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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NINGUÉM É UMA ILHA - P.3 / J. M. Simmel
NINGUÉM É UMA ILHA - P.3 / J. M. Simmel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Terça-feira, 1? de fevereiro de 1972. Os olhos da Sylvia estão enormes. Seus cabelos negros brilham, sua pele está tão impecável e esticada que nem dá para descrever. O dr. Delamare é um gênio, um mágico! Sylvia Moran, THE BEAUTY, a madona, A BELDADE, fala em voz baixa e sonora, no inglês, mais castiço digno de um rei:
- Joe, seu velho desgraçado, filho da mãe, se você não calar já esta boca imunda, e me deixar falar até o fim, eu juro por Deus que lhe quebro a cara!
Até Lejeune, o gordo advogado, ficou impressionado. É natural que ele também esteja presente. Todos nós estamos; toda aquela imensa família feliz, reunida no salão do apartamento 419, no nosso salão. Também o velho dr. Lévy lá estava. Vim de Nurenberg em um avião de linha comercial, e chegando a Paris, tirei a Maserati da garagem, fui até o LE MONDE a fim de me transformar rapidamente em Philip Kaven.
Joe e seus advogados, Charley o relações-públicas, o médico americano e Rod já estavam esperando; Lejeune e o dr. Levy também. Eu lhes disse que ainda precisaria me deitar um instante para dar uma dormida, antes da chegada da Sylvia com todas as suas cenas.
Eles entenderam.


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Tomei banho e mudei de roupa. Nem cheguei a me deitar. Liguei para Nurenberg pedindo para falar com a dra. Reinhardt. Atendeu imediatamente.
Qualquer novidade?
Nenhuma, sr. Norton. Também não houve piora.
Piorar? Mais ainda?
A sra. Moran chega quando?
Agora às quatro horas. Ligaram da clínica. Dois enfermeiros a acompanham até o LE MONDE. Dentro de meia hora pode começar a rezar por mim. A senhora reza de vez em quando, não é?
Uma pausa comprida. Depois:
- Sr. Norton?
- Sim?
Lembra-se da noite de Natal?
E como!
O senhor na ocasião disse que me amava.
E a senhora me proibiu de dizer mais uma palavra que fosse a
respeito.
- Foi.
- E?
Nos últimos dias respondeu a Ruth, aconteceu tanta coisa horrível. O senhor está tão desesperado por causa da Babs, e eu também. Ontem à noite quando tive que lhe contar a verdade é que foi pior. Simplesmente não consegui falar, minha garganta estava como que fechada. Mas agora o senhor precisa saber.
Saber o quê?
Que eu também o amo, sr. Norton.
A senhora... o que foi que a senhora disse?
Eu disse: Eu o amo.
349 amor, é a primeira vez... Sua voz...quero dizer... deve haver algum
Me ama... gaguejei eu. O fone escorregou da minha mão molhada de suor. O suor me brotava do corpo inteiro. Peguei o fone novamente e balbuciei: A senhora... a senhora me ama?
Sim.
Doutora, por favor! Por que de repente passou a gostar logo de
mim?
De repente não. Hà muito tempo já. O sentimento foi ficando cada
vez mais forte. Acho que é amor. Não sei. Nunca senti isso por homem algum.
Seu irmão...
Era outra coisa; sei perfeitamente. Sei também que gosto de todas
as minhas crianças... mas é diferente. O que sinto agora é alguma coisa que me é estranha, inteiramente estranha. É um sentimento que... a princípio até me assustou.
Por ser novo?
- É.
Quer dizer por acaso que nunca amou a homem algum?
Tive meus casos. Mas amor... amor, é a primeira vez. Sua voz
foi ficando cada vez mais baixa.
Mas eu não entendo... eu... quero dizer... deve haver algum
motivo.
Não sei explicar.
Tem que haver algum. Qualquer um!
Nunca abandonou a Babs.
Isto não é razão: Outros homens também ficam ao lado dos filhos
doentes.
Isto é verdade.
E então?
Então o quê?
Qual é o motivo? Por favor; diga qual é! Diga um ao menos...
um só!
Pausa prolongada.
Talvez disse a Ruth depois quase inaudível talvez...
- Sim?
“Ó Dieu, merci, pour ce paradis...” Por me ter dado aquele disco
de presente.
Só por causa daquele disquinho?... Que loucura!
Não é loucura nenhuma. Nunca homem nenhum me deu um presente assim, numa situação daquelas. Sim, foi aquele disco, que me deu a certeza de que eu o amo.
Mas eu sou...
Sei perfeitamente o que você é, melhor do que você mesmo se acha, melhor do que qualquer outra pessoa no mundo. Sei o que estou dizendo. Sei em que estou me metendo. Amo você, Phil!
350E eu a você...
Liga para mim hoje ainda depois de ter falado com todo mundo?
Claro que ligo, Ruth. Mas o que vai ser de nós agora? O quê?
Não sei, Phil. Tenha coragem. Vai haver um jeito. Nós nos
amamos!
Pendurou o fone.
Devo ter ficado com o meu na mão uns cinco minutos ainda, sentado na beira da cama. Aquela era a declaração de amor mais estranha que já me haviam feito. Aos poucos vou percebendo que será também o amor mais estranho. Tão estranho que nem chego a conceber ainda. Que sujeito de sorte! Meia hora depois chega a Sylvia!
É a entrada de uma grande estrela!
Usa seu conjunto de brilhantes, pequenos, e discretos. Quase não está maquilada, para que se possa ver o sucesso que foi a operação plástica. Veste um costume azul e por cima uma capa de raposa vermelha de talhe muito requintado. Flores pelo salão. Joe gosta disto. Comprou meia loja de flores. Orquídeas, rosas de tudo que é cor, lilases, brancas e roxas, tem de tudo. Três vasos cheios de mimosas. Cumprimentos, beijos e abraços. Um beijo demorado para mim.
Meu Lobinho, meu querido Lobinho! Como estou contente!
E eu, minha bruxinha! digo eu pensando que a Ruth me ama.
Agora não vamos nos separar nunca mais. Nunca mais, ouviu?
Nunca mais repito eu.
Entusiasmo e elogios de todos. É fantástico, é incrível! A Sylvia recebe os louvores, as homenagens e sorri. Não muito; sua pele ainda deve estar repuxando. De súbito percebe o mundo de gente que está ali presente. Só para recebê-la?
Sim... não... quer dizer... Joe não consegue continuar.
Cala-se. Enquanto isso os garçons começaram a servir chá, café e conhaque. O velho dr. Lévy está ocupadíssimo enchendo as xícaras. Na da Sylvia deixou cair disfarçadamente umas vinte e cinco gotas de um líquido transparente. Ela nada percebeu. Todos colaboramos para que ela nada percebesse.
Phil, meu amor, agora vamos ver a Babs... Tomamos chá ou
café. A Sylvia, o chá com as gotas do dr. Lévy. Conte-me... conte-me
alguma coisa sobre a Babs... a minha filhinha adorada... sobre seu progresso...
Tomei mais uma xícara de chá, todo mundo repetiu, inclusive a Sylvia. Depois comecei a relatar o que houve com a Babs. Disse tudo. A verdade toda. Fui falando devagar para que todo mundo continuasse a tomar seu chá, principalmente a Sylvia. As vinte e cinco gotas seriam suficientes para evitar o pior, dissera o dr. Lévy. Quando chego ao fim, a xícara da Sylvia está vazia. Ao acrescentar:
... Ainda existem esperanças... mas a Babs terá que ir para um
instituto especializado, terá que fazer um tratamento todo especial... a
351xícara de porcelana fina cai das mãos da Sylvia, e parte em cima do tapete... Ela vai emborcando devagar para a frente, caindo de rosto também no tapete. Caiu em cima daquele rosto que acabara de ser tão magnificamente restaurado. Por sorte não dentro dos cacos. Ficou estendida inconsciente. O dr. Levy e o médico americano se ajoelham, viram-na de costas; ocupam-se dela. Nós outros, assistimos a tudo em silêncio.
Desmaiou disse o médico americano que já estivera aí uma vez,
e que era tratado por Doc. Daí a pouco volta a si.
Agora nevava também, em Paris. Vejo os grossos flocos diante da janela. De um céu límpido, eles caem na terra suja.
A Sylvia voltou a si muito depressa.
O dr. Levy lhe deu uma dose de conhaque e disfarçadamente acrescentou mais umas vinte gotas. Ela bebeu.
É Eupalil explicou o dr. Lévy. É o que existe de mais forte
em matéria de calmantes. Torna a pessoa indiferente, mas não a deixa deprimida. Isto a Sylvia agora não pode ficar de maneira alguma! Deve estar bem lúcida e ativa, mas também não nos interessa que ela tenha crises de histerismo.
A Sylvia tomou o conhaque. Sentou-se no largo sofá forrado de veludo vermelho e chorou. Chorou uns dez minutos. Todos nos mostramos compreensivos, com pena dela. A maioria olhava para as mãos ou para a ponta dos sapatos, ou então para as gravuras na parede. Fiquei contemplando a neve. Já estava escurecendo.
Depois a Sylvia começou a falar, devagar e claramente. As lágrimas continuavam a lhe rolar pelas faces; de vez em quando as enxugava com um lenço. Fiquei realmente com pena dela.
Com sua voz lenta e clara ela perguntou:
- Onde está meu jato?
Em Orly, Bruxinha.
- Então vamos para Nurenberg. Tenho que ver minha filha agora mesmo.
Aquela sua maneira de falar, o silêncio no salão com tanta gente presente, emprestou à cena qualquer coisa de irreal.
Você não pode ir para Nurenberg agora, Bruxinha. Falei com a
médica por telefone. A Babs nem ia reconhecer você.
Mas eu quero vê-la!
Agora você não pode ir disse Rod.
Por que não?
A Sylvia agora falava ainda mais devagar, quase carinhosamente. Fiz um sinal para o dr. Lévy. Este o respondeu. Entendera. As gotas que ele colocou no chá e no conhaque eram realmente o que havia de melhor e mais forte.
Porque todos os jornais só falam em você, em sua volta a Paris
hoje, vinda de férias...
352Sem a Babs?
Eles sabem que a Babs ainda vai continuar fora por algum tempo
com a Clarissa, porque o tempo agora em Paris está tão ruim diz Rod. Os
jornais realmente trazem todas estas notícias. Rod se encarregara disto.
Não me importa o que dizem os jornais! Eu vou ver minha filha!
Não pode!
Claro que posso! Quem é que vai me impedir?
Escuta, Sylvia...
Lobinho, liga para Orly. Diz que vamos para lá. Pede para prepararem o avião.
Não dá, Bruxinha. A Babs tem que ter descanso e sossego. Sabe lá
o que pode acontecer se ela por acaso reconhecer você.
Não vai acontecer nada. Eu vou! A Babs é minha filha! Eu sou
mâe! Será que algum de vocês idiotas já pensou nisso? O que é que vocês acham que eu sou? Acham que podem fazer de mim o que quiserem?
Durante uma meia hora isto continuou. Mesmo sob o efeito do sedativo, a Sylvia lutou heroicamente. Afinal ela era a mãe da Babs. Deviam ter respeitado seus desejos. Mas eu sabia que nunca iriam fazê-lo, que não deixariam que ela fosse ver a Babs nem agora, nem nunca. O único que podia ir vê-la, que teria que ir vê-la constantemente, era eu. E eu estava tão feliz... Só assim podia ver a Ruth. A Ruth dissera que me amava!
Os flocos de neve continuavam a cair e a Sylvia a chorar... Com sua voz solene, Joe declarou que eu ia ver a Babs sempre que possível, que era horrível, tudo que tinha acontecido; que a Sylvia não era apenas uma artista fabulosa, mas também uma grande criatura humana; que só as pessoas realmente grandes conheciam o inferno da vida, os outros apenas eram espectadores que ficavam se aquecendo ao sol, ou qualquer outra tirada inteligente destas. O CÍRCULO DE GIZ ia provar isso, pois a Sylvia diante destas terríveis provações, trabalharia como nunca! Sylvia o interrompeu dizendo que agora ela nem ia trabalhar mais. Quando Joe procurou cortar-lhe a palavra novamente com sua voz que era toda bondade, ela disse baixinho no inglês mais castiço, digno de um rei:
Joe, seu velho desgraçado, filho da mãe, se você não calar já esta
boca imunda, e me deixar falar até o fim, eu juro por Deus que lhe quebro a cara!
E ela continua a lutar, embora sempre muito controlada em conseqüência do medicamento. Luta para rever a filha, se recusa mais uma vez a se apresentar diante das câmaras.
Joe vai se tornando cada vez mais frio, sem no entanto alterar a voz.
Os preparativos do CÍRCULO DE GIZ já estão em andamento.
Quase todos os contratos estão fechados. Se você não trabalhar, a SEVEN STARS lhe imporá uma pena de vinte e cinco milhões de indenização.
Além dos cinqüenta milhões de indenizações gerais acrescenta
um dos advogados americanos.
353E a coisa continua como se fosse rajada de metralhadora:
Além disso exigimos o pagamento da pena convencional prevista
em seu contrato conosco, e que também é bem grande declara outro
advogado.
Ao mesmo tempo... e hoje ainda se for preciso... a SEVEN
STARS se afasta da senhora: nós rompemos qualquer relação de negócios, para sempre afirma um terceiro advogado.
E faremos... se for preciso hoje mesmo... uma declaração para
todas as agências noticiosas do mundo diz um quarto.
E que motivos os senhores irão alegar para meu afastamento?
Isto a senhora poderá ler amanhã nos jornais, sra. Moran se
manifesta mais uma vez o primeiro advogado.
Será que vocês não podiam dizer alguma coisa também diz a
Sylvia virando-se para mim e para Rod.
O homem que está fazendo toda aquela chantagem com as fitas,
vai também ler a notícia nos matutinos de amanhã.
A Sylvia aperta o punho cerrado contra a boca.
Joe levanta, liga algumas luzes e atravessa o suntuoso salão de mãos no bolso. Chega bem perto da Sylvia e diz:
É exatamente por isso que as penas convencionais previstas em
seus contratos são sempre tão altas. Por isso, em todos os seus contratos, desde... sempre acrescentamos esta cláusula de garantia especial. O dia em que houver o escândalo do século, quando os concorrentes publicarem o conteúdo das fitas, nós também ficaremos envolvidos em toda esta história; nesta bonita história com suas fabulosas declarações sobre as crianças excepcionais!
Joe tomou o embalo. É o tubarão, o gangster! Nada o poderá deter.
Agora você mesma tem uma filha assim. Muito bem; ótimo para
você. Ótimo para nós também. Quando é que você vai acordar Sylvia? - E o sujeitinho ousa tocar na Sylvia... Com a mão levanta-lhe brutalmente a
cabeça, obrigando-a a encará-lo. Será que entendeu agora? Não precisa
nem responder. Estou vendo que entendeu. E agora cala a boca! Eu ainda não acabei. Se deste momento em diante você não fizer tudo, exatamente tudo que
a SEVEN STARS exigir, então estará liquidada. Vejo os músculos do
rosto da Sylvia se contraírem. Aí não teremos mais papas na língua.
Todos os estúdios, até o mais vagabundo, saberão quem você é. Ninguém mais terá coragem de entregar qualquer papel a você,... pois todo filme em que você tentar trabalhar, será boicotado pelas associações femininas, por homens e mulheres do mundo inteiro! Sim, por homens também! Você se deu ao luxo de uma grossa nojeira, minha querida, lá em Monte-Carlo. Grossa mesmo! Dá para sentir náuseas, repito eu. E você pode ter a certeza de uma coisa: na hora que nós a despedirmos, vamos contar tudo. Tudo, palavra por palavra! Joe nunca ergue a voz, fala sempre manso, como verdadeiro
354
Ivendedor de Biblia que sabe que no fim acaba sempe vendendo qualquer
coisa. Depois que tudo tiver sido revelado, nenhum estúdio do mundo
ousará empregar você nem como figurante ou comparsa, para um dia de trabalho que seja! Você pode vender nus artísticos seus, limpar latrinas... se é que vai conseguir quem a queira até para este serviço.
Com estas palavras, Joe solta o queixo da Sylvia.
Durante muito tempo reina silêncio no salão. Um silêncio tão grande que chego a ter a impressão de ouvir os flocos de neve caindo lá fora no peitoril da janela. Realmente, em sua imensa bondade e consideração, Joe e Cia, devem ter contado também a Lejeune e ao velho dr. Levy tudo que se passou em Monte-Carlo. Lejeune já deve ter sido informado antes até. Lévy talvez só hoje, Joe o conhece há tanto tempo quanto eu: sabe perfeitamente que ele é incapaz de um ato imoral. E Lejeune? Este está nas mãos de Joe com todas as patifarias que já fez para nós e para os outros também. Para os outros especialmente. A Sylvia cai em prantos de novo e eu me lembro da Ruth Da Ruth que disse que me amava. Sento ao lado da Sylvia no sofá vermelho, pego sua mão e digo: - Minha pobre Bruxinha!
Depois das palavras de Joe, vejo o medo estampado em seus lindos olhos. Todos vêem; todos sabem: Joe venceu. A Sylvia fará o que ele pedir, de medo, medo do futuro, da miséria, do fim de sua carreira, do escândalo. Tudo é tão fácil nesta nossa indústria moral!
Todos agora precisamos ter paciência diz o pequenino dr. Levy.
Paciência e controle... principalmente a senhora, prezada sra. Moran.
Um momento de impaciência poderá arruinar toda uma vida!
A Sylvia balança a cabeça, sorri entre lágrimas. Logo em seguida pergunta séria, amargurada:
E quem afirma que a minha filha está com uma lesão mental tão
séria? Uma médica de Nurenberg?
É uma médica muito competente digo eu. Salvou a vida da
Babs aqui em Paris, e não é só ela que afirma. Muitos médicos da clínica de Nurenberg que fizeram parte da equipe, são da mesma opinião.
Médicos de Nurenberg! Sua voz agora é escarnecedora. E
vocês acham que eu vou me contentar com isto? A Babs é uma débil mental que terá que ser escondida num instituto porque os médicos de Nurenberg decidiram?
Claro que não diz Joe. -:’
Não? A Sylvia se interessa.
Não.
O que vai acontecer então?
Você vai saber já respondeu Joe. Vira-se para um dos advogados que há uns cinco minutos folheia um grosso processo.
- Achou?
Achei, sr. Gintzburger.
355Então leia por favor. Em voz alta e clara, ’
E o advogado lê em voz alta e clara todas as declarações, decisões e medidas tomadas em casos de semelhança bem remota até, todas as penalidades absurdas que o Supremo Tribunal americano impôs a algumas artistas, e que hoje servem de jurisprudência.
Obrigado, Jerry diz Joe no fim. E virando-se para a Sylvia: Vou
lhe dizer agora o que vai acontecer. Vai acontecer exatamente o que você quis.
E o que... o que é isso? ele conseguiu desnorteá-la. Era essa
exatamente a sua intenção.
Você não quer que a Babs seja examinada imediatamente pelos
maiores especialistas internacionais? Pela clínica de Mayo, na Suíça, na Suécia e na Inglaterra, onde toda esta turma vive. Não é isto?
Claro que...
E é exatamente o que vai acontecer diz Joe com sua voz
untuosa.
Oh Joe, eu lhe agradeço...
Não agradeça ainda diz Joe e sua voz não é mais untuosa.
Em nome da SEVEN STARS declaro que concordo com estes exames pelas maiores capacidades do mundo, mas apenas se você, caso o diagnóstico da maioria coincida com o da médica de Nurenberg, se comprometer a fazer sumir a Babs de uma vez por todas dos olhos do público.
Fazer sumir, é o que ele diz literalmente!
Todos olham para a Sylvia.
Você terá que dar esta declaração por escrito. Agora. Aqui mesmo.
- Aqui?
Sim. Os advogados estão aqui. O tabelião também. Temos testemunhas. Charley!
Sim, sr. Gintzburger?
Ligue lá para baixo. Precisamos da máquina de escrever. Você vai
bater.
Pois não, sr. Gintzburger diz Charley, o relações-públicas.
São 18h15min.
Às 23 horas. Estou de volta a Nurenberg.
De pé junto à cama da Babs que está imóvel; parece morta. Ao meu lado está a Ruth. Tentei beijá-la quando cheguei mas ela desviou a cabeça dizendo:
Não, por favor Phil, agora não.
Contei à Ruth tudo que foi resolvido em Paris. Ela ficou muito assustada.
Mas o nosso diagnóstico está perfeito disse ela. Claro que
existem grandes especialistas para isto pelo mundo inteiro. Mas o nosso diagnóstico está correto... infelizmente.
356A Sylvia teve a permissão de escolher cinco medalhões. O dr. Si-
grand está fazendo a escolha. Em qualquer lugar do mundo. Ele porá dois médicos e duas enfermeiras à nossa disposição. Podemos usar o jato da Sylvia.
Mas isto é um crime, um verdadeiro crime! disse a Ruth.
Por que? A Babs não está em condições de ser transportada?
Dentro de alguns dias eu posso conseguir que ela esteja. O sacrifício no entanto será grande demais para a menina. Além do que é perda de tempo, Phil. De tempo precioso...
E?
Durante este tempo já poderíamos estar ajudando à Babs. Em vez
disto perde-se esse tempo todo.
Foi o que ficou decidido disse eu. Temos que fazer o que a
Sylvia quer. Ela insiste. Seu acordo com a SEVEN STARS se baseia nisso. Tudo aliás se baseia nisso... a produção do filme, o futuro da Sylvia, o...
É diz a Ruth claro. O que vale o futuro de uma criança
contra tudo isso?
Agora estamos em pé ao lado da cama da Babs.
A pequena lâmpada espalha uma luz difusa. Lá fora no corredor tudo é silêncio. Um silêncio de morte. Também em Nurenberg neva violentamente; neva na Europa inteira, e deverá vir mais ainda, conforme me informou o comandante Callaghan durante o vôo.
Lá estávamos nós, eu e a Ruth, de mãos dadas, e diante de nós, imóvel, em sono profundo, toda encolhida de novo, a Babs.
O dinheiro diz a Ruth com grande amargura o maldito
dinheiro!
Eu não entendo...
Por que é que todas estas viagens são possíveis? Porque existe
dinheiro. Porque a sra. Moran e a companhia de cinema têm dinheiro, dinheiro a rodo!
- E?
- Aí está o mal. Se não houvesse dinheiro para carregar a Babs pelo mundo inteiro, se ela fosse uma criança como outra qualquer, com uma mãe também igual à maioria, ela seria mais feliz. Mais feliz, porque poderíamos começar logo com um tratamento específico, em vez de ficar perdendo tempo.
- Silêncio. Nada é mais pernicioso acrescenta ainda a Ruth do que
a combinação de doença e um paciente de dinheiro.
Caleidoscópio.
Não, isto já não é mais caleidoscópio, é a própria loucura!
O que se iniciava agora era uma loucura, loucura total...
Diário:
Segunda-feira, 7 de fevereiro de 1972. Ruth “preparou” a Babs para o transporte. Seu estrabismo piorou tanto que ela é obrigada a usar óculos constantemente. Seu aspecto é horrível. Ninguém poderia imaginar que aquela é a Babs Moran.
357Continua a não dizer uma única palavra. Parece não me reconhecer.
Uma ambulância leva-a para o aeroporto de Nurenberg onde o SUPER-ONE-ELEVEN já está a postos com os médicos e enfermeiros franceses. Dois detetives particulares da SEVEN STARS acompanham-nos na viagem.
Eu sigo de táxi. Me despeço da Ruth. Ela está triste e preocupada, mas tem que se conformar. Em sua sala, na frente da mesa, ela de repente me beija. Eu a aperto em meus braços. Sinto que põe qualquer coisa dentro do bolso do meu paletó. Depois ela diz:
Agora vá, por favor. Eu não vou até lá fora. Eu.. A frase fica
por terminar. Vou andando e me volto de vez em quando. Ruth não se vira nem uma única vez.
Pela primeira vez na vida, a Sylvia deu seu talão de cheque a outra pessoa, a mim. Eu agora não posso ficar sem dinheiro. Tenho que pagartodos os exames, o combustível, o ordenado do pessoal, a viagem toda, os telefonemas diários que a Sylvia espera. Haverá muitas ligações transoceânicas que mesmo o salário de um chefe de produção não consegue cobrir.
A neve continua a cair. Quando chego ao aeroporto, a Babs já está instalada na cama do jato. Não está dormindo; olha fixo para o teto da cabina.
Vinte minutos depois o avião levanta vôo (todos os ocupantes se comprometeram ao mais rígido silêncio). Entramos no turbilhão de neve. Enquanto o avião vai subindo, tiro do bolso do paletó o objeto que a Ruth aí colocou. É uma placa oval de metal com a inscrição:
PAZ A TODOS Guatama Buda
Quarta-feira, 9 de fevereiro de 1972. Estamos nos Estados Unidos. A Babs é levada para a Clínica Mayo em Rochester, para ser examinada. Os exames deverão durar dois dias, dizem os médicos. Telefono diariamente para a Sylvia em Paris, sempre me lembrando da diferença de horário. A maioria dos telefones franceses têm extensão. Joe portanto deve estar ouvindo todas as
nossas conversas.
Sábado, 12 de fevereiro de 1972. Transmito os resultados dos exames da Clínica de Mayo por telefone a Paris. Coincidem exatamente com os da Ruth. Deverá ter um tratamento especial. Poderá levar anos até que se apresente qualquer melhora. O nível mental anterior dificilmente será recuperado. Será imprescindível o tratamento numa instituição especializada.
A Sylvia faz aquela cena ao telefone (não está sob o efeito de sedativos; o dr. Levy não está lá!). Classifica os médicos da Clínica de Mayo de idiotas. Não acredita em nada do que dizem. Desprezando em parte a escolha do dr. Sigrand, ela descobriu um médico famoso para esta especialidade. Lembra o que ficou estipulado no contrato da SEVEN STARS, e exige que sigamos de avião para a Filadélfia, para o DISABLED CHILDREN CENTER de um certo dr. Joseph Lerring.
358Segunda-feira, 14 de fevereiro de 1972. Chegamos ao centro do dr. Lerring. O próprio chefe nos recebe. Seu aspecto é exatamente o de um daqueles médicos americanos que aparecem em filmes, deve ter seus cinqüenta anos.
Terça-feira, 15, até quarta-feira 16 de fevereiro de 1972. Conheço a fabulosa mansão do dr. Lerring, sua frota de carros, contam-me que ele é multimilionário.
Quinta-feira, 17 de fevereiro de 1972. Em seu consultório decorado com requintado gosto, o dr. Lerring me comunica que se a Babs ficasse internada em sua clínica ele poderia usar novos preparados dos quais apenas ele dispõe. Tais medicamentos estimulam o funcionamento do cérebro por meios “bioquímicos”. O tratamento é relativamente curto, e termina com a cura completa... ao menos na maioria dos casos. Nenhum médico idôneo poderá prometer cem por cento de cura. O tratamento é caríssimo, uma vez que os medicamentos são extremamente caros. Por esta razão são muito poucos, os que realmente têm meios para isto e podem se valer de seu tratamento. A sra. Moran evidentemente é uma destas pessoas. Por motivos econômicos, poucos têm acesso a este tratamento, e dado a esta circunstância pouco se sabe a respeito dele. Ele também não é nenhum idiota, para revelar seus segredos.
O telefonema para Paris leva uma hora inteira.
A Sylvia está fora de si. Ela não disse? O dr. Lerring é exatamente a pessoa que ela procurava! Dinheiro não vem ao caso! Lerring vai conseguir a cura da Babs! Eu digo que achei o dr. Lerring um vigarista sem o menor escrúpulo. Foi assim que chegou a ser milionário. Já por precaução avisara que não podia garantir uma cura em cem por cento dos casos! Quando a Sylvia tiver pago aquela fortuna, ele vai declarar que o caso da Babs é dos poucos nos quais seu tratamento não fez efeito. Sylvia me xinga como uma vendedora de peixe no mercado. Tenho a certeza que por ela viria direto para a Filadélfia, ia até dormir com o dr. Lerring só para dar mais ênfase ao caso. Exatamente isto ela diz... sem mencionar o fato de ir para a cama com ele, é claro. Ela precisa ver este dr. Lerring e a sua Babs, o mais depressa possível. Em seguida se trava uma discussão acalorada entre ela e Joe. Ouço tudo. Sylvia se comprometeu a consultar todos os cinco médicos escolhidos. Caso a maioria dos diagnósticos confirmem o da dra. Reinhardt, ela se comprometeu também a “fazer sumir” a Babs. De maneira nenhuma... e isto está escrito no acordo, ela poderá se ausentar de Paris no momento. Oh, sábio Joe! Eu é que tinha ficado encarregado de acompanhar a Babs. A Sylvia não virá. Joe me pede para procurar o especialista britânico, dr. Crossman em Londres.
Quinta-feira, 17 de fevereiro de 1972. Vôo sobre o Atlântico em direção a Londres. Escala em Nova York. Todos estamos cansados destes vôos pra lá e pra cá; os médicos e enfermeiras, os detetives, até eu e os pilotos, e principalmente a Babs. De repente começa a ter febre alta e convulsões. A crise é tão violenta que as duas enfermeiras do hospital Sainte-Bernadette começam a ficar com medo;
359elas que não têm medo de nada. Os dois médicos franceses são incansáveis. Ninguém dorme naquela noite. Estamos todos com cara de cadáver ao chegarmos a Londres.
Sexta-feira, 18 de fevereiro de 1972. Londres. Clínica do dr. Crossman. A Babs teve um colapso. Exames impossíveis. Passam-se cinco dias antes que o médico possa iniciá-los. São dias em que uma equipe de médicos procura fortalecer a Babs novamente. Sylvia muito deprimida ao telefone. Chora. Ouço Joe xingar.
Sábado, 26 de fevereiro de 1972. Os exames estão terminados. Comunico os resultados à Sylvia em Paris. Coincidem exatamente com os da Clínica de Mayo e da dra. Reinhardt.
Discussões violentas em Paris. Joe quer pôr um ponto final a tudo aquilo. A Sylvia insiste nos exames a que tem direito. Em frente, pois!
Segunda-feira, 28 de fevereiro de 1972. Estocolmo. Casa de Saúde do dr. Lundstrom, diretor da maior clínica pediátrica.
Terça-feira, 29 de fevereiro e quarta-feira 1º de março de 1972. Dizem que o dr. Lundstrom é um grande médico com um inconveniente no entanto: afirmam uns que por pena, outros por uma necessidade íntima de se esquivar a qualquer declaração mais radical, ele não consegue dar um diagnóstico exato, como seria de se esperar de um médico.
Quinta-feira, 2 de março de 1972. É isto mesmo. O que alguns colegas do dr. Lundstrom me disseram, eu também acho. O diagnóstico que transmito a Paris é o seguinte: o dr. Lundstrom (depois de hesitar) declara: o prognóstico é bem ruim. Exatamente a mesma coisa como na Clínica de Mayo e o dr. Crossman, mas acrescenta: mesmo em casos de prognósticos bem negativos, acontece às vezes haver um processo de recuperação positiva espantoso, chegando até à normalidade completa.
Sylvia rejubila ao telefone. Pobre Sylvia! Ouço Joe adverti-la para não se exceder. Ela pede, implora. Só mais um especialista! Só o dr. Geller ainda!
Sexta-feira, 3 de março de 1972. Berna. Clínica do dr. Geller. Logo após nossa chegada colapso total da pobre Babs, para quem tudo aquilo vinha sendo demais. O dr. Geller, um verdadeiro gênio, disse que iria levar algum tempo até que ele conseguisse ao menos tirar a Babs deste seu estado crítico. Mostra-se revoltado quando lhe conto tudo pelo que a Babs estava passando. Reúne sua equipe. Inicia um tratamento específico, apenas para dar novas forças à Babs e poder examiná-la.
De sexta-feira 3 de março até sexta-feira 10 de março de 1972. Resumo. Berna. Moro no BELLEVUE. Vou diariamente à clínica. Não posso ver a Babs. Sempre me informam que está um pouco melhor. Transmito a notícia a Paris. A Sylvia está inteiramente derrotada. Chora freqüentemente ao telefone. (Ouço Joe consolá-la.) Falo com a Clarissa em Madrid. Minto, dizendo que a Babs está bem. Ela deve ir se preparando para voltar a Paris em breve. Ainda receberá maiores instruções. Ligo também para Rod. Este imaginou um plano que vem aperfeiçoando dia a dia. É talvez o mais ousado que já teve.
360Telefono com freqüência para a Ruth; conto tudo. Ela está revoltada. Digo que a amo, cada dia, cada hora mais.
Eu também, Phil afirma ela.
De outra feita ela diz:
Pobre Babs!
Terça-feira, 14 de março de 1972. O dr. Geller conseguiu um milagre, um verdadeiro milagre. Já no fim da semana, a Babs estava restabelecida. Me reconheceu, deixou que eu a acariciasse, se apertou contra mim. Diz o médico que a melhora é apenas passageira, tudo é apenas conseqüência dos medicamentos. Uma recaída é quase certa.
À noite falo com a Sylvia.
O dr. Geller deu o mesmo diagnóstico da dra. Reinhardt, da Clínica Mayo e do dr. Crossman e, com certas restrições, também do dr. Lundstrom.
A maioria absoluta dos diagnósticos é portanto negativa em relação à cura da Babs. Pelo contrato, a Sylvia terá que se conformar. A odisséia chegou ao fim. A Babs deverá voltar para Nurenberg e mais tarde será internada num instituto especializado. Antes porém, uma revoltante farsa ainda nos espera.
FIM DO RELATO BASEADO NOS DIÁRIOS.
O “Salão Azul” do Hotel LE MONDE é muito espaçoso. É usado freqüentemente para conferências ou para reuniões particulares. Sylvia Moran já deu muitas entrevistas ali. Em 15 de março de 1972, teve lugar uma delas.
Talvez o senhor não acredite, não possa acreditar no que vou relatar agora, sr. Juiz, mas escrevo a verdade; tenho o testemunho de muita gente.
A conferência dada à imprensa começou com atraso, às 16h45min, e
durou até às 19h10min bem mais do que o normal: o senhor em breve vai
entender porque.
Rod Bracken tinha preparado tudo.
Alguns dias antes, a Clarissa voltara de Madrid. Foi para seu quarto no hotel e não saiu mais até o início da entrevista. Rod foi encarregado de lhe contar a verdade, e tudo que ia acontecer daí por diante. Por meio de injeções e comprimidos, o velho dr. Levy se encarregara de conseguir fazer com que seu aspecto fosse calmo e normal. Realmente estava; um pouco demais até.
De Berna ainda, eu tinha ligado para meu amigo Pierre Marechal, Président-Directeur General do LE MONDE, e lhe contara tudo também. Não havia outro jeito. Pedi que nos ajudasse. Concordou.
361Um pequeno número de pessoas de absoluta confiança teriam que saber da verdade também, dissera ele. Joe concordara (tudo agora precisava da aprovação do Joe).
Dois aviões aterrissaram em Orly por volta do meio-dia. Primeiro um da LUFTHANSA. Nele vinha a Ruth acompanhada de dois médicos da Casa de Saúde Sofia. Foram diretamente para o LE MONDE, onde ficaram acomodados. Um pouco mais tarde aterrissava o jato da Sylvia. Seu Rolls-Royce havia sido apanhado na garagem do subsolo. Nele vínhamos eu, a Babs e os dois médicos franceses do Hospital Sainte-Bernadette. Entramos pelo pátio interno do hotel. Seguiu-se um terceiro carro com os detetives da SEVEN STARS. Embora mancando, a Babs conseguia andar. Estava calma, mas continuava sem falar uma palavra. Nosso aparelho tinha partido da Basiléia. O dr. Geller garantiu que durante oito a dez horas no máximo a Babs continuaria neste estado “normal” (provocado por medicamentos) se não fosse submetida a nenhum esforço excessivo. Desde o momento em que nos despedimos do dr. Geller, começara portanto a contagem regressiva. Quando por volta de
14h30min entrei no apartamento 419 do LE MONDE, acompanhado do médico e levando a Babs pela mão, houve uma cena revoltante. Além de Rod e Sylvia ainda esperavam no salão do apartamento: Joe, Lejeune, dois advogados americanos, Charley o relações-públicas, os médicos franceses, e os dois detetives. A Sylvia estava de robe.
Babs entrou arrastando ligeiramente uma perna. O rosto uma máscara, sem a menor emoção.
- Babs!
A Sylvia deu um grito ao ver a filha. Foi correndo a seu encontro, caiu de joelhos a seu lado, irrompeu em lágrimas, apertava-a contra si, pronun ciando repetidamente o nome da menina junto com inúmeras palavras de amor e carinho.
A Babs parada, os braços pendidos, agüentou tudo durante uns três minutos. Durante este curto tempo todos os presentes, menos a Sylvia, perceberam claramente que a menina não estava reconhecendo a mãe. Falando entre lágrimas, a Sylvia alisava o rosto da criança. De repente deu um grito estridente. De dor, de pavor (ao menos não naquele instante). A Babs lhe mordera a mão. O sangue escorreu. A Sylvia desmaiou. O dr. Levy e os dois médicos franceses se ocuparam dela, trataram de sua ferida. Imóvel, a Babs olhava para o nada.
Os médicos aplicaram uma injeção na Sylvia que continuava a gritar (agora de horror). O dr. Levy deu uma porção de pilulazinhas coloridas à Babs. Esta as engoliu obediente. Levaram-na para seu quarto. A Sylvia ficou no 419.
- Lobinho murmurou ela. Lobinho... Ela, ela... não
me... não me reconheceu!
Não, Bruxinha.
Sylvia recomeçou a chorar.
362Não temos tempo, Sylvia. Anda. Vamos! disse Joe. - Vá se
vestir. Katie e Joe já estão esperando.
Não posso! gritava a Sylvia.
Tem que dizia Joe. Tem e pode! Vá! E ela foi...
Como a Sylvia continuasse a chorar, Katie e Joe Patterson, seus maquiladores que tinham vindo com a Clarissa, levaram muito mais tempo. (Eles já estavam trabalhando em Madrid, lá nos estúdios, onde há dias vinham fazendo experiências de maquilagem na double Carmen Cruzeiro, supervisionados pelo diretor, o conselheiro artístico e histórico daquele filme especial em cores.) A Sylvia ainda teria que ser penteada. Levou um tempo enorme para se vestir.
Usava calça preta, blusa branca de seda com gola chale, e por cima um colete preto debruado de branco. Os sapatos eram de couro cru preto.
Trazia um colar de várias voltas de ouro com pequeninos brilhantes, além de um colar de pérolas. Um anel de ouro também com pequenos brilhantes, no dedo mínimo. Uma pulseira de ouro com brilhantes, e brincos.
Era um conjunto.
Quando Joe e Katie encerraram seu trabalho (a injeção a esta altura tornara a Sylvia quase apática), ambos foram se ocupar da Babs, maquilá-la. Se o senhor não acreditar, sr. Juiz, por favor pergunte às testemunhas. A Babs estava perfeitamente calma; deixou que fizessem tudo. Tiraram-lhe aqueles óculos horríveis, maquilaram-na como para entrar em cena, pentearam seus cabelos. Vestiram-lhe seu melhor vestido. Colocaram-lhe outros óculos de armação muito elegante mandados fazer em Paris segundo a receita do oculísta de Nurenberg.
Desde o momento do encontro, mãe e filha estavam acompanhadas constantemente por médicos. Quando lhe vestiram o bonito vestido, a Babs ergueu-se mais uma vez na ponta dos pés, começou a bater com os braços sem dizer uma palavra, sem emitir um único tom. O dr. Levy lhe deu mais alguns comprimidos vermelhos.
Eu também tinha ido mudar de roupa, terno azul, camisa branca, gravata azul e branca.
Ao lado do “Salão Azul”, separado por uma cortina, havia uma sala bastante ampla. Aí estavam reunidos todos os advogados da SEVEN STARS, Charley o relações-públicas, Joe, Ruth, os dois detetives, Lejeune o advogado de Paris, Clarissa, Rod, as irmãs e médicos do Hospital Sainte-Bernadette que nos haviam acompanhado em nossa longa viagem. A eles juntou-se ainda o dr. Sigrand, seu chefe.
363Cumprimentou-me amavelmente, disse algumas palavras de consolo. O “Salão Azul” foi se enchendo.
Refletores, microfones, câmaras de televisão já estavam armadas. No fundo do salão havia um estrado e sobre ele uma comprida mesa, coberta por toalha de brocado e cinco vasos de flores. Microfones também. Os repórteres há muito estavam fazendo provas de efeitos de som e luz. Alguns jornalistas ou pessoal da televisão ocupavam as cadeiras onde nós íamos sentar mais tarde. Tudo estava pronto. Já havia passado da hora, pois a Sylvia, vestida, maquilada e com todas as jóias, tivera novo acesso de choro. Joe e Katie foram obrigados a refazer todo seu trabalho. O dr. Levy receava dar nova injeção ou outra dose de sedativos, pois ela poderia começar a falar enrolado.
Fiquei sentado ao lado da Sylvia no imenso vestiário. Ela pediu que eu segurasse sua mão molhada de suor. Que pena eu tinha dela, como amava à Ruth!
Rod entrou com a Ruth.
Desculpe Sylvia, mas já está todo mundo esperando. Estamos com
quase quarenta e cinco minutos de atraso. Posso apresentar, sra. Moran, a dra. Reinhardt. Ela acaba de dar uma olhada na Babs.
Boa tarde, sra. Moran.
Boa tarde, madame.
Hoje aqui só se falava francês.
Quero lhe agradecer tudo que tem feito pela Babs disse a Sylvia
olhando para o espelho, com Joe à sua direita e Katie à esquerda.
Não tem o que agradecer, foi um prazer respondeu a Ruth.
Evitamos nos encarar.
Amanhã a Babs volta para sua clínica.
Volta sim, sra. Moran.
Eu lhe agradeço mais uma vez disse a Sylvia, e acrescentou em
voz alta: Ora droga, vocês ainda não acabaram?
- Pronto disse Katie.
A Sylvia que ainda estava de roupa de baixo, levantou-se. Katie lhe ajudou a se vestir.
Finalmente, às 16h45min, todos estávamos reunidos na sala ao lado do “Salão Azul”.
Vamos pra fora gente disse Joe. Vi-o. persignar-se rapidamente.
Só eu vi; mais ninguém. Empurrou a cortina para o lado e subiu no estrado. No mesmo instante acenderam os refletores. Joe deu alguns passos, virou-se e fez um movimento com a mão.
364Rod entrou, fez um movimento igual. Eu entrei. Outro movimento...
A Sylvia apareceu.
Ficou parada, ergueu os braços, jogou beijinhos para os espectadores. Há pouco ainda aquela cena no 419... e agora! Era realmente uma artista fabulosa, sr. Juiz, a maior de todas.
Todas as câmaras entraram em ação; luzes relampejavam como durante uma violenta tempestade; aplausos frenéticos ressoaram. A Sylvia passou por nós e se dirigiu para uma cadeira no centro da mesa. Sentou-se. Eu me instalei à sua esquerda e Joe à direita. Rod ficou ao meu lado. Tudo fora previamente combinado.
Passaram-se cinco minutos em que ficaram filmando e fotografando.
Depois Joe levantou o braço e ergueu-se.
Boa tarde, meus senhores e minhas senhoras disse ele em seu
francês muito precário. Minhas cordiais saudações. Nós os convidamos
porque temos uma notícia que deve interessar a todos. Madame Moran
poderá lhes dizer melhor do que se trata Sentou-se. Vi que estava de mãos
postas.
A Sylvia ajeitou um microfone, esperou alguns segundos, depois começou a falar... tão controlada, tão feliz como se fosse contar uma estória da carochinha.
Meus queridos amigos aqui presentes, queridos amigos de todo o
mundo. Como todos sabenv estive de férias para descansar e me preparar para o CÍRCULO DE GIZ, meu próximo filme, o maior dos que já fiz. Como sabem também a Babs, minha filha querida, ficou comigo enquanto Phil... (olhar ardoroso para mim) já iniciava em Madrid os preparativos para a produção. Agora eu e a Babs estamos de volta...
Onde está a Babs?
Babs! gritam de todos os lados.
Um momento por favor. Foi por isso exatamente que foram convidados. Hoje vamos falar apenas de Babs. Eu, Phil, Joe, Rod, todos vocês, o mundo inteiro enfim, adora a Babs. Chegou no entanto a hora, meus amigos,
de nos despedirmos dela por algum tempo. Pausa premeditada. Que
artista, pensei eu, que grande artista! Vejam continuou ela a Babs já
está muito crescida para continuar a viajar pelo mundo comigo e com Phil; passar meses agora em Madrid, atravessando a Espanha de um lado a outro. Ela precisa de um ambiente tranqüilo, de um lugar fixo onde morar, de uma escola certa. Ela não pode continuar a ser orientada apenas por um professor particular.
- Que escola? gritou um dos repórteres.
- Isto infelizmente não posso lhes revelar.
- Por que não? ,
Minha deixa!
365Porque ela precisa de sossego, acima de tudo. disse eu. Isso ela
não teria nunca se revelássemos o nome da escola. Só podemos adiantar: ela vai para os Estados Unidos. No que diz respeito a descanso, a Babs já vadiou demais por aí, ela está cansada, exausta. De repente teve que usar óculos. Óculos, exatamente; o esgotamento lhe afetou a vista. É evidente que é apenas por uns tempos, daí a pouco não vai mais precisar deles. Tenho a certeza portanto que todos compreenderão porque não podemos dizer para onde eu e a sua fiel governanta iremos levá-la.
Junto com Phil disse a Sylvia colocando sua mão sobre a
minha. Estava tão suada quanto antes no vestiário.
Agora era a minha vez de novo.
Levantei dizendo:
Vou buscar a Babs, para que ela possa se despedir de todos, meus
senhores e minhas senhoras.
Atravessei o estrado e me encaminhei para a cortina preta. Minhas pernas pareciam gelatina, sr. Juiz. Levantei a cortina e lá estavam todos: médicos e detetives, maquiladores, meu amigo Pierre Marechal o diretor do LE MONDE, Clarissa, Babs e Ruth.
Ruth olhava fixo para mim.
Marechal ergueu as duas mãos sobre a cabeça sacudindo-as me desejando boa sorte. A Clarissa, que usava um vestido lilás, trouxe a Babs ao meu encontro; veio até dois passos do estrado, onde podia ser vista por todos. A Babs mancava. Depois do segundo passo já não dava mais para os repórteres perceberem, pois a Clarissa ia do lado da platéia. Eu me abaixei (tudo tinha sido calculado com a maior precisão) normalmente, como faria qualquer pessoa para receber uma criança de quem gosta, e ergui-a nos braços. Ela ficou firme, tão dopada estava com todas aquelas pílulas coloridas que o dr. Lévy lhe dera. Não teve nenhuma reação; parecia uma boneca; uma boneca linda. Atravessei o estrado com ela nos braços até chegar perto da Sylvia. Seguia passo a passo; tudo arriscadíssimo. Os médicos tinham avisado. A Sylvia havia implorado para não mostrarem a criança. Joe e seus advogados no entanto, com Lejeune à frente, foram implacáveis. A Babs tinha que aparecer só mais uma vez! Tenho quase certeza que todos naquela mesa, e todos atrás da cortina rezavam neste momento; cada um para seu Deus.
Fogo cruzado das máquinas fotográficas. Luz ofuscante dos refletores. Aplausos. A Sylvia sorria. Joe sorria. Rod sorria. Eu sorria. Aí aconteceu a coisa de dar arrepios. Talvez em seu subconsciente tivesse ficado gravado a lembrança de situações semelhantes, pois a Babs de repente levantou o braço direito, acenou para os repórteres e riu.
Riu, sr. Juiz!
A boneca Babs riu; aquele pobre rosto contraído, magistralmente maquilado que parecia a Babs de outros tempos, riu! Atrás daqueles óculos elegantíssimos cujas lentes davam tantos reflexos, quase não se viam os olhos estrábicos.
366Que maná para os repórteres!
Que sorte a nossa!
Todos na mesa se ergueram aplaudindo. A Sylvia, Rod, Joe, a sala inteira aplaudia. E eu contava os segundos... Quatro minutos, tinha dito a Ruth, não mais. Quando depois de decorrido este tempo, levei a criança para fora novamente, ouviram-se protestos. Que protestassem! Eu só queria era sair dali.
Lá estava a cortina. Clarissa abriu-a, entrei e coloquei a Babs no sofá. No mesmo instante, sr. Juiz, ela começou a se debater como louca, a querer dar chutes. Ruth e os médicos franceses acorreram. Sabia que eles cuidariam dela agora. No aeroporto de Orly, o SUPER-ONE-ELEVEN estava pronto para a partida. Todos ali sabiam que a Babs teria que seguir com a Ruth, um dos médicos franceses e as duas irmãs, diretamente para Nurenberg. Eu teria que voltar para o “Salão Azul”.
À noite eu telefono disse baixinho para a Ruth. Aquiesceu.
Voltei rápido para a sala. Sentei ao lado da Sylvia. Coloquei um braço em torno de seus ombros. Afinal éramos o casal do século. A hora custou a passar... Tínhamos que prolongar a entrevista até ter a certeza da Babs estar no avião, e deste ter levantado vôo. Felizmente os repórteres tinham
uma centena de perguntas a fazer: Como estava indo o CÍRCULO DE
GIZ? E a estréia de TÃO POUCO TEMPO? Um porta-voz escolhido por eles se adiantou. Para alegria minha era Claude Person da AFP. Soube que o parceiro da Sylvia naquele filme estava passando muito mal, piorando dia a dia. Será que a Sylvia sabia alguma coisa a respeito? alguma coisa a respeito?
Ela confirmou, sem ter a menor idéia do fato.
Todos os dias a Sylvia Moran lhe envia flores disse Joe Não
se pode falar com ele nem por telefone. Está fraco demais, para segurar o fone.
Isto até para mim era novidade. As flores quem enviava diariamente devia ser aquele cretino do Marone. Que sorte a dele! Que sorte! Alfredo então vai mesmo bater as botas!
Perguntas.
Respostas.
Olho para o relógio. De minuto a minuto. O maldito tempo parece ter parado.
As perguntas vão escasseando. Já não agüento mais. Nesse instante Lejeune levanta a cortina um pouco e nos faz um sinal. Ele significava que o avião, com a Babs a bordo, levantara vôo.
Alguns minutos depois encerramos a entrevista.
Parron aproximou-se e em nome de todos os colegas entregou à Sylvia um enorme buquê de rosas lindíssimas.
Muito obrigada, sr. Parron. Eu lhes agradeço a todos, meus senhores e minhas senhoras disse a Sylvia.
367Apoiada no meu braço, acenando diversas vezes ainda, ela se retirou em direção à sala ao lado. Joe e Bracken vieram logo atrás. As câmaras nos acompanharam até a cortina se fechar.
- Eu... A Sylvia começou a dizer.
O que é?
Me virei.
Ela não disse mais nada. Caiu direto nos meus braços ainda segurando o ramo de rosas...
... rosas ela segurava também agora, lá no palco diante da imensa tela da gigantesca sala do Teatro Sistina, via Sistina, perto da Piazza Barberini. Era 18 de maio de 1972, fazia um calor infernal em Roma na sala deste imenso cinema.
A pré-estréia de TÃO POUCO TEMPO acabara de se realizar com estrondoso êxito. Alfredo Bianchi batera as botas em tempo. A Sylvia tinha feito um discurso comovedor (redigido por Rod, que agora estava sentado a meu lado num camarote). Diante dela estava a nata da grã-finada italiana. Nobres, milionários, industriais, editores, membros da igreja e dignatários, fizeram, a pedido da Sylvia, um minuto de silêncio em memória de Alfredo Bianchi. Todos estavam em pé, de cabeça baixa. Apenas se ouvia o zumbido das câmaras. Não estávamos de pé nenhum minuto ainda e eu conseguira repassar na memória os acontecimentos de quase meio ano.
Lá estava a Sylvia em meio a um mar de flores, seu vestido de gala, cor de petróleo, alto na frente e com decote bem fundo nas costas, sapatos de cetim da mesma cor do vestido, brincos de brilhantes, pulseira de brilhantes, um solitário no dedo, o maior e mais lindo que ela possuía.
Neste último meio ano, a Sylvia tinha trabalhado alternadamente em Madrid e em Paris nos preparativos do CÍRCULO DE GIZ. A Babs ainda continuava na Casa de Saúde Sofia em Nurenberg. Não estava mais totalmente de cama, andava capengando por lá. A Ruth e a “Rosquinha” eram’ suas professoras; já tinham até conseguido que a menina voltasse a falar.
Falava enrolado ainda, mal dava para entender. O vocabulário era muito reduzido, mas ao menos voltara a falar! Depois do último encefalograma, o lado esquerdo principalmente voltou a apresentar uma ligeira tendência à crises de paralisia. O QI estava em 59 pela escala de Stanford Binet, o que correspondia à idade de quatro anos. A Babs estava com nove!
Estamos fazendo grandes progressos, Phil Ruth não se cansava
de repetir. Grandes progressos, meu Deus!
368Neste meio ano tinha saído muito com a Ruth. Fomos ao cinema, ao teatro, a concertos. Todas as vezes ela errava o caminho das maneiras mais absurdas, mas acabava sempre chegando onde queria. Nunca mais a beijara, nem abraçara; quanto a dormir com ela, nem entrava em cogitação. Mas o amor persistia, era cada vez maior, mais afetuoso. Cada vez maiores eram também os escrúpulos da Ruth. Eu pertencia à Sylvia! Não, insistia eu. Sim, dizia ela. Ela não sabia como este amor ia continuar, nem eu tampouco.
Passei também muito tempo com a Sylvia em Paris e em Madrid. Ela se encontrava num estado de depressão psíquica cada vez maior. As vezes eu até ficava admirado como conseguia juntar forças para prosseguir seu trabalho de maneira tão meticulosa e exemplar. Não quero absolutamente que o senhor pense, sr. Juiz, que eu era indiferente àquela minha situação. Duas mulheres, um futuro inteiramente incerto, a responsabilidade da Babs. Também não estava me afastando da Sylvia. Pelo contrário, sua força de vontade, sua coragem e valentia me impunham respeito. Isto, sr. Juiz só alguém como o senhor, que escolheu por profissão o julgamento de valores positivos ou negativos, de moral ou imoral em seus semelhantes, poderá compreender. Compreender também porque a Ruth se recusava terminantemente a ter relações mais íntimas comigo, embora afirmasse sempre que me amava. Esquizofrenia? Sentimentos ambivalentes? Não sei. São apenas palavras. O que contava realmente é que eu amava à Ruth.
O minuto de silêncio em memória de Alfredo Bianchi, o grande artista falecido, chegara ao fim. Imediatamente... afinal estávamos em Roma, sr. Juiz... recomeçaram os aplausos para a Sylvia.
A platéia era uma verdadeira casa de loucos.
Santa Maria! chegava Joe a gemer. Acredito que aquela deve
ter sido a noite mais feliz de toda sua vida.
Três horas da madrugada do dia 19 de maio de 1972.
Há meia hora eu e Sylvia estávamos em nosso apartamento no Hotel BERNINI-BRISTOL. Ela no quarto, eu no vestiário. O salão estava tão cheio de arranjos de flores, orquídeas, vasos no chão com ramos de flores, que mal dava para alguém se mexer. O perfume de todas aquelas flores penetrava inebriante até o vestiário, onde também estavam nossas malas. Eu tinha tirado o paletó do smoking, a gravata borboleta, abrira o botão do colarinho, e arrumava a bagagem.
Enchi apenas uma mala, as outras coisas poderiam ser despachadas para Paris. Nem mesmo à noite refrescara; o suor me escorria pelo corpo.
369Tirei a camisa, a calça. Da outra extremidade ouvia a Sylvia soluçando. Estava bastante embriagada e muito infeliz.
Depois da pré-estréia houve um banquete oferecido por Carlo Marone que tivera a sorte de Bianchi ainda se despachar a tempo! O parceiro da Sylvia era o Presidente da Itália. Comeram durante horas. Beberam durante horas. Brindes à Sylvia. Brindes ao filme. Brindes a Alfredo Bianchi. Brindes a Joe. Até um para mim, e evidentemente logo depois outro para Sylvia.
No fim todos estavam bêbedos. Fiquei espantado como a Sylvia conseguiu se controlar. Quando chegamos ao apartamento ela arriou.
Babs... Babs... minha filha...
Estamos fazendo tudo para ajudar a ela, Bruxinha.
Eu sei. Eu sei, Lobinho. Mas ela nunca mais vai ficar boa. Nunca
mais! Se antes ela conseguira se dominar heroicamente, agora perdera todo e qualquer controle. Gritava tanto que fiquei com receio que os hóspedes do
hotel fossem fazer queixa Uma débil mental! A Babs sempre vai continuar
a ser uma débil mental! E a culpa é minha!
Pare com isso!
O senhor sabe perfeitamente, sr. Juiz, que nunca amei à Sylvia. Nesta noite em Roma no entanto, pela primeira vez na vida, senti algo por ela. De repente passara a vê-la como um ser humano que sofria, e pelo qual sentia simpatia. Não era mais apenas aquela criatura a quem eu me prendera para poder viver luxuosamenje. Hoje eu sei que este sentimento tinha relação com a Babs, com a misteriosa força dos mais fracos, de modificarem tudo. A mais macia água acaba furando a pedra mais dura. Naquela época eu ainda não o sabia.
Por favor Sylvia, pare de chorar...
Não posso! soluçava ela. Vai! Você tem que ir embora. Vai!
Você tem que arrumar suas coisas. Me deixe sozinha!
Fui portanto arrumar a mala, e ouvia a Sylvia chorar. Depois de arrumada, tranquei-a e percebi que o choro havia terminado. Atravessei o salão, entrei no quarto; vi que a Sylvia adormecera. Estava deitada na enorme cama, toda vestida, com todas as jóias. O vestido de gala amarrotado, o cabelo despenteado espalhado no travesseiro, o bonito rosto sulcado de lágrimas. Dormia profundamente. Tinha bebido muito. Permaneci alguns instantes olhando para ela, mas depois me lembrei da Babs e da Ruth e não agüentei ficar mais.
Desci até o saguão carregando sozinho minha mala. Disse ao porteiro da noite que precisava voltar logo a Paris, por motivos de negócios, conforme ele já sabia. Só tinha vindo a Roma assistir à pré-estréia. Pedi que me levassem até o aeroporto Leonardo-da-Vinci, em Fiumicino. Dei uma boa gorjeta, e o carro foi trazido de volta para o hotel.
19 de maio de 1972. Hoje ainda eu teria que estar em Nurenberg. Meu plano era tomar o jato da Sylvia para Paris. Ali vestia novamente meu terno de meia-confecção, colocaria meus óculos e voltaria para Nurenberg de avião, transformado novamente em Philip Norton.
370Já estava com a passagem no bolso, pois teria que me manter dentro daquele horário. Cheguei cedo a Fiumicino; a tripulação do SUPER-ONE-ELEVEN tinha sido encomendada para as sete horas.
No amplo saguão do aeroporto todos os guichês estavam fechados. Vi algumas faxineiras e policiais. O silêncio era sinistro. Meus passos ressoaram. Luzes de néon estavam acesas. Levei minha mala até um banco e sentei. Na minha frente pendia um enorme cubo do teto. Nos três lados havia anúncios de firmas; no quarto, um relógio que sempre ficava virado para mim.
O cubo girava lentamente.
371Terapia
antrobuS: Como pode você querer criar um mundo onde possam viver seres humanos, se ainda não acertou os ponteiros consigo mesmo?
“Conseguimos Escapar Mais Uma Vez”
THORNTON WILDEREram dez para as oito da manhã, terça-feira, 23 de maio de 1972, quando o VW branco da Ruth parava no extremo oeste de Nurenberg, na larga faixa, numa das doze vagas marcadas a amarelo.
Vamos saltar disse ela.
Durante a viagem da casa de saúde até ali, eu vinha com a Babs no colo. Abri a porta do carro, saltei, pondo a Babs em pé também. Ela usava um vestidinho azul, um casaco branco de tricô por cima, meias compridas e sapatos fechados comuns. Estava com os óculos baratos de grossa armação amarelada. Sua roupa e sapatos também não tinham sido caros. Eu e a Ruth, juntos, tínhamos comprado tudo na sexta-feira da semana anterior. Domingo tinha sido Pentecostes. Segunda-Feira de Pentecostes era feriado na Alemanha, mesmo assim tive que voltar na sexta; daí a pouco explico por quê.
Ruth pegou uma mala grande com a roupa nova da Babs, que estava no fundo do carro e trancou a porta. Riu para Babs, que não teve nenhuma reação. Viu-se que ela estava calma, porém com um certo medo. Segurava-a pela mão. Estávamos na frente do carro. O sol brilhava num céu azul, sem nuvens e os pássaros cantavam. Mesmo em Nurenberg já fazia bastante calor. A esta hora tudo ainda era silêncio. Estávamos diante de um prédio baixo e comprido, onde havia um açougue, uma ótica, uma sapataria e um fotógrafo. Nenhum dos três falava. Babs segurava minha mão.
Aqui na periferia da metrópole tudo tinha um aspecto bem menos urbano. Casas baixas, quase como a dos camponeses, lojas pequenas, duas charretes puxadas a cavalo e o final de uma linha de bonde.
Lá na frente e a Ruth apontava com a mão vejo a placa
amarela de uma parada de ônibus. Fomos andando em direção a ela. A
Babs mancava. Duas mulheres estavam paradas no sinal. Uma delas segurava um garotinho pela mão, a outra uma menininha. Lá estava também um homem com mais uma menina. Os adultos conversavam. Um pouco afastado, apoiando-se no muro de um bar, vi outro homem. Seu estado era de decadência total; os sapatos imundos, a roupa suja, o rosto barbado. O cabelo lhe ficava em pé de tanta sujeira. Tinha o rosto inchado, intumescido do beberrão inveterado, o olhar estanque; apenas alguns tocos de dentes enegrecidos na boca. Viam-se-lhe os dentes porque de vez em quanto dizia alguma coisa e dava risadas. Não consegui entender o que falava. Ninguém dos que estavam na fila reparavam nele. Nos aproximamos.
Agora conseguia distinguir nitidamente as outras crianças: a menininha devia ter uns seis anos; tinha um rosto redondo, uma boca minúscula, olhos puxados, uma farta cabeleira preta. Segura pela mãe, balançava, se apoiando ora numa perna, ora noutra. O garoto era estrábico, usava óculos iguais aos da Babs. Devia ter uns doze anos. Volta e meia todo seu lado direito estremecia.
375A outra menina podia ter a idade da Babs, usava um capacete feito por ataduras, tendo as orelhas protegidas por aparelhos semelhantes a dois enormes fones. Tudo era pintado de amarelo vivo. As crianças usavam roupas coloridas e mochilas de plástico nas costas.
Os adultos pareciam conhecer a Ruth, pois cumprimentaram-na amavelmente. Cumprimentou também. As crianças cumprimentaram. A Ruth riu para elas; riram de volta, inclusive para mim e para a Babs. Cumprimentei também o bêbedo. Este me olhou furioso, sem responder.
Olhando para o garoto, a Ruth disse:
Trago uma nova companheira para vocês, Franz. Seu nome é
Babs. Este senhor é o pai. Voltando-se para a Babs: Esse é o Franz,
essa é a Maria, e aquela a Anna. Diga bom-dia a eles, Babs.
A Babs obedeceu. Falava quase tão enrolado quanto o menino, do qual eu não consegui entender uma palavra. Os garotos apertaram-lhe a mão. A Ruth me apresentou aos pais. Não me lembro como se chamavam. Me apresentou como Philip Norton.
Por que a senhora não foi de carro até lá em cima, doutora? -
perguntou uma das mães.
É o primeiro dia respondeu esta. O primeiro dia da Babs.
Nós... olhou rapidamente para mim ... nós queríamos que desde o
início ela sentisse como a maioria das crianças vêm à escola.
A menininha que parecia uma chinesa, exclamou rindo:
Você também anda de ônibus?
Ria disse Ruth baixinho para mim.
. Sim disse eu rindo para a menininha de olhos puxados. Também vou de ônibus.
Mongolóide disse a Ruth no mesmo tom de voz.
Que bom! Ônibus bonito. Você vai gostar disse ela para Babs.
Para minha surpresa esta respondeu com bastante clareza:
Claro que vou. Até sorriu.
Muitas crianças mongolóides são realmente bonitas, como esta menininha.
A Babs sorriu disse eu baixinho para a Ruth.
- Eu sei. Ela agora está entre crianças. Você ainda vai ouvi-la dar gargalhadas. Falou alemão.
Sempre responderá em alemão quando a pergunta for feita em
alemão. É a língua de sua mãe. Além disso, nesta escola todas as crianças são alemães.
O diretor já me disse.
Chamava-se ele dr. Hallein. Por sua causa fui obrigado a voltar a Nurenberg na sexta-feira passada. Heinz Hallein, o diretor da escola que Babs ia freqüentar de agora em diante, estivera em Nurenberg na sexta-feira e no sábado antes de Pentecostes, na Casa de Saúde Sofia para resolver o caso da Babs.
376Conversou com ela, fez perguntas, deu-lhe algumas tarefas bem fáceis para executar, conversou longamente com a Ruth que parecia ter maior intimidade com ele, depois me pediu que lhe mostrasse meu passaporte falso, e assinou diversas declarações. Numa delas constava que eu era o responsável pela menina. Todas as declarações foram confirmadas pela Ruth...
Um ônibus enorme, azul e moderno, veio subindo a rua. Ao mesmo tempo um homem que parecia um empregado subalterno, dobrou a esquina do bar. Vinha empurrando uma cadeira de rodas, dentro da qual estava um garoto de uns dez anos, bem amarrado à cadeira, de roupas coloridas como a das outras crianças. Trazia a pasta da escola pendurada no pescoço. Tremia sem parar. O rosto sem expressão, o olhar voltado para o nada. As pernas balançavam soltas. Prá lá... pra cá; prá cá... prá lá.
O ônibus veio se aproximando, buzinou, diminuiu a marcha e parou. Ouviu-se o chiado do ar comprimido quando a porta se abriu. Era um ônibus novinho em folha, quase vazio também. Apenas seis crianças estavam sentadas dentro. Vinham ainda dois rapazes e o motorista, um homem imenso de colete de tricô verde, com botões de chifre de veado. Rindo, ele exclamou:
Então, está todo mundo aí?
Tio Willi! Tio Willi! chamaram as duas meninas.
Um dos meninos balbuciou qualquer coisa.
O garoto da cadeira de rodas não se manifestou. Os dois rapazes de süéteres saltaram. Um deles era forte e o outro raquítico. O primeiro usava uma barba curta. Também para eles as crianças sorriram. Era uma família se cumprimentando.
O sujeito com cara de bêbedo foi se desencostando do muro e veio cambaleando...
Os rapazes colocaram as duas meninas dentro do ônibus, onde o motorista as recebeu e instalou nos lugares vazios. Havia tantos! Depois lavantaram o outro menino que mal se agüentava em pé e quase não conseguia falar.
Neste momento o bêbedo se empertigou e gritou:
Vamos! Andem! O ônibus não espera! Entra tudo que é idiota!
Gelei. Todos os adultos, inclusive a Ruth, fingiram não ter ouvido nada.
O beberrão deu uma estrondosa gargalhada, satisfeitíssimo com seu grande feito. Ao se virar para sair cambaleando de volta para o bar, quase caiu. Os dois rapazes pegaram agora o menino paralítico e o tiraram da cadeira. Pensei que fosse ser difícil colocá-lo no ônibus, mas eles deviam fazer este serviço diariamente, pois foi rápido e parecia simples. O mais forte ajudou.
Enquanto isso, apesar da Ruth querer me impedir, me aproximei de uma das mulheres, ainda com raiva, e disse:
- Desculpe se estou me metendo, mas a senhora não ouviu o que aquele bêbedo berrou?
Claro que ouvi.
- E a senhora permite isso? Ninguém toma alguma atitude?
377Durante o diálogo que se seguiu o garoto fora carregado para um banco de formato especial e amarrado para não poder escorregar.
Atitude, meu senhor?
Mas aquele é o Chicora, o maior bêbedo que já existiu. Está aqui
todos os dias, de manhã e à tarde, no inverno ou no verão. Grita sempre a mesma coisa disse a segunda mulher.
Mas devia-se fazer qualquer coisa contra isto!
Os quatro adultos ficaram me olhando. Depois a segunda mulher disse:
O senhor sabe de uma coisa, senhor...
Norton.
... sr. Norton, o senhor diz que devemos tomar alguma atitude.
Há quanto tempo sua menina já está aqui? Não faz muito tempo, ainda não é?
Não respondi eu.
Nossos filhos já estão doentes há anos. O meu, desde que nasceu.
Nenhuma de nós tem mais ânimo ou forças para tomar qualquer medida. Força para nada.
Mas...
O senhor não pode entender isso disse o homem que acabava de
dobrar a moderna cadeira de rodas e estendê-la para o motorista.
Por enquanto ainda não. Um dia compreenderá. Meu Deus, se não
existisse nada no mundo pior do que este pobre beberrão, este...
O motorista que havia percebido a presença da Ruth, interrompeu-o.
- Bom dia, doutora!
- Bom dia. Nós também vamos. Este é o sr. Norton e a sua pequena Babs. Vou acompanhá-los da primeira vez.
Muito prazer, sr. Norton disse o motorista apertando a minha
mão. Pensei que fosse quebrar meus dedos. Vem cá Babs! E ele a
suspendeu para dentro do carro. Deixei a Ruth passar na frente, entrei logo depois. A porta se fechou com o mesmo chiado.
Vamos sentar lá atrás disse a Ruth, enquanto o enorme ônibus
já ia saindo. Ela segurava a Babs. Os adultos do lado de fora acenavam e as
crianças também; até o menino paralitico. Ainda vem mais criança
disse ela, quando nos instalamos no último banco, a Babs entre nós, sua mala entre as minhas pernas.
Os dois rapazes conversavam com as crianças, tiravam bonecas, uma bola ou reco-reco do porta-embrulhos. Todos se conheciam. Começaram logo a conversar; alguns numa linguagem incompreensível para mim, mas pareciam se entender. Um dos rapazes disse qualquer coisa, e de repente todas deram gargalhadas. Daí em diante as risadas, os gritos de alegria não acabaram mais. A Babs começou a rir também embora não tivesse ouvido o que o rapaz dissera.
378As outras crianças se viraram curiosas, riram para ela; uma delas acenou. A Babs acenou. A Ruth riu. Eu ri.
O ônibus seguia rápido pelo campo aberto. O sol já se erguia alto sobre campos e plantações. À distância via-se a orla da mata com sua folhagem verde e viçosa. Flores silvestres por toda parte. O sol ofuscava; tive que segurar a mão diante dos olhos.
Que rapazes são estes? perguntei à Ruth.
São refratários respondeu ela. Hoje, na Alemanha, não são mais
chamados assim. São obrigados a prestar outros serviços em substituição ao serviço militar a que se negaram.
Durante uma hora o ônibus atravessou campos e matas, ruas calçadas, pequenas aldeias, parando sempre. É impossível descrever as voltas absurdas que dava para apanhar uma criança às vezes em lugar inteiramente ermo, que esperava em sua cadeira de rodas em companhia de alguma velhinha. Os rapazes levantavam a menina para dentro do ônibus. O motorista ajudava. A cadeira dobrável era guardada, e a menina, cumprimentada por alegres risadas das outras crianças, presa num banco especial como o outro garoto. Lá ia o ônibus... Seguia sua rota de muito tempo talvez, toda cronometrada.
Curvas mais curvas, quando menos se esperava saía da rua, entrava por campos de terra preta, por campinas sem fim cobertas de florezinhas amarelas, por matas escuras, uns dez minutos talvez, até a próxima parada. Uma fileira de casas. Pai e mãe com uma menina que se apoiava em duas muletas. Alegres cumprimentos; a menina foi erguida para dentro do ônibus.
Hoje à tarde, às quatro e cinqüenta, não é?
Isso mesmo. As quatro e cinqüenta trago a Agnes de volta
respondia o vozeirão do motorista.
Leva uma carta dentro de sua mochila. Entregue-a por favor a
Agnes já consegue dizer mais duas palavras!
Agnes! Que formidável! Quais são? Muito devagar, com grande
esforço, a Agnes falou e todos ouviram atentos:
Lo.. xo...mo...ti...va...Sos...se...go...
O motorista abraçou a criança.
- Locomotiva! Sossego! exclamou ele. Agnes estava radiante. Um
dos rapazes instalou-a num banco vazio. O outro trouxe as muletas. O ônibus partiu. Apesar de amarrado, um dos garotos escorregou do banco. Um dos refratários, aqueles rapazes que haviam se negado a prestar serviço militar e que hoje já não eram mais chamados assim na Alemanha, acorreu rápido, ajeitouo, apertou o cinto.
O ônibus parecia atravessar um labirinto invisível. Era primavera; uma primavera radiosa. Aldeias imensas. Aldeias pequeninas. Parada. Um rapazinho maior estava em pé ao lado de uma cabina telefônica, segurando um menorzinho pela mão.
379Colocou-o dentro do ônibus. Era paralítico de um lado; ajudaram-no a andar, passo a passo. Alegria geral. Alôs e olàs.
Meu Deus, para onde você está nos levando? exclamei euj
Você vai ver respondeu a Ruth. Você vai ver.
Já estou vendo. É para um outro mundo...
Não Phil disse ela. Não é para um outro mundo. Existe um
só, onde todos somos obrigados a viver.
Outra aldeia. Nova parada. Diante da igreja, uma menina de capote e gorro vermelho. Parecia Chapeuzinho Vermelho. Tudo para mim, aliás, estava se transformando num conto de fadas... por muito pouco tempo apenas.
O ônibus continuou... Parou. Pegou mais crianças. Continou...
Estamos indo pra casa? perguntou a Babs de repente, olhando
para mim. Eu olhei para Ruth.
É, disse ela. Estamos indo para casa, sim.
Um grupo de quatro meninas tinha começado a cantar. Não entendi uma só palavra. Muitas crianças do ônibus tinham defeitos de dicção, alguns bem graves até, mas todas cantavam no ritmo. E riam... Riam a não acabar mais!
Uma Mercedes passou a nossa frente.
Ao lado do motorista, bem amarrada, ia uma menina. Olhou para o ônibus, reconheceu a Ruth, acenou para ela. Para minha surpresa a Babs se levantou de repente e acenou também. A criança na Mercedes riu.
Quem? perguntou a Babs.
É Jackie.
Na escola também?
Vai sim. Daí a pouco você vai encontrar com ela.
Gostei dela.
Eu acho que ela gostou de você também disse a Ruth. Virando-se para mim, disse em voz baixa por cima da cabeça da Babs: Mongolóide. O chofer a leva e traz todos os dias. Há de tudo, como eu já lhe disse. Camponeses e presidentes de firmas, operários e artistas. A criança mais pobre e a mais rica pode ter o mesmo destino.
- E este ônibus...
A escola aluga diversos ônibus iguais a este. O ano inteiro. Um é de sua propriedade. Os ônibus passam por pontos de encontro e recolhem as crianças do distrito todo que freqüentam esta escola. Na volta é a mesma coisa. Alguns pais trazem seus filhos de carro. Outros não podem, pois têm que estar no escritório às oito da manhã. Na cidade, muitas crianças moram em prédios antigos que não têm elevador, têm que ser carregadas escadas a baixo.
Quem as traz para os pontos de encontro?
A escola mantém contrato com uma série de motoristas de táxi.
Trazem as crianças até o ponto do ônibus e apanham novamente à tarde.
- Isto não custa uma barbaridade? A Ruth deu uma risada triste.
380Se custa! Tudo que acontece aqui custa uma barbaridade!
E o dinheiro, de onde vem?
No fundo, esta escola é uma instituição falida desde o dia em que
começou a funcionar. Mas continua. A Ruth riu. A Babs também riu.
Acariciei a Babs; ela se apertou contra mim.
É a primeira vez que você faz isto disse a Ruth baixinho.
Faço o quê?
Você sabe muito bem o quê?
É mesmo concordei muito admirado comigo mesmo. É. Foi
a primeira vez. E logo agora!
Logo agora não. Claro que agora.
Atravessamos a mata fechada. Passamos por uma placa amarela à beira do caminho. Eu li:
HEROLDSHEID
Logo depois vi um caminho estreito; dobrava à direita. O ônibus fez uma curva fechada. Galhos de árvores arranharam seu teto quando ele começou a descer a ladeira. Bem na curva havia uma placa discreta com a inscrição:
HEROLDSHEID ESCOLA PARA EXCEPCIONAIS
Olhei para a frente, através do pára-brisa. Seguimos em direção a um imenso portão de ferro batido. À direita e à esquerda erguiam-se velhos pinheiros. A mata era muito cerrada, muito escura. Atrás do portão via-se banhada em luz do sol, uma área coberta de cascalho, com três ônibus iguais ao nosso e outro menor. Adultos e muitas crianças, que desciam dos ônibus, eram ajudadas ou mesmo carregadas. No fundo erguia-se um pequeno castelo todo pintado de branco. Não era bem um castelo; era uma construção semelhante que devia datar de 1910.
Nada mal disse eu. Principalmente levando em conta que é
uma instituição falida.
Se você tivesse uma idéia de como essa casa veio parar em nossas
mãos.
O ônibus parou entre os outros. Também aqui as crianças saltaram, eram ajudadas ou carregadas. Havia umas oitenta crianças e cerca de vinte e cinco adultos. A algazarra era grande. Os adultos falavam com as crianças, estas riam e gritavam. Pequenas cadeiras de rodas com seus ocupantes, eram empurradas para dentro do castelo branco. Os adultos vestiam roupas comuns; reparei que ninguém ali usava jaleco de médico ou enfermeiro.
Um rapaz bastante novo ainda, simpático, a cabeleira farta penteada para trás, veio ao nosso encontro. Reconheci-o. Era o diretor da escola que examinara a Babs em Nurenberg, o dr. Heinz Hallein. Primeiro cumprimentou a Babs. Ajoelhando-se, apertou-lhe a mão.
Que bom que você veio! disse ele. Estávamos esperando por você.
381Tenho a certeza de que vai gostar daqui. Parabéns para o aniversário, Babs!
Mas eu não faço...
Claro que faz retrucou este. Aqui é assim. O dia em que a
criança vem pela primeira vez, é seu aniversário.
Mas eu ainda tenho outro disse ela, encostando-se em mim por
causa de sua ligeira paralisia. Ria para o diretor.
Então você tem dois! Todas as crianças aqui têm dois! Seu segundo aniversário você pode festejar onde quiser. O primeiro é festejado aqui.
Quando? perguntou ela toda excitada.
Mais tarde. Por enquanto você só vai ganhar seu presente disse
o dr. Hallein estendendo-lhe um grande saco de plástico cheio de balas, nozes, chocolates e frutas.
A Babs não disse nada.
Espera aí, eu seguro. É muito pesado para você disse eu.
Você vai mesmo ficar aqui comigo?
Vou sim disse eu e vi que os motoristas já estavam novamente
instalados atrás de seus volantes, e com a habilidade de artistas, manobraram aqueles monstros e partiram. O ônibus menor ficou. Na porta dianteira esquerda, eu li:
DOAÇÃO
• AÇÃO DA CRIANÇA EXCEPCIONAL
SEGUNDA TELEVISÃO ALEMÃ
Muitas crianças e adultos, homens e mulheres jovens ainda, tinham desaparecido dentro do castelo. De repente tive um sobressalto, ouvi o estilhaçar de uma vidraça.
Grandes pedaços de vidro caíram de uma janela do andar térreo no chão de cascalho. Vi rapidamente o rosto crispado de um garoto que estava sendo puxado para dentro por uma mulher.
Tudo isto só para festejar a sua chegada disse Hallein sorrindo
e se erguendo. Foi o Otto.
Mas... mas... a janela quebrou disse a Babs.
É explicou Hallein ele faz isso de vez em quando. Outras
crianças também, sabia? Aqui se quebram um monte de vidraças; mesas,
cadeiras, camas e louças também. Virando-se para mim disse: Crise de
agressividade. Deu de ombros. Acrescentou em voz baixa: Todos aqui
necessitamos de uma paciência imensa. Não visamos ter uma escola que seja um modelo de arrumação, de vez em quando fica tudo desarrumado. Manter tudo em ordem é bem difícil, pois algumas crianças destroem coisa sem querer ou propositalmente. Destroem tudo, brinquedos, material escolar, o que quiserem. Temos nosso chefe de serviços gerais. Hoje mesmo ele troca aqueles vidros. Infelizmente vidro é um material muito caro.
É comum as crianças quebrarem vidraças?
382Sr. Norton disse o diretor o maior número de vidraças
quebrado até hoje num só dia, foi quatorze. Tudo obra de um garoto só.
E o senhor diz isso com tanto orgulho?
E tenho orgulho mesmo respondeu ele. Pois, pelo fato de
deixarmos o garoto reinar à vontade, descarregar tudo, a partir daquele dia houve uma mudança radical em sua vida.
-•”’ Heroldsheid, 24 de agosto de 1972
RECIBO
Para doações previstas no artigo 4, parágrafo 1, alínea 56 da lei das fundações e sociedades civis.
Até aí o texto vinha impresso. Prendi o formulário na máquina que estava na mesa diante de mim, e que me deixava inteiramente louco. Os tipos da máquina de repente se embaraçavam. O /i o r sempre saíam acima da linha; o i ficava preso e eu era obrigado a puxá-lo de volta com o dedo, que logo ficava todo sujo assim como as cartas que eu batia. Nestes últimos dias eu devo ter escrito mais de cem cartas, dirigidas a pais, médicos e autoridades. Fui procurar pessoalmente os pais e as autoridades. Vivia na rua.
Agora estava sentado no minúsculo quarto do segundo andar da Escola Heroldsheid para Excepcionais, sem camisa, pois fazia muito calor. Era quase meio-dia. Estava trabalhando desde as oito e meia como aliás vinha fazendo todos os dias. Às vezes continuava até tarde da noite.
Sinto muito, sr. Juiz, se o assustei. Foi isso mesmo que escrevi.
Eu trabalhava! Em Madrid tinha começado a trabalhar um pouco. Agora aqui o serviço era duro. Minha vida de personalidade dupla! De vez em quando era obrigado a viajar. Quase sempre para Madrid. O filme CÍRCULO DE GIZ estava em pleno andamento. Eu tinha duas mulheres. Uma que me sustentava, e outra a quem eu amava. Tinha uma filha. Realmente meus progressos foram incríveis, para não dizer paradoxalmente imorais. Todo playboy tem a sua filosofia de playboy, não é? Eu a tivera durante toda minha vida, mas agora...
Quando olho pela janela do meu pequeno escritório (o que faço a todo instante), vejo a Babs no gramado atrás da casa. Ela e seus dois amigos. Uma era Jackie a mongolóide, que naquele primeiro dia havia passado por nós amarrada na poltrona do Mercedes, ao lado do chofer. A pequena Jackie era tão bonitinha, tão delicada! O outro, era o menino paralítico que viera conosco no ônibus e sempre escorregava do banco. Chamava-se Alois, tinha treze anos; seus pais sabiam que seu caso não tinha cura.
De óculos, sempre continuando a mancar, a Babs empurrava o Alois em sua cadeira de rodas por cima do gramado. Ela, por sua vez, se apoiava em Jackie pois as pernas continuavam muito inseguras.
383Jackie não tinha problema para andar. Uma criança ajudava à outra. Ouvia as gargalhadas das três. Era verão; pleno verão. Meu olhar procurava as crianças a toda hora. Depois
continuava a escrever e a praguejar em voz alta: Santo Deus, que porcaria
de máquina!
1. Sr. WALTER KLEINHEIT, NUERENBERG, SALOMONSTRASSE
234 muito bonito! O ft lá em cima o r também, os dedos lambusados de
abaixar o tipo DOOU À ESCOLA DE EXCEPCIONAIS DE HEROLDSHEID EM 20 DE AGOSTO DE 1972 A IMPORTÂNCIA DE DM.
1.200 (HUM MIL E DUZENTOS MARCOS ALEMÃES) PARA CONTINUAR A MANTER SUA AFILHADA HEIDI METZLER...
Porcaria de máquina! Tudo imundo! Eu não parava de xingar.
Opa! Quase que a Babs cai: Quis empurrar a cadeira depressa demais. A Jack’ie conseguiu impedir o desastre. Senti meu coração bater.
Que estranho!
Fui virando o formulário na máquina. As linhas seguintes por sorte vinham impressas. Mesmo assim, eu continuava a reclamar.
Eu preciso de uma máquina nova. Olha só para estas cartas, são as
mais importantes que estamos enviando!
Hallein precisava reconhecer isto. Tinha a certeza que reconheceria. Ele concordava com tudo que era sensato. As paredes de sua sala eram todas cobertas por desenhos coloridos feitos pelas crianças. Em cima da mesa havia um cartão emoldurado onde se lia em letra de forma:
SE AS PESSOAS TIVESSEM TANTO BOM SENSO “
QUANTO SENSO COMUM, TUDO SERIA BEM MAIS SIMPLES.
Boa frase. Dita pelo dr. Linus Pauling, detentor de Prêmio Nobel. Me parece até que era um daqueles três portadores do Prêmio Nobel, que se batiam para que se transformasse em lei a eutanásia ativa no caso de doentes incuráveis ou doentes mentais, mesmo em se tratando de crianças. Meio louco, um detentor de Prêmio Nobel exige uma coisa destas. Aliás, meio louco também era Hallein, o diretor, mandar imprimir e emoldurar aquela frase para colocar em cima de sua mesa. Mas-afinal, não vivíamos nós num mundo de loucos?
Em frente!
Há dois anos o sr. Walter Kleinheit da Salomonstrasse em Nurenberg, era o padrinho de Heidi Metzler, uma criança espástica de quinze anos. Vi dois daqueles rapazes trazendo a Heidi do ginásio que ficava atrás da casa. Ela não se locomovia só. A Monika, uma das duas professoras de ginástica especializada, acabava de fazer exercícios com a menina, com uma bola especial, como vinha fazendo todos os dias. Heidi já estava aqui há quatro anos. Há quatro anos fazia exercícios com aquela bola. Três anos atrás, ela
384pareceu apresentar alguma melhora. Era apenas ilusão. Não melhorara nem um pouco. Era preciso continuar o tratamento, os exercícios. Quem sabe’ se daí a quatro anos haveria alguma melhora? Ou daqui a seis? Ou nunca.
Hoje eu não conseguia me concentrar.
Havia tanta correspondência para colocar em dia!
Afinal eu tinha um emprego fixo e ganhava um ordenado. (Depois de feitos todos os descontos, sobravam DM. 824.50, com casa e comida.)
Em frente, pois! Daí a pouco era hora do almoço e eu teria que ajudar no refeitório.
O sr. Walter Kleinheit (paisagista) precisava do recibo, pois queria ao menos descontar do imposto de renda a quantia doada para sua afilhada Heidi. (Nunca tinha visto a menina, e provavelmente nunca viria vê-la.) Era um direito seu, pois no impresso lia-se:
2. De acordo com a declaração da Secretaria de Finanças de Nurenberg, de 5 de abril de 1971, n9 53/5320, que diz respeito aos incapazes por deficiência física ou mental, fomos reconhecidos provisoriamente (Graças a Deus, pois antes desta data ainda não éramos. Quando digo nós, me refiro à Escola Heroldsheid onde agora trabalho, e onde é tão pequeno o número de padrinhos voluntários de quem tanto dependemos) como uma Instituição de utilidade pública e beneficente nos termos do artigo 4, parágrafo 1, alínea 6 da lei das fundações e sociedades civis.
Utilidade Pública!
Fiquei olhando para a palavra que acabara de ler e fui me lembrando...
Desde que voltara à Alemanha eu me interessava por este país. Lia muito à noite. Havia outras instituições consideradas de utilidade pública como a instituição nacionalista em Lochham na Baviera do Norte, a “Obra Cultural do Espírito Europeu”, ou a “Sociedade de Política Administrativa e Estadual” do sr. Hugo Wellens, o ex-chefe de propaganda do Reich em Kowno, na Lituânia.
Estas associações eram classificadas como de “utilidade pública” enquanto Heroldsheid, a Escola de Excepcionais, havia conseguido a muito custo sê-lo “provisoriamente”. Espero, sr. Juiz, que o senhor entenda a quem a República Federal Alemã concede esta classificação. Espero mesmo, porque eu não entendo não.
3. Nós nos comprometemos a:
a) a usar os donativos apenas para fins estipulados nos estatutos, isto é, para auxílio e educação de crianças física e mentalmente incapazes.
b) e que a referida finalidade se enquadra também entre as finali-
dades (que redação! Mas era assim que estava escrito, e a Secretaria de Finanças o exigia formulado exatamente desta maneira) especialmente reconhecidas como úteis pela alínea 5, da lista dos 7 dispositivos das diretrizes para o imposto de renda...
385O sino tocou. Era a hora do almoço. O almoço da primeira turma, entre eles também a Babs. Daí a meia hora viria a segunda. 81 crianças, sr. Juiz! Não é possível dar-lhes de comer de uma só vez! Os três garotos no gramado vieram mancando e tropeçando. A cadeirinha de rodas dava perigosos saltos. Babs olhou para cima. Sabia onde eu estava; podia me ver. Acenou.
Acenei de volta e ri ao ver seu rosto todo torto com aqueles óculos horríveis. Esta pobre massa humana, outrora tão festejada, THE WORLD’S GREATEST LITTLE SUNSHINE GIRL!
Jà estou descendo, Babs! chamei eu e acabei de bater:
NÓS LHE AGRADECEMOS DE TODO CORAÇÃO, TAMBÉM EM NOME DE NOSSAS CRIANÇAS, POR TODA SUA AJUDA E COMPREENSÃO.
Escola de Excepcionais Heroldsheid
Pela diretoria
I.A.
Tirei o formulário da máquina e com a pesada caneta de ouro, antigo presente da Sylvia, assinei depois do i.A: Philip Norton.
No almoço tinha sopa de letrinhas, verdura, batata, carne e alface.
De sobremesa, diversos tipos de pudins que as crianças podiam escolher. Os adultos também. Estes só almoçavam depois da segunda turma, uma vez que muitas crianças não eram capazes de comer sozinhas: tínhamos que lhes dar a comida na boca. Todos estavam ocupadíssimos. Todos, com raras exceções tinham grande apetite, a Babs inclusive. Veio mancando ao meu encontro quando entrei no refeitório, rindo, os olhos brilhando de alegria. A princípio não tinha sido assim, mas agora ela possuía seus amiguinhos, agora ela se divertia. De vez em quando ainda vinha uma fase ruim, variava sempre. A princípio não pensei que fosse agüentar, mas vendo a paciência, a amabilidade dos outros, aquela paciência imensa... Eu era o único adulto que muitas vezes se desesperou. Os adultos eram só paciência. Sabiam o que eu também já aprendera, que a cada melhora seguia-se uma recaída. Quando vinha a melhora, todos sem exceções ficavam satisfeitos, até eu agora, embora soubéssemos que a qualquer momento a coisa ia piorar.
Pudim disse a Babs falando ainda com grande dificuldade.
Chocolate, morango e baunilha.
Qual deles você vai querer?
Os três disse a Babs. Eu a pegara nos braços mas ela esperneou.
O que é?
Tenho que voltar. Ajudar a Alois. Saiu mancando. Alois, o
garoto paralítico da cadeira de rodas. Há semanas, com exceção de seus dias ruins, a Babs e a Jackie ajudavam a dar de comer a Alois, o filho do pequeno funcionário da pequena filial de um grande banco.
386Ficavam de pé, ajudavam com cuidado e carinho. Sorriam para Alois, que também sorria, a boca cheia, tentando engolir; engolindo. Há uns meses ainda a Babs também não comia só. Há uns meses...
Aqui em Heroldsheid eu, por vezes, me sentia como Guliver no Reino dos Anões. A maior parte das instalações eram realmente feitas para crianças. Com exceção dos lugares reservados para os adultos, também o refeitório parecia uma sala de anões. Mesas baixas, cadeiras baixas, talheres pequenos.
Não era só a sala de jantar, também o corredor com os ganchos para pendurar roupa. Ficavam lá embaixo! Na primavera, quando vim para cá tudo estava cheio de capotes, gorros e anoraques de tudo que era cor. A maioria das portas não tinha maçaneta; nas poucas que tinham, eram fixadas bem baixo. Os lavatórios eram pequenos e baixos para que as crianças pudessem alcançá-los sem a ajuda de ninguém. Os vasos nos banheiros também. Tudo era pequeno e baixo, até os dormitórios para onde as crianças eram levadas depois do almoço. Dormiam de uma e meia às duas. Adormeciam imediatamente em suas pequeninas camas iguais a dos Sete Anões da Branca de Neve. As salas de aula eram mobiliadas de tal jeito para que as crianças pudessem sentar-se confortavelmente, apanhar sozinhas o que precisassem. Os quadros de giz eram baixos. Quando havia degraus nos limiares das portas, estes eram disfarçados para facilitar as subidas das cadeiras de rodas, para que as crianças pudessem se locomover dentro delas sozinhas.
Havia muitas salas de aula. Suas portas tinham janelas redondas em altura normal. Do corredor podia-se observar as crianças sem que elas percebessem.
Depois do descanso havia mais umas duas horas de aula, e em seguida os grandes ônibus levavam todas novamente para casa. Só uma ficou desde o início: Babs. Morávamos numa casa bem pequena, na orla da mata distante da escola. Até a nossa chegada morava ali o chefe dos serviços gerais que também dava aulas nas oficinas. Logo, no entanto, se mudou para o centro de Heroldsheid e vinha diariamente com sua pequenina Fiat, a menor que existia. O diretor lhe havia explicado o meu “caso”.
Mas é claro dissera ele Mudo hoje mesmo. Com toda minha
tralha. - Tinha uma amiga em Heroldsheid em cuja casa poderia ficar. Chamava-se ele Karl Wondra, e não havia ninguém de quem as crianças gostassem mais. Gostavam dele principalmente porque entendia de tudo. Tudo.
- Você beijou a Babs..
Eu me virei. A Ruth estava diante de mim. Usava um vestido estampado de linho. Alisou meu braço.
- Fiquei observando vocês dois e estou muito feliz com o que vi, Phil. No ano passado, logo no início, você tinha ódio da Babs, chamava-a de fedelho, se revoltou contra seu destino que o obrigava a cuidar dela. Não adianta desmentir, eu sei, nunca toquei no assunto. Eu entendia você. Agora aconteceu um milagre. Enquanto era o ídolo, adorada por todos, você a desprezava.
387Ela sempre gostou de você. Agora que está doente, indefesa e deixou de ser idolatrada pelo mundo, agora que você assumiu toda a responsabilidade... Ela não comtinuou.
Você tem razão disse eu baixinho. Existem duas pessoas neste mundo que eu amo, a Babs e... toquei-a e ela recuou assustada.
E a Sylvia? disse ela.
É. Tem razão. Como é que isto vai continuar? Sempre assim?
Afinal somos gente como todo mundo!
Calou-se, olhou para a Babs enquanto eu dava de comer a uma criança epiléptica.
Depois de cada colherada, ela limpa a boca do Alois disse a
Ruth. Quando eu me lembro como ela veio para cá!
Não estou falando da Babs disse eu irritado. Perguntei em
relação a nós.
Não sei respondeu ela vai continuar. Tudo vai dar certo.
Você acha?
Acho. Tenho certeza.
Era uma quinta-feira, 24 de agosto de 1972. Toda quinta-feira a Ruth vinha fazer uma visita à escola para examinar as crianças, receitar novos remédios, discutir novas medidas terapêuticas. Nas salas de aula e nas recreativas havia um cartãozinho pendurado para cada criança com o nome dos remédios por ela receitados. Toda quinta-feira era dia de festa para mim.
- Phil - disse ela eu trouxe um jornalista de Nurenberg. Ele quer escrever um artigo sobre a escola. Eu disse a ele que você era o relalções-públicas, o homem a quem ele devia procurar. Precisamos de qualquer tipo de ajuda, mesmo que seja através de um artigo no jornal! Muita gente vai ler esse artigo. Você tem que falar com ele! Ele está cheio de boa vontade, e por favor...
O dr. Hallein veio correndo.
Sr. Norton!
- Sim?
Telefone de Madrid.
O fone estava em cima da mesa do diretor.
Pronto. Aqui é Philip Norton.
Lobinho! Meu Lobinho querido! Como está minha pequena Babs?
De onde você está falando, Bruxinha?
388- Do CASTELLANA HILTON. Estou com um dia de folga. Não consegui esperar até você ligar à noite.
Um apartamento de luxo no CASTELLANA HILTON em Madrid... a sala do diretor da escola de Heroldsheid perto de Nurenberg. Aqui cheirava um pouco a amônia e a outras coisas... A grande sala com os banheiros dos anões ficava logo ao lado. Dois mundos, pensei eu. E eu, apenas um empregado da Sylvia, nada mais...
A Babs está bem, Bruxinha. Está justamente na hora do almoço.
A fase de agressividade passou completamente?
Completamente disse eu pensando que íamos poder nos preparar para outra.
Que ótimo. Nós só temos mais dois meses de trabalho aqui, Lobinho. Depois vamos para os Pirineus. Mas qualquer dias destes, peço uma folga e vou dar uma olhada na minha Babs... faz tanto tempo! A lembrança deste encontro é que me dá coragem; do contrário já teria arriado há muito. Eu vou aí, posso, não é?
Claro, Bruxinha. Claro que não podia, de jeito nenhum.
Claro...
E os olhos?
Estão melhorando, Bruxinha. Mentira.
Graças a Deus. E ela... ela ainda manca?
Faz ginástica diariamente. Também está melhorando. Mentira.
- E...
Ela continuou a fazer perguntas.
Eu, a mentir.
Mentia diariamente. A Babs continuava como antes, com sérias lesões.
Tudo vai ficar bom; tudo. Talvez demore um pouco. Mas vai
acabar ficando boa.
Espero, Bruxinha.
Claro que vai. Não diga “espero”. Quando é que você vem a
Madrid?
Semana que vem.
Ora...
- O que é?
Sei que você não pode vir antes. Nós aqui dizemos a todo mundo
que você está viajando pela Espanha inteira fechando contratos, trabalhando em Paris, em Los Angeles. O Bob, aliás, é excelente. Todos acreditam que ele é seu assistente, porque você tem muito trabalho com este filme. Mas você tem que vir ao menos dois dias por semana... senão acabam desconfiando. Por enquanto tudo vai às mil maravilhas. Você viu o último número do TIME?
- Não. Por quê?
Eu estou na capa! Falava mais alto. A cover-story é sobre mim!
389E que reportagem! Você se lembra quando há seis semanas eles mandaram aqueles três repórteres e fotógrafos...
Lembro.
- Muito bem escrito, Lobinho. A MAIOR E SEU MAIOR FILME!
- O quê?
É o que está escrito na capa. Na reportagem não se cansam de
repetir que eu sou a maior artista do cinema; a maior que já houve! Tem uma porção de fotografias minhas muito boas. De você também. E da Babs. Do arquivo...
Que beleza!
A revista OGGI de Roma já se manifestou. O PARIS MATCH da
França também. Quando você vier, vai ter que passar no LE MONDE primeiro, antes de pegar meu avião. Aí você aproveita e passa na redação do PARIS MATCH e marca data com eles. Telefonaram da Alemanha, da revista STERN. Queriam vir no dia, mas Rod desconversou. Ele diz que não é bom vir todo mundo de uma vez. Diz que devemos aparecer nas grandes revistas do mundo inteiro até o término da filmagem. Embora só pela capa do TIME e pela reportagem, eu agora posso pedir os honorários e a participação que quiser.
Eu estava ficando tonto. Na sala do diretor via brinquedos primitivos, livros de figuras, discos. Através da janela, o gramado coberto de sol. Tinha que fazer um esforço para entender do que a Sylvia estava falando. A principio fiquei meio perdido.
Depois você tem que vir e armar aquele barulho! O Bob também
acha. Ele é apenas o diretor de produção, o chefe é você, Lobinho.
- Barulho?
Só porque você está tão pouco aqui, porque Joe não está nunca,
um número de cretinos cada vez maior, acha que pode fazer o que quer. Vão se tornando atrevidos, malcriados! Ontem mesmo fui obrigada a dar uns bons tapas na Cláudia...
Em quem? Quem é a Cláudia?
Mas Lobinho, você a conhece! A figurinista. Imagine só que o
vestido em que a Grusche se esconde no palácio enquanto os guardas a procuram...
O que houve com o vestido?
A Cláudia resolveu modificá-lo por conta própria. Agora está
comprido demais. Já é a quarta vez que ela faz uma coisa dessas! Porcaria de mulher! Ela me odeia!
Bobagem.
Bobagem nada! Disse pra Carmen... Carmen Cruzeiro, meu double, você sabe quem é. Foi você mesmo quem contratou.
Sim, eu me lembro. E o que foi que aconteceu?
A Cláudia disse à Carmen que odiava tudo que era americano. Ela
é parente de italiano, e os italianos odeiam os americanos, não é?
390Não que eu saiba.
Está bem; mas eu sei. E a Carmen veio contar pra mim. Logo a
mim que sou alemã! Será que a idiota não sabe disto?
Mas ela é a melhor figurinista que existe... principalmente quando
se trata de um filme histórico.
Pode ser... mas não deixa de ser uma grande idiota! E você vai
ter que dar um jeito nela. Tem que prometer que vai! Eu fiquei tão nervosa, que pensei que fosse ter qualquer coisa no coração. Você vai dar um jeito nela, promete?
Prometo.
E em Da Cava também!
Mas por que nele?
Ele também não passa de um grande cretino! Um déspota! Um
tirano! Aquela bruta escada do palácio, por onde eu tenho que despencar... você sabe...
- Sei.
Aquela escada desgraçada! Ele me fez despencar dali oito vezes!
Oito vezes, Lobinho! O corpo todo ainda me dói. Foi sorte eu não ter quebrado nada! Já tentou três vezes modificar o roteiro! O Bob é que impediu... mas ele também diz que botar ordem nisto tudo de uma vez por todas, só mesmo você é quem pode. Todo mundo aqui anda irritado...
É o calor, o cansaço da filmagem!
É ódio! Todo mundo aqui me odeia! Você nem imagina quanto me
odeiam, principalmente agora que saí na capa do TIME! Você tem que comprar a revista hoje mesmo.
Aqui não existem revistas estrangeiras. É um lugar muito pequeno,
Bruxinha.
Então manda alguém apanhar em Nurenberg! Agora mesmo! Lá
ainda deve ter. Você vai mandar alguém?
Claro, Bruxinha. Você tem que ficar calma. Daí a pouco estou de
novo com você.
Logo sua voz ficou triste:
Meu pobre Lobinho, eu sei em que você está pensando... Mas
não dá... não posso... nós já tentamos... É o filme, sempre foi assim, você se lembra... E agora minha filhinha, meu tesouro, ainda foi adoecer... Se você realmente gosta de mim, você vai entender... Eu sou uma mulher, tenho sentimentos, não sou um pedaço de carne.
- Eu entendo isso tudo respondi.
De fato desde que a Sylvia voltara da clínica do dr. Delamare, nunca mais dormimos juntos. Primeiro era por causa do grande sentimento de culpa. Depois a excitação com o novo filme. Não era o filme, eu sabia. Era o sentimento de culpa, de ambas as partes.
Não dormíamos mais juntos, mas nos amávamos perdidamente, todo repórter, todo fotógrafo podia vê-lo.
391O mundo inteiro também... na televisão, nos semanários, nas revistas.
A Sylvia continuava a falar. Eu já não prestava mais atenção. Não me interessava saber de quem ela se queixava. A Ruth tem os mesmos escrúpulos que eu, logo vou dormir com a Carmen. Não fazia o menor sentido eu também acabar maluco. Tudo afinal dependia de mim. A Carmen está sempre pronta, sei disto. Sempre estava, toda vez que eu ia a Madrid. Uma vida meio estranha a minha, não acha, sr. Juiz? ,
... dá um beijão no meu amorzinho.
Dou sim.
Um para você também... Depois de terminado o filme, tudo vai
voltar ao que era antes... Principalmente porque ai também vou poder ver meu amorzinho quando eu quiser... Eu o amo, Phil. Amo mais do que a minha própria vida.
E eu a você Bruxinha.
Hoje à noite vai ser o incêndio na cidade. Você não vai poder se
comunicar comigo. É a cena com toda aquela multidão. Vou trabalhar à noite. Amanhã também. Só vou poder falar com você depois de amanhã. Guardo você em meu coração, Lobinho. Adeus, amor.
Adeus.
O suor me escorria pelo corpo inteiro quando larguei o fone. Se a Sylvia soubesse, se ela imaginasse como a Babs ainda estava mal e que ia continuar assim por muito tempo ainda, para sempre talvez... não posso dizer a ela. Ela, a maior, tem que continuar a rodar seu maior filme. Pobre Sylvia!
É realmente uma pobre criatura, pensei eu, não ignora a doença da Babs, sofreu por causa dela... De repente reparei num bilhete ao lado do telefone. Li:
Prezado sr. Norton,
Esta manhã, ouvi lá na minha sala, seus xingamentos por causa da máquina quebrada. Colocamos uma nova máquina em seu escritório; esperamos que fique satisfeito com ela.
Perdão, Hallein
O jornalista do NURENBERGER MORGEN era moço ainda e muito simpático. Estava sentado com a Ruth numa mesa de canto. Em outra mesa grande, todo o corpo docente da escola, A segunda turma das crianças
392saía do refeitório. Para crianças e adultos a comida era a mesma. Ao me aproximar, o jornalista se ergueu.
Florian Bend disse ele, se apresentando.
Muito prazer, Philip Norton. Sente-se por favor, sr. Bend.
Uma cozinheira trouxe um prato de sopa para mim. Bend disse:
A dra. Reinhardt me contou que o senhor era o homem a quem eu
devia procurar. O senhor tem até uma filha excepcional aqui...
Ruth olhou para mim.
Tenho sim, sr. Bend.
... e por ser mais conveniente, o senhor veio morar com ela aqui
não foi? O senhor é o relações-públicas da escola, encarregado também de toda a correspondência oficial, faz muitas visitas...
Exatamente respondi eu. Ando muito por aí. O senhor deve
imaginar que não é fácil conseguir donativos para a nossa escola. Procuro organizar uma série de coisas, para angariar fundos.
Por exemplo? perguntou ele e acrescentou: Faz alguma
diferença se eu ligo meu gravador? Não sei estenografar.
Pode ligar. Comíamos e falávamos; principalmente eu. Primeiro, nenhuma criança aqui, não importa se é filha de operário ou de diretor-presidente, nenhuma delas paga um tostão. Para nada. Tudo que aqui fazemos pelas crianças sai absolutamente de graça para os pais.
Mas os ricos poderiam contribuir.
Dizem que todos os homens são iguais, não é? Todas as crianças
também. Nós aqui, sr. Juiz, não queríamos que umas fossem mais iguais do que as outras.
Mas afinal, fazer alguma doação, os pais de maiores posses bem que
poderiam.
E eles fazem.
Nem todos, disse.a Ruth.
Infelizmente não concordei eu. E é por isso que estamos
constantemente precisando de dinheiro. É por isso que meu trabalho aqui é de pidão. O senhor não faz idéia como vivo mendigando, quanta gente procuro, tudo que invento.
Por exemplo?
Consegui que dois clubes de futebol de Erlangen e Nurenberg
jogassem um amistoso. Depois de descontadas todas as custas, despesas e impostos pingaram quase dois mil marcos. Os jogadores não exigiram um tostão.
E o fisco?
- Este, é claro que sim disse Ruth.
O fisco está sempre presente continuei eu Em tudo. Quando
nós... ou melhor, quando eu consegui que os artistas famosos promovessem suas noites de espetáculos, quando organizamos campeonatos de xadrez, ou um bazar em Heroldsheid, os comerciantes de Nurenberg deram tudo que é
393possível e imaginável, de graça. Os moradores de Heroldsheid vieram e compraram. O fisco também veio...
E o senhor sempre com dívidas disse Bend.
O sol incidia sobre seus cabelos ruivos; os fios pareciam macios e sedosos. Nos terrenos da SEVILLA FILMS em Madrid, esta noite a capital da Crusínia vai pegar fogo, pensei eu, a capital daquela província de épocas longínquas, no distante Cáucaso. Uns 4.000 comparsas devem estar trabalhando lá; a Sylvia vai trabalhar também, e o filme que está sendo rodado custará 25 milhões! O que diriam eles se eu propusesse que o lucro líquido deste gigantesco filme fosse doado a uma escola para excepcionais como esta? Iam me botar no xadrez, na certa. Claro, ora.
Exatamente; sempre em dívidas disse eu. O Estado afinal
tem suas normas que devem ser cumpridas... até nestes casos.
Como?
A escola é mantida pelo Estado. Todo ano temos que prestar
contas nos mínimos detalhes. Esta conta é apresentada ao Estado que nos restitui os gastos no prazo de um ou dois anos.
Um ou dois anos?
Exatamente disse eu. O Estado tem muitos compromissos, sr.
Bend. Além disso, por lei, as crianças são consideradas responsáveis por sua manutenção...
Não diga! exclamou Bend.
É isto mesmo continuei eu Acontece ainda que não somos
apenas uma escola especializada, somos também um semi-internato. Estas despesas extras, o Estado não cobre. Temos que apresentá-las em contas separadas aos órgãos de previdência social das respectivas comunidades de onde são nossas crianças. E elas vêm de muitas.
E estes pagam tudo? perguntou Bend.
Nos últimos dois anos, deixaram de restituir mais de cem mil
marcos.
Alegando o quê?
Não alegando nada. Nós afinal já ficamos satisfeitos quando nos
pagam alguma coisa.
Mas neste caso disse Bend excitado se o Governo leva um a
dois anos para indenizá-lo, então o senhor se vê obrigado a usar o crédito social.
Exatamente.
Mas de bancos! A juros exorbitantes!
Que jeito, sr. Bend? disse eu.
Escute uma coisa: Meu jornal se propõe a iniciar uma grande
campanha para a sua escola.
O senhor faria isto? disse a Ruth sorrindo.
Faria... - Bend estava meio sem graça. Eu aliás já venho
fazendo esta proposta há tempos, e agora...
394Há quanto tempo?
Como?
Há quanto tempo o senhor vem fazendo a proposta? perguntei
eu.
Há quase dois anos disse ele ainda sem graça, mas logo ergueu
a cabeça orgulhoso. Mas agora eu consegui convencê-los, mesmo os mais
obstinados. Meu jornal está preparando uma “Campanha Heroldsheid”. Eu lhes prometo, que no final os senhores vão receber uma boa bolada de nossus leitores.
Espero que o senhor não esteja enganado disse eu.
Enganado, como?
Ninguém quer ler nada a respeito de crianças como as nossas aqui.
Levantou a cabeça e disse com certa presunção:
O que eu escrevo, todo mundo lê, sr. Norton. E desta vez o fisco
não vai se intrometer, disto eu também me encarrego.
Bem, então eu acho que o senhor deveria é ocupar o meu lugar.
Corou como uma donzela!
Ora, sr. Norton!... Eu vou ficar rodando por aí nas próximas
semanas. Quando tiver qualquer dúvida, procuro o senhor. O senhor sabe
tanta coisa, eu não entendo nada disto. Se você soubesse...pensei eu. Se
soubesse que há alguns meses ainda eu não entendia de absolutamente nada!
Só vou incomodá-lo com as minhas perguntas quando o senhor tiver
tempo. Agora por exemplo, dá?
As crianças ainda estão dormindo disse a Ruth virando-se para
mim. Eu só posso começar a examinar mais tarde.
Eu ainda tenho muita correspondência para... ora, deixa pra lá.
Pode perguntar, sr. Bend.
Primeiro só o essencial: Quantas crianças o senhor tem aqui
no momento?
No momento, oitenta e uma.
De que idade?
De quatro a vin... Calei-me de repente.
O que foi? perguntou Bend.
Temos algumas que já fizeram vinte, ou vão fazer agora. Na
verdade, pelo regulamento elas não deviam estar aqui pois só atendemos crianças até dezoito anos; mas elas têm que ficar aqui. Ninguém as aceita; não têm para onde ir. São doentes demais; precisam da escola. Sem ela
estariam perdidas. Me lembrei de repente do papagaio lá no saguão de
mármore do CASTELLANA HILTON, em cima do poleiro ao lado do chafariz, que diz algumas frases em seis línguas diferentes.
Então escrevo: até dezoito anos, é claro disse Bend.
De quantos professores o senhor dispõe?
Temos o diretor disse eu. Ele tem formação especial para
esse tipo de trabalho. É auxiliado por uma professora primária, que é encarregada também de toda a parte administrativa.
395Além disso temos duas terapeutas, quatro professoras especializadas, duas professoras de ginástica especializadas, uma logopedista...
O que é isto?
Alguém que procura corrigir os defeitos da fala. O senhor já deve
ter reparado que as nossas crianças têm muita dificuldade em falar. Não conseguem articular direito as palavras, não se consegue entendê-las; algumas até são mudas.
E o que mais? Continue disse Bend.
Temos ainda uma professora de desenho que é ao mesmo tempo
professora de artes, trabalhando nas oficinas; um responsável pelos serviços gerais que também ensina aos garotos maiores a trabalhar em madeira e metal; um professor de música, uma professora de jardim de infância para os menores, três cozinheiras, duas serventes e, o que é muito importante, os refratários, pois sem eles nada aqui funcionaria.
Uma das cozinheiras trouxe café para todos.
Quantos refratários? perguntou Bend.
Uns sete ou oito, o número varia constantemente, mas ainda é
pouco. Temos ainda os auxiliares voluntários; com estes no entanto não podemos contar, pois vêm e vão constantemente. E é só.
E o senhor acrescentou Bend.
Sim, e eu. Fui tomado de grande espanto.
Rei, capitão, soldado, ladrão
Playboy, gigolo, chantagista, vigarista, cáften.
Tudo isto eu poderia ter imaginado. Muitas dessas coisas quis ter sido. Muitas fui.
E agora?
Tudo uma loucura. Uma loucura completa; total, pensei eu.
Heroldsheid, 24 de agosto de 1972.
Prezada sra. Kreuzwendedich,
Agradecemos-lhe de todo o coração a remessa de DM 350 (trezentos e cinqüenta marcos) que fez chegar a nossas mãos em cheque, para, de acordo com suas instruções, adquirirmos a roupa de verão de que necessita seu afilhado Konrad Vetter...
Estava mais uma vez sentado no meu pequeno escritório, escrevendo na minha máquina nova, que o diretor mandara trazer diante dos meus xingamentos, que ele ouvira em sua sala.
396Aquilo é que era máquina! Que coisa fantástica! Eu estava feliz. Tão feliz que liguei para ele. Pronto.
- Aqui é Norton, sr. Hallein. Queria lhe agradecer a nova máquina. É formidável.
Ouvi Hallein dar uma risada.
O que foi?
O senhor está realmente trabalhando demais. Aquela é uma de suas
máquinas.
Minhas?
- Sim. Existem outras ainda na casa, suas também. Minhas?
Há três meses o senhor mandou uma carta a uma firma pedindo
donativos. Em reposta ela nos mandou três máquinas. Bem e agora...
Ri também.
Viu como vale a pena pedir? Para quem o senhor está escrevendo
agora?
Estou escrevendo uma carta de agradecimentos à sra. Kreuzwende-
dich. Ela não mandou dinheiro para o Konrad?
É mesmo. Claro. Agora com o verão, as pessoas de repente ficam
generosas.
- Não fale! Na verdade nem sempre são trezentos e cinqüenta marcos. Tenho que agradecer também os dez marcos enviados para a Helga, os quinze para o Peter, e os vinte e cinco e cinqüenta para a Erika... Qual será a explicação destes cinqüenta Pfennigi
Talvez ela não tivesse mais um marco inteiro sobrando disse
Hallein. São pessoas de bom coração que nos ajudam. Mesmo que seja só meio marco. As pessoas são boas... a maioria ao menos é. Temos que retribuir.
Pendurei o fone. Grande sujeito aquele diretor! O único que aqui sabia a verdade sobre mim e Babs. Por isso tinha licença de usar sempre seu telefone. Tinha acesso a sua sala, mesmo de noite.
As crianças tinham acabado sua sesta do meio-dia. Que barulheira! Quanta gargalhada gostosa num lugar de tanta desgraça e miséria!
O repórter ruivo do NURENBERGER MORGEN, não vai conseguir entender esta confusão toda. Eu a princípio também não consegui.
A Ruth agora deve estar examinando as crianças, pensei eu.
A escola possuía um laboratório no subsolo. Exames mais complicados não podiam ser feitos; nestes casos a criança era levada para Nurenberg para a Casa de Saúde Sofia. Mas a Ruth tinha os relatórios feitos pelas pessoas que lidavam diariamente com as crianças, sabia de seus progressos e regressos, seus medos e inquietações, sua diminuição na capacidade de concentração (uma característica marcante de todas estas crianças, da Babs evidentemente também. Além disso, ela ainda se cansava com grande facilidade).
397A Ruth receitava novos medicamentos, tomava novas medidas terapêuticas.
A Babs agora devia estar na aula da Prof. Gellert, como aliás todos os dias a esta hora.
Num quarto afastado no primeiro andar, trabalhava Vera Gellert, moça jovem ainda e bonita, psicóloga e logopedista tarimbada. Logopedia é uma palavra que vem do grego e significa a cura dos defeitos da fala. Todas as crianças aqui tinham aula com d. Vera. A moça tinha medo de homens. Procurava esconder, mas percebia-se logo.
Todas as tardes ela ia para Nurenberg no VW todo amassado de uma outra professora (eu mesmo já tinha visto) e voltava no dia seguinte com a mesma colega. Hallein me havia contado sua estória. Seu pai morrera na guerra, na Rússia. Nunca o tinha visto. Em 1954 a mãe casou pela segunda vez. O matrimônio que durou nove anos, foi um verdadeiro inferno. Vera Gellprt temia e odiava o padrasto. Finalmente separaram-se. Vera a partir daí se dedicou com imenso carinho à mãe; imenso ficou sendo também seu medo dos homens. Em criança tinha presenciado tanta brutalidade por parte deles! Foi para a faculdade, queria ter uma profissão, em que pudesse lidar com crianças. Apenas crianças, crianças doentes.
Psicólogas existem muitas. Logopedistas, muito poucas. Vera Gellert era formada em logopedia.
Enquanto escrevia, me lembrei de quando ela começou a trabalhar com a Babs, exatamente como continuava até hoje, eu bem o sabia.
A principio, a Babs ficava sentada à mesa da sala da d. Vera com imensos fones nos ouvidos. Sentava no sentido do comprimento. Diante dela ficava um aparelho, que lembrava um telefone dos tempos antigos.Era provido de uma escala graduada e numerosos botões. Em sua frente estava um microfone e havia uma quantidade de cartões espalhados, do tamanho de cartas de jogo com os mais diversos desenhos: árvores, flores, bondes, bolos, casas, rios... Havia uma quantidade imensa destes cartões, muitos deles representavam situações bem simples.
Era um dos inúmeros recursos de que dispunha d. Vera. O mais simples deles; tinha um armário cheio de cartões, usava-os da seguinte maneira:
A professora colocava uma carta em cima da mesa. Apontando com o
dedo para a figura, ela dizia ao microfone com a maior clareza: Isto é um
garoto...
Nenhuma reação.
Ela rodava os botões. Sua voz soava mais alta aos ouvidos da Babs.
Isto é um garoto...
Nenhuma reação ainda.
Aumentava o volume do aparelho mais um pouco. A voz nos fones aumentava.
Isto é um garoto...
398Desta vez a Babs ragiu. Finalmente!
Éoto... disse ela.
Isto é um garoto!
Eaoto...
Essa reprodução fonética dos esforços da Babs não devem confundi-lo, sr. Juiz, diante da maneira como sempre reproduzi sua fala. Eu o faço apenas para mostrar como reaprendeu a falar. Agora já se entendia perfeitamente o que dizia, às vezes com algum esforço, é verdade. Ao terminar sua fase de mudez total, a princípio raramente conseguia formular frases com mais de três palavras, nunca chegava a seis. Ficava sempre uma parte para ser adivinhada, mas quando se está em contato assíduo com uma criança, não é difícil entendê-la. Além disso, raras vezes ou quase nunca usava a linguagem para indicar que gostava ou não gostava de alguém, que estava satisfeita ou com medlo. Toda parte afetiva ficava por conta da mímica.
Repetia portanto.
Dez vezes talvez.
Depois, com a testa enrugada pelo esforço, a Babs disse:
Iséuaoto... Ainda era difícil de se entender.
Quanto tempo leva?
Anos. sr. Norton.
Com aulas diárias?
Diárias. É preciso construir lentamente, com o máximo de cuidado... nunca insistir demais... porque estas crianças se cansam muito rapidamente...
A senhora deve ter uma paciência...
Tenho sim, sr. Norton.
E tinha mesmo. A maior paciência do mundo! Nunca consegui entender como alguém pode ter tanta paciência como Vera Gellert.
A maior paciência do mundo...
Depois de um certo resultado, outros cartões passavam a ser usados.
No dia seguinte a mesma coisa. Durante meses a mesma coisa, sempre com outros cartões. Aos poucos, muito devagar, ia ajudando com outras perguntas.
Onde está o cartão com o carro? perguntava ela por exemplo.
Ou então:
O que tem em cima deste cartão?
Ou ainda:
Agora é você quem vai me contar alguma coisa. Pode escolher o
cartão que quiser.
Por vezes também ela fazia uma afirmação falsa, na esperança de que houvesse alguma contradição:
Isto é um trem. Ele nada no rio.
Trem não! Navio. Trem nunada...
399Ela ficava realmente satisfeita ao menor sinal de melhora, ela e todos que aí trabalhavam, sr. Juiz, isto eu lhe posso jurar. Qualquer reação correta, quaiquer progresso por menor que fosse, era uma alegria para todos. Existem mulheres que ficam felizes quando ganham um casaco de pele. Existem outras (isto eu só fui aprender depois que a Babs adoeceu e que eu conheci a Ruth e Heroldsheid), que ficam muito mais felizes ainda quando uma criança excepcional consegue usar o vaso sozinho pela primeira vez depois de ter sido levada para lá e ajudada durante três, quatro, oito anos às vezes.
Estas mulheres, moças e homens, no entanto caminham no escuro, os outros em plena luz. Só se vêem os na luz; os outros ninguém vê não...
Heroldsheid, 24 de agosto de 1972.
Prezado senhor diretor:
Por favor, não jogue esta carta fora logo ao recebê-la, com seu folheto anexo. Sei que está sobrecarregado dê serviço, mas arranje um tempinho para ler o que aí lhe escrevemos.
O senhor certamente já ouviu falar de Heroldsheid, a Escola para Excepcionais. O senhor sabe então, ou poderá ler no folheto, que esta escola é a última esperança, a única salvação para quase cem crianças que aí encontraram um caminho para a vida, apesar da gravidade de seu estado. Outras centenas de crianças esperam por uma vaga; seus pais pedem e imploram, estão inscritos em enormes listas. Infelizmente esta nossa escola não pode atender a um número maior de crianças.
Há três anos, sr. Riehle, o destino e futuro das 94 crianças que aqui viviam, ou melhor aprendiam a viver, pendia por um fio. Nossa escola estava às portas da falência. Os responsáveis...
Telefone.
Atendo.
Pronto.
Quer fazer o favor de dar um pulo aqui embaixo, sr. Norton.
Telefonema de Madrid. Era Hallein, o diretor.
De novo? Pouco antes do meio-dia já falei com a sra. Moran...
Não é a sra. Moran; é voz de homem.
- Desci correndo a estreita escada, passando por aquarelas misteriosas, enigmáticas, maravilhosamente incompreensíveis, pintadas pelas crianças e que haviam sido coladas ali. Voz de homem? De que homem? O que havia acontecido?
400No andar térreo a confusão era grande. 16 horas. Término das aulas. No pátio de cascalho estavam os enormes ônibus. Algumas crianças já estavam instaladas neles. Outras ainda vinham empurradas em suas cadeiras de roda. O rapaz forte de barba que eu conhecera no meu primeiro dia, carregava Josef jogado por cima do ombro como se fosse um saco de farinha. O rapazinho tinha dezessete anos, era espástico.
Abri caminho por entre as crianças e finalmente estava a sós na sala do diretor. O fone estava em cima da mesa. Peguei-o rápido. O sol batia com toda força na mesa; as janelas estavam abertas de par a par.
Pronto.
Aqui é Rod.
Você tem que vir para cá. Imediatamente.
Mas eu não posso... Tenho tanta coisa para... Vou na próxima
semana...
Você vem amanhã. O jato está a sua espera em Orly.
Mas por quê? Aconteceu alguma coisa?
Se aconteceu!
Com a Sylvia?
- É.
Ela está doente? Machucou-se? Falei com ela quatro horas atrás, e
tudo estava em ordem!
É o que nós também pensávamos.
O que é que você quer dizer?
Já liguei também para Lejeune e para o dr. Levy. Você deve se
encontrar com eles em Paris. Amanhã ao meio-dia. No LE MONDE. Eles vão com você. Bob diz que...
- Que Bob?
Bob Cummings, seu idiota. Seu diretor de produção, idiota!
O que houve com ele? O que está havendo?
Confusão. Da grande! A desgraçada daquela mulher!
- Sylvia?
É! Ela mesma!
Não precisa gritar.
Ora, vá à merda seu mentiroso de uma figa!
Eu! Mas por quê...?
Você me disse que nunca mais teve nada com Sylvia desde que ela
foi obrigada a se separar da Babs.
Sim e daí? É a pura verdade. Quando vou a Madrid, ela se tranca no
quarto do hotel. Tem verdadeiros ataques de histeria só de eu lhe tocar. Nunca mais me beijou. Nunca mais mudou roupa na minha frente... Tudo sempre atrás de portas trancadas, é uma loucura! Mas eu entendo. O choque. Os sentimentos de culpa. O medo pela Babs...
Merda...
O que?
401Ora, sentimentos de culpa, medo... tudo uma merda!
Mas por quê?
. Bob vai lhe contar tudo.
Bob? Por que ele?
Porque há duas horas um operário lá da iluminação, um espanhol,
sujo, imundo, todo suado, veio a ele dizendo: “Senor Cummings, preciso de dinheiro mas não tenho nada e o senhor vai me dar. Não é pouco não, assim mesmo o senhor vai dar, tenho certeza, posso até jurar”.
Chantagem?
Você é realmente muito vivo!
Chantagem com que?
A tua querida Sylvia, a mãe sofredora, a pobre mulher abatida pelo
destino, que nunca mais deixou você trepar, na sua imensa dor pela Babs, andou se metendo com o merda desse sujeito.
Ela fez o quê?
Você entendeu muito bem! E não foi uma vez só não! Todos os
dias da semana passada! Às vezes de noite no seu barraco, às vezes lá fora, atrás de um cenário qualquer. Levantava a saia, desabotoava a braguilha dele, e pronto!
Isto é mentira!
Mentira? E como foi que ela admitiu logo, assim que o Bob foi
falar com ela?
Então... então...
Para de gaguejar!
Então ela ficou maluca! Tem que ser internada! O filme tem que
ser interrompido!
Você realmente tem merda na cabeça. Maluca! Internada! Interromper filme! Quer que eu lhe diga uma coisa? Joe está dando tudo que pode. Todos lá estão, e todos aqui também. Você nem vai acreditar quando vir a parte que já foi rodada! Nunca na vida a Sylvia esteve tão fantástica, tão formidável! Nunca, em época nenhuma, em lugar algum, uma artista trabalhou como a Sylvia neste filme!
Quer dizer então que eu tenho que ir correndo, para representar
mais uma vez diante de repórteres e fotógrafos o papel do “casal do século vinte”, antes que transpareça qualquer coisa, não é?
Meus parabéns. A cuca funcionou rápido. Amanhã à tarde você
está aqui então! E como eu não respondesse logo, por não conseguir
articular palavra alguma, ouvi-o berrar: Você vem! Isto é uma ordem!
Entendeu?
Entendi respondi eu.
Isto não é loucura, é coisa que acontece com freqüência nestes
casos. É apenas uma das inúmeras variantes do atordoamento, da sensação de culpa, do desespero disse a Ruth.
402Estávamos sentados num banco no enorme gramado diante da pequena casa onde eu morava com a Babs. O sol ainda brilhava. Tudo estava florido, lindo! A casinha velha toda coberta de hera e de flores roxas. O silêncio era tão grande, tão grande como se fôssemos os únicos seres vivos no mundo. Fim de tarde. Os ônibus com todas as crianças já foram embora; os adultos também. Muitos tinham carros (nenhum Rollys Royce, nem Maserati), mas nem todos. Muitos iam de carona.
Eu havia comunicado ao diretor que precisava ir a Madrid no dia seguinte, com a maior urgência. Nem perguntou por que.
Claro, se é urgente. Por isso mesmo lhe arrumamos este serviço
para que possa se ausentar quando for necessário, sem causar suspeitas. A
sra. Pohl ficará em seu lugar A sra. Pohl era a segunda professora, pessoa
de confiança de Hallein, moça ainda, muito atraente e elegantemente vestida (não com Pucci, Leonard, nem Dior, mas elegante em sua simplicidade). Era casada com um agente de seguros, tinha dois filhos muito bonitos, e morava bem perto, em Heroldsheid mesmo, numa pequena casa de decoração moderna. Numa das muitas vezes que fui convidado, contou-me que ela mesma havia feito o projeto e que a casa ainda estava onerada com pesada hipoteca.
Mas é nossa, e estamos felizes!
Esta era portanto a sra. Pohl que me substituía sempre que eu viajava oficial ou extra-oficialmente. Fora ela também quem me ensinara a fazer todo aquele trabalho, pois antes eu não tinha a menor idéia daquilo tudo.
A Babs fica com a sra. Gosser, como sempre, disse c diretor.
Esta idéia da sra. Gosser olhar pela Babs durante as minhas ausências tinha sido formidável. Idéia do Hallein. Daí a pouco conto como tudo começou.
Como já disse, estávamos sentados num banco diante da casinha coberta de hera, Ruth e eu, no sol, em meio a toda aquela beleza, silêncio e paz, rodeados de árvores floridas. Lá dentro ouvia-se uma música suave. O senhor conhece aquelas gravuras antigas, sr. Juiz, gente humilde “Felizes em seu Cantinho”? Kitsch? Mas era exatamente o que nós parecíamos sentados naquele banco diante daquela casinha, ao sol da tarde.
É comum uma mulher se portar como a Sylvia? perguntei
perplexo.
Muito comum. Outras se embriagam, viram prostitutas, se suicidam, procuram matar o marido.. Grandes perspectivas! Eu uma vez
lhe disse que os pais de crianças deste tipo não escapam, a não ser que antes tenham levado uma vida muito equilibrada... desculpe, muito regrada. Este
não foi seu caso, nem o da Sylvia (Há alguns meses a Ruth não dizia mais
sra. Moran.)
- Não. Nunca levamos mesmo.
- A Sylvia é sem dúvida uma grande artista, a maior talvez, mas ela sofreu um grande golpe. Tudo que aconteceu... a começar pelo fato dela o repelir, é histeria. Autêntica histeria. Não tem nada a ver com o fato dela
403agora trabalhar como nunca. Muito pelo contrário; é exatamente a histeria e o filme que tem por tema a criança, que fazem com que ela trabalhe tão maravilhosamente.
Mas ela arrisca tudo, a si mesma e o filme, sua carreira, seu futuro,
tudo!
Certo. Eu... eu tenho pena dela Phil. É uma pobre mulher digna
de compaixão. Só espero que ela não piore.
Piorar?
Sim. O que ela está fazendo agora ainda não é nada. Existe coisa
bem pior.
Uma brisa começou a soprar depois do calor do dia. A música silenciara. Tudo era silêncio. A Ruth colocou a mão em cima da minha.
Não é fácil para você, Phil. Nada fácil. Mas por favor agüente,
Phil. Por favor!
Agüento qualquer coisa enquanto você estiver a meu lado
respondi eu.
A Babs veio capengando saindo da pequenina casa. Apertou-se contra mim, alisou meu braço. Depois alisou o braço da Ruth. Esta a pegou no colo. Ela encostou a cabeça no peito da Ruth sem dizer uma palavra. Mesmo através das mais fortes lentes de estrabismo consegue-se ver quando os olhos de uma criança brilham de felicidade!
A Babs vive tão satisfeita comigo aqui durante meses, mas sempre
que você chega se aperta contra você, a beija e acaricia, ronrona satisfeita como um gato quando você retribui suas carícias. Por que será que gosta tanto de você?
Ela se sente protegida.
Mas ela tem a mãe! Nunca, Ruth, nunca ela perguntou pela mãe!
Vai ver que nem se lembra mais dela. Tenho a certeza, aliás. Na
verdade nem sabe quem ela mesma é, nem como se chama. Lembra-se apenas de Babs, porque todos a chamam e sempre chamaram por este nome. O seu ela também conhece; o meu, não garanto. Mas ela me conhece. Fora disso esqueceu tudo. Agarra-se às pessoas que lhe dão carinho, calor e proteção...
...teção repetiu a Babs, a cabecinha encostada no peito da
Ruth.
O sol começara a se pôr. Lá no poente o céu azul foi se tingindo primeiro de cor-de-rosa, depois ficando cada vez mais vermelho até parecer estar em fogo. Por cima de nós, foi se tornando mais pálido. Parecia imenso, tão vasto como nunca. Vi três carneirinhos no céu.
404“Love is a many splendored thing”...
Como foi mesmo o nome deste filme cujo tema musical soava agora aos meus ouvidos? “Hollywood in Rythm” chamava-se o LP, tocado pela orquestra de Ray Conniff.
Este e mais outros discos de Ray Conniff eu havia comprado em Nurenberg por ser a música que a Babs mais gostava. Lá na escola, agora vazia e abandonada, de portas e janelas trancadas (eu trazia as chaves comigo no bolso) havia muitos discos e vários toca-discos. Eram usados como musicoterapia, pois este tipo de criança gosta de ouvir música; faz bem a elas. A música relaxa, acaba com a agressividade. Musicoterapia é muito importante. O Hallein me havia emprestado um dos toca-discos.
Estávamos agora dentro de casa. Na pequenina casa, de decoração modesta. O banheiro, a sala, o quarto, a cozinha, tudo era velho, com móveis velhos e usados. No chão da sala um tapete de retalhos; uma televisão no canto. Tudo conforme eu o havia encontrado. A Ruth estava sentada a meu iado num sofá velho, cujas molas rangiam a qualquer movimento, o forro estava puído em diversos lugares e o enchimento aparecendo.
E o disco continuava...
Babs começara a se movimentar. Com aquelas pernas não conseguia evidentemente dançar; com seu pobre cérebro não conseguia fazer movimentos que correspondessem ao ritmo da música, mas estava tão fascinada que sentada no chão com as pernas atrofiadas, começou a mover o corpo de um lado a outro, às vezes no ritmo, às vezes fora dele. Movia os braços em círculo, ria feliz. Chegou a se levantar, deu alguns passos; caiu. Continuou a rir. Claro que nada disto era agradável de ser visto, para os outros ao menos, mas não para mim ou para a Ruth.
Você é tão bom disse ela baixinho.
Que nada respondi no mesmo tom de voz.
É tão bom repetiu ela. Tão bom para a Babs! Como é
mesmo que a Sylvia diz no filme? Como termina a peça de Brecht?
- “Que aquilo que existe pertença àqueles que lhe tragam o bem”
disse eu acabrunhado “as crianças aos maternais, para que elas cresçam
felizes e se desenvolvam”.
- Isso mesmo disse a Ruth.
Ficamos olhando a Babs se esforçar, cair, rir para nós com aquele rostinho tão querido, tão horrível. Ríamos também, aplaudíamos e ela continuava com seus esforços ao som de “might as well be Spring” (“Podia muito bem ser Primavera”). Finalmente exausta, ficou esticada no chão, de costas, arquejando.
Desliguei o toca-disco.
405A Ruth pegou a Babs no colo; esta colocou os bracinhos em torno do pescoço da médica. Apertou-se contra a Ruth que a acariciava e lhe beijava o rosto. A Babs olhou para mim com seus olhos de estrábica (os óculos tinham caído no chão), e perguntou:
Bonito?
Lindo, Babs! disse eu. Muito bonito.
A noite veio.
O céu estava semeado de estrelas. Ouvia-se o barulho do vento. Babs dormia em sua cama. (Eu dormia num velho sofá da sala, desde que tínhamos vindo para cá). Já tínhamos jantado. A Ruth preparara batata assada, ovos estrelados, alface. Toda vez que eu “viajava”, a sra. Gosser cozinhava. Quando eu e a Babs estávamos sozinhos, eu me encarregava da cozinha. Tinha aprendido alguma coisa, as cozinheiras da escola me haviam ensinado o indispensável.
Enquanto a Ruth cozinhava, eu dera um pulo até a casa da sra. Gosser.
D. Beate Gosser tinha cabelos brancos penteados austeramente para trás; era viúva de um funcionário. Devia ter seus setenta anos. Morava em Heroldsheid, onde ocupava um quarto, banheiro e cozinha em casa de um quitandeiro. Era uma mulher muito só. Havia perdido o filho na guerra; não tinha mais parentes. Por isso fora fácil resolver o problema de quem cuidaria da Babs quando eu tivesse que me ausentar.
Já sei, a sra. Gosser! exclamara Hallein na época, e ele mesmo
tinha ido comigo a sua casa. Esta logo se entusiasmou. Gostava de crianças. No dia seguinte houve pois, seu primeiro encontro com a Babs. Eu receava que a Babs não fosse simpatizar com ela, mas muito pelo contrário.
Mulher cheira bem! dissera ela depois de tudo combinado e da
sra. Gosser ter se retirado. Com isto o problema estava resolvido. Fui portanto procurá-la para lhe dizer que ia precisar dela mais uma vez, a partir do dia seguinte pela manhã.
Fico muito satisfeita fora sua resposta, e ainda me dera quatro
peras enormes para a Babs. Leve, sr. Norton, ainda tenho mais. Foi o
quitandeiro que me deu...
As quatro peras estavam agora na mesinha ao lado da cama da Babs.
Eu e a Ruth estávamos sentados perto. No quarto havia apenas a claridade da luz da sala, mesmo assim podia ver perfeitamente o rosto da Ruth. Ficávamos olhando um para o outro, em silêncio, por muito tempo.
406Depois contei a Ruth tudo a respeito da minha vida desperdiçada, desregrada, gasta com mulheres, jogo e bebida. Eu já sabia tanta coisa a respeito de sua vida, ela tão pouco a respeito da minha!
Ouviu em silêncio. Ao terminar ela me disse: v
Agora gosto de você mais ainda.
Depois de ter ouvido tudo isso?
É. Porque só agora vejo o quanto você faz pela Babs.
Calei-me e ficamos olhando para a criança” que dormia profundamente, respirando calma e compassadamente. Ouvi o vento sussurrar lá fora. Estávamos sentados na cama, mudos, olhando um para o outro...
Às onze horas a Ruth disse que ia embora.
Tenho que levantar cedo amanhã. Você também. Foi uma noite
muito agradável.
- Foi.
Lá fora evidentemente ela tomou logo a direção errada... seguiu para o lado da mata. Alcancei-a, peguei seu braço e voltamos. Há muito não falávamos neste seu problema. Fui com ela até o VW branco, abri o grande portão de grade e me despedi.
Boa noite, Phil. Boa sorte. Ligue para o hospital quando precisar
de mim. Estou esperando. E...
- Sim?
Volte logo, por favor.
Quis abraçá-la, dar-lhe um beijo, mas ela já estava instalada atrás do volante. Subiu o íngreme caminho da mata e eu fiquei olhando, esperando o carro desaparecer atrás das árvores. Tranquei o portão, voltei para a casinha onde morava com a Babs.
Fazia 42 graus em Madrid.
Quase desmaiei ao saltar do avião. Rod viera nos apanhar no RollsRoyce da Sylvia; a mim, o dr. Levy e Maitre Lejeune. Partiu logo como louco. Estava em mangas de camisa; usava sandálias. A camisa toda molhada de suor debaixo do braço. Todos suávamos e já havíamos tirado a gravata e o paletó. O carro era refrigerado mas não se sentia grande diferença.
Onde está Madame Moran? perguntou Lejeune.
No hotel. Sabe que vocês todos vêm aí.
Como?
Algum idiota contou. Ela entendeu logo, se trancou no apartamento. Não quer ver ninguém.
407Dr. Levy, nós vamos deixá-lo no hotel. Vê se consegue falar com
ela disse eu amavelmente.
Claro concordou este.
Tenho que ir tomar algumas informações. Onde está o sujeito?
Lá nos estúdios.
Muito bem disse Lejeune. Então vamos até lá. Agora são
três e meia. Eu proponho nos encontrarmos no bar do hotel, entre dezenove e vinte horas, dr. Levy.
Muito bem respondeu este.
Fazia tanto calor que o asfalto da rua foi ficando mole, brilhoso, derreteu. Rod teve que diminuir a marcha. Via-se o calor vibrando no ar por cima da cidade. Me lembrei do que a Carmen Cruzeiro me dissera: Uma cidade onde não é possível viver. No inverno morre-se de frio; no verão chega a cinqüenta e cinco, sessenta graus nos carros superlotados do metrô. Vi um cachorro esticado na beira da estrada. Morto. Tinha sido atropelado e jogado ali.
ESTÚDIOS SEVILLA FILMS.
Agora este terreno imenso de terra vermelha, estava todo construído. Palácios gigantescos. Pobres aldeias de camponeses. Abrigos para a guarda (estes na verdade usavam escudos de plástico pintados de cor de metal; mesmo assim não trocaria com nenhum deles), estábulos para os animais, arcos do triunfo, cadafalsos, toda uma capital já meio destruída pelo fogo. As casas só tinham fachadas com escoras que as mantinham em pé. Ruas, caminhos, carroças antigas. Um verdadeiro exército de operários preparava a outra metade da cidade para o incêndio programado para aquela noite. Os operários usavam apenas sungas; os corpos queimados de sol, banhados em suor. Martelavam, serravam, batiam, furavam. Máquinas funcionavam.
Já passara por isso muitas vezes. Vi até uma equipe de especialistas certa vez perder o controle sobre o fogo, e todos terem que largar tudo e sair correndo...
Imponentes, erguiam-se para o céu estival de Madrid de 1972, as colunas em volta do suntuoso pátio de um majestoso palácio, há centenas de anos a sede do Governador Georgi Abaschwili, que dominava toda a província da Grunísia no Cáucaso. Rod levou o pesado carro a toda velocidade até o estábulo de uma aldeia grunísia. Freiou tão violentamente que eu e Lejeune fomos jogados para trás.
Você ficou maluco?
408Não amola! O carro ao menos tem que ficar na sombra!
Atravessamos o terreno. Poucos operários nos cumprimentavam. Um grupo de pirotécnicos e uma equipe de Special Effects-Men colocava os fios, fixava as cargas de explosivos na cidade-cenário. Debaixo dos telheiros de palha, vi cavalos e burros, imóveis, cobertos de moscas, cansados demais até para espantá-las. Rod andava tão depressa que era difícil segui-lo. Lá estavam os prédios da administração. A sombra. Sombra, finalmente! Mas o calor era o mesmo. Talvez pior ainda. Subimos um lance de escadas. Uma mulher jovem ainda, numa roupa muito pobre de Unho cru, uma criada, veio descendo a escada. Eu a reconheci.
Boa tarde, Carmen disse eu.
Boa tarde, senor Kaven respondeu ela.
Evitamos nos olhar. Evitávamos nos encontrar sempre, aqui no estúdio. Evidentemente eu a via sempre, pois trabalhava aqui, mas nunca mais falamos sobre aquela noite. Falávamos apenas de assuntos banais. E mesmo assim só o estritamente necessário. Ao passar por ela, rocei-lhe o seio direito. O sangue me subiu rápido. Pensei: Ora bolas, então vou procurar a Carmen toda a semana e pronto, se é que vamos conseguir escapar desta merda toda. Pego a Carmen. É a solução, se conseguirmos abafar tudo e continuarmos a rodar o filme. Mas a Sylvia não estava boa da cabeça... Virei-me. Lá estava a Carmen ao pé da escada, olhando para mim. Seus seios imensos arfavam. Sorri... provocador, sujo! Ela respondeu meu sorriso feliz da vida. Tudo entendido então. Parecia até aliviado. Quem sabe, estaria pensando que eu era impotente depois daquela noite de Natal, naquele frio de Madrid...
Meu escritório; o de chefe de produção!
Era o único que tinha ar condicionado funcionando. Cheguei até a sentir frio. Montes de pastas. Projetos. Cálculos. Gente, aquilo tinha um ar de trabalho! E era trabalho. Para Bob Cummings. Ele entrou logo depois; da portaria tinham ligado avisando-o da nossa chegada.
Usava uma camiseta sem mangas, uma calça branca leve; estava descalço. Comprido e meio curvado por causa de seu tamanho, entrou e apertou a mão de todos. Seu rosto estreito, molhado de suor, estava cinzento. Mandara aparar seus cabelos grisalhos mais curtos ainda. (Lembra um pouco Oppenheimer, o físico atômico, pensei eu. Ao menos o cabelo.) Apesar de todo o nervosismo, Bob estava amável e objetivo como sempre. Nos sentamos. Nos aconselhou a não beber nada antes do pôr do sol. Antes ainda que Lejeune pudesse perguntar qualquer coisa, disse logo:
- A sra. Moran está no hotel. Não quer ver ninguém. Eu sei mas...
- Hoje à noite comparecerá pontualmente à filmagem. Ela prometeu. Eu sabia de sua vinda, sr. Kaven. Mandei vir repórteres e fotógrafos. Para de noite, e para amanhã.
- O casal do século disse Rod baixinho para mim.
Você veio aqui para fazer piadas?
409A segunda metade das cenas com a cidade em chamas deve ser
rodada esta noite. Também as cenas da sra. Moran com a criança abandonada dentro do palácio. Eu lhe expliquei isto bem claramente.
Mas não falou nada das fotos que ela vai tirar comigo amanhã?
Não.
Muito bem. Suspirei.
Onde está aquele canalha espanhol? perguntou Lejeune.
Preso no subsolo. Quer que o mande apanhar?
Não precisa grunhiu Lejeune. Como é o nome dele?
Pedro Chumez. Aqui está a ficha com todos os dados.
Lejeune arrotou.
Quer me arrumar um catálogo?
Pois não. :
Obrigado.
O que está procurando?
Ora, o que? O distrito de polícia, evidentemente. Foi passando
seu dedinho curto e gordo pelas colunas do catálogo, encontrou o número, perguntou se alguém lá da mesa podia ouvir sua conversa. Quando lhe disseram que o aparelho ligava diretamente, ficou satisfeito. Discou. Depois falou em espanhol fluente. (Era realmente o melhor homem que Joe poderia ter escolhido.)
Aqui fala maître Lejeune. De Paris. Ligue-me com o chefe de
polícia criminal, o Major Mingote.
Estávamos todos mudos olhando para ele. Aparentemente já conheciam seu nome, pois a ligação foi feita imediatamente.
Ouvimos o seguinte:
Alô, é Carlos Mingote?... É Lejeune!... Surpreso, hein, meu
velho?... Onde? Aqui, nesta cidade maravilhosa, nos ESTÚDIOS SEVILLA FILMS. Preste bem atenção, meu querido: Você agora vai ter que mexer um pouco o rabo. E depressa. Temos um porco aí no subsolo... Não, não é um porco de verdade... é um porco humano, um canalha... um desgraçado chantagista... Ele ontem veio procurar o diretor de produção, o senor Bob Cummings para ver se conseguia extorquir algum dinheiro... Carlos, imagine só: A maior artista do mundo!... E mesmo que tenha sido ela... Como se resolvem estas coisas aí... Será que é diferente dos outros países?... Será que a polícia não ajuda aos que são explorados... sob qualquer condição... protegendo-os da melhor maneira possível?... E então?... Como?... Não sei, mas acho que não deve ter contado a mais ninguém... Ele quer fazer seu negocinho só para si... É... Sim... Sei... Eu lhe agradeço, Carlos... Estamos esperando... Por quanto tempo você pode... Desculpe, estes seus presídios! Não era ofensa, não! Era um cumprimento! Viu, eu sabia... Meio ano de cadeia e depois o processo... Ótimo... Muito obrigado, Carlos... Aliás você sabe disto: O caso daqueles seus guardas de fronteira que andaram fazendo aquelas confusões, já está resolvido aqui conosco...
410Vão ser soltos amanhã o mais tardar... Ora, um favorzinho à toa! Você agora mesmo está fazendo outro para mim, Carlos. Eu acompanho aquele canalha, quando você o mandar apanhar, e aproveito ainda lhe faço uma visitinha... Eu também. Será um prazer revê-lo.
Lejeune pendurou o fone, viu nossos olhares de respeito e admiração e deu de ombros meio sem graça.
A polícia vai mandar apanhar Chumez.
Claro. Este não tem perigo.
E se ele já deu com a língua nos dentes?
Acho que não. Vamos fazer a coisa com bastante alarido, para que
todos vejam que ele está sendo metido no xadrez. Isto sempre adianta.
E se a sra. Moran... peço mil vezes perdão, sr. Kaven... se a
sra. Moran ainda teve outras relações mais íntimas com outros homens?
perguntou Cummings.
Creio que não vão ousar fazer nenhuma chantagem. Creio e espero
disse Lejeune.
Olhe disse Bob Cummings fazendo estalar os dedos das mãos
com a doença da filha, a sra. Moran ficou completamente transtornada... não se pode confiar nela... Se ela fizer outra coisa igual a esta? Ou pior ainda?
Não desesperar, a Lejeune perguntar disse o pançudo. Eu
realmente concordo que a posição dos senhores não é das mais agradáveis. Afinal vinte e cinco milhões de dólares são vinte e cinco milhões. E a sra. Moran é sem dúvida a maior artista do mundo, e este, seu maior filme.
É disse Rod. Exatamente por isso. O filme não pode estourar. Não pode haver escândalo.
Como estamos vendo, Madame Moran está realmente com sérios
distúrbios psíquicos. Depois de voltar da polícia gostaria de ouvir o dr. Levy.
Será que os olhos da Babs vão ficar bons de novo? pensei eu. E a sua fala? Seu estado geral? Melhor, bom... perfeito, evidente que não. Melhor, será?
Você está pensando na Sylvia, hein? perguntou Rod.
Estou menti eu. Eu estava era com vontade de chorar.
Ainda precisa de nós, Maitre Lejeune?
Não, isto aqui eu liquido sozinho, sr. Bracken. Nos encontramos lá
no hotel.
Por que você pergunta? Olhei para Rod.
Porque quero lhe mostrar alguma coisa, para que possa sentir-se
melhor disse o filho do Bronx.
41113
Eu estava sentado com Rod na escura sala de projeção.
Na tela apareceu a marca da copiadora americana, depois ao som de assobios, os algarismos 3, 2 e 1 com faixas pretas, quadros vazios riscados, emendas feitas pela equipe de montagem, todas as cenas do CÍRCULO DE GIZ, até aí rodadas.
Tenho a certeza de que nunca, nunca mais verei algo de tão grandioso, tão comovedor. Nenhuma artista aparecerá na tela com um trabalho tão impressionante como a Sylvia representando Grusche, a criada. Tudo por que passei ultimamente, me modificou por completo, sr. Juiz, não só a doença da Babs, mas também a Sylvia. Em seu destino, na sua dor imensa, no seu maior desespero, ela conseguiu se transformar numa grande artista. Fiquei sentado contemplando o trabalho da Sylvia naquele filme que girava em torno da criança, da mãe, do sentimento materno.
Também Bracken estava profundamente impressionado.
Ela é a maior. É a maior entre as maiores, Phil. Mesmo que se
porte como a mais vil prostituta, dormindo com tudo que é homem em Madrid, faça as maiores loucuras que possamos imaginar, ela continuará sempre sendo a maior. E este filme terá que ser rodado. De qualquer jeito!
É fiz eu.
- Antes da Babs adoecer ela era maravilhosa, linda! Mas sempre conservava algo da boneca linda e deslumbrante. Agora, depois de tudo que aconteceu, ela realmente se tornou a maior!
Os porteiros de libré verde, no final do acesso de carro em colunas do CASTELLANA HILTON, abriram de par a par as alinhadas portas de vidro do saguão, quando Rod se aproximou no Rolls-Royce da Sylvia. Saltamos. Um garagista guardou o carro. Os porteiros cumprimentaram. Eu lhes dei a mão. Estavam satisfeitos em me rever. Eu também. Entramos no majestoso saguão circular com as paredes e colunas de mármore, os preciosos móveis, os tapetes tecidos a mão. À direita ficavam as elegantes lojas, os salões de beleza, e o acesso aos banhos turcos. Ali estava o chafariz; o papagaio colorido tão versado em línguas; dois japonezinhos o admiravam neste instante.
Eu e Rod fomos até o bar nos fundos. Lejeune e o dr. Levy já estavam sentados junto ao balcão. O médico tinha um copo de laranjada à sua frente,
412Lejeune um prato de sanduíches e um copo de cerveja. Estavam olhando mudos para nós.
O senhor esteve com a Sylvia? perguntei ao dr. Levy.
Aquiesceu.
Vamos lá para o outro lado disse Rod, fazendo sinal para um
barman.
Nos instalamos numa mesa afastada do bar ainda quase vazio. O garçom trouxe os copos e os sanduíches de Lejeune.
E então? disse eu.
Sinto muito disse o dr. Lévy. Sinto muito, sr. Kaven, mas a
madame está... está seriamente doente.
- Como?
Não é um mal físico. Não é nada que eu possa tratar. É psíquico.
Ela está psiquicamente enferma. Se querem que ela termine este filme... se é que ela vai estar em condições para tanto... se querem evitar que ela piore, então terá que ficar sob constante controle de um psiquiatra.
Internada? Rod ficou lívido.
Não. Por enquanto ainda não. Assim espero. Não posso avaliar
isto. O senhor deve arrumar imediatamente um psiquiatra para ela, que trate dela constantemente. Conheço colegas franceses excelentes e...
Não disse Rod.
Não, o quê?
Neste caso, Joe terá que saber - disse Rod. Santo Deus! Vai
dar uma cena! Fiquem aqui. Vou ligar agora mesmo. Phil, dá uma olhada na Sylvia.
Tenho mesmo...
Claro que tem! gritou ele.
Tá certo disse eu. Tá certo!
Ela estava sentada no salão todo atapetado, decorado com móveis antigos do seu apartamento (nosso). Número 308. Usava um robe verde, curtinho e bem fino, e apenas uma calcinha por baixo. Estava completamente sem pintura. O cabelo despenteado, as mãos tremendo. Parecia tão pequenina, especialmente seu rosto.
- Olá, Phil disse ela, e quando quis beijar-lhe a testa recusou:
Não. Por favor. Não fique zangado. Por favor, mas não me toque.
Está bem disse eu. Tudo em ordem, Bruxinha?
413Ficou olhando perdida para um quadro na parede... Representava um cavalo brabo que parecia vir galopando diretamente para cima do espectador.
Silêncio.
Vi as provas disse eu finalmente, não agüentando mais o silêncio. Bruxinha, você está maravilhosa!
Nada.
Seu olhar passou vagando pelos outros quadros da sala, pela parede forrada de seda rosa e vermelha, pela lareira de mármore, o aparelho de televisão embutido, o toca-disco. Passou para a mesa junto à janela coberta de papéis e cartas, voltou para o lustre de prata, para uma mesa onde (quase perco o fôlego!) se via uma quantidade enorme de suas jóias. (Havia um cofre no apartamento, por que as jóias não estavam guardadas lá dentro?) Passou por lâmpadas de pé com abajures em forma de campanulas até chegar novamente a mim. Sem a menor inflexão na voz ela disse:
Você sabe...
Sei de tudo, por isso estou aqui. Não tenha medo. O homem já está
preso. Não pode acontecer nada.
Mas... e você, Phil... só me chamava de Phil naquela noite.
Não disse Lobinho uma única vez.... Você me ama... e eu... eu...
Foi muita coisa para você. Você sofreu demais. Além disto o
trabalho. Eu entendo. Entendo também que no momento você não queira saber de mim como homem. Afinal eu e você... nós dois temos a Babs... Eu entendo... um outro homem... e daí? O que importa, se eu gosto de
você? Tudo isto eu disse, sr. Juiz, e era a pura verdade; era mentira
também ao menos no momento. Como a Ruth antes, também eu agora diante da Sylvia não podia deixar de sentir a tragédia que cercava essa mulher.
O ar condicionado estava ligado. Mesmo assim eu suava, creio que de fraqueza. Era demais. Tudo isto era demais para mim. É, pensei eu, para a Sylvia também.
Não quero que você me ame disse ela.
O quê?
Não quero que você me ame. Não quero que ninguém me ame. Só
quero que a Babs fique boa. Pelo amor de Deus!
Ela vai ficar boa, Bruxinha. Eu não lhe digo diariamente, que
aos poucos ela vai melhorando?
E você mente diariamente disse ela.
Não!
Deixa. Eu sei. Andei falando com médicos. Eles me contaram
como tudo se passa. No melhor dos casos.
E então?
É Phil, e então... Não é de maneira nenhuma tão bem quanto
você está querendo me convencer. Minha Babs nunca vai ficar boa. Nunca mais!
414Ela vai...
Deixa, por favor. Não diga nada, Phil. Nem adianta eu pedir a
ajuda de Deus, ele me condenou. Com razão. Está tudo acabado com a Babs, Phil. E comigo também.
Com você? O CÍRCULO DE GIZ vai ser o maior sucesso que
você já teve! Ela deu de ombros Pode acreditar! Todo mundo diz! Por
favor Sylvia, agüente até o fim! Com dinheiro e relações consegue-se disfarçar tudo! Eu não vou ficar zangado... nunca! Eu entendo! Vou entender sempre! Pode dormir com quantos homens quiser.
Cinco.
Cinco, o quê?
Dormi com cinco homens. Ou será que foram mais? Não me
lembro.
Quando?
Depois que... depois que aconteceu aquilo com a Babs.
- Onde?
Em Roma... aqui...
Que tipo de homens?
Não me lembro mais.
Você tem que se lembrar! Faz um esforço! Não estou dizendo isto
para fazer cena! Tenho que saber, para poder protegê-la!
Não tem o menor sentido, Phil. Não sei mesmo. Eu esqueci. Esqueço tanta coisa! Tem qualquer coisa dentro da minha cabeça. Uma bola. Não; não é bola. É um vazio, que parece uma bola. Ela suga tudo...
Nós vamos ajudar a você, Sylvia. Vamos arrumar um bom médico.
- Ele não vai poder me ajudar.
Claro que vai. Tenho certeza! Você só tem...
Eu sei o que tenho que fazer, Phil. Pode deixar. Vou continuar a
fazer o filme. Hoje à noite mesmo eu trabalho. Prometo ser pontual, meticulosa. Sempre fui aliás, não é?
Sempre, Bruxinha. Sempre. As provas estão...
Você esta noite vem junto, não é? Por causa dos fotógrafos e
repórteres. Foi por isso que chamaram você com tanta pressa.
Eu... não... Eu vim porque...
- Porque te obrigaram. Vamos continuar a posar para os fotógrafos e repórteres como antes. Hoje à noite mesmo. Quanto tempo eles quiserem. Satisfeito, Phil?
- Eu...
- Phil?
Sim, Bruxinha?
Agora vá, por favor.
Pensei que você fosse gostar que eu ficasse aqui com você.
- Gosto sim. Mas agora prefiro ficar só. Por favor, Phil, não fique zangado.
415Claro que não. Levantei-me e quis mais uma vez beijar-lhe a testa. Ela recusou.
Não.
Está bem, então
não... Eu agora vou, Bruxinha... Até logo
Até logo.
Tudo vai dar certo, você vai ver só!
Nunca disse ela.
Fui saindo. Já ia fechando a porta quando ouvi a sua voz:
Phil! Semana que vem você volta a Madrid?
Claro, Bruxinha. Claro.
Pensei que ela fosse responder qualquer coisa, mas não disse nada. Estava novamente olhando perdida para o quadro com o cavalo.
Fechei a porta devagarinho, a primeira e a segunda; fui para o elevador, desci até o saguão, fui ao bar onde Rod, Lejeune e o dr. Levy estavam sentados numa mesa.
Sentei também. Um garçom veio logo.
Uísque disse eu. Dose dupla por favor. Puro. Com gelo.
Os três à mesa olharam para mim.
Muito ruim? perguntou Rod.
Muito. Ela tem a impressão de que qualquer coisa dentro da sua cabeça não funciona. Dormiu com mais homens ainda. Nem sabe quantos. Não tem idéia do que possa fazer ainda. Sabe que a Babs nunca mais vai ficar completamente boa. Qualquer médico idiota deve ter dito a ela. Não admite nem que eu a toque.
Rod pronunciou o xingamento mais obsceno, mais baixo que já ouvi.
O dr. Levy disse:
Diz o ditado: “Se você for sábio não misture as coisas. Nunca
tenha esperanças sem dúvidas, nem dúvidas sem esperanças”.
- É - fez Rod. - É.
Conseguiu falar com Joe?
Rod aquiesceu.
- E?
Você é culpado. Eu sou culpado. Bob é culpado. Nós todos somos
culpados. Afinal o velho cretino tomou jeito. Pediu que eu esperasse. Foi falar de outro aparelho. Amanhã ao meio-dia chega o dr. Lester Collins, com quatro detetives da SEVEN STARS.
Quem é o dr. Collins?
É o homem que Joe tem para estes casos. São amigos. Ele jura que
é o melhor que existe. Já tratou de muita mulher de cinema para Joe. Se alguém pode conseguir alguma coisa, este alguém é Collins. A Sylvia terá que continuar a filmagem de qualquer maneira.
416Ela disse que ia. Disse que faria tudo que os fotógrafos quisessem
dela ou de mim.
Que incêndio! O resto da cidade queimou naquela noite. Vigas caíam; o povo em pânico procurava fugir do inferno das chamas, junto com porcos, burros, galinhas e cachorros. Os guardas vociferavam.
A noite estava mais amena, porém o fogo aumentara o calor. O palácio do Governador em chamas! A fuga covarde de sua esposa abandonando uma criancinha, um menino! A discussão entre a criadagem que também estava decidida a fugir! E a criança? A criada mais ignorante, a mais miserável, mais pobre de espírito devia olhar por ela, a Grusche, a ajudante de cozinha. Ela se recusa. Ia largando a criança lá, mas depois cheia de ódio contra o menino, pega-o e carrega consigo. A Grusche era Sylvia Moran, que eu nunca tinha visto num trabalho tão magnífico, e que precisava urgentemente de um psiquiatra! Nunca, sr. Juiz, pode-se filmar num trabalho tão maravilhoso como naquela noite em que a maior entre as maiores, com a mente já totalmente perturbada, representava a autêntica histérica, a ninfomaníaca! Sylvia Moran para a qual um dos maiores psiquiatras, o dr. Lester Collins, amigo de Joe, já vinha atravessando o Atlântico de avião...
Um bando de fotógrafos, equipes da TV e das grandes revistas, convocados por Rod e Bob Cummings, além de nossa própria equipe de fotógrafos, filmaram até às 6h e 30 min da manhã. Sylvia estava mais controlada do que nunca. Fazia exatamente o que lhe pediam, mesmo que tivesse que repetir meia dúzia de vezes.
O diretor Da Cava traduziu em palavras o que todos pensávamos:
Uma figura magistral destas só aparece uma vez.
Nos intervalos da filmagem tiraram centenas de fotografias minhas e dela. Eu na minha roupa comum; a Sylvia com seu miserável vestido de criada em meio ao cenário. Eu e ela, ambos nos esmeramos. O senhor talvez tenha visto um outro destes retratos. Alguns foram até escolhidos para a famosa exposição de fotografias a Family of Man, que vem percorrendo países e continentes. Havia dois pontos principais a observar naquela noite; mesmo o trabalho profissional devia demonstrar o quanto a Sylvia e eu nos amávamos. Segundo: Eu tinha que concordar sempre com ela, em tudo, atender a todas as suas exigências, satisfazer a todos os seu pedidos, que no
fundo se resumiam a um só: Quero ver minha filha! Durante o tempo
todo, enquanto as câmaras estavam em ação, enquanto os fotógrafos disparavam suas máquinas, cinqüenta, cem vezes, ela fazia o mesmo pedido.
417- Claro, Bruxinha, assim que for possível você vai ver a Babs. Eu teria prometido qualquer coisa. Tratava-se de vinte e cinco milhões de dólares!
No dia seguinte inteirinho fotografaram “O Casal do Século”. Desta vez estávamos vestidos com a maior elegância, diante do Museu do Prado; dentro do museu, admirando Velasquez, Goya, El Greco, os mestres franceses, flamengos e alemães. Abraçados. De rosto colado. Nos beijando. E a Sylvia não se opunha absolutamente a nenhum destes contatos íntimos! Era uma artista. Representava qualquer papel!
Mais fotografias diante da Puerta de Alcalá, do Arco do Triunfo construído em 1778. Os amantes. El Retiro, aquele parque maravilhoso. Os enamorados. O dia inteiro fotos do casal que se amava acima de tudo. Na Plaza de la Villa. Na Plaza de Oriente. Na Puerta del Sol, a praça mais importante de Madrid. Sempre em outras poses, outras atitudes. A maioria imaginada pela Sylvia. Abraços. Beijos. O grande amor! Quando eu a beijava, abraçava, apertava contra mim devia ser a mesma coisa como se estivesse trabalhando com um parceiro no filme. Estava amável, calada. Nem sempre.
Conversem um com o outro! gritavam os fotógrafos. E ela sempre
dizia a mesma coisa: Tenho que ver a Babs.
- Claro, Bruxinha. Claro. Vou arranjar tudo.
Sorriam!
Sorriam sempre!
43 graus marcava o termômetro. Fui obrigado a mudar de roupa três vezes. Duas vezes troquei a roupa toda. Não só por causa do calor.
Por volta do meio-dia aterrissou o aparelho com os quatro detetives da SEVEN STARS e o amigo de Joe, o famoso psiquiatra das artistas, o dr. Lester Collins. (Ele vivia exclusivamente de sua clientela particular.) Era alto, muito bem apessoado. Nos encontramos no CASTELLANA HILTON, em nosso apartamento. Ele alisou a face da Sylvia, apertou sua mão, falava com voz calma e confiante:
Não se preocupe, sra. Moran, não se preocupe. Nós acertamos
tudo. Isto não é nada. É coisa à toa dizia aquele festejado dr. Collins, ele
que... Mais tarde falo nele.
Foi anoitecendo. Eu e a Sylvia fomos até o aeroporto. Atrás de nós o comboio de repórteres. Continuaram a fotografar até eu chegar ao último degrau da escada, ao lado da Sylvia que me beijava apaixonadamente. Esta foto o sr. deve ter visto, sr. Juiz. Ela rodou mundo inteiro!
418Rod, que tudo dirigia gritou de repente:
Agora basta! Por favor amigos! Vocês já ficaram com eles o dia todo! Os fotógrafos pararam imediatamente. Quis me despedir da Sylvia normalmente com um beijo, ela me empurrou. Tenho a impressão até de que estava passando mal. Sorrindo disse:
Eu só amo a você, Lobinho. Sempre vou amar, juro! Mas se você me tocar mais uma vez tenho um ataque histérico!
Vinte e cinco milhões, sr. Juiz! •
Não se preocupe havia dito o dr. Collins!
Quatro detetives de Los Angeles estavam agora em Madrid. Uma criança com meningite nas proximidades de Nurenberg.
Tenho que voltar.
- Ruth!
Tenho que ver a Ruth!
Que prazer poder falar com o senhor disse Lucien Bayard, o
porteiro da noite do LE MONDE. O rosto todo irradiava felicidade. Eu estava sentado no quarto de repouso dos porteiros da noite, atrás da parede com todas as chaves. Eu numa poltrona; ele num sofá. A televisão estava ligada. Passava um velho filme americano OS MELHORES ANOS DE NOSSA VIDA. Lucien tinha abaixado todo o volume, via-se apenas a imagem, pois após o filme, dizia ele, viria o noticiário, e Leon Zitrone ia falar das corridas do dia seguinte em Chantilly; dar o seu palpite. Sempre o fazia. Leon Zitrone era um entendido francês em Turfe, um excelente repórter do PARIS MATCH, e de outras revistas, locutor de rádio e comentarista de televisão. Ele era o homem que há décadas acompanhava os Chefes do Governo, em suas visitas à Rússia, pois falava russo fluentemente. Era uma verdadeira instituição nacional. O noticiário seria por volta das 23h. Quando entrei no quarto de Lucien, eram quase 22h de uma quente noite de sábado, 12 de agosto de 1972. Tínhamos chegado a Orly no SUPER-ONE-ELEVEN às 20h
30min; eu, Lejeune e o dr. Levy. Encontramos uma frente de tempestade no sul da França. Paris estava coberta por um mormaço, o vento parara, a cidade meio vazia... era o início das férias de verão. Depois de algum tempo nos despedimos.
Lejeune pegou um táxi; eu levei o dr. Levy na minha Maserati que ficara no aeroporto. Quando cheguei ao hotel eram quase 22h. Não havia mais vôo para Nurenberg; reservara pois, uma passagem para o primeiro avião do dia seguinte. De qualquer maneira teria que voltar ao LE MONDE, mudar de roupa e me transformar novamente em Philip Norton.
419O hotel estava praticamente vazio, me dissera Lucien logo após me cumprimentar (continuava ainda a trabalhar com Jean Perrotin o amável e calado colega). Não havia ninguém no saguão. Graças à Deus! Fui direto para o quarto de Lucien. Minha bagagem (de luxo!) já tinha sido levada para o 419. Lucien tinha dito que precisava falar comigo, e era o que ele fazia agora enquanto passava pelo vídeo a imagem muda do famoso filme de após-guerra de Lilliam Wyler. Perrotin se retirara discreto. Estava em pé lá fora junto a sua mesa. Lucien falava baixinho:
Ontem vieram entregar uma carta para o senhor, sr. Kaven.
Quem?
Um mensageiro; um mensageiro qualquer. Os porteiros do dia não
sabem dizer quem foi. Quando vi a letra no envelope levei um susto, sr. Kaven. Eu conheço a letra... o senhor também.
Conhecia mesmo.
Era de Clarissa Geiringer. Clarissa... a governanta da Babs! Não me senti nada bem ao abrir o envelope. Depois daquela entrevista para a imprensa no “Salão Azul” do LE MONDE, onde a Sylvia declarara que a Babs não ia mais aparecer em público, pois ia para um internato, nenhum de nós sabia ao certo o que fazer da Clarissa, sr. Juiz. Isto tinha sido numa quarta-feira, 15 de março de 1972. A Babs não ia precisar dela. Lejeune no entanto nos aconselhara a não demiti-la cedo demais. Poderiam surgir boatos. A Clarissa portanto ficou conosco em Paris, escondida por algum tempo (pois oficialmente estava acompanhando a Babs para o internato). Por ocasião da pré-estréia em Roma do filme TÃO POUCO TEMPO, não podíamos precisar dela, por isso foi logo mandada de volta a Madrid. Funcionou depois como secretária particular da Sylvia e de Rod, vivia viajando de Paris a Madrid, de Madrid a Paris. Em Madrid ficava também no CASTELLANA HILTON, e em Paris continuava no LE MONDE. O conselho de Lejeune fora sábio, ninguém se importava com a Clarissa. Ela no entanto tratava de tudo. De tudo que estava relacionado com a Babs. Diante de meus constantes telefonemas e visitas a Madrid, a Sylvia e Rod lhe contaram tudo. Contaram tudo errado, pois eu nunca dizia a verdade sobre Babs. Só Rod sabia, mas este repetia tudo que Sylvia dizia. O azar é que ela era muito inteligente; não acreditava no que lhe diziam. Foi ficando cada vez mais infeliz, sabia que estava sendo enganada. Em Madrid deixava todo mundo louco com seus agouros, metendo o nariz em tudo, para descobrir a verdade. Há um mês Rod acabou mandando-a para Paris até novas ordens. Cheguei até a ligar para ela, contando como a Babs tinha melhorado. Que bom! respondeu ela.
As duas últimas vezes que eu tinha ido a Madrid, passando pelo LE MONDE para me transformar em Philip Kaven, eu não a tinha visto. Ficara até muito satisfeito. Também não perguntei a ninguém no hotel por onde ela andava. Era só o que faltava, ainda ter a Clarissa em cima de mim!
420Agora eu lia a carta, com sua caligrafia bonita e regular, escrita no papel timbrado do hotel:
“Meu querido:
Quando você ler estas linhas, eu já não poderei mais ser alcançada... nem por você, nem por ninguém neste mundo...”
Olhei a data.
11 de agosto de 1972.
A carta já tem mais de duas semanas! disse eu para Lucien.
Mas só foi entregue ontem, sr. Kaven. D. Clarissa saiu aqui do
hotel no dia nove de agosto.
Quando?
Nove de agosto.
E você só me diz isto hoje?
Lucien se assustou.
O senhor não sabia?
Eu não! Tinha certeza de que ela estava morando aqui.
Eu não entendo... Quando ela saiu, disse para meu colega, que
ela ia fazer uma viagem para o senhor!
Para mim?
Sim, e que achava que não ia voltar mais. Os porteiros evidentemente acreditaram. E por que não?
Claro, por que não? Ela não disse para onde ia?
Não disse absolutamente nada. Pelo amor de Deus, sr. Kaven,
aconteceu...
Não sei. - Continuei a ler em voz alta: “Nunca acreditei que a
Babs tivesse melhorado. Conheço esta doença muito bem. Há muito percebi que eu estava sobrando... e que ia continuar a sobrar sempre. Fiquei a seu lado, fiz tudo que você me pediu... enquanto você precisou de mim. Você sabe muito bem disto. Agora ao escrever esta carta, nada mais importa, fiz tudo e faria novamente porque o amo. Agora não tenho mais nada a fazer por você. Não tenho mais nada a fazer pela pobre Babs, e sei que no fundo a minha existência vai se tornando um problema cada vez maior para você, e para vocês todos. Por amor... por amor a você, Phil... eu agora vou dar uma solução a este problema. Quando você ler esta carta... que chegará a suas mãos com algum atraso... eu não existo mais...”
Interrompi a leitura.
- Que merda! disse Lucien a quem eu tinha contado tudo sobre a
Babs, sobre o que acontecera em Madrid... toda a verdade. Lucien era meu amigo. Confiava nele cegamente. Afinal também tinha que ter alguém a quem contar meus problemas!
- “... eu não existo mais” li eu em voz alta “Você pode mandar me procurar por tudo que é policia do mundo, que não me encontrarão. Deixei de existir. Só espero ter com isto melhorado um pouco a sua situação tão complicada. Meu ato não é de altruísmo: eu simplesmente não agüento
421mais minha situação. Eu lhe peço um favor: aconteça o que acontecer com você e a Sylvia, não abandone a Babs nunca... enquanto viver. Ela precisa de você. Não pode ficar sem você. Considere isto como o último pedido de um testamento. E é mesmo. Eu sempre hei de amá-lo, aqui e no além, se é que ele existe. Lá mais ainda. Não fique zangado. Você deve até me agradecer. Sua Clarissa.”
Abaixei a folha, fiquei olhando para o vídeo onde ainda passava mudo o filme OS MELHORES ANOS DE NOSSA VIDA.
- O que significa isto, Lucien? Será que ela se suicidou?
- Quem sabe?
Mas para que toda esta cena? Por que não se matou aqui no hotel,
em qualquer canto de Paris?
Porque gosta do senhor, não foi isto que ela escreveu? Não queria
lhe arrumar complicações.
Mas talvez ela até esteja viva.
Talvez.
Em qualquer canto do mundo.
- Bem possível, sr. Kaven. Estou tão confuso quanto o senhor. Que fazemos agora?
Telefonamos disse eu.
Fui até um dos telefones de ficha no saguão deserto e liguei para Lejeune. Ele já estava dormindo e ficou furioso.
Que foi que aconteceu agora?
Contei o que havia acontecido. Num instante Lejeune acordou. Pediu que eu relatasse nos menores detalhes o que a Clarissa fazia desde que estava conosco, quando tinha declarado que me amava; tudo.
Se alguém souber disso, vai ser aquele escândalo! disse eu.
Pode deixar que ninguém vai saber disse ele. Só a polícia.
Esta terá que saber. De manhã cedo, mande o porteiro me trazer a carta. Já tem bastante impressão digital no envelope, passe um plástico em volta.
O que vai fazer com ela?
Entregar à polícia. Com todas as informações que temos. O senhor
sabe que nestes casos a polícia é discreta. Nada temos a recear. Mas temos que avisar a ela senão ficaremos sujeitos à penalidades. Pode deixar que eu resolvo tudo. Amanhã de manhã o senhor volta a Heroldsheid. Tenho amigos no Quai des Orfèvres. As pessoas indicadas para o caso. A partir de amanhã d. Clarissa será procurada não apenas na França, mas no mundo inteiro. A carta pode muito bem ter sido escrita debaixo de coação, ela pode ter sido seqüestrada e em breve saberemos das exigências dos seqüestradores.
Não disse nada.
O senhor não diz nada! Entendeu o que eu disse?
O mundo é grande disse eu.
Muito menor do que o senhor pensa.
Existem tantos modos de desaparecer, de se suicidar.
422Menos do que o senhor pensa. Como é, a polícia do mundo inteiro
não lhe basta?
Calei-me.
Então não basta? O que o senhor quer mais?
Quero saber o que foi feito da Clarissa!
Não grite comigo, seu maluco! Se as buscas oficiais não lhe satisfizerem, pegue um detetive particular. Mas terá que ser internacional. Acredito perfeitamente que muitas pessoas que desaparecem diariamente neste mundo, como a d. Clarissa, não sejam procuradas febrilmente pela polícia... existem centenas de milhares destes casos.
Justamente.
O senhor então quer pegar um detetive particular?
Quero.
Me diga uma coisa, era apaixonado por ela?
Não. O... o caso aqui é outro.
Outro como?
Não daria para o senhor entender.
Quem sabe. O que é então?
Culpa disse eu. Não sei por que, mas tenho um sentimento
de culpa muito grande diante desta moça.
E quem disse que eu não entendo isto? Lejeune entende tudo.
Conheço agências internacionais. Se o senhor quiser, escolho a melhor delas e resolvo tudo. Quer?
Quero.
A melhor é evidentemente também a mais cara. Este tipo de coisa
sempre custa dinheiro, sr. Kaven. Muito dinheiro. O senhor recebe de Bracken, por ordem da Sylvia, dinheiro para as passagens aéreas, os telefonemas interurbanos, as despesas de hotel e mais alguma coisa. Ainda tem seus honorários como chefe de produção, e os de Heroldsheid. Mas será que o senhor tem realmente meios para pagar um detetive caro destes?
- Pode deixar por minha conta. Eu lhe arrumo o dinheiro. De onde?
- Ainda tenho algum respondi eu. Posso vender alguma coisa.
Coisa minha; não se preocupe.
Eu não estou me preocupando. O senhor é que está. Por mim.
contanto que me arrume o dinheiro, lhe arranjo perfeitamente um detetive internacional. Se tiverem sorte, talvez descubram onde e quando a Clarissa se suicidou.
- Ou se ela ainda está viva?
- Veremos disse Lejeune pendurando o fone.
Voltei para o quarto do porteiro. O filme ainda não tinha acabado. Disse para meu amigo Lucien:
- Aqui estão os.documentos e as chaves de minha Maserati. Será que podia vendê-la para mim? Ela me custou muito dinheiro.
423Sei disso. Mas por que...
Preciso de dinheiro. Quando tiver vendido o carro, entregue o que
tiver apurado ao advogado. Dei-lhe o endereço de Lejeune. Amanhã por
favor, leve a carta da d. Clarissa para ele, e responda a todas as suas perguntas, inclusive às da polícia. Não vai lhe acontecer nada.
Não tenho medo de nada não, sr. Kaven. Para o senhor, faço
qualquer coisa. Só que eu não entendo... Não seria melhor tentarmos mais uma apostazinha?
O lucro é muito pouco; muito incerto. Preciso de dinheiro de
qualquer maneira. De muito dinheiro. Rápido.
Pode deixar. Vou tratar de resolver tudo o mais rápido possível.
Muito bem.
Mas o senhor... o senhor gostava tanto do carro!
Que nada! disse eu O que é um carro, afinal? Nada mais do
que um monte de lataria.
O senhor é quem sabe, sr. Kaven. Deve estar fazendo isto por
superstição, não é? Acha que a Babs vai ficar boa, ou ao menos melhorar, se vender o carro, a coisa mais cara que o senhor possui.
Você é formidável, Lucien!
Por que?
Porque poderia muito bem ser o caso. - O filme tinha chegado ao
fim. Começou o noticiário. Conheço um dos homens mais ricos do
mundo, Lucien. Certa vez ele me disse: A coisa mais sensacional na Bolsa de Valores é que o especulador pode ganhar mais de cem por cento, mas nunca perde mais do que cem. Digamos então que eu estou especulando com a melhora da Babs.
Ele balançou a cabeça triste e aumentou o volume da televisão. Ouvimos o noticiário de terror do mundo inteiro. Em seguida Léon Zitrone falou das corridas do domingo seguinte, fez uma apreciação dos cavalos, dando os prognósticos do momento, isto é, os resultados esperados pelos entendidos. Lucien anotou tudo, acatava palavra por palavra, como se fossem palavras de Deus.
Não apostei daquela vez. Nunca mais apostei, aliás.
Em três dias Lucien vendeu meu carro. Liguei para ele de Heroldsheid, e me disse quanto havia apurado e que havia entregue tudo a Lejeune. A partir daquele momento uma agência internacional de detetives estava a meu serviço. Quando penso hoje nisso tudo, chego à conclusão que devo ter feito aquilo não só porque a Clarissa gostava de mim, mas porque gostava da Babs também. De todo coração. Deve ser isso mesmo, pois àquela altura, quando conversei com o porteiro da noite do LE MONDE, eu mesmo já não acreditava mais no restabelecimento total nem parcial da menina. Apenas fingia acreditar.
424Nem os detetives, nem a polícia internacional, conseguiram no entanto achar a Clarissa viva, nem morta. Até hoje não tenho a menor idéia do que foi feito dela. Trabalhou bem.
Dou uma olhada no diário...
Domingo, 27 de março de 1972. Eu estava de volta a Heroldsheid. Tinha ligado de Paris para a Ruth e esta veio me esperar no aeroporto. Quando saí pela borboleta, me abraçou e beijou timidamente. Lodo depois se afastou.
Vamos disse ela seguindo na minha frente, e tomando evidentemente a direção errada. Alcancei-a.
- O que foi?
Adivinha.
Ora disse ela É de enlouquecer.
Durante a viagem contei tudo que acontecera. Ouviu-me em silêncio e no fim disse:
Nada bom.
- O que?
Ela insistir em querer vir aqui. A Babs ainda não está em condições. Ela não vê a Sylvia há tanto tempo! Aparentemente até... desculpe... até parece ter esquecido da mãe.
Parece sim disse eu. Mas afinal ela continua sendo a mãe.
Pelo seu passaporte não é não. Talvez as autoridades pudessem
nos ajudar no caso.
Você não conhece a Sylvia! Ela quebra aquela joça toda lá em
Madrid. Se recusa a continuar a trabalhar! É nojento! Não, desculpe. Estou sendo injusto. Isto tudo é na realidade muito triste para ela...
Sabe de uma coisa disse a Ruth dobrando numa rua errada
triste é na verdade a vida de todo mundo que ainda, tem que se preocupar com outros problemas além do seu ganha-pão. Eu, você, nós todos. Mas nenhum de nós conseguiria viver sem esta tristeza que é a base de tudo, pois sem ela também não existiria a verdadeira felicidade. O que foi?
- Nada. Só que devíamos ter dobrado para a direita.
- Garanto que já estive aqui umas quinze mil vezes! E continuo a entrar pela rua errada! Mas pode deixar, por aí também chegámos a Heroldsheid. Só vai demorar um pouco mais. Quer que eu volte?
Não. Hoje é domingo. Temos tempo.
425Mas Vou voltar de qualquer maneira disse a Ruth, por conta
consigo mesma. Assim não dá mais! Parou e começou a fazer manobra. Claro que não vou poder impedir a Sylvia de vir ver a Babs. Vamos
procurar resolver a situação da melhor maneira possível, para ambas as partes. Para Heroldsheid ela não poderá vir, espero que ela entenda isso.
Qualquer uma reconheceria! Tinha acabado de fazer a manobra e ia
seguir.
Espere aí, pare!
Por que?
Tem um bichinho...
- Onde?
Ela se apertou contra mim e eu a beijei... Foi um beijo demorado. Dois carros passaram por nós, com gente moça dentro. Um deles buzinou, todos riram e acenaram.
Sabe de uma coisa’ disse a Ruth livrando-se finalmente de meus
braços apesar de tudo, nós dois até que somos bem felizes, não é?
- Hum!
Isto é mau. Não vai acabar nada bem.
Por que?
Por que não estamos agindo direito. Você pertence à Sylvia.
Eu? Eu sou eu!
Mesmo assim vai acabar mal. «
Talvez. Quem sabe?
Quando finalmente chegamos a Heroldsheid e eu destranquei o portão (era domingo), a Babs veio mancando ao nosso encontro, com os óculos de estrábica, depressa, rindo alegremente.
- Phil!
Me abaixei; ela me abraçou e não se cansava de me apertar contra si. A velha sra. Gosser saiu da pequena casa onde morávamos.
Meu Deus disse ela. Meu Deus! Sempre que vejo o quanto
vocês gostam um do outro, me lembro do meu pequeno Hans. Era uma criança tão boazinha também!
O Hans não era muito grande ainda quando falecera na distante Rússia!
A princípio a escola de Heroldsheid também dava férias. As crianças ficavam com os pais. Viajar com uma criança excepcional é no entanto um problema. Muitos pais já tinham tentado e desistido. Os resultados haviam sido tão desastrosos, que prefiro omiti-los. Nem conseguiria contar. Aqueles pais tiveram azar. Afinal também existe gente boa.
Por terem tido azar, apelaram para o Conselho de Pais, pedindo que as crianças pudessem ficar na escola também durante a época normal de férias. Ficavam, pois. Estudavam pouco, era quase só brincadeira. Os pais não podiam viajar com elas, ficar com os filhos em casa por muito tempo também não dava... existem vizinhos que podem ser realmente nojentos, os filhos mais ainda.
426A escola acabou portanto funcionando o ano inteiro... e nossos professores e educadores tiravam suas férias numa época em que podíamos prescindir mais deles. A maioria dos empregados preferia não tirar férias e ficar na escola, com exceção talvez da sra. Pohl e deu um ou outro colaborador nosso que tinha filhos e família. A escola só fechava mesmo nos grandes feriados e nos fins de semana.
Naquele dia em que voltava de minha viagem a Madrid, a Babs tinha uma surpresa para mim. Mostrou-me muito orgulhosa ao entrarmos na pequena casa. O chão estava coberto de papel rabiscado e amarrotado. Uma folha estava em cima da mesa, junto a uma flor amarela. Com gestos e palavras meio difíceis de entender, ela explicou que tinha ido colher flores e tinha preparado um presente para mim.
Na folha de papel comum, em letras isoladas muito tortas, mas perfeitamente legíveis estava escrito.
PHILIP
Sabia que há meses Babs vinha recebendo aulas; sabia também que tinha dificuldades enormes para reaprender a escrever.
Babs, mas isto é maravilhoso! Que formidável! Você está escrevendo que é uma beleza!
... uma beleza, né?
É sim! Eu a suspendi e ela me beijou o rosto.
Diário...
Durante toda a semana seguinte trabalhei de manhã até a noite. Depois de terminadas as aulas, trabalhava em casa. Havia tanta coisa a resolver! Cartas principalmente. Formalismos. Discussões com prefeitos, com funcionários do fisco superescrupulosos, com funcionários do Estado mais do que corretos. Será que eu não entendia que todos eles estavam apenas cumprindo sua obrigação? Ou será que eu achava que eles tinham outros motivos para agirem daquela maneira?
Pelo amor de Deus, que é isto? Peço mil desculpas! Entendo perfeitamente. Meus respeitos, senhor doutor, meus cumprimentos à senhora sua esposa, sr. Conselheiro de Estado...
Durante todos estes dias, um grupo de crianças, entre elas também a Babs, recebia aulas intensivas de escrita. No início, há bastante tempo até, as crianças passavam o dedo por cima de letras escritas ao quadro, aprendiam o som da letra, e seu significado com um substantivo concreto que por ela principiasse. Antes ainda era preciso conhecer o objeto, reconhecê-lo e identi-
427Ill
ficá-lo com o nome... Depois de usar um sem-número de métodos, este pequeno grupo chegara ao ponto de “saber escrever”. Escreviam nome, endereço, e às vezes ainda umas vinte e poucas palavras.
Todo dia à noite eu ligava para Madrid e continuava a contar minhas mentiras. A Sylvia parecia realmente estar melhor, mais otimista, mais animada. Atribuía sua melhora ao maravilhoso psiquiatra de Hollywood, amigo de Joe, o dr. Collins.
Sabe, Lobinho, o homem me anima tanto, me dá tanta força! Estou
tão calma, tão confiante, sem a menor tensão, sem inquietação, sem... você sabe que...
O que é que este psiquiatra afinal faz com você?
Ele é psicoanalista, não psiquiatra. Nós conversamos. Isto é, eu
falo e ele fica ouvindo.
Fala do quê?
Do que me der na cabeça... livremente... sem associação...
- Ah...
Sempre me acompanha nas filmagens, porque eu me sinto mais
segura a seu lado. E de noite, sempre me dá aquela injeção.
Que injeção?
Paronthil.
Que é isto?
Um remédio milagroso! Provoca uma espécie de narcose rápida,
sabe? Durante este período o Lester fala comigo.
- Quem?
O dr. Collins. Pediu que eu o chamasse de Lester. A mim ele trata
por Sylvia. Facilita a confiança mútua.
E o que ele diz?
Ora lobinho, você é tão culto, você sabe que como paciente não
posso revelar a ninguém o assunto de nossa conversa, nem a você! Senão toda a narcoanálise não adianta nada;
Claro.
Depois, ao acordar, me sinto leve, feliz, consigo até dormir! Sabe
que agora já consigo dormir a noite inteira? Por sorte a telefonista me
acorda de manhã. Lester é maravilhoso, Lobinho! Quando você vier da próxima vez, ele quer dar uma palavrinha com você também. Tenho a certeza de que vocês vão se entender às mil maravilhas!
Claro, Bruxinha!
E a minha visita? Qualquer dia... ainda não sei exatamente
quando, vou ter dois dias de folga. Então vou até aí. Eu aviso a você em tempo. Vou poder rever a minha filhinha querida!
Vai sim, Bruxinha.
Dê-lhe um beijão de sua mãezinha, está bem?
Dou sim.
428E aí vai um para você também! Ouvi o respectivo ruído Eu
o amo tanto, meu Lobinho, eu não conseguiria viver um único dia se não fosse você.
Eu também não, Bruxinha! Boa noite.
Boa noite, amor. Boa noite.
Nem sempre Hitler deixou de ter razão... uma coisa destas, com
ele, seria logo gaseificada!
É mesmo! Meu filho já fez o vestibular... Tive que dar um duro
para que ele pudesse fazer o ginásio... depois que meu marido morreu... E agora ele passou e precisa esperar até que haja uma vaga na faculdade! Excedente... o senhor sabe! Não há lugar para meu filho... É só desgraça... o que eu já chorei! Ano após ano... Primeiro teve que prestar serviço militar... Agora não tem lugar para ele!
O seu teve que ir para o exército! Estes malandros aí, esses covardes, poltrões, escapam do serviço e levam este vidão! O meu ainda está no ginásio, todo dia de manhã pega o trem para Nurenberg e de tarde volta de trem novamente... E isto aí é levado de porta a porta com ônibus especial...
Sexta-feira, 1? de setembro de 1972. 10h30min da manhã.
Os covardes, poltrões que escaparam do serviço, eram os dois refratários. Ouviam tudo impassivos ou fingiam nem estar ouvindo. Aqueles que Hitler teria mandado gaseificar logo, eram nove crianças, entre elas a Babs, sua amiga Jackie, o paralítico Alois, uma menina em cadeira de rodas... todo o grupo que tinha se preparado para o grande dia, treinando tão febrilmente a escrever.
Local: a nova e exageradamente grande agência de correio da pequena cidade de Heroldsheid. Tudo vinha sendo preparado há muito. O plano de curso o previa, o bom senso de qualquer pessoa de boa vontade o reconhecia; estas crianças tinham que ser levadas para o mundo que cercava a escola, tinham que aprender a se desencumbir das atividades que a vida ia exigir delas.
Durante.dias vinham fazendo embrulhinhos, amarrando com grande esforço, escrevendo seus nomes e o da escola, o endereço da escola e o nome do diretor em papeizinhos. Levou horas, dias até que estes papéis fossem escritos e colados nos pacotes, nas caixas de sapatos, de queijo ou de bombons, nas quais sempre havia alguma coisa dentro.
429Tínhamos tomado o pequeno ônibus, doado pela TV. Chegando ao correio, as crianças foram capengando, andando ou sendo empurradas em suas cadeiras até os guichês, para despacharem seus embrulhinhos. Uma criança ajudava à outra. Cada movimento era um grande feito. A Babs tinha que fazer um esforço enorme com seu braço esquerdo enfraquecido, mas eu não ajudei. Todas aqui tinham que aprender o que era um correio, o que era preciso fazer ali. Tinham que aprender muita coisa ainda, se quisessem saber se defender na vida.
Três guichês estavam abertos. Atrás de dois deles estavam mulheres, atrás do terceiro, um homem. Eles já conheciam nossos visitantes. Estavam preparados. O funcionário disse em voz alta para os adultos:
Os senhores então não têm coração? E se fossem seus filhos? O
que diriam então?
O senhor exaltado cujo filho tinha que ir diariamente a Nurenberg de trem, gritou abafando a voz do funcionário.
Isto não aconteceu nunca. Nunca mesmo, sr. Norton disse o
funcionário voltando-se para mim.
As funcionárias por sua vez, atacaram os adultos exaltados a seu modo:
Os senhores não têm piedade? Isto são crianças, pobres crianças!
Que tipo de gente vocês são?
Fique quietinha! guinchava uma das mulheres. E ainda se
mantém isto com vida! Para isto o Estado esbanja seu dinheiro? O dinheiro dos impostos que nós pagamos? E os nossos próprios filhos que estão com saúde, por acaso são paparicados deste jeito? São porcaria nenhuma!
Escute aí... comecei eu, mas um gigante se colocou entre mim
e a mulher, e ergueu o seu punho ameaçador.
O senhor agora trate de calar o bico! Esta senhora tem toda a
razão..
Sejam humanos! Por favor, vamos ser humanos! gritava uma
mulher baixinha e grisalha lá no fundo.
E a senhora cala a boca também, ouviu?
A Babs se apertou contra mim.
Tão zangados?... Por quê?
Algumas crianças começaram a chorar alto. Vi um homem telefonando numa cabina e gesticulando furioso. Podia imaginar com quem estava falando.
Trabalhei como faxineira durante anos - continuou a mulher de
antes. Fiz tudo para o meu Paul... Ele é gênio, posso lhes garantir!
Quando estudar física tenho a certeza de que vai receber o Prêmio Nobel! E eles lá deixam? Ninguém ajuda. Todas as vagas ocupadas. Só os idiotas é que têm vez!
Lá estava a palavra novamente.
430Não sabem falar, não sabem andar, mas claro... têm que ser
protegidos! Os nossos não!
Medo disse a Babs olhando para mim. Estava agora diante do
guichê do simpático funcionário. Tremendo, lhe esticou o dinheiro e o “seu” embrulho. Recebeu o troco. Não sabia evidentemente se estava certo ou não. Nenhuma das crianças, que cada vez mais assustadas despachavam seus embrulhinhos, sabiam.
Uma sirene se aproximava rapidamente.
Um VW parou na porta, dois policiais de Heroldsheid entraram correndo na agência do correio.
Quem foi que chamou?
Eu! disse o homem a quem eu tinha visto na cabina. Faça
alguma Coisa! A gente vai ter que agüentar isto? O lugar destas crianças é numa clínica, escondidas em qualquer lugar, mas não aqui!
Elas precisam vir aqui disse o policial.
Precisam? O que está havendo com o senhor? O senhor é policial,
sua obrigação é zelar pela ordem, pela calma...
E é o que eu faço.
Não diga!
Se o senhor não estiver satisfeito aqui, por que não vai viver na
Alemanha Oriental exclamou a mulherzinha grisalha, num paroxismo de
excitação.
A coisa não mudará em nada retrucou o policial.
O senhor é um comunista! E este tipo de gente nós sustentamos
com nossos impostos! gritou o homem.
A discussão entre os adultos estava ficando séria. As crianças esqueciam de tudo. Assustadas, sem saber o que fazer, empurravam seus embrulhos para o guichê. Estavam paradas em suas cadeirinhas de rodas, os embrulhos tão penosamente confeccionados e endereçados, em suas mãos.
Vamos nos portar como gente normal, por favor! pediu o
segundo policial. Que culpa têm as crianças?
- E que culpa tenho eu? gritou a gorda Estou aqui esperando
há meia hora por causa de um debilóide destes! Deu um empurrão na
Babs. Esta se virou, e antes que eu pudesse evitar, deu um grito e um pontapé na canela da gorducha.
- A senhora empurrou disse eu, mantendo-a afastada com o
braço. A Babs gritava sem parar. As outras crianças começaram a fazer coro. Embrulhos voavam para o ar, caíam no chão.
- Sinto muito, sr. Norton, mas agora seria melhor o senhor ir
disse o primeiro policial.
- É - concordei eu - fazendo um sinal para os meus rapazes. Fomos carregando, empurrando, ajudando as crianças a alcançarem a entrada.
- Eu vou dar parte! O senhor viu como ela me chutou.
431Eu não vi nada.
Mas isto é... agora a polícia também vai ficar do lado deles!
Vamos, Babs, eu a tomei nos braços.
Tratamos de sair. Os funcionários e alguns presentes nos ajudaram. Outros xingavam a nós, aos policiais e aos funcionários.
Gritavam uns com os outros.
Finalmente conseguimos juntar todas as crianças dentro do pequenino ônibus. Estavam muito excitadas. Uma velhinha com uma bolsa cheia de verdura olhou para nós estupefata. Quando eu ia entrando ela me segurou.
Virei-me.
O que é?
Meu Deus... eu... eu... O senhor perdeu uma coisa...
Perdi o quê?
Caiu do seu bolso... Era a placa de metal que a Ruth me dera
de presente.
Desculpe disse eu Desculpe, por favor. Eu lhe agradeço. A
senhora entende, nós...
Eu entendo disse a velhinha. Este mundo não tem nada de
bom...
Entre rápido, sr. Norton disse o rapaz ao volante. Ele queria era
sair dali. Entrei. Ele partiu. Fui tropeçando pelo corredor do carro que ia sacudindo, em meio às crianças que gritavam; acabei dando uma violenta cabeçada.
Quando chega o domingo todos eles vão muito piedosamente à
igreja, e na hora de votar...
Deixe prá lá disse eu para o outro ajudante de barba, que estava
vermelho de raiva. Não adianta nada!
Sentei ao lado da Babs e fiquei olhando para a plaquinha de metal que tinha caído do meu bolso. Li a inscrição:
PAZ A TODOS!
GAUTAMA BUDA
Eu não quero é matar. Não quero matar ninguém que eu nunca vi
na vida e que não me fez mal nenhum. Por isso também não vou vestir uniforme. Por isso não servi.
Quem dizia isto era o forte e barbado refratário de nome Rohrbach. Hans Rohrbach. Estava sentado a meu lado num banco baixo, num corredor
432ao longo dos dormitórios das crianças. O almoço estava terminado. As crianças que tinham ido ao correio comigo, com Rohrbach e seu amigo Ellrich, já na volta tinham esquecido o incidente. Não houve mais lágrimas, nem crises, nem agressões. Comeram. Agora estavam dormindo. Em cada dormitório ficava sentado um dos rapazes, tomando conta.
É estranho, eu já estou aqui há tanto tempo, só conheço seu nome,
sr. Rohrbach - disse eu.
E eu apenas o seu, sr. Norton.
Como foi que o senhor veio parar aqui? Foi escolha?
Não. Me mandaram para cá. A Repartição de Serviço Civil. Meu
pai é dono de fábrica, sabe?
Hum.
Precisavam de gente aqui. Só isso. Já estou aqui há oito... não,
nove meses.
E seu trabalho aqui eqüivale a um serviço militar? Como os outros
nos quartéis aprendem a- fazer guerra?
Exatamente... soldo e tudo.
E em troca tem que fazer tudo isto aqui. De manhã e à tarde ir
junto no ônibus e...
Bem, eu faço tudo. Tem muito pouca gente. Riu meio envergonhado. Para que mentir? Logo que vim para cá, isto aqui me revirava o
estômago. Nos primeiros dois dias. Depois...
- Sim?
Depois continuou ele ainda sem graça depois comecei até a
gostar das crianças. Eu aliás gosto de criança.
Como seu amigo Ellrich, não é? Gostou tanto, que pretende continuar aqui mesmo quando tiver cumprido a obrigação.
É, sr. Norton. Isto muda muito. O senhor mesmo sabe. O senhor
também gosta de todas as crianças e não só da Babs. Hoje, nem quando me apontam com o dedo, eu reparo que são crianças muito doentes... Conheço a todas... Gosto de todas... Estou satisfeito por ter vindo para cá. Eu
posso... - ele ficou todo vermelho ajudar a estas crianças. Contribuir
para a felicidade delas... Talvez até melhorar um pouco seu estado de saúde... Eu realmente não consigo me expressar direito...
- O senhor está se expressando muito bem. O senhor é realista, e o que o senhor faz é muito...
Por favor!
O que?
- Não diga a palavra, aquela palavra idiota.
- Então está bem. O senhor quer dizer é que seu serviço lhe dá prazer.
- É a melhor época de toda minha vida retrucou ele sério.
- Então o senhor achou a sua missão na vida. Ficou olhando para mim sem compreender.
433Quero dizer, vai ficar aqui como seu amigo Ellrich; encontrou o
trabalho que lhe dá prazer...
Não!
- Não?
Claro que não disse o barbudão Rohrbach. Eu não lhe disse que
meu pai era dono de fábrica? Em Erlangen. Roupa de baixo para senhoras. É ali que vou trabalhar assim que sair daqui. Que jeito. Sou filho único! Um dia a fábrica vai ficar por minha conta... O que foi?
A porta ao nosso lado se abrira silenciosamente e Ellrich meteu a cabeça para fora.
Está dormindo de novo?
Ellrich, o rapazinho magro, aquiesceu.
Isto não é estranho? perguntou Rohrbach.
Balancei a cabeça.
Realmente era estranho.
A Babs gostava do Rohrbach. Ria e brincava com ele. Mas toda vez que depois do almoço ia dormir e ele ficava tomando conta do dormitório, era um inferno. Era só ele aparecer que a Babs começava. Levantava da cama; queria bater nele. Já chegara até a arranhá-lo, cuspia nele. Ele sempre tentava com carinho, alisando-a, apertando-a contra si. Nada. Rohrbach tinha segurado a Babs. Por muito tempo. Assim que largava, ela levantava de novo, e começava a arranhar, a cuspir, a gritar. Por vezes Rohrbach tinha sido obrigado a substituir um colega no meio da noite. No mesmo instante a Babs, que dormia profundamente, acordava, e começava a mesma confusão. Ela sentia que ele estava lá. Não havia jeito. Rohrbach se conformara.
É muito simples dizia ele. Não posso ficar lá quando estiver na
hora dela dormir. Não tenho condições Ele não tinha condições? Ora, era
ela que criava toda a confusão!
Sinto muito Karl disse Rohrbach agora baixinho para Ellrich
mas se eu for substituí-lo agora, vai começar tudo de novo, e todas as crianças vão acordar.
Claro Só queria avisar ao Sr. Norton, que todos já esqueceram,
já passaram por cima daquela cena do correio.
Graças a Deus disse eu.
O mais estranho, pensei eu é que havia duas meninas e um garoto que não toleravam Ellrich quando chegava a hora de dormir. Mas se o Rohrbach aparecia, elas dormiam na mesma hora.
Todas as crianças eram diferentes, embora muito semelhantes em suas deficiências. Eram tão diferentes quanto Ellrich e Rohrbach, apesar de ambos terem se negado a vestir um uniforme.
434Eram tão diferentes e tão semelhantes como somos todos neste mundo... Tão diferentes, e tão semelhantes!
Quinta-feira, 7 de setembro.
Alô, alô! É o sr. Norton?
Sim. Quem está falando?
Sou eu, meu amor! Você não reconhece mais a minha voz?
Era o início da tarde. Tinha sido chamado para a sala de Hallein. Telefone.
Suzy! Como vai? O que houve? Por que você está telefonando?
Não fique zangado não...
Diz logo! Eu não estou zangado.
- Meu amor, eu tinha que ligar para você. Há uma hora ficou decidido.
O que é que ficou decidido?
A data em que vou casar com meu condezinho. Começou a
chorar. No... nonono...
Suzy!
No dia 19 de outubro. No civil. E na igreja. Num daqueles cafundós onde fica um de seus castelos. É lá que eu vou morar. Meu amor, num dos cantos mais enfiados! Eu vou ter que deixar Paris, a minha Paris...
Nova torrente de lágrimas. Já estou me desfazendo de tudo... No dia 19
de outubro viro condessa, definitivamente.
Meus parabéns, Suzy!
Parabéns? Droga! Parabéns coisa nenhuma. Eu tenho que vê-lo
antes! Tenho que ver... uma vez só... por favor!
Mas...
Por favor, Phil!
Você sabe...
- Meu condezinho já seguiu na frente para preparar tudo. Um acontecimento gigantesco. Vem um monte de condes e condessas! Nojento! Mas eu tenho que ver você, uma vez só, antes de submergir. Se você gostar um pouquinho de mim, você vem a Paris antes! Para que eu tenha ao menos alguma coisa com que sonhar lá na Normandia...
- Está certo, Suzy. Ela afinal tinha sido sempre tão boa para
mim, tão prestativa.
- Muito obrigada! Quando é que você vem?
- Ainda não sei...
435O melhor é pouco antes do dia primeiro. Aí eu posso garantir que
ele não está. Também não vou estar mais no apartamento na Place du Tertre... Já devo estar morando em seu palácio na cidade... Mas nós dois arrumamos um cantinho gostoso para onde ir, não é?
Claro, Suzy.
Eu sabia, que você não ia me deixar na mão. Você tem meu
telefone. Liga com antecedência, está bem?
Ligo sim.
Obrigada! Muito obrigada, meu amor... É mesmo, como vai a
menina? Ainda mal, hein?
- É.
Lapso de memória disse a Sylvia De repente. Lapsos.
Era sexta-feira, 8 de setembro, à tarde.
O sol entrava enviezado pelas frestas das persianas abaixadas do vestiário da Sylvia. Lá fora estavam nesse momento rodando as cenas do juiz Azdak e seu amigo Schauwa. A história do fugitivo. Ainda estava bastante quente em Madrid, mas há dois dias, o calor amainara um pouco. Sylvia tirara sua maquilagem. Amarrara o cabelo para cima com um pano, usava um robe branco, curto e fininho, e olhava para o espelho enquanto passava creme no rosto. Eu chegara há duas horas e seguira imediatamente para o ateliê. (Depois do telefonema da Suzy, Rod ligara também.) Mais confusão. Depois ele contaria. Eu teria que vir o mais rápido possível. Por isso fui. “PAZ A TODOS!”
Eu sempre consegui decorar tudo que é diálogo, Lobinho...
sempre. Até os mais compridos, não é?
Sim. E agora?
Ah, já ia esquecendo, aí tem um cheque. Ela me entregou.
Olhei para ele. Do banco da Sylvia. Sua letra. Uma quantia enorme. Realmente estava sendo muito generosa.
Mas Bruxinha, isto é demais!...
Demais nada. Você agora precisa de muito. Para as viagens, ligações interurbanas, para a Babs...
Eu recebo meus honorários de chefe de produção.
Mas eu quero que você tenha mais!
Obrigado, Bruxinha. Muito obrigado.
Sabe de uma coisa, agora dei para esquecer meus diálogos... De
repente paro no meio... Realmente uma grande notícia! Não é
nenhuma catástrofe, mas de qualquer maneira preciso de ajuda, senão estou perdida.
436Ajuda consistia em grandes quadros negros colocados atrás da câmara ou de qualquer maneira fora do quadro a ser filmado. Quando o artista não consegue guardar o texto, as frases são escritas aí em giz branco. De vez em quando ele dá uma olhada rápida. Quando as cenas são maiores colocam-se diversos quadros atrás do cenário. A coisa se torna divertida é quando o artista, além disto, é ainda míope.
Não existe o menor motivo para você ficar nervoso, Lobinho.
Claro que não.
Nem o Júlio, nem Bob Cummings ou Rod estão se importando.
Mas estes lapsos de memória devem ter uma causa, Bruxinha.
Vire um instante. Ela se levantara. Me virei. Sabia que estava
tirando seu robe, para vestir o sutiã, a calcinha e o vestido. Agora eu tinha
que me virar sempre, para não a ver nua. Eu, seu querido Lobinho! Claro
que tem uma causa.
Olhei para o espelho na minha frente. Nele eu via a imagem da Sylvia. Completamente nua. Não senti o menor desejo.
Lester me explicou.
- Lester?
Ora, o dr. Collins. Disse que é conseqüência das injeções de Paronthil.
Grande médico! Joe vai ficar muito satisfeito. Idiota de médico!
No corredor passou alguém correndo, uma moça, gritando em espanhol que ela estava farta, farta de tudo, que ia jogar tudo para o alto, eles que procurassem outra assistente de maquilagem já que o sr. e a sra. Patterson sempre tinham qualquer coisa a reclamar! Os trabalhos de filmagem já estavam durando muito. Iam durar mais ainda. Era sempre assim; a princípio todos se adoravam, depois iam ficando irritados. No final da filmagem já um não conseguia mais enxergar o outro; existia ódio declarado. Sempre a mesma coisa...
A Sylvia fechou o sutiã.
- Lester não é nenhum idiota; é um gênio! Só o fato de eu conseguir trabalhar neste filme, de estar tão calma, tão equilibrada, apesar da pobre Babs e tudo mais, eu devo exclusivamente a ele! Joe sabe disso. Eu já lhe disse. Falou com Lester por telefone. Durante muito tempo. Lester explicou tudo. Joe entendeu e até agradeceu.
Vestiu a calcinha. Agradeceu?
- Foi, Lobinho... Aonde é que está...
- Onde está o quê?
- Você disse... nada não.
Andou pelo vestiário sem saber o que procurava. Certamente o vestido. Já tinha esquecido.
- Quer dizer então que Joe agradeceu a Lester.
- Foi. Você está vendo... Aí está este maldito trapo! Viu, Lobinho,
437o Lester foi obrigado a me dar aquelas injeções. Entrou num vestido
amarelo de verão. Não havia outro jeito. Para me acalmar. Primeiro foi a
narcohipnose, durante a qual ele me dava ordens. Foram elas que me transformaram novamente num ser humano, estas rápidas hipnoses debaixo do efeito do Paronthil. Pode perguntar a quem quiser! Trabalhei como nunca.
( Isto era um fato. Rod e Bob Cummings já me haviam dito pelo telefone.
Disseram também que temiam pela Sylvia... por causa daquele psiquiatra. Não conseguiram fazer nada contra ele. Talvez eu conseguisse alguma coisa.) A Sylvia voltou à penteadeira, para arrumar o cabelo. Foram uma ou duas injeções a mais, entendeu, Lobinho? Precisei de uma grande quantidade, senão não teria conseguido me recuperar tão admiravelmente.
E estas uma ou duas injeções a mais causaram estes lapsos de
memória? Ela se maquilou rapidamente.
Não é nenhuma desgraça, diz Lester. Da Cava e Joe também.
Todos aliás dizem a mesma coisa. Não é falha de memória permanente. Vai passar de novo.
Quando?
Quando o quê?
Vai passar quando?
Quem?
Nada não. Continua.
Paronthil é um remédio milagroso. Evidentemente com efeitos secundários. Deve-se ser suspendido assim que estes aparecerem. Lester suspendeu logo. Agora vai começar a análise propriamente dita, Lobinho.
E os lapsos de memória?
É questão de dias. Além disso... Onde é que você vai?
Falar com o Lester.
Mas você nem sabe onde ele está!
Na cantina. Não foi o que você me disse há dez minutos?
É mesmo, deve estar lá, sim. É uma pessoa maravilhosa, Lobinho.
Você vai adorá-lo na hora, assim como eu.
Tenho certeza.
25
Lá fora no corredor xinguei a valer... em alemão. Fui descendo a estreita escada para o andar térreo. A Sylvia veio ao meu encontro. Claro que não era ela. Era C armem Cruzeiro, o double. Usava apenas um robe fino, curtinho. Já estava sem pintura.
Olá, Carmem!
Boa tarde, sr. Kaven.
Figuei olhando para ela e senti todo meu sangue... todo ele se concentrar num só lugar. Que loucura! Loucura completa. Há pouco ainda eu tinha visto a Sylvia inteiramente nua, sem sentir absolutamente nada.
438Agora diante de seu double eu quase lhe arranco o robe e a agarro lá na escada mesmo. Os bicos de seus seios atravessavam o tecido fino. Me aproximei dela. Apertei-a contra mim. Peguei os seios e esfreguei os bicos. Ela gemeu. Meus lábios se apertaram contra os seus. Estava louco! Se viesse alguém. Se nos vissem... tanto faz; tanto faz!
Venho esta noite disse eu mal conseguindo falar de nervoso.
Às nove.
Vem sim disse ela. Vem.
Livrou-se à força e desceu as escadas correndo. Vi suas pernas, suas coxas, suas nádegas, por um triz eu teria... ora.
Levou algum tempo até que eu pudesse respirar normalmente. Entrei na cantina. Numa mesa ao lado do balcão, estava o dr. Collins. Usava sapatos brancos, meias brancas, um terno elegante de fazenda branca, uma camisa listrada de azul e branco, gravata azul; um iencinho de seda do mesmo tom aparecia-lhe no bolso do paletó.
Hei, Lester disse eu.
Olhou para mim indignado.
Boa tarde, sr. Kaven.
O que está tomando?
Gin-tônico.
Fiz um sinal para o garçom atrás do balcão e pedi outro para mim.
Meus parabéns, Lester disse eu. Eu estava ao mesmo tempo
louco pela Carmem e furioso com aquele médico, o que é uma combinação meio perigosa. - Sim senhor, belo serviço com a Sylvia!
Meu jovem amigo disse Collins cruzando as pernas, e puxando
para cima a perna de s.ua linda calça gostaria de lhe pedir encarecidamente
para não me tratar pelo primeiro nome, e não ser desaforado. Do contrário terei que fazer queixa ao sr. Joe Gintzburger. O fato da Sylvia se encontrar tão bem...
Você a trata de Sylvia, e ela o chama de Lester, que história é esta?
É a relação de confiança entre médico e paciente. A Sylvia tem
plena confiança em mim. O fato dela se encontrar tão bem, ela deve exclusivamente...
Tão bem! Não consegue guardar o texto, esquece tudo, precisa de
ajuda! Falávamos inglês. O garçom veio trazendo o meu gin-tônico. De
raiva, tomei-o de um gole só.
Meu jovem amigo... e mais altivo ainda ...não se preocupe. Como leigo não tem como julgar isto. Foi com a narcoanálise e o Paronthil que consegui vencer a primeira etapa, acalmando a Sylvia completamente. Esta calma dá a impressão para... para um leigo como o senhor... que a Sylvia não está mais cem por cento como era antes.
Exatamente.
Deixe eu chegar ao fim, por favor, sr. Kaven. Obrigado.
439O especialista no entanto sabe que este não é o caso, que com isto ele conseguiu formar a base para que se revele tudo o que foi reprimido pelo subconsciente. Para o
reconhecimento dos complexos. Tomou um golezinho e balançou os pés
com os bonitos sapatos brancos.
Complexos, não diga!
Fingiu não ouvir e continuou:
No caso da Sylvia, trata-se principalmente de uma regressão a uma
etapa anterior de desenvolvimento, da qual poderá ser evoluída uma nova personalidade. Esta será a minha meta, quando começar com a análise, sr. Kaven.
Vai começar porcaria nenhuma! disse eu. Trate de se mandar
que eu já estou com você por aqui!
Ajeitou seu lencinho de seda.
Sr. Kaven, é o desejo expresso de meu velho amigo Joe, que eu
continue o tratamento... ele conhece minha capacidade profissional. O senhor realmente no momento é bem mais dispensável do que eu. Por isso
sugiro, com certa insistência até, que o senhor se retire. Imediatamente.
Um gole. Uma ajeitadinha. O pé balançando. Eu me recuso a ficar à mesa
com um ser tão primitivo quanto o senhor.
Então por que não vai embora?
Eu iria apenas até ao telefone ligar para Joe e lhe comunicar suas
ofensas inqualificáveis. Creio que Joe lhe aconselharia igualmente a desaparecer.
Fiquei olhando para ele.
Por favor se retire, sr. Kaven. Afinal seria bom pensar um pouco
em seu próprio futuro.
Ergui-me com as mãos em punho.
Seria seu fim, sr. Kaven, se encostasse um dedo em mim, mesmo
que fosse por descuido.
Saí portanto e fui ligar direto para Joe, para fazer queixa. Este me respondeu apenas que Lester era um gênio, que apenas ele poderia conseguir que a Sylvia agüentasse até o fim, que a minha pessoa no caso era muito secundária. Que eu devia ter juízo e pedir desculpas a Collins! Afinal não éramos todos uma só família feliz?
E se eu lembrasse de revelar tudo a respeito da Babs?
Ninguém acreditaria em você, Phil. Aquela voz macia! A
Babs está perfeitamente bem. Num internato nos Estados Unidos. Caso necessário, podíamos até dar o nome do internato e mostrá-la aos repórteres.
Podiam o quê? A Babs está em Heroldsheid!
Aquela não é a Babs da Sylvia, Phil. É a sua Babs. A da Sylvia
está com saúde, como eu já lhe disse e posso repetir a todos, inclusive apresentando provas.
- Mas isto é impossível!
440Você lá tem idéia do que é impossível! Acha por acaso que dormimos de touca? Temos uma Babs perfeita para apresentar a qualquer momento que for necessário. Com testemunhas e tudo. Você ficaria numa posição meio esquerda Phil. Muito esquerda até.
O que foi que o senhor fez?
Isto não lhe interessa. Só não tente nos fazer de idiotas, Phil. E
agora vá pedir desculpas ao meu amigo Lester, Phil. Ele desligou.
Eu tinha certeza que ele não estava blefando. Qualquer coisa acontecera da qual eu nada sabia. Levaria muito tempo ainda até saber... Só quando sobreveio a catástrofe. Realmente, naquela hora apareceu uma Babs alegre e sadia, num internato dos Estados Unidos, embora estas linhas possam lhe parecer loucura, sr. Juiz.
Fui portanto até a cantina e disse a Lester, que agora fumava seu cachimbo, que eu sentia muito, que vinha pedir desculpas. Balançou a cabeça desculpando, nem olhou para mim. Também não disse uma palavra.
26
Phil, você estava nervoso demais. Isto é uma velha história. Meu
Deus, quando olho para você... um homem como você! São os nervos... isto mesmo... procure relaxar um pouco, meu amor. Relaxe completamente, aí você vai ver como dá.
Eu já relaxei três vezes, e três vezes não deu certo. Sinto muito,
Carmem.
Ora não repita isto nunca mais! Venha cá eu vou...
Não, não quero! Além do mais, não daria certo.
Era por volta de 22h30min daquele mesmo dia, e eu estava deitado,
coberto de suor, inteiramente nu, na larga cama da Carmem, no apartamento n? 12, do Hotel CERVANTES, na Plaza de Ias Descalzares Reales.
Apenas uma lâmpada de abajur vermelho estava acesa. A autêntica iluminação de bordel. A Carmem, também nua, encolhida a meu lado, tentava se mostrar valente, sorrindo e me acariciando.
Deixa! disse eu.
Eu só queria ajudar... Encolheu as pernas. Estava realmente
preocupada comigo. Na parede em frente à cama via-se uma reprodução barata do famoso quadro de Velasquez: “As Damas da Corte e a Infanta Margarida”.
Juro, Carmem, isto nunca me aconteceu...
Hoje lá no ateliê, eu quase pego você. Quase não consigo me
controlar! Há meses que mulher nenhuma...
É por isso. Ela acendera um cigarro e fumava.
441Falta de hábito. Tensão, excesso de trabalho. Você é um touro,
uma loucura de homem, vi na mesma hora. Estas coisas eu conheço...
Bobagem, eu sou é impotente. Meio cedo.
Pare com isto! Naquela noite um grupo de jovens tocavam
músicas na rua, fazendo uma barulheira infernal. Logo quem, impotente? Madonna mia! nunca vi um... (ela disse a palavra) destes. Pobre querido. Meu amor! Deixa eu...
Não.
Por favor! Eu... me sinto tão culpada!
Agora começa você com isto também! Era realmente uma pequena, simpática, a Carmem. Falou de tudo que era possível, me trouxe alguma coisa para beber, trouxe um bastão para massagem e outras coisas mais, fez uma demonstração para mim, só para me ajudar. Não adiantou. Nada adiantou. Eu me sentia incrivelmente ridículo. Não agüentei mais. Fui até o banheiro e me vesti. Quando voltei para o quarto, a Carmem ainda estava sentada na cama, de bastão na mão e chorava. Isto também era demais. Beijei-lhe o cabelo, disse-lhe coisas agradáveis, mas ela continuava a soluçar, a muito custo conseguiu dizer que estava tão envergonhada por ter fracassado. Ela!
Na saída pensei que já estava me sentindo melhor. Estou melhor sim. Vou melhorando sempre. Daí a pouco esqueço tudo, é uma bobagem que pode acontecer a qualquer um. Talvez até sejam mesmo os nervos. Daí a pouco vou me sentir em plena forma de novo. Isto não vai acontecer nunca mais. Espere um pouco, deixa as coisas melhorarem, pensei eu.
É, foi o que pensei...
Ao chegar ao CASTELLANA HILTON, eram duas e meia da manhã; mal conseguia andar de tão bêbedo! Passei por três bares e fui me enchendo, não tinha mais a menor idéia quais tinham sido. Num deles uma garota me surrupiou dinheiro.
O porteiro da noite olhou curioso para mim ao me dar a chave. Tinha alugado mais um apartamento. Rod o fizera, alegando que durante a filmagem a Sylvia ia precisar do máximo de descanso; teria que ir cedo para a cama. Por isso agora dormíamos em quartos separados. Os apartamentos tinham ligação um com o outro.
O papagaio poliglota em seu poleiro, dormia junto ao chafariz agora desligado. Subi de elevador até meu apartamento; na porta tirei os sapatos. Entrei na ponta dos pés, atravessei dois salões até o quarto da Sylvia. Apertei a maçaneta.
442A porta estava trancada. Voltei para o meu quarto, tomei um banho rápido e me deitei. Não dormi nem três horas.
Às sete da manhã a Sylvia já me encontrou vestido. Ela também estava. Tomamos o café juntos, conversamos, brincamos; só trivialidades. Evidentemente falei também de Lester. Disse que agora eu via o quanto ele era formidável. Em seguida levei-a em seu Rolls-Royce para os estúdios e acompanhei-a até a sala de maquilagem. Lá estava a Carmem. Todos nos cumprimentamos amavelmente. A Carmem foi especialmente amável para com a Sylvia. Comigo também, mas de maneira que eu só percebesse.
Fiquei dois dias em Madrid. Brincava de chefe de produção, passava os dias inteiros nos estúdios, e como era de se esperar, os fotógrafos e repórteres apareceram mais uma vez. Contei o meu desespero a Bob, a Rod e Da Cava. Não conseguira livrá-los de Collins.
Rangendo os dentes eles reconheceram o fato.
De volta ao hotel eu e a Sylvia jantávamos no quarto. Tínhamos espaço suficiente; depois ela me dava um beijo na face ou na testa e desaparecia em seu quarto. Sempre se trancava.
Quando parti, a Sylvia me levou até o aeroporto. Os repórteres nos acompanharam; ficaram até o último instante. A Sylvia me disse que naquele mesmo dia faria sua primeira análise com Lester.
Vai ser formidável não acha, Lobinho? Você não acredita
também?
Claro.
Estas palavras foram ditas ao pé da escada do SUPER-ONE, enquanto os fotógrafos não paravam de tirar retratos.
Por favor Lobinho, vê se arranja o meu encontro com a Babs.
Você disse que ia conseguir. Não vamos ficar aqui em Madrid por muito tempo. Mais tarde não vou poder voltar à Alemanha. Meus dois dias de folga são aqui.
Vou arrumar disse eu. Mas temos que tomar o máximo cuidado... você entende não é?
Vou tomar sim, Lobinho. Meu Deus, como estou contente em rever
o meu tesouro...
Eu ia lhe perguntar se ela sabia como Joe conseguira foijar uma Babs gozando saúde, num internato dos Estados Unidos. Desisti. Ela ficaria muito assustada, devia ser qualquer canalhice de Joe, embora eu ainda não tivesse atinado qual.
Em Paris fui até o LE MONDE, me transformei em Philip Norton (quantas vezes já?) e continuei com a LUFTHANSA até Nurenberg. A Ruth estava novamente à minha espera no aeroporto, e quando entrei no VW nos beijamos. Este beijo fez com que por um instante eu esquecesse tudo por que tinha passado, meu fracasso com a Carmem, minha derrota diante daquele patife do dr. Collins, a estranha e sinistra história ouvida da boca de Joe de
443que a Babs vivia sadia e feliz num internato nos Estados Unidos. Contei o caso depois à Ruth.
Deve ter dado um jeito, caso transparecesse qualquer coisa
disse ela.
Mas que coisa? Como é possível? Aonde foram arrumar esta Babs
sadia e perfeita?
Eles têm muito dinheiro, não é Phil? Com dinheiro tudo é possível.
Eles têm que se garantir. Pode deixar que vamos acabar descobrindo o que eles fizeram. Ou melhor, nunca devemos descobrir. Phil, a Babs agora está numa fase tão boa! Boa como nunca! Eu vou com você até Heroldsheid. Quero estar lá quando você vir como ela melhorou... De repente.
Partiu. Durante algum tempo eu não disse nada, só fiquei olhando para ela, até que percebeu meu olhar. Riu perdida.
A coisa está piorando...
Fez a manobra. Rimos juntos. Meu Deus, como adoro esta mulher, pensei eu.
Quantas maçãs tem em cima da mesa?
Uma.
Muito bem, Babs.
A sra. Phol, a mão direita do diretor, estava sentada com a Babs numa sala de classe média. Eu e a Ruth estávamos mais atrás. Ela colocou mais uma maçã em cima da mesa.
E agora, quantas maçãs tem?
Agora duas disse Babs.
A Ruth segurou minha mão. Agora vinha o momento crítico, eu sabia. Apesar de todos os esforços, a Babs nunca mais tinha aprendido a contar, não conseguia passar de dois. Não adiantava, fosse qual fosse o método, e não eram poucos. Ela colocou a terceira maçã diante da Babs que estava sentada em frente num vestidinho solto, de óculos, muito concentrada.
Ótimo disse a sra. Phol. São duas então. E se juntar mais
uma, quantas ficam?
A Babs ficou calada. Fechou o olho, olhou ansiosa para nós. Nós não nos manifestamos.
Então, quantas são agora, Babs? A sra. Phol acariciava a
criança.
- Eh... eh...
444Mas que é isto Babs! Isto não é difícil. Primeiro era uma. Depois
duas. E agora são?
A Babs começou a balançar de um lado a outro, nervosa. A certa altura pensei que fosse desandar a chorar. Depois vi que estava rindo. Pegou depressa uma das maçãs, olhou radiante para a professora e declarou:
Vou comer esta; aí voltam a ser duas.
Muito bem! exclamou a sra. Phol.
Muito bem! aprovou Ruth. Eu não conseguia falar.
Eu não lhe disse? murmurou a Ruth. Balancei a cabeça. Fui
para junto da Babs e peguei-a no colo. Ela se agarrou a mim, me beijou uma porção de vezes, uns beijos muito molhados. Eu a beijei também. Feliz, sr. Juiz, feliz da vida por estar a Babs realmente tão melhor quanto a Ruth dissera. Ainda não conseguia contar até três, mas isto não importava. Era visível no entanto que voltara a pensar logicamente.
Pare, meu amor; por favor, pare!
Mais uma vez...
Mas querido... não...
Fique quieta!
Eu estava inteiramente louco. Nunca na vida me acontecera aquilo.
Lá estava eu, há três horas já (com intervalos) querendo sempre mais e mais. Minha pequenina Suzy, minha doce gatinha, com os longos cabelos louros, os seios rijos, o mais bonito traseiro que eu já tinha visto, já não se mexia mais, apesar de toda sua agitação anterior. Estava deitada quietinha. Sua recusa no entanto só me excitava mais. Quando chegou mais uma vez a hora, pensei que minha cabeça fosse estourar. Caí em cima dela e fiquei deitado ofegante. Depois me ajeitei a seu lado. Por muito tempo ficamos mudos naquela majestosa cama, do majestoso palácio do conde da minha pequenina Suzy, na Avenue Foch.
Quinta-feira, 28 de outubro de 1972. Por volta de 22h.
Finalmente a Suzy levantou e reencheu nossos copos de champanha. O balde de prata com os cubos de gelo estava ao lado da cama. Eram finos copos de cristal. O champanha, um Pérignon de 1961, uma das melhores safras, sr. Juiz. Já era a terceira garrafa desde a minha chegada. As mãos de Suzy tremeram; derramou um pouco. Peguei o copo e bebemos. Suzy disse:
O que houve com você, meu amor? Nunca vi coisa igual em toda
minha vida! Nem com você, antes. Você ficou... ficou maluco.
445Não respondi. Esvaziei o copo e estendi-o novamente para a Suzy. Reencheu-o, derramou mais um pouco.
Bebi, sentindo apenas um alívio imenso. Eu, impotente! Creio que naquela noite de outubro funcionou como nunca, apesar do que houve antes. Quem quer que você seja Phil, pensei eu, afinal alguém ou alguma coisa você tem que ser, nisto eu creio e lhe agradeço. Obrigado Phil, obrigado a você também Suzy!
Tinha ligado para ela de Heroldsheid avisando da minha chegada. Precisava ir a Madrid. Teria que seguir viagem ainda naquela noite. Ela rejubilara. Seu pequeno conde estava preparando um casamento a Ia Hollywood naquela merdazinha de lugar. Mandara chamar toda sua criadagem inclusive o porteiro do palácio da cidade, para ajudá-lo lá no interior. Não se ajeitava com os empregados de lá. Estávamos pois a sós naquele casarão. Por isso viera para cá. Na verdade, a Suzy a princípio tivera certos receios, mas dava-me um prazer todo especial encontrar com ela na casa daquele que dentro de três dias faria dela uma condessa. Claro que a Suzy acabou ficando excitada também. E se alguém nos visse? Se fôssemos descobertos? Agora o medo voltara...
Ora dissera a Suzy. Vamos arriscar! Se ele me pega e
expulsa daqui... que me importa! Eu não vou culpá-lo de nada. Aí, eu não vou poder mais casar com ele. Meu amor, isto é mais do que excitante, não é? Na casa dele! Na cama dele! Claro que sim! Você vem para cá.
Em Orly a tripulação do SUPER-ELEVEN estava a minha espera, e eu, sentado na cama do conde, tendo passado pela três horas mais selváticas de toda minha vida, com a mulher que ele escolhera para condessa. Tomara seu champanha e tentara vestir um de seus pijamas de seda, pois estava com frio. A Suzy correu nua para o banheiro. Foi se lavar; entrei depois e me lavei também.
Teve uma vez disse a Suzy sentada no bidê que eu pensei
que fosse morrer. E eu pedi, meu Deus, deixa eu morrer! Por favor!
Não existe morte mais bonita disse eu me lavando É o que
eu sempre desejei. Já que todos temos que morrer, gostaria de morrer assim.
Eu também. Disse a Suzy. Tinha trazido os copos, e estava ali
bebendo. Eu também bebi. A Suzy riu.
- O que foi?
Meu conde não.
O que, teu conde não?
Ele não quer morrer.
Não desse jeito?
De jeito nenhum.
Como de jeito nenhum?
Uma vez eu disse a ele... ele vinha contando muita vantagem
com todo aquele dinheiro, sabe...
Hum.
446... aí eu disse: Que é que adianta isto tudo, levar você não vai
mesmo! Ninguém leva. Sabe o que ele respondeu? Ora, se não posso levar, então também não vou morrer.
Piadista, hein?
Que nada. É idiota como quê. Estava falando sério.
Não diga!
- Foi!
- Suzy!
Eu juro! Ele... ele... meu Deus, só de pensar naquele sujeito, já
me sinto mal... Aquela figura insignificante, raquítica... a cabeça grande demais... tão degenerado...
Mas tão rico disse eu.
É, tão rico... repetiu a Suzy.
Ficamos calados, perdidos em pensamentos, eu, apertado dentro do robe do conde, e a Suzy usando uma curta saída de praia de atoalhado.
Nunca vou esquecer esta noite. Nem que chegue a cem anos.
Disse ela.
Nem eu. Sabe o que me excita tanto?
- O que?
- O fato de eu estar usando sua roupa, bebendo seu champanha, na sua cama... não acha que é uma coisa maravilhosa poder botar uns chifres enormes em alguém?
- Que pena, meu amor... Por que no mundo nunca se unem as pessoas certas?
É mesmo.
- Mas agora eu ao menos tenho alguma coisa com que sonhar... por muito tempo disse ela. Posso escrever para você?
Quando quiser.
A gente não pode se esquecer assim sem mais nem menos.
- Não disse eu olhando para o relógio de ouro e mármore.
Agora tenho que ir.
Só mais quinze minutos. Quinze minutinhos, por favor!
Não dá, Suzy.
Fiquei quase uma hora ainda...
O que quer dizer com “descontrolou” perguntou Rod Bracken.
O senhor mesmo me disse que em quase toda sessão a Sylvia lhe desabotoava a braguilha e praticamente o estuprava.
447O dr. Collins ficou todo vermelho. Naquela manhã usava um terno marron, um lencinho de seda bege, sapatos beges, gravata marrom e camisa bege. Cheirava a Água de Colônia. Eram nove horas do dia 29 de setembro, sexta-feira. Estávamos sentados no salão do apartamento do CASTELLANA HILTON. Eu tomava meu café da manhã. Os outros assistiam. A Sylvia já tinha ido há muito tempo para os estúdios. Eu dormi como uma pedra durante toda a viagem, e depois no Hotel também.
Não admito este seu modo vulgar de se expressar disse o dr.
Collins.
Bem, então a Sylvia...
O telefone tocou.
Depois do que tinha acontecido, Rod me chamara a Madrid. (Eu teria vindo de qualquer maneira. Foi bom porque assim acertei logo com a Suzy também.) Tínhamos pedido uma ligação para Hollywood, onde a esta altura era noite. Lembrei o fato a Rod.
Não importa respondera ele. Que acordem o Joe. Se o
doutor quiser voltar hoje, Joe tem que saber. E saber também por que.
Atendi. Joe estava no aparelho. Meio dormindo, irritado, nervoso, fungando.
Você ficou maluco, Phil? Sabe que horas tem?
Passei o fone para o analista.
Anda disse eu agora conta, Lester.
Nem se abalou.
Saudou o velho amigo amavelmente dizendo que por ele nunca teria ligado, que fora forçado por nós. Depois ouvimos o seguinte de sua boca:
Veja só Joe, você sabe muito bem quantas vezes eu já lhe ajudei... Justamente... Mas acontece que... a transferência foi forte demais... tenho que interromper o tratamento... Não, absolutamente, não estou abandonando uma doente. Nossa querida Sylvia está em perfeito estado de saúde!... Só que eu não posso mais... Não, pode deixar Joe, isto não vai acontecer mais... Pego o avião ao meio-dia. Não se preocupe... É Joe, sinto muito, mas a Sylvia se descontrolou... Ela me... Quero dizer, eu não consegui resistir quando ela... É, isso mesmo. Exatamente como no caso de Lora, exatamente, Joe! Você se lembra... naquela ocasião foi a mesma coisa e eu também fui obrigado a interromper o tratamento. Afinal é questão de ética. Estes dois senhores aqui, Bracken e Kaven não entendem isto. Você entende!... Também não posso permitir que me ofendam ... Eu consegui que a Sylvia ficasse boa novamente... e agora por favor, fale você com este sr. Kaven!
Estendeu-me o fone.
Ouvi a voz de vendedor de Bíblia de Joe, muito mansa desta vez:
Phil, meu querido, se você ou Rod fizerem mais uma destas observações indecentes a respeito deste médico maravilhoso, nós vamos nos aborrecer, entendeu? Lester conseguiu um milagre; mais um, aliás.
448Muito bem, Joe. Se você acha.
Não é questão de achar. Eu sei. E por favor diga ao Rod para ficar
de bico calado, senão ele vai ver uma coisa, ele não me conhece! Lester é... é um santo! Temos que lhe agradecer de joelhos! O que acontece!, aí não foi nada. Conheço isto... é excesso de transferência...
Mas Joe, a Sylvia e o médico...
Não pronuncie a palavra! O que entende você de psicologia?
Porcaria nenhuma! Portanto fique calmo. Eu também estou. Isto nunca mais se repetirá com a Sylvia. Lester a curou.
E Joe simplesmente desligou.
Peço mil desculpas, dr. Collins. O Rod também. Sinto muito nos
termos expressado daquela maneira, mas o senhor sabe... somos leigos... não é?
Que história é esta? perguntou Rod A Sylvia sentou no colo
dele e...
Cale a boca! disse eu.
Mas ela me contou, e ele também admitiu!
Está tudo em ordem, disse Joe. Joe diz que é coisa que acontece.
Que o doutor é um santo. Curou a nossa Sylvia. Curou-a completamente.
Você ficou maluco! Completamente maluco! Rod foi ficando
irritado. E se ela começar de novo a andar por aí alegremente pegando tudo que é operário...
Eu já lhe disse, cale a boca! Falava com um misto de ódio,
medo e gozação. Não é mesmo doutor, a Sylvia não vai fazer isto nunca
mais?
Ele não esperou que eu perguntasse pela segunda vez. Muito altivo, de sobrancelhas erguidas, disse logo:
Claro que não. Depois de ser tratada por mim!
Então só tem mais uma coisa que me interessa.
Pode falar, sr. Kaven.
O que significa “excesso de transferência”? Sou um pobre ignorante, mas gostaria de saber.
O sujeito não tinha o menor senso de humor. Ironia com ele não adiantava nada. Recostou-se, apertou os dedos das mãos uns contra os outros e dissertou cheio de dignidade:
A transferência foi excessiva de ambas as partes. Havia um relacionamento muito íntimo. Uma afinidade grande demais. É coisa que acontece. Como os senhores vêem, eu tenho uma estrutura de personalidade extremamente forte. Não é mérito meu. Através de anos de tratamento de pessoas tão especiais como são os artistas... evidentemente só os grandes artistas... eu estive sempre exposto ao efeito desses tipos de personalidade. Isto se refletiu sobre mim; tornando a minha personalidade cada vez mais forte. Em alguns casos... Joe sabe disso... este contato, esta transferência entre mim e o paciente se torna forte demais, acabando em incidentes como o caso de Sylvia. Entenderam?
449Não disse Rod.
- Entendi perfeitamente disse eu. Quase perguntei se esta transferência excessiva também acabava no mesmo resultado quando ele tratava de artistas homens.
Bem, então agora vou arrumar as minhas malas e vou-me embora
disse Collins se erguendo. A quem entrego minha conta?
- A nós aqui. A SYRAN-PRODUCTIONS - respondi.
Collins olhou para nós como se fôssemos o lixo, e desapareceu sem mais uma palavra.
Pela primeira vez na vida vi Rod boquiaberto. Continuei a tomar meu café, quando finalmente ele disse:
. O cretino nem nos estendeu a mão.
- E por quê? Ele é gênio! Nós não passamos de uns pobres imbecis. Você não conseguiu nem entender sua explicação.
- Você também não! Aquilo só foi palavrório daquele canalha. E se a Sylvia começar de novo?
Não vai começar não.
- Quem foi que disse?
- O dr. Collins disse eu. Um santo!
- Que Deus nos abençoe! disse Rod. A você ela não deixa
trepar, mas nele ela monta. Sim senhor, e para isto ele no fim ainda nos apresenta uma conta.
- E bem polpuda, pode contar com isso disse eu. Quando mais
tarde soube quanto, tive que puxar depressa uma cadeira. Afinal era um santo. O dr. Lester Collins!
Acaba logo com este café disse Rod.
- Por que esta pressa?
- A Sylvia está esperando. Quer saber quando vão ser seus dois dias de folga. Eu já tive as piores cenas com ela. Se nega a trabalhar se não a deixarmos ir a Nurenberg. Como é, ela já pode ver a Babs?
A dra. Reinhardt é contra. Tem sérios receios.
- Mas aí a Sylvia não vai continuar o filme, meu velho. Foi o que eu também disse à doutora.
- E?
Ela falou que então estava bem, que não continuasse. A ela o que
interessa é a Babs não piorar, e não os vinte e cinco milhões de dólares.
Eu vou falar com ela.
Vai falar coisa nenhuma.
E por que não?
Ela já deu uma idéia... com muitas restrições... de como a
Sylvia poderia ver a Babs.
Rod bateu no meu ombro.
450Ora, então está tudo resolvido. Por que esta cara?
Porque estou com medo.
Medo da Sylvia?
Não, da Babs piorar.
Foi assim que aconteceu, sr. Juiz...
Era uma sexta-feira à tarde, 6 de outubro de 1972. Eu e a Ruth estávamos em Nurenberg na Casa de Saúde Sofia, no andar térreo. Olhávamos pela janela para um parque que ficava atrás da casa. Eram árvores velhas e arbustos, um playground com balanços e tudo mais. A Babs e o pequeno Sammy (Malechamawitz, o “Anjo da Morte”) subiam por uma armação de canos lisos e cromados. O gramado estava coberto de folhas marrons, vermelhas e amarelas. Alguns galhos já estavam nus pois o outono chegara cedo. O sol da tarde ainda aquecia. Os gritos das duas crianças chegavam até nós. No ar transparente pairavam fios prateados, finos como teia de aranha... era o verão de São Martinho como o chamavam os portugueses. Depois vi outra coisa que me apertou o coração. Entrando pelo parque, vinha a Sylvia.
Sylvia!
Por ocasião da minha última visita a Madrid eu lhe explicara claramente, com todo cuidado como ela deveria se portar por ocasião de sua visita a Nurenberg. Eu lhe contara que a dra. Reinhardt havia concordado (sob protesto) em levar a Babs por algum tempo para Nurenberg. Nada de especial. Muitas crianças volta e meia eram levadas até lá a fim de fazerem qualquer exame para o qual não havia condição em Heroldsheid. A Babs já viera também. Em Madrid, eu combinara dia e hora de sua chegada. Devia vir de Paris com a LUFTHANSA, de peruca loura e óculos escuros. Eu conseguira através do comissário-chefe, Sondersen, e sob sua responsabilidade que a Sylvia não precisasse apresentar passaporte, que não precisasse se identificar nem aqui nem em Paris. Tudo tinha sido combinado. Eu e a Ruth ficaríamos esperando no corredor, para que daí, e apenas daí, a Sylvia pudesse ver a Babs no parque. Mais do que isto a Ruth achava arriscado. A Sylvia tinha aceito. Tinha aceito tudo.
E agora...
Droga! disse eu. Espera, eu vou correndo até lá e...
Não disse a Ruth com a voz gelada.
Não o quê?.
451Você fica aqui. Se você aparecer também, só vai piorar, Aquela
mulher é capaz de tudo.
Ela me enganou! Mentiu para mim! Ela é...
... é mãe” completou a Ruth segurando a ovelhinha na mão.
Fechou as mãos em punho e apertou-as contra o peito.
Abri a janela um pouquinho.
Vi a Sylvia se aproximar devagarinho da Babs que brincava alegremente. Foi chegando bem perto e ouvi-a chamar:
- Babs!
A Babs, trepada na armação, se virou espantada.
Ficou olhando perplexa para aquela loura de óculos escuros, vestida com uma simplicidade exagerada.
Ela não veio para cá conforme prometeu, foi direto para o parque,
ela...
Cale a boca. Isto não adianta nada disse a Ruth. Vi que estava
branca; pálida.
A Babs escorregou lá de cima, caiu no chão e foi recuando diante de Sylvia. Sammy ficou em cima imóvel. A Sylvia foi atrás da Babs, caiu de joelhos diante dela, começou a chorar. Agarrou a criança que se debatia, beijou-a, acariciou-a, e exclamou tão alto que nós ouvimos nitidamente no silêncio da tarde:
Babs! Minha querida Babs! Minha pequenina Babs!
A criança estava assustadíssima. Começou a gritar de medo.
Meu Deus, por que você está gritando? Sou eu queridinha, sua
mãe!
Não é verdade! gritou ela.
É sim.
Não, não! gritava ela.
Lá em cima, imóvel, Sammy o “Anjo da Morte”, parecia um pássaro imenso.
Sou sim! Você não me conhece mais? Olha aqui! e ela arrancou
a peruca, sr. Juiz! E agora, você reconhece a mãe?
Não! Não! gritava a Babs. Vai embora! Vai embora!
Mas meu bem, minha queridinha, o que foi?... O que é que você
tem?... Você não está me conhecendo?
Pergunta idiota. Claro que ela não estava reconhecendo.
Vai embora! Embora! gritava a Babs procurando se livrar dos
braços da mãe. Esta a segurou. De repente, com um grito estridente ela conseguiu se soltar; deu um pontapé na Sylvia de modo que esta, que já estava abaixada, caiu no gramado. Fora de si, incapaz do menor controle, como em sua fase pior, gritando, ela chutava e pisava a mãe que também gritava, cuspia nela.
Depressa disse a Sylvia. Pulei pela janela e ajudei à Ruth a sair
também. Atravessamos o gramado em direção à Sylvia e à Babs. A Ruth pegou a criança e a levou correndo para dentro.
452Gritava como se mil demônios estivessem atrás dela. A Sylvia continuava estendida na grama.
O que... o que...
Por que você não fez o que tinha sido combinado?
- Minha filha... Lobinho... isto... isto é horrível... A Babs não me reconheceu... Ela ficou... ficou doida!
Você é que ficou doida!
Me larga!
- Você vem comigo! Quando peguei sua peruca, olhei em direção
à casa. De muitas janelas espiavam cabeças, curiosas e assustadas.
Eu não... não vou... com você... canalha!
Ergui-a à força, obrigando-a a seguir na minha frente. Alcancei a janela aberta e suspendi-a. Ela se agarrou ao caixilho, gritando histérica. Bati na sua mão. Largou o caixilho, caiu no corredor, no chão de ladrilhos. Entrei também, olhei em volta e vi um depósito. Fui praticamente arrastando a Sylvia. Abri a porta. O quarto estava cheio de tralha. Puxei a Sylvia para dentro. Caiu em cima de um enorme saco de trapos, arquejando, soluçando.
- Se você gritar mais uma vez, eu...
Sr. Juiz, eu realmente teria levantado a mão para ela. Teria lhe dado um soco. No rosto. Ela olhou para mim e viu que era sério. Passou a choramingar baixinho.
Você estragou tudo disse eu Você deve ter percebido não é?
Uma criança quase boa e você a assustou desse jeito! Raios, por que cargas dágua deixamos você vir aqui? Você...
Ela escorregou do saco para o chão imundo. Deixei-a caída lá, e continuei a xingá-la, furiosamente, absurdamente.
A porta abriu-se de repente.
A Ruth entrou. Fechou a porta atrás de si.
O que houve? perguntou ela.
Ali disse eu apenas.
A Sylvia reconheceu a Ruth e balbuciou:
Sinto muito... Sinto muito... Eu não sabia... não tinha a
menor idéia.
É fez a Ruth.
Como está a Babs?
A senhora tem que sair daqui, sra. Moran.
O que houve com a minha filha?
Sua filha, sra. Moran, teve uma recaída tão séria com o choque,
que eu não posso nem dizer em que vai dar. Tivemos que lhe dar uma série de injeções. Agora está dormindo.
Eu quero vê-la.
Não.
Por favor, doutora! Por favor!
453É impossível sra. Moran disse a Ruth com toda calma.
Completamente impossível. Eu já lhe disse uma vez. A senhora tem que sair daqui. Não só por causa da Babs... mas já está havendo tumulto e excitação na clínica. A senhora tem que sair de Nurenberg.
Como? perguntei eu.
Um helicóptero levará a sra. Moran até Munique. Lá ela pega o
primeiro avião para Paris.
Helicóptero? Que helicóptero? - perguntou a Sylvia confusa.
O helicóptero de salvamento. Está do outro lado do parque. Não dá para ver daqui. Telefonei para Sondersen, o comissário-chefe. Ele se comunicou com a polícia de Munique. A tripulação do helicóptero não sabe do seu caso.
Não quero!
Tem que ir, sim, sra, Moran.
Eu não saio daqui! gritou a Sylvia.
Tome isto! A Ruth estendeu a mão. Na palma estavam três
drágeas brancas.
Que é isto?
Calmante.
- Não tomo! Vocês... vocês me enganaram! A Babs não me reconheceu! É uma criança débil! Vai ficar sempre assim! A cara... os óculos... Eu não quero mais viver...
Um médico jovem olhou para dentro.
O helicóptero, doutora.
Obrigada disse a Ruth. O médico desapareceu. A senhora
tem cinco minutos de descanso sra. Moran. Sente-se para se sentir mais calma. Depois a senhora vai. O senhor Norton a acompanha. Terá que acompanhá-la até Madrid. De agora em diante só terá permissão para visitar a Babs, quando eu disser. Entendeu, sra. Moran?
Nenhuma resposta.
Estou perguntando se entendeu?
Entendi... Sinto muito pelo que fiz,...
Eu também - disse a Ruth, por causa da Babs.
O que houve com ela? E agora o que vai acontecer? O que eu fiz
pode afetar a sua cura?
Ainda não sei, sra. Moran. O que aconteceu hoje foi um golpe
tremendo para o seu restabelecimento. Vamos fazer tudo para que ela fique boa de novo.
- Obrigada... Muito obrigada, doutora.
Ruth não respondeu.
Olhou para uma das janelas do depósito que também dava para o parque. Segui seu olhar.
454Lá estava Sammy ainda o “Anjo da Morte”, imóvel, petrificado em cima da armação de ferro.
As duas criadas no Rolls-Royce pareciam irmãs gêmeas. Tinham ambas os mesmos olhos negros com olheiras fundas de cansaço e excesso de trabalho. Tinham os mesmos cabelos negros maltratados, a mesma testa alta, o nariz fino, a boca bem feita que no entanto revelava miséria e pobreza. A pele amarela era idêntica, do mesmo tom. As rugas, os pés de galinha, as linhas do rosto, vincadas por muita preocupação e sofrimento. O pano cinza amarrado na cabeça era igual, também a blusa cinza e rota e a saia marron toda manchada. As pernas tinham a mesma cor amarelada, os pés de ambas cobertos de poeira e metidos, em tamancos grosseiros. Eram idênticas. No entanto uma estava viva, a outra quase morrendo. Por sua própria mão aproximara-se da morte. Queria morrer, e ia morrer a não ser que acontecesse um milagre. O Rolls-Royce estava chegando à Avenida Pio XII.
21h36min marcavam os ponteiros do relógio no painel do carro. O pesado veículo seguia veloz em direção sul. Eu estava no volante. Apertei a buzina e não tirei mais a mão de cima. Com as luzes acesas o Rolls-Royce ia a toda velocidade, levando as duas criadas, a viva e a moribunda. Do céu de um azul aguado, um sol frio iluminava a cidade de Madrid.
Era uma segunda-feira, 9 de outubro de 1972. Um vento forte sacudia os plâtanos baixos ao longo da avenida, levantando poeira, folhas coloridas e pedaços sujos de papel. Atravessamos agora a Calle General com seus edifícios, onde da terra vermelha, há poucos anos ainda se erguiam barracos de lata e madeira.
Babs...
Ouviam-se estertores no fundo do carro.
Apertei os lábios.
Mais depressa! disse Rod. Ele estava sentado atrás, segurando
no colo a cabeça da Sylvia. Carmem, o double, estava a meu lado. Eu já
lhe disse, anda mais depressa! Seu filho da mãe, pisa!
Apertei o acelerador. O carro deu um arranco, parecia que ia
levantar vôo. Subia e descia as ruas, ultrapassou carroças de burros, carros, ônibus e táxis. O velocímetro passou de noventa e cinco a cem, a cento e quinze. De repente a Carmem começou a rezar alto em espanhol.
Pare com isto! - disse eu.
Mas eu estou com tanto medo balbuciou ela, agora em inglês
perfeito.
455Eu também retruquei. Desculpe. Vai; anda! pode rezar
Sirenas apitaram. Olhando pelo espelho vi dois policiais em suas pesadas motos nos perseguindo a alguma distância ainda.
Filhos da mãe! disse Bracken olhando peío vidro de trás.
Vão abrir caminho para nós através do centro da cidade. Que sorte a nossa! Santo Deus, que sorte!
Cento e cinco quilômetros por hora.
Com seu molejo macio o carro seguia em disparada em direção ao edifício na Avenida América, em cujos milhares de vidros se refletiam os raios do frio sol. Mendigos pediam esmolas. Vendedores de loteria vendiam seus bilhetes. Outros ofereciam pássaros coloridos. Homens e mulheres apavorados passavam voando; mal os tinha visto, já eles sumiram. Freios rangiam. Um carro quase entrou no nosso. Eu tinha ultrapassado um sinal.
- Reza! gritou Rod para a Carmem. Sua Virgem Maria que
nos proteja agora!
“Santa Maria, mãe de Deus...” começou a Carmem.
As sirenas soaram mais alto. Os policiais se aproximavam rapidamente. Muitos carros na minha frente foram se encostando, abrindo caminho, parando.
Babs... Babs...
Cada palavra era um suplício para a Sylvia.
Está tudo em ordem, meu bem. Tudo em ordem. Tudo perfeito
disse Rod com a cabeça da Sylvia no colo.
Babs...
Eu sei. Mas não fala agora não.
Rod alisou-lhe delicadamente a cabeça. O pano que estava amarrado caiu. Vi pelo espelho. O aspecto da Sylvia era horrível. O rosto contorcido, cheio de manchas. Arquejando, procurava respirar; seu corpo se erguia e caía pesadamente. Espuma saia da boca da Sylvia Moran que em Madrid estava rodando o filme com que sonhara durante toda sua vida; esta vida a qual resolvera pôr um fim naquela manhã de 9 de outubro de 1972, no seu trailler nos imensos ESTÚDIOS SEVILLA FILMS...
Silêncio, estamos trabalhando! Câmara, por favor!
Pronto.
Som!
- Ligado.
- Placa!
456O CÍRCULO DE GIZ! Cena quinhentos e doze. Segunda vez.
Pronto disse o diretor Da Cava baixinho.
Cento e vinte e dois figurantes espanhóis, cento e trinta cavalos, um punhado de artistas americanos, entre eles uma criança, começaram a se movimentar. A Sylvia Moran também. Eram exatamente 1 Ih44min. A scriptgirl americana anotava cuidadosamente a hora. Em pé a seu lado, eu via. Levantei os olhos.
Azdak, o juiz do filme, tomou um longo gole de seu canecão de metal. O vinho vermelho lhe escorria dos cantos da boca. James Henry Crown, um dos lendários nomes de Hollywood representava este papel. No momento, estava sentado na cadeira do juiz em cima de um grosso código que seu companheiro lhe empurrara debaixo do traseiro numa cena já rodada anteriormente.
O rosto de Henry Crown estava pintado de “sangue pancromático”, seu cabelo branco lhe caia desgrenhado na testa maquilada. Usava uma toga já suja de juiz por cima dos trapos manchados de sangue de sua roupa de baixo. Estava descalço. Debaixo da camisa, fixos com esparadrapo em três lugares diferentes estavam as extremidades de três tubinhos de plástico, muito finos e muito compridos. Numa posição invisível para a câmara, seguiam até lá atrás onde um dos ajudantes de palco injetava de vez em quando com três pistolas mais um pouco de “sangue pancromático” dentro dos tubos, fazendo as feridas “sangrarem” novamente. O sangue das feridas recém-abertas penetravam na roupa, fazendo surgir novas manchas. Cada vez que repetiam a cena, Crown precisava pois de uma nova camisa esfarrapada, e outra toga velha.
A corda que os guardas iam usar para enforcar o juiz arbitrário, balançava do alto de um estrado em frente de Azdak, com o laço já feito. A cena já havia sido rodada há dias. Todas elas aliás, as de Azdak sendo espancado, indo para a forca, já estavam prontas, assim como todos os detalhes da cena 512, a mais importante do filme. Esta ia ser rodada agora mais uma vez na íntegra. O diretor e a equipe de montagem teriam assim material suficiente para conseguir uma seqüência dramática até o clímax, revelando o interesse dramático de alguns espectadores, o medo e a cobiça estampados no rosto dos advogados, dos assessores, da mulher do governador. O suplício da criada Grusche quando posta à prova no círculo de giz... a criança entre ela e a mulher do governador, o juiz bêbedo, os guardas ameaçadores, o colorido caos dos comparsas, o retrato do mundo, o nosso mundo desde o princípio, agora e para sempre...
Noventa e um figurantes espanhóis, homens e mulheres, o “povo”, eram contidos e reprimidos diante do pátio do palácio do Governador por outros trinta e um figurantes espanhóis, que representavam a guarda montada em trinta e um cavalos. Em pé diante de Azdak estavam dois advogados, o assessor da mulher do governador e ela própria. Além desses, vestindo calça branca curta, camisa branca e sandálias, também lá estava Michel o garoto a quem a criada Grusche salvara a vida, a quem criara e guardara de todos os perigos.
457Ele sorria. A Grusche sorriu para ele também...
Naquela manhã, a Grusche, ou seja Sylvia Moran, chegara aos estúdios pontualmente às 7h30min; muito pálida e nervosa. Eu a trouxera em seu Rolls-Royce. Diretamente atrás de nós, vinham os quatro detetives da SEVEN STARS em dois carros. Fazia muito frio. Já havia muita gente preparando a primeira cena do dia. Ao parar o carro diante da casa de camponês caucasiano erguida aí há quatro meses, mas que pela história tinha sido construída há muitas centenas de anos, vi a Carmem. Saltamos.
Desde o incidente de Nurenberg, a Sylvia não falara mais comigo. Nenhuma única palavra tinha sido dita desde a sexta-feira passada. Nenhuma, nem no helicóptero, nem em Munique, em Paris ou no SUPER-ELEVEN que nos levou a Madrid. Também não em Madrid, ou no hotel. Nenhuma única. Mostrava-se calma e amável com os garçons, com os outros artistas que moravam no CASTELLANA HILTON, com Rod, Da Cava e Gummings. Com todos. Mostrava-se inteiramente normal, como se nada tivesse acontecido. Só comigo ela não falava. Assim que chegávamos trancava logo a porta que dava para o salão, de modo que eu ficava banido no meu segundo apartamento.. Tinha sido um fim de semana horrível. Telefonei para a Ruth, contando tudo.
Vai passar... eu espero dissera ela.
E a Babs? Como está?
- Mal.
Muito?
- Muito. Prefiro não entrar em detalhes. Liga de novo para mim, está bem?
Ligo sim, Ruth. Ligo sempre. Ruth?
- Hein?
Eu a amo.
Eu também.
A Sylvia não se mostrava zangada nem irritada comigo. Estava calma. Sinistramente calma. AmáveJ e delicada, porém muda. Tomávamos as refeições no restaurante: ela não dizia uma palavra. Ficávamos sentados no bar, saíamos aos domingos para fora da cidade, de carro, a passeio. Ela não dizia nada. Nem pela Babs perguntava. Esta manhã, quando bati na sua porta, ela já estava pronta. Levara-a para os estúdios. Nada; continuava muda.
458Ao saltar do carro, por um instante tive a impressão que ela cambaleou. Fui correndo ampará-la. Ela me empurrou. Uma campainha tocou: Intervalo do ensaio. Rod, Bob e Da Cava vieram ao nosso encontro, cumprimentar a mim e a Sylvia. A todos, Sylvia disse bom-dia normalmente. Os detetives se mantinham afastados, espalhados pelo local.
Enrolado num cobertor, Da Cava olhou para a Sylvia preocupado. A todos três eu tinha contado o que ocorrera com a Sylvia em Nurenberg.
Você está precisando de médico? Perguntou Da Cava.
Bobagem. Médico para quê? Eu vou trabalhar. Eu... só foi uma
tonteira à toa.
Tonteira? - perguntou Rod em seu grosso capote - Tonteira, quem ia cair?
Qualquer coisa nos olhos, na cabeça. Já passou.
Bob levantou a gola do paletó de tweed.
- Você não está se sentindo bem. Phil vai levá-la de volta imediatamente para o hotel. Hoje também podemos muito bem filmar as cenas de dança, não é Júlio?
Claro, não tem problema nenhum - respondeu Da Cava.
Nada disto! retrucou a Sylvia sacudindo a cabeça. Os longos
cabelos de um preto azulado esvoaçaram. Usava um terninho verde e um
casaco de pele de leopardo. Estava completamente sem pintura. É este
maldito vento! Enlouquece qualquer um! Vou tomar dois comprimidos, e fica tudo em ordem.
Não é o vento não disse Da Cava.
Ora, Júlio! disse a Sylvia já irritada. Me deixa em paz, por
favor! É a minha regra que está para vir. Ainda bem que a filmagem de perto já está resolvida. É a regra. Não se preocupem.
Ninguém falou nada.
Muito bem disse a Sylvia. Onde estão Joe e Katie?
O casal Joe e Katie, seus maquiladores há anos, já esperavam em sua sala.
Então eu vou disse ela e foi andando. Todos ficamos olhando
para ela. Desapareceu na entrada do prédio. Agora os maquiladores e figurinistas iam cuidar da Sylvia, trabalhar até que ela ficasse igual a Carmem seu double, que eu tinha visto de longe. Tinham precisado dela para prepararem as luzes. Numa blusa cinza rota, uma saia manchada, pesados tamancos nos pés descalços. Fundas olheiras debaixo dos olhos, maquilada com um produto especial francês, o rosto e as pernas de um amarelo-ocre, os pés empoeirados com talco cinzento, fixado com spray para que não caísse. Rugas na testa feitas com um pancake americano de cor ocre, pés de galinha no canto dos olhos, sulcos ao redor da boca, as faces pintadas com lápis e pincéis previamente mergulhados em loções visgosas. O cabelo sem brilho, despenteado propositalmente e fixado...
459Tudo isto eles agora vão fazer com a Sylvia, pensei eu. Vai levar uma hora até que ela fique pronta para a maior e mais importante cena do filme, a de número 512...
CENA 512. O GRANDE PÁTIO EM FRENTE AO PALÁCIO/EXTERIOR/DIA.
CÂMARA MÓVEL. FOCALIZANDO A CENA TODA A TRÊs mETROS DE DISTÂNCIA. DE INÍCIO AO FIM VÊ-SE BALANÇAR A SOMBRA DA CORDA NA QUAL AZDAK DEVIA SER ENFORCADO.
Azdak bebe longamente. Ao olhar em volta vê-se o pavor em seus olhos. Em breve o vinho fará seu efeito. O sangue continua a lhe brotar das feridas. Em sua roupa miserável continuam a aparecer sempre novas manchas de sangue. Azdak enxugou o sangue do rosto; arrota antes de começar a falar...
Isto eu li no roteiro que estava aberto em cima das minhas pernas. Eu estava sentado na frente de um refletor sobre um pedaço de cenário, a Carmen a meu lado. Segurava no colo a edição alemã da obra completa de Bertolt Brecht. O diálogo do filme, neste ponto era exatamente igual ao do livro. Botei meu roteiro de lado e olhei para Azdak-Crown. Vi o cenário, os artistas, os operadores do palco, os técnicos, com Roy Hadley Ching, o cameraman, sentado num banquinho suspenso lá no alto, atrás de pesada câmara. Vi seus três assistentes, a equipe toda encarregada da filmagem, uns trinta e tantos homens no mínimo. Vi a Sylvia...
Ouvi Azdak falar, repetindo exatamente as palavras de Brecht:
“Réus e acusação! A corte de justiça ouviu vosso caso, mas não percebeu claramente quem é a verdadeira mãe da criança. Como juiz eu tenho a obrigação de escolher uma mãe para esta criança. Schauwa, pegue um pedaço de giz, desenhe um círculo no chão...”
O artista que representa o papel de Schauwa, desenha o círculo no chão.
“Coloque a criança aí dentro!” ouve-se a voz de Azdak.
Schauwa obedece colocando o Michel no meio do círculo. Este sorri para a Grusche.
“Acusada e acusação, coloquem-se ao lado do círculo.”
As artistas que representam a mulher do Governador e a Grusche obedecem.
“Peguem a criança pela mão. A verdadeira mãe terá a força de
puxar a criança para fora do círculo!”
460Seguindo fielmente as instruções de Brecht, o segundo advogado do filme se adianta.
“Suprema Corte, eu protesto. O destino dos vastos bens dos
Abaschwilli que estão ligados à criança por heranças, não pode depender de uma disputa tão parcial. Minha constituinte não possui a força de uma pessoa acostumada a executar serviço braçal!”
Azdak lhe fez um sinal para se afastar.
“Ela me parece bem nutrida. Puxem!”
A mulher do governador puxa a criança para fora do círculo. Sylvia soltou a mão da criança. Está de pé, desfigurada.
O primeiro advogado dá os parabéns à mulher do governador:
“Eu não disse? São os laços do sangue!”
Virando-se para a Sylvia, Azdak diz:
“O que houve com você? Você não puxou.” E esta responde:
“Eu não o segurei.”
A meu lado, movendo os lábios, a Carmen acompanhava as palavras no livro.
A Sylvia corre para Azdak, para o velho James Henry Crown:
“Excelência, eu retiro tudo que disse. Eu lhe peço perdão. Será que
eu não poderia ficar com ele, até saber falar direito? Sabe apenas algumas palavras.”
Meu Deus, pensei eu, que mulher é a Sylvia! Impressionante! Isto não é representação. É vida autêntica, vivida. Será que ela vai agüentar? Ainda falta muito até o filme ficar pronto. Sylvia ainda tem que dar muito de si. Seu estado no entanto é tão lastimável...
Enquanto eu pensava isto, Azdak adverte à Sylvia para não influenciar a corte. A parte foi repetida. Era a cena maior do filme; seria porém cortada na hora da montagem. Ainda desta vez ela solta a criança imediatamente. Desesperada ela exclama:
“Eu a criei! Quer que eu a rasgue ao meio! Não consigo!”
Azdak se ergue.
“E assim diz ele, palavra por palavra o diálogo de Brecht - a
corte de justiça comprovou quem é a verdadeira mãe. - Virou-se para a
Sylvia: Pegue seu filho e leve-o. E virando-se para a mulher do
Governador: E você, desapareça, antes que eu a condene por fraude. Os
bens ficam para a cidade, para que seja feito um jardim para as crianças; elas precisam disso. Deverá se chamar “Jardim de Azdak”, segundo o meu nome.”
A mulher do Governador desmaia, volta a si e é levada para fora por seu assessor. Os dois advogados já a precederam. A Sylvia continua imóvel. Schauwa lhe entrega a criança.
“Agora tiro a minha toga de juiz pois estou com calor - diz
Azdak. Eu não me faço de herói, mas os convido para uma dança lá fora.
Uma dança de despedida.”
461Michel olha radiante para a Sylvia. Esta o contempla séria, longamente, depois sorri. Pega o garoto pela mão e vai se dirigindo lentamente para a entrada do palácio. A câmara os acompanha. Sylvia sai do seu campo de visão, ainda segurando a criança pela mão. Ambas param. A câmara continua a rodar mais alguns segundos para sobrar espaço para emendar a cena seguinte.
Depois ouve-se a voz de Da Cava:
Encerrado.
Ninguém se move.
Como foi? pergunta ele.
Formidável! Melhor do que da outra vez ouço Roy Hadley
Ching, o cameraman dizer.
O som também? pergunta uma voz ao alto-falante.
Bem melhor.
Muito obrigado a todos diz Da Cava.
No mesmo instante, figurantes e artistas, operadores e técnicos, duzentas pessoas ao todo, começam a bater palmas.
Sylvia! Sylvia! Sylvia!
Também a Carmen aplaude e grita.
A Sylvia continua em pé impassiva, depois se inclina e sai rapidamente. Atravessa o palco, os estúdios, vai até seus aposentos. Fecha a porta atrás de si. Na porta lê-se em letras bem grandes:
SYRAN PRODUCTIONS “O CÍRCULO DO GIZ”
4 SYLVIA MORAN
36
Levantei-me. A Carmen quis me acompanhar; ajudei-a a descer. Gente por toda parte. Da Cava dava ordens pelo megafone. Já estavam preparando a cena seguinte. Vi Bracken ir até os aposentos da Sylvia. Entrou, fechou a porta atrás de si. Devia querer discutir algum problema com ela. Me encaminhei para lá também. A Carmen me seguiu. Nunca mais tocamos no que havia acontecido naquela noite. Talvez o senhor consiga entender por que a Carmen desde então sentia uma ligação comigo, sr. Juiz. Eu não sei explicar. Mas era um fato. Atrás de nós gritavam os assistentes de Da Cava; a câmara foi recolhida nos trilhos, todo mundo estava ocupado. Estávamos a uns cinco metros dos aposentos da Sylvia quando a porta se abriu de repente, e Rod olhou para fora, como se estivesse procurando por alguém, o rosto lívido, os lábios trêmulos.
462- Phil!
O que houve?
Depressa!
Fui correndo, olhei para dentro. Deitada no sofá arquejante, quase sufocando, estava a Sylvia; os olhos revirados, a boca aberta, cheia de espuma.
Tomou veneno murmurou Rod.
Corri até o Rolls-Royce, abri a porta, me joguei atrás do volante, levei o carro até junto da casa. Saltei. Ajudei o Rod a acomodar a Sylvia no fundo do carro. Gemia. Rod entrou. Eu saí correndo. Parei. Voltei. Peguei a Carmen, empurrei-a para dentro do carro.
O que...
Nem respondi. Correndo dei a volta no carro, entrei, acelerei.
Ninguém tinha percebido nada. Ninguém em meio a toda aquela multidão que, ocupada, preparava a nova cena. Nem os detetives. Estavam distraídos, olhando o trabalho. Alcancei a saída. O relógio do painel do carro marcava 12h36min. Do céu de um azul aguado brilhava uma fria luz de sol iluminando a cidade de Madrid.
37
O Rolls-Royce zarpava pelas ruas. Calle de Hermosilla. Calle Ayala. Os dois policiais de moto seguiam agora na nossa frente de sirena ligada. Ao nos alcançarem, perceberam logo o que estava acontecendo. Umas poucas palavras gritadas de um para o outro haviam sido suficientes. Entenderam.
Uma alameda de árvores. Edifícios brancos e luxuosos com ornatos de estuque, um estabelecimento bancário novo ao lado de outro, as portas sitiadas por mendigos, 12h56min, 12h57min, 12h58min...
É lá! gritou Rod.
Os dois policiais fizeram sinal com o braço esquerdo. Pisei no freio, abaixei a alavanca que acendia o pisca-pisca da esquerda. Dobrei para a esquerda, Calle de Padilla. Um prédio branco da esquina. O hospital! Os policiais pararam diante da entrada. Consegui parar o Rolls-Royce há poucos centímetros deles. Os policiais já tinham entrado correndo no hospital San Rufo. Rod correu atrás deles gritando como um idiota:
A maca! A maca!
Gente parou na rua quando, logo após, a Sylvia foi retirada por enfermeiros em suas roupas brancas. Ninguém falava. Uma mendiga, toda vestida de preto, ergueu um garotinho para o alto para que ele pudesse ver melhor. Estas coisas davam sorte...
463Ande, vem logo! Eu fui arrastando a Carmen. Antes que ela
pudesse perceber o que estava acontecendo, já estava dentro do hospital, num longo corredor, num imenso elevador, dentro do qual, em cima da maca a Sylvia estava sendo levada para o primeiro andar. Ajoelhei-me a seu lado. Falei. Nem sei mais o quê. Palavras sem nexo. Insistia... Primeiro andar. A maca foi empurrada para um outro corredor. O médico da enfermaria, magro, de cabelos pretos, veio correndo.
Sou o dr. Molendero disse ele em inglês para mim.
Philip Kaven. Esta é a sra. Moran. Tomou veneno.
Quando? perguntou o médico, já curvado por cima da figura
imóvel, examinando-a.
Há uns dez... quinze minutos. Rod estendeu uma embalagem de
remédio ao médico:
Isto aí! O vidro todo!
Santo Deus! disse o médico ao ler a etiqueta do vidrinho, e em
espanhol para os enfermeiros: Rápido, para a emergência! Vamos!
Os enfermeiros levantaram a maca. Desceram o corredor rapidamente. O médico ia correndo atrás deles. Peguei-o pelo braço:
Como é? Ela vai escapar?
Não sei.
Quais são as chances?
Muito poucas... com uma droga destas... Me largue! Ele
deu um arrancão; livrou-se, correu atrás dos enfermeiros. Por cima do ombro ainda gritou para mim: Entre aí. Quarto cento e onze!
Pois não, doutor. Virei-me para Rod que tremia. Desça lá e
fale com os policiais. Não pode transparecer nada. Em circunstância alguma. Vá com eles até o distrito. Procure o amigo de Lejeune. Se for preciso, convoque Lejeune também.
Certo, Phil Rod já descia a escada correndo. Olhei para a
Carmen. Chorava. Sem dizer nada, puxei-a para dentro do quarto 111.
- Alô... Alô... É a SEVEN STARS? - Aqui é Philip Kaven de Madrid... É uma ligação urgente... Quero falar com o Sr. Gintzburger... Depressa! Droga, anda logo!
Vinte minutos haviam passado.
No quarto 111 tudo era de um branco impecável: as mesas, as cadeiras, as paredes, o chão de ladrilhos, o telefone. Sentada ao lado da janela, a Carmen olhava para o jardim despido.
464Eu estava sentado a uma das mesas brancas.
- Alô... Alô! Joe?
Olá, Phil. A mansa voz de vendedor de Bíblia. Eu sei que
está em Madrid. Mas onde? Aconteceu alguma coisa?
Uma coisa horrível, Joe... estou no hospital San Rufo... Só
aí notei que tremia tanto quanto Rod tinha tremido antes. Gaguejando, relatei
o que havia sucedido de horrível em Madrid Nós a levamos para o hospital
San Rufo... É a melhor clínica daqui... Há uma meia hora os médicos estão ocupados com ela...
Houve um silêncio tão demorado que eu gritei:
- Joe? VOCÊ AINDA ESTÁ NA LINHA? Entendeu o que eu disse?
Entendi perfeitamente, sr. Kaven.
Então agora eu era p sr. Kaven. Já não era mais Phil. Mas sempre a mesma voz macia e piedosa. Embora agora já fungando pelo nariz.
E agora Joe? Que fazemos?
Novo silêncio. Depois:
Quem mais além de Bracken e você sabem do ocorrido?
- A... A......:”.. ••
- Ora! •
A Carmen, o doublé!...
Onde está ela, sr. Kaven?
Aqui comigo... Eu a trouxe junto porque...
- E quem mais, sr. Kaven? Fungou.
Dois guardas de trânsito. O médico. Outros médicos. O pessoal do
hospital.
Os médicos não têm problema, por profissão são obrigados a se
calarem disse a voz untuosa cada vez mais devagar, mais pensativa. - A
polícia...
Eu mandei Bracken falar com eles na mesma hora... Foi com eles
até o distrito... Já telefonou... Lejeune está a par também... Tudo vai ficar em sigilo... não vai transparecer nada...
- Qual a probabilidade da Sylvia morrer, sr. Kaven? Fungou.
Realmente, Joe...
- Qual é? Quantos por cento? Diga!
- Joe! Mas a coisa aconteceu agora! A Carmen olhou assustada
para mim, pois tendo chegado ao fim de minhas forças, eu comecei a gritar: - Ora, como é que eu posso calcular isto! Nem vi os médicos ainda! Eu...
- Não - disse a voz piedosa lá do outro lado do oceano, de outro continente.
- Não o quê?
- Não grite, sr. Kaven. Não gosto disso. Eu também não costumo gritar com o senhor.
465O senhor acha que a probabilidade dela morrer é muito grande?
Receio que sim.
Hum. Enquanto ela continuar viva, a filmagem no entanto não
poderá ser interrompida, o senhor entende isto, não é?
Claro que entendo, Joe, mas...
Não tem mas nenhum, sr. Kaven. Enquanto os médicos não a
derem por morta, a filmagem continua. De qualquer maneira... Entendeu, sr. Kaven?
Entendi. Là... lá fora ninguém percebeu nada... Nem os detetives, acredito eu... O pessoal continua a trabalhar...
O que estão filmando agora?
A cena final da dança.
A Sylvia deve ter feito esta loucura em conseqüência do que houve
em Nurenberg.
Quem lhe contou?
Braken. Telefonou logo após. Por que o senhor não disse nada?
Eu... eu... eu queria...
- Deixe isto agora... Fungou. Depois falamos nisto. Pode
estar certo de que se Sylvia escapar, voltamos ao assunto.
Ora, eu afinal também sou apenas...
Se a Sylvia morrer o seguro terá que nos indenizar, o senhor sabe
disto, não é?
- Sei, Joe.
Lembra quem, depois de tudo que houve com a Sylvia, ainda
insistiu numa cláusula de suicídio, sr. Kaven? Quem conseguiu que constasse esta cláusula tão fora do comum? Quem, pagando uma exorbitância de prêmio, conseguiu que o seguro se obrigasse a pagar uma indenização em caso de suicídio do protagonista?
Foi você, Joe. Foi...
Sim, fui eu. E quem foi contra, porque custava uma loucura?
Quem reclamou, alegando que não era necessário? Fungava sempre de
novo.
Fui eu, Joe... porque Rod Bracken... sinto muito... Você
realmente é formidável. Rod além disto...
Cercado de um monte de idiotas, infelizmente. De qualquer maneira, se a Sylvia morrer, o seguro terá que pagar. Os vinte e cinco milhões estão salvos. Mas e o filme? O que vai ser do filme... se a Sylvia...
Isto... isto eu não sei, Joe...
Qual a percentagem que já foi rodada? Será que ao menos isto o
senhor sabe?
Joe! A Sylvia talvez esteja morrendo nesse instante e...
- Quantos por cento foram rodados!
466A Carmen olhava para mim imóvel. O fone me escorregou da mão. Peguei-o novamente.
Vê se consegue se controlar, sr. Kaven! Quanto já foi rodado?
Mais da metade?
Já... Não... Claro que já!
Afinal quanto foi? Que percentagem?
Talvez uns cinqüenta e cinco ou sessenta...
E da parte da Sylvia?
Não sei... Não sei mesmo... Teria que ver o material... Está
tudo na montagem ou na copiadora... Você é que deve saber disto!
Mas eu estou perguntando a você! Nós estamos rodando outros
filmes além deste, entendeu, sr. Kaven?
A Sylvia já fez muita coisa... Começamos com as cenas externas... depois a cena da massa... a do palácio... Ainda falta toda aquela seqüência das montanhas... as filmagens externas em Saragoça... Terçafeira íamos para os Pirineus...
As cenas da massa... a Sylvia está sempre presente nelas?
Está sim... quase sempre...
Em primeiro plano...
Claro...
Com o rosto voltado para a câmara?
Sim.
Neste caso, se a Sylvia morrer, vamos poder jogar fora as cenas
mais caras! Ótimo! Muito bonito... Fungou.
Ouça aí, Joe... Um momento.. Olhei para a Carmen e pedi:
Quer esperar lá fora um instante?
Ela saiu da sala.
Joe?... Joe!... Mandei a Carmen sair um instante...
Não diga, sr. Kaven! Muito interessante, realmente...
Ora Joe, vê se me ouve!
De repente Joe Gintzburger prestou atenção.
No mesmo dia, 17h3 5 min.
Levei o Rolls-Royce até junto à entrada do CASTELLANA HILTON. Rod ajudou a Sylvia a saltar. Um garagista levou o carro até a garagem, depois de eu saltar também. Todos os funcionários cumprimentaram amavelmente, sorrindo tão atenciosos como sempre... A Sylvia era estimada e venerada por todos. Pegamos as chaves. Subimos primeiro até o apartamento
467da Sylvia. Ela usava o terninho verde e o casaco de pele de leopardo. Jogou-o em cima de uma mesa no salão.
Rod riu satisfeito.
Como é? disse ele. Então não foi tudo bem?
Carmen Cruzeiro sentou-se numa poltrona. Suas mãos tremiam, não conseguia dizer uma palavra.
Coragem! disse Rod ainda radiante. Você vai conseguir!
Não tenho a menor dúvida.
Rod tem razão, Carmen disse eu.
Claro que tenho razão! Esta é a sua chance, lembre-se disto!
Nunca mais terá outra igual! Rod alisou o rosto da Carmen. Ela o
encarou muda. Ainda não conseguia falar. Ela, a insignificante secretária de línguas, estava instalada naquele suntuoso salão, vestindo o terninho da Sylvia, seu casaco de pele, seus sapatos (tudo havia sido recolhido no hospital e nos estúdios). Seu olhar inseguro passava de mim para Rod, ia e vinha, vagava pelas paredes forradas de seda, pela lareira de mármore, o ouro e a prataria, móveis de madeira de lei, a mesinha na janela. Ali fica o quarto, lá o banheiro, logo ao lado o vestiário. Carmen não conseguia dizer nada.
Rod riu. Foi até o vestiário, cujos armários embutidos tinham portas de espelho, abriu todos eles. Vestidos e mais vestidos, casacos de pele, roupa que não acabava mais, sapatos em quantidade!
Rod abriu um cofre (tínhamos trazido a chave conosco lá do hospital). Uma pequena mostra das jóias de Sylvia reluziu lá dentro.
Não... por favor... balbuciou a Carmen. Nunca estive
num apartamento destes... Vou cometer erros... tenho certeza... Vou fazer com que descubram tudo...
Rod se aproximou. Sentou-se no braço da poltrona, colocou o braço em torno dos ombros da Carmen, num gesto paternal:
Bobagem! Eu vou ficar sempre junto de você! Agora vem as cenas
de exterior. Três semanas. Um grupo pequeno apenas. Sem comparsas. Vamos contratar camponeses da região. Primeiro temos que ir para os Pirineus. Ali é muito ermo. De agora em diante você é que vai aparecer diante das câmaras como Sylvia Moran.
Mas... mas eu não entendo disso!
Claro que entende! Como não? Quantas vezes eu e Phil conversamos sobre isto, não foi?
Tudo tinha sido combinado previamente.
Se foi! disse eu.
Conversaram sobre o quê?
Sobre o seu talento. Assistimos a todos os ensaios, a todos os seus
trabalhos.
É mesmo? Carmen queria acreditar, mas não conseguia.
É verdade sim disse eu e pensei: assistimos sim. Pobre coitada,
chegávamos a ficar com dor de barriga, vendo seu talento. Droga! Tenho que
468falar com Da Cava, com os artistas, com os técnicos. Eles não vão espalhar nada. Por quê? Por dinheiro! Pela chance de poder rodar o filme novamente, se a Sylvia por milagre não vier a falecer! E mesmo que... mesmo que a Sylvia morra... Joe consegue. Joe Gintzburger, aquele velho canalha, não deixa de ser um gênio! Ficou entusiasmado com a idéia. Graças a Deus! Eu já tinha começado a me sentir mal. Acabei até marcando um tento com Joe. Agora eu podia ameaçar a todos, exigir: Ou você faz o que eu mando, ou a SEVEN STARS não o contrata nunca mais!
Enquanto isto Rod insistia:
Você tem que ir, meu bem, você tem que trabalhar!
Mas não como uma segunda Sylvia... como sua substituta... E
se ela... meu Deus!
Ora, talvez ela escape! Mas tanto faz. Não como sua substituta
disse Rod como você mesma. Como grande artista independente! Comigo
como empresário... aliás não pode haver melhor, ha! ha! ha! E se acontecer o pior, se a Sylvia vier a falecer... Quem sabe, você aí continua a fazer o papel da Sylvia... ou então a representa num filme sobre a sua vida. Já imaginou a sensação? A delícia?
Isto eu não vou conseguir mesmo!
Claro que consegue. Imagine só que formidável um filme em que a
protagonista morre durante a filmagem, e seu double continua o trabalho, sem que ninguém note a diferença!
Não vai haver ninguém que não venha correndo ver o filme
insisti eu. Você de repente vai ficar conhecida no mundo inteiro! entrei
eu entusiasmado. - Todo mundo vai querer adivinhar. E agora, e nesta cena? Já é a Carmen ou ainda é a Sylvia? Vamos ver agora o inverso da situação. Suponhamos que a Sylvia escape e possa continuar a trabalhar. Mas aí eles lá em Hollywood já viram as provas com seu trabalho. Eles não são idiotas. Vão dizer logo: nos mandem esta Carmen Cruzeiro, de qualquer jeito! Eu juro, meu bem, desta ou daquela maneira, você passa a fazer parte da SEVEN STARS, comigo como empresário. Em alguns anos você vai ser conhecida... mais alguns, e estará lá nas alturas! Lá em cima!
O telefone tocou.
- Eu atendo - disse Rod Avisei lá nos estúdios que estava tendo
uma entrevista com a Sylvia. Pegou o telefone.
- Pois não, doutor. Mal ousávamos respirar. Arranquei minha
gravata, desabotoei o colarinho. Rod ouvia atento. Depois se despediu e desligou. Olhou para nós.
- Continua em sério perigo de vida. Fazem o que.podem. Ficarão
muito satisfeitos se a Sylvia conseguir passar a noite. • De repente começou
a dar gargalhadas, olhando para a Carmen: Que grande notícia, hein
boneca?
A Carmen ficou olhando para ele.
469Só espero que ela agora não tenha qualquer coisa! Fui rápido até o bar, e enchi um copo.
Não. Não quero!
Quer sim, queridinha. Toma... Apertei-lhe o copo contra os
lábios e ela se viu obrigada a beber, querendo ou não.
Eu... eu gostaria de lhe perguntar uma coisa, sr. Kaven...
Pois pergunte.
O que houve com a sra. Moran em Nurenberg?
Nurenberg, por quê?
É. Numa conversa de telefone com Joe Gintzburger, ele disse que a
loucura da Sylvia começou depois do incidente em Nurenberg. O silêncio era tão grande, que ouvi perfeitamente o que ele disse... Desculpe... Mas o que houve?
Não tenho a menor idéia.
Mas o sr. Gintzburger falou no incidente! E estava falando com o
senhor!
Você deve ter ouvido mal, Carmen.
. Não; tenho certeza! Por que foi então que ela tentou se suicidar?
Não tenho a menor idéia! Eu mesmo já estou querendo me suicidar
também! Isto aqui é uma casa de loucos! Eu não sei, não sei mesmo Carmen,
juro por Deus! disse eu, e enchendo um copo emborquei-o rapidamente
pensando: Tomara que eu não sufoque com esta maldita mentira!
19h20min.
Em pé, de smoking, na porta do apartamento de Rod, bati.
Entre!
Lá estava ele sentado em manga de camisa na enorme escrivaninha de seu salão, o paletó do smoking pendurado por cima do encosto da cadeira. Escrevia. Papel amassado no chão em sua volta.
- Oi, Phil.
Boa noite, Rod. O que é que você está fazendo?
O quê? Escrevendo o necrológio.
Necrológio?
É da Sylvia, seu idiota. Deve ser publicado assim que badalar o
sino. A seu lado via-se um pequeno balde de gelo, uma garrafa de uísque,
soda e um copo cheio pela metade, que esvaziou e reencheu logo E você,
o que andou fazendo?
470Fui falar com Da Cava e com o resto do pessoal que constava da
minha lista. Todos prometeram silenciar. Ninguém tinha percebido absolutamente nada. Ninguém! Continuaram a rodar alegremente as cenas de dança. Os detetives também já foram informados.
Ótimo.
Informei também a AP, a UPI, a AFP e mais algumas outras
agências, que o double da Sylvia teve um sério ataque cardíaco, e está internada no Hospital San Rufo. Todos aqui acreditam a mesma coisa.
Trabalhou bem.
Alguma novidade da Sylvia?
Ainda não.
Bateram outra vez.
Quem é? perguntou Rod.
Carmen Cruzeiro entrou num vestido longo malva, sem alça, com um penteado igual ao da Sylvia, usando também as suas jóias. Fechou a porta. Ficou parada meio sem graça.
Rod se ergueu e deu um assobio.
Sim senhora... disse ele. Sim senhora!
O senhor não disse para eu me engalanar por causa da recepção
desta noite lá embaixo?
E eu estou encantadíssimo! Não sei nem o que dizer. Você está
fantástica. Melhor até do que a Sylvia. Muito melhor!
E eu, morrendo de medo... Quando vierem falar comigo...
Quando quiserem dançar comigo... me perguntarem qualquer coisa que eu não sei.
Eu vou estar lá, Phil e Da Cava também. Para qualquer emergência tem os detetives. Temos uma mesa só para nós. Phil já comunicou a todas as agências noticiosas que você está internada em conseqüência de um ataque cardíaco. Por sorte, você não tem parentes. Tudo está perfeito, meu bem. Ninguém vai se aproximar de nossa mesa. Só vão tirar fotografias, e muitas! Logo depois do jantar subimos, tomamos mais alguma coisa aqui e...
- Os vestidos dela... Estou usando seus vestidos, sua roupa, suas jóias... - a Carmen estremeceu.
- Ora, e daí? Não é o que você tem que fazer? disse Rod Vê
se entende, você agora é Sylvia Moran! De agora em diante vai morar no CASTELLANA HILTON. Phil, de um lado, eu do outro. Nada lhe pode
acontecer, meu bem.. Chegou perto dela e farejou Até o perfume é o
dela!
- O senhor não disse para eu pegar?
- E estou encantado! Rod abraçou a Carmen e beijou-lhe os
lábios. Foi um beijo demorado; a Carmen começou a ficar irritada. Aquilo não era mais beijo de amigo, aquilo já era...
- Me largue... me solte! Empurrou-o para trás.
471Escute, sua cretinazinha, se você acha... começou o filho do
Bronx, mas naquele instante bateram à porta.
Quem é? berrou Rod.
Nada.
Entre!
Nada.
Rod foi até a porta e abriu-a violentamente. Lá estava um pequeno pajem do hotel, de dezesseis anos no máximo. Nos hotéis melhores eles são proibidos de entrar nos quartos. Ele trazia uma salva de prata, com um envelope em cima.
Desculpe, senor Bracken, um telex para o senor. Kaven. Ele não
está lá no apartamento. Pensei que talvez pudesse encontrá-lo aqui, desculpe... Ah, boa noite sr. Kaven!
Me aproximei.
O garoto me estendeu uma esferográfica.
Para que isto? perguntei espantado.
É para o senhor assinar que recebeu, senor Kaven.
Para quê?
Assinar que recebeu.
Que besteira, nunca tive que assinar recebimento de telex nenhum.
Bem, são ordens que vieram num outro telex. Assim que o senhor
ler, vai entender tudo. Eles exigem a confirmação. Por favor, senor Kaven, eu não tenho culpa de nada disto.
Claro que não.
Passei a mão na cabeça do garoto. Assinei. Procurei alguns trocados no bolso da calça. Achei.
Gradas, senor, muchas gracias! aliviado, o garoto desapareceu.
Voltei para o salão, abri o envelope, tirei o telex e me instalei na mesa de Bracken, onde estavam espalhadas as diversas tentativas para um necrológio da Sylvia. Em pé atrás de mim, Rod leu também. A principio nem reparara nele.
SEVEN STARS HOLLYWOOD 9+10+0950 HORAS
DE JOE GINTZBURGER
PARA: PHILIP KAVEN HILTONHOTEL Madrid
RALPH LORDER VICEPRESIDENTE DA SEVEN STARS PARA A EUROPA E O ORIENTE MÉDIO CHEGA PELA TWA 10+ 10 HORAS DA NOITE EM Madrid + SEGUNDO O PARÁGRAFO XV III/3 DA ABA COMPANHIA DE SEGUROS OS TRABALHOS SÓ DEVERÃO SER INTERROMPIDOS SE CHEGAR À ESTACA ZERO + LORDER TEM PROCURAÇÃO PARA TODAS AS EVENTUALIDADES DISCUTIDAS POR TELEFONE + ATÉ CHEGADA DE LORDER TODO O MATERIAL RODADO DEVERÁ ESTAR EXAMINADO A FIM DE CONSTATAR O QUE PODERÁ SER USADO EM CASO DE ESTACA ZERO
472+ REPRESENTANTE DA COMPANHIA DE SEGUROS CHEGA ÀS 10 + 10 PELA AIR FRANCE VIA PARIS + CONTABILIDADE DEVE APRESENTAR TODOS DOCUMENTOS + EM CASO ESTACA ZERO SUSPENDER IMEDIATAMENTE TODO O TRABALHO + REPITO SUSPENDER TODO TRABALHO + EM UMA HORA SIGO PARA NOVA YORK + PEÇA DE ANNABELLE ATKINS NA BRODWAY MUITO POUCO ÊXITO + EM CASO DE ESTACA ZERO PROCURAR ATKINS PARA PENALIDADE CONVENCIONAL A PARTIR 1º DE NOVEMBRO + TRABALHOS DEVEM CONTINUAR ATÉ ORDENS EM CONTRÁRIO + SEVEN STARS DECLARA DE ANTEMÃO QUE RESPONSABILIZARÁ SYRAN PRODUCTIONS EM CASO DE ESTACA ZERO + A ASSINATURA DE RECEBIMENTO VALERÁ PERANTE TRIBUNAL COMO PROVA DE
RECEBIMENTO + GINTZBURGER + FIM+FIM
Fiquei olhando perplexo para a folha.
Canalha disse Rod atrás de mim Saudações Gintzburger,
também não teria custado nada.
O telefone tocou mais uma vez. Encostei o fone no ouvido e ouvi o seguinte:
Aqui fala o dr. Molendero. Sr. Bracken?
Sim doutor, o que foi?
Há cinco minutos a paciente voltou a si pela primeira vez.
Ótimo.
Não é tão ótimo assim respondeu a voz do médico. Muitos
pacientes têm um momento de lucidez antes de chegar o fim. Ela pede para chamar um padre.
Eu não agüento mais.
Esta frase eu encontro no meu diário ao qual me vejo obrigado a recorrer mais uma vez. Os acontecimentos se precipitaram, se atropelaram. A data é 27 de outubro de 1972. Segunda-feira. Esta frase dita para a Ruth depois que a Babs...
Um instante, eu não posso confundi-lo, sr. Juiz.
Vamos pois, seguir em ordem cronológica.
Entre nove de outubro, dia em que a Sylvia tentou se suicidar, e o 27 que acabo de mencionar, aconteceu resumidamente o seguinte:
10 de outubro de 1972 - Ralph Lorder da SEVEN STARS e John Steeple da ABA Companhia de Seguros chegaram.
473Iniciam-se imediatamente as negociações com ambos. Sem Da Cava, Bob e Rod eu estaria perdido. Tenho que representar o chefão. A ajuda deles é comovedora.
John Steeple é um rato agressivo; Ralph Lorder, poderia ser o irmão mais moço de Joe. Imediatamente houve altercações sérias com ambos. Nos encontramos no escritório, nos estúdios, no CASTELLANA HILTON. Enquanto Lorder está decidido a empurrar toda a culpa para cima da SYRAN PRODUCTIONS, ou seja, para cima de mim, e querer daí por diante tirar a SYRAN PRODUCTIONS da jogada, assumindo assim a SEVEN STARS a responsabilidade de produtor e com isto um gordo quinhão, o homem da companhia de seguros por sua vez está resolvido a não pagar um tostão. As discussões se transformam em gritos, imprecações, infindáveis ligações transoceânicas. Se estendem até as 4h30min da manhã no apartamento do hotel. Todos estão esgotados. Resultados: nulos, inteiramente. No meio disto, chamados constantes do hospital. O dr. Molendero: a Sylvia ainda vive. Por
quanto tempo? Estado continua crítico. Ligo secretamente para a Ruth.
Conto tudo. Está muito assustada. Como está a Babs? Hesita, muito mal; agressiva como nunca. Ataques de raiva. Mania de destruição. Agitação
incontrolável. Jornais de Madrid e do estrangeiro trazem a notícia do
ataque cardíaco do double Carmen Cruzeiro. Trazem fotos da Carmen como sendo a Sylvia durante aquele banquete. Ninguém suspeita de nada. Os quatro detetives da SEVEN STARS nos protegem. A Carmen dá entrevistas como Sylvia (muito fracas); é levada de carro ao hospital para levar flores para a Carmen (Sylvia). Movimentação de fotógrafos.
11 a 15 de outubro Ainda em Madrid. Partida sempre adiada.
Continuam as discussões com os procuradores da SEVEN STARS e da ABA. Telefonemas transoceânicos com Joe. Brigas e ofensas o dia inteiro. São vinte e cinco milhões de dólares! É a nossa sobrevivência! Lá fora nos estúdios, as filmagens continuam normalmente. As grandes cenas de dança. A Sylvia ainda em perigo de vida. Ruth: Babs muito mal, quase tão mal como ao chegar em Nurenberg. Toda a melhora anterior anulada. Ainda tenho que continuar na Espanha.
16 a 23 de outubro: A filmagem continua. Conseguimos chegar a um acordo com Lorder e Steeple. Viagem para os Pirineus. Filmagens no Maciço Central. Pico de Aneto. A neve já está alta. Lá nas alturas perto das geleiras, um miserável lugarejo com apenas doze casas de camponeses, foi escolhido como local para a filmagem. (A ponte de cordas por cima do precipício já foi feita há semanas pelos operários da companhia.) As casas ficam afastadas umas das outras. De noite quase congelamos durante o trabalho. A Carmen agora se convenceu de que será a Sylvia Moran de amanhã. Trabalha até ficar quase esgotada. É horrível como alguém pode ter tão pouco talento! Sempre que possível evidentemente é aplaudida e elogiada. Rod já fala nos honorários que ela poderá exigir em Hollywood. Muitas vezes a câmara congela. Tempestades de neve. Só foi possível subir o último lanço, montados no lombo dos burros que carregam a bagagem. Toda manhã e toda noite, pego meu jipe e atravesso caminhos cobertos de neve à procura de um telefone.
474A Sylvia já esteve bem melhor, agora sua vida está novamente em perigo. Ruth: A Babs
continua na mesma. Um problema novo: volta e meia procura fugir.
Quando informo baixinho à Carmen e ao Rod lá nas montanhas da piora da Sylvia, a Carmen tem uma crise. Grita em voz alta: (Temos que lhe tampar
rápido a boca) Por que ela não morre logo? Por que... - Rod lhe dá
uma bofetada. Aliás, ele agora dorme com ela. Descobri por acaso, quando certa noite, não conseguindo dormir saí em meio à neve. Faziam uma tremenda barulheira. Contei a Rod, e ele apenas riu. Os fotógrafos apareceram. Fotos sensacionalistas, como a ponte, por exemplo.
Sylvia fora de perigo. Babs, primeira melhora ligeira, primeiro sinal de calma. Continua tentando fugir.
Carmen mudada: procede como uma divã Histérica. Acredita piamente no que Rod lhe conta. Não sabe que na verdade só filmam sem ela. Quando ela é filmada, a máquina está sem filme. Assim que enviamos as primeiras provas para Hollywood, Joe deu ordens por telefone para não esbanjar material. Nunca viu deleitantismo pior. As cenas em que aparece a Grusche terão que ser rodadas de novo quando a Sylvia estiver em forma. Joe está me tratando novamente por Phil. Contamos à Carmen que Hollywood está entusiasmado com as provas. Carmen com suas atitudes de divã se torna insuportável. Rod com sua pele de elefante não se deixa afetar. Continua a dormir com ela. Ela o idolatra. No dia 19 de outubro, o dr. Molendero
anuncia: Sylvia está restabelecida. Só mais um dia de observação no
hospital.
A 21 de outubro, tarde da noite, apanho a Sylvia no hospital e levo-a para os Pirineus. Como está a Babs? Já está bem de novo, minto eu. Descubro depois que ela havia ligado para a Ruth antes; por sorte ela disse a mesma coisa. A Sylvia me ama. Só a mim. O seu Lobinho!
A troca de papéis já tinha sido previamente combinada com Rod por telefone. Tudo perfeito; sem o menor atrito. Na noite de 23 de outubro levo a Sylvia até as geleiras, até a aldeiazinha com as doze casas. Ela passa a ocupar um cômodo vazio, até a Carmen desocupar o seu. Na manhã seguinte será encenada a chegada de Carmen, que à noite eu fui apanhar lá em cima, para trazer depois como vinda de Madrid, inteiramente restabelecida.
24 de outubro: Primeiro dia de filmagem da Sylvia depois de sua tentativa de suicídio. Carmen novamente como double. Adaptação difícil. Lágrimas. Rod consola, cochicha com a Carmen. Eu imagino o que ele não deve estar prometendo! Todas as cenas que foram rodadas durante a ausência da Sylvia são repetidas. Rod explica a sua amiguinha Carmen que são exigências da Sylvia. Por cláusulas contratuais eles têm que concordar, mesmo que seja perda de tempo. Mesmo que, diz ele confidencialmente à Carmen, seu trabalho tenha sido magnífico. A Carmen passa a ter ódio da Sylvia, mas não pode mostrá-lo.
475Volta a ser o paciente double. Está mais do que certa, de que agora o caminho para Hollywood lhe está aberto.
Não precisam mais de mim. Volto pois a Nurenberg. A Babs está novamente em condições de ser ao menos levada de volta a Heroldsheid.
Sexta-feira, 27 de outubro. No fim da tarde volto com a Babs de Nurenberg para Heroldsheid no pequeno ônibus doado pela TV alemã. Chove a cântaros, há dias já. Faz muito frio. As ruas começam a se cobrir de gelo.
Ao chegar à Casa de Saúde Sofia, a Babs me cumprimentara sem grande entusiasmo, parecia apática como se ainda estivesse sob o efeito de sedativos. (Quem sabe até se não estava, e a Ruth apenas não me tinha dito nada?) Eu conhecia o caminho. Estava escurecendo. Tentei conversar com a Babs. Impossível. Liguei o rádio do carro, procurei uma estação que transmitisse música, para animá-la. Começou a ficar excitada, socou o rádio. Desliguei novamente. Quando estávamos quase chegando à bifurcação, para tomar o estreito caminho no meio do mato, que leva à escola Heroldsheid, a Babs
me cutucou.
O que é?
Pipi.
Já estamos chegando.
Pipi. Agora! Eu quero agora! Tamborilava em cima do painel do
carro. O rosto contorcido de raiva.
Será que você não pode esperar um instante até...
Ela me mordeu.
Na mão direita. Praguejei.
Me solta! gritou ela, e no mesmo instante saltou do ônibus e se
enfiou pelo mato a dentro. A chuva tinha aumentado; estava quase totalmente escuro. Os limpadores do pára-brisa funcionavam monótonos. Esperei. Cinco minutos... Dez minutos. A Babs não voltava. Fiquei sentado imóvel, olhando a chuva cair e os limpadores ligados. Ao descer o vidro direito para gritar pela Babs, senti o frio que estava fazendo lá fora.
Chamei.
Não obtive resposta.
476Chamei pela segunda vez.
Nada!
Pode me condenar, sr. Juiz; pode me desprezar, me reprovar, mas foi o que eu pensei e fiz. Hoje é sexta-feira. A esta hora não tem mais ninguém na escola. Os ônibus já saíram. Os professores há muito foram para casa. A Babs fugiu mais uma vez. Eu devia ir procurá-la! Na mata escura; no frio. Na chuva! Depois de tudo por que tinha acabado de passar? Chamei-a mais uma vez. A chuva entrava violenta dentro do ônibus. Não veio resposta nenhuma. Continuei a gritar seu nome e quanto mais gritava, mais irritado ia ficando. Por fim já estava furioso. Não agüentava mais. Não era possível! Ninguém agüenta isto! Não dava mais!... Pronto. Acabou-se. De repente entendi todos aqueles que eu desprezava tanto devido a sua atitude negativa diante de crianças excepcionais. Todos eles tinham razão! Meu amigo Hitler tinha razão! Vamos acabar com estes debilóides! Eles que morram, quanto mais depressa melhor!
Pode me reprovar, sr. Juiz, pode me condenar. Não precisa nem continuar a ler. Ou então continue, e o senhor que entende tudo, procure entender também a mim. No início desta minha confissão eu disse que não ia mentir nunca. Aqui está ela pois, a verdade desta noite.
De repente eu pensei: e se você não a chamar mais? Se você largar este fedelho para lá? Se você se jogar na cama, e cansado como está diante de tudo por que passou, cair no sono e só acordar amanhã de manhã? Pode até abrir uma janela do quarto da Babs para que eles acreditem que ela fugiu à noite como já fizera outras vezes! Ela não vivia fugindo sempre da casa de Saúde? Então por que não agora, sozinha comigo? Se eu fizer isto? O caminho de volta para a escola ela não ia achar. Vai ficar andando perdida pelo mato. Vai cair. Levantar. Cair. Ficar esticada no chão, completamente esgotada. Se Deus quiser, acaba morrendo nesta noite fria. Morrendo de frio!
Certo, e depois?
Fechei a janela, engrenei, e segui até o grande portão de ferro, trancado. Saltei, abri. Tinha a chave. Deixei o carro onde ele sempre costumava ficar, tranquei o portão novamente, atravessei a chuva até a minha casinha. Abri a porta, escancarei todas as janelas, pois o ar ali dentro estava abafado, cheirava mal. Fechei as janelas de novo com exceção da do quarto da Babs; fui até a cozinha preparar um chá. Tomei-o com bastante rum sentado em cima de um banquinho.
477Denois levantei, tirei a roupa; me lavei, botei um pijama e me deitei no sofá da sala. A chuva tamborilava em cima do telhado. A Ruth estava em Nurenberg na Casa de Saúde Sofia. A Sylvia no Pico Aneto, em meio à neve, no maciço central dos Pirineus. E eu aí. E a Babs no mato, morrendo.
Tomara!
Agüentei uma hora. Nem bem uma hora. Levantei de novo, me vesti, botei uma capa de chuva, pesadas botas de borracha que o morador anteriorhavia deixado lá. Encontrei uma lanterna, enfiei o capuz na cabeça. Acendi a lanterna e saí de casa. Comecei a andar... a correr... a correr mais depressa. Ao lado do portão de grade havia uma cerca que estava rebentada em diversos lugares. Passei por ela e entrei no mato. Chamei a Babs, dez, vinte, cinqüenta vezes. Senti que estava começando a ficar rouco. Só pensava numa coisa: Tenho que encontrar a menina! Tenho de encontrá-la! Sou responsável por ela, assim como nós todos somos responsáveis uns pelos outros. Não sou nenhum criminoso. Não quero ser criminoso!
Babs!
Continuei a gritar.
Praguejava, xingava Babs, rezava para encontrá-la.
A mata era muito velha, muito fechada. Procurei primeiro numa faixa ao longo da estrada onde Babs tinha saltado. Não a encontrei.
Deve ter entrado mais para dentro. Se meteu lá dentro daquela maldita mata!
Baaabs!
Continuei a gritar. Escorreguei, caí, arranhei e esfolei o rosto e as mãos em troncos de árvores e em arbustos. Sangrava. Continuei a cambalear. Caí novamente. Em frente! De repente, como em meio a um sonho, ouvi a voz de Ruth:
Babs! Babs! Baaabs!
Eu estava ficando maluco, perdendo o juízo. Aqui, agora?
Baaabs! gritei eu.
Baaabs! Baaaaaabs! respondeu a voz da Ruth.
Depois de uns vinte minutos cheguei a um escampado. Na escuridão, em meio às árvores tive a impressão de ter visto um facho de luz, subindo e descendo; aparecendo e desaparecendo.
478Lá estava ela!
A Ruth estava na minha frente. Num capote de fazenda totalmente encharcado, a cabeça descoberta. O cabelo lhe caía pingando na testa. Segurava uma lanterna de bolso.
Você? balbuciei eu.
- É.
O que é que você faz aqui?
Eu ia fazer uma visita a você. Uma surpresa. Espirrou.
Surpresa, é... Quando vinha descendo o caminho, de repente ouvi você chamar. Imaginei logo que a Babs devia ter fugido novamente e que você
estava a sua procura. Aí eu saltei e... Phil! Ela murmurou mais uma vez:
- Phil!
O que houve?
Apontou com a mão. Levantou a lanterna. Iluminou um velho comedouro abandonado. Lá dentro estava a Babs dormindo tão profundamente que nem acordou quando a chamamos e pegamos no colo.
Depressa, para casa! disse a Ruth. Graças a Deus! Se não a
tivéssemos encontrado, ela talvez tivesse morrido de frio.
Talvez tivesse morrido de frio...
44
- Ruth?
- Que é Phil?
Eu menti para você.
Eu sei.
Sabe o quê?
Ela dera um banho quente na Babs, que estava meio acordada, enxugara-a e acabara de pôr na cama. Eu tinha emprestado à Ruth um dos meus pijamas, um par de meias, chinelos e um roupão. Era tudo grande para ela; parecia um palhaço. Também eu estava novamente de pijama e roupão. Dentro da casa estava quentinho. Eu me encarregara de manter um bom fogo aceso. Fiquei parado olhando a Ruth cobrir a Babs, que já estava de novo dormindo. Ela tirou os óculos da menina do bolso do roupão e colocou em cima da mesinha do lado da cama.
Sabe de uma coisa Ruth?
Sei que você está chegando ao fim de suas forças, Phil.
Eu não agüento mais disse eu.
479Ela balançou a cabeça e virando-se para mim disse:
No caminho de volta você a deixou saltar ou...
Ela insistiu que queria fazer pipi.
...ela pediu para saltar e saiu correndo e você pensou: ora bolas,
deixa ela correr e continuou seu caminho.
É, disse eu. Foi isso mesmo.
Eu sei, querido.
Eu queria matar a Babs, Ruth!
Ela apenas balançou a cabeça e veio para junto de mim.
Eu realmente quis acabar com ela! Eu não agüentava mais! Olha
minha mão... ela me mordeu!
A Ruth ficou olhando muda para mim.
Eu... eu a deixei lá, e vim para casa. Queria me deitar e dormir.
Abri a janela do quarto da Babs. De manhã eu diria que ela fugira.
Eu sei. Eu sei...
Você sabe... o quê?
Sei de tudo. Sei que depois você não agüentou e levantou para ir
procurá-la.
Como... como é que você sabe disto?
Não foi assim?
Foi. Exatamente. Mas como...
. Vem cá disse a Ruth me puxando pela mão (a que não estava
ferida). Saímos do quarto da Babs; a porta ficou entreaberta. Fomos para a salinha primitiva.
Mas Ruth, eu... eu fui um assassino! Um assassino em potencial!
- É, Phil.
- É?
Eu gosto de você.
Você...
Você não foi assassino, Phil. Nunca será. Você é um sujeito decente.
Que é isso?
Senta aí. Eu vou fazer mais chá. Depois vou lhe contar uma coisa.
- O quê?
Como estas crianças vieram parar neste castelinho.
Mas eu...
Eu vou contar.
Eu não quero saber de mais nada!
Você tem que saber. Hoje você tem que saber. E você não vai
esquecer nunca mais, nem vai mais deixar a Babs sozinha. Foi para a
cozinha e disse por cima do ombro. Eu fico aqui esta noite.
480A Escola para Excepcionais de Heroldsheid deve a sua existência ao desespero total de um casal de nome Leitner. Eram duas pessoas inteiramente desconhecidas, que viviam em condições bastante humildes, sem conta no banco, sem Mercedes, nem mansão. Não possuíam jóias, não tomavam parte em caçadas, nem tinham iate ancorado no Mediterrâneo. Tinham apenas um filho paralítico a quem amavam tanto quanto um ao outro. O marido era um pequeno funcionário de um grande banco. O filho paralitico chamava-se Alois.
Logo que ele nasceu, os pais o levaram de médico a médico. Esta história toda é uma odisséia incrível; é uma acusação tremenda, mas eu estou apenas escrevendo a verdade, sr. Juiz, só a verdade!
Alois passou seus primeiros anos de vida nas clínicas. Faziam experiências e mais experiências com ele. O banco no qual o pai trabalhava tinha filiais e agências em diversas cidades. Muitas vezes ele era transferido para outras cidades. Por esta razão, por tratamentos errados, por métodos sempre diferentes de médicos sempre novos, foi se perdendo um tempo precioso. O casal, pobre e humilde, não tinha como reagir. Ficaram satisfeitos quando um instituto aceitou o menino. Não ficou muito tempo. Em breve comunicaram aos pais que ele “não tinha condições”. Passou para um segundo, um terceiro e um quarto.
Quando alcançou a idade escolar, a coisa piorou. Ele nã podia fregüentar escolas normais. Foi para uma escola de crianças atrasadas. Um dia mandaram chamar o Sr. Leitner para lhe dizer que o filho teria que sair da escola pois “não valia a pena lhe dar qualquer estímulo ou ajuda”.
Não valia a pena!
Estas palavras foram usadas por um pedagogo, um diretor de escola na segunda metade do século vinte!
Naquela época, há sete anos, o casal estava derrotado; ele mais do que ela. A mãe conheceu outra moça num subúrbio de Nurenberg onde eles acabaram se estabelecendo. Esta também tinha um filho excepcional. Conheceram a dra. Ruth Reinhardt, a médica-chefe da Casa de Saúde Sofia. Esta se declarou disposta a ajudar clinicamente às duas crianças e lhes dar aula, juntamente com uma conhecida, uma moça de nome Wilma Bernstein que possuía curso especializado, e passara por seis anos de campo de concentração. Mas onde?
O casal Leitner sabia que em sua comunidade havia um antigo salão de ginástica vazio no momento. Fizeram um requerimento à administração pedindo licença para usarem o recinto. O pedido foi indeferido. Para alugarem aquela sala sem uso, declararam eles, os pais das duas crianças teriam que se apresentar como uma sociedade registrada.
481O casal Leitner e a mãe do outro menino fundaram assim a O MUNDO DOS HOMENS, o nome tinha sido imaginado pelo sr. Leitner. A esta altura começou junto às autoridades um verdadeiro drama Kafquiano. Como sociedade registrada, eles teriam possibilidade de serem reconhecidos como “utilidade pública”. Se conseguissem isto, os sócios teriam reduções de impostos. Uma sociedade porém com três sócios e duas crianças é uma coisa ridícula declararam as autoridades. Uma sociedade para ser registrada necessita de sete pessoas no mínimo.
Na enfermaria da Casa de Saúde, a dra. Ruth tinha diversas crianças na mesma situação desesperadora. Assim os pais de cerca de trinta crianças excepcionais se juntaram. Havia entre eles um advogado, um perito em imposto de renda, um homem da administração pública de Nurenberg. Com estes profissionais a coisa começou a andar. O Governo concedeu fundos, mas não para o velho ginásio meio em ruínas; que seria então uma escola decente, como um corpo docente especializado.
Os pais desesperados tiveram sorte. Isto nem sempre acontece; mas aconteceu. Na localidade de Heroldsheid perto de Nurenberg morrera um médico, que havia instalado um asilo para velhos num castelinho de sua propriedade. Nos últimos dois anos a casa estivera fechada, pois o médico não tinha mais condições físicas para dirigi-la. Na abertura do testamento houve uma surpresa. O médico determinara que durante vinte e nove anos o castelo deveria ser alugado para uma instituição que se ocupasse de crianças doentes.
A sede tinha pois, sido encontrada.
E o aluguel?
Os herdeiros pediam sete mil marcos por mês.
Os pais desesperados a esta altura jogaram com a sorte. Havia gente de posse entre eles. O sr. Leitner, bancário, arrumou o financiamento. Contrataram gente especializada depois de terem feito as obras necessárias para transformar o. asilo de velho em escola para crianças excepcionais. Com isso se endividaram até a raiz dos cabelos e endividados continuavam. Depois de resolvido um milhão de problemas, alugados os táxis e ônibus, a escola começou a funcionar. Passou a manter contato constante com a “Associação Federal de Ajuda à Criança Excepcional” de Marburgo em Hassem.
Por ocasião da inauguração as autoridades municipais não podiam deixar de estar presentes. Fizeram um discurso comovedor. Uma orquestra de câmara tocou Vivaldi. Serviram sanduíches e champanha barata. Foi uma ocasião muito solene, até para os herdeiros. Vendo aquelas trinta crianças, se declararam dispostas a abaixar o aluguel para cinco mil marcos.
Surgiu assim a Escola para Excepcionais de Heroldsheid, através de um casal e uma mãe desesperados, a quem tinham dito que “não valia a pena” dar ajuda a seus filhos.
Certa vez a sra. Leitner disse para a Ruth:
482Durante muito tempo nós ainda tivemos esperança que o Alois
melhorasse. Hoje temos a certeza absoluta de que ele nunca vai melhorar, nem um pouco que seja. Uma única coisa no entanto que nos preocupa terrivelmente: Que será dele quando nós não existirmos mais?
O marido que estivera presente respondeu:
Ora, deixa, Anna. Deus nos ajudou...
.. e vai continuar a ajudar.
Eu no entanto - contou a Ruth, naquela noite de fim de outono
lhe respondi: Não, sr. Leitner, foram os homens que se ajudaram uns aos
outros. Eles sempre o fizeram e têm que continuar a fazer. Só o homem pode ajudar ao homem.
O vento da noite soprava em volta da casa. A Babs dormia profundamente. Ouvíamos a sua respiração.
Só o homem pode ajudar ao homem.. repeti eu. E Deus? Não
adianta nada? Nenhum deles? Nem Buda?
Buda disse a Ruth metida naquela roupa largona. Outros
médicos procuram uma compensação na música, têm este ou aquele hobby. Cada um procura um alívio, procura a paz. Eu a encontrei em Buda. Ele nos ensina sobre o bem e o mal. O mal é a satisfação de um desejo às custas dos outros. Enquanto que o bem é o sacrifício pessoal pela vida de qualquer um, mesmo a de um inimigo. É o princípio fundamental de “não ferir” que protege contra o mal causado por toda ofensa. Dois mil e quinhentos anos depois de Buda, Gandhi lhe seguiu os ensinamentos. O amor ao próximo não é um ato de culto religioso, é um ato no duro caminho da “libertação”. O amor ao próximo encerra um sentimento de fraternidade em relação a todos os seres... inclui até uma atitude positiva em relação a tudo que não é ser humano. Você pode me achar estranha, mas no meu trabalho o budismo me consola, faz com que eu consiga suportar até as piores coisas.
Depois disto ficamos calados por muito tempo. O vento continuava a sibular em volta da casa; ficamos longamente olhando um para o outro. No fim a Ruth disse:
- O que você vem fazendo desde que o conheço, querido, também é um consolo para mim. Principalmente alguém como você. Nós nos amamos. Enganamos a Sylvia, é verdade, mas eu não consigo me censurar por causa disto. Sou um tipo meio amoral.
- Você é maravilhosa! disse eu.
483Vou ficar aqui esta noite porque sei por quanta coisa você já
passou e ainda vai passar. Mas não faço apenas por você. Preciso de você tanto quanto você precisa de mim. Custei muito a tomar uma decisão. Agora vejo tudo claro. Eu e você que nos ocupamos com a Babs, também temos o direito a fazer o que é bom para nós. Ao menos eu encaro a coisa deste ponto de vista. Talves seja errado, ruim. Não importa, agora...
Quando meus lábios se apertaram contra os seus, a campainha da sala começou a tocar bem alto.
Eu só podia telefonar da sala do diretor, mas para os casos de chamados à noite, havia uma campainha instalada na minha sala, já antes de eu mudar para cá. Só ligavam para a escola à noite em caso de urgência; assim que o telefone começava a tocar, a minha campainha dava sinal também.
Desde que morava aqui isto acontecia pela primeira vez.
Tenho que ir até lá disse eu Preciso ver o que é Tinha as
chaves da escola. Vesti novamente minha capa de chuva e as pesadas botas. A Ruth também pegou sua capa ainda molhada. Tudo foi muito rápido. O telefone lá do outro lado não parava de tocar, nem a campainha na minha sala. Fomos correndo no meio da chuva e do vento, em direção à escola. Chegamos à sala do diretor, peguei o fone e entreguei-o a Ruth.
Casa de Saúde.
Ficou ouvindo atenta, disse apenas algumas palavras, balançou a cabeça. Seu rosto estava sério, impenetrável. Por fim disse:
Daí a meia hora estou aí. Desligou. Tenho que ir Phil.
- O quê?
Uma criança... deu entrada agora... está em perigo de vida...
Mas...
Por favor... Phil.
Está bem disse eu. Tem razão.
Saímos da escola. Tranquei tudo novamente. A Ruth foi andando na frente para mudar a roupa. Acompanhei-a até a porta. Seu VW estava parado à direita da entrada, mas evidentemente ela foi andando para a esquerda. Corri atrás dela, peguei-a pelo braço e levei até o carro. Olhou triste para mim.
Você está zangado?
- Não!
A chuva caía.
Mas ficou desapontado.
Não. Você tem que ir ver as crianças. Não estou desapontado não
disse eu, o que era uma mentira.
Obrigada retrucou ela. Obrigada por sua compreensão. Eu
realmente tinha a intenção de...
- Eu sei. Fui até o portão para abri-lo. No mesmo instante o VW
passou por mim. Ruth olhava atenta para o caminho em sua frente iluminado pela luz dos faróis. Pensei que ela fosse acenar mais uma vez, olhar para trás por um segundo que fosse.
484Mas não. Fechei o portão. A esta altura já estava em pensamentos com a criança doente em Nurenberg. De repente me senti muito cansado. Voltei para casa. Sabia que a Ruth me amava, mas talvez amasse às crianças doentes mais ainda. Era triste reconhecer isso, pois podia imaginar muito bem como seria o nosso futuro.
O amor ao próximo, ensina Buda, encerra um sentimento de fraternidade em ralação a todos os seres. Amor ao próximo. Existe tanto tipo de amor, pensei eu. Tirei minha roupa e deitei. Adormeci na mesma hora.
Seguindo meu diário.
Enquanto a Sylvia filmava lá nos Pirineus, eu não tinha a possibilidade de falar com ela por telefone. Só no dia 9 de novembro, uma quinta-feira, quando ela e a equipe foram trabalhar em Saragoça. consegui falar com ela à noite, no hotel. Disse que a Babs estava melhor. Era até verdade. A última vez que tinha escolhido uma mão para morder foi a minha. Deram-lhe alguns remédios e depois disto ficou mais calma, amável, paciente. A sra. Berntein e a sra. Pohl se esforçavam por ela especialmente; a passos largos a Babs caminhava para o estado em que se encontrara antes da recaída. Era submetida à musicoterapia, voltara a fazer modelagem, figuras estranhas de um tipo especial de barro de endurecimento lento. Nunca perguntou pela Sylvia.
Esta é que perguntou pela filha assim que liguei. Depois me contou a canseira que vinha sendo a filmagem. Eram realmente as cenas mais difíceis e por sorte as últimas também. Depois, ela e toda a sua equipe iriam a Hollywood. Como a maioria das cenas tinham sido rodadas in loco, a Sylvia e todos os outros artistas teriam agora que gravar a parte de som nos estúdios.
Ruth vinha quase diariamente a Heroldsheid examinar a Babs. Ficava pouco tempo. Nunca mais falamos naquela noite. Às vezes nos beijávamos.
Eu tinha muito serviço. Visitava ricos industriais, repartições, autoridades, o presidente da Câmara. Às vezes as pessoas se mostravam compreensivas, e eu voltava para casa feliz, com donativos maiores ou menores. O Hallein sempre me emprestava o carro. Outras vezes, no entanto, e a maioria talvez, eu acabava discutindo com as pessoas, era recebido com grosseria. Volta e meia encontrava lá na escola o Florian Bend, o jovem jornalista do NURENBERGER MORGEN. Estava fascinado com o trabalho.
Duas vezes peguei um avião e fui a Saragoça.
A Sylvia estava completamente restabelecida. Trabalhava como nunca. Também aí ocupávamos um apartamento conjugado, mas ela sempre trancava a porta do quarto. Era muito amável, agradecida até, só que eu não podia tocar-lhe;
485nem uma encostadinha. De resto a cidade estava em polvorosa. A polícia, se via obrigada a dar proteção à Sylvia por causa de seus fãs; as vitrinas de muitas lojas ostentavam nossos retratos no meio de cintas, e sutiãs e cabeças de porcos.
Também a Carmen estava sempre presente. Conversávamos; éramos bons amigos. Ela era muito otimista, Rod continuava a prever para ela uma grande carreira no cinema. Ainda era sua amante.
Quando cheguei na sexta-feira, 24 de novembro, por ocasião de minha segunda visita, o filme já estava todo rodado. Parte da equipe americana, com as câmaras e todo o resto do equipamento já tinham seguido para Hollywood. À noite eu me despedi da Sylvia. Com lágrimas nos olhos ela me agradeceu tudo que já tinha feito e ainda fazia pela Babs. Estávamos no aeroporto de Madrid. Era tarde da noite. Sylvia e Rod iam seguir diretamente para Los Angeles. Ela meteu qualquer coisa dentro do meu bolso. Mais tarde vi que era outro cheque polpudo... para os telefonemas, que agora evidentemente iam ser mais caros. Entrei com ela no SUPER-ELEVEN, pois havia um bando de repórteres e fotógrafos presentes, e tínhamos que dar a impressão de que eu seguia junto para os Estados Unidos. Com a ajuda do comandante Callaghan consegui depois sair despercebido do aparelho. Lá fora na pista, em plena escuridão estava um dos quatro detetives, mandados por Joe para a proteção da Sylvia. A seu lado, o diretor Júlio da Cava. Queria se despedir de mim. Da Cava ia seguir para Los Angeles com avião seguinte, tinha que estar em Hollywood para supervisionar a montagem do filme, toda a parte de som, terminar o CÍRCULO DE GIZ. Apertando minha mão ele disse:
Nós agora não vamos nos ver por muito tempo. Eu lhe desejo tudo
de bom. Não perca nunca a esperança nem a coragem.
Okay disse eu.
O jato da Sylvia, que estava parado numa das pistas, recebeu ordens de levantar vôo. Pôs-se em movimento; primeiro devagar e cada vez mais depressa. Decolou. O Comandante subiu na vertical, desaparecendo num céu aberto. Durante alguns minutos ainda vimos as luzes do avião, depois sumiu nas nuvens. O detetive voltou-se para mim:
Aluguei um carro. O sr. Bracken deu ordens para que eu o levasse
até Barcelona. De noite ainda. Para evitar qualquer complicação. O senhor tem alguma coisa contra?
Claro que não.
Obrigado disse-lhe.
486- Sylvia?
Quem está falando?
Minha querida Sylvia!
Quem é o senhor? Diga seu nome!
Meu Deus, é só eu ouvir sua voz, que já me arrepio todo. Eu a
amo. Sylvia... Amo mais do que nunca... a você a nossa filha... disse a voz masculina ao telefone.
Em sua casa em Mandeville Canyon, em Berverly Hills, a Sylvia deixou-se cair no sofá. Murmurou:
Você... o senhor... o senhor é Romero Rettland...
Rod me contou a respeito deste telefonema no dia 21 de janeiro de
1973, um domingo, no salão do nosso velho apartamento 419 no HOTEL LE MONDE em Paris. Uma tempestade de neve varria a cidade com tanta violência que não dava para distinguir as casas em frente. Nevava há dias... em Heroldsheid também. Rod havia ligado para mim dizendo que precisava se encontrar comigo no LE MONDE, pois havia acontecido uma porção de coisas.
Com a Sylvia?
- É.
Mas eu tenho ligado diariamente, e ela nunca me disse que havia
algum problema...
Ela queria deixar você em paz enquanto fosse possível. Agora não
dá mais. Agora você tem que saber tudo o que aconteceu. Você não pode vir até cá por causa da Babs, é evidente. Em breve talvez terá que vir, mas por enquanto ainda não. Nos encontramos em Paris, portanto. Eu vou até lá.
Pegara um avião, e eu viera a Paris também. Agora estávamos sentados um em frente ao outro. Todo este tempo, desde a volta da Babs para a escola e este 21 de janeiro eu ficara em Heroldsheid. Presenciei diversas melhoras da Babs, muito lentas aliás. Cada vez mais eu me ligava aos que viviam no escuro.
Estou entregando este meu relatório em partes a um simpático guarda aí do presídio, para que chegue mais rápido às suas mãos. Por isso não vou entrar também em maiores detalhes sobre aquela época. O que tenho a relatar agora é bem mais importante.
- Rettland? - disse eu surpreso para Bracken naquela gélida tarde de domingo em janeiro de 1973, em Paris. A tempestade de neve aumentava
cada vez mais Rettland ligou para a Sylvia? Aquele sujeito com quem ela
rodou seu primeiro filme em Berlim, o ídolo daqueles tempos e que depois sumiu?
- Esse mesmo.
487Mas a Sylvia não tem um número de telefone secreto?
Ele conseguiu descobrir... não sei como. O fato é que conseguiu e
ligou para ela. Eu estava presente. Ouvi toda a conversa na extensão. Sei dizer exatamente quando tudo começou. Era a noite de vinte e oito de novembro.
O quê? Já em novembro?
- É.
Mas... Por que a Sylvia nunca me disse nada?
Ela não queria que você se preocupasse. Você já tem problema de
sobra. Além disso, pensou que não fosse passar daquele primeiro chamado.
Mas passou.
Passou. Infelizmente passou. Deixe eu contar, Phil. Nós estamos
metidos numa merda... mais uma vez... E agora até as orelhas.
Continuou a contar...
Sou Romero Rettland sim disse a voz. Consegui seu número. Bem-vinda em casa, querida. Fiquei tão satisfeito quando li no VARIETY e no HOLLYWOOD REPORTER que seu filme saiu tão formidável, eu...
Sr. Rettland, o que deseja o senhor de mim? gritou a Sylvia de
repente. Rod, que ouvia a conversa no outro aparelho, fez-lhe sinal para se acalmar.
Você pode me tratar de senhor quantas vezes quiser, Sylvia. Nós
dois sabemos por que.
Eu perguntei o que o senhor desejava de mim!
Eu a amo mais do que nunca. Nós temos uma filha. Quero casar
com você! - disse Rettland.
A Sylvia mal conseguia respirar. Rod levantou-se rápido, preparou um uísque e levou para ela. Estava precisando. Logo resolveu que ele também estava necessitando de uma dose, voltou e preparou outro.
A Sylvia recuperara a voz enquanto isto.
O senhor está louco, sr. Rettland? Eu não o amo. Nunca amei. E
acima de tudo não temos filha nenhuma.
Depois de ter dito estas palavras tomou um grande gole. O uísque lhe escorreu pelo queixo de tão nervosa que estava.
Meu bem, eu sei que você teve um dia de muito trabalho lá no
estúdio. O trabalho de sincronização é muito cansativo, e eu não quero que você fique nervosa, eu a amo demais para isso. Demais. Mas para que toda esta bobagem? Claro que você me amou. Me amou até que eu... até o momento em que tive azar na vida e você achou que devia me largar. Eu não estou zangado por causa disto. Nunca deixei de amá-la, e o amor perdoa tudo. Eu lhe perdôo. Além disso, existe alguma coisa da qual não podemos escapar, não é?
- O quê?
O fato de eu ser o pai da Babs disse a voz de Rettland.
Isto o senhor não é! Não é, e não é!
488Por favor, querida, não se excite. Lembre-se de como você ficou
quando há anos, eu ousei lhe pedir dinheiro porque andava numa miséria tão grande! Você acha por acaso que foi fácil vir a você pedir?
Mas você ganhou o dinheiro!
Ganhei sim. Mas eu também tenho orgulho. Depois, quando a
miséria aumentou mais ainda, eu não vim mais.
Porque eu lhe disse que não era mina, que eu não podia ficar
dando dinheiro a você a toda hora, e que da próxima vez eu ia mandar botá-lo pra fora!
Rod pendurou o telefone, foi até um outro aparelho e discou para a polícia.
Aqui fala Rod Bracken, empresário da sra. Moran. Um indivíduo
de nome Romero Rettland está ligando para ela neste instante. Pelo que parece, está querendo fazer qualquer chantagem. Será que o senhor poderia verificar de onde ele está ligando e ir prendê-lo?
Se for dada alguma queixa...
Eu estou dando a queixa.
Só que a conversa terá que durar um pouco mais... Um instante,
por favor, tenho que verificar uma coisa. Exatamente, o aparelho da sra. Moran tem um número secreto mas não possui chave de controle na telefônica. Não vai ser fácil. A sra. Moran deve continuar a conversar, estender o mais que puder.
Pode deixar. Eu escrevo num papel para que ela possa ler.
Não desligue; eu me manifesto assim que conseguir descobrir qualquer coisa.
Pois não.
Rod rabiscou o recado num bloco e estendeu para a Sylvia. Esta leu e fez um sinal com a cabeça. Ele pegou novamente o fone da extensão e do segundo telefone também; um em cada ouvido.
A conversa continuara enquanto isso.
- Botar para fora! E num tom lamuriento: - Isto foi sujeira sua.
Você lá no alto... Eu cá embaixo na merda... Eu também nunca mais me manifestei... Só agora...
- Agora por quê?
- Sylvia, eu fiquei velho. Estou só. Tão só! Você não sabe, nunca vai saber, nem nunca conseguirá imaginar o quanto eu a amei...
- Pare com isto, seu cretino!
- Não, não vou parar não, deixe eu falar Sylvia, minha querida Sylvia...
- PELO AMOR DE DEUS DEIXA ELE FALAR! - escreveu Rod no bloco.
A Sylvia concordou. Tomou mais um gole.
- O que é que você quer agora?
489... quero lhe dizer quanto a amei... como tenho saudades da
nossa filha... Há anos... há tantos anos...
Não é sua filha, você sabe muito bem disto.
É minha filha, e eu sei que é.
Tenho atestados dos médicos!
Forjados!
Autênticos.
Forjados, digo eu... E isto é seu agradecimento?... O agradecimento por eu ter levado você para Hollywood... por ter deixado você representar um papel importante a meu lado... por ter movido céus e terra para que a SEVEN STARS lhe desse uma segunda chance... que lhe
adiantou, e como... Novamente aquele tom lamuriento. Eu tive
azar... um atrás do outro... A esta altura, então, você resolveu não me conhecer mais, não foi?
CONTINUA! CONTINUA! - rabiscou Rod no bloco.
Não foi bem assim! A Sylvia leu e balançou a cabeça Você
sabe muito bem como foi. Eu teria ficado sempre ao seu lado, se não tivesse acontecido aquilo...
Ora, foi só brincadeira... uma brincadeirinha inocente...
Você chama aquilo de brincadeira?
... e já faz tantos anos... Agora ouça, Sylvia. Eu amo a você, e
amo a minha filha. Vou gostar sempre de vocês. Você é fantástica! Seu filme vai ser um sucesso mundial. Posso imaginar muito bem que você não queira
ter nada a ver com um velho decrépito como eu... De lamurienta, sua
voz se modificou de repente, ficou irritada: Mas isto assim não vai mais
não! Não vai não, querida! Estou com o coração nas mãos por ter que lhe dizer isto, mas não há outro jeito... ou você casa comigo e vamos viver todos os três juntos, os três, pois a Babs é minha filha, eu sou o pai, entendeu bem?... Ou então...
Então o quê?
Vai haver um escândalo enorme, que vai acabar com você, isto eu
posso lhe garantir!
Que escândalo? O quê você quer dizer com isto?
. Quero dizer que... ah, já percebi.
Sabe o quê?
Você está esticando a conversa para que a policia descubra de
onde eu estou falando. Entendi. Isto é sujeira sua, Sylvia!
Eu não estou esticando nada... Não tem polícia nenhuma...
Claro que não. Você terá notícias minhas. Muito breve.
Clique.
Rettland tinha desligado.
Rod praguejou.
Eu não tenho culpa... Eu fiz tudo... Como é que você queria...
490Cale a boca! disse Rod.
O policial com quem Rod tinha falado antes, se manifestou no segundo aparelho.
Acabamos de ser informados pela transmissora que controla o
setor Mandeville Canyon, de que a conversa foi interrompida. Por que a sra. Moran não continuou a falar?
Ora, porque Rettland desligou!
É uma pena.
O tempo foi curto?
Foi. Não deu para descobrirem de onde ele estava falando.
Rod praguejou obscenamente e depois gritou:
E prender? Prender o senhor também não pode?
Alegando o quê?
Calúnia! Ele afirma ser o pai da Babs!
Ora, por favor! Isto ele já vem afirmando, publicamente aliás,
desde que a menina nasceu. Com isto eu não consigo uma ordem de prisão.
Por chantagem então... Ele disse que se a Sylvia não casasse com
ele, faria um escândalo que acabaria com ela! berrou Rod.
Eu também consigo entender quando o senhor fala num tom de voz
normal, sr. Bracken. Se ele realmente disse isto, aí...
Por acaso duvida de minhas palavras?
... o caso já não é conosco. O senhor deve é apelar para a polícia
criminal para dar queixa. Esta poderia aconselhar à sra. Moran o que fazer. Se o senhor quiser, faço a ligação.
Claro que quero disse Rod no LE MONDE repetindo o que se
passara há meses. A polícia criminal ouviu tudo. Depois me mandaram
dois homens para que eu contasse tudo a eles mais uma vez, tim-tim por tim-tim. Depois...
- Não me deixe aqui em cócegas. Vê se encurta a história! Afinal, de novembro para cá ainda deve ter acontecido bastante coisa.
Ele resumiu portanto. E eu também.
A polícia criminal prometeu prender o chantagista. Para isto, no entanto, ele devia de fato ter tentado fazer alguma chantagem. O que o Rettland tinha feito, não podia ser considerado como tal. Se o prendessem agora, teriam que soltá-lo de novo, vinte e quatro horas depois. Claro que a policia existia para proteger os cidadãos. De qualquer modo eles mandariam instalar um gravador no telefone da Sylvia, e uma chave de controle de seu aparelho lá na telefônica. Agentes da polícia criminal tentaram também localizar Rettland. Não o encontraram. Durante mais de cinco semanas ele não deu sinal de vida.
- Você pode imaginar em que estado andou a Sylvia! Esgotada de tanto trabalho; com os nervos totalmente abalados por causa da Babs! Além disso, o trabalho no estúdio e tudo mais. Joe mais uma vez lhe colocou
491detetives à disposição. Estes podem zelar pela segurança pessoal do indivíduo, mas para os nervos não adiantam nada.
O que vocês fizeram então?
Procuramos um médico. Não um vigarista como aquele dr. Collins! Um psiquiatra decente. Chefe de clínica! O dr. Elliot Kassner. Dirige a seção de psiquiatria do Hospital Santa-Mônica. Passou a observar e a tratar da Sylvia. Quando você falou com ela, percebeu por acaso que estava passando pela pior crise de sua vida?
Eu não.
Um grande médico, eu não lhe disse? Principalmente se levarmos
em conta tudo que ainda aconteceu depois.
Tudo o quê?
Primeiro no campo profissional. Em abril, como você sabe,
será distribuído o “Oscar”. Primeiro houve o murmúrio, depois correu o boato, agora já é certo que o filme CÍRCULO DE GIZ o receberá, e evidentemente também a Sylvia.
A Sylvia, o “Oscar”?
Que tempestade de neve aquela!
E bem merecido! Aliás não deveria ser para a “melhor atriz do
ano” mas para a “maior atriz do século”!
E quando vai ser isto?
No dia seis de abril.
- Acredito que Rettland também saiba disto.
Claro. Ele sabia desde o princípio ou ao menos imaginava com
tanta certeza que pode-se dizer que sabia. Era exatamente por isso que ele estava esperando. Agora ou nunca! Foi por isso que também não telefonou mais. Foi mais esperto.
Mais esperto?
Foi procurar uma destas revistas de Hollywood. Já o fizera uma
vez, logo depois que a Babs nasceu. Mas naquela época a criança gozava de saúde! Você conhece o tipo de revista. Muitas são sérias, mas a maioria não é. As que não são, têm uma tiragem muito maior.
Claro.
Rod tirou do bolso interno do paletó um artigo de revista, com fotografias, e me estendeu.
Apareceu há quinze dias.
Dei uma olhada. A folha mostrava retratos da Sylvia e de Rettland como galã de outrora, além de outra, dele, tal como estava hoje, velho, mal arrumado, o cabelo branco, os olhos tristes de cachorro sem dono. Além disso (meu coração começou a pulsar alto!), umas cinco fotografias da Babs de anos atrás. Em letras garrafais, ocupando duas páginas, lia-se:
ROMERO RETTLAND DECLARA: - EU NÃO POSSO SILENCIAR MAIS!
492I
O artigo que eu li com toda a atenção, era escrito na primeira pessoa, evidentemente não por Rettland, isto eu percebi logo pelos requintes de astúcia. Aquilo era trabalho de gente tarimbada. Esta folha seria sem dúvida uma sensação, logo agora, três meses antes da distribuição do “Oscar”!
Rettland falava no filme em Berlim. Falava na principiante desconhecida, a Suzanne Mankow, que ele havia descoberto, que devia tudo a ele, a quem ele havia trazido para Hollywood. Como gostara dela desde o primeiro momento! Como ela, em Berlim ainda, se havia tornado sua amante. Como ficou louco de alegria quando mais tarde nasceu sua filha nos Estados Unidos, a Babs! (Nunca desejara nada na vida tanto quanto ter um filho...) Claro que quis imediatamente casar com a Sylvia. Ela não quis. Desistira de usar advogados, porque gostava dela, hoje ainda mais do que nunca. Não queria causar-lhe nenhum prejuízo. Durante anos carregara seu fardo. Tivera azar na vida (não por culpa própria), enquanto que a Sylvia se transformara na grande artista. Não se envergonhava de confessar que na sua maior miséria apelara para a Sylvia, pedindo dinheiro. Esta o atendera. Mais tarde, porém, foi tratado como um criminoso; foi expulso de sua casa. Agora estava velho e só. A Babs crescendo sempre, era toda a sua alegria, seu orgulho! A sua filha! Ele tinha direito sobre ela. Lutaria pela menina com todos os meios.
E assim por diante...
Lendo isto, podia-se dizer também que é uma fabulosa publicidade
para a Sylvia disse eu.
Podia. Se não soubéssemos que a Babs é uma doente mental, que
vive escondida. Se não soubéssemos tudo que a Sylvia disse em Monte-Carlo. Se não soubéssemos que por causa disso vêm fazendo chantagem com ela há anos. Se não soubéssemos...
- Basta! disse eu. Estava começando a me sentir mal. Precisava
de alguma coisa para beber. Preparei duas doses enormes para nós. Das janelas via-se apenas a escuridão branca. Acendi todas as luzes. Vi Rod beber avidamente; preparei mais um uísque para ele e para mim também.
- O dr. Kassner está cuidando da Sylvia disse Rod Perguntei
se ele achava que ela agüentava até abril.
- E?
- Disse que sim.
- Se não vier mais nada acrescentei eu.
- Claro. Aí é que está a merda! Agora Rettland vai entrar de vento em popa. Outras revistas. Melhores... mais sérias. Toda palavra será pesada por três advogados no mínimo. Os advogados de Joe dizem que não há o que fazer. O da Sylvia também acha. Todos acham. O homem é inatingível! E você já pensou o que vai ser lá nos Estados Unidos? Já pensou em todas aquelas Marias-choronas, naquelas porcarias de ligas femininas? Um pobre homem, velho e abandonado luta por sua filha! Uma mulher, com a beleza, o êxito e a fama com que nenhuma delas não pode nem sonhar, se recusa a lhe dar a filha! E isto tudo na hora do “Oscar”! Nada disso, no entanto, seria tão
493trágico se a Babs não estivesse doente. Se agora descobrirem a verdade, a Sylvia pode se suicidar. Uma vez já tentou. Da segunda, garanto que vai cuidar que dê certo.
E não se pode fazer nada contra Rettland?
Nada, temos os melhores assessores, os melhores advogados. Não
dá.
Eu nada respondi. Estava perdido.
Foi por isso que vim, Phil. Primeiro para lhe contar tudo pessoalmente... não havia outro jeito.
Tem razão.
E depois, não sabemos se Rettland sabe a verdade sobre a Babs ou
não. Esperamos que não. Mas temos que tomar todas as precauções para que ninguém descubra que você está em Heroldsheid. Nem você nem a Babs. Por enquanto os repórteres têm acreditado que você está viajando pela Europa em preparativos para mais um filme. Tudo tem dado certo. Você sabe muito bem que vocês três... Sylvia, Babs e você gozam de alto conceito junto aos repórteres.
Mas por quanto tempo? Quanto, se a história vier à tona?
Exatamente. Aí acabou-se. A Babs não pode aparecer de maneira
nenhuma. Mas você, você tem que aparecer em Los Angeles, principalmente para a entrega do “Oscar”. Você tem que estar ao lado da Sylvia, isto eu acho imprescindível.
Aquiesci.
Santo Deus, em que merda nos metemos! disse Rod perdido
E tem que acontecer logo agora? Agora que a Sylvia está no auge!
Se você fosse o Rettland por acaso teria escolhido outra ocasião?
Nisto você está certo disse ele olhando para mim de maneira
estranha. Claro que não. Eu teria feito o mesmo.
Me lembrei de uma coisa. Não era de grande importância, mas me ocorreu de reprente.
A propósito, o que vocês fizeram da Carmen Cruzeiro?
Fizeram, como?
Não prometemos a ela uma carreira espetacular, na ocasião em
que ela aceitou substituir a Sylvia?
Sim, e daí?
E o que foi feito dela?
Ora, o quê? Continua lá em Madrid, na firmazinha de importação e
exportação, xingando a todos nós. Ela devia é estar muito satisfeita. Ganhou ainda cinco mil dólares extra.
Para quê?
Para nunca revelar nada. O Lejeune acertou tudo.
Acertou o quê?
Quando viemos embora, ela pensou que viesse junto direto, não
veio. Depois como também não a mandávamos vir, começou a escrever.
494Primeiro para mim (o seu endereço ela não tem). Depois para a Sylvia; para Joe. A desgraçada começou a ficar atrevida! Ameaçou divulgar a verdade sobre a tentativa de suicídio e outras coisas mais.
- E daí?
Aí, nós mandamos o Lejeune. Primeiro ela fez aquela cena...
depois ficou deste tamaninho! Rod mostrou com os dedos. A clínica,
dr. Molendero, a polícia, estes não vão abrir a boca. Lejeune diz que não há perigo. E o que ele diz, pode-se acreditar. Ouviu a história toda da Carmen. Até o fim. Até as provas formidáveis que causaram tanta sensação em Hollywood!
As provas nunca chegaram até lá! Vocês estavam rodando sem
filme!
Sim, mas vocês não disseram a ela que Hollywood estava entusiasmada? Lejeune lhe disse então, sob ordem minha, que eu nunca dissera nada disto. Nunca na vida! Era sua palavra contra a minha. Em quem você acha que eles acreditaram? Ela fez uma choradeira. Aliás, chorava sempre que falava com Lejeune ao telefone.
Um momento. Mas nós não declaramos que ela sofrerá um ataque
cardíaco e que tinha sido internada em conseqüência? Se ela agora pedir um exame médico, vai ficar provado que nós não dissemos a verdade. E se ela chamar como testemunha o Da Cava, a equipe de eameraman e todos os outros que sabiam de tudo?
Da Cava já assinou mais dois contratos com a SEVEN STARS. A
equipe de cameraman já está trabalhando em outro filme também. Todos dependem da SEVEN STARS. Que interesse têm eles numa sirigaita espanhola qualquer?
E você?
Eu o quê?
- Você não dormiu com ela?
- Sim, e daí? O que tem isto a ver com o caso?
- Nada realmente. Desculpe.
- Os fotógrafos e a garota devem estar chegando por aí. Quem?
- Ora, nós não precisamos de fotos? Eu e você não estamos aqui em Paris tratando de assuntos relacionados com um outro filme? Nós descobrimos uma parceira para a Sylvia. Você nunca viu uma coisinha tão louca! Eu que escolhi ontem à noite. Me apresentaram umas duas dúzias. Cada qual mais formidável que a outra. A melhor delas é a Chantal. Tem um corpo! Uns
olhos! - Ele fazia gestos condizentes. Vinte e um anos. Ela me acha um
Deus! - Vou ficar mais uns dois dias aqui em Paris. Você vai ver só quando ela entrar. Se quiser escolhe uma para você, tem uma porção! Esta é minha.
- E se depois ela começar com a mesma história da Carmen?
495Ora, por enquanto ainda estamos em negociações. Depois ora, não
pode ser... acontece tanto...
Liv Ullman, a artista sueca, em pé ao lado de Rock Hudson, abriu um envelope e tendo tirado um cartão, disse bem alto para a multidão:
O “Oscar” para a melhor artista masculino do ano no filme “O
Chefão”: Marlon Brando!
No Music Center of Los Angeles inrromperam os aplausos, apesar de todo mundo já estar esperando por isso mesmo. Os aplausos cresceram, pois o público esperava que Marlon Brando aparecesse no palco. Ele não veio. No mesmo palco em que pela quadragésima quinta vez a Academia de Cinema distribuía o famoso “Oscar”, apareceu uma bonita e graciosa índia muito jovem ainda, nos trajes típicos dos apaches. Com um gesto decidido, recusou a aceitar a estatueta. Meu nome é Little Feather (Pequena Pena) disse ela, sacudindo na mão diversas folhas de papel.
Palhaçada! murmurou Joe Gintzburger, sentado atrás de mim,
fungando violentamente. O Marlon é maluco! Fique calma, Sylvia, fique
calma!
Mas estou calma disse a Sylvia sentada a meu lado, amavelmente.
Virei a cabeça; à direita de Joe estava Rod, à sua esquerda o dr. Elliot Kassner, o psiquiatra do Hospital Santa-Mônica. Joe e Rod olharam para o médico que viera para uma possível emergência. O dr. Kassner fez um sinal com a cabeça indicando que estava tudo em ordem.
Enquanto isto a “Pequena Pena” tinha começado a falar:
Meus senhores e minhas senhoras. Em nome do sr. Marlon Brando
tenho a honra de lhes comunicar que ele recusa o “Oscar” que lhe foi concedido. Alega ele que é esta sua maneira de protestar contra o tratamento discriminado que tem sido dado aos índios nos Estados Unidos, especialmente por parte da indústria cinematográfica...
As palavras subseqüentes se perderam em meio ao tumulto, à indignação, à aprovação dos três mil convidados.
Este espetáculo de gala, como sempre demorado demais e abrilhantado com danças, cantores, de cômicos em excesso, era transmitido pela televisão. Uns seiscentos milhões de pessoas (mais ou menos a mesma quantidade como daquela vez em Monte-Carlo) apreciavam a cerimônia. Todos acabavam de ver que Marlon Brando recusara o prêmio mais ambicionado do cinema. Souberam também por que. Este quadragésimo quinto espetáculo de gala estava aliás cheio de incidentes.
496Primeiro, Charlton Heston, um dos mestres de cerimônia na entrega dos prêmios ficara no caminho com um pneu estourado, numa auto-estrada qualquer. No último instante chamaram Clint Eastwood para substituí-lo. Este não estava preparado, gaguejou, errou, fez realmente uma triste figura. Brando parecia até possuir um sexto sentido, pois Clinton Eastwood em seus filmes não representava um papel muito simpático em relação aos índios. Depois Bob Hope, o palhaço da festa, não aparecera, já pela segunda vez aliás, em dois anos. Além disso eram tantas as coisas que estavam saindo erradas naquela noite, que já se formara uma atmosfera de nervosismo e irritabilidade, que alcançou o auge com a recusa de Marlon Brando.
Olhei para a Sylvia. Percebeu meu olhar e sorriu para mim. Eu, a presa bem-vinda para a imprensa, o rádio e a televisão, chegara há três dias com a Sylvia. Esta se mostrara muito bem disposta. Vivia sob a constante observação médica do dr. Kassner e sob o efeito de remédios. A luta particular de Romero Rettland tinha continuado. Seis outros jornais ou revistas publicaram um artigo lamuriento de acusação. Ele fora entrevistado por duas estações de rádio. Usando de toda sua influência, Joe conseguira ainda à última hora, impedir uma entrevista na televisão, que já estava marcada para o dia da entrega do “Oscar”.
Coberta com as suas jóias mais preciosas, num vestido muito decotado e justo, que parecia ser tecido de fios de ouro, a Sylvia estava calmamente sentada. Tomei-lhe a mão. Aos poucos, a situação no palco e entre os espectadores foi se amenizando.
Uma série de filmes, artistas e atores já tinham sido premiados. Francis Ford Coppola e Mario Puzo, melhor roteiro. Luiz Buriuel, melhor filme estrangeiro (“O Charme Secreto da Burguesia”). Depois, Joe fungou violentamente, veio o “Oscar” pelo CÍRCULO DE GIZ! Vera Lenner o segundo melhor papel feminino, a mulher do Governador; James Crown, o melhor papel masculino: Azdak, o juiz arbitrário; Roy Hadley Ching, o melhor cameraman; Oscar de Witt a melhor música; Mike Toran, o melhor roteiro; Júlio Da Cava, o melhor diretor; Joel Burns a melhor decoração; Bob Cummings, a melhor produção... Joe tinha razão de fungar!
A música havia recomeçado. Diana Ross, escolhida como protagonista do filme Lady Sings the Blues, que estava sendo preparado ainda, cantou My Man, a abertura para ser anunciada a melhor atriz do ano. A canção terminara. Um novo envelope foi entregue. Desta vez a Rock Hudson. Ele tirou um cartão.
- Meus senhores e minhas senhoras, o prêmio pela melhor artista do
ano no filme CÍRCULO DE GIZ as palmas começaram na mesma
hora - é concedido a SYLVIA MORAN!
Aplausos estrondosos.
A Sylvia continuava aparentemente calma, serena, controlada.
- Você tem que subir no palco disse eu.
497Eu não disse? Eu sempre disse! exclamava Joe atrás de mim.
A Sylvia se levantou.
Você vem junto? perguntou ela.
- Não.
Ora, vem logo disse ela.
As pessoas sentadas na nossa fila se levantaram para dar passagem. Sylvia foi andando na frente em direção ao imenso palco com a orquestra, a reprodução em tamanho grande do “Oscar”, o mar de flores.
Os aplausos foram se tornando frenéticos.
Eu e a Sylvia tínhamos alcançado agora a pequena escada forrada de veludo vermelho que dava acesso ao palco. Subimos no palco todo iluminado. Mais um refletor foi aceso, seu foco nos procurou, fixou e nos acompanhou. Em meio à sua violenta luz chegamos ao centro do palco. Abraços e beijos. Apertos de mão. Desta vez era Raquel Welch quem entregava o prêmio. Beijou a Sylvia mais uma vez.
Os aplausos aumentaram mais ainda.
Lá estava ele, “O Casal de Enamorados do Século”!
Aos poucos foi se fazendo silêncio.
Quarenta e um homens da televisão, (o programa com suas diversas folhas, citava todos os seus nomes) da equipe da NBC, tinham neste momento uma única tarefa, captar a imagem e as palavras da Sylvia, e levá-las para os vídeos de seiscentos milhões de pessoas.
Ela estava agora em pé diante dos microfones.
Meus senho.. Sua voz falhou. Ela sorriu feliz. Eu também
Meus senhores e minhas senhoras. Queridos amigos. Eu lhes agradeço de
todo coração por este maravilhoso prêmio, que hoje... O “Oscar” lhe
escorregou da mão, caiu no chão ruidosamente. No mesmo instante a Sylvia desmaiou. Eu só tive tempo de evitar que caísse.
Gritos estridentes em meio ao público.
Eu segurava a Sylvia nos braços, sr. Juiz, mas estava certo de que segurava apenas um corpo sem vida. Homens vieram correndo, o dr. Kassner na frente.
Deitem-na; deitem-na bem devagar disse ele com toda calma,
aliás nunca o conheci de outra maneira. Assim. Virando-se para os
detetives da SEVEN STARS: Chamen a ambulância, por favor.
Já está vindo, doutor.
A Sylvia estava deitada no chão. Os olhos abertos não viam nada. Seu vestido estava rasgado no ombro.
Bruxinha eu me ajoelhei ao seu lado.
49850
O dr. Elliot Kassner disse:
Quero deixar bem claro, meus senhores, que até aqui eu venho
tratando da sra. Moran apenas para evitar que ela, diante das circunstâncias, sofresse um colapso total... Para que pudesse continuar a aparecer em público, para que pudesse receber seu “Oscar”...
Realmente ela o conseguiu maravilhosamente resmungou Rod.
Estávamos sentados na sala de Joe, no prédio da SEVEN STARS, Joe atrás de uma grande mesa com um havana na boca. Eu, Rod e o dr. Kassner em frente.
Ora, Rod disse Joe amavelmente. Você podia querer coisa
melhor? Você então não leu os jornais nestes últimos dois dias? Se Charley e seu pessoal explorarem devidamente este incidente, só ele, vai nos render alguns milhões a mais. Desculpe, doutor, mas o senhor ia dizendo?
O médico pesadão, de rosto largo e expressão inteligente disse:
Tudo que venho fazendo pela sra. Moran foram apenas visando
soluções de emergência, medidas provisórias. Infelizmente não pôde ser feito o tratamento que ela realmente teria necessitado. Fiz isto porque sabia que a sra. Moran ainda teria que continuar a aparecer em público por mais algum tempo. Quanto tempo ela vai poder descansar agora?
No outono queremos começar a rodar o próximo filme, MISSION
TO BERLIN - disse Rod.
Queremos não, teremos corrigiu Joe. Agora, depois desta
grande abertura; depois do CÍRCULO DO GIZ!. Depois que a Sylvia...
O filme vai ser rodado em Berlim? interrompeu o dr. Kassner.
- Berlim, Paris e Nova York disse eu Uma história de agentes
secretos.
- Nunca se viu nada igual grunhiu Joe. O filme deverá marcar o
auge e o fim de todas as histórias de agentes secretos. Nunca vai haver nada que se possa comparar com ele. A Sylvia representará o papel principal.
- O senhor pretende manter a sra. Moran lá nas alturas por muito tempo ainda, não é, sr. Gintzburger? Ganhar muito dinheiro com ela.
- Não sou só eu não. Nós todos. A própria Sylvia também. Devemos malhar o ferro enquanto...
- Eu sei disse o dr. Kassner.
- Sabe o quê?
- Sei e entendo o que o senhor quer; mas tem uma coisa, isto só vai dar certo, com a Sylvia gozando perfeita saúde.
- O senhor quer dizer doutor, que precisaria cuidar de sua saúde primeiro para que fique boa de todo.
499Exatamente. A sra. Moran está no Hospital Santa-Mônica. Ali
deverá ficar.
Por quanto tempo?
Meses. Três ou quatro, no mínimo. O senhor não deseja ganhar
muito dinheiro com ela ainda? Seu rosto estava inexpressivo.
Não quero que me entenda mal lamentou-se Joe. Por favor,
cuide da nossa querida Sylvia o tempo que for necessário. Dinheiro... ora! Eu lá estou ligando para o dinheiro, doutor? Eu quero é que...
... que a sra. Moran continue a ser um membro feliz, sadio e
eficiente desta grande família feliz. Sei disto.
Exatamente, doutor!
Claro, sr. Gintzburger. - Nenhum músculo do rosto do dr. Kassner revelava seu pensamento.
Se o senhor com toda sua capacidade e sabedoria conseguir fazer
com que a nossa querida e valente Sylvia fique boa em tempo, para que possamos manter o prazo...
Já vi que nos entendemos perfeitamente, sr. Gintzburger. Eu vou
me esforçar ao máximo. Não será fácil no entanto. A Babs... O dr.
Kassner sabia de tudo. Eu vou fazer o possível.
O que o sr. pretende fazer? Em poucas palavras, apenas, para que
um leigo possa entender.
Bem, para os leigos.. O dr. Kassner olhou para todos nós
os senhores sabem que até aqui consegui agüentar a Sylvia graças a psicofarmacologia. Mas isto é apenas o que eu chamo de “solução de emergência”. Agora ela deve ficar na clínica. Todos os medicamentos usados até agora serão suspensos de imediato.
Mas ela vai piorar! observou Joe, o amoroso e extremoso pai.
Certamente, sr. Gintzburger. Durante algum tempo ela não vai
passar nada bem. Não haverá o menor perigo entretanto, pois ela estará conosco, e por conseguinte sob controle. Pode levar semanas. Durante este tempo seria melhor que ninguém viesse visitá-la... melhor para a sra. Moran! Acho que o senhor devia voltar para a Alemanha, sr. Kaven - Aquiesci - Depois, quando seu organismo desacostumar-se inteiramente dos medicamentos que vinha usando e que a mantinham em pé, quando ela conseguir passar sem eles, faremos duas coisas. Primeiro ela receberá outros medicamentos. Em segundo lugar, o que é bem mais importante, eu poderei começar um tratamento de psicoterapia específico.
Santo Deus! exclamou Rod. Mais uma vez?
Mais uma vez? Ah, o senhor quer dizer... Não, eu não sou analista. Sou psiquiatra. Nada de sofá, nem de narcoanálise ou coisa parecida. Vou conversar com a sra. Moran. Ouvir o que ela tem a dizer. Discutiremos seus problemas. O que ela necessita é um tratamento de terapia de conduta. Sob certos aspectos será semelhante ao caso da Babs...
Como? perguntei eu.
500Quero dizer explicou o dr. Kassner que teremos que conseguir uma conduta ativa e positiva da sra. Moran. Temos que conseguir que ela reaja, que deixe de lado qualquer comportamento anormal.
E o senhor acha que poderá conseguir isto?
Acho, sr. Kaven. Ela pode ser orientada... como a Babs também.
Por meio de desaprovação e recompensa.
Como?
Quando o desenvolvimento se processar corretamente, quando a
paciente reagir corretamente, o médico lhe dá uma recompensa... uma dedicação especial. O doente, na realidade, sente como se fosse! No caso de reações anormais o médico manifestará sua desaprovação fingindo largar a paciente de lado. É como se não ligasse mais... Isto é bem difícil, exige uma paciência enorme de ambas as partes. É no entanto o único caminho certo. Posso tomá-lo?
Pode disse eu.
Sim concordou Rod.
Joe nada disse. Todos ficamos olhando para ele. Levantou-se, aproximou-se de um retrato da Sylvia preso na parede, sacudiu a cabeça e depois a abaixou.
Mmmmmmm! Rod me cutucou.
Que é?
Apontou com o queixo.
Vi que Joe Gintzburger chorava. As lágrimas lhe rolavam pelas faces. O charuto tinha apagado.
Pobre Sylvia, querida disse ele com voz estrangulada Pode
sim doutor, faça o que achar melhor. Eu sei que fará tudo para nos devolver a nossa Sylvia curada.
51
Diário.
Segue-se agora, sr. Juiz, um curto relato sobre o que se passou em Heroldsheid desde a minha ida para os Estados Unidos, depois da volta e mais tarde durante a primavera, o verão, o inicio do outono, até pouco antes da catástrofe final.
Durante a minha ausência, o tempo esquentara em Heroldsheid. As crianças podiam brincar ao ar livre. A campanha do Floriam Bend no NURENBERGER MORGEN teve tamanho êxito que recebemos 9.825 marcos em donativos, além de trinta e uma pessoas se oferecerem como padrinhos.
501Bend estava radiante:
Eu não lhe disse? Agora o senhor está vendo; as pessoas não são
más, é só saber lidar com elas. Ter muita perspicácia, e isto eu tive.
Mas os donativos vêm todos de particulares. Foram particulares
também que se ofereceram como padrinhos, como o senhor pode ver disse
eu.
É fez ele. Foi gente. Gente que ninguém conhece. Não foi o
senhor mesmo quem me disse que só o homem ajuda ao homem?
As crianças tinham feito um presente para Florian Bend. Um sol
de folha de estanho em dobradura, com um metro de diâmetro. O sol tinha olhos, nariz e boca; recortado e pintado. O sol ria. Bend ficou muito sem graça quando a Babs lhe entregou o presente. Ela estava no momento numa de suas “boas fases”. Não tinha a menor agressividade, fazia progressos (míminos) na escrita, leitura e em cálculo (a barreira do algarismo três tinha sido vencida completamente). Numa cozinha especialmente preparada para crianças, aprendia a fazer pratos bem simples (um sanduíche, um copo de leite com chocolate). A paralisia regredira ao ponto dela insistir em tomar parte nas aulas de ginástica e de educação ritmico-musical. D. Vera Gellert a logopedista, estava feliz. A Babs falava com muito maior clareza, conseguia formar frases maiores. Nas aulas de trabalhos manuais mostrava grande interesse por cerâmica, fazia pratos, xícaras e figuras de barro que depois pintava. Ia sozinha ao banheiro. Sabia se lavar. Uma “boa fase”, como eu já disse. Costumava dançar para mim e para a Ruth quando esta vinha à escola, ou nos visitava em nossa pequenina casa. A Ruth e eu vivíamos como um casal feliz... nunca tínhamos dormido juntos. Nos beijávamos às vezes, não muitas. E eu, eu sr. Juiz, há meses não tinha tido mulher nenhuma, e por meses a seguir também não. Nem estava sentindo falta!
Continuava meu trabalho de sempre. Durante os primeiros dois meses e meio depois de minha partida de Los Angeles, falei apenas com Rod. O dr. Kassner pedira que deixássemos a Sylvia em paz. Logo no principio, ao suspenderem os remédios, ela sofreu muito. Mais tarde quando o dr. Kassner iniciou a nova terapia, quando a preparou para o novo tratamento, eu só teria prejudicado o trabalho do médico. Quando a Sylvia perguntava, o médico lhe dava notícias de Babs. Ela perguntava sempre. Naquela época o dr. Kassner só falava num desenvolvimento positivo da doença de Babs.
Nesse meio tempo uma “fase ruim” viera substituir a anterior. A Babs ficara insuportável, eu por vezes chegava quase a perder o controle. Quase, mas nunca mais o perdi. A influência dos demais’ adultos tinha sido grande sobre mim. O rendimento dela baixara, tudo voltara à mesma desgraça. No final desta fase, ela teve uma melhora considerável. Durante o verão fomos então visitar um haras de pôneis que ficava por perto, fomos a um horto, a uma loja, visitamos uma obra, um mercado, um supermercado com auto-serviço. Nunca mais se repetiu uma cena igual à do correio, mas sempre existiam adultos que não sabiam como se portar. Faziam o que era típico:
502fingiam não perceber as crianças, porque “não é coisa que se faça, ficar olhando para elas”. Depois do final de agosto passei a falar novamente com a Sylvia. Ela continuava no Hospital Santa-Mônica. Parecia uma outra mulher. Deixara de ser histérica e egocêntrica. Calma, já conseguia até aceitar notícias sobre as pioras do estado da Babs. O dr. Kassner parecia realmente um grande médico. Certa vez me disse que a Sylvia também era uma grande paciente.
Ela reage tão bem à terapia, sua estrutura fundamental é tão sólida,
que eu tenho esperança de que ela possa rodar o próximo filme.
O próximo filme!
Desde o início de setembro tinham começado os preparativos em Paris e Berlim para o filme MISSION TO BERLIN, do qual eu era mais uma vez o chefe de produção. Bob Cummings me representava em Nova York e era ele também quem iria fazer todo o trabalho na Europa. Eu vivia sempre viajando...
No que diz respeito ao CÍRCULO DO GIZ, sem exagero nenhum, e o senhor sabe disso, sr. Juiz, ele se tornou mundialmente famoso. Até antes da catástofre trouxera uma renda de mais de oitenta milhões de dólares em alguns meses apenas, e ainda não chegara a todos os grandes países do mundo.
Romero Rettland se manteve em completo silêncio, podia até estar morto, sem que o soubéssemos.
No dia 15 de setembro a Sylvia saiu do hospital. Estava tão bem, os novos medicamentos tinham dado um resultado tão maravilhoso, que o dr. Kassner não hesitou em permitir que ela tomasse parte no que começaria a ser rodado em Berlim.
Em 23 de setembro chegou a Berlim. Teria que estar lá nas semanas que antecediam às primeiras filmagens. Por insistência de Joe, de Rod, de todos os advogados, eu a acompanhei. Nossa chegada foi aquele alvoroço de sempre.
Três dias antes de deixar Heroldsheid e entregar novamente a Babs por algum tempo aos cuidados da sra. Grosser, ela me chamou e disse que queria me pedir uma coisa.
O que é, Babs?
Phil, eu... eu queria ter outro nounours... Prometo que não vou
estragar... Vou gostar muito dele...
Como é que você quer que ele seja?
Preto, por favor, de olho bem azul.
Fui portanto a Nurenberg comprar um ursinho preto de olho azul. Ele tinha um botão no ouvido, o que mais encantou a Babs.
503Que pés pequenos para um homem deste tamanho, pensou Wigbert Sondersen, o comissário chefe. Estava em pé imóvel no meio do quarto, e contemplava há alguns minutos o local onde o homenzarrão caíra. A luz fraca de uma lâmpada elétrica tornava este quarto triste, mais triste ainda. O papel de parede listrado e desbotado, com suas flores também desbotadas, já todo descolado, estava aqui e ali coberto por uma camada grossa de sujeira, um visgo endurecido, A parede cheia de mossas que mais pareciam enormes furúnculos, com manchas de umidade escuras e brilhosas, lembrava as paredes de mictórios públicos. Uma cômoda. Um armário com um imenso espelho rachado de alto a baixo; tampas de cerveja sob seus pesados pés. Em frente, uma cama de ferro toda enferrujada, com a roupa rasgada e rota de tanto uso. Um cheiro abafado, azedo. De ambos os lados de uma janela pequena sem cortinas, um cortinado curto de linho verde-sujo que mais parecia um trapo molhado. O caixilho da janela outrora branco, mostrava agora a madeira escura com aspecto de podre.
Posso lhe contar tudo isto, sr. Juiz, porque o comissário Sondersen fez mais tarde uma descrição detalhada.
No canto, ao lado da janela, um lavatório lascado em três lugares, manchado de amarelo e marron. Duas toalhas de mão listradas de vermelho, dobradas, penduradas na borda; um pedaço ressecado de sabonete na saboneteira; por cima, um espelho já quase sem espelhado. A lâmpada não acendia, a torneira não funcionava; Sondersen as havia testado. Um bidê de madeira portátil e uma caneca de lata atrás de um biomtao torto cuja fazenda, outrora cor-de-rosa, estava já marrom e preta, puída, gasta, rasgada. Entre a caneca e o bidê, uma lata de spray íntimo, de um amarelo violento.
A lúgubre luz de uma fraca lâmpada lá no teto, debaixo de um prato de porcelana verde, dava a tudo um aspecto mais lúgubre ainda. Sujo de mosca no prato, nos dois espelhos, em toda parte neste quarto fedorento, de um malcheiroso hotel-de-encontro. De vez em quando ouvia-se o barulho de vozes isoladas entrando pela janela, vindas de baixo da estreita ruela. Vez por outra o barulho de motor do estacionamento próximo. Um beco sem saída na Cidade Velha de Nurenberg. Agora ouvia-se o badalar alto de sinos. Deve ser da Igreja de São lourenço, pensou o comissário... Nove horas já. (Uma noite fria e desagradável de outono, as nuvens negras pairavam baixas, mas não chovia. Não chovia ainda, apesar de Sondersen estar o dia inteiro esperando pela chuva.)
“... tanta sorte Bel ami! Tanta sorte com as mulheres, Bel ami...”
De algum lugar vinha a música e a voz de uma mulher cantando.
504Num quarto qualquer deste “hotel” A RODA BRANCA, alguém devia ter ligado o rádio.
“... não és bonito, mas fascinante, não és inteligente, mas galante...”
Na hora, saíram todos correndo para o corredor. Como velhos lascivos, com horror sensual e arrepios de volúpia se empurravam diante da porta, procuravam entrar. Um velho cáften que aí conseguira refúgio como porteiro, policiais e dois empregados, um iugoslavo e um turco os retinham. Gritavam, arquejavam, com manchas vermelhas nas faces macilentas diziam coisas sem nexo, sussurrando nos ouvidos suspeitas odientas. Falavam cuspindo, com mau hálito. Oito prostitutas e seus fregueses, seis casais de velhos, de roupão, as meias caídas, suspensórios despencados, chinelos nos pés. Um homem com só a metade da dentadura, a mulher de peitos caídos, sacos vazios, aparecendo no roupão aberto. Depressa! Não há tempo para vestir o sutiã colocar a segunda parte da dentadura... Depressa! Saíram correndo, tropeçando assim que soou o tiro. Que coisa! Isto nunca tinha acontecido antes, nunca mais ia acontecer! Outros com as faces encovadas, pálidos, os olhos lacrimejando, sem brilho, ardendo; Os cabelos colentos, narizes sempre escorrendo, ou ressecados fungando sem parar; rostos matusalèmicos, caras abobalhadas de paspalhões. Tão jovens ainda, já não pertenciam a este mundo! Moças e rapazes em velhos blusões do exército americano, casacos rasgados, calças Lee imundas ou de veludo esfarrapadas, camisas brancas das mais ordinárias com os nomes dos grandes jornais estampados. Velhos e moços, todos moravam aí nesta casa, neste último ponto de parada da vida. Depois dele, não vinha mais nenhum.
“... Te apaixonas todos os dias, beijas a todos mas nunca és
fiel...
Aos poucos, um atrás do outro, foram se arrastando de volta, capengando, cambaleando, entrando furtivos nos quartos, calados. Já não mais lascivos, com horror sensual e arrepios de volúpia. Apavorados de repente, com medo de serem envolvidos nesta coisa horrível. Todos eles, velhos sem esperança, que se odiavam mas não iam se separar nunca mais, pensou o comissário. Não iam largar um do outro, já não tinham mais forças, não viam mais saída. E os jovens, homossexuais, drogados e viciados... e as prostitutas, sempre à espera de sua miserável clientela, de um contadorzinho, um mestre de obras, um lapidador, ou dono de transportadora, de um funcionário do serviço de assistência social; um penhorista, um coveiro (até isso Sondersen tinha descoberto aí!). Todos eles com seus pequenos desejos, com grandes problemas esperando em casa, mulheres que já não amavam, uma filharada insuportável. Os corredores agora estavam desertos com seu cheiro de urina e lisofórmio...
“... mas a mulher que te ama é feliz como quê. Bel ami! Bel ami!
Bel ami...”
505O homem ainda está de sapatos, não dá nem para saber ao certo o tamanho dos pés, pensou Sondersen. Eu tenho que dar uma olhada, depois quando lhe tirarem os sapatos, quando estiver esticado nu na mesa de mármore...
“... conheço um rapaz que nada é, nada sabe...”
Tudo nele é bem proporcionado. Mesmo na sua idade, na sua miséria. Tudo menos os pés. Sondersen sentiu um gosto amargo na boca, um sentimento de desespero irremediável. Pés pequenos assim era mau. Não sabia dizer porque, mas era mau, tinha certeza. Estou tão nervoso, eu sei, pudera! A outra pessoa encontrada imóvel diante do corpo, à qual eu eu ainda encontrei ali, na mesma posição, era Sylvia Moran.
Sylvia Moran!
Será que não consigo pensar em outra coisa?
Não consigo não. Também não consigo esquecer; não vou conseguir esquecer nunca! Vejo-a na minha frente, os braços pendidos. Procuro falar com ela, quero saber se fora ela a autora.
Eu o matei... eu o matei...
Mas por que, sra. Moran? Por quê?
Chegara com um lenço amarrado nos cabelos louros, de capa de chuva, óculos escuros, uma bolsa escura a tiracolo. Sondersen lhe tirara o lenço e os óculos; também o cabelo louro, a peruca. A farta cabeleira de um preto azulado da Sylvia, caiu solta. Enormes eram aqueles olhos escuros, imóveis.
Sra. Moran... sra. Moran! Por que matou este homem? Quem é
ele?
E a resposta era sempre a mesma, seca, estereotipada:
Eu não sei... não sei... O quarto agora estava cheio de gente.
Ao lado de Sondersen, seu substituto, um homem do serviço de identificação, um fotógrafo, dois ou três homens da perícia, o médico de emergência. Na frente da casa e por dentro, policiais do distrito mais próximo, avisados logo pelo porteiro. Também o delegado daquele distrito que comunicara o fato a Sondersen.
Sylvia Moran! A tão festejada, mundialmente famosa Sylvia Moran, cujo filme o CÍRCULO DE GIZ estava sendo apresentado há semanas com lotação esgotada! Os ingressos tinham que ser comprados com alguns dias de antecedência! A maior artista do mundo, nesse quarto nojento dessa espelunca imunda, com um morto a seus pés, a quem ela afirmava repetidamente, ter assassinado!
- Eu o matei... eu o matei... Mas como, sra. Moran? Por quê?
Não sei... não sei...
O médico fez um sinal para o comissário.
- Deixa, Sondersen. Não adianta. Estado de choque. Eu não posso assumir esta responsabilidade.
506A sra. Moran terá que ser levada imediatamente para um hospital.
E lá foi ela, pensa o homem triste e solitário, naquele quarto miserável. Foi na ambulância com o casaco, o lenço de cabeça, a bolsa, a peruca, os óculos. Dois policiais a acompanharam.
Ajuntamento diante do hotel.
Os curiosos tinham quase que ser espancados para recuarem; não arredavam pé. Fotógrafos chegaram (tinham captado o chamado da polícia nas redações dos jornais). Flashes eram disparados como fogo de barragem. Soa uma sirena. Sem a menor consideração, a ambulância vai avançando, só assim o povo recua.
Sondersen tinha ficado com a sua equipe. Começaram a trabalhar, cada um no seu setor; horas a fio.
Sylvia Moran! Sylvia Moran. Não consigo entender, pensou Sondersen. Meu Deus do Céu, a Sylvia Moran! Que sensação para o mundo...
“... mesmo assim é venerado por todas, pois tem o que toda
mulher deseja...” continuou a cantar ao longe a voz de mulher. Talvez
não seja rádio, pode também ser toca-disco ou televisão, pensa Sondersen, que agora andava pelo quarto cuidadosamente, passo a passo. O quarto, os corredores,” o hotel, tudo aqui, meu Deus como fede! É o mesmo fedor de sempre, eu o conheço, conheço este ambiente. No fim da minha carreira, agora que eu ia largar definitivamente este serviço, ele não me engana mais, há anos já não me engana. Estou familiarizado com este círculo de podridão, de desespero, do mal.
Esse estranho no entanto, pensou Sondersen, não tem nada o que fazer aqui; muito menos a Sylvia Moran. Mas eles vieram para cá, vieram todos dois! No entanto eu sinto, eu tenho certeza, eles e tudo que aconteceu, foi por terem sido envolvidos por este peçonhento inferno, pela fetidez da peste, que não se sente, mas que existe, não faz parte da realidade, mas é mais real que ela mesma. Horrenda como o apocalipse, muda, silenciosa, mas rugindo como uma manada de milhares de elefantes. Um hálito satânico, desditosamente nascido do vício e da traição, da brutalidade, da perversão, da infâmia, da mentira, da desumanidade e do mal. Isto mesmo, do mal, eu o sinto, eu sei. Eu, que fiquei velho, esgotado e tão cansado em meio a este mundo de pesadelos. Aqueles pés tão pequenos...
O homem não trazia um único documento. O serviço de identificação terá que descobrir quem ele é. Trazia nos bolsos apenas um aro com três chaves, 85 dólares e 30 cents, e dois traveller-cheques de cem dólares cada um. A Sylvia Moran não diz quem é ele. Ela -não está muito certa da cabeça. Quando cheguei, seu rosto estava macilento, petrificado de horror. Segurava uma pistola na mão (o guarda tirou-a), uma pistola marca Walther, modelo TPH, calibre 6,35mm...
“... os outros homens ficam todos nervosos com sua louca crônica de escandalosos...”
507Sondersen continuava pé ante pé, neste soalho de tábuas, empoeirado, com todas suas raxas, brechas, lascas e manchas escuras. Não havia tapete no chão. As plaquetas com números, usados pelos agentes da policia criminal, ainda estavam no lugar, presas por longas e finas taxas, como cartazes em miniatura. As plaquinhas estavam espalhadas pelo quarto inteiro: perto da cama e do bidê, no meio do cômodo, no lugar onde o homem tinha caído. Quinze plaquinhas ao todo, brancas com algarismos pretos, trazendo os números de 1 a 15. Eram pontos de referência para os fotógrafos, para os peritos que desenhavam a planta do quarto com régua e compasso; especialistas que tinham que pensar em mil e uma coisas; em marcas, distâncias e aberturas de ângulo.
Com a máxima cautela, Sondersen foi seguindo o traçado do corpo, com o maior cuidado, o mais perto que podia. Foi seguindo da cabeça pelo ombro direito, depois pelo braço direito em ângulo, pelo lado de fora. Continuou pela dobra do braço, chegou à mão direita. Na ponta dos pés subiu junto à linha interna do braço direito. Três passinhos curtos.
Deu meia volta.
Desceu pelo lado direito do corpo. O peito. O abdome. A coxa. A perna direita estava numa posição estranha, torcida, não quebrada, embora parecesse. Sondersen teve que mudar a direção. Seus-passos foram se tornando cada vez menores. Perna direita, lado externo. Deu a volta no pé direito tão pequeno. Na ponta dos pés, foi subindo pelo lado interno da perna, até a coxa.
Parou. Deu meia volta.
Desceu o lado interno da perna esquerda, até o pequeno pé esquerdo. Foi subindo pelo lado esquerdo do corpo... O homem tinha caído de costas.
Sondersen não sabia dizer porque estava dando este passeio macabro. Alguma coisa o forçava a isso... um instinto talvez adquirido através de dezenas de anos. Quando chegou ao lado esquerdo do tórax, parou. Abaixouse e ficou olhando o sangue.
“... não és inteligente, mas fascinante; não és herói, mas és
interessante...”
Sondersen ergueu-se, deu mais alguns passos, sempre com cuidado para não pisar na linha de giz, para não apagá-la. Chegara novamente à cabeça daquele homem que lá não estava mais, apenas deixara seu sangue.
Um simples traço de giz marcava a posição deste homem, com o braço direito dobrado, e perna direita estranhamente torcida. Era um homem sem orelhas, olhos, nariz, boca nem cabelos. Um homem constituído do nada, de ar rarefeito e mal cheiroso, de espaço vazio. Um esboço. Uma silhueta. Um homem que já não era mais homem, mas que tinha estado aí, neste cômodo, neste lugar, um homem de carne rija, sangue quente, respirando e falando, pensando, ouvindo e agindo. Cheio de vida, até que chegou a sua hora. VULNERANT OMNES, ULTIMA NECAT... escreviam outrora nos relógios de sol. TODAS FEREM, A ÚLTIMA MATA.
508A última hora que matara este homem quando chegara o seu dia era
17 horas, 13 minutos e 44 segundos, segunda-feira, 8 de outubro de 1973. As nuvens negras passavam baixas por sobre Nurenberg, mas não chovia ainda, nem nestes últimos quarenta e cinco minutos.
17 horas, 13 minutos, 44 segundos.
ULTIMA NECAT.
A sua hora.
Foi naquele momento exato que ele caiu no chão. O vidro do seu relógio de pulso partiu, fazendo parar os ponteiros de horas, minutos e segundos.
“... mas a mulher que te ama é feliz como quê, Bel ami! Bel ami!
Bel ami!...” A orquestra entrou; a canção terminou. De repente fez-se
um silêncio de morte. Nem da rua ouvia-se o menor barulho. Que diferença da hora em que Sondersen tinha vindo no carro da perícia. Os curiosos então se comprimiam na entrada, quase quebrando os vidros foscos da porta. Eram
17h55min; ele tinha olhado para o relógio. Às 17h32min Sondersen recebera o chamado do distrito, comunicando o assassinato.
O magro, alto comissário-chefe com seus cabelos grisalhos que lhe cobriam a cabeça como se fosse pêlo, estava justamente riscando o 8 de outubro de 1973 com um lápis vermelho na folhinha presa por dentro da gaveta do arquivo, quando o telefone tocou. Já riscara tantos dias, faltavam tão poucos ainda para terminar o ano de 1973! Riscou o dia e só depois atendeu o telefone. O dia no entanto não ficara riscado de verdade, não chegara ao fim; era pelo contrário, o início do fato que impediria a Sondersen, o comissário-chefe de se aposentar definitivamente em 31 de dezembro de 1973, ele que fora ficando triste no combate ao mal absoluto, triste e desesperançoso. Que esperança havia diante deste mal? Quase na hora da aposentadoria pela qual anseava tanto, o comissário teve que entrar em ação novamente. Não lhe tinha sido poupado confrontar-se mais uma vez com o mal absoluto no quarto 19 daquele hotel-de-encontro, A RODA BRANCA.
A investigação do crime continou como de rotina. Todos os moradores da casa foram interrogados, e suas identidades anotadas. Por sorte o empregado iugoslavo também falava alemão e turco, podendo assim servir de intérprete para seu colega. Veio o fotógrafo. A perícia. O serviço de identificação. O médico fez o primeiro exame do corpo. A morte tinha sido instantânea. Levaram o corpo do desconhecido. Durante este tempo Sondersen dera uma série de telefonemas da portaria do hotel. Em seu laboratório o perito
509não chegou à conclusão nenhuma pelas impressões digitais. As autoridades teriam que ser avisadas, afinal tratava-se de Sylvia Moran...
Imediatamente comunicaram por telex e radiofotos aos outros distritos de polícia os dados que dispunham a respeito do morto... não apenas da Alemanha. Afinal tratava-se de Sylvia Moran. Diante da afirmativa do porteiro, Josef Kunzinger de que o homem era americano, comunicaram o fato também a INTERPOL. Em 120 países do mundo começou a procura pela identidade daquele homem. Convocaram um perito em balística. Por uma feliz coincidência, o famoso dr. Walter Langenhorst se encontrava em Munique, examinando um caso. Ligaram para Munique. Langenhorst prometeu vir imediatamente para Nurenberg. Precisavam também de um psiquiatra que pudesse dar informações exatas sobre o estado mental da Sylvia Moran no momento do crime ou ao menos pouco depois, pois enquanto ela afirmava ter morto o homem, por outro lado dizia não se lembrar de nada. Um caso sensacionalista como esse exigia um médico de nome. Sondersen ligara para o dr. Eschenbach da Clínica Psiquiátrica da Universidade de Erlangen, cidade que ficava próxima.
Este já se encontrava a caminho de Nurenberg. Ligou também para a polícia, dissera o mínimo possível, mas não pudera deixar de mencionar o nome de Sylvia Moran. A imprensa já viera pedir entrevista. Agentes da polícia ficaram no hotel. Sondersen já podia ter ido, já devia ter ido, pois no hospital para onde levaram a Sylvia ou na polícia, deviam estar precisando dele. Ficara no hotel-de-encontro. Estava completamente atordoado, perplexo. Não conseguia entender o que tinha acontecido. Sylvia Moran...
Imóvel no quarto, no local do crime, em pé na linha que fazia o contorno da cabeça daquele corpo que não mais estava ali, olhava fixo para o sangue, para aquela quantidade de sangue que já havia entranhado no assoalho, mas que ainda brilhava meio úmido... Sinto que tenho que seguir a pista, pensou Sondersen, sinto não, tenho certeza, certeza plena. Aqui falta qualquer coisa...
Com um passo bem grande atravessou a linha da cabeça até a poça de sangue. Ajoelhou-se. Abaixou; o rosto quase junto ao chão por cima do sangue. De repente viu bem claro o que já tinha percebido vagamente de longe. No meio da poça de sangue haviam duas linhas esquisitas, interrompidas, como se tivessem sido marcadas no chão por algum objeto afiado. Completando mentalmente o contorno, percebiam-se duas superfícies ovais interligadas. Uma das extremidades era mais fina, como um ovo. Do tamanho de um ovo eram também as marcas no chão. Tinham passado sangue por cima. Era preciso ter uma vista muito aguçada para perceber. Sondersen enxergava muito bem ainda. Tinha certeza, aqui no chão estivera um objeto. Não estava mais. O que fora feito dele? Por que nenhum de seus homens o descobrira?
Ainda agachado, olhou ao redor, procurando. Da porta até a janela, de volta até a porta. Onde poderia estar o que faltava, e não tinha sido encontrado?
510Escondido às pressas? O olhar de Sondersen parou na velha cômoda. Não tinha pés, estava apoiada diretamente no chão, encostada na parede, ao lado da porta.
Sondersen se ergueu. Com movimentos lentos e cautelosos, passando por cima das plaquetas, tentou empurrar a cômoda para o lado. Era muito mais leve que imaginava. Por trás já não tinha mais papel na parede, apenas o emboço cinza. Ajoelhou-se. Com um canivete tentou levantar uma das tábuas do assoalho. Não cedeu. A segunda também não. A terceira sim. Levantou-a. Lá estava o que ele vinha procurando. Eu não disse, pensou ele.
Voltou para o homem de giz, abaixou-se novamente segurando o achado cuidadosamente com duas pinças. Abaixou-se devagar. O objeto ficou suspenso por cima das marcas ovais no assoalho. Abaixou-o mais ainda. Chegou a tocar o sangue no chão. Os contornos nítidos, coincidiam exatamente.
Levantou-se. O objeto estava agora dentro de um saco de plástico. Era um medalhão aberto, de contornos afiados devia ter caído aberto, com a parte interna para baixo e o homem certamente caíra em cima na queda violenta. Os contornos ficaram por isso marcados na madeira. Então o medalhão já estava lá, antes! Alguém deve ter visto cair e tirado depois por baixo do morto... um trabalho nada fácil! Do lado de fora, o medalhão estava sujo de sangue; por dentro, limpo. O homem sujara a parte externa com seu sangue e mais tarde, quando o medalhão foi retirado, o sangue cobriu as marcas, depois do homem ter sido recolocado ali de costas, pensou Sondersen.
Quem quer que tenha feito, agira com extrema pressa. A tábua do assoalho estava quebrada de tal jeito que dava até para ver sem tirar a cômoda do lugar. Alguém devia ter reparado, e escondido o objeto onde Sondersen o encontrara.
O comissário ficou em pé imóvel, contemplando o medalhão aberto dentro do saquinho plástico. De um lado, nada. Do outro, uma foto colorida debaixo de um celulóide. O retrato de uma menininha rindo, feliz. Sondersen conhecia este rosto.
Ele aguçou os ouvidos.
Até que enfim! Até que enfim começara a chover...
54
Cala a boca, sua idiota disse uma indiferente voz de homem,
quando Sondersen saiu para o corredor mal-cheiroso.
Seu canalha! Pegar as minhas coisas, trazer para baixo assim sem
mais nem menos, e me botar pra fora! Para que existe polícia? Eu voo...
511Vai porcaria nenhuma! Eu é què vou! Vou falar com o Adi e você
vai ver o que é bom, vai levar uma surra que durante uma semana nenhum de seus pretendentes não vai poder nem chegar perto, sua puta, miserável!
No corredor e na escada, Sondersen encontrou dois de seus homens. Rapazes moços ainda.
Este porteiro é grosso... disse um deles olhando para baixo.
Não vai durar muito respondeu Sondersen. Já interrogaram
todo mundo, examinaram os documentos?
Já, sr. delegado. Os dois colegas já foram. Levaram dois. Estavam
na lista.
Cocaína?
Heroína. Dois pequenos traficantes, pobres diabos. Eles próprios
são viciados.
Sondersen balançou a cabeça distraído; desceu a estreita e suja escada até a portaria do “hotel”. Através do vidro via lá fora as silhuetas de dois policiais.
Seu desgraçado!
Ora, vá...
Sondersen entrou. Duas pessoas se viraram; Josef Kunzinger, o porteiro, magro e pequeno, de seus cinqüenta e poucos, o nariz achatado, olhos de beberrão, quase sem lábios. Um suéter sem mangas por cima de uma camisa listrada, gravata esfiapada, calças velhas e amarrotadas. A seu lado uma mulher jovem ainda de botas pretas de salto alto, casaco de verniz vermelho vivo, que deixava a metade das coxas de fora. Será que ela usa alguma coisa por baixo, pensou Sondersen. Rosto bonito mas vulgar, o cabelo louro armado alto, uma bolsa de verniz vermelho pendurada no braço, fincado nos quadris. Imediatamente sorriu para o comissário-chefe.
Sr. Delegado! Que coisa horrível! Logo a Sylvia Moran! Tenho
verdadeira paixão por ela! Já vi o CÍRCULO DE GIZ duas vezes! Chorei, chorei tanto... Meu Deus, que filme maravilhoso! E mudando completamente de assunto: O senhor acha que este sujeito tem direito a me
ofender? Sou registrada, pago impostos, todo mundo aqui me conhece como pessoa honesta. Ah, sou Elfie... Elfie Krake, sr. Delegado. Juro que não
devo nada a este canalha! Nem um tostão furado! Virou-se e gritou para o
porteiro: Também agora você vai ver, conto tudo, e você vai pra trás das
grades; você já nos encheu bastante, seu filho da mãe!
Adi disse Kunzinger é só o que eu digo. Você está devendo...
A moça deu um grito, rodou a bolsa e acertou a cabeça do porteiro. Kunzinger levantou o joelho e atihgiu-a no ventre. Deve ter doído muito, pois a Elfie de repente ficou branca, caiu num sofá, cuja capa estava rasgada em diversos lugares. Apertou a mão entre as pernas e gemeu. Sondersen foi rápido em direção ao porteiro.
O senhor está me agredindo! exclamou este O senhor vai se
arrepender, e muito.
512Cale a boca disse o comissário-chefe E cuidado, Kunzinger!
Agora fiquem quietos. Vou telefonar.
Sondersen foi até o telefone preso na parede e discou para o Instituto Médico Legal, pedindo para falar com o dr. Prinner. Enquanto esperava, ficou se lembrando. Há quantos anos já vinha trabalhando com Prinner! Eram bons amigos. Ele tinha apenas 1,55m de altura, uma barriga bem nutrida, pescoço grosso, lábios grossos, nariz grande, olhos salientes, cabelos ralos. Além disso tinha ainda um problema de quadris em conseqüência de uma perna mais curta; andava com certa dificuldade. Suas mãos eram muito bonitas, e também os olhos. Possuía uma voz especialmente agradável, macia e quente. Fumava um cigarro atrás do outro. Mesmo durante as necrópsias vivia de cigarro no canto da boca, enquanto trabalhava e ditava suas conclusões. Se acontecia do cigarro realmente o incomodar, prendia-o entre os dedos do pé do defunto.
Pronto, aqui é Prinner.
Olá Hans, só queria saber como vão as coisas?
Já peguei firme. O sr. Lanpenhorst está me ajudando. Esteve no
hospital, examinando as mãos da sra. Moran. Depois ele lhe conta. Agora tem uma porção de gente aqui, o representante do juiz, uma secretária de justiça, meu velho amigo Kalwos, o preparador, e com permissão do juiz, três de seus rapazes. Já abrimos o corpo Sondersen via Prinner na sua frente. Cadáveres eram seu fraco. Devia estar usando um enorme avental de borracha, as mangas arregaçadas. Por princípio trabalhava sem luvas.
Sim senhor, que sujeito mais relaxado. Nunca se tratou! Deve ter
seus sessenta e tantos. Por que cargas dáguas foi a Sylvia Moran matar um velho destes?
Sei lá. E Sondersen pensou: esse Prinner anda por aí todo
largado, mas diante do tribunal sempre se apresentou impecável. Tem uma esposa bonita, duas filhas; um casal exemplar. Quantas vezes já se cortou com um escalpelo afiado. Quando por exemplo vai cortando o cérebro em fatias como se fosse lingüiça, segura o cérebro numa das mãos, corta com a outra. Vivia se cortando. Qualquer um já teria morrido de medo de uma infecção. Kalwos, seu preparador, trabalhava mudo no mesmo ritmo. Enquanto o chefe abre abdomens e tórax, Kalwos serra calado, os ossos do crânio. Só quando um osso era muito grosso e duro, ele por vezes xingava obscenamente.
- Daria pra eu falar com o dr. Langenhorst?
i Um momento, ele está justamente... Langenhorst!... Ele já
vem... Vou passar para ele.
O perito em balística atendeu. Voz meio vaidosa, achou Sondersen.
: - Já pode nos dizer alguma coisa, doutor?
- Não muito ainda, dr. comissário-chefe. Primeiro tive que examinar a roupa, não é, depois o corpo, antes e depois de aberto. O tiro pegou no peito, cento e trinta e um centímetros acima do calcanhar, dois centímetros à esquerda do esterno, exatamente na altura dos mamilos.
513Orifício circular de dois vírgula cinco milímetros. O projétil foi retirado do músculo entre a segunda e a terceira costela, cinco centímetros à esquerda da coluna. Cento e trinta e oito centímetros acima do calcanhar.
E o trajeto da bala?
É aí que estou agora. Penetrou inclinado, do peito para a coluna,
subindo num ângulo de nove a dez graus.
Conclusão?
Calma! Pela inclinação a pessoa que atirou devia estar bem perto
de sua vítima, no máximo a dois metros e vinte de distância. Jà posso lhe adiantar que o tiro não foi dado com a pistola diretamente encostada.
- Sei.
O tiro foi dado de um metro de distância; mas realmente o senhor
ainda terá que esperar um pouco. Meu relatório...
Claro. Soube que o senhor já esteve no hospital.
Estive.
- E aí?
Continua em estado de choque. As mãos foram examinadas imediatamente para verificar se havia alguma fumaça de pólvora. Sondersen
sabia como se faz isto: Dissolve-se um pouco de ácido tartárico num copo com água. Molha-se um papel filtro nesta solução e coloca-se em cima da pele. O papel absorve os eventuais resíduos de chumbo. Tira-se o papel filtro, coloca-se em cima de uma placa de vidro e borrifa-se com uma solução de rodianato de sódio. Se houver qualquer resíduo o papel se colore de um vermelho vivo. Na mão direita da Sylvia o teste deu resultado positivo.
Então não hà dúvida de que foi ela quem disparou a arma?
A menor.
Obrigado doutor. Mais tarde dou uma passada aí.
’’’ Sondersen desligou.
Atirar assim, num velho de sessenta anos; mas isso era loucura! Tenho que ir para o hospital prendê-la, não há outro jeito. Meu Deus, mais três meses, e eu não teria mais nada a ver com isso!
Imediatamente Kunzinger, o porteiro, e Elfie, a “dama”, recomeçaram a se insultar.
Puta desgraçada!
Cale a boca, seu cretino.
Sondersen bateu contra a tábua onde ficavam penduradas as chaves.
Silêncio! Vou lhe pedir que repita tudo mais uma vez, Kunzinger.
Se mentir e eu pegar, está perdido. Como foi então? Quem veio primeiro? Sylvia Moran ou o homem?
Sylvia Moran respondeu Kunzinger obediente.
Tudo de novo. Quando foi que ele chegou?
Pouco antes das cinco.
- O senhor estava sozinho?
514Estava, sr. comissário. Kunzinger falava com toda humildade.
Então não existem testemunhas?
Não... nenhuma... Mas pode acreditar, estou dizendo a verdade. Juro que estou! Puxou um livro grande que estava aberto em cima da
mesa, todo sujo, cheio de manchas de gordura. Olha aí, sr. delegado...
De repente ele exclamou: A Elfie assistiu! Ela é testemunha, sr.
comissário!
Assistiu o quê?
Quando aquela senhora telefonou. Ela ouviu tudo. Ela pode confirmar que estou dizendo a verdade.
Sondersen olhou para a moça.
É verdade? Você estava aí?
Estava sim, sr. comissário. Tínhamos acabado de ter uma discussão porque eu disse àquele canalha que ele vivia me sujando.. Foi antes
de ontem.
Sondersen fechou os olhos.
Aquela moça não ia nunca jurar em falso a favor do porteiro. Se ela diz que estava presente é porque estava mesmo. Nesta testemunha eu posso acreditar...
Aqui... aqui... olha, sr. comissário... Kunzinger foi passando o dedo por uma linha do livro. Aqui está... Sábado... Foi no
sábado que a moça ligou... Mas isto eu já mostrei ao pessoal da polícia.
Disse a eles que a Elfie estava presente?
Não. ’<’
Por que não?
Ninguém me perguntou.
Muito bem, então.
Sábado à tarde... aqui está... Vera Klein... é ela...
Sondersen aproximou-se para ler a garatuja:
“6 de outubro, 1973. 16h20min. Chamado d. Vera Klein. Quarto
39.8 de outubro, a partir das 17h.”
Foi ela que pediu para reservar?
Foi, sr. delegado, disse a Elfie. Desta vez, o patife não está
mentindo. Eu estava em pé onde estou agora, e ouvi quando ele falava com a moça, quando repetiu suas palavras. Todas elas.
Como sabe que foi Sylvia Moran e não outra mulher qualquer?
515- Ela falou bem alto. Ouvi sua voz. Depois ainda fiquei comentando com ele. Como falava bem! Devia ser uma senhora fina. Eu até disse que talvez fosse gente do teatro ou do cinema!
Foi. Ela disse sim.
De onde ela estava ligando?
Isto eu não sei. Talvez de fora.
De Berlim?
Por que não?
- Como conseguiu o número daqui?
Sei lá. O senhor acha que eu ia perguntar?
É comum acontecer isto?
Isto, o quê?
Uma senhora reservar quarto aqui... por telefone?
Poxa, sr. comissário, se o senhor soubesse quem liga para cá para
reservar quarto... Eu é que não vou dizer... Mas o senhor ficaria espantado, em ver as senhoras grã-finas que aparecem.
São essas desgraçadas que estragam nosso negócio! exclamou a
Elfie amargurada. Assustou. Claro que não estou me referindo à Sylvia
Moran. A ela não. Pode acreditar...
Vamos adiante. Quer dizer então que a sra. Moran... que a
senhora ligou no sábado e apareceu hoje pouco antes das cinco, pelo que parece.
Pelo que parece, não. Foi mesmo! Às cinco tenho que tomar meu
remédio para o pulmão. Eu ia tomá-lo quando... lá estava ela. De capa, bolsa pendurada, óculos escuros, lenço na cabeça. Percebi logo: aquilo era gente fina.
Por quê?
Pela apresentação. Pela voz, pelo modo de falar, ali estava faltando
um Mercedes, e um motorista... mas não aqui! E uma senhora destas aparecer aqui disfarçada deste jeito... o senhor me entende, não é?
Continua.
Ela falou que se chamava Vera Klein. Eu lhe dei a chave do trinta e
nove. Queria acompanhá-la mas ela disse que não precisava.
Como sabia que aquela era a senhora que havia ligado antes?
Ora, ela deu o nome... Vera Klein.
Qualquer uma podia ter feito. Além disso, era um nome falso.
Que não era o nome verdadeiro eu disse à Elfie logo no dia em que
ela telefonou, não foi?
Foi.
Continua.
Aí ela subiu. Antes ainda me disse que vinha um senhor procurar
por ela. Werner Rand. Descreveu-o. Foi exatamente a pessoa que veio depois.
Quando foi isso?
516Uns quinze minutos mais tarde talvez. No máximo. Eu tinha acabado de tomar meu remédio. Garanto que era americano, sr. comissário. Garanto.
- Por que tem tanta certeza disso?
- Depois da guerra, quando saí da prisão, trabalhei como barman. Em Garmisch. Com os americanos. Reconheço eles de longe, por mais que disfarcem.
Então era americano. E depois?
O velho cagão... desculpe, sr. comissário... o senhor de idade
perguntou pela sra. Klein. Eu disse que ela estava. Perguntou o número do quarto, eu disse que ia acompanhá-lo. Também não quis; disse que encontrava sozinho. Depois tive muito serviço por aqui!
O que?
Outros hóspedes. Segunda-feira à tarde, aqui sempre enche. É
estranho, não acha? É o pior dia para os donos de cinema e teatro, mas nós aqui... Bem, logo depois ouvi o tiro. Subi correndo...
Correndo para onde?
Para o quarto trinta e nove.
Por que exatamente para lá?
Não sei... Tive como se fosse um pressentimento, sabe? O nome
falso, aquela senhora bonita, o velhote... Abro a porta rápido e lá estava ela, o canhão apontado diretamente para mim, e ele esticado no chão. Até me sinto mal quando me lembro... Mas isso eu já repeti três vezes no meu depoimento...
A porta de entrada foi aberta de repente. Dois policiais seguravam um homem que se debatia violentamente.
O senhor não pode entrar aqui.
Mas eu tenho!
Não pode!
Eu vou!
Larguem este homem! ordenou o comissário-chefe.
Me largaram.
Cambaleando fui para junto de Sondersen.
O que... o que... onde está...
Onde está quem, sr. Norton? perguntou o delegado, e eu senti
que as duas pessoas na portaria recuaram, olhando espantados para mim.
A Sylvia... Onde está a Sylvia?... Pelo amor de Deus, ela...
Ela o quê, sr. Norton?
Ela acertou o Rettland?
Rettland?
É. Romero Rettland. Aqui não aconteceu... Ela... ela não matou Rettland?
- Por que o teria matado?
Me responda! exclamei eu.
517Responda o senhor. disse Sondersen Por que esta suspeita?
Ela veio se encontrar com ele aqui, hoje às cinco disse eu ainda
arquejando. Viera correndo uma boa distância até achar esse hotel.
Como é que o senhor sabe?
Ela telefonou lá de Berlim, do estúdio. Uma moça de lá, curiosa
escutou a conversa, entendeu alguma coisa... mas não me disse logo.
O quê?
O nome daí deste... deste hotel... a data... a reserva... o fato
da Sylvia ter dado um nome errado... Vera Klein... depois mais outro... Werner Rand... Disse que ia se encontrar com ele...
E o que mais?
Que mais o quê?
É Philip Kaven! gritou de repente a moça O senhor é Philip
Kaven não é?
Sou eu sim... Agora tanto fazia. Tinha chegado tarde.
Onde está Sylvia?
Não está mais aqui.
- Onde?
Que veio o senhor fazer aqui?
Evitar um crime.
Evitar o quê?
Um crime! gritei eu. Tinha certeza de que a Sylvia ia se
encontrar com Rettland... que ele a obrigaria a isto... que ele nos seguira... a ela aliás... pela Europa... que estava usando de coação.
Coação?
É. Não... Claro que sim... Do contrário ela não teria vindo
aqui... Eu ia me atrapalhando cada vez mais. Ela tem uma pistola
desde que está na Alemanha...
Registrada?
Não.
Como a conseguiu?
Eu comprei... de um... de um homem...
Que homem...
Não sei... Num bar lá na Meniekstrasse... Gente que faz este
tipo de negócio não costuma dar nome nem endereço, não é?
Será que o senhor ainda se lembra do tipo de arma que adquiriu
para a senhora Moran?
Claro... uma Walther... seis, trinta e cinco...
Sondersen olhou triste para mim.
O que hove? Então a Sylvia usou a pistola... e o Rettland foi...
Sondersen aquiesceu.
Onde está ela? Tenho que vê-la imediatamente.
Impossível.
518Tudo em minha volta rodava. Sylvia tinha assassinado Rettland! Aqui em Nurenberg! A Babs estava em Heroldsheid. Agora haveria um processocrime. Um processo rumoroso. Agora seriam convocadas todas as testemunhas que estão a par da verdade. Agora a verdade viria à tona. Agora...
...não me responde, sr. Kaven?
Como... Eu não entendi o que o senhor disse, sr....
Eu perguntei por que o senhor comprou uma pistola para a sra.
Moran?
Para que ela pudesse se defender em caso de necessidade.
Ela estava com medo de alguma coisa?
Muito.
De Quem?
Rettland.
Como sabe?
Ela me contou.
O senhor arrumou a arma para ela, e depois, preocupado de que
ela pudesse vir a fazer uso dela, tomou um avião e veio aqui para Nurenberg?
- Foi.
Mas como sabia que a sra. Moran estava em Nurenberg?
- Aquela moça ligou para mim... Durante muito tempo ficou em dúvidas se devia me contar ou não...
É verdade; muito tempo. Quando foi que ela ligou?
Agora de noite, por volta das seis...
Mas o senhor sabia... a moça deve lhe ter dito que a sra. Moran
tinha um encontro marcado para as cinco.
Eu... é... sabia... sabia sim, sr. comissário... Eu quis vir
para impedir, se é que ainda dava tempo... para lhe dar apoio... Vim no jato da sra. Moran.
Contou a alguém em Berlim qualquer coisa a respeito disso tudo?
Claro que não.
E o senhor por acaso não veio para cá a fim de conseguir um álibi?
- Álibi?
É. Quem sabe o senhor não planejou tudo com a sra. Moran?
...afinal a pistola foi o senhor quem comprou... E agora o
senhor quer dar a impressão de que veio correndo, apavorado atrás dela... depois que o senhor mesmo a induziu a praticar o ato.
Sr. Sondersen!
Dei um passo para trás. Estava bem junto da moça de casaco de verniz vermelho.
Sem fôlego, me estende uma esferográfica e um caderninho de notas:
Um autógrafo, por favor, sr. Kaven. Por favor!
Olhei hesitante para Sondersen.
519Pode dar seu autógrafo disse ele. Rabisquei meu nome no
caderninho. A moça agradeceu. E agora, sr. Kaven, eu sinto muito, mas
tenho que lhe pedir que me acompanhe até o distrito.
Eu apenas fiz um sinal com a cabeça. Não disse mais nada. Acompanhei Sondersen sem a menor resistência, quando chegou o carro de policia que ele havia chamado. Atravessamos a cidade. Vi cartazes imensos. À luz das lâmpadas da rua que davam reflexos prateados à chuva, consegui ler o que estava escrito neles:
SYLVIA MORAN A MAIOR ARTISTA DE NOSSOS TEMPOS
NO MAIOR FILME DE TODOS OS TEMPOS:
“O CIRCULO DE GIZ”
O que vai ser da Babs agora?
Pode deixar por minha conta, Phil. Eu cuido de tudo.
Dali eu agora não vou poder sair. Tenho que ficar em Nurenberg
no FRAENKISCHEN HOF. Queira Deus que ninguém do hotel BRISTOL ou qualquer outra pessoa me reconheça.
Vai dar tudo certo disse a Ruth.
Certo nada. Já viu como está Nurenberg agora? Dois dias depois
do crime? Parece uma feira livre! Repórteres, fotógrafos, equipes da televisão do mundo inteiro! Por sorte ainda consegui um quartinho no FRAENKISCHEN HOF, o último aliás. A cidade está transbordando, literalmente transbordando.
É uma verdadeira casa de loucos! Billy Wilders “O Repórter de
Satanás” era pinto comparado com isto. E vai piorar ainda, piorar muito! Também nós, de agora em diante, só vamos poder nos encontrar furtivamente. Nunca mais lá na clinica, nem em Heroldsheid. Heroldsheid, Santo Deus! Se alguém se lembrar que a Babs...
Calma, Phil, ninguém vai se lembrar de nada.
Mas a Babs agora está sozinha! Vai ficar sempre sozinha! Por
muito tempo. Ela não vai agüentar ficar tanto tempo sem mim!
A sra. Gosser veio logo. A escola toda sabe que você foi mandado
para os Estados Unidos, por várias semanas. Para uma grande campanha de donativos.
Mas eu também não vou agüentar ficar sem a Babs!
A Ruth levantou-se, veio para junto de mim, sentou-se num sofá e me beijou.
Você... que a odiava, a desprezava, que quis até acabar com ela?
520Ora...
Passou um dedo nos meus lábios.
Eu sei, eu sei. Foi em outro país. Não é assim que Hemmingway
fala?
Balancei a cabeça.
Pela primeira vez desde que conhecia a Ruth eu estava em sua casa. Precisávamos ter cuidado, pensar em tanta coisa, evitar tantos perigos... Que vida!
Nobody Knows the trouble I see, nobody Knows but Jesus...
De repente me lembrei do verso daquele spiritual que ouvi naquela noite em que trouxe a Ruth para casa depois de nosso primeiro jantar.
“Realmente, ninguém conhece a dor que vejo, ninguém a conhece a não ser Jesus...”
Joe Gintzburger, Da Cava (que também dirigia o filme MISSION TO BERLIN com a Sylvia, ou melhor que a Sylvia devia estar rodando agora, se não estivesse no presídio aguardando processo), Rod Bracken (no Rolls-Royce da Sylvia, trazendo minhas malas e minha roupa), Katie e Joe Patterson, e Bob Cummings da SYRAN PRODUCTIONS, tinham vindo de Berlim para Nurenberg. Acompanharam-nos também Roy Hadley Ching, o cameraman; Mike Toran, o autor; Joel Burns, o arquiteto; Allen Lang da equipe de montagem. A equipe aliás era quase toda a mesma do CÍRCULO DE GIZ. Estávamos todos hospedados no maior hotel da cidade, o FRAENKISCHEN HOF.
“... Sylvia Moran a artista americana internacionalmente famosa,
que recebeu o “Oscar” pelo filme CÍRCULO DE GIZ, continua a se recusar a dar qualquer explicação porque teria assassinado Romero Rettland o ídolo de outrora, agora com sessenta e um anos...”
Eram 20h05min. Televisão. Noticiário do dia. Um comentarista, tendo atrás de si fotografias da Sylvia e de Rettland retiradas do arquivo. Eu estava sentado diante do aparelho em casa da Ruth.
- “... comunicou o comissário-chefe Sondersen há uma hora, aos jornalistas. (Só fotos do arquivo, estranho! Por que não pegavam recortes da entrevista com a imprensa?) Como todos sabem, Sylvia Moran logo depois do crime, tendo sido tratada pelo dr. Eschenbach da Clínica Psiquiátrica da Universidade de Erlangen, em virtude de seu estado de choque, foi levada para o presídio, onde foi submetida a um longo interrogatório por Sondersen, o comissário-chefe. Logo depois houve uma ordem de prisão e a artista foi transferida para o presídio do Estado de Nurenberg-Fuerth. Seu advogado é o dr. Otto Nielsen, conhecido em toda a República Federal Alemã...
O apartamento da Ruth não era muito grande. Quase todas as paredes cobertas por estantes de livros; não havia um quarto propriamente dito; Ruth dormia num sofá-cama. Os móveis modernos eram todos claros, assim como os tapetes. No alto da estante de livros estava sentado um velho Buda a quem faltava o braço direito. Numa das paredes da biblioteca pendia uma fina placa de ouro com uma inscrição...
521uma frase muito bonita. Perguntei à Ruth de quem era. Disse que era de um escritor e que tinha gostado tanto que ela mesma mandara fazer de presente para si. O pai de uma das suas crianças era ourives, ele fizera a placa com a inscrição. O nome do escritor? A Ruth não se lembrava mais... Já tentara várias vezes, mas ele lhe escapara...
“Cada vez vai se tornando mais difícil encontrar uma explicação
para este crime que continuava aparentemente a não ter o menor sentido, nem motivo, declarou o comissário-chefe Sondersen. Atenção! A Polícia pede a colaboração de todos! Procuram-se com urgência todas as pessoas que viram ou falaram com Romero Rettland (a fotografia apareceu e ficou na tela) no dia 8 de outubro ou mesmo antes dessa data. Não importa se aqui na Alemanha ou no estrangeiro...”
Em cima de uma mesinha baixa com tampo de vidro estavam alguns jornais. Li as manchetes: SYLVIA MORAN INSISTE: “EU O MATEI!”
- POR QUE TERIA A GRANDE ESTRELA PRATICADO O CRIME?
- “NÃO ME LEMBRO DE ABSOLUTAMENTE NADA” - DIZ ELA...
“... este apelo da polícia criminal alemã está sendo transmitido
também por todas as estações de rádio e televisão da Europa assim como pelas estações de além-mar...” (agora apareciam alternadamente fotos de
Rettland de corpo inteiro, de perfil, de frente em tamanho bem grande)..
segue-se uma descrição da vítima: Romero Rettland nasceu em 9 de agosto de
1912, em Myrtle Creek, no Estado de Oregon, Estados Unidos. Usava roupas surradas; seu aspecto era descuidado. Rettland era cidadão americano, falava alemão fluentemente, apesar de um ligeiro sotaque. Não falava mais nenhuma língua. Tinha um metro e setenta e cinco de altura, magro, de cabelo grisalho, sobrancelhas grossas, pele macilenta, de cor doentia, e...”
A Ruth desligou o aparelho, dizendo:
Sei que você já não agüenta mais ouvir isso. Eu também não. Mas
não tem jeito. Se quisermos ajudar à Sylvia...
Ninguém pode lhe ajudar. Ela assassinou Rettland, você sabe disto
tão bem quanto eu.
Não tenho tanta certeza assim...
Quem foi então? Ela não estava com a pistola na mão quando a
polícia chegou? Não tinha motivos de sobra para matar aquele canalha? Não me disse, parece que não disse nada a ninguém... mas é possível que ele tenha descoberto a verdade sobre a Babs, e que tivesse tentado coagi-la.
Como?
- Exigindo uma quantia imensa em dinheiro, por exemplo... Você sabe que há anos tem gente que vem fazendo chantagem com a Sylvia... Ou então queria obrigá-la a casar com ele ou... Olhei perdido para a Ruth.
A verdade sempre aparece disse ela. sempre.
É, mas quando? Bati com a mão nos jornais na minha frente. O
que me deixa louco é que com esta morte, com esta prisão da Sylvia, com a toda esta desgraça que ameaça a Babs, se ganham milhões, centenas de milhões!
522Como?
Veja o CÍRCULO DE GIZ, por exemplo. Sua produção custou
vinte e cinco milhões de dólares. Desde o dia do crime, o filme passou a ser assunto do dia no mundo inteiro. Gintzburger me disse que a copiadora não consegue dar conta dos pedidos. Nem sei mais em quantas línguas ele ja está sincronizado. Joe acha que depois deste crime... por um triz ele até disse “dádiva divina”, e ainda mais com este processo rumoroso, quer a Sylvia seja condenada ou não, o CÍRCULO DE GIZ dará uma renda de pelo menos trezentos e cinqüenta milhões de dólares! Trezentos e cinqüenta milhões, Ruth! Nenhum filme ainda chegou a tanto! Joe está delirando... É revoltante!
Tome mais alguma coisa disse a Ruth enchendo novamente
meu copo com vinho. Tínhamos acabado de comer, os copos e pratos ainda estavam em cima da mesa.
Deixe eu falar. Você sabe quantas crianças doentes e famintas
existem no mundo inteiro? Quantas morrem de fome?
Então não sei, Phil?
E sabe quanto, de acordo com os cálculos da Organização Mundial
de Saúde, estará à disposição destas crianças?
Parece que eu li que eram duzentos milhões de dólares.
Exatamente. Duzentos milhões de dólares! Duzentos milhões para
todas as crianças doentes, famintas, e morrendo de fome no mundo inteiro! No mundo inteiro, Ruth! Isto se as crianças tiverem sorte, pois com certeza esta quantia ainda não deve ficar logo à disposição delas! As bombas de hidrogênio hoje já custam muito.menos, mas de qualquer maneira ainda são bem caras. Os Governos precisam fazer economia! Toda despesa terá que ser examinada cuidadosamente! Bem, mas vamos supor que esses duzentos milhões existam. Isto significa que talvez, talvez, se possa ajudar a umh em cada dez dessas crianças infelizes. Já imaginou, Ruth, nove delas já estão hoje irremediavelmente condenadas à morte! Nove em dez!
Mas isto não faz sentido, Phil. Por que você está se torturando...
Deixe eu falar! Por favor! Ontem vi uma reportagem na televisão.
Citava mais números. Previsões, sempre por alto. Muitos e muitos jornais (as revistas ainda demoram um pouco) no mundo inteiro... pois o caso da Sylvia realmente atinge ao mundo inteiro... já imaginou o aumento de tiragem que vai haver, quando começarem a falar nesta história? Vai ser uma coisa fantástica, Ruth! Fantástica! Calculando muito por baixo serão no mínimo oitenta milhões de dólares extras. Além disso ainda existem as fotos negociadas pelas agências a preços de louco, os direitos de reprodução, as fortunas pagas pelas transmissões pela televisão só de Nurenberg, as entrevistas com Joe, comigo ou qualquer um outro, pagas pelas televisões do mundo inteiro! Além disso ainda tem os filmes anteriores da Sylvia! Sob a ordem do Joe, a distribuidora preparou cartazes enormes!
523Estes filmes vão ser reapresentados aos milhões! Já imaginou o lucro dos cinemas? Nem vou continuar... Somando isto tudo sabe quanto dá, sempre calculando por baixo? Novecentos milhões de dólares! Novecentos milhões! Isto já é até quantia que interessa aos chefões das multinacionais! E você não diz nada Ruth?
O que você queria que eu dissesse? respondeu ela. Por favor,
pare de falar em dinheiro. Você acha por acaso, que é a primeira vez que isto acontece? Isto sempre houve; ocorre todos os dias, só que desta vez o atingiu diretamente. Vê se acorda! O que é que você diz do dr. Nielsen?
Dizer o quê?
Ele é realmente um medalhão? Você o conheceu?
Conheci. No hotel. Tive uma impressão muito boa sobre ele.
Ele disse alguma coisa?
- Disse o quê?
Ele já deve ter falado com a Sylvia.
Falou sim.
- E aí?
Ela continua a afirmar que matou Rettland, mas que não sabe por
quê. Ela não se lembra de nada.
Como é que Nielsen poderá defender uma mulher dessas?
perguntou a Ruth indo até a janela.
Para onde você vai?
Acender a luz grande.
O interruptor é lá perto da porta.
Ela riu perdida e deu meia volta.
Nielsen disse que era um estado de consciência doentio, ele ainda
não sabe ao certo. Tenho a impressão de que ele vai se apoiar nas declarações do psiquiatra de Erlangen, o dr. Eschenbach. Foi ele quem examinou a Sylvia logo depois. Parece que ele falou em distúrbio do consciente por ocasião do choque, em afeto patológico... isto existe?
Existe sim.
E aí o que acontece?
Este distúrbio pode, em certos casos, atingir um grau tão elevado, a
ponto da atividade do consciente ficar inteiramente paralisada por algum tempo; ou então, por influência de uma única idéia e conseqüente exclusão de todas as outras, o indivíduo passa a agir explosivamente. O que é importante para um diagnóstico, é que durante esse distúrbio do consciente normalmente se apresenta uma amnésia... uma perda total da memória. O dr. Eschenbach por acaso constatou isso?
Constatou.
Então o dr. Nielsen, no caso de uma constituinte como a Sylvia
que não lhe dá outro ponto de apoio, não terá outro recurso a não ser recorrer ao parágrafo cinqüenta e um, artigo primeiro do Código Penal Alemão.
524Ao da irresponsabilidade penal ao tempo da ação?
Exatamente, irresponsabilidade.
E o que vai ser da Babs?
Eu já não lhe disse, eu cuido de tudo. Ajeito tudo com o diretor e
com o resto do pessoal.
E se você não conseguir? Se acontecer qualquer coisa? Se a instrução do processo levar meses... e eu sei que ele vai levar... e se depois demorar semanas? Não tenho a menor dúvida de que eles vão querer saber qual o paradeiro da Babs.
Claro.
- E aí?
Você não me contou que a companhia cinematográfica dos Estados Unidos tem uma Babs em perfeita condição de saúde para apresentar? Uma criança qualquer muito parecida com ela?
É mesmo. E se não der certo? E mesmo que dê; que tudo saia bem,
que a Sylvia seja absolvida? Gintzburg e os outros já declaram que a verdade sobre a Babs e sobre Heroldsheid não poderá nunca vir à tona. Nunca. Ouviu bem? Isto... os atrapalharia. Arruinaria seus negócios. Mas como vamos poder manter segredo?
Permanecendo unidos. O dr. Nielsen é um grande advogado.
Você não está me entendendo. Se a verdade tiver que ficar oculta,
então depois que eu apareci como Philip Kaven, nunca mais vou poder ver a Babs. Nunca mais!
- “... e agora, meus senhores e minhas senhoras, eu lhes apresento Joe Gintzburger, presidente da SEVEN STARS, sob cuja incumbência a SYRAN PRODUCTIONS, a sociedade da Sylvia Moran, produziu o CÍRCULO DE GIZ. Os cinco cavalheiros sentados no canto do bar eram
advogados da SEVEN STARS. Os senhores vieram todos juntos para
Nurenberg, sr. Gintzburger? perguntou o repórter da Primeira Televisão
Alemã, a ARD. Refletores focalizavam o canto do bar do hotel. Que grande sensação! Uma reportagem ao vivo diretamente do hotel FRAENKISCHEN HOF. Ao vivo! O repórter já havia entrevistado outras pessoas das que aqui estavam reunidas, inclusive a mim.
Ao vivo! Cameraman, e toda a equipe da iluminação. O bar estava cheio de gente. Eu, em pé no balcão. A meu lado, em pé e sentados, repórteres e fotógrafos, em cima do balcão e no chão, gravadores, aparelhos e fitas, máquinas caríssimas, Laicas, Rolleis, Hasselblads. Os repórteres, vindos de diversos países, não estavam se importando com a entrevista, da Televisão Alemã.
525Fm manga de camisa, terno ou blusões de couro, là estavam eles, sentados, bebendo. Um americano de nome Hopkins fazia anos. Ele é que estava mais bêbedo. O pessoal a sua volta jogava dados. Sempre que era a vez de Hopkins, antes de sacudir o copo, ele o esfregava na calça por cima da sua “guarnição”, para dar sorte, certamente. Muitos acreditam nisto. Eu e Rod também.
No outro bar tocavam música. Encostado de costas contra o balcão, eu ouvia a entrevista.
Claro que não... estes senhores aqui vieram de Los Angeles, eu
de Berlim, onde estamos preparando o novo filme da Sylvia.. aquela voz
de pregador! O olhar aveludado! O cabelo branco deste anão, e a bondade irradiada por aquele rosto!
Ao que me parece estes senhores vieram aqui... aliás o senhor
fala um alemão excelente.
Falo sim.
... vieram, para estar à disposição do dr. Nielsen, ajudà-lo a
descobrir a verdade sobre o trágico crime em que está envolvida a Sylvia Moran.
- É evidente que faremos tudo para ajudar à Sylvia. O senhor sabe meu amigo, a SEVEN STARS é como se fosse uma só e imensa família, como se fôssemos todos parentes, desde os grandes astros ao mais humilde ajudante. Só assim é que se podem produzir filmes internacionais realmente bons.
Isto o senhor consegue, sem dúvida nenhuma.
- Já viu o CÍRCULO DE GIZ?
Ainda não, sr. Gintzburger, mas amanhã sem falta...
Deve ir ver. Sem falta! É um dos doze melhores filmes do mundo... diz a crítica! Nunca ninguém mereceu tanto um “Oscar” como a nossa Sylvia. É uma mulher maravilhosa! Trabalho nesta profissão a vida inteira, e posso lhes garantir, ela é a maior, nunca houve igual!
Solenes eram os olhares dos advogados.
O repórter pigarreou.
Os senhores evidentemente estão convencidos de que Sylvia Moran
é inocente.
Claro! Esta mulher meu querido amigo, só pode ser inocente. Os
senhores não a conhecem pessoalmente. A Sylvia é... é um anjo... um anjo de candura e pureza. Ela nunca seria capaz de semelhante ato.
Mas ela insiste obstinada, tê-lo praticado.
Um dos advogados inclinou-se e murmurou qualquer coisa ao ouvido de Joe. Este balançou a cabeça afirmativamente e virou-se para o repórter que segurava o microfone.
A Sylvia ainda não está consciente. Continua em estado de choque.
526Mas o dr. Eschenbach afirma, que este seu estado já foi superado
há muito.
O dr. Eschenbach! Joe esfregou as mãozinhas cor-de-rosa E
o que significa isto? Na hora ela estava em estado de choque, ou será que o dr. Eschenbach nega esse fato também?
Não. Pelo que eu saiba não...
E então. Tudo vai tomando seu caminho certo, pode ficar tranqüilo. Vem aí um notável psiquiatra americano, o dr. Kassner, quando ele se manifestar, a coisa tomará logo outro aspecto, pode contar com isto! Pobre Sylvia! Isto ainda vai dar um escândalo enorme para a justiça! O dr. Nielsen é um dos maiores advogados de defesa deste país, é o irmão do diretor da revista... no momento me escapa o nome... O dr. Nielsen, vai...
Vai fazer o quê?
Em muito pouco tempo ele conseguirá restabelecer a Sylvia, e
depois...
Outro advogado lhe sussurou qualquer coisa.
O dr. Nielsen vai conseguir disse Joe rapidamente mudando o
rumo da conversa que façam justiça à Sylvia. Não se pode condenar uma
mulher que está com os nervos completamente abalados, por uma acusação ridícula que ela faz a si mesma.
Mas Romero Rettland está morto, sr. Gintzburger!
Sim, mas quem pode saber realmente de que maneira ele morreu?
Ele foi um ca... Ele foi uma pessoa muito má, meu jovem amigo.
Em certa altura da vida uma de suas maiores atrações de bilheteria,
sr. Gintzburger.
Quando? Quando isto? Há anos! E depois? Mulheres, bebidas,
drogas, coisa pior ainda. Sim, isto terá que ser dito um dia. Eu como testemunha, vou declará-lo diante do tribunal! Romero Rettland... já houve tempo em que ele foi como um filho meu. Eu o peguei, fiz dele um grande
astro, e ele? Um advogado se inclinou rápido, Joe sacudiu a cabeça
enojado.
O senhor acha possível que Rettland estivesse coagindo a Sylvia
Moran de alguma maneira?
- Coagindo como? Com quê?
- Eu não sei, estou apenas lhe perguntando, sr. Gintzburger.
- Escute aí meu amigo, isto é completamente absurdo. Vá ver o CIRCULO DE GIZ. Depois eu quero ver se o senhor terá a coragem de perguntar mais uma vez quem, neste mundo de Deus, teria motivo para fazer qualquer chantagem com esta mulher maravilhosa, o maior vulto da história do cinema, estimada e venerada por todos! Eu lhe agradeço pela oportunidade que me deu de poder declarar isto diante de uma câmara, para milhões de pessoas: o lugar de Sylvia Moran não é num presídio, é num sanatório! Lembra-se de Judy Garland? Não era uma grande estrela? E então? E a que ponto ela chegou por excesso de trabalho?
527Para poder agüentar até o fim, chegou a tomar sedativos e excitantes...
O senhor quer dizer com isso que Sylvia Moran também...
Pare! manifestou-se um dos advogados erguendo-se Absolutamente! O sr. Gintzburger não quis dizer nada disso, entendeu? O
advogado apontou o dedo para o repórter. Lá no outro bar tocavam I’m always chasing rainbows... (“Estou sempre procurando um Arco-íris”) Hopkins, o aniversariante, se coçava com o copo de dados.
De qualquer maneira... o desmaio durante a entrega do “Oscar”... O repórter começou a gaguejar. Sabe-se que depois, a Sylvia
Moran ficou internada por muito tempo no hospital Santa-Mônica.
Esgotamento. Foi por isso que o sr. Gintzburger citou a Judy
Garland. A sra. Moran estava à beira de uma estafa. Procurou o Santa-Mônica para descansar. Claro que nunca tomou sedativos nem excitantes. Ela estava com esgotamento, quantas vezes o senhor quer que ainda repita?
Eu não pedi para repetir nada O repórter foi ficando agressivo.
Mas o que eu ouvi não esclarece...
O advogado que se erguera começou a gritar:
Não esclarece o quê?
Joe sacudiu triste a cabeça.
Meu rapaz, onde na geração de vocês ficou a compaixão, a
bondade?
O repórter estava furioso:
Eu estou é entrevistando o senhor. Combinou-se que eu poderia
perguntar o que quisesse.
Pois então pergunte! gritou o advogado. Mas deixe de tirar
conclusões, fazer suposições. Este advogado falava alemão melhor ainda
do que Gintzburger.
Ainda por conta, o repórter mudou de assunto.
Ainda como o mundo inteiro conhece a Sylvia Moran, nós todos
também conhecemos sua filhinha Babs. Uma pergunta pois: A Babs sabe do que aconteceu?
O suor começou a me brotar pelo corpo. Coloquei depressa o copo em cima do balcão. De repente minha mão tremia tanto!
Ela não tem a menor idéia respondeu Joe.
A menor idéia?
Com a voz mais macia, Joe retrucou:
Durante todo este tempo conseguimos manter em segredo o lugar
onde a Babs se encontrava, a fim de que ela não fosse constantemente importunada por repórteres... não tenho nada contra o senhor, meu amigo... para que pudesse ter uma infância feliz. Agora vejo como agimos certo em protegê-la desta maneira. Mandá-la para aquele internato por estar tão cansada de todas aquelas andanças pelo mundo... tão cansada como a mãe por excesso de trabalho! A Babs precisa de sossego. Tive que fechar os
528olhos. Ao fazê-lo, fiquei tonto. Segurei-me no balcão. Também agora a
criança não saberá do que fizeram com sua mãe... nós nos encarregamos disso. A criança está segura, inatingível para os repórteres.
Procurei meu copo e entornei-o. O uísque me escorreu pelo queixo.
Mas...
Sim eu sei disse Joe sorrindo a justiça vai querer saber onde
ela se encontra. Saiba pois, meu querido amigo, que nós já o contamos espontaneamente ao juiz de instrução criminal. Ele não tem nada a opor que eu agora também o revele ao senhor, que milhões de pessoas no mundo o saibam...
Meus joelhos bambearam.
... Quando a Sylvia estiver novamente em liberdade, seu primeiro
passo será ver a filha, e aí toda a imprensa com todos os repórteres e equipes
de televisão do mundo poderá estar presente! Mas só então, digo eu!
Pausa dramática. Em seguida, recostando-se, fechando os olhos, de mãos
postas, Joe disse devagar, com voz suave: A Babs se encontra num
internato de Norristown, uma pequena cidade a nordeste da Filadélfia. É evidentemente um dos internatos mais selecionados dos Estados Unidos...
Mais um uísque pedi eu Triplo. Puro. Depressa!
58
Sete horas mais tarde eu estava em Madrid, sentado diante de Carmen Cruzeiro.
Canalhas! - disse a Carmen Vocês todos são uns canalhas!
Você também, Bracken, o maior deles.
Nós somos apenas empregados; não somos os chefões. Não temos
culpa que a coisa lá nos Estados Unidos não tivesse dado certo, querida.
Não me chame de querida! gritou ela. Depois começou a
chorar. Estávamos sentados na sala de seu pequeno apartamento no Hotel CERVANTES na Plaza de Ias Descalzares Reales. Já está novamente fazendo frio em Madrid. Muito frio. Só o clima desta cidade dava para deixar qualquer um maluco. A calefação central era fraca. Havia correnteza. A Carmen ligara um aquecedor elétrico. Estava sentada na minha frente. Eu nem tirara o casaco. Tentei alisar sua mão, mas ela recusou.
- Não me toque!
Mas Carmen, querida, eu não tenho culpa de nada disso!
Você tem tanta culpa quanto todos os outros! Você tem idéia da
vida que eu levo agora? No escritório, sou o prato do dia para todo aquele mulherio: Hollywood, hein? A grande estrela? É porcaria nenhuma! Fica aí
529sentada na máquina o dia inteiro como antes!... Você não tem idéia como mulher pode ser maldosa!
Tenho sim.
Tem nada! Todo dia de manhã quando vou para o trabalho começo a chorar no metrô. Faço força para não chorar. Tenho vergonha das outras pessoas. Mas não agüento! Só de medo de mais um dia lá na SPANEX, das maldades que aquelas idiotas inventam. E agora vem você, o culpado por eu estar metida nesta porcaria, não me contradiga, você para quem eu fiz tudo! Para você e aquela maldita companhia de cinema. Vem você me pedir que eu não diga nada a ninguém sobre tudo que se passou, sobre a tentativa de suicídio da Sylvia, e de eu ter trabalhado em lugar dela!
Carmen, tenha juízo! Tenha um pouquinho de pena! A Sylvia foi
presa! Está no presídio! Será acusada de homicídio!
Sei disso disse a Carmen. Eu também já fui chamada.
Chamada para quê?
Para depor. Servir de testemunha. Há alguns dias veio a carta do
tribunal. Nurenberg, não é?
Foi é? Estava começando a me sentir mal.
Você não acredita?... Espera um pouco que eu vou pegar a
carta... Ela está...
Claro que acredito! Fique aqui! É muito natural que você seja
chamada para depor... Aquela turma não é idiota, pensei eu. Trabalharam um bocado depressa, sim senhor!
Carmen, eu já disse uma vez, a Sylvia está sendo acusada de
homicídio. Vai ser condenada à prisão perpétua.
Que bom! disse ela.
Não acredito, você não pode estar feliz por isto! Você não é assim.
Carmen, conheço você!
Você me conhece? Ela deu uma gargalhada amarga. Você
não sabe de nada! E verdade sim. A pura verdade!
Carmen, eu vim lhe fazer uma proposta...
Se a proposta for que Hollywood resolveu finalmente me mandar
chamar para que eu não espalhe tudo o que aconteceu, pode tratar de sumir. Da primeira vez eu idiota, acreditei nas mentiras desvairadas de vocês! Mas não existe idiota que caia uma segunda vez!
Mas eu não vim para lhe prometer uma carreira em Hollywood!
disse eu.
Viera de avião para Madrid, depois que Joe e seus advogados me declararam que não havia outro jeito. Se a Carmen, por motivos de vingança perfeitamente compreensíveis, contasse no tribunal o que acontecera em Madrid, a Sylvia ficava numa situação muito pior ainda. Logo ia surgir a pergunta: Por que teria ela feito aquilo? E daí até ligar o fato com a Babs, era uma brincadeira. Mesmo que custasse milhões, tínhamos que conseguir que a Babs ficasse fora desta história toda! A verdade sobre ela e o procedimento anterior da Sylvia, não podiam vir à tona, do contrário, todos os negócios iam por água abaixo.
530Quem lá se importava com a Sylvia? Ou com a pequenina Babs?
Uma coisa só interessava: os negócios! O negócio do século! Fui praticamente obrigado a procurar a Carmen. Eu compreendia. Eu tinha minha reta traçada...
Eu não vim aqui para lhe oferecer uma carreira em Hollywood...
Como?
Isto mesmo.
Então por acaso querem que eu cale a boca de graça? Ou por amor
a Bracken, aquele canalha? A Carmen riu. As cabeças daquela turma
lá em Nurenberg não deve estar funcionando muito bem..
Enterrei as unhas na palma da mão, fiz o máximo de esforço para me controlar.
Eu vim lhe fazer outra proposta.
Que proposta? Afinal agora chegou a hora da minha revanche!
Agora vocês vão ver o que é bom!
Carmen... por favor Carmen... ouve ao menos o que tenho a
lhe dizer! Você diz que o trabalho na SPANEX é um inferno para você. Por causa daquele mulherio nojento. Uma vez você me contou que sempre sonhara com um escritório de tradução apenas seu, você sabe línguas. Gostaria de trabalhar por conta própria...
Olhou para mim irritada:
Você sabe muito bem que eu não tenho dinheiro! Não o bastante
para isto. Nem sombra! Você não tem idéia de quanto custa um apartamento maior em Madrid e eu ia precisar de um. Não sabe quantos apartamentos estão vazios por aí, porque os preços são exorbitantes, e conseqüentemente, quanta gente não tem onde morar?
Sei disso tudo disse eu, vendo uma chance, uma pequenina
chance, o primeiro ponto de luz no fim do túnel. Carmen, vou lhe fazer
uma proposta e não é para enganá-la como fez Bracken daquela vez. A SEVEN STARS lhe paga o que você precisar para instalar um escritório destes. Para comprar a sala, as máquinas, mimeógrafos, gravadores, tudo o que for necessário. Você pode escolher as auxiliares se quiser, pode fazer o que quiser... contanto que agora se mantenha calada.
- Eu vou acreditar nisto, por quê?
Tirei do bolso uma folha datilografada da SEVEN STARS, assinada por mim, como procurador de Joe. Nele constava tudo o que eu acabara de oferecer à Carmen, com a condição de que ela não se manifestasse sobre o que tinha acontecido. Ela poderia fixar a quantia que quisesse. Apenas precisávamos da assinatura com a qual ela se comprometia a não falar. Minha assinatura constava nas cópias e no original. Levou uma eternidade até que a Carmen dissesse:
- Está bem.Viu? Nós só queremos seu...
Já sei... Cem mil dólares.
- Como?
Esquece.
Não. Se você acha que precisa de tanto...
Preciso.
Então está bem. Ficamos muito satisfeitos em poder lhe ajudar...
Sei. Está se vendo! Quero a quantia em dinheiro. Não aceito
cheque.
Mas eu não trago esta quantia toda comigo...
- Então volte a Nurenberg e arrume..lá que os chefões estão de acordo, não será difícil. Você volta pra cá, me dá o dinheiro e eu assino a declaração.
Então você não confia em mim?
Por que confiaria?
Eu estou lhe dizendo, você vai ganhar o dinheiro. Podia muito bem
assinar agora.
Não diga! Claro que não confio em você! Em ninguém mais. Vá e
volte com o dinheiro; aí eu assino disse ela. Sorriu para mim, levantou, me
deu um beijo: Pronto, agora somos de novo amigos, está certo?
Claro...
Quando parte seu avião?
O próximo sai em duas horas.
Eu o acompanho até o aeroporto.
Não precisa.
Mas eu quero. Eu vou junto.
E ela foi. No saguão do aeroporto havia uma gigantesca faixa transparente onde se lia:
LA MAS GRANDE ARTISTA DEL MUNDO
EN SU PELÍCULA LA MAS GRANDE
SYLVIA MORAN
EN
CIRCULO DE TIZA
Esta faixa eu já tinha visto por toda Madrid. Nos dois melhores cinemas da cidade, festivamente decorados, estava passando o CÍRCULO DE GIZ. Joe tinha razão: Aquele ia ser o maior negócio do cinema do mundo...
Lá mesmo, debaixo da faixa no aeroporto de Barajas, a Carmen me beijou e me desejou boa viagem.
Amanhã eü volto disse eu.
Ao saltar do avião em Munique para pegar outro que me levasse a Nurenberg, vi o comissário-chefe Sondersen ao pé da escada.
Olá, que surpresa! Que faz o senhor aqui?
Sondersen estava abatido. Parecia doente. Muito devagar ele disse:
532- Vim aqui para prendê-lo, sr. Kaven.
- Como?
Para prendê-lo Me estendeu um papel Aqui está a ordem de
prisão.
Ordem de prisão... contra mim?
Sim, sr. Kaven.
Mas por quê? Não acabaram de me soltar porque chegaram à
conclusão de que eu nada tinha a ver com o assassinato de Rettland?
Mas agora se trata de outra coisa.
- De quê?
Instigar ao perjúrio, a testemunhar em falso, ou quando não, ao
menos tentar fazê-lo.
Não estou entendendo... Isto é uma loucura!
Não é loucura não, sr. Kaven. O senhor não tem moradia fixa.
Existe o perigo portanto de se evadir, ocultar-se. Daí a ordem de prisão.
Mas a quem eu teria instigado a perjúrio?
O senhor sabe muito bem, sr. Kaven. Não preciso lhe dizer o
quanto sinto ter que fazê-lo. O senhor não está vindo de Madrid?
E isto por acaso é proibido?
Uma moça chamada Carmen Cruzeiro ligou para nós, comunicando que o senhor a procurou tentando suborná-la. O senhor sabe muito bem do que se trata. Os papéis que levou para ela, ainda se encontram em seu poder. Quer me entregar, por favor?
Também aqui em Munique fazia muito frio, e eu de repente me senti exausto. Entreguei os papéis.
Estou com um carro oficial aqui. Vamos para Nurenberg.
Quanto tempo vou ficar preso?
O seu processo só poderá ser iniciado depois de concluído o da
sra. Moran... por motivos óbvios. O senhor ficará no presídio ao menos até o julgamento do processo-Moran. Venha comigo, por favor.
E eu fui.
59
Vim com o senhor até aqui, sr. Juiz, até este presídio no qual tudo é excelente; as celas, os colchões das camas, o tratamento médico e psicológico, e a pedido também, o apoio espiritual. A atitude de todos aqui é delicada e compreensiva, desde os guardas até o diretor. Há possibilidade de praticar diversos esportes, sem esquecer a excelente biblioteca.
533Por acaso, o senhor acabou sendo meu juiz de instrução e o da Sylvia. Isto veio facilitar muita coisa. Fez com que eu, por exemplo, escrevesse esse depoimento, do qual me ocupo diariamente há meses. Me deram por advogado de defesa um amigo do famoso dr. Nielsen, de nome Karl Oranow. O dr. Oranow tem a incumbência de me defender contra a acusação de incitar alguém ao perjúrio, isto é, a prestar falso testemunho, o que eu realmente não tinha muito como negar. Quando não, devia ao menos conseguir uma atenuante. Para isso ele precisava saber tudo muito certo.
Escrevo estas linhas, conforme o senhor sabe, numa época em que o processo da Sylvia já está em pleno andamento. Ele estará se desenrolando diante dos olhos e ouvidos de uma multidão ávida de sensacionalismo, prosseguindo implacável... Estamos hoje no dia 22 de maio de 1974. Já faz bastante calor em Nurenberg...
O dr. Karl Oranow é um homem alto, pesado, com um rosto bondoso, uma voz calma e uma paciência infinita. Seus olhos verdes mudam para cinza como os de um gato. Seu rosto todo, aliás, lembra o de um gato; o nariz chato, os olhos oblíquos, as maçãs do rosto salientes, o andar macio apesar de toda sua altura e peso.
Por ocasião de suas visitas ficamos sempre à sós. O senhor proibiu expressamente ao dr. Oranow de me comunicar qualquer coisa que não fosse diretamente relacionada com a minha acusação.
Com todo o direito, sr. Juiz, proibiu que eu tivesse acesso a qualquer notícia de jornal por menor que fosse, pela qual eu pudesse acompanhar o que se passava “lá fora”. Até o dia de hoje (com excesso do dr. Oranow) ninguém teve licença de vir me visitar. Há meses estou inteiramente afastado do mundo, e é bem feito para mim. Uma coisa no entanto é uma verdadeira tortura, uma tortura que já quase não suporto mais: não sei como está a Babs. Está doente? Faz progressos? Está numa fase ruim? Ainda vivia? Quantas vezes, sr. Juiz, eu à noite acordava de repente, banhado em suor, acordando de um pesadelo, no qual tinha acontecido alguma coisa de mal à Babs!
Consciente de meu isolamento, me esforçando para me preparar devidamente para o futuro, perguntava a meu advogado como decorria basicamente um exame de processo penal. De suas respostas, quando possível, tirava minhas conclusões, tateando, sondando o futuro. Ainda não lhe havia contado a verdade, toda a verdade, que ele precisava saber para poder me ajudar, e afinal, por profissão, ele era obrigado a manter segredo. Sentiu imediatamente onde eu queria chegar, e sempre me animava nos meus esforços.
Logo no terceiro dia depois de minha prisão o dr. Oranow disse:
Um julgamento de um processo penal alemão decorre em linhas gerais da seguinte maneira: O tribunal do júri, abre a sessão para a apreciação do caso da Sylvia Moran, por exemplo. Primeiro o presidente do tribunal verifica se estão presentes a acusação e a defesa, além de todas as provas, as testemunhas convocadas e os peritos.
534Se o julgamento for de maior duração, como certamente será o caso-Moran, as testemunhas e os peritos poderão ser convocados para dias diferentes. O presidente dirige todo o julgamento, interroga o réu, ouve as testemunhas e os peritos. Os juizes adjuntos, o promotor, o advogado do réu e o acusador particular, têm também o direito a inquirir. As testemunhas poderão ainda ser interrogadas por quem as designou, isto é, a defesa ou o promotor, havendo alternadamente o direito de inquirir, podendo ainda o presidente e os juizes adjuntos fazerem mais perguntas elucidativas. Minha defesa, o dr. Oranow, fala sempre pensadamente, com a maior precisão O senhor, sr. Kaven diz ele com a maior
benevolência será uma das testemunhas do promotor.
Formidável, pensei eu, e antes que eu tivesse tempo de perguntar, ele foi explicando:
Todas as testemunhas são chamadas, e o juiz as adverte da obrigação de depor a verdade e das sanções penais do depoimento falso, sem no entanto citar em detalhes o grau de penalidade. Adverte apenas, que qualquer perjúrio será punido com suspensão da liberdade.
Qual é no caso a extensão da pena, doutor?
Olhou para mim, parecia até que estava se divertindo, e disse:
Perjúrio ou juramento em falso premeditado, pena, reclusão de um
a cinco anos. Havendo atenuante poderá ser detenção de seis meses.
Reclusão até cinco anos? perguntei eu espantado.
Isto mesmo, sr. Kaven. Agora eu voltara a ser sr. Kaven para todo
mundo, meu “passaporte de proteção” com o nome Philip Norton, havia sido
imediatamente anexado ao auto Para falso testemunho continuou meu
advogado amavelmente não feito sob juramento, pena, reclusão de três
meses a cinco anos. Havendo agravante não será nunca menos de um ano. O perjúrio deixará de ser punível, se antes da sentença o agente se retratar ou declarar a verdade.
A este ponto eu ia me agarrar. Pode-se entender facilmente por que.
- E o depoimento das testemunhas? Se eu for chamado a depor, e não tenho a menor dúvida que serei para o processo da Sylvia (esqueçamos por um instante o meu processo), sou obrigado a fazê-lo. Só quero saber para minha informação.
- Kaven disse ele, me olhando de alto a baixo.
- Sim? fiz eu piscando inocentemente Por acaso disse alguma
coisa contrária à lei? Eu apenas gostaria de saber, mais nada. Claro, sr. Kaven. Para sua informação, então. Existem vários fundamentos legais para uma pessoa se eximir da obrigação de depor. Em primeiro lugar, qualquer testemunha poderá se negar a responder uma pergunta que ponha em risco a sua liberdade ou de um parente afim, em conseqüência de ilícito penal. As testemunhas sao sempre devidamente instruídas a respeito.
535Já devem estar a par disso há muito tempo, pensei eu. Afinal Gintzburger & Cia. devem estar com seus planos preparados. Apesar de toda aquela conversa melíflua da “grande família feliz”, não é parente da Sylvia. Assim sendo, eles estarão pondo a sua própria liberdade em risco, se responderem todas as perguntas. Certamente não irão mentir, pois aí estariam ameaçados de perjúrio, mas deverão deixar de responder uma quantidade enorme de perguntas. E que quantidade! Eu aliás, também. Mas...
O fato de se recusarem a responder, no entanto, não poderá ter
conseqüências negativas para o réu?
Claro que sim disse o dr. Oranow, e via-se que por questão de
hábito talvez, ele não só percebia onde eu queria chegar, ele já sabia até antes de eu fazer a pergunta. Depende muito. Poderá ter, mas não necessariamente. Pode também ter um resultado exatamente oposto, isto é, ser desfavorável às testemunhas... Mas prosseguindo: Outra recusa legalmente fundamentada é a que se refere a parentes em geral, sem considerar o ilícito penal, apenas pelo vínculo de parentesco.
Este item não me adianta de nada, pensei eu e perguntei:
E em terceiro lugar?
Em terceiro, sr. Kaven, as pessoas que devem guardar segredo em
razão de sua profissão.
Até que enfim chegamos lá, pensei eu.
Estas pessoas continuou o dr. Oranow no entanto não
poderão se negar, se anteriormente desobrigadas. Droga! Não é no
entanto o tribunal que as desobriga...
Ué!
... não, apenas aquele que for protegido por segredo profissional,
por exemplo, o constituinte de um advogado, o paciente de um médico. Mas lembre-se de que no caso da Babs, por ser menor de idade, somente seu representante legal, isto é, sua mãe, poderá desobrigar o médico do segredo profissional.
Eu me senti bem melhor.
O que ela evidentemente não fará disse eu.
Ele deu de ombros.
Por que o senhor dá de ombros?
- O segredo profissional se restringe apenas ao relacionamento de confiança. No caso de médico, por exemplo, ao diagnóstico e à terapia. Não
536diz respeito a outros setores da vida através dos quais a testemunha médica possa conhecer detalhes, no caso por exemplo, o paradeiro da Babs.
Bolas! disse eu de que adianta se os médicos que foram
chamados a depor no caso da Babs, têm o direito a negar esclarecimentos sobre o diagnóstico e a terapia, mas são obrigados a revelar que ela se encontra internada na Escola para Excepcionais de Heroldsheid. Estaria tudo perdido!
Olhou para mim com cara de Papai-Noel simpático.
Calma, sr. Kaven! Se existir algum interesse médico em não revelar
o paradeiro, no caso por exemplo, e evitar que a saúde da paciente seja posta em risco, este direito de recusa subsiste.
Ah fiz eu e pensei comigo: no caso então, a Ruth, e o dr.
Sigrand e outros médicos ainda, farão uso deste direito, pois o fato de citar seu paradeiro, sendo o réu uma figura de tão grande destaque, poderá realmente pôr a saúde da criança em risco, haja vista o escândalo, o tumulto publicitário, os repórteres, os meios de comunicação em massa... Então a Babs está salva! Quanto à Sylvia, se a Carmen se apresentar como testemunha vingativa, o dr. Molendero da clínica de Madrid, o dr. Collins, aquele analista atormentado por excesso de transferência, e o dr. Kassner do hospital Santa-Mônica, não irão revelar nada. Todo mundo sabe que a Sylvia esteve durante muito tempo internada no Santa-Mônica, para tratamento. A coisa portanto não está tão ruim quanto eu pensava... mas logo o advogado destruiu meu otimismo incipiente.
De maneira nenhuma no entanto disse ele terão direito à
recusa, os peritos médicos ou de balística encarregados da necropsia ou de fornecer outros dados para o processo penal.
Nem a polícia? O comissário-chefe Sondersen, por exemplo?
Não.
Nada feito, então.
Num caso como este pode, sob determinadas circunstâncias, ser
excluída a publicidade.
- Aiaiai! Eu não estava gostando.
O senhor tinha perguntado como decorria um julgamento na Alemanha, sr. Kaven, nós acabamos nos... nos afastando um pouco.
- Foi.
Depois de devidamente instruídas, as testemunhas deixam a sala de
julgamento. Os peritos permanecem. O presidente inquire o réu pessoalmente. Depois, o promotor procede à leitura do libelo... uma ou duas folhas datilografadas. O presidente chama a atenção do réu... da sra. Moran portanto, no caso que estamos aqui discutindo em teoria; no outro caso, seria o senhor lembrando que ele tem liberdade de fazer ou deixar de fazer alguma declaração. A sra. Moran não irá declarar nada, presumo eu.
- Não poderá declarar nada disse eu.
537Sim. Não poderá declarar nada principalmente no que se refere à
morte de Rettland. Os peritos neste ponto esclarecerão por que ela não pode.
Amnésia, ela não se recorda de nada, acha que praticou o ato etc,
etc.
- Sei.
O réu portanto não se manifesta, ou ao menos, suas declarações
não são válidas, para o promotor. No seu caso é diferente. Em seguida inicia-se a produção de provas. Por escolha do presidente, as testemunhas e os peritos foram ouvidos uns após os outros, ficando os peritos presentes a todo julgamento, mesmo à inquirição das testemunhas. Estas foram ouvidas uma a uma isoladamente. As partes inquiridoras poderão recorrer inclusive a declarações anteriores para auxiliar a memória, ou quando houver contradição. Se durante a audiência uma testemunha se recusa a depor, e se tiver fundamentos legais para tal, não poderá ser lido qualquer depoimento anterior seu sobre o assunto.
Os resultados aí podem variar.
Claro. Finda a produção de provas, a palavra é dada ao promotor,
e depois à defesa. Cada um pode replicar o outro. O promotor sempre terá direito à “última palavra”.
E depois?
Depois o tribunal se recolhe para deliberar. Caso o presidente não
tenha marcado nenhum prazo específico para proferir a sentença, esta será lida posteriormente em sessão pública. No caso de sentença absolutória, deverá ser mencionado na parte dispositiva, não constituir o referido ato infração penal.
Caso o réu não tenha praticado o ato, ele será absolvido e na justificativa constará então não existir prova de ter ele concorrido para a infração penal. Tudo deverá ser justificado. O promotor, a defesa e a acusação têm o direito de apelar contra a sentença, podendo também desistir deste recurso... Mas isto eu acho que já é coisa que não lhe interessa, se estou interpretando bem sua maneira de pensar.
Está sim, doutor.
Eu gostaria agora de lhe dar um conselho, como um advogado seu,
em seu próprio interesse, no da sra. Moran também, e agora que pensei bem no caso, talvez mais no dela que no seu.
Sim? fiquei olhando inseguro para ele.
Pode-se prever com bastante precisão a linha de defesa do meu
colega Nielsen disse ele. Ele deverá se apoiar no parecer do perito
psiquiatra. Se ele sustentar a aplicabilidade do parágrafo cinqüenta e um do Código Penal Alemão, será um grande passo. É bem possível que não o consiga no entanto, pois diante das perguntas que o senhor vem me fazendo, de sua reação às minhas respostas, e tudo o mais, concluo que todas as testemunhas, na medida do possivel irão se recusar a depor, o que causará uma impressão muito desfavorável. Vamos ser francos, é como se estivesse
538havendo uma conspiração visando encobrir a verdade. Assim sendo, pode-se ou melhor deve-se contar que a sra. Moran será condenada a uma pena muito alta por homicídio qualificado.
E não se pode fazer nada para evitar isto?
Poderia.
- O quê?
. Pegar o touro pelos chifres.
E quem ia fazê-lo?
- O senhor.
- Eu?
Sim. O senhor, sr. Kaven, que está informado a respeito de tudo.
Se o senhor aproveitasse o tempo que ainda resta até o julgamento da sra. Moran. e fizesse um relatório minucioso para o juiz de instrução criminal, que aliás para o seu caso e o da sra. Moran é o mesmo. O senhor devia contar tudo o que aconteceu em detalhes, e com isso conseguiria uma chance muito maior para a sra. Moran, para a Babs, para o senhor mesmo, para todos envolvidos no processo. Não se esqueça de que esta moça, a Carmen Cruzeiro vai descarregar todo o seu ódio. Com isso, irá colocar a sra. Moran numa posição muito desvantajosa. Além disso, a coisa ficará bem pior ainda diante da declaração dos peritos, mesmo que a policia, especialmente o comissáriochefe Sondersen, não revele o paradeiro da Babs, em consideração à sua saúde. Ninguém vai duvidar de que tudo ai gira em torno de uma criança.
Está certo. E aí?
Se o senhor fizer sua declaração em forma de relatório minucioso
dos fatos como eles realmente se passaram, e quando depois o juiz de instrução, exortado a isto, levar este documento ao conhecimento do promotor e da defesa, e o senhor, como testemunho, baseado nesta sua declaração que então estará nas mãos do tribunal, não se esquivar a responder uma única pergunta, mas pelo contrário disser sempre a verdade, então sim, acredito que o processo, poderá tomar um rumo completamente diferente. Será cem vezes mais útil à sra. Moran, do que o silêncio obstinado, o insistente negar a prestar qualquer declaração. Isto não é nenhuma cilada, é a melhor maneira que me ocorre, de poder ajudar à sra. Moran.
Calei-me. Não por querer resistir. O que o advogado acabava de dizer, me impressionara profundamente.
Se desejar, falo com o juiz de instrução criminal a respeito, e ele em
seguida discutirá o problema com o senhor. Quer que o faça, sr. Kaven?
Quero sim.
O dr. Oranow procurou o senhor em seguida, sr. Juiz, e o senhor veio falar comigo. Eu, por minha vez, lhe fiz uma promessa que o tranqüilizou. Prometi não dizer uma única mentira em todo o relatório. Agora, depois de tudo por que passei, pelo que vi daquelas pessoas anônimas que vivem no escuro, dos fracos que por integridade e espírito humanitário infinito- acabam sendo os mais fortes, conforme o senhor mesmo leu, eu não consigo mais mentir.
539Eu aqui fiz meu depoimento, sr. Juiz, usando da verdade, apenas da verdade, nada mais do que a verdade. O primeiro impulso foi-me dado pelo dr. Oranow, por outros motivos é verdade, mas acho que todo impulso em direção a um determinado fim, sempre leva a outros resultados que não os diretamente visados.
É uma segunda-feira, 22 de maio de 1974. Estou escrevendo estas linhas por volta das 16 horas. O relatório quase completo, já se encontra em suas mãos, sr. Juiz, muito antes ainda do início do processo. O senhor o passou para o promotor, a defesa, o tribunal. Isolado do mundo, eu aqui não sei qual foi o efeito deste meu relatório sobre todos que o leram ou dele tomaram conhecimento. Não sei o que se passou neste meio tempo. Fiz o que tinha que fazer.
Amanhã, 23 de maio de 1974, terça-feira, às 10h30min devo me apresentar finalmente como testemunha no processo-Moran.
Minha intenção era ajudar à sra. Moran, porém mais uma vez o resultado foi outro, pois longe do mundo, eu aqui não tinha a menor idéia de como o processo estava se desenrolando. Quando soube, já era tarde. Para melhor compreensão vou me adiantar, contando agora o que soube mais tarde. Tratava-se de três incidentes, especialmente importantes...
Depois que Joe Gintzburger numa entrevista ao vivo pela televisão dera a conhecer o suposto paradeiro de Babs, o salão do hotel CLARION se encheu de tal maneira, que as pessoas que não encontraram mais lugar, se reuniram no restaurante do hotel e na sua frente. O CLARION é o maior hotel da pequenina cidade Norristown, perto da Filadélfia. Havia fotógrafos e repórteres do mundo inteiro. Em pé em cima do estrado no salão de conferências um senhor de cabelos brancos, muito respeitável, o dr. Clemens Holloway, diretor do seleto internato. Suas palavras, pronunciadas diante do microfone com grande esforço, procurando se controlar, eram transmitidas para o mundo inteiro...
... Meus senhores... meus senhores! A barulheira que os
presentes faziam era tão grande, que o dr. Holloway calou-se resignado.
Afinal houve silêncio.
Apenas se ouvia o zunido das máquinas, os cliques dos disparos, quando o dr. Clemens Holloway, enxugando a testa (os refletores instalados na sala produziam um calor intenso), continuou a falar:
Leio agora para os senhores uma declaração elaborada por mim,
pelo chefe de polícia desta cidade e pelo delegado de saúde: Babs Moran encontra-se em meu internato.
540Ela, que nada sabe do que ocorreu em Berlim, está sujeita a sérios danos psíquicos, se agora, sem que esteja preparada para isto, um ou mais dos senhores a colocarem a par desta situação horrível. Para evitá-lo, permitimos que um grupo de guardas particulares da firma cinematográfica a SEVEN STARS juntamente com a polícia local, protegessem nosso internato, evitando um encontro da criança com estranhos.
Grande agitação na sala.
Meus senhores! O dr. Clemens Holloway segurava-sè no pé do
microfone, sua voz quase implorava: Assim não é possível! Os senhores
estão transformando esta cidadezinha numa casa de loucos!
- Sim, e daí?
Shut up
Mon Dieu, guel conl
Todos gritavam ao mesmo tempo.
. Silêncio! soou a voz de um policial ao microfone.
Temos que chegar a um acordo disse o dr. Clemens com muito
esforço. Sejam humanos, meu Deus! Sei que a profissão dos senhores é
dura. Mas será que os senhores iriam se responsabilizar por um mal de extensão inteiramente imprevisível que poderá ser causado à Babs quando ela souber assim de repente do que aconteceu em Nurenberg?
Com isto silenciaram. O ambiente fervia. Nos fachos dos refletores dançavam partículas de poeira.
O dr. Clemens olhou mais uma vez para a declaração em sua frente e leu:
Nenhum dos senhores poderá pisar no recinto do internato ou falar
com a criança! Pelo amor de Deus, tenham compreensão, meus senhores!
Não insistam num encontro com a Babs, eu lhes imploro! O dr. Clemens
torcia as mãos ossudas, puxava violentamente o colarinho. Como prova
de nossa boa vontade, vamos lhes fazer uma proposta continuou a ler o
diretor, respirando cada vez mais com mais dificuldade. Esta tarde, às
quatro horas, a Babs sai para brincar com as outras crianças no parque. Com a condição de que nenhum dos senhores, através de gritos, chamados ou outra atitude qualquer, provoque algum risco, eu, nosso chefe de polícia, o dr. Nielsen o médico, o advogado alemão da sra. Sylvia Moran, o sr. Gintzburger da SEVEN STARS, consentimos que tirem fotografias da criança à distância, de fora da cerca do parque.
Aplausos.
- Se houver o menor incidente, podem contar que todos... Gritos de revolta.
-... todos ficarão sem os filmes de suas máquinas, e também sem as fitas. Os senhores então poderão agradecer aos seus colegas...
No mesmo dia e local, 16h da tarde.
O internato ficava num velho e imenso parque cercado por altas grades de ferro batido.
541De um lado da grade, fotógrafos e repórteres se comprimiam, câmaras estavam armadas.
As crianças foram saindo do grande prédio, bem ao fundo, atrás de gramados e grupos de árvores. Cinco, dez, vinte, trinta crianças. Começaram a brincar. Jogavam bola, brincavam de pegar e de esconder. Cantavam.
O dr. Holloway estava em pé em meio a um grupo de meninas pequenas que brincavam de roda, apontou ligeiramente para uma delas com o queixo. Nem era preciso, pois qualquer pessoa a teria reconhecido imediatamente. Com as teleobjetivas de suas câmaras, os fotógrafos e o pessoal da televisão procuravam aproximar a criança, tirá-la de perto, bem grande. Ela usava meias e sapatos brancos, e um vestidinho vermelho.
As crianças dançavam, cantavam, riam. Uma brisa trazia as suas palavras até os repórteres.
“Doctor, doctor, must I die? Yes, my child, and so must /”
Você ouviu? perguntou um repórter japonês a um colega.
Não... Porcaria de máquina... Ouvi o quê?
O que as crianças estão cantando.
- O que é?
O repórter olhou para Babs. Respondeu traduzindo em japonês.
“Doutor, doutor, tenho que morrer? Sim, minha filha; Sim, e eu
também”.
Mais tarde quando as fotos desta Babs, rindo feliz e dançando, cobriram páginas inteiras de jornais e revistas do mundo inteiro, o senhor, sr. Juiz, colocou o nome do dr. Clemens Holloway na lista das testemunhas que a Promotoria do Estado encaminharia para o tribunal de Nurenberg-Fuerth, juntamente com o processo. O dr. Holloway foi convidado a depor. Veio para a Europa. No dia 7 de maio ele se apresentou perante o tribunal.
O interrogatório foi o seguinte:
PRESIDENTE: O senhor fala alemão, dr. Holloway. Entende tudo o que dizemos?
HOLLOWAY: Sim, Excelência.
PRESIDENTE: A criança que se encontra em seu internato é realmente Babs Moran, filha da ré? Eu o advirto mais uma vez das conseqüências de um falso depoimento.
HOLLOWAY: Queira por favor repetir a pergunta, Excelência.
A pergunta foi repetida.
HOLLOWAY: Sinto muito ter que declarar, mas a criança que vive em meu internato, não é filha da ré, e não se chamava Babs Moran, antes de ali ser internada.
PRESIDENTE: Explique, por favor.
HOLLYWAY: É um caso muito sério... Quando concordei, nunca pensei que um dia... A história me foi apresentada como sendo inteiramente inocente...
PRESIDENTE: Quem a apresentou?
542HOLLOWAY: Os advogados da SEVEN STARS. Apareceram certo dia com a menina, que podia realmente ser irmã gêmea da Babs Moran, e me pediram que aceitasse a criança em meu internato. Alegaram que a verdadeira Babs já não estava mais em idade de acompanhar a mãe constantemente em suas viagens. Por isso, disseram os advogados, a criança tinha sido internada numa escola nos Estados Unidos, num lugar em que nenhum repórter pudesse descobri-la. Para maior segurança, me pediam para aceitar aquela criança e apresentá-la como Babs Moran, caso houvesse qualquer incidente que viesse a perturbar a paz e o desenvolvimento sereno da verdadeira Babs.
PRESIDENTE: Onde fica o outro internato?
HOLLOWAY: Não me disseram.
PRESIDENTE: Quem é, na realidade, a menina que o senhor aceitou em sua escola?
HOLLOWAY: Seu nome é Margareth Cleugh. Os advogados declararam que Margareth já havia sido encontrada pelo pessoal da SEVEN STARS há alguns anos. Procuraram pelo mundo inteiro uma criança que fosse idêntica à Babs Moran.
PRESIDENTE: Por que isto?
HOLLYWAY: Eu só posso repetir o que os advogados me disseram.
PRESIDENTE: Claro. E o que disseram eles?
HOLLOWAY: Explicaram que, em se tratando de uma artista tão famosa como Sylvia Moran e sua querida filha, viram-se obrigados a tomar medidas, caso a verdadeira Babs viesse adoecer ou lhe acontecesse alguma coisa... mas principalmente para protegê-la contra qualquer tentativa de seqüestro. Isto tudo me pareceu óbvio.
PRESIDENTE: Como pretendiam eles evitar um seqüestro?
HOLLOWAY: Através desta segunda Babs, exatamente. Tinham imaginado um plano complicado... Eu acho que isso já foge um pouco...
PRESIDENTE: Perfeitamente, doutor. Eles então encontraram uma criança idêntica à Babs?
HOLLOWAY: Encontraram sim. Em Wisconsim, acho eu. Os pais eram pobres. Para eles era um presente do céu, entregaram sua filha para que recebesse uma boa educação, assistência e cuidados.
PRESIDENTE: Mas entregar uma filha assim...
HOLLOWAY: Excelência, eram pais muito pobres. Quando encontraram Margareth Cleugh e a entregaram aos cuidados da SEVEN STARS, ela estava com quatro anos. Repetiam a ela sempre chamar-se Babs Moran, e ser filha de uma grande artista. Com o correr dos anos acabou sendo um fato para ela, esquecendo os verdadeiros pais. Fizemos tudo para lhe proporcionar uma vida maravilhosa.
PRESIDENTE: A sra. Moran sabia do fato?
HOLLOWAY: Não! Ninguém sabia axrespeito a não ser as pessoas diretamente ligadas, que descobriram a criança, e os responsáveis por sua educação.
543PRESIDENTE: O senhor agiu de boa fé ao aceitar a Margareth Cleugh, achando que estava assim protegendo a verdadeira Babs?
HOLLOW AY: Evidente, Excelência. Margareth Cleugh nesse meio tempo já esqueceu seu verdadeiro nome. Seus pais morreram há mais de dois anos num acidente de automóvel. Margareth acredita realmente ser Babs Moran. Sempre foi uma criança muito amável, uma boa aluna. Mesmo assim... eu nunca teria concordado com tudo isso, se soubesse o que viria a acontecer em Nurenberg... Mas como podia eu saber? Ninguém podia!
PRESIDENTE: O senhor sabe, dr. Holloway, onde se encontra a verdadeira Babs?
HOLLOWAY: Não, Excelência. Não tenho a menor idéia.
Este depoimento, sr. Juiz, seria a primeira declaração importante do processo, a respeito do qual eu nada sabia. O interrogatório acima eu consegui depois, através de publicação da imprensa.
Eis aqui a segunda:
O comissário-chefe Wigbert Sondersen acabara de depor. Ele de fato se negara a declarar onde a Babs se encontrava, coisa muito pouco comum aliás, mas que fora aceito pelo tribunal, embora ele não tivesse nenhum direito de se negar a responder. Alegava, que após reiterada conversa com médicos especializados, estava convencido de que revelando o paradeiro da Babs, poderia trazer conseqüências imprevisíveis para a saúde da criança; imprevisivelmente negativas.
Com isto Sondersen havia sido dispensado.
Rod Bracken aproximou-se. Seus documentos de identidade estavam sendo examinados, quando um guarda do tribunal apareceu com um envelope lacrado, entregou-o ao presidente, retirando-se imediatamente. Este pediu que Rod tivesse um pouco de paciência, abriu o envelope, retirou diversas folhas escritas, passou rapidamente os olhos, e entregou aos outros juizes. O silêncio na sala era grande.
Finalmente o presidente disse:
Sr. Bracken, o tribunal acaba de receber uma noticia de extrema
importância. Esta notícia lhe diz respeito.
Tumulto na sala de audiência. O rosto impassivo de Rod, se altera um pouco.
Acho imprescindível levar o conteúdo deste documento a seu conhecimento e do tribunal, antes de começar a interrogá-lo. O promotor
protestou, porém não foi ouvido. Este documento foi trazido por um
mensageiro do cônsul-geral americano em Munique, para que chegasse com a maior urgência às mãos do Tribunal. Nos é enviado pelo diretor da clínica psiquiátrica Mount-Hebron, em Los Angeles. É a anotação, possivelmente tomada por um estenógrafo, de uma declaração feita por um paciente daquela clínica. Estiveram presentes o diretor da clínica, dois funcionários da polícia e do Juiz. Mediante a assinatura de todos eles, fica confirmada a autenticidade da declaração do paciente. O documento portanto tem valor oficial para otribunal e será tratado como tal.
544Sr. Bracken, conhece uma pessoa chamada Roger Marne?
Não, Excelência.
Tem certeza absoluta?
Tenho, Excelência... Um momento, o nome... Conheço de nome! Roger Marne não é aquele criminoso que aqui em Nurenberg tentou coagir meu amigo Philip Kaven com umas fotografias?
Este mesmo, sr. Bracken.
Os americanos o mandaram imediatamente de volta para os Estados Unidos, não foi?
Exatamente.
Porque ele... este Marne, já tinha fugido diversas vezes de clínicas psiquiátricas, para onde era levado todas as vezes em que aparecia diante do tribunal por causa de um ato criminoso qualquer, e conseguia sempre ser declarado penalmente irresponsável. Não é isso?
Isso mesmo. Mas pessoalmente o senhor não conhece este marginal
meio louco? “
Ora, eu já disse que não!
É muito estranho.
Estranho por que, Excelência?
Porque Roger Marne declara tê-lo conhecido muito bem.
Mas isto é uma mentira... e por que “ter conhecido”?
Roger Marne está morto, sr. Bracken. O que tenho aqui em mãos,
é um relatório muito claro, feito poucos dias antes de sua morte. Por isso ele pedira a presença das testemunhas anteriormente citadas. Ele tinha ouvido falar neste nosso processo... e quem não ouviu? Queria ainda dar uma informação e por sinal, a seu respeito.
A meu respeito? Ridículo! Eu não conheço o sujeito! Eu não o
conheço!
Vou passar a ler agora as palavras de Marne... sua confissão,
suas últimas palavras ou como o senhor quiser chamá-lo... Silêncio, por
favor! A sala ficou em silêncio. O presidente lê: “Eu, I.oger Marne,
nascido em Los Angeles em dois. de julho de 1928, atualmen e no hospital Mount-Hebron, sob minha palavra de honra, declaro o seguin e: Conheci o empresário Rod Bracken no ano de 1968, em Los Angeles, na boate RED ANGEL...”
Isto é mentira declarou Rod friamente.
Por favor não me interrompa, sr. Bracken. Eu continuo: “Conversamos quase a noite inteira, e por fim Bracken sugeriu que eu poderia ganhar um bom dinheiro, se trabalhasse para ele, resolvendo certos assuntos...”
Grande tumulto na sala de audiência.
Silêncio! Silêncio! Os presentes se acalmaram. Por favor,
senhor guarda, traga uma cadeira para o senhor Bracken, parece que ele não está se sentindo bem...
545Trouxeram a cadeira. Rod deixou-se cair em cima dela. Pediu um copo dágua, derramou a metade ao segurá-lo com a mão trêmula.
“Fiz diversos serviços para o sr. Bracken” continua a ler o
presidente. “Os casos isoladamente aqui não interessam; apenas dois. Um
deles passou-se em junho de 1969. Suas conseqüências ainda perduram. Começou em Monte-Carlo...”
Tumulto geral. A muito custo o presidente consegue restabelecer a ordem. Rod está imóvel em sua cadeira.
“Em vinte e cinco de junho de 1969 por ocasião de uma festa de
gala em prol das crianças excepcionais, organizada pela princesa de Mônaco, Sylvia Moran fez um apelo através da televisão de Monte-Carlo, transmitido para o mundo inteiro. O texto fora escrito por Bracken. Na época ele me disse:
Ela vai se sentir mal em ter que dizer aquilo, exatamente como eu me sinto
agora, mas ela vai dizer, pois é uma publicidade fabulosa para ela! Acredito até que depois, quando tiver consciência do que falou, tenha aquele ataque de raiva, pois a conheço muito bem! Por isso venha comigo a Monte-Carlo, Roger, este vai ser seu novo trabalho, talvez o maior até agora feito, você pode
ganhar um dinheirão! Para fazer o quê? perguntei eu. Bracken explicou
tudo. Dois dias antes do programa de TV peguei um avião da TWA para Nizza; daí segui em direção a Monte-Carlo, fiquei em Eze, um lugarejo próximo. Para encurtar: Bracken entendia de eletricidade, principalmente de instalação de aparelhagem elétrica (já tinha me contado o que pretendia fazer). Instalou pois, no apartamento de Sylvia Moran no HOTEL DE PARIS e no seu camarim da estação da TV-Monte-Carlo, microfones ligados a gravadores disfarçados. Depois da transmissão, eu devia me encarregar de desmontar tudo o mais rápido possível e verificar se havia qualquer coisa gravada nas fitas que pudesse incriminar a Sylvia.
Rod! A Sylvia deu um grito, baixo, sufocado. Estava branca.
Rod não se mexeu.
O presidente continuou a ler:
“Logo depois da transmissão consegui desmontar os aparelhos,
primeiro na estação de televisão, depois no hotel. Os detalhes aí não vêm ao caso, pois não tenho tempo para longas descrições. Estou me sentindo muito mal, muito mesmo, e os fatos ai relatados poderão ser comprovados; dispensam quaisquer detalhes. As fitas do HOTEL DE PARIS, nada continham de especial, pois a crise que Bracken previra, tivera lugar logo depois no camarim. Bracken havia fixado o botão do aparelho aí instalado para poder chamar os artistas, com um palito de fósforo, de modo que o aparelho apenas registrava o que se falava dentro do camarim. A Sylvia Moran falou coisa! Pude constatá-lo mais tarde ao tocar as fitas. A minha missão em Monte-Carlo estava cumprida. Fui para Viena, onde hospedado num pequeno hotel, esperei algum tempo, mandando depois para a residência particular da artista, pelo correio central de Viena, parte da fita que eu havia regravado (devo meus conhecimentos neste setor a Bracken), juntamente com as palavras de ameaça
546k
e coação após ter disfarçado minha voz eletronicamente. Na fita, eu exigia cinqüenta mil dólares, sob a ameaça de publicá-las. Neste meio tempo Bracken havia imaginado um sistema mirabolante mas seguro, de como enviar o dinheiro sem que ninguém conseguisse descobrir o destinatário. Em tudo que fiz, segui exatamente as instruções de Bracken, que me pagava sempre. O que a Sylvia Moran dissera era tão grave que sua publicação a arruinaria de vez! Por isso Bracken pôde continuar a sua extorsão, mais tarde com quantias menores, continuando a receber até hoje dez mil dólares por mês. Bracken irá negar tudo, mas a Sylvia Moran poderá confirmar o que digo. Ela agora sabe
quem é o autor da extorsão. Este é o primeiro caso. “ O Presidente foi
folheando os papéis. “ Segue-se o segundo: Em novembro de 1971, Bracken ligou para mim de Paris, pedindo que eu fosse para lá imediatamente e ficasse a sua disposição. Mandou o dinheiro por telegrama, e eu fui. Fiquei *numa pequena pensão. No dia quatro de dezembro finalmente ele se comunicou comigo, me mandando para Nurenberg. Foi logo depois da pancadaria no pátio do hospital Sainte-Bernadette, em que estivera envolvido Philip Kaven. Até hoje não sei o que se passou lá. Em Nurenberg, eu devia fotografar Kaven junto com aquela médica a dra. Ruth Reinhardt, da qual ele me mostrara fotografias. Pedia que fosse em circunstâncias bem dramáticas. Depois de os seguir algum tempo, encontrei o que desejava no dia sete de dezembro por ocasião de um enterro. Bracken me havia encarregado de fotografar os dois com uma Minox, e tentar depois coagir Kaven com os retratos sem no entanto chegar a vendê-los para ele. Acho eu, que queria que Kaven e Sylvia Moran soubessem da existência das fotos. Fiz conforme Bracken ordenara, mas caí numa armadilha preparada pela polícia alemã e americana. Mandaram-me de volta para os Estados Unidos para o hospital Mount-Hebron, onde estou fazendo esta declaração. Quando pedi explicação a Bracken, ele ainda me disse: Sylvia Moran é minha, sempre será minha,
simplesmente porque não poderá me largar, nem dispensar. Diante de
minha morte tão próxima, juro que tudo que aí declaro corresponde à verdade...” O presidente passa rápido os olhos pela folha e diz: Seguem-se
as assinaturas das testemunhas presentes. Depois abaixa os papéis Sr.
Bracken, o que tem o senhor a me dizer a respeito?
Nenhuma reação. Rod continua sentado, mudo.
Sr. Bracken! Mais alto.
De repente Rod se ergue de um salto. O rosto crispado, grita para o
presidente: Foi isso mesmo. sr. Presidente! Exatamente! Tudo o que
aquele sujeito diz é verdade!
Mas por què? a voz da Sylvia é apenas um sussurro.
Por que Rod, por quê?
Rod vira-se bruscamente para ela:
Porque tinha que me garantir, Sylvia! Tinha que ter a certeza de
que você não ia poder me mandar embora nunca!
Mas eu nunca faria uma coisa destas.
547É o que você diz! É o que você acha! Você por acaso sabe o que as
pessoas acham e o que elas fazem? Você não tem idéia! Mas eu sei! grita
Rod, o maior e mais bem pago empresário, ex-engraxate, lavador de pratos, de carros e defuntos em Nova York, aprendiz de um sádico mecânico-eletricista e de um batedor de carteira, puxador de carro, cáften, talhador, empregado de posto de gasolina, estafeta de correio, furador de ticket nas barcas do rio Hudson, arranjador de dinheiro para uma financeira, colecionador de peixes raros, milionário, filho de meretriz e alcoólatra, educado em asilos e em
meio à miséria de Nova York, que é uma miséria muito especial Eu tinha
que ter você sob meu controle, Sylvia! Principalmente depois de aparecer este merda do Kaven! Você podia me botar na rua qualquer dia que cismasse, apesar de eu sempre fazer tudo por você...
Nunca! Nunca, eu teria posto você na rua!
Conversa! Eu lá ia me fiar nisso! Eu vou dizer a você por que fiz
aquilo: Eu nunca, nunca mais queria ser pobre na vida!
A voz falhou. Cala-se arquejando, deixa-se cair novamente na cadeira.
Então o que Roger Marne disse é verdade? perguntou o presidente.
É fez Bracken indiferente.
O promotor se levanta.
Sendo assim, peço ao Tribunal para prender a testemunha imediatamente.
- Sr. Guarda!
Pronto, Excelência.
Sr. Bracken, eu o declaro condicionalmente detido.
Venha disse o guarda, pegando Rod pelo braço. Este segue sem
nenhuma oposição. Não olha para ninguém na sala de audiência.
Esta, sr. Juiz, foi a segunda declaração importante para o réu no processo sobre o qual eu nada sabia.
E aqui finalmente está a terceira...
Em pé diante do presidente, está um homem calmo quase acanhado, que no entanto fala muito decidido:
Excelência! Egrégio Tribunal! Logo depois de examinado o corpo
pelo perito de balística, o dr. Langenhorst, soube por meu colega a que conclusão ele havia chegado. Concluiu tratar-se de tiro à distância, disparado pela ré de um metro no mínimo. Os fatos em que fundamenta sua conclusão não me pareceram no entanto evidentes. Por conseguinte, apresentei-me ao advogado de defesa da ré, o dr. Nielsen, falando-lhe de minhas dúvidas e receios. O dr. Nielsen se comunicou com o promotor e este então me admitiu como segundo perito. Tudo isso, por sorte, levou apenas dois dias, de maneira que o corpo ainda estava em estado que permitisse um segundo exame.
PRESIDENTE: Qual é então seu parecer, dr. Feddersen?
FEDDERSEN: Examinei as vestes e o corpo da vítima com o maior cuidado. Meu colega concluiu tratar-se de tiro à distância sem ter reparado na
548inexistência da zona de esfumaçamento, que deve existir neste tipo de tiro. A ausência da mesma devia ter uma explicação. Não havia testemunhas, nem outro indício qualquer. Meu colega fez seu diagnóstico baseando-se no método qualificativo, e nada encontrou. Concluiu pois, tratar-se de tiro à distância. Mas como explicar a ausência da zona de esfumaçamento? Através de combinações, tentei imaginar outra ordem de fatos, a fim de chegar a novos indícios ou dados.
PRESIDENTE: Conseguiu?
FEDDERSEN: Consegui, Excelência. Tive a permissão de falar com a ré. Ela insistia em afirmar não se recordar de nada, fato que o perito psiquiatra, o dr. Eschenbach acha perfeitamente viável, como conseqüência de amnésia típica. Em sua ausência de memória, ela afirmava ainda ter morto a vítima, no entanto em outros setores, mantinha a memória intacta.
PRESIDENTE: Em que setores?
FEDDERSEN: Em relação ao que vestia. Declarou com a maior segurança que trazia uma bolsa a tiracolo. Onde estava ela? Não se encontrava entre as provas coletadas. Meu colega, o primeiro perito, não pôde examiná-la portanto.
PRESIDENTE: E o senhor a encontrou?
FEDDERSEN: Encontrei, Excelência. Fui procurar no hospital para onde a sra. Moran fora levada ainda em estado de choque. Encontraram a
bolsa. Na confusão não tinham reparado nela, e uma irmã a guardara. O
perito abriu uma pasta, retirou a bolsa, e com ela demonstrou o seguinte:
Aqui está a bolsa. Ela foi imediatamente reconhecida pela ré como sendo de sua propriedade Como Vossa Excelência pode ver, ela foi atravessada por um tiro. Tem mais, dentro está uma trusse de ouro; também ela foi perfurada pelo projétil. Veja por favor... a bolsa e a trusse... tudo isto me fez supor que tivesse havido luta, e a arma tivesse então disparado. Por espectrografia, através do método qualitativo, determinei primeiro a distância do tiro até a bolsa e cheguei a um resultado de três a cinco centímetros no máximo, logo um tiro à queima-roupa. Diante deste fato e em virtude da pequena distância entre a bolsa e o orifício de entrada do projétil no peito de Rettland, deviam ter penetrado farpas de metal da trusse, no interior, do trajeto. Por meio de radiografia examinei a pele em volta do orifício de entrada do projétil numa área de dez por dez. Realmente constatei a presença de partículas mínimas do fnetal, no início do trajeto e num raio de dois centímetros em volta do orifício de entrada. Um exame espectrográfico, provou tratar-se realmente de ouro. Por tiros experimentais constatei que a dispersão das partículas de metal só podiam ocorrer até uma distância de quinze a vinte centímetros entre a bolsa e o corpo. A distância entre a bolsa do cano e o tórax devia ser, pois, de dezoito a vinte centímetros.
PRESIDENTE: Por favor, abstenha-se de detalhes. O senhor já nos forneceu um laudo detalhado, que foi anexado ao processo.
549FEDDERSEN: Pois não. Excelência. Resumindo pois, constatei a existência de fumaça na abotoadura da manga esquerda da camisa de Rettland. Isto podia provar que chegou a haver luta, mas também, que Rettland tivesse querido pegar a arma, sem que houvesse luta. O mesmo provava a posição da cápsula na posição errada, isto é do lado esquerdo da ré o que me levou a concluir que no momento do tiro, a pistola devia ter se encontrado numa posição que possibilitasse a ejeção da cápsula para o lado esquerdo, ou então que ela tivesse sido desviada, pelo braço da ré talvez. Todas as duas possibilidades levavam à conclusão de que tivesse havido Luta, e que Rettland tivesse arrancado a bolsa da vítima para segurá-la como proteção diante de seu peito. A posição da cápsula no entanto só podia ser considerada como indício condicionalmente, uma vez que a posição em que ela foi encontrada não correspondia necessariamente à sua posição original. Por diversos motivos ou circunstância esta poderia ter sido modificada.
PRESIDENTE: Isto é óbvio. E aí?
FEDDERSEN: Aí, Excelência, consegui fechar a cadeia de indícios. Examinando cuidadosamente, pequenas marcas, no pulso da vítima, com um ligeiro derrame de sangue e pequenos arranhões (o que meu colega também deixou de fazer). Levando tudo isto em consideração,, concluí que realmente houve luta. Na ocasião, Rettland torceu a mão da ré que segurava a arma, ao que esta disparou, vindo a matá-lo.
PRESIDENTE: O senhor insinua com isto que não se trata de homicídio, mas que Rettland se matou a si mesmo.
FEDDERSEN: Exatamente. Para mim está provado que não foi a ré quem assassinou Rettland, mas que este se matou involuntariamente.
Esta, sr. Juiz foi a terceira declaração importante para a ré, no processo do qual eu nada sabia. Para maior entendimento, inverti a seqüência dos fatos dos quais só iria tomar conhecimento mais tarde. Volto agora à ordem cronológica.
É segunda-feira, 22 de maio de 1974. Já são quase dezoito horas.
Amanhã, 23 de maio de 1974, às 10h30min, finalmente eu deverei me apresentar para depor no processo contra a Sylvia Moran.
Terça-feira, 23 de maio de 1974. 10h50min.
Um guarda judiciário me havia levado até o tribunal. Agora eu me encontrava diante da mesa do juiz. Nunca tinha me apresentado diante de um tribunal. Talvez achem exagero meu, mas após uma convocação destas, me senti inteiramente arrasado frente à severidade e inexorabilidade desta máquina.
550Ao entrar na sala de audiência vi que estava superlotada. Entre os jornalistas presentes, reconheci o jovem Florian Bend, que acenou para mim. Cumprimentei-o de longe. Com mais uma exceção apenas, só vi rostos desconhecidos. Os homens instalados num banco separado deviam ser os peritos que acompanhavam o processo. A presença de fotógrafos me pareceu proibida ao menos durante os debates. A outra exceção que mencionei acima, era Sylvia Moran. Estava sentada no banco dos réus ao lado de seu defensor, o dr. Nielsen. Seu aspecto era horrível. Usava um costume cinza, sem uma única jóia. Seu rosto quase sem pintura, estava encovado, com marcas de esgotamento, cheio de uma tristeza sem fim. Naquele momento eu vi: esta mulher está chegando ao fim. Sorri-lhe. Ela sorriu também, mas seu rosto se contraiu, era mais uma careta...
Sr. Kaven disse o presidente, um senhor já de idade, de rosto
vermelho, voz pausada, olhar inteligente. Enquanto o senhor esteve no
presídio, fez um relatório muito minucioso sobre tudo que aconteceu, e o colocou à nossa disposição. Eu lhe agradeço em nome de todos. O tribunal, a defesa, a promotoria estão à par do conteúdo deste seu relatório. Apesar disto é necessário interrogá-lo pessoalmente. Teremos que ser no entanto muito mais breves. Tenho a certeza de que o senhor sempre usará da verdade para responder a todas as perguntas que lhe fizermos.
Sim, Excelência.
Mesmo que alguma delas possa vir a incriminá-lo?
Mesmo aí. Pois quero ajudar a ré dizendo a verdade, pois apenas
esta poderá ser útil, e também porque...
Phil! ouviu-se um grito.
Virei-me.
A Sylvia se erguera vacilante.
Eu não quero que você venha a se prejudicar por causa de suas
próprias declarações. Sua voz estava rouca; saía aos arrancos. Falava
afobada. Eu não quero que outros sejam punidos por aquilo que eu fiz, eu
não quero...
O promotor, um homem baixo de óculos, de voz vibrante interrompeu-a.
Excelência, eu protesto! No início do processo a ré disse que não
queria fazer declaração alguma. Sempre insistiu em manter-se calada. Eu protesto contra o fato dela agora interromper o depoimento de uma testemunha e...
A Sylvia continuara a falar junto com o promotor:
... que aconteça mais desgraça ainda. Eu sou a culpada! Sou
culpada! Quero que toda esta tortura tenha um fim. Quero falar, quero dizer o que aconteceu...
551Mas não agora! Agora tem a palavra a testemunha Kaven!
exclamou o promotor.
Excelência, Egrégio Tribunal, eu sou uma criminosa!
Grande tumulto na sala.
Sou mais do que isto, eu...
Excelência, eu protesto. Protesto veementemente.
Deixa ela falar! Deixa ela falar! gritavam na sala de audiência.
Silêncio! Por favor acalme-se, sr. Promotor. Se a sra. Moran está
querendo falar, vamos deixá-la falar.
Quero falar! Quero falar, sim!
Tudo isto e o que seguiu passou-se num atropelo, na maior agitação. Por vezes, várias pessoas falavam ao mesmo tempo. A Sylvia falava sem parar, embora seu advogado de defesa insistisse para ela se acalmar. Com um gesto de sua mão, pediu que ele não interferisse. Tudo se passou tão depressa! Muito mais depressa do que posso escrever. Muito mais! A Sylvia falava, apesar de todos os gritos e protestos, que em breve emudeceram. Seu rosto revelava apreensão. Algumas vezes parava para respirar fundo. Falava com toda a força que ainda lhe restava...
... Sou assassina sim! Eu não matei Romero Rettland, isto o
comprovou o segundo perito, o dr. Feddersen. Ele se matou... involuntariamente! Mas eu de qualquer maneira, fui disposta a matá-lo, portanto sou assassina. Vim a Nurenberg com o propósito de matar Rettland, caso ele insistisse em suas ameaças...
Que ameaças?
Ele me telefonou em Berlim. Disse... disse... deu ordens. Marcou o ponto de encontro, a hora, me coagiu... ele...
Mais devagar. pediu o presidente Mais devagar. Como pôde
ele coagi-la, sra. Moran?
Com a Babs! gritou a Sylvia. - Éle descobriu tudo... Ele
ameaçou... Ele é o pai, ele é o verdadeiro pai...
Tumulto.
Silêncio! Silêncio! A senhora não negou sempre ser ele o pai?
Neguei, mas estava mentindo.
E por quê? Por que a senhora mentia?
Sylvia estava arquejando.
Porque não o reconhecia como tal... porque ele... Naquela
época em Berlim quando rodávamos o filme, ele se aproveitou de mim... Ele me embebedou e abusou de mim... Foi horrível... Ele fez coisas comigo... Eu o odiei a partir daquele dia... Jurei para mim mesma se algum dia nascesse um filho, eu nunca ia admitir ser ele o pai.
- E o atestado, do médico de Berlim que declarava estar a senhora grávida antes da chegada de Rettland? O promotor interferiu:
E a declaração do médico de que Rettland não podia ser o pai? A
552declaração que a senhora vem usando, com êxito aliás, desde o nascimento da Babs...
Eram falsas!
Como?
Era falsa. Aquele médico era uma pessoa de bom coração. Na
minha aflição eu apelei para ele... Ele me ajudou...
Mesmo assim, ele sabia que estava mentindo, que sua declaração
era falsa!
Sabia, sim. Chame-o à responsabilidade, sr. Promotor! Condene-o.
Ele já morreu há tantos anos! Sylvia falava cada vez mais febril. Seu rosto
mudava constantemente de cor: de vermelho a branco;-de branco a vermelho.
Romero foi um canalha... um cachorro miserável, imundo...
Por isso recusei falar pessoalmente com ele nos Estados Unidos.
Mas foi por sua ajuda que conseguiu chegar aos Estados Unidos!
Por que aceitou?
Sou artista, sr. Promotor! Queria trabalhar, representar grandes
papéis! Queria mostrar do que era capaz! Sabia, tinha certeza de que seria uma grande artista.
E para isto, para lhe ajudar, mesmo o tão odiado Rettland servia?
Servia.
Uma estranha moral, sra Moran!
Senhor promotor, o que conhece o senhor a respeito de moral na
consciência de uma artista? Não existe nada, por mais imoral, e inescrupuloso, que um artista não faria para conseguir uma chance dê trabalhar! Trabalhar! Subir, tornar-se famoso! Sim senhor, fui um mau caráter, não tive moral, nem escrúpulo! E daí? Eu já não lhe disse que sou culpada? Que fui culpada desde o início! Acuse-me pois! Afinal para isto o senhor existe.
Sylvia, por favor...
Fique quieto, Philip. Você é um bom sujeito, mas fique quieto!
Todos aqui, o mundo inteiro sabe como Romero me perseguiu! Como insistia que era o pai da Babs, assim que ela nasceu, durante todos esses anos... e agora de novo; mais do que nunca! Os senhores todos sabem disto! Babs não é sua filha; ela é minha! Só minha!
Acalme-se sra. Moran disse o presidente.
Ela não lhe deu ouvidos. Continou a falar. Suas palavras se atropelavam.
Ele tentou me coagir! Deu entrevistas. Quis me obrigar a casar
com ele. Os senhores todos sabem que em conseqüência de tudo isso, passei meses internada no hospital! Os senhores todos sabem o que aconteceu por ocasião da entrega do “Oscar”. Quando depois, praticamente restabelecida, fui para Berlim rodar meu novo filme, Rettland ligou para mim! Ordenou que eu me encontrasse com ele! Tinha me seguido (Sabia de tudo, de tudo!...)
De quê?
553... exigia falar comigo. Em Nurenberg. Naquele hotel horrível.
Foi ele quem marcou o local, o dia e a hora! Ele! Só ele! Mas eu devia reservar o quarto, dando um nome falso. Tinha que fazer tudo que ele exigia! Pois achava que agora eu estava em suas mãos... achava! Tinha descoberto a verdade sobre a Babs, seguindo Phil clandestinamente...
O quê? eu me assustei.
Foi. Eu não lhe disse, não tive mais tempo para dizê-lo. Ele me
falou naquele último telefonema! Sabia onde a Babs se encontrava! Sabia o que acontecera a ela! Me disse ao telefone que se não conseguíssemos chegar a um acordo em Nurenberg, naquele hotel, se eu não casasse com ele e declarasse que ele era o pai da Babs, ele espalharia a verdade a respeito da criança, ele se encarregaria de fazer com que...
Que verdade a respeito da Babs, sra. Moran? perguntou o
presidente.
A verdade... A expressão da Sylvia agora era de meio louca.
... a verdade! Minha Babs, minha querida filhinha é doente mental!
Gritos, tumulto imenso na sala. Vários minutos se passaram antes do juiz conseguir restabelecer a ordem. Eu fechara os olhos quando a Sylvia pronunciou aquelas palavras. Continuei com eles fechados e ouvi como gritava:
Doente mental em conseqüência de uma meningoencefalite! É uma
idiota, em outras palavras! Está numa escola para excepcionais, não ficará boa nunca mais! Babs, o que eu mais adoro neste mundo... é uma débil mental!
63
Um médico!
O presidente se levantara, depois que a Sylvia caíra na cadeira.
Rápido, um médico!
A Sylvia ergueu-se imediatamente.
Nenhum médico vai encostar em mim!
Mas pode ser sério, sra. Moran. Por favor!
Vi que um dos peritos, certamente o médico, se levantara.
Sente-se! gritou a Sylvia. Eu não tenho nada! Eu quero
falar! Eu tenho que falar!
O perito sentou-se mais uma vez.
... ele trataria de fazer com que o mundo inteiro soubesse o que
nós... eu e a companhia de cinema... vínhamos ocultando há tanto tempo! Eu então estaria liquidada! De vez! Reservei pois o quarto lá no hotel. Peguei
554um avião para Nurenberg. Encontrei com Romero. Claro que acabamos brigando. Lutamos como bem observou o segundo perito! Ainda me lembro que um medalhão com o retrato da Babs caiu da minha bolsa... Depois... depois não sei o que aconteceu... Ouvi um tiro... Parece que agora ficou provado que Romero se matou... Mas eu é que estava empunhando a arma!
Eu! E a pistola era minha! Se ele não tivesse se matado, eu o teria feito!
Arquejava tanto que mal conseguia falar. Depois... depois... isso eu ainda me lembro... o medalhão caiu no chão... Estava debaixo dele... debaixo do corpo... Tive medo que fosse encontrado... Por isso levantei o corpo de Rettland... escondi o medalhão para que ele não fosse encontrado...
E por que não guardou consigo o retrato de sua filha?
Sr. Promotor... isto... isto o senhor não entende... Eu... eu
também não o entendo... eu na hora reagi de maneira inteiramente inconsciente... Estava fora do meu juízo... Fiquei parada lá de pistola na mão, até que... até... Eu... eu não encontro explicação... mas foi assim...
Sylvia, por favor! Por favor, pare com isto!
Pareceu não me ouvir.
Agora o senhor sabe...
A senhora repetiu uma porção de vezes que Rettland a coagiu
disse o promotor. Como podia ele coagi-la? Com uma criança doente
mental? Ora, mas isto não é culpa sua!
É o castigo de Deus!
Castigo de Deus? Para quê?
Os senhores... os senhores todos aí presentes, viram Bracken ser
preso por ter gravado o que eu disse em Monte-Carlo, depois do meu apelo através da televisão em prol das crianças excepcionais... Eu disse coisas horríveis...
Rod preso? Rod o extorsionário das fitas? Naquela hora eu ainda não sabia nada o que acabo de relatar. Estava pois boquiaberto, não conseguia entender, não captava mais nada. Rod...
Sr. Presidente, sr. Promotor, todos aqui presentes... Eu sou culpada... culpada de qualquer maneira... pois aquela vez em Monte-Carlo, quando falava aquelas palavras bonitas a respeito das crianças excepcionais, eu tinha asco de todas elas... e acabei dizendo que Hitler é que estava com a razão, quando mandou exterminá-las... Disse coisa pior ainda... Disse que para mim aquelas crianças não eram gente... Que não mereciam ajuda, nem proteção... que deviam ser liquidadas... Liquidadas!... Eu só fiz aquele apelo porque insistiram que era uma publicidade maravilhosa... e a meu lado estava sentada a Babs... boa ainda... a minha querida Babs... Deus me castigou... Deus me castigou... Hoje penso de maneira diferente... Mas para isso foi preciso que a Babs ficasse doente... Hoje penso como uma mãe com uma criança excepcional... Nem todas as mães pensam assim, no entanto... a maioria porém... Hoje... desde que a Babs adoeceu, eu também não sinto mais repulsa... não sou mais a favor de liquidarem estas pobres criaturas...
555hoje que é tarde demais, tarde para tudo...
Hoje gosto da Babs mais do que nunca... O amor.. A Sylvia respirou
fundo, ofegante e caiu no chão.
O perito que eu achava que era médico a socorreu. A sala converteu-se num verdadeiro inferno. Todo mundo gritava ao mesmo tempo. Corri para junto da Sylvia. Estava deitada de costas. Os olhos arregalados. O médico ajoelhou-se diante dela para examinar. O silêncio neste momento era total.
O médico olhou para o presidente e sacudiu a cabeça.
A sessão está suspensa disse este A ré terá que ser examinada pelos médicos.
Imediatamente levaram a Sylvia para fora da sala.
Menos de duas horas depois.
Os juizes voltaram. Todos se ergueram. Estranhamente os juizes permaneceram de pé.
Por que será que não sentam? Pensei eu.
Será que tiveram que levar a Sylvia para um hospital?
O julgamento será adiado?
A senhora Moran está morta declarou o presidente. O médico
constatou uma síncope cardíaca. O processo fica extinto. Pausa. Só
quero ainda acrescentar. Diante dos fatos até aí conhecidos, o tribunal está convencido de que a ré foi inocente. Está encerrado o julgamento.
Naquela tarde recebi visita pela primeira vez: Eu fora trazido de volta para o presídio já tarde, e estava dando meu passeio no pátio sozinho, pois os outros presidiários tinham horário diferente, quando saindo do prédio, a Ruth apareceu no pátio. Eu usava um terno Phillip Kaven marrom, sapatos macios e leves, pois fazia bastante calor. A grama brotara novamente, as árvores estavam cobertas de folhas novas. Os raios de sol ainda passavam por cima do muro. Eu estava passeando devagar, em círculo grande, beirando o presídio com suas inúmeras janelas de grade. De repente a Ruth apareceu numa porta.
Levantou a mão (vi que ela segurava um pequeno embrulho), e veio andando em minha direção. Fui a seu encontro. Nos encontramos, abraçamos mudos e beijamos demoradamente.
556Olhamos um para o outro, nos beijamos de novo. Depois fomos andando devagar pelo caminho coberto de cascalho.
Passado algum tempo a Ruth disse:
A secretária do juiz de instrução ligou para mim no hospital há
uma meia hora. Disse que eu poderia visitá-lo. Há muito venho insistindo com seu advogado para vir aqui, ele deve ter dito. Nunca consegui permissão.
Disse sim.
Disse também que eu nunca desisti de pedir?
Disse. Parei. Você se lembra quando nos vimos e falamos
pela última vez?
Claro. Ela usava um vestido azul e sapatos brancos; seu rosto
estava muito pálido. Foi naquela noite lá ém casa, depois de você ter sido
posto em liberdade. Antes de seguir para Madrid.
Isto mesmo. Foi no dia dez de outubro. Hoje estamos em vinte e
três de maio. Não nos vemos há sete meses. E eu estava tão acostumado a vê-la quase todos os dias, Ruth! Não podia nem imaginar como seria um dia sem você.”
Eu também não, querido disse ela baixinho. Olhamos um para o
outro. Foi uma época horrível.
A pior de toda minha vida -, disse eu.
Da minha também. Pior ainda do que quando meu irmão morreu.
Antes e depois.
Nos galhos das velhas árvores os pássaros faziam sua algazarra.
Pensei em você noite e dia. Fiz um relatório onde registrei tudo o
que aprendi vivendo com você.
O juiz me contou. Também eu sempre me lembrei de você, acordada e em sonhos. Sempre estive a seu lado.
Muitas vezes eu cheguei até a sentir a sua presença. Mas assim
mesmo foi muito duro.
Para mim também disse ela passando os dedos no meu
rosto. Você está muito bem, Phil.
Eu sei. Mas você, Ruth...
Ela colocou o dedo em cima da minha boca.
Deixa. Eu sei. Estou me sentindo tão derrotada quanto você. Não
vamos falar nisso. A coisa não acabou ainda.
Mas agora que a Sylvia morreu e seu processo está encerrado, você
vai poder vir me visitar com mais freqüência.
Vou sim. Coitada da Sylvia!
Ela está em paz. Eu espero. Eu também gostaria de estar.
Todo mundo gostaria, Phil.
Mas só a encontra depois da morte... quando encontra.
Ela olhou para mim demoradamente, depois disse:
Você ainda tem aquela plaquinha de metal?
557Aquiesci e meti a mão no bolso do paletó. Lá estava a placa que a Ruth me dera há tanto tempo... PAZ A TODOS, estava escrito em cima dela.
E você perguntei ainda tem a ovelhinha?
Tirou o bichinho todo surrado do bolso do vestido.
Sorrimos e notei que seus lábios estavam tremendo. Senti os meus tremerem também.
Eu te adoro, meu bem disse eu.
E eu a você respondeu ela, passando mais uma vez seus dedos
no meu rosto. Andei perguntando. Seu processo não vai demorar; e agora
depois da morte da Sylvia, talvez não passe de mera formalidade.
Não sei não. Talvez eu seja condenado por muito tempo até.
Não acredito.
Porque não quer acreditar.
Bem, isto é concordou ela. Entre cada frase que dizíamos,
pesava o silêncio. O sol brilhava, os pássaros continuavam com sua algazarra; eu me sentia tão derrotado, e tão feliz ao mesmo tempo. Tão feliz por ter a Ruth a meu lado! Beijei-a novamente. Continuamos a andar de mãos dadas. Na sua mão senti a ovelhinha.
Deixaram que eu viesse vê-lo sozinha. O guarda só ficou olhando
da janela; isto de qualquer maneira é um bom sinal disse ela. Seu
processo vai ter atenuantes, e Você talvez seja posto em liberdade muito em breve. Não estou dizendo isto agora porque espero que seja assim, mas me ocorreu de repente, e a prova é que ficamos sozinhos, sem a presença do guarda.
É mesmo concordei eu, me sentindo melhor. E, isto deve
significar alguma coisa. Além disso, o presidente do Tribunal disse que tudo indicava ser a Sylvia inocente.
Viu disse a Ruth, olhando para mim sorrindo. Sorri também,
porém nossos lábios tremiam.
E a Babs? perguntei eu. Como vai ela? Há sete meses não
sei dela. Fiquei quase louco.
Ela está bem, Phil Às vezes piora um pouco. No momento está
muito bem até. Já fez mais progresso. A paralisia cedeu completamente. Já consegue escrever frases mais longas. Consegue fazer contas, simples. Aprendeu a cozinhar uma porção de coisa. Consegue falar com mais facilidade.
E os olhos?
Estes infelizmente não mudaram nada. Mas ela é muito jeitosa para
trabalhos manuais. Trabalha em barro, e depois pinta. Já consegue dançar no ritmo, sem cair. A princípio perguntou muito por você. Mais tarde, depois de uma de suas fases ruins, esqueceu você; algum tempo depois voltou a perguntar de novo. Graças a Deus ela não tem muita noção de tempo. Para ela sete meses não são sete meses... é muito menos. Talvez sejam apenas sete dias. Ontem perguntou por você. Eu disse que em breve você estaria de novo em casa.
558Em casa?
Sim. Para ela a escola é seu lar. “Quando é que o Phil volta para
casa?” perguntou ela.
E os outros...
As crianças graças a Deus não têm capacidade para compreender.
Os adultos, claro que sim. O diretor foi interrogado pela polícia criminal. Mas graças a Sondersen, tudo foi feito com a maior discrição. Ele é realmente um grande amigo.
É mesmo. É um amigo de verdade. É deles que vamos precisar
agora.
Conversando, continuamos a passear pelo caminho coberto de cascalho.
Hoje seria o “terceiro” aniversário da Babs em Heroldsheid
disse eu. Faz dois anos que a trouxemos para cá. Naquela manhã, no
ônibus. Você se lembra?
Claro que lembro,
Lembra do motorista?
Ainda é o mesmo.
Foi no dia em que o Otto quebrou aquelas vidraças todas, lembra?
Lembro.
Como vai ele?
O Otto progrediu tanto que há três meses trabalha numa oficina,
com máquinas de perfurar. Mora num conjunto em Nurenberg.
Meu Deus disse eu como o tempo passa! Como a vida
passa! Se me acontecer qualquer coisa agora, o que vai ser da Babs?
Eu estou aí.
E quando você não estiver mais?
Sempre vai haver alguém que olhe pela Babs disse a Ruth.
Mas pare com isso. Por acaso já somos velhos? O que está acontecendo com você?
A gente pode cair morta de uma hora para outra.
Mas pode também viver muitos e muitos anos.
Agora a Babs ficou sem a sua festa de aniversário disse eu
tristemente. Ela estava tão orgulhosa em ter dois aniversários enquanto a
maioria das crianças só tem um.
Ela festejou o segundo aniversário, não se preocupe.
- Onde?
Comigo, lá no hospital. Com bolo, velinhas, presente e tudo. De
tarde, teve bolo e chocolate com os antigos amigos.
- Que antigos amigos?
- Ora, tem uma porção. Você não se lembra do pequeno Sammy, que se dizia o “Anjo da Morte”?
Ele ainda continua lá?
- Continua, e por muito tempo ainda.
559Não melhorou nada?
Melhorou, e como, meu bem. Mas ainda não o bastante. A “Rosquinha”, você se lembra daquela psicóloga? Estava na festa também. O diretor veio com o Alois, aquele entrevado e a sra. Bernstein. Quando eu saí havia oito crianças.
Você é muito boa disse eu.
Bobagem retrucou ela. - Não diga isto.
Continuamos a passear, e a Ruth a falar:
Os adultos de Heroldsheid agora sabem todos quem você realmente
é. Mas ninguém se sente enganado, nem ficou magoado. Todos mandam lembranças. Liguei para lá quando consegui licença para visitá-lo. Estavam tão satisfeitos pelo fato de nos podermos rever, o diretor, a sra. Bernstein! A sra. Grosser até chorou. Ficou de fazer um bolo para você; disse que manda depois de amanhã. Foi ela também quem fez o bolo de aniversário da Babs.
Mas de resto... comecei eu, e ela logo me interrompeu. De
resto ninguém em Heroldsheid sabe o que vai acontecer agora. Se vem repórteres; um, muitos. Se vão ter consideração com o pedido do diretor de não incomodar a Babs, de não invadir a escola de repente. Até agora não foi ninguém. Quem sabe desta vez os repórteres vão ter um pouco de piedade.
Por quê?
Talvez nem encontrem a escola. Talvez tenhamos sorte, meu bem.
Sorte?
Depois de divulgada a notícia da morte da Sylvia, por precaução,
eu levei a Babs comigo para o hospital. Se vierem repórteres, não vão encontrá-la em Heroldsheid. Talvez tenhamos sorte mesmo.
É fiz eu talvez. Talvez não. Tudo pode acontecer.
Não só aqui disse a Ruth em qualquer lugar. O que vai ser
do Rod?
Ele ainda está aqui?
Está neste presídio. Há semanas. Não sabem ainda se o processo
vai ser aberto aqui, ou se vão entregá-lo... afinal ele é americano, e a chantagem que ele vinha fazendo com a Sylvia há anos, foi nos Estados Unidos.
Canalha! disse eu.
É, um pobre canalha respondeu a Ruth.
Alguns pássaros vieram catar migalhas que um presidiário, do qual eu só podia ver a mão, jogara na grama por entre as grades de uma janela do terceiro andar. Será que ele consegue ver os pássaros? pensei eu.
E a Sylvia... onde... onde é que ela vai ser enterrada?
Em Hollywood. Vai ser um enterro monstruoso, como Hollywood
nunca viu igual, pode ter certeza. Mais propaganda ainda para o filme! Não existe filme no mundo que tenha tido mais divulgação do que o CÍRCULO DE GIZ. Você agora já vai poder ter acesso a jornais e revistas. Você não tem idéia de como este processo foi explorado! Toda semana você, a Sylvia e a Babs, ou ao menos dois de vocês, apareciam nas capas de revistas.
560Lembra o que você disse uma vez sobre o aumento de tiragem de jornais e revistas do mundo inteiro?
Lembro.
É exatamente aquilo. Muito mais ainda, do que você possa ter
imaginado. Ouvi na televisão que a tiragem aumentou estupidamente, e que a própria TV continua a viver do caso Moran. E agora, com a morte da Sylvia, vai começar tudo de novo. Ninguém que não tenha visto, pôde ter idéia da propaganda que vem sendo feita para o filme nestes últimos sete meses, âs custas do Caso Moran... Muito menos o que começaram a fazer agora! O filme continua a passar em Nurenberg. Todas as apresentações estão sempre com a lotação esgotada. Eu ainda não o vi. As entradas têm que ser compradas com antecedência. E isto em Nurenberg, em uma cidade da Alemanha apenas! O mesmo vai acontecer em todas as cidades do mundo, em que houver cinema. Já imaginou, em todas as cidades do mundo! Joe Gintzburger sem dúvida entende de negócios. Segundo uma declaração da SEVEN STAR, o filme deverá ser o maior recorde de bilheteria jamais alcançado. Muitas vezes maior! Eles contam com quatrocentos milhões de dólares.
Quatrocentos milhões repeti eu baixinho.
E agora com a morte da Sylvia então, o dinheiro vai entrar aos
borbotões. Sujeito esperto aquele Gintzburger.
Um grande patife, isso sim.
Claro concordou a Ruth Isso também.
O sol agora passava enviezado por cima do muro. O homem invisível do terceiro andar continuava a jogar migalhas para os passarinhos, e nós a passear de mãos dadas.
Quanto tempo você pode ficar?
Não sei. Não disseram nada. Não deve ter hora. Foram muito
amáveis comigo. Tenho quase certeza, querido, que o seu processo vai acabar rápido. Ou então que sua pena vai ser bem reduzida.
Quem sabe. Lembrei-me de uma frase: “Perplexos olhamos
a cortina fechada e todas as perguntas estão abertas”.
Isto é do epílogo de “O Bom Homem” de Brecht! exclamou a
Ruth me olhando espantada.
É, me ocorreu agora. Aqui temos uma biblioteca excelente. À
noite, quando não conseguia dormir, lia Brecht. Brecht e outros. Temos muitos livros aqui. A cortina fechou. Todas as perguntas... tantas aliás... estão abertas.
Por algum tempo continuamos a andar em silêncio.
Onde está o Joe? perguntei eu depois.
Voltou para Hollywood há muito tempo.
Então eu posso imaginar o circo que vai ser o enterro da Sylvia
A Ruth parou; eu também.
561Falei com o dr. Kassner, o psiquiatra da Sylvia, quando ele esteve
aqui. Conversamos longamente sobre ela. Kassner disse que sob o ponto de vista médico, a Sylvia realmente era uma criminosa em potencial. Aí está a tragédia: as trágicas conseqüências de seus esforços para conseguir êxito com o tratamento. Conseguiu restabelecê-la tão bem, a ponto dela querer e conseguir resolver sozinha seus problemas... o problema Rettland.
Matando-o.
Exatamente.
Com um crime acrescentei eu.
É fez ela.
Tão recuperada estava ela disse eu.
Quer saber de uma coisa, meu bem, inteiramente, curada, curada
para sempre, ela não ficou. Não ficaria nunca mais! Ela estava acabada, destruída, no fim. Mesmo que em Berlim tudo parecesse estar em ordem. Kassner diz que talvez ela conseguisse rodar o filme até o fim. Era bem possível que não. Ia ter outra crise. Depois não ia poder mais rodar filme nenhum, com todos aqueles sentimentos de culpa!
Respirei fundo.
E Joe sabia disto disse eu, e de repente vi tudo claro, ofuscantemente claro.
Kassner não lhe disse uma palavra a respeito.
Claro que não, mas Joe é um patife muito vivo. Em sua longa
carreira ele viu muito artista, homem e mulher, se quebrar. Ele sabia o que estava acontecendo com a Sylvia, mesmo sem que qualquer médico lhe dissesse, tenho certeza disso. Pode ser horrível... mas, disso eu estou convencido... Joe tirou o melhor proveito da situação. Sugou todo o dinheiro que pôde de uma mulher já perturbada... e foram milhões e milhões. Usou esta pobre ruína humana para encenar este último e grande espetáculo!
A Ruth ficou olhando perplexa para mim.
Você acha?
Aquiesci.
É, agora eu vejo claramente o plano que ele seguiu. Porque ele e
todas as testemunhas que ele pôde influenciar depuseram daquela maneira ou se negaram a depor. Com exceção dos peritos e da polícia evidentemente, tinha todos eles praticamente na mão. Para Joe, o tubarão, a Sylvia já estava morta mesmo que ela continuasse a viver, que tivesse sido absolvida! Morta, porque não podia mais usá-la. Morta como artista. Morta como objeto de valor. Morta... mas ainda podendo ser usada se ele se apressasse. E ele se apressou.
Meu Deus! exclamou a Ruth aterrorizada.
Eu conheço aquela indústria. Conheço Joe. Pode acreditar em
mim. Foi assim mesmo. Tenho certeza, querida, que o coração de Joe está pulando de alegria diante das declarações histéricas da Carmen Cruzeiro, sobre a minha prisão, sobre o desmascaramento de Rod... com tudo que
562serve de Manchete, tudo que é sensacionalismo, que traz novos milhões. Este processo foi o último filme que Joe fez com a Sylvia. E com ele conseguiu um happy end que talvez não tivesse nem ousado imaginar... ou melhor, em que vivia pensando, mas que apesar de suas piedosas orações ele considerava inatingível, isto é, a morte da Sylvia. Este foi o maior happy end em toda sua vida.
Continuamos a passear mudos. As sombras foram se alongando, o sol baixou, pássaros emudeceram.
E ele vai escapar impune? perguntou a Ruth.
Gente como ele não é punido. Ao menos não por outros homens,
aqui nesta terra. Normalmente não. Às vezes é de alguma maneira especial. Na maioria delas, no entanto, não é.
Apertou meu braço depois de ter consultado o relógio.
Tenho que voltar com urgência para o hospital, querido.
Quando é que você volta?
Amanhã E ela sorriu aquele seu sorriso maravilhoso. O juiz
de instrução mandou dizer, que agora eu podia vir vê-lo sempre... talvez até todos os dias. Isto é um bom sinal! Ora, eu quase ia esquecendo. Aqui está um presente para você. Da Babs. Ela me deu. e pediu para lhe entregar assim que o encontrasse.
Peguei e abri. Deixei o papel cair no chão. Babs tinha feito um prato de barro para mim... do tamanho da palma da minha mão. Não era perfeitamente redondo, nem muito liso, mas era um prato, sem a menor dúvida. Estava todo de pontinhos vermelhos, azuis, amarelos e brancos, e de linhas verdes.
Será que são flores?
Acho que sim disse a Ruth. Viu o que ela já sabe? Não é
bonito?
Lindo disse eu, e as lágrimas me vieram aos olhos. Lindo
mesmo!
Eu não lhe disse que ela estava fazendo progresso?
E progresso grande até.
Não é? Claro que ainda vai levar muitos anos até que ela realmente
esteja em condição de não submergir na vida, de conseguir viver com a ajuda de uma pessoa normal. Mas viver, viver ela vai conseguir, querido.
Vai sim.
- Não importa se ela vai poder ficar em Heroldsheid, ou se terá que ir para outro lugar qualquer. Não importa as recaídas que vierem. Nada importa, nada! Ela sempre vai continuar a melhorar um pouquinho, meu bem. Não ficará boa de todo nunca... nisto nem se pode pensar! Mas melhorar ela vai. Quanto, onde e como, não podemos saber.
Tem razão disse eu.
Nunca mais estará sozinha disse a Ruth olhando firme para
mim.
563Nunca mais - disse eu - me lembrando de repente da carta de
despedida da Clarissa, na qual me pedia para nunca abandonar a Babs.
Agora eu tenho que ir... a Babs... A visita...
Vai querida. Amanhã você volta, não é?
. Volto sim. Com certeza.
Nos beijamos, nos abraçamos com força. Depois a Ruth sorriu para mim e atravessou rápida o caminho de cascalho. Fiquei olhando. Virava-se sempre para acenar. Pensei em correr atrás dela, pois ela evidentemente ia entrar pela porta errada. Abri a boca para chamá-la, para lhe chamar atenção de seu engano, quando vi que ela não cometeu erro nenhum. Passou em frente à porta errada, e continuou a andar, sempre acenando e depois desapareceu. Pela primeira vez desde que a conhecia, ela tomara o caminho certo.
Não sei se foi um, cinco ou dez minutos que fiquei parado imóvel à sombra do muro. De repente voltei a mim, o prato de barro na mão. Estivera a contemplá-lo absorto, com aquela porção de manchinhas coloridas e linhas verdes.
Ao contemplá-lo, me lembrei daquela fina placa de ouro que tinha visto na parede coberta de livros, do apartamento da Ruth. Lembrei-me novamente da inscrição, e do fato de ter perguntado à Ruth quem era o autor daquela frase e dela ter me respondido que era de um escritor, mas que não conseguia se lembrar do nome.
Contemplando o presente da Babs, pensava na pequena placa de ouro com a frase do escritor, cujo nome a Ruth esquecera...
Devem ser flores mesmo que a Babs quis pintar pensei ainda.
Guardei o prato cuidadosamente no bolso do paletó e fui andando para a porta de entrada do presídio. Começara a refrescar. A noite se aproximava. O cascalho debaixo de meus pés rangia. Olhei para o imenso muro cinzento do presídio e me lembrei das palavras na plaquinha de ouro:
PARA QUE EXISTEM AS FLORES? APENAS PARA FLORESCER, MAIS NADA.

 

 

                                                                  J. M. Simmel

 

 

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