, foi?
Peg asenou com a cabeça em perfeito assentimento.
‑Mas eu sei tudo o que aconteceu nesse Capítulo, como vê ‑continuou Squeers. ‑ Não se passa nada de que eu não seja informado. Sou uma espécie de advogado, Slider, de primeira categoria e compreensão também. Sou amigo íntimo e conselheiro confidencial de quase todos os homens, mulheres e crianças que se metem em dificuldades por terem os dedos muito ágeis.
O catálogo dos méritos e dotes de Mr Squeers, em parte resultado dum plano entre ele e Ralph Nickleby, e noutra parte escorrido da garrafa preta, foi aqui interrompido por Mrs. Sliderskew.
‑ E apesar de tudo, ele não se casou, pois não?. Não se casou apesar de tudo ‑ exclamou ela, cruzando os braços e sacudindo a cabeça.
‑ Não ‑ respondeu Squeers ‑ não se casou.
‑ E veio um jovem namorado e levou a noiva ‑ continuou Peg.
‑ Debaixo do próprio nariz ‑ respondeu Squeers ‑ e disseram‑me que o jovem, além disso, lhe cantou grosso, quebrou as vidraças e forçou‑o a engolir a licença de casamento, o que quase o sufocou.
‑ Torne‑me a contar isso ‑ pediu Peg com um delicioso deleite pela derrota do seu velho patrão, o que fez da sua natural fealdade alguma coisa de verdadeiramente medonha. Vamos ouvir isso de novo, começando agora pelo princípio, como se nunca mo tivesse contado. Diga‑me todas as palavras. começando pelo início, quando ele foi para casa nessa manhã.
Mr. Squeers, enchendo Mrs. Sliderskew de bebida e fazendo o mesmo, acedeu ao pedido da velha, descrevendo o revés de Arthur Gride com os muitos aumentos à verdade que lhe ocorreram. Mrs. Sliderskew estava extasiada abanando a cabeça dum lado para o outro, erguendo os ossudos ombros e enrugando a cadavérica cara em tantas e tão complicadas formas de fealdade que despertou um espanto sem limites e desgosto, mesmo a Mr. Squeers.
‑ Ele é um velho bode traidor ‑ disse Peg ‑ que me enganou com tretas e mentirosas promessas, mas não faz mal. estou quite com ele... estou quite com ele!
‑ Mais do que quite, Slider ‑ retorquiu Squeers. ‑ Teria ficado quite mesmo se ele se tivesse casado, mas além do desapontamento tem um longo caminho à sua frente. fora da vista, Slider, completamente fora da vista. E isso lembra‑me - acrescentou, entregando‑lhe o copo ‑ se quer que lhe dê a minha opinião sobre os documentos para lhe dizer quais são os melhores para guardar e aqueles que são para queimar, é agora a altura.
‑ Para isso não há pressa ‑ respondeu Peg, com vários olhares e piscadelas.
‑ Muito bem ‑ concordou Squeers ‑ Isso não me importa; mas perguntou‑me, bem sabe. Como amigo não lhe levo nada. Decerto o melhor juíz é você e você é uma pessoa resoluta.
‑ O que quer dizer por resoluta?
‑Apenas quero significar que se fosse eu não guardaria papéis que me podiam enforcar, espalhando‑os quando eles podem render dinheiro. pondo de lado os que não fossem úteis, e os que fossem, escondia‑os em qualquer parte no seguro. Mas as pessoas sabem o que lhes convém. Só lhe digo que eu não faria isso.
‑ Vamos. então vai vê‑los ‑ disse Peg.
‑ Não quero vê‑los ‑ retorquiu Squeers, fingindo‑se zangado. ‑ Não fale como se fosse um festim. Mostre‑os a outro e siga o conselho dele.
Mr. Squeers continuaria com a farsa de se sentir ofendido, se Mrs. Sliderskew, desejosa de restaurar as boas graças, não se tornasse extremamente afectuosa. Reprimindo estas pequenas familariedades, ele declarou tratar‑se duma brincadeira e, para prova, estava disposto a examinar imediatamente a papelada.
‑ E agora que está em pé minha Slider ‑ berrou Squeers, quando ela se levantou ‑ corra os fechos da porta!
Peg trotou para a porta e depois de ter corrido mal os fechos, dirigiu‑se para a outra extremidade do quarto, tirando do meio do carvão, que enchia a parte inferior do armário, uma pequena caixa. Tendo‑a colocado no chão, aos pés de Squeers, foi buscar de baixo do travesseiro uma pequena chave indicando depois a Mr. Squeers, para abrir. Este, que seguira avidamente todos os seus movimentos, não perdeu tempo em obedecer ao convite e, pondo a tampa para trás, ficou enlevado com os documentos que havia dentro.
‑ Agora veja ‑ disse Peg, ajolhando no chão ao lado dele e detendo‑lhe a mão impaciente. ‑ O que não prestar, queima‑se, aqueles de que se possa obter dinheiro, guardam‑se e se houver algum com que a gente o possa meter em trabalhos, consumindo‑lhe e corroendo‑lhe o coração, com esse, devemos ter particular cuidado, pois é isso o que quero fazer e o que esperava, quando o deixei.
‑ Pensei ‑ replicou Squeers ‑ sempre que não sentia por ele nenhuma simpatia, mas, ouça, porque não trouxe também algum dinheiro?
‑ Algum quê? ‑ perguntou Peg.
‑ Algum dinheiro ‑ gritou Squeers ‑ Estou a ver que é preciso quebrar a louça para ela me ouvir! Algum dinheiro, Slider. dinheiro!
‑ Ora, que homem é você para fazer essa pergunta? - exclamou Peg com um certo desprezo. ‑ Se tirasse dinheiro ao Arthur Gride, ele tinha alvorotado toda a gente para me encontrar. Assim tinha-lhe dado o faro, e apanhava-o, mesmo estando escondido no fundo do poço mais alto de Inglaterra. Não, não! Eu sabia haver melhor do que isso. Tirei o que pensei serem os seus segredos e ele não se atreve a torná‑los públicos, embora valham muito bom dinheiro. É um velho cão, um cão desprezível, miserável, ingrato! Primeiro matou‑me à fome e depois mentiu me; se pudesse matava-o!
‑ Muito bem e muito louvável ‑ apoiou Squeers. ‑ Mas primeiro e acima de tudo, Slider, queime a caixa. Nunca deve conservar coisas que levem a uma descoberta. lembre‑se disto. Enquanto a reduz a cinzas, o que pode facilmente fazer por ser já muito velha, e a queima em pequenos pedaços, eu dou uma vista de olhos aos papéis e digo‑lhe o que são.
Concordando Peg com esta disposição, Mr. Squeers voltou a caixa com o fundo para cima e, espalhando o conteúdo no chão, entregou‑lha, sendo a destruição da caixa uma diversão extemporânea para lhe atrair a atenção, no caso de ser necessário distraí‑la do que ia fazer.
‑Meta os pedaços entre as barras e faça um bom lume e eu lerei, entretanto. deixa-me ver. deixa-me ver.
E pondo a vela ao seu lado, Mr. Squeers começou o seu trabalho de descoberta com grande ansiedade e um sorriso velhaco na cara.
Se a velha não fosse muito surda teria notado a respiração das pessoas junto da porta, quando a tinha ido fechar. E essas pessoas, como decerto descobriram a sua surdez, ficaram quietas em vez de fugirem, e empurraram a porta, que estava apenas encostada por o fecho não ter o anel onde encaixar. Depois sem ruído, entraram no quarto. Como a velha estava com a cara junto da grelha do fogão, entretida a meter pedaços da caixa, e Squeers, absorvido no exame dos papeis, eles puderam introduzir‑se cada vez mais, a pouco e pouco, sem serem pressentidos. Dos audaciosos recém‑vindos, Frank Cheeryble era um e Newman Noggs outro. Newman apanhara um par de tenazes que se preparava para descarregar na cabeça de Mrs. Squeers, quando Frank, com um gesto vivo, lhe susteve o braço e, dando um outro passo em frente, ficou junto às costas do mestre‑escola, de modo que, inclinando‑se levemente para diante, podia distinguir o que ele estava a ler.
Mr. Squeers, não sendo notavelmente erudito, parecia muito intrigado pelo primeiro prémio que lhe caira em sorte, escrito numa graciosa caligrafia, não muito legível mesmo para uma pessoa prática. Tendo tentado lê‑lo da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, e achando igualmente claros ambos os métodos, voltou‑o de pernas para o ar, sem melhor resultado.
‑Ah! ah! ah! O que diz esse papel? ‑ gargalhou Peg, de joelhos em frente do lume, que estava alimentando com fragmentos da caixa, e mostrando os dentes no mais diabólico júbilo.
‑Nada de especial ‑ respondeu Squeers, entregando‑ lho.
‑ É apenas um velho arrendamento, tanto quanto eu entendo. Deite‑o fora!
Mrs. Sliderskew assim fez, perguntando o que era o seguinte.
‑Isto é um conjunto de aceites vencidos e de letras renovadas de seis ou oito jovens cavalheiros, mas todos eles são deputados, portanto, não servem para ninguém. Atire‑os para o lume.
Peg fez o que lhe foi pedido e aguardou o seguinte.
‑Este ‑ informou Squeers ‑ parece ser uma escritura de venda do direito de apresentação à reitoria de Purechureh, no vale de Cashup. Tome cuidado com ele, Slider. por amor de Deus! Vale dinheiro em leilão!
‑ Qual é que se segue? ‑ inquiriu Peg.
‑ Ora, este parece ‑ respondeu Squeers ‑ por duas cartas anexas, ser um contrato dum cura da província, para pagar um meio ano de vencimentos de quarenta libras por ter recebido emprestadas vinte. Tome cuidado com ele, pois se ele não pagar, o bispo vai‑lhe para cima. Sabemos o que significa o camelo e o buraco da agulha: nenhum homem pode viver dos seus rendimentos, quaisquer que sejam, como não deve esperar ir para o Céu por qualquer preço... é muito esquisito; ainda não vi nada comparado com isto.
‑ De que se trata? ‑ interrogou Peg.
‑ Nada ‑ retorquiu Squeers ‑ estava apenas à procura... Newman levantou de novo as tenazes. Uma vez mais, Frank, com um rápido movimento do braço, sem o mais leve ruído, deteve‑o.
‑ Aqui tem você ‑ anunciou Squeers ‑ obrigações. tome cuidado com elas. Uma procuração. tome cuidado com ela. Duas confissões de acções feitas pelos réus... tome cuidado com elas. Arrendamento e quitação... queime isso. Ah! Madeline Bray. maior idade ou casada. a dita Madelineu. Queime isto!
Atirou vivamente para a velha um pergaminho que ela apanhou para este fim e ao mesmo tempo meteu no interior do casaco quando ela voltou a cabeça a escritura onde ele apanhara aquelas palavras, com uma exclamação de triunfo.
‑Tenho‑o! ‑ disse Squeers. ‑ Tenho‑o na mão! O plano era bom, embora a probabilidade fosse pouca. O dia é nosso!
Peg perguntou porque estava ele a rir, mas não recebeu resposta. O braço de Newman já não pôde ser sustido; as tenazes desceram com toda a força e boa vontade sobre a cabeça de Mr. Squeers, que caíu no chão ao comprido e sem sentidos.
Onde se encerra uma cena desta história
Dividindo a distância da sua jornada por dois dias, a fim de não fatigar o doente, Nicholas, ao fim do segundo, encontrou‑se a muito poucas milhas do lugar onde passara o tempo mais feliz da sua vida. Procuraram um alojamento humilde numa pequena casa de herdade, cercada por prados, onde Nicholas muitas vezes brincara, quando criança e aqui se instalaram. Ao princípio Smike tinha forças para dar pequenos passeios de cada vez e nada lhe parecia interessá‑lo tanto como visitar os sítios mais familiares ao seu amigo, em tempos passados. Nicholas, por sua parte, não deixava de o ajudar e de lhe contar as cenas decorridas nos vários lugares para onde o conduzia num pequeno carrinho puxado por um cavalo.
Havia a velha árvore onde ele trepara para espreitar os passarinhos no ninho e que aterrara a pequena Kate, em baixo, pela altura a que se encontrava. A velha casa por onde passavam todos os dias, onde o sol o vinha acordar nas manhãs de Verão e onde se encontrava a moita de roseiras plantadas pela mão de Kate. As sebes de arbustos onde o irmão e a irmã iam com frequência colher flores silvestres. Não havia uma azinhaga, um riacho, uma mata ou uma herdade próximos, que não recordasse todos os acontecimentos da infância. Talvez uma palavra, uma gargalhada, um olhar, algum ligeiro perigo, um passageiro pensamento de medo.
Numa destas expedições foram ao cemitério onde se encontrava a campa do pai.
‑ É Mesmo por aqui ‑ disse Nicholas docemente ‑ costumávamos passear antes de sabermos o que era a morte e de mal pensarmos nas cinzas que descansam em baixo e, espantando‑nos do silêncio, sentávamo‑nos para repousar e falarmos baixinho. Uma vez, Kate perdeu‑se e depois duma hora de buscas infrutíferas, encontraram‑na a dormir profundamente sob aquela árvore que sombreia a cova do pai. Ele era doido por ela e disse, quando a tomou nos braços, ainda a dormir, que quando morresse desejava ser enterrado onde a sua querida filhinha pousara a cabeça. Tu vês que o seu desejo não foi esquecido!
Nessa ocasião nada mais se passou, mas de noite, quando Nicholas se sentou ao lado da cama dele, Smike acordou do que parecia ter sido um sono leve e, pondo a mão na dele, suplicou, com lágrimas a correrem‑lhe pela cara, para lhe fazer uma solene promessa.
‑Qual é ela ‑ perguntou Nicholas afectuosamente. ‑ Se puder cumpri‑la, ou esperar cumpri‑la, sabes que o farei.
‑Tenho a certeza que fará ‑ foi a resposta. ‑ Prometa‑me que quando morrer me hão‑de enterrar perto, tão perto quanto possam abrir a cova, da árvore que hoje vimos!
Nicholas prometeu em poucas palavras, mas estas foram solenes e veementes. O seu pobre amigo conservou‑lhe a mão na dele e voltou‑se como se fosse dormir. Porém, foi sacudido por soluços e a mão foi apertada mais duma vez antes dele mergulhar no sono e a pouco e pouco lha largar.
Numa quinzena, tornou‑se doente demais para se poder mexer. Uma ou duas vezes Nicholas trouxe-o para fora, recostado em almofadas, mas o movimento da cadeira era-lhe doloroso. Na casa havia um velho sofá que era o seu favorito lugar de repouso durante o dia. Quando o sol brilhava e o tempo estava quente, Nicholas levava‑o para um pequeno po mar e nele se sentavam juntos durante horas. Foi numa destas ocasiões que se deu uma circunstância que Nicholas, nesse momento, julgou firmemente ser uma ilusão mas mais tarde teve boas razões para saber que a ocorrênciá fora verdadeira. Trouxera Smike nos braços para ver o pôr do sol e, tendo‑lhe arranjado o sofá, sentou‑se ao lado dele. Estivera toda a noite anterior de vela e, fatigado de corpo e de espírito, adormeceu.
Não podia ter fechado os olhos há mais de cinco minutos quando foi despertado por um grito estridente; levantando‑se numa espécie de terror, viu, com grande assombro o seu protegido a esforçar‑se por se sentar, com os olhos saídos das órbitas, a testa orvalhada de suor frio e sacudido por um ataque de tremura, que lhe convulsionava o corpo, pedindo‑lhe socorro.
‑Justos Céus, o que é isso? ‑ perguntou Nicholas, inclinando‑se para ele. ‑ Acalma-te! Estiveste a sonhar!
‑ Não, não não! ‑ exclamou Smike, agarrando‑se a ele. Aperte‑me muito. Não me deixe ir. Ali. ali. por detrás da árvore!
Nicholas seguiu‑lhe o olhar, que era dirigido para uma certa distância nas traseiras da cadeira donde ele se acabava de levantar. Mas não havia lá nada.
‑Foi apenas uma fantasia tua! ‑ exclamou ele, esforçando‑se por o acalmar. ‑ Nada mais, acredita.
‑Eu bem sei. Vi tão bem como vejo agora ‑ foi a res posta. ‑ Diga‑me que me conserva consigo. jure‑me que me não deixa nem um instante!
‑Já te deixei alguma vez? ‑ retorquiu Nicholas. ‑ Deita‑te de novo. Bem vês que estou aqui. Agora diz-me... o que foi?
‑Lembra‑se de lhe falar do homem que me levou a primeira vez para a escola? ‑ perguntou Smike em voz baixa e olhando, horrorizado, em volta.
‑ Sim, com certeza.
‑Levantei os olhos agora mesmo para aquela árvore, aquela com o tronco grosso, e ali, com os olhos fixos em mùnlá estava ele!
‑Reflecte apenas um momento ‑ convidou Nicholas. Concedo, por um instante, ser possível que ele ainda viva e andasse a vadiar num lugar solitário como este, tão longe da estrada pública, mas pensas que depois de tanto tempo decorrido, pudesses conhecer ainda esse homem?
‑ Em qualquer parte. com qualquer fato ‑ replicou Smike ‑ mas agora estava inclinado sobre a sua bengala, olhando para mim exactamente como lhe disse que me lembrava dele. Estava sujo da poeira do caminho e pobremente vestido, pareceu‑ me que o fato estava esfarrapado, mas logo que o vi, tive a impressão de voltar à noite húmida, à sua cara quando me deixou, à saleta onde me entregou e às pessoas que lá estavam. Quando ele percebeu que eu o vi, pareceu assustado pois levantou‑se e partiu. Tenho pensado nele de dia e sonho com ele à noite. Ele velava‑me o sono quando eu era criancinha e tem‑me aparecido sempre em sonhos, desde então, como acaba de fazer.
Nicholas, com todas as persuasões e argumentos, procurou convencê‑lo de que a terrível criatura era pura imaginação e quando conseguiu que ele ficasse sob a vigilância da gente da casa foi fazer um cerrado inquérito pelo lugar, sobre qualquer possível estranho que tivesse por ali andado, e procurou por todos os sítios possíveis de esconderijo, próximos do pomar, onde alguém se tivesse podido acoitar. Satisfeito por nada encontrar, tratou de acalmar os receios de Smike, o que conseguiu parcialmente, depois de algum tempo.
Nicholas começou a ver que a esperança estava perdida para o companheiro da sua pobreza e da sua situação mais desafogada, para quem o mundo se ia cerrando depressa. Estava gasto e consumido no último grau; a voz baixara tanto que mal se ouvia falar. A natureza estava completamente esgotada e deitava‑se para morrer.
Num belo dia de suave Outono, quando tudo estava tranquilo e calmo, quando o ar doce entrava pela janela aberta do quarto e só se ouvia o leve crepitar das folhas das árvores, Nicholas estava sentado no seu costumado lugar ao lado da cama e viu que a hora estava próxima. Tão quieto estava que ele, de vez em quando, se inclinava sobre o corpo para escutar a respiração, a fim de saber se estava a dormir, ou se caíra naquele sono donde se não acorda mais.
Enquanto estava assim ocupado, os olhos dele abriram‑se e a cara descerrou‑se num plácido sorriso.
‑ Isso vai melhor! ‑ disse Nicholas. ‑ O sono fez‑te bem.
‑ Tive sonhos tão agradáveis. Sonhos tão agradáveis e tão felizes!
‑ De quê? ‑ perguntou Nicholas.
O moribundo voltou‑se para ele e, pondo‑lhe a mão em volta do pescoço, respondeu:
‑ Em breve estarei lá!
Depois dum curto silêncio falou de novo:
‑ Não tenho medo de morrer. Estou contente. Quase penso que não queria levantar‑me desta cama curado, se pudesse. O senhor tem‑me dito com frequência que nos encontraremos de novo, tantas vezes, ultimamente, que sinto agora, a força dessa verdade, de que nunca posso separar‑me de si!
O tremor da voz, os olhos lacrimosos, o aperto maior do braço,que acompanhavam estas últimas palavras,mostravam como ele era sincero,não havendo também falta de demonstração de como elas tinham calado fundo no coração daquele a quem eram dirigidas.
‑ Dizes bem ‑ replicou Nicholas,por fim ‑ e confortam‑me muito,meu querido rapaz. Deixa‑me ouvir‑te dizer,se podes, que és feliz!.
‑Tenho primeiro a dizer‑lhe uma coisa. Não devo ter segredos para si. Sei que não me vai censurar numa ocasião destas.
‑ Censurar‑te? ‑ exclamou Nicholas.
‑ Tenho a certeza de que me não censuraria. Perguntou‑me uma vez porque estava tão mudado e... me sentava muitas vezes só. Quer que diga porquê?
‑Não,se isso te magoa ‑ respondeu Nicholas. ‑ Perguntei apenas,para te tornar mais feliz,se pudesse.
‑ Eu sei... senti isso,nessa ocasião. ‑ Puxou o amigo para mais junto de si. ‑ Vai‑me perdoar; não estava na minha mão,mas pensava que devia morrer para a fazer feliz; partiu‑se-me o coração... eu sei que ele a ama ternamente... Oh! quem o descobriu primeiro do que eu!
As palavras seguintes foram proferidas francamente e interrompidas por longas pausas; mas por elas Nicholas soube pela primeira vez que o moribundo com todo o ardor da sua natureza,concentrada numa paixão absorvente,sem esperança e secretamente amara a sua irmã Kate.
Arranjara um anel do seu cabelo,que lhe pendia do peitoenvolto numa ou duas fitas usadas por ela. Suplicou que, quando morresse,Nicholas lho tirasse e,para que ninguém mais o pudesse ver,lho pusesse em volta do pescoço,quando ele estivesse próximo a ir para debaixo da terra,para ficar com ele no caixão.
De joelhos,Nicholas prometeu‑lhe satisfazer o pedido e prometeu‑lhe também que seria enterrado no lugar por ele indicado. Abraçaram‑se e beijaram‑se nas faces.
‑ Agora ‑ murmurou Smike. ‑ Sou feliz!
Caíu num leve dormitar e,acordando,sorriu como antes; depois falou dos lindos jardins que via à sua frente,cheios de figuras de homens, mulheres e muitas crianças,todos com as caras felizes; a seguir sussurrou que estava no Eden... e assim morreu!
Os planos começam a falhar; dúvidas e perigos perturbam os autores
Ralph estava só no solitário aposento onde costumava tomar as refeições e sentar‑se à noite quando não saía. Tinha diante de si o pequeno almoço por comer e na mesa estava o relógio. As suas feições e os seus modos indicavam que o usurário não estava bem. O seu ar abstracto indicava qualquer indisposição mental e, quando saíu dela, foi para oihar em volta de si, como alguém que acorda dum longo sono.
‑O que é isto que me pesa e não posso tirar? Nunca comi muito e não devo estar doente. Nunca me entreguei, nem me rendi, a fantasias, mas como pode um homem estar sem repoúso?
Apertou a testa com a mão.
‑Noite após noite a andar dum lado para o outro sem descanso. Se durmo, que repouso é esse, perturbado por sonhos constantes das mesmas caras detestadas, arrastando‑se em volta de mim, das mesmas detestadas pessoas em toda a variedade de acções, intrometendo‑se em tudo quanto faço e digo, e sempre para meu prejuízo? Acordado, que descanso tenho eu, constantemente perseguido por esta negra sombra de. não sei o quê, o que é a sua pior característica! Preciso de descansar. Uma noite bem dormida e serei de novo um homem!
Empurrando a mesa enquanto falava, como se lhe aborrecesse a vista da comida, encontrou o relógio, cujos ponteiros quase marcavam o meio‑dia.
‑Isto é estranho! ‑ comentou ele. ‑ Meio‑dia e Noggs não está cá! Que contenda de bêbados o teria afastado? Daria agora alguma coisa ‑ alguma coisa em dinheiro, mesmo depois daquela terrível perda ‑ se ele tivesse apunhalado um homem numa disputa de taberna, ou arrombado uma casa ou metido a mão na algibeira de alguém, ter feito qualquer coisa que o levasse daqui para fora com um anel de ferro na perna e me livrasse dele! Ainda melhor se pudesse pôr‑lhe a tentação à frente e o induzisse a roubar‑me. Seria abençoado aquilo que ele levasse para eu poder atirar com a lei por cima dele, pois juro que é um traidor! Como ou quando, ou em quê, não sei, embora suspeite!.
Depois de aguardar mais meia hora mandou a mulher que trabalhava lá, ao alojamento de Newman, perguntar se ele estava doente, e por que não viera, ou mandara aviso. Ela voltou com a resposta dele ter ficado fora de casa toda a noite e de não haver ninguém capaz de lhe dizer alguma coisa a seu respeito.
‑Mas está um cavalheiro em baixo, sir ‑ acrescentou ela ‑ que estava à porta quando entrei e diz.
‑Diz o quê? ‑ perguntou Ralph, voltando‑se, zangado. Eu disse‑lhe que não queria ver ninguém.
‑ Ele diz ‑ replicou a mulher, envergonhada pela sua rudeza ‑ que está a trabalhar num assunto especial que não admite desculpa, e eu pensei que podia ser acerca.
‑Acerca do quê, em nome do diabo? ‑ perguntou Ralph apressadamente. ‑ Você espia e especula comigo?
‑Meu Deus, não sir! Vi que estava ansioso e pensei que podia ser acerca de Mr. Noggs, e mais nada.
‑Viu que estava ansioso! ‑ murmurou Ralph. ‑ Agora todos me espreitam. Onde está essa pessoa? Não disse que estava ainda deitado, suponho eu?
A mulher replicou que ele estava no pequeno escritório e o informara que o patrão estava ocupado, mas ela levaria o recado.
‑Bem ‑ disse Ralph. ‑ Vou vê‑lo. Vá para a cozinha e conserve‑se lá. entende-me?
Contente por se ver livre, a mulher desapareceu rapidamente. Tornando a si e assumindo a sua costumada maneira quanto pôde, Ralph desceu as escadas. Depois de parar por uns momentos, com a mão no fecho, entrou no aposento de Newman e encontrou‑se com Mr. Charles Cheeryble.
De todos os homens, era este o último que ele desejava encontrar em qualquer ocasião, mas agora que reconhecia nele o patrono e protector de Nicholas, preferiu antes ver um espectro. Este encontro, no entanto, foi‑lhe benéfico. Instantaneamente todas as suas energias adormecidas despertaram, reanimaram no seu peito as paixões que, por muitos anos, encontraram ali um terreno propício, chamou a sua raiva, ódio e maldade, restituiu‑lhe aos lábios o sorriso de escárnio, franziu‑lhe as sobrancelhas de mau humor, restituiu‑lhe a aparência exterior, era o mesmo Ralph Nickleby, de quem tanta gente tinha motivos amargos a recordar.
‑Hum! ‑ exclamou Ralph, parando à porta. ‑ Isto é um inesperado favor, sir.
‑Desagradável, sir ‑ respondeu o irmão Charles ‑ desagradável, eu sei.
‑Os homens dizem que o senhor é a própria verdade, sir ‑ replicou Ralph. ‑ De todos os modos fala agora verdade e não o contradirei. O favor é, pelo menos, tão desagradável como inesperado. Não posso dizer mais.
‑ Sinceramente, sir. ‑ começou o irmão Charles.
‑Sinceramente, sir ‑ interrompeu Ralph. ‑ Desejo que esta conferência seja curta e acabe onde começou. Adivinho o assunto sobre o qual ia a falar e não o ouvirei. O senhor gosta de franqueza, creio eu. pois aqui a tem. Aqui tem a porta. Os nossos caminhos seguem direcções muito diferentes. Peço-lhe para seguir o seu e deixe-me prosseguir no meu, descansado.
‑Descansado ‑ repetiu o irmão Charles com suavidade e olhando para ele com mais piedade do que censura. Prosseguir o seu caminho descansado?
‑Presumo, sir, que não pode ficar na minha casa contra a minha vontade ‑ observou Ralph ‑ ou mal pode esperar impressionar um homem que fecha os ouvidos a tudo quanto possa dizer e, firme e resolutamente, está decidido a não o ouvir.
‑Mr. Nickleby, sir ‑ replicou o irmão Charles, não menos suavemente do que antes, mas também com firmeza. - venho aqui contra a minha vontade. com dor e mágoa, contra a minha vontade. Nunca estive antes nesta casa e, para falar a verdade, sir, não me sinto bem, nem à vontade, nem desejo cá voltar outra vez. Não adivinha o assunto de que lhe venho falar. decerto não adivinha. Tenho a certeza disso, ou a sua atitude seria diferente.
Ralph olhou vivamente para ele,mas os olhos francos e a expressão leal do velho e honesto comerciante não mudaram de expressão e suportaram‑lhe o olhar sem reserva.
‑ Posso continuar? ‑ perguntou Mr. Cheeryble.
‑Sem dúvida nenhuma,se faz favor ‑ respondeu Ralph secamente. ‑ Aqui estão as paredes para onde pode falar, sir, dois bancos e uma secretária. auditores muito atentos, que decerto o não interrompem. Peço-lhe para continuar; esteja na minha casa como na sua e, talvez quando eu tiver voltado do meu passeio, já tenha acabado o que tem a dizer e me conceda de novo a posse da casa.
Dizendo isto abotoou o casaco e,voltando‑se para o corredor,pôs o chapéu. O velho senhor seguiu‑o e ia a falar,quando Ralph lhe fez um sinal de impaciência e disse:
‑Nem mais uma palavra. Digo‑lhe,sir,nem mais uma palavra. Virtuoso como é,não é,contudo,um anjo para aparecer na casa das pessoas,quer elas queiram,ou não,e fazer os seus discursos para ouvidos surdos. Digo-lhe para pregar às paredes... não para mim!
‑ Não sou anjo,Deus o sabe ‑ retorquiu o irmão Charles, abanando a cabeça ‑ mas um homem imperfeito e que erra; no entanto,há uma qualidade que todos os homens possuem em comum com os anjos, abençoadas oportunidades para exercerem, se quiserem... a misericórdia. uma mensagem de misericórdia que me traz aqui. Suplico‑lhe que me deixe desencarregar‑me dela.
‑ Não mostro misericórdia,nem peço nenhuma – replicou Ralph com um sorriso de triunfo. ‑ Não procure misericórdia em mim,sir,em favor do rapaz que se impôs à sua infantil credulidade,mas antes espere o pior que eu lhe possa fazer.
‑Ele pede misericórdia para o seu procedimento,sir! exclamou o velho negociante com ardor. ‑ Pede-a para o dele; pede‑a para o dele. Se não quer ouvir‑me agora,quando pôdeouvir‑me‑á quando dever,ou previna o que tenho a dizer e tome medidas para evitar o nosso novo encontro. O seu sobrinho é um nobre rapaz,sir,um rapaz honesto e nobre. O que o senhor é,Mr. Nickleby não o direi,mas sei o que tem
feito. Agora,sir,quando tratar dos negócios,nos quais tem estado recentemente ocupado e ache dificuldade em prosseguirvenha ter comigo,e eu,o meu irmão Ned e Tim Linkinwater, sir, lhe explicaremos tudo... e venha depressa,ou será tarde demais,e essa explicação,nessa altura,far‑se‑á um pouco mais grosseiramente e com um pouco menos de delicadeza... e nunca se esqueça,sir,de que vim aqui esta manhã em misericórdia para si e estou ainda pronto a conversar consigo no mesmo espírito.
Com estas palavras, proferidas com grande ênfase e emoção, o irmão Charles pôs o chapéu de abas largas e, passando por Ralph Nickleby, saiu com ligeireza para a rua sem qualquer outra explicação. Ralph ficou a olhar para ele, mas não se mexeu, nem falou durante algum tempo, e quando quebrou o silêncio que parecia quase de estupefacção, foi com uma gargalhada de desprezo.
‑ Isto pelo fantástico que é, devia ser um daqueles sonhos que ultimamente têm quebrado o meu repouso! Misericórdia para mim! O velho simplório está doido!
Embora se exprimisse duma maneira tão decisiva, Ralph, ponderando mais, sentiu uma vaga ansiedade, aumentada com u passar das horas por não ter notícias de Newman Noggs. Depois de aguardar até tarde, torturado por várias apreensões e lembrando‑se do aviso do sobrinho, saíu de casa e, sem saber como, dirigiu‑se para casa de Snawley. Apresentou‑se a esposa, a quem Ralph perguntou se o marido estava em casa.
‑Não ‑ respondeu ela asperamente ‑ não está e não penso que esteja em casa tão depressa, o que é mais.
‑ Sabe quem sou? ‑ perguntou Ralph.
‑ Sim, sei muito bem. bem demais, talvez, e ele igualmente, e sinto ter que dizer isto.
‑ Diga‑lhe que o vi através da gelosia lá de cima, quando agora atravessei a rua, e que quero falar‑lhe de negócios - disse Ralph. ‑ Ouve?.
‑Ouço ‑ retorquiu Mrs. Snawley, não dando importância ao pedido.
‑Sabia que a mulher era uma hipócrita com respeito a salmos e frases da Escritura ‑ comentou Ralph, sossegadamente, sem fazer caso dela ‑ mas nunca soube antes que bebesse.
‑Páre! Não entre! ‑ ordenou a esposa de Mr. Snawley, interpondo a sua pessoa, que era robusta, no limiar da porta. Já lhe disse antes, muito mais do que o necessário sobre negócios. Disse‑lhe sempre o que daria trabalhar consigo e entrar nos seus projectos. Foi o senhor, ou o mestre‑escola... um dos dois, ou entre os dois... que se forjou aquela carta. Lembra‑se disso? Como não foi obra dele, não fique aqui à sua porta...
‑ Reprima a língua, sua Jezabel ‑ advertiu Ralph, olhando em redor, assustado.
‑ Ah, eu sei quando devo reprimir a língua e quando devo soltá‑la, Mr. Nickleby ‑ retorquiu ela. ‑ Tome cuidado para que as outras pessoas saibam quando devem reprimir as suas.
‑ Sua marafona ‑ insultou Ralph, arreganhando os dentes de raiva ‑ se o seu marido foi bastante idiota para lhe confiar os seus segredos, guarde‑os... guarde‑os, seu diabo!
‑ Não tanto os segredos dele como talvez os das outras pessoas ‑ replicou a mulher. ‑ Não me deite os seus olhares carrancudos. Há‑de precisar deles para outra ocasião. É melhor guardá‑los!
‑Vai ou não vai dizer ao seu marido que eu sei que ele está em casa e preciso vê‑lo? ‑ perguntou Ralph, reprimindo os sentimentos o melhor que pôde e agarrando‑lhe o pulso. ‑ Desejo saber o significado deste novo modo de comportamento!
‑Não ‑ disse a mulher, desprendendo‑se violentamente.
‑Não farei isso.
‑ Lança‑me um desafio? ‑ riu Ralph.
‑ Sim, lanço! ‑ foi a resposta.
Em um minuto Ralph teve a mão levantada como se estivesse quase a bater‑lhe mas reprimindo‑se e acenando com a mão murmurou que nunca se esqueceria disto e afastou, saiu e foi direito à estalagem que Mr. Squeers frequentava, onde perguntou se ele lá tinha estado ultimamente, com a vaga esperança de que bem ou mal sucedido, pudesse nessa altura ter voltado da súa missão e dar‑lhe a certeza de tudo estar arranjado. Mas Mr. Squeers já não ia ali há dez dias e tudo o que lhe podiam dizer é que tinha deixado a bagagem e a conta.
Assaltado por milhares de receios e querendo certificar‑se se Squeers tinha alguma suspeita de Snawley ou de qualquer modo fazia parte deste alterado procedimento decidiu ir a Lambéth. Conhecendo por descrição, a situação do quarto, subiu as escadas e bateu suavemente à porta.
Nem uma, nem duas, nem três, nem mesmo uma dúzia de pancadas serviram para convencer Ralph de que não estava ninguém lá dentro. Raciocinou que ele podia estar a dormir e quase o ouvia respirar. Mas admirado dele não estar, sentou‑se pacientemente.
Muitas pessoas entraram, mas nenhuma delas era a esperada e a cada desapontamento sentia‑se mais abatido e só.
Por fim, desanimado começou a inquirir na vizinhança se sabiam alguma coisa dos movimentos de Mr. Squeers. Numa porta soube que na noite anterior saíra apressadamente com dois homens, os quais voltaram para levar a velha que vivia no mesmo andar. m a lhe tivesse atraído a atenção, Como nada mais lhe tivesse atraído a atenção, o informador não fizera perguntas.
Isto sugeriu a Ralph que talvez Peg Sliderskew, tendo sido presa por roubo e Mr. Squeers estando com ela nessa ocasião fosse também preso sob a suspeita de cumplicidade. Se isto fosse assim, o facto devia ser do conhecimento de Gride, e foi para casa de Gride que se encaminhou, profundamente alarmado.
Chegado à casa do usurário encontrou as janelas fechad as gelosias corridas e tudo silencioso e deserto. Mas isto era o aspecto usual. Bateu, primeiro devagar depois vigorosamente, mas ninguém apareceu. Escreveu umas palavras num cartão que meteu debaixo da porta, e preparava‑se para se ir embora, quando ouviu o barulho duma pessoa a espreitar. olhando para cima viu a cara de Gride no parapeito da janela do sótão. Percebendo quem estava em baixo retirou‑se, mas não tão dpressa que Ralph não lhe dissesse para descer.
Sendo repetido o convite, Gride olhou outra vez para fora, mas tão cautelosamente que não se via o corpo.
‑ Silêncio! ‑ recomendou ele. ‑ Vá-se embora. vá‑se embora!
‑Desça ‑ disse Ralph, fazendo‑lhe sinal.
‑ Vá‑se embora! ‑ repetiu Gride, abanando a cabeça com impaciência. ‑ Não me fale, não bata à porta, não chame a atenção para a casa e vá-se embora.
‑Juro que bato até ter toda a vizinhança alarmada se me não disser o que significa estar aí escondido, seu choramingas!
‑ Não posso ouvir o que diz. não me fale. não é seguro. vá‑se embora. vá-se embora! ‑ replicou Gride.
‑Digo-lhe para descer. Tem que vir cá abaixo! ‑ ordenou Ralph ferozmente.
‑ N. n. não ‑ rosnou Gride.
Meteu a cabeça para dentro e fechou a janela tão devagarinho e cuidadosamente como a abrira, enquanto Ralph ficava na rua sem saber o que fazer.
‑O que é isto, que todos fogem de mim e se afastam como da praga. estes homens que me limpavam o pó às botas! ‑ Passou, na verdade, o meu dia e vem agora a noite? Saberei a significação disto! Saberei, custe o que custar. Estou mais firme e sou agora mais eu do que fui estes últimos dias.
Voltando as costas à porta dirigiu‑se para a City, abrindo caminho por entre a multidão, e foi direito à casa de comércio dos irmãos Cheeryble. Pondo a cabeça dentro da gaiola de vidro, encontrou Tim Linkinwater só.
‑ O meu nome é Nickleby ‑ anunciou Ralph.
‑ Sei isso ‑ respondeu Tim, inspeccionando‑o através dos óculos.
‑Quem foi da vossa firma que esta manhã me visitou? ‑ perguntou Ralph.
‑ Mr. Charles.
‑ Então diga a Mr. Charles que quero vê‑lo.
‑Há‑de ver ‑ informou Tim, descendo do banco com grande agilidade. ‑ Há‑de ver, não apenas Mr. Charles, mas igualmente Mr. Ned.
Tim parou, olhou firme e severamente para Ralph, baixou a cabeça uma vez, duma maneira concisa, parecendo dizer que havia qualquer coisa mais e desapareceu. Depois dum curto intervalo regressou e, levando Ralph à presença dos dois irmãos, ficou também no aposento.
‑Quero falar consigo, que me procurou esta manhãdiss Ralph, apontando com o dedo para o homem a quem se dirigia.
‑Não tenho segredos para o meu irmão Ned nem para Tim Linkinwater ‑ observou o irmão Charles tranquilamente.
‑Eu tenho ‑ replicou Ralph.
‑Mr. Nickleby, sir ‑ advertiu o irmão Ned ‑ o assunto que levou o meu irmão Charles a visitá‑lo esta manhã é perfeitamente conhecido de nós três, e de outros. Além disso, e infelizmente, deve tornar‑se conhecido depressa de muitos mais. Ele esperou esta manhã por si, sir só por uma questão de delicadeza e de consideração. Sentimos agora que mais delicadeza e consideração sejam úteis e se conferenciamos juntos deve ser tal como estamos, ou então, coisa alguma será dita.
Falar por enigmas parece ser o forte dos dois e suponho que o vosso empregado, como homem prudente, tenha estudado também a arte, com vista às vossas boas graças. Falem em conjunto, cavalheiros, em nome de Deus! Consentir‑vosei...
‑Consentir! ‑ exclamou Tim Linkinwater, tornando-se subitamente vermelho. ‑ Ele consente‑nos! Ele consente aos Cheeryble Brothers! Ouvem isto! Ouvem‑no? dizer que consente, Cheeryble Brothers?
‑Tim ‑ disseram Charles e Ned ao mesmo tempopeço Tim. suplico agora, cale‑se, sim?
Tim, acedendo à observação sufocou a indignação o melhor que pode e dirigiu‑a através dos óculos, com a válvula de segurança adicional duma gargalhada histérica, que pa recia aliviá‑lo com eficácia.
‑Como ninguém me convida a sentar‑me ‑ disse Ralph, olhando em volta ‑ sento‑me eu, por estar fatigado de caminhar. E agora, se os cavalheiros querem fazer o favor, desejo saber ‑ pago para saber; tenho o direito ‑ o que têm para me dizer, justificando o tom assumido e que indirectamente possa interferir nos meus negócios, os quais, tenho razão para supôr, têm vindo a observar. Digo‑lhes sinceramente, cavalheiros, por pouco que entenda a opinião do mundo como se costuma dizer, que não estou disposto a submeter‑me pacificamente à calúnia e à maldade. Quer se tivessem deixado enganar muito facilmente, ou deliberadamente tivessem tomado parte nisso, o resultado para mim, é o mesmo. Em qualquer caso não podem esperar dum homem sincero, como eu, muita consideração nem perdão.
Tão frio e deliberado fora este discurso que, nove de dez homens, ignorantes das circunstâncias suporiam ser realmente Ralph um homem caluniado. Estava sentado de braços cruzados, mais pálido do que o usual, certa e suficientemente desengraçado mas à vontade ‑ bastante mais do que os irmãos ou o exasperado Tim ‑ e pronto para encarar o pior.
‑Muito bem, sir ‑ disse o irmão Charles. ‑ Muito bem, irmão Ned. Quer tocar a campainha?
‑Charles, meu querido rapaz, espera um instante ‑ rplicou o outro. ‑ Será melhor para Mr. Nickleby e para o nosso objectivo que ele se conserve calado, se puder, até nós acabarmos de falar. Desejo que ele compreenda isto;
‑ Perfeitamente, perfeitamente ‑ aquiesceu o irmão Charles.
Ralph sorriu, mas não deu resposta. Tocaram à campainha; abriu‑se a porta do aposento; entrou um homem que parou subitamente. Olhando em volta, Ralph encontrou os olhos de Newman Noggs. A partir desse momento o ânimo começou‑lhe a desfalecer.
‑Este é um bom princípio ‑ disse ele amargamente. Oh, este é um bom princípio. Os senhores são uns homens ingénuos, honestos, leais e francos! Conheci sempre o valor real dos caracteres como os vossos. Para se misturarem com um tipo como este, que venderia a alma, se a tivesse, por bebida e cujas palavras são mentiras... que homens se salvam sendo as coisas assim? Oh, este é um bom princípio!
‑Quero falar ‑ exclamou Newman, pondo‑se nos bicos dos pés para olhar por cima da cabeça de Tim, que se interpusera, para evitar que ele avançasse. ‑ Olá sir. velho Nickleby!. O que quer dizer com um tipo como este? Quem me fez um tipo como este? Se eu vendesse a msinha alma por bebida é por que não era um gatuno, ladrão, homem vil, arrombador de casas, um ratoneiro de pence dos cegos que andam com cães, em vez do seu servente e burro de carga. Se todas as minhas palavras fossem mentiras, por que era então um favorito e um ai Jesus seu? Mentiras! Quando é que me humilhei e o bajulei? Diga‑me lá! Servi‑o fielmente. Fiz mais trabalho por ser pobre e fui insultado por si por que o desprezo e aos seus insultos, mais do que qualquer coisa que pudesse arranjar numa casa de pobres da paróquia. Servi‑o por ser orgulhoso, por ser um homem só e não haver outros escravos que vissem a minha degradação; e por ninguém melhor do que você saber quem eu era: um homem arruinado, não tendo sido sempre o que sou e que talvez pudesse estar melhor se não fosse parvo e não caisse nas suas mãos e de outros velhacos como você. Nega isto. hein?
‑ Brandamente. Disse o que não devia. ‑ observou Tim.
‑ Disse o que não devia! ‑ exclamou Newman, empurrando‑o e seguindo Tim com a mão para o conservar à distância do braço. ‑ Não me diga isso! E você, Nickleby, não pretenda não fazer caso de mim. Eu sei muito. Acabou há pouco de falar de mistura. Quem se misturou com o mestreescola de Yorkshire e, enquanto punha o escravo fora, para ele não poder escutar, esquecendo‑se de que esta grande precaução o tornava suspeito e podia vigiar o patrão de noite e pôr outros olhos sobre o mestre-escola? Quem se misturou com o pai egoísta, insistindo com ele para vender a filha ao velho Arthur Gride, e se misturou também com o Gride, fazendo tudo isto no escritório mais pequeno, com um esconso no aposento? Ralph fez um grande esforço sobre si, mas não pôde reprimir um pequeno sobressalto, como se tivesse a certeza de ser decapitado no momento a seguir.
‑Ah! ah! ‑ riu Newman. ‑ Importa‑se agora comigo? O que determinou primeiro este servo a recear as acções do patrão e sentir que se se conformasse com elas teria sido tão mau como ele, ou pior? Que o cruel tratamento do patrão ao seu próprio sangue e carne e os vis desígnios para com uma jovem rapariga, que interessou mesmo, o seu sendeiro bêbado e miserável, e o fez deter‑se mais tempo ao serviço, com a esperança de lhe ser útil a ela ‑ como, graças a Deus, foi duas ou três vezes antes! ‑ quando, pelo contrário, devia dar pasto aos seus sentimentos, esmurrando bem o patrão e mandá‑lo depois ao diabo? Ele devia, fixe isso; e fixe isto... estou aqui agora porque estes cavalheiros pensaram ser melhor. Quando me avistei com eles lá fora ‑ como fiz. não houve mistura comigo ‑ disse‑lhes ajudá‑los a encontrálo a si, seguir‑lhe as pisadas, levar a cabo o que tinha principiado, auxiliar o direito; e quando fiz isto era para entrar violentamente no seu quarto e dizer‑lhe tudo, cara a cara, de homem para homem e como um homem. Disse agora as minhas razões e deixo qualquer outra pessoa dizer as suas. Comecem!
Com este final, Newman Noggs, que se tinha sentado e levantado continuamente durante o discurso, proferido aos empurrões, tornou‑se, sem passar por um estado intermediário, da excitação e ardor feroz em que estava, para firme, rí gido, imóvel, ficando assim a fixar Ralph Nickleby com todaâ as forças.
Ralph olhou um instante para ele e apenas por um instante; depois agitou a mão e, batendo com o pé no chão, disse numa voz abafada:
‑Continuem, senhores, continuem! Sou paciente, como vêem. Há a lei para regular, há a lei. Chamá‑lo‑ei a contas por causa disto. Tenham cuidado com o que disserem: fá‑los‑ei apresentar provas.
‑A prova está feita ‑ respondeu o irmão Charles ‑ e completamente pronta nas nossas mãos. O homem chamado Snawley fez uma confissão a noite passada.
‑Quem pode ser o homem chamado Snawley? ‑ interrogou Ralph. ‑ E o que pode a sua confissão ter com os meus negócios?
A esta pergunta impertinente o velho cavalheiro não deu resposta, mas continuou a dizer‑lhe que, além das acusações feitas contra ele tinham as respectivas provas, informando‑o como estas tinham sido adquiridas. Pondo isto em aberto toda a questão, o irmão Ned, Tim Linkinwater e Newman Noggs, todos três imediatament, e depois de conversarem muito, apresentaram a Ralph o seguinte libelo acusatório em termos claros
Que alguém jurara solenemente a Newman, Smike não ser filho de Snawley e estava pronto a repetir o juramento, se fosse necessário. Que suspeitando da existência duma conspiração, não teve dificuldade em descobrir a maldade de Ralph e a avareza de Squeers. Que a suspeita e a prova sendo duas coisas muito diferentes, foi aconselhado por um eminente advogado para obter de Snawley, por qualquer meio possível, uma confissão completa do plano. Snawley, como prático na baixa intriga, fugiu sempre a todas as tentativas, até que, inesperadamente, a noite passada lhes caíra de joelhos. Quando Newman Noggs informou que Squeers estava de novo na cidade e tivera uma entrevista secreta com Ralph para o que ele fora mandado sair de casa ‑ foi posto um vigia na peugada do mestre‑escola, na esperança de se descobrir alguma coisa sobre o suspeitado plano. Vendo que Squeers vivia só, sem comunicação com Ralph, nem com Snawley, o vigia foi retirado e teria desistido de observar os seus movimentos se Newman não o visse uma noite com Ralph a visitarem várias pensões e tabernas, e visto, pelas perguntas que faziam, andarem à procura duma velha, cujas descrições correspondiam exactamente à surda Mrs. Sliderskew. Como o assunto parecia ser seriamente mais complexo, foi de novo postado o vigia com redobrada vigilância. Ele e Frank Cheeryble, seguindo as pi sadas do inconsciente mestre‑escola, souberam que vivia num quarto em Lambeth, habitando na porta oposta Mrs. Sliders kew, com quem ele estava em constante comunicação.
Neste estado de coisas apelou‑se para Arthur Gride, que se recusou positivamente para ser parte na captura da mulher e, tomado de pânico com a ideia de ter de ir depor contra ela, fechou‑se em casa sem querer comunicar com pessoa alguma. Os perseguidores, reunidos em conselho, chegaram à conclusão de que Gride e Ralph, com Squeers por instrumento, estavam negociando a recuperação dos papéis roubados, os quais, se não fizessem inteira luz, podiam explicar alguma coisa sobre as insinuações a respeito de Madeline, como Newman escutara, e resolveram ter Mrs. Sliderskew e Squeers em custódia, se alguma coisa de suspeito os incriminasse. De acordo com isto, a janela de Mr. Squeers foi vigiada até se apagar a luz, notando‑se depois que ele visitava assiduamente Mrs. Sliderskew. Frank Cheeryble e Newman, por isso, subiram a escada e começaram a escutar as conversas de ambos. Como eles chegaram no momento oportuno, Mr. Squeers, meio atordoado, foi preso com um documento roubado em seu poder e Mrs. Sliderskew foi igualmente detida. Tendo sido dada prontamente a informação a Snawley de que Squeers estava na prisão, sem lhe dizer porquê, ele informou ser toda a história referente a Smike, uma ficção e trapaça implicando completamente Ralph Nickleby. Quanto a Mr. Squeers, não podendo nessa manhã explicar satisfatoriamente, perante um magistrado, a razão de se encontrar a escritura em seu poder e a sua camaradagem com Mrs. Sliderskew, foi mandado para a prisão por mais uma semana.
Todas estas descobertas foram relatadas a Ralph circunstancialmente e em pormenor. Fossem quais fossem as ímpressões anteriormente sentidas, ele não deu sinal de emoção, e continuou sentado, sem tirar os olhos do chão e cobrindo a boca com a mão. Quando a narrativa acabou, levantou a cabeça de repente como se fosse falar, mas como o irmão Charles continuou, caiu na atitude anterior.
‑ Disse‑lhe esta manhã ‑ prosseguiu o velho senhor, pondo a mão no braço do irmão ‑ que ia numa missão de misericórdia. Tanto esteja implicado neste último negócio e tanto quanto a pessoa, agora na prisão, o possa incriminar, sabe o senhor melhor. Mas a justiça deve seguir o seu caminho contra as partes implicadas no plano contra esse pobre, inofensivo e prejudicado rapaz. Não está no meu poder, ou no poder do meu irmão Ned, salvá‑lo das consequências. O máximo que podemos fazer é avisá‑lo a tempo e dar‑lhe uma oportunidade de escapar. Não queremos ver um velho, como o senhor, desgraçado e punido pelo seu próximo parente, nem queremos esquecer, como o senhor, todos os laços de sangue e da natureza. Suplicamos‑lhe ‑ o irmão Ned acompanhme, embora pretenda ser cabeçudo como um burro, sir, e esteja ali a franzir a testa, como tem feito ‑ suplicamos‑lhe para se retirar de Londres, para se esconder em qualquer parte onde esteja a salvo das consequências destes infames projectos, e onde possa ter tempo, sir, para os espiar e se tornar um homem melhor.
‑ E o senhor pensa ‑ replicou Ralph, levantando‑se com um riso diabólico ‑ que me esmagam tão facilmente? Pensa que úm cento de planos bem concertados, ou um cento de tes temunhas subornadas, ou um cento de falsos mastins na minha peugada, ou um cento de discursos hipócritas cheios de palavras mansas, me comoverão? Agradeço‑lhes terem‑me des coberto os vossos projectos, para os quais estou agora preparado. Experimentem! E lembrem‑se que cuspo nas vossas lindas palavras e no vosso procedimento falso, e desafios. provoco‑os. incitwos. a fazerem o pior que puderem!
Assim se separaram naquela ocasião, mas o pior ainda não chegara.
Os perigos aumentam e narra-se o pior
Em vez de ir para casa, Ralph meteu‑se no primeiro trem, que mandou seguir para a esquadra onde se encontrava Squeers. Uma vez lá chegado, perguntou pelo objecto da sua solicitude, sendo informado que podia receber visitas, pois acabava de mandar chamar uma carruagem, onde se propunha ir para o seu retiro de uma semana como um cavalheiro.
Pedindo para falar com o prisioneiro, foi metido numa espécie de sala de espera, onde Mr. Squeers passava os dias devido à sua profissão escolar e à sua superior respeitabilidade. Aqui, à luz dum candeeiro enegrecido, mal pôde distinguir o mestre‑escola profundamente adormecido num banco postado num canto afastado. Na mesa, em frente dele, estava um copo vazio, cujo cheiro a brande e água deu a perceber que Mr. Squeers procurava esquecer temporariamente a sua desagradável situação.
Não era coisa fácil levantá‑lo, tão letárgico e pesado era o seu corpo, mas recuperando as suas faculdades vagarosamente, ergueu‑se por fim, exibindo uma cara muito amarela, um nariz muito vermelho e uma barba como as cerdas dos porcos, cujo conjunto era consideravelmente avivado por um sujo lenço branco, manchado de sangue, posto no alto da cabeça e amarrado por baixo do queixo. Fixou tristemente Ralph em silêncio até dar saída aos seus sentimentos nesta frase enérgica:
‑ Ouça, meu rapaz, esteve a tramá‑la agora, não?
‑ O que lhe passa pela cabeça?‑ perguntou Ralph.
‑Ora o seu homem, o seu informador, o seu raptador de crianças, confessou ‑ replicou Squeers de mau humor ‑ É o que se passa! Você por fim, sempre apareceu!
‑ Por que não me mandou chamar? ‑ interrogou Ralph. Como podia vir, sem saber o que lhe acontecera?
‑ A minha família! ‑ soluçou Mr. Squeers, erguendo o olho para o tecto. ‑ Para a minha filha, que está naquela idade em que todas as sensibilidades se sentem como uma bofetada; o meu filho, o jovem Norval com uma vida privada, o orgulho e o ornamento duma terna aldeia; isto foi um choque! O brazão de armas dos Squeers está manchado e o seu sol mergulhou nas ondas do oceano!
‑ Você esteve a beber! ‑ disse Ralph. ‑ E não dormiu o suficiente para ficar bom.
‑ Não estive a beber à sua saúde, seu avaro!‑ retorquiu Squeers. ‑ Portanto, não tem nada com isso.
Ralph reprimiu a indignação despertada pela maneira insolente do mestre-escola e perguntou‑lhe de novo por que o não mandara chamar.
‑ O que me fazia mandá‑lo chamar? ‑ inquiriu Squeers.
‑Para saber que estar metido consigo não me traria nada de bom e que eles não admitiam fiança até conhecerem alguma coisa mais do caso? Por isso aqui estou eu preso e incomodado, e você à solta e muito satisfeito.
‑ E assim deve estar por uns poucos de dias ‑ declarou Ralph fingindo bom humor. ‑ Eles não podem fazer‑lhe mal, homem.
‑Ora, suponha que me não podem fazer muito se expli car como entrei em relações com essa cadavérica veÌha Slider ‑ replicou Squeers maldosamente ‑ que eu desejava fosse morta e enterrada, ressuscitada e dissecada, e espetada em arames num museu de anatomia antes de ter tido qualquer contacto com ela. Isto foi o que aquela cabeça empoada me disse esta manhã, por estas palavras: Preso! Por ter sido encontrado com aquela mulher; por ter sido detido na posse deste documento; por estar ocupado com ela na destruição de outros e não dar uma explicação satisfatória de si próprio, mando‑o para a cadeia por mais uma semana, a fim de se fazerem investigações e se estabelecer a evidência. e, entretanto, não posso admitir fiança. Bem, então, o que diz agora é que posso dar uma explicação satisfatória de mim próprio; posso entregar um cartão do meu estabelecimento e declarar, Sou Wackford Squeers, como está aí escrito, sir. Sou um homem garantido por impecáveis referências como sendo um seguidor da moral e um partidário de bons princípios. Tudo o que houver de mau neste assunto não é culpa minha. Não tinha maus desígnios como ele, sir. Não sabia que houvesse alguma coisa de mau. Apenas fui empregado por um amigo. o meu amigo Ralph Nickleby, de Golden Square. mande‑o chamar, sir, e pergunte-lhe o que tem a dizer. é ele o homem e não eu!
‑ Qual era o documento que você tinha? ‑ perguntou Ralph, pondo de parte, momentaneamente, o ponto levantado.
‑ Qual? Ora, o documento ‑ respondeu Squeers. ‑ O que tinha o nome de Madeline. Era um testamento; é o o que era.
‑ De que natureza, as suas disposições, datado de quando, como a beneficiava e até onde? ‑ inquiriu Ralph precipitadamente.
‑ Um testamento a favor dela, é tudo o que sei ‑ respondeu Squeers ‑ e isso é mais do que você saberia se tivesse apanhado com as tenazes na cabeça. Isto tudo devido à sua preciosa precaução para que eles se não apoderassem dele. Se mo tivesse deixado queimar e confiar na minha palavra de que desaparecera, haveria um monte de cinzas por detrás do fogão em vez de estar inteiro e salvo dentro do meu sobretudo!
‑ Batido em todos os campos! ‑ murmurou Ralph.
‑ Ah! ‑ suspirou Squeers, hesitando estranhamente entre o brande e água e a sua cabeça partida. ‑ Na deliciosa vila de Dotheboys, perto de Greta Bridge, no Yorkshire, a mocidade é alimentada, vestida, fornecida de livros, lavada, provida de dinheiro para pequenas despesas e de tudo o necessário, instruída em ortografia, geometria, astronomia, trignometria. isto é um estado dum trignometrista, isso é! Um duplo, é tudo. uma arma dum sapateiro remendão. A. ci. ma, advérbio, quer dizer não em baixo. S... q... u. . duplo e‑r‑s, Squeers, substantivo, um educador da juventude. Total; tudo para cima do Squeers!
Esta declamação permitiu a Ralph recuperar a sua presença de espírito, que lhe sugeriu a necessidade de remover o mais possível os receios do mestre‑escola e levá‑lo a acreditar que a sua salvação e o melhor procedimento consistiam na continuação dum rígido silêncio.
‑ Digo‑lhe mais uma vez ‑ advertiu ele ‑ de que lhe não podem fazer mal. Terá uma acção por prisão sem culpa e ainda tira proveito disso. Inventa uma história que repete vinte vezes com uma dificuldade tão trivial como esta; e se eles quiserem uma caução de mil libras pela sua reaparição no caso, será chamado e tê‑las‑á. Tudo o que tem a fazer é ocultar a verdade. Você está um pouco embriagado esta noite e não é capaz de ver isto claramente como faria noutra ocasião, mas isto é o que deve fazer e precisa estar com todos os seus sentidos, pois um deslize pode ser fatal.
‑ Oh! ‑ exclamou Squeers, olhando com desprezo para ele com a cabeça pendida para um lado, como um velho corvo É isso tudo o que tenho a fazer,não é? Então ouça agora uma palavra ou duas minhas. Não vou dizer histórias inventadas por
mim, nem por ninguém! Se vir que os ventos me são contrários,espero que apanhe a sua parte e terei cuidado nisso. Você nunca me falou de perigo. Nunca transaccionaria para ser metido numa embrulhada como esta e não tenciono aceitá‑la tão tranquilamente como pensa. Deixei‑me guiar por si,numa coisa ou outra, por termos estado juntos em certo sentido, e se não estivesse para amar podia talvez ter prejudicado o negócio,mas se estivesse podia dar‑me um bom bocado. Bem se tudo caminhar agora direito,está muito bem e não me rálo; mas se der para o torto,então as coisas alteram‑se e direi e farei aquilo que melhor pensar como sendo mais conveniente,e não receberei conselho de ninguém. A minha influência moral sobre os
rapazes ‑ acrescentou Mr. Squeers com profunda gravidade ameaça ruina nas suas bases. As imagens de Mrs. Squeers,de minha filha e do meu filho Wackford,e de toda a espécie de comida,estão perpetuamente diante de mim; toda e qualquer outra consideração funde‑se e desaparece diante desta. O único número que conheço em toda a aritmética,como marido e paié o número um,e sob este,aqui passam‑se as coisas mais funestas.
Quanto tempo mais podia ter Mr. Squeers declamado e a que tempestuosa discusssão a sua declamação podia ter levado, ninguém sabe. Sendo interrompido neste ponto pela chegada da carruagem e dum polícia para o acompanhar,pôs o chapéu com grande dignidade por cima do lenço que lhe ligava a cabeça e,metendo uma das mãos na algibeira com a outra agarrando o braço do seu companheiro,foi conduzido para fora.
‑ Como eu supunha por não me ter mandado chamar pensou Ralph. ‑ Este tipo, como claramente vi através de toda a sua parvoice de bêbado,resolveu atirar as culpas para cima de mim. Estou tão sitiado e apertado,que eles não me escoicinham só por medo,mas,como os ani nais da fábula,atiram‑se agora todos a mim,embora houvesse tempo em que eram todos delicadezas e cumprimentos. Mas não me moverão. Não fugirei! Não me afastarei um centimetro!
Foi para casa e ficou contente em achar a governanta a queixar‑se de dores,pois desejava ficar só. Mandou‑a para casa e sentou‑se à luz duma única vela e começou a pensar,pela primeira vez,em tudo quanto sucedera nesse dia.
Não tinha comido,nem bebido,desde a noite passada e, a acrescentar à ansiedade de espírito,tinha andado,incessantemente,durante horas dum lado para o outro. Sentia‑se doente e exausto,mas só pôde beber um copo de água e contínuou sentado com a cabeça apoiada à mão,sem pensar,nem repousar mas trabalhosamente tentando fazer ambas as coisas, não encontrando, contudo, senão desolação e vácuo.
Eram perto das dez horas quando ouviu bater à porta, mas continuou sentado como antes, como se nem mesmo os pensamentos apreendessem isso. O bater foi repetido com frequência e ouviu, lá fora, uma voz a dizer que havia luz na janela significando, como ele sabia, a sua vela‑ antes de poder levantar‑se e de subir as escadas.
‑Mr. Nickleby, há terríveis novidades para si e mandaram‑me para lhe pedir que fosse comigo imediatamente‑ dizia a voz que ele pareceu reconhecer. Levou a mão em pala acima dos olhos e, espreitando para fora, viu Tim Linkinwater nos degraus.
‑ Ir aonde? ‑ perguntou Ralph.
‑ A nossa casa. onde foi esta manhã. Tenho aqui uma carruagem!
‑ Porque devo eu ir lá? ‑ inquiriu Ralph.
‑ Não me pergunte porquê, mas suplico‑lhe para ir comigo.
‑ Uma outra edição desta manhã ‑ comentou Ralph, fa zendo como se fosse fechar a porta.
‑ Não, não! ‑ exclamou Tim, agarrando‑o pelo braço e falando com o máximo ardor. ‑ apenas para ouvir uma coisa que se passou. uma coisa terrível, Mr. Nickleby, e lhe diz respeito muito de perto. Pensa que se não fosse assim lhe falaria, ou viria, desta maneira?
Ralph olhou‑o mais intensamente e vendo que ele, de facto, estava muito excitado, hesitou, sem saber o que dizer, ou pensar.
‑ É melhor ouvir isto agora do que noutra ocasião ‑ disse Tim. ‑ Pode ter alguma influência em si. Pelo amor de Deus, vamos!
Talvez noutro momento Ralph não desse ouvidos a este pedido, mas agora, depois dum momento de hesitação, entrou no vestíbulo para ir buscar o chapéu e meteu‑se na carruagem sem uma palavra.
Tim lembrou‑se muitas vezes mais tarde de que Ralph lhe parecera embriagado quando tinha ido buscar o chapéu. Também se lembrou, quando ele entrara na carruagem, do olhar vago, com uma cara cor de cinza muito transtornada.
Houve um profundo silêncio durante o caminho. Chegados ao destino, Ralph seguiu o seu guia até ao aposento onde estavam os dois irmãos. Ficou tão aturdido, para não dizer intimidado, pela muda compaixão que mostravam por ele, visível nas suas maneiras e nas do velho empregado, que mal pô-de falar.
Sentando‑se, contudo, esforçou‑se por dizer, embora em palavras trémulas:
‑ O que. o que me têm a dizer. mais do que já me disseram?
O aposento era velho e comprido, muito mal iluminado, e terminando por uma varanda, na qual pendiam roupas exteriores. Pondo os olhos naquela direcção pensou ver a figura dum homem, impressão esta confirmada ao notar que o objecto se movia, como se estivesse pouco à vontade sob o seu olhar.
‑ Quem está ali? ‑ perguntou ele.
‑ Uma pessoa que se nos dirigiu nestas duas horas passadas e cujas notícias foram a causa de o mandarmos chamar - respondeu o irmão Charles. ‑ Deixe‑o, sir, deixe‑o por agora!
‑ Mais enigmas! ‑ disse Ralph esmorecidamente. ‑ Então sir?
Voltando a cara para os irmãos foi obrigado a desviá‑ la da janela, mas, como se uma força estranha o impelisse, voltou continuamente para lá os olhos, sentindo‑se desassossegado com a presença do desconhecido, de tal forma que teve de mudar de posição, desculpando‑se com o incómodo da luz.
Os irmãos conferenciaram durante pouco tempo, mostrando nas suas maneiras estarem muito agitados. Ralph relanceou duas ou três vezes e, por fim, disse com um grande esforço para se dominar:
‑ O que é isso? Se me trouxeram aqui a esta hora da noite deve ter sido por alguma coisa. O que têm a dizer‑me? ‑ Depois duma curta pausa, acrescentou ‑ Morreu a minha so brinha?
Bateu numa tecla que tornaria mais fácil o começo da conversa. O irmão Charles voltou‑se e declarou que era duma morte, de facto, que tinham de lhe falar, mas a sobrinha estava bem.
‑ Não me querem dizer ‑ replicou Ralph com os olhos a brilharem ‑ que o irmão dela morreu. Não, isso seria bom demais. Não acreditaria ainda que mo disessem. Era uma notícia agradável demais para ser verdade!
‑Que vergonha para si, homem endurecido e desnaturado! ‑ exclamou o outro irmão com calor. ‑ Prepare‑se para notícia, a qual se tiver um resto de sentimento humano no peito, fa‑lo‑á sucumbir e tremer. O que diria se declarássemos que um pobre rapaz infortunatdo, uma criança em tudo, mas sem nunca ter conhecido uma daquelas ternas meiguices, ou uma daquelas alegres horas que lembram as crianças, pela vida fora, como um sonho feliz; uma criatura de bom coração, inocente, afectuosa, que nunca o ofendeu, ou lhe fez mal, mas sobre o qual desafogou a sua maldade e o ódio que concebeu pelo seu sobrinho, do qual fez um instrumento para saciar as suas más paixões. O que diria, se lhe declarássemos que, consumindo‑se sob a sua perseguição, sir, e a miséria e o mau trato numa vida de curtos anos, mas longa no sofrimento, essa criatura partiu para contar a sua história onde, pela sua parte nela, não tem necessidade de resposta?!
‑ Se me disser que ele morreu ‑ replicou Ralph impetuosamente ‑ perdôo-lhe tudo. Se me disser que ele morreu, ficar‑lhe‑ei devedor e grato por toda a vida. Ele morreu? Vejo nas suas caras. Quem triunfa agora? São éssas as notícias horríveis? É essa a terrível comunicação? Vêem como ela me comove:
Fizeram bem em me mandar chamar. Teria andado cem milhas a pé, através de lama, atoleiros e escuridão, para ouvir esta notícia justamente nesta altura.
Mesmo então, movido pela sua selvática alegria, Ralph viu nas caras dos dois irmãos, misturada com o olhar de desgosto e de horror alguma coisa de indefinível compaixão por ele, como já notara antes.
‑ E ele deu‑lhes a notícia, não é verdade? ‑ perguntou Ralph, apontando com o dedo para o recanto já mencionado - e está além, sem dúvida, para me ver prostrado e vencido por ela. Ah! ah! ah! Mas eu serei um espinho no seu corpo por muitos dias futuros, e digo a ambos os senhores que o não conheço, e que se arrependerão do dia em que tiverem compaixão do vagabundo.
‑ O senhor toma‑me pelo seu sobrinho! ‑ disse uma voz surda e triste. ‑ Seria melhor para si e para mim, se eu fosse, de facto.
A figura que ele via tão confusamente levantou‑se e avançou vagarosamente. Ralph acabou por ver que enfrentava. não Nicholas, como supunha, mas Brooker. Ralph não encontrava motivo para recear este homem. Antes nunca o temera, mas a palidez que se lhe observava na cara quando se encaminhou para diante, fê‑lo tremer e alterar‑lhe a voz, quando disse, conservando os olhos nele:
‑O que faz aqui este tipo? Sabem que ele é um condenado. um criminoso. um vulgar ladrão?
‑Ouça o que ele tem para lhe dizer, Mr. Nickleby, ouça o que ele tem para lhe dizer, seja ele o que for! ‑ ponderaram os irmãos com tão enérgico ardor, que Ralph voltou‑se para eles com sobressalto, enquanto lhe apontavam Brooker; Ralph voltou a olhá‑lo espantado, como parecia.
‑ Esse rapaz ‑ declarou o homem ‑ de que estes senhores têm estado a falar.
‑ Esse rapaz ‑ repetiu Ralph, olhando vagamente para ele.
‑ Que eu vi morto e frio na cama e está agora na cova.
‑ Que está agora na cova?. ‑ ecoou Ralph, como uma pessoa que fala a sonhar.
O homem levantou os olhos e juntou as mãos solenemente.
‑Era o seu único filho, assim Deus me salve!
No meio dum silêncio de morte, Ralph apertou as duas mãos na cabeça. Tirou‑as depois dum minuto e nunca se viu ‑ um homem vivo, desfigurado por qualquer mágoa ‑ com uma cara tão horrorosa coma a dele. Olhou para Brooker, que estava nessa altura a pouca distância, mas não disse uma palavra, ou emitiu qualquer som, ou fez o mais ligeiro gesto.
‑Senhores ‑ disse o homem - não apresento desculpas para mim. Tenho um longo passado. Se, ao dizer‑lhes como isto sucedeu, lhes declaro que fui asperamente tratado e talvez desviado da minha verdadeira natureza, faço‑o com uma parte necessária da minha história e não para me desculpar. Sou um delinquente!
Parou, como para se recordar e, desviando os olhos de Ralph, dirigiu‑se aos irmãos para continuar num tom humilde e mortificado:
‑Entre aqueles que tiveram negócios com este homem, meus senhores‑ há vinte ou vinte e cinco anos atrás‑ havia um cavalheiro, áspero, caçador de raposas, bom bebedor, que dera cabo da sua fortuna e queria fazer o mesmo à da irmã. Eram ambos órfãos; ela vivia com ele e tratava da casa. Não sei, originariamente, se foi para defender a sua influência ou para tentar persuadir a jovem, ele ‑ apontando para Ralph - costumava ir lá a casa, em Leicestershire, muito frequentemente e ficar lá muitos dias. Tiveram negócios juntos e ele fez alguns talvez para remendar a situação da cliente, que estava num estado ruinoso... decerto para seu interesse. A senhora não era já uma rapariga, mas era, ouvi dizer, bonita e com direito a uma boa fortuna. Com o decorrer do tempo casou com ela. O mesmo amor que o levou a cantrair este casamento, levou‑o a ordenar‑lhe que o conservasse estritamente secreto. Por uma cláusula no testamento do pai dela, declarava‑se que se ela casasse sem o consentimento do irmão, a fortuna, da qual ela apenas tinha o usufruto enquanto solteira, passaria para outro ramo da familia. O irmão não daria consentimento para quaisquer despezas. Mr. Nickleby não consentiria num tal sacrifício, e assim continuaram, conservando o casamento secreto e esperando que o irmão partisse a espinha, ou morresse duma febre. Não aconteceu nem uma coisa nem outra e, entretanto, o resultado deste casamento oculto foí um filho. A criança foi posta na ama, a grande distância; a mãe só o viu uma vez, ou duas, e, então, às escondidas. O pai ‑ tão ansiosa era a sua sede por dinheiro, que parecia agora vir‑lhe a cada respiração, pois o cunhado estava muito doente e decaindo cada vez mais ‑ nunca foi junto dele, para evitar que se levantassem suspeitas. O irmão ia‑se mantendo; o esposo de Mrs. Nickleby insistia para ele confessar o casamento, ao que ele se recusava peremptoriamente. Ela permanecia só, numa sombria casa de campo, vendo nenhuma, ou pouca gente, a não ser caçadores bêbados e brigões. Ele vivia em Londres, agarrado aos seus negócios. Houve várias questões e recrininações e quando já estavam casados há cerca de sete anos e a poucas semanas da ocasião em que tudo se ajustaria pela morte do irmão, ela foi raptada por um homem mais novo e deixou‑o.
Aqui parou, mas como Ralph não se moveu, os irmãos fizeram‑lhe sinal para continuar:
‑Foi então que eu me tornei conhecedor destas circuns tâncias pela boca dele. Nessa ocasião não havia segredos, pois o irmão e outros sabiam‑no, mas foram‑me comunicadas, não por este motivo, mas porque precisou de mim. Ele seguiu os fugitivos ‑ disseram alguns, para fazer dinheiro com o opróbrio da mulher, mas eu creio que foi para se vingar com violência, pois lhe estava no carácter tanto uma coisa como a outra. Não os encontrou e ela morreu pouco depois. Não sei se ele começou a pensar que podia gostar da criança, ou se desejava ter a certeza de que ela nunca cairia nas mãos da mãe antes de partir, encarregou‑me de a levar para casa. Assim fiz.
Desde este ponto continuou num tom mais humilde e, falando numa voz muito mais baixa, apontou para Ralph prosseguindo:
‑ Ele tratava‑me mal. cruelmente. Lembrei‑lho não há muito tempo, quando o encontrei na rua, e odiava‑o. Levara a criança para casa dele e alojei‑a no sótão da frente. O descuido tornara-o muito doente e fui abrigado a chamar um médico, que disse ser necessário fazer a criança mudar de ares, pois de contrário morreria. Foi a primeira coisa que meti na cabeça. Ele saira, por seis semanas e quando voltou, com tudo bem planeado e provado e de que ninguém podia suspeitar ‑ disse‑lhe que a criança morrera e fora enterrada. Ele ficou desapontado ou por qualquer intenção formada, ou por ter alguma natural afeição, mas ficou pesaroso com aquilo e eu confirmei o meu desígnio de descobrir o segredo, um dia, tornando‑o um meio de lhe apanhar dinheiro. Ouvira falar, como a maioria dos outros homens das escolas de Yorkshire. Levei a criança para uma dirigida por um homem chamado Squeers e deixei‑a lá. Dei‑lhe o nome de Smike. Durante seis anos paguei vinte libras por ano, por ele, nunca descobrindo o segredo durante este tempo, por já ter deixado o serviço do pai por causa de maus tratos e de ter questionado de novo com ele. Fui mandado para fra do pafs. Estive ausente perto de oito anos. Imediatamente ao meu regresso à pátria dirigi‑me a Yorkshire e emboscando-me uma noite na aldeia, fiz perguntas sobre os rapazes da escola e soube que aquele, colocado lá por mim, fugira com um jovem, usando o mesxno nome do pai. Avistei o pai em Londres e dando‑lhe a entender o que lhe queria dizer, tentei sacar‑lhe algum dinheiro para poder viver, mas ele repudiou‑me com ameaças. Descobri depois o empregado e, indo a pouco e pouco mostrando‑lhe haver boas razões para comunicar comigo, ele soube o que se passava, tendo sido eu quem lhe disse não ser ele o filho do homem que o reclamava como pai. Durante todo este tempo nunca vi o rapaz. Por fim soube pela mesma fonte que ele estava muito doente e onde se encontrava. Fui lá e podia se fosse necessário, fazer‑me reconhecer e confirmar a minha história. Apareci‑lhe inesperadamente, mas antes de lhe poder falar ele reconheceu‑me ‑ tinha boas razões para se lembrar de mim, o desgraçado! ‑ e teria jurado que era ele, mesmo se o encontrasse nas Índias. Reconheci aquela cara digna de lástima que vira em criancinha. Depois duns poucos de dias de indecisão, fui ter com o jovem, a cujo cuidado ele estava, e soube então que tinha morrido. Ele sabe como o rapaz me reconheceu rapidamente, como frequentemente me descrevia, como o deixei na escola e como falava dum sótão de que se recordava, aquele que lhes indiquei há pouco, e nesse tempo em casa do pai. Esta é a minha curta história. Peço para ser posto frente a frente com o mestre‑escola e dar qualquer possível prova do que contei, mostrando que isto é verdade e tenho esta culpa na minha alma!
‑ Homem infeliz! ‑ exclamaram os irmãos. ‑ Que reparação quer por isto?
‑ Nenhuma, meus senhores, nenhuma! Não tenho nenhuma a fazer, nem nada a esperar agora. Sou velho na idade e mais velho na miséria e na carência. Esta confissão só pode trazer‑me novas punições e sofrimento, mas faço‑a e suportarei tudo o que vier. Fui o instrumento que, fazendo recair esta terrível retribuição sobre a cabeça dum homem, na sua ardente prosseguição dos maus fins, levou o próprio filho a morrer. Deve descer também sobre mim ‑ sei que deve cair ‑ a reparação, que vem demasiado tarde e, nem neste mundo, nem no outro, posso ter de novo esperança.
Mal acabou de falar o candeeiro, que estava em cima da mesa, junto ao sítio onde Ralph se sentava, e era o único no aposento, foi arremessado ao chão e tudo caiu nas trevas. Estabeleceu‑se uma pequena confusão para se obter outra luz; o intervalo foi, quase nulo, mas quando a luz apareceu, Ralph Nickleby desaparecera.
Os bons irmãos e Tim Linkinwater ocuparam‑se durante algum tempo a discutir a probabilidade dele regressar, e quando foi notório que não voltaria, hesitaram se deviam, ou não, mandá‑lo chamar. Por fim, lembraram‑se da maneira estranha e silenciosa como ele se conservara sentado, imóvel, durante a entrevista e, admitindo a hipótese de estar doente, decidiram, embora fosse muito tarde, mandar alguém a sua casa sob qualquer pretexto. Achando uma desculpa na presença de Brooker, de quem não sabiam se podiam dispor sem o consultar, concluiram em proceder de conformidade com esta resolução, antes de ir para a cama.
Nicholas e a irmã não perdem o direito à boa opinião das pessoas sagazes e prudentes
Na manhã seguinte à exposição de Brooker regressou Nicholas. O encontro entre ele e as pessoas que deixara, não foi feito sem forte emoção para ambos os lados, pois tinham sido informadas, por cartas, das ocorrências.
‑ Tenho a certeza ‑ disse Mrs. Nickleby, enxugando os olhos e soluçando amargamente‑ de ter perdido a melhor criatura, a mais zelosa e atenciosa que ainda tive por compa nhia em toda a minha vida, pondo de parte, decerto, a ti, meu querido Nicholas, e Kate, o vosso querido papá e essa bem educada ama que fugiu com a roupa branca e doze garfos pequenos. De todos os seres tratáveis, de temperamento igual, afectuosos e fieis com quem tenho vivido, creio ter sido ele o melhor. Não tenho coragem para olhar agora para o jardim, em que tinha tanto orgulho, ou ir ao seu quarto e vê‑lo cheio dessas pequenas invenções feitas para o nosso conforto e em que tinha tanto prazer e fazia tão bem! Não posso, realmente! Isto é uma grande provação para mim, uma grande provação. Será um conforto para ti, meu querido Nicholas, até ao fim da tua vida lembrares‑te como foste bom e amável para ele, assim como para mim, pensar nos excelentes termos em que vivemos e como ele era doido por mim, pobre rapaz! Era muito natural que te tivesses afeiçoado a ele, meu querido, muito, e decerto estavas e estás muitíssimo pesaroso por isto. Basta olhar para ti para se ver como estás mudado mas ninguém sabe quais são os meus sentimentos, ninguém, é absolutamente impossível.
Enquanto Mrs. Nickleby, com a máxima sinceridade, expandia as suas tristezas na forma peculiar de se considerar acima de todos, Kate, embora muito acostumada a esquecer‑se de si para pôr os outros em primeiro lugar, não pôde conter a sua dor. Madeline também ficou muito comovida e a pobre Miss La Creevy tão cordial e honesta, tendo chegado na altura de se receber a triste nova, sentou‑se nas escadas, desfeita em lágrimas e recusando‑se durante muito tempo a ser consolada.
‑ Isto aflige‑me tanto! ‑ declarou a pobre mulher ‑ Vê‑lo regressar só. Não posso deixar de pensar quanto deve ter sofrido. Não me incomodava tanto se se expandisse um pouco mais, mas suporta isto tão valentemente!
‑ Devia fazê‑lo, não devia? ‑ perguntou Nicholas.
‑ Sim sim ‑ respondeu ela ‑ e abençoado seja pela boa criatura que é! Mas isto parece, para uma alma simples como a minha ‑ sei que é imodéstia dizer isto e peço desculpa, uma fraca recompensa por tudo o que fez.
‑ Não ‑ refutou Nicholas delicadamente. ‑ Que melhor recompensa podia eu ter de que saber terem os seus últimos dias sido tranquilos e felizes, e a lembrança de ter sido o seu constante companheiro e de não ter abandonado a sua cabeceira, como o podia ter feito sob centenas de pretextos?
‑ Com certeza! ‑ soluçou Miss La Creevy. ‑ E muito verdade e eu sou uma grande palerma e ingrata.
A boa alma tornou a chorar e, esforçando-se por se recompor tentou rir. A gargalhada e o gemido encontraram‑se abruptamente e lutaram para ver qual seria o vencedor, resultando desta batalha um ataque histérico de Miss La Creevy.
Esperando até todos estarem mais sossegados e tranquilos Nicholas, que tinha precisão de descansar depois da sua longa viagem, retirou-se para o quarto e atirou‑se, vestido como estava para cima da cama, caindo num sono profundo. Quando acórdou, encontrou Kate sentada ao lado da cama; quando o viu de olhos abertos, curvou‑se para o beijar.
‑ Vim para te dizer como me sinto contente por te ver de novo em casa.
‑E eu não posso dizer‑te a minha satisfação por te ver Kate.
‑ Estávamos tão fatigadas de esperar pelo teu regresso - disse Kate ‑ a mamã, eu e. e a Madeline.
‑Tu disseste na tua última carta que ela está completamente bem ‑ recordou Nicholas, bastante apressadamente e corando. ‑ Nunca se falou, enquanto estive ausente, sobre quaisquer disposições que os irmãos tenham tentado fazer a respeito dela?
‑ Nem uma palavra ‑ respondeu Kate. ‑ Não posso pensar em separar‑me dela sem tristeza e, seguramente, Nicholas tu não o desejas.
Nicholas tornou a corar e, sentando‑se ao lado da irmã, perto da janela, disse:
‑Não, Kate, não, não desejo! Posso procurar esconder os meus verdadeiros sentimentos de todos, excepto de ti. Quero dizer‑te que, em resumo e sinceramente, que a amo, Kate!
Os olhos da irmã brilharam e ia dar uma resposta, quando Nicholas lhe pôs a mão no braço e continuou:
‑ Ninguém deve saber isto a não seres tu. Ela, menos de todos!
‑ Querido Nicholas!
‑ Menos de todos. nunca, embora nunca seja um tempo muito longo. As vezes ponho‑me a pensar na possibilidade de vir alguma ocasião em que lho possa dizer. Mas isso está tão longe, numa perspectiva tão distante, que se devem passar muitos anos antes de chegar e quando chegar, se for algum dia, serei tão diferente do que sou agora e terei ultrapassado tanto a minha juventude e o meu romantismo, embora não o meu amor por ela, que sinto quão visionárias devem ser todas estas esperanças e procuro esmagá‑las rudemente e acabar com o sofrimento e desapontamento. Não, Kate! Enquanto ausente, tive naquele pobre rapaz que morreu, perpetuamente diante dos olhos, um outro exemplo da bondade daqueles pobres irmãos. E tanto quanto estiver em meu poder hei‑de merecê‑la e se vacilei na obrigação contraída para com eles, estou determinando a cumpri‑la rigidamente e pôr prorrogações e tenta ções futuras fora da meu alcance.
‑Antes de dizeres mais qualquer palavra querido Nicholas ‑ replicou Kate, fazendo-se pálida ‑ tens de ouvir o cu tenho para te dizer. Vim de propósito, mas não tive coragem. O que me disseste agora, deu‑me uma alma nova.
Kate, hesitou e rompeu em choro. Havia qualquer coisa na sua maneira que preparou Nicholas para a notícia. Ela tentava falar, mas as lágrimas impediram-na.
‑ Vamos, minha pateta ‑ animou Nicholas. ‑ Então, Kate sê mulher! Parece‑me saber o que me queres dizer. Diz respeitó a Mr Frank, não é verdade?
Kate mergulhou a cabeça no ombro do irmão e murmurnurou:
‑ Sim.
‑ Ofereceu‑te talvez, a sua mão, enquanto estive ausente - continuou Nicholas ‑ É isso? Sim. Bem, afinal não é difícil contares‑me. Ele ofereceu‑te a sua mão?
‑ Que eu recusei ‑ declarou Kate.
‑ Sim, e porquê?
‑Disse‑lhe ‑ respondeu ela numa voz trémula ‑ tudo quanto soube teres observado à mamã, e embora não pudesse esconder‑lhe, como não posso esconder de ti, que foi uma excessiva dor e uma grande provação, disse‑lho firmemente, pedi‑lhe para nunca mais me ver.
‑ És a minha valente Kate! ‑ exclamou Nicholas, apertando‑a ao peito. ‑ Sei que o farias!
‑ Ele tentou modificar a minha resolução ‑ prosseguiu Kate ‑ e declarou que, fosse a minha decisão qual fosse, não só informaria os tios do passo dado, como te comunicaria imediatamente após o teu regresso. Receio ‑ acrescentou ela, animada momentaneamente pela sua tranquilidade ‑ receio não ter falado com bastante firmeza, tão profundo achei um tão desinteressado amor, que me levou a orar ferverosamente pela sua felicidade. Se falarem, gostava. gostava que ele soubesse isto.
‑ E supuseste, Kate, quando fizeste este sacrifício, que sabes ser justo e honesto, quanto o meu me faria perder o ânimo? ‑ perguntou ternamente.
‑ Oh, não! A tua posição não é a mesma, mas.
‑ Mas é a mesma ‑ interrompeu Nicholas ‑ Madeline não é uma próxima parenta dos meus benfeitores, mas está ligada a eles por laços mais queridos, e fui o primeiro a quem confiaram a sua história, especialmente por terem uma ilimitada confiança em mim e acreditarem que sou tão forte como o aço. Qual seria a minha baixeza se me aproveitasse das circunstâncias que a puseram aqui, ou do pequeno serviço que lhe prestei para procurar captar‑lhe a afeição, quando o resultado devia ser, se fosse bem sucedida, o desapontamento dos irmãos no seu desejo de a considerarem como sua própria filha e de parecer que eu esperava fazer a minha fortuna pela sua afeição pela jovem, a quem tão vil e desprezivelmente apanhara no laço, aplicando a sua muita gratidão e caloroso reconhecimento em proveito próprio e jogando com a sua desgraça! Eu, cujo dever, orgulho e prazer, Kate, é de ter também outras pretensões e que possuo já os meios duma vida confortável e feliz, não tenho o direito de olhar para mais alto. Determinara tirar este peso do coração. Mesmo agora, duvido se não fiz mal, mas ainda hoje, sem reserva ou ambiguidade, irei relatar as minhas verdadeiras razões a Mr. Cheeryble, implorando‑lhe para tomar imediatas previdências a fim de mudar esta jovem para o abrigo de qualquer outro tecto.
‑Hoje? Tão cedo!
‑ Penso nisto há semanas e por que devo adiar? Se a cena pela qual acabei de passar me ensinou a reflectir e me despertou para um sentimento do dever, por que devo esperar até à impressão ter esfriado? Não deves dissuadir‑me, Kate, não é verdade?
‑ Hás‑de ser rico ‑ profetizou Kate.
‑ Hei‑de ser rico ‑ repetiu Nicholas com um soriso melancólico ‑ e hei‑de envelhecer. Mas, rico ou pobre, novo ou velho, havemos de ser o mesmo um para o outro e nisto reside a minha consolação. O que seria se não tivéssemos um lar? Ele nunca pode ser solitário para ti nem para mim. O que seria se permanecêssemos tão verdadeiros a estas primeiras impressões que nos fosse impossível formarmos outras? Isto não passa dum elo a mais, na forte cadeia que nos liga. Parece ter sido ontem quando, éramos companheiros de brincadeiras, Kate e parecer‑nos‑á ser amanhã que havemos de ser velhos, olhando retrospectivamente para estas tristezas, como olhamos agora para os nossos dias de infância, e recordando, com melancólico prazer, esse tempo em que elas nos inquietavam. Talvez então, quando formos velhos e conversarmos dos tempos em que os nossos passos eram mais leves e o nosso cabelo sendo branco, estejamos agradecidos pelas provações que mutuamente transformaram as nossas vidas na corrente onde deslizaremos tão tranquila e sossegadamente. E tendo ouvido uns rumores da nossa história, os jovens que nos cercarem ‑ tão jovens como tu e eu somos agora, Kate ‑ podem vir ter connosco por simpatia e contar aos ouvidos compadecidos do irmão solteirão e da irmã solteirona, aflições que a esperança e a inexperiência não podiam deixar sentir.
Kate sorriu por entre as lágrimas quando Nicholas pintou este quadro, mas não eram lágrimas de tristeza, embora continuassem a cair, quando ele acabou de falar.
‑ Não tenho razão, Kate? ‑ interrogou Nicholas, depois dum certo silêncio.
‑Absoluta, querido irmão, e não te posso dizer quanto sou feliz por ter procedido como tu.
‑ Não sentes tristeza?
‑ N. n. não ‑ respondeu Kate timidamente, traçando qualquer desenho no chão com a ponta do sapato. ‑ Não me sinto triste por ter feito o que era justo e honesto, mas sinto tristeza por isto ter acontecido. pelo menos algumas vezes entristece‑me e outras eu... não sei o que digo. Não passo duma rapariga, Nicholas, e isto fez‑me sofrer muito!
Se Nicholas tivesse dez mil libras nesse minuto, teria assegurado a felicidade da irmã, mas não as tendo, limitou‑se a consolá‑la e confortá-la com palavras ternas; e as palavras encerraram tanto amor e cuidado, e tão alegre estímulo, que a pobre Kate lhe cingiu os braços em volta do pescoço e prometeu não chorar mais.
‑ Que homem ‑ pensou Nicholas orgulhosamente, pouco depois, a caminho de casa dos irmãos ‑ não se daria por suficientemente recompensado com qualquer sacrifício de fortuna, possuíndo um coração como aquele, que vale quanto pesa em ouro e prata e está além de todo o louvor! Frank, tem dinheiro e não precisa de mais. Onde iria ele comprar um tesouro como Kate? E no entanto, em casamentos desiguais, o cônjuge rico supõe fazer um grande sacrifício e o outro realizar um bom negócio! Mas estou a pensar como um namorado, ou como um burro, o que suponho seja quase a mesma coisa?!
Reprimindo pensamentos tão pouco adaptados aos assuntos a que estava ligado com repreensões como esta e outras não menos enérgicas, continuou o caminho e apresentou‑se a Tim Linkinwater.
‑ Ah! Mr. Nickleby! ‑ exclamou Tim. ‑ Deus o abençoe! Como está? Bem? Diga que está completamente bem e nunca esteve melhor!
‑ Completamente ‑ respondeu Nicholas, apertando‑lhe ambas as mãos.
‑ Ah! parece bem fatigado, agora que olho bem para si - disse Tim ‑ Escute, aí o tem. Ouve‑o? É Dick, o melro. Não tornou a ser o mesmo desde que o senhor se foi embora. Nunca se conformou com a sua partida. Aceita‑o tão naturalmente, a si como a mim.
‑Dick é um tipo menos sagaz do que supunha, se pensa que sou digno de metade da sua atenção, como o senhor!respondeu Nicholas.
‑ Digo-lhe, sir ‑ retorquiu Tim na sua atitude favorita e apontando para a gaiola com a pena ‑ que se dá uma coisa muito extraordinária com este pássaro; as únicas pessoas a quem ele presta toda a atenção são Mr. Charles e Nlr. Ned, o senhor e eu!
Aqui, Tim parou e relanceou ansiosamente para Nicholas; depois, inesperadamente, baixando os olhos, repetiu:
‑ O senhor e eu! ‑ A seguir relanceou de novo para Nicholas e, comprimindo as mãos, disse: ‑ Não sou capaz de adiar uma coisa em que esteja interessado. Não fazia ideia de lhe pedir, mas gostava de ouvir alguns pormenores sobre esse pobre rapaz. Ele falou alguma vez de Cheeryble Brothers?
‑ Sim ‑ disse Nicholas ‑ muitas e muitas vezes.
‑ Foi justo da sua parte ‑ retorquiu Tim, limpando os olhos. ‑ Foi muito justo.
‑ E falou no seu nome dezenas de vezes‑ acrescentou Nicholas ‑ e com frequência pedia‑me para fazer presente a sua amizade por Mr. Linkinwater.
‑ Ele disse isso? ‑ perguntou Tim, soluçando ‑ Pobre rapaz! Desejava que pudéssemos tê‑lo enterrado em Londres. Não há um cemitério em toda Londres como aquele do outro lado do largo. cercado por casas comerciais, e indo‑se num dia bonito vêem‑se livros e cofres através das janelas abertas. Então ele mandou‑me os seus protestos de amizade, não mandou? Não esperava que se lembrasse de mim! Pobre rapaz, pobre rapaz!
Tim ficou tão completamente conquistado com esta prova de lembrança que se sentiu impossibilitado de prosseguir a conversa. Nicholas, por isso, deslizou para fora do gabinete e foi para o escritório do irmão Charles.
Se antes mantivera a sua firmeza e ãnimo, com esforço que Lhe custara bastante dor, o caloroso acolhimento, a maneira cordial, a simples e desafectada comiseração do bondoso velho. entrou‑lhe no coração e não conseguiu reprimir‑se.
‑ Vamos, vamos, meu caro senhor! ‑ exclamou o irmão Charles ‑ Não nos devemos deixar abater! Devemos aprender a suportar os desgostos e devêmo‑nos lembrar que há muitas fontes de consolação, mesmo na morte. Cada dia que esse pobre rapaz vivesse, menos habilitado estava para o mundo e mais infeliz nas suas próprias deficiências. Foi melhor assim, meu caro senhor! Foi melhor assim.
‑ Penso em tudo isso, sir ‑ respondeu Nicholas, aclarando a garganta. ‑ Sinto‑o, asseguro‑lhe!
‑Sim, assim está bem ‑ replicou Mr. Charles, que no meio de todos os seus modos de consolação estava tão abalado como o honesto Tim ‑ assim está bem. Onde está o meu irmão Ned? Tim Linkinwater, sir, onde está o meu irmão Ned?
‑ Saiu com Mr. Trimmers para internar aquele infeliz no hospital e mandarem uma ama para os filhos ‑ respondeu Tim.
‑ O meu irmão Ned é um belo rapaz. um belíssimo ra paz! ‑ exclamou Mr. Charles quando fechou a porta e se voltou para Nicholas. ‑ Terá grande prazer em o ver, meu caro senhor. Falávamos de si todos os dias.
‑Para lhe dizer a verdade, sir, estou satisfeito por o encontrar só - ‑ confessou Nicholas com uma natural hesitação por estar ansioso por dizer uma coisa. Pode dispensar‑me muito poucos minutos?
‑ Certamente ‑ retorquiu o irmão Charles, olhando para ele com uma expressão ansiosa. ‑ Fale, meu caro senhor, fale.
‑ Mal sei como ou por onde principiar ‑ começou Nicholas. ‑ Se alguma vez houve um mortal para ter razão em estar cheio de afeição e reverência por outro, com um tal afecto que o mais duro serviço em favor dele lhe pareça um prazer e uma delícia, com tais lembranças de gratidão que devem despertar o maior zelo e fidelidade da sua natureza, são esses os sentimentos que nutro por si, e peço, com o coração e a alma, para me acreditar.
‑ Acredito‑o ‑ respondeu o velho senhor ‑ e sou feliz em acreditá‑lo. Nunca duvidei; nunca duvidarei. Tenho a certeza de nunca poder duvidar.
‑O dizer‑me isso tão amavelmente dá‑me coragem para continuar ‑ prosseguiu Nicholas. ‑ Da primeira vez que me honrou com a sua confidência e me enviou a executar aquelas missões junto de Miss Bray, devia ter‑lhe dito que já a vira há muito tempo, que a sua beleza me impressionara de modo a não poder apagá‑la, e que procurei infrutiferamente descobri‑la e ficar ao eorrente da sua história. Não lho disse por ter pensado em vão, em vencer os meus mais fracos sentimentos e considerar um dever, o concurso de todo o meu préstimo no desempenho da minha obrigação para com o senhor.
‑ Mr. Nickleby ‑ disse o irmão Charles ‑ o senhor não violou a confiança depositada em si, nem tomou qualquer vantagem dela. Tenho a certeza que não fez isso.
‑ Não fiz ‑ assegurou Nicholas com firmeza. ‑ Embora achasse que a necessidade de domínio próprio e restricção, se tornava cada dia mais imperiosa e a dificuldade era maior, nunca, por um só instante, falei ou olhei como se o senhor estivesse afastado. Nunca, em qualquer momento, traí a sua confiança. Porém, achei que a convivência constante e a com panhia dessa adorável rapariga, é fatal para a minha paz de espírito e pode destruir as resoluções por mim tomadas de princípio, e mantidas até agora fielmente. Em resumo, sir, não posso confiar em mim e imploro e suplico para tirar, sem demora, essa jovem do encargo da minha mãe e da minha irmã. Sei que para qualquer pessoa como o senhor, que sabe a grande distância que me separa dessa jovem, que é agora a sua tutelada e o objecto do seu peculiar cuidado, o amá‑la eu, mesmo em pensamento, deve parecer o cúmulo da audácia e da presunção. Sei que é assim, mas quem a vê como eu a tenho visto, mas quem conhece o que tem sido a sua vida, quem pode deixar de a amar? Não tenho outra desculpa se não essa, e como não posso fugir a essa tentação e não posso reprimir esta paixão, peço‑lhe e suplico‑lhe para a tirar de lá e deixar‑me esquecê‑la.
‑ Mr Nickleby ‑ disse o velho depois dum curto silêncio‑não pode fazer mais. Tive culpa em êxpor um jovem como o senhor a esta prova. Devia ter previsto o que aconteceria. Agradeço‑lhe, sir, agradeço-lhe! Maúeline mudará de residência!
‑ Se me quer conceder um favor, diga‑lhe para me recordar com estima, sem nunca lhe revelar esta confissão.
‑ Fique sossegado ‑ respondeu Mr. Cheeryble ‑ E agora, pergunta: era tudo o que tinha para me dizer?
‑ Não ‑ retorquiu Nicholas, encontrando‑lhe o olhar. Não é.
‑ Conheço o resto ‑ confessou Mr. Cheeryble, aparentemente muito aliviado por esta pronta resposta. ‑ Quando teve conhecimento?
‑ Quando cheguei a casa, esta manhã.
‑Achou ser seu dever vir imediatamente ter comigo e dizer‑me o que a sua irmã, sem dúvida, lhe participou?
‑ Achei ‑ replicou Nicholas ‑ embora desejasse ter falado primeiro com Mr. Frank.
‑Frank esteve comigo a noite passada. Procedeu bem, SIr. Nickleby. muito bem, sir. e mais uma vez obrigada.
Sobre este assunto, Nicholas pediu licença para juntar algumas palavras. Esperava que a sua confidência não conduzisse ao afastamento de Kate e Madeline, cuja mútua afeição era tal, que isso lhes causaria muita mágoa. Quando tudo estivesse esquecido tinha a esperança dele e Frank poderem continuar a ser grandes amigos. Contou, o mais pormenorizado possível, o que se passara nessa manhã entre ele e Kate, falando dela com muito orgulho e calorosa afeição, e acabou com expressivas palavras da sua devoção pelos dois irmãos e com a esperança de poder viver e morrer ao serviço deles.
Tudo isto o irmão Charles ouviu em profundo silêncio com a cadeira voltada de modo que Nicholas não lhe podia ver a cara. Não falou na sua maneira habitual, mas antes com uma certa regidez e embaraço, muito estranhos nele. Nicholas receou tê‑lo ofendido, mas ele respondeu:
‑ N. não. procedeu muito bem! ‑ E foi tudo. ‑ Frank é um pateta inconsiderado ‑ acrescentou depois de Nicholas se ter calado ‑ muito inconsiderado. Farei o necessário para isto terminar sem demora. Não falemos mais no assunto, é muito doloroso para mim. Venha falar‑me daqui a meia‑hora. Tenho coisas estranhas para lhe dizer, meu caro senhor; o seu tio foi convidado para esta noite esperar pela sua visita na minha companhia.
‑ Visitá‑lo! Consigo, sir! ‑ exclamou Nicholas.
‑ Sim, comigo ‑ respondeu o velho senhor. ‑ Volte daqui a meia hora e dir‑lhe‑ei mais coisas.
Nicholas foi ter com ele na ocasião indicada e então soube tudo o que se passara no dia anterior. Por isso, descansado pela restabelecida amabilidade dos dois irmãos para consigo, mas contudo, sensível à diferença, embora mal pudesse saber a causa.
Ralph marca um último encontro e mantém‑no.
Saindo como um gatuno e estendendo as mãos, quando chegou à rua, como um cego, Ralph dirigiu‑se para a sua casa, olhando por cima do ombro, com receio de ser seguido.
A noite estava escura e soprava um vento frio, que empurrava furiosamente as nuvens. Ele olhava para trás com frequência na impressão de haver alguma coisa a persegui‑lo, uma massa escura como um cortejo fúnebre.
Quando passou por um pequeno e miserável cemitério lembrou‑se de ter feito parte, havia muito tempo, do juri dum homem que cortara o pescoço e fora enterrado ali, achando estranho recordar‑se disto naquela ocasião, quando com frequência passava por lá sem nunca tal lhe ter vindo isso à memória. Lembrou‑se, também, de ter sido ele a última pessoa a ver o suicida com vida e de o ter deixado com alegria. Mas quanto mais se aproximava de casa, mais esquecia estas coisas para começar a pensar como solitário e triste devia estar lá dentro.
Este sentimento fez‑se sentir tão violentamente que quando chegou à porta mal pôde dar a volta à chave. Não havia luz e tudo estava deserto, frio e sossegado.
Tremendo dos pés à cabeça subiu para o aposento onde ultimamente fora perturbado. Fizera um ajuste consigo para não pensar no sucedido até chegar a casa. Estava agora em casa e consentia em considerá‑lo.
O seu próprio filho... o seu próprio filho! Nunca duvidou do relato; sentia que era verdade; sabia‑o tão bem agora, como se fosse sempre do seu conhecimento. O seu próprio filho! E morto também! A morrer junto de Nicholas... considerando‑o qualquer coisa como um anjo! Isso era o pior.
Todos lhe tinham faltado na sua primeira necessidade. Nem mesmo o dinheiro os podia fazer regressar. Aqui estava o jovem lorde morto, o seu companheiro no estrangeiro dez mil libras desaparecidas e o seu plano com Gride derrubado no preciso momento do triunfo, os seus projectos descobertos, ele em perigo, objecto de perseguição, o amor de Nicholas e o seu infeliz filho: tudo se juntava e lhe caía em cima, e ele debatia-se sob as ruínas, arrastando‑se no pó.
possível que se o filho fosse vivo, lhe pudesse servir de conforto e serem ambos felizes. Sentia que a sua suposta morte e a fuga da mulher tinham sido cúmplices para o tornar o homem intratável e duro que era. Lembrou‑se do tempo em que não era assim e quase pensou ter principiado a odiar Nicholas por ser jovem e valente.
Mas um pensamento terno, ou um natural pesar naquele redemoinho de paixões e remorso, era uma gota de água tranquila num mar revolto e enlouquecido. O ódio por Nicholas fora alimentado pelas suas derrotas, pela sua intervenção nos seus projectos, nutrido com o seu velho desafio e sucesso. O amor do filho morto, por Nicholas, era uma agonia insuportável. O quadro do leita mortuário com Nicholas ao lado, amparando‑o, recebendo os seus agradecimentos e, nos braços, o corpo a expirar, fê‑lo ranger os dentes e agitar as mãos, gritando com os olhos a brilharem na escuridão:
‑Calquei‑o e arruinei‑o. O miserável disse‑me a verdade! A noite veio. Não há meio de lhes roubar o seu futuro triunfo e espezinhar a misericórdia e compaixão? Não há um diabo para me ajudar?
Na sua imaginação deslizou de novo a figura que lhe aparecera na noite anterior. Lembrava-se bem dos pés rígidos, marmóreos, voltados para cima. Depois apareceram os pálidos e trémulos parentes. Não falou mais, mas subiu ao sótão da frente, cuja porta fechou atrás de si. Continha uma velha cama onde o filho dormira e algumas malas velhas. Evitou‑a e sen tou‑se o mais longe possível. O fraco reflexo das luzes da rua passando pelas janelas, sem cortinas nem gelosias, era o suficiente para mostrar o carácter do quarto. Tinha o tecto formado de traves e foi para estas que Ralph dirigiu os olhos, conservando‑os fixos durante alguns minutos. Quando se levantou, arrastando uma velha caixa onde estivera sentado subiu para ela e apalpu com ambas as mãos a parede a todo o comprimento por cima da cabeça. Por fim, tocou num grande gancho de ferro, firmemente enterrado numa das traves.
Nesse momento foi interrompido por uma forte pancada na porta da rua. Depois duma pequena hesitação abriu a janela e perguntou quem era.
‑ Quero Mr. Nickleby ‑ respondeu a voz.
‑ E o que lhe quer?
‑ Não é a voz de Mr. Nickleby, pois não? ‑ foi a réplica. Não parecia a dele, mas era Ralph quem falava e assim o disse.
A voz informou que os gémeos desejavam saber se o homem que fora visto nessa noite devia ser detido e que, embora fosse agora meia‑noite, tinham‑no enviado no desejo de proceder bem.
‑ Sim ‑ replicou Ralph ‑ detenham‑no até amanhã. Depois tragam‑no aqui. a ele e ao meu sobrinho. e venham eles próprios. Podem ter a certeza de que estarei preparado para os receber.
‑ A que horas? ‑ inquiriu a voz.
‑ A qualquer hora ‑ replicou Ralph ferozmente. ‑ De tarde. A qualquer hora. em qualquer minuto. todas as ocasiões são iguais para mim.
Escutou os passos a retirarem‑se até o som acabar e depois, pondo os olhos no céu, viu, ou pensou ver, a mesma nuvem escura que parecia tê‑lo seguido a casa dando agora a impressão de planar directamente sobre o telhado.
‑ Sei agora a sua significação ‑ murmurou ‑ e as noites sem descanso, os sonhos e o desânimo sentido ultimamente. tudo apontava para isto. Oh! se os homens ao venderem as suas almas podem ser libertados num limite, por que curto limite devo negociar a minha, esta noite?
O vento trouxe o som dum sino de som profundo. Uma.
‑ Cala essa língua de ferro! ‑ exclamou o usurário. ‑ Toca alegremente pelos baptisados concebidos pelas dores das mães, pelos casamentos realizados no inferno, e tange tristemente pelos mortos cujos sapatos já estão gastos! Chama os homens à oração, que são devotos, e repica pela entrada no novo ano para que traga o fim a este mundo execrável. Para mim, não quero sino, nem orações! Atirem‑me para uma esterqueira e deixem‑me lá apodrecer para empestar o ar!
Passando em volta os olhos espantados, onde se misturava horrívelmente o ódio, a loucura e o desespero, agitou a mão voltada para o céu, que continuava escuro e ameaçador, e fechou a janela.
A chuva e o granizo tamborilavam no vidro; as chaminés tremiam e abalavam; o velho batente da janela matraqueava com o vento, como se mão impaciente estivesse de dentro a esforçar‑se para abrir com violência. Porém, não estava lá mão alguma e ela nunca mais se abriu.
‑ Como é isto? ‑ exclamou um. ‑ Os senhores dizem que ninguém responde e já estão a insistir há duas horas!
‑ No entanto, ele veio para casa a noite passada ‑ disse outro ‑ pois falou a alguém da janela lá de cima.
Era um pequeno conjunto de homens que, da rua, olhava para a mencionada janela. Isto ocasionou ter‑se verificado que a casa estava ainda fechada, levando a um grande número de sugestões, a governanta ter dito que fora despedida na noite anterior. Dois ou trés dos mais audaciosos deram volta à casa e entraram por uma janela das traseiras, enquanto os outros permaneciam cá fora em impaciente expectativa.
Espreitaram para todos os aposentos em baixo, abrindo as portas das janelas à medida que prosseguiam, para deixar entrar uma luz desmaiada. Não encontrando ninguém e vendo tudo arrumado nos seus lugares, hesitaram se deviam continuar. Contudo, depois de um dos homens, observar não terem ainda ido ao sótão, onde ele fora visto pela última vez, concordaram ir espreitar e subiram devagarinho, por que o mistério e o silêncio os tornara tímidos.
Depois de pararem por um instante no patamar, entreolhando-se. Aquele que propusera levar a busca tão longe deu volta ao puxador da porta e, abrindo‑a, olhou pela abertura, recuando imediatamente.
‑ muito esquisito ‑ sussurrou ele. ‑ Está escondido atrás da porta. Olhem!
Comprimiram‑se para a frente, para ver, mas um, de entre eles, empurrou os outros para o lado com uma exclamação de pavor, tirou uma navalha da algibeira e, entrando no quarto, cortou a corda.
Ralph tirara uma corda duma das velhas malas e enforcara‑se num gancho de ferro, exactamente por baixo do alçapão do tecto, no preciso lugar para onde os olhos do filho, uma criaturinha desolada e só, se tinham voltado tantas vezes com infantil terror, catorze anos antes.
Os irmãos Cheeryble fazem várias declarações e Tim Linkinwater faz uma declaração a si próprio.
Haviam passado atgumas semanas e o primeiro choque destes acontecimentos estava diluído. Madeline mudara de casa. Frank estivera ausente, Nicholas e Kate começaram a tentar desabafar, com muita vontade, as suas tristezas e a viver um para o outro e para a mãe ‑ que, pobre senhora, não podia de forma alguma reconciliar‑se com este estado alterado dos seus sonhos ‑ quando chegou uma noite, por obséquio de Mr. Linkinwater ‑ um convite dos irmãos para jantarem no dia seguinte compreendendo não somente Mrs. Nickleby, Kate e Nicholas, mas Miss La Creevy, que era particularmente mencionada.
‑ Agora, meus queridos ‑ perguntou Mrs. Nickleby, quando prestaram a conveniente homenagem ao convite, depois da partida de Tim. ‑ O que significará isto?
‑ O que quer dizer, mãe? ‑ inquiriu Nicholas, sorrindo.
‑ Escuta, meu querido ‑ replicou ela com uma cara de impenetrável mistério ‑ o que significa este convite para o jantar... qual será a intenção ou objectivo?
‑ Concluo que significa comer e beber na casa deles, nesse dia, e que o seu intuito e objectivo é darem‑nos prazer ‑ respondeu Nicholas.
‑E o que concluis de tudo isto, meu querido?
‑Não cheguei ainda a uma coisa mais profunda, mãe.
‑ Então vou dizer‑te uma coisa ‑ retorquiu Mrs. Nickleby ‑ vais encontrar uma pequena surpresa. Podes confiar que significa alguma coisa além do jantar.
‑ Chá e ceia, talvez ‑ sugeriu Nicholas.
‑Se fosse a ti não era tão pateta, meu querido ‑ respondeu Mrs. Nickleby com maneiras arrogantes ‑ porque isso não é de forma alguma conveniente, nem te fica bem. O que quero dizer é que Misters Cheeryble não nos pedem para jantar com toda esta cerimónia, para nada. Não importa, espera e verás. Decerto não acreditas em coisa alguma. É muito melhor aguardar: muitíssimo melhor; é satisfatório para todos os lados e não pode haver questões. O o que digo é, lembra‑te do que digo agora e quanda digo que disse isto, não me digas que não disse!
Com este aviso Mrs. Nickleby, que estava perturbada noite e dia pela visão dum impetuoso mensageiro a bater com violência à porta a anunciar que Nicholas entrara para a sociedade, deixou o assunto e entrou num novo:
‑É uma coisa muito extraordinária, uma coisa muitíssi mo extraordinária o terem convidado Miss La Creevy. Espanta‑me completamente. Palavra que me espanta! Decerto é muito agradável que ela seja convidada, muito agradável e não tenho dúvida de que se portará extremamente bem; procede sempre assim. É muito simpático pensar que somos nós quem a apresentou numa tal sociedade e estou completamente satisfeita com isso, completamente regozijada, por ter a certeza dela ser uma pessoa extremamente bem comportada e de boa condição. Gostava que algum amigo lhe dissesse como lhe fica mal aquele toucado enfeitado e como são absurdas as suas reverências; mas decerto isso é impossível, e se ela gosta de parecer um espantalho, não há dúvida que tem direito a isso. Nunca reparamos em nós próprios. e suponho que nunca repararemos.
Esta reflexão moral lembrou‑lhe a necessidade de se apresentar elegantemente, para contrabalançar Miss La Creevy, levando-a a consultar a filha sobre certas fitas, luvas e enfeites.
Com a chegada do grande dia, a boa senhora entregou‑se nas mãos de Kate uma hora ou mais, depois do pequeno almoço. Miss La Creevy também chegou com duas chapeleiras e um embrulho, cujo conteúdo teve de ser passado a ferro por ter caído na rua. Por fim, estando toda a gente preparada, incluindo Nicholas, que viera buscá‑las, meteram‑se numa carruagem mandada pelos irmãos. Mrs. Nickleby, querendo adivinhar o que teriam para o jantar e pergumntando a Nicholas se lhe tinha cheirado a alguma coisa, falou sobre jantares vinte anos antes, mencionando, não só os nomes dos pratos, como dos convidados.
O velho mordomo recebeu‑os com profundo respeito e muitos sorrisos, e introduziu‑os na sala, onde foram acolhidos pelos dois irmãos com tanta cordialidade e gentileza que Mrs. Nickleby ficou tão entusiasmada, que mal teve a presença de espírito para proteger Miss La Creevy. Kate estava, contudo, mais impressionada pela recepção, por saber que os irmãos estavam ao facto do que se tinha passado entre ela e Frank, achando a sua posição delicadíssima e de grande provação; tremia pelo braço de Nicholas quando Mr. Charles lhe deu o seu e a levou para um outro lado da sala.
‑Tem visto Madeline, minha querida, desde que ela saiu da sua casa?‑ perguntou ele.
‑ Não, sir ‑ respondeu Kate. ‑ Nem uma só vez.
‑E não tem tido notícias dela? Não tem notícias dela?
‑ Tive apenas uma carta ‑ replicou Kate delicadamente. Pensava que ela não me esquecesse tão depressa.
‑ Ah! ‑ exclamou o senhor, afagando‑lhe a cabeça e falando tão afectuosamente como se fosse sua filha favorita. ‑ Pobre querida! O que pensa disto, irmão Ned? Madeline apenas lhe escreveu uma vez. apenas uma vez, Ned, e ela não pensava ter sido esquecida tão depressa.
‑Oh! é triste, triste... muito triste! ‑ comentou Ned.
Os irmãos cruzaram a vista e, olhando para Kate durante pouco tempo, sem falarem, apertaram as mãos e baixaram as cabeças como se se congratulassem mutuamente por alguma coisa muito deliciosa.
‑ Bem, bem ‑ disse o irmão Charles ‑ Entre naquele aposento, minha querida, aquela porta além, e veja se não há lá uma carta dela para si. Parece‑me haver uma sobre a mesa. Não precisa de se apressar a voltar, meu amor, se encontrar a carta, porque ainda não vamos jantar e há muito tempo. muito tempo.
Kate retirou‑se como lhe foi indicado. O irmão Charles seguindo com os olhos a sua grácil figura, voltou‑se para Mrs. Nickleby e declarou:
‑Tomámos a liberdade de os convidar para uma hora antes do jantar, ma'am, porque temos de falar sobre um pequeno negócio, que deve ocupar o intervalo. Ned, meu querido rapaz, quer informar do que acordámos? Mr. Nickleby, sir, tenha a bondade de me seguir.
Sem mais explicações, Mrs. Nickleby, Miss La Creevy e o irmão Ned, foram deixados sós e Nicholas seguiu o irmão Charles para o seu escritório particular, onde, com grande assombro encontrou Frank, que supunha no estrangeiro.
‑ Jovens - disse Mr. Cheeryble ‑ apertem as mãos.
‑ Não preciso que me peçam para o fazer! ‑ exclamou Nicholas, estendendo a sua.
‑ Nem eu! ‑ replicou Frank, apertando‑lha cordialmente. O velho senhor pensou ser difícil haver dois jovens mais belos e gentis do que aqueles, lado a lado, para quem olhava com grande prazer. Contemplando‑os afectuosamente durante algum tempo, em silêncio, sentou‑se à secretária e disse:
‑ Quero que sejam amigos. amigos firmes e unidos. e se pensasse de outro modo hesitaria em dar a conhecer o que tenho para lhes dizer. Frank, vem para aqui; Mr. Nickleby, quer vir para este lado?
Os jovens puseram‑se um de cada lado do irmão Charles, que tirou um papel da secretária e o desdobrou.
‑ Isto ‑ anunciou ele ‑ é a cópia do testamento do avô materno de Madeline, legando-lhe a quantia de doze mil libras, pagáveis, quer na sua maioridade, ou após o seu casamento. Parece que este senhor, zangado com ela, a sua única parente, por se não pôr debaixo da sua protecção e afastar‑se da companhia do pai ‑ conforme as suas repetidas propostas ‑ fez um testamento deixando estes bens, que era tudo quanto possuía, a uma instituição de caridade. No entanto, talvez arrependido desta determinação, três semanas mais tarde, pois foi ainda dentro do mesmo mês, fez este, o qual, por qualquer fraude foi imediatamente subtraido depois da sua morte e o outro ‑ o único achado ‑ entrou em execução. Negociações amigáveis, terminadas justamente agora, foram efectuadas desde que este instrumento nos veio às mãos e, como não há dúvidas da sua autenticidade depois de algum trabalho e foram descobertas as testemunhas, o dinheiro foi entregue. Madeline entrou, por isso, na posse dos seus direitos e é, ou será, quando se der qualquer das contingências mencionadas, senhora desta fortuna. Compreendem‑me?
Frank respondeu afirmativamente. Nicholas, que não teve confiança que a voz fosse ouvida a gaguejar, baixou a cabeça.
‑ Agora, Frank ‑ continuou o velho senhor ‑ tu tiveste os meios imediatos para recuperar este testamento. A fortuna é pequena mas só nós amamos Madeline e, tal como é, preferíamos vér‑te unido a ela do que a qualquer outra rapariga que soubéssemos ter três vezes este dinheiro. És um pretendente à sua mão?
‑Não, sir. Interessei‑me em recuperar este instrumento, acreditando que a mão dela já estava destinada a alguém que tem mil vezes mais direito à sua gratidão e, se me não engano o seu coração, nem eu nem qualquer outro homem, poderá despertar. Nisto parece que julguei precipitadamente.
‑ Como sempre faz, sir ‑ exclamou o irmão Charles, esquecendo-se, inteiramente da sua presumida dignidade ‑ como sempre faz! Como se atreveu a pensar, Frank, que nós quiséssemos casálo por dinheiro, quando juventude, beleza e todas as virtudes agradáveis e nobres, estavam a pedir amor? Como se atreveu, Frank, a ir declarar o seu amor à irmã de Mr. Nickleby sem nos dizer primeiro o que tencionava fazer, deixando‑nos o encargo de falar por si?
‑ Mal me atrevia a esperar.
‑Mal se atrevia a esperar! Então, tanto mais razão para ter a nossa ajuda! Mr. Nickleby, sir, embora Frank julgasse
precipitadamente, pela primeira vez julgou bem. O coração de Madeline está ocupado. dê‑me a sua mão, sir; está ocupado por si digna e naturalmente. Esta fortuna está destinada a ser sua, mas o senhor tem uma maior fortuna nela, sir, do que tem nesse dinheiro multiplicado quarenta vezes. Ela escolheu‑o, Mr. Nickleby. Ela escolheu‑o como nós, os seus mais queridos amigos teríamos escolhido Frank escolhe como nós teríamos escolhido. Ele teria a mão da sua irmã, sir, ainda que ela recusasse uma dezena de vezes. Ah! teria e terá! o senhor procedeu nobremente desconhecendo os nossos sentimentos; mas agora conhecendo‑os deve proceder como lhe pedimos. O quê! Vós sois os fihos dum digno cavalheiro! Houve um tempo, sir, em que o meu querido irmão Ned e eu éramos pobres, rapazes de coração simples, vagueando quase de pé descalço, à procura de fortuna. Mudámos alguma coisa desde esse tempo, a não ser nos anos e nas circunstâncias mundanas? Não. Deus me perdoe! Oh Ned, Ned, que dia feliz para si e para mim. Se ao menos a nóssa pobre mãe vivesse para nos ver agora, Ned, como orgulhoso se devia sentir, o seu querido coração?
Apostrofado desta maneira, o irmão Ned que entrara com Mrs. Nickleby e tinha passado antes despercebido dos jovens, avançou e acolheu o irmão Charles, afectuosamente, nos seus braços.
‑ Tragam a minha pequena Kate ‑ pediu este último depois dum curto silêncio. ‑ Traga‑a cá, Ned. Deixem‑me ver a Kate, deixem‑me beijála. Agora tenho direito a fazê‑lo. Estava muito próximo disso quando ela entrou; tenho estado, com frequência para o fazer. Ah! Encontrou a carta, meu passarinho? Encontrou a Madeline, aguardando e esperando por si? Viu que ela não esqueceu completamente a sua amiga, enfermeira e doce companheira? Ora, isto é quase o melhor de tudo.
‑ Vamos, vamos ‑ disse Ned. ‑ O Frank está com ciúmes e teremos alguma cena de sangue antes do jantar!
‑Então deixa‑o levá‑la daqui, Ned, deixa‑o levá‑la daqui. A Madeline está no aposento ao lado. Deixemos os namorados sairem daqui para fora e conversarem entre si, se têm alguma coisa para dizer. Expulsêmo‑los, Ned, a todos eles!
O irmão Charles começou por desembaraçar a casa, conduzindo a ruborizada rapariga para a porta e despedindo‑a com um beijo. Frank não foi muito vagaroso a segui‑la, e Nicholas foi o primeiro a desaparecer. Assim ficaram sós Mrs. Nickleby e Miss La Creevy, soluçando ambas de alegria, os dois irmãos e Tim Linkinwater, que entrou e apertou as mãos a todos, com a cara redonda radiante e resplandecente de sorrisos.
‑ Bem Tim Linkinwater sir ‑ disse o irmão Charles, que era sempre o orador ‑ a rapariga está agora feliz, sir.
‑O senhor não os teve tanto tempo em suspenso como dizia ‑ replicou Tim jocosamente. ‑ Mr. Nickleby e Mr. Frank estiveram no seu escritório por não sei quanto tempo e também não sei o que lhes esteve a dizer antes de atirar cá para fora com a verdade.
‑ Já viu um vilão como este, Ned? ‑ perguntou o velho senhor. ‑ Já viu um vilão como Tim Linkinwater? Acusa‑me de ser impaciente, quando foi ele o homem que nos cansou e nos torturou noite e dia para que lhes disséssemos tudo quanto havia, antes dos nossos planos estarem meio completos, ou termos uma simples coisa. É um malvado traidor!
‑ Assim o considero, irmão Charles ‑ retorquiu Ned. Tim é um malvado traidor. Não se pode confiar em Tim. Tim é um rapazinho selvagem. precisa de gravidade e de firmeza, deve abandonar os desvarios da mocidade e depois com tempo, talvez possa tornar‑se um respeitável membro da sociedade.
Os três riram de boa vontade com estas brincadeiras dos velhos e teriam rido por mais tempo se não notassem Mrs. Nickleby, muito atrapalhada em exprimir os seus sentimentos sobrepujada pela felicidade de momento. Os dois cavalheiros levaram‑na para fora do aposento, pretendendo consultá‑la sobre disposições muitíssimo importantes.
Tim e Miss La Creevy ficaram sós. Tendo-se encontrado com frequência e tornado grandes amigos era natural que ele procurasse consolá‑la, vendo‑a a soluçar. Também era natural que ele se sentasse ao lado dela, visto haver espaço suficiente para dois. Tim, portanto sentou‑se a seu lado e, cruzando as pernas para mostrar os sapatos bem engraxados e as peúgas de seda, disse duma maneira carinhosa:
‑ Não chore!.
‑Preciso ‑ replicou Máss La Creevy.
‑ Não, não chore. Por favor não chore; suplico‑lhe que não chore! ‑ rogou Tim.
‑ Sou tão feliz! ‑ soluçou ela.
‑ Então ria; ria ‑ disse Tim.
O que diabo Tim tencionava fazer com o braço, é impossível de conjecturar, mas encostou o cotovelo na parte da janela que estava do outro lado de Miss La Creevy e, está claro, não tinha nada ali que fazer.
‑ Ria ou eu choro! ‑ sugeriu Tim.
‑ Porque há de chorar? ‑ perguntou Miss La Creevy, sorrindo.
‑ Porque também estau feliz ‑ respondeu Tim. ‑ Estamos ambos felizes e devo fazer o que a senhora fizer.
Certamente nunca houve um homem tão agitado como Tim nessa ocasião. Fincou de novo o cotovelo na janela, quase no mesmo sítio, e Miss La Creevy advertiu‑o que quebrava o vidro, com certeza.
‑ Sabia que lhe agradaria esta cena ‑ disse Tim.
‑Foi muita amabilidade e gentileza lembrarem‑ se de mim ‑ retorquiu Miss La Creevy. ‑ Nada me podia deliciar desta forma!
Porque diabo deviam Miss La Creevy e Tim Linkinwater dizer isto em segredo? Não era segredo. E porque olharia Tim Linkinwater com tanta fixidez para Miss Creevy e esta para o chão?
‑ É uma coisa agradável ‑ comentou Tim ‑ para pessoas como nós, que passaram toda a vida sós no mundo, ver a juventude que amamos sinceramente, ter à sua frente tantos anos de felicidade.
‑ Ah! ‑ exclamou ela, sinceramente ‑ Isso é verdade!
‑ Embora ‑ continuou Tim ‑ faça uma pessoa sentir‑se solitária e posta de lado. não é assim?
Miss La Creevy respondeu não saber. E por que disse ela não saber? Pois devia saber se sim, ou não.
‑ É quase bastante para nos induzir a casar, não é? ‑ inquiriu Tim.
‑ Oh, tolice! ‑ replicou Miss La Creevy a rir. ‑ Somos velhos demais.
‑ Nada disso ‑ retorquiu Tim. ‑ Somos velhos de mais para estarmos solteiros. Porque não havemos de casar em vez de estar solitariamente ao pé do lume durante as longas noites de inverno? Porque não arranjamos uma só lareira e casamos um com o outro?
‑ Oh, Mr. Linkinwater, está a brincar!
‑ Não, não, não estou! Na verdade não estou! ‑ confessou Tim. ‑ Quero se quiser. Diga que sim, minha querida.
‑ Isso faria rir toda a gente.
‑ Deixe-os rir ‑ disse Tim energicamente. ‑ Temos bons temperamentos, e riremos também. Ora, que cordiais gargalhadas não temos dado desde que nos conhecemos!
‑ Isso é verdade ‑ respondeu Miss La Creevy, correspondendo um pouco ao pensamento de Tim.
‑ Tem sido o tempo mais feliz da minha vida. pelo menos fora do escritório de Chryble Brothers ‑ confessou Tim.
‑Diga que sim, minha querida! Diga agora que sim!
‑ Não, não, temos de pensar nisso ‑ retorquiu Miss La Creevy ‑ O que diriam os irmãos?
‑ Ora, Deus abençoe a sua alma! ‑ exclamou Tim inocentemente. ‑ Não vai supor que eu pensei numa coisa destas sem saber a opinião deles! Eles deixáram‑nos aqui de propósito.
‑ Nunca mais os posso encarar ‑ afirmou Miss La Creevy debilmente.
‑ Vamos ‑ convidou Tim ‑ sejamos um par invejável. Viveremos aqui na velha casa, onde estou há quarenta e quatro anos iremos à velha igreja, onde fui todos os domingos de manhã durante todo este tempo; teremos todos os nossos velhos amigos em redor de nós. Dick, a arcada, a bomba os vasos de flores, os filhos de Mr. Frank e de Mr. Nickleby e havemos de parecer o avô e a avó. Sejamos um par invejável e cuidemos um do outro. E se nos tornarmos surdos, coxos, cegos ou paralíticos, como nos sentiremos contentes em termos as pessoas a quem amamos, para falar connosco e se sentarem junto de nós! Sejamos um par invejável! Agora diga que sim, minha querida!
Cinco minutos depois deste honesto colóquio, conversavam ambos como se estivessem casados há muito sem nunca se terem zangado: e cinco minutos depois disso Miss La Creevy levantou‑se para ver se tinha os olhos vermelhos e o penteado em ordem, e Tim Linkinwater, com um passo firme, para se dirigir à sala e exclamar:
‑ Não há outra mulher em toda a Londres. sei que não há!
Por esta altura, o apoplético mordomo estava sobre brasas por causa da hora do jantar. Nicholas, que descia a escada apressadamente em obediência aos avisos do estômago, encontrou uma nova surpresa. No caminho viu, num dos corredores, uma pessoa bem vestida de preto, dirigindo‑se também para a casa de jantar. Como coxeava um pouco e andava devagar, Nicholas foi atrás dele, seguindo‑o passo a passo, perguntando quem poderia ser, quando ele se voltou de repente e lhe agarrou em ambas as mãos.
‑ Newman Noggs! ‑ exclamou Nicholas radiante.
‑Sim, Newman! O seu Newman, o seu velho e fiel Newman. Meu querido rapaz, meu querido Nick, desejo‑lhe alegria, saúde, felicidade, todas as bençãos! Não aguento isto. é demais para mim, meu querido rapaz. faz de mim uma criança!
‑ Onde tem estado? ‑ perguntou Nicholas. ‑ O que tem feito? Quantas vezes tenho perguntado por si e me têm dito que saberia de si dentro de pouco tempo!
‑ Eu sei, eu sei! ‑ replicou Newman. ‑ Eles quiseram que toda a felicidade viesse junta. Tenho estado a ajudá‑los. Eu. eu. olhe para mim, Nick, olhe para mim.
‑ Você nunca me deixou fazer isso ‑ disse Nicholas numa censura amigável.
‑Não me importava com o que era então. Não teria coragem de vestir um fato decente. Lembrar‑me‑ia do tempo antigo e tornar‑me‑ia mais triste. Agora sou um outro homem, Nick. Meu querido rapaz, não posso falar. não me diga nada, não julgue mal de mim por estas lágrimas. não sabe o que sinto hoje, não pode saber, nem nunca poderá!
Entraram na casa de iantar de braço dado e sentaram‑ se ao lado um do outro.
Nunca houve um tal jantar desde o nascimento do mundo. Estava o empregado bancário, amigo de Tim, e a irmã de Tim, que estava muito atenciosa para com Miss La Creevy. Houve muitas piadas do empregado bancário, Tim Linkinwater estava muito espirituoso e a pequena Miss La Creevy num estado muito cómico. Mrs. Nickleby foi, como sempre, grande e complacente; Madeline e Kate muito coradas e lindas; Nicholas e Frank muito orgulhosos e atenciosos; Newman oprimido com a alegria, e os dois gémeos tão encantados e trocando olhares que espantavam o velho criado.
Quando passou a primeira novidade da reunião, a conversa tornou‑se geral, aumentando a harmonia e o prazer. Os irmãos estavam num perfeito êxtase e a sua insistência em saudarem as senhoras antes de lhes permitir que se retirassem, deu ocasião a que o empregado bancário dissesse muitas coisas bonitas, que foram tomadas como um prodígio de bom humor.
‑ Kate minha querida ‑ disse Mrs. Nickleby levando a filha para úm lado ‑ não queres realmente dizer que é absolutamente verdade isso de Miss La Creevy e Tim Linkinwater.
‑ Verdade, mamã!
‑Ora, nunca ouvi uma tal coisa em toda a minha vida!exclamou Mrs. Nickleby.
‑Mr Linkinwater é uma excelente criatura e para a sua idade, ainda está muito bem conservado ‑ raciocinou Kate.
‑ Para a sua idade, minha querida ‑ replicou Mrs. Nickleby ‑ sim, ninguém fala contra ele, com a excepção de eu o julgar o homem mais fraco e mais parvo que tenho conhecido. É da idade dela que falo. Ele devia ter escolhido uma mulher que tivesse. metade da dele, como eu. que talvez se atrevesse a aceitálo! Isto não significa nada, Kate; estou desgostosa com ela.
Abanando a cabeça muito energicamente, Mrs. Nickleby foi‑se embora e toda a noite, no meio da alegria e da felicidade, conduziu‑se para com Miss La Creevy de maneira a fazer‑lhe ver o seu desagrado e desaprovação pela decisão tomada.
Um velho conhecimento reconhecido em circunstâncias melancólicas e Dotheboys Hall fechado para sempre.
Nicholas era uma daquelas pessoas cuja alegria é incompleta se a não compartilha com os amigos dos dias adversos e menos felizes. Foi assim que se lembrou de John Browdie com um sorriso e das suas palavras de coragem, quando o deixou na estrada para Londres, com Smike. Resolveu, portanto, escrever‑lhe, mas os dias foram‑se passando e, por uma razão ou outra, a carta nunca chegava a ser começada. Madeline, que estava ao corrente das suas intenções e tomara conhecimento com o simpático casal através das conversas tidas com ele, insistia para ele fazer uma rápida viagem a Yorkshire e se apresentar a Mr. e Mrs. Browdie sem uma palavra de aviso.
Assim, numa noite, entre as sete e as oito horas, encontrava‑se ele com Kate em Saracen's Head, onde reservara lugar na diligência da manhã seguinte, para Greta Bridge. Tinham ido para a parte ocidental da cidade para ele comprar algumas pequenas coisas para a viagem.
O sítio trouxe‑lhe muitas recordações e tinham tanto que conversar, sentindo‑se ambos felizes e confiantes, que dentro em pouco achavam‑se no labirinto de ruas entre Seven Dials e Soho, apercebendo‑se então, Nicholas, da possibilidade de terem perdido o caminho. Esta possibilidade converteu‑se em certeza e não vendo outra saída para este contratempo, entenderam voltar para trás, à procura dum lugar que os pudesse orientar. Era uma rua lateral, onde não havia ninguém e as lojas estavam fechadas. Vendo uma luz vinda duma cave Nicholas ia quase descer uns degraus para colher informações, quando foi detido pelo barulho duma mulher a ralhar em voz alta.
‑ Oh, vamo-nos embora! ‑ pediu Kate. ‑ Estão a questionar e podem fazer‑te mal.
‑Espera um instante, Kate. Vamos ouvir do que se trata ‑ replicou o irmão. ‑ Silêncio!
‑ Seu sórdido, mandrião, vicioso, seu bruto! ‑ gritava a voz da mulher, batendo com o pé no chão. ‑ Por que não faz girar a calandra?
‑ o que faço, minha vida e minha alma! ‑ respondeu a voz do homem. ‑ Estou a girar perpetuamente como o diabo dum cavalo velho num diabólico moinho. A minha vida é uma horrível moedura!
‑ Então por que não te vais alistar para soldado? ‑ retorquiu a mulher. ‑ Serás bem acolhido.
‑ Para soldado! ‑ exclamou o homem. ‑ Para soldado! A minha alegria e o meu bem, queria ver‑me com um grosseiro casaco encarnado e com um rabicho? Queria ver‑me marchar ao som dos tambores? Queria que eu atirasse com canhões verdadeiros, cortasse o cabelo, rapasse a barba, tivesse os olhos voltados para a esquerda e para a direita e calças como o gesso dos cachimbos?
‑ Querido Nicholas ‑ sussurrou Kate ‑ não sabes quem é? É Mr. Mantalini, tenho a certeza!
‑Adquire essa certeza! Espreita-o enquanto indago o caminho ‑ disse Nicholas. ‑ Desce um ou dois degraus. vamos!
Arrastando‑a, Nicholas desceu os degraus e olhou para dentro duma pequena cave. Entre cestos de roupa e vestidos, estava o gracioso, elegante fascinante e outrora irresistível Mantalini.
‑ És um falso traidor! ‑ exclamou ela, ameaçando com violência a cara de Mantalini.
‑Falso! Oh, diabo! Agora, minha alma, minha gentil, cativante, feiticeira e muitíssimo escravizadora franguinha, acalma‑te ‑ pediu humildemente Mr. Mantalini.
‑ Nunca se pode confiar em ti ‑ continuou a mulher. Estiveste fora todo o dia de ontem, a galantear em qualquer parte. sabes onde estiveste. Não é bastante que eu te pague duas libras e catorze por dia e te tirasse da prisão, deixando‑te viver como um cavalheiro, para tu, além disso, fazeres coisas como esta e me dares conta do coração?
‑Nunca te dei conta do coração! Serei um bom rapaz e nunca mais farei nada disso. Não tornarei a ser mau e peço‑te um pequeno perdão ‑ prometeu Mr. Mantalini, largando o braço da calandra e pondo as mãos. ‑ Acabou tudo com o teu lindo amigo. Eu fui atrás do demónio dos latidos dos cães. Tem piedade; não me arranhes, dá-me mimos e conforto! Oh, diabo!
Muito pouco sensibilizada por este terno apelo, a senhora ia dar uma resposta azeda quando Nicholas, levantando a voz, perguntou o caminho para Piccadily.
Mr. Mantalini voltou‑se, avistou Kate e, sem uma palavra, deu um pulo para uma cama que estava atrás da porta e puxou a colcha para a cara, escouceando convulsivamente.
‑ Diabo! ‑ disse ele numa voz sufocada. ‑ E a pequena Nickleby! Fecha a porta! Apaga a luz, cobre‑me com a armação do leito! Oh, demónio, demónio, demónio!
A mulher olhou, primeiro para Nicholas, e depois para Mr. Mantalini, incerta a quem se dirigia este extraordinário comportamento. Mas Mr. Mantalini, na ansiedade de se esconder, atirou para cima de si um pesado cesto de roupa e começou a escoucear mais violentamente. Achando uma bela oportunidade para sair, antes de outra manifestação de raiva cair sobre ele, Nicholas fugiu com Kate e deixou o infortunado objecto deste inesperado reconhecimento, explicar a sua conduta o melhor que pudesse.
Na manhã seguinte começou a viagem. Era um inverno frio recordando-lhe forçosamente a sua primeira viagem e as vicissitudes suportadas. Esteve só na maior parte do caminho, dando-lhe oportunidade para espreitar pela janela a paisagem, reconhecendo alguns lugares por onde passara, não só na ida, como na volta com o pobre Smike, direitos a Londres, pen sando terem o mundo à sua frente.
Para tornar as recordações mais vividas, aconteceu nevar da noite, e passando por Stamford e Grantham, e pela pequena cervejaria onde ouviu a história do valente Barão de Grogzwig, tudo lhe parecia ter acontecido na véspera. Teve mesmo a ideia de estar sentado na parte de fora com Squeers e os rapazes, e ouvir as vozes destes. Enquanto se entregava a estas fantasias, adormeceu, sonhando com Madeline e esquecendo‑os por completo.
Na noite da chegada, alojou‑se na estalagem de Greta Bridge e, levantando‑se de manhã muito cedo, encaminhou‑se para o mercado e inquiriu a morada de John Browdie. John vivia nos arredores, agora que era chefe de família, e como toda a gente o conhecia, Nicholas não teve dificuldade em encontrar um guia para o levar à sua residência.
Despedindo o guia à cancela e sem admirar, na sua impaciência, o próspero aspecto da casa ou do jardim, Nicholas dirigiu‑se para a porta da cozinha onde bateu vigorosamente com a bengala.
‑ Olá! ‑ gritou uma voz de dentro. ‑ O que temos agora? Há fogo na cidade? Fazes bastante barulho!
Com estas palavras John Browdie abriu a porta, escanca rou os olhos ao máximo, bateu as palmas e soltou um rugido cordial:
‑ o padrinho, é o padrinho! Tilly, aqui está Mr. Nickleby. Entra, entra! Entra e senta-te ao lume. Toma uma gota disto. Não digas nada até teres bebido. Abaixo com ele, homem. Estou muito contente em te ver.
Juntando a acção à palavra, John arrastou Nicholas para a cozinha, forçou‑o a sentar‑se num enorme banco ao lado dum bom lume, deitou‑lhe duma enorme garrafa cerca dum quarto de cálice de aguardente, meteu‑lha na mão, abriu a boca, atirou a cabeça para trás para lhe indicar que bebesse imediatamente, e ali ficou com um largo sorriso de boas‑vindas, espelhado na grande cara vermelha, como um alegre gigante.
‑ Devia saber‑ disse John ‑ que ninguém, a não seres tu, vinha bater assim à porta. Foi assim que bateste à porta do mestre‑escola? Ah! ah! ah! Mas, escuta... o que foi isso do mestre‑escola?
‑ Então sabes? ‑ perguntou Nicholas.
‑ Falavam nisso na cidade a noite passada ‑ respondeu John ‑ mas ninguém parecia compreender completamente.
‑ Depois de várias alterações e demoras ‑ explicou Nicholas ‑ foi sentenciado a desterro por sete anos, por estar na posse ilegal dum testamento roubado e, depois disso, tem de sofrer as consequências duma conjura.
‑ Hui! ‑ exclamou John. ‑ Uma conjura. Alguma coisa no género de Guy Faurx?
‑Não, não, não, uma conjura ligada à escola; explico imediatamente.
‑ Está muito bem ‑ concordou John. ‑ Explica depois do pequeno almoço, agora não, pois deves estar com fome, assim como eu, e a Tilly está danada pelas explicações, pois diz que a confidência é mútua. Ah! ah! ah! um aposento em sobressalto, é a confidência mútua.
Nicholas contou‑lhe tudo e nunca houve uma história que despertasse tantas emoções no peito dos dois ouvintes. As vezes, o honrado John grunhia de simpatia e noutras rugia de prazer. Queria ir a Londres para ver os irmãos Cheeryble e Tim Linkinwater. Quando Nicholas começou a descrever Madeline ficou de boca aberta e quando ouviu, por fim, que o seu jovem amigo tinha ido de propósito para lhes comunicar a sua boa fortuna e lhes assegurar a sua amizade, sendo o único fim da sua jornada partilhar com eles a sua felicidade e dizer‑ lhes que, quando casasse, deviam ir vê‑lo, pois tanto Madeline como ele insistiam nisso, John não se conteve e depois de olhar indignado para a mulher e de lhe perguntar por que estava a choramingar, passou as mangas do casaco pelos próprios olhos e corou deveras.
‑ Diz‑lhe o que vai acontecer ao mestre‑escola ‑ disse John seriamente, depois de conversarem muito. ‑ Se esta novidade chega hoje à escola, a velha fica sem um osso no corpo, assim
como a Fanny.
‑ Oh, John! ‑ censurou Mrs. Browdie.
- Ah! e Oh John outra vez! ‑ replicou o marido. ‑ Não sei o que os rapazes podem fazer. Quando se soube que o mestre‑escola estava metido em sarilhos, vieram alguns pais e mães e levaram os filhos. Se os que ficaram sabem o acontecido, revoltam-se e dá‑se uma revolução. Mas eu creio que se vão es pantar e derramar sangue como água.
De facto, as apreensões de John eram tão grandes que determinou cavalgar para a escola sem demora e convidou Nicholas a acompanhá-lo, o qual declinou o convite com o fundamento da sua presença poder, talvez, agravar a amargura deles.
‑ É verdade ‑ aprovou John. ‑ Não tinha pensado nisso.
‑ Devo regressar amanhã ‑ informou Nicholas ‑ mas tenciono jantar hoje convosco e se Mrs. Browdie me puder dar uma cama.
‑ Uma cama! ‑ exclamou John. ‑ Desejava que pudesses dormir em quatro camas ao mesmo tempo. Tem paciência até eu voltar. Aguarda apenas o meu regresso e vamos festejar o dia.
Dando à mulher um beijo cordial e a Nicholas um não menos cordial aperto de mão, John montou a cavalo, deixando Mrs. Browdie nos preparativos de hospitalidade e o seu jovem amigo a vadiar pela vizinhança a visitar os sítios que se lhe tinham tornado familiares por muitas tristes recordações.
John, ao chegar a Dotheboys Halls, atou o cavalo à cancela, e encaminhou‑se para a porta da aula, que encontrou fechada pelo lado de dentro. Ouvia‑se um tremendo barulho e tumulto em casa e, aplicando o olho a uma abertura suficiente da parede, não ficou muito tempo na ignorância da sua significação.
Era absolutamente claro terem as noticias sobre a queda de Mr. Squeers chegado a Dotheboys Hall e com toda a aparência, deviam ser conhecidas dos jovens muito recentemente, pois a rebelião acabara de estalar.
Era uma das manhãs de enxofre e melaço, e Mrs. Squeers entrou na escola com a colher e a grande tijela, seguida de Miss Squeers e do amável Wacford, que, na ausência do pai, estava pior para os companheiros. A sua entrada provocou, ou por premeditação, ou por simultâneo impulso, o fulgor da ro volta. Quando um destacamento correu para a porta e a fechou, o mais forte dos rapazes tirou a colher a Mrs. Squeers e obrigou‑a, de joelhos, a tomar imediatamente uma dose. Antes da simpática senhora poder recobrar‑se do espanto, ou opor a mais leve resistência, foi forçada a ajoelhar e a tomar uma colherada cheia da odiosa mistela, tornada mais saborosa pela imersão da cabeça de Wackford dentro da tijela. O sucesso desta primeira façanha incitou a multidão a mais actos de malvadez. O caudilho estava a insistir com Mrs. Squeers para repetir a dose, Mister Squeers estava executando um outro mergulho no melaço e tinha‑se esboçado um violento assalto contra Miss Squeers, quando John Browdie abriu a porta com um vigoroso pontapé e correu a salvá‑los. Os gritos, guinchos, rugidos, alaridos e bater de mãos cessaram subitamente, seguindo‑se um silêncio de morte.
‑ Sejam rapazes decentes! ‑ disse John, olhando em redor com firmeza. ‑ O que estão aqui a fazer, jovens marotos?
‑ Squeers está na prisão e nós vamo‑nos embora! ‑ gritou uma dezena de vozes agudas. ‑ Não queremos ficar, não queremos!
‑ Bem, então não fiquem ‑ replicou John. ‑ Quem quer que vocês fiquem? Vão-se embora como homens, mas não façam mal às mulheres.
‑ Hurra! ‑ repetiu John. ‑ Bem, hurra também como homens. Então agora, atenção. Hip. hip. hip. urra!
‑ Hurra! ‑ gritaram as vozes.
‑ Outra vez hurra ‑ disse John. ‑ Mais alto ainda! Os rapazes obedeceram.
‑ Outro ‑ comandou John. ‑ Não tenham medo. Vamos dar um grande grito.
‑ Hurra!
‑ Então, agora ‑ disse John ‑ vamos dar mais um para acabar e depois raspem‑se com a pressa que quiserem. Tomem agora um bom fôlego. Squeers está na cadeia. a escola faliu. acabou. foi‑se. pensem nisto e dêem um grito cordial. Hurra!
Um grito tal ergueu‑se entre as paredes de Dotheboys Hall como nunca soara antes e como nunca foi correspondido. Quando o eco morreu, a escola estava vazia, e da multidão barulhenta, inquieta que a povoara cinco minutos antes, nem um ficou.
‑ Muito bem, Mr. Browdie ‑ comentou Miss Squeers, impetuosa e ruborizada do primeiro assalto, e irritada pelo último ‑ esteve a incitar os nossos rapazes a fugir. Veja agora se não lhe pagamos por esse trabalho, sir! Se o meu papá foi desgraçado e calcado por inimizades. Nós não nos deixamos espezinhar e conquistar vilmente por si e pela Tilda!
‑ Não ‑ replicou John com modo grosseiro. ‑ Pois não! Tens o meu juramento. Pensa melhor de nós, Fanny. Digo a ambos que estou contente por o velho ter sido, por fim, apanhado. bem contente. mas vocês hãotle sofrer bastante sem qualquer espezinhadela minha e eu não sou homem para espezinhar, nem a Tilly, digo‑te sinceramente. Mais do que isso, digo‑te agora que se precisares de amigos para te ajudarem a sair daqui ‑ não ponhas o nariz no ar, Fanny ‑ encontras Tilly e eu, como recordação dos velhos tempos, prontos para te darem a mão. E quando digo isto não penses que é por ter vergonha do que fiz, pois digo de novo Hurra! por o diabo do mestreescola estar. lá!
Com estas palavras de despedida, John Browdie montou a cavalo e, cantarolando alguns fragmentos duma velha canção, a que as patas do cavalo faziam um alegre acompanhamento, depressa regressou para junto da sua linda mulher e de Nicholas.
Durante alguns dias depois, os arredores estavam inundados de rapazes, a quem Mr. e Mrs. Browdie forneceram, não só uma refeição de pão e carne, como alguns xelins e pence para poderem ir para casa. John negou isto sempre, com vigor, mas o seu sorriso deixava ver que era verdade.
Houve algumas tímidas criancinhas que não conheciam outro lar além da escola; algumas foram encontradas a chorar debaixo das sebes e noutros lugares, assustadas com a solidão. Uma tinha um pássaro morto numa pequena gaiola; andara ao acaso, perto de vinte milhas e quando o seu pobre favorito morreu, perdeu a coragem e deitou‑se ao lado dele. Uma outra foi descoberta num pátio junto da escola, dormindo com um cão, que mordeu aqueles que a queriam tirar dali e lambeu a face pálida da criança.
Eram reconduzidas para trás e alguns outros desgarrados foram descobertos, mas a pouco e pouco eram reclamados, ou perdiam‑se de novo. Com o andar dos tempos Dotheboys Hall e a sua dissolução começaram a ser esquecidos pelos vizinhos, ou apenas para ser recordados dentre as coisas acontecidas.
Quando expirou o fim do luto, Madeline entregou a mão e a fortuna a Nicholas e, no mesmo dia e na mesma ocasião, Kate tornou‑se Mrs. Frank Cheeryble. Esperava-se que Tim Linkinwater e Miss La Creevy fizessem o terceiro par ao mesmo tempo, mas só duas ou três semanas depois é que foram casar‑se, sossegadamente, uma manhã antes do pequeno almoço, e regressaram de caras radiantes.
O dinheiro que Nicholas adquiriu por parte da esposa, foi investido na firma de Cheeryble Brothers, da qual Frank se tornou sócio. Antes de terem decorrido muitos anos, os negócios começaram a ser feitos em nome de Cheeryble e Nickleby, realizando-se, por fim, os proféticos sonhos de Mrs. Nickleby.
Os gémeos retiraram‑se. Há necessidade de dizer que eram felizes? Estavam rodeados pela felicidade criada por si e viviam para a aumentar.
Tim Linkinwater condescendeu, depois de muitos rogos, em aceitar uma quota na casa, mas nunca consentiu que o seu nome figurasse como sócio e persistiu sempre no pontual e regular desempenho dos seus deveres de empregado.
Ele e a mulher viviam na velha casa e ocupavam o quarto de cama onde ele dormira durante quarenta e quatro anos. A medida que a esposa envelhecia tornava-se, mais alegre e carinhosa e os amigos consideravam impossível ser‑se mais feliz.
Dick, o melro, foi tirado do escritório e posto num canto quente de saleta comum. Por baixo da gaiola estão suspensas duas miniaturas executadas por Mrs. Linkinwater: uma, representava‑a a ela e a outra Tim, ambas sorrindo.
Ralph, tendo morrido sem testamento e só tendo como parentes aqueles com quem vivera em inimizade, deveriam eles, por lei, ser os seus herdeiros. Porém como não reclamaram a fortuna, esta foi enriquecer os cofres do Estado.
Arthur Gride foi processado por posse ilegal do testamen to, que se procurou saber se tinha roubado, ou desonestamente adquirido por outros meios tão maus. Por força duma engenhosa decisão e dum defeito legal, escapou apenas para sofrer uma punição pior, pois alguns anos passados, a casa foi assaltada de noite por ladrões, tentados pelos rumores da sua grande fortuna, e foi encontrado assassinado, na cama.
Mrs. Sliderskew transpôs os mares quase ao mesmo tempo que Mrs. Squeers e nunca mais voltou. Brooker, morreu arrependido. Sir Mulberry Hawk viveu no estrangeiro durante alguns anos, curtejado e acariciado com a alta reputação dum belo rapaz elegante. Ultimamente, voltando à pátria, foi atirado para a cadeia, por dívidas e lá morreu miseravelmente, como estes homens corajosos, geralmente morrem.
O primeiro acto de Nicholas, quando se tornou um negociante rico e próspero, foi comprar a velha casa de seu pai, que alargou e alterou por causa dos filhos que o rodeavam; porém, nenhum dos aposentos foi deitado abaixo, nenhuma árvore abatida, nada tirado ou mudado que lembrasse os velhos tempos.
Muito próximo, ficava um outro retiro também animado por vozes agradáveis de crianças, e aqui, era Kate a guardiã, com muitos cuidados e ocupações, e muitas caras novas enlevadas no seu sorriso doce ‑ tão seu, que para a mãe parecia de novo uma criança ‑ a mesma criatura leal e gentil, a mesma irmã amorosa, a mesma no amor por todos que a rodeavam, tal como nos seus primeiros dias de infância.
Mrs. Nickleby vivia algumas vezes com a filha e outras com o filho acompanhando um ou outro a Londres naqueles períodos em que os cuidados dos negócios obrigavam ambas ás famílias a residirem ali, e sempre conservando uma grande aparência de dignidade, relatando as suas experiências ‑ especialmente em pontos ligados com o trato e educação das crianças ‑ com muita solenidade e importância. Passou‑se muito tempo antes de se conseguir que fizesse as pazes com Mrs. Linkinwater e nem se sabe bem se lhe perdoou completamente.
Numa pequena cottage ao lado da casa de Nicholas vivia, de Inverno e de Verão, um cavalheiro de cabelo grisalho, sossegado e tranquilo, que assumia a superintendência dos seus negócios quando ele estava ausente. O seu principal prazer e deleite eram as crianças, com as quais era uma críança e mestre de brincadeira. A gente miuda não podia fazer nada sem o querido Newman Noggs.
A relva estava verde sobre a campa de Smike e pisada por pés tão pequenos e leves, que nem um malmequer curvava a corola sob a sua pressão. Durante toda a Primavera e Verão, grinaldas de frescas flores, colhidas por mãos de criança, cobriam a sepultura e quando os pequeninos iam mudá‑las, com receio que murchassem e ele não gostasse e ficasse triste, os olhos enchiam‑se‑lhes de lágrimas e falavam baixinho e ternamente, do seu pobre primo morto.
Charles Dickens
O melhor da literatura para todos os gostos e idades