Em 1674, cruzar o Atlântico norte num barco a vela ainda é uma aventura temerária, restrita a alguns corsários e pescadores de baleia e bacalhau.
Embora os vikings já navegassem aquelas latitudes desde o ano 1000, depois de Colombo pouco se acrescentou até as viagens de Jacques Cartier (1534-41) e Samuel Champlain (1608), que fundaram o Canadá.
Depois dos portugueses e espanhóis, que dominavam o Atlântico, os ingleses foram os mais assíduos frequentadores daquelas rotas. A viagem do navio Mayflower, em 1620, inaugurou o transporte para o Novo Mundo de puritanos perseguidos em seu país.
A Franca foi a última das grandes potências europeias a entrar na competição colonial. Mas o governo francês, ao contrário do inglês, não só desestimulava a emigração de minorias religiosas para o Novo Mundo, como chegou mesmo a impedi-la. Essa política foi ideia de Richelieu, que não queria ver as colónias se insurgirem contra a metrópole por motivos religiosos.
Angélica e seus amigos huguenotes embarcados em La Rochelle, numa tentativa desesperada de escapar dos dragões do rei, ainda não sabem a sorte que os aguarda no Novo Mundo. Mas já sonham com a felicidade...
"Sou sua mulher, leve-me!" desabafa Angélica nos braços de seu amado. "O que você quiser eu também quero!..."
Como num sonho, Angélica ouvia as vagas quebrando contra o casco do navio. O balanço suave a punha eufórica. Desfalecendo, sentia nos braços a força daquelas mãos poderosas.
Ele a seduzira, a hipnotizara por meios mágicos... Quem, afinal, lhe inspirara outrora sentimentos assim, aquela mescla de atração e desconfiança?
Joffrey de Peyrac! Seu marido!
Seria naquele navio que ela se veria no ponto de confluência de todas as suas existências?
Quinze anos haviam se passado desde que o amado marido fora queimado vivo em praça pública. Quanta coisa se atribuíra desde então à bela Marquesa dos Anjos, amante do rei de França, viúva do Conde de Peyrac. Uma mulher vestida de ouro, favorita de um rei grandioso que fazia tremer o mundo.
Angélica fechava os olhos, virava a cabeça como faria entregando-se. Chegara àquele ponto da vida em que a única riqueza que se possui e que não pode ser arrebatada é a si mesmo.
Atrás de si batia o mar no costado do navio. O mar incessante e indiferente...
A bordo do navio Gouldsboro, sob o comando do temível pirata Rescator, o Mago do Mediterrâneo, Angélica e sua filha de dois anos, Hõnorina, mais um grupo de quarenta protestantes, fugiam à perseguição religiosa de que eram vítimas em La Rochelle. Graças à perícia do comandante, que tão surpreendentemente lhes,propiciara a fuga, e à habilidade dos pescadores huguenotes que os acompanhavam, escaparam por pouco à ameaça das galeras reais francesas que guardavam a saída do porto. Assim como haviam escapado na praia onde embarcaram ao ataque dos dragões do rei, que feriram o protetor de Angélica, Mestre Gabriel Berne. Agora, seguiam ao sabor do vento pelo oceano Atlântico, em direção ao poente. No Novo Mundo, uma vida repleta de oportunidades os aguardava...
CAPITULO I
Angélica à cabeceira de Gabriel Berne, ferido - O Rescator oferece seu médico árabe
Foi a sensação de.ser observada por um olhar invisível que trouxe Angélica de volta à realidade:
Teve um sobressalto.e procurou vivazmente a sua volta por aquele que a mandara le_var assim para os apartamentos no castelo de popa, de um luxo" oriental. Estava convencida de que ele devia estar ali,- mas não o viu.
Encontrava-se naquele mesmo salão em que o Rescator a recebera na noite anterior. A rapidez dos acontecimentos, seu dramático desenrolar, a paz do momento e a estranheza do ambiente novo davam àquele instante um gosto de sonho. Não fosse a presença de Honorina, que começava a agitar-se e a espreguiçar-se como um gatinho, Angélica teria duvidado que estivesse completamente desperta.
Na penumbra que crescia, reluzia o ouro dos móveis e de bi-belôs cujos contornos ela mal adivinhava. A sua volta pairava o perfume que ela reconhecera não sem emoção e que parecia exclusivo do Rescator. Ele devia ter conservado do Mediterrâneo aquele refinamento, assim como conservara o hábito do café, dos tapetes e dos divãs com almofadas de seda.
Uma rajada de vento frio entrou pela janela, trazendo a umi-dade do nevoeiro. Angélica sentiu frio. Percebeu então que estava com a blusa entreaberta sobre o peito nu, e o detalhe a perturbou. Que mão lhe desatara os colchetes? Quem se inclinara sobre ela enquanto se encontrava inconsciente? Que olhar de homem lhe perscrutara a palidez, talvez inquieto, seus traços imóveis, as pálpebras cerradas e doídas de fadiga?
Em seguida ele notara que ela apenas dormia, exausta, e se afastara, depois de soltar-lhe a blusa para que pudesse respirar mais à vontade.
Esse gesto, que talvez não passasse de uma simples atenção, mas que traía também o homem familiarizado com as mulheres é habituado a tratá-las todas, fossem quem fossem, com uma amável desenvoltura, fez Angélica corar de repente, e ela ergueu-se, recompondo os trajes com uma arisca vivacidade.
Por que a levara para ali, para os aposentos dele, e não a colocara entre seus companheiros? Será que ainda a considerava sua escrava, sua cativa, à disposição de seus caprichos, apesar do desdém que lhe demonstrava?...
- Há alguém aí? - perguntou ela em voz alta. - Está aí, Monkigneur?
Ninguém respondeu, senão o arquejo do mar e o sussurro das ondas. Mas Honorina despertou de todo e sentou-se, bocejando. Angélica inclinou-se para ela e tomou-a nos braços com aquele gesto envolvente e ciumento que fizera tantas vezes para protegê-la dos perigos que lhe ameaçavam a frágil existência.
- Venha, queridinha - murmurou -, e não tenha medo de mais nada. Estamos no mar!
Dirigiu-se para a porta envidraçada e surpreendeu-se de vê-la abrir-se sem dificuldade. Então não era uma prisioneira...
Do lado de fora ainda havia luz. Viam-se marujos indo e vindo sobre a ponte, enquanto se acendiam as primeiras lanternas. O mar estava calmo, e uma espécie de paz emanava do navio pirata, sozinho no oceano deserto, como se algumas horas antes ele não tivesse enfrentado por diversas vezes a própria perdição. Só se saboreia bem a vida quando a morte pareceu próxima e certa.
Alguém acocorado contra a porta ergueu-se, e Angélica viu surgir a seu lado o mouro gigantesco que lhes preparara o café na véspera. Ainda usava o capuz de lã branca dos marroquinos e carregava um mosquete com coronha de prata cinzelada, exata-mente como o dos guardas- de Mulay Ismael que ela vira.
— Onde alojaram meus companheiros? - perguntou ela.
— Venha - respondeu ele -, o amo me disse que a levasse até eles quando acordasse.
Como todos os navios, de carga ou corso, o Gouldsboro não fora construído para receber passageiros. O espaço reservado a tripulação, sob o castelo de proa, era suficiente certamente, mas na medida. Assim, haviam alojado os emigrantes numa parte da entrecoberta, reservada à bateria camuflada do navio pirata. Depois de descer uma escadinha, Angélica viu-se entre seus amigos, que começavam a se instalar como podiam entre os canhões. No final das contas, as carretas das grandes peças de bronze, recobertas de lonas, podiam servir de suporte para as minguadas bagagens.
A luz do dia ainda pairava sobre o convés, mas aqui, mais baixo já estava escuro, com uma claridade rosada que mal-e-mal entrava por uma portinhola de canhão aberta.
Assim que apareceu, Angélica foi rodeada pelas crianças e pelos amigos, num impulso caloroso.
- Dame Angélica! Achávamos que estivesse morta... afogada...
Quase que no mesmo instante começaram as recriminações:
- Não estamos entendendo nada..; Trancaram-nos como a prisioneiros... As crianças estão com sede...
Na semi-escuridão, Angélica os reconhecia apenas pela voz. A de Abigail dominou as demais.
— Mestre Berne necessita de cuidados. Está gravemente ferido.
— Onde está ele? - perguntou Angélica, censurando-se por havê-lo esquecido.
- Pensamos que o ar fresco lhe faria bem, mas ele não volta a si.
Angélica ajoelhou-se junto do ferido. Graças à rósea claridade do poente que ainda iluminava o porão sombrio, conseguiu distinguir-lhe os traços e assustou-se com sua palidez e com a expressão fixa de sofrimento que ele conservava mesmo na inconsciência. Sua respiração era lenta e difícil.
"Foi atingido enquanto me protegia", disse ela consigo mesma.
Havia algo de tocante em vê-lo ali, despojado ao mesmo tempo de sua força e de sua respeitabilidade de grande mercador de La Rochelle, com os ombros fortes despidos, o torso maciço sombreado de pêlos como o de um simples estivador. Um homem que jazia, fraco no sono e na dor, como todos os homens.
Os companheiros, sem outros recursos, haviam-lhe cortado a casaca encharcada de sangue e a camisa, da qual fizeram tampões sobre os ferimentos. Devido àquela aparência inusitada, Angélica talvez nem o reconhecesse. A diferença que existe entre um pacato negociante huguenote, sentado a sua escrivaninha diante do livro caixa, rodeado de seus estoques bem fornidos, e o mesmo homem, nu e desarmado, pareceu-lhe tão profunda quanto um abismo. Em meio a seu espanto, um pensamento extravagante, que ela considerou inconveniente, atravessou-lhe o espírito: "Ele poderia ter sido meu amante"...
De súbito ele lhe pareceu muito próximo, quase lhe pertencendo um pouco, e sua inquietação redobrou, enquanto suave-.mente pousava a mão sobre ele.
— Ele não se moveu nem falou desde que o colocaram aí?
— Não. No entanto, os ferimentos não parecem graves. Um golpe de sabre atingiu-lhe o ombro e o lado esquerdo do peito. Os cortes sangram pouco.
— E preciso fazer algo.
— Mas o quê? - protestou outra vez a voz ácida do médico Alberto Parry. - Não tenho nada à disposição, purgante, clis-ter, nem boticário para mandar buscar ervas.
— Poderia ter trazido sua própria maleta, Mestre Parry - disse Abigail, com uma veemência que lhe era desconhecida. - Não seria tão incómoda.
— Co... como? - sufocou o profissional. - Censurar-me por haver deixado meus instrumentos, quando me arrancaram da cama sem explicações e me empurraram para dentro deste navio, quase de camisola e gorro de dormir, sem que eu tivesse tempo sequer de esfregar os olhos? E depois, no caso de Berne, não posso fazer muita coisa. Afinal de contas, não sou cirurgião.
Agarrado a Angélica, Laurier suplicou:
- Meu pai vai morrer?
De todo lado havia mãos que a apertavam, mãos que talvez fossem as de Severina ou de Honorina ou de Marcial, ou de ou!-trás mães, ansiosas diante da própria miséria.
- As crianças estão com sede - repetia a Sra. Carere como um leitmotiv.
Felizmente não estavam muito esfomeados, já que o padeiro generosamente distribuíra sua provisão de pães e bolos que, ao contrário do médico, tivera o sangue-frio de trazer consigo e que não abandonara sequer durante a corrida pelo matagal.
- Se esses piratas não trouxerem luz logo, arrombo a porta - bradou de súbito Manigault, em pé em algum lugar na escuridão.
Como se estivessem apenas à espera daquela voz tonitruante para se manifestarem, apareceram marinheiros por entre o clarão de três grandes lanternas, que foram pendurar nas duas exrremidades e no centro da bateria. Depois voltaram ate a soleira da porta, para apanhar um tacho de onde se desprendia um aroma apetitoso e um balde cheio de leite.
Eram os dois homens de origem maltesa que já haviam servido de escolta a Angélica. Apesar do aspecto bastante selvagem aue lhes davam a tez olivácea e os olhos afogueados, ela entendera que se tratava de boa gente... na medida em que algum membro de uma tripulação de piratas pudesse pertencer a tal categoria.
Apontaram o tacho de sopa aoí passageiros com um ar bastante convidativo.
- E como quer que a tomemos? - gritou a Sra. Manigault numa voz aguda. - Tomam-nos por porcos a lamber todos a ração na mesma gamela?... Não temos sequer um prato!
E rebentou em soluços histéricos, enquanto pensava em suas belas porcelanas quebradas na areia -das dunas.
- Ah, não tem importância! - disse a Sra. Carrere, bonachona. - Daremos um jeito.
Mas ela mesma não possuía mais do que uma única xícara a oferecer, que por milagre enfiara no último instante na trouxa. Angélica explicou ó melhor que pôde a situação aos marujos, servindo-se do dialeto mediterrâneo de que se lembrava um pouco. Embaraçados, eles coçaram a cabeça. Essa questão de escudelas e utensílios ia criar um problema difícil para a tripulação. Ainda assim, foram embora dizendo que dariam um jeito.
Amontoados à volta- do tacho, os-passageiros fizeram longos comentários acerca do conteúdo.
— Guisado com legumes...
— De todo modo é comida fresca...
— Então ainda não estamos reduzidos a biscoitos e à carne salgada, tão comuns no mar.
— E que devem ter saqueado tudo isso em terra. Ouvi porcos grunhindo e uma cabra balindo no porão abaixo de nós.
— Não. Eles nos compraram as cabras a bom preço, pagando em escudos sonantes. Fizemos bons negócios com eles.
— Quem está dizendo isso? - perguntou Manigault quando esta ultima explicação, em dialeto charentês, chegou-lhe aos ouvidos. :
A luz das lanternas, descobriu rostos desconhecidos: dois magros camponeses de cabelos compridos e as respectivas mulheres, as quais se agarrava uma meia dúzia de crianças esfarrapadas.
— Mas de onde saíram?
— Somos huguenotes da aldeia de Saint-Maurice.
— E que diabos fazem aqui?
— Bom, é que quando todo mundo correu para a falésia, também corremos. E depois dissemos: já que todo mundo vai embarcar, embarquemos também. Acham que tínhamos vontade de cair nas mãos dos dragões do rei? É provável que tivessem descarregado o mau humor em nós... Principalmente quando percebessem que tínhamos comercializado com os piratas. E no fundo o que é que deixávamos para trás? Não muita coisa, já que lhes vendemos a última cabra e os últimos porcos... Então?
— Já éramos bastante numerosos antes - disse Manigault, furioso. - Outras bocas inúteis a alimentar!
— No momento, caro senhor - disse Angélica -, gostaria de chamar sua atenção para o fato de que não lhe cabe essa preocupação e que mesmo indiretamente é a esses componeses que deve sua sopa da noite, pois sem dúvida foram os pedaços de um de seus porcos que serviram para prepará-la.
- Mas quando estivermos nas ilhas...
O Pastor Beaucaire interveio:
- Camponeses que sabem arar a terra e tratar de animais nunca são uma carga para uma colónia de emigrantes. Meus irmãos, sejam bem-vindos entre nós.
Encerrou-se o incidente e abriu-se o círculo para dar lugar aos infelizes.
Para todos, aquela primeira noite num navio desconhecido que os levava rumo a seu destino tinha algo de irreal. Ainda ontem dormiam cada um em sua casa, rica a de uns, miserável a de outros. A angústia acerca da própria sorte fazia uma trégua, pois os projetos para a partida os haviam tranquilizado. Resolvido o sacrifício, poriam tudo em prática para que se realizasse com o máximo de segurança e conforto. E eis que agora balançavam na noite do oceano, todas as amarras cortadas, quase anónimos como as almas dos danados no barco de Caronte. Eles próprios faziam essa comparação pois na maioria eram homens bastante cultos, e daí o ar lúgubre com que contemplavam a sopa oscilar suavemente no tacho, acompanhando o jogo da embarcação.
As mulheres tinham mais o que fazer além de se deter em reminiscências do poema de Dante. Na falta de escudelas individuais, passavam de uma a outra a única xícara da Sra. Carrere e davam leite às crianças. A operação se fazia com alguma dificuldade, devido ao balanço do navio, acentuado pelo anoitecer. As crianças riram de ser respingadas de leite, mas as mães resmungavam. Quase não tinham mudas de roupa, e onde poderiam lavá-las naquele barco? Cada instante trazia consigo seu cortejo de renúncias e de dares. No coração das donas de casa sangrava a lembrança das belas provisões .de cinza e de paus de sabão nas casas de barreia abandonadas, as escovas de todos os tamanhos - como lavar sem escova? A padeira alegrou-se ao lembrar-se de que trouxera a sua, e passeou um olhar de triunfo sobre as vizinhas deprimidas,
Angélica voltara a ajoelhar-se diante de Mestre Gabriel. Uma olhada a tranquilizara acerca de Honorina, que conseguira ser uma das primeiras a tomar seu leite e que agora, sub-repticiamente, pescava uns pedacinhos de carne na sopa. Honorina sempre saberia defender-se!
O estado do mercador dominava as preocupações de Angélica. A sua ansiedade somavam-se o remorso e o reconhecimento.
"Não fosse ele, teria sido eu a receber o golpe de sabre, ou Honorina..."
A imobilidade do rosto de Gabriel Berne e a prolongada inconsciência não lhe pareciam normais. Agora que havia luz, ela bem via que o rosto do homem estava branco como cera.
Quando os dois homens da tripulação retornaram com umas dez tigelas, que foram distribuídas, Angélica pegou um pela manga e levou-o até o ferido, fazendo-o compreender que não dispunham de nada para tratá-lo. O homem pareceu bem indiferente. Deu de ombros, ergueu os olhos e exclamou:
- Madona!
Também havia feridos entre os marujos e, como em todo navio pirata, quase só podiam tratá-los com os dois remédios miraculosos: rum e pólvora para desinfetar ou queimar as feridas. E orações à Virgem, conforme ele parecia recomendar.
Angélica suspirou. O que podia fazer? Reviu mentalmente todas as receitas que sua vida de dona de casa e mãe de família lhe havia ensinado, e também as da feiticeira, que aplicara aos feridos nos bosques, quando da revolta no Poitou. Mas não tinha nada, absolutamente nada daquilo à mão. Os saquinhos de ervas medicinais estavam no fundo de seu baú, em La Rochelle, e não pensara neles no momento da partida.
- Mas eu devia ter pensado - censurou-se ela. - Não teria dado trabalho algum enfiá-los nos bolsos.
Pareceu-lhe que um arrepio imperceptível crispara os traços de Gabriel Berne, e ela inclinou-se, mais atenta. Ele se movera, os lábios cerrados entreabriram-se, buscando ar. Ele parecia sofrer, e ela não podia fazer nada.
"Se ele morrer,..", pensou, e sentiu-se gelada.
A viagem começaria sob um signo de maldição? Por culpa sua, as crianças a quem amava perderiam o sustento? E ela? Estava habituada a sabê-lo por perto, a apoiar-se nele. No momento em que mais uma vez se rompiam todos os laços, não queria que ele se fosse. Ele não! Era um amigo certo, pois sabia que a amava.
Colocou a mão sobre o peito robusto e molhado de um suor maligno. Através daquele contato, tentava desesperadamente trazê-lo de volta à vida, transmitir-lhe a própria força, força que adquirira há pouco, ao se descobrir livre ao mar.
Ele estremeceu. A suavidade incomum daquela mão feminina sobre sua carne deve ter-lhe penetrado a inconsciência.
Mexeu-se e suas pálpebras abriram-se vagamente. Angélica observava avidamente aquele primeiro olhar. Seria o de um agonizante ou o de um homem que retorna à vida?
Tranqiiilizou-se. De olhos abertos, Mestre Gabriel já abandonava a aparente fraqueza, e tudo o que havia de perturbador no espetáculo daquele homem vigoroso, abatido, desaparecia. Apesar da bruma do coma prolongado, o olhar conservava a expressão profunda e atilada. Vagueou um instante pela abóbada baixa e mal iluminada da entrecoberta, depois fixou-se no rosto de Angélica, logo ali junto ao seu.
Então ela percebeu que o ferido ainda não recuperara o autocontrole, pois jamais lhe conhecera aquela expressão devoradora e extasiada, nem naquele dia trágico em que, após haver estrangulado os esbirros da polícia, ele a tomara nos braços.
De um só golpe ele lhe confessara o que talvez não tivesse confessado nem a si próprio. A sede que todo seu ser sentia por ela! Encerrado em sua dura carapaça de moral, de sabedoria, de desconfiança, a fonte violenta de tal amor só podia vir à luz num momento semelhante, em que ele se encontrava enfraquecido, indiferente ao mundo exterior.
— Dame Angélica - sussurrou.
— Estou aqui.
"Felizmente os outros estão ocupados", pensou. "Não viram nada."
Exceto, talvez, Abigail, também ajoelhada, um pouco a distância, e que orava.
Gabriel fez um movimento nadireçãade Angélica. Gemeu, e suas pálpebras fecharam-se outra vez.
— Ele se mexeu - murmurou Abigail.
— Até abriu os olhos.
— Sim, eu vi.
Os lábios do mercador moveram-se penosamente.
— Dame Angélica... Onde... estamos?
— Ao mar.., O senhor foi ferido...
Quando ele fechava os olhos, não a intimidava mais. Ela apenas se sentia responsável por ele, como quando em La Rochelle, à noite, se ele se demorava diante de seus registros, ela lhe levava uma xícara de caldo ou uma taça de vinho quente, advertindo-o de que estragaria a-saúde por falta de sono.
Acariciou a testa larga.' Com frequência tivera vontade de fazer tal gesto em La Rochelle, quando o via preocupado e cheio de inquietações, que ele dissimulava sob seu ar de serenidade. Gesto maternal, gesto de amiga. Hoje podia permitir-se isso.
- Estou aqui, meu caro amigo... Não se mexa.
Sentia sob os dedos a cabeleira empastada e retirou a mão, lambuzada de sangue. Ah, então ele fora ferido na cabeça! O ferimento e principalmente a pancada que o causara explicavam o prolongado desfalecimento. Agora era preciso tratá-lo energicamente, aquecê-lo, pensá-lo, e ele certamente se safaria. Angélica vira tantos feridos que já podia fazer seu próprio diagnóstico.
Ergueu-se e notou então o estranho silêncio que reinava no porão. As discussões em torno do tacho de sopa haviam cessado e até as crianças se calavam. Angélica alçou os olhos e, com um choque no coração, deu com o Rescator parado aos pés do ferido. Há quanto tempo estaria ali? Em toda parte onde o Rescator surgia, de início inspirava silêncio. Silêncio hostil ou simplesmente desconfiado, provocado pela hermética máscara negra.
Mais uma vez Angélica pensou que ele de fato era um ser especial. Não conseguia explicar de outra maneira a perturbação e a espécie de medo que ela própria sentia por vê-lo ali. Não o ouvira aproximar-se, e os outros certamente também não, pois à luz das lanternas os rostos dos protestantes revelavam um estupor inquieto, enquanto observavam o senhor do navio entre eles como se fosse uma aparição do Diabo. Uma aparição ainda mais perturbadora pelo fato de o Rescator estar acompanhado de um curioso personagem, um indivíduo alto e magro, vestido com uma túnica branca sob uma longa capa bordada. O rosto como que esculpido pela faca de um entalhador de madeira era uma ossatura só, que se diria coberta de um velho couro escuro, com um nariz imenso sobre o qual cintilavam as lentes grossas de óculos em aro de tartaruga.
Ao cabo de um dia fértil em emoções, a visão era quase de pesadelo. E o Rescator, ao claro-escuro das lanternas, não era mais tranquilizador.
- Trouxe-lhe meu médico árabe - disse o Rescator com sua voz surda.
Talvez se dirigisse a Manigault, que avançara. Mas Angélica teve a impressão de que ele falava somente a ela.
— Agradeço-lhe - respondeu. Alberto Parry resmungou:
— Um médico árabe! Só faltava essa...
— Pode confiar nele - protestou Angélica, chocada. - A ciência dos médicos árabes é a mais antiga e a mais completa do mundo.
— Agradeço-lhe, senhora - tornou o velho, não sem uma imperceptível ironia em relação ao colega rochelês. Falava um francês puríssimo.
Ajoelhou-se e, com as mãos hábeis e ligeiras - varetas de buxo que mal pareciam roçar as coisas -, examinou os ferimentos do paciente. Este agitava-se. De repente, quando menos se esperava por isso, Mestre Berne sentou-se e disse furioso:
— Deixe-me em paz! Nunca estive doente e não tenho a intenção de começar hoje.
— Não está doente, está ferido - observou Angélica, com paciência.
Suavemente passou-lhe um braço à volta dos ombros, para sustê-lo.
O médico dirigiu-se em árabe ao Rescator. Os ferimentos, disse, embora profundos, não eram graves. Apenas a pancada do sabre sobre a caixa craniana merecia uma observação mais longa. Aparentemente, já que o ferido recobrara a consciência, a única consequência seriam alguns dias de fadiga.
Angélica inclinou-se para Mestre Gabriel, a fim de traduzir-lhe a boa notícia.
— Ele diz que, se se mantiver calmo, em breve estará em pé. O mercador abriu um olho desconfiado.
— Entende árabe, Dame Angélica?
- Claro que Dame Angélica entende árabe - respondeu o Rescator. - O senhor ignora que em seu tempo ela foi uma das mais célebres cativas do Mediterrâneo?
Essa explicação desenvolta deu a Angélica a impressão de um golpe covardemente desferido. Não reagiu de imediato porque o que ouviu lhe pareceu tão odioso que não teve certeza de haver entendido bem.
Como não tivesse outras cobertas, colocou sobre Mestre Gabriel sua própria capa.
- O médico vai-mandar trazer-lhe remédios que acalmarão o sofrimento. Poderá dormir.
Falava com" voz calina, mas por dentro fremia de cólera.
O Rescator era alto. Dominava o conjunto do. grupo que, num silêncio hipnotizado, se aglomerava a sua volta. Quando voltou para eles o rosto negro, coberto de couro, os protestantes tiveram um movimento de recuo. Desprezou os homens e procurou com o olhar as toucas e as coifas brancas das mulheres.
Retirando então o chapéu de feltro emplumado que usava sobre um lenço de cetim negro, saudou-as com muita graça.
- Senhoras, aproveito a ocasião para desejar-lhes as boas-vindas a meu navio. Lamento não poder colocar à sua disposição instalações mais confortáveis. Infelizmente não eram aguardadas. Espero, porém, que esta travessia não lhes seja de incómodo
excessivo. Com isto, desejo-lhes uma boa noite, senhoras.
Nem Sara Manigault, que tinha o hábito de receber em seus salões a vizinhança de La Rochelle, foi capaz de replicar com uma única palavra a esta saudação mundana. A aparência de quem a pronunciara, o timbre inusitado da voz que lhe conferia um vago sentido de zombaria e de ameaça petrificaram todas as mulheres. Olhavam-no com uma espécie de horror. E quando o Rescator, depois de lançar mais uma ou duas saudações à volta, passou por entre elas para se dirigir à porta, seguido da silhueta fantasmagórica do velho médico, uma criança gritou de pavor e atirou-se contra as saias da mãe.
Foi então que a tímida Abigail, reunindo toda a coragem, ousou falar. Disse, numa voz estrangulada:
- Obrigada por seus votos, Monseigneur, e obrigada ainda mais por nos haver salvado a vida neste dia cujo aniversário doravante não deixaremos de abençoar.
O Rescator fez meia-volta. A penumbra, que já o engolira, devolveu o personagem tenebroso e insólito. Caminhou na dire-ção de Abigail, que empalideceu. Depois de examiná-la, pousou a mão sobre a face dela para virar-lhe o rosto para a luz, num movimento suave mas inflexível.
Sorria. A luz crua da lenterna próxima, examinou aquele rosto puro de madona flamenga, os grandes olhos claros e sábios, ainda dilatados pelo espanto e pela incerteza. Finalmente disse:
- A raça das ilhas da América há de se dar muito bem com a chegada de tão belas-raparigâs. Mas o Novo Mundo saberá apreciar as riquezas de sentimento que lhe leva, minha amiga? Espero que sim. Enquanto isso, durma em paz e pare de torturar o coração por esse ferido...
Com um gesto um tanto desdenhoso, designou Mestre Gabriel.
- ...que, garanto-lhe, não está em perigo e que não terá a dor de perder.
A porta da entrecoberta já se fechara sobre o sopro amargo do vento, e as testemunhas desta cena conseguiam recompor-se.
— Sou da opinião - disse o relojoeiro em voz lúgubre - de que esse pirata é Satã em pessoa.
— Como teve a audácia de dirigir-lhe a palavra, Abigail? - perguntou o Pastor Beaucaire, sufocado. - Atrair a atenção de um homem dessa espécie é perigoso, minha filha!
— E aquela alusão que ele fez à raça das ilhas que se beneficiará de... que indecência! - protestou o papeleiro Mercelot, olhando a filha Berta com a esperança de que ela não tivesse entendido.
Abigail segurava com as duas mãos o rosto afogueado. Em toda sua longa vida de moça virtuosa e que não se sabia bonita, nenhum homem tivera para com ela gesto tão ousado.
- Achei... Achei que devíamos agradecer-lhe - balbuciou. - Seja ele o que for, ainda assim arriscou seu navio, sua vida, sua tripulação... por nós...
Seus olhos esgazeados iam do fundo escuro da bateria por onde o Rescator desaparecera para Mestre Berne, deitado. '
- Mas por que foi que ele disse aquilo?! - exclamou. - Por que disse aquilo?...
Afundou o rosto nas mãos e rebentou em soluços histéricos. Cega de lágrimas, titubeando^ afastou os que faziam um círculo a sua volta para ir atirar-se num canto centra a carreta de um canhão e chorar desesperadamente.
O colapso da serena Abigail fói o sinal, entre as mulheres, para um momento de depressão. Sua dor* contida há muito, rebentou. Os terrores vividos no momento da fuga e do embarque as haviam abalado profundamente. Como é frequente nesses casos, gritos e lágrimas as aliviavam depois de passado o perigo. A jovem grávida dava com a rabeca contra um dos tabiques, repetindo:
- Quero voltar para La Rochelle.r. Meu filho vai morrer...
O marido não sabia como acalmá-la. Manigault tomou a situação sob seu controle-, ao mesmo tempo enérgico e bonachão.
- Vamos, mulheres, um pouco de moderação... Satã ou não, quele homem tem razão: estamos cansados e devemos dormir... Parem de gritar. Aviso que a que se calar por último vai levar um balde de água do mar no rosto.
Restabeleceu-se a calma, súbita e geral.
- E agoTa, oremos - disse o Pastor Beaucaire -, pois, pobres mortais, até agora só pensamos em nos lamentar e não em agradecer ao Senhor por nos haver salvado.
CAPÍTULO II
Discussão entre o Rescator e Angélica
Angélica aproveitara-se da perturbação geral para sair sorrateiramente. Depois de subir a escadinha, parou, agarrada a uma balaustrada. Sentia-se penetrar pelo frio da noite, impregnado de umidade salgada, mas não se importava com isso. A indignação e a raiva bastavam para aquecê-la.
As lanternas penduradas aos mastros e abrigos na proa dissipavam mal a profunda escuridão. Ainda assim, por trás do obstáculo representado pelo mastro principal, Angélica percebia as vidraças vermelhas do apartamento do Rescator. Foi naquela di-reção que avançou, e a passo seguro, pois instintivamente recuperava o hábito, adquirido no Mediterrâneo, de atravessar a coberta balouçante de um navio.
A caminho, chocou-se contra algo e por pouco não gritou de susto ao sentir como que uma serra ardente a fechar-se sobre seu punho. Percebeu pelo contato que se tratava de uma mão masculina, e ao se esforçar por soltar-se, o diamante de um anel a arranhou.
- Para onde corre assim, Dame Angélica? - perguntou a voz do Rescator. - E por que se debate desse modo?
Era exasperante ter de dirigir-se sempre a uma máscara. Ele brincava com o próprio rosto de couro como um demónio. Ela não pudera vê-lo nas trevas e, ao erguer o rosto na direção da voz, era como se falasse à noite.
— Aonde ia? Teria eu a sorte insigne de ser informado de que você ia ao tombadilho, a minha procura?
— Perfeitamente! - explodiu ela. - Pois queria preveni-lo de que não admitirei alusões a meu passado diante de meus companheiros. Proíbo-o, compreendeu?, proíbo-o de dizer-lhes que fui escrava no Mediterrâneo e que me comprou em Cândia, ou que fiz parte do harém de Mulay Ismael ou seja o que for que me diga respeito. Como ousou dizer-lhes isso? Faltou com a cortesia mais elementar para com uma mulher.
— Há mulheres que inspiram cortesia, outras não.
— Proíbo-o de me insultar! Você éum homem grosseiro, sem a menor galanteria... um pirata vulgar!
Atirou este último insulto com todo o desdém de que foi capaz. Desistira de soltar-se, pois éle a.gora a segurava pelos dois punhos. As mãos do Rescator eram quentesxomo as de um homem saudável e habituado a afrontar as intempéries e os climas mais diversos, e esse calor passava para ela, que tremia de mal-estar e exasperação.
Depois de havê-la irritado, o.çontato daquelas mãos lhe fazia bem. Mas Angélica não se encontrava em condições de reconhecer isso. No momento o Rescator lhe parecia um ser odiável a quem sentia vontade "de exterminar.
- Não admitirá... você me proíbe... - repetiu ele. - Com efeito, você perdeu a Cabeça, megerazinha! Esqueceu que sou o único senhor a bordo e que posso mandar enforcá-la, atirá-la ao mar ou dá-la como um brinquedo a minha tripulação, como melhor me aprouver. "Sem dúvida era nesse tom que você falava a meu bom amigo D'Escrainville! A maneira como ele a domou não a curou dessa mania de enfrentar piratas?
Ao ouvi-lo evocar D'Escrainville, imagens voltaram à mente de Angélica. Desde a véspera vivia dividida entre suas aventuras passadas e sua alma presente. Seria naquele navio, na presença daquele homem, o Rescator, que ela se veria no ponto de confluência de todas as suas existências?
"Ah, que me solte!", suplicou ela consigo mesma. "Caso contrário, que será de mim? Torno-me sua escrava, uma coisa sua... Ele me tira as forças. Por quê?"
- Ainda se acredita na corte do Rei-Sol, Sra. du Plessis-Belliere
- perguntou Rescator em voz baixa -, para se mostrar tão arrogante? Cuidado, pois já não tem o respaldo da proteção de seu real amante...
De súbito ela cedeu, com aquela suavidade, não despida de coqueteria mas tampouco de franqueza, que com frequência havia acalmado furores mais perigosos despertados contra ela.
- Monseigneur Rescator, perdoe-me as palavras insensatas. Estou louca. É verdade que só conto agora com a estima de meus companheiros. O que você ganharia em me separar de meus últimos amigos?...
- Seu passado lhe causa tanta vergonha que treme assim ante a ideia de que eles o conheçam?
Angélica respondeu, e as palavras lhe saíam dos lábios sem que tivesse consciência delas:
- Quando se chega à metade do trajeto da vida e se viveu muito, qual é o ser humano digno desse nome que não possui, em suas lembranças, algumas vergonhas a ocultar?
- Depois da cólera, então, você cai na filosofia pura.
"Pronto", pensou ela. "Cá estou eu mais uma vez estranhamente próxima deste homem. Por quê?"
- Tem de entender - tornou ela, como se falasse a um amigo
- que a mentalidade desses huguenotes é muito diferente da nossa. São pessoas muito diferentes de gente como você ou seus tripulantes. Você chocou terrivelmente a pobre Abigail ao lhe falar com tamanha familiaridade, e se viessem a descobrir que, mal grado meu, pude adotar um modo de vida tão escandaloso...
De repente aconteceu o que inconscientemente ela desejava há alguns instantes.
Ele puxou-a contra si e apertou-a quase a ponto de quebrá-la. Segurando-a assim, fê-la dar alguns passos e ela se viu contra a amurada do navio. Uma arfada da embarcação atirou-lhe em pleno rosto os respingos de uma onda. Abaixo dela, Angélica divisava o pálido esguedelhamento da espuma. Uma claridade atenuada, a da lua, oculta por uma espessa camada de nuvens, mas que por vezes se filtrava por entre elas, pousava sobre o mar um reflexo de prata embaciada.
- E mesmo? - disse o Rescator. - Há tantas diferenças assim entre esses huguenotes e meus tripulantes? Entre aquele honorável pastor de cabelos brancos que entrevi e mim, cruel pirata de todos os mares do mundo?... Entre a boa e pudica Abigail e uma abominável pecadora de seu jaez?... tantas diferenças?...
Que diferenças, minha cara?... Olhe a nossa volta...
Um novo embate de respingos contra o casco do navio veio molhar o rosto de Angélica, que, atemorizada pelo abismo escuro sobre o qual ele a forçava a inclinar-se, agarrou-se nervosa no gibão de veludo dele.
- Não - prosseguiu ele -, não somos diferentes. Não passamos de alguns seres humanos, todos a bordo do mesmo navio, no seio do oceano!
Aqueles lábios que lhe falavam pareciam-lhe perigosamente próximos dos seus. Enquanto ele não a tocara, ela ainda conseguira resistir-lhe. Agora, no entanto, enlouquecia por se sentir a sua mercê. Já não sabia que nome dar à singular perturbação que a devastava. Fazia muitíssimo tempo que não a sentia. Dizia a si mesma: medo; e era desejo. O pensamento de que ele se utilizava de um poder mágico para dominá-la é arrastá-la a uma situação impossível a fez enrijecer-se. "Se nesta noite estamos neste ponto", pensou, "antes do fim da viagem estaremos todos loucos e nos mataremos uns aos outros."
E desviou-se, de modo que os lábios do pirata mal lhe roçaram a têmpora. Sentiu-apenas o choque duro da máscara de couro e, soltando-se do abraço opressivo, afastou-se dele, procurando um apoio às apalpadelas.
Ouviu-lhe ainda a- voz irónica:
— Por que está fugindo? Eu tinha apenas a intenção de convidá-la a cear. Se você é gulosa, há de deleitar-se, pois sou um excelente cozinheiro.
— Como ousa prõpor-me isso?! - exclamou ela, indignada. - Quem o ouvisse nos imaginaria nos arredores do Palais Royal! Devo compartilhar a sorte de meus amigos. E Mestre Berne está ferido.
— Mestre Berne? Aquele ferido sobre quem você se debruçava com uma preocupação tão terna?...
— E meu melhor amigo. O que fez por mim e por minha filha...
— Pois bem, como quiser. Aceito o atraso no pagamento de suas dívidas, mas está errada em preferir sua entrecoberta úmida a meu apartamento, pois você me parece friorenta por natureza. Aliás, que fez da capa que me tomou emprestada na noite passada?
— Já não sei - disse Angélica, sentindo-se apanhada em falta.
Passou a mão pela testa, tentando lembrar-se. Devia tê-la esquecido quando se envolvera em outra capa que Abigail lhe reservara...
- Creio... creio que deixei em casa - disse.
E de súbito lhe apareceu a casa de La Rochelle, com o átrio apagado.
Reviu nitidamente os belos móveis, os cobres coruscantes da cozinha, os cómodos penumbrosos onde velava, atento, o olho redondo e límpido dos preciosos espelhos venezianos, e, ao longo das tapeçarias da escada, os retratos vigilantes dos corsários e mercadores rocheleses.
A nostalgia daquele refúgio onde reinara apenas como criada era tudo o que levava do Velho Mundo! Por trás da paz dessa imagem, esfumavam-se os lampiões de Versalhes, o rigor das lutas e até a amargura que podia suscitar nela a lembrança do Castelo do Plessis, com suas ruínas enegrecidas, no interior do Poitou, sua província devastada, amaldiçoada por muito tempo.
Mas a imagem de Monteloup já a abandonara de há muito. Mon-teloup passara para Dionísio e agora nasciam crianças lá. Era a vez delas de espiar nos corredores o fantasma da velha de mãos estendidas e de criar uma infância de encantamento em meio a sua nobre miséria.
Já fazia muito tempo que Angélica não pertencia a Monteloup nem ao Poitou. Enquanto penetrava na entrecoberta, o que a perseguia era a recordação de Mestre Gabriel a esmagar os últimos tições no átrio da casa, antes de pegar Laurier pela mão para partirem.
Esta noite, sob as pálpebras dos exilados desfilaria a lembrança das belas residências protestantes de La Rochelle, despidas de alma agora, apesar da luz clara do céu de Aunis que brinca sobre as fachadas. Vidraças cerradas, olhos mortos, elas esperam, e apenas o sussurrar da palmeira nos pátios e dos lilases contra os muros lembra a vida.
O porão estava escuro e frio. Haviam apagado duas lanternas para que as crianças, mortas de cansaço, pudessem dormir. Vozes cochichavam, resmungavam. Um marido reconfortava a mulher, chamava-a à razão:
- Você verá... você verá!... Quando estivermos nas ilhas, tudo se ajeitará.
A Sra. Carrere sacudia o marido:
- Você não fará menos nas ilhas do que em La Rochelle. Então, o que tínhamos a perder?...
Angélica aproximou-se do círculo de luz onde Manigault e o pastor velavam o ferido. Ele adormecera. Os dois homens informaram-na brevemente de que o médico árabe retornara com um ajudante. Haviam pensado Mestre Berne e fizeram-no engolir uma mistura qualquer que o aliviara muito.
Ela não insistiu para assumir seu turno de guarda. Sentia a necessidade de repousar, não que estivesse tão cansada, mas porque lhe parecia que a cabeça era puro caos. Não conseguia retomar pé na situação exata, e de resto a escuridão e o jogo da embarcação deviam contribuir para isso.
- Amanhã as coisas se esclarecerão. Amanhã entenderei!
Foi quase maquinalmente que procuronHonorina. Uma mão agarrou-a à passagem. Severina mostrou-lhe os dois irmãos adormecidos.
- Eu os deitei - disse, orgulhosa.
Cobrira cada um com a própria capa e à volta dos pés colocara palha, que encontrara sabe Deus onde. Severina era uma autêntica mulher. Vulnerável na vida cotidiana, segurava solidamente o leme nas horas de gravidade. Angélica abraçou-a como a uma amiga.
— Querida-- disse -, nem tivemos tempo de nos ver com calma desde que furbuscá-la em Saint-Martin-de-Ré.
— Ah, todas as pessoas grandes têm a cabeça ao contrário - suspirou a garotinha.- Más é agora que devíamos estar tranquilos, Dame Angélica! Penso nisso a todo instante, e Marcial também. Escapamos do convento e dos jesuítas.*
E acrescentou vivamente, como se se censurasse por seu despropósito:
- E verdade que meu pai foi ferido, mas, veja, isso me parece menos grave do que se "nos tivessem -posto na prisão e separado dele para sempre... Depois, o médico da túnica comprida disse que, a partir de amanhã, ele estará curado... Dame Angélica, tentei pôr Honorina para dormir, mas ela disse que não quer dormir porque não tem sua caixa de tesouros.
O espírito das mães é dotado de uma ótica particular. De todas as catástrofes acumuladas há algumas horas, a de ter esquecido a caixa de tesouros pareceu a Angélica a mais pesada de consequências e a mais irreparável. Sentiu-se muito acabrunhada. A filha estava escondida atrás de um canhão, em pé, desperta como uma corujinha.
- Quero minha caixa de tesouros.
Angélica hesitava entre o método da-cbamada à razão e o da energia sem recursos, quando reconheceu a forma no chão junto da qual Honorina se refugiara.
- Abigail?... E você?... Mas por quê?...
O abatimento de Abigail, sempre tão digna e comedida, quase a embaraçava.
- Que está acontecendo? Tem alguma dor?
Abigail não era tola nem sonsa. Não ia afinal se inquietar tanto só porque o Rescator lhe tocara a face. Angélica forçou-a a erguer-se e a encará-la.
— O que há?... Não estou entendendo.
— Aquelas palavras que ele disse... E terrível!
— Que palavras?
Angélica tentava lembrar-se da cena. Se o comportamento do Rescator para com Abigail lhe parecera ousado e deslocado - mas eram suas maneiras habituais -, as palavras não lhe chamaram a atenção.
- Não compreendeu? - balbuciou a jovem. - Realmente?...
A emoção a rejuvenescia e, com as faces afogueadas e as pálpebras pisadas, notava-se que de fato era bela. Mas fora preciso o maldito Rescator para perceber isso ao primeiro olhar. Angélica pensou que há pouco ele a estreitara contra si sem que ela sequer tivesse a ideia de assustar-se. Tratava assim a todos a sua volta, sobretudo às mulheres, como se tivesse direitos de príncipe sobre eles.
Teve um reflexo de revolta.
- Abigail, não dê importância alguma ao comportamento do senhor deste navio. Você não está acostumada com esse tipo de homem, e mesmo entre todos os aventureiros que conheci, ele é o mais... o mais...
Não encontrava palavras.
— É impossível - concluiu. - Mas no perigo iminente que corríamos, só pude encontrar esse fora-da-lei para nos arrancar de um destino medonho. Agora estamos entre suas mãos. Temos de aceitar a ele e a sua tripulação, sem atrair-lhes a animosidade. Quando eu viajava no Mediterrâneo... por que negá-lo, se ele se encarregou tão pouco galantemente de informar-lhes... só o encontrei uma vez, mas sua reputação era grande. É um pirata sem fé e sem lei, mas não o acredito sem honra.
— Oh, ele não me dá medo! - murmurou Abigail, balançando a cabeça.
Sua expressão acalmava-se e ela ergueu para Angélica seu antigo olhar, pleno de sabedoria.
- Quantos mistérios nos seres com quem convivemos! - disse, sonhadora. - Angélica, levantando o véu que você mantinha cerrado sobre seu passado de modo tão ciumento, parece-me que está ao mesmo tempo mais próxima e mais distante de mim. Poderemos ainda compreender-nos?
— Creio que sim, caríssima Abigail. Se você quiser, sempre seremos amigas.
— Quero, de todo o coração. No lugar para onde vamos, Angélica, se o ódio e a mesquinharia forem mais forte em nós do que a afeição, seremos partidas como vidro, não poderemos sobreviver.
Eis que de súbito ela exprimia o mesmo pensamento que o Rescator há pouco. "Não somos mais do que,homens e mulheres embarcados no mesmo navio... com suas paixões e pesares... e sua esperança."
- E tão estranho, Angélica - continuava Abigail baixinho -descobrir de repente outras dimensões da vida... Como se bruscamente se abrisse uma cortina de teatro sobre um cenário novo, ampliando ao infinifo o que'se supunha adquirido, imutável... Foi o que me aconteceu subitamente hoje... Lembrarei este dia até morrer. Não tanto pelos riscos que corremos, mas sobretudo pelas revelações que me foram feitas... Talvez eii devesse recebê-las para me prepararpara a existência que nos aguarda além dos mares... Todos nós precisaremos abandonar a velha casca... Creio profundamente que para nós é uma bênção termos sido obrigados a embarcar' neste navio... precisamente neste...
Seus olhos brilhavam, e sob aquela aparência apaixonada Angélica já não reconhecia a jovem apagada de La Rochelle, quase resignada por vezes.
— Porque esse homem a quem você chama fora-da-lei, Angélica, tenho certeza de que ele sabe ler no olhar os segredos mais escondidos no fundo dos corações. Há um poder nele.
— No Mediterrâneo chamavam-lhe Mago - cochichou Angélica.
A adesão de Abigail causava-lhe um prazer absurdo que ela não analisava. O momento parecia-lhe sublime e rico de promessas. Ouvia as vagas quebrando contra o casco. O balanço do navio a punha eufórica, e ela teria passado a noite toda junto de Abigail, fazendo-lhe confidências sobre seu passado e a falar sobre o Rescator, se o cuidado materno provocado por Honorina não lhe desviasse a atenção.
— E essa Honorina que não quer dormir porque não tem sua caixa de tesouros! - suspirou com um gesto na direção da pes-soinha em pé, sempre emburrada, junto delas como um justiceiro.
— Oh, sou imperdoável! - exclamou Abigail, levantando-se.
Recompusera-se completamente. Afastou-se para ir buscar alguma coisa em sua bagagem e voltou trazendo consigo o cofri-nho de madeira que Marcial esculpira para Honorina.
- Meu Deus! Abigail - exclamou Angélica de mãos postas -, você pensou nisso! Você é um anjo! E maravilhosa!... Honorina, suas conchas!
Em seguida tudo se tornou simples. A paz, de volta ao coração de Honorina, comunicou-se ao da mãe. Angélica desdobrou as poucas roupas que trouxera: sua saia e seu corpete dariam amplas cobertas para a pequena menina.
Depois de deitá-la sobre o tabique a seu lado, Angélica pôde dizer a si mesma que a pequena não carecia de nada. Ela própria dormira às vezes nà prisão, em condições mais desconfortáveis. No entanto, estava com frio e sem sono. Apoiou-se contra a parede e tentou ordenar os pensamentos.
Como seria o dia seguinte?
Ainda sentia nos braços a força das mãos do Rescator. Pensando nisso, desfalecia. E, como estava com frio, a evocação do momento em que ele a estreitara contra si lhe parecia deliciosa. Angustiante, também. Pois sob o gibão de veludo que sua mão crispara, em vez de sentir um torso de homem vivo, ela adivinhara uma tela rija. Cota de malhas ou plastrão de aço?... Homem do perigo, prevendo a morte a cada instante. Tinha o coração envolto em ferro. De resto, um homem assim podia ter um coração?
Ia cometer a imprudência de apaixonar-se por aquele homem?... Não! Depois, era incapaz agora de apaixonar-se por quem fosse. Então? Ele a seduzia e hipnotizava por meios mágicos, como... quem, afinal, lhe inspirara outrora sentimentos assim, aquela mescla de atração e desconfiança? E também se dizia que era um homem que possuía um poder mágico e que atraía as mulheres com...
O clarão de uma lâmpada sobre seus olhos a fez piscar.
- Ah, você está aqui!
Uma grande cabeça peluda inclinava-se para ela. Era Nicolau Perrot, o homem do gorro de pele.
- O chefe me encarregou de trazer isto para você e esta rede para a criança.
"Isto" era um tecido grosso, uma capa ou coberta, pesada, bordada, macia, do tipo que tecem os cameleiros do deserto da Arábia. Vinha ainda impregnada do odor do Oriente.
Com mão hábil, Nicolau Perrot já pendurara a rede às vigas baixas. Angélica deitou ali Honorina sem que,a criança despertasse.
— Sempre é melhor e menos úmido. Mas não podemos oferecer o mesmo conforto a todos. Não temos a bordo o necessário para tanta gente. Não se previa uma carga desse tipo. Mas quando estivermos na zona dos gelos mandaremos trazer-lhes braseiros.
— Agradeça a Monseigneur Rescator por mim.
Ele deu uma piscada cúmplice e afastou-se gingando sobre as grossas botas de pele de foca.
Erguiam-se roncos no porão. Ápagara-se a segunda lanterna,
conservando a luz apenas no local onde se encontrava o ferido.
Mas também ali tudo parecia calmo. Angélica envolveu-se na suntuosa coberta.
De manhã as companheiras não deixaram de notar o insigne favor de que ela era objeto. O Rescator não poderia ter-lhe enviado uma coberta menos vistosa? Não, fizera de-propósito. Angélica divertiá-se em tirá-las do sério, em provocar-lhes a surpresa, a inveja, as reações baixas ou violentas.
A coberta também era um insulto à miséria dos outros.
Mas, afinal de-contas, talvez ele não.dispusesse de outras. O Rescator cercava-se de coisas caras. Não sabia dar um presente comum. Seria indigno dele. Tinha a grandeza no sangue, como... "Não usa espada, usa um sabre, mas é um gentil-homem, eu seria capaz de jurar... o cumprimento que dirigiu às senhoras não foi comédia nem afetação. Ele não pode saudar senão com nobreza. E jamais conheci um homem que soubesse levar a capa como ele, exceto..."
Seu espírito tropeçava numa comparação que teimosamente lhe escapava. Havia em suas recordações um homem que lembrava o Rescator...
"Parece-se com alguém que conheci. Talvez seja por isso que as vezes me parece familiar e que me comporte com ele como se fosse um de meus antigos amigos... O mesmo género de homem, é claro, pois dizer que se 'parece' é uma metáfora, já que nunca lhe vi o rosto... Mas essa desenvoltura, essa maneira natural de dominar os outros e zombar deles... Sim, isso me é familiar... Aliás... o outro também usava máscara..."
O coração de Angélica disparou em batidas irregulares. Ela sentia muito calor e de repente muito frio. Sentou-se e levou a mão à garganta, como que para afastar o medo inexplicável que a estrangulava.
"Ele usava máscara... Mas às vezes a tirava, e então..."
Sufocou um grito. Bruscamente a lacuna se preencheu.
Ela se lembrava.
Depois começou a rir nervosamente.
"Mas, claro, é isso... Agora sei com quem ele se parece... Parece-se com Joffrey de Peyrac, meu primeiro marido... Era disso que tentava me lembrar em vão."
Mas uma febre extraordinária continuava a consumi-la. Tinha a cabeça cheia de relâmpagos multicoloridos que rebentavam sucessivamente como os foguetes na noite de Cândia...
"Parece-se com ele!... Usa máscara... e reinava no Mediterrâneo. E se fosse... ele!"
Uma vaga sufocante inundava-lhe o peito. Era como se seu coração fosse explodir sob o ímpeto de um grito de agonia e alegria.
"Ele... E eu não teria sabido!"
Depois, bruscamente, recuperou o fôlego... Misto de alivia e decepção!
"Como sou tola!... Que ideia louca! É ridículo!"
No ambiente encantado de Toulouse, acabava de rever aquele que avançara para a jovem esposa. Evocação quase esquecida. Se não conseguia recriar o rosto de traços um tanto esfumados em sua memória, revia nitidamente a vasta cabeleira negra que tanto a surpreendera quando se dera conta de que não era peruca. E depois, principalmente, o andar claudicante que tanto a assustara, o andar daquele que então chamavam de o Grande Coxo do Languedoc.
"Como sou tola! Como pude imaginar isso um segundo sequer?
Depois de refletir, reconheceu que certas particularidades podiam induzi-la ao erro e inflamar-lhe a imaginação. Um espírito cáustico, desenvolto. Mas o Rescator tinha uma cabeça de ave da rapina, muito especial, que parecia pequena entre grandes golas engomadas à espanhola. Tinha também um andar seguro e todo seu, ombros robustos...
"Meu marido era manco... E sabia adaptar-se tão bem a essa desgraça que a gente a esquecia... Seu espírito cintilante fascinava, mas não havia nele a maldade que há nesse aventureiro dos mares..."
Notou que estava encharcada de suor, como depois de um acesso de febre. Aconchegando-se melhor sob a sedosa coberta, acariciou-a com um dedo pensativo.
"Maldade?... Será essa a palavrâ?.. Joffrey de Peyrac talvez tivesse gestos semelhantes, cavalheirescos... Mas como ouso compará-los! Joffrey de Peyrac era o mais nobre dos tolosanos, um grão-senhor, quase um rei. O Rescator, embora, pretensioso, se faça tratar por Monseigneur, no final das contas não passa de um aventureiro que viye de saques e comércios ilícitos. Um dia, prodigiosamente rico, no outro, mais miserável do que um indigente, acossado como um malfeitor. Esses corsários sempre acham que podem conservar a própria fortuna. Nada de mais instável do que.isso, so&retudo-para eles... Fortuna tão rapidamente destruída quanto acumulada..."
Lembrou-se do Marquês d'Escrainville diante de seu navio em chamas.
"Jogadores cujo único erro é serem perigosos, pois seu jogo de dados repousa sobre o sacrifício de vidas humanas. Joffrey de Peyrac, de seu lado,.era um epicurista. Desdenhava a violência. A existência de um Rescator repousa sobre cadáveres. Tem as mãos manchadas de sangue..."
Pensou em Cantor, nas galeras afundadas pelos canhões do pirata. Ela mesma vira com os próprios olhos a barca de munições da esquadra real desaparecer num turbilhão com seus forçados, enquanto o xaveco do Rescator manobrava à volta como um abutre.
"Ainda assim, é por esse mesmo homem que me sinto atraída... pois sinto-me atraída, não seria capaz de negá-lo."
Era preciso encarar os fatos. Angélica voltou-se sobre o tabi-que de madeira. Não conseguira pregar o olho. Fora exatamente aquele homem que pedira socorro. Fora èntreysuas mãos que se colocara de novo com confiança, com uma absoluta falta de prudência.
O que quisera dizer ao observar que "aceitava atraso no pagamento de suas dívidas"? De que maneira pretendia fazê-la pagar-lhe o serviço que consentira em prestar a ela, bem como a peça que lhe pregara outrora?
"Aí está no que ele difere essencialmente de meu primeiro marido. Não deve saber prestar um serviço sem compensação, realizar um gesto gratuito, o que constitui o apanágio" dos nobres autênticos. Joffrey de Peyrac era um cavalheiro de fato."
Tinha de se esforçar para pronunciar o nome que lhe habitava o coração há tanto tempo.
Joffrey de Peyrac!
Há quanto tempo se proibira de reavivar essa lembrança? Há quanto tempo perdera a.esperança de reencontrá-lo vivo neste mundo?
Fosse como fosse, considerava-se resignada. Ora, pela emoção que a abalara há pouco, percebia que sua ilusão permanecia viva, apesar de tudo.
A vida não conseguira apagar a recordação de uma época em que conhecera uma felicidade maravilhosa. No entanto, como se parecia pouco, hoje, com a que fora a Condessinha de Peyrac.
"Eu não sabia nada então. Mas estava absolutamente convencida de que sabia tudo. Achava naturalíssimo que ele me amasse." A imagem do casal que ela formava com o Conde de Peyrac a fez sorrir. Transformara-se de fato numa imagem, e agora ela podia contemplá-la sem muita tristeza, assim como ao retrato de dois estranhos.
O esplendor de sua fortuna, a corte refinada de que se rodeavam, o lugar que ocupava no reino o senhor da Aquitânia - como tudo isso parecia sem relação com um navio misterioso, carregado de emigrantes e de corsários, vogando rumo a uma terra estrangeira.
E quinze anos se haviam passado!
O reino estava distante, o rei jamais reencontraria Angélica du Plessis-Belliere, ex-Condessa de Peyrac. Pelo menos ele, o rei, permanecia em pé, sempre entre suas marionetes, no coração do relicário monumental e coruscante: Versalhes.
Sim, ela fora aquela mulher vestida de ouro, favorita de um mundo grandioso, de um país conquistador, que fazia tremer uma parte do universo.
Mas, quanto mais se afastava o esquife, ao sabor do oceano, mais perdia sua força a miragem de Versalhes. Fixava-se, adquiria a aparência brilhantemente falsa de cenários de teatro.
"É agora que estou realmente viva", pensou ela, "é agora que me tornei eu mesma de fato... ou estou a ponto de tornar-me. Pois sempre sofri, mesmo na corte, por me sentir incompleta, fora de meu caminho."
Foi preciso que se levantasse para olhar o vão obscuro, vagamente iluminado, onde dormia uma gente esmagada de pesares
e fadiga.
A faculdade de renovação que subitamente descobria em si quase a atemorizava. Não se renegava assim„totalmente, o próprio passado, ninguém se livra assim, com um dar de ombros, daquilo que o formou, marcou, de seus amores... e de seus ódios. E monstruoso!...
No entanto, era assim. Pobre, ainda por cima se sentia privada até de seu passado. Chegava àquele ponto da vida em que a única riqueza que se possui e que não pode ser arrebatada é a si mesmo. As diversas personagens que assumira e que durante muito tempo combateram dentrcrdela - mulher fiel ou volúvel, ambiciosa ou generosa, revoltada ou dócil - acabaram, sem que ela se desse conta, fazendo as pazes entre si.
"Como se eu tivesse vivido tudo isso com a única finalidade de um dia me encontrar num navio-desconhecido, entre desconhecidos, rumando para um destino desconhecido!"
Mas devia esquecer também Joffrey de Peyrac? Abandoná-lo ao passado?
A mágoa lancinante do que poderia ter sido o amor de ambos trespassou-a como uma punhalada. Com o decorrer dos anos, teriam destruído esse amor, como tantos casais que ela conhecera? Ou teriam sabido vivê-lo por entre as emboscadas da vida?
Tarefa difícil. "Eu o conhecia pouco..."
Pela primeira vez confessava a si mesma que Joffrey de Peyrac, embora ela tivesse sido sua mulher, não lhe era inteiramente acessível. Os curtos anos de vida comum, em que para ela, Aneél ica, a descoberta do amor e de suas delícias, nas quais se dispôs tão bem a iniciá-la o grão-senhor tolosano, doze anos mais velho, contara muito mais do que a procura de um entendimento mais profundo, não lhe deixaram tempo para medir suas próprias forças morais e, em Joffrey de Peyrac, as bases reais e imutáveis de um caráter cheio de fantasia aparente, desconcertante aos olhos dos outros, e que se queria assim.
Fora somente no combate feroz que a existência lhe impusera, que ela tivera de enfrentar sozinha, que aprendera a conhecer.
E sozinha continuava.
Embora duas vezes casada, e mãe, o jogo das circunstâncias quisera que seu destino fosse o de uma mulher só.
Só para orientar a própria vida, escolher ir aqui ou ali, só para aceitar ou recusar um caminho em lugar de outro. Nenhum ombro contra o qual repousar, de olhos fechados, pensando: "Que importa! Leve-me! Pois sou sua mulher e o que você quer é o que quero também!"
Obrigada pela solidão, seus atos não deixaram de ser determinados unicamente por sua vontade. E dava-se conta de que estava cansada disso, pois não é coisa que esteja na natureza feminina.
Atingindo esse ponto de suas reflexões, Angélica reagiu com vigor. O que tinha ela esta noite para se deter assim sobre sua solidão? Nada até o momento provara que ela fora criada para a docilidade.
Aceitaria, hoje, deixar-se conduzir? Afinal, sabia muito melhor o que devia fazer do que a maioria dos homens. O jugo conjugal a teria, exasperado.
Mestre Berne não demoraria a pedi-la em casamento. Por enquanto estava ferido. Ela ganhava tempo, então. Mas, se ele a amava, havia de propor-lhe casamento, e o que responderia ela? Sim ou não lhe pareciam igualmente impossíveis, pois tinha medo de se comprometer, ma,s também necessitava daquele amigo. Precisava sentir-se amada.
"Aí está o jugo pelo qual suspiro", pensou. "O do amor. Pode existir sem vínculos?"
Esta última reflexão causou-lhe um sobressalto.
"Mas é mentira! Detesto o amor. Não quero saber de amor!"
O caminho pareceu-lhe traçado. Continuaria só. Continuaria viúva. Era esse seu destino: viúva, ligada a um amor passado, cuja recordação conservaria até a hora da morte. Viveria correta-mente. Faria Honorina, sua filha querida, feliz e bela. Não teria tempo de se entediar nas ilhas, organizando a vida nova. Seria amiga de todos, sobretudo das crianças, e assim não trairia seu destino de mulher, que é doar e fazer crescer.
Quanto ao Rescator... Não podia deixar de levar o Rescator em conta. Por alguns instantes conseguira afastar-lhe a imagem, mas esta retornava, obcecante. Ele estava próximo demais.
Não era mais o morto que ela imaginava há muito tempo. Sua presença atual era viva em demasia para que Angélica não soubesse que teria de lutar contra armadilhas, das quais as mais perigosas talvez se encontrassem dentro dela mesma. Felizmente ela agora sabia por que seu coração e sua imaginação se exaltavam, pegavam fogo. Uma semelhança sutil no comportamento, nas maneiras, com aquele que ela tanto artiara pouco a pouco a arrastara para uma miragem enganadora. Não deixaria que o senhor do Gouldsboro fizesse dela um brinquedo.
O sono chegava finalmente... "Semelhança alguma", repetiu-se ela ainda, antes de adormecer, "talvez... o quê?..." Examinaria atentamente o Rescator na próxima vez em que se visse em sua presença...
Mas não era de modo algum por culpa sua, era por causa daquela semelhança e de suas recordações que ela, apesar de tudo, estava um tanto..: enamorada.
CAPÍTULO III
Gabriel Berne pede Angélica em casamento
Foi no dia seguinte que Mestre Gabriel Berne a pediu em casamento.
Havia recobrado totalmente a consciência e já parecia em convalescença. Uma tipóia sustentava-lhe o braço esquerdo, mas, apoiado a um grande travesseiro feito da palha que Abigail e Se-verina tinham pegado do leito das cabras e das vacas, no porão vizinho, ele recuperara a aparência habitual, boa cor, olhar tranquilo. Não escondia que estava morrendo de fome. A manhã ia a meio quando o mouro, guardião dos apartamentos do Resca-tor, trouxe para o ferido, enviado pelo amo, um pequeno caldeirão de prata contendo um guisado excelente, finamente temperado, bem como uma garrafa de vinho velho e dois pãezinhos de gergelim.
A aparição do árabe, homem alto, causou sensação no porão. Tinha um ar bonachão e, expondo num riso simplório dentes brancos e fortes, prestou-se à curiosidade dos jovens, que o rodearam.
— Cada vez que um desses marujos entra na nossa entrecoberta, é de uma raça diferente - observou Mestre Gabriel, seguindo com um olhar sem indulgência o mouro que se afastava. - Esta tripulação me parece mais colorida que um traje de arlequim.
— Ainda não vimos nenhum asiático, mas em compensação já notei um índio - comentou Marcial, muito excitado. - Sim, sim, tenho certeza de que era um índio. Estava vestido como os outros marinheiros, mas tinha tranças pretas e uma pele vermelha como tijolo.
Angélica dispunha, perto do ferido, a refeição que fora trazida.
- Está sendo tratado como hóspede de categoria.
O mercador resmungou algo indistinto, e, como Angélica se preparasse para fazê-lo comer, quase se encolerizou: _ Por quem me toma? Não sou um recém-nascido!
— Ainda está fraco.
— Fraco? - tornou ele, erguendo os ombros, o que lhe causou uma careta de dor.
Angélica pôs-se a rir. Sempre gpstara de seu vigor tranquilo. Emanava para o grupo uma impressão de paz e segurança. A própria corpulência contribuía para esse aspecto tranquilizador. Não era a corpulência dos bons vivants, que lembra uma almofada ou um molusco inflado. A dele fazia parte de seu temperamento sanguíneo, e devia ter engordado bem jovem, sem com isso perder a força. Só que aparentava mais idade do que tinha de fato, e assim logo se impusera aos clientes e colegas. Daí o respeito sincero que continuavam a téstemunhar-lhe. Angélica observou-o com indulgência engolir eom apetite o guisado, servindo-se do caldeirão a seu lado com uma só mão.
— Não fosse o senhor huguenote, Mestre Berne, poderia ter sido um fino gourmet.
— Também poderia ter sido muitas outras coisas - replicou ele, lançando-lhe uma olhada enigmática. - Um homem traz em si seu verso e seu reverso.
Hesitando em levar outra colherada à boca, acrescentou:
— Entendo o que quer dizer, mas confesso que hoje estou com uma fome de lobo e...
— Coma, então. Eu só estava arreliando - disse ela, afetuosa.
- Lembrava-me de todas as vezes em que me censurou por cuidar bem demais de sua mesa em La Rochelle e por inclinar seus filhos ao pecado da gula.
- Seguia as leis da guerra - reconheceu ele, cõm um sorriso.
- Infelizmente, agora estamos longe de tudo isso...
O Pastor Beaucaire reunia suas ovelhas. O quartel-mestre acabara de avisá-lo de que todos os passageiros deviam subir ao convés para um rápido passeio. Fazia bom tempo e àquela hora havia o mínimo de risco de atrapalharem as manobras.
Angélica ficou sozinha com Mestre Berne. Queria aproveitar o momento para falar-lhe de seu reconhecimento.
- Ainda não pude agradecer-lhe, Mestre Berne, mas devo-lhe muito, mais uma vez. O senhor foi ferido ao me salvar a vida.
Ele fitou-a e contemplou-a longamente. Ela baixou as pálpebras. Aquele olhar, que ele sabia tornar impávido e frio, tinha naquele momento a mesma eloquência da véspera, à noite, quando, ao despertar do coma, ele só vira a ela.
- Como poderia eu não tê-la salvado? - disse, afinal. - Você é minha própria vida.
E como ela esboçasse um gesto de protesto:
- Dame Angélica, quer ser minha mulher?
Angélica ficou perturbada. Chegara o momento, então. Não estava em pânico. Sentia mesmo, precisava admiti-lo, certa doçura. Ele a amava a ponto de querê-la como sua companheira perante Deus, apesar de tudo o que sabia... ou não sabia sobre seu passado. Para um homem com sua intransigência moral, isso dava bem a medida de seu amor.
Mas Angélica se sentia incapaz de formular uma resposta clara.
Cruzou as mãos e as apertou com força, num movimento de perplexidade.
Gabriel Berne não desviava os olhos daquele perfil puro e harmonioso, cuja vista o enchia de um sentimento lacerante, quase doloroso. Desde que cedera à tentação de olhá-la como mulher, a cada vez lhe descobria novas perfeições. Amava até a palidez da fadiga que lhe marcara os traços, no dia seguinte ao dia dramático em que ela os carregara a todos, como que nos braços, para arrancá-los a seu destino inclemente. Revia-lhe o belo olhar inflamado, ouvia-lhe a voz imperiosa a gritar-lhes que se apressassem.
Corria através da charneca, os cabelos batidos pelo vento, levando as crianças ameaçadas, animada por aquela força prodigiosa das mulheres quando está em ação seu instinto de sobrevivência. Ele jamais esqueceria aquela visão.
A mesma mulher estava ali, ajoelhada junto dele, e parecia fraca. Mordia os lábios, e ele conseguia adivinhar-lhe as batidas precipitadas do coração. Seu peito arfava convulsivamente.
Ela finalmente respondeu:
- Fico muito honrada, Mestre Berne, com a proposta que acaba de fazer-me, mas... não sou uma mulher digna do senhor.
Ele franziu o cenho. Contraiu o maxilar e teve dificuldade em não explodir. Precisou de um bom momento para se controlar, e, como ela, surpresa com seu silêncio, ousasse encará-lo, viu que ele empalidecera de fúria.
— Tenho horror de quando você age hipocritamente - declarou ele, sem rodeios. - Sou eu que não sou digno de você. Não pense que zombam de mim com tanta facilidade... Ora, eu sei... tenho a convicção, se não a certeza, de que você pertence a um mundo diferente do meu. Sim, Madame. Sei que diante de você não passo de um simples mercador, Madame.
Ela o olhou aterrada, com tantp medo de se sentir adivinhada que ele lhe segurou a mão.
— Dame Angélica, sou seu amigo. Ignoro o que a separou dos seus e que drama a conduziu até a miséria em.que a encontrei... Por outro lado, sei que eles a perseguiram, renegaram, assim como os lobos enxotam da matilha aquele ou aquela que não quer uivar com eles. Você encontrou refúgio entre nós e foi feliz.
— Sem dúvida, fui feliz - afirmou ela, baixinho.
Ele continuava a-segurar-lhe a rnão, e ela, erguendo-se, encostou o rosto ao dele, num movimento humilde e terno que o fez estremecer.
- Em La Roc-helle não ousava falar-lhe - disse ele numa voz abafada -, devido a essj distância enorme que sentia entre nós. Mas hoje me parece que nos encontramos tão... iguais na miséria! Vamos para o Novo Mundo. E você necessita de proteção, não é?
Ela meneou várias vezes a cabeça, afirmativamente. Teria sido tão simples responder "Sim, aceito" e entregar-se a um destino modesto, cujo sabor ela ja conhecia!
— Amo seus filhos - disse -, gosto de servi-lo, Mestre Berne, mas...
— Mas...
— O papel de esposa implica certos deveres!
Ele a olhou fixamente. Ainda lhe segurava a mão, e ela lhe sentiu tremer os dedos em torno dos seus.
— E você é mulher para receá-los?... - perguntou ele com suavidade. A surpresa lhe vibrava na voz. - A menos que minha pessoa lhe seja antipática em demasia...
— Não é isso - protestou ela, sincera.
E de súbito se pôs a fazer-lhe, atropeladamente, o relato trágico que jamais lhe pudera passar pelos lábios:"seu castelo em chamas, as crianças nos piques, os dragões a humilhá-la, a violentá-la enquanto lhe estrangulavam o filho. A medida que falava, ia sentindo-se aliviada. As imagens haviam perdido a força e ela notava que conseguia evocá-las sem desmaiar. A única ferida que não podia tocar sem dor era a lembrança de Carlos Henrique,' adormecido, morto em seus braços.
As lágrimas correram-lhe pelas faces.
Mestre Berne ouvia-a com extrema atenção, sem manifestar horror nem piedade.
Refletiu um longo tempo.
Seu espírito expulsava, inclemente, a imagem de um belo corpo ofendido, assim como ele resolvera jamais se voltar sobre o passado daquela a quem chamavam Dame Angélica por não lhe saberem o nome todo. Queria dirigir-se apenas àquela que estava diante dele e a quem amava, e não à mulher desconhecida cuja vida atormentada por vezes aflorava naquelas pupilas cambiantes, cor do mar. Se ele se detivesse em adivinhá-la, descobrir o que ela fora, ficaria louco, obcecado.
Foi com firmeza que disse:
- Acho que está exagerando um pouco ao imaginar que esse drama passado a impede de viver novamente uma vida de mulher saudável nos braços de um marido que a amará para o melhor e para o pior. Se você fosse uma mocinha quando isso lhe aconteceu, ainda poderia ter ficado marcada duramente. Mas era uma mulher, e, se dou crédito às alusões que fez ontem esse indivíduo pérfido que nos leva, o Rescator, uma mulher que nem sempre se mostrou tímida para com os homens. O tempo passou. Seu coração e seu corpo de há muito já não são os que suportaram esses sofrimentos. As mulheres possuem essa faculdade de renovação, como a lua, como as estações do ano. Você agora é outra. Por que insistir na mágoa das recordações, por que se arruinar, você, cuja beleza parece ter sido criada ainda ontem?
Angélica ouvia-o surpresa. Esse bom senso rude, não despido de fineza, a reconfortava. Por .que, de fato, seu espírito não se beneficiaria da vitalidade que sentia renascer no corpo? Por que não se lavar das lembranças impuras? Recomeçar tudo, mesmo a experiência, sempre misteriosa, do amor?
— Sem dúvida, o senhor tem razão - disse -, eu devia ter varrido do pensamento esses acontecimentos, e talvez ainda lhes atribua importância porque estão ligados à morte de um filho. Isso não posso apagar!
— Ninguém a pede que o faça. Mas você reaprendeu a viver. E irei mais longe, até, para dissipar-lhe as apreensões. Afirmo que está esperando o amor de um homem para reviver completamente. Sem acusá-la de coqueteria, Dame Angélica, há em você algo que convida ao amor... e esse convite vem de sua pessoa.
— Poderá acusar-me de alguma vez tê-lo provocado? - protestou Angélica, indignada.
— Você me fez passar momentos bem duros - disse ele num tom pesado.
Sob o insistente olhar dele, ela baixou novamente as pálpebras. Por mais que se proibisse isso, rio fundo não lhe desagradava descobrir a derrota do irredutível protestante.
— Pelo menos em La Rochelle você era minha, ao abrigo de meu teto - continuou ele. - Aqui me parece que todos os olhares masculinos a seguem e cobiçam.
— O senhor-me atribui um poder muito exagerado...
— Um poder cuja extensão estou em boa posição para avaliar. O que foi para você õ Rescator, afinal? Seu amante, não é? Salta aos olhos...
Apertou-lhe a mãcfcom súbita brusquidão, e ela, embora acostumada a tarefas burguesas, percebeu a força pouco comum daquele punho. Revoltou-se.
— Não. foi!
— Está mentindo. Há entre ambos vínculos que nem os mais distraídos podem ignorar quando se encontram um diante do outro.
— Juro-lhe que ele nunca foi meu amante.
— Então o quê?
— Pior, talvez! Um amo, que me comprou muito caro e de cujas mãos escapei antes que ele pudesse dispor de mim. Portanto, minha situação em relação a ele, hoje, é... ambígua, admito, e tenho um pouco de medo, confesso.
— No entanto, ele a seduz, é visível!
Angélica ia replicar com vivacidade, mas mudou de ideia, e um sorriso iluminou-lhe o rosto.
— Veja, Mestre Berne, creio que acabamos de descobrir um novo obstáculo a nosso casamento.
— Qual?
— Nossos temperamentos. Tivemo"s tempo de nos conhecer bem. O senhor é um homem autoritário, Mestre Berne. Como criada, procurei obedecê-lo. Não sei se teria a mesma paciência como esposa. Estou habituada a dirigir minha vida.
— Confissão por confissão. Você é uma mulher autoritária, Dame Angélica, e tem sobre mim o poder dos sentidos. Antes de ver com clareza, debati longamente, pois tinha medo de adivinhar até que ponto você poderia subjugar-me. Também olha a vida com uma liberdade que a nós, huguenotes, não é costumeira. Somos os homens do pecado. Sentimos-lhe as emboscadas e as rachaduras sob os passos. A mulher nos dá medo... Talvez porque a responsabilizemos pela nossa condenação. Abri-me acerca de meus escrúpulos com o Pastor Beaucaire.
— O que respondeu ele?
— Disse-me: "Seja humilde consigo mesmo. Reconheça seus desejos, que, em suma, são naturais, e santifique-se pelo sacramento do matrimonio, a fim de que o elevem em vez de perdê-lo". Segui o conselho dele. Cabe a você permitir-me realizá-los. Cabe a nós abandonar a parte de orgulho que nos impediria de nos entendermos.
Ergueu-se e, passando-lhe o braço pela cintura, puxou-a para si.
— Mestre Berne, o senhor está ferido!
— Bem sabe que sua beleza é daquelas que ressuscitariam um morto.
Na noite da véspera outros braços a haviam estreitado com a mesma posse ciumenta. Talvez fosse verdade o que dizia Mestre Berne: que ela esperava apenas pelas carícias de um homem para se redescobrir mulher. Ainda assim, quando ele quis inclinar-se sobre seus lábios, ela o reteve com um reflexo espontâneo.
- Ainda não - murmurou -, oh, rogo-lhe, deixe-me refletir mais um pouco!
Os maxilares do mercador se contraíram. Ele encontrava dificuldade em se controlar. Conseguiu, à custa de um esforço que o fez empalidecer. Afastando-se de Angélica, largou-se sobre o travesseiro de palha. Seus olhos já não a fitavam. Miravam, com expressão estranha, o pequeno caldeirão de prata que o mouro do Rescator lhe trouxera há pouco.
De repente, agarrou-o e atirou-o com violência à parede a sua frente.
CAPITULO IV
Início de hostilidades entre a tripulação e os passageiros -
Angélica passa a noite nos apartamentos do "Rescator
Já fazia quase oito dias que o Gouldsboro deixara La Rochelle, rumando parado poente. Angélica acabava de contá-los nos dedos. Quase uma semana se passara. E ela ainda não dera sua resposta a Mestre Berne:'
E nada acontecera.'
Mas o que podia acontecer, afinal? Angélica tinha a impressão de aguardar, com impaciência, um acontecimento importante.
Como se não -bastasse terem de se ajeitar em condições tão precárias! Com boa vontade, porém, conseguiu-se isso.
- As recriminações da Sra. Manigault já não causam mais efeito - dizia, irreverente, Mestre Mercelot - do que litanias papistas.
As crianças distraíam-se com a vida ao mar e o desconforto as incomodava pouco. Os pastores haviam organizado exercícios religiosos que obrigavam os emigrantes a se reunir em determinadas horas.
Quando o tempo permitia, a última leitura da Bíblia se fazia no convés, sob os olhos da estranha tripulação.
- Devemos mostrar a esses homens sem fé e sem lei o ideal que nos habita e que devemos transportar intacto conosco - dizia o Pastor Beaucaire.
Habituado a sondar as almas, o velho sentia, sem dizer, que sua pequena comunidade se encontrava ameaçada por um perigo interior talvez mais grave do que o do aprisionamento e morte em que incorreram em La Rochelle. Em sua maioria abastados e solidamente ancorados entre os muros de sua cidade, os burgueses e artesãos tinham sido arrancados de lá bruscamente demais.
A ruptura cruel expunha os corações. O próprio olhar das pessoas havia mudado.
Às últimas preces, Angélica se sentava um pouco afastada, com Honorina sobre os joelhos. As palavras do livro santo lhe chegavam na noite:
"Há um tempo para tudo, um tempo para todas as coisas sob o céu... um tempo para matar e um tempo para curar... um tempo para odiar e um tempo para amar..."
E quando voltaria esse tempo para amar?
Ora, nada acontecia. E Angélica esperava algo. Não revira o Rescator desde a primeira noite, quando meditara longamente acerca dos sentimentos que ele lhe inspirava. Depois de concluir que devia desconfiar dele e de si mesma, deveria estar feliz com o desaparecimento do pirata. Na verdade, porém, sentia-se inquieta. Praticamente ninguém o via mais. Quando, a certas horas, os passageiros subiam da entrecoberta para o passeio, acontecia de perceberem, ao longe, no castelo de popa, a silhueta do senhor do navio, a revoada de sua capa escura onde o vento mergulhava.
Mas já não intervinha nos assuntos deles e, ao que parecia, mal intervinha no próprio andamento do navio.
Era o Capitão Jason que, do alto do tombadilho, berrava ordens pelo alto-falante de couro. Excelente marujo, mas taciturno e pouco sociável, quase não se interessava pela carga de huguenotes, sem dúvida embarcada contra sua vontade. Quando não usava máscara, exibia um rosto rude e frio que desencorajava qualquer aproximação. No entanto, todos os dias Angélica era encarregada pelos companheiros de intervir para esclarecer certos detalhes. Onde podiam lavar roupa? Com que água? Pois a ração de água potável era reservada ao consumo. Tinham, então, de contentar-se com a água do mar. Primeiro drama imprevisto para as donas de casa, pois a roupa não branqueava e ficava pegajosa. A que horas podiam subir ao convés sem perturbar as manobras? etc.
Em compensação, Nicolau Perrot, o homem de gorro de pele, foi-lhe de grande valor. Não parecia ter papel bem definido na tripulação. O mais frequente era verem-no a rondar e a fumar seu cachimbo. Depois fechava-se por longas horas com o Rescator. Por seu intermédio Angélica pôde fazer suas reivindicações chegarem a quem de direito, e ele se incumbia de transmitir as respostas, atenuando o que continham de desagradável, pois era homem amável e de boa índole.
Assim, houve uma grita geral no porão de passageiros quando, no quinto dia, os cozinheiros levaram, a título de complemento dos pedaços de carne salgada, uma mistura estranha e ácida, um tanto nauseabunda, pretendendo que todos comessem aquilo. Manigault recusou uma comida que lhe parecia suspeita. Até então o passadio de bordo fora aceitável e suficiente. Mas, se começassem agora a fazê-los engolir lixo, as crianças adoeceriam e a viagem, recém-iniciada, terminaria em mortes cruéis. Mais valia contentarem-se com a carne salgada e o minguado pedaço de biscoito, a alimentação habitual dos marujos.
Logo depois da recusa, o quartel-mestre veio gritar-lhes que tinham de comer o sauercraute ou seriam forçados a fazê-lo, seguros pelas mãos e pelos pés.
Era uma espécie de gnomo, de nacionalidade indefinível, que devia ter sida forjado paia a-dura lida do mar em algum ponto do Norte da Europa: Escócia, talvez, Holanda ou Báltico. Falava uma mistura de inglês, francês e holandês, e, embora os mercadores de La Rochelle conhecessem essas línguas, foi quase impossível entenderem-se com ele.
Mais uma vez Angélica se abriu acerca de seus aborrecimentos com o bravo Nicolau Perrot, definitivamente a única criatura abordável noGouldsbofo. O homem tranqúilizou-a e encorajou-a a seguir as ordens do quartel-mestre, que, de resto, eram as ordens do próprio Rescator.
- Somos numerosos demais para a quantidade de víveres que trouxemos. Foi preciso fixar rações a partir de agora. Ainda resta um pouco de carne em pé: dois porcos, uma cabra, uma vaca. Estão reservados para eventualidade de doenças, sempre possíveis. Mas o chefe resolveu abrir os barris de repolho que leva consigo para toda parte. Diz ele que com isso se evita completamente o escorbuto, e palavra que é verdade, pois já fiz duas travessias com ele e nunca verifiquei desses casos graves em sua tripulação. É preciso que seus amigos entendam que devem comer um pouco todos os dias. E uma ordem de bordo. Os que se recusam são trancados no porão gradeado. E correm o risco de a gente lhes enfiar o repolho goela abaixo, como aos gansos.
No dia seguinte recebeu-se melhor o quartel-mestre, que os observou comer com seus olhinhos azuis, de reflexos gelados, que dançavam curiosamente em seu rosto cor de presunto defumado.
- É cada vez maior minha tendência a me considerar lançado ao rio dos impérios infernais - comentou Mercelot, que encarava as coisas com um humor de letrado. - Olhem essa criatura vomitada dos infernos... Claro que nos portos se vêem todos os tipos, mas nunca encontrei reunida num mesmo navio uma súcia tão inquietante quanto esta. É bem curioso o modo como nos guiou, Dame Angélica...
Sentada no suporte de um canhão, Angélica esforçava-se por fazer Honorina e outras crianças que reunia a sua volta engolirem alguns nacos de repolho ácido.
- Vocês são passarinhos no ninho. Abram o bico! - dizia.
Sempre se sentia questionada e responsabilizada quando surgiam criticas ao Gouldsboro, seu senhor e sua tripulação. Deus sabia, porém, que ela não tivera escolha.
Respondeu:
— Ora, acreditam que a arca de Noé oferecia um espetáculo muito menos curioso do que nosso navio? E Deus contentou-se com ela...
— Um tema para meditação, de fato - disse, compungido, o Pastor Beaucaire, segurando o queixo. - Se fôssemos engolidos pelas águas, eles e nós, mereceríamos recriar a humanidade e renovar a Aliança?
— Com animais dessa espécie, isso não me parece muito possível - resmungou Manigault. - Olhando-os de perto a gente logo nota que todos ainda têm nos pés a marca de ferros.
Angélica não ousou retrucar, pois no fundo compartilhava a mesma opinião. Era bastante verossímil que o antigo pirata do Mediterrâneo tivesse recrutado seus homens mais fiéis entre os forçados evadidos. Nos olhos de todos aqueles marujos de raças diferentes, e cujos risos e canções insólitas escapavam às vezes, à noite, do alojamento da tripulação, havia uma expressão que apenas ela, talvez, podia entender. A expressão de alguém que sofreu acorrentado e para quem, agora, o mundo não é suficientemente grande, nem o mar bastante vasto. De alguém, contudo, que se insinua para esse mundo durante muito tempo interdito com o receio de não ter direito a ele e também o medo de perder outra vez esse precioso bem reconquistado: a liberdade.
- 0 corcundinha - perguntou Le Gall -, por que vem incomodar-nos com seu repolho alemão? A esta altura deveríamos estar nos Açores ou perto deles, e nos abasteceríamos de laranjas e de víveres frescos! O outro deu-lhe uma olhada de esguelha e ergueu os ombros.
— Não entendeu - disse Manigault.
— Entendeu muito bem, mas não quer responder - tornou Le Gall, desdenhoso, seguindo com .os olhos a forma rechonchuda, calçada em botas de ogro, que saía da entrecoberta atrás dos marujos carregando as escudelas.'
No outro dia, andando pelo castelo de proa, Angélica viu Le Gall ocupado em cálculos misteriosos, para os quais se servia do relógio e de uma bússola. A aproximação dela, ele teve um sobressalto e escondeu os objetos sob seu casaco de pescador, de tela encerada.
— Desconfia de mim? - perguntou Angélica. - Eu seria totalmente incapaz de saber o que você está conspirando aí sozinho, com seu relógio e sua bússola.
— Não, Dame Angélica. E que pensei que fosse um dos tripulantes aproximando-se. Você tem um pouco o jeito deles de caminhar sem ruído. Nunca se ouve quando você vem. De repente está aí. Isso assusta um pouco. Mas, como é você, não há mal algum.
Baixou a voz:
- E verdade que aquele sujeito no alto do mastro principal me observa de seu posto, no cesto da gávea, mas não tem importância. Não vai entender o que estou fazendo. E todos os outros estão comendo, exceto o timoneiro. O mar está bonito esta noite, talvez não fique assim muito tempo, mas o navio vai sozinho. Aproveitei, então, para tentar determinar nossa posição.
- Estamos tão longe dos Açores?
Ele a encarou, zombeteiro:
- Justamente... Não sei se você notou que o corcundinha não quis responder quando lhe perguntei sobre os Açores. Mas os Açores ficam bem na rota, quando se vai para as ilhas da América. Mesmo que passássemos por Ascensão, o que significaria rumar para o sul, eu não ficaria surpreso. Masnavegar como estamos fazendo, para oeste... é uma rota bem estranha para se chegar às Grandes Antilhas ou a outras ilhas da zona tropical!...
Angélica lhe perguntou como pudera determinar isso sem tábuas de longitude, tábuas do tempo, sextante e um relógio exato.
- Simplesmente espiei o toque do meio-dia e quinze a bordo, o meio-dia astronómico, pois ao passar pelo tombadilho dei uma olhada no posto de direção. O patrão tem belos instrumentos! Todo o necessário! Quando tocam, tenho certeza de que é a hora certa. Essa gente não é do tipo que se engana de direção. Comparo com meu relógio, que ainda marca a hora de la Rochelle. Com isso, minha bússola e a posição do sol, passando pelo zénite e rumando para o poente, estou certo de que seguimos a rota do norte: a rota dos pescadores de bacalhau e de baleias. Nunca fiz esse percurso, mas reconheço-o. Olhe o mar apenas, veja como está diferente.
Angélica não se convenceu. Os métodos empíricos do bom homem não lhe pareciam de uma certeza científica a toda a prova. Quanto ao mar, certamente era diferente do Mediterrâneo, mas era o oceano, e inúmeras vezes ela ouvira os marinheiros falarem das tempestades que os assolavam não muito longe do golfo da Gasconha. E dizia-se que em certas estações podia-se sentir muito frio, mesmo ao largo dos Açores...
- Olhe essa cor leitosa, Dame Angélica - insistia o bretão. - E notou o céu nacarado pela manhã? É o céu do norte. Disso tenho certeza absoluta! E esta neblina, então! Pesada como neve. Rota extremamente perigosa, de tempestades de equinócio. Os pescadores de bacalhau nunca a tomam nesta estação. E aqui estamos nós! Deus nos proteja!
A voz de Le Gall tornara-se lúgubre. Por mais que arregalasse os olhos, Angélica não via neblina alguma, apenas um céu branco que se confundia, a noroeste, com o mar, separado por uma minúscula estria avermelhada, o horizonte.
- Assim, é tempestade e nevoeiro para esta noite... ou para amanhã - continuou Le Gall, sombrio.
Decididamente ele queria ver as coisas de modo sombrio. Para um ex-marujo, deixava-se impressionar com bastante facilidade pela solidão daquele mar onde não haviam encontrado navio algum, desde a partida. Nenhuma vela à vista! Os passageiros achavam isso monótono, Angélica deleitava-se: aprendera a temer os encontros no mar.
Jamais se cansava de olhar o oceano, com suas ondas altas e longas. E não enjoara, como a maioria das companheiras, no início da viagem. Estas, agora, aboletavam-se na entrecoberta, por causa do frio. Há dois dias os marinheiros tinham levado para lá vasos de argila, recobertos de desenhos bárbaros, semi-abertos no alto e no lado, que se enchiam de brasas. Esses braseiros ou aquecedores primitivos bastavam para manter um calor e uma secura relativos, completados, à noite, por grossas candeias de sebo. Seria preciso não serem rocheleses para não se interessar pelo singular sistema de aquecimento a bordo de um navio, e todos os homens deram sua opinião.
- No fundo, é muito menos-perigoso do que um braseiro aberto. De onde podem vir esses aquecedores de argila tão curiosos?
Angélica lembrou-se de súbito da frase tle Nicolau Perrot: "Quando estivermos na zona dos gelos, mandaremos trazer-lhes braseiros".
- Mas, afinal - exclamou -, pode haver gelo ao largo dos Açores?!
Uma voz que se aproximava respondeu, zombeteira:
- Onde vê-gelos por aqui, Dame Angélica?
Manigault, acompanhado d§ Mestre Berne e do papeleiro Mercelot, aproximava-se;dela. Os três hugúenotes estavam embrulhados em suas capas; com os chapéus enterrados até os olhos. Os três de compleição forte, seria possível confundi-los.
- Está friozinho, admito, mas o inverno não tarda e as tempestades de equinócio refrescam necessariamente estas paragens.
Le Gall resmungou:
— O que não impede que estas paragens, como dizia, Sr. Manigault, tenham uma aparência estranha.
— Receia uma tempestade?
— Receio tudo! Acrescentou, assustado:
— Olhem... Mas olhem! É o país do fim do mundo!
O marulho diminuía de repente. Mas, sob a aparência calma, o oceano parecia mosqueado, agitado como que de um fervilhar de caldeirão. Depois o sol vermelho rasgou o céu todo branco, espelhando uma luz de cobre fundido. Pareceu enorme o sol esmagando o mar. Desapareceu rapidamente, e quase de imediato, por um breve momento, tudo ficou verde, depois negro.
— O mar das Trevas - suspirou Le Gall. - O velho mar dos antigos vikings.
— Acabamos simplesmente de assistir a um belo pôr-do-sol - disse Mercelot. - Que há de extraordinário nisso?
Mas Angélica adivinhou que o próprio Mercelot estava surpreso com a aparência anormal das coisas. A escuridão, que de início lhes parecera total, a ponto de impedi-los de se verem uns aos outros, dissolvia-se, cedendo lugar a uma penumbra crepuscular. De súbito, tudo se fizera visível outra vez, até o horizonte, mas encontravam-se num mundo desprovido de vida, onde nem cores nem calor poderiam renascer.
— E o que chamam de noite polar - disse Le Gall.
— Polar! Você tem cada uma! - exclamou Manigault.
Sua gargalhada tonitruante rebentou como um sacrilégio no silêncio. Ele deu-se conta disso e conteve^se. Para disfarçar o constrangimento, olhou as velas,-que pendiam molemente.
-O que esses sujeitos estão fazendo neste navio fantasma?
Como se apenas aguardassem o comentário, os tripulantes surgiram de todos os lados.
Os gajeiros escalaram os ovéns e começaram a se mover ao longo das vergas. Mas, por força do hábito, faziam pouco ruído, e aquelas sombras em movimento contribuíam para aumentar a atmosfera insólita.
"É esta noite que vai acontecer alguma coisa", pensou Angélica.
E levou a mão ao coração, como se estivesse sem fôlego. Mestre Berne estava a seu lado. Mas não tinha certeza de que ele pudesse vir-lhe em auxílio.
A voz do Capitão Jason gritou ordens em inglês do alto do tombadilho.
Aliviado, Manigault bufou:
- A propósito, você falava dos Açores há pouco. Você, Le Gall, que navegou mais do que eu, sabe dizer se faremos escala ali? Tenho pressa de saber se os correspondentes portugueses que tenho lá receberam o dinheiro que transferi da costa das Especiarias.
Bateu nos bolsos da ampla camisa.
— Quando me sentir novamente na posse de meu dinheiro, poderei falar à altura com esse chefe de piratas insolente. No momento trata-nos como a pobres coitados. Deveríamos beijar-lhe as mãos! Mas esperemos até chegarmos às Caraibas. Não está decidido que ele será o mais forte.
— Nas Caraibas, os flibusteiros são senhores - disse Berne, vagamente.
— Não, meu caro! São os negreiros! E, quanto a mim, já estou bem situado lá. Mas, assim que ponha mãos à obra pessoalmente, pretendo obter o monopólio dos escravos. O que vale um navio que transporta simplesmente tabaco e açúcar na ida para a Europa e não retorna da Africa carregado de negros? Ora, este navio não é negreiro. Seria equipado de outra maneira. E, aliás, fingindo que procurava o caminho pelos porões, encontrei isto. Abriu a mão para mostrar duas moedas de ouro cunhadas com a efígie do sol.
— Vestígios de tesouros dos incas! Os mesmos tesouros que às vezes os espanhóis transportam. Notei também que os outros porões estavam cheios de aparelhagens curiosas, para escavações profundas: arpéus especiais, escadas, que sei eu? Em compensação, o espaço necessário para a carga é pequeno demais para um navio mercante honesto.
— O que supõe, então?
— Nada. Tudo o que posso dizer é que este pirata vive de pirataria. De que .maneira? Assunto dele! Prefiro isso a me ver diante de um possíve, concorrente. Bah! Essa gente é corajosa, mas ignorante das transações comerciais. Não são eles quem pode reinar por muito tempo sobre os mares. Somos nós, mercadores de ofício, que pouco a pouco os substituiremos. É por isso que eu gostaria muito de conversar face a face com ele. Bem que poderia pelo menos ter-me convidado a cear.
— Dizem que o apartamento dele no castelo de popa é luxuoso e cheio de objetos de valor - observou o papeleiro.
Esperavam pela opinião de Angélica, mas esta, como toda vez que se falava do Rescator, sentiu um mal-estar e não disse palavra. O olhar de Mestre Berne espreitava o dela.
Por que a escuridão, em vez de dissipar-se, acentuava-se? Dir-se-ia que uma nova aurora se aproximava.
A cor da água mudava novamente. De preta como tinta, parecia ao longe cortada em dois por uma zona de um branco esverdeado de absinto. Quando o Gouldsboro penetrou nessa zona, seus flancos estremeceram como os de um cavalo à aproximação do perigo.
Do tombadilho partiam ordens.
Berne compreendeu de repente o que o marujo de vigia na gávea acabava de gritar em inglês, lá de cima. E repetiu:
- Gelo submerso a estibordo.
Voltaram-se num movimento simultâneo.
Uma massa imensa, fantasmagórica, erguia-se adiante do navio. Imediatamente os marinheiros acorreram para a amurada daquele lado, armados de fisgas e rolos de corda para tentar evitar uma colisão mortal do brique com a montanha de que se exalava um sopro glacial.
Felizmente, conduzida com mão de mestre, a embarcação passou bem ao largo do perigoso obstáculo. Atrás do iceberg, o céu clareara ainda mais, e agora o acinzentado crepuscular parecia impregnar-se de cor-de-rosa.
Os passageiros, emudecidos de estupor e medo, duvidando da própria visão, distinguiram nitidamente três pontos negros pousados sobre o iceberg, que dele se destacaram pesadamente, cresceram e, aproximando-se do navio, transformaram-se em curiosas formas brancas emplumadas.
- Anjos! - disse Le Gall num fôlego só. - E a morte.
Gabriel Berne conservava o sangue-frio. Passara um braço pelos ombros de Angélica, do que ela sequer se dera conta.
Corrigiu, secamente:
- Albatrozes, Le Gall... simplesmente albatrozes polares.
As três aves enormes continuavam a seguir a esteira do navio, ora voando em grandes círculos, ora pousando na água escura e marulhenta.
- Sinal de azar - disse Le Gall. - De que uma tempestade vai nos pegar e estaremos perdidos.
Bruscamente Manigault rebentou em imprecações:
— Será que estou louco? Ou sonhando? É dia? É noite? Quem foi que disse que estamos ao largo dos Açores? Maldição! Estamos seguindo outra rota...
— E o que estou dizendo, Sr. Manigault.
- Não poderia ter dito antes, palerma?
Le Gall aborreceu-se.
— E que diferença teria feito? Não é o senhor o patrão a bordo, Sr. Manigault.
— É o que veremos!
Calaram-se, pois a noite acabava de cair. A estranha aurora apagara-se.
Logo se acenderam lanternas no navio. Uma delas avançou para o grupo formado por Angélica e os quatro homens sobre o castelo de proa. No halo de luz descobria-se o rosto burilado do velho medido árabe, Abd-al-Mechrat. O frio amarelava-lhe o rosto, embora ele estivesse agasalhado até os óculos.
Inclinou-se várias vezes diante de Angélica.
_ O amo lhe roga que se dirija a seu apartamento. Gostaria de que passasse a noite lá.
Proferida no tom mais cortês, a frase em francês foi muito clara. O sangue de Angélica subiu-lhe às faces, o o que a aqueceu. Abriu a boca para recusar um pedido que considerava ofensivo, quando Gabriel Berne se antecipou:
-Percevejo imundo - exclamou, a voz tremula de furor -, onde imagina estar para transmitir propostas tão insultantes... no mercado de Argel, talvez? .
Ergueu o punho. O gesto reabriu-lhe o ferimento e ele teve de deter-se, retendo a custo um gemido de dor. Angélica interpôs-se:
— Está loucot Não se fala nesse tom a um efêndi.
— Efêndi ou não,- ele a insulta. Reconheça, Dame Angélica, que a tomam por uma mulher... uma mulher que...
— Esses homens imaginam que têm direitos sobre nossas mulheres e filhas? - interveio o papeleiro. - E o cúmulo!
— Acalmem-se - suplicou Angélica. - Afinal de contas, não há motivo para tanto alvoroço e a questão é apenas comigo. Sua Excelência, o grande médico Abd-al-Mechrat, está somente me transmitindo um... convite que, sob outros céus, no Mediterrâneo, por exemplo, se poderia considerar uma honra.
— Assustador - disse Manigault, olhando à volta com ar de impotência. - Na verdade, caímos nas mãos de berberes, nem mais nem menos! Uma parte da tripulação é composta desses vermes, e eu apostaria que o próprio patrão tem sangue de infiel, apesar dos ares de espanhol. Um mouro andaluz ou um bastardo de mouro, é isso que é...
— Não, não - protestou Angélica, veemente -, garanto que ele não pertence ao Islã. Estamos num navio cristão.
— Cristão!
— Ah, ah! Essa é boa! Um navio cristão! Dame Angélica, está perdendo a razão. Com motivos, aliás,
O médico árabe aguardava, impassível"e "desdenhoso, envolto em suas lãs. Sua dignidade e a notável inteligência de seus olhos escuros lembravam a Angélica Osman Ferradji, e ela sentia uma ponta de piedade ao vê-lo tiritar naquela noite no fim do mundo.
— Nobre efêndi, perdoe minha hesitação. Agradeço-lhe a mensagem. Recuso o pedido que me dirigiu, inaceitável para uma mulher de minha religião, mas estou pronta a segui-lo a fim de dar eu mesma minha resposta a seu amo.
— O amo deste navio não é meu amo - respondeu" o ancião, com suavidade -, é apenas meu amigo. Salvei-o da morte, ele me salvou da morte, e firmamos o pacto do espírito.
— Espero que não pretenda responder à proposta insolente que lhe é feita - interveio Gabriel Berne.
Angélica pousou uma mão apaziguadora sobre o punho do mercador.
— Deixe-me explicar-me de uma vez por todas com esse homem. Já que ele escolheu o momento, aceitemo-lo. Na realidade, não sei o que quer nem quais são suas intenções.
— Sei-as eu, e muito bem - resmungou o rochelês.
— Não se tem certeza disso. Uma criatura tão estranha...
— Você fala com uma familiaridade indulgente, como se o conhecesse há muito tempo...
— Conheço-o bastante, de fato, para saber que não tenho de temer dele... o que o senhor teme.
E continuou, com um risinho um tanto provocante:
— Acredite, Mestre Berne, sei defender-me. Já enfrentei outros mais temíveis do que ele.
— Não são suas violências que receio - disse Berne a meia voz -, mas a fraqueza de seu coração.
Angélica não respondeu. Trocavam essas palavras sem se olhar. O marinheiro que segurava a lanterna começava a afastar-se, seguido do médico árabe, do armador e do papeleiro. Logo se viram todos diante da escotilha que levava à entrecoberta.
Berne decidiu-se.
— Se vai ao apartamento dele, acompanho-a.
— Creio que seria um grande erro - disse Angélica, nervosa. - Despertaria a cólera dele inutilmente.
— Dame Angélica tem razão - interveio Manigault. - Ela já provou em inúmeras ocasiões que tem garras para se defender. E também acho que Dame Angélica deve explicar-se com esse indivíduo. Ele nos embarca, muito bem, mas de repente se torna invisível e depois disso nos vemos em águas polares. O que é que significa isso, de fato?
— A maneira como o médico árabe apresentou a proposta não fazia pensar que Monseigneur Rescator desejasse falar de longitudes e latitudes com Dame Angélica.
- Ela saberá forçá-lo a isso - disse Manigault, confiante. - Lembre-se de como ela manteve Bardagne na coleira. Que dia bo Berne! O que tem a temer de um sujeito desengonçado cujo único meio de sedução é umamáscara de couro? Não acho que deva inspirar muito as senhoras, hein!
Para impedir Angélica de obedecer ao Rescator, Berne teria de usar de sua força, pois indignara-se profundamente com o fato de ela querer responder a um convite formulado em termos tão indecentes. Mas, lembrando-se de que ela temia, ao tornar-se sua mulher, ser cerceada e já não poder agir conforme a própria vontade, ele se obrigou a mostrar-se liberal e dominou sua natureza desconfiada.
- Vá, então! Mas, se não voltar em uma hora, intervirei!
No momento em que Angélica venceu os degraus do castelo de popa, seus pensamentos eram tão caóticos quanto o mar. Assim como as ondas, subitamente encapeladas e revoltas, seus sentimentos se entrechocavam e ela seria incapaz de defini-los: cólera, apreensão, alegria, esperança, e depois, de repente, um terror fugidio que lhe caiu sobre os ombros como uma capa de chumbo.
Alguma coisa ia acontecer! E algo de terrível, de aniquilador, de que ela não se recuperaria.
Imaginou que a tivessem conduzido ao salão do Rescator, e foi só no momento em que a porta se fechou atrás de si que se deu conta de estar numa estreita cabina envidraçada, iluminada por uma lanterna suspensa a um caixilho duplo que a impedia de balançar.
Não havia ninguém ali. Observando mais de perto, Angélica supôs que o cómodo devia ser contíguo ao apartamento do capitão, pois, embora estreito e baixo, sobressaía-se ao fundo uma janela alta, como as que guarneciam o castelo de popa. Sob a tapeçaria que recobria as paredes, descobriu uma porta - o que lhe confirmou a impressão de que certamente dava para as salas onde já fora recebida. A jovem girou a maçaneta para ter certeza, mas a porta resistiu. Estava fechada "a chave.
Dando de ombros, com um misto de irritação e fatalismo, Angélica foi sentar no divã que ocupava quase todo o -aposento. Quanto mais pensava, mais se convencia 'de que a cabina era o quarto de repouso do Rescator. Ele devia estar escondido ali quando, na noite da partida, ela recobrara a consciência no divã oriental e sentira o peso de um olhar invisível a espreitá-la.
Levá-la para aquele aposento, naquela noite, já fora bastante inconveniente. Mas ela ia esclarecer as coisas! Esperou, pouco a pouco perdendo a paciência. Depois, concluindo que a situação se tornava intolerável e que ele estava zombando dela, levantou-se para ir embora.
Teve a desagradável surpresa de também encontrar fechada a porta por onde entrara. Lembrou-sè dos métodos de D'Escrain-ville; a sensação foi insuportável, e ela se pôs a bater na madeira, chamando em voz alta. Sua voz foi coberta pelo sibilar do vento e pelo estrondo do mar. A agitação das ondas aumentara depois que a noite caiu pela segunda vez.
Será que haveria uma tempestade, conforme Le Gall anunciara?
Pensou na possibilidade de toparem com enormes blocos de gelo e de repente sentiu medo. Apoiando-se à parede de madeira, chegou à janela, debilmente clareada pela grande lanterna de popa. O vidro espesso era constantemente inundado pelos vagalhões, que deixavam ali uma espuma alvacenta, lenta, a se dissipar.
Mas, durante uma súbita calmaria, Angélica, dando uma olhada para fora, viu oscilar sobre a água, bem perto, um pássaro branco que parecia fitá-la com crueldade.
Ela se lançou para trás, transtornada.
"Será a alma de um afogado? Tantos navios devem ter soçobrado nestas paragens... Mas por que me deixam trancada, sozinha?"
Um arquejo a afastou da parede, e, depois de tentar inutilmente se segurar, viu-se sentada sobre o leito, aonde fora atirada com violência.
De tamanho considerável, a cama estava recoberta por uma espessa pele branca. Maquinalmente Angélica enfiou ali as mãos geladas. Contavam que no norte havia ursos tão brancos quanto a neve. A coberta devia ter sido feita de uma dessas peles.
"Aonde nos levam?"
Acima dela dançava o singular dispositivo da lanterna, que a irritava, pois no centro o recipiente de óleo permanecia incompreensivelmente imóvel.
A própria lanterna era um curioso objeto de ouro. Nunca, na França ou no Islã, Angélica tinha visto nenhuma parecida. Em forma de bola ou de cálice, a luz amarela da mecha filtrava-se através de motivos entrecruzados.
Felizmente a tempestade não parecia estar aumentando. A intervalos Angélica ouvia o eco de vozes respondendo-se. De início não conseguia situar de onde vinham as vozes: uma era abafada, a outra, forte e grave, e às vezes distinguiam-se algumas palavras.
Eram ordens que disparavam:
- Soltar todas as velas! Içar p traquete e a brigantina, todo o leme de través!
Era a voz do Capitão Jason, sem dúvida traduzindo as indicações do Rescator.
Acreditando que ambos estivessem no quarto vizinho, Angélica foi outra vez tamborilar na porta de comunicação. Mas logo compreendeu que estavam acima dela, no tombadilho, no posto de comando.
O mau tempo justificava a atenção dos dois capitães. A tripulação devia estar alerta. Mas por que o Rescator mandara chamar Angélicãpara uma entrevista - galante ou hão -, quando podia muito" bem prever, ao enviar-lhe o recado, que a marcha do navio o reteria no tombadilho?
"Espera que Abigail ou Severina se ocupem de Honorina.
Em todo casof Mestre Gabriel disse que viria fazer um escândalo se em uma hora eu não voltasse para junto deles", tranqiiilizou- se ela.
Mas já fazia muito mais de uma hora que estava ali. O tempo passava e ninguém aparecia para soltá-la. Cansada, acabou deitando-se e, depois, enrolando-se na pele de urso branco, cujo calor a adormeceu. Mergulhou num sono agitado, cortado por sonhos bruscos em que o deslizar do mar sobre os quadrados da janela lhe dava a impressão de estar encerrada, no fundo das águas, num palácio submarino, onde o murmúrio de duas vozes orquestrando a tempestade se confundia com o pensamento dos fantasmas desolados errando por entre os gelos de uma paisagem próxima do limbo.
Ao reabrir os olhos, a luz da lanterna lhe pareceu mais atenuada. Raiava o dia. Angélica ergueu-se no leito. "Mas o que estou fazendo aqui? É inadmissível!..." Ninguém aparecera ainda. Tinha dor de cabeça. Os cabelos estavam desfeitos. Achou a coifa, que tirara na véspera antes de deitar. Por nada no muncio quereria que o Rescator a encontrasse naquela postura negligente. Talvez fosse exatamente isso o que ele esperava. Suas manhas eram imprevisíveis, suas armadilhas e também seus objetivos, sobretudo no que se referia a ela, eram difíceis de perceber.
Levantou-se às pressas para ajeitar a roupa, e teve a instintiva preocupação feminina de procurar um espelho a sua volta.
Havia um, preso à parede. A moldura era de ouro maciço. Aquela jóia sem preço cintilava com um brilho diabólico. Angélica felicitou-se por não tê-lo visto durante a noite.
No estado de espírito em que se encontrava então, teria ficado aterrorizada. Aquele olho.redondo, de insondáveis profundezas, fitando-a, lhe teria parecido maléfico. A moldura representava guirlandas de sóis, entrelaçados de arcos-íris.
Inclinando-se na direção de seu reflexo, Angélica viu a imagem de uma sereia de olhos verdes, lábios pálidos, cabelos claros, sem idade, como as sereias que conservam uma juventude eterna através dos séculos.
Apressou-se em destruir essa imagem, trançando os cabelos eva-nescentes e. aprisionando-os com força sob o gorro. Depois mordeu os lábios, a fim de devolver-lhes um pouco de cor, e esforçou-se por assumir uma expressão menos espantada. Ainda assim, continuava a se examinar com desconfiança. Aquele espelho não era como os outros.
Suas transparências castanho-avermelhadas conferiam ao rosto sombras suaves, um halo de mistério. Mesmo assim, com seu correto gorro de dona de casa rochelesa, Angélica se via com a inquietante aparência de um ídolo.
"Será que sou realmente assim ou esse espelho é mágico?"
Quando a porta se abriu, ela ainda o segurava na mão.
Escondeu-o nas dobras da saia, ao mesmo tempo que se censurava por não havê-lo colocado no lugar com um gesto natural. Afinal de contas, uma mulher sempre tem o direito de se olhar num espelho.
CAPÍTULO V
"Fui marcada com a, flor-de-lis"
Fora a porta de comunicação que se abrira. O Rescator erguia-se à soleira, uma mão contra a tapeçaria, que levantara. Angélica ergueu-se, altaneira, e o olhou com'ar glacial.
- Posso perguntar-lhe, senhor, por que me reteve?
Ele a interrompeu,,£azendo-lhe sinal para que se aproximasse.
- Venha por aqui*
Sua voz estava ainda mais abafada do que de hábito, e ele tossiu duas vezes. Ela percebeu-lhe a expressão de lassidão. Havia algo mudado nele, que o tornava menos... "menos andaluz", teria dito o Sr. Manigault. Já nem tinha ar de espanhol. Angélica não duvidou mais que ele fosse de origem francesa. O que nem por isso o tornava mais acessível. Es-tava com a máscara cheia de respingos minúsculos, mas tivera tempo de vestir roupas secas.
Entrando na sala, Angélica viu, espalhados, a casaca, os gibões e as botas com que ele enfrentara a tempestade.
Lembrando-se de uma reflexão recente, disse:
— Vai estragar seus belos tapetes.
— Isso não tem nenhuma importância. Ele bocejou, espreguiçando-se.
- Ah, como deve ser desagradável para um homem ter a seu lado uma dona de casa. Como se pode ser casado?
Deixou-se cair numa poltrona, perto de uma mesa cujos pés estavam solidamente fixados ao soalho. Com o balanço do navio, vários objetos tinham caído ao clíão. Angélica conteve-se para não recolhê-los. A última observação do Rescator lhe dera a entender que ele não estava muito amável e usaria qualquer gesto seu como pretexto para humilhá-la.
Sequer lhe oferecia uma cadeira. Estendera as longas pernas enfiadas em botas e parecia meditar.
— Que batalha! - disse afinal. - O mar, os gelos e nossa casca de noz no meio. Pela graça de Deus a tempestade não rebentou.
— Não rebentou - repetiu Angélica. - Ainda assim, o mar me pareceu muito violento.
— Agitado, quando muito. Mas nem por isso se devia estar menos vigilante.
— Onde estamos?
Ele ignorou a pergunta e estendeu a mão para Angélica.
- Dê-me esse espelho que está segurando. Tinha certeza de que lhe agradaria.
Revirou o objeto entre os dedos.
- Mais um vestígio do tesouro dos incas. As vezes me pergunto se a fábula de Novumbaga não seria uma realidade. A grande cidade índia com torrinhas de cristal, paredes recobertas de folhas de ouro e incrustadas de pedras preciosas...
Falava consigo mesmo.
— Os incas não conheciam o vidro. O reflexo deste espelho é obtido por amálgama de ouro esfregado com mercúrio. E por isso que confere aos rostos que reflete a suntuosidade do ouro e a fugacidade do mercúrio. Nele a mulher se descobre como é: um sonho admirável e fugidio. Este espelho é uma peça raríssima. Gosta dele? Deseja-o?
— Não, agradeço-lhe - disse ela friamente.
— Gosta de jóias?
Puxou sobre a mesa um cofrinho de ferro e abriu a tampa pesada.
- Olhe.
Retirava pérolas, admiráveis com uma luz leitosa e irisada, montadas sobre fechos de prata dourada. Depois de estender o adorno diante de Angélica, colocou-o sobre a mesa; pegou outro, um colar cujas pérolas eram mais douradas, mas todas do mesmo tamanho, com o mesmo brilho, tão numerosas que parecia um milagre mantê-las unidas. O colar daria dez voltas ao pescoço e ainda cairia até os joelhos.
Angélica lançou um olhar perplexo sobre essas maravilhas. O aparecimento daquelas jóias insultava seu humilde vestido de fustão, seu peitilho de pano preto, amarrado sobre uma camisa de tela grossa. De repente sentia-se pouco à vontade naqueles trajes comuns.
"Pérolas?... Usei algumas igualmente belas quando estava na corte", pensou ela. "Não tão belas assim", corrigiu-se logo.
O constrangimento abandonou-a de súbito.
"Era uma rara alegria possuir essas coisas bonitas, mas era também um fardo pesado. Agora sou livre."
- Quer que lhe dê um destes colares? - perguntou o Rescator.
Angélica o olhou quase assustada.
— A mim? Mas o que quer que éu faça com isso nas ilhas para onde vamos?
— Poderia vendê-lo, em vez de vender-sê.
Ela teve um sobressalto e sentiu-se corar, malgrado seu. Decididamente nunca conhecera outro homem - não, nem mesmo Desgrez - que a tratasse ora com uma insolência insuportável, ora com atenções tão delicadas.
As enigmáticas pupilas a vigiavam como as de um gato.
De repente ele suspirou.
— Não - disse, desapontado -, não há cobiça em seus olhos, nenhum daqueles elações devoradores que se acendem no olhar das mulheres quando sè vêem diante de jóias... Você é exasperante.
— Se sou tão exasperante - tornou Angélica -, por que me mantém aqui, a sua frente, sem ter sequer a simples cortesia de me oferecer unia cadeira? Saiba que não encontro nenhuma satisfação nisso. E depois, por que me manteve prisioneira a noite toda?
— Esta noite, - disse o Rescator - corremos perigo de morte. Eu nunca tinha visto os gelos descerem tanto nesta zona, onde as tempestades de equinócio são terríveis. Eu mesmo fui surpreendido em minhas previsões, e me vi obrigado a enfrentar ao mesmo tempo dois perigos cuja conjunção em geral não perdoa: a tempestade e os gelos; e acrescento: a noite. Felizmente, como lhe disse, uma mudança de vento quase miraculosa não permitiu que o mar se enfurecesse mais. Pudemos concentrar esforços para evitar os gelos e, ao amanhecer, conseguimos. Mas, ontem à noite, podíamos preparar-nos para a catástrofe. Foi então que mandei buscá-la...
- Mas por quê? - repetiu Angélica, que não entendia.
- Porque havia toda a probabilidade de irmos ao fundo e queria que estivesse perto de mim na hora da morte.
Angélica o fitou com um espanto indizível. Não conseguia convencer-se de que ele falasse a sério. Com certeza se entregava a brincadeiras macabras.
Para começo de conversa, ela dormira nessa noite tão temível, sem suspeitar que o perigo pudesse estar tão próximo. Depois, como podia ele dizer que desejava sua presença na hora da morte, quando a tratava com um desdém não dissimulado e insul-tante? Disse:
— Está zombando, Monseigneur? Por que zomba de mim?
— Não zombo de você, e dentro em pouco lhe direi por quê. Angélica se recompôs.
— De qualquer maneira, se o perigo foi tão premente quanto o diz, saiba que eu teria preferido estar junto de minha filhinha e de meus amigos.
— Em particular junto de Mestre Gabriel Berne?
— Certamente - confirmou ela -, junto de Gabriel Berne e de seus filhos, a quem amo como minha própria família. Deixe de me considerar sua propriedade e de dispor de mim.
— No entanto, temos dívidas a acertar, e eu lhe disse isso antes.
— E possível - retrucou Angélica, que se zangava cada vez mais -, mas eu lhe pediria que no futuro, quando tiver um convite a me fazer, o transmitisse em termos menos ofensivos.
— Que termos?
Ela repetiu o que o médico árabe lhe comunicara: o Rescator desejava que ela passasse a noite em seus apartamentos.
— Mas era exatamente isso. Em meu apartamento você estaria a dois passos do tombadilho e, no caso de uma colisão fatal... - Ele ria, sardónico. - Teria esperado outra coisa do convite?
— Esperado, não - disse Angélica, dura, dando-lhe o troco. - Temido, sim. Por nada no mundo gostaria de ter de suportar as homenagens de um homem tão pouco galante, um homem que...
— Não tema nada. Não lhe ocultei que seu novo aspecto me causava uma profunda decepção.
— Graças a Deus!
— De minha parte, acho que o Diabo teve mais participação nessa transformação! Que desastre! Eu guardava a lembrança de uma odalisca perturbadora, com uma cabeleira de sol, e encontro uma mulher de coifa, cruzamento de mãe de família com abadessa... Confesse que há motivo de admiração, mesmo para um pirata empedernido de minha espécie, que já viu poucas e boas.
— Sinto muito que haja defeito na mercadoria, Monseigneur. Deveria ter encontrado uma maneira de conservar essa mercadoria quando ela se encontrava no ponto...
- E altiva, ainda por cima!... Desafiadora! Pensar que você era tão humilde no batistan de Cândia, com a crista tão baixa...
Angélica reviveu o momento de sua vergonha, de sua nudez exposta aos olhares inflamados dos homens. "E pensar que eu ainda tinha coisas piores pela frente..." Uma súbita gravidade vibrou na voz estranha:
- Ah! Você era tão bela, Sra'. du Plessis-Beliere, com os cabelos como único traje, e os olhos de pantera acuada, e o dorso marcado pelas sevícias de meu bom'amigo D'Escrainville... O conjunto lhe caía melhor, muito melhor do que sua nova arrogância burguesa... Juntando-se a isso o prestígio de amante do rei da França que a aureolava, você valia o preço... Sem dúvida!
Ele a exasperava quancjo lhe lançava ao rosto, assim, um título que ela só devia a calúnia dos cortesãos-, e principalmente quando a comparava a seu passado, fazendo-a entender que outrora era mais bela.-Que patife! Foi, dominada pela raiva.
- Ah, é das minhas .costas que' sente falta? Pois olhe! Olhe o que os homens do rei fizerain com a pretensa amante de Sua Majestade!
Com dedos céleres, pôs-se a desfazer os lacinhos do corpete, abriu a camisa e despiu o ombro.
- Olhe - repetiu. - Marcaram-me com a flor-de-lis!
O corsário levantou-se e aproximou-se dela. Examinou a marca do ferro em.brasa com a atenção de um sábio que descobre um objeto raro. Nada transparecia dos sentimentos que a revelação lhe inspirava.
- Com efeito! - exclamou afinal. - E os huguenotes sabem que abrigam entre si uma criminosa?
Angélica já se arrependia de seu gesto irrefletido. O dedo do Rescator acariciava, como que negligentemente, a pequena cicatriz enrijecida, mas esse simples contato a fazia arrepiar-se. Quis recompor a roupa. Ele a reteve, segurando-a pelos braços com seus pulsos duros e inflexíveis.
- Sabem?
- Só um sabe.
- .São as prostitutas e os criminosos que -se marcam assim no reino de França.
Ela poderia ter-lhe dito que também marcavam assim as mulheres protestantes e que fora confundida com uma delas. Mas o pânico a invadia. Aquele pânico que ela conhecia bem e que a paralisava nos braços de um homem quando este tentava impor-lhe seu desejo.
- Ah, que importa isso! - exclamou, debatendo-se. - Pense de mim o que quiser, mas solte-me.
Porém ele a apertava, como na outra noite, tão junto de si que ela não podia sequer alçar a cabeça para a máscara rígida que a dominava, quanto mais esboçar um movimento para afastá-lo. O braço do Rescator tinha a dureza de um afogador de ferro.
Pousou a outra mão sobre a garganta da jovem e seus dedos desceram suavemente até os seios, que a camisa entreaberta deixava à mostra.
- Esconde bem seus tesouros - murmurou.
Fazia anos que um homem não ousava fazer-lhe carícia tão impudente. Retesou-se sob a mão imperiosa que tranquilamente se certificava de sua beleza.
A mão do Rescator tornou-se insistente: ela conhecia-lhe o poder.
Angélica não podia mover-se, mal respirava. Viveu um momento estranho. Sentiu-se invadir por uma onda de calor e ao mesmo tempo teve a impressão de que morria.
Mas sua defesa íntima foi mais forte. Conseguiu repetir:
- Deixe-me! Solte-me!
Seu rosto voltado para trás parecia torturado.
- Então inspiro-lhe tanto horror? - perguntou ele.
Mas já não a apertava.
Ela recuou até a parede, onde se apoiou.
Ele a estudava, e ela lhe adivinhava a perplexidade diante de reações tão extremadas.
Novamente ela se comportara com um exagero que não tinha relação com sua personalidade habitual.
"Jamais voltará a ser uma verdadeira mulher", dizia-lhe uma voz interior cheia de decepção. Depois, recompondo-se: "Nos braços desse pirata?... Ah, não, nunca! Ele já me deu provas suficientes de seu desprezo. Maltratar e acariciar é uma fórmula que lhe deve ter servido junto às orientais. Muito pouco para mim. Se caísse na armadilha, ele seria capaz de fazer de mim uma criatura infeliz, depravada... Já sofri o suficiente pelos meus erros, sem ele".
Mas, estranhamente, a decepção perdurava. "Só ele, talvez, teria podido..."
Que lhe acontecera há pouco? Aquela deliciosa ansiedade sob os dedos insinuantes fora - ela a reconhecera - o despertar de seus sentidos, a tentação do abandono? Com ele, não teria tido medo. Tinha certeza disso, no entanto fora um reflexo de terror que ele tivera a impressão de ler nos olhos dela. Ele ignorava que esse terror não se dirigia a ele.
Ainda agora ela não ousava encará-lo.
Como homem de espírito, o Rescator pareceu tomar sua má sorte filosoficamente.
- Incrível, você é mais arisca do qúe uma donzela! Quem teria imaginado!
Apoiava-se contra a mesa e cruzou os braços sobre o peito.
— Mas sua recusa tem muitas consequências. O que está fazendo de nosso trato?
— Que trato?
— Quando me procurou em La Rochelle, imaginei haver entendido que em troca do embarque de seus amigos você me devolvia uma escrava queVnão pude usar a meu bel-prazer e segundo meus direitos.- .
Angélica sentiu-se culpada como um negociante que tentasse ignorar as cláusulas de um contrato.
Enquanto .corria pela charneca, açoitada pela chuva, animada apenas pela ideia de arrancar àquele solo maldito todos os perseguidos pelo rei, sabia que indo ao encontro do Rescator estaria oferecendo-se. Tudo lhe parecera fácil,"então. A única coisa que tinha importância era poder fugir.
Agora ele a fazia compreender que chegara a hora de pagar a dívida.
- Mas... não disse que eu o desagradava? - perguntou, esperançosa.
Isso provocou a hilaridade do Rescator.
— A astúcia e a má-fé femininas jamais carecem de argumentos, mesmo os mais imprevistos - disse entre duas explosões de um riso rouco que pareceram assustadoras a Angélica. - Minha cara, sou eu o amo! Posso me permitir mudar de ideia, mesmo em relação a você! Não lhe falta sedução quando se enfurece, e sua impulsividade tem seu encanto. Confesso que "há" alguns instantes estou sonhando em desembaraçá-la de sua coifa e de seu burel e descobrir mais do que houve por bem me conceder há pouco.
— Não - tornou Angélica, apertando o xale contra o corpo.
— Não?
Ele se aproximou dela com fingida displicência. Angélica achou-lhe o andar pesado, implacável. Apesar de uma aparência desenvolta, que o diferenciava do rígido hidalgo, era um homem de aço. As vezes dava para esquecer isso. Ele podia distrair, divertir. Depois, redescobria-se essa força infalível e ele causava medo.
Nesse momento Angélica sabia que toda sua energia física e moral não lhe serviria de nada.
- Não faça isso - disse, de um fôlego só -, é impossível! Você, que respeita as leis do Islã, lembre que não se deve tomar a mulher de um homem vivo. Estou comprometida com um de meus companheiros. Vamos nos casar... em alguns dias, neste navio mesmo.
Dizia qualquer coisa. Tinha de erguer um muro às pressas. Contra toda expectativa, sua confissão pareceu funcionar. O pirata estacou.
— Um de seus companheiros, você diz? O ferido?
— Sim... sim.
— O que sabe?
— Que sabe o quê?
— Que foi marcada com a flor-de-lis?
— Sim, ele.
— Impressionante! Para um calvinista, não lhe falta coragem! Envolver-se com uma p... de sua espécie!
A explosão a deixou atónita. Ela imaginava que ele receberia a confissão com cinismo, no entanto parecia tocado. "E porque falo das leis do Islã, que lhe devem ser caras", pensou. Como se lhe tivesse lido o pensamento, ele lançou com violência:
— Não dou mais importância às leis do Islã do que às dos países cristãos de onde você vem.
— E um ímpio - disse Angélica, assustada. - Não dizia há pouco que fomos salvos da tempestade graças a Deus?
— O deus ao qual dou graças tem apenas uma relação distante, creio eu, com o deus cúmplice das injustiças e das crueldades de seu mundo... O velho mundo roído de vermes - acrescentou, rancoroso.
A diatribe não parecia coerente com ele. "Eu o magoei", pensou Angélica.
Estava estupefata, como um Davi que acaba de abater de repente um Golias com uma reles estilingada.
Viu-o sentar-se pesadamente, junto à mesa, e pegar no cofri-nho um maciço colar de pérolas, que cofiou distraído. __ Você o conhece há muito tempo? _- A quem?
— A seu futuro marido. O sarcasmo impregnava-lhe a voz novamente.
— Sim... há muito tempo.
— Há anos?
— Há anos - respondeu ela, lernbrando-se do cavaleiro protestante que caridosamente a socorrerá na estrada de Chareton, quando ela procurava os ciganos que lhe haviam roubado o pequeno Cantor.
— É o pai de sua filha?
— Não.
— Nem isso!
O Rescator soltou uma risada insultante.
- Você o conhece há anos, mas isso não a impediu de arrumar um filho com um belo amante de cabelos ruivos?
Angélica não. entendeu o que ele quis dizer. "Que amante de cabelos ruivos?"
Depois o sangue lhe subiu ao rosto e ela teve dificuldade em controlar-se. Seus olhos lançaram faíscas.
— Você não têm o direito de falar-me nesse tom. Ignora tudo de minha vida. As circunstâncias nas quais conheci Mestre Berne. As circunstâncias em que tive minha filha. Com que direito me insulta? Com que direito me interroga como... como um policial?
— Tenho todos os direitos sobre você.
Disse isso sem paixão, num tom apagado, mas que a ela pareceu mais temível do que ameaças. "Tenho todos os direitos sobre você."
Soava definitivo e inelutável. E ela não se sentia nem um pouco tentada a tomar-lhe as palavras levianamente, pois sentia-lhe a autoridade.
"Mas eu escapo dele!... Mestre Berne me defenderá!"
E olhou à volta, com a impressão irreal de encontrar-se fora do mundo, fora do tempo.
CAPITULO VI
Palavras misteriosas do Rescator
A esbranquiçada claridade não conseguira atravessar de todo as grossas vidraças. Havia no aposento um claro-escuro que tornara a conversa ora misteriosa, ora sinistra. Agora que o Rescator se afastara, Angélica via-lhe um ar de fantasma sombrio cuja única luz eram as mãos entre as quais passava o fio luminoso do colar de pérolas.
Foi então que ela percebeu por que ele lhe parecera diferente hoje.
Cortara a barba. Era ele e era outro.
O coração de Angélica contraiu-se como na outra noite, quando imaginou haver entendido uma verdade absurda. E, sem formulá-la, foi novamente dominada pelo medo de estar ali com um homem a quem não compreendia e que tinha sobre ela um domínio subjugante.
Por intermédio daquele homem, ela conheceria sofrimentos sem nome.
Olhou para a porta, com uma expressão acuada.
- Agora, deixe-me partir - disse baixinho.
Ele não pareceu ouvi-la, depois levantou a cabeça.
- Angélica.
A voz abafada era o eco de outra voz.
- Como você está distante!... Nunca mais poderei alcançá-la.
Ela permanecia imóvel, os olhos arregalados. Por que lhe falava naquele tom baixo e triste? Abria-se nela um grande vazio. Tinha os pés pregados ao tapete. Sentiu vontade de correr para a porta, a fim de escapar aos sortilégios que ele ia lançar contra ela, mas não conseguia.
- Rogo-lhe, deixe-me partir - suplicou novamente.
— Mas é preciso acabar com esta situação ridícula. Era com essa intenção que queria falar-lhe esta manhã. Depois nosso diálogo tomou outro rumo. E agora a situação é mais ridícula ainda.
— Não o entendo... Não entendo nada do que está dizendo.
— E fala-se da intuição das mulheres, da voz do coração! Que sei eu?... O mínimo que se pode constatar é que você é totalmente desprovida disso... Aos fatos, pois. Sra. du Plessis-Belliere, quando você partiu para Cândia^ alguns diziam que se tinha lançado naquela viagem para tratar de negócios, outros que ia ao encontro de um amante. Outros, enfim, que procurava um de seus maridos. Qual é a versão exata?"
— Por que está me perguntando isso?
— Oh, responda! - exclamou ele, impaciente. - Decididamente você lutará até o fim. Está morta de apreensão, mas tem sempre de resistir. O que receia ficar sá"bendo com as minhas perguntas?
— Eu mesma não o sei.
-Resposta pouca digna de seu sangue-frio habitual e que prova, . por outro lado, que está começando a desconfiar de aonde quero chegar. Sra. du Plessis, esse marido que procurava, você o encontrou?
Ela meneou acabçça, negando, incapaz de proferir um som.
- Não?... No entanto, eu, o Rescator, que conhecia todos e todas no Mediterrâneo, posso afirmar-lhe que ele chegou bem perto de você.
Angélica sentiu os ossos liquefazerem-se, o corpo dissolver-se. De modo quase inconsciente, gritou:
— Não, não, não é verdade... E impossível! Se ele tivesse se aproximado de mim, eu o teria reconhecido entre mil!
— Pois bem, você está enganada! Olhe!
CAPÍTULO VII
A inacreditável revelação
O Rescator levara as mãos à nuca.
Antes que Angélica compreendesse o sentido do gesto que ele esboçava, a máscara de couro estava sobre os joelhos do pirata, que dirigia para ela um rosto nu.
Angélica soltou um -grito de terror e cobriu os olhos com as mãos. Lembrava-se do que contavam no Mediterrâneo sobre o pirata mascarado: que lhe haviam decepado o nariz. O medo de descobrir aquele rosto sem nariz dominou-lhe o primeiro movimento.
- O que tem?
Ela o ouviu levantar-se, vir em sua direção.
- O Rescator não é bonito sem máscara? Concordo. Mas afinal!... A verdade lhe é tão difícil de suportar que não pode encará-la?
Os dedos de Angélica deslizaram lentamente sobre as faces. A dois passos dela erguia-se um homem que lhe era estranho e que, no entanto, ela conhecia.
Um suspiro de alívio escapou-lhe: pelo menos não tinha o nariz decepado.
O olhar negro e perscrutante, envolto em espessas sobrancelhas, tinha a mesma expressão do olhar que há pouco ela via brilhar por entre as fendas da máscara. Os traços eram burilados, duros, e a face esquerda exibia os vestígios de cicatrizes antigas. Devido a essas marcas que o deformavam um pouco, ele impressionava, mas não tinha nada de assustador.
Quando falou, tinha a voz do Rescator.
- Não me olhe com esses olhos!... Não sou um fantasma... Venha até aqui, para a luz... Vejamos, não é possível que não me reconheça...
Levou-a com impaciência até junto da janela e ela se deixou ir, com o mesmo olhar arregalado e fixo de quem não entendia.
— Olhe-me bem... Estas cicatrizes não lhe despertam nenhuma lembrança? Sua memória está tão exaurida quanto seu coração?
— Por que - murmurou ela -, por que me disse há pouco que em Cândia... que ele chegou perto de mim...
Um clarão de inquietação apareceu nos olhos negros que lhe espreitavam o rosto. Ele a sacudiucom rudeza.
- Desperte! Não finja que não entende. Cheguei perto de você em Cândia. Mascarado, é verdade. Você não me reconheceu e não tive tempo de revelar-lhe minha identidade. Mas hoje?... Você está cega... ou louca?
"Sim, louca...", pensou Angélica. Tinha a sua frente um homem que, por um poder diabólico, ousaya apresentar-lhe os traços de Joffrey de Peyrac.
Aquele rosto ^tão amado, cuja recordação ardente ela conservara por muito tempo no fundo do coração, fora-se, apagara-se, pois ela jamais possuíra um retrato.que o lembrasse.
Agora era o inverso: ele se recompunha diante dela, com uma precisão alucinante. O nariz fino e nobre, os lábios cheios e zombeteiros, a ossatura dos zigomas e do maxilar, saliente, bem delineada sob a pele móYena dos homens da Aquitânia, e a linha familiar das cicatrizes que o desfiguravam e onde às vezes suavemente, outrora, ela passava o dedo.
- Você não tem o direito de fazer isso - disse ela numa voz sem expressão. - Não tem o direito de fazer-se parecer com ele para me enganar melhor.
- Pare de divagar... Por que se recusa a me reconhecer?
Angélica se debateu contra a perigosa miragem.
— Não, não, não é... ele. Ele tinha o cabelo... sim, uma enorme cabeleira negra emoldurando o rosto.
— Meu cabelo? Faz muito tempo que tosei aquela guedelha incómoda. Não é a moda para um corsário.
— Mas ele... ele era coxo - gritou Angélica. - Pode-se cortar uma cabeleira, pode-se cobrir o rosto com uma máscara, mas não se pode encompridar uma perna curta demais.
— No entanto, encontrei um cirurgião que realizou esse milagre em mim. Um cirurgião de libré escarlate... que você também teve ocasião de conhecer!
Como ela permanecesse muda de incompreensão, ele atirou-lhe:
- O carrasco.
Pôs-se a andar de um lado para o outro, como que falando sozinho.
- Mestre Aubin, o carrasco, o executor das altas e baixas sentenças da cidade de Paris. Ah, que homem hábil para lhe estalar nervos e músculos e para lhe colocar na boa medida ordenada pelo nosso rei. Minha claudicação era causada por uma atrofia dos tendões atras, do joelho. Depois de três sessões de cavalete, o ponto não era mais que uma chaga escancarada, e minha perna doente atingira o comprimento da outra. Que excelente carrasco e que bom rei os nossos! Dizer que me transformei imediata mente seria mentir, é claro. É principalmente a meu amigo Abd-al-Mechrat que devo o acabamento de uma obra de arte tão bem iniciada. Mas reconheço que hoje, com um pequeno enchimento no fundo da bota, minha aparência quase não difere dados outros. Depois de coxear durante trinta anos, é muito agradável sentir o chão firme sob os pés. Não imaginava que teria o privilégio de viver essa sensação. Caminhar normalmente, que para muita gente é o que eu chamaria de um tesouro banal, para mim é o meu contentamento de cada dia... Gostava de pular, fazer acrobacias. Pude dar livre curso a meus gostos de menino enfermo e depois de homem repugnante. Tanto mais que o trabalho do mar predispunha a isso.
Falava como que para si mesmo, mas seu olhar não se desviava da jovem, pálida como cera. Ela continuava parecendo não ouvir nem entender. Para ele, o aterramento que ela demonstrava ultrapassava suas previsões mais sombrias.
Finalmente os lábios de Angélica moveram-se.
- A voz dele!... Como pode pretender... ele tinha uma voz incomparável. Dela me lembro bem.
Ouvia aquela voz, surgida do passado, com uma força estrepitosa.
Em pé junto à extremidade de uma longa mesa de banquete, havia uma silhueta vestida de veludo vermelho, emoldurada por uma opulenta cabeleira de ébano, os dentes à mostra num riso faiscante, enquanto as notas do bel canto ecoavam nas abóbadas do velho palácio de Toulouse.
Ah, como ela a ouvia! Sua cabeça vibrava, dolorida, com aquela voz. Exaltação do canto e lamento terrível do que fora... do que poderia ter sido...
— Onde está a voz dele? A Voz de Ouro do Reino?
— Morreu!
A amargura deu ao timbre que lançara essa palavra uma nota ainda mais discordante. Não. Angélica jamais poderia associar esse rosto a essa voz.
O homem parou diante dela e disse com uma espécie de doçura:
- Está lembrada? Em Cândia? QuandS lhe disse que minha voz se partira outrora porque eu chamara alguém de muito longe. Deus... Mas que em troca ele me concedera o que eu pedia: a vida... Foi o átrio de Notre-Dame. Eu acreditava que minha última hora chegara... gritei por Deus'. Gritei forte demais, quando já não tinha mais forças... Minha voz partiu-se para sempre... Deus dá, Deus leva. Tudo se paga...
De repente ela não duvidou mais.
Ele acabava de atirar entre ambos àquelas imagens atrozes e inesquecíveis, imagens que pertenciam apenas a eles. A de um condenado, dê c^inisçla, a corda ao pescoço, pedindo perdão no átrio de Notre-Damr, quinze anos antes.
O condenado miserável, que. atingira, o último grau do esgotamento, sustentado pelo carrasco e pelo padre, era um dos elos daquela corrente inverossímil que ligava o triunfante senhor de Toulouse áo aventureiro dos mares que hoje ela via a sua frente.
— Mas então... - disse ela, num tom de indizível estupor - é... meu marido?
— Eu fui...-Que resta disso hoje?-Muito pouco, parece-me.
E, pelo sorriso zombeteiro que ele esboçava, ela o reconheceu.
O grito que com tanta frequência ela soltara dentro de si mesma - "Ele está vivo!" - começou a dilatar-lhe o coração, mas com uma ressonância funesta e desencantada. Nada daquele ofuscante jorro de alegria com que ela alimentara os próprios sonhos durante anos.
"Ele está vivo... Mas também está morto: o homem que me amava... e que cantava e não pode mais cantar. E aquele amor... aquele canto, nada os ressuscitará... Nunca."
O peito lhe doía como se o coração fosse realmente explodir. Quis retomar fôlego, não conseguiu. Um abismo negro a recebeu, e ali ela afundou, levando consigo, até na inconsciência, o sentimento de que lhe acontecera algo terrível, mas maravilhoso.
CAPITULO VIII
Diante do marido ressuscitado, Angélica desmaia
Quando voltou a si, foi o que a dominou: a impressão de que uma catástrofe irremediável e uma felicidade inominável lhe dividiam o ser, condenando-o ora ao frio, ora ao calor, ora às trevas, ora à luz.
Abriu os olhos.
A felicidade estava ali, sob a forma de um homem em pé a sua cabeceira, sob os traços de um rosto que ela já não renegava.
Endurecido, acusado, mais regular também, pois as cicatrizes pareciam um tanto apagadas, marcado daquela patina que a força da idade confere ao homem, era bem o rosto de Joffrey de Peyrac.
O mais penoso era que não sorria.
Olhava-a sem emoção, com uma expressão tão distante que agora era ele quem parecia não reconhecê-la.
Ainda assim - porque na cabeça enevoada de Angélica subsistia a ideia de que o milagre com que tanto sonhara se realizara -, ela teve um impulso na direção dele.
Foi detida com um gesto.
- Por favor, senhora. Não se acredite obrigada a fingir uma paixão que talvez existisse outrora, não o nego, mas que há muito tempo se extinguiu em nossos corações.
Angélica imobilizou-se, como que estacada por um golpe. Os segundos passavam. E no silêncio ouviu nitidamente o vento silvando lá fora, nos ovéns e nas velas, como lamentos lancinantes a ecoar os de seu coração. Ao pronunciar essas últimas palavras, ele tivera o ar distante do grão-senhor tolosano de outros tempos. E, sob seu novo traje de aventureiro dos mares, ela o reconheceu. Era ele.
Devia estar mortalmente pálida.
Ele foi buscar alguma coisa num móvel do outro lado da sala.
De costas, era o Rescator, e por um instante ela esperou que tudo aquilo não passasse de um pesadelo. Mas ele voltou e, na semiclaridade do dia polar, o destino inexorável lhe devolveu o rosto esquecido.
Estendia-lhe um copo.
— Beba este álcool. Ela fez sinal que não.
— Beba - insistiu ele, com sua dura voz rouca.
Para não ter de ouvi-la de novo e para acabar logo com aquilo, ela engoliu o conteúdo do copo. .-
- Está melhor? Por que esse mal-estar?
Angélica engasgou/; tossiu e teve dificuldade em recobrar o fôlego. A pergunta devolvêu-lhe, em parte, o ânimo.
- Como?. Por quê? Descobrir que o homem que choro há anos está aqui, vivo, ante meus olhos, e queria que eu...
Desta vez foi com um sorriso que ele a deteve. O sorriso descobriu o brilho dos dentes que continuavam esplêndidos. Era bem o sorriso do último dos trovadores, mas velado de um sentimento de melancolia ou desencanto.
- Quinze anos, senhora! Pense n-isso, antes. Tentarmos nos enganar seria uma comédia indigna e estúpida. Um e outro temos outras recordações... conhecemos outros amores...
Foi então que a verdade que ela se recusava a encarar trespassou-a como a ponta afiada e gelada de um punhal.
Ela o encontrara, mas ele não a amava mais. Em todos os seus sonhos, sempre o imaginara a estender-lhe os braços. Esses sonhos - ela percebia agora - eram pueris como a maioria das imaginações femininas. A vida se inscreve numa pedra mais dura do que a cera simples e mole dos sonhos. Sua forma se molda em relâmpagos cortantes, que ferem, que machucam.
"Quinze anos, senhora! Pense nisso!"
Ele conhecera outros amores.
Será que tinha casado com outra? Com uma mulher a quem amara apaixonadamente, muito mais, sem dúvida, do que amara a ela?...
Um suor frio molhou-lhe as têmporas, e ela pensou que fosse desmaiar outra vez.
- Por que me revelou isso hoje?
Ele deu uma risada abafada.
- Sim, por que hoje e não ontem ou amanhã? Já lhé disse:
para acabar com uma situação ridícula. Esperava que me reconhecesse, mas é de se crer que me havia bela e definitivamente enterrado, pois você não parecia sentir a mais leve desconfiança. Prodigava seus cuidados a seu caro ferido e a seus filhos, e, embora nenhum marido tenha tido melhor ocasião de observar incógnito o comportamento de- uma esposa volúvel, a comédia acabou me parecendo duvidosa. Devia, então, esperar que você viesse pedir a mim, capitão do navio, único senhor a bordo, e portanto único representante da lei, que se unisse àquele mercador? Teria sido levar a brincadeira um pouco longe, não acha... Sra. de Peyrac?...
Caiu na risada, aquele riso entrecortado que ela não podia mais suportar.
— Cale-se! - gritou, levando as mãos às orelhas. - Tudo isso é atroz!
— E você quem o diz. Um grito do coração, talvez.
Ele continuava a ironizar. Enfrentava com leviandade o que a devastava como uma tempestade. Tivera tempo de se acostumar com o fato, pois desde Cândia sabia quem ela era. E, de resto, devia ser-lhe um pouco indiferente. Quando já não se ama, vêem-se os fatos com tanta simplicidade!
Por ambígua e dramática que fosse a situação no momento, no fundo ele devia estar divertindo-se!
Também nisso ela o reconhecia. Não rira na sala do tribunal, bem no momento em que iam condená-lo ao cadafalso?
— Acho que vou enlouquecer - gemeu ela, torcendo as mãos.
— Certamente que não!
Afetou uma tranquilizadora displicência.
- Não vá enlouquecer por tão pouco. Ora, você já passou por outras! Uma mulher que enfrentou Mulay Ismael... E a única cativa cristã que conseguiu fugir de um harém e do reino do Marrocos... E verdade que você foi ajudada por um valente companheiro... aquele rei dos escravos, de reputação lendária... como se chamava mesmo? Ah, sim: Colin Paturel.
Repetiu, fitando-a pensativo:
- Colin Paturel...
O nome e o tom estranho com que era pronunciado penetraram as brumas em que se debatia o espírito de Angélica.
— Por que de repente está me falando de Colin Paturel?
— Para lhe refrescar a memória.
O olhar negro e brilhante retinha.o dela. Tinha um invencível poder de atração, e durante alguns instantes Angélica foi incapaz de soltar-se, como o pássaro fascinado pela serpente. Um pensamento se destacou claramente, em letras de fogo, a sua frente: "Ele sabe que Colin Paturel me amou... e que o amei..."
Sentia medo, sentia-se mal. Toda sua vida lhe parecia uma sequência de erros irreparáveis e pelos quais teria de pagar caro.
"Também eu conheci outros amores... Mas isso não conta", tinha vontade dé'gritar, com a s.õberba inconsciência das mulheres.
Como explicar-lhe? Todas as suas palavras eram inábeis.
Seus ombros arqueavam-se. A vida largava sobre ela seu peso de pedra.
Acabrunhada, deixou cair o rosto entre as mãos.
- Bem vê, minha cara, que os protestos não servem de nada - murmurou ele com sua voz abafada que a ela continuava a parecer estranha -, repito-lhe que não gosto de comédias enganadoras, db tipo em que vocês, mulheres, são excelentes. Prefiro mil vezes vê-fã sem escrúpulos, exatamente como eu próprio o sou. E, para tranquilizá-la de todo, direi até que compreendo seu transtorno. Não é na hora em que nos preparamos para contrair novas núpcias com um noivo eleito do coração que é agradável ver surgir um marido muito bem esquecido, o qual, ainda por cima, parece pedir satisfações. Ora, não é nada disso, fique certa. Colocaria eu obstáculos a seus projetos matrimoniais... se lhe são tão caros ao coração?
Uma manifestação de indulgência assim era o pior insulto que ela podia receber. Que ele aceitasse seu casamento com outro era exprimir - de maneira mais clara, impossível - que já não gostava dela e que concordava, de coração leve, com uma autêntica heresia. Tornara-se um pecador, empedernido e inconsciente. Era inconcebível! Estava perdendo "a razão ou então era ela quem perdia!
Com a humilhação, Angélica saiu de seu desnorteamento. Ergueu-se e lançou-lhe um olhar cheio de altivez, enquanto maquinalmente apertava a mão em que outrora usara a aliança do casamento com ele.
- Suas palavras, senhor, são despidas de sentido para mim.
Passaram-se quinze anos, mas, como está vivo, não deixo de ser sua mulher aos olhos de Deus, se não dos homens.
Uma emoção fugidia contraiu os traços do Rescator. Na expressão da mulher que se recusava a reconhecer como sua, vira reaparecer a jovem de raça nobre, obstinada, que recebera em seu palácio de Toulouse.
Mais do que isso, porém: a imagem que ela acabava de oferecer-lhe numa espécie de visão fulgurante era a da grande dama que devia ter sido em Versalhes. "A mais bela de todas as senhoras", disseram-lhe, "mais rainha do que a própria rainha."
Num átimo ele a despojava de seus trajes pesados e grosseiros e a imaginava em seu esplendor, com o níveo dorso sob a luz dos lustres, os ombros perfeitos suportando o peso das jóias, erguendo-se com aquele mesmo movimento suave e invencível.
E isso era insuportável.
Apesar da intenção de permanecer impassível, ele levantou-se; a tensão da cena o atingia em todas as suas fibras.
No entanto, foi a mesma expressão dura e indecifrável que ele voltou para Angélica, após um longo silêncio.
— É verdade - admitiu. - De fato é a única mulher que já desposei. Coisa, aliás, em que você não me imitou, a dar crédito a minhas informações. Fui rapidamente substituído.
— Eu o acreditava morto.
— Plessis-Belliere - disse ele, como se tentasse lembrar. - De minha parte continuo com uma memória muito boa, e recordo-me de que me falou desse priminho, de uma beleza célebre, de quem você já devia estar algo enamorada. Que ocasião excelente, pois, uma vez desembaraçada do marido imposto por seu pai, cambaio e azarado ainda por cima, de realizar um sonho de há muito acalentado em segredo!
Angélica levou as duas mãos à boca, num gesto de incredulidade.
— Isso é tudo o que acredita do sentimento de amor que lhe dediquei - disse, condoída.
— Você era muito jovem... Eu a distraí durante algum tempo. E reconheço que não se poderia encontrar esposa mais encantadora. Mas nunca pensei, nem naquela época, que você tivesse sido feita para a fidelidade... Deixemos isso de lado... Analisar o passado me parece bem inútil. Tentar ressuscitá-lo, tarefa vã. No entanto, conforme você acaba de observar, continua sendo minha mulher, e nessa qualidade terei perguntas a fazer-lhe que interessam a outras pessoas além de nós e cuja importância ultrapassa a nossa...
As negras sobrancelhas se aproximaram, escurecendo os olhos que podiam parecer quase dourados quandp a alegria, mesmo fingida, os iluminava. Mas a cólera e-a suspeita os tornavam tenebrosos e perscrutadores. "-Í;
De instante a instante Angélica reconhecia os jogos de expressão de uma fisionomia que tanto a fascinara. "Ah, é ele! E bem ele!", dizia ela desfalecendo com a revelação e sem saber se era de desespero ou de alegria.
— Que fez você de meus filhos? E onde estão eles? Ela repetiu, como se caísse.das nuvens:
— Seus filhos?
- Parece-me que me expressei de modo muito claro. Sim, meus filhos. Seus também!" Aqueles de quem sou o pai, evidentemente. O mais velho, Florimond, que nasceu em Toulouse, no Palácio da Gaia Ciência.O segundo, que não conheci, mas de cuja existência fiquei sabendo: Cantor. Onde estão? Onde os deixou? Não sei por que imaginei vagamente que os encontraria entre essa gente-perseguida que você me pediu que embarcasse. Uma mãe tentandoarrancar os filhos a um destino injusto, eis um papel em que eu certamente a teria aplaudido. Mas nenhum dos rapazinhos embarcados pode ser umdeles. De resto, você só parece preocupada com sua filha. Onde estão eles? Por que não os trouxe consigo? Com quem os deixou? Quem se preocupa com eles?
CAPÍTULO IX
A decepcionante confrontação - Aparecimento de Honorina
Responder representava uma autêntica tortura. As palavras ratificariam a ausência dos dois alegres garotos, desaparecidos para sempre. Fora por eles que ela penara, sofrera. Quisera-os protegidos contra a necessidade, reabilitados. Em sonhos vira-os grandes, belos, confiantes, brilhantes. Nunca os veria crescer. Também eles a haviam deixado.
Disse com dificuldade:
- Florimond partiu há muito tempo... Tinha treze anos, então. Eu nunca soube que fim levou. Cantor... morreu aos nove anos.
Sua voz sem inflexão podia parecer indiferente.
- Esperava sua resposta. Tinha minhas dúvidas. Por isso não a perdoarei jamais - disse o Rescator, os maxilares contraídos de fúria - por sua indiferença em relação a meus filhos. Eles a lembravam um período de sua vida que queria esquecer. Você os afastou. Correu atrás de seus prazeres, seus amores. E agora confessa sem emoção que nem daquele que provavelmente está vivo sabe alguma coisa? Eu talvez lhe tivesse perdoado muita coisa, mas isso não. Jamais!
Angélica permaneceu como que derreada, mas subitamente se pôs ereta diante dele, pálida.
De todas as acusações que ele levantara contra ela, esta era de longe a mais odiosa, a mais injusta. Censurara-lhe por havê-lo esquecido, e era mentira; de tê-lo traído, e, infelizmente, era verdade em parte; de nunca tê-lo amado, era monstruoso.
Mas não toleraria passar por mãe negligente, quando por vezes tivera a impressão de dar o sangue pelos filhos. Talvez não tivesse sido uma mãe muito afetuosa e sempre presente, mas Flo-rimond e Cantor estiveram o tempo todo no centro de seu coração... Com ele... Ele, que hoje ousava atirar-lhe censuras ao rosto, enquanto durante anos passara pelos mares sem se preocupar com ela nem com os filhos pelos quais subitamente parecia tão ansioso. Fora ele quem os tirara da miséria em que sua queda precipitara os inocentes? Ela lhe perguntara por culpa de quem o orgulhoso Florimond fora sempreuma criança sem nome, sem título, mais desclassificado do qúe um bastardo? Ela lhe diria em que circunstâncias Cantor morrera. 'Por culpa dele! Pois fora seu navio de pirata que afundara a galera francesa na qual embarcara o jovem pajem do Duque de Vivonne.
Ela sufocava de revolta e sofrimento. Quando abria a boca para falar, um vagalhão mais alto ergueu o navio e a fez cambalear. Ela se segurou à mesa. Não tinha os pés tão firmes quanto o Res-cator, que parecia pregado ao assoalho.
Esse rápido intervalo bastou para que Angélica contivesse as palavras irremediáveis que ia'dizer. Podia anunciar a um pai que ele fora responsável', pela morte do próprio filho?
O destino já não se encarniçara contra Joffrey de Peyrac? Tinham querido matá-lo, haviam-no despojado de seus bens, fora banido, fizeram dele um errante, sem outros direitos, senão os que podia conquistar com a própria espada.
Como indignar-se, hoje, de que no final ele se houvesse transformado em outro homem, forjado pela lei implacável daqueles que devem matar para não serem mortos? Ela, Angélica, é que fora de uma ingenuidade ímpar por pensar o contrário. A dura realidade obedecia a outras exigências. De que serviria aumentar a catástrofe, revelando-lhe que ele causara a morte do filho?
Não, não lhe diria isso. Não, nunca! Mas revelar-lhe-ia de um modo ou de outro o que ele parecia ignorar. Suas lágrimas, seus terrores de mulher muito jovem, inexperiente, lançada à miséria e ao abandono. Não lhe contaria como Cantor morrera, mas como nascera: na noite da execução na Place de Greve. E como ela fora infeliz, empurrando pelas ruas geladas de Paris um carrinho de onde surgiam, azuis de frio, os rostinhos redondos de seus filhos.
Talvez ele entendesse, então. Julgava-a, mas porque ignorava sua vida.
Quando soubesse, poderia permanecer insensível? As palavras não poderiam reanimar a faísca que talvez ardesse sob as cinzas de um coração onde se haviam acumulado ruínas demais? Um coração devastado como o seu?
Mas ela, pelo menos, continuava capaz de amar. Então cairia de joelhos, suplicaria. Diria todas essas palavras que lhe pressionavam os lábios. Que sempre o amara... Que, sem ele, não fora mais do que espera, insatisfação... Não partira loucamente à procura dele, contra a vontade do rei, o que lhe acarretara perigo sem nome?
Nesse momento notou que a atenção do Rescator se desviara. Com ar intrigado, vigiava a porta da sala, que se entreabria muito devagarinho... Aquilo não era habitual. O mouro montava guarda, vigilante. Quem podia permitir-se entrar sem ser anunciado nos apartamentos do senhor de bordo? O vento ou a névoa?
Entrou um sopro glacial, impelindo uma lufada de nevoeiro que, ao contato com o calor, se esfiapou. Desse véu impalpável surgiu uma pequena aparição: boina de cetim verde-maçã, cabeleira de fogo. Os dois pontos de cor brilhavam com uma intensidade particular contra o fundo cinzento do lado de fora. Atrás dela a sentinela barbaresca estendia o rosto envolto em lãs, que o frio amarelava.
— Por que a deixou entrar? - perguntou o Rescator em árabe.
— A criança procura a mãe. Honorina correra para Angélica.
— Mamãe, onde você estava? Mamãe, venha!
Angélica a via mal. Olhava com ar desconcertado o rostinho redondo erguido para ela, os olhos negros oblíquos e sagazes. A aparência estrangeira da filha era tão flagrante que por um breve momento Angélica se sentiu invadir pelos sentimentos que sentia outrora: horror àquela existência que fora forçada a gerar, recusa em admiti-la como sua, renegação do próprio sangue que, na criança, se misturava a uma fonte impura, revolta contra o que fora uma vergonha ardente.
- Mamãe, mãe, você esteve fora a noite toda. Mamãe!
A criança repetia com insistência o nome que na verdade raramente usava. O instinto de reivindicação e de defesa, tão feroz no coração das crianças, ditava-lhe a palavra terrível, a única que podia trazer-lhe a mãe de volta, arrancá-la àquele homem de negro que a chamara e a fechara em seu castelo cheio de tesouros.
- Mamãe, mamãe!
Honorina estava ali. Era o sinal de todo o imperdoável, o lacre colocado na porta fechada de um paraíso perdido, como outrora os lacres do rei nas portas do Palácio da Gaia Ciência haviam significado o fim definitivo de um mundo, uma época, uma felicidade.
As imagens se confundiam diante- dos olhos de Angélica.
Segurou a mão de Honorina.
Joffrey de Peyrac olhava a criança. Avaliava-lhe a idade: três, quatro anos? Portanto, não era filha do Marechal du Plessis. De quem, então? Pelo meio sorriso irónico e desdenhoso dele, ela lhe adivinhava os pensamentos. Um amante de passagem. "Um belo amante de cabelos ruivos!" Quanta coisa se atribuía à bela Marquesa du Plessis, amante do rei da França, viúva do Conde de Peyrac. E, novamente, ela nunca poderia dizer-lhe a verdade. Seu pudor se rebelava ante a simples ideia de fazê-lo. Confessar tal nódoa seria como mostrar-lhe uma chaga vergonhosa e repugnante. Elá a guardaria para si, sempre oculta, com as cicatrizes indeléveis de seu.corpo e de seu coração, a queimadura na perna tratada por Colin Patural, a morte do pequeno Carlos Henrique. ....
Nascida de um estupro anónimo, Honorina pagava pelas carícias que Angélica aceitara ou procurara.
Filipe, os beijos-db rei5 a paixão rude e grandiosa do pobre normando, príncipe dos escravos, os prazeres grosseiros e alegres que lhe prodigara o policial Desgrez, os outros, mais refinados, que saboreara com o Duque de Vivonne. Ah, esquecia-se de Racoc-zi... e de outros, sem dúvida.
Tantos anos passados... vividos. Para ele, para ela. Não se podia pedir que se apagassem.
Ele acariciava o queixo, com um gesto maquinal. Era visível que sentia falta da barba, recentemente sacrificada.
- Confesse, minha cara, que a situação é embaraçosa.
Como podia ele continuar a ironizar, quando ela mal se aguen
tava em pé, tanto lhe doía o coração?
— Querendo esclarecê-la, constato que ela-só se torna mais obscura... Tudo nos separa.
— Venha, mamãe! Venha logo, mamãe! - repetia Honorina, puxando a mãe pela saia.
— Você certamente não deseja uma aproximação que há poucas horas estava bem longe de seus pensamentos, totalmente ocupados por outro homem...
— Venha, mamãe!
— Oh, cale-se! - exclamou Angélica, com a impressão de que seu cérebro ia estourar.
— Quanto a mim...
Lançou um olhar dubitativo a sua volta, examinando a cabina onde se comprouvera a reunir móveis caros, instrumentos de qualidade, o cenário de uma existência variada, difícil e apaixonante onde Angélica não tinha lugar.
— ...sou uma velha águia dos mares, acostumado à solidão. Com exceção dos breves anos conjugais que vivi antigamente em sua encantadora companhia, as mulheres nunca ocuparam em minha vida mais do que um papel episódico. Talvez fique lisonjeada de sabê-lo. Mas isso cria gostos que não me dispõem a me ver na pele de um esposo modelo. Este navio não é grande, meus apartamentos são acanhados... Proponho-lhe uma coisa. Durante a viagem, recolhamos os dados e consideremos a partida como nula.
— Nula?
— Continuemos cada um em seu lugar. Você continua sendo Dame Angélica, entre seus companheiros... e eu... continuo... em minha casa.
Assim, ele a renegava, rejeitava-a. No fundo não saberia o que fazer com ela a seu lado. Então mandava-a de volta àqueles que, nos últimos meses, haviam-se tornado os seus.
— E não me pediria também que esquecesse a revelação que acaba de fazer-me? - perguntou ela, sarcástica.
— Esquecer? Não. Que não a divulgue por aí.
— Venha, mamãe - repetia Honorina, puxando-a para a porta.
— Quanto mais penso no assunto, mais me parece inconveniente informar a seus amigos que foi minha mulher, ainda que num tempo longínquo. Imaginariam que também é minha cúmplice.
— Sua cúmplice? Em quê?
Ele não respondeu. Refletia, o cenho cortado por uma ruga funda.
- Volte para eles - disse rapidamente, em tom de comando. - Não diga nada. É inútil. De resto, achariam simplesmente que está louca. Essa história de marido perdido, reencontrado, que a leva para seu navio sem que logo o tenha reconhecido, confesse que parece suspeita.
Voltou-se para a mesa para pegar a máscara de couro, a casca protetora de seu rosto machucado que receava o sal dos respingos e o olhar dos homens.
- Não diga nada. Não deixe que suspeitem de nada. Além do mais, não são pessoas que me. inspirem Confiança.
Angélica já'chegara à porta.
- Acredite que é recíproco - disse, entre dentes.
Em pé na moldura da porta, com a filha pela mão, ela se voltou, devorando-o com os olhos. Havia recolocado a máscara. Isso a ajudava a perceber o que ele quisera fazê-la entender.
Ele era ele e outro. Joffrey de Peyrac e o Rescator. Um grão-senhor banido e um pirata dos'mares que, impelido a viver, acabara por se despojar das antigas simpatias, para tornar seu apenas o áspero presentç.
Estranhamente, ele;ihe"parêceu mais próximo do que no momento precedente. Ela se sentia aliviada por se dirigir apenas ao Rescator. .
- Meus amigos estão preocupados - disse"-, estão preocupados, Monseigneur Rescator, em saber para onde os leva. Não é costumeiro encontrar gelo ao largo da África, onde deveríamos nos encontrar agora.
Ele se aproximara dcum globo de-mármore negro, estrelado de sinais estranhos. Pousou a mão ali, uma mão que continuava sendo patrícia, mas agora morena como a de,um árabe, e com um dedo seguiu as linhas traçadas em ouro. Após um longo momento de estudo, pareceu lembrar-se da presença dela e respondeu com indiferença:
- Diga-lhes que a rota do norte também leva às ilhas.
CAPITULO X
Meditação de Joffrey de Peyrac sobre a cena que acabara de ocorrer
O Conde Joffrey de Peyrac, aliás, o Rescator, deslizou pela escotilha e desceu rapidamente a íngreme escada que levava às entranhas do navio. Atrás do albornoz branco do mouro que carregava uma lanterna, ele se enfiou pelo estreito labirinto dos corredores.
Sob seus passos, o balanço do navio lhe confirmava a impressão tranquilizadora: o perigo passara. Apesar de navegarem por entre um nevoeiro, inquietante e gelado, que depunha por toda a parte sobre as vergas e as pontes uma fina patina de geada, ele sabia que ia tudo bem. O Gouldsboro seguia com a desenvoltura de uma embarcação que não se sente ameaçada.
Ele conhecia-lhe todos os estremecimentos, os estalidos diversos, do casco aos mastros, tudo o que constituía o grande corpo de seu navio, concebido para os mares polares e cujos planos ele mesmo desenhara, mandando-o construir em Boston, o principal estaleiro naval da América do Norte.
Enquanto avançava, tateava a madeira úmida, menos para se apoiar do que para manter-contato com o invencível madeiramento do valoroso navio.
Respirou-lhe o odor, o odor demadeira da sequóia vinda dos montes Klamath no longínquo Oregon, a madeira dos pinheiros brancos do Alto Kennebec e do monte Katandin, no Maine - o seu Maine -, perfumes que a impregnação de sal não conseguia apagar.
"Não há uma floresta da Europa tão bela quanto as do Novo Mundo."
A altura, o vigor das árvores, o esplendor envernizado das folhagens, tudo fora uma revelação para ele, quando poderia ter-se sentido mais ou menos entendiado.
"A descoberta do mundo é infinita", pensou ainda. "A cada dia nos damos conta de que não sabemos nada... Sempre se pode recomeçar... A natureza e os elementos naturais estão aí para nos manter e nos levar para a frente." -
Mas a longa luta travada na noite anterior contra a hostilidade do mar e dos gelos não lhe deixava no coração a satisfação habitual, não só a de haver triunfado', mas também a de haver-se enriquecido com um tesouro interior que ninguém poderia tomar-lhe.
E que tivera, em seguida, de enfrentar outra tempestade, e, embora ele se defendesse, ela lhe causara devastações.
Podia-se imaginar como farsa uma s-ituação em que o odioso disputava conto mau .gosto? Ele ainda se recusava a pronunciar a palavra "drama".
Sempre tentara dar-a cada acontecimento suas proporções materiais. Os casos com-mulheres geralmente têm mais a ver com farsa do que com drama. Mesmo que se tratasse de sua própria mulher, de uma mulher que o marcara mais do que as outras - para grande infelicidade sua -, não podia deixar de ter vontade de rir, zombeteiro, ao recompor os dados da comédia: uma esposa esquecida há quinze anos, reaparecendo para pedir transporte em seu navio, sem o reconhecer e, o cúmulo, preparando-se para pedir-lhe a bênção do casamento com um novo amor. É sabido que o acaso é pródigo em imaginação divertida. Mas nisso ultrapassava as medidas. Devia bendizê-lo, afinal? Agradecer-lhe, talvez? Confiar nesse acaso humorístico e careteiro, que vinha agitar sob os olhos de ambos o espectro insípido de um belo amor de juventude?
Nem ele nem ela desejavam esse retorno ao passado. Então, por que ele falara naquela manhã? Já que ela não o reconhecia, não teria sido mais simples deixá-la ir-se com seu caro protestante?
A claridade do local onde penetrava cegou-o com a mesma intensidade ofuscante que teve, em seu espírito, um pensamento evidente.
"Imbecil! De que lhe serviria ter vivido cem vidas, de haver roçado a morte mais vezes ainda, se continuasse a ocultar de si mesmo suas próprias verdades? Confesse que não podia deixar que isso acontecesse, porque não teria suportado!"
Sob o efeito da cólera, correu à volta um olhar sombrio. Alguns homens esgotados dormiam em redes ou em leitos grosseiros ajeitados sob a carreta dos canhões, mas tinham aberto as portinholas, pois esta segunda bateria dissimulada numa pequena entrecoberta carecia de ventilação. Para esta viagem, Joffrey de Peyrac fora obrigado a acomodar ali uma parte da tripulação, a fim de deixar aos passageiros a entrecoberta do castelo de proa.
De tempos em tempos uma golfada de água do mar entrava por uma portinhola e um dos- marujos adormecidos resmungava.
Ali estava-se perto da linha de flutuação. Ouviam-se as ondas sussurrar e rebentar. Seria possível acariciá-las com a mão, como os grandes animais domesticados.
Ele se chegou a uma das aberturas. A proximidade do mar esverdeava a luz que entrava.
Por mais cuidadoso que fosse o bem-estar de sua tripulação, no momento Joffrey de Peyrac não pensava nisso. As altas ondas de um verde-claro, matizadas de sombras, onde se tinha a impressão de ver o tempo todo reluzir a passagem fugidia de blocos de gelo, evocavam-lhe as pupilas cuja ascendência sobre si ele preferiria renegar.
"Não, eu não poderia suportar!", repetiu consigo. "Teria sido preciso que ela se tivesse tornado completamente indiferente para mim... Ora, ela não me é indiferente!"
A confissão que fazia a si mesmo não ajudaria a simplificar-lhe os atos futuros. Ver com clareza nem sempre leva à solução mais fácil. Podia dizer que, chegando à idade em que o homem aborda a segunda vertente da vida, soubera enfrentar com certa serenidade seus conflitos interiores. Os caminhos do ódio, do desespero, da inveja sempre lhe pareceram estéreis demais para que encontrasse prazer em enveredar por eles. Conseguira ignorar os do ciúme, até o dia em que um mensageiro viera informá-lo de que sua "viúva", a Sra. de Peyrac, casara-se alegremente com o muito belo e dissoluto Marquês du Plessis-Belliere. Ainda assim, superara rapidamente sua desilusão. Pelo menos era o que acreditava.
Sem dúvida o ferimento era mais profundo, um daqueles ferimentos sérios que se fecham depressa, mas sob os quais a carne se deteriora ou se atrofia. Seu amigo, o médico árabe, explicou-lhe isso ao cuidar-lhe da perna, obrigando a chaga a permanecer aberta até que nervos, músculos e tendões crescessem, cada um seguindo o ritmo de crescimento determinado pela natureza.
Fosse como fosse, ele sofrera por uma mulher que não existia mais e que não podia renascer.
Nesse ponto de suas reflexões, pensou, olhando o mar, em insondáveis pupilas verdes, e fechou a portinhola de madeira com violência.
O mouro Abdullah esperava atrás dele, e preparava-se para apagar a lanterna.
- Não, não, vamos descer mais - disse ele.
E mergulhou atrás do árabe em outro poço dé escuridão, abrindo o soalho da bateria. Esses exercícios haviam-se tornado familiares demais para ele para lhe distraírem os pensamentos.
Toda sua força de vontade não poderia, hoje, desviá-lo de sua obsessão por Angélica, Aliás, era em parte porcausa dela que se dirigia até o fundo "do porão.
Irritação, rancor, perplexidade - já não sabia o que o dominava. Com certeza, não era indiferença, infelizmente! Como se os sentimentos que podia inspirar-lhe uma mulher que há quinze anos deixara de ser sua esposa e que o traíra de todas as maneiras já não fossem bastante complexos para que ainda por cima o desejo viesse somar-se a eles!
Por que tivera ela aquele gesto extraordinário, e que ele praticamente não esperava, de arrancar o corpete para mostrar-lhe a flor-de-lis no ombro?
Fora menos a aparição da marca infame que o surpreendera de imediato do que a beleza daquele dorso de rainha. Ele, o esteta difícil, acostumado a detalhar a beleza das mulheres, ficara estarrecido.
Ela ainda não tinha aquele dorso perfeito outrora, pois mal se libertava das formas suaves da adolescência. Tinha apenas de-zessete anos quando a desposara. Lembrava-se agora. Lembrava-se agora de que, acariciando-lhe o corpo novíssimo, pensara às vezes na beleza que Angélica atingiria quando a vida, as maternidades e também as honras a fizessemdesabrochar.
E eis que foram outros, não ele, que a fizeram desabrochar até a perfeição. Angélica, no momento em que ele menos esperava por isso, oferecera-lhe sua visão. Despojado daquela roupa descorada e mal talhada, seu torso evocava de modo irresistível o das estátuas de deusas da fertilidade, erguidas nas ilhas do Mediterrâneo. Quantas vezes ele as admirara, pensando em como era raro, infelizmente., encontrar entre as mulheres modelos como aqueles.
Mas, na penumbra, sentira-se mais atingido do que" em Cândia. O brilho da pele branca como o leite na tristeza da aurora nórdica, também leitosa, o movimento dos ombros vigorosos, carnudos mas de uma linha suave e pura, os braços lisos e fortes, a nuca de onde se soltava a cabeleira e que um leve sulco marcava com uma espécie de inocência, tudo isso o seduzira a um único olhar, e ele se aproximara, invadido pelo sentimento de que ela era mais bela do que antigamente, e que era sua!
Como ela se rebelara! Como se defendera! Fora de fazer crer que teria um ataque epilético caso ele tentasse ir mais longe. O que a teria assustado tanto nele? A máscara? A personalidade oculta? Ou a suspeita de algo desagradável que ele não demoraria em revelar-lhe?
O mínimo que se podia dizer é que ela não se sentia atraída por ele. Seus apetites voltavam-se nitidamente em outra direção.
- Vá, vá - disse, impaciente, ao mouro. - Já disse, vamos descer até embaixo, até o porão dos prisioneiros. - "Marcaram-na com a flor-de-lis", pensou. "Por que crime? Por que prostituição? Até onde terá ela chegado? Por quê?... Que acontecimentos puderam fazê-la cair sob a influência desses estranhos hugueno-tes? A pecadora arrependida?... Sim, parece ser isso. O espírito das mulheres é tão fraco!"
Duvidava de que obteria respostas com facilidade para essas perguntas, e as imagens que elas suscitavam o atormentavam ainda mais.
"Marcada com a flor-de-lis... Conheço o antro do carrasco, o horror gélido desses lugares onde se fabricam a dor e a abjeção... O medo que pode inspirar um braseiro onde instrumentos estranhos ficam incandescentes... Para uma mulher, é a prova!... Como será que ela a enfrentou? Por quê? O rei, seu amante, já não a protegia, então?"
Chegaram ao fundo. Ali, nas trevas, já não se ouvia sequer o ruído das ondas. Apenas se sentia o mar, pesado e denso, pof trás da delgada parede de madeira submersa. A umidade era r netrante. Joffrey de Peyrac evocava as abóbadas ressumantes das salas de tortura da Bastilha e do Châtelet. Lugares sinistros, mas que jamais lhe assombraram os sonhos nos anos que se seguiram a sua detenção e a seu processo em Paris. O fato de haver escapado vivo bastava para serená-lo.
Mas uma mulher? Principalmente Angélica! Recusava-se a imaginá-la naqueles locais de horror.
Será que a tinham posto de joelhos? Ter-lhe-iam despido a camisa? Ela gritara muito? Urrara de dor? Apoiou-se contra uma viga viscosa, è o árabe, imaginando que ele quisesse examinar o conteúdo do porão que se abria pára o Corredor, ergueu a lanterna.
Sob a luz apareceram cofres amontoados, amarrados e pregados com ferro, e massas brilhantes, solidamente escoradas, cuja forma de início se distinguia mal.
Depois, com surpresa, percebiam-se esculturas, volutas: poltronas, mesas, vasos, objetos de todo tipo, todos de ouro maciço, às vezes de platina. A chama dançava, despertando a calorosa magnificência dos'metais: nobres que nem a água nem o sal do mar podem corroer.
- Contempla seus" tesouros, ó amo? - perguntou o mouro com sua voz guturai
- Sim - respondeu Peyrac, que, na realidade, não via nada.
Retomou a caminhada e, de repente, ao se "chocar no fundo da passagem com uma pesada porta de cobre, foi presa de irritação.
- Toda essa carga de ouro desperdiçada!
Seus correspondentes na Espanha esperariam em vão por sua chegada. Por causa dos'rocheleses, tivera de tomar a rota de retorno sem concluir a viagem que devia ser sua última viagem de transporte de ouro e sem haver terminado as negociações de seus futuros acordos comerciais. Tudo isso por uma mulher de quem nem pretendia gostar. Ainda assim, nenhuma mulher jamais o fizera cometer tais descuidos em negócios. Mas os huguenotes pagariam! Pagariam bem caro, aliás. E no final seria tudo para melhor.
CAPÍTULO XI
Joffrey de Peyrac e Berne enfrentam-se
Com o dedo, Joffrey de Peyrac deslizou sem ruído uma prancha que dissimulava uma abertura gradeada e se aproximou para observar o prisioneiro.
O homem estava sentado no chão, perto de uma grande lanterna que devia dispensar-lhe luz e calor ao mesmo tempo, ambos bastante escassos. Tinha as mãos carregadas de correntes pousadas sobre os joelhos e uma atitude de paciência. Joffrey não se fiou nisso. Já topara com uma amostra suficiente da humanidade para não saber julgar um homem ao primeiro olhar. Que Angélica, tão refinada outrora, pudesse ter amado aquele frio e grosseiro huguenote o punha fora de si.
Claro que ele vira huguenotes em ação em quase todos os cantos do mundo. Gente difícil de conduzir, quase desagradável de frequentar, mas homens e mulheres de têmpera. Admirava-lhes a integridade comercial, garantida pelo grupo inteiro, sua vasta cultura, seu conhecimento de línguas, enquanto inúmeros de seus antigos pares e correligionários, dele, gentil-homem francês, davam prova de uma ignorância aflitiva e sequer imaginavam que pudessem existir seres pensantes fora de seu estreito ambiente.
Apreciava sobretudo a força de união, criada entre eles por uma religião severa e ainda ameaçada. As minorias perseguidas representam o "sal da terra". Mas que diabo uma mulher de alta linhagem, e católica, como Angélica, fora fazer entre aqueles comerciantes austeros e lúgubres? Depois de haver escapado aos perigos do Islã - onde se lançara Deus sabe por quê -, não retornara à corte? Quando pensava nela, era sempre assim que a via: real sob as luzes de Versalhes, e com frequência dissera a si mesmo que ela fora criada para aquilo. Até que ponto a pequena ambiciosa, que começava a tomar consciência do próprio poder, não calculara elevar-se até o trono do rei, quando ele a levara ao casamento de Luís XIV em Saint-Jean-de-Luz? Ela já era a mais bela, a mais elegante, mas podia ele gabar-se de haver-lhe capturado o jovem coração para sempre? Como saber de que sonhos variados as mulheres forjam sua felicidade?... Para uma, o máximo será um colar de pérolas, para outra, o olhar de um rei, para uma terceira,- o amor de um único'ser, pára outras ainda as pequenas satisfações domésticas, tais como fazer doces bem...
Mas Angélica?... Ele nunca soubera'direito o que ocultava aquela testa lisa de mulher-criança que ele observava adormecida a seu lado, exausta e saciada pelos primeiros embates de amor.
Então, mais tarde, bem mais tarde, ele soubera que ela alcançara seu objetivo em Versalhes. E pensara: "É justo. No fundo ela foi criada para isso!" Não foi considerada, e de imediato, a mais bela cativa do Mediterrâneo?
Até na nudez perjnájiecia suntuosa. Mas encontrá-la, de repente, em trajes de criada, ligada a um negociante de aguardente e conservas, grande leitor da Bíblia, era mesmo de perder a razão! Jamais se esqueceria de sua aparição, encharcada, desnorteada, tão decepcionante que sequer lhe inspirara piedade.
O maltês, de. guarda no paiol, aproximara-se com um molho de chaves na mão.
A um sinal do amo, abriu a porta reforçada com cobre. O Rescator entrou na prisão.'Gabriel Berne alçou os olhos para ele. Apesar da palidez, o olhar continuava lúcido.
Observaram-se em silêncio. O rochelês não tinha pressa em pedir explicações acerca do tratamento desumano que lhe infligiam. A questão não era essa. Se a negra personagem mascarada se deslocava para fazer-lhe uma visita, certamente não era para lhe dirigir simples admoestações ou ameaças. Erguia-se outra coisa entre eles: uma mulher.
Gabriel Berne examinava com uma aguda atenção o traje de seu carcereiro. Seria capaz de estimar-lhe o valor quase exato. Todas as peças eram da melhor qualidade: couros, veludos, tecido caro. As botas e o cinto vinham de Córdova e deviam ter sido feitos sob encomenda. O veludo do "gibão era italiano, de Messina, ele apostaria. Na França, apesar de todos os esforços do Sr. Colbert, ainda não se fabricavam veludos daquela qualidade. Até a máscara, que a sua maneira era uma obra de arte artesanal: rígida e delgada ao mesmo tempo. Fosse qual fosse o rosto que se ocultava sob aquela máscara, havia com que seduzir uma mulher no luxo sóbrio daquela roupa e no porte de quem a usava. "Todas elas têm o cérebro tão pequeno", pensou Mestre Berne com amargura, "mesmo as que parecem mais avisadas..."
O que teria acontecido naquela noite entre o pirata, bem-falante, acostumado a oferecer-se mulheres exatamente como jóias ou plumas, e Dame Angélica, a pobre exilada, despojada de tudo?
Só de pensar nisso Mestre Berne cerrou os punhos e um leve rubor coloriu-lhe o rosto exangue.
O Rescator inclinou-se para ele, levou a mão à casaca endurecida de sangue do mercador e disse:
- Seus ferimentos reabriram, Mestre Berne, e aqui está você no fundo do porão. A prudência mais elementar deveria tê-lo aconselhado a observar, pelo menos esta noite, a disciplina de bordo. Quando um navio está em perigo, é evidente que o estrito dever dos passageiros é não provocar incidente algum e não atrapalhar de modo algum as manobras, colocando em risco a vida de todos.
O rochelês não se deixou intimidar:
— Sabe por que agi como agi. Você reteve indevidamente em seus apartamentos uma de nossas mulheres a quem teve a insolência de mandar chamar como... como uma escrava. Com que direito?
— Poderia responder-lhe: direito de príncipe.
E o Rescator exibiu seu sorriso mais sardónico:
— ...direito de chefe sobre o butim!
— Ora, nós nos fiamos em você - disse Berne - e...
— Não!
O homem de negro puxara um escabelo e sentara-se a alguns passos do prisioneiro. A claridade avermelhada da lanterna acusava as diferenças de ambos: um, maciço, talhado numa única peça; o outro hermético, protegido pela couraça de sua ironia. Quando o Rescator sentou, Berne notou-lhe o gesto para atirar a capa para trás, a elegância segura e natural da mão pousando como que negligente sobre a coronha de prata da longa pistola.
"Um cavalheiro", pensou, "um bandido, mas um homem de alta linhagem, sem dúvida alguma. Que sou eu diante dele?..."
- Não! - repetiu ó Rescator. - Não se fiaram em mim. Não me conheciam, não firmaram nenhum contrato comigo. Correram em direção a meu navio para salvar a vida e eu os embarquei, é tudo. Não pense, contudo, que recuso os direitos da hospitalidade que lhes concedi. Estão mais bem alojados e alimentados do que minha própria tripulação, e nenhuma de suas mulheres e filhas pode queixar-se de ter sido molestada ou sequer importunada. _ Dame Angélica...
— Dame Angélica nem é huguenote. Conheci-a bem antes de ela se pôr a citar a Bíblia. Não a considero uma de suas mulheres...
— Mas em breve ela será minha mulher- lançou Berne. - E nessa qualidade devo-lhe proteção. Ontem à noite prometi arrancá-la a suas garras se não a víssemos retornar ao cabo de uma hora.
Inclinou-se para a frente, e o movimento fez tilintar as correntes que tinha às mãos e aos pés.
— Por que a' porta ;da entrecoberta estava aferrolhada?
— Para dar-lhe o prazer de arrombá-la com o ombro, como você fez, Mestre Berne.
O rochelês começava a perder a paciência. Seus ferimentos doíam muito, mas os tormentos de seu espírito, e de seu coração lhe pareciam ainda piores. Vivera as últimas horas num quase delírio em que, por instantes, revia a si em sua loja de La Rochelle, a pena de ganso na mão, diante de seu livro de contas. Já não conseguia acreditar na vida correta e regrada que levara até então. Tudo começava naquele navio maldito, com ò ardor corrosivo de um acre ciúme que lhe deformava os pensamentos. Sentimento ao qual não chegava a dar nome, pois jamais o experimentara antes. Quis livrar-se dele como de uma túnica de Nes-so. Sofrera como se tivesse sido apunhalado quando o outro observara que Angélica não era um deles. Pois era verdade. Ela se colocara entre eles, estivera no centro de sua revolta e de seu combate, salvara-os pondo em risco a própria vida, mas continuava sendo de fora, de outra essência.
Seu mistério tão próximo e ao mesmo tempo inacessível aumentava-lhe a sedução.
- Vou casar com ela - disse, com energia. - Que importância tem se ela não abraçar nossa crença? Não somos intolerantes como vocês, os católicos. Sei que é respeitável, dedicada, valorosa... Ignoro, Monseigneur, o que foi para o senhor, em que circunstâncias a conheceu, mas, quanto a mim, sei o que ela foi em minha casa e para os meus, e isso me basta!
Sentia-se invadir pela nostalgia dos dias passados, com a presença discreta e diligente da criada, que pouco a pouco, sem que tivessem consciência, iluminara-lhes a vida.
Ele ficaria surpreso se soubesse que provocava no interlocutor um sofrimento muito semelhante ao seu: ciúme, pesar. Então o mercador conhecia um aspecto dela que ele ignorava, dizia consigo Joffrey de Peyrac. Estava ali para lembrá-lo de que ela existira para outro e que ele a perdera há anos.
— Você a conhece há muito? - perguntou em voz alta.
— Não, na verdade não faz mais que um ano.
Joffrey de Peyrac pensou que Angélica lhe mentira naquele ponto. Com que objetivo?
— Como a conheceu, como foi que ela entrou em sua casa como criada?
— Isso é assunto meu - respondeu Berne, com humor -, que não lhe diz respeito - acrescentou, sentindo que a resposta atingia o mascarado.
— Você a ama?
O huguenote permaneceu em silêncio. A pergunta o colocava diante de horizontes proibidos. Sentiu-se chocado, de repente, como se deparado com uma falta de pudor. O sorriso zombeteiro do adversário acusava-lhe o mal-estar.
— Ah, como é duro para um calvinista pronunciar a palavra "amor"! Ela lhe esfolaria os lábios.
— Senhor, devemos amor apenas a Deus. É por isso que não pronunciarei essa palavra. Nossas ligações terrestres não são dignas dele. Apenas Deus está no fundo de nossos corações.
— Mas a mulher está no fundo de nossas entranhas - disse brutalmente Joffrey de Peyrac. - Todos nós a trazemos nos rins. E contra isso não podemos fazer nada, nem você nem eu, Mestre Berne... calvinista ou não.
Levantou-se, empurrando o escabelo com impaciência. Inclinado sobre o huguenote, disse encolerizado:
- Não, não a ama. Os homens de sua espécie não amam as mulheres. Eles as toleram. Servem-se delas e as desejam, não é a mesma coisa. Você deseja essa mulher e por isso quer desposá-la, a fim de estar em paz com a própria consciência.
Gabriel Berne ficou roxo. Tentou levantar-se, mas mal conseguiu soerguer-se.
Os homens de minha espécie não têm de receber lições da sua, de piratas, bandidos, saqueadores de destroços.
_ O que sabe você? Por pirata que eu seja, meus conselhos poderiam não ser negligenciáveis para um homem que se prepara para casar com uma mulher que os reis cobiçariam. Pelo menos a olhou bem, Mestre Berne?
O prisioneiro conseguira se pôr de joelhos. Apoiavâ-se à parede. Dirigiu a Joffrey de Peyrac um olhar a que a febre dava uma luz de demência... Seu espírito ia à deriva.
- Tentei esquecer - disse -, esquecer aquela primeira noite em que a vi com todo o cabelo sobre os ombros... na escada... Eu não queria insultá-la êm minha casa, jejuei, rezei... Mas com frequência me levantei, movido pela tentação, e sabendo que ela estava sob meu" teto, eu nem conseguia dormir em paz...
Ofegava, dobrado em dois, menos sob o efeito da dor física do que sob a humilhação de sua confissão, e Peyrac o observava, surpreso.
"Mercador, mercador, você não é tão diferente de mim", pensou. "Também eu me levantava no tempo em que essa cabrita selvagem me fazia es-perar e me fechava a porta. Certamente que não rezava nem-jejuava, mas olhava com tristeza meu rosto pouco atraente num espelho, chamando-me de imbecil."
- Sim, é duro curvar-se - murmurou o Rescator, como se falasse consigo. - Descobrir-se só e fraco, em face de elementos primeiros: o Mar, a Solidão, a Mulher... Quando chega a hora de enfrentá-los, não se sabe o que é preciso fazer... Mas recusar o combate? Impossível.
Berne caíra de novo sobre a enxerga. Arquejava, e o suor lhe escorria pelas têmporas. As palavras pronunciadas tinham para ele um som tão novo que ele duvidava da realidade da cena. Naquele porão fedorento e viscoso, o Rescator, indo e vindo à claridade incerta da lâmpada, assumia mais do que nunca a aparência de um anjo mau. Ele, Berne, defendia-se como Jacó.
— Você fala dessas coisas de um modo ímpio - disse, recobrando o fôlego -, como se a mulher fosse um elemento, uma entidade.
— Ela é. Não é bom desprezar-lhe o poder, nem atribuir-lhe poder excessivo. Também o mar é belo. Mas corre-se o risco de perecer caso se descuide de seu poder, e perecerá da mesma forma se não conseguir domá-lo. Uma mulher, Mestre Berne... sempre começo por inclinar-me diante dela, seja jovem ou velha, bela ou feia.
— Está zombando de mim.
— Confio-lhe meus segredos de sedução. O que fará deles, senhor huguenote?
— Está abusando de sua posição para me humilhar e me insultar - explodiu Berne, ofegando de humilhação. - Despreza-me porque é ou foi um senhor de alta posição, enquanto eu não passo de um simples burguês.
— Engano seu. Se se desse ao trabalho de refletir antes de me odiar, perceberia que lhe falo de homem para homem, portanto como igual. Faz muito tempo que aprendi a só levar em conta o valor humano. Entre mim e você há apenas uma diferença: tenho sobre você a vantagem de saber o que quer dizer não ter pão, não ter nada, ter como único pertence um débil sopro de vida. Você ainda não aprendeu isso. Sem dúvida aprenderá. Quanto aos insultos, não os poupou em relação a mim: bandido, saqueador de destroços.
— Bom. Admito - disse Berne, respirando com dificuldade. - Mas no momento você tem o poder, e estou em suas mãos. Que vai fazer de mim?
— Não é um adversário fácil, Mestre Berne, e, se eu desse ouvidos a mim mesmo, tirá-lo-ia de meu caminho de bom grado. Deixaria que apodrecesse aqui, ou então... conhece os métodos dos piratas com quem me iguala? A prancha, sobre a qual se faz caminhar de olhos vendados o indivíduo de quem querem livrar-se? Mas nunca tive o princípio de colocar todas as chances apenas do meu lado. Gosto de apostar. Sou um jogador. Reconheço que por vezes isso me custou bem caro. Mas, desta vez novamente, joguemos os dados. Ainda temos várias semanas de navegação pela frente. Vou devolver-lhe a liberdade. Combinemos que, chegando a nosso destino, pediremos a Dame Angélica que escolha entre mim e você. Se ela o escolher, abandono-a para você... Por que esse muxoxo de dúvida? Parece pouco seguro de sua vitória.
— Desde Eva as mulheres sempre se deixam atrair pelo mal.
— Você parece ter em péssima consideração a mulher que deseja como esposa. Considera irrelevantes as armas de que dispõe para conquistá-la?... A prece, o jejum, que sei eu?... A atração da vida honesta que lhe oferece a seu lado... Mesmo nessas terras estrangeiras para onde nos dirigimos, a respeitabilidade tem seu preço... Dame Angélica pode sér sensível a isso...
O capitão falava em tom trocista. O protestante vivia um suplício. Os sarcasmos do Rescatõr o obrigavam a sondar a fundo seu próprio coração, e ele temia, por antecipação descobrir ali a dúvida. Pois agora duvidava de si mesmo, de Angélica, do valor das qualidades que ele lhe apresentaria para compensar o poder infernal daquele que lhe atirava a luva.
— Considera isso tudo como de pouco peso na conquista de uma mulher? - disse, amargo.
— Talvez... Mas você não está mal provido quanto acredita, Mestre Berne, pois- possuí outras armas.
— Quais? - perguntou o prisioneiro, com um ar de ansiedade que o tornava simpático.
O Rescator o observava. Pensou que estava, mais uma vez, em vias de cometer "a imprudência de complicar, por puro prazer, a partida em jogo, que contava muito para ele. Mas poderia saber o que Angélica realmente era, o que pensava, o que queria, se o adversário não dispusesse do livre uso de suas chances?
Inclinou-se^ sorrindo.
— Mestre. Berne, saiba que um homem ferido que encontra meios de arrombar uma porta para arrancar a bem-amada a um infame sequestrador e que, a ferros, conserva ainda... digamos, temperamento suficiente para bramir como um touro à simples evocação dela, é um homem que, na minha opinião, possui os melhores trunfos para fixar a inconstância feminina. O ferrete da carne, eis o trunfo principal de nosso poder sobre uma mulher... sobre qualquer mulher... Você é um homem, Berne, um bom homem, autêntico, e é por isso que não é com alegria, confesso, que lhe dou o direito de jogar a partida.
— Cale-se! - berrou o rochelês, subitamente fora de si e que, sob o efeito da indignação, conseguira colocar-se em pé. Puxava as correntes como se fosse rompê-las. - Não sabe que está escrito que "toda carne é como a erva e todo seu brilho, como a flor dos campos. A erva seca, a flor cai, quando o vento do Eterno sopra..."
— E possível... Mas confesse que, enquanto o Eterno não sopra, a flor permanece bem desejável.
- Se eu fosse papista - disse Berne, exausto -, eu me persignaria, pois você está possuído pelo Demónio.
A pesada porta já se fechava. Ele ouviu desaparecer os passos de seu algoz e extinguir-se o eco das vozes que falavam em árabe. Ao cabo de um instante, escorregou e caiu pesadamente sobre a enxerga. Em alguns dias, parecia-lhe haver transposto uma passagem semelhante à morte. Entrava em outra vida, onde os valores antigos já não tinham lugar. O que restava, então?
CAPÍTULO XII
O sofrimento de Angélica, rejeitada por aquele a quem,ama
Angélica retornara à entrecoberta onde estavam instalados os protestantes, num estado semelhante ao sonambulismo. Viu-se sentada no canto pnde arrumara seus poucos pertences, perto do canhão coberto com um,ioldo, sem dar-se conta de que atravessara a coberta, com Honõrina pela mão, descendo as. escadas íngremes, orientando-se através da neblina, evitando os obstáculos: rolos de cordas, baldes, potes de calafate e os tripulantes ocupados em limpar o navio. De tudo isso, não vira nada...
Estava sentada agora, e também não entendia o que fazia ali.
- Dame Angélica! Dame Angélica! Onde estava?
O rosto astuto do pequeno Laurier se estendia na direção dela. Severina passava o bracinho magro à volta de seus ombros.
- Responda-nos.
As crianças a rodeavam. Estavam todos envoltos em roupas miseráveis, pedaços de saias que as mães haviam rasgado para cobri-los, chumaços de palha que lhes haviam enfiado sob a roupa. Tinham os rostinhos brancos e o nariz vermelho.
Por hábito, estendeu a mão para eles e os acariciou.
— Estão com frio?
— Oh, não! - responderam alegremente. O pequeno Gedeão Carrere explicou:
- O corcunda, o anão do mar, disse que hoje não podíamos nos aquecer mais, a menos que se queimasse o navio, porque estamos perto do pólo, mas que logo vamos descer de volta ao sul.
Ela os escutava sem ouvir.
Os adultos se mantinham a distância e de longe a fitavam por momentos, alguns com horror, outros com piedade. O que significava sua longa ausência noturna? O fato de retornar desnorteada confirmava, infelizmente, os boatos mais horríveis e as acusações que Gabriel Berne levantara na véspera contra o senhor do navio.
"Esse bandido acha que tem direitos sobre nós... sobre nossas mulheres... Irmãos, sabemos agora, não estamos na rota das ilhas..."
E como Angélica não voltasse, ele quisera sair a sua procura. Para seu grande furor, descobrira a porta aferrolhada. E, apesar de seu ferimento, resolvera pôr abaixo o grosso batente de madeira. Com um malho, conseguira, sozinho, arrebentar uma fechadura. Vendo que nada o acalmava, Manigault acabara por ir ajudá-lo. O vento gelado penetrara em grandes lufadas no porão, e as mães protestaram, sem saber como proteger os filhos.
Nesse meio tempo aparecera o quartel-mestre escocês ou germânico, vomitando imprecações violentas, e Berne, solidamente agarrado por três marujos, fora tragado pelas trevas. Desde então não o tinham visto de novo.
Dois carpinteiros vieram calmamente consertar a porta, antes de trancá-los novamente. O navio jogava muito. O instinto preveniu as mulheres e as crianças de que a noite estava cheia de perigos. Agacharam-se uns contra os outros e ficaram quietos, mas os homens discutiram longamente o comportamento a ado-tar na eventualidade de ocorrer alguma infelicidade a um de seus companheiros, a Mestre Berne ou a sua criada.
Vendo que Angélica se dirigia às crianças com naturalidade, Abigail e a jovem padeira, que gostavam muito dela, decidiram aproximar-se.
— O que foi que ele lhe fez? - cochichou Abigail.
— O que foi que ele me fez? - repetiu Angélica. - Ele quem?
— Ele... o... o Rescator.
O nome produziu uma espécie de estalo na cabeça de Angélica e ela levou as mãos às têmporas, fazendo uma careta de dor.
- Ele?... - disse. - Mas não me fez absolutamente nada. Por que estão perguntando?
As pobres garotas ficaram mudas e bastante embaraçadas. Angélica sequer tentou entender a razão da perturbação delas. Uma única ideia não parava de rodar-lhe na cabeça: "Eu o encontrei e ele não me reconheceu. Não me reconheceu como sua", retificava. "Para que, então, ter sonhado tanto, suspirado tanto, esperado tanto... Foi hoje que fiquei viúva."
Depois estremeceu.
"Tudo isso é uma loucura... É impossível... Estou tendo,um pesadelo e vou acordar."
Instigado pela mulher, o armador Mánigault avançou.
— Dame Angélica, é preciso falar... Onde está Gabriel Berne? Depois de olhar sem entender/ela protestou:
— Não tenho a menor ideia!
Ele contou-lhe o incidente que sua ausência'provocara.
— Talvez tenha sido atirado ao mar por aquele pirata - disse o advogado Carrere.
— Está louco!
Pouco a pouco ela"retomava coatato com a realidade. Então, enquanto ela dormia nos apartamentos do Rescator; Berne provocara um escândalo par-ff ir em seu socorro. O Rescator devia estar a par. Por que" nlkrlhe-dissera nada?
É verdade que tlnham;tido tantas coisas de que falar...
— Escutem - disse -,'é inútil sé indignarem e assustarem as crianças com suposições tão inverossímeis. Se é verdade que Mestre Berne provocou a tripulação ou o capitão com sua cólera esta noite, quando apenas as manobras exigiam toda a atenção do capitão, suponho que deva estar trancado em algum canto. Mas de modo algum atentaram contra a vidadele. Isso eu garanto!
— Infelizmente a justiça é rápida entre essa gente sem credo - disse o advogado, lúgubre. - E não se pode fazer nada.
— Você é um imbecil! - gritou Angélica, que tinha vontade de esbofetear aquela cara cor de sebo.
Gritar fazia-lhe bem, assim como olhá-los um a um e dizer a si mesma que apesar de tudo a vida continuava. Na claridade precária do porão, cujas portinholas estavam todas fechadas devido ao frio, eles voltavam para ela rostos terrivelmente cotidianos. Estavam ali, bem agarrados a suas preocupações pessoais. Não lhe dariam tempo de deter-se em seu drama e dar-lhe proporções desmesuradas.
- Afinal, Dame Angélica - insistiu Mánigault -, se acha que nao tem de que se queixar das ações desses piratas, tanto melhor para você. Mas de nossa parte estamos muito preocupados com o destino de Berne. Esperávamos que você estivesse a par.
- Vou informar-me - disse ela, levantando-se.
- Fique, mamãe, fique! - gritou Honorina, que se via mais uma vez abandonada por longas horas. Arrastando-a consigo, Angélica saiu.
Quase de imediato encontrou, na coberta, Nicolau Perrot, que fumava seu cachimbo sentado sobre uma pilha de cordas, enquanto seu índio, de pernas cruzadas, trançava os longos cabelos negros inclinando a cabeça para o lado como uma garotinha arrumando-se.
- Noite dura - observou o canadense, com ar de entendido.
Surpresa, Angélica indagou-se o que ele sabia exatamente. Depois entendeu que ele só estava aludindo à gravidade das horas passadas entre a tempestade e os blocos de gelo. A situação, portanto, fora difícil para toda a tripulação.
— Estivemos tão perto de perecer?
— Agradeça a Deus por não ter sabido disso e por ainda estar viva - disse ele, persignando-se. - Região maldita, esta. Não vejo a hora de rever meu Hudson natal.
Angélica perguntou-lhe se ele podia informá-la sobre um dos seus, desaparecido durante aquela noite agitada, Mestre Berne.
- Ouvi dizer que foi colocado a ferros por insubordinação. Monseigneur Rescator está justamente lá embaixo, interrogando-o.
Ela pôde, então, comunicar aos demais que o amigo não fora atirado de bordo.
Os cozinheiros chegavam com o inevitável tacho de chucrute, fatias de carne salgada e, para as crianças, pedaços de laranja e limão cristalizados. Os passageiros instalaram-se ruidosamente. As refeições constituíam a distração do dia, junto com o passeio que se seguia à do meio-dia. Angélica recebeu uma escudela, que Honorina comeu com apetite depois de dar cabo da sua.
— Não vai comer, mamãe?
— Não me chame de mamãe o tempo todo - disse Angélica, irritada. - Você não fazia isso antes.
Seus ouvidos registravam trechos de conversas:
— Tem certeza, Le Gall, de que nunca passaremos pelas ilhas do Cabo Verde?
— Garanto, patrão. Estamos no norte. Bem ao norte.
— Continuando nesta direção, chegaremos aonde?
— A zona dos baleeiros e pescadores de bacalhau.
— Que bom, vamos ver baleias! - exclamou um dos garotinhos, batendo palmas.
— Onde devemos atracar?
— Quem sabe? Na Terra Nova, ou na Nova França.
— Na Nova França? - gritou a mulher do padeiro. - Mas então vamos cair novamente nas mãos dos papistas. Pôs-se a gemer.
- Agora é certo, esse bandido resolveu vender-nos.
_ Cale-se, tola!
A Sra. Manigault interveio energicamente:
- Se tivesse um pingo de raciocínio, você entenderia que, por bandido que seja, ele não se teria dado ao trabalho de colocar seu navio em risco sob as muralhas de La Rochelle e de deixar lá uma âncora, para ir nos vender do outro lado do oceano.
Angélica olhou a Sra. Manigault com surpresa. A mulher do armador, sempre onipotente, usava como trono uma espécie de selha virada de borco. Talvez o assento fosse desconfortável para sua vasta pessoa, mas nem por isso ela deixava de comer com uma colher de prata, numa maravilhosa sopeira de Delft.
"Ora, ela conseguiu esconder isso sob a roupa, na hora de embarcar", pensou Angélica- maquinalmente. -
Mas Manigault, com humor, incumbia-se de fazê-la mudar de ideia.
— Surpreende-me muito, Sara! Só porque o senhor deste navio achou que devia lisonjear suas... suas manias, oferecendo-lhe essa sopeira, não vá perder a capacidade de julgamento. Eu estava habituado a vê-la raciocinar com mais rigor.
— Meus raciocínios valem tanto quanto os seus. Um homem que sabe distinguir com clareza a posição, a distinção, e compreender a quem suas atenções devem dirigir-se de início, não digo que seja um homem de inspirar confiança, mas digo e afirmo que não se trata de um imbecil.
E acrescentou, vagamente:
— O que pensa disso Dame Angélica?
— De quem estão falando? - perguntou esta, que não conseguia acompanhar a conversa.
— Mas... dele! - gritaram todas as mulheres em uníssono. - Do senhor do Gouldsboro... o pirata mascarado... o Rescator. Dame Angélica, você, que o conhece, diga-nós, quem é ele?
Angélica fitou-as atónita. Não parecia possível que fizessem a ela essa pergunta! A ela!... No silêncio, a vozinha de Honorina reclamou:
- Eu quero um bastão. Eu quero matá-lo, esse homem negro.
Manigault deu de ombros, tomando as vigas como testemunha da tolice das mulheres.
— A questão não é saber quem ele é, mas para onde nos leva. Pode dizer-nos, Dame Angélica?
— Ele me afirmou esta manhã que está nos levando para as ilhas. A rota do norte leva até lá exatamente como a do sul.
— Hum - resmungou o armador -, o que é que acha, Le Gall?
— É bem possível... E uma rota que raramente se utiliza, mas, descendo pela costa americana, deve-sé acabar chegando ao mar das Antilhas. É provável que nosso capitão prefira esta rota à outra, frequentada demais.
Apareceu o corcundinha, fazendo sinais de que todo mundo podia sair. Algumas mulheres ficaram, a fim de arrumar um pouco o lugar.
Angélica mergulhou em seus pensamentos.
— Por que está dormindo, mamãe? - perguntou Honorina, vendo-a cobrir o rosto com as mãos.
— Deixe-me em paz.
Pouco a pouco Angélica recobrava-se de seu estupor. Persistia a impressão de haver levado uma pancada na nuca. Mas a verdade começava a instalar-se-lhe no espírito. Nada acontecera con-. forme ela sonhara, mas acontecera. Seu marido, tão chorado, já não era um fantasma longínquo, numa parte inacessível do globo, mas estava a alguns passos dela. Pensando nisso, ela dizia: Ele! Não conseguia chamá-lo de Joffrey, tão diferente lhe parecia do homem a quem chamara assim antigamente. Mas também não era o Rescator, o estranho misterioso que tanto a atraíra.
Aquele homem não a amava, não a amava mais!
"Mas o que foi que eu fiz, afinal, para que não me ame mais? Para que duvide de mim a esse ponto? Vou eu, agora, censurar-Ihe os anos em que não tive lugar em sua vida? Nunca quisemos nossa separação, nem um nem outro. Por que, então, não tentar apagar, esquecer? Mas é de crer que um homem raciocina de outro modo. Por um motivo ou outro, por causa de Filipe ou do rei, ele já não me ama... Pior até, pois lhe sou indiferente..."
Uma inquietação atroz a invadiu:
"Será que envelheci?... É isso, devo ter envelhecido de repente nas últimas semanas, com todas as desgastantes preocupações que antecederam nossa partida de La Rochelle".
Contemplou as mãos gretadas, rachadas, mãos de verdadeira dona de casa - de horrorizar o grão-senhor epicurista.
Angélica nunca dera importância exagerada à própria beleza. Naturalmente cuidara-a e preservara-a, como mulher de gosto que era, mas jamais sentira o receio de ver-se privada dela. Esse dom dos deuses, que celebravam nela-desde a infância, parecia-lhe que duraria para sempre, tanto quanto sua vida. Pela primeira vez, de repente, sentia-a perecível. Precisou certificar-se.
- Abigail - disse, indo agitada ao encontro da amiga -, tem um espelho?
Sim, Abigail tinha. Só a sábia virgem, para quem decência e boina bem colocada eram virtudes, pensara em munir-se de um acessório que as mais coguetes tinham esquecido.
Passou-o a Angélica, que se examinou avidamente.
"Bem sei que tenho alguns cabelos brancos, mas ele não pôde vê-los, com a minha coifa... exceto na primeira noite que passei no Gouldsboro mas estavam molhados, portanto não se distinguiam os brancos..." -
Estava longe de sentir a desenvoltura com que se contemplara no espelho de aço, quando agradar ao Rescator estava fora de questão.
Passou um dedo sobre as maçãs do rosto. Seus traços estariam perdendo o viço? Não. As faces estavam um pouco encovadas, mas a carnação calorosa cjue lhe dava o-ar livre não fora sempre uma das originalidades de sua tez, admirada em Versalhes e invejada pela Sra. de Montespan?...
Ainda assim, como saber o que podia pensar a seu respeito um homem que, em suas lembranças, a comparava a uma imagem de adolescente?
"Vivi tanto... A vida me marcou, forçosamente..."
— Mamãe, encontre um bastão - reclamava Honorina -, o homem de máscara negra é um lobisomem... vou matá-lo!
— Cale-se... Abigail, diga francamente. Sou uma mulher de quem ainda se pode dizer que é bela?
Abigail dobrava roupas calmamente. Não deixou transparecer até que ponto o comportamento de Angélica lhe parecia desconcertante. Assim, após o desaparecimento da noite, que podia fazer pensar que ela sofrera o pior, ela declarava que nada acontecera, mas pedia um espelho.
— Você é a mulher mais bela que já vi - respondeu a jovem num tom neutro -, e bem sabe disso.
— Não, infelizmente não sei mais - suspirou Angélica, deixando cair o braço com desânimo.
— A prova é que todos os homens são atraídos por você, mesmo os que não sabem disso - continuou Abigail. - Querem saber sua opinião, querem sua anuência para o que fazem... um sorriso seu. No mínimo, isso. Há alguns que a querem apenas para si. O olhar que dispensa aos outros os faz sofrer. Antes de deixarmos La Rochelle, meu pai dizia com frequência que trazê-la conosco seria um perigo terrível para nossas almas... Insistia com Mestre Berne para que casasse com você antes de fazermos a viagem, para que não surgissem brigas por sua causa...
Angélica só escutava parcialmente essas palavras, que em outra ocasião a teriam perturbado. Havia pegado de novo o modesto espelhinho.
— Eu deveria fazer um cataplasma de pétalas de amarílis para a tez... Infelizmente deixei todas as minhas ervas em La Rochelle.
— Eu vou matá-lo - resmungou Honorina.
Ao retornar, os passageiros escoltavam Mestre Berne. Dois marujos o sustentavam. Levaram-no até seu leito. Parecia fraco, mas não abatido. Antes, revigorado. Seus olhos lançavam fagulhas.
— Aquele homem é o Demónio em pessoa - declarou a sua gente assim que os marujos se retiraram -, tratou-me de uma maneira indigna. Torturou-me...
— Torturou?... A um ferido!... Covarde!
As exclamações disparavam de todos os lados.
— Está falando do Rescator? - perguntou a Sra. Manigault.
— Mas de quem quer que eu fale? - disse Berne, fora de si. - Nunca na vida lidei com criatura tão odiosa. Eu estava lá, com correntes nas mãos e nos pés, e ele veio me fustigar, girar-me sobre o braseiro...
— Ele realmente o torturou? - perguntou Angélica, insinuando-se para perto dele, os olhos arregalados de medo.
A ideia de que Joffrey fosse agora um homem capaz de todas as crueldades aumentava-lhe o desespero.
— Ele realmente o torturou?
— Moralmente, quero dizer! Ah, não fique aí a me olhar!'
— Ele está com febre de novo - sussurrou Abigail. - Seria preciso pensá-lo.
— Mas fui pensado. O velho médico da Berbéria veio mais uma vez, com todas as suas drogas. Soltaram-me e levaram-me para fora... Ninguém saberia tratar melhor de um corpo e depois demolir a alma. Não, não me toque!
Fechou os olhos, para não ver-mais; Angélica.
- Deixem-mé, vocês todos. Vou dormir.
Seus amigos afastaram-se. Angéliea permaneceu a sua cabeceira. Sentia-se responsável pelo estado em que ele se encontrava. Primeiro, porque pela sua ausência involuntária o levara a cometer gestos perigosos. Mal refeito de seus ferimentos, novamente ensanguentado, devia ter passado horas em condições insalubres, embaixo, no fundo-do porão, e depois, era o Rescator - seu marido - quem parecia ter acabado com ele. O que teriam dito um ao outro, aquelesjiomens tão diferentes? Berne não merecia que o fizessem sofrer, pensou-ela„ Acolhera-a, fora seu amigo, seu conselheiro, protegéfa-a com discrição e, na casa dele, ela pudera repousar em paz. lira um-homem justo e direito, de grande força moral. Era por causa dela, Angélica, que a austera dignidade por trás da qual ele continha a violência de sua natureza se rompera como um dique minado pelo mar. Ele matara por ela.
Enquanto evocava essas horas que pertenciam a outra existência, não notou que Gabriel Berne reabrira os olhos. Olhava-a como a uma visão, descobrindo que, em tão pouco tempo, ela obscurecera todo seu horizonte. A ponto de se desinteressar pelo próprio destino, de saber para onde iam e se chegariam algum dia. No momento só queria uma coisa: arrancar Angélica à influência demoníaca do Outro.
Ela o dominava por inteiro. Seu ser, vazio agora, privado do que até então o enchera - o comércio, o amor a sua cidade, a defesa de sua fé -, descobria com medo os caminhos da paixão.
A voz repetia nele: "É duro ceder... Inclinar-se diante da mulher... Marcá-la com o ferrete da carne..."
Suas têmporas latejavam. "Talvez apenas isso", dizia-se ele, "possa me libertar e ligá-la a mim".
Queimavam-no todos os ardores malignos que as palavras do Rescator haviam suscitado. Sua vontade era arrastar Angélica para um canto escuro e subjugá-la num ato, menos de amor do que de vingança contra o poder que ela adquirira sobre ele.
Pois era tarde demais, agora, para pensar em atingir as margens da volúpia. Ele, Berne, jamais poderia conhecer, em relação aos prazeres da carne, a sorridente desenvoltura do Outro!...
"Somos homens do pecado", repetiu-se ele, tomando consciência de uma espécie de maldição. "E por isso que jamais serei libertado... Ele é livre... E ela também..."
- De repente o senhor me olha como a uma inimiga - murmurou Angélica. - O que há? O que lhe disse ele para modificá-lo assim, Mestre Berne?
O mercador rochelês sokou um profundo suspiro.
- É verdade, já não sou eu mesmo, Dame Angélica, temos de nos casar... depressa... o mais breve possível!
Antes que ela pudesse responder, ele chamou o Pastor Beaucaire.
— Pastor! Venha até aqui. Ouça-me. E preciso celebrar nosso casamento, sem demora.
— Não poderia esperar pelo menos até estar restabelecido, meu rapaz? - disse o velho ministro, apaziguador.
— Não, só ficarei tranquilo quando a coisa estiver feita.
— A cerimónia precisa ser legal, não importa para onde vamos. Posso abençoá-los em nome do Senhor, mas apenas o capitão pode representar a autoridade temporal. E preciso pedir-lhe a autorização para fazer a inscrição no livro de bordo e obter um registro.
— Ele dará essa autorização! - exclamou Berne, feroz. - Deu-me a entender que não se oporia à nossa união.
— E impossível! - gritou Angélica. - Como pôde ele, por um minuto sequer, pensar nessa farsa? Mas é de perder a razão! Ele sabe muito bem que não posso casar com o senhor... Não posso, não quero.
E afastou-se, com medo de ceder a uma crise de nervos na frente deles.
- Uma farsa - murmurou Berne, amargo. - Bem vê a que ponto ela chegou, pastor. E dizer que somos presa desse miserável mago e pirata. Tem-nos à sua mercê nesta casca de noz... Não há outra saída senão o mar... a solidão. Como explicar isso, pastor? Ele ao mesmo tempo se apresentou como meu tentador e como minha consciência. Dir-se-ia que me impelia ao mal e que ao mesmo tempo revelava a meus olhos todo o mal que existia em mim e que eu ignorava totalmente. Disse-me: "Se pelo menos se desse ao trabalho de não me odiar..." Eu sequer sabia que o odiava. Aliás, nunca tive ódio a ninguém, nem àqueles que nos perseguiam. Até hoje não fui sempre um homem justo, pastor?... E agora não sei mais.
CAPITULO XIII
Honorina atira-se ao mar
Angélica despertou como se saísse de uma doença. Com um ressaibo de mal-estar, mas também com uma impressão de alívio. Sonhara que ele a apertava nos braços, na praia, rindo e gritando: "Finalmente você está aqui! Como é temerária!" Ela ficou imóvel por um instante, ouvindo sumir o eco do sonho. E se tivesse sido verdade?
Rebuscou na memória, à procura do momento fugidio. Quando ele a apertara nos braços, era bem a ela, sua mulher, que ele se dirigia. Também em Cândia, quando seus olhos atentos por trás da máscara tentavam reconfortá-la, era a ela que ele protegia, a quem fora arrancar às garras dos perigosos mercadores de mulheres, pois sabia quem ela era.
Portanto, naquela época não a desprezava tanto, apesar do rancor pelas infidelidades de que soubera ou que supunha.
"Mas naquela época eu era bela!", pensou ela.
Sim, mas na praia de La Rochelle? Mal fazia uma semana, embora parecesse que desde então um mundo inteiro desabara, da mesma forma como entre a aurora deste dia em que ele tirara a máscara e a noite que caía.
Pois o poente se aproximava. Angélica dormira apenas algumas horas. A porta aberta no fundo da bateria descobria um quadrado de luz acobreada. Os passageiros tinham-se reunido na coberta para a prece da noite.
Angélica levantou-se, exausta, como se tivesse sido espancada.
"Não devo aceitar isso! Temos de conversar."
Desamarrotou a pobre indumentária e contemplou longamente o tecido escuro e vincado. Apesar da tranquilizante recordação da prara e do sonho, continuava com medo. Ainda havia muita coisa desconhecida no homem de quem queria aproximar-se, impenetráveis zonas de sombra.
Tinha medo dele.
"Mudou tanto! Não é bom dizer isso, mas... eu teria preferido que continuasse coxo. Primeiro porque eu o teria reconhecido de imediato, já em Cândia, e efe não desconfiaria da minha suposta falta de instinto e de sentimentos, parame humilhar. Como se fosse tão fácil, com aquela máscara... Sou uma mulher, não um cão da polícia do rei... ccírno Sorbonne."
Pôs-se a rir nervosamente dessa comparação absurda. Mas a mágoa voltou a dominá-la. De todas as cerfsuras que ele lhe lançara, as que se referiam aos filhos eram as que mais a feriam.
"Meu coração sangra todos os dias por havê-los perdido, e ele se arroga o direito.de me considerar indiferente! Conhecia-me tão mal assim, então! No fundo nunca me amou..."
Sua enxaqueca-se acentuava e todos os nervos lhe doíam. Agarrou-se à lembrança .da praia, à lembrança da primeira noite no Gouldsboro, em que ele lhe erguera o queixo, dizendo de sua maneira inimitável: "Efs no que dá correr pela charneca, atrás de piratas". Também nesse momento ela deveria tê-lo reconhecido. Apesar da máscara, da voz alterada, ele fora tão ele ali.
"Por que fui tão cega, tão tola? Eu estava ofuscada pela ideia de que seríamos .todos presos no dia seguinte e que precisávamos fugir custasse o "que custasse."
Ao mesmo tempo veio-lhe outro pensamento à cabeça e ela teve um sobressalto.
"O que estava ele fazendo, exatamente, nas proximidades de La Rochelle? Podia saber que eu estava ali? Será que foi apenas o acaso que o conduziu até aquela enseada?"
Mais uma vez, decidiu: "É absolutamente necessário que eu o veja, que conversemos. Mesmo que eu o importune. As coisas não podem ficar assim, senão enlouqueço".
Subiu pela galeria e parou diante de Mestre Berne. Também ele dormia. Vê-lo inspirou-lhe sentimentos ambíguos. Gostaria que ele nunca tivesse existido e ao mesmo tempo queria mal a Joffrey de Peyrac por maltratar um homem cujo único erro era ser amigo dela, Angélica, e querer desposá-la.
"Se eu tivesse contado apenas com ele, com o Sr. de Peyrac, durante todos esses anos em que esteve desaparecido..."
Ele precisava saber o que ela suportara e que, se casara com Filipe, se chegara a ocupar uma posição na corte, fora em grande parte para arrancar seus filhos a um destino miserável. Ela ia falar, ia dizer-lhe tudo o que lhe tinha comprimido o coração!
Do lado de fora as sombras já invadiam a coberta principal, a "grande rua" profundamente embutida entre a muralha, as coxias e as amuradas. Reunidos como ovelhas, os protestantes, em suas roupas escuras, mal se distinguiam da escuridão geral. Ouvia-se o murmúrio de suas preces. Mas lá no alto, sobre a esplanada do castelo de popa, cujas vidraças todas faiscavam como rubis, Angélica, erguendo os olhos, avistou-o, e seu coração disparou desordenado. Ele se erguia sob o último raio de sol, mascarado, enigmático, mas era ele, e a delirante alegria que Angélica deveria ter sentido de manhã subitamente dominou-a por completo, varrendo-lhe todo o rancor.
Atirou-se pela primeira escada que viu e correu pela coxia, sem se dar conta dos respingos que a atingiam. Desta vez não se deixaria deter por um olhar zombeteiro, nem por uma frase glacial. Ele tinha de ouvi-la!
Mas, ao atingir a esplanada, todas as suas resoluções ruíram por terra ante o espetaculo com que topou. Sua alegria esvaneceu-se e restou apenas o temor.
Honorina estava ali, surgida, como de manhã, entre eles com a oportunidade de um duende maléfico.
Minúscula aos pés do Rescator, ela erguia para ele seu rosto redondo, crispado e provocante, enquanto mantinha enterradas com energia as duas mãos nos bolsos do avental. Angélica foi obrigada a agarrar-se à balaustrada, para não cair para trás.
- O que está fazendo aqui? - disse, numa voz sem expressão.
Ao ouvi-la, o Rescator voltou-se. Quando ele estava assim mascarado, ela ainda não conseguia acreditar na personalidade que ele ocultava.
— Chegou bem na hora - disse ele -=-,. eu estava justamente meditando na estranha hereditariedade desta jovem criatura. Imagine que ela acaba de me roubar duas mil libras em pedras preciosas.
— Roubar? - repetiu Angélica, aterrada.
— Ao entrar em meus aposentos, vi-a instalada diante do co-frinho que lhe abri esta manhã e que ela deve ter notado durante a sua visita. Pega em flagrante, a encantadora senhorita não manifestou nenhum arrependimento e me deu a entender, sem rodeios, que não me devolveria meus pertences.
A infelicidade foi que Angélica, esgotada pelas emoções do dia, foi incapaz de encarar o incidente com humor. Mortificada por si mesma e por Honórina, lançou-se sobre a criança, a fim de retomar-lhe o que roubara. Enquanto tentava abrir-lhe as mãos, amaldiçoava o prosaísmo da existência. Viera como apaixonada e tinha de lutar com uma garota insuportável que era sua por força das circunstâncias, que estava viva- enquanto os filhos dele estavam mortos, Honórina, sua tara visível aos olhos do homem que ela desejava reconquistar. E, com uma audácia inacreditável, esta ainda se dirigia aos apartamentos dele para roubá-lo. Ela, que nunca pegara nada, nem da despensa!
Conseguiu separar dois dedinhos e arrancar dois diamantes, uma esmeralda, uma safira. "
- Você é malvada:- gritou Honórina.
Furiosa por ter sido vencida, ela recuava, olhando a ambos com uma raiva bem engraçada numa pessoa tão pequenina.
- E malvada. Voú lhe dar um tapa...
Procurava uma vingança estrondosa, à altura de seu furor.
- Vou lhe dar um tapa que a mandará de volta para La Rochelle... E depois t«rá de voltar a pé... até aqui...
O Rescator .caiu na gargalhada.
Os nervos de Angélica cederam e ela cobriu a filha de bofetadas.
Honórina a encarou, boquiaberta, depois rompeu a berrar com estridência. Turbilhonando sobre si mesma, como que enlouquecida, atirou-se de repente para a escada que levava à coxia e se pôs a correr sobre o estreito anteparo com uma velocidade de duende, gritando sempre. Um mergulho do navio a bombordo molhou-a à passagem da ponta de uma onda.
- Segurem-na! - berrou Angélica, paralisada como num pesadelo.
Honórina continuava correndo. Corria para escapar daquele estreito universo de pranchas e telas, aquele navio, onde há dias ela aprendia o sofrimento injusto.
Tinha acima de si o céu azul e atrás o abrigo de madeira grossa. Chegando à extremidade da passagem,"pôs-se a escalar um alto monte de cordas. Atingindo o topo, nada mais a separava do vazio. O navio mergulhou de novo e os espectadores, petrificados pela rapidez da cena, viram com horror a pequena cair ao mar.
Ao grito demente de Angélica respondeu o clamor dos emigrantes e dos tripulantes. Um marujo, que se encontrava sobre a brigantina do mastro da mezena, mergulhou como uma flecha. Outros dois correram para a chalupa escorada na coberta, para pegar o bote dentro dela. Le Gall e o pescador Joris, que estavam perto, foram ajudá-los. As pessoas corriam. O navio mudou de posição. Num piscar de olhos a balaustrada de bombordo encheu-se de rostos aflitos. Severina e Laurier choravam, chamando por Honorina.
O Capitão Jason gritou pelo alto-falante que as pessoas se afastassem para que pudessem descer o bote.
Angélica não via nem ouvia nada. Lançara-se cegamente na direção do abrigo e fora necessário um punho sólido para impedi-la de também se atirar ao mar. Diante de seus olhos dançava, fluida, a extensão violeta, estriada de verde e branco. Depois viu vir à tona uma bola preta eriçada, perto da qual flutuava uma pequena bola verde. A bola preta era a cabeça do marinheiro que mergulhara, a bola verde, Honorina e sua boina...
- Ele a está segurando - disse a voz do Rescator. - Só resta esperar que o bote chegue até eles.
Angélica ainda se debatia loucamente, mas ele a retinha com mão de ferro. Com um rangido de polia, o bote se elevava, balançava, antes de começar a descer pelo flanco do navio.
Nesse momento ouviu-se novamente um grande brado:
- Os albatrozes!
Surgidos como que da espuma das ondas, dois pássaros imensos levantavam vôo e pousavam perto da cabeça do marinheiro e da criança, que as asas brancas pareceram esconder.
Angélica gritou como uma louca. Os bicos de aço iam retalhar as presas que lhes eram oferecidas.
Soou um tiro de mosquete. O Rescator agarrara a arma do mouro Abdullah, que estava a seu lado. Com uma precisão que o jogo da embarcação não alterou, conseguiu abater um dos pássaros, que, sangrando, estendeu-se sobre as ondas. Soou outro tiro, disparado por Nicolau Perrot, a quem o índio logo passara uma arma preparada para atirar.
Atingido, o segundo albatroz debateu-se com grandes golpes de asa, mas estava ferido de morte.
O marujo que segurava Honorina pôde desembaraçar-se dele, empurrá-lo para o lado e começar a nadar para o bote que se aproximava. Pouco depois Angélica recebia nos braços um pequeno pacote gotejante, que cuspia e sufocava.
Abraçou-a com paixão. Naquele instante terrível que lhe parecera durar uma eternidade, ela se maldissera por haver provocado a cólera da criança.
A criança era inocente. Os adultos,, levados por seus conflitos estúpidos, tinham-na abandonadrj.jEela se vingara como pudera.
Todo o medo e o remorso de Arigéhcá se transformaram num impulso de rancor contra aquele cuja atitude impiedosa a levara, a ela, mãe, a fazer sua filha sofrer até o desespero.
- A culpa é sua - gritou, encarando-o, os traços transtornados de cólera -, foi porque me deixou quase louca com sua maldade que quase perdi minha filha. Eu o deíesto, não importa quem seja por trás dessa máscara. Se era para se tornar um homem assim, teria sido preferível que morresse de uma .vez.
Correu para se refugiar na outra extremidade da embarcação, voltando como um anhnal ferido para seíi canto na entrecober-ta, junto do canhão, onde despiu Honorina. Os movimentos desordenados da criança provavam que estava bem.viva, mas podia adoecer porcausa da água gelada.
Os emigrados a rodeavam, cada um propondo um remédio que não poderia ser~aplicado, devido à falta de meios: sanguessugas nos pés, cataplasmas nas-costas.
O médico Alberto Parry ofereceu-se para fazer uma sangria. Bastaria uma pequena incisão no lobo da orelha. Mas, ao ver aproximar-se a lâmina de um canivete, Honorina guinchou como uma águia.
- Deixe-a. Ela já está bastante assustada - disse Angélica.
Contentou-se em aceitar um pouco de rum, que era distribuído aos homens uma vez por dia, para friccionar o corpinho gelado. Depois envolveu-o na coberta quente. As faces vermelhas, os olhos impávidos, Honorina, seca finalmente, aproveitou para vomitar uma boa quantidade de água salgada.
- Você é detestável - disse Angélica.
De súbito, diante daquela testa obstinada, daquele estranho rostinho indomável, sua exasperação desapareceu. Não, não ia deixar-se enlouquecer. Nem Joffrey de Peyrac, nem Gabriel Berne, nem aquela diabinha iam conseguir fazê-la perder a razão. Por pouco não pagara caro demais pelas horas excepcionais que vivera desde a manhã. Seu marido ressuscitara e não a amava mais. Por mais violento que fosse o choque, tinha de conservar nervos firmes, para suportá-lo por causa da filha.
Com a máxima calma, pôs-se novamente a enxugar Honorina. A coberta estava inutilizável no momento. A velha Rebeca deu-lhe uma espécie de peliça muito confortável.
- Foi o senhor do navio que me deu de presente para aquecer meus velhos ossos, mas por esta noite posso passar sem ela!
Angélica ficou sozinha, ajoelhada junto da criança, cujo rosto rosado aparecia-lhe entre a pele escura. Qs longos cabelos ruivos secavam e ganhavam matizes acobreados com a luz das lanternas dependuradas nas vigas. Angélica surpreendeu-se tentando sorrir.
O gesto da filha, capaz de se atirar na água no auge da fúria, enchia-a de espanto e admiração ao mesmo tempo.
— Por que você fez isso, amorzinho, por quê?
— Eu queria ir embora deste barco sujo - respondeu Honorina com voz rouca. - Não quero ficar aqui... Quero descer. Aqui você fica muito malvada...
Angélica bem sabia que a criança tinha razão. Pensou no aparecimento de Honorina, de manhã, na cabina onde ela e o marido se enfrentavam.
A criança saíra sozinha a sua procura, e ninguém, por um instante sequer, se preocupara com ela. No navio, alvoroçado pela noite de tempestade, ela poderia ter-se quebrado vinte vezes numa escotilha aberta ou mesmo já ter caído ao mar. E ninguém teria sabido o que acontecera com a menininha sem nome, a criança maldita! Fora preciso que o mouro de rosto escuro adivinhasse, com o instinto de sua raça, o que ela procurava, saltitando por entre os obstáculos e o nevoeiro da manhã, e a conduzisse até a mãe.
E mais tarde, novamente, Angélica, arrastada pelo turbilhão enlouquecedor de seus pensamentos, desinteressara-se da filha. Contava um pouco com os outros para vigiá-la: Abigail, as protestantes, Severina... Mas também os outros tinham a cabeça virada. A atmosfera do Gouldsboro desagregava todos os espíritos. Após aquelas primeiras semanas de viagem, não havia um dentre eles que reconheceria a própria alma num espelho.
As paixões decantadas traziam à luz evidências esquecidas. Inconscientemente ou não, eles reconheciam que Honorina, assim como Angélica, não era dos deles. "Você só tem a mim!"
Angélica se sentia culpada por ter-se deixado atingir tão profundamente. Deveria ter-se lembrado imediatamente que, desde a Abadia de Nieul, o pior ficara para trás. Aeontecesse o que acontecesse, dor ou alegria, não aprendera que nada é sem saída? Por que, então, aquela agitação estúpida, de animal que dá com a cabeça nas paredes?
"Não, não os deixarei enlouquecér-me."
Inclinou-se sobre a filha, acariciando-lhe a testa saliente.
— Não serei mais malvada, mas você, Honorina, não roubará mais! Sabe muita bem que fez uma coisa muito feia, indo pegar aqueles diamantes.
— Eu queria-colocá-los na minha caixa de tesouros - disse a garotinha, comcLse iííso explicasse tudo.
Nesse meio tempo;"o Bravo Nicolau Perrot veio ajoelhar-se perto delas. Seu índio o seguia trazendo uma tigela de leite quente para a criança.
— Estou incumbido de vir saber notícias dà jovem menina-da-cabeça-quente -» declarou o canadense. - Esse é o sobrenome que não deixariam de dar-lhe nas tendas iroquesas. Devo também fazê-la beber esta beberagem, que contém algumas gotas de uma porção destinada a* acalmá-la, caso ela já não esteja calma. Na verdade, não há nada melhor do que a água fria para o mau temperamento. O que acha, senhorita? Vamos mergulhar de novo?
— Oh, não! E muito frio, e depois é salgado...
A atenção do homem barbudo com gorro de pele a enchia de alegria. Logo se pôs à vontade e mudou a expressão emburrada com que estava bem decidida a mortificar a mãe. Tomou docilmente o leite que-lhe traziam.
— Eu queria ver Casca-de-Castanha - reclamou depois.
— Casca-de-Castanha?
— É porque o rosto dele pica e gosto muito de me esfregar contra ele - disse Honorina, encantada; - Ele me levou à escada... e depois na água...
— Ela está falando de Tormini, o siciliano - disse Nicolau Perrot -, o marujo que a salvou.
Explicou que o homem precisara de um curativo, pois um dos vorazes albatrozes o atingira na têmpora. Por pouco não ficara cego.
- Pode gabar-se, Srta. Honorina, de ter dois atiradores de elite à sua disposição. Este seu humilde servidor, que é reconhecido como um dos melhores, e Monseigneur Rescator.
Angélica esforçou-se por dominar o estremecimento que a percorreu ao ouvir esse nome. Havia jurado que dominaria a própria emoção.
Honorina já não reclamava Casca-de-Çastanha. Seus olhos pesavam. Mergulhou num sono profundo. O canadense e o índio, com o mesmo andar silencioso, afastaram-se. Angélica ainda ficou longo tempo a olhar a filha adormecida.
Três anos!
"Como ousar reclamar direitos para nós, quando nossos filhos começam a viver?", dizia-se ela.
Ainda tinha o coração dolorido. Precisaria de vários dias para entender o que era ao mesmo tempo sua felicidade e sua infelicidade. A prodigiosa revelação, seguida de tal desmoronamento.
Mas, quando se deitou, dominada pelo frio, ao lado da criança, e as primeiras brumas do sono a envolveram, só restou daquele dia miraculoso e terrível uma impressão de esperança.
"Estamos ao mesmo tempo próximos e distantes. Não podemos escapar um do outro. O navio que nos leva sobre o oceano nos obriga a permanecer na presença um do outro. Então, quem sabe!..."
Antes de adormecer, pensou ainda: "Ele quis morrer perto de mim. Por quê?"
CAPITULO XIV
Diante das cartas do futuro na América
-Creio que estamos de acordo - disse Joffrey de Peyrac, retomando os mapas de pergaminho, um a um. Empilhou-os e colocou sobre eles, a fim de mantê-los estendidos, quatro pedras pesadas, que brilhavam com uma baça cintilação resinosa. - A viagem para a qual você me pediu passagem dará frutos, meu caro Perrot, pois, sem ter sequer precisado desembarcar, você encontrou o comanditáíio que ia procurar na Europa. Pois esse minério de chumbo argentífero que descobriu no Alto Mississipi me parece oferecer garantias suficientes de enriquecimento, por lavagem e trituração, para que valha a pena eu acompanhá-lo até lá, mantendo financeiramente toda a expedição... Você não tem os fundos necessários nem os conhecimentos para a exploração. Você mé traria, como disse, suas descobertas, e eu lhe traria o ouro necessário para valorizá-las. Após um exame no local, estabeleceremos nossos termos de partilha.
A sua frente, o rosto plácido de Nicolau Perrot irradiava satisfação.
- Na verdade, senhor conde, quando lhe pedi que me recebesse a bordo, sabendo que partia para a Europa, eu tinha uma ideiazinha na cabeça, pois no país o senhor tem a reputação de ser muito instruído, precisamente sobre essas coisas de minas. E agora sei que não somente me trará as finanças necessárias, mas também seu inestimável conhecimento, o que, portanto, muda tudo para mim, ignorante andarilho de matas que sou. Pois, conforme o senhor sabe, nasci nas margens do'Saint-Laurent e a cultura que se recebe lá está longe de valer a da Europa.
Joffrey de Peyrac deu-lhe uma olhada amigável.
- Não tenha ilusões demasiadas "acerca da riqueza espiritual
do Velho Mundo, meu rapaz. Conheço-a por experiência, e ela não vale a metade da cauda de um coiote de sua terra. As florestas huronianas e iroquesas estão cheias de amigos meus. Para mim os selvagens são os déspotas da Europa e suas cortes servis...
O canadense fez um muxoxo sem muita convicção. Na verdade ficara muito feliz com a ideia de conhecer Paris, onde já se via perambulando com seu gorro de pele e suas botas de foca por entre as carruagens douradas. O destino decidira de outra maneira, e, realista como de hábito, ele se dizia que era tudo para o melhor.
— Assim, não vá querer-me muito mal - retomou o conde, sempre pronto a captar o pensamento do interlocutor - pela peça que lhe preguei, ainda que involuntariamente. Eu próprio fui movido pelos acontecimentos... imprevistos. Minha escala na Espanha foi mais rápida do que eu supunha, e minha partida, assim como minha chegada aos arredores de La Rochelle, foi totalmente inesperada. É verdade que você poderia ter desembarcado naquela altura...
— A costa não me pareceu muito hospitaleira. E não era o momento de deixá-lo em circunstâncias difíceis. Como se interessou por meus projetos, não lamento retornar sem ter pelo menos pousado o pé no solo da mãe-pátria de onde nós, do Saint-Laurent, somos originários... Talvez no final das contas eu não conseguisse interessar ninguém lá pelas minhas terras longínquas e me tivessem roubado até o último escudo. Parece que na Europa as pessoas não são de uma honestidade exemplar. Lá estão esses calvinistas que recomeçam a nos incomodar os ouvidos com seus salmos - disse o canadense. - No começo era só à noite, mas agora são três vezes por dia. Como se tivessem resolvido exorcizar o navio com um reforço de encarnações.
— Talvez seja essa, de fato, a intenção deles. Pelo que pude perceber, não nos vêem exatamente como a santos.
— Uma raça rabugenta e contraditória - praguejou Perrot. - Não são eles, espero, que o senhor pensa dar-nos como companheiros para extrair o minério a mil léguas da costa, no fundo das florestas iroquesas...
E inquietou-se de ver o conde ficar longo tempo em silêncí Mas este meneou negativamente a cabeça.
- Ora, não - disse afinal -, claro que não!
Nicolau Perrot absteve-se de fazer outra pergunta: "O que fará então?"
Sentia o interlocutor tenso e subitamente ausente.
É verdade que aqueles salmos, levados pelo vento do mar e que pareciam adaptar-se ao ritmo incessante das ondas, tinham algo que calava fundo na alma e causava .melancolia, até certo mal-estar. "Quando se é educado no meio disso desde a mais tenra idade, não é de estranhar que-nã,ose seja como todo mundo", pensou Perrot, que, no entanto, era um católico bastante moderado.
Remexeu nos bolsos, à procura do cachimbo. Depois, desmoralizado, desistiu.
- Tomou uns recrutas esquisitos, Monseigneur. Não consigo habituar-me. Sem contar que a presença de todas essas mulheres e garotas enerva toda a tripulação. Já estavam todos descontentes por não terem feito as escalas prometidas na Espanha e de retornar sem terem Vendido seu butim.
O canadense suspirou de novo, pois Joffrey de Peyrac não parecia ouvi-lo. Mas de súbito o chefe laríçou-lhe um olhar penetrante.
— Assim, você está prevenindo-me de um perigo, Perrot?
— Não exatamente, senhor conde. Nada de preciso. Mas quando se passou a vida a correr sozinho as florestas, como eu, sentem-se bem as coisas, o senhor sabe...
— Eu sei.
— Para ser franco, senhor conde, jamais entendi como pôde se entender com os quakers de Boston e ao mesmo tempo se ligar a gente tão diferente deles, como eu. Na minha opinião há duas espécies humanas na terra: gente como eles e gente diferente deles. Quando nos entendemos com gente como eles, não nos entendemos com os outros... com exceção do senhor. Por quê?
— Os quakers de Boston são muito capazes em seus ofícios: comércio e construção naval, entre outros. Pedi-lhes que me construíssem um navio e paguei-lhes o preço que me pediram. Se algo devia surpreendê-lo neste negócio era, antes, que eles tivessem confiado em mim, em mim que chegava"dõ Oriente com um velho xaveco maltratado pelas tempestades e pelos combates de pirataria. Também não esqueço que foi um modesto, quaker de Plymouth, um merceeiro, que me trouxe meu filho, não hesitando para isso em empreender uma viagem de várias semanas. Pois ele não me devia nada.
O conde levantou-se e tocou amigavelmente a barba do canadense.
- Acredite-me, Perrot, precisa-se de tudo para fazer Um Novo Mundo. Barbudos, como você, indigentes e anti-sociáveis, justos como eles, duros até a desumanidade, mas fortes por constituírem um grupo. Enquanto aqueles, dos nossos, ainda não passaram pelas suas provas.
Um gesto com o queixo na díreção da porta apontou o grupo invisível de cantores de salmos.
- Aqueles não são ingleses. Com os ingleses, as coisas são mais claras. As coisas vão mal? Eles vão embora... Instalam-se em outro lugar. Nós, franceses, temos a mania de raciocinar sempre: queremos partir mas ao mesmo tempo gostaríamos de ficar.
Recusamo-nos a obedecer ao rei, mas consideramo-nos seus melhores servidores... Nada fácil, reconheço, de nos tornarmos aliados utilizáveis. Eles recusarão qualquer negócio onde Deus não tenha participação. Mas trabalhar apenas pela glória de Deus, nada disso! Portanto, os escudos têm a sua importância para eles... mas não querem dizer isso em voz alta.
Joffrey de Peyrac ia e vinha com um pouco de impaciência. A calma que o dominava há pouco, quando se debruçava sobre os mapas, o deixara desde que as nostálgicas vozes dos protestantes, reunidos na coberta, se altearam.
O bravo canadense sentiu que no momento a atenção do patrão se desviara dele e se concentrava na comunidade pouco atraente com que atulhara seu navio. Refletia sobre eles com a mesma intensidade que pusera há pouco em meditar sobre as perspectivas de mineração oferecidas pelo andarilho.
Este, bastante aborrecido por ter sido passado a segundo plano, levantou-se por sua vez e retirou-se.
CAPITULO XV
O Conde de Peyrac pensa em seu passado - Sua evasão quinze anos antes
Joffrey de Peyrac não cr reteve. Estava irritado consigo por também ele sentir um enervamentò que o"fazia perder o controle, quando, no decorrer do dia, erguiam-se aqueles cantos lentos, surpreendentemente-sincronizados com o ritmo do mar e com sua solenidade: "Perrot tetfi razão,'esses protestantes exageram. Mas proibi-los? Não posso',.."
E admitia a si mesmo a atração que sentia por aqueles cânticos, que lhe traziam o eco de um mundo diferente do seu, fechado e dificilmente penetrável, e que, como tudo na natureza que apresentava mijtério, lhe despertava a curiosidade. Também lhe traziam, lhe impunham a visão de Angélica, aquela mulher que fora sua, agora irreconhecível a seus olhos, pois já não conseguia decifrar-lhe a coração nem o pensamento. A impregnação do ambiente huguenote a marcara de fato, apesar de sua personalidade forte de outrora, ou não passaria aquilo de uma nova aparência, uma comédia? Mas dissimulando o quê? Uma mulher coquete, interesseira ou... apaixonada? Apaixonada por aquele Berne? Ele retornava sempre a esse ponto e a cada vez se espantava com a fúria atroz em que o pensamento o lançava. Esforçava-se então por se sentir desligado, comparando a mulher que amara com a que reencontrara recentemente.
Devia surpreender-se de rever diferente uma mulher a quem abandonara e deixara de amar há anos? Bastava dizer a si próprio que ela não passava de uma de suas ex-amantes.
Por que, então, essa impaciência e essa vontade de aprofundar-se em tudo o que se referia a ela?
Quando se alteavam os cantos dos" huguenotes no ar claro da manhã ou no crepúsculo límpido e gelado, ele precisava conter-se para não acorrer logo à balaustrada do balcão que dava para a coberta, a fim de tentar ver se ela estava entre eles.
Ainda desta vez ele pôs a máscara com a intenção de sair, depois mudou de ideia.
Para que se torturar assim? Sim, ele a veria. E depois? Ela estaria sentada um pouco afastada deles, com a filha sobre os joelhos, parecida em seu manto negro e a coifa branca com todas aquelas mulheres petrificadas que se assemelhavam a viúvas. Inclinaria um pouco o perfil, com uma -graça patrícia. E depois, de vez em quando, bem depressa, voltaria a cabeça na direção do castelo de popa, como se esperasse - ou temesse - percebê-lo.
Aproximou-se da mesa e pegou um dos blocos de chumbo argentífero.
Enquanto o sopesava, seu espírito foi aos poucos libertando-se.
Reencontrara o ofício. Já era muito! A perspectiva de novos trabalhos durante anos numa terra virgem, onde ele teria a tarefa de descobrir a natureza, perscrutar os tesouros e as possibilidades, e poder utilizá-los à grande.
Diante do tribunal reunido para julgá-lo e onde pudera ver debruçar-se sobre ele a tolice, a ignorância, a inveja, o fanatismo estreito, a servilidade, a hipocrisia, a venalidade, Joffrey de Peyrac, ouvindo a sentença de morte que o condenava ao carrasco como feiticeiro, impressionara-se sobretudo com a conclusão lógica de um drama que suas reflexões pouco a pouco lhe haviam revelado.
Durante as longas horas passadas na prisão, aprofundara-se em todos os seus dados. E se quisera viver, com uma vontade obstinada, apesar do corpo quebrado pelas torturas, fora menos por medo da morte do que pela revolta de ver acabar-se seu tempo, antes de poder empregar suas forças que um erro conduzira a um caminho sem saída.
O grito que dera no átrio de Notre-Dame não reclamava misericórdia, mas justiça. Não se dirigia a um Deus cujos preceitos ele infringira com frequência, mas Àquele que é todo Espírito e todo Conhecimento. "Não tens o direito de me abandonar, pois eu não Te traí..."
No entanto, naquele momento estava certo de que ia morrer.
A surpresa de se descobrir vivo, numa ribanceira do Sena, longe dos urros do populacho, fizera-o medir a amplitude do milagre.
O resto? Fora uma partida difícil de jogar, mas que não lhe deixará más recordações. Deslizar para a água fria do rio, enquanto os mosqueteiros, incumbidos de vigiá-lo, roncavam, nadar para um barco dissimulado entre os caniços, soltá-lo, deixar-se levar pela correnteza. Devia ter desmaiado um pouco, voltado a si; sozinho se livrara do camisolão de condenado e vestira a roupa de camponês encontrada no barco.
Em seguida começara a arrastar-se na direção de Paris seguindo estradas geladas, miserável, a fome roncando-lhe no ventre, pois não ousava entrar nas fazendas, e sustentado apenas por uma ideia: "Estou vivo e vou escapar a eles..."
A perna manca encontrava-se num estado bem estranho. Às vezes girava sem que ele percebesse, e o pé pousava Voltado para trás, como o de um fantoche. Com galhos arrancados a uma sebe, fizera muletas grosseiras. Cada vez; que devia reéncetar a caminhada, sentia dores intoleráveis, e durante a primeira légua controlou-se para não berrai como Iim danado. Os corvos empoleirados nas macieiras despidas blhaVam passar com um interesse sinistro aquela criatura desconjuntada, prestes a desabar. Depois, aos poucos, o sofrimento amorteceu è ele conseguiu atécaminhar rapidamente. Alimentava-se de maçãs geladas, colhidas na vala, de um rábano caído de uma carroça. Os monges a quem pediu asilo foram caridosos, mas enfiaram na cabeça que deviam conduzi-lo ao leprosá-rio próximo, e ele tivera um bocado de dificuldade em escapar-lhes. Retomara a estrada coxeando, assustando os raros camponeses que encontrou, com seus andrajos ensanguentados e o lenço que lhe ocultava o rosto.
Num dia em que não conseguia mais dar um passo, reunira toda sua coragem para examinar a maldita perna. Depois de arrancar, com mil sofrimentos, o tecido endurecido do gibão, notou atrás do joelho, brotando da chaga aberta, dois talos esbranquiçados e partidos, de material semelhante ao de barbatanas de baleia, e cujo roçar incessante lhe causava uma tortura sob a qual diversas vezes desmaiara. Em desespero de causa, e valendo-se de uma lâmina de faca que achara no caminho, resolveu cortar aqueles apêndices incómodos, que não eram outra coisa senão seus tendões. Imediatamente a perna se tornou insensível. Girava mais do que nunca em todas as direções, como a de um polichinelo, e ele não conseguia controlá-la, mas no fundo sentia-se muito melhor.
Apareceram-lhe os campanários de Paris. Seguindo o plano que estabelecera, havia contornado a cidade. Ao atingir os arredores da capela de Vincenne, teve a primeira sensação de triunfo.
Modesto santuário oculto na floresta, a capela escapara aos lacres do rei, dentre todos os bens outrora faustosos do Conde de Toulouse. Acariciou a pedra daquelas paredes, pensando: "Você, que ainda me pertence, há de me servir".
E a pequena capela o servira bem. Tudo o que um dia ele mandara fazer em segredo por operários regiamente pagos funcionou à maravilha: o subterrâneo, que lhe permitiu ingressar em Paris, o poço pelo qual pôde içar-se para o próprio centro de sua residência abandonada, a Mansão do Beautreillis. O esconderijo no oratório, onde, talvez movido por um pressentimento, tivera a precaução de guardar uma fortuna em ouro e jóias. Com o estojo contra o peito, tivera outra vez a sensação de vencer mais uma etapa de seu retorno dos infernos. Com aquela riqueza, já não estava desarmado. Por um diamante, encontraria uma charrete; por duas moedas de ouro, um cavalo... Por uma bolsa cheia, homens que, ontem negando-o, hoje se alinhariam a seu lado, e ele poderia fugir, deixar o reino.
Mas ao mesmo tempo sentira a morte abraçá-lo. Nunca, nem antes nem depois, sentiria a morte tão próxima quanto naquele instante em que de repente caíra sobre as lajes, ouvindo com angústia o batimento de seu coração diminuir. Entendeu que nenhuma força de vontade lhe permitiria refazer a evasão pelo poço. Pediria auxílio ao velho Pascalou, que guardava a residência? Mas o ancião, agora um pouco senil, que o vira há pouco e certamente o tomara por uma aparição, devia ter fugido e talvez já alertasse a vizinhança.
Onde, então, procurar um braço que o amparasse? A imagem evocou-lhe um braço magro que o sustentara a caminho do suplício, o do pequeno padre lazarista que lhe haviam dado como confessor para a última hora.
Há seres que não se compram nem com rubis nem com ouro. Essa verdade o grão-senhor de Toulouse, que gostava de observar as pessoas, também conhecia e aceitava, da mesma forma que a venalidade da maioria dos homens. Há criaturas em que Deus depôs a chama do anjo. O pequeno lazarista era dessas. Pois, afinal, é preciso que haja na terra um refúgio para os infelizes.
Reunindo as últimas forças, saíra da Mansão do Beautreillis pela porta do pomar, cuja fechadura ele conhecia - não fora lacrada, para que o vigia pudesse entrar e sair -, e alguns instantes mais tarde batia à porta do convento dos lazaristas que ele sabia ficar perto de sua casa.
Havia preparado uma frase para o Padre António, uma quase brincadeira para uso eclesiástico: "É preciso ajudar-me, abade, pois Deus não quer que eu morra... e estou perto disso". Mas nenhuma palavra lhe saiu da garganta dilacerada.
Já fazia alguns dias que percebera que estava mudo.
Joffrey de Peyrac balançou a cabeça e, sentindo sob as botas o soalho oscilante de seu Gouldsboro/sorriu: "Aquele Padre António! Talvez meu melhor amigo. Certamente o mais dedicado, o mais desinteressado".
Ele, Peyrac, que reinara sobre a Aquitânia e possuíra uma das maiores fortunas do reino de França, abandonara-se durante dias e semanas àqueles pulsos frágeis que saíam das mangas da sotaina puída. O padre-não só o tratara e escondera como também tivera a ideia - genial"- de fãzê-lo tomar o lugar e o nome de um forçado do grupo que partia pára Marselha e que ele acompanharia. O forçado, informante da polícia, fora assassinado pelos companheiros. O Padre António, depois disso nomeado capelão dos infelizes forçados, providenciara a substituição. Jóffrey de Peyrac, atirado sobre a palha de uma carroça, não corria o risco de ser traído pelos companheiros de infortúnio, felizes por se saírem bem do crime cometido.-Os guardas estúpidos e brutais não faziam perguntas acerca da caça "que escoltavam. Enquanto isso o Padre António dissimulava em sua pequena bagagem, com seus objetos para a missa, a caixinha contendo a fortuna do conde.
- Homenzinho corajoso!
Em Marselha encontraram Kuassi-Ba, o escravo negro igualmente condenado às galés. Fora outra vez o capelão quem o levara ao amo. A fuga de ambos foi organizada com facilidade, pois Joffrey de Peyrac, parcialmente paralisado dos membros inferiores, era considerado, pelos vigias encarregados de compor as equipes de forçados, "inutilizável", e por isso escapara à primeira leva que partira.
Refugiado com seu escravo no bairro ocidental da grande cidade focéia, livre, mas apesar de tudo ameaçado enquanto permanecesse em solo francês, procurara por longo tempo uma ocasião de embarcar. Não queria fazer isso sem munir-se de uma nova identidade e de proteções que lhe permitissem passar sem riscos por entre os bárbaros.
Foi assim que enviou uma mensagem ao Santíssimo Mufti Abd-al-Mechrat, sábio árabe com quem por muito tempo mantivera uma correspondência contínua, tratando das mais recentes descobertas químicas. Contra toda expectativa, o santo muçulmano fora alcançado pelo mensageiro em Fez, cidade proibida e fabulosa de Maghreb. Respondera com a serenidade dos espíritos superiores para os quais as únicas fronteiras traçadas entre os homens são as que separam a imbecilidade da inteligência, a ignorância do saber.
Numa noite sem lua, o grande negro Kuassi-Ba, carregando nos ombros o amo enfermo, insinuou-se pelos rochedos áridos de uma pequena enseada nos arredores de Saint-Tropez. Os berberes os aguardavam ali, em seus albornozes brancos, as velas descidas. De certa forma eram frequentadores habituais do lugar, que visitavam de bom grado à procura de belas provençais de pele clara e olhos de azeviche. A viagem transcorreu sem incidentes. Uma nova era se abria para o homem arrancado ao cadafalso. Sua amizade com Abd-al-Mechrat, sua cura entre as mãos hábeis do sábio, suas relações com Mulay Ismael, que, depois de mandá-lo explorar o ouro do Sudão, encarregou-o de uma embaixada junto ao Grão-Turco, da organização do comércio da prata, o que o levara a tornar-se um dos grandes nomes entre os corsários do Mediterrâneo... Uma coleção de experiências apai-xonantes, exaltantes, um acervo de conhecimentos trazidos cada dia a seu espírito ávido. Com certeza não lamentava o que tinha atrás de si! Nem fracassos, nem derrotas. Tudo o que suportara e realizara lhe parecia interessante e digno de ser vivido, até revivido, assim como o desconhecido que tinha agora pela frente. O homem de boa qualidade sente-se à vontade na aventura, até na catástrofe.
A pele de seu coração é coriácea. Há poucas coisas de que um coração de homem não se refaça.
O das mulheres é mais frágil, mesmo quando enfrentam com coragem os choques e os medos. A morte de um amor ou de um filho pode embaciar-lhes para sempre a alegria de viver.
Seres estranhos as mulheres, vulneráveis e cruéis ao mesmo tempo. Cruéis quando mentem e mais ainda quando são sinceras. Como Angélica, ontem, quando lhe atirara ao rosto: "Eu o detesto... Teria sido melhor que morresse..."
CAPITULO XVI
A obsessão de amor América
A culpa era da criança ruiva. Uma criaturinha extraordinária, no final das contas, com os traços e o -sorriso da mãe. A boca era maior e menos perfeita, mas tão semelhante na expressão que, apesar da cabeleira diferente e dos olhos negros - pequenos e repuxados, enquanto os da-mãe eram imensos e de uma limpidez cristalina -, ao vê-Ja ele não duvidara que fosse filha de Angélica.
Nascida da carne dela e de outra carne. Do abraço de um homem que Angélica recebera em seus braços suspirando de amor, com aquele rosto fascinado e desfalecente que ela lhe revelara, sem saber, na primeira noite a bordo do Gouldsboro.
Escondido atrás de uma tapeçaria, ele a vira despertar e inclinar-se sobre a criança. O ciúme lhe contorcera as estranhas, pois descobrira-a mais bela do que imaginava, à luz do poente, e porque se perguntara que reflexo de que amante ela tentava encontrar nos traços da menininha adormecida. Tivera então a intenção de avançar para ela e tirar a máscara, mas de repente ficara paralisado diante da muralha que os separava.
Ouvira-a sussurrar palavras ternas e falar baixinho, com paixão, à criança. Jamais tivera daquelas atitudes com Florimond, filho dele. E deixara que ela se afastasse sem se mostrar.
Quando saiu, de máscara e com o sextante na mão, Joffrey de Peyrac viu na passarela que os protestantes-se haviam retirado da coberta principal, depois de encerrada a reunião religiosa. Sentiu um alívio mesclado de decepção. Depois, puxando a capa contra o corpo, ia subindo ao tombadilho para fazer as marcações, quando a atitude do mouro Abdullah o intrigou. O serviçal marroquino, de quem cada um dos movimentos parecia regulado há dez anos aos do amo, não parecera notar a presença deste.
Apoiado à balaustrada de madeira dourada que precedia as portas envidraçadas dos apartamentos particulares do capitão, ele olhava para a frente, mas, apesar de sua atitude displicente, Joffrey de Peyrac, habituado a adivinhar os movimentos interiores de uma raça passiva e apaixonada ao mesmo tempo, adivinhou que o homem era presa de uma violenta emoção. Parecia um animal prestes a dar o bote, e seus grossos lábios arroxeados tremiam no rosto de ouro escuro.
Notando de súbito que o amo o observava, ele baixou os olhos, dissimulado, pareceu descontrair-se e recobrou quase de imediato a postura impassível que adquirira na juventude, quando fora severamente treinado para proteger o sultão Mulay Ismael. Um dos mais belos e mais hábeis atiradores da guarda de xerifes do rei do Marrocos fora dado de presente ao grande mago Jeffa-al-Khaldun, a quem o sultão honrava com sua amizade.
Desde então, seguia-o por todos os mares do globo. Preparava-lhe café várias vezes ao dia, bebida sem a qual um antigo navegador do Levante praticamente não consegue passar depois de usá-lo por muito tempo. Dormia atravessado à porta dele ou aos pés de seu leito. Seguia-o sempre a dois passos com um mosquete carregado, e inúmeras foram as ocasiões, as batalhas, tempestades, conspirações em que Abdullah salvara a vida do grande mago.
- Eu o acompanho, meu amo - disse.
Mas não estava à vontade, pois sabia por experiência que o olhar de Jeffa-al-Khaldun (o Diabo) tinha o poder de adivinhar-lhe os pensamentos.
E os olhos do amo se demoravam justamente na direção que há pouco ele fixava. Veria o que ele próprio via e que lhe punha nos rins um ardor de leão,- apesar do frio que os rodeava?
— Tem tanta pressa de que cheguemos, Abdullah? - perguntou o conde.
— Aqui ou ali, que diferença faz - murmurou o árabe com um melancólico La il la ha, il lala, Mohamed rossul ulla...
E, tirando da djellaba um saquinho que continha um material branco, tocou-o com a ponta do indicador e marcou com ele a testa e as faces. O Rescator o observava.
- De onde vem essa melancolia, velho camarada, e por que esse carnaval?
Os dentes do mouro irromperam num sorriso fulgurante.
— O senhor, é bom demais por me tratar, a mim, como a um seu igual. Que Alá me impeça de desagradar-lhe, e, se devo morrer, rogo-lhe que me conceda a graça de ser pela sua mão. Pois está escrito no Corãó: "Quando o amo corta a cabeça de seu escravo, ele terá direito ao paraíso dos crentes..."
E, tranquilizado, Abdullah acompanhou o passo do venerando amo. Mas, em vez de subir para o tombadilho, o Rescator desceu alguns degraus e tomou ia coxia que levava ao castelo de proa.
Abdullah estremeceu em todo seu ser. Mais uma vez, portanto, o amo o adivinhara. Seguiu-o com um misto de impaciência e terror fatalista. Pois soube que sua morte estava próxima.
CAPÍTULO XVII
Angélica desculpa-se com ele - A presença de mulheres perturba a tripulação do Gouldsboro
No castelo de proa, as mulheres dos protestantes lavavam roupa. As coifas brancas pareciam gaivotas reunidas numa praia estreita. Ao chegar perto delas, o Rescator pôs-se a distribuir largos cumprimentos com o chapéu à Sra. Manigault, à Sra. Mercelot, à Tia Ana, a velha solteirona matemática, cuja erudição ele apreciava, à suave Abigail, que corou, às jovens, que não ousavam olhá-lo e assumiam ares de alunas de colégio interno.
Depois foi postar-se diante do mastro principal e começou a manobrar o sextante.
Logo adivinhou que ela estava atrás dele.
Voltou-se.
Angélica empalidecia sob o esforço que se impunha.
- Ontem proferi palavras medonhas contra você - disse. - Tive tanto medo por minha filha que fiquei fora de mim. Quero desculpar-me.
Ele inclinou-se e respondeu:
- Agradeço-lhe a cortesia, que não se fazia necessária. O dever lhe ditava que a tivesse, embora não baste para apagar as palavras que, sem dúvida alguma, tiveram pelo menos o mérito de ser sinceras. Acreditei que entendi muito bem.
Ela lançou-lhe um olhar enigmático em que se misturavam a dor e a cólera.
- Não entendeu absolutamente nada - murmurou.
E baixou os olhos, como que infinitamente exausta.
"Antigamente ela não se resguardava assim", pensou ele. "Olhava com atrevimento à volta, mesmo quando sentia medo. É à hipocrisia mundana que deve esse jogo de cílios, bastante tocante, há que confessar, ou à modéstia huguenote?... Pelo menos há uma coisa que reencontro nela: esse ar de vigor, de saúde, que irradiava dela como um sol de verão. E decididamente ela tem braços belíssimos!"
Sob a incisiva observação dele, Angélica sofria mil mortes.
Vinham-lhe protestos aos lábios, mas o momento e o lugar não eram próprios para pronunciárlos. As lavadeiras os observavam, assim como os tripulantes, que tinham sempre os olhos fitos no amo quando ele surgia na coberta. ' '
Inúmeras vezes, desde a manhã, ela quisera dirigir-se a ele para falar-lhe. Fora retida por um sentimento misto de orgulho e temor. Era novamente o temor que a paralisava diante dele, e, embaraçada, ela esfregava os braços nus, que o sol aquecia.
- A criança r-estabeleceu-se? - perguntou ele.
Ela respondeu que sim e tomou a decisão de afastar-se e voltar a seu balde.
Pronto, era a vida! Tinha de lavar roupa. E azar se isso horrorizava o Sr. dePeyrac, disse Angélica consigo mesma, revoltada. Talvez ao vê-la ele compreendesse que -ela com mais frequência tivera ocasião de realizar tarefas pesadas do que dançar na corte do rei, e que se se deseja conservar uma mulher intacta e adornada de todas, as armas da sedução, para seu uso exclusivo, é preciso dar-se a algum trabalho para defendê-la.
Ele a fizera entender que haviam se tornado estranhos um ao outro. Talvez um dia se tornassem inimigos. Ela começava a odiar sua condescendência indiferente, sua vontade de rebaixá-la. Caso se houvessem encontrado em terra, sem dúvida ela já teria tentado colocar uma grande distância entre ambos, a fim de provar-lhe que não era mulher de se agarrar a quem a rejeitava.
Felizmente, dizia-se ela, escovando energicamente a roupa, estavam no mesmo barco e não podiam fugir um do outro.
Sua situação presente era de felicidade e tormentos, porque apesar de tudo ele estava ali, em carne e osso. E vê-lo, falar-lhe, já era um milagre. Então, outros milagres se realizariam.
Erguendo os olhos, via-lhe as costas, os ombros retos sob o gibão de veludo, a cintura presa no cinto de couro, o estojo de uma pistola com coronha de prata contra o flanco.
Era ele. Ah, que sofrimento senti-lo tão perto e tão ausente! "No entanto, foi sobre aquele coração que dormi, foi naqueles braços que me tornei mulher. Em Cândia, sabendo quem eu era, ele me segurava pelos ombros e me falava com uma suavidade enfeitiçante. Mas em Cândia eu era outra. Que posso fazer contra o mal que a vida me causou? Que o rei me causou? Esse rei de quem ele me acusa de ter sido amante, procurando nesse pretexto motivo para me desdenhar e rejeitar. E, enquanto eu lutava contra o rei, ele estreitava nos braços outras mulheres. Conheci-lhe a reputação no Mediterrâneo. Não lhe ocupei muito espaço nas recordações. Agora eu o atrapalho. Também ele teria preferido que eu estivesse morta, no deserto, picada pela serpente. Mas eu não quis morrer! Não mais do que ele. Somos parecidos, portanto. E fomos marido e mulher. Unidos para o melhor e para o pior, para além mesmo da ausência. É impossível que isso desapareça, e que nosso amor não ressuscite, já que ambos estamos vivos."
Seus olhos ardiam de fixá-lo.
Cada um dos gestos dele a emocionava a ponto de tremer.
- Você faz espuma esfregando - resmungou Marcelle Carre-re, sua vizinha -, como se tivéssemos sabão...
Angélica não a ouvia.
Via-o erguer o sextante, voltar o perfil mascarado para o horizonte, falar ao mestre da tripulação. Ele se voltava. Retornava em direção às mulheres e saudava as donas de casa com a mesma graça com que se dirigiria a senhoras da corte, varrendo o chão com a pluma de seu chapéu de feltro. Dirigiu-se a Abigail, longe demais para que Angélica pudesse ouvir-lhe as palavras levadas pelo vento.
Retinha com o olhar os olhos da jovem, que corava com aquela atenção masculina, inusitada para ela.
"Se ele tocar nela, eu grito", pensou Angélica.
O Rescator segurou o braço de Abigail e Angélica estremeceu, como se fosse ela quem sentisse na carne o contato de seus dedos.
Levou Abigail para a proa e mostrou-lhe ao longe alguma coisa, uma vaga barreira branca que captava os raios do sol, alguns blocos de gelo em que ninguém pensava mais, devido à súbita clemência do tempo.
Depois, apoiado aos cotovelos, distraído, um sorriso nos lábios fortes e sedutores à margem da máscara, ele ouvia com atenção as palavras da interlocutora.
Angélica podia adivinhar como aos poucos Abigail se tranquilizava e, de início aterrorizada pelos sinais de interesse de uma figura tão inquietante, ela se deixaria envolver pelo encanto do espírito dele. Reconfortada por ser compreendida, induzida, encorajada a trair o melhor de si mesma, ela se animaria, e sua graça inteligente, oculta pela austeridade de sua educação, afloraria a seu rosto suave. Diria coisas notáveis, delicadas, e veria refletir-se nas pupilas que a fixavam o prazer que-suas palavras causavam.
De uma simples conversa com ele ela conservaria a lembrança de ter vivido um momento de outra luz.
Assim, o sedutor encontrava infalivelmente o caminho do coração das mulheres.
"Mas não do meu", enfurecia-se Angélica. "O mínimo que se pode dizer é que ele não se deu ao trabalho de me agradar."
Tão infalivelmente quanto sabia seduzir, ele soubera feri-la.
"O que espera conseguir, investindo sobre Abigail sob meus olhos? Deixar-mè enciumada? Provar-rrte seu desligamento? Indicar-me" que somos livres, cada um de seu lado? E por que Abigail?...-Ah, ele-se considera acima das leis humanas e divinas, e das do casamento em particular. Pois bem! Ele aprenderá que essas leis existem. Sou sua mulher e continuarei sendo. Eu me agarrarei..."
- Nao bata com tanta força - falou outra vez a Sra. Carrere, que partilhava do balde e da água parcimoniosa com que estava cheio. - Vai estragar a roupa, e tão logo não teremos outras.
Imaginava ele que ela seria sensível a maquinações grosseiras e que o deixaria vingar-se dela? Ela vivera na corte, aquele ninho de víboras. Não se deixara enredar nas intrigas venenosas. Não seria hoje que a derrotariam, embora se sentisse atingida no mais fundo de seu ser, pois ele fora seu amor eterno.
Não, ela não se penduraria a ele se ele não a desejava, assim como não falaria nem apresentaria suas provas, de que ele não parecia desconfiar. Não se retém um homem à força, e despertar-lhe os remorsos para se fazer amar é tão mesquinho quanto inábil. De que serviria lembrar-lhe que, por causa dele, ela chegara à mais baixa ruína? Naquele tempo-não estava ele também defendendo a própria vida? E em condições medonhas, que ela ignorava? Também ele sabia consigo o que tivera de atravessar. Se ela o amava de fato, não lhe aumentaria as dores antigas.
Decidindo, então, não enlouquecer, Angélica passava o tempo a domar em si ideias mais tumultuosas. Rechaçava a esperança da mesma forma que o desencorajamento e a revolta, e queria dar lugar apenas à paciência e à serenidade.
E se punha a amar, como a um ser humano, amigável, o velho Gouldsboro, que lhes permitia não escapar um ao outro. O navio estalante, tão só sobre o oceano cor de chumbo, os unia e os preservava dos gestos irreparáveis.
Por ela, a viagem duraria para sempre.
O Rescator afastara-se de Abigail. Deixava a plataforma pela escada da direita.
A Sra. Carrere deu uma cotovelada em Angélica e inclinou-se para cochichar:
— Desde os meus dezesseis anos eu sonho com um pirata como esse, que me raptaria e me levaria pelo mar até uma ilha maravilhosa.
— Você?! - exclamou Angélica, estupefata.
A mulher do advogado deu uma piscadela, jovial. Era uma formiguinha, ativa e sem graça. A alta coifa da província de Angou-mois, sempre engomadíssima, parecia, pela altura, esmagar um corpo franzino, que nem por isso deixara de gerar onze filhos. Seus olhos cintilaram por trás dos óculos, e ela afirmou:
— Sim, eu. Sempre fui imaginativa, o que quer! De vez em quando ainda penso nesse pirata dos meus sonhos. Então, ver um deles, a alguns passos de mim, causa-me uma impressão... Olhe a riqueza da roupa dele. E a máscara... dá-me um arrepio!
— Eu, minhas belas, eu lhes direi de onde ele é - disse a Sra. Manigault, com uma voz de quem anuncia algo carregado de consequências. - E, sem querer aborrecer Dame Angélica, eu me pergunto se não estarei mais bem informada do que ela.
— Isso me surpreenderia - disse Angélica entre dentes.
— Pois bem! O que é que você sabe? - perguntaram as senhoras, aproximando-se. - Ele é espanhol? Italiano? Turco?...
— Nada disso. É do nosso país - soltou a comadre, triunfante.
— Do nosso país? De La Rochelle?
— Falei em La Rochelle por acaso? - tornou a Sra. Manigault, erguendo os vastos ombros estofados. - Falei da nossa terra, quer dizer, da minha terra.
— Angoulême! - gritaram ao mesmo tempo as rochelesas, indignadas e céticas.
— Não exatamente, mas ao sul. Tarbes... ou Toulouse, Toulouse seria mais exato - acrescentou, pesarosa -, mas é de fato um senhor da Aquitânia, um gascão - murmurou com um orgulho que lhe fez brilhar os olhos negros encravados na gordura do rosto.
Angélica sentiu a garganta eontrair-se. Teria beijado a gorda mulher. Censurou-se dizendo qtie erá absurda por ser sensível a coisas que não valiam a pena. De que serviam, na verdade, aquelas reminiscências nos confins do mar das Trevas, onde, nas noites geladas, viam-se cintilar auroras de nácar? Mas eram como flores secas que se levam contra o coração, com um pouco da terra natal na ponta das raízes.
- Como foi que eu soube disso? - continuava a mulher do armador. - Uma questão de jeito, minhas caras. Ele me disse um dia, ao cruzar "comigo sobre a coberta: "Sra. Manigault, a senhora tem o sotaque de Angoulême!" Daí a falar da região...
A Sra. Mercelot, a- mulher do papeleiro, com a curiosidade satisfeita, não quis assumir um ar excessivamente animado.
— O que-ele não lhe disse, minha amiga, é por que usa máscara, por que não gosta de encontrar as pessoas e por que partiu para tão longe-de casa há um bom número de anos.
— Nem todo mundo, pode ficar onde nasceu. O espírito de aventura sopra onde quer.
— O espírito de pilhagem, sim.
Olhavam Angélica com o canto do olho. A obstinação desta em não lhes dar mais informações acerca do Gouldsboro e de seu capitão tornava-se cada vez mais suspeita para elas. Embarcadas à força num navio sem pavilhão e sem destino declarado, achavam que tinham direito a explicações.
Angélica continuou hermética e fez como se não tivesse ouvido nada.
As mulheres acabaram afastando-se para estender em cordas o fruto de seu trabalho. Era preciso aproveitar as últimas horas daquele sol magnífico ao qual em alguns, instantes sucederia o frio da noite nórdica, que transformaria a menor camisa molhada em armadura de aço. Mas, durante o dia, a secura excepcional do ar, quando o céu estava sem nuvens, proporcionava horas de reconforto.
- Que calor! - exclamou a jovem Bertille Mercelot, tirando o corpete.
E, como a touca se deslocara, tirou-a também e sacudiu a cabeleira loura.
- E porque estamos no fim da terra que o sol esta tão perto e aquece tanto! Vai nos assar!
Soltou uma gargalhada estridente. A camisa de mangas curtas deixava adivinhar os belos seios altos e pontudos, e ombros ainda frágeis, mas redondos e firmes.
Angélica, a alguns passos, mergulhada em seus pensamentos, ergueu os olhos para a jovem.
"Eu devia ser parecida com ela quando tinha dezessete anos", pensou.
Uma das companheiras de Bertille imitou-a de repente, arrancando o corpete e o casaco de lã que trazia por baixo. Não tinha a beleza da filha dos Mercelot, mas era roliça e já mulher nas formas. A camisa muito aberta escorregava sobre o peito.
- Estou com frio - gritou. - Oh, o frio queima e ao mesmo tempo o sol me acaricia. Como é bom!
As outras adolescentes riram também, de modo um tanto forçado, que dissimulava seu embaraço e inveja.
Angélica cruzou seu olhar com o de Severina, que pedia socorro. Mais jovem do que as outras, a pequena Berne estava profundamente chocada com os modos deslocados das mais velhas. Num reflexo de protesto, apertou energicamente contra o corpo o xale preto.
Angélica entendeu que acontecia alguma coisa de incomum. Ao se voltar, percebeu o mouro.
Abdullah, apoiado sobre o mosquete de prata, olhava as jovens com uma expressão das mais eloquentes para qualquer pessoa prevenida. De resto, não era só ele quem se deixava atrair por um quadro tão belo.
Tripulantes de cara tisnada e ar de facínora começavam a se insinuar pelos ovéns e a se aproximar, com fingida indiferença.
Um assobio do corcunda os enviou de volta a seus postos. O anão deu uma olhada de ódio para as mulheres e se afastou, depois de cuspir na direção delas.
Abdullah continuou, triunfal, como o único homem no lugar. Seu rosto de ídolo africano voltava-se imperiosamente para o fruto de seus desejos, a virgem loura que ele cobiçava há vários dias Com um desejo de há muito frustrado pelas servidões do mar. Angélica entendeu que era a única adulta entre aquelas avezinhas sem cérebro e tomou a iniciativa.
— Devia vestir-se de novo, Bertille - disse secamente -, e você também, Raquel. Estão loucas de.ousar despir-se assim sobre a coberta. .
— Mas faz tanto calor! - gritou-Bertille, arregalando os olhos azuis com candura. - Sentimos'tanto frio antes que temos que aproveitar a ocasião.
— Não se trata disso. Vocês chamam a atenção dos homens, e isso é imprudente.
— Homens? Mas que homens? - protestou a adolescente com a voz aguda que-lhe vinha de repente. - Oh, ele! - exclamou, como se acabasse de notar Abdullah! - Oh, não é ele...
Irrompeu num riso argênteo que soou como uma sineta.
- Eu sei que ele me admira. Vem todas as noites quando nos reunimos nacobertáTe sempre que pode se aproxima de mim.
Deu-me pequenos presentes: colares de vidrilhos, uma moedinha de prata. Acho que me toma por uma deusa. Gosto bastante disso.
- Está errada. Ele a toma pelo que é, isto é...
Conteve-se,-para não inquietar Severina e as outras garotinhas mais jovens. Erarrftão ingénuas aquelas meninas, nutridas de Bíblia e protegidas até então pelas paredes grossas de seus lares protestantes.
- Vista-se, Bertille - insistiu, com gentileza. - Acredite-me, quando você tiver mais experiência compreenderá o sentido dessa admiração que a lisonjeia e corará com o seu comportamento.
Bertille não esperou ter mais experiência para corar até a raiz dos cabelos. Seu rosto gracioso transformou-sê sob o constrangimento, e ela disse, com um muxoxo malvado:
- Você fala assim porque está com ciúme... Porque é a mim que ele olha e não a você... Por uma vez não é a mais bela... Dame Angélica, em breve serei eu a mais bela, mesmo aos olhos dos outros homens que hoje a admiram... Pronto, veja o que faço de seus conselhos.
Voltou-se com um movimento rápido para Abdullah e dedicou-lhe um sorriso deslumbrante com seus belos dentes de pérolas.
O mouro estremeceu de alto a baixo. Seus olhos faiscaram, enquanto os lábios se estiravam misteriosamente, respondendo ao sorriso.
- Oh, que tolinha! - exclamou Angélica, irritada. - Bertille, pare imediatamente com isso ou prometo que conto a seu pai.
A ameaça surtiu efeito. Mestre Mercelot não brincava quanto a bom comportamento e era muito severo no que se referia à filha única e adorada. De mau humor, então, ela pegou o corpe-te. Raquel se vestira prontamente, desde as primeiras recomendações de Angélica, pois, como todas as jovens da pequena comunidade, tinha uma profunda confiança na criada de Mestre Berne. A súbita insolência de Bertille em relação a ela aterrava as garotinhas como um sacrilégio.
Mas Bertille, ruminando um ciúme de longa data, não queria dar-se por vencida.
- Ah, entendo de onde vem a sua aspereza - continuou. -O senhor do navio não se dignou conceder-lhe um olhar... Ainda assim, sabe-se que você passa noites na cabina dele... Mas hoje ele preferiu cortejar Abigail.
Soltou uma risada nervosa.
- Não tem muito gosto!... Aquela velha senhorita ressecada! O que será que acha nela?
Duas ou três de suas amigas soltaram risinhos servis. Angélica deu um suspiro resignado.
- Minhas pobres crianças, a tolice de sua idade ultrapassa a imaginação. Não entendem nada do que acontece à sua volta e põem-se a falar do assunto. Fiquem sabendo pelo menos, se não são capazes de julgar por si mesmas, que Abigail é uma mulher bela e atraente. Sabiam que quando ela os solta, seus cabelos chegam-lhe à cintura? Jamais terão cabelos tão belos, nem você, Bertille. Além disso, ela possui as qualidades do coração e do espírito, enquanto sua tolice- pode muito bem cansar os apaixonados que tenham sido atraídos pela sua juventude.
Mortificadas, as garotas se calaram, mal convencidas, mas sem argumentos no momento. Bertille vestia-se lentamente, notando que o mouro continuava no mesmo lugar, estátua escura em seu albornoz de neve que flutuava ao vento.
Imperiosa, Angélica lançou-lhe em árabe:
- O que é que faz aí? Vá-se, seu lugar é junto a seu amo.
Ele estremeceu como se despertasse de um sonho e olhou com espanto a mulher que lhe falava em sua língua. Depois, sob o olhar verde de Angélica, o medo apareceu-lhe no rosto e ele respondeu como uma criança surpreendida em erro:
- Meu amo ainda está aqui. Espero que ele se afaste para eu segui-lo.
Angélica notou então que o Rescator fora detido ao pé da passarela por Le Gall e três amigos, com quem conversava.
-Bom. Então nós é que vamos embora.- decidiu ela. - Venham, crianças! '
Afastou-se, levando consiga as jovens.
- O negro... - cochichou Severina, horrorizada. - Viu, Dame Angélica? Olhava Bertille como,se quisesse devorá-la viva".
CAPÍTULO XVIII
O milagre do velho sábio árabe, Abd-al-Mechrat
Quatro dos protestantes tinham avançado até o Rescator quando ele descia a escada do castelo de proa. O fato era raro. Desde a partida de La Rochelle, nenhum dos huguenotes tentara abordá-lo e conversar com ele. Havia profunda incompatibilidade entre eles e o que ele representava a seus olhos.
O homem dos mares, sem raízes, sem pátria, sem fé nem lei, a quem ainda por cima deviam a vida, eles, os justos, não podia inspirar-lhes senão antipatia.
Além da conversa com Gabriel Berne, não houvera diálogo algum, e a cada dia aumentava a tensão impronunciada de estranhos desconfiados e que se observavam. Pouco a pouco tornavam-se inimigos.
Assim, quando Le Gall e três companheiros o abordaram, ele manteve-se na defensiva.
Conforme confiara a Nicolau Perrot, embora estimasse as qualidades íntimas dos reformados, não se enganava em absoluto acerca da dificuldade em fazer deles aliados. De todas as raças que tivera ocasião de estudar, esta lhe parecia talvez a mais inabordável. Os olhares de um índio ou de um negro semita têm menos mistério e reticência que os de um quaker que resolveu, de uma vez por todas, que o interlocutor é a encarnação do mal.
Estavam ali, a sua frente, os chapéus redondos apoiados ao estômago, os cabelos curtos bem cortados. Todo o sofrimento de uma travessia que realizavam apenas com a roupa do corpo não os levara a ceder ao desleixo, tão caro aos tripulantes. A estes, tivesse ele oferecido um par de tesouras e uma navalha do melhor corte, e os homens teriam conservado o queixo azul e a cabeleira hirsuta. Pois eram, em sua maioria, mediterrâneos e católicos.
Estas reflexões o fizeram sorrir, mas os quatro huguenotes conservavam uma expressão imutável. Seria bem perspicaz quem conseguisse discernir-lhes nos olhos a amizade, a indiferença ou o ódio.
- Monseigneur - disse Le Gall -, o tempo passa e estamos inativos. Vimos pedir que nos conceda a graça de nos admitir em sua tripulação. O senhor me viu trabalhando como piloto quando atravessamos os canais. Adites disso naveguei dez-anos.
Eu era um bom gajeiro. Posso ser-lhe'útil, e estes também, pois sabemos que alguns de seus homens foram feridos diante de La Rochelle e ainda não puderam retornar ao serviço. Nós os substituiremos, meus companheiros e eu.
Apresentou-os: Bréage,-carpinteiro da-marinha; Charon, seu sócio na pesca, em La Rochelle, tàmbémex-gajeiro; Marengouin, seu genro, mude comauma toupeira, mas que não era surdo e que, como os demais, passara um período como grumete num navio mercante antes de se dedicar aos peixes e lagostas.
- O mar nos conhece e estamos com comichões nos dedos para ir refazer algumas costuras no alto da vergas.
Le Gall tinha um olhar direto, Joffrey de Peyrac não esquecia que ele conduzira o Gouldsboro através da difícil passagem do canal bretão, e,.se se podia estabelecer um elo entre o navio e os protestantes, seria por meio de Le Gall.
Mas hesitou muito ainda antes de mandar chamar o mestre da tripulação e apresentar-lhe o pedido dos novos recrutas.
O corcunda disforme, longe de compartilhar da desconfiança do patrão, mostrou-se muito satisfeito. Uma careta à guisa de sorriso entreabriu-lhe a boca rasgada com golpe de sabre, sobre os dentes estragados. Admitiu que carecia de homens. Depois dos que tiveram de desembarcar na Espanha, o efetivo era apenas o essencial. Os cinco feridos diante de La Rochelle representaram o golpe de misericórdia. O que valia dizer que estavam manobrando com menos da metade dos homens de que necessitariam. Daí seu mau humor, dele, quartel-mestre, e que ele tivera muita dificuldade em não manifestar. Uma explosão de riso homérica da parte dos marujos que espichavam a orelha ali por perto saudou a confissão. Pois o mau humor de Erikson era crónico, inalterável e desabrido, e o pessoal se perguntava com medo o que ocorreria se, por acaso, ele o manifestasse.
- Está bem, estão contratados - disse o Rescator ao quatro rocheleses. - Falam inglês?
Falavam o suficiente para compreender as ordens do corcunda. Deixou-os então nas mãos de Erikson e voltou à passarela.
Apoiado à balaustrada de madeira dourada, ele não conseguia desviar o olhar do raio de luz que, para além da coberta principal subitamente mergulhada em escuridão, filtrava-se acima da porta atrás da qual alojavam-se os protestantes. Angélica vivia lá, entre aqueles seres que ele sentia hostis. Estaria ela com eles e contra ele? Ou ao contrário sozinha, como ele, entre dois mundos, nem daqui nem de parte alguma? A repentina escuridão envolvia o navio. Acendiam-se os archotes, as lanternas. De joelhos, Abdullah soprava no pote de barro onde avermelhavam os carvões ardentes, com a precaução de um primitivo velando o fogo eterno.
A densa tristeza do norte, a angústia dos confins da terra que tocara o coração dos vikings e de todos os marinheiros do mundo, audaciosos o suficiente para se encaminharem na direção da estrela imóvel, rondava agora sobre o mar invisível.
Já não havia gelos a temer. Nada anunciava tempestade. Mas o espírito de Joffrey de Peyrac continuava inquieto e atormentado. Pela primeira vez em sua existência de marinheiro, seu navio lhe escapava. Uma fronteira o cortava em dois. Seus homens também não estavam à vontade, pois sentiam o amo preocupado. Ele já não era capaz de tranquilizá-los.
O peso de todas aquelas vidas pelas quais era responsável fez-se mais forte sobre seus ombros, e ele se sentiu cansado.
Já conhecera encruzilhadas na vida, horas em que uma etapa se conclui, em que é necessário tomar uma nova direção, recomeçar tudo. No âmago de seu ser, sabia consigo que nunca era um recomeço. Ele apenas continuava, por uma via traçada e cujas perspectivas aos poucos se.descortinavam a seus olhos. Mas a cada vez tinha de abandonar as formas de uma vida antiga, assim como a serpente se despoja da velha pele, solta fiapos de apego, de amizades.
Desta vez seria preciso devolver Abdullah a seu deserto, pois ele não suportaria a floresta nórdica. Jason o reconduziria aos horizontes dourados do Mediterrâneo, assim como o velho ma-rabu Abd-al-Mechrat. Abdullah, seu guarda vigilante, salvara-lhe a vida inúmeras vezes. Tinha pelos hábitos do amo o respeito que se deve a ritos sagrados. "Será que encontrarei um moicano que me raca café? Certamente que não! Você terá que passar sem café, velho bárbaro!" Quanto a Abd-al-Mechrat, evocava-o na cabina que lhe haviam preparado especialmente sob a entreco-berta de popa, com todo o conforto-possível.
O corpo frágil, consumido de-austeridade, envolto em peles, ele sem dúvida escrevia, infatigável. Com setenta anos, seu desejo de conhecimento continuava tão agudo que ele quase suplicara ao amigo De Peyrac, quando este deixara o Mediterrâneo, que o levasse consigo para estudar o Novo Mundo. De bom grado o sábio marabu teria dado a volta ao planeta para renovar seus temas de meditação. Abertura de espírito relativamente rara num muçulmano. Abd-ãl-Mechrat era irlfinitamente evoluído para agradar a um fanático como Mulay Ismael, seu soberano.
Joffrey de Peyrac não ignorava o fato, e por isso acedera ao pedido do ancião, a quem amava, sabendo que com isso provavelmente lhe salvava a; vida.
Abd-al-Mechrat o recebera no medressé suntuoso que possuía então, príncipe sábio e santo que era, muito respeitado por todos em Fez. joffrey cie Peyrac chegara de Salé de liteira. Revia a si próprio jazendo aos pés do amigo árabe, não podendo crer ainda que compjetara com vida a viagem perigosa e que se encontrava, ele, cristão, infiel maldito, no seio do misterioso Magh-reb. Preso ao leito, o espírito exausto pelos sofrimentos físicos que suportava e as fadigas da viagem, tendo para sustentá-lo e informá-lo sobre o ambiente apenas o fiel negro Kuassi-Ba, que se sentia assustado por se ver entre os seus - "Todos selvagens, essa gente", dizia-se ele, virando os olhos-, o conde perguntara-se inúmeras vezes o que o aguardaria ao cabo daquela interminável expedição.
Ora, fora o próprio Abd-al-Mechrat, seu amigo. Conhecera-o um dia na Espanha, em Granada. Reconheceu a frágil silhueta do médico árabe, envolto em sua djellaba branca e a testa lisa acima de grossos óculos em aros de aço, que lhe davam o ar de um mocho brincalhão.
- Não posso crer que me encontro à sua frente e em Fez - disse Joffrey de Peyrac em voz baixa. Apesar de seus esforços, nao conseguia emitir som algum. - Pensei que nos encontraríamos na costa, em segredo. O reino do Marrocos usurpou sua reputação de inviolabilidade ou seu poder ultrapassa o dos sultões, para quem um cristão deve apenas ser um escravo ou um morto? As honras com que me cercam deram-me a convicção de que ainda não sou nem uma coisa nem outra. Essa ilusão vai durar?
- Esperamos que sim, meu caro amigo. Sua situação é excepcional, de fato, pois você se beneficia de proteções ocultas que em parte consegui obter-lhes, devido à sua ciência. Mas, para não desapontar as esperanças que foram colocadas sobre sua pessoa, é preciso que se recupere sem demora! Estou encarregado de curá-lo. Acrescento que se trata de questão de vida ou morte para você e para mim, pois posso pagar com a cabeça pelo fracasso.
Apesar de seu desejo de saber mais sobre os amos que o velho marabu temia, embora fosse piedoso e sábio, o ferido teve de esperar até estar quase inteiramente restabelecido para ter direito a outras explicações.
No momento sua tarefa era sarar, e dedicou-se a ela com a vontade tenaz que constituía a base de seu caráter.
Com coragem, submeteu-se a todos os cuidados, tratamentos e exercícios exigidos pelo amigo vigilante. Deixou-se dominar pelo interesse de ser ele próprio o campo de uma experiência científica, e isso o ajudou a perseverar quando o desânimo e o sofrimento ameaçavam vencê-lo.
Abd-al-Mechrat inclinara-se sobre seus ferimentos com um rosto sombrio que aos poucos se desanuviara.
— Alá seja louvado! - exclamara. - O ferimento na perna esquerda, o mais grave, continua aberto.
— E há meses...
— Que Alá seja bendito! - repetira ele. - Garanto que não só ficará curado como também prevejo que graças a isso ficará livre de uma enfermidade que lhe estorvou toda a juventude... Não se lembra de que lhe disse em Granada, depois de examinar-lhe a perna, que se eu lhe tivesse tratado quando era criança jamais teria ficado coxo?
E explicara que os médicos da Europa atêm-se apenas à aparência do mal, que ao verem sua chaga sua única preocupação é vê-la cicatrizar o mais breve possível na superfície. Que importa se por trás dessa frágil membrana, que a própria natureza se encarrega de tecer o mais rápido possível, subsistam cavidades, carnes deterioradas, causas de atrofia ou deformação irreparável? Ora, valendo-se da antiga ciência dos magos, dos curandeiros africanos e dos embalsamadores egípcios, a medicina árabe calcula para cada elemento seu próprio ritmo de cicatrização. Quanto mais profundo um ferimento, mais necessário é saber refrear e não ativar a cura. Não é da mesma maneira que se tratam os ligamentos de sensibilidade e os de comando.
Muito satisfeito com o desenrolar dos primeiros cuidados, Abd-al-Mechrat informou-lhe ainda que, como nenhum cirurgião interviera, o que fora bom, os fios rompjdos e dilacerados já se haviam reatado de modo satisfatório. Como, graças ao céu, ele conseguira escapar ao risco terrível da gangrena - o único perigo real desses longos tratamentos -, ele, Mechrat, só teria de arrematar uma obra tão bem executada por Mestre Aubin, carrasco do rei da França, e continuada pelas inúmeras viagens do supliciado para escapar a seus torturadores.
Abd-al-Mechrat esmerou-se em sua obra como um ourives árabe. Dizia:
- Em breve seu caminhar se imporá ào dos príncipes mais arrogantes da Espanha...
Joffrey de Peyrac não pedia tanto. Adaptara-se bem à coxeadura outrora e contentava-se em recuperá-la mais ou menos acentuada mas rapidamente, assim como sua vitalidade habitual e o uso de todos os membros. Já não aguentava ser um destroço humano cujas forças diminuíam dia a dia. Para convencê-lo a submeter-se a todas as novas disciplinas necessárias, até o resultado definitivo, Abd-al-Mechrat soube demonstrar-lhe o interesse que havia em ele se camuflar por trás de uma silhueta desconhecida de seus inimigos. Se um dia tentasse pisar outra vez no reino da França, quem teria a ideia de reconhecer num homem que andava como todo mundo aquele a quem outrora chamavam "o Grande Coxo de Languedoc"? A ideia de um subterfúgio tão inesperado convenceu e divertiu o ferido, que dali em diante se mostrou tão obstinado quanto o médico para tentar atingir um resultado próximo da perfeição. Apesar dos bálsamos e dos calmantes, teve de suportar um longo martírio. Mover a perna ferida, forçá-la a reeducar-sev quando ainda estava em carne viva. Abd-al-Mechrat obrigava-o a nadar horas num tanque para conservar a flexibilidade necessária e principalmente manter a ferida aberta. Quando tudo o que ele queria era dormir, forçavam-no a repetir o relato de sua fuga. O médico e seus auxiliares eram intratáveis. Felizmente, o sábio árabe, de grande fineza de espírito, também sabia compreender seu paciente, apesar das barreiras das duas civilizações, que poderiam tê-los separado. Mas cada um dos dois já dera vários passos na direção do outro. O marabu falava perfeitamente francês e espanhol. O Conde de Toulouse tinha noções de árabe, que aprimorava rapidamente.
Quantos dias se passaram assim, na branca calma da residência de Maghreb? Ainda hoje ele ignorava. Semanas? Meses? Um ano?... Não contara. O tempo suspendera sua marcha.
Nenhum ruído penetrava no palácio fechado, onde apenas deslizavam criados educados e silenciosos. O mundo parecia ter sido abolido. O passado recente, com as trevas e o frio das prisões, o mau cheiro de Paris ou da masmorra esfumava-se no espírito do gentil-homem francês até lhe parecer apenas uma grotesca fantasmagoria, nascida de seus pesadelos de doente. A aguda realidade era o céu azul-noite visto de um pátio, o perfume das rosas, exacerbado pelo calor do dia, sublime no crepúsculo e mesclando-se ao dos loureiros-rosa, às vezes ao dos jasmins.
Ele estava vivo!
CAPITULO XIX
Joffrey de Peyrac no Mediterrâneo
Chegou o momento em que Abd-al-Mechrat finalmente lhe falou dos protetores-cujo poder o mantinha, a ele, cristão, no coração do Islã, num círculo encantado em que nenhum dano lhe podia ser causado. Pelas/revelações, compreendeu,que o médico considerava a partida-ganha e que a cura era agora questão de dias.
O médico ára'be começou então a falar-lhe das guerras e revoltas que ensanguentavam o reino-do Marrocos'. Foi informado, com grande espanto, que a própria Fez passava periodicamente por massacres espetâculares. Na verdade, teria bastado que ele se erguesse um pouco acima dos muros do palácio para descobrir estacas e cruzes bem-providas, quase permanentes, que mudavam somente de "clientes". As convulsões deviam-se à agonia do reinado de Mulay Archy, a quem seu irmão Mulay Ismael arrancava o poder com uma rapacidade de jovem abutre.
Mulay Ismael já era o senhor para todos os efeitos. E queria contratar os serviços do grande sábio cristão.
"Ele, ou antes, aquele que o representa e guia as ações do jovem pretendente desde a infância, seu ministro, o eunuco Os-man Ferradji."
Eminência parda de um poder ainda vacilante, Osman Ferradji era um negro semita, nascido escravo dos árabes do Marrocos. Inteligente e astuto, sabia que sua condição racial lhe seria constantemente censurada caso não se tornasse insubstituível.
Dava andamento, então, a mil projetos diferentes, com a diligência e a precisão de uma aranha em sua teia, ora balançando um fio, ora lançando e atando outro, até sufocar a presa sabiamente tornada impotente.
O ministro negro vigiava com prudência todas as intrigas dos príncipes e do povo, composto de árabes, berberes e mouros, que ignoravam economia e prudência, desprezavam o comércio, arruinavam-se em guerras e prodigalidades, enquanto o espírito do eunuco era, muito ao contrário, sutil e aberto ao comércio e às mais complexas transações económicas.
As conquistas de Ismael acabavam de colocar nas mãos do novo sultão territórios fabulosos às margens do Níger, onde outrora os escravos da rainha de Sabá exploravam ouro. O poder do novo soberano estendia-se agora até as florestas da costa das Especiarias, onde ainda se viam, à sombra de árvores, gigantes negros nus a lavar o ouro dos regatos e a procurá-lo entre o cascalho e até no fundo dos poços, com trezentos pés de profundidade.
Osman Ferradji via ali um grande trunfo para assentar o poder de seu pupilo, pois o que comprometera a solidez do reinado do sultão precedente fora sobretudo sua ignorância de uma boa gestão financeira. O sucessor não tinha melhores conhecimentos, mas, se as minas conquistadas por sua espada pudessem prosperar como no tempo de Salomão e da rainha de Sabá, Osman Ferradji tinha a certeza de um poder que se tornaria duradouro.
Assim, conhecera uma primeira decepção quando seus emissá-. rios ao sul retornaram e comunicaram a particular indolência e má vontade das tribos negras. Estas só se interessavam pelo ouro para oferecê-lo a seus deuses e fabricar algumas jóias, únicos trajes e adornos de suas mulheres. Por outro lado, envenenavam rapidamente a quem tentasse fazê-los mudar de ideia.
No entanto, apenas eles, os negros da floresta fetichista, conheciam os segredos do ouro. Caso fossem forçados, abandonariam as minas e não produziriam mais nada. Era o ultimato dos vencidos.
O grão-eunuco estava nesse ponto de suas preocupações, quando seus espiões interceptaram a carta enviada por Joffrey de Peyrac ao marabu de Fez.
- Se você fosse apenas um infiel dentre meus amigos, eu teria encontrado alguma dificuldade em defendê-lo - explicou Abd-al-Mechrat -, pois uma onda de intolerância está para assolar o Marrocos. Mulay Ismael se designa como a espada de Maomé! Felizmente você aludiu a nossos antigos trabalhos com metais nobres. Não podia ter vindo mais a calhar.
Os astros consultados por Osman Ferradji o preveniram de que Peyrac era um enviado do Destino. Se já sabia que o reinado do usurpador instalado por cuidados seus no trono seria longo e próspero, as estrelas informaram-lhe que, nessa prosperidade, um mago, ainda que estrangeiro e miserável, teria um grande papel a desempenhar, pois, assim como Salomão, detinha o conhecimento dos segredos da Terra. Interrogado pelo eunuco, Abd-al-Mechrat confirmara a profecia., O sábio cristão, seu amigo, era o mais instruído da época no conhecimento do ouro. Chegava mesmo a extrair pepitas de lugares onde a-maceração mais fina não permitia encontrar a menor parcela brilhante, graças a processos químicos.
Logo se deram ordens para se apoderarem daquele que um destino benfazejo - para" Mulay Ismael_- expulsava do país dos franceses.
- Sua pessoa doravante é sagrada no Islã - disse ainda o médico árabe. - Assim-que eu o declare curado, você partirá para o Sudão com' a escolta e o exército que considerar necessário. Tudo lhe será concedido. Em troca, deverá enviar muito rapidamente alguns lingotes a Sua Excelência, o Grão-Eunuco.
Joffrey de Peyrac refletia. Aparentemente não tinha escolha senão colocar-se a serviço do príncipe muçulmano e seu vizir. As propostas que lhe faziam excitavam-lhe os desejos de sábio e de viajante. O país para onde o enviavam e de onde Kuassi-Ba, originário de lá, lhe falara com frequência perseguia-lhe os sonhos há longos anos.
— Aceitarei - disse afinal -, aceitarei de bom grado, com paixão, se tiver certeza de que ainda por cima não me exigirão que me torne mouro. Não ignoro que a intransigência dos seus iguala-se à dos meus. Faz mais de dez séculos que a Cruz e o Crescente travam combate. De minha parte, sempre respeitei a forma dos ritos pela qual um ser humano considera bom adorar seu Criador. Gostaria de que valesse o mesmo em relação a mim. Pois, por mais baixo que tenha caído comigo o nome de meus ancestrais, não posso acrescentar a isso o título de renegado...
— Eu havia previsto sua objeção. Se se tratasse de Mulay Ismael, você teria, de fato, poucas chances de ver realizados seus desejos. Ele certamente prefere criar um novo servidor de Alá na terra a ter ouro em seus cofres. No entanto, Osman Ferradji, grande crente que é, tem outras ambições. É sobretudo a ele que é preciso servir bem. Não lhe pedirão nada que não possa aceitar.
E o velhinho concluíra alegremente:
- Naturalmente o acompanho. Devo velar pela sua saúde, tão preciosa, assisti-lo em seus trabalhos, e talvez também possa desviar de seu caminho algumas emboscadas, pois nosso país é diferente demais do seu para que eu possa sonhar em abandoná-lo ao acaso dós acontecimentos.
Os anos que se seguiram viram o gentil-homem francês percorrer os territórios incandescentes do Sudão e as terras mais sombreadas mas não menos perigosas das florestas da Guiné e do País dos Elefantes.
Seu trabalho de pesquisador e garimpeiro de ouro complicava-se com uma tarefa de explorador. Tinha de penetrar em povoados desconhecidos, que a vista dos mosquetes da guarda de xerifes de que ele precisava cercar-se incitava mais à revolta do que à confiança. Soube conquistá-los um a um, pelo único vínculo que podia existir entre ele e aqueles selvagens nus: o gosto profundo pela terra e seus mistérios. Quando realizava a paixão hereditária que, há gerações, impelia os negros daquelas regiões a descer com risco de vida pelas entranhas do solo para às vezes trazerem de volta apenas uns punhados de ouro que dariam de presente a seu fetiche de madeira entalhada, ele se sentia realmente irmão deles.
Acontecia-lhe então de passar sozinho meses inteiros na floresta que aterrorizava os companheiros, homens do deserto e do litoral. O próprio Kuassi-Ba se detinha à orla das matas. Ficava apenas com Abdullah, fanático muito jovem que resolvera de uma vez por todas que o mago branco possuía o baraka ou talismã mágico. E de fato nunca lhe aconteceu nada. A principal tarefa dos xerifes era, na verdade, escoltar os comboios de lingotes de ouro que seguiam para o norte.
Abd-al-Mechrat encorajou-o afinal a retornar ao norte. O eunuco Osman Ferradji, mais que satisfeito com os resultados obtidos por seu mago branco, transmitia-lhes o pedido de Mulay Ismael, desejoso de recebê-los em sua capital, Miquenez. Nesse meio tempo o sultão havia estabelecido solidamente seu reinado. Os benefícios de sua jurisdição já se faziam sentir até nos confins daquelas regiões remotas. De origem negra pela mãe e tendo feito de uma sudanesa sua primeira esposa, ele ainda recrutara, entre os melhores guerreiros do Sudão, sahels do Níger e do Alto Nilo, os elementos de um exército que lhe era inteiramente dedicado.
Joffrey de Peyrac, ao partir para Fez, deixou em plena ativida-de as regiões que ao chegar encontrara desorganizadas. Os pequenos sultões locais haviam-se tornado razoáveis e agora encorajavam os súditos a prosseguir corrf trabalhos que satisfaziam os amos do norte, de quem recebiam em troca bugigangas, tecidos e mosquetes - estes últimos-tesouros distribuídos com parcimônia aos mais fiéis.
Depois dos palácios vermelhos e bárbaros das margens do Níger, Miquenez, animada, rica, bela e plantada de jardins maravilhosos, oferecia uma imagem de civilização.
O gosto dos árabes pelo fausto agradava a Joffrey de Peyrac. E ele próprio, penetrando na cidade com sua escolta vestida com os mais suntçrosos tecidos e munida de armas de preço adquiridas a traficantes portugueses no litoral ou a mercadores egípcios no interior,'impressionou fortemente Mulay Ismael.
Um soberano ciumento poderia fazê-lo pagar caro pela ostentação. O Conde de Peyrac tivera a experiência sob outros céus, com Luís XIV. Mas, pensava ele, isso não era razão suficiente para privar-se- disso. E ao atravessar a cidade montado em seu cavalo negro,,envolto em sua capa de lã branca bordada com fio de prata, ele deu^sé conta de que lançava um olhar apenas indiferente aos escravos cristãos que, miseravelmente, executavam suas tarefas sob o chicote dos joldaks, o exército de elite do comandante dos crentes.
Mulay Ismael recebeu-o com pompa. Longe de enciumar-se com o renome do sábio cristão, sentia-se honrado por ter obtido dele serviços tão grandes sem tê-lo humilhado com ameaças ou tortura. Instruído por Osman Ferradji, que não compareceu a essa entrevista, o sultão evitou abordar diante do hóspede a questão que lhe calava mais fundo: a de trazer para o Islã um homem de grande talento que o destino fizera nascer do lado do erro.
Três dias de festas selaram a amizade. Ao final das comemorações, Mulay Ismael anunciou a Joffrey de Peyrac que o enviaria como embaixador a Constantinopla, "junto ao Grão-Turco.
Como o gentil-homem francês protestasse não possuir habilidade para tal missão, o outro se anuviou. Teve de.admitir que ainda era vassalo do sultão de Constantinopla e na verdade fora ele próprio quem tomara a iniciativa de reclamar o mago branco. O Grão-Turco queria pedir-lhe que repetisse com a prata o milagre do ouro realizado para seu ilustre súdito, o rei do Marrocos.
- Eles imaginam, esses abastardados, esses relapsos da Verdadeira Fé, que eu o fecho numa torre e que me fabrica ouro com bosta de camelo! - exclamou Ismael, rasgando a capa em sinal de desprezo.
Joffrey de Peyrac assegurou ao sultão que permaneceria fiel a sua causa e que não aceitaria nada, dentre as propostas que lhe seriam feitas, que pudesse prejudicar o soberano do Marrocos.
Pouco depois chegava a Argel. Após três anos de uma fabulosa viagem ao fundo da Africa, o antigo supliciado, o condenado arrancado por milagre aos cárceres do rei da França, revia-se, de corpo refeito e renovado, a alma profundamente marcada, nas costas do Mediterrâneo.
Pensara muito em Angélica, sua mulher, durante aqueles longos anos? O destino dos seus o preocupara desmedidamente? Para dizer a verdade, ele sabia, conhecendo a mentalidade do belo sexo, que qualquer mulher poderia ter-lhe censurado, com o máximo de boa-fé, não haver consagrado todo seu tempo a lamentos cruciantes e a lágrimas dolorosas. Mas ele era homem, e sua natureza sempre o levara a viver intensamente o momento presente. De resto, a única tarefa que lhe fora atribuída - sobreviver - revelara-se esmagadora. Joffrey de Peyrac lembrava-se das horas em que a dor física chegara até a extinguir-lhe a chama do pensamento. Nesses momentos subsistia apenas a percepção de um círculo mortal a fechar-se a sua volta, da fome, da doença e da perseguição dos homens, um círculo ao qual precisava escapar. Então, arrastara-se para urn pouco mais longe.
De sua passagem pelo reino dos mortos, um ressuscitado conserva apenas uma recordação atenuada. Quando recobrou a saúde, em Fez, o gentil-homem já não se fazia perguntas. O compromisso que assumira com o soberano do Marrocos, de servi-lo no Sudão, devolveu-lhe a certeza de uma vida futura. Pois, na verdade, para que voltar a viver se fosse para se reencontrar na pele de uma criatura rejeitada por todos, sem lugar entre os vivos? Mas agora ele andava normalmente. Sensação prodigiosa e surpreendente para ele! Seu médico o encorajara a montar e ele dava longas cavalgadas pelo deserto, preparando cuidadosamente em pensamento os detalhes da expedição projetada. Um homem que possui somente uma chance oferecida por um pro-tetor não pode oferecer-se ao luxo de desapontar esse amo com negligências, distrações de outra ordem que a do trabalho para o qual o contrataram.
No entanto, uma noite, em Fez, ao retdfnar aos apartamentos que lhe tinham sido destinados,na vila de Adb-al-Mechrat, teve a surpresa de descobrir ao luar uma bela garota que o esperava sobre almofadas. Tinha belos olhos de gazela, uma boca como uma romã sob o leve véu de tule, e a" túnica transparente deixava adivinhar um corpo perfeito.
Estava tão longe, ele, o antigo senhor das cortes amorosas do Languedoc, de pensar èm namoricos que imaginou tratar-se de uma brincadeira de criada, e ia mandá-la embora quando ela lhe disse que foraTo santo marabu mesmo quem a incumbira de vir distrair as noites do hóspede, considerado agora em estado de dedicar às mulheres "forças plena e completamente recuperadas, graças aos cuidados dele.
Primeiro ele riu. Viu-a soltar o haic de tule e desembaraçar-se dos véus, com a instruída simplicidade de sua profissão, coque-teria e naturalidade misturadas. Depois, pelo pulsar rápido ê violento de seu sangue, reconheceu em si o desejo de mulher.
Assim como fora atraído pelo pão quando morria de fome, pela fonte quando morria de sede, foi contra aquela pele açafrão, perfumada de âmbar e jasmim, que, naquela noite, ele se descobriu definitivamente vivo.
Foi também naquela noite que pela primeira vez em muitos meses ele se lembrou de Angélica, lembrança aguda e lancinante, a ponto de tirar-lhe o sono.
A mulher dormia no tapete, jovem animal tão tranquilo que até sua respiração parecia imperceptível.
Ele, deitado sobre almofadas orientais, recordava-se. A última vez que apertara uma mulher nos braços fora a ela, Angélica, sua mulher, sua pequena fada dos pântanos do Poitou, seu pequeno ídolo de olhos verdes.
Aquilo se perdia na noite dos tempos! Por vezes se interrogara sobre o destino dela. Não se preocupava. Sabia-a com sua família, ao abrigo da solidão e também das necessidades. Pois outrora ele havia encarregado Molines, seu antigo associado do Poitou, de ocupar-se dos interesses financeiros da jovem, no caso de acontecer alguma infelicidade a ele. Ela devia estar refugiada na província, dizia-se ele, com os dois filhos.
De súbito já não se resignava com a ausência, o abismo de silêncio e ruínas aberto entre eles. Queria-a com uma violência física que o fazia erguer-se no leito e procurar à volta o meio mágico de saltar por sobre o círculo de destruição e retornar aos dias passados e às noites em que a tinha nos braços.
Quando se casara, em Toulouse, não imaginava as descobertas que aquele negócio, aquele contrato, originalmente, lhe propiciaria, a ele, já um tanto entediado, aos trinta anos, com as aventuras femininas. Surpreso com a beleza dela, ficara ainda mais surpreso por descobri-la intacta. Ela não conhecera homem antes dele. A iniciação daquela garota encantadora, surpreendentemente sensual mas arisca como uma cabrita selvagem, representava sua melhor recordação amorosa.
As outras mulheres deixaram de existir para ele, tanto as do presente quanto as do passado. Teria dificuldade até em lembrar-se do nome delas, e até dos rostos.
Ensinara-lhe o amor, a volúpia. Ensinara-lhe ainda outras coisas que não acreditava comunicáveis entre um homem e uma mulher. Teceram-se elos entre o espírito e o coração de ambos. Ele vira-lhe o olhar modificar-se, o corpo, os gestos. Por três anos a tivera nos braços. Ela dera-lhe um filho, esperava um segundo. Teria nascido?
Não podia passar sem ela. Só ela existia. E agora, tinha-a perdido.
No dia seguinte estava tão sombrio que Abd-al-Mechrat informou-se discretamente se os divertimentos a que ele se entregara lhe haviam dado toda a satisfação, se não teria havido alguma decepção ou inquietação que a ciência médica pudesse remediar. Joffrey de Peyrac tranqúilizou-o, mas não lhe confiou seu tormento. Apesar das afinidades que existiam entre ambos, ele sabia que não seria entendido. O sentimento de amor é raro entre os muçulmanos, para quem a mulher, objeto de gozo e de interesse apenas carnal, é sempre bem substituída por outra mulher.
Não era o mesmo com um cavalo ou um amigo.
Joffrey de Peyrac esforçou-se por rechaçar uma obsessão pela qual se desprezava um pouco. Sempre soubera libertar-se a tempo de um envolvimento sentimental, considerando fraqueza deixar o poder do amor dominar sua liberdade e seus trabalhos. Iria dar-se conta de que Angélica, com suas mãos finas, com seu riso de dentes de pérolas, o enfeitiçara?
O que podia fazer? Correr para ela? Sem ser um prisioneiro, não ignorava que, apesar das atenções de que era objeto, não era livre para rejeitar a proteção de seres tão poderosos quanto o Sultão Mulay Ismael e seu vizir, Qsman Ferfadji, que lhe seguravam o destino entre as mãos..
Superou a prova. O tempo e á paciência lhe permitiriam encontrar um dia, dizia-se ele, aquela a quem nunca conseguiria esquecer.
Assim, quando se viu na costa do Mediterrâneo, seu primeiro gesto foi enviar um mensageiro a Marselha, a fim de obter notícias da mulher e do filho ou filhos. Depois de muito refletir, resolveu não se identificar entre seus antigos amigos e pares do reino da França. Já deviam-tê-lp esquecido há muito tempo.
Dirigiu-se outra vez ao Padre António, capelão das galeras reais, pedindo-lhe que fosse'a Paris e procurasse o advogado Desgrez. O rapaz desembaraçado e inteligente, que não sem coragem o defendera em seu processo, inspirava-lhe confiança.
Enquanto aguardava, teve de partir para Constantinopla. Antes tivera o cuidado de mandar fazer por um artesão espanhol de Bône máscaras de couro fino e rijo que lhe ocultassem o rosto. Não desejava ser reconhecido. O acaso certamente o faria cruzar com súditos do rei da França, assim como com representantes do inúmero parentesco que possuía, enquanto senhor de alta linhagem, entre a nobreza estrangeira. Só entre os Cavaleiros de Malta já tinha dois primos. O Mediterrâneo, grande liça dos combatentes contra o Infiel, atraía os brasões da Europa.
Sob bandeiras berberes, a situação do ex-senhor de Toulouse era bem ambígua. Escorraçado pelos seus, integrava-se no mundo exatamente oposto, o Islã, que há séculos, num jogo de equilíbrio, marcava com um avanço todo recuo da cristandade. A decadência espiritual desta, os turcos otomanos responderam submergindo países até então profundamente cristãos: a Sérvia, a Albânia, a Grécia. Dali a alguns anos eles forçariam as grades douradas de Viena, a Católica. Os Cavaleiros de São João de Jerusalém, depois da grande Creta e Rodes, possuíam apenas a minúscula Malta.
Ora, Joffrey de Peyrac dirigia-se ao Grão-Turco. Nenhum escrúpulo perturbava-lhe a consciência. Não se tratava, de fato, de levar seu auxílio de cristão aos inimigos de uma fé que ele não renegava. Tinha outra ideia em mente. Parecia-lhe nitidamente que a desordem delirante que reinava nas águas mediterrâneas era tão devida às exações da Europa cristã quanto às piratarias barbarescas ou às conquistas otomanas. No final das contas, as trapaças de um turco, relativamente ingénuo em questões comerciais, nunca se igualariam às de um banqueiro veneziano, francês ou espanhol. Sanear as moedas erauma tarefa de paz com que ninguém sonhava. Para fazer isso, Joffrey de Peyrac teria entre as mãos o controle das duas grandes alavancas da época: o ouro e a prata. E já sabia como conseguiria isso.
Depois de suas conversas com o sultão dos sultões e seus conselheiros do Grão-Divã, ele instalou seu quartel-general em Cândia, num palácio nos arredores da cidade. Estava dando uma festa quando seu mensageiro, chegado da França, se fez anunciar. Tudo desapareceu de suas preocupações do momento. Abandonou os convidados para ir na frente do criado árabe:
- Venha! Entre logo. Fale...
O homem entregou-lhe uma carta do Padre António. O eclesiástico relatava brevemente, num estilo voluntariamente impessoal, os resultados de sua investigação em Paris. Soubera pelo advogado Desgrez que a ex-Condessa de Peyrac, viúva de um gentil-homem que todos acreditavam morto na fogueira na Pla-ce de Greve, voltara a casar-se com um primo seu, o Marquês du Plessis-Belliere, de quem tivera um filho. Vivia na corte, em Versalhes, e ocupava cargos de honra.
Ele amarrotara o papel na mão.
De início, não acreditara. Impossível!... Depois a evidência pouco a pouco se impunha, enquanto ele descobria, como uma cortina que se rasga, como fora ingénuo de não imaginar um desfecho assim. Na realidade, como era natural! Uma viúva de beleza e juventude ofuscantes ia enterrar-se num velho castelo da província, a bordar tapeçarias como Penélope?
Solicitada, cortejada, casada, desfilando na corte do rei da França - esse devia ser seu destino. Por que não pensara nisso antes? Por que não se preparara para o choque? Por que sofria tanto?
O amor torna as pessoas imbecis, cegas. E só o sábio Conde de Peyrac ignorava isso.
Porque a moldara a seu gosto era razão para que ela não lhe escapasse ao domínio? A vida e as mulheres são flutuantes. Ele deveria ter sabido. Pecara por presunção.
Que fosse sua~esposa ainda por cima contribuía para aumentar o sentimento de que ela soubera convencê-lo que só existia por ele e para ele. Caíra na armadilha dos gozos mais sutis que lhe preparara o espírito rico e alegre da jovem, caíra rápido e correndo como as águas das torrentes. Mal saboreara o gosto de senti-la unida a ele por fibras eternas, e o destino os separara. Homem rejeitado, e doravante sem poder, por que reclamava a fidelidade da lembrança? A mulher que amava, sua mulher, sua obra, seu tesouro, ofere"cera-se a outros.
Nada de mais natural, repetia ele consigo. Será. que ela o cegara a tal ponto que nunca suspeitara das outras tendências em germe que havia nela? Uma mulher que recebeu tanto da natureza não é dotada paraã fidelidade. Ele não conhecia, já que o provara pessoalmente; o poder- de sua atração, a auréola sutil que lhe contornava o andar, os menores gestos, e que era como que a essência de seu encanto? São mais raras do que se crê as mulheres nascidas para cativar o homem. Não um único eleito, mas todos os homens que se aproximam delas. Angélica era dessa espécie. Com inconsciência", com inocência... Pelo menos fora o que ele pensara! A que maquinações ela já não se entregara quando ele a levara ao casamento do rei? Ainda tão jovem, recém-saída da adolescência, ele não ignorava que ela possuía qualidades tão fascinantes quanto perigosas: um caráter de aço, uma inteligência intuitiva, astúcia.
Tudo isso posto a serviço da ambição, até onde ela poderia subir?
Ah! Até o belo Marquês du Plessis, favorito de Monsieur, irmão do rei!
Até o próprio rei. Por que não?
Como ele estivera certo em não se preocupar com ela!...
Diante dos olhos fulgurantes do amo, o mensageiro prosternara-se, petrificado de medo. Joffrey de Peyrac .esmagava a carta no punho, como se quisesse fechar os dedos crispados sobre o pescoço branco de Angélica.
Depois caiu na risada. Mas o riso ficou preso na garganta e ele sufocava. Pois, desde que perdera a voz, não podia rir à vontade.
Isso os cuidados de Abd-al-Mechrat não conseguiram remediar. Devolvera-lhe apenas o uso de uma fala audível. Não rir. Não cantar. Ele tinha a impressão de estar preso a um afogador de ferro.
O canto liberta a dor da alma. Ainda hoje, anos mais tarde, seu peito enchia-se de gritos que não podiam jorrar. Habituara-se à mutilação, mas nas horas de aflição suportava-a com dificuldade. Horas de aflição que devia apenas a Angélica. O resto - ele repetira cem vezes a si próprio - não o atingira: a tortura da carne,-o exílio, a ruína. Ele se adaptaria a tudo. Mas havia ela.
Ela fora sua única fraqueza. A única mulher que o fizera sofrer. E por isso ele também queria que ela sofresse.
Sofre-se por um amor? Sofre-se por uma mulher?
CAPITULO XX
Bertille desaparece
E agora que, longe de tudo o que fora o passado deles, o Goulds-boro os reunira e os levava a ambos por.uma noite incerta, e agora que ele não era mais do que o Rescator, um corsário queimado pelo sal dos oceanos e-duras aventuras, combates, intrigas, ódios de homens em luta pelo poder,, pelo ferro, pelo fogo, pelo ouro, pela prata, e que Angélica se tornara unia mulher tão diferente daquela que o fizera sofrer,.ia ele cair de' novo na antiga armadilha dos tormentos e das mágoas de que se acreditava liberto?
Pôs-se a andar encolerizado sobre o tapete da cabina.
Perto de um cofre, deteve-se, abriu-o e, erguendo os feltros e sedas que a envolviam com cuidado, tirou uma guitarra. Adquirido em Crempnâ, no tempo em que ainda esperava recuperar a voz, o instrumento, como ele, permanecera mudo com frequência. Arranhara-lhe as cordas às vezes, para agradar, a companheiros de viagem, mas o acompanhamento sem o canto o desapontava. Ainda assim, conservara a maestria de antigamente. Tocava mais do que bem: tocava de modo enfeitiçante, desprendido, descontraído. Mas sempre chegava o momento em que, levado pela música, sentia o ar encher-lhe os pulmões e o poder do canto carregá-lo em suas asas poéticas.
Ainda desta vez, tentou. A voz quebrada, rouca e inábil, cortando a melodia, deteve-o. Balançou a cabeça. "Infantilidades!" Ah! O homem nunca aceitará apenas as pedras do caminho. Quanto mais avança, mais gostaria de conseryartudo, abraçar tudo. Não diz o ditado que uma aquisição substitui outra? Pode-se ao mesmo tempo conhecer a alegria de amar e a liberdade do coração?
E de súbito, movido por um pressentimento, atravessou o aposento e abriu bruscamente a porta que dava para o balcão.
Ela estava lá, fantasma da outra mulher, e seu rosto branco emergindo da noite, hierático no manto negro, lembrava sem o ressuscitar aquele que ele acabava de evocar.
Ele foi presa de uma confusão absurda, pensando que ela surpreendera aqueles ensaios inábeis. O rancor deu-lhe uni tom particularmente descortês.
- O que está fazendo aqui? Não pode respeitar a disciplina de bordo? Os passageiros só devem subir à coberta nas horas determinadas. Só mesmo você para se permitir ir e vir a seu bel-prazer. Com que direito?
Estupefata com a admoestação, Angélica mordeu os lábios. Há pouco, aproximando-se dos apartamentos do marido, ficara transtornada ao ouvir os acordes da guitarra. Mas eram outras preocupações que a levavam até ali.
Forçando-se a conservar a calma, disse:
— Tenho razões sérias para infringir a disciplina de bordo, senhor. Vinha informar-me sobre Abdullah, seu criado. Está em sua companhia?
— Abdullah! Por quê?
Voltou a cabeça, procurou a silhueta do mouro, envolto em sua djellaba, e não o viu em parte alguma.
Ela percebeu-lhe o movimento de surpresa e contrariedade e insistiu, ansiosa:
— Ele não está aí?
— Não... Por quê? O que está acontecendo?
— Uma das jovens desapareceu... e temo por ela... por causa desse mouro.
CAPITULO XXI
O crime do mouro -Abdullah - Berne perde a çabeça
Severina e Raquel haviam-se insinuado até junto de Angélica.
- Dame Angélica, Bertille não está aqui.
Não entendeu aonde as garotas queriam chegar. Raquel contou-lhe que no momento ein que deviam retornar à entrecoberta que lhes servia a todos de^alojamento, Bertille resolvera ficar mais tempo do lado de fora.
— Por quê?
— Oh, ela está um pouco perturbada - respondeu Raquel. - Disse que estava cansada de viver amontoada num estábulo e que queria ficar sozinha um pouco. Em La Rochelle ela tinha um quarto só para ela - acrescentou a filha mais velha dos Carrere, com uma admiração invejosa -, de modo que você compreende...
— Mas já faz mais de duas horas e ela ainda não voltou - insistiu Severina, alarmada. - Será que uma onda a levou?
Angélica levantou-se e foi procurar a Sra. Mercelot, que tricotava em seu canto com duas vizinhas. As pessoas tinham adquirido hábitos, recebiam-se num canto e noutro.
A Sra. Mercelot pareceu surpresa. Imaginava que Bertille estivesse com as amigas. Logo todos foram alertados e foi preciso ceder à evidência: a garota não estava ali.
Enfurecido, Mestre Mercelot precipitou-se para fora. Fazia alguns dias que Bertille andava muito saída. Ia aprender que uma menina deve obedecer aos pais em todas_as latitudes e em todas as circunstâncias.
Voltou pouco depois, preocupado. Não a encontrara. Não se via nada naquele maldito navio, e os marujos a quem abordara olhavam-no com ar esgazeado, como imbecis que eram.
— Dame Angélica, ajude-me. Você conhece a língua dessa gente. Eles têm de nos ajudar em nossa busca. Talvez Bertille tenha caído numa escotilha ou tenha quebrado uma perna ou braço.
— O mar está alto - disse o advogado Carrere. - A garota pode ter sido levada por um vagalhão, como aconteceu outro dia com a pequena Honorina.
— Senhor! - murmurou a Sra. Mercelot, caindo de joelhos.
O nervosismo dos passageiros irrompeu. Sob as lâmpadas, estavam todos pálidos, a expressão contraída. Era a terceira semana de viagem, aquela em que, em meio às dificuldades, a resistência moral fraqueja: ocorresse algo a um deles, e a calma aparente de todos se romperia.
Angélica não tinha vontade alguma de acompanhar o papeleiro até a coberta. Desmiolada como todas as garotas de sua idade, Bertille devia estar entregue a um vago devaneio em algum canto escuro, sem imaginar por um só momento que se preocupavam com ela. E depois, seu desejo de solidão era bem compreensível. Todos tinham o mesmo desejo. Mas Angélica, sentindo-se vagamente responsável, pediu a Abigail que, em sua ausência, olhasse por Honorina.
Foi ao encontro de Mercelot, Berne e Manigault, lá fora, e encontrou-os discutindo com o corcunda, que, por meio de gestos, instava para que voltassem todos ao alojamento. Recusava-se a qualquer explicação. Fez sinal a seus homens, que agarraram os três protestantes pelas axilas.
- Não me toquem, bandidos - berrou Manigault -, ou eu os arrebento!
Era duas vezes mais corpulento que os malteses oliváceos que pretendiam fazê-lo dar ouvidos à razão, mas estes estavam armados de facas, e não perderam tempo em sacá-las do cinto. A cena era tão confusa quanto mal iluminada.
Mais uma vez a intervenção pacífica do canadense Nicolau Per-rot impediu o derramamento de sangue em perspectiva. Angélica colocou-o a par do que se passava. Ele traduziu-lhe as palavras para o intratável Erikson, mas este tinha suas ordens. Nada de passageiros sobre a coberta à noite. Em todo caso, deu-se ao trabalho de menear a cabeça ao ser informado de que uma das passageiras desaparecera.
De vez em quando Mercelot chamava, com as mãos em concha:
- Bertille, onde você está?
A única resposta era o vento e o permanente estalejar do navio, jogando sobre as ondas negras.
A voz do papeleiro estrangulava-se.
Erikson acabou autorizando a presença do pai. Os outros, disse ele, deviam retornar à entrecoberta, e para lá foram conduzidos sem cerimónias.
Angélica ficou junto de Nicolau PerrotT
- Estou com medo - confiouJhe ela a meia voz. - Confesso que tenho menos medo do mar do, que dos homens. Será que um deles, ao encontrar a jovem sozinha, não teria tentado seduzi-la?
O canadense falou em inglês ao quartel-inestre. Este resmungou, mas depois de dar uma bamboleada bem-humorada, afastou-se, lançando algumas palavras por sobre o ombro.
- Ele diz que vai fazer a chamada de todos os tripulantes, desde
os que estão na gávea-até os que estão descansando. Enquanto isso, vamos vasculharia coberta.
Foi ele, ainda, querii providenciou as lanternas, Examinou-se cada rolo de corda, e Nicolau Perrot chegou a ponto de olhar dentro da chalupa .e do caíque de socorro.
Pararam diante do alojamento da tripulação, sob o castelo de popa, de onde o corcunda os chamava.
- Todos os Homens estão em seus postos - disse. - Não falta um...
Os marujos tomavam a sopa à luz imprecisa das lâmpadas a óleo. A atmosfera, densa com a fumaça dos cachimbos, era de cortar com faca. Predominava um violento odor de tabaco e álcool. Ao ver aqueles rostos tisnados, de olhos escuros e luzidios, voltarem-se para ele, Mestre Mercelot percebeu que o mar não era o único risco que Bertille podia correr.
- Pensa que um desses indivíduos pode ter atentado contra o pudor de minha filha? - cochichou, ficando tão branco quanto seu colete.
- Com certeza nenhum destes, já que estão todos aqui.
Mas, uma vez solta, a imaginação do papeleiro vencia etapas.
- Isso não prova nada. Cometido o crime, poderiam tê-la estrangulado e atirado ao mar, para que não falasse...
Suas têmporas cobriam-se de suor.
- Por favor - pediu-lhe Angélica -, não se torture assim. Erikson está escolhendo homens para vasculhar o navio de alto a baixo. - E, enquanto falava, ela pensou num átimo no mouro Abdullah.
Impulsiva, certa de ter adivinhado corretamente, saiu correndo para o andar superior.
O mouro não estava conforme deveria, em posição diante da porta do amo.
Angélica permaneceu imóvel, suplicando no fundo da alma: "Meu Deus, faça que não seja isso. Seria terrível demais para todos nós".
Por trás das vidraças álteava-se o som de uma guitarra. Depois Joffrey de Peyrac surgiu a sua frente, duro e impiedoso.
Ele estava tão esquisito que, ao lhe falar de Abdullah, ela imaginou que ele fosse explodir de cólera outra vez.
Mas ao contrário, ele pareceu recobrar o sangue-frio habitual. Num instante voltou a ser o senhor do navio, atento e vigilante.
Olhou o local onde Abdullah geralmente ficava e que há anos o escravo mouro não abandonava sem autorização.
Franziu o cenho, inquieto, e exclamou:
- Maldição, eu devia tê-lo vigiado! Vamos, depressa!
Entrou em seus apartamentos para apanhar uma lanterna.
Joffrey de Peyrac atingira a coberta inferior, a "grande rua".' Soltou ele próprio os trincos de uma escotilha. Enfiou-se pela abertura e começou a descer, segurando-se apenas com uma mão, enquanto a outra levava a lanterna. Angélica estava tão nervosa que o seguiu sem dar conta de como as escadas eram íngremes. Nicolau Perrot veio-lhes ao encontro, assim como Mestre Mer-celot, cuja angústia o lançava, sem que ele notasse, em exercícios de que há muito perdera o hábito.
Não paravam de descer. Angélica jamais teria acreditado que um navio pudesse ser tão profundo. Um odor salobro e úmido fazia contrair-se-lhe a garganta.
Finalmente estacaram diante de um corredor escuro. Joffrey de Peyrac pousou a mão sobre a abertura da lâmpada, a fim de velar-lhe a luz. Então, ao longe, na extremidade do corredor, Angélica distinguiu outra luz, avermelhada, como a de uma chama por trás de uma cortina púrpura.
- Ele está lá? - sussurrou Nicolau.
Joffrey de Peyrac fez um sinal afirmativo. Mestre Mercelot debatia-se na última escada, sustentado por uma sombra silenciosa e solícita, a do índio, que viera logo atrás do amo.
O conde estendeu a lanterna ao canadense, fazendo-lhe sinal para que iluminasse a descida do papeleiro.
Depois, a passos de lobo, seguiu pelo corredor. Andava depressa e sem ruído algum. No silêncio, onde pairava o ronco surdo e como que longínquo do mar, Angélica imaginava captar os sonos de uma melopeia estranha e monocórdia que se alterava, caía, do grito ao murmúrio, sobre duas notas, roucas, depois veladas. Não, não estava sonhando. A encantação tornava-se mais precisa à medida que se aproximava, enchendo o estreito corredor escuro e viscoso como que do rancor de um- mau sonho.
O grito tornava-se brutal como um exorcismo, depois morria e pairava longo tempo, infiltrando-se como uma suavidade dolorosa e ameaçadora, que lembrou a Angélica o ronronar das feras enamoradas, à noite, no Rif.
Seus cabelos se eriçaram e num gesto inconsciente ela agarrou o braço do marido.
Este levaraa mão àxortina vermelha.em farrapos e a afastava.
O espetáculo que se lhes ofereceu aos olhos era assustador. E, ao mesmo tempo, de uma beleza tão insólita que o próprio Joffrey de Pevrac-permaneceu um instante imobilizado, como que hesitando em-intervir.
Aquele buraco, no fundo das entranhas do navio, aquela despensa iluminada pela luz escassa de urna lamparina de prata que oscilava, era o covil do mouro.
Ele empilhara seus tesouros, seu butim de longos anos de campanhas ao mar. Cofres de couro cheios de mil bibelôs, tapetes, almofadas de seda esgarçada, garrafas e taças de vidro grosseiro, azuis, vermelhas, pretas, e pratos de esmalte antigo, semelhantes a bordados. De um saco de pele de cabra, cintilavam no chão jóias de ouro e pedras preciosas. Pacotes de cânhamo, semi-apodrecidos pela umidade, pendiam da parede, destinados ao cachimbo do narguilé cujos cobres brilhavam na penumbra. Um odor de almíscar, quase insuportável, mesclava-se ao fresco aroma de menta e ao outro, penetrante, do sal marinho, que deteriorava e enegrecia as riquezas amontoadas ali por aquele filho do deserto.
E por entre aquela desordem suntuosa e miserável, jazia Bertille, desmaiada.
A loura cabeleira estendia-se sobre o tapete, misturando-se às jóias espalhadas. Seus braços largados lembravam brancos talos sem forças.
O mouro não lhe tirara a roupa. Apenas as pernas estavam des-pêdas. Sobressaíam, pálidas, nacaradas, tão delicadas e graciosas que pareciam pertencer a uma criatura de sonho, uma ninfa translúcida,'modelada no alabastro pela mão de um Deus.
Inclinado sobre aquela fragilidade, o mouro, ofegante, sal-modiava.
Seu corpo, inteiramente nu, não era mais do que uma magnífica estátua de bronze, agitada de tremores e movimentos convulsivos. Entre seus braços enrijecidos, nos quais se apoiava, via-se oscilar o saquinho de couro pendurado ao pescoço que guardava os amuletos de sua baraka. Como duas colunas negras invencíveis, seus braços pareciam aprisionar a presa que ele capturara.
Ele parecia um gigante, enorme, todos os músculos do corpo dilatados pela força sensual que o possuía. Ao longo de sua espinha e de seus rins, suando, cada movimento fazia pensar em serpentes de ouro.
Em seus lábios entreabertos, a melopeia encantatória tornava-se rápida, insistente, sincopada até a histeria...
— Abdullah!
O canto diabólico interrompeu-se abruptamente.
A voz surda do amo arrancava o louco a seu êxtase...
— Abdullah!
O mouro estremeceu como uma árvore sob o machado. E de repente, com um rugido, ergueu-se, lançou-se para trás, as pupilas incandescentes, espuma nos lábios.
Suas mãos agarraram uma .cimitarra pendurada à parede.
Angélica soltou um grito lancinante. A lâmina pareceu-lhe silvar a dois dedos da cabeça de Joffrey de Peyrac. Este se abaixara prontamente. Outra vez a lâmina assassina por pouco não o atingiu. Ele a evitou mais uma vez e conseguiu agarrar o negro. Falou-lhe em sua língua, tentando trazê-lo de volta à razão. Mas o árabe o dominava. Os transes de seu desejo frustrado davam-lhe ui » força inacreditável.
Nicolau Perrot interveio e, durante alguns instantes, naqut cabina estreita, houve um combate selvagem e incerto.
A lâmpada de óleo, atingida, entornou a meio. Queimado no ombro, Abdullah soltou um urro. E de súbito pareceu voltar a si.
A paixão que fizera dele como que o oficiante de um rito eterno abandonou-o. Ele retornou ao estado de simples mortal, um criado em falta, e olhou à volta, revirando os olhos assustados. Seu corpanzil pôs-se a tremer enquanto, lentamente, como sob a pressão da mão do amo, caía de joelhos. De repente dobrou-se inteiramente, a testa colada ao chão, entre os braços juntos, murmurando roucas palavras tristes', resignadas por antecipação.
Angélica debruçara-se sobre Bertille,. A jovem estava apenas desmaiada, em decorrência do medo. Não fora tocada. Talvez um pouco sufocada pela mão que lhe abafara os gritos, enquanto o mouro, com sua força hercúlea, deslizava com a presa para o fundo do navio.
Angélica a ergueu, sacudiu-a um pouco e rapidamente recompôs-lhe a desordem da roupa. Não com rapidez suficiente, porém, para que Mestre MerCelot não, pudesse apreender todo o significado da cena que descobria.
- Horror! E vergonha! - gritou. - Minha filha, minha criança! Senhor!
Caiu de - joelhos junto de Bertille, apertando-a contra si, chamando-ã com desespero, e depois, erguendo-se, lançou-se contra o mouro etlesfechou-lhe uma saraivada de golpes. Notando a cimitarra, agarrou-a, antes que se tivesse tempo de prever-lhe o gesto.
Mais uma vez, e por pouco, o punho de Joffrey de Peyrac deteve a lâmina assassina. Ele e Nicolau Perrot, junto com o índio, tiveram a maior dificuldade do mundo para dominar o pai ultrajado, que acabou largando a arma e cedeu.
— Maldito seja o dia em que pusemos os pés neste navio - murmurou, os olhos arregalados. - Matarei esse miserável com minhas próprias mãos, eu juro.
— Depois de Deus, sou o único senhor a bordo - respondeu duramente o Rescator. - É apenas a mim que cabe fazer justiça.
— Eu o matarei também - disse M^rcelot, lívido. - Agora sabemos quem é, um bandido, um vil traficante de carne humana, que não hesita em distribuir nossas mulheres e filhas como prémio a sua tripulação, e em nos vender, a nós, grandes burgueses de La Rochelle, como escravos. Mas estragaremos seus planos...
Ele ofegou no silêncio opressivo. Joffrey de Peyrac mantinha-se diante do negro, que gemia no chão. Deu aquele seu sorriso estranho que lhe deformava os traços costurados e o tornava bastante assustador.
— Compreendo sua perturbação, Mestre Mercelot - disse, calmo. - Lamento este incidente...
— Simples incidente! - arquejou o papeleiro. - A desonra de minha filha! O martírio de uma criança infeliz que...
Curvou os ombros e afundando o rosto entre as mãos soltou um soluço.
- Mestre Mercelot, por favor - disse Angélica -, escute-me, antes de se colocar nesse estado. Graças ao céu, chegamos a tempo. Bertille sofreu apenas o medo. A lição lhe servirá para se mostrar prudente no futuro...
Mas o papeleiro parecia não ouvir as palavras que lhe dirigiam, e não ousavam largá-lo, pois não sabiam a que extremos ele poderia entregar-se. Bertille, voltando a si, devolveu-lhe o sangue-frio.
- Pai! Pai! - gritou ela.
E ele se pôs junto dela, para acalmá-la.
O retorno de Bertille à entrecoberta fez-se entre a efervescência e a consternação gerais.
Carregada pelo pai e pelo índio, ela gemia como uma moribunda e de vez em quando soltava gritos histéricos. Estenderam-na sobre seu leito desconfortável de palha e casacos. Ela repelia a mãe, mas, sem que ninguém conseguisse saber por quê, agarrava-se a Angélica, que foi obrigada a permanecer-lhe à cabeceira, enquanto as perguntas, as exclamações, os relatos e os detalhes mais inverossímeis se cruzavam por sobre suas cabeças.
— Seus pressentimentos eram corretos, Manigault - dizia o papeleiro, acabrunhado. - E minha pobre filha foi a primeira vítima deles...
— Pressentimentos! - repetiu Manigault. - Quer dizer certezas, meu pobre amigo. O que Le Gall surpreendeu dos proje-tos desses criminosos não deixa dúvida alguma acerca das intenções deles. Somos todos prisioneiros, destinados a um fim terrível...
As mulheres se puseram a chorar. Bertille berrou mais alto, debatendo-se contra um adversário invisível.
- Já acabou de deixar todo mundo histérico? - gritou Angélica.
Agarrou o papeleiro pelo colarinho e o sacudiu sem nenhum respeito.
- Quantas vezes será preciso repetir-lhe que não aconteceu nada de grave com ela? Está tão intacta quanto no dia em que nasceu. Será que é preciso dizer-lhe exatamente em que ponto se encontravam as coisas no momento em que interviemos, se não é capaz de compreender com .meias palavras nem de tranquilizar sua mulher e sua filha?
Mestre Mercelot bateu em retirada. Havia algo em Angélica encolerizada que um homem tinha dificuldade em enfrentar. O advogado Carrere o substituiu.
— Você mesma reconhece que interveio bem a tempo - escarneceu ele -, o que quer dizer que, se tivesse intervindo mais tarde, a infeliz criança.
— A "infeliz criança" fez dè tudo para atrair essa infelicidade... e ela sabejnuito. bem disso - disse Angélica com um olhar para a vítima, que-de-repente parou de chorar e pareceu pouco à vontade.
— Você quer insinuar que minha filha provocou as homenagens repugnantes daquele negro? - perguntou a Sra. Mercelot, com todas as garras de fora.
— É o que insinuo, de fato. Eu mesma chamei a atenção de Bertille por causa disso. As amigas dela estavam presentes.
— E verdade - disse Raquel timidamente.
- Ah!, fica-lhe muito bem dar lições de moral...
Angélica sentiu a intenção maldosa, mas ignorou-a. Aquela gente tinha motivos para estar transtornada.
- E só quando se tem experiência da vida que se pode de fato julgar o comportamento indecente ou não de uma jovem estouvada. Não é razão para acusar dos mais vis desígnios a tripulação inteira e o capitão também...
Houve um murmúrio. Manigault deslocou-se pesadamente e veio plantar-se diante dela.
- A quem está defendendo, Dame Angélica? - perguntou num tom frio. - Uma tripulação de bandidos e de dissolutos temíveis? Ou, quase pior, o capitão deles? O homem suspeito a quem nos entregou?
Angélica ficou atónita. Ele estaria perdendo a cabeça? Perto dele, os outros homens exibiam a mesma expressão severa e dura, e as poucas luzes da entrecoberta acentuavam a fixidez dos olhares sob as sobrancelhas franzidas, olhares implacáveis e justiceiros, que reclamavam explicações. Ela procurou Berne, e viu-o em pé entre os outros, também ele gelado, desconfiado.
Escapou-lhe um movimento de impaciência. A força de remoer suas mágoas e apreensões na ociosidade forçada da viagem, eles procuravam inimigos. Talvez lhes faltassem papistas a maldizer.
- Não estou defendendo ninguém. Coloco as coisas nos de vidos lugares. Se Bertille se tivesse comportado dessa maneira no porto, teria corrido os mesmos riscos. Não foi prudente, e vocês, pais dela, não foram vigilantes. Quanto a tê-los entregado, eu?...
Angélica perdia a calma.
- Já esqueceram por que fugiram de La Rochelle? Por que es
tão aqui? Então não entenderam?... Estavam condenados... todos!
E despejou-lhes, atabalhoadamente, o que suportara entre as patas de Baumier e de Desgrez. Os policiais sabiam tudo a respeito deles. O lugar do huguenotes já estava marcado nos calabouços do rei, nas galeras. Nada os teria salvado.
— Se seus irmãos os traíram, venderam, não atirem a culpa em quem os ajudou... Não os entreguei... ao contrário, tive de suplicar ao senhor do Gouldsboro que os recebesse a bordo. Vocês estão suficientemente a par das coisas do mar para avaliar o. que significa o embarque de cinquenta passageiros suplementares num navio que não estava preparado para isso. Os homens comem biscoito e carne salgada desde o primeiro dia, para que haja provisões frescas para seus filhos.
— E a nossas mulheres, o que é que eles reservam? - zombou o advogado.
— E para ele próprio? - acrescentou Manigault. - Seria ingénua, Dame Angélica, a ponto de crer que ele nos presta um serviço sem reclamar uma compensação?
— Certamente que não. Mas isso cabe a vocês discutirem com ele.
— Tratar com um saqueador de destroços!
— Vocês lhe devem a vida. Isso já não é muito?
— Ora, você está exagerando!
— Não. E bem o sabe, Sr. Manigault. Não sonhou com aquela cobra que o sufocava e que tinha a cabeça do Sr. Tomás, seu associado? Mas, agora que escapou ao maior perigo, não quer sequer ter a obrigação de reconhecimento para com estranhos que lhe fizeram a graça de salvá-lo, a você, o burguês mais considerado e temido de La Rochelle? E por quê? Simplesmente porque não é dos seus, porque não se parece com vocês... O samaritano os socorreu e tratou-os das chagas, mas nem por isso se torna menos samaritano a seus olhos de levitas infalíveis. O que pode vir de bom de Samaria?...
Sem fôlego, voltou-lhes as costas, altiva?
"Se eles soubessem de meus laços com ele", pensou, "certamente me matariam. E eu também perderia o pouco crédito que ainda posso ter junto a eles..."
Apesar de tudo, as palavras dela os abalavam. Sua ascendência subsistia, combatendo-lhes a desconfiança: Ela sentiu-se invadir por uma violenta exaltação ao pensar que brigava por ele, que tinha de defendê-lo. Embora a desdenhasse, ela se alinhava inteiramente ao lado dele, e tentaria abafar as ameaças que pudessem erguer-se contra ele. Helo menos uma coisa lhe dava forças. As mulheres não tinham levantado a voz naquele debate. Com certeza era-lhes difícil tomar partido. O cenário do universo delas transformara-se bruscamente demais. Havia certa perturbação em sua atitude e a dificuldade de escolher entre os perigos do passado e os do futuro.
— Mas não é'menos verdadeiro - resmungou Manigault, após um silêncio tenso - que os projetos de Monseigneur Rescator com relação a nós são mais do que suspeitos. Le Gall é categórico, e Bréage e Charrom... Misturados à tripulação, surpreenderam alusões que não deixam margem a dúvidas. Não nos levam para as ilhas. Nunca tiveram essa intenção.
— Talvez nos levem para a China - interveio o médico. - Sim, alguns dos homens parecem crer que o Rescator descobriu a passagem do norte para a fabulosa Catai, o estreito que navegadores e conquistadores procuraram em vão...
Entreolharam-se com um novo receio. Suas penas não se esgotavam! Atirados ao seio dos oceanos, viam-se entregues às próprias forças apenas.
No silêncio, ouviu-se Bertille chorar, e a atenção se fixou nela.
- Minha filha será vingada - disse Mercelot. - Se deixamos que abusem de nós e que o crime desse mouro permaneça impune...
Calou-se bruscamente, a um sinal de Manigault. Os homens falaram a meia voz por um longo momento. Angélica não podia ignorar a gravidade da situação. Sentia-se responsável.
Baixando os olhos, teve piedade das crianças, cujos rostos re-fletiam a inquietação. Alguns deles, procurando socorro contra a efervescência e a desorientação dos adultos, haviam-se reunido como avezinhas, os braços dos mais velhos protegendo os mais novos. Ela se ajoelhou junto deles, tomou Honorina contra si sob a capa e esforçou-se por distraí-los, falando-lhes dos cachalo-tes. Os marujos tinham prometido que logo lhes mostrariam aqueles animais.
Foi ela, enfim, quem lembrou às mães hipernervosas de preparar as crianças para dormir. Pouco a pouco a ordem se restabeleceu. Bertille admitira que, afora o medo terrível que sentira ao se ver carregada nos braços vigorosos do negro, não se lembrava de muita coisa, exceto de um vago remorso, e que não tinha dor em nenhum lugar.
O Pastor Beaucaire se mantinha à parte, Abigail perto dele.
Depois de deitar a filha, Angélica foi até eles.
- Oh, pastor - murmurou, esgotada. - O que pensa de tudo isso? Por que as provações da dúvida e da discórdia se somam às que devemos suportar? Fale-lhes.
O velho conservava a serenidade.
- Estamos no centro de um turbilhão - disse ele. - Eu escuto e só ouço clamores incoerentes. As palavras têm pouco peso contra o muro das paixões exaltadas. Chega um dia em que o melhor e o pior devem enfrentar-se no coração dos homens. Para alguns, esse dia chegou... Posso apenas orar, esperando o resultado desse combate entre o bem e o mal. Isso não data de hoje.
Só ele, o velho pastor, um pouco mais magro e encanecido pelas fadigas da viagem, não mudava.
— Sua sabedoria é grande, pastor.
— Estive muito tempo na prisão - disse o velho com um suspiro.
Se ele fosse um ministro de sua religião, ela teria gostado de confessar-se a ele e, sob o lacre do sigilo sacramental, dizer-lhe toda a verdade e pedir-lhe conselho. Mas até esse socorro espiritual lhe era recusado.
Voltou-se para Abigail, cuja atitude refletia a do pai. Serenidade, paciência.
— Abigail, o que vai acontecer? Aonde nos levará esse ódio que está em vias de erguer-se entre nós?
— O ódio costuma ser fruto do sofrimento - murmurou a jovem.
Seus olhos resignados fitavam, alguém adiante de Angélica.
A silhueta maciça de Gabriel Berne recortava-se negra no halo das lanternas.
Angélica quis evitá-lo, mas ele aseguiu e, implacável, obrigou-a a retirar-se com ele até a extremidade.escura da entrecoberta. A distância, poderiam trocar algumas palavras, coisa que raramente lhes era possível naquela algazarra permanente.
- Não se esquive outra vez. Está fugindo de mim. Os dias passam e já não existo a seus^olhos!...
Era verdade.
Todo dia Angélica se sentia invadida em todo seu ser pela personalidade, pela presençaTdaquele a quem amara, a-quem continuava amando e a quem citava unida apesar de tudo. Já não podia haver lugar nela para outro homem, ainda que fosse o vestígio de um interesse sentimental, e quase sem se dar conta disso ela deixara a Abigail os cuidados com a saúde de Mestre Berne, cujos ferimentos-tanto a inquietaram no início da viagem.
Agora ele estava curado, já que se mantinha em pé, sem nenhuma dificuldade aparente nos movimentos.
Tomara-a nos braços, com firmeza, e ela_via-lhe brilhar os olhos sem chegar a distinguir-lhe os traços do rosto. O fervor inusitado daquele olhar era a única coisa que o diferenciava do homem perto de quem ela vivera tão pacatamente em La Rochelle. Mas isso bastava para que agora ela se sentisse constrangida ao vê-lo aproximar-se. Além disso, sua consciência mesma a censurava.
- Ouça-me, Dame Angélica - continuou ele, em tom comedido -, você tem de escolher! Quem não está conosco está contra nós. Com quem você está?
Ela respondeu prontamente:
— Estou com as pessoas de bom senso, contra os imbecis.
— Suas palavras espirituosas de salão não se aplicam aqui. E você mesma sabe disso. Quanto a mim, naturalmente, não tenho motivos para rir. Responda-me sem gracejar.
E crispou os dedos sobre os braços dela a ponto de fazê-la gritar. Decididamente ele estava bem refeito de seus ferimentos. Recuperara todo o vigor.
— Não estou gracejando, Mestre Berne. Diante do pânico que está em vias de dominá-los a todos e que pode conduzi-los a atos lamentáveis, sou por aquelesNque, sem se iludir acerca das dificuldades que os aguardam, ainda assim confiam no futuro e não perdem a cabeça, inquietando até nossas crianças.
— E se um dia percebermos que fomos enganados, será o momento de lamentarmos nossa ingenuidade. Você conhece as intenções desse chefe de piratas que tanto a subjuga? Ele as comunicou a você, pelomenos? Duvido muito. Que acordo pode ter concluído com ele?
Ele quase a sacudia, mas ela mesma estava atormentada demais para notar isso.
"De fato, o que sei eu dele?", pensava ela. "Também para mim ele é um desconhecido. Passaram-se anos demais entre o homem que eu imaginava conhecer e este a quem nos confiamos hoje. Sua reputação no Mediterrâneo? Não era tranquilizadora... O rei enviava suas galeras contra ele. Seria possível que ele realmente se tivesse tornado um homem sem escrúpulos, carregado de crimes?" Ela permanecia em silêncio.
— Por que ele se recusa a nos receber - insistia Berne - e por que responde com desdém às nossas reclamações? Você acredita nele? Mas não pode garantir-lhe os atos.
— Ele concordou em recebê-los a bordo numa hora em que vocês tinham a vida ameaçada. Isso basta!
— Estou vendo que o defenderá sempre - resmungou ele -, mesmo que ele nos vendesse como escravos. Mas com que sortilégio ele conseguiu transformá-la assim? Que vínculos, que passado podem fazer de você uma criatura dele, você, a quem nada atingia em sua integridade... quando estávamos em La Rochelle?
O nome caiu entre eles, ressuscitando a suavidade dos dias em que, na calma da casa dos Berne, Angélica, como uma loba abençoada, curara-lhe as feridas. Essas doces recordações deviam ter para o protestante um gosto dilacerante e indelével.
Angélica estava em casa dele e ele ainda não sabia que ela trazia em si, em seu sorriso luminoso, todas as delícias da terra. Um mundo insuspeitado por ele - relegado mesmo, dizia-se ele -, no fundo de um coração excessivamente seguro de si próprio e que na armadilha da mulher só queria ver o perigo, Eva tentadora e culpada. Desconfiança, leve desprezo, prudência tinham sido sua regra. Agora ele sabia - porque um raptor arrancara-lhe aquele tesouro perto do qual as riquezas materiais que ele perdera não tinham mais importância. Cada dia daquela viagem infernal abria nele uma chaga insuportável. Odiava o homem enigmático e dotado de um encanto insólito, que precisava apenas surgir para que se vissem as cabeças femininas voltar-se para ele, como um vôo de gaivotas. '.'Todas mulheres sem alma", dizia-se ele, ultrajado. "Até as melhores... até esta." E estreitava Angélica contra si apesar das reticências -dela. A raiva decuplicava-lhe as forças e o desejo o aturdia a ponto de não ouvir as palavras que ela lhe dirigia, tentando em Vão repeli-lo. A palavra "escândalo", chegou-lhe afinal ao entendimento.
- Um escândalo já não é suficiente para esta noite? - suplicava Angélica. Por piedade, Mestre Berne, controle-se... Seja
forte. Domine-se. Seja um chefe e um pai.
Ele só sabia-de uma coisa: ela recusava-lhe os lábios, que no escuro poderia ter-lhi oferecido.
— Por que se defende com' tanto empenho? - sussurrou ele. - Não houve entre'nós uma-promessa de casamento?
— Não, não. O senhor se enganou. Isso é impossível. Isso não acontecerá nunca. Agora pertenço apenas a éle. A ele...
Ele deixou cair os braços, como se tivesse sido mortalmente ferido.
— Um dia lhe explicarei tudo... - continuou ela querendo atenuar o efeito "trágico dé sua declaração. - Compreenderá que os laços que me unem a ele... não são dos que se podem romper...
— Você é uma miserável!
O hálito dele queimava. Eles cochichavam, sem ousar erguer a voz.
— Por que fez todo esse mal? Todo esse mal?
— Que mal? - disse ela num soluço. - Tentei salvar-lhes a vida com o risco da minha.
— É pior ainda.
Ele fez um gesto de maldição. Já não sabia o que queria exprimir. O mal que ela lhe fizera sendo tão bela, sendo ela mesma, sendo justamente aquela mulher capaz de imolar-se por outros e de afastar-se dele depois de tê-lo feito entrever o paraíso de possuí-la e de tê-la por companheira.
Deitada em seu leito, Angélica permanecia de olhos muito abertos. A sua volta, as conversas tinham acabado por extinguir-se. Uma única lanterna ardia sob o teto baixo, de grossas vigas guarnecidas de argolas e ganchos.
"Tenho absolutamente de explicar a Gabriel Berne os laços que me unem a Joffrey de Peyrac. E um homem correto e que respeita os sacramentos. Ele aceitará, enquanto, se me acreditar apenas sobjugada por um aventureiro, será capaz de se entregar aos piores extremos para me arrancar ao domínio dele."
Se não falara há pouco, fora por medo de infringir as ordens que lhe dera aquele a quem ela insistia em considerar seu marido. Ele lhe dissera: "Não fale nada".
E por nada no mundo ela ousaria desobedecer àquele comando pronunciado numa voz estranha e que lhe fazia um arrepio correr pelas costas.
"Não fale nada. Preciso que os vigie... Se eles soubessem, haveriam de tomá-la por minha cúmplice..." E, apesar de suas próprias contestações diante dos protestantes, ela não podia impedir-se de torturar o espírito para tentar descobrir o sentido daquelas inquietantes palavras...
"Se é verdade que ele nos enganou... que seus projetos são criminosos... que ele já não tem coração... nem para mim... nem para ninguém..."
O tempo, escoando-se, longe de fazer a luz entre eles, adensava a escuridão.
"Ah, como ele me dá medo! E como me atrai!"
Fechava os olhos, virava a cabeça, como faria entregando-se, contra a dura parede de madeira. Atrás daquela parede batia o mar, incessante e indiferente.
"Mar... Mar que nos leva, ouça-nos... Mar... aproxime-nos..."
Por nada no mundo quereria estar em outro lugar. Lamentava já não ser a jovem Condessa de Peyrac, em seu castelo cercada de homenagens e riquezas? Certamente que não. O que preferia era estar ali, num navio sem nome e sem destino, pois esse pesadelo tinha gosto de algo maravilhoso. Ela vivia algo de assustador e de magnífico ao mesmo tempo, que a dilacerava. Sob a trama das incertezas e angústias, conservava a esperança do amor, um amor igual e tão diferente do que conhecera até hoje, que bem valia a pena que fosse gerado em tamanha dor.
Na transparência do sono, ela percebia os elos de realidades invisíveis a seus olhos quando estava desperta.
Pois aquele navio transportava o amor assim como o ódio. Angélica se via avançando, escalando escadas intermináveis que se alçavam e oscilavam na noite. Uma força sobre-humana a impelia para ele. Mas uma onda gigantesca a apanhava e a atirava num paiol escancarado e mais negro ainda. Ela recomeçava a se agarrar a incontáveis degraus, o medo agravado pela lancinante sensação de também haver perdido algo de muito precioso, a única coisa que poderia salvá-la.
Era torturante: a tempestade lá fora, a dupla escuridão dos paióis abertos sob seus pés, e a noite acima,, onde ela era lançada e repelida pelo perpétuo movimento das águas, e, principalmente, aquele sentimento intolerável de procurar em si mesma a senha que lhe daria a chave do sonho e o meio de arrancar-se a ele.
De repente encontrou: o amor. G amor despojado das ervas venenosas do-orgulho e do medo. Sob seus dedos, as escadas de madeira transformavârn-se em ombros duros e inflexíveis aos quais ela se agarrava, desfalecendo.-Uma fraqueza ganhava-lhe as pernas. Nada mais a sustentava acima do vazio senão os braços que a estreitavam até fazê-la sentir dor. E ela estava ligada a ele como uma liana flexível a um tronco sólido. Já não* vivia por si mesma. Havia lábios sobre os seus e deles ela extraía o sopro, avidamente. Sem o.beijo daqueles lábios, morreria. Seu corpo inteiro tinha sede da inesgotável doação de amor que a boca invisível lhe dispensava. Todas ás suas defesas" haviam desaparecido. Seu corpo abandonado e entregue à violência exigente de um beijo de amor era como uma alga flutuante nas torrentes de uma noite sem fim. Mas não existia mais nada além do toque de dois lábios quentes que ela reconhecia... Oh, sim, ela os reconhecia...
Despertou suando, ofegando, e, soerguida no leito, ficou com a mão sobre o peito, a comprimir o coração disparado, transtornada por haver sentido por intermédio de um sonho que arrancava todos os véus, uma sensação de volúpia tão poderosa. Isso não lhe acontecia há muito tempo.
Sem dúvida fora por causa do que acontecera no porão. A melopeia ritual do primitivo, embalando a consumação de seu desejo, pairava em toda parte, mesclando-se aos roncos do mar e assombrando os sonhos dos seres adormecidos.
Ainda fora de si, olhou à volta e notou, aterrorizada, a sua cabeceira, o vulto de um homem ajoelhado: Gabriel Berne.
— Foi o senhor - balbuciou -, foi o senhor que... O senhdr me... O senhor me beijou?
— Beijei?
Ele repetiu a palavra a meia voz, atónito, e meneou a cabeça.
- Ouvi-a gemer durante o sono. Não conseguia dormir. Vim vê-la.
A escuridão lhe teria ocultado o inconsciente êxtase dela? Ela disse:
- Tive um sonho, não foi nada.
Mas, sempre de joelhos, ele chegou mais perto.
Todo o corpo dela exalava o amor insano que acabava de experimentar, e, no estado em que ele se encontrava, não podia deixar de sofrer a atração de um apelo velho como o mundo.
Angélica voltou a ser abraçada, mas desta vez já não era um sonho e não era ele. Estava acordada o suficiente para saber disso. Apesar da febre que ainda a dominava, seu espírito recobrava lucidez bastante para recusar o estranho abraço. Suplicou:
- Não.
Mas estava como que paralisada. Lembrava-se de que Mestre Berne era terrivelmente forte. Vira-o estrangular um homem.
Pedir socorro! A garganta contraída não deixava passar som algum. E depois, era tão terrível e inconcebível que ela não conseguia crer no ato dele.
Tentou debater-se.
"Estamos todos ficando loucos neste navio", pensou, desesperada.
A noite os cobria, a prudência dos gestos ocultava-lhes o objetivo, mas ela via o homem que avançava sobre ela com uma tenacidade silenciosa.
Teve outro sobressalto, sentiu a mão dele contra o rosto e, virando a cabeça, mordeu-a com toda a força. Ele, primeiro, tentou fazê-la largar, mas não conseguiu, e surdamente gemeu de dor:
- Cadela selvagem!
O sangue corria na boca de Angélica. Quando finalmente destravou os dentes, Gabriel Berne dobrava-se em dois, sob o efeito do sofrimento.
- Vá embora - sussurrou ela. - Afaste-se de mim... Como ousou? A dois passos de nossos filhos!...
Ele recuou.
Em sua rede, a pequena Honorina mudou de posição. Uma onda deu uma batida surda contra a portinhola. Angélica recu
perava o fôlego. A noite acabaria e o dia renasceria. Eram inevitáveis os conflitos durante uma viagem naquele navio, instrumento de tortura de carvalho, onde estavam reunidos à força seres violentos de futuro incerto. Mas o espírito de Angélica acalmava-se mais depressa do que seu corpo. Continuava agitada, não podendo esquecer que ao despertar estava completaffiente dominada pelo desejo.
Esperava um homem. Mas não aquele. Daquele a quem amava estava separada, e estendia-lhe os braços. "Aperte-me contra você... Liberte-me, você que é tão forte'.: Por que o perdi? Se me repelir, morrerei!"
Balbuciava palavras baixinho, embalando contra si mesma o calor de seus impulsos recuperados. Como pudera permanecer gélida diante dele? E assim que se comporta uma mulher apaixonada? Tambémxle pudera crer que ela já não o amava. Mas, no sonho, ela lhe reconhecera os lábios.
Os beijos de Joffrey! Como pudera esquecê-los? Lembrava-se da surpresa que sentira, um dia, ao primeiro beijo, e depois, do encantamento. Por muito tempo, quando jovem, preferira aquela vertigem mais doce dos lábios à da posse. Nos braços dele, sob sua boca, elasabòreava aquele aniquilamento da amante que não é mais do que uma felicidade sem nome, graças ao bem-amado.
Depois, nenhuma boca-de homem soubera satisfazê-la a esse ponto. Ela considerava o beijo uma intimidade que só tinha o direito de compartilhar com ele. No máximo o aceitava como as preliminares indispensáveis de uma aventura mais arrebatada.
Dos beijos que lhe roubavam, ela se apressava a passar à conclusão dos ritos, o prazer no qual se sabia hábil e ardente. Os amantes a haviam contentado, mas dos lábios de nenhum ela se recordava com satisfação.
Ao longo de toda a vida, quase sem o saber, ela guardara para si a qualidade única daqueles beijos devoradores e maravilhosos que eles trocavam, rindo, nunca saciados, nos tempos tão remotos de Toulouse... e que o sono, que às vezes levanta todos os véus, acabava de devolver-lhe como por milagre.
CAPÍTULO XXII
Enforcamento a bordo
E ele estava ali, tão sombrio sob a máscara, que se diria um homem de aço, na manhã pálida, envolto pela fumaça das lamparinas apagadas.
Uma aparição súbita, que deixou os passageiros inquietos. Mal acabavam de despertar de seu sono pesado. Estavam com frio. Crianças tossiam e batiam os dentes.
Marujos armados de mosquetes cercavam o Rescator.
Ele passeou sobre os emigrantes um olhar que parecia mais penetrante por estar dissimulado pelas fendas da máscara.
— Homens! Reúnam-se e subam à coberta!
— O que quer de nós? - perguntou Manigault, abotoando o casaco amarrotado.
- Saberão dentro em pouco. Coloquem-se ali, por favor.
Subiu a galeria, examinando as mulheres. Diante de Sara Manigault, abandonou a rigidez para saudá-la com cortesia.
- Senhora, eu lhe ficaria igualmente grato se quisesse nos acompanhar, bem como à senhora - acrescentou, voltando-se para a mulher do papeleiro.
A escolha e o cerimonial especial não deixaram de perturbar as mais corajosas.
— Está bem, irei - decidiu-se a Sra. Manigault, envolvendo-se no xale preto. - Mas gostaria de saber o que nos reserva.
— Nada de agradável, senhora, posso confirmar-lhe, e sou o primeiro a me sentir pesaroso por isso, mas é preciso que estejam presentes.
Parou ainda diante de Tia Ana e de Abigail, convidando-as com um gesto a se alinharem junto ao grupo de homens que aguardavam, rodeados pelos marujos armados.
Depois se encaminhou até Angélica, muda de apreensão. Afe-tou uma reverência mais profunda e um sorriso mais irónico.
— A senhora também, faça o obséquio de seguir-me.
— O que está acontecendo?
— Acompanhe-me e sua curiosidade será satisfeita.
Ela se voltou para Honorina, para segurar-lhe a mão, mas ele se interpôs.
- Não. Nada de crianças na coberta. Acredite-me. O espetáculo não é pára elas.
Honorina se pôs a berrar a todo o,pulmão. Então o Rescator fez uní-gesto inesperado. Enfiou a mão na bolsa de couro que lhe pendia do cinto e retirou uma safira azul, grande como uma avelã e que soltava lampejos surpreendentes. Estendeu-a à criança. Honorina calou-se, vencida. Apoderou-se da safira e não viu mais nada a sua volta.
- Quanto a você - continuou ele, dirigindo-se novamente
a Angélica -, venha, e;não imagine que sua última hora chegou.
Em breve estará de vqltar pata junto de sua filha.
Na coberta dó castelo de proa, a tripulação estava reunida. Por entre as cores~dos trajes, cuja escolha ficava a critério da fantasia de cada um, distinguiam-se nitidamente os meridionais com cintos e lenços-de cores vivas ao pescoço, os anglo-saxões com gorros de lã, muitos dos^quais usavam um colete de pele. Dois negros e um árabe se destacavam perto dos rostos avermelhados e cabelos claros dos ingleses. No entanto, o quartel-mestre e os responsáveis por cada equipe de gajeiros estavam vestidos, naquela manhã, de casaco vermelho com galões de ouro, o uniforme distinguindo-lhes a posição de suboficiais a bordo.
O índio de pele acobreada perto de Nicolau Perrot, barbudo e peludo, completava o quadro das raças humanas, que não deixava de ser pitoresco.
Angélica não os imaginava tão numerosos. Como passavam a maior parte do tempo dispersos pelas vergas e ovéns, habituara-se a conhecer-lhes apenas as silhuetas simiescas e ágeis, perdidas na alta floresta de madeiras e velas, o reino deles, cujas gargalhadas, chamados e cantos passavam acima das cabeças.
Descidos de suas alturas, pareciam pouco à vontade sobre o assoalho, que não obstante se movia. Perdiam a ligeireza estupefaciente e acrobática, tornavam-se desajeitados, deslocados. Via-se que todos tinham o rosto profundamente marcado, antes grave que sorridente, e os olhos de todos, claros ou escuros, tinham aquela luz particular dos olhares acostumados a sondar o horizonte, a desconfiar, enquanto a arcada superciliar avança e os protege do brilho do sol.
Angélica adivinhou que, assim como ela, as companheiras estavam penosamente impressionadas. Uma coisa é ver alegres marinheiros perambulando pelos cais de La Rochelle; descobri-los sob o céu de sua solidão, separados de todas as doçuras da terra e, por isso mesmo, mais asperamente homens do que todos aqueles que, de dia, passam lado a lado de mulheres e crianças e à noite se sentam em casa, é outra coisa. Vendo-os assim, face a face, elas sentiam piedade e medo. Eram pessoas de outra espécie humana. Para eles só importava o ofício do mar, os terrestres lhes eram completamente estranhos.
O vento sacudia a grande capa escura do Rescator, que se colocara um pouco à frente. Ela pensou que ele era o senhor daqueles homens estranhos e estrangeiros, que conseguia fazê-los dobrar a cabeça dura*fazer-se ouvir pelos espíritos mais tenebrosos, encerrados naqueles corpos grosseiros.
Que ascendência não era preciso possuir sobre a vida, os elementos e sobre si mesmo para impor-se àqueles corações errantes, àqueles cérebros queimados, àqueles anti-sociáveis e inimigos de toda a terra?
O vento e sua grande sinfonia nos cordames eram os únicos ruídos a reinar no navio. Os homens, imóveis e de olhos baixos, pareciam petrificados por um inexplicável sentimento, comum apenas a eles. O acabrunhamento deles acabou por contagiar até os protestantes, os terrestres, reunidos na outra extremidade da coberta, perto da balaustrada.
Foi para eles que se voltou o Rescator ao falar:
- Sr. Mercelot, ontem à noite o senhor reclamava justiça pelo ultraje de que sua filha foi vítima. Satisfaça-se. Justiça foi feita.
Fez um gesto que levou todos a alçar os. olhos. Um murmúrio de horror veio-lhes aos lábios.
Acima deles, pendurado à verga do mastro da mezena, a trinta pés de altura, um corpo balançava suavemente.
Abigail cobriu o rosto com as mãos. A um sinal, a corda que sustentava o condenado se desenrolou rapidamente. O cadáver aterrou no meio da coberta e ali ficou, estendido, sem vida.
Os lábios intumescidos do mouro Abdullah descobriam, entreabrindo-se, o brilho de seus dentes brancos. A mesma claridade morta e nacarada filtrava-se das pálpebras semicerradas. Seus membros vigorosos tinham o abandono do sono, mas sua carne adquiria uma tonalidade cinzenta, e a visão de sua nudez dava arrepios a todos os espectadores sob o vento glacial da manhã.
Angélica revia* o homem nu, prosternado em sua miséria, e ouvia-lhe a voz rouca quando murmurava ou árabe, aos pés do amo: "Levantei a mão contra o senhor, mas é a sua mão que me punirá. Alá seja louvado!"
Os dois negros avançaram murmurando um coro de rimas nostálgicas e rápidas. Ergueram o corpo "do irmão, retiraram-lhe a corda infamante e, carregando-o, afastaram-se em direção aos gurupés. Os marujos cerraram fileiras atrás deles.
O Rescator continuava fitando os protestantes.
- Agora, devem saber uma coisa, de uma vez por todas. Mandei enforcar esse homem não porque atentou contra a virtude de sua
filha, Sr. Mercelot, mâs porque ele me desobedeceu. Quando embarcaram, vocês, suas mulheres e filhos, dei uma ordem formala toda a tripulação. Neiíhum de meus homens devia aproximar-se das mulheres e moças e faltar-lhes com o respeito... sob pena de morte. Ao desobedecer, Adbullah sabia o risco que corria.
Agora, pagou. .
Avançou para" eles, plantou-se diante de Manigault, e examinou um a um Berne, Mercelot e o Pastor Beaucaire, a quem a atitude geral dos companheiros parecia indicar como os chefes da comunidade. Sob sua capa entreaberta pelo vento, viam-se-lhe as mãos enluvadas crispar-se sobre a coronha de duas pistolas atravessadas ao cinto.
- Quero acrescentar - continuou, no mesmo tom pesado de ameaça - que vocês são rocheleses, senhores, conhecem as leis do mar. Não ignoram que no Gouldsboro sou o único senhor abaixo de Deus. Todos a bordo, oficiais, tripulantes e passageiros devem obediência a mim. Enforquei esse mouro, meu fiel servidor, porque infringiu ordens minhas... E se vocês as infringirem um dia, saibam que também os enforcarei...
CAPÍTULO XXIII
O amor renasce - Apreensão do Capitão Jason
Ela o olhava desvairadamente, devorava-o com os olhos. Como ele estava só!
Só ao vento. Assim como o vira só na charneca.
Só como são os homens que não se assemelham aos demais.
No entanto, levava sua solidão com a mesma desenvoltura com que usava a grande capa preta, cujas dobras pesadas ele sabia tão bem fazer flutuar ao vento.
Todos os fardos da vida ele os carregara assim sobre seus ombros de homem, e, pobre ou rico, poderoso ou banido, doente ou vigoroso, era assim que levara sua existência, sem se dobrar nem se queixar a ninguém, e ela sabia que era nisso que residia a nobreza dele.
Sempre seria um grão-senhor.
E ela tinha vontade de correr para aquela força inalterável para que a sustentasse em sua fraqueza, e também de atraí-lo a si, para que ele repousasse finalmente.
Um apito dispersou a tripulação. Os homens alegravam-se por entre a mastreação. Do tombadilho, o Capitão Jason gritava ordens pelo alto-falante de couro.
As vergas cobriam-se de velas. O quadro ganhava vida.
Sem dizer palavra, os protestantes haviam deixado a coberta. Angélica não os acompanhou. Naquele instante só existiam ela e ele e o horizonte sem fim à volta de ambos.
Ao se virar, Joffrey de Peyrac a viu.
- Uma coisa banal ao mar, uma execução para servir de exemplo e manter a disciplina geral - disse. - Não há motivo para emoções, senhora. Você, que navegou pelo Mediterrâneo, nas mãos de piratas e mercadores de escravos, deveria saber disso.
— Eu sei.
— O poder tem servidões. A disciplina é uma obra rude de forjar e, depois, de manter.
— Sei disso também - disse ela.
E lembrou-se, com espanto, de que fora chefe de guerra e de que conduzira homens a combate. .
- O negro também sabia - continuou, pensativa. - Entendi o que ele quis dizer ontem à nojte, quando o surpreendemos.
E de súbito o despudor da ceiía que lhes aparecera à vista e sua atmosfera ardente e insólita recompunham-se diante dela e traziam-lhe às faces uma coloração viva e perturbada.
Lembrou-se num átimo de que estendera amão e apertara o braço daquele que estava a seu lado. Ainda sentia na palma da mão a carne musculosa, dura como madeira, sob o tecido do gibão. Seu amor!
Ele estava ali!
Os lábios com que sonhara conservavam, sob a rigidez da máscara, a forma calorosa e viva.
Ela já não tinha de perseguir desesperadamente a imagem fugidia de uma recordação.
Ele estava ali!
Tudo o que os separava não passava de ninharias. Desapareciam por si.
A certeza de uma" realidade há muito buscada em sonho a invadia de uma felicidade intensa. Erguia-se ali diante dele, sem ousar mover-se, cega para tudo o que não fosse ele.
Na outra extremidade do navio, o corpo do supliciado seria lançado às ondas.
O amor... a morte. O tempo continuava a tecer sua teia, a embaraçar nos fios dos destinos aquilo que cria a vida e que a destrói.
- Creio que seria bom que retornasse a seu alojamento - disse Joffrey de Peyrac afinal.
Ela baixou os olhos, mostrando com um sinal que entendera e que era dócil.
Naturalmente todos os obstáculos ainda não haviam ruído entre eles. Mas eram apenas detalhes minúsculos. As muralhas mais intransponíveis já haviam caído, aquelas por trás das quais ela não parara de chamá-lo, torcendo as mãos: as da morte e da ausência.
O que importava o resto? Um dia o amor deles também ressuscitaria.
A Sra. Manigault voltou-se bruscamente para Bertille e a esbofeteou.
- Criaturinha imunda! Agora está satisfeita. Tem a morte de um homem na consciência.
Foi um alvoroço. Apesar da consideração que devia à mulher do armador, a Sra. Mercelot pôs-se de -unhas e dentes em defesa da filha.
— Você sempre teve inveja da beleza de minha filha, enquanto as suas...
— Por bela que seja a sua Bertille, ela não tinha nada que se fazer de sedutora para um negro. É de se pensar que nunca viveu, minha comadre!...
Não foi sem dificuldade que as separaram.
- Acalmem-se, mulheres! - grunhiu Manigault. - Não é arrancando-se as coisas que nos ajudarão a sair deste vespeiro.
Voltando-se para os amigos, acrescentou:
— Esta manhã, quando ele apareceu, imaginei que tivesse descoberto o que estamos preparando. Felizmente não percebeu nada.
— Mas ele desconfia de algo - resmungou o advogado, preocupado.
Calaram-se, porque Angélica apareceu. As portas se fecharam atrás dela e ouviu-se o ruído das correntes que os aferrolhavam.
- Nada de ilusões. Somos vulgares prisioneiros! - disse ainda Manigault.
Gabriel Berne estava ausente. Dois marinheiros o retiveram do lado de fora, incumbidos de conduzi-lo, muito respeitosamente, mas com firmeza, até Monseigneur Rescator.
"É estranho", pensava ele. "Há pouco, quando eu lhe falava, ela teve para mim um autêntico olhar de apaixonada. É possível que alguém se engane com um olhar assim?"
Estava ainda a meditar naquele minuto imcomparável, tão fugaz que duvidava de tê-lo vivido, quando o huguenote entrou.
- Sente-se, senhor - disse Joffrey de Peyrac, apontando-lhe uma cadeira a sua frente.
Gabriel Berne sentou-se. A cortesia do anfitrião parecia-lhe pura exceção, e estava certo.
Após um longo silêncio, em que os adversários se observaram, teve início o duelo.
- Em que pé se encontram seus projetos de casamento com Dame Angélica? - perguntou a voz surda que se matizava de zombaria.
Berne não vacilou. Com desprazer, Peyrac notou-lhe o autocontrole. "O grande zangão não se esquiva às picadas", pensou. "Mas também não as devolve. Quem sabe se o peso dele não acabará por me arrastar e fazer tropeçar?"
Finalmente Berne meneou a cabeça.
— Não vejo necessidade de falar dessas coisas.
— Eu, sim. Interesso-me por essa mulher. Portanto, gosto de falar nisso.
— O senhor também a pediria em casamento? - fez Berne, zombeteiro por sua vez. ...
— Certamente que não.
A risada do interlocutor foi incompreensível para o huguenote e decuplicou-lhe o ódio. Mas ele continuou calmo.
— Talvez deseje saber por mim, senhor, ao me mandar chamar, se Dame'Angélica sucumbe a seu cinismo e se está prestes a destruir suavida e-suas amizades para agradá-lo.
— De fato-havia afgo disso em minhas intenções. Pois bem, o que responde?
— Considero-a razoável demais para se deixar apanhar em suas armadilhas - afirmou Berne, com mais veemência pelo fato de, infelizmente, duvidar das próprias palavras. - Junto a mim ela buscou o esquecimento de sua vida atormentada. Ela conhece bem demais o'preço da'paz. Não pode lançar ao vento tudo o que nos liga. Os dias de amizade, de entendimento, de auxílio mútuo... Salvei a vida de sua filha.
— Ah! Pois eu também! Então somos rivais por duas mulheres e não por uma...
— A menina conta muito - disse Berne, ameaçador, como se brandisse um espantalho. - Dame Angélica jamais a sacrificará! Por ninguém!
- Eu sei. Mas tenho aqui com que seduzir as jovens senhoritas.
Levantando a tampa de um cofrinho, escorregou jóias por entre os dedos, divertido.
- Tive a impressão de perceber que a criança é sensível à cintilação das pedras preciosas.
Gabriel Berne cerrou os punhos. Não podia escapar à certeza, quando se encontrava em face daquele homem, de estar lidando com uma criatura infernal. Responsabilizava-o pelo mal que sentia em si próprio e pelo mal-estar persistente que sentia ao se ver entre os demónios dele. A martirizante recordação do breve drama que se desenrolara entre Angélica e ele na noite anterior o atormentava a tal ponto que fora apenas como um autómato que assistira à execução do mouro.
— Como vão seus ferimentos? - indagou Joffrey de Peyrac, fingidamente atencioso.
— Não os sinto - respondeu o outro, secamente.
— E este? - perguntou o demónio, apontando o pano avermelhado com que Berne tinha enrolado a mão cortada pelos dentes da jovem.
Berne ficou roxo e se levantou. Joffrey de Peyrac fez o mesmo.
- Mordida de mulher - murmurou -, mais venenosa ao coração do que à carne.
Ao exasperar àquele homem humilhado, Joffrey sabia que cometia um erro grave. Também carecera da prudência mais elementar ao mandar trazer Berne assim a sua frente, mas naquela manhã notara a mão enfaixada e não pudera resistir ao desejo de verificar uma hipótese que se revelou correta.
"Ela o repeliu", dizia-se ele, jubilante, "ela o repeliu. Então ele não é amante dela!" Uma satisfação que certamente teria de pagar bem caro, pois Berne não esqueceria. Berne se vingaria. Em seus olhos de comerciante astuto, acumulava-se um rancor implacável.
— O que pensou ter adivinhado, Monseigneur?
— O que você próprio não nega, Mestre Berne. Dame Angélica é feroz.
— Veria nisso o triunfo de sua causa? Correria o risco de enganar-se. Eu me surpreenderia se ela tivesse concedido ao senhor o que recusa a todos os homens.
"Touché", pensou Joffrey de Peyrac, recordando-se do recuo de Angélica entre seus braços.
Observava com atenção o rosto do adversário, que se tornara impassível.
"O que será que ele sabe sobre ela que eu ignoro?"
Berne sentira-o vacilar. Quis aumentar a própria vantagem. Falou. Sua voz reconstituiu o horror de um relato de que a época não era escassa. Um castelo em chamas, criados assassinados, uma mulher ferida, violentada por soldados, carregando nos braços um filho estrangulado. Desde aquela noite terrível, a mesma mulher não podia receber o amor sem reviver as atrocidades que sofrera. Havia mais e pior. A criança, sua filha, nascera desse crime. Ela ignoraria para sempre qual daqueles mercenários mal-cheirosos era o pai.
— De onde tirou essa fábula? - perguntou bruscamente o mascarado.
— Dela própria. Dela própria.
— Impossível.
Berne já podia saborear sua vingança. A sua frente seu adversário titubeava, embora permanecesse ereto.e não manifestasse emoção.
— Os dragões do reirvocê diz? Tagarelices de ignorante! Pois uma mulher de sua qualidade,- amiga-de Sua Majestade e de todos os grandes do reino, não podia correr o risco de ser vítima da soldadescaT Por que a teriam atacado? Sei que na França perseguem os huguenotes, mas -ela não pertencia a essa religião.
— Ela os ajudava.-
O mercador ofegava e o suor porejava-lhe da testa.
— Era a "Rebelde do Poitou" - murmurou iele -, sempre desconfiei disso, e agora suas palavras me dão a certeza. Sabíamos que uma grande dama, outrora honrada na corte, levantara sua gente contra ó rei & arrastara toda a província, huguenotes e católicos, na rebelião. Durou quase três anos. No fim, eles venceram. O Poitou foi devastado. A mulher desapareceu. Sua cabeça foi colocada ao prémio de quinhentas libras... Eu me lembro. Era bem ela.
— Vá embora! - exclamou Joffrey de Peyrac numa voz quase imperceptível.
Eis então com que foram ocupados aqueles cinco anos da vida dela que ele ignorava e durante os quais ele a imaginara morta ou retornada, submissa, ao rei da França.
Uma rebelião contra o rei, a insensata! As mais atrozes torpezas! E dizer que ele a tinha em Cândia. Teria evitado tudo isso.
Em Cândia ela ainda era a imagem daquela que ele conhecera, e emocionara-o até o âmago de seu ser. Que momento aquele em que através dos vapores do batistan oriental ele a vira e reconhecera!
Um mercador o avisara assim que ele lançou âncora na ilha de Milos. Anunciava-se no batistari de Cândia a venda de uma escrava magnífica. Ele era conhecido pelo amor "às peças de qualidade". Na realidade exageravam um pouco, mas o fausto árabe, necessário a sua situação, exigia que ele não desdenhasse as mulheres.
Comprazia-se em multiplicar os gestos espetaculares que lhe aumentavam a lenda e lhe garantiam, junto aos voluptuosos orientais, uma crescente consideração e respeito. De resto, era famoso seu gosto para a escolha de belos objetos humanos de prazer. A excitação da venda e dos lances, o interesse de descobrir sob o invólucro carnal e esplêndido a tímida chama humana daquelas mulheres humilhadas, vê-las renascer, ouvi-las, cada uma com relatos de infância e miséria, vindas dos quatro cantos do mundo: a circassiana, a moscovita, a grega, a etíope... isso o distraía de trabalhos mais duros e perigosos. Saboreava nos braços delas repouso, um breve esquecimento, por vezes o divertimento de volúpias novas. Elas logo se tornavam suas amigas, devotadas a ele até a morte. Pequeno bibelô encantador com que ele se divertia um momento descobrindo e acariciando, ou belo animal esquivo, que ele se comprazia em aprisionar. Consumada a conquista, seu interesse logo desaparecia. Conhecera mulheres demais para que alguma delas pudesse prendê-lo. E, antes de abandoná-las, empenhava-se em dar-lhes uma nova chance de vida, reconduzia ao país de origem a escrava capturada, dava um dote à pobre, acostumada desde a infância aos amores venais, para que ela pudesse escolher seu caminho livremente, devolvia ocasionalmente os filhos a uma mãe que os perdera... Mas quantas não se agarravam a ele, suplicando:
- Conserve-me sempre, não o incomodarei... Ocupo pouco
espaço... É tudo o que lhe peço...
Tinha então de se cuidar dos filtros mágicos que elas tentavam fazê-lo tomar e de suas astúcias de víbora.
— Você é forte demais - gemiam elas, desmascaradas -, vê tudo, adivinha tudo. Não é justo. Eu sou pequena. Sou apenas uma mulher que quer ficar a sua sombra.
— Ele ria, beijando belos lábios polpudos que para ele não tinham mais importância do que um fruto rapidamente saboreado. E voltava ao mar.
Com o tempo, a reputação de uma nova beldade vinha espicaçar-lhe a curiosidade, e ele tentava adquiri-la.
O mercador de Milos, ao falar-lhe da cativa de olhos verdes, divertira-o com seu entusiasmo levantino péla "qualidade da mercadoria". Única! Admirável!... Bei Chamil, o eunuco branco, provedor dos haréns do Grão-Turco, estava entre os interessados. Apenas por essa razão Monseigneur Rescator devia entrar na liça. Mas não seria enganado... Que-julgasse por si! A raça? Uma francesa. A qualidade? Surpreendente. Tratava-se de uma autêntica grande dama da corte de Luís XIV. Em segredo, e para aqueles que estavam de fato decididos a pagar o preço, murmurava-se que era até uma das favoritas do rei da França. Seu andar, sua postura, sua linguagem não enganavam e aliavam-se a todas as belezas que se podem esperar: uma cabeleira de ouro, olhos claros como a água do mar, um corpo de deusa. Seu nome? Afinal de contas, por que não dizer,.para dar autenticidade a um grande segredo? Marquesa du Plessis-Belliere. Um nome de primeiríssima linhagem, dizia-se. Rochat, o cônsul da França, que a vira e conversara cõm ela, eia categórico a esse respeito.
Estupor! Depois de certificar-se com perguntas prementes de que o interlocutor não inventava histórias, o Rescator literalmente correra para Cândia, interrompendo todos os negócios. A caminho fora informado das circunstâncias que haviam colocado a jovem entre as" mãos dos mercadores de escravos. Dirigia-se a Cândia, a negócios; outros diziam que ia ao encontro de um amante. A galera francesa que a transportava naufragara, e o Marquês d'Es-crainville, aquele varredor dos mares, recolhera-a de um barco e, com ela, sua maior sorte de pequeno pirata. Todos previam que os lances subiriam de maneira vertiginosa.
No entanto, tivera de vê-la para crer. Apesar de seu sangue-frio, guardava uma lembrança imprecisa daquele instante em que soubera ao mesmo tempo que era ela mesmo e que estava a ponto de ser vendida. De início, cessar os lances, fechar o mercado com uma única cifra: trinta e cinco mil piastras. Uma verdadeira loucura!
E depois cobri-la, furtá-la aos olhares.
Só então a sentira, apalpara-a, bem viva, real. Vira igualmente, ao primeiro olhar, que ela estava no limite da resistência nervosa, uma mulher enlouquecida pelas ameaças e brutalidades daqueles ignóbeis mercadores de carne humana, uma mulher como todas as outras que ele recolhera, arquejantes, nos mercados do Mediterrâneo. Ela não o reconhecia, desorientada, enlouquecida... Então resolveu esperar para tirar a máscara, esperar até arrancá-la daquela multidão ávida e curiosa que os cercava. Levá-la-ia para seu palácio, mandaria cuidar dela e, quando ela despertasse, ele estaria ali, a sua cabeceira.
Infelizmente seu projeto romanesco fora frustrado pela "própria Angélica. Podia ele imaginar que uma criatura tão acuada, tão extenuada, encontrasse forças para escapar-lhe por entre os dedos, assim" que saiu do batistan} Contava com cúmplices, que haviam incendiado o porto. Pouco a pouco, por entre os escombros fumegantes, a verdade viera a luz. Tinha-se notado um barco de escravos que se aproveitou da confusão do incêndio para afastar-se. Ela estava entre eles! Maldição! Sua fúria de então assemelhava-se bastante à que ele sentia hoje. E podia dizer a si próprio que devia a Angélica suas maiores dores, assim como lhe devia suas cóleras mais violentas.
Como em Cândia, pôs-se novamente a maldizer a sorte. Ela fugira e cinco anos bastaram para que ele a perdesse para sempre. O destino a devolvera a ele, mas depois de fazer dela uma mulher nova, que já não lhe devia nada.
Como reconhecer o delicado elfo dos brejos do Poitou ou mesmo a tocante escrava de Cândia numa amazona cuja própria linguagem lhe era incompreensível? Ela estava possuída de uma chama estranha, que ele encontrava dificuldade em explicar.
Ainda hoje ele se perguntava por que ela queria, com tanta força, com tal febre, salvar todos os "seus" protestantes, quando aparecera a sua frente, descabelada, dura, encharcada.
Ela não era sequer um destroço da vida. Caso o fosse, ter-lhe-ia inspirado no mínimo piedade. Teria entendido melhor que o simples medo de cair nas mãos dos homens do rei, se era verdade que tinha a cabeça a premio, a lançasse a seus pés para que lhe salvasse a vida e a da filha. Acovardada, petrificada de medo, envilecida, ele a teria recebido melhor do que assim tão estranha a seu passado. Envilecida! Afinal de cantas, assim estava. Uma mulher que rolara já não se sabia por onde, indiferente ao destino de seus filhos, e que ele reencontrava munida de uma bastarda, nascida de um desconhecido.
Não lhe bastava, então, ter passeado loucamente pelo Mediterrâneo, correndo atrás de algum galante. Toda vez, quando ele aparecia para tirá-la de alguma enrascada, ela encontrava o meio de escapar-lhe levianamente, a fim de se lançar em perigos ainda maiores: Mezzo Morte, Mulay Ismael, a fuga pelo Rif. Era de crer que ela colecionava as piores aventuras por prazer. Uma inconsciência que chegava às raias da tolice. Infelizmente era preciso ceder à evidência. Sim, ela era tola, a enfermidade da maioria das mulheres. Não contente de haver escapado incólume, lançara-se numa rebelião contra o rei da Erança. Que diabo a possuía? Que génio de se destruir? E papel de urrrâ mulher, mãe de família, levantar um exército? Não podia ficar fiando linho em seu castelo, em vez de se entregar á soldadesca? Ou mesmo, no fundo, continuar a se fazer de coquete em Versalhes, na corte do rei? Jamais se devia deixar que as mulheres resolvessem sozinhas o próprio destino. Angélica, para sua infelicidade, carecia daquela qualidade muçulmana que ele aprendera a respeitar: a de às vezes saber abandonar-sê ao destino, deixar que ajam as forças invisíveis do universo. Não: Angélica tinha de dirigir os acontecimentos, prevê-los, conduzi-los a seu bel-prazer. Era esse seu mal. Era inteligente demais para uma mulher!
Chegando a esse-ponto de-suas reflexões, Jóffrey de Peyrac apoiou a cabeça entre as mãos e disse consigo que não entendia nada, absolutamente nada das mulheres em geral e de sua mulher em particular.
O grão-mestre na arte de amar que os trovadores do Langue-doc gostavam de "consultar, o sutil capelão, também não dissera tudo, pois não conhecera a vida o suficiente. E a ele mesmo, Jóffrey, os livros, as filosofias e as experiências científicas ainda não haviam ensinado tudo. Assim, o coração do homem é sempre cera virgem, por mais sábio que ele se imagine...
Dava-se conta de que naqueles poucos minutos acabara de acusar a mulher de ser estúpida e inteligente demais, de se haver entregado ao rei da França e de tê-lo combatido, de ser de uma fraqueza insigne e de uma energia anormal, e era obrigado a constatar que toda a disciplina cartesiana, que tanto gostava de considerar como sua, definitivamente o deixava impotente, ele, de cérebro lúcido e masculino, incapaz de ver claro dentro de si mesmo.
Sentia apenas sua cólera e sua dor.
Contra toda a lógica, a violação que"ela sofrera lhe aparecia como a última traição, pois o ciúme e o instinto de posse primitivos gritavam mais alto nele. Revoltava-se, gritava no fundo de seu coração: "Não podia ter agido de maneira a se preservar para mim?"
E, já que ele era o homem vencido pela sorte e que não podia defendê-la, ela pelo menos que não se expusesse.
Todo o amargor de sua derrota, ele o saboreava hoje, Vae victis.
De repente entendeu o sentimento que leva certas tribos selvagens da Africa a desfigurar as próprias mulheres, obrigande-as a usar placas de cobre nos lábios, de modo que o vencedor que as capture só possa ter criaturas medonhas entre os braços...
Ela era bela demais, encantadora demais. Mais perigosa ainda quando não se esforçava por sê-lo e o poder de seus olhos, de sua voz e de seus gestos parecia brotar dela como uma fonte natural.
A pior das coqueterias. No fundo, a mais desarmante!...
- Monseigneur, perdoe-me!
Seu amigo, o Capitão Jason, estava a sua frente.
— Bati várias vezes. Como imaginei que estivesse ausente, entrei.
— Sim.
Se era capaz de sentir cóleras violentas, jamais o grande chefe dos mares em que o Rescator se tornara as exteriorizava. Sua tensão interior podia ser adivinhada, por aqueles que o conheciam muito bem, pela chama do olhar, habitualmente alegre ou apaixonada, e de súbito alterada, fixa e terrível.
Jason não se enganou. Aliás, ele próprio achava que havia inúmeras razões para provocar a mudança de humor do patrão, Nada mais funcionava a bordo! Se houvesse um tumulto, azar! Isso permitiria esclarecer as coisas antes que azedassem de todo.
Com um gesto da mão, o segundo capitão mostrou, aborrecido, um enorme pacote que os marinheiros que o acompanhavam acabavam de pousar no chão para logo irem embora.
Das dobras de uma velha coberta de pêlo de camelo, escapava um inacreditável amontoado de objetos. Diamantes brutos cujo brilho resinoso assemelhava-se ao de vulgares tampas de garrafa, jóias de ouro primitivas, um odre fedendo a bode e ainda inchado com um resto de água doce, certamente nauseabunda, um Corão viscoso de umidade e gordura, ao qual estava preso o amuleto ou baraka.
Joffrey de Peyrac inclinou-se para pegar o saquinho de couro e abriu-o. Continha um pouco de almíscar de Meca e um bracelete de pêlo de girafa, sobre o qual estavam fixadas, como berloques, duas presas de cobra chifruda.
- Lembro-me desse dia, no país dos achantis, onde Abdulah matou a cobra que deslizava na minha direção - disse ele, pensativo -, eu me pergunto...
— Sim, é o que eu também faria - cortou Jason, contra toda a disciplina e o hábito. - Colocaremos então a baraka sobre o peito dele e o costuraremos em sua djellaba mais bonita.
— Depois, ao crepúsculo, será descido até o mar. Se bem que sua alma ficasse muito mais feliz se o enterrassem...
— Ainda assim será uma satisfação para seus irmãos muçulmanos a bordo, que imaginam que ele será tratado como um cão, já que foi enforcado.
Joffrey de Peyrac examinou com atenção seu imediato. Rosto gretado, boca amarga. Tinha os olhos frios, que faziam pensar em pedras de ágata. Dez anos de navegação o ligavam àquele rapaz rechonchudo" e taciturno.
- A tripulação está murmurando - disse Jason. - Oh, claro, não são tanto os nossos antigos companheiros do Oriente, mas
os novos, principalmente os que tivemos de engajar no Canadá e na Espanha para completar o efetivo do Gouldsboro. Somos quase sessenta."E difícil manter uma ralé dessas sob controle. Ainda mais porque gostaria muito de saber o que é que o senhor está planejando. Queixam-se de não terem parado o tempo previsto em Cádiz nem recebido sua parte do ouro espanhol pescado pelos nossos mergulhadores malteses ao largo do Panamá... Dizem também que o senhor lhes proíbe de tentarem a sorte com as mulheres que estão a bordo... mas que se reserva a mais bela...
Esta censura grave, que o imediato não estava inventando, provocou uma gargalhada no senhor do Gouldsboro.
- Porque é a mais bela, não é, Jason?...
Sabia que a risada deixaria o capitão ainda mais fora de si, pois nada no mundo conseguia alegrá-lo.
— E a mais bela? - repetiu, incisivo.
— Não sei de nada - resmungou o outro, furioso. - O que sei é que há coisas ruins acontecendo neste navio, e não as vê porque está obcecado por essa mulher.
A palavra causou um sobressalto no Sr. de Peyrac. Parou de rir e franziu o cenho.
— Obcecado? Alguma vez me viu obcecado por uma mulher, Jason?
— Certamente que não. Por nenhuma... Mas muito, por esta. Ela já não o fez cometer tolices suficientes em Cândia e depois?
Quantas idas e vindas sem finalidade! Quantos negócios mal conduzidos porque o senhor queria reencontrá-la a todo custo, sem se ocupar do resto.
— Reconheça que é muito normal tentar recuperar uma escrava que custou trinta e cinco mil piastras.
— Mas havia outra coisa - disse Jason, cabeçudo. - Algo que nunca me confiou. O que importa! Já passou. Eu a imaginava desaparecida para sempre, morta e enterrada. E ei-la que reaparece.
— Jason., você é um misógino impenitente. Porque um dia, há muito tempo, uma sujeita com quem teve a imprudência de casar fez com que acabasse nas galés, para viver o amor perfeito com o amante, você tem à raça feminina um ódio que o faz perder muitas ocasiões agradáveis. Quantos maridos infelizes, unidos a tristes megeras, invejaram sua liberdade reconquistada, a qual você aproveita tão mal!
Jason continuava sombrio.
— Há mulheres que inoculam um veneno na gente contra o qual não há cura. O senhor mesmo, Monseigneur, tem certeza de estar sempre protegido contra esses tormentos? Sua escrava de Cândia me dá medo... Pronto.
— No entanto, o aspecto atual dela devia tranquilizá-lo. Fiquei muito surpreso, e mesmo um pouco desapontado, confesso, ao reencontrá-la sob a coifa de uma pudica burguesa.
Mas Jason balançou a cabeça com energia.
- Outra armadilha, Monseigneurl Prefiro uma odalisca declarada, na sua nudez, às dissimuladas que se velam e com um único olhar parecem prometer-nos o paraíso. O grosseiro veneno delas torna-se então uma essência sutil... sutil demais para que possamos percebê-la e nos precavermos. Essência? O que estou dizendo?... Quintessência!...
Joffrey de Peyrac o ouvia acariciando o queixo, pensativo.
— Estranho! Jason! - murmurou. - Muito estranho! Eu acreditava que ela já não me interessasse... e de modo algum.
— Que pena - fez Jason, lúgubre. - Se isso pudesse acontecer! Mas estamos longe do final...
Joffrey de Peyrac tomou-o pelo braço, para levá-lo para fora, para o balcão.
- Venha... As "riquezas" do meu pobre Abdullah empestam a minha cabina.
Perdeu-se em contemplação diante do céu que se diria de um tom pastel-alaranjado, enquanto o mar conservava matizes frios e duros.
— Estamos chegando... Vá tentar tranquilizar os homens. Dir-lhes-á que o ouro espanhol continua a bordo. Assim que tocarmos terra, em alguns dias, darei a cada um um adiantamento sobre as próximas negociações.
— Eles serão pagos, pois sempre o foram. Mas sentem que houve uma viagem perdida. Por que-essa ,partidà*precipitada para La Rochelle?, perguntaram eles. Porque embarcar gente que nos estorva e por quem nos privamos; e de'quem não se tirará uma moeda de cobre, pois bem se vê que não têm mais do que a camisa do corpo?
E como Joffrey de Peyrac continuasse em silêncio, o Capitão Jason assumiu um ar infeliz.
- Considera-me muito indiscreto, Monseigneur? E dá-me a entender que não temos, de nos meter em seus assuntos? E aí que o sapato nos aperta. Qs tripulantes e eu mesmo o sentimos ausente... Os marujos; principalmente, são sensíveis a isso. Sejam de que raça forem, o senhor sabe como eles são, esses homens do mar. Acreditam em-sinais, e ligam-se muito mais ao invisível do que às aparências... Repetem que o senhor não os protege mais.
Um sorriso estirou a boca do Rescator.
— Que caia urna tempestade e verão se não os protejo mais.
— Eu sei... Osenhor ainda está aqui entre nós. Mas eles já adivinham mais longe.
Jason fez um gesto com o queixo, ha direção da proa.
- Suponhamos que destinasse esses indivíduos que embarcou
a povoar as terras que adquiriu no Dawn East. No que é que isso nos concerne, a nós, marinheiros do Gouldsboro?
O Conde de Peyrac colocou a mão sobre o ombro do amigo. Seu olhar continuava a vagar para além do horizonte, mas apertou com força aquele ombro maciço sobre o qual com frequência se apoiara durante suas viagens sem fim.
— Jason, caro companheiro, quando você me conheceu eu já era um homem que havia vivido a metade de sua existência. Você não conhece tudo de mim, como suponho não conhecer tudo de você. Saiba que desde que me encontro no mundo minha vida se alterna entre duas paixões: os tesouros da terra e os encantos do mar.
— E belas mulheres?...
— Exageram. Digamos que as belas mulheres participaram, ocasionalmente, de uma ou outra aventura. A terra e o mar, Jason. Duas entidades. Amantes exigentes. Quando dou demais a uma, a outra reclama. Faz mais de dez anos, desde que o Grão-Turco me encarregou de monopolizar o comércio da prata, que não deixo a coberta de um navio. Você me emprestou sua voz para me permitir comandar os caprichosos elementos, e do Mediterrâneo ao oceano, dos mares polares ao das Caraíbas, conhecemos experiências exaltantes...
— E agora está novamente possuído pelo desejo de penetrar as entranhas da terra?
— É exatamente isso!
A frase caiu como uma maça. Jason baixou a cabeça.
Ouvira o que receava ouvir. Suas mãos fortes, de pêlos ruivos, crisparam-se sobre a amurada de madeira dourada. A pressão amigável de Joffrey de Peyrac acentuou-se.
- Deixar-lhe-eí o navio, Jason.
O outro meneou a cabeça.
— Não será mais a mesma coisa. Preciso de sua amizade para sobreviver. Sua paixão, sua alegria de existir sempre me surpreenderam. Eu tinha necessidade disso para existir também.
— Ora, seria você sentimental, velho empedernido? Olhe. Fica-Ihe o mar.
Mas Jason sequer alçou os olhos para a extensão esverdeada em movimento.
— Não pode compreender, Monseigneur. O senhor é um homem de fogo. Eu sou de gelo.
— Quebre esses gelos, então.
— Tarde demais.
Jason soltou um longo suspiro.
— Teria sido preciso que eu conhecesse mais cedo o segredo que lhe permite, a cada instante, lançar sobre o mundo um olhar novo. Qual é ele?
— Mas não há segredos - disse Joffrey de Peyrac -, a menos que sejam diversos. Cada um possui os seus. Que lhe direi?... Estar sempre disposto a recomeçar... Não aceitar ter apenas unia vida... mas vidas múltiplas...
CAPÍTULO XXIV
Armas suspeitas - Encontro com os cachalotes
Aquela navegação interminável continuava, pois, ao saírem à coberta no despertar da manhã, os passageiros ainda viram apenas o mar, sempre o mar. Só que este, mais uma vez, mudara de aparência. Parecia um lago, quase sem ondulações. Apesar de todas as velas desfraldadas, p navio mal se movia, o que fizera os ocupantes da entrecoberta acreditar por um instante que estivessem ancorados. Ergueram-se-vozes, cheias de esperança. Chegamos?
- Roguem, ao Senhor para que não seja nada! - exclamara Manigault. -Ainda não estamos suficientemente ao sul para termos chegado a São Domingos. Isto significaria, então, que atingimos as costas desérticas da Nova Escócia, e ninguém pode prever o destino que nos aguarda.
Foi com um misto de decepção e alívio que contemplaram a melancólica vastidão a sua frente. As velas pendiam, e a única agitação nas vergas era a tripulação, que tentava desdobrar as velas mais altas para captar um sopro de vento quase inexistente.
Era a calmaria, tão temida pelos marinheiros. O tempo estava relativamente cálido. O dia pareceu longo. E quando, ao entardecer, durante uma nova saída, os passageiros puderam constatar a lamentável aparência das velas, que pendiam, moles e enrugadas apesar dos esforços da tripulação, houve fundos suspiros. Jenny, a filha mais velha dos Manigault, que esperava um filho, rebentou em soluços.
- Se este navio não avançar, vou enlouquecer. Que ele chegue! Que chegue não interessa aonde, mas que esta viagem termine!
Lançou-se para Angélica, suplicando:
- Diga-me... Diga-me que vamos chegar logo.
Angélica acompanhou-a até sua cama, esforçando-se por consolá-la. Os jovens lhe testemunhavam uma grande confiança, que lhe pesava um pouco, pois ela quase não se sentia em condições de corresponder. Não era ela quem podia comandar os ventos e o mar e o destino do Gouldsboro. Nunca se vira diante de um futuro tão impreciso e em tal incapacidade de 'saber que decisão tomar. E sempre pareciam esperar dela que conduzisse os acontecimentos numa direção ou noutra.
— Quando vamos desembarcar? - suplicava Jenny, que se acalmava com dificuldade.
— Não posso dizer-lhe, minha querida.
— Ah, por que então não ficamos em La Rochelle? Olhe nossa miséria... Tínhamos lençóis tão belos lá, vindos expressamente da Holanda para o meu enxoval.
— Neste momento os cavalos dos dragões do rei dormem em seus lençóis, Jenny. já os vi fazer isso nas residências de hugue-notes, no Poitou. Lavavam os cascos dos cavalos no vinho de suas adegas e os esfregavam com suas rendas de Malines. Seu filho estava destinado a nascer numa prisão e a lhe ser retirado em pouco tempo. Agora, em compensação, nascerá livre. Tudo se ganha, tudo se paga!
— Sim, eu sei - tornou a jovem, retendo as lágrimas -, mas queria tanto que já estivéssemos em terra firme... Este movimento perpétuo do mar me põe doente. E depois, tudo vai tão mal neste navio! Vai acabar correndo sangue, eu sei. E talvez meu marido esteja entre os mortos... Infelicidade!
— Está divagando, Jenny. Por que esses temores?
Jenny pareceu assustada e olhou à volta, ansiosa. Continuava agarrada a Angélica.
- Dame Angélica - cochichou -, você, que conhece o Rescator, você olhará por nós, não é? Fará que nada de terrível aconteça?...
- O que você teme? - repetiu Angélica, desnorteada.
Nesse momento uma mão pousou-lhe no ombro e ela viu Tia Ana, que lhe fazia um sinal.
- Venha, minha cara - disse a velha senhorita -, acho que entendo o que atormenta Jenny.
Angélica seguiu-a, enquanto ela se dirigia para o fundo da bateria. Empurrou uma porta carunchosa, atrás da qual, no início da viagem, ouviam-se balir cabras e grunhir porcos. Já fazia muito tempo que cabras e porcos haviam desaparecido, mas o local conservava um odor de estábulo que fazia sonhar.
Afastando trapos atirados a um canto e alguns chumaços de palha, Tia Ana descobriu uma dezena de mosquetes empilhados,' assim como um saco de balas de chumbo e um barril de pólvora.
— O que pensa disto?
— São mosquetes...
Angélica olhava as armas com mal-estar.
— A quem pertencem?
— Não sei. Mas penso que não é um lugar pára guardar armas, num navio onde a disciplina me parece bastante estrita.
Angélica tinha medo de compreender.
— Meu sobrinhome preocupa - continuou Tia Ana, aparentemente mudando de assunto. - Você não desconhece, Dame Angélica, a alteração deseu caráter. Mas sua decepção não deveria levá-lo a atos insensatos.
— Quer dizer que teria sido Mestre Berne quem colocou estas armas aqui? Com que finalidade? E como as teria obtido?
— Não sei de nada - disse a velha senhorita balançando a cabeça. - Mas outro dia ouvi o Sr. Manigault declarar: "Roubar a um ladrão não é pecado".
— Será possível? - murmurou Angélica. - Nossos amigos estariam pensando em fazer, mal a quem nos salvou?
— Eles têm a forte desconfiança de que ele pretende fazer-lhes algo de mal.
— Que pelo menos esperem para ter certeza.
— Dizem que depois será tarde demais.
— Quais são os projetos deles?
A sensação de serem observadas as fez calar-se. Atrás delas dois marujos, surgidos como que por milagre da escuridão do local, vigiavam-nas desconfiados. Não pareciam satisfeitos. Aproximaram-se falando espanhol. Angélica compreendia o suficiente da língua.
Bateu em retirada com Tia Ana e cochichou:
- Eles dizem que as armas são deles e que não temos de mexer nelas, e que às mulheres tagarelas corta-se a língua...
Acrescentou, um tanto aliviada:
— Veja! Suas impressões eram falsas. São armas da tripulação.
— As armas da tripulação não têm de estar embaixo de maços de palha - repetiu Tia Ana, peremptória. - Sei muito bem o que estou dizendo. Nossos ancestrais eram corsários. E por que esses malcriados falariam em nos cortar a língua se estivessem em paz com a consciência? Dame Angélica, não poderia oportunamente falar com Monseigneur Rescator sobre o que lhe mostrei hoje?
- Acredita que estou a tal ponto nas boas graças dele para ousar ir dar-lhe conselhos sobre os atos de seus homens? Eu não seria bem recebida! Ele é orgulhoso e desdenhoso demais para dar ouvidos a uma mulher, seja ela quem for!
Sua amargura transparecia. Cada vez que se dirigiam a ela como à eminência parda do poder, ela media até que ponto aquele junto de quem deveria recomeçar a viver a mantinha fora de sua existência.
- Eu teria acreditado que... - disse Tia Ana, pensativa. - Mas há algo entre você e esse homem que os aproxima. Seu passado, não é?... Você é parecida com ele. Assim que o vi compreendi que o meu pobre Gabriel não tinha mais chance alguma com você. Reconheço, por outro lado, que seu comandante inspira alguns receios a nossos correligionários e que ele não faz nada por dissipá-los. Ainda assim, confiarei nas iniciativas dele. É curioso. Estou convencida de que são as iniciativas de um homem prudente e que visa ao bem. E depois... é um grande sábio.
Suas faces ficaram rosadas, como se ela censurasse a si mesma um entusiasmo suspeito.
- E me emprestou livros excepcionais.
Dentre um lenço de seda onde os havia piedosamente envolvido, puxou dois volumes com bordas vermelhas e encadernados em couro.
- São exemplares raríssimos: Princípios de geometria analitica, de Descartes, e De revolutionibus orbium caelestium, de Copérnico. Sempre sonhei lê-los na França. Jamais consegui encontrá-los, nem em La Rochelle. E foi o Rescator quem os emprestou a mim, em pleno oceano. Curioso!
Tia Ana instalou-se no chão, sobre sua manta dobrada, a magra espinha apoiada às paredes desconfortáveis.
- Não irei passear esta noite. Tenho pressa de terminar estes tratados. Ele me prometeu emprestar-me outros...
Angélica compreendeu que a dócil senhorita raramente fora tão feliz.
"Joffrey sempre soube se conciliar com as mulheres", pensou. "Nisso reconheço-o bem."
Reconhecia também o talento dele em transtornar as pessoas, em fazer de um homem calmo como Mestre Berne um enfurecido, e de uma megera como a Sra. Manigault uma mulher quase indulgente.
Estava tudo mudado e positivamente ao Contrário. Em terra Angélica sempre tivera os homens, a- seu lado, enquanto as mulheres lhe faziam cara feia. Agora as mulheres pareciam aproximar-se dela, enquanto os olhares dos homens a tratavam como inimiga. Um velho instinto, sem dúvida muito profundo, prevenia-os de que um raptor - e precisamente de uma espécie diferente da deles - interpusera-se entre ela e eles. Até onde os conduziria esse rancor a que se mesclavam a desconfiança e dúvidas mais materiais?...
A pequena Hohorina estourava de um orgulho mal dissimulado. Finalmente descobrira um protetor masculino, e poderoso a bordo daquele navio de infelicidade que não apenas a atirava ao chão em todas as direções - tinha vários galos no nariz, na cabeça -, mas também onde todo mundo, inclusive sua mãe, de repente se desinteressava dela.
Para fugir dessémundo mais do que malvado, pois era indiferente, ela pulara no mar, onde as ondas a levariam a um país onde ela encontraria meninos altos e fortes que seriam seus irmãos, e um homem ainda mais alto e forte, que seria seu pai.
Mas o mar também a traíra e se abrira sob seus passos confiantes.
O mar, que continuava levando os gelos e os pássaros, não a quisera levar. Os pássaros ficaram malvados e tentaram arrancar-lhe os olhos. Mas então surgira das ondas um amigo com rosto de ouriço. Era "Casca-de-Castanha". Ele espantara o pássaro do mar e a tomara nos braços no momento em que toda a malvada água salgada lhe entrava na boca.
Depois Casca-de-Castanha a levara de volta ao navio, onde a mãe se ocupara dela a noite inteira. E agora restava-lhe Casca-de-Castanha, que tinha sulcos negros e inchados no lugar dos ferimentos feitos pelo pássaro. Honorina passava ali os dedinhos ligeiramente.
- Para curá-lo - dizia.
O siciliano, por sua vez, ficara impressionado com a medalha da Virgem que ele levava ao pescoço.
- Per Santa Madona, e cattolica, ragazzina carina?
Honorina não entendia e não se incomodava com isso. Bastava-lhe o tom para enchê-la de felicidade.
- Você é meu pai? - perguntou-lhe, tomada de súbita esperança.
O siciliano pareceu espantado, depois caiu na risada. Meneou negativamente a cabeça, com muitas explicações e uma mímica de mágoa, de onde ela concluiu que de não era seu pai e lamentava muito.
Correndo os olhos a sua volta, ele levou a mão ao cinto e puxou a faca. Da camisa branca listrada de vermelho, tirou um ob-jeto, do qual cortou o cordão e pendurou ao pescoço de Honorina, muito interessada. Depois, querendo ter o prazer de contemplá-la com mais luz, empurrou-a para um raio de sol avermelhado. O efeito pareceu-lhe satisfatório. Sussurrou:
- Você não dirá a ninguém quem lhe deu isto. Você jura. Sputo! Sputo!
Como Honorina não entendesse, o marujo cuspiu no chão e com um gesto convidou-a a imitá-lo, o que ela fez, deliciada. O marujo afastou-se, com um dedo sobre os lábios, pois notou Angélica, que procurava a filha.
Honorina estava duplamente feliz. Pois tinha outro amigo e estavam novamente dando-lhe presentes. Vasculhou no bolso do avental e encontrou a pedra brilhante que lhe dera o Homem Negro. Vendo aparecer a mãe, enfiou-a vivamente no bolso, com ar arisco, e fingiu não perceber Angélica.
Um raio de sol acusou o ruivo dos cabelos da menininha, e imediatamente Angélica notou, pelo contraste, o brilho de uma correntinha de ouro verde, aa.pescoço da criança, segurando um pendente que sem dúvida continha relíquias: fragmentos da verdadeira cruz ou de algum instrumento de suplício de um santo mártir, pois notavam-se as lascas de madeira coladas.
— Onde achou essa jóia, Honorina?
— Ganhei.
— De quem?
— Não foi o Homem Negro que me deu.
— Quem foi, então?
— Não sei.
Perto da correntinha de cor havia a pequena medalha de estanho, pendurada ao pescoço da criança encontrada pelas religiosas do hospital de Fontenayle-Comte e que Angélica jamais ousara tirar-lhe, a fim de lembrar-se e em sinal de reparação.
- Não minta. Esse pendente não caiu do céu.
Honorina visualizou o oceano cinzento roubando a jóia ao céu.
E disse, com segurança:
- Sim. O pássaro o segurava no bico. Deve tê-lo soltado e caiu no meu pescoço.
Depois cuspiu no chão e disse com ar resoluto:
- Pela Santa Madona, eu juro!
Angélica ficou entre a vontade de rir, de irritar-se e de levar adiante o interrogatório. A criança roubara de novo? Tomou-a nos braços e apertou-a com força. Sentiu-a escapar.
- Eu bem que.gostaria de encontrar meu pai - disse Honorina. - Ele deve ser muito bom, enquanto você é malvada!
Angélica suspirou. Decididamente, da filha ao marido, ninguém lhe perdoava facilmente- a menor das falhas... ,
— Fique com suas jóias de uma vez! - disse.-Veja que não sou tão malvada assim, afinal.
— Sim, você é muito, muito malvada - insistiu Honorina, implacável. - Sempre vai embora, ou então é sua cabeça que vai embora e me deixa sozinha. Então eu penso que vou morrer e me entedio.
— A gente nunca se entedia quando é garotinha. A vida é sempre bela. Veja, o pássaro já lhe trouxe um presente.
Honorina dissimulou o riso, escondendo-se contra o ombro de Angélica. Estava encantada de descobrir a mãe tão crédula. Tudo ia melhor esta noite.
— O navio está bonzinho - disse. - Parou de se mexer.
— É verdade.
Angélica reteve outro suspiro dando uma olhada à imensidão oleosa e tão inabitual do mar.
A noite caía com uma luz de começo do mundo, alaranjada e polpuda, doce e pesada, e ainda assim fria como uma ameaça.
Ilhas negras e cinzentas, como miragens,-mergulhavam e voltavam a mergulhar entre as ondinhas avermelhadas. Os movimentos incessantes ganhavam ares de bale. "Estou sonhando", pensou Angélica, que teve vontade de esfregar os olhos.
Uma voz veio dos ovéns, a do siciliano:
- Eh, bambina Cachalotes!
As crianças que brincavam na "grande rua" acorreram.
Angélica viu-se rodeada pelo bando pipilante. Os maiores erguiam os menores para que pudessem admirar o espetáculo.
Eram mesmo cachalotes, que há pouco ela tomara por ilhas. Os imensos corpos negros e luzidios apareciam e voltavam a mergulhar, deslizando entre duas águas, cuja transparência aumentava-lhes ainda mais a silhueta monstruosa.
De repente se viu um, magnificamente à tona, silhueta negra de cúpula imponente, coroada por um gêiser de vapor, e que terminava numa cauda vigorosa, reta como um leme.
- A baleia de Jonas - gritou um garotinho, sapateando -, a baleia de Jonas!
Ele transbordava de alegria.
— Queria viver sempre neste barco - disse uma das meninas.
— Eu não queria chegar nunca - acrescentou outra.
Angélica, que também se fascinava com as evoluções dos cachalotes, recebeu os comentários das pequenas senhoritas com admiração.
- Então estão contentes de estar no Gouldsboro? - indagou.
- Oh, sim! - fizeram as crianças, em coro.
Ela buscou a aprovação dos maiores.
Severina, tão discreta de hábito, pronunciou-se:
- Sim, aqui estamos tranquilas. Já não há o risco de nos mandarem para o convento. Já não nos aborrecem com todas aquelas páginas de teologia que minha tia me fazia aprender na ilha de Ré. Aqui temos o direito de pensar por nós mesmos.
Ela suspirou, aliviada. Severina, a preocupada, estava livre. O peso da angústia que ela arrastava desde a infância tombara-lhe dos ombros frágeis como uma capa de chumbo.
- Além disso, não corremos mais o risco de ir para a prisão - disse Marcial.
Desde o início da viagem Angélica se surpreendera com a coragem das crianças em geral. Não eram nem rabugentas nem choronas, como se poderia esperar que fossem. Se adoeciam, tinham pressa de sarar. Eram os pais que gemiam e se queixavam da petulância dos filhos. Elas, as crianças, sabiam que tinham escapado ao pior. E depois, nunca tinham sido tão livres quanto sobre aqueles poucos metros de pranchas. Nada de escola, de longas horas diante da escrivaninha ou diante da Bíblia.
— Se nossos pais nos deixassem subir aos onvéns e participar das manobras, seria melhor ainda - comentou Marcial.
— Um marujo me ensinou a fazer nós que eu não conhecia - disse um dos filhos de Carrere, o advogado.
Os mais velhos, porém, demonstravam certa reserva. Severina disse:
— Dame Angélica, é verdade que o Rescator deseja a nossa infelicidade?
— Não creio.
Pousou a mão sobre o ombro franzino. O rosto de Severina transpirou confiança e esperança. Assinrcomo em La Rochelle, Angélica, ao olhar as crianças, tinha aquela sensação de perenidade que a tranquilizava acerca da fugacidade da existência. Ajudá-las a sobreviver justificava-sua vida.
— Então não se lembram de que ele e seus homens os salvaram dos dragões do rei, que nos perseguiam?
— Sim. Mas nossos pais dizem que não sabem para onde ele nos leva.
- Seus pais estão preocupados porque o Rescator e seus homens são muito diferentes de nós. Falam outra língua, têm outros hábitos. Às vezes é difícil a gente se entender quando se é diferente.
Marcial teve um comentário de uma sabedoria profunda: Mas o país para onde vamos é muito diferente daquele que conhecíamos. Teremos de nos habituar. Estamos vogando para outros céus.
O pequeno Jeremias, que Angélica amava porque se parecia com Carlos Henrique, atirou para o lado a mecha loura que lhe velava o olhar azul e exclamou:
- Ele está nos levando para a Terra Prometida!
Angélica sentia o coração mais leve. Para além do duro combate que era preciso travar com os elementos e com as paixões humanas desencadeadas, as vozes das crianças, como o coro dos anjos, erguiam-se e repetiam:
— Vogamos para a Terra Prometida.
— Sim - afirmou ela, firmemente. - Sim, são vocês quem tem razão, crianças.
E, com um gesto que se tornara familiar, voltou-se para a popa e estremeceu, pois ele estava lá, no tombadilho, e ela teve a impressão de que ele a olhava.
CAPÍTULO XXV
Joffrey de Peyrac começa a entender muitas coisas acerca de Angélica
Vê-la rodeada de crianças que lhe falavam com animação e às quais ela respondia sorrindo era, para ele, a descoberta de mais uma mulher inteiramente nova e que o deixava perplexo.
O manto marrom que lhe caía dos ombros em longas pregas engrandecia Angélica. Sob aquele traje ao qual ele acabara habituando-se, ela conservava a imponência. Vestir-se com tanta sobriedade acentuava-lhe o mistério e a nobreza de seus traços.
Segurava pela mão a filha ruiva. Mas há pouco ele a vira abraçando a criança. Se era verdade que a menina nascera de uma tragédia e só lhe trazia à mente recordações de horror, de onde tirava ela a força para sorrir-lhe e amá-la tanto?
Berne contara que lhe haviam estrangulado o filho mais novo sob os olhos. Eis então o que acontecera ao pequeno Du Plessis-Belliere...
Por que fizera suas confidências ao protestante e se calava diante dele, seu marido? Por que não lhe fizera como tantas outras teriam feito em seu lugar, o relato e as lamentações de suas provações, que, aos olhos dela, deviam passar por desculpas?...
Pudor da alma e do corpo. Ela não falaria nunca. Ah, como lhe queria mal por isso!
Não tanto por haver-se tornado o que era, mas por haver-se tornado o que era por meio de outros e sem ele.
Queria-lhe mal - sim - por sua serenidade, sua resistência e, depois de haver enfrentado aqueles inúmeros perigos, vivido horas horríveis, por ousar apresentar aquele rosto liso, como uma bela praia com uma curva enfeitiçadora, onde a maré pode passar e repassar sem deixar vestígios, sem atenuar-lhe o brilho nacarado.
Aquela era a mesma mulher que enfrentara Mulay Ismael, sofrera torturas, fome, sede?
"E o que mais fiquei sabendo! Que ela conduziu seus camponeses contra a rei! Foi marcada com a flor-de-lis. E sorri, ali, entre as crianças, admirando as evoluções das baleias. "Posso pretender que não sofreu?... Como defini-la então? Nem envilecida, nem covarde, nem indiferente."
Uma mulher de qualidade.
Pois sim que ele sabia onde pisar com aquela desconhecida! Sua adivinhação, dele, a quem chamavam dé MagoT falhava-lhe. Como chegar até ela para reconquistá-la?"
Uma palavra de Jason abrira-lhe os olhos para suas próprias contradições: "O senhor está obcecado por essa mulher!"
Obcecado. Portanto, ela "era obcecante. Era preciso reconhecer que, ao se tornar mais secreto, o encanto de Angélica só fizera aumentar. Nãcrera desses que evaporam, como perfumes de má qualidade. Fosse-de essência diabólica, carnal ou mística, esse encanto existia, e o Sr. de 'Peyrac,' apelidado Rescator, via-se apanhado por ele, apesar das próprias recusas. Enredado em questões lancinantes, cuja resposta só elâ poderia dar-lhe, em inúmeros desejos, que só ela poderia saciar.
É vão imaginar que se conhece tudo de uma pessoa ou recusar-lhe o direito de seguir certos caminhos. Os que Angélica seguira longe dele e principalínente nos últimos cinco anos não eram os menos surpreendentes.
Via-a cavalgando à testa de bandos de camponeses que ela conduzia ao combate. Via-a arrastando-se como um pássaro ferido, perseguida pelos soldados do rei... Ali começava o mistério que ele talvez não viesse a sondar nunca, e indignava-se, admitindo que, naquela espécie de transmutação que ela sofrera, também nisso residia o eterno feminino.
O ciúme que sentira ao vê-la empenhar-se pelos amigos, descobrindo-lhe a filha e a ternura selvagem que tinha pela menina, também ao vê-la ajoelhada, transtornada, diante do protestante, a mão suavemente pousada sobre o ombro nu do ferido, esse ciúme era mais corrosivo que se ele a tivesse surpreendido, cínica, entre os braços de um amante. Pelo ibérios a teria desprezado e saberia o que ela valia. E tê-la-ia tomado por aquilo que era.
De que massa era feita agora? Que fermento novo lhe aumentava a beleza amadurecida e como que exaltada pelo sol do verão de sua vida, aquele brilho terno e caloroso que dava vontade de pousar-lhe sobre o seio a testa aflita, de escutar-lhe a voz dizendo coisas suaves e reconfortantes?
Um género de fraqueza que ele raramente sentira... Por que tinha de ser aquela mulher violenta, aquela amazona, aquela insolente de língua pronta, aquela mulher sensual e astuta que o enganara sem escrúpulo, a provocá-lo?
É, com o sol desaparecendo no horizonte, Joffrey de Peyrac encontrou uma das chaves que, para seu grande espanto, lhe dava o segredo do comportamento de Angélica em inúmeras circunstâncias.
"Sim, ela é generosa", disse consigo.
Foi como uma miragem.
A noite caía. As crianças já não viam o mar nem as baleias. Ouviam-se-lhes os pezinhos nas escadas, de retorno à entrecoberta.
Angélica, imóvel, olhava a distância.
Ele tinha certeza de que ela olhava em sua direção, através da penumbra que se adensava.
"Ela é generosa. É boa. Montei armadilhas à sua maldade e ela nào caiu... Foi por isso que não me censurou por ser a causa de suas infelicidades. E é por isso que ela está disposta a sofrer injustiças e censuras minhas, em vez de me atirar ao rosto essa coisa horrível que ela imagina saber, que sou responsável, eu, o pai, pela morte de meu filho Cantor."
CAPITULO XXVI
Canto
Na calma de sua cabina e da noite, uma calma tão rara no mar, que lhe embalava os devaneios, ele reviveu o episódio dramático do cabo Passero. Teria sido grande a surpresa, na época, se se soubesse que o combate e a derrota da esquadra francesa, que tanto haviam emocionado as cortes da Europa, haviam sido determinados pela presença, na "casa" do Almirante de Vivonne, de um pequeno.pajem de nove anos!
Quando ele ingressara na esquadra francesa, ao largo da Sicília, o poder do Rescator era inconteste. O antigo presidiário estropiado de Marselha tinha cúmplices e aliados em toda parte.
Para obter esse resultado, tivera de, embora navegasse a negócios, equipar seu xaveco como navio de guerra. Os combates com uns ou com outros eram frequentes. Levara a melhor sobre alguns piratas, não dos menores, como o matreiro Mezzo Morte. Tivera de revidar, para grande pesar seu, ataques dos Cavaleiros de Malta, que teimavam em ver naquele corsário mascarado, cujo nome e origem ignoravam, um vulgar renegado a serviço do grão-sultão de Constantinopla. As aparências davam-lhes razão, contra ele. Naquela altura não havia lugar para um meio-termo entre a Cruz e o Crescente. Era-se por um ou por outro. Ora, Joffrey de Peyrac, mais uma vez, arrumara um terceiro sinal, seu simbólico escudo de prata forjada sobre a estamenha vermelha de seu pavilhão.
Ele também não ignorava que, ao zarpar-, a esquadra comandada pelo Duque de Vivonne tinha por objetivo uma expedição punitiva de que ele próprio era um dos alvos mais prementes. Pois sua ação incomodara terrivelmente a Luís XIV e também abalara algumas grandes fortunas francesas, baseadas na permuta com o Oriente Próximo de produtos manufaturados de baixa qualidade que não se conseguiam vender na França.
Joffrey de Peyrac, então, mandara espiões informarem-se cuidadosamente sobre o itinerário previsto da esquadra real francesa, seus efetivos, e recomendara-lhes que traçassem um perfil tão perfeito quanto possível dos ocupantes das galeras francesas. Foi assim que, ao examinar a "casa" do Almirante Duque de Vivon-ne, seus olhos tombaram sobre um prenome que o fez pensar: Cantor de Morens, pajem.
Cantor! Esse não era o nome do filho que lhe nascera depois de sua pseudo-execução e de cuja existência ficara sabendo pela carta do Padre António, recebida em Cândia? Nos anos precedentes, às vezes Joffrey se perguntara se a criança que Angélica esperava teria sido menino ou menina.
Preocupação pequena, dentre todas as que o atormentavam. Então fora um menino. Ao ser informado, a notícia não lhe re-tivera muito a atenção, pois na época estava sob o choque de um comunicado mais torturante: o do novo casamento de sua mulher.
Agora, porém, diante daquele nome surgido inopinadamente, ele meditava: Cantor de Morens... Só podia ser aquele filho "póstumo". Mandou tomarem outras informações e a dúvida dissipou-se. A criança tinha de fato nove anos. Era enteado do Marechal du Plessis-Belliere.
A primeira ideia do Rescator fora esquivar-se às intenções belicosas do Almirante de Vivonne. Prevenido, ele iria entrincheirar-se para além de Cândia e Rodes e antes de reiniciar seus cruzeiros esperaria que a esquadra terminasse a patrulha e se cansasse de perseguir um fantasma.
Mas a presença do pequeno Cantor transformou-lhe os proje-tos. O mar enviava-lhe seu filho. A cada dia, a cada hora, o desejo de se ver diante daquela encarnação de seu passado o invadia. Seu filho e filho de Angélica. Concebido numa de suas noites tolosanas, loucas e deliciosas, de cuja nostalgia ele não conseguia livrar-se inteiramente.
Fora um pouco antes da partida do casal para Saint-Jean-de-Luz, quando ele fora astutamente detido pelos esbirros do rei, que a pequena vida devia ter começado a desenvolver-se nela. No seio de sua carne suave e fecunda, cuja emoção lhe perseguia as recordações.
Ver aquele filho, nascido do amor desfeito.
E, principalmente, retomá-lo.
Implacável, sua vontade veio à luz. Notara com amargura que haviam dado à criança o nome Morens e não Peyrac, e que lhe prestavam consideração não porque fosse filho de um grão-senhor da Aquitânia, mas apenas porque era o enteado do Marechal du Plessis.
Logo o Rescator deu ordem de zarpar. Chegou à vista da esquadra francesa. Queria parlamentar, oferecer uma troca. Mas o Almirante de Vivonne, ao saber que o pirata que ele tinha ordem de pôr a pique tinha a audácia de vir assim até ele, mandou atirar ao mar seu emissário e disparou-lhe uma saraivada de balas.
Atingido na parte do casco sob a água, oAigle des Mers enfrentou um mau quarto de hora. Além disso, foi forçado a travar combate. Felizmente as pesadas galeras manobravam como banheiras cheias de pedras. Numa delas encontrava-se Cantor. Jof-frey de Peyraç deu uni jeito para isolá-la das demais, mas no ardor do combate a galera foi irremediavelmente atingida. Louco de preocupação, sabendo com que rapidez um navio desaparece por entre as ondas, reto como uma pedra, enviara seus janízaros mais devotados a abordagem, a fim de encontrar a qualquer preço o menino entre ós passageiros reunidos na popa, alguns dos quais começavam a se atirar na água.
Foi Abdullah, o mouro, quem o trouxe. Uma vozinha clara gritava:
- Meu pai! Meu pai!
-Joffrey de Peyrac tinha a impressão de estar sonhando. O garotinho, nos braços do grande Abdullah, não parecia sentir medo algum, nem da morte à qual acabava de escapar, nem dos rostos escuros que o cercavam, das djellabas brancas e das grandes cimitarras recurvadas.
Com seus olhos verdes como uma fonte, ele olhava o rosto mascarado de preto de um grande pirata a quem o levavam, e dizia-lhe "Meu pai", como se fosse a coisa mais natural do mun do, a que mais se esperasse dele.
Como não responder a esse apelo?
- Meu filho!...
Companheirinho nada incómodo aquele tranquilo Cantor, encantado com a existência que levava pelos mares, à sombra do pai, a quem admirava. Não parecia sentir falta de sua vida passada. Joffrey de Peyrac logo percebeu que a amável criança era muito discreta. Não quis tomar a iniciativa de fazer-lhe perguntas. Algum receio o retinha. Que receio? Receio de saber demais e de tocar, desajeitado, em feridas mal cicatrizadas.
Na verdade, a primeira vez que Cantor aludiu à família que ficara na França foi para declarar, não sem orgulho:
- Minha mãe é a amante do rei da França. E, se não é ainda, em breve o será.
E acrescentara, ingenuamente:
- É normal. Ela é a mais bela dama do reino.
Recebida a estocada, Joffrey de Peyrac preferiu deixar a criança evocar suas lembranças livremente sem provocá-las.
Os trechos que recebia assim compunham quadros curiosos, por onde passavam Angélica, em trajes suntuosos, Florimond, o herói, o Marechal du Plessis-Belliére, frio e cortês, e por quem Cantor tinha afeição, o rei, a rainha e o delfim, que lhe inspiravam, estranhamente, sentimentos de proteção e uma ponta de piedade.
Cantor lembrava-se de todos os vestidos que a mãe usara e os descrevia minuciosamente, assim como as jóias.
Nos relatos do pequeno pajem misturavam-se histórias tenebrosas de envenenamentos, adultérios, crimes cometidos na escuridão de um corredor, perversões e intrigas sórdidas, que não pareciam tê-lo emocionado nem um pouco. Os pajens da corte aprendiam a vida por trás da cauda dos vestidos que tinham de segurar. Não se prestava mais atenção a eles do que a cãezinhos.
Cantor confessava, porém, que se divertia muito mais no mar do que em Versalhes. Na verdade, fora por essa razão que decidira ir ao encontro do pai. Florimond também viria, mas mais tarde! Não parecia passar-lhe pela cabeça que Angélica também pudesse vir. Assim se desenhava aos olhos de Joffrey de Peyrac a imagem de uma mãe frívola e indiferente aos filhos.
Uma noite resolveu fazer uma pergunta.
Durante o dia, num embate com uma nave argelina, enviada por Mezzo Morte, um de seus piores inimigos, Cantor recebera uma carga de metralha na perna, e à cabeceira dele o Rescator censurava-se, embora o rapazinho rebentasse de orgulho, pois como todo bom gentil-homem tinha no sangue o amor pela guerra.
A criança não seria jovem demais para conhecer uma vida de aventuras bárbaras, entre a rudeza dos homens?
- Não sente saudade de sua mãe, meu pequeno?
Cantor olhara-o com certa surpresa..Depois seu rosto anuviou-se e ele falou do que chamava, sem que o Ccmde de Peyrac conseguisse entender direito, de "atempo do chocolate".
- No tempo do chocolate - ilisse -, mamãe nos pegava no colo. Trazia-nos doces. Fazíamos panquecas,.. O cozinheiro Davi Chaillon me colocava nos ombros e íamos a Suresnes tomar vinho branco no domingo... Não nós, porque éramos muito pequenos, mas Mestre Bourjus e minha mãe... Eu gostava bastante daquela época. Mas depois, quando estávamos na Mansão do Beautreillis, minha mãe precisava se mostrar na corte e nós também...
então, paciência, nosso 'tempo do chocolate' foi sacrificado."
Joffrey de Peyrac ficou sabendo então que Angélica residira na mansão doíeautréillis, que mandara construir para ela. Como conseguira retomar a posse do prédio? Cantor ignorava.
Mas a vida atual de Cantor bastava para ocupá-lo, e ele não tinha gosto pelas reminiscências.
Joffrey de Peyrac4ogo descobriu com emoção o dom espontâneo do filho pelo canto e pela música. Ele próprio, Joffrey, cuja voz estava morta, retomara gosto por arranhar as cordas da guitarra. Compunha para a criança baladas e sonetos, e o iniciava nas diferentes variações instrumentais do Oriente e do Ocidente. Pouco a pouco decidiu confiá-lo por vários meses a uma escola italiana, em Veneza, ou Palermo, na Sicília, cuja situação insular fazia da cidade o porto de ligação de todos os corsários mais ou menos apátridas.
Cantor era ignorante como um burrico. Mal sabia ler e escrever, contava muito pouco, e se a vida na corte, depois a de corsário faziam dele um rapaz magnífico, excelente nos exercícios de esgrima, manobrando as velas, e de vez em quando perfeitamente polido e cortês, o sábio que ele tinha por pai considerava isso lamentavelmente insuficiente.
.Cantor não era preguiçoso. Tinha seae de aprender. Mas os professores que tivera até então não souberam despertar-lhe o gosto pelo estudo, sem dúvida por causa de um ensino escolástico árido e abstrato demais. Aceitou, sem muita decepção, ingressar como interno na casa dos jesuítas de Palermo, transformada pelos religiosos num centro de cultura. Nas margens daquela ilha impregnada de civilização grega, reencontrava-se um pouco da atmosfera das antigas humanidades, que, no século XVI, haviam formado tantos homens dignos desse nome.
Outro motivo levava o Rescator a colocar o filho sob prote-çào e a dissociá-lo por algum tempo de seu próprio destino. Os perigos sem conta que o rodeavam podiam um dia atingir a criança. Ele precisava aniquilar seus principais inimigos e para isso lançar contra eles, tanto por meio da guerra quanto por manobras diplomáticas, uma campanha decisiva. E numa escala em Tú-nis, por pouco Cantor não fora raptado por enviados de Mezzo Morte, o almirante de Argel, aquele pervertido sádico, meio louco por delírio de grandeza, e que não perdoava ao Rescator haver-lhe diminuído a influência no Mediterrâneo...
Se o atentado tivesse sido coroado de êxito, o Rescator teria sido forçado a fazer qualquer coisa. O que não teria aceitado para recuperar sã e salva a criança a quem agora amava apaixonadamente?
Próximo dele pelo gosto à música, Cantor, por outro lado, fascinava-o por tudo o que tinha de estranho e que o lembrava irresistivelmente de Angélica e de seu atavismo do Poitou. Pouco tagarela, ao contrário da gente do Sul da França, a que estava ligado pelo pai, lúcido e sabendo expor seus argumentos, com aquele reflexo insondável das florestas druídicas no olhar, não havia quem pudesse gabar-se de conhecer-lhe os pensamentos e prever-lhe os atos.
Joffrey de Peyrac respeitava em particular no segundo filho um dom de presciência e clarividência que lhe permitia anunciar com antecipação certos acontecimentos bem antes de ocorrerem. Fazia-o com tanta naturalidade que parecia ter sido avisado. Sem dúvida Cantor não separava bem o sonho da realidade.
Os estudos destruiriam e vulgarizariam as nuanças daquele caráter original de criança? A música e*staria lá para preservá-lo, bem como o clima excepcional que reinava em Palermo. O mar azul ainda o embalaria, e Joffrey de Peyrac deixaria junto dele, para vigiá-lo zelosamente, o fiel Kuassi-Ba.
CAPÍTULO XXVII
As ossadas de Miquenez
O que Mezzo Morte não conseguiu com o rapto de Cantor, conseguiu com Angélica, depois que ela fugiu de Cândia e deixou Malta.
Joffrey de Peyrac ficou aterrado ao saber que sua mulher, surgida no Mediterrâneo, não sabia direito como, caíra nas mãos de seu pior inimigo. Ao.mesmo fempo foi avisado de que ela estava em Malta e, tranquilizado, preparava-se para partir a sua procura.
Foi então que, em Argel, ele precisou apresentar-se a Mezzo Morte. O renegado calabrês sabia muito bem que o Rescator faria o que ele quisesse. Conhecia - como descobrira? - o segredo que o outro não confiara a ninguém: que Angélica era sua esposa cristã e que~ ele sacrificaria tudo para recuperá-la.
Diante das exigências do almirante bárbaro, Joffrey de Peyrac esteve inúmeras vezes a ponto de atirar-lhe ao rosto seu desprezo e desistir. Por uma mulher tinha de se abaixar diante de um personagem repugnante e grosseiro. Mas aquela era sua mulher e era Angélica. Não podia decidir-se pela recusa que a condenaria à morte, a um destino medonho.
- Enviar-lhe-ei, caríssimo - dizia Mezzo Morte -, um dos dedos dela. Enviar-lhe-ei um cacho de seus cabelos... Num estojo soberbo, um de seus olhos verdes...
Impassível, Joffrey de Peyrac jogou, despendeu todos os seus talentos de comediante com aquele miserável, que era italiano e também conhecia o jogo sutil e feroz.
Junto com o medo que sentia por ela" crescia também a raiva que lhe tinha. Maldita criatura que não podia sossegar num lugar! Depois de lhe haver escapado em Cândia, encontrara como cair, de cabeça, nas armadilhas grosseiras de Mezzo Morte. Ah, com certeza não era dela que o filho recebera o dom da clarividência! Como não o reconhecera, não o adivinhara em Cândia? Sem dúvida estava preocupada demais com outros amores atrás dos quais estava correndo. E, debatendo-se para salvá-la, prometia-se dar-lhe uma boa sova quando a encontrasse.
Estava em vias de arruinar a vida pela segunda vez por ela. Mez-zo Morte reclamava apenas para si a hegemonia do Mediterrâneo. O Rescator devia apagar-se, dizia ele, e abandonar a região. Desaparecido ele, poderiam voltar à antiga: pilhar, queimar, capturar, vender escravos, essa moeda tão cómoda e tão disputada do Maré Nostrum.
Joffrey de Peyrac tentou ganhá-lo pela cupidez. Propôs-lhe negócios que lhe renderiam cem vezes mais o que obtinha lançando seus rases e seus faluchos ao ataque de navios cristãos, militares ou mercantes. Mas não era isso o que o renegado desejava. Queria ser o pirata mais poderoso, o mais temido, o mais odiado de todos...
Diante dessa quase loucura, o raciocínio, o interesse dissipavam-se, perdiam seu peso decisivo.
O calabrês previra tudo, até que o Rescator podia informar-se, antes de encontrá-lo, sobre o que ele fizera de Angélica e onde ela estava - coisa que aconteceu. Por meio de indiscrições, ele soube que a cativa de olhos verdes fora oferecida ao sultão Mulay Ismael.
- Seu melhor amigo, não é lisonjeiro? - zombou Mezzo Morte. - Mas cuidado! Se sair de Argel sem me dar sua palavra de que doravante me deixará livre para agir como quiser, não a reverá viva! Na escolta marroquina segue um de meus servidores. Basta que eu lhe envie uma mensagem: ele a assassinará na mesma noite...
Joffrey de Peyrac acabou cornprometendo-se com Mezzo Morte. Que seja, abandonaria o Mediterrâneo! Não estipulou por quanto tempo, nem revelou que tinha a intenção de navegar ao largo do Marrocos e da Espanha, mantendo contato com seus rescatores, até que o poder do "almirante" fosse destruído por sua vez.
O renegado, feliz demais com uma vitória imediata que não esperava mais, mostrou-se quase ingénuo em sua alegria. O resultado era muito melhor do que se ele se livrasse do rival assassinando-o, por exemplo. É verdade que não deixara de tentar e que jamais conseguira, e acabara por reverenciar supersticiosamente a baraka especial do Mago... E depois, ainda havia que temer os raios do sultão de Constantinopla, que não demoraria em saber quem o privara de seu conselheiro secreto e grão-mestre em finanças.
Depois de deixar Argel sem embaraços, o Rescator seguiu para as Colunas de Hércules, preparândo-se para passar sem grande dificuldade sob os canhões espanhóis de Ceuta. Pretendia atingir Salé e dali Miquenez.
Continuava sombrio. Angélica entregue -à concupiscência do sensual e cruel Ismael, que ele conhecia tão bem, não era imagem a deixá-lo feliz. Maldizia ora Mezzo Morte, ora Angélica. Mas não podia impedir-se de voar em socorro dela, com uma impaciência onde não entrava apenas o pensamento de seu dever em relação a uma esposa imprudente.
Foi quando~bruscamente, recebeu uma mensagem de Osman Ferradji: "Venha, a-mulher que as estrelas lhe devolveram corre perigo..."
Nessa altura de suas evocações, Joffrey de Peyrac levantou-se de súbito em sua cabina do Gouldsboro. Uma brusca inclinação do navio, iogo seguida de outra, o fizeram cambalear. Disse a meia voz:
- A tempestade...
A tempestade que o mar oleoso do poente anunciava acabava de enviar seus primeiros sinais. Ele permaneceu em pé, de pernas separadas para manter o equilíbrio.
Seu pensamento ainda não deixara a lembrança de um passado branco de sol, vermelho de sangue...
"Venha... a mulher que as estrelas lhe devolveram corre perigo..."
Assim, os fios se uniam para aproximá-los.
Mas, quando chegara a Miquenez, Osman Ferradji estava morto, apunhalado por um escravo cristão. O odor das carniças mesclava-se ao das rosas nos jardins...
Todos os judeus do mellah, das crianças de peito aos velhos centenários, tinham sido passados pela cimitarra pelos guardas negros do sultão. Falava-se da fuga de sete escravos cristãos, e principalmente da de uma mulher do harém.
- Que mulher, meu amigo! - contou-lhe Ismael, os olhos arregalados de admiração quase mística! - Ela já havia tentado matar a mim. Olhe... Mostrou-lhe no pescoço bronzeado o vestígio da cutilada.
- E com meu próprio punhal! É pura arte! Para mim, que infelizmente tenho a alma tão grosseira! Ela também resistiu às torturas. Concedi-lhe graça porque era realmente belíssima e porque meu grão-eunuco insistiu muito nisso. Mas que veneno conseguiu ela verter nas veias daquele incorruptível? Pois ele morreu, ele, tão forte e sábio, da fraqueza para com ela. Conseguiu fugir.
Era um demónio feito mulher.
Praticamente não havia necessidade de perguntar o nome da mulher. Joffrey de Peyrac teria adivinhado. Acabrunhado, acabou partilhando da admiração aterrada do sultão:
- Sim, que mulher, meu amigo!
Explicou a Mulay Ismael que aquela mulher, na verdade, era sua esposa francesa e que, ao saber que ela estava em poder do sultão, viera paracomprá-Ia. Mulay Ismael louvou Alá pelo fato de o caráter selvagem de Angélica ter-lhe evitado, a ele, Comandante dos Crentes, cometer em relação a seu melhor amigo um ultraje irreparável, tanto mais que não é bom para um ardente muçulmano servir-se de uma mulher cujo marido ainda vive. Ele a devolveria e não pediria resgate. Era lei corânica.
O sultão ainda esperava que ela fosse apanhada, junto com os fugitivos. Seus emissários, lançados sobre pistas diferentes, tinham recebido ordens: executar os escravos e trazer a mulher de volta, viva.
Finalmente as notícias chegaram, depois, as cabeças enegrecidas de sangue seco. Mulay Ismael viu imediatamente que faltava a de Colin Paturel.
- E a mulher? - perguntou.
Os soldados disseram que os cristãos tinham falado antes de morrer. Ao serem capturados, a mulher já não estava com eles. A francesa morrera há muito tempo, picada por uma cobra. Os companheiros a haviam enterrado no deserto.
Mulay Ismael rasgou a roupa. A sua fúria misturava-se o pesar de não poder honrar com um gesto magnífico o amigo a quem estimava. Intuitivo, compreendeu a dor que o rosto costurado do cristão ocultava.
- Quer que eu mate mais? - dizia ele a Joffrey de Peyrac. - Esses guardas estúpidos que não souberam apanhá-la antes que morresse... que a deixaram escapar... Um sinal seu e degolo-os a todos.
Joffrey de Peyrac recusou o oferecimento daquela boa vontade sanguinária. A repugnância contraía-lhe a garganta.
Naqueles palácios onde pairavam os odores de incêndios e massacres, o espírito do Grão-Eunuco ainda rondava, e ele acreditava ouvir-lhe a voz harmoniosar "Nós, nós somos por Deus e o sangue derramado em Seu nome..', e você ficará só".
De súbito lhe aparecia a inutilidade de todos os seus projetos, seus pensamentos, até de suas paixões. Que ridículos! Sua linguagem era inaudível para aqueles mundos face â face que, cristãos ou muçulmanos, obedeciam na verdade a um único conceito supraterrestre: a hegemonia de Deus.
Pois bem, ele partiria. Deixaria o Mediterrâneo não porque se comprometera a isso com Mezzo Morte, mas porque ainda se via como um estrangeiro entre aqueles que o haviam auxiliado a refazer a própria vida durante vários anos. Iria buscar Cantor e singraria para oeste, rumo aos novos continentes. Abandonando uma fortuna que se tornara fabulosa; deixaria para trás duas civilizações tocadas pela corrupção, para que se enfrentassem em seu caldeirão fervilhante, movidas pelo mesmo fanatismo religioso que no fundo às assemelhava em seus excessos e intolerância.
Estava cansado daquela luta, cuja esterilidade era evidente.
Resistiu à tentação de„atirar-se através do deserto, à procura de uma tumba miserável. Outra loucura que não o levaria a nada mais senão ao desespero. Certificar-se de que ela morrera de fato? Que garantia teria? Rastros deixados na poeira? Para procurar outra poeira que poderia ter sido toda sua vida. Vaidade das coisas.
Os escravos, seus companheiros de fuga, estavam mortos. Ele a sentia desaparecida na imensidão do sol cruel, que dissolve o pensamento e faz nascer miragens. Sua vontade de alcançá-la chocara-se com aquela aparência de mito, de sonho fugaz de que ela parecia estar revestida para ele.
O destino que os separara recusava-se a reuni-los com uma constância que devia significar alguma coisa. Mas o quê?... Finalmente, ele, que era tão forte, não tinha ânimo nem resignação suficientes para procurar um segredo que apenas o futuro lhe desvendaria... se é que isso ainda aconteceria. Sua longa estada no Oriente e na Africa haviam feito dele, se não um fatalista, pelo menos um ser que sabia que se é muito pouco perante o destino... que se ignora. Seu filho continuava sendo a única realidade de sua vida.
Encontrando o filho em Palermo, agradeceu ao céu por haver-lhe deixado pelo menos aquela criança, cuja presença o arrancava a tormentos profundos que, desta vez, ele tinha dificuldade em superar.
Ao tocar o oceano, à saída do estreito de Gibraltar, singrando para a América, tinha consigo apenas seu navio, o Aigle des Mers, e sua tripulação, pelo menos aqueles que quiseram compartilhar do seu novo destino.
Um amontoado de destroços humanos, diriam, desdenhosos, os grandes burgueses rocheleses!... Sim. Mas ele os conhecia a todos, àqueles seres diversos. Sabia dos dramas que os lançaram, como a ele, nas rotas do mundo. Conservara apenas aqueles que não podia demitir, os que se atirariam a seus pés antes de aceitar verem-se sozinhos num cais, com a trouxa magra, entre homens hostis. Porque não sabiam para onde ir. Medo da escravidão muçulmana, ou das galeras cristãs, medo de cair sob outro capitão, brutal e ávido pelo lucro, de serem roubados, de perder a cabeça e cometer tolices pelas quais pagariam ainda mais caro.
Joffrey de Peyrac respeitava aquelas almas tenebrosas, aquelas vontades mortas, aqueles corações dolentes sob a rudeza de costumes que exibiam. Controlava-os com severidade, mas jamais os enganava, e sabia despertar-lhes o interesse por suas tarefas ou pelos objetivos das viagens.
Ao deixarem o Mediterrâneo, não lhes ocultou que deixavam de pertencer a um amo todo-poderoso. Pois, para ele, era preciso recomeçar tudo. Aceitaram a aventura. E bem depressa ele pôde recompensar-lhes a dedicação com prémios substanciosos.
Levara consigo toda uma equipe de mergulhadores malteses e gregos. Dotando-os com um material aperfeiçoado, pôs-se a cruzar pelo mar das Caraíbas e procurar ali os tesouros dos galeões espanhóis postos a pique pelos flibusteiros e bucaneiros que ali se entregavam a suas práticas há mais de um século. Sua ativida-de, pouco conhecida e que ele era o único a poder praticar, não tardou a enriquecê-lo consideravelmente. Fizera acordos com os grandes chefes piratas da ilha de Totue, e os espanhóis ou ingleses, como o Capitão Phipps, a quem não atacava e a quem fizera presente de algumas das mais belas peças recuperadas no fundo do mar, deixavam-no em paz.
Seu novo ganha-pão? Descobrir sob as cabeleiras de algas algumas obras-primas da arte inca ou asteca, o que também satisfazia seu sentido do belo e lhe contentava o gosto pela busca.
Pouco a pouco conseguiu superar a dor que durante algum tempo o atingiu até o fundo da alma: Angélica... Morta, e que ele não reveria nunca.
Não lhe queria mal por haver vivido louca e talvez levianamente. Sua morte completava-lhe a lenda. Arriscara uma façanha que nenhuma cativa cristã tentara antes. Não conseguia esquecer que ela se recusara a Mulay Ismael e enfrentara orgulhosamente o suplício. Loucura! Não se requer das mulheres que sejam heróicas, dizia-se ele, desesperado-. Que ela continuasse viva, que ele ainda pudesse estreitá-la nos braços, sentir-lhe o corpo morno contra o seu, retomar posse de seus olhos, como em Cândia, e ele esquecem os vestígios de suas infidelidades, perdoaria tudo!... Mas tê-la-viva, saborear-lhe a textura da pele, possuí-la num presente voluptuoso que não se importaria nem com o passado nem com o amanhã, e não precisar mais imaginar aquele belo corpo ressecado nas areias, agonizando, os lábios cinzentos, sem recursos sob o céu.
- Minha querida-, como eu a amava...
O ronco da tempestade crescia, sacudindo as molduras das vidraças. Recurvado para resistir aos violentos solavancos do assoalho enlouquecido, Joffrey de Peyrac permanecia atento ao grito interior de outrora que irrompera nele.
- Minha querida, eu a amava, eu a chorava... E agora a reencontrei e não abri os braços para você.
O homem é assim. Sofre, depois cura-se. Esquece então a lucidez e a sabedoria que a dor confere. Transbordante de vida, apressa-se em retomar sua bagagem de ilusões, de pequenos temores, de rancores destrutivos. Longe de abrir os braços para ela, a quem tanto procurara, pensara na criança que lhe fora dada por outro, no rei, nos anos perdidos, nos lábios que haviam beijado os dela... Quisera-lhe mal por ser uma desconhecida. Mas ainda assim era àquela desconhecida que ele amava hoje.
Todas as perguntas que um homem faz a si mesmo quando está prestes a tornar sua, pela primeira vez, a mulher a quem seduziu e que deseja, ele as fazia hoje.
"Como responderão seus lábios quando eu os procurar? Como reagirá quando eu tentar abraçá-la? Ignoro o segredo de sua carne, assim como o de seu pensamento. Quem é você? O que fizeram de ti, belo corpo, tão ciumentamente dissimulado agora..."
Sonhava com a cabeleira dela caindo pelos ombros, com seu abandono contra ele, com a luz úmida de seus olhos verdes cravados nos dele.
Conseguiria dobrá-la. "Você é minha,« saberei fazê-la entender isso."
Mas era preciso admitir. Não é fácil descobrir numa mulher em plena maturidade, forjada em tal fogo, o defeito na couraça.
Mas ele conseguiria! Ele a despojaria de sua defesa. Ele lhe tiraria os mistérios um a um, assim como lhe tiraria as roupas.
Precisou usar de toda a força contra o vento para empurrar a porta. Lá fora, na noite selvagem, flagelada de pingos e respingos, ele se deteve um instante, agarrado à mureta do balcão, que já rangia e gemia como uma velha madeira prestes a rachar.
"Quem é você, afinal, Conde de Peyrac, para abandonar assim sua mulher a outro e, ainda por cima, sem sequer combater? Pois sim! É enfrentar esta tempestade maldita e depois... vamos mudar de tática, Sra. de Peyrac!"
CAPITULO XXVIII
Após a tempestade, noite de amor
Da desordem medonha em que a tempestade lançava os passageiros, sobressaiu um grito:
- A entrecoberta está desabando!
Era um autentico pesadelo. Os estalos sinistros do madeirame, acima da cabeça-deles-, cobriam agora todos os outros ruídos: o estrondo dos vagalhões, o vento silvando, gritos de terror dos infelizes, atirados uns contra os outros numa escuridão total.
Angélica deslizou ao longo do soalho, de súbito levantado como uma muralha. Achou-se contra a dura carreta de um canhão e, voltando-atrás, horrorizou-se ante o pensamento de que o corpinho de Honorina estivesse sendo submetido àquela terrível sarabanda. Onde encontrá-la, onde ouvi-la? Os chamados e os lamentos entrecruzavam-se. O teto continuava a estalar pesadamente. Um jorro de água salgada entrou aos borbotões. Uma voz de mulher gritou:
- Senhor, salve-nos... estamos morrendo!
A mão de Angélica arranhou-se contra um objeto duro e ardente: uma das lanternas apagadas, que um tranco atirara ao chão. Mas não se quebrara.
"E preciso ver às claras", pensou a jovem, segurando-se. Agachada no chão, resistindo com toda a força ao balanço infernal do navio, ela tateava; encontrou a abertura da caixa, a candeia ainda quente o suficiente e, na gaveta, o isqueiro de pedra, de reserva. Conseguiu acender a luz. A auréola avermelhada espalhou-se, revelando um amontoado indescritível de roupas, corpos e objetos, arrastados da direita para a esquerda, para a frente e para trás, conforme a loucura furiosa dos arquejos da embarcação.
E, principalmente, no alto, a aparição de uma brecha escancarada, de pontas eriçadas, que vomitava intermitentemente a água espumosa.
- Por aqui - gritou ela. - É o apoio do mastro de mezena que está afundando o nosso teto.
O primeiro a surgir da escuridão foi Manigault. Coirfum vigor de Golias, colocou-se sob as vigas parcialmente quebradas. Berne, Mercelot e três dos mais vigorosos dentre os homens uniram-se a ele e o imitaram. Tal como titãs a sustentar o peso do mundo, eles se arqueavam para reduzir a traçào do desabamento. A água já jorrava menos. Pelos rostos tensos dos homens, o suor escorria.
- Precisamos... de carpinteiros - ofegou Manigault. - Que tragam madeiras e ferramentas... Se conseguirem escorar o mastro... a brecha não aumentará...
Chapinhando na água que gorgolejava, Angélica conseguiu encontrar Honorina. Por milagre, a garota continuava em sua rede, solidamente presa e que acompanhava, sem violência excessiva, os movimentos dementes nos quais a tempestade lançava o Gouldsboro. Embora desperta, a criança não parecia particularmente assustada.
Angélica conduziu a luz de sua lanterna para o quadro dantesco de Manigault e seus companheiros a sustentar com os ombros as pranchas enormes. Quanto tempo aguentariam? Com os olhos injetados de sangue, Manigault ainda lhe gritou:
— Os carpinteiros!... Vá procurá-los!
— A porta está trancada!...
— Ah, malditos! Trancam-nos e deixam-nos morrer como ratos num buraco... Passe... pelo reduto - arquejou ele. - Há um alçapão.
Angélica teve a sorte de entender. Sabia que se tratava do alçapão por onde os marujos espanhóis haviam surgido atrás dela e de Tia Ana, no outro dia. ,
Passou a lanterna para o punho de Marcial, que se encontrava perto dela.
- Segure-a bem e agarre-se - recomendou. - Enquanto houver luz eles aguentarão. Vou tentar avisar o capitão.
Arrastou-se de joelhos, achou o trinco do alçapão e escorregou pelo buraco escuro. Desceu as barras de uma escada, seguiu um corredor cujas paredes a atiravam de um lado para o outro como uma bola. Todos os ossos lhe doíam. Atingiu a coberta. Era pior!
Como era possível que seres humanos ainda se pudessem manter sobre a coberta, varrida o tempo todo por vagas monstruosas? Como ainda podiam subsistir, agarrados a vergas e ovéns, como os frutos de uma árvore prestes a serem arrancados e levados para longe pelo vento?
No entanto, o clarão dos relâmpagos revelava silhuetas humanas que iam e vinham, esforçando-se por eonsertar aos poucos os danos letais causados pelo ataque dos vagalhões.
Segurando-se às cordas que corriam ao -longo da coxia, Angélica seguiu de joelhos. Sabia agora que Joffrey estava sobre o tombadilho, segurando a roda do leme, e que precisava chegar até ele, custasse o que custasse. Era o único pensamento a dominar-lhe todo o ser. Atravessou as trevas, gotejando, agarrada com todas as forças, assim como-atravessara o longo túnel dos anos que a tinha conduzido até ele.
"Morrer perto dele. Obter pelo menos isso do destino." Viu-o afinal, tão confundido com a noite, incorporado à tempestade, que mais parecia uma encarnação do espírito das águas. Sua imobilidade era surpreendente, por.entre tal agitação.
"Ele morreu", pensou ela. "Morreu em pé, ao timão, atingido por um raio!"
Será que não percebia que iam todos perecer? Nenhuma força de homem podia pretender impor-se ao furor do oceano. Mais um vagalhão, dois...-e seria o fim.
Arrastou-se até ele, tocou a bota que "parecia cravada ao chão. Então, com esforço, ergueu-se, agarrando-se com as duas mãos ao cinto de couro dele. Ele não se moveu mais do que uma estátua de pedra. Mas, num novo clarão fulgurante da tempestade, ela o viu mover a cabeça e baixar os olhos a fim de descobrir o que é que se pendurava a ele. Ele estremeceu, e ela mais adivinhou do que ouviu a pergunta:
— O que você está fazendo aqui? Ela gritou:
— Os carpinteiros! Depressa... A entrecoberta está desabando!... Será que ele ouvira, entendera?... Não-podia soltar o timão.
Curvou-se ao choque de uma onda, que com corcoveios de animal furioso conseguira vencer a alta mureta"dõ tombadilho. Quando Angélica conseguiu recobrar o fôlego, com a boca amarga da água salgada que a atingira em pleno rosto, viu que o Capitão Jason estava perto do Rescator. Pouco depois ele se aproximou da balaustrada, de onde lançou ordens, com o porta-voz contra a boca.
Outro relâmpago mostrou a Angélica o rosto do marido, novamente inclinado sobre o seu... e ele sorria:
— Vai tudo bem... Mais um pouco de paciência e está acabado.
— Acabado?
— A tempestade estará acabada...
Ela alçou os olhos para a escuridão demente. Bem lá no alto desenhavà-se um fenómeno estranho. Uma guirlanda nívea que pouco a pouco se alongava, como sob o efeito de uma floração espontânea e diabólica. Estendia-se pelo céu, pela noite inteira. Angélica levantou-se.
- Lá! Lá! - berrou.
Joffrey de Peyrac também vira. Entendeu que aquela barragem branca, suspensa nos ares, não era outra coisa senão a crista de espuma de um vagalhão monstruoso, de uma onda cega que desabava sobre eles.
- A última - murmurou ele.
Com os músculos retesados, lutando rapidamente contra a montanha galopante, ele girou o timão completamente para bombordo e o travou.
- Todos os homens para bombordo - berrou Jason.
Joffrey de Peyrac lançou-se para trás. Com um braço apertou Angélica contra si, com o outro atou-se ao mastro de mezena.
A massa brutal abateu-se sobre eles. Inclinado para estibordo, impelido a uma velocidade vertiginosa, o Gouldsboro não era mais que uma minúscula rolha de madeira, rolando na boca gigante da onda.
Conseguiu atravessar a crista fervilhante, ergueu-se sobre o outro flanco com a brusquidão de uma ampulheta e desceu a rampa como em direção a um abismo sem fim.
A Angélica parecia que a chuva torrencial que os inundava não cessaria nunca.
A única realidade perceptível a seu espírito era aquele braço de ferro a sua volta, o braço dele segurando-a. Quis respirar, absorveu a nauseante água salgada. Estavam no fundo do mar, unidos para sempre, reunidos pela eternidade, e uma paz maravilhosa invadiu-lhe o coração e o corpo exaustos: "A maior felicidade... aqui está ele... finalmente".
Não desmaiou, mas os golpes violentos e sufocantes que recebera deixavam-na numa espécie de estupor, e ela não conseguia acreditar que o mar tivesse parado de rolar o navio como um seixo e que a calma se restabelecera a sua volta.
Calma bem relativa. O navio continuava sendo bastante sacudido, mas, em vista do que acabara de suportar, os movimentos pareciam inofensivos.
A cabina do Rescator oferecia um asilo miraculosamente tranquilo.
Angélica fora dar ali com sua roupa encharcada, não conseguindo lembrar-se de como chegara até a cabina.
"Eu devia me levantar e ir até lá", dizia-se ela, "os carpinteiros... será que chegaram a tempo para impedir o desastre?... Sim, já que o navio não afundou."
De repente percebeu que um homem de torso nu estava no aposento, esfregandõ-se vigorosamente, enquanto sacudia, com impaciência, cabelos espessos que espalhavam uma nuvem de gotinhas.
Estava descalço e com as pernas nuas também, vestido apenas de um gibão colante,/que. lhe salientava as formas longas e secas.
A luz de uma grande lâmpada - que Angélica não percebera acender-se - acusava'relevos insólitos sobre a carne, que parecia feita de um couro resistente: cutiladas, cicatrizes, sulcos profundos que rasgavam com suas linhas anárquicas o jogo harmonioso dos músculos à flor da pele.
- E então, mocinha, sente-se melhor? - disse a voz de Joffrey de Peyrac.
Acabou de esfregar os ombros com energia, depois, largando a toalha, aproximou-se de Angélica, para contemplá-la, de mãos na cintura. Nunca se parecera tanto com um pirata perigoso, descalço, a carne marcada, e o brilho sarcástico dos olhos sob os cachos de cabelos densos e escuros. A antiga cabeleira do Conde de Peyrac, menos abundante agora e cortada curta, retomava seus direitos assim que se via liberta do lenço de cetim preto.
— Ah, é você?... - murmurou ela, maquinalmente.
— Sim... eu estava completamente encharcado. Você também deveria tirar essa roupa molhada... O que pensa de uma tempestade nos arredores da Nova Escócia? Magnífica, não é? Não tem nada a ver com aquelas tempestades engarrafadas do pequeno Mediterrâneo. Felizmente o mundo é mais vasto e não mostra apenas mesquinharia...
Ele ria. Isso indignou tanto Angélica que ela conseguiu se por de pé apesar do peso de chumbo que parecia ter sua saia encharcada.
- Você ri! - exclamou, encolerizada. - Todas as tempestades o fazem rir, Joffrey de Peyrac... As torturas o fazem rir. Canta no átrio de Notre-Dame... O que importa que eu chore? O que importa que eu tenha medo de tempestades... até no Mediterrâneo... sem você...
Seus lábios tremiam. Era a água salgada do mar ou lágrimas que lhe escorriam pelas faces pálidas? A indomável estaria chorando?...
Ele estendeu-lhe os braços, atraiu-a para o calor de seu peito.
— Acalme-se, acalme-se, mocinha!... Não vá começar a se enervar agora!... O perigo passou, minha querida. A tempestade foi embora.
— Mas voltará.
— Talvez. Mas nós a venceremos de novo. Confia tão pouco na minha capacidade de marinheiro?
— Você me abandonou - lamuriou-se ela, já não sabendo direito a que pergunta respondia isso.
Seus dedos gelados, tateantes, procuravam as dobras das roupas a que se agarrara há pouco, e encontravam apenas o perturbador contato da pele dura e quente. E era como em seu sonho. Estava suspensa pelas duas mãos a ombros invencíveis, e lábios aproximavam-se dos seus.
A emoção vinha rápido demais e sem que ela conseguisse controlá-la. Com um sobressalto, afastou-se dele, que precisou impedir-lhe o gesto de fuga em direção à porta.
- Fique!
Os olhos esgazeados de Angélica o interrogavam, já sem compreender.
- Vai tudo bem lá embaixo. Os carpinteiros chegaram a tempo. Tiveram de sacrificar o mastro de mezena, mas o teto já foi consertado e a água foi despejada. Quanto a sua filha, confiei-a à devotadíssima babá, Tormini, o Siciliano, que ela adora.
Pousou delicadamente a longa mão sobre a face dela e obrigou-a a encostar o rosto a seu ombro.
- Fique... Ninguém precisa de você em outro lugar; apenas eu, aqui.
Todos os membros dela tremiam. Não conseguia crer na realidade daquela súbita suavidade.
Ele a abraçava... Ele a abraçava!...
E foi arrastada num turbilhão de sensações contraditórias q a alquebravam, como a tempestade há pouco.
— Mas - exclamou, soltando-se de novo - é impossível!... Você já não me ama... Você me despreza... acha-me feia!...
— Ora, o que é isso? - disse ele, rindo. - Mortifiquei-a a esse ponto?...
Afastou-a um pouco para examiná-la com seu largo sorriso cáustico, matizado de um sentimento indefinível. Melancolia, ternura e, em seu olhar negro e brilhante,, uma centelha que se acendia.
Pesarosa, ela tocava o próprio; rosto, frio e rígido, a cabeleira grudenta de água do mar.
— Mas estou medonha - gemeu.,
— Sim, é verdade - aprovou ele, zombeteiro -, uma verdadeira sereia arrancada do fundo das águas pelasminhas redes. Tem a pele amarga e gelada e tem medo do amor dos homens... que disfarce curioso "você escolheu, Sra. de Peyrac.
Com as duas mãos rodeoú-lhe a cintura e, bruscamente, levantou-a no- ar, como teria feito com uma pluma.
- Louca, louca querida!... Quem não a quereria?... São numerosos demais os que a;desejam... Mas você pertence apenas a mim.
Levou-a para a cama e,. depois de colocá-la ali, continuou a segurá-la contra si, acariciando-lhe a testa como a uma criança doente.
- Quem não a'quereria, minha alma?
Nos braços dele, atordoada, ela estava completamente setn defesas. A horrível tempestade, que tanto a assustara, trazia-lhe de surpresa aquele instante que ela já não esperava e que não cessara de desejar e de temer ao mesmo tempo. Por quê? Por que milagre?
-Vamos, tire logo essa roupa, se não quer que eu mesmo a tire.
Com sua segurança habitual, forçou-a a livrar-se dos panos molhados que colavam a sua carne arrepiada.
- É assim que devíamos ter começado quando você veio ao meu encontro pela primeira vez em La Rochelle. Não se ganha nada de bom discutindo com uma mulher... só se perde tempo precioso.
Nua contra a pele nua dele, ela começava a sentir as carícias.
- Não tema nada - dizia ele, baixinho -, quero apenas aquecê-la.
Ela já não se perguntava por que ele de repente a trouxera para junto de si com uma ciumenta autoridade, desdenhando censuras e rancores.
Ele a desejava. Ele a desejava...
Parecia descobri-la, assim como um homem descobre pela primeira vez uma mulher com cujo corpo sonha há muito tempo.
,- Como seus braços são belos! - dizia ele, maravilhado.
E já era a soleira do amor.
Daquele amor mais vasto e magnífico que fora o deles outrora. Dele para ela reatavam-se os elos da carne, que, cumulando-os de delícias e lembranças, os mantiveram estendidos um para o outro através do espaço e do tempo.
Ao se abrirem, os braços de Angélica só podiam fechar-se sobre ele, e para ela aqueles gestos familiares, mas novos, eram sublimes. Incapaz ainda de responder, deixava que sua boca imperiosa lhe procurasse os lábios. Depois o pescoço, os ombros...
Lábios que se ligavam a ela em beijos cada vez mais ardentes, como se ele quisesse avidamente beber-lhe o sangue.
O que restava de seus terrores sumiu. O homem criado para ela encontrara-a. Com ele, tudo era natural, simples e belo. Pertencer-lhe, ficar ali, paralisada pelo abraço dele, e de súbito, lúcida, dar-se conta, num misto de susto e alegria ofuscante, de que finalmente eles eram apenas um...
O dia nascia, levantando um a um os véus de escuridão e de- . volvendo aos olhos apaixonados de Angélica os contornos daquele rosto de fauno, endurecido e talhado numa madeira patinada, que ela ainda não tinha muita certeza de que não pertencesse ao domínio do sonho.
Pressentia que não poderia passar sem os abraços dele, suas carícias, a expressão que lia nos olhos que tinham sido tão duros para ela.
O dia nascia, dia depois de tempestade, em que o mar apresentava aquele movimento cansadp e voluptuoso que Angélica acreditava sentir no mais fundo de si mesma. O odor do mar perdia a acrimônia. Angélica respirava o aroma do amor, o incenso de sua união. Mas não estava livre de receios.
Nenhum dos apelos que lhe enchiam o coração conseguira passar-lhe pelos lábios.
O que pensaria ele de seu mutismo? De seu acanhamento? O que diria quando falasse? Estava certa de que ele preparava uma tirada de humor. Adivinhava-se isso pelo vinco sarcástico que lhe marcava o rosto.
- Ora! - exclamou -, afinal de contas não foi muito mal para uma pequena abadessa. Mas cá entre nós, minha cara, você não fez progressos no amor desde a escola da Gaia Ciência.
Angélica pôs-se a rir. Antes ser censurada por ele pela falta de jeito do que pelos progressos. Podia aceitar que ele zombasse um pouco dela. Fez-se de confusa.
- Eu sei. Você terá muitas coisas a me"ensinar novamente, meu caro senhor. Longe de você, não vivi, apenas sobrevivi. Não é a mesma coisa...
Ele fez um muxoxo.
- Hum! Não a creio inteiramente, hipócrita!'Não tem importância! A frase é bonita.
Continuava a acariciá-la, apreciando as formas suaves e cheias que se revelavam sob seus dedos.
- È um crime ocultar um corpo como este sob saias de criada. Vou remediar isso.
Ela o viu levantar-se£ ir procurar coisas num cofre, que atirou ao pé do leito.
— A partir de hoje você se vestirá decentemente.
— Você é injusto, Joffrey. Minhas saias de criada, como diz, são muito boas..Imagina-me embarcando no Gouldsboro em traje de cerimonia, com dragões em nosso encalço? Já não sou a soberana de um remo.
Ele deitou-se* outra vez a seu lado. Apoiado a um cotovelo, o outro braço pousado contra um dos joelhos dobrados, numa atitude de meditação em que ela lhe reconhecia a antiga graça de bailarino, ele parecia devanear.
- Um reino?... Mas eu possuo um. É imenso... Admirável.
As estações do ano o revestem de esmeralda ou de ouro. O mar de um azul raro banha suas praias cor da aurora...
Renascia nele o lampejo dos trovadores.
— Onde fica seu reino, meu caro senhor?
— Eu a levarei até lá.
Ela estremeceu, trazida de volta à realidade de sua situação presente. Baixinho, ousou murmurar:
- Então não nos leva às ilhas?
Ele não pareceu ouvir. Depois, dando de ombros:
- Às ilhas?... Bah! Eu lhe darei ilhas... Mais do que deseja...
Pousou o olhar sobre ela e voltou a sorrir. Sua mão brincava maquinalmente com os cabelos de Angélica, espalhados sobre o travesseiro. Ao secarem, haviam recuperado a tonalidade habitual. Joffrey de Peyrac parecia intrigado.
— Como sua cabeleira clareou! - exclamou. - Mas, com efeito, você tem cabelos brancos!
— Sim - murmurou ela -, cada mecha é a lembrança de uma agonia.
De cenho franzido, ele continuava a examiná-la com uma atenção escrupulosa.
- Conte - disse, autoritário.
Contar? O quê? Os sofrimentos que lhe haviam obstruído o caminho longe dele?
Com suas pupilas imensas, insondáveis, ela o fitava com um olhar devorador. Suavemente, ele lhe acariciava as têmporas com o dedo. Ela não sabia que com esse gesto ele lhe enxugava as lágrimas que começaram a lhe escorrer dos olhos sem que ela notasse.
~ Esqueci tudo, não há nada a contar.
Levantou os braços nus, ousou unir-se a ele e puxá-lo contra o coração.
— Você está tão mais jovem do que eu, Sr. de Peyrac. Conservou sua cabeleira moura, escura como a noite. Um ou outro cabelo grisalho.
— Devo-os a você...
— É verdade mesmo?
Ao indeciso alvorecer, ele via tremer-lhe a curva dos lábios, entre o sorriso e a tristeza. E pensava: "Minha única dor... meu único amor..." Antigamente sua boca não tinha tanta fremência de vida, uma expressão tão sedutora.
- Sim, sofri... por sua causa... se isso pode contentá-la, devo
radora de homens.
Como ela era bela! Mais bela por possuir um calor humano com que a vida a enriquecera. Ele repousaria sobre o seio dela. Em seus braços, esqueceria tudo.
Segurou a pesada cabeleira nacarada, torceu-a, fez um laço que enrolou ao próprio pescoço. Lábios contra lábios, iam recomeçar a beíjar-se apaixonadamente, quando o espocar de um tiro de mosquete do lado de fora quebrou o silêncio da manhã.
Era felicidade demais para ser verdade!
Depois de quinze anos de desengano, peripécias desencontradas como as ondas tempestuosas que se chocavam contra o casco do navio, desventuras e incertezas, Angélica finalmente encontrara seu amor. E ele a desejava - ' 'urna sereia arrancada do fundo das águas, com apele amarga e gelada, que tem medo do amor dos homens"... Ele a desejava!
Numa única noite de amor, o homem criado para ela a encontrara. Com ele, tudo era natural, simples ebela Depois da tempestade, a apaixonada Marquesa dos Anjos pressentia que não poderia viver sem ele. Enfim respirava o aroma do amor.
Mas a felicidade era demais para ser verdade!
Um tiro! Um tiro de mosquete no convés do Gouldsboro era o sinal de que tudo poderia estar perdido. Um tiro lembrava as cenas passadas: a polícia do rei, os dragões...
Anne e Serge Golon
O melhor da literatura para todos os gostos e idades