Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


NO AUGE DA PAIXÃO / Hannah Howell
NO AUGE DA PAIXÃO / Hannah Howell

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Lucas Murray é um homem ferido de corpo e alma. Ele conseguiu voltar a ser o guerreiro que fora um dia, exceto pela sequela na perna e pelo desgosto causado pela morte da mulher que ele amou no passado... a mesma mulher que o conduziu às mãos do inimigo... Vestida como uma saqueadora mascarada, é Katerina Haldane quem salva Lucas enquanto ele luta para viver... e para vingar-se. Chocado ao descobrir que Katerina está viva, Lucas se vê atormentado pelo desejo que ela lhe desperta. Katerina, por sua vez, desesperada para reconquistar a confiança de Lucas, tenta convencê-lo de sua inocência e apontar a verdadeira culpada. Agora, Lucas precisa aprender a confiar novamente em seus instintos, tanto na batalha quanto no amor...

 

 

 

 

Escócia, Primavera de 1481

A batina provocava coceira. Lucas rangeu os dentes, aplacando o desejo de arrancá-la e arranhar vigorosamente cada centímetro do corpo. Não sabia como seu primo Matthew aguentava usar aquela indumentária todos os dias. Uma vez que o rapaz havia espontaneamente dedicado sua vida ao serviço de Deus, Lucas não achava que ele merecesse tamanha penitência. Um homem que desejava sacrificar-se tanto por Deus deveria poder fazê-lo em trajes mais confortáveis.

— Isso pode ter sido uma má idéia, Eachann — Lucas murmurou enquanto parava em um pequeno aclive para contemplar a vila de Dunlochan.

O grande cavalo baio resfolegou e começou a pastar na grama sob seus cascos.

— Bom, não há volta agora. Estou somente sofrendo um momento de incerteza, e isso me envergonha. Nunca fui muito habilidoso em subterfúgios, não? Sou um homem rude, e para o que pretendo fazer preciso de sutileza e astúcia. Mas como estou preparado, não devo me preocupar.

Lucas franziu o cenho para o cavalo e disse a si mesmo que tinha somente imaginado a risada do animal. Por outro lado, se Eachann pudesse entender o que tinha dito, rir seria provavelmente uma resposta adequada. Ainda assim, não tinha escolha. Precisava de vingança.

Era uma fome que exigia ser satisfeita. Também não podia pedir a seus familiares que se arriscassem, apesar de eles estarem mais do que dispostos a tanto. Essa vontade era o motivo pelo qual tinha fugido durante a noite sem dizer a ninguém, nem mesmo a seu irmão gêmeo, para onde iria.

Á briga era somente sua. Cercado pelos homens fortes e hábeis de seu clã, sabia que se sentiria privado de satisfazer uma outra necessidade. Precisava provar a si mesmo que as lesões que sofrerá não o haviam incapacitado para ser o guerreiro que tinha sido antes da derrota. Precisava vencer os homens que haviam tentado destruí-lo e devia fazer isso sozinho. Sua família não havia compreendido inteiramente essa necessidade. Eles não tinham entendido completamente o ímpeto de trabalhar continuamente de forma tão dura para recuperar suas habilidades após a convalescença. Sabia que os elogios que recebera conforme progredia lentamente tinham sido, em parte, uma tentativa de impedi-lo de se esforçar tão duramente para recuperar as habilidades anteriores, de superar a rigidez e a dor em sua perna.

Ele precisava desesperadamente ver que era tão bom quanto antes, que a força verdadeira que possuía não lhe tinha sido roubada. Devia provar seu valor para ser o herdeiro de Donncoill.

— Artan entenderia — disse, batendo no forte pescoço de Eachann enquanto descia a colina em direção à vila.

Angustiou-se pelo pesar que ainda sentia. Seu irmão gêmeo tinha a própria vida agora, separada daquela que haviam partilhado desde o útero. Artan tinha esposa, terras e uma família. Lucas estava feliz por ele, mas ainda sofria pela perda de sua outra metade. Em seu coração, Lucas sabia que ele e Artan não podiam ser completamente separados, mas agora o irmão se dividia entre outras pessoas e não mais se dedicava somente a ele. Teria de se acostumar a isso.

— E eu não tenho ninguém.

Lucas fez uma careta. Parecia uma criança emburrada, ainda que não conseguisse se livrar do sentimento de estar completamente só. Não gostava disso, mas sabia que parte do problema era que ele não tinha perdido apenas Artan. Perdera também Katerina. Ela o havia traído, e ele não merecia todo esse sofrimento. Nenhuma outra mulher poderia banir o vazio deixado por sua perda. Nenhuma outra mulher poderia aliviar a frieza deixada pela perversa traição. Ainda se lembrava dela, impassível, vendo-o ser surrado quase até a morte. Não havia emitido um som ou feito qualquer movimento para salvá-lo. Não havia sequer derramado uma lágrima.

Lucas livrou-se das recordações sombrias e da dor que elas ainda provocavam e decidiu que, assim que provasse a si mesmo que ainda era o mesmo homem de antes, se acabaria nos braços de uma mulher. Queria se exaurir em um corpo macio e convidativo até se livrar do veneno de Katerina.

Apesar de não ter sido por fidelidade a Katerina que permanecera praticamente celibatário, sabia que a ânsia que sentia por ela e a paixão que compartilharam tornavam difícil que se satisfizesse com outra pessoa. Para Lucas, estava tudo acabado entre eles, mas era óbvio que seu coração e seu corpo continuavam escravizados. Decidiu que quando voltasse a Donncoill superaria a relutância em revelar as cicatrizes e as ocasionais dificuldades a uma mulher e encontraria para si uma amante. Talvez até uma esposa, refletiu, enquanto refreava o cavalo diante da pequena estalagem no coração da vila. Lembrando-se dos olhos azul-escuros e dos cabelos cor de mel de Katerina, resolveu que a mulher seria morena. Era hora de encerrar completamente o assunto.

Desmontando, Lucas entregou Eachann aos cuidados de um garoto franzino que rapidamente surgiu a seu lado. O rapaz encarou-o com os olhos azuis arregalados e parecia que acabara de ver um fantasma. Aquele olhar o deixou desconfortável. Sutilmente checou se o capuz ainda cobria o cabelo que não conseguira cortar. Apesar de saber que precisaria do capuz cobrindo sua cabeça o tempo todo para não ser reconhecido, a vaidade o tinha feito relutar em cortar os longos cabelos negros e as trancas de guerreiro. Achando que o garoto era humilde, Lucas recolheu as coisas atreladas à sela do cavalo e deu-lhe uma moeda antes de entrar na estalagem.

Após apenas dois passos, sentiu um arrepio na espinha e parou para olhar ao redor. Esse era o local em que havia sido capturado, arrastado para longe para ser brutalmente espancado e depois deixado para morrer. Apesar dos pesadelos com os quais ainda sofria ocasionalmente, acreditava que havia dominado o medo despropositado que a surra provocara.

O aborrecimento com tal fraqueza o ajudou a reprimir o medo. Endireitando-se, foi até uma mesa que ficava em um canto sombreado nos fundos do aposento. Mal se sentou, uma viçosa criada de cabelos claros correu para cumprimentá-lo. Se ele se lembrava bem, seu nome era Annie.

— Padre — começou.

— Não, minha criança. Ainda não fui ordenado — interrompeu Lucas, esperando que isso explicasse eventuais erros que pudesse cometer. — Estou em peregrinação para retornar ao mosteiro e fazer meus votos finais.

— Oh! — Annie suspirou. — Esperava que o senhor estivesse procurando um lugar para servir à vontade de Deus. — Olhou rapidamente para os homens bebendo cerveja perto da grande lareira. — Seguramente precisamos de um homem santo por aqui. Dunlochan está mergulhada em mal e pecado.

— Quando retornar, falarei a meus irmãos sobre sua necessidade, menina.

— Obrigada, padre. Ah, quero dizer, senhor. Como posso servi-lo?

— Comida, cerveja e uma cama para a noite, moça. Em poucos instantes, Lucas estava desfrutando de uma boa cerveja, um suculento ensopado de carne de carneiro e uma grossa fatia de pão quente. A boa comida servida na estalagem tinha sido a razão pela qual se demorara em Dunlochan o suficiente para conhecer Katerina. Seu estômago o tinha certamente desencaminhado aquele dia, pensou com amargura. Na verdade, o estômago podia tê-lo mantido em Dunlochan por tempo suficiente para conhecer Katerina, mas fora outra parte dele que verdadeiramente o desencaminhara. Um olhar para o lindo corpo de Katerina, os longos e espessos cabelos cor de mel e os grandes e profundos olhos azuis, e tinha perdido todo o bom senso. Pensara que havia encontrado sua companheira e somente se deparara com traição e dor.

Lucas praguejou em silêncio. A mulher não sairia de sua vida, de sua mente nem de seu coração. Aquilo, no entanto, não o impediria de vingar-se dela. Ainda não sabia como conseguiria isso, mas o faria. Primeiro, os homens que tentaram matá-lo, e depois a mulher que dera a ordem.

Outra perda daquela noite sombria fora a confiança que depositava nas pessoas e na habilidade que possuía de julgá-las como amigos ou inimigos. Lucas tinha acreditado que Katerina era sua companheira, a mulher para quem tinha nascido. Em vez disso, ela tinha quase sido sua morte. Era difícil acreditar no próprio julgamento após esse erro quase fatal, e a capacidade de discernir em quem confiar era importante para um guerreiro.

Como poderia ser um bom senhor para o povo de Donncoill se não sabia diferenciar um amigo de um inimigo?

Sorveu um gole de cerveja e observou os homens que estavam próximos à lareira. Tinha certeza de que pelo menos um deles estava lá naquela noite, mas as sombras lançadas pelo fogo tornavam difícil vê-lo claramente. Uma das coisas de que se lembrava claramente era que poucos deles tinham sido justos como a maioria dos Haldane costumava ser. O fato de Katerina contratar mercenários o tinha intrigado, mas, talvez, o povo dela tivesse se recusado a obedecer tal ordem. Se tinham sido contratados apenas para isso, matá-los seria mais fácil, pois poucos seriam vingados.

Seis homens subitamente entraram na estalagem e Lucas se enrijeceu. As sombras não cobriam seus rostos e ele reconheceu todos. Era difícil controlar o impulso de sacar sua espada e ir atrás deles. Estremeceu levemente, a lembrança do espancamento vivida e nítida em seu corpo e mente. Esfregou a perna esquerda, a dor dos ossos destruídos aguçada pelas lembranças sombrias. A mão direita latejava como se recordasse cada golpe desferido pelas botas de quem o agredira. A cicatriz que cobria o lado direito do rosto cocava, e Lucas quase podia sentir a dor provocada pela lâmina da faca cortando sua carne naquele local.

Respirou fundo. Sabia que precisava afastar aquelas lembranças para pensar com clareza. A vingança pela qual ansiava não seria possível se agisse rápido demais ou sucumbisse ao ímpeto de usar a espada para atacar aqueles homens. Amaldiçoou outra vez em silêncio quando percebeu que parte da capacidade de se controlar devia-se ao fato de pensar que não conseguiria derrotar os seis homens com um ataque direto. A confiança em suas recém-recuperadas habilidades para a batalha obviamente não era tão grande quanto pensava.

— Annie! — berrou um dos homens quando ele e os companheiros se sentaram. Traga seu traseiro aqui e sirva-nos cerveja, mulher!

Havia uma óbvia precaução nos passos de Annie enquanto se aproximava deles com canecas e um jarro de cerveja.

— Quieto, Ranald! — repreendeu. —Vi você entrar e já estava pronta. Não é preciso gritar assim.

Lucas observou a jovem mulher fazer o possível para servir uma caneca de cerveja para cada um enquanto tentava evitar as mãos pegajosas. Ao contrário de muitas outras garotas que trabalhavam em tais lugares, Annie não era uma prostituta, facilmente seduzida por uma moeda ou duas, mas os homens a tratavam como se fosse. Quando conseguiu se afastar da mesa, estava corada de raiva e os olhos brilhavam com lágrimas de vergonha. Lucas teve que tomar um grande gole da forte cerveja para sufocar a vontade de sair em defesa da moça. Sorriu de leve quando ela parou em sua mesa para encher a caneca e se perguntou por que isso a fizera estreitar os olhos e comprimir os lábios.

— O senhor já esteve aqui? — perguntou, sentando-se diante dele.

— Não. Por que você pensaria isso? Ela deu de ombros.

— Há algo em seu sorriso que me é familiar.

Lucas não tinha idéia de como um sorriso podia ser familiar, mas disse a si mesmo para procurar ser mais cuidadoso.

— Talvez você veja poucos sorrisos, não?

— Certamente muito poucos que revelem dentes tão brancos e perfeitos.

— Uma bênção que recebi de minha família e de Deus. Isso e limpá-los regularmente. Ela assentíu.

— Lady Katerina me ensinou sobre a importância de limpar os dentes.

— E uma boa mulher?

— Era sim.

— Era?

— Sim, morreu na última primavera, a pobre moça.— Olhou para os homens que a tinham tratado tão mal.

— Eles e as mulheres do castelo dizem que milady se matou, mas não acredito. Ela nunca teria feito isso. Ah, e o homem adorável que a estava cortejando desapareceu no mesmo dia. Ninguém sabe para onde ele foi. — De repente, olhou diretamente para Lucas. — Estou pensando que seu sorriso me lembra o dele. Um rapaz muito bonito, que a fazia feliz.

Lucas estava chocado demais para fazer algo além de concordar. Não podia sequer pensar em alguma coisa para dizer, para afastar a perigosa comparação que Annie tinha acabado de fazer.

Katerina estava morta.

A notícia o atingiu como um forte golpe no peito e foi preciso algum tempo para recuperar o ar. Disse a si mesmo que o pesar profundo que o arrebatou devia-se ao fato de haver perdido qualquer chance de exigir vingança pela traição, mas uma voz em sua mente zombava dessa explicação. E ele, implacavelmente, a silenciava.

— E pecado visitar o túmulo apesar de ela ter sido enterrada em solo não consagrado? — perguntou Annie.

— Não, menina — respondeu, com a voz um pouco rouca devida aos sentimentos contra os quais estava lutando. — A alma dela precisa de suas orações mais do que as outras, não?

A idéia de Katerina jazendo sob a terra fria era mais do que Lucas podia suportar e rapidamente afastou a imagem. Ignorou também as questões que rodopiavam em sua mente, perguntas que exigiam respostas. Não podia acreditar que Katerina tivesse cometido suicídio, mas esse não era o momento para resolver o enigma. Enquanto buscava vingança dos homens que o espancaram podia fazer algumas perguntas, mas a vingança deveria ser a prioridade no momento. Quando a tivesse concluído, descobriria a verdade sobre a morte de Katerina. Não importava o que ela tinha feito a ele, nunca descansaria tranqüilamente com o pensamento de seu corpo adorável enterrado em solo não consagrado.

— O senhor acha que poderia rezar por ela? Isso seria pecado?

Lucas não tinha idéia e procurou atrapalhadamente uma resposta.

— E meu dever orar por almas perdidas, menina.

— Poderia levá-lo ao local em que está enterrada — começou Annie e franziu o cenho quando Ranald e dois de seus parceiros vieram à mesa. — Se quer mais cerveja, é só pedir.

— Vim ver por que você está sentada aqui conversando tão confortavelmente com esse monge — disse Ranald.

— E isso é da sua conta?

— Você desperdiça seu tempo cortejando um monge, moça. Se estiver carente de homem, estou mais que disposto a satisfazer suas necessidades. — Sorriu quando seus companheiros deram risada.

— Só queria falar com alguém que tenha viajado para além dos limites das terras de Haldane — retrucou ela. — Alguém que não fede, nem pragueja, nem tenta levantar minha saia.

Annie corou e olhou para Lucas.

— Desculpe-me por falar assim, senhor.

— Não é você quem deve se desculpar, mas os homens que a obrigam a falar assim — afirmou Lucas, observando Ranald de perto.

— Ah, eu só cortejo a garota — respondeu Ranald, olhando para Lucas.

— É assim que você chama isso?

— O que você sabe? Entregou tudo para Deus, não? Ou é daqueles que fazem os votos a Deus com um lado da boca, enquanto cortejam as garotas com o outro?

— Você insulta minha honra — acusou Lucas friamente, desejando que o homem se fosse, pois o impulso de fazê-lo pagar agora, e caro, por cada pontada de dor que sofrerá no último ano estava ficando forte demais para ser ignorado. — Só estou questionando suas habilidades para cortejar.

— E o que, você sabe? Aliás, o que exatamente está fazendo em Dunlochan? Não há um mosteiro por aqui.

— Ele está peregrinando para onde fará os votos — respondeu Annie. — Deixe-o em paz e volte para seus amigos e sua cerveja.

— Você o defende muito, garota. Eu me pergunto por quê. — Ranald olhou bravo para Lucas. — O que ele esconde sob esse manto?

Enquanto Lucas se conscientizava do súbito perigo que corria, Ranald puxou seu capuz, expondo o cabelo que a vaidade o impedira de cortar. Por um breve momento, todos o encararam, boquiabertos e com os olhos arregalados. Lucas pensou em atacar o homem imediatamente, mas o bom senso interveio. Os amigos já estavam se levantando de seus assentos e se aproximando.

Aproveitando-se do choque de todos ao ver o que pensavam ser um fantasma, Lucas levantou-se, pegou suas coisas e disparou para a porta. Saiu e virou-se na direção do estábulo só para cambalear quando alguém o agarrou por trás. Blasfemando, virou-se e chutou o homem no rosto. Sabendo que não alcançaria o cavalo a tempo, Lucas atirou longe suas coisas e se livrou da batina. Quando Ranald e seus amigos acabaram de sair da estalagem, Lucas os estava encarando com uma espada em uma das mãos e um punhal na outra.

— Então, é você — disse Ranald, desembainhando a espada e se aproximando com seus parceiros para ficar frente a frente com Lucas. — Você deveria estar morto. Nós o atiramos do despenhadeiro e o vimos caído lá embaixo.

— Mas vocês nunca voltaram para ver se eu fiquei lá, não? — retrucou Lucas, com escárnio.

— Por que nos darmos ao trabalho? Nós o espancamos, você sangrava das várias feridas e o atiramos de um penhasco.

Lucas deu de ombros.

— Levantei-me e fui para casa — disse, sabendo que a família gemeria ao ouvi-lo descrever tudo o que sofrerá para voltar a Donncoill de forma tão simples:

— Bem, você não rastejará de volta para casa desta vez, rapaz.

— Não, pretendo cavalgar de volta triunfantemente, deixando seus corpos atrás de mim para apodrecer na sujeira.

— Creio que não — Ranald escarneceu, olhando para a perna esquerda de Lucas. — Observei-o sair da estalagem, e você coxeia e tropeça como um homem velho. Nós o deixamos aleijado, não?

Lucas lutou contra a fúria que ameaçava consumi-lo. Deveria executar a vingança com frieza, tinha de lutar com a mente limpa e pensar cuidadosamente em cada movimento. Era culpa desse homem que Lucas não pudesse mais se mover com a mesma velocidade e graça de antes, e era difícil deixar de simplesmente dar um bote e derrubá-lo. Antes da surra, não estaria tão preocupado com os outros homens, sabendo que poderia atacá-los com igual velocidade com boas chances de derrotá-los. Agora, por causa deles, era obrigado a avaliar com cautela cada movimento, se tinha qualquer esperança de sair vivo da situação.

— Nem essa pequena ferida vai me impedir de matá-lo — falou Lucas, a voz quase animada, mesmo reparando com uma ponta de temor que começavam lentamente a cercá-lo.

— Ainda arrogante — disse Ranald, sorrindo e sacudindo a cabeça. — Bom, logo se unirá à sua prostituta na terra fria.

— Então, Annie falou a verdade quando disse que lady Katerina estava morta.

— Sim, ela se uniu a você. Nós a atiramos do penhasco dentro da água.

Aquilo não fazia sentido para Lucas, mas ele repeliu a súbita confusão e todas as questões levantadas. Como e por que Katerina tinha morrido não era o mais importante no momento. Permanecer vivo tinha de ser prioritário.

Um rápido olhar na direção da estalagem revelou uma Annie muito pálida e vários outros Haldane olhando e escutando, mas Ranald falara baixo demais para que ouvissem aquela confissão. Lucas esperava que, se não conseguisse vencer a luta, eles descobrissem o que tinha acontecido a Katerina, apesar de que o fato de ele se importar com isso era outro enigma que não tinha tempo de solucionar.

— Suponho que você não tenha coragem de me encarar de homem para homem, sem todos os seus parceiros, para proteger sua pele imprestável — investiu Lucas, enquanto se retesava para a batalha que viria.

— Está me chamando de covarde? — rosnou Ranald.

— Você precisa de uma dúzia de homens para me capturar, espancar-me quase até a morte, jogar-me de um penhasco e então assassinar uma mulher indefesa. Sim, creio que o estou chamando de covarde.

— Será um prazer matá-lo, idiota!

Olhando em volta para os homens que o rodeavam, Lucas tinha a terrível sensação de que seria uma morte rápida, mas endireitou a coluna. Tinha estado em apuros antes e saído quase ileso. Tudo o que precisava fazer era readquirir aquela arrogância que tanto irritava Ranald, mas estava um pouco preocupado achando que talvez não conseguisse. Parecia que o coração batia tão forte que podia escutá-lo. Dizendo a si mesmo que estava imaginando coisas, preparou-se para vencer e, se falhasse, levar junto tantos homens quanto pudesse. Desta vez, matá-lo custaria caro.

— Ele está vivo?!

Katerina encarou o jovem Thomas, segura de que não o tinha compreendido bem, que a falta de fôlego do garoto havia adulterado suas palavras. Lucas não podia estar vivo. Ele estava sangrando e machucado quando Ranald e seus homens o atiraram do penhasco. A queda somente agravaria as feridas. Logo antes de eles também a terem atirado, havia conseguido ver rapidamente o corpo machucado de Lucas ser arrastado das margens pedregosas pelas águas agitadas do lago. Ela mal tinha sobrevivido ao ser lançada naquelas águas frias e escuras e não estava ferida. Mesmo lutando para evitar afogar-se, tinha procurado por Lucas e não vira nada.

— O homem tem aqueles mesmos olhos, milady — disse Thomas. — Sim, e a mesma voz. Lembro-me dele muito claramente, apesar de ele aparentemente não se lembrar de mim. Só pode ser ele.

— Bem, você cresceu bastante no último ano — murmurou, ainda lutando contra o choque.

— Sir Lucas não nos disse uma vez que tinha um irmão gêmeo? — lembrou William, aproximando-se para ficar ao lado de Katerina e pondo a mão em seu ombro para confortá-la.

Uma onda de doloroso desapontamento assolou Katerina diante das palavras de seu segundo-em-comando, mas apenas assentiu em silenciosa concordância.

— Sim, primo, ele tinha. Artan era o nome de seu irmão gêmeo, e Lucas disse que eles eram idênticos em aparência, voz e habilidade com a espada. Deve ser o irmão. A família finalmente veio encontrá-lo ou buscar vingança.

— Mas, lady Katerina, você não nos disse que Ranald e seus cães cortaram o rosto de sir Lucas? — perguntou Thomas.

— Sim — sussurrou Katerina, incapaz de impedir que as terríveis memórias daquele dia inundassem sua mente.

— Bom, esse homem tem uma cicatriz no rosto e também manca um pouco, como se o joelho não flexionasse.

— Ainda assim poderia ser o irmão gêmeo. Que ambos sofressem de ferimentos iguais, seria muita coincidência para ser plausível, mas Katerina tinha medo de alimentar esperanças de que Lucas tivesse sobrevivido e voltado para ela.

— Ranald e seus cães crêem que ele é sir Lucas e querem ter certeza de que morra desta vez.

— Então, quem quer que seja esse homem, é melhor que o livremos desse problema antes que esses patifes o matem. Podemos descobrir quem ele é, mais tarde. Thomas, é melhor você avisar que vamos cavalgar, para que tudo esteja pronto.

Repelindo as emoções violentas e confusas que a assolavam, Katerina escolheu seis de seus homens para irem com ela. Todos vestiam capas longas e negras, usavam capuz, tinham a boca e o nariz cobertos por uma larga faixa de linho azul-escuro para esconder melhor o rosto e montavam seus cavalos. Isso não era o que tinham planejado para a reunião daquela noite, mas não podiam permitir que Ranald e os comparsas matassem outro homem.

Enquanto liderava seus homens em uma veloz corrida em direção à vila, Katerina lutava contra a esperança que as palavras de Thomas tinham despertado em seu coração. Fizera o melhor para matar toda a esperança quando o corpo de Lucas não tinha nem sido levado às margens rochosas do lago para que pudesse dar-lhe um enterro adequado. Tinha sido necessário um longo e infeliz período para silenciar todas as perguntas que a tinham impedido de aceitar sua perda, tais como o porquê de sua família nunca ter vindo procurar por ele.

Essas dúvidas sem resposta e ignoradas por tanto tempo estavam todas se infiltrando agora de novo em sua mente, e ela lutava para silenciá-las. Tudo o que deveria importar era que Ranald e seus homens estavam prestes a matar outra vez, e ela havia jurado pela alma de seu pai que colocaria um fim à brutalidade de Ranald.

Ainda mais importante, tinha de provar de quem ele recebia ordens. Katerina tinha certeza de que era de sua meia-irmã, Agnes, mas precisava de provas incontestáveis dos crimes da mulher, o que era dificílimo de obter. Nunca teria pensado que sua meia-irmã fosse tão esperta, tão astuta. Os únicos momentos de satisfação de Katerina, apesar de fugazes e superficiais, vinham quando pensava em como Agnes se sentia tão sem saída, acuada e frustrada quanto ela. Agnes ainda não tinha encontrado seu marido tratante, o homem que o pai delas não suportava. Até que o encontrasse e fosse viúva, também não poderia reivindicar Dunlochan. Estavam as duas travadas nessa batalha, que drenava toda a alegria e prosperidade de Dunlochan.

As condições estabelecidas pelo testamento do pai foram aviltantes, e os resultados, até então, desastrosos. Katerina era avessa ao pensamento de que aqueles cinco homens de idade escolhidos pelo pai tivessem a palavra final sobre se o homem que ela escolhesse para desposar era apropriado ou não. Aquilo tinha ferido gravemente seu orgulho. O fato de que ela e quem a apoiasse estivessem marcados para morrer antes que o pai esfriasse no túmulo a fazia questionar no que ele estava pensando. Ou estava completamente cego em relação à verdadeira natureza de Agnes e, portanto, não via perigo, ou seu desprezo generalizado pelas mulheres tinha tornado impossível até mesmo considerar a possibilidade de que haveria uma batalha pelas terras e dinheiro que tinha deixado.

Seu pai podia não ter sido um homem afetuoso, mas ela sempre o tinha considerado um bom proprietário de terras e uma pessoa inteligente. Suas instruções a respeito do assentamento de Dunlochan depois que morresse a fazia perguntar-se se a doença teria afetado gravemente seu juízo.

O tilintar de espada contra espada arrancou-a abruptamente de seus pensamentos, e sinalizou para que os homens diminuíssem o passo. Mesmo na luz acinzentada do final do dia podia vê-los diante da estalagem, um homem cercado por outros seis. Ranald nunca gostara de lutar de forma justa, refletiu enquanto, usando sinais de mão, instruía seus homens sobre como deveriam proceder. A maior vantagem com a qual contavam no confronto que estava para acontecer eram os cavalos. Poucos podiam permanecer firmes diante do ataque a cavalo. Satisfeita ao ver que entendiam o que planejara, Katerina fixou o olhar no homem no meio do círculo e lutou para ignorar o quanto os longos cabelos negros a lembravam de Lucas enquanto instigava o cavalo ao galope.

Lucas amaldiçoou quando um dos homens atrás dele conseguiu se aproximar o suficiente para cortar suas costas com a espada. Ele se safou por pouco de um ferimento mais profundo. Havia algum conforto no fato de que tinha feito seus inimigos sangrarem, mas não podia ignorar que ele, também, estava sangrando. Que ainda estivesse vivo provava o quanto de sua velha habilidade tinha recuperado, mas não era o bastante.

Enquanto derrubava a espada de um deles, Lucas percebeu subitamente que a batida que tinha escutado não vinha de seu coração ou de sua cabeça. O homem que tinha acabado de desarmar parou abruptamente de correr para reaver a arma, os olhos arregalados fitando algo atrás de Lucas, o rosto mortalmente pálido. Os homens em seu flanco estavam como ele. Apesar de se esforçar para observar quem o circundava, olhou na mesma direção e se surpreendeu.

Sete homens a cavalo galopavam na direção deles, os cavalos grandes e firmes. Um garanhão vinha na liderança, os outros em uma linha elegante pouco atrás. Lucas observou aquela linha reta curvar-se lentamente e percebeu que se moviam para cercar seus atacantes e impedir sua fuga. A única hesitação na respeitável manobra foi quando um dos cavaleiros gentilmente se inclinou para baixo e pegou o pacote que Lucas havia derrubado. O líder nunca oscilava e seguia em linha reta, uma que levava diretamente a ele.

Por um momento foi como se o tempo passasse muito devagar. Lucas viu seus inimigos reagirem a esse ataque como se eles se movessem em uma lama espessa. Viu tudo com muita clareza, desde o fato de que o cavaleiro que vinha em direção a ele ser muito menor que os demais até a misteriosa imagem de suas capas negras flutuando atrás deles e do tecido azul-escuro que cobria a maior parte de seus rostos. Era uma visão bonita e graciosa, mas, ainda assim, apavorante. Seus inimigos começaram a tentar fugir e os ouvidos de Lucas foram assaltados pelo som do bater de espadas.

Estava também procurando por uma rota de fuga quando percebeu que o líder tinha reduzido a velocidade. O imenso cavalo negro empinou para parar a seu lado e o cavaleiro estendeu-lhe a mão surpreendentemente pequena coberta por luvas. Tudo indicava que seria resgatado, pensou Lucas.

— Suba antes que um desses covardes perceba que sou um alvo muito fácil aqui! — disparou o cavaleiro.

Apesar de a voz estar abafada pelo tecido que lhe cobria a face, Lucas teve uma leve sensação de reconhecimento. Tentou ver seus olhos, mas o capuz da capa preta encobria o que restava do rosto coberto pelo tecido azul. Agarrando o braço estendido, Lucas usou o apoio para ajudá-lo a subir. O homem deixou escapar um leve grunhido e era óbvia a luta para manter-se na sela, mas Lucas estava impressionado pela força de quem pensava não passar de um garoto.

— Meu cavalo... — começou Lucas.

— Estará em boas mãos — replicou o cavaleiro enquanto fazia o cavalo galopar.

Lucas envolveu a cintura de seu salvador e se segurou. Ele era bastante delgado. Franziu as sobrancelhas, pois havia algo torturantemente familiar a respeito do jovem. Até o aroma do esbelto cavaleiro evocava suas lembranças. Isso o deixou intrigado, e esperava que o mistério fosse logo solucionado.

Por um breve momento, temeu ter escapado de um perigo e cegamente se metido em outro. Mas logo pôs as suspeitas de lado. Se essas pessoas lhe desejassem mal poderiam somente tê-lo deixado onde estava. Por que teriam se empenhado em resgatá-lo não sabia, mas suspeitava que isso, também, ficaria claro assim que chegassem aonde quer que fosse. E talvez tivesse encontrado alguns aliados em sua busca por vingança. Não queria a família envolvida nisso, mas uma vez que essas pessoas pareciam ser inimigas de seus inimigos, não via razão para não se unir a eles ou procurar sua ajuda.

Katerina tentou se concentrar em cavalgar em segurança através das árvores na tênue luz do final do dia. Focar toda a atenção a essa incumbência era a única maneira de controlar o redemoinho de emoções que a assolava. Se vacilasse em manter a rígida disciplina, sabia que pararia para se certificar de que era mesmo Lucas que estava sentado atrás dela, e isso somente os colocaria em perigo. Não tinha dúvidas de que Ranald e seus homens já os estavam caçando.

Quando vira Lucas parado lá, lutando pela vida, quase tinha gritado de alegria. Felizmente o bom senso tinha prevalecido. Ranald poderia saber agora que Lucas tinha sobrevivido, mas ainda pensava que ela estivesse morta.

Esse engano era vital para qualquer chance que tivesse de vencer essa guerra contra Agnes.

Uma forte descrença ainda tomava conta de sua mente e de seu coração. Era difícil crer que Lucas tivesse sobrevivido ao cruel espancamento que sofrerá e a ser atirado no lago. Sabia que sua perna tinha sido quebrada, então como tinha escapado do afogamento? Seus olhos lhe diziam que era de fato Lucas Murray que tinha acabado de arrancar das garras mortais de Ranald. Tudo, desde o som de sua voz até a sensação de seu corpo próximo ao dela enquanto cavalgavam, lhe dizia que se tratava dele. Uma dúvida continuava martelando em sua cabeça enquanto ela e seus homens se dispersavam, somente William prosseguindo na cavalgada com ela, dando a seus perseguidores meia dúzia de rastros para que tentassem seguir. Por que Lucas não tinha tentado encontrá-la, para ao menos informá-la de que estava vivo?

Pelo que havia visto, ele obviamente tinha precisado de um longo tempo para se curar, mas aquilo somente explicava por que não tinha voltado para Dunlochan. Não explicava por que a tinha deixado sofrer por ele como sabia que sofreria. As possíveis respostas para essa pergunta, que se infiltrava insidiosamente em sua mente, eram deprimentes e logo as expulsou. Lucas a conhecia muito bem. Ele não poderia acreditar que tinha tido algo a ver com o ataque que sofrerá.

Vendo Ian logo à frente, Katerina parou e desmontou. Resistiu ao impulso de ajudar Lucas quando reparou como desmontava de forma um pouco desajeitada. Voltando-se a Ian, estendeu-lhe as rédeas de seu cavalo e William fez o mesmo.

— Soube que o homem voltou — disse o velho senhor, estudando Lucas de perto por um momento.

— Sim, e deu a Ranald outra chance de matá-lo — respondeu Katerina com uma careta. — Por isso precisamos de você hoje. Espero que não o tenhamos afastado de sua refeição.

— Minha mulher a manterá aquecida para mim. Vocês têm de ir agora, antes que aquele boçal os veja.

Katerina assentiu, notando que William já tinha começado a encobrir os rastros com um grande galho.

— Assim que a perseguição terminar, alguém virá buscar os cavalos.

— Sem problema. Tenho comida suficiente. Vá com Deus.

— Fique com Deus.

Enquanto o velho senhor levava os cavalos, William o seguia, apagando o rastro atrás deles. Sabendo que ele a alcançaria, Katerina sinalizou para que Lucas a seguisse e começou a dirigir-se à antiga igreja que tinha se tornado um de seus esconderijos havia muito tempo. Somente uma vez olhou para Lucas, para se assegurar de que a estava acompanhando. Havia algo estranho em seu modo de andar, mas ele se movia depressa e não demonstrava sinais de dor. Poderiam aproveitar seu encontro mais tarde.

Lucas estava impressionado com as ações do grupo. Múltiplos rastros para um inimigo seguir, pessoas prontas para esconder os cavalos, vestígios apagados e um completo silêncio quase o tempo todo. Percebeu que essas pessoas vinham realizando suas atividades, quaisquer que fossem, por um bom tempo. Era óbvio também que tinham total apoio da maioria do povo de Dunlochan. Lucas sentia que se envolvera em algo mais do que simples ataques, algo que poderia estar atrás daquela tentativa de matá-lo. Se fossem apenas saqueadores, teria que se perguntar por que ficaram tão próximos daqueles que tinham atacado e com quem tinham lutado. Isso o fazia pensar que era algo muito mais complicado e mais perigoso do que simplesmente atacar por comida e dinheiro. Seus olhos se arregalaram conforme se aproximavam de uma igreja de pedras em ruínas. Lucas olhou para o homem que andava atrás deles arrastando um galho para encobrir seus rastros. O olhar do homem se fixava na igreja quando não estava procurando pistas de que seus inimigos os tinham encontrado. Parecia que estavam mesmo rumando em direção àquela construção de pedra sem telhado. Permaneceu em silêncio, lembrando-se que aquelas pessoas o haviam resgatado das garras assassinas de Ranald com uma habilidade respeitável e tinham, até então, revelado um planejamento meticuloso de cada movimento. Tais pessoas não escolhiam esconderijos muito óbvios ou muito difíceis de defender ou de onde escapar.

No instante em que entraram na igreja, seus dois companheiros encapuzados pararam e Lucas se uniu a eles para respirar um pouco. A perna latejava de dor, mas forçou-se a ignorá-la. Olhando ao redor, percebeu que era uma igreja antiga construída para durar por um longo tempo, mesmo sem telhado. As paredes de pedra tinham sido decoradas com entalhes que eram obviamente cristãos, mas que ainda exibiam traços de paganismo.

Lucas observou o maior dos dois homens mover-se para um canto encoberto por sombras, pressionar a palma da mão na face do que parecia ser um dos doze apóstolos e empurrar com força. Escutou um rangido e ficou boquiaberto ao ver a escultura começar a se mover, abrindo-se por dentro como uma porta. Não havia uma sala atrás dela, no entanto, somente o que parecia ser um grande buraco negro no chão.

— Catacumbas? — perguntou brandamente, aproximando-se.

— Sim — disse o menor, quase grunhindo a resposta enquanto acendia uma tocha. —- Um verdadeiro labirinto.

-— Este é o único caminho para entrar e sair? — Lucas sentiu-se compelido a perguntar.

— Não, há duas outras rotas.

Eram boas notícias, mas não atenuavam de todo o seu desconforto. Odiava espaços pequenos e fechados. Suspeitava que em breve descobriria que espaços fechados e grandes sem uma rápida rota de fuga também o perturbavam. Endireitando a coluna, seguiu seu pequeno salvador na escuridão, lutando para descer uma escada de madeira sem demonstrar muita inabilidade. Quando o homem maior fechou a porta e o seguiu, Lucas sufocou o impulso de subir de novo a escada e sair dali.

A tocha que o menor deles carregava não era muito eficaz para vencer a escuridão opressiva que os envolvia. Lucas sussurrou uma silenciosa prece de gratidão quando o homem maior acendeu uma segunda tocha e a passou para o pequeno companheiro. Intimamente amaldiçoou quando percebeu encontrar-se em uma grande câmara mortuária. Embora não fosse um homem supersticioso, esperava que não tivesse de ficar ali. Apesar de sua aversão por lugares pequenos e escuros, sentiu-se quase aliviado quando uma outra porta escondida surgiu e eles começaram a descer íngremes degraus de pedra.

Ao final dos degraus andaram vários metros em um túnel estreito antes de chegar a outra câmara. Lá havia mesas e bancos, uma lareira central e roupas de cama. Olhando para seus companheiros, que acendiam várias tochas nas paredes, Lucas viu dois buracos no sólido teto de pedra que permitiam que a fumaça saísse e o ar entrasse. Ou essas pessoas tinham trabalhado muito para construir uma toca confortável ou os antigos homens sagrados que ocuparam a igreja o tinham feito.

Lucas olhou para os dois e imediatamente se esqueceu de perguntar onde estavam localizadas as outras saídas. Eles tinham removido as capas e o tecido que cobria seus rostos. O menor não era um moço. Ele reconhecia bem demais aqueles longos e cheios cabelos cor de mel. Por um instante, sentiu-se sufocado de alegria quando olhou o doce rosto de Katerina e viu seu sorriso e os grandes olhos azuis brilhando de felicidade. Lembranças do tempo que passaram juntos, do calor de seus beijos e da suavidade de sua pele o atingiram. E tinha sido tudo uma mentira, pensou, banindo de repente qualquer vestígio do prazer que sentira ao vê-la à sua frente, viva e bem e fingindo que estava feliz em vê-lo.

— Disseram-me que você estava morta — disse. Algo frio e duro na voz de Lucas impediu Katerina de correr para abraçá-lo. Somente por alguns instantes tinha visto alegria, surpresa e uma calorosa recepção nos lindos olhos azuis, mas tudo isso tinha passado. Agora Lucas parecia distante, frio e até mesmo bravo. Começou a se sentir mais e mais inquieta. Esse reencontro não seria como tinha imaginado.

— Sim, mas aqueles bastardos também não conseguiram me matar — disse.

— E por que eles desejariam matá-la? Recusou-se a pagar por um serviço bem-feito?

— Um serviço bem-feito? Você pensa que eu mandei que o surrassem?

Lucas encolheu os ombros.

— Você certamente parecia estar apreciando o espetáculo.

— Eles me pegaram assim como pegaram você. Disseram-me que se eu ficasse lá e não dissesse nem fizesse nada, não o matariam.

O ruído desdenhoso que fez feriu-a profundamente. — Você nem sussurrou um protesto, nem mesmo quando me atiraram no abismo!

— Eu estava muito chocada! Quando percebi que realmente o matariam, era tarde demais para fazer qualquer coisa, até mesmo protestar. Você já tinha ido.

Havia algo na voz rouca que atravessava sua fúria e aquilo fez com que ficasse ainda mais bravo. Não fraquejaria de novo, não permitiria que as lágrimas brilhando naqueles lindos olhos amolecessem seu coração e o fizessem de tolo. O que importava descobrir agora era por que ela o tinha salvado desta vez quando um ano antes tinha tentado matá-lo.

— Não acredito que você pense que eu tenha tido algo a ver com aquele ataque. Que motivo teria para fazer isso?

— O de sempre... Ciúme.

— Ciúme? Você pensa que eu mataria um homem por isso?

— Você deixou muito claro algumas horas antes que estava furiosa porque Agnes não me largava e que acreditava que eu estava gostando de sua bajulação.

— Nunca mandaria espancá-lo e matá-lo por isso!

— Então, qual foi o motivo?

Katerina encarou-o, incapaz de entender como ele podia acreditar em tais coisas sobre ela. A dor que sentia pelas suspeitas transformou-se em raiva. Tinha ficado de luto por aquele homem. Durante todo o tempo em que tinha chorado, até ficar fraca e doente, ele pensava que ela fosse a causa de sua dor e quase de sua morte, opinião formada sem nenhuma prova.

— Você não merece isso, mas direi a verdade apenas uma vez. Não tive nada a ver com o que aconteceu a você. Os homens cumpriram ordem de Agnes. Disseram-me que se permanecesse em silêncio, não suplicasse nem chorasse nem fizesse qualquer coisa para ajudá-lo, eles não o matariam. Fiz exatamente o que me pediram, pois o queria vivo. Então, o atiraram do precipício. Quando entendi a verdade, que nunca pretenderam deixá-lo viver, me atiraram atrás de você. Agnes não queria só você morto por rejeitá-la, queria que eu morresse também.

— Parece que você se recuperou bem.

A forma como Katerina o olhou, como se ele fosse um completo estranho, fez com que Lucas se sentisse desconfortável. Tinha a perturbadora sensação de que a tinha magoado profundamente, mas aquilo não fazia sentido. Ele a havia visto permanecer lá, imóvel, sem protestar nem chorar enquanto tinha sido cortado e espancado.

— Talvez só tenha ido além do que você havia planejado — começou, mas foi interrompido pelo movimento abrupto que ela fez com as mãos.

— E talvez você nunca tenha me conhecido mesmo. Talvez eu tenha passado todos esses meses sofrendo pela perda de algo que nunca realmente existiu.

Antes que ele pudesse responder e feri-la ainda mais, Katerina saiu da câmara, deixando-o sozinho com o outro homem que o olhava como se ele fosse um completo lunático.

 

Lucas franziu a testa para o homem sentado junto ao fogo próximo a ele. A única coisa que o homem dissera desde que Katerina saíra fora: "Sou William e acho que você é idiota demais para viver". Apesar de o insulto afetá-lo, admirava a lealdade. Mas esse silêncio contínuo estava se tornando intolerável. Tinha muitas perguntas para fazer e era óbvio que Katerina não voltaria logo para respondê-las.

— Para onde ela foi? — finalmente perguntou.

— Para longe de você — respondeu William, sem levantar o olhar do que estava esculpindo para encarar Lucas.

— Sei bem disso, mas onde ela está? Existem mais cômodos como este?

— Há muitos aposentos lá embaixo. Alguns de bom tamanho, outros não mais que vãos na rocha. Há passagens e aberturas atravessando esta colina, até os fundos do Castelo de Dunlochan.

— É um belo esconderijo.

— Sim, para os homens sagrados que costumavam permanecer aqui e para aqueles de dentro da propriedade. Acho que é uma mistura de algo natural, que sempre existiu, e de centenas de anos de trabalho duro. Um homem que habita esta terra tem razões para desejar um local seguro onde esconder-se, pelo menos por um tempo.

— Verdade. Então, por que estão se escondendo agora?

— Bem — William dirigiu-lhe um rápido olhar nada amigável —, certamente não por sua causa ou pelo que pensa que ela fez.

— Você não a viu naquele dia, não viu como permaneceu imóvel e calma enquanto Ranald e seus cães me espancavam, chutavam e talhavam. Eles me disseram que a ordem tinha partido dela, o próprio Ranald sussurrou em meus ouvidos enquanto cortava meu rosto. Disse-me que fazia parte de seus planos assegurar-se de que eu perdesse a beleza para que nunca mais pudesse brincar com o coração de uma mulher.

— E você acredita na palavra de um homem como Ranald em vez de ouvir o que diz lady Katerina? Acho que os bastardos exageraram nos chutes na cabeça, pois a surra certamente afetou sua cachola.

— Se Katerina é tão inocente, por que não enviou uma mensagem a meu clã comunicando o que me aconteceu?

— E atrair sua fúria sobre os habitantes de Dunlochan, que não tiveram nada a ver com isso? Ela pensou que você estivesse morto e acreditou que o clã Murray poderia querer sangue para vingar sua morte. Milady ficou bastante surpresa quando ninguém veio procurá-lo. — William parou de esculpir para olhar para Lucas com mais atenção. — Como conseguiu sobreviver e escapar?

— Sei nadar.

— Ah, a moça tinha certeza de que sua perna estava quebrada.

— Estava, mas um homem pode tolerar praticamente qualquer dor para evitar o afogamento. Rastejei para fora da água e continuei rastejando. Parei somente por tempo suficiente para cuidar de minhas feridas o melhor que pude e então rumei para casa. Havia boas pessoas ao longo do caminho para me ajudar.

Lucas deu de ombros, querendo afastar as lembranças dos dias e noites cheios de dor, o terror de sentir-se tão impotente e desamparado e todo o trabalho e angústia de viajar desarmado e estar incapacitado até mesmo para caçar a própria comida. Também não queria explicar que seu irmão o tinha encontrado por causa de um sonho, pois muitos não acreditavam nessa ligação entre gêmeos.

— Também não percebi que Katerina estava procurando por mim, e seria muito fácil me rastrear e encontrar.

William sacudiu a cabeça.

— Ela está certa ao dizer que você nunca a conheceu de fato. Você não a ouviu dizer que eles a atiraram no lago também? Ah, vejo que duvida disso, mas de qualquer forma vou contar. Jogaram-na logo atrás de você. Como é uma moça miúda, puderam atirá-la ainda mais longe e ela caiu na água, batendo somente em algumas pedras quando afundou. Quase se afogou. Sabendo que não podia deixar os bastardos verem que conseguia nadar e talvez se salvar, nadou o máximo possível sob a água até encontrar um lugar seguro. À pobre garota ficou exaurida sobre as pedras antes de conseguir chegar à margem. Nós a encontramos dois dias depois, fraca e febril. Chamava por você, mas, claro, devia ter sido só para se certificar de que estivesse morto.

Lucas arqueou uma sobrancelha, ignorando o comentário sarcástico, e com um gesto impeliu-o a prosseguir. — Ela nos enviou para procurá-lo — William continuou. — Mas não o encontramos. Foram cerca de dois meses até que se curasse das feridas e da febre que quase a haviam matado. Na verdade, durante três semanas a única coisa razoável que pronunciava eram ordens para que o achássemos e para que deixássemos que todos acreditassem que tinha morrido.

— Por que fazer esse jogo?

— Talvez porque alguém obviamente a quisesse morta?

O sarcasmo constante do homem o irritava sobremaneira, mas Lucas controlou-se. Estava finalmente obtendo algumas respostas. Poderiam não ser as corretas ou verdadeiras, mas decidiria isso mais tarde. Agora precisava saber em que se tinha metido.

— Quem ela pensa que a quer morta? — perguntou.

— Aquela amaldiçoada meia-irmã, Agnes. Ela quer tudo isso, sabe?

— Tudo, o quê?

— Lady Katerina não contou sobre o testamento de seu pai, seus desejos e ordens no leito de morte?

— Não.

William suspirou e assentiu.

— Talvez se tivesse contado, você não a tivesse condenado tão depressa. O velho senhor, pai de Katerina, escolheu cinco homens para atuar como conselheiros quando morresse. Eles têm direito à aprovação final de qualquer homem escolhido por ela ou pela meia-irmã. Se o conselho não aprova o homem e a moça escolhe casar-se mesmo assim, ela perde. Tudo o que lhe resta é uma pequena cabana e um pedacinho de terra no extremo oeste dos domínios de Dunlochan e um minúsculo dote. A outra moça ganha todo o resto. Não há dúvida de que o conselho o teria aprovado como marido para milady e, portanto, Agnes tinha de se livrar de você. Não consegue ver agora que lady Katerina não tinha nenhum motivo para fazer-lhe mal, que só lhe traria benefícios mantê-lo vivo para que pudesse escolhê-la para sua esposa?

— Sim, mas também vejo que, se pensou que estava me interessando por Agnes, seria bom para ela ver-me morto.

William deixou escapar uma imprecação brusca, mas então deu de ombros e voltou toda a atenção à escultura.

— Como disse, começo a pensar que você é muito idiota para viver. Afinal, se a moça realmente o quisesse morto, tudo o que precisaria ter feito hoje era tê-lo deixado para Ranald e seus comparsas e ter permitido que o bastardo terminasse o que começou um ano atrás. Talvez você devesse pensar um pouco nisso.

Lucas estava pensando nisso, mas nunca o admitiria para William. Era a única coisa que mantinha suas dúvidas sobre a culpa de Katerina viva e incomodando-o. O que fizera por ele hoje não mudava o que acontecera naquela noite distante, disse firmemente a si mesmo. Talvez estivesse atormentada por culpa e arrependimento quando se separaram e não pudesse mais ignorar seu assassinato. Lucas sabia que, por enquanto, permaneceria com eles e pretendia usar esse tempo para obter as respostas necessárias para que toda a verdade fosse revelada.

Esgotada de tanto chorar, Katerina vagarosamente arrastou-se para fora da cama e lavou o rosto com água fria. A última coisa que queria era que Lucas visse que tinha chorado. Ainda se sentia atordoada pelas acusações, mas se recusava a demonstrar o quanto ele a tinha magoado.

Seu estômago roncava, e sabia que teria de retornar ao salão para comer alguma coisa. Isso significava ter de encará-lo novamente, algo que temia. A dor ainda era muito recente, assim como a raiva que as acusações dele tinham despertado. Estava claro que os doces beijos e a paixão não tinham passado de uma mentira, ou ele nunca a teria condenado dessa forma. Uma pequena dúvida seria capaz de entender e perdoar, mas não essa gélida condenação. Ele não tinha sequer considerado por um momento suas negativas. Katerina achava que nem mesmo mostrar-lhe as numerosas cicatrizes que reunira naquele dia seria suficiente para fazê-lo mudar de opinião. Teria confiado sua própria vida a Lucas, mas era óbvio que ele nunca tinha realmente confiado nela.

O problema era o que fazer agora, refletiu, enquanto se servia de um pouco de vinho. Tomando um gole da bebida, deu voltas no pequeno quarto, refletindo sobre a melhor maneira de lidar com Lucas. O primeiro impulso foi ignorá-lo, bani-lo de seu coração e tratá-lo como um completo estranho. Era uma boa idéia, nem que fosse só pelo fato de que o aborreceria ser completamente ignorado, mas concluiu que não conseguiria manter esse plano por muito tempo. Nunca tinha sido capaz de ignorar Agnes por muito tempo e ninguém a tirava mais do sério que a meia-irmã.

Aquilo a deixou com as opções de cuspir de volta sua raiva e desconfiança ou de tentar convencê-lo de que estava completamente errado em suas suspeitas. A primeira alternativa podia aliviá-la do amargor provocado pelo fato de o homem a quem tinha entregado o coração-e a inocência julgá-la tão sem valor, mas isso tornaria difícil a vida de seus homens. A segunda opção feria demais seu orgulho. Por que teria que convencê-lo da verdade se era tão tolo que não conseguia enxergá-la? Claro, quando finalmente a percebesse, ela sé regozijaria. Os homens odiavam estar errados, e Katerina suspeitava que Lucas fosse sofrer ainda mais, pelo que tinham significado um para o outro.

— E seria sábio esquecer disso — murmurou.

Especialmente porque podia estar redondamente enganada a respeito dó que acreditava que tivessem partilhado, pensou, e sentiu vontade de começar a chorar novamente. Abafou a dor e tentou encarar a verdade. O amor que acreditava terem compartilhado podia muito bem ter sido uma mentira. Katerina sabia que o tinha amado, e ainda o amava, tola que era. No entanto, o que pensava ter visto em Lucas poderia muito bem não ter sido mais do que paixão, à qual certamente tinham se entregado, de maneira breve e gloriosa. Ainda assim, mesmo que tivesse descoberto que Lucas não a amava e que pretendia deixá-la, nunca teria mandado matá-lo e ele deveria saber disso. O fato de ele conhecê-la tão pouco após o que viveram juntos a feria porque colocava em dúvida todas as palavras suaves e os beijos calorosos, lembranças preciosas que ela tinha estimado e guardado na vã esperança de amenizar o luto.

— Maldição! Fico dando voltas e não consigo decidir nada — resmungou e terminou abruptamente de tomar o vinho.

No entanto, antes de encarar Lucas, precisava de um plano. Provar que estava errado e vê-lo desculpar-se era um bom plano, mas não era o suficiente. Afinal, aquilo a deixava sem opção em relação ao que fazer depois que ele rastejasse em infernal remorso. A batalha contra Agnes, Ranald e seus subordinados poderia não estar acabada, e ela e Lucas ainda teriam de lidar um com o outro, assim como com a luxúria que tinham compartilhado.

Ainda amava o tolo, ainda o queria e não podia ignorar isso ou tentar mentir para si mesma. Apesar de não poder mais confiar em seu julgamento sobre o que Lucas sentia por ela, tinha certeza de que a dor que lhe tinha impingido não matara o amor ou desejo por ele. Tinha a triste sensação de que era incurável. Mesmo agora, parte dela esperava que tudo não passasse de um terrível engano, e que quando se encontrassem novamente ele se desculparia, a tomaria nos braços e a beijaria até que a dor desaparecesse.

— Tola — murmurou e olhou em direção ao salão.

Admitiu para si mesma que queria estar em seus braços. Se finalmente entendesse a verdade e lhe oferecesse uma boa desculpa, não havia motivos para deixar de aproveitar novamente a paixão tão breve que tinham vivido. Afinal, não era mais uma donzela.

Katerina deixou o quarto. Se Lucas enxergasse a verdade e demonstrasse um arrependimento genuíno e apropriado, permitiria que se tornasse seu amante. Hesitou na caminhada rumo ao salão o suficiente para silenciar aquela temerosa voz em sua cabeça que sussurrava que Lucas podia não mais desejá-la. Tinha dentro de si um ano de desejo reprimido e queria satisfazê-lo. Sabia também que ainda queria que Lucas fosse muito mais que seu amante. Levaria algum tempo para decidir se poderia confiar nele novamente, em sua paixão e em todas as suaves palavras de desejo. Também levaria tempo para que confiasse em seu próprio julgamento de novo e para que o perdoasse, refletiu, entrando no salão e encontrando seu olhar cauteloso.

O homem era muito charmoso para a paz de espírito de qualquer mulher, pensou contrariada, enquanto se aproximava da lareira e se sentava perto de William. Uma cicatriz pálida e disforme cobria o lado direito do rosto de Lucas, mas isso somente adicionava um toque de perigo à sua aparência. Ainda era alto, esbelto e forte, apesar da rigidez da perna esquerda, na qual tinha reparado rapidamente durante a fuga. A única diferença real que via no momento era a ausência de calor nos belos olhos azuis quando se dirigiam a ela e de um sorriso sedutor curvando-lhe os lábios.

— Por que ainda está aqui? — perguntou, aceitando a tigela com carne de coelho que William serviu e recusando-se a admitir, até para si mesma, que teria ficado desolada se Lucas tivesse partido enquanto ela afundava em autopiedade e mágoa.

Lucas olhou-a e também se serviu de uma tigela do ensopado. Aborrecia-o que ao ver a leve evidência de que Katerina havia chorado, tivesse imediatamente sentido vontade de abraçá-la e confortá-la. Se culpa e vergonha a perturbavam, não era problema seu.

— Parece que você e eu temos o mesmo objetivo desta vez — retrucou. — Ambos queremos Ranald morto.

Katerina estremeceu interiormente ante a brusca verdade. Detestava o fato de querer um homem morto, mas não podia negar que, em vários sentidos, era o que queria. A única forma de estar a salvo de Ranald era enterrá-lo.

Não era o tipo de homem que humildemente aceitaria ser vencido e, quando Agnes perdesse a batalha, Ranald também seria derrotado. O homem gostava demais do poder que exercia para desistir dele sem, no mínimo, querer vingar-se de quem o tivesse tomado.

— Verdade. Para haver novamente paz em Dunlochan, Ranald deve ser morto.

— Por que ele a traiu? A quem obedece agora?

— A quem sempre obedeceu, Agnes. E por causa dela e de todas as suas conspirações que Dunlochan está agora sitiada e que temos de nos esconder nesta colina.

— Espera que eu acredite que Agnes os manteve fugindo e se escondendo durante um ano? Aquela moça não tem capacidade para fazer isso. A única coisa em que consegue pensar é em homens e vestidos.

— Agnes manda em Ranald, e os dois são astutos e cruéis. — Katerina balançou a cabeça. — Suspeito que meu pai pensasse como você, que Agnes não era mais que uma menina sem juízo cujas únicas preocupações eram provocar e seduzir os homens e gastar muito de seu dinheiro em vestidos. Com certeza, passa tempo demais pensando em coisas fúteis, mas é também fria e cruel. Há nela uma gélida maldade, que esconde bem dos homens que procura encantar. Seu marido ficou enfeitiçado por um tempo, mas acabou enxergando o que ela de fato é. Infelizmente, foi preciso a morte de uma criada com quem ele flertou para alertá-lo.

— Ele viu Agnes matar uma empregada?

— Não, mas não teve dúvidas de que era obra dela. Ele nem sequer tinha sido infiel, só havia trocado alguns sorrisos com a criada e um ou dois gracejos, mas isso custou a vida à pobre moça. Creio que Agnes mandou Ranald fazê-lo, pois já eram amantes. O marido, Robbie, também acreditava nisso. Partiu logo depois e não voltou mais. Agnes o tem caçado, mas não creio que para um encontro amoroso. Não, ela o quer morto.

— Por que os homens que seu pai escolheu como conselheiros não o aprovam?

— Você e William tiveram uma conversinha agradável na minha ausência, não?

Lucas quase sorriu do olhar que Katerina lançou para William, um olhar que o acusava de traição. Rapidamente repeliu esse sentimento. Katerina sempre tinha conseguido fazê-lo sorrir, mas sentia agora que essa era a razão pela qual nunca tinha visto um sinal de alerta em relação à traição que havia sofrido.

— Ele me contou no que acredita, sim — Lucas falou de maneira arrastada.

Aquilo doeu, mas Katerina somente virou-se para ele.

— Não, eles não aprovaram Robbie. Meu pai também não. Robbie não é um homem mau, mas não é exatamente o que um pai gostaria para sua filha. É pobre, um pouco fraco e alguém que preferiria conversar ou pagar para se livrar de um problema a empunhar uma espada. Creio que o julgamento foi severo. Há bons sentimentos em Robbie e creio que teria sido um ótimo marido para Agnes se ela de fato quisesse um.

— Sim — concordou William. — Mas talvez não um bom senhor para Dunlochan. Robbie também não queria ser. Era muito trabalho para o rapaz.

— Verdade. — Katerina sorriu brevemente. — Muito trabalho. Infelizmente, a falta de ambição de Robbie é uma das razões que faz com que Agnes queira se tornar viúva. Até penso que está considerando casar-se com Ranald.

― E o conselho o aprovaria? —- perguntou Lucas surpreso.

— Creio que sim — replicou Katerina. — Mas não tenho certeza do porquê. Medo, talvez. Sabem que Ranald não hesitaria em matá-los ou a suas famílias se tentassem impedi-lo de tomar o lugar de senhor de Dunlochan. E fácil dizer "sim" ou "não" à escolha de uma moça quando o marido não é uma verdadeira ameaça, não?

— Verdade. Então, por que Agnes não declara que o marido está morto?

— Porque o conselho exigiria provas, nem que somente a palavra de alguém que não seja um de seus subordinados. O fato de Ranald não ter conseguido livrar a área daqueles traiçoeiros saqueadores mascarados... — Katerina trocou um rápido sorriso com William — ...também fez com que Agnes hesitasse, creio. Ranald ainda não provou realmente seu valor para ela.

— Exceto no quarto — resmungou William.

— Pelo pouco que sei disso tudo, Robbie também provou seu valor lá, o que não a manteve fiel a ele nem a faz hesitar ao querê-lo morto agora. —- Katerina franziu a testa, pensando em toda a situação de Agnes e Ranald por um momento.— Creio que Agnes espera que possa se casar com Ranald e tomar Dunlochan antes que o conselho manifeste suas objeções.

— Então, quer silenciá-los para que as objeções nunca sejam ouvidas? — perguntou Lucas.

— Algo desse tipo. Apesar de não ser fácil, pois são homens bem-nascidos, com amigos e parentes importantes.

Era quase impossível para Lucas acreditar que a moça risonha e de cabelos claros fosse capaz de tamanha frieza e astúcia. Não havia passado muito tempo com Agnes.

Na verdade, tinha feito o possível para evitá-la, mas não vira nenhuma evidência de natureza tão má. Mas também não tinha suspeitado da natureza de Katerina; e essa cegueira quase lhe custara a vida. Ou, sussurrava uma voz insidiosa em sua mente, estava redondamente enganado a respeito do que de fato havia acontecido no lago naquele dia distante. Ninguém ainda lhe tinha dado um motivo para acreditar que Katerina fosse inocente, que fosse, talvez, uma vítima como ele.

— Os outros virão aqui hoje à noite, William? — Katerina perguntou ao primo.

— Não, só muito mais tarde — respondeu ele. — Ranald está demorando cada vez mais para desistir da caçada quando nos persegue e não queremos que descubra nosso esconderijo.

Katerina assentiu, grata por tal cautela, ainda que profundamente incomodada por essa necessidade. Ranald estava muito mais obstinado do que no início da batalha. A determinação do homem em acabar com essas incursões tinha crescido a cada derrota que sofrerá. Katerina não precisava escutar as ameaças e pragas do homem para saber que Ranald queria a todos mortos. Agnes indubitavelmente tinha o mesmo desejo. O perigo para ela e seus homens, e até para seus aliados, crescia cada vez que saíam, mas Katerina sabia que não havia escolha. A batalha por Dunlochan ainda não tinha sido vencida. Ela estava ficando temerosa de que nunca fosse.

Enquanto recolhia as tigelas agora vazias para limpá-las, pensou sobre o último ano. Tinha sido uma longa, dura e contínua batalha, primeiro para sobreviver à tentativa de assassinato e depois para tentar reconquistar tudo o que lhe tinha sido roubado pela infinita ganância de Agnes. Uma raiva nascida do pesar que sentia por Lucas a havia sustentado, mas agora que descobrira que estava vivo, sentia-se esgotada.

— Se todos pensam que está morta, por que Agnes simplesmente não tomou Dunlochan? — perguntou Lucas quando Katerina voltou para a lareira trazendo um odre de vinho cheio.

— Ela tomou. Ela e Ranald. Somente o conselho que meu pai escolheu quando morreu a impede de declarar-se abertamente dona de tudo e de assumir todos os direitos do proprietário. O conselho usa o fato de que nosso pai não aprovava Robbie como o motivo para não declará-la proprietária. Uma mulher não pode verdadeiramente ser uma senhora de terras, não aos olhos da maioria dos homens, e eles governam o mundo. Agnes precisa de um marido para ajudá-la a garantir a herança e exercer o poder pelo qual anseia. Então, o conselho ainda é decisivo, apesar de não usarem essas prerrogativas para nos livrar de Ranald.

— Talvez saibam que, se pressionarem muito, estarão assinando a sentença de morte.

— Suspeito que pensem assim.

— Então, creio que vocês devam fazer mais do que somente irritar o homem como têm feito.

— Você não sabe nada sobre o que temos feito aqui.

— Você cavalga para impedi-lo de matar e para perturbá-lo com roubos, certo?

Katerina sentiu uma forte necessidade de bater em Lucas com algo bem pesado. Ele tinha acabado de reduzir todos os seus esforços a algo que parecia brincadeira de criança. Sabia que estavam simplesmente sobrevivendo e salvando algumas pessoas aqui e ali, mas não poderiam fazer muito mais até que obtivessem provas dos crimes de Agnes e Ranald.

— Preciso provar que os dois são culpados de mais do que simplesmente tornar a vida de todos um inferno. Preciso provar que eles têm sangue nas mãos. Não é algo fácil de fazer. Na melhor das hipóteses, posso pegá-los em algo que faça o conselho agir.

— Você precisa pressionar mais. Vocês atacam e fogem, e ele persegue. Você precisa fazer o homem sangrar.

Pelo canto do olho, Katerina podia ver William assentir em concordância.

— Ele poderia facilmente fazer-nos sangrar — disse. — É algo que tenho de considerar a cada passo do caminho.

— Existe esse risco. No entanto, a não ser que o pressione duramente e sem piedade, ele não cometerá o erro que estamos esperando. Precisa diminuir o número de pessoas que ele tem sob comando, de forma a fazer com que cada vez menos homens queiram estar a seu lado. Precisa colocá-los, ele e Agnes, um contra o outro, mesmo que seja questionando-a abertamente sobre a competência dele. Precisa encurralar a fera, empurrar suas costas com força contra a parede e pôr uma faca em seu pescoço.

— Até que ele se espete com ela?

— Sim.

— Nossa, muito esperto de sua parte. Bom, enquanto faz seus lindos planos, creio que farei uma lista dos suprimentos necessários e irei buscá-los.

— Onde?

— Ora, direto na cova do leão. Onde mais?

Lucas ouviu claramente a palavra "tolo", como se Katerina a tivesse gritado.

— Não acredito que pedi para você me acompanhar. Lucas parou de observar o balanço dos quadris de Katerina e quase sorriu. As roupas de homem que usava não disfarçavam as curvas quase voluptuosas. Podia ser pequena em estatura, quase trinta centímetros mais baixa que ele, mas exalava feminilidade. No início, ressentira-se do desejo que ainda nutria por ela, mas agora não mais.

Qualquer homem desejaria Katerina. Sofria somente da inclinação natural de um homem, disse firmemente a si mesmo. Talvez se parasse de acusá-la de tentar matá-lo, pudessem experimentar novamente aquela paixão que haviam compartilhado por um período muito breve. Ele se asseguraria, obviamente, que ela não estivesse armada quando cedessem à tentação.

— Você não pode entrar sozinha na cova do leão — advertiu. — E William precisa esperar que os outros retornem.

Pensava em como Ranald estava procurando os saqueadores, caçando com vontade suficiente para manter o resto dos homens de Katerina afastados do abrigo das cavernas.

— Tem certeza de que é uma boa hora para entrar no castelo e roubar comida?

— Ranald nunca pensaria em nós procurar lá dentro.

— Mas se alguém nos vir... — Lucas mal conseguiu evitar o encontrão quando Katerina abruptamente parou e rodopiou para encará-lo.

— Escute, sir Murray, meus homens e eu nos arranjamos muito bem por um ano sem sua ajuda. — Katerina sabia que estava rangendo os dentes para falar, mas não podia dissimular sua raiva desta vez.— Agradecemos por ter decidido juntar-se a nós, por contribuir com sua grande força e habilidade para a luta, mas não creio que algum de nós o tenha declarado o líder. Então, talvez você pudesse manter suas opiniões para si mesmo.

Lucas pensou em como Katerina era adorável quando estava brava, mas rapidamente tirou essa idéia da cabeça.

— Vocês ainda não venceram, não?

— Também não perdemos.

— E estão satisfeitos em permitir que essa batalha se arraste dessa forma? Em continuar provocando Ranald e fugindo de sua vingança até que destruam Dunlochan?

Katerina queria desesperadamente bater nele sem parar. Ao invés de sua ira tê-lo feito retrair-se, o homem a massacrava com perguntas difíceis. Pior, o questionamento revelava que ele podia ver claramente tudo o que estava errado na luta na qual estava presa. Dunlochan estava sendo destruída. Uma vitória rápida e decisiva era necessária, mas ela não conseguia visualizar como obtê-la sem causar mais derramamento de sangue do que podia suportar. Com tristeza, admitiu para si mesma que, se Lucas lhe desse essa vitória, uma parte dela seria eternamente grata. E outra parte, aquela controlada pelo orgulho, iria sem dúvida querer lhe infligir um sério e doloroso sofrimento.

— Estamos fazendo o melhor para impedir que Ranald destrua Dunlochan e tire proveito disso. -— Ela virou-se e retomou o caminho. — Quando essa luta terminar, ele e Agnes não terão nada, talvez nem mesmo suas vidas, mas eu manterei Dunlochan, e meus homens ainda estarão vivos.

— É admirável que não queira que os homens que lutam com você sofram ou morram, mas nenhuma batalha está isenta de derramamento de sangue. Não se for para ser vencida.

Essa era uma dura e fria verdade que Katerina não queria considerar. Os homens que a acompanhavam eram seu povo, seus parentes e amigos. Muitas vezes, enquanto cuidava de feridas sofridas durante um ataque, pensara seriamente em desistir de tudo.

O fardo de mantê-los vivos, tentando livrar Dunlochan de homens como Ranald, freqüentemente se tornava tão pesado que Katerina sentia-se oprimida. A única coisa que a fazia continuar lutando era a certeza de que Agnes e Ranald nunca a deixariam em paz. Nunca acreditariam que aceitaria a escassa herança, que se conformaria com todas as perdas ou com a tentativa de matá-la. Nunca acreditariam que simplesmente viveria com toda a tranqüilidade no chalé naquele pequeno pedaço de terra que o pai havia deixado para quem perdesse a batalha pelo domínio de Dunlochan. Eles a matariam e a qualquer pessoa tola o suficiente para ficar a seu lado.

Não sabia por que esse pensamento de repente a deixava temerosa por Lucas. Ele não merecia sua preocupação. Era obviamente um daqueles que acreditavam que, se qualquer coisa desse errado em sua vida, seria por culpa de alguma mulher. Estava surpresa por não ter visto isso nele até então, mas suspeitava que sua aparência, aliada ao desejo que sentia por ele, a tinha impedido de reparar nos defeitos.

— Pretendo ganhar essa batalha, sir Murray, e sem manchar a terra com o sangue de meus parentes e amigos — declarou, quando sentiu que a falta de confiança já não transparecia em sua voz. — Talvez estejamos testando as forças de Ranald e as habilidades desses mercenários antes de decidirmos atacá-los em definitivo.

Lucas bufou, manifestando sua incredulidade. Pelo modo como Katerina tinha os punhos cerrados, percebeu que estava furiosa, mas quando continuou a andar, decidiu que seria mais seguro ignorar sua ira. Era imprudente unir-se ao pequeno exército de Katerina, mas, como agora já fazia parte dele, estava ansioso para que a batalha fosse vencida. Ela era muito habilidosa em atacar Ranald rápida e repentinamente, mas ainda não tinha conseguido derrubá-lo. Os homens deveriam estar tão ansiosos quanto ele para encerrar a batalha, mas Lucas suspeitava que poucos se queixavam abertamente e, por isso, os planos nunca mudavam. Já tinha passado da hora de que alguém o fizesse.

O que o deixava mais bravo no momento era saber o que alimentava essa vontade de que Katerina prestasse atenção a ele e começasse a lutar contra Ranald. A própria necessidade que sentia de fazê-lo pagar por espancá-lo e tentar matá-lo era sem dúvida parte desse desejo, mas não tudo. Tinha de encarar o fato de que não gostava que ela constantemente pusesse em risco sua vida, e aquilo o perturbava. Parte do motivo que o trouxera de volta a Dunlochan tinha sido fazê-la sofrer pela participação no que acontecera com ele. Não fazia sentido começar a preocupar-se com o fato de ela poder se ferir.

— Onde Ranald se esconde quando não está caçando vocês ou molestando o povo de Dunlochan? — perguntou, reparando que a passagem na qual se encontravam começava a se tornar mais sinuosa. Lutava para não pensar muito na profundidade em que se encontrava.

— Com Agnes, claro — Katerina respondeu depois de teimar consigo mesma que seria infantilidade ignorá-lo quando tinha feito uma pergunta tão razoável.

— Eles abertamente cometem adultério?

— Bem, não estão exatamente rolando na relva para que todos vejam, mas também não são muito discretos. Agnes se declara viúva, ainda que quase todo o mundo por aqui saiba muito bem que o marido a abandonou. Também sabem que ninguém trouxe a notícia de que ele está morto.

— E ninguém age contra ela ou Ranald por pecarem de maneira tão declarada?

— Ah, agora você soou tão devoto...— Katerina murmurou, lançando sobre os ombros um olhar rápido para Lucas.

— E verdade que minha família desaprova tal coisa, mas estava falando daqueles como os homens no conselho ou as mulheres que se consideram virtuosas. Cada vila tem alguns desses que não toleram nada que possa ser considerado pecado.

— Ah, sim, essas mulheres. Não, poucos aqui falam abertamente sobre esse assunto. O medo que Ranald gosta de provocar nas pessoas se espalhou e se instalou de forma profunda e opressiva. Há muitos que vêem que Agnes é tão má e perigosa quanto ele. Então, não, nada é dito nem feito, nem mesmo quando Agnes lança seu olhar luxurioso sobre outro homem, e outro, e outro...

— Creio que entendo: Apesar de estar um pouco surpreso por Agnes ousar ser infiel a Ranald. Pode ser muito perigoso.

— Oh, ele não gosta, mas sabe que sem ela não tem poder sobre Dunlochan. Também nunca foi fiel a ela. Ele sente que é correto tomar a mulher que deseja. Preocupo-me com Annie na estalagem. Ranald a quer, mas, até agora, não a tomou como fez com as outras.

Apesar de Katerina não ter dito a palavra "estupro", Lucas entendeu que era a isso que se referia. Tinha profunda aversão a homens que brutalizavam mulheres. Essa era somente outra razão para garantir que Ranald não escapasse da justiça. Lucas estava um pouco surpreso por Agnes estar ligada a ele, mas começava a perceber que a tinha julgado mal. Por motivos que não podia compreender, acreditava em quase tudo o que Katerina tinha dito sobre a meia-irmã. A única coisa da qual duvidava era que ela pudesse ser tão astuta quanto Katerina acreditava. Nas poucas vezes em que lidara com ela, não vislumbrara grande inteligência por trás dos grandes olhos azuis.

O pensamento traiçoeiro de que parte da raiva que Katerina sentia da irmã pudesse dever-se ao fato de a mulher estar dormindo com Ranald infiltrou-se em sua mente e ele intimamente se retraiu. Apesar de todas as suspeitas a respeito de Katerina, achou difícil acreditar naquilo. A violenta onda de ciúme que o assolou frente ao pensamento dos dois juntos o surpreendeu e assombrou. Lucas não queria se importar com quem Katerina se relacionasse.

Um ruído suave o arrancou dos pensamentos sombrios. Agindo pelo instinto, agarrou Katerina pelo braço, puxou-a para trás e colocou-a entre ele e o lado rochoso da passagem, enquanto puxava a espada. Alguém estava se movendo furtivamente na direção deles na galeria. Katerina e seus homens haviam ficado seguros nas cavernas e passagens durante um ano, mas apenas um erro poria fim a essa segurança, O homem que surgiu um momento depois era alto e magro, e parecia tão alarmado quanto Lucas, que não o impediu de sacar sua espada.

— É somente Patrick — disse Katerina, empurrando as costas de Lucas e praguejando baixinho quando ele não se moveu.

—- Somente Patrick?— o rapaz resmungou e observou Katerina. — Está tudo bem, milady?

— Tirando o fato de estar pressionada nas pedras por este grande bruto, sim — respondeu ela.

— É um de seus homens?

— Sim, um dos meus. Agora, você pode, por favor, se mover? Não consigo respirar.

Lucas manteve-se atento a Patrick enquanto voltava a embainhar a espada. O rapaz devolveu o cumprimento, mantendo-se atento a Lucas enquanto fazia o mesmo. Os olhos azul-escuros demonstravam a mesma cautela que os de Lucas. A disputa silenciosa entre os dois foi interrompida pelo empurrão mais forte que Katerina deu em suas costas enquanto resmungava.

Lucas se perguntou por que a beleza do homem alto e de cabelos claros o irritara tanto. Um segundo depois, quando Patrick sorriu para Katerina, soube por quê. Pior ainda, Katerina sorriu de volta. Os sentimentos se agitando dentro dele traziam a forte marca do ciúme, e a última coisa que queria era sentir-se possessivo em relação a ela. O fato de que acabara de se sentir da mesma maneira pouco antes lhe dizia que poderia estar perdendo aquela batalha. Lucas lutou para se concentrar exclusivamente na luta contra Ranald e Agnes.

— Que bom ver que você voltou em segurança. E sem ferimentos? — perguntou Katerina.

— Sim — respondeu Patrick, e olhou rapidamente para Lucas. — Parece que sir Murray ainda não está morto.

Katerina riu e balançou a cabeça.

— Não, ainda não. Está pensando que se unirá a nós na luta contra Ranald.

— Não estou pensando — retrucou Lucas. — Estou planejando. Como disse, também quero Ranald morto.

Vendo Katerina estremecer diante daquela declaração brusca, Patrick passou a mão de leve em seu braço.

— Tem de ser feito, milady. Sabe bem disso, apesar de todos evitarmos falar claramente. Quem mais retornou?

— Ninguém que tenhamos visto. Você é o primeiro. William está esperando pelos outros no salão.

— E o que você está fazendo? Não está pensando em sair e procurar pelos outros, está? Se estão se mantendo longe, é porque ainda é muito perigoso vir até aqui, o risco de ser visto e capturado é muito grande.

— Não, não planejei me arriscar lá fora. Vou só buscar os suprimentos necessários. Portanto, pare de ralhar comigo e vá se unir a William.

Assim que Patrick se afastou, Katerina recomeçou a caminhar. Precisava pôr alguma distância entre Lucas e ela. Apesar da rudeza de suas ações no esforço de protegê-la, tinha ficado bastante perturbada pela sensação do corpo dele pressionado contra o seu. Nem mesmo a parede de pedra dura e fria contra suas costas tinha acalmado a súbita onda de calor em suas veias. Era triste, concluiu, como uma mulher podia ser estimulada ao ser pressionada contra as rochas por um homem que a julgava capaz de assassiná-lo brutalmente porquê estava com ciúme.

De repente, já não parecia uma idéia tão boa aceitar Lucas como amante, Os sentimentos que nutria por ele ainda estavam tão vivos e eram tão profundos, que sabia que estaria se arriscando a sofrer muito. Não deveria se esquecer de como se sentira quando acreditará que estivesse morto. Isso a tinha dilacerado, deixado uma ferida aberta no lugar do coração, e longos meses tinham se passado antes que conseguisse deixar um pouco daquela dor de lado. Se eles se tornassem amantes e ele continuasse acreditando que ela tivesse participado do ataque que sofrerá, então estariam somente se usando para satisfazer uma necessidade física. Poderia considerar essa situação aceitável, apesar do castigo que seu orgulho teria de suportar, más agora suspeitava que não duraria muito e que logo estaria se afogando novamente na própria dor. Lucas, por outro lado, poderia ir embora a qualquer momento.

Katerina pensou nas opções, enquanto abria a porta para a despensa, bem embaixo do Castelo de Dunlochan. Apesar de querer agredi-lo pelas acusações ultrajantes, sabia que não conseguiria resistir a outra amostra do desejo que sempre tinha flamejado entre eles.

Sobrevivera a todas as tentativas de homicídio. Sobrevivera pensando que o único homem que amara tinha morrido e a deixado sozinha. Sobreviveria ao fato de que o homem quê amava e desejava era um idiota cego que poderia somente usá-la e partir. Se eles se tornassem amantes, tentaria reunir tantas lembranças calorosas quanto pudesse e então o veria partir sem chorar. Era tudo o que podia fazer para salvar seu orgulho, que era a única coisa que não permitiria que Lucas Murray destruísse.

— Estamos sob Dunlochan agora? — sussurrou Lucas, seguindo-a para dentro do aposento iluminado somente por uma pequena tocha colocada no alto da parede de pedra.

— Sim. O que queremos deve estar aqui.

Lucas seguiu-a até um canto encoberto por sombras e ficou boquiaberto. Havia muita comida e bebida empilhadas ali. Era óbvio que alguém de dentro do castelo estava ajudando Katerina ao separar alguns suprimentos, talvez um pouco a cada dia. Como guerreiro, Lucas não deixava de se perguntar exatamente como poderiam utilizar esses aliados para derrotar Ranald e Agnes.

Observando como Lucas olhava para seus suprimentos, Katerina colocou a lista do que precisava no local secreto combinado com a cozinheira muito tempo antes. Nenhuma delas tinha pensado que demoraria tanto para Katerina recuperar Dunlochan. A pobre Hilda ainda acreditava nela, provavelmente mais do que ela mesma, mas suspeitava que a velha senhora estivesse ficando cansada de esperar para se livrar do domínio tirano de Agnes.

— Como as coisas já estão preparadas para você levar? — perguntou Lucas, mantendo a voz tão baixa quanto a dela.

— Ah, bom, Hilda, a cozinheira, e alguns outros aos poucos juntam tudo. Quando pegamos os suprimentos sempre deixamos uma pequena mensagem avisando do que precisaremos com mais urgência.

— Ninguém repara que o estoque está desfalcado?

— Não. Você pode imaginar Agnes ou Ranald mantendo registros ou calculando qualquer coisa, com exceção do dinheiro em seus bolsos? Nem mesmo a criada de Agnes, Freda, presta atenção a como as coisas que querem são adquiridas, somente sabem que as entregam em suas mãos quando desejam. E o meu povo que diligentemente cuida do estoque e do controle. Esse é outro bom motivo para que eu continue me fingindo de morta. Se soubessem que ainda estou viva, muitas pessoas estariam em perigo. Seriam imediatamente colocadas sob suspeita e isso poderia muito bem significar sua morte.

— Você pensou em tudo. — Não era uma pergunta, pois Lucas sabia que ela tinha feito planos meticulosos para a segurança dessas pessoas. Considerando o que acreditava que tivesse feito a ele, tal convicção não fazia muito sentido, mas ignorou esse enigma enquanto pegava um pesado saco de mantimentos. — Está muito pesado. Você nunca poderia ter carregado tudo isso sozinha.

— Não, não de uma vez só. — Katerina deu de ombros. — Tinha pouco com que me ocupar, a não ser esperar o retorno de meus homens. Fazer algumas viagens não me custaria nada.

— As pessoas que fazem isso para você poderiam ser úteis de outras maneiras.

Katerina suspirou, consciente do que ele queria dizer, pois ela mesma já havia pensado nisso.

— Poderiam, mas usá-las para algo além de reunir comida e informações poderia levá-las à morte. A maioria delas é jovem demais ou idosa demais. Não são guerreiros e não têm aptidão para isso. São cozinheiros, criados, artesãos... Muito bons para ouvir, uma vez que uma pessoa como Agnes nunca os vê, e muito bons para fazer dez tortas de carne e servir somente oito, separando as outras duas para nós. Até mesmo esse pequeno, mas valoroso serviço, os coloca em risco.

Lucas assentiu, concordando.

— Mas pode chegar o momento... ― começou.

— Quando o risco valer a pena — Katerina finalizou por ele. — Sei disso, e eles também sabem.

O som de passos sobre a pedra desviou a atenção de Lucas. Novamente empurrou Katerina para detrás dele e ambos se agacharam atrás da pilha de barris. Com medo de que o ruído de desembainhar a espada ecoasse muito alto no aposento, lentamente sacou seu punhal. O brilho da luz de velas surgiu primeiro, seguido por uma mulher rechonchuda de cabelos grisalhos que parou na entrada do aposento e nervosamente olhou ao redor.

— É Hilda, a cozinheira — Katerina sussurrou, escapando de trás de Lucas e levantando-se. — Aqui, Hilda.

— Ah, Deus a abençoe, criança — disse Hilda, vindo apressada na direção de Katerina e dando-lhe um breve abraço. — Tenho escapado até aqui quando possível, esperando encontrá-la. Estava me preparando para ir atrás de você. — Os olhos de Hilda se arregalaram ao ver Lucas levantar-se e se aproximar de Katerina. — Deus misericordioso, ele está vivo!

Pondo rapidamente o braço em volta dos ombros de Hilda para mantê-la firme quando cambaleou, Katerina disse:

— Sim, e quer fazer Ranald pagar pelo que lhe fez.

Katerina sabia que Lucas também queria fazê-la pagar, mas não disse isso a Hilda. Precisava de cooperação integral entre os aliados. Contar a Hilda, que tinha sido como uma mãe para ela, sobre as suspeitas de Lucas colocaria a mulher firmemente contra ele. Era um problema com o qual não queria lidar no momento.

— Bom, isso é maravilhoso e não faz mal ter outro braço forte quando se está em uma luta tão difícil. — Hilda observou a batina de monge que Lucas usava. — A não ser... Você ingressou na Igreja?

— Não — respondeu Lucas. — Pensei que seria um bom disfarce.

Podia dizer pela expressão da mulher que ela quase certamente não concordava com ele.

— Bom, é uma bênção de Deus que você tenha sobrevivido àqueles bastardos.

— Verdade — concordou Katerina. — Por que precisava me ver, Hilda?

— Receio que Ranald esteja suspeitando do jovem Thomas. O rapaz desaparece com freqüência, e sempre quando você cavalga. Ranald acabou percebendo, e quer trazer o rapaz aqui para obrigá-lo a dizer a verdade.

Imaginando uma maneira de garantir a segurança de Thomas, Katerina perguntou:

— Mas ele já decidiu fazer isso?

— Ele, sim, mas Agnes ainda não. Ela tem medo que Ranald esteja enganado e que, se fizerem algo contra o rapaz, isso possa provocar a ira das pessoas contra ela. A tola da mulher não parece enxergar que quase todo homem, mulher e criança em Dunlochan já desconfia dela. Eu precisava avisar você, pois acredito que logo Ranald convencerá Agnes da necessidade de pegar Thomas. Especialmente... bem, quando ela souber que este homem ainda está vivo — acrescentou Hilda, olhando para Lucas.

Ela saberá assim que Ranald retornar esta noite, pois tentou matá-lo de novo e nós roubamos seu prêmio. — Katerina beijou Hilda. — Obrigada, Hilda. Agora preciso ir cuidar da segurança de Thomas.

— Vá com Deus, menina.

Agarrando tudo o que conseguiam carregar, voltaram depressa para o salão. Lucas quase podia sentir o medo de Katerina quando ela praticamente correu através das passagens. Não tinha certeza sobre o que poderia ser feito para ajudar o rapaz, mas sabia que ela tentaria algo. Sabia também que não a deixaria ir sozinha. Essa necessidade de mantê-la em segurança não fazia sentido para ele, mas estava começando a pensar que muito do que sentia e pensava no que se referia a Katerina Haldane não fazia sentido.

— O que aconteceu? — perguntou William, alarmado pelo modo como entraram no salão.

— Ranald suspeita de Thomas — respondeu Katerina, deixando de lado os sacos de suprimentos.

William e Patrick praguejaram.

— Então temos de tentar alcançar o garoto antes que ele o faça — disse William.

— Somos só quatro — observou Patrick.

— Terá de ser suficiente — replicou Katerina. — Não podemos deixá-lo pôr as mãos no rapaz.

— Não, claro que não, mas nós temos um plano? Katerina esfregou a testa, tentando aliviar a dor que começava a latejar.

— Não, e não sei se conseguiremos elaborar um até sabermos onde Thomas está e se Ranald já o está caçando. Hilda disse que Agnes não concordou com os planos de Ranald de prender Thomas e extrair informações dele, mas depois do que aconteceu hoje à noite, Ranald pode não se importar com isso.

— Onde Thomas mora? — perguntou Lucas.

— Na estalagem. E irmão de Annie e os dois moram lá. Ela tem um pequeno quarto no sótão, mas, a não ser quando está muito frio, Thomas fica no estábulo com os cavalos, que ele adora.

— Não é o lugar mais fácil de se aproximar, mas não é impossível. A noite pode ocultar muitas coisas. Eu fui parar nas mãos de Ranald, acreditando que meu disfarce era bom o suficiente para me esconder. Desta vez, sabemos que nosso inimigo pode estar lá.

— Verdade, mas suspeito que estará com muitos de seus homens.

— Não há alternativa?

— Não, não há. Preocupo-me com Annie. Hilda não disse que ela estava em perigo, mas se Ranald não conseguir pôr as mãos em Thomas...

— Então pegará Annie e a usará para atrair o garoto.

— É disso que tenho medo.

— E é o que provavelmente vai acontecer — disse Patrick. — Posso buscar Annie enquanto vocês procuram Thomas.

— Você consegue entrar lá sem ser visto? — Os olhos de Katerina se arregalaram de surpresa quando Patrick corou.

— Posso. Eu era muito amigo de Morag, antes de ela fugir com aquele viajante na última primavera. Sei como entrar na estalagem sem ser visto. — Deu de ombros. — Ela não queria que ninguém soubesse que tinha amantes, então sempre fazia com que os homens com quem dormia se esgueirassem como ladrões. Desculpe-me, milady — murmurou.

— Não se desculpe. Eu sabia o que Morag era. Somente não sabia que você era um de seus amantes. Bem, isso nos será útil agora. Você tira Annie de lá e nós fazemos o possível para trazer Thomas.

— Você não acha que deveríamos esperar até que mais de nossos homens retornem? — perguntou William, enquanto pegava a espada.

— Acho que não podemos perder tempo. Ranald ficará furioso por ter perdido outra oportunidade de matar Lucas.

— E estará ansioso para descontar a raiva em alguém. — William suspirou. — Ah, bem, Thomas tem nos ajudado muito, assim como Annie. Não podemos deixá-los sofrer por isso.

— De acordo. Então, voltamos para, a vila, mas desta vez sem uma aparição tão espetacular.

— Espero que não esteja sugerindo que andemos até lá.

— Não o caminho todo.

Katerina sorriu quando ouviu os três homens gemerem, em um rápido momento de descontração. Seu coração estava apertado de medo pelo jovem Thomas e por Annie. Até que os tivesse em segurança, longe do alcance de Ranald, duvidava que respirasse com tranqüilidade. Muitos já tinham pagado caro nessa batalha com Agnes, e recusava-se a deixar que ela e o amante tirassem outra vida.

 

Katerina viu Patrick se esgueirar entre as sombras perto da estalagem e reprimiu a vontade de chamá-lo de volta. Isso era mais perigoso que qualquer coisa que tivessem tentado antes. Tinha de se lembrar de que seria muito pior se tentassem resgatá-los de dentro do Castelo de Dunlochan, talvez até impossível. As despensas e algumas passagens secretas que havia descoberto quando criança eram os únicos lugares que poderia alcançar sem ser vista. Além disso, circular pelo castelo seria muito arriscado.

O pior de ser um guerreiro, pensou, era tentar não temer por cada um e por todos sob seu comando. Katerina sabia que ficaria mais que feliz em desistir daquele comando.

William poderia assumir assim que recuperasse a posse de Dunlochan, e ela o aprovaria totalmente. Sabia que, se ele desse as ordens, faria exatamente o que ela estava fazendo agora. Ninguém com um mínimo de consciência permitiria que Thomas e Annie caíssem nas garras brutais de Ranald.

— Se Patrick diz que pode entrar e sair de lá sem ser visto, é porque pode — observou William.

Sorrindo diante da tentativa dele de acalmá-la, Katerina assentiu.

— Eu sei, mas isso não me impede de temer que algo saia errado. Agora, é melhor voltarmos nossa atenção para o problema de como entrarmos no estábulo sem sermos vistos.

— E sair com Thomas da mesma forma.

— Sim, seria bom. — Katerina olhou para Lucas, que estava agachado a seu lado, um pouco perto demais para seu gosto. — Pode correr rápido, sir Murray?

Lucas estremeceu, apesar de não detectar na voz de Katerina nenhum traço de zombaria ou desprezo por sua limitação, apenas uma necessidade de informação para planejar o movimento seguinte.

— Por uma curta distância e com pouca elegância — respondeu com aspereza.

— Por uma curta distância será suficiente, sir Murray.

O modo como continuava chamando-o de "sir Murray" estava começando a irritá-lo. Era uma tentativa de fazê-lo sentir-se um completo estranho e, talvez, de reforçar a idéia para si mesma. Lucas sabia que não devia se aborrecer por ela querer jogar assim, mas não podia evitar. Pior, isso o feria de uma forma que não deveria. Lembrava-se claramente do modo como Katerina dissera seu nome quando o desejo a tinha consumido, e queria ouvi-lo ser pronunciado daquela forma outra vez.

Obrigando-se a se concentrar no problema que estavam enfrentando, perguntou:

— Espera que Ranald venha logo?

— Sim — respondeu Katerina. — Ele se tornou mais persistente na tentativa de nos rastrear, mas seu temperamento não permite que seja muito paciente. Se ainda não desistiu da caçada, o fará em breve. Então, irá atrás de Thomas. Em geral, ele e Agnes concordam em relação ao que deve ser feito, ou ela dá as ordens, mas não creio que possamos contar com isso agora. Ranald deve saber que está perdendo o lugar nos planos de Agnes, que cada vez que nos deixa escapar, ela duvida mais dele. Estará ávido por algo que o ajude a se ater a seus planos, qualquer coisa, independentemente da relevância ou dos crimes que tenha que cometer.

— Então, vamos nos apressar e evitar que o garoto corra perigo.

Em silêncio, rastejaram pelas sombras em direção ao estábulo. Katerina rezava para que essa não fosse uma das poucas noites em que Thomas decidira não dormir com os cavalos. Apesar de usarem roupas escuras e permanecerem nas sombras, parecia-lhe que estavam expostos a quem olhasse naquela direção. Sentia o suor descer pela espinha e respirou aliviada quando finalmente se esgueiraram para o estábulo sem terem ouvido nenhum grito de reconhecimento ou de alarme.

— Uma vez que vocês dois usam muito melhor a espada do que eu, vou subir e trazer Thomas — sussurrou Katerina. — Podem ficar vigiando.

Lucas observou-a subir com agilidade a precária escada que levava ao celeiro. Seu corpo se contraía de desejo ao observar os quadris firmes e arredondados balançarem a cada passo. Estava contente por ainda usar a batina que escondia a evidência ostensiva de seu desejo. Não importava a freqüência com que considerasse os riscos de se envolver com Katerina, seu corpo continuava a lembrá-lo constantemente do interesse que nutria por ela. Se fosse ficar com eles por muito tempo, sabia que teria de tomar uma decisão a respeito dela e da atração que sentia, ou sem dúvida faria alguma asneira.

Katerina ouviu Thomas antes de vê-lo. O rapaz ressonava baixinho, e ela se moveu em direção ao som. Colocou cuidadosamente a mão em seu ombro, sabendo que algumas pessoas despertavam muito assustadas de um sono profundo, e chacoalhou-o de leve. O rapaz abriu os olhos e encarou-a aturdido por um instante.

— Lady Katerina, o que aconteceu? — perguntou, sentando-se e afastando os cabelos do rosto. — Annie está ferida?

Como sabia que tinha temido durante muito tempo que Ranald ou um dos homens violentassem Annie como haviam feito com outras mulheres, apressou-se a acalmá-lo.

— Não, mas está na hora de você e sua irmã se esconderem, Thomas. Ranald suspeita de vocês.

Apesar de a única resposta do garoto ter sido a extrema palidez, assentiu como se ele tivesse falado alto.

— Nada foi dito sobre Annie, mas, se Ranald não conseguir pegá-lo, tememos que tente atingi-la.

Thomas assentiu, levantou-se e enrolou o cobertor. Quando enfiou as mãos sob a forragem que lhe servia de cama e puxou um saco de pertences, percebeu que o menino já tinha previsto que em algum momento teria de partir às pressas. Saber que seu povo tinha que viver preparado para fugir a entristecia, mas, no momento, estava feliz que estivesse pronto.

— Posso trazer Annie logo — disse ele.

— Não é preciso. Patrick foi buscá-la, pois consegue entrar e sair da estalagem sem ser visto.

— Ah, sim. Ele costumava visitar Morag.

Então, não passava assim tão despercebido.

— Oh, suspeito que sim. Eu só o vi uma vez, quando estava saindo. Sabia que visitava Morag porque ela gostava de se vangloriar disso. — Esperou até que Katerina começasse a descer a escada antes de arremessar os pertences para William e segui-la. — Sir Murray quer levar seu cavalo de volta agora? — perguntou, saltando agilmente os últimos degraus da escada assim que Katerina se afastou.

— Sim, sir Murray gostaria muito de levar o cavalo de volta — disse Lucas, antes que Katerina pudesse responder ou mesmo pensar no assunto.

Ela olhou para Lucas, que tirava o cavalo já selado da baia.

— Não acho que possamos tirar algo desse tamanho daqui sem sermos vistos.

— Eachann pode ser muito silencioso.

— Eachann não pode ser silencioso e pequeno. Uma sombra discreta pode não ser notada, mas é difícil ignorar algo deste tamanho.

— Se Ranald não estiver bem aí fora, posso mostrar a sir Murray um caminho para tirar o cavalo da vila — ofereceu Thomas.

— Tem certeza? — perguntou Katerina. — Viemos salvá-lo dele. Não quero que caia em suas mãos só porque sir Murray quer o cavalo.

— Não acontecerá. Já tirei cavalos da vila antes.

— Não vou nem perguntar por quê.

— E melhor — murmurou Thomas, sorrindo. Katerina olhou para Lucas e percebeu que estava determinado a levar junto o animal. Tinha aprendido ainda bem jovem que os homens podiam ser muito ligados aos animais. Também estava claro que ele não estava esperando que ela dissesse "sim" ou "não", mas já se aprontava para partir. Supunha que não era o momento adequado para lembrá-lo de quem era o líder do grupo.

— Vamos nos encontrar no mesmo lugar onde Ian nos encontrou mais cedo — disse por fim. — Mas terei de pensar em um local para guardar o animal. Tome cuidado — recomendou a Thomas enquanto ele montava na sela atrás de Lucas.

Observou-os partir pelos fundos do estábulo e perguntou-se por que sentia vontade de suspirar. A preocupação com Thomas e Annie obviamente a tinha perturbado. Seguiu William para fora de Ia, aborrecida por não conseguir deixar de procurar algum ruído que indicasse que os dois estivessem em apuros e precisassem de ajuda.

Patrick e Annie estavam esperando na extremidade da vila, o que a fez desviar os pensamentos de Lucas. A menina precisava ser tranqüilizada sobre a segurança do irmão, e Katerina começou a sentir-se tensa, sabendo que levariam mais tempo do que tinha previsto para cumprir a tarefa. Quando finalmente voltavam ao lugar que agora chamava de lar, suspirou aliviada até se assustar ao ouvir a aproximação de diversos cavaleiros.

Parte do medo foi amenizada quando Patrick e William agiram com rapidez, em silêncio e com admirável competência. Patrick agarrou as rédeas do cavalo de Annie, e William moveu-se para cavalgar com Katerina. Indo em duas direções, embrenharam-se nas sombras produzidas pelas árvores que cresciam ao redor do vilarejo. Katerina observou um grupo de sete homens cavalgar em direção à vila e soube que se tratava do bando de Ranald antes de ouvir as vozes.

— Estou cansado de caçar esses bastardos por toda a Dunlochan! — disse Ranald, a voz rouca de raiva.

— São muito bons em esconder os rastros — comentou Colin, o companheiro de armas mais próximo.

— Ninguém pode ser tão bom sem ajuda, Colin. Ninguém. Esses bastardos estão conseguindo ajuda e quero descobrir de quem e como.

— Acha que alguém na vila está ajudando os saqueadores?

— Sim, mais que uma pessoa, e penso também que esses patifes são mais que simples saqueadores. Se aquela pequena cadela ainda estivesse viva, eu acharia que estava por trás disso tudo.

— Lady Katerina? Mas, uma mulher...

— Uma mulher pode ser tão astuta quanto um homem. Não se esqueça para quem trabalhamos. Talvez alguns tolos façam isso em memória dela. Não sei, mas pretendo descobrir. Vou começar com Thomas.

— Pensei que lady Agnes não quisesse que você fizesse nada contra o garoto.

— Ela mudará de idéia assim que o pequeno bastardo começar a nos dizer tudo o que sabe sobre os saqueadores. Sim, e talvez possa usá-lo para fazer a irmã levantar a saia.

Katerina estava tentada a seguir os homens quando parou de ouvi-los. Não era sempre que tinha uma oportunidade tão boa de descobrir os planos de Ranald. Ele era bastante descuidado a respeito do local em que falava desse assunto. O bom senso prevaleceu, no entanto, e ela se uniu aos outros em silêncio. Percebeu que Annie estava muito pálida, e a fraca luz da lua revelava algumas lágrimas em seu rosto. A garota pode ter vindo com eles apenas porque Patrick lhe dissera para vir, mas agora se dava conta do perigo que o irmão corria, e isso a apavorava.

Lucas e Thomas estavam esperando no local combinado, assim como Ian. Deixando os cavalos aos cuidados do velho senhor e de seus filhos, Katerina conduziu os outros para as cavernas. Não seria fácil ter um jovem e uma mulher bonita com eles, mas não havia alternativa.

Assim que entraram no salão bem iluminado, percebeu também que alguém deveria ter avisado Annie que ela não estava morta, pois, assim que Katerina tirou o capuz, a jovem a olhou horrorizada e desmaiou nos braços de Patrick.

— Thomas! — Katerina correu para pegar um pano e água para molhar o rosto de Annie depois que Patrick a colocou sobre a mesa. — Você não lhe contou que estou viva?

— Não, você disse que era segredo — respondeu ele, aproximando-se da mesa para observar a irmã.

— Não me referi à sua própria irmã. Thomas encolheu os ombros.

— Eu dei minha palavra de que não contaria a ninguém — defendeu-se. — E para mim, ninguém é ninguém.

— Quando falei com ela na estalagem, ela falou de você como se estivesse morta — contou Lucas e sorriu fracamente para Thomas. — Poderia ter contado à sua irmã, rapaz, ainda que para evitar as visitas ao túmulo de Katerina. Ainda assim, é bom saber que você tem palavra.

— Ela foi ao meu túmulo? — perguntou Katerina chocada, enquanto gentilmente banhava com água fria o rosto de Annie.

— Sim. Quando pensou que eu era um monge, perguntou-me se era pecado rezar no túmulo não consagrado de uma suicida. Mas, na verdade, não acreditava que você tivesse se matado.

— Estranho, mas isso é uma das coisas que mais me irrita. Como Agnes ousa deixar as pessoas pensarem que cometi tal pecado?

— De minha parte, ficaria mais aborrecido em ser atirado de um penhasco dentro do lago — disse William.

Todos riram, e Katerina não pôde deixar de fitar Lucas. Com um brilho divertido nos olhos, estava tão parecido com o homem por quem tinha se apaixonado que seu peito chegou a doer. A rapidez com que a expressão se fechou, tornando-se novamente sombria, feriu-a ainda mais, pois sabia que se lembrara da traição.

Um suave gemido desviou sua atenção para Annie, e Katerina aceitou a caneca de vinho que William havia trazido, sabendo que a garota provavelmente precisaria de um gole. Por um breve momento Annie pareceu confusa, mas então fixou os olhos nela e ficou ainda mais pálida. Katerina pegou sua mão e segurou-a com firmeza, esperando que o toque a tranqüilizasse.

— Não desmaie de novo, Annie. Beba isto — ordenou e entregou-lhe o vinho.

— Você não está morta — sussurrou Annie, antes de engolir quase metade do vinho. — Por que todos dizem que você morreu? E quem eles enterraram, então?

Katerina virou-se e olhou Annie por um instante, consciente de que todos a encaravam, esperando uma resposta. Tentou pensar o mínimo possível em seu túmulo, pois lhe dava arrepios. Agnes tinha colocado lá uma linda lápide e representado de maneira convincente o papel de irmã pesarosa, segundo soubera. Nunca se perguntara se algo, ou alguém, tinha sido de fato sepultado ali.

— Envergonho-me de dizer que nunca pensei muito nisso — respondeu por fim. — Suponho que seja um túmulo vazio, Annie. Pedras, talvez, se precisaram pôr algum peso no caixão. A menos que alguém tenha desaparecido na mesma época... — começou, mas Annie balançou a cabeça.

— Não, ninguém exceto Robbie — disse, enquanto se sentava devagar.

— Não acredito que Robbie tenha voltado a Dunlochan e morrido bem quando Agnes precisava de um corpo. No mínimo, ele teria ficado horrorizado em se tornar um peão nas tramas traiçoeiras de Agnes.

Annie assentiu com a cabeça.

— E muito facilmente, também. Katerina sorriu.

— Verdade. Não, duvido que alguém esteja em meu túmulo.

O alívio demonstrado no rosto de Annie sumiu tão depressa que Katerina surpreendeu-se de tê-lo percebido.

Disfarçou o choque. Teria se enganado a respeito de Robbie? Ele teria sido infiel a Agnes mesmo antes de ela ter desrespeitado seus votos? Apesar de a dúvida sobre o homem e seu próprio julgamento agitarem seus pensamentos, afastou a idéia. Robbie podia ser rápido ao sorrir para as garotas, mas manteve seus votos até perceber que a mulher com quem tinha se casado não fazia o mesmo, que Agnes o tinha enganado de todas as formas possíveis. Tinha partido tão depressa depois disso que não houvera tempo para iniciar um caso com Annie.

Ela também era inocente, e bem devota. Nunca teria se envolvido com um homem casado. Aquilo não significava, no entanto, que não pudesse estar apaixonada pelo charmoso Robbie. Katerina suspirou, esperando que a jovem não tivesse entregado tolamente o coração. Sabia o quanto isso podia machucar.

— O que faremos agora, lady Katerina? — perguntou Annie, aceitando um pouco mais de vinho de Patrick.

— Fiquem aqui.

— Aqui? Por quanto tempo?

Katerina tentou não fazer uma careta, sabendo que Annie não gostaria da resposta.

— Não sei ao certo. Ranald não desistirá de pôr as mãos em vocês. Bem, é Thomas quem ele procura, mas você o ouviu começar a tramar, incluindo-a em seus planos, não?

Annie tremeu, sentindo repulsa.

— Sim, ouvi, e isso me deixou gelada.

— Então, acho que devem se esconder conosco até que Ranald deixe de ser uma ameaça.

— Do que exatamente precisamos para derrotar aquele patife e lady Agnes?

— Provas de seus crimes, que são muito difíceis de obter. Preciso de provas claras e contundentes para apresentar ao conselho.

Annie resmungou algo que soava como uma imprecação.

— Velhos tolos, todos eles. Sabem o que ela é e o que eles têm feito. Conhecem os crimes terríveis que esse casal cometeu. Creio que sua hesitação não tem a ver com o cumprimento dos desejos de seu pai. Não, acho que cruzam os braços e permitem que esse jogo sangrento continue porque não querem abrir mão do poder que têm, como guardiões de Dunlochan. — Corou quando percebeu que todos a encaravam. — Desculpem-me. Fui desrespeitosa.

— Não, você só verbalizou a dura verdade, algo que temos hesitado em fazer. — Katerina tomou-a pela mão. — Venha, mostrarei onde vai dormir. Thomas pode compartilhar seu quarto ou ficar aqui com os outros homens.

— Gostaria de permanecer com os outros, claro — disse o rapaz.

Katerina disfarçou o sorriso enquanto conduzia Annie. Um rápido olhar para a jovem revelou que ela fazia o mesmo. Quando chegaram à pequena câmara que havia escolhido para Annie, ajudou-a a arrumar o catre. Com ambas trabalhando, não levou muito tempo para que o pequeno quarto de pedra ficasse relativamente confortável e menos parecido com uma caverna.

— Será estranho viver sob um morro — disse Annie, olhando ao redor. — Apesar de aqui ser melhor do que meu pequeno nicho na estalagem. — Sorriu para Katerina. — É maravilhoso que sir Lucas esteja vivo, não é? Você deve estar tão feliz por tê-lo de volta!

— Bem, estou feliz por Ranald não tê-lo matado. Seria muito agradável, no entanto, se sir Lucas não pensasse que eu tive a ver com o ataque. — Intimamente amaldiçoou a língua solta e deu de ombros quando Annie a encarou chocada antes de fazer-lhe um resumo do que tinha acontecido no ano anterior.

— Ele pensa que você tentou matá-lo?! — Quando Katerina assentiu, Annie começou a parecer muito brava e balançou a cabeça. — Como os homens podem ser tão cegos e teimosos?! Sinto muito, milady. Pensei... — meneou a cabeça outra vez.

— Ah, bem, eu também. Parece que estávamos ambas erradas.

— Você logo provará para ele que é um tolo por pensar tal coisa. Sim, logo o fará engasgar-se com as suspeitas absurdas.

— E um pensamento agradável.

— Mas você não sabe o que fazer depois disso, não?

— Não, não sei. Mas suspeito que pensarei em algo. Descanse, Annie.

— Não serei um fardo, milady. Não sei lutar, mas posso encontrar algo útil para fazer. Posso cozinhar e limpar.

— A ajuda será muito bem-vinda. Durma bem, Annie.

— Você também, milady, e obrigada por nos ter salvado.

— Você e Thomas têm nos ajudado muito, apesar de não termos nos dado conta disso. Não poderia viver em paz se os tivesse abandonado à mercê de Ranald.

Katerina deixou-a e foi para a cama, o corpo inteiro doendo de cansaço. Tinha acabado de chegar ao quarto quando Lucas entrou em seu caminho. Ele a perturbava intensamente, o que a irritava. Endereçou-lhe um olhar atravessado quando ele habilmente a prendeu entre seu corpo e a parede de pedra.

Katerina não precisava sentir a evidência do desejo no corpo de Lucas pressionado contra o seu para saber o que ele queria. Estava explícito em seu rosto. Apesar da dor que lhe tinha provocado, ela também o queria. No entanto, era cedo demais. Ainda não tinha decidido se o prazer que poderia lhe proporcionar compensaria os riscos que correria.

— Creio que tenha uma cama no salão com os outros homens — disse, orgulhosa de manter a aparência serena quando por dentro se sentia ao contrário.

— Sua cama seria mais quente. Lucas disse a si mesmo que a excitação provocada pela batalha e pelo resgate lhe despertara tal necessidade, e que somente havia procurado Katerina porque ela estava acessível. Ignorava ostensivamente a voz interior que o chamava de "mentiroso".

— Há muitos cobertores por aí. Procure um para se aquecer.

— Tem certeza de que é isso que quer que eu faça? Antes que pudesse responder, ele a beijou. Não foi um beijo delicado, o carinho suave de um amante. Ele tomava sua boca. O beijo transformava a fome que sentia em um desejo ardente. Katerina se agarrou à batina de Lucas, controlando o ímpeto de arrancar a áspera lã de seu corpo e mover-se sobre ele. Lutava com todas as forças contra a necessidade que estava viva dentro dela. No momento em que os lábios de Lucas deixaram os dela, reuniu o que restava de suas forças e afastou-o. Seu corpo todo se ressentiu, mas obrigou-se a ignorar a sensação, pois ainda era muito cedo. Não tinha controle sobre as emoções e, se decidisse tê-lo como amante, sabia que precisaria estar preparada, mesmo que apenas para proteger o coração da dor que ele poderia infligir-lhe.

— Beijar uma mulher que julga culpada de ter tentado matá-lo não é uma atitude sensata. E fazer isso vestido de monge pode ser considerado blasfêmia. Sugiro que saia. Agora.

Katerina não recuou, e manteve-se firme frente ao olhar perscrutador de Lucas. Se estivesse procurando uma fraqueza nela, tinha, sem dúvida, encontrado pelo menos uma pista na forma como ela correspondera a seu beijo. Não importava. Recuperara o controle e pretendia mantê-lo.

Havia um lampejo de raiva nos olhos de Lucas, e ela sentiu prazer ao vê-lo. Se teria de contornar o.ávido fogo do desejo insaciado naquela noite, nada mais justo que ele também sofresse de alguma forma.

Lucas podia ver a força da decisão de Katerina ao dispensá-lo e sabia que não conseguiria nada naquela noite. No entanto, o desejo que sentia por ele ficara evidente no beijo que compartilharam. Poderia esperar, sem se importar com o quanto isso seria desconfortável.

Fazendo uma leve mesura, afastou-se e começou a tentar se lembrar de como poderia aliviar o clamor de seu corpo a fim de poder descansar. Precisaria de todas as forças para a campanha que enfrentaria.

Persuadir Katerina a voltar para seus braços para que pudessem entregar-se à paixão que partilhavam, ao menos por um tempo, demandaria toda a paciência e recursos de que pudesse dispor. Poderia esperar, mas não tinha intenção de esperar muito.

Assim que Lucas se foi, Katerina cambaleou em direção à cama è desabou, o corpo todo tremendo enquanto lutava para controlar as sensações que aquele beijo tinha despertado. Estava contente por Lucas não ter discutido com ela, pois não teria muitas forças para resistir. Uma leve insistência, e teria se entregado. Algo no olhar dele, contudo, na maneira como tinha se despedido, indicava que ele insistiria. Teria de tomar uma decisão logo, pois seus instintos lhe diziam que Lucas estava caçando e que ela era a presa.

Era uma armadilha. Katerina não via evidências disso, não ouvia nada que indicasse que cavalgavam em direção ao perigo, mas suas entranhas se contorciam de medo. Era a mesma sensação que costumava ter quando criança, quando precisava ir a algum lugar onde sabia que Agnes poderia estar esperando, só que muito pior desta vez.

Um rápido olhar para os rostos de seus homens mostrou-lhe que compartilhavam sua inquietação, mas ela sabia que essa cautela poderia se originar de causas diferentes.

Quando o sentimento a atingira da primeira vez, pensara que Lucas fosse o motivo. Durante três longos dias, ele tinha habitado seus pensamentos, o calor do beijo que compartilharam ainda vivido em sua boca. Também tinha estado próximo a ela, tocando-a e observando-a com os olhos escuros de desejo, sempre tentando roubar um beijo, algo que conseguia com freqüência demais para sua paz de espírito. No momento em que o sentimento se tornou mais forte, no entanto, sabia que Lucas não era a única causa. Ian os avisara que os cavalos tinham sido roubados.

Após passar a noite no encalço dos animais, seguindo-lhes o rastro, encontraram os ladrões. Mas Katerina começava a pensar que poderiam ser mais que simples saqueadores. Apesar de sempre ficar tensa antes de uma batalha, esse sentimento estava mais forte e carregava um mau presságio.

— Não gosto disso — murmurou, enquanto observava com atenção os cavalos e os homens cruzarem o campo aberto.

— Não, não está me cheirando bem — William acrescentou, e muitos dos companheiros murmuraram em concordância.

— Como uma armadilha.

— Sim, uma armadilha muito bem-feita. Lucas assentiu devagar, o olhar sempre atento.

— Um campo aberto, mas com muitos lugares para os homens se esconderem.

— Estão apenas esperando que nosso grupo se exponha para, então, impedirem nossa retirada — disse Katerina.

— Infelizmente, precisamos dos cavalos. Katerina detestava admitir, mas ele estava certo. Só lhes restavam os seis cavalos que agora utilizavam, caso não recuperassem aqueles no campo. Mesmo assim, como os animais não eram nem tão bons nem em número suficiente, seria necessário que roubassem alguns, o que Katerina sempre relutara em fazer. Estava tentando provar a culpa de Agnes em diversos crimes e não acreditava que a melhor forma de fazê-lo fosse se tornando ela própria uma criminosa.

Também havia alguns riscos a ser considerados. Poderia não sofrer muito por roubar os cavalos apenas porque era a filha do senhor daquelas terras, mas seus homens certamente teriam problemas. Katerina suspeitava que, se houvesse escolha, eles prefeririam cavalgar para o que pensavam ser uma armadilha a arriscar-se a ser enforcados por roubo.

— A melhor maneira de fazer isso é de forma rápida e firme, Kat — opinou Lucas. — Ir até lá, agarrar o que pudermos o mais rápido possível e sair logo.

Ela tentou ignorar o calor que sentiu ao ser chamada de "Kat". O apelido carinhoso tinha sido usado com freqüência na época em que foram felizes juntos.

Katerina recriminou-se, pois o momento era péssimo para sentimentalismos. Tinha cavalos para capturar e pessoas para proteger. O ressentimento por Lucas assumir alguma autoridade tinha se suavizado. Um bom plano era necessário se quisessem escapar da cilada com vida, e não discutiria de quem a idéia tinha partido.

— Acho que é assim que devemos fazer, prima — disse William. — Se isso realmente for uma armadilha, não podemos perder tempo lutando contra aqueles homens e ainda recuperar todos os cavalos. O que podemos fazer é cavalgar rápido, agarrar alguns e correr, não dando a quem estiver nos esperando a oportunidade de atacar.

— Certo, então — concordou Katerina, ajustando a tira de pano azul sobre o rosto, assegurando-se de que estava bem coberto. — Sem luta, a não ser que seja necessário. Somente agarrar os cavalos e dar o fora de lá. Sabemos que ninguém está espreitando deste lado, então sairemos por aqui.

— E iremos todos em direções diferentes, como sempre, quando estivermos protegidos pelas árvores.

— Vamos rezar para que não haja arqueiros escondidos lá — murmurou quando William se aproximou dela.

— Poucos conseguem atingir com rapidez um alvo móvel. E, se Ranald estiver por trás disso, a maioria de seus homens não consegue atingir a lateral do Castelo de Dunlochan em um dia ensolarado e sem vento.

Katerina sorriu quando os homens riram do insulto de William, mas o bom humor estava se esvaindo. Eles aguardavam seu sinal para se moverem. Após orar pela segurança de todos, rapidamente esporou o cavalo e saiu a galope. Curvou-se sobre o forte pescoço do animal para tornar-se um alvo menor enquanto avançava em direção aos homens que arrebanhavam os cavalos do outro lado do campo.

Estava alcançando um dos animais quando viu homens montados se precipitando para fora da proteção oferecida pelas árvores com as espadas desembainhadas em direção a seu grupo. Katerina percebeu que estava certa e que, de fato, era uma cilada. Quando um dos homens tentou agarrá-la, acertou-lhe a cabeça, lançando-o ao chão. Pegou, então, as rédeas do cavalo mais próximo e voltou-se para fugir, esperando chegar à segurança das árvores antes que Ranald ou seus comparsas pudessem alcançá-la.

Deixou escapar um grunhido quando algo a atingiu nas costas. A dor assolou-a por alguns instantes com tal força que sua visão se nublou. Instintivamente, buscou o que estava causando tanta dor, soltando as rédeas tanto de seu próprio cavalo quanto do que estava tentando capturar. Ambos reagiram mal à súbita falta de controle, dando-lhe um solavanco enquanto vacilavam e tentavam decidir o que fazer a seguir. Percebendo a posição precária em que se encontrava, mal conseguindo se equilibrar na sela, Katerina procurou ás rédeas, mas era tarde demais. O capuz caiu, devido às frenéticas tentativas de permanecer montada, e revelou seus longos cabelos.

Apesar de o tecido ainda cobrir a maior parte do rosto, suspeitava que muitos dos homens de Ranald reconheceriam os cabelos claros e volumosos. Ranald certamente reconheceria. Atingiu, então, duramente o solo, a dor espalhando-se pelo quadril e pelas costas e por um momento, concentrou toda a atenção em tentar voltar a respirar.

Lucas olhou em sua direção a tempo de vê-la agitando-se na sela e praguejou. Quando a viu cair, notou a flecha projetando-se de suas costas e sentiu um frio perpassar seu corpo. O fato de que o capuz tinha caído revelando os cabelos tão característicos e, conseqüentemente, sua identidade, o preocupava bem menos que seu bem-estar. Poderiam lidar com as conseqüências de Ranald saber que estava viva mais tarde. A única coisa que importava agora era salvar sua vida.

Entregou para William as rédeas da montaria que havia capturado.

— Pegue-as e saia daqui.

— Mas Katerina... — William começou a protestar, enquanto agarrava as rédeas e as atava ao seu cavalo.

— Eu a pegarei e me encontrarei com você nas cavernas.

William hesitou por um instante e então correu para longe, seguindo o resto dos homens de Katerina para o meio das árvores. Parou somente uma vez para agarrar as rédeas do cavalo que Katerina tinha perdido. Lucas correu na direção dela, que lutava para levantar-se. Ranald, obviamente, teve a mesma idéia, mas foi detido por uma confusão de homens e cavalos que, apavorados, tentavam seguir em direções diferentes. Para seu alívio, Lucas alcançou-a primeiro, levantou-a e colocou-a atrás dele antes de segurar as rédeas de seu animal.

— O outro cavalo — disse Katerina em um fio de voz, perguntando-se por que se preocupava tanto quando estava a um triz de ser capturada e sentia tanta dor.

— William o pegou. Você consegue se segurar?

Sim — foi tudo o que pôde dizer antes que Lucas começasse a galopar.

A cavalgada para o esconderijo foi para ela uma mescla obscura de sensação de velocidade e dor lancinante. Mal estava consciente quando Lucas parou para atá-la a ele com a tira de linho que havia usado para cobrir a face. Quando pararam pela segunda vez, despertou do estupor repleto de sofrimento o suficiente para tentar ver onde estavam, mas a dor toldou-lhe a visão. Quando Lucas a tomou nos braços, viu de relance que Thomas e Patrick conduziam os cavalos enquanto William fazia o máximo para apagar o rastro que tinham deixado. Aquele sinal de que todos estavam fazendo exatamente o que deveriam acabou com a necessidade que sentia de tentar manter-se consciente e pôde entregar-se, finalmente, à escuridão que vinha tentando tomá-la.

— Oh, meu Deus, ela está morta? — gritou Annie da entrada do salão.

Lucas não hesitou e continuou dando largos passos em direção ao quarto de Katerina.

— Não, mas precisa de cuidados o mais rápido possível. Esta flecha tem que ser retirada e ela pode ter quebrado algum osso quando caiu do cavalo. Traga-me água, panos e o que mais puder ser útil para curar feridas. — Sim, estarei logo atrás de você.

Assim que Lucas pôs Katerina sobre a cama, começou a cortar os tecidos que a flecha tinha perfurado. Lutou para acalmar as emoções que o agitavam. Não fazia sentido que estivesse tão nervoso e temeroso por ela. Não tinha planejado desforrar-se de sua participação no brutal espancamento que sofrerá? Apesar de não ter feito planos específicos, as palavras "desforra" e "vingança" implicavam alguma violência e dor. Era óbvio agora que nunca seria capaz de fazer qualquer mal a Katerina.

Pensando nisso, percebeu que fazia muito tempo que falhara no objetivo de vingar-se. Tinha até se unido à luta contra Ranald e Agnes. Tudo o que conseguira fazer fora irritá-la e insultá-la e tentar constantemente seduzi-la. Não era o tipo de desforra que as canções exaltavam.

Quando Annie chegou, dispondo tudo o que havia trazido no baú próximo à cama, Lucas começou a preparar-se para a horrível tarefa de remover a flecha das costas de Katerina.

— Você é forte, Annie?

— Sim — respondeu. — De corpo e de estômago.

— Bom. Precisará disso para o que acontecerá agora. Tenho de remover esta flecha.

Ela franziu a testa, obviamente confusa por sua hesitação.

— Quer que eu a puxe?

— Não, quero que você a segure com firmeza. Primeiro, devo empurrá-la para o outro lado, para que a flecha saia pela frente. — Ignorou o gemido de horror de Annie e prosseguiu. — Então cortarei a ponta. Somente depois posso removê-la.

— Será uma agonia para ela — sussurrou.

— Sim, será, e ainda que esteja inconsciente, lutará contra a dor.

— Por que não pode somente puxá-la?

— Porque isso agravará a ferida, dilacerando mais para sair do que para entrar. A ponta da flecha deve sair primeiro. Agora, quanto mais ela se mover, mais tempo levarei para tirar essa coisa amaldiçoada de seu corpo. Você está pronta? Não vai desmaiar?

Annie balançou a cabeça e moveu-se para segurar Katerina. O grito que soltou quando ele empurrou a ponta da flecha através de seu corpo fez o estômago de Lucas se retorcer. Suspeitava que estivesse tão pálido quanto Annie. Cortou a ponta e, então, após respirar fundo para se acalmar, arrancou a haste do corpo delgado o mais rápido possível. Katerina gritou outra vez e tentou esquivar-se da dor que lhe era infligida, mas a doce Annie estava a seu lado rezando e segurando-a com força.

Lucas ficou aliviado quando Katerina permaneceu prostrada em silêncio após a provação e rezou para que estivesse tão profundamente inconsciente que o resto dos procedimentos que teria de realizar não a afetasse.

Lutando para lembrar-se de tudo o que tinha aprendido por ter crescido em uma família de curandeiros, Lucas limpou as feridas e costurou-as. Não conhecia o ungüento que Annie lhe dera, mas tinha um olfato apurado e logo percebeu quais ervas o compunham, julgando-o seguro, se não tão bom quanto o que faziam as mulheres de sua família. Aplicou o remédio nas feridas e enfaixou-as. Contente por ter finalizado aquela difícil tarefa, esticou-se até que um pouco da tensão em seu corpo fosse aliviada e se sentisse preparado para prosseguir.

— Você é um curandeiro? — perguntou Annie.

— Não, mas muitas das mulheres em minha família são reconhecidas curandeiras e toda criança aprende ao menos algumas dessas habilidades — respondeu Lucas. Olhou para o rosto pálido de Katerina e suspirou. — Ainda não terminamos.

— Há mais ferimentos?

— Ela caiu do cavalo. Não creio que tenha quebrado nada, mas precisamos ter certeza.

Apesar do óbvio desconforto com o fato de Lucas estar vendo Katerina nua, Annie não disse nada enquanto tiravam o resto de suas roupas. Lucas ficou aliviado ao não encontrar nenhum osso quebrado, mas havia muitas contusões marcando a pele clara. Ajudou Annie a banhá-la com tecidos embebidos em água perfumada com lavanda e aplicou ungüento nas feridas maiores.

— Ela tem muitas cicatrizes — murmurou, acompanhando suavemente o traçado de uma longa e áspera cicatriz na perna delgada de Katerina.

— William disse que se feriu gravemente quando foi jogada no lago e teve de se salvar.

Enquanto Annie procurava uma camisola para Katerina vestir, Lucas estudou as cicatrizes que lhe marcavam o corpo. Algumas eram pequenas, resultado dos cuidados de um curandeiro sem muita habilidade, mas havia diversas grandes, provenientes de ferimentos graves. Elas respaldavam a maior parte das histórias de William sobre o que acontecera um ano antes. Katerina tinha muita sorte de ter sobrevivido.

A dúvida sobre a culpa dela tomou sua mente e desta vez recusou-se a ser posta de lado. Talvez não tivesse tido a real intenção de matá-lo. Ranald e Agnes podem ter usado a necessidade ciumenta que tinha de puni-lo para atingir seus próprios objetivos. Uma vez que Katerina percebera que queriam matá-lo, tinha finalmente tentado impedir o que havia iniciado, mas já era tarde demais.

Balançou a cabeça em silêncio enquanto ajudava Annie a vestir a camisola em Katerina. Cansado e preocupado com ela como estava, sabia que era uma péssima hora para tentar decifrar qualquer coisa, muito menos o que tinha acontecido um ano antes. Por fim, admitiu para si mesmo que a dor podia ter obscurecido seu julgamento, feito com que se lembrasse apenas de fragmentos do que havia ocorrido. Não estava pronto para acreditar em sua completa inocência, mas estava agora preparado para começar a procurar respostas e, até mesmo para considerar que não conhecia toda a verdade.

William irrompeu no quarto no momento em que Annie puxava as cobertas sobre Katerina.

— Como ela está passando?

— A ferida provocada pela flecha estava bastante ruim, mas não acredito que seja fatal — respondeu Lucas. Avistou um jarro e uma caneca sobre a pequena mesa no canto do aposento e moveu-se para servir-se. — Ah, vinho — murmurou após espiar dentro do jarro. — Bem do que eu precisava.

— Ela parece muito pálida — observou William, aproximando-se da cama e estudando o rosto de Katerina.

— Perda de sangue e muita dor em geral drenam toda a cor da pessoa. Mas até que ela não perdeu muito sangue.

Após engolir rapidamente uma caneca inteira de vinho, serviu-se de mais uma dose e voltou para ficar ao lado da cama.

— Quebrou algum osso quando caiu do cavalo?

— Não, mas terá hematomas da cabeça aos pés e ficará bastante dolorida.

— Ah, bem, talvez isso sirva para mantê-la acamada até que esteja curada para se levantar em segurança.

— Ela não é uma inválida muito amável, então?

William revirou os olhos.

— Assim que não estiver com febre ou dor demais para se mexer, pensará que está curada.

— Bem, se ela se tornar um problema muito grande, vamos simplesmente amarrá-la à cama. — Lucas piscou para Annie quando ela arquejou.

— Resolverá, mas somente se você souber fazer nós melhores do que os meus.

Lucas encarou William em choque por um momento e então riu.

— Você a amarrou à cama?

— Ela não parava quieta e reabriu as feridas diversas vezes. Também tive de fazer isso quando estava febril e ficava tentando retornar ao lago para procurá-lo. — William olhou para Lucas e arqueou uma sobrancelha. — Só Deus sabe por quê.

Saber que Katerina tinha tentado encontrá-lo confortou-o de alguma forma, e isso o irritou.

— Culpa? — murmurou e somente deu de ombros quando os dois o encararam. Decidindo que seria sensato mudar de assunto, perguntou a William: — Qual é exatamente sua relação com Katerina? São primos, não?

— Sim — respondeu William. — Sou filho ilegítimo do tio dela. Ele teve muitos. Gostava das moças.

— Até demais — acrescentou Annie, com uma expressão de completo desprezo feminino. — Isso é o que levou o tolo à morte. Todos lhe diziam para ficar longe da mulher do ferreiro, mas não prestou nenhuma atenção aos conselhos.

— Ah, então o ferreiro pegou-o com sua mulher e o matou? — Lucas percebeu que afagava gentilmente o rosto pálido de Katerina, disse a si mesmo que estava somente checando a febre e recolheu a mão.

— Bateu muito nele, mas não o matou. Eu ainda acredito que aquela surra o tenha levado à morte.

— Sim — concordou William. — Agiu de forma muito estranha durante uma semana e então caiu morto.

— Talvez estivesse sangrando por dentro, quem sabe até na cabeça — disse Lucas. — Então, se vocês têm uma relação tão próxima, por que o velho senhor não o escolheu para a sucessão após sua morte?

— Porque odiava seu irmão, e o sentimento era recíproco. Nunca soube de toda a história, mas tinha algo a ver com sua esposa. Era uma boa mulher, então não creio que tenha feito nada de errado, mas temo que não possa dizer o mesmo de meu pai. Então, qualquer filho dele não era bom o suficiente.

Lucas balançou a cabeça.

— É triste quando há brigas entre as pessoas que deveriam permanecer unidas. E suponho que o conselho escolhido não tenha discutido com ele a esse respeito?

— Não. Temo que meu pai tivesse mais inimigos que amigos.

— Porque gostava das moças? William assentiu.

— Muitos dos rapazes por aqui são meus irmãos. Agnes e Ranald nos vêem como ameaças e, bem, Katerina sempre foi boa conosco. Ela não se importava com quem nos criava, ou se éramos ilegítimos, somente com o fato de que éramos parentes. Isso significava muito para nós, e então, quando teve problemas, ficamos a seu lado. Sabe, Agnes também nos odeia, sempre nos odiou. O fato de ela também ser ilegítima não parece ter colaborado para fazê-la solidária.

— Como posso ter me equivocado tanto ao julgar aquela mulher? — resmungou Lucas.

— Você parece se enganar muito a respeito das pessoas. Antes que uma discussão começasse entre os dois homens, que agora se encaravam, Annie disse:

— Agnes finge muito bem ser a mulher doce e um tanto desajuizada que os homens parecem pensar que querem. Agradável e risonha, importando-se somente em ser admirada e em vestir boas roupas. Em geral são as mulheres que enxergam além das aparências, pois Agnes não gosta muito de outras mulheres e não pode manter por muito tempo a máscara de doce estupidez. Até mesmo seu próprio marido foi enganado durante meses e é um rapaz esperto. Creio que enganou também o velho pai, porque não posso acreditar que ele teria feito qualquer coisa para pôr Katerina ou o bem-estar do povo de Dunlochan em risco. Ainda assim, foi isso que aconteceu com seus últimos desejos.

— Sim — concordou William. — Ele deixava muito claro que estava desapontado por ter tido somente filhas mulheres, enquanto o irmão espalhava filhos bastardos por todo o lado, mas amava sua menina da melhor forma que podia. A doença o afetou subitamente e não lhe deu muita oportunidade de pensar bem sobre o que estava fazendo. Katerina ficou furiosa por ele não ter feito planos para nenhum de nós, para todas as suas sobrinhas e sobrinhos.

— Especialmente porque você e alguns outros o serviram muito bem com as armas — disse Annie.

William deu de ombros.

— Não fizemos aquilo por ele, na verdade. Foi por Dunlochan e Katerina. — Olhou de perto para Lucas. — Você acha que ele a reconheceu quando o capuz escorregou?

— Tenho certeza que sim — respondeu Lucas. — Lutou para alcançá-la, derrubando até mesmo alguns de seus próprios homens que entraram no caminho.

Depois de praguejar em voz baixa, William reparou na cor de Annie, respirou fundo para acalmar-se e disse:

— Perdão, Annie.

— Não, não se desculpe — retrucou ela. — E que eu nunca tinha ouvido você praguejar assim, mas reconheço que esta situação justifica essa atitude.

William sorriu e olhou para Lucas.

— Ranald odeia Katerina. Se realmente acredita que tenha sobrevivido, irá revirar Dunlochan para encontrá-la.

— Por que ele a odeia tanto? — Lucas quis saber.

— Porque ela lhe disse "não" — respondeu Annie. — E pior ainda, sabe que provavelmente disse "sim" para você.

— E já que você parecia sério ao cortejá-la — prosseguiu William —, havia uma chance de que se casassem. Ranald sabe que aquele conselho tolo o aprovaria, e isso tiraria o poder que Agnes lhe tinha assegurado. Se Ranald puser as mãos sujas em Katerina, ela morrerá, e não será uma morte indolor.

— Então precisamos ter certeza de que o bastardo não a encontre — disse Lucas.

Após alguma insistência, Lucas persuadiu Annie e William a ir para a cama e a deixá-lo com Katerina. Puxou uma cadeira tosca para perto, descansou os pés na cama e estudou-a. O pai tinha claramente sido um homem duro e frio e havia evidenciado diversas vezes o desapontamento por ela não ser o filho varão que tanto desejava. A meia-irmã era aparentemente uma bruxa malévola e tinha feito de sua vida um inferno sempre que-possível. Agora, havia pessoas tentando matá-la a fim de que não reclamasse o que era seu por direito de nascimento, algo que nunca deveria ter sido posto em questão. Lucas sentiu-se solidário, apesar de relutar em fazê-lo.

Tomando um gole de vinho, resolveu que era hora de descobrir toda a triste verdade. Recusava-se a acreditar que estivesse equivocado a respeito de Katerina, mas pensou que poderia encontrar algo que tornasse mais fácil perdoá-la pela participação no espancamento que sofrerá. Lucas suspeitava que estivesse próximo de perdoá-la de qualquer maneira, mas poder justificar-se seria confortável, o faria sentir-se menos como um tolo apaixonado.

Também precisava do máximo de informações sobre Dunlochan, Ranald, Agnes e a batalha pelo direito de governar o lugar, se quisesse manter Katerina segura. Apesar de não querer analisar com muita atenção o que ainda sentia por ela além de desejo, sabia que nunca deixaria que algo a ferisse.

Lembrando-se do olhar de Ranald quando tinha lutado para alcançá-la, tinha certeza de que William estava certo. Agora que sabia que ela ainda vivia, nunca pararia de caçá-la. Parecia que Lucas, em breve, obteria a dura e feroz batalha pela qual ansiava.

— Como assim, ainda está viva?

Ranald olhou para Agnes, refletindo que sua voz normalmente doce e suave podia às vezes soar bem rabugenta.

— É o que acabei de dizer... Ela está viva. Vi seus cabelos claros quando o capuz escorregou.

— Muitas pessoas em Dunlochan têm cabelos claros.

— Não como os de Katerina. Era ela, Agnes, e discutir comigo não mudará isso. Precisamos planejar os próximos passos. Tanto Murray quanto sua irmã estão vivos, e isso significa que teremos problemas.

Agnes observou o amante atravessar o solário com uma caneca de cerveja apertada entre as mãos grandes. Ranald não era um homem bonito, com suas feições grosseiras e o nariz proeminente, mas era corpulento e forte. Era também mau e desonesto, duas coisas que ela admirava em um homem. O marido não era nada disso e a tinha aborrecido logo. Katerina também não era assim, e a intrigava o fato de a irmã tê-la enganado por tanto tempo.

O fato de sir Murray ainda estar vivo a agradava e espantava ao mesmo tempo. Lucas era um homem que fazia seu estômago se contrair de luxúria, apesar dos modos rudes. Ficara furiosa quando ele não demonstrara interesse por ela e continuara cortejando Katerina. Apesar de ter ordenado sua morte, Agnes agora se perguntava se teria uma segunda chance de seduzi-lo. Ainda teria que morrer, mas, talvez, pudesse experimentá-lo antes. Se o fizesse enquanto Katerina olhasse, seria ainda mais excitante e satisfatório.

— Não sei no que está pensando, Agnes, mas é melhor parar — sugeriu Ranald. — Esse sorriso arrepiaria o mais corajoso dos homens.

— Você me lisonjeia. Estava somente pensando no que fazer com essas pessoas que se recusam a morrer.

Ranald estudou-a. Era bonita, com fartos cabelos loiros, grandes olhos azuis, a pele clara perfeita e um corpo voluptuoso e tentador. O rosto era lindo e levava os homens a verem candura e inocência em sua expressão, compaixão em seu sorriso. Ranald sabia que ela não tinha nenhuma dessas qualidades. Era por isso que trabalhavam tão bem juntos. Ainda se espantava com o fato de o pai estar cego à mulher dura, fria e quase amoral escondida sob aquele sorriso doce.

— E como pensa que devemos lidar com eles?

— Devemos corrigir seu erro.

— Meu erro? Droga, Agnes, Murray estava em pedaços quando o jogamos no lago! Sua irmã afundou quando a atiramos e ficou lá. Não é surpresa que achasse que os dois estivessem mortos. Sim, e o fato de que não vimos nenhum deles durante um ano me deu ainda mais certeza.

— Mas nós vimos Katerina, não? Ela tem nos incomodado e arruinado nossos planos todo o tempo.

Ranald praguejou.

— Você também não sabia que o líder dos saqueadores era Katerina.

Não, não sabia. Verdade. Mas agora é hora de reparar os erros.

— Como?

— Encontrando-os. Encontrando-os e matando-os. E desta vez quero ver os corpos.

 

― Ranald sabe que estou viva, não?

Katerina encarou Lucas, perguntando-se por que ele estaria esparramado em uma cadeira próxima à cama. Parecia cansado e um pouco surpreso com a pergunta. Com a mente ainda turvada, lembrou-se de que os pesadelos a impeliram a formular essa questão. Todos os sonhos ruins que tivera se referiam à sua captura e a todo o sofrimento posterior. Precisava saber se tinha sido reconhecida, se havia qualquer possibilidade de que aqueles pesadelos horripilantes se tornassem realidade.

— Sim, sabe — respondeu Lucas. Levantou-se e entregou-lhe uma mistura de mel e ervas. — Beba isto — ordenou, inserindo um braço debaixo de suas costas para ajudá-la a erguer-se um pouco.

Apesar de o gosto forte das ervas provocar-lhe uma careta, a bebida aliviou a secura e a dor de garganta. Katerina discretamente o observou enquanto a auxiliava. Parecia muito cansado. Lembrava-se vagamente de sua presença ao lado da cama, junto a Annie, e se perguntava se ele de fato teria ajudado a garota a cuidar dela. Parecia estranho que um homem fizesse isso pela mulher que julgava ter tentado matá-lo.

Quando terminou de beber, sentia-se tão fraca e cansada que sabia que levaria um bom tempo para se recuperar das feridas. Também tinha mais com o que se preocupar, além de saber se Lucas cuidara dela ou não. Era uma hora péssima para ficar tão impotente.

— Então, Ranald está procurando por mim? — perguntou, enquanto ele lhe umedecia o rosto com água perfumada.

— Como um homem obcecado — respondeu Lucas. — Sem deixar pedra sobre pedra.

Katerina estremeceu ante a resposta brusca, até se lembrar que medir as palavras não era típico dele.

— Isso não é bom.

— Não, não é, mas ele está procurando por você e seus homens há muito tempo.

— Pensava estar atrás de saqueadores e, quanto mais o aborrecíamos, com mais determinação tentava nos capturar, mas não nos via como uma verdadeira ameaça. Reconhecia seu lugar ao lado de Agnes, como um homem poderoso em Dunlochan e estava seguro, sendo incomodado somente por Robbie. Agora que sabe que estou viva, que ambos estamos vivos, suspeito que ele sinta a ameaça. No mínimo, podemos levá-lo para a forca, o que nem mesmo Robbie pode fazer.

Lucas sentou-se na beirada da cama, ignorando o olhar atravessado que Katerina lhe dirigiu. Sua cor estava boa, mas os estremecimentos que a acometiam de vez em quando revelavam que as feridas ainda provocavam dor. Apesar de acreditar que os ferimentos não eram fatais, havia lutado muito para mantê-la viva. Era evidente que Katerina não vinha se cuidando bem, o que a tinha deixado sem forças para combater a perda de sangue, a dor e a febre intensa. Tendo cuidado dela a maior parte do tempo, sentia-se tão exaurido quanto ela. Sentia-se também muito emotivo e sabia que seria melhor afastar-se de lá o mais rápido possível.

— Tem havido problemas, então? — perguntou, quando Lucas não prosseguiu a conversa sobre a grande ameaça que Ranald representava.

— Não. Algumas surras enquanto ele procura quem saiba que você está viva e onde se esconde.

Lucas via o quanto aquelas notícias a aborreciam e apressou-se a acrescentar:

— Parece ter desistido disso muito depressa. No momento, seu povo está seguro.

— Quanto tempo fiquei acamada? — perguntou, subitamente assustada pela fraqueza nas pernas quando tentou afastá-las dele.

— Quase uma semana. Demorou para se livrar da febre.

Katerina resmungou baixinho:

— Por isso me sinto tão fraca.

— Sim. Precisará de pelo menos uma semana para recuperar as forças. O único lado bom é que essa febre a manteve de cama por tempo suficiente para que os ferimentos começassem a cicatrizar.

— Uma flecha? — indagou, incerta sobre como tinha sido ferida. Tocou levemente a bandagem que lhe envolvia o peito. — Não sabia que tinha atravessado o corpo.

— Não atravessou. A melhor maneira de remover uma flecha do corpo é empurrá-la até o outro lado, cortar a ponta e, somente então, puxá-la de volta. Caso contrário, estando com a ponta, os danos podem ser bem maiores.

Pensando nisso por um momento, Katerina assentiu.

— Faz sentido. Parece que está cicatrizando bem.

— Obrigado.

— Então foi você quem cuidou de minhas feridas?

— Sim. Há muitos curandeiros em minha família. Não sou um deles, mas aprendi muito com as mulheres do meu clã. Presumo que ninguém aqui tenha se sentido habilitado o suficiente para me afastar e tomar meu lugar. Então, me deixaram fazer o trabalho. Annie ajudou, quando era necessário um auxílio feminino.

Katerina suspirou de alívio ante essa notícia. Sabia que tipo de intimidades eram exigidas ao se cuidar de uma pessoa ferida ou doente e estava começando a se alarmar com o fato de ele tê-la assistido. Já era difícil aceitar os cuidados de Annie. Se Lucas tivesse zelado por suas necessidades mais íntimas, nunca mais poderia encará-lo. Sentiu-se corar quando de repente percebeu que teria de pedir o auxílio de Annie naquele exato momento.— Annie está por perto? — perguntou baixinho.

Vendo como estava vermelha, Lucas sorriu e se levantou.

— Sim. Vou mandar avisá-la que você acordou, e logo estará aqui.

Lucas curvou-se sobre ela, ignorando como se afundava no travesseiro em uma tentativa inútil de manter distância entre eles.

— Você descansará, Kat, e não nos causará problemas, ou vou amarrá-la a esta cama.

— Você não se atreveria.

— Sim, me atreveria. — Aproximando-se ainda mais, fixou o olhar em sua boca. — Acho que vou me atrever a outra coisa, também.

Katerina ia começar a protestar quando os lábios de Lucas cobriram os seus. Apesar da fraqueza no corpo, envolveu-lhe o pescoço com os braços. Foi um beijo lento e profundo, como se ele a estivesse saboreando, e Katerina sabia que, se não estivesse tão frágil, o atacaria. Tudo o que sentia por ele assolou-a com força, revelando-se a cada movimento de sua língua. Katerina ficou abalada, até mesmo um pouco temerosa, até que Lucas encerrou o beijo e se afastou dela. Aquele beijo a havia perturbado ainda mais do que o primeiro, e duvidava que fosse devido ao cansaço e do estado debilitado.

— E aqui está Annie para ajudá-la — disse Lucas, deixando o quarto. — Voltarei mais tarde.

Muito mais tarde, pensou, sentindo vontade de correr o mais rápido possível para o lugar mais distante que encontrasse. Katerina ainda o afetava, ainda tinha poder sobre ele, e isso o assustava. Tinha sofrido por ela, pela perda de tudo o que mais queria e pela traição que sofrerá. Envergonhava-se de ter até chorado sua perda. Todo o sentimento que pensava ter enterrado havia ressurgido durante a luta para mantê-la viva. Quando finalmente começou a recuperar-se, percebeu que as barreiras que erguera tinham caído. Aquele beijo provara o quanto ainda era suscetível a ela. De fato, temia ainda estar apaixonado.

Praguejou e caminhou para o salão. Comeria algo e encontraria um lugar tranqüilo para descansar um pouco. Depois disso, sairia atrás de algumas respostas, nem que isso o levasse ao Castelo de Dunlochan.

— Os homens podem ser uma verdadeira provação — reclamou Katerina enquanto Annie a ajudava a voltar para a cama.

A preocupação com o que ainda sentia por Lucas e com o perigo que esses sentimentos representavam ajudou-a a tolerar a gentil assistência de Annie para suas necessidades pessoais. Estivera tão ocupada inquietando-se com aquele beijo e com as sensações que lhe tinha despertado que fizera tudo o que precisava, tinha se lavado e estava de volta à cama sem se sentir embaraçada pelo auxílio de Annie. Infelizmente, não havia chegado a uma conclusão sobre o que fazer a respeito de Lucas e da maneira como se sentia em relação a ele.

— Sir Lucas a manteve viva, milady — Annie sentiu-se compelida a dizer.

Katerina suspirou.

— Temia isso. Agora, devo ser-lhe grata.

Annie reprimiu um sorriso mediante as palavras rabugentas enquanto a ajudava a recostar-se sobre a pilha de travesseiros.

— Sim, acho que deve. Agora, trouxe-lhe sopa. Procure comer o máximo possível.

— Sei disso. Estou com muita fome, mas acho que não posso comer nada muito suculento ou substancioso. — Katerina surpreendeu-se ao perceber que o caldo estava bem saboroso quando Annie levou a colher à sua boca. — Será fácil comer isso. Está uma delícia.

— Sir Lucas me ensinou como fazer a sopa ter um gosto melhor.

— Ele também sabe cozinhar? Isso não é justo. Annie riu, mas logo ficou séria novamente.

— Ele me disse que aprendeu sobre tais temperos quando se recuperava do espancamento que sofreu. Teve que tomar muita sopa, pois, como a mandíbula estava quebrada, durante muito tempo não pôde mastigar.

— Do espancamento que pensa que eu ordenei por ciúme.

— Não acho que ele acredite realmente nisso, não no fundo do coração. Ninguém poderia cuidar de uma mulher como ele cuidou de você na última semana se, de fato, acreditasse em tal traição. Não, nem mesmo por ter vindo de uma família de curandeiros. Tenho certeza de que estava muito preocupado e trabalhou durante muitas noites para mantê-la viva quando a febre a consumia.

A informação despertou uma esperança que Katerina não queria sentir. Poderia impeli-la a fazer algo tolo, como entregar novamente o coração a Lucas, somente para tê-lo despedaçado outra vez. Ele ainda não lhe tinha pedido desculpas pelas acusações e, até que o fizesse, não poderia confiar na esperança de que ele tivesse mudado de idéia a seu respeito. Tinha perdido a confiança nele e não tinha certeza de poder recuperá-la.

— Ah, Annie, quando vi que ele tinha sobrevivido, fiquei felicíssima e estava pronta para me atirar em seus braços. Senti que todas as minhas fervorosas preces tinham sido atendidas. Então, me acusou de tentar matá-lo. Será difícil esquecer o quanto isso me magoou, o quanto ainda dói. Também será doloroso entregar-lhe novamente meu coração.

— E se ele rastejar?

— Isso me confortaria um pouco. — Katerina arrastou as palavras e trocou um sorriso com Annie. Satisfeita por aquele toque de humor tê-la alegrado e ansiosa para afastar Lucas de sua cabeça por algum tempo, decidiu mudar de assunto. — Conte-me as novidades. Quero saber como todos estão.

Enquanto a alimentava, Annie começou a relatar o que ocorrera desde o dia da emboscada. Não muito, além de Ranald estar atrás dos dois para vingar-se. Aliviada, Katerina recostou-se para descansar assim que terminou de comer. Sabia que precisaria de todas as forças para enfrentar o que viria e não se referia somente à perseguição de Ranald. Teria de encarar Lucas e lidar com os sentimentos que nutria por ele. Sabia que qualquer decisão que tomasse afetaria o resto de sua vida, o que era assustador.

Lucas flagrou William observando-o com uma expressão divertida.

— Pode rir se está com tanta vontade — resmungou.

— E uma grande tentação — disse William e sorriu. — Posso perguntar o que está planejando?

— Vou até Dunlochan tentar escutar ou ver algo que nos ajude. Não podemos continuar nos escondendo, não com Ranald tão desesperado para pôr as mãos em Katerina.

— E para isso precisa se vestir de preto e sujar a cara?

— Sim. Facilita que me esconda nas sombras e me esgueire entre elas. Uma pessoa pode estar usando roupas escuras e ser traída pela brancura do rosto. Meu irmão e eu costumávamos praticar diversas formas de nos escondermos nas sombras e descobrimos rapidamente como as mãos e o rosto podiam nos denunciar. Por isso, as luvas e o rosto escuro.

Após estudá-lo por um momento, William assentiu.

— Agora entendo. Você não acha um pouco perigoso ir até o castelo?

— É, mas mal podemos nos mover agora porque estão nos caçando. Parece que estão em todo o lugar e nunca descansam. Acho também que há mais caminhos para entrar em Dunlochan sem ser visto. Há passagens nas paredes.

— Sim, mas não sei onde são.

— Nem eu, mas aprendi com Katerina onde ficam algumas e começarei por elas. Na maioria das vezes, uma leva à outra, apesar de sempre haver um truque. — Deu de ombros. — Isso me dará algo para fazer, além de me esconder nessas cavernas e torcer para que Ranald não as encontre.

— Bem, gostaria de ir com você, mas creio que esta é uma daquelas coisas que é melhor fazer sozinho. Tome cuidado. Não podemos perdê-lo. No mínimo, porquê eles o usariam para atingir Katerina.

Lucas assentiu, embora dissesse a si mesmo que William estava enganado. Ranald e Agnes podiam tentar usá-lo para pegar Katerina, mas ela poderia não estar interessada em sacrificar-se para ajudá-lo. Afinal, ainda existia a possibilidade de haver tentado matá-lo somente porque pensara que estivesse demonstrando muito interesse por Agnes.

Enquanto caminhava pelas passagens até as despensas do castelo, Lucas percebeu que as acusações que havia lançado contra ela e às quais tentara se apegar já não pareciam certas. Até as palavras em sua boca tinham um gosto ruim. Algumas vezes durante os dias e noites que passara com Katerina e seus homens, havia começado a acreditar que ela seria incapaz de tentar matá-lo. Não sabia desde quando ou por que, más não acreditava mais que ela fosse culpada. Não achava que fosse completamente inocente, mas para ele era confortável demais acreditar que ela não o quisesse morto. Isso o alarmava e o tornava ainda mais determinado a descobrir toda a verdade.

Depois de se esgueirar por diversas passagens e não descobrir nada além da amoralidade do povo de Agnes, Lucas estava pronto a retornar para o esconderijo. Já estava se tornando incômodo escutar tantos amantes se divertindo, tendo sido celibatário por tanto tempo. Quando se virou para recomeçar a jornada de volta, a mão escorregou levemente pela parede da passagem escura e algo lhe chamou a atenção. Iluminando um pouco mais o lugar, encontrou-se diante do que parecia uma porta, a princípio difícil de perceber, pois se confundia com a parede.

Diminuindo a luz, Lucas abriu-a devagar. Vendo que conduzia a outra passagem, esgueirou-se em silêncio e : cuidadosamente fechou-a atrás de si, colocando um dos pequenos pedaços de madeira que havia carregado com ele no batente para que não se fechasse. A última coisa que queria era descobrir que essas portas só podiam ser abertas de um lado quando estivesse tentando escapar. Moveu-se ao longo da passagem e, após alguns passos, começou a ouvir murmúrios. Seguiu o ruído, tentando adivinhar em que parte do castelo se encontrava.

— Por que não os encontrou, Ranald? O som da voz de Agnes alarmou-o e Lucas parou. Estava surpreso por poder ouvi-la claramente e logo se colocou no escuro. Não queria que um feixe de luz o entregasse. Tinha que haver algum buraco por onde pudesse escutar ou as grossas paredes teriam abafado a voz de Agnes. Ela soava quase rabugenta, refletiu, enquanto corria os dedos pela parede, tentando encontrar uma abertura por onde também pudesse ver. Quando a encontrou, rapidamente pôs os olhos ali. Não podia ver muito do quarto, mas suspeitava que estivesse no solário de Agnes. Reconheceu a tapeçaria sobre a lareira e a mulher de rosto severo chamada Freda. Tudo o que via de Agnes era a barra de sua saia. Era azul, uma cor que usava com freqüência, pois sabia que combinava com os olhos. Como havia tecido nas bordas do orifício pelo qual olhava, concluiu que estava observando através de uma tapeçaria. Não sabendo se seria seguro manter o olho pressionado na abertura, afastou-se e encostou-se na parede, esperando ouvir algo que valesse a pena.

— Só faz uma semana, Agnes — replicou Ranald. — Sabe tão bem quanto eu que esses bastardos são muito bons em desaparecer. Já os estamos caçando há um ano.

— Alguém deve saber onde estão. Você precisa arrancar a verdade de um daqueles aldeões insolentes.

— Já tentei e tudo o que consegui foi deixar as pessoas bravas. Deixe-as muito revoltadas e teremos de lidar com mais do que um pequeno grupo de saqueadores. Você pode até dar motivo aos homens daquele conselho e não podemos arcar com isso.

Pelo som do farfalhar do tecido, Lucas percebeu que Agnes se movia e, quando espiou novamente, viu que havia se sentado próximo a Freda. Agnes não parecia tão doce e tola naquele momento. A expressão era de raiva. Quando voltou a encostar-se na parede, percebeu que todos estavam certos a respeito dela, o que abalou ainda mais sua confiança no próprio julgamento.

— Talvez esteja na hora de fazer algo com aqueles velhos tolos — disse Agnes.

— Isso não seria sensato — respondeu Freda, com voz forte e carregada de uma autoridade que surpreendeu Lucas. — Eles não são pobres aldeões ou arrendatários. Têm amigos importantes que poderiam fazer perguntas, talvez até querer vingança. Agnes praguejou.

— Estou cansada de me curvar às regras deles.

— Não será por muito tempo. Temos a notícia de que Robbie pode ter sido encontrado.

— Pode ter sido? Isso não me adianta. Preciso dele enterrado.

— Paciência, menina. Paciência é a melhor arma contra os inimigos.

— Se Robbie tiver sido encontrado, cuidaremos dele — falou Ranald. — Ele não é uma ameaça tão grande. Sir Murray e sua irmã são mais importantes. Eles podem pôr uma corda em nosso pescoço.

— Sir Lucas não mandou a família para se vingar. Por que, então, agiria agora? — perguntou Agnes.

— Ele não voltou para ver Katerina...

— Tem certeza?

— Acha que ela tentou matá-lo. Mesmo se não acreditar mais nisso, ainda acredita que ordenou o espancamento, e nenhum homem perdoa uma mulher que o deixou aleijado.

— Aleijado? Você nunca disse que ele ficou aleijado.

— Não achei que fosse importante, já que você o queria morto. A perna dele está rígida. Antes de o atirarmos do precipício, nós a quebramos. Na verdade a esmagamos, para que não conseguisse se salvar caso sobrevivesse à queda.

— Bom, ele fez as duas coisas, não?

— Ele pode ter descoberto a verdade? — perguntou Freda. — Sempre pensei que muitas pessoas soubessem que forçou Katerina a agir daquela forma. Alguém deve ter-lhe dito.

— Não, nenhum de meus homens lhe contou nada — disse Ranald. — Se o tivessem visto, teriam fugido ou tentado matá-lo. Certamente não parariam para ter uma conversa com o homem e dizer-lhe que o espancaram quase até a morte e tentaram afogá-lo porque Agnes mandou e que sentem muito tê-lo feito pensar que sua amante fosse a responsável.

— Você está insolente demais, Ranald — resmungou Freda. — Nunca gostei muito desse plano, de qualquer forma. Não foi bem pensado. Na verdade, foi mais um impulso seu, Agnes, porque o homem não sucumbia a seu encanto. Você nunca tentou se controlar como deveria. Fazer algo porque está brava nunca é uma boa idéia. Coisas como tentar matá-los deveriam ser planejadas friamente e com a mente desanuviada.

— Era evidente que ele estava cortejando Katerina! — vociferou Agnes. — Quando não consegui seduzi-lo, sabia que ele tinha sérias intenções em relação a ela. Sabem muito bem que o conselho teria aprovado sir Murray como seu marido. Tínhamos de nos livrar dele.

— Não tente agir como se realmente tivesse um plano, moça. Você não tinha. Teve um acesso de raiva, como sempre. Não deu certo. Aceite isso.

— Como quiser — retrucou ela com frieza. — Tem algum plano brilhante e bem pensado para se livrar dele e de Katerina agora?

O som de um tapa ecoou na passagem em que Lucas se encontrava.

— Não seja tão desrespeitosa! Sim, tenho um plano. Pegar sir Lucas ou Katerina.

— Isso é o que temos tentado fazer.

— Usar quem capturarmos para atrair o outro para uma armadilha — Freda continuou como se Agnes não tivesse falado. — O homem pode achar que Katerina é culpada, mas é honrado e tentaria resgatá-la. Katerina também nunca o deixará em suas mãos, Ranald. Cada um deles, com sua honra e compaixão, é seu próprio inimigo.

— Esse é o mesmo plano que eu tinha quando fui atrás de Thomas — disse Ranald. — Esperava extrair alguma informação do rapaz, mas sabia que ele poderia ser usado para atrair Katerina.

Agnes bufou, com desdém.

— Você pensou em atrair Annie, Ranald. Não tente nos enganar.

— Qualquer um teria feito Katerina correr para o resgate.

— Que é o que precisamos que ela faça agora — disse Freda. — Devem estar escondidos perto daqui, pois estão sempre a postos quando alguém está encrencado. Há um esconderijo nas terras de Dunlochan, Ranald. Encontre-o. Deve haver alguma anotação no livro de registros. Se não sabe ler, peça a Agnes.

Houve um som de porta batendo e, após um momento de pesado silêncio, Agnes falou:

— Bem, você escutou. Vamos sujar nossas mãos e olhar os papéis.

— Farei isso. Sei ler o suficiente.

— Você precisa estar lá fora caçando Katerina ou sir Lucas, algo que eu não posso fazer. Você pode me ajudar com essa monótona tarefa de vez em quando, mas capturá-los é o mais importante. Ainda não acredito que aquela cadela tenha sobrevivido a ser atirada no lago e que sir Lucas tenha retornado para nos incomodar novamente.

— Não estou lidando com fantasmas. A velha tem razão. Da última vez que tentamos nos livrar deles, agimos por impulso, não elaboramos antes. Não era um plano ruim e eu convenci lady Katerina de que poderia salvar seu amante permanecendo quieta e imóvel, agindo como se estivesse assistindo friamente. Ainda assim, falhamos. Talvez, se tivéssemos pensado melhor e planejado com mais cuidado, tivesse dado certo. Desta vez, faremos direito.

— Talvez, enquanto planeja tão cuidadosamente, possa pensar em uma forma de me dar algum tempo com sir Lucas antes de matá-lo.

— Somente se você permitir que eu passe algum tempo com lady Katerina antes de matá-la.

Agnes praguejou e suspirou.

— Parece justo. Suspeito que você tenha planos para aproveitar esse tempo.

— Não posso desperdiçar a oportunidade.

— Acho que também está na hora de planejarmos como nos livrar daquele malfadado conselho.

— Sim, acho que Freda está cautelosa demais a esse respeito.

— Obrigado, Ranald. Venha comigo. Sei como lhe agradecer o apoio que dá a todos os meus planos.

Era um completo idiota. Lucas escorregou devagar até se sentar no chão e bater levemente a cabeça contra a parede algumas vezes. No entanto, isso não foi suficiente para expulsar a terrível verdade de sua mente. Ainda era um cretino, um tolo cego. Katerina era inocente. Havia zombado do que lhe contara sobre aquela fatídica noite e, afinal, era tudo verdade.

Como pôde ter pensado de outra forma? Katerina nunca demonstrara nada além de bondade com todos ao redor, e o espírito iluminado, a compaixão e a honra faziam parte dela, tanto quanto o sangue que corria em suas veias. Parte dele havia constantemente negado sua culpa, mas ele a tinha silenciado todas as vezes. Lucas se perguntava se tinha sido esse lado seu que o impedira de encontrar outra amante, mesmo quando já estava curado para sentir desejo outra vez. Ao menos não tinha sido infiel a ela, apesar das poucas vezes em que tentara. Era humilhante perceber que esse lado, que poderia levá-lo a cometer imprudências, era o único que demonstrara bom senso.

O problema era o que fazer agora. Mesmo se não tivesse matado o amor que Katerina pudesse ter sentido, tinha definitivamente arruinado a confiança e a fé que depositara nele. Lucas não tinha certeza se conseguiria curar essa ferida. Uma simples desculpa não bastaria.

Rastejar talvez ajudasse, pensou. No momento, com toda a emoção ardente e profunda que sentira por ela um ano antes, tomando-lhe o coração e a mente, liberta da prisão à qual ele a havia condenado, Lucas suspeitou que pudesse ser capaz de rastejar. No entanto, conhecia a si mesmo bem demais para acreditar que realmente faria isso. Quando estivesse de novo a seu lado, o orgulho se imporia, evitando que agisse dessa forma. Saber que estava errado não significava admiti-lo com tanta facilidade.

Levantou-se com cuidado e começou a atravessar as passagens que o levariam de volta ao salão tão bem escondido nas cavernas. Sabia que precisava ter Katerina de volta. Sabia desde o começo, mas até então essa necessidade só alimentara sua raiva. Suspeitar dela o fizera ver essa necessidade como uma maldição, uma fraqueza que poderia levá-lo à morte. Na verdade, se Katerina o quisesse morto agora, não a culparia.

Lucas subitamente praguejou, esfregando as pernas que doíam por causa da umidade do local. Parou e passou as mãos pelo cabelo. No que estava pensando? Katerina não o iria querer agora. Estava desfigurado e coberto de cicatrizes. Não era possível ignorar a freqüente inaptidão provocada pela rigidez da sua perna destruída. Katerina merecia um homem de membros firmes e pele sem marcas.

Um segundo depois, Lucas entendeu que estava sendo covarde, talvez criando desculpas para não ter de encará-la ou admitir seus erros. Lembrava-se agora com nitidez de como ela o tinha olhado naquela primeira noite após resgatá-lo. Não havia dúvida quanto à alegria que iluminara seus olhos momentos antes de ele ter apagado aquele brilho com acusações infundadas. Ela falara de luto, e Lucas estremeceu ao lembrar-se de como havia desprezado suas afirmações. Ainda mais importante, ela o havia incluído em muitas das incursões contra Agnes e Ranald, e isso implicava fortemente que ao menos confiava nele para fazer sua parte em tais ações. Precisava acreditar nessas indicações de que tinha alguma chance de consegui-la de volta.

— Admita, tolo — murmurou, retomando a caminhada. — Ao menos para si mesmo. Você não tem escolha, a não ser tentar consertar as coisas. Você não esteve vivo de verdade desde que a perdeu. Engula seu orgulho amaldiçoado e arrisque-se.

Katerina também tinha suas próprias cicatrizes, pensou, entrando cuidadosamente nas despensas. Odiava pensar em toda a dor que devia ter sentido, mas isso significava que se preocuparia muito menos com as marcas em seu corpo que outra mulher. Era algo pequeno, mas lhe dava esperança. Chegando à passagem que levava para fora do castelo, moveu-se com mais rapidez, subitamente ansioso para vê-la.

Estremecendo, Katerina lutou para sentar-se sozinha. Quando conseguiu realizar essa simples tarefa, estava tão fraca que caiu sobre os travesseiros às suas costas e tentou acalmar a respiração acelerada. Estava também banhada em suor e gostaria de poder alcançar a bacia de água e o pano que Annie tinha deixado no baú próximo à cama. Não haveria recuperação rápida daquela ferida.

Pior, estava entediada. Mesmo presa nas cavernas para se esconder dos inimigos, ainda encontrava muitas coisas que a mantinham ocupada. Ficar deitada na cama, tão fraca para fazer algo além de pensar, seguramente a deixaria louca em muito pouco tempo. Duvidava até que conseguisse jogar uma partida de xadrez no momento, pois suas mãos tremiam. Katerina praguejou e olhou ao redor, pensando se poderia chamar alguém para fazer-lhe companhia. Tinha alguns livros, que trouxera de Dunlochan, e alguém poderia ler para ela, refletiu, e então resmungou novamente. Não podia acreditar que tinha sido reduzida a isso.

Um ruído na porta chamou-lhe a atenção e ficou tensa ao ver que Lucas entrava no quarto. Ele era tão charmoso que quase gritou para que fosse embora, mesmo se perguntando por que estava usando aquelas roupas escuras. Katerina suspirou. Tinha as emoções tão confusas que podia ser perigoso passar muito tempo com Lucas, mas estava ansiosa demais por companhia para se importar.

— Entediada? — perguntou ele, parando ao lado da cama.

— Mais do que posso expressar em palavras.

— Você está muito corada. — Tocou-lhe a testa e arqueou as sobrancelhas quando sentiu que suava. — Levantou da cama?

— Não, só tentei me sentar sozinha. Estou tão fraca quanto um recém-nascido.

— E ficará assim por mais alguns dias. — Moveu-se até a bacia de água que Annie tinha deixado e torceu o tecido. — Deve se movimentar pouco, e devagar — disse, enquanto gentilmente lhe banhava o rosto. — Não acredito que as feridas reabram, mas a febre pode voltar, se você se esforçar muito, e ela quase a levou duas vezes. Não seria sensato arriscar.

— Está dizendo que quase morri duas vezes?

— Sim. — Lucas não queria pensar nas horas angustiantes em que tinha lutado para mantê-la viva, muito menos falar sobre elas. — Acredito que já não seja tão forte quanto costumava ser e foi uma luta árdua para livrar-se da febre.

Katerina sabia que era tolice alarmar-se com aquela notícia, mas, não pôde evitar. Não tinha pensado muito sobre o quão doente estivera, só sabia que tinha tido uma febre provocada pela flechada. Agora que pensou nisso, lembrou-se que Annie tinha insinuado, mas ela não havia compreendido totalmente. Era apavorante perceber como a morte tinha estado tão perto dela.

— Agora está muito pálida — murmurou, colocando o tecido de volta na bacia.

— Bem, você acabou de me dizer que quase morri duas vezes.

— Mas não morreu, então por que ficar se preocupando? Tenha isso em mente e cuide-se. Descanse e não tente fazer muitas coisas tão cedo.

O medo de ter febre outra vez e de fracassar ao derrotá-la certamente a faria ter cuidado, pensou Katerina. Conhecia-se bem o suficiente, no entanto, para saber que era algo que teria de relembrar de tempos em tempos, quando o tédio de ficar deitada durante horas fosse muito difícil de suportar. Talvez ajudasse se organizasse um cronograma de cuidados e atenção. Quando ficasse tão louca de tédio que quisesse exagerar, poderia sossegar sabendo que alguém em breve viria ler para ela, ou jogar xadrez, ou ajudá-la a lavar-se.

— Kat?

Piscou quando a voz de Lucas arrancou-a dos planos que fazia.

— Sim?

— Você estava longe...

— Ah, estava pensando em maneiras de me impedir de fazer algo tolo.

— E no que pensou?

— Que preciso organizar um cronograma de companhia.

— E acha que isso vai ajudar?

— Sim. Quando o tédio me fizer querer arrancar os cabelos, posso me lembrar que em alguns minutos William virá jogar xadrez comigo ou Annie virá lavar meu cabelo. Coisas assim. — Encolheu os ombros, — Pode ajudar.

— Ajudará bastante. Foi bom para mim quando estive preso à cama durante meses. Tinha tantos parentes prontos para ficar comigo que havia alguns momentos em que eu de fato desejava ficar um pouco sozinho.

Era a primeira vez que se referia ao tempo de convalescença. Katerina espantou-se. O que mais a surpreendia era que não havia sinal de acusação ou raiva em sua voz ou expressão. Queria desesperadamente perguntar-lhe mais sobre como se salvara e como se recuperara tão bem, mas tinha medo que uma conversa assim arruinasse a trégua incipiente que estavam desfrutando.

Lucas observou as expressões dançarem em seu rosto adorável e quase sorriu. Katerina era rápida. Já tinha sentido uma mudança em sua atitude e estava intrigada. Sabia que lhe devia uma grande desculpa e tinha planejado fazê-lo imediatamente, mas as palavras estavam presas na garganta. Talvez funcionasse mostrar-lhe que tinha mudado, tornar claro com ações que não a achava mais uma ameaça. Era o jeito covarde, mas queria tentar por um tempo, nem que fosse para poupá-lo da humilhação de declarar-se um completo idiota.

— Gostaria de jogar xadrez? — perguntou.

— Sim, mas estou tão fraca que minhas mãos tremem, e eu não manusearia bem as peças.

— Pode me dizer que movimento deseja fazer e movo a peça para você. — Lucas olhou para a pequena pilha de livros organizada em um cesto no canto do quarto. — Ou eu poderia ler para você.

Era triste ter ficado tão excitada pela oferta, pensou, e quase sorriu.

— Então leia para mim. Gostaria disso. Não acho que eu tenha forças para pensar durante um jogo inteiro de xadrez e gostaria ao menos que você se divertisse.

— Que livro? — perguntou Lucas, aproximando-se do cesto.

— Qualquer um que você queira ler. Tenho a sensação de que não ficarei muito tempo acordada.

Lucas decidiu-se por um de músicas e poesia. Sentou-se na cadeira próxima à cama e começou a ler. O fraco sorriso que surgiu no rosto de Katerina o animou, pois sabia que escolhera o livro certo. Tinha sentimentos floreados demais para o seu gosto, mas obviamente a fazia feliz, e isso era o mais importante no momento.

Os olhos de Katerina se fecharam logo. Lucas observou-a enquanto continuava lendo, mas suas pálpebras não se mexeram mais e ele finalmente deixou o livro de lado. Inclinou-se e afagou-lhe de leve o rosto, lutando contra o impulso de suspirar como um adolescente envolvido nas dores da primeira paixão. Katerina era linda, não havia dúvida, mas era muito mais do que isso que o tinha atraído e não podia acreditar que havia se esquecido. Ela era forte, compassiva, leal, perspicaz e inteligente.

Na verdade, tinha sido e ainda era tudo o que ele sempre desejara em uma mulher. Apesar da inocência, demonstrava uma forte paixão, que combinava com a dele de forma a alimentar a constante necessidade que sentia dela o tempo todo. Agora que sabia da verdade, não entendia como podia ter duvidado dela. Estava contente de nunca ter comentado suas suspeitas com a família. O orgulho o impedira de revelar a crença de ter sido traído pela mulher com quem queria se casar. Não quisera que nenhum de seus parentes percebesse como fora um completo idiota. Manteve em segredo o pesar pela perda e a mágoa, apesar de suspeitar que alguns comentários tivessem escapado durante a febre. No entanto, ninguém o questionara. Pelo menos não teria de explicar para seus parentes por que estava agora perseguindo uma mulher que afirmara ser a mandante do espancamento que havia sofrido.

Levantando-se, Lucas se esticou. Os músculos estavam rígidos devido ao esforço recente de se arrastar pelas passagens úmidas. Inclinou-se e pousou os lábios na testa de Katerina. Quando a ouviu murmurar suavemente, pousou a boca sobre a dela.

Mesmo adormecida, ela correspondeu ao beijo, os lábios quentes e receptivos, a língua preguiçosamente brincando com a dele. Forçou-se a afastar-se antes que a necessidade e a tentação o fizessem querer aproveitar-se dela.

Afagando suavemente seus cabelos, perguntou-se se algum dia encontraria palavras para desculpar-se pelo grande equívoco que cometera. O que poderia dizer? Perdão por pensar que ela fosse uma assassina, uma mulher que mataria um homem porque ele sorriu para outra. Não era suficiente. Lucas não tinha certeza se qualquer desculpa, mesmo a mais elegante, bastaria algum dia, mas aquilo não o impediria de tentar recuperá-la.

Ouvindo um suave farfalhar de saias, viu Annie parada na porta. Sorriu debilmente e acenou para que se aproximasse da cama. Apesar de estar relutante em deixar Katerina, sabia que seria melhor que ficasse sob os cuidados de Annie por algum tempo. Precisava pensar, planejar sua campanha para trazer Katerina de volta para seus braços e não podia fazer isso direito se sua atenção estivesse voltada para ela, mesmo que somente observando-a dormir.

— Acabou de adormecer — disse em voz baixa quando Annie parou a seu lado.

— Não há sinais de que a febre esteja voltando, há? — perguntou Annie.

— Não, e não creio que voltará se ela se cuidar.

— Não posso acreditar que quase a perdemos. Ela sempre pareceu tão forte, tão vigorosa.

—;E é, mas acho que viver nessas cavernas durante um ano não foi muito bom e, não importa o quão confortável seja este lugar, não dispõe de toda a comida ou do calor com que estava acostumada.

Annie assentiu.

— Sim, e não está totalmente recuperada de todas as feridas e da febre que sofreu depois que aquele bastardo a atirou no lago.

— Não está. — Pensando em todas as cicatrizes em seu corpo, Lucas surpreendeu-se que tivesse se recuperado tão bem. — Então, devemos nos assegurar de que ela não somente descanse, mas que não fique muito entediada e irritada.

— Entendo. Ela poderia tentar levantar-se ou fazer alguma outra coisa que lhe faça mal. Pretendo mantê-la ocupada e tentarei não deixá-la sozinha por muito tempo.

— Estávamos discutindo exatamente isso antes de ela adormecer. Só mais uma semana. Então, tenho certeza de que estará forte o suficiente para se levantar e até mesmo ficar cansada sem ter de voltar imediatamente para a cama. Vou deixá-la aos seus cuidados. — Dirigiu-se para a porta. — E não se preocupe se sentir necessidade de descansar um pouco, Annie. Katerina está bem o suficiente para chamar se precisar de ajuda ou se sentir a febre voltando.

Lucas foi até o salão. Precisava conversar com William sobre algumas das coisas que tinha escutado. Não contaria tudo, pois achava que não suportaria seu olhar de satisfação quando ficasse óbvio que ele tinha escutado toda a verdade sobre o espancamento e a tentativa de assassinato. O que o odioso casal tinha dito sobre os planos para o momento e para o futuro era tudo o que William precisava saber. Isso e a localização da passagem próxima ao solário de Agnes. Agora tinham a chance de conhecer todos os planos de Ranald e Agnes, e Lucas pretendia tirar vantagem disso.

Katerina abriu os olhos devagar e observou ao redor. Ficou aborrecida por sentir-se desapontada ao ver Annie, costurando uma camisa para Thomas, em vez de Lucas. Tocou os lábios, sem saber se o beijo que sentira tinha sido um sonho ou se de fato acontecera. Livrando-se de tais quebra-cabeças inúteis, começou a sentar-se, chamando imediatamente a atenção de Annie.

— Não, Annie, deixe-me tentar — disse, quando a moça pôs a costura de lado e se moveu para ajudá-la. — Não é um esforço muito grande, mas creio que é um jeito inofensivo de começar a recuperar um pouco da força que perdi.

— Sim, acho que sim. Quer algo para beber? Percebendo que todo o esforço para se sentar sozinha tinha sido desperdiçado, pois de qualquer forma precisaria da ajuda de Annie para suas necessidades físicas, Katerina praguejou em voz baixa.

— Daqui a pouco. — Fez uma careta quando Annie a tomou pelo braço e a ajudou a sair da cama. — Odeio isto.

— Eu sei, mas não demorará muito para voltar a fazer isso sozinha.

Katerina esperava que ela tivesse razão, porque quanto mais curada estava mais embaraçosa lhe parecia a necessidade desse tipo de auxílio. Quando Annie a levou de volta para cama, teve que lhe banhar o rosto para enxugar o suor que o cobria.

Mesmo constrangida, sentiu-se muito melhor depois disso. Aceitou de bom grado a ajuda para tomar a mistura de mel e ervas, pois tinha as mãos trêmulas. Assim que terminou de beber, Katerina descansou sobre os travesseiros e percebeu que, apesar de cansada, ainda não queria dormir novamente.

Seus pensamentos logo se voltaram para Lucas. Havia algo diferente nele quando a visitara. A raiva parecia ter desaparecido. Era quase o mesmo Lucas por quem tinha se apaixonado um ano atrás. O que não conseguia decifrar era o motivo da mudança ou quanto tempo duraria. Ele estaria muito cansado para ter raiva ou tinha finalmente começado a reconsiderar as acusações contra ela?

— Não consigo entender os homens — murmurou. Annie sorriu, sentando-se e retomando a costura.

— Não creio que muitas mulheres os entendam, mas eles também não nos entendem.

— Parece um jeito bem estranho de as coisas funcionarem.

— E mesmo, não? Mas talvez seja dessa forma para que aqueles que se casam nunca fiquem entediados. Por que está preocupada com isso agora?

Por um momento Katerina não disse nada, insegura sobre compartilhar seus problemas com Annie, e então suspirou. Não tinha mais ninguém com quem conversar, e provavelmente falar sobre o assunto lhe faria bem. O ponto de vista de outra mulher poderia servir para aliviar um pouco da confusão que a afligia tanto no momento.

— Sir Murray estava agindo de forma muito diferente quando esteve aqui mais cedo.

— Diferente como?

— Gentil. Não havia mais aquela raiva nele.

— Ah, aquela raiva. Talvez tenha refletido com mais cuidado e decidido que você não é a ameaça na qual ele acreditava, que você é inocente.

— E, pensei nisso, mas por que teria mudado, de idéia?

— Porque todos nós que a conhecemos bem lhe dizemos que está errado.

— E desde quando isso é importante para um homem? Annie riu.

— Sim, é a triste verdade. Não sei dizer, milady. Talvez ele tenha sabido de algo, escutado algo de alguém que não pode descartar como seu amigo ou parente.

— Mas onde teria ouvido alguma coisa? Annie encolheu os ombros.

— Não sei. Os homens não me contam muito sobre a batalha com Ranald e Agnes. Quando falam comigo, é sobre o que ouviram a respeito dos moradores da vila ou coisas do tipo. Se alguém soubesse se sir Lucas escutou algo importante ou onde ele esteve para escutar alguma coisa, esse alguém seria William. É evidente para todos que sir Lucas trata William como seu segundo em comando.

— O que é bom porque será assim quando eu controlar Dunlochan. — Arqueou as sobrancelhas. — Queria saber como ele sabe disso, pois não creio ter-lhe dito.

— Ah, bom, quanto a isso os homens se assemelham muito aos cães, pois parecem identificar o líder em uma matilha.

— Espero que não o façam da mesma maneira que os cães. — Katerina sorriu quando Annie deu risada. — Não importa. Pelo menos sir Murray escolheu o homem certo e não ofendeu William.

— Verdade, pois William não o sentiria sozinho. Há aqueles irmãos dele que também se sentiriam afrontados.

— E meu pequeno bando de homens se transformaria em uma alcatéia de lobos raivosos, inúteis para mim. Um pensamento desagradável. — Franziu a testa, os pensamentos voltando-se imediatamente para o enigma da mudança de humor de Lucas. — Mesmo assim, se ouviu algo e agora conhece a verdade, por que não me disse?

— Ou se desculpou por ter pensado tão mal de você.

— E. Ele não disse nada a esse respeito. Achei que no mínimo me diria que estava errado e por que mudou de idéia.

— Ah, bem, aí está.

— O quê?

— O motivo pelo qual não disse nada. Se finalmente escutou alguma coisa que o fez perceber a verdade que sempre esteve bem diante de seu nariz, então a única maneira de dizer-lhe é admitir que estava errado. Mesmo Thomas, jovem como é, acha muito difícil admitir um erro.

Katerina pensou em seu pai e percebeu que facilmente identificava o mesmo defeito nele.

— E uma peculiaridade dos homens, não?

— Parece que sim. Importa mesmo que ele não diga que estava errado e que agora sabe que você é inocente?

— Temo que sim. Ele me magoou muito, Annie. Se fosse uma pequena ofensa contra mim, não me importaria, mas acusar-me de tentar matá-lo quase arrancou meu coração do peito. Sim, ele precisa dizer se mudou de idéia a esse respeito. Não tem que ser nada tão bonito e ele nem tem que se declarar um idiota, mas algo deve ser dito. Ele tem que me dizer o motivo de ter acreditado em algo tão pérfido sobre mim, tentar explicar-me como essa idéia chegou a passar pela cabeça dele ou não terei certeza de poder confiar-lhe meu coração outra vez. Annie suspirou e concordou.

— É, acho que me sentiria da mesma forma. Ele revelou que perdeu a fé em você, e isso é bastante grave. A menos que explique agora o que aconteceu, você pode passar o resto da vida temendo que aconteça de novo. Tudo o que posso dizer é que, se o quer de volta, está disposta a aceitar uma desculpa e começar de novo, é melhor ouvir com muito cuidado o que ele diz. É típico de um homem introduzir uma desculpa no meio de uma conversa sem que você perceba que o fez.

— E algo me diz que é exatamente isso o que sir Murray pode tentar fazer, apesar de ser tão honesto e direto em relação a todo o resto.

— Mas não a respeito de algo que provavelmente o fez sentir-se um tolo. Aí, você está lidando com o orgulho de um homem e isso é uma coisa poderosa. — Piscou para Katerina. — Descanse, milady. Seus olhos já estão mais fechados que abertos e acho que precisará de toda a sua perspicácia nos próximos dias.

Katerina sorriu, fechando os olhos. Parecia que o simples ato de acordar era suficiente para lhe exaurir a pouca força que tinha. E Annie estava certa. Precisaria da mente forte e clara para lidar com Lucas.

Se ele tinha mudado de idéia a seu respeito e não mais acreditava que fosse capaz de um crime tão cruel, tentaria seduzi-la com mais insistência do que antes. Isso significava que tinha que decidir sé permitiria ou não que a paixão que sentiam a assolasse novamente. Se Lucas tinha mudado de idéia, poderia estar pensando em voltar para onde estavam antes do espancamento. Era melhor que estivesse pronta para dizer "sim" ou "não", pois sabia que não haveria retorno em qualquer dos dois casos.

Acreditava em cada palavra que tinha dito a Annie. Precisava de uma desculpa de algum tipo, mas ainda mais de uma explicação. Katerina sabia que devia tentar entender por que ele a havia condenado tão rapidamente e não havia aceitado sua alegação de inocência. Até que ele a satisfizesse, sempre haveria uma sombra de dúvida e medo em seu coração. Conforme o sono a tomava, turvando-lhe os pensamentos, uma pequena voz sussurrava que isso não fazia diferença na paixão que ela e Lucas poderiam compartilhar, que deveria tomar o que desejava ê resolver mais tarde os outros problemas. Katerina não estava segura se este era o melhor conselho que já dera a si mesma, mas tinha a sensação de que seria o único ao qual escutaria.

 

Se não conseguirmos carne logo, não comeremos nada além de mingau de aveia de manhã, à tarde e à noite — disse Annie, enquanto servia para Lucas uma tigela de guisado.

Olhando para a colherada do cozido que levava à boca e depois para a tigela que segurava, Lucas viu pouquíssima carne. Era muito parecido com o caldo de Katerina. Apesar de saboroso, não queria se alimentar assim com freqüência. Tinha comido o suficiente esse tipo de comida quando se recuperava de seus ferimentos.

— Estamos com tão pouco suprimento? — perguntou.

— Somente em relação à carne. De acordo com William, Hilda lhe disse que Ranald e seus homens estão festejando todas as noites, comendo como se tivessem medo de que tudo fosse desaparecer no dia seguinte. Ela disse que se continuarem assim não sobrará mais nenhum frango, boi ou porco nos limites de Dunlochan. E nenhum dos tolos saiu para caçar. Disse também que tentaria nos conseguir alguma carne, mas William lhe avisou para não se arriscar. Disse-lhe que, quando os suprimentos são escassos, um pequeno furto é muito mais fácil de ser detectado e ela seria umas das principais suspeitas.

— Tem razão e espero que ela o escute. A cozinheira é sempre a primeira a ser procurada quando a refeição é parca ou modesta ou quando não há muito à mostra. Não vale o risco para nos obter carne. Assim que der uma olhada em Katerina, sairei para caçar.

— Posso ir com você? — indagou Thomas.

— Sim, se quiser — respondeu Lucas.

— Sim, eu quero. Estou há dias aqui dentro. Seria agradável sair um pouco.

— Talvez devêssemos esperar até que os outros homens terminem de mover os cavalos e retornem — sugeriu Annie.

— Isso pode demorar muito mais do que o esperado, Annie — disse Lucas. — Os cavalos foram escondidos longe daqui e serão deslocados para um lugar distante de onde estavam na noite passada. Os homens farão agora uma longa caminhada, ainda mais complicada por ser clandestina.

— Mas Ranald o está caçando.

— Sei disso, mas um homem e um garoto podem se esconder com mais facilidade e destreza do que um grande grupo. — Sorriu fracamente. — Usarei um gorro para esconder meu cabelo. Isso foi o que me entregou da última vez.

Annie suspirou e mordeu o lábio inferior.

— Talvez Hilda...

— Não, ela não pode correr riscos, Annie. Se suspeitarem que subtrai alimentos, saberão que os entrega para nós. É surpreendente que os idiotas ainda não tenham se voltado para todos os que eram próximos de Katerina.

Acho que sofrem daquela cegueira que freqüentemente afeta as pessoas que têm muitos criados e não conseguem ver que uma cozinheira, por exemplo, pode representar uma ameaça. Gostaria que isso continuasse assim.

— Sim, você está certo. Nossos amigos de dentro do castelo têm tido muita sorte até agora e seria imprudente colocá-los em perigo por um punhado de carne.

Lucas terminou a refeição e levantou-se.

— Todos nós estamos sendo caçados, Annie. Ranald pode querer a mim ou a Kat mais do que a qualquer outro, mas ninguém está seguro. Não gosto de me esconder, mas entendo que é necessário. No entanto, não ficarei aqui sem uma boa refeição. Não se preocupe, a caça ainda é abundante nas redondezas e, apesar de parecer convencido ao dizê-lo, sou um excelente caçador.

Afastou-se antes que Annie pudesse pensar em mais argumentos. Era arriscado sair para obter comida, mas era igualmente arriscado sair toda noite para deslocar os cavalos, na esperança de mantê-los fora do alcance de Ranald. Também era arriscado permanecer nessas cavernas, tão próximas ao Castelo de Dunlochan. Até que Ranald e Agnes deixassem de representar uma ameaça, todos corriam perigo. No entanto, não diria essas coisas a Annie, pois ela já se preocupava demais com a segurança deles.

Lucas entrou no quarto de Katerina e sorriu. Ela lutava para sentar-se novamente e, apesar de os movimentos estarem muito mais fortes, ainda tinha problemas. A necessidade de Katerina por alimentos substanciosos para se recuperar era outro bom motivo para que saísse para caçar. Se ficasse reduzida a mingau e sopa. nunca recuperaria a saúde roubada pela ferida e pela febre.

— Precisa de ajuda? — perguntou, aproximando-se da cama. Viu de relance um de seus pés levemente sujo e soube que tinha se levantado, mas resistiu à vontade de repreendê-la.

— Não, isso está ficando mais fácil — disse Katerina, tentando soar agradável quando na verdade sentia uma forte vontade de praguejar. Seguramente não confessaria que uma das razões pelas quais lutava agora era porque tinha se levantado e cuidado de suas necessidades pessoais, usando muito mais força do que havia calculado precisar.

— É, estou vendo. Você deve estar em pé dançando em um ou dois dias.

— Veio aqui por algum outro motivo além de ser engraçadinho?

— Ai. — Riu e balançou a cabeça. — Vejo que está recuperando a perspicácia habitual. Não, vim olhar sua ferida antes de sair para caçar.

— Caçar o quê? Espero que nem Ranald nem seus homens. — Ela tentou olhar para a ferida que ele havia descoberto, mas era um ponto complicado no alto de seu ombro e mal conseguia ver mais do que as mãos de Lucas ao redor do curativo. — Não me surpreenderia que fosse exatamente isso que Ranald gostaria que fizesse.

— Não, não vou atrás dele, apesar de ter pensado nisso. O homem tem percorrido Dunlochan livremente por tempo demais. Não, hoje vou procurar carne para nossa mesa.

— Algo aconteceu a Hilda?

Lucas decidiu que devia retirar o curativo. Ao refazer o laço da camisola, tentou ignorar a visão tentadora das curvas suaves de seus seios.

— Não, Hilda está bem. — Contou-lhe o que Annie havia dito. — O risco é muito alto agora. As pessoas em Dunlochan estão seguras e quero que permaneçam assim.

— Um desejo que compartilho de todo o meu coração, mas acho que é muito arriscado que você saia agora. Ranald...

— Está nos caçando. Sim, sei bem disso. Não importa. Vários de nós têm de sair toda noite para mover os cavalos de um esconderijo a outro. Não vejo diferença entre isso e o fato de eu sair para capturar alguns coelhos para pôr na panela, exceto que voltarei com algo além de pés doloridos.

Katerina sorriu, mas logo voltou a preocupar-se. Sabia que ele estava certo e que não tinha argumentos contra sua decisão, mas ainda sentia vontade de tentar. Infelizmente, o único argumento com o qual contava era o nó que sentia no estômago.

Era uma sensação que sempre tinha quando algo estava errado, mas duvidava que Lucas a compreendesse ou acreditasse nela. Katerina suspeitava que veria o mesmo olhar que via em seu pai, aquela irritante expressão de superioridade masculina, carinhosamente divertida com a fragilidade emocional da mulher.

— Não gosto disso — murmurou.

— Apesar de estar ansioso para sair um pouco destas cavernas, também não gosto muito disso. Mas também não gosto de uma dieta à base de mingau de aveia e sopa de ervas. Seremos somente Thomas, que sabe bem como ficar em silêncio e se esconder, e eu. Não será fácil nos ver ou capturar. Não pretendo trazer um cervo e arriscar-me a ser pego. Vou atrás de coelhos. Caça pequena. Algo que não revele que alguém esteve na região.

— Sei disso. Também sei que você é muito habilidoso em tudo o que faz. — Katerina sorriu. — Mas sinto dor de estômago.

Lucas piscou.

— Dor de estômago? Comeu algo que não fez bem?

— Não. Desde que eu era criança, sinto dor de barriga quando algo está errado, e agora dói muito.

— Você sentiu essa dor na noite em que foi ferida? Ou na noite em que Ranald nos atacou no lago?

— Bom, na noite em que fui ferida tinha motivos para acreditar que fosse outro tipo de cólica. — Katerina corou ao perceber que Lucas entendera ao que se referia. — Na noite em que Ranald me atacou no lago enquanto eu esperava por você, pensei que fosse... bem, expectativa. — Ignorou o sorriso dele e continuou: — Agora não é nada disso.

— Bem, moça, suspeito que você tenha o dom de pressentir encrencas. Tive um tio que era assim. E um primo. Prestarei atenção a isso e serei muito precavido e cuidadoso. Infelizmente, estamos cercados de problemas e precisamos de carne. Os homens não irão tolerar refeições sem carne e você precisa dela para recuperar suas forças.

— Sei disso. Na realidade, sinto essa dor agora e desde que Ranald soube que eu estava viva. — Katerina esforçou-se para disfarçar o prazer que sentira por ele aceitar com tanta serenidade seu estranho dom e, ainda mais importante, acreditar nele sem questionamentos.

— E isso não deve surpreendê-la, não? O sujeito quer você morta. No entanto, não vou ignorar a possibilidade de você estar tendo um pressentimento sobre alguma outra coisa.

Lucas inclinou-se e deu-lhe um beijo, deliciado com a forma como seus olhos azuis se escureceram com um prazer que ela não conseguia esconder.

— Fique atenta. Annie está aqui e os homens retornarão em breve. Thomas e eu estaremos de volta logo. Não vou apreciar a caçada, vou apenas pegar o que puder o mais rápido possível. — Caminhou em direção à porta. — E da próxima vez que precisar satisfazer suas necessidades, chame Annie para não se cansar demais.

Apressou-se para sair do quarto e deu um passo para a esquerda, o que o livrou de ser atingido pela caneca que ela atirou em sua direção.

Katerina ouviu a suave risada esmorecer conforme ele se afastava e praguejou. Como o homem sabia que ela tinha se levantado para se aliviar sem chamar Annie? Suspeitava que fosse somente um palpite. Ainda assim, estava certo. Tinha se exaurido por causa dessa pequena tarefa. Se Annie a tivesse ajudado ao menos a se levantar e a deitar-se novamente, não precisaria dormir de novo.

Ajeitando-se mais confortavelmente nos travesseiros, tentou não se esgotar preocupando-se com Lucas. Em vão esfregou o estômago dolorido e repetiu para si mesma que era somente um aviso constante de que Ranald a queria morta. Não significava que algo ruim aconteceria naquela noite, com Lucas ou com ela.

Tal bom senso só aliviava um pouco a inquietação. Apesar de saber que dormiria um pouco, também sabia que só se tranquilizaria quando Lucas e o jovem Thomas retornassem sãos e salvos.

— Nossa, você é bom! — elogiou Thomas, amarrando ao cinto o terceiro coelho.

— Prática e paciência, rapaz ― respondeu Lucas, montando outra armadilha e se perguntando se três coelhos seriam o suficiente por enquanto.

— Bem, confesso que tenho dificuldades em ser paciente. — Observou a forma como Lucas finalizava a pequena armadilha que cuidadosamente escondeu sob as folhas antes de lançar a isca com alguns trevos. — Como sabe que existem muitos coelhos por aqui?

— Você procura sinais como esses trevos mastigados.

— Ah, sei.

Quando a armadilha estava pronta, Lucas escondeu-se atrás de alguns arbustos densos e aguardou. Não esperaria muito, pois sentia que já se demoravam demais. No entanto, caçar mais um coelho significava que ninguém teria de se arriscar a sair no dia seguinte.

— Talvez devêssemos furtar algumas galinhas — sugeriu Thomas, mantendo a voz baixa, quase sussurrando.

— Acho que Katerina gostaria de sobreviver sem apelar para isso. Como não podemos alcançar as galinhas dentro do castelo, teríamos de tomá-las dos arrendatários ou dos aldeões e creio que eles precisam delas tanto quanto nós, talvez mais.

Thomas suspirou e assentiu.

— É, precisam. Só estava pensando que, se mantivéssemos as galinhas dentro das cavernas, também teríamos ovos.

— Garoto esperto. Pensa com o estômago. Gosto disso em um homem. — Lucas trocou um sorriso com Thomas. — Espero que não fiquemos presos nas cavernas por muito tempo.

— Você tem um plano para vencer Ranald e Agnes? Pode obter as provas de que lady Katerina precisa para derrotá-los?

— Eu sou a prova, rapaz. Ambos tentaram me matar.

— Mas lady Katerina disse que seria difícil provar. Você é amigo dela, não? Então, por que acreditariam em você?

— Porque terei minha poderosa família me apoiando. Só preciso saber como avisá-la e obter ajuda sem colocá-la em perigo. Neste momento, um Murray vindo para cá poderia facilmente ser morto e não posso permitir que isso aconteça.

— Sua família é mesmo tão poderosa?

— O suficiente. Certamente mais poderosa que Agnes ou Ranald. Ah, aí vem nosso coelho...

Lucas estremeceu quando a armadilha funcionou e ele finalmente adicionou outro coelho morto aos que estavam pendurados no cinto de corda de Thomas. Preferia caçar com um arco. Pegar um animal em uma armadilha dava-lhe a sensação de estar trapaceando, por causa da isca. Desta vez, no entanto, era uma necessidade, pois tinha de caçar vários e depressa.

Livrou-se dos rastros deixados pela armadilha e por sua presença nos arbustos. Thomas não parecia preocupado com o fato de ter quatro animais mortos balançando ao redor de sua delgada cintura. Lucas quase sorriu. Ele era um daqueles garotos que queria saber de tudo, ver tudo e fazer tudo. Annie certamente tinha com o que se ocupar.

Lucas ia começar a perguntar ao rapaz sobre sua família, se tinha alguém além da irmã, quando um ruído baixo chamou sua atenção. Rapidamente pôs a mão sobre a boca de Thomas para reforçar a necessidade de silêncio e se agachou. Agradou-o que o garoto logo fizesse o mesmo, mantendo a caça firmemente presa para que não esbarrasse nas folhas, revelando onde se encontravam.

Lucas queria, no entanto, que Thomas estivesse longe dali, pois tinha a forte sensação de que o problema que provocara a dor de estômago em Katerina estava prestes a acontecer.

Mantendo o garoto protegido atrás de seu corpo, Lucas rastejou de volta, procurando embrenhar-se mais na floresta. Sabia que nas sombras das árvores poderiam se esconder de quem quer que os estivesse espreitando. Manter Thomas em segurança era sua prioridade, pois era avesso à idéia de retornar a Annie e Katerina e dizer que algo havia acontecido com o garoto.

Quando Lucas estava prestes a fazê-lo compreender que deveria correr sem olhar para trás, não importando o que ouvisse, uma sombra escura levantou-se atrás de Thomas. Lucas derrubou o homem antes que agarrasse o menino ou o ferisse. Enquanto o rapaz conseguia avançar um pouco em direção às sombras da floresta, Lucas rapidamente atingiu o pescoço do homem.

O som de ossos quebrando pareceu excessivamente alto naquele local silencioso. Quando se levantou para tentar segurar Thomas e levá-lo para um local seguro, percebeu que tinha sido cercado por Ranald e seus homens. Mesmo praguejando contra a má sorte e desembainhando a espada, admirou-se da forma como os homens o tinham capturado.

— Este está se tornando um hábito tedioso, Ranald — disse, enquanto o homem saía das sombras, sua atitude presunçosa intensificando a vontade que Lucas tinha de matá-lo.

Ranald olhou para seu homem morto por um instante e então se voltou para Lucas.

— Para um aleijado, você é surpreendentemente perigoso.

— Obrigado.

Lucas podia ver Thomas parado nas sombras atrás dos homens que o haviam capturado. O rosto muito pálido do garoto estava visível e Lucas temeu que um deles logo o visse. Com um leve movimento de cabeça, tentou fazê-lo correr, mas o menino estava imóvel como uma estátua, como se estivesse muito aterrorizado até para respirar. Quando parecia que iria se mover em direção a ele, Lucas balançou a cabeça e apressadamente fixou o olhar em Ranald. Com as mãos ao lado do corpo, tentou sinalizar para que o garoto fugisse.

— Pegue o menino, Harold! — ordenou Ranald.

— Mas temos o homem que queremos... — começou Harold.

— Pegue o menino.

— Você não precisa dele agora — disse Lucas. — Não vai ganhar nada ao capturá-lo.

— Posso conseguir um traidor para o senhor destas terras.

— Dunlochan não tem um senhor no momento. Vendo que Harold ia obedecer, Lucas abriu a boca para gritar para Thomas que corresse, quando sentiu algo atingi-lo na cabeça. Quando caiu de joelhos, viu o garoto com os olhos fixos nele enquanto Harold se aproximava. Mesmo sentindo a escuridão tomar conta de sua mente, Lucas olhou fixamente para Thomas.

— Corra, Thomas. Agora! — ordenou antes de tombar inconsciente.

Katerina não via a hora de sair da cama e andar pelo quarto. A única coisa que a impedia era a certeza de que não agüentaria dar mais que alguns passos. O fato de Annie estar sentada na cadeira próxima à cama retorcendo as mãos não ajudava a aliviar a tensão que crescia a cada momento dentro dela.

— Algo está errado — murmurou Katerina. — Tenho certeza disso. Eles já deveriam ter voltado.

— Você está se preocupando à toa — disse William, servindo uma bebida a ambas. — Eles foram caçar, é tudo. Podem estar tentando conseguir o máximo possível para que não tenhamos que sair por alguns dias.

— William, meu estômago está doendo. Muito! Apesar de William franzir a testa preocupado, sentou-se na beirada da cama e disse:

— Bem, isso pode ser porque você comeu algo que lhe fez mal, ou porque ainda está um pouco doente, ou então essas coisas de mulher. Não significa que haja um problema grave.

— O que o seu estômago tem a ver com Thomas e sir Lucas estarem tão atrasados para voltar? — indagou Annie.

— Quando há um problema, meu estômago dói — respondeu Katerina, esfregando o abdômen.

— Não dá certo sempre — disse William. Annie o ignorou.

— E está doendo agora? Katerina assentiu.

— Muito.

— Katerina, se não estivéssemos correndo tanto perigo, enviaria alguém agora até lá — disse William. — Mas não posso fazer isso. Não posso ir até os homens e dizer-lhes que por causa de sua dor de estômago devemos todos sair correndo e rezar para que Ranald não nos capture enquanto buscamos duas pessoas que podem ou não estar em apuros. Não, ainda mais quando já corremos esse risco uma vez esta noite.

Quando olhou para Annie, Katerina fez uma careta e Annie a imitou. Sabia que a moça compartilhava sua necessidade de sair e encontrar Thomas e Lucas e arrastá-los de volta à segurança das cavernas. Infelizmente, não havia argumentos contra o bom senso de William. Mesmo que os homens não pensassem que era completamente louca, seria tolo enviá-los somente porque sentia que algo estava errado.

— O seu estômago dói de verdade quando há problemas? — insistiu Annie.

Percebendo que ela queria conversar e tentar não enlouquecer de preocupação com seu irmão, Katerina assentiu.

— Desde que eu era criança. Não é sempre uma boa forma de julgar se alguém está seguro ou não. Há até mesmo a chance de que doa agora porque sei que Ranald me quer morta. Isso é um perigo, não? Só não é imediato. Os homens certamente pensariam que perdi o juízo se lhes pedisse que fossem até onde Ranald nos está procurando só porque meu estômago dói e acredito que seja porque sir Murray e o jovem Thomas estejam encrencados.

Annie sorriu, mas foi uma expressão fraca que logo se desfez.

— Verdade. E mesmo que achem que somos mulheres tolas, nunca parariam de falar.

— Bom, meus primos nunca param, de qualquer forma. — Alcançou Annie e deu-lhe um tapinha carinhoso nas mãos apertadas. — Algumas vezes, caçar leva mesmo algum tempo. Suspeito que Lucas esteja tentando trazer o suficiente para que ninguém tenha que sair por uma noite ou duas, como disse William. Ele está muito ciente de como é perigoso estar lá fora no momento e tomará conta de Thomas. Também lhe contei sobre minha dor de estômago e o que significa.

— Você contou? — perguntou William.

Katerina assentiu e forçou-se a não olhar para a porta do quarto de novo.

— Ele aceitou sem hesitação. Parece que em sua família algumas pessoas também têm esse dom. — Olhou para Annie. — Então, ele foi devidamente avisado.

— Esperarei mais uma hora, prima, e então eu e outro homem sairemos — disse William. — Não creio que haja qualquer problema. Se seu estômago está lhe sinalizando algo, como acredita, pode ser um aviso de que você não está segura enquanto Ranald a estiver caçando.

Franziu a sobrancelha quando uma súbita comoção no salão chamou-lhe a atenção. Parecia que todos corriam em direção ao quarto de Katerina. No instante seguinte, um Thomas imundo e sem fôlego aparecia na porta, com quatro coelhos mortos pendurados no cinto.

— Ranald está com sir Lucas e quer que lady Katerina vá até ele, ou irá matá-lo!

Katerina olhou para Thomas e então para William, perguntando-se vagamente o que estaria causando aquele zunido em sua cabeça.

— Bom, parece que meu estômago estava certo, afinal — disse e desabou sobre os travesseiros.

Ao escutar um ruído a seu lado, William voltou-se e viu que Annie também desmaiara. Caíra da cadeira com uma graça surpreendente. Olhou de novo para a prima inconsciente, uma mulher que nunca desmaiava, e em seguida para Annie, antes de voltar o olhar para a porta. Thomas encarava as mulheres com olhos arregalados e os homens que se aglomeravam atrás dele também pareciam atordoados.

Olhando para Thomas, que se inclinava sobre a irmã inconsciente, William disse:

— Thomas, você fez bem. Deixaremos que as moças acordem sozinhas e vamos fazer planos para resgatar sir Lucas. Então, quando retornarmos, você e eu teremos uma conversa sobre a melhor forma de dar notícias ruins para as mulheres.

A dor lancinante nos braços foi o que primeiro o atingiu. Reprimiu um gemido e abriu os olhos devagar. Levou um momento para que enxergasse claramente, a pancada na cabeça turvando-lhe a visão. Lucas inspirou devagar várias vezes, tentando controlar a dor em seu corpo. Não o surpreendeu encontrar um sorridente Ranald à sua frente, apesar de ainda ter esperanças de que a nebulosa lembrança da captura tivesse sido um pesadelo. A única coisa boa na qual conseguia pensar era que não havia sinal de Thomas.

Uma rápida olhada ao redor revelou que estavam na casa quase completamente em ruínas de um antigo arrendatário. Pouco mais que a estrutura da construção ainda estava em pé. Não seria um bom local para defender-se de um ataque, mas Lucas duvidava que Ranald esperasse algum. Torcia para que isso não significasse que Ranald tinha certeza de que não havia homens de Katerina disponíveis para vir atrás dele.

— Você deveria ter permanecido morto, Murray — disse Ranald.

— Nós, os Murray, não somos tão fáceis de matar. Olhando para cima, observou que os pulsos estavam atados e que estava pendurado a diversos centímetros do chão por uma corda grossa amarrada à viga no teto.

— Você tem um modo incomum de entreter seus convidados, Ranald. — Ouviu os outros homens no chalé rirem, mas um olhar duro de Ranald rapidamente os silenciou. — Achou que eu estava caçando indevidamente em propriedade alheia?

— Uma vez que Agnes governa Dunlochan e não lhe deu o direito de caçar em suas terras, então, sim. E sabe que isso é um crime punido com a forca.

— Homicídio também é, e creio que o domínio de Dunlochan ainda não foi decidido. Quanto ao enforcamento... — Lucas olhou para as cordas ao redor dos pulsos e, então, para Ranald novamente — ...creio que você precisa de uma ou duas lições a respeito dessa arte. — Lucas resistiu ao impulso de esquivar-se da ponta da espada de Ranald quando ele cortou os cordões de sua camisa. — Homem, tenha algum respeito. Minha mãe fez essa camisa para mim.

— Em breve, ela fará uma mortalha. Como você escapou da última vez?

— Sei nadar.

— Sua perna estava quebrada, quase destruída. Como Conseguiu nadar?

— Como disse a alguém recentemente, um homem pode agüentar praticamente qualquer dor se souber que isso o impedirá de afogar-se.

— Bem, não escapará desta vez.

— Escapar do quê? Homicídio?

— Sim — Ranald respondeu com uma honestidade rude e fria. — Mas primeiro, usaremos você para trazer aquela pequena vagabunda até nós.

— E como planeja fazê-lo? Nem mesmo deixou-lhe uma mensagem.

— Não precisei. Thomas a trará correndo para resgatá-lo. Por isso escapou tão facilmente. Queríamos que fugisse.

Lucas duvidava, mas não disse nada.

— Para começar, mandei um homem atrás dele. — Ranald olhou para alguém atrás de Lucas. — Pensei que pudéssemos encontrar o esconderijo dos bastardos seguindo o garoto e então conseguiríamos esvaziar sua toca, mas o tolo perdeu o pequeno patife.

— Ele é rápido, Ranald — protestou o homem com uma voz profunda e rouca. — Segui-o por entre as árvores, mas ele sumiu. Não deixou sequer um rastro.

O alívio tomou conta de Lucas, apesar de não manifestá-lo em sua expressão. O garoto tinha sido esperto e ido por cima das árvores. Lucas vira uma vez como ele era ágil quando subia nas árvores e suspeitava que Thomas prosseguira por uma boa distância dessa forma até colocar os pés no chão novamente.

— E por que você pensa que Thomas trará Katerina aqui? — perguntou Lucas.

— Depois que você caiu no seu pequeno sono, gritei para ele o que queria que fizesse. Sabia que estava perto.

― Ele me ouviu. — Ranald sorriu em triunfo. — Dirá que o preço de sua vida é a rendição de Katerina.

— Você mentiu!

— Claro que menti. Você e aquela cadela colocaram um nó em meu pescoço. No de Agnes também, mas como é astuta o suficiente para fazer um homem acreditar que é completamente inocente, pode se safar. — Ranald sorriu, correndo a ponta de sua afiada espada sobre o abdômen de Lucas, deixando uma trilha de sangue. — Você pensou que ela fosse doce, tola e inocente, não? Nunca percebeu que no minuto em que não se deixou levar pelos sorrisos encantadores e modos recatados, tornou-se um homem morto. Que a tenha recusado em prol da meia-irmã somente a enfureceu ainda mais. Ninguém consegue odiar com tanta intensidade quanto Agnes.

— Bem, é algo de que se orgulhar.

— Também acho.

Sabia que ele achava isso, pensou Lucas, lutando contra o impulso de gritar enquanto Ranald usava a espada para desenhar um círculo na pele em volta de seu coração. Agora que estava completamente acordado e consciente, percebeu que Ranald tinha sido rápido em manter alguma distância entre eles. O homem tinha um sorriso estranho e zombeteiro no rosto duro, que revelava o prazer que sentia em infligir dor aos outros. O fato de Agnes escolher tal homem como amante revelava muito sobre tipo de mulher que era.

Lucas desejou poder ver os homens de Ranald. Queria ver os olhares em seus rostos enquanto observavam seu líder cortar um homem amarrado e desarmado. Alguns deles deviam ser da mesma laia, animais cruéis que mediam a força e o poder por quanto sofrimento conseguissem causar.

Havia uma pequena chance, no entanto, que um ou dois não o suportassem. Um ou dois homens que protestassem contra tal comportamento ou mesmo solicitassem que parasse poderia ser suficiente para desviar a atenção de Ranald. Os cortes que fizera até o momento eram superficiais e não sangravam muito, mas seria perigoso ter diversos deles sem cuidado por muito tempo. Uma pausa enquanto Ranald lidava com uma rebelião em suas fileiras poderia reduzir drasticamente o número de ferimentos que ele lhe infligia, deixando Lucas com força suficiente para não ser um fardo para quem o resgatasse.

E ele seria libertado. Lucas se consolava ao saber que Katerina estava muito fraca para participar de qualquer tentativa de resgate, o que a manteria fora de perigo. Somente esperava que William fosse tão esperto quanto parecia e que soubesse manter seus homens em segurança, mesmo tirando Lucas da encrenca em que se encontrava.

— Tem certeza de que é o velho chalé do arrendatário, Thomas? — perguntou William.

— Sim, segui-os para ter certeza de que Ranald não mentia quanto a isso. — Thomas serviu-se de um dos bolos de aveia que Annie fizera e pôs uma tigela na mesa. — Não pensei que estivesse mentindo, pois quer que lady Katerina vá até lá, mas não se confia em um homem como ele.

— Não, não se confia, e você fez bem em pensar nisso, garoto.

— Então, como salvamos sir Lucas? — Patrick perguntou. — Há somente seis de nós e não podemos mais conseguir os cavalos tão rápido.

— Sabe quantos homens estavam com Ranald? — William perguntou para Thomas.

— Era difícil ver no escuro, mas tenho quase certeza de que eram oito — respondeu o garoto. — Eram nove, mas sir Lucas matou um. Quebrou seu pescoço como se fosse um galho.

Os olhos de William se arregalaram um pouco, mas não disse nada. Franziu as sobrancelhas, tentando pensar no que poderiam fazer. Não poderia deixar Lucas com Ranald. O homem o mataria, além de sentir prazer em provocar sofrimento. Não desejaria a nenhum homem a morte que Lucas teria. Devia se assegurar de não colocar em perigo seus homens, metade dos quais eram seus irmãos.

— O chalé no qual se encontram não é mais que a estrutura de uma construção — disse finalmente William, olhando em volta, para seus homens. — Ranald não pode se esconder lá, então não terão uma grande vantagem sobre nós.

— Não — concordou Patrick. — Mas eles têm sir Lucas e ele estará em grande perigo se atacarmos abertamente.

— Creio que podemos nos aproximar furtivamente. Sim, há campo aberto logo em volta do chalé, mas teremos muitos esconderijos até lá.

— E então corremos até eles?

— Não vejo outra maneira. Podemos nos esgueirar como fantasmas até que sejamos vistos, mas, sim, depois teremos que correr até eles e torcer para fazermos isso antes de matarem sir Lucas. Isso é bem o que Ranald faria se pensasse que perdeu a briga.

Sim, é — concordou Katerina, enquanto ela e Annie entravam no salão.

Katerina tinha acordado para encontrar-se sozinha com Annie, que estava despertando. Ainda não acreditava que tinha desmaiado. Enquanto andava até a mesa e se sentava com o auxílio da moça, decidiu que era porque ainda estava um pouco fraca e não tinha sido capaz de tolerar a preocupação e o medo como antes. Uma vez desperta, no entanto, se recusara a ser deixada no quarto enquanto todos os outros planejavam como resgatar Lucas das mãos de Ranald.

— Você tem que se lembrar que Ranald quer Lucas morto. Agrada-o agora usá-lo para chegar até mim, mas no final ele o quer morto. — Katerina suspirou.— Também acho que ele gosta de matar.

William concordou.

— Acredito nisso há um bom tempo. — Foi até Katerina e deu-lhe um tapinha na mão. — Não se preocupe, prima. Traremos o homem de volta. Só quero me certificar de que ninguém seja ferido ha empreitada. — Olhou para os homens. — Vestiremos as roupas mais escuras que temos e sujaremos um pouco os rostos. É um truque que sir Lucas me ensinou e dificulta bastante que alguém nos veja. Todos estejam armados com suas espadas e com quantas facas puderem carregar. Donald, você traz seu arco e flechas. Podemos precisar de suas habilidades para igualar-nos em número ou manter Ranald e seus homens afastados de sir Lucas.

Katerina observou os homens se apressarem para ficarem prontos e olhou para William, que se levantara para ir ao baú onde guardava armas e roupas.

— Parece um bom plano, primo.

— Não é o melhor, mas não há tempo para planejar algo brilhante — disse, pegando a espada. — Ainda assim, Ranald e seus homens estão em um local bastante aberto e nós teremos a cobertura das árvores até que estejamos bem perto. — Olhou para ela e balançou a cabeça. — E você não deveria estar fora da cama.

— Não estou fraca como antes, William, e se não me mexer um pouco de vez em quando, como vou recuperar a força que perdi?

— É verdade, mas não faça muita coisa em pouco tempo ou vai ficar pior do que estava. — Parou perto dela e deu-lhe um beijo no rosto. — Não se preocupe, prima, nós o traremos de volta.

— Acredito em você, William. Vá com Deus.

William só sentiu alguma confiança em seu plano ao ver o chalé. Ranald e seus homens estavam bastante visíveis. Donald não teria problemas em diminuir o número de homens de Ranald a uma distância segura. Algumas flechas bem colocadas também provocariam pânico entre eles. A visão de sir Lucas pendurado na viga enquanto Ranald o atormentava com a espada foi o suficiente para fazer os homens de William ansiosos para lutar, e isso também era uma coisa boa.

— Ranald é um bastardo odioso, não? — murmurou Patrick.

— Sim, e sempre foi. Verdade que só o conheci depois que uniu forças com Agnes, mas um homem como ele nasce e cresce cheio de maldade. — William olhou para seus homens. — Observem sir Lucas de perto e matem qualquer tolo que tente se aproximar dele. Quando todos assentiram, sinalizou para que começassem a avançar.

Um grunhido baixo ecoou nó chalé seguido por um grito de alarme. Lucas parou de tentar afastar-se da dor que Ranald lhe infligia e olhou ao redor. Um homem caíra em sua linha de visão, com uma flecha nas costas. Lucas imediatamente voltou toda a sua atenção para Ranald, sabendo que poderia tentar matá-lo antes que seus salvadores fossem bem-sucedidos.

— Aquela cadela! — gritou Ranald, dirigindo-se à abertura que já fora uma porta. — Matem-no! — ordenou, apontando para Lucas antes de correr até seu cavalo.

Por um instante tenso, os homens remanescentes no chalé olharam para Lucas. Alguns ainda mantinham o brilho da determinação nos olhos. Quando outro dos homens caiu com uma adaga no pescoço, todo o interesse em Lucas desapareceu. Os homens passaram a ter só um pensamento: escapar dali com vida.

Estava tudo terminado antes que Lucas conseguisse se livrar da dor o suficiente para acompanhar a batalha. Um outro homem conseguiu chegar até o cavalo e seguir Ranald, que fugia. Dois outros nem sequer se importaram em lutar, lançaram as espadas ao chão e se renderam. O resto deles morreu tentando alcançar as montarias.

Quando William e seus homens entraram no chalé, Lucas quase conseguiu sorrir. Ocorrera-lhe em algum momento durante a tortura que sofrerá, com todos aqueles cortes, que morreria de forma lenta e sofrida se nada detivesse Ranald. Apesar de estar todo dolorido, de sentir como se o corpo tivesse sido cortado em pedaços e seus braços arrancados, ainda estava vivo e sentiu que era motivo suficiente para estar exultante.

— Nossa, ele caprichou, não? — disse William, enquanto ele e Patrick libertavam Lucas.

— Sim — concordou, enquanto era gentilmente colocado no chão. — Acho que em breve vou querer gritar.

— Estou surpreso que ainda não o tenha feito. Deve haver uns mil cortes em você.

— Na verdade, estava pensando em como estarão meus braços daqui a pouco.

William sorriu.

— Ah, sim.

Quando voltou a sentir os braços, Lucas precisou de toda a força de vontade para não chorar como um bebê. Mesmo os cortes que lhe cobriam o corpo desapareceram de seus pensamentos ante as ondas de dor que o assolaram. Respirava com dificuldade e estava ensopado de suor quando a dor começou a amainar. Sentado no chão, respirando devagar e profundamente enquanto tentava se acalmar, olhou em volta e percebeu que William e seus homens tinham se livrado de todos os sinais da luta e da tortura que sofrerá. Conseguiu sorrir fracamente quando William se agachou à sua frente.

— Sentindo-se melhor? — perguntou William.

— Pelo menos não quero mais cortar a garganta para tentar fazer a dor parar — respondeu Lucas.

— Tão ruim, é?

— Pior.

— Acha que consegue voltar para as cavernas? Temo que tenhamos que andar. Não pudemos capturar nenhum dos cavalos de Ranald. Ele os dispersou quando fugiu. Nem se preocupou em abandonar seus próprios homens incapazes de fugir — disse William em um tom que beirava o espanto. — Somente aquele homem, Colin, conseguiu escapar.

— E os que se renderam?

— Homens novos. Recentemente contratados por Agnes. Estavam mais que dispostos a jurar que iriam embora e nunca retornariam. Parece que Ranald os deixou enojados com a atuação desta noite. Tanto torturando você quanto abandonando seus homens para salvar a própria pele. Pelo que um deles disse, isso repercutirá e começará a ser difícil arregimentar novos homens.

— E isso pode nos ajudar. — Lucas começou a levantar-se e aceitou prontamente a ajuda de William.

— Tem certeza de que pode andar? Podemos improvisar uma maça.

— Não, acho que consigo.

— Está coberto de sangue.

— Muitos cortes pequenos, nada mais. Se eu cair ou atrasar muito vocês, então podem fazer uma maça, mas prefiro chegar lá andando.

Lucas caminhou ao lado de William em direção às cavernas. Os outros se mantinham atentos a qualquer sinal de que Ranald tivesse retornado com mais homens. William era um soldado excelente.

— Thomas voltou ileso? — perguntou, esperando que falar o mantivesse em pé e com a mente clara.

— Voltou e fez um espetáculo. — William contou-lhe sobre como o garoto entrou no quarto de Katerina e sobre o desmaio das duas.

— Essa será uma bela lembrança para o garoto.

— E, será. Só me diga quando achar que precisa de ajuda.

Em alguns minutos, Lucas percebeu que não chegaria sozinho às cavernas. Sua cabeça estava mais e mais leve e não havia uma parte dele que não doesse. Foi um esforço ficar em pé o tempo suficiente para que os homens fizessem a maça. Assim que ficou pronta, William moveu-se para ajudá-lo e Lucas sabia que tinha desabado sobre ela. Patrick e William pegaram a maça e pouco depois Lucas deixou que a escuridão que se infiltrava em sua mente tomasse conta dele e apagasse toda a dor.

— Meu Deus! — Katerina sentiu que desmaiaria novamente quando carregaram Lucas para o salão onde ela aguardava. — Espero que tenham matado o bastardo.

— Infelizmente, não. Ele e Colin escaparam. No entanto, está com cinco homens a menos. — William contou-lhe sobre os dois homens que haviam capturado e libertado. — Ranald não terá mais tanta facilidade em contratá-los.

— Bom. Annie, acho melhor que o coloquem próximo a nós duas. Precisará de muitos cuidados. Não parece haver uma parte dele que não esteja sangrando ou contundida.

— Ranald o pendurou como carne fresca e o estava vagarosamente entalhando com sua espada. Nenhuma das feridas é muito profunda, mas ele sangrou bastante. Acho que pretendia matá-lo dessa forma lenta e dolorosa, uma gota de sangue de cada vez.

— Ranald queimará no inferno. Ajude-me a colocá-lo na cama para que possamos limpá-lo e avaliar a gravidade dos ferimentos.

William sinalizou para que Patrick o ajudasse a carregar Lucas até o pequeno leito preparado para ele. Depois de avisar a Katerina que não fizesse muito esforço nem se cansasse tanto, procurou a própria cama. Pelo que via, a prima ainda nutria profundos sentimentos por sir Lucas, mas estava muito cansado para pensar em quantos problemas isso poderia gerar para eles.

Katerina sentou-se ao lado da cama e auxiliou Annie a banhar todos os cortes no corpo de Lucas. Queria chorar. Queria também caçar Ranald e arrancar suas vísceras.

— Não consigo acreditar que um homem possa fazer isso com outro, alguém amarrado e sem armas, totalmente indefeso. — Katerina balançou a cabeça. — É impossível compreender um homem como esse.

— E mesmo — concordou Annie. — Ranald é um daqueles homens que merece muito experimentar o que inflige aos outros. Fico doente de pensar que queria pôr as mãos em Thomas.

Katerina achou esse pensamento tão terrível que estremeceu.

— Não pense mais nisso. — Observou de perto um Lucas mais limpo. — William tem razão. Nenhum dos cortes é muito profundo. Ranald queria matá-lo lentamente e fazê-lo sofrer bastante. E minha meia-irmã tem tal homem como amante e até pensa em casar-se com ele.

— Ela é como ele, milady.

Pensando em algumas das coisas que Agnes fizera mesmo quando criança, Katerina teve de concordar.

— Não posso permitir que essa mulher fique em Dunlochan.

— Talvez seja melhor bani-la quando tivermos Dunlochan novamente. Não gostaria de ter alguém como ela vivendo em minha casa.

— Não poderia nunca confiar nela. — Katerina afastou os cabelos de Lucas da testa. — Pelo menos William e os homens estão seguros novamente e Ranald não parece ter ferido Lucas com tanta gravidade.

— Não, acho que ele se recuperará bem. Vá se deitar, milady. Também ainda não está curada e precisa descansar. Posso cuidar dele agora. Creio que será necessário muito repouso e uma atenta observação desses cortes para que não infeccionem.

Katerina voltou lentamente ao quarto, feliz de estar a apenas alguns passos de lá. Não só o caminho não era muito longo para ser percorrido em sua condição enfraquecida como era perto o suficiente da cama de Lucas para que o escutasse se precisasse de alguma coisa. Tirando o robe, arrastou-se para a cama. Ninguém a tinha repreendido, mas sabia que se esforçara demais desta vez.

Fechando os olhos, decidiu que o cansaço seria bom, pois a forçaria a dormir apesar das horríveis imagens de Lucas em sua mente. Vê-lo tão pálido e sangrando a afetara profundamente e sabia que ainda o amava. Ele estava tão arraigado em seu coração que duvidava que algum dia o tiraria de lá. Doía pensar que não a amava, mas sabia que não podia fazer nada a esse respeito.

O que precisava decidir era como agir agora. Ele a tinha amolecido com tanta gentileza, parecendo-se tanto com o antigo Lucas... No entanto, não podia se esquecer das acusações. A menos que se desculpasse e se explicasse, sabia que aquilo permaneceria entre eles e, mesmo que voltasse a cortejá-la, duvidaria de suas palavras e temeria ferir-se novamente em suas mãos.

Se não amor, havia aquela paixão que flamejava entre eles. Katerina sentiu que poderia permitir-se esse prazer se mantivesse o coração protegido. Se tudo que compartilhassem fosse o desejo mútuo, não importava no que ele acreditasse a seu respeito. Sorriu fracamente enquanto deixava que o sono a envolvesse. Seria maravilhoso sentir aquele calor novamente e desta vez não se reprimiria por causa da inocência e do medo do desconhecido. Se Lucas se tornasse seu amante, teria algumas surpresas.

 

Lucas fez uma careta enquanto se banhava. Não era uma visão bonita. Fora necessário mais que uma semana para que as feridas cicatrizassem. No entanto, ainda eram visíveis. Suspeitava que algumas deixariam marcas e ele já as tinha mais do que suficiente. Apesar de não ser um homem vaidoso, o corpo alquebrado agora o preocupava. Perguntava-se o que pensaria Katerina se tivesse bastante sorte para estar nu ao seu lado mais tarde. Não, não se, disse a si mesmo. Quando. Fariam amor naquela noite. Tinha certeza absoluta de que ela o convidaria para sua cama. A mulher o tinha estado provocando durante todo o tempo em que se recuperava, tentando-o com seus beijos suaves, sorrisos e toques. Lucas, no entanto, tinha a sensação que ela não oferecia o mesmo de antes. Aquilo o feria, mas sabia que o responsável por essa prudência era ele. Podia encontrar alguma esperança no fato de ela ainda desejá-lo.

— Eu quero mesmo saber por que você está aqui se perfumando todo e se arrumando.

Olhando zangado para William, que se apoiava na porta do quarto de banho, Lucas perguntou:

-— Você acha que isso é da sua conta?

— Ela é minha prima — disse William entrando no pequeno aposento e sentando-se em um banquinho no canto. — Na verdade, é mais como uma irmã para mim.

— É por que você acha que o fato de eu tomar banho tem algo a ver com ela?

William bufou.

— Porque os dois têm namorado a semana inteira. Vocês exalam que querem um ao outro.

— Katerina é uma mulher adulta.

— E não é mais inocente. Sei disso. Sei também que você tomou a inocência dela. E que não faz muito tempo considerou minha prima a razão de seu espancamento até quase a morte. Algo que não considero exatamente excitante.

— Não acredito mais nisso. — Lucas não confessaria que, mesmo quando ainda acreditava, ela conseguia despertar seu desejo.

— Porque ouviu alguém dizer algo sobre isso enquanto rastejava pelas passagens escondidas de Dunlochan?

Lucas suspirou.

— Sim. Ouvi Ranald e Agnes admitirem tudo.

— Entendo. — William cruzou os braços. — À palavra de Katerina não era suficiente, nem a minha, e você subitamente sabe a verdade porque ouviu aqueles dois contando a mesma história?

— Você e Katerina deixaram muito clara a aversão por aqueles dois. Compartilhava o que sentiam por Ranald, mas não tinha motivo para pensar mal de Agnes. Pelo que sei, nem Ranald tinha motivos para tentar me matar, a menos que alguém o pagasse e ele afirmava que esse alguém era Katerina. Não conseguia acreditar que as acusações que faziam contra eles fossem uma razão boa o suficiente para afastar tudo o que eu pensei durante um ano.

— De uma forma estranha, isso até que faz sentido. Mas você ainda não contou isso para Katerina, não?

Lucas balançou a cabeça.

— Não, nós não falamos sobre isso.

— Então por que ela o tem convidado para a cama dela?

— Porque, não importa o que senti ou como ela se sentiu sobre aquele dia no lago ou minhas acusações, o desejo que existia entre nós ainda está vivo. Forte. Ela não consegue resistir mais do que eu.

— Então, como um casal de crianças ávidas, pretendem tomar o que querem e pensar depois nas conseqüências.

— Espero que não haja conseqüências, somente recompensas. — Lucas saiu da pesada banheira de madeira e começou a secar-se.

Para você, sim, não poderia ser diferente, pois vai se deitar com uma linda mulher.

— Estarei com a mulher com quem pretendia me casar até que fui brutalmente espancado, quase morto e, obviamente, fiquei bastante confuso.

— Queria mesmo se casar com ela?

— Sim. Nunca teria tirado sua inocência se não pretendesse me casar. Tinha certeza de que ela era minha companheira, minha outra metade e tudo o mais.

— Ainda assim acreditou que mandaria matá-lo porque sorriu para outra moça?

— Sei que parece loucura, mas começo a achar que a dor e as lembranças confusas me deixaram perturbado. — Lucas encolheu os ombros e começou a vestir-se. — Quando conseguir compreender, explicarei tudo a Katerina e espero que ela me perdoe.

William assentiu.

— Não sei se é com o perdão que tem que se preocupar. Katerina é muito generosa. Não, acho que seu maior problema será o fato de não ter acreditado nela.

Lucas suspirou.

— Suspeito que esteja certo. No entanto, não posso fazer nada para consertar meus erros, a não ser que ela esteja próxima para prestar atenção ao que posso ter a dizer. Na verdade, não vou falar sobre isso até compreender totalmente o que aconteceu.

— Talvez seja melhor assim, apesar de que no final você pode somente dizer que não tem idéia do porquê de ter pensado dessa forma. — Levantou-se e andou com Lucas até o salão. — Está disposto a tomar o que ela tem para oferecer até encontrar um jeito de conseguir o que realmente quer, não?

— É mais ou menos isso.

— Eu provavelmente faria o mesmo.

Lucas não tinha certeza se isso era uma espécie de aprovação, mas decidiu não perguntar. Havia dito a William mais que a qualquer um, incluindo seu irmão gêmeo, e se sentia um pouco desconfortável com isso. Não achava que o homem poderia usar nada contra ele. Só esperava que não dissesse a Katerina tudo o que haviam discutido. Quando ele e Katerina por fim enfrentassem aquela época sombria de seu passado, queria escolher o momento e o local e estar preparado.

— O que está planejando? — Annie perguntou a Katerina, aspirando o aroma do que quer que Katerina tivesse colocado na água.

— Por que você acha que estou planejando algo? — Kat perguntou entrando na banheira de água quente que haviam passado um longo tempo preparando.

— Bom, tirando o fato de que você se banha e se lava mais que qualquer moça que eu tenha conhecido, isto é um pouco mais do que costuma fazer. Também tem passado muito tempo com sir Lucas. Além disso, tem esse, bem, esse olhar que me diz que está planejando algo.

— Estou mesmo. Tomarei sir Lucas como meu amante. Esta noite.

O olhar arregalado de Annie deixou-a um pouco nervosa. Não tinha certeza se era choque ou ultraje. Apesar de não se importar tanto com a aprovação da garota, definitivamente não queria que ela desaprovasse. Annie era o mais próximo que tivera de uma amiga e não queria perdê-la por isso.

— Mas você é uma lady, a filha de um senhor de terras e virgem.

— Sim para os dois primeiros e não para o último. — Katerina não achava possível, mas os olhos de Annie se arregalaram ainda mais.

— Sir Lucas sabe que já esteve com outro homem?

— Sir Lucas foi o homem.

— Ah, entendo. Então, vocês vão se casar? Katerina suspirou e começou a lavar os cabelos.

— Não sei. Ele nunca falou sobre isso o ano passado, apesar de ter me dito muitas coisas bonitas. Palavras lindas que pareciam as que um homem diria à mulher com quem pretendesse se casar. Certamente não falou sobre isso quando voltou, todo raivoso e acusador.

— Você gostaria de se casar com ele?

— Antes que ele me acusasse de ter tentado matá-lo, diria "sim" em um piscar de olhos. Agora? Bem, até que ponto é sensato casar-se com um homem que faz amor com você, é seu primeiro amante e então acredita que você o quer morto de uma forma brutal? Ele não acredita em mim, não confia em mim. — Encolheu os ombros. — No entanto, me deseja e eu o desejo. Pensei no assunto e decidi tomar dele o que puder e fazer o máximo para proteger meu pobre coração combalido.

— Espera que o desejo se torne algo mais?

— Estaria mentindo para nós duas se dissesse que não. Claro que gostaria que fosse mais. Gostaria que ele confiasse em mim, acreditasse em mim e me amasse. No entanto, se isso não acontecer não vou ficar me lamentando. — Fez uma careta. — Pelo menos não muito.

Annie sorriu.

— Você quer tudo, mas vai aceitar o que ele estiver disposto a dar. E algo que muitas mulheres fazem. Algumas vezes funciona muito bem, outras vezes não.

— É por isso que tentarei ao máximo proteger meu coração.

— Não tenho certeza se isso é algo que pode ser feito.

— Talvez, mas, pelo menos, não ficarei esperando mais do que ele pode dar, não terei falsas esperanças e isso é algum tipo de proteção. — Katerina levantou-se e começou a secar-se, enrolando os cabelos molhados em uma toalha e usando a outra para remover a água da pele. — Bem, você vai aproveitar a banheira que nos esforçamos tanto para encher ou não?

Annie hesitou um pouco antes de tirar as roupas e entrar na água ainda quente.

— Oh, isso é bem agradável. Também ficarei cheirosa. Katerina riu.

— É o aroma tanto quanto o calor da água que toma isso tão agradável. E uma pena que seja tão trabalhoso encher a banheira com essa gostosa água quente.

— E por isso que senhores e damas têm empregados.

— Verdade.

— Você está nervosa?

— Por tomar sir Lucas como meu amante? Sim e não. Já estive com ele antes. Ainda assim, sonhei com isso durante meses, todo o tempo em que acreditei que estivesse morto. E, apesar de ele ter me magoado tanto, o desejo permanece. Temo que tenha me enganado com as lembranças e que fique profundamente desapontada.

— Ah, não, não ficará. Um homem tão charmoso quanto ele teve muito, ah, treinamento. Sabe o que fazer para satisfazer uma mulher. Não tenho dúvidas a esse respeito.

Katerina parou de esfregar o cabelo úmido e franziu a sobrancelha.

— Não quero pensar nisso.

Annie riu e começou a lavar os cabelos.

— E, acho que não quer mesmo. Creio que será um amante ardente. Há algo nele que transpira isso, um pouco de selvagem, um pouco de indomado. — Annie corou. — É algo tolo para se dizer de um homem que será um senhor de terras algum dia.

— Não, não é — disse Katerina calmamente. — Está certo. Há algo selvagem em Lucas. Parece um gentil cavalheiro, fala bem, lê, conhece o funcionamento das coisas e sabe como ser um senhor de terras, mas também usa aquelas trancas de guerreiro e, se Ranald não o tivesse surpreendido aquele dia no lago, Lucas poderia ter matado todos eles, os seis homens.

— E mesmo?

— Sim. Eu o vi em uma briga algumas vezes. Nada sério, somente homens tentando provar seu valor com um estranho. Pode move-se muito rápido e parece ser capaz de ver tudo de uma vez, pegando seus oponentes mesmo quando se aproximam por trás. E ele sente, bem, uma liberdade quando está na batalha. Não como um bárbaro dos tempos antigos, mas algo muito próximo, creio.

— Ah, meu Deus, e agora o pobre homem manca!

— Manca, mas estava oferecendo a Ranald e seus homens uma boa luta quando fomos resgatá-lo. Não uma luta suave e rápida como antes de ter a perna quebrada, mas muito melhor do que qualquer homem que já tenha visto. Sim, agora que me lembro como o homem luta, estou mais ansiosa para ver como tal força e graça o ajudarão no quarto. — Riu e piscou quando Annie corou, apesar de também dar risada.

Annie saiu da banheira e começou a se secar. Como havia considerado tomar um banho depois de Katerina, tinha trazido roupas limpas e secas e rapidamente se vestiu. Moveu-se então para ajudar Katerina a escovar e fazer trancas em seu cabelo ainda úmido. Katerina fez o mesmo por ela e, assim que limparam o pequeno aposento, foram até o salão para preparar a refeição da noite.

Lucas tentou com empenho não encarar Katerina quando todos se uniram no salão para a última refeição do dia. Quando ela se moveu atrás dele para colocar o pão na mesa, aspirou o perfume de lavanda em sua pele e sentiu-se enrijecer de desejo. Nunca quisera tanto uma mulher, nem mesmo quando era mais jovem, estava conhecendo os prazeres físicos, e todas as necessidades e desejos tinham uma força completa e indomável. Usou todo o autocontrole para não se levantar e arrastá-la para o quarto. O sorriso malicioso que via no rosto de William de tempos em tempos o ajudava. Não iria deixá-lo se divertir ainda mais às suas custas.

Quando sentiu que podia sair às escondidas com ela, estava surpreso que não respirasse fogo. Havia planejado andar um pouco com ela, conversar e roubar alguns beijos, mas estava se contendo para não empurrá-la contra uma parede próxima ao salão e tomá-la lá mesmo. Lucas pegou-se rezando para que ela sentisse ao menos um pouco de seu desespero quando a levou para o quarto.

Katerina andou até a pequena mesa em que mantinha o vinho. Percebeu que as mãos tremiam um pouco quando serviu uma caneca para cada um. O tempo todo tinha estado no salão nobre, fazendo a refeição, conversando com os outros, mas sua mente estava preenchida com os pensamentos do que aconteceria uma vez que o jantar terminasse. Estava tão tensa com a antecipação que não tinha certeza de poder engolir o vinho que colocara para si. Quando Lucas moveu-se para posicionar-se atrás dela, sentiu-se tão quente que se surpreendeu por não estar ensopada de suor.

— Quer mesmo o vinho? — perguntou, beijando-lhe o pescoço e ela sentiu um arrepio percorrer seu corpo.

— Está dizendo que não quer uma bebida? — ela perguntou, sem se espantar com a rouquidão de sua voz.

— A única coisa que quero agora é você, Kat. Quero-a nua em meus braços. Na cama, no chão, contra a parede. Ou talvez todos os três.

— Ah, não pensei que você seria tão... — procurou em sua mente obscurecida a palavra certa.

— Ávido? — sussurrou, começando a desamarrar sua camisola. — Sim, estou ávido. Não tenho certeza a seu respeito, mas tenho a fome de um ano inteiro para ser satisfeita.

Katerina levou um momento para perceber o que ele tinha acabado de dizer, praguejou e afastou-se dele, não se importando que a camisola estivesse quase deslizando de seu corpo.

— O que quer dizer com "Não tenho certeza a seu respeito?"

Lucas levantou as mãos.

— Não, não. Você me entendeu mal.

— Não creio. Estava insinuando que tive amantes. Foi muito claro.

— Não pretendi insultá-la. — Passou a mão trêmula pelos cabelos, tentando desesperadamente pensar de modo claro e não olhar para os seios quase todo à mostra. — Meu Deus, Kat, você pensou que eu estivesse morto e é uma mulher muito intensa. Também está sendo caçada e as pessoas a querem morta. Só pensei que pudesse ter buscado algum conforto ou um pouco de prazer quando tem tão pouco nesta vida que Agnes lhe impôs. — Odiava pensar nela com outro homem, mas tinha se preparado para aceitar.

Katerina observou-lhe o rosto. Lucas parecia prestes a ingerir veneno. Por algum motivo, isso a fez sorrir. Não era tola o suficiente para acreditar que a natureza possessiva em um homem significasse qualquer outra coisa, mas ainda assim era algo lisonjeiro. Lembrou-se então das outras palavras que dissera e arregalou os olhos.

— Não esteve com ninguém durante um ano?

— Não. — Lucas agradeceu a Deus por poder dizer isso agora, pois era a pura verdade e ela poderia vê-la em seu rosto e escutá-la em sua voz. — Não vou dizer que não pensei nisso ou que não fui à taverna com a intenção de ter uma mulher, alguma mulher sem rosto que não se importasse nem me fizesse sentir nada além da necessidade satisfeita. Mas, não, não consegui nem isso. E também há o problema da minha perna. —Vacilou ao sentir-se corar e praguejou mentalmente.

— Sua perna?

— Pode ficar muito rija às vezes e então há um certo desconforto quando menos se quer.

— Ah. — Moveu-se devagar em direção a ele. — Mas não o tempo todo.

— Não o tempo todo.

Puxou-a gentilmente de volta para seus braços, suspeitando que seria a última coisa gentil que faria por algum tempo. A necessidade pulsando nas veias era selvagem e quase incontrolável. Na verdade, ela não tinha dito se tivera outro amante no período em que pensava que estivesse morto, mas seu ultraje bastava como resposta. Katerina Haldane era toda dele e, apesar de ela ainda não saber, ele tinha a total intenção de mantê-la.

Lucas beijou-a e ela sentiu a força de sua paixão, percebeu o quanto tentava se controlar, ser vagaroso e suave. Conforme o beijo se aprofundava, o desejo se intensificava. Logo ela já não sabia quem estava fazendo o que, mas as roupas eram praticamente arrancadas de seus corpos por mãos ansiosas, e as bocas se moviam sobre cada centímetro de pele como se ansiassem pelo sabor do outro.

Katerina agarrou-se a Lucas conforme ele se moveu e colocou-a contra a parede. Não sentia a pedra dura contra as costas, preocupando-se somente com o corpo rígido do homem que a segurava nos braços. Um suave grito de surpresa e prazer escapou de seus lábios quando ele a penetrou, o corpo a princípio ressentindo-se da invasão e então avidamente recebendo-o, sôfrega e firmemente, mantendo-o dentro de si. Foi um ato rápido e furioso e Katerina deleitou-se. O corpo contraiu-se com a sensação maravilhosa que resgatara de tanto tempo atrás e escutou a si mesma estimulando-o. Atingiu, então, as estrelas, ondas de prazer percorrendo-lhe o corpo todo, até sentir-se consumida pela própria paixão. Um momento depois, Lucas penetrou-a mais profundamente e gemeu seu nome enquanto o corpo todo estremecia.

Com o retorno da razão, veio o embaraço, mas Katerina mal havia começado a ficar insegura e ansiosa para afastar-se quando Lucas beijou-a. Segurou-a com firmeza em seus braços enquanto cambaleava até a cama e caía sobre ela, cuidadoso para não machucá-la com seu peso. Os olhos de Katerina se arregalaram quando sentiu que se enrijecia dentro dela.

— Lucas?

O modo como pronunciara seu nome e a voz rouca sob os efeitos da paixão compartilhada fizeram-no gemer. Começou a mover-se, desfrutando de cada curva do corpo suave enquanto beijava-lhe os seios. Seria uma noite longa e exaustiva, pensou, e foi o último pensamento claro por muito tempo.

Katerina finalmente encontrou forças para erguer a cabeça do peito largo de Lucas. Sentiu um friozinho e procurou um cobertor. Pegando-o do chão, cobriu-os antes de retornar para seus braços. Estava um pouco dolorida, mas não se importava. Era uma sensibilidade boa, que trazia lembranças calorosas do que ocorrera entre eles nas últimas horas. O homem era insaciável e a fazia sentir-se da mesma forma.

Observando Lucas, começou a dar-se conta das marcas em seu corpo. As feridas provocadas na mais recente captura por Ranald ainda estavam um pouco inflamadas,  mas desconfiava que poucas deixariam marcas. O espancamento que sofrerá fazia um ano havia deixado muito mais. Afastando gentilmente o cobertor, revelou a perna que Ranald quebrara e quase engasgou. As cicatrizes eram ásperas e feias e ela quase podia ver como o osso perfurara a pele. Tivera sorte de não havê-la perdido e não duvidava que os curandeiros em sua família a tinham salvado. De repente, com gentileza e firmeza, o cobertor foi retirado de sua mão e recolocado sobre a perna.

—Você não quer ficar olhando para isso — disse Lucas, um pouco envergonhado. — Não é bonito.

— Não achei que seria. As minhas cicatrizes também não são.

— Elas não são tão grandes e ásperas. Parece que um cão agarrou e mastigou minha perna.

Ela queria perguntar-lhe muitas coisas, mas segurou a língua. Gostaria de questioná-lo sobre o ataque no lago, mas achou que deveria evitar o assunto rio momento. A última coisa que queria era arruinar a felicidade que desfrutavam juntos com uma conversa que certamente seria marcada por suspeitas e raiva. Não vira sinais disso desde que tinha sido ferida, mas não estava segura de que ele tivesse superado a questão.

— Não acredito que as minhas sejam muito melhores. William fez o máximo, mas não é um curandeiro. Estancou o sangramento, evitou que as feridas infeccionassem e cuidou de mim até que a febre se extinguisse. Nunca reclamaria por esta provação ter me deixado com algumas cicatrizes.

Ele gentilmente a fez deitar-se e, ignorando os suaves protestos, passou a procurar e a beijar as cicatrizes. Era óbvio que ela tinha sido lançada contra as pedras diversas vezes, cada uma delas dilacerando a pele macia. Lucas queria ter estado lá para ajudá-la, talvez até evitar algumas das piores marcas, mas estivera lutando pela própria vida e, quando se recuperara, a havia rotulado de impostora e assassina. Sentiu um calor provocado pela vergonha corar-lhe a face e ficou contente por estar com o rosto sobre a barriga de Katerina. Em algum momento, teria que falar com ela sobre isso, tentar explicar-se e conquistar sua confiança e seu perdão. Seria maravilhoso se o selvagem ato de amor que haviam compartilhado fosse suficiente para apagar a mágoa que lhe infligira, mas sabia que não era.

Katerina acariciou os cabelos de Lucas enquanto ele beijava sua barriga e corria a língua sobre a cicatriz que se estendia até a coxa. No momento em que ele alcançou com os lábios sua parte mais íntima, deixou escapar um gritinho de choque e puxou com mais intensidade seus cabelos. Enquanto buscava forças para protestar diante de tal ousadia, a língua habilidosa do amante apagou qualquer possibilidade de resistência e ela se entregou totalmente a esse novo deleite. Quando Lucas a possuiu, estava tão ávida que não se importava com o que ele dissesse ou fizesse contanto que continuasse a proporcionar-lhe tamanho prazer.

Lucas sabia que estava sendo um pouco bruto, mas não se controlava, pois Katerina parecia apreciar. Sentiu que ela começava a atingir o ápice do prazer e investiu mais profundamente para unir-se a ela. Prostrou-se sobre o corpo de Katerina, mas logo se moveu um pouco para o lado, a fim de não sufocá-la com seu peso.

— Você fará de mim um homem velho antes do tempo — murmurou, afagando seus cabelos.

Katerina levantou o braço e acariciou seu rosto, utilizando quase toda a força que lhe restava.

— Bem, pode descansar de seus deveres um pouquinho, pois agora vou dormir.

— Ah, é? Muito fraca?

— Muito. Pelo menos no momento estou me sentindo assim.

Ele deitou-se de costas e puxou-a para seus braços. Fazia-o sorrir o fato de tê-la amado até a exaustão, mas foi cuidadoso para esconder a expressão do rosto, pois suspeitava que revelaria orgulho masculino. Acariciando-lhe as costas, sentiu o corpo de Katerina abandonar-se junto ao seu e a respiração tornar-se suave e regular.

Colocando um braço sob a cabeça e acariciando-lhe os cabelos com a mão livre, Lucas olhou para o liso teto de pedra da caverna que servia como aposento para Katerina. Sabia que nunca se esqueceria deste lugar ou desta noite. Mesmo com as sombras que pairavam sobre a união de ambos, com sua estupidez e falsas acusações, com Ranald, Agnes, os planos de homicídio e o fato de Katerina ter sido exilada de seu próprio lar, tudo fora perfeito. Sentia o corpo maravilhosamente pesado e satisfeito, mas sabia que o desejo poderia ser rapidamente reavivado. Após tanto tempo de abstinência e do medo de que o espancamento o tivesse deixado impotente, queria somente permanecer deitado saboreando a sensação.

Fechando os olhos, decidido a descansar um pouco, trouxe Katerina para mais perto com um toque de desespero. Ela pertencia a ele. Eles deveriam permanecer juntos, planejar uma vida em comum e escolher os nomes dos filhos que teriam. De certa forma, ele havia roubado isso deles. Seria um trabalho árduo recuperar a confiança dela, mas sabia que valia a pena. Sabia que nunca duvidaria dela novamente. Somente teria que se dedicar para fazê-la acreditar.

O calor se espalhou pelo corpo de Katerina. Gemeu de prazer conforme o desejo a tomava novamente, em um dos melhores sonhos que já tivera. Sentia até mesmo a leve aspereza das mãos calejadas de Lucas e o úmido calor de sua boca. Se pudesse sonhar assim o tempo todo, nunca sairia da cama. Virou o corpo, a necessidade tornando-se uma dor interna, quando tocou algo com a perna. — Abra os olhos, Kat, antes, de achar que está sendo atacada e me machucar.

Aquela voz profunda, dolorosamente familiar, transmitia um toque de humor e Katerina relaxou. Cornos olhos fechados, sorriu e esfregou os dedos dos pés em sua perna. Gostava de senti-lo contra a pele e era delicioso despertar envolvida em calor. Havia muitos problemas para serem enfrentados, vários dos quais referentes ao homem que agora lhe beijava os seios, mas não queria encará-los no momento.

Lucas quase riu. Katerina estava esparramada sob ele com um sorriso nos lábios. Murmurava palavras desconexas enquanto o acariciava com os pés. Era muito gostoso, mas acordara louco de desejo e a queria completamente desperta para os prazeres que desfrutariam.

— Kat — sussurrou, acariciando-lhe os seios. Esfregou os mamilos com os polegares até que enrijeceram e a fizeram contorcer-se. — Abra os olhos.

Ela obedeceu, apenas para constatar que Lucas era tentador também de manhã. Quase sorriu. Estava disposta a ceder, mas aproveitava a sensação de ser persuadida. Ele esfregou-se nela, evidenciando o desejo que o consumia. Durante a longa noite em que fizeram amor ela temera acordar e sentir-se envergonhada, o que não acontecera. A paixão compartilhada fora mais do que esperara. Fora também a maneira perfeita de fazê-la esquecer-se de todas as preocupações.

— Inspirado logo cedo, é? — murmurou, deslizando as mãos pelo quadril de Lucas, acariciando-o de leve com as unhas.

— Se continuar com isso, não vou mais bater na porta, moça, vou derrubá-la.

Katerina apreciava o modo como Lucas fechava os olhos e enrubescia enquanto era tomado pelo desejo. Querendo prolongar o momento, prosseguiu com as carícias, provocando-lhe um gemido de prazer que a fez arrepiar-se. Definitivamente havia algo indomável a respeito de Lucas Murray. Quando a fitou, Katerina notou que o azul de seus olhos escurecera, o que os deixava ainda mais misteriosos. Sorriu e continuou tocando-o, deliciando-se com a inebriante sensação de poder feminino, alimentada pelas reações de Lucas.

— Sedutora — murmurou e beijou-a.

A idéia de que alguém a achasse sedutora era quase risível e a faria questionar a sanidade ou a sinceridade de quem afirmasse tal coisa. No entanto, ele o dissera de tal forma, com tanta honestidade, que a fizera sentir-se realmente tentadora. Lucas, então, uniu seus corpos, o ritmo dos quadris sincronizado ao da língua em sua boca. Katerina rapidamente se esqueceu de tudo o que dizia respeito a poder feminino e sedução. Os únicos pensamentos que reteve: foram o balanço dos corpos e os misteriosos olhos azuis de seu amado.

— Ah, aí está você — disse Annie, quando Katerina entrou no salão.

— Sim, aqui estou. — Katerina sorriu ante o olhar reprovador da garota. — Posso ajudar em algo?

— Sim, poderia cortar o alho para mim, mas só depois de comer. Farei um mingau de cereal e Patrick trouxe um jarro de leite de cabra.

— Não gosto de leite de cabra — respondeu Katerina, sentando-se à mesa.

— Bem, tente tomar um pouco. Precisa manter as forças e ganhar um pouco de peso. Emagreceu quando teve aquela febre e sir Lucas ficou preocupado com a falta de energia para combatê-la.

— Está bem, onde está o leite? Melhor recuperar esses quilos o mais rápido possível ou ele vai se lembrar disso e começar a me atormentar.

Annie colocou diante de Katerina uma grande tigela de mingau e uma caneca cheia de leite de cabra.

— Se servir a todos tanto leite, Annie, o jarro logo estará vazio.

— Podemos enchê-lo de novo. Três dos quatro animais que Patrick trouxe são fêmeas.

— Temos cabras?

— Sim. Parece que as pessoas estão percebendo que Ranald e o resto daqueles tolos que desonram Dunlochan não saem para caçar, mas comem como reis, sem se preocupar de onde vem a comida. Aqueles que possuem animais os estão arrebanhando e escondendo. As cabras são da irmã de Patrick.

— Bem, acho que faz sentido.

— As melhores vacas da terra de Wey estão sendo mantidas junto aos cavalos e movidas de um lugar a outro.

— E tão ruim assim?

— Sim, e está piorando. Mas não se preocupe. As galinhas da senhorita Meg não provocarão problemas e teremos ovos frescos com mais freqüência agora.

— Onde estão as galinhas?

— Duas delas se uniram a mim no quarto de banho — disse Lucas, ao entrar no salão e sentar-se ao lado de Katerina. — Desde que se mantenham longe de minha água, não me incomodo.

Katerina comeu mais um pouco e se forçou a beber o leite antes de perguntar:

— Ovelhas?

— No alto das colinas, onde há muitos lugares para escondê-las caso Ranald queira procurar.

— Porcos?

— Três. Um com leitões. Recusamos o javali porque a fera é grande e muito temperamental. Não se preocupe, milady, Thomas cuidará de todos com prazer. Adora animais e os manterá limpos e bem alimentados. Até descobriu um jeito de levá-los para aproveitar o sol de vez em quando.

— Então, em algum lugar nessas cavernas, há galinhas, cabras e porcos. — Katerina observou Annie de perto enquanto perguntava. — Sem patos e gansos?

— Por enquanto.

Katerina quase riu da maneira como Annie mantinha o olhar fixo no mingau que entregava a Lucas, não movendo um músculo ao ser questionada. A mulher estava ficando boa em, sem mentir, não revelar toda a verdade.

— Foi feito um acordo, sabem — disse, sentando-se diante de Lucas e Katerina. — Se mantivermos esses valorosos animais a salvo, teremos ajuda para reconstruir o estoque do castelo que aqueles idiotas estão consumindo. Creio que isso será necessário.

— Parece um bom acordo, Annie. Só estou surpresa por William tê-lo feito, uma vez que não aprecia tais animais.

— Mas gosta de comer. — Annie sorriu quando Lucas e Katerina riram. — Tudo dará certo. Como são bons animais reprodutores, que serão bem cuidados, não teremos problemas.

— Ah, sim — disse Katerina. — Não podemos deixar que as pessoas percam sua fonte de alimentos.

— Não, não podemos, apesar de este lugar já começar a feder como um estábulo! — vociferou William entrando no salão.

O primo obviamente não tivera uma manhã agradável, concluiu Katerina, esforçando-se para disfarçar um sorriso. William não perdia a calma com freqüência, mas ficava zangado quando as coisas não corriam à sua maneira. Normalmente, o mau humor durava pouco, o que era muito positivo, uma vez que estavam todos presos naquele lugar.

— Já esteve lá fora movendo os cavalos? — perguntou Katerina.

— E aquelas vacas amaldiçoadas.

— Você pode ser grato àquelas vacas amaldiçoadas algum dia, caso Ranald e Agnes consumam mesmo todo o estoque.

William resmungou, servindo-se de cerveja e sentando-se à mesa. Katerina aguardou com paciência que ele tomasse diversos goles. Quando finalmente lançou-lhe um olhar sobre a caneca, ela sorriu para ele, que relaxou e balançou a cabeça.

— Trabalhei duro para nunca me tornar um fazendeiro — disse. — E irritante descobrir que sou um, ao menos por enquanto.

— Isso vai passar. Tem que passar. Em algum momento, até mesmo aqueles conselheiros tolos verão que Agnes esta prejudicando DunloChan e, portanto, seus bolsos gordos.

— Você acha que os homens do conselho estão se aproveitando desse problema entre você e Agnes para encher seus próprios cofres? — questionou Lucas.

— Acho que sim, apesar de não ter provas. Não posso me afastar daqui para encontrar alguém poderoso que me escute e faça com que aqueles velhos se curvem também. Sim, eram amigos de meu pai e compatriotas, mas não são meus nem de Agnes. Ah, pelo que vejo, não quebraram qualquer promessa que tenham feito a meu pai, mas também não a honraram. Como seus amigos de longa data, sabem muito bem que ele estaria gritando para que encerrassem isso ou espancando-os por lucrarem às custas da miséria do povo de Dunlochan. Mas não fazem nada além do que estava escrito no conciso testamento esboçado por meu pai em seu leito de morte. Sentam-se, como aves de rapina, observando e agarrando o que conseguem, dizendo para quem quiser escutar que tudo o que o velho senhor desejava era que se assegurassem que nenhuma de suas filhas se casasse sem sua aprovação. William concordou solenemente.

— Isso é verdade. O velho senhor tremeria de fúria diante do que está acontecendo. — William franziu a testa, apontando para a abertura que levava às passagens quando escutaram vozes e risadas. — E aí vem o motivo de nosso atraso.

Antes que Katerina pudesse perguntar ao que se referia, Patrick, Thomas, Donald e outro homem entraram no salão. Ela encarou-o e soube que se encontrava boquiaberta antes de Lucas se aproximar e gentilmente tocar seu queixo. Durante alguns momentos, fixou nele seu olhar, para certificar-se do que via. No entanto, não era possível confundir aqueles cabelos vermelhos, os olhos verdes brilhantes ou o sorriso convencido.

— Por que está de volta, Robbie? — interpelou-o. Ele riu, andou até ela e beijou-a no rosto.

— Para vê-la, querida irmã.

Katerina forçou-se a esconder a surpresa quando Lucas se aproximou, as longas pernas avançando contra Robbie até fazê-lo recuar. Era algo inebriante que Lucas agisse de maneira tão possessiva. Logo se repreendeu, dizendo a si mesma que isso não significava nada. Um homem podia agir possessivamente em relação a uma caneca de cerveja. Manteve o olhar fixo em Robbie, ignorando o comportamento de Lucas.

— Não sou sua irmã.

— Sou casado com a querida e doce Agnes. Logo, isso faz de mim seu irmão. — Olhou ao redor. — Muito confortável para uma caverna. Por que mesmo estão vivendo aqui embaixo?

— Estamos aqui porque apreciamos permanecer vivos. E sempre pensei que você também.

— E estou, não?

— Então, por que voltou a Dunlochan?

Robbie começou a responder, mas parou quando uma corada Annie serviu-lhe uma caneca de cerveja.

— Muito obrigado, senhorita. Fico feliz em ver que alguém ainda tem boas maneiras, apesar de viver em uma caverna.

— Se não responder a minha pergunta, será enterrado em uma caverna.— Katerina forçou-se a não atenuar a expressão diante do calor no expressivo sorriso de Robbie.

— Agora, sente-se e responda.

— Bem, decidi que era hora de rever minha esposa — replicou, sentando-se diante de Katerina, inserindo-se entre Annie e William. — Sou casado com a mulher e fiz votos que incluíam "na alegria e na tristeza". Começo a me perguntar se a julguei mal.

— Os votos também mencionavam "até que a morte os separe" e, voltando para cá, você deu a Agnes a oportunidade de cumprir essa parte da promessa.

— Agnes e Ranald têm procurado por você, Robbie — disse William. — Eles o querem morto.

— Por quê?

— Para que ela possa se casar com Ranald, conseguir a aprovação do conselho e reclamar Dunlochan como sua — respondeu Katerina. — Há uma batalha em curso aqui, Robbie, e você acabou de entrar no meio dela. E, somente para o caso de ainda querer visitar sua esposa, deixe-me dizer-lhe que tudo o que acredita que Agnes tenha feito, ela provavelmente fez, se não coisas muito piores.

— Mas o que ela ganha se me matar?

— Acabei de lhe dizer: Dunlochan. Você não foi aprovado pelo conselho, formado pelos homens escolhidos por meu pai para orientar as filhas, pobres mulheres desajuizadas. Agnes tem certeza de que aprovarão Ranald e suspeito que tem boas razões para sentir-se tão confiante.

O fato de Robbie não responder mostrou a Katerina o quão aborrecido ficara. Tinha se convencido, de alguma forma, que Agnes poderia não ser tão má quanto pensara, talvez até refletido sobre a falta de provas e sobre como deixara o ciúme turvar-lhe a mente. Agnes conseguia enganar um homem a quilômetros de distância. Mesmo que não a amasse mais, era um duro golpe perceber que a esposa o queria morto quando nunca fizera nada para merecer sentença tão cruel.

— E difícil de acreditar — Robbie finalmente murmurou, terminando de tomar a cerveja. Annie estava perto e atenta e logo lhe serviu mais. — Acho que tinha muita esperança de estar errado a respeito dela, mas tudo o que disseram somente me faz lembrar de todos os motivos que me levaram a partir e de como me enganei sobre ela.

— Ela engana muitas pessoas, Robbie — disse Katerina gentilmente. — Ela o enganou — complementou, apontando para Lucas.

— E quem é ele?

— Sir Lucas Murray, de Donncoill — apresentou-se Lucas.

— Ouvi falar de seu clã. Por que está escondido nas cavernas com esses Haldane?

— Porque Agnes e Ranald já tentaram me matar duas vezes. Isso me aborreceu e quero discutir o assunto com eles. Também tentaram matar Katerina.

— Tem sido bem ruim por aqui, não? — perguntou Robbie.

— Poderia ser pior, mas, sim, tem sido ruim — confirmou Katerina. — Você tem muita sorte de ter sido encontrado por esses homens e não por Ranald.

— E tudo isso porque seu pai deu àqueles tolos do conselho o direito de decidir com quem você se casaria?

— Sim, apesar de eu ter certeza que ao menos um deles joga de acordo com suas próprias regras.

— Sorley Hay, provavelmente.

— Você os conhece bem?

— Só alguns — respondeu Robbie. — E me espanta que seu pai tenha confiado neles. Ah, não são todos maus, mas são fracos. Se seu pai ainda estivesse vivo, permaneceriam leais. Foi, provavelmente, uma tentação muito grande.

Katerina apoiou os braços na mesa e se inclinou em direção a Robbie.

― Preciso de provas dos crimes que estão sendo cometidos aqui. Preciso de algo além de minha palavra de que ela tentou me matar.

— Não tenho certeza se minha palavra é muito melhor — disse Robbie calmamente.

Apesar de Katerina ter suspeitado disso, ainda se sentia desapontada.

— Bom, diga-nos o que sabe sobre Agnes, Ranald e o conselho. Talvez percebamos algo que lhe tenha escapado.

Havia muito para contar, desde a morte da empregada até o escandaloso adultério cometido por Agnes. No entanto, Robbie não tinha provas de que Agnes e Ranald haviam matado a criada. A completa falta de moral revelada pelas atividades alcoviteiras de Agnes poderia ajudar, refletiu Katerina, nem que fosse para convencer os membros mais devotos do conselho de que era inapropriada para tornar-se senhora de Dunlochan. O plano que lentamente se formava foi destruído por Robbie, quando afirmou ter encontrado Agnes na cama com Daniel Morrison, líder do conselho.

— Bom, isso explica por que deixaram-na prosseguir e nem sequer protestaram quando fui declarada morta — murmurou Katerina.

— O homem tem uma esposa e ela controla o dinheiro, sabem — disse William. — Talvez devêssemos tentar a chantagem, recurso de que Ranald e Agnes obviamente se utilizam.

— E algo a ser considerado. Temos que fazer alguma coisa logo. Antes de Ranald descobrir que Lucas e eu estávamos vivos, podíamos ao menos impedir alguns de seus crimes e atenuar a brutalidade. Agora estamos atados. Qualquer utilidade se perdeu. Acho que é hora de confrontar o conselho. Afinal, não preciso mais fingir estar morta. — Franziu a testa quando viu Lucas balançar a cabeça. — Poderia ir até uma das poucas reuniões que promovem e me manifestar.

— Seria muito perigoso — disse Lucas. — E evidente que Agnes controla o chefe do conselho. No mínimo, ele não iria querer que ninguém soubesse que dormiu com ela.

— Ainda restam quatro outros membros.

— Nenhum deles fez qualquer tentativa para ajudá-la ou deter Agnes.

Katerina sabia que Lucas estava certo, mas ainda assim sentia vontade de bater nele. Quanto mais tentavam encontrar uma solução, algo além de guerra declarada ou assassinato, mais se encontravam presos em um beco sem saída. Começava a sentir-se capturada nessa armadilha havia anos e estava perdendo o controle. Pelo menos por um tempo, parecera conseguir algo, mas, agora, se escondendo constantemente por causa das buscas de Ranald, nada mudava e provavelmente nunca mudaria. Tudo o que faziam no momento era sobreviver e isso não era suficiente.

— Continuarei pensando no assunto, Katerina — disse Robbie. — Ainda posso me lembrar de alguma coisa útil para vocês. Talvez se eu for até a vila... — Sorriu quando todos balançaram a cabeça. — Não? Má idéia?

— Você será facilmente reconhecido, Robbie— afirmou Katerina.

Sentindo pena de si mesma e odiando isso, Katerina decidiu tomar um banho. Um agradável banho de banheira a acalmaria, como sempre. Talvez pudesse, então, pensar em algo além da sensação de derrota que a dominava. Com a ajuda de Annie e Thomas, logo contava com uma banheira cheia de água quente. Borrifando lavanda na água, tirou as roupas e entrou na banheira. Era até pecaminoso permitir-se outro luxo desses em um período tão curto, mas precisava desesperadamente disso. Logo estava tão relaxada e calma que pôde até mesmo ignorar a galinha sentada no canto do aposento.

— Katerina está com dificuldades para enfrentar a situação no momento — disse William. Depois que ela, Annie e Thomas saíram com os últimos baldes de água, sabia que não retornaria por um bom tempo. — Por enquanto, é como se Agnes tivesse vencido.

— Tem que haver alguma prova de algum crime — comentou Lucas. — Ninguém pode esconder todos os pecados que comete. Sim, e pessoas como eles arrebanham muitos inimigos. Podem matar alguns, mas não todos, e nem podem mantê-los aterrorizados demais para falar.

— Estamos nessa situação há um ano — lembrou Patrick. — Já deveríamos ter encontrado algo.

— Quando não estavam atacando ou tentando salvar alguém, se escondiam até que fosse necessário sair novamente. E impossível juntar o tipo de informação necessária nessas circunstâncias.

— E, verdade, mas ainda assim nenhum de nós pode sair abertamente e começar a procurar informações. Tipos como eu podem não ser tão facilmente reconhecidos quanto você ou Robbie ou William, mas estamos escondidos há tanto tempo que pareceríamos estranhos, o que despertaria um interesse perigoso.

— Parece que estamos encurralados — opinou William;

— Encontraremos uma saída — disse Lucas. — Ainda temos como espioná-los. Sim, talvez seja uma maneira longa e tediosa de derrotar um inimigo, mas pode funcionar.

— Então vamos nos assegurar de que alguém sempre esteja escutando.

— Vocês já não contam com alguém no castelo? — perguntou Robbie. — Katerina era muito querida e tenho certeza que as pessoas ajudarão.

— Sim, há pessoas lá dentro — respondeu William. — E temos sorte de não terem sofrido pelo fato de Katerina estar viva. Mas não podem estar em todos os lugares e levantariam suspeitas se fossem vistas fora de certos aposentos com muita freqüência. Podemos ouvir de onde for possível através das passagens.

— Incluindo o solário de Agnes e seu quarto — acrescentou Lucas. — Dois locais em que ela sente poder falar livremente. Devemos agir como se fosse a vigilância nos portões ou muralhas, cada um fazendo um turno.

Lucas sorriu ao entrar na pequena área onde ficava a banheira e ver Katerina quase submersa, os olhos fechados e o ambiente aromatizado com lavanda. Pegou o banquinho no canto do quarto e moveu-o para perto dela. Katerina abriu somente um dos olhos para observá-lo e aquilo o fez querer sorrir mais abertamente. Apesar dos atos de amor que haviam compartilhado na noite anterior e naquela manhã, a maneira como ela subitamente corou ao ser pega no banho fez com que deixasse de reprimir o bom humor e desse um largo sorriso.

— Não consigo acreditar que está corando. Já vi... — As palavras foram interrompidas pelos dedos molhados que tocavam seus lábios.

— É diferente, e não sei dizer por quê. Não suponho que alguém tenha tido uma idéia brilhante que encerrará tudo isso e livrará Dunlochan de Ranald e Agnes.

Pegando o pedaço de linho que ela apertava nas mãos, Lucas começou a esfregar suas costas.

— Não — respondeu. — Vamos observar e escutar mais atentamente, dia e noite, na verdade.

— Bom, talvez ajude. Agnes sempre gostou de se gabar. — Suspirou, encostou a cabeça na beirada da banheira e prosseguiu. — É que este lugar que antes era um abrigo, agora parece um calabouço.

— Sei disso e não estive aqui tanto quanto você e os outros.

— Então, Agnes venceu.

— Não, ela só não perdeu ainda.

— E você não acha que pode ganhar?

— Não de nós.

— Por quê? Por que somos bons e ela não? Lucas sorriu.

— Não, porque ela pode ser astuta e governar Dunlochan por enquanto, mas não é tão esperta assim. Também não ama este local e este povo como você. Só quer conforto, o dinheiro no qual puder colocar as mãos e a admiração dos homens.

— Verdade, mas o que vencer este estúpido jogo que meu pai começou tem a ver com ela?

— Não há uma gota de paciência na mulher, nenhum cuidado com a terra e as pessoas, e, se o pior acontecer, só temos que esperar que ela descubra algo sobre Dunlochan que não consiga suportar.

— Mas o que seria isso?

— Agnes é uma prostituta. Acho que em algum momento isso não será mais ignorado.

— Planeja arruinar o que sobrou de seu bom nome.

— O que pensa que Agnes fará se não conseguir controlar mais as pessoas? Se souber que todos estão comentando sobre seu comportamento?

Katerina sorriu debilmente.

— Acho que ficará furiosa.

— Também acho, e uma Agnes furiosa não é tão cuidadosa em relação ao que diz ou faz.

— E um plano fraco, Lucas.

— É, mas também tem boas chances de funcionar.

— Espero que sim, pois essas paredes que já pareceram um abrigo seguro estão começando a parecer um túmulo.

 

― Não acho que você deva ir.

Katerina suspirou, prendendo firmemente os cabelos.

— Esse jogo mortal precisa acabar, Annie, e aqueles velhos tolos têm o poder para garantir que isso aconteça.

Annie praguejou.

— Sei disso. De verdade. E que sir Lucas não achou uma boa idéia e ele é um homem com, talvez, mais conhecimento desses assuntos.

— Muito conhecimento, mas os conselheiros não podem ser enfrentados com uma espada. Temos que conversar com eles. Também não podemos trazê-los aqui. Conduziriam Ranald e seus homens diretamente até nós e seríamos massacrados em nossas camas.

— Você está com um humor negro, não?

— Sim. Estou cansada de tudo isso, Annie. Estou cansada de viver em cavernas, por mais agradáveis que sejam. Estou cansada de alguém de meu próprio sangue e seus mercenários tentarem me matar. Estou cansada de ver Dunlochan afundar lentamente por causa daqueles idiotas lá em cima. — Katerina apontou para o local que, esperava, fosse a direção do castelo.

— E acha que falar com esses velhos homens vai adiantar?

— Machucar não vai.

— Não tenho certeza disso. Eles devem saber de pelo menos parte do que tem acontecido e não fizeram nada para impedir.

Isso, além do fato de Agnes ter dormido com no mínimo um dos conselheiros, a perturbava, mas não via alternativa. Fazia quinze dias que Lucas começara a observar continuamente Ranald e Agnes, mas as informações obtidas não foram de grande valia. Essa era uma das poucas noites em que o conselho se reuniria e sentia que era sua melhor chance de se fazer escutar.

— Sim, foram praticamente inúteis e parece que têm enriquecido às custas de Dunlochan, mas, como meu pai deu-lhes autoridade, é com eles que devo falar.

— Tem certeza que não é melhor esperar até que um dos homens possa ir com você?

— Talvez, mas ele poderia me impedir de ir. — Viu na expressão de Annie que era exatamente o que esperava que acontecesse. — Devo ir, Annie. De verdade. Estamos presos aqui, sem ajudar ninguém. Não, nem sequer a nós mesmos. Esses homens podem ser completamente inúteis, alguns ou todos eles podem provar ser o inimigo, mas também há a possibilidade de que nos ajudem. Não há como saber até que alguém os veja e creio que esse alguém sou eu.

— Sei disso. Só espero que esteja certa. Vá com Deus.

Katerina agachou-se na esquina e observou a casa de Daniel Morrison. Apesar de o lugar parecer muito mais refinado que antes, tentou não deixar a suspeita infiltrar-se em seu coração e em sua mente. Sentou-se e acompanhou cada homem do comitê chegar e entrar, após a troca de cumprimentos formais. Faltava apenas um deles e, quando o viu apressando-se rua abaixo, lutando para desenrolar o longo capote escuro das pernas e segurar uma caixa lotada de pergaminhos ao mesmo tempo, teve que sorrir. Era Malcolm Haldane, um primo distante e uma pessoa muito querida. Não importava como fossem os outros, estava certa de que poderia contar com Malcolm.

Decidiu dar-lhes um tempo para se acomodarem antes de entrar. Teria que fazê-lo furtivamente, pois suspeitava que Agnes e Ranald contariam com alguém para observar o conselho. Se tinham algum poder sobre os homens, se assegurariam de que nenhum deles os trairia. Se não tinham, procurariam uma forma de obter. A última coisa de que precisava era ser encontrada por algum dos homens de Ranald do lado de fora da reunião do conselho. Sabia que a queriam morta, mas não queria dar-lhes motivos para torturá-la em troca de informações.

Após o que considerou tempo suficiente, Katerina olhou cuidadosamente ao redor e se esgueirou para a casa de Morrison. Parou, na entrada por um instante, permanecendo em um canto coberto por sombras, e se deu conta da elegância do local. Tentou avaliar o custo de toda aquela arte e se perguntou como Morrison podia pagar por aquilo. Quando um jovem criado correu pêlo salão em direção a uma pesada porta primorosamente entalhada, permaneceu logo atrás dele. Escorregando para outro canto sombreado pelas irregulares paredes, viu que o criado simplesmente abriu a porta e entrou. Quando deixou o aposento não trancou a porta. Apesar de os homens lá dentro poderem trancá-la eles mesmos, encontrara uma chance de entrar. Aquilo lhe daria a oportunidade de surpreendê-los, o que poderia contar a seu favor.

Assim que o empregado desapareceu, esperou mais um pouco, escutando com atenção, a fim de descobrir se havia mais alguém perto de lá. Considerando seguro, saiu das sombras e andou silenciosamente até a porta. Katerina manteve o olhar fixo no local de onde o criado havia surgido e desaparecido enquanto colocava um ouvido contra a porta. Quando sentiu uma pontada de culpa por escutar clandestinamente, disse a si mesma que precisava de alguma informação antes de confrontá-los e apostar sua vida na mera possibilidade de que nenhum deles se aliara a Ranald e Agnes.

— Queria saber se podemos examinar os livros, aqueles que registram as despesas e receitas do Castelo de Dunlochan.

Katerina sorriu, reconhecendo a voz levemente trêmula. Malcolm era um homem brilhante, mas não muito corajoso.

— Por que quer vê-los? Se estiver enfrentando dificuldades, posso com prazer emprestar-lhe algum dinheiro.

Morrison, concluiu Katerina. O homem obviamente considerou um insulto a solicitação de Malcolm. Ou era extremamente desconfiado ou já sabia que Malcolm encontraria algum desvio naqueles livros. Após alguns minutos sem escutar nada além de conversa fiada, decidiu que era hora de agir.

Abriu a porta, entrou e retirou o capuz. Morrison encarou-a como se ela fosse uma criminosa e desviava o olhar dela para Malcolm e vice-versa, como se os dois tivessem planejado isso juntos. Morrison deveria, definitivamente, ser observado de perto. Alguns minutos após sua entrada, Malcolm finalmente se livrou do choque ,e apressou-se em abraçá-la.

— Que bom vê-la saudável e forte, moça — disse. — Fiquei muito triste quando disseram que você tinha morrido. Sei que nunca teria cometido o pecado de tirar a própria vida.— acrescentou com voz suave.

— Obrigada, Malcolm. E sempre bom encontrar quem teve fé suficiente em mim para saber disso.

Ela fingiu não perceber como os outros homens no recinto coraram ante a repreensão embutida naquelas palavras.

— Bem, venha. Sente-se, coma, beba algo e diga-nos o que aconteceu com você. E onde esteve para nos deixar pensar que estivesse morta. Sim, acho que tem uma boa história para contar.

Pela expressão no rosto de Morrison, ele estava claramente tentando se controlar ao ver Malcolm agir como o anfitrião. Apesar de talvez não ser quem a estivesse enganando, deveria ser observado. Morrison estava apreciando o papel de guardião do bem-estar de Dunlochan e não desistiria disso facilmente. Parte de sua raiva poderia advir do fato de que, se alguém examinasse os pergaminhos, perceberia o desvio de dinheiro do castelo e das terras, colocando-o em perigo.

Por um instante, conversou com eles, especialmente com Malcolm. Assim que terminou a cerveja, colocou a caneca sobre a mesa e olhou diretamente para Morrison, sem tentar disfarçar a suspeita. Se estivesse roubando dela, queria que se preocupasse tanto com as conseqüências que pudesse até tentar devolver parte do que subtraíra.

— A verdadeira razão de eu estar aqui hoje é o fato de terem ocorrido diversos atentados contra minha vida — disse e percebeu que até Morrison parecia chocado. Ou era um excelente ator ou não tinha nada a ver com os ataques e estava interessado somente em lucrar. — Preciso que essa questão sobre o domínio de Dunlochan seja resolvida. Agnes ainda está casada com um homem que, sabemos, nunca contaria com a aprovação de meu pai. Não entendo como permitiram que ela e seu amante ficassem no comando. Os sinais de sua brutalidade, ganância e comportamento imoral estão em toda parte.

Malcolm assentiu, com uma expressão de profundo e sincero pesar.

— Isso me perturba. Mulheres feridas, homens espancados, animais surrupiados. E como se estivéssemos em uma guerra, ainda que não haja soldados inimigos ao redor.

— Exceto os mercenários de Ranald — murmurou Brock Heyood, observando-a com atenção enquanto coçava a barba grisalha. — Parece que há mais ou menos quinze dias aquele tolo perdeu cerca de seis ou sete homens. Desde então, Ranald e Agnes têm sido um estorvo ao tentar conseguir dinheiro para arregimentar mais pessoas.

— Deve ter sido quando Ranald capturou sir Lucas Murray, pendurou-o como carne fresca e começou a fatiá-lo. Ouvi dizer que fugiu no instante em que viu os homens chegarem. Um dos que se renderam disse que gostaria que soubessem que Ranald não apóia os que contrata e foge assim que o inimigo se aproxima. Creio que o homem gostaria de ter sabido como Ranald pode rapidamente se transformar de um líder em mais um homem lutando por sua vida e abandonando seu grupo à própria sorte.

Enquanto os conselheiros se perdiam em histórias, insultos e reclamações sobre homens fracos, Katerina observou ao redor. Tudo no aposento indicava um sujeito de posses, mas ainda assim não se lembrava de saber que Morrison era rico. Um olhar para ele revelou que suava um pouco, os olhos percorrendo nervosamente a sala como se subitamente a estivesse vendo a partir da perspectiva de Katerina.

Antes de voltar a atenção para Malcolm, Katerina observou novamente o aposento para tentar memorizá-lo. Ficou tensa ao perceber que um dos homens desaparecera. Não o vira ou ouvira sair. Pior ainda, não sabia quando isso ocorrera.

Katerina subitamente sentiu o estômago começar a doer. Era certo que algo iria acontecer e a dor crescente indicava que seria algo ruim, ao menos para ela. Queria fugir, mas não tinha certeza se era a melhor coisa a fazer. Encontrava-se em uma sala com quatro adultos. Estaria segura o suficiente, mesmo que não fossem todos amigos e aliados.

— Está se sentindo mal, criança? — Malcolm perguntou. — Ficou muito pálida.

— Só estou um pouco desconfortável — respondeu ela. — Percebi que Sorley não está aqui e que não o vi sair.

— É, de fato, ele se foi — Malcolm olhou ao redor. — Também não o vi sair. — Olhou para Morrison. — Você acha que ele está passando mal?

Morrison balançou a cabeça.

— Não. Acho que só precisava de um pouco de ar fresco. — Piscou para Katerina. — Bebe muito de vez em quando, sabe?

— Que pena — murmurou ela, pensando que alguém deveria avisá-lo que aquele tom de voz forçadamente gentil não era muito convincente. De fato, tinha certeza de que ele não só vira Sorley sair como sabia para onde estava indo e por quê. Katerina começou a piorar e era cada vez mais difícil reprimir a urgência de sair correndo.

— Nunca percebi que ele tinha esse problema — disse Malcolm, franzindo a testa ao olhar para Morrison. — Bebe muito pouco quando está acompanhado.

— Você está certo, Malcolm — disse Brock, também franzindo a testa para Morrison. — Nunca escutei nada a respeito de Sorley. Sempre pareceu um homem bastante sóbrio, mesmo que muito rígido e sério.

O mais jovem deles, Matthew, acrescentou:

— E um pouco rude também.

Apesar do crescente desconforto, Katerina se divertiu com a maneira como Malcolm, Matthew e Brock estavam discutindo sobre a exatidão da afirmação de Morrison. Acreditava piamente que nenhum deles tinha nada a ver com negligenciar ou roubar de Dunlochan. Restavam, portanto, Morrison, de quem suspeitava mais e mais a cada minuto, e Sorley, misteriosamente desaparecido.

Incapaz de .suportar a dor no estômago por mais tempo e temerosa de ser capturada ou encurralada ou ferida ou qualquer um dos horrendos destinos imaginados, Katerina levantou-se querendo ir embora. Planejara ficar um pouco mais, o suficiente para juntar algumas informações, mas agora que tinha uma pista do possível culpado, poderia fazê-lo depois ou o faria Lucas, pois achava que depois disso ele pensaria seriamente em trancá-la em uma torre muito alta.

— Partindo tão cedo, querida — disse uma voz arrastada que lhe provocou arrepios gelados da cabeça aos pés. Voltou-se para ver Ranald parado na porta, com dois fortes homens a seu lado.

— Qual é o jogo aqui, Ranald? — exigiu Matthew, que olhou para Ranald e seus soldados e viu Sorley espiando a sala. — Sorley, o que você fez?

— Trouxe aqueles que a estão procurando — respondeu.

— Tolo! — disparou Matthew.

— Você entregaria uma pequena moça para este homem, sabendo como ele trata as mulheres? — perguntou Malcolm em tom de completo choque.

— Essa pequena moça pode levar-nos para a forca e pode tomar tudo pelo que trabalhamos.

Malcolm suspirou e balançou a cabeça, lançando um olhar triste, mas furioso ao pequeno homem que se escondia atrás de Ranald.

— Pensei que estivesse tomando o que não lhe pertencia, mas não quis ouvir minhas próprias conclusões. Então, coloquei-as de lado, deixando que você levantasse dúvidas em minha cabeça sobre tantas coisas. — Olhou para Morrison. — E creio que você sabia exatamente para onde ele ia e permitiu isso. Por quê? Isto? — Malcolm abanou uma mão surpreendentemente elegante ao redor para indicar todas as riquezas que decoravam o aposento.

— E acho que você sabe mais do que deve — disse Ranald.

— Cale-se — retrucou Morrison. — Cale-se e saia daqui. Ranald encarou-o.

— Estamos todos juntos nisso. É melhor que não se esqueça.

— Não sou parte disso — declarou Malcolm. — E não permitirei que machuque Katerina. Mesmo empalidecendo de forma alarmante quando Ranald apontou-lhe a espada, não recuou.

Katerina ia dizer para Malcolm que não fizesse nada estúpido quando viu Morrison posicionar-se atrás dele. Antes que conseguisse gritar, Morrison acertou-o na cabeça com a parte mais grossa da bengala e se moveu com agilidade para segurá-lo antes que atingisse o solo. Nem mesmo essa atitude atenuava seu crime, pensou Katerina. Suspeitava que Malcolm ficaria tão indignado quanto Matthew e Brock pareciam estar no momento.

Vendo as gotas de sangue escorrerem pelo pálido rosto de Malcolm, Katerina deu um passo em sua direção. Foi agarrada e puxada para trás por Ranald. Com o braço dolorido, ia queixar-se de tal tratamento. No entanto, algo na maneira como ele a olhava fez com que observasse ao redor e percebesse que um de seus homens tinha desaparecido. Então algo lhe atingiu a cabeça e, enquanto caía, a última visão clara que teve foi a dos olhares horrorizados nos rostos de Matthew e Brock.

Matthew viu Ranald e seus homens carregarem Katerina e então se voltou para olhar para Morrison. Estava sentado em uma cadeira próxima ao banco acolchoado onde deitara Malcolm, inclinado, com a face enterrada nas mãos. Sorley parecia pálido e aborrecido, mas nem de longe tão devastado quanto Morrison.

— Não acredito que agiram assim — Matthew finalmente disse. — Pensaram no que aquele porco vai fazer com a pobre mulher?

— Suspeito que queira se assegurar que ela morra desta vez — respondeu Morrison com uma voz sem entonação.

— Porque ela é uma ameaça para ele, sem dúvida. Digam-me, quanto tempo vai levar para que ele nos veja como uma ameaça? Não acho que sacrificar aquela jovem realmente tenha lhe trazido um tempo maior com seus pequenos tesouros.— Aproximou-se de Malcolm e encarou Morrison até que o homem cedesse o assento. — Com uma mulher dessas, acho que você não precisa esperar que Ranald assegure-se de seu silêncio. Eu não ficaria surpreso se em breve recebêssemos um outro visitante — alguém que não ficará muito feliz ao descobrir o que você fez.

— Foi embora? Como? Para onde? — Lucas sentiu-se mal, pois parecia estar assustando Annie, mas era apavorante não encontrar sinal de Katerina.

;— Foi ver aquele conselho. Tinham uma de suas reuniões hoje na vila e ela foi até lá. E na casa de Daniel Morrison. — Annie teve que gritar, pois Lucas já estava correndo pela passagem que o levaria para fora da caverna, com William, Patrick e Robbie atrás dele. — E nenhum deles pensou em esconder os rostos ou o cabelo. — Murmurou, balançando a cabeça.— A vila inteira os verá.

Lucas sabia que era seguido, mas não diminuiu o ritmo para ver quem decidira ajudá-lo. Havia apressado todos de volta às cavernas, reduzindo o tempo de caça, pois não conseguira afastar uma sensação de perigo iminente. Tentara ignorá-la, convencer-se a parar de pensar naquilo e até mesmo afogá-la com um gole de vinho, mas continuara a corroê-lo. Incapaz de se concentrar na caçada decidira retornar para as cavernas, ver Katerina e livrar-se daquela sensação, uma vez que parecia ter nascido de um medo por sua segurança. No entanto, ela se fora, saíra para encontrar-se com o conselho, e o pressentimento se transformara em uma convicção de que ela se encontrava em apuros.

— Uma aproximação mais cuidadosa pode ser uma boa idéia — disse Robbie, quando alcançou Lucas e passou a caminhar a seu lado.

— Usarei uma abordagem silenciosa quando chegarmos à casa de Morrison — respondeu Lucas. — E para onde Katerina foi. O conselho está reunido lá.

Ouviu William praguejar atrás dele.

— Às vezes, essa moça não tem nenhum juízo.

— Foi insensato ir sozinha, mas ninguém pode discutir com ela a necessidade de falar com o conselho.

Movendo-se pelas sombras até a casa de Morrison, Lucas finalmente parou para recuperar o fôlego. Não havia sinal de qualquer problema, mas a sensação de perigo persistia. Enquanto Patrick esgueirou-se para observar mais de perto, Lucas aguardou, sentindo-se tenso a ponto de estourar.

— A casa dele parece muito mais requintada do que costumava ser — murmurou Robbie, enquanto a observava, deixando de lado claramente a necessidade de procurar algo mais apropriado, como, por exemplo, uma pegada.

Lucas ainda tentava ignorar aquele comentário inútil, quando se deu conta de sua importância. Se houvera melhorias consideráveis naquela casa, era preciso questionar por que e, mais importante, com que recursos. Se Morrison estava se aproveitando da riqueza de Dunlochan, então Katerina definitivamente corria perigo.

— Só consigo ver cinco homens na casa e são todos conhecidos — disse Patrick, posicionando-se ao lado de Lucas.

— Mas não viu Katerina? Patrick negou com a cabeça.

— Algo aconteceu, pois o primo Malcolm está inconsciente, deitado em um banco, e Matthew e Brock estão discutindo com Morrison e Sorley. É muito estranho, pois Malcolm nunca entraria em uma briga. E os outros dois são calmos, de fala gentil e temperamento fácil, e ainda assim estão massacrando Morrison e Sorley. Mais esquisito ainda é os dois estarem aceitando, sem levantar a voz.

William olhou zangado na direção da casa.

— Sim, é estranho mesmo, pois ambos são rápidos com os punhos.

— Já aconteceu — Lucas sussurrou e correu até a casa.

— O que aconteceu? — perguntou Robbie, enquanto ele, Patrick e William seguiam Lucas.

— Ele acredita que algo tenha acontecido com Katerina — respondeu William. — Se é verdade, não desejaria ser um daqueles tolos neste momento.

Lucas empurrou a porta com força, ignorando a dor no ombro. Correu em direção às vozes alteradas. Da mesma forma como quando saiu das cavernas, ouvia os outros logo atrás dele, mas não os esperou. Atirou-se contra a porta da sala de onde vinham as vozes, que pararam abruptamente. Da entrada, estudou as pessoas que o encaravam. Dispensou um rápido olhar para o homem que começava a se levantar do banco e fixou-se nos outros quatro que sutilmente se aproximaram uns dos outros.

— Onde ela está? — exigiu.

-— Onde quem está? — Morrison olhou para a porta destruída, pendurada apenas por uma dobradiça torta — O que fez com minha porta?

— O mesmo que farei com você se não me disser onde está Katerina Haldane. Agora!

— Eu lhe diria, se fosse você — interveio Patrick, aproximando-se da porta despedaçada. — Ele não está de muito bom humor no momento.

— Daqui a pouco vai piorar ainda mais — resmungou Morrison, soltando um grito agudo quando Lucas subitamente posicionou-se diante dele, a mão em seu pescoço, segurando-o a alguns centímetros do chão.

— Se quiser respirar de novo, sugiro que me diga onde ela está — disse Lucas e, ante a leve hesitação de Morrison, bateu-o com força contra a parede.

— Ela se foi — balbuciou.

Patrick, William e Robbie rodearam Lucas e seu prisioneiro e William disse tranqüilamente:

— Não acho que estrangular o imbecil ajudará muito.

— Pode me ajudar — rosnou Lucas. William tocou o braço de Lucas.

— Somente até que o enforquem.

Lucas fechou os olhos e respirou fundo para tentar afastar a ira e o medo que o fizeram comportar-se de modo tão selvagem. Removeu um por um os dedos do pescoço do homem. Morrison caiu de joelhos, arfando e tentando respirar. Um pouco mais calmo, Lucas amaldiçoou a própria fúria, pois parecia que Morrison demoraria algum tempo para voltar a falar. Não sentia remorso pelo que fizera, experimentava somente um pequeno arrependimento por não ter esperado até obter as respostas das quais precisava.

— Ele mandou-me chamar Ranald — disse Sorley, apontando para Morrison, já recuperado o suficiente para encará-lo com raiva.

— Para um homem sempre tão ansioso para atingir um sujeito, você parece bem covarde agora — observou Matthew, após apresentar-se apressadamente para Lucas, o único deles que ainda não conhecia. Quando Sorley se lançou contra ele, Matthew habilmente agarrou o punho de sua mão direita, impedindo que o atingisse. Então, com rapidez e eficiência, derrubou-o com um soco direto na mandíbula.

— Muito bom, Matthew — elogiou Brock.

— Não luto, meu amigo, porque escolho não lutar, não porque não consiga.

— Um bom momento para lutar teria sido há um ano, quando a filha de seu velho amigo foi morta — lembrou Lucas.

— Disseram-nos que ela se matou porque você a abandonou — respondeu Matthew.

— Eu nunca acreditei nisso — acrescentou Malcolm, enquanto William o ajudava a sentar-se. — Ninguém me escutou falar e, como sou covarde, deixei de tocar no assunto.

— Ah, você não é covarde, Malcolm — discordou Brock. — É um estudioso, não um guerreiro. É sua forma de ser. Sim, e você solicitou a Morrison os livros, deixando-o saber que intuía que algo estava errado. Matthew e eu acreditamos nisso por um tempo, mas nunca tivemos coragem de perguntar. Você questionou. — Olhou para Lucas. — E, sim, deveríamos ter tomado uma atitude. Tudo o que fizemos foi assegurar que ninguém tomasse Dunlochan. Pensei que era porque compartilhávamos a crença de que havia algo errado, mas... — olhou para Morrison e Sorley

— ...é fácil ver que alguns de nós concordamos simplesmente por não desejar que Agnes controlasse totalmente a bolsa na qual metiam as mãos gananciosas.

— Discutiremos isso mais tarde — disse Lucas. — Ranald está com Katerina?

Malcolm assentiu e estremeceu.

— Sim, Levou-a para Dunlochan. Não sei por quanto tempo sobreviverá.

— Tentarão usá-la para me arrastar para a armadilha. Pretendo arrancar a isca de suas mãos ambiciosas e então acabar com esta ameaça, como deveria ter feito há meses.

— Moveu-se como uma fera enjaulada pela sala, lutando contra o ímpeto de puni-los pelo que Katerina tinha estado sofrendo e, então, deixou o aposento.

William observou todos os conselheiros estremecerem, alguns deles aparentando mais remorso que outros, e balançou a cabeça.

— Malcolm, você, Matthew e Brock fiquem de olho nesses dois ladrões. Quando isso terminar, cuidaremos deles.

Correu atrás de Lucas, suspeitando que seria necessário alguém com a cabeça fria para impedi-lo de agir precipitadamente e cometer um erro que, provavelmente, seria fatal.

A cabeça de Katerina doía e latejava com tanta intensidade que sabia que logo ficaria enjoada. Estava muito relutante em abrir os olhos e se perguntava por quê. Pelo que sentia sob as mãos e o corpo, encontrava-se esticada sobre uma mesa. Manter-se imóvel ajudava a controlar um pouco a dor, mas seus instintos lhe diziam que deveria levantar-se e correr rápido para o lugar mais distante possível. Levou um momento para perceber por que se sentia assim.

Tinha sido traída. Um dos homens em quem seu pai confiara, que considerara um amigo, a entregara a Ranald. Katerina não se surpreendera ao descobrir que alguns deles vinham roubando de Dunlochan. Já suspeitava, mas ainda assim estava chocada e desapontada. Só rezava para viver o suficiente para examinar aqueles livros e descobrir exatamente o quanto havia perdido.

Uma asquerosa mão agarrou-lhe o ombro com tanta força que sentiu as longas e afiadas unhas penetrarem suas roupas e machucar-lhe a pele. Uma sacudida provocou novamente tudo o que havia conseguido acalmar com sua força de vontade. O ardor no fundo da garganta que prenunciava a náusea a fez tossir. Tentou novamente, sem sucesso, livrar-se da ânsia, odiando a sensação e o gosto, mas detestando, acima de tudo, a falta de controle sobre o próprio corpo. Disse a si mesma que tudo o que precisava fazer para aquilo passar era permanecer muito quieta e respirar lenta e profundamente.

— Sei que está acordada, Katerina. Abra os olhos. Agora! Aquela mão punitiva sacudiu-a de novo, com um pouco mais de força desta vez. A voz aguda feria-lhe os ouvidos, fazendo com que a cabeça pulsasse ainda mais. Katerina perdeu a batalha contra a náusea. Rapidamente virou-se sobre a borda da mesa, inclinou-se e vomitou. Quando a ânsia começou a diminuir, escutou um homem rir maldosamente e uma mulher desfiar uma seqüência de imprecações.

— A cadela esvaziou o estômago em meus sapatos novos!

— Quieta, Agnes! Avisei-a para afastar-se, como eu mesma fiz. Ranald teve de atingi-la com força na cabeça para assegurar-se que ficasse inconsciente e não causasse problemas. Esses golpes freqüentemente provocam náusea.

Caindo novamente sobre a mesa, Katerina abriu os olhos com cautela e quase os fechou de novo. Freda e Ranald começavam a se aproximar dela, desviando-se cuidadosamente de uma criada rechonchuda que havia sido chamada para limpar aquela sujeira. A única coisa boa que Katerina enxergava era Agnes saindo do aposento.

Uma vez que a visão clareou, Katerina encarou Ranald. Pensou em como o homem torturara Lucas, em todos os cortes feitos com a espada e nas contusões doloridas que infligiu sobre o bonito corpo, e desejou desesperadamente matá-lo. Algo da ira que sentia devia estar evidente em seus olhos, pois Freda e Ranald hesitaram por um momento antes de continuarem andando em sua direção. Katerina não gostava de sentir tanta raiva e aversão, mas sabia que esses sentimentos a ajudavam a conter o medo.

— Não deveríamos esperar que a querida Agnes retornasse para darmos início à nossa agradável reunião? — perguntou.

— Agnes só fará o que eu mandar — respondeu Freda.

— E por que ela lhe obedeceria, se nunca obedeceu a mais ninguém?

— Porque ela é minha filha, sua tola.

Katerina queria pedir-lhe que repetisse o que dissera, queria desesperadamente ter compreendido mal, mas rapidamente sufocou a pergunta. Sabia que não conseguira disfarçar a surpresa e o choque, estampados em sua face. Freda parecia satisfeita consigo mesma e desejou ter forças para arrancar-lhe a expressão presunçosa do rosto.

Pensou no pai e sentiu-se ferida e raivosa. Ele nunca lhe dissera nada e seguramente sabia. Humilhara a mãe de sua filha, colocando-a na posição de criada e forçando-a a viver uma mentira. Pior ainda, se apegara àquela farsa durante anos, desde quando sua esposa ainda vivia. Não acreditava que a mãe conhecesse a verdade, pois nunca teria tolerado tal coisa. Havia somente uma razão para que o pai houvesse feito tal coisa, ainda que nunca tivesse ouvido a mais leve insinuação de que mantivesse amantes. Um homem com a mulher e a amante no mesmo castelo não era algo facilmente mantido em segredo. O sorriso que lentamente curvou os finos lábios de Freda fez com que Katerina achasse que o pai tivesse agido dessa forma.

— Sim — disse Freda, saboreando a palavra e cruzando os braços sobre o peito largo. — Seu pai era um bastardo. A pobre esposa nunca soube o quanto era cruel.

Ranald bufou. — Se está tentando fazê-la pensar que o velho senhor tinha ao mesmo tempo a mãe dela e você, melhor parar com esse jogo. Sim, soube que era um homem difícil, mas, não, não faria isso e certamente não teria mantido o segredo durante tanto tempo. O homem não foi seu amante, exceto por uma vez. — Ranald riu. — Meu Deus, mulher, ele nem sequer se lembrou de quem você era. Se um amigo não confirmasse a história e se Agnes não fosse tão semelhante aos Haldane, ele também nunca a teria reconhecido.

Katerina voltou-se quase boquiaberta para Ranald, percebendo, então, a expressão em seu rosto. Ele não frustrara a tentativa de Freda de mentir sobre o relacionamento com o velho senhor em um súbito e incomum acesso de compaixão. Quisera, sim, atingi-la. Obviamente, eram aliados, mas não amigos. Desconfiava que Ranald achasse algumas das ordens de Freda duras de agüentar e detestava ser comandado por uma mulher.

— Então, qual é o jogo aqui? — perguntou Katerina, antecipando-se para impedir que Freda o golpeasse. Uma briga entre os dois poderia ser útil, mas somente depois que se recuperasse do golpe na cabeça e pudesse ao menos se levantar. — E o mesmo de quando capturou Lucas, não? — Katerina emitiu um som de reprovação. — Preguiçoso demais para pensar em algo diferente? Algo que possa, de fato, funcionar?

— Isso funcionará — revidou Freda. — Sir Murray virá buscá-la e, então, teremos os dois em nosso poder. Desta vez, não haverá erros. Não, eu mesma os matarei, se necessário.

— E não acha que alguém suspeitará?

— Por quê? Todos em Dunlochan pensam que você e sir Murray estão mortos.

Perturbava-a o fato de Freda perceber o único ponto fraco de seu plano. Ao deixar todos pensarem que estava morta, Katerina sabia que seria mais fácil que o inimigo a matasse sem medo das conseqüências, caso conseguisse capturá-la. Parecera simples evitar que fosse pega, mas, olhando ao redor, concluiu que pensar assim fora perigosamente arrogante.

— O conselho agora sabe que estou viva — afirmou.

— O conselho deve ser cuidadoso para agir contra nós. Eles têm os próprios pecados para esconder.

— Não todos eles. Somente Morrison e Sorley. Freda levantou uma sobrancelha.

— Tem tanta certeza disso?

— Ah, suspeito que Matthew e Brock e talvez até Malcolm possam ter alguns pequenos pecados que você descobriu, mas duvido que encontre o suficiente para fazê-los aceitar participar de um homicídio. Dois homicídios. Eles nem mesmo sabiam que Morrison e Sorley estavam roubando de Dunlochan e se assustaram ao tomar conhecimento disso. Também ficaram horrorizados com o fato de os dois terem me entregado a Ranald, uma vez que sabem agora que ele me quer morta.

— Não me importo se você morrer ou não — disse Ranald. — E só o jeito mais fácil e seguro de evitar que volte para reclamar Dunlochan.

As palavras foram ditas em um tom tão calmo e suave que reavivaram o medo que Katerina lutava para deixar de lado. Tinha que se impedir de afundar nele. A forma como o homem falava em matar deixou claro que não encontraria clemência. Mesmo se tentasse negociar, não venceria. Ele aceitaria o acordo, tomaria o que desejava e a mataria.

— Por que ela não está morta? — exigiu Agnes, enquanto voltava à sala, dirigia-se à mesa e encarava Katerina. — Se nenhum dos dois tem coragem para tanto, dêem-me a faca.

— Ah, adorada irmã, sangue do meu sangue, como é bom vê-la novamente — murmurou Katerina.

— Não podemos matá-la agora — disse Freda. — Precisamos que sir Murray venha até aqui.

— Por que ele arriscaria a vida por ela?

— Porque é um cavaleiro, um homem honrado que se sentirá na obrigação de resgatá-la.

— Bobagem. — Agnes endereçou um sorriso sedutor a Ranald antes de olhar de novo para Katerina. — Ela vai ficar deitada aqui?

— Não, eu já ia movê-la para uma cadeira perto da lareira e amarrá-la. Não é inteligente deixá-la livre, pois poderia interferir quando sir Lucas chegar ou usar algum pequeno momento de distração para fugir. Você faria a gentileza, Ranald? — pediu Freda, a voz em uma fria imitação de cortesia.

Katerina reprimiu um grito de dor quando Ranald a agarrou pelo braço e arrastou-a para fora da mesa. Quando os pés tocaram o chão, quase desmaiou, sendo tomada pela tontura e pela náusea. Gostaria de poder lutar com ele enquanto era arrastada para a cadeira próxima ao fogo, mas estava exausta simplesmente tentando permanecer consciente. Antes que tivesse recuperado controle suficiente para enxergar claramente de novo, ele já a tinha amarrado firmemente. Katerina deixou a cabeça pender no encosto da cadeira, fechou os olhos e lutou para reduzir a dor e controlar a ânsia que a assolava. Sabia que precisava ter a mente forte e clara, mas sentir-se desta forma a deixava incapaz de pensar em algo além de sua própria miséria.

Um puxão em seu cabelo a livrou do estupor e forçou-a a abrir os olhos. Freda estava parada a seu lado, segurando seu cabelo com uma das mãos e uma faca assustadoramente grande com a outra. Katerina inspirou profundamente e expirou lentamente procurando acalmar-se e rezou pedindo coragem para enfrentar as provações que a esperavam.

— Querendo uma pequena recordação? — perguntou.

— Isso será levado à estalagem para ser entregue a sir Murray. Uma pequena missiva também seguirá, explicando-lhe exatamente para onde vir e como se comportar se quiser vê-la viva.

— Ah, deixe-me adivinhar. Deve vir até aqui sozinho ê desarmado.

― Sim.

— Depois disso, vocês o deixarão ver-me viva e, então, o matarão.

― Sim.

— Não! — gritou Agnes, correndo para perto da mãe. — Ranald disse que eu poderia tê-lo primeiro.

Por um instante, Katerina pensou que Freda bateria na filha. Havia um olhar tão feroz e furioso no rosto da mulher que Agnes de fato recuou um pouco até se aproximar de Ranald. O olhar, então, desapareceu, dando lentamente lugar a uma expressão cruel. Katerina lutou contra o tremor que a atingiu quando a mulher olhou-a novamente.

— Seria um suplício para você ver seu amante com minha filha — murmurou Freda. — Suspeito que poderia feri-la mais profundamente que a lâmina de qualquer faca.

— E por que você acha que ele é meu amante?

— Porque acreditou que você mandou espancá-lo e quase o matou e agora luta a seu lado.

— E sei bem que ele não gostará de ver Ranald tomar sua mulher — acrescentou Agnes, como se já tivesse o plano elaborado e não estivesse somente pensando em seus desejos e necessidades.

Freda assentiu lentamente. Pegou um pequeno pedaço de pergaminho de um dos bolsos do vestido negro e embrulhou o cabelo antes de entregá-lo a Ranald. — Garanta que isto chegue à estalagem e deixe bem claro que sir Lucas Murray deve recebê-lo o mais rápido possível. Assegure-se de que o homem que enviará não tente seguir quem for entregar a mensagem a sir Murray. Seria bom saber onde esses baderneiros se escondem para nos livrarmos deles, mas trazer sir Murray até aqui é mais importante no momento.

— Tem certeza? — perguntou Ranald.

— Sim. Ele é um guerreiro. Sem dúvida os lidera agora e poderia torná-los mais fortes e perigosos. Na verdade, uma vez que ela e sir Murray estiverem mortos, há grandes chances de que o resto deles aos poucos se desvaneça na névoa.

Ranald encolheu os ombros e saiu atrás de um mensageiro. Katerina não tinha certeza se ele lhe obedeceria, pois queria muito capturar o resto dos homens. Tinha que confiar que a astúcia de seu povo evitasse que Ranald os encontrasse. Preocupar-se com eles a distrairia, além de não ajudá-los em nada. No momento, deveria se concentrar em observar todos os movimentos do inimigo.

— Vocês acreditam mesmo que podem vencer, não? — disse.

— Por que não? — perguntou Freda. — Consegui tudo o que quis até agora. Você foi um obstáculo difícil e revelou-se muito mais esperta do que pensei, mas sabia que venceria no final. Seu pai nunca soube disso. Acreditava que eu fosse uma mulher estúpida que, por haver me deitado com um homem, estivesse disposta a aceitar qualquer migalha que me oferecesse. Achava que reconhecer Agnes como sua filha seria mais que suficiente para me agradar, que eu não me envergonharia quando me transformou em uma criada e recusou-se a deixar que soubessem que estivera com ele. O bastardo ameaçou me mandar embora e manter Agnes com ele se eu dissesse a qualquer um quem eu era.

Katerina pensou que Agnes poderia ter sido uma pessoa melhor se o pai tivesse cuidado disso desde cedo. Ele não fora um homem particularmente carinhoso, mas ainda assim tinha sido bom em diversos aspectos. Freda era uma mulher retorcida pelo ódio, um ódio reforçado pela ambição. Katerina sentia-se surpresa e envergonhada por nunca ter percebido isso.

— Claro que o fiz pagar por essa arrogância.

O olhar no rosto de Freda fez Katerina desejar suprimir a necessidade de fazer perguntas, o que foi impossível. Teve um estranho pressentimento sobre o que escutaria, mas isso não foi suficiente para fazê-la controlar a língua. Sentia-se compelida a desenterrar a verdade, não importando o quanto fosse feia.

— Como você acha que o fez pagar, Freda? — perguntou.

— Primeiro, tomei sua esposa.

Katerina somente encarou-a. Esperava não parecer mais do que curiosa, talvez um pouco descrente. Por dentro, queria gritar, sabendo que ela dizia a verdade. Freda acreditava que venceria o jogo e que Katerina levaria as confissões para o túmulo.

— Ela não estava passando bem com a criança que carregava e a mistura certa de ervas foi o suficiente para que se livrasse dela. Aí, só precisei me assegurar de que continuasse ingerindo a poção que a faria esvair-se em sangue.

— Então, você se sentiu forte e esperta porque matou uma criança no ventre e uma mulher no parto, duas pessoas que nunca lhe causaram nenhum mal?

— Foi por causa de sua mãe que não me tornei senhora de Dunlochan, como era meu direito. — Freda respirou como se para acalmar-se e prosseguiu. — Dei ao velho idiota mais uma chance de viver. Ele poderia ter se casado comigo assim que superasse o luto, mas não o fez. Nem sequer me olhava e foi frio e mordaz quando tentei me aproximar. — E aí você o matou também.

— Sim, — Franziu a testa. — Levou muito mais tempo para morrer do que eu esperava.

— Que insensível da parte dele.

Freda lançou-lhe um olhar de desgosto e tomou Agnes pela mão para conduzi-la até a mesa. Quando a mulher ordenou comida e bebida para eles, Katerina quase gritou. Freda assassinara sua família e, depois de confessar os horríveis crimes cometidos a sangue-frio, sentava-se para jantar. Isso a amedrontava e enraivecia ao mesmo tempo.

— Aqui, moça, trouxe-lhe algo para beber e um pouco de sopa.

Katerina olhou para o rosto gentil de Hilda e subitamente quis chorar. Parecia estranho que saber que os pais tinham sido assassinados a fizesse sofrer novamente. Supunha que fosse porque nada disso deveria ter acontecido. Porque não tinham morrido por causa de alguma doença ou do risco inerente ao parto, coisas que não podiam ser evitadas, mas pelo ato de uma mulher amarga. Se alguém tivesse sabido, se alguém tivesse realmente olhado para ela, tudo poderia ter sido evitado.

— O que está fazendo? .— exigiu Freda em uma voz aguda, apesar de não se mover para impedir Hilda.

— Pensei que, ao pedir comida e bebida, quisesse que eu cuidasse da moça — respondeu Hilda.

— Ah, faça como quiser. Não importa mais mesmo.

Katerina observou Hilda suspirar aliviada e então sussurrou:

— Ela os matou.

— Sim, criança, eu ouvi. — Hilda ajudou-a a beber um pouco de cidra. — Pagará por seus crimes.

— Tem certeza? Nunca pagou e já faz anos.

— Sua mãe era muito doce para sentir o perigo e seu pai era muito arrogante para sentir-se ameaçado por uma mulher. Você não é nada disso. — Ela levou com cuidado a colher com a sopa bem temperada à boca de Katerina.

— Você tem a força que sua mãe nunca teve e o juízo que muitas vezes faltou a seu pai. Também tem sir Lucas e muitos homens bons a seu lado.

— Meu pai tinha homens bons.

— Mas não conseguia o tipo de lealdade que você consegue. Ele comandava, mas não dava aos homens motivos para se importarem, se entende o que quero dizer.

— Acho que sim. Papai esperava ser obedecido somente por ser o senhor das terras, mas nunca fez nada para conquistar sentimentos como lealdade e respeito.

— Exatamente. Seu povo adorava Dunlochan, mas não amava seu pai de verdade, se me perdoa por dizer isso.

— Claro. Ainda assim, ele não merecia morrer dessa forma.

— Não, não merecia. — Após olhar para Freda e os demais, Hilda pôs carinhosamente a mão no rosto de Katerina. — Não se preocupe, menina. Você não perderá esta batalha.

Mantendo-se atenta a Freda e aos outros, Katerina disse:

— Não faça nada que a coloque em perigo, Hilda.

Não farei, criança. Preocupe-se somente com você.

Assim que acabou de alimentar Katerina, piscou-lhe e correu de volta para a cozinha. Tinha a sensação de que a mulher tentaria ajudá-los. Apesar de ser grata, não gostava da idéia de que mais um dos seus corresse perigo.

Por um momento, sentiu-se afogar em culpa. Nunca percebera a ameaça que Freda representava para seus pais, nunca questionara a causa de suas mortes. Não havia nem sequer visto a ameaça para si mesma até que ela e Lucas quase tinham sido mortos. Agora, as pessoas mais leais se arriscavam para tentar mantê-la viva. E todos tinham chegado a este ponto porque ela nunca prestara atenção a Freda. Sua própria cegueira trouxera esse horror para Dunlochan.

Demorou um pouco para livrar-se da profunda onda de auto-recriminação e autocomiseração em que afundara. A voz suave do bom senso tornou-se mais e mais alta, afugentando a outra voz que queria culpá-la pelo que tinha dado errado em Dunlochan. Era tolice, pois muitas dessas coisas ocorreram quando era ainda uma criança. O primeiro passo no caminho para a tragédia que se abatera sobre os pais tinha sido dado quando ela não havia nascido.

Katerina suspirou e percebeu que parte do desejo de culpar a si mesma originava-se do fato de não querer responsabilizar os pais. O pai dormira com Freda e a tratara de forma vergonhosa. E Freda transformara a ira em algo cruel e mortal. O único dos adultos completamente inocente era sua mãe. Katerina odiava culpar o pai pela morte dela e da criança que carregava, mas ele era, sim, parcialmente responsável. No mínimo, a arrogância e a crença de que nenhuma mulher fosse forte ou esperta o suficiente para representar uma ameaça para um homem tinha aberto espaço para que Freda levasse a cabo sua vingança. Mesmo quando estivera muito doente, mesmo quando percebera estar à morte devido a uma doença que nenhum dos curandeiros conseguia entender ou curar, o pai não havia olhado sequer uma vez com desconfiança para a amante rejeitada.

— Bem, logo veremos o fim disto tudo — disse Freda, aproximando-se de Katerina. — Recebemos a notícia de que a missiva está prestes a ser recebida por sir Murray.

—Você faz idéia de quem ele é? — perguntou Katerina, lembrando-se das histórias que Lucas lhe contara sobre o clã durante o tempo em que se recuperava das feridas provocadas por Ranald.

— E seu amante e defensor. Isso o torna vulnerável. O que mais é necessário saber sobre ele?

— Seu clã é muito importante. Depois que, ah, for morto, espero que apareçam aqui em grande número para encontrá-lo e que façam com que paguem por sua morte.

— Eles nem sequer apareceram para vingar-se pelos ferimentos, que eram bastante graves, há um ano. Por que me preocuparia com eles agora?

— Lucas foi o motivo de não terem vindo arrasar Dunlochan. Ele não permitiu. Mas eles o farão se quiserem. Se o matar desta vez, não desfrutarão a vitória por muito tempo.

— Não conseguirão provar nada.

— Tem certeza? Talvez Lucas lhes tenha contado sobre nós, sobre o papel de Ranald em seu espancamento e tentativa de homicídio. Talvez saibam exatamente onde ele se encontra agora e estejam simplesmente permitindo-lhe a honra de executar sua própria vingança. Se for assim, então no momento em que não retornar para casa ou que souberem que está morto, saberão para onde vir e quem procurar.

Agnes afastou-se para encarar Katerina.

— Se são tão poderosos e importantes por que nunca ouvimos falar deles?

— Porque vocês nunca se preocuparam em sair do pequeno reino que construíram aqui Se tivessem ido até a corte, teriam escutado tudo a respeito deles. Muitos dos parentes de Lucas foram até lá e são respeitados e confiáveis. Poucos desejam desafiá-los.

— Ranald, você já ouviu falar desses Murray?— perguntou Freda.

— Um pouco. Eles não gostam de lutar.

Katerina quase riu, mas forçou-se a continuar olhando para a mulher. A opinião de Ranald sobre os Murray era clara nas poucas palavras que grunhirá. Preferiam conversar, tentar estabelecer a paz e fazer alianças, tendo a luta como último recurso. Para um homem como Ranald, isso os tornava covardes que não deveriam ser temidos. Freda parecia em dúvida, mas Katerina acreditava que ela pensaria como ele. Katerina via poder e inteligência na forma como os Murray conquistavam alianças ao invés de inimigos. Freda e Ranald viam fraqueza. Rezava para que isso fizesse com que subestimassem Lucas.

—- Creio que sir Lucas tenha sido um bom guerreiro, mas está aleijado agora— acrescentou Ranald.

— Então, nada temos a temer. —- Freda olhou para Agnes. — Quer se deitar com um aleijado?

Agnes encolheu os ombros.

— Não quero tirá-lo para dançar, não é mesmo? Se ainda consegue andar, pode me dar o que desejo.

Freda suspirou.

— E por que você o quer? Porque Katerina o teve? Agnes encolheu novamente os ombros.

— E um motivo tão bom quanto qualquer outro. — Agnes sorriu para Katerina. — Pelo menos saberá como é ter uma mulher de verdade antes de morrer.

— Tarde demais. Ele já sabe. — Katerina reprimiu um grito de dor quando Agnes a estapeou.

— Vejamos o quanto ele irá apreciá-la depois que assistir a Ranald possuí-la.

— Agnes, ele não apreciará ou deixará de apreciar nada depois disso, uma vez que pretendem matá-lo. — Falava como se tentasse explicar algo para uma criança pequena e percebeu que aquilo a enfureceu, mas Freda a impediu de bater nela novamente.

— Você agora a está protegendo? — perguntou à mãe.

— Estou nos protegendo — respondeu Freda. — Sempre considero a possibilidade de que algo dê errado. Se for o caso, prefiro não explicar por que ela está contundida e sangrando.

— Você já lhe contou tudo o que fizemos, Freda — disse Ranald, enquanto dava uma volta segurando uma caneca de cerveja. — Se isso der errado, creio que alguns hematomas serão o menor de nossos problemas. Ela fará com que você seja enforcada pela morte de sua família.

— Então é melhor que fique atento e pronto para matá-lo.

— Se você não se importa, trarei alguns homens para nos ajudar a garantir a vitória.

— Tem medo de sir Murray? O aleijado? O homem que você teve três vezes à sua mercê e ainda assim falhou em matar?

— Como você disse, falhei em matá-lo três vezes. Talvez agora só queira ter certeza de que sua sorte amaldiçoada não o salve pela quarta vez.

Katerina observou Ranald afastar-se e tentou não se assustar com aquelas palavras. Não acreditava que fora somente sorte que salvara a vida de Lucas cada vez que Ranald havia tentado matá-lo. Ela o havia visto lutar antes e depois de ser ferido. Estava um pouco mais lento, mas, se Ranald o enfrentasse honestamente, de homem para homem, não tinha dúvidas de que Lucas o massacraria. Ele conseguia lidar com mais de um homem ao mesmo tempo, não duvidava disso. Katerina não gostava da idéia de Lucas entrar sozinho e desarmado no ninho de cobras, mas, se alguém pudesse sair vitorioso, esse alguém seria ele. Tinha uma vantagem com a qual eles não contavam. Poderia utilizar as passagens subterrâneas e Katerina tinha certeza de que, nesse momento, Lucas estava planejando como aproveitá-las em benefício deles.

Relaxou um pouco, o medo quase a abandonando. Lucas viria atrás dela. Aparentaria cumprir as ordens, mas teria um plano que finalmente varreria esses vilões de suas vidas. Essas pessoas não eram espertas ou fortes o suficiente para derrotá-lo. Ele viria, estaria tranqüilo e obteria a justiça tão esperada.

 

Vamos usar as passagens secretas em Dunlochan para alcançar Katerina. Lucas começou a mover-se em direção às passagens até ser agarrado por William e Patrick e arrastado de lá. Por um instante, preparou-se para enfrentá-los, para rugir sua fúria e invadir Dunlochan. Lutou para acalmar aquele ímpeto insano. Os homens que o detinham perceberam a mudança que se operou nele e cautelosamente o libertaram, apesar de permanecerem próximos a ele. Quando Annie estendeu-lhe uma caneca de cerveja, não hesitou em tomá-la de uma vez, tentando ignorar aqueles que o observavam.

— Acalmou-se? — perguntou William quando Lucas terminou de beber.

— Sim. — Lucas devolveu a caneca vazia para Annie, acenando com a cabeça em agradecimento.

— Então, sairá atacando, brandindo a espada como um antigo guerreiro enfurecido?

— Não, ainda não.

— Ah, bom. Agora podemos elaborar um plano de verdade. Poderia ser útil, não?

De fato, poderia — concordou Lucas, dirigindo-se para o salão. — Devemos elaborar nosso plano, resgatar Katerina e massacrar nossos inimigos e, então, o espancarei e o atirarei na lama por ser um bastardo impertinente.

— Soa como um plano para mim — disse William, divertido com a risada dos demais.

Uma vez de volta ao salão, onde recebera a mensagem e a mecha de cabelo que desencadearam tal ataque de fúria, Lucas teve que lutar duramente para não sentir como se cada segundo que passasse colocasse a vida de Katerina em risco. Poderia estar gravemente ferida, mesmo sendo torturada como ele fora, mas sua vida ainda não corria perigo iminente. Ranald e Agnes precisavam que estivesse viva para atraí-lo. Era a isca na armadilha. Quando uma voz em sua cabeça lembrou-o que Ranald a desejava e que poderia usá-la agora que a tinha em seu poder, Lucas afastou-a para o recanto mais profundo de sua mente. Pensar em Ranald tocando Katerina poderia enlouquecê-lo e fazê-lo agir com imprudência. Tinha que pensar somente em mantê-la viva e planejar um resgate que não custasse muito caro a seus homens.

Mesmo sem fome, aceitou o prato de comida que Annie colocou diante dele. Precisaria da força proporcionada pelo alimento. Enquanto comia, tentou pensar com calma e frieza na melhor maneira de libertá-la.

— As passagens ainda são a melhor forma de entrarmos em Dunlochan — disse.

William concordou.

— Sim, são. Só precisamos ter um plano para o que fazer quando chegarmos lá, além de massacrar o inimigo.

Robbie limpou a garganta e corou um pouco quando todos se voltaram em sua direção.

— Creio que Lucas deve fazer exatamente o que mandaram.

— Entrar lá sozinho e desarmado? — perguntou Patrick, ultrajado. — Estará morto antes de conseguirmos alcançá-los. Ambos estarão.

— Não, não acho que isso seja verdade. Lucas mesmo escutou que Ranald e Agnes querem deitar-se com eles antes. Tentarão justamente isso. Freda pode não gostar, mas não fará nada para impedi-los.

— Por que Freda acreditaria que pudesse impedi-los? — perguntou Lucas, recordando-se subitamente de como a mulher parecera poderosa e como tanto Ranald quanto Agnes agiam com se a mulher fosse muito mais que uma mera criada.

— Não sei, mas poderia, se realmente quisesse. Freda sempre teve poder sobre Agnes. Então, ambos querem desfrutar o que puderem. São como crianças mimadas nesse sentido. Pode também haver uma discussão entre os três, o que seria inadequado e Freda sabe disso. Essas coisas manterão a atenção deles em Lucas enquanto entramos em Dunlochan.

— E um bom plano, exceto por não sabermos o que encontrarmos lá. Não sabemos quantos homens estão com eles, onde mantêm Katerina e se ela poderia estar em perigo assim que perceberem que não caminhei humildemente para suas garras e que estão sendo atacados.

— Há três homens com eles, estão todos no salão nobre, e Katerina está amarrada a uma cadeira diante da lareira. — Hilda sorriu fracamente quando todos olharam para ela, sem disfarçar a surpresa. — Aqui embaixo é bem mais agradável do que eu havia imaginado.

— Sente-se, Hilda — Lucas disse, levantando-se para ajudá-la a sentar-se perto dele. Sorriu em agradecimento a Annie, que rapidamente colocou comida e bebida diante dela. — Precisa voltar correndo para que não percebam que está ausente?

— Não. Já me recolhi por hoje. — Hilda bebeu e comeu um pouco e, então, sorriu para Annie, demonstrando aprovar a refeição. — Alimentei Katerina. Ela levou uma forte pancada na cabeça, mas creio que já está se recuperando. Se estivesse solta, teria força suficiente para cuidar de si mesma e não ser um obstáculo para o que quer que precisem fazer. Tenho certeza disso.

— Acha que pode libertá-la?

— Sim, mas lhes falarei sobre isso daqui a pouco. Sabe que o querem morto. Você e Katerina. Escutei o que Robbie disse sobre o que pretendem fazer com vocês e ele tem razão. Não os matarão até conseguirem o que querem. Freda ficou furiosa a princípio, mas então passou a gostar da idéia, pois pôde ver o quanto seria agradável torturar vocês dois.

— Freda tem poder sobre eles, não?

— Tem, sim. Freda é a mãe de Agnes. — Assentiu antes os olhares chocados e continuou contando o que a ouvira confessar. — Creio que a mulher é louca.

— Sim — concordou Lucas, perguntando-se que efeitos tais notícias teriam sobre Katerina. — E essa louca está com Katerina.

Hilda deu-lhe um tapinha no braço.

— Não por muito tempo. Você a libertará e mandará aquela mulher para o inferno, que é o lugar dela.

Lucas rezou para merecer a fé que Hilda depositava nele.

— Não será tão fácil. Não em um castelo repleto de homens armados.

— Bem, talvez não tão repleto. Há aqueles leais a Dunlochan, que detestam Agnes e Ranald, mas gostam de nossa Katerina. Quando souberam o que estava acontecendo, sairão de lá, não querendo ser forçados a manter o juramento de servir a Agnes. Prometeram-lhe obediência quando acreditavam que Katerina estivesse morta e que Agnes seria a senhora de Dunlochan. Há outro grupo de homens que logo estará lutando entre si para se esconder no guarda-roupa. — Corou um pouco diante do sorriso dos homens. — E há alguns outros que descobrirão que não podem sair de seu alojamento para auxiliar Ranald.

— Hilda, você é nosso milagre. Agora tudo o que devemos fazer é encontrar um modo de desamarrar Katerina para que não fique presa naquela cadeira quando a luta começar. Você disse ter um plano?

— Tenho. Preciso de um de seus homens. Talvez Robbie ou mesmo Thomas, pois são mais magros e não tão altos quanto o resto de vocês.

— E ser magro e baixo é necessário?

— Sim, pois nenhum dos vestidos das criadas serviria em um homem grande.

— Explique-nos um pouco melhor, por favor, Hilda — disse Lucas gentilmente, sentindo uma pontada de esperança pela primeira vez em horas.

— Uma criada pode se esgueirar para dentro do salão sem chamar muita atenção. A lareira deve ser limpa após a última refeição do dia. Se eu puder vestir um de seus homens como uma criada enviada para fazer a limpeza, ele pode facilmente cortar as cordas que prendem Katerina enquanto você, sir Lucas, mantém as atenções de Freda e dos outros. O homem também pode ficar próximo de milady se ela precisar de ajuda.

— Você lideraria exércitos, Hilda — disse Lucas e beijou-lhe a bochecha. — Há uma coisa a ser considerada. Talvez fosse melhor enviar Annie para ser a criada. Um lenço em seus cabelos e um pouco de sujeira no rosto e não creio que Ranald a reconheça.

— Não — disse Robbie com tanta rapidez e firmeza que todos o encararam surpresos. Ele corou um pouco antes de prosseguir. — Eu o farei. Mesmo libertada das amarras, parece que Katerina não conseguirá lutar ou defender-se. Annie não tem habilidade com a espada e, antes que o mencionem, nem Thomas. Eu vou. Estremeço ante o pensamento de usar um vestido, mas posso fazê-lo.

— Que seja assim.

Por um momento conversavam com Hilda, coletando as informações necessárias e instruindo-lhe sobre como proceder. Assim que ela e Robbie saíram, Lucas voltou-se para os demais.

— Bem, vocês acham que esse plano vai funcionar?

— Ah, sim. Essa senhora é um tesouro — disse William.

— Verdade. Para ser sincero, acho que ela tem observado e reunido informações, talvez até elaborando planos para este momento.

— Agradeço a Deus o fato de que Agnes e os outros prestem pouca atenção aos criados.

— E mesmo. Creio que essa arrogância é nossa salvação. — Lucas tocou o cacho de cabelo de Katerina que guardara no bolso do casaco. — Melhor eu ir fazer a minha parte.

— Tenha cuidado — disse Patrick. — Estão esperando ver um tolo galante disposto a entregar sua vida por uma mulher. Você não vai querer que achem que o julgaram mal e fiquem cautelosos.

— Sei disso. Sei também que posso levantar suspeitas se atuar muito bem. Ranald esteve perto de me matar três vezes e não acreditará se eu for humilde e me oferecer em sacrifício.

— Verdade — concordou William. — Espero que Robbie mantenha aquele cabelo bem escondido também. Agnes o reconhecerá imediatamente.

— De alguma forma, creio que Robbie atuará com facilidade. — Lucas levantou-se. — Bem, fiquem com Deus. Rezo para que da próxima vez que nos encontrarmos seja sobre os cadáveres de nossos inimigos.

Patrick olhou para a porta até que não pudesse mais ver ou escutar sir Lucas e, então, voltou-se para William.

— Você pensa que ele quis dizer aquilo? Sobre os cadáveres de nossos inimigos e tudo o mais?

— Ah, sim — disse William, levantando-se e começando a se preparar. — Há somente uma forma de deter Agnes, Ranald e Freda. Enterrando-os.

Lucas escondeu o sorriso. O homem que o acompanhava até o salão nobre de Dunlochan não o revistara de maneira adequada. Apalpara de leve os locais em que normalmente se escondiam facas, sem encontrar nenhuma das cinco que Lucas trazia consigo. Uma espada teria sido melhor, mas, de qualquer forma, estava feliz por não enfrentar o inimigo totalmente desarmado.

Chegando ao salão, ficou tenso ao ver Katerina. Estudou-a com atenção e tranqüilizou-se ao verificar que não tinha mais que uma marca vermelha no rosto e um pouco de sangue no cabelo. Não escondeu toda a raiva, no entanto, ao encarar Ranald, Agnes e Freda.

— Acho que é o momento de libertá-la agora — disse em um tom duro e frio.

— É nisso que acredita? — perguntou Freda, rindo. — Não, nobre imbecil. Disse que poderia vê-la viva. Lá está ela... viva. Cumpri minha parte do acordo.

— Gostaria de poder dizer que estou surpreso. Então, é Ranald quem vai nos matar? — Olhou para os três homenzarrões perto da porta. — Não pensei que fosse precisar dos três para matar uma mulher atada a uma cadeira e um homem desarmado.

Freda levantou a mão para impedir que Ranald, enfurecido, avançasse sobre Lucas.

— E muito arrogante para um homem em sua precária posição, sir Murray.

Ele encolheu os ombros.

— Não tenho mais nada a perder. Então, por que me importaria?

— Poderia fazer diferença na maneira como vai morrer. — Voltou-se para Katerina. — Ou em quem morrerá primeiro.

— Ah, então é assim que funcionará o jogo. E não aceitarão qualquer acordo, não? Nenhuma promessa de que levarei Katerina comigo e nunca mais seremos vistos ou algo do tipo.

— Não, não creio. Tenho pouca fé na palavra dos homens.

— Considerando os homens com quem lida, não me surpreendo.

— Você não morrerá agora — declarou Agnes, aproximando-se de Lucas e colocando a mão em seu peito. — Se for muito bom para mim, talvez possa prorrogar um pouco sua vida.

Lucas observou-a e se perguntou como pudera um dia pensar que fosse uma pessoa doce e desajuizada. Podia ver a fria astúcia em seus olhos. Estava disposta a caminhar sobre quantos cadáveres fosse necessário para atingir seus objetivos. O fato de pensar que poderia levá-lo para a cama e ser correspondida somente para que ele tentasse salvar a própria vida demonstrava sua frieza. Surpreendeu-o um pouco que ela fizesse jus à fama de prostituta, mas perguntou-se se não seria uma maneira de buscar o calor que nunca sentiria sozinha. Tomou-lhe a mão, viu o brilho de maliciosa satisfação em seus adoráveis olhos azuis e soltou-a.

— Você me recusaria? — perguntou, a fúria crescendo rapidamente, as mãos cerradas ao lado do corpo.

— Creio que a ameaça de morte caso eu não a agrade pode tornar difícil um desempenho adequado. — Olhou para Ranald quando ele riu. — Se ainda planeja desposar esta mulher, seria bom nunca dormir sem um punhal a postos.

— Nunca pretendi fazê-lo — disse Ranald.

Lucas pressentiu o movimento de Agnes e rapidamente agarrou-lhe o pulso, interrompendo o tapa que pretendia desferir-lhe.

— Acho que você já marcou este rosto o suficiente por enquanto, patroa.

— É milady, seu idiota — disse tentando livrar-se dele. Lucas sorriu fracamente ao ver como Freda e Ranald ficaram tensos. Podiam ver aquilo que Agnes, em sua fúria cega, não conseguia. Ele agora detinha um deles. Era tentador atormentá-los, ameaçá-los como haviam ameaçado a ele e a Katerina, mas não podia. Robbie agora estava próximo de Katerina e não se arriscaria a ver Freda ou Ranald se dirigirem até ela.

— Poderia quebrar seu pequeno pescoço — murmurou e viu-a empalidecer conforme percebia a posição perigosa na qual se encontrava.

— Sim, poderia, e começo a pensar que ela mereceria, por ser tão estúpida, mas você não o fará — disse Freda.

— Parece confiante.

— Estou. É um cavaleiro e creio que, de fato, se mantém fiel a votos tais como não fazer mal a uma mulher.

— Não tenho certeza de me lembrar desse. — Soltou a mão de Agnes. — No entanto, não acho que valha a pena manchar minha alma matando-a.

Agnes moveu-se para perto de Ranald e olhou para Lucas.

— Você é um tolo. Eu poderia tê-lo salvado.

— Não, não poderia. Acho que você tem uma idéia errada a respeito do poder que exerce sobre esses dois. — Lucas ficou feliz ao ver que lhes retinha a atenção. Esperava que Robbie se apressasse e finalizasse o que estava fazendo e que William e os demais já estivessem se posicionando, pois estava cansado de falar com esses idiotas. Queria lutar contra eles.

— Suspeito que nem mesmo compreenda por que tem que morrer, não? — disse Freda.

— Ah, tenho uma idéia.

Katerina não acreditava que Freda estivesse demorando tanto para levar a cabo seus planos. A mulher parecia tentada a se vangloriar agora que tinha certeza da vitória.

Um leve toque em seus pulsos desviou-lhe a atenção do que acontecia no salão. Tentando aparentar que continuava com toda a atenção voltada para o grupo assassino que agora confrontava Lucas, lançou um olhar rápido para a criada e quase riu.

Robbie piscou para ela e continuou cortando as cordas que a prendiam à cadeira. Suas esperanças ressurgiram ao perceber que havia um plano para libertá-la. Só esperava que o plano não parasse ali, mas também libertasse Lucas e liquidasse Freda e seus aliados. Assustava-se com o fato de desejar tal coisa, mas sabia que aqueles três deveriam morrer ou ela e Lucas e todos os que os haviam ajudado sofreriam as conseqüências.

Assim que a última corda foi cortada, Katerina concentrou-se em permanecer quieta e agir como se ainda estivesse amarrada. Usou o tempo para avaliar sua força para sair do alcance de Freda e Ranald. Apesar de saber que Agnes era tão culpada quanto a mãe e o amante, eram eles os verdadeiramente perigosos, pois já haviam matado e não receavam fazê-lo de novo.

Sentindo que Robbie observava alguém na cozinha, Katerina olhou naquela direção. Hilda estava parada à vista e, assomando sobre seu ombro, encontrava-se Patrick. Ele sorriu e piscou para ela e o último traço de medo desapareceu. Sabia que ainda havia algum perigo, mas não deixaria que isso a dominasse. Teria fé em seu amante e em seus homens.

Momentos depois, as portas do salão nobre foram abertas abruptamente, atingindo os três vigias que Ranald posicionara ali. William lançou-se para dentro do aposento, seguido por quatro de seus homens. Arremessou uma espada para Lucas, que facilmente a agarrou, e voltou-se, então, para ajudar na luta contra os guardas. Lucas encarou Ranald e sorriu. Aquele sorriso era uma visão perturbadora e Katerina sabia que Ranald não teria outra opção, além de lutar e morrer. Levantou-se e foi imediatamente empurrada para detrás de Robbie, que permaneceu entre ela e os demais com a espada na mão.

— Quero saber onde a estava escondendo! — exigiu Katerina.

Um breve sorriso iluminou-lhe o rosto.

— Melhor não. Pode tirar essa coisa amaldiçoada de minha cabeça? Não consigo fazer isso com uma só mão e prefiro não soltar a espada.

— Também prefiro que a mantenha apontada para o inimigo.

Freda observou a luta de Ranald e Lucas, o rosto retorcido em uma expressão de fúria. Agnes olhou ao redor, procurando uma maneira de fugir. Começou a andar em direção à cozinha, tropeçando e parando quando Patrick se interpôs entre ela e Hilda. Agnes puxou uma adaga da manga e Katerina temeu que a lançasse contra Patrick. Uma das coisas que Agnes fazia com surpreendente competência era lançar facas com uma precisão mortal. Em vez disso, voltou-se para Katerina, pretendendo evidentemente matá-la ou tentar usá-la para escapar. Nesse exato momento, Katerina puxou o lenço da cabeça de Robbie, revelando seu cabelo tão característico.

— Robbie! O que está fazendo aqui? — exigiu. Katerina achou um pouco ridículo que Agnes agisse com tanto ultraje ao vê-lo lutando contra seus planos assassinos — planos esses que o incluíam. Era óbvio que ela não pensava como a maioria das pessoas. Katerina manteve os olhos na adaga de Agnes e suspirou de alívio quando Robbie entregou-lhe um punhal.

— Creio que estou tentando manter sua irmã viva, minha querida esposa assassina — respondeu.

— Quando você voltou?

— Há semanas.

— E não veio me ver?

— Não, senti uma estranha vontade de continuar respirando e você não parecia compartilhá-la comigo.

Katerina ficou satisfeita que Robbie tivesse aceitado a verdade sobre Agnes. Temera que se a visse novamente pudesse vacilar, o que lhe custaria a vida. Entristeceu-se com a dor que ele pudesse sentir por descobrir a verdade, mas era melhor enfrentar alguma angústia que morrer nas mãos da mulher. Sentiu-o ficar tenso e se perguntou se ele vira algum movimento que o alertasse sobre um ataque.

— A querida mamãe finalmente reparou em nós — disse Robbie.

— Deveria ter adivinhado, pois Agnes subitamente parece satisfeita consigo mesma — observou Katerina. — Não parece lembrar que Patrick está a alguns passos com uma espada na mão.

— Isso é bom, uma vez que Patrick sempre recebe muito mais atenção das garotas do que deveria.

Era difícil acreditar que estivesse com vontade de rir, mas estava. De repente Katerina se lembrou de que essa era uma das coisas das quais sempre gostara em Robbie. Ele sempre a fizera rir, mesmo quando era a última coisa que desejava fazer.

— Então você voltou, não? — perguntou Freda, aproximando-se devagar de Robbie e Katerina.

Um rápido olhar revelou que a mulher portava uma comprida faca. A expressão em seu rosto lhe dizia que tinha a total intenção de usá-la em alguém. Katerina suspeitava que era a ela que Freda queria matar, mas a mulher não se importaria em derrubar Robbie para consegui-lo. Quando viu que Patrick estava logo atrás de Agnes, Katerina decidiu que não havia mais perigo vindo daquela direção e concentrou toda a atenção em Freda.

— Sim — respondeu Robbie. — Havia pensado em reconciliar-me com minha esposa, mas aparentemente ela não se sente tão carinhosa em relação a. mim.

— Você é um idiota e sempre foi.

— Pareço estar do lado justo e vencedor, mamãe, então quem é realmente o idiota aqui?

— Se tivesse permanecido conosco poderia ser o senhor dessas terras.

— Não, essa posição não é sua para que a preencha como quiser e eu não quero nada conquistado com o sangue de pessoas inocentes.

Freda encolheu os ombros.

— Então, você pode muito bem morrer, pois é inútil para mim.

Katerina sentiu que Robbie ficou tenso. Não tinha certeza se era por servir de escudo para ela ou por ter que decidir para que lado deveriam pular quando Freda atirasse a faca. Subitamente, a mulher ficou imóvel e seus olhos se arregalaram. Katerina seguiu o olhar que Freda lançou para o próprio ventre e viu a ponta de uma espada. Lentamente, levantou a cabeça e encarou Katerina, antes de desabar no chão. Atrás dela estava um Ranald ensangüentado e atrás dele estava Lucas, com a espada na mão, parecendo lindamente ileso.

― Agnes parou de lutar com Patrick e olhou boquiaberta para o corpo da mãe, antes de encarar Ranald.

— Ranald, você matou mamãe.

— Sim, matei. Assim como ela me matou com todos os seus enredos e planos. — Caiu lentamente de joelhos e , deu-lhe um sorriso repulsivo, com o sangue escorrendo-lhe da boca. — Não se preocupe, minha linda cadelinha. Suspeito que logo a verei de novo no inferno.

Patrick tomou a adaga das mãos subitamente frouxas de Agnes e deixou-a ir. Katerina saiu de trás de Robbie enquanto Agnes caminhava lentamente para onde a mãe e o amante jaziam sem vida. Por um instante, o lábio inferior tremeu e Katerina aguardou uma estrondosa manifestação de luto, considerando até mesmo ir até lá para confortar a meia-irmã. Mas Agnes respirou profundamente e voltou-se para Lucas.

— Devo lhe agradecer por me livrar dessas pessoas — disse, com a voz suave e lisonjeira. — Não conseguia me libertar e continuavam a me arrastar cada vez mais para - suas tramas ardilosas.

Robbie emitiu um ruído de profundo desgosto.

— Você está cercada de mortos, falou abertamente sobre seus planos para matar as pessoas e tem a audácia de agir como se fosse apenas uma vítima? Nem mesmo você é boa o suficiente para fazer isso funcionar, Agnes. Seja adulta uma vez na vida e aceite a própria culpa.

Ela olhou para ele um momento, antes de recordar que seu plano era salvar a própria pele. Imediatamente voltou-se para Katerina com os grandes olhos azuis repletos de lágrimas.

— Irmã, você não pode querer me matar, pode? Tenho seu sangue. Compartilhamos um pai.

— Sim, até que sua mãe o matasse — disse Katerina e correu para Lucas, que abriu os braços para ampará-la. — E tentou fazer Lucas ser assassinado só porque ele não se arrastou para sua cama. Não, irmã, não procure perdão aqui.

— O que pretende fazer comigo?

Katerina olhou para Lucas, mas ele somente a beijou na testa.

— E decisão sua, Kat. Você já deve ter pensado sobre esse assunto.

De fato, ela pensara, mas sempre acreditara que Agnes não sobreviveria ao confronto final. De certa forma, estava contente que tivesse sobrevivido, pois, não importava o que tentara fazer, Katerina nunca se esquecera de que era sua irmã. Respirou fundo, tentando acalmar-se, e virou-se para ela. Apoiava-se em Lucas, buscando o suporte e a força necessária para o que deveria fazer.

— Não posso enforcá-la como merece. Mesmo que nunca tenha empunhado pessoalmente as armas, tem muito sangue em suas mãos para simplesmente ser solta. Não, será enviada ao convento de Dunbarton. Darei a eles um bom dote por você e me assegurarei de que entendam que nunca poderá sair de lá.

— Não, Katerina, você não pode fazer isso. Não posso viver em um convento!

— Não tão pode como vai.

— Mas elas se vestem com ásperos vestidos de lã e só rezam o dia todo.

— Isso lhe fará bem. Sugiro que junte algumas poucas coisas para usar durante a jornada e por algum tempo antes de adotar o hábito.

— Elas cortarão meus cabelos.

Katerina se esforçou para impedir-se de recuar. Pela primeira vez, Agnes parecia de fato chocada.

— Você mandou matar pessoas, Agnes. Tenho o direito de enforcá-la e muitos me considerarão uma tola por não fazê-lo. E o convento ou a forca. Acredite, se não for para um convento, podem exigir que seja punida com a morte. O julgamento seria facilmente tomado de minhas mãos por alguém mais poderoso. — Observou-a enquanto se afastava, os passos hesitantes, a cabeça baixa, uma imagem da derrota absoluta. William a acompanhava em silêncio.

— Não vacile, garota — murmurou Lucas, beijando-lhe a testa.

— Não, este é um julgamento muito mais complacente do que ela merecia — disse Robbie.

— Ah, Robbie, temo não ter pensado no que isso representa para você — lamentou Katerina. — Ainda está casado com ela.

— Ela estará em um convento. Se quiser, posso obter uma dispensa especial.

Um grito vindo do andar superior chamou-lhes a atenção, e instantes depois estavam todos correndo escada acima. Assim que entrou no quarto de Agnes, Katerina soube o que tinha acontecido. Mesmo não querendo ver, andou até a janela, onde um pálido William se encontrava. Lucas envolveu-a nos braços e olhou para baixo. Agnes estava prostrada no solo, uma mancha escura espalhada sob o corpo sem vida. Katerina dissera à irmã que as opções eram a forca ou o convento. Agnes obviamente encontrara uma terceira alternativa.

— Ainda acho que ninguém acreditou na sua história de que Agnes foi morta em meio à confusão da batalha — disse Katerina, enquanto depositava algumas violetas no túmulo da meia-irmã.

— Talvez não, mas nunca questionarão. Ela se foi. É triste, mas é tudo com o que se importam— Lucas afirmou com calma, ainda inseguro sobre como Katerina se sentia a respeito de tudo o que ocorrera. — Você lhe ofereceu um misericordioso alívio da forca. No entanto, ela escolheu morrer. Isso é tudo. — Observou-a franzir a testa diante do túmulo. — Ainda sofre por ela? Já faz um mês.

Fora o mês mais longo da vida de Lucas. Katerina não o mandara embora, como havia temido, mas o deixara de lado. Conseguia entender por que ela o mantinha fora de sua cama. Temia perder o respeito de seu povo, aparentando não ser melhor do que Agnes. Como não havia modo de convencê-la de que ninguém pensaria isso a seu respeito, ele dormia sozinho. Todo o trabalho que havia sido necessário realizar ajudara muito, ao deixá-lo cansado demais no fim do dia. Assim, conseguia dormir, apesar do desejo que o atormentava. Infelizmente, o trabalho começava a diminuir. A necessidade por Katerina não, e duvidava que um dia isso aconteceria.

Se eles se casassem, tudo se resolveria, mas ainda não encontrara a oportunidade de trazer o assunto à tona. Tinha estado cortejando-a, tentando recuperar seu afeto e confiança, mas não era muito bom nisso. Trouxera-lhe flores, que pareciam estar sempre murchas e amassadas quando conseguia entregar-lhe. Tentara escrever-lhe cartas de amor, como faziam os que cortejavam as mulheres, mas logo queimara todas as tentativas. Conhecia diversas canções que, dizia-se, agradavam as damas, mas sua voz para cantar levaria qualquer um a fugir do aposento com as mãos sobre os ouvidos. Lucas não sabia o que mais poderia fazer. Sabia que um dos trunfos era levá-la para a cama, mas ela não permitia que se aproximasse o suficiente para tentar despertar-lhe a paixão. Katerina voltou o rosto para Lucas e se perguntou por que ele parecia tão apático. Nunca dissera nada, mas não se arrependia da morte de Agnes e ela não o culpava. Ele não a matara e provavelmente não o faria, a menos que fosse realmente necessário. Fora uma escolha de Agnes acabar com a própria vida e suspeitava que Lucas considerara uma boa solução para o problema.

Ela o desejava com ansiedade, gostaria que a tomasse nos braços e permitisse que absorvesse sua força, mas devia resistir à tentação. Sabia que não parariam no abraço reconfortante. Logo teria de decidir o que fazer a respeito dele, mas ainda se sentia muito covarde.

— Agnes era jovem e bonita — começou, decidindo direcionar a atenção dos dois para a meia-irmã.

— Kat, ela também já havia perdido por completo a noção de moral — disse Lucas.

— Sei disso. Você me perguntou se ainda sofria por ela. É triste e me perturba o fato de que não sofro nem um pouco por ela. Por um breve instante, logo que vi o que fizera, senti pesar, pelo fato de meu último parente próximo estar morto ou simplesmente pelo pecado horrível que acabara de cometer. Tenho vindo até aqui para ver se, uma vez passado o choque, conseguiria sentir algo. Não senti. Somente uma pontada ocasional de pena por uma vida desperdiçada.

Lucas pegou-a pela mão e puxou-a até que começassem a retornar ao castelo.

— Isso não é culpa sua.

— Ela era minha irmã. De alguma forma, eu deveria sentir alguma coisa.

— Ela nunca permitiu que isso acontecesse. Suspeito que no início você a quisesse como irmã, desejosa de ser boa para ela, e ela a afastou. Ela é a culpada pelos sentimentos que provoca em você. Deixe-a ir, Kat. Ninguém a julgará mal por não sofrer por Agnes.

Ela assentiu.

— Creio que ainda visitarei seu túmulo de tempos em tempos, no entanto, ao menos por respeito pelo que poderia ter sido se ela tivesse tido uma mãe diferente ou se ambas tivéssemos tido um pai mais afetuoso.

— Sempre acreditei que todo túmulo deve ser visitado de vez em quando. Mantém os espíritos sossegados.

— Lucas Murray, não me diga que acredita em fantasmas.

— Ah, sim, acredito. Não posso evitar, com o tipo de parentes que tenho.

— Quer dizer que um daqueles dons que mencionou em seu clã é ver fantasmas?

— Tenho um primo que os vê, mas acho que devemos guardar essa história para outro momento, uma vez que os convidados estão chegando para o casamento de Robbie.

Katerina concordou, enquanto Lucas a conduzia para os fundos do castelo, de forma a, no momento, evitarem os convidados.

— Sabia que Annie estava apaixonada por Robbie, mas nunca percebi que ele correspondia.

— Eu adivinhei antes que fossemos resgatá-la de Freda. Pensei que Annie pudesse ser a melhor opção para atuar como a criada, mas ele se antecipou, oferecendo-se com tanta rapidez e veemência que soube que a fazia para evitar que Annie se aproximasse de qualquer perigo.

— Bem, isso é bom, pois Annie ama mesmo o tolo.

— Ah, não chame seu novo administrador de tolo.

— Administrador. Robbie. Duas palavras que nunca achei que se encaixariam tão bem. Ele adora trabalhar com números, não?

— Sim e o faz com muita competência. Temos agora a soma de quanto foi utilizado indevidamente por Morrison e Sorley. Devemos entregar-lhes antes que voltem para casa depois do casamento.

Ela parou na porta do quarto.

— Você acha mesmo que devolverão? Lucas assentiu.

— Acho, apesar de Sorley odiar cada minuto e lamentar cada centavo.

Katerina riu e o empurrou com delicadeza.

— Vá. Apronte-se para o casamento. Encontro você no salão dentro de uma hora.

Assim que entrou nos aposentos, Katerina apoiou-se na porta e fechou os olhos. Não conseguiria continuar afastando-o. Cada parte dela ansiava por ele. Dormia mal, sentindo saudade do calor de seu corpo forte e grande perto dela, mesmo que tivessem compartilhado uma cama por tão pouco tempo. Era hora de deixar de ser covarde e decidir o que fazer. O fato de ele permanecer em Dunlochan, sem demonstrar vontade de ir, e de a estar cortejando implicava que ainda a queria. A única coisa que os impedia de estar juntos era seu medo de ser magoada. Katerina sabia que teria de superá-lo. Estar longe dele não amenizava a dor. Então, por que não aproveitar a oportunidade e ficar com ele?

— Boa pergunta, Katerina — murmurou, caminhando até o jarro de água e tirando o vestido para se lavar.

Annie e Robbie se casariam em breve e se concentraria nisso no momento. Recusava-se a carregar seus problemas para a celebração. Mais tarde, quando estivesse novamente sozinha na enorme cama, confrontaria seus medos e se decidiria. Também não era justo com Lucas mantê-lo tão próximo e tão distante ao mesmo tempo.

Katerina encostou-se na parece e observou os dançarinos, acompanhando a música com o pé. Ela dançara, até com Lucas, mas sabia que devia ser cuidadosa. Dançar a deixara com a cabeça perigosamente leve. A última coisa que queria era desmaiar no chão do salão durante as celebrações do casamento. Haveria, sem dúvidas, perguntas inadequadas para serem respondidas.

— Kat, querida — chamou Malcolm, aproximando-se dela.

— Olá, Malcolm — respondeu e sorriu-lhe antes de beijá-lo no rosto. — Fico feliz em ver que se recuperou do golpe na cabeça.

— Sim, sim. Pensei ter uma cabeça muito dura, mas acho que estava enganado. Morrison tem se desculpado bastante.

— E ele deve mesmo. Você era seu amigo.

— Ainda sou. Ele agiu por medo, Katerina. De forma errada, claro, mas compreensível. Na verdade, vim lhe apresentar minhas mais sinceras desculpas.

— Não tem do que se desculpar, Malcolm.

— Ah, tenho sim. Deveria ter tentado com mais empenho descobrir o que exatamente havia acontecido com você. Sabia que nunca faria aquilo, mas não tive coragem de me manifestar, de questionar. O mesmo se aplica ao dinheiro. Sentia que havia algo errado, mas nunca olhei muito de perto. Levei meses para ter coragem de perguntar a Morrison se podia dar uma olhada nos livros.

— Malcolm, o que aconteceu em Dunlochan foi algo que ninguém poderia imaginar. Não é culpa sua não ter visto os crimes. E, como acabou de dizer, Morrison era seu amigo. Natural que relutasse em pensar que estivesse fazendo algo errado. Fico feliz que não tenha sido muito curioso, pois o teriam matado. Ranald e Freda silenciavam todos os comentários sobre seus crimes dessa forma. Não duvido que o tivessem matado sem hesitação ou remorso. Falavam sobre como todo o conselho representava uma ameaça para eles enquanto me mantinham presa e a solução era a mesma de sempre — matar.

Os ombros delgados se inclinaram um pouco.

— Ainda assim, a situação não seria essa durante tanto tempo se eu tivesse sido mais valente.

— Você não sabe disso com certeza. Ainda assim, estou segura de que, se tivesse começado a acusá-los de assassinato ou roubo ou começasse a examinar os livros, eu teria que visitar outro túmulo.

Malcolm sorriu para ela.

— Obrigado por fazer um velho homem não se sentir tão inútil.

— Deixe disso, não é tão velho assim. — Apontou com a cabeça em direção a Hilda, que acenava para eles. — Nossa Hilda certamente concorda comigo. Malcolm, está fugindo?

— Sim, o mais rápido possível — disse, tentando ziguezaguear entre a multidão que ocupava o salão.

Quando Hilda se aproximou e percebeu que Malcolm não se encontrava mais a seu lado, Katerina maliciosamente apontou a direção que ele tomara. Rindo, observou seu povo e se sentiu realmente feliz pela primeira vez em muito tempo. Era assim que a vida em Dunlochan deveria ser. Percebeu também que, apesar de as coisas terem sido muito ruins quando Freda estava no controle, não haviam sido tão boas assim nos últimos anos de vida de seu pai.

Outra coisa que fora definitivamente corrigida era o lugar que os primos ocupavam. William era seu segundo em comando e muitos de seus irmãos lutavam a seu lado. Katerina suspeitava que levaria um longo tempo para perdoar o pai pela forma como os tratara. Para um homem que lamentava com tanta freqüência o fato de não ter um filho, deixara de lado com demasiada facilidade diversos sobrinhos, um dos quais poderia ter sido um bom herdeiro.

Sinalizou para que um pajem a servisse de mais vinho. Katerina sabia que a bebida já lhe subira à cabeça, mas não se importava. Era um festejo e queria celebrar até ter que ser carregada para a cama.

Não se surpreendeu quando Lucas subitamente veio-lhe à mente. Nada lhe agradaria mais do que ele carregá-la para a cama. Envolvida em pensamentos sobre as incontáveis possibilidades uma vez que estivessem no quarto, sentiu-se corar quando a sorridente Annie surgiu a seu lado.

— Meu casamento levou-a a sonhar com o seu? — perguntou.

— Seguramente não — Katerina respondeu, desejando soar convincente. — Está muito quente aqui.

Annie revirou os olhos.

— Claro que está. — Annie balançou a cabeça. — Tem que parar de ter medo, Katerina. — Annie corou, pois ainda não se acostumara a chamar a senhora de Dunlochan pelo primeiro nome. — O homem permaneceu aqui e ajudou-a em troca de um pequeno sorriso de vez em quando. Acha que ele só está precisando ocupar-se com algo? Há somente um motivo pelo qual permanece aqui e é você. Acho que precisa descobrir o que ele quer.

— Sei exatamente o que quer.

— Bem, claro que quer aquilo, como todos os homens. Mas eles não ficam consertando estábulos para conseguir. Não, não quando são tão charmosos e serão senhores de suas próprias terras um dia. — Deu-lhe um tapinha no braço. — Vejo que meu homem procura por mim e que o seu procura por você. A única pessoa que ainda se recusa a ver que ele é seu homem é você. Pense nisso.

Katerina observou-a se apressar para junto de Robbie. Por um instante, sentiu uma pontada de inveja, que rapidamente afastou. Robbie e Annie mereciam a felicidade. Arriscaram suas vidas para ajudá-la a recuperar o que lhe pertencia. Se não estava feliz, só podia culpar a si mesma.

Sentiu que Lucas estava próximo antes que escorregasse o braço ao redor de sua cintura. Sabendo que qualquer um que os olhasse veria a familiaridade com que a tocava, quase se afastou. Deteve-se, no entanto, ao perceber que aquilo o magoaria. Após tudo o que fizera por ela, não o humilharia afastando-se como se ele tivesse alguma doença contagiosa.

Tocou sua orelha com os lábios e Katerina tremeu, sentindo o desejo nascer. Lançou um olhar para a caneca de vinho e suspirou. Era tolo culpar a bebida, especialmente porque não tinha sido forçada a beber. Não era o vinho que a fazia sentir o sangue esquentando. Era Lucas.

— Você não dançou de novo. Dançarei com você, se quiser.

Katerina tomou um gole de vinho para esconder o sorriso. O tom de Lucas era de quem tinha se oferecido para uma sessão de tortura. Sabia que dançaria com ela se quisesse, assim como sabia que odiaria cada minuto. Ele o faria para deixá-la feliz.

Por algum motivo, isso a fez sentir-se a maior idiota do mundo. Ele a tratara injustamente e a magoara, mas quem ela estava punindo agora — a ele ou a si mesma? Concluiu que seria tolo tentar chegar a uma conclusão após ter bebido tanto vinho. Queria e precisava desesperadamente levá-lo para seu quarto e fazer amor com ele até esgotá-lo. E, então, poderia jogar água fria nele e começar tudo de novo.

Virou-se e olhou-o. Lucas Murray era o mais belo homem que já vira e a desejava. E no momento não se importava se fosse somente luxúria. Katerina lentamente correu a ponta do dedo pela cicatriz em seu rosto e ouviu-o prender a respiração.

A expressão nos lindos olhos azuis de Katerina provocou em Lucas a sensação de que acabara de correr quilômetros. Olhou para sua caneca e se perguntou quanto vinho ela bebera. Talvez por isso olhasse para ele como costumava olhar. Ela, então, encostou o corpo no dele, os seios pressionando seu peito.

— Lucas — sussurrou.

Subitamente, parou de se importar se era efeito do vinho. O modo como dissera seu nome, a voz baixa e rouca, fez com que ardesse de desejo. Ela o fazia suar enquanto se decidia se seria correto levá-la para cama. Seu irmão, Artan, pensaria que ele tinha enlouquecido.

— Katerina, é melhor ter cuidado — disse, sem se surpreender com o tremor na voz. Espantava-o que o corpo todo não sacudisse. — Se disser meu nome de novo dessa maneira, correrei para o quarto carregando-a nos braços. E desta vez não permitirei que me feche para fora.

Sentiu-se tentada, por um momento, a ver se ele seria capaz, mas uma leve noção de bom senso prevaleceu. Ele não fazia ameaças ou, pensou, suprimindo um sorriso, promessas vazias. Escorregou a mão por seu braço e entrelaçou os dedos nos dele. Ignorando-lhe o olhar levemente confuso, conduziu-o para fora do salão. Perto da escada, verificou que não havia ninguém por perto, olhou para ele e sorriu.

— Lucas — sussurrou.

Teve que reprimir um grito quando ele rosnou, levantou-a e lançou-a sobre o ombro. Queria rir, pois sabia que não estava somente brincando, que parte dele realmente se sentia assim, e aquilo a fazia vibrar. Katerina ficou satisfeita por ninguém tê-los visto a caminho do quarto. De alguma forma, não parecia um comportamento adequado para a senhora do castelo.

Lucas entrou no aposento e colocou-a no chão, deixando o delicioso corpo escorregar pelo seu. Estava pronto para rasgar suas roupas e possuí-la contra a porta, mas precisava dar-lhe mais uma chance de mudar de idéia. A última coisa que desejava era encontrá-la embaraçada e arrependida na manhã seguinte.

— É muito perigoso que eu fique aqui — disse, lutando para controlar a respiração e soar como um homem cortejando uma mulher, em vez de alguém disposto a ajoelhar-se e implorar para ficar somente aquela noite. Então, ela poderia comportar-se apropriadamente outra vez e ele poderia voltar a cortejá-la.

— É mesmo? Perigoso para quem?

— Perigoso para você.

— Ah, não. Não concordo. — Parte dela se chocava com o quanto se deleitava. Chutou a porta, que se fechou, e trancou-a, o tempo todo o encarando com um sorriso no rosto. — Acho que quem corre perigo esta noite é você, sir Lucas.

— Graças a Deus! — exclamou e a agarrou.

Katerina finalmente encontrou forças para levantar a cabeça e olhar ao redor. As roupas de ambos estavam espalhadas por todo o lugar. Esperava que não tivessem rasgado muitas coisas ou a lavadeira se divertiria.

— E um homem selvagem, sir Murray — murmurou.

— Obrigado, milady — disse, acariciando-lhe os seios. Gemendo de prazer com seu toque, Katerina sabia que deveria mandá-lo de volta a seus aposentos. Dormir em seus braços a fascinaria e tornaria muito difícil que abrisse mão de tudo isso novamente. Acordar junto a ele de manhã também seria muito arriscado. Estremeceu quando sentiu que. lhe tomava o mamilo intumescido na boca e o mordia de leve.

— Selvagem.

— Você me lisonjeia.

Riu e se torceu um pouco quando ele começou a sugar-lhe o seio como se tivesse todo o tempo do mundo e não a estivesse enlouquecendo. Katerina enroscou os dedos em seus grossos cabelos e segurou-o perto de si, fechando os olhos enquanto se abandonava ao prazer. Tinha sentido tanta falta disso, tanta saudade dele. Certamente somente por uma noite, uma noite curta que ela encerraria antes do raiar do dia, se permitiria aproveitar.

Lucas olhou para ela, enquanto tocava a pele suave de seu ventre. Era tão linda no auge da paixão! Era ainda mais bonita rasgando suas roupas tão rápido quanto ele rasgava as dela, pensou com um sorriso satisfeito. Katerina conseguia ser tão selvagem quanto ele e era mais grato por isso do que conseguiria expressar.

— Katerina, tem certeza de que não está bêbada? — perguntou, sentindo uma ponta de culpa ao se perguntar se teria se aproveitado dela.

— Sim, talvez um pouco. Mas não se aflija, você não se aproveitou de mim. Acho que eu, ah, instiguei-o um pouquinho.

Ela ofegou quando Lucas inseriu as mãos entre suas coxas e começou a acariciá-la. Não tinha certeza se arfava pelo choque provocado por uni toque tão íntimo ou pelo deleite que desfrutava e logo deixou de se importar. Agarrou-se a ele enquanto era atormentada por seus carinhos. Corou quando os lábios seguiram o caminho percorrido pelas mãos. G primeiro toque da boca quente a fez estremecer, o corpo todo em chamas. Ignorou o pensamento de que deveria afastar-se de algo tão escandaloso.

Lucas agarrou seus quadris para mantê-la firme enquanto a amava com a boca. Saboreava os gritos suaves e a maneira como ela lentamente se abria para ele, o corpo satisfazendo-se com os beijos íntimos. Quando sentiu que ela começava a contrair-se, quase dominada pelo prazer, uniu rapidamente seus corpos. Beijou-a, penetrando-a profundamente. No instante seguinte permitiu-se acompanhá-la, o corpo estremecendo com a força da liberação de seu desejo.

Assim que conseguiu se mexer, deitou-se de costas e atraiu-a para seus braços. Lucas sentia-se inquieto, pois essa era uma grande mudança para ela. Preparou-se para ser mandado embora e, talvez, para encontrar-se onde havia estado de manhã. O fato de ela ainda sentir o mesmo desejo selvagem que ele, de a paixão ainda incendiá-la servia de consolo, mas também tornaria muito difícil que voltasse sozinho para a cama de novo.

— Mulher, está se esforçando para me enlouquecer — murmurou.

Katerina sorriu de encontro a seu peito e lambeu-lhe o mamilo.

— Talvez eu esteja cansada de ser boazinha...

— Ah, bem, acho que está sendo muito boazinha no momento...

— É mesmo? — Abaixou-se um pouco e correu a língua pelo ventre de Lucas. — E agora?

— Mais ainda...

Durante alguns instantes, Katerina beijou-o e acariciou-o com a língua, saboreando sua pele, brincando com seu umbigo, experimentando a aspereza de suas pernas. Sabia, pela tensão crescente, que ele esperava, querendo saber se ela contemplaria certa parte de seu corpo com um beijo ou dois, mas provocou-o um pouco mais.

— E agora? — perguntou, correndo lentamente a língua por seu membro.

— Hum, melhor impossível...

Pelo tempo que conseguiu, Lucas desfrutou a forma como Katerina o amava com a boca, Estava espantado-que, mesmo após fazerem amor duas vezes, tivesse dificuldade para se controlar, mas sabia que passara tempo demais sem ela.

Alguns minutos depois, sentiu-se impelido a penetrá-la. Agarrou-a e colocou-a sobre seu corpo. Ela sabia o que desejava e, com estonteante lentidão, baixou o corpo sobre o dele. A maneira como se movia logo o enlouqueceu. Lucas agarrou-a pelo quadril e incitou-a a acelerar o ritmo.

Elevaram-se juntos nas crescentes ondas do prazer, e a sensação era tão boa que Lucas desistiu de conter-se. Quando atingiram o auge, os gritos de ambos se misturaram, parecendo-lhe compor a música mais doce que já : escutara. Envolveu-a nos braços e percebeu, pelo relaxamento que a tomava, que dessa vez ela precisaria dormir um pouco. E, tinha de admitir, ainda que para si mesmo, que um descanso também lhe faria bem.

Manteve-a entre os braços, acariciando-lhe os cabelos e saboreando a sensação de estar completamente saciado. Sabia que era isso o que Katerina queria, era disso que precisava, mas estava encontrando problemas para convencê-la. Talvez fosse hora de entrar em contato comum de seus primos que tinha jeito com as palavras e sabia do que uma mulher gostava. Além do que tinham acabado de fazer, pensou sorrindo.

Lucas queria uma esposa e uma amante, a união perfeita em uma pequena mulher de grandes olhos azuis e cabelos cor de mel. Soubera disso há um ano e sabia disso agora. Por algum motivo perdera essa noção, enlouquecera por um tempo, mas tinha que convencê-la de que nunca o faria novamente. Era uma enorme dificuldade para um homem pouco habilidoso com palavras suaves e explicações. Ainda não conseguira nem sequer formular uma desculpa apropriada.

— Lucas, você precisa voltar para sua cama — resmungou Katerina contra seu peito.

Aquilo o magoou, mas já esperava.

— Não podemos permitir que alguém no castelo o veja saindo de meus aposentos. —Cobriu a boca para esconder um bocejo. — Eles adivinhariam o que estivemos fazendo.

Lucas estava tentado a dizer que, com todo o barulho que fizeram, duvidava que muitos não soubessem o que tinham estado fazendo. No entanto, sabia que era importante para Katerina não ser vista como alguém semelhante a Agnes. Sabia que o que fizeram juntos não tinha nada a ver com as atitudes da meia-irmã, mas estava certa em pensar que outras pessoas poderiam não ver tanta diferença. Ele não se preocupava com o que pensassem, sabia que quem importava nunca os condenaria. Ainda assim, apesar do quanto desejava estar com ela, voltaria para a própria cama, pois não queria arruinar a noite ou encerrá-la em um tom de discórdia.

— Daqui a pouco, Kat. Faltam horas para o amanhecer e suspeito que faltem horas para que os convidados partam ou procurem um lugar para dormir.

— Ah, sim. Não tinha pensado nisso.

Alguns instantes depois, percebeu que seu corpo amolecia completamente e sabia que já estava adormecida. Era tentador unir-se a ela no sono e usar isso como desculpa para ainda se encontrar ali pela manhã, mas estava decidido a não ceder a essa tentação. Esperaria até que tudo estivesse em silêncio e que não houvesse passos instáveis no corredor e, então, se esgueiraria até seu quarto, na esperança de que ninguém tivesse ido dormir lá durante sua ausência. No dia seguinte, no entanto, conversaria com Katerina. Não agüentava mais essa situação e não queria despertar mais nenhuma manhã sem tê-la em seus braços.

 

Katerina abriu um olho e percebeu os ombros largos nos quais se esparramava. O estômago apertado começou a agitar-se. Sentiu um ardor na garganta. Sabia o que aconteceria a seguir. Acontecia todas as manhãs, fazia quinze dias. Era por isso que ignorara a necessidade crescente por Lucas, permanecera firme na decisão de mantê-lo fora de sua cama, apesar de desejá-lo tanto. Por isso deveria ter-se assegurado de que ele houvesse retornado para seu próprio quarto, na noite passada. Com um gemido baixo, levantou-se, sem se preocupar com a nudez, e correu até o balde no canto do aposento.

Lucas franziu a testa ao despertar, ouvindo alguém passar mal. Por um momento, temeu que algum convidado tivesse entrado em seu quarto durante a noite e agora estivesse pagando caro por ter exagerado na bebida durante a festa de casamento. Esperava que a pessoa ao menos encontrasse o balde. Recordou-se, então, de onde estivera na noite passada e olhou cuidadosamente ao redor. Praguejou quando percebeu que caíra no sono e, se a luz que entrava pela janela fosse uma indicação, dormira até tarde.

Isso significava que quem passava mal era Katerina, pensou alarmado. Sentou-se e imediatamente viu Katerina, ajoelhada ao lado de um balde velho, quase o abraçando, completamente nua. Sabia que apreciaria a visão se ela não estivesse passando mal, esvaziando o estômago, choramingando e gemendo de desconforto.

Levantou-se da cama e correu para seu lado. Quando ela desabou contra ele, ignorou a fraca insistência de que era capaz de cuidar de si mesma e carregou-a de volta para a cama. Levou-lhe água e segurou a tigela enquanto ela lavava a boca.

Lucas molhou um pedaço de pano e enquanto a sentava com cuidado na cama, começou a banhar sua face. Parecia muito pálida e gemia de vez em quando.

— Foi o vinho? — perguntou suavemente, deitando-se sob as cobertas e tomando-a nos braços, aliviado quando ela permitiu que ele a confortasse.

—Não.

Lucas observou-a. A resposta fora um resmungo. O corpo de Katerina ficou pesado e a respiração se suavizou. Lucas relaxou quando percebeu que ela dormira. Se o problema tivesse sido provocado por algo além do exagero na comida ou na bebida, não acreditava que dormisse tão facilmente. No entanto, ainda se preocupava com a intensidade do episódio e estava disposto a fazê-la descansar até que se assegurasse que fora uma simples reação a algo que não lhe caíra bem no estômago.

— Vê, Kat? Precisa de alguém que tome conta de você — murmurou.

Pensando nisso, concluiu que gostava da idéia de ter alguém de quem cuidar. O que o atraía ainda mais era a certeza de que Katerina não exigiria tais cuidados com tanta freqüência. Era saudável, forte e uma mulher que não precisava ouvir de um homem como as coisas deveriam ser feitas. Isso faria com que cuidar dela quando necessário fosse um privilégio ao invés de uma obrigação.

Logo voltou a pensar no episódio que presenciara. Convivera com Katerina durante semanas e ela nunca demonstrara ter um estômago sensível. Na verdade, algumas vezes esperara que sofresse pelo que havia comido, não porque a comida estivesse estragada, mas por tudo o que havia ingerido ao mesmo tempo. Para Lucas, alguns alimentos nunca deveriam ser misturados.

Ouviu alguém mexendo no trinco da porta e ficou tenso antes de se lembrar que Katerina a havia trancado. Permaneceu quieto por um momento, sabendo que ela não gostaria que ninguém soubesse que ele estava ali. Seria mais fácil explicar uma porta trancada que um homem nu em sua cama.

— Milady, trouxe-lhe pão e chá de maçã. Annie me disse que é isso que come pela manhã. Devo deixar aqui perto da porta?

Pão e chá de maçã? Lucas pensou que havia algo familiar e alarmante a respeito disso. Saiu da cama, vestiu-se e foi até a porta. Reconheceu a voz de Megan e sentiu que poderia confiar que ela não contaria a todos no castelo que o vira no quarto de Katerina. Com o maior cuidado possível, abriu a porta e pôs um dedo sobre os lábios, pedindo-lhe silêncio. Ela o encarou de olhos arregalados por um instante e, então, reprimiu um sorriso enquanto lhe entregava a bandeja. Lucas olhou para a comida insossa e de novo para Megan que, agora, nem tentava ocultar a expressão.

— Você não dirá nada, não? — pediu-lhe.

— Claro, não tenho a língua solta — disse.

— Não achei que tivesse. — Observou novamente a bandeja e encolheu os ombros. — Bem, obrigado por assumir as tarefas de Annie por enquanto.

— É um prazer, meu senhor.

Antes que pudesse corrigi-la e dizer-lhe que ainda não era seu senhor e que, se Deus quisesse, não se tornaria senhor de Donncoill por muitos anos, ela desapareceu no corredor. Percebendo subitamente que estava seminu, parado onde qualquer um poderia vê-lo, voltou rapidamente para o quarto. Fechou a porta com o quadril e levou a bandeja até a pequena mesa próxima à cama. Despindo-se, voltou a deitar-se e a tomá-las nos braços.

Após algum tempo tentando inutilmente voltar a dormir, Lucas olhou de novo para a bandeja. Havia algo que deveria recordar, mas era uma vaga lembrança. Fatias de pão torrado. Franziu a testa. O irmão, Artan, havia mencionado algo, mas tinha certeza de que ele nunca aceitaria tal coisa para o desjejum. Ficou tenso. Cecily, sua cunhada, fizera tal refeição durante meses, pois aliviava seus enjôos matinais.

Enjôos matinais. Não o vinho. Não a comida estragada. Uma criança. Katerina estava grávida, com um bebê seu no ventre e, obviamente, sabia disso fazia algum tempo.

Usou toda a força de vontade para impedir-se de sacudi-la até que acordasse e exigir a verdade. Respirou fundo várias vezes para acalmar-se. Reconheceu que estava magoado por não ter sido informado e decidiu livrar-se dessa emoção antes de enfrentá-la. Havia bons motivos para que tivesse escondido. Para ser justo, não tinha certeza de há quanto tempo ela sabia. Ainda poderia estar tentando decidir o que fazer ou até mesmo se preocupando a respeito de como ele reagiria. Poderia acalmar esses medos. Os outros deveriam ser eliminados quando ela os admitisse.

E lidariam com eles depois do casamento. O filho carregaria seu nome. Lucas sentia que enfrentava uma batalha, mas a venceria. Quaisquer problemas que tivessem seriam resolvidos depois que se casassem. Incapaz de dormir, abraçou-a, esperando que despertasse e refletindo sobre o que teria que fazer para desposá-la.

A primeira atitude seria escrever para o irmão. Artan havia lidado com uma esposa relutante e agora vivia uma união feliz. Apesar de se ressentir por recorrer a ele para aconselhar-se, especialmente no que dizia respeito a mulheres, Lucas sabia que preferia contar com o irmão a voltar-se para qualquer outro membro de sua família. Esperava somente que Artan tivesse algumas respostas sensatas.

Katerina despertou e se perguntou se estivera sonhando. Recordava-se vagamente de ter acordado com o rosto pressionado contra esse mesmo peito não fazia muito tempo. Lutou para lembrar-se de tudo. Quando se recordou de ter esvaziado o estômago em um balde, como se tornara um hábito todas as manhãs fazia já algum tempo, também soube que Lucas estivera lá. Se fosse uma lembrança, então, ela não havia sido receptiva ao auxílio oferecido, mesmo tendo relutantemente aceitado que segurasse seus cabelos e lhe levasse água. A maneira como tinha banhado-lhe a face fora de uma gentileza inesperada e ele, então, a tinha abraçado até que dormisse. Agora tudo fazia sentido. Infelizmente, isso significava que Lucas ainda estava em seu quarto e que testemunhara todo o seu enjôo.

Bem, pensou, ele era um homem, e homens não entendiam muito sobre o funcionamento do corpo de uma mulher. Katerina tinha certeza de que pensaria em algo que explicasse o episódio. Quando se voltou para Lucas e viu sua expressão, o sorriso congelou no rosto.

— Para quando é o bebê? — perguntou. Obviamente alguns homens se dedicavam a aprender algumas coisas, pensou, e sabia que consideraria isso algo positivo. No momento, queria chutá-lo.

— Não sei.

— Katerina, espero que não tente me dizer que não está esperando um filho meu.

Ela havia considerado essa possibilidade, mas não admitiria isso.

— Você fica enjoada de manhã e vomita como se fosse pôr as tripas para fora. Então, apesar de parecer um cadáver, se arrasta de volta para a cama e dorme como uma morta durante algumas horas. Agora, acorda e parece bem. Além disso, Megan trouxe-lhe fatias de pão torrado e chá de maçã. Recentemente ouvi falar sobre esse tipo de desjejum. Era só o que a esposa de meu irmão conseguia ingerir de manhã até que o enjôo passasse.

— Bem, acho que estou grávida, então — murmurou e pegou uma fatia de pão, perguntando-se se algum homem já fizera uma mulher se sentir tão miserável. Um cadáver, ele dissera. — Não tinha certeza até a semana passada. Acreditei que era por causa de tudo o que aconteceu nas últimas semanas. Isso mexeria com o estômago de qualquer um.

Lucas tentou não parecer tão desgostoso, enquanto a observava comer.

— Então, nosso filho não deve nascer tão depressa e provocar especulações sobre o nosso casamento. — Ele esperou, sabendo que não seria fácil.

Katerina sentiu o coração saltar de excitação e alegria, mas acalmar-se em seguida. Ele queria a criança. Nunca falara em casamento antes, nem mesmo quando a cortejara um ano antes. Ela somente presumira isso. Desta vez, porque ele estava por perto e aparentemente cortejando-a de novo, começou a pensar que estava considerando que se cassassem. Mas, agora, quando ele finalmente pronunciara as palavras que sempre esperara escutar, o fizera porque ela esperava seu filho. Sentiu um forte desejo de chutá-lo para fora da cama.

— Não vejo nenhum motivo para casarmos.

— Essa criança é uma excelente razão.

Olhou para o dedo que apontava em direção ao ventre e se deu conta de que ainda estava nua. Praguejando em voz baixa, levantou-se da cama, arrastando o cobertor, e procurou sua roupa. Encontrando-a sobre o baú do outro lado do quarto, tentou vestir-se sem se descobrir. Irritada quando percebeu ser impossível, largou a coberta, enfiou a roupa e voltou-se para encará-lo.

— Saia daqui — disse. — Não quero me casar por causa de um bebê. Esta criança é uma Haldane e isso basta.

Percebendo que ela não estava disposta a discutir a questão de maneira sensata, Lucas saiu da cama e se vestiu.

— Essa criança é um Murray e pode ser um menino. Se for assim, é herdeiro de Donncoill. Você pode querer pensar no que lhe está negando ao ser tão teimosa.

— Ele também é o herdeiro de Dunlochan — ela retrucou.

Sabendo que ele também estava se enfurecendo, abriu a porta e olhou para ela.

— Começarei a planejar o casamento, pois acredito que você pode ter algum juízo nessa cabeça dura e decidir que tenho razão e que devemos nos casar. Não há necessidade de retardar tudo enquanto você fica de mau humor.

O olhar que Katerina lhe lançou disse-lhe que era hora de bater em retirada. Saiu do quarto e fechou a porta. Quando se virou encontrou William, Patrick e Robbie encarando-o. Lucas olhou para eles, desafiando-os a dizer algo.

— Um probleminha com a moça? — perguntou William. Lucas suspirou. Sabia que William não se intimidaria.

— Disse-lhe que nos casaremos o mais rápido possível.

— Você lhe disse?

— Sim, e ela não está colaborando muito.

— Não consigo imaginar o porquê, uma vez que você lhe disse o que deve fazer.

— Ela está grávida. — Levou um susto quando algo pesado acertou a porta atrás dele. Katerina obviamente não queria que ele contasse para ninguém. — Não vi motivos para esperar.

William franziu a testa.

— Ainda assim, você poderia ter tentado ser um pouco mais..., bem, romântico.

— Tenho cortejado a mulher há um mês ou mais e não creio que ela tenha sequer percebido. E evidente que não tenho o jeito. Ótimo. Sou bom em dar ordens. Agora, se me dão licença, tenho que me lavar, escrever uma carta para meu irmão e então falar com o padre.

Após observar Lucas se afastar, William olhou para a porta.

— Então, prima, está mesmo grávida? — Recuou um passo quando a porta se abriu. A forma como ela o olhava fez com que pensasse em sair dali depressa. — Acho que devemos ter uma conversinha.

— E um homem corajoso, William — murmurou Patrick, afastando-se junto com Robbie, que sorria.

— Acho mesmo que precisamos conversar, prima — William insistiu.

Katerina revirou os olhos, mas fez um gesto para que entrasse. Não queria mesmo falar sobre o assunto, mas deveria ter adivinhado que William, que se considerava o chefe da família Haldane, estava obviamente preparado para ser o mais velho agora. Terminou de amarrar o vestido enquanto esperava que ele decidisse o que dizer.

— Sei que não gosta de ordens, mas acho que deve acatar esta.

— Por que? Porque ele quer o bebê?

— Meu Deus, moça, não é possível que não saiba que ele a quer também. O homem poderia estar em casa agora. Ele certamente não permaneceu aqui por ser bem-vindo em sua cama.

Olhou boquiaberta para ele.

— Muito pouco é mantido em segredo por aqui, prima. Agora, você vai me dizer que não quer o homem? Porque, se me disser, ficarei muito desapontado. — Encolheu os ombros. — Nunca percebi que me considerasse burro.

Katerina sentou-se no baú aos pés da cama.

— Sim, claro que o quero. Na verdade, eu o desejo desde o momento em que pus os olhos nele pela primeira-vez. Mas desejo que ele queira passar o resto da vida comigo e não com meu útero. Ele nem pediu. Só me disse que nos casaríamos.

— É, isso não foi bem-feito da parte dele. Mas posso perguntar como ele descobriu? — William observou-a por um instante. — Ainda não se percebe, portanto acho que não foi assim.

— Não. Temo que ele ainda estivesse aqui quando me senti mal. — Viu os lábios do primo se retorcerem. — Se rir, atirarei alguma coisa em você.

— E então ele lhe disse que se casariam?

— Somente depois que me arrastei para a cama e dormi por algumas horas. Ah, e Megan me trouxe pão torrado e chá de maçã. E tudo que consigo engolir. Então, acordei e ele estava lá me olhando e me desafiando a lhe dizer que não estava grávida.

William assentiu e sentou-se na beirada da cama, mais perto dela, tocando-lhe levemente os cabelos.

— Ele descobriu enquanto você dormia. Provavelmente começou a associar o enjôo e as fatias de pão torrado, e suspeito que tenha pensado que você não lhe contaria. Isso pode deixar um homem bravo, moça, principalmente se ele se preocupa com a mulher.

— Não sei se ele se importa ou não comigo.

— Ele é um guerreiro experiente, prima, e ainda assim tivemos que lutar para impedi-lo de correr até você de forma insana e frenética. Um homem não age assim se não se importa. Talvez ele ainda não se sinta como você quer, o que não significa que não se sentirá. Você está carregando o filho dele, ele é o herdeiro de Donncoill e, se for um menino, então será um herdeiro. Não é pouca coisa para um homem. Ele será um bom marido.

— Mas ele é o herdeiro de Donncoill e eu devo permanecer aqui em Dunlochan.

— Isso vocês precisam discutir, moça, mas pense nisso. Eu sou um bastardo e garanto-lhe que não é algo agradável. Até a Igreja tem dúvidas sobre aqueles como eu. Se você tiver essa criança sem se casar com Lucas, ela será bastarda. Então, algo que deve saber, se decidir não desposá-lo, é como consertar narizes quebrados, pois seu garotinho se meterá em muitas brigas.

Suspirou depois que William saiu. Ele estava certo. Ela vira muito claramente como fora a vida para William e seus irmãos. Por motivos que nunca compreenderia, a criança era freqüentemente tratada como se o fato de ser bastarda fosse culpa dela. Colocou a mão no ventre. Não permitiria que isso acontecesse com seu filho.

Uma batida soou na porta e ela praguejou. Não ficou surpresa ao ver Annie. O fato de a garota não parecer muito solidária aborreceu-a um pouco. Não era como se tivesse engravidado de propósito ou sozinha.

— Você foi enviada por Robbie, não? — disse, indicando-lhe que sentasse perto do fogo e fechando a porta antes de juntar-se a ela.

— Ele pensou que você pudesse estar cansada de receber ordens' dos homens — disse Annie.

— Então, agora as receberei de mulheres? Annie sorriu.

— Bem, Hilda ameaçou subir aqui e enfiar algum juízo em você com um de seus utensílios culinários. Só não sabe ainda qual.

— Já sabem disso na cozinha?

— Acho que algumas pessoas escutaram você e Lucas conversando.

— Gritando.

— Bem, sim, vocês estavam falando bem alto. — Annie se inclinou e tomou as mãos de Katerina. — Case-se com ele. Case-se com ele porque o ama e não quer dormir sozinha e porque ele será um excelente pai.

— E por que ele está se casando comigo?

— Não sei dizer, mas por que ele permaneceu aqui? Você não o estava exatamente encorajando. E algo que deve tentar entender depois que se casarem.

— Isso não é o melhor a fazer.

— Você começa com mais que muitas mulheres, especialmente alguém como você — uma herdeira. Muitos desses casamentos são arranjados e a moça não pode opinar com quem ficará. Você teve muito mais liberdade. Você escolheu Lucas. Sim, talvez ele finalmente tenha dito a palavra "casamento" por causa do bebê, mas acredito que esse tenha sido seu objetivo desde o princípio. Ele só não é muito habilidoso para cortejar uma moça. Além disso, se você não falou em amor, ele pode estar reticente em falar o que lhe vai no coração.

— Suponho que esteja certa e, claro, não quero que Hilda venha me bater com uma colher de pau ou com uma panela.

Annie riu e, apesar de todos os problemas, Katerina também.

Lucas sentou-se na mesa de trabalho fingindo estudar os planos para um novo estábulo. Em vez disso, no entanto, se perguntava novamente por que Katerina estava sendo tão teimosa em relação a desposá-lo. Sabia que lidara com a situação de forma errada, mas quando ela despertou e olhou para ele com tanta cautela, a raiva que pensara haver controlado retornara com força. Agora estava planejando um casamento e nem sequer sabia se a noiva compareceria. Artan morreria de rir.

A porta do aposento se abriu devagar e Lucas ficou tenso. Katerina entrou e ele sentiu o coração pesado porque ela não parecia uma noiva ansiosa e feliz. Disse a si mesmo que se satisfaria com um simples "sim". Poderia tê-la novamente em sua cama e se aproximariam enquanto esperavam pela criança.

Ele levantou-se e indicou-lhe a cadeira diante da mesa. Quando lhe ofereceu uma bebida, ela negou com a cabeça. Ele sentou-se, encarando-a. Lucas sentia-se desajeitado e detestava a sensação. Katerina, então, olhou diretamente para ele, o que o fez relaxar um pouco, apesar de não saber por quê. Ela parecia irritada.

— Você é o herdeiro de Donncoill — disse. — Eu sou a herdeira de Dunlochan. Sou necessária aqui.

— Ah, não há problemas. Não planejo ou quero ser o senhor de Donncoill por muitos anos. Meu pai ainda é vigoroso e saudável e somos um grupo longevo. Muitos curandeiros, sabe. Podemos permanecer aqui.

Katerina piscou.

— Essa foi fácil.

Ele debruçou-se na mesa e tomou-lhe as mãos.

— Acho que muito do que teme será facilmente resolvido. Deve saber que não estou me casando com você só porque está grávida. Eu não disse isso direito. Estava lá deitado esperando que acordasse e, bem, pensando demais em por que você não havia me contado.

— Como eu disse, só me dei conta recentemente. Tinha certeza de que, assim que soubesse, falaria em casamento e eu não quero me casar por causa do que carrego em meu útero.

— Não estou me casando com você por causa disso, mas não posso esperar até resolvermos tudo, posso? Se eu esperar, a criança poderia ser um bastardo e não há motivo para que ele o seja. Ou ela.

Katerina inspirou o ar, sabendo que estava prestes a mergulhar em águas profundas, mas que não tinha escolha. Amava Lucas, e esperava um filho dele. Se não se casasse, magoaria somente a si mesma.

— Então, devemos nos casar.

— Dentro de três dias. Quero que meu irmão compareça.

— Que assim seja.

Lucas se levantou, contornou a mesa e se inclinou para ela.

— Posso, então, beijar a noiva?

— Sim.

Lucas beijou-a, tentando demonstrar seus sentimentos. Não tinha certeza de como se saíra, mas, quando finalmente ergueu a cabeça, ambos respiravam com dificuldade. Encarou-a, apreciando o calor em seus olhos e o rubor no rosto.

— Posso levar a noiva de volta para o quarto? Katerina riu e se levantou.

— Não, não pode. Ficará em sua cama até que estejamos casados.

— Bem, talvez não queira tanto assim que meu irmão, compareça.

Ela riu, deixando-o esperançoso em relação ao futuro.

— Por onde Lucas andou esta manhã? Katerina olhou para Annie, que observava pela janela.

— Em lugar nenhum. Por que acha que ele teria ido a algum lugar?

— Porque está atravessando os portões. Não reconheci os dois homens grandes com ele. Talvez sejam da família.

Movendo-se para perto de Annie, Katerina olhou para o homem no cavalo Certamente se parecia com Lucas, mas havia algo diferente. No entanto, era difícil identificar a distância qual era a diferença. Quando desmontou, ela percebeu. A rigidez na perna de Lucas, que tanto o preocupava, não estava ali.

— E o irmão dele, Artan — disse. — Chegou a tempo. O casamento será dentro de uma hora.

— Oh, Deus, eles são tão parecidos! — Annie voltou-se para a barriga de Katerina. — Acha que terá gêmeos?

— Se tivermos, vou castrar Lucas.

Annie riu e olhou novamente para fora. Katerina observou Lucas sair para cumprimentar o irmão. Por um breve instante, se abraçaram. Uma saudação carinhosa tão curta que teria perdido se houvesse piscado. Então, Artan bateu com tanta força em suas costas que Lucas cambaleou, devolvendo o golpe logo depois.

— Homens podem ser tão infantis... — murmurou.

— Sim — concordou Annie. — Bem, Lucas ficará feliz. — Annie sorriu. — Nunca imaginei chamar o senhor e a senhora do castelo pelos seus prenomes. Levará um bom tempo para que me acostume.

— Ah, claro, Lucas será considerado o senhor agora. O conselho o aprovou.

— Não se atreveriam a desaprová-lo. Robbie diz que eram muito gananciosos e que levará muito tempo até conseguirmos recuperar tudo. Não compreendo como puderam roubá-la quando deveriam ser os guardiões de Dunlochan.

— Acho que aliviaram a consciência acreditando que roubavam de Agnes.

— Ainda assim não estava certo.

— Não, não estava, mas, como devolverão, o assunto será encerrado.

Katerina colocou o vestido azul-escuro e, enquanto Annie o amarrava, estudou seu reflexo. A cor lhe caía muito bem, realçando-lhe os olhos e a pele. O cabelo estava solto, enfeitado com fitas azuis e, apesar de temer soar vaidosa, achou que estava bonita. Há muito tempo não vestia algo tão especial. Por quase um ano se vestira como um rapaz. Esperava que Lucas apreciasse.

— Oh, milady, está uma noiva adorável — elogiou Annie.

— Você também foi, Annie.

— Acho que todas as noivas são bonitas. É o dia em que usam a roupa mais bonita e caminham em direção ao futuro. — Annie corou e encolheu os ombros ante o olhar de Katerina. — Sinto-me má de vez em quando, porque eu tenho Robbie e uma mulher teve de morrer para que isso acontecesse.

— Agnes não teve de morrer, Annie — tranqüilizou Katerina, abraçando-a. — Ela escolheu morrer. Eu lhe ofereci a vida, e ela não pôde suportá-la sem homens para seduzir e vestidos bonitos para usar. Foi uma razão bem tola para se atirar da janela. Então, não se sinta nem um pouco culpada por ter Robbie. Se Agnes tivesse ido para o convento, ele obteria uma dispensa especial e se livraria dela. Só teria demorado um pouco mais e exigido algum dinheiro.

— Obrigada. Não sabia que ele tentaria acabar com o casamento. Isso faz a diferença.

— E, claro, sendo homem, Robbie não sabe disso.

— Não, claro que não.

— Bem, hora de descer para o salão e conhecer o irmão de Lucas.

Lucas cutucou Artan. Pensara em usar seu manto, mas decidiu que não deveria utilizar as cores de seu clã no casamento com a herdeira das terras de Haldane. Artan estava próximo a ele, parecendo um nobre senhor, com seu manto e suas armas. Lucas sentiu uma breve sensação de perda, pela vida que tivera em Glascreag, mas não se arrependia de casar-se com Katerina e permanecer em Dunlochan.

— Tem um bom pedaço de terra aqui — disse Artan. ― Apesar de não precisar.

— Bem, como disse a Katerina, não desejo ocupar o lugar de senhor de Donncoill por muito tempo.

— Que Deus o ouça. Mas, se precisasse escolher, sabe o que faria?

— Não, é muito cedo. Se muitos anos se passarem, como espero que aconteça, posso muito bem dizer que o domínio de Donncoill deve ser de um de meus irmãos. Você?

— Não, não meu. Tenho Glascreag e é tudo o que quero.

— Pensei que seria assim. — Cutucou novamente o irmão.

— Pare com isso. Você queria se casar com a moça, não?

— Ah, sim, desde que a encontrei pela primeira vez, há um ano.

— Não acredito que não tenha me chamado quando finalmente decidiu satisfazer sua sede de vingança.

Lucas suspirou.

;— Precisava fazer isso sozinho. Provar a mim mesmo que seria capaz. — Curvou-se para esfregar a perna. — Nunca mais lutarei como antes, mas agora sei que luto bem e posso resolver um problema tão grande quanto o que tivemos aqui para manter minha mulher em segurança.

Artan assentiu.

— Sim, compreendo. Lá vem ela. É uma bela mulher, Lucas. Escolheu bem.

— Obrigado. Também acho. Venha, ainda temos alguns minutos e pode conhecê-la agora.

— Porque está pretendendo me abandonar o mais rápido possível durante a festa?

— Você me conhece bem demais.

Lucas sorriu para Katerina e apresentou-a a Artan. Sentiu o peito estufar-se de orgulho. Ela sempre tinha sido bonita a seus olhos, mas, vestida daquela maneira, fazia-o perder o fôlego. Passou os braços sobre seus ombros e beijou-lhe o rosto.

— Lembre-se de que o charmoso sou eu. Katerina riu.

— Sim, posso ver. — Ela o examinou. — Certamente se vestiu muito bem. Estou impressionada. — Respirou profundamente tentando não se agitar com o olhar que ele lançava para seus seios. — Os homens têm algo para você, mas queriam que eu lhe falasse a respeito antes, pois sabem que você é um Murray e um dia será o senhor de Donncoill.

— Ah, é algo que pode me marcar como um Haldane?

Sim, queriam dar-lhe algo para marcá-lo como o homem que os lidera.

— Ficarei honrado. Ainda temos algum tempo se quiserem dar-me agora. É algo que podem desejar que eu use durante o casamento?

— E, mas não terá que trocar de roupa. — Katerina acenou para William, Patrick, Robbie e Donald. Thomas caminhava orgulhosamente ao lado deles carregando o manto xadrez que a maioria dos Haldane usava. — Ele diz que aceitará com prazer o que oferecem.

Katerina assistiu aos homens colocarem o manto ao redor dos ombros largos de Lucas e ajeitá-lo cuidadosamente. William prendeu-o com um broche de prata e granadas que compunham o emblema de Haldane. Sabia que ele era um Murray e que sempre o seria, mas estava claramente emocionado pelo sinal de completa aceitação pelos homens de Haldane. Eles não poderiam ter encontrado maneira mais clara de dizer-lhe que o aceitavam como seu senhor. Ela teve que morder os lábios para não chorar como uma criança.

Assim que os homens se afastaram, Lucas envolveu-a com os braços e segurou-a perto de si.

— Queria saber se me aceitariam, uma vez que essa é sua terra e seu castelo. E bom que tenham me aceitado.

— Sempre se soube que o homem que eu desposasse seria visto como seu senhor. E por isso que o conselho deveria aprová-lo. E nunca teríamos recuperado Dunlochan sem você.

— Ah, sim, creio que teriam. Você e seus homens estavam causando muitos problemas a Agnes e o fato de o conselho negar-lhe o controle total ajudou. Tudo o que fiz foi agitar um pouco as coisas ao voltar. Deveria estar morto, Isso fez com que nossos inimigos agissem precipitadamente. Como eu disse, colocou-os contra a parede e os manteve lá. O fato de eu estar vivo só os pressionou um pouco mais.

— Modesto, não? — disse Artan.

— Sim, isso é o mais admirável — respondeu Katerina e riu com Artan.

— Está na hora — disse Annie apressando-se e tomando Katerina pela mão.

Katerina sentiu a primeira pontada de inquietação. Amava Lucas e queria desposá-lo, queria que o bebê que carregava tivesse o nome do pai. Ainda assim, estava muito insegura. A confiança que depositava nele fora duramente abalada e não acreditava que já estivesse totalmente restaurada. Ajoelhando-se a seu lado diante do padre, rezava para que não deixasse o coração conduzi-la em direção ao perigo. Mesmo sem saber, Lucas poderia magoá-la muito mais que Ranald ou Agnes.

Katerina percebia que Lucas já estava cansado da comemoração. Sentia que o irmão estava propositadamente alongando os brindes para atormentá-lo. Era um pouco embaraçoso saber que Artan agia dessa forma porque sabia que Lucas estava ansioso para levá-la para a cama. Ainda assim, divertiu-se com o modo como ele o torturava. Havia um demônio em Artan e suspeitava que apreciaria isso.

Tinha que admitir, no entanto, que também estava cansada. Queria ficar sozinha com o marido. Duvidava que conversassem muito, mas, de qualquer forma, não era isso o que queria. Já estava mais do que na hora de terem uma conversa, mas teria que ser cuidadosamente planejada. Esta noite, queria sua paixão. Após o breve encontro há três noites, só conseguia pensar em como precisava dele, no quanto era bom tê-lo nos braços e em como adorava acordar sentindo seu calor envolvê-la.

O que desejava fazer era ir até o quarto, que agora era deles. Queria fazer amorna grande cama com o homem que agora podia chamar de marido. Apesar de terem sido amantes e de ela carregar uma criança, sabia que não sentiria realmente o casamento até que fosse consumado.

De repente, William distraiu Artan, e Lucas rapidamente aproveitou o momento. Agarrou Katerina pela mão e arrastou-a para fora do salão, em meio a muitas risadas e alguns comentários indecentes. A voz profunda de Artan destacou-se das dos demais e ele deixou claro que sabia ter sido astutamente frustrado em seu jogo. Katerina somente riu, achando a avidez de Lucas lisonjeira e excitante. Era impossível não se sentir assim quando um homem como ele estava tão ansioso para ficar sozinho com ela. Era tão gostoso ser desejada, que nem sequer corou diante de alguns dos comentários feitos antes que as portas do salão os abafassem.

Assim que entraram no quarto, ambos pararam e olharam ao redor. Havia flores em todo o lugar. Pétalas de rosas espalhavam-se na cama. No canto, em uma mesa, estavam um jarro de vinho, uma bandeja com pequenos bolos, pão e queijo. Katerina olhou para ele e levantou uma sobrancelha.

— Não fui eu — ele disse. — Acho que Annie esteve ocupada. — Suspirou e olhou novamente ao redor. — Deveria ter sido eu, não? Não sou bom nesse tipo de coisa.

Ela envolveu-lhe o pescoço com os braços e beijou-lhe o rosto.

— E por que deveria?

— E o tipo de coisa que um homem deveria fazer pela esposa, pela mulher que carregará seus filhos.

Era um pensamento tão encantador que Katerina sentiu as esperanças em relação ao futuro aumentarem. Ele podia não compreendê-la o tempo todo ou sussurrar versos doces em seus ouvidos ou mesmo dizer aquelas três pequenas palavras, mas era um homem que a valorizava. Katerina passara a maior parte da vida com um pai que não dava valor a ela ou a qualquer mulher e sabia como isso era importante. Beijou-o e o beijo logo se tornou quente e ávido. Enquanto ele desatava seu vestido, ela tirava o manto de seus ombros e Katerina sabia que a primeira vez juntos naquela noite não seria suave e gentil.

Lucas murmurou desculpas contra sua pele quando quase rasgou suas roupas. Olhar para ela por tanto tempo e ver a beleza que se manifestava de tantas maneiras tinha feito com que quase não suportasse o desejo que o consumia. Sabia que Artan percebera seu estado e tentara torturá-lo arrastando os brindes. Funcionara. Sentia que morreria se não a possuísse logo. Era um pensamento insano, mas a necessidade que o tomava no momento era um tipo de loucura.

Katerina tropeçou ao tentar arrancar-lhe as roupas e ambos caíram no chão. Os risos se transformaram em gritos quando ele a penetrou e conduziu-a ao auge do prazer.

— Não posso acreditar que fiz amor com minha esposa no chão — gemeu Lucas, recuperando lentamente os sentidos.

— Não consigo acreditar que caí — disse ela. — Culpe Artan. Eu vi o jogo que estava fazendo.

— Sim, farei com que pague por isso mais tarde. E agradecerei a William por ter posto um fim à brincadeira. — Olhou-a quando a escutou gemer. — O que foi? O chão a está machucando? — perguntou e rapidamente ajudou-a a erguer-se.

— Não, estava pensando em como todos lá embaixo sabem o que estamos fazendo.

— Acabamos de nos casar — disse, enquanto a carregava para a cama. — É o esperado. Mas suspeito que nunca adivinhariam que não conseguimos chegar até a cama.

Ela riu quando ele praticamente a jogou sobre os lençóis e se esparramou sobre ela. Ocorreu-lhe subitamente que Lucas sempre se preocupara que a rigidez na perna fizesse dele um amante desajeitado. Correu os dedos por sua espinha, pensando se deveria dizer-lhe que se preocupara à toa. Só podia ser grata por isso ter contribuído para mantê-lo fiel. Katerina não conseguia acreditar que ele ainda pensava que pudesse vacilar ao fazer amor, mas decidiu esperar para dizer-lhe que não havia inaptidão alguma. Talvez houvesse um momento em que ele precisasse escutar isso. Nesse instante, após o amor selvagem ao qual tinham se entregado, ele não precisava de elogios.

— Serei um bom marido — murmurou, traçando com os lábios o percurso até os seios, disposto a saboreá-la agora que a loucura diminuíra.

— Creio que sim, Lucas. Espero que me ache o tipo de esposa de que precisa.

— Você é. Não só tolera que eu pule sobre você como um animal, mas faz o mesmo. Que homem poderia esperar mais?

— Suponho que isso seja um elogio — disse, sorrindo enquanto ele a espiava por entre os seios.

— O melhor que um homem pode fazer a uma mulher. — Envolveu-lhe os mamilos intumescidos. — Você é tão-doce! Não consigo parar de querê-la.

— Seu gosto também não é tão ruim — murmurou e lentamente correu as mãos por suas nádegas rijas.

Lucas parou de falar e percorreu com os lábios o corpo macio. O gosto dela o enlouquecia. A sensação das mãos suaves sobre seu corpo enquanto a amava fazia com que ansiasse por cada toque. Acreditava que nunca se cansaria dela. O calor da paixão e a necessidade insana provavelmente diminuiriam, mas ele sempre desejaria mais.

Os pequenos ruídos que ela emitia enquanto ele traçava o caminho até as curvas suaves entre suas pernas eram o mais doce elogio que poderia receber. Quando alcançou o ponto, amou-a com os lábios até que ela gritasse seu nome. Lentamente, percorreu o caminho inverso. Tomou o mamilo excitado na boca e acalmou o corpo a seu lado. Por um instante, descansou a testa contra sua pele quente, desfrutando o calor que o cercava.

— Ah, Lucas, preciso que se mova — sussurrou.

— Sei disso, mas adoro senti-la e estava me esforçando para não me transformar em um animal louco e luxurioso.

Katerina não acreditava que conseguisse rir. A sensação provocada pelo riso, aliado à união de seus corpos, fez com que ambos arfassem. Ela envolveu-o com as pernas e vagarosamente comprimiu o corpo contra o dele. Foi todo o encorajamento de que precisava e logo estava se impelindo contra ela com toda a avidez selvagem que ela desejava. O prazer a tomou de forma tão rápida e intensa que bateu com os saltos do sapato contra as costas de Lucas. Ainda tremia quando ele a penetrou mais profundamente e inundou-a com sua semente.

— Acho que você pode ter me matado — murmurou, mal conseguindo mover os braços e murmurando um protesto quando ele deixou seu corpo.

— Espero que ninguém me veja nu nos próximos dias, pois não saberei explicar essas marcas em minhas costas. — Sorriu quando ela o beliscou.

Lucas deitou-se e aninhou-a nos braços. Adorava a maneira como se ajustava a ele, o corpo quente e suave contra o seu. Poderia abraçá-la assim a noite toda pelo resto da vida. Surpreendia-o que esse simples pensamento o deixasse tão feliz. Havia tantas coisas para serem resolvidas entre eles, mas sabia que o faria, sabia que tudo ficaria bem no final. Ela era sua companheira. Só não sabia disso ainda.

Deslizou a mão sobre seu ventre, sabendo que ainda era cedo, mas queria sentir a criança que haviam gerado.

— Você quer um menino ou uma menina? — perguntou.

— Pensei que todos os homens quisessem filhos — murmurou sonolenta.

— Bem, sim, mas os Murray têm vários meninos. Não precisamos de um para ter um herdeiro. Então, uma filha seria encantador. Uma menininha com cabelos claros e lindos olhos azuis.

— Tudo o que eu quero é uma criança saudável.

— Sim, eu também. — Beijou-lhe a testa. — Descanse, amor. Você precisa descansar para o bem desse bebê saudável que teremos.

Ele a chamara de amor, pensou Katerina fechando os olhos. Seria maravilhoso se realmente fosse seu amor. Disse a si mesma que estava feliz. Tinha um homem bom que cuidaria dela e de seu filho e que fazia seu sangue ferver sempre que a tocava. Como dissera Annie, poucas mulheres tinham tanto. Tinha que aprender a não ser gananciosa, a aceitar o que tinha e agradecer as bênçãos.

Havia sempre a chance de que, trabalhando e construindo uma família juntos, ele passasse a amá-la. Ela se esforçaria ao máximo para fazê-lo feliz e aquilo os aproximaria. Sentiu que ele acreditava na santidade do casamento. Sua voz carregara o peso da verdade e da fé quando proferira os votos. Isso também não era pouco quando tantos homens acreditavam ter o direito de possuir a mulher que quisessem, de ter uma esposa e uma amante.

Sonolentamente, acariciou-lhe o peito, pensando em como poderia descansar sua cabeça nele todas as noites a partir de agora. Era seu marido e, apesar das coisas que ainda a perturbavam e das coisas que desejava, estava feliz. Na verdade, não o faria de nenhuma outra forma.

Lucas sorriu e cobriu as mãos dela quando finalmente pararam de acariciá-lo. Contaria para a família todo o ocorrido e eles desejariam conhecê-la. De alguma forma teria que postergar o momento sem despertar questionamentos ou ferir os sentimentos de alguém. Não queria levá-la até seus parentes até que soubesse ter conquistado seu coração e, ainda mais importante, sua confiança. Havia muitos em sua família que sentiriam se houvesse problemas entre eles.

Fechou os olhos e sorriu. Ele a tinha. Ela já não podia escapar. Agora que estavam unidos diante de Deus e da lei, ele tinha tempo. Tempo para consertar as mágoas que lhe infligira e tempo para conquistar seu coração. Seria o suficiente por enquanto.

 

Mulheres podem ser criaturas enigmáticas. Lucas encarou o irmão. Após a refeição da noite, ambos haviam ido até a sala de trabalho. Sentados diante da lareira, bebericando vinho, nenhum deles dissera uma palavra durante quase uma hora. Lucas não sabia se valia a pena esperar tanto pelos conselhos de Artan.

-— E você descobriu essa grande verdade após somente um ano de casamento?

— Se não estivesse tão confortável agora, eu o derrubaria no chão.

— Você e que exército?

— Quer minha opinião sobre como consertar as coisas com sua mulher ou não?

— Por que você acha que alguma coisa precisa de conserto? — Lucas não gostava da idéia de que essas questões estivessem tão instáveis entre eles que até Artan tivesse percebido.

Artan lançou-lhe um olhar de completo desgosto.

— Talvez porque você esteja sentado comigo em vez de estar no quarto com sua esposa? Talvez porque os dois não tenham se falado muito durante o jantar? Talvez porque um só olha para o outro quando tem certeza de que o outro não perceberá? Devo continuar?

— Suponho que nunca tenha tido problemas com sua esposa, que tudo tenha corrido bem entre vocês desde que a conheceu.

— Talvez se eu não a tivesse seqüestrado de sua cerimônia de casamento e ela não tivesse a linda cabecinha cheia de idéias estranhas sobre como uma perfeita esposa deveria ser. —- Artan encolheu os ombros. — Suspeito que eu não seja um homem de convivência fácil.

— Também não sou. — Fez uma careta. — Certamente não facilitei as coisas acusando-a de ser a responsável pela tentativa de assassinato que sofri.

Artan ergueu uma sobrancelha.

— Aquela pequena moça?

— Não ela mesma. Pensei que houvesse dado ordens a Ranald. Por um instante me perguntei se eram amantes ou se planejavam ser. Quando descobri a verdade, já a tinha acusado repetidas vezes. Não descobri a verdade sozinho, em minha mente e em meu coração. Tive que ouvi-la dita por outros. Quando penso nisso agora, acho que estive envolvido em algum tipo de loucura. Tenho certeza de que ela nunca confiará em mim outra vez.

— Claro que confiará. Talvez já confie. Está aqui e se casou com você, não? Também carrega seu filho. Você só tem que encontrar as palavras certas.

— Que seriam?

— Não faço idéia.

— Você deve ter alguma idéia. Obviamente acertou seus problemas com Cecily.

— Nunca a acusei de tentar me matar. Sei com certeza o que não dizer. Não lhe diga que está sendo tola.

Lucas revirou os olhos.

— Não precisava de sua grande sabedoria para dizer-me que isso seria insensato. Nenhuma garota gosta de escutar que está sendo tola, especialmente no que diz respeito a alguma emoção que está sentindo. — Arregalou os olhos quando o irmão subitamente corou. — O que foi?

Artan fez uma careta e tomou um gole de vinho, antes de limpar a garganta e dizer:

— Você tem que lhe dizer o que sente por ela.

— Ah, não tenho certeza de que vai acreditar. Á única coisa em que acredita é que a desejo e não acho que pense que isso vai durar tanto tempo.

— Você tem que lhe dizer que a ama e fazê-la acreditar nisso. Não pense que ela vai saber disso sozinha. Não compreendo, mas as mulheres precisam ouvi-lo dizer em voz alta de vez em quando.

Lucas subitamente sorriu.

— E você não gosta de ouvir sua esposa dizer que o ama?

— Claro que gosto, seu tolo, mas as mulheres gostam de falar sobre como se sentem. Isso não é fácil para um homem. Mas as recompensas por dizer as palavras certas são excelentes. E você pode tentar explicar para ela como pôde culpá-la' e por que não acreditou nela quando disse a verdade.

Lucas assentiu e sorveu um gole de vinho. Adoraria ouvir Katerina dizer-lhe que o amava. Tinha quase certeza de que o amava antes daquela noite no lago quando tudo dera tão errado, mas ela nunca lhe dissera de fato. No entanto, lhe entregara sua inocência e uma mulher como Katerina não o faria se não tivesse profundos sentimentos. Infelizmente, se recordava facilmente também _ de como a alegria que demonstrara ao descobrir que estava vivo se transformara em dor quando lançara acusações sobre ela. Sabia que era uma ferida profunda que ainda doía. Não tinha certeza de poder explicar suas ações, pois ele mesmo não as compreendia completamente.

— Partirei amanhã — Artan anunciou.

— Uma visita tão curta? Só está aqui há dois dias.

— Acho que vocês precisam ficar sozinhos, e certamente não sou necessário por aqui. Resolva as coisas antes que os sentimentos ruins se fortaleçam. Nunca é bom quando isso acontece. Então, voltarei para uma estada mais longa com minha esposa e filhos. Ou vocês vêm nos visitar. Angus apreciaria isso. Haveria mais alguém com quem discutir, o que o deixaria feliz.

Lucas riu e aquiesceu.

— E, acho que gostaria de ter uma ou duas discussões com Angus novamente e com certeza quero ver o que você e Cecily criaram. Então, antes que se retire para descansar para a viagem, deve derrotá-lo mais uma vez no xadrez?

— Muito cedo para se juntar a ela?

— Até que possa decifrar o que dizer e como dizer seria melhor que não passássemos muito tempo sozinhos. Não gosto de silêncios tensos, em que as palavras não ditas retiram o ar do ambiente.

— Vou buscar o tabuleiro.

Katerina adentrou o solário e sorriu para Annie, que costurava sob a janela, parecendo estar em paz. Ficara contente por ela e Robbie terem decidido ficar no castelo em vez de aceitar a oferta do chalé. O interesse de Robbie em cuidar das contas de Dunlochan fora uma agradável surpresa. Lucas estava mais do que disposto a entregar-lhe esse trabalho.

— Onde está sir Lucas? — perguntou Annie quando Katerina sentou-se a seu lado.

Percebendo como Megan a observava com interesse, Katerina corou, sem saber por que se incomodava com a questão.

— Está com o irmão.

— Oh, milady, é maravilhoso observá-los juntos — disse Megan. — Dois homens tão charmosos, tão semelhantes.

— Sim, são muito parecidos — concordou Katerina. — Não sei como consigo diferenciá-los com tanta facilidade.

— Lucas tem uma cicatriz. Katerina riu.

— E, sei disso. E que às vezes não vejo a cicatriz, pois ele está virado para outro lado, assim como Artan, ou ambos estão com a mão sobre o lado direito do rosto. Eles negam, mesmo quando ameaço atingir suas cabeças com uma pedra, mas acho que estão me testando para ver se consigo diferenciá-los. Não importa. Sei que se fossem exatamente iguais, saberia quem é Lucas.

— Isso é bom — provocou Megan.

Katerina riu, mas o bom humor logo passou. Estava no castelo repleto de parentes, criados leais e um marido é, ainda assim, sentia-se dolorosamente solitária. Claro que era tolice, mas não conseguia se livrar do sentimento. Duvidava que se devesse às oscilações emocionais que, dizia-se, afetavam com freqüência as grávidas. Era óbvio que necessitava de algo do marido, de mais do que ele lhe estava dando, e até que o conseguisse continuaria a se sentir como se uma parte dela estivesse faltando.

— Parece muito perturbada e triste para uma mulher com um marido tão bom, charmoso e forte — murmurou Annie.

— Um marido que pensa que sou capaz de mandar matá-lo por ciúme. — Katerina estremeceu ao ver como ambas as mulheres franziram a testa ao olhar para ela.

— Você ainda não resolveu isso, não? — disse Annie, balançando a cabeça. — Sabe que não pode continuar ignorando esse assunto.

— Por que não?

— Porque isso os está consumindo. Não é bom. Ele se desculpou?

— Não com todas as letras.

— Um homem não age como ele se realmente acredita nessas coisas sobre a mulher.

— Não — concordou Megan. — Seria frio com ela e sir Lucas não é frio com você, é?

— Bem, não, mas paixão não tem muito a ver com gostar de uma mulher ou respeitá-la — disse Katerina.

— Como pode pensar que ele não a respeita? Se não a respeitasse, não a teria desposado, com ou sem criança. Se um homem não respeita uma mulher, ele não se importa que ela fique marcada por ter um filho bastardo. Somente agradece o prazer e vai embora. Na melhor das hipóteses, pode ajudá-la com a criança, ou tomando-a a seus cuidados ou enviando-lhe algumas moedas de vez em quando.

Havia muita verdade nisso, mas Katerina não achava que se aplicasse à posição que ocupava.

— Sou a filha de um proprietário de terras. Talvez por isso Lucas sentiu que tivesse que se casar.

Annie parou de costurar e encarou-a.

— O problema não é ele, é? É você. Não consegue perdoá-lo por tê-la magoado, por ter pensado que pudesse ser tão fria e insensível para tentar matar um homem por ciúme.

Katerina fez uma careta ante a indesejável verdade nas palavras de Annie.

— Não é uma coisa fácil de perdoar ou esquecer.

— Não, claro que não, mas você deve fazê-lo. Ele sabe da verdade agora e você não pode duvidar disso.

— Sim, mas ele não a descobriu em seu coração e em sua mente.

— Sei que isso é triste, mas não deveria mantê-la tão distante dele, não quando sei que não está feliz. Ele tem vergonha do que pensou. Não é difícil de ver. Por que você não consegue?

— Ah, vejo isso e há uma parte cruel de mim que está feliz com seu sofrimento.

Annie sorriu.

— Não se preocupe. Também me sentiria dessa forma. — Eu também —- disse Megan.

— Mas você não deve permitir que esses sentimentos arruinem seu casamento antes de começar — continuou Annie. ― Tem que deixar a mágoa passar, milady. Seu marido é um homem bom, mesmo que seja um pouco tolo às vezes, e há uma criança a caminho. Se continuar mantendo distância dele de alguma forma, logo isso aumentará e então não terão um verdadeiro casamento. E assim que quer que as coisas terminem?

— Não, não é o que desejo, mas, Annie, a não ser que ele fale no assunto, não vejo como podemos consertar as coisas. Não consigo evitar o medo de que ele não confia em mim. Acho que ajudaria se eu pudesse compreender como ele pôde ter tais idéias a meu respeito. Talvez ele pudesse me explicar o quanto acreditou nessas coisas horríveis e por que se apegou a elas, e isso certamente ajudaria a curar a ferida. Não sei exatamente o que quero que ele diga, mas ele tem que dizer algo. Como lhe falei uma vez, ele tem que tentar me fazer compreender o que passou em sua cabeça.

— Ah, sim — disse Megan e encolheu os ombros quando Annie olhou para ela. — Tenho muitos irmãos. Podemos não ter as mesmas mães, mas somos próximos. Homens podem ficar com uma idéia errada na cabeça e se apegar a ela somente porque odeiam admitir que estão errados. Já escutei meus irmãos explicarem como chegaram a uma conclusão e a forma como o fizeram foi tão retorcida que não conseguia acreditar. Além disso, se as emoções de um homem estão envolvidas, pode ser pior ainda.

— Você acha que Lucas pode ter acreditado nisso porque sentia emoções fortes a meu respeito? — perguntou Katerina, estranhamente confortada por esse pensamento, ainda que não o compreendesse direito.

— Acho que, alguns homens, se você os magoa, podem ser quase impiedosos. Não gostam de admiti-lo, mas é como se tivessem medo e estivessem dispostos a qualquer coisa para não serem feridos de novo. Se isso significa se apegar a uma crença, mesmo que sem sentido, eles o farão. Meu irmão Garrett tinha certeza de que sua mulher o traíra e nada que se dissesse o fazia mudar de idéia. Ele estava errado, vira algo e interpretara mal, mas deu muito trabalho fazê-lo perceber que se enganara. Tinha ficado tão magoado ao pensar que ela saíra com outro homem, que não queria se arriscar a estar errado e tentar novamente. Talvez esse seja o problema de seu homem. Se for assim, no mínimo, teve o bom senso de admitir que estava errado quando ouviu a verdade a seu respeito da boca dos verdadeiros culpados.

Katerina refletiu por um momento. Tentou imaginar em que situação seria irracional e um exemplo veio-lhe à mente. Não seria difícil ser levada a crer que Lucas a traíra com outra mulher. Não sabia se acreditaria nele se negasse, mas não tinha certeza de onde viria essa falta de confiança. Suspeitava que não acreditaria que um homem tão forte e charmoso pudesse realmente pertencer somente a ela.

Cobrindo rapidamente um bocejo com a mão, resolveu que bastava de falar sobre seus problemas. Eram os mesmos há semanas e a solução também era a mesma que já discutira com Annie. Era o momento de parar de ignorar a imensa barreira que se interpusera entre eles. A próxima discussão sobre o problema seria com Lucas e ela não recuaria.

Após desejar-lhes boa-noite, Katerina retornou para o quarto. Entrou e respirou fundo, feliz por não encontrar sinais de que Agnes tivesse usado aquele aposento. Parecera tolice exigir que o lugar fosse esfregado e a mobília trocada, mas estava feliz por não ter hesitado em sua demanda. Katerina sabia que seria difícil ficar à vontade em um quarto com muitas lembranças da mulher que ajudara a matar seus pais e tantas outras pessoas inocentes que a cercaram. Agora, quando olhava ao redor, só via seus próprios pertences, os de Lucas e pequenos tesouros que a recordavam de seus pais.

Katerina despiu-se, lavou-se e vestiu a camisola. Sentou-se em um banco diante da lareira e começou a pentear os cabelos. Lucas subiria logo. Parecia sempre saber quando ela vinha para o quarto preparar-se para dormir. Era provavelmente um daqueles mistérios sobre o marido que nunca decifraria.

Parte dela queria cumprimentá-lo na porta com a exigência de que conversassem, mas sabia que esperaria um pouco mais. No mínimo, sabia que precisava elaborar as palavras corretas. Também precisava reforçar sua coragem para não recuar ao primeiro sinal de relutância dele, ou a alguma tentativa de seduzi-la para fazê-la esquecer o assunto, pensou com um sorrisinho. Lucas era muito bom nisso e ela apreciava muito para fazê-lo parar uma vez que tivesse começado.

— Está sorrindo por quê? — perguntou, entrando no aposento, divertindo-se quando Katerina gritou de susto. — Não me escutou chegar?

— Raramente ouço quando se aproxima — resmungou e pôs as mãos no peito como se esse gesto pudesse acalmar as batidas de seu coração. — Não acho que algum dia entenderei como um homem tão grande pode se mover tão silenciosamente. — Franziu a testa. — Artan faz o mesmo, não?

— Sim, exige prática e nós praticamos muito quando éramos rapazes treinando com Angus.— Sentou-se na cama e começou a tirar as botas. — Artan partirá de manhã.

— Tão logo?

— Sim. Deu-me muitos motivos, mas acho que está com saudade da mulher e das crianças. Reclamou da cama fria e solitária.

Katerina riu, mas sentiu uma pontada de inveja e tristeza. Artan era um homem grande e rude que falava objetivamente e parecia apreciar uma sessão de treinamento com lanças com qualquer um disposto a enfrentá-lo. No entanto, quando se referia à esposa e aos filhos demonstrava que os amava, que eram a luz de sua existência. Queria isso para ela, mas não sabia como conseguir.

— Devo me assegurar de levantar-me para despedir-me dele, pois tenho alguns presentes para sua família.

— Ficará contente.

Lucas observou-a terminar de pentear os cabelos, caminhar até a cama e entrar sob as cobertas. Apagou a maior parte das velas, tirou o resto das roupas e se deitou a seu lado. Quando a tomou nos braços, compreendeu o que Artan quisera dizer com cama fria e solitária. Não queria nunca mais dormir longe dela outra vez.

Quando Lucas removeu-lhe a camisola, Katerina quase riu. Não sabia por que se dava ao trabalho de vesti-la toda noite, pois ele a tirava assim que se deitavam. Um suave suspiro escapou-lhe dos lábios quando ele a atraiu para seus braços. Apesar dos problemas que persistiam entres eles, só sentia prazer e conforto quando ele a abraçava todas as noites. Quase se sentia querida apesar de, quando estava sozinha, achar difícil de acreditar nisso.

Ele colocou a mão sobre seu ventre e ela beijou-lhe o ombro.

— Espero que não queira gêmeos — disse.

— Acho que não vou tolerar meu irmão levar a melhor.

— Ele fará com que se lembre disso o tempo todo, não?

— Sem hesitar.

— Pobre rapaz.

Lucas riu e beijou-lhe o pescoço. Não achava que um dia teria o bastante dela, da sensação de sua pele e do gosto de sua boca. Tudo o que tinha que fazer era entrar no quarto se ele a desejava.

— Está cansada, Kat? — perguntou, acariciando-lhe as costas.

— Não tão cansada— murmurou e sorriu.

Ele fez amor com ela lentamente e Katerina percebeu que era exatamente disso que precisava no momento. Queria saber como ele adivinhava. Suspirou de prazer enquanto ele a aquecia com beijos suaves. Mesmo os toques lentos e gentis das mãos levemente calejadas a faziam tremer de desejo por ele. Cada beijo era repleto de tanta ternura que ela podia quase acreditar que ele sentia por ela muito mais que desejo.

Deixou escapar um gritinho de choque e desejo quando sentiu a língua deslizar por seu corpo até tocá-la no lugar mais íntimo. Ele a amou com os lábios até que ela gritasse por ele, querendo que a preenchesse. Katerina ofegou quando Lucas colocou-a sobre ele. Por um instante, moveu-se muito lentamente, acariciando-lhe o peito e inclinando-se para beijá-lo com profundidade e vagar. Ele tinha um corpo tão bonito e forte que queria saboreá-lo por um tempo, apreciando o momento em que o desejo aumentava, mas ainda não exigia ser satisfeito.

Lucas ergueu-se o suficiente para tomar seus mamilos com a boca e sugá-los. A princípio, ele lhe dedicava uma atenção quase preguiçosa, mas passou a ficar mais agressivo, mais exigente e Katerina sentiu o corpo responder rapidamente. O calor tomava-a e os movimentos também se tornaram mais exigentes. Lucas agarrou-a pelos quadris, incitou-a a acelerar os movimentos e logo ambos se mexiam freneticamente, buscando atingir juntos o prazer máximo.

Katerina largou-se nos braços de Lucas, ainda trêmula. Sentia que o corpo dele também tremia e ficou satisfeita consigo mesma. Agora que o desejo tinha sido satisfeito, podia apreciar a sensação de seu calor e de sua força. A carícia de Lucas em seus quadris era quase relaxante.

Sufocando um grande bocejo, afastou-se um pouco e deitou-se de lado próxima a ele. Durante um tempo, continuou sentindo falta de sua presença dentro dela, mas logo a sensação passou e ela voltou a apreciar todas as texturas diferentes em seu corpo, do peito largo e suave às coxas mais ásperas. Compreendia o que impulsionava Artan a voltar logo para casa. Katerina duvidava que conseguisse dormir outra vez em uma cama vazia. Até o cheiro de Lucas se tornara necessário para confortá-la à noite.

— Durma, Kat. Foram dias cheios e você não pode se cansar muito — murmurou Lucas.

— Não é bom para o bebê — respondeu, mais adormecida que acordada.

— Não, não é e pelo que Artan me disse, conforme a criança cresce às vezes se torna difícil dormir.

— Não é justo.

Lucas riu e beijou-lhe a testa.

— Talvez seja para praticar, pois quando o bebê chega não se consegue dormir muito também.

— Então é melhor que eu durma o máximo possível agora.

Katerina pressionou o rosto contra seu peito e ouviu as reconfortantes batidas de seu coração enquanto o sono a dominava. Ansiava para contar-lhe tudo o que sentia,-mas estava aterrorizada ao mesmo tempo. Se ele não retribuísse as palavras de amor, ficaria devastada e não haveria como apagar o momento. De alguma forma teria que encontrar força e coragem para agarrar o que desejava desesperadamente: o amor de Lucas. Devia haver uma forma de firmar-se em seu coração.

Lucas correu os dedos pelo cabelo grosso de Kat, tentado a desfazer suas trancas. Não podia reclamar do ato de amor que compartilhavam ou dos muitos prazeres que descobriram juntos na cama, mas queria mais. Queria a mulher que o olhara com tamanha alegria, como se o fato de ele ter sobrevivido fosse a resposta a todas as suas preces. Às vezes, sentia estar sendo indevidamente punido pelo erro de julgamento que cometera a respeito da culpa de Katerina, mas sabia que teria se comportado de forma muito pior se a situação fosse inversa.

Precisava seguir o conselho do irmão. Dizer-lhe tudo, mesmo que isso o fizesse parecer um completo idiota. Era irritante pensar que Artan encontrara a solução para o que ia mal em seu casamento. O único conforto era que o irmão também não tinha se saído tão bem no início da vida conjugai. Lucas sentia que era capaz de superá-lo. Tudo o que tinha que fazer era abrir a boca e articular as palavras que pareciam alojadas em seu coração desde que a encontrara pela primeira vez.

Quase riu, mas não quis acordá-la. Era irônico que a única coisa que poderia consertar os problemas era a mesma que provocara tais problemas. Se não houvesse amado Katerina, não teria ficado tão devastado pela suposta traição e não teria tentado com tanta intensidade mantê-la afastada de seu coração e de sua mente. Tudo isso assegurara que fizesse o melhor para não pensar no espancamento ou avaliar o que era real e o que era mentira.

No dia seguinte se esforçaria para resolver a situação. Falariam sobre aquele horrível período e ele a faria compreender como fora para ele, física e emocionalmente. Katerina era uma mulher compassiva. Se fosse honesto, ela entenderia.

Rezando para estar certo a esse respeito, Lucas decidiu que também .precisava descansar. Revelar como fora tão idiota não seria uma tarefa simples. Teria de se esforçar para se recordar de algo que Artan dissera, que as recompensas valiam a pena.

Katerina entregou a Artan os presentes para sua esposa e filhos. Apesar de saber que partia em boa hora, tinha pena de vê-lo ir. Era um homem rude, rápido com os punhos e áspero com as palavras, mas gostava dele. Também estava ansiosa para conhecer a mulher que se casara com ele.

— Obrigado, moça. — Inclinou-se para beijar-lhe o rosto e falou baixinho: — Não mantenha o tolo dançando em brasas muito tempo. Ele sabe que foi um idiota.

— Ele não me disse isso — respondeu, também em voz baixa.

— Há muitas coisas que um homem tem dificuldades para dizer, moça. Admitir que é um idiota é apenas uma delas. — Piscou para Katerina e virou-se para dar um tapa nas costas de Lucas.

Lucas cambaleou, recuperou o equilíbrio e olhou para Artan.

— O que os dois sussurravam?

— Não estávamos sussurrando — respondeu o irmão, guardando os presentes de Katerina. — Só falava baixo porque estava bem perto dela. Temi que minha voz forte e masculina ferisse aquele lindo ouvido, é tudo.

Katerina riu, lançou um beijo no ar para Artan e correu de volta para o castelo antes que começasse a chover. Artan era definitivamente um pouco estranho, mas um sujeito digno de estima. Sabia que suas famílias seriam próximas. Na verdade, esse pensamento era o bastante para lhe dar a coragem de confrontar Lucas assim que o encontrasse sozinho. Rezava para que os resultados da conversa fossem um começo sólido para a família que construiriam juntos.

— Ela é uma boa moça, Lucas — disse Artan, montando o cavalo, os dois homens que o acompanhavam aguardando em silêncio um pouco mais adiante. — Esclareça o que se interpõe entre vocês.

— Farei isso, apesar de não ser fácil — respondeu.

— Nunca é quando se trata de lidar com mulheres. Pensei melhor no assunto enquanto dormia em minha cama fria. — Ignorou o ruído zombeteiro de solidariedade feito por Lucas. — Uma coisa que aprendi é que não é preciso dizer palavras bonitas. Você só tem que dizer o que tem no coração, não importa o quão doloroso seja. Sim, e se a garota realmente se importa com você, como acredito que se importe, nem mesmo interessa se você parece um completo idiota, contanto que seja honesto.

Lucas sorriu.

— Parece um conselho que a mãe nos deu uma vez.

— Provavelmente sim. Fique bem, irmão.

— Vá com Deus, Artan.

Depois de observar o irmão afastar-se, Lucas voltou ao castelo. Havia muito trabalho a fazer, mas queria terminar o mais breve possível. Artan e ele eram muito semelhantes e se o irmão conseguira estabelecer um casamento sólido e amoroso apesar dos erros cometidos no começo, Lucas sentia que conseguiria fazer o mesmo. Seria difícil e até doloroso, mas não podia esperar mais para falar sobre o espancamento e sobre como ele acreditara que Katerina tivesse alguma participação no episódio. Quando fossem para a cama à noite, pretendia que toda a penosa confusão já fizesse parte do passado.

Katerina alisou nervosamente a saia. Vira Robbie sair da sala e sabia que Lucas estava sozinho no momento. Levara quase o dia todo para encontrá-lo sem alguém a seu lado, discutindo o trabalho que precisava ser feito ou pedindo sua opinião a respeito de algo. Por um instante, pensou em esperar até a hora de deitar, mas logo afastou essa idéia. Uma vez que estivessem na cama, tendia a esquecer-se de tudo exceto de como ele a fazia sentir-se.

Finalmente, entrou no aposento e fechou a porta. Quando Lucas ergueu os olhos dos papéis que estudava e sorriu para ela, Katerina quase se virou e correu. A coragem obviamente não durara muito, pensou com desgosto. Endireitando a coluna, andou até a cadeira diante dele e sentou-se.

Lucas se esforçou para manter o sorriso acolhedor no rosto quando percebeu a expressão nos olhos azuis de Katerina. Parecia séria e ligeiramente nervosa. Tentou pensar em algum novo crime que houvesse cometido, mas não se lembrou de nenhum.

— Algum problema, amor?

Katerina respirou fundo antes de responder.

— Temo que sim, Lucas, e é entre nós.

Lucas sentiu o coração afundar. Tinha a forte sensação de que ela pretendia falar sobre as mesmas coisas que ele planejara discutir mais tarde e, de repente, não se sentiu preparado. Tudo o que planejara meticulosamente dizer na vã esperança de parecer razoável havia desaparecido de sua mente.

— Que problema seria esse? — Olhou para a porta, pensando se poderia dizer que algo exigia sua presença de imediato. Lucas pulou quando ela bateu com força a mão na mesa.

— Nem pense em tentar escapar. Passei semanas reunindo coragem e pretendo levar isso até o fim.

— Deve ser algo terrível se precisou se preparar tanto para falar.

— É mesmo, Lucas. Diz respeito a nosso casamento e ao nosso futuro. Não precisa ficar tão tenso. Só estou tentando consertar as coisas e construir um futuro, não destruí-lo.

— E sobre minhas acusações, não? — perguntou, correndo a mão pelos cabelos.

— Sim. Há uma imensa barreira entre nós por causa do que aconteceu no lago e ela não vai desaparecer. Não, acho que pode ficar ainda maior e mais difícil de ser derrubada.

— Acredita mesmo que existe uma barreira entre nós?

— Sim, acredito e sou responsável por uma parcela disso. Você me magoou, Lucas. Algumas vezes me pergunto se o problema maior não está em quando isso aconteceu. Vi que estava vivo e fiquei muito feliz. Tudo o que queria fazer era correr para seus braços, segurá-lo perto de mim e tocá-lo até me convencer de que não era outro sonho e então...

— Eu a derrubei, cuspi tudo de volta em você. — Lucas ajoelhou-se a seus pés e tomou-lhe as mãos. — Sei disso, meu amor. Sabia disso enquanto eu o fazia e parte de mim queria aliviar o sofrimento no instante em que o percebi em seus olhos. Outra parte sentia que você merecia ser magoada e, outra ainda, queria suplicar seu perdão. Mantive-me assim até quase enlouquecer.

— Mas por que, Lucas? Não consigo compreender. Por que pensou que eu tivesse qualquer coisa a ver com aquilo? Como poderia algum dia pensar que faria algo assim, não importando o quanto estivesse enciumada em relação a Agnes. E, confesso, estava mesmo. Terrivelmente enciumada cada vez que ela sorria para você ou tocava-lhe o braço. Tinha certeza de que ela o tomaria de mim, pois encantava todos os homens que pisavam em Dunlochan. Ela até persuadiu meu pai de que era doce e inocente.

Lucas levantou-se, tirou-a da cadeira e pegou-a nos braços. Carregou-a até o confortável banco estofado no canto da sala, sentou-se e, ignorando seus protestos, colocou-a no colo, mantendo-a próxima a ele.

— Parte de mim nunca acreditou de fato que você estivesse envolvida naquilo. Infelizmente, me convenci de que era o desejo que eu sentia por você se manifestando, a parte de mim que queria acreditar somente em coisas boas a seu respeito para que pudesse voltar para sua cama.

— E voltou mesmo. — Apesar de compreender o que dizia, não sabia julgar se era bom ou ruim. — Sim, eu o queria lá, mas ficava envergonhada por ser tão fraca a ponto de levar um homem que tinha tal opinião a meu respeito para minha cama, por permitir que tomasse meu corpo.

— Não fiz isso, coração. Já sabia a verdade quando fizemos amor.

— Quer dizer que passou a acreditar em mim?

A expressão em seu rosto fez com que desejasse mentir para ela, dizer-lhe que acontecera dessa forma, mas isso só colocaria uma nova barreira entre eles.

— Não, não foi assim, apesar de desejar poder dizer que sim. — Pressionou sua testa contra a dela. — O que aconteceu quando você foi ferida é que fiquei determinado a descobrir a verdade. Não suportava mais os dois lados que brigavam dentro de mim, aquele que acreditava e o que temia acreditar. Então, fui até Dunlochan explorando as muitas passagens secretas e cheguei a uma que dava diretamente no solário de Agnes. Há até um orifício na parede.

— William comentou.

— Agnes e Ranald conversavam. Ele a comunicava de que você estava viva. Durante essa conversa, mencionaram o espancamento, como o planejaram e como a usaram. Não foi seu ciúme que quase me matou. Foi o de Agnes. Não tolerava o fato de que não estivesse interessado nela, mas sim em você. Pior ainda era que tinha consciência de que, caso quisesse desposar você, obteria a aprovação do conselho.

— Então, você tinha que morrer.

— Você também, pois ela era o tipo de mulher que não aturava uma rival.

Doía pensar que Lucas nunca acreditara em sua história e tivera que escutar a confissão de quem o queria morto para confirmar sua inocência. Tentou ser razoável. Se ela pensasse que ele a havia traído, provavelmente não ouviria suas alegações de inocência. O fato de senti-lo culpado garantiria seu esforço para duvidar de cada palavra. Além disso, ele tinha buscado a verdade e ela não poderia ignorar isso. Suspirou.

— Então, quando soube da verdade, sentiu que era seguro dar vazão a seu desejo por mim.

— Quando compreendi tudo me senti o maior dos idiotas.

— Parece justo — murmurou e quase sorriu quando o sentiu puxar levemente suas trancas em uma pequena punição. — Então, estava aborrecido por ter se enganado e o que mais?

— Aborrecido? Kat, fiquei devastado. Era como se as nuvens tivessem se afastado no céu e, de repente, eu pudesse ver nitidamente de novo. Sim, escutar a verdade da boca deles me fez enxergá-la, mas não era tão simples. Foi como se ouvi-los libertasse a verdade dentro de mim. Como se as palavras girassem a chave da prisão em que eu a havia trancado. Percebi que sempre soubera; mas a afastara para um canto profundo dentro de mim e me recusara a enfrentá-la. O que não conseguia entender era o porquê disso.

Katerina acariciou seus cabelos. Parecia tão aborrecido até agora, semanas após a revelação, que sabia que sentia um profundo remorso por tê-la acusado.

— Sabe por que o fez?

— Sim, acho que sim, apesar de me fazer parecer um louco. — Fez uma careta. — Teve a ver com o que sofri. Sou um homem forte e um bom guerreiro.

— Sem dúvida.

Sorriu debilmente ante o apoio instintivo.

— Ainda assim, estive indefeso naquela noite. Todas as minhas habilidades não puderam me salvar de ser espancado até próximo à morte, ter os ossos quebrados, meus... — Olhou para ela quando colocou um dedo trêmulo sobre sua boca.

— Estava lá e vi tudo. Só agora consigo começar a me livrar dos pesadelos provocados por aquelas imagens.

Beijou-lhe a palma da mão antes de colocá-la sobre o coração.

— Quando Ranald cortou meu rosto, inclinou-se e me disse que você dera a ordem para que eu não fosse mais tão bonito e não partisse o coração de mais garotas ou alguma tolice semelhante. Triste admitir que foi uma das coisas que permaneceram em minha mente quando muito havia se perdido, as lembranças do período todo muito fragmentadas. Aquilo e a imagem de você parada lá, observando, sem expressão no rosto.

—Meu Deus!

— Amaldiçoei a Deus por ter me abandonado algumas vezes, antes de me recuperar o suficiente para parar com essa tolice. Quando me atiraram no lago me fingi de morto por algum tempo, mas estava sempre avançando pela água, tentando alcançar à margem mais próxima e, ainda assim, manter-me distante deles. Nadei quando senti que já não me veriam. Não vi quando a atiraram. E minhas provações tinham apenas começado. Rastejei para o mais longe possível da margem e cuidei dos ferimentos o melhor que pude. Tentei chegar em casa. Boa parte disso é um grande mistério para mim. Tive ajuda pelo caminho e me lembro de algumas coisas. Então, Artan chegou para me levar de volta a Donncoill.

— Artan chegou? Assim, de repente?

— Bem, ele sabia que eu estava em apuros, sofrendo, e seguiu o sentimento até me encontrar.

Katerina levantou-se e serviu a ambos uma caneca de cidra antes de se sentar outra vez em seu colo.

— Você e ele são muito ligados, imagino. Acontece com gêmeos algumas vezes.

— Sim, e sou muito grato por isso. Estava quase morto, a perna gravemente infeccionada, uma vez que os ossos rasgaram a pele. — Ouviu-a arfar e apertar a mão em seu braço e decidiu que não era necessário fazê-la sofrer com os detalhes repulsivos. — Foram semanas antes que estivesse bem o suficiente para começar a pensar no que ocorrera.

— E você ouviu a mentira cruel de Ranald e me viu parecer tão fria quanto Agnes.

— Sim. — Lucas balançou a cabeça. — Algumas outras memórias retornaram com o tempo, mas eram contraditórias em relação ao que eu já acreditava. Então, não prestava atenção.

Depositou ã caneca no pequeno baú próximo ao banco. Fez o mesmo com a dela e tomou-lhe as mãos.

— E humilhante admitir, mas comecei a ver o que tinha feito depois de descobrir a verdade. — Olhou para as mãos unidas de ambos. — Estava magoado pelo que via como uma traição sua. Como lhe disse, queria casar-me com você, estava somente tentando cortejá-la um pouco antes de pedir sua mão. Sofri pela perda daquilo, por perdê-la como se estivesse morta, e sofri pela perda de tudo o que começara a planejar e de com tudo o que sonhava, as crianças e tudo o mais.

Katerina encostou o rosto em seu cabelo.

— Quando disse que sofreu, quer dizer que chorou, Lucas? — indagou com ternura.

— Como um bebê.

Katerina disfarçou um sorriso. Tornava-se muito claro pára ela agora. Lucas sentiu-se humilhado pela fraqueza por ela, uma fraqueza que o levara às lágrimas. Suspeitava que o fato de não ter tocado em uma mulher naquele período também fosse encarado da mesma forma. Além disso, ele poderia não vê-lo ainda e, se visse um dia, nunca admiti-lo, mas o fato de ela ter estado lá, tê-lo visto espancado, derrotado e mesmo gritando de dor algumas vezes também fora humilhante. E ela era uma parte intrincada de cada uma dessas humilhações. Katerina ficou perplexa por ele ter se aproximado dela novamente.

— Compreendo agora, Lucas —- disse e beijou-lhe a testa, uma vez que ele ainda não levantara o rosto.

— Ah, não, não entende.

Inclinou-se um pouco quando ele a encarou.

— Há mais?

— Sim, no momento em que soube da verdade, queria você de volta. Queria-a em minha cama e em meu lar. Mas, mais importante, queria-a de volta em meu coração. Você nunca o havia deixado, na verdade, mas eu a havia empurrado para muito longe, para impedi-la de me atormentar e me fazer pensar em tudo o que perdera. Minhas lembranças destroçadas me faziam vê-la como culpada, meu orgulho me fazia relutar em olhar novamente para você e meu coração, com um grande esforço de minha parte, estava determinado a ser duro como pedra. No entanto, não foi uma batalha fácil porque o outro fato que me fazia sofrer era acreditar que eu amava uma mulher sem honra. — Sentiu-a enrijecer-se em seu colo, pensando em tudo o que acabara de dizer.

— Você me ama?

— Sim, moça. Não pude matar completamente esse amor e isso me fez querer odiá-la, por mais que pareça sem sentido.

Com lágrimas queimando-lhe os olhos, Katerina envolveu-lhe o pescoço com os braços.

— Faz todo o sentido.

— Bem, se você acha, então para mim está bem, pois me faz parecer menos estúpido.

— Faz sentido para mim, Lucas, porque pensei que amava um homem sem fé em mim, sem confiança e respeito, um homem que era capaz de acreditar que faria amor selvagem com ele uma noite e ordenaria um brutal espancamento no dia seguinte.

Lucas apertou-a ainda mais e pressionou o rosto contra seus seios, embaraçado pela súbita presença de lágrimas em seus olhos.

— Tem certeza?

Ele sorriu quando sentiu seu peito se erguer com um suspiro de exasperação.

— Tenho certeza desde o começo. A única coisa que mudava de tempos em tempos era o fato de eu querer estar apaixonada por você. — Tomou-lhe o rosto entre as mãos e levantou-o para ela. — Lucas, juro sobre o túmulo de minha mãe que nunca o trairia e nunca o machucaria.

Ele esfregou os lábios contra os dela.

— Sei disso, meu amor. Acho que sempre soube. Só estive um pouco louco durante algum tempo. Era como uma criança amalucada que se queima uma vez e depois prefere tremer no escuro a fazer fogo.

— Muitos chutes na cabeça.

— Uma desculpa muito boa. Perdoe-me por tê-la magoado — acrescentou.

— Ah, bem, isso está consertado. Seria agradável voltarmos para o começo e fazermos tudo certo, mas... — Gritou, surpresa, quando ele subitamente a retirou de seu colo, agarrou-a pela mão e saiu da sala, arrastando-a atrás dele. — O que é isso? O que estamos fazendo?

— Você vai ver.

Katerina não disse nada, só observou curiosa enquanto ele reunia cobertores, uma cesta com comida e vinho e mandava preparar seu cavalo. Riu um pouco quando ele a colocou na sela e montou atrás dela, pois começava a ter uma idéia do que pretendia fazer. Por um instante, quando chegaram às margens do lago, só pôde ver a tragédia que quase ocorrera ali, o local onde ambos quase haviam morrido. Espantou, apressadamente, os fantasmas, enquanto Lucas a ajudava a descer do cavalo.

— Agora, creio que estávamos bem aqui quando nos amamos pela primeira vez — disse, estendendo o cobertor em um pedaço de terra coberto por musgos sob um imenso pinheiro.

Ela olhou ao redor, percebeu que estava certo e sorriu.

— Exatamente aqui, meu lindo e elegante cavaleiro. Posso até ver a marca que deixou na árvore com seu punhal.

— Venha cá — disse, fazendo uma leve mesura e ajudando-a a sentar-se no cobertor, ainda que ambos soubessem que ela não precisava de auxílio. — Devemos começar de novo, neste local, neste momento. Talvez também possamos afugentar os fantasmas que permanecem aqui.

— Acabei de fazer isso — disse, servindo-lhes vinho.

— Menina esperta...

Lucas dispôs a comida e alimentou-a enquanto falavam sobre o que deveria ser feito em Dunlochan, sobre suas famílias e o futuro. Tiveram até um início de discussão sobre o nome dos cinco primeiros filhos. Lucas garantiu-lhe que a decisão de permanecer em Dunlochan estava mantida e que não era um grande sacrifício, uma vez que o pai ainda era saudável e governaria Donncoill por muitos anos. Satisfeitos e sonolentos graças ao calor do sol deitaram-se e olharam para o claro céu de verão.

— Foi um bom recomeço — disse Lucas.

— Sem dúvida, meu marido — concordou Katerina. — Apesar de você ter se esquecido de outra coisa que aconteceu aqui.

— Ah, sim, fizemos amor.

— Isso mesmo.

— Amor selvagem, se bem me lembro de suas palavras.

— Do melhor tipo.

— Não vou discordar disso.

— Claro que era noite de lua cheia. Muito romântico. — Sorriu quando ele gemeu ante a palavra "romântico".

— Lembre-se, é um novo começo. Não queremos fazer tudo exatamente como fizemos na época.

— Não? Bem, já fizemos algo diferente. — Colocou a mão sobre o ventre. — Estou grávida.

Lucas cobriu as mãos de Katerina com as suas.

— E isso significa que já consertei um erro.

— Que erro? — Sentou-se para tirar as botas e poder sentir a grama sob os pés.

— Deveria tê-la engravidado há um ano. Isso me faria retornar logo e não teria permitido que essas idéias estúpidas se estabelecessem em meu cérebro confuso. -

— Você estava pensando em me engravidar quando me trouxe aqui aquela noite? — Lançou-lhe o olhar mais zangado possível quando ele sorriu.

— Pensei nisso — respondeu com orgulho.

— Não acredito que tivesse tal plano. Pensava em fazer isso para que me casasse com você?

— Essa era minha idéia. Eu a arrebataria repetidas vezes até que minha semente frutificasse e, então, cortes-mente, me casaria com você. Foi tudo muito bem pensado.

— Se planejou com tanto cuidado, por que não o fez?

— Porque fiquei todo mole e estúpido após tomar sua virgindade. Foi um pouco dolorido para você a princípio e não quis infligir-lhe mais dor. Então, deixei-a em paz e fiz planos para a próxima vez.

Por um instante, Katerina sentou-se, escutando os sons dos animais que viviam próximo ao lago e observando o reflexo do sol na água. O que Lucas dissera ressoava em sua mente, provocando imagens muito sedutoras. Estavam, no entanto, no meio de um dia surpreendentemente luminoso. Por outro lado, refletiu, logo começaria a ficar redonda com a criança que carregava, o que a tornaria mais recatada; No momento, estava em excelente forma, tudo firme e no lugar certo. Não seria assim por muitos anos, então, por que não ousar um pouco?

— Lucas?

— Sim, querida?

— Não sou mais virgem.

Lucas levou um instante para reconhecer o convite. Logo, agarrou-a e deitou-a, posicionando-se sobre ela.

— Selvagem — murmurou, puxando-o em sua direção.

— Seu selvagem — disse ele, contra seus lábios.

— Todo meu. Então, quando começa esse arrebata-mento?

— Paciência, mulher. Há mais uma coisa que deve ser feita, algo que desejaria ter feito há um ano. Algo que talvez tivesse nos ajudado a evitar ao menos parte dos problemas em que nos metemos.

— E isso seria? — perguntou, começando a desatar-lhe a camisa.

— Dizer-lhe o quanto a amo, como você é a luz em minha alma e minha companheira perfeita.

— Fui tão covarde quanto você, meu marido. Então, digo-lhe agora, no local em que unimos nossos corpos pela primeira vez, que eu o amo, meu lindo selvagem, e o amarei para sempre.

Ele a beijou, tentando demonstrar todas as lindas palavras que era incapaz de formular.

— Oh, foi adorável — sussurrou Katerina, o coração pulsando em uma perigosa mescla de desejo e ternura. — Agora, quanto ao arrebatamento... — provocou.

Lucas riu e beijou-a mais uma vez.

 

Verão, 1483

Estou com ele. Vá atrás dela. Lucas riu enquanto dava largos passos atrás da filha, Morainn. A minúscula garotinha estava se movendo em uma velocidade impressionante para alguém que começara a andar recentemente. Os cachos escuros balançavam loucamente e ele sabia que ela tinha um grande sorriso no pequeno rosto angelical. Sabia também que gritaria tanto quanto o irmão gritava agora quando a alcançasse. Enquanto a perseguia, Lucas olhou para trás e viu Katerina lutar para colocar o filho, Lachann, que se retorcia, de volta na carroça, enquanto Annie, Robbie e Patrick sorriam. Chacoalhou a cabeça, pensando que deveriam ter trazido mais gente na jornada só para arrebanhar as crianças. Lucas agarrou a filhinha pela cintura.

—Não! — gritou Morainn, o pequeno corpo enrijecendo quando Lucas a pegou nos braços.

— Agora, mocinha, eu digo "sim" e sou seu pai — disse Lucas.

Quando Morainn olhou para ele com os grandes olhos iguais aos da mãe, uma lágrima escorrendo pelo rosto, Lucas suspirou. Agradava-o que Katerina conseguisse ser firme com ela porque, cada vez que tentava, achava a coisa mais difícil que já tinha feito. Pior, apesar de ainda não ter vivido dois anos completos, Morainn parecia saber como dobrar o pai. Só o fato de que ela conseguisse fazer o mesmo com cada homem e garoto em Dunlochan evitava que se sentisse humilhado por sua fraqueza.

Colocou-a em pé e apontou em direção à carroça de uma forma que julgou adequadamente autoritária. Morainn olhou para ele, para seu dedo e para a carroça. O irmão permanecia lá, finalmente quieto, o cabelo claro desordenado por causa do vento e o polegar enfiado na boca enquanto observava a irmã. Morainn gritou o nome do irmão e dirigiu-se até lá na velocidade de sempre. Lucas seguiu-a, suspeitando que esse seria o modo como ela abordaria todas as coisas na vida. Pensou que, indubitavelmente, envelheceria antes do tempo.

— Espero com fervor que a breve corrida pelas colinas os mantenha tranqüilos e quietos pelo resto da jornada — disse Katerina, auxiliando Annie a cobrir as crianças.

— Tranqüilos, talvez, mas nunca quietos — retrucou Lucas, quando Morainn e Lachann começaram a conversar em uma linguagem que só eles compreendiam. — Sobre o que será que conversam?

— Sobre como os pais são irritantes? — Katerina sorriu e beijou o rosto de Lucas, que a ajudava a acomodar-se.

— Ah, sim, aqueles grande animais que tolhem sua liberdade. — Beijou-lhe a testa. — Chegaremos a Glascreag antes do pôr-do-sol, querida.

— Não foi uma jornada tão longa. Verdade. Não para mim, pelo menos — acrescentou depois de olhar para os gêmeos e gentilmente tentar arrumar os cachos desordenados dos cabelos de Lachann. — Só espero que seu irmão saiba o que, em breve, estará solto em sua casa.

— Lembre-se de todas as histórias que ele contou sobre seus próprios garotos, Aiden e Eric, e mesmo sobre a menininha de Angus, Megan — disse Lucas montando o cavalo. — Suspeito que está acostumado com isso.

Quando Donald fez a carroça se mover, Katerina observou o marido cavalgar para junto de Robbie e Patrick. Nunca se cansava de olhar para o homem que desposara. Apesar da eventual rigidez na perna, era maravilhoso olhar seu corpo. De alguma forma, o fato de mancar um pouco se tornava atraente em um homem tão grande e forte.

E ele lhe dera crianças saudáveis e robustas, pensou com um sorriso, contemplando os filhos. Katerina ainda achava difícil acreditar que, em segurança, dera à luz gêmeos, uma menina e um menino que eram uma intrigante mescla de Lucas e de si mesma. Lachann tinha cabelos claros e os olhos do pai e Morainn tinha espessos cabelos escuros e os olhos da mãe. Eles corriam o grave perigo de serem mimados por todos em Dunlochan.

Katerina esperava que o irmão de Lucas e sua esposa não achassem a dupla uma preocupação muito grande, pois queria que Lucas e Artan desejassem visitar-se a cada oportunidade. Esposas grávidas, trabalho, as condições do tempo e crianças pequenas demais para enfrentar a jornada já eram motivos suficientes para mantê-los afastados.

— Está nervosa, Katerina? — perguntou Annie, após ver que os gêmeos estavam mais adormecidos que despertos.

— Um pouco — ela admitiu com relutância. — Tenho me correspondido com a esposa de Artan, mas ainda não nos conhecemos. Logo estaremos face a face, assim como nossos filhos. Quero que seja perfeito, ainda que as crianças possam algumas vezes desorganizar as coisas.

Annie assentiu.

— Isso eles podem, mas você tem a mim e tenho certeza de que há babás em profusão em Glascreag.

— Claro que sim. — Katerina fez uma careta. — E que sei como Lucas está ansioso para ver o irmão novamente e não quero que nada dê errado. Sei que é o maior desejo dele que nossas famílias sejam próximas — esposas e crianças, assim como ele e Artan.

— Dará tudo certo. — disse Annie, quando Katerina franziu a testa. — As cartas de lady Cecily são leves, divertidas e calorosas. Tenho certeza de que ela também é assim. E você já encontrou o irmão de Lucas várias vezes. As crianças irão brincar e brigar e é assim que deve ser. — Annie tocou os lindos cabelos vermelhos de seu filho que, com apenas cinco meses, ainda dormia durante a maior parte do tempo. — Mal posso esperar que meu pequeno Ian possa correr e brincar com os outros.

Depois de sé assegurar que as crianças agora adormecidas estavam cobertas, Katerina envolveu-se com um cobertor.

— Sei que tudo o que disse é verdade. Acho que só preciso superar esse primeiro encontro.

— Será breve e, então, poderá relaxar e aproveitar a visita.

— Lá está Glascreag — apontou Lucas, cavalgando ao lado da carroça e sorrindo para a esposa que despertava. — Afaste o sono dos lindos olhos, mulher, e veja.

Katerina olhou. Não tinha certeza sobre o que imaginara a respeito de Glascreag. A primeira palavra que lhe ocorreu foi formidável. Olhando ao redor, viu que a terra era boa e cultivável. Um vale tranqüilo cercava o grande castelo, cujas pedras escuras e enormes muralhas pareciam espetaculares à luz do sol poente.

Refletiu, então, sobre como Lucas fora cuidadoso e atento ao se aproximar das terras de Glascreag, atravessando com rapidez e descrição os terrenos de outros clãs. Um vigia ficara de guarda todas as noites e Katerina agora percebia que não fora somente para protegê-los de ladrões. Glascreag e os MacReith podiam não estar em guerra com ninguém no momento, mas ela suspeitava que não eram exatamente aliados da maioria dos vizinhos.

Esse era o local onde o marido havia sido treinado. Lucas passara ali dez anos de sua vida se transformando em um homem, pensou, enquanto o via observar ao redor com evidente afeto. Isso explicava aquele lado algo selvagem dele, que não detectara nos outros Murray. Essa terra dura, mas belíssima, o havia moldado, se infiltrara em seu sangue é aprimorara suas habilidades para a batalha. De alguma maneira, o Lucas que conhecia nascera ali.

— Não mudou nada — disse ele, revelando prazer na voz.

— Acredito que um lugar como esse sofra poucas transformações — disse Katerina. — A terra não permite.

— Sim, verdade. Pode ser difícil por aqui, mas Angus tem terras muito boas.

— Boas o suficiente para despertar um pouquinho de inveja?

— Sim, apesar de não se derramar sangue por aqui há algum tempo. Artan diz que tem sido bastante pacífico, recentemente.

O tom em sua voz revelava que aquilo não necessariamente agradava Artan e que Lucas concordava com os sentimentos do irmão.

— Suspeito que lady Cecily esteja feliz que seja. assim — murmurou.

— Artan também está. Não desejaria que a família corresse perigo.

Pelo modo como Artan falava da esposa e dos filhos, Katerina sabia que era verdade. Antes que pudesse responder, os filhos despertaram, desviando-lhe a atenção. Com a ajuda de Annie, conseguiu trocar-lhes as roupas antes de adentrarem os portões de Glascreag. Segurando a pequena Morainn enquanto Annie cuidava de Lachann, Katerina observou um grupo de pessoas descer apressadamente as escadas do castelo para cumprimentá-los.

O único que reconheceu foi Artan. Em cada braço forte segurava um dos pequenos meninos de cachos negros e grossos, ambos rindo e se retorcendo. Um passo atrás estava uma delgada mulher ruiva que só poderia ser lady Cecily. Um homem alto e mais velho, os cabelos negros com mechas prateadas, tinha uma das mãos no braço de uma mulher roliça e grisalha e a outra com os dedos entrelaçados aos de uma pequena e loira garotinha. Dois jovens muito charmosos desviaram do casal que descia a escada mais devagar e correram para cumprimentar Lucas.

Os homens se dedicaram aos típicos abraços breves seguidos de tapas nas costas que os faziam cambalear de leve. Katerina encontrou-se sendo abraçada e beijada conforme era apresentada a todos. Não precisava, de fato, escutar seus nomes, pois, pelas histórias de Lucas e cartas de Cecily, podia facilmente identificá-los. Surpreendeu-a que Angus MacReith fosse apenas um primo distante de Artan e Lucas, pois o homem aparentava ser pai deles. Os primos de Lucas, Bennet e William, receberam um olhar atravessado dele, que, obviamente julgou-os muito efusivos e calorosos nos cumprimentos à sua esposa. Assim que Katerina saudou as mulheres, sabia que seriam amigas. Percebeu que Cecily era tão afetuosa e bondosa quanto demonstrava nas correspondências que trocavam e que Meg era exatamente como tinha sido descrita por Cecily nas cartas, uma pessoa amorosa e perspicaz.

—Então, onde está sua menininha? -— perguntou Angus.

Katerina interrompeu abruptamente a conversa com Cecily.

—- Morainn está bem aqui... — disse, as duas últimas palavras transformando-se em um sussurro quando, ao olhar ao redor, não encontrou a filha.

— Passarinho! — gritou uma voz de criança. Katerina voltou-se para ver a menina correndo em direção às galinhas.

— Lucas!

Rindo como os primos, Lucas foi atrás da criança. Artan estava tão ocupado atormentando o irmão sobre sua incapacidade de controlar os filhos, que se esqueceu de observar os próprios. Eric e Aiden rapidamente correram atrás da priminha, informando-a ruidosamente que os animais que agora fugiam assustados não eram pássaros e sim galinhas. Lachann e Megan, a filhinha de Angus, protestaram quando foram impedidos de correr atrás das outras crianças. Katerina suspirou e tentou acalmar Lachann. Sem dúvida, levaria muito tempo até que conseguisse ter uma conversa de mulher para mulher com a esposa de Artan.

— Finalmente, silêncio! — exclamou Cecily, sentando-se em um banco acolchoado perto de Meg.

Katerina sorriu, já confortavelmente acomodada perto da lareira.

— Silêncio para nós, pois acho que as babás ainda ficarão bastante ocupadas.

Cecily e Meg riram.

— É, isso é verdade.

Katerina olhou em direção aos homens sentados à mesa, bebendo cerveja e discutindo.

— Gostaria de saber sobre o que discutem.

— Sobre tudo e nada. Meg assentiu.

— Angus adora um bom debate.

— Lucas sempre disse isso, mas achei que estivesse brincando. — Katerina olhou outra vez para os homens, sacudiu a cabeça e riu. — E óbvio que ele estava dizendo a verdade. — Olhou ao redor do salão mais uma vez, antes de voltar-se para Cecily e Meg. — Queria há muito tempo conhecer esse lugar. Lucas contou-me tantas histórias sobre os anos passados aqui, o treinamento e Angus. Sabia de toda a influência que o fez tornar-se o homem que é hoje.

— Sim — concordou Cecily. — Acho que ele e Artan nasceram para esta vida. Os Murray vivem em uma terra mais branda e tranqüila, muito mais perto dos limites dos lugares que Angus adora amaldiçoar. Artan e Lucas são os filhos que ele nunca teve. — Cecily sorriu para Katerina. — Você ganhou uma família bem grande ao se casar com Lucas.

— Comecei a perceber isso quando os Murray começaram a nos visitar. Tenho uma dúzia de primos que conheço. Talvez tenha mais e só não os tenha encontrado ainda. Meu tio era muito apegado às moças — disse quando ambas a olharam com curiosidade. — Pensei que era muito até que comecei a ouvir sobre a família de Lucas e a conheci. Isso é bom. Meus filhos sempre terão com quem contar se precisarem.

— Sim, e com aqueles que seguramente os protegerão. Olhando de volta para o marido, Katerina disse, serena:

— Às vezes olho para este homem e me pergunto como ele chegou a ser meu.

— E em como consegue mantê-lo, não? — Cecily sorriu em completa compreensão.

— Sim, e então parece que questionei os votos que ele fez e me sinto culpada.

— Conheço bem a sensação.

— E só uma coisa passageira, e sem grande conseqüência — opinou Meg. — E só um medo natural de perder algo precioso. Somente Deus pode tomar aqueles rapazes de vocês. Eles as amam profundamente e crêem que uma promessa deve ser mantida não importa a quem seja feita, a um homem, mulher ou criança. Vocês são moças de muita sorte e eu sou uma velha mulher de muita sorte. Katerina estava prestes a discutir a palavra velha quando uma familiar voz infantil gritou:

— Papai!

Olhando para as portas do salão, viu a filha parada lá com a roupa de dormir. Morainn olhou ao redor do aposento, viu o pai e começou a correr em sua direção. Um instante mais tarde, uma jovem criada sem fôlego apareceu. Katerina correu até a moça.

— Como ela saiu do quarto das crianças? — Katerina perguntou enquanto Cecily corria para seu lado.

— Oh, milady, eu não sei — respondeu a mulher. — Pensávamos que todas as crianças estivessem dormindo. Annie veio pegar o bebê com seu marido e eu estava conversando com...

— Papai! Beijo!

Lançando um olhar sobre o ombro, viu que a filha alcançava o divertido pai e seus parentes e disse:

— Tudo bem. Nada aconteceu desta vez, mas você não deve tirar os olhos dela de novo. Morainn precisa estar em uma cama muito segura. Se você não tem uma destas, então uma babá dever dormir perto dela. E é melhor que ela ate a criança a si mesma de alguma maneira para conseguir despertar assim que Morainn tentar escapar.

— Annie disse que eu deveria fazê-lo, mas pensei que ela estivesse dormindo. Eu estava prestes a trancar a porta, como sempre faço, quando vi que a menina não estava mais em sua cama.

— Trancar a porta também funciona. — Katerina sorriu para Cecily, que parecia se esforçar para reprimir o riso. — Morainn é um pouco selvagem.

— Ah, sim, só um pouco. — Cecily riu com Katerina e olhou em direção à mesa. — Melhor pegá-la antes que beije todos os homens no salão.

Katerina observou a jovem babá correr atrás da menina.

— Sim, pois aqueles tolos sorridentes não irão impedi-la. Quando a moça passou apressada a seu lado com uma zangada Morainn nos braços, Katerina parou e beijou a filha enquanto ralhava com ela.

— Menina desobediente. Sabe muito bem que não deve subir ou descer as escadas sozinha.

Morainn deu no rosto da mãe um beijo úmido e inclinou-se para beijar também tia Cecily.

— Beijo. — Colocou o dedo na boca, descansou a cabeça no ombro da babá e fechou os olhos. — Dormir agora.

Era difícil reprimir a vontade de rir até que as portas se fechassem, mas Katerina conseguiu. Então, ambas se divertiram.

— Acho que essa menina vai me deixar de cabelos brancos antes de crescer e partir para iniciar sua própria família.

Cecily tocou levemente o próprio ventre.

— Gostaria de ter uma filha e rezo para que seja tão cheia de vida quanto a pequena Morainn. — Colocou um dedo sobre os lábios quando Katerina começou a cumprimentá-la. — Silêncio. Isso ainda é segredo. Mais uma semana até que conte a meu marido e ele, então, será rápido em espalhar a notícia.

— Não direi nada — Katerina jurou e ambas voltaram a sentar-se com Meg.

— Sabia que Cecily está grávida de novo? — perguntou Lucas, deitando-se ao lado da esposa.

— Como você sabe? — perguntou, espantada, enquanto Lucas tirava sua camisola. — Cecily não vai dizer nada por uma semana.

Lucas riu e beijou-lhe o nariz.

— Uma moça consegue manter tal notícia escondida de um Murray uma vez, mas nunca duas. Artan só está esperando que ela lhe conte. Com toda a sua alegria e orgulho, no entanto, não acho que haverá uma alma em Glascreag que já não saiba disso quando ela resolver dizer-lhe.

— Ela quer uma garotinha como Morainn.

— Isso seria um justo castigo para meu irmão. Katerina riu.

— Vocês dois só passarão horas se compadecendo um do outro quando estiverem juntos.

— E, podemos observar quem fica com os cabelos brancos primeiro.

— E você está pensando em fazer outro bebê para que Artan não fique muito à sua frente?

Lucas parou de beijar seu pescoço suave e olhou para ela.

— Está me dizendo que está preparada para tentar um outro?

— Acho que sim. Os gêmeos já estão desmamados e quando Cecily me deu a notícia fiquei feliz e, ao mesmo tempo, senti vontade. Parece que meu coração e meu corpo já estão preparados para outra tentativa.

Movendo-se para cima dela, Lucas beijou-a lenta e apaixonadamente.

— Outra garotinha?

Correndo as mãos por sua espinha e apreciando o modo como o corpo do marido reagia ao toque, Katerina sorriu.

— Uma menina ou um menino. Não tenho preferência. Saudável é tudo o que peço. Saudável, de olhos brilhantes e um pouco selvagem como nossa ruidosa Morainn.

— Está chamando minha linda filhinha de selvagem?

— Como o pai.

— Tome cuidado, mulher, ou lhe mostrarei como posso ser selvagem.

— Ah, sim, por favor. Lucas riu e beijou-a.

— Eu amo você, esposa impertinente.

— E eu amo você. Agora, onde está meu selvagem?

— Nunca deixe que digam que Lucas Murray não deu à esposa tudo o que ela exigiu.

— E de que necessitou.

— Sim.

— E que quis com todas as forças.

— Sim.

— Que tal pararmos de falar e recomeçarmos? ― Lucas satisfez, então, os desejos da esposa.

 

 

                                                                                                    Hannah Howell

 

 

 

              Voltar a Série

 

 

 

                                       

O melhor da literatura para todos os gostos e idades