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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NINGUEM QUER UM CORAÇÂO /J. M. Simmel
NINGUEM QUER UM CORAÇÂO /J. M. Simmel

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

       Até aqui, bem sei, você apenas conhece meus romances e, se for muito jovem, meus livros infantis. Poucos sequer adivinham que escrevi várias centenas de contos. Talvez algumas pessoas reflitam sobre o contista Simmel, caso tenham lido em algum jornal ou revista algo que escrevi porque me interessava muito. Se, hoje em dia, aparece uma dessas histórias, isso se dá pela mesma razão pela qual escrevi minhas centenas de histórias nos últimos trinta e três anos, hoje mais raramente, outrora sem parar: porque durante vinte e cinco anos fui repórter.
       Nesse longo período escrevi comentários, glosas, histórias divertidas, tristes, amargas, meditativas, exortativas e iradas. Escrevi sobre felicidade e desgraça, revoluções, guerras, rebeliões, pobreza, fome e riqueza. Fui repórter de sala de tribunal, e anotei relatórios sobre grandes casos criminais, bem como sobre o que acontece à chamada "gente simples" - coisas cômicas, trágicas, que mexem com nosso coração. Eu era, na verdade, o "faz-tudo".
       Durante quinze anos trabalhei para uma grande revista. Lá era natural que eu - sempre eu! -- escrevesse as histórias oportunas de Páscoa, Natal, Dia das Mães ou Ano Novo e todas as coisas edificantes que há por aí.
       Com este livro apresento-lhes uma pequena seleção de minhas histórias sobre o que alegrou, excitou e abalou os homens no último quarto de século; surgiu com efeito algo como uma crônica dos tempos, embora apenas num primeiro e pequeno corte transversal. "Viena, Viena e tanta tristeza", por exemplo, foi escrito em 1978 e a "Pequena fanfarra", em 1945, logo depois do fim da guerra, portanto trinta e três anos antes da outra.
       Espero ter-me tornado com isso uma espécie de historiador inusitado do mundo em que vivemos: "História" que é feita e "histórias" que escrevemos não se relacionam apenas lingüisticamente de maneira muito íntima. Agora, na releitura, ocorreram-me de novo muitas coisas que eu esquecera há tempos, mas deveria ter lembrado sem falta. Seria bom se você, leitor ou leitora, ao ler, sentisse como eu, pois todos nós esquecemos depressa demais. E não devemos fazê-lo!


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       A mulher do segundo guarda-livros, Emil Krummrück, morrera havia cinco anos. Fora a última pessoa a quem Krummrück se sentira ligado. Todos os seus outros parentes já estavam mortos e há muito ele não tinha mais amigos. O segundo guarda-livros Krummrück era seguidamente chamado de "difícil" pelos seus superiores, colegas e vizinhos, embora isso não fosse verdade. Apenas era muito tímido e assustadiço.
       Olhando o caso sem falsos sentimentalismos, devia-se admitir que Krummrück tinha uma aparência bastante repulsiva - era uma ruína de homem, o cabide torto de uma série de roupas muito usadas. Tampouco se podia imaginar que um dia tivesse sido criança (Deus permitindo, até uma criança bonita). Parecia que já viera ao mundo com seus sessenta e três anos.
       Todavia, após a morte da mulher, que em vida cuidara dele, Emil Krummrück não fez realmente nada para parecer um pouco mais agradável. Ao contrário, tornou-se relaxado. E isso, mais uma vez, progressivamente. Primeiro, porque era tímido e assustadiço, convenceu-se de que todas as pessoas o consideravam simplesmente repulsivo e horroroso, e não queriam nada com ele. Isso em parte até era verdade. Mas o fato de parecer tão repulsivo e horroroso se devia a que ele próprio nem pensava mais em se cuidar um pouquinho. E quanto mais Krummrück se negligenciava, tanto mais repulsivo e horroroso parecia - e é compreensível que sempre mais e mais pessoas não quisessem ter nada com ele. Disso Krummrück tirou conclusões falsas: primeiro amaldiçoou seu triste destino, depois resignou-se, amargurado. E teria feito muito melhor comprando roupas e sapatos novos, e mandando aparar regularmente os cabelos.
       Três anos após a morte da mulher de Krummrück, a situação ficou péssima. Ele decaíra como nunca! Muitas de suas camisas tinham punhos puídos, muitas de suas meias tinham buracos, e muitas de suas gravatas tinham manchas de gema de ovo e molho de carne assada. Quase não falava (exceto no escuro e abarrotado escritório da expedição), e habituou-se a ficar sentado horas a fio num banco de um pequeno parque, contemplando as nuvens que passavam. Por vezes imaginava que lá em cima, em algum lugar, sua mulher esperava por ele; mas em geral alegrava-se, pois já não era preciso acreditar inteiramente nessas histórias de reencontro no céu e bem-aventurança eterna. O segundo guarda-livros Krummrück já nem tinha mais saudades de sua mulher. A tal ponto chegara. Os colarinhos de muitas de suas camisas estavam todos puídos e apenas ia ao barbeiro quando o chefe mandava.
       Mas continuava a ir diariamente à miserável pracinha. Nem ele mesmo sabia por quê. Desacostumara-se cada vez mais de refletir no que fazia ou deixava de fazer.
       Após visitar seu banco por vários meses, certa tarde um passarinho veio pousar no cascalho a seus pés e contemplou-o curioso. Krummrück, que simplesmente odiava ser contemplado com curiosidade, deu um pontapé em direção do pássaro, e este voou.
       Dois minutos depois, voltava.
       Era um abelheiro do tamanho de um pardal, de barriga amarela e uma fita negra ao longo do corpo, e cabeça também negra. No resto de suas penas o animalzinho mostrava tons esverdeados, cinzentos e brancos. Krummrück deu-lhe outro pontapé, mas dessa vez o pássaro não voou. Apenas saltitou para o lado e eriçou as penas. Krummrück virou a cabeça e fingiu não notar o pássaro. Um minuto depois espiou com o rabo do olho. Ele ainda estava lá. E continuava coquetemente arrepanhando as penas.
       Mal-humorado, Krummrück pensou que talvez o bichinho estivesse com fome. Remexeu nos bolsos de seu terno amarrotado até encontrar meio pãozinho que não comera; amassou-o e começou a espalhar as migalhas. O pequeno abelheiro bicou-as imediatamente. De vez em quando saltava de novo para o lado, enviesava a cabecinha e olhava para Krummrück. Assim se passou meia hora. Depois começou a escurecer. Krummrück levantou-se e saiu andando. O abelheiro também voou para casa.
       Na tarde seguinte Krummrück levou ao parque um pedaço grande de pão branco. Envergonhava-se um pouco, mas para acalmar-se pensou que era dever dos seres humanos ajudar animais famintos. Sentou-se no seu banco e ficou esperando. Não esperou muito tempo. Alguns minutos depois o pequeno abelheiro colorido veio planando e aterrissou elegantemente no cascalho. Krummrück pegou o pedaço de pão branco. Estava sozinho na praça, a essa hora da tarde, e ninguém o via; só o pássaro. E só esse abelheiro viu que, nessa tarde, o rosto mal-humorado e mal barbeado de Krummrück iluminou-se com um alegre sorriso, e imediatamente deixou de parecer tão feio. . .
       Esse foi apenas o começo de uma amizade.
       Krummrück e o abelheiro passaram a encontrar-se diariamente, mesmo nos domingos e feriados. No escritório o solitário segundo guarda-livros sempre ficava inquieto por volta das quatro e meia, e às cinco em ponto fechava sua escrivaninha e tratava de sair. Comprava numa casa especializada iguarias para pássaros: aveia, biscoitos esmigalhados, sementes de girassol e um "alimento especial para abelheiros", caro e fabuloso.
       Krummrück batizara o abelheiro de "Marlene". Sempre gostara muito de sua mulher e, por falta de oportunidade, nunca a traíra; mas seu pingo de fantasia ainda se alçava e seu pobre corpo ainda se aquecia à lembrança da arrebatadora aparição daquela imortal dama do cinema, com as mais lindas pernas e a voz mais excitante do mundo. Krummrück nunca deixara de venerá-la como a uma criatura extraterrena, desde que vira o filme no qual a dama cantava que "era feita para o amor da cabeça aos pés".
       Todos os dias, pontualmente às cinco e meia, Krummrück aparecia junto do seu banco na praça e dava comida a Marlene, que era bem mansinha, ficava quieta e não fugia com cada bocado gostoso para depois voltar (como fazem outros abelheiros). Depois que Krummrück dava comida a Marlene, os dois ficavam ali sentados, olhando um para o outro.
       Então chegou o dia de folga, e aconteceu pela primeira vez: Krummrück esperou em vão. Marlene não apareceu. Ele esperou até escurecer e finalmente foi para casa, cambaleando como se estivesse bêbado. Estava desesperado! Em casa, entregou-se a reflexões frenéticas sobre os motivos que poderiam ter afastado Marlene do seu encontro marcado. Talvez estivesse morta! Havia tantos gatos traiçoeiros e tantos malucos de carro, sem consideração nenhuma. Não, não, não, seria horrível demais! Krummrück procurou e encontrou uma porção de outros motivos, mas nenhum deles o acalmou. Quase nem dormiu naquela noite. Na tarde seguinte, mal deram cinco e meia, estava de novo sentado no seu banco. E mais uma vez esperou em vão. Marlene continuava desaparecida. Krummrück era um sujeito que desanimava facilmente. Chorou em silêncio, pois pela primeira vez na sua longa e monótona vida tinha a terrível sensação de estar totalmente abandonado. Quando morrera sua mulher, não sentira isso nem de longe, nem com tanta intensidade, como depois do desaparecimento de seu pequeno abelheiro, talvez morto. Krummrück ficou ali sentado, chorando e limpando as lágrimas com os dedos sujos de tinta.
       Continuou indo ao parque inutilmente por mais sete dias, e no oitavo adoeceu. Ficou tão doente que o médico pediu a uma vizinha que olhasse por ele várias vezes durante a noite. Krummrück ficava deitado, rígido, na sua cama feia, olhando fixamente o teto; quando delirava e falava, o médico não conseguia entendê-lo.
       - Fala sempre de uma tal Marlene - disse o médico à vizinha. - Como se chamava a mulher dele?
       - Emma - respondeu a vizinha e refletiu intensamente, para ver se não conheceria alguma Marlene com a qual pudesse imaginar Krummrück em alguma ligação proibida ou escandalosa.
       Depois o segundo guarda-livros, ainda por cima, teve pneumonia. Precisou ir para o hospital. A situação era cada vez mais lamentável. Por alguns dias pareceu que ia morrer. Todo mundo já contava com sua morte. Krummrück quase morreu, mas acabou não morrendo. Recuperou-se, embora sem qualquer vontade ou alegria. Três semanas mais tarde, estava de novo sobre as pernas bambas. Parecia mais repulsivo ainda, pois agora também estava pálido e muito magro. O médico-chefe disse-lhe:
       - Mas o senhor tem de se cuidar muito e ficar mais um pouquinho conosco para recuperar as forças.
       - Sim, sim - respondeu Krummrück. "Vá falando", pensou. "Não me importa ter forças de novo ou não. Para mim, tudo é indiferente."
       No primeiro dia em que pôde sair um pouquinho, dirigiu-se ao parque e ao banco. O parque ficava logo atrás do hospital. Krummrück já não tinha esperanças de encontrar Marlene, apenas queria sentar-se mais uma vez no banco em que um dia fora tão feliz, mais feliz do que em qualquer outro lugar. Sentar-se mais uma vez no parque e pensar em Marlene, era isso o que queria - depois, não importava. Esse mundo era mesmo de dar náuseas! Krummrück sentia-se ainda muito fraco e por isso logo adormeceu. Quando despertou, eram exatamente cinco e meia. Um piado fininho o acordara. Abriu os olhos e notou que uma grande felicidade o dominava. Pois diante dele, no cascalho, saltitava Marlene. Olhava-o como se quisesse pedir desculpas. Trouxera consigo as razões de seu desaparecimento. As razões revoavam desajeitadas em redor de Krummrück - três minúsculos abelheiros, os filhos de Marlene. Krummrück não se moveu. Ficou sentado, absolutamente imóvel. Os filhotes esvoaçaram em seus ombros.
       Então o segundo guarda-livros Krummrück pensou. "Mas que diabo, nem sei por que pensei que o mundo me dá náuseas. Esse mundo é bonito! Maravilhoso! E não me é indiferente bater as botas ou não, ter forças ou não. Eu quero ter forças! Portanto, fico mais um pouquinho no hospital. Depois, vou me tornar um sujeito decente. Vou comprar coisas novas para vestir e um barbeador elétrico, e começarei a ir ao barbeiro a cada quinze dias, juro que sim. Já mostrei durante muito tempo uma imagem repulsiva. Mas agora tudo vai mudar. Afinal, sessenta e três anos não é nada!"
       O segundo guarda-livros Emil Krummrück ficou de novo sadio e forte. Manteve todas as promessas que fizera a si mesmo e, de súbito, pessoas estranhas lhe sorriam no ônibus, colegas o convidavam para jogar boliche ou tomar cerveja, e Emil Krummrück ria feliz. De repente tinha uma porção de conhecidos e amigos. Todas as tardes ia ao parque, encontrava Marlene e levava-lhe comida, como sempre. Marlene voltava de novo sozinha, os filhotes rapidamente se tinham tornado independentes.
       No pequeno parque, Emil Krummrück conheceu então a viúva de um engenheiro, Cecília Peterka, de cinqüenta e oito anos. Certo dia ela estava sentada no banco quando ele chegou; viu-o dar comida a Marlene, que ficou muito enciumada, mas escondeu seus sentimentos, pois Emil levara sua comida predileta: sementes de girassol.
       O segundo guarda-livros Emil Krummrück tornou-se - milagre da aparência bem-cuidada! - o primeiro guarda-livros Emil Krummrück. Com os encontros diários no parque, aproximou-se mais espiritualmente da viúva Peterka. Marlene naturalmente sentiu isso, mas nunca deixou transparecer nada, ainda que seu coração doesse, pois afinal ela também era apenas uma criatura do sexo feminino.
       Então, passados alguns meses, Cecília Peterka sugeriu a Krummrück que se mudasse para a casa dela. Tinha uma moradia grande e, se vivessem juntos, a viúva poderia cuidar direito do primeiro guarda-livros. Assim, Krummrück fez sua mudança. Naturalmente os dois companheiros não pensavam em se casar - havia as pensões! Mas envelhecer juntos, isso queriam.
       Havia tanto que fazer e Krummrück estava tão excitado e feliz, que durante muitas semanas não foi ao parque. E até o esqueceu.
       Mas finalmente lembrou-se de Marlene e foi procurá-la. Não a encontrou. Foi mais algumas vezes ao pequeno parque, mas nunca mais viu Marlene.
       (1964)
      
       Palhaço alegre, lágrimas amargas
       Crianças, crianças, que espetáculo aquele no circo! Aconteceu um dia antes do Natal. Como convinha, toda a terra sumia debaixo da profunda neve, em todas as cumeeiras pendiam estalactites cintilantes de gelo, mas debaixo da lona do circo estava quente e confortável, o cheiro não era como de costume, de couro e estrebaria, mas também de cuca de mel, nozes e ramos de pinheiro.
       Trezentas e vinte e sete crianças com seus pais assistiam ao espetáculo. Naquela tarde, os menininhos e menininhas eram convidados da fábrica em que seus pais trabalhavam. Já em novembro o dono da fábrica dissera:
       - Tivemos um bom ano. Por isso eu gostaria de fazer para todos nós uma festa de Natal bem bonita, não uma dessas comuns. Sugiro irmos todos juntos ao circo. E quem tiver filhos pode levá-los. Eu mesmo vou levar os meus três!
       E lá estavam eles sentados, duas menininhas e um menininho, ao lado de seus pais, entre trezentas e vinte e quatro outras crianças. E a festa de Natal já estava acontecendo.
       Primeiro ganharam chocolate, depois bolos, depois limonada e bombons, depois muitos presentes. As menininhas ganharam bonecas, bolsinhas coloridas e pirulitos em forma de peixinhos; os menininhos ganharam livros interessantes, canetas-tinteiro, douradas, e excitantes jogos de armar.
       E então começou o espetáculo de circo.
       Foi a parte mais bonita para as crianças! Estavam sentadas, felizes na imensa tenda de lona, alegrando-se ao ver os pôneis dançarem, arrepiando-se de medo com os rugidos dos leões, e terrivelmente nervosas quando as belas damas, em suas malhas prateadas, disparavam pelos ares lá em cima nos seus trapézios.
       Ah, e depois veio o palhaço!
       Já quando ele tropeçou para dentro do picadeiro, as trezentas e vinte e sete crianças ergueram suas vozinhas num só grito agudo de encantamento. A partir de então, ninguém mais ouvia as próprias palavras. As crianças riam tanto que a tenda de lona balançava. Riam tanto que tinham lágrimas nos olhos. Muitas chegaram a sentir-se mal de tanto rir.
       Mas o palhaço era mesmo formidável! As palhaçadas que fazia eram tão incríveis que até os adultos quase sufocavam de rir, inclusive o diretor. E nunca ninguém o vira assim.
       Esse palhaço nem ao menos falava, não precisava de palavras para ser engraçado. Representava em silêncio o que as crianças queriam ver. Imitava um porco e um crocodilo, e um urso dançarino. Mas o mais engraçado era quando imitava um coelho.
       Foi esse, aliás, o momento em que o famoso velho palhaço começou a ficar nervoso. Foi quando viu a menininha de fita vermelha no cabelo.
       A menininha estava sentada entre o pai e a mãe, na primeira fila, bem perto do picadeiro. Era uma menininha muito bonita, com rosto fino e inteligente, e um alegre vestido azul.
       O pai ao lado dela ria. A mãe também ria. Só a menininha com a fita vermelha não ria. Era a única entre as trezentas e vinte e sete crianças que não ria.
       O velho palhaço pensou: "Vamos ver se não a faço rir também, minha cara!" E, por assim dizer, começou a representar só para a menininha da primeira fila.
       O velho palhaço trabalhou bem como nunca.
       Mas... não adiantou nada. A menininha continuou séria. E bem séria fitava o palhaço, com grandes olhos fixos, sem repuxar a boca. Era uma menininha muito simpática, uma das mais simpáticas. Apenas não ria.
       Aos poucos o palhaço começou a achar aquilo sinistro. Por trás de todas as suas brincadeiras havia muito trabalho e semanas de reflexões. Observava muito bem as reações da platéia, quando alguém começava a rir e outro parava de rir. E guiava-se por isso em suas palhaçadas. Chamava isso de contato com o público. Nessa representação para crianças fora fácil fazer contato, pois crianças eram espectadores muito bons. Menos a menininha.
       De repente, no meio daquela imitação do coelho, o velho palhaço foi dominado por uma infinita tristeza e uma terrível perplexidade. Por ele, teria interrompido o trabalho. Sentia que simplesmente não podia continuar representando, se aquela menininha da primeira fila continuasse olhando para ele daquela maneira.
       Por isso fez algo inusitado. Parou diante da menininha e disse gentilmente:
       - Escute, você não está gostando do espetáculo?
       A menininha o fitou, séria e com olhar fixo, e respondeu amavelmente:
       - Ah, sim, estou gostando muito!
       - Mas, então por que você não ri como todas as outras crianças? - perguntou o palhaço.
       - Mas de que eu deveria rir?
       - Bom - disse o palhaço encabulado -, de mim, por exemplo.
       O pai da menininha quis dizer alguma coisa, mas o palhaço fez um sinal de que a menininha é quem devia responder.
       - Desculpe - disse ela. - Eu não quis ofender você, mas não posso rir.
       - E por que não?
       - Porque eu não posso ver você - disse a menininha. - Sou cega.
       Um silêncio mortal encheu a gigantesca tenda de lona. A menininha ficou sentada, muda e amável diante do velho palhaço, e este não sabia o que dizer. Levou tempo até que lhe ocorresse alguma idéia.
       Enquanto isso a mãe explicava:
       - Érica nunca esteve no circo!  Só lhe contávamos como era.
       - E desta vez ela quis saber de qualquer jeito como era um desses circos - disse o pai.
       O pai era o capataz da grande fábrica. E amava muito a mulher e a filha. Elas também o amavam. Formavam uma família feliz.
       O palhaço perguntou, constrangido:
       - E agora você sabe como é um circo de verdade, Érica?
       - Ora - respondeu ela alegre -, naturalmente eu já sabia de muita coisa! Papai e mamãe me explicaram tudo. Ouvi os leões rugindo e os pôneis relinchando, e consigo até imaginar tudo bem direitinho. Tudo, menos uma coisa.
       - O quê? - perguntou o palhaço, que já sabia do que se tratava.
       - Por que você é engraçado? - disse Érica, a do laço vermelho no cabelo. - Por que a gente tem de rir de você? Essa é a única coisa que não posso imaginar de jeito nenhum!
       - Hum - disse o famoso palhaço. Fez-se novamente um silêncio mortal no circo. E o palhaço fez uma coisa muito bonita. Curvou-se e disse:
       - Preste atenção, Érica, vou lhe fazer uma proposta.
       - É?
       - Mas só se você quiser mesmo saber por que as outras crianças riem de mim.
       - Claro que eu quero saber!
       - Muito bem. Então, se seus pais concordarem, amanhã de tarde vou fazer-lhes uma visita.
       - Na minha casa? - perguntou Érica, toda excitada.
       - Sim, em sua casa. E vou lhe mostrar o que há de engraçado em mim. De acordo?
       Érica fez que sim e juntou as mãos:
       - Ah, que bom! Paizinho, mãezinha, ele vai nos visitar!
       - Isso é muito simpático da parte dele - respondeu baixinho o pai.
       E a mãe acrescentou, mais baixo ainda:
       - Nós lhe agradecemos muito.
       - Não há de quê - disse o velho palhaço. - Onde é sua casa? - Deram-lhe o endereço e ele sacudiu a cabeça. - Que tal lá pelas seis horas?
       - Seis horas - disse Érica. - Ah, já estou tão alegre com sua visita!
       O palhaço acariciou-lhe o cabelo, respirou fundo e sentiu-se como se lhe tivessem tirado cem quilos de peso das costas.
       - Senhoras e senhores, o espetáculo continua! - exclamou.
       As outras crianças bateram palmas. Naquele momento, todos invejaram ardentemente a ceguinha Érica, a quem o maravilhoso palhaço queria visitar pessoalmente
       Naquela noite caiu neve. No dia seguinte também. Não parava de nevar. E por volta das cinco e meia realizou-se a festa de Natal em casa de Érica. As velas brilhavam na árvore de Natal, a menininha apalpou todos os belos presentes que estavam sobre a mesa, deu um beijo na mãe e outro no pai, mas perguntava a toda hora:
       - Vocês acham que ele vem? Acham que vem mesmo?
       - Claro - dizia a mãe. - Ele prometeu.
       E ele chegou, pontualmente. Muitas vozes estavam cantando no rádio, uma canção falando de paz na Terra, quando a campainha da porta tocou.
       Érica correu ela mesma para abrir. No corredor estava o velho palhaço.
       Usava uma casacão de inverno sobre um terno escuro.
       Érica deu-lhe a mão e disse, gaguejando de nervosismo:
       - Mas. . . mas. . . mas é mesmo muito simpático da sua parte vir me visitar.
       - Então, permita-me... - disse o palhaço. E cumprimentou os pais. Depois entregou seu presente para Érica: três livros impressos em tipos especiais, que os cegos conseguem ler.
       Érica já lera alguns livros naquela escrita e ficou muito contente com os três novos. Mas depois veio algo muito mais bonito.
       - Será que eu podia tomar um conhaquezinho? - perguntou o velho palhaço. Serviram-lhe um e não foi pequeno.
       Após ter bebido, pegou Érica pela mão e levou-a para uma poltrona diante da árvore de Natal. Os pais olharam em silêncio o velho palhaço sentar Érica na poltrona, pegar suas mãozinhas e ajoelhar-se na sua frente.
       - Passe a mão no meu rosto - disse. - E pelo meu pescoço. E pelos meus ombros. E também pelos meus braços e pernas. Isso é a primeira coisa: você tem de saber direitinho como eu sou.
       O palhaço nem parecia engraçado, sem máscara e sem fantasia. Sabia disso. Tampouco sentia-se muito entusiasmado com a experiência em que se tinha metido. (Por isso pedira o conhaque.)
       - Pronto? - perguntou por fim.
       - Hã-hã - tornou Érica.
       - Sabe como pareço?
       - Direitinho.
       - Bom, então podemos começar - disse o palhaço. - Mas, por favor, não tire as mãos de mim. Você tem de me apalpar o tempo todo para entender o que estou fazendo.
       - Claro - volveu Érica.
       E o velho palhaço começou a representar. Fez mais uma vez tudo o que fizera no circo. Os pais ficaram parados perto da porta, de mãos dadas, olhando.
       - Agora, o urso dançarino - disse o velho palhaço.
       Os dedinhos finos e delicados de Érica passavam por cima dele, enquanto ele imitava o urso dançarino. Mas seu rosto ainda estava sério.
       O palhaço, porém, não se deixou enganar, embora aquele fosse o espetáculo mais difícil de sua vida. Imitou o crocodilo. Depois o porquinho. Os dedos de Érica deslizavam cada vez mais depressa sobre o rosto e os ombros do palhaço, ela tinha a respiração inquieta, a boca aberta. Os adultos também respiravam depressa.
       Parecia que Érica realmente conseguia ver com os dedos o que outras crianças vêem com os olhos, porque de repente ela deu uma risadinha. Leve e curta. Mas era uma risadinha. Quando apareceu o porco.
       O velho e famoso palhaço redobrou seus esforços. E Érica começou a rir.
       - Agora, o coelho - disse o palhaço, anunciando o seu melhor número. Érica riu mais alto, cada vez mais alto. Engasgou-se de tanta alegria.
       - De novo! - gritou, feliz da vida. - Por favor, faça de novo!
       E o velho palhaço fez o coelho de novo. E mais uma vez. E outra ainda. Érica não se cansava. Os pais olharam um para o outro. Érica nunca na vida rira assim.
       Por fim ela ficou sufocada. E exclamou:
       - Mãezinha! Paizinho! Agora sei como é um palhaço! Agora eu sei tudo! Acho que esta é a festa de Natal mais bonita do mundo!
       Seu rosto estava quente. Seus dedinhos ainda passavam pelo rosto do ancião ajoelhado à sua frente.
       E de repente Érica assustou-se um pouco. Pois notara que o famoso palhaço estava chorando.
       (1958)
      
       Viena, Viena e tanta tristeza
       "Se eu pudesse fazer um pedido, pediria um pouco de felicidade, porque se eu fosse feliz demais, teria saudades da tristeza."
       (De uma velha canção interpretada por Marlene Dietrich)
       Eu tenho essa saudade. Sempre que venho a Viena, ela aparece. Minha mãe colocava uma pomba de porcelana sobre o armário de meu quarto de criança, quando eu era menino e ficava triste. No pedestal da pomba havia uma inscrição que dizia: "A árvore da vida só floresce para quem é alegre". E a árvore da vida voltava a cada dia a florescer para mim. As pessoas dizem que naquele tempo eu andava sempre alegre. Mas isso foi numa outra época, distante como se estivesse por trás de uma cortina de fumaça.
       Nasci em 1924, na cidade de Viena. Meus pais eram de Hamburgo, meu f ai foi mandado para a filial de sua firma em Viena. Assim, nasci na "Rudolfinerhaus". E também minha irmã nasceria mais tarde em Viena.
       Hoje vivo em Mônaco, bem junto do mar. Mas estava em Viena quando o pintor de paredes a invadiu, e estava ainda em Viena quando ele se suicidou em Berlim, e a Europa viu-se transformada em escombros. Festejei meus vinte e um anos no andar mais baixo do porão de três andares de uma casa de quatro pavimentos do Mercado Novo, diante do Donner-Brunnen, exatamente em frente do Hotel Meissl & Schaden, que queimou até os alicerces. (Os vienenses sempre chamavam esse hotel de Scheissl & Maden. (nota da tradução: Trocadilho impossível de reproduzir em português. O nome trocado significa: "Merda & Vermes". Fim da nota))
       Lá embaixo, no porão, reunira-se um grupo bastante doido: prisioneiros de guerra fugidos, desertores alemães, gente perseguida por motivos políticos ou raciais, algumas velhas damas, uma ex-rainha de beleza cujo marido fora levado pelos nazistas ao campo de Mauthausen. A essa bela mulher devo minha vida. E essa casa se tornou o cenário do meu primeiro romance, Admiro-me por estar tão alegre. Escrevi esse livro há mais de trinta anos. E ainda estou admirado. . .
       Em 1945, no verão, tornei-me intérprete da Polícia Militar norte-americana. Na base da Währingerstrasse, esquina com a Martinstrasse. Ali havia antes uma loja de móveis. Há muitos anos existe de novo uma loja de móveis ali. (Minha carreira de químico, iniciada naquele tempo, teve de terminar. Os laboratórios estavam destruídos, eu precisava ganhar dinheiro - para minha mãe, minha irmã e eu.) Escrevi meu primeiro romance quando fazia serão à noite e tudo estava quieto, no quartinho dos fundos da base da PM. Os Aliados me deram máquina de escrever e papel.
       Agora, quando volto a essa cidade, sempre dou uma olhada na loja de móveis. Para mim, aquilo não é loja de móveis e nunca será. Sento-me de novo na máquina do tempo de H. G. Wells e vejo vitrinas pintadas de verde e um jipe no asfalto; estou de novo em 1945 e mil histórias daquele tempo me ocorrem, alegres, trágicas. Admiro-me de estar tão alegre. . .
       Lá fora em Neustifr, junto da floresta, no fundo do vale de imensos vinhedos, paro então na velha alameda de nogueiras, diante da casa em que vivi tantos anos - criança, rapaz quase adulto. Na minha infância eu colhia, juntamente com minha irmã e muitas outras crianças, as nozes que caíam das velhas árvores na alameda.
       Minha mãe tinha um desejo. Queria ser enterrada "no cemitério por cima da nossa casa". Era um cemitério muito bonito, antigo, pequeno, repleto de uma paz quase irreal. Entrementes ele cresceu bastante e já se estende ao longo de toda a "campina de verão". Minha mãe está ali desde 1965.
       Minha irmã nunca saiu de Viena. Mora bem perto, numa outra casa. É casada com o caricaturista político Angerer (Rang), do Wiener Kurier. Na sua casa há uma prateleira com um canto cheio de retratos, a maioria já amarelada. Da nossa família, só nós dois ainda estamos vivos. Meu pai teve de partir em 1938, quando os nazistas chegaram. Seu nome figurava nas listas com a observação: "Liquidar imediatamente! Por sua opção política". Fora social-democrata a vida toda. Como seu pai. Como eu. Minha mãe tinha muitas preocupações. E só podia confiar todas essas preocupações a uma única pessoa: Mila.
       Mila Blehova chamava-se a mulherzinha de uma pequena cidade tcheca, que morava conosco desde o meu nascimento e acabou por se tornar a confidente e melhor amiga de minha mãe naqueles anos terríveis. Mila! A criatura mais bondosa, corajosa e justa que jamais encontrei. Dediquei um romance a essa mulher: Nina. Ela tem um grande papel no livro. E era na vida real exatamente como aparece nessa obra.
       Passo pela estrada alta e vou ao Cobenzl. Lá existe um restaurante famoso, um bar também famoso e um salão de chá muito grande, redondo, sem paredes, só com vidraças. Muitas vezes me sentei nesse salão, mais tarde, quando já não morava em Viena, sempre que vinha até aqui para trabalhar. Nesse lugar escrevi muito, olhando a cidade lá embaixo, e a cada ano havia mais mortos em que pensar. Telefonei para cidades muito distantes e disse a uma mulher que a amava, embora pensasse que nunca mais a veria. Joguei moedas na caixa de música automática e escutei sempre a mesma canção: Stormy weather. E aquela mulher ao longe escutava a música. . .
       Agora estou de novo diante desse salão. O vento sopra aqui em cima com um frio cortante. A porta de entrada está fechada com tábuas pregadas. "Fechado", escreveram numa tábua. Olho pelas vidraças sujas. O mobiliário sumiu e o chão foi arrancado. Nada de máquina de música. Raramente vi coisa mais desolada. Provavelmente vão renovar tudo. . . para o próximo verão. Apesar disso, nunca mais voltarei. Pois nunca será como antes. . .
       Em 1945, no outono, fui chamado ao Prater por um homem. No Prater tinham-se dado as mais duras batalhas entre soviéticos e ss. Quase tudo fora destruído. O homem que me chamara tinha um nome famoso como editor. Queria que eu traduzisse de novo Moby Dick. Quando terminei a tradução de uma parte do belíssimo livro, o homem morreu. A mulher se suicidou. Não sei onde ficou o manuscrito. Estou procurando a casa de outrora. Ela desapareceu.
       Vou ao Wurstl-Prater, no qual há um quarto de século vi Carol Reed filmando o Terceiro homem. Ainda é cedo de manhã. Ninguém à vista. O trem fantasma, a roda-gigante, as ruelas com barraquinhas estão fechados. Ratazanas passam correndo. Nenhum ruído. Luz de sol ofuscante mas sem forças. O frio me traz lágrimas aos olhos.
       A ONU-City. Uma sinistra rua de mortos. Ali também não se vê ninguém. Arranha-céus. Entre eles, fachadas bizarras de construções inacabadas erguem-se no céu claro. Tropeço nas ruínas. As senhoras e senhores da ONU deveriam morar ali. Mas não quiseram.
       O que é a ONU hoje? Melhor nem falar! Naquela ocasião, quando pela primeira vez ouvimos falar em "Carta das Nações Unidas", das "Quatro Liberdades" de Roosevelt, cheios de felicidade e expectativa, eu alugara aqui perto uma casa para fins de semana. Mais tarde, escrevi no sótão meu segundo romance: Ainda resta uma esperança.
       A felicidade acabara de novo. Divisão e bloqueio em Berlim. Guerra fria. Lucidez. Desespero. Estado de ânimo fim do mundo. Eram o 1984, de Orwell, o Vigésima quinta hora, de Gheorghiu, o O zero e o infinito, de Arthur Koestler, e o O trono de Deus está vazio. . .
       Havia um jornal: Neues Österreich. Há muito não existe mais. Naquele tempo eu trabalhava lá. Não agüentei esse desmoronamento de todas as nossas esperanças. Escrevo Ainda resta uma esperança contra toda a sensatez, por contestação, para dar coragem aos leitores e a mim mesmo. Como uma criança cantando no escuro. Contei uma história de gente pobre que não desanima e consegue fazer de uma ruína uma casa. O redator-chefe do Neues Österreich recusou uma primeira impressão. Tinha medo de que os leitores pudessem protestar contra tanta alegria. Os críticos chamaram o livro de "um conto de fadas".
       Não existe mais a casinhola torta de madeira, toda a pequena horta foi destruída, sei disso há muitos anos. Mas, ainda assim, sempre volto aqui. Décadas mais tarde, Ainda resta uma esperança fica famoso. Hoje vende como nunca. Que pessoas são essas, no mundo todo, que lêem hoje esse livro de um outro tempo? Pessoas cheias de medo da próxima catástrofe, penso, pois eu mesmo tenho medo da próxima catástrofe.
       Aqui, nas vizinhanças da ONU-City, meio inacabada, escrevi esse romance.
       "Todos os homens nasceram livres e iguais em dignidade e direitos. . ." Ah, faz tanto tempo! Sobre a ponte noroeste corre um trem de carga interminável. A locomotiva apita alto. A grande ponte do Reuch, descendo a corrente, mais abaixo no rio, ruiu no último inverno. Quantas flores coloridas há no jardim diante da minha casinha para fins de semana! Numa parede havia um viveiro, lá fora, com coelhos. . . Centro da cidade.
       Os cafés antiquíssimos, as tavernas, as casas de vinhos, as passagens entre duas ruelas. Ali passei noites sentado com amigos, ali andei com eles noites a fio; discutíamos Camus e nos excitávamos com Sartre, Hemingway, Silone, Tennessee Williams, Huxley. Naquele tempo eu era o mais jovem redator cultural da Áustria no Welt am Abend, e Schönberg, Priestley, Thornton Wilder, Henry Moore eram sensações para nós. Naquele tempo, em grupos de três ou quatro, íamos a todos os concertos, todas as exposições de arte, todos os novos filmes e premières de teatro. E assim, por causa das discussões que se seguiam, as críticas ficavam prontas tão tarde que na manhã seguinte eu tinha de correr pessoalmente com o manuscrito na mão.
       A impressora ficava no mercado de carnes. A redação ficava em Wollzeile, algumas ruelas antiquíssimas com passagens entre elas.
       E havia ali aquela moça linda, que queria a todo custo ser jornalista, e de repente apareceu no meu quarto. Quando vi a moça eu quis logo outra coisa e por isso a empreguei como crítica de filmes. Por segurança, eu mesmo assisti em segredo ao primeiro filme que ela deveria comentar. Mas não precisei mudar nada no seu texto - apenas tinha um modo um tanto pessoal de pontuar.
       Naturalmente nos apaixonamos um pelo outro. A felicidade durou dois anos. Depois nos perdemos de vista. Em 1972 eu a encontrei novamente em Cannes. E em março de 1976 nos casamos - em Viena, no cartório da Martinstrasse, esquina Währingstrasse, diante da bela loja de móveis em que um dia trabalhei como intérprete da Military Police!
       Ah, e as muitas, muitas noites juntos na minha sala de redação do Welt am Abend! Esse jornal tinha licença francesa, cada força de ocupação tinha seu próprio jornal. E quando eu fazia serão à noite, vinham sempre mais amigos de outras redações, vinham oficiais aliados do setor cultural - quando começou a guerra fria eles vinham em segredo - e vinham correspondentes da AP e UP e INS e TASS! E naturalmente vinha o meu amor da juventude.
       Que vida maravilhosa levávamos! Os russos traziam vodca e carne, os norte-americanos conservas e cigarros, os ingleses uísque, os franceses vinho tinto. E todos, todos traziam livros, discos e revistas de todo o mundo. Ficávamos sentados até de manhã, durante tantas noites, discutindo - os russos com os norte-americanos, os ingleses com os austríacos, éramos uma grande família. Que amizades, que planos, Deus meu!
       Viena - saudade da tristeza. Vou aos velhos cafés e adegas, os que ainda existem. Vou à Escola de Equitação, ao teatro, à ópera. Só a lembrança vai comigo - a lembrança de tantos que morreram ou se corromperam, fracassaram ou fizeram grandes carreiras, os que desapareceram, os que foram assassinados, sabe Deus onde, como e por quê. Eu ainda estou aí - por um pequeno lapso de tempo, pois nossa vida é tão breve e nosso pequeno ser está rodeado pelo sono.
       Mais uma vez voltei para casa, para a terra estranha que um dia foi meu lar.
       Prinz-Eugennro-Strasse, 30. Casa cinzenta, sempre igual. Ponto da Editora Paul Zsolnay. Aqui apareci certo dia, em 1946, com um livro a oferecer. O título era Encontro no nevoeiro. O manuscrito foi aceito. Recebi um contrato e mil xelins de adiantamento. Era uma fortuna incrível e eu já estava bêbado antes de tomar o primeiro gole de vinho com o Cordeirinho (assim eu chamava a mulher que salvei para mim de todas as nossas horas de derrota), no terraço do café em Gertshof. Esse café não existe mais, não da maneira que foi naquele tempo, e Paul von Zsolnay, que voltou do exílio na Inglaterra, morreu há muito. Desde então a editora é dirigida pelo meu amigo de escola, Hans W. Polak. Tenho muitos novos amigos em Viena - poucos daquele tempo.
       Viena mudou muito. Muitas vezes não encontro mais meu caminho. Há cidades-satélites, estão construindo um gigantesco metrô, há novos bairros residenciais, rodovias, um imenso aeroporto em Schwechat.
       Certa vez, antes de um ataque aéreo, estive aqui fora em Schwechat. Com a bicicleta ainda consegui chegar ao cemitério central. Então vieram as bombas. Trepei num muro e rastejei para debaixo de uma pedra tumular terrivelmente kitsch. Por cima dela - verdade! - erguia-se um grande pavilhão. Mas essa monstruosidade me salvou, mais uma vez. À direita e à esquerda, detonavam as bombas de uma fortaleza voadora que, atingida pela artilharia antiaérea, simplesmente soltara toda a sua carga para ficar mais leve, subir e talvez conseguir escapar. As grossas placas de mármore e ferro do mausoléu me protegeram. Muitas bombas atingiram as sepulturas e revolveram-nas. Quando tudo acabou, havia esqueletos com crânios sorridentes pendurados nos galhos das árvores.
       Sempre volto a esse cemitério central, inconcebivelmente grande, e do qual os vienenses dizem que Chicago, comparada a ele, pode ter o dobro do tamanho, mas não é nem metade tão divertida. Encontrei de novo a sepultura com o mausoléu. Quando volto para casa, em Mônaco, sempre conto a minha mulher todos os caminhos que percorri. À noite olhamos da nossa casa de vidro, no telhado de um arranha-céu, para as luzes de Monte Cario e as luzes dos navios lá fora no mar, vermelhas, amarelas, verdes.
       E sempre voltamos a falar em Viena e em todas as coisas belas e terríveis que nos aconteceram nessa cidade, mas em geral falamos mais das coisas belas. E assim minha saudade nunca terminará, essa saudade da tristeza de um tempo perdido.
       Naturalmente nada do que acontece neste mundo acontece por acaso ou sem razão. Talvez você estivesse certa, querida Mila Blehova, ao dizer que não devíamos ter medo, pois o mal jamais vencia. Talvez, Mila, tudo apenas dure muito, muito tempo. Então minhas viagens a Viena e meus caminhos para o passado não seriam saudades da tristeza, mas saudades da esperança? Ninguém pode responder.
       Mas quando eu tiver visto pela última vez essa cidade de Viena, e todos os lugares da minha recordação, quando estiver onde você está agora, Mila, então eu, que sempre quis saber tantas coisas, finalmente saberei o que vale a pena saber.
       (1978)
      
       Pequena fanfarra
       Há pessoas que fazem de cada praça um monte de esterco. E há outras que fazem de qualquer monte de esterco uma praça. E finalmente parece que existe no momento, em Viena, um grupo de pessoas que tomou como propósito transformar de novo em praças as praças que seus antecessores deixaram transformar-se em montes de esterco. Tudo pode ser avaliado como um processo reversível, no qual por fim aparece de novo o que existiu originalmente. Visto com os olhos de um homem de ciências exatas, um fato desses não tem nenhum sentido artístico e só pode servir aos cínicos como ilustração da maneira como desperdiçamos nossas vidas.
       Não é difícil estragar algo de belo. Todos vimos isso. Mas fazer ressurgir o belo das ruínas - para isso é preciso mais do que um punho cerrado, como acontece com a coragem. Precisa-se também de uma cabeça. E de um coração. Pensem nisto: um coração!
       Com a despreocupação própria dos jornalistas, estou aqui neste lugar agradecendo a meia dúzia de homens que nem conheço. Vejo-os às vezes, quando corro pelas ruas da cidade, e penso que estaria na hora de lhes apertar as mãos. Muitos deles usam velhas calças militares, outros, macacões. Alguns seguram mangueiras de jardim, outros, pás e ancinhos. Semeiam grama no barro pisoteado em redor das casamatas e amontoam velhas latas de conserva e penicos amassados. Espalham cascalho em veredas estreitas e colocam pelargônios dos dois lados. O suor escorre-lhes das costas magras, prendem no canto da boca um toco de cigarro e, quando estão bem-humorados, trauteiam a melodia de uma balada norte-americana.
       Ao redor deles, a grande cidade barulhenta. Bondes passam tilintando, automóveis vão para leste e oeste, e milhares de mocinhas com pastas de documentos debaixo do braço, eventualmente com rugas de preocupação na testa, correm para seus escritórios, para tremerem diante do chefe.
       Nas esquinas param alguns senhores em ternos novinhos e chapéus de aba larga. Usam pequenos bigodes, falam um alemão precário e conversam gravemente sobre o novo câmbio negro do dólar. Ou sobre cinqüenta vagões de ferrovia repletos de açúcar. Ou sobre duas mil geladeiras que se podem adquirir imediatamente, oportunidade única. Suas mãos são imaculadas, e usam anéis. As mãos dos homens que andam pelas praças arruinadas, carregando pedaços de madeira, são sujas. Mas ainda assim são cem vezes mais limpas do que as impecáveis mãos dos senhores de chapéus de aba larga, nas quais gruda uma sujeira invisível, como pez e enxofre.
       Os homens a quem se dirigem essas palavras são os heróis que não sabem de si mesmos. E possivelmente por isso são heróis. Com seu trabalho erguem para si mesmos um monumento vivo, mais belo do que todos os monumentos de pedra e bronze. Ninguém sabe como se chamam. São tão anônimos como os grãos de semente que colocam no maltratado solo da grande cidade.
       Para os grandes generais, demagogos e carniceiros de gente, tocaram-se fanfarras em todos os tempos, homens adultos postaram-se diante deles, hirtos como diante de Deus. Não tenho uma fanfarra. Mas, caso tivesse, com prazer eu a faria soar em honra dos meus amigos desconhecidos. Também não fico em posição de sentido diante de ninguém. Por princípio. Mas tiraria num largo gesto o chapéu para esses homens em roupas de trabalho remendadas. Se eu tivesse chapéu. Na Bíblia, que ultimamente leio com grande interesse, há uma passagem em que se diz que nossa vida terá sido boa se tivermos conseguido fazer germinar dois talos de grama onde antes só crescia um.
       Meus amigos fazem crescer centenas de milhares de talos de grama. Lá onde antes não crescia coisa nenhuma. Lá onde antes jaziam capacetes e velhos fogareiros de campanha. Não só talos de grama. Mas também flores azuis, brancas e vermelhas, arbustos perfumados e árvores jovens cujas folhas dançam boogie-woogie ao vento.
       Transformam montes de esterco em praças.
       Praças para todos nós. No encosto dos bancos recém-pintados não está mais escrito "Lutar até vencer", ou "Quem saquear será fuzilado", ou "Só para arianos". Nada, aliás, está escrito sobre eles. Estão ali para todas as pessoas cansadas. Ou apaixonadas. Nas novas praças todos se tornam membros de uma grande família. Pelo menos por algum tempo. Sorrimos quando um bebê tropeça perseguindo duas borboletas, assobiamos baixinho para uma jovem com um claro vestido de verão e damos cortesmente a informação quando alguém pergunta as horas. Andamos pelas novas praças, cheiramos a grama e os cravos vermelhos, e temos no estômago uma sensação incrivelmente agradável. Como se tivéssemos vestido uma camisa nova. Como se alguém acabasse de nos dar um presente. Como se tivéssemos novamente, enfim, a consciência limpa.
       Os homens que recriam as praças para nós são heróis porque com seu trabalho dão alegria aos outros, nada mais que alegria. Poucos heróis podem dizer isso de si mesmos. A maioria deles provoca lágrimas, morte e destruição, injustiça e fome. Meus amigos, a quem agradeço aqui, começam tudo em silêncio e com cuidado. Não querem machucar ninguém. Nem mesmo as minhocas. Quem lida com flores se torna um bom homem com o passar do tempo. Talvez todos nós devêssemos cultivar agrião diante das nossas janelas, para sermos mais felizes. . .
       Não sei quem teve primeiro a idéia de arrumar de novo as praças de Viena. Provavelmente um homem bem comum, num escritório bem comum. Uma grande idéia é sempre muito simples. Pode ocorrer a qualquer um de nós. Mas ocorreu a esse homem que não conheço. Talvez tenha sido um grupo de pessoas que decidiu presentear-nos com uma porção não-racionada de alegria. Não sei. Talvez tenham sido cem pessoas. Talvez cinqüenta. Mas ainda que fosse uma só, sejamos gratos a ela.
       (Essa foi a primeira crônica de minha vida.)
       (1945)
      
       Vinte e dois centímetros de amor
       Ele se chama Juanito de Valespier, é francês e tem uma árvore genealógica que cobre uma folha de papel inteira. Das grandes. E no entanto é tão pequeno. Quando o conheci, há treze anos, qualquer porquinho-da-índia crescido podia dar conta dele. Hoje, mede vinte e dois centímetros. Hoje, é um velho senhor de noventa e um anos. Que o bom Deus ainda o conserve conosco por muito tempo. Noventa e um -- não é sopa. Embora Juanito ainda salte em todas as camas e cadeiras, mesmo que tenham três vezes a sua altura. Experimente imitá-lo! Mas acontece que um ano da vida de um cão corresponde a sete anos de vida humana, e muitos dentes já faltam a Juanito. Ele é um yorkshire terrier. Um daqueles bem pequenos, com pêlos compridos caídos na cara, que precisam ser atados com fitas. Por ser tão pequeno, Juanito foi batizado de Moustique, isto é, "mosquito".
       Há treze anos, o primeiro amor da minha vida me visitou. Nessa ocasião conheci Moustique. Devo confessar uma coisa: eu não gostava de cachorros. Nem eu, nem Shakespeare. Ele também não gostava de cachorros. Lembram-se? ". . .os cachorros, que com seus latidos perturbam a paz de Deus e o canto do rouxinol. . ." (Além disso, Goethe também não suportava cachorros. Como eu.) Ademais, tenho medo de cachorros que medem mais de quinze centímetros e, naturalmente, eles logo notam isso. Moustique tinha doze centímetros. Estava portanto abaixo do nível do medo, mas em compensação era terrivelmente barulhento, e se alguém estorvava a paz de Deus e o canto do rouxinol, esse alguém era ele.
       Moustique não se deixava tocar por nenhum estranho. (Noblesse oblige.) Quando alguém tentava, ele dava uma mordida. Tinha o péssimo costume de morder com a rapidez de um raio as calças de todos aqueles que as usassem, pois tinha sua opinião sobre as pessoas, e sempre suspeitava de que pudessem roubar algo e levá-lo embora. E depois, Deus tenha piedade, ele ainda não era ensinado. Um cachorrinho tão novo, seria pedir demais, não? Mas Moustique, na infância, exagerava. Não havia uma cortina ou uma perna de mesa na qual não desse uma mijadinha.
       Na minha casa, seu lugar escolhido foi o divã coberto de brocado de seda. Porque era o meu primeiro Grande Amor (não Moustique, mas a sua dona, que chamaremos Ângela), coloquei, para evitar discussões, uma almofada sobre a mancha úmida que o aristocrata deixara no brocado de seda. Ângela bem que notou, Moustique bem que notou. Mais ninguém. Os dois agradeceram com olhares. . .
       Treze anos depois fui visitar Ângela. Ela vivia no sul, junto ao mar, bem alto, numa casa com jardim sobre o telhado, em torno da qual corria um gigantesco terraço. Quando entrei na sua casa, aconteceu o primeiro milagre. Moustique veio ao meu encontro, devagar, solenemente. Pensei nas pernas das minhas calças, na paz de Deus, e assim por diante. Mas nada disso! Moustique não mordeu, Moustique não latiu, Moustique esfregou-se nos meus sapatos, saltou de alegria, e não me deixou em paz enquanto não o peguei nos braços e o acariciei. (Atrás das orelhas, como os cães gostam.) Depois disso, não mais saí do meu espanto. Moustique começou a bancar o carinhoso comigo, deixando Ângela quase enciumada. Moustique comia pedacinhos de biscoito, mas só da minha mão. Quando eu me sentava, Moustique sentava-se, mas só no meu colo. Aonde quer que eu fosse na casa - Moustique ia junto, perto ou atrás de meus pés, e eu precisava tomar muito cuidado. Ele não esquecera - em noventa e um anos do tempo humano! - que certo dia eu lhe poupara um pito, colocando uma almofada sobre a mancha de xixi. Moustique foi o primeiro cão que me amou. E foi o primeiro cão a quem amei, de repente, sem poder evitar. Esse foi o segundo milagre.
       Quanto a fazer xixi: Moustique há muito que não saía mais da casa (sua idade, os perigos da rua. . .). Fazia todas as necessidades na beirada do terraço, que sempre era limpo com a mangueira de jardim. Ângela chamava esse lugar de "Avenue de Pipi".
       Moustique e eu nos tornamos inseparáveis. Onde quer que eu estivesse, ele também estava. Quando eu não estava em casa, procurava-me por toda parte e sempre saltava na "minha poltrona" para constatar com tristeza a minha ausência. Mas cada reencontro era uma festa de alegria, com saltinhos, carícias, flertes - nunca latidos, nunca mordidas! Também de noite Moustique não me deixava. Dormia aos pés da cama. Quando sentia frio, entrava debaixo dos cobertores. De manhã, quando achava que eu dormira o suficiente e tinha de trabalhar, acordava-me com pequenos e carinhosos encontrões do seu nariz no meu nariz, no meu pescoço, nas minhas faces. Se eu então abria os olhos, ele estava parado no meu peito, a cabecinha inclinada, acariciando-me docemente com suas minúsculas patas.
       Certa vez, quando eu estava sentado na banheira, Moustique quis saltar na beirada. Saltou, mas caiu no vaso sanitário, que ficava logo ao lado. Tiramos Moustique de lá, lavamos e secamos seu pêlo grisalho e perguntei a Ângela como é que Moustique podia ter cometido um engano daqueles.
       - Isso lhe acontece de vez em quando - disse ela. - Mas você não notou?
       - Notei o quê?
       - Ora, ele sempre corre bem junto dos seus pés e só pode mover-se tão depressa porque há treze anos vive nesta casa, e sabe exatamente onde ficam todos os móveis, portas e paredes. Ele não sabe como você se parece - disse Ângela -, não sabe como eu me pareço. Há um ano tudo depende unicamente do olfato, ruído, sensação e lembrança. Então você não notou mesmo que o pobre Moustique está cego?
       (1973)
      
       Carrossel de graça
       Jacó Odernja tem quarenta e três anos, e é dono de um açougue em Göttingen. O açougue é pequeno e velho, e o negócio vai mal na mesma medida. Além desse açougue, Jacó tem ainda uma mulher - Hilda - e três crianças de sete, nove e doze anos, respectivamente. As crianças são boas, típicas crianças alegres de Göttingen. Com a mulher, a coisa é um pouco mais complicada. Na verdade, a mulher é um homem, de tão enérgica. Todo mundo tem medo dela. Jacó também. No açougue e em casa era a mulher quem vestia as calças. Agora não mais. Agora ela fugiu de Jacó e das três crianças. De repente. Por causa da caixa registradora.
       Foi assim:
       Os Odernja tinham um açougue que ia mal, mas também tinham um pouquinho de dinheiro. Haviam-no economizado no decorrer dos anos. E aplicaram essa quantia na caderneta de poupança de Göttingen. Quando o negócio do açougue começou a piorar, os Odernja certo dia decidiram culpar a aparência desagradável do seu açougue e a falta de propaganda. Quiseram aplicar parte de suas economias "arrumando" o negócio, mandando caiar as paredes, comprando uma instalação nova para o interior, especialmente uma caixa registradora. Uma dessas grandes, modernas, que tilintava quando se faziam as somas. Os Odernja esperavam milagres de uma caixa dessas.
       Hilda estava de cama quando esse plano amadureceu. Por isso Jacó foi ao banco para retirar o dinheiro. Levava consigo um bilhete comprido, no qual estava anotado tudo o que deveria comprar para o açougue com aquele dinheiro. A caixa registradora encabeçava a lista. Jacó retirou o dinheiro e, quando estava de novo na rua, deparou com Peter Franke. Peter Franke era um conhecido, dono de um carrossel, que percorria o país como empresário, ganhava a vida deixando as pessoas girar nos bichos coloridos do seu carrossel, pagando por isso. Esse Peter Franke foi a origem de todo o mal.
       Pois em seu íntimo, desde que conhecera Peter Franke, Jacó Odernja se consumia num desejo: também queria ser dono de um carrossel. Não por profissão, claro! Queria simplesmente ter um carrossel e poder deixar suas crianças andar nele. Não só suas crianças. Todas as crianças da rua. Todas as crianças de Göttingen. De Göttingen e redondezas! E de graça, naturalmente de graça! Pois o bom Jacó sentia-se terrivelmente mal quando, depois da terceira volta, tinha de dizer aos seus três filhos que a brincadeira acabara porque estava ficando muito caro. Então as crianças faziam que sim com a cabeça, seus rostos ficavam bem velhos, mas obedeciam imediatamente. Isso era o pior. Às vezes, Jacó sonhava com o carrossel.
       Assim estava a situação, quando encontrou Peter Franke, que decidira casar com a filha de um camponês e tornar-se um cidadão estabelecido. Com o carrossel, já não sabia O que fazer. Gostaria de se ver livre dele. Peter Franke e Jacó Odernja foram ao Porco Verde e encomendaram duas Cervejas e duas aguardentes. Depois, começaram a negociar. Pois Peter Franke fizera a Jacó Odernja uma participação d* maior importância: justamente com o carrossel vendia naturalmente uma caixa registradora nova em folha, linda e cromada.
       Quando Jacó chegou a casa, seus três filhos quase o mataram de alegria. E saíram em disparada - para o seu Carrossel! Andaram nele até ficarem mortos de enjôo. Carlos, de nove anos, adormeceu no seu cavalinho de madeira. As outras crianças da cidade tinham ouvido falar no caso e também vieram correndo, em bandos. A polícia cuidava do trânsito. E Peter - com mais algumas cervejas e aguardentes no estômago - cuidava do carrossel, sorrindo, amavelmente, e de graça. Pois a partir de amanhã não estaria mais ali, dizia. A partir de amanhã, Jacó teria de manejar O carrossel.
       Naquela noite, Hilda teve com Jacó a maior briga do leu casamento. No fim dessa briga, Jacó apenas a fitava, espantado. Espantava-se como pudera viver tanto tempo com aquela mulher. Ele absolutamente não a amava. Nem um pouquinho. Era totalmente estranha e indiferente. Era feia O gritalhona. Hilda nem sabia que favor lhe prestava quando, pela manhã, fez a mala e, doente como estava, foi viver com sua mãe. Queria o divórcio. Por enquanto as crianças podiam ficar com Jacó.
       As crianças ficaram com Jacó. Também notaram, sem maior tristeza, a partida da mãe. Tinham agora o seu carrossel. E Jacó falou-lhes vagamente sobre uma viagem que Hilda tinha de fazer. De resto, ele ficava sentado de manhã à noite no seu carrossel, fazendo-o girar. Da manhã à noite só ouvia risos e gritos de alegria. De manhã à noite só via rostos alegres de crianças. O que ele via e ouvia parecia-lhe excelente. Sentia-se bem. Tão bem como nunca na vida. Naturalmente o açougue acabou por falir.
       Quando Jacó fechou de verdade o seu negócio - não tinha mais tempo de cuidar dele, desde que manejava o carrossel -, foi chamado à prefeitura. Lá estavam sentados três senhores furiosos e uma autoridade com ar preocupado. Os três senhores furiosos eram três donos de carrossel de Göttingen, concessionários. Sem saber, Jacó lhes tinha feito uma insuportável concorrência, deixando as crianças andar de graça. Os três senhores olharam aquele joão-ninguém. A autoridade indagou: Jacó tinha concessão? Pagava imposto? De que vivia? O carrossel estava regularmente no seguro? Jacó era membro da Associação Alemã de Empresários? Se não, por que não? Se o era, por que não se submetia aos estatutos? Eram muitas as perguntas e havia poucas respostas. Jacó Odernja estava sentado, quieto, olhando seus sapatos.
       Conseguiu ficar com o carrossel.
       Recebeu a concessão, fez as pazes com a concorrência, entrou na associação e pagou impostos. Até fez mais uma coisa: passou também a cobrar entrada. Vinte Pfennige para crianças, cinqüenta para adultos. Suas próprias crianças só podem andar quando há algum lugar livre. Jacó cuida muito bem para que ninguém trapaceie. As crianças de Göttingen não podem entender o que aconteceu. Olham Jacó Odernja como se ele as tivesse traído. Ele bem que percebe quando o fitam assim. Então sempre as enxota de lá. Mas quando a coisa fica muito ruim, vai ao Porco Verde e bebe umas aguardentes. E conta sempre a mesma história ao taverneiro. O taverneiro já a conhece de cor. É uma história com muitos pontas de interrogação. O que Jacó deveria ter feito? Seu açougue estava falido. E de que teria vivido? E seus filhos, o que seria deles? Devia ter entregue o carrossel? Por que logo ele não podia pedir dinheiro pela volta no carrossel, se todos os demais faziam isso? Por que as crianças o olhavam daquele jeito, que diabo?
       A história sempre começa assim. E vai até tarde da noite. O taverneiro escuta pacientemente. Ele gosta de Jacó. Mas naturalmente não pode ajudá-lo.
       (1968)
      
       O pior dia do ano
       Não podiam dizer que ele fosse bonito, nem com a melhor boa vontade! Seu pêlo, malhado de preto e branco, estava desgrenhado e eriçado, as pernas muito magras, curtas e tortas demais, e as orelhas, caídas desigualmente, pendiam tristes. A tristeza fitava também através de seus olhos redondos e baços. Era um cachorrinho triste.
       Inseguro e tímido, andava pela gare. A gare era imensa e muito iluminada. Havia ali os mais diversos negócios - quem tivesse dinheiro podia comprar charutos gordos, livros brilhantes, iguarias finas, bombons coloridos, perfumes estonteantes da distante Paris.
       No meio da enorme gare havia uma árvore de Natal. Tinha dez metros de altura! Velas elétricas brilhavam em seus ramos, fios de prata pendiam deles. A árvore era quase tão enorme quanto a gare. Debaixo da estrela que a encimava, lia-se que a Ferrovia Federal Alemã desejava um Natal abençoado. Isso já estava escrito ali há uma semana, mas finalmente a noite chegara! Era a noite de 24 de dezembro.
       Lá fora estava muito frio. Na gare estava mais quente. Por isso o cachorrinho dirigira-se para lá. Pois lá fora, nas ruas molhadas de chuva, o frio era terrível. Também estava com fome. Mas o frio era pior. Frio é a pior coisa para cachorrinhos.
       Havia muitas, muitas pessoas na gare. O cachorrinho tinha de cuidar como o diabo para que ninguém pisasse nele por descuido. Eram tantas pessoas! Para onde olhava, só via pernas! Pernas de senhoras e pernas de senhores e pernas de crianças. E pernas de outros cães, mais bonitos, maiores e mais finos. E mais felizes. Todos os outros cães marchavam ao lado de seus donos; eram cães com famílias, não tão sozinhos quanto o cachorrinho de orelhas caídas e desiguais, e focinho manchado.
       Nem todas as pessoas da gare eram passageiros da ferrovia. Nem todos viajavam. Muitos faziam ali nos últimos minutos suas compras de Natal. Tinham estado sentados em suas mesas de trabalho até o fim da tarde, em conferências, atrás de bilheterias. As lojas da cidade já estavam fechadas, só as da estação ferroviária ainda permaneciam abertas. Muitas pessoas compravam coisas cheirosas, apetitosas, bonitas. Entre essas pessoas movia-se o cachorrinho magro.
       Muitos o viam. Muitos o ouviam, porque às vezes ele choramingava com voz fininha, baixo e muito modestamente. Mas eram seis e meia do dia 24 de dezembro! Quem nesse mundo teria tempo de se preocupar com um cachorrinho?
       Um senhor disse:
       - Ué, você se perdeu? Uma senhora disse:
       - Olhe, Félix, coitadinho daquele cachorro! Será que a gente não. . .
       Mas Félix a interrompeu:
       - Vamos! Vamos! Vamos! O carro está mal estacionado. Vamos pegar uma multa por causa desse vira-lata!
       Como eu disse, era 24 de dezembro!
       Uma menininha gritou:
       - Mãe, mãe, olha o cachorro! Que feio! O nosso Rex é muito mais bonito!
       Um grande são-bernardo farejou o cachorrinho onde cachorros grandes costumam farejar cachorros pequenos.
       E um senhor, muito nervoso e muito irritado, que naquela noite ainda tinha de presentear onze membros da família, deu um pontapé no cachorrinho quando ele se meteu no seu caminho, e rosnou:
       - Só me faltava isso!
       Ao lado da enorme árvore iluminada da Ferrovia Federal Alemã havia um banco. Uma velha senhorita estava sentada nele. Seu nome era Srta. Strohbach. Emília Strohbach, aposentada.
       Estava ali sentada, num casacão velho mas muito cuidado, de astracã preto, sobre a cabeça branca um minúsculo chapéu preto. Os pés estavam metidos em botinhas antiquadas, as mãozinhas num abrigo fora de moda. A Srta. Emília era muito pequena e muito velha. Seu rosto ostentava uma expressão de desalento e bondade. A Srta. Emília era velha demais. . . Sobrevivera a todos os parentes e agora estava sozinha no mundo. Não é brincadeira ser velha e sozinha! De todos os dias do ano, era esse o que a Srta. Emília mais temia: a Noite Santa, esse terrível 24 de dezembro.
       Era um dia muito especial. Os outros dias também não eram nada fáceis, mas aquele 24 era de longe o pior de todos.
       Em casa, no seu quarto escuro com móveis escuros, sentia-se oprimida pelas recordações. Em casa só podia pensar o tempo todo: outrora, outrora, outrora. . . Em casa era preciso chorar.
       Não que em casa fosse desconfortável ou frio; não, isso não. Havia calor e cuca de mel e um ramo de pinheiro com uma vela amarela, pois a Srta. Emília Strohbach recebia trezentos marcos de aposentadoria por mês, e podia-se viver disso em caso de necessidade, embora em caso de necessidade não se pudesse comprar um Mercedes 600. . . Mas o que faria a Srta. Emília com um Mercedes 600?
       Não, não era frio nem pobreza o que ela temia no seu quarto. Era algo diferente. Era a solidão. Era a solidão que ela não suportava.
       E assim a Srta. Emília andara até a estação, pois ali tudo era muito mais aconchegante. Vozes e risos, outras pessoas para observar enquanto faziam coisas interessantes. Ali havia vida. Vida!
       A Srta. Emília estava quase amando a estação. Estava decidida a ficar ali ainda um longo tempo. O banco tinha muito lugar, pois estava vazio. A pequena senhorita esticou o corpo.
       Era, por ali, a única pessoa sentada. Todas as outras corriam ou estavam de pé. O carrossel da festa de Natal girava em torno de Emília Strohbach, e ela era o centro. E pensava oprimida esses três pensamentos:
       Primeiro: se eu tivesse uma única pessoa a quem visitar. Segundo: se eu tivesse só um pouquinho mais de dinheiro e pudesse comprar uma coisa bonita para mim. Terceiro: se ao menos este 24 já tivesse passado.
       Justo quando estava no terceiro pensamento, viu o cachorrinho.
       No seu difícil caminho pela grande estação, ele por fim chegara ao banco ao lado da árvore das luzes. Lá parou e fitou a Srta. Emília Strohbach com olhos tristes e humildes. As orelhas desiguais pendiam e o toquinho de rabo se movia sem parar.
       A Srta. Emília era a única pessoa na estação que dispunha de tempo. A Srta. Emília cometeu um erro. Dirigiu duas pequenas palavras amáveis ao cachorrinho. E disse:
       - E então?
       Com isso estava, por assim dizer, traída e vendida.
       O cachorrinho ficou fora de si. Latiu encantado, saltou sobre o banco e começou a lamber a mão que a velha senhorita tirara do abrigo.
       Ele andara por ali sem destino horas a fio, dias a fio. Agora alguém lhe dizia: "E então?" Naturalmente ele tomou aquilo como uma declaração de simpatia. Cá entre nós, sinceramente, o que vocês teriam feito no lugar dele?
       Há um grau extremo de solidão do qual nasce a disposição de acreditar. O cachorrinho feio acreditou que a Srta. Emília Strohbach tinha interesse nele. Por isso ganiu e lambeu-lhe a mão, e mostrou seu lado mais bonito, que era o perfil direito: desse lado o pêlo era menos desgrenhado.
       A Srta. Emília riu um pouquinho, com voz fina e aguda. Acariciou o cachorro um pouquinho, de maneira insegura e fraca. E disse:
       - Corre, pequeno, corre!
       Mas o cachorro não correu. Deitou a cabeça no colo da senhorita e sorriu, feliz da vida. O sorriso dizia: enfim em casa!
       O sorriso deixou a senhorita em pânico. Pelo amor de Deus, pensou, e se eu não me livro mais do cachorro? Meu Deus, o que faço com um cachorro? Eu, que sozinha mal consigo sobreviver? Meu Deus, me ajude. Faça com que o cachorrinho entenda e vá embora.
       Mas o bom Deus não ouviu suas súplicas. (A gente bem sabe como o bom Deus fica ocupado num 24 de dezembro.)
       - Vá embora - disse a Srta. Emília, e empurrou de leve o cachorrinho. Ele caiu no chão, deu um latido curto e contente, e saltou de novo sobre o banco. Era um jogo engraçado, que o divertia muito.
       - Meu Deus - disse a Srta. Emília Strohbach.
       Levantou-se e foi depressa para a saída da estação. O cachorrinho a seguiu, latindo alto.
       A Srta. Emília tentou diversos truques. Andou muito depressa, quase correndo. Escondeu-se atrás de uma coluna. Fez ziguezagues e curvas audaciosas. O cachorrinho a seguia por toda parte, latindo alegremente.
       Por fim a Srta. Emília chegou de novo, ofegante, ao banco junto da árvore das luzes. Antes que ela se sentasse, o cachorro já estava instalado ao seu lado.
       O desespero apoderou-se da Srta. Emília.
       Disse ao cachorrinho, que a contemplava atentamente:
       - Que vou fazer com você? Sou pobre, não entende? Pobre demais para ter um cachorro.
       Ele riu, todo contente.
       - Pare de latir. Deixe-me em paz. Você não tem casa para onde ir?
       O cachorrinho sacudiu a cabeça.
       - Ah, meu Deus do céu! - disse a Srta. Emília. Muitas pessoas passavam pelo banco, estavam todas com
       pressa. A estação ficou vazia. A Noite Santa já estava em plena vigência.
       - A comida... o imposto.. . não dá, não, não dá - dizia a Srta. Emília. - Ganho trezentos marcos por mês - disse inutilmente enquanto, novo erro, acariciava, sentimental,-o seu pêlo desalinhado e pensava: "Se eu ganhasse mais, só um pouco mais! Exatamente o bastante para poder tê-lo comigo, pois você me agrada. E eu não ficaria mais tão sozinha. . ."
       Ao mesmo tempo pensava: "Que loucura! Que significa isso? Simplesmente não pode ser!"
       Era isso o que ela pensava. Por isso disse em voz alta:
       - Não me deixo chantagear. Sabe o que vou fazer se você não sumir daqui? Vou levá-lo para o guarda da estação. Isso mesmo, meu caro! Portanto, suma de uma vez!
       Mas o cachorrinho não obedeceu. E a Srta. Emília não o levou para o guarda.
       Ficaram sentados lado a lado, uma hora inteira, no banco debaixo da árvore iluminada da Ferrovia Federal Alemã, olhando um para o outro em silêncio e pensando no passado.
       Depois a senhorita disse:
       - Você era só o que me faltava!
       O cãozinho recomeçou a lamber-lhe a mão. Sinos tocavam ao longe e, lá fora, na chuva fria, brilhavam muitas luzes de sinais de trânsito, verdes, vermelhas e amarelas.
       Agora a estação estava vazia. As pessoas tinham se dispersado. A Srta. Emília e o cachorro estavam sentados sob a árvore iluminada.
       Nisso aproximou-se um homem. Era grande, de cara vermelha e pesadão.
       - Perdão - disse o homem, e curvou-se. - Aceitaria isto aqui, por favor, cara senhora? - E estendeu-lhe um pacote e um envelope.
       A Srta. Emília assustou-se:
       - Quem é o senhor?
       - Meu nome é Brenner - disse o gorducho. - Sou dono da loja de especiarias ali do outro lado. Estive observando a senhora. A senhora e o cachorro. Faz uma hora que estou observando os dois.
       - E o que há no pacote?
       - Um pouco de presunto, um pouco de salame, um pouco de queijo, umas latas de conserva e pão. Uma garrafinha de conhaque, porque está frio. Também café, um café excelente. E passas. . .
       O cachorrinho latiu.
       - . . .e dois belos ossos - disse o gorducho.
       A Srta. Emília começou a chorar. Disse baixinho:
       - Mas não posso, não, não posso, Sr. Brenner!
       - Eu a estava observando - disse o gorducho. - Por que não pode?
       A Srta. Emília retrucou:
       - Porque eu nem o conheço, meu senhor.
       - Mas eu a conheço - disse o gorducho.
       - O senhor. . . me conhece? Sabe quem sou?
       - A velha senhorita que foi amável com o cachorrinho - explicou o gorducho. - Gosto de ver gente amável. E cachorros amáveis. Vá para casa, minha cara.
       A Srta. Emília remexeu na sua bolsa antiquada e disse:
       - Não tenho lenço.
       O gorducho lhe deu o dele. Era alvo como a neve e muito grande.
       A senhorita assoou o nariz e perguntou:
       - E o que há no envelope?
       O gorducho respondeu encabulado:
       - Não faça tanta pergunta. É um adiantamento.
       - Adiantamento de quê?
       - Ora, do imposto para o cachorro, que droga. Eu é que vou pagar isso.
       - Não!
       - Sim!
       - Mas como foi que pensou nisso?
       - Nem eu sei como foi que pensei nisso - disse o gorducho. - Mas por que não, se me dá prazer? - Primeiro ele apertou a mão da Srta. Emília, depois a patinha do cachorro, e disse: - Feliz Natal, meus caros!
       - Para o senhor também - respondeu a senhorita. - É uma pessoa muito boa, Sr. Brenner.
       - Ora, que besteira - disse o Sr. Brenner.
       O cachorrinho feio latiu querendo dizer: "É, sim! É, sim!"
       - Vamos, filhote - disse a Srta. Emília. - Agora vamos para casa.
       Para casa.. . Deus do céu, como de repente ela se alegrava com isso!
       (1955)
      
       A morte de Rosi
       Anteontem, antes da ópera, deu-se um incidente que chamou alguma atenção. A égua do cocheiro Karl Lackner escorregou nos trilhos do bonde, caiu e quebrou uma perna.
       Não há mais muitos coches no mundo. Em Viena ainda existem alguns. Chamam-se fiacres. E o incidente ocorreu bem na frente da Ópera de Viena.
       A égua era malhada de branco e preto. Já não era muito nova. (O cocheiro Lackner também já tinha cabelos brancos.) Quando uma pessoa quebra uma perna, isso é um mal sem maior importância. A gente vai para o hospital, fica deitado por seis semanas, e pode andar de novo. Mas, para um cavalo, é o mesmo que quebrar o pescoço. Um cavalo de perna quebrada está absolutamente liquidado.
       O cocheiro Lackner tinha plena consciência disso. Pediu aos inúmeros curiosos, com voz embargada:
       - Não me dêem bons conselhos, senhores. Por favor, continuem seu caminho!
       Mas não adiantava. Os espectadores ficaram ali parados, como se fossem de ferro, e fitavam a égua deitada na terra a revirar os olhos.
       Logo apareceu um policial. Era baixo e gordo, e tinha um rosto vermelho com muitas rugas. O policial tirou do bolso o caderninho de notas e fez perguntas. O cocheiro Lackner respondeu irritado e pediu:
       - Temos de fazer alguma coisa pela Rosi!
       - Data de nascimento, estado civil, endereço - desfiou o policial, indiferente. Sabia tão bem quanto Lackner que a Rosi estava liquidada, mas para ele tratava-se de um relatório para o distrito - e para Lackner tratava-se de uma amiga moribunda, uma velha camarada que puxara o seu fiacre no pó e no calor, no sol e na chuva, no inverno e no verão, por muitos anos. Por isso os dois falavam de coisas diferentes. Por isso o cocheiro Lackner deixou-se arrebatar pela tristeza e disse uma série de palavras fortes, sem pensar.
       O policial acenou a cabeça, furioso, lambeu a ponta do lápis e disse:
       - Um momento, senhor!
       Todo mundo logo viu que a situação agora estava séria. Sempre que duas pessoas que estão acostumadas a se tratar por você passam a outra forma de tratamento, é sinal de que vêm bofetadas.
       Um homem um pouco gordo, deliciado, chamou seu amigo de um café ali perto, e um menininho assobiou entre dois dedos, de tão nervoso. A triste causa daquela cena, por enquanto, estava esquecida. Nisso, porém, um terrível lamento fez todo mundo estremecer.
       A Rosi estava gritando.
       Gritava em voz rouca, como alguém em grande aflição. Erguia a cabeça do asfalto e fechava os olhos. Por um momento, silêncio mortal. Depois a cabeça do animal tombou na pista, com um baque surdo.
       A situação mudou inteiramente! O menininho envergonhou-se tanto que começou a chorar alto. Uma senhora idosa, com uma sacola cheia de cenouras, disse:
       - Que horror! Que horror!
       E o policial gordo tirou seu casaco do uniforme, dobrou-o e colocou-o debaixo da cabeça de Rosi. Meteu o bloquinho no bolso. O cocheiro Lackner estava parado ao lado dele, sem saber o que fazer com suas mãos grandes e vermelhas.
       Alguém disse:
       - O melhor é dar um tiro no cavalo!
       - Para isso a gente precisa de uma licença oficial - opinou outro. Era um homem magro, de rosto amargurado, e todos o desprezavam por tratar a morte como um burocrata.
       O cocheiro Lackner passou a mão na testa e perguntou:
       - Que fiz eu para merecer isso?
       - É proibido matar animais na rua - disse o burocrata. Nesse momento a Rosi gritou de novo.
       - Não dou a mínima para o que é proibido ou permitido - disse o policial gordo, tirando a pistola. - Não posso mais ouvir esse animal berrando.
       - Nem eu - disse o cocheiro Lackner. Olhou o policial e, com duas palavras, tinham-se tornado amigos. - Dê um tiro nela - pediu Lackner, baixinho. - Mas primeiro tire o seu casaco, senão vai ficar' todo ensangüentado.
       - Não faz mal - respondeu o policial, enquanto carregava a arma.
       O cocheiro Lackner ajoelhou-se e pôs-se a acariciar o pescoço de Rosi, sempre no mesmo lugar, lenta e suavemente. Podia-se ver nessa carícia o quanto ele amava Rosi e o quanto esse fim lhe doía.
       O tiro de pistola não fez muito ruído. Havia barulho demais na rua. A bala acertou Rosi entre os olhos e matou-a imediatamente. Um leve cheiro de pólvora espalhou-se no ar.
       O cocheiro Lackner levantou-se e disse:
       - Era um bom cavalo.
       - Agora ela não está mais sofrendo - respondeu o policial. Olharam um para o outro e viram que tinham os olhos úmidos. Deram-se rapidamente as mãos.
       Os outros ao redor entenderam que estavam estorvando e foram embora. Os dois homens ficaram junto do animal morto, falando baixinho.
       - Minha vida - dizia o cocheiro Lackner - , minha família. . .  Rosi era minha única montaria. Não tenho dinheiro para comprar outra . . .
       - Olhe aqui - disse o policial - , o meu irmão conhece um camponês que vende cavalos. Em Salzburgo.
       - Mas se eu não tenho dinheiro!
       - Meu irmão fala com o camponês. Você pode pagar aos poucos. Em prestações pequenas. E se alguma vez se atrasar com alguma, não faz mal. O camponês é rico.
       - Você acha mesmo?
       - Mas claro!  Meu serviço acaba às seis. Você me apanha no distrito e falamos logo com meu irmão. A vida continua! Não devemos desesperar por causa da tristeza de um momento. - Os dois homens sentaram-se no meio-fio, ao lado do animal morto, e esperaram o caminhão que o levaria dali. Falavam da Rosi e faziam novos planos.
       - Ridículo - disse o policial. - Seria ridículo se não pudéssemos ajudar você!
       A essa hora a Rosi já chegara ao céu dos cavalos e saltava em suas quatro pernas sadias numa linda pradaria. Estava muito feliz e decidiu relinchar um pouco, alegremente, depois do jantar, para o seu velho amigo, que por um breve momento ainda ficara em Viena e a livrara de seus tormentos.
       (1958)
      
       Sinistra carta de uma dama defunta
       Pois minha mãe entra pela porta e seu rosto está quase tão branco como o papel no qual estou escrevendo esta história (realmente verdadeira), e nas mãos trêmulas segura um pacotinho aberto (parece-me que dentro tem um velho estojo) e uma carta.
       - Mamãe, pelo amor de Deus, que foi que aconteceu? Mas ela não responde, apenas deixa-se cair na velha
       cadeira colocada ao lado da grande cristaleira antiga. Do outro lado da cadeira, sobre o tapete, fica um vaso de barro bem alto. Há dentro dele longos galhos castanhos e finos com pequenos botões de flor. São ramos de amentilho. O jardineiro os trouxe para minha mãe. Diz ele que no calor do quarto os amentilhos vão começar a florescer. Mas não florescem. Pois minha mãe fica sentada entre a cristaleira e o vaso com os ramos, e olha fixamente o estojo no pacotinho, sacudindo a cabeça.
       - Mamãe!
       - Sim? - Ela me olha como se fossem duas e meia da madrugada e eu a tivesse acordado de um profundíssimo sono. - Que foi?
       - Mas eu é que lhe pergunto1 Quem era? Quem foi que tocou a campainha há pouco?
       - O mensageiro do correio especial.
       - E daí?
       - E daí que agora preciso de um conhaque - diz minha mãe. - Estou me sentindo muito mal. Vamos, rapaz. E pode pegar um copo grande.
       Só quem conhece minha mãe pode avaliar o que significa quando ela pede um cálice grande de conhaque, às três e meia da tarde!
       Pensando bem, ela não andava no seu normal durante toda essa Quinta-Feira Santa, antes da alegre festa da Páscoa. Estava deprimida e quieta. Porque gosto dela, isso naturalmente me entristeceu, e perguntei uma porção de vezes o que tinha acontecido.
       - Ora, nada - ela respondia. Ou: - Não posso parar de pensar como a vida passa depressa. - Ou então: - Sabe, agora você está crescido e quase sempre anda longe de mim, mas um dia era bem pequeno e estava sempre aqui, e eu o chamava de Butzl. E parece que isso foi ontem. - Ou ainda: - Sabe lá quantas Páscoas ainda vamos passar juntos...
       Isso mesmo. Ela simplesmente está triste porque somos apenas hóspedes efêmeros aqui na Terra. Quinta-Feira Santa também é um dia triste. (Naturalmente a Sexta-Feira Santa é mais triste ainda.)
       Pois minha mãe bebeu um gole e a cor voltou-lhe ao rosto, mas ela não está mais alegre do que antes. Apenas diz, perplexa:
       - Registrada e por correio expresso. A carta. Sem remetente. Será que estou enlouquecendo?
       Não acredito, mas reflito na possibilidade de que minha mãe tenha tomado um susto tão grande que agora só seja capaz de formar frases com no máximo quatro palavras.
       - Não faça essa cara, rapaz. Leia!
       Então pego a carta. Está escrita à máquina, o papel é muito velho, e tem cheiro de lavanda.
       - "Cara Dona Lisa" - leio em voz alta -, "como talvez a senhora ainda recorde, morri a 11 de maio de 1948. A senhora assistiu ao meu enterro, o que naquela ocasião notei com alegria, pois em vida tive pela senhora uma profunda veneração..."
       Abaixo a carta.
       - Continue - diz minha mãe. E toma mais um gole. (Ainda triste.)
       - Acho que é melhor eu também tomar um - digo.
       Encostamos nossos cálices, eu me revigoro e continuo a ler:
       -". . .profunda veneração. Ponto. Nasci em 30 de março e hoje estou comemorando, nos campos celestes, meu décimo primeiro aniversário. Por que estou lhe escrevendo logo hoje, cara Dona Lisa? Bem, ainda em vida, vi num calendário que meu centésimo aniversário seria em 1961, e numa Quinta-Feira Santa". . . Hoje é mesmo dia 30?
       - Não se interesse por coisas secundárias -• disse minha mãe. - Continue lendo. Sim, hoje é 30.
       Eu leio:
       -". . .e além disso a senhora tem - conforme posso ver muito bem de onde estou agora - a sua querida cristaleira com aqueles maravilhosos objetos. Aquelas belas e singulares antiguidades que, como um dia me disse, lhe contam tantas histórias..."
       Tenho de me interromper por um momento a fim de esclarecer uma coisa: minha mãe mora em Viena, no lado oeste da cidade, bem retirado, onde os vinhedos se erguem até a floresta de Viena. Ali é que ela mora. Numa mansão com terraço no telhado. Do terraço pode-se ver a cidade. Às vezes minha mãe me visita em Munique, outras vezes eu a visito em Viena. Nesta Quinta-Feira Santa de 1961 estou na casa dela. Sempre queremos festejar a Páscoa em casa. Isso é a primeira coisa. Depois, tem aquilo da cristaleira. . .
       Bem, a cristaleira veio da França e está sobre uma cômoda antiga, esculpida em madeira quase negra; ela própria é de madeira negra e entalhada, e só na frente tem portinholas com vidraças. Desde quando posso recordar, atrás dessas vidraças há muitas coisas singulares que em criança me fascinavam particularmente: velhos leques e ícones, amuletos, anjinhos, correntes e anéis. Mandrágoras, um único sapato de baile, imensas moedas de prata, um minúsculo espelho veneziano, um Menino Jesus de gesso com cabelos louros desbotados, um carrilhão, uma arvorezinha de Natal sueca, e muitas, muitas outras coisas. No curso dos anos, naturalmente, foram acrescentadas algumas coisas novas. E minha mãe, na verdade, sempre disse o que está nessa carta: "Essas coisas me contam histórias!"
       Bom. Era isso que eu tinha de explicar, pois são dois pontos que não podem ser esquecidos: minha mãe tem uma cristaleira e esta história se passa em Viena.
       Agora continuo lendo:
       - "... Para essa cristaleira, querida Dona Lisa, eu gostaria de lhe fazer um presente, uma raridade do século passado, pois sei que no seu armário o mesmo ficará guardado para os próximos milênios. (Perdoe que eu calcule assim pelos padrões da eternidade, mas aqui a gente se habitua a isso!)..."
       - Acho que estou precisando de outro conhaque.
       - "... O conteúdo do estojinho que estou lhe enviando é o presente de batizado da Rainha Maria Cristina da Espanha (filha do duque austríaco, Carlos Francisco), dado a mim, que, como já disse, vi a luz do sol a 30 de março de 1861. . ." Mas, afinal, o que há nesse estojo, mamãe?
       - Uma coisa depois da outra - diz minha mãe, de, em voz baixa. - Primeiro leia a carta até o fim. Leio em voz alta:
       "O fato de que eu, uma cidadã comum, tivesse uma madrinha tão ilustre é fácil de explicar pelas seguintes circunstâncias: meu falecido pai era o regente de orquestra da corte, Pius Laurentius Richter (1818 - 1893). Em dois anos antes do meu nascimento, tornou-se professor de música da Duquesa Gisela, dos Habsburgos, e de sua majestade, a Imperatriz Elizabeth, das duquesas Maria Tereza e Matilde, e também dos duques dos Habsburgos, Frederico, Carlos, Estevão, Eugênio, Guilherme e Rodolfo, e, por fim, daquela pequena duquesa, Maria Cristina, que mais tarde, como esposa de Afonso 12, seria rainha da Espanha, e que por ocasião de meu nascimento bondosamente lembrou-se de meu pai e me fez esse presente de batismo, que agora ponho em suas mãos, cara Dona Lisa". Bom - disse eu -, agora não leio mais nem uma palavra se você não me mostrar esse presente!
       - Você sempre teve essa estranha pressa, meu filho minha mãe, tristemente. - Mas, por favor, se não aguenta mais. . .
       E ela me entrega um velho estojo de couro preto.
       Abro o estojo.
       O interior é forrado de veludo vermelho, já bastante desbotado, e sobre uma almofadinha de seda, também desbotada, há um relógio de ouro!
       Um desses bem antigos, entendem?  Como se vê no Museu dos Relógios, de Viena!   Ouro, ouro, tudo ouro! Um brasão e uma gravação complicada atrás. E uma chavezinha toda trabalhada para dar corda, também de ouro.
       - Santa mãe - digo. - Isso é uma coisa!
       Minha mãe suspira.
       - Por que você acha que precisei do conhaque?
      - "... A senhora vai perguntar por que motivo estou mandando esse presente logo para a sua casa" - continuo lendo, - "Bem, quero lhe dizer o motivo, querida Dona Lisa! Exatamente duas semanas antes da minha morte eu estive pela primeira e última vez aí fora na sua casa, em Neustift, junto da floresta. Daquela vez eu já tinha oitenta e sete anos e, por causa da minha grave artrose, só com muita dificuldade e raramente podia sair. Meu único contato com esse mundo, em que um dia desempenhei um papel nada insignificante como pianista posso dizer isso com toda a modéstia -, era constituído pelos pequenos concertos em casa, que pela graça de Deus pude realizar com amigos jovens e velhos que foram meus alunos no fim.
       "Muitas vezes meu filho Carlos e sua esposa Fritzi me contaram da beleza da paisagem em que a senhora tinha a felicidade de viver. Como eu desejava fazer-lhe uma visita! Uma vez expressei esse desejo, sem pensar, a senhora ficou sabendo, cara Dona Lisa, e realizou-o.
       "Mandou apanhar-me com um táxi na cidade e mais tarde trazer-me de volta para casa, embora - sei disso hoje, aqui onde se sabe de tudo - a senhora tivesse muito pouco dinheiro e os táxis fossem tão caros.
       "Juntamente com meu filho Carlos e minha nora Fritzi, a senhora naquela tarde me levou com cuidado pelas escadas de sua casa até aquele terraço no telhado. Ali fiquei sentada duas horas a fio, olhando pelos vinhedos abaixo até a imensa cidade de Viena; vi as montanhas húngaras na distância, a Catedral de Santo Estevão, a roda-gigante e, quando escureceu, vi milhões de luzes acenderem-se e também a roda-gigante iluminada - pela primeira vez na minha vida terrena.
       "Foi um dia feliz que a senhora me deu de presente aquela vez. Por isso, querida Dona Lisa, entenderá que agora eu queira lhe dar uma alegria no meu primeiro centenário com o presente de batizado da minha ilustre madrinha, a Rainha Maria Cristina da Espanha.
       Que minha saudação de Páscoa venha alegrá-la e que lhe sejam concedidas ainda muitas abençoadas primaveras.
       Adeus! Da eternidade, saúda-a sua fiel
       Carolina Elsner, nascida Richter".
       - Você quer, por favor, me dar uma explicação para isso? - disse minha mãe quando baixei a carta.
       Tentei, mas ela tirou a garrafa de minha mão e disse:
       - Nem uma gota a mais. Por favor, quero uma explicação absolutamente lógica. Vamos, seu velho materialista cínico!
       - Primeiro - disse eu -, mortos não escrevem à máquina.
       - Ah, não? - disse minha mãe. Ela sabe ser terrivelmente irônica quando quer. - Escrevem à mão, é?
       - Não escrevem coisa nenhuma! E não diga de novo "ah, não?"
       Minha mãe não diz nada. Levanta-se, abre sua cristaleira e começa a procurar o melhor lugar para o relógio. E só depois de um bom tempo observa:
       - Naturalmente, o melhor de tudo seria que você não pudesse em absoluto me dar qualquer explicação lógica. Gosto mais de histórias para as quais não há explicação lógica.
       - Preciso desiludi-la. Para essa história existe uma.
       - Ah, sim?
       - Não diga "ah, sim?"!
       - Você disse que eu não devia dizer "ah, não!"
       - Mamãe, por favor! Escute: essa velha senhora tem um filho chamado Carlos.   Carlos é casado com Fritzi. Não me interrompa! A velha senhora talvez tenha guardado seu relógio de ouro a vida toda e, quando sentiu que estava chegando perto do fim, provavelmente disse ao filho Carlos: "No meu centenário dê, por favor, esse relógio à Sra. Simmel". E foi isso o que ele fez! E, sendo um homem tão brilhante e culto, esse Carlos teve a idéia de lhe escrever uma carta em nome de sua mãe. Não é por acaso que tudo está batido à máquina. Muito lógico!  Satisfeita com minha explicação?
       - Não - disse minha mãe. - Você devia ter deixado que eu o interrompesse há pouco.
       - Quando?
       - Você disse que Carlos é casado com Fritzi.
       - Mas é verdade!
       - Não, não é. Carlos foi casado com Fritzi. Ele morreu há dois anos.
       - Quê?!
       - Em 4 de maio de 1959. Você vem muito pouco a Viena - diz minha mãe, queixando-se. - Aliás, eu lhe escrevi naquela vez, mas você esqueceu.
       Então eu telefono para Fritzi (graças a Deus ela ainda vivia) e consigo falar com ela, senão acabaria ficando louco!
       - Fritzi - digo-lhe. - Fritzi, você escreveu aquela carta para minha mãe e mandou-lhe aquele relógio de ouro, confesse!
       - Confesso que mandei o relógio - disse Fritzi -, mas não escrevi a carta.
       - Mas . . .
       - Carlos escreveu a carta.
       - Carlos? Mas Carlos. . .
       - Mário - disse Fritzi suavemente - , não seja idiota.  Claro que Carlos escreveu a carta quando ainda estava vivo. Em 1955. Ainda tinha boa saúde, mas sempre dizia que a gente nunca sabe. E queria muito que sua mãe recebesse o relógio da mãe dele no centenário dela. Então teve aquela idéia da carta. Porque, como ele dizia, a gente nunca sabe.   "Se eu ainda estiver vivo na Quinta-Feira Santa de 1961, vamos visitar Lisa juntos e levar-lhe o relógio", dizia. "Mas se eu não estiver mais vivo, mande-lhe o relógio. E a carta!" Bem, foi o que fiz - explicou Fritzi ao telefone.
       - Fritzi. . . - disse eu gaguejando - é. . . é muito difícil falar nisso. . .  mas. . .  mas. . .  mas todos temos de morrer um dia, não é verdade? ... E quando. . .
       - Você quer saber como seria se eu também tivesse adoecido e morrido? - perguntou ela muito calma.
       - Não! Isto é. . . sim, é isso mesmo!
       - Então, no meu testamento estaria escrito que você deveria cuidar do relógio e enviá-lo à sua mãe na quinta-feira Santa de 1961.
       - E se eu também. . .
       - Então sua irmã o faria. Ela é mais moça.
       - Não, não é mais moça - eu disse - , é mais velha. E se minha mãe. . .
       Nisso Fritzi me interrompeu:
       - Sim, foi o que o meu pobre Carlos objetou quando a mãe dele pediu que em 1961, no seu centenário, desse o relógio à sua mãe. "Mamãe, como posso lhe prometer isso? Posso morrer, a Fritzi pode morrer, o Mário pode morrer, a Sra. Simmel pode morrer - todos nós podemos morrer!", disse ele.
       - E o que foi que ela respondeu?
        - Ela disse: "Carlos, sou um pouco adivinha". A mãe de Carlos realmente podia predizer coisas, toda a sua vida ela foi assim. E então ela disse a Carlos: "Eu sei que a Sra. Simmel vai estar viva na Páscoa de 1961, pode escrever isso!" Pois não é que tinha razão?
       Minha mãe, que escutara tudo, sorri. Pela primeira vez nesse dia! Mas quando percebe que estou vendo, vira o rosto depressa. Foi também um sorriso muito ligeiro.
       - A mãe do meu pobre Carlos desejou que sua mãe recebesse o relógio - diz Fritzi. - Bem, ela o recebeu. Você jamais ouviu falar em ressurreição, querido Mário?
       Dou-lhe uma resposta boba.
       - Sim, sim - diz Fritzi -, eu chamo isso de uma ressurreição. E agora deixe-me falar com sua mãe.
       Passo o fone a minha mãe e saio do quarto, para que as duas boas amigas possam ter de novo uma boa conversa. Sei que será uma conversa muito comprida, dou um pequeno passeio, e reflito em tudo aquilo.
       Quando volto para casa, minha mãe está de pé diante da cristaleira aberta e segura o relógio junto ao ouvido.
       - Dei corda - diz ela. - E está funcionando! Está andando! Ainda funciona. E é tão velho. . .
       - Preciso pedir-lhe desculpas.
       - Por quê? - diz minha mãe, escutando o tique-taque do relógio.
       - O que eu disse antes não era uma explicação perfeitamente lógica. Estou muito contente porque a mãe do pobre Carlos adivinhou corretamente. Mas com adivinhações não se pode explicar uma história com lógica perfeita!
       - Eu lhe digo que prefiro histórias que não tenham uma explicação lógica perfeita! - respondeu minha mãe. Fitei-a: de repente ela sorria, e como! Era como se o sol tivesse nascido em seu rosto.  E tinha estado tão triste durante toda aquela Quinta-Feira Santa!  Como de repente ficou contente!
       - Mamãe, que foi agora?
       - Fomos convidados para o chá com Fritzi amanhã. Ela quer rever você.
       - E é por isso que você ficou toda alegre?
       - Por isso não - disse ela, e seu sorriso ficou ainda mais claro e radiante.
       - Mas então por quê?
       - Porque eu mesma pensei: quem receberá esse relógio e uma carta quando eu fizer cem anos?
       - Quem?
       Minha mãe sorri, murmura uma melodia e não diz nada.
       - E o que estará escrito na sua carta?
       - Você vai ver - diz minha mãe acariciando o velho relógio. - Você vai ver, meu filho. Aliás, você notou?
       - O quê?
       Ela aponta para o vaso de cerâmica no tapete E, por Deus, nossos amentilhos haviam começado a florescer!. . .
       Ah, todos vocês, amentilhos da mata e das campinas, escutem Carolina Elsner, nascida Richter, que mora lá em cima na eternidade, escutem a velha dama adivinha e floresçam ainda por muitas, muitas primaveras, para minha querida mãe!
       (1961)
      
       A quem me dirigir?
       A quem devo me dirigir nessa aflição e medo? Quem me dará ajuda quando o inferno ameaça?
       O homem de quem vou falar nas próximas linhas será chamado um dia o Moisés da era atômica. Usa de preferência suéteres largos, calças sem vinco e sandálias. E um selvagem cabelo branco envolve sua cabeça de leão. Já em vida foi colocado entre os imortais. Com treze anos pediu ao pai permissão para renunciar à cidadania alemã Mais tarde, quando o mundo já o venerava, e ao seu gênio, os nazistas queimaram seus livros. Agora o homem vive em Princeton, nos EUA. Numa boa casa burguesa. Nas horas de lazer gosta de tocar violino Schnabel, um dos melhores intérpretes de Beethoven do mundo, lhe dá aulas de vez em quando. Dizem que certa vez o professor interrompeu seu acompanhamento enquanto tocavam e disse: "Albert, é terrivelmente aborrecido que você não saiba contar direito!"
       O sobrenome desse homem é Einstein. Albert Einstein. Sua fama ressoa por todo o mundo. Seus ensinamentos introduziram uma nova era. Deram à verdade - que no nosso século é uma refugiada sem pátria, uma displaced person (nota do autor: Pessoa deslocada Em inglês no original .. fim da nota) - um lugar onde ela pôde encostar a cabeça e descansar. Ao menos a verdade científica. É uma desgraça sem igual que seus ensinamentos tenham recentemente sido postos no índex da União Soviética. Com a fundamentação oficial de que se baseiam em "idealismo burguês". Essa desgraça não diminui nem mesmo quando a encaramos no sentido da teoria da relatividade. Ao contrário. Pois exatamente quando se começa a calcular com a dimensão do tempo, surge a indagação: por que tiveram de passar mais de trinta anos antes que se reconhecesse em Einstein aquele maldito reacionário que ele agora deve ser para um quinto da humanidade? A verdade permanece verdade, proibida ou sancionada por Estados. Mas o travesseiro no qual deita sua cabeça tornou-se mais uma vez menor. Essa é a primeira parte da tragédia.
       A 9 de abril de 1952, Monsenhor Péricles Felici declara em Roma que aquele que se submete à psicanálise comete pecado mortal. Monsenhor Felici diz isso no jornal oficial do clero romano. E o homem cujos ensinamentos são colocados no índex com essa declaração é Sigmund Freud.
       Monsenhor escreveu que os ensinamentos de Freud são puro materialismo na pior forma, mesmo se disfarçados por uma camada de dialética hegeliana.
       Entre parênteses, cabe observar que também Freud, que está morto, já se encontra entre os imortais. Também seus ensinamentos deram um lugar para a verdade, essa displaced person, para que pudesse deitar a cabeça. Centenas de milhares devem a ele e aos homens que continuaram a trabalhar sobre seus ensinamentos a saúde, a felicidade e uma nova vida.
       Mas monsenhor opina: o cerne da teoria de Freud é o da sublimação dos instintos. Com ela Freud tenta explicar todo o comportamento moral do homem. (Por exemplo, que ainda na Primeira Guerra padres católicos abençoassem canhões.) Monsenhor acha que isso não interessa. Não pode permitir que seja verdade que o sentimento religioso e a humildade cristã nada sejam senão instintos vergonhosos. Só isso, pensa ele, bastaria para mostrar o que chama de "absurdo da psicanálise".
       É uma desgraça sem igual (deixando de lado Einstein) que monsenhor apresente as teorias de Sigmund Freud apenas como "uma construção muito original e fantástica", e que julgue que "as experiências práticas muito limitadas" dessa construção sejam ligadas a "indivíduos espiritualmente atrasados", repousando sobre "fatos que são secundários na vida pessoal e comunitária, como por exemplo os sonhos".
       Monsenhor não pode perdoar a Freud ter ele atribuído aos instintos todos os atos morais do ser humano. Deduz disso que a nobreza permaneceria apenas uma casca externa, e a substância seria o que é por natureza: perversa e perniciosa.
       Nossa opinião é de que perverso e pernicioso é queimar livros, matar pessoas por causa de sua crença ou roubar-lhes a liberdade e colocar no índice suas teorias científicas por razões políticas ou religiosas. Somos de opinião de que temos o direito de apresentar também, no caso de Monsenhor Felici, a pergunta: por que precisaram passar mais de trinta anos antes que Roma reconhecesse em Sigmund Freud aquele maldito materialista que ele agora deve ser para muito mais de um quinto da humanidade?
       "A Sibéria - ou Sigmund Freud no coração!" Assim diz monsenhor aos médicos e pacientes católicos.
       A verdade permanece verdade, proibida ou sancionada por Estados e pela Igreja. Mas o travesseiro sobre o qual deita sua cabeça reduz-se a cada dia. Por causa de crimes contra o espírito, que acontecem a cada dia, no Oriente e no Ocidente, de ambos os lados.
       Essa é a segunda parte da tragédia.
       Quem nos ajudará quando o inverno ameaça? A quem nos dirigiremos em nosso medo e em nossa aflição?
       (1953)
      
       Mas eles não falam um com o outro
       Era um menino muito pequeno. Quando passou pelo imponente portão de colunas foi que se viu direito como era ridiculamente pequeno, e como o portão era enorme.
       Seu rosto sardento estava vermelho-escuro de frio; debaixo do gorro azul, com tapa-orelhas baixados, saía o cabelo louro-claro. Tinha as mãos metidas nos bolsos de um velho manto cor de cinza, que, apesar do seu reduzido tamanho, era pequeno demais para ele. Seus chinelos estavam gastos, as meias remendadas e úmidas. Era por causa da neve aguada que caía há horas.
       Diante do grande portão acabava uma das Alemanhas. Atrás do grande portão começava a outra Alemanha. Nevava tanto numa como na outra, nevava em toda a cidade dividida, as fronteiras dos dois setores eram totalmente indiferentes para a neve.
       Num dos lados do grande portão estava parado um homem moço, de uniforme verde, que sentia frio. E porque sentia frio no assim chamado setor leste, era um policial do leste. Do outro lado do grande portão estava parado um homem em uniforme azul-cinza, e também sentia frio. Os dois rapazes poderiam andar um até o outro e conversar, pois dominavam a mesma língua. Mas não falavam um com o outro, sentiam frio em silêncio, e vigiavam em silêncio o grande portão, embora houvesse muito pouca coisa a vigiar.
       Por esse frio, essa penumbra e essa neve suja, vinha o menino, em direção ao policial do oeste. Tirou o gorro com educação e disse:
       - Boa noite; eu fugi.
       - Mas que conversa besta é essa? - respondeu o policial do oeste. - De onde foi que você fugiu?
       - Ué, dali. - O menino apontou com o polegar sobre o ombro.
       O policial do lado oeste espirrou e disse:
       - Mas que idade você tem?
       - Onze - disse o menino. - Mas em fevereiro vou fazer doze.
       - E por que você fugiu?
       - Quero ficar com minha mãe - disse o menino.
       - Onde está sua mãe?
       - No lado oeste - disse o menino, como se estivesse falando sobre a Califórnia.
       - Na Alemanha Ocidental?
       - Não, em Berlim Ocidental.
       - E seu pai?
       - Esse está no lado leste - disse o menino, como se falasse sobre a Sibéria. - No setor leste. O oriental.
       - Mas não entendo isso - disse o policial do oeste.
       - Como é que pode uma coisa dessas? Na noite de Natal - ele espirrou de novo -, a noite santa, as crianças e seus pais têm de estar juntos.
       - Meus pais não - disse o menino. - Meus pais são divorciados. Faz um ano. A culpa foi da minha mãe. Ela deixou meu pai, não sei por quê. Por isso os homens do tribunal me deixaram com meu pai. Hoje ele me deu uma surra. Minha bunda está toda roxa. Por isso foi que fugi.
       - Por que ele lhe deu uma surra?
       - Ele trouxe uma dessas louras para casa e disse que ela vinha festejar o Natal conosco e que era para eu dizer "titia" pra ela, e "você". Mas eu disse
que não ia dizer "titia" nem "você". Aí ele me deu uma surra.
       - E aí você fugiu.
       - Sim, claro - disse o menino, fitando o policial do oeste com olhos claros de criança, desanimado, tímido, implorando simpatia.
       - Você sabe onde sua mãe mora? Ela tem telefone?
       - Tem.
       - Então ligue para ela. Ali tem uma cabine.
       - Mas é que eu fugi -- o menino passou as costas da mão no nariz úmido. - Não tenho dinheiro ocidental.
       - Ele riu, encabulado. - Não tenho nenhum dinheiro.
       - São vinte Pfennige - afirmou o policial do oeste metendo a mão no bolso. -- Sabe o número?
       - Claro - disse o menino. - Desde o divórcio. Eu anotei: 91-8377.
       - Pois então ligue para ela.
       O menino correu na neve até a cabine nova, diante de uma barraca da alfândega, na beira da larga rua deserta. Ali não havia casas, nem automóveis, nem pessoas. Ali não havia nada senão um grande portão, trevas, árvores podadas, neve suja e duas Alemanhas diferentes em uma cidade alemã.
       O policial do oeste viu o menininho pôr as moedas no aparelho e discar. Viu-o falar e colocar o gancho de novo no lugar. Depois o menininho voltou para junto dele, na neve e na sujeira, devagar, arrastando os pés.
       - Ela não está mais morando lá. . . agora tem gente estranha lá...  e não sabem onde minha mãe mora...  O que vou fazer?
       -- O melhor é você ir para casa.
       - Mas então tenho de dizer "você" para ela, senão ele me surra outra vez. E não gosto daquela loura. Ela tem cabelo oxigenado. Não importa quem teve culpa. Por que não me deixaram com minha mãe?
       - Seu pai deve estar preocupado - disse o policial do oeste. - Hoje é Natal. As crianças devem ficar em casa.
       - Eu quero minha mãe!  - O menininho começou a chorar.
       - Não chore. Você vai é ficar gripado neste frio. Vamos, suma. Vamos! - disse o policial, nervoso.
       O menino fitou-o longamente, depois virou-se e voltou para o grande portão.
       O policial do oeste, sentindo frio, viu-o falar com o policial do leste, que sentia frio. Viu o policial do leste sacudir a cabeça, mas o menino continuava falando.
       Dez minutos depois, voltou. Parecia exausto.
       - Como é? - perguntou o policial do oeste.
       - Ele disse que vai ser substituído em quinze minutos, e que tenho de voltar para o meu pai o quanto antes.
       - Está vendo? Ele diz o mesmo que eu. Além do mais, também vou ser substituído em quinze minutos.
       - Meu nome é Hansi Javronski - disse o menino. - Minha mãe se chama Maria Javronski. Ela morava na Bleibtreustrasse, 10. ..
       - Bleibtreustrasse, 10 - repetiu o policial do oeste.
       - Por que está me dizendo isso?
       - O senhor não perguntou? O policial do leste perguntou.
       - Eu não - disse o policial do oeste. - Eu não perguntei. Olhe, Hansi, em Berlim Ocidental vivem dois milhões de pessoas, como vamos achar uma Sra. Javronski?
       - Para crianças isso é difícil, sim - disse o menino -, mas para a polícia não. A polícia sabe tudo!  O senhor não podia falar com o policial do leste? Talvez ele saiba como descobrir onde minha mãe está.
       - Nós não falamos um com o outro - disse o policial do oeste.
       - Ah - fez o menino. E foi embora.
       Dirigiu-se até a cabine telefônica, folheou a lista e fez de conta que estava procurando um número. Fez isso durante dez minutos. Depois deitou-se no chão da cabine e apoiou a cabeça nas mãos. O policial do oeste viu-o ali sentado quando chegou o automóvel trazendo seu substituto. Virou-se mais uma vez quando partiu de carro para dentro do setor ocidental.
       Ao mesmo tempo, na outra Alemanha, o policial do leste estava sendo substituído. Também ele partia num carro.
       O novo policial do oeste, um jovem de uniforme cinza-azulado, que sentia frio, foi até a cabine telefônica, abriu-a e disse ao menino:
       - Meu camarada me contou que você quer sua mãe.
       - Sim, por favor - disse o menino, levantando-se. Estava muito cansado agora, por isso parecia ainda menor.
       - Mas não pode ficar sentado aqui na cabine.
       - Onde posso me sentar, por favor? - perguntou o menino. Estava cansado demais para se desesperar.
       - Venha comigo - disse o novo policial do oeste.
       Levou o menino, pela rua larga e molhada, até a barraca da alfândega. Lá havia dois funcionários sentados, jogando canastra. Estava muito quente na barraca. Na parede pendia um ramo de pinheiro. Um rádio tocava. Vozes claras cantavam "Noite feliz, noite feliz..."
       - Sente-se ali - disse o policial do oeste.
       O menino sentou-se num banco. O policial do oeste falou com os dois funcionários da alfândega. Eles fizeram que sim com as cabeças e continuaram jogando canastra. - Você pode ficar aqui - disse o policial do oeste e voltou para fora, para a neve.
       "...Pobrezinho nasceu em Belém...", cantavam as vozes claras.
       O menininho, no banco desconfortável, foi tombando de lado devagar e suspirou fundo. E adormeceu.
       Duas horas depois acordou porque uma mulher o apertava contra o peito.
       Ele abriu os olhos, ainda com sono. Sua mãe estava ajoelhada ao lado dele, no chão duro da barraca, chorando e rindo ao mesmo tempo.
       O menininho achou aquilo muito esquisito.
       - Mas, mamãe. . . - disse, baixinho. Ainda estava totalmente dominado pelo sonho no qual havia muita cuca de mel, muitas luzes, um trem de brinquedo e um grande portão perigoso. - Mas, mamãe, como foi que você chegou aqui?
       Lágrimas corriam pelo rosto dela, ainda bonito, mas não muito jovem.
       - Um policial telefonou para a minha casa nova. Disse que você estava aqui.
       - Mas como ele foi bonzinho! - disse o menino. - Não pensei que ele faria isso.
       - Meu pobre Hansi! - exclamou a mãe enquanto os dois funcionários da alfândega fingiam examinar um papel. - O que foi que aconteceu? Seu pai bateu em você?
       - Sim. Quer ver?
       Naquele momento abriu-se a porta da barraca e entrou um homem que já não era jovem; mal vestido, cheio de preocupação. Flocos de neve acumulavam-se sobre os ombros do seu manto velho; ele parecia pálido e doente.
       O menino ergueu-se no banco e apertou-se contra a parede de madeira. Com as mãos diante do rosto, gritou:
       - Não. . . não. . . ele vai me bater de novo!
       - Hansi - disse o homem, chegando mais perto. - Meu Deus, Hansi, eu não vou fazer nada. - E disse para a mulher, infinitamente encabulado: - Boa noite, Maria.
       - O que você está fazendo aqui?  - perguntou a mulher com a voz trêmula.
       - Um policial me procurou. Disse que Hansi estava aqui na Porta de Brandemburgo. Vim logo. - E disse ao menino: - Como você pôde fazer uma coisa dessas? Sabe como fiquei preocupado?
       O menino respondeu:
       - Nunca mais volto para junto de você. Nunca mais na vida.  Prefiro morrer.  Nunca vou dizer "você" para aquela sua loura. Nunca vou dizer "tia"!
       - Nem precisa - disse o homem. - Perdoe-me por ter batido em você. Você não a verá nunca mais, eu a mandei embora.
       - Palavra de honra? - sussurrou o menino, incrédulo.
       - Palavra de honra - disse o homem. - Ela já foi embora. Não há ninguém em casa. Se você quiser, podemos voltar logo para lá e acender as velas da árvore de Natal.
       O homem fitou a mulher. Ela olhou para o lado e ele lhe disse mais uma vez:
       - Se você quiser, podemos ir até lá e acender a árvore.
       - Também tenho uma árvore na minha casa - disse a mulher, sem fitar o homem. - Não é um apartamento muito grande nem muito bonito, mas também há uma árvore lá, Hansi.
       - Bom, o que fazemos então? - perguntou o homem. Fitava a mulher e seus olhos suplicavam: perdoe-me, se puder.
       O menino começou a rir, um risinho esperto, de confiança. E gritou:
       - Já que estamos no setor ocidental, vamos para a casa da mamãe na noite de Natal! E nos feriados vamos para o setor oriental.
       Então todos começaram a rir, e os funcionários da alfândega de repente estavam cheios de bom humor. Desejaram em coro para aquela família dividida e novamente reunida:
       - Feliz Natal!
       E os três responderam:
       - Feliz Natal!
       Saíram de mãos dadas da barraca da alfândega. De mãos dadas andaram pela neve. O menininho ia no meio. Tropeçou e quase caiu, e de repente teve de chorar de novo, mas só de felicidade.
       Dos dois lados do grande portão ainda estavam os policiais, um de uniforme cinza-azulado, outro de verde. Os policiais paravam ora numa perna ora noutra, pois ambos sentiam frio, do lado de cá e do lado de lá da Porta de Brandemburgo. Os dois eram jovens. Poderiam ter andado um para o outro e conversado, pois dominavam a mesma língua. Mas os dois policiais não foram um em direção do outro, nem conversaram. Continuaram sentindo frio, cada um na sua própria escuridão, e vigiando a grande porta, embora houvesse muito pouca coisa para vigiar.
       (1952)
      
       Luta romana
       No começo desta semana, dois cavalheiros travaram uma luta na praça da feira livre de Viena. Um deles tentou alguns golpes baixos e foi desclassificado. A luta terminou. Os assistentes, que tinham vindo para ver sangue em grande quantidade, ficaram frustrados. Acharam que o preço da entrada não combinava com a brutalidade oferecida. Queriam mais "um pouco de pau". Por isso despedaçaram a tribuna, rebentaram cartazes e começaram uma grande luta particular contra a polícia. Uma senhora, da qual eu gostaria muito de ter uma foto, feriu gravemente um policial com um porrete. Dezessete pessoas foram presas. Mas ainda assim, como se diz numa cançãozinha do norte, todo mundo se divertiu à grande.
       Quando há alguns dias estive em Munique, aconteceu algo parecido. Um turco lutou contra um norte-americano. E o turco meteu os dedos na boca do norte-americano para arrancar-lhe as amígdalas. O norte-americano achou que aquilo era demais. Também o juiz da luta achou que a coisa ia muito longe. O turco estava se portando muito mal.
       Muito pior ainda comportou-se um turco na plateia, lá em cima da arquibancada. Esse segundo turco atirou um copo de cerveja no ringue. Queria atingir o juiz, era um turco patriota. Mas não atingiu o juiz e sim uma mulher da segunda fila. Ela teve comoção cerebral. Depois disso, cerca de cem homens, espumando pela boca, correram para a arquibancada, procuraram e encontraram o homem que atirara o copo, e começaram a linchá-lo.
       Quando a polícia apareceu, tinham arrancado um olho do patriota, esmagado seis de suas costelas, quebrado uma perna e quase todos os seus dentes. Como sempre, nem sinal dos culpados.
       Deixei de mencionar aqui os detalhes menos apetitosos do fato, que li nos jornais de Munique com a descrição das fotos que foram tiradas do acontecimento. Mas acredito que a história, assim como aparece nos jornais, basta para fazer um homem vomitar violentamente.
       Acontece que tenho o estômago delicado e ando um pouco assustado com o difundido triunfo, observado por toda parte, das virtudes viris e das reações viris, que há muitos anos inquietaram Ortega y Gaste quando ele escreveu A revolta das massas, e porque ainda recordo muito bem o tempo em que cenas como as descritas acima ocorriam entre homens cultos e bem vestidos, na Krolloper de Berlim, no Palácio dos Esportes, ou se ligavam à revolta espontânea do povo diante de uma sinagoga em Viena no segundo distrito, pensei, depois da leitura do relato desses incidentes, que talvez fosse boa idéia suspender as lutas na praça da feira livre. Mas depois disse logo a mim mesmo que esse desejo era pouco cívico e reprovável, quando se pensa nos impostos pagos pelos empresários de lutas. E fui alargando o círculo dos meus pensamentos. Lutas em estilo livre, refleti, parecem uma necessidade das massas. São um sinal dos tempos. O Renascimento teve Leonardo da Vinci; nós temos lutadores de catch na feira livre. Quem se desesperar por isso é culpado. Em vez de se desesperar, devia tentar eliminar esse ou outro fato entristecedor qualquer. Assim, cura-se uma espécie de bactéria com outra espécie de bactéria. Devíamos empregar o interesse das massas pela luta. Construir um ringue gigantesco. Do tamanho de um estádio olímpico. Maior ainda. Finas poltronas estofadas para os espectadores. Servindo refrescos. Música ambiental. E, naturalmente, entrada franca.
       As lutas não perderiam seu caráter internacional. Aí sim, tornar-se-iam praticamente mundiais. Os mais finos senhores participando delas. Do jeito que as coisas andam hoje, sempre que numa conferência um dos delegados considera que as exigências do outro são inaceitáveis, uma ofensa para a independência do seu país, ele se levanta e sai. E a conferência vai por água abaixo. Então os jornais falam de uma crise, tentamos açucarar a coisa e, quando os delegados por fim resolvem encontrar-se de novo, respiramos aliviados. Os delegados são todo o nosso consolo. Sabemos: se um dia nos disserem que não faz mais sentido continuar a reunir-se, haverá nova guerra. Os delegados dos dois lados se retirarão por algum tempo para suas belas casamatas, enquanto nós iremos para a nova guerra. Eles têm de viver em segurança, pois aí é que precisaremos deles mais que nunca. Porque alguém tem de nos dizer onde devemos morrer. Depois da guerra os delegados se deixarão fotografar novamente numa primeira conferência de paz.
       Penso que esse esquema deveria ser mudado. Quando um dos delegados acha que tem de declarar guerra
ao outro delegado, ele que o faça, mas pessoalmente. Estilo greco-romano. Catch-as-catch-can, estilo livre ou como quiserem.
       Então poderiam ir ao estádio gigante e brigar até que um deles estivesse satisfeito. E a guerra teria terminado. Mas nós todos poderíamos assistir de nossas poltronas estofadas.
       É absolutamente justo presumir que, nesse caso, nem haveria novas guerras e todas as conferências terminariam com maravilhosos resultados de conciliação. Mesmo que o estádio não tivesse outra função senão essa, sua existência estaria justificada.
       Eu gostaria de viver ainda no tempo em que, depois de cumprido o trabalho, as pessoas pudessem eventualmente marchar, à noite, para esse estádio a fim de ver como vai acabar a próxima guerra e como o juiz vigia os lutadores (pesos-pesados naturalmente) durante os dez rounds. Poderia beber minha limonada, recostar-me confortavelmente e sentir a mais pura alegria ao pensar que nessa "guerra" finalmente haveriam de correr o sangue, o suor e as lágrimas dos delegados.
       (1950)
      
       Eu trouxe Willi
       Werner Sünning viajava com três malas. Na primeira havia roupa-branca. Na segunda, ternos. Na terceira, seu irmão Wilhelm. Ou melhor: o que era mortal nele. O comerciante Werner Sünning fizera uma longa viagem de avião, navio e trem. Vinha de Tessalonica. Queria ir para casa, em Iserlohn. Trazia, os restos de seu irmão, que tinha morrido na guerra na Grécia, em 6 de outubro de 1944. Agora, em 1959.
       Um mês antes, Werner Sünning tinha entrado em férias. Foi a Gênova, Beirute, Istambul, Atenas. Na Grécia queria visitar a sepultura de seu irmão Wilhelm, que por muitos anos fora representante de uma grande firma alemã em Atenas. Amara a Grécia e os gregos. Mas, em 1943, tivera de vestir um uniforme e atirar em gente contra a qual não tinha nada e que nem conhecia. Um ano mais tarde, um dos que também nada tinham contra Wilhelm Sünning o matou com um tiro. . .
       Em Atenas, o irmão Werner teve uma péssima surpresa. Constatou que, catorze anos depois de sua morte, Wilhelm ainda não tinha sepultura. Seus ossos estavam num depósito grego do Exército, em Tessalonica, chaveados num caixote de munição americana. Há mais oitocentos e nove caixotes desses naquele depósito. Com os esqueletos de oitocentos e nove soldados alemães.
       Fora de si, Werner Sünning tomou o primeiro avião para Tessalonica. Lá, procurou o cônsul-geral alemão. Sünning pediu que o ajudasse na tentativa de inspecionar o depósito do Exército.
       - De jeito nenhum! - O cônsul-geral faz um gesto de recusa. - Se eu telefonar às autoridades, vão apenas repetir: pelo amor de Deus, tire de uma vez seus mortos daqui!
       - E por que não os tira?
       - Isso - respondeu o cônsul-geral - é problema
       da Previdência Alemã para Sepulturas de Guerra. Todos os anos ela manda delegações para cá, a fim de encontrar o lugar adequado para um cemitério, mas até agora nenhuma das delegações se decidiu. Todas queriam um lugar com vista para Tessalonica. Na sua opinião, os lugares que os gregos lhes ofereciam não eram bastante bonitos.
       - E por que ninguém constrói ao menos um barracão para os oitocentos e dez mortos, para que todo mundo possa visitá-los?
       O cônsul-geral respondeu com outra pergunta:
       - Mas quem pagaria o barracão? Uma coisa dessas custa no mínimo dez mil marcos!
       Mas Sünning não se convence com esse argumento. Pega um táxi, contrata um intérprete, e vai para fora da cidade, até o depósito do II Exército Grego, que fica perto de um moinho chamado Alatin.
       Enquanto o táxi espera na rua, Sünning dirige-se ao vigia, acompanhado do intérprete. Educadamente ele os faz transpor a barreira e os encaminha ao guarda. Na salinha da guarda há dez soldados sentados jogando Halma. O intérprete começou a falar e todos fitaram Sünning com olho arregalado.
       De repente, um dos soldados se levanta, dirige-se a Sünning e diz-lhe sorrindo, no melhor alemão:
       - Fez boa viagem, meu senhor? Claro que o ajudaremos com prazer.
       Sünning gagueja de alegria e felicidade. Os soldados
gregos ajudam-nos, como bons amigos. Acham também que, tratando-se de mortos, não deve haver burocracia. Após dizer-lhes o número de identificação de seu irmão, Sünning é levado até a casinha de concreto com os oitocentos e dez caixotes de munição. Estão empilhados. Os soldados têm de retirar quase todos eles. Trabalham uma hora inteira e suam muito, mas nenhum deles pragueja.
       Depois, a caixa verde que procuram aparece diante de Werner Sünning. Tem um número pintado, "72 - 94", e pesa cerca de dez quilos. Não é muito pesado o que sobra de um homem. . .
       No calor terrível da casinha de concreto, Werner Sünning ouve-se dizer, do fundo de si mesmo:
       - Por favor, posso levar essa caixa? Meu irmão precisa de uma sepultura. Nossos pais ainda vivem na Alemanha. Todos amávamos muito ao Willi. . .
       Deram a caixa 72 - 94 a Werner Sünning. Soldados gregos, inimigos de ontem, amigos de hoje, apertaram a mão do homem que queria levar para casa o irmão morto. Levaram a caixa até o táxi. E o intérprete traduziu o que um deles disse na despedida. "A guerra é a coisa mais suja e nojenta do mundo. Vamos rezar para que essa loucura nunca mais aconteça!"
       O motorista de táxi e o intérprete desejam felicidades a Werner Sünning, quando retornam à cidade. Os dois se recusam a receber dinheiro. Werner Sunníng arrasta a caixa ao seu quarto e tranca-a à chave no armário.
       Depois visita mais uma vez o cônsul-geral alemão e pede um visto de transporte para a caixa. Recebe-o logo. O senhor cônsul-geral ficou perplexo com o sucesso de Werner Sünning. Chama-lhe a atenção, na despedida, para o fato de que deve contar com dificuldades na alfândega, apesar do visto de transporte.
       Para escapar a elas, antes da partida do avião Werner Sünning compra uma mala velha num brique. A caixa de munição cabe direitinho ali dentro.
       O vôo para Atenas é muito ruim, passam por uma grande tempestade. Mas Werner Sünning sorri, feliz. Não examinaram sua bagagem.
       Também o funcionário da alfândega a bordo do Campidoglio que o leva a Veneza pediu-lhe apenas a passagem. Agora seu irmão morto navega com ele pelo Mediterrâneo. Em Veneza, os fiscais da alfândega pedem que Sünning abra duas de suas três malas. A caixa de munição está na terceira. . .
       Depois, continuam de trem em direção à Alemanha. O controle na fronteira de Schaffhausen-Singen é às vezes muito severo, dizem os viajantes uns aos outros. Werner Sünning imagina o que poderá acontecer se o obrigarem a abrir as três malas no compartimento repleto. Compra depressa quatro pacotes de cigarros em Schaffhausen. Declara-os todos em Singen e o fiscal tem muito o que fazer.
       - Não sabe que por cada um desses maços o senhor tem que pagar oito Pfennige de imposto? Muito bem, o senhor foi honesto, então vamos ser compreensivos. Dê-me um marco e vinte.
       Werner Sünning paga com prazer o marco e vinte. Em troca, sua bagagem não é controlada. O truque dos cigarros funcionou.
       Quando finalmente Werner Sünning chega a Iserlohn, os pais o aguardam na estação ferroviária. Perguntam:
       - Você viu a sepultura de Willi? E ele diz baixinho:
       - Eu trouxe Willi para vocês.
       O cemitério municipal de Iserlohn é certamente o mais bonito de toda a Vestfália. Com suas árvores, arbustos, caminhos largos e extensos, relvados, parece um parque sossegado. Ali Werner Sünning enterrou seu irmão Wilhelm, que morreu há catorze anos numa terra estranha que amava. Depois de catorze anos, um dos oitocentos e dez soldados alemães mortos encontrou finalmente sua sepultura. Mas oitocentos e nove caixotes de munição ainda estão num depósito do Exército, perto de Tessalonica, junto de um moinho chamado Alatin.
       (1959)
      
       No meio da noite
       Essa história aconteceu há alguns anos. Para ser exato, em 1948. Meu amigo Walter me contou tudo aquela vez. Não é uma história muito especial, mas gosto dela. E me ocorreu narrá-la novamente, depois de todos esses anos.
       Em 1948, meu amigo Walter era sócio de um pequeno bar no centro de Viena. Era um bar de uma rua lateral e ao lado ficava uma igreja. O negócio ia bem. Os senhores com certeza se lembram: era no tempo em que as pessoas tomavam aguardente como se estivessem mortas de sede. Pois durante muito tempo não houvera nenhuma bebida alcoólica. Sim, Walter ganhava bem naquele tempo. Seu sócio era um contrabandista que raramente aparecia e eventualmente era preso. Então Walter tinha de tirá-lo da cadeia sob fiança. Dois bons advogados faziam o resto. Sempre a mesma história.
       Mas de resto Walter levava uma vida calma. No bar, atrás do balcão, trabalhavam ainda duas moças: Lizzy e Bolores. O sobrenome de Lizzy era Menierlich e o de Dolores, Vorkapitsch. Eram muito bonitas e ativas, e trabalhavam alternadamente de dia ou de noite. No sábado, havia ainda o Sr. Glückselig, pianista de Dresden. Em dias de semana havia apenas um rádio e um toca-discos. Meu amigo Walter seguidamente dormia no bar. Morava fora da cidade, em Dornbach, e por vezes era difícil fazer esse trajeto. Além disso, não gostava de voltar para casa. É que ainda se lembrava muito bem do tempo em que na sua casa havia uma mulher e um menininho esperando por ele. Mas depois ele tivera de ir para a guerra e, ao voltar, a mulher e o menino estavam mortos: alguém os matara a tiros nos combates pela cidade, por acaso ou por infelicidade. E agora Walter já não gostava tanto de ir para casa, para os quartos vazios e silenciosos. No dia 24 de dezembro, por exemplo, sentia um grande mal-estar ao pensar em ir para casa. Assim, ficava sentado no pequeno bar e bebia.
       Atrás do balcão estava Dolores, apoiando os braços na tampa. Estava de serviço e falava baixo com um homem solitário sentado à sua frente, bebendo uísque e soda. O homem parecia muito rico e fazia bastante tempo que estava ali. Também bebera bastante - assim como Walter, que jogava paciência sozinho no pequeno reservado. O homem do bar contava que sua mulher o traíra, fugindo com um sujeito.
       Atrás, no canto, sentava-se uma mulher maquiada, fumando nervosamente um cigarro atrás do outro e encomendando alternadamente conhaque ou café preto. A toda hora olhava o relógio, como se esperasse alguém. Havia duas horas olhava o relógio. Não era mais jovem, mas tinha boa aparência e estava impecavelmente vestida. O radiozinho sobre o piano fechado tocava canções de Natal. Vozes infantis cantavam Noite feliz. A mulher maquiada pediu café.
       Às dez e meia, diversos sinos de igreja tocaram e então a porta se abriu num arranco e um grupo entrou no bar: três homens e uma moça. Os homens estavam muito alegres e alcoolizados; a moça, cheia de jóias e com uma capa de marta, dava impressão de ser muito vulgar. Os recém-chegados encheram o bar com algazarra. Pediram champanha, fizeram as rolhas estourar e tomaram conta do rádio e da sua música. Um dos homens - ainda de chapéu na cabeça - tentou sintonizar o aparelho em outra estação. Mas de todos os lados soavam canções de Natal. Walter ergueu-se com certo esforço e pegou o toca-discos. Os fregueses tocaram discos. A moça das jóias pediu Moonlight serenade, de Glenn Miller, e, quando o disco apareceu, ela dançou com um dos homens ao som dessa música. Walter dançou com Bolores. E o homem cuja mulher fugira foi até o canto, onde estava a mulher que tomava café e conhaque, e sentou-se junto dela. A mulher desistira de olhar o relógio.
       E deu-se uma espécie de confraternização geral. Tocaram ainda uma porção de discos, aproximaram algumas cadeiras, os homens pagavam as rodadas. Beberam coisas bastante misturadas. Walter conversou com os três homens. Não lhe agradavam muito, mas eram seus fregueses. No começo tudo correu bem. A briga começou quando a moça das jóias saiu porque se sentia mal. Eram onze e meia. Alguém disse que a aguardente não era boa. Walter protestou contra isso.
       - Mas ele não está acusando o senhor - disse o homem que não tirara o chapéu. - É essa porcaria de refugo que nos impuseram. Na guerra não teriam se atrevido a isso.
       - Sim, senhor - disse o homem ao lado. - Na guerra bebi coisas bem melhores.
       - Homem, que tempos aqueles - disse o terceiro.
       - Não percam a coragem - disse o do chapéu -, eles voltarão logo.
       - Esperemos que sim - afirmou o terceiro.
       - Vamos beber a isso - propôs o segundo. Todos ergueram os copos e beberam ao início de uma nova guerra. Walter não ergueu seu copo. Após convidarem-no duas vezes em vão, o homem do chapéu disse:
       - Seu pacifista de merda!
       E Walter os colocou para fora. A briga foi curta, mas violenta, alguns copos e uma cadeira se quebraram, a boca de Walter ficou machucada e seus lábios sangravam quando finalmente conseguiu colocar todos para fora. O homem cuja mulher fugira e a mulher maquiada levantaram-se e saíram, juntos e sem palavra. Dolores começou a fazer a limpeza. Walter estava sentado numa poltrona, olhando fixamente para a frente. Já estava muito bêbado e tudo girava ao seu redor.
       - Chame um táxi - disse ele à moça.
       Foram juntos. As ruas estavam vazias. Nevava. Atrás do Gürtel a neve caía mais forte. Walter primeiro levou Dolores para casa e depois seguiu caminho para Dornbach. No cruzamento da via férrea, o motorista de repente soltou uma praga e pisou no freio. O carro derrapou, Walter olhou para a frente. À luz dos faróis, viu uma moça caída no meio da pista. Ao seu lado, um homem ajoelhado ocupava-se dela.
       Walter e o motorista saltaram do carro.
       - Ajudar, por favor - disse o homem na neve. Falava com um duro sotaque eslavo.
       - O que aconteceu?
       - Minha mulher ganhar criança.
       - Deus do céu - disse Walter. - O quê?
       - Sim, criança - disse o eslavo. - Não podia mais andar. Entender? Por favor, hospital.
       O motorista fitou Walter.
       - Então, vamos - disse Walter.
       Levaram a mulher para o táxi. Estava com um pano amarrado na cabeça e parecia muito magra e pobre. Gemeu algumas vezes durante o trajeto.
       - Viver ali, no acampamento - disse o seu marido, apontando para a noite, lá fora.
       - Hum - fez Walter.
       - Acampamento não bom. Demais frio. Demais gente. Entender?
       - Sim - disse Walter. Segurava a cabeça da mulher no colo e olhava para a frente, para a grossa nevasca. Quando chegaram ao hospital, os enfermeiros cuidaram da mulher grávida. Ela sumiu imediatamente atrás da porta de uma sala de operações. O homem teve de esperar. Walter sentou-se ao lado dele, o motorista pegou seu dinheiro e se foi. Os dois homens ficaram calados.
       - Como é que o senhor se chama? - perguntou Walter, por fim.
       - Novak - disse o homem.
       - E o primeiro nome?
      
- Franz.
       - E sua mulher?
       - Mila - disse o homem, admirado. - Por quê?
       - Eu só queria saber - disse Walter, levantando-se. Deu quinhentos xelins a Novak. Este começou a chorar e quis beijar-lhe a mão, mas Walter o afastou, furioso.
       - Boa noite - disse. - Cumprimentos à sua esposa. E foi embora.
       Lá fora ainda nevava, uma claridade leitosa enchia o ar. Walter respirou fundo. Já não se sentia embriagado. Começou a caminhar devagar. Enterrara as mãos nos bolsos e sorria, distraído. Foi para casa.
       (1951)
      
       Pobre Marilyn, pequena Marilyn
       Certa vez havia um cocheiro que descobriu no campo, na casa de camponeses bem pobres, um cavalo maravilhoso. O mais maravilhoso que jamais vira. E ele entendia de cavalos.
       Esse animal era mais bonito que qualquer outro, maior, mais forte, mais disposto a trabalhar, mais terno, amável e muito, muito feliz no campo. O cocheiro comprou o cavalo dos camponeses. Por uma ninharia. Gente pobre não sabe negociar, estão sempre famintos demais para isso.
       E o cavalo foi à cidade. Teria gostado de ficar no campo. Mas quem se interessa pelos sentimentos de um animal com o qual se pode ganhar dinheiro?
       E o nosso cocheiro ganhava dinheiro com seu novo cavalo. Agora podia aceitar três, quatro vezes mais tarefas do que antes com seu triste matungo.
       Mas o feliz proprietário descobriu um defeito no seu cavalo magnífico: estava sempre com fome.
       Primeiro o cocheiro contornou esse aborrecimento. Mais ainda: deu muita aveia ao animal, que trabalhava para ele. Descobrira que seu cavalo se sentia inseguro naquela cidade grande e barulhenta, e facilmente ficava nervoso e assustado.
       Mas depois de um bom tempo o cocheiro, que era muito avarento, começou a calcular o que custava aquela aveia. "Tenho de acostumar esse bicho a comer menos", pensou o cocheiro. "Assim ganharei ainda mais com ele."
       Nosso cocheiro era esperto. Não quis assustar o seu cavalo! Não diminuiu abruptamente a ração de aveia. Não; fê-lo bem devagarinho! Primeiro, pela metade. Depois, metade da metade. E assim por diante.
       Duas semanas depois, contava ele totalmente perturbado e abalado:
       - Tudo ia às mil maravilhas, Trabalhava como sempre, o bicho. Não havia carga que ele não puxasse. Eu não dava comida ao cavalo o dia todo! Mas tudo ia sempre bem! Passaram-se mais uns dias. Depois, acabou.
       - Como?
       - Mas que posso dizer? Mal o bicho tinha se acostumado a não comer, deitou-se e morreu!
       Um ser humano não é um animal.
       Mas os dois são seres vivos. Há muitas maneiras de matar seres vivos. A história do cocheiro e seu cavalo foi apenas uma fábula. A história que vamos contar agora é mais que isso: é uma verdade triste e feia. (Raramente a verdade é alegre e bonita.)
       Houve certa vez uma indústria, uma das maiores do mundo, que descobriu um ser humano. Uma pobre criatura, uma criatura desconhecida, pouco notada, muitas vezes maltratada, encolhida, humilhada, insegura.
       - Encolhida que nada! Humilhada que nada!
       Os chefes da grande indústria entendiam de gente, assim como o nosso cocheiro entendia de cavalos. Sabiam o que vale uma pessoa, quanto se pode ganhar com ela, o que ela pode realizar. Os chefes da grande indústria sabiam o que tinham encontrado quando descobriram Norma Jean Baker, uma jovenzinha: uma das mais bonitas, das mais excitantes, das mais dispostas ao trabalho, e das mais baratas. Uma mocinha que em breve todo mundo conheceria com outro nome: Marilyn Monroe...
       Como já se disse: um ser humano não é um animal. Deve ser tratado de outra maneira, quando se deseja tirar dele o máximo e ganhar o máximo à sua custa. Por exemplo, é preciso deixá-lo ganhar também. E dar-lhe mais e mais dinheiro, e não menos e menos comida, como nosso cocheiro fez com seu cavalo. É preciso dar-lhe também fama, glória e publicidade. É preciso transformá-la num mito, num desejo (aberto ou secreto) de milhões de pessoas, num sonho (aberto ou secreto) de milhões.
       Tudo isso sabiam os senhores da indústria gigante. Não era à toa que eram chefes da grande fábrica de sonhos chamada cinema. Fizeram de Marilyn Monroe, a encolhida, humilhada, insegura e ilegítima menina, que tivera uma juventude difícil e miserável, um dos mais brilhantes, desejados e lucrativos artigos de mercado do mundo!
       Para tanto, naturalmente, a criatura humana Marilyn Monroe tinha de ser um pouco reformulada. Um pouquinho mais reformulada. Bem, sejamos honestos! Totalmente reformulada . ..
       As pessoas que a vida produz - mesmo as mais belas, inteligentes e corajosas - a priori ainda não são ídolos de milhões. Assim como são, não podem ser vendidas a milhões de outras pessoas. É preciso que sejam apresentadas de modo igualmente desejável, admirável e imitável para milhões.
       Quando um homem se apaixona por uma mulher, é por sua personalidade que ele se apaixona, por sua - perdão pela palavra dura -, por sua alma.
       Um homem, dissemos.
       Mas, e milhões de homens?
       E milhões de mulheres? (Pois são especialmente as mulheres que vão ao cinema!) Estão vendo como é difícil o problema? Milhões de pessoas amam milhões de outras por causa de nuanças bem diversas de aspecto, alma e caráter. O que se deve fazer para 'que milhões de homens e mulheres (atenção, suspense!) amem uma mulher e gastem seu dinheiro por causa dela?
       É preciso misturar milhões de traços femininos, caracteres e figuras, e destilar daí um tipo que todas as mulheres gostariam de ser e que todos os homens desejariam ter. Homens espertos começam a trabalhar. Pesquisam para ver como andam no mundo o sexo, o humor, o diâmetro de busto e o amor. Acrescentam um laivo de ingenuidade, porque isso ainda não existia, outro de sentimentalismo, e uma boa dose de escândalo. (Escândalos são sempre uma coisa boa.)
       Tudo isso é fácil .de arranjar com uma mocinha que vem da sombra e tem medo da luz ofuscante de uma glorificação universal; com uma mocinha frágil, assustada e desamparada, necessitada de proteção, que se lança da catapulta da pobreza para o luxo, assim como aquele cocheiro levou seu cavalo das pradarias e dos caminhos do campo para a floresta da cidade, onde precisava de um tapa-olho a fim de não tombar no chão, que de repente oscilava debaixo dele.
       O chão oscilou debaixo de Marilyn Monroe, desde o começo. Desde o começo ela foi uma dançarina de arame, entregue a implacáveis forças entre céu e terra, glória e decadência, vida e morte. Nunca, sequer num único segundo, sentiu-se realmente segura na personagem em que a tinham transformado. Representava-a com perfeição e os outros estavam sempre satisfeitos quando vinham os relatórios dos lucros. Quem se importava com o fato de que ela dissesse a amigos: "Sempre tenho medo quando preciso ir ao estúdio. Por isso é que não sou pontual, por isso tantas vezes chego tarde ou digo que estou doente. Então eles dizem que eu sou histérica, imprevisível, que devo ser despedida. Mas é que eu sempre tenho medo. Quando, antes de uma grande cena que preciso fazer, vejo no corredor uma faxineira, tenho inveja dela, e penso: É isso o que você devia ser, esse era o seu caminho! Não deixaram que você fosse uma faxineira.
O diretor grita comigo: 'Vamos, agora uma lágrima, Marilyn, mas depressinha!' Sabem que uma vez até derramei duas lágrimas de verdade? Mas foi porque pensei: Como é que esse cachorro se atreve a dizer: 'Vamos, uma lágrima, mas depressinha'?"
       O que significa: como é que ele se atreve?
       Quem se importa com os sentimentos de uma pessoa com a qual se pode ganhar dinheiro?
       Pobre Marilyn, pequena Marilyn.
       Você foi injusta com os cocheiros - perdão, com os grandes senhores! Pois naturalmente um diretor podia, tinha de se atrever a pedir-lhe lágrimas, mesmo que não houvesse motivo para lágrimas verdadeiras. Você tirou o dinheiro dos grandes senhores, pequena Marilyn, muito dinheiro, provavelmente pelo mesmo motivo pelo qual o cavalo daquele cocheiro devorava aveia. Pois ele tinha fome, muita fome. Por muito dinheiro, porém, é preciso fazer muita coisa. Quanto mais famosa você ficava, quanto mais elevados eram seus cachês, mais você se tornava dependente. Já não era mais você mesma. Sua vida foi inventada, seu caráter, suas falas. Para quê? Para agradar a milhões de pessoas. Quem tem de agradar a milhões, a esse é preciso roubar a vida própria, o caráter, a - perdão, de novo essa palavra - alma. De outro modo, onde iríamos acabar? Uma estrela tem de mostrar tantas imagens e satisfazer tantos desejos quantas são as infinitas combinações dos cacos coloridos de vidro de um caleidoscópio, que se pode misturar sempre de novo, numa sacudida, pois são apenas cacos de vidro, não vida.
       Não vida!
       O cocheiro aos poucos foi tirando a comida ao seu cavalo. A você, pequena Marilyn, tiraram devagar o seu eu, o seu próprio eu. Você se tornou um ídolo, um sonho, um fetiche. Você já não era você. Essa é uma maneira de assassinar . ..
       Você contou a amigos que, em criança, sua maior alegria era brincar de "família" com outras crianças. Pois você não tivera família e teria sido muito feliz e apaziguada com um maridinho e uma casinha, com crianças, um cachorro, numa vida pequena.
       Mas não havia mais nada disso!
       Quando, desesperada na busca de si mesma, você olhava no espelho da sua glória, acaso encontrou-se ali? Nunca! Acaso encontrou jamais alguma coisa de você mesma?
       Nada.
       Apenas o caleidoscópio. . .
       Mas você ainda era uma pessoa, um ser vivo! Assim, procurou amparo e proteção com homens que, na sua perplexidade, lhe pareciam inabaláveis, impossíveis de se confundirem todos como os cacos de um caleidoscópio, homens fortes, famosos e inteligentes: um astro de beisebol endeusado pelo país, um escritor mundialmente conhecido.
       Tarde demais. Há muito tempo os donos da fábrica de sonhos tinham-na degradado ao nível de uma boneca sem vontade e sem alma. Como diz o Professor Dr. Friedrich J. Hacker, um dos maiores psicanalistas de Hollywood: "A Monroe será sempre escrava do busto que a tornou famosa".
       Seus casamentos desmoronaram todos.
       Mas você ainda não desistiu: estava farta de bancar apenas a "loura tola". Quis tomar aulas de arte dramática, ter papéis sérios, leu Goethe e Dostoiévski. Quis debater sobre eles. Riram-se de você.
       Riram-se e exploraram-na cada vez mais, assim como o cocheiro fez com seu cavalo. Comida: para você, alimento espiritual e consolo humano num mundo desumano - a cada dia você recebia apenas a metade do dia anterior.
       Por fim, estava totalmente sozinha, totalmente abandonada, tinham exigido demais de você, como do cavalo do nosso cocheiro. E não sabiam mais o que fazer.
       Ouvimos dizer que certo dia você comentou com amigos: "E se eu um dia acabasse? E se ninguém mais ouvisse falar de mim? Que alívio! Fama? Fama é muito bonito! Mas fama também é nojento, como o melhor caviar pode se tornar nojento quando a gente é obrigada a engoli-lo todos os dias. Fama não é vida, não é a vida que desejei ter..."
       Ah, pequena Marilyn, então não lhe agradou a vida que tantos homens inteligentes criaram para você, para com você ganhar milhões.
       Como o cavalo que foi levado contra a sua vontade para a cidade, inesperadamente você se deitou e morreu.
       (1962)
      
      
       Como nosso mundo poderia ser de novo um mundo de paz (sugestão)
       - Posso dizer-lhe uma coisa?
       - Diga, ora!
       - Se eu disser, você vai pensar que estou bêbado.
       - Mas você está mesmo bêbado!
       - Desculpe, mas acaso você não está?
       - Claro que estou. Quem é que não fica no ano-novo? Acaso afirmei que estou sóbrio?
       - Não.
       - Então diga de uma vez o que quer dizer!
       Esse diálogo se deu no último dia do ano, às vinte e três horas e quinze minutos, no apartamento de Kunert. Kunert é solteirão. Tem um belo e grande apartamento no quinto andar de um edifício de sete andares, e há anos todos achamos que em nenhum lugar se consegue festejar o Ano Novo tão bem como na casa dele. Kunert é o melhor dos anfitriões. E gosta muito de sê-lo. Por isso todos os anos festejamos na casa dele.
       Chegamos depois do jantar, às nove, e levamos conosco a bebida. Éramos ao todo onze pessoas: cinco damas e seis homens. Kunert sempre cuidava de convidar menos mulheres do que homens. Assim havia nas suas festas um estado de espírito todo especial.
       Também dessa vez. Bebemos e dançamos e nos divertimos. A maioria já se conhecia, exceto dois casais, que logo começaram a flertar. Pelas vinte e três horas e vinte e cinco minutos Kunert veio até mim e perguntou se podia me dizer uma coisa.
       - Ora, diga!
       - Estou ouvindo um passarinho.
       - Você parece bem normal.
       - Eu não disse que tenho um passarinho (nota da tradução: Em alemão "ter um passarinho" significa estar doido. Fim da nota), disse que estou ouvindo um!
       - Onde?
       - O quê, onde?
       - Onde é que você está ouvindo um passarinho? - indaguei.
       Kunert respondeu que escutava o pássaro por toda parte. Não conseguia localizar o ruído. Mas estava ficando maluco com ele. Lotte Bröge e Evi Salt aproximaram-se e perguntaram o que estava acontecendo. Kunert disse que não era nada de especial, não havia motivo para ficarem nervosos, apenas ele estava ouvindo um passarinho.
       - Impossível - disse Lotte. - Nenhum pássaro canta de noite.
       - Mas o que estou ouvindo canta de noite - disse Kunert. - E como canta!
       Então todos se aproximaram de nós, também os dois casais que flertavam, e ficamos discutindo se Kunert estava com alguma forma especial de delirium tremens: pios de pássaro em vez dos ratos de costume.
       Lotte Bröge foi até a janela e meteu a cabeça para fora. Depois virou-se:
       - Querem saber de uma coisa?
       - Não vá começar também!
       - Mas preciso - disse Lotte. - Agora eu também estou ouvindo o passarinho.
       - Olha aí! - gritou Kunert.
       - Além disso, estou vendo o bichinho! - exclamou Lotte. - Ali vai ele!
       Todos se precipitaram para a janela e olharam para fora. Era uma noite clara e gelada, cheia de estrelas. A rua estava vazia, à luz dos lampiões.
       Virei a cabeça para cima. No alto do telhado voava um pardal, pequeno e cinzento, em círculos, piando como se lhe pagassem para isso.
Depois desceu até nós, esvoaçando, piou ainda mais alto, voltou até o beirai do telhado e tornou a descer, batendo as asas, quase sem respirar.
       - Pela primeira vez na vida estou vendo um pardal bêbado - eu disse. Os outros objetaram. O pássaro não estava bêbado, mas tentava chamar nossa atenção para a calha no telhado. Alguma coisa devia ter acontecido ali. Mas o quê?
       O pipilar do passarinho mexia com nossos nervos. Um de nós desligou o rádio. Kunert pegou o manto:
       - Venha comigo, vamos ao telhado dar uma olhada!
       - Piu.. . piu piu.... piu... - fazia o pardal, contente como se tivesse entendido cada palavra nossa.
       Assim, fomos ao telhado, todos os onze. Levamos uma garrafa de conhaque para o caso de nossa expedição durar mais tempo. Estava gelado lá em cima, e pensei no valente Almirante Byrd, embora esse nunca tivesse trepado em telhados numa noite de ano-novo.
       - Minha nossa! - exclamou Lotte Bröge, assustada ao olhar para fora. - Ali está outro pardal!
       Havia realmente um segundo pardal na calha. O primeiro voava ao redor dele, pipilando. O segundo o fitava tristemente. Não podia voar. Estava congelado dentro da calha.
       - Temos de ajudar - disse o Dr. Wedekind. - Eu mesmo nunca fiquei congelado, mas imagino que deve ser das piores coisas do mundo!
       - Piu - fez o congelado. Ou a congelada, pensei. Evi Salt pensou a mesma coisa, pois disse:
       - Quem sabe é um casal de pardais. Ela ficou presa no gelo e ele está tentando arranjar auxílio. Sabem o que estamos vendo aí? Um comovente exemplo de grande amor!
       - Com um pouco de água quente poderíamos soltar a menina - disse Kunert. A partir de então o pardalzinho congelado tornou-se "ela" para todos nós.
       - Mas como é que você vai chegar até a calha? - perguntei. - O telhado é bem íngreme!
       - Vocês podem me baixar por uma corda!
       - Besteira, você vai cair e quebrar o pescoço!
       - Mas o que vamos fazer? Coitadinha da menina!
       - Vamos chamar a polícia - disse o Dr. Wedekind.
       Isso nos pareceu uma boa idéia, de modo que descemos até o apartamento de Kunert, para chamarmos a polícia pelo telefone. Fizemos barulho ao descer, outras portas de apartamentos se abriram, outros bêbados apareceram. Quando souberam do que se tratava, foram todos conosco à casa de Kunert, onde Wedekind falou com a polícia ao telefone.
       - É um caso de vida ou morte! - disse o médico. - Sou médico, hic, sei o que digo.
       - Mandaremos uma viatura imediatamente - disse o homem da Central. E logo depois elas chegavam mesmo, com luzes e sirene.
       Três policiais, em casaco de couro, subiram batendo os pés até junto de nós. Agora o prédio todo estava acordado. (Gente velha dorme até na noite de ano-novo.)
       Os policiais examinaram a situação e decidiram que não se podia chegar à calha do chão. Era preciso chamar os bombeiros com escada Magirus!
       Os homens da polícia telefonaram para os homens do Corpo de Bombeiros. Quando o carro vermelho com sua escada gigante parou diante da moradia de Kunert, a rua estava apinhada de gente. As pessoas batiam os dentes, tomavam goles de garrafas que tinham trazido e olhavam todas para a calha lá em cima.
       Holofotes foram acesos. A imensa escada foi desdobrada. Um bombeiro subiu por ela, amarrado e seguro, até o céu. Na mão direita tinha um bule de café com água quente. Já chegavam pessoas das ruas laterais. Silêncio mortal. As pessoas sustinham a respiração.
       O pardalzinho rodeava a cabeça do bombeiro, piando, enquanto este descongelava a senhora pardal com água quente. Ela estava muito fraca e não podia voar. Foi, por assim dizer, um salvamento no último instante.
       O bombeiro colocou a senhora pardal cuidadosamente dentro da camisa, em contato com a pele quente, e deixou que o descessem de novo.
       Todo mundo bateu palmas. Todos queriam ver a que fora salva, quando o bombeiro chegou lá embaixo.
       Mas o Dr. Wedekind foi categórico:
       - Nada disso; o bicho pode morrer se não o levarmos logo para um lugar quente!
       - Venham comigo, senhores - disse Kunert aos policiais e bombeiros. E voltamos ao seu apartamento.
       Lá, Lotte Bröge esfregou a pardalzinha com o lenço. Depois lhe demos leite quente. Em seguida colocamos uma bolsa de água quente diante da árvore de Natal de Kunert, já muito despida e desgrenhada, e sentamos a pequena ave em cima. Ela ficou sentada no frasco vermelho, debaixo da árvore verde, e uma vez disse "piu", isto é: obrigada.
       - Abram a janela - disse Lotte Bröge. Abriram.  Esperamos algum tempo, depois o esposo
       entrou na sala esvoaçando. Voou logo para a árvore de Natal e pousou ao lado da esposa.
       - Não façam barulho, não façam barulho - disse o Dr. Wedekind - e não fiquem todo o tempo olhando os dois, pois vão ficar encabulados!
       Então fizemos de conta que nem nos interessávamos mais pelos dois pardais e só de vez em quando espiávamos por sobre os ombros.
       Estavam pousados lado a lado, com a plumagem eriçada, olhando para mim. Abrimos mais duas garrafas, os policiais e bombeiros beberam conosco, e de repente Evi Salt ficou sentimental e disse:
       - Quando penso que um homem me protegeria tão comoventemente como esse pardal protegeu sua pardoquinha. . .  É mesmo um exemplo de amor eterno.
       - Calma, calma - rosnou Kunert. - Preciso dizer uma coisa. Se isso aí é um exemplo de amor eterno, também é certamente exemplo de um espantoso comportamento humano! Eu e você, todos nós, não somos tão maravilhosos assim. E todas as pessoas que estavam na rua batendo palmas também devem ter feito das suas malandragens! Mas todo mundo não se prontificou imediatamente a fazer alguma coisa pelo pardalzinho?
       - Eu sei o que você quer dizer - disse Lotte Bröge, e os bombeiros e policiais balançaram simultaneamente as cabeças. - Nem se pode imaginar o que aconteceria no mundo se cada dia pardaizinhos tivessem problemas! Diariamente, a cada hora! Milhões de pardais! De preferência, dois pardais para cada ser humano!
       - Você quer dizer - disse Evi Salt - que se os bichos precisassem mais vezes da ajuda dos homens, os homens teriam mais oportunidades. . .
       - Isso mesmo - volveu Kunert. Enchia os copos de todos os presentes e, enquanto fazia isso, continuou: - Que vida essa, gente, que vida! As pessoas não teriam mais tempo para cuidar dos poderosos políticos e generais com condecorações douradas! E os generais e políticos não teriam mais tanta preocupação com as pessoas, e poderiam jogar futebol, felizes e contentes, com os coelhinhos!
       - Piu. .. - disseram em coro os dois pardais, debaixo da árvore de Natal.
       Todos entendemos o que queriam dizer. Estavam nos desejando um abençoado ano-novo. Pois ele já começara.
       - Para vocês dois também, tudo de bom - disse Kunert aos pardais, e fez uma mesura. Então todos erguemos os nossos cálices e bebemos.
       (1964)
      
       Não sei o que significa
       Cada estação do ano tem suas próprias histórias. Há histórias românticas na época do Natal, quando a neve cai e sentimos o cheiro familiar de maçãs assadas. Há histórias de melancolia e desejo quando, no outono, as folhas caem no asfalto molhado, e há histórias de verão, plenas de uma doce madurez e o brilho vítreo do sol. Acho que a história que vou contar aqui combina com a festa da Páscoa. Pois começa numa hora de aflição e tristeza, e termina com um fato que traz nova felicidade e cria novas esperanças...
       - Rosas - dizia baixinho a jovem mulher. - Belas rosas vermelhas para as senhoras. . .
       Passava pelo grande bar penumbroso. Ia de mesa em mesa. Devia ter uns trinta e cinco anos, e não se podia dizer que fosse bonita. Seu cabelo negro era dividido ao meio e preso atrás num grande nó. A boca parecia - fora da hora de serviço - dificilmente decidir-se a dar
um sorriso, e nos olhos havia sombras de tempos de treva e dor. . .
       - Rosas - dizia com voz áspera e um pouco rouca -, belas rosas vermelhas. . . um marco a rosa. . .
       Ela vendia pouco. Os pares nas mesas estavam demasiadamente ocupados consigo mesmos para tomar conhecimento dela e sua voz se perdia um pouco na música do piano. O pianista tocava: "Devia ser sempre tão belo como hoje..."
       A jovem mulher usava vestido de lã negra com um estreito cinto prateado. Nas mãos trazia um grande cesto de vime, onde estavam as rosas.
       Repetia sempre a mesma coisa enquanto andava pelo bar. Seus olhos pousavam sérios em todas as pessoas que deviam comprar as rosas e não compravam.
       No bar estava sentado um senhor muito embriagado. Quer dizer: só o barman que o servia contara os uísques. O senhor embriagado não demonstrava o seu estado. Sentava-se ereto, a mão que segurava o cigarro não tremia nem um pouco quando o levava à boca, ele não oscilava e seus olhos não estavam vermelhos. Parecia um senhor com certo treino no consumo de uísque.
       Estava sentado ali bem quieto e olhava o pianista. Olhava as mãos do pianista. As mãos do pianista pareciam interessá-lo imensamente. Um observador atento teria notado que a mão do senhor embriagado estava mutilada em duas falangetas. O barman notara isso. Mas era um barman velho e com muita sabedoria, de modo que não falou no que observara. Eram vinte e três e trinta. Dia 15 de outubro. . .
       - Quer rosas, senhor? - A mulher jovem se aproximara do senhor embriagado. Ele a fitou. Era um pouco mais velho do que ela, tinha cabelo levemente grisalho, um rosto sensível e fino, pálido, e uma boca inteligente e nervosa.
       - O quê? - perguntou, distraído.
       - Gostaria de comprar rosas? - Ela deu um sorriso profissional.
       - Sim - disse ele. - Por que não?
       - Quantas?
       - Quantas tem aí?
       - Vinte e cinco - disse ela.
       - Então - respondeu ele - desejo comprar vinte e cinco rosas. - Fez um vago gesto com a mão em que faltavam as pontas dos dedos. - Distribua-as, por favor. Para todas as senhoras presentes. Com minhas recomendações!
       A mulher fez que sim, feliz:
       - Sim, meu senhor, imediatamente. . . - Afastou-se apressada como se tivesse medo de que ele mudasse de idéia.
       O senhor do bar dirigiu-se ao barman
       - A conta, por favor - disse. O barman colocou diante dele um prato com a conta. Era uma conta muito alta. O senhor tirou um maço de notas soltas do bolso da calça e jogou-as no prato. - Meu casaco, por favor - disse. Apressaram-se em trazer o casaco. O senhor vestiu-o e deu dinheiro à mulher da chapelaria. Em seguida, caminhou até a saída, rodeado de garçons.
       No fundo da sala, a jovem mulher ainda distribuía rosas. Não percebeu o senhor. E ele não a percebeu. Não queria lográ-la: esquecera-se inteiramente dela. Não mais sabia da sua existência. O porteiro abriu a porta para a rua.
       - Boa noite, senhor. Quer que chame um táxi?
       - Não - disse o homem embriagado a quem faltavam duas pontas de dedo -, vou a pé. Não fica longe. . .
       Atrás do bar ficava um parque. O senhor entrou por ele com passo comedido. Através do fino nevoeiro de outono, viu as silhuetas tortas das árvores despidas à luz difusa de velhos lampiões. Andava seguro e depressa, e logo alcançara o lago no meio do parque. O lago era grande e muito fundo. O senhor tirou seus sapatos de verniz preto e deu o primeiro passo para dentro da água. Estava fria como gelo. Ele estremeceu como se lhe tivessem dado uma chicotada e tentou respirar. O sangue disparava, rumorejando pelas suas têmporas; teve uma breve tontura, mas depois, decidido, deu um segundo passo. E um terceiro. O lago rapidamente ficava mais fundo. Agora a água já lhe chegava pelo joelho. Pensou: "A água está fria. Mas não quero viver nela. Quero morrer nela. E para isso não precisa ser mais quente. . ."
       Quando dava o sétimo passo - a água já lhe chegava ao peito - escutou a voz dela:
       - Pare! Pare! Não pode fazer isso!
       Ele virou-se. Viu a jovem florista correndo em sua direção, saindo do nevoeiro, ofegante, nervosa e indignada. - Pare aí! - gritou ela.
       - Suma já daqui - disse ele.
       - Pois sim! -- Ela correu atrás dele para dentro da água, vestida como estava. Alcançou-o, arquejante, escorregou, agarrou-se a ele e tentou furiosamente arrastá-lo para terra. - Venha comigo, vamos, venha comigo!
       - Não senhora! - E puseram-se a lutar. A água espirrava para todos os lados. - Largue-me! - gritou ele.
       - Nunca! - gritou ela. - Vai se matar sem pagar as minhas rosas?
       Ele a largou.
       - Meu Deus - disse, atônito. - As rosas! Eu tinha esquecido completamente!
       - Bem que notei - respondeu a mulher com ironia.
       - Eu esqueci de verdade - defendeu-se ele. - Claro que vou pagar logo. - E meteu a mão em todos os bolsos. Mas reconheceu envergonhado: - Não tenho mais dinheiro! Sinto muito.
       - Nenhum dinheiro?
       - Nem uma moedinha.
       Ela o fitou tanto tempo quanto se leva para contar até três e depois começou a berrar, tão alto quanto podia:
       - Polícia! Socorro! Polícia!
       Ele tentou segurar-lhe a boca. Não conseguiu. Ela continuou berrando alto e firme. Era uma jovem muito enérgica . . .
       - Por que queria se matar, Sr. Weigand? - perguntou o juiz na manhã seguinte.
       A polícia chegara. O Sr. Walter Weigand - assim se chamava o senhor cansado da vida - fora obrigado a passar o resto da noite num catre do distrito policial mais próximo e agora encontrava-se diante da autoridade, tresnoitado, barbudo e muito gripado. Atrás dele, estava sentada a jovem florista. Seus dados pessoais também tinham sido constatados. Chamava-se Maria Holub.
       - Eu queria me matar - disse Walter Weigand - porque de repente percebi que nos últimos meses tornei-me um verdadeiro beberrão. Sou um trapo humano e bebo porque não posso mais trabalhar. Estou desempregado e não posso mais trabalhar na minha profissão porque alguém me atropelou de carro. Não me feri muito. As pontas de dois dedos foram decepadas. Mas é isso: sem as duas pontas dos dedos não posso mais trabalhar. Sou pianista de concertos...
       Seguiu-se um longo silêncio. No fim do silêncio a florista Maria Holub disse com sua voz gutural e agreste:
       - Retiro a minha queixa.
       - Por quê? - quis saber o juiz. Maria Holub disse:
       - Porque esse senhor me dá pena.
       - Não dou a mínima para a sua compaixão - disse Weigand. - No momento estou sem nenhum dinheiro, sem casa, sem móveis, transformei tudo em bebida, mas quero tentar ainda assim pagar minhas rosas. Nunca fiquei devendo nada a uma mulher. É muito desagradável. E nem sei mais o que posso dizer.
       - Se o senhor não tem mais casa nem móveis - disse Maria Holub -, se acha desagradável dever a uma mulher,
       e se não sabe mais o que dizer, pague essa dívida trabalhando!
       - Mas como?
       - Tenho uma floricultura fora da cidade. Meu marido morreu, Sr. Weigand. Digo isso apenas para que veja que outras pessoas também têm suas pequenas preocupações, e para que afinal pare de ter tanta pena de si mesmo. E também digo isso, naturalmente, porque desde a morte de meu marido estou sozinha e tenho muito o que fazer e não estou conseguindo dar conta de tudo. . . - Maria Holub calou-se. Weigand engoliu duas vezes com dificuldade. Sentia-se muito mal naquela manhã. . .
       A floricultura ficava na periferia: canteiros despidos, montes de esterco, estufas de vidro, um campo cultivado, três árvores e uma cabana precária.
       - O senhor não pode dormir na cabana - disse Maria Holub, enquanto o tresnoitado Sr. Weigand andava pelas propriedades dela. - Ali há só uma cama e nela durmo eu. Mas há um catre na estufa. Pode ficar com ele.
       Tinham alcançado a estufa. Diante da entrada erguia-se a caricatura ressequida de um sabugueiro. Weigand tropeçou nele e praguejou: - Por que não arranca isso aí?
       - Porque eu não quero - respondeu ela, falando alto.
       - E por que não quer? O que lhe agrada nesse sabugueiro idiota, velho e seco?
       - Não é idiota nem velho, nem está seco. Eu gosto dele.
       - Quando foi que floresceu pela última vez?
       - Há três anos - disse Maria.
       - Ah! - fez Walter Weigand.
       - Vai florescer de novo!
       - Ora, besteira.
       - Não é besteira!  Vai florescer!  Eu lhe prometo! Mas o senhor não acredita, estou vendo. Porque não tem coragem. Foi por isso que quis se matar! Mas vou lhe dizer uma coisa: o senhor também vai voltar a viver bem um dia! Também vai ser feliz de novo!
       - Quando o sabugueiro florir outra vez - disse ele, fazendo uma careta.
       Walter Weigand ficou com Maria Holub.
       Era muito desajeitado, porque nunca na vida fizera nada de jardinagem. Maria era paciente e amável com ele. Mostrou-lhe como se revolvem canteiros com a pá, como se coloca esterco em cima, como são arranjadas as flores e transportadas. Ele ia em lugar dela, na velha bicicleta, até a cidade, onde visitava muita gente em muitas casas, e à noite estava sempre morto de cansaço quando caía no velho catre na estufa, diante da qual se erguia o velho sabugueiro . . .
       Naturalmente tinha recaídas de alcoolismo.
       O pior foi quando teve de levar quinze rosas vermelhas para a Casa de Concertos Municipal. Lá, uma famosa e jovem pianista francesa estava se exercitando para a estréia da noite. Weigand escutou-a por algum tempo e depois saiu.
       Maria Holub encontrou-o às três horas, totalmente bêbado, num bar do subúrbio. Era o oitavo em que procurava por ele. Dessa vez Weigand não se embriagara como um cavalheiro. Dessa vez estava tão bêbado que nem conseguia mais andar direito. Maria Holub não disse nenhuma palavra zangada, embora ele se comportasse horrivelmente, mas levou-o em silêncio para casa, para a estufa, onde o deitou na cama. Na noite seguinte pediu que ele 'fosse até a sua cabana:
       - Preparei comida - disse ela. Havia purê de batatas e gulache. E cerveja. Depois, em silêncio, Maria Holub pôs uma garrafa de conhaque na mesa. E dois copos. E disse: - Prefiro que se embebede aqui. Senão as pessoas falarão demais sobre nós dois!
       Walter Weigand fitou-a, calado.
       - Vamos, beba! - Ela encheu os copos e bebeu um enorme gole. Então ele também bebeu. Um golinho pequeno.
       E fitou a mulher.
       - Por que está me olhando assim?
       - Eu estava pensando como a senhora é uma mulher inteligente e corajosa - disse ele.
       Ela sacudiu a cabeça:
       - Se o senhor soubesse como sou boba e covarde - disse. De repente, sorriu: - Hoje comprei uma coisa para mim, Sr. Weigand!
       - O que foi?
       - Um disco. Desejava tê-lo há muito tempo; sempre ouvia a música no rádio. - Ela tirou de um canto um gramofone vermelho, antiquíssimo, e deu-lhe corda. Depois tirou o novo disco. Era o tema principal tio filme Luzes da ribalta, de Charlie Chaplin. Chamava-se Eternally.
       O disco girou. A agulha baixou. A melodia soou, tênue, trêmula, por vezes num gemido. Era tudo muito solene. Weigand pôs o copo na mesa e olhou Maria Holub. Ela sorriu. Então ele sorriu também.
       - Que quer dizer Eternatty? - quis saber ela.
       - Quer dizer "por toda a eternidade" - respondeu ele.
       Mais tarde, nunca soube dizer quando reconhecera pela primeira vez que amava Maria Holub. Trabalhava com ela, trabalhou duro naqueles meses. Sempre com ela. E apaixonou-se por ela: por sua coragem, sua calma alegria, pelo seu silêncio quando o crepúsculo caía. Pela sua voz, seus olhos. Seu jeito de andar. Seu sorriso. Primeiro de tudo, pelo seu sorriso tímido e medroso. . .
       Passaram juntos a festa de Natal: deram-se pequenos presentes e acenderam as velas de uma arvorezinha. Depois ficaram sentados diante dela falando de seus grandes e ambiciosos planos para o ano seguinte. Tinham plantado tanta coisa! Tinham semeado tanto! Queriam aumentar a floricultura. Queriam empregar um jardineiro. Sim, os planos eram grandiosos! E, como todas as noites, Maria Holub pegou seu velho gramofone e pôs para tocar a melodia do filme Luzes da ribalta.
       Ele a fitou. - Maria? - disse.
       Ela sorriu.
       - Estou feliz - disse ele.
       Ela balançou a cabeça, sorrindo: - Eu também.
       Ele a beijou longamente. Os braços dela o rodearam. O disco girava. Começou um solo de piano. Ele escutou sem tristeza, pois toda a tristeza sucumbia na doçura daquele beijo.
       Lá fora, na neve, diante da estufa, o mirrado sabugueiro erguia os braços negros para o céu escuro. . .
       Como foram felizes!
       Chegou a primavera. As primeiras plantas que tinham semeado romperam a terra e, na estufa, floresciam as primeiras flores. O sol brilhava. Os pássaros retornaram. E Maria e Walter se amavam Cada dia mais, com mais fervor e profundidade. Reconheciam que já não podiam respirar, pensar, alegrar-se um sem o outro. Walter Weigand passou a morar na cabana.
       A catástrofe que destruiu tudo isso veio na Sexta-Feira Santa. Na Sexta-Feira Santa, apareceu no céu azul e sem nuvens uma pequena nuvem branca. Depois ergueu-se um ventinho inofensivo. Eram dez da manhã. Pelas onze, o céu se cobrira de um amarelo-enxofre e o ventinho inofensivo se transformara numa tempestade, que fez tremerem as árvores. Pelas onze e meia caiu o tufão. Foi o pior tufão de que as pessoas tinham memória. O granizo chegou às doze em ponto. A essa hora o céu já estava preto. As árvores se curvavam com a força do tufão, comprimidas contra o solo, com terríveis gemidos, para lá e para cá. Pedaços de muro, telhas e latas voavam pelo ar Não se via sequer a mão diante dos olhos.
       Maria e Walter estavam parados na janela da sua cabana fitando as trevas lá fora. Ele viu que ela rezava mudamente. Então também cruzou as mãos e rezou:
       - Meu bom Deus, não. Por favor, não, meu bom Deus. Ajude-nos, meu Deus, por favor, por favor, ajude-nos. . .
       Mas o granizo caía ruidosamente, cada vez mais forte. O mundo estava acabando. As janelas da estufa rebentaram. Os canteiros sumiram na inundação. O telhado da cabana voou. A chuva jorrou para dentro. Foi horrível. Mas então aconteceu o mais horrível. Ele viu Maria começar a chorar. Ela, que nunca chorara, agora estava chorando. Chorava em silêncio, as lágrimas correndo pelas faces. Chorava como alguém que não pudesse parar de chorar.
       Chegou a tarde.
       Chegou a noite. A tempestade se desfez, lá fora estava novamente tudo quieto. Uma lua pálida surgiu sobre a paisagem fantasmagoricamente destroçada. Nada se movia. Tudo parecia morto.
       Maria não chorava mais. Estava deitada na cama estreita, de olhos abertos, fitando o teto. Walter Weigand estava deitado ao lado dela. Acariciava-a. Beijava-a. Tentava animá-la. Ela não respondia. Estava no fim das forças. Não podia mais. . .
       Walter cuidou dela a noite toda. Ela não respondeu sequer uma vez. Uma manhã cinzenta rastejou junto das vidraças O sol nasceu. Os primeiros raios entraram no quarto. O sábado de Aleluia começara com luz e céu azul.
       Maria sentou-se na cama, encolheu as pernas e olhou a janela.
       Ele a apertou contra si:
       - Querida - disse -, doçura do meu coração, tenha coragem, tudo vai dar certo...
       Ela ficou quieta.
       - Vamos recomeçar. Vamos trabalhar juntos. . .
       E ela continuava em silêncio.
       - Maria - insistiu ele -, por favor, fale comigo! Eu a amo tanto, Maria!  Se estamos juntos, nada de mal pode acontecer!
       Então escutou a voz dela, dizendo meio ofegante:
       - Silêncio. . .
       Ele a fitou. Seus olhos acompanharam os dela. Então sentiu que uma grande felicidade o dominava. Pois avistou o velho sabugueiro, ao lado da estufa destruída.
       O velho sabugueiro já não estava mirrado. Estava todo recoberto de folhinhas verdes.
       (1954)
      
       Antigamente ele era sagrado
       Os dois homens riam alto quando entraram. Um era grandão, de rosto vermelho e gordo, o outro, pequeno e magro como um furão. Atravessaram cambaleando o bar escuro e sentaram-se no canto junto da janela. O gordo usava um traje de pano grosseiro. No colete verde rebrilhava uma corrente de relógio prateada. Dela pendia um cavalinho. Quando o gordo ria, o cavalinho dançava. O baixote disse-lhe uma coisa ao ouvido. E o cavalinho recomeçou sua dança.
       A garçonete de cabelo vermelho conversava com um freguês parado no balcão, tomando cerveja.
       Depois aproximou-se dos dois homens junto à janela. E disse:
       - Olá.
       - Olá - disse o gordo, dando uma cotovelada no baixinho. - Olhe só, Conrado, que linda flor dos bares temos aí. - Falava com leve sotaque suíço. Muitas vezes apareciam fregueses da Suíça. A fronteira ficava a três quilômetros dali.
       - Que desejam, meus senhores? - perguntou a garçonete.
       - Estamos mesmo no Águia Dourada? - perguntou o baixinho. Usava óculos com aro de aço, que estavam sempre escorregando-lhe pelo nariz.
       - Sim, aqui é o Águia Dourada.
       - A maior estalagem da região - disse o gordo, acenando a cabeça. - Estivemos em algumas adegas e nos disseram isso. Vocês têm trinta e cinco camas, água fria e quente em todos os quartos. Dois banheiros. Boa cozinha. Um aparelho de TV. E a enciclopédia Grosse Meyer.
       - É por isso que estamos aqui - disse o baixinho.
       - Por quê? - perguntou a garçonete ruiva, olhando para o louro que bebia cerveja no bar.
       - Por causa da Grosse Meyer - disse o baixinho. - Dizem que vocês aqui têm um ótimo vinho branco Queremos uma jarra. E também queremos um volume da Grosse Meyer.
       - O volume do H - disse o gordo.
       Os dois riram de novo, os óculos de aro de aço escorregaram, o cavalinho de prata dançou. Lá fora, na praça, o sol brilhava. Crianças brincavam de amarelinha. Suas vozes claras chegavam até o bar escuro e quieto.
       A bela garçonete trouxe o vinho. O homem louro pegou um jornal velho e abriu-o diante da cara. Os estranhos na janela riram até perder o fôlego.
       Quando o vinho chegou, beberam avidamente.
       - Ótimo - disse o gordo. - Traga logo uma jarra de litro, para não ter de correr tanto.
       - Não acha que isso já é o bastante? - perguntou a garçonete.
       - Não mesmo - disse o baixinho brandamente.
       - Mas afinal - disse o gordo -, amanhã é Páscoa. •- Será que agora podemos ter a Grosse Meyer? - perguntou o baixinho.
       A garçonete afastou-se e voltou com dois volumes da enciclopédia. - Temos dois volumes com a letra H - disse ela. - Um de "Germânia" até "Hornbaum", outro de "Hornberg" até "Impressionismo". Qual deles querem ver?
       - Aquele de "Germânia" até "Hornbaum" - disse o gordo. - Você é mesmo muito bonita, filhinha, como se chama?
       - Cora - disse a garçonete. - E não gosto que me agarrem.
       O baixinho levantou-se e curvou-se profundamente:
       - Perdoe ao meu amigo essa expressão espontânea de encantamento com a beleza de uma filha da Áustria.
       - Eu não disse por mal - comentou a garçonete chamada Cora. Voltou para o balcão e fitou de novo o homem louro que segurava o jornal diante da cara.
       Junto da janela, o gordo folheava o volume da enciclopédia. E disse:
       - Agora vou lhe mostrar como você é ignorante, Conrado. O que é que você sabe a respeito dele?
       - Sei que na antigüidade ele era sagrado. Muitas belas rainhas tomaram banho nele. Por isso ficavam mais bonitas ainda. Quando os homens se banham nele, ficam cruéis.
       - Mas que besteira!
       - Besteira, não, eu li. Eles ficam cruéis. Você pode experimentar.
       - Honduras, Honegger, Hong Kong - leu o gordo passando o indicador rosado pela página aberta. - Aqui está! Preste atenção! Ele é retirado do corpo das abelhas. . .
       O baixinho ria tanto que engasgou e quase sufocou. Ficou de cara vermelha e tentava respirar.
       - Levante os braços! - disse o gordo, batendo-lhe fortemente nas costas. O ataque de sufocação passou.
       - Um brinde ao susto - disse o pequeno. - Continue lendo, Ludwig!
       O gordo leu:
       - . . .dos corpos de abelhas, zangãos, vespas. Origina-se do néctar das flores e de excrementos de piolhos das folhas. Na antiguidade consideravam-no sagrado.
       - Foi o que eu disse - afirmou o baixinho.
       - O produto bruto, diretamente do favo, é vendido em pedaços - relatava o gordo. - Mel de células ainda virgens, que ainda não continham larvas, chama-se mel virgem. O mel virgem deve ser distinguido do chamado mel comestível, também chamado mel corrido, mel em gotas ou mel caído, que é apanhado em aparelhos especiais depois de escorridos os favos.
       - Mãe do céu - exclamou o baixinho.
       O louro largou o jornal. A ruiva ficou de boca aberta. Na praça, as crianças ainda brincavam. Os sinos da igreja próxima tocaram pela paz da Páscoa. O sol caía. . .
       - Uma só abelha - lia o gordo, solenemente, em voz alta - consegue com um vôo apenas cerca de vinte miligramas de néctar, conforme o tamanho do seu estômago coletor. Portanto, tem de fazer de cinqüenta a sessenta mil vôos para juntar um quilo de néctar, que contém de cinqüenta a noventa por cento de água.
       - Santa mãe! - disse o baixinho, sacudindo a cabeça.
       - Ainda assim - lia o gordo -, enxames de abelhas fortes conseguem juntar, em dias bons, vários quilos de mel!
       - Bravo! - exclamou o baixinho. - E você tem um enxame forte!
       - Deus permita! - tornou o gordo. - Queremos ter um povo de abelhas unidas.
       - Ludwig - disse o baixinho -, permita que eu faça um brinde ao seu povo. Que ele se fortaleça cada vez mais e mais.
       - Obrigado, Conrado.
       - Saúde, Ludwig!
       - Saúde, Conrado! E beberam.
       - Um litro não é nada, não é mesmo? - opinou o gordo.
       - Srta. Cora - disse o baixinho -, poderíamos pedir. . .
       - Mas os senhores ainda não tomaram o bastante?
       - Ora, ora - disse o gordo. - Amanhã é Páscoa!
       Já estavam bastante bêbados. Mas portavam-se muito bem. Não faziam alarido. Não brigavam. O gordo não mais beliscou Cora. Dirigiu-se ao louro com o jornal e perguntou gentilmente:
       - O senhor nos daria o prazer de tomar um copo conosco?
       - Mas com prazer - disse ele, indo até a mesa. - Meu nome é Haberer.
       O gordo e o baixinho ergueram-se.
       - Paradeiser - disse o baixinho.
       - Bünzli - disse o gordo.
       - Podemos pedir mais um copo, Srta. Cora? - disse o Sr. Bünzli. E todos se sentaram.
       - O senhor não é daqui, Sr. Bünzli? - indagou o louro Haberer.
       - Não, sou suíço.
       - E o Sr. Paradeiser?
       - Sou austríaco.
       Cora, a ruiva, trouxe um terceiro copo. Os senhores brindaram e beberam.
       - Certamente vamos precisar de mais um litrozinho - observou o Sr. Bünzli.
       - Mas será na minha conta - disse o Sr. Haberer.
       - De jeito nenhum - protestou o Sr. Paradeiser.
       - É que estamos festejando uma vitória.
       - Isso mesmo.
       - Que vitória é essa? - perguntou o louro Sr. Haberer.
       O gordo e o baixinho entreolharam-se.
       - Vamos contar para ele? - perguntou o Sr. Paradeiser.
       - Podemos contar para ele?   - perguntou o Sr. Bünzli.
       - Ele tem cara decente.
       - Inspira confiança.
       - Então, vamos contar-lhe?
       - Ora - volveu o Sr. Bünzli. Vamos contar, sim. Amanhã é Páscoa.
       E beberam um bom gole.
       Depois o gordo disse:
       - Sr. Haberer, nós dois aqui sentados à sua frente somos algo como- a concretização da idéia pan-européia. Superamos as fronteiras que separam os povos.
       - Com ajuda de um povo forte - disse o Sr. Paradeiser, apontando para o Sr. Bünzli.
       - Com ajuda de um forte povo de abelhas, sim - confirmou o gordo.
       - Entendo - disse o louro Haberer. - O senhor é apicultor na Suíça?
       - Não diretamente - respondeu o gordo. - Meu tio Frederico foi apicultor. Ele morreu. E eu herdei sua criação de abelhas. Pode imaginar como me senti?
       - Entendo - disse o Sr. Haberer, que entendia tão pouco quanto no momento em que afirmara pela primeira vez a mesma coisa. - Então o senhor está procurando alguém que lhe compre as abelhas.
       - Não mais. Estava, até que encontrei o Sr. Paradeiser. Numa viagem. No trem - completou. - Eu queria visitar amigos na Suíça. Levava mel para eles. E tive de pagar impostos pelo mel na alfândega. Isso me aborreceu terrivelmente.
       - Na Áustria o mel é muito mais barato do que na Suíça - disse o louro Haberer.
       - Isso mesmo! E ninguém sabe por quê!
       - Só se pode presumir - observou o Sr. Bünzli - que as abelhas austríacas são más transportadoras e que são exploradas pelos empresários capitalistas. Entre nós, na Suíça, as abelhas têm mais direitos!
       - Mas em compensação seu mel é mais caro - disse o Sr. Paradeiser. - O Sr. Bünzli estava na repartição quando tive de pagar a alfândega. Foi assim que começamos a conversar. E assim nasceu essa idéia.
       - Que idéia?
       -- A que experimentamos hoje. Saúde, Sr. Haberer.
       - Saúde, senhores!
       - Veja, Sr. Haberer, estamos na primavera. A natureza desperta. Por toda parte, vida nova. As árvores verdejando, o ar macio, a festa da Páscoa está à porta. - O gordo fez uma linha com a unha na toalha da mesa. - Isto aqui é a Suíça. Isto é a Áustria. E agora imagine uma radiante manhã de primavera como a que o senhor teve hoje. - Com dois dedos gordos, o Sr. Bünzli fez sua mão marchar sobre a metade suíça da toalha, em direção à fronteira traçada pela unha do polegar. - Este sou eu. O senhor me vê andando pelo verde tenro das campinas suíças, com suas florzinhas. O que é que estou arrastando atrás de mim? Uma carrocinha. E o que está em cima dela? Uma colmeia, Sr. Haberer!
       O Sr. Paradeiser o substituiu, trotando com dois dedos magros sobre a metade austríaca da toalha, em direção à fronteira delimitada pela unha do polegar.
       - Eu me aproximo deste ponto. O que estou puxando atrás de mim? Uma carrocinha. E o que há em cima da carroça? Uma barrica com mel austríaco. Deito-me na relva fresca, olho o céu azul, penso em Goethe e passeios de Páscoa, e tiro o pano que cobria a minha barrica. . .
       - Eu, de minha parte - continuou o Sr. Bünzli na metade suíça da toalha -, abro a colmeia e deixo meu povo sair voando. Também me deito na grama fresca, olho o céu azul, e penso em Schiller.
       - O forte povo dele se levanta - continuou o Sr. Paradeiser, comovido -, as abelhas suíças cheiram o mel austríaco. Voam por cima da fronteira. Chegam perto da minha barrica. Comem tanto mel que mal conseguem voar. E arrastam-se de volta à Suíça. Para casa, para sua colmeia. Tendo na barriga o bom e barato mel austríaco, sem pagar nada para a alfândega. Preciso continuar, Sr. Haberer?
       - Não é preciso - respondeu o louro, dando uma risada gutural. A garçonete chegou. Disse que estavam chamando o Sr. Haberer no telefone do balcão. Ele ergueu-se, contrariado.
       - Volto logo - resmungou.
       - Os senhores, por favor, queiram pagar depressa - disse Cora, a ruiva, assim que o outro desapareceu.
       - Mas de modo algum - retrucou o Sr. Bünzli. - Como teve essa idéia, minha cara?
       - Estou certa de que vão pagar depressa - disse a garçonete. - É que o Sr. Haberer é da alfândega. Só que hoje está de folga.
       Os senhores ergueram-se.  Colocaram depressa o dinheiro na mesa.  Rapidamente dirigiram-se para a saída. Lá fizeram uma mesura.
       - Foi muito gentil da sua parte, Srta. Cora - disse o Sr. Bünzli.
       - Nunca esqueceremos - acrescentou o Sr. Paradeiser.
       - Ora, ora - volveu Cora, a ruiva. - Amanhã é Páscoa!
       (1965)
      
       Preparativos de viagem da pequena Rafaela
       A esclerose múltipla é uma doença incurável. Isto é, uma doença da qual os médicos ainda não sabem o suficiente. A própria doença não se importa de ser curada. Apenas ninguém até hoje o conseguiu direito. Ninguém também o conseguiu no caso da pequena Rafaela Fasno, nos Estados Unidos, uma menininha de onze anos, que os médicos temiam não visse mais a festa de Natal.
       É terrivelmente duro tomar decisões sensatas em face da morte. Mas os pais de Rafaela conseguiram isso. Sua filha só pudera ter dez festas de Natal - embora isso valesse para todas as crianças de onze anos do mundo, essas tinham a previsão de muitos outros Natais nos próximos anos. Mas Rafaela, não. Aliás, ela não tinha mais previsão de nada. Nem mesmo uma possibilidade muito boa quanto à festa deste ano. Pois provavelmente a 24 de dezembro já estaria morta.
       Os pais sabiam que Rafaela amava o Natal como todas as crianças. Achavam que era uma crueldade incompreensível de Deus deixar sua filha morrer. Mas parecia uma crueldade ainda mais incompreensível que Ele ajeitasse tudo de maneira a que o fim chegasse antes da Noite Santa.
       Os pais da pequena Rafaela, que já fazia seus preparativos de viagem, não tinham tempo de discutir com Deus, o Onipotente (e Incompreensível), pois a cada dia se aproximava mais o dia da morte. Então decidiram que, se Ele levaria a filha deles, eles mudariam a data do aniversário do filho Dele. Não parecia provável que Ele tivesse qualquer coisa a objetar. Assim adiantaram a data para 27 de novembro.
       O dia 27 de novembro foi 24 de dezembro para a pequena Rafaela. Diante da sua cama havia uma árvore de Natal, no chão, presentes, e as amigas tinham vindo visitá-la. Então o pai ligou o rádio e todos escutaram, assustados. Do rádio vinha a voz de um homem famoso, que cantava. O homem famoso chamava-se Mario Lanza, um artista da TV norte-americana. E em 27 de novembro ele cantava para uma única ouvinte, distante mais de cinco mil quilômetros dele, a canção de 24 de dezembro, que começava assim: "Noite feliz..."
       Rafaela ficou muito feliz com a canção. E ficou especialmente feliz porque Mario Lanza estava cantando. Pois Rafaela adorava Mario Lanza. Achava-o um grande cantor. Muito, muito maior do que todos os outros. E também mais bonito. Os pais tinham escrito uma carta a Mario Lanza, participando-lhe as tristes circunstâncias e perguntando se ele queria fazer parte daquela solitária festa de Natal. E Lanza naturalmente disse que sim. E seu canal de TV também concordou.
       Encarando a coisa toda com os olhos de Rafaela, ela até teve um privilégio em relação aos outros! Pois onde havia em todo o vasto mundo urna criança para quem o famoso e belo Mario Lanza cantasse a 27 de novembro uma canção sempre reservada para 24 de dezembro?
       Rafaela estava muito excitada com tudo isso, e abria e fechava as mãozinhas de tanto entusiasmo. Ou, pelo menos, a mão esquerda. A direita já estava paralisada. Mas seu nervosismo em nada se comparava ao imenso e terrível nervosismo que dominava Mario Lanza. Enquanto cantava, ele pensava todo o tempo na menininha, e por fim aconteceu-lhe uma coisa que jamais lhe ocorrera diante do microfone: sua voz falhou.
       E enquanto deixamos de novo Rafaela, que faz os últimos preparativos para sua longa viagem, pensemos que a bela voz de Mario Lanza subiu até Deus Todo-Poderoso e Ele a ouviu. Não por acharmos que Ele faria um milagre curando Rafaela; não, tais milagres não acontecem. Mas podemos imaginar que, depois de tudo o que aconteceu com Rafaela, o bom Deus ao menos tomará conta dela muito especialmente lá em cima, e cuidará para que, a 24 de dezembro, possa festejar de novo o Natal. Com Ele. No céu. O lugar mais bonito de todos. E, apesar de tudo, ainda seria digna de inveja. Pois seria uma das poucas crianças do mundo que, com onze anos de idade, podem festejar doze Natais.
       (1948)
      
       Música em Salzburgo
       Hoje, há uma semana, eu estava em Salzburgo. Sentado no banco a que faltava uma tábua, na estação ferroviária, seção 7 (trem expresso para Viena D 135 de Paris via Zurique, Bregenz, Insbruck, etc., horário de chegada sete horas e cinqüenta e oito minutos). Nevava e chovia alternadamente, sempre por alguns minutos. E soprava um vento diabólico. Eu mal conseguira dormir um pouco. Ainda não tinha tomado direito o meu café. E estava horrivelmente gripado. Ah, e mais uma coisa: o trem estava atrasado.
       A estação ferroviária parecia tão desolada como todas as estações parecem de manhã. Quase vazia. Um velho varria a sujeira com uma vassoura velha. Uma mulher velha remexia um cesto de papéis. De vez em quando uma locomotiva apitava. E alguns homens soturnos, que esperavam o trem como eu, marchavam de um lado para outro, fumando ou olhando os trilhos. O homem ao meu lado tinha um belo catarro de fumante. Em uma palavra: momentos muito agradáveis.
       Pensei que gostaria de saber árabe, pois ouvi dizer que se pode praguejar muito bem nessa língua. Acho que os outros passageiros sentiam a mesma necessidade de palavras duras e pragas imaginosas. Não por causa do tempo ou do atraso do trem. Afinal ninguém tinha culpa disso. Não, o que nos irritava a todos era algo bem diferente. Algo que nos deixava nervosos e, por fim, nem podíamos mais enxergar algo que. . . como direi? Era música de instrumentos de sopro o que nos irritava.
       Isso mesmo, música de instrumentos de sopro. E que música! Deus meu! A música vinha do restaurante da estação. Às sete e cinqüenta e oito, antes e depois. Era uma música de instrumentos de sopro muito peculiar. Por algum tempo, cessava. Depois, repentinamente, traiçoeiramente, inesperadamente, jorrava com batidas de tambores sobre nós. Em seguida nova pausa. E logo tudo recomeçava. As pausas eram o pior de tudo. Havia muitas pausas.
       Nós todos que aguardávamos o trem pensávamos provavelmente mais ou menos a mesma coisa. Que diabo, pensávamos, mas que gente está sentada ali dentro? Será que passaram assim a noite toda? (Parecia que sim.) Será que esses músicos não se cansam? Por que estão tocando numa hora dessas? E por que repetem sempre? Por que, Deus do céu, repetem sempre? Ah, se parassem, esses saudáveis, fortes, rústicos amigos da música, que não desistem nem depois de uma noite toda, ah, se parassem com esse tarabum - dié. . . bum! diéééé! bum! diéééé! - tarará. . . e assim por diante!
       Então aconteceu uma coisa engraçada. Um após o outro, não agüentamos mais. A raiva se transformou em curiosidade. Um depois do outro, começamos um passeio acentuadamente casual. Entre a bilheteria e o restaurante, de um lado para outro. Após andar assim umas dez vezes, cada um entrava de repente no restaurante, como se não quisesse nada de mais, talvez até contra a sua vontade, e sumia por um momento. Muitas das pessoas que esperavam o trem sumiram de todo depois daquela voltinha. Mas algumas saíram de novo. E suas caras tinham de repente a expressão de uma comovida entrega e grande suavidade. Por quê?, perguntavam-se os observadores sentados lá fora. Por que essa entrega? De onde essa suavidade? Que tinham visto essas pessoas? O que, com todos os diabos, estava mesmo acontecendo no restaurante da estação? Decidi dar uma olhada: cumpri o passeiozinho em ziguezague e entrei no local como se nem quisesse entrar, talvez até mesmo contra a minha vontade.
       O local estava vazio. Exceto uma só mesa. Mas essa, em compensação, estava cheia! Pelo menos duas dúzias de pessoas sentadas. Vinham do interior, usavam as típicas roupas pretas, botas típicas, típicos lenços pretos na cabeça. A orquestra estava bem diante da mesa e também era formada de camponeses. Tocavam suas trombetas e batiam seus tambores com tanta força que ninguém conseguiria ouvir a própria voz. Mas faziam umas caras muito solenes e também as pessoas da mesa estavam com ar grave. Tinham à sua frente copos com vinho tinto e vi alguns pacotes de comida abertos. Muito embora ninguém estivesse bebendo. Muito embora ninguém estivesse comendo. Pois na verdade todos estavam ali concentrados, olhando um homem de mais ou menos trinta e cinco anos que se achava entre eles.
       Quando vi o homem, senti de repente um enorme calor e me sentei depressa. O homem era um dos que voltavam para casa, obviamente acabara de voltar, quando muito havia algumas horas. Usava ainda o velho uniforme e tinha a barba por fazer. Agora entendi por que as pessoas que tinham entrado ali antes de mim voltavam com aquela expressão no rosto. A orquestra tocava em homenagem ao que estava regressando, o filho perdido que voltara para casa. Provavelmente eram todos da sua própria aldeia, muitos deles seus parentes, o bombeiro, o sacristão e o administrador da Prefeitura. Todos tinham vindo a Salzburgo com suas trouxas e bolsas de verniz preto para o apanharem no trem; inclusive o menininho que tinha obtido permissão de ajudar a segurar o tambor. (O tambor era transportado num velho carrinho de bebê.) O homem que regressava estava ali sentado, parecendo iluminado e em paz consigo mesmo. Assim como aquele que se vê no quadro de Leonardo chamado A ceia. E as pessoas ao seu redor tinham o mesmo ar.
       Ao lado do que regressava estava sentada sua mãe, uma mulherzinha velha e miúda, com rosto diminuto, quase sumindo debaixo do lenço da cabeça. Ela não se mexia. Segurava a mão do filho e não se mexia. Mas, cada vez que uma peça terminava, após uma pausa ela dava sinal para que recomeçassem. A mãe nem fitava o filho. Olhava obliquamente através do restaurante, olhava fixamente para longe; virei-me, pois queria ver o que é que ela olhava. Olhava um cartaz de propaganda de cerveja, mas naturalmente não o via. Seu olhar atravessava o cartaz e a parede, até o ar livre, voltava no mar de areia do tempo e adiantava-se no futuro, nos gigantescos nevoeiros do futuro. A mãe estava ali sentada e não se movia. Sua mão apertava o braço do filho. Mais tarde deixaram o local. À frente caminhavam a mãe e o que regressava. Os amigos e a orquestra seguiam atrás. Os músicos tocavam de novo, em honra do filho reencontrado, quando os vi descer as escadas e sumir. Os sons da música soaram ainda longo tempo, vindo do túnel escuro em nossa direção.
       (1949)
      
       Um grito às estrelas distantes
       - De resto, querido amigo - disse a jovem, bebericando seu martíni -, não conhece histórias novas?
       - Conheço mais uma - disse o jovem, sorrindo para a imagem dela que o espelho atrás do bar lhe mostrava. - E tem a vantagem de ser verdadeira, ou a desvantagem, depende. Pois é uma história tão inacreditável como só a vida se permite criar. Um homem que presenciou tudo a escreveu e mandou para mim. Não vou inventar nada. Vou contar exatamente como aconteceu.
       - Mais dois martínis - disse a jovem ao barman.
       E o jovem começou a contar.
       Em algum lugar do décimo segundo distrito, um lugar não muito bonito, há uma casa. Uma casa de esquina. Deve ter sido um dia um sonho de casa de esquina, a menina dos olhos de algum açougueiro ou estalajadeiro, com vinhedos cultivados e uma boa cozinha. Hoje, não passa de um pesadelo. Abandonada e suja principalmente. As pessoas que moram nela têm muitas preocupações. A maioria são velhos. Muitos, doentes. E todos pobres. Nessa casa vivia um homem de setenta e oito anos. Melhor dizendo: morria um homem de setenta e oito anos. Estava empenhado em morrer. Era um empreendimento prolongado e difícil, e já durava bastante tempo. O homem estava meio cego havia anos e quase paralisado havia meses. Estava deitado na cama. Sua mulher era mais moça, mas não se sentia mais moça. Era assim essa casa. Além disso, a mulher também estava doente. Os dois viviam de uma aposentadoria que o Estado generosamente lhes concedera. Não era grande coisa. Mas também não eram grandes pessoas; eram gente modesta. Bem modesta. Para eles, bastava uma ajuda bem modesta.
       Certo dia chegou a hora. O homem chamou a mulher e disse-lhe que agora precisava morrer. Ela objetou um pouquinho, mas ele apenas sacudiu a cabeça. Conhecia-se bem. Dessa vez não escaparia. Havia um só problema a resolver ainda, depois podia morrer. Era o problema do rapaz do correio que trazia o dinheiro. O rapaz chegava no último dia do mês. Trazia o dinheiro e um recibo. O dinheiro só se recebia depois de assinar o recibo. E só podia assinar o recibo quem estivesse vivo. Os últimos dias do ancião estavam sob o domínio dessa breve e lógica seqüência de pensamentos. Ele e sua mulher falaram bem abertamente a respeito. Ambos esperavam que o velho agüentasse até lá. Era uma palavra catastrófica, mas também era catastrófico o velho não agüentar. Pois a moradia estava quase vazia: tudo o que se podia carregar já fora levado embora. Para a casa de penhores. Além disso, dívidas por toda parte. Dívidas ridiculamente pequenas para grandes pessoas. Mas gigantescas para gente modesta. A doença do homem criara essa situação. Morrer custa dinheiro. Nem todo mundo pode se dar esse luxo.
       Numa casa dessas tudo se espalha depressa. Quando chegou o último dia do mês, todos sabiam: o velho estava morrendo. E se morresse antes de assinar o recibo, o mundo acabaria para a velha. Essa situação fascinava a todos e, por um breve tempo, calaram-se até mesmo as brigas que todos julgavam tão excitantes, ouvidas do banheiro de cada andar. Na manhã do último dia, os corredores da casa estavam cheios de gente. Formara-se uma verdadeira corrente de avisos. Da rua até o terceiro andar, até diante da porta da casa dos velhos. Por ela as notícias corriam. Para cima e para baixo. Ele ainda vive. Ainda respira. Está passando mal. Está se dominando. O mensageiro está chegando. Já está na rua. Já o estamos enxergando.
       Quando já o avistavam, algumas mulheres dispararam, explicaram a situação ao mensageiro, e suplicaram que desviasse sua rota e fosse imediatamente até o velho. Mas gente de uniforme sempre é diferente de gente à paisana. Mesmo quando é apenas um uniforme de carteiro. O carteiro disse que não podia fazer exceção. Todo mundo tinha sua vez. Foi isso o que ele disse; depois dirigiu-se para a casa mais próxima. Tinha muita gente para atender nessa rua, pois ali a maioria das pessoas vivia tempo demais, de pura maldade, apenas para gozar daquele abono de velhice.
       Entrementes, o moribundo jazia na sua cama e respirava cada vez com mais dificuldade. A mulher agarrava-lhe convulsivamente as mãos e na mesinha-de-cabeceira a caneta estava pronta. A porta do corredor estava aberta. O velho, sentindo que a morte lhe batia com os dedos repetidamente no ombro, movia teimosamente a cabeça de um lado para outro. Não, ele ainda agüentava. Não, ele ainda assinaria o recibo. Tinha de assiná-lo. Tinha. Não podia fazer isso com sua pobre mulher. Não podia.
       O mensageiro chegava cada vez mais perto. Metodicamente, como um funcionário cônscio do seu dever, passou pela ala de curiosos e subiu até o terceiro andar. Finalmente alcançou a porta. O velho ainda chegou a ver a silhueta no umbral. Então sua cabeça caiu para o lado. A mão que segurava a caneta abriu-se. O mensageiro que trazia o dinheiro interpelou o homem duas vezes. Não recebendo resposta, fez uma anotação no recibo e guardou de novo o dinheiro. "Sinto muito", disse. Mas eram as prescrições. E saiu de novo Desceu pela ala muda dos curiosos. O grito da velha ressoou sobre os telhados da cidade e subiu até as estrelas mais distantes.
       - Que horror! - disse a jovem, esvaziando o copo. - Nós também temos um carteiro que nunca chega na hora. Como já me aborreci por causa disso!
       (1962)
      
       Mensagem para pusilânimes
       Todo mundo na aldeia conhecia Vroni. Também a conheciam nas aldeias vizinhas e falava-se dela até na cidade. Vroni era uma atração local de primeira categoria. As pessoas a consideravam um símbolo, a personificação altamente concentrada de uma série de qualidades raras. Mas não se expressavam assim. Diziam: "A Vroni é doida".
       Mas era a mesma coisa. Só os doidos transformam o mundo - em um ou outro sentido.
       Vroni deu sua colaboração para mudar o mundo. Mas não sabe disso. Não a interessaria. Acho que ficaria muito espantada se soubesse que aquilo que fez é um bálsamo para as feridas abertas de todos os pusilânimes. Provavelmente daria de ombros e tomaria um slibovitz. (nota do autor: Aguardente feita de ameixa, bebida nacional da
Iugoslávia. Fim da nota)
       Imagino Vroni em cima de uma montanha de garrafas acumuladas durante cinqüenta anos de obstinado consumo de frascos de slibovitz - isso se Vroni tivesse tendência para colecionar garrafas. Na verdade, ela não ligava para garrafas, jogava todas sobre o muro ou no porão, ou as enchia de água e punha na mesa, enfiando girassóis dentro delas. Gostava de girassóis. Gostava de muitas coisas: boa comida, dormir bastante, o céu antes de o sol nascer, o cheiro de botas de couro da Rússia, rapazes (enquanto eram novinhos), a primeira neve dos campos, o frio das noites de geada e a música de órgão nas manhãs de domingo na igreja. Vroni gostava de gente e bichos, flores e pedras, todas as coisas simples da criação, e todos os prazeres simples.
       Acho que, na verdade, era muito pouco conhecida - devia se falar dela para as crianças nas escolas e para os capitães de indústria em seus palácios de mármore, para os grandes matadores de gente e para os políticos bem vestidos -, mas Vroni era demasiado insignificante e provavelmente não teria despertado interesse na maioria das pessoas.
       Muitos já viveram como Vroni, e até gente mais bela. Mas não é da sua vida e sim da sua morte que desejo falar; pois Vroni morreu. Eu quase me esquecia de dizer. Decerto porque isso me parece tão secundário. Porque ela me parece ainda tão viva. Ou talvez por desejar que na minha vida eu estivesse tão vivo como Vroni está viva na sua morte. Sim, acho que é isso.
       Vroni casou-se três vezes. Seus maridos morriam traiçoeiramente, uma traição que seria digna de melhor coisa, como Vroni dizia.
       Dizia que gostava do amor. Fez três homens felizes, mas, como já disse, morreram. Quase não sobrou ninguém que se lembrasse dela, de antigamente. Pois, quando morreu, Vroni tinha setenta e um anos. Posso imaginar que a morte tenha sido seu último amante.
       Se Vroni ouvisse isso, certamente desataria a rir, pois não gostava desse tipo de extravagância, durante toda a vida se esforçara por ridicularizar as pessoas que usavam belas palavras - as pessoas e suas belas palavras. Sempre dizia: "Por que falar quando se pode calar o bico?"
       Quando fez cinqüenta anos, a coisa com o amor diminuiu um pouco, e ela tinha mais tempo para cuidar das flores e dos bichos. Todo mundo achou que estava ficando mais maluca ainda. Ficava sentada lá em cima, no Alm, com as vacas no capim, fitando o Enzian. Naquele tempo - por volta de 1930 - ela pensava na Primeira Guerra Mundial e já começava a temer pela segunda. Não falava nisso com ninguém, mas tinha bastante medo. Quando a guerra chegou, teve mais medo ainda, e quando seus últimos parentes morreram, caiu na maior miséria.
       Em 1943, durante as noites de geada, ela sempre ficava nos estábulos, e imagino que falasse com os animais. (Em noites dessas, algo assim é possível.) Essa me parece a melhor explicação para a imensa paz, a profunda alegria, a doce indiferença que depois dominaram Vroni, e até sua morte não a abandonaram. Ela ria e brincava e alegrava-se de novo com a vida, assim como uma jovenzinha se alegra com o amor.
       Todo ano, no carnaval, esse estado de espírito chegava ao auge. A velha Vroni tornava-se tema de todas as conversas na região. Mantinha acordadas as pessoas em noitadas inteiras na taverna com suas piadas, cantava, dançava, bebia e ria. E sempre dizia a todo mundo que não deviam ter medo. Nem da vida. Nem da morte.
       - Não vale a pena! - dizia Vroni.
       Na grande festa de carnaval no Wögerer, foi fantasiada. Ela mesma costurara a fantasia, pusera máscara. Era uma máscara da qual todas as pessoas começavam a rir só de vê-la. Foi a máscara mais divertida da noite. E Vroni foi a convidada mais alegre de todas. O que bebeu de slibovitz, nessa noite, ninguém poderia beber, nem mesmo o maior dos beberrões. Além disso, comeu carne defumada com bolinhos de massa. Por fim, bebeu alternadamente cerveja e vinho. E durante a noite inteira ficou dizendo às pessoas que não tivessem medo.
       Por fim, estava bastante bêbada, e as pessoas acharam que alguém devia levá-la para casa. Mas Vroni ficou furiosa: podia muito bem andar sozinha! E foi mesmo sozinha, pela neve, e os outros a seguiram com o olhar. A toda hora ela se virava e acenava, cantando versinhos atrevidos. Finalmente sumiu na escuridão; apenas as suas canções ainda se ouviam.
       Os vizinhos deixaram Vroni dormir bastante, pois pensaram no muito slibovitz que bebera. De tarde foram até sua casa, para acordá-la. Estava deitada na cama e a máscara ria de uma orelha a outra. Tiraram a máscara e fitaram a cara de Vroni, e ela lhes sorria amavelmente. Estava morta há algumas horas. Escrevera na parede: "Não se deve ter medo".
       Deve ter escrito as palavras pouco antes de morrer, pois a letra já estava trêmula, parecendo a letra de alguém que tenta concentrar-se com o máximo de dificuldade.
       (1947)
      
       O segredo pequeno e o grande segredo
       A boa Irmã Filomena veio (de propósito!) tão de mansinho que, infelizmente, Seu Franz escutou seus passos tarde demais. Quando ouviu um ruído, a porta do quarto do doente já se abria. Com a rapidez de um raio, o pálido velho, que mais parecia um fantasma, magro como um esqueleto, deixou-se cair de novo na cama. Mas agora não adiantava mais.
       - Então, mais uma vez - disse a Irmã Filomena. Sublinhava amargamente cada palavra.  Seu Franz fechou os olhos. - Sabe que lhe é expressamente proibido - prosseguiu a bondosa enfermeira. - O Dr. Floriano ordenou-lhe repouso absoluto! Absoluto! O senhor tem de ser alimentado e lavado na cama; o resto, nem quero falar. - Seu Franz não mostrava a menor reação. - O senhor sabe melhor do que ninguém do seu estado! E o que é que faz? Fica sentando na cama! Espiando pela janela! Horas a fio! - Seu Franz murmurou qualquer coisa. - Isso mesmo! Eu já o surpreendi sete vezes! Quem sabe quantas vezes o senhor já fez isso! Decerto todos os dias. - A Irmã Filomena foi até a janela. - Eu queria saber o que tem ali de especial. - Viu-se forçada a olhar ela mesma.
       O que havia para ver era o seguinte: uma ruazinha lateral muito estreita e sossegada, pessoas apressadas, montes de neve suja (era janeiro), um cachorrinho que fazia pipi num poste de lampião, casas cinzentas e um céu escuro.
       - Pela última vez: por que é que o senhor não faz o que lhe digo?
       Seu Franz cruzou as mãos sobre o cobertor e ficou quieto.
       - Muito bem, então vou contar ao doutor - trombeteou a boa irmã. O chão vibrava enquanto ela saía do quartinho. A porta bateu. Seu Franz esperou até os passos enérgicos morrerem no corredor. Depois soergueu-se com esforço, e apagou e acendeu a luzinha da cabeceira, aparentemente sem nenhum sentido, três vezes seguidas, e olhou de novo pela janela. Logo um sorriso feliz clareou seu rosto. . .
       Chamava-se Franz Aigner, mas já no asilo de velhos fora para todo mundo apenas Seu Franz, assim como no hospital. Não é bonito envelhecer sozinho, nada bonito mesmo. Seu Franz estava nessa triste situação. A mulher, todos os parentes e amigos há muito estavam na bem-aventurança eterna, já não havia ninguém para ele no grande mundo. Seu Franz trabalhara muito na vida como alfaiate, e sofrerá mais ainda. Agora estava com oitenta e três anos. Quando sua mulher, Maria, morreu, ele vendeu apartamento e móveis, e mudou-se para aquele acolhedor asilo de velhos, longe da grande cidade. Um lugar idílico, característico de cemitérios e asilos de loucos.
       Se Seu Franz já não tinha ninguém nesse mundo, tinha ainda um sonho, um lindo sonho. Queria viajar para a Itália, esse país maravilhoso, sobre o qual ele e Maria tinham lido tanta coisa, e que jamais tinham visitado, pois eram pobres.  Agora, depois da morte de Maria, a coisa era diferente. Como alfaiate, ele era útil no asilo e, além disso, recebia um pouco de dinheiro. Economizara moeda após moeda, por onze anos. No seu quartinho empilhavam-se roteiros de viagem e prospectos de turismo.
       Cada vez se aproximava mais o dia em que haveria de partir e realmente viver tudo aquilo: o encontro com o mar azul e profundo, noites estreladas e cintilantes, a majestade de um passado grandioso.
       Gente pobre sempre tem maior dificuldade na vida. É como se a desgraça, o mal e a dor os tivessem escolhido para vítimas.
       Pouco depois do seu octogésimo terceiro aniversário, (agora ele tinha dinheiro bastante para partir com uma companhia de viagem barata, naturalmente), bem pouco depois do seu octogésimo terceiro aniversário, como dizia, Seu Franz começou a sentir-se péssimo. Abatido. Cansado. Deprimido. Apareceram leves dores. Apareceu o médico. Vieram dores fortes. Não desapareceram. Cada vez mais fortes. O médico hesitou longo tempo. No fim, sentiu que era seu dever dizer-lhe:
       - O seu lugar já não é aqui.
       - Onde, então?  - perguntou Seu Franz, embora naturalmente já soubesse (por isso perguntou bem baixinho).
       - Num hospital - respondeu o médico.
       Então levaram Seu Franz para a grande sala de uma grande clínica. Havia lá muitas pessoas doentes, uma cama ao lado da outra. Foi terrível para o velho. Não podia dormir à noite e, de dia, contava os minutos. Sentia-se cada vez mais miserável e mais fraco, mais doente. Primeiro ainda rezava:
       - Meu Deus, me ajude! Preciso ver a bela Itália! - Depois deixou de rezar.
       E assim, enquanto o mundo girava e girava, enquanto o verão cedia lugar ao outono e o inverno se aproximava, tudo aquilo foi sumindo na consciência de Seu Franz: Florença, Capri e Nápoles, navios ao longe, bosques de pinheiros e encostas com olivais. Um sonho de tardia felicidade se perdeu num nevoeiro cada vez mais denso, feito de tristeza, desânimo, desistência. No fim de outubro, Seu Franz estava muito próximo da morte.
       Achava-se tão fraco que não podia mais andar. Tinha de ser alimentado e lavado na cama. De noite, delirava e gritava alto, palavras confusas de sonhos confusos. Os outros pacientes se queixaram. Certo dia o Dr. Floriano disse à boa Irmã Filomena:
       - Isso não pode continuar assim. Seu Franz tem de sair da sala. Vamos colocá-lo num quarto particular, vazio.
       "Ao menos assim ele pode morrer em paz", pensou o médico. Mas naturalmente não disse isso.
       - E as despesas?   A Previdência só paga terceira classe!
       - Ele tem umas economiazinhas.
       - E quando essas economiazinhas acabarem?
       - Então veremos - respondeu o Dr. Floriano. "Então ele estará morto", pensou. Mas, naturalmente, não disse isso.
       Seu Franz mudou de pouso. Tiveram de carregá-lo de maça. Os quartinhos particulares ficavam no andar superior da clínica. A janela do aposento de Seu Franz abria-se para uma sossegada rua lateral. Ele devia ficar feliz com a paz e a calma que o rodeavam. Mas praticamente já não sentia nada. Recomeçara a rezar, porém de maneira diferente. Sempre dizia ou pensava: "Venha, morte, por favor. Venha!"
       Mas a morte não veio. Veio o Natal, veio o Ano-Novo, e a morte não veio. Seu Franz consumia-se no quartinho. Suas economias se acabaram e foram necessárias muitas manobras não muito corretas do Dr. Floriano para poder dar ao ancião medicamentos fortes, boa comida e bom tratamento. O Dr. Floriano fazia tudo isso, mas tinha seus problemas. Estava diante de um dilema. Ainda havia no velho vontade de viver, embora essa vontade tivesse aparentemente sumido. Ainda havia esperança, a cada dia que Seu Franz sobrevivia. Na verdade, há muito que ele devia estar debaixo da terra. Mas ainda estava na sua cama! "Haverá certamente uma fonte de energia alimentando esse velho", pensava o Dr. Floriano. Não conhecia essa fonte. Era porque não conhecia o segredo - o segredo que o ancião carregava consigo como um tesouro precioso.
       - Então, como é que estamos, Seu Franz? - perguntou o Dr. Floriano. Passara meia hora desde que a boa Irmã Filomena pronunciara sua dramática ameaça. Já estava escurecendo bastante. A luz da mesa-de-cabeceira iluminava o rosto do paciente, tornando-o ainda mais pálido, mais digno de compaixão. O Dr. Floriano era um homem gorducho, com rosto de lua-cheia e óculos de lentes muito grossas.   Era um homem bondoso, tão bondoso quanto míope. - Por que fica espiando pela janela quando tem de ficar deitado, quietinho?
       - Se contar, o senhor ficará zangado.
       - Eu nunca fico zangado.
       Seu Franz suspirou fundo.
       - Está bem. O senhor sempre foi tão bom comigo, doutor. Vou lhe contar. Agora tudo acabou mesmo.
       - O que foi que acabou?
       Seu Franz sacudiu o crânio magro.
       - Vá para trás do armário.   Do contrário não funciona!
       O Dr. Floriano não era apenas bondoso, era sábio também. Sabia que há situações em que não se deve perguntar. Foi para trás do armário. Seu Franz soergueu-se e apagou a lâmpada de cabeceira. Ficou escuro no quartinho. Seu Franz acendeu novamente a lâmpada, apagou, tornou a acender. O Dr. Floriano não se mexia. De repente avistou, na fileira iluminada de janelas superiores da casa do outro lado da rua, a cabeça de uma menina. Era uma menininha bem simpática, de olhos grandes e cabelos negros. Ela riu e acenou. Seu Franz também acenou. A menina bateu palmas do outro lado. Depois colocou uma porção de objetos no peitoril da janela em que estava. O Dr. Floriano olhava atentamente. Eram brinquedos, árvores, arbustos, uma igreja e vários fantoches.
       A menina fez uma verdadeira apresentação de teatro de marionetes.
       Kasperle surrava um policial. Kasperle tinha de ir para a prisão, mas escondeu-se atrás da igreja. A linda princesa suplicou à autoridade que tivesse piedade, mas foi em vão. O crocodilo chegou e quis engolir o policial. O forte (mas pobre) padeiro enxotou o monstro. O policial ordenou ao pomposo rei que desse sua filha como esposa ao padeiro. Mas o crocodilo voltou e mordeu a perna do policial. . .
       O Dr. Floriano ouviu um barulho. Espiou por trás do armário. Seu Franz estava rindo! Há semanas, há meses, ele ria pela primeira vez! A menininha fez uma mesura. Emocionado, o Dr. Floriano adiantou-se dois passos. Da penumbra do quarto da menina surgiu uma senhora. Ficou hirta quando, além do Seu Franz, viu também o Dr. Floriano. Fechou as cortinas depressa. Não se via mais nada. O ancião deixou-se cair na cama, ofegante.
       - Estraguei a apresentação - disse com tristeza o Dr. Floriano, aproximando-se da cama.   Passou-se longo tempo. Finalmente Seu Franz começou a falar:
       - Conheci a menina há cinco semanas.  Por puro acaso. Quis deitar-me do outro lado e, quando levantei a cabeça, eu a vi. Ela me mostrou os bonecos e começou a representar. Para mim. . . - O rotundo Dr. Floriano não disse nada. - Desde então houve uma representação todos os dias, sempre peças novas. Estou mortalmente doente, mas ainda tenho olhos muito bons, doutor. Posso ver tudo muito bem, especialmente quando do outro lado também há luz acesa. E mal posso esperar que cheguem as quatro horas. Combinamos a hora com sinais. Porque nessa hora é mais calmo aqui, antes do jantar. . . - O Dr. Floriano tomou o pulso de Seu Franz e contou as batidas. - Não tenho ninguém. E de repente aparece alguém. . .
       - Abra o paletó do pijama - disse o Dr. Floriano, com rosto sério. Escutou o coração. - Cubra-se de novo - acrescentou, muito sério.
       -- Peço-lhe perdão - sussurrou o ancião. - Não foi correto da minha parte. Ainda por cima em segredo. Eu sempre dava um sinal para a pequena, com a lâmpada de cabeceira, para mostrar que não havia perigo aqui. ..
       - Isto é, não havia a Irmã Filomena.
       - Sim. E apesar disso ela me apanhou. A menina deve ter entendido logo, pois sempre sumia num instante quando a irmã ou alguém mais aparecia. Nunca mais vou fazer isso.
       - Pelo contrário.
       - Co. . . como?
       - Pelo contrário - disse o Dr. Floriano, lenta e claramente. - A partir de hoje o senhor vai ver todos os dias a menina representar. - E saiu depressa do quarto. Seu Franz ficou olhando. Não entendia mais nada. Então a porta se abriu de novo, o Dr. Floriano meteu a cabeça para dentro e acrescentou: - Vai haver cada dia menos perigo, prometo!
       - Obrigado - murmurou o velho -, obrigado. . . - Depois ficou longo tempo deitado, quieto. Por fim seus lábios tremeram. Mas ele não chorava. Estava sorrindo de novo.
       O mundo continuou girando e girando, vieram tempestades de neve, chuva, mais neve. Todos os dias o Dr. Floriano examinava Seu Franz e todos os dias fazia a mesma pergunta:
       - Olhou direitinho pela janela?
       E o ancião sempre respondia, de consciência limpa:
       - Sim!
       Chegou o degelo. O Dr. Floriano disse:
       - Levante-se.  Vamos dar uma voltinha no quarto.
       - Mas. . . mas...
       - O quê?
       - Mas eu não posso!
       - Pode - disse o doutor severamente. - Vamos! Seu Franz arrastou-se para fora da cama. Parecia que suas pernas eram de geléia. O Dr. Floriano o amparava. E o paciente deu uma volta pelo quartinho. Depois caiu de novo na cama, ofegante.
       - Isso! - disse o Dr. Floriano. - Amanhã tentaremos de novo. Mas trate de assistir ao seu teatro de marionetes, hein?
       Claro que ele assistiria! Todos os dias, semanas a fio! Em fevereiro, já podia sentar-se à mesa e lavar-se sozinho. Em março, conseguiu dar pequenos passeios, primeiro no corredor, depois no pátio, primeiro acompanhado, depois sozinho. Seu Franz era um milagre da medicina, os outros médicos e enfermeiras não podiam entender. Que acontecera? Como era possível? Seu Franz e o Dr. Floriano silenciavam.
       No começo de abril - ainda estava frio e ventava - houve uma última e breve crise. Seu Franz relatou, assustado:
       - Doutor, doutor, ontem a pequena não apareceu. Se lhe aconteceu alguma coisa. . .
       - Vai voltar logo - disse o médico. Mas ela não voltou, nem nesse dia nem no outro. Sumiu por uma semana inteira. O pobre Seu Franz ficou fora de si. Sofreu até uma pequena recaída, que o Dr. Floriano ignorou totalmente. No oitavo dia, disse, com ar distante.
       -- Vista-se. Fomos convidados.
       - Convidados? Onde?
       - Para almoçar com os pais da menina. Apresse-se ou chegaremos tarde.
       Seu Franz nunca se vestira tão depressa! O Dr. Floriano quis levá-lo para o outro lado da rua. Não era preciso! O velho teria até tropeçado pelas escadas acima, até o primeiro andar da venerável casa, se o doutor não o tivesse feito pegar o elevador. O médico parecia conhecer o lugar. Tocou a campainha da porta, que tinha uma placa com o nome Wiedmann. Uma senhora abriu. Atrás dela, um senhor. Quando viram Seu Franz seus rostos se iluminaram.
       - Muito bem-vindo, caro Sr. Aigner - disse a senhora. Era a mesma que o ancião tantas vezes avistara no quarto da menina, a mesma que correra até a janela e fechara as cortinas quando o Dr. Floriano saíra de trás do armário.
       - Como. . .  como sabem meu nome?
       - O doutor nos visitou e nos contou - explicou o Sr. Wiedmann, apertando a mão do velho muitas vezes. Depois levou-o pelo apartamento (devia ser gente rica!) até uma biblioteca confortável e ofereceu aperitivos. Seu Franz, que toda a vida sofrera de grande timidez, ficou nervoso.  Onde estava a menininha?  Onde?   Não ousava perguntar àquela gente tão fina.
       Uma cozinheira rosada apareceu e anunciou que o jantar estava servido. Foram até uma bela sala de jantar Seu Franz ficava cada vez mais inquieto. Sopa, prato principal e sobremesa passaram sem que ele sentisse o gosto do que comia. No cafezinho, não agüentou mais.
       - Por favor. . . por favor, onde está sua filha?
       - Marili? No quarto dela.
       - Será que posso vê-la?
       - Claro - disse o Sr. Wiedmann, levantando-se. Todos o seguiram. No corredor, parou diante de uma porta.
       - O senhor deve abrir - disse a Seu Franz. Este o fez com dedos trêmulos. Entrou no quarto de criança, de paredes cobertas com papel alegre e colorido, que lhe era tão familiar, e por um momento seu coração parou. Marili, sua amiguinha de olhos grandes e negros, estava deitada numa caminha perto da janela. O cobertor escorregara e Seu Franz viu gesso cobrindo-lhe a perna direita, dos dedos ao joelho. Marili estava doente! Seu Franz teve de sentar-se depressa.
       - Que bom, que bom que você finalmente chegou! - exclamou Marili.
       Seu Franz estava ofegante. Doente. Doente. Ela também, doente. . .
       A Sra. Wiedmann disse com dificuldade:
       - Há seis meses nossa filha contraiu uma grave inflamação na medula óssea. Tinha de ficar deitada, sempre deitada.. .
       - Como eu. . . - disse Seu Franz, num tom perdido. Olhava Marili e seus bonecos no peitoril da janela.
       - Tivemos os melhores médicos e os remédios mais caros. Nada ajudava. Estávamos quase loucos de medo de que talvez Marili ficasse para sempre aleijada.  Imagine, Sr. Aigner, uma menina, ainda por cima, uma menina!
       - Mas agora tudo passou! - pipilou a menina. - Logo vou poder correr como as outras crianças, não é verdade, tio Floriano?
       - Pode apostar que sim - respondeu ele.
       Uma pesada pulseira de ouro com pedras preciosas tilintou quando a Sra. Wiedmann enxugou as lágrimas.
       - De repente o estado de Marili melhorou - disse com voz sufocada. - Primeiro não pudemos entender. Depois descobrimos que todos os dias ela representava o teatro de marionetes para o senhor. . .
       - Há uma semana - continuou o Sr. Wiedmann, estendendo o lenço à esposa - levamos de novo Marili para o hospital, ali do outro lado.
       - O... o meu hospital?
       - Sim. As radiografias mostraram que aconteceu um milagre. A inflamação finalmente foi localizada. Os médicos decidiram abrir o osso.
       - Anestesia geral, sabe? - disse a criança, fazendo-se de importante. - E eu só tenho nove anos! Depois tive de vomitar.
       Seu Franz tinha a sensação de que o chão balançava debaixo de seus pés. Marili estendeu-lhe a mão. Ele a pegou. A menina o puxou para perto de si. Estavam os dois agora na cama: magros, pálidos, fracos, mas fora do vale de sombras de suas enfermidades.
       - Não imagine coisas erradas, Sr. Aigner - disse o Sr. Wiedmann. - Temos um pedido a fazer.
       - Um. . . pedido?
       - Sim!  - disse Marili apertando firme a mão do velho. - No mês que vem vamos para a Itália. E eu queria tanto que você viesse junto!
       - Ainda está frio aqui - afirmou a Sra. Wiedmann. - Marili precisa de muito calor, agora, e de outro ambiente. Tem de recuperar as forças, bem como o senhor.
       - Mas eu não sou. . . mas eu sou. . .
       Marili disse com toda a inocência de uma criança:
       - Você é pobre, o doutor nos contou. Ele também disse que eu tenho de representar sempre pra você com minhas marionetes. Você não tem dinheiro. E daí? Meu pai tem bastante. Você vai conosco?
       Seu Franz ficou muito vermelho. Engoliu seco.
       - Nós estamos pedindo - disse o Sr. Wiedmann.
       - Itália... - gaguejou Seu Franz. - Itália. . . meu Deus do céu! - Desamparado, olhou para o Dr. Floriano, pedindo ajuda. Este ficou quieto.
       - O senhor e Marili tinham um segredo em comum. Um deu saúde ao outro. Seremos seus devedores para sempre - declarou o Sr. Wiedmann, com voz rouca.
       - Mas era um segredinho tão pequeno! - murmurou o velho.
       - Dois - disse o Dr. Floriano.
       Todos viraram-se e olharam para ele. O médico foi até a janela dando as costas aos outros.
       - Foram dois segredos. Um bem pequeno e outro bem grande, que nunca ninguém jamais entenderá.
       Depois que ele disse isso, fez-se silêncio no quarto. Muito silêncio. O Dr. Floriano, Marili, seus pais e o velho
       Seu Franz olhavam para fora, para o primeiro tímido raio de sol de um novo ano que renascia vitorioso do frio invernal, da aflição e da morte.
       (1977)
      
       Hora da desforra
       Num dia de julho de 1951, um certo Heinz KlingeIhöfer saltou no Reno. Esse Heinz Klingelhöfer tinha vinte e oito anos de idade e sofria de um grave problema cardíaco, que vinha do tempo em que Heinz Klingelhöfer andara num submarino alemão, no canal da Mancha. O submarino foi torpedeado por aviões. Heinz Klingelhöfer simplesmente perdeu a consciência. Quando a recobrou, estava no hospital, em Wilhelmshaven, e faltava-lhe a maioria dos dedos da mão direita, bem como o olho direito. Estava também com um sério problema cardíaco. Mas ainda estava muito grato por só lhe ter acontecido isso. Pois todos os seus companheiros do submarino tinham morrido no ataque do avião inglês.
       Heinz Klingelhöfer arrastava-se pelos anos de pós-guerra, casado, abençoado com três filhos, e desempregado. Passou misérias. Vivia de uma pensão. Seu coração lhe dava enorme trabalho. Em julho de 1951, saltou no Reno, não para se divertir, mas para salvar a vida de alguns soldados franceses. Os soldados tinham caído na água, dentro de um automóvel, e não podiam sair do carro. Eram quatro. Da idade de Heinz Klingelhöfer. E deviam dar baixa do exército no dia seguinte.
       Heinz Klingelhöfer salvou a vida de dois dos quatro soldados franceses. Para os dois outros chegou tarde demais. Já estavam mortos. Heinz Klingelhöfer desmaiou sem um som quando finalmente desistiu de seus esforços de salvá-los. Seu coração falhara mais uma vez. Ficou de cama algumas semanas. Em seguida, o prefeito, o comissário francês e o oficial das tropas de ocupação francesa e norte-americanas vieram visitá-lo em seu leito e o levaram em triunfo à Prefeitura da cidadezinha na qual Heinz Klingelhöfer vivia. Lá deram-lhe primeiro a mão, depois uma quantia em reconhecimento - duzentos e cinqüenta marcos - e, por último, um documento no qual o presidente francês agradecia ao Sr. Heinz Klingelhöfer por sua corajosa ação de salvar a vida de dois soldados franceses. Heinz Klingelhöfer ficou muito impressionado. Por fim o comissário francês perguntou:
       - Tem algum pedido, Sr. Klingelhöfer?   Podemos fazer alguma coisa pelo senhor?
       E Heinz Klingelhöfer respondeu:
       - Eu ficaria muito feliz se, em troca dos dois soldados que salvei, concedessem a vida a dois soldados alemães que foram condenados à morte pela corte marcial francesa.
       - É um pedido difícil de atender - disse o comissário -, mas escreva um pedido de indulto ao presidente da República.
       Heinz Klingelhöfer escreveu o pedido de indulto. Escreveu vários pedidos de indulto e um deles, com efeito, acabou na mesa do presidente da República.. .
       Achava-se na prisão de Fresais, nessa época, um homem chamado Herbert Engler. Esse Herbert Engler fora, na guerra, um dos chamados "líderes especiais" e dirigira a Resistência na Normandia. Foi acusado de ter assassinado, a tiros, alguns reféns e pára-quedistas ingleses. Em 1950, foi condenado à morte por uma corte marcial francesa. Desde então, Herbert Engler vivia sentado em sua cela e, à noite, punham-lhe correntes nas mãos e nos pés. Esperava para ser fuzilado. Acostumara-se a dormir apenas de dia. Os fuzilamentos aconteciam ao amanhecer e por isso Engler não conseguia dormir à noite.
       No outono de 1952 - tempo decorrido até que o pedido de misericórdia de Heinz Klingelhöfer surgisse na mesa do presidente da República - a pena de morte de Herbert Englert foi transformada em prisão perpétua. O antigo chefe da Resistência ficou muito feliz. Pois descobrira que a vida mais miserável era ainda melhor do que a mais bela morte. Também lhe concederam certos privilégios. Por exemplo, não o acorrentavam mais. E podia dormir de novo à noite. E podia ler jornais. E, no jornal, o ex-chefe da Resistência leu sobre o camponês André Geoffroy. O camponês André Geoffroy, que tinha sua granja na costa da Normandia, fora condenado à morte por fuzilamento por uma corte marcial francesa. Tinham-no acusado de trair os dois agentes britânicos, Redding e Abbott, que se escondiam em sua propriedade. O camponês Geoffroy, um sujeito gordo e pesadão, afirmava sempre: "Não fiz isso!" Mas não acreditaram em seus protestos e o condenaram à morte.
       Quando o ex-chefe da resistência Englert leu isso, pediu para falar com o diretor da prisão e disse:
       - Tenho uma confissão urgente a fazer. O camponês Geoffroy é inocente e diz a verdade. Eu mesmo levei os espiões da Resistência à região em que fica a granja de Geoffroy. Sabíamos da chegada dos agentes Redding e Abbott antes que saltassem de pára-quedas. Prendemos os dois sem que Geoffroy dissesse uma só palavra!
       Depois disso, fizeram Englert e Geoffroy se defrontarem. Geoffroy, que, algemado de noite, estava sentado numa cela sempre iluminada e também só podia dormir de dia, nunca vira o chefe da Resistência, e no começo não entendeu uma palavra. Mas quando Englert confirmou suas declarações de que Geoffroy era inocente, este começou lentamente a entender. E enviou um pedido de indulto ao presidente da República. Primeiramente esse pedido de indulto foi extraviado. Um corajoso funcionário do Ministério da Justiça francês teve a coragem civil de não passá-lo adiante e o remeteu de volta ao presidente, anexando ao documento um recorte de jornal sobre o caso Klingelhöfer. Enquanto isso, o camponês Geoffroy continuava sentado em sua cela, esperando a cada manhã que viessem fuzilá-lo. Mas não vieram. Pois, em julho de 1953, o presidente da República perdoou o camponês Geoffroy e o colocou em liberdade.
       Aqui termina a singular série de acasos que valeu por uma desforra: o desempregado e cardíaco Heinz Klingelhöfer ainda está sem emprego, mas não sofre mais do coração. Seu coração está perfeito. Os médicos dizem que o salto no Reno foi uma espécie de cura violenta. Essa é a explicação objetiva da medicina. Mas cada um pode procurar a sua própria, mais poética.
       (1953)
      
       Nossa bétula
       A casa onde moro tem um telhado plano, no qual se pode tomar banho de sol. É muito quente ali, mas desde o dia em que minha amiga teve a idéia de puxar para cima, pelo alçapão, uma mangueira de jardim, passamos a considerar o terraço um lugar realmente ideal para se ficar. A água com que nos respingamos, quando não agüentamos mais o sol, corre pelo cascalho branco e logo se evapora. Nuvenzinhas deslizam no céu, um rádio toca em algum lugar e, quando a gente se debruça sobre a amurada do telhado, pode eventualmente adivinhar o que está sendo preparado ali embaixo, na cozinha, para o meio-dia. Com a amurada chegamos ao tema da bétula.
       Primeiro, é preciso que saibam que o muro que rodeia o telhado é de pedras fortes, medindo cerca de metro e meio de altura. Em alguns pontos o reboco branco rachou e sei que do lado norte vivem uma grande família de formigas e alguns bichos-de-conta. Já nos conhecemos há muito e temos plena confiança uns nos outros. Jamais ocorreria aos bichos-de-conta entrar nos quartos e eu cuspiria em mim mesmo se jamais
prejudicasse um deles.
       Mas o caso com a bétula é diferente.
       Ela apareceu pela primeira vez em abril de 1943. Minha mãe a descobriu e, quando voltei para casa, mostrou-me o estranho inço verde que saía de uma rachadura do muro. Do lado oeste da amurada, isto é, onde bate o sol matinal, há entre o chão e o muro um lugar com uma rachadura maior. Nela cresceu, na primavera de 1943, uma coisa verde que nos pareceu a todos muito estranha. Era um enigma como conseguia crescer ali. As condições pareciam absolutamente adversas. Semanas a fio, sequer uma gota de água. Depois, chovia durante vários dias. Por vezes, um frio terrível à noite. A quantidade de terra que o vento levara para a rachadura no concreto não podia pesar mais do que alguns gramas. Era totalmente incompreensível de onde a planta tirava coragem para crescer num lugar daqueles. Já era quase uma falta de vergonha.
       Primeiro houve pequenas discussões a respeito do tipo de planta em questão. Meu amigo Sebastião julgava tratar-se de uma jovem palmeira. Minha mãe disse que apostava a própria cabeça como era dente-de-leão. Quanto a mim, achei o raminho parecido com um arbusto de mamona. Muitas pessoas viam aquela coisa verde e arriscavam seus palpites. Não quero anotá-los, pois esta deve ser uma história séria.
       Em 1943, todos tínhamos preocupações. Não tantas como seriam em 1944, mas já eram bastantes. A indefinida planta do telhado foi temporariamente esquecida. No outono tinha uns quinze centímetros de altura e aumentara um pouquinho a rachadura no muro. Durante todo o inverno, aquela planta maluca ficou enterrada na neve. Quando chegou a primavera, despertou e continuou crescendo alegremente. Ninguém sabia como conseguia isso. Mas estava crescendo. Cada mês ficava um pouquinho mais alta. Falávamos seguidamente dela. Começávamos a amá-la. Tropas de pára-quedistas britânicos lutavam pela cidade de Arnheim, soldados russos cruzaram o Dniepr. A planta do telhado da nossa casa já tinha um metro de altura.
       Certa noite, um botânico veio nos visitar e disse que se tratava de uma bétula. Como ele devia saber, não discutimos mais. Tínhamos uma bétula. Uma bétula no telhado. Pensamos que dentro de dez anos poderíamos nos sentar debaixo de uma bela sombra e, dentro de vinte, inscrever nossos nomes, com ou sem molduras, no seu tronco.
       A pequena bétula, que já ostentava folhas de verdade, continuava crescendo, imperturbável. A guerra, a fome e a morte, juntamente com à desgraça de milhões, não lhe faziam mal algum, porquanto estava totalmente ocupada consigo mesma. Sem falarmos nisso, por vezes a tomávamos como exemplo. Pela sua indiferença. Pela sua calma. Pela sua paz.
       A guerra acabou. No verão de 1945, quando por algum tempo faltou água, minha mãe andava um longo caminho até um velho poço para apanhar água para nossa árvore. Fazia isso todas as noites. Dava-lhe alegria regar a bétula. Também carregou boa terra preta para o telhado e, com uma lima de unhas, um pente de cabo fino ou outro instrumento destinado a essa espécie de operações, cavou na rachadura. Não havia dúvidas de que estava apaixonada pela árvore até a raiz dos cabelos. Nós todos sentíamos algo parecido. Então, certo dia, quando ninguém estava em casa, chegou o limpador de chaminés. Não o conheço. Não tenho queixa dele. Provavelmente pensou, como amigo da ordem, que estava nos prestando um favor. Com certeza foi isso o que pensou. Ou então a bétula estaria estorvando o trabalho. Pois, do contrário, por que a arrancaria e jogaria lá embaixo no jardim?
       Quando voltamos para casa e vimos o que acontecera, ficamos de luto, durante algum tempo, pela nossa arvorezinha. É meio complicado traduzir em palavras sentimentos por animais e plantas. Por isso apenas escrevo aquilo em que estávamos todos de acordo: amávamos muito a nossa bétula.
       O período em que vivemos não permite que ninguém se entristeça durante muito tempo por alguma coisa. Para tanto o tempo passa rápido demais; nem por isso é bastante alegre. Afinal, todas as coisas acabam esquecidas.
       Mas no último domingo, quando subimos ao telhado, acontecera um pequeno milagre.
       Foi minha mãe quem o viu primeiro. Engoliu algumas vezes, pegou meu braço e disse:
       - Minha nossa!
       - O que foi? - perguntei.
       Ela sacudiu a cabeça e apontou para o lado oeste da amurada, na qual, de uma rachadura que eu conhecia bem, saía uma coisinha verde.
       Minha mãe sorriu. Esvaziei comovido o meu cachimbo. Nossa bétula regressara.
       (1946)
      
       Ninguém quer um coração
       O trem partiu de novo num arranco. A jovem mulher desceu devagar a escada para a saída. Ficar calma. Não perder o controle. Não chamar a atenção agora. Ela sabia; mesmo ali, na estação ferroviária de Berlim Ocidental, havia por vezes policiais do setor oriental. O manto cinza da jovem era velho e fino, a maletinha, gasta. Nas belas pernas usava meias de lã, e nos pés, sapatos firmes. Tremia de frio, não de nervosismo. Estava terrivelmente frio em Berlim.
       A jovem usava o cabelo preto sem repartido, num corte juvenil e curto. Não havia pó em seu rosto, nem pintura alguma. Era um rosto ansioso e cheio de paixão, desejando apaixonadamente saber a verdade.
       Lá embaixo havia uma agência do correio, cabines telefônicas, lojas iluminadas. Muitas pessoas andavam por ali, nervosamente, correndo para as compras de última hora. Uma grande árvore de Natal com velas elétricas estava fincada numa poça suja de neve derretida.
       Na saída da esquerda, a jovem jogou sua passagem na caixa de lixo e, às quinze horas e quinze minutos dessa Noite Santa, saiu de uma Alemanha para a outra Alemanha.
       Na outra Alemanha havia um policial parado, bocejando. Colocou a mão no boné quando a jovem parou diante dele.
       - Venho do outro lado - disse ela. - Fugi.
       - A senhora tem dinheiro?
       - Sim.
       - Dinheiro ocidental também?
       - Não.
       - Venha comigo, eu a levarei até a casa de câmbio - disse o policial, pegando-lhe a mala.
       - Tenho de telefonar. . .
       - Para isso a senhora precisa de dinheiro - observou ele amavelmente. Passaram pela grande árvore de Natal. A jovem indagou:
       - Já vieram muitos hoje?
       - Não tantos quanto ontem - disse o policial. - A gente nota que é Natal.
       Dez minutos depois, a jovem estava numa cabine telefônica, segurando o fone no ouvido. Respirou com um gemido. De repente, estava tremendo, o suor escorria-lhe da testa em minúsculas pérolas. Ouviu o sinal de chamada. Segunda vez. Terceira vez, um ruído metálico e duro, e uma voz masculina desconhecida disse:
       - Sim?
       Uma voz feminina entrou na linha:
       - Aqui, longa distância. Seu número, por favor.
       - Aqui é Hamburgo. - O homem disse o número.
       - Está sendo chamado de Berlim Ocidental. Fale, por favor! - A voz da moça sumiu.
       - Alô! - disse a voz masculina de Hamburgo. - Mas quem está em Berlim?
       A jovem segurava o fone com as duas mãos, senão ele teria escorregado.
       - Aqui é Mônica Meesen.
       - Deus do céu! - A voz do homem soava horrorizada. - Mônica Meesen?
       - Sim. Posso falar com o Sr. Binden?
       O homem de Hamburgo pigarreou forte:
       - O Sr. Binden escreveu-lhe recomendando que a senhorita ficasse do lado de lá. Deus do céu, por que foi que veio?
       Mônica fechou os olhos. De repente, sentia-se mal.
       - Escute. . . quem é o senhor, afinal?
       - Meu nome é Lorbeck.
       - Que está fazendo no apartamento do meu noivo?
       - Um momento. Este é meu apartamento. Eu o recebi dele.
       - Ele. . .  não mora mais aí?
       - Não.
       - Mas. . . mas onde está ele agora?
       - No Canadá, ora!
       O fone quase escorregou-lhe das mãos úmidas de suor. Ela escutou:
       - . . .não entendo nada. Ele não escreveu dizendo que ia sair do país?
       - Não, não escreveu.
       - Mas a senhorita está falando de um Rodolfo Binden, que depois das agitações estudantis do verão fugiu de lá e veio para o lado de cá, o químico Binden?
       - Sim, estou falando dele.
       - Pois então não sei o que pensar. Lamento terrivelmente tudo isso. Quando ocupei o apartamento, ele me disse que lhe escrevera dizendo que mais tarde mandaria buscá-la. Para o Canadá.
       - Não, ele não escreveu. Mas há duas semanas escrevi-lhe dizendo que estou esperando um filho dele.
       - Um filho dele?
       - Sim. Foi por isso que fugi. Quando ele foi para o Canadá?
       - Ora, faz uns dez dias, coisa assim. Nem ao menos me deixou o endereço. Disse que tinha escrito contando tudo para a senhorita. Meu Deus do céu, escute, Srta. Meesen, mas que sujeitinho, esse Binden, francamente! Que vai fazer agora? Quero dizer. . . vir para cá não adianta nada. Não pode voltar?  Quero dizer. . .   no seu estado seria a melhor coisa. Que droga, ainda por cima no Natal!  Que porcaria!
       - Boa noite, Sr. Lorbeck - disse ela. Depois, colocou o fone no gancho e saiu da cabine. Sentou-se na malinha feia. E só então começou a chorar.
       - Mas a senhorita não pode ficar sentada aqui eternamente - disse o policial, cansado, pondo a mão no ombro de Mônica. Ela não estava mais chorando. Olhava fixamente o chão sujo.
       - Já vou - disse, levantando-se
       - A senhorita tem de ir para o acampamento de refugiados. Para a emergência
       - Sim. Eu sei.
       Ele a levou cuidadosamente para fora.
       - Veja, aqui pára o 78. Com ele a senhorita vai até a Prefeitura de Steglitz. Lá muda para o ônibus 32. Esse vai até o acampamento de Marienfeld. Vai se lembrar disso?
       - Sim, claro.
       - Tudo de bom. Muita sorte - disse o policial.
       - Obrigada - disse a jovem. - E feliz Natal.
       Começou a nevar enquanto ela esperava o ônibus para Steglitz. Havia pouca gente nas ruas. Em algumas janelas já se viam velas acesas nas árvores de Natal.
       Mônica sentia-se estranhamente tonta. De repente, assustou-se. Sem notar, afastara-se do ponto de ônibus, um bom trecho, numa ruela lateral escura. Agora estava diante da minúscula vitrina de uma confeitaria. Parecia uma casa bem pobre, entre as lojas grandes dos dois lados, todas já fechadas.
       Só aquela pequena confeitaria ainda estava aberta. Uma lâmpada fraca brilhava lá dentro. Iluminava mal a vitrina. Viam-se bombons em vidros altos no lusco-fusco. Bolos em forma de árvore, tortinhas verde-musgo e, na frente, num pequeno pedestal, um cesto cheio de cucas de mel. Havia um cartaz enfiado no cesto, dizendo:
       "Cuca de mel típica de Pulsnitz!"
       Mônica Meesen surpreendeu-se fitando o cartaz por uns bons minutos. Sentia frio outra vez. Em algum lugar os sinos começaram a tocar, um rádio fez retumbar um coro de vozes infantis na noite: "Adeste fideles. . ." A porta da' pequena loja abriu-se. Um homem de cerca de trinta e cinco anos saiu. Tinha na mão uma vara para baixar a porta de ferro. Fitou Mônica amavelmente. Ã metade esquerda do seu rosto estava na sombra. Ele disse:
       - Preciso fechar. Gostaria de comprar alguma coisa? A miséria, a grande miséria da vida, fechava a garganta de Mônica. Ela fez que sim. Fechou as mãos e disse:
       - Cuca de mel, sim. De Pulsnitz. Por favor.
       - Entre - disse o homem, seguindo na frente. À luz da lâmpada fraca de sua confeitaria, virava sempre a cabeça para um lado, de modo que Mônica só conseguia ver o lado direito. Ele parecia simpático, até onde se pode julgar por meio rosto. E parecia pobre, amável e muito tímido. O homem perguntou:
       - Quantos corações a senhora deseja?
       - Dois - disse Mônica, metendo a mão numa bolsa velha e enrugada. Mas que loucura, pensou. Para que estou fazendo isso? O homem embrulhou dois corações. Sorria. Tinha uma boca agradável. E bonitos cabelos castanhos, repartidos do lado esquerdo.
       - Mas que coisa! - disse o homem. - Comprar logo dois corações. Eu os fiz porque pensei que havia muita gente da zona oriental aqui em Berlim e certamente iam querer cucas de Pulsnitz. Puro engano. Ninguém quer um coração. Acho que ninguém sabe onde fica Pulsnitz.
       - Mas eu venho exatamente de Pulsnitz - disse Mônica baixinho. - Por isso - ela colocou o dinheiro na mesa.
       - Eu também - disse ele, rindo novamente. Tinha um riso muito simpático. - Também sou de Pulsnitz. Fugi faz três anos. Três marcos e cinqüenta de troco. Obrigado. - De repente ele a fitou sem virar a cabeça. Mônica notou então que na sua têmpora esquerda havia uma cicatriz profunda, de um vermelho bem vivo.
       "Por isso", pensou ela, "ah, então é por isso." E ouviu-o dizendo:
       - Imaginei que tudo seria bem diferente aqui no lado ocidental. Mas é difícil como o diabo. E solitário. O pior porém foram essas cucas de mel de Pulsnitz! - Então ele notou o olhar dela e virou a cabeça. E disse com infinito pudor: - A senhora tem de ir para Marienfeld, não é?
       - Sim, com o 32.
       - Cuidado para não perder o ônibus.
       - Boa noite - disse Mônica. Pegou a sua mala e os dois corações, e saiu para a neve que caía. Agora as ruas estavam totalmente vazias.
       De repente, ela parou.
       Depois virou-se e voltou, rápida e decidida, para a minúscula confeitaria.
       Passos apressados a assustaram. O homem de Pulsnitz vinha ao seu encontro, ofegante, sem sobretudo.
       - O que foi? - perguntou Mônica.
       Ele olhava a neve no chão e tapava a cicatriz com a mão. E gaguejava de nervosismo:
       - Eu queria. . . é só porque. . . levei tempo para entender que a senhorita era de Pulsnitz. Deve estar horrível lá no acampamento esta noite. . .   a senhora não quer. . . quero dizer...  eu moro atrás da loja. . .  comprei um pato. .. não posso comer tudo sozinho. . . por favor.   .
       Estavam parados em silêncio, na neve, olhando um para o outro, dois seres humanos feridos: um por dentro, outro por fora.
       Mônica Meesen disse:
       - Se tem certeza de que não vou incomodar, senhor. ..
       - Brünjes. Oscar Brünjes. - Ele fez uma larga mesura. Depois, disse aos arrancos: - Mas. . .  mas a senhorita também estava voltando. Por quê?
       - Porque me lembrei de uma coisa. O senhor tem um cabelo tão bonito - disse Mônica - Tem de pentear o cabelo comprido para a esquerda. Assim ninguém vai notar a sua cicatriz.
       Ele fitou-a como se fosse um milagre. Depois, começou a rir, feliz.
       - Para a esquerda - exclamou. - Mas claro, para a esquerda! Como foi que nunca pensei nisso?
       - Bem - disse Mônica -, primeiro tinha de vir uma moça de Pulsnitz.
       (1957)
      
       Distrito Policial 22
       Dez minutos antes que o aparelho CX-234-746 da Companhia Aérea Imperial dos Países Baixos deixasse Munique, para voar até os Estados Unidos, a aeromoça encontrou na cabine de roupas um passageiro clandestino que lá se escondera. Chamada a polícia, pegaram o homem e durante a noite o transferiram para o Distrito Policial 22. Lá mesmo ele teve oportunidade de fazer suas declarações ao policial em serviço:
       "Entrada: 19h e 35min. Número: 23.
       Trazido pela polícia, o pedreiro José, cidadão austríaco, nascido a 6 de abril de 1932, em Hintersham, Altkirchen (Áustria Superior), residente no mesmo local, solteiro, católico-romano, sem antecedentes policiais, carteira de identidade 76 564/48, prestou o seguinte depoimento: Hoje, às catorze horas, fui encontrado na cabine de roupas de um avião holandês, onde me escondera. Interrogado sobre a razão da minha atitude, expliquei que me escondera porque desejo voar para a América. Sem dinheiro, só se pode viajar assim. Quando não se é apanhado. Sempre quis ir para a América, para me tornar um corredor de automóveis famoso. No cinema de Hintersham já vi dois filmes nos quais corredores ficaram famosos na América. Um foi representado por Clark Gable.
       Os corredores dos dois filmes estavam com roupas magníficas. Por isso coloquei numa caixa o terno que usei no dia da crisma e o levei comigo. Declaro que, apesar de meus insistentes pedidos, essa caixa não me foi devolvida e ficou no avião. Quero acentuar que o terno de crisma me pertence, e é o único traje decente que tenho. A polícia da América deve mandá-lo para a Europa, assim que o avião chegar lá. Se não o receber de volta, vou acusar a Companhia Aérea Imperial dos Países Baixos de desonestidade. De resto, nada mais tenho a declarar.
       Lido, certificado e assinado na presença do chefe da guarda Haarlánder: pedreiro José."
       "Entrada: 23h e 55min. Número de ocorrência: 49 Acréscimo à ocorrência 23.
       Trazido à polícia a seu próprio pedido, aparece novamente o pedreiro José. Dados pessoais na ocorrência 23. Declara o seguinte: Eu não disse toda a verdade e não posso dormir. Não estive fazendo bagunça na minha cela, como disseram, mas estava chorando. Quando o senhor chefe da guarda, cujo nome não sei, me interrogou, pedi que me trouxesse de novo para interrogatório, a fim de complementar minhas declarações, o que estou fazendo agora.
       Faz alguns anos não moro mais em Hintersham, em Altkirchen, Áustria Superior. Lá só moram meus pais.
       Há meio ano eu morava no sanatório para tuberculosos Landall, na Baixa Áustria. Fugi de lá faz dez dias. É por isso que meus pais ainda não acusaram a minha ausência. Não sabem da minha fuga. Parece que também no hospital não notaram a minha ausência. Decidi fugir e viajar para a América, depois de ter escutado uma conversa junto à porta do Dr. Holmann. Assim fiquei sabendo que meu último exame teve péssimos resultados, e em dois anos deverei estar morto. O Dr. Holmann não sabia que eu estava escutando à sua porta. Na manhã seguinte, bateu no meu ombro e disse que logo eu poderia ir para casa com saúde.
       Mas, naturalmente, não acreditei. Pus o meu terno preto na caixa de papelão e escapei do sanatório. Tive de fugir. Se não fugisse, estaria morto antes de ter oportunidade de ser um corredor famoso nos Estados Unidos. E eu queria muito me tornar um.
       Interrogado, admito que, no caminho de Landall para Munique, cometi vários atos que merecem punição:
       a) dormi no paiol da granja de vários camponeses em St. Pólten, Krems, Urfahr, Wels, Attnang-Puchheim, Parsch, Freilassing, Rosenheim, Prien e Übersee, sem que os proprietários soubessem;
       b) roubei ovos, pão, leite e, em três casos, também ervilhas secas;
       c) cruzei ilegalmente e sem visto a fronteira austro-germânica em Reichenhall;
       d) sou culpado de vadiagem durante três semanas.
       O assalto à Confeitaria Kafalke, em Munique, na Kapuzinerstrasse 23, na terça-feira passada, não foi minha culpa, o que declaro expressamente depois de interrogado.
       Também, por ter sido interrogado, sou obrigado a declarar que me arrependo de todos os meus atos e crimes, e de bom grado quero recompensar o prejuízo que causei, até onde estiver em meu poder. O senhor delegado me explicou que não importa se chego à América ou não, na verdade sempre foi totalmente indiferente, porque o Dr. Holmann constatou que em dois anos estarei morto. Pois agora entendo que em dois anos estarei morto, tanto na América quanto em Landall ou Hintersham, em Altkirchen, Áustria. De modo algum poderei me tornar um grande corredor de automóveis, nem poderia sê-lo por muito tempo. Pois quem está morto não pode ser um corredor famoso. Na minha ignorância e juventude eu me esquecera disso, e, conseqüentemente, fui levado a cometer atos impensados, de que me arrependo muito. Entrego-me à misericórdia do Juizado de Menores e peço para ser transportado ao sanatório de tuberculosos de Landall. Prometo também que ficarei quieto na minha cela o resto da noite e não perturbarei o sono de meus companheiros, chorando ou fazendo outro ruído.
       Lido, aprovado e assinado na presença do chefe da guarda Haarlãnder: pedreiro José."
       (1948)
      
       Carta de aniversário a uma jovem dama
       Querido Antônio!
       Este domingo, no qual há semanas você pensava com o coração pulsando forte, é um domingo muito excitante. Hoje você festeja o seu oitavo aniversário e portanto já é capaz de ler essas linhas escritas só para você.
       Depois que examinar os presentes, as botas marrons, o casacão com botões dourados e a deliciosa torta de aniversário com oito velas, depois que todas as suas bonecas, o ursinho e o macaco, tia Berta e o Sr. Woprschalek, o vizinho, a leiteira, o verdureiro e sua querida mamãe lhe tiverem desejado felicidades e todas as coisas boas do mundo nesse dia tão especial, chego eu - como sempre, um pouco atrasado - para igualmente dar-lhe os parabéns. Na verdade, velho Antônio, tenho por você um grande afeto, como não poderia deixar de ser, e prometo, hoje, 19 de setembro, palavra de honra, que dentro de vinte anos você poderá batucar na minha máquina de escrever coisas como: achoquestoudenovocomfome, ou nãopodemosmesmocomermaisumsorvete?, e que dentro de vinte e cinco anos carregarei você nos meus ombros com a mesma alegria de hoje. Talvez até com mais alegria ainda. O professor disse que você é inteligente e deduzo que você tem um professor inteligente.
       Porque ele logo reconheceu as coisas certas. Crianças inteligentes têm de permitir que os chamados adultos eventualmente lhes dêem os chamados bons conselhos, em especial em dias como o de hoje, coisa que em geral as deixa muito infelizes. Mas, ao mesmo tempo, crianças inteligentes são educadas demais para dar a entender aos adultos que não sabem absolutamente o que fazer com tais conselhos. Eventualmente, crianças inteligentes perdoam aos chamados adultos esse comportamento, e sei que você me perdoará se eu tentar dar-lhe um chamado bom conselho neste dia único, maravilhoso, espetacular e divertido, em que, se quiser, podemos andar de carrossel até ficarmos enjoados. Um homem a quem você certamente teria agradado muito (e ele certamente a você também) chamava-se Adler e tinha um filhinho de nome Alfredo. Mas era um menino mesmo, não uma menina chamada Eva, que por brincadeira quer que a chamem de Antônio Meier, e eventualmente pretende ser outra pessoa, porque sua fantasia é grande demais para uma pessoa só, e porque acha tão imensamente divertido enfiar-se dentro de alguém bem diferente, que aliás nem existe. E depois que você brincou bastante de faz-de-conta, volta para junto de sua mamãe e é de novo Eva.
       Mas o outro, o verdadeiro Alfredo, recebia todas as manhãs um conselho, e não como você, uma vez ao ano, no dia 19 de setembro. Quando o Sr. Adler despedia-se pela manhã, olhava profundamente nos olhos do filhinho e dizia: "Alfredo, não acredite em coisa alguma!" E o pequeno Alfredo, que mais tarde seria muito famoso e ajudaria a muitas pessoas doentes, respondia: "Não acredito em nada, pai!"
       Sempre me impressionou muito essa história, minha querida Eva, & acho que o pai do inteligente Alfredo também foi um homem muito inteligente. Pois seu pedido de não acreditar em nada não queria dizer simplesmente que o filho não devia acreditar em nada do que a mamãe ou o professor diziam. Não queria significar: Alfredo, seja incrédulo! Queria dizer: Alfredo, pense por si mesmo! Seja cauteloso e desconfiado, não aceite tudo que os adultos lhe contam, forme sua própria opinião, descubra você mesmo os segredos dessas histórias emaranhadas e singulares que se chamam "vida". É isso o que aquele pedido significava.
       Antes de continuarmos, seria bom que você comesse um pedaço de torta. Ou um pirulito em forma de peixe. Ou, quem sabe, um bombom. Pense. Eu preferiria torta. Mas não se deixe influenciar. Não acredite em nada do que digo. Seu estômago só pertence a você, bem como seu corpo e sua inteligência. Toda a sua vida só a você pertence. Assim como o estômago, também seu coração só pertence a você. Só a você. O mundo seria muito diferente se esse fato fosse um pouco mais difundido. Nunca é cedo demais para entendê-lo. Se você se convencer disso, assim como seus companheiros e amigos, pode ser que, quando crescerem, realmente se possa esperar o fim do mundo num sentido muito especial: o de que vocês trarão o começo de um mundo melhor.
       Acho que para você é uma grande felicidade ter só oito anos. Gostaria de trocar com você;-Sei que não dá. Mas seria muito bonito. Muitas pessoas, querido Antônio, o invejariam hoje, pelos seus oito anos. Se um dia, muito mais tarde, você não invejar outra menininha pela sua infância, saberá que poderá considerar isso uma prova certa de que viveu corretamente, e que com efeito o mundo ficou mais bonito.
       Bem, esta é uma carta comprida, e provavelmente você já está toda impaciente, pensando: tomara que ele pare de uma vez, quero pular corda. Ou andar de patins. Portanto é melhor que paremos com essas reflexões e deixemos você entregue à paz e grande felicidade do seu oitavo aniversário.
       Com os melhores votos e um carinhoso abraço seu velho tio, Mário.
       (1949)
      
       A tragédia do café
       As três coisas que a Sra. Poldi mais ama são: seu marido, seus filhos e café de coador. Café legítimo; seu gosto e aroma, sua cor e seu perfume, sua maravilhosa força estimulante e seu segredo negro. A história que contaremos aqui se relaciona intimamente com a Sra. Poldi e o café de coador, tendo abalado muito esta mesma senhora. Chamamos a essa história de tragédia. Mas, lendo-a, pode parecer que se trata de uma tragédia muito pequena, uma tragediazinha, por assim dizer, que nem mesmo merece esse nome. Mas a impressão seria falsa.
       A Sra. Poldi trabalhou muito a vida toda. Começou cedo e nunca parou. Ainda continua trabalhando. E trabalhará mais no futuro. Pelo seu marido, por ela mesma, pelas crianças e pelo café de coador. Para ter, eventualmente, café de coador. Pois café de coador é o luxo que a Sra. Poldi se permite a intervalos regulares, em pacotes de um quarto de quilo, assim como outras pessoas se permitem um belo casaco de peles ou um modesto Galaxie.
       O trabalho da Sra. Poldi a levava para casas de outras pessoas. Ela transformava em ordem, nessas casas de estranhos, a desordem que outras pessoas deixavam, bem como a sujeira em limpeza. A Sra. Poldi arrumava, batia tapetes, lavava louça e, de vez em quando, também lavava a roupa. Roupa suja. Não a sua própria roupa suja. Mas a roupa suja de outras pessoas. É difícil dizer algo sobre essa ocupação. Se o leitor nunca lavou roupa suja de outra gente, talvez não esteja em condições de concordar com a Sra. Poldi, quando ela afirma que esse é o trabalho mais repugnante e duro que existe. Pior do que limpar esgoto ou ser o oficial de justiça que confisca os bens alheios. Muito pior. Especialmente para uma mulher. Embora muita gente ainda considere um privilégio feminino a tarefa de esfregar, torcer e enxaguar.
       Naturalmente, pode-se objetar que ninguém obrigou a Sra. Poldi a lavar roupa suja de estranhos. Não precisava fazer isso. Ninguém a pressionou! Ela poderia ter dito às esposas do diretor de banco, do advogado, do conselheiro aposentado: lavem sua sujeira vocês mesmas! Mas isso não adiantaria nada. Pois outra Poldi teria assumido o seu lugar, fazendo o que ela se recusava a fazer. É porque existem Poldis demais no mundo. E muito poucos diretores de banco, advogados e conselheiros aposentados, incluindo suas esposas. Por- isso a procura de diretores de banco, etc. é muito maior do que a procura de Poldis. Além disso, a Sra. Poldi tinha uma família. E gostava de beber café de coador. E por isso não alimentava idéias bobas de largar o serviço.
       Na sexta-feira passada, quando a tragédia aconteceu, fazia muito calor. Já pela manhã, quando começou a lavar a roupa, a Sra. Poldi não se sentia muito bem. Afinal, os senhores - com essa palavra
ela designa as pessoas cujas camisas e cuecas sujas lava; inacreditável que, vivendo em pleno século 20, ela ainda chame essas pessoas de "os meus senhores" e, em momentos extremos, até de "bons senhores" -, pois os bons senhores moravam numa grande mansão. A lavanderia ficava no jardim. A Sra. Poldi levava as roupas em cestos de um lugar para outro. Era uma porção de roupa, os patrões tinham deixado acumular muitas peças. Para que o dia de lavagem da Sra. Poldi lhes saísse mais barato.
       A Sra. Poldi lavou e esfregou e torceu o dia inteiro. Não tinha consciência de que não é destino natural de uma mulher de cinqüenta anos esfregar, lavar e torcer. Apenas tinha consciência de suas varizes. E um coração aparentemente não muito bom. Pelas três da tarde, já estava muito cansada. Pelas quatro, círculos negros giravam diante de seus olhos. Às cinco, porém, sentiu-se de repente como que renascida. Quando acabava de subir de novo até o primeiro andar para pegar as últimas peças de roupa, parou de repente, encantada, e fechou os olhos com um sorriso feliz. Aspirou fundo. O maravilhoso, o magnífico, o único; o amigo negro de seus dias trabalhosos. Ela cheirava café de coador!
       O aroma fugia pela porta da cozinha, e a própria ilustre senhora o preparava. Estava parada junto ao fogão, cozinhando. A partir desse momento, a Sra. Poldi moveu-se com a graça e leveza de uma dançarina. No rosto, a expressão de uma adolescente que se alegra com o amor. Cada camisa, cada cueca, pensava, é um passo adiante. Logo estarei pronta, e então. . . então irei até a ilustre senhora, lá em cima, na cozinha, e haverá uma xícara na mesa e um bule. E então... ela lambeu os lábios, respirou fundo e curvou-se sobre o tanque. Então, pensou, então, meu Deus, então!
       Às seis da tarde a Sra. Poldi entrou na cozinha. Havia uma xícara na mesa. E um bule. E um aroma estonteante de café. A Sra. Poldi sorriu enquanto a ilustre senhora pagava. (Logo vai me convidar a sentar, pensou, logo, logo!) Mas a ilustre não a convidou. A ilustre suspirou fundo, aliviada, sentou-se ela mesma e disse:
       - Bem, agora tenho de tomar café, senão vou desmaiar!
       E bebeu.
       A Sra. Poldi ficou parada diante dela, imóvel, olhando-a fixamente. Tanto olhou, que a ilustre senhora percebeu e perguntou:
       - Que foi, Sra. Poldi? Mais alguma coisa?
       A Sra. Poldi não reconheceu a própria voz quando respondeu baixinho:
       - Não. Mais nada. E foi para casa.
       À leitura dessas linhas poderia parecer que elas não merecem o título de "tragédia". Mas seria uma impressão falsa. No caos do mundo em que vivemos, eu protestaria contra ela.
       (1951)
      
       O assaltante
       "Sábado à noite, em Lobau, perto do Danúbio, três rapazes que Unham armado uma tenda foram feridos a facadas por desconhecidos O assalto aconteceu por volta das onze horas, perto do quilômetro 1922, no chamado Fundo Morto"
       (Notícia de jornal)
       Não se demonstra coragem só com o punho Também é preciso ter cabeça. Quando alguém aluga uma casa no Lobau para o verão, quando fica sentado sozinho no Danúbio, quando uma tempestade se ergue, negra como piche, ameaçadora, com ventos uivantes, e quando ainda por cima se lê a notícia mencionada, é preciso ser um idiota para não ficar um pouco pensativo.
       Eu acabava de alugar uma casa para o verão no Lobau, estava sentado junto ao Danúbio, inteiramente só, lia a notícia acima, e fiquei um pouco pensativo. Isso significa que não sou um idiota.
       Tudo bom, pensei, olhando as ondas cinzentas da correnteza sobre as quais baixavam a tempestade e a noite; natureza idílica, ar saudável, uma paisagem selvagem, virgem e natural, nascer do sol, tempestades, e leite quente de cabra - tudo muito bom, mas quem sabe não será um pouco perigoso ? O que aconteceu aos três rapazes no Fundo Morto (que nome, Deus meu!) pode acontecer em outros lugares. Aqui, por exemplo. A mim, por exemplo. Agora, por exemplo.
       Que faria eu se me virasse e um homem estivesse sentado atrás de mim com uma faca? É isso. E daí? Quem vai pagar os impostos, quem vai contar à Crista, quem mandará cortar os cabelos compridos demais? É isso, quem? Um homem fica pensativo, sentado assim, sozinho no Danúbio. Vamos, digo a mim mesmo, vire-se, você vai ficar mais calmo quando vir que não há ninguém.
       Virei-me.
       Não fiquei mais calmo
       Pois havia alguém.
       Um homem com uma faca.
       Estava sentado atrás de mim.
       Limpava as unhas com a faca. Parecia ser filho de Frankenstein Um pouco mais magro e menor. Com calça puída e uma camisa esfarrapada. Chapéu preto na cabeça. .Olhos injetados como fogo.
       - Oi - disse eu, eloqüente.
       Nada de resposta.
       Ele me fitava. Então fitou a faca. Depois, de repente, sorriu. O pior era aquele sorriso. Virei-me de novo. Relampejou na outra margem. Graças a Deus, pensei, um sinal. Se relampejar mais uma vez, eu me levanto e vou embora. Relampejou de novo. Ergui-me para ir embora. Minhas roupas estavam do meu lado. Vesti-me. Devagar, Simmel, disse a mim mesmo, devagar. Nada de pressas indignas. Camisa, calça, casaco, meias, sapatos - o filho de Frankenstein já não limpava as unhas com a faca, limpava os dentes. Não sorria mais. As primeiras gotas de chuva caíram, a luz estava esverdeada, o primeiro raio caiu na água, o trovão estourou em seguida, e eu pensei como sempre fora feliz no Café Hawelka.
       Amarrei o cordão do sapato e levantei-me. O outro também se levantou. Ficamos parados um diante do outro, ele com a faca na mão, eu com a Fisiologia ao casamento, de Balzac. Preferia morrer com o Tristram Shandy. Vamos, Simmel, disse a mim mesmo. Agora, vá. Passos firmes, coração frio. (Desde quando você consegue ficar frio numa hora dessas?) Não mostre nada. Mantenha a compostura. Compostura é tudo.
       Não mostrei nada. Andei a passo firme e de coração frio. Mantive a compostura. Lá em cima, na represa, ao lado do desconhecido, tropecei e o Balzac voou na areia. Agora eu daria a facada, se fosse ele, pensei. Nas costas. Ele perdeu sua oportunidade. Peguei meu Balzac e disparei.
       Para os diabos a compostura! Velocidade é tudo!
       Quando cheguei ao cimo da primeira pequena duna de areia, virei-me, arquejante. Meu coração batia, ruidoso. Depois, um pouco mais alto. Frankenstein Júnior vinha correndo atrás de mim. Atrás dele, um raio caiu na água. Então pensei: "Você já inventou histórias dessas tantas vezes, por que um dia não haveriam de acontecer de verdade com você mesmo? Corra, Simmel, corra!"
       Corri. Corri por ramos baixos e dunas de areia, mata e clareiras. Frankenstein Júnior, firme atrás de mim. Caí na lama, no esterco de vaca. Continuei correndo. Frankenstein Júnior também. Começou a chover forte. Só a tempestade teria bastado para ensinar um homem a ter medo - sem estranho com faca. Há coisas na vida que são um exagero de fartura.
       Eu arquejava. O suor corria em jorros pelo meu corpo. Estava imundo, esfolado e no fim das minhas forças. A represa, pensei: "Meu Deus, ainda falta a represa, ajude-me a chegar até lá! Farei tudo, meu bom Deus (sim, tudo, até pagar os impostos sonegados e levar a boa tia Lucy até Fuschl), mas ajude-me a chegar à represa! Sou moço demais para morrer! Serei uma esperança frustrada! Meu Deus, por que é que esse cara tem de esfaquear logo a mim? Faça com que ele escolha um outro. Ou faça com que ele caia e quebre o pé, meu bom Deus! Amém!" Mas ele não caiu nem quebrou o pé. Foi chegando cada vez mais perto, mais perto. . .
       Vamos parar aqui mesmo.
       Consegui, escapei, certamente o leitor já suspeita disso. Pois eu não poderia ter escrito essas linhas, caso ele me tivesse apanhado. Sim, escapei. Mas como! Num supremo esforço. Certamente com um sopro no coração. Com arquejos, gemidos, tosses. Bati o portãozinho do jardim num estrondo e caí na grama molhada, quando ele me alcançou. Sacudiu as grades feito louco. Bateu os dentes. Arquejou. Sacudia alguma coisa na mão. Jogou-a sobre as grades até onde eu estava, na grama. Era a minha carteira.
       Naquele momento foi que me senti realmente bem enjoado.
       Levantei-me e fui até ele. O homem sorria de novo.
       - Obrigado - disse eu. O homem fez que sim. Sem uma palavra. - Mas por que não me chamou? Por que não disse uma palavra?
       Ele meteu a mão na calça suja e tirou um bilhete, que me entregou.
       À luz de um raio consegui ler a inscrição a lápis: "Meu nome é Otomar Kummer e moro em Viena 17, Rosensteingasse 129". Na linha seguinte consegui ler o que estava escrito por baixo: "Sou mudo".
       (1947)
      
       Inferno, onde tua vitória?
       Num hospital militar, em Bordeaux, dias atrás, sucedeu um fato exemplar. Pretendo narrar o que aconteceu em Bordeaux e depois acrescentar o que me chamou a atenção em todo esse episódio; por último, reservar-me-ei o direito de lhes fazer uma pergunta.
       Acho que a seqüência correta é essa mesma.
       Deve-se contar uma história sem rodeios, do começo ao fim, de modo que todo mundo entenda, e porque a história que desejo contar é, creio firmemente, uma história importante, vamos começar com ela de uma vez. Pelo começo.
       No ano passado, em junho, meu amigo Hans esteve em Ischl. Eu estava em Munique. Muitas pessoas estavam de férias. Outras estavam em casa, transpirando. E um tal Pierre Renoir estava no Vietnam. Não estava lá para se divertir. Nem estava de férias. Era soldado e acho que ele gostaria de estar em algum outro lugar. Mas ficou no Vietnam, no Extremo Oriente, e ficou no Vietnam até certo dia ser ferido. Então baixou à enfermaria e, por longos descaminhos, afinal acabou voltando para a França. Tinha uma perna dura e o deixaram em paz. Quando não se presta mais para a guerra e a matança, a gente tem boas chances de sobreviver.
       Pierre não prestava mais para a guerra. Sua perna não estava boa. Quando as dores aumentaram, foi ao hospital e lá fizeram uma radiografia de sua perna doente. Depois de revelada a radiografia, o médico-chefe segurou-a contra a luz e pôs-se a examiná-la, enquanto dois médicos espiavam por cima de seu ombro.
       Primeiro ficaram bem confusos com o que viam, pois era difícil de entender. Mas o médico-chefe sentou-se pesadamente na sua poltrona e perguntou se podiam dar-lhe um conhaque. Sentia-se fraco. Chamaram mais alguns especialistas, para ter certeza. Os especialistas olharam as chapas, sentaram-se e também pediram um conhaque. Um deles pediu um Pastis. Mas foi a única diferença.
       Não havia mais dúvida: na coxa de Pierre Renoir havia algo tão inacreditável, que só se podia pronunciar baixinho, para que ninguém ficasse nervoso. Graças ao objeto que estava na sua coxa, Pierre era um perigo latente para todos os que o rodeavam.
       De resto, era um perigo latente para si mesmo, pois na sua coxa havia - a radiografia revelara - uma pequena granada de fuzil. Não detonada.
       Alguém que Pierre não conhecia a disparara no Vietnam, em junho do ano anterior, sem conhecer Pierre. Mas a granada o atingira e tudo transcorrera normalmente, exceto por uma coisa: a granada não explodira. A causa disso seria algum descuido em alguma fábrica de armamentos, ou algum acidente. Coisas assim acontecem. Não se pode culpar as fábricas de armamentos. Elas fazem o que podem. O médico-chefe refletiu e opinou que tinha de pensar bem no assunto. Era um homem escrupuloso. Mandou chamar um especialista em armas para aconselhá-lo. O especialista berrou que o médico-chefe devia largar mão desse caso, se tivesse um pingo de juízo. Uma granada dessas, uma vez destravada, disse o especialista, explode ao mais leve abalo. O melhor era nem tocar nela e levá-la para uma distância segura, a fim de que detonasse.
       Isso era fácil de dizer e o médico-chefe achou que ainda era possível aguardar a detonação da granada a uma distância segura. Mas, para Pierre Renoir, isso não era possível. E logo se viu que o médico não tinha mesmo um pingo de juízo.
       Dirigiu-se a Pierre Renoir, que agora tomava muito cuidado para que ninguém cutucasse a sua perna, e disse que o operaria. Ossos, artérias e nervos mais importantes estavam intactos - não podia acontecer nada. O médico-chefe era um sujeito que gostava de piadas.
       Mandou retirar todos os doentes dos quartos ao redor da sala de operações (para o caso de acontecer alguma coisa), depois reuniu todos os seus assistentes, enfermeiras e pessoal, e explicou a situação. Achava que não podia pedir a ninguém que o ajudasse, mas talvez houvesse um ou outro, entre os presentes, louco o bastante para ser voluntário.
       Viu-se então que todo o pessoal do hospital era louco. O médico-chefe ficou constrangido com tanta loucura. Não precisava de cento e cinqüenta ajudantes, disse, apenas de meia dúzia. Mas os presentes brigaram tanto pela honra de uma possível morte prematura, que por fim não restou outra alternativa senão tirarem a sorte. Cento e quarenta e quatro caras invejosas contemplaram os seis felizardos marchando para a sala de operações, para Pierre Renoir e sua incômoda hóspede.
       O médico-chefe operou. A granada não explodiu. Pierre está sadio. A granada foi levada a campo, para detonar.
       Essa é a história. E agora vem o que me chamou a atenção. Uma porção de gente quis encarar a morte de frente, não em causa própria, e sim por causa de um estranho, não é verdade? Eu próprio sou bastante honesto para dizer que não teria insistido em entrar naquela sala de operações.
       Provavelmente teria fugido. Não sou muito valente. Embora acredite que a gente não precisa ser muito covarde para fugir de uma granada destravada. Sim, mas aquela gente de Bordeaux não fugiu.
       E por que não? Eu digo por quê: porque foram atacados por uma histeria de bom impulso, por uma embriaguez de vontade de ajudar. Porque tinham tido todos a chance de salvar uma vida humana, numa época de assassinatos e traições.
       E agora, por fim, a minha pergunta: aonde poderíamos chegar, o que poderíamos atingir, se no futuro nos dessem menos tarefas de matar e, com o mesmo entusiasmo, nos propusessem a tarefa de dar nova vida a outro ser humano? O que não aconteceria se nos instigassem a uma psicose de humanitarismo?
       P.S.: A questão seria: quem iria nos instigar?
       (1955)
      
       A avó desaparecida
       150
       Era uma vez uma avó muito velha e muito pobre. Quando, em setembro, as folhas se tornaram castanhas, vermelhas, amarelas e douradas, ela ainda por cima adoeceu gravemente. Tal como acontece com muitos velhos no outono. O marido da pobre avó já não vivia e todo o resto da família a antecedera na bem-aventurança eterna. Havia apenas uma neta: Helena.
       Helena casara com um homem rico, tinha dois automóveis e dois casacos de pele de marta, e um cachorrinho chamado Mimi. Mas Helena não dava à pobre avó nem um pouco do seu dinheiro, que era muito. Oh, não!
       Quem leu essa história até aqui há de pensar que se trata de uma história triste. Seria um engano. Trata-se de uma história alegre! E com uma moral. Aconteceu no ano passado, entre setembro e o Natal, e por isso a relato. Porque gosto de histórias alegres e com uma moral.
       A neta Helena vivia numa mansão maravilhosa, num parque maravilhoso. Na mansão havia gobelinos e tapetes persas, no parque havia anjinhos de pedra e um deus grego ao qual faltava a perna direita do joelho para baixo. A avó morava num quartinho alugado. Quando olhava pela janela, via um muro sujo e feio. Por isso raramente a avó olhava pela janela.
       Em compensação, gostava de um traguinho. Era de Danzig e tomava Danziger Goldwasser. Costurara uma garrafinha na anágua, para ter sempre um gole à mão. Costumava dizer:
       - Uma vez só não faz mal!
       Mas, naquele outono, ah, naquele outono ela não disse mais isso.
       Naquele outono- logo ficou muito fraca e doente. Chegou um médico que a examinou e disse:
       - É o coração. A senhora tem de ir logo para o hospital. Só lá pode ser tratada. Não a quero enganar. Seu estado é mais do que grave!
       A avó arrastou-se até o quarto vizinho e pediu para telefonar para a neta. Podia, sim. E a pobre avó disse a Helena:
       - Meu estado é mais do que grave. Preciso ir imediatamente para o hospital.
       Gente, que aventura aquela! Pois Helena reagiu de modo muito feio à doença da avó.
       - Naturalmente minha avó tem de ir para um hospital - disse ao marido rico. - Vamos colocá-la na terceira classe: é mais barato.
       - Sempre esses gastos com tua parentela! - retrucou o marido.
       Sabendo que Helena queria colocá-la na terceira classe, a avó ficou terrivelmente indignada:
       - Não! - exclamou. - De terceira não vou! Tenho uma neta tão rica que nem sabe o que fazer com o dinheiro. E eu, uma pobre velha, tenho de ficar na terceira classe? Nunca, jamais! Prefiro morrer aqui, no meu quarto pavoroso!
       Mas Helena disse a Luci, sua melhor amiga:
       - Claro que eu a colocaria na primeira classe. Afinal, é a única avó que tenho. Mas pode nos sair uma fortuna!
       - Ora, a primeira classe não deve ser tão cara assim - argumentou a melhor amiga.
       Helena respondeu, desesperada:
       - Se a gente soubesse que ela ia ficar um mês ou dois na primeira classe. . . Ou mesmo que sejam três meses, vá lá!  Nesse caso, não digo nada. Mas imagine se ela ainda viver dois anos! O médico disse que é possível que ela vá morrendo devagar. Pelo amor de Deus, Luci, imagine isso!
       - Entendo o que você quer dizer - respondeu a amiga. Assim, Helena ficou firme e disse à avó que estava decidido: ela iria para a terceira classe e deveria ficar contente com isso, pois havia muitas pessoas simpáticas e interessantes naquela grande sala com as quais poderia conversar. E o marido de Helena a buscaria pessoalmente, de carro, para levá-la ao hospital.
       Todavia, quando este apareceu e bateu na porta do quarto da avó, não obteve resposta. A porta não estava trancada. O marido de Helena entrou. O quarto estava vazio. Vai ver, a avó saiu, pensou o marido de Helena. Então descobriu o bilhete na mesa. Estava escrito com letras trêmulas:
       "Não quero ficar na terceira classe. Ou a primeira, ou nada. Por isso, vou embora. Adeus. Sua avó".
       Agora é que teriam aborrecimentos!
       Primeiro pensaram que a avó estava apenas muito furiosa, e que se acalmaria e voltaria. Mas não voltou. Esperaram a noite toda, em vão. No dia seguinte, foram à polícia e comunicaram o desaparecimento. Os policiais olharam de modo muito engraçado aquela Helena rica e de roupas tão finas. Pelo meio-dia, junto com o noticiário internacional, podia-se ouvir até no rádio que a avó sumira.
       Então Helena começou a chorar. Chorava em parte de vergonha, em parte porque aquilo era uma vergonha terrível diante de seus conhecidos finos
e ricos. Helena começou a rezar. Meu Deus, rezou, perdoe-me minha mesquinhez e faça a avó voltar. Eu a coloco na primeira classe. Mesmo que ela venha a morrer bem devagar! Mas a avó não voltou. Passaram-se dias, semanas. E as semanas se fizeram meses. Outubro. . . novembro. . . As folhas caíram. Vieram chuva, tempestade, nevoeiro.
       Todos os amigos e conhecidos de Helena começaram a sacudir a cabeça. Achavam incorreto o procedimento de Helena. Absurdo! Pobre da avó! A esposa de um diretor-geral disse:
       - Gente como nós tem de ser muito benemérita. Eu não queria estar na pele de Helena.
       De repente, certas pessoas pararam de visitar Helena. De repente, Helena deixou de ser convidada para o bridge. De repente, vários amigos passaram a levantar-se e sair, quando Helena entrava no Bar Roxy.
       Pobre Helena!
       Foi terrivelmente castigada pela sua avareza. Nessas semanas, entre o final do verão e o começo do inverno, perdeu o seu lugar na sociedade, perdeu a glória e muitos conhecidos. A avó desaparecida, que ela quisera colocar na terceira classe, vingava-se terrivelmente. Helena ficou desesperada e esgotada. Fumava vinte cigarros por dia e pelas cinco da tarde já tinha de beber o seu primeiro martíni.
       Então chegou o Advento. O Natal já rondava; os dias alegres, felizes e abençoados rapidamente se aproximavam. De repente, um dia antes da Noite Santa, alguém disse:
       - A avó voltou!
       Helena tomou às pressas um de seus dois carros - o mais rápido - e disparou para o lado norte da cidade. Irrompeu no quarto feio, toda ofegante. E era verdade: lá estava a avó! Mas como mudara! Parecia vinte anos mais nova, com a pele lisa e corada pelo sol e pelo vento, os olhos brilhantes e a boca risonha (era verdade que faltavam uns dentes).
       - Vovó! - gritou Helena. Caiu de joelhos diante dela, apertou a velha, beijou-lhe as mãos e exclamou: - Estou tão feliz porque você está aqui, avozinha! Meu Deus, onde foi que se meteu?
       - Ora - retrucou a avó, enquanto remexia numa daquelas bolsas na anágua e tirava uma das mencionadas garrafinhas de Danziger Goldwasser -, é uma história bem comprida. - E começou a contá-la.
       Naquele dia de setembro em que desaparecera, contou a avó, estava muito, muito desesperada. Correu pela grande cidade, de um lado para outro, sem destino, e por fim saiu para o campo. Ficou tão cansada que seu pobre coração, fraco, não a deixou mais andar. Ela caiu na valeta. Ali ficou deitada, para morrer. Queria morrer de pura raiva, pois pensava: "Aí sim, Helena vai chorar'"
       Mas não morreu. Apenas dormiu um pouquinho. E, quando acordou, estava numa carroça. A carroça corria, puxada por um cavalinho castanho. A avó viu que pessoas bondosas a tinham recolhido e levado consigo. Estava num circo. As pessoas do circo tinham-na tirado da valeta. Eram nove homens e quatro mulheres e um monte de crianças. Iam de uma cidade para a outra. E tinham até alguns animais.
       A avó pediu para ficar com eles e seu pedido foi aceito. A avó ajudava a cozinhar, controlar a caixa à noite, lavar roupa e limpar, dava comida aos bichos e crianças, e cuidava de ambos. Com as crianças era muito mais difícil do que com os bichos. A avó comia com a gente do circo, ao ar livre: sopas fortes e boas verduras. Dormia numa cama macia, respirava o ar puro do campo, e todas as pessoas e todos os bichos sempre eram amáveis com ela. Percorreu muitos lugares entre o final do verão e o começo do inverno. Por fim, o pequeno circo voltou à cidade na qual ela vivia. Bom, e então a avó voltou para casa. . .
       Helena soluçava:
       - Perdão, avozinha, por ter sido tão má! Não fique zangada comigo! Venha! Amanhã é noite de Natal! Venha ficar conosco!  Pode pedir o que quiser!  As coisas mais caras!  Eu lhe compro tudo!  E, se quiser, pode ficar na primeira classe até 1990! Mas não fique mais zangada comigo, por favor!
       - Zangada? - repetiu a avó. - Qual nada, tenho de ficar grata!
       Helena fitou a velha.
       - O médico me examinou de novo - disse a avó.- Ficou perplexo. Minha doença melhorou muito com a vida saudável que levei. Nem sombra de morte! Nem mesmo de hospital.  Meu coração ainda agüenta!   Posso ser tratada em casa.
       - Mas eu vou tratar de você! Só eu! E na minha casa! - exclamou Helena, rindo entre lágrimas.
       - Se faz questão. . . - disse a avó. Pegou a garrafinha, tirou a rolha e tomou um valente gole, diretamente do gargalo.
       - Mas avozinha! - exclamou Helena. - Não, realmente você não deve beber.  Sabe que o médico proibiu terminantemente.
       A avó engoliu, secou os lábios e disse amavelmente:
       - Uma vez só não faz mal!
       (1960)
      
       Milagre da Quinta-Feira Santa
       Quando cheguei a casa, na manhã do domingo de Páscoa, o sol já nascera. Encontrei meu amigo Schutze diante do portão.
       Wilhelm Schutze, um senhor de idade, com rosto jovem, é funcionário de uma empresa de vigilância e, sendo assim, vigia todas as noites a loja de peles e jóias do nosso quarteirão.
       Estava ele mergulhado na terna contemplação de um retrato.
       - 'Dia, 'dia - disse eu.
       - Ah, cá está o senhor, finalmente! - exclamou ele. - Feliz Páscoa!
       - Igualmente, Sr. Schutze - respondi. Apertamo-nos as mãos.
       Então ele disse:
       - Veja isso.
       E deu-me o quadro. Representava em cores muito vivas, a lápis e em papel de embrulho, o rosto de uma mulher. Conheço a mulher de Schutze e portanto pude constatar que o retrato era incrivelmente parecido, bem-feito, bem de acordo com a realidade.
       - Coisa louca - eu disse.
       - Gostou, hein?
       - Grande, Sr. Schutze!
       - Vou dar pra minha velha hoje.
       - Onde conseguiu esse retrato?
       - Comprei. Cinqüenta Pfennige
       - Quanto?
       - Ouviu bem. Cinqüenta Pfennige. Vale isso ou não? No fotógrafo, uma coisa dessas custa até mais e não é nem de longe tão artística como esse aqui, feito pelo Curt.
       - Mas que Curt?
       - Ora, o ranheta do número 6.
       - Foi ele que pintou esse retrato?
       - Espantado, não é?
       - Espantado, sim. O Curt tem só doze anos!
       - Onze - corrigiu o Sr. Schutze. - Onze. Vou lhe contar a história toda. Tem um pouco de tempo?
       - Sempre tenho tempo para o senhor.
       - Pois então. . .
       O pequeno Curt (contou o Sr. Schutze) é o pior moleque da zona.
       Não se pode descrever como é malandro! Ou melhor, era. Pois desde a Quinta-Feira Santa não é mais.
       Mas até á Quinta-Feira Santa, nenhuma fantasia humana conseguiria imaginar o que Curt fazia de diabruras.
       Os pais dele estavam totalmente desesperados. Davam-lhe regularmente uma surra, mas não adiantava nada.
       Nada mesmo!
       Pelo contrário. Além dos outros atos vergonhosos, ainda por cima começou a roubar lápis. Onde ele aparecia, sumiam os lápis, era como uma peste. Curt roubava lápis grandes e pequenos, coloridos, de todos os preços e cores, e de preferência vermelhos, grossos e macios. Especialmente esses!
       A pobre mãe encontrava a toda hora novos lápis nos bolsos de Curt, dava-lhe uns tapas, prendia-o no porão, não lhe dava comida. . . A pobre mãe recorria a todas as medidas pedagógicas.
       Mas o roubo de lápis acabava?
       De jeito nenhum!
       Então, na Quinta-Feira Santa, ele fez uma coisa horrível. Foi a última gota!
       Aconteceu com o Sr. Steiner.
       O Sr. Steiner é dono do novo armazém.
       O negócio existe não faz muito tempo.
       A mãe de Curt ficou muito feliz com o aparecimento do Sr. Steiner, pois era pobre e quase nunca tinha dinheiro. Todos os outros comerciantes da zona sabiam disso. O Sr. Steiner ainda não. E a mãe de Curt esperava que durante algum tempo o Sr.
Steiner a deixasse comprar fiado.
       Assim, a mãe de Curt decidiu procurar esse senhor, na Quinta-Feira Santa. Infelizmente, Curt foi junto.
       A mãe não fez rodeios.
       - Sr. Steiner - disse -, eu gostaria de comprar uma porção de coisas no seu armazém. Mas não tenho dinheiro para pagar logo. Que me diz disso?
       O Sr. Steiner olhou brevemente para a mãe de Curt. É um senhor grandalhão, amável, com olhos muito divertidos.
       Riu e respondeu:
       - Vou ter de anotar as contas num caderninho, senhora.
       A mãe de Curt ficou muito contente mesmo e disse:
       - Sr. Steiner, fico-lhe muito grata.
       - Por nada - tornou ele. - O que deseja então? Peça o que quiser.
       A mãe de Curt pôs-se a comprar até perder o fôlego. Há muito tempo não comprava coisas tão boas. Ah, como estava feliz. . .
       O Sr. Steiner a levou até a porta e disse:
       - Foi uma honra, senhora!
       O pequeno Curt curvou-se diante do Sr. Steiner e isso logo chamou a atenção da mãe, pois Curt nunca cumprimentava ninguém por livre vontade.
       Foram andando, lado a lado, silenciosos. A mãe observava o filho.
       De repente, ela parou e disse:
       - Entregue-o imediatamente!
       Deus do céu. . . como estava certa na sua suspeita! Curt começou a chorar e tirou um lápis do bolso. Um particularmente grosso, vermelho, e macio.
       - É do Sr. Steiner? - gritou a pobre mãe.
       - Sim. . .  sim. . .  sim. . . - gemeu Curt.
       - O bondoso Sr. Steiner? - A pobre mãe também começou a chorar. - Ele me deixa comprar fiado e você rouba dele? Seu menino horroroso! Que fiz para merecer uma coisa dessas? Vamos voltar imediatamente!
       Pegou Curt pela gola e arrastou-o de volta ao armazém.
       - Sr. Steiner...  - soluçou - meu filho é um ladrão. . .   um ladrão vulgar. . .   Sinto tanta vergonha por ele. . .
       - Que é isso, que é isso, o que foi que ele roubou? - perguntou o Sr. Steiner. - Um coelho de chocolate? Uma banana? Um ovo de Páscoa?
       - Roubou um lápis vermelho! - respondeu chorando a pobre mãe. - Sempre rouba lápis. É um criminoso, vai acabar na prisão, é uma coisa terrível. Perdoe-me, por favor, perdoe-nos!
       Enquanto ela suplicava perdão ao Sr. Steiner, deu duas bofetadas em Curt, uma à direita e outra à esquerda, e o menino deixou-se esbofetear como se quisesse mostrar que o merecera.
       Então o Sr. Steiner gritou com voz de trovão:
       - Chega! Deixe o menino em paz!
       A pobre mãe obedeceu, completamente confusa. E gaguejou :
       -- Mas isso faz parte da educação! E o Sr. Steiner berrou:
       - Não; bofetadas não fazem parte da educação!
       - Mas então, o que faz parte?
       - Por exemplo, grossos lápis vermelhos - exclamou o Sr. Steiner.
       E depois de berrar isso, deixou às pressas o armazém e dirigiu-se à papelaria ao lado. Logo voltou. Tinha nas mãos uma enorme caixa de lápis de cor, os mais caros que encontrara. Gente, que caixa de lápis, aquela!
       O Sr. Steiner curvou-se para Curt, com os lápis, e disse:
       - Estou vendo que você simplesmente adora lápis de cor, caso contrário não os roubaria. Não é verdade?
       Curt fez que sim.
       - Pois então, para que você não tenha mais de roubar - continuou
o Sr. Steiner -, eu lhe dou estes aqui de presente. Mas com uma condição!
       - Qua. . .  qua. . .  qual é? - soluçou Curt.
       - Que você faça agora mesmo o meu retrato - disse o Sr. Steiner. - Quero que me desenhe assim como estou aqui, vendendo, atrás de mim os tomates, bergamotas e rabos de lagosta nos potes! E trate de desenhar os potes!
       A pobre mãe sussurrou:
       - Minha Nossa Senhora!
       - O melhor é você se sentar ali no canto, lá não vai estorvar o movimento dos fregueses - disse o Sr. Steiner, metendo na mão do pequeno Curt um pedaço de papel de embrulho e uma tampa de papelão para pôr debaixo do papel.
       Uma hora depois, o retrato estava pronto. Mostrava o alegre Sr. Steiner diante de seus tomates, bergamotas e rabos de lagosta dentro de potes.
       - Garanto que o senhor nunca viu um retrato como aquele - disse o meu amigo vigilante. - O Sr. Steiner o dependurou no armazém e deu por ele cinqüenta Pfennige ao Curt. Devia ter visto a mãe, como estava contente e orgulhosa. Andou por toda parte contando que o Sr. Steiner acha que Curt é um artista. E, imagine só, as pessoas iam até o armazém, olhavam o retrato, entusiasmadas, e hoje fazem fila diante do Curt.
       - Todos querem retratos?
       - Claro, ora! E posso lhe adiantar que o negócio está florescente! Para o retrato da minha velha ele ainda pediu cinqüenta Pfennige, mas desde ontem cobra um marco o retrato. Se continuar assim. . . Peça que ele o desenhe também!   Apresse-se, antes que fique muito caro!  Nunca se sabe, com esses artistas modernos.
       - Pois vou mandar fazer meu retrato no Curt, sem falta - eu disse. - Antes de mais nada, porém, quero comprar meu uísque no Sr. Steiner. A partir de hoje só vou comprar meu uísque no Sr. Steiner.
       - A partir de hoje? - indagou o Sr. Schütze. - Mas hoje é feriado!
       - Claro - eu disse. - Lógico, Páscoa!
       (1964)
      
       O grande frio
       Não persigam demasiadamente a justiça, logo ela congelará por si, pois é fria. Pensem na escuridão e no grande frio deste vale, onde ressoam as desgraças. (Bertolt Brecht. Coro final da Ópera dos três vinténs.)
       Estas linhas foram escritas em memória da quarta-feira passada. Nesse dia, pela primeira vez, fez frio no inverno de 1949/50. Madrugadores friorentos encontraram flores de gelo nas vidraças. Na rua, os narizes, dedos e outras partes expostas dos transeuntes ficavam roxos de frio; motoristas de táxi, condutores de bonde e policiais do trânsito achavam motivo para empregar expressões mais violentas de força; e os assadores de castanhas rejubilavam: o negócio progredia.
       Mas, por toda parte, entre os justos e injustos, os que diziam meu Deus, meu Deus o dia todo e aqueles que tinham perdido toda a fé por uma razão ou outra, entre todos eles e também os executores da justiça e os conselheiros governamentais, havia concordância num ponto: estava incrivelmente frio! O frio foi o tema principal de todas as conversas naquela manhã. Até aqueles que há muitos meses absolutamente não sabiam o que dizer (por exemplo, as pessoas cuja tarefa é redigir jornais) sentavam-se diante de suas máquinas de escrever e, para alegria de seus leitores, escreviam duas colunas com o título: "O inverno chegou". As menininhas nas escolas de primeiro e segundo graus, em Viena, tentavam com diversos resultados o mesmo tema. Mas a história, como a maioria das histórias óbvias, tinha um gancho difícil. A grande maioria das pessoas não percebia o problema, na pressa e excitação do dia, mas ele existia. É muito significativo que poucos o percebessem, pois isso explica - pelo menos conforme a psicologia das massas - inúmeros males do mundo atual.
       Tudo isso para finalmente dizer o que pretendo: na quarta passada não fez frio. Quero dizer, estava frio apenas subjetivamente. Objetivamente, não. Por exemplo, no último inverno teríamos ficado encantados com uma quarta-feira como a de ontem, teríamos jogado fora chapéu, casaco e luvas, dado uma olhada para ver se não havia violetas para comprar em alguma parte. Porque no último inverno houve dias muito mais frios do que a quarta-feira passada, quando o termômetro marcava nove graus negativos.
       Nove graus teriam sido, no inverno de 1948/49, um fato sobre o qual não se desperdiçariam palavras. Nove graus negativos, naquela ocasião, não teriam tido nenhum efeito. Até os redatores locais de grandes diários teriam colocado seus repórteres no olho da rua se eles aparecessem com artigos como "O inverno chegou" ou "O grande frio". Isso não mostra apenas como somos lamurientos. Mostra também que perdemos toda a capacidade de encarar até com mediana objetividade o nosso mundo e seus fenômenos. O "grande frio" na quarta passada, que não foi um grande frio, é apenas um pequeno exemplo disso.
       Posso apresentar outros. Se hoje, em 1949, o carteiro toca a campainha às nove e três quartos, achamos, dependendo do nosso temperamento, que isso é uma falta de vergonha, ou uma amolação, e, conforme nosso temperamento, recebemos esse senhor com impertinência ou lágrimas de esgotamento nervoso. Ainda em 1945, em muitas casas ele tocava certamente mais cedo; por exemplo, às quatro da manhã e, quando iam ver, não era o carteiro que estava diante da porta. Mas já esquecemos isso. Se hoje, em 1949, o expresso de Constantinopla tem um quarto de hora de atraso, queixamo-nos à direção das Ferrovias Austríacas. Em 1945, muitos de nós estivemos cinco dias em viagem entre Linz e Viena. Mas já esquecemos isso. Quando hoje, 1949, a Sra. Maier não recebe sua mistura particular de chá inglês, fica tão aborrecida quanto a Sra. Müller, quando, na loja especializada, só consegue encontrar sapatos franceses com saltos de seis centímetros e não de sete. Em 1945, algumas centenas de milhares de pessoas sucumbiam de frio e exaustão, e criancinhas corriam descalças pelas cidades destruídas da Europa.
       Mas já esquecemos isso.
       Aliás, esquecemos uma porção de coisas. Também as bombas, o terror e o medo. A solidão, a esperança, a saudade e nossa solidariedade. Uma grande modificação aconteceu em todas essas coisas. Em parte, sumiram. Em parte ainda existem - mas modificadas. Um dia estivemos sentados em nossos miseráveis porões, enquanto as fortalezas voadoras jogavam suas cortinas.de bombas e dizíamos: "Bom Deus, faça com que eu escape e todos os dias Lhe agradecerei com ações e palavras, pela bênção de uma nova paz".
       Mas isso também já esquecemos.
       Bem assim como o grande frio dos outros anos passados, cheios de sofrimento e morte. Não me refiro ao frio do inverno, não me refiro à sensação física de frio. Mas àquele grande frio do qual Bertolt Brecht fala na sua Ópera dos três vinténs, aquela sensação de frio que endurece nossos corações e nossas mentes, e nos leva à beira do terrível abismo. O medo e o grande frio - esses nos foram deixados. Na verdade, são os sentimentos mais generalizados destes
tempos. Alguém deveria escrever um livro a respeito e o título deveria ser O grande frio. Sim, com efeito, tinha de aparecer alguém para mostrar aos homens aonde nos levarão o intolerante, o egoísta, o despótico e autoglorificador gelo de seus corações, se não nos lembrarmos depressa do que esquecemos. Alguém devia fazer isso! Eu não posso, Deus me ajude, sou fraco demais. Mas sei que estamos todos mortalmente ameaçados por esse grande frio, pelo desmoronamento da nossa solidariedade. Esquecemos que vivemos em u m mundo, que todos nascemos iguais e que temos de nos ajudar uns aos outros como irmãos, se não quisermos que um dia o Demônio nos carregue.
       Esquecemos muito facilmente, é isso.
       Já esquecemos as crianças em pranto, as cidades destruídas, as mulheres assassinadas e os campos arrasados. Esquecemos o medo, a necessidade, a dor e a ânsia de paz. Esta é a nossa desgraça: só desejamos o bem enquanto estamos nas garras do mal. Não somos capazes de aprender com nossos erros. Perdemos qualquer sentimento de proporção. Quando estamos melhor, já esquecemos como estivemos mal um dia e como poderíamos estar mal de novo. E conseguimos escrever artigos com o título "O grande frio", quando o termômetro marca nove graus negativos. É isso.
       (1949)
      
A parábola do trem
       A Srta. Helena Riesental, de Viena, contou-nos a seguinte história e não se importa que ela seja transcrita aqui. Julga que, de certa forma, ela é como uma parábola. Nós também achamos.
       A Srta. Helena tem sessenta e cinco anos, e é muito forte, saudável e de espírito ágil. Só. os olhos lhe dão problemas. Nove graus de miopia no olho direito, dez no esquerdo. Sua deficiência a torna um pouco insegura no trânsito e causa-lhe dificuldades quando volta para casa tarde da noite. As pessoas moram na cidade. A Srta. Helena mora em Hütteldorf. Usa o trem urbano. E os degraus que conduzem da estação de trens para a rua são sempre um risco para ela, mesmo quando se segura no corrimão. Nunca consegue ver direito nas difusas luzes noturnas. Mas, de resto, ela vai bem e diz que está contente. Tem uma pensão. E acredita em Deus. Muito pão nasce nas rugas dos pobres, diz a Srta. Helena.
       A história que ela nos contou aconteceu na quinta-feira, às vinte e três horas, num trem urbano que a levava para casa. O vagão em que se sentava já estava bastante vazio quando o havia tomado na estação principal. Algumas pessoas entraram também. A maioria seguiria só até Meidling. Em Hietzing, os demais desembarcaram. Só a Srta. Helena ficou, quando o condutor gritou: "Afastem-se, partida!" A Srta. Helena e um homem sentado à sua frente. Não havia mais ninguém no vagão. Só os dois. O homem parecia muito decaído. Mal vestido. Um ríctus amargo em torno da boca. Estava sentado à sua frente e olhava fixo para ela. Já estava sentado diante dela desde a estação principal da cidade. E desde então olhava fixo para ela. Estivera no vagão antes da Srta. Helena. E até Hietzing ela não percebera que o homem estava sentado à sua frente, olhando-a fixo, porque não estivera sozinha com ele. Mas agora estava sozinha com ele. E agora notava aquilo. Era um homem de estatura mediana, de idade mediana. Tinham alcançado a Braunschweigasse. E lá a Srta. Helena começou a refletir um pouco, involuntariamente.
       Primeiro pensou num artigo de jornal que lera, no qual se dizia que o assassino ainda desconhecido da prostituta Emília M. era de estatura e idade medianas. Depois pensou no assassino ainda desconhecido do joalheiro Hans W. E depois pensou nos muitos outros assassinos ainda desconhecidos, culpados pelos muitos assassinatos nunca esclarecidos, cometidos nos últimos anos na cidade de milhões de habitantes em que ela vivia. (O trem entrementes dirigia-se para Unter-St. Veit.)
       A Srta. Helena continuou pensando. Pensou como eram sinistros esses trens urbanos. Nunca refletira nisso, mas de repente o notou. Um vagão de trem urbano com muitas pessoas. Ou com uma pessoa apenas. A gente sentada diante dela, assim como a Srta. Helena agora à frente desse homem de meia-idade e sem saber nada a seu respeito. Nem se vê por trás do seu rosto. Não se sabe quem é, o que deseja, de onde vem, para onde vai. Não se conhecem seus desejos, suas esperanças, seus planos, ou futuro. E nem o seu passado.
       Somos estranhos uns para os outros, pensou a Srta. Helena; nada sabemos uns dos outros, somos como barcos que se encontram de noite. Quem era, por exemplo, aquele homem à sua frente? Ele podia ser:
       a) um homem que cometera um crime, ou
       b) um homem na iminência de cometer um crime, ou
       c) um homem na iminência de ser vítima de um assassinato dentro de uma hora, ou
       d) um homem que sabia de um assassinato e guardava esse conhecimento como um tesouro raro, ou
       e) um homem que pensava que ela, Helena Riesental, era talvez uma mulher que cometera um crime, ou estava na iminência de cometê-lo, ou na iminência de ser vítima de um assassinato, ou uma mulher que sabia de um assassinato e guardava esse conhecimento como um tesouro raro, ou uma mulher que refletia se quem sabe ela refletia. . .
       Ober-St. Veit.
       A Srta. Riesental sentia algo muito sinistro. O homem à sua frente olhava fixo e imóvel. Lá fora, uma chuva fria batia nas vidraças. O vento uivava.
       Que grande desgraça isso com as pessoas, pensou a Srta. Helena. Vivem com o mal e não o conhecem. O mal vive com elas e não conhece o bem. Todos somos solitários e isolados na grande noite, debaixo de um céu impiedoso, sem estrelas nem esperança. E o trem urbano, no qual ela estava sentada, pareceu-lhe de repente tão grande e amplo como todo aquele mundo escuro, maldito e carregado de maldições em que vivia; e igualmente vazio e ermo.
       Ó trem entrou resfolegando em Hütteldorf. A Srta. Riesental ergueu-se. E, mortalmente assustada, percebeu que o homem à sua frente estendia a mão para ela (Deus do céu, pensou).
       Mas nisso sentiu uma grande sensação de alívio.
       O homem falava com ela. E perguntava algo.
       Será que ela podia guiá-lo escadas abaixo, até a rua?, perguntou. Normalmente sua mulher o acompanhava. Mas hoje ela estava doente. E ele era cego.
       A Srta. Helena, com seus nove (ou dez) graus de miopia, disse que sim. Levou o cego degraus abaixo. Disse-nos que, engraçado, nunca tivera a impressão de que eles fossem tão bem iluminados. Pareciam brilhar, aqueles degraus! E levou o cego para casa.
       Ela acha que isso foi uma espécie de parábola.
       Eu também acho.
       (1949)
      
       Para pendurar sobre a cama
       Karl Fischer era um dos desenhistas mais famosos de Frankfurt sobre o Meno. Seus quadros apareciam em revistas, suas ilustrações enriqueciam novas edições de Balzac e Cervantes. Fischer era um sujeito calmo e satisfeito. Amava sua profissão, tinha esposa e um filhinho, e quarenta e seis anos de idade.
       A bomba de quinhentos quilos soltou-se na manhã de 21 de janeiro de 1945, de um avião de combate norte-americano que sobrevoava a cidade de Fulda, em direção ao norte. Conforme as leis da física, ela se aproximou do solo em uma grande curva e com velocidade crescente, até a sala de espera da estação ferroviária principal de Fulda, onde explodiu. Não havia nela qualquer motivo pessoal odioso. Não era culpa da bomba o fato de ter caído exatamente sobre Fulda. Caiu como tinha de cair, e sua explosão podia ser magnificamente usada como demonstração de leis energéticas, termodinâmicas e eletroquímicas. Era puro acaso que o desenhista Karl Fischer estivesse sentado na sala de espera da estação. Era puro acaso que estilhaços da bomba lhe tivessem arrancado as duas mãos.
       Quando o retiraram das ruínas, ele ainda estava desmaiado. Quando acordou no hospital e viu o que acontecera, virou-se para a parede e pensou que teria sido um prazer perder as duas pernas. Pois não precisava delas para desenhar ou pintar. As mãos, sim.
       Seus amigos sacudiram a cabeça com tristeza. Fischer estava liquidado, disseram. Liquidado aos quarenta e seis anos. Pena. É isso. Tinha sido um cara talentoso.
       Isso foi há três anos.
       Hoje, Karl Fischer vive num pequeno apartamento na parte leste de Frankfurt. A mulher e o filho Klaus moram com ele. Fischer desenha e pinta. À sua maneira, que poucas pessoas tentaram antes. Segura os lápis, pincéis e penas nos dentes. Vi seus quadros. "Não é a vida que significa algo, mas a coragem com que vivemos", escreve Hugh Walpole. Os críticos de Fischer afirmam que seu trabalho revela uma profundidade de sentimentos que não tinha antigamente. Talvez a causa seja sua maneira singular de trabalhar. Fischer não sabe. Ele é um sujeito modesto e diz que sem sua mulher teria sucumbido. Ela o alimenta, veste, despe, lava e faz a barba. Aponta seu lápis. Fischer ama muito a sua mulher. Ela também o ama. Nas paredes de seu pequeno apartamento há ilustrações de Dom Quixote e das Viagens de Gulliver.
       Sobre a mesa de trabalho de Fischer há um suporte de madeira de onde saem fileiras de pincéis e penas com as pontas dos cabos mordidas, exatamente na altura em que ele os consegue tirar com os dentes. Suas tintas estão num armário cuja porta ele pode abrir com o queixo.
       Quando estava no hospital de Fulda, no começo, sentia-se muito desgraçado. O homem na cama ao lado, que perdera uma perna, segurava o cigarro que Fischer fumava. Não se conheciam, mas naquele tempo todas as pessoas miseráveis eram irmãs. O homem de uma perna só contou a Fischer que alguém dissera que Rafael pintaria mesmo se não tivesse mãos. De noite, quando não podia dormir, Fischer pensava no que isso poderia significar do ponto de vista prático. E teve a idéia de desenhar com a boca. Porque, afinal, tinha de viver de alguma coisa. Porque tinha uma mulher e um menininho chamado Klaus. E porque acreditava que, com quarenta e seis anos, ainda não estava no fim só porque não tinha mais as mãos.
       Algumas semanas mais tarde, foi para casa e pediu à sua mulher que colocasse lápis e pincéis sobre seus joelhos. E passou os quatro meses seguintes curvando-se. Curvou-se tanto que por fim conseguiu numa mordida pegar na boca um lápis, um pincel ou uma pena. Seus dentes desenvolveram inteligência. Sua boca descobriu que não existia apenas para comer.
       A 19 de maio de 1945, a mulher dele pregou um grande pedaço de papel numa tábua oblíqua e a experiência começou. Fischer meteu seus lápis na boca, recostou-se com o peito contra a beira da mesa, e desenhou. Primeiro não se saiu muito bem. Dois meses depois, estava melhor. Três meses depois, Fischer desenhava a cabeça de um leão.
       Nos três anos que se passaram, centenas de folhas deixaram a casa de Fischer para as redações de revistas e semanários. Milhares de pessoas viram seus desenhos, riram com eles, e pensaram que as coisas que Karl Fischer apresentava de modo tão engraçado, na verdade eram para chorar. Isso mostra que seus desenhos são bons, que têm sentido. Fischer não pode se permitir fazer desenhos sem sentido. A coisa é demasiado cansativa para isso. Uma editora de Stuttgart editará nos próximos meses uma série de livros infantis. O autor se chama Karl Fischer. Como Esopo e Walt Disney, ele conta aos intelectuais e camponeses, operários e poetas de amanhã, histórias em forma de fábulas. Fábulas com animais.
       Quando hoje escreve uma carta com os dentes, sua letra é a mesma de antes. Escreve com a boca exatamente como fazia com a mão.
       Há algumas semanas expôs seus quadros em Bad Nauheim. Estava com um pouco de medo da crítica. A galeria estava repleta de pessoas, como sardinhas em lata. Todas acharam os trabalhos de Fischer singulares, por serem excelentes Felicitaram-no por seu talento e coragem. E disseram que ele dera um exemplo a todos os mutilados do mundo. Fischer sorriu e foi para casa, para junto de sua mulher e de seu filho
       Moro alguns quilômetros para sudeste. Meu braço não seria bastante longo para apertar a mão de Karl Fischer, mesmo se ele ainda tivesse uma. Mas talvez ele leia este artigo e se alegre. Seria muito bom.
       (1948)
      
Uma braçada de gladíolos
       No cruzamento da Währingerstrasse com a Spitalgasse sempre acontece muita coisa. Um policial em uma pequena cabina branca de madeira controla o trânsito com a ajuda de uma sinaleira elétrica, e alguns outros policiais estão postados nas esquinas para impedir que alguém atravesse com sinal vermelho. É um verdadeiro cruzamento de cidade grande, com a devida agitação. Imensos caminhões com reboque passam trovejando, bondes tocam as sinetas nervosas, motocicletas matraqueiam, como se fossem pagas para matraquear, jipes coloridos apostam corrida até o Instituto de Química, lá embaixo. Às vezes não se ouve a própria voz. Na ilhota que fica em frente à Filial Meinl, há sempre operários cansados e suados esperando o ônibus 38. Ou o 41. Ao lado deles, há lindas damas com excitantes vestidos de verão; eventualmente, dois namorados de mãos dadas. Mas, apesar disso, não é um cruzamento nada agradável.
       Desde que o conheço, ele me deixa um pouco nervoso. Sou nervoso, mesmo quando atravesso uma rua com sinal verde. Nunca se pode saber se um desses caminhões de cinco toneladas vai derrapar, ou o que vai fazer o motoqueiro que sobe a Nussdorfstrasse. Ontem aconteceu de novo.
       Eu esperava o bonde diante do Café Hauer. Meu estômago contraiu-se todo quando vi passar aquela torrente maluca de carroças, ônibus, caminhões e motocicletas.
       Uma senhora idosa, que seguia indiferente a tudo até a farmácia da esquina, quase acabou debaixo das rodas de um caminhão de gelo e contemplou com suave curiosidade uma jamanta quando esta parou com os freios rangendo. O motorista soltou uma praga. Os autos atrás dele buzinaram. Uma ambulância disparou com sinal fechado pelo cruzamento, com gritos de sirene. Homens correram atrás de um E2, que estava saindo. E o sol brilhava. Era um dia lindo de enlouquecer. A calçada diante do Café Hauer é muito estreita. Eu me enfiei devagar entre os transeuntes, e rangi os dentes quando um bebê ainda por cima começou a gritar. Foi então que eu o vi.
       Ele estava encostado no muro e acendia o seu cachimbo. O homem de quem falo tinha uns trinta e cinco anos, era esbelto, alto e queimado de sol. Usava camisa branca e calças de flanela cinza. Seus olhos claros eram encimados por sobrancelhas densas, e parecia haver um sorriso neles. Posso estar enganado. Mas parecia. De qualquer modo, ele estava ali parado, acendendo seu cachimbo.
       Por favor, entendam a situação estranha. No meio do horrendo barulho da rua, da correria dos passantes, enquanto centenas de carros fedorentos passavam em disparada por ele, o estranho acendia seu cachimbo. Com a mão protegia a chama do fósforo, que queimava, calmo e fumegante. Na esquina, dois vendedores de jornal berravam um com o outro, roucos. Um vendedor enchia um saco de cerejas, o saco de papel era feito de um velho exemplar do jornal Neues Österreich. E o estranho fumava cachimbo. Soprava nuvenzinhas de fumaça, metia as mãos nos bolsos das calças, e esperava o sinal verde para conseguir chegar ao outro lado da Spitalgasse. Junto dele, um velho com uma braçadeira amarela. Sua bengala tateava o asfalto. Era um cego.
       O estranho pegou-o pela mão, disse-lhe alguma coisa que não entendi, e guiou o cego cuidadosamente pela rua.
       Segui os dois. Na florista, diante da cabina telefônica, o estranho comprou gladíolos vermelhos. Uma braçada inteira. Tirou-o cachimbo da boca, cheirou as flores e sorriu, feliz. Acho que deu cinqüenta vinténs a mais para a mulher, pois quando cheguei ela gritava:
       - Obrigado, senhor barão!
       O que então aconteceu foi estranho: segui o homem quando começou a andar ao longo do parque, na direção da Alserstrasse. Não sei por que o fiz. Eu tinha compromissos. Também estava quente. Que diabo, não sei por que corri atrás do homem. Eu não o conhecia, ele nunca falara comigo. Mas me parecia tão incrivelmente simpático, entendem? Assim, fomos andando ao longo da Spitalgasse. Ele com os gladíolos no braço, eu dez passos atrás. Não me notara. Não sabia que eu o seguia.
       Um menininho sujo veio correndo ao nosso encontro. Suas pernas tortas ficavam atrasadas em relação ao corpo, simplesmente não conseguiam ir tão depressa. O pequeno jogou as mãos para cima e gritou "Viva", e estava esplendidamente feliz. E naturalmente caiu. Menininhos sempre caem quando estão magnificamente bem dispostos. E tropeçou bem na frente do estranho. Caiu de cara no chão, esfolou o cotovelo esquerdo e machucou o joelho; bastante, pois estava sangrando um bocado. Primeiro, ficou assustado demais para chorar. Mas não por muito tempo. Logo reencontrou sua voz e começou a berrar como se o estivessem espetando. Olhava o joelho com olhos arregalados e gritava, chorava, engasgava-se todo de nervosismo, quase sufocava com as próprias lágrimas.
       O estranho me olhou e disse:
       - Por favor, segure as flores - e, metendo a mão no bolso, tirou um pedaço de chocolate, que deu ao menino machucado.
       - Tome - disse -, pegue aqui, meu filho. E pare de berrar. Não foi tão ruim assim.
       O menino engoliu duas vezes, suspirou, mordeu um pedaço de chocolate e sorriu heroicamente, enquanto o estranho amarrava seu lenço em torno da ferida.
       Então ergueu o menino e virou-se para mim. O sangue pingava do joelho do menino na calça do homem. Este atravessou a rua em direção ao Hospital Geral. Eu o segui com as flores. O estranho parou na cabine do porteiro.
       - Espere - disse. - Volto logo. - Eu esperei. Uma hora depois, decidi procurar pelos dois. Segui o rastro de gotas de sangue até o ambulatório. O menino estava sentado numa cadeira, comendo chocolate. O joelho estava com um belo curativo. Perguntei pelo estranho. Ele não sabia para onde o homem fora. Perguntei a uma enfermeira. Ela perguntou a outra. Esta perguntou ao médico de plantão. Ninguém conseguiu me dizer onde estava o estranho. Sumira.
       Por fim, fui embora, sobraçando os gladíolos vermelhos. Estão diante de mim, na mesa, enquanto escrevo estas linhas. Não vi mais o estranho de cachimbo e olhos sorridentes. Mas ainda penso nele.
       Queria saber o que o bom Deus andava fazendo ontem, na Spitalgasse,
       (1948)
      
       Na correia
       Foi inaugurada ontem a exposição internacional de cães em Viena
       (Notícia de jornal)
       Que ninguém viva na ilusão de que nós, cães, temos uma vida simples. Durante a guerra ainda dava. Tínhamos outras preocupações. Mas, nos dois últimos anos, a pressão social para nossas donas se exibirem de novo em exposições internacionais de mulheres se tornou de tal maneira aguda que nenhum de nós pôde mais se eximir. Eu mesmo - um vulgar bassê de pêlo longo, que só desejava levar uma vida retirada e contemplativa - tive uma longa conversa com meu amigo Teddy, na qual nós, na Schwarzenbergplatz, diante de um lindo poste, concordamos, afinal, em visitarmos a exposição internacional deste ano, porque entendemos que nossas donas tinham de ver gente outra vez.
       Não acreditem, por favor, que nos dá prazer puxar uma pessoa adulta pela pista e deixar que a avaliem. Por mais que se fale com ela calma e amavelmente, a presença de outras mulheres as deixa nervosas, ficam inseguras, saltitando de um lado para outro, sorriem na hora errada, e temos sorte se não tropeçam ou nos envergonham com alguma observação inábil. Oh, tínhamos as patas ocupadas com essa exposição internacional de mulheres! Meses antes, já havíamos economizado os nossos ossos para conseguirmos dinheiro para um vestido moderno, longo, e sandálias francesas. Quem nos pergunta onde arranjamos o dinheiro para uma bolsa de couro nova, que custa lá os seus quinhentos xelins? E quem paga a gasolina do carro em que levamos nossas donas a passear pela cidade, apenas para que cheguem à exposição de vestido bem passado, bem penteadas, imunes ao calor? Meu Deus! O que não se faz para dar uma pequena alegria a essas donas queridas. E a que males estamos expostos! Por exemplo, na quarta-feira passada, na rotunda, houve uma espécie de ensaio geral. O Sr. José, presidente do clube dos poodles, nos convidara a levarmos nossas donas para se tornarem conhecidas umas das outras, e terem ocasião de conhecer o terreno. Dois dias antes a loucura já se havia desencadeado. Você, querido amigo pincher, que não participou, não pode imaginar em que paroxismo de nervos estavam nossas queridas donas. Tinham de ir à costureira. E ao cabeleireiro. E à sapataria. Preparamos a sua maquilagem. Levamo-las para a cama pontualmente às cinco. Cuidamos que não tomassem bebida alcoólica e só comessem alimentos neutros e não excitantes. Contamos histórias antes de adormecerem e as acalmamos: "Não é verdade que a Sra. Hegedüs tem um chapéu novo". Ou: "Nenhum cachorro do mundo vai notar que a sua saia de pregas novas é uma saia velha tingida".
       Mas acham que isso ajuda? Nem sombra! Meu amigo Teddy teve um caso com uma cadelinha weimaraner, conhecida na sociedade. Esta lhe contou que, de puro nervosismo, a sua dona lhe deu rolinhos de espuma duros como pedra, enquanto ela mesma comia os gostosos biscoitos para cachorro. Imagina que comigo as coisas foram melhores? Minha dona, esposa de um conselheiro comercial, deitou-se na minha caminha, depois de me ter ajeitado amavelmente em sua cama de casal.
       Foi um verdadeiro repouso quando, na quarta à tarde, enfim partimos, e posso assegurar que só a amizade extraordinária que nos liga há anos a nossas donas nos impede de sairmos da nossa pele de cachorros.
       No Prater tudo estava mais ou menos como tínhamos esperado. Ao lado de José, o presidente, havia representantes da imprensa de Viena, sentados ou parados. Sacudiam as caudas e lambiam os beiços. Saudei o terra-nova da Weltpresse, e o fox-terrier do Kleines Blatt, que chamou minha atenção para um chow-chow encantador, novo repórter de notícias do jornal Welt am Abend.
       - Ai - disse o terra-nova, tirando o chapéu educadamente -, que tentação de passar para os concorrentes. . .
       - Ouça - disse eu a meia voz para o fox-terrier -, na sua notícia o senhor não podia mencionar que minha dona comprou seu vestido na Butique Ella Bey? Veja você mesmo: acaso já viu coisa mais linda? Olhe só o caimento dessas pregas, a graça das linhas, a altivez nobre das formas. O que vai fazer esta noite? Ainda tenho uns ossos de primeira na geladeira. Venha me visitar. . .
       Ao meu lado um dogue alemão pigarreou e murmurou:
       - Os métodos que certos cães andam usando. . . Pensa que me incomodei? Que nada! A gente se acostuma a tudo nessas exposições de mulheres. Há cachorros que simplesmente não têm senso de humor.
       Dei de ombros (os dianteiros) orgulhosamente e puxei minha dona de quadris balouçantes para a pista; bem devagar, tentando chamar, através de minha aparência, a atenção dos presentes para ela. E consegui. Fiquei parado, afrouxei a correia para que ela pudesse virar-se livremente, e sorri ao boxer do Wiener Kurier sentado na grama, entre dois lulus anões com fitas vermelhas, fumando cachimbo. Afinal, era apenas um ensaio geral. Até domingo, pensei, certamente ainda terei oportunidade de tomar uma garrafa de vinho com alguns cães influentes. Para que a gente assume tantos tormentos, se não se pode ao menos ganhar um prêmio para nossa dona?
       Depois de minha ronda voltamos aos bancos, e sentei minha querida de modo a que ela pudesse ver os outros cães que levavam suas donas para dar uma volta. A maioria era honesta. Alguns, naturalmente, portaram-se de maneira horrível e tentaram chamar a atenção dos presentes com recursos baratos como ganidos, pôr-se nas patinhas de trás, e dar saltinhos, mas acho que não contavam com a cultura e sensibilidade dos nossos representantes da imprensa canina, que imediatamente entenderam tais manobras.
       - Viu a permanente da pequena Sônia? - perguntei à minha vizinha, uma pastora alemã. - Essa criatura só causa efeito por suas exterioridades. Nós temos caráter. . .
       - Claro - disse ela algum tempo depois. - Se eu tivesse o cabeleireiro dela. . . - Naturalmente, aí a gente começa a pensar.
       De resto, foi bastante ridículo que algumas pessoas, distorcendo uma situação absolutamente clara, tivessem tentado fazer parecer que foram elas as iniciadoras e organizadoras de todo o espetáculo. Assim, as donas que pegavam seus acompanhantes no colo dizendo coisas como "O meu luluzinho queridinho não é um amor?" despertaram mais hilaridade do que má vontade. (Os são-bernardos têm dignidade bastante para ignorar o fato de ter de carregar sua acompanhante no lombo.)
       Como disse o presidente José, cada bassê inteligente devia entender o que pretendiam essas e outras manobras. Afinal, não somos totalmente idiotas. Depois que os adultos conseguiram a impressão de que lugares de diversão como, por exemplo, o Prater, não existem para eles mas para as suas queridas crianças, na pista pareciam empenhados em dar aos outros a ilusão de que não se tratava de uma exposição de mulheres e sim - vaidade das vaidades - uma exposição de cachorros!
       Uma suposição dessas se esvazia por si, na sua grotesca alegria. Nós, os cães expostos, apenas formalmente nos opomos a ela. Sabemos muito bem que não iludirá ninguém que tenha assistido ao espetáculo pelo menos cinco minutos. Não nos zangamos com nossas mulherzinhas. Perdoamos sua pequena vaidade, com a qual se colocam cada vez mais no centro das atenções, fazendo de conta que se colocam em segundo plano. Todos temos nossas fraquezas. Afinal, esses seres humanos não passam de pobres cães. . .
       (1951)
      
       A mais terrível ameaça do mundo
       Nosso coração pára de pulsar quando ouvimos falar na ameaça que acabam de fazer os barbeiros de Munique. É uma ameaça que, se começar a fazer escola, pode significar o fim do mundo ocidental. Homens de sentimentos e bom senso ainda lutam com os furiosos empregados de institutos de beleza, para desviá-los de sua decisão pavorosa, e todos os homens de boa vontade rezam para que Deus os ajude a vencer nessa luta titânica.
       Tudo começou quando os barbeiros acharam que estavam trabalhando demais e ganhando de menos. Essa impressão é bastante difundida entre a maioria dos trabalhadores da maioria dos países, e há muito tempo, na maioria dos países, é ignorada na maioria das vezes pela maioria dos trabalhadores. Houve dias em que ignorar era mais simples e dias em que era mais difícil. Ultimamente tem sido difícil. Isso acontece porque a maioria dos empregados, na maioria dos países, um dia ficaram saturados e descobriram que tinham de se unir se quisessem conseguir alguma coisa.
       Um barbeiro sozinho não passaria de um pobre-diabo se reclamasse contra o chefe. O chefe simplesmente punha na rua um barbeiro isolado. Mas se cinco mil reclamassem contra cinco mil chefes, era coisa bem diferente. Cinco mil barbeiros não é fácil de se botar na rua! Pois então, numa grande cidade, repentinamente não haveria mais ninguém para cortar os cabelos das pessoas. Os chefes sozinhos não dariam conta do recado nem mesmo se dominassem a arte de cortar cabelo. Além disso, essa não é a situação natural dos chefes. A situação natural dos chefes é ter empregados. Seguindo os pensamentos acima, descobriu-se que não era preciso que cinco mil barbeiros, largassem suas tesouras. Bastava a ameaça de que iriam fazer isso. Caso alguém cometesse uma injustiça contra um deles. Se cometessem injustiças contra todos eles. Se um dia os chefes não fossem muito acessíveis. De reflexões como essa surgiam o natural sentimento de solidariedade da classe trabalhadora e, como conseqüência, os chamados sindicatos.
       Os chefes contemplavam os sindicatos como seus inimigos naturais, mas pouco podiam fazer contra eles. Se fizessem alguma coisa, só teriam aborrecimentos. Nem sempre se tratava de cinco mil barbeiros. Às vezes, eram quinhentos mil metalúrgicos. Ou um milhão de empregados de empresas de transporte. E um milhão de empregados de empresas de transporte não é brincadeira.
       Mais ou menos no meio da semana passada, houve a primeira briga entre a associação dos empregadores e os sindicatos de serviços públicos, transporte e trânsito. Os sindicatos eram de opinião de que seus membros empregados de barbearias ganhavam muito pouco e tinham de trabalhar horas demais. Os empregadores estavam dispostos a negociar sobre os horários de trabalho. Mas, a princípio, não estavam dispostos a negociar sobre um aumento de salários. Porém, no fim da semana, pela primeira vez se pronunciou a feia palavra "justiça do trabalho". Essa expressão levou a associação dos empregadores a sugerir um aumento geral de dez por cento.
       Os chefes dos sindicatos abraçaram-se e rejubilaram-se. Mas esfriaram um pouco com o pequeno pedido que a associação dos empregadores anexou a essa proposta: "O aumento de dez por cento naturalmente só poderá ser concedido se o sindicato cumprir nosso pedido de solicitar oficialmente na imprensa falada e escrita, como compensação pelo aumento de salários, um aumento geral de preços de todos os serviços de cabeleireiros".
       Era o que, em círculos entendidos, se chama de ovo podre.
       Os empregadores tinham imaginado a coisa assim: pagavam mais aos empregados e os fregueses lhes pagavam mais. Dessa maneira, empregadores e empregados ajudavam-se mutuamente. Só não ajudavam aos clientes. Mas os clientes também podiam fazer greve. Simplesmente iriam menos ao barbeiro. Barba é coisa apreciada. E se as pessoas fossem menos ao barbeiro, os barbeiros teriam pouco serviço, e se tivessem menos serviço os negócios iriam mal, e se os negócios fossem mal, uma parte dos barbeiros seria despedida. E não aproveitaria nada do aumento de dez por cento generosamente concedido. Teria de apelar para o salário-desemprego. Mas essa não era uma situação natural das pessoas: viver só do salário-desemprego. Não, não era!
       Por isso os sindicatos responderam "não, obrigado!" à humanitária sugestão da associação dos empregadores.
       E a associação dos empregadores disse: "Pois então, não!" E todos ficaram muito zangados uns com os outros. Foi o momento em que o Sr. Cristóvão Roder, do Sindicato dos Barbeiros, teve aquela idéia magnífica. Comentou sua magnífica idéia com os colegas. Depois tornou-a pública. E os empregadores ficaram muito assustados com a ameaça de Roder. Era uma ameaça terrível, já dissemos, a mais terrível de todas.
       - Se nosso pedido de aumento, sem aumento de preços, não for aceito, os barbeiros farão outra espécie de greve. Surgirão em Munique imediatamente inúmeros barbeiros trabalhando nas ruas. Quem quiser poderá cortar o cabelo. A atração especial será que o corte sairá de graça' Não aceitaremos dinheiro! Cortaremos o cabelo de graça! - Foi isso que Roder disse.
       Os empregadores estão com calafrios de horror. As conseqüências dessa "operação-corte-de-cabelo" são inimagináveis. Talvez, algum dia, os sapateiros trabalhem para os padeiros, os professores para os serralheiros e os pintores para os encanadores. Talvez então os pedreiros construam as casas dos oculistas, e os mecânicos consertem os carros dos físicos. E os oculistas e os físicos por sua vez cuidarão dos pedreiros e dos mecânicos, assim como todos os trabalhadores cuidarão uns dos outros. Só uma espécie de gente então seria supérflua, porque seus serviços seriam perfeitamente dispensáveis: os empregadores. É isso, na verdade, é muito mais terrível do que se pode descrever. . .
       (1968)
      
Mãezinha querida!
       Primeiro temos de sublinhar que a maioria de nós tem há anos a consciência suja. Por causa das muitas mentiras, por causa de duas guerras mundiais, e por causa de incontáveis maldades. Por causa da preguiça de nossos corações. E porque não conseguimos viver em paz e tornar felizes aqueles a quem amamos. Não se precisa sublinhar, além disso, que de noite tentamos dormir bem depressa, antes que venha a escuridão que se assenta sobre nosso peito e comece a falar. E como nos sentimos desgraçados, quando temos a infelicidade de acordar nas primeiras horas da madrugada, é coisa que nem se precisa mencionar. É a desolação de certos balanços que se costumam fazer nos aniversários e passagens de ano, é algo em que é melhor nem pensar.
       Mas aniversários e fins de ano são coisas inevitáveis. Aceitamo-los com um sorriso tímido e damos de ombros. Ora bolas!
       Mas o dia de hoje, queridos amigos, é algo que desejo denominar de uma tribulação inútil. Peço que não me entendam mal e sigam minhas explicações todas.
       Desde quando eu era bem pequeno, o segundo domingo de maio me causava um mal-estar tão imenso, que nem posso expressá-lo em palavras. Uma semana de castigo no quarto me seria mais agradável do que esse domingo, e uma banheira cheia de mingau preferível a um desses Dias das Mães.
       Não tenho nada contra mães. Mas é por causa da minha consciência suja. Certamente não fui sempre um mau filho. Certamente tampouco fui sempre bom filho. Sei disso muito bem. Todo mundo também sabe. Durante um ano tive ocasião, em trezentos e sessenta e cinco dias e trezentas e sessenta e quatro noites, de me portar horrivelmente mal e aborrecer minha mãezinha, com delitos como: chegar-tarde-a-casa, não-chegar-a-casa, chegar-a-casa-num-estado-lamentável, ser-malcriado, mentir, esbanjar-dinheiro, fumar-na-cama, fazer-passeios-com-mocinhas-estranhas, rasgar-meias, assobiar-no-banheiro, e assim por diante.
       Também tive ocasião, em trezentos e sessenta e cinco dias e outras tantas noites, de arranjar um álibi, por mais esfarrapado que fosse, para uso próprio, e enrolar meu crime num fino manto ético. E minha mãezinha achava mais fácil me perdoar, porque eu a magoava em trezentas e sessenta e cinco pequenas doses, não deixando que minhas faltas se acumulassem muito.
       Mas no tricentésimo sexagésimo quinto dia de cada maldito ano, no segundo domingo de maio, eu tomava consciência de uma só vez dos hediondos crimes dos outros trezentos e sessenta e quatro dias, grandes como elefantes, e ameaçadores como o Apocalipse. Eu me sentia tão medonho que, na manhã do Dia das Mães, sempre desejava morrer. Não definitivamente. Mas talvez morrer até a segunda-feira. Ou ficar mortalmente doente, para que tivessem pena de mim. Ou ter plantão de noite e não precisar estar em casa, pois imaginava que minha mãe nesse dia também estaria pensando nos outros trezentos e sessenta e quatro dias. Ah, meu Deus, que pensamento horrível!
       Mas eu não morri, não fiquei mortalmente doente, e só uma vez tive plantão noturno. Nesse dia minha mãezinha viajara e só festejamos o Dia das Mães quando ela voltou. Não, até hoje nunca encontrei uma ocasião decente para escapar. Sempre me levantei, levei o café dela na cama, e disse com uma sensação de embrulho no estômago: "Tudo de bom!", e minha mãezinha respondia: "Muito obrigada, meu filho!"
       E seguia-se um dia infinito, em que eu tinha de me censurar por tudo o que acontecera nos últimos meses. De noite, em geral, já nem sabia como olhar na cara das outras pessoas. E assim foi, ano após ano.
       Mas hoje é diferente.
       Hoje decidi falar com minha mãezinha antes do segundo domingo de maio. Pois hoje me meti numa situação medonha. Sempre converso com minha mãezinha quando estou numa situação medonha. O melhor, pensei, seria pôr tudo sobre meu estado de espírito em pratos limpos. Para que ela não se admirasse caso no domingo seguinte eu pegasse uma corda e me enforcasse com ela. Portanto, contei-lhe o que me oprimia, e ela apenas fez que sim, saindo do quarto. Quando voltou, trazia dois copos e uma garrafa de vinho tinto muito especial, que na verdade se destinava a um famoso autor de roteiros de filmes; por sorte, o vinho nunca lhe chegou às mãos.
       Depois de termos tomado uns goles, ela disse:
       - Meu querido, você acha que para nós, mães, o Dia das Mães é uma delícia? Acha que não temos os mesmos sentimentos miseráveis, humilhantes e horrorosos?
       - Mas por quê?
       - Porque temos vergonha dos nossos filhos - disse minha mãezinha.
       - Por quê?
       - Ora - disse ela -, por todas as coisas que aconteceram. . .
       Mas minha mãezinha é uma pessoa extraordinariamente experiente. Todos os que têm o privilégio de conhecê-la confirmarão isso. De resto, é um pouco mais velha do que eu. Seria descortês, portanto, contrariá-la. Não a contrariei. Esvaziamos em paz nossa garrafa, apertamos nossas mãos brevemente e fomos dormir.
       Não pude dormir logo, mas fiquei refletindo em várias coisas. Espere aí, eu disse a mim mesmo, se o Dia das Mães é tão desagradável para as mães quanto para os filhos, por que simplesmente não acabamos com ele?
       Não achei a resposta. Pelas dez da manhã eu me levantei e fui até o quarto ao lado.
       - É porque ele serve para fomentar o comércio! - respondeu minha mãezinha imediatamente.
       Agora eu sabia e voltei para a cama. Mas antes de adormecer ainda pensei: só por causa do fomento do comércio? Não, não podia ser só isso! Havia mais alguma coisa, mas o quê? Não descobri. Certamente não era para que a gente se exercitasse na autocensura. Nem os bons propósitos e protestos de amor tinham algo a ver com a coisa. O que era então?
       - De qualquer modo - disse eu ao meu amigo, o anãozinho do sono, que fumava cachimbo sentado ao meu lado -, para mim, depois da conversa de hoje, o Dia das Mães não é mais assustador. Mas o que é que vou fazer?
       Enquanto o anãozinho do sono começava a espalhar sua areia nos meus olhos, ele disse:
       - Você podia dizer a sua mãe que gosta dela. . .
       - Sim. . . - murmurei -, eu tinha mesmo de fazer isso de novo, sem falta. . .
       E experimentei logo, por prudência. - Mãezinha querida - disse -, eu gosto muito de você!
       (1948)
      
A maldita guerra e o casaco de astracã
       Era uma vez - tão perto do Natal podemos começar uma história verdadeira com essa expressão de contos de fadas -, era uma vez uma senhora sempre amável e temente a Deus, chamada Emília Nemetz. Podemos, pois, deduzir que ela vinha da Boêmia.
       Muitas pessoas trabalham de menos. Muitas pessoas trabalham demais. Demais mesmo! A Sra. Nemetz fazia parte da segunda categoria. É muito perigoso trabalhar demais. Isso sempre vai bem por algum tempo. Depois, começa a desandar.
       Com a pobre Sra. Nemetz a coisa começou a desandar em agosto do ano passado. E como desandou, meu Deus!
       Podemos dar dois motivos pelos quais a Sra. Nemetz se esforçava tanto. São eles, na ordem: o desejo de ter um casaco de astracã e a maldita guerra.
       O desejo de um casaco de peles era, por assim dizer, o desejo de uma vida inteira, que nunca abandonou a Sra. Nemetz. Ela queria ter aquele casaco de astracã!
       - Vou economizar o ordenado do homem com quem me casar um dia - costumava dizer -, e então vou comprar aquele casaco de astracã. O mais fino de todos. Nada de sintético, que nada! Só peles escolhidas, feitas sob medida, no melhor peleteiro!
       Com vinte e cinco anos, a Sra. Nemetz casou-se com um marceneiro. Um bom marceneiro! Um marceneiro muito trabalhador! Mas que não era rico.
       Não se podia economizar o bastante do ordenado de Franz Nemetz para comprar um casaco de astracã. E depois vieram também as crianças! A Sra. Nemetz teve duas: um menino e uma menina. Teve a menina em março de 1939. Em setembro de 1939, estourou a guerra, a maldita.
       No outono de 1939, o casaco de astracã parecia mais inatingível do que nunca para a Sra. Nemetz. E ela decidiu mudar as coisas. E disse a Franz:
       - Vou fazer faxina nas casas finas e economizar.
       Franz não fez qualquer objeção. Na segunda-feira sua mulher trabalhava numa mansão, na quarta em outra, e na sexta-feira numa terceira mansão.
       Então uma grande desgraça aconteceu à pequena Sra. Nemetz. As desgraças bem grandes sempre acontecem para as pessoas bem pequenas. Á Sra. Nemetz trabalhara duro em três casas durante um ano e economizara quatrocentos e dezessete marcos e quarenta Pfennige, quando Franz teve de ir para a guerra. No final de 1940.
       Os cinco anos seguintes foram aqueles em que a Sra. Nemetz arruinou sua saúde e seus nervos. De dia trabalhava na casa dos patrões e de noite ficava sentada com as crianças no abrigo subterrâneo. Quando por exceção não havia alarme, ficava deitada na cama, insone, imaginando o seu pobre Franz que lutava em algum lugar da grande Rússia. Ele estava sitiado em Stalingrado. A Sra. Nemetz rezava todas as noites, e todas as noites dizia no fim da oração: "Deixe o meu Franz voltar para casa, bom Deus, e não quero mais um casaco de astracã!"
       No último minuto, Franz escapou do sítio e a pequena Sra. Nemetz adquiriu novo ânimo e disse ao bom Deus em suas orações: "Eu só prometi aquilo de medo, o Senhor entende, não é? Afinal, o casaco de astracã sempre foi o meu maior desejo!"
       O bom Deus, que conhece essas orações de antes-e-depois, sorriu brandamente da Sra. Nemetz. Não estava zangado. Mas ainda tinha uma série de desígnios em relação a ela. . .
       Aconteceu pela primeira vez no verão de 1944: de súbito a Sra. Nemetz não conseguiu mais respirar, quando lavava roupa, e se sentiu tonta. Mas não prestou atenção a esse aviso. Continuou dando duro.
       Os patrões mudavam. O trabalho continuava o mesmo. De noite, de volta a casa, a Sra. Nemetz sempre passava pela bela loja do Sr. Dieter Kohler, que era um peleteiro excelente e, em 1944, enfeitara a sua vitrina, na falta de peles de verdade, com fotografias de peles. Havia entre elas a foto de uma casaco de astracã, usado por uma jovem belíssima, de cabelos negros, com um sorriso radiante. A Sra. Nemetz já não era jovem, nem belíssima, nem tinha cabelos negros, e sim bastante grisalhos. E seus pés doíam e seu coração doía. Mas sempre que passava diante da peleteria do Sr. Kohler e olhava a foto, também ela dava um sorriso radiante.
       Em 1946, na primavera, o Sr. Nemetz voltou de um hospital russo. Tinha agora apenas um braço. Isso é uma coisa terrível para qualquer pessoa. Mas, para um marceneiro que trabalha com os braços, é uma catástrofe. O Sr. Nemetz e a Sra. Nemetz foram muito valentes. Pessoas humildes sempre o são. Mas só que não adianta nada.
       O Sr. Nemetz assumiu o posto de mensageiro numa impressora. Naturalmente ele não ganhava tanto quanto antes! E as crianças cresceram e precisavam de dinheiro, dinheiro, dinheiro. Mas a Sra. Nemetz disse: "Eu dou um jeito. Só preciso trabalhar um pouquinho mais".
       A Sra. Nemetz trabalhou "um pouquinho mais" durante treze anos. Trabalhou como nunca trabalhara na vida. Sempre novos patrões! Sempre novas montanhas de louça! Sempre novas lavanderias! Sempre novos assoalhos! Então a filha casou com um carteiro. E o filho foi para a universidade. A Sra. Nemetz ainda lhes dava dinheiro. Com os anos, sua respiração ficara mais ofegante, o rosto parecia inchado, bem como os pés.
       O bom Deus parecia amá-la, pois como por um milagre, apesar de todos os gastos, sua economia a cada ano aumentava mais. Em 1960, no verão, chegou a hora: a Sra. Nemetz pôde ir à fina loja de peles do Sr. Kohler, diante da qual parara quase que diariamente durante vinte anos. Sim, mas dessa vez não apenas parou diante da loja, como também entrou! E, com o coração batendo na garganta, disse ao refinado senhor atrás do balcão:
       - Como vai, Sr. Kohler? Por favor, quero um casaco de astracã.
       Ela encomendou do melhor. Só peles inteiras. Nada de retalhos. Lá estava o casaco de astracã, o sonho da sua vida, recompensa por tanto esfregar, passar, lavar, lustrar e cozinhar. Lá estava ele. E custava, em marcos alemães, mil quinhentos e noventa e cinco.
       Desses mil quinhentos e noventa e cinco marcos, a Sra. Nemetz pagou adiantado, segundo um plano de financiamento muito cômodo, seiscentos marcos. Quando o casaco estivesse pronto, Franz lhe daria mais trezentos marcos de suas economias. Assim ela teria pago novecentos marcos. O resto seria pago em prestações. O Sr., Kohler concordara.
       Ah, mas infelizmente o coração da Sra. Nemetz não concordou! Pois na noite seguinte aconteceu algo terrível. Naquela noite, de 16 para 17 de agosto de 1960, a Sra. Nemetz sofreu um grave ataque de coração.
       Ficou deitada na cama, horrivelmente contorcida, e quase não conseguia respirar. O Sr. Nemetz correu até a cabina telefônica mais próxima e chamou o Dr. Schäfer. Este veio, sacudiu a cabeça, e aplicou uma forte injeção na mulher que gemia. Depois disso, ela conseguiu respirar um pouco melhor e sussurrou:
       - Vou morrer agora?
       Um médico sempre responde a essa pergunta dizendo:
       - Mas que idéia, nunca!
       - Ah, doutor - suspirou a Sra. Nemetz -, é só porque no Natal meu casaco de astracã vai estar pronto, aquele que desejei a vida toda... - E depois, confundindo o doutor com o Deus Todo-Poderoso , exclamou: - Meu bom Deus, não me deixe morrer agora, não agora. . .  deixe-me ter ainda o meu casaco, ainda que eu só possa usá-lo um único dia. . . por favor, meu bom Deus, por favor. . .
       Emília Nemetz não morreu, pois tinha um coração forte, e o Dr. Schäfer era um bom médico. Ele dizia:
       - A senhora é imortal!
       E a Sra. Nemetz ficava radiante! Mas parou de ficar radiante quando o doutor prosseguiu:
       - Mas agora, tem de parar imediatamente com o trabalho pesado. Vai fazer um tratamento, ou não garanto mais pela senhora!
       A Sra. Nemetz fez um tratamento. Num belo hospital. Na verdade, aquele foi o período mais feliz da sua vida. E, ao mesmo tempo, o mais triste. Há coisas que a Previdência Social não paga. Por exemplo, injeções bem caras e médicos famosos. Quem quer tê-los, precisa gastar do próprio bolso.
       E foi o que a Sra. Nemetz fez: o tratamento devorou-lhe todas as economias e também as do marido. Quando, uns dias antes do Natal, a Sra. Nemetz teve alta, estava quase sadia, mas sua conta bancária estava vazia. E na sua imaginação o casaco de astracã fugia voando como um balão de gás solto por uma criança.
       A Sra. Nemetz ainda estava muito fraca, tinha de ficar sempre deitada. Por isso o Sr. Nemetz foi procurar o peleteiro e explicou-lhe que agora não podiam mais comprar o casaco, infelizmente. Muito pelo contrário!
       - Não podíamos ter de volta os seiscentos marcos de adiantamento, Sr. Kohler?
       - Quando eu vender a pele - disse o Sr. Kohler -, falaremos a respeito. De outro modo não é possível. Tem de entender isso. Encomenda é encomenda.
       E assim chegou a Noite Santa, a maior festa da cristandade, uma noite muito triste para a pobre Sra. Nemetz. O marido enfeitou uma arvorezinha e depois chamou:
       - Emília!
       Ainda um tanto trêmula e fraca, a Sra. Nemetz levantou-se, vestiu um chambre vermelho e foi para a sala, onde o marido a beijou e fez-lhe carinhos. Comprara-lhe luvas e sapatos de andar em casa. E, com a mão que restara da guerra, pintara um quadro para sua mulher, uma paisagem de outono. O quadro era tão lindo que a Sra. Nemetz chorou.
       - Naturalmente, você está chorando por causa do casaco de astracã - disse o Sr. Nemetz baixinho, acariciando-a de leve
       - Não...   não, de verdade...   é porque o quadro é tão bonito.. .
       - Eu sei, eu sei, é o casaco. . .   Você trabalhou a vida toda e não conseguiu nada - disse o Sr. Nemetz.
       Nisso, a campainha tocou.
       Era verdade: a campainha tocava na noite de Natal!
       O Sr. Nemetz disse:
       - Não podem ser as crianças, elas só vêm amanhã! (Pois as crianças já tinham suas próprias famílias).
       E a Sra. Nemetz disse:
       - Abra a porta, Franz!
       Diante da porta estava parado um jovem, segurando sobre o braço um casaco de astracã, metido num envoltório plástico, e na mão uma carta. Ele disse:
       - Venho entregar isso, Sr. Nemetz. Para sua esposa. Da parte do Sr. Kohler.
       - Deve ser um engano - começou o Sr. Nemetz, todo confuso.
       Mas o jovem simplesmente entregou-lhe o casaco de astracã, meteu-lhe a carta na mão e disse:
       - Não, não é engano, Sr. Nemetz. - E sumiu. O Sr. Nemetz ficou ali parado, como se sofresse de paralisia.
       - Franz! - chamou sua mulher da sala. - Franz, o que foi?
       E ele voltou para junto dela, mas não conseguia falar; apenas colocou diante da mulher o casaco, cujos pêlos negros, brilhantes e crespos brilhavam e reluziam alegremente debaixo do plástico, à luz das velas, e disse:
       - Foi o Sr. Kohler quem mandou.
       Depois, teve de correr às pressas para trazer as gotas para o coração da mulher, pois seus lábios estavam ficando roxos, e ela estava sufocando. Quando o acesso passou, ele ainda teve de apanhar seus óculos. Depois, enquanto o radiozinho tocava canções de Natal, ele abriu com dedos trêmulos o envelope e leu, aos arrancos:
       - "Caríssima Sra. Nemetz: estou lhe enviando o casaco de pele de astracã que encomendou, e espero que sirva. Apresso-me. . ."
       - Mas e o dinheiro? Ele não está pago! O Sr. Kohler enlouqueceu! - exclamou a Sra. Nemetz.
       - Não me interrompa, escute o resto! Onde é que eu estava?  Ah!   "...apresso-me em participar-lhe que o casaco também está totalmente pago."
       - Franz, minhas gotas!
       Ele as deu depressa, e leu adiante:
       - "... totalmente pago. Uma das senhoras em cuja casa a senhora trabalhou durante vinte anos é minha cliente. Falei-lhe da sua enfermidade e que não podia mais pagar o casaco. Uma semana depois, ela voltou trazendo-me a quantia toda. Falara com outras duas senhoras para as quais a senhora também trabalhara nos últimos vinte anos, e elas juntaram o dinheiro, como um pequeno agradecimento pelo seu trabalho e pelos muitos anos de lealdade. . ."
       - Meu Deus do céu. . . - disse a Sra. Nemetz.
       - "Na verdade não é só pela lealdade" - continuou a ler o Sr. Nemetz. - "Pois para uma delas a senhora nunca chegou a trabalhar! Trata-se apenas de uma amiga das outras. E pagou sua quarta parte, porque hoje não há mais empregadas, e espera que a senhora trabalhe para ela quando estiver outra vez bem de saúde."
       - Mas devo ter mesmo uma fama muito boa junto às minhas patroas - disse a Sra. Nemetz, comovida. - Imagine, Franz, a quarta senhora arriscou o seu dinheiro apenas pelo meu renome!
       - "Minha cliente" - prosseguiu o Sr. Nemetz - "pediu minha palavra de honra de que eu não revelaria seu nome nem endereço. Os nomes das outras senhoras me são desconhecidos. Minha cliente disse que a senhora trabalhou para tanta gente, que nunca se lembraria de quem lhe está dando a pele de presente! Assim, encerro esta carta desejando que o casaco lhe agrade. Seu dedicado, Dieter Kohler, peleteiro."
       Depois disso, o Sr. Nemetz baixou a carta e sua mulher deu um grito agudo e pulou-lhe ao pescoço. E depois de tê-lo beijado muitas vezes, tirou do casaco o envoltório de plástico com todo o cuidado, despiu o chambre velho, e vestiu o astracã. Sobre a camisola! E virou-se como um manequim, curvando as cadeiras, cheia de felicidade. Num armário do quarto havia um espelho grande. A Sra. Nemetz mirou-se nele de todos os lados; também o Sr. Nemetz tirou os óculos e a contemplou.
       - Meu astracã!  - dizia a Sra. Nemetz. - Meu astracã! - E dizia apenas isso, baixinho, comovida.
       - Minha velha! -- exclamou o Sr. Nemetz.
       - Realmente nunca saberei quem me deu o casaco! Só tive patroas boas. Todas podiam ter-me dado o casaco - disse a Sra. Nemetz, e acariciou a pele amorosamente, chorando de novo um pouquinho. - Na verdade, sempre tive sorte nesta vida!
       - E agora, com o casaco, vai ficar boa bem depressa - sentenciou o marido.
       - Mas claro! - exclamou ela.
       - Há ainda um P.S. - disse o Sr. Nemetz, com a carta na mão. E leu: - "P.S.: Eu lhe darei o endereço da quarta senhora assim que puder trabalhar novamente".
       Vozes cantavam no rádio, naquele instante: ". . .e paz na terra aos homens de boa vontade".
      
       Uma árvore atravessa a casa
       Grossas lágrimas corriam pelo rosto da mocinha; ela chorava enquanto caminhava, desesperada e mergulhada em uma grande desgraça pessoal. O tempo em Berlim estava ruim naquela tarde, nuvens escuras navegavam pelo céu, caía uma chuva fina e fria. Escurecia. E a mocinha em prantos tropeçou ao longo da calçada, em direção ao grande cruzamento.
       O homem na parada do ônibus ouviu a princípio apenas um soluçar baixo, atrás de si. Depois virou-se e viu a moça. O homem era mais velho do que ela: teria talvez trinta e cinco anos. A mocinha tinha, quando muito, vinte e cinco. Usava um casaco claro e um chapéu de feltro cinza, que parecia um capacete. Debaixo dele via-se um pouco de cabelo castanho.
       O ônibus que o homem esperava aproximou-se. A mocinha não parecia notar nada. Aliás, ela parecia não notar nada ao seu redor, pois pôs-se a andar pela pista como se estivesse sonhando, como uma sonâmbula, em direção ao ônibus.
       Uma criança gritou. Freios guincharam. O homem diante do ponto do ônibus saltou para diante e puxou para trás a moça que chorava. De repente, ela estava em seus braços. Os olhos eram imensos e negros, o rosto branco como a neve.
       - O que. . .  o que foi? - ela indagou. A voz era rouca.
       - Você quase se jogou debaixo do ônibus - disse o homem, soltando-a. O cobrador xingava de dentro do veículo. - Tudo bem - disse o homem. Algumas pessoas sacudiram a cabeça. Ainda furioso, o cobrador deu o sinal de partida. O ônibus se foi. O homem e a moça ficaram na calçada olhando-se.
       - Esse não era o seu ônibus? - perguntou ela algum tempo depois.
       Ele fez que sim.
       - E por que não o tomou? Ele deu de ombros.
       - Não precisa se preocupar por minha causa - disse ela em voz baixa. - Agora vou tomar cuidado.
       - Se a gente soubesse direito - disse ele. Depois olhou para os lados, curvou-se para diante e perguntou baixinho: - A coisa é tão grave assim?
       Ela mordeu os lábios e acenou a cabeça, confirmando.
       - Por causa de algum sujeito?
       - Sim - respondeu ela. Então o homem tomou-a de novo nos braços, aquela mulher jovem que se jogara no seu peito e soluçava de cortar o coração. Ele a apertava com força, acariciando-lhe as costas.
       - Ora, ora - disse. E pensou: uma moça decente. Era só o que sabia. Estava junto de uma moça decente que se sentia muito infeliz.
       - Olhe - disse ele então. - Por causa da chuva, e porque estamos ficando molhados, não acha que devíamos ir para um lugar seco?
       A moça ergueu a cabeça e fitou-o:
       - Para. . . para onde quer me levar? Ele sacudiu os ombros.
       - Não sei. Talvez até o bar ali adiante. Só uns minutos. Até a chuva passar. Ou até você parar de chorar.
       A moça deu um passo atrás.
       - Mas eu nem o conheço.
       - Conhece - disse ele, solícito. - Eu sou o homem em cujo ombro você chorou.
       A moça sorriu um pouquinho e depois soluçou alto, duas vezes, como se estivesse com um ataque de soluços.
       - Sou tão infeliz! - disse.
       - Contra isso, só um bom gole - respondeu ele. E levou-a para o barzinho, e ela se deixou levar, sem vontade própria.
       Lá dentro estava quente e penumbroso. Era um lugar muito aconchegante, de teto baixo, lambris de madeira, enfumaçado. Na primeira sala, até o teto estava recoberto de madeira. Havia velas acesas. E música suave no rádio.
       O homem conduziu a moça pela primeira sala, ao longo de um corredor estreito, até uma segunda sala. Também ali havia velas acesas. Um velho garçom os ajudou a tirar os casacos molhados. Havia cheiro de charutos e presunto, e pairava um grande silêncio.
       - Uma garrafa do que houver de melhor - disse o homem quando se sentaram.
       - Muito bem, senhor - disse o garçom, e sumiu. A mocinha tirara o estojo de maquilagem e ajeitava o rosto.
       - Que coisa idiota - observou. - Fiquei de nariz vermelho de tanto chorar. Meu nome é Lúcia Brenner.
       O homem curvou-se, sentado:
       - Haler. Válter Haler.
       - O que estará o garçom pensando de nós? - indagou a moça.
       - Q que você acha que ele está pensando?
       - Que somos um casal de amantes. . .
       - E isso seria tão mau assim? Ela sacudiu a cabeça:
       - Por favor. Deixe disso. Estou mesmo muito desesperada. Nunca teria vindo com o senhor, se não estivesse tão infeliz.
       - Claro - disse ele. E pensava isso mesmo.
       O garçom trouxe uma garrafa de vinho, e dois copos.
       - Saúde - disse.
       - Saúde - disse o homem, fitando Lúcia Brenner. Os dois beberam.
       - Eu queria me matar - disse Lúcia de repente.
       - E quase conseguiu - respondeu o homem.
       - Talvez ainda o faça.
       - Não - disse ele. - Ninguém tenta duas vezes. Pelo menos, não na mesma noite. E você não vai tentar nunca mais!
       - Como sabe disso?
       - Eu sei.
       Ela recomeçou a soluçar, mas sem lágrimas.
       - Srta. Brenner - disse Válter Haller -, eu não a teria trazido para cá sem motivo. Quero lhe mostrar uma coisa. Depois de tê-la visto, não será mais tão infeliz.
       - Não?
       - Não.
       - Mas o que é?
       - Está atrás de você. Vire-se. - Ela virou-se. - O que está vendo?
       - Uma árvore - respondeu ela, atônita. - Uma árvore no meio da sala!
       Ele fez que sim:
       - Isso mesmo, uma árvore!
       - Mas como foi que apareceu aqui? - Ela levantou-se e foi até o forte tronco de um castanheiro, de casca toda lascada, que saía do assoalho e passava pelo teto. Era um tronco enorme, com no mínimo dois metros de diâmetro. A moça bateu na casca, espantada. - Mas como foi que esta árvore apareceu aqui? - perguntou.
       - Vou lhe contar - disse, conduzindo-a de volta à mesa, onde os dois se sentaram. - Sabe - disse o homem -, em 1945, quando se combatia em Berlim, esta sala não existia. Isso é uma reforma que fizeram depois. Aqui, onde estamos sentados, era o pátio de uma velha casa berlinense. E atrás dele havia outra casa. Ela ainda existe. Mas não existiria mais, se não fosse o castanheiro.
       - Por que não? - perguntou a mocinha.
       - A casa do terceiro pátio foi incendiada pelas bombas - contou ele. - As chamas ameaçavam passar para as outras duas casas. Mas o castanheiro estava entre elas! Tinha folhas novas e muitos galhos fortes, com muita seiva. Lembra-se? Era primavera. . .
       - Sim - tornou ela. - Lembro-me.
       - E com essas folhas novas, e os galhos cheios de seiva, a árvore afastou as chamas. Não conseguiram ultrapassá-la. Estava ali como uma parede, um muro. Muitos galhos queimaram, claro, e todas as folhas morreram. A árvore inteira sofreu horrivelmente, as pessoas do bairro ainda comentam como ficou prejudicada depois do incêndio. Mas ela conseguiu o que as pessoas, que naquele tempo não dispunham de água, não teriam conseguido: livrou as duas casas da destruição.
       O homem calou-se e sorriu. A mocinha também sorria; um pouco, mas sorria! - Que mais?
       - Bom - disse ele. - As pessoas, naturalmente, ficaram muito gratas à árvore, pode-se imaginar, não é? E quando, alguns anos depois, o taverneiro resolveu aumentar a casa, decidiram logo que a árvore não seria sacrificada. De jeito nenhum! Então decidiram construir ao redor dela.
       - Mas é verdade, mesmo?
       - Tão verdadeiro quanto o fato de eu estar sentado aqui. As pessoas até cavaram pequenas valetas para irrigar as raízes, para que o castanheiro tivesse sempre água suficiente.  Faziam tudo  para  que ele  se  sentisse bem, pois deviam-lhe as vidas. E hoje essa árvore deve sua vida às pessoas.
       Ela fez que sim. Seguiu-se um longo silêncio. Por fim, ela indagou:
       - Como é que o senhor conhece a história?
       - Ora - disse ele encabulado -, eu conheço.
       - Mas como conhece? Ele respondeu baixinho:
       - Há dois anos eu estava tão infeliz quanto você. E muito embriagado. E queria me matar. . .
       - Por causa de uma mulher?
       - Sim, por isso mesmo. Mas na última hora um amigo me encontrou, e me trouxe para cá. E ficou comigo. E bebeu comigo a noite toda. E cuidou de mim, e me contou essa história. . .
       - E a mulher?
       - Esqueci-me dela.
       De repente, Lúcia pegou-lhe a mão e apertou-a com força.
       - Eu lhe agradeço. Agradeço tanto!
       - Por quê? - disse ele.
       - Pelo castanheiro.
       - Bom -- respondeu o homem. - Acho que devemos beber mais um pouco.
       P.S.: Esta história é verdadeira. A árvore existe, assim como a Srta. Lúcia Brenner e o Sr. Válter Haler. Escrevemos a história do castanheiro por acharmos que ela tem uma moral. Infelizmente, a árvore só existe em Berlim, e não em todas as cidades, de modo que, em caso de emergência, não pode ser mostrada para as pessoas que desejem se matar em todas as partes. Mas afinal: não foi apenas a árvore que ajudou as pessoas. Também as pessoas ajudaram a árvore, não é? Há gente por toda parte, em todas as cidades. E em todas as cidades há pessoas que ajudam pessoas.
       (1960)
      
As rugas dos pobres
       A história que contarei aqui aconteceu há algumas semanas. Para ser exato, no último dia do ano passado, em São Silvestre. Aconteceu dentro e perto da casa da Sra. Catarina L., que a contou para mim. A Sra. Catarina L. tem trinta e oito anos, é mãe de duas crianças - Josefa e Carlos - e esposa de Jacó L., um fiscal de impostos. As crianças ainda são pequenas. Dona Catarina é pobre e o marido morreu no último ano de guerra.
       Dona Catarina trabalha como empregada na casa de várias patroas que são muito boas para ela. É paga por semana. Sempre nas sextas. No sábado, geralmente, nada mais resta do dinheiro que recebeu. Isto porque é muito pobre. E tem de pagar suas dívidas. Tudo está calculado minuciosamente nas contas de Catarina: cada xelim, cada vintém, cada passagem de bonde, cada colher de açúcar. E tudo tem de ser assim calculado, se ela não quiser perder a cabeça. E uma viúva com duas crianças pequenas desnorteia-se facilmente. Catarina perdeu a cabeça no último dia do ano passado, quando voltava do trabalho para casa. Mais tarde, arrependeu-se muito de ter perdido a cabeça, mas não pôde evitá-lo: descobrir que faltavam dez xelins foi demais para ela! Colocara esses dez xelins num bule de café, no qual costumava guardar o dinheiro para as despesas da casa. Era um bule sem alça.
       Catarina foi dominada pelo terror. O sangue fugiu do seu rosto, ela tremia, mostrava todos os sintomas de estar perto de desmaiar. A perda de dez xelins é uma verdadeira tragédia para gente pobre. Dona Catarina bebeu um gole de água, depois fez o que lhe pareceu mais natural: interrogou as crianças. Estas fizeram caras tristes e pareciam muito infelizes. Foi então que Catarina perdeu a cabeça. Quando descobriu que as crianças tinham pegado o dinheiro.
       - Por quê?
       Ora, porque o dia seguinte era ano-novo!  E porque queriam dar um presente para a mãe. Todas as crianças que conheciam davam presentes às mães nesse dia; só eles, não. Porque não tinham dinheiro. Mas queriam dar-lhe alguma coisa! Por isso tinham tirado o dinheiro. Para lhe darem uma alegria. Fora na melhor intenção. Se Catarina não fosse tão pobre e desgastada pelo trabalho, teria sabido entender essa melhor das intenções. Mas ela era pobre e estava muito esgotada pelo trabalho, e não conseguiu entender. Entre gritos e lágrimas, perguntou onde estava o dinheiro.
       As crianças explicaram, gaguejando, que já mudara de dono. E, diante de novos gritos da pobre mãe, pegaram o presente, escondido debaixo da cama de Carlos, que tinham comprado com aquele dinheiro: um minúsculo e desgrenhado pote de violetas. Numa das poucas folhas estava preso um coração de papel e nele estava escrito: "Salve 1948!"
       Catarina nem o enxergou. Sabia só de uma coisa: precisava de pão. E ela tinha de ter os dez xelins. Por isso ordenou a Josefa, a mais velha, que devolvesse as flores e (tomara!) trouxesse do florista os dez xelins para comprar pão, como fora determinado antes.
       A tragédia seguiu seu curso implacável. O pequeno Carlos acompanhou a irmã. Marchava mudo e hirto escada abaixo, ao lado dela; atravessou o pátio e saiu para a rua. Os dois não trocavam uma palavra. Não olhavam um para o outro. Olhavam para a frente e estavam amargamente mudos e perplexos. Era tarde, a rua estava quase vazia. Josefa carregava o potezinho de violetas. Lá embaixo já se via a loja de flores. Havia apenas dois postes entre eles e a loja.
       No segundo poste, o pequeno Carlos desmoronou. Começou a chorar abruptamente e era impossível fazê-lo continuar andando. Estava ali, parado, inundado de lágrimas, agarrando com as duas mãos o pote sujo, como se este fosse a mãe a quem ele exortasse a desistir daquela horrível devolução, que significava o fim de toda a felicidade.
       Josefa tentava consolá-lo. Falou bondosamente. Chamou-lhe a atenção. Em vão. Mas depois, de repente, de maneira terrível, o choro cessou e fez um silêncio quase irreal quando o menininho, com sua cara molhada de lágrimas, olhou a rua com uma expressão de felicidade sobrenatural.
       - Que foi? - perguntou Josefa.
       Ele não respondeu.
       Ela olhou na direção em que ele olhava. E também viu o grande, maravilhoso, magnífico pão, caído na neve suja da rua. Algum carro de entregador devia tê-lo perdido.
       O segredo da velha senhorita
       Era preciso vencer breves escrúpulos por causa do legítimo dono do pão, mas como em toda a redondeza não se visse ninguém, não foi muito difícil para as crianças. Catarina estava sentada, imóvel, na sua cozinha em penumbra. Levantou os olhos, amargurada, mas respirou aliviada ao ver que Josefa trazia um pão. Depois, quando viu que Carlos trazia as flores de volta, ergueu-se de um salto. E quando ouviu a história que as crianças lhe contaram, chorou um pouquinho. Mas de alegria. E no jantar, enquanto cortava o pão, pensou num livro que lera um dia, em que se dizia que nas rugas dos pobres nascia muito pão. Pensou nisso, e em seu marido morto na guerra, em dias passados e futuros, e tudo lhe pareceu triste, confuso e escuro. Naquela grande escuridão, havia apenas um pontinho claro. Era a presença de seus filhos, algumas violetas-dos-alpes, ciclame e vermelhas, e um pedaço de pão.
       Por isso ela enxugou os olhos, sorriu e disse:
       - Um feliz ano-novo para todos nós, meus queridos!
       (1948)
      
       O segredo da velha senhorita
       "O segredo da velha senhorita" foi, como talvez recordem, o título de um best seller na virada do século, um livro que merece ser mencionado no mesmo fôlego que A cabeluda ou a famosa obra Eu não deixo! Era um best seller no melhor sentido da palavra, não um desses duvidosos sucessos intelectualizados como 1984 ou Os nus e os mortos. Era um sucesso como, por exemplo, E o vento levou. Isso mostra que o gosto do público não muda tão depressa.
       Mais ou menos na época do surgimento da Velha senhorita, em 1900, surgiram também as doze grandes estátuas que há algumas semanas foram expostas nos corredores de um edifício público em Viena. Acho que o estilo em que foram feitas é neoclássico. Neoclássico imitado. E era assim que pareciam, os deuses e semideuses de pedra branca. Em algumas delas, a roupa caía em belas pregas sobre os membros lisos, as mulheres estavam nuas por baixo, exceto por minúsculas partes; por assim dizer, metade de um biquíni.
       As figuras tinham sido retiradas de seus nichos e pedestais no começo da guerra. Tinham sido empacotadas, escondidas e guardadas para que não fossem destruídas pelas bombas que porventura caíssem no edifício. As bombas teriam sido capazes de prejudicar o edifício. Mas ainda se teria podido guardar as estátuas neoclássicas em outro lugar. Afinal, não se podia embrulhar, esconder e guardar um edifício todo. Por isso a arte saiu ganhando: pois caíram realmente duas bombas no edifício. Pequenas.
       Apesar disso, depois do fim da guerra, gastaram muito dinheiro para refazer o que fora estragado. E quando tudo estava refeito, não havia mais dinheiro para trazer de volta e recolocar as estátuas. (Agora a arte já não saía ganhando, e ficou onde estava. No porão.)
       Ficou no porão por sete anos e depois foi retirada, quando apareceu um pouquinho de dinheiro de sobra. Muitas pessoas, naquele edifício público, ficaram entusiasmadas com o plano de recolocar as estátuas, mas outras, não. Diziam que, na sua opinião, recolocá-las era uma idiotice.
       Mas foram vencidas na votação. As estátuas voltaram aos seus pedestais, aos seus nichos. Tinham sido previamente "embelezadas". Foram escovadas, esfregadas e limpas. Seus corpos ficaram alvos como as toalhas de mesa de um restaurante vienense distinto (antes do almoço). E depois que vários senhores robustos se ocuparam delas por alguns dias, com cordas, laços e pragas entusiásticas, ficaram novamente de pé em seus lugares e nenhuma ruga surgiu em seus rostos amáveis e cheios de personalidade, apesar de terem envelhecido quinze anos.
       Naturalmente, chegaram também uns curiosos que tinham lido a respeito no jornal. E vieram pessoas que trabalhavam no edifício público. E algumas crianças de colégio. (Trazidas por um professor, crianças com o dedo no nariz, mortas de tédio. Uma delas escreveu na coxa de uma estátua grega: "Carlos é um burro", num momento em que o professor não vigiava.) Sim, e depois que os outros já se haviam dispersado, chegou a velha senhorita.
       A velha senhorita chegou pela primeira vez numa terça-feira. Sentou-se num banco. Diante do banco estava um nicho. No nicho havia a estátua de uma jovem nua e maravilhosa, na posição de quem carrega água. Era realmente uma jovem extraordinariamente bela, podia-se ver isso apesar do estilo neoclássico. Era mais do que bela. Era linda.
       A velha senhorita era feia, pobre, cinzenta, com no mínimo setenta anos de idade. Seu rosto mostrava, além das imensas rugas, apenas dois olhos apagados, pois o nariz estava parcialmente comido e a boca era tão estreita (porque desdentada) que não se enxergava direito. Ela andava e sentava-se curvada - com certeza sua coluna era torta Essa pobre velha chegou naquela terça, às nove horas, e partiu às dezessete horas. O empregado daquele andar a viu. No dia seguinte, ela voltou a sentar-se no banco. O dia todo. O empregado julgou que fosse uma mendiga. Quando quis lhe dar um xelim, porque tinha pena dela, a velha recusou. A partir de então, tomou-a por louca. Após uma semana, na qual ficou sentada no banco dia após dia, a velha começou a lhe parecer sinistra. Principalmente porque nunca falava. Porque passava o tempo todo apenas encarando fixamente a estátua. E, após duas semanas, o empregado foi até o chefe da repartição, o Conselheiro N., e fez-lhe um relatório sobre o caso.
       O digno chefe da repartição, Conselheiro N., era um homem que desconhecia a palavra medo. Foi ter imediatamente com a velha senhorita e começou uma conversa amável com ela. Isto é, ele falava e ela permanecia muda. Então o chefe de repartição viu que a coisa tinha de ser levada de outro modo, e perguntou à velha senhorita quem ela era. Alguma coisa se iluminou no rosto morto da pobre mulher encurvada: os olhos reviveram e até a boca se tornou visível, quando, num sorriso, ela apontou para a bela moça nua de pedra, respondendo com voz fina e rouca:
       - Essa aí sou eu! Em 1890, na primavera, posei para o escultor Pernau, para que ele fizesse essa estátua. . .
       O chefe de repartição, Conselheiro N., comentou mais tarde que, quando disse isso, por segundos a mulher tivera a chama, a beleza e a graça de uma jovem.
       (1953)
      
A grande tabuada
       Essa história não é inteiramente verdadeira. Além disso - à primeira vista - já não é tão atual. Contudo, relato-a aqui porque é uma história bem especial, uma história com uma moral, se quiserem. E histórias com moral se tornaram incrivelmente raras, não acham?
       Aconteceu - ao menos em parte - há algumas semanas, numa manhã de segunda-feira.
       Minha amiga Eva ia à escola pela primeira vez naquele dia. Nós nos conhecemos há muito tempo e temos o maior interesse um pelo outro. Tínhamos aguardado com igual nervosismo o começo das aulas e assumido firmes propósitos, ela e eu. De resto, tínhamos arranjado lápis de cor, blocos, botões para fazer cálculos, e chiclete, coisas sem as quais, como se sabe, não dá para ir direito à escola.
       Pelas sete e meia, nós dois estávamos nervosos como motoristas de ônibus em hora de pique. Quando, enfim, Eva saiu com a mãe, pude ir junto, porque estava me comportando bem. Diante da escola havia um número inacreditável de crianças, gordas e magras, grandes e pequenas, bem-nutridas e subnutridas, barulhentas e outras chupando o polegar (embora isso seja malvisto). A maioria estava com as mães, que também eram muito diferentes umas das outras.
       Algumas traziam sacolas de feira e lenços na cabeça; outras, meias de náilon e vestidos de seda coloridos. Mas logo se notava que se portavam de maneira absolutamente diferente das crianças. Ao passo que, entre as crianças, as gordas falavam com as magras e as bem-nutridas com as subnutridas, entre as mamães a coisa era bem diferente. As de vestido de seda falavam umas com as outras. As com sacolas de feira também. Mas raramente uma com vestido de seda falava com uma de sacola de feira. Quando isso acontecia, logo as duas ficavam encabuladas e não sabiam o que dizer. Não se entendiam direito. Não tinham, umas com as outras, nem metade da compreensão de suas filhas e filhos. Porque eram adultas e não podiam mais saltar por cima das poças de água. Ou trocar passagens de bonde já picotadas. Enquanto as crianças conversavam, os adultos cuidavam de manter a linha. Uma esposa de conselheiro do governo cumprimentava uma esposa de diretor-geral. Uma Sra. Weber e uma Sra. Czerny. Mas, por enquanto, era tudo.
       Quando os portões da escola se abriram, todos, crianças e mamães, se encaminharam para as salas de aula. Uma senhora professora indicava o lugar a cada criança, enquanto as mamães ficavam paradas junto das paredes, todas com taquicardia. De repente, a porta se abriu, entrou um professor e pediu aos adultos que o seguissem.
       Isso causou surpresa, mas o professor insistiu no seu convite e levou as espantadas mamães para a sala de aula ao lado, onde tiveram de sentar-se nas carteiras. Muitas delas acharam isso complicado, e outras conseguiram-no às mil maravilhas. É que há mamães gordas e mamães magras.
       Todas estavam muito curiosas e, quando o professor ergueu a mão, tudo ficou tão quieto que através da parede se ouviam as crianças rindo. O professor pigarreou, foi até o estrado e disse:
       - Bom dia!
       - Bom dia! - responderam em coro as mamães.
       - Queridas mães - prosseguiu o professor -, não as trouxe para cá para dar-lhes prescrições ou conselhos. Queremos fazer apenas uma sugestão. - Uma esposa de diretor-geral assoou o nariz ruidosamente. - Seus filhos e filhas estão ingressando hoje na nossa escola. Serão tratados da mesma forma. Assim é na nossa escola pública de primeiro grau. Ficarão aqui diversos anos. Espero que aprendam o que desejamos ensinai-lhes e que, quando nos deixarem, saibam ler, escrever e calcular. Ficarão aqui sentados quando lá fora brilhar o sol ou quando chover. Festejaremos juntos o Natal e, lá embaixo, no salão de ginástica, vamos treinar cambalhotas. Seus filhos estarão uns com os outros quase diariamente, durante muitas semanas. Conhecerão uns aos outros e talvez fiquem amigos, assim como nós nos tornamos amigos de outros quando fomos à escola. A amizade entre crianças é mais freqüente do que a amizade entre adultos, e também algo muito mais precioso. As crianças têm bons instintos.
       "Não -se importam se seu companheiro de brincadeiras tem meias remendadas ou um pai com carro de oito cilindros. Elas se impressionam muito menos com uma mansão de dezesseis quartos do que com alguém que saiba miar como um gato e assobiar com dois dedos. Porque são crianças.
       "Ficam sentadas lado a lado, como vocês aqui em suas carteiras, e olham umas para as outras. Com um pouco de desconfiança, um pouco de benevolência e muita curiosidade. Querem conhecer-se. Mas com o conhecimento começa a capacidade de compreender, e só com ela podemos contar. Se vocês, as adultas, confiarem em nós, queremos tentar conseguir que todos se tornem amigos. Esse é o nosso desejo. Uma escola reflete apenas pela metade a personalidade de seus professores: a outra metade vem das crianças que a freqüentam. Queremos que nossa escola tenha um rosto risonho.
       "Queremos que seus filhos se respeitem mutuamente e que respeitem as demais pessoas. Que digam a verdade. Que aprendam a pensar por si. Que possam, daqui a vinte ou trinta anos, recordar-se do tempo que aqui passaram juntos. E os diretores de banco dirão uns aos outros: os operários foram nossos colegas na juventude! E os operários dirão: os diretores e os chefes de seção puseram conosco percevejos na cadeira do professor!
       "Assim, minhas caras, talvez as coisas melhorem. Querem nos ajudar para que isso aconteça?"
       As mamães ergueram suas vozes e exclamaram:
       - Sim!
       E bateram com os pés no chão e com os punhos nas mesas. Algumas riram, outras enxugaram depressa as lágrimas. Mas todas gritaram: "Sim!"
       - Pois então - disse o professor quando fizeram silêncio -, o que hoje lhes disse é uma espécie de grande tabuada. Enquanto se lembrarem disso, será um prazer ensinar a pequena tabuada às suas crianças. E agora, vamos começar.
       Com isso, terminou a aula das mães. Mas, depois que o professor se foi, as mamães ficaram longo tempo juntas, conversando como velhas conhecidas. Sentavam-se nas pequenas carteiras verdes e falavam entre si como amigas. A Sra. Czerny com a esposa do ministro, a esposa do doutor com a Sra. Schindelka.
       Conversavam sobre como tinham vontade de voltar de novo à escola.
      
       Quatro no jipe
       Quando a velha Sra. Seidler correu para a rua, nervosa, esta já estava vazia. Passava das dez horas Sobre a cidade de Viena pendiam nuvens bonachonas, cinza-escuras, parecendo ursos de pelúcia bem-nutridos. O vento noturno tocava órgão nas copas das árvores da floresta de Viena, e atrás das janelas das casas viam-se muitas luzes trêmulas. Eram as velas das árvores de Natal. As pessoas festejavam o Natal naquela noite, na grande cidade de Viena. Era 24 de dezembro.
       Em algum lugar, ao longe, crianças cantavam. Em algum lugar, ali perto, alguém assava maçãs, cujo aroma chegava até a rua deserta Mas a Sra. Seidler não percebia nem a canção das crianças, nem o cheiro das maçãs. Isso porque estava terrivelmente nervosa. Sua nora lhe dava tantas preocupações! E logo agora que seu filho não estava lá!
       O filho da velha Sra. Seidler gostava de fumar cachimbo e jogar futebol aos domingos. Durante a semana, trabalhava na Companhia de Energia Elétrica. Tinha ali um cargo de responsabilidade. Ficava numa sala grande, diante de um grande painel com muitos instrumentos misteriosos e alavancas, e cuidava para que as pessoas, na grande cidade de Viena, recebessem luz elétrica em casa. A velha Sra. Seidler e a jovem Sra. Seidler tinham muito orgulho dele.
       Moravam os três numa casinha bem afastada, na periferia da cidade, em Hütteldorf. Mas os três Seidler não se importavam. Gostavam de viver bem longe. A casa tinha um jardinzinho em que a jovem Sra. Seidler plantava hortaliças. Duzentos metros adiante começava a floresta, e à noite dormia-se maravilhosamente, pois era muito silencioso ali.
       Os três ficaram muito felizes quando souberam que a jovem Sra. Seidler ia ter um bebê. Alegravam-se com a vinda dele. Agora é que veriam como vale a pena ter um jardim, diziam.
       O doutor que examinou a jovem Sra. Seidler disse:
       - Sra. Seidler, parabéns! Penso que o seu bebê virá entre 1.° e 5 de janeiro.
       Pobre doutor! Ele não tinha idéia de que a jovem Sra. Seidler ficaria tão nervosa no dia 24 de dezembro. Não; com a melhor boa vontade, ele não poderia adivinhar isso. Nem mesmo a jovem Sra. Seidler poderia. Mas ela ficou nervosa. E foi quando seu marido telefonou.
       Eram quinze para as dez. A pequena casa cheirava a agulhas queimadas de pinheiro e bolo fresco. Na sala, havia uma árvore de Natal sobre uma mesinha. Debaixo dela, os presentes, todos embrulhados com capricho. Na cozinha, o ganso assava, as garrafas de vinho estavam diante da janela e os fósforos preparados para acender velas. A velha e a jovem Sra. Seidler, por assim dizer, só aguardavam o tiro indicando a partida, para, num segundo, dar início à festa de Natal da família Seidler. O tiro inicial seria a campainha da porta, sinal de que o Sr. Seidler voltava para casa. Mas a campainha não tocou. Em vez disso, tocou o telefone. A jovem Sra. Seidler atendeu. Era o Sr. Seidler. Sua voz estava triste:
       - Querida, não fique zangada comigo. . .
       - Mas eu não estou zangada. Por que você não vem de uma vez para casa?
       - Mas é isso, querida. Eu não vou para casa.
       - Você não vem. . . - ela queria dizer "para casa", mas  não  conseguiu.   Sentia  o  coração  bater  de  maneira sinistra.
       - Não, querida. Também estou tão aborrecido com isso! Mas o que vamos fazer? Alguém instalou uma árvore elétrica no décimo distrito, houve um curto e um cabo da rua derreteu. Agora toda a zona está sem luz. Temos de ir até lá imediatamente!
       - Você tem de ir? Mas como, você? Isso não é tarefa sua!
       - Não, claro que não, querida. Mas é noite de Natal e temos muito pouca gente aqui. Tenho de ajudar.
       - Tem de ajudar. . .
       - Querida, entenda. . .
       - Entendo - disse a jovem  Sra.  Seidler  valentemente. Tinha decidido que seria bem valente. Mas não o conseguia muito bem. De repente, começou a soluçar:
       - Ai, meu Deus! Ai, meu Deus, que horror! Aquele lindo ganso! E o bolo! Esperamos tanto por você! E agora você não vem!
       - Mas comecem a comer o ganso enquanto não chego!
       - Sem você? Não vou conseguir engolir nada!
       - Querida, seja sensata!
       - Não quero ser sensata! Não posso ser sensata! Um ganso tão bonito...  - A jovem Sra. Seidler recomeçou a chorar.
       - Eu volto para casa logo, logo - disse ele, nervoso.
       - Que quer dizer "logo logo"?
       - Em duas, três horas no máximo - disse ele, desligando.
       A jovem Sra. Seidler também desligou. Quando pôs o fone no gancho, teve a sensação de que alguém lhe passava o dedo na espinha. Primeiro foi uma sensação bem agradável. Mas não continuou agradável. A carícia tornou-se uma pressão, a pressão um aperto, o perto uma dor súbita e sufocante.
       A jovem Sra. Seidler deu um grito curto e deixou-se cair numa poltrona.
       - O que foi? - A velha Sra. Seidler chegou depressa.
       - Já passou, .mamãe - disse a jovem Sra. Seidler, que de repente tinha gotinhas de suor na testa. E disse em voz  baixa:   - Chame  o  hospital.  Para  que  mandem  a ambulância.
       - Você acha.. .
       A jovem Sra. Seidler fez que sim:
       - Sim, eu acho que fiquei nervosa demais no telefone.  O bebê está chegando. Acho que vem um pouco antes da hora.. .
       O quarto de hora seguinte foi terrível para a pobre velha Sra. Seidler. Ela telefonou para o hospital. O hospital prometeu mandar uma ambulância em seguida. Depois, a velha Sra. Seidler tentou falar com o filho. Mas ele já não estava na Companhia de Energia Elétrica. A jovem Sra. Seidler deu um gemido abafado, porque as dores recomeçavam. A velha Sra. Seidler rezou um pouco:
       - Meu bom Deus, faça a ambulância vir logo!
       Mas a ambulância não veio. Havia desvantagens em morar no fim do mundo. A jovem Sra. Seidler sussurrou:
       - Não fique impaciente, mamãe. . .  Talvez o motorista não esteja encontrando a casa. . .
       - Bobagem! - gritou a velha Sra. Seidler. - Vou telefonar de novo!
       A enfermeira com quem falou também estava contrariada:
       - É terrível, Sra. Seidler, mas acabei de saber que nossa ambulância teve problemas com um pneu a caminho de sua casa. No momento não temos outra. Tenha paciência, por favor! Um carro vai voltar a qualquer momento! E nós o mandaremos em seguida!
       A jovem Sra. Seidler deu um suspiro. A velha Sra. Seidler perdeu a cabeça. Soltou o fone e gritou:
       - Não vou esperar mais! Não me importa! Vou correr para a rua e fazer parar o primeiro carro que passar!
       - Mas isso é impossível! - disse a jovem Sra. Seidler com esforço.
       - Impossível? - A velha Sra. Seidler deu um riso indignado. - Claro  que é possível!   Seu  marido  ficaria furioso comigo se eu não tentasse! - E sumiu.
       E agora estava ali, tremendo de nervosismo e frio, rezando:
       - Um automóvel, bom Deus, mande um automóvel passar por aqui!
       De repente, estremeceu e parou de rezar, pois ouviu ao longe um motor. Primeiro de leve, depois mais alto. Por fim, não havia mais dúvidas: um carro vinha vindo! A velha Sra. Seidler correu de braços estendidos para dentro da ofuscante luz dos faróis. O carro parou. A Sra. Seidler não conseguiu ver logo quem estava na direção. Apenas ouviu uma voz de homem:
       - What's the matter?
       Era um carro da Polícia Militar Internacional.
       Essa polícia internacional só existe na grande cidade de Viena. Logo depois da guerra, os franceses, norte-americanos, ingleses e russos se sentaram ao redor de uma grande mesa e decidiram formar uma tropa policial comum, para atender aos quatro setores da cidade. Essa tropa policial recebia automóveis com aparelhos de rádio de ondas curtas, que podiam mandar e receber mensagens. E, na central do Palácio Auersperg, havia soldados que dirigiam os carros com rádio para onde deviam atuar. Em cada carro havia um francês, um inglês, um russo e um norte-americano. Todos falavam inglês. E era um desses carros que a Sra. Seidler fizera parar. . .
       Quando se recuperou do primeiro espanto, ela disse bem alto:
       - Aquela casa ali! Ali!  Uma mulher!  Criança! Depressa,  hospital!  Entende?  - Falava um  alemão  muito ruim, na idéia muito difundida de que assim os estrangeiros a entenderiam melhor.
       E teve sorte. Há algumas palavras alemãs que todo soldado entende. Entre elas, "casa", "mulher", "criança", "hospital".
       O norte-americano que estava na direção fitou o russo ao seu lado. O russo fez um breve aceno de cabeça. Os dois saltaram para a rua sem mais palavras. O inglês compridão e o francês baixinho e amável, sentados ao fundo, foram também. Correram os quatro atrás da velha Sra. Seidler e entraram na casinha: quatro jovens soldados de quatro nações diferentes em quatro uniformes diferentes, falando três idiomas diferentes.
       Na casinha, entrementes, o ganso queimara, podia-se sentir pelo cheiro. O cheiro não era bom. Mas ninguém se importou com isso. A jovem Sra. Seidler deu um fraco sorriso quando os quatro homens entraram correndo, e disse com lábios apertados: - Hélio! - pois desejava saudar aqueles senhores.
       Os senhores agiram depressa e com segurança. O norte-americano pegou a jovem Sra. Seidler debaixo dos braços. O russo segurou-lhe as pernas. Juntos, eles a ergueram e levaram para fora. Faziam isso com grande cuidado. O francês e o inglês cuidaram para que a jovem Sra. Seidler fosse levada com grande cautela. Ajeitaram-na no fundo do carro. Sua cabeça ficou deitada no colo do inglês. O francês enrolou-lhe as pernas num cobertor. E o norte-americano arrancou com o carro. Entre ele e o russo ia sentada a velha Sra. Seidler. O russo lhe disse:
       - Tudo logo bom, mámuchka!
       O inglês disse à jovem Sra. Seidler:
       - Take it easy. A senhora muito corajosa.
       O francês segurava as pernas da jovem Sra. Seidler, pensando em sua jovem esposa que ficara em Paris. E o norte-americano vigiava a rua, sentindo uma grande responsabilidade. . .
       No hospital, tudo aconteceu muito depressa. Trouxeram uma padiola e levaram a jovem Sra. Seidler para a sala de partos. Estava mais do que em tempo. O bebê queria nascer logo.
       Os quatro soldados ficaram parados na grande, ampla e vazia sala de espera do hospital, ouvindo a velha Sra. Seidler dar o nome e dados da jovem Sra. Seidler e de seu esposo. Uma enfermeira anotava tudo.
       Havia uma árvore de Natal na sala de espera, cujas velas estavam acesas. Os quatro soldados olharam a árvore de Natal, depois olharam a enfermeira, depois olharam a velha Sra. Seidler. Sentiam-se estranhamente constrangidos e tristes. E tão longe de casa. . .
       - Nós ter de ir - disse por fim o russo. A velha Sra. Seidler deu a mão a cada um deles e disse baixinho:
       - Muito obrigada! Vocês são bons rapazes! Desejo-lhes um bom Natal.
       - Nós desejar você também, mámuchka - disse o russo. E os quatro voltaram ao seu jipe.
       Uma voz nas ondas curtas do rádio chamava impaciente por eles.
       - Baker Alfa Dois! Baker Alfa Dois! Fale!
       O norte-americano ligou o aparelho e falou:
       - Aqui, Baker Alfa Dois!
       O soldado na central do Palácio Auerspeg estava furioso:
       - Onde foi que vocês se meteram, Baker Alfa Dois? Estivemos procurando por vocês em toda a cidade! Onde andaram?
       - Levamos  uma  mulher  grávida  para   o  hospital, sargento!
       - Essa é boa! Mulher grávida! - gritou a voz. - Não acharam uma desculpa melhor, hein? Não tomaram uma cervejinha, nesse... hospital?
       - Sargento - disse o norte-americano no seu microfone -, nós levamos mesmo uma mulher grávida para o hospital!
       - Como se chama a mulher? Como se chama o marido da mulher?
       - Um momento - disse o norte-americano, virando-se para os outros. - Vocês por acaso se lembram do nome que a velha deu à enfermeira? Eu esqueci!
       Os outros refletiram. Depois sacudiram a cabeça. Estavam tão nervosos que não podiam mais lembrar. O russo tirou seu gorro de peles e coçou a cabeça. Pensou intensamente na cena na sala de espera do hospital. De repente, lembrou-se e fez o sinal-da-cruz, assustado:
       - Deus do céu, eu lembrar!  Não  sobrenome, mas nome. . .
       - E como eram os nomes? - perguntou o norte-americano.
       O russo olhou  o céu escuro. Depois olhou a terra escura. E disse baixinho:
       - Eles chamar Maria e José.
       (1950)
      
       Lisa Simmel: perdoai nossos pecados!
       "Meu querido filho!
       Quando eu me aproximar de sua cama cheia de pequenos presentes, enquanto você se recupera do abalo da suposição que o derrubou, certamente estarei tomada de grande emoção e inibição, e só posso esperar que me deixe falar em primeiro lugar. E sobre uma situação que há muito oprime todas as mães, conforme sei de muitas fontes dignas de crédito. Não preciso continuar. Você sabe a que me refiro. O Dia das Mães.
       Ano após ano, hoje, amanhã e por toda a eternidade, vocês nesse dia nos dão presentes e fazem honrarias, e nos dão, conforme o gosto pessoal e o dinheiro, ouro, incenso, mirra, meias de náilon, chocolate, entradas de cinema, rosas ou bombons. Abraçam-nos e beijam-nos. Protestam amor. Honram-nos, colocam-nos num pedestal e nos adoram. É assim que quer o costume. Pois a mãe é um ser sagrado, guardadora da chama, doadora da vida. Todo mundo habituou-se a isso, quem pensa de outro modo está errado. Ou desagrada. Por isso, ninguém se arrisca.
       Mas está na hora de que alguém finalmente veja a coisa de outro lado, aquele que se chama: 'o outro lado'. É que existe um outro lado. Aquele onde estão todas as mães que erraram, falharam, pecaram e agiram mal. Infelizmente, esse outro lado é grande. Sei do que falo. Eu mesma sou mãe. (Você vai confirmar isso.) E também tenho meus pontos obscuros. Embora me arrependa deles de todo o coração e procure desfazê-los.
       Como eu disse, não é habitual, é considerado tabu falar nisso, mas esta semana assisti a uma 'mesa-redonda' em que prisioneiros juvenis falavam, e desde então não me parece mais tabu. E agora vou falar no assunto.
       Os jovens criminosos todos tinham mães. Mães divorciadas, mães que eles não amavam, mães que não os amavam, mães que os enxotavam, mães que tinham fugido com outro homem. Ou muitos outros homens. Mães nas quais a gente não podia confiar. Mães que traíam seus filhos.
       Nada aconteceu a essas mães. Apenas mentiram, enganaram, traíram e enxotaram. Mas seus filhos estão na prisão. E têm de reparar o mal que elas causaram.
       Mas isso seria apenas o começo! Há muitas outras que fizeram injustiça. Todas cometemos injustiças uma vez ou outra. Todas abandonamos nossos filhos uma vez ou outra, quando precisavam de nós. Fomos implacáveis contra suas noivas ou amigos. Nem sempre lhes demos o quarto mais iluminado de que precisavam, e nem sempre estivemos ao seu lado quando teriam precisado de uma mãe sorridente que jogasse bola e saltasse com eles nas águas do velho Danúbio. Não lhes tiramos os soldados de chumbo e não lhes ensinamos que nada na vida é maior do que a dignidade humana. Nós os obrigamos a seguir profissões indesejadas, nós os deixamos ir para a guerra e, quando regressaram, já não os entendíamos mais. Nem sempre entendemos sua música, nem sua inquietação, seu desespero e sua tristeza. Muitas vezes dormimos em lugar de vigiar com vocês, filhos, ou os mantivemos acordados com censuras quando teriam precisado dormir. Muitas vezes nós, mães, fomos egoístas, mesquinhas, infantis e pouco compreensivas - e muito do que lhes fizemos ainda hoje tem em vocês seus frutos perniciosos.
       Encarando a coisa por esse lado, na verdade é um milagre que ainda assim vocês tenham crescido tão eretos, e tenham juízo perfeito! Pois fizemos tudo o que podíamos de errado. Nem sempre, mas muitas vezes. Não de propósito, mas generosamente. Nem todas, mas muitas de nós. E não por falta de caráter, mas porque muitas vezes é terrivelmente difícil ser mãe. Tão difícil que vocês nem podem imaginar! Geralmente a gente nem sabe em que está se metendo quando a coisa assume seu conhecido início biológico. E com isso eu, que já acusei bastante a nós, teria chegado aonde desejo, a fim de pedir de coração que todos vocês, filhos, nos perdoem. Pois no fundo somos todas pobres criaturas carentes de amor. E nem todas cometemos os pecados que mencionei. Muitas de nós deixamos de cometer um ou outro. É que, sendo mães, temos também algo de anjos!
       Mas nem por isso, de vez em quando, não sucede o contrário1 Muitas vezes acertamos, estivemos ao lado de vocês quando precisaram de nós, nadamos com vocês no Danúbio e escalamos o Hermannkogel, e compreendemos suas preocupações e os ajudamos. E por isso, penso eu, o problema tem de ser encarado dos dois lados.
       Que acham vocês? Podem nos perdoar? Querem perdoar nossos pecados, os que cometemos e os que porventura venhamos a cometer? E querem acreditar em nós quando dizemos que, apesar disso, vocês foram e serão sempre o único motivo de nossas vidas?
       Por favor, responda logo!
       Sua mãe que o ama muito."
       "OK! Seu filho que a ama muito "
       (1963)
      
       O "todo mundo" de todo mundo
       Não tenha medo: vai-se falar pouco ou nada, aqui, sobre o "todo mundo". O artigo, na verdade, tem seu título unicamente porque seu autor não pôde resistir à tentação de usá-lo. Não; a morte de um homem rico (que na minha e sua opinião está demorando demais a morrer) será mencionada aqui unicamente na medida em que for inevitável e estiver relacionada com os festivais de Salzburgo. Vocês sabem: Salzburgo, aquela cidade no coração da Áustria, onde nos dias de hoje a gente se ajeita muito bem com algumas palavras em húngaro; aquela cidade na qual nos dias de hoje os noticiaristas dos melhores jornais vienenses participam aos seus leitores o que acharam dos diversos acontecimentos culturais da cidade; aquela cidade cujos moradores com tendências artísticas estão decididos a viver bem um ano inteiro com aquilo que recebem nesse dia. Em uma palavra: Salzburgo. Vocês já sabem.
       Por ter se espalhado que mesmo nesses dias uma parte da população da Áustria fica em casa, as estações de rádio do nosso país resolveram altruisticamente transmitir o programa dos festejos. Dessa maneira, só três categorias de cidadãos perderão o prazer de uma participação acústica: os que não têm rádio, os que não têm tempo de se sentar perto dele e, finalmente, os que não ouvem. Os da primeira categoria podem remediar o fato procurando amigos. Os da última não tirariam proveito nem mesmo de uma viagem a Salzburgo. No domingo, 31 de julho, as emissoras transmitiram o primeiro concerto de Mozart. Às doze horas e trinta e três minutos, hora da Europa Central, ouviu-se o Ave Verum Na segunda-feira, o autor destas linhas falou com quatro pessoas que tinham ficado em Viena. Chamavam-se: Sra. Francisca Hellberg, Sr. José Kriehuber, Srta. Ana Pichler e Sr. Matias Wiemann (nem aparentado nem igual ao ator de mesmo nome). As quatro pessoas tinham uma coisa em comum: todas tinham escutado o Ave Verum no domingo, às doze horas e trinta e três minutos, hora da Europa Central. Por isso fizemos aos quatro a mesma pergunta:
       - O que estava fazendo a essa hora?
       Primeiro, demos a palavra à Sra. Francisca Hellberg:
       - Eu  estava  fazendo  mudança.  Durante  a  semana estou sempre ocupada. O domingo é meu dia livre. Porque é meu dia livre, ocupei-o fazendo malas. Como deve lembrar-se, estava muito quente. Fechara todas as janelas e trabalhava de maio. Meu apartamento parecia mais ou menos o acampamento de Wallenstein na época da maior desordem. Parte dos móveis já se fora. Montes de roupas empilhavam-se  na  geladeira.  Havia  livros  nos  cestos  de roupa. O divã estava coberto de louças. No assoalho, debaixo da janela, estava o rádio. Ele tocara a manhã toda. Mas às doze horas e trinta e três minutos, quando começou o Ave Verum, foi que notei que estava ligado. Larguei a pilha de toalhas de banho que estava querendo pôr na mala e limpei o suor da testa. Depois sentei-me ao lado do rádio, encostei-me na parede e fechei os olhos. E de repente tive uma sensação muito solene. Esqueci o calor, o trabalho, o lugar. Apenas ouvia a música. Quando o Ave Verum terminou, guardei as toalhas. Foi esse o meu festival de Salzburgo de 1949.
       O Sr. José Kriehuber declarou:
       - Sou   empregado   de   um   posto   de   gasolina   em Hietzing. Não tenho rádio. Ao meio-dia de domingo, chegou um homem com seu Steyr 220. O homem estava com a família: mulher e filhos. Além disso, havia rádio no seu carro. O rádio estava ligado. Ouvi música. O homem queria gasolina. E alguma coisa na parte elétrica não estava funcionando, disse ele. Forneci gasolina e óleo, e abri o capo do motor para dar uma olhada nas velas. Deviam ser doze horas e trinta e três minutos.  Pois, de repente, o homem disse: "Venha cá!" Obedeci e ele apontou para o radiozinho,   dizendo:   "Mozart".   Então   ouvimos   o   Ave Verum. O homem, sua mulher, as crianças e eu. As duas crianças ficaram bem quietas; o homem até tirou o charuto da boca e jogou-o fora, como se o gosto estivesse ruim. Era um ótimo charuto. Com anel e tudo. Quando o Ave Verum acabou, eu me levantei e arrumei as velas. O homem agradeceu. Primeiro me deu a mão e depois cinco xelins de gorjeta. Acho que ele gostava muito de Mozart.
       A Srta. Ana Pichler primeiro não conseguiu se lembrar. Depois disse:
       - Ah, é claro! Agora me lembro. Sou datilografa. E tinha recebido um novo trabalho. Datilografar um romance. Comecei a bater de manhã cedo, pois a esta hora sempre é bem fresquinho. Pelo meio-dia minhas costas doíam e perguntei ao meu senhorio se podia tomar banho. (Moro num quarto alugado.) Sentei-me na banheira. Deixei a porta do quarto aberta. Isso dá um cansaço gostoso. Eram exatamente doze horas e trinta e três minutos quando entrei na água fria e começou o Ave Verum. Mas nem fiquei cansada! Fiquei  só um pouco  triste, mas era uma  tristeza muito agradável. Só fiquei triste porque a música era muito bonita e eu me sentia muito bem. Minhas costas nem doíam mais e eu imaginei como me assentaria bem o vestido novo; depois, tive saudade. De quê? não sei. . .
       O Sr. Matias Wiemann disse:
       - Sou motorista. Dirijo um ônibus de Kaisermuhler para Lobau, ida e volta. Cada viagem dura quarenta minutos. Meu ônibus tem rádio. Está meio estragado, como o ônibus. No domingo sempre há muito trabalho. Especialmente quando faz tempo bom. Pois muitas pessoas vão à praia.  Ó domingo estava bonito. E havia  muito  serviço mesmo. Às doze horas e trinta e três minutos eu estava a caminho de Lobau. O ônibus estava cheio e todo mundo falava, na maior confusão.  Liguei o rádio porque estava muito chateado. De repente, ouvimos a música. Eu não sabia que era o Ave Verum e acho que a maior parte das pessoas tampouco sabia. Mas de repente ficou tudo muito quieto  ao  meu  redor,  e,  mesmo  quando  eu  entrava  em algum buraco muito grande, ninguém reclamava. E porque a viagem perturbava a  transmissão radiofônica, parei na beira da estrada. Ao lado de um imenso trigal. Até que o Ave Verum terminou. Depois continuei a viagem.
       Esse é o resultado da nossa pesquisa. Finalmente   constatei   que   nem   se   falou   no   "todo mundo".
       Ou sim?
       (1952)
      
       Romeu e Julieta
       A história que contaremos aqui não é nova. Tem muitos modelos clássicos. É, por assim dizer, uma história eterna. Só que desta vez os heróis não se chamam Romeu e Julieta, mas Franz e Ana. Mas isso é secundário. O principal com Romeu e Julieta, como devem lembrar-se, não eram seus nomes. O principal era o amor. E o amor também é o principal na nossa história.
       Tudo começou numa grande casa senhorial no cottage de Viena. A casa era tão grande que no seu parque havia uma casa de jardineiros, ao lado da garagem. E a casa de jardineiros ainda era uma casa bastante respeitável. Nela moravam os Stufenhorst. Na verdade eram "Von" Stufenhorst, mas há anos tinham riscado o "von". Também haviam riscado de sua vida uma porção de outras coisas, pois tinham ficado pobres. Um dia haviam morado na casa senhorial, com criados, recepções, lustres de prata, candelabros de prata, e muito, muito dinheiro.
       Pois bem.
       Agora moram na casa de jardineiro: o pai, a mãe e Ana, a filha de dezessete anos. Só a velha Mila ficara com eles: a ama de Ana. Esta fazia agora o trabalho de toda a antiga criadagem. Os outros criados ainda moravam na casa grande, mas tinham outros patrões: os senhores que haviam alugado a casa depois da guerra, uma certa família wambausek. Eram pai, mãe e filho. Ó filho se chamava Franz, Franz Wambausek. Não era um nome aristocrático. Mas também não se tratava de uma família aristocrática. Exportação e importação. Com um Buick Eight. E muito, muito dinheiro; não se sabia bem de onde vinha, mas vinha. O Sr. Wambausek era um comerciante muito trabalhador. Além disso, sua aparência combinava com o nome, e os Stufenhorst o evitavam. Achavam que cheirava a banha.
       O Sr. Wambausek, por sua vez, achava que os Stufenhorst eram um bando de gente muito arrogante e tentou muitas vezes conseguir que se mudassem dali. Pois desejava transformar a casa de jardineiros em casa de hóspedes. O Sr. Wambausek tinha muitos hóspedes. Hóspedes ordinários, tanto os homens como as mulheres. Provavelmente eram todos grandes vendedores de verduras e mulheres de bar. Bebiam muito, faziam barulho, costumavam andar pelo parque de madrugada, berrando, guinchando e arrancando do sono os Stufenhorst com o ruído de suas limusines.
       Os Stufenhorst recusaram energicamente mudar de moradia. Se já não podiam morar na própria casa, ao menos queriam vê-la! Com sua recusa a se mudarem dali, provocaram algo parecido com um estado de guerra. Aristocracia do dinheiro contra aristocracia nata, ou como queiram chamar. Mesmo os criados participavam dela. Mila em breve se envolveu numa verdadeira guerra civil contra eles, em casa, na rua, no armazém.
       Essa guerra tinha seus lados cômicos e também trágicos. O trágico começou quando um dia, por ocasião de um encontro no parque, Franz e Ana descobriram que gostavam imensamente um do outro. Primeiro tudo transcorreu maravilhosamente: Franz convidou Ana para um sorvete na praça, dançaram um pouco e a cada minuto gostavam mais um do outro. Só quando chegaram a casa a coisa estourou. Um criado vira os dois, e depressa contou ao pai de Franz. Este teve com seu filho uma verdadeira briga de wambausek. Com todos os requintes. Ao mesmo tempo, de maneira muito mais nobre, o Sr. (Von) Stufenhorst falava com sua filha. Achava que ela devia ser ajuizada. Não tinha nada contra Franz enquanto Franz. Mas tinha tudo contra Franz enquanto Franz Wambausek. Afinal, a gente tinha dignidade, não tinha?
       Os senhores sabem que o amor é uma força dos céus. Os jovens não ligavam para o que os pais lhes diziam. Apenas passaram a se encontrar secretamente, quando se encontravam. Com o tempo, acharam que não apenas gostavam imensamente um do outro, mas que estavam apaixonados. Apaixonados acima de qualquer medida. Constataram isso num passeio de barco pelo Danúbio.
       Naturalmente descobriu-se de novo que Franz e Ana não obedeciam às ordens dos pais, e o resultado foi que Franz recebeu umas bofetadas do velho Wambausek, e Ana recebeu de (Von) Stufenhorst o castigo de ficar presa em casa. Pois Stufenhorst estudara a psicologia infantil de Adler, e era contra castigos corporais.
       Mas o quartinho de Ana tinha uma sacada. Na escuridão da noite, Franz apareceu diante dessa sacada e assobiou. Ana fez descer uma corda de roupa (não tinha culpa da semelhança com Romeu e Julieta), e Franz subiu. E passou a noite com sua amada. Não é culpa do cronista se ele tem de relatar que havia um rouxinol cantando no jardim. Rouxinóis fazem isso, às vezes. Que se pode fazer?
       A desgraça aproximava-se rapidamente: naquela mesma hora, Wambausek dava uma recepção em sua casa. Quando, pela manhã, os convidados, muito alcoolizados, cambaleavam aos berros pelo parque, viram um rapaz descendo da sacada da casa do jardineiro.
       A ira de Wambausek não teve limites. Dessa vez decidiu agir. (Ele chamava a isso agir.) Arranjou para o filho um emprego com um comerciante em Linz, e tratou de que seu rebento partisse o quanto antes. Mas não conseguiu. Franz e Ana, na maior aflição, decidiram-se por uma ação extrema: prepararam sua fuga. Franz vendeu o relógio de pulso, dois ternos e sua motocicleta; de noite, saiu da casa paterna com Ana, pegou um táxi e conseguiu alcançar ainda o Expresso de Arlberg. Quando os pais dos dois avisaram a polícia, Franz e Ana já estavam a oeste do Enns. Chegando a Salzburgo, viram que a Áustria era insegura demais para eles. Tiveram de continuar fugindo. Para o exterior. Havia apenas um problema: nenhum dos dois possuía passaporte. Começaram a tomar informações e descobriram que alguns húngaros humanitários mantinham ativa relação com a Alemanha para situações desse tipo. Dispuseram-se, por dinheiro, a levar os dois pela fronteira, feito contrabando. Franz e Ana declararam-se dispostos, cada um levando sua maleta.
       A expedição - que transcorreu de noite, com tempestade e nevoeiro - fracassou. A polícia da fronteira apanhou todo o grupo. Franz e Ana negaram-se a dar seus verdadeiros nomes e dados. Tinham deixado em Salzburgo todos os seus papéis. Examinando sua bagagem, constatou-se que as duas maletinhas estavam cheias de drogas. Seria pedir demais à polícia que acreditasse que os dois nada sabiam do caso. E ninguém pediu isso à polícia. Nem ela acreditou. Mas prendeu Franz e Ana e os outros senhores do pequeno grupo da fronteira. Os senhores foram para uma prisão. Ana para outra. Assim, Franz e Ana ficaram separados, numa situação pior do que antes.
       Ana travou alguns conhecimentos muito interessantes na prisão. Ouviu dizer, entre outras coisas, como era simples fugir do hospital da prisão. Esperando poder fazer isso, certa noite tomou uma dose grande de Veronal. Descobriram muito tarde a moça inconsciente. E seu estado parecia tão grave, que mandaram vir Franz, por quem ela chamava em seu delírio. Na cama de Ana, que oscilava entre a vida e a morte, os dois amantes se reencontraram: Franz acompanhado de um policial e Ana vigiada por uma enfermeira da prisão. Foi um triste reencontro, mas ao menos era um reencontro.
       A arte dos médicos venceu a morte. Ana ainda vivia. E um bom repórter farejou o caso todo. De repente, jornais e rádio tinham a sua sensação. Todo o país falava de "Romeu e Julieta 1950". O processo contra eles ficou esvaziado. Quando foram soltos, o chefe de uma grande companhia de cinema já os estava esperando. Queria fazer um filme sobre Franz e Ana. Um filme sobre o amor, que ainda existia, mesmo em 1950, e que vencia todos os obstáculos. No contrato que apresentou a Ana, estava escrito que ela teria de comprometer-se a não ter um bebê durante a filmagem. Ana recusou. Disse que já não podia cumprir essa condição.
       E mais uma vez os jornais tiveram a sua sensação.
       Franz e Ana voltaram a Viena. Passaram a morar num quartinho alugado. Disseram que queriam voltar para casa só quando os pais permitissem o casamento.
       Mas os pais continuavam irredutíveis. O Sr. (Von) Stufenhorst disse que preferia um neto bastardo a um neto da família Wambausek. Então, pressionado pela opinião pública, o Estado interveio. O bom advogado K. encontrou um parágrafo de absoluta emergência, em que o Estado assumia a tutela da moça (Franz era maior de idade), e podia dá-la como esposa a um homem se os pais fossem incompetentes moralmente, ou por insensatez.
       Num tribunal, o Estado, tantas vezes já mencionado, determinou que, contra a vontade paterna, Franz e Ana tinham o direito de se casar.
       Foi o que fizeram, na Igreja de Santo Estevão, em Viena. No ano de 1950. Com música de órgão. Com a participação recorde da população. Quando foram trocadas as alianças e o matrimônio estava consumado, os Stufenhorst e Wambausek deram-se por vencidos: abençoaram seus filhos com lágrimas nos olhos.
       O amor vencera uma prova que parecia invencível.
       (l 950)
      
       As folhas caem. . .
       Desperdiçamos nosso tempo à medida em que a vida passa.
       Lemos que nada é duradouro, só a mudança permanece e só o momento presente é eterno. Nascemos sem sermos interrogados, passamos breves anos de nossa vida derramando sangue, suor e lágrimas em direção do nosso fim, e também ninguém nos pergunta sobre nossos desejos quanto a esse fim. O verão se vai, o inverno chega, mais uma vez é primavera, e o mesmo sol nos ilumina hoje como sempre. Só às vezes, e por alguns segundos, julgamos entender que somos feitos de um "material de sonho", e que "nosso pequeno ser está rodeado apenas por um profundo sono"." Estamos constantemente nos transformando, não somos nunca os mesmos. O que ganhamos em experiência perdemos em coragem. No fim da vida, somos de novo crianças temendo a morte. Que nos resta, então?
       Quem sabe? Talvez a lembrança.
       Eu me lembro - por exemplo - da manhã de 1.° de outubro. Estava junto à janela, pensando na cadeia de anos que tinham passado para mim, para você e para todos nós, nas muitas vezes em que na minha vida as folhas caíram das árvores, e nas muitas vezes em que olhei o céu lá em cima, cinzento como aço, e imóvel. Onde as neves do inverno passado? Onde minha dor, minha alegria de ontem? Desfeitas, idas, esquecidas.
       E era de novo outono. Não por muito tempo. Depois virá o inverno. E depois os ventos quentes e as noites claras, e por algum tempo uma lua estivai deslizará sobre o céu escuro em direção do oeste. Mas naquela manhã as folhas caíam das árvores, e eu lembrava. Quando era pequeno. .. as folhas também caíam assim, quietas e persistentes, ano após ano. Caíam sobre sepulturas e sobre automóveis maravilhosos, sobre o cabelo de meninas que hoje são mulheres. Lembro tudo isso muito bem: as tardes no parque, as horas do crepúsculo em que a gente volta para casa de um passeio, excitado e aquecido, escutando histórias de fadas, elfos e rainhas más que minha boa mãe contava: a história de Hans, o felizardo, que trocava por objetos sem valor uma pepita de ouro do tamanho de uma cabeça, mas cada dia ficava mais feliz; do jovem que partiu para aprender o temor de maneiras horríveis; e do homenzinho da floresta, tão feliz, ah, tão feliz porque ninguém sabia que ele se chamava Rumpelstiltskin.
       Depois eu ia à escola, e, quando as folhas caíam de novo, escrevíamos uma composição na aula de alemão, com o título: "O outono chegou!" Meu Deus, como tudo isso está distante, distante! E ainda me lembro bem, e não desejo jamais esquecer. Uma vez um amigo me abandonou quando as folhas caíam. Estava muito frio e eu me sentia infeliz. E uma vez, num outro ano, uma moça me beijou quando as folhas caíam, e eu me sentia feliz, muito feliz enquanto a segurava nos meus braços. Atrás de mim, ouvia o leve passo do tempo que nos seguia e ia sempre adiante, levando-nos para dentro de um risonho verão. Lembrei-me de uma viagem pela Hungria e da pequena carruagem puxada por cavalos, que nos levava por uma ampla pradaria ao encontro da cidade e da fronteira.
       Lembrei-me das ruínas no outono e de trouxas pretas e imóveis que um dia tinham sido pessoas, mas agora estavam congeladas na terra, grudadas no elemento em que em breve se transformariam. Em todos os anos da minha vida caíam as folhas, sempre outras e sempre iguais. Pois, se acreditarmos, não há nada de novo debaixo do sol. Tudo o que vivemos, outros antes de nós viveram; tudo o que vemos outros já viram, nossa alegria foi sua alegria e suas lágrimas eram salgadas como as nossas.
       Pensei que um dia meus filhos estariam parados junto de alguma janela, refletindo sobre as folhas caindo, lembrando o passado, pensando em seus filhos - meus netos - como o fizeram meu pai e meu avô. Também meu pai, estou certo, ficou comovido com a constante insegurança e total ausência de permanência deste mundo. A inutilidade do desejo de permanecer nele ficou tão clara quanto para mim, que cem anos depois tenho desejo de segurança.
       Todos nós, não importa onde estejamos, sentimos a mesma coisa. Mas com a experiência, acabamos adquirindo valores diversos de sentimento, e esquecemos que as folhas caem para todos nós, como o sol nasceu para todos nós, ou o vento sopra para todos nós; que alguém, em algum lugar do mundo, será sempre abandonado, quando chove; que alguém, em algum lugar do mundo, sempre se sentirá feliz porque está vivo; e que, se não for a vida, ao menos a morte nos fará de novo irmãos.
       Fiquei parado junto à minha janela, pensando na grande comunidade de todas as pessoas à qual pertenço; ela passa e retorna, chega à terra, fica um tempo, sempre se renova. Uma só folha não tem significação, nem sentido, nem finalidade. Mas, junto com incontáveis outras, traz o outono. Eu mesmo, isolado, não faço sentido, não tenho significação nem finalidade. Mas, junto com incontáveis outros, tornei-me essa figura singular que chamamos humanidade. Nela minha vida tem sentido, nela me torno um ser humano. Pensei que nunca nos devíamos sentir sozinhos, pois precisamos uns dos outros; eu de você, você de mim. Para a eternidade, somos apenas folhas secas, mas também podemos encantar o mundo juntos.
       Meu cachimbo apagara. Fui até a prateleira de livros para ler umas linhas que o homem chamado John Donne escreveu há muito tempo. Gosto muito delas. Enquanto as folhas continuam caindo lá fora, leio:
       "Ninguém é uma ilha, totalmente sozinho. Todos são um pedaço de um continente, uma parte de terra firme. Se o mar carrega um torrão, toda a Europa empobrece, assim como se fosse tragado um braço de terra ou um castelo que pertenceu a teus amigos ou a ti mesmo. A morte de qualquer um me torna mais pobre, pois estou enredado no mundo dos homens. Portanto não peças jamais para saber quem será atingido. Tu serás sempre o atingido".
       (1957)
      
       Dizem que um dia a Terra foi um paraíso
       Era uma vez um homem que estava entre os mais talentosos e lidos escritores da Alemanha. Seus livros vendiam como água. Adultos e crianças liam seus livros de literatura infantil. Com seus textos, ele por assim dizer fundou uma escola. Muitas pessoas os aprenderam de cor. Seus escritos eram muito alegres e muito tristes, e sempre as duas coisas ao mesmo tempo. O homem que os escrevia conhecia a vida nos aspectos íntimos e formais, conhecia toda a sujeira que temos de enfrentar. Sabia a letra de muitas canções. E muitas vezes seu coração doía ao escrever. Pois ele não escrevia só com a mão. Dizia coisas muito amargas e tristes sobre as pessoas, mas sempre acreditou nelas. "A Terra", escreveu, "dizem que um dia foi um paraíso. Pode ser. A Terra poderia ser de novo um paraíso. Tudo é possível." O homem de quem estamos falando teve sucesso. Por vezes, também teve dinheiro, assim como todo mundo eventualmente tem dinheiro. De resto, o homem - pelo menos disse isso diante de amigos - tinha um coração fraco e por isso só podia beber fino champanha. O homem tinha título de doutor. E parecia-se com o ator Erich Ponto. Só que era mais moço. E, por fim, o homem tinha também uma mãe. E amava essa mãe. Podia-se ver isso claramente, embora a gente não o conhecesse pessoalmente. Bastava ler seus livros.
       Podia-se encontrar essa mãe no A sala de aula voadora, e no Fabian, e nos Três homens na neve e no Emílio e os detetives Deve ter sido uma mãe extraordinariamente boa, pois o filho a amava extraordinariamente. Quando os nazistas vieram, esse homem passou maus pedaços. Primeiro, nem pôde mais escrever. Depois, queimaram seus livros. E trataram-no muito mal. Outras pessoas, nessa situação, deixaram o país. O homem de quem falamos podia ter feito o mesmo. Mas não o fez. Ele ficou. Ficou por causa de sua mãe, que era uma mulher idosa e não desejava emigrar. Ele ficou e sobreviveu. A 23 de fevereiro fará cinqüenta anos. O homem de quem estamos falando se chama Erich Kästner.
       Ele nasceu e cresceu em Dresden. Foi para Leipzig, estudou e trabalhou no jornal Leipziger Neueste Nachrichten. Depois foi para Berlim, onde se tornou conhecido por seus poemas. Escreveu alternadamente com Erich Weinert para o Montag Morgen. Depois, foi ao cabaré e causou sensação local com sua Canção do Magistrado Karsch
       De seus livros infantis, Emílio e os detetives foi filmado. Os poemas do Sr. Erich Kästner encontravam-se em antologias com títulos como Ruído no espelho, Coração na cintura, Um homem informa, Canção entre cadeiras, e Farmácia doméstica lírica, por todo o país, e nos lugares mais inusitados.
       Entre 1934 e 1945 nada se soube de Kästner. Estava calado. Seus amigos o viam regularmente no Café Léon, na Kurfürstendamm. Ainda bebia champanha (porque tinha, afinal, o coração fraco). Além disso, escrevia obstinadamente numa mesinha de mármore na qual se sentava. Mas quando alguém chegava perto, ele tapava o escrito.
       Hoje pode-se falar nisso tranqüilamente. Por exemplo, sobre o filme Münchhausen. O roteiro é de um certo Berthold Bürger. E esse era na realidade o Dr. Erich Kästner. Em contrapartida, Filho pela vida inteira foi escrito por um tal Hubert Neuner. E esse também era o Dr. Erich Kästner. E o livro Pequeno movimento na fronteira era igualmente dele.
       Mas finalmente tudo isso acabou, ninguém mais escrevia com pseudônimo, e o Sr. Kästner ainda estava sentado no Café Léon, bebendo champanha. Porque tinha o coração muito fraco. E seus amigos quebravam a cabeça para saber onde conseguia o dinheiro necessário. Ainda estão quebrando a cabeça.
       Em 1945, Kästner tornou-se redator de folhetins do jornal americano em Munique, o Neue Zeitung. Um pouco mais tarde abriu seu próprio cabaré, Die Schaubude. E terminou um novo livro. O Sr. Erich Kästner tem muito que fazer.
       Servem para ele os versos que escreveu sobre seu clássico predileto, Ephraim Lessing: "Ele era só e lutou honestamente e quebrou as vidraças do tempo. Nada no mundo torna alguém tão perigoso como ser solitário e corajoso". Na verdade, Kästner não está sozinho. Muitas pessoas de quem ele se tornou porta-voz, com seus livros e. poemas, sentem e pensam como ele. É uma gigantesca comunidade de alguns milhões de pessoas, certamente, que ele não conhece de nome, e que, como ele, acredita que só com tolerância e humanidade podemos nos salvar, e não com terror ou lavagem cerebral; só com humor e inteligência, não com perversidade policial e berros de líderes de massas. Os que, como ele, acreditam que temos de manter nossa dignidade humana e nossos direitos humanos, respeitar o próximo e preocupar-nos especialmente com o que chamamos "liberdade". Aquela liberdade real, interior, da qual hoje se fala em toda parte, mas conforme a qual muito pouco se age.
       Erich Kästner pode dizer sobre si mesmo que conquistou essa liberdade. Para mim, que escrevo estas linhas, é uma honra poder constatar isso. Para o Sr. Kästner, é uma honra muito maior que alguém que não o conheça possa constatar ao menos isso.
       (1949)
      
       A primavera se aproxima
       É horrível o quanto se tem que fazer!
       Mal se passou por Kitz e Arlberg, e já é preciso providenciar novamente as roupas de primavera. E os papéis para a viagem à Riviera. O ano todo, nada de descanso! Meu Deus, o que eu não daria para ter menos compromissos sociais! É um grande erro pensar que o dinheiro traz felicidade. Ao contrário, nos torna cansados, deprimidos e velhos.
       Por exemplo, o carro do meu marido. Um Steyr 220. Ainda podemos aparecer com ele diante do portal do bar Old Vienna? Você levanta as mãos horrorizado: mas que idéia! Muito bem. Então um carro novo, não é? Mas você não imagina quanto esforço custa conseguir um carro desses. Os cinqüenta e seis mil xelins são secundários. Mas as correrias! Banco Nacional, Banco Nacional, e de novo Banco Nacional. Por causa dessas divisas bestas. As pessoas não têm inteligência. E ainda se diz que vivemos numa democracia! Tudo fita! Se fôssemos um povo culturalmente aberto, teríamos automóveis modernos à vontade.
       Deus do céu, já onze e meia! Claire está esperando por mim no Terraço. Á tarde tenho de tomar chá com John. E à noite preciso ir sentar-me com o nojento do Vavrenko. Para que ele seja bonzinho e compre de meu marido aqueles quatro vagões de chumbo. Ainda por cima tenho de me maquilar. E buscar o traje de Pepita.
       Como eu já disse, a primavera me deixa doente.
       Ontem o sol já estava bem quente no parque.
       Agora vem a época mais bonita do ano para mim. Por volta de uma hora, após tomar a minha sopa, sento-me no banco debaixo do castanheiro e olho as crianças que brincam nos caminhos de cascalho. O sol bate no meu estômago, sinto-me agradavelmente saciada, e não tenho nada para fazer até as seis horas. E então, quando volto para casa, estou muito cansada e durmo profundamente.
       A menininha ali tem um aventalzinho branco. Marianinha tinha um igual. E quando ela brincava no parque eu ficava sentada com o meu falecido e segurava a mão dele e sorria. Mas isso já faz trinta e oito anos. . .
       Mais tarde veio o Carlos, e eles brincavam juntos. Todas as primaveras. Ainda me lembro direitinho. Às vezes, depois do dia 1.°, íamos à confeitaria tomar iogurte. E o meu falecido fumava um charuto Virgínia. Embora nem fosse domingo. E por toda parte os arbustos floriam e havia florzinhas coloridas, bem como hoje, como se nada tivesse mudado.
       Muita coisa mudou. Meu falecido morreu há dez anos. Marianinha mora em Graz, casada com um fiscal de impostos. Ela tem saúde. Só lhe falta dinheiro.
       Carlos mora em Salzburgo. Temos muito contato familiar. Todas as semanas chega uma carta dele. E cada sábado um pacote de roupa suja. Eu insisti nisso: para que gastaria ele dinheiro inutilmente? Já lavei tanta roupa, seria o cúmulo se eu não pudesse lavar as camisas do meu filho! Esperei muito que ele pudesse vir no meu aniversário. Mas não deu; ele tinha muito o que fazer. Acho que é por causa da sua noiva. Carlos não me manda a fotografia dela. Mas eu bem que pedi. Espero que ela seja boa. Há tantas mulheres ruins. Talvez ele venha na Páscoa. Será bonito. Não sei por quê, mas na primavera sempre tenho mais saudades dele. Por isso de noite vou às vezes para a estação de trens do oeste, e espero que chegue o expresso de Salzburgo. Então ouço a locomotiva apitando, as pessoas descem dos vagões e passam correndo por mim. Esbarram em mim, por toda parte filhos caem nos braços de suas mães e riem e chamam-se uns aos outros.
       Quando as últimas pessoas vão embora, eu também vou. Um pouco triste. E quando então me deito na minha cama e não posso dormir logo, imagino como fui feliz quando ainda estávamos todos juntos... e nos sentávamos no parque. . . e meu falecido fumava seu Virgínia. Embora o médico tivesse proibido. Eu me alegro com a primavera. Porque então não faz mais frio. E porque as flores florescem de novo.
       Mas eu desejava mesmo era que as crianças permanecessem pequenas. . .
       Mal a gente se recuperou um pouco, já vem a primavera. Uma miséria! Meu amigo Ferdinando, que trabalhou com carvão todo o inverno, diz que vai me matar. Está todo quebrado, pobre-diabo. Bom, mas também é uma malvadeza: como é que ele vai viver agora? E já que estamos falando nisso: de que é que eu vou viver? O melhor tempo foi lá pelo Natal. O negócio prosperando! Trabalhei em quatro cinemas de filmes de estréia, numa tarde vendi quarenta e cinco blocos de entradas. Com um total de até cento e cinqüenta xelins. Mas agora que está ficando quente, os clientes somem. A maioria prefere ficar sentada ao sol. E os donos de cinema idiotas! Agora que os cinemas estão vazios de tarde, apresentam filmes sem graça. E logo depois de um filme de suspense tão bom quanto A fera de sete dedos! Puro desperdício de capital!
       O Pepe do Cinema Elite teve um esgotamento nervoso. Faz três dias que chora e dizem que está firmemente decidido: quer voltar para a fábrica. Isso me deixou muito deprimido. Eu pergunto: quem tem culpa de toda essa miséria? Quem?
       Claro: a primavera!
       Quando levanto os olhos do torno, entre nove horas e trinta e quatro minutos e dez horas e onze minutos, o sol bate no meu rosto. Lá em cima, na janela, ao lado da máquina, há um pedaço quebrado no vidro leitoso. A gente pode ver o céu azul. E às vezes uma nuvenzinha, que parece um camundongo. Ou um coelhinho.
       Assim todo mundo na tornearia percebe que a primavera chegou. Agora tenho de ver como consigo um adiantamento: minha patroa precisa de sapatos novos. E o Chico precisa de um casaquinho. Está sempre todo suado quando chega do colégio. Bom, de algum jeito vai dar. Lá embaixo, na esquina, um mulher vende Schneeglöckchen (nota da tradução : Flores típicas do início da primavera em alguns lugares da Europa .Fim da nota). Acho que esta noite vou comprar um buquezinho. Maria gosta tanto de flores! E vai ficar contente.
       O médico disse que se ela ficar contente vai sarar mais depressa. E por que ela não se alegraria? Afinal, é primavera. Ou não é?
       (1948)
      
       P.S.: A paz na terra
       De todas as grandes e belas lojas de brinquedos de Munique, aquela era a maior e a mais bonita. Era quase um supermercado de brinquedos. Com árvores de Natal com iluminação elétrica, música de Natal incessante nos discos, em alto-falantes, uma seção no primeiro andar e outra no segundo, incontáveis vendedores e fregueses, grandes e pequenos. Os fregueses grandes seguravam os pequenos pela mão, e os fregueses pequenos admiravam, boquiabertos e ofegantes, tudo o que havia para admirar ali. Comprimiam-se em torno da mesa enorme com o trem enorme, cujos vagões corriam feito loucos nos trilhos de brinquedo, folheavam os livros coloridos e examinavam bonecas que sabiam dizer papai e mamãe quando a gente as deitava. Por toda parte, no térreo, no primeiro e no segundo andares, as crianças engatinhavam numa confusão, como um formigueiro humano. Era a semana antes do Natal. Os vendedores tinham suor na testa.
       A maior confusão se fazia diante de uma mesa no segundo andar, no canto. As pessoas nem podiam mais se mexer ali; uma multidão de crianças mudas em adoração, hirtas e solenes, diante do milagre dos milagres, a coisa mais maravilhosa que alguém já imaginou, a coisa mais linda com que alguém ousa sonhar nessas noites, quando se é um legítimo menino dos nossos tempos. Na mesa estão os mais novos e super-modernos tanques de guerra de brinquedo.
       Apresentam-se em diversos modelos, muito caros, e todo mundo os prefere. Sem exceção. O coração dá gargalhadas quando eles se põem em ação, depois que o jovem vendedor lhes dá corda. Os meninos rejubilavam, a multidão se movimentava. Os tanques de brinquedo estavam pintados com cores de camuflagem. Suas lagartas matraqueavam alegres quando andavam sobre a mesa. Da torre de tiro erguiam-se encantadoras miniaturas de metralhadoras (parece que a criatividade humana não tem limite), que sabiam atirar de verdade durante o trajeto, corajosamente, com grande imponência. Davam breves salvas faiscantes, e havia explosões liliputianas dentro daquela obra miraculosa. Esses tanques (assim dizia uma carta de propaganda, na beira da mesa) eram produzidos por um fabricante da melhor qualidade, na Alemanha, alegravam o coração de velhos e jovens, e deviam estar - agora finalmente encontráveis na maior paz - em todas as mesas de Natal.
       Os clientes pareciam achar a mesma coisa. Compravam sem parar. Os tanques de guerra de brinquedo prometiam ser um negócio gigantesco. Por muito tempo ausentes, enfim de novo encontráveis, sem dúvida estavam na iminência de ser o grande sucesso do Natal de 1952. Na meia hora que passei diante dessa mesa, o jovem atrás dela vendeu vinte e dois tanques, que eu contei. Fazia sua tarefa gentil e escrupulosamente, era um jovem simpático e bem vestido. A toda hora dava corda nos tanques com a mão esquerda e fazia-os andar sobre a mesa, para mostrar aos meninos como funcionavam. Usava sempre a esquerda para dar corda. É que ele não tinha a mão direita. Nem o braço direito. Só o esquerdo. A manga direita do casaco pendia frouxa, metida no bolso esquerdo do casaco.
       - Olhe, mamãe, um tanque de guerra!
       - Ei, Carlinhos, veja!
       - Paizinho, por favor, por favor, por favor! Compre isso pra mim!
       Nesse pano de fundo de expressões de fascinação, de repente estalou um tapa. Um menino berrou. A mãe lhe dera o tapa. A mãe era gorda, de cara vermelha, e usava um chapéu pavoroso, parecendo uma panela amassada e sem cabo. Quando ela começou a falar, notou-se logo que vinha do interior. Falava alto e estava nervosa. Essa porcaria, essa coisa miserável, dizia ela, o filho que tirasse logo esse troço da cabeça. Enquanto ela vivesse, ele não brincaria com essas coisas. Ó filho berrava, furioso. A mãe começou a atacar o jovem vendedor.
       - Vocês não têm vergonha? Especialmente o senhor' - Ela fitou a manga vazia. - Por que está vendendo essa bosta? - Na verdade ela não disse bosta, disse algo impublicável.
       - Porque sou empregado aqui - disse o maneta, amavelmente. Mas parecia resignado. - Estou muito contente por ser empregado aqui, senhora. Levei tempo para conseguir o cargo.
       - Mas  é  uma  porcaria  que  fabriquem  uma  coisa dessas!
       - Não me cabe julgar.
       - Mas quem então deve julgar? - Mais um olhar para o braço.
       O vendedor pigarreou, torturado.
       - Senhora - disse -, por favor, não prejudique o meu trabalho. Não tenho culpa se gostam tanto de tanques de guerra.
       - O senhor ajuda a vender os tanques - disse a camponesa. - Bom. Bom. Onde se vendem bolas?
       - Lá na frente, junto da escada - respondeu ele, aliviado. Estava agora muito vermelho.
       - Obrigada - disse a camponesa. - Venha, Aloísio. - Puxou o filho. Mas  seu casaco enganchou-se na mesa e, ao andar, esta veio abaixo. Gritaria. Os tanques de guerra de brinquedo, dúzias deles, caíram no chão. Confusão de mãos, cabeças, pernas, vozes.
       A camponesa parou. Agora ela estava vermelha.
       - Perdoe! Não fiz de propósito.
       O vendedor abaixou-se, ergueu os tanques de guerra. As crianças ajudavam. A mesa estava de novo no lugar.
       - Não faz mal, senhora - repetiu o vendedor, estranhamente divertido. - Isso acontece, a senhora não tem culpa.
       - Mas alguns dos tanques devem ter quebrado!
       - Bom - disse o vendedor, mais divertido ainda -, sempre temos de contar com isso.
       E depois - vi com meus próprios olhos -, de propósito e conscientemente, mas de modo que além de mim ninguém o percebeu, ela deu um pontapé com toda a força num dos tanques de guerra, que ainda estavam debaixo da mesa. O brinquedo, com um guincho, apagou sua alma, se é que tinha alguma. Ficou ali jogado, amassado, com a mola quebrada.
       - Nunca se sabe o que pode acontecer - disse o jovem vendedor, seguindo satisfeito com o olhar a camponesa com o chapéu pavoroso.
       (1952)
      
       O que aconteceu amanhã
       Ontem
       havia alguns contrabandistas maus e duros lá nas montanhas da nossa amada pátria. Contrabandeavam divisas, armas e muitas coisas bonitas. Por cima da fronteira mais próxima. Era uma atividade lucrativa, estavam todos muito contentes e felizes. Até que um dia a filhinha da camponesa adoeceu. De meningite. A menininha ficou muito doente, delirando, e todos sabiam: se não acontecesse logo alguma coisa, ela morreria. Os contrabandistas tinham na sua cabana um rádio de ondas curtas. Normalmente o usavam para seus negócios escusos. Naquele caso especial, quebraram seu costume de muitos anos e usaram o aparelho para salvar a menininha. Pois eram criminosos duros e sujeitos perdidos, mas deixar morrer assim um ser humano, isso não podiam fazer. Só um podia, ou pensou que poderia tentar. Mas os outros não fizeram muitos rodeios com ele; deram-lhe um soco no queixo e o caminho ficou livre. Um deles sentou-se e começou a enviar pedidos de socorro para o mundo lá fora. Forneceu o lugar exato da cabana. E pediu um helicóptero. E estreptomicina. Os outros estavam parados ao seu redor, com caras sérias, pois, naturalmente, sabiam que agora estavam acabados. A polícia certamente estava escutando. Em algumas horas eles estariam no xadrez. Mas queriam salvar a menininha. E foi o que fizeram.
       Hoje
       na Itália desabou uma tempestade terrível. Cidades inundadas, pessoas afogadas, casas destruídas. Milhares de refugiados. Sem dinheiro, sem roupas, sem nada para comer. Na noite de terça um radioamador francês convocou seus colegas europeus para uma emissão em cadeia. Um emissão dessas é algo difícil. Mas em uma hora estava feita. De repente não havia mais fronteiras (ou quase não havia mais fronteiras) na Europa. De repente a Rádio Mônaco falava ao lado da Rádio Moscou, e a Rádio Viena ao lado da Rádio Bruxelas, e a Rádio Beromünster junto da Rádio Varsóvia. Ouvia-se uma porção de línguas estranhas, mas naquela noite todos as entendiam. Homens grandes e famosos e homens pequenos e anônimos falavam. Com vozes claras ou profundas. Depressa e devagar. E todos disseram a mesma coisa. Prometeram o mesmo: fraternidade, disposição de ajudar o continente. Pois mais uma vez acontecera uma desgraça, vidas humanas corriam grande perigo, a morte estava a caminho, num cavalo terrível. E mais uma vez milhões se levantavam, esquecendo nacionalidade e política, ou aversões pessoais contra Jesus Cristo, bicicleta ou espinafre com ovos. De repente eram todos irmãos, querendo amparar e ajudar uns aos outros, porque sabiam que, do contrário, o Diabo os levaria a todos.
       Amanhã
       um temido membro da ONU ergueu-se na sessão geral e tirou a gravata. Depois esfregou as mãos. Depois riu sozinho, divertido. (O coração dos outros parou de susto, pensaram que o importante membro ficara louco). Mas o importante membro não ficara maluco. Explicou que decidira dar o bom exemplo, porque o sol brilhava tão bonito. O bom exemplo devia ser, por enquanto, o desarmamento total. Não pretendia negociar muito sobre o caso. Queria ir para casa e agir ele mesmo. Quem tivesse vontade podia ir junto e olhar. Estava mais do que em tempo, disse ele.
       Houve uma enorme agitação, quando de repente milhões de soldados foram desmobilizados e saíram correndo pelas estradas do país, e o estado de espírito parecia aquele do Prater. Porém mais alegre. Então todos foram até um lugar quieto e bonito do país, onde nada podia acontecer, e armaram um pequeno espetáculo de fogos de artifício. Dispararam todas as armas que tinham. Isso levou uma semana, mas eles saborearam cada minuto. As crianças nem queriam ir para a cama, tão bonito era esse espetáculo de fogos de artifício, dia e noite. Pois bem, e porque era tão bonito e porque tinham vergonha de seus colegas, os outros membros temidos da ONU também correram para casa e começaram a soltar fogos, porque não queriam que dissessem que haviam sido os últimos. Foi uma barulheira, naquela semana, que fez tremer o mundo!
       Duas semanas depois voltou a paz. E, como dizem os especialistas, pelos próximos dois mil anos. Simplesmente não havia mais nada para explodir. Pois as bombas atômicas tinham sido desarmadas em outro cantinho sossegado do país. Também não podiam mais causar desgraças.
       O que vocês dizem disso? Não acreditam? Querem saber melhor do que eu o que aconteceu amanhã?
       Acham que eu também não posso saber, enquanto ainda é hoje? Verdade. Mas é muito tarde, ficou muito tarde enquanto eu escrevia estas linhas. Já é quase amanhã. Para ser exato: falta um minuto para as doze.
       (1978)
      
       O fazedor de livros
       Resposta a uma pesquisa da Playboy: "O que significa hoje em dia ser um fazedor de livros?"
       Alguns preferem a resposta quente. Eu a prefiro fria e insolente como a pergunta. "Fazedor de livros", sabe Deus, não é uma expressão ruim, especialmente quando se pensa no verdadeiro sentido, o do bookmaker, que aceita apostas para corridas de cavalos. O bookmaker de corridas de cavalos arrisca sua existência repetidamente, luta com o acaso, ou o sucesso, ou o fracasso, é elogiado e amaldiçoado, tem de saber tudo sobre sua profissão e muito sobre bichos e gente e vida, e jamais será bem aceito socialmente. É exatamente isso o que acontece com você, escrevinhador!
       Como seu colega dos cavalos, você tem de ter consciência (ele, porque do contrário perderá a licença; você, porque perderá o respeito próprio). Ambos têm em comum o desejo de que seu trabalho os sustente. Assim como ele, você tem coisas que ama e outras que odeia, e ambos têm ainda medos e esperanças e desejos. Você, fazedor de livros, pode escrever isso por toda parte. Porém fazer com que (talvez!) uma dúzia de pessoas, entre milhões, se tornem um pouco mais inteligentes, ou sensatas, ou bondosas, e um pouco mais amáveis, mais do que isso você não pode, ainda que escreva na sua máquina até sangrar a ponta dos dedos. Também o seu colega tem uma chance ridiculamente pequena de evitar que as pessoas apostem, ainda que esteja convencido de que muita gente não deveria apostar. Os dois oferecem sua mercadoria com decência. Ele, no turfe, oferece a possibilidade real de se ganhar um monte de dinheiro. Você, com seu esforço, sugere, indica, ou até suplica que melhoremos esse mundo ruim, persigamos a injustiça, ajudemos a justiça, combatamos a guerra, as ditaduras e a tolice, e que apreciemos a sensatez e o amor.
       Você faz isso de novo e de novo, embora saiba que praticamente não adianta nada. (Há exceções: a Bíblia ou O capital modificaram alguma coisa no nosso mundo. Mas vá alguém tentar imitá-los!)
       Se hoje você é um fazedor de livros e, contra o consenso geral dos que pensam saber melhor, deseja (e é isso o que você deseja, seu idiota!) que as pessoas entendam o que você escreve, pois não abandona a esperança de que esses doze leitores que se modificarão através de seus livros talvez se tornem vinte e quatro, ou sessenta e três, ou, grande Deus, até mil, então de modo algum você é um "escritor" ou um "poeta", um desses "autores" que os críticos aqui da terra elogiam. Então você sabe o que acontece com os muito pobres e os muito ricos, como pensam e falam. Então você entende um pouco de política e de ciências. Tem de ser um verdadeiro homem dos sete instrumentos. E tenta sempre escrever sobre um assunto que seja um problema para milhões no momento, ou uma desgraça, ou um perigo, ou um enigma. Você pensa sobre muitas profissões e experimentou muita coisa, ou escutou muita coisa vivida - só assim ainda encontra leitores, é aí que tudo começa.
       E aí você trabalha como um lenhador. Esperar a "inspiração" e bobagens desse teor é uma grande tolice. Você trabalha duro suas oito horas diárias, sem parar, sem exceção, e quando acha que o que escreveu ontem é uma bosta, escreve tudo de novo hoje, e se for bosta de novo vai escrever tudo outra vez amanhã, pela terceira vez. Só que nunca vai parar; quando muito, faz um intervalo à noite, num ponto onde sabe como vai continuar, para que na manhã seguinte o trabalho seja mais fácil. É isso que você faz, seu doido varrido, durante dois anos, dois e meio, pois esse é o tempo que se leva para escrever um livro. Trabalha quando se sente miserável, trabalha quando sofre de infelicidade pessoal ou de felicidade pessoal. Você desanima a cada hora, está sempre inseguro quanto a estar ou não começando direito, tem sempre terríveis dúvidas (caso contrário será um diletante), mas só pode dar ouvidos a você mesmo.
       Não pode se deixar corromper, e nada corrompe tão facilmente quanto o sucesso. Você pode ter sucesso. Depois do oitavo ou décimo terceiro livro, talvez acerte!
       Fazer livros se torna mais complicado de ano para ano, porque o tempo em que vivemos se torna mais complicado de ano para ano. Você sabe disso. Apesar disso, escreve. Em troca, quando, morto de cansaço, estiver com o livro pronto, você deve estar preparado para levar uma mijadinha de todo aquele (mas todo mesmo) que o comprar, e de muitos outros que apenas o receberão graciosamente. Ou, pior ainda, você recebe elogios do lado errado. Você é e será sempre o mictório público. Arrisca a liberdade e a vida em muitos países, e em outros países arrisca-se a ser caçado como feiticeiro, a sofrer boicote e miséria.
       O que você faz é um desafio para qualquer psiquiatra! Como se não bastassem as preocupações que tem, como qualquer pessoa, ainda inventa ou assimila preocupações alheias, destinos, tragédias, e de noite não consegue dormir porque essas personagens o perseguem nos mais loucos sonhos. Você é mesmo louco, rapaz, se hoje ainda é fazedor de livros. Doido varrido. Sem remédio.
       P.S.: Para fazer uma variação sobre Hemingway, o grande e melhor de todos: eu gostaria de viver bastante para escrever nove livros, quatro peças de teatro e treze romances. Há tantas histórias. Conheço uma porção de histórias boas.
       (1975)
      
       Heróis sem alegria
       Lá estão eles sentados.
       E tinham imaginado tudo bem diferente, Gustavo Honauer e Adolfo Fedle. Gustavo parece Errol Flynn. Adolfo se parece com o corredor tcheco Zatopek. Moram em Munique. Adolfo tem uma casa de modas para homens e mulheres. Fechada há treze meses. Recebe uma pequena ajuda e de vez em quando consegue costurar uma calça ou jaqueta. Mas o trabalho de verdade acabou-se. Teve a sorte de certa noite encontrar Gustavo no bar. Gustavo gostou dele e levou-o para casa. Gustavo morava com sua mãe. Estava mesmo se divorciando da esposa, pois não se amavam mais. O filho de Gustavo, Roberto, de quatro anos e meio, estava com a avó. E sua filha de treze anos, Ingrid, estava com a cunhada. Adolfo não tinha família: todos tinham morrido na guerra.
       Gustavo e Adolfo sentaram-se na casa da mãe de Gustavo pensando em como conseguir algum dinheiro. Pois Gustavo também não andava muito bem de finanças. Estava sem trabalho - era limpador de chaminés - e para toda a família - mãe e uma irmã solteira - recebia da previdência, ao todo, vinte e dois marcos por semana, o que era pouco. Mais ele não ganhava! Pois não havia utilidade para seus conhecimentos de limpador de chaminés. Afora isso, não sabia fazer nada. Só nadar e escalar bem - aliás, era um excelente esportista. Adolfo também gostava de escalar. Antigamente ganhara uma porção de prêmios por salvamentos nas montanhas.
       Então, em 1952, lembrou-se novamente de que um dia fora corajoso. E, quando encontrou Gustavo, os dois começaram a refletir intensamente sobre como transformar essa coragem de ambos em dinheiro. Pensaram muito tempo nisso, e toda a complicada família de Gustavo (inclusive sua mulher, que não o amava mais) decidiu ajudar. Mas a coisa só começou a funcionar quando leram num jornal sobre um artista inglês que estava na miséria e saltara de uma ponte no Tâmisa, para provar sua aflição e seu talento.
       O artista inglês teve sorte. A televisão o filmou, imprensa e repórteres estavam presentes, tudo despertou muito interesse - e o pobre-diabo foi imediatamente empregado por uma companhia de cinema. Já estava a caminho de Hollywood.
       Quando Gustavo, o limpador de chaminés, e Adolfo, o alfaiate, leram a notícia, deixaram-se dominar por uma idéia fixa. Seu plano já estava feito. E toda a complicada família (inclusive a mulher de Gustavo, que não o amava mais) agarrou-se à idéia de que o esportivo chefe de família e seu amigo alfaiate conseguiriam ganhar seu dinheiro como dubles de filme.
       - Todos achavam que era uma idéia sensacional - disse Adolfo quando o visitamos -, e eu mesmo estava como que embriagado com essa história toda. É preciso que saibam que nesse carnaval eu tinha apenas um smoking para fazer; afora isso, só pequenos consertos.
       Gustavo e Adolfo não queriam ser heróis. Mas queriam ganhar um pouco de dinheiro para ajudar sua gente. E de repente tornaram-se heróis através do que arriscaram, e pelo muito que se atreveram.
       Em Munique existe a chamada "ponte dos suicídios". Ela atravessa o Isar, em Grosshesselohe. E, todos os meses, algumas pessoas que já não apreciam mais a vida saltam dessa ponte. A "ponte dos suicídios" ergue-se trinta e três metros acima do espelho das águas. Gustavo e Adolfo decidiram saltar dessa ponte. Mas não para suicidar-se, e sim para ensaiar uma situação desesperadora. Na esperança de uma oferta do cinema.
       Naturalmente não se atiraram às cegas. Pois então não teriam sido heróis, e sim idiotas. Treinaram durante algumas semanas. Em outras pontes. Mas enfim chegou a hora. Foram às televisões e às redações de jornal, a Geiselgasteig e a todos os lugares onde costumam sentar-se as pessoas que fazem os bons filmes alemães. Por toda parte distribuíram convites. E todas as pessoas com quem falaram mostraram-se muito interessadas; muitas prometeram ir. O rádio fez propaganda para eles. E há duas semanas a hora chegou: Gustavo e Adolfo foram até a "ponte dos suicídios".
       O pessoal da imprensa, TV e rádio aguardava por eles, bem como alguns representantes de jornais. Ninguém de Geiselpasteig. Além disso, apareceram apenas a família de Gustavo (inclusive a mulher dele, que já não o amava) e mais outras dezoito pessoas. Era tudo.
       Gustavo despediu-se de todos os membros de sua complicada família antes de começar a subir na amurada. Adolfo teve menos trabalho. Não tinha mais ninguém de quem se despedir. Subiu logo. Chegou mais cedo lá em cima. E saltou primeiro. Para dentro do Isar, que corria lá embaixo, a trinta e três metros de altura.
       Bateu com grande ruído na superfície da água, sumiu nas ondas e reapareceu imediatamente. Gustavo, que tinha vinte e seis anos e era mais delicado, ficou alguns segundos debaixo da água e emergiu muito abalado. Mas seu amigo o arrastou e ambos chegaram inteiros na margem. Os parentes de Gustavo e os dezoito espectadores gritaram "viva". Os repórteres deram as mãos aos dois. A mulher de Gustavo (que já não o amava) até lhe deu um beijo. E a mãe de Gustavo chorou.
       Este seria na verdade o fim da história. Pois desde então nada mais aconteceu. Os repórteres fizeram suas reportagens, o noticiário com Gustavo e Adolfo está passando em todos os cinemas da Alemanha, mas nada acontece. O alfaiate e o limpador de chaminés passam os dias sentados no apartamento da mãe de Gustavo, esperando. Mas nenhum telegrama chega, nenhum chamado, nada. O fato "gorou", segundo expressão de Gustavo, que é de Berlim.
       -- Sabe - disse-nos -, esperávamos conseguir um ou dois mil com essa história, mas acho que a coisa gorou. O senhor conhece aquela velha piada sobre o relatório da Bolsa de Valores, que diz: "Foram buscar lã e saíram tosquiados", não é? Olhe, nós dois achamos que com os heróis acontece a mesma coisa. Eles também andam sem alegria. Ninguém precisa deles. Bem engraçado, logo aqui na Alemanha, não é? De repente, ninguém mais quer saber de heróis!
       (1952)
      
       O Natal vem aí
       Minha amiga Eva escreveu o quinto bilhete com um pedido ao Menino Jesus. Os adultos já estão comprando cigarros Marvel para distribuir no Natal, e na Praça Schwarzenberg havia ontem dois policiais vigiando o transporte de árvores de Natal. Os pinheiros tinham sido ali descarregados, à noite, por senhores graves vestindo macacões. Não há dúvida: o Natal vem aí. A cidade parece ter acabado de lustrar os sapatos. Nas lojas aparecem coisas maravilhosas. Muitas pessoas postam-se diante delas, quebrando a cabeça para ver se meio quilo de carne de porco é mais importante do que um estojo de maquilagem de couro vermelho com zíper, ou se a pessoa amada terá tanta alegria com uma imitação da Vênus de Milo quanto com um modesto anel de diamantes, de cento e dezoito xelins.
       A Vênus de Milo é muito mais bonita. Mas, infelizmente, pensamos, também é mais barata. Infelizmente? Sim, que diabo, vamos presentear com o coração ou com a carteira? Eu arriscaria a Vênus de Milo!
       Há sempre duas medidas para um presente. Seu valor real e seu valor pessoal. O real, por mim, pode ser falso; é secundário. Se a gente só desse atenção a ele, qualquer pessoa poderia presentear a si mesma e pronto. Seria horrivelmente monótono. O valor pessoal nunca pode ser expresso em xelins, nem nos novos. Ele pode ser maior que mil elefantes e mais precioso do que o ouro, incenso e mirra que os três reis do Oriente levaram a uma criança deitada numa mangedoura.
       "Não se dá nada aos outros e não se dá nada a si mesmo", diz um livro famoso. Pois é isso.
       Conheço um homem que ia mal em 1945. Na noite de Natal escreveu uma carta à sua mulher, a quem amava muito, mencionando um pouco do que sentia por ela. Não tudo, nem de longe, só uma pequena parcela. Mas cada palavra dessa carta era verdadeira e deu infinita felicidade à sua esposa. Na mesa em que se sentavam, ardia uma vela. Comeram um pedaço de cuca de mel, tomaram chá e olharam-se nos olhos. Depois, ele fumou um cachimbo com o tabaco que ela lhe dera, e sorriram e pensaram em como estavam contentes por terem um ao outro. Essa foi a festa de Natal de meu amigo Eberhard, que estava dando um presente a si mesmo. Pude imaginar que eu também ficaria muito feliz se, a 24 de dezembro, alguém me desse de presente uma carta dessas.
       Tradicionalmente o Natal é a festa das carteiras gordas. Mas é primeiro a festa do amor, se permitem que eu lembre isso: a noite do ano em que podemos nos alegrar sem medo de que o fiscal de impostos note nossa alegria. Ou o homem do gás. Tentem hoje, em todo caso, ao menos por interesse. Com ou sem Vênus de Milo, com ou sem casaco de pele de raposa. Alegrem-se! Afinal, são apenas algumas horas. Não vai custar a cabeça em que seu coração está tão preso.
       Se uma pessoa precisa muito de mil xelins para sentir-se bem, alguma coisa está errada com ela. E se alguém olha logo a contracapa de um livro para verificar o preço, devia levar uma boa palmada.
       Houve tempos em que se olhava com desprezo para as salsichas. A salsicha não era aceita socialmente. Hoje, professores universitários e damas dos melhores círculos deixariam que lhe cortassem os dez dedos para receber de presente alguns quilos de salsichas. Com todas as coisas que o dinheiro pode comprar, acontece o mesmo. Mas não quero brigar por causa das salsichas. Elas são úteis. São agradáveis. Também um carro esporte e um rádio moderno são úteis. Mas só são valiosos se atrás deles houver uma pessoa e não apenas um título, se atrás deles vier um coração e não só uma conta bancária sem fundos.
       Assim chegamos à carta do meu amigo Eberhard. Pois também no seu envelope havia um coração, embora não pudesse ser visto. O mais importante no amor não é o que se faz, mas o que se deixa fazer. O mais importante num presente não é o que está visível.
       Quando se pergunta à minha amiga Eva o que ela deseja do Menino Jesus, ela fica bem quieta, e só não enfia o dedo no nariz, de tão encabulada, porque isso é severamente proibido. E porque ela tem tantos desejos. Mas há pessoas que nunca terminam quando as deixamos falar sobre tudo aquilo que desejam. São aquelas que, na verdade, não desejam nada direito. Devemos ser econômicos com a felicidade. Quem deseja demais sempre recebe de menos. Quem deseja pouco, às vezes recebe mais do que precisa.
       Se por esses dias você andar pelas ruas, e de tanta preocupação pela festa iminente não tiver mais tempo de se alegrar, pense em tudo o que acabou de ler. Talvez ajude. Só artigos de consumo são racionados. Sentimentos ainda não têm preço. Não custa nada amar alguém e dizer-lhe isso. Se, portanto, seu dinheiro acabar, isso não é nenhuma tragédia. Mas se você não conhece ninguém a quem amar, está mais do que em tempo de dar uma olhada por aí. E antes ainda do Natal. Não é difícil. Em cada esquina encontram-se pessoas para amar, tanto no primeiro distrito como no décimo sexto.
       Acho que hoje ainda vou escrever meu bilhete de pedidos. Primeiro, um par de suspensórios; meus velhos já não estão muito aceitáveis. Depois, uma garrafa de vinho. Ou quem sabe duas. Mas não muito aguado.
       E, finalmente, querido Menino Jesus, caso julgue conveniente, desejo paz.
       Aos homens de boa vontade.
       (1947)
      
       Aí é que vocês vão chorar!
       De vez em quando ouço uma história que me comove a ponto de deixar-me com calor. Logo entenderão que espécie de histórias são essas. Imaginem que um dia vocês fossem tão independentes que pudessem dizer a alguém quando este lhes oferecesse um trabalho especialmente tolo, comum e desagradável: "Ora, meu caro, vá lamber sabão!" Ou imagine que você fosse o homem que há três semanas saltou loucamente para dentro de uma locomotiva que disparava (embora ele entendesse tanto de locomotivas como de andar no arame), e que assim impediu uma tragédia incomensurável.
       São coisas em que todo mundo um dia pensa, e ninguém faz. Mas às vezes elas realmente acontecem! E então nos sentimos tão estranhamente comovidos, quando as lemos no jornal. . .
       Na terça-feira, em Leibenfeld, no Weststeiermark, um certo Válter L. foi condenado a quatro meses de prisão. Sei que não deviam deixá-lo solto, mas ele me dá pena, e acho que muitas pessoas que não conhecem Válter L. não o teriam condenado há quatro meses. Apesar do engano das autoridades, e de se ter encontrado num caixão, com suposições falsas. Do contrário, teriam apertado a mio pensando: eis de novo alguém que faz o que todos nós pensamos fazer.
       Ainda lembro muito bem: quando eu era pequeno, às vezes me faziam uma injustiça. Não muitas vezes, pois meus pais tinham muito cuidado, e geralmente deve ter sido uma injustiça imaginária, mas na hora eu não ligava. Ficava ali sentado, furioso, e pensava na grande maldade dos adultos.
       Nessas situações, dizia a mim mesmo: agora eu queria ficar doente. Talvez até quisesse morrer. Queria morrer bem devagarinho e "depois" poder espiar minha mãe, meu pai e minha irmã, o jardineiro, o carteiro e o Fernandinho (ou quem quer que me tivesse feito a injustiça) parados junto à minha cama. Pensava então: Como vão ficar tristes! Como vão se arrepender! Aí é que eles vão chorar! E como vão chorar! Mas eu não vou dar a mínima. Vou ficar ali, mortinho da silva.
       Admito com prazer que ainda hoje sigo eventualmente essa espécie de pensamentos, numa forma um pouco modificada.
       Mas embora tenha pensado muitas vezes em como todos "iam chorar" quando eu estivesse ali deitado, morto e branco, nunca cheguei a um experimento definitivo.
       Por isso me abalou tanto o que li no jornal sobre Válter L.
       Mais tarde, quando cumpriu os quatro meses de prisão, ele disse que tivera a sensação de "não ser devidamente apreciado". Isso estava no jornal, mas parece não ter chamado a atenção das pessoas. E é, por assim dizer, a chave de todo o caso. Pois se Válter L não tivesse a sensação de não ser apreciado, jamais teria sentido vontade de ver as pessoas chorando por sua causa.
       Tudo começou quando ele caiu de um caminhão. Não sei por quê, nem isso é importante Mas sofreu uma leve comoção cerebral e foi para o hospital. Talvez sua gente não o visitasse, ou lhe mandasse cuca de mel que não era do seu gosto - de qualquer modo, ali no hospital, a neurose de Válter L. começou a se desenvolver.
       O rapaz telegrafou aos pais que tinha morrido. Naturalmente não fez isso de maneira tão tola quanto escrevo aqui, mas assinou o telegrama com o nome de seu irmão, que morava perto. Depois, foi para casa. Quando chegou já estava escuro; ele se esgueirou pela neve até a casa e espiou pela janela. Seu coração começou a bater forte e ele sentiu calor: os pais, irmãos e algumas pessoas estranhas estavam sentadas em torno de uma vela, rezavam e choravam, e estavam terrivelmente infelizes - exatamente tão infelizes quanto Válter L. imaginara que estariam
       O que Válter L. fez então foi de muito mau gosto, mas talvez tivesse perdido um pouco a cabeça de tanta alegria por aquela tristeza. Diz o jornal que ele piou como um pássaro da morte e bateu na janela, para que os de dentro pensassem que seu espírito estava lá fora
       Válter ficou muito vivo para um morto, nos dias seguintes. Marchou até a aldeia vizinha e procurou uma funerária. Só a funerária sabe como ele o conseguiu, mas a verdade é que Válter conseguiu o caixão de defunto. Sem pagamento! Para um irmão morto, disse ele. (Assim, fez morrer mais uma pessoa para essa ocasião.)
       Carregou o caixão nas costas. Quando passou pelo cemitério, roubou algumas flores. Queria um bom enterro. Não está muito bem explicado como ele imaginava o tal enterro, ou se, caso não o tivessem apanhado antes, ele teria também cavado a própria sepultura. Ou se teria deitado no caixão, despachando as duas coroas pelo correio para o endereço paterno. . . Como já disse, certamente nunca saberemos.
       Decerto foi apenas isso: ele arrastou caixão e flores pela mata, e, quando ficou cansado, deitou-se dentro dele. Um ciclista que passava e viu tudo, chamou a polícia. Vieram os policiais, deram uma surra em Válter L., e este acordou de novo.
       Não se sabe ao certo por que lhe bateram. Por que estavam com raiva dele? Só porque estava deitado num caixão? Deveria ter-se deitado ao lado? Acaso um homem não pode se deitar num caixote de madeira, cruzar as mãos e fechar os olhos? São boas perguntas.
       Entende-se que Válter L. não podia ser simplesmente solto. Mas, lendo sua história, senti um calor. Pois ela é uma dessas histórias. . . mas já falei nisso.
       (1958)
      
       Eu sou a grama
       O grande poeta americano Carl Sandburg escreveu há muitos anos um poema sobre a grama. Eu gostava muito dele, mas esquecera-o quase por inteiro. Ontem lembrei-me dele outra vez. Nesse poema, Sandburg faz a grama falar. A grama, que vence o tempo, a dor, a vida e a morte. "Amontoa os cadáveres em Waterloo", diz a grama, "amontoa-os em Ypern e Verdun - eu sou a grama, e vencerei. Três anos, dez anos depois, os estranhos perguntarão ao guia: como se chama esse lugar? Onde estamos, afinal?"
       Como já disse, eu quase esquecera o poema. Mas ontem lembrei-me dele novamente.
       A Sra. Catarina Kabesch foi à cidade.
       Todo mundo conhece a história, escreveu-se demais sobre ela, e na terça-feira apareceu neste jornal até uma foto da Sra. Kabesch. Ela estava sentada numa elegante limusine e olhava pela janela. Olhava para a praça diante do Palácio Harrach. Em si, nada de especial, não é? Mas a Sra. Kabesch vira a praça adiante do Palácio Harrach pela última vez há sete anos. E só pela segunda vez na vida é que se sentava num automóvel. Embora há uma semana tivesse festejado seu centésimo primeiro aniversário.
       A Sra. Kabesch é a mais velha moradora de Viena. Outrora foi a florista de Freyung. Ainda era florista há sete anos. Depois, recolheu-se à sua casinha, atrás do Velho Danúbio. Alguém perguntou-lhe no seu aniversário se tinha algum desejo especial. E a Sra. Kabesch disse que gostaria de uma cadeira de rodas. Para ir com ela até a cidade e dar mais uma olhada na praça, na qual tivera a sua barraca de flores. E seu desejo foi realizado. A comunidade de Viena deu-lhe uma cadeira de rodas.
       Antes disso, porém, mais uma coisa aconteceu à Sra. Kabesch. Uma senhora americana informou-se no jornal Weltpresse sobre seu endereço. A dama americana era dona da elegante limusine. Ela foi até o Velho Danúbio, apanhou a antiga florista, e levou-a até a cidade. Era mais rápido e mais confortável do que com a cadeira de rodas, e a Sra. Kabesch teve tempo de dar uma boa olhada em tudo.
       E não cessava de espantar-se. Quando viu o que nos últimos meses de guerra acontecera no Cais Francisco José, levou um susto horrível. Pois não fazia a mínima idéia de nada daquilo. A Sra. Kabesch viu muita coisa naquele dia: coisas novas, coisas velhas, coisas sempre iguais. À noite, estava morta de cansaço por ter visto tanta coisa. Não sei ao certo, mas provavelmente até sonhou com isso.
       Fora um dia excitante para a Sra. Kabesch. Quando, na manhã seguinte, li no jornal sobre o seu passeio, lembrei-me de novo do poema de Carl Sandburg. E comecei a refletir sobre o passeio da velha florista.
       Primeiro pensei que a Sra. Kabesch vira a cidade pela última vez numa fase em que, por assim dizer, ainda estava intacta. Antes dos ataques aéreos. Antes da destruição. Antes das ruínas, antes dos mortos, antes dos cavalos abatidos. Seu passeio de carro a levou pelo Segundo Distrito, e deu-lhe a oportunidade de observar locais da destruição que até então não percebera. Deu-lhe oportunidade de ver novas construções, e constatar que ainda havia velhas, mas provavelmente não sabia que aquelas "velhas" construções não existiam ainda e sim de novo.
       Aliás, ela possuía muitas semelhanças com o homem da lenda, que um dia entrou no Untersberg, visitou certo imperador alemão com a barba comprida, ficou lá uma hora, e quando saiu de novo da montanha para casa, constatou que estivera fora por vinte e cinco anos.
       Mas é minha profissão escrever livros e crônicas, e acho que gostaria de escrever um livro sobre a Sra. Kabesch. Sua viagem à cidade seria o ponto central de todo o romance. Mas (no livro) eu usaria um pouco a sua rota de viagem, para tornar mais evidente o que desejo dizer. No meu romance cuidaria para que a Sra. Kabesch, no seu caminho para Freyung, não passasse por um só lugar de destruição, mas apenas por casas intactas, ou novamente reconstruídas, parques com flores, ruas cheias de lojas, igrejas em que ainda (ou de novo) se tocasse órgão. Eu me esforçaria por uma ilusão total, de cem por cento. Viena seria como foi Viena há sete anos. (Isso, naturalmente, nesse caso especial, tratar-se-ia apenas de uma ilusão de óptica.)
       Se eu conseguisse o meu intento, seria um bom guia de viagem, e no meu romance a Sra. Kabesch teria de levar consigo de volta ao Velho Danúbio a certeza de que felicidade e dor passam depressa, de que o desespero e a alegria dos homens, e até mesmo a morte, na verdade são coisas muito terrenas a que não se deve dar demasiada atenção. Ela teria de achar que não perdera coisa alguma, que as flores ainda floresciam e as pessoas ainda riam, e que o vendedor de salsichas na Kartnerstrasse ainda estava vendendo salsichas de Frankfurt.
       Além disso, eu não deixaria a heroína do meu livro ler jornais nem ouvir rádio. Ela viveria à margem da cidade e à margem da vida, num paraíso tão perfeito que esse estado de afastamento, de isolamento e de espanto com a imutabilidade do mundo se tornaria moda, e seria o último grito na sociedade sofisticada.
       Meu romance não pretenderia dizer: mesmo daqui a cem anos ainda haverá flores florescendo e velhas vendendo essas flores. Mesmo daqui a cem anos, aconteça o que acontecer, haverá casas e moças sorrindo. Mesmo daqui a cem anos haverá gente jogando futebol, andando de carro, comendo gulache e dizendo a verdade.
       O sentido do meu livro seria constatar: por ora, parece que nosso mundo em crise está disparando em direção ao mais profundo ponto de uma curva estatística, cada curva tem apenas um ponto mais baixo que todos, e quando este é atingido, tudo tem de voltar a subir. Talvez não estejamos mais vivos para experimentar esse ponto, talvez nossos filhos o alcancem.
       Mas uma coisa é certa: alguém.Q alcançará e será feliz de novo. Esse seria o significado do meu livro sobre a florista que vai à cidade e acha que em sete anos nada mudou. (Porque a grama, da qual Carl Sandburg falava, conseguiu vencer de novo.)
       E acho que a grama de Sandburg tem um nome: chama-se Esperança!
       (1945)
      
       Catorze negrinhos
       Esta é uma história triste.
       Ela começa em 1933 e ainda não terminou em 1953. Muitas pessoas sucumbiram nessa história, outras seguirão. É de se temer que essa história não tenha fim. Nem esperança.
       Em 1933, catorze alemães deixaram o país com suas famílias. Não podiam mais viver em sua terra. Eram contra o chamado Terceiro Reich. E, em 1933, muitas pessoas que eram contra o Terceiro Reich deixaram o país. As catorze pessoas de que estamos falando emigraram para o Brasil. Tinham ouvido falar muito no Brasil, na beleza das matas, na amplidão dessa terra livre, nas possibilidades de se ficar rico e feliz, e também que no Brasil não havia nazistas. Mas pelo menos isso revelou-se um engano. Havia nazistas no Brasil. Esses nazistas atormentaram a vida dos catorze imigrantes e suas famílias, de 1933 até 1945. Em 1946, deram-lhes um pouco de paz. Mas não por muito tempo! Pois, em 1945, chegaram mais alguns nazistas. Os novos nazistas vinham da Alemanha, tinham feito a viagem em submarinos e bombardeiros, e estavam muito necessitados de descanso. Eram todos grandes homens. E 1945 não era um bom tempo para grandes homens. Mas também não o era para os pequenos, como logo se viu.
       Os Aliados exigiram do governo do país que lhes entregassem os nazistas. Não todos, só os mais importantes. Os Aliados queriam julgar os nazistas na Alemanha. (Era o tempo em que os Aliados colocaram muitos nazistas diante de tribunais.) Quando os grandes homens souberam da intenção dos vitoriosos, ficaram um pouco preocupados. Mas não por muito tempo! Pois subornaram alguns funcionários da polícia e viajaram de férias por algum tempo. As coisas também corriam bem sem eles.
       Os funcionários subornados tinham assumido, com o suborno, o compromisso de cuidar para que nada acontecesse àqueles grandes homens, e que não fossem mandados de volta à Alemanha. Mas alguém tinha de ser mandado de volta! O navio dos Aliados já estava no porto, na Europa os tribunais das cortes marciais já estavam esperando, e o capitão do navio andava impaciente. Queria saber quando chegariam seus catorze nazistas, que tinha de entregar aos Aliados em Hamburgo.
       Os catorze "nazistas" chegaram dois dias depois, fortemente vigiados e acorrentados. Estavam muito furiosos, e o capitão, como saudação, mandou primeiro dar-lhes uma boa surra, para que se comportassem decentemente. Quando estavam no mar há trinta e três horas, descobriram que os nazistas não eram nazistas, mas catorze antinazistas. O capitão tinha a bordo as pessoas erradas. Elas contaram catorze histórias de gângsteres. Tinham sido detidas nas ruas e metidas em carros que já as aguardavam, conforme o método conhecido que depois também ficou tão popular entre nós; tinham sido tiradas de seus escritórios; tinham sido atacadas no seio de suas famílias. As pessoas haviam-se portado muito mal com eles, e os catorze antinazistas estavam muito nervosos. Tinham imaginado que o Terceiro Reich acabara. Mas parecia estar apenas começando.
       O capitão do navio era apenas um pequeno capitão. Tinha grande receio de fazer alguma coisa errada. Por isso mandou pelo rádio, aos seus superiores, um relatório do que acontecera. E o pequeno capitão indagava se devia levar de volta ao Brasil os catorze nazistas que se diziam catorze antinazistas. Seus superiores responderam pelo rádio que não. Achavam que assim, sem mais nem menos, em alto-mar, não se podia constatar direito se os catorze antinazistas eram mesmo catorze antinazistas. Talvez estivessem apenas mentindo. Tinham de ser muito bem interrogados. E foi o que fizeram, num campo de refugiados em Hamburgo, em que meteram os catorze passageiros involuntários quando o navio chegou à Alemanha. A essa altura, os catorze já estavam bastante furiosos.
       O exame de seu passado levou apenas alguns meses; depois, os catorze receberam um documento oficial: o inquérito provara que realmente não eram nazistas. Muito pelo contrário. Por isso, disseram aos catorze, podiam muito bem mandá-los de volta para casa. (É óbvio que não se tem bastante dinheiro para uma viagem de volta, quando se é atacado na rua e levado para além-mar.)
       Então começaram as pequenas dificuldades: os Aliados esclareceram que infelizmente não podiam pagar a viagem de volta. Pois os catorze antinazistas, como cidadãos alemães, tinham sofrido prejuízo por conta do governo alemão nazista. E por tais prejuízos e tais indenizações, as autoridades alemãs é que eram responsáveis. Assim, os catorze dirigiram-se às autoridades alemãs encarregadas de indenizações. Essas foram muito amáveis e dispuseram-se a colaborar, mas infelizmente não podiam fazer nada. Pois, segundo a lei, os catorze não eram "vítimas do regime nazista". Vítimas do regime nazista eram só aqueles que haviam sofrido sob o regime nazista até o dia 7 de maio de 1945. E os catorze antinazistas estavam fora desse prazo. Logo, estavam fora do alcance da lei! E indicaram-lhes endereços apropriados em Bonn. . .
       Desde então (1945 a 1953), os catorze antinazistas se esforçaram em Bonn para conseguir o dinheiro para o retorno. Infelizmente não foi possível, pois havia muita burocracia. Além do mais já não eram catorze antinazistas, mas apenas oito. Seis morreram nesse meio tempo; o dinheiro para seu regresso foi assim economizado. E se a gente esperar mais um pouco. . .
       Entrementes, morreram também algumas pessoas no Brasil; parentes dos catorze. Três mulheres acabaram no hospício. Alguns casamentos se desfizeram. Os antinazistas que ainda vivem recebem ajuda do governo. Calculamos quanto auxílio receberam desde 1945 e concluímos que essa quantia é muito maior do que aquela que teria sido necessária para comprar catorze passagens de volta.
       P.S.:  Os nazistas do Brasil vão bem, obrigado. Mandam saudações.
       (1953)
      
       Uma escola faz aniversário
       Desde ontem trago comigo uma grande tristeza. "Tentei deitar-me ao sol, tomei um conhaque duplo. Finalmente fui ao cinema. Nada ajudou: a tristeza continua. Na verdade, essa que me dominou nem é uma tristeza desagradável, melancólica e sentimental, e admito que até a cultivo um pouquinho. Há meia hora surpreendi a mim mesmo anotando algo (certamente retirado de uma lembrança mutilada) que outrora, na quinta série, junto com outras frases, me fez obter um "insuficiente".
       Escrevi: O mihi praeteritos si Júpiter referat annos! Não sei mais se o latim está correto. Mas ainda sei o que quer dizer na minha língua: "Oh, se Júpiter me devolvesse os anos perdidos!"
       Como vêem, sinto-me velho. Embora, na verdade, eu ainda não o seja. Mas tenho saudades da minha juventude. Desde ontem. Mais exatamente: desde sábado às nove horas e trinta minutos.
       No sábado, a essa hora, eu estava numa festa de aniversário.
       Era um aniversário muito inusitado - e muito bonito. O aniversariante não era uma pessoa, embora estivesse ligado intimamente a centenas delas e embora muitas pessoas, bem jovens e bem velhas, de barbas brancas ou calças curtas, tivessem vindo dar-lhe parabéns. O aniversariante era uma escola. O Ginásio Landstrasse. Ontem ele fez oitenta anos.
       Vivemos num tempo muito difícil e complicado. Por isso é natural que o aniversário da velha escola não fosse festejado no seu próprio recinto, mas no Ginásio Acadêmico da Praça Beethoven. Pois o Ginásio Landstrasse, desde 1945 (ou 1942, não sei ao certo), sofreu uma mudança simplesmente indescritível. Foi fechado, teve de transferir-se duas vezes, dar lugar a outras escolas, e finalmente encontrou uma espécie de segundo lar na grande, silenciosa e antiquada casa da Praça Beethoven. Os alunos e professores do Landstrasse reuniram-se com alunos e professores da Praça Beethoven, e viram que se davam magnificamente bem. Presumo que combinavam seus horários, e quando uns saltavam sobre as traves e treinavam cambalhotas para trás (alunos, naturalmente, não professores), os outros conjugavam os verbos irregulares até soltar fumaça, ou ouviam o Sr. G. J. César dizer que os germanos eram muito largos de corpo. (Pois estavam sobre as duas margens do Reno.) E ontem, na sala de festas do Ginásio Acadêmico, festejou-se o aniversário.
       Era uma sala maravilhosa, com colunas de madeira góticas e lambris nas paredes, com quadros dourados e dois imensos lustres pendendo do teto - dizia-se que ostentavam pelo menos oitenta lâmpadas. Essas oitenta velas elétricas brilhavam quando a festa começou, e fez-se silêncio na grande sala. Do lado esquerdo, junto das grandes janelas, sentavam-se alunos e alunas nas melhores roupas, limpos e muito solenes, e do outro lado sentavam-se os adultos. Mas que adultos aqueles! Mulheres e homens, jovens em vestidos de verão e senhores bem idosos com barbas e casacos antiquados. Lá estavam sentados padres e advogados conhecidos, médicos famosos e escritores famosos, altos funcionários do governo, historiadores da arte festejados. Como aparecessem muito mais ex-alunos do que se esperava, sentavam-se bem comprimidos nos bancos entalhados, e entre eles, onde encontrassem algum lugar, sentavam-se menininhas com tranças longas e bochechas vermelhas, e menininhos com grandes óculos de aro de tartaruga. De súbito todos ficaram quietos e olharam para a frente, para o púlpito do orador, atrás do qual se movia, entre muitas plantas verdes, uma bandeira vermelha-branca-vermelha, e onde quatro senhores - o mais alto à esquerda, o baixinho à direita - tomaram posição, erguendo quatro grandes trombetas, e começaram a soprar. O sol brilhou no salão, as fanfarras troaram, como convém, e na parede dianteira da sala grandes santos pintados olhavam para baixo, para os que se reuniam ali, entre eles São Sebastião, Santo Atanásio e São Crisóstomo - e muitos outros ainda, cujos nomes eu não conseguia ler, porque sou míope.
       Um velho ao meu lado limpava os óculos. Um menininho assoou o nariz. Todos de repente tinham a sensação de que a velha escola em pessoa estava presente e com ela os bons espíritos de todos os mestres que jamais tinham lecionado nela, e os bons e maus espíritos de todos os alunos que jamais tinham estudado nela e tinham sido reprovados ou obtido seus diplomas com "excelente", os que tinham repetido o ano ou respondido de saída quando haviam governado Augusto, o Preguiçoso, ou Jacó, o Gordo, os que tinham fumado secretamente no corredor, ou escrito os primeiros poemas, os que mancavam, os que adoravam Rilke e liam Dom Carlos, distribuindo entre si os papéis e ainda aqueles que olhavam com o rabo do olho para Josefina Maier, na primeira fila, jogando-lhe um bilhetinho enrolado onde estava escrito: "Hoje às três na confeitaria da esquina!"
       Todos esses espíritos, e os espíritos dos mortos debaixo da terra e os espíritos dos vivos em algum lugar lá fora nesse grande mundo confuso, pareciam subitamente estar presentes quando o diretor começou a falar. Ele discursou muito calma e inteligentemente. Disse algumas coisas comoventes sobre o esforço humanista em busca da verdade e da beleza, sobre a necessidade da educação, e sobre o milagre de todos os que honestamente se esforçam por essas coisas.
       As pessoas no salão estavam muito quietas e podia-se realmente sentir que cada uma seguia suas próprias recordações. As recordações belas ou feias, da morte e da vida, de plenitude e aflição, de amplitude e dor, da Primeira e da Segunda Guerra, de amigos desaparecidos e de velhas ambições, de amadas e sonhos que já estavam distantes no mar de areia do tempo. . .
       Há muitos alunos pobres entre nós, dizia o diretor. Esforçamo-nos para ajudar a todos. Pois acreditamos que não deve estudar aquele que tem dinheiro, e sim aquele que tem talento. No outono, voltaremos à nossa velha escola. Prosseguiremos no caminho da ajuda social e da imparcialidade e da justiça humana, perante a qual todos nasceram iguais e têm certos direitos irrefutáveis. Organizaremos semi-internatos com jovens professores. Cuidaremos para que as crianças possam decidir elas mesmas o que desejam ser e descobrir os seus talentos. Em resumo, vamos fazer o que fizemos durante oitenta anos: esforçar-nos para manter aceso o senso de verdade, de beleza e de justiça. E se então aparecerem de novo, surgidas de nossa instituição, figuras como Theodor Csokor, Julius Patzak ou Ferdinand Hochstetter, vamos nos dar as mãos e ficar contentes.
       O diretor não disse exatamente o que escrevi aqui, mas disse coisas no mesmo sentido. E quando terminou, todos aplaudiram com entusiasmo. Pois falara com honestidade e coragem.
       Finalmente, afastei-me quieto e sentei-me na sala de aula 4-C, vazia. No último banco. E pensei em como seria bonito poder voltar para a escola.
       (1949)
      
       Um sujeito engraçado
       A história que vou contar aconteceu há quase um ano, e não posso pedir que acreditem nela. O carregador que a contou tampouco me pediu que acreditasse. E no começo não acreditei mesmo.
       Entrementes, estou quase um ano mais velho. E a situação mudou: acredito no carregador, mas não posso explicar sua história. Tenho algumas suposições, mas ele mesmo as tem. E os leitores também terão as mesmas, quando conhecerem a história - essa história que aconteceu há quase um ano, em nossa cidade, a 24 de dezembro, pelas quatro da tarde.
       Em nossa cidade há poucos carregadores ainda, os quais não vão muito bem. Cada um deles tem um número. Para que ninguém possa reconhecer o carregador em questão, dar-lhe-ei aqui um número falso, digamos, 45.
       Há um ano, no dia 24 de dezembro, pelas quatro da tarde, o carregador número 45, que passaremos a chamar apenas por Número 45, encontrava-se sentado na sala de espera da Estação Central de trens, e estava muito triste. Estivera triste o dia inteiro e andara o tempo todo pela estação. Ninguém precisara de seus serviços e era muito improvável que exatamente agora alguém viesse precisar. O Número 45 podia ter ido tranqüilamente para casa. Mas não queria fazer isso. O Número 45 tinha medo de ir para casa.
       Em casa Mariazinha esperava por ele.
       Mariazinha era a filha do Número 45, de oito anos de idade. Já não tinha mãe. Um dia a mãe fugira. E naquele dia era Natal. Por isso o Número 45 não ousava ir para casa. Pois, apesar de todo o esforço, não conseguira dinheiro para comprar para sua filha um presente de Natal de verdade. . .
       Tomou tristemente um gole do copo de cerveja que estava à sua frente, na mesa. Naquele dia o dono do bar da sala de espera dava a cada carregador dois copos de cerveja de graça. Como eu disse: havia muito poucos carregadores ainda. E o dono do bar não iria morrer por sua boa ação.
       A vida era injusta, refletia o Número 45. Ele não tinha um só presente, ao passo que outras pessoas tinham tantos! Lá na mesa vizinha, por exemplo, estava sentado um homem que nem sabia como carregar tantos pacotes.
       O homem era incrivelmente gordo e parecia incrivelmente simpático. Tinha a simpatia de muitos gordos. Resfolegava enquanto, com a ajuda do garçom, vestia o sobretudo. Usava uma barba branca bem-tratada e tinha bochechas rosadas. Seus olhinhos faiscavam divertidos. "Obrigado, senhor", disse ao garçom. O Número 45 conseguiu ouvir-lhe a voz. Além disso, tinha a impressão de que o gordo da mesa ao lado cheirava a cuca de mel, e boa cuca de mel fresquinha.
       - É sempre uma correria antes dos feriados - disse o gordo de barba branca, suspirando enquanto ajeitava nos braços seus pacotes.
       O garçom disse cortesmente:
       - Principalmente quando se tem crianças.
       - É isso - disse o gordo. - E eu tenho crianças. Um monte delas!
       Enquanto dizia isso, a porta da sala de espera se abriu, e um homem entrou correndo, ofegante.
       - Graças a Deus! - disse, correndo para o Número 45. Estava muito bem vestido e tinha só um pacotinho debaixo do braço. - Meu trem sai dentro de cinco minutos -- acrescentou depressa. - Neste pacote há sapatos para uma meninazinha. Sapatos de pele marrom. O senhor tem de levar o pacote à casa da menininha!
       - Sim, senhor - disse o Número 45. O estranho escreveu o endereço: Parkstrasse 33, Strasser. Depois, deu ainda algum dinheiro ao Número 45 e sumiu. O Número 45 ficou como que paralisado com os sapatos de criança na mão. Engoliu duas vezes com dificuldade e passou os dedos no pequeno pacote. Depois saiu da sala de espera. O gordo simpático de barba branca seguiu-o com o olhar.
       O Número 45 foi a pé pela neve e escuridão. Precisava de tempo para refletir. Após refletir por dez minutos, decidiu o que fazer. Era claro, não era? Embora a gente não o queira desculpar!
       Já havia muitas luzes acesas. Nevava em grossos flocos. O Número 45 entrou numa loja e pediu:
       - Uma vela vermelha e uma barra de chocolate, por favor!
       A vendedora era muito amável, fez um pacotinho com a vela e o chocolate, acrescentou um diminuto ramo de pinheiro. O Número 45 pagou com o dinheiro que o estranho lhe dera e saiu de novo para a escuridão.
       Mariazinha dormia quando ele chegou em casa. O Número 45 desembrulhou os sapatos. Eram sapatos lindos, caríssimos, forrados de pele, de couro marrom muito, muito macio. Ele pôs os sapatos ao lado da caminha e também a barra de chocolate. Meteu a vela no castiçal e escreveu em letra de fôrma um bilhete: "Feliz Natal, Mariazinha!"
       Depois deixou sua moradia e tocou a campainha da Sra. Kiefer, a vizinha.
       - Sra. Kiefer - disse o Número 45 -, aqui estão as minhas chaves. Preciso sair mais uma vez. Pode cuidar um pouco de Mariazinha?
       - Mas claro - disse a Sra. Kiefer.
       - Por favor, quando ela acordar, acenda a vela que está do lado da cama. E cuide para que não coma o chocolate todo de uma só vez.
       - Ora, claro - disse a Sra. Kiefer. - Se o senhor concordar,   vou   trazer   a   menina   para   cá.   Estou   muito sozinha.
       - Seria muito bom se a senhora trouxesse Mariazinha para cá, no caso de eu ter de ficar fora muito tempo - retrucou o Número 45.
       - Mas que pena que o senhor tenha trabalho logo hoje. Quanto tempo vai demorar?
       - Não sei - disse o Número 45. Esperava escapar com apenas alguns dias de prisão.
       Após despedir-se da Sra. Kiefer, foi até a Parkstrasse 33. No caminho, para ter coragem, pensava no rosto de sua filhinha, quando ela acordasse e visse os lindos sapatos. Imaginou nitidamente o seu rosto e depois disso sentiu-se um pouco melhor. Pensou, justificando-se: "Não é natural que uma meninazinha não tenha um só presente na noite de Natal. Isso é uma crueldade da vida. Não se pode admitir uma coisa dessas".
       E continuou pensando coisas assim, mas apesar disso não se sentia muito bem quando chegou à Parkstrasse, número 33.
       Teve de procurar bastante para encontrar a casa certa. No portão de ferro batido do jardim, havia uma placa: "Strasser". O Número 45 tocou a campainha.
       Algum tempo depois, uma lâmpada se acendeu. Pela neve veio uma criada com avental e touca de renda, em direção ao Número 45.
       - Boa noite - disse ele.
       - Boa noite. Que deseja?
       O Número 45 decidiu contar logo toda a verdade. - Venho por causa de uns sapatos de criança - começou. - Eu..
       A mocinha o interrompeu:
       - Ah, sim, eu já sei. O seu colega me disse que o senhor viria. Tome, isto é para o senhor!  - e deu-lhe dinheiro.
       O Número 45 segurou-se nas barras de ferro do portão. Ouviu a mocinha falar como se estivesse longe Não entendia mais nada.
       - Que colega? - perguntou.
       - Ora, o outro carregador!
       - O outro carregador?
       - Claro! Veio faz meia hora e trouxe uma caixa com sapatos de criança para a nossa pequena Vitória.  Sapatos de pele marrons.
       - E daí? - perguntou o Número 45, quase sem voz, pois começava a entender que um milagre acontecera.
       - Ele disse que seu colega, o carregador 45, a quem ele estava substituindo, viria mais tarde para receber a gorjeta. - A criada o fitou, curiosa. - Que foi? O senhor não é o Número 45?
       - Sou, sim.
       - Então!
       O Número 45 disse com esforço:
       - A senhorita podia me fazer o favor de dizer como era o meu. . .  colega?
       - Ele era principalmente gordo - respondeu a mocinha. - Gordo e simpático! Tinha barba branca e carregava uma porção de outros pacotes.
       O Número 45 sentiu uma grande felicidade e sacudiu a cabeça.
       - Sim, sim - disse -, era ele.
       - Além disso, cheirava a cuca de mel - acrescentou a mocinha.
       - Cuca de mel?
       - E como! - tornou a moça, finalizando: - Um sujeito engraçado!  Sabe, eu nunca tinha pensado que ele fosse carregador. Sua aparência! E sua roupa!
       O Número 45 olhou para o chão branco. Depois fitou o céu escuro. E disse baixinho:
       - Ele não era carregador.
       (1964)
      
       Bekir e Mehmet estão fartos
       O autor destas linhas valoriza a afirmação de que a história que se segue é verdadeira. Uma história que aconteceu realmente. E uma história com moral. Quantas histórias verdadeiras têm moral? E as poucas que existem dizem ultimamente a mesma coisa: o mais sensato seria que nos enforcássemos logo ao nascer, com nosso próprio cordão umbilical. Dessa maneira nos pouparíamos muito trabalho e sofrimento. Quanto a pés frios e feridas causadas pela neve, nem falar.
       A história de Bekir e Mehmet, a verdadeira história, que aconteceu realmente, diz uma coisa bem diversa Algo mais otimista, mais alegre. Ela, por assim dizer, nos indica um caminho para fora da estreiteza e da sombra do presente, rumo a um paraíso de eterna alegria. Por isso, quero contá-la aqui.
       Em Giresun, na Turquia, neste exato momento, dois homens estão sendo examinados para que se constate sua saúde mental. Coisas dessas acontecem. Não só em Giresun, região sobre a qual, como dono de uma edição de 1930 do Brockhaus, posso afirmar o seguinte- a província de Piresun, também chamada Kerasun ou Kerasond, tem quatro mil cento e setenta quilômetros quadrados, com cento e sessenta e seis mil, cento e vinte habitantes (o que dá quarenta por quilômetro quadrado). Os cidadãos do país ocupam-se com vinhedos, criação de ovelhas e bois. A capital, com o mesmo nome, tem mil e duzentos habitantes, um bom porto no mar Negro, e exporta madeira e cobre.
       Os dois homens estão no hospital de Giresun, respondem a muitas perguntas, anotam seus sonhos, e ocupam-se escutando médicos que lhes asseguram que sofrem de alucinações.
       Nossos dois homens chamam-se Bekir e Mehmet Tanriverdim e são gêmeos. Em 1940, alistaram-se no exército. Em 1942, deram baixa. Em 1943, de repente sumiram. E, em 1960, foram novamente descobertos. E foram levados ao hospital. Perguntaram por quê. Sim, por quê? Porque foram encontrados num lugar absolutamente inusitado e num estado absolutamente inusitado. Estavam na copa de uma gigantesca árvore, totalmente nus.
       O inofensivo passante que notou os dois na copa da árvore avisou a polícia. A polícia avisou os bombeiros. Estes apareceram com uma escada, e um caridoso bombeiro subiu até junto dos homens nus e delicadamente convidou-os a descerem dali. Os homens sacudiram as cabeças. Descobriu-se que falavam muito mal o seu idioma. Mas uma coisa estava clara: os dois sentiam-se maravilhosamente bem na copa da árvore e não queriam ouvir falar em descer. Tinham longas barbas. Não usavam mais que isso. Mas davam uma impressão sadia e contente. Só que tudo tem seus limites. Mesmo na Turquia!
       Alguma lei proíbe que se fique sentado nu nas árvores. A longo prazo. Porque se pode cair e ameaçar com isso outras pessoas. Talvez por causa dos estranhos que passam. Ou alguma outra razão.
       Por isso, quando boas palavras não adiantaram nada, as autoridades apelaram para a força. A civilização fez-se valer com porretes de borracha e camisas-de-força: Bekir e Mehmet foram retirados da árvore a laço, e ordenaram-lhes que vestissem camisa e calça, assim que chegaram ao chão. Mas os dois senhores se recusaram. E foram por isso internados no hospital.
       Lá, onde tinham mais prática com loucos, falaram mais sensatamente com eles. O médico-chefe deu-lhes cigarro, aguardente, boas palavras e um galho de árvore serrado, que puseram no quarto. Pois eles não gostavam de sentar-se em cadeiras. Era a força do hábito.
       Finalmente, embora contrariados, decidiram falar um pouco em turco. Ainda dominavam bastante bem a língua. Mas esta não lhes agradava mais. Primeiro deram seus nomes e o dado de terem se alistado em 1940. Depois disseram um pouquinho mais. Disseram que, depois da baixa do exército, tinham decidido evitar as pessoas.
       - Por quê? - perguntou o médico-chefe.
       Por um sentimento geral de nojo, por necessidade de solidão e recolhimento, explicaram os irmãos. O que viam já não lhes agradava, estavam fartos de guerra, do seu tempo e das pessoas, e por isso tinham tido aquela idéia de morar numa árvore.
       - Por que logo numa árvore?
       Bem, uma árvore é algo maravilhoso. Silencioso, permanente e forte. Sentados em sua copa, ainda podemos ver o céu, mas não vemos mais as pessoas. E era exatamente isso o que os dois queriam. Assim, procuraram uma árvore bonita e alta, e na sua ramaria ajeitaram um ninho de verdade, confortável e quente.
       E quando por algum tempo já estavam morando ali, acharam que suas roupas os estorvavam. Por isso jogaram-nas fora. Um pouco mais tarde, acharam que os passarinhos fugiam quando eles conversavam. Mas os dois gostavam dos passarinhos. E decidiram não conversar mais. Para que haveriam de fazê-lo? Também assim entendiam um ao outro. E o silêncio era mais importante do que as palavras. Também os passarinhos vinham e se ajeitavam ali perto, quando se ficava bem quietinho.
       - E foram felizes lá em cima? - perguntou o médico.
       - Como nunca na vida - responderam os irmãos. Com o tempo, quase desaprenderam a língua materna.
       Com o tempo, suas barbas cresceram. Com o tempo, tornaram-se verdadeiros habitantes da árvore. Felizes habitantes da árvore. Dois seres humanos que, em pleno século 20, haviam conseguido viver em paz e sossegadamente.
       - Quanto tempo?
       - Sete anos.
       Sete anos é bastante tempo. Os gêmeos aprenderam nesses sete anos a ser pensativos, tolerantes e modestos. Acham que viveram tempo bastante no paraíso. Se agora querem a todo custo expulsá-los de lá, e colocá-los entre pessoas, isso seria uma provocação, mas não duraria demasiado. Pois um dia eles haveriam de morrer. E então o silêncio retornaria. E, além do mais, tinham tido sete anos de bem-aventurança. . .
       Recentemente vimos um filme chamado A cova das serpentes Passava-se num hospício. E no filme alguém dizia: "Um dia chegaremos ao ponto em que os loucos encarcerarão os sadios.
       Dispensam-se comentários.
       (1950)
      
       A lareira apagada
       Numa noite chuvosa de outono, na Universidade de Princeton, Estados Unidos, dois homens famosos encontravam-se sentados diante de uma lareira apagada; estavam com frio, esfregavam as mãos, e sentiam ambos que estavam ficando gripados. Sentiam-se de mau humor e tinham a mesma opinião. Não era uma opinião otimista. Um dos homens famosos era Denis de Rougemont. O outro, Albert Einstein. Falaram bastante tempo sobre seu pessimismo comum, mas de modo geral o que pensavam pode ser resumido em duas frases. Uma delas colocaremos na boca de Denis. A outra, na do seu amigo Albert. Assim, Albert disse: "A descoberta e o desenvolvimento da força atômica alteraram fundamentalmente todas as coisas na nossa terra: com exceção da nossa própria forma de pensamento".
       E Denis disse: "É uma grande desgraça que, com nossa técnica, tenhamos conseguido chegar a um século fantástico, mas que em coisas de política e sensatez ainda estejamos com Maquiavel".
       Essas são duas frases muito sensatas e muito pessimistas, não é? Mas serão cem por cento corretas? Com todo o grande respeito por Albert e Denis, achamos que não. Não inteiramente. Há sintomas. Sintomas interessantes. . .
       Tomemos o governo indiano. Apenas por exemplo. O governo indiano tem graves preocupações. (Que governo não as tem?) Mas o governo indiano fez algo incomum. Pensou um pouco nos caminhos e direção das torrentes do século 20 - e uma pequena parte de suas preocupações desapareceu com isso. A explicação é a seguinte:
       Na Índia a vaca é um animal sagrado. Não se deve fazer nada contra ela. Não pode ser amarrada, tangida, espantada, muito menos morta. Isso seria um grave crime. Acho que nem ao menos se pode ordenhar a vaca. A não ser quando ela pede. Caso contrário, precisa ser deixada em paz.
       As pessoas na Índia deixaram as vacas em paz. Mas uma espécie particularmente grande e selvagem de vacas não deixou as pessoas sossegadas. Essa raça de vacas chamava-se nehil gae, ou vaca azul. A vaca azul e suas irmãs arrasavam as colheitas dos camponeses, devoravam o pasto, derrubavam as cercas dos galinheiros. Era uma espécie muito louca de vacas. Custava à índia anualmente muitos dólares. Mas não se podia fazer nada. Pois o diabo do bicho era sagrado.
       Nisso o governo tomou uma decisão digna do nosso século. Rompeu com ritos e tabus tradicionais. Declarou a vaca um cavalo. Passou por cima de características zoológicas, e chamou a nehil gae de nehil goa. Os goas não são sagrados. Só as gaes. E a caçada começou. Os selvagens cavalos azuis sumiram. Finalmente todos ficaram livres das selvagens vacas azuis. Tão simples é a vida quando se sabe agir direito.
       Não apenas na índia, mas também em Steindorf, Salzburgo. Lá a polícia há alguns dias falou num terrível crime. Uma boa mocinha fora atacada por um desconhecido numa erma estrada do campo. A boa mocinha levava consigo quatrocentos e oitenta e cinco xelins, e tinha duas belas tranças compridas. O desconhecido abateu-a brutalmente. Ela perdeu a consciência. Quando a recobrou, os quatrocentos e oitenta e cinco xelins tinham sumido. As belas tranças compridas também. O bárbaro as cortara e levara consigo. Pois não foram encontradas em lugar nenhum. Parecia tratar-se de um colecionador ou um louco. A boa mocinha mostrou-se muito abalada com a falta de segurança em Steindorf ou Salzburgo, e toda a região ficou abalada . com a boa mocinha.
       Até que descobriram que a boa mocinha não fora tão boa assim, e inventara a história do assalto. Não havia nenhum feroz desconhecido nem fetichista de cabelos. A mocinha (já não a podemos chamar de boa, mas de esperta), a esperta mocinha inventara toda a história, e cortara ela mesma suas tranças, jogando-as fora. E escondera o dinheiro. Por que tudo isso? Porque sua mãe recusara permissão para que ela mudasse de penteado.
       Não há na terra coisa pior do que a burrice. A burrice é culpada de toda a miséria e aflição do nosso tempo. Foi a burrice o motivo pelo qual Albert e Denis se sentiam tão deprimidos diante da lareira apagada, em Princeton. Mas, como se vê, a aflição nos torna imaginosos. E para ser imaginoso, é preciso fantasia. A fantasia é o primeiro e mais importante degrau da escada que leva à sabedoria. Os sintomas, como eu disse, existem. Quem sabe o que ainda vai acontecer? Quem sabe se na lareira apagada, diante da qual Denis e Albert ontem estiveram sentados, amanhã não crepitará o fogo quente e claro da sensatez?
       (Escrito em 1949. Albert Einstein morreu há muito. Denis de Rougemont é um senhor idoso. E a lareira hoje, em 1979, continua apagada.)
      
       Pesadelo para passar adiante
       Meu amigo Félix dorme mal. Tem um pesadelo que se repete, e que gostaria de passar adiante. Na sua misantropia ele chega a ponto de achar que dormiria melhor se soubesse que outros também dormem mal! Ainda devo duzentos xelins ao meu amigo Félix. Ele perdoará minha dívida se eu lhe satisfizer um pequeno desejo: anotar aqui o seu pesadelo. Para que ele possa dormir melhor. Afinal, o que não se faz por um amigo? E por duzentos xelins.
       Tudo começou de modo inocente.
       Para poder adormecer, Félix imaginava ovelhas saltando sobre uma cerca. Depois imaginou que a cerca era a fronteira entre dois países. Por exemplo, Uruguai e Paraguai. Ele não sabia bem se na fronteira do Paraguai com o Uruguai há ovelhas, e seus pensamentos começavam a vagar um pouco por aí. Imaginou que entre os dois países haveria brigas por causa das ovelhas e graves discussões de ordem política. O governo do Uruguai tinha uma raiva enorme do governo do Paraguai, e o governo do Paraguai tinha um ódio mortal do governo do Uruguai.
       Porque estava com tanta raiva, o governo do Paraguai decidiu fazer algo contra o governo do Uruguai. Já sabia o que tinha de fazer para mexer com os nervos do governo do Uruguai! Decretou a queda da moeda estrangeira. Um dólar uruguaio, a partir de então, valia no Paraguai apenas noventa e cinco centavos paraguaios.
       Depois que o governo do Uruguai se recuperou desse golpe do destino, começou a tomar contramedidas. As contramedidas foram mais ou menos da mesma espécie. Também o governo uruguaio decretou a queda da moeda estrangeira. Um dólar paraguaio valia, a partir de então, no Uruguai, apenas noventa e cinco centavos uruguaios.
       (Meu amigo Félix chegara até esse ponto, mas ainda não conseguira adormecer. Por isso continuou refletindo. E não devia ter feito isso!)
       Pois vivia no Uruguai, bem perto da fronteira, um homem que sempre tinha sede. Sede de cerveja. Uma terrível e insaciável sede de cerveja. Além disso, possuía apenas um dólar, e um dólar paraguaio. Chamava-se Fernando. Quando aconteceu a desvalorização da moeda, Fernando estava sentado no capim ao lado da fronteira, e tinha sede. Do outro lado da fronteira, no Paraguai, havia uma taverna. Fernando refletiu longamente. Depois ergueu-se, cruzou a fronteira e entrou na taverna do Paraguai, onde pediu um grande copo de cerveja. A cerveja custava exatamente cinco centavos paraguaios.
       Quando chegou a hora de pagar, Fernando colocou no balcão tudo o que possuía: o dólar paraguaio. O taverneiro quis devolver-lhe noventa e cinco centavos paraguaios, quando Fernando segurou sua mão.
       - Pare aí - disse. - Um momento, por favor! Se não se importa, dê-me, em lugar dos noventa e cinco centavos paraguaios, um dólar uruguaio. Pois, como se sabe, este, no Paraguai, vale exatamente noventa e cinco centavos paraguaios, não é?
       O taverneiro reconheceu que era verdade, e deu a Fernando um dólar uruguaio. Este, ainda sedento (era uma sede insaciável), voltou pela fronteira para o Uruguai, sua amada pátria. Também na sua amada pátria havia, perto da fronteira, uma taverna. Fernando entrou, saudou o taverneiro amavelmente, e pediu um grande copo de cerveja. A cerveja custava exatamente cinco centavos uruguaios.
       Quando chegou a hora de pagar, Fernando colocou no balcão tudo o que possuía: o dólar uruguaio. O taverneiro queria devolver-lhe o troco de noventa e cinco centavos uruguaios, quando Fernando segurou sua mão.
       - Pare aí - disse. - Um momento, por favor! Se não se importa, em vez dos noventa e cinco centavos uruguaios, dê-me um dólar paraguaio. Como o senhor deve saber, este vale no Uruguai exatamente noventa e cinco centavos, não é?
       - Bom, bom - disse o taverneiro (ou disse o que os taverneiros  costumam  dizer  no  Uruguai  quando  querem expressar concordância). E deu a Fernando um dólar paraguaio.
       Fernando saiu. O sol estava alto, fazia calor, a terra queimava. Ele não pôde controlar-se. Tinha sede. Uma sede terrível. Um passeiozinho não faria mal, pensou.
       O passeiozinho o levou para o outro lado da fronteira, até a taverna paraguaia. Lá, desprezando o estado de seus rins, Fernando pediu uma grande cerveja. Sabemos quanto custa uma cerveja grande. Quando chegou a hora de pagar, Fernando colocou no balcão tudo o que possuía: o dólar paraguaio. O taverneiro queria lhe devolver o troco de noventa e cinco centavos paraguaios, quando Fernando segurou sua mão.
       - Pare aí - disse ele. - Um momento, por favor! Se não se importa, em vez dos noventa e cinco centavos paraguaios, dê-me um dólar uruguaio. Como sabe, este vale no Paraguai exatamente noventa e cinco centavos paraguaios, não é?
       - Certo, certo, meu rapaz - disse o taverneiro (ou disse o que os taverneiros paraguaios costumam dizer para expressar sua concordância). E deu a Fernando um dólar uruguaio.
       Fernando saiu. O sol já estava um pouco mais baixo, mas estava quente ainda, e a terra ainda queimava. Fernando não conseguiu se dominar. Estava com uma sede terrível. Por isso cruzou a fronteira rumo ao Uruguai, e quando entrou na taverna de lá, sem muitas palavras o taverneiro pôs-lhe na frente uma grande cerveja.
       Vamos parar por aqui.
       Fernando viveu assim um ano inteiro. Depois seus rins estouraram, e ele morreu em solo uruguaio, perto da fronteira. Em seu bolso encontraram um dólar paraguaio.
       - Diabos - disse o médico que o examinou. - Quem terá pago toda a cerveja que este sujeito bebeu?
       Acho que a pergunta é muito adequada. Com ela, vamos encerrar. Durma bem, simpática leitora, caro leitor!
       (1962)
      
       Nada de férias para a polícia
       No filme francês Nada de férias para o bom Deus, aparecem umas crianças que têm de passar o verão em Paris, e têm a idéia de roubar cachorros para devolvê-los em troca da recompensa para quem os encontrar. O negócio prosperou até que um dia fizeram a felicidade de um casal de velhos, com aquele dinheiro ilícito, apenas para se divertir. Então ouvem da voz do padre, postado no alto do altar: "Aqui o bom Deus meteu sua mão!" O bom Deus. . . mas se eram elas mesmas! Assim, fundam um "quartel-general do bom Deus" e a partir desse momento acontecem milagres em Paris. Um pobre pintor recebe tintas, uma mulher pobre recebe um vestido, uma criança recebe sapatos, uma família, um pacote de alimentos - é um verão ocupado para o bom Deus, que não tem férias. Naturalmente acontece por fim uma grande desgraça e tudo parece ir mal para os representantes do Todo-Poderoso; mas afinal tudo acaba bem, e todo mundo fica feliz.
       É porque tudo foi um filme, e não a realidade.
       Na verdade, algo semelhante aconteceu em Groningen, uma cidade da Holanda. O filme Nada de férias para o bom Deus já passou. E desde então acontecem milagres em Groningen. Milagres grandes, milagres menores, milagres incessantes. A cidade está de pernas para o ar. Uma coisa assim nunca acontecera!
       Parece que um desconhecido qualquer levou o filme a sério e decidiu imitar as ações de seus heróis. Isso é bem possível, não é? Se o Fantasma da Opera pode provocar um crime com ácido, por que não poderia o "bom Deus" provocar certa fascinação? Pessoalmente gosto de pensar nessa cidadezinha e seu grande desconhecido que presenteia roupas e chocolate, batatas e azeite, dinheiro e sapatos. Na verdade, sinto um calor no peito quando penso nele. Devia-se pensar que essa cidadezinha está muito feliz.
       Sim, a gente devia pensar assim!
       Mas li no jornal que a coisa é muito diferente. Muito menos feliz. Primeiro, os cidadãos de Groningen não andam nada edificados com os milagres que estão acontecendo. Pelo contrário. Julgam-nos sinistros, assustadores, pecaminosos, motivo de indignação. As pessoas têm medo. Querem que os milagres parem! Mas os milagres não param.
       Primeiro, quando a coisa começou, todo mundo ficou desconfiado, e cristãmente supôs o pior. O chocolate, suspeitavam, era envenenado. O dinheiro, falso. Na trouxa de roupas podia haver uma bomba-relógio. Mas uma menininha comeu um pedaço do chocolate, e o mesmo não estava envenenado. Alguém comprou com o dinheiro, e ele não era falso. E também a coisa com a bomba-relógio era, afinal, tolice. Assim, as pessoas podiam ter decidido acreditar que simplesmente havia uma pessoa bondosa agindo. Ou, se não era bondosa, era apenas doida.
       Mas as pessoas não quiseram nem mesmo isso. O sujeito não era bom nem louco, era. . . um criminoso. Sim, um criminoso. Tinha de ser! Um sujeito decente não joga fora dinheiro duramente ganho. Um sujeito decente não encena milagres. Um sujeito decente devora seus botos sozinho!
       E por isso a polícia de Groningen fez um plano e começou a procurar o desconhecido. Ainda está procurando por ele. Estou muito feliz porque ainda não o encontraram e espero (a polícia que me perdoe, se puder!) que não o encontrem. Pois acho que o estão procurando para cometer uma injustiça.
       Por que diabos, afinal, estão procurando por ele? Acaso hoje já se tornou crime fazer coisas boas e alegrar outras pessoas?
       A polícia de Groningen é que responde: temos de procurar o homem porque é de se temer que o dinheiro que financia seus "milagres" venha de manipulações criminosas e fontes obscuras.
       E eu respondo: mas por que diabos ele tem de vir de fontes obscuras? Por que diabos não pode ser dinheiro honestamente ganho, honestamente merecido? Será que hoje ninguém mais pode imaginar que uma pessoa normal e decente faça o bem? Por que, quando algo de bom acontece, logo temos de pensar que atrás disso deve haver loucura ou crime?
       Não será um sintoma assustador? Acaso alguém já examinou os grandes políticos e líderes quanto à sua sanidade mental, ou acaso a polícia se interessa em saber de onde vem o dinheiro com que nossos capitães de indústria e grandes comerciantes conseguem seus magníficos carros de luxo? Acaso porque Fulano ou Beltrano comprou uma casa, instalou uma firma, fez uma piscina, devemos então prendê-lo, pois isso não pode ser coisa direita?
       Acho que a polícia não devia procurar o desconhecido de Groningen. Acho que é feio julgar que ele seja um criminoso. Creio que não gostaria de continuar vivendo num mundo em que essa espécie de julgamento sobre as pessoas se tornasse moda.
       (1954)
      
       Um tiro para o céu
       Os esforços dos senhores de Vorarlberg para que seus protegidos vivessem uma vida mais agradável a Deus começaram na verdade há dois anos. Naquela ocasião, em diversas praias de banhos acabou-se com um sintoma particularmente pervertido de decadência: o banho em comum. Que o resto do mundo continuasse um pantanal de pecados, despertando a repulsa dos bem-intencionados. Mas Vorarlberg renascia, nessa época de decadência e impulsos obscuros, como uma ave das cinzas, e voltava seu rosto puro para o céu: e seu povo venceu. Em Vorarlberg, país livre e altivo, no ano do Senhor de 1950, homens e mulheres banhavam-se separados nas praias. Assim, dominava-se o pecado; e o materialismo, mal básico da nossa era sem Deus.
       "O pai do famoso biólogo Uexhüll era juiz de paz em Estland. Todos admiram hoje o filho de Uexhüll como um dos mais refinados e dignos representantes daquele fenômeno chamado Homo sapiens. Mas acho que o pai de Uexhüll também era muito especial, como se costuma dizer mais ao norte. O velho Uexhüll vivia numa cidadezinha, e lidava com toda a espécie de gente. Não só com aqueles que teriam apoiado o banho em comum, caso vivessem em Vorarlberg e tivessem direito a isso, mas também com outras pessoas. Também com gente que batalharia contra essa falta de vergonha nos banhos. Por exemplo, havia o Pastor Roben, que brigava com o Barão Van Meer. Ele sempre dizia que o Barão Van Meer era um desavergonhado ateu e um materialista condenado por toda a eternidade."
       O governador de Vorarlberg ficava muito oprimido com a irrupção do materialismo em nossa época. E com razão! Isso pode mesmo oprimir a gente. Faz-nos chorar pela metafísica. Uma lágrima, talvez duas. O que aconteceu com a nobre flor do Ocidente? Está claro que precisamos fazer alguma coisa por ela. Mas, como? Se fosse assim tão fácil! Se fosse assim tão fácil reconhecer o bom Deus e o Diabo, dificilmente entraríamos em conflitos de consciência. Todos dormiríamos maravilhosamente. E não ouviríamos os vermes da morte roendo as vigas. A vida seria fácil. Tão fácil, que provavelmente se tornaria monótona. Mas infelizmente a coisa não é tão fácil assim.
       Foi o que o governador de Vorarlberg viu, quando começou a "trabalhar". Acreditou estar dando um golpe aniquilador contra o materialismo quando ordenou às autoridades distritais que deixassem o fim de semana durar apenas de sábado até domingo, pelas duas da manhã. A partir das duas, "o domingo será santificado". Belo tempo para os metafísicos. E para os materialistas.
       "Esse Barão Van Meer bebia e blasfemava e vivia ao mesmo tempo com três mulheres - e não pagava as contribuições à Igreja. Mas estava sempre com seus criados e criadas lá fora nos campos, quando era tempo de colheita, e ajudava nos trabalhos. Certo dia, no verão - quase todo o feno já estava armazenado, restavam apenas algumas horas de trabalho -, desabou uma tempestade. Uma terrível tempestade. O Barão Van Meer blasfemou. Mas não adiantou coisa nenhuma. Caíram as primeiras gotas. Seguiu-se uma tromba-d'água. O feno estava perdido! O Barão Van Meer, na sua ira blasfema, tirou o revólver do bolso e deu um tiro para o céu, com uma frase terrível."
       Os materialistas em Vorarlberg vão dançar e beber e ser felizes até as duas da manhã. A partir das duas vão santificar o domingo. É uma idéia comovedora. Especialmente quando se pensa que os vultos cambaleantes que nessa hora voltarem para casa, para seus irmãos metafísicos em espírito, representarão a contribuição de Vorarlberg na luta universal pela interiorização, pelo reconhecimento da alma, e pelo retorno às coisas essenciais da nossa vida. Vinde, cruzados do Ocidente! Tratem de estar sóbrios ao amanhecer! Tomai aspirina antes de dormir. Aspirina - a indispensável ajuda na nossa luta gigantesca por um mundo novo e melhor!
       "Depois disso o Pastor Roben correu até o velho Uexhüll e berrou e saltou e levantou as mãos, afirmando que o barão derramara a última gota com essa nova vergonheira. 'Ele é um herege materialista, totalmente perdido, dominado feio Demônio, que não acredita nem mesmo nas coisas mais sagradas', berrava. 'Ontem, durante a tempestade, ele até deu um tiro -para o céu com seu revólver!.'
       O velho Uexhüll coçou a orelha esquerda.
       'E acha que ele teve chance de acertar no bom Deus?', perguntou por fim.
       'Claro que não', respondeu o pastor, indignado.
       O velho Uexhüll coçou a orelha direita.
       Depois deu um sorrisinho e disse:
       'Perdão, pastor, mas então o barão ê mais crente do que o senhor!'"
       (1964)
      
       O dilema dos meninos Huckie e Ben
       Ontem passei pelo parque e parei para ver um senhor que retirava de um poste de luz da rua uma caixa de lata pequena e enferrujada. Fazia isso para embelezar o parque. Era mesmo uma caixa extraordinariamente feia: suja, velha, amassada, corroída pela chuva, pelo sol e pelos dentes do tempo. Em cima tinha uma fenda, como um telefone automático e, embaixo, uma portinhola. Ao lado da fenda estava escrito: "Coloque vinte centavos", e ao lado da portinhola: "Aperte aqui!"
       Depois que o homem desaparafusou a caixa, jogou-a num carrinho de mão e foi embora. Para ele nada significava a velha caixa de lata. Mas para mim, sim. Já conhecera a caixa na sua juventude. No seu período de esplendor. Desde quando ela trouxera desordem e sofrimento prematuro à vida dos meninos Huckie e Ben. . .
       Huckie e Ben eram amigos.
       Estavam na minha classe. Depois da aula, passavam pelo parque para ir para casa, pois no parque havia muitos passarinhos, e Huckie gostava muito de passarinhos. Ele gostava de todos os bichos, mas principalmente de passarinhos. Ben gostava menos. Bichos eram-lhe indiferentes. Ele ia junto porque era amigo de Huckie. E porque morava na Gregor-Mendel-Strasse.
       Do que mais gostavam era ir ao parque no inverno, quando nevava. Então havia particularmente muitos passarinhos por lá, pois havia pouco o que comer, e todos estavam com fome. Ben jogava bolas de neve nas placas que proibiam andar na grama, enquanto Huckie dividia com os passarinhos o pão da sua merenda. Com isso, naturalmente, descobriu que havia sempre pássaros demais e pão de menos. E já pensava no que deveria fazer quando Ben, o mais ativo dos dois, encontrou a caixinha de lata pendurada no poste de luz.
       - Olhe aí - disse ele; e jogou vinte centavos na fenda, ouvindo um ruído mais embaixo. Ben colocou a mão na portinhola do aparelho e tirou um saquinho. No saquinho estava escrito: "Excelente alimento para pássaros". Ê com isso tinham vencido a primeira dificuldade.
       A segunda foi conseqüência do fato de os meninos Huckie e Ben, no dia seguinte, não terem vinte centavos. Enquanto Huckie ainda pensava no que fazer, Ben já dobrava um pedaço de arame. E enquanto Huckie vigiava, Ben dominava o mecanismo do aparelho. Não foi difícil manejá-lo. Era um aparelho simples. Bastava meter o arame na portinhola e mexer de um lado para outro até que uma tranca interna se abrisse. Então começavam a chover saquinhos. Havia muitos na caixa Mas também havia muitos pássaros. Depois de três dias, Huckie tentou pessoalmente. Depois de quatro dias, não precisava mais de Ben. E, depois de seis dias, um policial o apanhou.
       O policial não apanhou Ben. Como eu disse, Ben era mais ativo. Mas Huckie foi levado à delegacia. Os senhores de lá não foram muito severos com ele, mas tentaram exercer alguma influência pedagógica, mostrando-lhe como sua ação tinha sido má. E viram que Huckie parecia uma criança totalmente confusa. Sem capacidade de distinções éticas entre o bem e o mal, o meu e o seu.
       Ele não se sentia culpado, disse gentilmente. Talvez se sentisse culpado se tivesse roubado comida de pássaros para comê-la ele mesmo. Mas não era o caso. Não comia alimento de pássaros. Roubava exclusivamente para os pássaros. O inspetor ficou contente porque ao menos Huckie admitiu isso. E ao menos se envergonhava disso?
       Não, disse Huckie, pois não roubara por maldade, por má-criação.
       Roubara para ajudar animais famintos. Do seu ponto de vista, o alimento devia estar no estômago dos pássaros, e não dentro do aparelho. (Por isso, na verdade nem se podia afirmar que ele roubara. Apenas corrigira um engano cometido pelas pessoas que enchiam o aparelho.)
       A comida era propriedade dessas pessoas, argumentou o inspetor, que não se sentia muito à vontade. Tinham, pois, o direito de vendê-la.
       Ele bem que teria preferido comprar a comida a tirá-la com arame, disse Huckie de boa vontade. Nem se divertira tirando-a assim, pelo contrário.
       Mas por que o fizera então?
       Porque nem sempre tinha vinte centavos. E porque de modo algum poderia conseguir dinheiro suficiente para os pássaros famintos que havia ali. Mas todo mundo tinha de reconhecer que os pássaros não deviam continuar com fome, apenas porque Huckie não tinha dinheiro. A comida não podia continuar na caixa, e os pássaros não podiam continuar de estômago vazio, só porque não havia tantos centavos quanto fome no parque. Não. Huckie achava que agira com toda a justiça. Com muita reflexão e responsabilidade. Achava que na verdade não ele, mas sim as pessoas que vendiam comida deviam ser castigadas. Como castigo por não espalharem a comida de graça na neve. Se tivessem feito isso, não haveria mais pássaros famintos, e ele, Huckie, não teria precisado intervir, e o inspetor não teria aborrecimentos. . .
       O inspetor reconheceu que não fazia sentido nenhuma punição porque o menino se sentia plenamente justificado. Portanto, deixou-o ir embora, apenas ameaçando em caso de repetição do caso.
       Huckie tinha medo dessas conseqüências. Não se atreveu mais a chegar perto da caixa, os pássaros ficaram com fome alguns dias, e Huckie sentiu-se muito miserável. Até que Ben, o mais ativo dos dois, chegou com uma caixa grande, de pelo menos um quilo, com comida de pássaros, pedindo o pagamento de cinqüenta centavos.
       Huckie tinha cinqüenta centavos. Sabia muito bem de onde vinha o conteúdo da caixa, mas não fez perguntas. Pagou e pegou. E achou que os dois já eram bem adultos.
       (1975)
      
       Felicidade em patas macias
       A porta abriu-se num arranco. O menininho magro ofegava. O cabelo louro caía-lhe desgrenhado na testa pálida.
       - Por favor, por favor, deixe-me entrar! Eu sei que os senhores chegaram primeiro, mas o meu Peter vai morrer se tiver de esperar. Por favor!
       Já havia alguns pacientes no aposento: um cão são-bernardo, com um caco de vidro no focinho, um pequinês com a perna direita da frente engessada, um macaquinho com costelas partidas, um papagaio com asa quebrada. E ao lado dos bichos sentavam-se três mulheres e um homem. O macaquinho, o papagaio, o pequinês e o cão são-bernardo, bem como as quatro pessoas, olharam o menininho que estava parado diante deles, tremendo todo. Usava uma calça curta, um pulôver de gola olímpica e um casaquinho de tecido grosseiro. Os sapatos estavam enlameados. Parecia um pouco descuidado. Na mão segurava uma mochila. O são-bernardo e o pequinês começaram a rosnar. Da mochila soaram um miado fino e lamentos.
       - Por favor! - disse o menino mais uma vez. Tinha, no máximo, nove anos. Nesse momento a porta branca se abriu e apareceu o veterinário da clínica de animais. Era alto, magro e tinha bondosos olhos cinzentos. O veterinário deixou passar uma mulher com uma tartaruga, e disse amavelmente:
       - O seguinte, por favor!
       Silêncio. O lábio inferior do menininho tremia. Os quatro adultos no banco de espera acenaram com a cabeça. Ô homem do macaquinho disse:
       - Vamos, entre!
       - Muito obrigado - disse depressa o menino. E voltando-se para o médico: - Bom dia, doutor! - Ouviu-se outro "miau" na sua mochila.
       - Vamos ver - disse o médico grisalho, depois de fechar por dentro a porta do consultório.
       O menino colocou na mesa a pesada mochila e abriu-a. Viu-se um gordo gato branco. Estava todo encolhido e trêmulo, e tinha uma das patas flexionada num ângulo muito estranho. No pescoço, corria sangue de uma ferida.
       O médico tirou o animal da mochila, com a segurança de uma longa experiência.
       - Cuidado, ele arranha!
       - A mim não - disse o médico. - Nenhum gato me arranha. Como é o nome dele?
       - Peter.
       O médico olhou a ferida e a pata direita dianteira, e indagou:
       - E você, como se chama?
       - Hürgten.
       - Primeiro nome?
       -- Emílio - respondeu o menino, pálido.
       O médico pôs de novo o gato na mesa. O bicho estava quieto e não tremia, parecendo ter confiança no médico. Todos os bichos confiavam no Dr. Winter. Em seu consultório, o ambiente era o da sala de um médico de gente. Caixas de vidro com aparelhos, uma mesinha para exames, uma balança e uma escrivaninha branca.
       - O seu Peter quebrou a pata. Vamos engessá-la.
       Emílio fez que sim.
       - A ferida do pescoço não é perigosa, mas vamos colocar um pouco de iodo.
       O Dr. Winter preparou o gesso. Peter olhava.
       - Engraçado, ele está até ronronando! - disse Emílio, admirado. - Devia sentir dor!
       - Mas sabe que vai melhorar. Os bichos sentem essas coisas. Como foi que ele se machucou?
       O menino pálido e de olhos grandes e azuis baixou a cabeça.
       - Correu para debaixo de um carro. O motorista nem notou e seguiu adiante. E o meu Peter ficou ali deitado.
       - Quando foi isso? - O Dr. Winter cortava a gaze.
       - Faz duas horas.
       - Onde foi?
       - Na. . .   na Praça da Prefeitura. - Emílio estava muito vermelho e virou a cara para a parede. O médico fitou-o atentamente.
       - Escute, Emílio, como é que seu gato estava na Praça da Prefeitura? Você mora ali?
       - Não. - Emílio abria e fechava as mãos sujas. Respirava depressa. O médico juntou cuidadosamente os ossos quebrados da pata, pôs as talas, enrolou tudo em algodão e começou a colocar o gesso. O gato lambia-lhe as mãos.
       Durante esse tempo todo fez-se silêncio na sala branca. Lá fora, um carro buzinou uma vez.
       Só quando o gesso estava colocado, e o Dr. Winter começou a raspar o pêlo em torno da ferida do pescoço, ele perguntou baixinho:
       -- Quantos anos você tem?
       - Vou fazer nove em maio.
       O Dr. Winter passou iodo na ferida. Peter tremeu um pouco, mas logo continuou a lamber a mão do médico. Este quase sussurrava:
       - Há pouco ouvi notícias no rádio. A polícia procura um menino da sua idade. Ele também se chama Emílio Hürgten. Fugiu ontem de tarde do orfanato em Grünwald e está sumido. Esse menino também tem um gato, disse o rádio. E levou o gato consigo.
       O menino chamado Emílio Hürgten sentou-se numa poltrona, sem forças, pôs os braços na mesa, abaixou a cabecinha e começou a chorar. Chorou e chorou e chorou. Era como se nunca mais fosse parar de chorar.
       - Miau - fez o gordo Peter em tom preocupado.
       O Dr. Winter lavou as mãos e arrumou seus instrumentos. Ganhava tempo, antes de voltar a falar com Emílio, adivinhando que havia muito sofrimento em seu coração, sofrimento que só melhoraria com lágrimas. Por fim, sentou-se ao lado do menino e lhe deu um lenço. Peter olhava curioso enquanto Emílio assoava o nariz aos soluços.
       - Por que você fugiu?
       - Eles  disseram   que  eu   tinha  de  entregar  Peter. Já o tenho há dois anos. E agora de repente querem que eu o mande embora!
       - E por quê?
       - Ele. . ele roubava costelinhas, doutor!
       - Ah. . .
       - Mas ele precisa de comida. Nunca tem bastante. É muito grande e forte, não é mesmo? E certamente precisa de toda essa comida!
       - Onde ele roubava costelinhas?
       - Na despensa do orfanato, doutor. Foi essa a desgraça toda. Costumava subir pela janela, à noite, e roubar. Principalmente carne. Costelinhas inteiras! A diretora deixou passar algumas vezes. Mas a coisa foi ficando cada vez pior. Por fim ela disse que Peter tinha de sumir. Queriam en. . . en. . . en. . . - Emílio começou de novo a soluçar. A palavra "envenenar" era demais para ele.
       - Ora, ora, ora! - disse o Dr. Winter, tendo nos olhos uma expressão pensativa, singularmente triste. - Afinal, eles não o envenenaram. Ele está bem vivo! Mas então você fugiu de medo de que lhe tirassem Peter?
       - Sim, doutor. O senhor vai me denunciar agora? Vai chamar a polícia?
       O médico respondeu com outra pergunta:
       - Onde foi que você dormiu esta noite?
       - Numa cabina de telefone, em que tinham pendurado uma placa dizendo "Não funciona".
       - E como imaginou o seu futuro?
       - Eu queria ir para Frankfurt, doutor. Queria ir hoje até a estrada e tentar conseguir carona.
       - E o que ia fazer em Frankfurt?
       - Ora, lá há muito trabalho para crianças!
       - É mesmo?
       - Claro!  Falei com um menino que disse que em Frankfurt a gente pode ganhar um monte de dinheiro. Os americanos têm um aeroporto ali. E diante do aeroporto há muitos lugares de estacionamento. Pois é; e se a gente lavar os carros ali, doutor, pode ganhar no mínimo oitenta marcos por mês.
       - Entendi - disse o Dr. Winter. - E com isso você e Peter teriam vivido.
       Emílio fez que sim, cheio de dor:
       - Sim, doutor. Mas aí esse bicho bobo saltou da mochila na Praça da Prefeitura...  e meteu-se debaixo do primeiro carro!
       - Gatos gostam de estar em casa, sabe? Não se pode simplesmente carregá-los por aí.
       - Mas o que é que eu podia fazer, se no orfanato eles queriam tirá-lo de mim?
       - Entendo sua situação, Emílio - disse o médico. Levantou-se e andou de um lado para outro na salinha, com as mãos nas costas. Estava mergulhado em reflexões. De repente parou e perguntou.
       - Emílio, você conheceu seus pais?
       - Não. Morreram num desastre de trem. Eu tinha só seis meses de idade.
       O Dr. Winter recomeçou a andar. A torneira da pia pingava. Ele a fechou. Foi até a janela e olhou para fora. Já estava bem quente nessa semana antes da Páscoa; no parque do outro lado da rua floresciam os primeiros açafrões. O sol brilhava, nuvenzinhas apressadas velejavam no céu azul. O Dr. Emmanuel Winter estava imóvel na janela e ali ficou o tempo que se leva para contar até dez; depois virou-se. E sorria.
       - Preste atenção, Emílio. Agora tenho de cuidar dos outros bichos, e depois darei uma saída rápida. Pegue seu Peter e entre aqui.
       E levou o perplexo menino para um quartinho ao lado.
       - Aqui há livros e revistas. Se você tiver fome, diga à enfermeira. Mande pedir o que quiser. Também para Peter.
       - Sim, mas. . .
       - Não vá fugir, hein, Emílio? O menino sacudiu a cabeça
       - Palavra de honra?
       - Doutor, o senhor vai para a polícia?
       - Não, Emílio. Não tenha medo. Claro que não vou. Você me dá sua palavra de honra de que não vai fugir de novo?
       O menino fez que sim, devagar. O gato gordo examinava curioso o gesso da pata.
       - Meu filho tinha nove anos quando morreu, diretora. E quando Emílio apareceu no meu consultório com seu gato, achei que era Paul que estava diante de mim. Paul era o nome do meu filho. Fiquei perturbado com a semelhança.
       Uma hora mais tarde, com o chapéu nos joelhos, o Dr. Winter estava sentado diante da diretora do orfanato em Grünwald. Lá fora, no parque, cantavam muitas vozes alegres de criança:
       "Precisava de pouco para ser feliz, mas quem é feliz é como um rei!"
       A diretora do orfanato era uma senhora de cabelos brancos, de óculos. E disse:
       - Naturalmente não há nenhum impedimento para uma adoção, doutor. Quero dizer, em princípio. Mas há muitas formalidades a serem cumpridas, tudo tem de correr o seu curso normal. . .
       - Falei com minha mulher. Ela. .. bem, ela não pode mais ter filhos. E nunca superou a morte de Paul. Nós dois ficaríamos muito felizes se pudéssemos levar Emílio e seu gato para nossa casa.
       - Doutor, uma adoção é algo definitivo e muito grave. O senhor ainda nem conhece essa criança.
       O Dr. Winter respondeu baixinho:
       - Conheço Emílio. Entendo de animais. Crianças e animais são parecidos. Senhora diretora, Emílio podia morar comigo enquanto as formalidades se arranjam?
       A diretora do orfanato levantou-se e pediu licença. Disse que não podia resolver sozinha. Um quarto de hora depois voltou.
       O Dr. Winter levantou-se de um salto:
       - E então?
       A diretora fez que sim, sorrindo, "...mas  quem  é  feliz  é  como  um  rei",  cantavam as crianças no parque.
       Emílio estava morto de cansaço quando naquela noite o Dr. Winter o levou para sua pequena casa no subúrbio. Nem entendia o que lhe estava acontecendo. Sonolento, deu a mão a Nora Winter. Era uma mulher pequena e delicada, com cabelos negros e grandes olhos também negros, cheios de lágrimas.
       - Como vai, meu filho? Seja bem-vindo.
       - Como vai? - respondeu Emílio. Ainda segurava no braço a mochila com Peter e bocejava. Não tinha fome. Nora Winter lhe deu banho e vestiu-lhe um pijama.
       - Mas que engraçado, você tem um pijama para mim!
       - Emílio espantava-se, sonolento.
       - Pois não é mesmo engraçado?  - Nora Winter pensou em quantas vezes vestira aquele pijama no seu filho. - Venha - disse ela. Pegou-o pela mão e o levou a um quarto de criança, alegre e colorido.
       - Quantos brinquedos! - Emílio arregalou os olhos com esforço.
       - Tudo isso agora é seu - Nora Winter sentia os olhos úmidos. Numa poltrona ao lado da caminha estava Peter, o gato, sentindo-se confortavelmente em casa. Comera fígado cru e tomara leite quente, e estava feliz da vida.
       O Dr. Winter estava junto à porta. Segurava na mão um copo de conhaque e na outra o cachimbo, e olhava a esposa colocar o menino na cama. A criança disse sua oração da noite. Depois adormeceu, com uma das mãos sobre o pêlo do gato.
       Nora Winter foi para junto do marido, nas pontas dos pés, e olhou em silêncio. Ele pôs o braço em torno da mulher, e juntos deixaram o quarto da criança. Ao sair, ele apagou a luz. A porta ficou encostada. . . como antigamente.
       - Ouça - disse ele.
       E ouviram o gato ronronar e também a respiração de Emílio.
       (1949)
      
       Amor 56
       - Dois dióptrios à direita, dois e meio à esquerda - disse o médico. Caminhou da tabuleta com as letras e números para sua escrivaninha. E passou pela mulher sentada junto à tabuleta. Era magra e alta, usava um costume cinza, seu cabelo preto era curto. Ela tirou os óculos experimentais que o médico lhe colocara, e piscou:
       - Que quer dizer isso, dois dióptrios e dois e meio, doutor?
       - A senhora sofre de hipermetropia. Tem de usar óculos.
       - Óculos. . .  - A mulher estremeceu. - Mas isso é terrível!  - Parecia querer chorar. - Não posso usar óculos!
       - Bobagem - disse o médico, sorrindo. - Primeiro, trata-se da sua saúde, e segundo, sem óculos a senhora já não enxerga o bastante, e terceiro, há óculos muito elegantes e bonitos!  Vou escrever logo uma receita para a óptica. Seu nome?
       - Luci Wiegand - respondeu a mulher. Parecia distante e triste.
       - Idade?
       - Trinta e nove. - Luci curvou-se sobre a mesa. •-• Não há outro jeito, doutor? Tenho de usar óculos?
       - Por que se recusa tanto?
       - Porque tenho trinta e nove anos!
       - E daí? A senhora parece ter trinta e dois!
       - Obrigada, doutor. - Luci Wiegand disse baixinho: - Mas sou casada. E meu marido não parece ter apenas trinta e dois. Ele tem trinta e dois anos.
       - Entendo. . . - tornou o médico.
       - Meu marido tem sete anos a menos do que eu, e não usa óculos. Eu. . .  eu amo meu marido. Sempre tive um pouco de medo desse casamento. . . por causa da diferença de idade. Mas tudo foi bem, até hoje tudo foi maravilhoso !
       O oculista bateu três vezes na mesa e Luci também deu três batidinhas na mesa; depois disse, amargurada:
       - Hipermetropia é sinal de velhice. . .
       - Mas isso é uma bobagem maior ainda! - retrucou o oculista, sorrindo. - Não quero mais ouvir isso da sua boca. Se seu marido a amou até hoje, não irá se incomodar com os óculos! Pelo contrário, vai gostar deles! A senhora é uma mulher jovem e encantadora. Eu a admiraria com ou sem óculos. Há quanto tempo está casada?
       - Onze anos.
       - Mas então! Pense o quanto será excitante para seu marido de repente vê-la de óculos!
       Luci Wiegand pôs-se a rir.
       - O senhor é simpático, doutor, muito simpático.
       Luci foi do médico para a óptica. Os óculos ficaram prontos na mesma tarde. Quando Valter Wiegand chegou em casa, chamou pela mulher:
       - Luci! Querida! Onde está você?
       Dois braços rodeavam-no por trás. Ela sussurrou:
       - Não se assuste quando se virar, meu bem.. . Ele virou-se e viu os óculos modernos, de aro de tartaruga, no rosto da mulher. E respirou fundo.
       - Horrível, não? - disse Luci, cheia de medo.
       - Horrível? - respondeu ele. - Acho lindo! Você fica mais bonita ainda! Além disso, ultimamente não estava enxergando direito de perto.
       - Pois é isso!
       - E agora pelo menos vai enxergar direito o que eu descobri hoje. - Ele abaixou a cabeça: - Olhe aqui, por cima da orelha. . .
       Ela olhou bem. E disse, comovida:
       - Um cabelo branco. . .
       -- O primeiro - respondeu ele. - Querida, estou ficando velho.
       (1956)
      
       Mas o homem está nu!
       Há uma semana, um senhor que andava em Viena pela Schottengasse até o Ring chamou a atenção entre seus concidadãos. O senhor era eletricista, não tinha ficha na polícia e contava vinte e quatro anos de idade. Era louro, de olhos azuis e pele delicada. Além disso, o senhor estava nu. Essa característica do seu estado era absolutamente séria e deve ser entendida ao pé da letra. Já nos acostumamos a dizer que os trabalhadores da rua, com o tórax descoberto, ou certas encantadoras mulheres jovens, com certos encantadores vestidos de verão, de ombros descobertos, estão "nus". Essa falta de exatidão vem do fato de que todo mundo tem queda para o exagero num terreno que interessa também a todo mundo.
       O senhor que andava pela Schottengasse, contudo, estava efetivamente nu. Tão nu que tinha de chamar a atenção. Usava apenas um par de meias azuis, da cor do céu, e um par de distintos sapatos de couro marrom. Pois o resto de sua roupa, que não se podia ignorar, estava pendurado em seu braço. Naquele dia estava muito quente. Mas, afinal, nos dias anteriores também estivera muito quente. Muitas pessoas tinham brincado com a idéia de tirar a roupa toda. Mas ninguém tivera a ousadia de transformar a idéia em ação, pelo menos, não em plena rua. (Não se precisa de muita ousadia para tirar a roupa em casa, na presença de amigos queridos.)
       O senhor que andava pela Schottengasse não mostrava qualquer sinal de constrangimento ou insegurança. E para quê? A maioria dos eletricistas de vinte e quatro anos (louros, de olhos azuis e pele delicada) não precisam ter constrangimento ou insegurança quando estão nus. Constrangidos e inseguros ficam antes os que estão ao seu redor. Estes pigarreiam, olham para o lado, com pudor, com mais pudor ainda olham de novo para aquele aborrecimento público e depois chamam um guarda. Os guardas têm um modo magnífico de agir com energia e segurança contra a insegurança e constrangimento dos que os rodeiam. Eles interferem. E para os que os rodeiam, sempre é uma coisa muito tranquilizadora que alguém interfira.
       Interrogado sobre o motivo da sua atitude digna de punição, o homem nu disse que tirara a roupa por esperar que, dessa maneira, seria recebido em alguma clínica que cuidasse do seu mal, que estava a exigir-lhe uma operação.
       Sua esperança realizou-se através do comissariado da polícia, do depoimento, da noite no xadrez e da chamada da manhã, na medida em que o mandaram afinal para a psiquiatria. Se o senhor louro de olhos azuis queria ir para a clínica psiquiátrica, tudo bem. Mas se desejava ir para algum outro lugar, por exemplo para a clínica de otorrinolaringologia, então tinham feito uma tremenda injustiça com ele. Tornou-se vítima de circunstâncias muito ridículas, e denunciamos seu destino com toda a razão. Pois reflitamos: já faz algum tempo, mas afinal todos andamos nus algum dia. Não exatamente nós, mas nossos tatatatata(etc.)ravós, que ainda não conheciam arranha-céus, bombas atômicas, teletipo e seção cultural nos jornais de segunda-feira. Naquele tempo isso não chamava a atenção de ninguém, porque não havia ninguém que pudesse sentir-se chocado com isso. Pois todo mundo andava nu.
       O ato de cobrir partes do corpo era, em certas regiões da terra, cem por cento coletivo. Com o decorrer dos séculos, a tradição de vestir-se apareceu cada vez mais como uma necessidade estética. Porque íamos nos tornando gordos, feios e degenerados. Finalmente atingimos um estado em que a nudez chamava tanto a atenção quanto (ou até mais) outrora chamaria a atenção um homem com um terno social.
       Contudo, como nos tornamos animais de rebanho, ainda hoje há, em regiões onde a gente se veste normalmente, ilhas em que de repente três pessoas tiram a roupa e logo quinhentas as imitam. Uma dessas ilhas fica, por exemplo, a cerca de meia hora de automóvel da cena do incidente mencionado, na margem do rio, o belo Danúbio azul, que com razão todos apreciam tanto.
       Lá há pessoas andando em bandos que, com exceção de alguns exemplares, são muito menos estéticos do que o senhor da Schottengasse poderia parecer no pior dos casos. Se entre eles aparece uma pessoa com a ousadia de usar calças, os nus se reúnem e a expulsam sem rodeios com palavras indignadas, areia molhada ou latas de conserva vazias. Porque alguém vestido entre pessoas nuas fica tão deslocado quanto alguém nu entre pessoas vestidas.
       Pode-se objetar que as pessoas da margem do rio ficam retiradas e ninguém é obrigado a visitá-las, se não as quer ver, enquanto a Schottengasse é freqüentada por muita gente que não tem a mínima vontade de ver o que se viu ali na segunda-feira passada. Tem de haver ordem, isso está bem claro! Onde iríamos parar se todo mundo fizesse o que deseja? Mas também não é o caso, creio eu, de se prender um homem nu e mandá-lo para a clínica psiquiátrica. Será que alguém é louco apenas porque tira a roupa num dia quente? Não serão muito mais loucos os que não o fazem num dia assim?
       Isso nos faz pensar nos equívocos a que estamos diariamente e a cada hora submetidos em nossa civilização, se no caso de uma nudez pública não conseguimos mais distinguir entre os conceitos do que é escandaloso e o que tem significação. O que significa, aliás, escandaloso? Em todos os cantos encontramos pessoas totalmente vestidas que, pela sua aparência, deveriam ser colocadas em prisão perpétua, sem julgamento prévio. Deveríamos ter menos medo dos corpos do que dos rostos que encontramos. Vamos obrigar todo mundo a usar máscaras! São as caras que merecem atenção da polícia, não os braços, pernas e outras extremidades!
       Num conto de Hans Christian Andersen, uma menininha revelou a todos a nudez do rei, que a devoção do povo disfarçara, quando gritou: "Mas ele está nu!" Na segunda-feira a situação foi inversa. O imperador era um eletricista, e todos os adultos logo viram o que acontecia com ele. E disseram isso com indignação. Pois não se tratava de um imperador, e sim de um mero eletricista. "O homem está louco", disseram. Apenas uma menininha disse: "O homem é inteligente! Loucos são os outros... Pois está tão quente..."
       As menininhas têm uma sadia capacidade de pensamento lógico. Mais tarde perdem isso. Então começam a usar espartilho, sapatos de salto alto, e muitas outras coisas indescritíveis, e se tornam adultas. E vestidas.
       (1948)
      
       "In memoriam" de Johannes Mario Simmel
       "Quero escrever livros em que apareçam pessoas que todos conhecem, para que todas as pessoas possam se reconhecer nas personagens de meus livros. Não quero jamais confundir monotonia com literatura, mas escrever sempre coisas excitantes. E honestas! Não quero que haja nos meus livros uma frase que ninguém entenda. Todas as pessoas devem poder entender todas as frases de todos os meus livros: ministros e lavadeiras, carteiros e milionários, presidentes de banco e telefonistas, condutores de bonde e operários de fábrica. Quero que as pessoas que tenham de pagar pelos meus livros recebam algo pelo seu dinheiro: não apenas diversão, mas também o consolo de saber que alguém que tem os mesmos problemas, medos e preocupações que elas, e que de vez em quando (muito, muito raramente) conseguiu encontrar uma solução para seu problema, ou perder seu medo e sua preocupação, escreveu essas coisas."
       Quando Johannes Mario Simmel escreveu isso, tinha dezenove anos e fora preparado para ser um químico; trabalhava em turnos diurnos ou noturnos, numa fábrica gigantesca, onde precisavam urgentemente de químicos. Isso foi ainda durante a guerra, e dois anos antes havia dúzias de histórias nas gavetas de Simmel. Uma seleção delas surgiu depois do fim da guerra, como seu primeiro livro.
       Então Simmel desistiu da química e passou apenas a escrever - até sua morte. Mas nunca mais escreveu sobre sua posição quanto a essa segunda profissão, e quando era entrevistado diante de repórteres de TV, jornal ou rádio, falava hesitante e aos arrancos, e não dizia mais "eu quero" mas "eu quereria", ou "seria bom se eu conseguisse isso", ou "quem sabe um dia eu consiga". Era um homem muito tímido no que dizia respeito a escrever; tímido e inseguro e cheio de medo quanto a estar certo do que fazia. Até o fim.
       Sofreu muito na sua profissão, mas raramente falou a respeito, e certamente é bom que mortos não mais possam ler um comentário póstumo sobre eles, pois ler essas linhas seria penoso para Simmel. Ele certamente teria dado risadas. Gostava de rir, ria muito, quase sempre quando se falava dele & de seu trabalho. Não houve insulto nem elogio que a crítica alemã não lhe tivesse concedido, e obviamente ele achava isso engraçado.
       Passou da química para o jornalismo, depois escreveu muito para o cinema (produções alemãs e estrangeiras), e finalmente para uma grande revista, numa época em que essa revista ainda publicava autores como Hemingway, Remarque e Jan de Hartog. Certo dia achou importante deixar o jornalismo, a cuja profissão, como sempre disse, devia o que aprendera, e passou a escrever somente livros. Apesar disso, vários críticos orgulhosos do seu nível (alemães, não estrangeiros!) durante muito tempo ainda se referiram a ele como "um escritor de revistas", ao passo que vários outros críticos importantes e orgulhosos de seu nível, alemães, não estrangeiros!) o comparavam a Somerset Maugham e Graham Greene, e sempre a Hans Fallada.
       Na Alemanha, os que não gostavam dele o chamavam de "caçador brutal de sucesso", "literato de trivialidades", e por fim (já estavam perdendo o fôlego), "escritor trivial, democraticamente engajado". Quando ele ainda era jornalista, aqueles senhores o censuraram dizendo que desperdiçava seu grande talento com besteiras de jornal. Quando escreveu filmes, lembraram o grande repórter que fora. E quando passou a escrever apenas livros, chamaram-no de "fabricante de best sellers", e pensaram cheios de nostalgia no seu tempo de cinema. Primeiro acharam que tinha grande talento, depois que era friamente rotineiro e, finalmente, sem escrúpulos e cínico. Isso divertia muito a Simmel.
       Pelo mesmo livro, Pátria amada, o jornal Spandauer Volksblatt o criticou de uma forma que justificaria um processo judicial por ofensa à honra, enquanto a famosa coluna literária do New York Times tinha palavras de admiração como raramente se vêem. Pátria amada apareceu em dezoito países, e depois de cinco anos já tinha, só na Alemanha, uma edição total de oitocentos e vinte mil exemplares, pois os leitores amavam muito esse livro. Os leitores de Simmel (e seus recenseadores estrangeiros) quase sempre tinham outra opinião que a do grupo de críticos alemães, os quais se julgavam na obrigação de tratá-lo como à mais ínfima das porcarias. Os alemães escreviam diariamente muitas cartas a Simmel, vindas de todo o mundo, e compravam seus livros com tamanha avidez que, em 1977, ele já tinha em todo o mundo uma edição total de quarenta e seis milhões de exemplares.
       Simmel gostava das pessoas humildes, das quais dizia: "Há milhões em nossa terra que não têm o que dizer e não dizem nada mesmo, mas são ativos e corajosos, e são heróis cômicos ou cômicos heróicos". E as pessoas humildes gostavam dele.
       Simmel escreveu uma peça teatral sobre um desses homens humildes - O colega de escola - e recebeu por essa peça o primeiro prêmio num concurso de dramaturgia do Teatro Nacional de Mannheim. E alguns críticos (alemães, não estrangeiros) o acusaram de imbecilidade ou criminosa irresponsabilidade, enquanto outros (alemães e estrangeiros!) louvavam sua coragem e seu gênio, e se lembravam do Capitão de Kopenick. Alguns representantes da chamada opinião pública brigaram efetivamente por causa de suas respectivas boas e más críticas, e realizaram verdadeiras batalhas campais particulares, enquanto O colega era apresentada em quase todos os grandes palcos alemães e incontáveis palcos estrangeiros, de Helsinque a Johannesburg, de Sydney a Pilsen, sendo também filmada, adaptada para a televisão, e aclamada em toda parte.
       Simmel escreveu - ainda como série de revista - um romance sobre "o criminoso jardim-de-infância dos serviços secretos idiotas", como disse, e desmascarou assim agentes de muitas nações. O herói do romance não era heróico, mas inteligente e encantador, apreciava belas mulheres e boa comida, e um sadio bom senso. Simmel deu à história o título de Nem só de caviar vive o homem. As dez séries planejadas tornaram-se sessenta e três, e quando terminou de bater à máquina a sexagésima terceira, Simmel simplesmente desabou, achando que a série acabara e ele próprio também chegara ao fim. Mas da série de revista fez-se um livro, e pessoas em todo o mundo o apreciaram. (Na Alemanha os críticos o ignoraram, para variar. No estrangeiro, o mesmo não aconteceu. Esse livro encantou primeiramente a crítica da América, onde, a partir de então, apareceram constantemente traduções dos livros de Simmel.)
       O Caviar foi filmado e adaptado para rádio e TV e, dez anos depois de seu surgimento, tinha uma edição de dez milhões de exemplares. E mais uma vez tratava do homem humilde, que tem de lutar com grandes e poderosos pela vida afora. Os leitores de Simmel em vários países entenderam muito bem o que ele queria dizer, e também riram muito, pois era um livro divertido, embora tratasse de um tema tão grave. Exatamente por isso Simmel o escrevera de maneira divertida. Chamava isso de "embalagem" da obra.
       Temas sérios: a peste do neonazismo na Alemanha, a tragédia da nossa nação dividida (porquanto em 1939 começou uma guerra criminosa, a maior de todos os tempos), os perigos do álcool, o problema da juventude abandonada e a vergonha que é qualquer espécie de discriminação racial. Todos esses temas eram "embalados" por Simmel das mais diversas maneiras: com suspense, histórias de amor, farsa, sexo e crime. Sim, também sexo e crime! Isso foi algo que homens honrados e honestos da imprensa alemã (não estrangeiros!) censuraram acremente. Seus leitores, jamais. Mas mesmo os homens honrados e honestos da imprensa tinham opiniões muito diversas: alguns insultaram-no enormemente, e Simmel divertiu-se enormemente. Mas não se divertiu nem um pouco com o que a segunda Alemanha fez com ele. Primeiro, levaram um livro e a peça teatral e vários de seus filmes aos homens da República Democrática Alemã, e, baseado em seu primeiro romance Não sei por que estou tão contente, surgiu no país um belo filme de TV que recebeu um prêmio internacional. Louvaram Simmel na República Democrática Alemã porque ele escrevia sobre e para os humildes, e contra a guerra, a injustiça, a violência e o fascismo. Mas depois, com o Pátria amada, as autoridades da RDA de repente ficaram furiosas com ele. Pois Simmel não apenas escrevera, como de outras vezes, que na República Federal muita coisa estava podre, mas também do outro lado algumas coisas andavam mal. E naturalmente isso era um crime imperdoável. Simmel ficou muito triste.
       Tanto mais alegrou-se quando, exatamente naquele tempo em que muitos jornais alemães o cobriam de insultos por causa de um livro, a Universidade de Boston tratou de organizar na sua biblioteca uma grande "Coleção Johannes Mario Simmel". Literary Guild aceitou o primeiro de seus livros surgidos na América, e então Bertrand Russell escreveu ao editor inglês de Simmel, dizendo não acreditar que o autor alemão tivesse bastante espírito para escrever um romance daqueles: desejava que lhe revelassem quem se escondia atrás daquele pseudônimo. E Simmel teve de rir de novo.
       Ele tinha bons amigos e bons inimigos. Os bons amigos eram todos bons, mas nem todos os inimigos eram bons inimigos. Simmel lamentava isso. Teria gostado de que todos fossem bons. Mas isso não se pode esperar de inimigos.
       Simmel sempre se esforçou para que a leitura de hinos laudatórios sobre seus livros não o fizesse perder a cabeça. E tentou tirar algo de positivo mesmo das mais incríveis acusações. E nunca se esqueceu de observar minuciosamente o que faziam as pessoas humildes e ouvir como falavam, e o que as preocupava ou oprimia. Eram sempre coisas que comoviam a ele próprio. Simmel considerava isso um dever, e considerou-o a vida toda, pois sempre se contou entre os pequenos, e não entre os grandes. Esforçou-se por escrever a verdade, de modo que o maior número possível de leitores lesse seus livros, e não só o pequeno círculo de iniciados que de qualquer modo teriam a mesma opinião que ele. Pois que sentido tem a verdade se for conhecida e aceita apenas por poucos? Daí o eterno tormento de criar diversos tipos de "embalagens" para suas obras.
       Três autores bem diversos, que Simmel admirava, escreveram frases que ele observou a vida inteira, pois foram as frases de grandes autores que mais o impressionaram:
       Heinrich Buli: "O atual é a chave da verdade".
       Somerset Maugham: "I just want to tell a good story". (Quero apenas contar uma boa história.)
       Bertolt Brecht: "Só com artimanha se consegue difundir a verdade".
       Com artimanha!
       Simmel achava isso absolutamente certo. E agia conforme essa certeza. Para isso, qualquer meio lhe parecia correto. E quando recebia sua "recompensa" da parte de muitos desses veneráveis, brilhantes e íntegros guardiães da cultura, apenas pensava: ora bolas! Pois a única coisa importante para Simmel era buscar a melhor maneira de aproximar-se de seus leitores, contar da maneira mais eficaz o que atormentava a sua alma e a de tantas outras pessoas.
       E ele sempre encontrava um caminho. Naturalmente há outros incontáveis caminhos literários, e Simmel podia apenas trilhar os seus caminhos e escrever como lhe era dado escrever. Num de seus romances está dito: "Se cada pessoa no mundo fizesse feliz uma única outra pessoa, o mundo inteiro seria feliz".
       Essa reflexão perpassa toda a obra de Simmel. Era o seu pensamento predileto, embora (ou porque) tenha vivido num tempo difícil. Com livros - pelo menos até agora - ninguém jamais conseguiu melhorar um pouco que fosse o seu tempo. Apesar disso, os escritores sempre o tentam, cada dia de novo. Também Simmel tentou - mais intensamente nos anos seguintes, quanto mais claramente via que era tudo em vão. E já não ria tanto assim. Mas nunca parou de inventar artimanhas.
       Certamente não foi um escritor sofisticado, mas também não era um reles escrevinhador, ocupado em obter sucesso. Era um escritor que desejava escrever para o povo - aliás, para muitos povos. Sonhava que todos os povos um dia seriam um só povo, da maneira que está dito no Livro dos Livros.
       Hoje estamos mais distantes do que nunca desse estado paradisíaco. Mas onde quer que Johannes Mário Simmel hoje esteja, esperemos que lá ele possa continuar alimentando o seu sonho. As lavadeiras, condutores de bonde, carteiros, telefonistas e operários, em que Simmel sempre pensou, sonham a mesma coisa. Até mesmo milionários, ministros e presidentes de banco.

 

 

                                                                  J. M. Simmel

 

 

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